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Full text of "Historia da litteratura brasileira por Sylvio Roméro .."

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í^q$AL  CjD^Ò.Ip. 


H^atòãtti  CoUese  l.ttirai:s 


FROM   THE* 


MARY     OSGOOD     KUND 

The  sum  ol  $6,000  wtts  bequeathed  to  the  CoUege  by  Mary 

Otgood,  of  Medford,  in  1860;  íd  1883  the  fand  becamc 

availmble  "  to  purdiase  tach  books  as  thall  be 

mott  needed  for  the  College  Library,  so 

as  best  to  promote  the  objecta 

of  the  College. 


HISTORIA 


DA 


UTTERATURA  BRASILEIRA 


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H.  GÂRNIER,  Livreiro-Editor,  Raa  do  Ouvidor,  71 


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popular  dos  Ciganos  da  Cidade  Nova,  1  vol.  in-8.*  ene.  3S000,  br ^£000 

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HISTORIA 


DA 


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LITTERATURA 


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fg{  (d  880-1870) 

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'  RIO  DE  JANEIRO 

H.    6ABNIEB,   LIVBEIBO-EDITOB 

71,  Rua  do  Oovidor.  71 
1903 


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HISTORIA 


DA 


LITTERATURA    BRASILEIRA 


LIVRO  IV 

TERCEIRA  ÉPOCA 

OU  período  de  transformação  romântica 

(1830-1870) 


CAPITULO  I 
Poesia.  O  romantismo.  Sua  primeira  phase. 

O  momento  histórico  aberto  agora  diante  dos  olhos  dos 
leitores,  o  romantismo,  representa  só  por  si  quasi  toda  a 
litteratura  do  século  XIX,  e,  todavia,  ainda  n&o  tem  sido  bem 
apreciado.  Distendido  entre  dois  inimigos,  dois  rivaes  podero- 
sos, tem  levado  golpes  á  direita  e  á  esquerda.  Nós  os  homens 
do  ultimo  quartel  do  século  não  assistimos  a  sua  lucta  com  o 
classismo,  pugna  brilhante  de  que  sahiu  victorioso  :  presencia- 
mos em  compensação  seu  pelejar  com  o  naturalismo  e  dez  ou- 
tras theorias,  que  o  pretenderam  definitivamente  enterrar. 

Estas  em  seu  enthusiasmo  juvenil  acreditam  nada  dever 
ao  velho  systema...  Pernicioso  erro  histórico.  Deviam  reparar 
que  a  litteratura  se  rege  pela  lei  da  evolução,  é  uma  verdadeira 
organisação  de  pbylogenesis  das  ideias.  Nada  existe  sem  ant»- 

BUTORIA  U  1 


Z  HISTOBIA  DA  LITTEEATU&A  BRASIL£IBA 

cedentes,  mesmo  na  evolução  cenogenetica,  e  os  anteceden- 
tes das  doutrinas  de  hoje  sáo  justamente  o  próprio  roman- 
tismo... Mas  que  é,  que  foi  o  romantismo  ?  Ha  vinte  respostas 
a  esta  pergunta.  Aprecicm-se  algumas  d'cllas. 

O  romantismo  foi  uma  reacção  religiosa  contra  a  philoso- 
phia  do  século  XVIII.  Assim  pensam  alguns,  illudidos  pelo  pri- 
meiro momento  da  romântica  franceza,  a  phase  tolamente 
denominada  emanuelica.  Não  pôde  haver  maior  engano  em 
historia  litteraria. 

A  par  de  alguns  poetas  catholicos,  o  systema  produziu,  por 
exemplo,  poetas  de  um  materialismo  sem  mescla.  O  mesmo 
na  critica,  na  philosophia  e  no  resto.  Byron,  Edgar  Poé,  BaJ- 
zac,  Saínle-Beuve,  Baudelaire,  para  não  falar  em  Goethe,  não 
foram  catholicos.  Veja-se  outra. 

O  romantismo,  se  não  foi  uma  volta  ao  christianismo  puro, 
foi  certamente  uma  reacção  contra  a  Renascença,  um  retorno 
ás  scenas  e  á  vida  da  edade  media...  Existe  ahi  muito  oscre\1- 
nhador  de  momento,  que  possue  da  litteratura  do  XIX  século 
essa  misera  noção  e  traça-lhe  táo  acanhada  característica.  Um 
erro,  uma  triste  vista  superflcialissima  dos  factos  intellec- 
tuaes. 

Que  tém  que  ver  Leopardi,  Musset,  Shelley  com  a  edade 
media  7 

Os  movimentos  de  reacção  e  retorno  em  litteratura  e  em  po- 
litica são  sempre  movimentos  negativos,  e  seria  um  despropó- 
sito que  o  século  XIX,  o  grande  creador  dos  estudos  histó- 
ricos, o  introductor  em  todas  as  sciencias  do  principio  da  his- 
toricidade, viesse  alentar-se  de  uma  poesia  anachronica,  em- 
perrada, reaccionária  contra  as  leis  do  desenvolvimento  pro- 
gressivo das  ideias.  Impossível. 

Não  podendo  as  duas  fórmulas  lembradas  conter  e  explicar 
todos  os  phenomcnos  litterarios  do  tempo,  imaginaram-se  ou- 
tras. O  romantismo  era  o  scepticismo,  a  duvida  philosophica 
e  religiosa  levada  para  a  poesia.  Byron,  injustamente,  foi 
inventado  para  symbolisar  esta  tendência. 

Digo  inventado  ;  porque  o  grande  Byron,  ao  menos  cá  pelo 
nosso  mundo  latino,  é  menos  o  valente  poeta  inglez  do 
que  um  certo  typo  convencional  crêado  pela  critica  franceza. 


HIBTOBIA  DA  UTTBBATXntA  BBÁ8ILSIRA  ó 

Este  modo  de  explicar  o  romantismo  é  graciosamente  estéril. 
Schiller  e  Victor  Hugo,  Tennyson  e  Wordsworth  ficariam 
fora  do  quadro. 

Houve  recurso  a  outros  expedientes  :  o  romantismo  é  o  sen- 
timentalismo na  litteratura,  é  a  continuação  da  melancbolia 
de  Rousseau,  distendia  por  todo  o  século  xix.  Sáo  bem 
conhecidos  os  typos  de  Werther,  Corina,  Adolpho,  Olympio, 
René,  Jocelyn,  Lelia  e  muitos  outros  chamados  para  jusUfl- 
carem  a  theoria.  Esta  explicação  é  até  a  predominante  geral- 
mente no  grande  publico. 

Um  homem  romântico  é  um  typo  pallido  e  tristonho,  exhl- 
bindo  magoas  e  desconsolos. 

Uma  moça  roínantica  é  uma  creaturinha  meio  phantasUca, 
de  olhos  langues,  descoradas  faces,  um  todo  feito  de  sonhos  e 
chymeras... 

Quem  não  vê  que  os  delírios  passageiros  d6  um  tempo  não 
podem  constituir  a  força,  a  substancia  activa  de  uma  littera- 
lura  ?  Não  é  o  bom  ou  o  máo  humor  dos  poetas  que  marca  a 
Índole  das  doutrinas  e  dos  systemas  Utterarios.  O  romcui- 
tismo  não  possuio  somente  chorões  reaes  ou  affectados ;  teve 
também  muitos  espíritos  equilibrados  e  expansivos  a  com- 
municarem  enthusiasmos  e  alegrias. 

Foi  preciso  á  critica  inventar  outra  medida,  outra  toéza 
para  marcar  os  poetas,  romancistas  e  dramaturgos. 

O  romantismo  foi  o  predomínio  da  imaginação,  o  princi- 
pado da  phantasia. 

Que  é  um  livro  romântico  ?  E'  um  livro  phantastico,  eivado 
de  miragens,  de  encantamentos,  como  o  Ashavérus  de  Quinet. 
Que  é  um  heróe  romântico  ?  E"  um  ente  raro,  miraculoso,  uma 
espécie  de  archetypus  em  contraste  com  o  mundo  positivo, 
vivendo  d'uma  vida  ideial. 

Victor  Hugo  crêou  uma  galeria  d'elles  :  Bug-Jargal,  Jean 
Vcdgean,  Quasímodo,  Hernâni,  Cimourdin,  Lantenac,  An- 
gelOj  e  trinta  outros. 

Por  menos  que  se  deseje  uma  litteratura  que  seja  uma 
expressão  da  realidade,  uma  notação  da  vida  mundana,  não 
é  possível  desconhecer  a  falsidade  das  crêaçõês  dos  romances 
e  dramas  do  grande  lyrista  francez. 


i 


4  HIBTOBIA  DA  UTTBRATUBA  BRA.8ILBIBÁ 

Se  O  romantismo  tivesse  ílcado  n'aquilIo,  teria  sido  um  mo- 
vimento insignificante,  despresivel,  e  o  próprio  Hugo,  se  ti- 
vesse produsido  só  esses  disparates,  seria  hoje  um  nome  es- 
quecido, justamente  esquecido. 

Houve,  porém,  momentos  em  que  os  românticos  deixavam 
os  sonhos  e  approximavam-se  da  realidade.  Balzac  foi  um 
d^elles-  Para  esses  o  romantismo  era  a  ultima  palavra  das 
crêações  litterarias  :  tinha  uma  base  scientiflca,  e  seu  fim  era 
representar  a  vida  das  almas  humanas,  a  historia  natural 
dos  caracteres,  como  a  biologia  é  a  historia  natural  da  vida 
orgânica  nos  seus  domínios  inferiores. 

Era  esta  uma  pretençâo  exagerada,  em  desacordo  com  as 
maiores  invenções  do  systema. 

Não  estavam  esgotadas  as  doutrinas  e  as  explicações. 

E*  mister  aprender  a  natureza  da  theoria  feita  pelos  seus 
grandes  representantes.  Em  1830,  em  artigo  consagrado  ás 
poesias  de  André  Dovale,  artigo  reproduzido  no  prologo  de 
Hernâni^  Victor  Hugo  definia  a  nova  escola  —  o  dominio  do  lir 
beralismo  na  arte.  Se  bem  entendo  o  poeta  espirituadista,  o  ro- 
mantismo não  era  uma  questão  de  ideias  philosophicas,  se- 
não uma  certa  franquia  na  escolha  dos  eissumptos  e  no  modo 
de  os  tratar.  Os  clássicos  tinham  assumptos,  ideias  e  lingua- 
gem consagrados ;  labutavam  n*um  circulo  estreito  a  remexer 
velhos  manequins  d'uma  rhetorica  estafada.  O  classismo  era 
uma  espécie  de  pagem  da  velha  realeza.  As  ideias  revolucio- 
narias abalarami  os  thronos,  entraram  pela  litteratura  a  den- 
tro 6  desconcertaram  as  poentas  cabelleiras  clássicas. 

Houve  um  grande  acordar  para  a  vida,  a  liberdade  penetrou 
em  todos  os  recessos  do  pensamento.  Este  o  grande  feito  do 
romantismo. 

E*  a  verdade  em  parte ;  não  dá,  porém,  toda  a  medida  das  no- 
vas tendências.  Bem  cedo  o  novo  systema  teve  também  sua 
rhetorica  vasia  e  retumbante,  inanida  e  fútil.  Victor  Hugo  bem 
contribuio  para  formal-a  e  diflundil-a  pelo  mundo  latino.  Ao 
lado  e  ao  tempo  do  cantor  das  Contemplações^  Alf.  Musset, 
depois  dos  desvarios  de  1830,  ridicularisava  a  grande  escola 
de  que  era  elle  um  dos  mais  prestimosos  ornamentos. 

Em  1836,  em  artigo  inserto  na  Revue  des  deux  Mondes^  sa* 


HISTORIA  DA  LITTBRATUBA  BKABUiBISA  5 

tyrisava  a  litteratura  corrente,  mostrando  não  ter  ella  nada 
avançado  além  da  que  a  precedera  a  não  ser  o  emprego  abu- 
sivo de  adjectivos...  O  primeiro  poeta  írancez  do  século  XIX 
poz  o  dedo  em  cima  de  uma  das  chagas  da  romântica.  Espiritos 
de  segunda  e  terceira  classe,  rábulas  e  mezinheiros  das  lettras, 
immiscuiram-se  no  meio  dos  grandes  mestres  e  deitaram  a 
perder  o  trabalho  dos  progonos. 

Sem  ideias  e  sem  vis  creadora,  apegarara-se  ás  franjas  da 
linguagem  e  esvasiaram  a  litteratura  do  século. 

A  satyra  dò  auctor  de  Don  Paez  e  de  Porcia  attinge  perfeita- 
mente o  alvo ;  tem  a  sensatez  da  justiça. 

Comprehende-se,  entretanto,  não  ser  sufflciente  o  gracejo 
humorístico  do  poeta  de  Rolla  para  definir  e  diferenciar  um 
movimento  litterario,  que  se  protrahiu  por  mais  de  setenta 
annos. 

Mais  profundo,  ou  antes,  profundamente  serio,  foi  o  pro- 
gramma  traçado  á  nova  escola  por  Frederico  Schlegel  em 
Í796.  Sabe-se  que  os  críticos  allemães  excluem  da  escola  ro- 
mântica Lessing,  Klopstock,  Herder,  Goethe  e  Schiller. 

O  movimento  romântico  allemão  é  para  elles  posteríor  ao 
famoso  período  clássico  em  que  floresceram  aquelles  grandes 
génios,  e  começou  com  Schlegel  no  anno  pre-citado. 

Ainda  fazendo  tão  grande  desconto,  o  romantismo  germâ- 
nico é  bem  anterior  ao  seu  pretencioso  irmão  francez. 

O  manifesto  litterario  de  Schlegel  consigna  como  ideia  capi- 
tai da  doutrina  o  approveitar-se  ella  dos  ensinamentos  da 
sciencia,  da  historia  e  da  critica.  E'  evidentemente  um  pre- 
nuncio, uma  antecipação  ao  philosophismo  ou  scientitícismo 
defendido  por  alguns  poetas  post-romanticos.  Schlegel  queria 
apenas  fornecer  á  poesia  armas  novas;  approximal-a  das 
grandes  luctas  modernas,  sem  despil-a,  porém,  de  seu  cara- 
cter especifico.  Mal  comprehendida  a  ideia  do  romântico  te- 
desco,  pode-se  tombar  nas  mais  grosseiras  extravagâncias. 
Em  todo  caso,  seu  programma  não  foi  seguido ;  a  poesia  ca- 
minhou por  um  lado  e  a  sciencia  por  outro. 

A  doutrina  de  Schlegel,  incompleta  e  inefflcaz  para  explicar 
a  índole  da  poesia  e  da  litteratura  do  século,  foi  adoptada  e 
desenvolvida  por  aquelles  moços,  que  hnnaram  a  Heine  e 


6  HISTOBIA  DA  LITTEBATTJBA  BRABILBIRA 

BcBrne  por  chefes,  e  são  conhecidos  na  historia  com  o  nome 
de  Joven  Allemanha. 

Para  elles  o  grande  disideratum  da  litteratura  do  tempo  era 
luctar,  pugnar  pela  Uberdade  politica,  social  e  religiosa.  De 
via  para  tanto  lançar  de  preferencia  mão  da  prosa. 

Seria  isto  muito  bom  nos  pamphletos  políticos,  nos  escri- 
ptos  de  polemica,  nas  obras  de  critica.  Na  poesia  o  eterno  e  se- 
diço  badalSLT  contra  Deus  e  o  Christo,  contra  o  papa  e  os  reis, 
será  de  muito  alcance  nas  mãos  ou  na  bocca  dos  enthusiastas 
e  propagandistas  ;  mas  como  arte,  como  poesia,  é  preferível  ir 
alli  a  um  sitio  qualquer  ouvir  uma  sertaneja  cantar  algumas 
trovas  populares. 

O  que  alguns  sonhadores  novos,  tomados  de  anciãs  dema- 
gógicas ou  de  religiophobia,  julgam  conquista  novíssima  de 
suas  cabeças,  é  em  verdade  cousa  bem  velha  no  s«io  do  velho 
romantismo.  Não  o  explica,  entretanto. 

Mais  alentada  é  a  ideia  de  quem,  como  Grimm,  julga  ser  a 
notação  fundamental  da  litteratura  do  XIX  século —  a  volta 
de  todcLS  e  de  cada  uma  das  nações  ás  sucLS  crêações  popu- 
lares. 

Foi  esta  certamente  uma  das  grandes  obras  do  romantismo. 

Ajudado  pela  critica,  pela  linguistica  e  pela  mythographia, 
elle  penetrou  na  região  encantada  das  lendas,  dos  contos,  das 
canções,  das  crenças  populares.  A  nativisação,  a  nacional i- 
sação  da  poesia  e  da  litteratura  em  geral  foi,  talvez,  o  maior 
feito  do  romantismo.  Não  o  explica  de  todo. 

Tão  pouco  o  exclarece  dizer,  com  Zola,  que  sua  funcção 
histórica  foi  preparar  a  lingua  para  ser  empregada  pelo  natu- 
ralismo hodierno.  Rezultado  inconsciente  este,  não  consti- 
tuiu jamais  o  programma  de  uma  escola. 

Que  foi  então  o  romantismo  ? 

Tentarei  explical-o.  A  diíTerança  existente  entre  a  litteratura 
do  século  XIX  e  a  litteratura  dos  outros  tempos  é  a  mesma  que 
existe  entre  a  sciencia  e  a  philosophia  do  século  XIX  e  a 
sciencia  e  philosophia  dos  outros  tempos. 

A  evolução  intellectual  obedece  á  lei  do  consensxis  em  todas 
as  suas  faces.  Philosophia  nova,  litteratura  nova. 

Ora,  a  philosophia  dos  outros  séculos  estava  no  absoluto  e 


HISTOBIA  BA  LITTS&ATUBA  BBASIUSIRA.  7 

a  nossa  estú  no  relativo  ;  a  antiga  era  aprion  e  a  nossa  é  após- 
teriori.  Aquella  tinha  um  direito  universal,  urna  grammatica 
universal,  uma  arte  universal,  um  modelo  universal  para 
tudo  ;  esta  ensina  ser  o  direito  uma  funcçâo  da  vida  nacional, 
a  lingua  uma  formação  nacional,  a  poesia  uma  ideialisação 
nacional.  Ha  tantos  direitos,  grammaticas  e  artes  originaes, 
quantõis  são  as  raças  que  dividem  a  humanidade.      ^ 

A  poesia  clássica  tinha  ideias,  linguagem,  forma  predeter- 
minadas ;  a  poesia  nova  quebrou  o  molde  antigo  e  vasou-se 
em  tantos  moldes  novos,  quantos  povos  e  até  quantos  indivi- 
dues de  génio  poetaram. 

O  romantismo  foi,  pois,  uma  mudança  de  methodo  na  lit- 
teratura ;  foi  a  introducção  do  principio  da  relatividade  nas 
producções  litterarias  ;  foi  o  constante  appello  para  o  regimen 
da  historicidade  na  evolução  da  vida  poética  e  artística. 

D'ahi  a  liberdade,  a  generalidade  de  suas  creações  ;  elle  des- 
centralisou  as  lettras ;  nacionalisou-as  n'uns  pontos,  provin- 
cialisou-as  n'outros,  individualisou-as  quasi  por  toda  a  parte. 

N*este  sentido  largo  o  romantismo  é  a  litteratura  do  presente 
e  póde-se  dizer  que  será  a  do  futuro,  não  passando  os  syste- 
mas  de  hoje  de  resultados  necessários  seus. 

Foi  a  reforma  nas  sciencias  do  espirito,  a  reforma  dos  me- 
thodos  históricos,  que  influio  immediatamente  na  litteratura. 

Os  seus  iniciadores  partiram  da  analyse  dos  factos,  da  rela- 
tividade das  cousas ;  sahiram  do  absoluto  e  procederam  por 
via  de  inducção.  Lessing  reformou  a  critica  litteraria,  Winc- 
kelmann  a  critica  artística,  Kant  a  critica  do  conhecimento, 
Herder  a  critica  histórica,  Wolf,  Heyne,  Hermann,  Lobeck, 
Kreuzer  a  critica  mythologica.  Gõthe  e  Schiller  surgiram  e  a 
poesia  nova  estava  creada.  Movimento  análogo  dava-se  entre 
os  Inglezes,  influenciados  pela  philosophia  de  Hume. 

A  historia  litteraria,  como  se  escreve  em  Brasil  e  Portugal, 
faz  partir  a  nova  litteratura  de  Montesquieu,  de  Voltaire  e 
nomeadamente  de  Rousseau.  E'  esquecer  que  o  melhor  das 
ideias  de  Montesquieu  e  Voltaire,  em  quem  todos  falam  ejque 
ninguém  lô,  é  proveniente  da  Inglaterra,  habitada  e  estudada 
por  elles. 

Rousseau,  que  se  inspirou  também  na  Inglaterra  e  na  Suissa, 


BIBTOBIÀ  DA  UTTXai.TITSA,  BKASILKIBÁ 

u  duas  influencias  pemiciosissimas  :  a  politica,  do  Con- 
íociai,  abstracta,  ideológica,  absoluta,  cujos  máos  eflei- 
levoluçâo  patentou  ;  nada  mais  contrario  á  intuição  po- 
lo século  XIX  ;  a  litteraria,  da  Nova  Heloísa  e  do  EmUiOy 
imana,   doentia,  anti-cullural,   cujos  desatinos  cobri- 
e  descrédito  uma  parte  dos  seus  adeptos, 
sseau  não  é  o  pae  da  litteratura  do  século  XIX  nas  suas 
laçOes.  Maior  influencia  teve  Diderot,   sem  comtudo 
íhefe  da  intuição  litteraria  dos  novos  tempos. 
ima  de  fazer  do  amigo  de  Madame  d'Epinay  o  supremo 
ador  das  ideias  do  mundo  hodierno  é  alguma  cousa  de 
;o  à  mania  de  fazer  de  Carlos  Magno  um  francez,  da 
othica  um  producto  da  Qallia,  da  Renascença  e  da  Re- 
umas  aflltiadas  do  espirito  parisiense. 
tteratura  do  século  XIX,  a  despeito  de  sua  grande  varie- 
obedece  a  um  principio  commum  ;  n'ella  o  espirito  per- 
ite  vae  descobrir  os  fios  directores  de  uma  grande  uni- 
ie  methodo  e  de  intuitos  geraes. 
Europa  atravessou  períodos  diversos  em  seu  desenvol- 
to phylogenetico,  e  mesmo  na  formação  ontogenica  de 
im  de  seus  grandes  representantes, 
le  e  Victor  Hugo,  por  exemplo,  podem  servir  de  bell<» 
mina  de  ontogenesis  litterario.  Atravessaram  phazes 
as  o  s&o  como  uma  espécie  de  resumo  da  evoluçÃo  cul- 
le  allemSes  ô  francezes. 
ramos  as  vistas  para  o  nosso  paiz. 
rimeira  irrupção  do  rcHnaatismo  no  Brasil,  é  costume 
se,  foi  o  presente  feito  de  Paris  por  Domingos  de  Maga- 
de  seus  Suspiros  Poéticos  e  Saudades  em  1836,  justa- 
I  no  anno  em  que  o  bom  Musset  ridicularisava  os  exces- 
is  ultra-romanticos. 

)rovei  anteriormente  a  falsidade  d'esse  boato  histórico. 
:císo  recuar  dez  annos  para  pegar  nas  mãos  as  pri- 
s  manifestações  brasileiras  da  escola. 
s  indiquei ;  e  é  inútil  repetirme  agora  (1). 
amos,  entretanto,  de  Magalhães  e  do  anno  de  1836. 

a  parte  qus  trata  de  Maciel  Mon- 


1 


HI8T0BIA  DA  UTTBEATUBil  BSAfllLKIBA  9 

Os  phenomenos  históricos  na  vida  positiva  das  nações  nao 
se  produzem  em  globo,  nem  se  produzem  isoladamente^ 
como  as  abstracções  de  um  quadro  lógico.  Manifestam-se 
orgânica  e  gradativamente. 

O  primeiro  trabalho  a  fazer-se  agora  aqui,  antes  da  cara- 
cterisaçáo  especifica  dos  lypos  litl^rarios,  é  a  notação  precisa 
das  phases  da  evoluç&o. 

A  litteratura  rege-se  pela  lei  do  desenvolvimento  á  maneira 
das  formações  biológicas.  Ainda  como  as  creações  bioló- 
gicas, ella  tem  a  sua  lucta  pela  existência,  onde  as  ideias 
mais  fracas  são  devoradas  pelas  mais  fortes.  As  ideias  lèm 
todas  um  elemento  hereditário  e  tradicional  e  um  elemento 
novo  de  adaptação  a  novas  necessidades  &  a  novos  meios. 

Cada  nação  tem  seu  património  de  ideias  representativas 
do  seu  desenvolvimento  natural  :  é  a  phylogenia  liiteraria, 
repetindo  a  linguagem  de  Hãckel.  Cada  grande  typo  tem  for- 
ças e  impulsos  próprios,  alem  d'aquelles  que  recebe  por 
herança  :  é  a  ontogenia  litteraria,  para  falar  ainda  como  o 
celebre  naturalista. 

A  ideia  de  força  e  de  lucta  domina  sempre  as  grandes  e  até 
as  pequenas  litteraturas;  é  o  pugnar  das  ideias,  das  theorias, 
das  opiniões;  são  as  polemicas,  a  guerra  intestina  dos  syste- 
mas.  Uma  litteratura  pacifica  é  uma  litteratura  morta. 

As  lettras  seguem  a  meircha  da  civilisação,  porque  ellas  são 
um  producto  da  cultura  e  não  da  natureza. 

Entre  nós,  como  por  toda  a  parte,  o  romantismo  passou 
por  momentos  diversos.  Cada  momento  teve  seus  progonos 
e  seus  epígonos. 

O  primeiro  momento  da  romântica  brasileira  foi  aberto  sob 
a  influencia  de  Lamartine ;  é  a  pheise  religiosa,  emanuelica. 
Domingos  de  Magalhães  foi  o  progono,  o  chefe. 

Porto  Alegre,  Teixeira  e  Sousa,  Norberto  Silva,  João  Car- 
doso foram  os  continuadores,  os  epígonos. 

A  esta  phase  seguiu-se  muito  de  perto,  e  pode-se  dizer 
quasi  simultaneamente,  o  momento  do  indianismo,  do  ame- 
ricanismo, inspirado  por  Chateaubriand  e  Cooper. 

Gonçalves  Dias  foi  o  propulsor  nunca  excedido  do  género. 

Viu-se  o  curioso  phenomeno  de  constituírem-se  satélites  do 


10  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRASILEIRA 

grande  poeta  maranhense  todos  aquelles,  mais  velhos,  que 
tinham  aberto  a  phase  proximamente  anterior.  Foram-no  du- 
rante algum  tempo,  deixando-o  mais  tarde.  Alem  desses,  o 
indianismo  na  poesia  teve  outros  cultores,  todos  pequenos  e 
hoje  anonymos. 

Não  falo  no  romance  e  no  drama  que  serão  vistos  depois  ; 
falo  da  poeisia,  cujo  desenvolvimento  foi  mais  normal. 

Depois  do  indianismo  rasgou  outras  perspectivas  ao  ro- 
mantismo brasileiro  o  genial  espirito  de  um  moço  de  vinte 
annos. 

Vinha  imbuido  de  ideias  mais  geraes,  mais  universaes.  A 
poesia  não  era  d'aqui  nem  d'ali.  Pallida  e  melancholica  pere- 
grina, era  a  hospeda  das  almas  ardentes  em  todos  os  tempos, 
sob  todos  os  céus,  ao  calor  de  todos  os  soes,  ao  susurrar  de 
todas  as  brisas. 

Byron  e  Musset  eram  os  deuzes  instigadores  d'esses  enthu- 
siasmos  juvenis.  Alvares  de  Azevedo  foi  o  progono  de  uma 
grande  geração.  Bernardo  Guimarães,  Aureliemo  Lessa,  José 
Bonifácio,  Teixeira  de  Mello,  Casimiro  de  Abreu,  Bittencourt 
Sampaio,  Pranklim  Dória,  Bruno  Seabra,  e  trinta  outros  for- 
maram em  grupo  em  tomo  da  figura  do  poeta  da  Lyra  dos 
Vinte  Annos.  Isto  em  sentido  muito  geral. 

O  romantismo  não  se  podia  esquecer,  deixar-se  morrer 
n'essa  poesia  de  muitas  magoas  e  poucas  alegrias. 

Novos  talentos  forcejaram  por  arrancal-o  áquelle  torpor. 
Como  acontecera  nos  anteriores  movimentos,  pediram  um 
chefe  á  litteratura  da  velha  Europa. 

D'esta  vez  foi  Victor  Hugo,  com  o  seu  lyrismo  ardente, 
arrebatado,  e  com  seu  humanitarismo  sympathico,  o  mestre 
escolhido.  Tobias  Barreto  foi  o  provocador  do  movimento. 
Cercaram-no  em  ruidoso  alvoroço,  n'uma  espécie  de  natura- 
lismo lyrico  e  socialista,  as  bellas  figuras  de  Castro  Alves, 
Victoriano  Falhares,  Guimarães  Júnior,  Altino  de  Araújo, 
Castro  Rebello,  ao  norte  do  Brasil;  e  ao  sul,  sob  a  influen- 
cia directa  de  Castro  Alves,  Carlos  Ferreira,  Elseario  Pinto  e 
alguns  outros,  que  desapparecem  no  anonymato. 

Foi  em  rigor  o  ultimo  instajito  do  romantismo  consciente- 
mente praticado  como  tal. 


HI8T0BIA  DA  LITTESATUBÁ  BKA8ILXIBA  11 

Depois  principiaram  a  surdir  tentativas  de  reforma.  Sylvio 
Roméro  (1)  atacou  o  velho  systema  em  repetidos  artigos  de 
critica,  apresentando  a  fórmula  de  uma  poesia  nova,  inspi- 
rada na  sciencia  e  na  philosophia  do  dia.  Adoptada,  n'aquelle 
tempo,  a  mesma  intuição  pelo  moço  Teixeira  de  Souza,  foi 
depois  exagerada,  especialmente  por  Martins  Júnior  e  raros 
mais. 

Ao  lado  d*esse  philosophismo  ou  si^ientificismo,  ergueu-se 
o  lyrismo  despreoccupado,  visando  fazer  a  poesia  pela  poe- 
sia, cultivando  de  preferencia  a  forma.  Eram  os  seguidores 
de  Leconte  de  Lisle  e  de  Banville. 

E'  o  grupo  a  que  seu  o  nome  de  parnasianos.  Inclinavam-se 
já  para  um  naturalismo  selecto,  já  para  os  puros  domínios 
da  phantasia.  Quasi  toda  a  moderna  poesia  brasileira  veio 
postar-se  d'este  lado  da  montanha.  Seu  representante 
máximo  foi  o  Dr.  Luiz  Delflno  dos  Santos. 

Com  ser  já  homem  velho  em  idade  e  velho  nas  letras, 
antiga  poeta  condoreiro,  nunca  havia  tomado  parte  activa 
em  nossas  luctas.  Nos  últimos  vinte  annos  do  século,  porém, 
desenvolveu  uma  tal  actividade  e  chegou  a  um  grau  tal  de 
renome  que  foi  preciso  d^então  em  diante  contar  com  elle. 

Em  deredor  doesse  decantado  poeta  luctaram  quasi  todos  os 
moços,  disse  eu,  e,  entre  outros,  devo  lembrar  os  nomes  de 
Theophilo  Dias,  Raymundo  Correia,  Alberto  de  Oliveira, 
Olavo  Bilac  e  vinte  outros  com  os  quaes  me  hei  de  occupar 
opportunamente. 

Taes  as  principaes  phases  do  romantismo  brasileiro  na 
poesia.  No  romance  e  no  theatro  a  evolução  não  s&  fez  tão 
normalmente,  tão  logicamente. 

O  romance  e  o  theatro  hão  tido  entre  nós  uma  espécie  de 
desenvolvimento  episódico  e  esporádico. 

O  romance  teve  uma  phase  embryonaria  no  velho  Teixeira 
e  Souza;  assumiu  as  proporções  de  estudo  social  em  Joa- 
quim Manoel  de  Macedo;  multiplicou-se,  para  attender  a 
todas  as  cambiantes  da  nossa  população,  em  José  de  Alencar; 
adstringiu-sc  ás  populações  campesinas  em  Franklin  Tá- 
vora ;  tomou  feições  psychologicas  em  Machado  de  Assis  e 

(1)  Peço  licença  para,  como  tantos  outros,  falar  no  meu  nome  em  3*.  pessoa. 


12  HIBTOBIA  DA  LITTERATURA  BRABILBIfiÁ 

naturalistas  em  Aluizio  Azevedo.  Em  tomo-  d'estes  têm  gyrado, 
em  suas  respectivas  épocas,  Manoel  de  Almeida,  Escragnodle 
Taunay,  Bernardo  Guimarães,  Carneiro  Vilella,  Araripe  Jú- 
nior, Celso  de  Magalhães,  Inglez  de  Sousa,  Raul  Pompéa  e 
outros. 

O  theatro  mostra  um  desenvolvimento  ainda  inferior  ao  do 
romance. 

Penna,  Macedo,  Alencar  e  Agrário  iniciaram  a  comedia,  e 
balbuciaram  o  drama  nacional.  Não  lembro  agora  as  produo- 
ções  dramáticas  de  Magalhães,  Norberto  Silva,  Porto  Alegre 
e  Ernesto  França ;  porque  não  tiveram  grande»  influencia. 

Os  epígonos  do  theatro  foram  Quintino  Bocayuva,  Castro 
Lopes,  Pinheiro  Guimarães,  Sizenando  Nabuco,  Achilles  Va- 
rejáo,  França  Júnior,  Arthur  Azevedo,  sem  falar  em  Machado 
de  Assis  e  Franklin  Távora,  mais  illustres  no  romance  e  no 
conto. 

Foi  este  o  romantismo  brasileiro  (1). 

Será  estudado  especialmente  na  poesia,  na  critica,  na  his- 
toria, na  philosophia,  nas  sciencias,  nas  artes,  em  todas  as 
manifestações  em  summa  da  intelligencia  d'esta  nação. 

O  romantismo  brasileiro,  em  seu  acanhado  circulo,  asylou 
os  mesmos  debates  que  o  seu  congénere  europeu.  Seu  maior 
titulo,  a  meu  vêr,  foi  arrancar-nos  em  parte  da  imitação  por- 
tugueza,  approximar-nos  de  nós  mesmos  e  do  grande  mundo. 

Seu  inicio  havia  sido  no  decennio  antecedente ;  mas  seu 
maior  impulso  foi  nos  primeiros  annos  do  reinado  do  segundo 
imperador ;  os  dias  diíficeis  da  Regência  tinham  passado ; 
abria-se  uma  época  de  grandes  esperanças. 

Com  a  inauguração  do  império,  a  existência  da  corte  e  das 
sessões  da  camará  dos  deputados  e  do  senado  no  Rio  de  Ja- 
neiro, os  melhores  talentos  das  províncias  affluiam  a  esta 
cidade  para  onde  deslocou-se  o  centro  do  pensamento  brasi- 
leiro. O  decennio  de  1840  a  50  foi  talvez  um  dos  de  maior  effer- 
vecencia  litteraria  havidos  no  Brasil. 

(1)  A  determiaaç&o  das  phases  do  romantismo  brasileiro  foi  já  por  mim 
feita  na  Litteratura  Bragileira  e  a  Critica  Moderna,  no  Epilogo^  e  recen- 
temente, sob  forma  mais  completa,  na  memoria  litteraria  que  faz  parte 
do  livro  do  4*.  Centenário  do  Brasil. 


HIBTORU  DA  UTTIBATU&A  BSASILBilU  13 

O  estudo  das  revistas  do  tempo,  nomeadamente  a  Revista 
do  Instituto  Histórico^  a  Minerva  Brasiliense  e  a  Guanabara, 
facilita  a  reconstrucção  narrativa  do  romantismo  brasileiro. 
Foi  o  tempo  em  que  Magalhães,  Porto  Alegre,  Varnhagen, 
Torres  Homem,  Penna,  Macedo,  Gonçalves  Dias,  Nunes  Ri- 
beiro, Adet,  Bourgain,  Norberto  Silva,  Mello  Moraes,  Pereira 
da  Silva,  Ignacio  Accioli,  Abreu  e  Lima,  Joaquim  Caetano,  e 
vinte  outros  conheciam-se,  relacionavam-se,  encontravam-se 
no  Instituto  Histórico,  em  casa  de  Paula  Brito,  ou  na  Petalo- 
gica  do  Largo  do  Rocio. 

Monte  Alverne  ainda  vivia  e  era  uma  força  attractiva  para 
essa  gente.  Não  existia  n^aquelle  grupo  nenhum  génio  de  pri- 
meira grandeza;  mas  achavam-se  ali  alguns  dos  mais  valo- 
rozos  talentos  que  este  paiz  tem  produzido. 

O  decennio  anterior  (183040)  foi  dos  primeiros  ensaios 
d'aquella  pleiaula  d'escriptores.  Todo  este  periodo  é  o  que  se 
poderia  chamar  a  escola  fluminense  na  litteratura  brasileira. 

O  Rio  de  Janeiro  é  uma  lindíssima  cidade,  capaz  de  ser 
uma  terra  de  poetas  e  pensadores.  O  homem,  em  lucta  com  a 
vida  do  espirito,  precisa  de  procurar  descançoi  e  alentos  ao 
mundo  exterior,  e  aqui  elle  os  poderá  achar  e  variadíssimos. 

E'  uma  cidade  de  pedra  como  Paris,  e  não  de  tijolos  como 
Londres,  De  um  lado  é  cercada  pelo  msur,  que  lhe  proporciona 
o  bellissimo  porto,  semeado  de  ilhas  e  circulado  de  morros; 
de  outro  lado  estende-se  pela  planície  a  dentro  a  encontrar 
outras  montanhas,  que  a  fecham  como  em  circulo.  Tudo  isto 
adereçado  de  viçosa  e  pujante  vegetação ;  grandes  pedaços  de 
malta  virgem  diao  em  muitos  arrabaldes  ainda  hoje  o  espe- 
ctáculo das  florestas  do  interior. 

A  principio  a  população  era  retraída  e  modesta.  Depois, 
nos  quarenta  e  nove  annos  do  reinado  do  segundo  impe- 
rador, mudou  ella  inteiramente  de  aspecto  e  de  índole.  O 
commercio  cresceu ;  os  interesses  mulliplicaram-se ;  uma 
enorme  immigração  das  províncias  e  do  estrangeiro  invadiu  a 
cidade,  onde  tudo  tomou  um  aspecto  transitório  e  fluctuante. 

Dizem  que  só  por  si  este  famoso  Rio  vale  todo  o  Brasil... 
Não  duvido  que  assim  seja ;  porém  não  conheço  nutra  cidade 
no  paiz  menos  nacional  do  que  esta.  E*  sem  duvida  a  primeira 


14  HISTORIA  DA  LITTERATUHA  £BASILBIRA 

na  riqueza  material,  nos  interesses  de  momento,  nos  pra- 
zeres fáceis,  nos  arranjos  politicos.  Não-  é  a  primeira  no 
amor  e  nas  tradições  da  pátria.  Um  não  sei  que  de  sceptico, 
material  e  frivolo  invadiu  o  geral  dos  espiritos ;  o  amor  do 
dinheiro  sem  trabalho,  o  favoritismo  politico  e  o  goso  mer- 
cenário das  mulheres  tomaram  proporções  assustadoras  n'uma. 
terra  deposta  em  leito  de  granito,  cercada  de  montanhas  de 
granito,  onde  parece  que  os  caracteres  deviam  ser  de  bronze 
e  as  intelligencias  de  ouro...  Entretanto,  a  primeira  phase  do 
romantismo  mostra  ainda  algumas  intelligencias  sérias. 


Domingos  José  Gonçalves  de  Magalhães  (1811-1882). 

Não  darei  por  meudo  a  biographia  d'este  escriptor. 

Basta-me  referir  que  Uçisceu  no  Rio  de  Janeiro  em  1811 ; 
formou-se  em  medicina  em  sua  cidade  natal,  onde  em  1832 
publicou  seu  primeiro  volume  de  poesias.  Em  1833  partiu 
para  a  Europa,  cujos  principaes  paizes  visitou,  tendo  por 
companheiros  Salles  Torres  Homem  e  Araújo  Porto  Alegre. 
De  volta  ao  Brasil  em  flns  de  1836,  anno  em  que  publicou  em 
Pariz  os  celebrados  Suspiros  Poéticos^  serviu  de  secretario 
do  governo  nas  províncias  do  Maranhão  e  Rio-Grande  do 
Sul. 

Foi  deputado  geral.  Continuou  a  escrever,  publicando  : 
António  José  ou  o  Poeta  e  a  Inquisição,  em  1839  ;  Olgiato,  em 
1841 ;  Amancia,  em  1844  ;  Memoria  histórica  documentada  da 
revolução  do  Maranhão,  em  1848;  a  Confederação  dos  Ta- 
moyos,  em  1856.  Abraçou  a  carreira  diplomática,  represen- 
tando o  Brasil  em  diversos  paizes  da  Europa  e  da  America. 
Palleceu  em  Roma  em  1882,  deixando  ainda  publicadas  ou- 
tras obras. 

Nenhum  escriptor  brasileiro  fez  tão  rápida  c  tão  brilhante 
carreira ;  nenhum  teve  tanta  fama,  tão  fácil  nomeada  e  ne- 
nhum cahio  tão  depressa  e  tão  profundamente.  Hoje  é  preciso 
rehabilital-o,  ftxando-o  num  logar  definitivo. 

Quandoí  appareceram  as  primeiras  obras  de  Magalhães  a 
imprensa  desencadeou-se  em  louvaminhas  formidolosas. 
Cada  um  queria  ser  ainda  mais  exagerado  do  que  o  seu  ante- 


HISTOBIA  DA  LITTSRATUBÁ  BBA8ILEIBÁ  15 

cessor  em  balançar  o  Ihuribulo  e  incânsar  o  ídolo.  Salles 
Torres  Homem,  Norberto  Silva,  Manuel  de  Macedo,  Fer- 
nandes Pinheiro,  Nunes  Ribeiro  e  Araújo  Porto  Alegre  foram 
os  mais  empenhados  naquelle  doce  lidar. 

Tudo  isto  passou ;  o  poeta  deixou  de  ser  lido,  seu  nome 
velou-se  de  olvido,  e  quando,  morto  o  illustre  brasileiro,  seu 
cadáver  aportou  a  esta  cidade,  apenas  um  dos  seus  velhos 
amigos  se  apresentara  para  o  levar  ao  descanço  do  tu- 
mulo... 

Que  liçdo  a  futuros  escriptores  I  Houve  injustiça  em 
tanto  esquecimento ;  houvera  antes  excesso  em  tantos  lou- 
vores. Este  homem  deve  entrar  para  a  historia,  levando  com- 
sigo  o  valor  exacto  dos  seus  trabalhos.  Aglumas  notas  capi- 
tães lhe  descubro  :  era  activo  e  linha  desejos  de  influir ;  por 
isso  tentou  diversos  géneros :  o  lyrismo  impessoal  nos  Su&piros 
Poéticos,  a  elegia  nos  Mysterios,  a  epopéa  na  Confederação 
dos  TamoyoSy  o  theatro  no  António  José  e  no  Olgiato,  o 
lyrismo  subjectivista  na  Urania,  a  philosophia  nos  Factos  do 
Espirito  Humano  e  na  Alma  e  o  Cérebro.  Era  um  talento  serio, 
encarava  tudo  com  um  certo  ar  de  solemnidade,  prestes  a 
descombsu»  em  dureza. 

Era  também  grave  na  escolha  dos  assumptos.  Percorram-se 
por  exemplo,  as  paginas  de  seus  Suspiros  Poéticos ;  tudo  sâo 
assumptos  elevadas  e  grandiosos.  A  execução,  porém,  ficava 
sempre  abaixo  do  objecto.  Nenhum  poeta  do  século  se  ocu- 
pou de  cousas   t5o  remontadas  e   tarpbem   nenhum  accu- 
mulou   tanta   prosa  metrificada.    Era   um   talento   objecti- 
vista,  nutrido  de  uma  philosophia  palavrosa  e  vaga,  de  um 
pantheismo  abscondito.  Espirito  capaz  de  interessar-se  por 
grandes  factos  da  historia  e  grandes  scenas  da  natureza,  não 
possuía  o  dom  de  identíficar-se  com  a  grande  vida  do  uni- 
verso, e  trazer  de  lá  alguma  cousa  da  poesia  eterna,  que  cir- 
cula e  se  expande  por  toda  a  ímmensa  cadeia  dos  seres.  A 
natureza  lhe  apparecia  como  um  organismo  abstracto  e  pro- 
saicamente finalístico. 

Deve  ser  estudado  com  amor  e  interesse,  porque  foi  um 
trabalhador  e  porque  amou  este  paiz.  Veja-se  o  poeta  e  ouça-se 
o  philosopho.  Felizmente  elle  não  pertence  a  certo  grupo  de 


16  HISTORIA  DA  LITTXSATU&A  BRASILBIBA 

charlatães,  tâo  communs  em  seu  tempo,  que  julgava  estar 
a  grandeza  íntellectual  em  multiplicar  livros  e  livros  para 
tormento  do  publico  e  especialmente  da  critica. 

Magalhães  não  escreveu  muito;  suas  obras  completas  em 
primorosa  edição  de  luxo  não  passam  de  dez  volumes,  perfei- 
tamente portáteis  (i). 

Possúe  quatro  producções  capitães  por  onde  for  principal- 
mente conhecido  pelo  publico  brasileiro.  Dão  a  medida  dos 
seus  talentos  e  dos  seus  defeitos.  O  poeta  lyrico  acha-se  nos 
Suspiros ;  o  poeta  épico  mostra-se  na  Cor^ederação ;  o  drama- 
tista  encerra-se  no  António  José ;  o  philosopho  palentea-se  nos 
Factos  do  Espirito  humano. 

Deflnir  estes  livros  é  determinar  a  natureza,  a  indole  do 
talento  do  escriptor ;  é  desenhar-lhe  a  alma. 

Como  pensava  em  poesia?  EUe  mesmo  vae  dizer.  Educado 
em  pleno  regimen  clássico,  nunca  foi  mais  do  que  um  cIBíS- 
sico  entre  os  românticos.  A  forma  e  o  fundo  de  sua  poesia 
são  de  um  classismo  pouco  variado  e  pouco  vigoroso. 

lia  uma  certa  nota  dura  e  áspera  que  flca  a  vibrar  perpe- 
tuamente ao  ouvido.  Do  romantismo  elle  tomou  apenas  três 
sestros  capitães  :  fazer  da  poesia  uma  succursal  da  religião, 
maldizer  systematicamente  do  presente,  divinisar  o  poeta  e 
a  sua  missão. 

O  auctor  é  typico  en  cada  uma  d'essas  manifestações 
mórbidas  da  romântica. 

As  provas  são  fáceis ;  eil-o  que  fala  do  caracter  e  da  natu- 
reza de  sua  poesia  : 

«  O  ílm  deste  livro,  ao  menos  aquelle  a  que  nos  propa- 
zemos,  que  ignoramos  se  attingimos,  é  o  de  elevar  a  poesia 
á  sublime  fonte  donde  ella  emana,  como  o  effluvio  d'agua, 
que  da  rocha  se  precipita,  e  ao  seu  cume  remonta,  ou  como 
a  reflexão  da  luz  ao  corpo  luminoso ;  vingar  ao  mesmo  tempo 
a  poesia  das  profanações  do  vulgo,  indicando  apenas  no 
Brasil  uma  nova  estrada  aos  futuros  engenhos. 

A  poesia,  este  aroma  Talma,  deve  de  continuo  subir  ao 
Senhor;  som  accorde  da  intelligencia,  deve  sanUflcar  as  vir- 

(1)  Reiiro-me  á  ediç&o  Garnier  das  obras  completas  de  Magalhães* 


HIBTOBIA  DA  LITTERAllTEA  BBABILXIRA  17 

ludes  e  amaldiçoar  os  vícios.  O  poeta^  empunhando  a  lyra  da 
Razão,  cumpre-lhe  vibrar  as  cordas  eternas  do  Santo,  do 
Justo  e  do  Bello... 

O  poeta  sem  religião,  e  sem  moral,  é  como  o  veneno  der- 
ramado na  fonte,  onde  morrem  quantos  ahi  procuram  apla- 
car a  sôde.  Ora,  nossa  religião,  nossa  moral  é  aquella  que 
nos  ensinou  o  Pilho  de  Deus,  aquella  que  civilisou  o  mundo 
moderno,  aquella  que  illumina  a  Europa  e  a  America  :  e  só 
este  bálsamo  sagrado  devem  verter  os  cantos  dos  poetas  bra- 
sileiros (1).  » 

Por  mais  respeitáveis  que  hajam  sido  os  sentimentos  re- 
ligiosos do  nosso  romântico,  é  dubitavel  que  andasse  bem 
avisado  em  confundir  a  poesia  com  a  religião.  Emquanto  a 
critica  moderna  não  se  convencer  que  existem  no  espirito 
humano  tendências  diversas  e  irreductiveís,  creadoras  de 
outras  tantas  manifestações  também  diversas  e  irreductiveís, 
havemos  de  apreciar  os  terriveis  desmantelos  de  que  o  nosso 
tempo  tem  sido  por  demais  abundante.  Poesia  religiosa  e 
religião  poética,  arte  scientiflca  e  sciencia  artística,  e  outras 
tantas  antinomias  grotescas,  são  o  ridículo  de  nossos  dias.  To- 
das as  crêações  intellectuaes  e  emocionaes  da  humanidade 
entram  num  schema  epecial  :  religião,  arte,  sciencia,  poli- 
tica, industria  direito  e  moral  são  as  sete  grandes  institui- 
ções da  humanidade. 

Não  ha  outras.  A  sciencia  alli  abrange  a  philosophia,  e 
a  politica  margôa  a  moral  e  o  direito. 

E'  isto,  pois  :  existem  as  formações  religiosas,  as  artísticas, 
as  philosophico-scientiílcas,  as  oconomico-induslriacs  e  as 
elhico-politicas  e  jurídicas.  Em  o  espirito  humano  deve  rei- 
nar a  paz,  e  por  isso  cumpre  que  suas  crêações  fundamentaes 
nâo  andem  em  lucta ;  o  conflicto  entre  ellas,  confliclo  muitas 
vezes  crudelissimo,  deve  cessar ;  convém  que  andem  o  mais 
possível  de  accordo. 

São,  porém,  distinctas ;  confundil-as  é  prova  de  estreiteza 
intellectual.  O  espírito  religioso  pôde  não  ter  nada  de  poético ; 
o  poeta  pôde  nada  ter  de  religioso. 

(1)  Suêpiroê  Poeticoê,  prefacio,  sob  o  titulo— L^cfe. 

mSTORU  II  2 


18  HI8T0BIA  DA  LITTERATUBA  BEABILEIBA 

A  confusão  das  duas  cousas  foi  um  erro  grosseiro  do 
romantismo.  E  nosso  poeta  compartilhou  d'esse  erro. 

Outro  abuso  em  que  tropeçou  foi  a  mania,  igualmente  ro- 
mântica, de  maldizer  de  seu  tempo,  sem  razão  para  o  fazer. 
Era  uma  das.  formas  do  patlios  rhetorico.  «  Tu  vais,  ohl  livro, 
ao  meio  do  turbilhão  em  que  se  debate  nossa  pátria;  onde 
a  trombeta  da  mediocridade  abala  todos  os  ossos  e  desperta 
todas  as  ambições;  onde  tudo  •está  gelado,  excepto  o 
egoismo...  »  (1). 

Era  uma  das  formas  da  vaidade  do  poeta.  Póde-se  dizer  sem 
receio;  porque,  feitas  as  reducções  devidas  no  seu  talento, 
ainda  fica  elle  sendo  um  homem  grandemente  apreciável. 
Aquellas  palavras  e  outras  similhantes  foram  preparando  a 
crescente  indisposição  do  publico  diante  de  Magalhães.  Re- 
fere a  tradição  que,  de  volta  de  sua  primeira  viagem  á  Eu- 
ropa, ao  avistar  elle  a  cidade  do  Rio  do  Janeiro,  saúdara-a 
com  esta  imprecação  :  «  Oh  I  terra  de  ignorantes  !...  »  Avalie- 
se  do  encommodo  causado  por  taes  palavras  no  centro  do 
chauvinismo  brasileiro. 

O  poeta  dizia  a  verdade  ;  a  occasião  é  que  era  imprópria. 
Como  lyrico  o  livro  capital  de  Magalhães,  disse  eu,  são  os 
StLspiros  Poéticos.  E'  uma  collecção  de  poesias  enormes,  eri- 
çadas de  prosaismos  capazes  de  molestar  o  mais  contentavel 
dos  leitores.  Foi  um  dos  grandes  defeitos  do  romantismo  fran- 
cez  passados  para  o  Brasil  :  o  desmedido  comprimento  das 
poesias. 

Quando  se  tem,  por  exemplo,  contado  a  fortuna  de  haver 
lido  um  Lied  allemão,  delicioso  pela  forma  e  pelo  fundo, 
comprimido  em  duas  ou  três  estrophes,  e  se  encontram  a 
Invocação  ao  anjo  da  poesia,  O  Vate,  A  Poesia,  Deos  c  o 
Homem  de  Domingos  de  Magalhães,  é  para  deveras  irritar. 

São  peças  trotadas  num  diapasão  monótono,  numa  rheto- 
rica  subalterna  de  uma  longura  de  estafar. 

O  fundo  das  ideias  é  um  espiritualismo  a  Cousin  com 
laivos  de  pantheismo. 

Não  existem  galas  nem  effusões  lyricas ;  o  tom  é  pesado,  a 
métrica  indisciplinada. 

(1)  Stitpiroê  Poetiroê^  Lede,  in  fine% 


HI8T0KIA  DA  LITmATUBA  BSABILXntA  19 

Um  pedaço  ao  acaso  : 

(c  Quando  se  arrouba  o  pensamento  humano, 
E  todo  no  infinito  se  cohcentra, 
De  milhões  de  prodígios  povoado  ; 
Quando  sobre  o  fastigio  de  alto  monte, 
Como  um  colibre  sobre  altivo  robre, 
Na  vastidão  sidérea  a  vista  espraia  ; 
E  vê  o  sol,  que  no  Oriente  assoma. 
Como  n'um  lago  em  própria  luz  nadando, 
E  a  noite,  que  se  abysma  no  occidente. 
Arrastando  seu  ma*nto  tenebroso. 
De  pallidas  estrellas  semeado ; 
Quando  dos  gelos,  que  alcantis  coroam, 
Vô  a  enchente  rolar  em  cataractas. 
Por  cem  partes  abrindo  largo  leito, 
Fragas  e  pinheiraes  desmoronando ; 
Quando  vô  as  cidades  enterradas 
A  seus  pés  na  planície,  e  negros  potitos 
Aqui  e  alli  moverem-se  sem  ordem 
Como  abelhas  em  torno  da  colmeia  ; 
O  homem  então  se  abate  ;  um  suor  frio, 
Qual  o  suor  que  o  moribundo  cAa, 
Rega-Ihe  o  corpo  extactico ;  sua  alma. 
Como  um  subtil  vapor  que  o  lyrio  exhala, 
Ferido  pelo  raio  matutino. 
Da  terra  se  levanta  ;  e  o  corpo  algente 
Qual  um  combro  de  pó  morto  parece...  » 

E'  este  o  eslylo  :  períodos  enormes,  idéas  de  pouca  monta. 

Não  tem  a  profundeza  da  poesia  alleman,  a  ideíalidade  da 
ingleza,  nem  os  brilhos  da  franceza. 

Tem  os  defeitos  do  systema  romântico,  possuindo  poucos 
de  seus  méritos. 

A  mania  romanesca  de  considerar  o  poeta  o  rei  dos  homens 
nâo  lhe  foi  estranha.  Diz  d'elle  na  peça  O  Vaie  : 

((  Umas  vezes  soberbo,  impetuoso, 
Qual  águia  que  sublime  o  céo  devassa, 
B  do  céo  sobre  a  terra  os  olhoa  descei 


t 


20  Hlfl.TOBlÁ  DA  LITTERATUEA  BRABILEIBi 

Teu  Ígneo,  alado  génio,  no  ar  suspenso  : 
Nôo,  oh  mortaes,  nfto  vos  perteriço  (exclama), 
Eu  sou  órgão  de  um  Deos ;  um  Deos  me  inspira ; 
Seu  interprete  sou ;  oh!  terra!  ouvi-me.  n 

Era  esta  a  geral  importância  que  os  poetas  românticos  sup- 
punham  caber-lhes  em  partilha.  Uma  innocente  illusão  e 
nada  mais. 

O  nosso  fluminense  escreveu  poesias  que  são  verdadeiras 
ladainhas ;  é  um  outro  defeito  seu. 

Eis  um  exemplo  : 

(c  Santa  Religião,  amor  divino, 
Que  benefícios  sobre  a  terra  espalhas! 
Quanto  é  mysterioso  o  Ser  que  inflammas! 
De  quanto  ellc  é  capaz!...  Vejo  donzellas, 
Reboradas  por  ti,  vencer  a  morte!... 
Oh!  das  Religiões  a  mais  perfeita. 
Oh!  única  de  Deos  e  do  homem  digna! 
Religi&o  plantada  ho  Calvário, 
E  co'o  sangue  de  Christo  alimentada! 
Religi&o  de  amor,  de  paz,  de  vida!  » 

Falta  só  juntar  a  cada  um  destes  versos  o  respectivo  —  ora 
pro  nobis  —  para  sahir  uma  perfeita  ladainha,  Pôra  melhor 
que  o  auctor  dos  Suspiros  Poéticos  pugnasse  pela  religião  em 
boa  prosa,  deixando  o  verso  para  outros  assumptos. 

O  poeta,  porém,  nem  sempre  foi  assim  fraco;  teve  seus 
momentos  felizes ;  aqui  e  alli  surgem  elles  em  suas  obras. 
Naquella  de  que  se  trata  agora  acha-se  inserta  a  celebrada  ode 
a  Napoleão  cm  Waterloo,  uma  das  producções  mais  elevada.s 
do  romantismo  pátrio.  Não  é  toda  igual ;  quasi  sempre,  po- 
rém, é  digna  de  apreço.  Eis  os  trechos  principaes  : 

«(  Waterloo!...  Waterloo!  Lição  sublime 
Este  nome  revela  á  Humanidade! 
Um  oceano  de  pó,  de  fogo  e  fumo 
Aqui  varreo  o  exercito  invencível, 
Como  a  explosão  outr'ora  do  Visuvio 
Até  seus  tectos  inundou  Pompéa... 


r*. 


HISTOBIA  DA  UTTXSATUaA  BBÀSIIiXIIU  21 

O  pastor  que  apascenta  seu  rebanho, 
O  corvo  que  sanguíneo  pasto  busca. 
Sobre  o  leâo  de  granito  esvoçando  ; 
O  echo  da  floresta,  e  o  peregrino 
Que  indígador  visita  estes  logares  : 
Waterloo!...  Waterloo!...  dizendo  passam... 

Sim,  aqui  stava  o  génio  das  victorías, 
Medindo  o  campo  com  seus  olhos  de  aguial 
O  infernal  retintim  do  embate  d*armas, 
Os  trovões  dos  canhões  que  ribombavam, 
O  sibilo  das  balas  que  gemiam, 
O  horror,  a  confusão,  gritos,  suspiros, 
Eram  como  uma  orchestra  a  seus  ouvidos! 
Nada  o  turbaval  Abóbadas  de  balas, 
Pelo  inimigo  aos  cehtos  disparadas, 
A  seus  pés  se  curvavam  respeitosas, 
Quaes  submissos  leões  ;  e,  nem  ousando 
Tocal-o,  ao  seu  ginete  os  pés  lambiam... 

Oh!  porque  nôo  venceu?  O  Anjo  da  gloria 

O  hymno  da  victoria  ouvio  ires  vezes  ; 

E  três  vezes  bradou  :  E*  cedo  ainda! 

A  espada  lhe  gemia  na  bainha, 

E  inquieto  relinchava  o  audaz  ginete. 

Que  soia  escutar  o  horror  da  guerra, 

£  o  fumo  respirar  de  mil  bpmbardas. 

Na  pugna  os  esquadrões  se  encarniçavam  ; 

Roncavam  pelos  ares  os  pelouros ; 

Mil  vermelhos  fuzis  se  cmmaranhavam ; 

Encruzadas  espadas  e  as  baionetas, 

E  as  lanças  faiscavam  retinindo. 

EUe  só  impassível  como  a  rocha. 

Ou  de  ferro  fundido  estatua  equestre. 

Que  invisível  poder  magico  ahima. 

Via  seus  batalhões  cahir  feridos, 

Como  muros  de  bronze,  por  cem  raios; 

£  no  céo  seu  destino  decifrava... 

Grouchy,  Grouchy,  a  nós,  eia,  ligeiro. 
Ah!  nfio  deixes  teus  bravos  companheiros 
Contra  a  enchente  luctar,  que  mal  vencida 
Uma  após  outra  em  turbilhões  se  eleva, 


22  HISTOBIA  DA  UTTBSATnKA.  BKASlLIIKâ. 

Como  vQgas  do  oceano  encapellado. 
Que  furibundas  se  alçam,  luctam,  batem 
Cobtra  o  penedo,  e  como  em  pô  recuam, 
E  de  novo  no  pleito  se  arremessam... 

Eíl-o  sentado  em  cima  do  rochedo. 
Ouvindo  o  echo  fúnebre  das  ondas, 
Que  murmuram  seu  cântico  de  morle  ; 
Braços  cruzados  sobre  o  largo  peito. 
Qual  naufrago  escapado  da  tormenta, 
Que  as  vagas  sobre  o  escoltio  regeitaram. 
Ou  qual  marmórea  estatua  sobre  um  tumulo. 
Que  grande  ideia  occupa,  e  kurbilhona 
Naquella  alma  tão  grande  como  o  mundo?  » 

E'  unia  cousa  singular  esta  poesia ;  não  se  parece  com 
nenhuma  outra  do  auctor.  O  inonienlo  psychologico  que  a 
produziu  toi  único  em  toda  a  vida  de  Magalhães. 

Todos  os  outros  trabalhos  poéticos  do  notável  fluminense 
foram  feitos  suavemente,  pacatamente,  ao  correr  da  penna, 
entre  uma  palestra  e  uma  chávena  de  café ;  o  poeta  não  se 
alterava;  conversando,  ia  escrevendo,  e,  interronipendo-se 
para  despachar  alguém,  voltava  sem  perturbação  ao  tra- 
balho, ao  que  se  conta. 

Tinha  facilidade  em  escrever;  mas  quasi  sempre  a  facili- 
dade oriunda  da  vulgaridade,  da  pouca  madureza. 

Assim  foram  escriptos  os  Mysterios,  a  Con/cderafâo,  eia 
Tragedias. 

Magalhães  não  era  propriamente  um  temperamento  poé- 
tico, uma  alma  iyrica. 

Bem  poucas  das  qualidades  da  grande  poesia  elle  possuía  ; 
como  lyrico  é  quasi  illcgivel.  D'elle  ílcará  o  exemplo  de  con- 
slancia  e  amor  ao  trabalho.  Ter-se-hilo  sempre  em  attençilo  os 
sforços  para  dar-nos  theatro,  poesia  épica,  lyrismo  e 
►phia.  O  Napoleão  cm  Watcrloo,  esse  seu  quasi  mira- 
producto,  garantil-o-ha  contra  o  esquecimento.  E'  su- 
ão decantado  Cinque  Maggio  de  Manzoni. 
mol-o  na  poesia  épica. 
Llhães,  educado  na  escola  clássica,  Qcou  sempre  eivado 


HIBTOBIA  DA  UTTXBATURA.  BRABILBIRA  23 

dos  sestros  e  amaneirados  do  systema.  O  romantismo,  como 
poesia  das  sociedades  novas,  havia  banido  o  poema  épico,  a 
pseudo-epopéa  litteraria,  só  admissivel  na  civilisaçáo  Occi- 
dental até  o  século  xvi. 

Magalhães,  no  falsissimo  empenho  de  crêar  uma  littera- 
tura  nacional,  falsissimo,  porque  a  nacionalisação  de  uma 
litteratura  nuo  é  cousa  para  ser  feita  com  as  regrinhas  de  um 
programma;  Magalhães,  nessa  empenho,  que  deve  ser  um 
resultado  das  forças  inconscientes  da  historia,  quiz  dotar-nos 
com  uma  epopéa  brasileiral...  Para  isto  escolheu  um  epi- 
sodio da  conquista  do  Brasil,  a  resistência  dos  tamoyus  con- 
tra os  portuguezes. 

O  episodio  é  bem  escolhido,  por  ser  um  facto  histórico, 
por  collocar  frente  a  frente  os  conquistadores  e  os  venci- 
dos, por  ser  o  momento  da  fundação  do  Rio  de  Janeiro,  a 
grande  cidade  da  America  do  Sul,  e  por  trazer  á  scena  a 
figura  sympathica  do  padre  Anchieta.  Mas  que  prosaismol 
que  falta  de  vida  1  que  falta  de  forçai  que  situações  falsas ! 
E'  um  grande  cartapacio  em  dez  cantos  em  versos  brancos, 
num  estylo  bronco  e  duro  que  raro  melhora.  Poucos  terão  a 
paciência  de  levar-lhe  a  leitura  ao  flm, 

A  ideia  mesma  do  poema  épico  para  o  Brasil  é  uma  infan- 
tilidade. Gente  de  hontem,  sem  mythos,  sem  tradições,  sem 
heróes  populares,  pequena  nação  burguesa  de  outro  dia,  nós 
não  possuímos  definitivamente  feições  épicas. 

Como  representação  ethnica  dos  brasileiros,  o  livro  é  sem 
préstimo,  por  falso  e  incompleto  ;  falso,  porque  a  pintura  dos 
caracteres  selvagens  e  dos  colonos  é  inexacta;  incompleto, 
porque  falta  alli  o  elemento  negro,  sem  duvida,  sob  o  ponto 
de  vista  do  trabalho,  o  mais  considerável  do  Brasil. 

A  falsidade  dos  typos  indígenas,  dos  Aimbires,  das  Igua- 
sús,  dos  Pindobuçús  e  outros  salta  aos  olhos.  E'  só  abrir  o 
poema  e  ler  ao  acaso.  São  portuguezes  da  classe  media  com 
cores  selvagens. 

Paça-se  a  synthese  dos  factos,  como  elles  se  deram.  O  decen- 
nio  de  1830  a  40  foi  o  tempo  áureo  de  Magalhães  ;  os  Suspiros 
tinham  levantado  barulho  em  1836 ;  o  António  José  havia  ar- 
rancado applausos  em  1838.  São  as  duas  obras  capitães  do 


24  HI8T0BIA  DA  LITTBBATURA.  BBA8IL1IBA 

poeta,  aquellas  de  que  algumas  pessoas  do  povo  de  certa  cul- 
tura se  lembram  ainda. 

No  decennio  de  1840  a  50  o  escriptor  pouco  produziu. 

Sahiram  Olgiato  em  41;  Amancia  em  44;  a  Memoria  da 
Revolução  do  Maranhão  em  48.  São  ires  cousas  inúteis,  de 
uma  fraqueza  incontestável.  E'  que  o  astro  de  Gonçalves  Dias 
(1846)  crescia  no  horizonte,  e  a  estrella  de  Magalhães  come- 
çava a  empallidecer. 

Ao  decennio  de  1850  a  60,  já  em  seui  declinio,  pertencem  a 
Con(ederação  dos  Tamoyos  —  1850,  os  Mysterios  e  Cânticos 
Fúnebres  —  1858,  e  os  Factos  do  Espirito  humano  neste  ul- 
timo anno. 

Então  Gonçalves  Dias,  Penna,  Alvares  de  Azevedo  e  Ma- 
cedo jã  pertenciam  á  historia  ou  eram  vultos  conhecidos.  As 
condições  do  meio  litterario  já  não  eram  as  mesmas  do 
tempo  dos  Suspiros  Poéticos.  A  poesia  brasileira  havia 
ganho  muito  em  vida,  em  graça  e  em  primores  de  estylo. 

O  talento  de  Alencar  era  já  uma  realidade.  Magalhães  tinlia 
ficado  estacionário  entre  o  imperador,  Porto-Alegre  e  Nor- 
berto Silva  no  Instituto  Histórico. 

Em  nossa  litteratura,  então  como  ainda  hoje,  havia  um 
cenáculo,  e  aquellc  era  da  gente  do  Instituto  em  torno  do 
imperante,  moço,  enthusiasta;  porém  negativo  na  sua  boa 
vontade. 

José  de  Alencar  pegou  do  poema  de  Magalhães  e  íez-lhe  a 
crítica  desapiedada ;  o  barulho  foi  enorme,  o  escândalo  era 
inaudito.  Agitaram-se  Israel  e  Judá ;  poseram-se  a  postos  os 
defensores  dp  poeta.  Mas  foi  embalde. 

Soares  de  Azevedo,  Macedo,  Monte-Alverne,  o  próprio 
Monte-Alverne!...  perderam  seu  tempo.  A  derrota  era  um 
facto  consummado.  O  poeta  era  um  homem  de  pouca  energia 
para  a  lucta;  não  sahiu  a  campo;  nada  disse.  Alencar  ficara 
triumphante.  Desde  então  o  sceptro  litterario  passou  ás  suas 
mãos. 

Os  pontos  de  vista  do  escriptor  cearense  não  eram  dos 
mais  elevados,  nem  dos  mais  correctos  em  critica  litteraria ; 
mas  estavam  na  altura  de  seu  tempo  no  Brasil. 

O  poema  é  em  geral  fraco,  e  é  realmente  para  admirar  o 


HIBTOBIA  DA  LITTBItATUBA  BSABIUIIKA  25 

tempo  gasto  por  Perdinand  Wolí  em  o  analysar  e  gabar.  Ha 
em  todo  elle  um  ou  outro  pedaço  mais  elevado  e  mais  poe^ 
tico.  Os  melhores,  a  meu  ver,  sáo  a  descripçâo  do  Amazonas, 
a  partida  dos  guerreiros  pela  floresta,  os  queixumes»  de 
Iguassú,  e  um  pequeno  trecho  sobre  Anchieta. 

Iguassú  é  a  amante  de  Aimbire,  o  heróe  do  powna.  Mar- 
chando este  chefe  á  frente  de  seus  guerreiros  a  ferir  a  lucta 
com  os  portuguezes,  a  heroina  assiste  de  sobre  um  monte  á 
partida  d'aquelle  troço  por  entre  a  floresta.  Punge-lhe  a  sau- 
dade, e  o  poeta  escreve  estes  versos. 

n  Um  ai  do  peito  a  misera  soltando, 
A  maviosa  voz  desVarte  exhala : 

Cl  Só,  eis-me  aqui  no  cimo  da  montanha. 

Dos  meus  abandonada ;  como  um  tronco 

Despido,  inútil  no  alto  da  collina, 

A  que  os  ramos  quebrou  Tupan  co*a  frecha. 

Só,  eis-me  aqui,  do  velho  pai  ausente, 

Ausente  do  querido  bem  amado, 

Como  viúva,  solitária  rola 

Em  deserto  areal  seu  mal  carpindo! 

Ainda  hoje  o  caro  pai  vi  a  meu  lado ; 

Ainda  hoje  o  amante  eu  vi!...  Fugiram  ambos, 

Velozes  como  os  cervos  da  floresta  : 

Ja  fui  feliz  ;  mas  hoje  desgraçada!...  » 

E  os  echos  responderam  —  desgraçada! 

((  Desgraçada!...  E  ainda  vivo?  Antes  á  guerra 
O  pai  e  o  bravo  amante  acompanhasse  ; 
Ouvindo  sua  voz,  seu  rosto  vendo, 
Acabcu:  a  s^u  lado  melhor  fora.  » 

E  os  echos  responderam  —  melhor  foral 

(f  Génios,  que  as  grotas  povo€ds  e  os  valles, 
Centos,  que  repetis  os  meus  accentos, 
Ide,  e  do  amado  murmurai  no  ouvido 
Que  a  amante  sua  de  saudades  morre.  » 


2Q  HISTORIA  DA  LirTBaATUBA  B&ASILBIEA 

E  OS  echos  responderam  —  morre...  morre! 

Morre...  morre!  soou  por  largo  tempo. 
O  canto  cala  um  pouco  a  triste  moça, 
Murmurando  dos  echos  o  estribilho, 
Como  se  algum  presagio  concebesse. 
Os  "negros  olhos  de  chorar  cançados 
Co'as  mãos  ella  os  enxuga  ;  mas  de  novo  . 
Desses  doridos  olhos  as  estanques 
Lagrimas  brotam,  que  lhe  o  peito  aljoíram... 
Como  goteja  em  bagas  abundantes 
Da  fendida  taboca  a  pura  lympha... 
Suspira  e  geme,  e  continua  o  canto ; 
Mas  temendo  que  os  echos  lhe  respondam, 
Em  meia  voz  começa  compassada  : 

(c  Porque  tão  cedo,  oh  sol,  hoje  raiaste? 
Porque  ílammejas  como  accesas  brazas? 
Ah!  tu  me  queimas  ;  teu  calor  modera, 
Que  na  marcha  os  guerreiros  enlanguece. 
D*esta  terra  que  é  tuc^  doestes  bosques, 
Que  após  da  enchente  do  geral  deluvio 
Plantou  Tamandfiu^é  para  seus  filhos, 
Hoje  os  Tamoyos  em  defeza  marcham. 
Tamandaré  foi  pai  dos  avós  nossos  ; 
Sempre  Tamandaré  a  ti  foi  caro  ; 
Tu,  oh  sol,  o  aqueceste  na  velhice ; 
Aquece  os  filhos  seus ;  mas  ohl  não  tanto. 

Olhos  meus,  de  chorar  cançados  olhos, 
Que  tetides  mais  que  vêr?  Já  não  distingo 
Naquelles  densos  bosques  os  guerreiros. 
Entre  os  arribas  e  as  sapucaias. 
Nada  mais  vejo  que  prazer  me  cause. 
Só  estou  sobre  a  terra!  Vinde,  oh  feras! 
Não  ha  quem  me  defenda  :  vinde  ao  menos 
Menos  dura  é  a  morte  que  a  saudade. 
Sim,  morrerei  n 

E  mais  dizer  não  pôde ; 
Em  meio  de  um  gemido  a  voz  faltou-lhe. 
Os  lábios  lhe  tremiam  convulsivos, 
Como  flores  batidas  pelos  ventos. 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATUEA.  BBA8ILBIB4  37 

Cruza  os  braços  no  collo,  os  olhos  cerra, 

Pehde  a  fronte,  e  no  peito  o  queixo  apoia, 

As  derretidas  perlas  entornando. 

Tal  n'um  jardim  a  pallida  açucena 

De  matutino  orvalho  o  cálix  cheio. 
Se  o  zephyro  a  bafeja,  a  fronte  inclina, 
Puros  crystaes  em  lagrimas  vertendo. 
Não  sei  se  dorme,  ou  se  respira  ainda; 
Mas  parece  ehtre  pedras  bella  estatua, 
Que  do  abandono  o  desalento  exprimel 
O  sol,  que  ao  resurgir  a  vio  chorosa, 
N*esse  mesmo  logar  chorosa  a  deixa  » (1) 

E'  este  o  tom  do  poema  em  seus  melhores  pedaços  ;  é  evi- 
íeníemente  muito  pouco  épico. 

Magalhães  procurou  influir  lambem  no  theatro.  Nesta  es- 
hera  o  António  José  ou  o  Poeta  e  a  Inquisição  dá  a  medida 
3  seu  talento. 

AindsL  neste  ponto  o  poeta  não  foi  um  romântico  emérito, 
•tes  baniram  a  tragedia  em  favor  do  drama;  o  illustre  flu- 
nense  náo  esteve  por  isso  e  presenteou  seus  patricios  com 
Kluctois  do  género. 

ntonio  José,  interpretada  pelos  grandes  talentos  de  João 
íano  e  Estella  Sezefreda,  agradou  bastante  nos  annos  de 
e  proximamente  posteriores  (2). 

>e-i7)e  ainda  n'este  ponto  censurar  o  poeta.  Sua  tragedia 
ia  obra  incolor,  sem  vida,  sem  um  só  typo  verdadeira- 
ie  accentuado,  sem  acção  dramática.  E'  um  desconcerto 
ítuo.  Marianna  tem  um  caracter  dúbio;  não  se  pôde 
vèr  se  ella  é  simples  companheira  e  amiga  de  António 
Dia  se  verdadeira  amante. 

ynio  José,  o  protagonista,  o  espirituoso  judêo  das 
'  Portuguezas,  o  gaiato  brasileiro  dos  autos,  é  transfor- 
iizm  racíocinador  pedante.  Pala  uma  linguagem  im- 
]  em  Portugal  em  principies  do  século  XVIII.  O  conde 
3ira  ó  um  Meceneis  pacato,  medroso,  sem  talento  e  sem 

eder&ção  dos  Tamoyos,  C.  IV. 

gedÍA  foi  representada  pela  primeira  vez  em  1838,  e  sahiu  publi- 

(HO  s«!gruinte. 


28  HISTORIA  DA  UrTERATUBA  BRABILEIKA 

influencia  no  meio  politico  que  o  cercava.  Frei  Gil  é  um  Lovô- 
lace  de  roupeta,  sem  graça,  sem  habilidade,  transformado 
depois  numa  Magdalena  arrependida.  A  tragedia  em  scena 
bem  executada  por  artistas  de  talento  illude  um  pouco ;  lida  é 
lastimável  quasi. 

De  toda  ella  Acaram  mais  ou  menos  na  memoria  dos  que  a 
ouviram  aquelle  verso  da  scena  II  do  III  acto  entre  António 
José  c  o  Conde  de  Ericeira  : 

u  Nasce  de  cima  a  corrupção  dos  povos  » 

e  aquelles  da  mesma  scena  um  pouco  anteriores  : 

«  Poeta  que  calcula  quando  escreve, 
Que  lima  quanto  diz,  porque  não  íira, 
Que  procura  agradar  a  todo  o  mundo. 
Que,  medroso,  não  quer  aventurar-se. 
Que  vá  poetisar  para  os  conventos.  » 

O  seguinte  monologo  de  António  José  na  scena  !.•  do 
V  acto  nâo  é  máo  : 

<f  Morrer...  morrer...  Quem  sabe  o  que  é  a  morte... 

Porto  de  salvamento,  ou  de  naufrágio!... 

E  a  vida?  um  sonho  n'um  baixel  sem  leme... 

Sonhos  entremeados  de  outros  sonhos. 

Prazer,  que  em  dôr  começa  e  cm  dòr  acaba. 

O  que  foi  minha  vida  e  o  que  é  agora? 

Uma  masmorra  alumiada  apenas, 

Onde  tudo  se  vê  confusamente, 

Onde  a  escassez  da  luz  o  horror  augmenta, 

E  interrompe  o  recôndito  mysterio. 

Eis  o  que  é  a  vida!...  Mal  que  a  luz  se  extingue, 

O  horror  e  a  confusão  desapparecem. 

O  palácio  e  a  mesmorra  se  confundem, 

Completa-se  o  mysterio...  Eis  o  que  é  a  morte.  » 

Rara  era  a  composição  do  poeta  fluminense  em  que  elle 
não  vasava  uma  metaphysicasinha  tirada  do  eclectismo  íran- 
cez.  Na  tragedia  de  que  se  trata  o  protagonista  quasi  não 
abre  a  bocca  que  não  seja  para  ensinar  philosophia  aos  seus 
companheiros.  Seria  preciso  transportar  para  aqui  a  mor 


HI8T0UA  DA  LITTIBATUBA  BBASIUnU  29 

da  tragedia,  se  o  quizesse  provar  praticamente.  Vejam 
acto,  scena  V,  onde  começa  :  Sim^  dizes  òem,  la- 

..  ladrões,  sicários;  2.*  acto,  scena  IV,  onde  começa  — 

s  aziagoSy  em  que  o  homem ;  3^  acto,  scena  II,  onde  diz 
dos  homens  a  fraca  natureza!...  ou  no  mesmo  acto  e 

este  pedaço  que  é  transcripto  para  de  uma  vez  dar-se 

cacta  idéa  do  defeito  assignalado  : 

n  Sim,  a  philosophia!  Onde  está  ella? 

Termo  pomposo  e  vfio!...  Quereis  que  eu  chore 

Como  Heraclito  sempre  atrabiliário, 

Aborrecendo  os  homens  com  quem  vivo? 

Ou  que  como  Demócrito  me  ria 

De  tudo  quanto  vejo?  Por  ventura 

Nisso  consiste  a  natureza  humana? 

Quereis  que  eu  seja  estóico  como  Zeno? 

Que  diga  que  nao  solTro,  quando  sofTro? 

Por  ventura  nâo  somos  nós  sensíveis? 

Quereis  que  de  Epicuro  as  leis  seguindo, 

Só  me  entregue  ao  prazer,  ou  que,  imitando 

A  Crates  e  a  Diógenes,  me  cubra 

Com  roto  manto,  viva  desprezado, 

Sem  me  importar  co'as  cousas  doeste  mundo. 

Como  o  cão  que  passeia  pelas  ruas? 

Be  eu  vou  seguir  de  Sócrates  o  exemplo. 

Pugnar  pela  razão,  a  morte  é  certa.  » 

im  a  poesia  dramática  do  celebrado  fluminense, 
lyrismo  as  galas  e  os  mimos  da  natureza  cediam  o 
s  trechos  raciocinantes  de  um  metaphysicismo  sem 
)  drama  em  balde  procurareis  a  vida  subterrânea 

hun)€Uia,  essa  alguma  cousa  de  tenebroso  que  os 
génios  vão  encontrar  sob  as  douraduras  exteriores 
social  dos  indivíduos. 

pintura,  digo  mal,  nessa  revelação  que  se  íaz  por 
ião  por  descripções,  é  que  vai  a  força  dos  grandes 
as.  D'ella  Magalhães  não  teve  nem  siquer  o  pre- 
x>. 

por  ultimo,  o  philosopho  e  conclua-se. 
sphera  o  escriptor  fluminense  deixou  três  obras  : 


30  mSTOBIA  DA  LITTBRATUBA  3EA8IIJSIEA 

Factos  do  Espirito  Humano,  A  Alma  e  o  Cérebro^  Pensa- 
mentos e  Commentarios. 

A  primeira  é  a  mais  importante,  analysal-a  é  conhecer  a 
philosophia  do  autor. 

Os  Factos  do  Espirito  humano  appareceram  em  Pariz  em 
1858. 

O  poeta,  como  disse,  entrelaçou  aos  voos,  um  pouco  amor- 
tecidos, de  sua  imaginação  pedaços  de  sua  métaphysica;  o 
philosopho  exhibiu  provas  de  uma  poesia  desgraciosa  nas 
paginas  do  seu  livro. 

Na  histoi*ia  dos  dous  dominios  intellectuaes  em  que  mais  se 
exercitou  não  pôde  fazer  uma  figura  muito  eminente,  como  á 
mania  patriótica  quiz  a  principio  parecer. 

Magalhães  foi  um  romântico  tímido  e  um  velho  espiritua- 
lista catholisante. 

Dotado  de  pouco  vigor  de  imaginação,  nâo  teve  brilhos 
de  estylo;  pouco  profundo,  nâo  devassou  seriamente  nenhum 
dos  segredos  da  sciencia.  Seu  melhor  livro  de  poesias  é,  como 
sa  viu,  de  1836 ;  elle  balbuciava  então  as  primeiras  palavras 
de  um  systema  litterario  já  decadente,  cujos  corypheus  já 
eram  vultos  da  historia. 

Quando  appareceu  como  philosopho,  foi  cousa  para  sor- 
prender  a  todos,  que  o  suppunham  alheio  ás  especulações 
profundas,  e  que  deviam  ter  notado  a  sua  incompetência  para 
as  graves  questões. 

Os  Factos  do  Espirito  humano,  com  ares  de  um  quadro  da 
philosophia  do  século  xix,  ScLo  uma  vclleidade.  O  autor,  que, 
desde  algum  tempo,  vivia  na  Europa,  devendo  estar  em  dia 
com  a  sciencia  da  época,  e  afflrmando  estar,  mostra-se  alli 
demasiswlo  débil.  Seu  livro  é  um  espécie  de  cantilena  decla- 
matória, onte  nao  se  encontra  um  methodo  scienUflco,  nem 
a  segurança  e  a  elevação  das  idéas. 

Como  é  que  o  Visconde  de  Araguaya,  —  com  a  pretenção 
de  «  aventurar-se  em  novas  theorias,  tratando  de  todas  as 
grandes  questões  da  philosophia ;  eixpondo  os  systemas  mais 
acreditados  e  aceitos ;  refutaiido  os  que  lhe  pareciam  contrá- 
rios aos  factos,  e  procurando  por  um  modo  diverso  do  que  o 
fizeram  outros,  resolver  com  a  maior  clareza  que  lhe  foi  pos- 


HISTORIA  DA  LXmBATUBA  3UEA8ILBISA  3Í 

ilgumas  difílculdades  »  mostrou-se  tão  fortemente  atrás 
•andes  pensadores,  então  já  vulgarisados  ? 

lei  suprennia  porque  deve  a  historia  julgar  dos  homens 
iptores,  é  aferil-os  pelo  gráo  de  desenvolvimento  da 
em  q&e  floreceram,  claro  é  que  Magalhães  não  sae 
engrandecido  da  operação  da  critica.  Não  passou  de 
scipulo  de  MonfAlverne,  desenvolvido  por  Cousin. 
ílle  que  ouvío  a  Th.  Joufiroy,  em  Pariz...  Quanto  dista 
sãmente  profundo  e  do  estylo  sóbrio  do  insigne  eclec- 
dí  um  escriptor  quasi  vulgar,  sem  elevação  de  idéas, 
meza  de  doutrina,  sem  finezas  de  analyse,  sem  habili- 
)  forma.  Girou  num  circulo  de  raio  tão  curto,  que  não 
nxergar  os  grandes  astros  que  illustraram  o  seu 
Todos  os  nobres  espiritos  que  esclareceram  com  sua 
Jlemanha,  a  Inglaterra,  a  Itália  e  a  França  em  seu 
o  Visconde  de  Araguya  os  não  referio,  e,  todavia,  veio 
s  que  expunha  as  theorias  mais  acreditadas  e  seguia 
ophia  que  mais  exalta  o  espirito  humano  I... 

todo  romântico  desconsolado  e  impertinente,   elle 

o  seu  século ;   porque   o   não  comprehendeu.   Já 
dica  e  inaproveitável  certa  maneira  de  insurreição 

tempo  em  que  se  vive  que  até  um  escriptor  de  mi- 
atura  deve  fugir  de  repetil-a  :  é  d'esse  appello  para 
alismo  industrial  e  outras  momices  da  espécie  que 
losso  autor  a  empregou  como  quem  estava  ás  vol- 
uma  novidade.  Publicou  o  seu  livro,  que  trata  de 

moraes,  porque  «  não  falta  quem  cure  dos  inte* 
iteríaes ;  quem  com  escriptos  os  aconselhe,  com  dis- 
;  apregoe,  com  obras  os  promova,  com  vantagens  e 
cite  a  cobiça  a  procural-os,  e  não  será  elle  dei  mais 
de  tanto  materialismo  industrial  I  »  (1). 
por  esta  passagem  sermonatica,  que  Magalhães  foi 
rupuloso  em  repetir  as  antigualhas  desprestigiadas, 
liano  Vera,  sem  dar-se  aliás  por  grande  escriptor, 
•  á  vulgaridade,  cahiu  no  extremo  opposto  também 
;  cc  Nao  quero  ser  o  censor  de  meu.  tempo,  porque 
n  sou  de  meu  tempo  »,  disse  elle.  A  escolher  entre 

cfo  Espirito  Humano^  prologo^ 


32  HI8TOBIA  DA  LITTBKÁTUBA  BBABILEIIU 

OS  dous  extremos,  antes  este  ultimo  com  todos  os  seus  prejuí- 
zos, do  que  a  choramiga  banal  dos  companheiros  de  Ara- 
guaya.  Fazem  estes  uma  impressão  ainda  mais  incommoda 
do  que  a  dos  optimistas  estólidos  que  andam,  a  cada  instante, 
a  badalar  sobre  as  maravilhas  da  época.  Por  falar  occasional- 
mente  no  professor  de  Nápoles,  vem  a  propósito  para  medir 
por  elle  o  nosso  philosopho. 

Este  foi  um  ecléctico  ferrenho,  como  Vera  era  um  hegelianò 
fanático;  entretanto,  que  distancia  não  vae  entre  a  vasta  col- 
lecção  de  obras  do  espirituoso  italiano  e  os  livros  magros  do 
escriptor  brasileiro !  O  napolitano  abriu  francamente  lucta 
com  os  mais  notáveis  pensadores  que  eram  adversos  ao  seu 
systema.  Schopenhauer,  Hartmann,  Strauss,  Darwin,  entre 
tantos  outros,  soffreram-lhe'  os  golpes ;  e,  se  as  suas  razões 
nem  sempre  são  das  mais  nutridas,  o  ridículo  que  joga  aos 
contrários  é  sempre  bem  aproveitado.  No  brasileira  ha 
ainda  mais  fraqueza  scientiflca,  e  de  todo  anda  ausente  o 
espirito. 

Tenho  pressa  em  desvendar  a  celebre  exposição  da  sensi- 
bilidade, o  que  elle  chamou  a  sua  theoria  nova. 

O  livro  começa  por  uns  capítulos  onde  o  autor  tratou  de 
generalidades  da  philosophia,  como  elle  a  entendia  e  discu- 
tiu, inspirado  em  Cousin  e  depois  delle,  os  systemas  de  Locke 
e  de  Condillac.  Recuando  até  ao  capitulo  vni,  seja-me  dado 
estudal-o  ahi.  E'  onde  se  acha  a  nova  theoria  da  sensibilidade 
e  os  novos  achados  de  nosso  autor  são  muito  interessantes. 

Consistem  nisto  :  elle  é  um  duo-dynamista,  como  tantos 
outros ;  admitte  duas  entidades  immateriaes  no  homem,  a 
alma  com  o  pensamento  e  a  vontade,  e  a  força  vital^  que  se 
encarrega  da  vida,  e  a  que  elle  attribue  a  faculdade  de  sen- 
tir. Neste  ultimo  ponto  é  que  se  suppõe  original;  todos  os 
mais  assertos  seus  confessa  implicitamente  que  são  velhos  na 
historia  da  philosophia. 

Não  é  muita  cousa,  e  se  se  souber  que  Ahrens,  no  seu 
Curso  de  Psychologia  publicado  em  1835,  já  emittira  mais  ou 
menos  aquella  doutrina,  a  pretendida  novidade  se  reduz 
quasi  a  nada. 

Tal  foi ;  Ahrens  admittia  que  o  corpo  tem  como  6ua  a 


mSTOBIA  DA  LITTXBATUBA  B&A8ILBISA.  33 

bilidãde,  além  de  certo  conhecimento  que  lhe  é  próprio 
ã  o  qual  o  espirito  nada  contribue. 
corpo  por  si  pertencem,  segundo  o  celebre  publicista 
eriano,  a  sensibilidade  e  a  imaginação  «  distincta  do 
qual  pôde  crescer  no  cérebro,  e  o  espirito  perceber  ob- 
que  elle  não  produziu  ou  para  os  quaes  cooperou  íraca- 
),  (1). 

alhães  não  contesta  o  papel  importantíssimo  dos  ner- 
lo  cérebro  na  producção  das  sensações,  mas  para  elle 
Dfgcios  sáo  instrumentos  de  um  principio  superior. 
!?  A  alma,  respondem  os  espiritualistas  em  còro.  A 
ital,  responde  o  philosopho-poeta,  folheando  talvez  as 
3  do  livro  esquecido  de  Ahrens. 
3dos  os  obstruidores  do  terreno  da  sciencia  são  os 
3rigosos  os  sectários,  como  o  nosso  autor,  dessa  triada 
em  :  um  corpo,  uma  força  vital  e  um  espirito.  O  corpo 
a-se,  a  força  vital  vive,  e  a  alma  pensa  e  quer. 
5so  compatricio,  inclinado  ao  idealismo  ei  ao  mysti- 
como  se  verá,  julga  que  é  muito  grosseiro  e  mun- 
ilma  «entir,  como  já  lhe  foi  por  Tobias  Barretto  pon- 
e  atira  esse  pesado  encargo  para  o  seu  companheiro 
!,  o  principio  vital  (2). 

lismo  é  uma  doutrina  biforme  e  incommoda;  o  ani- 
mais lógico ;  ambos  desapparecem  confusos  diante 
pção  de  Rostan  (3). 

r  dos  Stispiros  Poéticos,  que,  apezar  de  medico,  dá 
de  não  conhecer  este  distincto  collega,  é  bastante 
;  meio  polytheista,  delicia-se  em  admittir  as  enti- 

do  numero  daquelles,  que  se  julgam  forçados  a 
r  a  entidade  transcendental  —  alma,  como  se  ex- 
rzen,  e  contentam-se  com  a  outra,  espécie  de  sobe- 
aterial,  que  preside  aos  phenomenos  vitaes  (4). 
e  só  está  satisfeito  com  ambas.  E'  o  requinte  do 

,  obra  citada. 

de    Tobias  Barretto  sobre  os  Faeto$  do  Eêpirito  Humano  de 

nserto  no  Jornal  do  Recife,  em  1869. 

tion  des   PrineipeM  de  VOrganieiême,  2*  édition,  Paris  1846. 

jia  delia  voluntá,  p.  6. 

uA  n  3 


34  HI8T0BIA  DA  LTTTEBATXTBA  BRASILEIRA 

metaphysicismo.  Não  entra  no  plano  deste  trabalho  o  estudo 
do  que  seja  a  vida ;  não  tenho,  pois,  que  apreciar  o  quanto  é 
inadmissível  a  concepçío  de  Barthez  e  Lordat,  tão  plena- 
mente admittida  pelo  poeta  dos  Cânticos  Fúnebres. 

Fugindo  ao  prazer  que  dar-me-hia  a  eíxposição  das  ideias 
de  L.  Rostan,  hoje  abandonadas  pela  theoria  de  uma  ma- 
téria já  de  si  viva,  a  chamada  theoria  do  carbono;  fugindo  á 
opportunidade  de  apreciar  a  invectiva  de  Littré  contra  os  que 
consagram  a  doutrina  de  ser  a  vida  uma  transformação  das 
leis  physico-chimicas  (1),  conceda-se  ao  escriptor  brasileiro  a 
existência  de  um  principio  vital,  distincto  e  independente  do 
corpo  e  dalma  e  vejam-se  os  motivos  porque  lhe  attrlbue  o 
privilegio  da  sensibilidade. 

O  digno  philosopho,  em  1858,  estava  num  ponto  de  vista 
mais  atrazado  do  que  Jouffroy  em  1830,  quando  escreveu  a 
memoria  sobre  a  Legitimidade  da  separaçâit  da  psychologia  e 
da  physiologia. 

O  autor,  a  priorista,  não  se  sente  muito  obrigado  a  pro- 
var as  suas  asserções;  eis  a  segurança  com  que  estabelece  a 
premissa  de  sua  argumentação  : 

«  A  existência  de  uma  força  immaterial  que  organisa  o 
corpo  é  tão  incontestável,  como  a  existência  de  um  espirito 
que  pensa,  e  que  não  tem  consciência  de  ser  elle  quem  orga- 
nisou  o  seu  corpo,  e  quem  opera  no  interior  dos  órgãos 
d'elle  »  (2). 

O  obscuro  pelo  mais  obscuro... 

A  existência  na  terra  de  um  diplomata  da  lua  é  tão  incon- 
testável, como  o  é  no  interior  de  nosso  globo  a  existência  do 
inferno,  que  não  tem  consciência  de  ser  elle  quem  ergueu- 
Ihe  na  superfície  as  montanhas !... 

Emfim...  concedido  :  existe  o  que  o  philosopho  quer.  Ouça- 
mol-o  ainda  : 

«  A  sensibilidade  está  na  força  vital.  E'  essa  força  quem  se 
modifica  e  produz  a  sensação  que  se  apresenta  á  nossa 
alma  »  (3). 

(1)  Médeeine  et  MédedM,  2*  édition,  pages.  335  e  56. 

(2)  Cap,  8*. 

(3)  Cap,  citado. 


mSTOBIA  DA  LITTBKATUBA  BRABILBISA  35 

proposição  parecia  uma  grande  novidade;  cumpria  ao 
or  proval-a,  e  porque  não  fazel-o,  quando  «  infeliz- 
em  favor  do  que  elle  diz  não  pôde  citar  a  opinião  de 
n  philosopho  antigo  ou  moderno,  pois  todos  de  com- 
ccôrdo  attribuem  á  alma  a  sensibilidade?  » 

)retende  justificar  a  sua  descoberta,  e  devo  apreciar, 
um,  a  força  de  seus  argumentos. 

a  sensibilidade,  diz,  estivesse  n'alma  intelligente  e 
j  cada  vez  que  ella  se  lembrasse  de  uma  sensação  a 
de  novo ;  como  de  cada  vez  que  se  lembra  de  uma 
5o  a  concebe  de  novo  ;  mas  se  se  lembra  de  uma  dôr, 
m  cheiro,- ella  não  os  sente  de  novo,  e  quando  se 
le  uma  côr,  não  a  vê  e  só  a  representa  em  um 
[ualquer  percebido  por  ella  »  (1). 

ao  philosopho  demonstrado,  por  um  dos  seus  criti- 
ue  este  argumento  é  f utilíssimo,  nada  vale.  Prova  de 
r  quanto  a  prevalecer  o  seu  dito,  fora  mister  des- 
ibem  a  alma  humana  da  vontade I  De  certo,  quando 
ramos  de  uma  volição  passada,  não  a  queremos  de 

0  não  basta ;  preciso  é  dizer  ainda  ao  autor  de  01 
•que  é  que,  ao  lembrar-nos  de  uma  concepção,  a 
os  de  novo,  e  o  mesmo  se  não  dá  com  a  sensação. 
3ssario  pedir  auxilio  a  uma  ordem  scientitlca  supe- 
fazel-o.  Pois  não  viu  o  philosopho  que,  sendo,  se- 
ína  a  sua  própria  escola,  a  memoria  uma  faculdade 
,  um  vez  que  evoca  phenomenos  do  entendimento, 
^  do  círculo  a  que  pertence,  e  aquillo  que  reproduz 
m  seu  caracter  primitivo? 

3S  termos,  quando  a  memoria  se  exerce,  em  tal 
re  factos  pertencentes  á  ordem  íntellectual,  e  estes 
am  como  são,  isto  é,  como  idéas. 

to  não  se  dá  quando  se  exerce  sobre  factos  que 

1  á  sensibilidade  ou  á  vontade.  Neste  caso,  ella 

p.  159. 
Tobias  Barretto  no  Jornal  do  Recife^  em  1969,  no  referido 


36  HIBTOBIA  DA  LITTEBATUEA  BRASILEIRA 

resuscita  só  aquillo  que  é  de  sua  alçada,  a  idéa  da  sensação 
ou  da  volição,  e  não  estas  em  si  mesmas. 

Magalhães  queria  que  ella  fosse  adianta  e  resuscitasse  os 
próprios  phenomenos  de  uma  esphera  estranha,  isto  é,  queria 
que  nós  todos  fossemos  uns  allucinadosl 

A  razão  physiologica  do  que  acabo  de  referir  o  nobre  poeta 
devia  conhecer.  Devia  saber  que  nos  phenomenos  da  memo- 
ria não  se  agitam  as  partes  do  cérebro  onde  trabalham  a  sen- 
sibilidade e  a  vontade. 

Só  a  fraqueza  d'este  primeiro  argumento  do  philosopho 
me  dispensava  de  ir  adiante.  E',  porém,  necessário  proseguir 
e  examinar  os  outros  motivos  que  allegou. 

«  O  engano  dos  philosophos,  que  fazem  da  passividade  de 
sentir  uma  faculdade  da  alma  humana  intelligente,  provém 
de  que  a  alma  parece  ter  consciência  das  sensações,  e  imme- 
diatamente  sentil-as.  Mas  a  consciência  de  uma  sensação 
nada  mais  é  do  que  a  consciência  da  percepção  de  alguma 
cousa  acompanhada  de  sensação  »  (1). 

No  terreno  da  psychologia,  contesto  que  não  haja  con- 
sciência das  sensações,  e  sim  somente  deis  percepções  que  as 
acompanham. 

Existem  sensações  parfeitamente  conhecidas  pela  consciên- 
cia que  não  lhe  trazem  a  percepção  de  cousa  alguma;  a  sen- 
sação de  dôr,  por  exemplo,  na  maioria  dos  casos. 

O  digno  medico  devia  conhecer  o  estado,  que  os  physiolo- 
gitas  denominam  hypocondria,  no  qual  até  as  sensações  ge- 
raes  não  localisadas  tornam-se  patentes  á  consciência,  sem 
todavia  trazerem  a  percepção  de  objecto  algum. 

Mas  nem  é  preciso  recorrer  a  um  estado  pathologico  para 
patentear  o  engano  dos  factos  do  Espirito  humano. 

Basta  recordar  que  a  sensação  especial  de  cheiro,  em  mui- 
tos casos,  não  nos  refere  a  percepção  de  um  objecto.  Podemos 
sentir  o  aroma  de  uma  flor  sem  que  a  vejamos  ei  saibamos 
qual  ella  seja.  A  percepção  é  que  nunca  se  dá  sem  a  sensação 
que  se  pôde  executar  sem  aquella. 

Até  em  casos  mórbidos  a  percepção  vem  acompsmhada  de 

(1)  Loco  cit. 


HI8T0SU  DA  LITTBBAT0AA.  BRABILBIBÁ  37 

seu  inseparável  appendice.  Nas  aUucinações  dá-se  a  percep- 
ção sem  objecto  exterior,  mas  sempre  seguida  de  sensações 
guaesquer  que  ellas  sejam.  São  até  estas  as  falsas  sensações 
que  originam  as  falsas  percepções,  ou  aUucinações  psycho- 
sensorías.  A  que  se  reduz,  á  vista  disto,  a  argiimentaç&o  de 
Maj^alMes  ?  Elle  nada  provou,  limitando-se  a  afílrmar  gra- 
tuitamente. As  sensações,  até  pelo  órgão  da  sciencia  mais 
cheia  de  desabuses,  são  declaradas  actos  da  consciência, 
ainda  que  esta  ultima  tenha  sido,  até  agora,  inexplicável  em 
;ua  intimidade. 

«  Nós  podemos,  diz  Huxley,  classificar  as  sensações  com  as 
moções,  as  volições  e  os  pensamentos  na  categoria  dos  esta- 
os  de  ctmsciencia.  O  que  vem  a  ser  a  consciência  de  um  acto 
le  se  passa  em  nós  ignoramol-o.  Como  acontece  que  um 
\enomeno  tão  notável,  qual  a  apparição  da  consciência  dos 
los  se  patenteie  como  o  resultado  da  irritação  do  tecido  ner- 
jo,  nós  não  podemos  conhecer,  nem  mais  nem  menos 
que  a  apparição  dos  Djins,  quando  Aladino  sopra  a  sua 
pada.  £,  depois,  todos  os  factos  finaes  da  natureza 
un-se  no  mesmo  caso  »  (1). 

esta  a  verdade  das  cousas,  é  este  o  respeito  da  sciencia, 
ido  manejada  por  espritos  da  tempera  do  insigne  natura- 
piíilosopho. 

galhâes  recusou  á  consciência  o  conhecimento  da  sensa- 
lem  dar,  para  tanto,  prova  séria. 

ta-me  até  comprehender  como  lhe  pôde  entrar  no  pen- 
ío  a  possibilidade  de  ter-se  a  consciência  de  uma  per- 
sem,  ao  mesmo  tempo,  haver  a  da  sensação  que  a 
.  Seria  bom  que  o  philosopho  fosse  mais  explicito 
onto. 

s  de  acabar  o  cap.  vni  de  seu  livro,  como  o  tinha  come- 
yr  uma  serie  de  quasi  banalidades,  o  autor  passou  ao 
onde  exhibio  o  seu  mais  famoso  argumento.  As  ni- 
com  que  abrio  esse  capitulo  são  umas  inopportuni- 
bra  a  ordem  dos  sentidos  exteriores  no  tocante  ao 
ue  elles  prestam  á  intelligencia ;  aquellas  com  que  o 

iie  JPhysiologia  Elementar^  p.  210.  Traduc.  de  Daily. 


«38  HISTOBIA  DA  LITTEllATnKA  BBABILBIBÁ 

fechou  São  umas  objecções  que,  fingio,  se  lhe  fariam,  e  ás 
quaes  respondeu  antecipadamente. 

A  principal  consiste  nuns  considerandos  sobre  uma  expe- 
riência de  Flourens. 

O  autor  simula  que  alguém  lhe  diga  :  os  bellos  achados  do 
naturalista  francez,  que  tanto  apreciaes,  achados  com  os 
quaes  provou  que  se  a  um  animal  tirarem-se  os  dous  lóbulos 
cerebraes,  elle  perde  todos  os  seoitidos,  deixa  de  ver  e  de 
ouvir;  perde  todos  os  instinctos;  não  sabe  mais  defender-se 
nem  abrigar-se,  nem  fugir,  nem  comer;  perde  emflm  toda  a 
intelligencia,  toda  a  percepção,  toda  a  volição,  toda  a  accáo 
espontânea;  estas  bellas  experiências  vos  são  contrarias,  por- 
que requerem  também  para  o  animal  uma  intelligencia  além 
da  faculdade  de  sentir,  uma  percepção,  uma  livre  vontade  e 
consciência,  e,  portanto,  uma  alma,  que  se  serve  do  cérebro, 
como  instrumento  (1)... 

E'  esta  a  objecção  a  que  tem  de  responder. 

Parece  que  se  está  a  assistir  a  um  dos  saráos  philosophicos, 
que  tinham  logar  no  Rio  de  Janeiro  no  tempo  da  mocidade 
do  autor,  e  que  são  por  elle  tão  elogiados  na  sua  biographia 
de  MonfAlverne  (2). 

Alli  o  velho  franciscano  fazia  proesas  e  o  poeta  da  Urânio, 
ainda  em  embrião,  discutia  se  os  animaes  têm  almal,,, 

O  philosopho  sophysticou;  presentiu  que  a  physiologia 
cerebral  lhe  é  adversa,  e,  para  quebrar  o  valor  da  opposição, 
pejou-a  de  consequências,  aos  olhos  de  sua  gente  absurdas, 
para  sahlr  assim  victorioso. 

Ninguém,  a  não  ser  algum  desasisado,  iria  das  experiên- 
cias de  Flourens  concluir  que  o  animal  tem  liberdade  e  alma, 
quando,  em  todo  o  caso,  no  próprio  homem  são  ambas, 
liberdade  e  alma,  questão  aberta,  e  a  sciencia  não  parece 
muito  dispota  a  reconhecel-as  pelo  velho  methodo  e  no  velho 
estylo.  Não  é  tal  a  conclusão  que  se  deve  tirar  daquellas  pre- 
missas para  ir-se  ao  encontro  de  Magalhães. 

Basta  concluir  que  os  animaes,  sem  a  velha  alma,  têm  uma 
intelligencia,  como  têm  uma  sensibilidade,  cousas  que  nin- 

(i;  Pag.  166  e  167. 

(2)  opúsculos  Históricos  e  Litterarios, 


HISTORIA  DA  LITTX&ATirBA  BBASILBIKA  39 

sinceramente  atreve-se  mais  hoje  a  contestar;  basta, 
tudo,  concluir  que  de  certos  elementos  do  cérebro  de- 
1  ã  sensibilidade,  como  d'elles  depende  a  intelligencia, 
imbem  como  declamava  a  velha  metaphysica  matéria- 
mas  segundo  ensinam  os  que  pensam  como  Ludwig 
e  todos  os  monistas  ideialistas. 
alhães  phantasiou  argumentar  com  algum  pobretão 
s  para  melhor  levar-lhe  vantagem. 
lestáo  hodierna,  já  decidida,  sobre  os  animaes  não  é  se 
\m  ou  não  alma,  e  sim  em  que  gráo  possuem  intelli- 
e  quanto,  e  como,  distam  do  homem.  Para  o  insigne 
imavel  Haeckel  os  animaes  superiores  têm  todas  as 
dadas,  que  nós  outros  costumanos  chamar  espiri- 
por  consagração  da  lingua,  propriedades  que  só  dif- 
jas  do  homem  quantitativamente  e  não  qualUatioar 

i). 

)re  visconde  devia  ser  bastante  atilado  para  conhecer 
mça  dos  dous  pontos  de  vista, 
ramos. 

irimeiras  paginas  do  cap  IX  os  Pactos  do  Espirito 
encerram  o  seu  mais  vigoroso  argumento.  Achilles 
r  a  campo.  Eil-o  :  «  Para  que  uma  cousa  se  distinga 
.  é  necessário  que  ella  não  seja  a  causa  mesma  da 
[uer  distinguir.  Nada  se  distingue  de  si  mesmo,  senão 
que  não  é  elle  »  (2). 

.  a  proposição  erigida  pelo  philosopho  em  principio 
jue  serve  de  maior  ao  seu  arrasoado. 
se  o  eu  fosse  sensível,  prosegue  o  autor,  e  recebesse 
ão  como  uma  affecçâo,  ou  modificação  sua,  elle 
stinguiria  delia,  elle  sei  ia  a  sensação  mesma,  como 
!e  Gondillac;  não  teria  por  conseguinte  percepção 
3  mil  sensações  diversas  que  nelle  se  succedessem 
isando,  e  elle,  modiflcando-se  de  sensação  em  sen- 
Tia  sempre  a  ultima,  sem  distinguir-se  de  ne- 
(3). 

-ia  Natural  da  Creaçaô,  Liç&o  10*,  Paris,  3*  edição. 
íòid 


40  HI8T0BIA  DA  UTTSBATUBA  BSASILEIRA. 

Tudo  isto  não  se  dá;  o  eu  se  distingue  das  sensações,  logo 
ellas  lhe  não  pertencem.  A  tanto  queria  chegar  o  argumen- 
tador  ín  barbara. 

Eis  um  resultado  esdrúxulo  da  velha  metaphysica ;  o  mo- 
tivo de  taes  e  tão  crassos  enganos  é  a  aprioristica  noção  de 
causa  que  tinha  o  nosso  autor. 

Diz  que  não  nos  distinguimos  de  nossas  affecções;  que  uma 
nossa  idéa  somos  nós  mesmos  pensando;  uma  nossa  volição 
somos  nós  mesmos  querendo. 

Certamente  não  nos  podemos  distinguir  de  nossas  affec- 
ções, se  por  distinguir  entender-se,  como  queria  Magalhães, 
separar-se  no  todo,  formando  existências  e  substancias  á 
parte. 

Esta,  porém,  não  é  a  verdade  das  cousas ;  abstracta,  e  até 
concretamente,  eu  me  distingo  de  minhcis  idéas  e  volições, 
como  me  distingo  de  minhas  sensações.  Sim;  minha  intuição 
do  mundo  e  da  realidade  admitte  perfeitamente  que  eu  me 
distinga,  por  exemplo,  da  idéa  que  formo  do  Aimbire  de  Ma- 
galhães. Tanto  é  isto  verdade  que,  desapparecida  a  idéa,  eu 
ainda  persisto  tão  integralmente  como  d'antes. 

Não  se  comprehende  a  razão  porque  o  nobre  autor  abriu 
uma  excepção  em  desfavor  das  sensações;  destas  o  eu  se  dis- 
tingue ;  do  mais  não,  segundo  elle.  Porque  ?  A  resposta  não  é 
capaz  de  tranquilisar  a  qualquer.  O  eu,  phantasiado  aqui 
como  espécie  de  entidade  nebulosa,  se  distingue  das  sensa- 
ções, porque  as  objectiva,  diz  o  sábio  brasileiro. 

Ora,  outro  tanto,  pergunto,  não  se  dará  com  a  volição  e  a 
idéa  ?  Será  certo  que  estas  também  se  não  objectivam  ?  A 
idéa  que  formava  o  nosso  escriptor  do  seu  vulto  de  gigante, 
que? 

<(  Entre  os  seus  marechaes  ordens  dictava  b, 
não  estaria  objectivada  ?  A  idéa  que,  como  poeta,  phantasiou 
do  vencido  de  Waterloo  não  o  teria  sido  nunca? 

N'este  decHve  da  espiritualidade  á  antiga  elle  foi  direito  ao 
mysUcismo,  e  nos  últimos  capítulos  de  seu  livro  assegurou 
que  não  temos  certeza  da  existência  real  do  universo,  e  que 
pensamos  nelle,  porque  é  um  pensamento  de  Deus,  que  nol- 
o  communica  com  a  mesma  arte  c  pela  mesma  forma  por- 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATUSA  BBA8ILBIBA  41 

magnetisado  percebe  as  idéas  que  vão  pela  mentei  do 
3tisadorI 

L  recente  transformação  da  visão  em  Deus  do  padre 
ranche,  ou  parodia  da  razão  impessoal  de  Cousin,  acho- 
hantastica,  que  a  não  julgo  merecedora  de  um  exame, 
lilosopho  não  foi  por  certo  dos  mais  profundos. 

)EL  DE  Araújo  Porto  alegre  (1806-1879). 
escriptor  ainda  não  foi  bem  estudado.  Coberto  de  exa- 
3  elogios  pela  velha  critica  do  paiz,  alçado  ao  seUmo 
r  Fernandes  Pinheiro  e  Wolf,  não  é  directamente  co- 
)  pelo  publico.  Sabe-se  que  foi  autor  de  uma  col- 
le  versos  sob  o  titulo  de  Brasilianas  e  de  um  enorme 
em  dous  volumes  sobre  Colombo.  Hoje  a  idéa  geral- 
iceita  é  a  de  ser  esse  homem  a  encarnação  da  poesia 
i,  empolada,  campanuda.  Entretanto,  é  preciso  rever 
Izos  e  estudar  o  amoravel  rio-grandense  com  doçura 
3ialidade. 
tal  estudo  não  ó  fatcil,  como  á  primeira  vista  se  pôde 

)  Porto  Alegre  teve  uma  vida  trabalhosa  e  exercida  em 

uma  actividade.  Foi  pintor,  architecto,  poeta  lyrico, 

íco,  dramatista  e  critico.  Seus  productos  de  pintor  e 

ecto  estão  quasi  esquecidos. 

o  de  uma  grandeza  que  se  imponha;  o  sello  da  me- 

nelles  irrecusável.  Os  principaes  d'entre  todos  são  : 

lies  na  fogueira,  um  retrato  de  D.  Pedro  I,  o  quadro 

çâo  da  Academia  das  Bellas-Artes,  a  antiga  deco- 

theatro  de  S.  Pedro  de  Alcântara,  a  galeria  da  Sa- 

i  D.  Pedro  II,  o  plano  da  igreja  de  SanfAnna  e  do 

Brasil.  O  desenho  é  bom  ;  a  pintura  de  pouca  vida,  e 

tura  sem  audácias  e  sem  originalidade. 

ios  de  Porto  Alegre  para  o  theatro  são  também  de 

nonta.  Não  assim  os  productos  do  lyrista,  do  épico 

o. 

5  é  que  o  illustre  rio-grandense  é  um  immortal  para 

E'  onde  vai  ser  o  centro  de  minhas  apreciações.  A 

L  do  autor  do  Colombo  vem  muito  bem  traçada  em 


42  HI8T0BIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

Fernando  Wolf,  sobre  apontamentos  fornecidos  pelo  pró- 
prio escriplor.  Darei  uns  ligeiríssimos  toques. 

Porto  Alegre  nasceu  em  Rio-Pardo,  no  Rio-Grande  do  Sul, 
em  1806;  estudou  humanidades  na  capital  da  provinda.  Mu- 
dou-se  para  o  Rio  de  Janeiro  em  1826.  Estudou  pintura  com 
João  Baptista  Debret;  viajou  a  Europa  de  1831  a  37.  De  volta 
ao  Brasil  residio  no  Rio  de  Janeiro  até  1859  (1).  Neste  anno 
abraçou  a  carreira  consular  na  Europa,  onde  morreu,  em 
1879,  vinte  annos  depois. 

Para  bem  comprehender  a  vida  intellectual  de  Porto  Alegre 
e  assistir  a  sua  evolução  intima,  é  mister  recorrer  ás  datas  de 
suas  obras. 

A  pintura  foi  seu  ponto  de  partida;  a  escola  das  Bellas- 
Artes  serviu-lhe  de  aprendizado  (1826-1828).  Seus  primeiros 
quadros  são  de  1829  e  30.  Isto  foi  pas"sageiro ;  de  1835  em 
diante  a  poesia,  a  critica,  a  litteratura  em  geral,  são  a  sua 
principal  preoccupação. 

Em  1836  redige  com  Magalhães  e  Torres  Homem  a  pequena 
revista  Nictheroy  em  Pariz;  ahi  apparecem  um  estudo  sobre  a 
Musica  no  Brasil,  um  artigo  de  viagem  sobre  os  Contornos 
de  Nápoles,  e  o  Canta  sobre  as  minas  de  Cumas. 

O  Prologo  dramático  é  de  1837;  os  primeiros  artigos  sobre 
a  escola  fluminense  de  pintura  de  1841 ;  Angélica  e  Firmino 
de  1843;  d'este  anno  são  O  Voador  e  diversos  artigos  de  critica 
artística  publicados  na  Minerva  Brasiliense. 

A  Destruição  das  florestas  é  de  1845;  o  Corcovado  de  1847,  a 
Estatua  Amasonica  de  1848. 

Estas  datas  não  vêm  a  esmo ;  servem  bem  para  marcar  o 
logar  do  escriptor  em  nossa  litteratura  e  determinar  os  de- 
graos  de  sua  evolução  intellecto-emocional. 

Geralmente  se  repete  que  Porto  Alegre  foi  um  discípulo 
subserviente  de  Magalhães,  por  um  lado,  e  por  outro,  o  pae 
intellectual  de  Gonçalves  Dias.  Erro  e  erro  nocivíssimo.  O 
próprio  poeta  era  o  primero  a  collocar-se  assim  por  aquelle 
modo  incorrectamente.  No  prologo  de  suas  Brasilian€Ls  de- 
clara ser  discípulo  e  continuador  de  Magalhães  e  dá  a  en- 

(1)  Le  BréêU  Liitéraire,  pag.  169  e  seg. 


HISTORIA  DA  LITTBEATX7SA  BEABILBISA  43 

er  que  influiu  n'outros  poetas  :  «  O  nome  Brasilianas, 
lei  a  este  livrinho  provem  das  primeiras  tentativas  que 
lamparam  ha  vinte  annos  na  Minerva  Brasiliense,  e  da 
;ão  que  tive;  a  qual  me  paireceu  não  ter  sido  baldada, 
le  íoi  logo  comprehendida  por  alguns  engenhos  mais 
los  e  superiores,  que  trilharam  a  mesma  vereda. 
im,  pois,  esta  pequena  collecção  não  tem  hoje  outro 
imento  alem  do  de  mostrar  que  também  desejei  seguir 
fipanhar  o  Sr.  Magalhães  na  reforma,  da  arte,  feita  por 
1 1836,  com  a  publicação  dos  Suspiros  Poéticos,  e  com- 
1  em  1856  com  o  seu  poema  da  Conícderação  dos  Ta- 
))  (1). 

ha  contestar  uma  tal  ou  qual  influencia  de  Magalhães 
irito  de  Porto  Alegre,  quanto  ás  tendências  geraes  da 

influencia  oriunda  das  relações  da  amizade  e  nada 

Alegre  era  talento  muito  diverso  e  muito  mais  bem 
Tinha  mais  objectividade  intellectual,  mais  imagina- 

ior  profusão  de  linguagem,  mais  colorido,  mais  vida 

ma. 

orlo  Alegre  predominava  o  talento  descriptivo,  em 

ies  um  philosophismo  impertinente  que  lhe  inspirava 

torias  tiradas. 

;lo,  os  dous  amavam-se  muito  e  citam-se  nos  respec- 

emas.  Póde»-se  dizer  que  o  poeta  rio-grandense  per- 

►  cenáculo  de  Magalh-les,  mas  entrava  em  perfeito  pé 
iade. 

)  a  haver  influído  no  espirito  de  outros  é  certo  ;  desse 
porém,  não  foi  Gonçalves  Dias. 
LO  o  diz  francamente ;  insinuou-o  a  Fernando  Wolf, 
Bveu  isto  :  «  II  a  eu  beaucoup  d^imitateurs,  entre 
itonio  Gonçalves  Dias,  qui  ne  dissimule  pas  avoir 
premières  inspirations  des  Brasilianas  »  (2). 
amente  o  talento  das  classiflcações  htterarias  não 

>  do  escriptor  de  Vienna. 

unas^  Vienna,  1863,  Obêercação. 
.  p.  174. 


44  HISTOKIA  DA  LTCTEBATint  BBASILEIBA 

Onde  Gonçalves  Dias  fez  similhante  confissão  ?  Não  pude 
ainda  encontrar  . 

E  demais  a  cousa  é  chronologicamente  impossível.  Os  PH- 
meros  Cantos  de  Gonçalves  Dias  sáo  de  1846. 

A  mór  porção  das  peças  do  volume  o  poeta  maranhense 
trouxe-as  de  Coimbra,  datadas  de  três  e  quatro  annos  antes. 
As  únicas  Brasilianas  de  Porto  Alegre  anteriores  são  O  Voa- 
dor de  1843,  e  a  Destruição  das  florestas  de  1845.  A  primeira 
nada  tem  no  assumpto  e  no  estylo  que  podesse  influir 
no  espirito  do  poeta  dos  Tymbiras.  A  outra,  anterior  de  al- 
guns mezes  apenas  ao  livro  dos  Primeiros  Cantos,  é  verda- 
deiramente posterior  a  mór  porção  d'estes;  e  nem  era  apta 
para  inspirar  o  indianismo  do  escriptor  maranhense.  São 
duas  intuições  bem  diversas,  e  isto  é  o  principal.  Estudemos 
o  poeta  lyrico. 

O  lyrismo  de  Porto  Alegre  não  tem  mimos,  delicadezas, 
doçuras  de  forma,  exhuberancias  de  idéas  ;  não  sao  as  expan- 
sões ternas  de  uma  alma  amaviosa.  ^ 

Tem  grandes  quadros,  bellas  pinturas,  os  signaes  da  força 
de  uma  alma  enérgica. 

Em  todo  o  volume  das  BrasiliaruLs  não  existe  uma  só  amos- 
tra de  poesia  pessoal,  intima,  psychologia.  Tudo  são  sceneis 
do  mundo  exterior,  ou  da  historia.  Se  Magalhães  pódei  ser 
considerado  uma  espécie  de  precursor  entre  nós  da  poesia 
philosophica,  o  pintor  rio-grandense  é  um  antecipador  da 
poesia  histórica,  de  uma  historicidade  envolta  e  confusa  com 
a  natureza.  Neste  sentido  é  característico  o  poemeto  escripto 
em  1835,  o  canto  sobre  as  ruinas  de  Cumas,  intitulado  a  Voz 
da  Natureza. 

E'  alguma  cousa  de  similhante  aos  pequenos  poemas  da 
Lenda  dos  Séculos  de  Victor  Hugo ;  mas  muito  anterior.  O 
poeta  dá  a  palavra  ao  Horisonte,  ao  Circeum,  a  Gaeta,  ao  Oce- 
no,  ao  Tuberão,  á  Columna  Dórica,  a  um  Rouxinol,  a  Pon- 
tia,  a  Pandataria,  a  uma  Gaivota,  ao  Amphitheatro,  a  Pithe- 
cusa,  a  Rochyta,  a  Cáprea,,ao  Vesúvio,  a  diversas  Vozes,  a 
um  Pastor,  desenvolvendo  grandes  quadros  em  que  cada  um 
entra  com  as  suas  recordações. 


HISTOBIA  DA  LITTSRATtJSA  BBA8ILEIBA  45 

leito  geral  é  bello;  ha  certas  tintas  bem  coloridas  no 

te  algumas  sombras. 

s  são  alguns  fragmentos  de  prosa  metrificada.  Provem 

um  dos  defeitos  do  talento  do  nosso  poeta  :  6  muito 
il.  Em  seus  escriptos  ao  lado  de  uma  pagina  boa,  ou 
niravel,  ha  sempre  algumas  paginas  más. 
loemeto  citado  sio  muitas  as  agradáveis,  e  eis  uma 

o  canto  do  Pastor  : 

(f  Toca  a  hora ;  silencio!  A  hora  sôa 
Em  que  o  globo  inílammado, 
Que  o  dia  á  terra  mostra. 
Do  ethereo  oceano  ao  fundo  rola, 
E  das  celestes  vagas  já  levahta 
Ás  gotas  luminosas  que  borrifam 

O  vasto  firmamento. 
Salve,  estrellante  noite. 
Que  do  berço  da  aurora  resurgindo 

De  um  manto  adamantino  te  apavonas 

Nas  cerúleas  campinas! 
/'agai  na  immensidade,  ardentes  cirios, 
}ue  só  a  immensidade  ora  me  ehcanta. 
Mesquinha  á  mente  a  terra  me  parece, 
íysticos  sonhos,  célica  harmonia. 

Adejai  vossas  azas, 

Resoai  no  infinito ; 
ombras  de  amor,  passai,  passai  ligeiras, 
fiuiçai,  e  repeti  em  muda  lingua 

O  nome  que  idolatro. 

3mo  rápida  a  mente  rola  e  paira 

Sobre  o  mar  do  silencio! 

Como  brilha  nas  trevas 
)  insólito  explendor  o  simulacro 
le  da  imaginação  hardido  surge 

Em  ideiaes  effluvios, 
magico  voltija,  vai-se,  e  volta! 
le  da  contemplação,  da  paz,  oh  noite! 
!  quão  ditoso  sinto  o  movimento 
e  o  coração  agita  a  par  dos  quadros 
e  desenrola  a  mão  de  alma  saudade, 
povir  áureos  paços  me  franqueias, 


46 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATURA  BBASILBIBA 

Que  O  cinzel  da  esperança,  a  phantasia 
Com  myslico  arteíicio  adorna,  e  doira! 
Doce  esperança,  espectro  luminoso, 
Coroado  de  estrellas  caroaveis, 

Tu  no  peito  me  escreves 

O  liome  que  idolatro. 


Tua  imagem  só  vejo  em  toda  parte  : 
Do  limpido  regato  a  nivea  espuma 
Na  corrente  descreve  em  alvas  letras 
Sobre  um  fundo  de  azul  teu  caro  nome. 
Dulçoroso  murmúrio  é  o  teu  sorriso, 
E  o  teu  olhar  um  raio  de  ventura. 
A  flor  que  cede  ao  zephyro,  e  balança, 
Retrata  o  teu  donaire  gracioso ; 
E  o  perfume  que  exhalam  suas  pétalas 
Teus  ditos  innocentes  assimilha. 

A  saudosa  elegia 
Que  entoa  o  rouxinol  entre  mil  flores, 
E'  o  hymno  de  ternura  da  tua  alma  : 
Tua  image,  anteposta  á  natureza, 
Divinisa,  embalsama-me  a  existência. 
Do  rio  a  crespa  vaga  que  deslisa. 
Minha  doce  esperança  representa. 
Correndo  de  hora  em  hora  té  que  chegue 
Ao  mar  delicioso  em  que  vogando 
Solte  as  velas  da  vida,  e  feliz  frua 
De  teus  lábios  o  hálito  de  rozas  ; 

E  abraçado  me  entregues... 
Cessai,  sonhos  de  amor!  vinde  a  meus  lábios 
Em  suspiros  morrer  mysteriosos. 

Fere,  lyra  amorosa, 
Entoa  co'o  meu  canto  em  puro  accordo 

O  nome  que  idolatro. 

Invoquei,  minha  bella,  a  eternidade  •, 
Entre  os  anjos  pairar  almejo  agora. 
Meu  amor  já  desdenha  a  terra  nossa. 
Só  posso  refrescar  a  calma  intensa 

Entre  os  lúcidos  astros, 
Effluvios,  que  levanta  do  universo 


K" 


II8T0BU  DA  LITTBRATUKA  B1U8ILBIBA  47 

Á  evitertia  torrente. 
A  Doíte  eu  invoquei,  para  nas  trevas 
Do  siJencio  occaltar  as  divas  scenas. 
Que  vehemente  peiix&o  me  volve  n'alma. 
Amor  eu  invoquei,  sylphos  sidéreos, 
Diaphanas  visões,  que  em  ronda  aérea 

Me  envolvem  de  almos  sonhos. 
Invoquei-te,  esperança,  a  ti  me  volvo, 
Ehte  mysterioso,  já  que  longe... 
Mas  que  digo?  jamais  longe  nfto  podes 

Viver  do  teu  amante. 
Mais  próxima  que  a  luz  e  ar  que  respiro, 
£u  te  guardo  no  adito  de  minha  alma! 

Invoco  ora  saudoso 
O  anjo  consolador,  anjo  do  vate. 
Que  desdobra  em  minha  alma  as  azas  ígneas 
Para  escrever  no  céo  entre  as  estrellas 
O  nome  que  idolatro.  »  (1) 

âo  é  este  um  fragmento  de  delicioso  IjTismo,  como  alguns 
'eparam  ao  leitor  na  litteratura  européa  e  até  na  litteratura 
íJeira.  Falta-lhe  a  musica  da  palavra,  producto  do  rythmo 

rima;  faltam-lhe  as  ondulações  de  um  estylo  mimoso, 
ha  ahi  alguma  cousa  da  grande  poesia,  ha  esse  vago,  esse 
erminado,  que  abrem  indefinidas  perspectivas  na  leí- 
los  bons  poetas. 

oesia,  digna  desse  nome,  disse  Renan,  nutre-se  de  mys- 
t  obscuridade.  Nao  era  preciso  que  o  linguista  e  histo- 
/rancez  o  houvesse  af firmado. 

íesia  íoi  sempre  um  producto  das  regiões  crepuscu- 
'alma  humana,  uma  exhalaçâo  d'essa  alguma  cousa 

nós  vive  de  sonhos  e  chiméras. 

da  Voz  da  Natureza  ha  nas  Brasilianas  dous  poe- 
íuito  afamadas  :  A  Destruição  das  Florestas  o  O  Corço- 

Teriores  áquelle  em  força  e  graças  de  pensamento  e 
lo  superiores  como  tentativa  de  nacionalisação  da 

ctncíM,  p&g,  236  e  seg. 


HIBTOSTi.  DA  LiTTEBATDBA  SKAB1I.BIBA 

nho  aíflrmado  cincoenta  vezes  que  um  caracter  nacio- 
>  se  decreta  nem  se  fabrica,  é  producçâo  espontânea. 
;e  também  trinta  vezes  que  a  simples  escolha  do  as- 
)  nÊLo  é  garantia  da  indole  nacional  na  poesia, 
.cionalismo  não  é  uma  questão  exterior,  é  um  facto 
log:ico;  nem  é  uma  questão  de  ideias,  é  uma  formação 
ida  e  gradual  dos  sentimentos, 
oluçao  das  emoções  é  muito  mais  lenta  do  que  a  das 

é  por  isso  que  um  caracter  nacional,  quei  é  uma  es- 
te expoente  da  alma  de  um  povo,  é  um  producto  do 

um  producto  da  historia. 

juanto  partissem  de  uma  noção  critica  inexacta,  os 
ens  de  Porto  Alegre  e  outros  tiveram  mérito,  como 
as  ao  appello  do  romantismo,  quando  este  era  uma 
5  tradições  populares. 

sposta  de  Porto  Alegre  foi  pintar  algumas  de  nossas 
naturaes,  como  a  ascençSo  ao  Corcovado,  ou  culíuraes, 

uma  cultura  semi-barbara,  como  a  Destruição  das  Plo- 

iposla  de  Gonçalves  Dias  foi  descrever  o  viver  do  cabo- 
n'isto  julgaram  consistir  toda  a  vida  nacional  I... 
>tudos  de  ethnographia  e  demographia  brasileira  não 
n  ainda  quando  escreveram  aquelles  notáveis  roman- 
lem  a  nossa  historia  estava  bem  construida. 
tarde  é  que  as  influencias  ethnicas  da  população  fo- 
tudadas  e  um  olhar  lançado  sobre  os  cantos,  os  con- 
superstições,  os  costumes  populares  (i). 
struição  das  Florestas  tem  três  cantos,  a  Derribada,  a 
\da  e  a  Meditação.  O  ultimo  é  medíocre;  o  mais  valente 
çundo;  o  primeiro  occupa  uma  posição  íntennedia 
ao  merecimento. 

im  trecho  para  comprehensão  e&acta  do  estylo  do 
io-grandense  : 

«  Na  tnSo  do  escravo  acicalado  ferro 
Brilha,  e  reflecte  do  africano  vulto 

9:  Eãtudot  lobrea  Poeiia  Popular  BratUeira,  Cantoi  Populofit 
I,  Conto%  Poputaret  do  Bratil  —  pelo  autor. 


HlãtOftlÁ  DA  WfíVkkfÚlUL  6BA0ILÈlftÁ  49 

Sorriso  delator  de  interno  gozo! 
B  sôfrego  acudindo  á  voz  do  íncola, 
Qne  na  córnea  busina  o  madrugara, 
\ntes  que  a  aurora  os  montes  contornasse, 
Va  frondente  floresta  se  aprofunda. 
Jrada  contente  a  parceiral  caterva, 
^rompta  agitando  as  foices  e  os  machados 
)ue  no  ar  lampejam,  qual  sinistros  raios, 
fede coa  vista  os  seculares  troncos, 
>*esse8  gigantes  que  laceram  nuvens  ; 
>ue  tantas  estações,  e  tantas  eras, 
s  céos  e  a  terra  em  porfiada  lide 
onosos  empregaram  na  estructura 
ue  tem  por  coraç&o  cerne  de  ferro, 
nde  verazes  os  annaes  do  mundo 
n  multíplices  rolos  se  recatam. 
*orompe  o  capataz  com  gesto  fero, 
ras  canções  do  peito  borbotando, 
le  alentam  do  machado  o  golpe  ;  troa 
hymno  devastador,  que  em  curta  quadra 
nça  por  terra  mil  possantes  troncos, 
nhre  dos  evos,  pompa  da  natura, 
s  largos  botareos,  que  a  base  escoram, 
10  solo  se  entranham  tripartidos, 
no  ingentes  giboias  no  profundo, 
ha  o  machado  a  corpolenta  crosta. 
me  o  chão,  treme  o  ar,  geme  e  se  esfolha 
upUa  verdegai  do  amplo  madeiro, 
)nvulso  largando  os  verdes  fructos, 
nisa  o  bosque  com  medonho  estrondo, 
as  aves  manda  ao  céo,  e  á  toca  as  feras  ; 
celeuma  de  confusas  vozes 
laude  a  queda  dos  pujantes  lenhos. 
o  uma  anta  feroz,  sibilo  agudo 
a  c'os  dedos  os  sovados  lábios 
ío  capataz,  e  açula  a  turba, 
novo  metro  e  variado  modo, 
um  golpe  extinguir  o  parque  excelso, 
incólume  surgio  do  catacUsmoI 
ices  e  os  machados  manobrando, 
unputando  o  perístilio  umbroso 
3rde  tenda,  monumento  inculto, 

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V 


50  HISTORIA  DA  LITTEEATUBA  BRASILBIBA 

Que  de  indómitas  feras  fora  asylo, 

E  os  acentos  canoros  de  mil  aves 

Nas  perfumadas  folhas  embebera ; 

E  onde  em  bárbaro  coro  a  simia  astuta 

Outr-ora  se  embalava,  até  que  a  frecha 

Do  certeiro  Tamoyo,  o  ar  fendendo, 
{'  ^  Co*a  ponla  hervada  lhe  enfiasse  a  morte. 

Como  columnas  de  arruinados  templos 

Jazem  prostradas  em  confuso  enleio 
f.  As  grossas  hastes,  desmedidas,  fortes, 

\  .  D^essas  umbellas,  que  subindo  aos  astros 

No  regaço  do  sol  fruiam  ávidas 

Os  puros  raios  de  vital  conforto! 

A  prenhe  sombra  de  fragrância  e  fresco. 

Que  cem  plantas  mimosas  protegia, 

N&o  mais  amparará  bolh&o  ruidoso. 

Que  a  estiva  sôde  dissipava  ás  feras. 

Oh!  que  espectáculo  grandioso  e  triste 

Meus  olhos,  abarcando,  contemplaram! 

O  ferro  iconoclasta  retalhando 

A  verdejante  chlamyde  da  terra, 

O  seu  manto  sem  par,  e  cuidadoso 

Poupar  avaro  inúteis  esqueletos 

De  eivados  troncos,  carcomidos  galhos, 

Aonde  a  viridente  primavera 

Em  vão  tentara,  em  contumazes  lustros, 

.  Nos  podres  garfos  de  raiz  annosa 

Seu  insuflo  vital  verter  benigna! 

Ruínas  sacras,  que  eu  lastimo  e  adoro, 

Das  aves  throno,  e  odâo  harmonioso! 

Hoje  achanado  teu  sublime  porte 

Rola  na  terra  os  prostylões  soberbos 

De  odoros  acroterios,  onde  a  arara, 

O  brilho  apavonando  de  seu  manto 

Como  uma  flor  alada  resplendia.  »  (1) 

Os  trechos  citados  são  capazes  d^  definir  o  talento  lyrico 
de  Porto  Alegre  no  que  elle  tinha  de  mais  significativo. 

Nâo  seria  difficil  agora  apontar  pedaços  duros,  prosaicas, 
sem  o  mínimo  valor  poético.  Prefiro  mostrar  os  bellos  frag- 


^'V  (1)  BrctêilianaSf  Vienna,  1863,  pag.  45  e  segt. 


r  .. 


HIBTOBIA  BA  LITTBBATU&A  BRA8ILBIBA  51 

mentos,  as  passagens  em  que  o  talento,  como  espirito  alado, 
desíerio  grandes  e  harmoniosos  voos.  Este  livro  nâo  quero 
que  seja  uma  galeria  de  estatuas  decepadas;  desejo  antes 
que  pareça  uma  assembléa  de  almas  vivas  quei  se  movam  e 
agitem  em  animada  e  deleitosa  convivência 

O  merecimento  capital  do  poeta  rio-grandense  era  a  habi- 
lidade em  desenhar  em  seus  versos  uma  serie  de  quadros  e 
scenas  exteriores.  O  colorido  não  é  sempre  dos  mais  bril- 
hantes; mas  o  desenho  é  correcto  e  amplo. 

Porto  Alegre  era  enthusiasta  e  um  pouco  fanfarrão  na  sua 

conversação ;  o  mesmo  em  sua  poesia  :  sopra  em  cima  de  seu 

leitor  de  vez  emquando  alguns  termos  empolados,  campa- 

nudos,  capazes  de  tonteal-o. 

Seu  lyrismo  não  tem  doçuras,  delicadezas,  mimos  de  ideia 

9  de  forma.  Abre  perspectivas,  tem  paizagens,  mostra  dese- 
ihos  e  algumas  bellas  cores  por  vezes. 

Seus  méritos  e  defeitos  acham-se  acumulados  no  seu,  por 
ns  tão  encarecido,  por  outros  tão  escarnecido,  e  por  todos 

10  mal  estudado,  poema  —  Colombo. 

Nenhum  outro  poema  da  lingua  portugueza  é  tão  longo, 
o  massante  em  alguns  pontos  e  eriçado  de  um  maravil- 
so  tão  deslocado  e  extravagante;  nenhum  outro,  porem, 
ssue  de  longe  em  longe  versos  tão  sonoros,  tão  vigorosos, 

valentes  c  tantas  passagens  tão  nutridas,  tão  elevadas, 
fortes,  tão  eloquentes. 

olombo  é  uma  galeriet,  uma  pinacotheca  cheia  de  bellis- 
os  quadros  perdidos,  prejudicados  no  meio  de  telas  mal 
ostas  e  mal  acabadas.  A  viagem  do  observador  é  ator- 
la  por  difflculdades  e  tropeços  ;  mas  compensada  pela  bel- 
de  muitas  scenas  que  se  lhe  deparam  ante  os  olhos. 
3oeta  revela  grande  imaginação,  grande  vigor  de  traços, 
le  destreza  de  desenho,  muita  leitura,  muita  instrucção. 

de  proporções,  de  medida,  pouca  habilidade  em  tecer 
irédo,  raros  dotes  dramáticos,  nenhuma  synthese  poe- 
lenhum   quadro  deflnitivo  e  justo  do  caracter  do  seu 

eis  os  defeitos  do  livro. 

lum  outro  ha  na  lingua  portugueza  de  leitura  tão  desi- 
L  parte  maravilhosa  é  decididamente  a  mais  fraca.  Ha 


&2  filâTO&ÍA  DÁ  LlTTS&ÁTtTBA  BEABIL&ISA 

pedaços  falados  por  Pamorphio  que  são  verdadeiras  estopa» 
das.  O  caracter  de  Colombo  não  é  lambem  muito  nitido. 

Não  é  uma  figura  audaz  e  illuminada  de  navegador  e  de 
génio.  E'  uma  espécie  de  beato,  cheio  de  amuletos,  um  mata- 
mouros  armado  de  uma  cruz  contra  o  demónio,  que  lhe  appa- 
rece  não  se  sabe  bem  por  que  motivo  em  caminho. 

Porto  Alegre,  educado  no  regimen  do  pseudo-classicismo, 
julgava-se  ainda  obrigado  a  escrever  um  poema  á  antiga, 
cheio  de  apparições  diabólicas,  de  encantamentos,  de  infer- 
nos e  o  mais...  Era  não  ter  uma  bem  clara  intuição  das  fei- 
ções e  do  caracter  da  poesia  moderna. 

Livre-me  Deus  da  mania  de  querer  fornecer  preceitos  a  poe- 
tas. Mas  um  homem  do  nosso  tempo  de  luctas  burguezas,  de 
trabalhos  mecânicos,  de  creações  industriaes,  querendo  pin- 
tar um  illuminado  do  Renascimento,  um  temerário  do  tempo 
das  grandes  navegações  e  das  grandes  descobertas,  em  sua 
monomania  por  descobrir  um  Novo  Mundo,  e  lançando-se 
para  isto  ao  meio  das  solidões  immensas  do  oceano  descon- 
hecido, um  homem  de  nosso  tempo,  diante  de  um  tal  espec- 
táculo, tem  n'alma  d'esse  audacioso  e  no  scenario  immenso 
em  que  ella  se  agitava  os  elementos  indispensáveis  ao  seu 
poema.  Não  ha  mister  da  intervenção  de  Pamorphio  nenhum. 
Sem  sahir  da  realidade  tem  a  trama  inesgotável  da  epopéa 
moderna.  E'  por  isso  que  toda  a  mythologia  malfazeja,  toda 
a  demonologia  do  Colombo  é  árida,  estéril  e  de  leitura  pe- 
nosa; é  por  isso  ainda  que  todas  as  scenas  reaes,  todas  as 
pinturas  da  vida  positiva,  as  luctas  de  borda,  os  levantes,  as 
nostalgias  da  pátria,  as  peripécias  da  navegação,  as  descri- 
pções  de  tempestades,  os  panoramas  da  natureza  são  de  uma 
execução  valente  e,  por  vezes,  admirável.  Os  exemplos  bor- 
bulham por  toda  a  parte.  B'  só  procural-os,  o  que  é  um  pouco 
enfadonho,  attenta  a  grande  extensão  do  poema. 

Colombo  é  em  dois  volumes  com  quarenta  cantos  e  um  pro- 
logo de  70  paginas.  O  todo  do  livro  é  de  950  paginas,  contendo 
muitos  milhares  de  versos. 

No  canto  X  apparece  em  scena  Pamorphio  e  só  deáxa  de 
importunar  a  gente  com  suas  diabruras  no  canto  XXIV.  E* 
a  porção  mais  massante  do  livro;  entretanto  é  aquella  ondld 


mSTORIÁ  DA  LITTXKATUSA.  BRASILBIltÁ  53 

se  lêem  boas  paginas  sobre  as  theoganias  e  civilisações  do 
México  e  Perú. 

Pamorphio  mostrara  estas  regiõs  em  espirito  ao  nauta. 
Porto  Alegre  patenteia  ahi  grande  erudição;  bem  se  conhece 
quanto  se  preparou  para  escrever  o  seu  poema. 

O  Colombo  é,  como  disse,  cheio  de  paginas  agradáveis, 
especialmente  em  descripções. 
Eis  aqui  uma  : 

u  Curveteia  o  corcel ;  no  reste  a  lança, 
O  ibero  pujante  aguarda  o  emulo. 
De  um  tranco  volve  o  Cavalleiro  negro 
O  tudesco  ginete,  e  no  bomeio 
Gruda  a  manopla,  e  espera,  qucd  de  bronze 
Estatua  equestre,  que  na  trompa  sòe 
O  terrível  signal.  Lavra  o  silencio  ; 
O  fôlego  suspende  a  corte  e  o  povo  : 
Quasí  se  ouvia  sob  os  peitos  de  aço 
Bater  o  coração  dos  lidadores. 
Os  fervidos  clarins  abrem  a  lide. 
Das  hostes  justadoras  se  arremetem 
Os  cabos  tríumphantes,  e  no  encontro 
As  lanças  estalaram.  Pavorosos, 
Nitrindo  de  furor  em  pé  recuam 
Os  ardentes  cavallos.  Bradam  todos  : 
Boa  láhça,  Marquez!  Alçam-se  as  damas 
E,  flores  rosciando,  a  Cadix  honram. 
Somente  entregue  a  si,  e  ao  seu  destino, 
Não  colhe  uma  ovação  o  forasteiro. 
Retomam  novas  armas,  e  se  investem 
Com  dobrado  vigor  :  ambos  tocados, 
Cavo  som  suas  armas  restnigiram. 
Varados  os  broqueis,  as  rijas  lanças 
Nas  couraças  sulcando  se  inflammaram. 
Paimas  crepitcun  na  dourada  teia. 
Alegres  as  donzeUas  no  ar  agitam 
Níveos  lenços  e  charpas  multicores  : 
Kasim  iia  estiva  pompa,  em  grato  asylo, 
dimosas  rolos  no  festim  nectario, 
co  sibilo  feroz  de  anta  membruda, 
plumagem  batendo,  se  alçam  tímidas 


54  HIBTOBIA  PA  UTTBSATUBA  BRASILEISA 

Pelos  átrios  odôros  da  floresta. 
Nôo  cedem  no  valor ;  de  novo  ao  prélio 
As  infrangiveis  lanças  correm,  cruzam, 
Batem,  resoam,  vergam  como  a  lamina 
De  agudo  estoque  n'um  marmóreo  peito. 
No  nspido  encontrão  ambos  tremeram. 
Dormente  o  braço  cede,  e  no  chão  rola 
Do  marquez  o  broquel,  qual  disco  hellenio 
Que  em  olympico  jogo  mede  o  estádio. 
O  negro  cavalleiro  ent&o  recua, 
Recua  o  hespanhol ;  ganham  seus  postos. 
De  novo  embraça  o  valeroso  Cadix 
Um  áureo  escudo,  e  o  contrario  envida. 
VÍZ6UT1,  em  regra  ferem  ;  resupino 
Cai  o  marquez  nas  ancas  do  ginete  : 
Do  elmo  cede  o  engaste  ;  núa  a  fronte, 
Seu  rosto  radiou  mavórcio  brilho. 
Um  súbito  palor  obumbra  a  festa ; 
Soluçam  as  donzellas,  e  nas  turmas 
Sinistro  borborinho  se  propaga. 
Mas  Cadix  reganhado  o  prumo,  investe 
Como  um  tigre  furente  ;  de  um  só  golpe 
As  negras  brafoneiras  despedaça ; 
E  a  lança  revirando  abola  e  fende 
^         O  elmo  côr  da  noite!  Estrondam  bravos, 
Renasce  em  toda  a  liça  alma  esperança  : 
Castella  vai  vencer.  Oh!  como  é  grande 
A  explosõo  que  fervendo  amor  da  pátria, 
Sem  querer  pelos  lábios  se  despede. 
Dão  de  rédea  aos  alipedes  cavallos, 
E  na  volta,  entre  vivas,  grita  e  bravos, 
N'um  choque  extremo  e  horrendo  as  fortes  lanças 
Pelo  ar  em  mil  farpas  voltijaram! 
Desnudam  as  espadas,  cruzam  talhos. 
Qual  em  noite  calmosei,  em  selva  escura, 
Abrazados  de  amor  o  cirio  accendem 
Errantes  vagalumes,  taes  os  ferros 
Retalhando  o  arnez  revesam  fogos  (1). 

Com  alguma  ironia  diziam  os  contemporâneos  ser  Porto 

(1)  Colombo,  1*  vol ;  prologo,  pag,  62  e  seg. 


HI8T0BIA  DA  LITTSRATU&A  BRASILBnUL  55 

AJegre  o  primeirD  pintor  entre  os  poetas  e  o  primeiro  poeta 
ontre  os  pintores  no  Brasil. 

A  satyra  é  evidente.  Com  Porto  Alegre  a  cousa  não  ha  de 
ser  assim;  teve  mérito  em  ambas  as  espheras,  e,  quanto  ao 
seu  estylo  de  poeta,  no  que  elle  tinha  de  mais  eminente,  era 

a  juncçào  do  talento  do  pintor  ao  talento  do  escriptor  :  sua 

facidté  maitresse  era  a  descripção. 
O  talento  de  deiscrever  tem  atravessado  phases  diversas, 

Uwibam  tem  passado  pela  lei  da  evolução.  A  applicação  doesta 

no^o  á  esthetica  e  á  critica  litteraria  é  capaz  da  renovar  todo 
o  antigo  processo  de  analyse  intellectual.  Tudo  obedece  a  um 
desenvolvimento  constante;  mas  isto  não  é  só  verdade  das 
3reações  exteriores  da  humanidade  :  a  poUlica,  o  direito,  a 
iciencia,  a  arte...  E'  também  certo  das  qualidades  internas  do 
.^pirilo;  as  aptidões  da  intelligencia  têm-se  desenvolvido, 
ovas  forças  mentaes  têm  despontado.  Os  próprios  sentidos 
víeriores  hão  progredido.  Retomando  o  centro  do  assumpto, 
atarei  que  a  descripçilo  hoje  na  littoratura  não  é  já  a  relação 
:lís  ou  menos  exacta  de  um  facto^  de  um  phenomeno  qual- 
er.  Quer-se  mais,  quer-se  que  a  palavra  pinte  directamente 
cousas.  Os  francezes  têm  levado  isto  ao  supremo  requinte, 
orosa  de  Michelet,  de  Victor-Hugo,  de  Théophilo  Gautier, 
Paul  de  Saínt- Victor,  esses  grandes  pinturistas,  foi  a  prosa 
)  havia  tirado  todos  os  recursos  e  abusado  de  todas  as  i- 
zas  do  vocubulario.  E  não  foram  somente  esses  românticos 
nesíres  proclamados  da  linguagem  ;  os  modernos  escri- 
ss  canninharam  no  mesmíssimo  terreno.  Taine,  os  Gon- 
t,  Flaubert,  Leconte  de  Lisle,  Daudet,  Banville  seguiram 
trilha, 
ferry,  Sainte  Beuve,  Scherer  e  Renan  eram  prosaistas  de 

grosto,  escriptores  mais  sóbrios,  mais  flnos,  mais  deli- 
;  menos  ricos,  porem  mais  deliciosos. 
^  Alegrre  acha-se  sem  duvida  mal  collocado  entre  tão 
3  companhia.  Como  prosador  era  medíocre.  Mas  foi  um 
ssos  mais  destros  descriptores  em  verso.  Seus  quadros 
ruros,  sâo  animados,  são  vivazes. 
5  ainda  a  descrípção  á  moderna,  a  palavra  como  tinta^ 
^oresj  como  os  escriptores  recentes  exageram  sem  conr 


56  HISTORIA  BA  LITTBRATimA  BBA8ILXIRA 

seguir  o  almejado  intento.  E'  a  descripção  á  antiga,  meio  rhe- 
torica  por  vezes;  mas  valente  e  lúcida. 

O  artista  poeta  não  quiz  abusar  de  seu  savoir  faire  de  pin- 
tor para  não  cahir  na  requintada  maneira  dos  seus  contem- 
porâneos. 

N'isto  andou,  sem  o  saber,  de  perfeito  accôrdo  com  Eu- 
génio Fromentin,  escriptor  e  pintor  como  elle.  Este  celebrado 
chefe  da  escola  africana  da  pintura  franceza  foi  ao  mesmo 
tempo  um  dos  primeiros  prosadores  de  seu  paiz. 

Nunca  li  em  lingua  nenhuma  livros  mais  attrahentes  pelo 
cstylo  do  que  Une  année  dans  le  Sahel^  Un  été  dans  le  Sahara^ 
Dominique,  e  Les  mattres  d'autrefois^  do  illuslre  fllho  da  Ro- 
chella. 

O  insigne  pintor,  sem  ser  sectário  do  antigo  modo  de  des- 
crever, não  achava  regular  o  género  moderno. 

Eis  como  elle  próprio,  depois  de  bellissimas  paginas,  cara- 
cterisa,  synthetisando,  seu  modo  de  julgar  a  questão  :  «  E'  in- 
contestável que  a  plástica  tem  suas  leis,  seus  limites,  suas 
condições  de  existência,  aquillon  que,  cm  uma  palavra,  con- 
stilue  o  seu  dominio. 

Eu  percebia  iguaes  motivos  para  a  litleratura  conservar  e 
preservar  o  seu.  Uma  ideia  pôde  ser  expressa  ao  mesmo 
tampo  de  duas  maneiras  differentes,  com  a  condição  de  pres- 
tar-se  a  essas  duas  maneiras. 

Escolhida,  porém,  sua  forma,  e  reflro-me  á  sua  forma  litte- 
raría,  não  via  que  ella  exigisse  nem  melhor,  nem  mais  do 
que  pôde  comportar  a  linguagem  escripta. 

lia  formas  para  o  espirito,  como  existem  formas  para  os 
olhos;  a  lingua  que  fala  á  vista  não  é  a  mesma  que  fala  á 
alma.  E  o  livro  existe,  não  para  repetir  a  obra  do  pintor,  se- 
não para  exprimir  tudo  o  que  ella  não  pode  dizer.  Na  pratica 
a  demonstração  de  tal  verdade  me  apazigou;  eu  a  tirava 
d'uma  experiência  muito  segura  e  decisiva. 

Conclui  d'ahi,  com  o  mais  intenso  prazer,  que  tinha  na  mfto 
dois  instrumentos  differentes  :  podia-se  perfeitatamente  se- 
parar o  que  convinha  a  um,  do  que  era  conveniente  a  outro 

E  eu  o  flz.  A  parte  do  pintor  era  necessariamente  tão  limi- 
tada, que  a  do  escriptor  se  me  antolhava  immensa.  Tive  ape- 


-i  ^-- 


niTOBIA  DÁ  LITTISATUXÁ  UABUXIBA  57 

nas  o  cuidado  de  não  me  illudir  com  o  instrumento  mudanto 
de  offlcio » (1). 

Esia  questão  das  relações  entre  a  pintura,  a  plástica  e  a 
poesia,  bem  antes  de  Fromentin,  fora  magistralmente  discu- 
tida por  Lessing  no  be-llo  livro  do  Laocoonte,  publicado  em 
1763.  Já  n'esse  tempo  o  illustre  progono  allemâo  tinha  esgo- 
tado o  debate. 

Porto  Alegre  n&o  tinha  grandes  recursos  de  estylo,  nem 
forcejava  por  fazer  a  lingua  pintar. 

Não  tirava  os  recursos,  todos  os  recursos  que  podem  ser  ti- 
rado do  vocabulário  portuguez.  N*este  ponto  elle  tinha,  é 
(verdade,  uma  certa  monomania  :  a  posse  de  um  determinado 
lumero  de  termos  desusados,  esquecidos.  Era  uma  doença 
[ue  tinha  em  commum  com  Odorico  Mendes. 
Não  é  de  taes  recursos  que  lançam  mão  os  pinturistas  da 
nguagem;  não  hão  mister  de  mergulhar  pelo  mundo  soter- 
do  das  palavras  archaicas  e  abandonadas.  Sem  sahir  das 
giões  da  vida,  imprimem  exquisito  e  fulgurante  colorido  ás 
as  ideias. 

\.nles  de  despedir-me  de  Porto  Alegre,  como  poeta,  fora 
tda  possível  dizer  qualquer  cousa  a  cerca  de  alguns  traba- 
s  safyricos  que  deixou.  Doeste  numero  são  os  versos  debica- 
os  da  antiga  colónia  portugueza  do  Rio  de  Janeiro  sobre 
icantada  náo  Vasco  da  Gama,  a  grande  e  maravilhosa  náo, 
2un  elles,  que  ahi  vinha  impor  admiração  e  respeito  aos 
'>is,  e,  antes  de  entrar  n'este  porto,  encalhou  lá  fora,  ava- 
iose  e  sendo  rebocada  por  um  pequeno  vaso  de  guerra 
>na].  E*  também  doesse  numero  a  introducção  ao  poema 
mhador  nnovido  contra  o  jornalista  Justiniano  José  da 
a  em  1844. 

>oeta  rio-grandense  é  desconhecido  por  este  lado  e  jus- 
\ie  desconhecido. 

possuía  a  vis  cómica  e  nem  a  satyrica.  Os  versos  são 
cres. 

$  palavras  ainda  sobre  o  crítico  para  concluir  este  perfil. 
Klegre  deixou,  além  das  obras  de  que  tenho  falado,  di- 

£té  dUznM  le  Saharat  par  Eugène  Fromentin,  7*    édition,  Puis 
do  magnifico  prefacio. 


58  HISTORIA  BA  LITTESATURA  BRASILEIRA 

versas  artigos  e  discursos  de  indole  litteraria.  Os  artigos  ver- 
sam especialmente  sobre  as  artes  no  Brasil  com  particulari- 
dade a  pintura. 

Os  principaes  referem-se  á  antiga  escola  fluminense  e  á  des- 
cripção  de  diversas  exposições  realisadcLs  na  Academia  das 
Bellas-Artes.  Estes  artigos  andam  dispersos  na  revista  do  Insti- 
tuto Histórico, em  a  Minerva  Brasiliense  e  n'outras  publicações 
periódicas. 

Os  discursos  foram  pronunciados  no  Instituto  em  sessões 
annuaes  commemorativas  dos  sócio»  fallecidos,  durante  o 
tempo  em  que  o  poeta  foi  o  orador  offlcial  d'aquella  asso- 
ciação. 

Porto  Alegre  não  era  um  critico  por  indole  e  temperamento 
litterario;  não  era  também  um  orador  consummado  e  cor- 
recto. Era  um  homem  sensato,  instruído,  investigador  e  serio, 
capaz  de  sahir-se  airosamente  d^aquillo  de  que  se  deixava 
encarregar. 

Para  a  gloria  e  a  perfeita  comprehensão  da  personalidade 
litteraria  do  afamado  rio-grandense  é  indispensável  que  al- 
guém lhe  pubhque  em  volume  accessivel  ao  grande  publico 
esses  escriptos  que  ellc  deixou  soterrados  nos  jornaes  e 
revistas.  O  jornal  garante  leitura  mais  numerosa;  mas  é  so- 
mente no  dia  de  sua  appariçâo.  O  livro  assegura  uma  apre- 
ciação mais  duradoura. 

Em  definitiva,  Porto  Alegre  foi  um  bom  desenhista,  um 
poeta  lyrico  de  grande  talento  descriptivo,  um  poeta  épico 
sem  proporções,  mas  onde  o  lyrista  apparecia  para  salval-o  re- 
petidas vezes ;  um  critico  amoravel  e  intelligente.  Seu  poema, 
segundo  o  dito  de  uma  celebre  personagem,  que  o  lesse  até  o 
fim  só  achou  o  revisor  e  a  dita  personagem,  a  quem  o  livro 
era  dedicado. 

Mas  os  bons  trechos,  que  alli  se  encontram,  seriam  sofre- 
gamente lidos  pelos  mais  exigentes  espirites,  se  alguém  se 
lembrasse  de  os  colher  e  enfeáchar  n'um  pequeno  volume. 

Passo  a  outros. 

No  decennio  de  1840  a  1850  appareceram  as  primeiras  obras 
de  Teixeira  e  Souza,  Norberto  Silva,  Dutra  e  Mello,  Manoel 
de  Macedo  e  Gonçalves  Dias. 


HI8T0BIA  DA  LITTSIU.TURA  BBA8ILKIBA  59 

Dividi  o  movimento  romântico  em  diversas  épocas. 

A  primeira  foi  inaugurada  por  Magalhães;  gyram  em  torno 
delle  Porto  Alegre,  Teixeira  e  Souza^  Norberto  Silva  e  Dutra 
e  Mello, 

Macedo  vai  figurar  especialmente  no  romance  e  no  theatro. 
lonçaJves  Dias  abre  uma  outra  phase  á  nossa  romântica.  O 
riterio  para  grupar  as  escolas  é  a  natureza  intrínseca  de 
ada  uma  d'ellas.  O  critério  psira  grupar  os  epígonos  em  torno 
os  che/es  é  a  chronologia,  náo  tanto  dos  indivíduos  como  das 
3ras.  Porto  Alegro  é  de  1806,  mas  seus  primeií-os  ensaios  são 
ísleriores  aos  de  Magalhães,  nascido  em  1811. 
Segue-se  depois  Teixeira  e  Souza,  de  1812,  cuja  primeira 
ra  é  de  J840;  vem  após  Norberto  Silva,  de  1820,  tendo  a 
meira  obra  em  1840  ou  41. 

lo  movimento  iniciado  por  Magalhães,  prendem-se,  alem 
poetas  citados,  Francisco  Octaviano  de  Almeida  Rosa^ 
7  Cardoso  de  Menezes  e  Souza^  Joaquim  José  Teixeira^ 
,oel  Pessoa  da  SUva,  António  Rangel  Torres  Bandeira^ 
usto  Colin,  Padre  Corrêa  de  Almeida,  e  Sijmphronio 
ipio  Alvares  Coelho.  A  essa  tendência  obedeceram  tam- 
António  Pelix  Martins  e  José  Maria  Velho  da  Silva  em 
I  já  tive  occasião  de  falsur. 
am-se  os  principaes  d*entre  tantos  escriptores  e  poetas. 

orno  Gonçalves  TEixsmA  e  Souza  (1812-1861). 

um  mestiço,  fllho  de  uma  pobre  família  de  Cabo  Frio, 

vincia  do  Rio  de  Janeiro. 

'a  apetnas  o  ensino  das  primeiras  letras,  foi  forçado 

?,  por  apertos  pecunarios  dos  pais,  a  aprender  o  offlcio 

inteiro. 

5  mister»  já  em  Gabo  Frio,  já  no  Rio  de  Janeiro,  para 
SSOU-S&  em  1825,  conservou-se  até  1830.  De  volta  en- 
a  cidade  natal,  foi  nomeado  mestre-escola,  emprego 
-ceu  larg-QS  anno6,  sendo  em  1855  despachado  escrí- 
íommercio  no  Rio.  Falleceu  em  1  de  dezembro  de 

I  homem  activíssimo  e  de  muito  bons  desejos.  E'  o 


60  HI8T0BIA  DA  LITTEEATUBA  BRASILEIRA 

nosso  poeta  artezâo.  Escreveu  bastante,  tentando  géneros  di- 
versos. Publicou  duas  ou  três  tragedias,  um  grande  poema 
épico  sobre  a  Independência  do  Brasil,  uma  espécie  de  poema 
lyrico  sobre  uma  tradição  de  sua  terra,  grande  porção  de  cân- 
ticos lyricos,  e  seis  ou  sete  romances. 

E'  uma  bagagem  litteraria  assas  pesada  e  de  um  manejar 
difflcultoso.  E'  um  grande  inconveniente  escrever  muito,  espe- 
cialmente quando  esse  muito  escrever  não  obedece  a  um 
plano  e  a  uma  idéa  dirigente. 

Torna-se  a  obra  de  um  escriptor  d*esses  um  matagal  dam- 
ninho  em  que  se  perde  improficuamente  o  leitor,  e  d'onde 
sae  irritado  o  criticoí,  lastimando  o  precioso  tempo  perdido 
em  atravessar  matos  e  barrancos. 

Causa  dó  a  cegueira,  a  inópia  de  um  escrevinhador,  de 
um  sporcatore  di  carta,  gastador  de  Unta  e  papel... 

O  nosso  Teixeira  e  Souza  não  é  precisamente  um  tão  pro- 
fuso e  diffuso  productor  de  livros.  Mas  teria  andado-  bem  em 
escrever  menos.  Nas  letras  as  mais  das  vezes  o  silencio  é  de 
ouro,  e  a  sobriedade  é  sempre  de  brilhante. 

As  tragedias  e  o  longo  poema  épico  fazem  mal  á  reputação 
litteraria  de  Teixeira  e  Souza.  Fora  melhor  que  os  não  tivesse 
produzido.  Quasi  o  mesmo  se  pôde  dizer  de  seus  fracos  e  en- 
fadonhos cânticos  lyricos. 

Postos  estes  productos  á  margem,  ainda  restam  o  poema 
lyrico  o  os  romances  do  escriptor  para  dar  a  medida  e  mos- 
trar a  Índole  de  seu  talento  (1). 

Primeiro  o  poeta,  e  isto  rapidamente. 

Quando  digo  que  o  poeta  de  Cabo  Frio  era  bem  intencio- 
nado, avanço  uma  verdade.  Era  patriota  e  nacionalista;  force- 
java por  tomar  parte  nos  esforços  da  geração  de  seu  tempo  no 
empenho  de  dotar  o  Brasil  com  uma  litteratura.  Então  não 
tínhamos  ainda  vergonha  de  ser  brasileiros,  sonhávamos 
ainda  com  a  formação  de  uma  pátria  autónoma  e  progressiva- 
Como  a  mulher  perdida  que  abre  a  sua  porta  ao  primeiro 
viandante,  o  espirito  nacional  não  havia  ainda  desesperado 

(1)  Estes  escríptos  de  pouco  valor  sdo  as  tragedias  —  Cometia,  O  coooZ- 
leiro  Teutonieo ;  as  colíecções  de  poesias  sob  o  titulo  de  Cantieoê  Lyricoê 
o  poema  épico  denominado  —  A  Independência  do  Broêil. 


HlfiTOftlA  DA  UTTllUTtmA  BSASItXlfiÁ  61 

de  sj,  não  desejava  ainda  escancarrar  as  nossas  casas  a  quan- 
tos desconhecidos  queiram  tomar  conta  d'ellas.  Nacionalismo 
nâo  era  ainda  synonimo  de  atraso  e  emperramento;  era  apenas 
a  sãlva-guarda  das  tradições,  a  consciência  de  um  povo  que 
sa  queria  formar  livre  e  forte,  aproveitando  as  lições  das  na- 
ções cultas,  sem  perder  sua  Índole,  sua  feição  peculiar.  O  poeta 
inda  estava,  pois,  no  bom  terreno. 

O  romantismo  brasileiro  no  seu  primeiro  momento  foi  uma 
rolaçâo  do  espirito  da  velha  escola  mineira.  Ao  memos  em 
ule  foi  assim. 

Depois  é  que  a  imitação  do  romantismo  francez,  a  maca- 
leaçâo,  o  plagiato  impensado  do  francesismo  suffocou  em 
ssa  litteratura  o  sentir  nacional. 

)  poeta  estava  cheio  de  boas  intenções ;  porem  em  littera- 
a  as  boas  intenções,  que  se  não  realisam,  ou  realisam-se 
I  e  incompletamente,  não  têm  valor,  são  como  bilhetes 
ncos,  papeis  que  nada  valem. 
'  o  caso  dô  Teixeira  e  Souza. 

or  mais  bondoso  que  eu  queira  ser  n'esta  geral  excursão 
s  domínios  da  litteratura  pátria,  não  posso  sophysmar 
inha  impressão  no  estudo  das  obras  d'este  escriptor. 

poeta  se  me  revelou  acanhado,  ermo  de  graças,  de  vida, 
ovimento,  de  seiva,  de  enthusiasmo.  Nem  força  e  mascu- 
ide,  nem  graciosidade  e  meiguice.  Não  tem  quasi  nen- 
dos  signaes  distincUvos  dos  bons  poetas,  ou  ainda  dos 
s  secundários,  mas  interessantes  na  sua  inferioridade. 
"Ças  leituras  conheço  em  quelquer  litteratura  tão  enfa- 
s  e  tão  nullamente  compensadoras  como  a  do  poema 
r  dias  de  um  noivado. 

Vylo  é  áspero,  a  métrica  pesada  e  dura;  o  fundo  um 
tma  de  trivialidade  e  de  phantasmagoria  de  insurpor- 
>n textura.  Nada  mais)  fácil  do  que  adduzir  trechos  para 
ahi  diante,  dos  olhos  dos  scepUcos  as  provas  absolutas 
afílrmo. . . 

stante  indicar  ao  leitor  toda  a  conversação  no  canto 
io  poema  entre  o  protagonista  Corimbába  e  o  velho. 
>  que  elle  encontrou  nas  brenhas  de  uma  matta,  e 
ais  particularmente  as  scenas  do  quinto  canto,  passa- 


62  mSTOBIA  DA  LITTEfiATUBA  BRABILEIRA 

das  entre  o  mesmo  Corimbaba  e  os  bruxos  e  entes  sobrenatu- 
raes  do  Rochedo  encarUado,  onde  o  moço  amante  e  recem- 
marido  de  Myriba  vai  inquirir  do  futuro.  Ohl  leitura  displi- 
cente!... Peço  dispensa  de  trazel-a  para  aqui.  Prefiro  mostrar 
o  trecho  que  me  pareceu  mais  agradável  em  todo  o  poema^ 
São  no  2^  canto  os  descantes  entre  os  dous  amsuites  em  a 
noite  do  noivado.  Corimbaba  começa  e  Myriba  lhe  responde. 
Fi'  por  esta  forma  : 

((  Se  acaso  te  hão  conheces 
Por  formosa,  ó  minha  amada, 
Vai  á  beira  de  uma  fonte, 
E  te  verás  retratada  : 
Quando,  pelo  sol  corada, 
A  pastar  por  entre  flores 
O  teu  rebanho  levares  ; 
Dirão  estes  lavradores  : 
—  Alli  vem,  quem  faz  formosa 
Á  nossa  aldeia  ditosa.  » 

((  Se  acaso  te  não  conheces 
Por  formoso,  ó  meu  amado, 
Vae  ás  ribeiras  do  rio, 
E  te  verás  retratado  : 
Verás  o  rio  apressado 
Só  de  inveja  suspirar, 
E  tua  imagem  formosa 
Nas  ondas  querer  levar  : 
Das  raparigas  na  idéa 
Serás  o  bello  d^Aldéa.  » 

a  Eu  sou  em  tudo  ditoso, 
E  tu  linda,  ó  minha  amada  ; 
Tens  os  olhos  matadores 
Como  a  rolfnha  engraçada,  n 

«  E'  feito  de  lindas  flores 
Nosso  ninho,  ó  meu  amado, 
E  junto  á  terna  rolinha 
Tu  poisarás  descançado.  n 


HI8T0BIA  BA  UTTEBATUBA.  BRA8ILBIRA  63 

((  Sou  um  passYo,  que  luzir 
Vendo  d^aurora  os  encantoa, 
Pelo  prado  alegremente 
Solta  seus  festivos  cantos  : 
Eu  te  adoro,  ó  minha  amada. 
Eu  te  amo,  como  a  ave 
Ama  a  luz  da  madrugada! 
Tu  és  quem  minha  alma  adora, 
E's  minha  brilhante  aurora.  » 

«  Sou  a  flor,  que,  á  noute,  o  seio 
Fecha  ás  sombras  descorada, 
E  que  o  abre  a  receber 
O  pranto  da  madrugada  : 
Eu  te  amo,  como  a  flor, 
Ao  orvalho,  que  lhe  presta 
Mais  graça,  mais  viço  e  côr  : 
Tu  tens  de  meu  seio  a  posse. 
Tu  és  meu  orvalho  doce.  i> 

<(  Como  a  bella  larangeira, 
Entre  as  arvYes  mais  airosa, 
Assim  é  entre  as  do  campo 
A  minha  amada  formosa.  » 

f(  Como  o  cedro,  na  montanha 
Entre  as  arvYes  mais  airoso, 
Assim  é  entre  os  do  campo 
O  meu  amado  formoso.  » 

c(  Sobre  o  seu  leito  de  flores 
Traze,  ó  noite,  â  minha  amada 
Brando  sonino  sem  temores  : 
Em  tomo  volvei-lhe,  ó  brisas. 
Porem  com  manso  rumor  ; 
Traz-lhe,  amante  pensamento, 
Comigo  sonhos  de  amor. 
O*  sabiás,  não  canteis 
Junto  d'amada  querida. 
Se  ella  fôr  de  amor  vencida 
Repousar  junto  a  meu  lado.  » 


64  mSTO&IA  DA  tlTT&lLÀTtllA  SRABltSIltA 

((  Meu  amado,  sem  temor 
Ha-de  dormir  nos  meus  braços, 
Um  somno  bra'ndo  de  amor  : 
Passae,  brandas  virações, 
Mas  sem  bafejo  violento. 
Traz-lhe  de  amor  doce  sonho, 
Amoroso  pensamento ; 
E,  se  dormir  nos  meus  braços. 
Entre  flores,  sobre  ramos. 
Não  canteis,  ó  gaturamos 
Para  nfio  quebrar  seu  somno.  » 

f(  Colherei  as  sapucaias, 

E  as  guaticas  saborosas, 

O  cajá,  e  o  verde  coco, 

Jaboticabas  gostosas  : 

N'um  samburá  enfeitado, 

Por  mim  mesmo,  de  mil  flores, 

Eu  virei  depor  contente 

Junto  aos  pés  dos  meus  amores.  » 

f(  Colherei,  todos  os  dias. 
Pelo  valle  as  mais  cheirosas. 
Engraçadas  manacás. 
Roxas,  e  brancas  formosas ; 
Depois  de  as  ter  no  meu  seio. 
Espalharei  com  cuidado 
Sobre  a  roupa  tua,  e  um  cheirx) 
Tomarão  mais  delicado,  n 

X  Correrei  o  valle  e  o  monte, 
E  o  fugitivo  veado, 
Quaty,  caxinglô,  cutia, 
Tudo  será  apanhado ; 
E  cheio  d'alto  prazer 
Eu  t'os  virei  oferecer.  » 

c(  Hei*de  apanhar  n'um  lacinho, 
Armado  na  larangeira, 
Sabiás  e  beija-flores, 
E  a  rolinha  faceira  : 
E  tudo. quanto  eu  colher 
Será  para  te  ofTrecer.  n 


HIBTOKIA  BA  UTTSBATXnU  BBASILSIRA  65 

((  Cabtaref  todos  os  dias 
A  gentil  belleza  tua ; 
Porque,  tu,  ó  minha  bella, 
£*s  formosa,  como  a  lua.  » 

(( Dos  teus  dons,  dos  teus  encantos, 
Meu  coração  tem  o  rol ; 
Porque  tu,  ó  meu  formoso, 
E's  tâo  bello,  como  sol  »  (1). 

O  poema  é  escripto  em  versos  brancos,  na  mór  parte  pro- 
saicos. De  todo  elle  a  pedaço  mais  agradavelmente  legivel  sáo 
as  estrophes  rimadas  que  foram  acima  transcríptas.  O  con- 
trario dá-se  no  Colombo,  também  escripto  em  versos  soltos,  e 
onde  os  versos  rimados  estão  sempre  abaixo  dos  outros. 

Texeira  e  Souza  forcejou  por  ser  nacional;  faltaram-Ihe, 
porém,  a  imaginação  ei  o  vigor  artístico.  E*  em  nossa  littera- 
iura  um  poeta  de  ordem  terciária. 

Atirou-se  denodadamente  ao  romance ;  de  1843  a  1856  pu- 
blicou. O  Filho  do  pescador,  Tardes  de  um  pintor  ou  as  intri- 
gas de  um  iesuita,  Gonzaga  ou  a  conjuração  de  Tiradentes,  A 
Providencia,  Maria  ou  a  menina  roubada.  As  fatalidades  de 
dous  jovens. 

Escriptos  n'uin  eslylo  descurado,  e  em  linguagem  por  vezes 
incorrecta,  acham-se  cheios  quasi  sempre  de  salteadores,  es- 
conderijos, subterrâneos,  assassinatos,  incêndios,  envenena- 
mentos, resurreições,  e  toda  a  patacoada,  todas  as  ficelles  do 
género  pavoroso. 

De  laes  romances,  os  melhores  sáo  As  Fatalidades  de  dous 
jovens^  As  Tardes  de  um  pintor  e  A  Providencia.  São  estudos 
da  ultima  phase  dos  tempos  coloniaes,  o  descambar  do  sé- 
culo XVIII. 

No  meio  das  irregularidades  de  uns  enredos  emmaranha- 

dos,   destacam-se  certas  paginas  aproveitáveis.  No  Filho  do 

pescador,  a  scena  do  banquete  por  occasião  do  casafhento  de 

Laura  com  Augusto;  nas  Tardes  de  um  pintor,  a  descripção 

da  cidade  do  Rio  e  especialmente  do  bairro  de  S.  Chrístovão 

(1)  Os    Tre$  Dias  de  Um  Noioado,  Rio  de  Janeiro,  Typ.  Imparcial  ds 
Paula  Brito,  1844  ;  pay.  S7  e  seg. 

HI8T0MA  n  5 


66  HI8T0BIA  DA  LITTEBATUSA  BRA8ILBIRA 

nos  meiados  e  flns  do  eculo  XVIII  *;  na  Providencia,  a  des- 
cripção  da  Aldeia  de  S.  Pedro  e  da  procissão  dos  Passos  ;  nas 
Fatalidades  de  dous  iovens,  a  decripçâo  de  uma  festa  popular, 
de  um  samba.  Transladarei  esta  para  aqui.  E'  assim  : 

«  Meia  hora  depois  que  começou  a  festança  dos  comes  e  bebes,  a 
lauttt  mesa  de  doce  estava  reduzida  a  pratos  vasios,  chicaras  e  gar- 
rafas. Era  o  campo  em  que  havia  sido  Troya! 

Tirou-se,  pois,  a  mesa  do  meio  da  sala  e  começaram  os  matutos 
a  gritar  : 

—  Vamos  brincar,  gente,  vamos  brincar. 

—  Âhi  nada  {arta,  disse  o  dono  da  casa,  pai  da  noiva ;  hai  viola, 
e  hai  tudo  :  —  quem  ó  que  toca? 

—  E  seu  Mané  Canellas. 

—  Mas  havia  duas  violas... 

—  Antão  o  outro  tocador  ha  de  ser  seu  capilôo  Chico-Pedro  ;  elle 
canta  bem  o  desafio! 

—  Prompto,  disse  o  capitôo  Chico  Pedro. 

—  Pois  antão  vamos  a  isto,  disse  o  dono  da  casa. 

—  Vamos,  vamos  embora. 

—  Venham  as  muieres  para  cá  :  aqui  cabe  duas  rodas. 

—  MenifiQS,  venham  para  cá,  venham  dançar,  disse  o  chefe  da 
famia. 

—  Elias  já  vao,  sinhô,  estfio  se  apromptando ;  disse  a  dona  da 
casa,  lá  de  um  quarto  do  interior. 

—  Também  ainda  as  violas  hão  estão  temperadas  nem  nada,  e  já 
estão  chamando  a  gente...  murmurou  uma  moçoila,  que  já  sentia 
suas  cócegas,  ouvindo  falar  em  dança. 

—  Temperem  as  violas,  temperem  as  violas. 

Todavia,  temperadas  as  violas,  vieram  se  chegando  as  moças  e 
í)s  rnpn z(?s  e  formaram»  duas  rodas  e  dois  tocadores  encostaram 
seus  pinhos  aos  peitos  e  começaram  a  repinicar  a  bella  Tyranna^ 
dança  muito  usada  n^aquelle  bom  tempo,  bem  como  o  Chico  do  Via- 
mão,  a  To'niinha,  etc. 

Estas  danças  eram  dançadas  por  quatro  pessoas  em  cada  roda, 
e  as  rodas  podiam  ser  tantas  quantas  coubessem  na  sala.  Havia  a 
Chula,  dança  de  um,  dançando  por  sua  vez,  até  ir  tirar  outrem,  que 
vinha  dançar,  e  o  que  dançava  se  ia  assentar,  e  assim  por  diante 
até  que  um  tirava  o  tocador,  e  terminava  esta  dança ;  mas  durante 
este  dançado,  em  solo,  os  tocadores  não  cantavam,  o  que  não  acon- 
tecia em  nenhuma  das  outras  danças,  em  que  a  cantiga  do  tocador  é 
que  determina  as  voltas  das  rodas  dos  dançadores. 


HISTORIA  DA  LITTBRATUBA  BRASILEIRA  67 

Havia  também  o  Sarrabulho,  dunça  de  dous;  isto  é,  sahia  um  que 
dançava  só,  e  depois  tirava  outrem,  que  com  elle  dançava,  e  o  pri- 
meiro que  havia  dançado  assentava-se,  ficando  o  outro  dançando, 
que  por  seu  turno  ia  buscar  outro,  e  assim  até  o  fifti,  que  era  quando 
um  que  dançava  ia  tirar  o  tocador,  que  também  dançava,  dando  a 
despedida,  isto  é,  cantando  a  ultima  cantiga  desta  dança.  Tinham 
também  o  Vai  de  roda^  a  mais  divertida,  a  que  menos  cansavc^  e  a 
mais  favorável  de  todas  as  danças  aos  senhores  namorados,  que 
não  desperdiçam  estas  bellas  occasiões.  O  Vai  de  roda^  pois,  é  uma 
dança  que  por  facillima  pôde  n'ella  dançar  todo  o  bicho  careta, 
ainda  mesmo  que  nulica  tivesse  dançado  :  n'ella  dançam  n'uma 
grande  roda  tantas  pessoas  quantas  caibam.  Todas  as  mais  danças 
sâo  sempre  de  quatro  pessoas.  De  todas  estas  danças,  bem  que  todas 
requeressem  extrema  graça  no  dançador  (excepto  no  Vai  de  roda), 
todavia  era  a  Chula  a  que  mais  dependia  disto ;  e  era  por  assim 
dizer  a  pedra  de  toque  do  bom  dançador. 

E,  pois,  o  Sr.  Mané  Canellas  foi  o  primeiro  que  botou  sua  cantiga, 
e,  repinicando  sua  viola,  cantou  : 

«( Em  nome  de  Deus  começo. 
Padre,  Filho,  EspYito-Santo, 
E'  a  primeira  cantiga 
Que  n'este  odilorio  canto.  » 

Elle  queria  dizer  aiuiitorio.  O  capitão  Chico  Pedro,  que  alem  de 
bom  cantador  tinha  aza  de  grande  improvisador,  tomou  o  ultimo 
verso  da  cantiga  de  Mané  Canellas,  e  cantou  com  toda  a  força  de 
seus  pulmões,  que  elle  os  tinha  de  um  Stentor.  Cantou  pois  assim  : 

íc  Que  n*este  oditorio  canto, 
Eu  também  quero  cantar, 
Esta  primeira  cantiga 
Em  antes  de  começar.  » 

Pegai*am-se  pois  os  dois  cantadores  no  desafio,  e  nâo  poucas 

vezes  suas  cantigas  eram  meia  dúzia  de  insultos  lançados  á  cara 

com  todo  o  azedume  de  uma  affronta.  Dançaram  varias  danças,  des- 

cançaram  algumas  vezes,  e,  quando  de  novo  principiavam,  os  dois 

cantantes  travavam  logo  sua  contenda  de  desafio. 

O  Mané  Canellas  era  o  arguente  e  o  capitôo  Chico  Pedro  o  defen- 
dente.  A  multidão  tomava  parte  no  combate  dos  dois,  e  dividida  em 
dois  partidos,  cada  um  animava  seu  heroe  com  cem  vivas,  palmas  e 


68  HISTORIA  DÁ  LITTERATURA  BRA8ILBIBA 

outros  applausos.  Já  o  bom  Mané  Canellas  desesperava  do  venci- 
mento, quando  julgou  confundir  seu  contendor  com  a  seguinte  can- 
tiga : 

(( Estudastes  a  grammatica, 
E  também  a  tilogia  ; 
Dizei-mé  qual  é  das  aves 
Que  dá  leite  quando  cria.  » 

Elle  queria  dizer  theologia.  Quando,  porém,  o  Mané  Canellas 
acabou  de  cantar  esta  cantiga,  todos  julgaram  que  o  capitão  Chico 
Pedro  se  calasse  vencido,  porque  ninguém  sabia  que  ave  era  esta ; 
mas  o  capitão  Chico  Pedro,  que  no  sentir  de  Mané  Canellas  havia 
estudado  a  grammatica  e  a  theologia,  e  não  havia  estudado  para 
tolo,  não  deixou  os  circumstantes  por  longo  tempo  incertos  ;  quando, 
pois,  foi  occasião  de  cantar,  abrio  a  bocca  e  cantou  : 

«  Que  dá  leite  quando  cria 
Vos  direi  com  mais  socego  ; 
Mas  das  aves  é  morcego 
Que  dá  leite  quando  cria.  » 

Quando  o  capitão  Chico  Pedro  acabou  a  cantiga,  todo  mundo  bateu 
palmas  e  gritou  :  «<  Viva  seu  capitão  Chico  Pedro!  Viva  e  viva!  »  Os 
vivas,  as  palmas,  os  applausos  prolongaram-se  por  muito  tempo  : 
foi  uma  ovação  completa.  Deu-se  a  despedida  d'essa  dança  :  e  anda 
ella,  o  mesmo  Mané  Canellas  confessou  que  não  havia  quem  can- 
tasse o  desafio  como  o  capitão  Chico  Pedro. 

Pouco  depois  principiou  outra  dança  em  que  os  cantadores  des- 
envolveram toda  a  sua  habilidade.  Depois  da  cantiga  cantavam 
elles  um  estribilho,  que  era  sempre  o  mesmo  e  era  assim  : 

c<  Bravo,  Maricas,  meu  bem, 
Aqui  está  quem  te  adorou  : 
Não  se  ponha  de  joelhos. 
Que  eu  não  sou  senhor,  não  sou.  » 

N'esta  cantiga,  na  occasião  em  que  o  cantador  cantava  estas  pa- 
lavras —  Não  se  ponha  de  joelhos  — ,  os  homens  dançantes,  dan- 
çando mesmo,  curvavam  o  joelho  diante  de  dama,  isto  é,  cada  um 
diante  da  dama  com  quem  dançava,  a  qual  durante  esta  genuflexão, 
também  dançahdo  sempre,  voltava  costas  ao  marmanjo,  que  de 
joelhos  a  seus  pés  dançava.  Era  uma  bella  mimica. 


HI8T0BIA  DA  LITTESATUBA  BRASILEIEA  <39 

No  fím  d*esta  dança,  Mané  Canellas  cantou  esta  cantiga  : 

f<  Vamos  dar  a  despedida, 
Mas  antes  quero  dizer,  ' 
Que  seu  Flávio  e  seu  Júlio 
As  pazes  devem  fazer.  )> 

Júlio  dançava  n*uma  roda,  íez-se  de  desentendido.  Flávio,  que 
dançava  n'outra,  começou  a  murmurar  grosseiramente,  e  de  um 
modo  atrevido.  O  capitão  Chico  Pedro  cantou  também  assim  : 

i(  As  pazes  devem  fazer, 
E  não  se  opponha  ninguém, 
Porque  todos  desta  casa 
Devem  sahir  muito  bem.  » 

Acabou-se  a  dança,  annunciou-se  a  ceia,  e  todos  se  encaminha- 
ram para  a  varanda,  onde  se  achavam  estendidas  sobre  o  chão  três 
ou  quatro  esteiras,  meio  cobertas  por  grandes  toalhas,  e  estas  por 
pratos  com  vários  guizados  e  assados,  e  todos,  tanto  homens,  como 
senhoras,  assentaram-se  em  roda  das  toalhas,  e  principiaram  a 
comer  e  a  beber  desencabrestadamente.  Começaram  também  as 
saúdes  e  ditos  »  (1). 

E  um  dos  trechos  mais  supportaveis  do  estylo  do  Teixeira 
e  Souza;  ainda  assim  encerra  quarenta  e  uma  vezes  os  termos 
dança^  dançador^  dançar^  dançava^  e  outras  variantes  do  gé- 
nero. 

Náo  vejo  ser  mister  demorar-me  ainda  a  caracterisar  o  ta- 
lento do  autor  fluminense.  Para  este  escriptor  basta  uma  rá- 
pida sUhouette. 


Joaquim  Norberto  de  Souza  Silva  (1820-1891). 

Pilho  do  Rio  de  Janeiro,  nasceu  em  1820,  no  mesmo  anno 
de  Macedo,  e  três  annos  antes  de  Gonçalves  Dias  e  Dutra  e 
Mello.  Não  se  graduou  em  academia  alguma ;  fez  alguns  estu- 

(1)  Aê  fatalidades  de  Dios  Joeenê^  voi.  2*,  pag.  36  e  seg. :  Rio  de  Ja- 
neií-o,  ediç&o  de  1874. 


70  HI8T0BIA  DA  LITTEAATimA  BKABILEIIUl 

dos  de  humanidades  em  sua  cidade  natal  e  metteu-se  ainda 
moço  no  íunccionalismo  publico,  empregando-se  na  Secre- 
taria do  ministério  do  Império. 

Bem  cedo  jogou-se  ao  cultivo  das  letras  e  ás  luctas  da  im- 
prensa. 

E'  um  dos  brasileiros  que  mais  escreveram  e  em  espheras 
mais  variadas. 

Sua  obra  é  uma  das  mais  opulentas,  e,  em  compensação, 
das  mais  confusas  das  produzidas  n'este  paiz. 

D'ahi  certa  difflculdade  em  bem  tomar  os  traços  physiono- 
micos  e  característicos  do  escriptor. 

Dividir  é  uma  condiçio  par  bem  comprehender  ;  devo  pra- 
tical-o  com  Joaquim  Norberto.  Sua  vasta  obra,  parte  publi- 
cada em  livros,  parte  esparsa  em  jornaes  e  revistas,  pode  sof- 
írer  a  seguinte  divisSo  :  novella,  theatro,  poesia,  critica  litte- 
raria  e  historia. 

Será  preciso  juntar  a  isto  a  estatística;  porque  o  primeiro 
trabalho  que  tivemos  no  género  é  devido  á  penna  doeste  autor. 
Qqero  falar  do  Censo  Geral  do  Império,  escripto  e  organisado 
por  Norberto  Silva,  na  sua  qualidade  de  empregado  publico. 
E'  producçilo  de  valor,  merecedora  de  attenção  e  aqui  desde 
já  cilada,  por  ser  apta  a  dar  uma  das  notas,  um  dos  tons  da 
physionomia  espiritual  do  notável  fluminense  :  a  paciência 
de  esmeuçar,  pesquizar,  inquirir  e  verificar  os  detalhes. 

Náo  é  ahí,  porém,  que  vou  fazer  o  centro  da  minha  ana- 
lyse. 

Das  cinco  regiões  em  que  se  manifestou  a  vida  espiritual  de 
Norberto,  na  esphera  puramente  litteraria,  a  novella  e  o 
theatro  não  são  aquellas  em  que  elle  mais  se  distinguio.  Os 
poucos  ensaios  praticados  por  este  lado  devem  ser  conside- 
rados tentativas  em  géneros  para  os  quaes  o  autor  tinha  pou- 
quissima  aptidão.  Sáo  produclos  fracos,  de  leitura  massante, 
8  hoje  completamente  esquecidos. 

No  conto  e  novella  pouco  mais  publicou  além  do  volume 
intitulado  Romances  e  Novellas,  apparecido  em  1852  em  Ni- 
Iheroy,  e  d'0  Martyrio  de  Tira-Dentes  ou  Frei  José  do  Des- 
terro, impresso  trinta  annos  mais  tarde,  em  1882  no  Rio  de 
Janeiro.  No  theatro  seus  principaes  produclos  são  a  tragedia 


HISTOBU  DA  LITTIBATUSA  BBABILBIfiA  71 

Clytemnestra  e  o  drama  Amador  Bueno,  São  obras  de  pe- 
quena monta,  passos  errados  de  um  homem  que  procurava 
seu  caminho.  Tanto  a  tragedia,  como  o  drama,  são  de  1&43; 
d*es9ei  tempo  da  puerícia  do  autor  são  também  as  narrativas 
reunidas  no  citado  volume  de  1852. 

E'  na  poesia,  na  historia  politica  e  na  historia  litteraría  que 
mais  accentuada  se  nos  mostrará  a  feição  do  autor.  Ainda 
n'estas  três  espheras  podem-se  fazer  divisões  e  reducções,  ten- 
dentes a  mostrar  qual  a  especialidade  em  que  foi  elle  mais 
eminente.  Supponho  que  os  seus  maiores  títulos  estão  nos 
trabalhos  de  historia  litteraria. 
Vêr-se-ha,  adiante.  Por  agora,  e  quanto  antes,  o  poeta. 
Na  poesia  a  obra  de  Joaquim  Norberto  é  das  mais  avul- 
tadas no  Brasil.  Sem  falar  de  Clytemnestra,  que  é  em  verso, 
elle  tem  nada  menos  de  cinco  volumes  de  poesias  :  Modula- 
ções Poéticas,  Dircieu  de  Marília,  O  livo  dos  meus  amores. 
Cantos  Épicos,  Flores  entre  espinhos,  e  possue  espalhada  em 
jornaes  e  periódicos  matéria  para  mais  três  ou  quatro.  A  tanto 
deve  montar  o  grande  numero  de  baUatas,  de  canções  ameri- 
canas e  d^outras  composições  poéticas  espalhadas  por  Norberto 
un  peu  partout.  Já  não  falo  nos  grandes  poemas  que  dizia 
possuir  intitulados  O  Brasil  e  Os  Palmares.  D'estes  existem 
apenas  fragmentos  publicados ;  difflcil  se  toma  saber  se  os 
ultimou.  Já  não  falo  também  nas  promessas  feitas  pelo  poeta 
de  diversas  coUecções  lyricas  sob  a  denominação  de  Novas 
modtiUições  poéticas,  Can^cioneiro  das  bandeiras  ou  cantos  ira- 
flicionaes  dos  antigos  paúUsias^  e  outras  assim.  Estas  prova- 
velmente nunca  existiram.  O  escriptor  fluminense  por  certo 
trabalhou  muito,  um  pouco  de  mais  talvez,  mas  foi  também 
muito  pródigo  em  promessas,  e  algumas  delias  irrealisaveis. 
Onde  foi,  por  exemplo,  que  Joaquim  Norberto  colligio  os 
Cantos  tradicionaes  dos  antigos  bandeirantes?  Onde  os  en- 
controu ?  O  autor  era  fácil  n'estas  pequenas  fraudes,  capazes 
de  illudir  espíritos  pouco  perspicazes.  Obedecendo  a  este  ses- 
tro, deu  as  pretendidas  respostas  de  Marília  ás  lyras  de  Gon- 
zaga. 

A  mesma  inspiração  levou-o  á  insinuação  de  serem  suas 
americanas  cantos  tradiciorui£s  dos  nheengaçáras  ou  bardos 


HI8T0BIA  Di.  LlTTKRATmU.  BBASII.XI&& 

:il...  Onde  encontrou  Jíoberto  os  nheengaçáras  e  os 

lios? 

lanlo,   o  espirito  desprevenido,  de  algum  europeu, 

le  de  nossas  cousas,  poderá  suppôr  a  existência  reaJ 

los  dos  bandeirantes  e  dos  cantos  dos  nheengaçáras, 

rincos  da  imaginação  do  poeta. 

isto  e  lh'o  censuro,  porque,  como  já  fiz  ver,  elle  é  um 

de  merecimento,  e  a  exactidão  histórica  é  um'  dos 
rl«s.  Prosigamos.  O  poela  em  Norberto  mostra  três 
s  principaes  :  lyrismo  objectivista,  lyrismo  erótico  e 
mero  de  composições  que  os  allemSes  costumam  desi- 
b  a  denominação  de  epico-lyricas. 
illatas,  as  Flores  entre  espinhos  e  os  Cantos  épicos  po- 
m  servir  para  testemunhar  o  talento  do  aulor  po  esses 
los. 

ismo  das  Ballaías  tem  um  certo  espirito,  um  tom  semi- 
r  denunciador  das  boas  intuições  litterarias  do  es- 
.  S5o  quadros  tradicionacs  e  históricos,  descriplos 
tonalidade  Tacil  e  algum  tanto  pallida.  Náo  tem  calor, 
nmunicam  enthusiasmo,  mio  dão  febre,  não  despertam 
Òes.  São  poesias  de  critico,  feitas  penosamente  sob  um 
issenlado,  n'um  cânon  determinado  e  preconcebido.  As 
laes  são  :  A  morte  da  filha,  O  iillimo  abraço,  A  victitna 
dade,  O  monte  do  Bispo,  O  mendigo,  O  suicida,  D.  Ma- 
cula B  O  canto  do  marinheiro.  Aqui  e  alli  apparecem  al- 

notas  doces  e  amenas.  D'este  género  são  as  da  ultima 
;  citada  —  O  canto  do  marinheiro.  Aqui  vae,  como 
liflcação  do  talento  de  Norberto,  no  que  elle  tinha  de 
electo  : 

n  Nasci,  como  ave  marinha. 
Sobre  estas  ondas  do  mar ; 
Na  triste  minha  barquinha 
Cresci  da  onda  ao  embalar. 

Na  minha  infância  innocente 
Por  terras  nuvens  tomei, 
E  d'essa  illusao  contente 
Mil  vezes  —  Terral  —  grilei 


HI8T0BIA  DA  LXTTXBATnBA  BEASUJURA  78 

Ao  sOvo  da  tempestade 
As  ondas  via  dansar, 
Cheio  de  temeridade 
Punha-me  logo  a  rezar. 

Amei  a  brisa,  que  asinha 
Foi-me  tormenta  cruel ; 
Amei  a  onda  marinha. 
Foi-me  qual  onda  inflei. 

Amei  depois  uma  estrella, 
Que  no  ceu  via  brilhar, 
Ou,  fnda  mais  grata  e  bella^ 
Sobre  as  aguas  scintillar. 

Na  terra  um  dia  encontrando 
De  meu  simor  lhe  falei, 
Porém  á  terra  voltando 
Em  vão  por  ella  busquei. 

Mas  ainda  como  estrella 
No  ceu  a  vejo  brilhar, 
Ou,  inda  mais  grata  e  bella, 
Sobre  as  aguas  scintillar. 

Na  minha  pátria  inconstante. 
No  oceano,  vou  morrer. 
Onde  possa  a  minha  amante 
Sobre  as  aguas  vir  me  ver!...  n  (1). 

Era  este  o  lyrismo  do  poeta  fluminense  em  seus  momentos 
mais  felizes.  As  baltatas  denunciam  uma  certa  intuição  da 
poesia  popular;  não  que  Norberto  Silva  a  conhecesse  pratica- 
mente, tivesse-a  colligido  e  estudado  com  esmero.  Era  uma 
imitação,  uma  contrafacção  inconsciente ;  porém  não  despida 
de  mérito.  Em  todo  o  caso,  é  sempre  uma  poesia  mais  simples 
do  que  a  de  Magalhães  e  Porto-Alegre,  sem  ter  absolutamente 
o  viço  da  de  Gonçalves  Dias. 

No  lyrismo  que  chamei  erótico  duas  faces  se  podem  distin- 

(1)  Minerva  Bra$ilien$€,  pag.  997. 


74  HISTORIA  BA  LTm&ATXTBA  BBA8ILBIEA 

guir  no  autor  fluminense  :  uma  pessoal,  estampada  no  Liúro 
dos  meus  amores  e  outra  exterior  e  anecdotica  nas  Piores 
entre  espinhos.  E*  a  erótica  da  pilhéria,  a  poetisaçâo  de  casos 
e  contos  de  um  sabor  meio  picante. 

Aguns  têm  chiste.  Dão  bem  todos  a  conhecer  a  indole  bona- 
cheirona,  pacata  e  calma  do  escriptor.  Homem  de  estudo  e  de 
trabalho,  é  certo,  nâo  se  afadigava,  fugia  de  aborrecer-se  e 
irritar-se;  era  alegre,  bem  humorado,  palestrador;  na  conver- 
sação era  cheio  de  anecdotas  e  gaiatices. 

Um  optimista  em  summa.  Sua  poesia,  eile  nâo  a  tinha  co- 
mo um  castigo,  ou  como  uma  doença;  era  antes  um  desen- 
fado, uma  succursal  do  ócio  e  da  preguiça.  Era  elle  próprio 
quem  dizia  :  «  O  que  entendem  por  trabalhar?  Assim  per- 
guntava lord  Byron  e  por  si  mesmo  respondia,  que  compu- 
zéra  o  seu^  lindo  poema  Lara  n'aquelle  anno  de  galhofas,  em 
noite  que  se  recolhia  de  uma  mascarada. 

Menor  pretençáo  ainda  devem  ter  estes  insignificantes  con- 
tos á  vista  do  poema  do  bardo  inglez. 

Não  são,  pois,  fructos  de  trabalho,  mas  ephemeras  produ- 
cções  de  uma  das  variedades  do»  ócio  ou  da  preguiça  a  que 
muitos  como  eu  se  entregam  por  desenfado,  aflm  de  não  cahir 
em  verdadeiro  spleen^  e  que  não  seriam  levadas  ao  cabo  se  ra- 
pidamente, durante  a  sua  gestão,  acudisse  á  mente  a  ideia  de 
que  era  uma  applicação  séria  em  horas  em  que  o  espirito  pa- 
rece rebellar-se  contra  tanta  servidão,  pois  que  também  elle 
tem  o  seu  capricho.  E'  como  as  primas  donas.  Nem  por  outra 
cousa  se  deve  entender  a  poesia. 

Arregimentar  os  poetas  entre  os  homens  que  trabalham  se- 
ria dar-lhes  uma  occupação;  mas  dar-lhes  uma  occupação  que 
nada  rendesse  seria  também  uma  das  maiores  ironias  aos 
olhos  do  século  das  locomotivas,  dos  caminhos  de  ferro,  do 
lelegrapho  eléctrico,  da  photographia,  e  talvez  da  navegação 
aérea,  e  que  em  vez  de  Apollo  invoca  Mercúrio  »  (1). 

Em  medo  das  ironias  do  poeta  bem  se  divisa  sua  theoria  da 
arte.  Esta  era  para  elle  um  desenfado,  lim  brinco,  um  em- 
prego doce  da  actividade. 

(1)  FloreM  entre  eêpinhoe,  conioi  poetiêoe.  Rio  de  Janeiro,  1864. 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATUBA  BKABILBISA  75 

Nao  era,  ao  contrario,  e  como  pensam  muitos,  uma  espécie 
de  condemnaçâo  que  pesa  sobre  o  espirito  humano,  alguma 
cousa  de  doloroso  a  que  elle  náo  se  pode  esquivar,  uma  impo- 
sição fatal  a  que  não  pode  fugir.  Eu  bem  sei  o  que  se  pode 
dizer  pró  e  contra  as  duas  theorias;  porem  nâo  tenho  obriga- 
ção de  discutil-as  agora. 

Basta-me  ponderar  que  o  romantismo  europeu  e  o  brasi- 
leiro tiveram  representantes  das  duas  feições,  que  levadas  ao 
excesso,  produziram  verdadeiras  extravagâncias. 

Aquelles  bohemios  debochados  e  frívolos,  de  um  lado,  e 
aquelles  mancebos  tétricos,  misantropicos,  candidatos  ao  tu- 
mulo, de  outro  lado,  que  aqui  tivemos,  foram  nitidos  exem- 
plares das  duas  escolas  entre  nós.  Gonçalves  Dias,  com  todo 
o  seu  talento  e  com  toda  a  sua  gravidade^  era  um  represen- 
tante da  theoria  opposta  á  de  Norberto.  Patenteia-o  bem  este 
pedaço  do  prologo  dos  Primeiros  Cantos  :  «  Com  a  vida  iso- 
lada que  vivo,  gosto  de  afastar  os  olhos  de  sobre  a  nossa 
arena  politica  para  ler  em  minha  alma,  reduzindo  á  lingua- 
gem harmoniosa  e    cadente  o  pensamento  que  me  vem  -do 
improviso,  e  as  idéas  que  em  mim  desperta  a  vista  de  uma 
paisagem  ou  do  oceano,  o  aspecto  emílm  da  natureza.  Casar 
assim  o  pensamento  com  o  sentimento,  o  coração  com  o  en- 
tendimento, a  idéa  com  a  paixão,  colorir  tudo  isto  com  a  ima- 
ginação, fundir  tudo  isto  com  a  vida  e  com  a  natureza,  puri- 
ficar tudo  com  o  sentimento  da  religião  e  da  divindade,  eis  a 
Poesia,  a  Poesia  grande  e  santa,  a  Poesia  como  eu  a  compre- 
hendo  sem  a  poder  definir,  como  eu  a  sinto  sem  a  poder  tra- 
duzir. 

O  esforço,  ainda  vão,  para  chegar  a  tal  resultado  é  sempre 
digno  de  louvor;  talvez  seja  este  o  só  merecimento  doeste  vo- 
lume. O  Publico  o  julgará;  tanto  melhor  se  elle  o  despreza, 
porque  o  autor  interessa  em  acabar  com  essa  vida  desgra- 
çada que  se  diz  de  poeta.  » 

Ainda  mais  explicito  é  no  prefacio  dos  Últimos  Cantos  : 
«  Eis  os  meus  últimos  cantas,  o  meu  ultimo  volume  de  poesiaJ 
soltas,  os  últimos  harpejos  de  uma  lyra,  cujas  cordas  foram 
estalando,  muitas  aos  balanços  ásperos  da  desventura,  e  ou- 
tras, talvez  a  maior  parte,  com  as  dores  de  um  espirito  en- 


BI8T0IIIA  DA.  UTTBBATUEA  BBA8ILS1K4 

flcticías,  mas  nem  por  isso  menos  agudas,  produzidas 
laginação,  como  se  a  realidade  já  não  fosse  por  si  bas- 
enosa,  ou  que  o  espirito,  afteito  a  certa  dose  de  soffri- 
i,  se  sobresallasse  de  sentir  menos  pesada  a  costu- 
larga. 

leio  de  rudes  trabalhos,  de  occupações  estéreis,  de  cul- 
pungentes,  inquieto  do  presente,  incerto  do  futuro, 
ando  um  olliar  ctieio  de  lagrimas  e  saudades  sobre  o 
Lssado,  percorri  este  primeiro  estádio  da  minha  vida 
ia.  Desejar  e  soíTrer,  eis  toda  a  minha  vida  n'este  pe- 
e  estes  desejos  immensos,  indisiveis,  e  nunca  satis- 
:aprichosos  como  a  imaginação,  vagos  como  o  oceano, 
eis  como  a  tempestade ;  e  estes  sofTrimentos  de  todos 
,  de  lodos  os  instantes,  obscuros,  implacáveis,  renas- 

ligados  á  minha  existência,  reconcentrados  ean  minha 
devorados  commigo,  umas  vezes  me  deixaram  sem 

sem  coragem,  e  se  reproduziram  em  pallidos  reflexos 

eu  sentia,  ou  me  forçaram  a  procurar  um  allivio,  uma 

io  no  estudo,  e  a  esquecer-me  da  realidade  com  as  (Ic- 

'  ideal  H. 

se  comprehenderá  o  signiflcado  d'estas  citações ;  meu 

izer  a  historia  das  idéas  de  preferencia  &  simples  apre- 

isthetica. 

das  consequências  da  Iheoria  abraçada  por  Norberto 
requerer  para  os  poetas  o  privilegio  de  serem  suslen- 
ic  possível  fôr,  pelo  governo  do  Estado. 

as  azedas  queixas  contra  a  indi(Terença  di'este.  Ainda 
lonto  é  preciso  ouvil-o  para  bem  com  prebendei -o. 

no  prefacio  das  Flores  entre  espinhos  :  'i  Ninguém 
6s  comprebendeu  melhor  do  que  o  governo  a  missSo 
a. 

listro  a  quem  abi  se  recommenda  algum  moço  de  ima- 
1  ardente;  capaz  como  Torquato  Tasso  de  ter  na  ca- 
eia  dúzia  de  epopéas  esplendidas  (Será  verdade?},  ou 
atro  como  Calderon  e  Lopez  de  La  Vega  (Lope  de 
1  primeira  cousa  que  lhe  faz  é  dar-lhe  um  emprego  que 
Ktise,  que  lhe  petrifique  a  imaginação  e  o  tome  na 
:  mais  chilra  prosa  deste  mundo  e,  ainda  para  mal  do9 


BI8T0BIA  DA  LITTXKATXmA  BRA8ILSIRA  77 

seus  peccados,  sujeita-lhe  a  inspiração  livre  e  ousada  ao  livro 
do  ponto  I 

Entrando  para  a  repartição  a  que  o  destinam  elle  pôde, 
antes  de  agarrar-se  como  um  bicho  de  seda  ás  folhas  do  orça- 
mento, de  que  fará  o  seu  triste  nutrimento,  bater  na  testa  e 
dizer  como  André  Chenier  antes  de  entregar  a  cabeça  ao  gume 
triangular  da  ensanguentada  guilhotina  :  —  E'  pen6^  pois 
aqui  havia  alguma  cousa  1  » 

Vô-se  bem  que  o  poeta  queixa-se  do  século  positivo,  mat€' 
rialisado,  americanisado,  e  queixa-se  também  do  governo  que 
nâo  protege  os  poetas,  não  lhes  garante  o  brilho  do  talento 
em  occupações  adequadas,  e,  quando  muito,  os  brutalisa  nas 
repartições  publicas. 

A  censura  é  tão  geralmente  repetida  pelos  homens  de  le- 
tras n'este  paiz  que  se  pôde  bem  suppôr  não  haver  ahi  de 
todo  um  simples  capricho  romântico. 

O  queixume  é  bean  velho  e  nâo  terá  algum  fundamento? 
Infelizmente  tem-no  e  profundíssimo.  Creio,  porém,  não  ser 
um  phenomeno  peculiar  ao  século  XIX ;  é  antes  alguma 
cousa  de  particular  á  nossa  terra,  onde  quasi  tudo  está  ainda 
por  fazer. 

Nada  n'este  paiz  está  organisado;  tudo  está  á  flor  do  solo, 
nada  tem  raízes;  nós  por  emquanto  não  temos  pátria. 

Isto  é  ainda  uma  immensa  feitoria,  onde  as  industrias,  o 
commercio,  as  emprezas,  todas  as  fontes  económicas  estão 
na  mão  dos  estrangeiros. 

A  maioria  dos  nacionaes  tem  de  seu  para  viver  a  mendici- 
dade, a  praça  na  tropa  do  linha  ou  nas  melicias  uirbanas  e  o 
miserando  funccionalismo  publico. 

Os  homens  de  letras,  que  não  se  abrigam  no  funcciona- 
lismo, que  vão  viver  das  respectivas  profissões,  arrastam 
existência  penosíssima. 

Que  vale  aqui  a  profissão  de  medico,  de  engenheiro,  de 
advogado,  diante  especialmente  da  pobreza  geral  e  da  já 
crescida  concurrencia  estrangeira  nas  duas  primeiras?  Resta 
a  profissão  da  imprensa,  no  jornal  ou  rio  livro. 

Mas,  qual  foi  ahi  o  brasileiro  que  já  viveu  de  uma  ou  outra 
cousa? 


HISTORIA  DA.  UTTXBATUKA  BBABILBIRA 

iriplor  brasileiro,  passa  pelas  quatro  phases  seguintes 
illusSo  e  abatimento,  consignadas  aqui  como  alto- 
3  á  critica : 

>r  pouco  que  Ifinha  praticado,  conhece  logo  que  a  sua 
da  lhe  rende;  não  ha  publico  para  os  seus  produclos  e 
errismo  medonho  lá  esti  no  fundo  de  todas  as  suas 
as.  E'  a  pliase  inLroductoria,  a  da  inutilidade  econo- 
)  seu  trabalho. 

a  falta  de  colação  no  mercado  para  seus  livros,  elle 
L  OS  empregos  públicos,  ou,  se  6  graduado,  exercer 
iroflssâo,  e  como  titulo  apresenta  seus  escriptos,  suas 
npressas.  Se  em  tal  cae,  está  perdido  :  «  O  sujeitinho  é 
I,  diz  o  governo,  anda  prcoccupado  com  litteratices; 
ivém...  Medico  ou  advogado  poeta,  diz  o  povo,  nJo 
ledicina,  não  tem  pratica  do  fdro;  nada,  não  o  con- 

II  E'  a  phase  seguinte  á  inicial,  é  a  da  repulsa  c  a&on- 
lomo  um  ente  quasi  inutilisado. 
ilido  pelo  lado  pratico  da  vida,  raro  6  aquelle  que  per 
ogo  n'essa  segunda  phase  abandona  a  mór  parte  o  ter- 
e,  porém,  por  qualquer  circumstancia,  ou  por  energia 

o  homem  de  leltras  continua,  enlão  tem  que  entrar  no 
periodo  do  tormento.  Todos  se  aborrecem  com 
importuno  que  teima  em  querer  ter  distincção,  fama, 
pelo  seu  talcnlo  e  seu  trabalho.  E'  o  periodo  das  des- 
luras,  dos  ataques,  das  inimizades  gratuitas  e  temí- 
!  o  homem  é  espertalhão  e  tratou  de  acostar-se  a  um 
se  formou  em  tâmo  de  si  uma  claque,  inda  poderá 
tempo  aguentar-se  na  refrega,  enganado  pelos  elo- 
s  amigos  e  camaradas,  todos  mais  ou  menos  interess- 
;  cujo  barulho  6  infantilmente  tomaiio  como  a  opinifLo 
a  paiz...  Se  não  fez  assim,  se  por  indole  é  arredio  e 
icurou  quem  lhe  guardasse  as  costas,  está  irremedia- 
;e  perdido;  ninguém  o  salva  do  esquecimento  ou  de 
inda  peior  —  o  descrédito.  E'  a  phase  do  desengano 
,0,  da  tristeza  intima,  por  se  haver  perdido  o  tempo 
3  um  sonho  phantastico,  a  gloria,  n'uma  pátria  que 
jer,  ou  não  a  pôde  dar... 
lasi  ninguém  resiste  á  terceira  provação.  Se  alguém, 


HISTORIA  DA  LITTBRATURA  BSABILEIJIA  79 

se  algum  desabusado,  por  excessiva  confiança  em  si  próprio, 
ou  por  demasiado  aferro  a  suas  convicções,  teima  em  pro- 
duzir só  com  o  fim  de  fazer  triumphar  suas  idéas,  indepen- 
dentemente de  qualquer  compensação,  n'este  ultimo  e  ex- 
tremo caso,  elle  terá  de  passar  pela  mais  horrível  provação 
porque  pôde  passar  um  homem  de  lulas  mtellectuaes  :  —  a 
consciência  da  inutilidade  de  seus  esforços!... 
Tudo  em  pura  perda!... 

Ninguém  se  moveu,  ninguém  se  convenceu!  Tudo  flcou 
como  era  d'antes  :  os  mesmos  erros,  as  mesmas  fatuidades, 
as  mesmas  injustiças...  «  Ora,  este  brasileiro  querer  ter  a  ra- 
zão, querer  pugnar  por  doutrinas  e  princípios,  ter  a  prelen- 
çáo  de  fazer  a  critica  do  nossa  situação  intellcctuall  Nfto  é  pos- 
sivell...  »  E'  a  linguagem  geral. 

«  Quem  foi  que  disse  isto?  onde  está  oscripto?  é  em  algum 
livro  francez,  ou  allemão,  ou  inglez,  ou  mesmo  portuguez? 
Se  é,  bem;  é  acceitavel...  Se  náo,  ora,  P.  que  Náo  seja  parvo; 
ora,  F,  o  filho  de  Sergipe^  ou  ali  de  Macahé,  querendo  ter 
idéas  e  saber  das  cousasl...  Pedante!  »  E'  o  modo  geral  de  re- 
flectir de  todos ;  é  nas  lettras  a  manifestação  da  geral  male- 
dicência nacional,  tão  duramente  descripta  por  Burmeister. 
O  leitor  me  perdoe  este  carregado  quadro  de  diagnose  pa- 
tra.  Não  veio  a  esmo,  nem  são  declamações.  São  confissões 
sinceras,  filhas  do  observação  e  da  experiência  de  um  homem 
que  tem  passado  por  todos  aquelles  estádios  da  malevolencia 
brasileira,  e  que  ama  seu  paiz,   que  anhela  por  seu  pro- 
gresso. São  um  pedaço  dò  auto-psychologia  nacional,  que 
fomeíce  um  critério  para  a  benevolência  para  com  os  nossos 
pobres  escriptores.  Coitados!  Luctam  tanto  e  são  tão  mal  tra- 
tados! Mais  indulgência  com  clles. 

Quem  escreve  estas  paginas,  ao  começar  em  sua  puerícia 
litteraria  seus  primeiros  estudos  críticos,  usava  de  certo  ri- 
gor, oriundo  da  inexperiemcia. 

Os  annos  e  os  amargos  soffrimentos,  que  lhe  infligiram, 
longe  de  o  azedarem,  o  predispuzeram  para  melhor  compre- 
hender  as  innumeras  difflculdades  que  assaltam  os  escriptores 
brasileiros.  Quero  falar  d'aquelles  que  conquistaram  palmo  a 
palmo  o  seu  terreno  como  perfeitos  heróes.  Náo  me  refiro  a 


HiarORU  DA  LITTIRATVSA  BKABItSI&A 

u  Irinta  íllhotes  da  politica  omnipotenlc,  mcllidos  nas 
de  longe  em  longe  por  desenfado,  e  perpetuamente  in- 
os  pelos  aduladores,  que  nunca  faltam.  Comprehendo, 
9  queixas  de  Joaquim  Norberto  e  fajço  justiça  plena  aos 
lorços. 

sludos  de  historia  brasileira,  quer  a  historia  propria- 
dita,  quer  a  historia  lilteraria,  faziam  o  fundo  de  seu 
lento,  6  começaram  a  prooccupal-o  desde  os  seus  mais 
annos.  Elle  não  começou  pela  poesia  e  passou  depois 
historia;  nSo;  enfrentou-as  ao  mesmo  tempo.  D'ahi  o 
[-  de  contos,  lendas,  tradições  de  quasl  todas  as  suas 
;ões  poéticas. 

iroprias  Flores  entre  espinhos  esse  caracter  é  evidenle. 
ncipio  do  segundo  conto  poético,  A  con/wsdo,  traz  um 
em  miniatura  do  Rio  de  Janeiro  no  tempo  do  velho 
I.  E'  apto  a  dar  segura  idéa  do  espirito  e  das  quali- 
oeticas  de  J.  Norberto.  O  finai  narra  a  historia  de  uma 
ue  confessara  ao  padre,  cheia  de  lagritliãs,  ter  morto 
o...  Eis  a  transcripçâo  do  princípio  : 

Cl  Sobre  &a  azas  da  alegria. 
Entre  engaooa  ruidosos. 
Entre  vivas  jubilosos, 
Expir&ra  o  Carnaval. 
Ohl  quanta  moça  faceiro. 
Que  muito  se  divertira. 
Morrer  com  pena  não  vira 
Esse  triduo  sem  iguaL 

A  rotula  então  perdera 
Todo  o  sigillo,  se  abrindo, 
E  um  rosto  moreno  e  lindo 
Livre  e  ousado  se  mostrou  ; 
E  mais  de  um  braço  certeiro 
Achou  ura  alvo  condigno, 
Em  que  amável,  benigno, 
Os  seus  tiros  empregou. 

Oh  como  ent&o  era  grato 

Ver  bcllo  limão  de  cheiro  ■   ^ 


HI8T0BIA  DA  LITTBBATT7SA  BBA8ILXIBA  81 

N'ura  peito  meigo,  faceiro 

Espargir  mimoso  odor! 

Era  como  doce  beijo, 

Que,  dos  lábios  se  arrancando, 

Lá  ia  ardente  voando, 

Que  as  azas  lhe  dava  amor. 

Outras  vezes,  mais  ousado, 
O  amante  penetrava  — 
No  lar  que  a  moça  habitava 
Como  uma  pura  Vestal ; 
E  então,  globos  de  cera, 
Contra  globos  mais  mimosos, 
Dedos  tremlos...  receiosos... 
Espremiam...  menos  mal! 

Ainda  sobre  as  calçadas, 
Quaes  conchinhas  de  mil  cores. 
Ou  quaes  despencadas  flores, 
Vô-se  a  cera  do»  limões  : 
Signal  de  que  o  combate 
Fora  forte  e  vigoroso, 
E  de  parte  a  parte  honroso 
Aos  valentes  foliões. 

Mas  agora?  Eis  a  cidade 
Toda  santa  e  penitente  ; 
Do  Jcmeiro  a  boa  gente 
Se  apressa  a  se  confessar ; 
Molhos,  banhos,  mil  enganos 
Aos  incautos  impingira. 
Porém,  agora  suspira 
Nas  igrejas  a  rezar... 

Oh!  era  um  povo  devoto. 
Cantado  pelo  poeta 
Naquella  lyra  selecta 
Que  o  seu  Rio  engrandeceu  ; 
Sim,  S.  Carlos  fez  no  mundo 
Celebrada  esta  cidade 
Pela  religiosidade 
Que  tinha...  mas  que  perdeu. 


XXISTOBU  Xi 


HISTOBIA  DA  LITTEBATltRA  BBABILBIKA 

Pela  rua  todo  o  povo 
Em  procissíio  caminhava, 
E  o  sacro  terço  entoava 
Ante  o  alfar  da  ni5i  de  Deos  í 
Quantos  luzea  n"essas  noiles 
Nao  reflectiam  de  uns  olhos 
Que  tinham  setlas  a  molhos 
Para  convencer  a  aliíeus! 


Através  das  verdes  rolulas 
Brilhava  muito  semblante, 
Com  seu  olhar  penetrante, 
Vendo  a  pia  procíss&o ; 
Nas  contas  de  seu  rosário 
As  moças  ali  rezavam, 
E  se  alguma  vez  peccavum, 
Peccavam  de  coiaçâol 

Bello  tempol  Quão  depressa 
Dei:;ou  a  nossa  cidade! 
A  nova  sociedade 
Tudo  —  ai  tudo!  —  reformou! 
Tanta  dansa  e  patuscada 
De  nossa  paterna  gente, 
Tsinto  (olguedo  innocenie. 
Tudo  —  ai  tudo!  —  se  acabou! 

JA  ia  a  quaresma  em  meio, 

£  a  cidade  penitente 

Lá  corria  diligente 

Ao  templo  a  desobrigar  ; 

Ia  pela  madi-ugadà,    ' 

Antes  que  ns  trevas  fugissem, 

A  esperar  que  se  abrissem 

As  portas  de  par  em  par.  n  (1) 

1  poesia  muito  elevada  esta;  em  género  algum 
rapassou  a  media. 

le  aconteceu  no  género  epico-lyrico,  onde  é  lal- 
Palta-Ihe  força  na  inventiva  e  brilho  no  estylo. 

re  etpinhoê,  pag.  11  e  seguinlea. 


HIBTOKIA  DA.  UTTXBATUBA  BBA8ILBIRA  83 

Nas  ballatas  apparece  as  vezes  certa  naturalidade  e  nos 
contos  poéticos  certa  graça  apreciáveis. 

Nos  Cantos  Épicos  reina  quasi  sempre  innegavel  prosaismo. 
Bem  quizera  escondel-o;  porem  náo  posso.  Os  Cantos  Épicos 
são  umas  narrativas  em  versos  brancos  sobre  alguns  factos 
históricos. 

O  auctor  publicou  seis  n'um  pequeno  volume  em  1861;  sâo 
os  seguintes  :  A  cabeça  do  Martyr,  A  coroa  de  fogo^  O  Ypi- 
ranga,  A  Visão  do  proscripto^  A  festa  do  Cruzeiro,  Os  Gua- 
rarapes, 

O  primeiro  refere-se  á  cabeça  de  Tiradentes  que  fora  collo- 
cada  n'um  poste  em  Villa  Rica  e  recolhida  alta  noite  por  pie- 
dosas mãos;  o  segundo  trata  do  martyrio  de  António  José  nas 
fogueiras  da  Inquisição;  o  terceiro  é  relativo  ao  brado  de  nos- 
sa Independência  por  Pedro  P;  o  quarto  é  atlinente  á  Napo- 
leão em  Santa  Helena;  o  quinto  é  sobre  a  creação  da  ordem 
do  Cruzeiro  entre  nós;  o  ultimo  é  referente  á  celebre  batalha 
ganha  pelos  pernambucanos  sobre  os  hollandezes. 

Norberto  publicou  um  seplimo  sob  o  titulo.  O  berço  livre 
dedicado  á  promulgação  da  lei  de  28  de  setembro  de  1871  (1). 
As  intenções  foram  boas;  a  execução  deixou  sempre  a  de- 
sejar. A  litteratura  brasileira  possue  alguns  espécimens  no 
género  de  subido  valor.  Nós  não  temos  vigor  épico,  talento 
dramático  e  grande  chiste  cómico. 

Em  compensação  temos  volubilidades  e  ternuras  lyricas.  O 
calor  lyrico,  junto  em  algumas  almas  a  certos  ímpetos  va- 
ronis, tem  dado,  de  longe  em  longe,  algumas  producções, 
que  se  podem  chamar  epico-lyricas,  de  grande  merecimento. 
Cinco  poetas  especialmente,  uns  pertencentes  á  escola  con- 
doreira,  outros  verdadeiros  antecessores  delia,  foram  os  mes- 
tres reconhecidos  doeste  género  de  cantos  :  José  Bonifácio, 
Bom  O  RetUvivo  e  o  Primus  inter  pares ;  Pedro  Luiz,  com 
Tira-Dentes,  Nunes  Machado,  Terribilis  Dea  e  Os  voluntários 
la  Morte  ;  Luiz  Delfino,  com  as  Solemnia  Verba ;  Tobias  Bar- 
6to,  com  A'  Vista  do  Recife,  Os  Voluntários  Pernambucanos, 

(1)  A  Feãta  litteraria  por  oceoêiâo  de  fundar-ãe  na  capital  do  Império 
Associação  doêhomenêde  Lettroi  do  BroêU.  Rio  de  Janeiro,  1883,  pag.  125. 


HIBTOBIA  DA  LITTXSATUBA.  B&ABILIULL 

;  do  Norte,  A  Capitulação  Montevideo,  A'  Polónia; 
Ives,  ccwn  O  Navio  Negreiro,  As  Vozes  d'Alrica  e  Pe- 
Por  todas  estas  poesias  corre  um  calor,  uma  vida, 
rai  de  enthusiasmo,  que  prende  e  electrisa.  Náo  3e 
10  de  pensar  nos  seus  defeitos;  a  fúria  poética  nos 
A  aquelles  cantos  typicos  podem  se  juntar  Napoleão 
rloo  de  Magalhães,  nosso  conhecido  já,  e  O  Festim 
isar  de  Elseario  Pinto,  olvidado  poeta  sergipano, 
existirão  talvez  por  aJii;  aquellas  sao  as  mais  nota- 
portuguezes  tiveram  um  poeta,  mais  conhecido  por 
ances  e  dramas,  que  foi  um  feliz  cultor  do  género 
CO.  Quero  falar  de  Mendes  Leal,  com  o  Ave-Cesar,  O 
Negro  e  principalmente  com  a  Crus  e  o  Crescente. 
cipal  antecessor  do  condoreirismo  em  nossa  lingua, 
de  poesia  imitado  de  Victor  Hugo,  que  produzio 
'  muita  cousa  boa  e  muita  cousa  ruim. 
n  Norberto  nâo  teve  jamais  o  vigor  de  qualquer  dos 
ados.  Seus  Cantos  Épicos  sHa  inferiores  ás  suas  pro- 
sias  lyricas.  Os  taes  cantos  sâo  cheios  de  allegorias, 
liílcaçOes,  de  machinas  rhetoricas  de  velho  uso,  tudo 
embaraçar-lhes  a  leitura.  Qualquer  deites  pôde  sei^ 
mplo.  A  coroa  de  fogo,  verbi  gratta,  começa  por  uma 
;ação  de  Lisboa  a  dormir  e  a  apparecer-Ihe,  também 
:  de  matrona,  o  Rio  de  Janeiro,  sob  o  nome  de  Gua- 
Ista  se  mostra  de  semblante  amorenado,  como  a  tez 
,  e  outras  pieguices  molestantes.  Segue-se  um  dia- 
e  as  duas  cidades-matronas  a  respeito  do  poeta  que 
ieira,  tudo  n'um  tom  displicente  de  meter  dó...  E* 
ir.  Quem  quizer  vá  inteirar-se  por  si  (1).  Norberto  é 
linente  na  poesia. 


pressa  de  avistalo  nos  seus  trabalhos  de  historia  e 

«raria. 

I  é  mais  apreciável,  por  ser  <mde  está  mais  a  gosto 

I  harmcmia  com  a  sua  índole.  N'esta  espbera  o  pri- 

'anto*  Epieot,  por  J.  Norberto  de  Souza  Silva,  Rio  de  Juieiro, 

II  e  seguinlea. 


HISTOBIA  DA  LITTERATirBA  BRASILEIRA  85 

meiro  elogio  que  lhe  faço  é  o  seguinte  :  hoje  é  impossível 
escrever  a  historia,  principalmente  a  historia  litteraria  do  Bra- 
sil, sem  recorrer  ás  publicações  d'este  laborioso  escriptor.  E' 
que  existem  certas  averiguações,  especialmente  na  historia 
da  litteratura,  que  pertencem  de  direito  a  Norberto  Silva.  Di- 
vidamos o  assumpto  e  comecemos  pela  historia  do  Brasil. 

N'este  campo  de  acção  o  escriptor  não  nos  dotou  com  uma 
obra  geral  sobre  todo  o  paiz,  ao  menos  n'algum  período  de 
seus  annaes.  Deu-nos  quatro  producções  príncipaes  :  Memo- 
ria Histórica  e  Documentada  das  Aldeias  dos  índios  da  Pro- 
vinda do  Rio  de  Janeiro^  Historia  da  Conjuração  Mineira^  Esr 
tudo  sobre  o  Descobrimento  do  Brasil^  As  Brasileiras  Cele- 
bres. As  duas  primeiEas  sobrelevam  de  muito  as  duas  ulti- 
mas. 

Os  méritos  principaes  do  historiador  são  a  clareza  na 
exposição  e  o  acuramento  das  pesquizas.  Não  ha  movimento 
dramático,  nem  ha  vistas  phílosophicas,  nem  ha  vivacidade 
de  estylo.  Em  compensação  ha  critério,  bom  senso,  conhe- 
cimento da  assumpto.  No  livro  sobre  as  aldeias  do  Rio  de  Ja- 
neiro fornece  bons  dados  para  o  conhecimento  da  fundação 
das  principaes  cidades  da  província  e  formação  da  população. 
No  livro  sobre  a  conjuração  de  Minas  lança  muita  luz  sobre 
a  vida  politica  dos  mineiros  e  do  Brasil  em  geral  nos  flns  do 
século  XVIII,  sobre  a  sociedade  de  Villa  Rica,  sobre  o  caracter 
dos  poetas  e  escriptores  do  tempo  e  vinte  outros  pontos  secun- 
dários. 

Contribuiu  para  reduzir  as  proporções  assustadoras  que  vae 
tomando  entre  nós  o  mytho  de  Tira-Dentes.  Não  contesto  aos 
brasileiros  o  direito  de  phantasiar  heróes  e  encher  de  semi- 
deuzes  o  ceu  de  sua  historia;  se  lhes  praz  crôar  uma  mytho- 
logia  politica,  crêem-na  como  lhes  bem  quadrar. 

Estão  no  seu  direito,  e,  quanto  a  Tira-Dentes,  nas  paginas 
mesmas  d'este  livro,  ja  tive  ensejo  de  manifestar  a  minha 
sympathia.  O  que  não  posso  tolerar  é  a  pretenção  estólida 
e  brutalisante  de  se  querer  impedir  o  direito  da  critica. 
Ainda  hoje  não  posso  comprehender  os  selvagens  ataques  de 
que  foi  victima  Norberto  Silva,  por  haver  tocado  de  leve  na 
figura  de  Tira-Dentes I 


86  HISTORIA  DA  LITTEKATnRA  BRA8ILBIBA 

E  isto  da  parte  de  espíritos  que  se  dizem  liberaes! 

E*  uma  grosseira  intolerencia,  só  próprias  de  ânimos  sel- 
vagens. Além  de  tudo,  é  uma  enormíssima  injustiça ;  porque 
o  livro  de  Norberto,  bem  longe  de  ser  obra  de  reaccionário,  é 
um  livro  animado  de  fortíssimo  espirito  liberal,  alentados  ím- 
petos democráticos.  Qual  o  motivo  pelo  quaJ  grandes  e  con- 
sagrados  heróes,  divinisados  pela  humanidade  inteira,  podem 
ter  sido  visitados  no  seu  nimbo  de  luzes  e  sombras  pela  cri- 
tica, e  não  se  ha-de  fazer  o  mesmo  no  Brasil  a  certos  heróe- 
sinhos  de  hontem? 

Qual  a  razão  pela  qual  um  Strauss  pode  chegar  até  Christo 
e  airrancar-lhe  parte  da  aureola,  e  nãjo  poderá  um  Norberto 
praticar  o  mesmo  em  Tira-Deníes?  Ora,  deixemo-nos  de  phan- 
tasias  inúteis  e  respeitemos  antes  de  tudo  a  verdade. 

Nossa  democracia  não  precisa,  para  viver,  de  ílrmar-se  em 
exaggeros  e  falsidades. 

Antes  de  tudo  respeitemos  os  direitos  da  sciencia.  O  livro 
de  Norberto  Silva  é  um  bom  e  equitativo  serviço  em  prol  da 
verdade.  Não  é  obra  de  reacção;  é  antes  de  propaganda  libe- 
ral. 

Como  historiador,  a  época  melhor  conhecida  de  nossa  his- 
toria por  J.  Norberto  é  o  século  XVIII  em  Minas. 

E'  pena  que  não  tenha  elle  tirado  de  seus  estudos  um  tra- 
balho de  conjuncto. 

A  predilecção,  porem,  que  tinha  pelo  assumpto  é  evidente. 
Como  poeta,  novellísta,  historiador,  critico  litterarío,  sempre 
e  sempre  elle  voltava  ao  assumpto.  Na  poesia,  A  Cabeça  do 
martyr  é  dedicada  ao  protagonista  da  Conjuração  mineira ;  no 
conto,  O  Martyrio  de  Tira-Dentes  é  referente  ao  assumpto;  na 
historia,  o  livro  a  que  me  tenho  referido;  na  historia  littera- 
ria,  os  interessantes  prólogos  e  notas  que  acompanham  as 
edições  de  Gonzaga  e  dos  dois  Alvarengas,  alem  do  estudo 
consagrado  a  Cláudio. 

Taes  e  tantas  pesquizas  sobre  a  historia  mineira  no  des- 
cambar do  século  XVIII  devem  ser  considerados  dos  melhores 
serviços  pelo  operoso  fluminense  prestados  ás  lettras  pátrias.  O 
pequeno  volume  sobre  as  Brasileiras  celebres  tem  grande  nu- 
mero do  paginas  relativas  ao  assumpto  predilecto.  Como 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA  87 

amostra  do  estylo  de  Norberto  darei  aqui  um  trecho  d'esse 
bello  livrinho,  e  seja  um  de  assumpto  mineiro. 
Eil-o  : 

A  rica  capitania  de  Minas  Geraes  achava-se  sob  a  pressão  do 
terror  e  das  perseguições.  Ah!  e  que  calamidade!  Dir-sc-hia  que  o 
anjo  da  agonia  tinha  estendido  as  azas  enlutadas  sohrc  Villa  Rica, 
e  que  o  hymno  da  consternação  echoava  de  todos  os  labíosl 

Por  toda  a  parte  a  justiça  sequestrava.  Nfto  exigia  tôo  somente  o 
ouro,  as  jóias,  os  Irastes,  os  escravos  e  os  animaes  domésticos  ; 
sequestrava  também  a  roupa  do  corpo,  roubava  também  o  tecto,  o 
lar  e  o  pão,  e  a  familia  isolada,  malquista,  ahi  fícava  nua  á  face  do 
céu,  ahi  vivia  sem  habitação,  ahi  morria  sem  alimento! 

O  medo  precedia  os  irirolizes  atirados  como  náufragos  da  tempes- 
tade politica  a  praias  inhospitas.  Eram  os  lázaros  da  inconfidência, 
cujo  contacto  se  temia  como  se  tisnasse  a  mais  pura  e  cândida 
reputação.  Ante  elles  se  fechavam  todas  as  portas,  porque  a  piedade 
e  a  compaixão  erão  synonimos  de  complicidade  no  diccionario  do 
governo  colonial. 

Ainda  a  sentença  não  havia  impresso  o  ferrete  da  infâmia  sobre  es 
descendentes  dos  martyres  da  independência  brasileira  e  já  sobre 
elles  pezava  a  mão  negra  e  mirrada  do  destino  acerbo  que  os  aguar- 
dava! 

Descendente  das  mais  notáveis  famílias  da  capitania  de  São  Paulo, 
distinguia-se  também  dona  Barbara  Heliodora  Guilherniina  da  Sil- 
veira pela  sua  formosura  e  pelas  suas  prendas,  e  esses  dotes,  que 
lhe  deram  a  natureza  e  a  educação,  attrahiram  a  attenção,  merece- 
ram a  sympathia,  captivaram  o  amor  do  coronel  Ignacio  José  de 
Alvarenga  Peixoto. 

Era  elle  poeta  como  Thomaz  A^ntonio  Gonzaga  e,  como  o  cantor 
da  belleza  de  Villa  Rica,  celebrou  a  belleza  de  São  João  d'El  Rei. 
Dotada  de  imaginação  brilhante,  sentindo  ò  estro  borbulhar-lhe  no 
cérebro,  a  joven  donzella  retribuia  afeição  por  afeição  e  folgava  com 
poder  pagar-lhe  igu6dments  versos  por  versos,  e  o  commercio  das 
inus€Ls  sanctiílcou  e  engrandeceu  aquelle  amor  em  que  mutuamente 
se  abrasavam. 

Bacharel  formado  em  cânones  na  universidade  de  Coin.^'»\i  e  des- 
jpachado  ouvidor  da  camarca  do  Rio  das  Mortes,  depois  de  ur  sor- 
vido de  juiz  de  fora  de  Cintra  em  Portugal,  Ignacio  José  de  Alva- 
renga, abandonou  a  carreira  que  abraçcu^a  com  tantos  sacrifícios, 
que  tâo  longas  viagens,  e  tão  aturados  estudos  lhe  havia  custado; 
0squeceu-se  para  sempre  do  seu  ninho  natal,  esse  magestoso  Ric  de 


BI8T0BIA  DA  LITTEKATDBA  BBABILSIBA 

m  seu  céo  esplendido,  com  sua  magnifica  bahia,  suas 
lontanhas,  suas  bellaa  florestas  e  estabeleceu-se  no  paiz, 
iamanles  e  de  gemmas  de  ouro. 

a  sede  d'es3es  thesouros,  mas  o  amor  pelas  grandes  em- 
m  o  chamava  a  novas  lidas  que  seguia.  Bem  depressa  se 

dos  ricas  fazendas  dos  Pinheiros  na  freguesia  de  Santo 
1  Valle  da  Piedade  e  do  ^genho  de  Paraopeba  de  Villa 
terras  e  aguas  mitaeraes  da  Boavista,  de  Santa  RuAna,  de 
de  Sôo  Gonçalo  Velho,  de  Manoel  José  de  Castro,  do 
Fogo,  dos  Espigões  do  Aterrado,  do  Ourofalla,  de  Sanla 
inda  outras,  onde  trabalhavam  perto  de  duzentos  escm- 
leta  favorecido  da  fortuna  oITereccu  a  sua  mio,  deu  o  seu 
Al  que  n5o  possuía  senão  os  seus  dotes  naturaes. 
18  lidas,  n'aquelles  enganos  d'alma,  passaram  os  dias 

céu  legitimou  o  consorcio  d'estas  duas  almas  com  três 
ia  filha,  sendo  que  esta,  que  os  precedeu,  era  a  mais  que- 
us  pais,  passava  como  O  anjo  da  felicidade  domcsllco, 
va  a  alegria  e  o  riso  de  toda  a  casa. 
ú  Ignacio  José  de  Alvarenga,  alma  afiliada  pela  lyra  da 
riais  deixou  de  cultivar  o  talento  com  que  Deos  o  destin- 
em sua  esposa  no  meio  de  seus  deveres  caseiros,  de  sua 
mãí,  esqueceu-se  de  seus  versos  e  votou-se  de  todo  o  corn- 
agSo  de  sua  filha  Maria  Ephígenia,  t&o  formosa  aos  doze 
lhe  derao  o  nome  de  princcza  do  Brasil  e  essa  antonom.i- 

le  falta  de  recursos  que  havia  no  logar  para  uma  educa- 
da mediocre,  D.  Barbara  Heliodora  empregou  lodos  os 
u  alcance  e  a  peso  de  ouro  logrou  que  viessem  se  estabe- 
la  villa,  junto  do  seu  domicilio,  os  melhores  mestres  que 
a  capitania,  e  emquanto  os  filhos  varões  se  entregavam 
IS  infantis,  aos  jogos  pueris,  pois  eram  ainda  de  tenra 
rmosa  menina  estudava  e  se  aperfeiçoava  não  só  na  sua 
10  nas  estrangeiras  e  aihda  nas  bellas  artes ;  a  dansa,  a 
desenho  illustravam-lhe  o  espirito  e  lhe  serviam  de  agra- 
stenimenlo.  A"  maneira,  porém,  que  a  dislincta  e  virtuosa 
•ava  de  esforços  e  se  extremava  pela  educação  de  sua  filha, 
o  amor  maternal,  excedia-se  em  affeição,  exagerava  es 
hos.  Já  nSo  a  amava  ;  adornva-a  e  exigia  dos  mestres  nSo 
paciência  como  deferehcia  para  com  aquella  que,  dizia 
ser  tratada  como  prínceza. 

ticos  os  tempos.  Sob  a  mascara  da  amizade  penetrava  a 
n  em  todas  as  casas,  ouvia  todas  as  palestras,  e  depois 


HI8T0BIA  DA  LITTSBATtrRA  BBA8ILSIKA  89 

delatava  tudo  com  a  mira  nas  recompensas  politicas.  Havia  o  coro- 
nel Ignacio  José  de  Alvarenga  Peixoto,  tomado  activa  parte  na  con- 
juração mineira ;  a  denuncia  o  involvera  na  lista  dos  implicados,  e 
o  despotismo  colonial,  viu  n'elle  um  dos  chefes  mais  ardentes  da 
causa  nacional,  e  interpretou  no  enthusiasmo  pelas  cousas  da  pátria, 
que  nota-se  nas  suas  poesias,  a  prova  cabal  de  sua  complicidade.  Foi 
arrancado  do  seio  de  sua  familia,  preso  e  conduzido  ao  Rio  de 
Janeiro,  onde  o  lançaram  nas  masmorras  asquerosas  e  immundas 
da  fortaleza  da  ilha  das  Cobras. 

Uma  portaria  expedida  pelo  governador  visconde  de  Barbacena 
em  9  de  setembro  de  1789  mandou  sequestrar-lhe  todos  os  bens, 
para  o  fisco  e  camará  real.  No  dia  13  de  outubro  de  1789  achava-se 
D.  Barbara  Heliodora  na  sua  casa  do  arraial  de  S.  Gonçalo,  na  fre- 
guezia  deSan^Antonio  do  Valle  da  Piedade,  termo  da  villa  de  S. 
João  d'El-Rei,  abraçada  com  seus  filhos,  misturando  suas  lagrimas 
com  os  ais  das  tristes  criancinhas,  que  em  vâo  chamavam  o  desdi-' 
toso  pai,  quando  viu  entrar  o  desembargador  Luiz  Ferreira  de  Araújo 
e  Azevedo,  ouvidor  geral  e  corregedor  da  comarca  do  rio  das 
Mories,  com  o  escrivão  de  seu  cargo,  e  o  meirinho  mor,  e  exigir 
d'ella  o  juramento  para  que  declarasse  os  bens  que  houvesse  do  seu 
casal,  sob  pena  de  perjúrio  e  das  em  que  incorrem  os  que  subnegam 
bens  a  invehtario,  e  para  logo  procedeu  ao  sequestro  e  real  appre- 
hensão. 

Toda  aquella  grande  fortuna  accumulada  com  o  trabalho  suado 
de  tantos  annos  e  que  ainda  não  estava  consolidada,  pois  havia  divi- 
das a  solver,  foi  fazer  porte  do  acervo  amontoado  pelo  fisco  na 
penhora  dos  behs  dos  implicados. 

D.  Barbara  Heliodora  submetteu-se  ao  despotismo  colonial.  En- 
tregou todos  os  bens  de  sua  sumptuosa  casei,  sua  pesada  baixela  de 
prata,  as  jóias  que  recebera  de  seus  pais,  e  de  seu  marido,  e  até  uma 
caixa  de  rapé  que  tinha  o  seu  retrato  circulado  de  pedras  preciosas. 
Deus  dias  depois  requeria  ella  que  achava-se  casada  com  carta 
de  ametade,  que  de  seu  matrimonio  existiam  filhos  e  que  sendo  na 
f ornma  das  leis  do  reino  em  todo  e  qualquer  caso  livre  a  meiação  da 
mulher,  se  procedesse  antes  do  sequestro  o  inventario  e  partilha 
para  se  saber  o  que  pertencia  da  meiação  a  cada  um,  e  na  parte  que 
tocasse  a  seu  marido  se  procedesse  ao  sequestro,  ficando  a  parte 
d^ella  livre  e  desembarcada. 

O  seu  requerimento  foi  attendido ;  procedeu-se  na  forma  da  lei,  e 
£iâsim  pôde  alia  amparar  a  miséria  de  seus  filhos  e  preparar-se  um 
fVituro  menos  acerbo. 

Nâo  foi,  porém,  bastante  para  a  tranquillidade   de  sua  alma.  A 


HI8TOBIA  DA  LITTXBATTIBA  BRA8ILEISA 

]ue  via  fugir  metade  da  mais  iniporlante  parte  do  sequestro, 
a  delação  dos  vassallos  Heis  o  meio  de  envolver  a  iUustre 
com  os  implicados,  c  seu  nome  veio  a  figurar  nas  duas 
devassas  que  se  procederam  por  esse  tempo. 
na  antonomazia  de  princeza  do  Brasil,  pela  qual  era  conhe- 
.■en  Maria  Ephigenia,  um  crime  de  leza  magestadc.  uma  idéa 
endencia  nacional ;  e  o  próprio  professor  de  musica  de  sua 
sé  Manoel  Xavier,  foi  por  duas  vezes  chamado  a  depor  em 
:>rém  nada  disse  que  a  comprometi  es  se,  e  o  depoimento  de 
tiemuntia  catiiu  não  só  por  falta  de  provas  como  por  nimia- 
isignificanle. 

la  sua  prisão  da  Ilha  das  Cotiros,  levava  o  coronel  os  olhos 
simos  pelas  serranias  da  magniSca  bahia  que  o  vira 
lá  penhascos  horriveis  e  incultas  brenhas  cansavam-lhe  a 
le  em  vão  procurava  pelo  ninho  de  sua  desditosa  prole ;  sól- 
io um  brado  de  agonia,  e  atirava-se  sobre  a  barra  dura  que 
ia  de  leito,  e  cborava.  Pouoo  a  pouco  se  resignava  e  a  poesia 
e  da  saudade  vinha  emfim  com  as  suas  azasdeouroafugal-o, 
le  o  pranto  e  traduzir-lhe  os  gemidos  em  harmonias  cro- 
a  imagem  da  sua  esposa  lhe  estava  sempre  presente  como 
%  lembrança,  ahi  também  para  seu  martyrío  via  nos  braços 
s  aquella  (Ilha,  aquelle  anjo  que  aos  doze  annos  era  todo  o 
nlo,  toda  a  sua  alegria  e  orgulho,  h  (1) 


isloria  lilteraria  Norberto  não  possue  uma  obra  com- 

>u  a  aimunciar  uma  historia  da  littcratura  brasileira; 

e  livro  nâo  foi  escripto. 

mais  preslimosos  Iraballios  no  género  siSo  a  Inlroduc- 

íodulações  Poéticas,  diversos  árligos  na  Minerva  Bra- 

,  na  Revista  Popular,  e  especialmente,  os  esludos  e 

ue  acompanham  as  edições  dos  autores  da  Brasilia 

cca  do  Sr.  Gamier. 

irlo  Silva  dirigiu  a  publicação  de  Gonzaga,  Silva  Alva- 

Alvarenga  Peixolo,  Gonçulvos  Di.is,  Alvaros  de  Aze- 

asimiro  de  Abreu  e  Laurindo  Rabnllo. 

ns  ser\'iços  do  escriptor  fluminense  iVesta  esphera  ndo 

caracter  theorico  e  doutrinário;  elle  é  pouco  fecundo 

liUiroM  CelêbreM,  pag.  182  e  seguintes. 


HiarOEIA  DA  LITTISATUltA  BRASILEIRA  91 

em  recursos  de  analyses  e  apreciações  litterarias.  Seu  mérito 
positivo,  por  este  lado,  está  na  parte  biographica  dos  autores, 
na  verificação  das  datas  e  dos  factos. 

Bem  se  vê  ser  este  um  trabalho  prcliipinar  indispensável 
para  quem  tiver  de  emprehender  a  historia  da  litteratura  bra- 
sileira. E'  bem  possível  escrevel-a  sem  rocorrer  nunca  ás  pu- 
blicações de  J.  M.  Pereira  da  Silva  e  do  Cónego  Fernandes 
Pinheiro.  Estes  não  foram  pródigos  nem  de  theorias,  nem  de 
factos;  seus  livros  sâo  copias  mais  ou  menos  hábeis  dos  ante- 
cessores. 

Norberto  não;  é  caprichoso  e  tem  probidade  litteraria.  Seus 
defeitos  capitães  sâo  falta  de  cultura  clássica  e  falta  de  cul- 
tura philosophica  e  scientiflca.  D'ahi  a  ausência  de  ideia  diri- 
gente no  complexo  de  seus  trabalhos  e  o  desalinho  perpetuo 
da  forma  em  seus  escriptos  (1). 


António  Francisco  Dltra  e  Mello  (1823-1846).  —  A  his- 
toria d'este  moço  é  rápida  e  commovedora.  Filho  do  Rio  de 
Janeiro  (8  de  agosto  de  1823),  bem  cedo  ficara  orphâo,  c  bem 
cedo  tomara  sobre  os  hombros  o  pesadíssimo  encargo  de  nu- 
merosa familia  pobre,  composta  de  sua  mãi  e  quatro  ou  cinco 
irmãos  menores.  Dutra  e  Mello  era  também  um  menor,  e 
ainda  na  infância,  quando  lhe  morrêo  o  pai.  Cedo  arrojou-se 
aos  estudos  de  humanidades,  atirando-se  loucamente  ao  tra- 
balho, levando  por  diante  o  aprendizado  das  linguas  ingleza, 
frajiceza  e  latina,  da  historia,  geographia  e  mathematicas  ele- 
mentares. Com  dezeseis  ou  dezesetc  annos  conhecia  a  fundo 
algumas  d'eslas  matérias  e  jo^gou-se  ao  magistério,  e  aos  la- 
bores  lilterarios.  Labutando  excessivamente,   inaniu-se  em 

(1)  Cahe  ás  vezes  em  descuidos  compromettedores,  capazes  de  denunciar- 
he  ausência  de  elementares  conhecimentos.  Lopc  de  Voga  cra  para  elle 
''jopes  de  la  Vega,  No  Martyrio  de  Tiradentcs  fala  tres  vezes  no  eomno 
fo  philo9opho  Emenideê  (pag.  IV,  113  e  117) ;  queria  dizer  Epímenides. 
ifa  Historia  da  Conjuração  Mineira  fala  duas  ou  tres  vezes  no  despotismo 
alorUdl  com.  seus  algozes^  seus  espias  e  delatores^  suas  masmorras^  com 
tuiM  algemaã^  com  suas  forcas  caudinas..,. 

Parece   que  Joaquim  Norberto  estava   esquecido  do  que   eram  Forcas 
ludincíSm .. 


92  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BRABILEIBA 

pouco  tempo,  vindo  a  fallecer  com  vinte  e  dous  annos  e  meio, 
a  22  de  fevereiro  de  1846.  Antes  e  depois  de  Dutra  e  Mello 
muitos  brasileiros  de  talento  morreram  na  juventude,  deixan- 
do renome  na  litteratura  (1). 

Nenhum,  porém,  como  ellc,  é  merecedor  de  tantas  sympa- 
thias.  Os  outros  succumbiram  pela  mór  parte  por  debilidade 
natural,  ou  por  descalabros  produzidos  pelo  vicio.  O  moço 
fluminense  caiiio  victimado  pelo  dever,  esmagado  pelo  tra- 
balho, que  lhe  devorou  as  forças  e  engolio-lhe  a  vida.  Nen- 
hum foi  tão  puro,  tão  ingénuo,  tão  idealista,  nenhum  tão  pro- 
funda e  verdadeiramente  melancólico.  Também  nenhum  teve 
tanta  instrucção  em  tão  verdes  annos.  Por  este  lado,  só  talvez 
Bernardino  Ribeiro  poderia  hombrear  com  elle. 

Muitos  estragaram-se  por  sestros  e  manias  românticas,  o 
que  se  não  pôde  absolutamente  dizer  dos  dous  fluminenses, 
naíurezas  sérias,  devotadas  ao  trabalho,  e  cuja  vida  passou-se 
em  tempos  anteriores  ás  sentimentalidades  e  choramigas 
systematicas. 

O  período  das  laslimações  lamurientas,  das  phantasias 
mórbidas,  dos  desmanteles  aéreos  foi  nos  vinte  annos  decor- 
ridos entre  1845-1865.  Foi  o  tempo  da  maior  intensidade  da 
sensiblérie  nacional.  Seguio-se  o  período  da  escola  que  has- 
teou a  bandeira  do  victor-hugoismo,  a  que  os  nossos  críticos 
denominaram  a  plêiada  condoreira.  Os  sectários  d'esta  nova 
formula  conservaram-sc  n'um  terreno  intermédio  entre  o  ve- 

(1)  Aqui  dou  uma  lista  extrahida  do  excellente  estudo  sobre  Dutra  e  Mello 
devido  á  penna  do  Sr.  Luiz  Francisco  da  Veiga.  E'  esta :  José  Joaquim 
Cândido  de  Macedo  Júnior  —  com  18  annos  menos  15  dias ;  António  Joaquim 
Franco  de  Sá  —  com  19  annos,  6  mezes  e  12  dias  ;  Manoel  António  Alvares 
de  Azevedo  —  com  20  annos,  7  mezes  e  13  dias ;  Francisco  Bernardino 
Ribeiro  —  com  21  annos,  11  mezes  e  4  dias  ;  Luiz  José  Junqueira  Freire  — 
com  22  annos,  5  mezes  e  24  dias :  António  Francisco  Dutra  e  Mello  —  com 
22  annos,  6  mezes  e  14  dias ;  Casimiro  José  Marques  de  Abreu  —  com  23  annos, 
9  mezes  e  14  dias  *,  António  de  Castro  Alves  —  com  24  annos,  3  mezes  c 
22  dias  ;  Manoel  António  de  Almeida  —  com  29  annos  e  11  dias  ;  Agrário 
de  Souza  Menezes  —  com  29  annos,  5  mezes  e  29  dias ;  Félix  Xavier  da 
Cunha  —  com  31  annos,  5  mezes  e  5  dias ;  Aureliano  José  Lessa  —  com 
menos  de  33  annos  de  idade ;  Luiz  Carlos  Martins  Penna  —  com  33  annos, 
1  mez  e  2  dias ;  Luiz  Nicoláo  Fagundes  Varella  —  com  33  annos,  6  mezes 
e  1  dia ;  Joaquim  Gomes  do  Souza  —  com  34  annos,  3  mezes  e  17  dias ; 
Trajano  Galvão  de  Carvalho  —  com  34  annos,  5  mezes  e  25  dias .  Muitos 
outros  falleoeram  antes  de  completar  os  quarenta  annos. 


1^ 


HISTOBIA  DA  LITTBBATUBA  BSABIUUBA  93 

lho  romantismo  e  o  naturalismo  novo.  Nem  chorões,  como  os 
primeiros,  nem  táo  nédios  &  gargalhadores,  como  os  últimos. 
Em  nossa  qualidade  de  povo  superflcial,  nós  não  podemos 
ainda  passar  sem  aflectações. 

Náo  sendo  aqui  a  litteratura  um  producto  forte,  original, 
espontaeno  de  uma  raça  enérgica,  pois  em  rigor  ella  não  pas- 
sa de  um  negocio  de  imitação  do  estrangeiro  em  sua  quasi  to- 
talidade, nós  andamos  a  chorar  ou  a  rir,  conforme  nos  tocam 
de  fora... 

Hontem  eram  tristezas  e  magoas  por  toda  a  parle,  hoje  são 
alegrias  e  risos  em  toda  a  linha... 

Antes  isto.  Ha  apenas  a  lastimar  que  quasi  nada  seja  verda- 
deiro ;  porque  quasi  tudo  não  passa  de  superfetação. 

Hontem  no  meio  de  algums  que  choravam  deveras,  como 
foi  por  certo  Dutra  e  Mello,  viam-se  alguns  jagunços  nédios, 
rubicundos,  fortes,  alegres,  a  choramigar  também. 
Era  sem  duvida  ridiculo. 

Hoje  no  meio  de  alguns  que  riem  deveram,  amplamente:, 
sinceramente,  ha  alguns  pobres  doentes,  pallidos,  dyspepU- 
cos,  phthysicos  ou  hystericos,  que  teimam  em  se  dizer  sadios 
(é  o  termo  consagrado)  e  apostoram  mostrar-nos  as  feias  den- 
taduras (1)... 

E'  um  ridiculo  de  não  menor  vulto.  E  é  o  que  se  vê  por  ahi 
agora. 

Ora,  vamos,  com  franquezci,  é  um  despaxate;  n'um  caso  e 
n'outro  não  passa  de  uma  afíectação. 

Nasce  tudo  de  uma  concepção  superficial  da  arte  e  da  lit- 
teratura, que  são  verdadeiros  expoentes  da  natureza  e  da  cul- 
tura humana  e  não  simples  caprichos  da  vontade,  se  é  que  a 
vontade  pôde  ter  caprichos. 

A  vida  humana  não  é  um  tecido  de  pilhérias,  nem  de  des- 
venturas; é  antes  um  labutar  constante  em  busca  de  um  fu- 
turo, de  um  alvo  longínquo  que  nos  escapa  sempre. 

O  flm  de  homem  não  é  gozar,  nem  soffrer;  é  trabalhar,  é 
luctar. 

(1)  Nâo  esquecer  que  estas  paginas  foram  escriptas  em  plena  phase 
naturalUta  e  parnasiana.  Com  os  recentes  symbolUtas  voltaram  as  eho^ 
rcuieiras. 


9-1  BIBTOKIA  DA  LITtEEATUILA  BBA8ILE1BA 

Ora,  O  liabalho  lem  dores  e  tem  alegrias.  Por  isso  uma  vida 
Ioda  clif  ia  de  risos,  seria  a  de  um  frívolo;  uma  vida  toda  cheia 
de  prantos,  seria  a  de  um  monomaniaco. 

Tal  a  razilo  pela  qual  uma  litteratura  puramente  galhofeira 
é  um  impossível  o  uma  litteratura  puramente  tétrica  não 
ainda. 

i  razão  ainda  pela  qual  nas  grandes  lilteraturas  encon- 
1  manifestações  amplas  d'aqueiles  dois  estados  do  espí- 
njunctamenle;  porque  eites  dois  é  que  constituem  a 

sso  os  grandes  poetas  s3o  aquelles  que  têm  uma  nola 
(dos  os  estados  d'alma,  e  nSo  esses  seres  incompletos, 
>ssuem  uma  sú  faceta  e  tangem  alaúdes  de  uma  só 

poeta,  só  por  ser  triste  ou  ser  alegre,  nao  merece  cen- 
e  a  tristeza  ou  a  alegria  fôr  sincera.  Melhor  será,  sem 
,  que  e!le  seja  uma  natureza  mais  complexa  e  variada, 
1  uma  tecla  para  cada  grupo  de  emoções.  Ninguém 
'  do  que  Shakespeare  pôde  ser  invocado  para  symbo- 
riqueza  d'alma  humana  nos  dcwninios  da  poesia.  Sua 
brd  tem  uni  accorde  para  quantas  mulaçCes  possam  se 
lentro  em  nós. 

Uca  não  deve  ser  mesquinha  o  exigir  de  um  tempera- 
mais  do  que  aquillo  que  elle  podo  dar.  Todas  as  notas 
isiveís  n'uma  litteratura,  predominando  esta  ou  aquel- 
forme  a  índole  do  povo,  e  a  maior  ou  menor  complexi- 
1  intensidade  dos  temperamentos  individuaes.  Os  nos- 
lliores  poíítas  condoreiros  tiveram  isto  de  bom  :  nSo 
[rivolos,  nem  tétricos;  ao  lado  de  muitas  paginas  por 
oam  lagrimas,  quantas  paginas  enthusíastícas  e  fes- 
\  vida  é  isto.  Seu  alvo  é  a  actividade,  aconteça  o  que 
er. 

uma  litteratura  moderna,  tanlo  como  a  alleman,  desde 
;,  é  uma  tão  nítida  encarnaçã.o  d'esse  pensamento. 
embrar  o  lypo  do  Faust. 

Ddo  o  caso,  isto  é  o  principal,  devemos  fugir  dos  exces- 
lãnticos,  dos  excessos  parnasianos,  dos  excessos  rea- 
í  de  quaosquer  outros  sestros  unitários  e  prejudiciaes; 


HI8T0BIA  DA  LITTBBATUBA  BRA8ILXIBA  95 

fujamos  de  uma  receita,  de  um  tabeliã,  de  um  cânon,  de  umi 
pragramma  exclusivista.  A  arte  é  a  regicLo  da  Uberdade;  seja 
cada  um  livre  de  preconceitos  e  só  consulte  sua  intuição,  sua 
individualidade.  A  arte  deve  ser  a  antípoda  da  politica,  deve 
scT  a  consagração  do  individualismo  extremado* 

O  poeta  deve  ser  o  que  elle  é  e  nâ.o  deve  atlender  a  catechis 
mos  alheios.  Deve  estar  n^altura  de  seu  tempo,  deve  possuir- 
Ihe  a  intuição  geral;  mas  esta  respira-se  com  o  ar  da  vida; 
faz  parte  da  atmosphera  social,  impõe-se  por  si  mesma.  Escu- 
sado é  procural-a.  E'  uma  acquisção  quasi  inconsciente. 

O  tdm  geral  de  uma  época  inocula-se  em  todos  insensivel- 
menle.  E'  uma  espécie  de  vegetação  geral  de  que  todos  res- 
piram os  parfumes,  ainda  os  mais  refractários.  O  modo  de 
compreliender  e  exprimir  a  intuição  geral  é  que  é  a  obra  pes- 
soal dos  artistas. 

Raramente  haverá  um  d'esses  dualismos  em  perfeito  estado 
de  polaridade  n'um  mesmo  tempo  e  n'um  meismo  paiz,  como 
aconteceu  em  França  na  século  xvni,  no  theatro.  A  julgar  a 
sociedade  da  época  pela  tragedia,  era  uma  população  de  he- 
póes,  de  cavalheiros,  de  caracteres  talhados  em  mrissimos 
modelos. 

A  julgal-a  pela  comedia,  era  uma  sociedade  corrompida  até 
á  medula.  Qual  a  que  andava  com  a  verdade?  A  comedia  por 
certo,  que  se  inspirava  na  vida  real;  a  tragedia  não  passava 
de  um  género  convencional  e  falso  n^aquelle  tempo.  Volva- 
mos ao  nosso  fluminense. 

Elle  obedeceu  á  intuição  de  sua  época  entre  nós;  não  foi 
um  reaccionário;  era  um  perfeito  producto  de  seu  meio. 

Sua  meninice  passou-se  no  tempo  do  1*  imperador,  sua  ado- 
lescência no  período  da  Regência.  Tinha  dezesete  annos 
quando  inaugurou-se  o  segundo  reinado;  a  phase  de  sua  acti- 
vidade litteraria  decorreu  de  1S40  a  18'i6.  Nascido  no  mesmo 
anno  de  Gonçalves  Dias,  não  checou  a  conhecel-o;  quando 
este  surgia  para  a  fama  n'aquelle  ultimo  anno  com  a  publi- 
cação dos  Primeiros  Cantos,  olle  atufava-se  no  silencio  do 
sepulchro. 

E'  impossível  negar  o  vigor  e  o  enthusiasmo  da  geração 
que  entrava  em  scena  com  o  moço  imperador.  Na  politica 


IH)  HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

Euzebio,    Paraná,    Vasconcellos,    Uruguay,    Alves    Branco, 
Abrantes  e  trinta  outros  estavam  na  plenitude  do  talento. 

Na  historia  Varnhagen,  Norberto  Silva,  Pereira  da  Silva  e 
João  Lisboa  iniciavam  suas  valiosas  pesquizas.  Na  carlogra- 
phia  Joaquim  Caetano  preparava-se  admiravelmente.  Na  ju- 
risprudência, Nabuco,  Rebouças,  Teixeira  de  Freitas  habili- 
tavam-se  com  brilho. 

Na  poesia  Magalhães,  Porto  Alegre,  Gonçalves  Dias,  e  Fran- 
cisco Octaviano  ja  cantavam  bem  alto. 

No  theatro  e  no  romance  Macedo  e  Penna  eram  realidades 
c  Alencar  pouco  depois  appareceria.  Na  critica  Adct,  Nunes 
Ribeiro  e  Torres  Homem  dictaVam  leis. 

Hão-de  convir  commigo  que  ahi  estão  alguns  dos  mais 
fulgurantes  nomes  que  brilham  em  nosso  Armamento  íntel- 
lectual. 

Pois  bem;  era  um  tempo  de  grandes  esperanças,  um  tempo 
do  enthusiasmo,  a  iniciação  da  pátria  livre  no  caminho  do 
futuro. 

A  mocidade  era  activa  e  séria.  N'esse  meio,  como  productos 
espontâneos  do  clima  social,  brotaram  Bernardino  Ribeiro  e 
Dutra  e  Mello,  os  dois  heróes  da  mocidade  da  época.  Morre- 
ram ambos  pouco  além  dos  vinte  annos,  senhores  de  profunda 
e  variada  instrucçáo.  Dutra  e  Mello  foi  amigo  de  Porto  Al^re, 
Nunes  Ribeiro,  Norberto  e  Macedo,  todos  jovens  como  elle  e 
todos  dados  aos  bons  e  profícuos  estudos. 

A  poesia  de  Dutra  e  Mello  resente-se  do  estado  de  seu  espi- 
rito, do  caracter  de  sua  individualidade.  No  moço  escriptor  pre- 
dominava a  reflexão  mórbida,  travosa  de  melancolia,  de  desa- 
lento, de  desgosto  pela  vida  e  pelo  mundo.  Juntava-se  a  isto 
uma  fervente  fé  religiosa,  um  singular  desejo  de  morrer  para 
gozar  do  infinito. . . 

Ninguém  em  nossa  litteratura  se  preoccupou  tanto  com  o 
au  dela,  com  o  lendemain  de  la  mort.  Se  nâo  tivesse  morrido 
tão  cedo,  teria  talvez  ac€d)ado  pelo  suicídio  ou  peda  loucura. 
Não  é  que  seu  pensamento  fosse  obscuro,  cheio  de  irregula- 
ridades e  inconsequencias;  bem  pelo  contrario,  era  profun- 
damente claro  e  tonificado  pela  lógica.  E'  que  no  organismo 
do  moço  poeta  havia  qualquer  desequilíbrio,  que  o  feria  íov- 


HISTORIA  DA  LITTSBATUBA  BBABILXIBA  97 

temente  nas  fontes  da  vida,  abatendo-lhe  daxnasíado  o  systema 
nervoíso. 

D'ahi  essa  tristeza  incurável,  t&o  profunda  talvez  como  a  de 
Mauríce  de  Guerin  e  de  Amiel. 

Variadas  composições  poéticas  e  artigos  em  prosa  ficaram 
do  merencório  mancebo.  Grande  porção  das  poesias  é  de  pe- 
queno mérito. 

Duas  merecem  especial  mensão;  porque  n'ellas  oxtravasou- 
se  inteiramente  a  alma  do  poeta.  Quero  falar  da  Manhan  iia 
Ilha  dos  Ferreiros  ô  da  Noite.  Só  esta  ultima  era  sufflciente 
para  sagrar  o  vate. 

Ouçam  um  fragmento  da  Manhan  : 

c(  Oh!  corramos  a  ver  tantas  bellezas 
Vistas  sempre  e  t&o  novas  sempre  á  vista. 

Que  magica  mudança! 
Que  oceano  de  vida!  Submergido 
Qual  átomo  no  espaço,  ora  me  sinto 
Abalar  como  um  ramo  sacudido 

Aos  tufões  do  nordeste... 
Oh!  que  frescura  que  electrisa  e  animal 
A  alma  se  expande,  em  sensações  se  abysma! 
Bella  rompe  a  manhan  ;  qual  pudibunda 
Arreceiosa  noiva,  se  colora 
De  vermelho  o  oriente,  e  roxo  um  circulo 
Abraçando  o  horizonte,  a  côr  vislumbra 
D*uns  lábios  em  que  a  dôr  vem  debuxar-se. 
Não  luceja  inda  Vénus,  despenhada 
Após  o  dia  se  perdeu  na  tarde... 

Mas  alta  lá  no  céo  divulgo  a  lua ; 
Pela  manhan  sorpreza  na  carreira 
Desmaiada  se  esvae.  Nos  niveos  braços 
Nuvens  a  tomam  ;  semelhara  a  imagem 
D*um  guerreiro,  nas  ondas  do  combate, 
Erguida  a  lança,  ameaçando  a  morte. 
Que  a  treda  baila  sibilando  encontra. 
Pende  sobre  o  ginete,  e  inda  no  rosto 
A  ultima  expressão  paira,  e^na  bocca 
O  suspiro  6  a  palavra  se  enregelam, 

HISTORU  u  7 


98  HISTORIA  BA  LITTBBATUBA  BRABILBIRA 

Em  vórtices  rolando  pelos  ares 
Turbilhões  d'harmohias  se  diffundem. 
Cada  nota  é  soberba  consonohcia ; 
Cada  leve  cantar  um  instrumento  ; 
Cada  arvore  uma  orchestra,  onde  se  exhala 
Em  suspiros,  em  árias,  em  gorgeios, 
A  musica  da  terra.  Oh!  que  8ua\âssimo 
Concerto  que  ondulando  a  melodia 
Domina  um  todo  que  embriaga  o  ou\'ido. 
Passada  a  aurora  vae.  Lá  rompe  as  nuvens 
Fulgido  raio  dardejando  aos  ares  ; 
Estira-se  no  mar ;  escamas  d'ouro 
Luzem  brilhando  no  oceano  immenso. 
Nova  scena  de  pompa  se  afigura ; 
Cada  montanha  té  has  aguas  roça 
Largo  manto  d'azul.  Crôas  aurejam 
Na  fronte  erguida  ;  é  cada  qual  monarcha, 
E  um  cortejo  de  príncipes  sfio  todas 
Âo  monarcha  da  luz.  Rápido  estenda 
Seu  tapete  cerúleo  o  cêo  que  o  espera,  n  (1) 


E  assim  se  prolonga  mais  ou  menos  n'esta  forma  e  por  este 
gosto  o  quadro  da  manhan  sobre  a  cidade  do  llio  de  Janeiro 
visto  da  ilha  dos  Ferreiros,  situada  na  bahia. 

Os  versos  sahiram  impressos  em  o.  n.*^  15  da  Minerva,  a  !-• 
de  junho  de  1844;  o  poeta  Unha  pouco  mais  de  vinte  annos. 

Bem  se  nota  que  seu  viver  subjectivo  de  espirito  merencório 
e  tristonho  não  lhe  impedia  de  v6r  com  os  olhoâ  bem  abertos 
as  scenas  do  mundo  exterior.  Mas  o  embevecimento  pelos 
grandes  quadros,  pelos  deslumbrantes  panoramas  durava 
pouco. 

Os  reclamos  do  mundo  interior  não  custavam  muito  em 
apparecer.  A  meditação  succedia  logo  á  coníemplaçâto ;  o 
mundo  subjectivo  tomava  logo  a  dianteira,  e  a  poesia,  que 
principiava  por  um  quadro  da  realidade  ambiente,  passava 
um  tanto  adiante  a  perder-se  nas  sombras  da  melancolia  psy- 
chica. 

(1)  Minerva  BraêiUente,  pag.  462. 


HI8T0BIA  DA  LITTSBATirBA  BRABILBUÁ  99 

Na  poesia  Uma  Manhan  este  facto  não  se  desmente;  o  poeta 
passou  ás  suas  queixas,  até  acabar  assim  : 

((  Minh'alma  inda  tão  limpa  e  tão  serena 
Como  este  céo  d'Âmerica,  tfto  calma 
Como  este  golfo  languido,  amoroso, 
Tão  fresca  e  nova,  como  a  aurora  d*hoje, 
Apraz-se  aqui  na  solidão,  fugindo 
Ao  sorrir  frio  e  cynico  dos  homens. 
A  natureza,  Deus,  ella  :  eis  seu  mundo, 
Que  o  outro  só  de  horrores  se  povoa.  »  (1) 

Dutra  e  Mello,  segundo  me  informou  o  venerando  barão  de 
Tautphceus,  que  foi  seu  collega  de  magistério  no  CoUegio 
Matheus  Ferreira,  era  alto,  magro,  esguio,  pallido  e  profun- 
damente melancólico  pela  certeza  da  phtysica  que  o  consu- 
mia; immensamente  dedicado  ao  estudo,  enthusiasta  impeor- 
territo  pelas  letras.  Alma  cândida^  ideialista,  profundamente 
religiosa,  assim  se  consumiu  precipitadamente. 

A  Noite  é  uma  das  producções  mais  sinceramente  melancó- 
licas que  já  uma  vez  foram  escriptas  por  mão  de  brasileiro. 

Por  ser  de  difflcil  accesso,  por  ainda  andar  perdida  nas 
paginas  da  Minerva,  ou  de  ephemeros  ForUegios,  convido  o 
leitor  a  percorrer  commigo  alguns  trechos  : 

Luminoso  esteirão  mal  deixa  ao  longe, 

D'ouro  e  purpura  accêso,  o  vasto  carro 
Em  que  o  dia  cercado  de  seus  raios 

Pelo  ether  passeia : 
E  a  Noite  melancólica  e  sombria, 
Colhendo  sobre  a  fronte  os  soltos  cachos 

Dos  húmidos  cabellos, 
Em  torno  aos  hombros  ageitando  o  manto, 
Lança  ás  rédeas  a  mão,  solta  a  carreira 

A  seus  hegros  ginetes. 
Emquanto  despeitosas  murcham,  pendem 

Nas  campinas  as  ílôres, 
Emquanto  um  suspirar  surdo  e  longínquo 
Lamenta  a  ausência  do  explendor  do  dia, 

(1)  Minerva  Brasilieme,  pag.  463. 


100  HI8T0BIA  DA  LITTSRATUKA  BKA8ILEIRA 

Lúcidas,  brilham  tremulas  estrellas 
De  pharóes  lhe  servindo.  Ai!  como  é  triste 
A  solitária  marcha  d'amargura 
Que  abatida  percorre  a  linda  Noite! 
Seus  negros  olhos,  e  a  carroça  ebanea 

Que  pelos  céos  a  tira, 
As  suas  lohgas  roupas  tenebrosas, 
Olhos  desviam  que  o  fulgor  da  aurora 

Rutilante  convida. 
Oh!  ninguém  busca  vêl-a!  Aves  e  plantas, 
Homens,  tudo  a  abandonai  Ingratos,  fogem 
Como  ao  leito  mortal  do  extincto  amigo!... 

Tu  és,  ó  dia,  o  predilecto  encanto 

Da  natureza  ihteira ; 
Todos  amam  colher  as  áureas  flores 
Que  as  rodas  do  teu  carro  á  terra  lançam  ; 
Para  o  teu  rutilar  voltam-se  os  olhos, 
E  ninguém  busca  a  Noite.  O  somno  os  prende, 
Emquanto  vagaroso  vai  seu  plaustro 
As  campinas  dos  céos  plácido  arando. 
Mas  tu  me  és  sempre  deleitosa  e  cara. 
Oh  Noite  melancólica ;  a  minh'alma 
Attractivos  em  ti  descobre  ancíosal 
N&o  ama  o  pyrilampo  a  luz  do  dia, 
Nem  as  aves  da  morte  então  soluçam!  ... 
Noite  amiga  dos  homelhs!  No  silencio. 
Na  calma  vaporosa  que  desdobras. 
No  socego  dos  campos,  das  florestas, 
A  vida  interna  saborejo  ardente. 
Só  entÃo  vive  o  espirito  do  homem ; 
Tenaz  rebenta  o  pensamento  algemas  ; 
Linguagem  de  ternura  e  sentimento 
Lhe  fala  o  coraç&o  nas  doces  horas  ; 
Surge  a  contemplação  dos  seios  d'alma 
Em  cujas  dobras  cerra-se  €U36  combates 
Da  vida  labyrinthica  do  mundo  ; 
E  fresca  mõo  na  fronte  vem  poisar-nos 
Mansa  a  philosophia  animadora. 

Noite  amiga  dos  homens!  Teus*mysterios 
Coração  de  quem  ama  não  deslembra. 


HI8T0BIA  DA  LITTI&ATUSA  BRA8ILEIBA  tOl 

Podem  muitos  cantar-te  em  lyras  d'ouro 

Enlaçadas  de  brancas  sempre-vivas, 

De  perlas,  nfto  de  lagrimas,  bordadas  ; 

Sdns  de  fogo,  arrancar  das  lisas  cordas, 

Conflal-os  á  brisa  das  cidades. 

Sem  que  um  riso  de  mofa  os  enregele  ; 

Correr  dedos  na  lyra  olhando  uns  olhos, 

E  vêr  descer  um  beijo  e  as  m&os  queimar-lhes. 

Mas  eu  n*harpa  de  bronze  dos  finados, 

Onde  a  roxa  perpétua,  onde  o  suspiro 

Abraçando  a  saudade  se  entrelaçam, 

D*onde  um  véo  cór  da  morte  â  terra  desce, 

Eu  só  posso  cabtar  fúnebres  cantos. 

Carpidas  nenias  que  o  feliz  desama. 

Só  no  campo  e  lá  quando  abrindo  as  azas 

Tu  me  acolhes  saudosa,  ó  Noite,  experto 

Essa  lembrança  que  só  tu  conheces. 

Que  eu  guardo,  e  que  uma  tumba  nos  comparte. 

Noite  amiga  dos  homens!  Quando  imperas. 

Maior  o  creador  se  nos  antolha : 

Que  importa  do  teu  sol  a  pompa,  ó  dia? 

Essa  luz  tríumphal,  de  resplendores. 

Esse  golphão  da  vida  p*ra  os  sehtidos? 

Que  importa  esse  brilhar  da  atmosphcra, 

Esse  vario  matiz  que  adorna  a  terra? 

Perde-se  a  alma  encarando  o  firmamento 

Qu€U[ido,  ó  Noite,  o  sombreias.  Vô  brilhando 

Milhões  de  estrellas,  que  a  distancia  immensa 

Minora  á  vista  Luminosa  a  facha. 

Que  em  tomo  a  infindos  soes,  fniindos  mundos 

Abysmando  a  ras&o  lhe  patenteia . 

E  tu,  magica  chave  das  sciencias. 

Tu,  vasta  analogia, 
Quaes  véos  nâo  rasgas,  desdobrando  â  vista 
Mysteríos  que  o  entrever  mais  engrandecei 

Noite !  ó  noite  formosa !  Eu  que  amo  os  astros. 
Eu,  que)i*elles  suspeito  mais  que  as  luzes, 
Nfio  sei  te  abandonar,  pois  reflectindo 
Prezo  vér  n*esses  globos  outros  mudos 


102  HIBTOBIA  DA  LITTS&ATURA  BSÁ8ILXI21A 

Mais  felizes  que  o  nosso,  onde  outros  seres 
Mal,  dôr,  peccado  e  morte  não  conheçam ; 
Onde  o  sopro  da  duvida  n&o  tolde 
  argêntea  luz  da  cândida  verdade ; 
E  onde  a  hypothese  louca  e  ambiciosa 
CreaçOes  moribuYidas  n&o  produza. 

Noite  amiga  dos  homens!  Teus  altares 
Não  se  mancham  de  tantos  malefícios 
Em  que  as  aras  do  dia  se  deturpam  ; 
Unes  o  esposo  á  esposa,  e  aos  dous  a  prole  ; 
A  familia  vê  juntos  os  seus  membros  ; 
Irmãos,  irmãs,  em  doce  entretimento, 
Fruem  prazeres  que  interrompe  o  dia. 
Riso,  amizade  e  gosto  sobrevoa 
N*essa  amen§.  e  tranquilla  sociedade. 
A  alma  se  acrysola  e  purifica 
Das  escorias  que  o  dia  lhe  injectara  »  (1). 

Dutra  e  Mello  deixou  também  alguns  artigos  de  critica  litte- 
raria.  Os  mais  notáveis  são  os  referentes  á  Moreninha  de  Joa- 
quim Manoel  de  Macedo  e  ás  Lyras  de  Thomaz  António  Gon- 
zaga. 

Ouzo  dizer  que  o  moço  fluminense  era  mais  um  tempera- 
mento de  critico  do  que  um  temperamento  de  poeta.  Seus 
dois  artigos  de  cirtica,  dois  simples  ensaios,  são  dos  melhores 
escriptos  n'este  paiz. 

Era  em  1840  a  45 ;  o  género  apenas  começava  entre  nós  e 
começava  dirigido  por  dois  estrangeiros  Santiago  Nunes  Ri- 
beiro e  Emílio  Adet.  Porto  Alegre,  Torres  Homem  e  Dutra  e 
Mello  deixaram  amostras  n'essa  direcção. 

Mas  Nunes  Ribeiro  e  Emilio  Adet  pouco  escreveram;  Porto 
Alegre  alirou-se  a  outros  trabalhos.  Torres  Homem  meteu-se 
totalmente  na  politica  e  Dutra  e  Mello  morreu;  a  critica  teve 
de  ficar  muda. 

Mais  tarde  chegou  ás  mãos  de  Norberto  Silva,  Cónego  Fer- 
nandes Pinheiro  e  Sotero  dos  Reis  ;  porém  Norberto  foi  antes 
um  pesquizador  de  factos  históricos  do  que  um  critico,  Fer- 
nandes Pinheiro  e  Sotero  dos  Reis  foram  dois  rhetoricos  des- 

)1)  Minerva  BrattU'en#e,  2».  serie,  pag.  279 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATURA  BBABILSIBA  103 

pidos  de  qualquer  talento  analytico.  De  todos  os  géneros  litte- 
rarios  e  scientiflcos  é  aquelle  que  tem  tido  n'este  paia  um  de- 
senvolvimento mais  enfezado  e  rachitico. 

E'  isto  natural;  a  critica  só  pode  tomar  um  forte  ascendente 
nas  litteraturas  abundantes  e  robustamente  constituídas. 

Tal  a  razão  pela  qual  a  critica  é  um  producto  essencialmente 
novo,  resultado  da  lucta  e  do  embale  de  muitas  correntes 
e  direcções  litterarias  e  scientiflcas. 

Wolf,  Winckelmann  e  Lessing  foram  os  fundadores  da  cri- 
tica moderna.  Desde  então  as  producçôes  litterarias  deixaram 
de  ser  consideradas  crêações  caprichosas,  e  entraram  na  cate- 
goria dos  factos  normaes,  históricos,  relacionados  com  o  meio, 
as  raças,  as  instituições  fundamentaes  dos  diversos  povos. 

Herder,  Niebuhr,  Ottfried  Mttller  andaratm  pelo  mesmo  ca- 
minho por  onde  enveradaram  mais  tarde  Gervinus,  Hermann 
Hettner  e  Julian  Schmidt. 

.  Desde  então  a  critica  tinha  deixado  de  ser  uma  categorisa- 
çdo  da  rhetorica  e  havia  abraçado  o  methodo  das  investiga- 
ções scientiflcas. 

Sainte  Beuve  e  Scherer  assim  o  comprehenderam;  os  livros 
de  Taine  e  mais  tarde  oe  de  Guyau,  Paul  Bourget  e  Zola  popu- 
larisaram  os  novos  processos;  o  movimento  propagou-se  e 
chegou  até  ao  Brasil. 

Dutra  e  Mello  em  1845  nio  podia  ter  essa  nova  e  forte  intui- 
ção da  critica.  Ainda  assim,  sua  intelligencia  era  tão  nitida  e 
poderosa  que  os  ensaios  que  produzira  no  género  ainda  hoje 
interessam  pela  segurança  e  elevação  das  idéas. 

O  meu  ílto  não  é  escrever  um  diccionario  biographico  de 
brasileiros  illustres;  não  tenho  inclinações  para  o  género. 

Meu  flm  é  fazer  a  historia  do  pensamento  brasileiro,  indi- 
vidualisado,  encarnado  nos  seus  mais  dignos  representative 
men.  Neste  sentido  o  artigo  de  Dutra  e  Mello  sobre  a  More- 
ninha é  uma  revelação;  vem  mostrar  em  sua  culminação  como 
pensava  em  litteratura  a  forte  geração  de  1840. 

Conversemos  com  o  moço  critico ;  sua  convivência  é  pro- 
veitosa, ouçamol-o  : 

f(  O  romance,  essa  nova  forma  litternria  que  se  reproduz  espan* 
iosaiuente,  que  mana  caudal  e  soberba  da  França,  da  Inglaterra 


104  HISTOBIA  DA  LITTEEAT171LA  BRASILXIBA 

e  da  AUemanha,  tem  sido  a  mais  fecunda  e  caprichosa  manifesta- 
ção de  idéas  do  século  actual.  E'  incalculável  o  numero  de  paginas 
semivivas,  pallidas  e  esboçadas,  raramente  sublimes,  consoladoras 
ou  ascéticas,  mas  com  frequência  dotadas  de  um  verhiz  brilhante, 
de  um  colorido  fogoso,  que  a  improvisação  enthusiasmada  pela  ma- 
nia d*um  mundo  de  leitores  arranca  do  berço  horaciano,  onde  um 
novennio  de  cuidados  as  aguardava.  Fluctuando  aqui  e  ali,  um 
publico  insaciável  as  abraça,  devora-as  com  avidez,  deixa-as  com 
indifferença,  calca,  rola  na  poeira  e  esquece  para  sempre. 

Não  foi  conhecido  o  romance  pela  antiguidade ;  a  forma  épica, 
centralisando  n'um  só  homem  raios  de  luz  dispersos,  personifi- 
cando n'uma  figura  um  século  e  annexando  e  fazendo  entrar  no  seu 
vasto  molde  a  gloria  e  feitos  de  uma  e  mais  gerações ;  a  tragedia, 
medindo  o  alcance  de  uma  situação,  extrahindo  á  força  do  génio  e 
reflexão  tudo  o  que  ella  ofTerece,  levantando-se  ás  grandes  idéas 
religiosas,  politicas  e  philosophicas,  não  podiam  ser  coevos  do  espi- 
rituoso e  vivo  narrador  das  scenas  domesticas,  do  apprcciador  das 
qualidades  parciaes,  da  vida  objectiva,  dos  caracteres  isolados  meio 
trágicos,  meio  cómicos.  O  drama,  e  tão  somente  o  drama,  podia 
raiar  no  horisonte,  quasi  nos  fogos  da  aurora  do  romance,  Shakes- 
peare e  Cervantes  deviam  brilhar  no  mesmo  século. 

O  romance  é,  pois,  nascido  em  tempos  mais  recentes ;  e,  se  o 
consideramos  no  pé  em  que  está  hoje,  elle  é  genuíno  filho  doeste 
século.  Sentio  uma  necessidade  que  se  pronunciava ;  votou-se  a 
preenchél-a  e  fez-se  uma  potencia.  Esposando  a  imprensa  joi*nalis- 
tica,  tomou-se  um  colosso ;  mas,  com  dolo  ou  sem  elle,  ambos  se 
eYiganaram  :  o  jornalismo  veio  a  ser  exigente ;  o  romance  para  satís- 
fazél-o  desenvolveu  fertilidade  espantosa,  e  o  aborto  começou.  Tendo 
de  satisfazer  um  gosto  que  se  depravava,  elle  se  depravou  também  ; 
esqueceu-se  de  que  devia  fazer  a  educação  do  povo,  ou  pelo  ir.enos 
de  que  podia  aproveitar  o  seu  prestigio  para  isso.  Penetrando  na 
cabana  humilde,  na  recamara  sumptuosa,  no  leito  da  indigência, 
no  aposento  do  fausto,  perdeu  de  vista  o  fanal  que  devia  guial-o ; 
deslembrou-se  de  levar  a  toda  a  parte  a  imagem  da  virtude,  a  con- 
solação mitigadora,  a  esperança  e  o  horror  do  vicio. 

Demais,  multiplicando-se,  invadindo  términos  sagrados,  elle  apre- 
goou as  mais  exaggeradas  pretençOes ;  subdividio-se*  em  classes 
numerosas,  que  cada  uma  abrange  populações  inteiras ;  tornou-se 
Protheo  sem  lembrar-se  que  —  La  force  c'esi  Júpiter^  ce  n'e$t  pas 
Prothée.  E'  bem  de  crer  que  meditando  seriamente  na  sua  mocidade, 
elle  se  arrependa  um  pouco  da  quadra  propicia  que  terá  perdido. 
Avelhentado  pelas  suas  devassidões,  lançando  os  olhos  para  essa 


r 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBA  BRASILEIRA  105 

prole  immensa  de  invalidas  monstruosas  e  cynicas  rhapsodias, 
achará  para  alivio  de  sua  dòr,  aqui,  alli  apenas  um  íllho  vigoroso 
nm  Quentin  Durward,  um  Werther,  um  Onq-Mars,   um  Notre- 
Dame  de  Paris,  e  poucos  outros  ;  e  quando  em  todos  ao  demais  achar 
verificado  o  urceus  exit  do  Velhusino,  abraçando  a  pedra  do  sepul- 
chro,  cahirâ  exânime  e  tremendo  da  hora  do  juizo  final  da  posteri- 
dade. A  arte,  revelando-se  pela  bocca  de  uma  critica  posthuma  e 
severa,  vendo  surgir  das  catacumbas  columnares  de  olvidados 
jomaes  esse  numero  sem  fim  de  Quasimodos,  dir-lhes-ha  voltando 
a  face  —  Néscio  vos.  Como  quer  que  seja,  o  romance  tem  percorrido 
ama  esphera  de  gloria  na  Europa ;  o  seu  império  tomou-se  exclu- 
«vo.  Digamos  porém  em  abono  da  verdade  que  se  as  loucas  preten- 
çOes  do  roma!hce  philosophico  tém  mangrado  em  geral,  o  romcuice 
histórico  nos  tem  dado  primores  e  muitas  pennas  se  crearam  repu- 
tações continentaes  n*este  género,  e  á  frente  d*ellas  Walter  Scott. 
Em  Portugal  tem  elle  prosperado  com  vigor  :  e  naturalmente  um 
povo  que  se  mergulha  com  saudade  na  recordação  de  suas  passadas 
glorias;  um  paiz  onde  varões,  que  emularam  com  a  fortaleza  das 
grandes  personagens  da  antiguidade,  imprimiram  na  historia  qua- 
dros sublimes  de  dedicação  e  valor ;  onde  a  cavallería,  os  Mouros  e 
os  Árabes  deixaram  vestigos  indeléveis,  onde  uma  turma  de  littera- 
tos  fortes  nos  sentimentos  que  dieta  o  amor  da  pátria  empunha 
agora  a  penna ;  este  paiz,  dizemos,  n&o  podia  deixar  de  entrever  no 
romance  histórico  a  forma  congénita  e  adaptada  às  ideias  que  nutre. 
Elle  nos  tem  dado  pois  algumas  paginas  tocantes  e  grandiosas  ;  elle 
tem  sabido  interpretar  e  revelar  essas  grandes  acções,  e  temos  para 
nós  que  ainda  nos  não  deo  quanto  poderá  dar-nos.  O  Sr.  Alexandre 
Herculano  é  talvez  o  que  mais  se  tem  distinguido  na  serie  d*esses 
escriptores,  e  nós  lhe  votamos  em  nossa  humilde  intelligencia  os 
louvores  que  por  certo  merece,  mas  outorgados  por  outra  bocca. 
Somos  demasiadamente  microscópicos  para  ousarmos  tecer-lhe 
encómios. 

Entre  nós  começa  o  romance  apenas  a  despontar  :  temos  tido  esbo- 
ços ténues,  ensaios  ligeiros  que  já  muito  promettem  ;  mas  inda  nin- 
guém manejou,  que  o  saibamos,  o  romance  histórico,  nem  tao  pouco 
o  philosophico  ;  quanto  a  este,  porém,  leve  é  a  perda  a  serem  toma- 
dos por  modelo  os  delírios  da  escola  franceza  :  um  Louis  Lambert, 
por  exemplo.  E  comtudo  o  romance  histórico  pôde  achar  voga  entre 
nós ;  tem  uma  actualidade  que  nfto  deve  desprezar.  As  investigações 
históricas  a  que  deve  proceder  quiçá,  trarão  luz  sobre  alguns  pontos 
obscuros  que  homens  devotados  á  historia  do  paiz  buscam  hoje  lu- 
cidar;  pôde  tornar-se  de  envolta  moralisador  e  poético,  se  bem 


106  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRASILBIBA 

cahir  no  preceito  :  Omne  Itdit  punctum  qui  miscuit  utile  dulci.  Se  a 
vida  prosaica  e  positiva  que  o  principio  eterno  da  contradicç&o  entre 
os  gostos  e  as  circumstancias  do  homem  nos  obriga  a  ir  vivendo, 
deixar-nos  alguma  vaga  para  recolhermos  e  ordenarmos  algumas 
idéas  sobre  esta  matéria,  esperamos  cedo  voltar  ainda  á  questão. 

Quanto  ao  mais,  autores  de  merecimento,  poetas  distinctos  se  tèm 
occupado  do  romance  sentimental  e  bellas  paginas  h&o  produzido ; 
outros  géneros  vâo  sendo  cultivados,  e  contamos  cedo  ver-nos  inde- 
cisos no  preferir  em  frente  de  numerosos  rivaes  igualmente  aquila- 
tados em  mérito.  E,  pois,  realisem-se  ao  menos  estas  esperanças  : 
pleiteie-se  um  pouco,  debelle-se  a  indifferença  que  nos  gela,  e  as 
fixas  cores  de  um  clima  poético  venham  coUocar-se  na  paleta  do 
artista! 

Por  ventura  nossa  podemos  annunciar  ao  publico  que  um  novo 
romance  acaba  de  sahir  dos  prelos.  No  meio  da  tempestade  eleito- 
ral em  que  o  positivismo  egoista  sacia  os  olhos,  inda  uma  vo2 
d^harmonia  ousa  espraiar-se.  Uma  vagabunda  e  feiticeira  imagina- 
ção desdobra  suas  azas  d*ouro  e  nácar  n'essa  atmosphera  carregada 
de  vapores.  As  imprecações  foribundas  que  a  orgia  da  politica  faz 
retumbar  de  toda  a  parte  parecem  querer  suffocar-lhe  os  sons.  Pen- 
sar na  belleza,  meditar  na  virtude,  enthusiasmar-se  no  casto  amor 
das  lettras,  s&o  crimes  para  elles.  Porém  almas  ha  que  inda  Yi*esta 
quadra  Yião  se  desmentem  da  humanideide  :  a  chamma  sagrada 
arde  em  silencio  em  muitos  corações  e  queira  Deos  breve  tornado 
em  raio  n&o  desça  a  exterminal-os. 

O  Sr.  Joaquim  Manoel  de  Macedo  é  felizmente  um  d*aquelles  que 
repelle  o  contacto  doesse  gérmen  terrível,  d'esse  gorgulho  que  espe- 
daça  o  fructo  de  tantos  disvelos  ;  e,  como  para  consolar-nos  da  época 
triste  em  que  lidamos,  elle  nos  outorga  um  mimo,  apresenia-nos 
a  Moreninha,  a  viva,  a  espirituosa  filha  de  sua  rica  fantasia  ingé- 
nua e  bella,  innocente  e  jovial.  Em  uma  hora  de  enfado  nos  appa- 
receo  esta  interessante  creatura,  e  ao  vel-a  tôo  risonha,  transpirando 
ainda  o  beijo  do  adeos  final  q\ie  nas  faces  lhe  imprimira  o  autor, 
hós  a  tomamos  nos  braços,  e  despindo  as  rugas  do  semblante,  lhe 
ouvimos  as  palavras  de  ternura,  de  amor  e  sentimento  que  nos 
murmurava  no  ouvido.  Resta-nos  agora  agradecer  ao  autor  as  horas 
de  gosto  que  nos  facultara  e  em  nome  dos  amantes  das  lettras,  o 
novo  protesto  que  acaba  de  lançar  contra  a  indifferença.  Para  cum- 
prirmos um  dever,  daremos  ao  publico  uma  noticia  da  sua  enge- 
nhosa producção  e  seja  esta  a  minima  recompensa  da  adhesão  e 
amor  que  nutre  pelo  ideal.  Podesse  ou  nfio  o  autor,  lançando  mfto 
de  uma  grande  verdade  moral,  circumdal-a  de  factos  envolvendo-a 


HISTORIA  DA  LITTBUATUKA  BBASILXIBA  107 

n*uma  acç&o  qualquer  e  fazel-a  sobresahir  da  luta  e  successão 
d^esses  factos ;  ou  inversamente,  attentalido  um  facto  e  as  conse- 
quências ethologicas  n*elle  englobadas,  desenvolvel-as  no  correr 
dam  plano ;  podesse  ou  não  tomar  uma  grande  figura  histórica, 
uma  paixão  transcendente,  ou  na  escala  do  amor  um  grão  de  maior 
vulto,  dedicação  e  nobreza,  uma  abnegação  sublime,  e  tratal-a  com 
toda  a  expansibilidade  de  talento  que  possue,  isso  não  nos  diz 
respeito,  e  fora  questão  de  ultra  critica. 

Devemos  aceitar  a  sua  producção  tal  qual,  collocarmo-nos  no 
ponto  de  vista  para  que  a  destinara,  e  compararmos  a  ideia  que  o 
possoia  e  a  maneira  porque  nol-a  traduzio.  Tal  é  o  nosso  dever,  e 
gostoso  nos  é  dizer  que  o  autor  desempenhou  completamente  o  fim 
que  se  propoz. 

Um  d*esses  amores  de  infância  que  a  sympathia  gera,  que  um 
nào-sei  que  vigora,  e  que  o  tempo  consolida ;  um  amor  abençoado 
pela  voz  moribunda  d'um  ancião,  nascido  e  embalado  com  a  cari- 
dade em  dois  ternos  corações  ;  esse  amor  de  um  joven  de  treze 
annos  e  d'um  anjo  de  oito,  forma  o  centro  de  todo  o  movimento. 
Scenas  da  vida  escholastica,  cujo  quadrar  exacto  com  a  verdade 
nenhum  estudante  negará,  uma  inconstância  inqualificável,  mas 
fundada,  quadros  da  vida  amatoria  da  juventude  inconsiderada,  epi- 
sódios bem  combinados,  se  engrupam,  se  harmonisam  e  realçam 
eom  belleza  o  todo. 

O  romance  estréa  interessante ;  o  primeiro  capitulo  é  d'iim  aca- 
bado inquestionável ;  tudo  o  que  se  passa  n'elle  é  tão  natural,  tão 
expressivo  que  a  imaginação  nol-o  apresenta  cdnda  como  se  o  vira- 
mos. O  dialago  é  rapi<lo,  insinuante,  e  cheio  de  vida ;  os  caracteres 
bem  annunciados  e  o  contraste  entre  a  figura  molle,  graciosa  e  ro- 
mântica de  Aítgnsío  e  a  Índole  positiva,  secca  e  egoista  dos  seus  col- 
idas, faz  um  bello  effeito.  Os  ataques  que  soffre  e  a  defeza  que  lhos 
oppõe  o  campeão  da  volubilidade,  têm  por  vezes  muita  agudeza  e 
pico. 

Para  nós,  que  desejamos  no  dialogo  tanta  energie^  como  ancie- 
dade  no  enredo,  é  este  um  dos  principaes  titules  do  nosso  autor  a 
justos  louvores.  A  carta  de  Fabrício,  aprendiz  sem  vocação,  que 
«ahihdo  do  seu  elemento  suffoca-se  n'uma  atmosphera  mais  subtil,  é 
cheia  de  pedaços  cómicos,  e  d*alguma:S  observações  sobre  o  carac- 
ter das  nossas  bellas  que  lhes  devem  desagradíir  sobremodo.  Os 
piíncipios  cynicos  do  pérfido  estudante  são  detestáveis;  e  uma 
vimos  nós  seriamente  agastada  contra  elle  saciar  sua  vingança  ao 
vek)  em  taes  apuros.  Em  confidencia  diremos  ao  autor  que  uma 


108  HI8T0BIA  DA  LITTBRATimA  BBA8ILSIBA 

senhora  de  muita  perspicácia  o  accusa  altamente  de  haver  tratado 
com  leveza  a  paixão  predilecta  do  seu  sexo ;  de  ter  calumniado  o 
coraç&o  feminino,  e  de  ter  feito  tão  aprazivel  um  episodio  que  tanto 
as  offende  (pensa  ella). 

Transportemos-nos  agora  ao  foco  da  acção,  a  essa  ilha  encantada 
de  cuja  descripção  dispensou-nos  o  bom  gosto  do  autor  :  dizemos 
bom  gosto,  porque  o  elemento  discriptivo  (pedra  de  toque  aliás  do 
mérito  poético)  é  hoje  tão  insulsamente  empregado  que  menos  inte- 
ressa do  que  fatiga.  Aqui  bem  longe  de  traçar-nos  uma  topographia 
exacta  do  salão,  de  desenrolar-nos  brilhantes  hypotypósis  ou  de 
espraiar-se  em  longas  observações  pathologico-moraes  sobre  toda 
a  companhia,  o  autor  define  as  senhoras  em  duas  palavras  e  che- 
gando aos  homens  diz  :  Quanto  aos  homens...  não  vai  a  pena.  Vamos 
adicínie.  Isto  nos  agrada  muito  e  em  veixlade  parece-nos  muito 
melhor  deixar  transluzir  e  manifestar-se  pelos  factos  o  caracter  de 
uma  personagem  do  que  fatigar-se  ao  principio  em  descrevel-a.  A 
synthese  n*este  caso  pertence  ao  leitor,  e  n'isto  se  basea  a  forma 
dramática.  De  mais  os  factos  bem  produzidos  poupam  longas  pre- 
parações ao  autor  e  fazem  nascer  no  espirito  uma  serie  de  re- 
flexões. 

A  Sra.  D.  Violante  é  o  typo  de  uma  classe  numerosa  entre 'nôs,  que 
o  autor  sentio  e  desenhou  com  justeza.  Tão  cómico  nos  pareceo 
este  lanço,  tão  fulminador  o  contraste  em  que  o  misero  Augusto 
se  vô  a  respeito  de  seus  collegeis,  tal  a  impertinência  da  bruxa  que 
o  persegue  e  tão  bem  cabida  a  escapula  e  vingança  obtida  pelo  dia- 
gnostico treméhdo  do  estudante,  que  não  podemos  suster  por  muito 
tempo  o  riso.  A  nobreza  com  que  Augusto  declina  de  si  o  papel 
odioso  de  que  Fabrício  o  busca  incumbir,  lhe  attrahe  um  duello 
curioso  ;  a  mesa  é  o  campo  de  batalha  em  que  os  dois  campeões  vão 
pugnar,  e  a  interessante  Moreninha  que  apenas  deixou-se  entrever 
deve  apparecer  em  toda  a  luz. 

Travessa  como  o  filho  de  Erycina,  volúvel  como  o  beija-flôr« 
inquieta  como  a  borboleta,  irínocente  commo  um  anjo,  ella  é  roman- 
ticamente bella.  Uma  viveza  graciosa,  uma  agitação  continua,  uma 
sagacidade  e  tino  talvez  sobremaneira  em  tal  idade,  mas  a  par  de 
tudo  um  fundo  de  bondade,  de  simpleza  e  ternura,  taes  são  alguns 
dos  attríbutos  d'essa  linda  creação.  Porém  que  terrivel  talento  na 
satyra!  Que  malícia,  que  ironia,  que  promptidão  de  respostas! 
Como  desmascara,  como  fere,  como  retalhai  Que  settas  de  fogo  não 
crava  ella  aqui  na  sonsa  D.  Quinquina,  alli  na  vaidosa  D.  Clemen- 
tina, e  mais  longe  no  desastrado  Fabrício?!  A  luta  dos  estudantes 


HI8T0KIA  DA  LITTERATUBA  BEA8ILEIEA  109 

Dão  nos  foi  tâo  saborosa  como  os  remoques  satyricos  da  Moreninha. 
Este  caracter  tem  para  nós  bastante  originalidade  e  rivalisa  com 
muitas  figuras  traçadas  por  grandes  pincéis. 

A  conversação  de  Augusto  com  a  Sra,  D,  Anna  vem  lançar  os  pri- 
meiros clarões  sobre  o  fio  da  historia.  Mas  (pela  simplicidade  do 
enredo)  assim  como  facilmente  previmos  no  principio  o  que  veto  a 
realisar^e  na  scena  do  jantar,  assim  bem  se  antevê  qual  seja 
a  beUa  menina  que  Augusto  commemora  com  tanta  saudade  e  ter- 
nura. Entendamo-nos  :  não  fazemos  disto  motivo  de  censura  senão 
que  louvamos  o  autor  por  nos  ter  poupado  a  um  labyrintho  de  factos. 
Simples  ou  nâo  seu  plano  foi  bem  executado,  o  que  já  é  não  pouco 
mérito  (1). 

Que  diremos  ainda  ao  leitor?  O  romance  prosegue  e  vôa  ao  fim 
com  rapidez,  tudo  se  liga  e  se  esclarece.  Na  scena  do  jardim  a  desa- 
piedada Moreninha  vibra  ainda  a  sua  arma  favorita  :  Augusto,  vic- 
tima  de  uma  de  suas  travessuras,  vê-se  pouco  depois  em  crítica  po- 
sição. A  passagem  a  que  nos  referímos  (um  pouco  romanesca)  faz 
rir  por  certo,  e,  levada  mais  longe,  faria  fechar  o  livro  a  muita 
gente;  felizmente  é  co€u*ctada,  mas  parece  um  tanto  livre. 

Fazem-se  notáveis  ainda  (uma,  pela  graça,  outra,  pelo  sentimen- 
talismo) a  conferencia  dos  quatro  escolásticos  e  a  scena  do  pedilu- 
vio  séhtimental.  O  autor  dispara  algumas  settas  contra  os  charla- 
tães e  curandeiros  que  muito  nos  agradaram.  O  resto  do  romance 
corre  a  mesma  esteira  e  por  toda  a  parte  ha  muito  que  louvar,  sobre- 
tudo o  caracter  de  D.  Gabriella.  Entretanto  parece-nos  extrema  con- 
descendência das  três  jovens  que  uma  a  uma  se  deixam  confundir 
por  Augusto,  depois  da  derrota  da  sua  companheira.  A  hora  doeste 
rendez-vous  e  o  tom  da  sociedade  entre  nós  tornam  pouco  verosímil 
tal  passagem.  Va  feito  :  Le  vrai  peut  quclquefois  n'étre  pas  vrai- 
imblable. 

Recapitulemos.  A  Moreninha,  producção  que  em  verdade  honra  a 
seu  autor,  é  uma  aurora  que  nos  promette  um  bello  dia,  uma  ílôr  que 
desabrocha  radiosa  donde  vingarão  pomos  saborosos ;  uma  espe- 
rança com  todos  os  laivos  de  certeza.  O  desenho  é  simples  e  regular; 
nâo  se  vê  perplexo  o  espiríto,  nem  se  agita  com  anciedade  pelo  êxito  ; 
as  explicações  fazem-se  pouco  esperar.  O  disforme,  o  horroroso  são 
allieios  ao  plano  ;  a  ausência  de  grandes  paixões,  de  rasgos  sublimes, 
parece  derívar-se  da  linha  strícta  que  o  autor  se  traçara,  não 
dando  ao  seu  romance  uma  côr  philosophica.  Toques  sombrios,  posi- 

(1)  Omitto  aqui  um  longo  fragmento  por  não  tomar  demasiado  extensa 
esta  citação. 


110  HISTORIA  DA  LITTBRATURA  BRABILBIBA 

ções  arriscadas  nao  derramam  n^elle  o  terror ;  reinam  em  toda  a 
parte  jovialidade,  abandono  e  harmonia. 

O  estylo  é  fino,  irónico  e  singelo.  Ordem,  luz,  graça  e  ligação  o 
tornam  de  uma  transparência  crystalina,  dâo-lhe  um  polido,  uma 
lisura  nunca  desmentidos.  Porém  do  meio  doesta  serenidade,  d*este 
négligé  escapam-se  faiscas  brilhantes.  Respostas  enérgicas,  ditos 
agudos,  imagens  vivas  matisam-lhe  a  contexturcu  O  colorido  é  por 
vezes  ardente,  e  quasi  sempre  animado,  próprio  e  gracioso.  Mas 
íerio-nos  sobretudo  a  profundeza  de  observação  que  por  aqui,  por 
ali  se  nota,  a  finura  de  tacto  na  apreciaç&o  dos  costumes  e  o  parti 
cular  e  írisante  da  côr.  O  autor  retrata  bem  o  seu  paiz  no  que  des- 
creve ;  sabe  ver,  sabe  exprimir.  Tudo  se  diz  de  passagem,  rapida- 
mente ;  tudo  se  pinta  n*um  traço  :  nada  ha  de  carregado. 

L^  style  c*esi  Vhomme,  disse  Buffon ;  e  na  verdade  se  as  idéos 
constituem  o  fundo  do  estylo,  se  a  sua  ligação  e  clareza  decidem  da 
essencialidade  d*elle,  e  se  o  moral  e  a  intellectual  do  homem  são  o 
que  as  ideias  o  fazem  ser,  o  homem  deve  retratar-se  no  estylo.  Vè-se 
que  uma  facilidade,  uma  simpleza,  um  não  sei  que  de  franco,  de 
Interessante,  de  desempedido,  são  os  dotes  principaes  do  estylo  em 
que  é  manejado  a  Moreninha;  e  tal  julgamos  ser  o  caracter  do 
autor.  Longe  a  affectação,  os  campanudos  vocábulos,  longe  o  amar 
neirado  archaismo  e  o  assustador  neologismo.  Linguagem  casta  e 
severa,  acção  viva  e  seguida,  rigida  moral,  cór  appropriada,  eis  o 
que  nos  cumpre. 

Poderíamos  agora  lembrar  ao  autor  um  ou  outro  pequeno  defeito, 
algum  traço  puco  firme,  alguma  leve  antilogiei,  uma  ou  outra  expres- 
são menos  feliz  ;  mas  com  que  fim?  Não  será  elle  com  a  modéstia  e 
bom  senso  que  lhe  conhecemos^  o  primeiro  a  censural-os?  Deixemos 
áquelles  que  têm  olhos  de  prisma  que  tudo  decompõem  o  gosto 
pedantesco  de  se  efncarniçarem  n^essas  bagatellas.  Toda  a  luz  tem 
sombras,  todo  o  caracter  defeitos,  toda  a  obra  incorrecções. 

O  physico,  o  moral  e  o  intellectual  resentem-se  igualmente  da  con- 
tingência mundana.  Não  somos  partidários  d'essa  crítica  esmiunça- 
dora,  que  alguém  já  chamou  maledicência.  A  grande  crítica,  a  crítica 
das  bellezas,  tal  qual  a  quiz  o  autor  dos  Mariyres,  é  essa  a  que  nos 
importa.  Tudo  o  que  é  diminuto  e  acanhado  lhe  escapa :  o  silencio 
e  a  indifferença,  eis  o  seu  juizo  em  casos  taes  ;  e  assim  pensamos 
nós.  Forma->se  muito  melhor  o  gosto  dizendo-se  —  Faze  como  isto 
do  que  Não  laças  como  aquUlo,  A  educação  moral  levará  á  misan- 
tropia e  suicidio  se  em  vez  de  apresentar-nos  o  quadro  edificante  da 
viríude  nos  mostrasse  o  pavoroso  aspecto  do  crime.  O  bello  e  o  bom 
têm  por  si  sós  bastante  força  para  attrahir  as  almas  bem  formadas. 


HI8TOBIA  DA  LITTBRATUBA  BBABILBIRA  111 

sem  que  mister  seja  o  desgosto  e  horror  pelo  disforme  e  pelo  máo 
para  determinal-as  a  ksso. 

Pedimos  agora  ao  nosso  coUega  e  amigo,  depois  de  tâo  bem  fadado 
ebsejo,  algumas  paginas  em  prol  da  verdade.  Lance  ainda  o  seu  pin- 
cel novas  cores  sobre  a  tela,  e  venha  algum  lenitivo  a  tantas  intelli- 
gencias,  magoaxlas  pelo  materi£Llismo,  torpeza  e  libertinagem  que 
transudam  quasi  todos  os  romances  modernos  ;  venha  um  alimento 
para  alguns  homens  obscuros  que  vivem  de  meditaç&o  e  de  espe- 
rança, que  se  nutrem  do  ideal  e  sentimento ;  que  inda  vêm  com  a 
fé,  que  inda  vivem  pela  humanidade,  que  inda  marcham  para  Deos. 

Taes  são  as  reflexões  que  nos  tem  suggerído  a  leitura  da  interes- 
sante MoreninhQ^  livro  que  nos  ministrou  suave  passatempo,  livro 
a  que  o  publico  tem  feito  justiça,  e  de  que  seu  autor  deve  dar-se  os 
parabéns  » (1). 

De  dez  em  dez  annos  um  punhado  de  moços  levanta-se 
cheio  de  entusiasmos  e  d'esperanças,  alçando  a  bandeira  da 
regeneração  litteraria  :  são  os  novos,  os  fllhos  da  ultima  gera- 
ção. 

Nada  mais  digno  de  respeito  e  attençSes  do  que  o  labutar 
da  mocidade  em  prol  de  novas  ideias,  de  um  novo  sentir. 

Pode  ella  ser  injusta  nas  suas  apreciações,  ser  leviana  em 

(1)  Minerva  BrasilienMe^  1^  serie  pag.  746  e  seguintes. 

O  leitor  nfto  me  levará  a  mal  o  lhe  ir  pondo  diante  dos  olhos  largos  fhig- 
mentos  de  escriptos  dos  autores  que  vamos  juntos  apreciando.  O  meu  fim 
poupar-lhe  o  grandíssimo  trabalho  de  ir  verificar  por  si  o  que  lhe  eu  vou 
afifirmando.  A  maior  diíficuldade  que  se  depara  a  quem  trata  da  litteratura 
brasileira  nâo  é  formar  uma  id^iia  de  seu  desenvolvimento  e  dos  espíritos 
que  n'ella  figuraram. 

A  grande,  a  immensa  diífículdade  consiste  em  ter  á  máo  os  productos 
d^essa  gente.  Muitos  d'elles  náo  deixaram  livros,  e  o  que  escreveram  anda 
esparso  por  jornaes  e  periódicos. 

Outros  fizeram  em  livro  publicações  de  limitadíssima  tiragem,  que  se  não 
reproduziram  mais.  Quasi  tudo  isto  não  se  encontra  nas  livrarias  e  tem-se 
de  recorrer  aos  belchiores  e  bíbliothecas.  Estas,  por  sua  vez,  sáo  muito  lacu- 
oosas.  Autores  ha  de  difflciilimo  accesso  ;  por  se  não  saber  onde  pára  algum 
exemplar  de  escriptos  seus.  Nesse  trabalho  de  busca  perde-se  um  tempo 
enorme  e  preciosíssimo.  Tal  o  motivo  principal  do  retardamento  doesta  his- 
toria, começada  em  1881. 

Mas  uma  cousa  é  verdadeira,  e  é  esta :  nâo  ha  um  só  autor  mencionado 
n*este  livro  que  não  tenha  sido  directamente  pesquizado,  lido  e  estudado 
por  mim ;  não  tive  o  menor  auxiliar  em  ninguém,  nem  acceitei  nunca  os 
juízos  formulados  por  outrem.  Disto  tenho  fundado  orgulho  e  o  declaro  sem 
rebuço. 


112  HISTORIA  DA  LITTERATTJBA  BRABILEIILA 

suas  audácias;  mas  é  sempre  merecedora  de  applausos  pela 
pureza  de  seus  intentos. 

Ha  apenas  a  ponderar  uma  cousa  :  a  nullidade  da  privi- 
legio... Todas  as  gerações  têm  igual  direito  ás  attenções  da 
historia;  porque  todas  ellas  houveram  seu  dia  de  enthusiasmo 
e  de  coragem  para  a  lucta.  Todas  cumpriram  a  missão  que  a 
historia  lhes  assignalou  e  todas  sentiram  depois  a  arena  do 
combate  faltar-lhes  sob  as  plantas  e  o  horisonte  das  grandes 
pugnas  estreitar-se-lhes  sobre  a  cabeça.  E'  este  o  destino  de 
todos,  são  estas  as  condições  mesmas  do  progresso. 

Que  illustre  que  foi  a  nova  geração  do  tempo  de  Magalhães, 
quando  Bernardino  Ribeiro  era  professor  de  jurisprudência 
aos  vinte  annos  e  Dutra  e  Mello  era  sábio  aos  vinte  e  díois ; 
quando  Martins  Penna  mostrava  aptidões  raras  para  o  thea- 
tro  e  Gonçalves  Dias  preludiava  nunca  ouvidas  melodias  I 

Ohl  bemaventurados  os  moços  que  trabalham,  e  todos  os 
que  trabalharam;  abençosida  seja  a  memoria  dos  que  se  fina- 
ram em  meio  da  jornada,  tendo  ajudado  a  levantar  este  paiz. 

E  o  moço  poeta  autor  da  Noite  foi  um  d'esses... 


Francisco  Octaviano  de  Almeida  Rosa  (1825-1889). 

Dois  annos  mais  moço  que  Dutra  e  Mello  e  Gonçalves  Dias, 
era  da  idade  do  segundo  imperador. 

Pormou-se  em  jurisprudência  em  São  Paulo  em  1845.  Seus 
primeiros  ensaios  litterarios  datam  de  dous  ou  três  annos 
antes  e  são  adequados  á  intuição  do  tempo;  por  isso  é  elle 
desde  ja  contemplado  n'esta  inicial  phase  do  romantismo 
pátrio.  Estabelecido  no  Rio  de  Janeiro,  sua  terra  natal,  bem 
cedo  atirou-se  ao  jomaUsmo  e  á  politica,  grangeando  desu- 
sado renome. 

Passou  por  muito  tempo  por  chefe  emérito  da  poesia  e  da 
jornalística  entre  nós. 

A  alta  posição  politica  do  senador  Octaviano  parece  ter  sido  o 
principal  factor  de  sua  grande  nomeada  nas  letras.  Este  phe- 
nomeno  das  chefaturas  litterarias  no  Brasil  é  uma  curiosidade 
digna  de  estudo. 

O  nacional  tem  o  espirito  sacerdotal  e  o  sestro  da  passivi- 


HISTORIA  DA  IJTTBEATTTBA  BBA8ILBIBA  113 

dade  e  obedienca  em  elevadíssimo  gráo.  Não  gosta  muito  das 
differenciações  e  das  luctas;  deseja  caminhar  por  manadas, 
guiado  por  um  chefe,  quero  dizer,  uma  figura  decorativa, 
um  nome  passado  á  categoria  de  phrase  magica,  só  por  si 
capaz  de  apadrinhar  a  prole. 

Dahi  os  alvoroços,  não  por  um  ideial,  por  um  principio  di- 
rector das  letras,  mas  por  um  chefe,  um  idolo,  um  homem 
que  possa  dar  attestados  de  intelligencia  e  fornecer  prólogos 
para  os  livros  dos  estreiantes. 

Este  sacerdotalismo  tem  sido  a  causa  de  gravíssimos  dam- 
nos  para  as  pátrias  letras.  Luctas  mesquinhas,  intranzigen- 
cias  fátuas  hão  sido  o  menor  desses  males. 

Francisco  Octaviano  não  foi  um  temperamento  litterario 
irresistivel ;  fez  litteratura  incidentalmente.  Produziu  versos 
originaes  e  traduziu  fragmentos  de  Byron  em  sua  mocidade; 
logo  a  politica  o  attrahiu.  Em  prosa  o  pouco  praticado  por  elle 
foi  ainda  consagrado  á  poUtica. 

Apezar  porém  de  sua  parca  e  fragmentadissima  producçâo 
litteraria,  tem  direito  de  entrar  n'este  livro  como  poeta  e  jorna 
lista.  Não  deve  trazer  o  porte  altivo  dos  mestres,  dos  chefes, 
dos  grandes  heróes  do  pensamento;  deve  vir  com  o  sorriso 
amável  dois  bons  campanheiros. 

O  poeta  em  F.  Octaviano  passou  por  duas  phases;  a  pri- 
meira, abrangendo  o  decennio  de  1840  a  50,  foi  de  vacillações 
e  tentativas  de  pequeno  valor.  Como  soe  acontecer  em  simi- 
Ihantes  assumptos,  as  datas  ahi  não  têm  um  significado  ab- 
soluto, especialmente  tratando-se  de  Francisco  Octaviano  que 
nunca  teve  actividad6  nas  letras  e  jamais  publicou  um  só  li- 
vro. 

E'  difflcillimo  reconstruir  a  historia  intellectual  de  um  ho- 
nem  que  de  longe  em  longe  publicou  uma  ou  outra  poesia 
destacada  em  paginas  de  ephemeros  jornaes  e  periódicos. 
Tenho  certeza  de  haverem  sido  de  pequeno  préstimo  os  tenta- 
mens  de  Almeida  Rosa  na  poesia  em  sua  phase  académica  e 
logo  depois. 

Os  documentos  não  me  falham  de  todo,  e  não  se  deve  ob- 
jectar com  a  sua  verdura  de  annos  então,  porque  nos  jovens 
brasileiros  a  maior  efrervecencia  poética  vae  até  aos  vinte  e 

msroiUA  n  8 


114  HISTORIA  BA  LITTSRAT17HA  BRASILEIBA 

cinco  annos  na  maioria  dos  casos;  poucas  vezes  chega  aos 
trinta  e  raramente  os  ultrapassa.  Paio  da  mór  intensidade  do 
talento  e  das  effusões  lyricas. 

D'aquella  primitiva  phase  litteraria  de  Octaviano  Rosa  res- 
tam poesias  originaes  e  traduzidas  por  onde  se  possa  aqui  la- 
tar-lhe  o  espirito. 

Não  se  distinguem  nem  pelo  fundo  nem  pelo  estylo.  Sfto 
restos  de  um  classismo  estafado,  ou  timidos  passos  na  vareda 
de  um  romantismo  incolor.  Leiam-se  a  ode  dirigida  ao  velho 
Martim  Francisco  Ribeiro  de  Andrada^  a  espistola  endereçada 
a  Joaquim  Norberto  de  Souza  Silva,  e  a  canção  intitulada 
Adeus  á  Vida, 

£is  o  principio  da  primera  : 

«  Que  ha  sido  o  galardão,  que  outorga  a  pátria 
Aos  varões  que  a  serviram?...  Qual  o  premio 
Que  seus  feitos  illustres  mereceram?... 
Despreso!...  esquecimento!... 

Nfto,  a  pátria  náo  é...  n&o  se  a  injurie. 
Que  ella  seingra  de  vêr  taes  injustiças... 
Dos  homens  o  ciúme,  a  negra  inveja 
Esses  crimes  engendram. 

Oh!  que  apagar  taes  nódoas  se  n&o  possam, 
Que  a  historia  em  suas  paginas  ostentai... 
Que  n&o  possaes  desconhecer,  vindouros, 
A  ingratidão  dos  povoa!... 

Eil-o  ao  pézo  curvado  das  cadeias, 
O  heróe  de  Marathona  a  vida  arrasta... 
Qual  seu  crime?...  o  livrar  homens  ingratos, 
Defender  sua  pátria. . .  »  (1) 

A  espitola  a  Norberto  SUva  tem  este  intróito  : 

K  Como  as  almas,  Norherio,  se  estasiam 
No  doce  recordar  dos  doces  tempos 
Em  que  a  outras  o  Iman  d*amisade 

(1)  Vide  Florilêigo  Branleiro  da  Jn/ancia^  por  João  Rodrigues  da  Fon- 
seca Jordão,  pag.  172. 


HISTORIA  DA  LITTBBATUBA  BRA8ILBIRA  115 

As  havia  attrahido,  e  confundia 

Os  prazeres  de  uma,  e  penas  d*outra!... 

Longe,  ausente  de  ti,  do  exímio  vate. 

Do  brasileiro  sabiá  canoro, 

Cujos  trinados  me  arroubavam  sempre, 

E  ao  êxtase  e  prazer  me  remontavam, 

Longe  (direi  também?...)  dos  meus  amores 

Da  minha  Aonia  terna  e  Armia  ingrata, 

Que  sou?  Misera  ovelha,  que  na  rocha 

Deslembrado  pastor  abandonara. 

Ah!  bem  triste  é,  Norberto,  estar  ausente 

De  tudo  o  que  no  mundo  nos  é  caro  »  (1). 

O  Adeu^  d  vida  preludia  assim  : 

te  Adeus,  m&iha  vida, 
Vida  sem  prazer, 
Fruir-te  nâo  posso. 
Adeus,  vou  morrer ! 

Mirrada  doença 
O  alento  me  prende, 
A  pallida  morte 
Seus  braços  me  estende, 

Revolve-se  a  terra, 
A  cova  se  abriu. 
Meu  corpo  baixou, 
A  lousa  cahiu. 

Do  mundo  lllusOes 
Na  campa  findaram, 
Quaes  flores  viçosas 
Depressa  murcharam...  »  (2). 

N'este  mesmo  tom  proseguem  as  três  citadat?  poesias,  que 
tii  andam  nos  livros  de  classe  propostas  por  modelos  á  moei- 
a.de.  Esse  era  o  estylo  e  aquella  a  intuição  litteraria  do  en- 
>mmiado  fluminense. 

Comparem  aquillo  com.  os  versos,  mui  poucos  annoe  de- 
>is,  escriptos  por  Alvares  de  Azevedo  n'aqu6lle  mesmo  São 


1)   Vide  Florileigo  Braêileiro,  pag.  229. 
;S)  Citado  Florilégio,  pag,  196. 


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116 


HISTOBIA  DA  LITTEBATT7KA  BRASILEIRA 


Paulo  e  n^aquella  mesma  idade  e  digam  qual  dos  dois  era  ja 
de  facto  e  deveria  ser  mais  tarde  o  verdadeiro  mestre.  Nâo  é 
preciso  ajuntar  mais  nada  para  dar  bem  a  comprehender  o 
meu  pensamento. 

A  segunda  phase  da  vida  poética  de  Octaviano  abriu-se  no 
Rio  de  Janeiro.  Bem  cedo  relacionado  com  os  primeiros  espi- 
rites nacionaes  na  litteratura  de  seu  tempo,  Gonçalves  Dias, 
Macedo,  Alencar,  seu  gosto  apurou-se,  seu  talento  robuste- 
ceu-se. 

O  periodo  de  1850  a  65  foi  o  de  sua  melhor  producçao  na 
poesia  e  no  jornalismo. 

Depois  a  politica  absorveu-o  de  todo.  A  esse  tempo  se  pren- 
dem os  fragmentos  que  traduziu  de  Schelly,  Hood,  Byron  e 
outros  poetas  estrangeiros;  são  também  d'essa  época  alguns 
versos  de  própria  lavra. 

Não  são  producções  de  primeira  ordem,  ostentam,  todavia, 
certa  graciosidade. 

A  este  numero  pertencem  os  Desejos  de  doente^  aqui  cita- 
dos como  documentação  indispensável  : 

(c  Querida,  quando  eu  morrer, 
Com  tua  boquinha  breve 
Nfio  me  venhas  tu  dizer  : 
—  A  terra  te  seja  leve.  — - 

Nesse  dia  vem  calçada 
De  botinas  de  setim  ; 
Quero  a  terra  bem  pisada. 
Tendo  teu  pé  sobre  mim. 

Em  paga  de  meus  amores, 
Quando  tombar  o  caixão, 
Deita-lhe  um  ramo  de  flores 
Colhidas  por  tua  mão. 

E  se  mais  posso  pedir-te, 
Nesta  eterna  despedida 
Deixa  dos  olhos  cahlr-te 
Uma  lagrima  sentida  »  (1). 

(1)  Traduccões  e  Poetias  de  F,  Octaviano,  publicadas  pelo  Dr.  Amorim 
Caryalho,  pag.  39. 


V 


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HISTORIA  DA  LITTBRATUKA  BKABILBIKA  117 

Se  isto  não  é  o  que  se  pode  chamar  um  producto  poético 
disgracioso,  não  tem  por  certo  grande  elevação.  Como  docu- 
mento psychologico  tem  algum  alcance,  por  deixar  vêr  um 
pouco  da  alma  plácida  e  um  tanto  epicureana  do  vate  flu- 
minense, tomando  esse  qualiflcativo  no  bam  sentido.  Infe- 
lizmente por  este  lado  é-me  impossível  fazer  grandes  entra- 
das, por  falta  de  publicações  do  poeta  por  onde  conseguisse 
estudal-o  detalhadamente. 

Pelo  que  pude  ler  das  producçõcs  do  autor  em  sua  segunda 
phase,  denotam  ellas  certo  mimo  e  delicadezas  de  idéa  e  de 
forma,  sem  elevar-se  demasiado,  sem  attingir  ao  amplo  e 
vasto  lyrismo,  sem  chegar  ás  alturas  da  grande  arte.  O  poeta 
não  passou  de  certa  mediania ;  podem  testemunhal-o  os  se- 
guintes versos  por  elle  escriptos  em  Buenos-Ayres  a  26  de 
junho  de  1865,  ao  completar  quarenta  annos  de  idade.  O 
illustre  fluminense  já  era  então  de  grande  notoriedade  em 
nossa  politica  e  tinha  ido  á  Republica  Argentina  celebrar  o 
tractado  da  tríplice  alliança.  Eil-.os  : 

(t  Na  manhã  d'este  dia  o  sol  da  pátria 
Vinha  aquecer-me  o  leito  em  que  eu  dormia, 
E  meus  fllhos  com  beijos  me  accordavam 
Na  manhã  doeste  dia. 

De  um  letdo  minha  mãe  me  abençoava, 
A  esposa  do  outro  lado  me  sorria  : 
O  coração  pulsava-me  arrojado 
Na  manhan  d*este  dia. 

Como  tudo  mudou!  Hoje,  isolado. 
Em  terra  estranha,  nebulosa  e  fria. 
Não  me  veio  aquecer  o  sol  da  pátria 
Na  manhan  d*este  dia. 

Santa  mãe!  terna  esposa,  caros  filhos! 
Não  ouvis  uns  gemidos  de  agdnia? 
S&o  echos  da  saudade  de  minha  alma 
Na  manhan  doeste  dia  »  (1). 

{1,   Gaveta  de  Xoticias  de  27  de  junho  de  T-ííC. 


118  HISTOBIA  DA  LITTSfiATURA  BRASILEIRA 

Nâo  sâo  sem  interesse  estes  versos;  lembram  o  decantado  Se 
eu  morresse  amanhan  de  Alvares  de  Azevedo. 

Dáo  bem  a  conhecer  o  estylo  do  poeta  no  que  elle  tem  de 
mais  doce  e  suav«.  Não  quero  suppor  ter  sido  obra  pura  e 
exclusiva  da  sympathia  politica  o  grande  renome  de  Pr.  Octa- 
viano em  litteratura. 

Alguma  cousa  de  regularmente  bom  deva  ter  elle  produ- 
zido, e  deste  numero  é  a  mimosa  poesia  Plôr  do  valle.  Não  sei 
a  data  precisa  d'estes  versos;  creio  serem  pouco  posteriores 
aos  acima  citados. 

E'  uma  interessante  elegia  : 

c«  Ouviste  um  dia  os  cânticos  do  anjo? 
Viste  em  seu  rosto  da  belleza  as  cores? 
E  na  manhan  de  doce  primavera 
Flôr  do  valle  nascendo  entre  as  mais  flores? 

Então  puro  era  o  céu  e  verde  o  campo 
E  a  vida  allegremente  lhe  sorria ; 
Folgava  em  seu  primor  de  mocidade, 
E  nos  braços  de  Deus  adormecia. 

E  tão  bella  e  tão  castal  descuidosa 
Do  futuro  em  presente  tão  risonho! 
Apenas  em  sua  alma  e  quasi  a  furto 
Vaga  imagem  de  amor  sorria  em  sonho... 

Tanto  mancebo  esbelto  que  a  cercava 
Com  olhares  de  cândidos  amores!... 
Porém  ella,  mais  pura  e  mais  formosa, 
Flôr  do  valle  brincava  entre  as  mais  flores! 

A  brisa  da  manhan  lhe  ouvia  os  cantos 
E  o  echo  da  campina  os  repetia, 
A  tarde,  sobre  a  relva  perfumada, 
Canta!hdo  novamente  adormecia. 

E  cantava  e  dormia!  e  veio  o  inverno 
E  trouxe  sua  névoa  e  seus  rigores, 
E  acharam-na  sem  vida,  descorada 
Flôr  do  valle  morrendo  entre  as  mais  flores! 


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HI6T0SIA  DA  LITTBIULTURA  BBA8ILBIRA  119 

Quando  voltou  depois  a  primavera. 
As  florinhas  e  o  campo  vicejaram, 
O  valle  fez-se  verde,  o  céu  sereno, 
Mas  os  cantos  do  anjo  não  voltaram... 

£u  lhe  ouvi  a  voz  harmcfnlosa. 
Eu  vi  a  ílôr  do  valle  em  seus  verdores... 
Hoje  só  ouço  o  mtirmurar  do  vento. 
A  flor  do  valle  abandonou  as  flores!  » (1) 


Sáo  delicados  e  meigos  estes  versos,  dedicados  pelo  poeta  a 
uma  filha  morta ;  estão  a  revelar  um*  alma  doce,  voltada  para 
a  lemura. 

Paz  bem  esta  melodia  moderada  e  plácida;  aqui  não  ha 
estertores;  Octaviano  era  dos  que  sabem  chwar  sem  se  tomar 
massantes  e  ridículos. 

Elle  era  um  homem  calmo,  de  trato  ameno,  palestrador 
engenhoso,  fluente,  gostosamente,  deliciosamente  erUraínant, 
ao  que  referem  seus  inlimos. 

Creio  bem  que  assim  fosse;  era  um  espirito  de  feições  clás- 
sicas próprio  para  ter  vivido  em  Pariz  no  século  xvii. 

Não  era  um  homem  de  nosso  tempo  com  suas  luctas  e  suas 
durezas. 

De  resto  foi  meticuloso  e  indeciso;  natureza  essencialmente 
sceptica. 

No  jornalismo  exibiUh-se  n'esse  caracter.  Suas  poesias  foram 
sempre  curtas,  leves;  seus  artigos  de  jornal  também  rápidos, 
breves.  Poi  sempre  alheio  aos  grandes  desenvolvimentos  de 
analyse  e  de  doutrina  e  refractário  ao  espirito  critico. 

Era  um  improvisador  correcto,  simples,  fácil;  mas  de  curto 
vôo.  Sua  passagem  pelo  jornalismo  foi  célere  e  não  deixou  a 
mesma  impressão  da  de  Torres  Homem  ou  de  Justiniano  da 
Rocha. 

O  poeta  fluminense  não  foi  um  jornalista  por  vocação;  fez 
caminho  pela  imprensa,  como  necessidade  politica. 

E'  bem  difflcil  saber  se  elle  foi  um  temperamento  litterario, 
transviado  na  politica,  ou  um  temperamento  politico,  immis- 

(1)  PcuUheon  Fluminenge  por  Lery  dos  Santos,  pag.  314. 


120  HISTORIA  DA  LITTEBATURA  BRABILEUA 

cuindo-se  de  vez  em  quando  na  litteratura,  ou  uma  e  outra 
cousa  ao  mesmo  tempo. 

As  duas  qualidades  nâo  se  excluem.  Podem  combinar^se 
perfeitamente  o  a  historia  superabunda  em  exemplos. 

Parece-me  que  em  Octaviano  ambas  as  tendências  e  inclina- 
ções entraram  em  partes  mais  ou  menos  iguaes;  mas  sem 
grandes  estímulos  de  um  lado  e  d'outro. 

Tal  a  razão  pela  qual  não  assumiu  jamais  uma  posição  defi- 
nitiva na  politica  e  na  litteratura  brasileira.  Nem  Gonçalves 
Dias,  nem  Silva  Paranhos  foi  elle. 

Por  mais  que  se  o  queira  favorecer,  é  impossível  negar-lhe 
n^aquellas  duas  espheras  uma  attitude  mais  ou  menos  ambí- 
gua. D'ahí  o  estado  psychologico  especial,  característico, 
como  esse  em  que  tombam  aquelles  que  se  dividiram  entre 
duas  actividades  sem  abandonar-se  deilnítavamente  a  uma 
d'ellas. 

Ficam  a  suppõr  que  uma  das  tendências  prejudicou  a  ou- 
tra. Octavieuio  Rosa  crê  ter-lhe  sido  fatal  a  politica;  mais  de 
uma  vez  manífestou-se  a  este  respeito. 

O  artigo  posto  por  elle  á  frente  dos  Vãos  Icarios  de  Rozendo 
Moniz  Barretto  é  neste  sentido  typico  ;  n'esse  artigo  escreveu 
isto  :  «...  sahiu-me  de  encontro  a  politica,  a  intecunda  Messa- 
lina, que  de  seus  braços  convulsos  pelo  hysterismo  a  nin- 
guém deixa  sahir  senão  quebrantado  e  inútil ;  veio-me  ao 
encontro,  arras tou-me  para  suas  orgias.,.  » 

Sejamos  francos  :  uma  critica  forte  e  rigorosa,  que  preci- 
sasse de  dizer  todas  as  cousas  com  os  seus  próprios  nomes  e 
os  nomes  com  todas  a  letras,  estabeleceria  que  o  senador  Octa- 
viano não  passou  no  fundo  de  um  acanhado  romântico,  um 
espirito  estreito,  incapaz  em  todo  tempo  de  emprehender 
qualquer  cousa  de  profundo  e  vivo  em  politica;  foi  uma  natu- 
reza sem  relevo,  que  representou  durante  mais  de  trinta 
annos  uma  figura  equívoca  em  nossas  luctas  partidárias, 
foi  um  estadista  sem  planos,  um  diplomata  sem  normas,  como 
foi  um  jornalista  sem  grande  vida,  um  poeta  sem  alto  ideíal. 

Em  rigor,  esse  bello  cariseur  pertence  áquella  classe  de  ro- 
mânticos byronianos  para  quem  a  política  é  uma  pescaria  ao 
destino,  um  jogo  á  ventura,  em  que  se  vae  tentar  fortuna. 


HI8T0BIA  DA  UTTBlUTintA  BSABILBIEA  131 

Que  um  critico  desabusado,  um  espectador  livre  de  precon- 
ceitos, que  de  nossa  politicia  tem  apenas  o  conhecimento  das 
grandes  tropelias  que  n'ella  se  praticam,  venha  chamal-a  de 
Messalina,  concebe-se. 

Mas  que  um  factor  d'essa  politica,  um  diplomata,  um  sena- 
dor, um  chefe  de  partido,  um  homem  de  Estado,  um  accla- 
mado  mestre,  venha  dizel-o,  não  se  pôde  comprehender. 

P.  Octaviano  entrou  em  nossas  luctas  sociaes  como  um  ho- 
mem de  letras,  um  adorado  poeta,  um  publicista  cheio  de 
talento  e  esperanças,  como  apregoaram  os  seus  admiradores 
de  sempre.  E  entáo  porque  náo  compehendeu  a  politica  ao  theor 
de  um  espirito  culto  e  desinteressado?  Porque  nâo  vio  n'ella 
a  sciencia  da  vida  nacional  a  que  os  homens  de  talento  e 
caracter  sáo  obrigados  a  leivar  o  seu  contingente  em  prol  do 
progresso  e  do  futuro?  Quaes  foram  jamais  os  seus  planos,  os 
seus  estudos,  as  suas  lucubrações  sociaes? 

Na  politica^  ou  se  entra  em  nome  de  um  principio,  de  um 
programma  serio,  de  um  alvo  fecundo  e  realisavel,  ou  nao  se 
toma  parte  n'ella  deflnitivamente.  E'  esta  a  razão  pela  qual 
todos  os  grandes  vultos,  todos  os  notáveis  estadistas,  todos 
aquelles  que  se  bateram  em  nome  de  um  systema,  de  uma 
causa  em  bem  da  pátria,  nunca  se  arrependeram  de  seus  esfor- 
ços, quaesquer  que  tivessem  sido  as  agruras  do  caminho.  E' 
por  isso  também  que  todos  aquelles  que  vêem  na  politica  ape- 
nas uma  vasta  aventura  e  n'ella  ingeriram-se  sem  ideal, 
sem  vistas  elevadas,  ao  cabo  de  tempos  recuam  espavoridos, 
arreliados,  desilludidos.  Entáo  começam  as  queixas,  as 
queixas  infundadas,  estéreis,  ridículas... 

Quando  e  como  o  senador  Octaviano  bateu-se  em  nome  de 
vastas  ideias  ?  Como  e  quando  elle  fez  a  grande  politica  pro- 
gressiva e  scientiflca?  Como  e  quando  elle  lutou  por  fazer 
vencer  seus  planos,  suas  maduras  convicções? 

No  meio  de  nossos  políticos  mais  notáveis  occupa  uma  posi- 
ção secundaria. 

Resta  caracterisar  agora  o  jornalista;  n'esta  qualidade  elle 
foi  cem  vezes  mais  encommiado  do  que  como  poeta. 
Entre  os  poetas  era  um  pouco  difflcil  outorgar-lhe  o  diploma 


122  HISTORIA  DA  LITTBEATUKA  BRA8ILEISA 

de  mestre;  mudaram  de  táctica  e  lhe  conflaram  a  chefia  da 

jornalística. 

•  Aqui  o  mylho  podia  melhor  sustentar-se  :  nada  mais  vago 

do  que  o  renome  de  um  jornalista;  nada  de  mais  difflcil  veriQ- 

saçáo.  O  jornal  é  lido  ás  pressats. 

Mais  tarde  é  attirado  a  um  lado,  a  um  canto  e  ninguém  mais 
pega  n^elle.  Os  de  annos  atrazados  são  desdruidos  pelos  ven- 
dilhões para  embrulhos.  Escapam  umas  cinco  ou  seis  collec- 
ções,  muitas  vezes  incompletas,  que  vâo  dormir  nas  biblio- 
thecas  o  pesado  somno  das  cousas  mysteriosas.  Ninguém 
mais  os  vae  ler. 

Ahi  é  fácil  crear  lendas  e  levantar  pedestaes. 

Melteram  o  senador  Octaviano  n'este  nimbo  trevoso  e  de^ 
ram-lhe  nomeada  de  semi-deus. 

Todavia,  a  critica  séria  não  poude  ainda  descobrir  quaes  as 
notáveis  e  fecundas  ideias  propagadas  por  Francisco  Octa- 
viano; quaes  os  principies  quo  elle  fez  triumphar. 

E'  este  o  signal  inilludivel  do  jornalista  de  talento  :  fazer 
triumphar  doutrinas  e  opiniões. 

Percorre-se  a  historia  poUtica  e  social  do  Brasil  contempo- 
râneo ;  veem-se  os  iniciadores  de  idéas,  os  portadores  de  no- 
vas doutrinas,  os  combatentes  de  todas  as  opiniões. 

Não  se  encontra  o  senador  Octaviano...  A  sua  fama  como 
jornalista  foi  talvez  mais  infundada  do  que  sua  nomeada  de 
grande  poeta. 

No  Brasil  são  muito  fáceis  estas  bulhentas  e  rápidas  famas 
litterarias  conferidas  a  políticos  poderosos  por  seus  adula- 
dores, mestres  eméritos  no  systema  de  crear  lendas  facil- 
mente aceitas  por  uma  opinião  indiscplinada,  como  a  nossa. 

Francisco  Octaviano,  senador  e  chefe  do  partido  liberal  na 
província  do  Rio  de  Janeire,  foi  da  plêiada  das  notabilidades 
de  convenção. 

Todas  as  qualidades  lhe  foram  attribuidas.  Passou  por 
poeta,  jornalista,  diplomata,  orador,  homem  de  Estado,  tudo 
isto  com  grandeza.  A  historia  tem  bons  motivos  para  discor- 
dar em  grande  parte  de  similhante  pensar. 

O  illustre  senador  foi  apenas  uma  das  mais  nitidas  encar- 
nações do  espirito  indeciso  do  segundo  reinado  no  Brasil. 


'■í 


HI8TOIUA  DA  liITTSKATURA  BRABIUUKA  123 

Quando  digo  que  Octaviano  é  uma  nítida  incarnação  do 
espirito  indeciso  do  segundo  reinado,  devo  dar  explicações. 

Não  sou  do  numero  d'aquelles  que  se  deixam  tomar  de  in- 
definidas tristezas  e  entram  a  dizer  mal  de  seu  tempo;  já 
estou  bastante  sceptico  a  cerca  de  taes  esconjures;  são  um 
phenomeno  vulgar  na  historia  e  repetido  constantemente  no 
curso  dos  acontecimentos  humanos. 

Para  mim  o  meu  tempo  em  definitiva  não  é  melhor  nem 
peior  do  que  os  seus  antecessores,  e  a  idade  contemporânea 
não  é  melhor  nem  peior  do  que  as  que  a  antecederam.  Deve- 
se,  porém,  distinguir  o  que  se  refere  á  humanidade  em  geral  do 
que  diz  respeito  particularmente  á  nação  brasileira.  Se  a  huma- 
nidade no  seu  todo  não  retrograda,  nem  estaciona,  as  nações 
têm  épocas  de  parada,  e  épocas  de  grandes  crises  e  pertur- 
bações. 

O  segundo  reinado  entre  nós,  no  seu  final  especialmente, 
foi  uma  d'essas  épocas  de  estacionamento  e  crise.  O  Brasil 
no  XIX  século  realisou  notáveis  avanços. 

Os  reinados  de  João  6.®  e  Pedro  1.^  a  Regência  e  o  segundo 
reinado  nos  seus  primeiros  vinte  e  cinco  annos  foram  épocas 
de  forte  evolução. 

O  longo  periodo  do  governo  de  Pedro  2.^  em  sua  primeira 
phase,  foi  tempo  de  progresso;  não  contrariou  as  tendências 
das  épocas  anteriores  e  deixou  avançar  a  evolução  normal  da 
vida  politica  e  social  do  paiz. 

Nos  dois  ulUmos  decennios  o  gérmen  máo  do  systema,  o 
micróbio  politico,  que  jaz  no  fundo  de  todas  as  organisaçOes 
sociaes,  veio  á  tona  e  operou  com  intensidade,  collocando  o 
paiz  na  posição  indecisa  e  vacillante  de  quem  pára  cansado 
para  tomar  fôlego... 

Volvamos  a  Octaviano  Rosa  e  resumamos. 

Como  poeta,  não  foi  um  espirito  activo;  pouco  produziu  e 
jamais  alcançou  a  grande  poesia  nem  pela  forma,  nem  pela 
profundeza  do  pensamento. 

No  jornalismo  floresceu  na  época  de  transição  entre  Justi- 
niano de  Rocha  e  Quintino  Bocayuva,  isto  é,  symbolisa  uma 
semi-decadencia.  Foi  um  escriptor  amsmeirado,  sem  grande 


124  HISTORIA  DA  LITTEBATITRA  BBASILBIBA 

vigor  de  ideias.  Não  tinha  calor,  não  tinha  vida;  era  fluente, 
mas  de  uma  fluência  mortiça  e  doentia. 

Só  produziu  rápidos  fragmentos,  por  ser  pouca  apto  para 
tomar  uma  ideia,  uma  doutrina  e  desenvolvel-as  em  todas 
as  suas  faces.  Sua  phrase  náo  tinha  colorido,  nem  linha 
nervo. 

João  Cardoso  de  Menezes  e  Souza,  darão  db  Paranapia- 
CABA  (1827...)  E'  também  um  mytho  litterario  este,  ao  gosto  e 
pelo  geito  do  Brasil. 

A  mythologia  litteraria  entre  nós  segue  andar  inverso  a 
toda  mythologia  em  geral. 

Esta  foi  sempre  uma  representação  do  pensamento  primi- 
tivo, indeialisação  do  passado  obscuro  e\  longiquo.  Aquli  a 
cousa  é  diversa;  os  heróes  divinisados  são  sempre  recentes 
e  a  canonisação  dura  emqueuito  o  individuo  existe  ahi  em 
carne  e  osso  e  pode  prestar  algum  favor...  Morto  o  ho- 
mem, desapparecido  o  semi-deus,  esvae-se  a  lenda  e  lá  flea 
um  logar  vazio  no  aJtar  dos  crentes  fervorosos  e...  interes- 
sados. 

Qual  o  brasileiro  notável,  fallecido  a  distancia  de  mais  de 
dez  ou  vinte  annos,  que  seja  o  objecto  de  uma  veneração 
especial  da  parle  de  nós  outros,  povo  superficial  e  prodigio- 
samente ingrato  ? 

Que  espécie  de  gloria  reservamos  nós  para  Gregório  de  Mal 
tos,  Cláudio,  Alvarenga,  Basílio,  Gonzaga,  Andrada  e  outros 
d'essa  estatura  ? 

Quem  ahi  guarda  e  zela  a  memoria  de  Magalhães,  de  Ma- 
cedo, de  Varnhagen,  de  Gonçalves  Dias,  de  Alencar,  de  João 
Lisboa  e  outros  ainda  hontem  insensados  ? 

Onde  estão  os  crentes,  onde  param  elles? 

E'  que  o  mérito  litterario,  scienUfico,  politico,  todo  e  qual 
quer  mérito  não  é  aqui  a  outhorga  de  uma  opinião  lúcida  e 
disciplinada,  não  é  uma  palma  offerecida  pela  critica  e  pela 
justiça.  E'  um  negocio  de  camarilla,  de  claque,  de  conveniên- 
cias e  sympathias  de  apaniguados.  A  nação  em  geral  não 
toma  parte  n'estas  cousas;  estão  fora  de  sua  alçada  entre  nós. 

Só  a  vivos,  disse  eu,  é  concedida  a  canonisação  nas  letras ; 


HI8T0BIA  DA  LimOLATUSA  BBASILBIBA  125 

mas  não  é  cousa  que  vá  bater  á  porta  dos  mais  meritórios.  O 
processo  é  especialissimo,  tem  manhas  occultas,  que  requerem 
estudo  especial.  Este  assumpto  constituo  um  interessante 
capitulo  do  psychologia  nacional,  que  não  pôde  ser  agora 
esplanado. 

Basta-me  dizer,  por  emquanto,  que  a  fama,  o  ruido  em 
torno  de  um  nome  no  Brasil  é  sempre  uma  occupação  e  em- 
preza  de  alguns  grupos  e  em  certos  e  determinados  casos  a 
politica  não  é  estranha  ao  negocio. 

Uma  cousa  posso  também  desde  já  avançar  e  é  esta  :  o  me- 
recimento positivo,  obtido  por  trabalhos  sérios  e  de  difflcil 
apreciação,  especialmente  na  esphera  scientiflca,  esse  nunca 
foi  reconhecido  e  proclamado  pelos  brasileiros,  em  se  tra- 
tando de  patrícios  seus.  Sempre,  pelo  contrario,  é  constante- 
mente negado  quasi  a  ferro  e  fogo,  se  preciso  fôr. 

Todos  os  tropeços  imagináveis,  todos  os  obstáculos  e  óbices 
são  inventados;  não  ha  injuria,  não  ha  calumnia,  que  não  saia 
da  immensa  forja  da  maledicência.  E'  um  horror  de  fazer  en- 
louquecer. E'  seanpre  necessário  que  do  estrangeiro  nos  man- 
dem dizer  : «  'Não  sejais  estúpidos  :  vosso  patrício  tem  razão  I  a 
Então,  sim  ;  todos  curvam  a  cabeça  e  abrem  as  boccas,  sub- 
missos ao  mando  da  Europa  e  espantados  da  existência 
ffaquelle  monstro  cá  n'esta  terra  de  macacos  e  papagaios!... 

Felizes  aquelles  que  logo  em  vida  tiveram  o  bom  quinhão 
tfestas  lutas  brasileiras.  Paranapiacaba  é  d'este  numero.  Para 
que  perturbal-o  em  seus  idyllios  de  gloria  ?  Elle  é  querido,  é 
proclamado  grande  homem  por  um  grupo,  e  é  de  boa  poli- 
dez deixal-o  em  suas  illusões... 

Deram-lhe  o  titulo  de  conselho  e  os  brazões  de  barão  por 
stus  serviços  ás  letras.,. 

Limitar-me-hei  a  enumerar  esses  serviços. 

E  ílcará  feita  a  critica  e  tirado  o  retrato  do  illustre  titular. 

O  conselheiro  João  Cardoso  é  de  1827,  anno  em  que  nasce- 
ram José  Bonifácio  e  Bernardo  Guimarães;  creio  ser  d'esse 
anno  também  João  Silveira  de  Souza. 

O  primeiro  livro  de  João  Cardoso,  a  Harpa  gemedora,  é  de 
1849 ;  desta  mesma  data  são  as  Rosas  e  Goivos  de  José  Bonl- 
íacio  e  as  Minhas  Canções  de  Silveira  de  Souza.  N'esse  tempo 


126  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

figuravam  também  em  S.  Paula  Aureliaho  Lessa  e  Alvares  de 
Azevedo. 

Todos  elles  vâo  formar  a  phase  especial  do  romantismo  bra- 
sileiro presidida  por  este  ultimo. 

O  barão  de  Paranapiacaba  figura  na  phase  presidida  por 
Magalhães,  por  haver  afflnidades  entre  elles. 

Ao  passo  que  os  seus  coevos  ©  collegas  se  enlr^aram 
resolutamente  ao  romantismo  a  até  ao  ultra-romantismo,  o 
futuro  barão  teve  sempre  veleidades  clássicas  ;  é  hoje  ainda,  e 
sempre  foi,  um  espirito  tardigrado.  Ainda  hoje  vive  no  tempo 
de  Garção  e  Filinto,  ainda  hoje  tem  o  cheiro  da  Arcádia  uli- 
syponense.,. 

Tem-se  manifestado  como  poeta  e  como  publicista.  N'esta 
ultima  qualidade  só  tem  produzido  trabalhos  de  encom- 
menda  do  governo,  em  a  sua  qualidade  de  empregado 
publico.  O  barão  fod  duzante  anno©  director  de  uma  das 
secções  do  Thezouro  Nacional.  Entre  os  trabalhos  de  tal 
género,  e  que  ouso  considerar  os  melhores  devidos  á  sua 
penna,  figura  um  sobre  a  colonísação  estrangeira  n  Brasil 
e  outro  sobre  a  descriminação  de  impostos  geraes,  provin- 
ciaes  e  municipaes  entre  nós. 

Adiante  direi  alguma  cousa  de  taes  escriptos.  Por  agora 
ver-se-ha  o  poeta. 

O  barão  de  Paranapiacaba  não  é,  nem  foi  jamais,  ura  tem- 
peramento litterario  e  menos  ainda  poético. 

Os  seus  livros  em  prosa,  disse,  são  devidos  a  incumbências 
do  governo;  estão  bem  longe  de  ser  obras  espontâneas,  filhas 
das  necessidades  fundamentaes  de  um  espirito. 

Os  livros  de  poesia  reduzem-se  a  quatro. 

Dois  são  as  traducções  do  Jocelyn  de  Lamartine  e  das 
Fabulas  de  La  Fontaine. 

Os  dois  outros  são  a  Harpa  gemedora  e  a  Homenagem  a 
Camões.  Este  é  um  pequeno  volume  de  occasião  sem  prés- 
timo quasi  nenhum  e  o  primeiro  é  também  de  diminuto  valoi'. 

Ha  uma  circumstancia  especial,  que  deve  ser  notada  para 
mostrar  como  a  litteratura  é  uma  superfetação  na  índole  do 
nosso  titular. 


HISTOEIÀ  DA  LITTEKATUItA  BBASILMBA  127 

Reflro-me  á  interrupção  enorme  que  vai  do  seu  primeiro 
livro  do  poesias  aos  seus  companheiros  recentes. 

Da  Harpa  gemedora,  prosaica  até  no  titulo,  á  traducçâo  do 
Jocelyn  vâo  26  annos;  d*ella  á  Homenagem  a  Camões  vâo  31  ; 
d'ella  á  primeira  edição  das  Fabulas,  34. 

Aquelle  primeiro  e  grande  intervallo  foi  preenchido  por  pe- 
quenos artigos  de  circumstancia  e  leves  poesias  esparsas. 

Entre  estas  figura  A  Serra  de  Paranapvacaba,  fonte  inspi- 
radora do  titulo  de  seu  baronato. 

O  poeta  deu  também  o  nome  a  uma  rua  da  capital  do  im- 
pério americano. . . 

Compare-se  esta  vida,  só  accidenialmente  votada  ás  letras, 
com  a  actividade  de  seu  contemporâneo  —  Gonçalves  Dias. 

Este  falleceu  aos  41  annos  de  sua  idade,  tendo  apenas  20  de 
actividade  litteraria  (1843-1863). 

ífesie  curto  intervallo  deixou  pegadas  indeléveis  na  poesia, 
no  theatro,  na  critica  da  historia  e  na  ethnographía  d'este 
paiz.  Um  quadro  synoptico  de  sua  vida  vem  proval-o  irrecu- 
savelmente. Eis  os  seus  livros  : 

Em  1843  —  PatkuU,  em  1844  —  Beatriz  de  Cenci,  1846  — 
Primeiros  Cantos,  1847  —  D.  Leonor  de  Mendonça,  1848  — 
Segundos  Cantos,  Os  Tymbiras^  1849  —  Rellexões  sobre  Ber- 
redo,  1850  —  Últimos  Cantos,  Boabdil,  1852  —  O  Brasil  e  a 
Oceania,  1854  —  estudo  sobre  as»  Amazonas,  sobre  o  Desco- 
brimento do  Brasil,  Vocabulário  da  lingtia  geral  usada  no  rio 
Amazonas,  1857  —  edição  geral  e  augmentadia  de  todos  os 
Cantos^  1858  —  Uiccionario  da  lingua  tupy,  1860  —  Relatório 
da  viagem  de  exploração  ao  Norte  e  as  ultimas  composições 
poéticas. 

E'  este  o  elencho  das  publicações  de  Gonçalves  Dias,  pelas 
datas,  deixando  de  parte  grande  porção  de  artigos  pelos  jor- 
naes  e  revistas. 

Ninguém  foi  mais  sinceramente  um  homem  de  letras  n'esla 
terra  do  que  esse  pobre  mestiço,  obscuro  e  desdenhado,  feliz- 
mente pouco  tempo,  porque  logo  Alexandre  Herculano  nos 
mandou  dizer  —  que  elle  tinha  talento,  mais  talento  do  que 
muitos  dos  nomes  já  feitos  na  litteratura  dos  dois  paizes... 

O  barão  de  Paranapiacaba  até  a  morte  de  Gonçalves  Dias 


128  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

era  quasi  obscuro.  Sua  grande  nemeada  é  uma  creação  dos 
conservadores  de  1868  em  diante. 

Tem  trabalhos  de  poeta  e  de  publicista,  adiantei  eu  ;  na  poe- 
sia tem  producções  originaes  e  traduzidas.  As  originaes  po- 
dem soffrer  a  divisão  em  três  grupos  :  a  Harpa  gemedora^ 
symbolisando  a  primeira  maneira  do  poeta,  peças  soltas,  das- 
quaes  é  a  mais  notável  a  já  referida  Serra  de  Paranapiacaba^ 
individualisando  a  segunda  maneira  do  cantor  paulista, 
maneira  que  vem  finalmente  caracterisar-se  na  Camoneana 
brasileira  (i). 

Vejamos  tudo  isto  methodicamemte.  A  Hai^a  gemedora  é 
um  producto  enfezado  ;  são  poesias  que  nada  exprimem  nem 
do  que  se  pensou  nem  do  que  se  sentiu  n'este  paiz  em  seu 
tempo. 

Póde-se  bem  ajuizal-o,  lendo  a  Imprecação  do  indio,  peça  que 
o  illustre  barão  achou  digna  de  figurar  na  grande  festa  litte- 
raria  celebrada  em  1883  no  Rio  de  Janeiro  em  honra  ao  Dr,  Vi- 
cente Quesada,  ministro  argentino. 

E'  uma  longa  poesia  em  versos  brancos  trotados  em  monó- 
tono diapasão,  referindo  as  queixas  de  um  caboclo  a  Tupá^ 
por  haver  sido  conquistada  sua  terra...  A  these  já  n'aqu6lle 
tempo  (1849)  era  gasta  e  toleirona.  Ha  evidente  intenção  de 
imitar  Gonçalves  Dias,  cujos  Primeiros  Cantos,  como  já  disse, 
corriam  mundo  desde  1846. 

A  peça  tem  172  vesos  taludos ;  ouçam-se  apenas  os  pri- 
meiros : 

i<  Tupá,  Tupá,  porque  mudaste  em  sangue 
A  crystalina  Ijrmpha  dos  regatos? 
Porque  prostraste  com  tufões  medonhos 
Os  troncos  gigantescos  das  palmeiras, 
A  cuja  sombra,  em  leitos  de  boninas. 
Dormíamos  em  paz  tranquillo  somno? 
Porque  já  náo  branquôa,  alem,  ha  serra 
O  itutinga  nas  pedras  reboando, 
E  não  seméa  a  viração  da  tarde 
Nuvens  de  fiôres  sobre  a  verde  grcmama? 

(1)  O  Conselheiro  João  Cardoso  é  filho  de  Santos  em  S.  Paulo. 


HIBTOKIA  DA  LITTBBATITBA  BBA8ILIIRA  129 

Em  vez  do  grato  aroma  das  mangueiras, 
Que  nos  traziam  zephiros  nas  azas, 
Mephitico  odor  de  sangue  infecto. 
Em  vez  dos  hymnos  do  plumoso  bando. 
Que  em  doce  accorde  os  echos  despertavam, 
O  som  doestas  algemas  que  rocheam 
Pulsos  dos  alhos  da  floresta  virgem.  » 

Compare-se  esta  prosaica  rima  de  versos  soltos  com  a  De- 
precação  de  Gonçalves  Dias,  antiga  poesia  publicada  nos  Prir 
meiros  cantos  sobre  a  mesma  these  : 

c(  Tup€Ln,  ó  Deus  grandel  cobriste  o  teu  rosto 
Com  denso  velamen  de  pennas  gentis  ; 
E  jazem  teus  filhos  clamando  vingança 
Dos  bens  que  lhes  désjte  da  perda  infeliz!  n 

e  veja-se  a  distancia.  Já  nem  se  compare  ás  posteriores  poesias 
americanas  do  poeta  maranhense  publicadas  nos  Ultinios 
Cantos;  porque  seria  injustiça,  sabendo-se  que  a  /mpre- 
cação  do  índio  é  da  primeira  mocidade  do  nobre  barão. 

Não  é  só  n'esse  género  exterior  de  poesias  americanas  que 
Paranapiacaba  foi  um  poeta  de  terceira  ordem.  Na  poesia  pes- 
soal é  ainda  inferior.  Sabe-se  que  o  romantismo  n'6sse  género 
fez  verdadeiras  maravilhas.  Sua  acção  no  theatro  foi  notável, 
no  romance  immensa,  na  poesia  social  e  philosophica  dis- 
tincta ;  mas  na  poesia  subjectiva,  pessoal,  intima,  no  lyrismo 
individualista  foi  quasi  inexcedivel.  Isto  em  todas  as  littera- 
turas  da  Europa  e  da  America.  E  essa  enorme  corrente 
de  poesia  pessoal  e  subjectiva  vai  ser  no  futuro  uma  das 
grandes  fontes  por  onde  se  ha-de  reconstruir  a  psychologia 
do  século  XDC 

De  certo  tempo  a  esta  parte  começou-se  a  desdenhar  da  poe- 
sia pessoal  em  prol  de  uma  poesia  mais  geral.  O  argumento 
principal  a  favor  desta  é  o  seguinte  :  «  Que  nos  Importam  a 
nós  a  idéas  e  os  sentimentos  de  cada  um,  que  temos  nós  com 
as  alegrias  e  magoas  alheias  ?  Dêm-nos  alguma  cousa  que  se 
refira  e  interesse  a  todos,  uma  poesia  geral  para  toda  a  socie- 
dade. » 

Ouzo  dizer  que  este  ai^mento  é  inepto.  Primeiramente, 

BIRORU  n  9 


130  HIBTOBIA  DA  LITTBEÀTURA  BRABILBUU 

toda  e  qualquer  meuiifesiação  da  psychologia  dos  indivíduos, 
maxime  dos  grandes  poetas,  nos  deve  interessar  a  todos  como 
documentos  authenticos  de  humanos  caracteres,  como  minia- 
turas em  que  se  vai  retratar  a  vida  inteira  de  uma  época. 

Aqui  o  que  parece  particular  é  ao  contrario  verdadeiramente 
geral.  Depois,  não  é  só  isto  :  as  producções  que  se  dizem 
de  caracter  social,  universal,  em  essência  se  reduzem  a  modos 
de  ver  e  apreciar  particulares,  individuaes  d©  um  dado  autor 
sobre  a  vida  collectiva  de  um  dado  período  histórico. 

Aqui  o  que  parece  geral  não  passa  veramente  de  aprecia- 
ções particulares,  individualissimas.  No  fundo  cahe-se  na 
mesma  cousa. 

A  poesia  pessoal,  portanto,  ainda  e  sempre  teri  um  gran- 
díssimo valor,  se  uma  critica  impertinente  níLo  a  matar  defl- 
nitivamente. 

Pois  |}em,  n*este  género,  que  se  me  antolha  a  pedra  de  toque 
do  talento  dos  poetas  românticos,  o  Barão  de  Paranapiacaba 
foi  demasiado  pobre. 

Pode  sabel-o  com  certeza  quem  lêr,  por  enemplo,  as  Sau- 
dades da  Infância.  O  poeta  reporta-se  á  quadra  da  meninice, 
procura  em  imagem  os  sítios  onde  brincara,  punge-lhe  sau- 
dosa a  lembrança  de  sua  mãi  já  fallecida.  Os  sentimentos  sfto 
puros;  os  versos  é  que  não  são  lá  mui  grande  cousa. 

Alli  16m-se  phrases  assim  : 

<c  Agora  o  que  resta 
Ao  pobre  cantor 
Sem  gozos  na  terra, 
Immerso  na  4âr? 

Se  a  aurora  desdobra 
Seu  manto  de  flores, 
Se  trinam  seus  hymnos 
Do  bosque  os  cantores, 

•  8e  ruge  a  tormenta 
Da  noite  no  horror. 
Se  fere  os  seus  olhos 
Do  raio  o  fulgor, 


HISTORIA  BA  LITTXBATUBA  BBAIILBIRA  131 

8e  o  pranto  roxeia 
Seus  túrgidos  olhos, 
Se  o  peito  lhe  pungem 
Da  dôr  06  abrolhos, 


Em.  balde  procura 
Maternas  caricias, 
Em  v&o ;  que  fugiram 
Da  infância  as  delicieis. 

Em  vei  da  barmonia 
Da  V02  materbal, 
Escuta  somente 
Um  som  sepulchral. 

Ohl  que  sina  acerba  e  crua, 
Céos!  que  tão  agro  existir! 
Asrael,  vem  com  teu  sopro 
Esta  lembrança  extinguir.  » 


Bem  se  vé,  que  isto  é  fraco. 

Se  quízerem,  comparem-lha  as  duas  poesias  da  já  citado  O. 
Dias  sobre  assumpto  similhante  Recordação^  Recordação  e 
Desejo.  São  ambas  da  primeira  mocidade  do  poeta  marap 
nhense  e  appareceram  nos  Primeiros  Cantos, 

Se  a  Harpa  gemedora  nâ,o  é  bem  garantidora  do  talento  poe- 
lico  do  nobre  barJo,  prQcurem-se  seus  grande^  titi^los  por 
outra  parte.  Entre  a  Harpa  e  a  Homenagem  a  Camões  elle 
espalhou  poesias  por  vários  jomaes  e  periódicos. 

A  Serra  de  Paranapiaçaba  é  uma  d'essas  e  á  chegc^da  a  pfí- 
casjo  de  ser  lida.  E'  uma  poesia  emphatica  escrípta  em  deci- 
mas octosyllabas  e  quadras  duodecasyllabas  qua^i  todas  cr- 
iadas sob  o  pixito  de  vistq.  do  rythmo. 

Só  toco  n'esta  assumpto,  porque  o  bar&o  de  Paranapiaeaba 
é  ingenuamente  apontado  como  impeccavel  na  forma  e  elle 
me^o  labora  Q'essa  illusão. 

Ainda  não  sabe  que  a  poesia,  no  tocante  á  metreflcação,  tem 
de  aUender  a  três  cousas  perfeitamente  distinctas  e  indispen- 


t 


ÍS2  HI8T0BIA  DA  LITTERATUSA  BBA8ILEIBA 

sáveis  para  a  belleza  musical  e  rythmica  da  forma,  e  vem  a 
ser  :  1.*  o  metro  em  particular,  isto  é,  o  verso  em  si ;  este  deve 
ser  correcto,  obedecendo  a  um  numero  determinado  de  syl- 
labas  que  deverão  ligar-se  naturalmente  e  ser  longas  ou 
breves  em  certos  e  determinados  legares ;  2.*  a  rima  que  de- 
verá ser  espontânea,  fácil  e  rica ;  3.*  a  estrophação,  isto  é,  a 
disposição  dos  versos  por  dísticos,  tercetos,  quadras,  quinti- 
lhas, sextilhas,  oitavas,  decimas,  etc.,  de  modo  que  as  rimas 
obedeçam  a  um  determinado  concerto  de  graves  e  agudos^ 
conditio  sine  qua  non  da  melodia  poética. 

E'  a  conhecida  questão  das  rimas  masculinas  e  femininas, 
segundo  a  expressão  da  métrica  franceza,  verdadeiro  modelo 
no  género. 

Na  lingua  portugueza,  por  ser  pobre  de  rimas  masculinas^ 
não  se  exige  esse  rigorismo  nos  dísticos,  nos  tercetos  e  até 
nas  quadras,  excepto  se  estas  são  em  versos  demasiado  lon- 
gos, a  saber,  de  12,  13  e  14  syllabas.  Da  quintilha  em  diante, 
porém,  o  rigor  é  indispensável,  sob '  pena  de  não  se  fazerem 
estrophes  e  sim  verdadeiros  amontoados  de  verso  sem  arte  e 
sem  harmonia. 

Ora,  é  justamente  o  caso  de  nosso  barão  nas  quadras  e  deci- 
mas da  Serra  de  Paranapiacaba. 

Em  toda  a  poesia  existem  apenas  duas  quadras  que  sahiram 
por  acaso  correctas  sob  o  ponto  de  vista  da  estrophaçâo.  As 
duas  primeiras  condições  da  métrica  são  obeservadas  mais  ou 
menos  geralmente  pelo  poeta ;  a  ultima  elle  desconhece  quasi 
sempre. 

Se  toco  em  tal  ponto,  repito,  é  por  ser  este  escriptor  por 
toda  a  critica  fluminense,  que  aliás  liga  enormíssima  impor- 
tância ao  assumpto,  apontado  como  correctíssimo  na  fiorma. 

Respondo-lhe  que  não  ha  tal ;  o  barão  tem  muita  poesia  in- 
correcta e  a  celebre  Serra  é  uma  delias.  A  poesia  é  evidente- 
mente imitada  do  Gigante  de  Pedra  de  Gonçalves  Dias.  O 
metro  é  o  mesmo  em  ambas  e  o  tom  o  mesmíssimo ;  ambas 
começam  apostrophando  o  gigante,  que  dorme. 

No  tocante  ao  metro,  apenas  Gonçalves  Dias  não  se  limitou 
ás  quadras  duodecasyllabas  e  ás  decimas  octosyllabaji;  na  di- 


HIBTOEIA  DA  LITTSBATUEA  BRABILUBA  133 

visáo  IV  de  sua  famosa  poesia  introduzio  qualro  «slrophes  de 
doze  versos  seplesyllabos.  A  producçâo  de  Gonçalves  Dias  é 
correctíssima  em  todos  os  géneros  de  estrophes  em  que  é  es- 
cripta,  quadras,  decimas  e  duodécimas.  A  do  barão  é  cem 
vezes  mais  fraca  em  estylo  e  inspiração  e  só  contém  duas  qua- 
dras certas  occasionalmente. 

Aqui  flca  inserida  a  decantada  poesia,  levando  grifadas  as 
terminações  dos  versos  errados  no  tocante  ás  rimas  mascu- 
inaes  e  femininas  : 

((  Dorme,  repousa  em  teu  somno, 
Da  força  assombroso  emblema^ 
Que  tens  o  oceano  por  throno 
E  as  nuvens  por  diadema! 
Immovel,  silenciosa, 
Ergues  a  fronte  orgulhosa 
Ao  sólio  da  tempestade ; 
E  os  prelúdios  da  tormenta 
Vais  ouvir,  de  medo  isenta. 
Do  espaço  na  immensidade. 

Salve!  soberbo  gigante, 

Altivo  Titão  do  mar. 

Que  a  teus  pés  triste  descante 

Ouves  a  vaga  entoar! 

E  em  teu  manto  de  esmeraldas 

Envolves  as  vastas  faldas 

E  as  empinadas  cimeiras ; 

E  a  brisa  te  agita  os  cachos, 

E  os  verdejantes  penachos 

Da  coroa  das  palmeirasl 

Teus  troncos  gravados  do  sello  dos  tempos 
Agitam  aos  ventos  as  soltas  madeixas^ 
Quaes  harpas  eólias,  susurram  nos  ares 
Canções  magoadas,  sentidas  endeixas. 

E*s  berço  do  raio!  Sublime  harmdnia 
Entoa  em  teu  seio  o  trom  dos  trovões  ; 
E  os  échos  ao  longe  repetem  em  coro 
A  orchestra  tremenda  de  roucos  tufões. 


134  HI8TOKIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

Do  raio  ao  ribombo  horrendo 

£  ao  som  do  trovão  que  estruge^ 

De  pavor  estremecendo 

A  feroz  pemthera  ruge. 

Une-se  â  orchestra  assombrosa  — 

Uma  nota  sonorosa  — 

Que  do  fundo  abysmo  sae... 

E*  o  som  da  cataracta, 

Que  em  alvos  flocos  de  prata 

N*um  leito  de  pedras  cae. 

Que  magestade  sublimei 
Que  pomposa  poesia! 
JehovcQi  seu  dedo  imprime 
N'este  quadro  de  magia. 
Esta  cascata  da  serra 
Parece  um  hymno  que  a  terra 
Espontânea  aos  céos  eleva. 
Então  nossa  alma  se  humilha, 
E  ao  ver  esta  maravilha^ 
Na  gloria  de  Deos  se  enleva, 

Occultas  nas  veias,  oh  serra  fragosa, 
De  ouro  e  de  gemmas  thesouro  intiniio, 
Retalham  teu  solo  torrentes  sem  conta, 
Que  nascem  das  umas  de  rijo  granito. 

Povoam-te  as  selvas  e  negras  gargantas 
Innumeras  feras  e  eYiormes  reptis  ; 
Áhi  cantam  aves  que  as  cores  do  Íris 
Desdobram  nas  azas  de  vário  matiz. 

Horríveis  despenhadeiros. 
Profundos,  vertiginosos^ 
São  os  degraus  altaneiros 
De  teus  tergos  magestosos. 
A's  vezes  de  horrendo  tombo 
Se  escuta  o  surdo  ribombo 
Que  ao  longe  resôa  a  espaços... 
E*  despegado  rochedo 
Que  no  errigiado  fraguedo 
Se  vai  fazendo  em  pedaços. 


HISTOBIA  DA  LITTB&ATUllA  BIUSIUUBA  135 

Além,  que  plaino  azulado 
Se  prende  no  azul  dos  céus  I 
E*  o  mar  que  encapellado 
Ergue  os  moveis  escarcéosi 
Então  a  vista  desmaia 
No  espado  que  além  se  espraia 
A  perder-se  no  infinito  : 
E  esse  immenso  panorama 
Do  Eterno  o  nome  proclama 
Na  face  da  terra  escnpio», 

Desenham-se  às  vezes  arfando  nas  ondas 
As  vellas  de  um  barco  na  brisa  er^unadas; 
Qual  alva  gsdvota  que  a  ílôr  do  Oceano 
Eriçando  desflora  com  as  azas  nevadas. 

t>os  topes  aéreos,  estreitos  e  golphos 
Semelham  regatos  talhando  as  campinas ; 
Quaes  pontos  esparsos  desdobram-se  aos  olhoâ 
As  casas  e  torres,  ilhéos  e  collinas. 

De  teu  pico  o  sol  dourado 
Se  balança  a  fulgurar ; 
E  o  seu  clarão  desmaiado 
Verte  a  lua  sobre  o  mar. 
Outro  céu  de  anil  scintilla 
Na  superfície  tranquilla 
Doesse  espelho  iremulante  : 
E  em  baixo  a  vaga  chorosa 
Beija  a  areia  preguiçosa 
Morrendo  em  flor  alvejante. 

Quem  sabe  se  o  cataclysmo 
Que  ptfniu  a  humanidade^ 
N&o  te  fez  surgir  do  abysmo 
Das  ondas  na  immensidade? 
Quem  sabe,  fragosa  serra, 
Se  és  coetânea  da  terra, 
E  do  berço  oriental? 
Quem  sabe  de  quanta  vida 
Tu  foste  a  extrema  guarida 
No  diluvio  universal? 


136  HIBTOBIA  DA  LITTEBATUSA  BRABILBIBA 

Plantou-te  nos  mares  o  braço  divino, 
Ingente  montanha,  barreira  das  ctndas^ 
Quem  dera.  perder-me  comtigo  nas  nuvens, 
Também  devassando  mysterios  que  sondas! 

Prodígios  que  encerras,  são  cordas  sonoras 
D'uma  harpa  sublime  de  maga  /larmoVita, 
Que  os  hymnos  que  exhala,  perennes  descantam 
Á  gloria  do  Eterno  de  noite  e  de  dia.  n 

Sâ,o  deseseis  estrophes  emphaticas  e  erradas  todas,  excepto 
duas.  O  Gigante  de  Pedra  tem  vinte  e  duas  estancias  todas 
correctissimas,  excepto  uma  em  que  o  auctor  dos  Tymbiras 
deixou  razoavelmente  de  ser  demasiado  rigoroso.  Convido  o 
leitor  a  ir  veriflcal-o  nos  Últimos  Cantos  do  grande  poeta,  dis- 
pensando-me  de  citar. 

Entre  as  producções,  que  se  dizem  originaes,  do  barão  de 
Paranapiacaba  tem  merecido  especiaes  e  fervorosos  gabos  a 
decantada  Camoneana  Brasileira  ou  Homenagem  a  Camões 
no  tricentenário  de  sua  morte. 

Esta  Camoneana  Brasileira,  desparatada  coisa  similhante 
a  uma  Homereana  turca,  ou  a  uma  Shakespeareana  mongo- 
Uca,  mereceu  ser  o  primeiro  livro  da  serie  de  uma  nova  BiblUh 
theca  Escolar,  sendo  adoptada  nas  aulas  primarias,  onde  deve 
substituir  a  leitura  dos-  Luziadas. 

Creio  nâo  ser  mister  juntar  mais  nada  para  mostrar  qual  a 
desgraçada  intuição  reinante  sobre  cousas  litterarias  na  mente 
do  barão  de  Paranapiacaba  e  d'aquelles  que  o  tem  protegido... 

Ora  bem;  o  livro  foi  feito  para  emendar,  para  polir,  para 
variar  e  modemisar  o  poema  de  Camões... 

«  Resumi,  diz  o  novo  polidor  no  seu  Prologo,  resumi  os  tre- 
chos mais  bellos  do  poema,  dando-lhes  feição  moderna  e  va- 
riada metrilicação.  » 

Que  horror!  Um  espirito  cançado  e  retrogrado,  querendo 
modemisar  um  monumento  genial,  novo,  fresco,  matinal^ 
como  sb  fora  hontem  escripto,  uma  creação  que  não  tem 
data ;  porque  é  contemporânea  de  todas  as  phazes  da  cul- 
tura humana,  como  os  Luziadas  l  Custa  em  verdade  conter  a 
indignação.  E  ha  e  houve  simples  que  applaudiram  aquillo!... 

Modemisar  CamõesI  Em  todo  o  percurso  da  historia  da  lit- 


r- 


HISTORIA  DA  L1TTBKAT17BA  BEABILSISA  137 

teratura  brasileira  bem  vê  o  leitor  ser  a  maior  bernardice  em 
que  tem  tropeçado...  E  não  íoi  um  homem  do  tempo  da  coló- 
nia, nem  um  pobre  provinciano  que  a  realisou... 

O  livro  é  acompanhado  de  notas  em  que  o  autor,  repetindo 
desgeitosamente  elementares  noticias  mythologicas  lidas  por 
todjBi  a  gente  em  Decharme,  Max-MúUer,  Bréal,  Eugénio  e  Emí- 
lio Burnouf,  Des  Essarts,  Renan,  Gubematis  e  vinte  outros 
elementarissimos  mythologos,  suppõe  santamente  que  elle 
está  a  lançar  no  Brasil  as  bases  da  mythologia  comparada  I 

Insiste  demasiado  nas  taes  notas  sobre  esta  nova  empresa 
e  volta  á  carga  em  as  notas  da  traducção  das  Fabulas  de  La 
Pontaine  de  que  direi  em  breve. 

Esta  traducção  faz  também  parte  da  Bibliotheca  Esco- 
lar,  está  adoptada  e  tem  custado  contos  de  réis  ao  governo  para 
ler  a  gloria  de  impingir  aos  estudantes  um  La  Pontaine  moder- 
nisado  a  par  de  um  Camões  também  modemisado.  Nem  se 
pense  que  o  baráo  nutre  duvidas  sobre  os  melhoramentos 
praticados  em  Camões.  E'  o  caso  que,  alguns  membros  do 
Conselho  de  Instrucção  Publica  acharam  excellentes  as  corre- 
gidelas  passadas  ao6  Luziadas,  estranhando  apenas  a  grande 
sabedoria  das  notas.,. 

O  titular  lhes  respondeu  assim  :  «  Constou-me  que  alguns 
disUnctos  membros  do  Conselho  do:  Instrucção  Publica,  ao 
apreciarem  a  Camoneana  Brasileira,  ha  pouco  adoptada  (sic) 
pelo  Governo  Imperial  para  uso  das  escolats,  entenderam  que 
as  notas  explicativas  dos  assumptos  mythologicos,  contidas 
n'aquelle  opúsculo  estavam  acima  dos  meios  de  comprehen- 
sáo  das  crianças.  Se  esses  cavalheiros  se  referem  á  lingua- 
gem das  alludidas  notas,  observarei  que  essa  é  a  mais  sin- 
geJa  e  corrente  possível,  acompanhando  o  movimento  evolu- 
tvo  do  nosso  bello  idioma  e  evitando  as  transposições,  os  hy- 
perbatons  e  outras  figuras  de  dicção,  que  tomam  difflcil  não 
só  a  intelligencia  do  texto  camoneano,  como  também  a  ele- 
mentar analyse  grammatical  e  lógica  de  certos  períodos.  Para 
os  tenros  cérebros  da  infância  é  quasi  sempre  um  ecúleo  o 
processo  syntactíco  de  algumas  estancias  dos  Luziadas.  Logo 
na  invocação  ha  uma  notável  amostra  de  collocação  inversa  e 
transporta,  estando  no  fim  da  segunda  oitava,  isto  é,  dezeseis 


138  HISTORIA  DA  LITTEKATURA  BBA8ILBIRA 

versos  abaixo  a  oração  principal,  seguida  de  multiplices  e 
complicados  complementos.  Algumas  estancieis  adiante  de- 
para-se  a  celebre  paissagem  :  ' 

—  Mfiu^cTvllha  fatal  de  nossa  idade, 

Dada  ao  mundo  por  Deus,  que  todo  o  mande, 

Para  do  mundo  a  Deus  dar  parte  grande  — . 

trecho  que  offerece  mais  visos  de  amphigouri  do  que  <te 
corrente  pedodo  clássico  »  (1). 

E  assim  vsu  por  diante  n'esta  serie  de  heresias  o  illustre  bar 
râo. 

Parece  que  estamos  a  ouvir  o  padre  José  Agostinho  de  Ma- 
cedo. E  taes  cousas  mandam-se  ensinar  aos  alumnosi  das 
aulas  do  Rio  de  Janeiro.  Que  idB>a  formam  esses  senhores  de 
um  monumento  litterario  ou  artístico,  uma  obra  prima  do 
espirito  humano?  Modernisar  06  Luziadas  é  o  mesmo  que  pas- 
sar um  reboco  de  salão  ou  de  maçapéz  brasileiro  na  face  da 
Notre-Dame  de  Paris^  ou  da  Cathedral  de  Strasburgo^  ou  dar 
uma  pintadéla  de  tauá  ou  tabatinga  nacional  na  Vénus  de 
MUo^  ou  no  Apollo  de  Belvedere. 

Para  bem  apreciar  as  horrorosas  mutilações,  praticadas  nos 
Luziadas^  é  bastante  vèr  como  o  livrinho  fluminense  escanga- 
lhou as  principaes  passagens  do  poema.  Vejam  o  Adamastor^ 
a  Ignez  de  Castro^  a  Ilha  dos  Amores,,,  vejam  e  pasmem.  No- 
tem como,  por  exemplo,  aquelle  sublime  trecho  de  poesia  do 
Adamastor^  aquella  narrativa  dramatisada  e  diaJogada  entre 
o  fero  gigante  e  o  Gama,  trecho  em  que  ambos  falam  em  pri- 
meira pessoa,  apparece  desfigurado,  miseramente  informe... 
Gama  narrava  sua  viagem  ao  rei  Mouro,  e  referiu-lhe  o  caso 
do  Adamastor  : 

«  Porém  já  cinco  soes  eram  passados  ,etc.  » 

K  Oh!  Potestade,  disse,  sublimada,  etc.  » 

(( Não  acabava,  quando  uma  figura,  etc.  » 

«  E  disse  :  Ohl  gente  ousada  mais  que  quantas,  etc.  » 

<f  £  lhe  disse  eu  :  —  Quem  és  tu?  que  este  estupendo,  etc.  » 

(( Eu  sou  aquelle  occulto,  e  grande  Cabo,  etc.  n 

(1)  Fabulas  de  Lafontainc,  vertidas  e  annotadas  pelo  Barão  de  Paranapia- 
caba,  vol.  l.«  pa^.  LXI.  — 


HI8T0BIA  X>A  LITTESATURA  BRASILEIRA  199 

Náo  cahirei  no  desparate  de  transcrever  as  vinte  e  quatro 
estancias  do  episodio  do  Adamastor^  que  parecem,  pela  fres- 
cura da  linguagem,  escriptas  hontem  por  algum  poeta  de 
génio,  para  Comparal-as  ás  quadras  em  alexandrinos  do  nobre 
barão.  O  dialogo  entre  o  Gama  e  o  Gigante  desapparece;  a 
fala  do  Adamastor  muda-se  nUsto  : 

(( O  monstro  futurou  torrentes  de  desgraças, 
Vingança  e  mal,  sem  conto,  aos  luzos  vcdorosos ; 
Predisse  a  quem  passasse  os  términos  vedados 
Naufrágios,  perdições,  castigos  horrorosos...  »  (1). 

Parece  incrivel ;  custa  a  admittir  que  apparecesse  n*este 
tempo  uma  empreza  doestas.  Duvido  que  nos  Estados-Unidos, 
com  todo  o  seu  materialismo,  como  nós  costumamos  tola- 
mente dizer,  houvesse  um  simples  que  se  lembrasse  de  emen- 
dar e  modemisar  Shakespeare.  Se  o  leitor  quer  uma  vez  por 
todas  apreciar  o  género  de  gentilezas  dispensadas  a  Camões 
no  dia  do  centenário  pelo  barão  de  Paranapiacaba,  compare  o 
canto  2."  dos  Luziadas  ao  canto  2."*  da  Camoneana  Brasileira. 
Veja  aquellas  bellas  estrophes  referentes  a  Vénus  quando 
vae  falar  a  Júpiter  : 

fc  E  como  ia  affrontada  do  caminho, 
Tão  formosa  no  gesto  se  mostrava...  etc. 
Os  crespos  fios  d'ouro  se  esparziam 
Pelo  collo,  que  a  neve  escurecia...  etc. 
Cum  delgado  cendal  as  partes  cobre. 
De  quem  vergonha  é  natural  reparo...  etc.  » 

Toda  esta  poesia  do  canto  2.^  mudou-se  n*estas  doze  quadras 
isperas  e  erradas,  onde  ha  treze  quês  e  nenhuma  belleza  : 

Cf  Eis  presto  as  Nereidas,  surgindo  das  furnas, 
Rodeiam  a  frota,  que  oscilla  nas  aguas  ; 
Tritão  que,  soberbo,  levava  Dione, 
Da  ardente  petrina  se  abraza  nas  fraguas. 

(1)  Camoneana  Bra«iietra,  pag.  88. 


140  HIBTOBIA  DA  LITTERATURA  BBABILEl&A 

Encostam  as  nymphas  os  peitos  nas  quilhas, 
Que,  ao  magico  impulso,  da  costa  recuam ; 
A  faina  referve,  restruge  a  celeuma, 
E  os  Mouros  se  arrojam  nas  vagas,  que  estuam. 

Ao  céo,  que  o  salvara,  dá  graças  o  Gama. 
E  invoca  o  soccorro  da  Guarda  Divina ; 
O  supplice  rogo,  que  a  turba  enternece, 
A's  plantas  de  Jove  conduz  Erycineu 

Os  paramos  fende  da  abobada  etherea ; 
Perpassa  de  estrellas  a  esphera  brilhante  ; 
Penetra,  segure^  recessos  do  empyreo, 
E  surge  ante  o  sólio  do  grande  Tonante. 

A  face,  aff rontada  do  afan  do  caminho. 
De  gloria  e  belleza,  serena,  resplende ; 
O  olhar,  em  que  a  força  do  amor  se  concentra. 
Espaços,  estrellas  e  poios  accende. 

Com  fina  escumilha  velando  os  encantos. 
Tal  como  ante  os  olhos  surgira  de  Anchises, 
Os  numes  iiUlamma,  mostrando,  entre  sombras, 
Dos  lyríos  divinos  incertos  matizes. 

Fluctua  áurea  coma,  beijando-lhe  o  coUo ; 
Andando,  estremecem-lhe  os  seios  de  neve  ; 
Desejo  arrojado  se  enlaça  ás  columnas, 
E  sobe  a  thezouros,  que  a  mente  descreve. 

Estala  em  ciúmes  Vulcano  irritado  ; 
O  peito  de  Marte  transborda  delicias  ; 
E'  mais  melindrosa,  que  triste,  Acídalia. 
Do  pae,  que  a  esfremece,  recebe  as  caricias. 

Altera  uma  sombra  de  vaga  tristeza 
O  meigo  sorriso,  que  os  lábios  lhe  inílora ; 
Semelha  seu  rosto,  banhado  de  pranto, 
Cecém,  rociada  do  aljôfar  da  aurora. 

O  pae  do  univeirso,  beijando-a  nos  olhos, 
Ao  peito  a  conchegci,  limpando-lhe  o  pranto ; 
Prediz-lhe  a  grandeza  futura  dos  Luzos 
—  Terror  do  universo,  dos  evos  espanto.  — 


HIBTOBIA  !>▲  LITTBXATirBA  BSABILBIKA  141 

Descreve-lhe  as  quinas,  varrendo  o  oceano, 
Que  ferve,  abrasado  de  fogo  e  metralha ; 
E  como  em  conquistas  na  face  da  terra 
O  luso  domínio  se  firma  e  se  espalha. 

O  filho  de  Maia,  batendo  os  talares, 

A  frota  a  Melinde  dirige,  em  bonança; 

E  manda  por  ordem  de  Jove  supremo, 

Que  tenha  uma  trégua  tão  longa  provança  » (1). 

Compare-se  esta  poesia  palavrosa  e  molle  com  o  brilhante 
e  terso  laconismo  de  Camões  e  ter-se-á  perfeita  ideia  de  como 
foi  resumido  e  modemisado  o  grande  poema  portuguez. 

Os  críticos  allemães  da  escola  romântica  de  Schiegel,  Tieck 
e  Novalis,  no  começo  do  xix  século,  nas  suas  investigações 
sobre  a  poesia  das  nações  européas,  collocáram  os  Luziadas 
muito  acima  da  Jerusalém  Libertada  de  Tasso,  como  mani- 
festação sincera  do  ideial  cavalheiresco  e  christão.  E'  uma 
das  mais  finas  e  delicadas  provas  do  espirto  critico  dos 
allemães  que  eu  conheço.  A  Jerusalém  não  emprega  a  mylho- 
logia,  e  os  Luziadas  a  empregam ;  a  Jerusalém  canta  as 
proesas  dos  cavalleíros  da  idade  media,  e  os  Luziadas  can- 
tam as  façanhas  de  navegadores  modernos ;  a  Jerusalém 
refere-se  a  um  facto  da  historia  do  christíanismo,  da  historia 
da  Igreja,  por  assim  dizer,  e  os  Luziadas  referem-se  a  um 
facto  da  historia  do  commercio  e  da  navegação,  de  um  pe- 
queno povo  d'um  canto  da  Europa  1  E,  todavia,  aquelles  crí- 
ticos deram  a  preferencia  á  obra  de  Camões  sobre  a  de  Tasso, 
como  incarnação  do  espírito  de  nobreza  e  de  ideialismo,  da 
intuição  cavalheiresca  e  chrístã  ! 

Qual  a  rasão  ?  E'  que  no  Tasso  tão  elevados  intuitos  appa- 
recém  no  plano  exterior  do  livro  e  não  se  mostram  n'alma 
do  poeta,  alheio  áquella  ordem  de  sentimentos ;  e  em  Camões, 
jem  esse  haver  sido  o  alvo  de  sua  obra,  aquella  ef florescência 
le  sentir  apparece  sincera  e  espontaneamente ;  porque  tal 
)ra  a  alma  do  poela  portuguez. 
Que  se  vae  concluir  d'isto  ?  E'  que  a  leitura  dos  Luziadas 

(1)  Camoneana  Bniêileira,  p.  27, 


142  HISTORIA  DA  LITTBRATURA  BRASILBIBA 

nâo  é  indispensável  nas  aulas  primarias  somente  como 
auxiliar  para  o  estudo  da  lingua ;  é  antes  e  acima  de  tudo 
um  grandíssimo  estimulante  para  o  caracter,  um  saudável 
tónico  para  a  elevação  moral  da  vontade ;  é  que  a  substituição 
de  um  livro  como  os  Luziadas  por  um  monstrengo  ao  geito 
da  Camoneana  Brasileira  é  um  d'esses  phenomenos  singu- 
lares, só  por  si  sufficientes  para  caracterisarem  uma  época. 

Deixe-se  este  ingrato  assumpto  e  vejam-se  os  outros  ser- 
viços^prestados  pelo  baráo  de  Paranapiacaba  ás  letras  bra- 
sileiras. 

Ainda  no  terreno  da  poesia  se  lhe  deve  a  traducçâo  do 
pequeno  poema  de  Byron  Oscar  (VAlva^  do  Jocelyn  de 
Lamartine  e  das  Fabulas  de  La  Pontaine.  Nem  de  propósito 
o  barilo  poderia  encontrar  três  poetas  de  génios  táo  dissi- 
milhantes  entre  si  e  tão  diversos  do  seu  para  os  traduzir... 

Byron,  isto  é,  a  velha  poesia  saxónica  comprimida  por 
seis  séculos  de  cultura,  irrompendo  de  repente  em  ousada 
rebeldia  contra  hypocrisias  e  convenções ;  Lamartine,  isto  é, 
um  sceptico  eivado  de  doce  ideialismo,  um  espirito  ondu- 
lante, cuja  poesia  é  personalissima  e  inseparável  da  forma 
que  elle  lhe  deu ;  La  Fontaine,  isto  é,  uma  das  mais  nitidas 
incarnações  do  génio  gaulez,  todo  nutrido  de  —  esprit  et 
gloire,  um  homem,  cuja  poesia  leve  e  bregeira  é  ao  mesmo 
tempo  profundamente  verdadeira,  como  manifestação  de^um 
caracter  nacional,  poesia,  cujo  fundo  é  ainda  mais  inseparável 
de  sua  primitiva  forma  do  que  a  de  Jocelyn...  E  foi  a  esta 
gente  que  o  barão  de  Paranapiacaba  tentou  traduzir  I...  Três 
génios  tão  diversos,  tão  independentes,  tão  ousados,  mettidos 
nas  compressas  de  um  espirito  curto,  pesado,  áspero,  dis- 
pondo de  um  vocabulário  parco  e  d'uma  imaginação  ras- 
teira ! 

Em  geral  sou  infenso  a  traducções  de  poetas.  Trasladados 
em  prosa  flcam  mortos ;  vertidos  para  verso,  flcam  sempre 
desfigurados.  Uma  traducção  poética  difficilmente  dará.  o 
desenho  da  obra  traduzida  e  jamais  fornecerá  o  colorido.  As 
melhores  traducções  existentes,  como  a  da  lliada  por  Voss, 
a  do  Faust  por  Marc  Monnier  são  obras  de  terceira  ordem. 


HIBTOBIA  DA  LITTSEÁTUIU  BBASItXIBA  143 

Não  podem  jamais  reproduzir  o  rylhmo,  o  tom,  a  melodia 
do  original. 

O  barão  de  Paranapiacaba  deu,  por  exemplo,  o  sentido,  a 
traducção  das  ideias  do  Jocehjn  e  das  Fabulas ;  mas  a 
poesia  T  Evaporou*se. 

Para  provar  não  se  precisa  ir  muito  l(Hige.  E*  abrir  o  La 
Fontainei,  logo  na  primeira  pagina  e  lér  a  primeira  (abula,  A 
(Agarra  e  a  formiga  : 

«  La  cígale,  ayant  chahté 

Tout  rété, 
Se  troava  fort  dépourvue 
Quand  la  bise  fut  venue  : 
Pas  un  seuI  petit  morceau 
De  mouche  ou  de  vermisseau. 
EUe  alia  crier  íamine 
Chez  la  fourmi,  sa  voisine, 
La  priant  de  lui  prêter 
Quelque  grain  pour  subsister 
Jusqu'à  la  saison  houvelle. 
«  Je  vous  paierai,  lui  dit-elle, 
Avant  Toút,  foi  d^animal, 
Intérôt  et  principal.  » 
La  fourmi  n'est  pas  préteuse  : 
Cest  là  son  moíndre  défaut 

—  Que  faisiez-vous  au  temps  chaud? 
Dit-eUe  à  cette  emprunteuse. 

—  Nuit  et  jour  à  tout  venant 
Je  chantais,  ne  vous  déplaise. 

—  Vous  chantiez,  j'en  suis  fort  aisel 
Eh  bíen,  dánsez  maintenant.  » 

E'  um  pequeno  pedaço  em  vinte  e  dois  versos,  formando 
m  todo  harmonioso,  n'um  estylo  singelo,  n'um  tom  popular 
encantar  a  quem  conhece  bem  a  lingua.  A  pequena  fabula 
^meça  rimando  os  versos  dois  a  dois.  De  repente,  sem 
udar  o  metro,  muda  o  poeta  o  systema  da  rima ;  tudo  sem 
forço,   sem  transição  brusca. 

Nole-se  aquella  maneira  popular  que  se  mostra  nas  expres- 
es  —  quarui  la  bise  fiit  venue,  elle  alia  crier  famine,  avant 


144  HIBTOBIÁ  DA  LITTBSATUBA  BRABUJURA 

Voút,  foi  iTanimdl,  à  touí  venant,  ne  vous  déplaise^  —  e 
outi-as. 

Repare-se  como  passou  tudo  isto  para  a  língua  portugrueza. 

O  traductor  começou  por  distribuir  a  fabula  em  quadras, 
tirando-lhe  desde  logo  a  feição  plástica ;  as  duas  primeiras 
são  supportaveis ;  seguem-se  duas  inteiramente  más,  por 
alheias  quasi  ao  original ;  as  quatro  ultimas  não  reproduzem 
a  poesia  de  La  P'ontaine  na  sua  suave  simplicidade.  E,  entre- 
tanto, é  uma  das  melhores  versões  de  toda  a  collecção.  E* 
esta  : 

«  Havendo  a  cigarra 
Cantado  no  estio, 
Achou-se  em  apuros 
No  tempo  de  frio. 

De  mosca  ou  de  verme 
Não  tendo  migalha, 
Procura  a  formiga 
Rogando  que  a  valha.  » 

aCARRA 

«  Chegar-se  a  abastados 
E*  sina  dos  pobres  ; 
Por  isso,  amiguinha, 
Me  empreste  cdguns  cobres. 

Preciso  ir  á  feira 
Comprar  cereal, 
Com  que  me  alimente 
Na  quadra  hybernal. 

Em  vindo  a  colheita, 
Eu  juro  pagar, 
Com  prémios  e  tudo, 
O  que  me  emprestar.  » 

Não  gosta  a  formiga 
De  dar  emprestado ; 
E*  n*eUa  o  defeito 
Mais  leve,  hotado. 


HIBTOBIA  DA  LITTEKATUSA  BSA8ILSIBA  145 

FORMIGA 

«  Nos  niezes  calmosos 
Você  que  fazia?  » 

CIGARRA 

(I  Andava  cantando 
De  noite  e  de  dia.  » 

FORBilGA 

K  Cantava  no  estio? 
Que  bella  vidinha! 
Agora  tem  fome ; 
Pois  dance,  visinha.  » 

O  leitor  faça  por  si  o  cotejo. 

Nâo  me  devo  despedir  do  barSlo  de  Paranapiacaba  na  qua- 
lidade de  poeta,  sem  apreciar  umas  singulares  ideias  suas, 
n'cste  assumpto,  exaradas  em  carta-prologo  á  Musa  Latina 
do  Dr.  Castro  Lopes. 

Elle  escreve  uma  carta  impertinente  sobre  o  estado  actual 
da  poesia  no  Brasil  e  em  França,  defendendo  o  velho  roman- 
tismo contra  o  parnasianismo  e  o  naturalismo.  E*  impos- 
sível em  tão  poucas  paginas  accumular  tantas  inexactidões 
e  incongruências. 

Começa  por  uma  confissão  que  não  é  de  todo  correcta  : 
a  Admirador  e  sectário  do  romantismo,  laudator  temporis 
actí,  sou,  como  já  o  foram  muitos  outros,  excluído  da  lista 
d'esses  poetas  geniaes,  ricos  de  fogo  sagrado  e  cultores  irre- 
prehensiveis  da  forma,  que  desthronaram  de  sua  immortal 
sede  o  Archanjo  inspirador  da  poesia  a  Chateaubriand, 
LamarUne  e  Victor  Hugo,  para  recoUocar  no  cimo  do  Par- 
naso a  Musa  que  accendeu  oi  estro  do  poeta  de  Ascra  »  (1). 
Quanta  illusão  e  desconcerto  I 

Por  entre  as  ironias  do  velho  poeta,  bem  se  conhece  a  alta 
conta  em  que  elle  se  tem  e  isto  seria  o  menos,  se  não  reve- 

(1)  Musa  Latina,  pag.  U.  — 

HISTORIA  n  10 


1 


146  HISTORIA  DA  LITTESATUBA  BRASILEIRA 

lasse  também  o  profundo  desconhecimento  em  que  labora 
das  cousas  lilterarias  nos  dois  paizes  que  tomou  para  centro 
de  suas  referencias. 

Dá-se  por  estrénuo  sectário  do  romantismo ;  a  verdade  é 
que  jamais  comprehendeu  e  assimilou  bem  as  doutrinas  e  a 
Índole  d'esse  systema ;  a  verdade  é  que  jamais  passou  de-  um 
pseudo-classico  entre  os  românticos. 

Porque,  referindo-se  á  litteratura  estrangeira,  falou  só  na 
franceza?  E'  bem  exacto  que  os  brasileiros  lêem  de  prefe- 
rencia livros  francezes ;  más  de  um  mestre  tinha-se  o  direito 
de  esperar  indicações  lucrativas  sobre  o  movimento  da  bella 
litteratura  na  Allemanha,  na  Inglaterra  e  na  Itália  para  a 
boa  comprehensáo  das  correntes  poéticas  na  segunda  metade 
do  século  XIX. 

O  que  disse  de  França  está  cheio  de  innumeras  lacunas  e 
desacertos. 

De  Chateaubriand,  Lamartine  e  Victor  Hugo  passou,  sem 
caracterisar  ofi  factos,  aos  parnasianos,  cuja  indole  desco- 
nheceu, eaos  naturalistas,  cuja  critica  fez  inexactamente. 

Fora  mais  regular  que  desse  uma  noção  ampla  do  roman- 
tismo em  geral  e  especialmente  n^aquelle  paiz  ;  aqui  indicasse 
as  intuições  diversas  abrigadas  no  seio  do  grande  systema  e 
determinadamente  suas  phases  successivas  até  abrir  espaço 
a  outras  doutrinas.  Veria  a  figura  de  Stael  e  Gonstant  ao 
lado  e  em  inverso  sentido  da  de  Chateaubriand  ;  comprehen- 
deria  a  significação  do  bello  talento  de  Vigny,  saberia  que 
Lamartine  e  Hugo  passaram  por  mais  de  uma  mutação  ;  veria 
o  lugar  de  Sainte  Beuve  e  Sand  ;  encontraria  em  caminho 
Dumas,  Sue  e  Balzac  e  os  entenderia ;  conheceria  a  posição 
de  Musset ;  Theophilo  Gautier  deixaria  de  ser  um  enigma ; 
e,  assim  progressivamente,  passaria  por  de  Laprade,  por 
Dumas  Filho,  por  Feydau,  Augier,  por  Sardou  e  todos  os 
epígonos  dos  grandes  mestres  do  systema.  Quando  chegasse 
ao  momento  da  dissolução  da  velha  doutrina  comprehen- 
deria  a  poesia  mórbida  e  .satânica  de  Baudelaire,  as  reacções 
scienti{icistas  de  Sully-Prudhomme,  as  resurreições  históricas 
e  ethnofjiraphicas  de  Leconte  de  Lisle,  o  realismo  bruto  de 
Richepin  e  o  naturalismo  selecto  de  Coppée.  Comprebenderia 


HI8T0BIA  DÁ  LITTEBATtTBA  BSABILEIBJL  147 

também  o  movimento  do  romance,  divisando  a  signiílcaçào 
dos  trabalhos  de  Flauberi,  dos  Goncourts,  de  Daudet  e  de 
Zola.  Saberia  que  nem  todas  aquellas  tentativas  de  reforma 
possuem  igual  mérito  e  veria  o  motivo  pelo  qual  a  reforma 
no  romance  tem  sido  mais  vigorosa  do  que  na  poesia,  sem 
comtudo  deixar  de  ser  ainda  vacillante  e  desregrada  por 
mais  de  um  lado. 

N'estas  differentes  escolas  ha  verdadeiras  gradações. 

E'  um  erro  encerral-as  todas  no  parnasianismo  e  no  natu- 
ralismo^ como  praticou  o  barão,  e  ainda  maior  equivoco  é  dar 
uma  só  côr  tanto  a  um  como  a  outro. 

Ha  vinte  maneiras  de  interpetrar  o  naturalismo  e  outras 
tantas  de  praticar  o  parnasianismo.  O  anathema  do  velho 
poeta  não  pôde  ferir  senão  algum  lado  esconso  das  novas 
doutrinas. 

Quando  passa  ao  Brasil  sua  exposição  é  terrivelmente 
estreita  e  inexacta. 

Refere  somente  três  nomes,  sem  lhes  comprehender  o 
significado ;  e  a  prova  é  esta  :  «  Admiro  Theophilo  Dias  no 
Brasil  e  Castilho  e  Suares  de  Passos  em  Portugal ;  são  dignos 
emulos  de  Bocage  e  Nicoláo  Tolentino  »  (1). 

Singular  período  este  I 

Que  género  de  ligação  achou  Paranapiacaba  entre  Theo- 
philo Dias  e  Castilho  ?  Que  lôm  elles  de  peculiar  com  Bocage 
e  mais  ainda  com  Tolentino  ? 

E  a  que  vem  alli  Soares  de  Passos  ? 

São  d'essas  ligações  que  revelam  completa  ausência  de 
senso  critico. 

O  barâo  de  Paranapiacaba  deveria  ser  mais  justo,  mais 
imparcial  para  com  as  modernas  gerações  de  poetas  brasi- 
leiros que  têm  sido  tão  gentis  para  com  elle... 

O  numero  dos  novos  poetas  é  bem  crescido ;  não  são  três, 
são  três  dúzias.  Nem  todos  possuem  o  mesmo  e  igual  mérito; 
alguns,  porém,  sã.o  altamente  apreciáveis. 

Como  quer  que  seja,  o  barão  de  Paranapiacaba  não  vae  bem 
inspirado  em  esconjurar  as  novas  tendoncias  em  nome  de 

(1)  Mu9a  Latina,  pag.  XXVI.  — 


-.> 


V 


■»- . ' 


148  HISTORIA  DA  LITTBRATURA  BKAfllUEIEA 

V  um  passado  que  náo  volta  mais.  Deixe  suas  ideias  absolutas  ; 

Èf  coUoque-se  no  relativo  e  náo  queira  representar  o  papel  de 

J^  reaccionário.  Tudo  passa ;  tudo  tem  valor  bem  limitado ;  o 

r  y  romantismo  não  desmente  a  regra  geral. 

í .  A  lei  que  rege  a  historia  brasileira  é  a  mesma  que  dirige  a 

de  qualquer  outro  povo  :  a  evolução  transformista.  Por  maior 
que  seja  a  cegueira  dos  imitadores,  a  precipitação  dos  copistas 
|V.  e  plagiários,  sempre  a  litteratura  brasileira  não  é  uma  cousa 

f. ;  que  lhes  pertença  exclusivamente.  Apezar  de  tudo,  um  povo 

».';  é  sempre  o  factor  principal  de  sua  vida  e  de  sua  litteratura- 

V;  -  Podem  os  políticos  ineptos  e  os  escrevinhadores  madraços 

*'  desvial-o  de  seu  caminho.  Cedo  ou  tarde  encontrará  a  larga 

estrada  de  suas  tendências  naturaes. 

Ponhamo-nos  a  par  dos  inilludiveis  e  magestosos  problemas 
scienliflcos  e  litterarios  que  se  degladiam  no  velho  mundo ; 
mas  premunamo-nos  contra  as  imitações  trapentas,  contra 
as  theses  charlatanescas,  os  erros  bojudos  com  pretenções 
a  verdades  demonstradas.  Sobretudo,  robusteçamos  o  nosso 
senso  critico,  e  ponhamol-o  em  condições  de  insistir  á  febre 
devoradora  de  innovações  inconscientes  e  banaes.  Nosso 
tempo  já  está  desilludido  de  formulas ;  aprendamos  afinal 
qual  o  valor  d'ellas. 

A  receita  é  fácil ;  factos  e  mais  factos,  bom  senso  e  mais 
bom  senso. 

Como  não  era  ridícula  para  os  espíritos  comprehensivos  a 
velha  teima  do  letrado  nacional,  afflrmando,  obstinada  e 
rancorosamente  com  a  bocca  aberta  entre  ponteagudos  coUa* 
rinhos,  o  pescoço  enrolado  no  clássico  lenço  de  seda,  nos 
dedos  a  infallivel  pitada,  as  excellencias  únicas  das  cantatas  | 
do  Garção  e  das  odes  do  Philinto?  Do  velho  systema,  que  foi 
levado  de  vencida  e  hoje  alimenta  apenas  as  lucubrações  dos 
tontos  decrépitos  e  desmemoriados,  a  defesa  obstinada 
quando  a  lemos  nos  livros  de  1820  a  30  nos  provoca  o  riso... 

D'elle  restam  apenas  as  obras  immortaes,  as  obras  primas    ' 

dos  homens  de  génio ;  as  apologias  insensatas  enjoam-nos. 

Mesmíssimo  é  o  caso  do  romântico,  amortecido  e  embría- 

\  gado  das  fumaças  de  1830,  ainda  hoje  sonhando  com  as  wal- 

kyrias,  as  fadas,  as  castellãs  medievicas ;  ainda  hoje  pallido 


h'. 


4 


k. 


HISTORIA  DA  LITTSBATUBA  BRASILEIRA  149 

sonhador  a  Man{redo  ou  a  Rolla,  pobre  tolo  de  comedia,  que 
nos  arrebenta  de  riso...  Entretanto,  é  mui  para  vêr  a  segu- 
rança, a  infaillibilidade  do  pontiílce  do  prologo  do  Crom- 
wellj  esse  lastimoso  acervo  de  phrases  túrgidas  e  aéreas 
que  não  lemos  hoje  sem  um  sorriso  de  ironia. 

Da  enfatuada  escola  os  programmas  sexquipedaes  moles- 
tam-nos  a  mais  não  poder.  Restam-lhe  as  raras  inspirações 
sérias  e  profundas ;  tudo  mais  esvaeceu-se. 

Cada  uma  d'eslas  formulas,  ao  nascer,  annunciava  a  littera- 
cura  definitiva, 

O  mesmo  temos  estado  a  presenciar  nos  últimos  trinta 
annos  com  a  successão  do  romantismo.  Não  menos  de  cinco 
syslemas  têm  surgido  a  proclamar  a  litteratura  impeccavel  : 
o  satanismo,  com  as  suas  cóleras  affectadas,  suas  maldições 
caricatas,  seu  pessimismo  de  almanach  ;  o  parnasianismo,  com 
seus  versos  escovados,  suas  descripções  de  paizes  que  não 
viu,  suas  theogonias  pantafaçudas,  suas  orientalidades  idio- 
tas, seu  tom  de  um  prophetismo  de  nicromante ;  o  scientifi^ 
cismo  poético,  vacillando  entre  as  triagas  descriptivas  de 
Julío  Veme  e  as  tafularias  psychologicas  de  Sully  Pru- 
dhomme  c  André  Lefèvre,  scientificismo  productor  quasi 
sempre  de  uma  poesia  de  contrafacção,  com  seus  problemas 
indigestos,  suas  thescs  pretenciosas  e  prosaicas,  uma  poesia 
de  compendio  em  summa;  o  naturalismo,  de  escaJpello  em 
punho,  farejando  pústulas  para  as  romper,  ou  alvas  pernas 
para  as  apalpar,  para  as  beijar,  com  suas  verdades  e  seus  exa- 
geros, com  suas  bellas  pinturas  e  suas  sensações  novas,  com 
suas  bagatellas,  seus  erros,  seus  disparates  quando  manejado 
pelos  tolos  e  pedantes,  com  suas  descripções  brilhantes,  suas 
analyses  finas,  seu  grande  sopro  de  realidade  quando  archi- 
tectado  pelos  Daudets  e  Zolas.  Finalmente  o  symbolismo,  com 
seus  nevoentos  mysterios. 

Porque  é  que  a  reforma  prosperou  no  romance,  e  tem  quasi 
sempre  abortado  na  poesia  ?  A  natureza  intima  das  d^ias  artes, 
das  duas  manifestações  litterarias  o  explica ;  o  romance  é  um 
producto  sui  generis,  que  pode  vacillar  entre  a  sciencia  e  a 
fantasia,  entre  a  demooistração  de  um  facto  e  a  improvisação 
imaginosa  :  a  poesia,  ao  contrario,  tem  um  terreno  especial  e 


150  HISTORIA  DA  LITTBRATU&A  BRA8IL2IRA 

seu ;  quando  entra  a  transformar-se  em  sciencia  perde-se  na 
prosa  e  na  vulgaridade. 

O  romance  póde-se  dizer  um  producto  recente,  quasi  do 
XIX  século ;  a  poesia  é  uma  filha  das  eras  primitivas,  que  se 
vae  tornando  cada  vez  mais  rara  e  vendo  cada  vez  mais  res- 
tricto  o  seu  terreno. 

A  poesia  deve  ser  sempre  a  expressão  de  um  estado  emo- 
cional, subjectivo,  intimo ;  o  romance  deve  ser  o  estudo  phy- 
siologico  dos  caracteres  sociaes. 

A  poesia  é  como  a  musica ;  é  vaga  e  não  deve  ser  submet 
tida  ás  exigências  demonstrativas.  Eis  porque  todos  os  formu- 
ladores  de  theses,  quando  passam  á  experiência,  nada  fazem 
de  aproveitável ;  é  sempre  uma  poesia  de  arrièrc-penséc^  pre- 
meditada, vestida  em  umas  japonas  doutrinarias,  sem  espon- 
taneidade, som  limpidez,  sem  effusão,  sem  graça,  uma  cousa 
tcrrivel  em  summa. 

Eis  porque  não  nos  devemos  muito  enthusiasmar  com  as 
cinco  soluções  que  aprendemos  recentemente  de  França. 

Se  tomarmos  a  defesa  opiniática  de  similhantes  doutrinas, 
provisórias  como  tudo  que  é  obra  da  evolução  humana,  corre- 
remos o  perigo  de  fazer  a  figura  do  velho  clássico  ou  do  velho 
romântico,  que  ficou  atraz  pintada. 

E,  todavia,  não  julgo  extinctas  na  humanidade  as  fontes  da 
poesia. 

As  novas  intuições  que  determinaram  a  nova  phase  do  pen- 
samento humano,  podendo  dar  pasto  ao  romance  e  ao  drama 
analyticos,  bem  poderão  aproveitar  as  syntheses,  as  largas 
visualidades,  os  sentimentos  generosos  e  altruistas,  as  expan- 
sões intimas,  em  formular  uma  poesia  viva,  enérgica,  ampla, 
cnthusiasta,  uma  poesia  de  todas  as  grandes  emoções  que 
experimentamos  na  lucta  gigantesca  e  terrível  da  civilisação 
moderna. 

Uma  poesia  sem  catechismos  rhetoricos,  som  as  pequena.-' 
receitas  que  os  pretensos  reformadores  nos  têm  querido  im- 
pingir ;  mas,  uma  poesia  em  que  se  vazem  todas  as  lutas, 
todas  as  perplexidades,  todas  as  effusões,  todos  os  desa- 
lentos, todas  as  esperanças,  todas  as  certezas,  todas  as  duvi- 
das, todas  as  mutações,  em  summa,  do  espirito  moderno. 


HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA  151 

Tenhamol-a  também  no  Biusil. 

E  o  bário  de  Paranapiacaba  já  náo  é  mais  apto  para  nol-a 
dar.  Nem  atrapalhe  aquelles  que  têm  enlhusiasmo  e  desejcun 
progredir. 

Este  ultimo  termo  leva-me  naturalmente  a  dizer  algumas 
palavras  flnaes  sobre  o  illustre  paulistano.  E  é  na  sua  quaJi- 
dade  de  publicista.  Em  1875  o  digno  escriptor  publicou,  por 
incumbência  governamental,  um  livro  sob  o  titulo  de  Thcscs 
sobre  a  colonisação  do  Brasil.  E'  um  trabalho  interessante, 
merecedor  do  atlenciosa  leitura.  Náo  contem  ideias  e  planos 
originaes ;  é  antes  um  apanhado  de  doutrinas  aliunde  espa- 
lhadas. 

O  livro  é  melhodico  e  basta  elle  refedr-se  a  um  di>s  mais 
importantes  problemas  da  nossa  actualidade  para  despertar  o 
interesse.  Parecerá  estranho,  que,  tractando  agora  de  poetas, 
lenha  de  gastar  uma  ou  mais  paginas  sobre  um  assumpto  tâo 
distanciado,  a  colonisação. 

Dois  motivos  me  levam  a  proceder  por  forma  contraria  : 
em  primeiro  lugar,  segundo,  o  methodo  adoptado  n'este  livro, 
tenho  obrigação  de  dar  de  uma  vez,  salvo  raríssimas  excep- 
ções, o  perfil  inteiro  de  cada  um  dos  meus  heróes,  por  mais 
variadas  que  hajam  sido  suas  manifestações  espirituaes ;  de- 
pois, desejo  que  esta  obra  seja  mais  uma  historia  da  cultura 
brasileira  em  sua  totalidade,  do  que  uma  historia  litteraria 
no  velho  e  acanhado  estylo. 

Esta  dupla  consideração  justificar-me-á  do  defeito  indicado, 
se  defeito  ahi  existe. 

O  livro  do  barão  de  Paranapiacaba  tem  por  fim  estudar  as 
causas  que  na  segunda  metade  do  século*  xix  tôm  determinado 
um  maior  movimento  immigratorio  para  os  Estados-Unidos  e 
Republica  Argentina  do  que  para  o  Brasil.  A  seu  vêr,  taes 
causas  são  as  seguintes  : 

(c  I.  A  falta  de  liberdade  de  consciência;  a  não  existência  do 
casamento  civil  como  instituição ;  a  imperfeita  educação,  a 
ignorância  e  a  immoralidade  do  clero ;  a  ambição  de  mando 
temporal  da  parte  do  Episcopado  Brasileiro,  traduzindo-se 
na  luta  impropriamente  chamada  —  questão  religiosa. 


152  HI8T0BIA  DA  LITTERATURÂ  BRASILEIRA 

II.  A  insufílciencia  do  ensino  e  principalmente  a  ausência  de 
instrucçâo  agrícola  e  profissional. 

III.  O  diminuto  numero  de  instituições  de  credito,  especial- 
mente de  bancos  destinados  a  auxiliar  a  pequena  lavoura  e 
industria. 

IV.  As  restricções  e  estorvos,  que  a  Legislação  e  a  Publica 
Administração  do  Império  põe  á  liberdade  de  industria, 
peando,  em  vez  de  desenvolver,  a  iniciativa  individual. 

V.  Os  defeitos  da  led  de  locação  de  serviços  e  dos  contractos 
de  parceria  com  estrangeiros ;  as  lacunas  e  a  inexecução  da 
lei  das  terras  publicas  e  a  não  existência  do  imposto  territorial 
sobre  os  terrenos  baldios  e  sem  edificação. 

VI.  A  falta  de  transporte  e  de  vias  de  communicação,  que 
liguem  o  cen[ro  e  o  interior  do  Império  aos  mercados  con- 
sumidores e  exportadores. 

VIL  A  creação  de  colónias  longe  d'esses  mercados  e  em 
terreno  ingrato  e  não  preparado,  bem  como  a  falta  de  provi- 
dencias para  recepção  dos  immigrantes  ©  colonos  nos  portos 
do  Império  e  para  seu  estabelecimento  permanente  nas  coló- 
nias do  Estado,  ou  nos  lotes  de  terras,  que  compram. 

VIII.  A  incúria  em  fazer  conhecido  o  Brasil  nos  Estados, 
d'ondo  procede  a  emigração,  de  que  necessitamos,  e  em 
refuteu*,  por  todos  os  meios  de  bem  entendida  publicidade  e 
por  pennas  hábeis  e  desinteressadas  os  escriptos,  por  meio 
dos  quaes  n'aquelles  Estados  nos  deprimem,  exageram  nossos 
erros  em  relação  aos  emigrantes  e  nos  levantara  odiosos 
aleives  i  (1). 

Tal  o  resumo  das  ideias  do  illustre  funccionario  apresen- 
tadas ao  governo. 

Alguns  pontos  batem  em  cheio  no  âmago  da  questão ;  algu- 
mas d'essas  theses  são  verdadeiras. 

Outras,  porém,  não  são  evidentemente  causas  do  eífeito  que 
se  aponta  e  se  procura  remover.  A  primeira  é  uma  d^ellas. 

(1)  Obra  citada^  pag.  31 


HIBTOUA  DA  LITTXBATUSA  BBABILIIBA  153 

O  livro  foi  escripto  em  1874  ainda  no  tempo  da  nossa  cha- 
mada questão  religiosa ;  o  autor,  impressionado  por  ella, 
elevou  a  conhecida  tolerância  e  quasi  indiferença  religiosa 
dos  brasileiros  a  um  verdadeiro  espirito  inquisitorial  e  fez 
d'isso  phantasticamente  um  grande  obstáculo  á  immigraçâ.o 
Outras  das  theses  são  igualmente  mal  collocadas,  e  consti- 
tuem verdadeiros  círculos  viciosos,  quero  dizer,  que  o  au- 
tor aponta  como  causa  da  falta  de  immigração  factos  que  são 
antes  destinados  a  desapparecer  justamente  quando  tivermos 
grande  população.  São  cousas  que  não  se  podem  remover  por 
disposições  legislativas,  e  que  só  uma  população  basta  poderá 
affastar.  D'este  modo,  não  é  porque  taes  factos  se  dão  entre 
nós,  que  não  vem  cá  a  immigração ;  ao  contrario,  é  porque 
esta  não  tem  vindo  que  os  factos  se  verificam. 

Como  poderá  um  pai2  ainda  em  via  de  formação,  como  o 
Brasil,  possuir,  por  exemplo,  as  vias  de  communicação,  as 
industrias,  as  fabricas,  as  instituições  económicas,  as  crea- 
ções  de  credito,  as  fortes  e  amplas  normas  de  vida  governa- 
tiva, commercial,  social,  politica  e  em  geral  todas  as  grandes 
maravilhas  que  fazem  o  orgulho  de  velhas  nações  como  a 
Inglaterra,  a  Allemanhíi,  a  Itália,  a  França  ?  Um  impossivel  a 
olhos  vistos. 

Só  o  trabalho  leaito  do  tempo  é  apto  a  desenvolver  as  forças 
latentes  de  nossa  nacionalidade  e  produzir  a  evolução  normal 
de  nosso  progresso. 

Um  dos  maiores  e  mais  nocivos  erros,  que  vivemos  todos 
nós  aqui  a  commetter,  é  a  velha  mania  da  europeolatria,  que 
envolve  dois  grandes  despropósitos,  a  subserviência  em  imi- 
tar tudo  que  no  velho  mundo  se  faz,  e  a  vaidade  de  querer 
parecer  bem  alli. 

Não  vemos  diariamente  homens  políticos  pôrem-se  á  frente 
de  propagandas,  anti-patrioticas  e  nocivas  a  nosso  paiz,  uns 
só  pela  mania  de  imitar,  outros  só  para  terem  gabos  dos  cír- 
culos estrangeiros  existentes  aqui,  serem  falados  nos  seus  jor- 
naes  e  figurarem  nas  folhas  européas?  Não  admira,  pois,  que 
haja  quem  faça  as  maiores  loucuras  para  ser  notado  em 
França  ou  na  Allemanha  ou  na  Inglaterra  ou  na  Itália... 

Ninguém  se  quer  contentar  com  a  parca  notoriedade,  a 


154  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

pequena  fama  que  a  pátria  pôde  dar...  E'  uma  nota  da  psycho- 
logia  brasileira. 

Doeste  ultimo  peccado  parece  nâo  ser  viclima  o  barão  de 
Paranapiacaba ;  mas  com  certeza  soffre  do  sestro  da  imitação 
européa  em  alta  dose.  Pôra  melhor  que  o  seu  livro  fosse  mais 
directamenta  um  estudo  da  vida  brasileira  do  que  um  apa- 
nhado de  notas  de  auctores  estrangeiros. 

O  nosso  publicista  negligenciou  alguns  dados,  muitos  dados 
do  seu.  problema.  Nâo  tomou  as  questões  de  conveaiienle 
altura.  De  outra  forma,  teria  notado  que  a  simples  imitação 
do  que  se  faz  na  Europa  náo  é  sempre  o  nosso  mais  acertado 
caminho,  teria  visto  que  temos  acções  a  praticar,  providencias 
a  levar  por  diante  que  sio  o  inverso  do  que  se  pratica  em 
qualquer  outra  parte. 

Sob  o  ponto  de  vista  da  colonisaçSU),  verbi-graíia,  a  teima 
cm  comparar  nossas  condições  com  as  dos  Estados-Unidos  e 
Republica  Argentina,  as  duas  grandes  nações  americanas  que 
recebem  immigrantes,  a  referida  teima  é  um  horrendo  ab- 
surdo. 

Os  Estados-Unidos  são  um  paiz  de  clima  quasi  uniforme, 
com  excepção  do  território  comparativamente  pequeno  do 
extremo  sul  ás  margens  do  Golpho  mexicano.  Possuia  jã  uma 
população  enérgica,  apta  a  assimilar  a  de  seus  parentes  alle- 
inães,  quando  estes  começaram  a  affluir  para  alli.  E  estes 
espalhavam-se  por  toda  a  extensão  do  território,  não 
indo  acantoar-se  n'um  ponto,  como  se  tem  feito  no  Brasil.  A 
nova  população  formou-se  e  cresceu,  sem  mudar  de  aspecto. 
Todos  são  amencanos  e  falam  inglez.  E'  singularissimo  este 
facto  :  apezar  dos  muitos  milhões  de  immigrantes  entrados  na 
republica,  nao  haver  um  só  districto,  por  pequeno  que  seja, 
d'onde  a  lingua  ingleza  tenha  desapparecido  e  o  americano 
seja  considerado  estrangeiro.  E'  o  que  não  acontece  no  Brasil 

A  Republica  Argentina  é  também  inteiramente  dissimi- 
Ihante  do  nosso  paiz.  E'^  um«  território  muito  menor,muito  mais 
igual  pelo  clima  e  mais  unido  geographicamente.  A  coloni- 
saçâo  espalha-se  e  é  facilmente  assimilada.  E,  quando  acon- 
tecer que  o  não  seja,  os  Argentinos  saberão  por-lhe  óbices, 
como  praticaram  os  Americanos  com  os  Chins. 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA  155 

No  Brasil  nada  se  tem  feito  com  plano  e  sob  a  direcção  de 
ideias  justas  e  scientiílcas. 

Começou-se  por  desacreditar  o  clima  de  todo  o  norte  e 
dícclarar  aptas  rara  a  colonisação  somente  as  quatro  provín- 
cias do  extremo  sul. 

Picam  possessos  os  fautores  desse  erro  quando  se  lhes  fala 
em  espalhar  os  colonos  por  todo  o  paiz.  E'  que  isto  seria 
matar-lhes  o  plano  de  crear  no  sul  uma  população  diversa  da 
do  resto  do  território,  população  que  dentro  de  cincoenta 
ou  sessenta  annos  dê  o  grito  da  robellião  separatista  desman- 
telando assim  aquella  íamosa  peça  de  architectura  politica  de 
que  falava  o  grande  Andrada. 

São  notórios  os  argumentos  terroristas  d'essa  gente  contra 
quem  não  lhes  facilita  os  planos.  Conhecedores  da  vaidade 
nacional,  que  nos  leva  a  todos  á  ambição  de  passarmos  por 
culiantados,  lançam  em  rosto  aos  adversários  o  espantalho  de 
nativistas  e  atrazados  l . . .  Diante  da  força  probante  de  taes 
razões  curvam-se  todos.  Entretanto,  ainda  é  tempo  de  dizer  a 
verdade. 

Ha  hoje  três  systemas  sobre  a  colonisação  do  Brasil  por 
estrangeiros  :  a)  o  dos  immobilistas  intranzigentes  que  nada 
querem  fazer  por  este  lado ;  b)  o  dos  políticos  interesseiros 
que  aspiram  pela  transformação  completa  dos  quatro  Estados 
do  Sul,  e  cj  o  da  colonisação  integral  e  progressiva.  Este 
ultimo  é  o  meu  systeona. 

N'outro  lugar  d'este  livro,  tratando  das  lutas  de  brasileiros 
e  portuguezes  em  1822,  a  propósito  do  V.  de  S.  Leopoldo,  dis- 
cuti rapidamente  o  facto  da  colonisação  incompleta,  aqui  pra- 
ticada pelos  descobridores,  e  avancei  algumas  desconfianças 
sobre  o  futuro  da  raça  portugueza  n^este  paiz,  se  não  fôr  con- 
venientemente encaminhado  o  problema  do  moderno  povoa- 
mento com  elementos  estrangeiros. 

Westa  questão,  minhas  ideias  resumem-se  nas  seguntes 
theses,  offerecidas  em  estylo  aphoristico  para  serem  bem 
comprehendidas  : 

1.*  A  antiga  colonisação  do  Brasil  pelos  portuguezes  foi 
lacunosa,  especialmente  no  alto  norte  e  grande  oeste  do  paiz. 


156  HISTORIA  DA  LITTERATimA  BRASILEIRA 

2.*  Mesmo  no  sul  e  leste  sua  influencia  tende  a  diminuir, 
alli  pela  introducção  de  fortes  elementos  estranhos,  e  cá  pela 
superabundância  dos  mestiços  de  sangue  indio  e  africano  ; 

3.*  O  meio  de  formar  no  Brasil  uma  naçáo  forte  é  attraliir  a 
colonisação  estrangeira  por  modo  diverso  do  que  tem  sido  até 
agora  praticado ; 

4.*  Deve-se  acabar  com  o  systema  de  cuidar  só  do  sul, 
deixando  o  norte  e  o  centro  em  completo  esquecimento. 

5.*  E'  preciso  acabar  uma  vez  por  todas  com  o  descrédito 
que  estultamente  foi  lançado  sobre  o  clima  do  norte  e  do  oeste 
do  paiz,  reconhecendo  que  em  todo  o  vasto  planalto  brasileiro 
ha  zonas  perfeitamente  appropriadas  á  colonisação  européa ; 

6/  Náo  faço  distincção  entre  europeus  do  Norto  ou  do  Sul 
para  a  immigraçilo  brasileira ;  todos  sao  pcrfeitemenle 
aptos,  com  a  condição  de  misturarem-se  c  espalliarcm-sc  por 
todo  o  paiz; 

7.*  Este  systema  de  colonisação  integral  do  Brasil,  assimi- 
lando os  elementos  estrangeiros,  maximé  portuguezes,  é  pre- 
vidente e  patriótico,  sem  ser  por  forma  alguma  hostil  aos 
europeus ; 

8.*  Muito,  pelo  contrario,  é  contar  sempre  e  sempre  com 
ellcs  para  a  organisação  e  engrandecimento  de  nossa  pátria. 

9.*  Não  se  devem,  po(rém,  despresar  os  elementos  nacionacs, 
que  podem  ser  aproveitados  para  a  colonisação  geral. 

E'  esta  a  summa  das  minhas  ideias.  Não  ha  ahi  exagerado 
nativismo,,  Acendrado  patriotismo  é  que  n'ellas  palpita. 
Negal-o  ?  Só  o  poderão  fazer  os  rábulas  da  politiquice... 

Da  leitura  do  livro  do  barão  de  Paranapiacaha  bem  se 
deduz  não  ser  clle  d'estc  numero,  e  o  digo  em  honra  sua. 


HISTORIA  DA  LITTBKATnBA  BRABILBIBA  157 


CAPITULO  II 
Poesia.  —  Segunda  phase  do  romantismo. 

E'  agora  a  segundo  momento  do  romantismo  brasileiro,  a 
phase  inaugurada  por  Gonçalves  Dias.  E'  o  seu  ponto  culmi- 
nante. O  poeta  maranhense  e  José  de  Alencar,  o  celebre 
romancista  do  Ceará,  são  inquestionavelmente  os  dois  mais 
illustres  e  significativos  typos  da  litteratura  romântica  entre 
nós. 

Talentos  omnimodos,  quer  um,  quer  outro,  prendem-se  pelo 
la^o  commum  do  indianismo  e  pela  patriótica  empreza  de, 
evitando  os  exclusivos  moldes  portuguezes,  dar  cores  pró- 
prias á  nossa  litteratura.  Caminharam  impávidos  para  a 
frente,  guiados  por  seu  ideial,  alentados  pelo  enthusiasmo 
das  boas  causas. 

Quasi  não  ficou  um  recanto  das  patiras  letras  em  que  elles 
não  pozessem  as  mãos  e  com  ellas  os  brilhos  de  seus  talentos 
e  os  sons  festivos  de  suas  victorias. 

Na  poesia,  no  theatro,  na  historia,  na  ethnographia  Gon- 
çalves Dias  fez-se  ouvir  com  elevação  e  inquestionado  valor. 

Romance,  drama,  comedia,  folhetim,  politica,  critica,  pole- 
mica, poesia,  por  tudo  passou  José  de  Alencar  e  seria  preciso 
torcer  e  marear  a  imparcialidade  da  historia  para  negar-lhe 
os  desusados  titulos  de  seu  merecimento. 

Eu  não  sou  e  nunca  fui  indianista  :  sempre  estive  na  brecha 
batendo  os  exaggeros  do  systema,  quando  das  mãos  dos  dois 
grandes  mestres  passou  ás  dos  sectários  medíocres.  Mas  esse 
velho,  e  por  mim  tão  maltratado  indianismo,  teve  um  gran- 
díssimo alcance  :  foi  uma  palavra  de  guerra  para  unir-nos  e 
fazer-nos  trabalhar  por  nós  mesmos  nas  letras. 

Conseguido  esse  resultado,  os  dois  chefes  calaram  as 
tiorbas  selvagens  e  empunharam  outros  instrumentos.  E, 
d'esVarte,  a  mor  porção  de  suas  obras  é  constf uida  fora  das 


158  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIEA 

inspirações  do  indianismo ;  mas  as  melhores,  porque 
escriptas  com  toda  a  alma,  são  as  que  ficam  dentro  do  cir- 
culo d'aquelle.  E'  por  isso  que  as  poesias  americanas  sâo 
ainda  e  sempre  as  mais  saborosas  de  Gonçalves  Dias,  e  o 
Guarany  e  a  Iracema  os  mais  valentes  romances  de  José  de 
Alencar. 

A  maior  vantagem  da  romântica  entre  nós,  já  o  disse  uma 
vez  e  o  repito  agora,  foi  afastar-nos  da  exclusiva  influencia, 
da  imitação  portugucza,  O  romantismo  porluguez  possuía 
um  triumvirato,  por  todos  admirado,  em  que  era  vedado 
locar  :  Garrett,  Herculano  e  Castilho.  Tiveram  no  Brasil  admi- 
radores e  não  tiveram  imitadores.  Isto  ó  significativo. 

Os  talentos  nacionaes,  embebidos  na  contemplação  da  natu- 
reza e  da  vida  americana  e  das  bellezas  da  litteratura  européa, 
não  quedaram  a  imitar  os  três  corypheus  luzos. 

Devemos  isto  aos  Gonçalves  Dias,  aos  Alencares,  aos  Pen- 
nas,  aos  Macedos,  aos  Alvares  de  Azevedo,  aos  Agrários. 


António  Gonçalves  Dias  (1823-18(>4)  não  precisa  que  lhe 
trace  a  biographia.  Este  trabalho  está  feito,  definitivamente 
feito,  por  António  Henriques  Leal  no  Hl  vol.  do  Pantheon 
Maranhense,  Consignarei  apenas  algumas  datas  e  farei 
algumas  observações  que  me  ellas  despertam.  As  datas 
ajudam  a  comprehender  a  formação  do  talento  do  poeta  dos 
Tymbiras,  EUe  é  um  completo  producto  de  sua  raça,  do 
meio  cm  que  passou  a  infância  e  dos  estudos  que  fez  em 
Coimbra.  As  viagens  posteriores  de  quasi  nada  lhe  serviram. 

Nascido  em  1823  em  Caxias,  passou  ahi  e  em  São  Luiz  os 
quinze  primeiros  annos  de  sua  vida.  De  1838  a  18'i5  viveu 
em  Portugal,  formando-so  em  direito  na  Universidade  coim- 
brã. Foram  sete  annos  que  alguma  cousa  lhe  deixaram  no 
espirito. 

Passando  rapidamente  pelo  Maranhão  (18i546),  em 
melados  de  1846  achou-se  no  Rio  de  Janeiro  que  liabitou  segui- 
damente até  1854,  fazendo  apenas  uma  rápida  viagem  ao  norte 
(1851).  De  54  a  58  viveu  na  Europa,  que  tornou  a  visitar  de 
1862  a  64,  anno  em  que  fallac(?u  do  volta  ao  Brasil.  O  inter- 


HISTOKIA  DA  LITTERATUBA  BBA8ILSIBA  159 

vallo  de  flns  de  1858  a  62,  passou-o  em  viagens  pelas  provín- 
cias do  Norte  na  celebre  commissão  das  borboletas. 

Em  1862  antes  de  seguir  pela  ultima  vez  para  o  velho 
mundo,  á  busca  de  melhoíras  para  sua  saúde,  tocou  ainda 
rapidamente  no  seu  amado  Rio  de  Janeiro- 

Gonçalves  Dias  morreu  aos  quarenta  e  um  annos ;  d'estes, 
treze  a  quatorze  f  oram  passados  na  Europa  e  o  resto  no 
Brasil. 

Taes  algarismos  não  vêm  aqui  a  esmo ;  comparados 
áquelles  em  que  appareceram  os  seus  livros,  e  já.  foram  indi- 
cados ao  tratar  do  barão  de  Paranapiacaba,  bem  mostram 
que  o  poeta,  morto  em  1864  aos  quarenta  e  um  annos,  se 
tivesse  desapparecido  em  ifô4,  aos  trinta  e  um,  nós  teriamos 
o  nosso  Gonçalves  Dias  completo. 

Todas  as  sucis  obras  foram  escriptas  até  esse  anno,  com- 
prehendendo  os  Cantos,  os  dramas,  os  artigos  de  critica  da 
historia  do  Brasil,  os  Tymbiras,  e  o  trabalho  ethnographico 
sob  o  titulo  O  Brasil  e  a  Oceania, 

Em  dez  annos  (44-54)  Gonçalves  Dias  desenvolveu  pasmosa 
actividade.  O  ultimo  decennio  foi  relativamente  estéril  :  rela- 
tórios, dando  conta  de  commissões  que  exerceu,  e  um  pu- 
nhado de  poesias  originaes  e  traduzidas,  são  os  productos 
d'esse  tempo. 

De  resto,  cumpre  notar  que  o  poeta  maranhense  não 
passou  por  dois  grandes  llagellos  que  assaltam  de  ordinário 
os  homens  de  leiras  n'este  paiz  :  a  guerra  litieraria  e  a 
penúria  económica.  O  talento  do  poeta  não  foi  jamais  con- 
testado. Contribuiu  muito  para  isto  o  artigo  encomiástico 
escripto  por  Alexandre  Herculano  sobre  os  Primeiros  Cantos. 
Não  passou  por  grandes  difflculdades  para  viver.  Teve  sempre 
empregos  e  boas  commissões.  N'este  sentido  foi  de  grande 
auxilio  a  amisade  que  lhe  votou  sempre  o  segundo  impe- 
rador. 

No  moço  maranhense  existem  quatro  aspectos  principaes, 
ja  o  deixei  ver  :  o  poeta,  o  dramatista,  o  critico  de  historia  e 
o  ethnologo. 

* 

Apreciemol-os,  principiando  pela  sua  feição  preponderante, 
o  poeta. 


160  HI8T0BIA  D  V  LITTBSATUBA  BRASJJJSLRX 

Ha  vinte  maneiras  diversas  de  estudar  e  apreciar  um 
escriptor.  Podem-se  procurar  as  relações  geraes  que  elle  teve 
com  a  cultura  de  seu  tempo,  mostrando  o  que  lhe  deveu  e 
em  que  a  adiantou ;  podem-se,  em  dadas  circumstancias, 
indagar  o  que  fez  e  o  que  representa  ha  evolução  intellectual 
de  seu  paíz  ;  póde-se>-lh6  desmontar  o  espirito,  procurando  os 
elementos  que  o  constituíram  e  qual  a  tendência  que  n'elle 
predominou. 

N'esta  investigação  deve-se  apontar  a  acção  do  meio 
physico  e  social,  a  parte  da  natura  e  a  parte  da  cuUura,  insistir 
nos  elementos  hereditários  accumulados  na  raça^  e  os  ele- 
mentos novos  provenientes  da  educação  scientiflca. 

Póde-se-lhe  fazer  apenas  uma  apreciação  esthelic^  a  defi- 
nição do  género  em  que  figurou ;  póde-se  fazer  a  pintura 
de  seus  modos,  sestros,  impulsos  e  tics,  quadro  physiolo- 
gico. 

Pode-se  desfiar  o  encadeiamento  normal  de  suas  ideias, 
quadro  psychologico. 

Póde-se  fazer  a  simples  critica  impressionista,  dizendo  o 
género  e  a  indole  das  emoções  que  desperta. 

Póde-se,  que  sei  eu  ?  limitar  a  geiate  a  apontar  simplesmente 
suas  obras  e  o  conteúdo  geral  d'ellas,  ou  tomar  outro  ca- 
minho qualquer. 

Qual  doestes  methodos  vou  applicar  a  Gonçalves  Dias  ? 

Não  sei.  Digo  o  que  penso  d'elle,  sem  me  preoccupar  com 
systemas  e  amaneirados  críticos. 

O  auctor  de  Marabá,  da  Mãe  d'Agua,  do  Leito  de  Folhas 
Verdes,  do  Gigante  de  Pedra,  do  Y  JucaPirania,  dos  Tym- 
biras,  que  é  também  o  auctor  das  Sextilhas  de  Frei  Antão^ 
isto  é,  o  auctor  do  que  ha  de  mais  nacional  e  do  que  ha  de 
mais  portuguez  em  nossa  litteratura,  é  um  dos  mais  nitidos 
exemplares  do  povo,  do  genuíno  povo  brasileiro.  E'  o  typo  do 
mestiço  physico  e  moral  de  que  tenho  falado  repetidas  vezes 
n'este  livro.  Gonçalves  Dias  era  filho  de  portuguez  e  mame- 
luca, quero  dizer,  descendia  das  três  raças  que  constituíram 
a  população  nacional  e  representava-lhes  as  principaes  ten- 
dências. 


HI8T0BIA  DA  LITTEnATUSA  BRASILEIRA  101 

O  mesliçamento,  como  se  sabe,  6  no  seu  inicio  uma  íonte 
de  perturbações  e  desequilíbrios. 

O  mestiço  é  o  depositário  de  tendências,  Índoles  e  incli- 
nações diversas,  que  nem  sempre  acham  um  ponto  de  apoio, 
ordem  e  flxidade.  D'ahi  o  seu  caracter  inquieto,  contradi- 
ctorio,  anormal.  Tal  a  razSLo  da  constante  turbulência  das 
populações  americanas. 

Creio  que  íoi  Herbert  Spencer  quem  primeiro  tirou  seguras 
illações  doesse  estado  physiologico  dos  povos  dò  continente 
para  a  sua  politica.  E'  de  esperar,  porém,  que  uma  mais 
forte  acção  do  tempo  acabe  por  trazer-nos  a  tranquillidade  or- 
gânica e  social  a  nós  os  americanos. 

Nosso  poeta  aos  africanos,  o  sangue  que  menos  lhe  corria 
nas  veias,  deveu  aquella  espansibilidade  de  que  era  dotado, 
aquella  ponta  de  alegria  que  não  o  deixou  jamais  e  que  espe- 
cialmente noto  em  suas  cartas. 

Aos  indígenas,  as  melancolias  súbitas,  a  resignação,  a  pas- 
sividade com  que  supportava  os  factos  e  acontecimentos, 
deixando-se  ir  ao  sabor  d'elles. 

Aos  portuguezes  deveu  o  bom  senso,  a  nitidez  e  clareza 
das  idéas,  a  religiosidade  que  o  não  abandonou  jamais,  a 
energia  da  vontade,  as  preoccupações  phantasistas,  um 
certo  ideialismo  mórbido  e  impalpável. 

Juntae  a  tudo  isto  fortes  impressões  de  luzes  e  cores  e 
vida  e  movimento,  fornecidas  pela  natureza  tropical,  que  se 
3xpande  pela  região  em  fora  que  vae  de  Caxias  a  São  Luiz, 
untae  ainda  as  scenas  marítimas  da  primeira  viagem  a  Por- 
ugral,  nâo  esqueçais  os  quadros  da  natureza  e  da  vida  pro- 
inciana  no  velho  reino,  e  nem  tão  pouco  os  panoramas  indes- 
riptiveis  do  Rio  de  Janeiro  e  região  circumvisínha ;  trazei 

esse  concurso  de  factos  e  circumstancias  as  leituras  dos 
oetas  latinos  e  modernos,  o  estudo  das  chronicas  coloniaes, 

tereis  os  elementos  predominantes  e  fundamentaes  do 
lento  poético  d'esse  valente  e  mimoso  lyrista. 

Se  Gonçalves  Dias  tivesse  sido  uma  mediocridade,  teria 
íado  exclusivamente  n'aquella  poesia  piegas  do  tempo  do 
'ovador  de  Coimbra,  nota  predominante  na  litteratura  por- 

iirsTORU  n  Jl 


1G2  HISTOBIA  DA  LITTERATUBA  BBABILSIBA 

tugueza  do  tempo  em  que  o  maranhense  fez  alli  o  curso  de 

direito. 

Garett,  Herculano  e  Castilho  em  4345,  annos  ulUmos 
passados  pelo  poeta  em  Portugal,  já  tinham  publicado  suas 
principaes  obras  e  já  eram  notabilidades  indiscutidas  lá. 
Mas  a  evolução  natural  do  romantismo  tinha  já  attingido  a 
phase  do  sentimentalismo  aíTectado  e  esterilisante.  O  mara- 
nhense, já  de  si  bastante  melancólico,  aprendeu  aquella  ma- 
neira e  deixou-se  eivar  da  moléstia  geral. 

O  sentimentalismo  é,  por  certo,  uma  das  notas  mais  inten- 
sas do  seu  trovar ;  é  preciso,  entretanto,  ser  muito  surdo  para 
^-  não  ouvir  que  um  intenso  naturalismo  americano,  um  certo 
mysticismo  religioso,  e  o  calor  e  a  effusáo  lyrica  juntam  ás 
notas  monótonas  d'aquelle  sentimentalismo  as  volatas  e  as 
íauiíarras  de  uma  poesia  variada,  ampla,  serena,  meiga, 
ousada  e  embriagadora. 

A  volta  do  poeta  para  o  Brasil,  sua  nova  estada  no  Mara- 
nhão, sua  subsequente  partida  para  o  Rio  de  Janeiro  entram 
como  factores  na  formação  de  seu  talento.  A's  primitivas 
impressões  americanas  tinham-se  juntado  as  impressões  do 
meio  portuguez.  Se  elle  tivesse  sempre  permanecido  alli,  se 
novas  sensações,  novas  fontes  de  vida  e  poesia  não  se  lhe 
viessem  juntar  no  espirito,  não  teria  passado,  como  Gonçalves 
Crespo,  de  um  poeta  delicado,  geitoso,  miniaturesco,  porém 
mediano. 

O  direito,  dizem  os  modernos  juristas  allemães  sectários 
do  darwinismo,  é  uma  funcção  da  vida  nacional,  é  um  pro- 
ducto  cultural  de  uma  raça,  de  um  povo  dado.  Póde-se  dizer 
L^,.  o  mesmo  da  poesia ;  ella  também  é  uma  funcção  da  vida 
nacional ;  uma  poesia  geral  para  todos  os  povos  é  alguma 
cousa  de  análogo  a  um  direito,  uma  lei  para  todas  as  nações. 

E'  por  isso  que  o  critério  ethnographico,  introduzido  por 
mim  na  critica  nacional  desde  1869-70,  é  ainda  hoje  a  meus 
olhos  a  base  principal  da  comprehensão  das  litteraturas, 
nomeadamente  a  litteratura  de  um  povo  misturado  como  o 
povo  brasileiro.  Emquanto  não  houver  aqui  uma  bem  nitida 
comprehensão  d'essa  ordem  de  ideias,  a  politica  e  a  vida 
social  serão  o  objecto  de  investigações  e  expedientes  pura- 


HISTOBIA  DA  LITTBKATURA  BBASILEIBA  163 

mente  empíricos,  a  litteratura  e  a  critica  serão  apenas  uma 
rhetorica  banal  mais  ou  menos  habilmenta  manejada. 

Quatro  séculos  foram  suíficientes  para  crêar  n^este  paiz 
uma  população  exclusivamente  nacional,  que  se  distingue 
já  perfeitamente  dos  factores  que  a  formaram,  população 
que  se  vae  cada  vez  mais  integrando  á  parte  e  tendendo  a 
regeitar  as  influencias  estranhas.  Logo  no  flm  de  dois  séculos 
o  Índio  tinha  dado  quasi  tudo  que  podia  dar  e  começou  a  ser 
considerado  como  força  inerte ;  ao  cabo  de  três  séculos  com- 
prehendeu-se  que  o  portuguez,  como  chefe,  era  já  um  obstá- 
culo e  separamo-nos  d'elle. 

Chegamos  depois  ao  ponto  de  dispensar  o  concurso  do 
negro ;  já  lhe  vedamos  ha  muito  as  entradas  com  a  extincção 
do  trafico,  e  não  contamos  só  com  elle  para  o  trabalho ; 
estamos  com  a  escravidão  acabada. 

O  significado  histórico  d'esses  factos  é  que  os  três  elementos 
primitivos  da  população  já  deram,  como  elementos  separados, 
o  que  tinham  de  dar;  o  povo  brasileiro  deve-se  considerar  t 
em  essência  constituído,  e,  a  esforços  de  trabalho,  energia, 
bom  senso  e  perseverança,  adquirir  o  seu  lugar  na  historia 
e  na  politica  do  mundo- 

Se,  porém,  acha  que  não  tem  ainda  forças  bastantes  para 
as  grandes  luctas  do  progresso,  se  ainda  precisa  do  auxilio 
de  braços  e  intelUgencias  de  estranhos,  dirija  a  innoculação 
dos  elementos  immigratorios  e  coloniaes  com  tino  e  cri- 
tério. Não  entregue  zonas  inteiras  aos  estrangeiros ;  espalhe- 
os  por  todo  o  paiz  e  assimile-os. 

Esta  é  que  é  a  ideia  patriótica,  ensinada  pela  historia  de 
nossa  própria  pátria,  sobre  a  immigração.  Não  os  planos, 
filhos  do  interesse  pessoal  de  espíritos  nocivos,  como  certos 
políticos  perigosos,  que  ainda  nos  podem  causar  males  irre- 
paráveis... 

Não  cesso  de  combater  ideias  que  julgo  prejudiciaes  ao 
progresso  e  á  unidade  do  povo  brasileiro. 

Em  um  paiz  como  o  nosso,  ainda  novo,  sem  tradições  bem 
formadas,  sem  cohesão  social  bem  compacta,  nunca  é  de 
mais  insistir  sobre  o  seu  caracter  popular  e  histórico. 

Ainda  mais  é  isto  indis^pensavel,  tt*atando-se  de  um  poeta 


164  HI8T0BIA  DA  XITTEBATURA  BRABILBIRÁ 

como  Gonçalves  Diais,  um  genuíno  brasileiro,  um  mestiço 
physico  e  moral,  que  será  ainda  por  muitos  séculos  uma  das 
mais  authenticas  manifestações  d'alma  d'este  povo. 

Uma  critica  mesquinha  e  incorrecta  espalhou  ahi  ter  sido 
o  poeta  maranhense  um  exaggerado  cantor  de  Índios,  nâo 
se  occupando  de  mais  nada.  Nâo  pôde  haver  maior  injus- 
tiça. 

A  verdade  é  que  o  poeta,  evidentemente  sem  plano  esco- 
lástico, espontaneamente  e  sem  impulsoâ  -doutrinários, 
deixou-se  influir  pela  vida  dos  selvagens,  como  em  Y 
JucorPirama  e  dez  outras  composições  ;  pelas  tradições  portu- 
guezas,  como  nas  Sextilhas  de  Frei  Antão  e  em  Leonor  de 
Mendonça ;  pelos  solTrimeaitos  dos  escravos  pretos,  como  na 
Escrava  e  na  Meditação. 

A  vida  e  os  sentimentos,  as  phantasías  dos  mestiços,  dos 
brasileiros  propriamente  ditos,  não  são  esquecisdos.  Bem  pelo 
contrario,  Marabá,  a  Mãe  d' Agua  e  vinte  outras  o  attestam. 
Um  talento,  como  o  de  Gonçalves  Dias,  não  podia  flcar  na 
poesia  pura  e  exclusivamente  indiana,  e  de  facto  não  ílcou.  A 
poesia  pessoal  e  subjectiva,  a  poesia  exterior  e  descriptiva, 
além  de  todas  aquellas  notas  acima  indicadas,  inebriaram 
a  alma  do  sonhador  brasileiro. 

O  mesmo  se  deu  com  Alencar,  que  tratou  do  índio  puro 
no  Ubiraiára,  do  índio  em  contacto  com  os .  colonisa- 
dores  em  Iracema  e  Guarany,  da  vida  colonial  nas  Minas  de 
Prata,  da  vida  dos  sertões  do  norte  no  Sertaneja,  da  vida  das 
fazendas  do  sul  em  Til  e  no  Tronco  do  Ipé,  da  vida  elegante 
do  Rio  de  Janeiro  em  Senhora,  Luciola,  Diva,  Sonhos  de 
Ouro,  de  nosso  viver  burguez  no  Demónio  Familiar...  Isto 
para  só  lembrar  suas  príncípaes  obras. 

Teria  sido  uma  lacuna  imperdoável,  se  esses  dois  grandes 
agitadores  da  lítteratura  brasileira  tivessem  odvídado  os  ín- 
dios ;  teria  sido  censurável  curteza  de  vistas,  se  nos  quizessem 
perpetuamente  molestar  com  elles.  Tiveram  o  bom  senso  de 
se  conservar  no  justo  meio  termo. 

Eu  bem  sei  que  houve  ahi  uma  hora  de  desvairamento 
em  que  se  quiz  pregar  como  verdade  absoluta  só  ser  brasi- 
leira a  producçâo  que  cheirasse  a  caboclos... 


HISTORIA  DA  LITTSEATURA  BRASILEIRA  165 

A  chamada  poesia  puramente  indiana  é  uma  poesia  biforme, 
que  nem  é  brasileira,  nem  indígena.  A  raça  selvagem,  com 
todos  os  encantos  e  allucinações  do  homem  criança,  virgem  e 
travessamente  agradável,  com  todos  os  apparentes  effluvios 
de  poesia  immensa,  é  hoje  vulto  mudo  a  esvair-se  no  centro  de 
nossa  vida,  na  marulho  de  nossa  civilisação.  N&o  quiz  ou  não 
poude  sentir  as  agitações>de  um  outro  viver,  escutar  os  ruidos 
de  outras  formas  de  anceios,  de  liberdade,  de  crenças,  de 
luctas  que  a  turba,  ás  vezes  tyrannica,  dos  conquistadores  lhe 
quiz  fazer  entender.  A  raça  selvagem  está  morta;  nós  não 
temos  nada  mais  a  temer  ou  a  esi)erar  d'ella.  O  colono  euro- 
peu não  teve  que  dar  grandes  batalhas  a  um  inimigo  tenaz  : 
teve, que  presenciar  o  desfilar  triste  e  compungidor  da  mul- 
tidão selvaticamente  boa  e  sympathica  dos  adoradores  de 
Tupan.,. 

Todos  conhecem  os  poucos  casos  de  resistência  da  parte 

dos  Índio,  todos  se  lembram  da  retirada  de  Japy-Assú  4 

frente  das  tribus  do  interior,  que  só  pararam,  diz  a  lenda, 

diante  do  Amazonas,  fo(rça  bastante  valente  para  as  fazer 

suster. 

O  espectáculo  é  triste  :  aqueJle  povo  não  tinha  o  sentimento 
profundo  e  apaixonado  da  pátria;  não  palpitava  n^eJle  ao 
meno3  o  valor  de  heróes,  que  inspirara  uma  pagina  bri- 
lhante da  historia  da  Grécia,  a  dignidade  de  fugir  combatendo 
que  nobihtou  a  reiirada  dos  Dez  Mil 

Ainda  hoje  foge  diante  da  civilisação.  Como  que  uma  lei 
desconhecida  o  repelle  para  longe  de  nossas  istituições ;  pa- 
rece que  Anhangá  borrifou  sobre  elle  todas  as  Icigrimas  da 
desgraçai... 

O  índio  não  representa,  entre  nós,  por  exemplo,  o  que 
em  França  significava  o  velho  fundo  da  população  gallo- 
romana,  o  terceiro  estado,  o  povo  que  fez  a  Revolução.  Em- 
balde se  procurará  um  serio  e  profundo  principio  social  e  civil 
ledxado  por  elle.  Em  pouco  modificou  o  génio,  o  caracter 
los  conquistadores. 

A  razão  está,  me  parece,  n'esta  lei  histórica  da  conquista  da 
America  :  quanto  mais  civilisada  era  a  população  indígena, 
anto  mais  résisUa  e  deixava  vestígios.  A  inversa  é  verda- 


166  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

deira.  As  dominações  dos  impérios  adiantados  do  México  e  do 
Peru  6  a  do  sedvalíco  Brasil  a  confirmam* 

Um  povo  que  fugiu  difficilmente  poderia  deixar  impressos 
no  vulto  do  que  lhe  occupou  o  lugar  os  seus  toques,  ainda 
os  mais  decisivos.  O  indio  não  ó  o  brasileiro.  O  /jue  este 
sente,  o  qua  busca,  o  que  espera,  o  que  crê,  não  é  o  que 
sentia,  procurava,  ou  cria  aquelie. 

Sáo,  pois,  o  génio,  a  força  primeára  do  brctsUeiro  e  não  os 
do  gentio  que  deivem  constituir  a  poesia,  a  litleratura  nacional. 

O  indio  não  deixou  uma  historia  por  onde  procurássemos 
reviver  sua  physionomia  perdida.  Não  nos  pôde  dar,  por 
exemplo,  o  roonance  histórico  ou  o  romance  de  costumes 
propriamente  taes.  Não  conhecemos  sua  vida  intima.  E  que 
no  fundo  hão  revelado  sobre  elle  quantos  o  têm  estudado  nos 
seus  romances  e  nos  seus  poemas  ?  O  que  tem  dito  se  reduz  a 
uma  exposição  de  usanças  meramente  exteriores,  conhecidas 
desde  o  século  xvi,  e  que  todos  trajam  de  um  só  modo  em 
ligor. 

Argumentam  com  P.  Cooper ;  é  umi  grave  equivoco.  A  glo- 
ria do  romancista  americano  provém  propriamente  de  seu 
estylo  vivo  e  penetrante ;  ^áo  de  haver  descripto  a  estatura  do 
selvagem,  no  que,  aliás,  ficou  atraz  de  Agostinho  Thíerry,  no 
pensar  de  Guizot. 

Ninguém  tomará,  certamente,  o  pinturista  historiador  fran- 
cez  por  um.  poeta  anglo-saxonia  ou  normando^  por  haver 
brilhantemente  descripto  esses  povos  ainda  em  estado  de  bar- 
baria. 

Cooper  também  nada  tem  de  pelle-vermelha.  Foi,  talvez, 
mais  feliz  nos  seus  romances  de  marinha.  Não  creou  uma  lit- 
teratura  para  sua  pátria,  por  haver  falado  de  selvagens  ;  Cha- 
teaubriand  o  precedera  e  tão  pouco  a  creara  para  lá  ou  para  a 
França.  Por  seu  talento  vivaz,  o  americano  imprimiu  ao  ro- 
mance histórico  uma  côr  mais  animada,  ainda  que  mais  falsa, 
do  que  lhe  dera  Walter-Scott,  e  mais  nada. 

Será  um  dos  fundadores  da  litteratura  de  seu  paiz  por 
outros  serviços,  não  especialmente  por  falar  de  caboclos,  que 
lá  se  acham  agora  reduzidos  a  diminutíssimo  numero,  e  ainda 
fugindo  da  civilisação,  que  lhes  causa  susto. 


HISTORIA  DA  LITTERATUiUk  BBAAILSIBA  l(i7 

O  senso  popular  despresou  tal  poesia,  porque  não  é  a  sua, 
porque  não  fala  das  suas  esperanças.  Os  mais  vulgares  prin- 
cípios darte  a  condeninam  lambem.  A  velha  e  soberana  ver- 
dade que  a  litteratura  é  a  grande  arteira,  o  pulso  da  socie- 
dade, que  sofTre  de  suas  agitações,  de  suas  anciãs,  também  se 
lhe  oppõe.  A  escola  puramente  indiana  está  desacreditada; 
os  melhores  poetas  do  paiz  andam  já  desde  muito  por  outro 
lado. 

O  pensamento  d'aquella  escola  encerra  para  quem  bem 
attender  á  estructura  actual  da  sociedade  brasileira,  quem 
reflectir  sobre  suas  leis  históricas,  alguma  cousa  que  é 
a  negação  do  génio  ryicionaL  Diz-nõs  em  sua  pretenção  de  glo- 
rias :  não  tendes  um  intimo  vosso,  não  podeis  achar  poesia  no 
vosso  próprio  ser,  sois  uma  estatua  morta,  sem  vida,  sem  pal- 
pitações, que  necessita  pedir  aos  homens,  perseguidos  por 
vossos  maiores,  um  enlevo  que  vos  inspire.  E'  pungente... 

Para  quem  assim  comprehende  as  cousas,  individualidade 
d'um  povo,  génio  d'uma  nação  é  palavra  balofa  que  no  brasi- 
leiro exprime  nada,  qua  só  no  tupy  pôde  achar  esse  quid 
ignoto  que  elle  nos  pôde  emprestar. 

A  nacionalidade  da  poesia  brasileira  só  pôde  ter  uma  solu- 
ção :  —  acostar-se  ao  génio,  ao  verdadeiro  espirito  populsu*, 
como  elle  sae  do  complexo  de  nossas  origens  ethnicas.  E'  uma 
questão  de  instincto  dos  povos  essa  do  nacionalismo  litterario. 
Isto  vem  espontaneamente ;  as  nações  têm  todas  uma  força 
particular  que  as  define  e  individualisa.  Todos  sabem  qual  é 
ella  no  inglez,  no  allemão,  no  francez...  Também  teremos,  se 
o  náo  temos  ainda  bem  definido,  o  nosso  espirito  próprio.  — ■ 
O  génio  doeste  paiz,  ainda  vago  e  indeterminado,  um  dia, 
ouso  esperal-o,  se  expandirá  aos  raios  de  um  forte  ideial  que 
o   ha-de  fecundar.   Andar,   porém,   estonteado  hoje,    como 
sempre,  no  empenho  de  nacionalisar  a  poesia,  a  litteratura, 
parece-me  cousa  igual  á  lucta  inútil  do  antigo  vidente,  do 
antigo  propheta  quando  buscava  furtar-se  á  acção  do  Deus 
jue  o  dominava...  O  indicio  nacional  ha-de  apparecer,  sem 
lue  haja  necessidade  de  o  procurar  adrede ;  o  poeta  é  antes 
le  tudo  homem  e  homem  de  um  paiz.  Seus  sentimentos  mais 


108  HI6T0RIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

arraigados,  ajs  inclinações  mais  íorles  de  seu  povo  hâo-de 
forçosamente  apparecer. 

'As  leis  da  selecção  na  litleratura  e  no  povo  brasileiro  dáo  a 
perceber  que  a  raça  que  ha-de  vir  a  triumphar  na  lucta  pela 
vida,  n'este  paiz,  é  a  raça  branca.  A  raça  selvagem  e  a  negra, 
uma  espoliada  pela  ooaiquista,  outra  embrutecida  pela  escra- 
vidão, pouco,  bem  pouco,  cnseguiráo  directamente  para  si. 
Os  seus  próprios  recursoa  volver-se-hio  em  vantagem  dos 
brancos. 

Prova-o  o  facto  do  cruzamento  em  que  tendem  a  predo- 
minar o  typo  &  a  Índole  do  europeu,  ajudado  pela  mescla  do 
sangue  selvagem  e  negro,  o  que  mais  o  habilita  a  supportar 
os  rigores  de  nosso  clima. 

Se  houvera  necessidade  de  fazer  applicação  rigorosa  ao  Bra- 
sil da  theoria  ethnologica  procurando  a  raça  que  definitiva- 
mente nos  represente,  melhor  que  Portugal  o  nosso  paiz  offe- 
rcceria  ampla  possibilidade  para  a  empreza;  porque  não 
fura  preciso  levantar  á  altura  de  uma  raça  uma  simples  classe 
da  população,  como  alli  praticou  alguém  com  os  mosarabes. 
Entre  nós  o  concurso  de  três  raças  inteiramente  distinctas, 
em  todo  o  rigor  de  expressão,  deu-nos  uma  sub-raça,  propria- 
mente brasileira-o  mestiço.  O  elemento  mais  progressivo  terá 
sido  o  branco,  que  vae  assimilando  o  que  de  necessário  á  vid)a 
lhe  podem  fornecer  os  outros  dois  factores. 

A  historia  o  prova ;  edla  nos  mostra  a  intelligencia  e  a  activi- 
dade mais  especialmente  residindo  no  branco  puro  ou  no  mes- 
tiço ;  e  nunca  no  indio  ou  no  negro  estremes  de  qualquer 
mistura. 

Mas  como  o  branco  inteiramente  puro,  cousa  que  se  vae 
tornando  cada  vez  mais  rara  no  paiz,  pouco  se  distinguiria  de 
seu  ascendente  europeu,  é  indispensável  convir  que  o  typo, 
a  encarnação  perfeita  do  genuino  brasileiro,  como  a  selecção 
biológica  e  histórica  o  tem  produzido,  está,  por  emquanto,  na 
vasta  classe  de  mestiços  de  toda  a  ordem  na  sua  ímmensa 
variedade  de  cores.         » 

Esta  grande  fusão  ainda  não  está  completa,  e  é  por  isso  que 
ainda  não  temos  um  espirito,  um  caracter  inteiramente  ori- 
ginal. 


HIBTOBIA  DA  LITTSBATURA  BRABILSIBA  169 

Minha  these,  em  resumo,  é  que  a  victoria  na  lucta  pela  vida, 
entre  nós,  pertencerá  no  porvir  ao  branco  ;  mas  que  este,  para 
esta  mesma  victoria,  attentas  as  agruras  do  clima,  tem  Udo 
necessidade  do  aproveilar-se  do  que  de  útil  as  outras  duas 
raças  lhe  têm  podido  fornecer,  maximé  a  preta,  com  que  tem 
mais  cruzado. 

Pela  selecção  natural,  todavia,  depois  de  prestado  o  auxilio 
de  que  necessita,  o  typo  branco  irá  tomando  a  preponde- 
rância até  mostrar-se  talvez  depurado  e  bello  como  no  velho 
mundo.  Será  quando  já  estiver  melhor  acclimado  no  conti- 
nente. 

Dous  factos  contribuirão  principalmente  para  tal  resultado  : 
de  um  lado  a  extincção  do  trafico  africano  e  o  desappareci- 
mento  constante  dos  indios,  e  de  outro  a  crescente  immi- 
gração  européa.  Esta,  porém,  deverá  ser  bem  dirigida,  deverá 
ser  bem  espalhada,  para  não  ser  desequilibrado  o  paiz,  e  não 
desapparecer  o  primitivo  elemento  portuguez,  que  nos  creou. 

A'  luz  de  taes  idéas,  de  accôrdo  com  as  vistas  mais  pro- 
fundas da  sciencia  de  hoje,  nenhum  é  o  papel  reservado  ao 
indianismo  exclusivo  e  systematico. 

O  leitor  comprehenderá  a  razão  de  discutir  eu  insistente- 
mente, tratando  de  Gonçalves  Dias,  a  questão  do  indianismo. 
Foi  uma  poesia  útil  como  um  tónico,  um  abalo  necessário  im- 
posto aos  nervos  de  nossos  burguezes  para  os  arredar  da  ma- 
nia das  imitações  européas ;  mas  não  podia  ser  exclusivista. 

Encaremos  ainda  mais  de  perto  o  nosso  auctor. 

Gonçalves  Dias  em  sua  carreira  propriamente  de  poeta  atra- 
vessou duas  phases,  ambas  muito  curtas,  porém  ambas  bem 
distinctas  uma  da  outra.  De  1840  a  1845  é  a  phase  de  Coimbra; 
o  poeta  escreveu  então  grande  parte  das  peças  que  figuram 
nos  Primeiros  Cantos.  As  melhores  d'este  volume,  é  verdade, 
foram  escriptas  no  Maranhão  nos  mezes  de  1845  a  46  que  o 
auctor  alli  passou. 

Desde  nimiero  são  as  poesias  Seus  Olhos  e  Adeus  aos  meus 
Amigos  do  Maranhão. 

Paço  aqui  incidentalmente  uma  notação  e  é  esta  :  de  decen- 
nio  em  decennio  a  lilteratura  brasileira  fez  no  xix  século  um 
progresso  que  se  assignalou  pela  publicação  de  um  livro  :  em 


170  HISTOBIA  DA  LITTERATUBA  BBA8ILBIBA 

1836  OS  Suspiros  poéticos  de  Magalhães,  em  18'j6  os  Primeiros 
Cantos  de  Gonçalves  Dias,  em  1856  o  Guarany  de  Alencar,  em 
1866  os  Cantos  e  Phantasias  de  Varella,  em  1876  o  Selvagem 
de  Couto  de  Magalhã.es  e  os  Ensaios  de  Sciencia  de  Baptista 
Caetano,  em  1886  os  Menores  e  Loucos  em  direito  criminal^ 
de  Tobias  Barretto. 

A  segunda  phase  da  vida  poética  de  Gonçalves  Dias  é  tam- 
bém de  cinco  annos  em  rigor,  vae  de  1845  a  1850 ;  pois  que 
os  Últimos  Cantos,  publicados  em  1851,  já  estavam  promptos 
desde  o  anno  anterior.  Depois  doesta  época  o  poeta^quasi 
mais  nada  produziu.  Náo  se  poderá  talvez  dizer  que  tenha 
influído  para  isto  em  qualquer  gráo  e  em  qualquer  sentido 
seu  casamento,  effectuado  em  1852. 

E'  preciso  definir  mais  directamente  o  talento  deste  mestiço. 

EUe  era  antes  e  acima  de  tudo  um  poeta  :  tinha  a  vibrati- 
lidade  das  sensações,  a  ideiaçáo  prompta  e  móbil,  a  lingua- 
gem fluida,  sonora  e  cadente,  o  espirito  sonhador  e  contem- 
plativo, a  imaginação  sempre  prompta  a  desferir  o  vôo.  Náo 
era  da  raça  d^aquelles  que  confudem  a  poesia  com  a  elo- 
quência, a  musica  d'alma  com  os  sons  de  um  instrumento. 

«  Ha  poetas,  diz  um  grande  critico,  ha  poetas  para  os  quaes 
a  poesia  é  um  instrumento  encantado,  a  rabeca  de  Paganini, 
ou  um  outro  instrumento  qualquer,  mas  em  summa  um  ins- 
trumento de  virtuosidade.  Ha  outros  para  quem  a  poesia  é 
uma  voz,  uma  Unguagem,  a  expressão  natural  e  espontânea 
d'alma.  Victor-Hugo  é  o  maior  d'entre  os  primeiros ;  Racine, 
André  Chenier,  Lamartine  sáo  da  ultima  familia.  » 

Gonçalves  Dias  é  também  doesta  derradeira  familia.  Entra 
bem  n'esse  grupo  seleccionado  por  Scherer,  auctor  d'aquellas 
palavras. 

Gonçalves  Dias  era  sobretudo  um  poeta,  já  disse ;  falta 
ajuntar  que  na  poesia  era  sobretudo  um  lyrico.  Mas  que  veni 
a  ser  um  lyrico  ?  Podem-se  dar  vinte  respostas  a  esta  per- 
gunta. 

Eugénio  Promentin,  o  illustre  pintor  e  critico,  assim  define 
o  género,  falfimdo  de  Rubens  : 

<(  Tout  cela  nous  conduit  à  une  déflnition  plus  complete  en- 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA  171 

core,  à  un  mot  que  je  vais  dire  et  qui  dirait  tout :  Rubens  ©st 
un  lyrique  et  le  plus  lyrique  de  tous  les  peintres.  Sa  prompti- 
tude  imaginative,  Tintensité  de  son  style,  son  rythme  sonare 
et  progressif,  la  partée  de  ca  rhythme,  son  trajet  pour  ainsi 
dire  vertical,  appelez  tout  cela  du  lyrisme,  et  vous  ne  serez 
pas  loin  de  la  vérité  »  (1). 

Para  Promentin  são,  pois,  a  promptidâo  da  imaginação,  a 
intensidade  do  estylo,  seu  rythmo  sonoro  e  progressivo,  a 
altura  d'este  rythmo,  que  constituem  a  essência  do  lyrismo. 

Não  é  precisamente  n'este  sentido  que  entendo  a  palavra  e 
o  facto  que  ella  exprime  ;  nâo  é  pelo  menos  n'este  sentido  que 
a  applico  a  Gonçalves  Dias.  Elle  tinha,  por  certo,  imaginação 
ágil,  tinha  brilho  de  estylo,  tinha  sonoridade  de  rythmo; 
porém  não  são  «ssas  as  qualidades  que  mais  o  distinguiram. 
Parecerme  que  a  justeza  do  sentimento,  a  doçura  das  ima- 
gens, a  delicadeza  das  tintas,  a  facilidade  das  ideas,  a  espon- 
taneidade da  forma,  o  vôo  sereno  de  todas  as  forças  mentaes, 
eram  de  preferencia  seus  predicados.  Tudo  isto  n'uma  alma 
profundamente  sincera. 

Eu  não  quero  tecer  encómios  ao  poeta ;  não  soii  um  fazedor 
de  elogios.  Não  quero  trepar  o  escriptor  maranhense  em 
pedestal  tão  alto  que  o  não  possa  depois  enxergar.  Estou  jul- 
gando o  poeta  em  primeira  instancia ;  estou  vendo-o  no  meio 
de  seus  pares  do  Brasil  e  de  Portugal ;  não  o  quero  equiparar 
aos  primeiros  lyristas  de  seu  século  em  todo  o  mundo,  ainda 
que,  estou  certo,  ella  seria  bem  recebido  em  tão  brilhante 
companhia. 

Percorrei  toda  a  collecção  dos  Cantos^  e  convencer-vos- 
heis  que  Seus  Olhos,  Rosa  no  Mar,  Lyra,  Os  Suspiros,  A  Temr 
pestade.  Não  me  deixes,  Zulmira,  A  Um>a  Poetisa,  Rola,  Ainda 
uma  vez  —  adeus,  A  Flor  de  Amor,  Gulnare  e  Mustaphá,  O 
Gigante  de  Pedra,  Leito  de  Folhas  Verdes,  Y-Juca-Pirama, 
Marabá,  A  Mãe  d' Agua,  Olhosi  Verdes,  Menina  e  Moça,  Ve- 
lhice e  Mocidade,  O  Anjo  da  Harmonia,  A  Concha  e  a  Virgem, 
Meu  Anjo  —  escuta,  O  Beijo,  Saudades  e  algumas  outras  são 

(1)  Les  Maltres  d'autrefois,  pag.  93. 


172  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

bellissimas  poesias,  das  mais  encantadoras  da  lingua  portu- 
gueza. 

Nâo  faço  especial  menção  dos  Tymbiras,  porque  não  passam 
elles  de  um  fragmento  de  poema  sem  caracter  épico,  d'onde 
se  colhem  apenas  alguns  pedaços  lyricos. 

Náo  é  preciso  citar  trechos  e  trechos  de  Gonçalves  Dias  para 
comprovar  o  que  tenho  avançado ;  porque  suas  obras  são  de 
íacil  accesso ;  elle  é,  com  Alvares  de  Azevedo,  Casimira  de 
Abreoi,  Fagundes  Varella  e  poucos  outros,  do  numero  dos 
\  poetas  mais  populares  no  Brasil.  Não  me  julgo,  porém,  deso- 
brigado de  indicar  ainda  algumas  notações  para  a  boa  com- 
prehensão  do  poeta. 

Teve,  como  em  parte  já  dissei,  perfeita  intuição  do  problema 

-  ethnographico  em  o  Brasil.  Não  se  deduz  este  facto  da  simples 

consideração  exterior  da  escolha  de  certos  assumptos.  Do 

intimo  de  alguns  cantos  brotam  as  notas  comprobatórias  do 

que  afflrmo. 

No  Gigante  de  Pedra  lè-se  isto  : 

((  E  no  féretro  de  montes 
Inconcusso,  immovel,  fito, 
Escurece  os  horisontes 
O  gigante  de  granito  : 
Com  soberba  indifferença 
Sente  extincta  a  antiga  crença 
Dos  Tamoyos,  dos  Pagés  ; 
Nem  vô  que  duras  desgraças, 
Que  luta^  de  novas  raças 
Se  lhe  atropellam  aos  pés! 

Viu  primeiro  os  íncolas 
Robustos  das  florestas, 
Batendo  os  arcos  rígidos, 
Traçando  homereas  festas, 
A'  luz  dos  fogos  rútilos, 
Aos  sons  do  murmure! 
E  em  Guanabara  esplendida 
As  danças  dos  guerreiros, 
E  o  guau  cadente  e  varío. 
Dos  moços  prazenteiros, 


EI8T0BIA  DA  LITTXSATITRA  BBABILXISA  173 

E  os  cantos  da  victoria 
Tangidos  no  boró. 

E  das  ygaras  concavas 
A  frota  aparelhada. 
Vistosa,  e  formosissima 
Cortando  a  undosa  estrada, 
Sabendo,  mais  que  frágeis. 
Os  ventos  contrastar  : 
£  a  caça  leda  e  rápida 
Por  serras,  por  devezas, 
E  os  cantos  da  janubia 
Junto  ás  lenhas  accesas, 
Quando  o*tapuya  mísero! 
Seus  feitos  vae  narrari 

E  o  gérmen  da  discórdia 
Crescendo  em  duras  brigas. 
Ceifando  os  brios  rústicos 
Das  iribus  sempre  amigas^ 
—  Tamoy  a  raça  cmtigua, 
Feroz  Tupinambâ! 
Lá  vae  a  gente  improvida, 
Naçáo  vencida,  imbelle. 
Buscando  as  matas  ínvias, 
D*onde  outra  tribu  a  expelle ; 
Jaz  o  page  sem  gloria. 
Sem  gloria  o  maracál 

Depois  em  náos  ílammivomas 
Um  troço  hardido  e  forte. 
Cobrindo  os  campos  húmidos 
De  fumo,  e  sangue,  e  morte. 
Traz  dos  reparos  hórridos 
D*altissimo  pavez  : 
E  do  sangrento  pélago 
Em  míseras  ruínas 
Surgir  galhardas,  límpidas 
As  poriuguezas  quinas. 
Murchos  os  lises  cândidos 
Do  improvido  gatUez!  n 


174  HISTORIA  DA  LITTBRATtntA  BEABILBIBA 

O  poeta  possuía  a  intuição  histórica  e  etlinica  d'este  paiz,  o 
que  importa  um  elogio,  attenta  a  ignorância,  por  assim  dizer 
systematica,  dos  nossos  homens  de  letras  em  tudo  o  que 
se  refere  a  assumptos  nacionaes. 

Presentiu,  adivinhou  intelligentemente  a  importância  das 
crenças  fetichistas  dos  aborígenes.  EUe  nâo  ficou  em  a  des- 
cripção  puramente  exterior  dos  costumes  indigenas.  Na  me- 
moria O  Brasil  e  a  Oceania  penetrou-lhes  nas  crenças,  e,  logo 
noa  primeiros  versos  dos  Tymbiras^  mostra  que  na  poesia 
comprehendia  a  importância  d'aquella  região  psychalogica  : 

((  Os  ritos  semi-barbaros  dos  Piagas, 
Cultores  de  Tupan,  e  a  terra  virgem 
D*onde  como  d'um  throno,  emíim  se  abriram 
Da  Cruz  de  Christo  os  piedosos  braços  ; 
As  festas,  e  batalhas  mal  sahgradas 
Do  povo  Americano,  agora  extincto, 
Hei-de  cantar  na  lyra...  » 

E'  conhecido  hoje  o  valor  especial  que  a  philosaphia  e  a 
sciencia  moderna  em  geral  ligam  ás  crenças  dos  selvagens  e 
do  homem  lírimitivo. 

Gonçalves  Dias,  com  ser  muito  catholico,  se  não  dedignou 
de  demorar-se  no  fetichismo  bárbaro. 

Creio  que  o  primeiro  que  o  elogiou  por  esta  face  partícula- 
rissima  foi  o  Sr.  Teixeira  Mendes  ;  acho-lhe  toda  razão,  sendo 
preciso  ajuntar  que  o  poeta  teve  em  geral  a  intuição  do  estado 
subjectivo  das  populações  brasileiras,  não  se  limitando  ao 
velho  fetichismo  tupy,  como  suppõe  o  Sr.  Mendes.  Os  docu- 
mentos d'esta  asserção  andam  esparsos  por  suas  obras,  bas- 
tando-me  lembrar  a  Mãe  d' Agua. 

Outra  nota  muito  particular  da  poesia  de  Gonçalves  Dias  é 
a  verdade  e  a  intensidade  de  tons  que  lhe  vem  de  seu  viver 
intimo,  psychologico.  O  poeta  soffreu  e  as  recordações  são  a 
trama  perpetua  de  sua  poesia.  Ainda  até  nas  descripções  de 
scenas  exteriores,  como  acontecia  ao  seu  coevo  Dutra  e  Mello, 
vinham  as  recordações  assaltal-o. 

Eu  sou  do  numero  d*aquelles  que  ainda  apreciam  a  poesia 
intima,  recordativa,  pessoal.  Paço  minhas  estas  palavras  de 


HISTORIA  DA  LITTEEATITBA  BRABILBIRA  175 

PrancescQ  de  Sanctis,  falando  das  Contemplações  de  Victor 
Hugo  : 

«  Indietro  dunque  1  acccttiamo  le  consolazione  che  il  poeta 
offre  a  sè,  e  ad  altrui,  e  viviamo  dí  memorie.  Autrefois  1  Di 
rimembranza  in  rimembranza,  di  dolop©  in  dolore,  giun- 
giaino  alia  nostra  etó  Úorita,  quando  per  noi  il  cielo  era  an- 
cora azzurro  ed  il  prato  ancor  verde  :  a  ciascuna  pagina  di 
queste  poesie  è  attaccata  una  nostra  memoria,  un  fantasma, 
che  ci  si  leva  ritto  dinanzi,  e  ci  dice  :  Ti  ricordi  ?  E  noi  bene- 
diciamo  la  poesia,  che  con  un  tratto  di  peaina  ci  apre  il  regno 
delia  mor\jò  ed  evoca  le  ombre  de  nostri  cari  »  (1). 

O  cónego  Fernandes  Pinheiro  dissa  uma  vee  que  os  Cân- 
ticos Fúnebres  de  Magalhães  são  superiores  ás  Contempla- 
ções de  Hugo.  Eu  náo  conheço  uma  igual  heresia  em  critica 
littteraria.  Não  cahirei  no  lapso  de  julgar  superiores  os  Cantos 
á  obra  magnifica  do  poeta  francez,  que  se  me  antolha  a  melhor 
de  quantas  produziu.  Nem  é  mais  aquelle  lyrismo  limpido 
e  brihante,  mas  de  curiós  horisontes  das  Odes  e  Bailadas  e 
das  Orientaes,  náo  é  também  aquella  poesia  ousada,  de  largas 
perspectivas,  mas  palavrosa,  da  Lenda  dos  Séculos,  da  Pie- 
dade Suprew4i  e  dos  últimos  livros  do  poeta.  E'  um  lyrismo 
valente,  impetuoso,  ardente  e  ao  mesmo  tempo  refle«ivo,  me- 
ditabundo, um  consorcio  soberbo  de  philosophia  e  poesia. 
Creio  não  errar  dizeaido  ser  aquelle  bello  livro  a  obra  mair 
irèsse  do  poeta  francez.  Os  Cantos  de  nosso  patrício  não  che- 
gam tâo  aJto ;  porem  supportariam  muito  melhor  o  parallelo 
do  que  os  Cânticos  Fúnebres  do  poeta  fluminense. 

Em  todo  caso,  o  pensamento  de  De  Sanctis  sobre  o  papel 
das  recordações,  das  memorias  da  alma  na  poesia  de  xix  sé- 
culo é  applicavel  aos  Cantos.  Ha  alli  muita  composição 
mimosa  que  são  como  folhas  arrancadas  do  coração  de  cada 
um  de  nós  todos  os  que  temos  soffrido  na  vida.  Ide  procural- 
as,  que  as  encontrareis. 

Ainda  uma  vez  —  adeus  I  pôde  servir  de  exemplo ;  sBo 

(1)  Saggi  CrUiei  di  Francesco  de  Sanctis,  terza  edizione,  Napoli,  1874. 


176  HISTORIA  DA  LITTEBATURA  BBABILBIKA 

estrophes  escriptas  com  o  sangue  qu6  brota  de  feridas  cau- 
sadas por  acerbos  soffrimentos  : 

«  Emíim  te  vejo!  —  emfim  posso, 
Curvado  a  teus  pés  dizer-te, 
Que  n&o  cessei  de  querer-te, 
Pezar  de  quanto  soíTri. 
Muito  penei!  Cruas  anciãs, 
Dos  teus  olhos  afastado, 
Houveram-me  acabrunhado, 
A  não  lembrar-me  de  til 

D*um  mundo  a  outi*o  impellido, 
Derramei  os  meus  lamentos 
Nas  surdas  azas  dos  ventos, 
Do  mar  na  crespa  cervizl 
Bedd&o,  ludibrio  da  sorte 
Em  terra  estranha,  entre  gente, 
Que  alheios  males  n&o  sente, 
Nem  se  condóe  do  infeliz! 

Louco,  afílicto,  a  saciar-me 
D*aggravar  minha  ferida, 
Tomou-me  tédio  da  vida. 
Passos  da  morte  senti. 
Mas  quasi  no  passo  extremo, 
No  ultimo  arcar  da  esperança, 
Tu  me  vieste  á  lembrança  : 
Quiz  viver  mais  e  vivi! 

Vivi ;  pois  Deus  me  guardava 
Para  este  lugar  e  hora! 
Depois  de  tanto,  senhora, 
Ver-te  e  falar-te  outra  vez  ; 
Rever-me  em  teu  rosto  amigo. 
Pensar  em  quanto  hei  perdido, 
E  este  pranto  dolorido 
Deixar  correr  a  teus  pés. 

■ 

Mas  que  tehs?  N&o  me  conheces? 
De  mim  afastas  teu  rosto? 
Pois  tanto  pôde  o  desgosto 
Transformar  o  rosto  meu? 


HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA  IV 

Sei  a  aiílicçfto  quanto  pôde, 
Sei  quanto  ella  desfigura, 
E  eu  nílo  vivi  na  ventura... 
Olha-me  bem,  que  sou  eu! 

Nenhuma  voz  me  dirígesl...  j 

Julgas-te  acaso  offendida?  1 

Deste-me  amor,  e  a  vida  j 

Que  m'a  darias  —  bem  sei ;  i 

Mas  lembrem-te  aquelles  feros 
Corações,  que  se  metteram 
Entre  nós,  e  se  venceram, 
Mal  sabes  quanto  lutei! 

Oh!  se  lutei!...  mas  devera 
Exp6r-te  em  publica  praça, 
Como  um  alvo  á  populaça, 
Um  alvo  aos  dicterios  seus! 
Devera,  podia  acaso 
Tal  sacriâcio  acceitar-te 
Para  no  cabo  pagar-te, 
Meus  dias  unindo  aos  teua? 

Devera,  sim  ;  mas  pensava. 
Que  de  mim,  ^esquecerias. 
Que,  sem  mim,  alegres  dias 
T'esperavam  ;  e  em  favor 
De  minhas  preces,  contava 
Que  o  bom  Deus  me  acceitcuria 
O  meu  quinhão  de  alegria 
Pelo  teu  quinhão  de  dôr! 

Que  me  enganei,  ora  o  vejo ; 
Nadam-te  os  olhos  em  pranto, 
Arfa-te  o  peito,  e  no  entanto 
Nem  me  podes  encarar ; 
Erro  foi,  mas  nfto  foi  crime, 
Nâo  te  esqueci,  eu  t'o  juro  ; 
Sacrifiquei  meu  futuro. 
Vida  e  gloria  por  te  amar!    - 

Tudo,  tudo  e  na  miséria 
D*um  martyrio  prolongado, 

HISTORIA  II  12 


178  HISTOBIA  PA  LITTEBATURA  BltABlUUBA 

Letito,  cruel,  disfarçado, 

Que  eu  nem  a  ti  conâei ; 

(( Ella  é  feliz  (me  dizia) 

((  Seu  descanço  é  obra  minha.  » 

Negou-m'o  a  sorte  mesquinha. 

Perdoa,  que  me  enganei! 

Tantos  encantos  me  tinham, 
Ta'nta  illus&o  me  eifagava 
De  noite,  quando  acordava. 
De  dia  em  sonhos  talvezl 
Tudo  isso  agora  onde  para? 
Onde  a  illusão  dos  meus  sonhos? 
Tantos  projectos  risonhos, 
Tudo  esse  engano  desfez! 

Enganei-mel...  Horrendo  cháos 
N^essas  palavras  se  encerra, 
Quando  do  engano,  quem  erra, 
Não  pode  voltar  atraz! 
A  marga  irris&ol  reflecte  :. 
Quando  eu  gozar-te  puderem 
Martyr  quiz  ser,  cuidei  qu'era... 
E  um  louco  fui,  nada  mais! 

Louco,  julguei  adomar-me 
Com  palmas  d'alta  virtude! 
Que  tinha  eu  bronco  e  rude 
Co*o  que  se  chama  ideial? 
O  meu  eras  tu,  não  outro  ; 
Stava  em  deixar  minha  vida 
Correr  por  ti  conduzida, 
Pura,  ha  ausência  do  mal. 

Pensar  eu  que  o  teu  destino 
Ligado  ao  meu,  outro  fora. 
Pensar  que  te  vejo  agora, 
Por  culpa  minha,  infeliz ; 
Pensar  que  a  tua  ventura 
Deus  ab  eterno  a  fizera, 
No  meu  caminho  a  puzera... 
E  eu!  eu  fui  que  a  não  quiz! 


J 


HI8T0BIA  DA  UTTX&ATUKA  BRA8ILSI&A  179 

E's  d*outro  agora,  e  p'ra  sempre! 
Eu  a  mísero  desterro 
Volto,  chorando  o  meu  erro, 
Quasi  descrendo  dos  céos! 
Doe-te  de  mim,  pois  me  encontras 
Em  ta'nta  miséria  posto, 
Que  a  express&o  d*este  desgosto 
Será  um  crime  ante  Deos! 

Doe-te  de  mim,  que  tlmploro 
Perd&o,  a  teus  pós  curvado ; 
Perdãol...  de  nâo  ter  ousado 
Viver  contente  e  felizl 
Perdão  da  minha  miséria. 
Da  dôr  que  me  rala  o  peito, 
E  se  do  mal  que  te  hei  feito, 
Também  do  mal  que  me  fiz! 

Adeus,  qu*eu  parto,  senhora ; 
Negou-me  o  fado  inimigo 
Passar  a  vida  comtigo. 
Ter  sepultura  entre  os  meus  : 
Negou-me  n'esta  hora  extrema, 
Por  extrema  despedida, 
Ouvir-te  a  voz  commovida 
Soluçar  um  breve  —  Adeus! 

Lerás  porem  algum  dia 
Meus  versos,  d'alma  arrancados, 
D'amargo  pranto  banhadoa. 
Com  sangue  escriptos,  ^  e  ent&o 
Confio  que  te  commovas, 
Que  a  minha  dór  te  apiade. 
Que  chores,  não  de  saudade. 
Nem  de  amor,  —  de  compaixfto.  » 


)  poeta  é  também  hábil  em  pintar  scenas  da  natureza  exte- 
r,  animados  quadros  da  terra  americana.  A  paisagem  em 
s  versos  ó  sempre  brasileira,  ou  se  trate  de  scenas  da  vida 


180  HISTOBIA  DA  LITTBBATUEA  BRASILEIRA 

social,  OU  da  vida  da  natureza.  Os  exemplos  superabundam. 
Leiam  estas  esirophes  de  Rosa  no  Mar  : 

(( Ia  a  virgem  descuidosa, 

Quando  a  rosa 
Do  seio  no  chão  lhe  cahe  : 
Vem  um'onda  bonançosa, 

Qulmpiedosa 
A  ílôr  comsigo  retrahe. 

Á  meiga  flor  sobrenada, 

De  agastada, 
A  virge'  a  não  quer  deixar! 
Bóia  a  ílôr,  a  virgem  bella 

Vai  traz  ella. 
Rente,  rente  á  beira  mar. 

Vem  a  onda  bonançosa. 

Vem  a  rosa. 
Foge  a  onda,  a  ílôr  também 
Se  a  onda  foge,  a  donzella 

Vai  sobre  ellal 
Mas  foge,  se  a  onda  vem. 

Muitas  vezes  enganada. 

De  enfadada 
Não  quer  deix€ur  de  insistir  ; 
Das  vagas  menos  se  espanta. 

Nem  com  tanta 
Presteza  lhes  quer  fugir.  » 

E'  uma  rápida  descripção  d*um  facto  simplissimo  e  feita 
com  grande  habilidade.  Quando  me  refiro  a  certa  viveza  de 
cores  e  de  descripção  em  Gonçalves  Dias,  deva  ajuntar  logo 
que  no  generoi  deixou  apenas  pequenos  quadros  esparsos  em 
suas  poesias. 

Não  estava  ainda  em  moda  a  descripção  moderníssima  que 
se  protrae  por  paginas  e  paginas.  Vejamos  uma  pequena 
scena  natural.  São  versos  dos  Tymbiras  : 

H  Era  a  hora  em  que  a  flor  balança  o  cálix 
Aos  doces  beijos  da  serena  brisa, 


HI8T0BIA  DA  XJTTSaATUIlA.  BRABILBIRA  181 

Quando  a  ema  soberba  alteia  o  collo, 

Roçando  apenas  o  matiz  relvoso; 

Quando  o  sol  vem  doirando  09  altos  montes, 

E  as  ledas  aves  á  porAa  trinam, 

E  a  verde  coma  dos  frondosos  cedros 

Move  o  perfume,  que  embalsama  os  ares ; 

Quando  a  corrente  meio  occulta  sôa 

De  sob  o  denso  véu  da  parda  névoa ; 

Quando  nos  pannos  das  mais  brancas  Yiuvens 

Desenha  a  aurora  melindrosos  quadros 

Gentis  orlados  com  listões  de  fogo ; 

Quando  o  vivo  carmim  do  esbelto  cactus 

Refulge  a  medo  abrilhantado  esmalte, 

Doce  poeira  de  aljofradas  gotas, 

Ou  pó  subtil  de  pérolas  desfeitas. 

Era  a  hora  gentil,  íilha  de  amores, 
Era  o  nascer  do  sol,  libando  as  meigas. 
Risonhas  faces  da  luzente  aurorai 
Era  o  canto  e  o  perfume,  a  luz  e  a  vida, 
Uma  só  coisa  e  muitas,  melhor  face 
Da  sempre  varia  e  bella  natureza  : 
Um  quadro  antigo,  que  já  vimos  todos. 
Que  todos  com  prazer  vemos  de  novo. 

Ama  o  filho  do  bosque  contemplar-te. 
Risonha  aurora,  ama  acordar  comtigo ; 
Ama  espreitar  hos  céus  a  luz  que  nasce, 
Ou  rósea  ou  branca,  já  carmim,  já  fogo. 
Já  tímidos  reflexos,  já  torrentes 
De  luz,  que  fere  obliqua  os  €dtos  cimos.  » 

E*  sóbria ;  mas  é  bello ;  a  simplicidade  aqui  nSLo  é  filha  da 
>breza,  mas  sim  da  doce  placidez  do  espirito. 
Fora  possível  estender  mais  esta  analyse ;  tenho,  porém, 
*e6sa  em  dizer  alguma  cousa  do  dramatista,  do  critico  e  do 
hnologo.  O  que  escrevi  do  poeia  é  sufflciente  para  dal-o  bem 
conhecer. 

O  theatro  de  Gonçalves  Dias  é  todo  de  obras  de  sua  verde 
)ciclade. 
:::onsta  dos  dramas  Boabdil,  Patkull^  Beatrice  de  Venci  e 


182  HISTOBIA  DA  LITTSRATUKA  BRABILIIBA 

Leonor  de  Mendonça.  Traduziu  também  a  Noiva  de  Messina 
de  Schiller. 

No  theatro  Gonçalves  Dias  não  se  elevou  tSo  alto  como  no 
lyrismo;  ainda  assim  seus  ensaios  dramáticos  sâo  revela- 
dores de  grande  talento.  Pôra  para  desejar  que  as  nossas 
emprezas  theatraes  levassem  sempre  á  scena.os  dramas  do 
auctor  meLranhense,  escriptos  em  linguagem  ampla  e  correcta, 
e  os  accompanhassem  dos  dramas  de  Agrario^das  comedias  de 
Penna,  e  dos  dramas  e  comedias  de  Macedo  e  Alencar. 

Seria  conveniente)  dar  de  vez  em  quando  aJguma  cousa  dos 
velhos,  Magalhães,  Porto-Alegre,  Norberto  Silva,  Ferreira 
França  e  dos  mais  modernos  VareJSo,  Castro  Lopes,  Machado 
de  Assis,  Távora  e  muitos  brasileiros  quô  I6m  cultivado 
o  género.  No  meio  de  muita  frandulaguem  sem  valor,  encon- 
Iram-se  muitos  trabalhos  de  merecimento,  que  o  grande  João 
Caetano  náo  se  dedignava  de  levar  á  scena. 

Tenhamos  n'isto  e  no  mais  um  poucachinho  de  patriotismo. 
Leonor  de  Mendonça  do  poeta  maranhense,  por  exemplo,  é 
um  bellissimo  drama. 

O  Conservatório  do  Rio  de  Janeiro  ineptam^nte  em  1846 
poz-lhe  embaraços  á  representação  a  pretexto  de  ser  incor- 
recto de  linguagem  I... 

Singularissima  censura  esta,  tratando-se  de  um  oscriptor, 
como  o  nosso  poeta,  de  todos  os  nossos  auctores  o  mais 
preoccupado  em  cingir-se  aos  modelos  clássicos  e  mais  che- 
gado ao  sestro  de  aportugxwzar  a  linguagem,  isto  é,  aflnal-a 
pelo  tom  do  velho  reino !... 

Se  eu  tivesse  de  fazer  uma  censura  a  Gonçalves  Dias  pelo 
lado  da  linguagem,  seria  justamente  a  inversa  &  que  lhe  foi 
dirigida  pelo  Consen^atorío,  a  saber,  o  pouco  brasiteirismo  de 
sua  lingua  e  de  seu  estylo.  N'este  ponto  Alencar  teve  a  cora- 
gem de  romper  com  todos  os  velhos  preconceitos,  deixando 
doflnitivamente  de  lado,  por  imprestáveis,  os  rigores  lusi- 
tanos. Basta^^  isto  para  ser  o  celebre  cearence  um  benemérito 
das  letras  brasileiras. 

Gonçalves  Dias  para  vingar-se  dos  seus  gratuitos  censores, 
conforme  é  fama,  escreveu  as  magnificas  Sextilhas  de  Prei 
Antão  oní  estylo  e  lingruagem  do  começo  do  século  xvii. 


HISTORIA  DA  LITTBRATimA  BBABILEIBA  183 

LeúnoT  de  Mendonça  é  precedida  de  um  excellente  prologo^ 
onde  o  auctor  expõe  os  seus  desígnios  e  ideias  sobre  a  axte« 

Ouçamol-o,  falando  de  sua  própria  obra  : «  Direi,  não  o  que 
flz,  mas  o  que  pretendi  fazer. 

A  acção  do  drama  é  a  morte  de  Leonor  de  Mendonça  por 
seu  marido  :  dizem  os  escriptores  do  tempo  que  D.  Jayme, 
induzido  por  falsas  apparencias,  matou  sua  mulher ;  dizem-no 
porém  de  tal  maneira,  que  facilmente  podemos  conjecturar 
que  não  foram  tão  falsas  as  apparencias  codno  elles  nol*as 
indicam.  O  auctor  podia  então  escolher  a  verdade  moral  ou  a 
verdade  histórica,  Lecmor  de  Mendonça  culpada  e  condem- 
nada,  oui  Leonor  de  Mendonça  innocente  e  assassinada.  Certo 
que  a  primeira  offerecia  mais  interesse  para  a  scena  e  maiis 
moral  para  o  drama ;  a  paixão  deveria  então  ser  forte,  tem- 
pestuosa e  frenética,  porque  fora  do  dever  não  ha  limite  nas 
acções  dos  homens  :  haveria  cansaço  o  abatimento  no  amor 
e  reacções  violentas  para  o  crime,  haveria  uma  lucta  tenaz  e 
continua  entre  os  sentimentos  da  mulher  e  os  da  esposa,  entre 
a  mãe  e  a  amante,  entre  o  dever  e  a  paixuo  :  no  fim  estaria  o 
remorso  e  o  castigo  e  n'elles  a  moral.  Ha  n'isto  matéria  para 
n>ais  de  um  bom  dramsu 

Leonor  de  Mendonça,  innocente  e  castigada,  será  infeliz, 
desesperada  ou  resignada.  Ora,  o  romorso,  é  mais  instructivo 
do  que  o  desespero  e  do  que  a  resignação,  como  o  crime 
é  mais  dramático  do  que  a  virtude  :  pena  é  que  assim  seja, 
mas  assim  é.  Se  em  prova  dMsto  me  fosse  preciso  trazer  algum 
exemplo,  eu  citaria  o  Paliero  de  Byron  e  o  Faliero  de  Dela- 
vígne. 

Porque  então  segui  o  peior  ?  E'  porque  tenho  para  mim  que 
ioda  a  obra  artística  ou  lítteraria  deve  conter  um  pensamento 
severo  :  debaixo  das  flores  da  poesia  deve  esconder-sei  uma 
verdade  incisiva  e  áspera,  como  diz  Victor  Hugo,  em  cada 
mulher  formosa  ha  sempre  um  esquehUo. 

Foi  este  pensamento,  a  fatalidade.  Não  aquella  fatalidade 
implacável  que  perseguiu  a  família  dos  Atridas,  nem  aquella 
outra  cega  e  terrível  que  Wemer  descreve  no  seu  drama  — 
Vinte  e  quatra  de  Fevereiro.  E'  a  fatalidade  cá  da  terra  a  que 
eu  quiz  descrever,  aquella  fatalidade  que  nada  tem  de  Deus 


184  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRÂ8ILSIBA 

e  tudo  dos  homens,  qufii  é  filha  das  circumstancias  e  que 
dimana  toda  dos  nossos  hábitos  e  da  nossa  civilisaçâo ;  aquella 
fatalidade,  emfim,  que  faz  com  que  um  hoonem  pratique  tal 
crime  porque  vive  em  tal  tempo,  n'estas  ou  n'aquellas  cir- 
cumstancias. Repito  :  não  analyso  o  que  fiz,  digo  apenas  o 
que  era  meu  desejo  fazer. 

Leonor  de  Mendonça  não  tem  nem  um  só  crime,  nem  um 
só  vicio ;  tem  só  defeitos.  D.  Jayme  nâo  tem  nem  crimes  nem 
vicios,  tem  também  e  somente  defeitos.  Os  defeitos  da  du- 
queza  sãQ  filhos  da  virt-ude ;  os  do  duque  são  filhos  da  des- 
graça :  a  virtude  que  é  santa,  a  desgraça  que  é  veneranda. 
Orai,  como  o  que  liga  o  homens  entre  si  não  é,  em  geral,  nem 
o  exercicio  nem  o  sentimento  da  virtrUde,  mas  sim  a  co-relação 
dos  defeitos,  a  duqueza  e  o  duque  não  se  poderiam  amar,  por- 
que eram  os  seus  defeitos  de  differente  natureza.  Quando 
algum  dia  a  luta  sa  tra.vasse  entre  eunbos,  o  mais  fori,e  espe- 
daçaria  o  mais  fraco ;  e  assim  foi. 

Ha  ahí  também  outro  pensamento  sobre  que  tanto  se  tem 
falado  e  nada  feito,  e  vem  a  ser  a  eterna  sujeição  das  mu- 
lheres, o  eterno  dominio  dos  homens.  Se  não  obrigassem 
D.  Jayme  a  casar  contra  a  sua  vontade,  não  haveria  o  casa- 
mento, nem  a  luta,  nem  o  crime.  Aqui  está  a  fatalidade,  que 
é  filha  dos  nossos  hábitos.  Se  a  mulher  não  fosse  escrava, 
como  é  de  facto,  ^ D.  Jayme  não  mataria  sua  mulher.  Houve 
n'essa  morte  a  fatalidade,  filha  da  civilisaçâo  que  foi  e  que 
ainda  é  hoje.  » 

Estas  ideias  são  sans  e  não  destoam  do  merecimento  da 
obra.  Não  ha  n'esta  aquella  riqueza  de  pensamentos  e  finas 
observações  sobre  os  dominios  recônditos  da  aJma  humana, 
que  fazem  o  assombro  de  quem  lê  Shakespeare.  Mas  quantos 
compartem  com  o  grande  dramatista  igual  thezouro?  Nem 
Byron,  e  nem  o  próprio  Goethe.  Por  essa  face  Shakespeare 
campêa  isolado.  Pôra  um  absurdo  tomar  essa  medida  para 
unidade  comparativa. 

Diz-se  vulgarmente  que  uma  obra  dramática  só  é  bem  apre- 
ciada quando  é  vista  no  palco.  O  próprio  Gonçalves  Dias  o 
repete  no  alludido  prologo  :  «  Se  o  drama  não  fôr  represen- 
tado, será  bom  como  obra  litteraria,  mas  nunca  como  drama.  » 


HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA  185 

Tenho  medo  de  dizer  uma  herezia;  porém,  peJo  que  me 
toca,  aprecio  mais  os  dramas,  especialmente  dos  grandes 
mestres,  quando  os  leio.  Se,  alem  da  leitura,  occorrer  uma 
boa  representação,  meu  conhecimento  da  obra  nâo  augmen- 
tará  grande  coisa,  quanto  á  obra  litteraria  em  si. 

Se  nunca  li  o  drama  e  só  o  ouvi  representar,  nada  sei  dizer 
sobre  elle,  porque  o  que  apreciei  no  palco  foi  o  trabalho  dos 
actores,  sua  voz,  seus  gestos,  seu  jogo  scenico,  seu  savoir  dire 
e  soogít  fcáxe  em  scena,  e  nâo  a  creação  do  poeta  directa- 
mente. 

Uma  representa^ção  theatral  é  uma  arte  que  se  sobrepõe  á 
outra  e  a  vela  em  grande  parte.  O  talento  dos  actores  produz 
uma  como  segunda  creação  que  pôde  até  certo  ponto  difflcul- 
tar  a  exacta  intelligencia  da  primeira. 

Nunca  vi  os  dramas  de  Gonçalves  Dias  em  scena.  Creio 
nâo  ser  um  impecilio  para  os  apreciar.  Leonor  de  Mendonça^ 
por  exemplo,  bem  representada,  bem  interpretada  por  actores 
de  forte  vôo  deve  ser  grandemente  drsimatica.  De  todo  o 
drama  o  Acto  II,  que  constitue  todo  elle  o  Quadro  terceiro,  é 
o  mais  bello,  especialmente  nas  scenas  V  e  VI.  As  scenas  pas- 
sam-se  em  casa  do  velho  Affon^  Alcoforado,  entre  elle  e  seus 
filhos  António,  Manoel  e  Laura.  O  moço  Anionio  Alcoforado 
tem  já  feito  declarações  á  Duqueza,  com  quem  deveria  ter  uma 
entrevista  á  noite  justamente  na  véspera  da  partida  do  moço 
para  a  Africa.  A  noite  é  caliginosa,  medonha ;  todos  acham 
imprudente  a  sabida  do  moço  a  deshoras  e  só.  O  velho  pae  não 
se  pode  conter  e  o  interpela.  Trava-se  forte  luta  no  espirito  de 
António  Alcoforado  entre  o  respeito  paterno,  o  amor  á  Du- 
queza,  o  dever  de  não  lhe  marear  o  nome,  confessando  o  seu 
intento,  e  a  obrigação  de  não  mentir.  O  lance  é  bello,  e  eil-o 
aqui  : 

ACTO  II,  SCENA  V, 
(O  Velho  Alcoforado,  Laura,  António  Alcoforado,  Manoel,  que  entra). 

Manoel  —  Eis  a  espada,  meu  irmão.  Boas  noites,  Laura. 
Laura.  —  Boas  noites,  irmão. 


186  HISTORIA  DA  LITTBRAtintA  BAABILBISA 

Manoel.  —  A  vossa  bençfto,  meu  pae. 

O  Velho.  —  Deus  vos  abençoe.  Trocastes  a  vossa  espada  T 

Manoel.  —  Nio,  meu  pae,  emprestou. 

O  Velho  —  Como  !  pois  ides  sahir,  António  ? 

Alcoforado.  —  Sim,  meu  pae  :  estava  só  á  espera  da  vossa 
benção  e  da  vossa  permissão. 

O  Velho. —  Iáe&... 
Alcoforado.  —  Vou... 

O  Velho.  —  Concebo  a  vossa  hesitação.  Como  é  amanhã  o 
dia  de  finados,  ides  orar  pelos  mortos,  como  é  de  um  bom 
chrístão. 

Alcoforado.  —  Não,  senhor. 

O  Velho.  —  Não  I...  Ah  1  sim  I...  Como  sois  bom  filho,  ide-s 
talvez  antes  de  vos  partirdes,  orar  sobre  a  sepultura  de  vossa 
mãe. 

Alcoforado.  —  Não,  senhor ! 

O  Vdho.  —  Não  !...  Ah  I  bem.  Como  sois  bom  amigo,  ides 
talvez  despedir-vos  dos  vossos  amigos. 

Alcoforado.  —  Não,  senhor. 

O  Velho.  —  Não !  Então  a  que  sahis  ? 

Alcoforado.  —  Não  me  interrogueis,  meu  pae. 

O  velho.  —  Ides  sozinho  ? 

Alcoforado.  —  Sozinho. 

O  Velho.  —  E  não  quereis  leivar  o  nosso  criado  na  vossa 
companhia  7 

Alcoforado.  —  Não  o  posso  levar. 

O  Velho.  —  Pois  eu  vos  digo  que  não  sahireis  sem  que  me 
digais  primeiro  o  que  vos  obriga  a  sahir. 

Alcoforada.  —  Peço-vos  que  me  não  interrogueis,  meu  pae. 

0  Velho.  —  Que  vos  não  interrogue  1...  Pretendeis  sahir  a 
deshoras  e  sem  testemunhas,  de  espada  e  com  os  vestidos  con- 
certados, e  não  quereis  que  vos  interrogue  I...  Ondes  ides  vós 
senhor? 

Alcoforado.  —  Eu  vol-o  supplico. 

O  Velho.  —  Oh  !  isto  merece  uma  explicação,  Retírai^vos. 


f 


BI8T0BIA  DA  LITTXSATUBA  BBABILEIBA  181 


SCENA  VI. 
(O  Velho  Alcoforado,  Alcoforado). 

O  Velho.  —  Vede  a  que  me  obrigam  os  voesos  mysterios, 
que  oxalá  não  sejam  escandalosodl...  Fazeis  que  um  pae 
expulse  seus  filhos  da  sua  presença,  porque  elle  terá  talvez 
de  voa  dizer  algumas  tfessas  rigidas  verdades  que  por  elles 
náo  devem  ser  ouvidas.  Onde  ides,  mancebo  ? 

Aleoiorado.  —  Senhor,  náo  o  posso  dizer. 

O  Velho.  —  Vós  náo  ides  cumprir  com  os  deveres  de  amigo, 
nena  de  fllho,  nem  de  christáo ;  ao  que  ides,  pois  7  Passar  tal- 
vez a  aoite  em  algum  lupanar,  ou  sobre  a  banca  do  jogo,  ou 
em  orgias  de  homens  intemperantes  e  envilecidos,  ou  escalar 
algum  muro  como  ladráo  nocturno  para  roubar  a  honra  de 
alguma  família  honesta,  ou  bater  surrateiramente  a  alguma 
porta  humana  para  pagar  a  recepção  cordial  que  durante  o 
dia  vos  fez  algum  homem  honrado  e  franco  com  a  traição  de 
um  libertino.  E*  infame ! 

Alcoforado.  —  Meu  pae. 

O  Velho.  —  Dizei,  senhor,  dizei  na  vossa  consciência  que 
não  ides  praticar  alguma  accao  criminosa. 

Aleoiorado.  —  Em  consciência,  náo  o  sei. 

O  Velho  —  Sei-o  eu,  senhor  I...  Sei  que  o  homem  que  mar- 
cha treda  e  cautelosamente  apalpando  as  trevas,  e  que  não 
ousa  confessar  altamente  as  suas  acções,  muito  se  assimilha 
aquella  ave  da  máo  agouro,  cujos  olhos  não  podem  supportar 
a  luz  do  dia,  cujo  canto  é  um  annuncio  de  desventura ;  sei 
que  tão  grande  mysterio  pôde  encobrir  uma  virtude  muito 
preclara,  ou  um  vicio  muito  vergonhoso.  Dizei  que  ides  pra- 
ticar uma  d'essas  virtudes  cobertas  com  o  preciso  manto  da 
modéstia,  diaphano  para  Deus,  impenetrável  para  os  ho- 
mens... 

Alcoforado.  —  Nunca  vos  menti,  senhor... 

O  Velho.  —  E  se  o  houvésseis  feito,  a  Providencia  Divina 


188  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRABILSISA 

que  VOS  guiasse  no  caminho  da  vida,  porque  teríeis  morrido 
para  mim.  Talvez  me  julgueis  severo  por  me  crerdes  pouco 
sensível,  o  por  suppordes  talvez  que  o  tempo,  que  gelou  o 
sangue  nas  minhas  veias,  já  me  fez  esquecer  da  quadra  em 
que  fui  da  vossa  idade,  emi  que  também  fui  novo  e  chedo  de 
esperanças  na  vida  e  em  que  tambeim  dizia  comigo  o  que 
agora  lá  vós  estaes  dizendo  comvosco  :  Além  n'aquelle  marco 
deixarei  este  caminho  e  tomarei  outra  vereda.  Não ;  sou  indul- 
gente  e  pouco  severo  a  ponto  de  vos  confessar  que  também 
fui  novo,  e  que  alguns  erros  commetti  quando  tinha  a  vossa 
idade.  Pois  quem  é  perfeito  n'este  mundo  ?  Mas  eu  vos  asse- 
guro que  a  minha  vida  escripta,  comquanto  em  parte  me  pe- 
zasse  d'ella,  não  me  traria  um  só  remorso,  nem  me  desconcei- 
tuaria  a  minha  velhice ;  asseguro-vos  ainda  que  em  vésperas 
de  um  dia  duas  vezes  sanctiflcado  pela  religiáo  e  pelo  senti- 
mento, nunca  8d)andoneà  eu  o  tecto  de  meus  pães,  como 
homem  sem  crença  e  filho  pouco  respeitoso,  para  me  entregar 
ás  carícias  de  uma  creatura  sem  pejo.  Ha  limites  em  tudo, 
mancebo. 

Alcoforado.  —  Senhor,  porque  me  suppondes  capaz  de  tão 
negro  feito,  ou  porque  vos  mereço  tal  conceito  ?  Acaso  me 
tenho  eu  mostrado  revel  aos  vossos  conselhos,  ou  terei  desa- 
prendido as  vossas  lições  ?  Não,  senhor  :  se  não  vou  praticar 
uma  virtude,  também  não  é  o  vicio  nem  o  críme  quem  lá  fora 
me  está  chamando.  Não  é  criminosa  a  acção  que  vou  praticar  : 
ju«ro-vos... 

O  Velho.  —  Jurai,  senhor,  jurai !  No  meu  tempo  o  hocnem 
que  ambicionava  uma  espada,  ou  que  já  a  podia  trazer  com- 
sigo,  tinha  o  juramento  por  uma  cousa  veneranda  e  sagrada, 
e  usava  d'ell6  apenas  nas  circumstancias  de  momento.  Era  o 
vassallo  que  jurava  lealdade  a  seu  rei ;  era  o  cidadão  que 
jurava  amor  a  sua  patría ;  era  oi  guerreiro  que  jurava  morrer 
com  o  seu  companheiro  d'armas.  Por  isto  o  juramento  era 
entre  elles  uma  religião,  e  os  mais  altos  como  os  mais  humil- 
des não  se  atreviam  a  quebral-o.  Hoje  porém  fizeram  d'elle 
uma  formula  para  os  usos  da  vida,  e  a  criança  desde  o  berço 
aprende  a  balbuc/iar  essa  palavra  vazia  de  sentido,  que  n'outra 
tempo  foi  symbolo  de  fé  e  era  condão  de  prodígios. 


HISTOBIA  DA  LITTSEATUBA  BKA8ILEIBA  18^ 

Alcolorado.  —  Como  vos  poderei  eu  conflar  um  segredo  que 
me  não  pertence  7  Ha  bem  tempo  que  vô-lo  teria  dito,  se  elle 
fosse  todo  meu,  e  se  a  minha  confissão  a  ninguém  mais  com- 
promeUesse.  Eu  vos  respeita  como  meu  pae,  eu  vos  amo  como 
amigo,  eu  vos  estimo  como  homem  probo  e  cheio  de  integri- 
dade ;  sei  que  é  impossível  trahirdes  um  segredo,  mas  devo 
eu  trahil-o  primeiro?  Aconselhae-me,  vós  que  tendes  expe- 
rencia  da  vida ;  dizei-mo,  que  sois  meu  mestre ;  posso  eu 
íazô-lo  ? 

O  Velho,  —  O  segredo  é  inviolável ;  tendes  razao. 

Alcoforado.  —  Deixai-me  então  sahir,  bom  pae.  Oh  1  se  sou- 
bésseis quanto  soffro  por  vos  não  poder  conflar  tudo  I...  Sede 
indulgente  mais  uma  vez,  talvez  a  derradeira.  Esta  demora 
me  tem  martyrisado ;  largos  annos  tenho  vivido  n'estes  cur^ 
tos  instantes  I  Deixai-me  partir. 

O  Velho.  —  E  não  ha  perigo  7 

Alcoforado.  —  Nenhum  !  nenhum  !  eu  vo-lo  asseguro. 

O  Velho.  —  E  aquella  espada  7 

Alcoforado.  —  Foi  um  capricho  de  meu  irmão  que  não  sabe 
a  que  vou.  Dir-lhe-hia  um  segredo  que  vos  não  digo  a  vós  7 
Bem  vedes  que  nada  arrisco  :  dexarei  a  espada,  e  é  até  melhor 
que  eu  vá  desarmado. 

O  Velho.  —  Levarás  a  espada  1 

Alcoforado.  —  Bom  pae,  quanto  vos  agradeço. 

O  Velho.  —  Vae,  e  Deus  seja  comligo. 

Alcoforado.  —  Irei  e  voltarei  bem  depressa  {cingindo  a 
espada)  o  mais  depressa  que  eu  puder.  Vereis  que  nada  me 
acontece.  Meu  Deus  I  como  partiria  eu  tão  alegre,  se  de  alguma 
cousa  me  arreceiasse. 

O  Velho.  —  Vae,  meu  fllho. 

Alcoforado.  —  Nada  recieis.  Adeus,  bom  pae.  (Vae-s^.) 

O  Velho  (ficando  pensativo  :  alguns  dobres  ao  longe.)  — 
Meu  fllho  I  meu  fllho  I...  (Vae-se.) 

E'  significativo  tudo  isto. 

Meu  desejo  seria  fazer  uma  historia  exhaustiva  da  littera- 


\ 


190  HI8T0BIA  DA  LITTBBATUBA  BBASILEIBA 

tura  brasileira ;  tudo  indagar  e  tudo  deixar  ver.  Do  theatro 
de  Gonçalves  Dias  haveria  bastantes  observações  a  tentar ; 
mas  é  urgente  rezumir  e  passar  adiante. 

O  poeta  dos  Tymbiras  deixou,  entre  outros  pequenos  escri- 
plos  em  prosa,  quatro  que  merecem  especial  menção  e  sâo 
estes  :  Reflexões  sobre  os  Annaes  históricos  do  Maranhão  por 
Berredo,  Resposta  á  Religião,  Amazonas  se  ellas  existiram  no 
Brasil,  O  Descobrimento  do  Brasil  por  pedro  Alvares  Cabral 
foi  devido  a  um  mero  acaso  ?  São  ensaios  sobre»  a  historia  de 
nossa  pátria. 

São  escriptos  n*aquelle  estylo  claro,  simples  e  barmonioso 
da  proisa  de  Gonçalves  Dias,  uma  das  melhores  do  Brasil«  o 
que  se  pôde  bem  ver  nos  bellos  prólogos  das  diversas  coileo- 
ções  de  Cantos  e  de  Leonor  de  Mendonça. 

N'este  numero  deveria  também  contar  a  celebre  critica  que 
fez  da  Independência  do  Brasil  de  Teixeira  e  Souza.  Isto  des- 
perta-me  uma  observação  que  não  devo  calar. 

Os  escriptores  da  épocha  romântica  quasi  tanto  como  os  de 
hoje  atacavam-se  com  desuzado  encarniçamento.  Gonçalves 
Dias,  de  ordinário  tão  pacato,  zurziu  desapiedadameaile  o 
pobre  poeta  dos  Três  Dias  de  um.  Noivado,  por  causa  de  seu 
poema  épico  A  Independência  do  Brasil.  Seguiu-se  José  de 
Alencar  que  flagellou  horrivelmente  a  Confederação  dos  Ta- 
moys  de  Magalhães ;  depois  Bernardo  Guimarães  sovou  niedo- 
nhamente  os  Tymbiras  de  Gonçalves  Dias  e  Franklin  Távora 
a  Iracema  de  Alencar. 

Foram  criticas  azedas,  de  caracter  puramente  polemistico 
e  irrita.ntei,  que  tiveram  porem  grande  echo. 

As  Reflexões  de  Gonçalves  Dias  sobre  os  Annaes  de  Berredo 
são  um  bello  artigo,  onde  lança  pela  primeira  vez  o  seu  brado 
de  sympathia  pela  raça  tupy,  indicando  o  muito  que  lhe  deve- 
mos. No  mesmo  espirito  é  o  artigo  em  resposta  ao  periódico 
A  Religião.  A  memoria  sobre  As  Amazonas  é  uma  resposta  a 
um  programma  do  Instituto  Histórico  apresentado  pelo  impe- 
rador D.  Petro  II. 

O  poeta  revelou-se  ahi  grande  conhecedor  dos  chronistas  e 
viajantes  dos  nossos  tempos  coloniaes,  e  com  subido  critério 


HISTO&IA  DA  LITTBSATUBA  BRABILBIRA  191 

desfez  o  rosário  de  sonhos  e  exaggeros  dos  que  crearam  e  pro- 
pagaram no  Brasil  similhante  lenda. 

Chamo  em  especial  a  attençâo  para  as  paginas  em  que  Gon- 
çalves Dias  fala  e  insiste  largamente  sobre  as  decantadas 
pedras  verdes,  as  pedras  das  Amazonas,  que  mais  tarde  vie- 
ram a  servir  para  enganosas  pretenções  de  Barbosa  Rodri- 
gues. Este  em  seus  escriptos  nunca  citou  o  poeta  (i)... 

Ig^ualmente  interessante,  ou  por  ventura  superior,  é  o 
escripto  sobre  o  descobrimento  do  Brasil.  Gonçalves  Dias  com- 
bate n'elle,  victoriosamente  ao  meu  vêr,  a  ideia  de  ler  sido 
proposital  a  chegada  ao  Brasil  da  parte  de  Pedro  Álvares  Ca- 
bral, ideia  esta  sustentada  galhardamente  por  Joaquim  Nor- 
berto de  Souza  Silva. 

Não  me  é  possível,  descer  a  uma  analyse  meiída  de  taes 

escriptos  nem  mesmo  da  interessantíssima  memoria  O  Brasil 
e  a  Oceania.  Esta  é  um  verdadeiro  livro  em  que  o  poeta  passou 
em  revista  o  que  nos  chronistas  e  viajantes  se  encontra  sobre 
os  povos  selvagens  do  Brasil  e  da  novíssima  parte  do  mundo 
no  intuito,  um  pouco  frívolo  em  verdade,  de  vêr  quaes  d'elles 
estavam  em  condições  mais  adequadas  para  receber  a  civili- 
saç&o  christan. 

A  parte  relativa  á  Oceania,  pelo  muito  que  já  sabemos  de 
seus  antigos  habitantes,  graças  sobretudo  i  sciencia  ingleza, 
está  hoje  muito  atrazada.  O  que  se  refere  aos  índios  do  Brasil 
ainda  agora,  apezar  de  bons  progressos  reaíisados  por  este 
lado,  pôde  lêr-se  com  proveito. 

Entre  outros  destaco  o  interessante  capítulo  —  Se  os  ame- 
ricanos caminhavam  para  o  progresso  ou  para  a  decadência ; 
o  que  pensamos  dos  tupys. 

Leiam-se  todos  estes  trabalhos  do  escríptor  maranhense  e 
ver-se^ha  bem  nitidamente  que  elle  não  foi  só  um  notável 
lyrista,  foá  também  um  destro  dramaturgo  e  um  homem  sabe- 
dor em  assumptos  de  historia  e  ethnographia  brasileira. 

Agora,  porém,  é  tempo  d^  ultimar  este  perfil  e  o  farei  em 
poucas  palavras. 

Tanto  quanto  soube  fazel-o,  mostrei  a  {ormação  biológica 
do  talento  de  Gonçalves  Dias,  indicando  o  que  elle  deveu  ás 

(1)  Vide  Obroê  PoêihumoB  de  Gonçalves  Diasi  toL  Hl»  pag.  270  e  seguintes. 


192  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRABILBI&A 

raças  que  o  formaram  e  ao  meio  em  que  viveu,  isto  é,  encarei-o 
no  seu  desenvolvimento  ontogenetico  e  em  suas  relações 
oom  a  philagenia  dos  povos  de  que  descende,  nâo  esquecendo 
a  adaptação  ao  ineio  de  Coimbra,  do  MsLranhio  e  do  Rio,  onde 
viveu  principalmente. 

Está  dito  tudo  ?  Nâo.  Resta  ainda  alguma  cousa  para  cara- 
cterisal-o  de  vez.  Resta  saber  o  que  d'elle  flcou  e  ficará  de  pé 
para  o  pensamento  do  povo  brasileiro,  emquanto  existir  um 
povo  brasileiro... 

A  lucta  pela  existência  na  litteratura  e  na  arte  tem  dois  mo- 
mentos capitães  :  um  que  é  feito  pelo  próprio  escriptor  em 
sua  vida,  e  outro  que  é  feito  pela  consciência  publica  e  pela 
historia  depois  de  sua  morte.  Este  ultimo  é  o  que  tem  maior 
alcance  e  definitivo  valor  (1). 

Têm-se  visto  mediocridades,  ajudadas  por  um  meio  pro- 
picio, levantarem-se  em  falsas  muletas  e  suspender  as  cabe- 
ças acima  do  nivel  commum,  a  ponto  de  todo  o  mundo  olhar 
para  ellas.  Mais  tarde  ha  uma  reversão,  allue-se  o  terreno  e  lá 
se  vae  por  elle  a  dentro  a  oollossal  figura,  que  estava  trepada 
nâo  em  pedestal  de  barro,  conforme  a  figura  biblica,  mas  em 
pernas  de  páo,  segundo  o  brinquedo  de  nossos  camponios... 

A*  vezes  também  dá-se  o  contrario ;  o  talento  e  o  próprio 
génio  nâo  podem  abrir  caminho  em  seu  tempo,  ou  só  o 
podem  limitadamente.  Mais  adiante  dá-se  o  que  se  pôde  cha- 
mar a  lucta  reversiva  pela  vida  no  seio  da  historia  e  as  ideias 
batidas,  e  repellidas  outr'ora  sahem  victoriosas  d'essa  pugna 
posthuma. 

A  historia  da  sciencia  e  a  da  litteratura  estão  cheáas  de  phe- 
nomenos  similhantes.  Victor  Cousin  não  será  um  exemplo  do 

(1)  Esta  linguagem  tomada  a  Darwin  e  Hâckel  é  aqui  a  mais  própria  para 
dar  a  explicaçáo  dos  phenomenos  litterarios.  Nem  é  uma  novidade  em  meus 
escriptos,  nomeadamente  na  LitteratU7*a  Brasileira  e  a  Critica  Moderna^ 
nos  Eêtudos  êobre  a  Poeêia  Popular  do  Brasil,  na  Introducção  á  Historia 
da  Litteratura  Brasileira^  e  n'este  livro,  principalmente  no  cap.  —  Tfieo 
riat  da  historia  do  Brasil  —  publicado  ha  muito  nos  Lucros  e  Perda»  e 
na  Revista  dos  Estudos  Livres  (de  Lisboa.) 

Não  se  deve  perder  de  vista  que  a  maior  parte  d'esta  obra  já  tinha  sahido 
impressa  em  jornaes  e  periódicos,  antes  de  apparecer  em  livro.  E'  assim  qve 
na  Gcueta  de  Noticias  de  23  de  dezembro  de  1886  sahiu  um  fragmento 
d'ella  em  que  vem  bem  accentuada  a  applicaç&o  da  lucta  darwiniana  na 
litteratura  e  nas  oòrcts  cParte:  E'o  cap.  I  d'este  volume. 


filBTOBIA  DA  LimSATintA  BBA8ILXISÁ  193 

primeiro  caso?  Shakespeare  e  Lamarck  não  serão  do  segundo? 

O  nosso  Gonçalves  Dias,  no  seu  pugnar  pelas  ideias,  pelo 
bello  e  pela  gloria,  não  foi  nem  um  derrotado,  nem  um  vicio- 
ríoso  d*esses  que  fazem  o  seu  caminho  por  entre  cem  bata- 
lhas. Elle  estava  mais  ou  menos  n'altura  de  seu  meio  e  de  seu 
momento  histórico,  e  esse  momento  era  uma  epocha  de  enthu- 
siasmo  e  esperanças  para  este  paiz. 

O  poeta  achou  a  formula  própria  d*essas  aspirações. 

D^^esse  syiichronismo  entre  o  seu  sentir  e  o  sentir  de  sua 
pátria  n'um  momento  dado  é  que  lhe  vem  o  mérito  e  a  natu- 
reza de  sua  gloria  :  uma  gloria  plácida  e  doce,  sem  ruidos ; 
mas  sem  abatimentos  e  eclipses. 

Que  é  que  ainda  vive  d'elle,  e  parece  que  viverá  sempre  ? 
Uma  dúzia  de  poesias  lyricas,  e  certamente  das  melhores  em 
que  uma  vez  se  vasou  a  lingua  de  Camões. 


CAPITULO 
Poesia.  —  Terceira  phase  do  romantismo. 

O  romantismo  brasileiro  não  ficou  estacionado  em  sua  se- 
gunda phase,  o  indianismo ;  passou  adiante  e  foi  espreitar  o 
que  se  fazia  no  grande  mundo,  no  estrangeiro,  para  implantar 
novos  achados,  novas  conquistas  em  nosso  paiz. 

Entretanto,  parece  singular  que  o  systema  litterarío,  que 
mais  parecia  coadunar-se  ao  espirito  nacional,  tenha  sido 
justamente  aquelle  que  menos  seiva  revelou  e  menos  fructos 
produziu.  E  assim  foi ;  o  indianismo  só  contou  dois  grandes 
cultores  n'este  paiz,  Gonçalves  Dias  na  poesia  e  José  d^Alencar 
no  romance. 

Os  outros  nossos  escriptores  caminharam  pol*  diverso  lado, 

msioRu  n  13 


194  HISTOBIA  DA  LITTESíIlTTTSA  BRABILBISA 

e,  se  por  acaso  cultivaram  de  passagem  o  género,  íoi  isso 
como  um  limitado  preito  prestado  a  tcLo  illustres  chefes. 

Magalhães,  por  espirito  de  imitação,  escreveu  a  Contede- 
ração  dos  Tamoyos ;  Norberto  Silva  escreveu,  em  igual  espi- 
rito, suas  Aifíiericanas ;  Machado  de  Assis,  pelo  mesmo  mo- 
tivo, as  suas ;  mas  isto  íoi  a  excepção. 

O  mesmo  em  Franklin  Távora,  com  o  seu  romance  Os  índios 
do  Jaguaribe,  e  Junqueira  Freire,  com  seus  versos  O  Hymno 
da  Cabocla.  São  casos  isolados.  Tal  se  pôde  dizer  dâ  Mello 
Moraes  Filho,  com  seus  Escravos  Vermelhos  e  seus  Mythos 
e  Poemas  e  de  Araripe  Júnior,  com  Jacyna-a  Marabá. 

Em  rigor,  só  conheço  dois  cultores  systematicos  e  teimosos 
do  indianismo  :  Macedo  Soares,  no  sul,  com  suas  poesias 
Almas  Errantes^  A  Maldição  do  Piaga,  O  Canto  da  Indiana^  e 
outras,  e  Santa  Helena  Magno,  no  norte,  em  seu  livro  dos 
Harpejos  Poéticos. 

Macedo  Soares,  porém,  bem  cedo  abandonou  a  poesia,  atí- 
rando-se  á  jurisprudência  e  á  linguistica,  e  Santa  Helena 
Magno  era  preferível  nos  seus  versos  de  caracter  mais  geral. 

Posteriormente  só  Vilhena  Alves  e  Severiano  Beeerra  na 
poesia,  José  Veríssimo  no  conto  e  Marques  de  Carvalho  no 
romance  têm  cultivado  mais  ou  meinos  o  indianismo.  Em 
regra,  repito,  o  género  só  teve  no  Brasil  dois  cultores  de  ele- 
vada estatura  :  o  poeta  do  Maranhão  e  o  romancista  do  Geará. 
Os  outros  dedicaram-lhe  um  ou  outro  momento  rápido  de  at- 
tenção. 

O  indianismo  não  teve  forças  para  constituir-se  principio 
dominante  e  avassallar  todas  as  intelligencias. 

Apezar  do  talento  de  Gonçalves  Dias,  os  jovens  poetas, 
seus  contemporâneos.  Alvares  de  Azevedo,  Bernardo  Guima- 
rães^ Aureliano  Lessa,  Almeida  Freitas,  Silveira  de  Souza^ 
Laurindo  Rabello,  José  Bonitacio,  Félix  da  Cunha^  Junqueira 
Freire,  Franco  de  Sá,  Augusto  de  Mendonça,  seguiram  outros 
caminhos.  E'  a  plêiada  que  constitue  a  terceira  phase  do  ro- 
mantismo brasileiro. 

Podem-se-lhe  juntar  os  nomes  de  Trajano  Galvão,  Pedro  de 
Calazans,  Teixeira  de  Mello,  Costa  Ribeiro,  Franklin  Dória, 
Casimvro  de  Abreu,  BUtenoourt  Sampaio,  Bruno  Seabra,  Pa- 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATITBA  BBA8ILXIRA  195 

gundes  Varella,  José  Maria  Gomes  de  Souza^  Pedro  Luiz, 
Souza  Andrade,  J.  Coriolano,  Gentil  Homem,  Joaquim  Serra, 
Rozendo  Moniz,  Ferreira  de  Menezes  e  vinte  outros. 

O  leitor  não  esmoreça...  Tantos  nomes,  e  ainda  está  na 
terceira  phase  do  romantismo  e  entre  os  poetas...  Seria  um 
não  acabar  mais,  se  fora  a  desenvolver  toda  essa  gente  e 
outros. tantos  que  ainda  ahi  faltam. 

Felizmente  em  historia  litteraria  dá-se  alguma  cousa  de 
parecido  ao  que  acontece  em  grammatica.  Ahi  não  ha  neces- 
sidade de  declinar  todos  06  nomes  e  conjugar  todos  os  verbos. 
Dão-se  os  paradigmas  das  declinações  e  conjugações  regulares 
e-  tanto  basta.  A  indicação  dos  phenomenos  irregulares  vem 
completar  a  theoría  e  ilca  tudo  acabado. 

O  mesmo  pi6de-se  ir  aqui  praticando ;  ha  poetas  que  se  con- 
jugam por  outros ;  basta  referil-os  aos  seus  respectivos  para- 
digmas. Assim  será  que  dos  muitos  acima  lembrados,  bastará 
conjugar  os  irregulares,  quero  dizer,  bastará  interrogar  de 
perto  os  espíritos  originaes,  aquelles  que  de  qualquer  forma 
e  em  qualquer  gráo  iíiíluiram  no  desenvolvimento  littera- 
rio  do  paiz. 

Não  se  espante,  por  outro  lado,  o  leitor  de  não  ver  entre 
tantos  poetas,  alguns  bem  medíocres,  os  nomes  de  Manoel  de 
Macedo  e  Machado  de  Assis,  por  exemplo.  Peço-lhe  para  não 
esquecer  que  elles  o  outros  irão  figurar  entre  romancistas  c 
dramaturgos. 

Manoel  António  Alvares  de  Azevedo  (1831-1852).  E'  um 
dos  poetas  mais  lidos  e  amados  no  Brasil ;  elle  mais  pelos 
estudantes  e  Casimiro  de  Abreu  mais  pelas  moças.  Gonçalves 
Dias,  Castro  Alves  e  Fagundes  Varella  vêm  logo  após  na  popu- 
laridade. Isto  no  Brasil  em  geral ;  porquanto,  no  norte  em 
especial,  nenhum  é  mais  lido  e  mais  recitado  do  que  Tobias 
Barretlo,  sendo  para  lembrar  que  a  notoriedade  d*osle  tende 
a  augmontar  em  todo  o  paiz,  ao  passo  que  a  dos  outros  leni 
permanecido  estacionaria. 

Vê-se  bem  que  me  reíiro  ao  puro  movimento  romântico ; 
hodiernamente  novos  poetas,  alentados  por  outros  impulsos 
c  por  outros  ideiaos,  vão  tomando  a  dianteira  c  é  bom  possivol 


196  HI8T0BIA  BA  LITTBRATUBA  BBABILBX&â. 

que  algum  venha  a  gozar  brevemente  de  grande  popularidade. 

Como  quer  que  seja,  ainda  entre  eJles  nâo  existe  nenhum 
que  haja  angarriado, entre  os  oontemporeanos  Oi  enorme  pres- 
tigio desfructado  pelos  cinco  românticos  ha  pouco  lembrados, 
nem  até  a  influencia  de  segunda  ordenu  exercida  por  Jun- 
queira Freire  e  Bernardo  Guimarães.  Mas,  por  emquanto, 
ainda  é  cedo.  Em  todo  caso,  ninguém  fará  esquecer  a  figura 
sympathica  do  sonhador  da  Lyra  dos  Vinte  Annos. 

Este  moço  nao  tem  biographia  no  sentido  technico  e  mono- 
tono  da  palavra.  Foi  filho  de  um  estudante  de  direito,  natural 
do  Rio  de  Janeiro,  e  que  fazia  seu  curso  em  S.  Paulo.  O 
menino  nasceu  n'esta  ultima  cidade  n'aquelle  memorável 
anno  de»  1831  que  viu  sahir  do  Brasil  D.  Pedro  I  e  inaugurar- 
se  a  Regência.  O  menino  não  devia  passar  nunca  de  estu- 
dante. 

Quando  o  segundo  reinado  se  inaugurava  em  1840,  o  pe- 
queno começava  seus  primeiros  estudos.  Em  1847  bachare- 
lava-se  em  leiras  no  Imperial  Collegio  de  Pedro  2.*,  em  1848, 
no  anno  da  revolução  de  Pernambuco,  já  o  heróico  mancebo 
achava-se  em  S.  Paulo  a  cursar  os  estudos  jurídicos.  De  48  a 
5i  Azevedo  viveu  n'aquella  cidade. 

N'estes  quatro  annos  escreveu  elle  tudo  que  deixou.  Fal- 
leceu  em  abril  de  52  no  Rio  de  Janeiro. 

O  decennio  de  46  a  56  é  a  phase  culminante  do  romantismo 
brasileiro,  já  o  disse,  e  não  é  escusado  repetil-o  para  lembrar 
que  a  figura  mais  alta  da  epocha  é,  após  Dias  e  Alencar,  incon- 
testavelmente o  moço  auctor  de  Macário. 

Qualquer  que  íeja  nossa  actual  presumpçâo  e  o  nosso  alTc- 
ctado  desdém  de  hoje  pelas  nossas  Faculdades  de  Direito,  des- 
dém reflexo  e  de  imitação,  sem  fundamento  serio,  a  historia 
não  poderá  negar  terem  sido  essas  Faculdades  a  grande  pepi- 
nièrc  d'onde  têm  sabido  os  mais  notáveis  obreiros  de  nossa 
politica  e  de  nossas  leiras. 

O  tempo  de  Alvares  de  Azevedo  fod,  especialmente  em  S. 
Paulo,  uma  phase  de  agitação,  de  liberalismo,  de  enthu- 
siasmo,  do  ronioonionto  de  ideias  e  opiniões.  Alli  se  acharam 
reunidos  aquelles  moços  que  levaram  por  dante  os  dois 
maiores  pnenomcnos  da  litteratura  da  epocha. 


HI8T0BIA  DA  LITTERÁTT7SA  BBASILEIBA  197 

Em  Azevedo  melhor  do  que  e»m  nenhum  outro  distingo  eu 
os  dois  symptomas  :  l.®  é  elle  um  producto  local,  indígena, 
filho  de  um  meio  intellectual,  de  uma  academia  brasileira; 
2."*  arranca-nos  de  uma  vez  da  influencia  exclusiva  portugueza. 

Antes  de  Azevedo,  os  outros  chefes,  coíno  Porto  Alegre, 
Magalhães  e  Gonçalves  Dias,  tinham  ido  estudar  na  Europa. 
Já  nem  falo  nos  escriptores  coloniaes,  porque  quasi  todos 
elles  fizeram  cursos  no  velho  mundo. 

A  crèaçcLo  de  faculdades  brasileiras  foi  de  um  alcance  intel- 
lectual extraordinário ;  logo  na  esphera  politica  e  administra- 
tiva começamos  a  ter  homens,  como  Euzebio,  Zacharias, 
Nabuco,  Rio  Branco  e  oitenta  outros  qua  sâo  filhos  de  aca- 
demias nacionaes  e  alguns  d'elles  não  puzcram  jamais  os 
pés  na  Europa,  ou  os  puzeram  rapidamente.  Foram  sempre 
os  melhores.  O  mesmo  se  deu  na  litteratura.  Azevedo,  Ber- 
nardo Guimarães,  Junqueira  Freire,  Macedo,  Agrario,  Alen* 
car,  Lessa,  Laurindo,  Penna  são  filhos  de  escolas  nacionaes  e 
com  elles  tudo  o  que  ha  de  mais  illustre  em  nossa  vida  espiri- 
tual no  XEX  século.  Penna  só  foi  ao  velho  mundo  colher  a 
morte  e  Alencar  apressal-a  mais. 

A  litteratura  de  um  povo  incipiente  deve  ter  desses  obreiros 
afferrados  ao  solo,  d'esses  que  preferem  ficar  no  seu  paiz, 
conservando  o  pouco  que  saíem,  a  ir  esbanjal-o  por  ahi  al- 
gures. 

Bem  profundas  são  as  palavras  de  Jacob  Grimm  :  «  E'  pre- 
ferível aprender  sem  viajar  do  que  viajar  sem  aprender ; 
porque  o  menos  que  pôde  succeder  é  esquecer  o  pouco  que 
se  sabe  no  meio  do  muito  que  se  ignora.  » 

Magnifico  pensamento  de  um  grande  homem  e  que  deveria 
ser  uma  espécie  de  imperativo  categórico  para  os  escriptores 
brasileiros. 

O  segundo  feito  de  Azevedo,  que  o  compartilha  com  seus 
companheiros  de  luctas,  é,  ao  envez  do  que  se  poderia  pensar, 
um  corollario  do  primeiro.  Desde  que  não  houve  mais  neces- 
sidade de  ir  a  Coimbra  buscar  instrucção,  desd-e  que  se  podia 
ficar  na  pátria  e  educar  o  espirito,  não  houve  mais  o  mono- 
pólio dos  auctores  da  antiga  metrópole. 

Não  ha  nada  mais  escusado  na  esphera  dos  phenomenos 


198  HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBA  BRABILSOtA 

inlellectuaes  do  que  a  pretençáo  d^alguns  escriptores  portu- 
guezes  quererem  insinuar-se  como  intermediários  entre  nós 
e  a  sciencia  e  litteratura  européas  I... 

Pois  se  posso  ler  o  darwinismo  em  Darwin,  o  comlisnio 
em  Comta,  o  pessimismo  em  Schopenhauer^  a  philosophia  do 
Inconsciente  em  Hartmann ;  se  posso  ler  o  meu  Hâckel,  o 
meu  Strauss,  o  meu  Ihering,  o  meai  Noiré,  o  meu  Spencer ; 
se  nâo  conheço  melhor  Hamlet  do  que  o  de  Shakespeare,  nem 
consta  haver  melhor  ChUd-Harold  do  que  o  de  Byron,  psira 
que  ir  ali  a  quem  quer  que  seja  pedir  auxilio  7 

Azevedo  comprehendeu-ò  logo,  e  andou  sempre  a  lembrar 
e  a  citar  os  bons  escriptores  gregos,  latinos,  inglezes,  ita- 
lianos, allemães  e  fraiicezes.  Especialmente  Shakespeare, 
Tasso,  Byron,  Werner,  Musset,  Victor  Hugo  e  Sand  são  os 
seus  auctores  predilectos. 

Para  o  universalismo  litlerario  de  nosso  romantismo,  espe- 
cialmente na  phase  historiada  agora,  parece  ter  sido  de  grande 
influxo  a  acção  mental  exercida  na  mocidade  do  tempo,  íjup 
se  preparava  no  Rio  de  Janeiro  para  os  cursos  superiores,  por 
um  punhado  de  estrangeiros  illustradissimos,  especialmente 
inglezes  e  allemães,  que  eram  então  a  gloria  do  magistério 
secundário  no  Brasil. 

Por  esta  face  e  n'este  sentido  devo  aqui  consignar,  como 
operários  eméritos  de  nosso  progresso  mental,  os  nomes  de 
Planitz,  Tautphoeus,  Calogeras,  Freesa  no  Rio  de  Janeiro, 
e  Júlio  Pranck  em  Sâo  Paulo. 

O  gosto  pela  leitura  e  a  forte  instrucçâo  preparatória,  Aze- 
vedo levou-os  do  Rio  de  Janeiro.  Levou»  d'aqui  também  as 
tintas  de  sua  imaginação  desperta  pela  belleza  primaveril 
d'esta  região.  São  Paulo  deu-lhe  o  gosto  de  escrever,  a  emu- 
lação, o  enthusiasmo,  a  vida  livre  do  académico,  o  desvaira- 
mento.da  poesia  da  epocha. 

Juntae  a  tudo  isto  a  melancólica  innata,  oriunda  de  um 
temperamento  franzino  e  enfermo,  e  tereis  os  elementos  d'essa 
intelligencia  e  desvendar-se-vos-hão  os  segredos  d'aquclle 
coração. 

Eu  não  quero  decompol-o.  Repugna-me  ás  vezes  este  offlcío 
de  anatomista  do  espirito.   Ha  uma  certa   impiedade  em 


*■»! 


.  HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  BBABILEISA  199 

netrar  assim  indiscreta  e  brutalmente  pela  alma  a  dentro 
de  um  poeta,  de  um  homem  que  soffreu,  ainda  mesmo  quando 
este  homem  e  este  poeta  sáo  um^  mancebo  de  vinte  annos, 
quasi  virgem  de  senUmientos. 

Procederei  por  outro  modo ;  antes  pintor  que  anatomista, 
antes  uma  teda  do  que  uma  mesa  de  operações. 

Muito  se  tem  escripto  de  Alvares  de  Azevedo ;  mas  é  licito 
ainda  hoje  pôr  em  duvida  que  o  poeta  haja  sido  bem  estu- 
dado. 

A  rhetoríca  maléfica  descobriu  que  elle  se  impregnara  do 
espirito  de  Byron  e  Musset  e  se  flzeora  sceptico.  Isto  é  dizer 
muito  pouco,  é  quasi  nada  dizer. 

Resta  ainda  e  sempre  determinar  os  motivos  d'essas  predi- 
lecções dio  poeta  e  definir  a  natureza  de  seu  scepticismo. 
Sceptica  é  quasi  toda  a  gente,  é  quasi  o  mundo  inteiro.  A  gene- 
ralidade do  qualificativo  não  tem  forçai  de  definir. 

As  preoccupações  da  velha  critica  nâo  ficaram  ahi ;  foram 
adiante  e  levantaram  o  problema  de  saber  se  o  poeta  era  sin- 
cero no  seu  scepticismo,  em  sua  descrença,  nas  suas  idéas, 
no  seu  modo  de  viver. 

Pormaram-se  logo  dois  partidos  :  uns  affirmavam  que  o 
moço  escriptor  era  um  espirito  meigo,  delicado,  virgem,  puro 
e  singelo,  náo  conhecendo  as  diabruras  e  irregularidades  da 
vida  senão  pelos  livros  dos  poetas  e  romancistas  românticos. 

D'est'arte,  seus  sentimentos  eram  impoUutos,  seu  viver  reca- 
tado, seu  corpo  estreme  de  qualquer  impureza.  Nada  de  cha- 
rutos, de  vinho,  de  cognac,  de  passeiatas,  de  sucias,  de  bebe- 
deiras, de  lúbricos  prazeres  com  as  mulheres  perdidas. 

O  poeta  era  um  solitário ;  seus  desvarios  eram  puros  jogos, 
innocentes  brincos  de  sua  imaginação... 

Os  que  assim  têm  discreteado,  suppondo  elevar  o  caracter 
do  mc^ço  escriptor,  aviltam-no  de  facto,  reduzindo-o  a  uma 
espécie  de  maniaco,  um  ente  mórbido,  entregue  talvez  a 
algum  vicio  occulto. 

E'  escusado  lembrar  que,  deturpado  o  caracter  do  joven 
poeta,  estragam  também  a  sua  obra,  que  fica  reduzida  a  uma 
cousa  aeria,  imponderável,  phantastica  e  nulla. 


HI8T0SIA  DA  LITTERATUBA  BSASILBIBA 

Outros,  julgando-se  muito  desabusados^  tombam  para  o 
extremo  opposto.  Pintam  o  autor  da  Noite  na  Taverna  como 
um  monstrengo  moral,  um  ser  depravado,  corrupto,  ébrio, 
devasso,  mettido  em  extravagâncias  e  desatinos  de  toda  a 
casta.  Estes  suppõem  elevar  a  obra,  deturpando  o  caracter  do 
homem.  Tudo  isto  é  falso,  íalsissimo. 

Nem  anjo,  nem  demónio. 

Foi  uma  natureza  intelligente  e  ideialista,  porém  mórbida, 
desequilibrada  de  origem,  e  ainda  mais  enfraquecida  pelo 
estudo  e  agitada  pela  leitura  dos  sonhadores  do  tempo. 

Chegou  a  fazer  algims  d'esses  pagodes  próprios  de  estu- 
dantes, essa  poesia  pratica  da  vida  que  bem  se  desfructa  na 
quadra  da  mocidade,  encantadora  phase  cheia  de  delicias  an- 
tigamente em  São  Paulo  e  Olinda.  Hoje,  seja  dito  de  passagem, 
tem  isto  muito  arrefecido.  O  poeta  não  teve,  porém,  tempo, 
nem  opportunidade  de  travar  um  amor  serio,  uma  paixão  sin- 
cera e  pura. 

Precoce  em  tudo,  estranhava  que  esse  affecto  não  lhe  tivesse 
ainda  chegado.  D*ahi,  por  este  lado,  o  dualismo  que  se  nota 
nas  coanposições  lyricas  de  género  amoroso  em  Azevedo.  A's 
vezes  é  um  lyrismo  idyUico  e  todo  confiante,  mas  puramente 
ideial ;  outras  vezes  é  a  amargura  de  quem  não  encontrou 
aindici  um  coração  que  o  comprehendesse,  ou  a  pintura  d'al- 
guma  scena  lasciva. 

Outro  dualismo  dá-se  nas  opiniões,  crenças  e  doutrinas  do 
poeta.  Ideialista  e  crente  por  indole,  educado  n'um  regimen 
religioso,  o  sopro  do  século  abalou-o  em  metade. 

Esta  revolução  não  se  fez  por  intermédio  da  sciencia  e  de 
ideias  positivas ;  fez-se  por  meio  da  poesia  e  da  litteratura 
romântica.  D'ahi  esse  desequilibrio,  esse  cambalear,  essas 
duas  facetas  do  génio  e  das  inspirações  do  moço  escriptor. 
Posição  aliás  commum  a  um  grande  numero  de  espíritos  em 
um  século  de  tão  rápidas  renovações  e  mutações  intellec- 
tuaes. 

Determinar  aquelle  dualismo,  n'uma  e  n'outra  esphera,  é  o 
trabalho  da  critica  para  com  elle.  Vida  quasi  toda  subjectiva, 
a^tada  pela  leitura,  não  teve,  repito,  ensejo  de  amar,  nem  de 


i 


HISTORIA  DA  LITTBRATORA  BRABILKIRA  201 

gozar  á  farta.  D'ahi  o  desanimo,  a  excitação,  a  impoleniCia  da 
vontade. 

Sua  melancólica,  que  aliás  era  ingenita  e  ainda  mais  se 
desenvolveu  pela  vacillaçâo  de  suas  idéas,  não  veio  de  injus- 
tiças soíTrídas,  de  luctas  sociaes,  de  problemas  scientiftcos  em 
desharmonia  com  seus  sentimentos.  Não  veio  da  trahição  de 
amantes  nem  de  amigos.  Elle  não  tem  um  canto  de  alegria 
pelo  amor  satisfeito  e  retribuídos  nem  de  tristeza  peJo  amor 
trahido.  São  sempre  queixas  de  nao  ter  podido  achar  mu- 
lheres puras  e  somente  Messalinas..,  E'  sincero  n'isto  e  tragi- 
camente sincero. 

Não  foi  um  viciado,  um  libertino,  que  fizesse  a  poesia  de 
seus  vícios  ;  não  foi  também  uma  alma  cândida  e  virgem,  que 
se  mostrasse  por  systema  viciada.  Foi  um  melancólico,  um 
imaginoso,  um  lyrico,  que  enfraqueceu  as  energias  da  vontade 
e  os  impulsos  fortes  da  vida  no  estudo,  e  enfermou  o  espirito 
com  a  leitura  desordenada  dos  românticos  a  Heine,  Byron, 
Shelley,  Sand  e  Musset. 

A  vacinação  mental  se  conhece  por  todos  os  seus  escriptos, 
ora  crentes,  ora  descrentes.  A  falta  de  energia  para  envolver- 
se  em  intrigas  amorosas  serias  que  o  acalmassem,  conhece-se 
nas  confissões  que  tantas  vezes  repete  de  não  ter  tido  um  só 
amor  profundo  e  somente  sonhos  fallsizes. 

Ouçamol-o  mais  de  perto. 

Elle  é  positivo  n'este  sentido,  e  tantas  são  as  provas  que 
dífficu Idade  ha  só  em  escolhel-as. 

E'  bastante  abrir  a  Lyra  dos  Vinte  annos  e  ler  aquollas 
poesias  ideialistas  que  se  intitulam  :  No  mar,  Sonhando,  Seis- 
mas.  Tenho  um  seio  que  delira.  Quando  d  noite  no  leito  per- 
fumado,  A  T.,  Animn  Mea,  Vida,  Saudades,  Virgem  Morta, 
Minha  Musa  e  vinte  outras,  e  depois  passar  a  ler  Um  canto  do 
jfcculo,  onde  se  vê  isto  : 

Eu  vaguei  pela  vida  sem  conforto, 
Esperei  minha  amante  noite  e  dia 

E  o  ideial  não  veio... 
Farto  da  vida,  breve  serei  morto... 
Nem  poderei  ao  menos  na  agonia 

Descançar-lhe  no  seio... 


202  HI8T0BIA  DA  LITTBRATtTRA  BKASILBIBÁ 

Passei  como  Don  Juan  ehtre  as  donzellas, 
Suspirei  as  canções  mais  doloridas, 

£  ninguém  me  escutou... 
Oh!  nunca  â  virgem  flor  das  faces  bellas. 
Sorvi  o  mel,  nas  longas  despedidas... 

Meu  Deus,  ninguém  me  amou! )) 

Estas  ideias  e  este  estado  psychologíco  repetem-se  &  farta 
cm  muitas  composições  do  poeta,  nomeadamente  nas  Ideias 
Intimas  : 

u  O  pobre  leito  meu,  desfeito  ainda, 

Aqui  languido  á  noite  abati-me 

Em  váos  delírios  anhelarido  um  beijo... 

E  a  donzella  ideial  nos  róseos  lábios, 

No  doce  berço  do  moreno  seio 

Minha  vida  embedou  estremecendo... 

Foram  sonhos  comtudo!  A  minha  vida 

Se  esgota  em  illusões.  E  quamdo  a  fada 

Que  divinisa  meu  penseu*  ardente 

Um  instante  em  seus  braços  me  descahça 

E  roça  a  medo  em  meus  ardentes  lábios 

Um  beijo  que  de  amor  me  turva  os  olhos... 

Me  ateia  o  sangue,  me  enlanguece  a  fronte... 

Um  espirito  negro  me  desperta, 

O  encanto  do  meu  sonho  se  evapora... 

E  das  nuvens  de  hacar  da  ventura 

Rolo  tremendo  á  solidão  da  vidai... 

Oh!  ter  vinte  anno9  sem  gozar  de  leve 

A  ventura  de  uma  alma  de  donzella! 

E  sem  na  vida  ter  sentido  nunca 

Na  fiuave  attracção  de  um  róseo  corpo 

Meus  olhos  turvos  se  fechar  de  goso! 

Oh!  nos  meus  sonhos,  pelas  hoites  minhas, 

Passam  tantas  visões  sobre  meu  peito ! 

Pallor  de  febre  meu  semblante  cobre. 

Bate  meu  coração  com  tanto  fogo! 

Um  doce  nome  os  lábios  meus  suspiram. 

Um  nome  de  mulher...  e  vejo  languida 

No  véo  suave  de  amorosas  sombras 

Semi-núa,  abatida,  a  mão  no  seio, 

Perfumada  visão  romper  a  nuvem. 


HI8T0EIA  BA  LITTERA.T17&A.  B&ÂBILSISA  203 

Sentar-se  junto  a  mim,  nas  minhas  pálpebras 

O  alento  fresco  e  leve  como  a  vida, 

Passar  delicioso...  Que  delírios! 

Acordo  palpitante...  Inda  a  procuro  : 

Embalde  a  chamo,  embalde  as  minhas  lagrimas 

Banham  meus  olhos  e  suspiro  e  gemo... 

Imploro  uma  illusão...  Tudo  é  silencio! 

Só  o  leito  deserto,  a  sala  muda! 

Amorosa  visão,  mulher  dos  sonhos, 

Eu  sou  tão  infeliz,  eu  soffro  tanto! 

Nunca  virás  illuminar  meu  peito 

Com  um  raio  de  luz  d*esses  teus  olhos?  » 


E'  inútil  continuar.  E'  uma  posição  especial.  Porque  nfto 
amou  o  poeta  a  alguém  ?  Ndo  encontraria  ninguém  em  seu 
caminho  que  lhe  merecesse  os  affectos  7 

No  Rk)  de  Janeiro,  nas  relações  de  sua  família,  nunca  se  lhe 
deparou  uma  bedla  fluminense  que  o  prendesse  em  suas  lon- 
gas tranças  e  o  enleiasse  nos  brilhos  do  seu  olhar  ? 

Em  S.  Paulo,  terra  de  tantas  bellezas,  nenhuma  o  engraçou? 

Em  uma  das  cartas  que  dirigiu  a  seu  amigo  Luiz  António  da 
Silva  Nunes  revela  que  frequentava  alli  a  boa  sociedade  e 
chegou  a  conhecer  duas  lindai  paulistanas,  que  o  tocaram  de 
leve.  Declara  logo,  porém,  que  não  sentia  amor  por  ellas. 

A  razáo  de  tantos  escrúpulos  e  difficuldades  ?  Seria  o  poeta 
muito  exagerado  no  seu  ideial  da  mulher  ?  Seria  acanhado  7 
Seria  tímido  7 

Pek)  pedaço  ultimo  transcripto  poder-se-hia  crer  que  nem 
teve  nunca  amor  positivo  a  uma  donzella,  nem  mesmo 
gozara  os  encantos  de  mulher  alguma.  Esta  ultima  supposiçdo 
seria  falsa,  diante  de  declarações  authenticas  feitas  pelo  pro- 
pno  poeta  : 

u  Oh!  nâo  maldigam  o  mancebo  exhauslo 
Que  nas  orgias  gastou  o  peito  insano... 
Que  foi  ao  lupanar  pedir  um  leito. 
Onde  a  sede  febril  lhe  adormecesse! 

Não  podia  dormir!  nas  longas  noites 
Pediu  ao  vicio  os  beijos  de  veneno  ... 


^ 


204  HI8T0BIA  DA  LiTTBllATXmA  BRÁBUiSnU 

E  amou  a  saturnal,  o  vinho,  o  jogo 
E  a  convulsão  nos  seios  da  perdida! 

Misérrimo!  não  creu...  Não  o  maldigam, 
Se  uma  sina  fatal  o  arrebatava... 
Se  na  torrente  das  paixões  dormindo 
Foi  naufragar  nas  \solidOes  do  crime. 

Oh!  não  maldigam  o  mancebo  exhausto 
Que  no  vicio  embalou,  a  rir,  os  sonhos, 
Que  lhe  manchou  as  perfumadas  tranças 
Nos  travesseiros  da  mulher  sem  brio! 

Se  elle  poeta  nodoou  seus  lábios... 
E'  que  fervia  um  coração  de  fogo 
E  da  matéria  a  convulsão  impura 
A  voz  do  coração  emmudecia! 

E  quando  pia  manhã  da  longa  insomnia 
Do  leito  perfumado  elle  se  erguia. 
Sentindo  a  brisa  lhe  beijar  no  rosto 
E  a  febre  arrefecer  nos  rouxos  lábios... 

E  o  corpo  adormecia  e  repousava 
Na  serenada  relva  da  campina... 
E  as  aves  da  manhã  em  torno  d'elle 
Osísonhos  do  poeta  acalentavam... 

Vinha  um  anjo  de  amor  unil-o  ao  peito, 
Vinha  uma  nuvem  derramar-lhe  a  sombra 
E  a  alma  que  chorava  a  infâmia  d*elle, 
Seccava  o  pranto  e  suspirava  ainda!  n 

Sempre  assim  ;  gozos  materiaes,  anciãs  por  um  amor  puro 
6  sincero,  que  lhe  não  veio  jamais.  A  cousa  está  liquidida  e 
póde-se  ir  adiante. 

Esta  posição  especial  que  assignalo  em  Alvares  de  Azevedo, 
de  ser  ardente,  voluptuoso,  sequioso  de  gozar  e  ao  mesmo 
tempo  não  ter  amado  jamais,  não  haver  tido  ém  sua  vida  uma 
paixão  amorosa,  o  que  é  perfeitamente  explicável,  porque  o 
poeta  morreu  muito  moço,  é  diversa  do  dualismo  de  ideial 


msTOBiÁ  DA  srmsATiniA  bbabilbi&á  205 

e  ironia,  de  sinceridade  e  sarcasmo,  de  pureza  e  grosseria  que 
também  se  nos  depara  em  seus  versos. 

Este  dualismo  de  outra  espécie  era  conscientemente  prati- 
cado, era  systematico  e  tinha  alguma  cousa  de  artificial.  O 
poeta  o  praticou  de  caso  pensado  e  elle  mesmo  tem  o  cuidado 
de  o  avisar,  precedendo  a  segunda  parte  da  Lyra  dos  Vinte 
Annos  doestas  palavras,  que  revelam  suas  ideias,  seus  planos, 
suas  preoccupações  de  artista  : 

cc  Cuidado,  leitor,  ao  voltar  esta  pagina!  Aqui  dissipa-sc  o  mundo 
visionário  e  platónico.  Vamos  entrar  n'um  mundo  novo,  terra  phan- 
tastica,  verdadeira  ilha  Barataria  de  D.  Quichote,  onde  Sancho  é 
rei  e  vivem  Panurgio,  sir  John  Falstaff,  Bardolph,  Figaro  e  o  Sga- 
narello  de  D.  João  Tenório  :  a  pátria  dos  sonhos  de  Cervantes  e 
Shakespeare. 

Quasi  depois  de  Ariel  esbarramos  em  Caliban.  A  razSo  é  simples. 
E'  que  a  unidade  d'este  livro  funda-se  n'uma  binomia  :  duas  almas 
que  moram  nas  cavernas  de  um  cérebro  pouco  mais  ou  menos  de 
poeta  escreveram  este  livro,  verdadeira  medalha  de  duas  faces. 

Demais,  perdôem-me  os  poetas  do  tempo,  isto  aqui  é  um  thema, 
sinão  mais  novo,  menos  esgotado  que  o  sentimentalismo,  tuo 
iashionable  desde  Werther  até  René. 

Por  um  espirito  de  contradicção,  quando  os  homens  se  vêem 
inundados  de  paginas  amorosas  preferem  um  conto  de  Bocacciu, 
uma  caricatura  de  Rabelais,  uma  scena  de  Falstaff,  no  Henrique  IV 
de  Shakespeare,  um  provérbio  phantastico  d'aquelle  polisson 
Alfredo  de  Musset  a  todas  as  ternuras  elegíacas  d'essa  poesia  de 
arremedo  que  anda  na  moda  e  reduz  as  moedas  de  ouro  sem  liga 
dos  grandes  poetas  ao  troco  de  cobre,  divisivel  até  ao  extremo,  dos 
liliputianos  poetastros.  Antes  da  quaresma  ha  o  carnaval. 

Ha  uma  crise  nos  séculos  como  nos  homens.  E'  quando  a  poesia 
cegou  deslumbrada  de  íitar-se  no  mysticismo  e  cahiu  do  céu  sen- 
tindo exhaustas  as  suas  azas  de  ouro.  O  poeta  acorda  na  terra. 
Demcds  o  poeta  é  homem  ;  homo  $um,  como  dizia  o  celebre  romano. 
Vô,  ouve,  sente,  e,  o  que  é  mais,  sonha  de  noite  as  bellas  visões  pal- 
páveis de  acordado.  Tem  nervos,  tem  fibras  e  tem  artérias,  isto  é, 
antes  e  depois  de  ser  um  ente  ideialista,  é  um  ente  que  tem  corpo! 

E  digam  o  que  quizerem,  sem  esses  elementos,  que  sou  o  pri- 
meiro a  reconhecer  muito  prosaicos,  não  ha  poesia.  Que  acontece? 
Na  exhaustão  cauisada  pelo  sentimentalismo,  a  alma  ainda  tremula 
e  resoante  da  febre  do  sangue,  a  alma  que  ama  e  canta,  porque  sua 


206  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BBA8ILBIBA 

vida  é  amor  e  canto,  que  pode  sinSo  fazer  o  poema  dos  amores  da 
vida  real?  Poema  talvez  novo ;  mas  qua  encerra  em  si  muita  ver- 
dade e  muita  natureza,  e  que  sem  ser  obsceYio  pode  ser  erótico,  sem 
ser  monótono. 

Digam  e  creiam  o  que  quizerem  :  todo  o  vaporoso  da  visão  abs- 
tracta nâo  interessa  tanto  como  a  realidade  formosa  da  bella  mulher 
a  quem  amamos. 

O  poema  ent&o  começa  pelos  últimos  crepúsculos  do  mysticismo, 
brilhando  sobre  a  vida  como  a  tarde  sobre  a  terra.  A  poesia  purís- 
sima banha  com  seu  reflexo  ideial  a  belleza  sensível  e  nua.  Depois, 
a  doença  da  vida,  que  nâo  dá  ao  mundo  objectivo  cores  tão  azuladas 
como  o  !nome  britânico  de  blue  devils^  descarna  e  injecta  de  fel  cada 
vez  mais  o  coração.  Nos  mesmos  lábios  ohde  suspirava  a  monodia 
amorosa,  vem  a  satyra  que  morde. 

£^  assim.  Depois  dos  poemas  épicos,  Homero  escreveu  o  poema 
irónico.  Goethe  depois  de  Werther  creou  o  Faust.  Depois  da  Pari- 
sina  e  o  Giaour  de  Byron  vem  o  Cain  e  D.  Juan,  D.  Juan  que  começa 
como  Cain  pelo  amor  e  acaba  como  elle  pela  descrença  venenosa 
e  sarcástica.  » 

E*  uma  pagina  interessante  esta  como  documentação  do 
pensau*  do  poeta  sobre  a  vida  e  sobre  as  condições  da  arte.  O 
romantismo  nâo  foi  assim  tão  despido  de  realidade  e  senso  cri- 
tico, qual  queremos  nós  os  homens  de  hoje  suppôr. 

Eis  ahi  em  Alvares  de  Azevedo,  que  toda  a  gente  agora 
costuma  apresentar  como  um  ente  chimerico,  cheio  de  phan- 
tasias  estúrdias,  um  forte  appello  para  as  duras  realidades  da 
vida.  Devemos,  pois,  em  mais  de  um  ponto  corrigir  nossos 
levianos  juizos.  Onde  mais  verdade,  já  nâo  digo  em  Balzac  e 
Stendhal,  mas  do  que  em  Goethe  e  Byron  ? 

O  auctor  da  Lyra  dos  Vinte  annos  obedeceu  ás  influencias 
de  suà  epocha,  a  esse  estado  de  vacillaçâo,tão  característico  do 
XIX  século. 

D'ahi  a  dubiedade,  aliás  conscientei,  de  sua  intuição  e  de 
sua  poesia.  Eu  bem  sei  que  os  grandes  tempos  de  forte  e  más- 
cula, poesia,  de  immensas  eflusões  artísticas  são  as  epochas  de 
fé.  E'  costume  dizer-se  isto. 

Creio  haver  ahi  um  bom  fundo  de  verdade  no  tocante  ás 
creações  épicas  e  outras  equivalentes,  que  acompanham  sem- 
pre as  grandes  synlheses  religiosas  e  philosophicas.  Assim 


HIBTOBIA  DA  LFTTBItATITSA  BRASILBIBA  207 

no  tempo  de  Phidias,  assim  no  tempo  de  Dante,  assim  no 
lempo  de  Miguel  Angelo.  Todo  o  século  xix  foi  uma  epocha  de 
uclase  fortes  commoções  intellectuaes  ;  os  dogmas  surgiam  e 
ombavam,  sem  poder  alliciar  todos  n'uma  crença  apazigua- 
lora  e  universal.  Este  oscillar  constante  ainda  perdura. 

Tudo  isto  é  verdade,  e  bem  compreheíndo  os  que  vacillam. 
r  a  lucta  entre  o  sentimento  e  a  ideia. 

Desgraçados  dos  que  a  soffrem  !  Trazem  n'alma  os  im- 
ulsos  encontrados  da  ideiaes  diversos,  e  são  o  theatro  de  com- 
ités e  perturbações  intimas.  E  passa  muitas  vezes  o  vulgo 
naro  e  diz  :  «  Grande  tolo  I  E'  um  sentimental  I...  E'  um  espi- 
to  atrazado ;  não  se  adiantou  ainda  1...  » 
E'  que  o  vulgo  estúpido  está  acostumado  com  certas  almas 
>  pedra,  duras  como  os  saibros  doe  caminhos,  em  que  todos 
zam  e  não  dSo  signaes  ae  dôr. 

O  mundo  extasia-se  diante  d'esses  seres  insensíveis  que 
da  tomam  a  serio  e  mudam  de  doutrinas  e  crenças,  como 

muda  um  par  do  calças...  Homens  que  passam  do  mais 
íal  christianismo,  por  exemplo,  ao  mais  requintado  mate- 
lismo  sem  a  menor  commoção  intima.  Singulares  entes  I... 
}uanto  a  mim,  é  que  jamais  foram  sinceros  ;  nunca  tiveram 
•dadeiro  aferro  a  suas  crenças.  Do  contrario  sentiriam  o 
oroar  d'ellas. 
dvares  de  Azevedo  foi  dos  que  sentiam  as  ddres  d^alma ; 

um  supposto  aírazado...  De  Sanctis  também  ó  um  tal, 
indo  escreve  estas  palavras  :  «  II  dolore  come  ritempra 
imo,  cosi  rinfresca  Tingeno.  II  dolore  è  il  Colombo  chè 
B  ai  poeta  um  mondo  nuovo.  Egli  gitta  Tanima  in  una 
íTSSL  situazioni,  elle  muta  gli  occhi,  si  che  ella  vegga  le 
se  cose  sotto  nuove  forme  o  nuovi  colori.  Nelle  supremo 
iture  Tuomo  vede  come  scomparire  il  suo  antico  me,  e  dal 
ulto  dei  mondo  estertore  si  ritira  in  sè  stesso  »  (1). 
Javras  doestas  escreve  o  sábio  escriptor,  uma  das  glorias 
lalia  moderna.  Entre  nós  certos  ingénuos  de  tempos  a  esta 
3  levantaram  o  falso  conceito  do  pretendido  adianta- 
to^  como  critério  definitivo  da  poesia...  Não  vê  esta  gente 
3to  um  formidável  desacerto  7 

Saggi  Critici  di  Francesco  da  Sanctis,  pag.  433. 


208  HIBTOBLà  DA  LITTBSATUBA  BBABILBIftA 

Não  ha  uma  poesia  adiantada  e  outra  airazada ;  a  poesia  é 
o  que  ella  é  e  mais  nada ;  a  poesia  é  bda  ou  md,  sincera  ou 
a[[ectada.  O  conceito  de  atraso  au  adiantamento  só  tem  appli- 
cação  na  sciencia. 

Em  sua  essência  a  boa  poesia  não  tem  data.  Dante  é  tão 
adiantado  como  Shakespeare,  Milton  tanto  como  Byron, 
Ariosto  tanto  como  Schiller. 

Assim  não  entendem  certos  aristarchos;  para  elles  a  Iliada  é 
atrazada^  a  Dtoirui  Comedia  é  atrazada,  Othello  é  atrazado^  os 
Luziadas  são  atrazados,.,  Deve-se  modernisar  tudo  isto... 

Alvares  de  Azevedo  era  um  talento  possante  n'uma  orga- 
nisaçâo  franzina.  Não  podia  viver  nmito,  era  doentio ;  era  em 
essência  um  melancólico.  Isto  póde-se  dizer  d'elle ;  porque  é 
a  verdade  manifestada  em  sua  vida  e  em  seus  escriptoe.  Como 
melancólico  era  impossível  que  attingisse  n'ai*te  áquella  sere- 
nideuie  de  Goethe,  por  exemplo.  Applicar-lhe  o  conceito  erró- 
neo em  poesia  de  adiantamento  ou  atraso  é  que  é  formidável 
desconcerto. 

.  O  poeta  quasi  só  produziu  queixumes ;  porque  era  desequi- 
librado. «  No  intimo  da  melancolia  encontrar-se-á  talvez  sem- 
pre uma  falta  de  equilíbrio  das  faculdades,  e,  como  causa 
final,  algum  desarranjo  orgânico. 

*  O  melancoUco  é  um  ser  incompleto,  enfermo,  ferido  nas 
fontes  da  vida,  que  poderá  exhalar  queixas  eloquentes ;  mas 
que  nunca  attingirá  á  grande  arte. 

O  verdadeiro  artista,  o  que  domina  a  natureza  e  o  homem, 
que  os  reproduz  n'uma  concepção  impessoal,  um  Shakes- 
peare, um  Goethe,  um  Walter  Scott,  esse  é  um»  são.  Não  sabe 
o  que  é  apalpar  o  pulso.  A  paz  de  seu  espirito  não  está  á 
mercê  do  tempo  que  faz,  contempla  a  vida  com  serenidade.  A 
melancolia  resulta  de  uma  organisão  nervosa,  impressio 
navel,  delicada,  exquisita,  porém  incompatível  com  a  faar- 
ihonia  das  forças  e  a  elasticidade  de  um  temperamento  ro- 
busto. » 

São  palavras  de  Edmond  Scherer  a  propósito  de  Maurice  de 
Guérin.  Applicam-se  perfeitamente  ao  nosso  poeta. 

Dada  esta  ideia  geral  da  natureza  de  seu  talento  e  das  vicis- 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATURA  BRASILEIRA  209 

situdes  de  seu  estado  espiritual,  resta  analysar  mais  directa- 
mente os  seus  escriptos. 

Em  Alvares  de  Azevedo  ha  um  poeta  lyrico  e  o  esboço  de  um 
critico,  de  um  dramatista  e  de  um  conteur,  O  lyrismo  do  joven 
artista  náo  é  o  simples  lyrisma  melancólico  a  Lamartine.  Ha 
n'elle  grande  variedadie  introduzida  por  pinturas  objecti- 
vistas,  por  scenas  de  costumes,  por  cantos  políticos,  por  pas- 
sagens humorísticas. 

Quando  se  fala  em  Azevedo  vem  logo  á  mefite»  a  ideia  de 
um  lacrymoso  perpetuo.  Pois  é  um  grande  erro. 

Ha  n'elle  paginas  de  um  objectivismo  completo  :  Pedro  Ivo^ 
Thereza,  Cantiga  do  Sertanejo,  Na  Minha  Terra,  Crepiisculo 
no  mar,  Crepúsculo  nas  montanhas,  e  muitas  outras.  Em  Glo- 
ria Moribunda,  Cadáver  de  poeta.  Sombra  de  D.  Juan,  Bohe- 
mios.  Poema  do  Frade,  e  no  Conde  Lopo,  recentemente  publi- 
cado, ha  muito  d'esse  satanismo,  d'esse  desprazer  da  vida  em 
que  veiu  acabar  o  romantismo.  Ha  apenas  mais  talento  do 
que  em  Baudelaire ;  porque,  de  envolta  com  os  desalentos  e 
extravagâncias  do  género,  em  Azevedo  apparecem  manifes- 
tações de  lyrismo  que  não  possuia  tâo  eloquentes  o  poeta 
francez. 

Esse  lyrismo  pódei  soíTrer  uma  divisão  capital ;  ideialismo  e 
humorismo.  N'um  e  n'outro  ha  notas  pessoaes  e  geraes.  Ha 
difflculdade  em  mostrar  trechos  pela  abundância  de  fragmen- 
tos typicos.  Leiam-se  Anima  Mea,  Harmonia,  Tarde  de  Verãa, 
Saudades,  Virgem  morta,  Spleen  c  Charutos,  Meu  desejo.  La- 
grimas da  Vida,  Malva  Maçã,  Namoro  a  CavaUo  e  vinte 
outras. 

Não  reproduzirei  aqui  nenhuma  d'essas ;  as  obras  do  poeta 
andam  ahi  e  podem  e  devem  ser  lidas.  Só  uma  inclurei  n'este 
lugar ;  por  que  só  por  si  é  apta  a  fazer  amar  esse  rapaz,  esse 
espirito  desequilibrado  e  revolto ;  mas  essa  alma  enthusiasta 
e  capaz  de  grandes  dedicações.  São  os  versos  que  o  poeta 
dirige  á  sua  mãe  : 

«  Es  tu,  alma  divina,  essa  Madona 
Que  nos  embala  na  manhan  da  vida. 
Que  ao  amor  indolente  se  abandona 
E  beija  uma  criança  adormecida. 

msTORu  n  14 


210  HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

No  leito  solitário  és  tu  quem  vela 
Tremulo  o  coração  que  a  dôr  anceia, 
Nos  ais  do  soffrimento  inda  mais  bella 
Pranteando  isobre  uma  alma  que  prantefa. 

E  se  pallida  sonhas  na  ventura 
O  affecto  virginal,  da  gloria  o  brilho, 
Dos  sonhos  no  luar,  a  mente  pura 
Só  delira  ambições  pelo  teu  filho! 

Pensa  em  mim,  como  em  ti  saudoso  penso, 
Quando  a  lua  no  mar  se  vai  doirando  : 
—  Pensamento  de  nme  ó  como  o  incenso 
Que  06  anjos  do  SeYihor  beijam  passando. 

Creatura  de  Deus,  oh  mâi  saudosa, 
No  silencio  da  noite  e  no  retiro 
A  ti  vôa  minh'alma  esperançosa, 
E  do  pallido  peito  o  meu  suspirol 

Oh!  vêr  meus  sonhos  se  mirar  ainda 
De  teus  sonhos  nos  mágicos  espelhos... 
Viver  por  ti  de  uma  esperança  infinda 
E  sagrar  meu  porvir  nos  teus  joelhos... 

E  sentir  que  essa  briza  que  murmura 
As  saudades  da  mãi  bebeu  passando... 
E  adormecer  de  novo  na  ventura 
Aosisonhos  d'oiro  o  coração  voltando... 

Ah!  se  eu  nfto  posso  respirar  no  vento, 
Que  adormece  no  valle  das  campinas, 
A  saudade  de  m&i  no  desalento, 
E  o  perfume  das  lagrimas  divinas... 

Ide,  ao  menos,  de  amor  meus  pobres  cantoe, 
No  dia  festival  em  que  ella  chora. 
Com  ella  suspirar  i\os  doces  prantos, 
Dizer-lhe  que  também  eu  soffro  agora. 

Se  a  estrella  d'alva,  a  pérola  do  dia, 
Que  vô  o  pranto  que  meu  rosto  inunda, 
Meus  ais  na  solidão  lhe  não  confia 
Enão  lhe  conta  minha  dôr  profunda... 


j 


HISTOBIil  DA  LITTBBATUBA  BRABILBIBA  211 

Que  a  ílôr  do  peito  desbotou  na  vida, 
^  o  orvalho  da  febre  requeimou-a ; 
Que  nos  lábios  da  m&i  na  despedida 
O  perfume  do  céo  abandonou-a!... 

Mas  não  irei  turvar  as  alegrias 

E  o  jubilo  da  noite  susurrante, 

Só  porque  a  magoa  desnuou  meus  dias 

E  zombou  de  meus  sonhos  delirantes. 

Tu  bem  sabes,  meu  Peus,  eu  só  quizera 
Um  momento  sequer  encher  de  flores, 
Contar-lhe  que'nâo  finda  a  primavera, 
A  doirada  estação  dos  meus  amores... 

Desfolhando  da  palhda  coroa 
Do  amor  do  filho  a  perfumada  fiór 
Na  mfto  que  o  embalou,  que  o  abençoa, 
Uma  saudosa  lagrima  depor... 

SufTocando  a  saudade  que  delira 

E  que  as  noites  sombrias  me  consome, 

O  nome  d'ella  perfumar  na  lyra, 

De  amor  e  sonhos  coroar  seu  nome!  »  (1). 


E'  uma  d'essas  paginas  deliciosas,  eivadas  de  brancas  o 
doces  6  saudosas  ideias ;  paginas  feitas  de  mimo  e  candura, 
próprias  para  contrastarem  tantas  outras  cheias  de  amargas 
ironias. 

Creio  que  se  o  meu  leitor  foi  agora  reler  o  seu  Alvares  do 
Azevedo,  poderá  comigo  ch^ar  a  esta  conclusão  :  as  me- 
lhores paginas  do  poeta  são  aquellas  em  queelle  deu  expansíto 
a  seu  talento  mais  natural  e  intimo,  o  talento  lyrico. 

O  que  distingue  seu  lyrismo  d'entre  todos  os  c^ue  tenlio  até 
agora  examinado  é  certo  modernismo,  certa  frescura  das 
tintas  e  das  imagens. 

Em  Magalhães,  Porto  Alegre,  Moniz  Barretto,  Maciel  Mon- 
teiro e  outros  ha  um  certo  four  na  forma  que  lembra  ainda  o 
velho  classismo.  O  mesmo  em  parte  em  Gonçalves  Diais.  No 

(1)  Obroê  de  Alvares  de  Azevedo,  5.*  ediç&o,  18S4,  tomo  1,*,  pag.  249. 


212  HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

auctor  da  Lyra  dos  Vinte  armos  a  cousa  ó  outra  e  a  impressão 
que  deixa  é  bem  diversa ;  o  tom  é  novo ;  vè-se  nitidamente 
que  se  está  a  tratar  com  um  filho  do  século. 

O  humorismo  é  também  novo,  e  é  a  primeira  vez  qua  appa- 
rece  na  poesia  brasileira  essa  bella  manifestação  da  alma  mo- 
derna. Convém  não  confundir  o  humour  com  a  chalaça,  a 
velha  pilhéria  portugueza ;  essa  Uvemol-a  sempre,  e  sempre  a 
possuiu\  o  reino. 

O  humour  á  ingleza  e  allemá  nós  não  o  cultivamos  jamais, 
nem  Portugal  tâo  pouco.  O  primeiro  que  o  exprimiu  em  nossa 
lingua  foi  Alvares  de  Azevedo,  profundamente  lido  nas  litte- 
raturas  do  norte. 

O  humour  é  diverso  das  vis  cómica^  do  espirito  e  da  satyra^ 
ainda  que  possa  ter  com  elles  alguma  analogia.  A  comedia 
é  o  riso  com  certa  malignidade  ;  o  espirito  é  a  graça,  a  pilhéria 
para  divertir ;  a  satyra  é  um  castigo  empregado  como  tal,  mos- 
trando cólera. 

O  humour  é  uma  especial  disposição  da  alma  que  procura 
em  todos  os  factos  o  lado  contrario,  sem  indignaçã.o.  Requer 
finura,  força  analytica,  philosophia,  scepticismo  e  graça  n'um 
mixtum  compositum  especialissímo,  que  não  anda  por  ahi  a 
se  baratear.  Azevedo  o  possuiu  até  certo  ponto. 

Eu  disse  que  o  poeta  abrigava  em  si  o  esboço  de  um  conteur, 
d'um  dramatista  e  d'um  critico.  O  corUeur  está  n'essa  tão  afa- 
mada Noit/e  na  Taverna,  onda  ha  algumas  bellezas  entre  mui- 
tas extravagencias  e  affectações.  O  dramatista  está  nos  Bohe- 
mios  e  em  Macário,  fragmentos  informes  para  o  palco,  porem 
contendo  algumas  ideias  felizes. 

Pelo  que  me  toca,  prefiro  o  poeta. 

O  critico  me  parece  também  de  não  mui  avultado  alcance. 

O  drama  e  o  conto  exigem  muita  observação,  muita  ana- 
lyse,  muita  tensão  no  espirito,  a  par  de  muita  imaginação 
creadora.  Não  creio  que  aquellas  qualidades  predominassem 
no  espirito  do  poeta. 

A  critica  exige  muita  lógica,  comprehensáo  muito  nítida, 
ausência  de  toda  nebulosidade,  nada  de  sestros  fanáticos, 
intuição  rápida,  aptidão  philosophica  intensa,  assimilação 
prompta. 


HISTORIA  DA.  LITTERATUKA  BKABILBISA  213 

Azevedo  nâo  era  propriamente  isto.  A  prova  está  antes  de 
tudo  no  facto  de  elle  próprio,  desconhecendo  radicalmente  a 
missão,  o  alcance  e  o  objectivo  da  critica,  ainda  laborar  na 
velha  e  errcmea  noçáo  de  ser  ella  a  parasita  que  vive  de  alheia 
seiva,  e  outras  momices  da  espécie,  que  podem  ser  lidas  no 
prefacio  do  Conde  Lopo. 

No6  ensaios  do  género,  deixados  pelo  poeta,  o  estylo  é  por 
vezes  pesado,  obscuro  e  amaneirado  e  as  contradicções  e 
obscuridades  formigam. 

Não  é  que  ache  completa  razão  em  Wolf  e  Norberto  Silva 
quando  accusam  geralmente  a  prosa  de  Azevedo.  Ha  excesso 
de  rigor ;  o  moço  paulista  deixou  algumas  paginas  saborosar 
mente  escriptas. 

Eis  aqui  uma  d*ellas  : 

((  O  que  eu  lhe  vou  dizer  é  triste,  é  lastimoso  para  quem  o  diz  : 
tanto  mais  que  elle  o  faz  com  a  plena  convicção  de  que  fala  ao  indif- 
fercfntismo. 

E'  uma  miséria  o  estado  do  nosso  theatro  :  é  uma  miséria  vôr  que 
só  temos  João  Caetano  e  a  Ludovina.  A  representação  de  uma  boa 
concepção  dramática  se  torna  difficil.  Quando  só  ha  dou-s  actores 
de  forç£^  sujeitamo-nos  ainda  a  ter  só  dramas  coxos,  sem  força 
e  sem  vida,  ou  a  ver  estropiar  as  obras  do  génio. 

Os  melhores  dramas  de  Schiller,  de  GcBthe,  de  Dumas  não  se 
realiseun  como  devem.  O  Sardanapalo  de  Byron  traduzido  por  uma 
penna  talentosa  foi  Julgado  impossivel  de  levar^e  â  scena.  No  caso 
do  Sardanapalo  estão  os  dramas  de  Shakespeare  que,  modificados 
por  uma  inteUigencia  fecunda,  deveriam  produzir  muito  effeito.  Se 
o  povo  sabe  o  que  é  o  Hamlet,  Othello...  deve-o  ao  reflexo  gelado  de 
Ducis.  Comtudo,  seria  fácil  apresentar-se  no  theatro  de  S.  Pedro 
alguma  cousa  de  melhor  do  que  isso.  Com  o  simples  trabalho  de  tra- 
ducção  se  poderiam  popularisar  os  trabalhos  de  Emile  Deschamps, 
Auguste  Barbier,  Léon  de  Vailly  e  Alfredo  de  Vigny,  que  traduzi- 
ram Romeo  e  Julieta,  Macbeth,  Júlio  César,  Hamlet  e  Othello, 

Quando  o  theatro  se  faz  uma  espécie  de  taberna  de  vendilhão,  vá 
que  se  especule  com  a  ignora'ncia  do  povo.  Mas  quando  a  Com- 
panhia do  theatro  está  debaixo  da  inspecção  immediata  do  Governo, 
deverá  continuar  esse  systema  verdadeiramente  immundo?  não  : 
o  theatro  não  deve  ser  escola  de  depravação  e  máo  gosto.  O  theatro 
tem  um  fim  moralisador  e  litterario  :  é  um  verdadeiro  apostolado  do 
beUo.  D'ahi  devem  sahir  as  inspirações  para  as  massas.  Não  basta 


214  HISTOBIA  DA  LITTBRATXTBA  BBASILBIBA 

que  o  drama  sanguinolento  seja  capaz  de  fazer  agitarem-se  as  fibras 
em  peitos  de  homens  cadáveres.  Não  basta  isto  :  é  necessário  que 
o  sonho  do  poeta  deixe  imprassões  ao  coração  e  agite  n'alma  senti- 
mentos de  homem. 

Para  isso  é  preciso  gosto  na  escolha  dos  espectáculos,  na  escolha 
dos  actores,  nos  ensaios,  nas  decorações.  E'  doesse  todo  de  figuras 
grupadas  com  arte,  do  effeito  das  scencis,  que  depende  o  Interesse. 
Talma  o  sabia.  João  Caetano,  por  uma  verdadeira  adivinhação  do 
génio,  lembra-se  d'isto. 

Além  essas  composições  sem  alma,  que  servem  apenas  para 
amesquinhar  a  platéa,  esses  quadros  de  terror  e  de  abuso  de  mor- 
tualha  que  servem  apenas  para  atufar  de  tédio  o  cor€tçâo  do  homem 
que  sente,  mas  que  pensa  e  reflecte  no  que  sente  e  no  que  pens€u 

Mas  o  que  é  uma  desgraça,  o  que  é  a  miséria  das  misérias  é  o 
abandono  em  que  está  entre  nós  a  Comedia. 

Entre  hós  parece  que  acabaram  os  bellos  tempos  da  Comedi«i. 
Verdadeiros  blasés^  parece  que  só  amamos  as  impressões  fortes, 
que  preferimos  estremecer,  chorar,  a  rir  d'aquellas  boas  risadas  de 
outr^ora. 

Em  lug6Lr  da  musa  de  Menandro  e  de  Terêncio,  temos  hoje  uma 
musa  asquerosa  que  apparece  nas  taboas  do  palco  á  meia  noite, 
como  uma  bruxa,  que  revolve-se  immunda  com  a  bocca  cheia  de 
chufas  obscenas,  em  chão  de  lodo  hedionda  creatura,  bastarda  da 
bóa  filha  de  Moliêre,  adiante  da  qual  o  pudor,  digo  mal,  até  o  impu- 
dor  tem  de  corar. 

O  estrangeiro  que  assiste  aquellas  saturnaes  vergonhosas  da 
scena  cré  assistir  a  um  sabbaih  de  feiticeiras  e,  como  o  Fausi  de 
Goethe  bo  Brocken,  sente-se  tomado  de  asco  invencível  por  aquellas 
feialdades  nuas.  O  sócco  romano-grego  tornou-se  o  tamanco  im- 
m.undo  da  vagabunda  desbocada! 

E'  triste  pensal-o;  —  mas  se  é  verdade  que  o  theatro  é  o  espalho  da 
sociedade,  que  negra  existência  deve  ser  a  da  gente  que  applaude 
frenética  aquella  torrente  de  lodo  que  salpica  as  faces  dos  especta- 
dores! 

A  farça  embotou  o  gosto  e  matou  a  Comedia.  O  palhaço  enforcou 
o  homem  de  espirito.  Arlequin  fez  achar  ínsipido  o  Tartufo. 

E,  comtudo,  nós  que  nos  fizemos  homem  no  tempo  em  que  João 
Caetano  se  não  envergonhava  de  representar  Casanova,  nós  que  o 
vimos,  não  ha  muito,  vestir  o  disfarce  de  Robin,  embuçar-se  no 
maYito  roto  de  Don  César  de  Bazan,  que  soltamos  boas  gargalhadas 
ante  o  Auio  de  Gil  Vicente  e  Robert  Macaire,  não  podemos  deixar  de 
lamentar  que  elle  desdenhe  a  mascara  da  Comedia. 


HJBTOBIA  DA  LITTSKATUSA  BBABILEIBA  215 

E  comtudo  Molière  —  um  geniol  —  era  cómico.  Shakespeare  pre- 
feria a  galhofa  das  alegres  mulheres  de  Windsor  —  What  you 
-wUl,  A  tempestade^  etc,  aos  monólogos  de  Henrique  III,  ao  deses- 
pero do  rei  Lear,  ó  duvida  de  Hamlet.  Kean  despia  o  albornoz  e  o 
turbante  do  Mouro  de  Veneza  para  tomar  o  abdómen  protuberahte 
e  o  andar  vertiginoso,  as  faces  ardentes  de  embriaguez  do  bon 
vivant^  cavalleiro  da  noite,  amante  da  lua,  sir  John  Falstaff! 

Haja  algum  impulso  da  parte  d'onde  deve  vir  e  esperamos  que 
haja  entre  nós  theatro,  drama  e  comedia. 

A  !nossa  mocidade  laboriosa  se  animará  a  emprehender  trabalhos 
dramáticos.  Começar&o  por  traducções,  estudarão  o  theatro  hespa- 
nhol  de  Calderon  e  Lope  de  Vega,  o  theatro  cómico  inglez  de  Sha- 
kespeare até  Sheridan,  o  theatro  francez  de  Molière,  Regnard, 
Beaumarchais  e  mais  modernamente  enriquecido  pelo  repertório  de 
Scribe  e  pelos  provérbios  de  Leclercq  e  de  Alfredo  de  Musset,  os  que 
tiverem  mais  génio,  os  que  tiverem  estudado  o  theatro  grego,  o 
theatro  francez,  o  theatro  inglez  e  o  theatro  allemâo,  depois  d*esse 
estudo  attento  e  consciehcíoso  poderão  talvez  nos  dar  noites  mais 
litterarias,  mais  cheias  de  emoções  do  que  aquellas  em  que  assis- 
timos e  melodramas  caricatos,  as  paixões  falsas,  todas  aquellas 
concepções  que  movem-se  e  falam  como  um  homem,  mas  que 
quando  se  lhes  bate  no  coração  dão  um  som  cavernoso  e  metaUico 
como  o  peito  ôco  de  uma  estatua  de  bronze!  »  (1) 

E'  bom  este  modo  de  dizer  e  são  acertadas  estas  ideias. 
Onde  não  posso  acompanhar  o  poeta  é  quando  escreve 
cousas  assim  : 

«...  segundo  nosso  muito  humilde  parecer,  sem  lingua  á  parte  não 
ha  litteratura  á  parte.  E  (releve-se-nos  dizel-o  em  digressão)  acha- 
mol-a  por  isso,  sinão  ridicula,  de  mesquinha  pequefaez  a  lembrança 
do  Sr.  Santiago  Nunes  Ribeiro ;  ja  d'antes  apresentada  pelo  collec- 
tor  das  preciosidades  poéticas  do  primeiro  Parnaso  Brasileiro. 

D'outra  feita  alongar-nos-hemos  meus  a  lazer  por  essa  questão  e 
essa  polemica  secundaria  que  alguns  poetas  e  maus  modernamente 
o  Sr.  Gonçalves  Dias  parecem  ter  indigitado  :  a  saber  que  a  nossa 
litteratura  deve  ser  aquillo  que  elle  intitulou  nas  suas  collecções 
poéticas  poesias  americanas.  Não  negamos  a  nacionalidade  d'esse 
género.  Crie  o  poeta  poemas  indicos,  como  o  Thalaba  de  Southey, 
reluza-se  o  b£u*do  dos  perfumes  asiáticos,  como  nsis  Orientaes 
Victor  Hugo,  na  Noiva  de  Abydos  Byron,  no  Lallah-Rook  Thomas 

(!)  Obroã  de  Alvares  de  Azevedo,  quinta  edição,  vol.  Ill,  pag.  237. 


( 


216  HISTORIA  J>X  LITTBBATURA  BRA8ILEIBA 

Moore,  devaneie  romances  á  européa  ou  á  chineza,  que  por  isso  nào 
perderôo  sua  nacionalidade  litterarla  os  seus  poemas  »  (1). 

Por  este  pedaço,  em  má  hora  escripto,  claroi  se  vê  que  o 
auctor  de  Macário  não  sabia  bem  o  que  era  uma  lingua,  uma 
litteratura,  o  que  era  o  indianismo,  nem  o  que  eram  o  Brasil  e 
Portugal. 

Ter  ou  não  ter  uma  litteratura  não  é  questão  de  querer  ou 
não  querer,..  E'  um  phenomeno  fatal,  biologico-historico,  que 
se  está  produzindo  no  Brasil,  como  se  produziu  em  Portugal. 
Ou  se  queira,  ou  não  se  queira,  o  Brasil  não  está  na  Europa, 
nem  o  Rio  de  Janeiro  á  margem  do  Tejo... 

Estamos  n'outro  continente,  temos  outro  clima,  outra  natu- 
reza, outro  meio,  outras  raças  mescladas  no  povo,  outras 
fontes  económicas,  outras  aspirajções,  outro  ideial.  A  lingua 
vae  se  alterando  constantemente. 

Ora,  meio  á  parte,  raça  á  parte,  ideial  á  parte  produziu 
necessariamente  litteratura  á  parle.  Nem  é  isto  motivo  para 
vaidades ;  é  phenomeno  sem  mérito ;  porque  é  em  essência 
quasi  mecânico.  A  vontade  aqui  pouco,  bem  pouco  poderá 
influir. 

Não  é  o  facto  do  indianismo,  commum  aliás  a  toda  a  Ame- 
rica, que  nos  garante  uma  litteratura.  Esta  começou  a  formar- 
se  no  Brasil  no  dia  em  que  os  indios,  os  negros  e  os  colonisa- 
dores  entraram  a  viver  juntos,  a  trabalhar  juntos,  a  solTrer 
juntos,  a  cantar  juntos.  No  dia  em  que  o  primeiro  mestiço 
cantou  a  primeira  quadrinha  popular  nos  eitos  dos  engenhos, 
n'esse  dia  começou  de  originar-se  a  litteratura  brasileira,  que 
homens  como  Gregório  de  Mattos,  Durão,  Basílio,  Alvarenga, 
Taques,  Andrada,  Porto  Alegre,  Gonçalves  Dias,  Penna, 
Macedo,  Bernardo  Guimarães,  Alencar,  Agrário,  Francisco 
Lisboa  e  o  próprio  Azevedo  opulentaram  ei  encaminharam 
para  uma  dilTerenciação  cada  vez  mais  crescente. 

O  segredo  das  teimas  dos  que  negam  esse  phenomeno  Ião 
vulgar  acha-se  no  desconhecimento  dos  mais  elementares 
principies  de  critica  relativamente  ao  conceito  do  que  seja 
uma  litteratura,  e  na  completa  ignorância  da  ethnographia, 

(1)  Obras  de  Alvares  de  Azevedo,  quinta  edição,  vol.  III,  pag.  183. 


HIBTOBIA  T>X  LITTBSATUEA  BRA8ILSIBA  217 

da  historia  e,  em  geral,  de  todos  os  problemas  que  se  referem 
ao  Brasil. 

AuRELiANO  José  Lessa  (1828-1861.)  Estamos  em  São  Paulo; 
a  academia  de  direito  está  animada ;  cheios  de  enthusiasmo 
os  moços  cultivam  a  bella  litteratura ;  é  no  período  que  vae 
de  1846  a  1856.  E'  donde  então  partem  os  raios  que  illuminani 
e  alentam  as  pátrias  letras. 

Ao  lado  dos  poetas  e  litteratos  havia  os  publicistas  e  ora- 
dores ;  é  o  tempo  de  Alvares  de  Azevedo,  Aureliano  Lessa, 
Bernardo  Guimarães,  José  Bonifácio,  Pelix  da  Cunha,  Fer- 
reira Vianna,  Paulino  de  Souza,  José  de  Alencar,  Duarte  de 
Azevedo  e  muitos  e  muitos  outros. 

O  movimento,  inaugurado  no  Rio  de  Janeiro,  por  Ma^- 
Ihâes,  Porto  Alegre,  Gonçalves  Dias,  Penna  e  Macedo,  chega 
até  a  capital  paulista,  os  moços  metem-se  n^elle  e  o  adiantam. 
Aureliano  Lessa  é  um  dos  obreiros  n'aquella  faina.  EUe,  Aze- 
vedo e  Bernardo  Guimarães  eram  os  mais  applaudidos  poetas 
da  epocha.  Icun  juntos  publicar  As  três  Lyras. 

Bernardo  e  Aureliano  eram  mineiros  e  amavam-se  extrema- 
mente. A  estima  entre  ambos  era  mais  profunda  do  que  entre 
qualquer  d'elles  e  Azevedo.  Razões  psychologicas  havia  para 
isto ;  os  dois  mineiros  eram  plácidos,  avessos  a  essa  turbu- 
lência de  ideias  adequada  á  indole  do  moço  auctor  dos  Bohe- 
mios. 

O  romantismo  penetrou  em  Azevedo  por  todos  os  poros, 
sacudiu-lhe  todas  as  fibras,  tomou-lhe  os  sentimentos  e  as 
ideias. 

Os  dois  mineiros,  comquanto  affectadoe  do  mal  até  certo 
ponto,  a  despeito  de  haverem  adquirido  certos  hábitos  acadé- 
micos, nâ.0  deixaram  no  intimo  de  ser  profundamente  ideia- 
listas  e  crentes,  religiosos  até  em  alto  gráo.  A  leitura  attenta 
de  Lessa  sobre  tudo  o  prova  irrecusavelmentei. 

Azevedo  falleceu  logo  sem  ter  tempo  sequer  de  acabar  o 
curso  académico. 

Os  dois  mineiros,  retirados  aos  seus  sertões,  continuaram 
a  viver  descuidosamente,  em  todo  o  desleixo  de  verdadeiros 
poetas  e  veirdadeiros  merídionaes. 


218  HIBTOBIil  DA  LITTERATU&A  BSABIU&I&A. 

Bernardo  morreu  já  quasi  sexagenário ;  Lessa  o  antecedera 
de  muito.  Pinou-se  aos  trinta  e  três  annos  de  idade,  aos  21  de 
fevereiro  da  1861. 

Dos  três  amigos  elle  é  que  deixou  menor  nomeada.  Um  teve 
parentes  cuidadosos  que  lhe  publicaram  immediatamenle  as 
obras  e  gosou  a  felicidade  de  fazer  a  bella  poesia  de  uma 
morte  a  propósito.  O  outro  viveu  bastcmte  para  ter  tempo  de 
publicar. uns  poucos  de  volumes  de  versos  e  uns  poucos  de 
romances.  Mas  Lessa  não  era  inferior  aos  dois. 

Azevedo  era  dos  três  o  talento  mais  possante ;  porém  mais 
desigual  e  mais  desequilibrado  ;  Lessa  era  o  que  alliava  mais 
naturalidade  a  mais  ideialismo ;  sua  poesia  era  a  emanação 
espontânea  e  doce  de  um  rozal  florido;  nada  de  pose ;  tomava 
o  tom  do  momento  ;  a  nota  d*alma  na  occasião.  Bernardo  era 
também  natural ;  mas  sem  tanto  ideialismo  talvez  e  com 
maior  numero  de  incorrecções. 

De  Lessa  não  ficaram  obras ;  doze  annos  depois  de  sua 
morte  um  irmão  carinhoso,  após  haver  gasto  larga  tempo  a 
apanhar  aqui  e  alli  algumas  de  suas  producções,  publicou 
um  punhado  d^ellas,  sob  o  titulo  de  Poesias  posthumas  do 
Dr.  Aureliano  José  Lessa,  E  um  livrinho  de  pouco  mais  de 
cem  pstginas. 

Os  espirites  grosseiros,  que  julgam  o  mérito  de  um  escriptor 
pelo  montão  de  obras  que  elle  deixa,  espantar-se-háo  de  ser 
n'esta  historia  contemplado  quem  tão  pouco  l^ou  ás  letras... 
Lessa  não  vale  pelo  que  fez ;  vale  pelo  que  era.  Poeta  de 
talento,  como  tal  deve  ser  tratado. 

E'  preciso  vel-o  em  seu  meio  e  para  isto  o  melhor  é  dar  a 
palavra  a  seu  patrício,  coUega,  rival  e  amigo,  Beimardo  Gui- 
marães :  <c  Nasceu  Aureliano  José  Lessa  em  1828,  na  cidade 
da  Diamantina,  n'essa  região  do  norte  de  Minas,  tão  fecunda 
em  pedras  preciosas,  como  em  talentos  superiores.  Estudou 
preparatórios  no  Seminário  de  Congonhas  do  Campo,  onde, 
graças  á  lucidez  e  promptidão  de  sua  intelligencia,  unidas 
a  uma  memoria  das  mais  felizes,  fez  rápidos  progressos.  Ahi 
parece  que  se  deu  ao  estudo  comi  msds  applicação  e  assidui- 
dade do  que  nos  cursos  superiores,  pois  em  matérias  prepa- 
ratórias possuia  larga  e  solida  instrucção. 


HISTOBIA  DA  LITTBIUTUBA  BBABILBIBA  219 

Transportado  a  S.  Paulo,  apenas  sahido  da  infância,  aílm 
de  frequentar  o  curso  jurídico,  sua  vida  académica  foi  um 
longo  delirio  infantil,  um  incessante  devaneio  poético. 
Achava  elle  então  em  S.  Paulo  um  circulo  numeroso  de 
moços  apaixonados  pela  poesia,  no  meio  dos  qua^s  nSLo  podia 
deixar  de  dar  larga  expansão  ao  seu  extraordinário  gosto 
pelas  bellas  letras. 

  paixão  pela  poesia  e  pela  litteratura  amena  distrahia  por 
demais  n'aquella  epocha  a  mocidade  académica  dei  seus  estu- 
dos escolares. 

Aureliano,  Alvares  de  Azevedo,  José  Bonifácio,  Cardoso  de 
Mendes,  Silveira  de  Souza,  Paulo  do  Vallei,  Ferreira  Torres, 
Lopes  de  Araújo,  o  portuguez  Agostinho  Gonçalves,  e  vários 
outros  mancebos,  entre  os  quaes  se  contava  também  o  auctor 
d'e5tas  linhas,  eram  como  um  bando  de  canários,  que  per- 
turbavam com  seus  constantes  gorgeios  os  severos  estu- 
dos dos  alumnos  de  Themis  :  eram  uma  verdadeit*a  Arcádia 
no  seio  da  Academia. 

No  meio  d'essa  plêiada  de  cantores,  o  guaturamo  da  Dia- 
mantina não  podia  flcar  mudo. 

Graças  á  sua  fácil  intelligencia,  poucas  horas  bastavam  a 
Aureliano  para  desempenhar  os  seus  deveres  escolásticos ;  o 
resto  do  tempo  dissipava-o  elle  alegremente  em  convivên- 
cias e  palestras,  improvisando  estrophes  fugitivas,  ou  dis- 
cutindo litteratura  entre  seus  amigos.  Nas  polemicas  e  cer- 
tames académicos  a  palavra  lhe  borbotava  dos  lábios  coro 
uma  promptidão  e  abundância  prodigiosas. 

Com  a  mesma  facilidade  com  que  dissertava  sobre  littera- 
tura amena,  embrenhava-se  também  com  incrível  volubilidade 
nos  mais  intrincados  labyrinthos  da  metaphysica. 

Como  todos  os  espirites  dotados  de  comprehensão  extre- 
mamente fácil,  mas  a  quem  faltam  a  calma  e  paciência  neces- 
sárias para  reflectirem,  tomava  sofTregamente  as  primeiras 
intuições  de  sua  intelligencia  como  verdades  irrecusáveis,  e 
assim  por  vezes  de  erro  em  erro  era  levado  aos  mais  estranhos 
paradoxos,  que  elle  todavia  não  deixava  de  defender  com  o 
accento  da  mais  intima  convicção,  e  com  uma  dialéctica  ines- 
gotável em  recursos. 


220  HISTORIA  DA  LITTSRATXJBA  BBA8ILBISA 

I 

Essa  mania  do  paradoxo,  e  o  gosto  de  metaphysicar  (deixem 
passar  a  expressão)  o  eanmaranhavam  ás  vezes  em  tal  con- 
fusão de  raciocinios,  que  o  tomavam  completamentei  inintel- 
ligivel. 

O  pendor  de  seu  espirito  para  as  concepções  transcenden- 
taes  da  philosophia  reílecte-se  até  em  algumas  de  suas  compo- 
sições poéticas,  nas  quaes  o  conceito  é  por  vezes  tão  subtil  e 
alambicado,  que  prejudica  grandJemente  a  clareza. 

Aureliano  tomou  o  gráo  de  bacharel,  cm  Olinda,  em  185i. 
Deixando  os  bancos  académicos,  a  sua  norma  ordinária  de 
viver  em  nada  se  alterou.  Continuou  sempre  o  mesmo,  sempre 
alegre  e  despreoccupado,  olhando  co-m  indifferença  o  pre- 
sente, bom  ou  máo,  e  completamente  descuidado  do  futuro. 
O  génio  folgazão  e  imprevidente  da  puericia  parecia  nunca 
mais  querer  abandonal-o.  Era  sempre  a  mesma  criança  tra* 
vessa,  espirituosa,  volúvel  e  doudejante.  Epicurista  por  natu- 
reza, Aureliano  quereria  passar  a  vida  em  um  cantinuo 
festim. 

Não  vá,  porém,  o  leitor  pensar  que  era  elle  um  d'esses  sen- 
sualistas  libertinos  e  descridos,  como  os  que  a  imaginaçáx) 
de  Byron  creou  á  sua  própria  imagem  e  similhança,  ou  um 
conviva  crapuloso  das  tascas  e  dos  bordéis,  como  esses  que 
Alvares  de  Azevedo,  exagerando  Musset,  tanto  folgava  de 
esboçar,  esperdiçando  em  táo  monstruosas  creações  as  bri- 
lhantes cores  de  sua  rica  paleta. 

Não ;  Aureliano  não  tinha  parentesco  algum  com  D.  Juan, 
nem  tão  pouco  com  J.  Rolla,  e  muito  menos  com  Bocage. 

Era  um  epicurista  sui  generis.  Suas  orgias,  se  orgieis  sí 
podem  chamar,  nunca  tinham  por  theatro  o  lupanar  ou  a 
casa  de  jogo,  ou  outro  qualquer  lugar  de  devassidão  ou  crá- 
pula grosseira.  Eram  delirios  galhofeiros  em  roda  da  mesa, 
em  companhia  de  alguns  poucos  amigos. 

O  fumo  dos  vinhos  elles  evaporavam  rindo,  cantando,  poe- 
tisando,  ou  em  passatempos,  não  direi  escolásticos,  mas 
quasi  infantis. 

Era  uma  devassidão  do  espirito,  se  assim  me  posso  expri- 
mir, jovial  e  inoftensiva,  e  não  os  gozos  do  sensualismo  mato- 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBA  BBABILUBA  221 

rial.  Eram,  desculpem-me  se  repito  tantas  vezes  a  phrase  que 
melhor  o  caracterisa,  eram  orgias  de  criança  »  (i). 

Este  pedaço  é  instmctivo,  duplamente  instructivo ;  revela 
uma  parte  da  indole  de  Lessa  e  uma  parte  da  intuiçio  rei- 
nante em  1850  em  São  Paulo. 

Estava-se  então  na  phase  do  sentiinentàlismo  na  romântica 
brasileira  Esta  é  a  verdade  ;  mas  expressa  de  um  modo  tão 
geral  que  se  flca  a  ignorar  a  realidade  da  historia,  a  reali- 
dade da  vida  como  ella  se  passou. 

Dizer  que  n'aquelle  tempo  a  poesia  choramigava  é  a  ver- 
dade ;  mas  náo  toda  a  verdade ;  é  preciso  ajuntar  alguma 
cousa  mais ;  é  preciso  dizer  antes  de  tudo  quem  chorava  com 
razão  e  quem  pranteava  sem  ella ;  é  mister  sobre  tudo  mostrar 
no  meio  de  tanto  pranto  muito  riso  franco  e  jovial  que  passava 
gárrulo  e  sonoro. 

E'  necessário  accrescentar  ainda  outra  cousa  :  no  meio 
d'aquelle  grande  lamuriar  houve  muita  rebeldia,  muito  brado, 
muito  grito  em  prol  de  novas  crenças,  de  novos  idéaes.  Foi 
um  tempo  de  agitação  e  toda  epocha  de  agitação  merece 
grandes  preitos  da  historia. 

Devem-se  tomar  estas  precauções  antes»  de  julgar  definiti- 
vamente Aureliano  Lessa. 

O  estado  fragmentado  em  que  ficaram  as  producções  do 
poeta  é  ainda  uma  attenuante  para  juizos  rigorosos. 

No  descuidoso  mineiro  descubro  três  largas  portas  por 
onde  o  assaltavam  as  impressões  da  poesia  :  a  meditação  que 
o  levava  a  certo  naturalismo  semi-philosophico,  o  amor  que 
se  lhe  traduzia  em  doces  e  languorosos  arroubos,  a  melan- 
colia, que  nos  seus  lábios  tinha  um.  travor  dolorosíssimo. 

  melancolia  não  é  lá  uma  cousa  tão  desparatada  como 
muita  gente  por  ahi  anda  agora  a  julgar  ;  é  antes  uma  genuína 
fllha  da  civilisação  moderna,  é  uma  das  formulas  do  pessi- 
mismo, é  o  seu  primeiro  passo. 

Ora,  toda  a  humanidade  é  hoje  mais  ou  menos  pessimista. 
A  epocha  das  grandes  alegrias,  a  phase  heiroica  do  homem, 
está  passada. 

(1)  Poenoê  Poêthuma»  do  Dr.  Aureliano  José  Les^sa,  Rio  de  Janeiro, 
1873 ;  pag,  VI. 


222  HISTORIA  DA  LITTBAATURA  BKA8ILEIBA 

Por  isso  não  se  deve  ser  leviana  e  julgar  mal  dos  outros  sem 
provas  cabaes. 

Pelo  que  me  toca,  estou  completamente  convencido  da  sin- 
ceridade de  Aujreliano ;  este  nunca  escreveu  versos  por  sys- 
tema  e  calculo,  nclo  cogitou  jamais  de  glorias ;  sua  poesia  era 
espontânea  como  a  sua  conversação ;  nada  de  pose,  repito. 

Começo  por  mostrar  o  poeta  pelo  sombrio  lado  da  melan- 
colia. Ouçam  : 

«  Ha  tormentos  sem  nome,  ha  desenganos 
Mais  negros  que  o  horror  da  sepultura ; 
Dores  loucas,  e  cheias  de  amargura, 
E  momentos  mais  longos  do  que  os  annos. 

N&o  s&o  da  vida  os  passageiros  damnos 
Que  dobram  minha  fronte  ;  a  desveVitura 
Eu  a  desdenho...  A  minha  sorte  dura 
Fadou-me  dentro  d'alma  outros  tyrannos. 

As  dores  d'alma,  sim ;  ella  somente 
Algoz  de  si,  acha  um  prazer  cruento 
Em  torturar-se  ao  fogo  lentamente. 

Oh!  isto  é  que  é  'soffrer!  Nenhum  tormento 
Vale  um  gemido  só  da  alma  tremente, 
Nem  séculos  as  dores  de  um  momefato!  » 

Na  mesma  indole  sfto  escriptos  estes  outros  versos  : 

«  Ohl  nâo  me  pergunteis  porque  motivo 
Pende-me  a  fronte  ao  peso  da  amargura, 
Quando  um  suspiro  tremulo,  afflictivo, 
Sobre  os  meus  lábios  pallidos  murmura. 

Quando  ao  fundo  do  lago  a  pedra  desce. 
Globo  de  espuma  á  jflôr  do  lago  estala  : 
Assim  é  o  suspiro  :  elle  apparece, 
Porque  no  coraç&o  cai  dôr  que  o  rala. 

Do  lago  a  face  lisa  espelha  flores, 
No  fundo  a  vista  nâo  divisa  o  ceno  ; 
Assim  dentro  do  peito  escondo  as  dores, 
Mandando  aos  lábios  um  sorriso  ameno. 


HISTORIA  DA  LITTBBATUBA  BRABILBUtA  233 

Mas  quando  uma  afílicç&o  acerba  e  crua 
Mais  que  um  rochedo  o  coretç&o  me  opprime, 
Qu6Lndo  nas  chammas  do  sofírer  estua 
Como  no  incêndio  o  resequido  vime  ; 

Nâo  choro,  n&o !  De  augustias  ílagellado, 
Um  queixume  sequer  eu  nfio  profiro ; 
Descai-me  a  fronte,  pehso  no  meu  fado... 
Oh!  não  me  pergunteis  porque  suspiro!...  » 


Podéra  citar  outras  provas  (l'essas  dores  acerbas.  Náo  é  pre- 
ciso ;  passo  ao  lyrismo  expansivo  das  effusões  amoro- 
sas. N'elle  apparece  o  brasUeirismo,  isto  é,  o  calor,  o  anceio 
do  goso  vasado  em  forma  doce  e  delicada.  Entre  as  produc- 
ções  do  género  as  mais  significativas  sao  Leviana,  A...,  Duas 
Auroras,  Tu,  Canto  de  amor,  Qtteixa,  além  de  outras. 

Eil-o  que  inebria-se  no6  fulgores  de  sua  amante  : 

(I  Lá  despontam  no  levante 
Entre  cândidos  vapores. 
Os  primeiros  resplendores 
Do  purpurino  arrebol. 
Já  da  noite  os  véos  .sombrios 
No  occidente  empallidecem ; 
Sobe  a  luz,  as  nuvens  descem 
Foge  a 'noite,  assoma  o  sol. 

Sobre  o  paramo  dos  ares 
Um  véo  de  luz  se  derrama, 
Que  nas  pérolas  da  gramma 
Vem  sorrindo  scintillar. 
Estão  as  viçosas  flores 
Abrindo  os  botões  odoros 
E  mil  pássaros  sonoros 
Sobre  as  ramas  a  trinar. 

Preguiçoso  rola  o  rio 
As  verdes  praias  beijando, 
Longamente  murmurando 
Um  carpido  adeus  de  amor. 


224  HISTORIA  BA  UTTBBATUAA  BRA8ILEISA 

Da  folhagem  do  arvoredo 
Docas  lagrimas  go^tejemi 
E  mil  zephyros  adejam 
Pousando  de  flor  em  flor. 

Vem  commigo,  ó  minha  amada, 
Saudar  esta  aurora  bella  ; 
N&o  tenho  sem  ti,  donzella, 
Nem  um  completo  prazer. 
Vem,  do  teu  amahte  ao  lado, 
Pousar  n'este  chão  de  flores, 
E  a  linguagem  dos  amores 
Com  as  aves  aprender. 

Vem,  depressa,  ó  minha  pomba! 
Vem  com  teus  lábios  risonhos 
Contar-me  os  singelos  sonhos 
Que  em  tua  alma  o  céo  verteu. 
Eu  quero  também  contar-te 
Um  sonho,  um  sonho  mui  bello, 
Desejo,  ó  virgem,  vertel-o, 
Guardal-o  no  seio  teu. 

Traze  os  teus  louros  cabellos 
Soltos  â  brisa  ligeira, 
Assim  como  a  vez  primeira, 
Que  n'este  prado  te  vi! 
Na  minha  lyra  dourada 
Vibráhdo  as  cordas  sonoras. 
Cantarei  duas  auroras, 
Uma  nos  céos,  —  outra  em  ti!  » 

Estes  versos  intitulam-se  Duas  Auroras,  uma  na  esplanada 
dos  céos,  outra  no  olhos  e  no  sorriso  de  sua  amante.  O  quadro 
é  gracioso  e  prenunciador  do  apuro  a  que  devia  com  o  tempo 
chegar  a  evolução  do  moderno  lyrismo  brasileiro. 

Eis  outra  pagina  delicada  e  meiga,  a  poesia  Tu  : 

u  Teus  olhos  são  como  a  noite 

Trevas  e  luz; 
O'  anjo,  o  céo  em  teus  olhos 

Se  reproduzi 


HISTORIA  DA  LITTBBATUIIA  BBASILBIBA  225 

Ta*alina  ainda  n&o  conhece 

Teu  coraç&o; 
Rvbor  que  te  accende  as  faces 

E*  sem  raz&o. 

InnocentOf  quem  gozara 

Comtigo  O  céo! 
Quem  dos  amores  comtigo 

Rasgara  o  véol 

Quem  descerrara  teus  lábios 

Cum  doce  beijo!... 
Dizendo  —  amor  ~  e  em  teus  olhos 

Vira  um  desejol 

Tua  face  é  como  a  aurora 

Púrpura  e  luz! 
O*  anjo,  a  aurora  em  teu  rosto 

Se  reproduz! 

Quero  viver  em  teus  olhos, 

O'  innocente! 
Quero  adorar-te  prostrado 

Eternamente!  » 

E'  singelo  e  amável  isto ;  é  docemente  lyrico.  Ha  quinhentos 
géneros  de  poesia.  Aprecio  todos  elles  quando  revelam  since- 
ridade a  talento. 

A  poesia  pôde  ser  crente  ou  descrente,  alegre  ou  triste, 
pacata  ou  revolucionaria,  popular  ou  aristocrática,  lyrica, 
dramática,  epicai,  patriótica,  humorisUca,  satyrica,  elegiaca, 
descriptiva,  cómica,  meiga,  ardente,  voluptuosa,  mystica, 
religiosa^  impenitente,  scientiílca...  pôde  ser  o  que  ella  quizer 
e  desejar  ser  ;  estou  sempre  disposto  a  aprecial-a,  se  fõr  a 
expressão  natural  de  um  temperamento. 

O  que  não  tolero  facilmente  são  o  exclusivismo,  a  estrei- 
teza de  vistas,  as  igrejinhas  fanáticas. 

ff  Nos  tempos  modernos,  diz  Lessing,  a  arte  recuou  muito  os 
seus  limites.  Hoje  pretende-se  que  sua  imitação  se  estenda  a 
toda  a  naturezai  visivel  de  que  o  bello  é  apenas  uma  pequenina 
parte.  Expressão  e  verdade,  assegura-se,  são  as  suas  pri- 
meiras leis.  Como  a  própria  natureza  sabe  sempre,  quando 

BuioKu;  n  15 


226  HI8T0BIA  DA  LITTBBATURA  BBA8ILSIRA 

sô  faz  preciso,  sacrificar  a  belleza  a  designios  mais  elevados, 
deve  também  o  artista  subordinar  esta  mesma  belleza  á  voca- 
ção mais  geral  que  o  attrahe  a  tudo  imitar,  e  seguir-lhe  as  leis 
somente  na  medida  em  que  se  coadunam,  com  a  verdade  e  a 
expressão.  » 

São  palavras  do  Laocoonte  ou  os  limites  da  poesia  e  da  pin- 
tura, excellente  livro,  onde  se  acham  em  gérmen  muitas  das 
ideias  mais  tarde  desenvolvidas  por  Taine,  Promentin  e 
Guyau,  os  três  illustres  estheticos  francezes  a  que  se  pren- 
dem Bourget  e  Veron. 

Lessing  fala  n*esse  tópico  da  pintura  e  repelle  aquelle 
modo  de  pensar  no  que  diz  respeito  a  esta  arte. 

O  que  é  assim  até  certo  ponto  inecxacto  com  referencia  á  pin- 
tura é  de  palpitanta  verdade  tratando-se  da  poesia.  Esta  deve 
estender  os  seus  limites  a  todos  os  domínios  da  phenomena- 
lidade  universal.  O  grande  Cosmos  é  o  seu  objecto. 

Eu  bem  sei  que  se  diz  que  a  sciencia,  e  sua  filha  mais  velha 
a  industria,  e  sua  filha  mais  nova  a  democracia,  batendo  os 
mysterios,  materialisando  a  vida  e  igualando  as  classes, 
têm  trazido  á  poesia  duríssimas  provações;  mas  acredito 
que  ella  sahirá  victoriosa  de  tão  rudes  combates. 

Não  creio  ser  em  pura  perda  o  tempo  que  tenho  e<%tado  a 
empregar  em  ler  e  discutir  poetas.  Por  isso  diga-se  amda  uma 
palavra  sobre  Aureliano  Lessa. 

Não  se  limitou!  á  poesia  subjectiva  ou  pessoal  de  suas 
magoas  ou  de  seus  amores.  De  vez  em  quando  lançava  um 
largo  olhar  sobre  o  grande  universo  e  envolvia-se  no  turbilhão 
das  espheras  pelos  espaços  fora.  Então  desferia  d*esses 
hymnos  pantheisticos,  dos  quaes  O  Sol  e  A  Créação  são  dois 
bellos  espécimens.  Leia-se  aqui  esta  ultima,  que  não  deva  ser 
confundida  com  o  Hymaio  da  Créação,  também  do  poeta  (i). 

Eil-a  : 

u  Quando  Uído  era  Deus,  quando  só  EUe 

Pejava  o  horror  do  espaço; 
Deus  disse  :  —  é  bom  que  surja  o  Universo 

Recuemos  um  passo.  — 

(1)  Vide  Poetío*  Poãthuma$:  lAde  O  «Sol,  Hymno  da  Créação^  A'  Tardm^ 
O  PoeUHt  A  Créação,  etc. 


HIBTOBIÀ  DA  UTTEBATUBA  BBASILBIRA  227 

Depois  co*a  dextra  contrahindo  o  vácuo 

Informe,  e  tenebroso, 
Deixou  cahir  o  Universo  inteiro 

No  espaço  luminoso : 

O  sUetocio  expandiu-se;  era  um  sussurro 

De  sublime  harmonia; 
Hymno  da  vida,  porque  o  sol  gyrava 

O  primitivo  dia. 

Um  chuveiro  de  mundos  despenhou-se 

Pelos  deserto»  ares, 
Ck)mo  a  saraiva,  ou  como  os  grftos  de  arôa 

Lá  no  fundo  dos  mares. 

Rodava  a  terra  verde,  e  a  lua  pallida, 

Ia  a  noite  após  ellas. 
Mas  caiu  sobre  as  trevas,  que  fugiam, 

Uma  chuva  de  estrellas. 

Os  cometas  correram  desgrenhados, 

Quaes  prófugos  do  inferno, 
Levando  aos  astros  dos  confins  da  esphera 

Os  decretos  do  Eterno. 

Do  seu  leito  de  abysmos  o  oceano 

Tenta  em  vfto  levantar-se; 
Vem  tombando,  mugindo  e  espumando 

Co*as  terras  abraçar-se. 

Abre  o  condor  as  azas  sobre  nuvens, 

Leviathan  nos  mares; 
E  os  jubados  leões,  bramindo  atroam 

Os  echos  dos  palmares. 

Vem  descendo  dos  montes,  debruçados 

Como  enormes  serpentes 
Pelas  campinas  té  beber  no  oceano, 

Os  rios  e  as  correntes. 

Os  pássaros  cantando,  a  luz  da  aurora 

Flóreos  botões  desata; 
A  selva  freme,  a  viração  murmura. 

Sussurrando  a  cascata. 


.  I 


228  HISTOBIA  DA  LITTBRATUBA  BRA8ILBIRA 

Immovel  nos  umbraes  da  Etemidadd« 

Té  li  o  tempo  estava; 
Mas  após  ò  primeiro  movimento 

Já  veloz  caminhavcu 

Então  milhões  de  mundos,  e  mais  mundos, 

Céos,  e  céos  ao  redor. 
Todos  em  brado  universal  cantaram 

Hosana  ao  Creador. 

No  meio  da  harmdhia  do  Universo 
Deus  despertou  o  homem. 

Lançando  sobre  a  terra  um  véo  de  nuvens 
Que  ao  seu  olhar  o  somem. 

Co'a  dextra  incerta  tateando  os  ares 

O  homem  despertava... 
Ébrio  de  vida,  os  membros  apalpando 

—  Tu  quem  és?  —  perguntava. 

Tentou  falar;  do  peito  a  voz  lhe  brota, 

E  recua  adinirado; 
As  aves  cantam,  e  o  cantar  das  aves 

Escuta  extasiado. 

Quiz  caminhar,  correu  pela  planície, 

E  galgou  as  collinas  : 
Derrama  em  torno,  ao  longe,  o  olhar  vago, 

Vô  montes  c  campinas. 

Os  echos  escutou  por  muito  tempo, 

Encruzados  os  braços, 
E  de  lá  vem  descendo  pensa  li  vo 

Com  vagarosos  passos. 

Debalde  as  vistas  erra  pelos  lit)ncos 

Da  numerosa  selva; 
Em  v&o  percorre  as  grutas,  íaligado 

Assenta-se  na  relva. 

Pensa,  medita,  e  erguendo-se  mais  forte 
De  novo  a  selva  explora  ; 

Volve,  revolve  tudo  e  o  vazio 
Do  coração  deplora. 


i 


HISTOBIA  DA  LITTXEATUBA  BSABILBISA  229 

Súbito  estaca  palpitante  o  peito, 

E  co'o  abraço  aberto... 
Est&o  seus  olhos  devorando  a  scena, 

Que  descortinam  perto... 

Na  borda  de  uma  fonte  crystallina 

A  mulher  se  mirava ; 
Rubra  de  pejo,  as  graças  inda  nuas 

Co*as  brancas  mãos  tapava. 

Ria-se  á  sua  imagem;  para  ella 

Os  braços  estendia... 
Mas  vendo  a  sombra  abrír-lhe  um  terno  abraço 

Recuava  e  sorrieu 

Elle  exclama :  eras  tu!  E  ella  fugia 

Co*as  faces  em  rubor... 
N&o  pôde  proseguir,  caiu,  cahiram, 

E  levantou-se  Amor!  » (1) 

Lessa  eira  um  temperamento  ideialista  e  religioso ;  não  da 
religiosidade  exterior  de  praticas  e  ceremonías ;  sim  da  neces- 
sidade da  alçar  o  espirito  ás  origens,  ás  syntheses  ultimas  do 
universo,  a  essas  causas  primeiras  e  firmes  que  o  positivismo 
deseja  banir  da  mente  do  homem  e  Kant  declarou  constí- 
tuirem  outros  tantos  problemas  insolúveis  scientificamente 
6  indestructiveis  ante  a  natureea  intrínseca  da  razão  humana. 
E'  a  esphera  em  que  se  debatem  as  duas  velhas  intuições  — 
do  dualismo  e  do  morúsmo.  E'  o  terreno  perpetuo  das  reli- 
giões e  das  metaphysicas. 

De  ordinário  se  diz  que  a  intuição  monistica  do  universo  é 
um  producto  da  raça  aryana  e  a  intuição  dualistica  uma 
obra  dos  semitas.  Assim  parece  ser  a  quem  estuda  super- 
ficialmente a  historia  da  philosophia.  Um  olhar  mais  profundo 
do  espirito  critico  por  esse  lado  irá  discernir  nos  dois  maiores 
génios  dos  semitas,  Moysés  na  alta  antiguidade  e  Spinosa  nos 
tempos  modernos,  dois  monistas  no  alto  e  elevado  sentido, 
mas  d*um  monismo  que  se  pôde  alliar  com  o  ideialismo.  Lessa 

(1)  Poêêioê  Poêthumoê,  pag.  48. 


230  HIBTOBIA  DA  LITTBBATUEA.  BKABILBI&A 

parece  ter  lobrigado  vagamente  essa  aspiração  da  intelli- 
gencia. 

Bernardo  Joaquim  da  Silva  Guimarães  (1827-1884).  A  pcis- 
sagem  de  Alvares  de  Azevedo  e  Aureliano  Lessa  para  Bei^ 
nardo  Guimarães  é  muito  natural.  Já  se  viu  que  foram  com- 
panheiros. Obedecem  mutatis  mutandis  &  mesma  intuição. 

Bernardo  viveu  apenas  muito  mais  do  que  os  seus  d(HS 
amigos  e  teve  tempo  de  publicar  treee  obras.  São  dez  ro- 
mances e  três  volumes  de  poesias.  Teve  tempo  de  tratar  de  seu 
bilan  litterario  e  providenciar  sobre  sua  fama. 

Tem-se  pois  em  face  um  poeta  e  um  romancista ;  deve-se 
começar  pelo  primeiro,  que  foi  também;  por  onde  principiou  o 
notável  sertanejo. 

O  mais  antigo  volume  de  versos  de  Bernardo  appareceu 
em  S.  Paulo  em  1852  sob  o  titulo  de  Cantos  da  Solidão.  Publi- 
cou sob  a  mesma  denominação  segunda  edição  no  Rio  de 
Janeiro  em  1858 ;  o  volume  vinha  augmentado  com  as  Ins- 
pirações da  Tarde. 

Em  1865  surgiu  nova  edição  sob  o  nome  de  Poesias  de  B.  J. 
da  Silva  Guimarães.  O  livro  contém,  além  d'aquellas  duas 
partes,  Poesias  diversas^  Evocações  e  a  Bahia  de  Botafogo.  E' 
a  mais  significativa  obra  poética  do  nosso  mineiro;  é  uma 
das  melhores  da  lingua  portugueza. 

Em  1876  sahiram  as  Novas  Poesias  e  em  1883  as  Folhas  do 
Outomno.  A  decadência  è  evidente. 

Deve-se  ainda  e  sempre  procurar  o  lyrista  n'aquelle  pri- 
meiro livro  de  sua  mocidade. 

Bernardo  é  d^aquelles  poetas  que  lucram  em  ser  relidos  ; 
descobrem-se-lhe  novas  bellezas. 

Possue  boas  amostras  de  lyrismo  naturalista,  como  em 
Invocação^  e  Ermo;  de  lyrismo  philosophico,  como  em  o 
Desvanear  do  Sceptico ;  de  lyrismo  amoroso,  como  nas  Evo- 
cações ;  de  lyrismo  humorístico,  como  na  Orgia  dos  Duendes^ 
no  Diluvio  de  papel,  em  o  Nariz  perante  os  poetas. 

Mas  isto  não  define  o  poeta,  não  o  individualisa ;  será  pre- 
ciso descobrir  uma  nota  que  seja  só  d'elle,  que  o  affaste  de 
seus  competidores.  E  esta  nota  eu  creio  tel-a  achado  :  são  as 


f 


HISTOBIA  DA  LITTEBATUSA  BBA8ILBIBA  231 

tintas  sertanejas  de  sua  paleta  e  o  tom  brasileiríssimo  de  sua 
lingua. 

Eu  me  explico. 

Magalhães,  Gonçalves  Dias,  Alvares  de  Azevedo  e  muitos 
outros  poetas  nacionaes,  do  norte  ou  do  sul,  eram  filhos  da 
região  da  costa  ou  quando  muito  da  que  se  chama  a  região 
das  mattas  próxima  ás  costas.  Viveram*,  além  disto,  nas 
grandes  cidades  ao  contacto  de  estrangeiros  e  quasi  nada 
conheceram  das  diversas  zonas  do  paiz. 

Gonçalves  Dias,  que  poderia  fazer  por  este  lado  uma  excep- 
ção, não  a  faz,  porque  só  nos  últimos  annos  próximos  á  sua 
morte  viajou  os  sertões  do  norte. 

Por  mais  brasileira  que  fosse  a  intuição  d*esses  homens, 
não  o  i>oderia  ser  tanto  como  a  de  Bernardo  Guimarães.  Esie 
nasceu  e  viveu  em  plena  luz,  no  coração  do  Brasil,  na  piar 
nalto  central. 

Filho  de  Minas,  elle  viajou  muito  os  sertOes  de  sua  pro- 
vinda e  das  de  Goyaz,  São  Paulo  e  Rio  de  Janeiro. 

Bernardo  tinha  o  génio  de  bohemio,  era  um  caminhador : 
não  apodrecia  n*um  canto ;  movia-se  constantemente.  Possuia 
o  instíncto  do  pittoresco. 

Junte-se  a  isto  o  conviver  intimo  com  o  povo,  o  falar  con- 
stante de  sua  linguagem  e  saber-se-ha  o  motivo  pelo  qual  o 
intelligente  mineiro  em  seus  versos  e  em  seus  romances  é 
uma  das  mais  nitidas  incarnações  do  espirito  nacional. 

Todos  os  seus  escriptos  versam  sobre  assumptos  brasi- 
leiros ;  mas  ha  n'elles  alguma  cousa  mais  do  que  a  simpleis 
escolha  do  assumpto;  ha  o  brasileirismo  subjectivo,  espon- 
teneo,  inconsciente,  oriundo  d'alma  e  do  coração. 

Um  traço  mais. 

Bernardo,  com  ser  um  sertanejo,  um  homem^  habituado  á 
vida  singela  e  píttoresca  do  interior,  não  era  um»  d'esses  espí- 
ritos curtos,  maldizentes,  que  praguejam  contra  todo  o  pro- 
gresso, um  d'esses  obcecados  que  desejariam  ficasse  o  Brasil 
perpetuamente  entregue  aos  caboclos  na  sua  inveterada  estu- 
pidez. Muito  pelo  contrario,  Bernardo  foi  sempre  avesso  aos 
caboclismos  exagerados.  Era  um  espirito  liberal  e  progres- 
sivo. 


232  HISTORIA  DA  LITTEKATimA  BEASILBIBA 

Amava  a  civilísaçao,  nGLo  leivava  o  seu  amor  pela  paizagem, 
ao  ponto  de  gostar  mais  de  uma  bella  matta  do  que  <|*uma 
bella  cidade.  N*este  sesitído,  a  poeisia  O  Ermo  é  muito  interes* 
santo  e  significativa. 

O  poeta  possuia  uma  boa  intuição  d*essas  duas  forças, 
que  constituem]  os  dois  poios  enti^e  os  quaes  gira  toda  a  evo- 
lução da  humanidade  :  a  natureza  e  a  cultura  (Natur  und 
Kultur). 

O  maior  erro  da  intuição  romântica,  erro  desenvolvido  pela 
influencia  maleflca  da  philosophia  do  século  XVIII,  foi  o  exag- 
gero  das  bondades  e  grandezas  do  chamado  estado  de  natu- 
reza, corrompido  mais  tarde  pela  civilisação. 

A  natureza  era  aqui  elefvada  á  categoria  de  uma  potencia 
bemfazeja  e  divina,  que  tinha  inspirado  as  maiores  crêaçOes 
da  humanidade. 

N'este  sentido  feilava-se  n'uma  Religião  Natural,  n'uma  Poe- 
sia Natural,  n'um  Direito  Natural,  n'uma  Philosophia  Natural^ 
n*uma  Esthetica  Natural... 

V6-se,  pois,  que  a  romântica  andava  também  a  falar  muito 
em  Mamâe-Natureza,  e  que  o  romantismo  também  se  poderia 
chamar  o  naturalismo ;  mas  era  um  naturalismo  vaporoso. 

Os  grandes  estudos  de  historia,  ethnographia  e  anihropo- 
logia  mostraram  o  homem  em  estado  de  natureza  mergulhado 
na  miséria  e  na  ignorância  e  mostraram  que  a  Mãe-Natura 
não  produziu  nunca  arte,  ou  direito,  ou  religião,  ou  poesia, 
ou  philosophia ;  mostraram  flnalmente  que  tudo  isto  é  o  resul- 
tado da  evolução  lenta  da  cimlisaçao  humana.  A  intuição  do 
cultural  substituiu  o  conceito  erróneo  do  natural. 

Era  lógico,  e  dever-se-ia  esperar  que  o  termo  naturalismo 
desapparesse  da  scena.  Porém  não  foi  assim. 

A  palavra  flcou  para  signíflcar,  não  esse  bucolismo  con- 
vencional, mas  aquelle  systema,  aquella  maneira  de  encarar 
o  homem  como  elle  é,  como  elle  se  desenvolve  individual  e 
collectivamente  sob  a  dupla  influencia  das  forças  physicas  e 
da  cultura  social. 

Bernardo  Guimarães  teve  um  presentimento  poético  da 
intuição  contemporânea. 

No  Ermo  elle  começa  por  convidar  a  sua  musa  para  leval-o 


X 


HI8T0BIA  PA  XJTTXBATimA  BBASILIUtA  233  ^ 

s  solidões  deshabitadas ;  apraz-se  em  taes  ermos  inebriado 
3las  bellezas  naturaes  do  sitio,  e  assim  esclama  : 

« Como  ô  formoso  o  céo  da  pátria  minha! 

Que  sol  brilhante  e  vivido  resplende 

Suspenso  n*essa  cnpola  serena! 

Terra  feliz,  tu  és  da  natureza 

A  filha  mais  mimosa;  ella  sorrindo 

N*um  enlevo  de  amor  te  encheu  d*encantos. 

Das  mais  donosas  galas  enfeitou-te; 

Belleza  e  vida  te  espargio  na  face, 

E  em  teu  seio  entornou  fecunda  seiva! 

Oh!  paire  sempre  sobre  os  teus  deserios 

Celeste  benção;  bem*  fadada  sejas 

Em  teu  destino,  ó  pátria;  em  ti  recobre 

A  prole  de  Eva  o  Éden  que  perdera! 

Olha  :  —  qual  vasto  manto  que  fluctua 

Sobre  os  homhros  da  terra,  ondêa  a  selva, 

E  ora  surdo  murmúrio  ao  céo  levanta, 

Qual  prece  humilde,  que  no  ar  se  perde. 

Ora  açoitada  dos  tufões  revoltos. 

Ruge,  sibila,  sacudindo  a  grenha. 

Qual  hórrida  bacchante.  AUi  despenha-se 

Pelo  dorso  do  monte  alva  cascata. 

Que,  de  alcantis  enormes  debruçada. 

Em  argêntea  espadana  ao  longe  brilhe^ 

Qual  longo  véo  de  neve,  que  esvoaça. 

Pendente  aos  hombros  de  formosa  virgem, 

E  já,  descendo  a  colear  nos  vaUes, 

As  plagas  fertitisc^  e  as  sombras  peja 

D*almo  frescor  e  plácidos  murmúrios^. 

AUi  campinas,  róseos  horisontes. 

Límpidas  veias,  onde  o  sol  tremula. 

Como  em  dourada  escama  reflectindo 

Flóreas  balsas,  collinas  vicejantes, 

Toucadas  de  palmeiras  graciosas. 

Que  em  céo  limpido  e  claro  balanceam 

A  coma  verde-escura.  Alem  montanhas. 

Eternos  cofres  d*ouro  e  pedraria. 

Coroadas  de  píncaros  rugosos 

Que  se  embebem  no  azul  do  Armamento, 

Ou  se  te  apraz,  desçamos  n*esse  valle.  * 


y 

X 


234  HI8T0BIA  DA  LITTERATUSA  BRABILEUtA 

Manso  asylo  de  sombi-as  e  mysterio, 
Cuja  mudez  talvez  jamais  quebrara 

Humaino  passo  revolvendo  as  folhas, 
E  que  nunca  escutou  mais  que  os  arrulhos 
Da  casta  pomba,  e  o  soluçar  da  fonte... 
Onde  se  cuida  ouvir,  entre  os  suspiros 
Da  folha  que  estremece,  os  ais  carpidos 
Dos  manes  do  índio,  que  inda  chora 
O  doce  Éden  que  os  brancos  lhe  roubaram!... 
Que  é  feito  pois  d*essas  guerreiras  tribus, 
Que  outr'ora  estes  desei^tos  animavam? 
Onde  foi  'esse  povo  inquieto  e  rude, 
De  brônzea  côr,  de  torva  catadura, 
Com  seus  cânticos  selváticos  de  guerra 
Restrugindo  no  fundo  dos  desertos, 
A  cujos  sons  medonhos  a  panthera 
Em  seu  covil  de  susto  estremecia? 
Oh!  floresta,  que  é  feito  de  teus  filhos?  »  (1) 

O  poeta  prosegue  pranteando  o  dôsapparecimenlo  dos  pri- 
mitivos Íncolas,  a  destruiçâx)  das  mattas,  a  mudança  operada 
pelos  colonos.  Prantéa  a  morte  de  tantas  scenas  naiutats. 

De  repente  muda  de  linguagem  e  exclama : 

«  Mas,  n&o  te  queixes,  musa;  s&o  decretos 
Da  eterna  providencia  irrevogáveis! 
Deixa  passar  destruição  e  morte 
N*essas  risonhas  e  fecundas  plagas. 
Como  charrua,  que  revolve  a  terrs^ 
Onde  germinam  do  porvir  os  fructos. 
O  homem  fraco  aind6^  e  que  hoje  a  custo, 
Da  creaç&o  a  obra  mutilando. 
Sem  nada  produzir  destrue  apenas, 
Amanha  creeu^á;  sua  mâo  potente. 
Que  doma  e  sobrepuja  a  natureza. 
Ha  de  imprimir  um  dia  forma  nova 
Na  face  d'este  solo  immneso  e  bello  : 
Tempo  virá  em  que  n'essa  vallada 
Onde  íluctua  a  coma  da  floresta, 
Linda  cidade  surja,  branquejando 

(1)  Poesias^  pag.  59.  — 


J 


HISTORIA  DA  LITTXEATUBA  BBABILBIKA  235 

Como  um  bando  de  garças  na  planície; 
£  em  logar  doesse  brando  rumorejo 
Abi  murmurará  a  voz  de  um  povo; 
Essas  encostas  broncas  e  sombrias 
Serão  risonhos  parques  sumptuosos; 
Esses  rios  que  vão  por  entre  sombras 
Ondas  caudaes  serenas  resvalando, 
Em  vez  do  tope  escuro  das  florestas, 
Reflectirão  no  límpido  regaço 
Torres,  palácios,  coruchéos  brilhantes, 
Zimbórios  magestosos,  e  castellos 
De  bastiões  sombrios  coroados, 
Esses  bulcões  da  guerra,  que  do  seio 
Com  horrendo  fragor  raios  despejam. 
Rasgar-se-h&o  os  serros  altaneiros, 
Encher-se-hão  dos  valles  os  abysmos  : 
Mil  estradas,  qual  vasto  labyrintho, 
Cruzar-se-hSLo  por  mohtes  e  planuras; 
Curvar-se-hão  os  rios  sob  arcadas 
De  pontes  colossaes  ;  canaes  immensos 
Virão  surcar  a  face  das  campinas, 
E  estes  montes  verão  talvez  um  dia, 
Cheios  de  assombro,  junto  ás  abas  suas 
Velejarem  os  lenhos  do  oceano!  »  (1) 

N'este  gosto  prosegue  o  poeta,  que  assim  se  expressava  em 
1849  ou  50  n^esta  peça,  uma  das  mais  antigas  de  sua  lavra. 

Acho  escusado  insistir  em  cada  uma  das  principaes  mani- 
festações do  lyrismo  do  illustre  mineiro. 

Algumas  palavras  sobre  o  que  chamei  o  seu  lyrismo  natu- 
ralista. 

O  Devaneiar  do  Sceptico  é  o  poeta  diante  da  philosophia ; 
pôde  flcar  de  lado.  No  Ermo  é  o  poeta  diante  de  natureza  e  da 
cultura ;  já  foi  visto  ahi.  Invocação  é  o  poeta  em  face  do  Uni- 
verso, do  Cosmos,  da  Creação.  E'  un  dos  hymnos  mais  objec- 
tivos e  ao  mesmo  tempo  mais  enthusiastas  que  já  uma  vez 
foram  escriptosi  em  toda  a  America. 

Alenta  essa  poesia  notável  um  ideialismo  exhuberante,  um 

(1)  Idem,  pag.  68. 


236  HI8T0KIA  DA  LITTSKATimA  BRA8ILBDU. 

dynamismo  que  de  tudo  transpira  e  so  communica  ao  leitor. 
O  universo  inteiro  palpita  animado  e  exhala-se  em  perennes 
hymnos.  E'  a  poesia  que  de  tudo  transuda. 

O  poeta  exclama : 

(c  Voz  do  deserto,  espirito  melódico, 
Que  as  cordas  vibras  d*essa  lyra  immensa, 
Onde  resoam  mysticas  hosannas. 
Que  iiiteira  a  creaç&o  a  Deus  exalça; 
Salve,  ó  anjo!  minha  alma  te  saúda, 
Minha  alma  que,  a  teu  sopro  despertada, 
Murmura,  qual  vergel  harmonioso 
Pelas  brisas  celestes  embalado... 

Salve,  ó  génio  dos  desertos, 
Grande  voz  da  solid&o. 
Salve,  ó  tu,  que  aos  céus  exalças 
O  hymno  da  creaçfiol 

Sobre  nuvem  de  perfumes 
Te  deslizas  sonoroso, 
E  o  rumor  de  tuas  azas 
E'  hymno  melodioso. 

Que  celeste  cherubim 
Te  deu  essa  harpa  sublime, 
Que  em  variados  accentos 
A.S  dulias  dos  céos  exprime? 

Harpa  immensa  de  mil  cordas 
D'dnde  em  caudal,  pura  enchente, 
Estão  suaves  harmonias 
Transbordando  eternamente? 

De  uma  corda  a  prece  humilde 
Como  um  perfume  se  exhala 
Entoando  o  sacro  hosanna. 
Que  do  Eterno  ao  throno  se  ala. 

Outra  como  que  prantôa 
Com  voz  fúnebre  e  dorida 
O  fatal  poder  da  morte 
E  as  amarguras  da  vida. 


I 


r 


HIBTOUÂ  DA  LXrmtATUEA  BRABUJDSA  287 

N*esta  brotado  amor  suspira, 
£  lamenta-se  a  saudade; 
N'est*outra  ruidosa  e  férrea 
Troa 'a  voz  da  tempestade. 

Carpe  as  magoas  do  infortúnio 
De  uma  voz  triste  e  chorosa, 
E  só  geme  sob  o  manto 
Da  noite  silenciosa. 

Outra  o  hymno  dos  prazeres 
Entoa  lôda  e  sonora, 
E  com  cânticos  festivos 
Saúda  nos  céos  a  aurora. 

Salve,  ó  génio  dos  desertos, 
Grande  voz  da  solidão, 
Salve,  ó  tu,  que  aos  céos  exalças 
O  hyníno  da  créaçâol...  n 

A  poesia  prosegue  sempre  alentada.  Convido  o  leitor  a 
tomar  do  volume  e  repassar  tão  bcllos  versos. 

São  escriptos  n'esse  espirito  de  um  theismo  dynamistico 
universal  ao  gosto  de  Leibnitz,  certamente  mais  poético  do 
que  a  atomicidade  absoluta  de  Demócrito. 

A  melhor  e  mais  fulgente  manifestação  do  talento  poético 
de  Bernardo  Guimarães  são  as  cinco  primeiras  peças  da  serie 
que  intitulou  —  Evocações^  a  saber  :  Sunt  lacrimx  rerum^ 
Preludio,  Primeira,  Segunda,  Terceira  Evocação. 

Ahi  entra-se  em  pleno  lyrismo  pessoal,  mas  de  uma  pessoa- 
lidade amável  e  deliciosa.  O  poeta  evoca  as  suas  antigas 
amantes  e  fal-as  desfilar  ante  elle.  O  sentimento  6  profundo  e 
real ;  as  Evocações  lembram  as  Noites  do  primeiro  poeta 
francez  do  XIX  século,  Alfredo  de  Musset. 

A  forma  é  de  uma  doçura  e  sonoridade  de  encantar. 

N&of  sei  se  o  diga,  não  sei  se  deva  deixar  aqui  a  manifes- 
tação de  uma  circumstancia  puramente  pessoal  :  nunca  pude 
ler  esses  versos  do  poeta  mineiroi,  e  eu  os  tenho  lido  bem 
vezes!...  sem  sentir  sincera  emoção. 

Para  mim,  aquillo  é  a  poesia  verdadeira,  feita  com  as  lagri- 
mas da  realidade,  com  as  desillusões  da  vida. 


238  HISTORIA  BA  LITTBBATUSA  BRA8ILSIBA 

Nfto  transcrevo  nada  para  não  cotpm*  o  risco  de  transcrever 
quasi  tudo.  Recommendo  taa  bellas  paginas  aos  amantes  da 
boa  poesia. 

Aqui  devera  ílcar  quite  com  o  poeta,  se  não  fora  a  neces- 
sidade de  juntar  mais  ^gumas  palavras,  afim  de  prendel-o 
á  evolução  geral  de  nossa  litteratura,  marcando  ahi  o  seu 
lugar. 

A  critica  puramente  descriptiva  nfta  tem  valor,  se  conside- 
rações mais  serias  lhe  nao  vêm  imprimir  o  caracter  scienti- 
flco.  Entre  nós  já  se  pôde  assim  falar. 

Na.0  sei  bem  se  a  poesia,  o  romance,  o  drama,  a  comedia,  o 
folhetim,  o  conto,  a  novella  estáo  ou  nâo  completamente 
transformados  hoje  no  Brasil.  Mas  sei  que  a  critica  litteraria 
está  em  grande  parte. 

Nos  últimos  trinta  annos  tentos  têm  sido  os  assumptos  de 
caracter  puramente  brasileiro  em  que  se  ha  tocado,  tal  e  tão 
pronunciado  o  esforço  em  conhecer  bem  o  passado  nacional, 
que  uma  serie  da  factos  e  de  problemas  ahi  estáo  a  reclamar 
o  estudo  de  resolutos  obreiros  por  muitos  e  muitos  annos 
ainda. 

A  medida  que  a  corrente  estrangeira,  que  sempre  tivemos 
e  sempre  havemos  de  ter,  na  litteratura  nos  atirava  á  poesia 
hugoana,  e  mais  tarde  a  poesia  de  SuUy  Prudhomme  e  Le- 
conte  de  lisle,  e  mais  tarde  ainda  ao  romance  de  Zola  e  ao 
mesmo  tempo  á  critica  alleman  ou  ao  positivismo  de  Comte, 
ou  ao  evolucionismo  de  Spencer,  ao  passo  que  os  represen- 
tantes entre  nós  do  espirito  do  tempo  punham-nos  ao  contacto 
das  ideias  européas,  a  pteiada  dos  aflerrados  ás  nossas  fau- 
dições,  outra  phalange  de  operários  que  sempre  tivemos  e 
sempre  deveremos  ter,  abria  brecha  na  préhistoria,  na  anthro- 
pologia,  na  linguistica  a  na  historia  nacional. 

São  dous  movimentos  que  se  completam,  duas  tendências 
que  sa  harmonisam.  Devemos  ser  homens  de  nosso  tempo 
e  também  de  nosso  paiz. 

Este  dupla  tendência  modiflcou  entre  nós  a  critica  litteraria. 
E'  por  isso  que  aquelle  que  bem  conhecer  o  seu  Sainle-Beuvç 
ou  o  seu  Taine  ou  o  seu  Scherer,  mas  desconhecer  as  tra- 
balhos de  Baptiste  Caetano,  Couto  de  Magalhães,  Baptista  de 


HISTOBIA  DA  LITTBBATtTRA  BSABILBIBA  239 

Lacerda,  Ferreira  Penna,  Capislrano  de  Abreu,  Rodrigues 
Peixoto,  Frederico  Hartt,  Macedo  Soares,  Barbosa  Rodrigues, 
Pacheco  Júnior,  Lameira  de  Andrade,  João  Ribeiro  e  muitos 
outros  sobre  a  archelogia,  a  linguistica,  a  ethnographia  e  a 
historia  do  Brasil,  não  poderá  amplamentei  entre  nós  exercer  a 
eritica. 

O  mais  que  poderá  fazer  é  colher  em  livros  europeus  meia 
dúzia  de  regnis,  inspiradas  pela  analyse  de  escriptores 
estrangeiros,  e  cortar  com  ellas  a  roupa  em  que  se  devem 
envolver  os  nossos  auctores.  Isto  é  irregular  e  improfícuo. 
Tal  o  methodo,  entretanto,  de  que  muito  se  tem  abusado  no 
Brasil. 

Em  geral  os  nossos  chamados  homens  de  letras  lêm  livros 
europeus  e  especialmente  livros  írancezes  ;  raros  occupam-se 
de  assumptos  brasileiros. 

Innumeros  são  os  poetas  e  litteratos  que  não  sabem  duas 
palavras  da  historia  do  paiz ;  raríssimos  aquelles  que  se 
acham  em  estado  de  formular  um  juízo  mais  ou  menos  regu- 
lar sobre  o  passado  e  o  presente  nacional. 

E,  todavia,  quem  tiver  o  gosto  da  erudição,  da  anthropo- 
logia,  da  linguistica,  das  sciencias  naturaes,  etc,  encontrará 
no  Brasil  vastíssimo  campo  ás  suas  pesquizas. 

Emquanto  não  nos  applicarmos  a  descobrír,  esclarecer,  des- 
vendar os  muitos  assumptos  scienliflcos  que  se  nos  deparam 
entre  nós  e  quie  attrahem  sempre  e  sempre  sábios  europeus  ás 
nossas  plagas,  não  fundaremos  nossa  Utteratura  scientiflca, 
nem  resguardaremos  de  quaesquer  attaques  nossa  litteratura 
propriamente  dita. 

E'  preciso  deixar  de  lado  o  methodo  exterior  de  julgar  os 
productos  litteraríos  por  meio  de  convenções  rhetorícas.  E' 
mister  procurar  emi  toda  a  vida  nacional  o  elemento  popular, 
vivo,  constante,  crêador.  E'  urgente  investigal-o  na  historia 
politica  e  social  e  na  historia  litteraria  e  das  artes. 

E,  apezar  de  contarmos  aquelles  poucos  escriptores  que  se 
vão  occupando  dos  estudos  nacionaes,  é  ainda  hoje  uma  ver- 
dade afflrmar  que  somos  um  povo  que  sé  desconheça 

A  historia  brasileira  está  em  geral  quasi  toda  por  escrever 
e  sem  ella  nos  perderemos  sempre  em  divagações,  não  tere- 


240  HI8T0BIA  DA  UmnULTU&A  B&ABILSIBA 

mos  um  espirito  próprio,  nem  a  consciência  de  nós  mesmos. 

Tal  o  critério  fundamental  das  indagações  litterarias. 

Os  livros  dos  novos  e  dos  velhos  poetas  devem  ser  um 
corollario  de  nossa  própria  evolução,  sob  pena  de  nada  vale- 
rem, de  nada  representarem,  salva  o  testemunho  de  algum 
raro  espirito,  algum  raro  pensador,  tão  geral,  tão  universal, 
tão  humano,  que  vá  tomar  assento  entre  os  mais  illustres 
representantes  de  nossa  espécie  e  lá  fulgir  entre  os  génios  que 
que  não  têm  pátria,  entre  os  Shakespeares,  os  Dantes,  os 
Ooethes,  cousa  que  não  sei  se  já  nos  aconteceu... 

Bernardo  Guimarães,  á  luz  de  taes  ideias,  não  é  um  desclas- 
sificado. Muito  pelo  contrario  elle  é  um  élo  normal,  e  uma 
das  figuras  mais  interessantes  de  nossa  litteratura. 

Cursou,  como  se  viu,  direito  em  S.  Paulo,  onde  foi  comr 
panheiro  de  Alvares  de  Azevedo,  Aureliano  Lessa,  José  Boni- 
fácio, Silveira  de  Souza,  Fedix  da  Cunha,  José  de  Alencar  e 
outros  estudantes  enthusiastas  e  estrosna^  d*aquelles  boas 
tempos.  Foi  a  epocha  de  maior  effoíTescencia  romântica  em 
nossas  academias. 

A*  poesia  religiosa  de  Magalhães  e  á  poesia  cabocla  de  Gon- 
çalves Dias  aquelles  moços  fizeram  succeder  uma  poesia  mais 
ampla,  mais  agitada,  mais  comprehensiva.  Avantajaram-se 
aos  seus  predecessores  em  conhecer  melhor  as  litteraturas 
estrangeiras,  em  preoccupar-se  mais  das  questões  sociaes,  e 
em  cultivar  mais  a  forma.  Trabalhairam'  em  horizonte  mais 
vasto  e  com  armas  mais  brilhantes. 

Entre  elles  distinguia-se  Bernardo  Guimarães  por  um  ly- 
rismo  sereno,  plácido,  confiante,  quasi  bucólico.  Era  mineiro 
e  levava  a  influencia  de  Gonzaga  e  dos  sertões  nataes.  Foi 
sempre  contrario  ao  indianismo  e  por  isso  criticou  de  Gon- 
çalves Dias. 

Inimigo  de  formalidades,  logo  ao  formar-se,  relirou-se  aos 
seus  serros,  d'onde  não  mais  sahiu,  sinão  rapidamente  para  o 
Rio  de  Janeiro,  que  de  prompto  abandonou,  acolhendo-se  ao 
seu  planalto,  onde  passou  a  vida  sem  ter  empregos  públicos, 
ao  que  supponho,  e  onde  foi  o  ulimo  Abencerage  do  roman- 
tismo. Poz-se  então  a  cultivar  o  romance,  de  que  falarei  em 
breíve,  com  um  sainete  especial. 


HISTORIA  DA  LITTBSATtTRA  BRABILBIRA  ^1 

Seus  livros  do  género  sáo  novellas  de  um  enredo  simples, 
de  um  estylo  leve,  despretencioso,  semeado  de  lyrismo  e  de 
algumas  notas  humorísticas. 

E'  justamente  o  mesmo  que  se  dá  nos  versos. 

N'dstes  as  Poesias  levam  vantagem,  como  disse,  ás  Novas 
Poesias  e  ás  Folhas  do  Outomno.  As  melhores  imagens  doesta 
ultima  collecç&o  são  edições  novas  de  seus  versos  antigos.  O 
livro  é  quasi  um  complexo  de  neaiias.  As  melhores  peças  são, 
como  lyrismo,  Flor  sem  nome  e  Saudades  do  Sertão  do  Oeste 
de  Minas ;  e  como  humorismo  A  Moda  e  o  Hymna  d  Preguiça. 

Por  estas  quatro  ligeiras  composições  aprecia-se  perfeita- 
mente a  inlole  poética  do  nosso  mineiro.  Elle  foi  no  fundo 
uma  natureza  sceptica,  a  que  se  ligaram  certas  tendências  epi- 
curistas. 

D'ahi  o  seiu  lyrismo  voluptuoso  de  um  lado  e  de  outro  .a 
ponta  de  sarcasmo  que  se  deixa  vêr  em  muitos  dos  seus 
versos. 

Mas  o  auctor  das  Evocações  foi  verdadeiramente  um  poeta, 
quero  dizer,  um  espirito  descuidoso  e  contemplativo,  um  espi- 
rito móbil  e  impressionavei.  Nunca  desmentio  sua  vocaçáo. 
Não  sei  se  o  mesmo  aconteceria  a  Alvares  de  Azevedo,  se 
continuasse  a  viver. 

Quem  sabe  se  não  teria  elle,  como  José  Bonifácio  e  Félix 
da  Cunha,  e  mais  que  todos  Francisco  Octaviano,  tomado 
estranho  caminho  na  direcção  da  politica  7 

Tudo  que  ahi  vaô  dito  de  Bernardo  Guimarães,  na  quali- 
dade de  poeta,  ei  que  lhe  é  favorável,  não  quier  significar  abso- 
lutamente que  elle  não  tenha  também  os  seus  defeitos.  Tem 
nos  e  bastantes  :  é  muitas  vezes  prosaico,  por  vezes  incorrecto 
6  não  poucas  superficial. 

Possue  certa  delicadeza  e  propriedade  de  tintas,  possue  faci- 
lidade e  presteza  de  vôo ;  mas  não  tem  força ;  intêressa^^  mas 
não  captiva.  E*  claro^^  que  faço  excepção  das  Evocações. 

O  romancista  em  Bernardo  Guimarães  é  merecedor  de 
attenção  pelo  caracter  nacional  das  suas  narrações,  pela  sim- 
plicidade dod  enredos,  pela  facilidade  do  estylo. 

O  escríptor  mineiro  pôde  ser  tomado  como  um  documeato 

marsoBu,  n  16 


242  HIBTOBIA  DA  LITTBKATimA.  BBA8ILEIRA 

para  estudar  as  transformações  da  lingua  porlugueza  n' Ame- 
rica. 

Tomando-se  Gregório  da  Mattos  nos  melados  do  século  xvn, 
TaqueSinos  melados  do  século  xviii  e  o  nosso  mineiro  em 
melo  dò  século  xix,  temos  o  thermometro  certo  das  alterações 
e  transformações  progressivas  da  língua  no  Brasil. 

Nas  locuções,  no  modo  de  dizer,  no  agrupamento  das  pala- 
vras, no  tour  da  phrase,  o  espirito  atilado  vae  marcar  as  varia- 
ções. 

As  publicações  de  Bernardo  Guimarães,  no  romance,  sáo  : 
O  Ermitão  do  Muquem  (1858),  Lendas  e  Romances,  Historias 
e.  Tradições  da  Provincia  de  Minas  Gerais,  O  Garimpeiro 
(1872),  O  Seminarista  (1872),  O  índio  Afíonso  (1873),  A  Escrava 
Isaura  (1875),  Mauricio  ou  os  Paulistas  em  S.  João  d^ElRei 
(1877),  A  Ilha  Maldita  (1879),  O  Pão  de  Ouro  (1879),  e  Rozaura 
—  a  Engeitada  (1882).  Alguns  são  simples  ensaios,  sem  alento 
e  descuidosamente  escriptos. 

Os  mais  significativos,  a  meu  ver,  são  :  O  Garimpeiro^  O 
Seminarista,  Mauricio,  A  Escrava  Isaura. 

O  Seminarista  é  um  pequeno  estudo  de  género ;  é  a  narra- 
tiva romantisada  de  um  facto  real.  E*  a  historia  de  um>  rapaz, 
filho  de  um  mediano  fazendeiro  de  Minas,  que,  tendo  amoroso 
enleio  por  uma  bella  menina  da  visinhança,  é  obrigado  a 
metter-se  n'um  seminário  e  tomar  ordens. 

A  paixão,  a  principio  acalmada  pelos  estudos,  penitencias 
e  macerações  da  especiei,  rebenta  forte  por  novos  encontros 
nos  tempos  das  ferias,  e  violentíssima,  quando  o  moço  padre 
vem  prompto  para  cantar  sua  missa  nova  e  é  chamado  para 
ouvir  de  confissão  uma  moça  agonisante.  Era  ella,  era  Afor- 
rando, a  heroina,  e  elle  Eugénio  tinha-a  alli  á  mão,  mas 
próxima  á  tumba !... 

Seguem-se  peripécias  atrozes  e  o  joven  padre  sae  louco 
furioso,  no  momento  de  sua  primeira  missa. 

O  livro  deixa-se  ler  docementa ;  não  é  atordoador  e  cheio  de 
convulsões ;  a  acção  corre  serena  e  vata  dineita  a  seu  fim.  Tem 
muita  verdade  psychologica  e  muita  exactidão  de  tintas  nas 
scenas  locaes.  Não  tem  aquelle  aspecto  doutrinário,  esca- 
vador, scientiflço,  technico,  que  tem  invadido  o  romance 


HISTORIA  DA  LITTERATimA  BRASILEIRA  243 

moderno,  ás  vezes  levada  a  tal  exàggexro  que  antes  ler  um 
tratado  de  pathologia,  especialmentei  de  moléstias  do  systema 
nervoso  e  das  faculdades  mentaes,  do  que  ler  taes  livros,  que, 
aflnal  de  contasi,  nem  sciencia,  nem  arte  sáo.  O  nosso  livro 
não  tem  aquelle  aspecto  demonstrativo  de  uma  equaçfto  algé- 
brica nem  o  tonv  realista  de  um  processo  crime. 

O  romance  é  vasado  nos  velhos  moldes ;  mas  tem  verdade, 
d'essa  verdade  que  se  impunha  a  uan  homem  que  tinha  os 
olhos  abertos,  como  Bernardo  Guimarães  e  sabia  observar, 
ainda  que  o  nâo  ostentasse. 

A  Escrava  Haura  'é  um  estudo  social.  Assenta  sobre  o  facto 
da  escravidão  que  existiu  entre  nós.  Trata-se  de  uma  bella 
rapariga,  intelligentei,  graciosa,  prendada  e  alva,  como  um 
exemplar  de  boa  raça  aryana.  A  pobre,  entretanto,  era  ca- 
ptiva  e  requestada  pelo  senhor... 

Consegue  fugir  em  companhia  de  seu  pae,  e,  da  cidade  de 
Campos  na  província  do  Rio  de  Janeiro,  onde  corre  o  prin- 
cipal da  acção,  vae  ter  ao  Recife. 

Ahi  passa  por  livre,  frequenta  boas  rodas,  vae  a  reuniões, 
t^m  admiradores. 

E'  descoberta  e -presa  afinal,  voltando  ao  poder  do  cruel 
senhor,  de  cujas  garras  é  arrancada  por  um  moço  rico  que  se 
tomara  por  ella  de  profundo  alTecto. 

O  facto  é  possível  e  deu-se  até  mais  de  uma  vez ;  ha  vera- 
cidade em  geral,  apar  de  algumas  incongruências  e  ficelles. 

O  Garimpeiro  é  uma  narrativa  local,  é  romance  de  cos- 
tumes. ^  Tem  boas  paginas  descriptivas,  regulares  quadros  de 
género.  D'estc  numero  é  a  cavalhada^  que  occorre  logo  no 
segundo  capitulo. 

Na  mesma  indolé  e^  tendência  é  Maurício^  ainda  que  mais 
significativo  como  estudo  e  como  intuição  ethnographia. 

Maurício  é  romance  de  costumes  sob  o  ponto  de  vista  his- 
tórico. ,Refere-se  á  lucta  havida  em  Minas  em.  tempos  colo- 
niaes  entre  os  paulistas,  os  ousados  bandeirantes ^que  desbra- 
varam e  povoaram  aquelles  sertões,  e  os  portuguezes,  os  rei- 
nóes,  os  emboabas  avarentos,  que  se  aprestavam  a  enthe- 
zourar  o  trabalho  alheio. 

E'  um  bello  livro,  onde  ha  muitas  verdades,  quer  em  scenas 


244  HI8T0BIA  DA  LITTBRATURA  BRABILSnU 

da  natureza,  quer  em  scenas  da  vida  humana.  D'aquellas  é  um 
exempla  o  capitulo  que  se  intitula  a  gruta  de  Irabussú  e  d'estas 
o  capitulo  —  a  caçada. 

Muita  gente  hoje  crê  só  haver  exactidão  e  verdade  no  ro- 
mance de  actualidade  e.no  moderno  naturalismo.  E*  um  exag- 
gero. 

N'esse  falso  presupposto  repellem  o  romance  histórico  e  o 
género  que  n'Allemanha,  teve  em  Auerbach  um*  denodado  cul» 
tor.  São  dois  peremptórios  juizos  que  precisam  de  revisfio. 

Pelo  que  diz  respeito  ao  elemento  histórico  em  o, romance, 
a  historicidade  ahi,  como  em  tudo,  é  susceptivel  de  alhar-se  á 
verdade. 

Bem  arranjada  estaria  a  humanidade,  se  a  pobresinha  nãio 
podesse  tomar  pé  no  terreno  do  passado.  Então,  adeus  poli- 
tica, adeus  historia,  adeus  sciencia.  Viveria  au  jour  le  jour. 
Além  da  momeoito  actual  e  presente  nada  !...  E*  justamente 
a  intuição  do  selvagem. 

Pelo  que  toca  ao  estudo  das  populações  campezinas,  é  elio 
também  susceptível  de  muita»  verdade.  Não  é  só  nos  grandes 
centros  populosos  que  ha  entes  humanas.  N*uma  aldeia  tam- 
bém se  vive,  também  ha  almas,  também  ha  paixões.  Onde 
mais  verdade  do  que  em  Hermann  e  Doroihea?  Em  igual 
direcção  correm  as  novellas  de  Auerbach. 

O  naturalismo  pôde  bem  abrigar-se  n'um  e  outro  terreno. 

No  primeiro  caso  tem-se  o  que  o  moço  critico  brasileiro 
Clóvis  Beviláqua  denominou  o  naturalismo  tradicionalista^  a 
propósito  de  Franklin  Távora,  e  no  segundo  o  que,  a  propó- 
sito do  mesmo  romancista,  eu  chamei  o  naturalismo  aldeão  e 
campezino. 

Ora,  acontece  que  em  Maurício  de  Beornardo  Guimar&es  di 
se  a  juncção  das  duas  tendências  :  a  vida  tradicional  nas  po- 
pulações ruraes.  E*  também  o  caso  do  Cabelleira,  do  MtUuto  e 
de  Lourenço,  os  tree  notáveis  livros  de  Franklin  Távora. 

Este  romancista  e  Bernardo  Guimarães  são,  pois,  dois  pre- 
decessores do  naturalismo  á  contemporânea  e  merecem  bon- 
roso  logar  na  pátria  litteratura. 

Quem  se  deleitar  somente  com  os  estudos  de  physiologia 
e  psychiatría,  que  se  encontram -nas  obras  primas  do 


EIBTOftU  DA  LimftATUSA  BEAftltSlttÁ  245 

lismo  contemporâneo,  não  poderá  achar  grande  prazer  nas 
pinturas  rápidas  e  singelas  de  simples  costumes  populares 
que  se  lhe  deparam  nos  romances  de  Bernardo  Guimarães. 

Quem,  porém,  acha  algum  interesse  em  tudo  o  que  é  hu- 
mano, em  toda  e  qualquer  manifestação  do  viver  de  um  povo, 
pôde  e  deve  ler  nos  romances  do  mineiro  bellos  quadros  por 
todos  élles  esparsos. 

Aqui  vae  um  exemplo ;  é  o  motirão  em  casa  da  tia  Umbelina 
nos  capítulos  XI  e  XII  do  Seminarista. 

Lá  vae  um  tópico  : 

H  Alguns  dias  depois  da  prohibição  imposta  a  Eugénio,  a  casa  de 
Umbelina  amanhecia  em  grande  animação  e  alvoroço.  Via-se  lá 
entrando  e  sahindo  mais  gente  do  que  de  ordinário ;  matavam-se 
frangos,  o  forno  trabalhava,  o  fogão  deitava  fumaça  mais  do  que  de 
costume,  e  reinava  actividade  e  movimento,  que  faria  crer  que 
n^aquelle  dia  alli  se  festejava  algum  baptisado  ou  casamento. 

Não  havia  porem  nada  disso.  O  que  havia  em  casa  de  Umbelina 
era  apenas  um  moiirão. 

Motirãol  só  esta  palavra  nos  faz  resoar  ex>s  ouvidos  os  alegres 
rumores  dos  descantes  e  folguedos  da  roça,  o  estrépito  dos  sapa- 
teados da  dança  camponeza  por  entre  a  zoada  dos  adufes  e  violas, 
e  nos  transporta  ao  meio  das  rústicas  e  singelas  scéhas  de  prazer 
da  vida  do  sertanejo. 

Motirão!...  mas  eu  não  sei  se  todos  os  meus  leitores  saberão  a 
significação  doesta  palavra,  que  julgo  ser  genuina  brasileira,  e  que 
talvez  não  poderão  encontrar  em  diccionario  algum.  Portanto  é 
necesseuio  deíinil-a. 

£'  o  motirão  um  costume  dos  pequenos  lavradores,  ou  da  gente 
pobre  dos  campos,  que  vivem  como  aggregados  dos  grandes  fazen- 
deiros, e  que  não  possuindo  terras,  e  menos  ainda  braços  para  cul- 
tíval-as,  nem  por  isso  deixam  de  plantar  boas  roças,  ou  de  exercer 
uma  pequena  industria,  de  que  tiram  a  subsistência. 

Quando  chega  o  tempo  de  qualquer  dos  serviços  de  roça,  que  con- 
sistem n*estas  quatro  operações  principaes,  —  roçar,  plantar,  capinar 
e  colher,  —  o  pequeno  roceiro  convida  seus  parentes,  amigos  e 
conhecidos  da  visínhança  para  virem  ajudal-o,  e  todos  pelo  direito 
costumeiro  são  obrigados  a  vir  dar-lhe  uma  mão,  é  a  phrase  usada, 
—  ficando  o  que  assim  se  aproveita  dos  serviços  dos  visinhos  na 
obrigação  de  acudir  também  ao  chamado  d*estes  para  o  mesmo  fim. 


246  HISTOBIA  DA  LITTEBATUBA  BBA8ILEIBA 

Já  se  vô  que  a  calhandra  de  Lafontaine  erraria  seus  cálculos,  e 
perderia  inevitavelmente  os  seus  filhotes,  se  tivesse  de  haver-se 
com  os  bons  lavradores  doesta  nossa  abençoada  terra. 

O  motirão  constitue  pois  como  uma  espécie  de  sociedade  de  auxí- 
lios mútuos,  baseada  unicamente  nos  costumes  e  usanças  dessa 
boa  gente,  que  não  dispondo  muitas  vezes  sinão  do  seu  único  braço 
para  o  serviço,  planta  todavia  roças  consideráveis,  e  obtém  a  colheita 
necessária  para  a  sua  subsistenci6L 

Este  uso  nâo  é  somente  dos  roceiros,  e  é  também  posto  em  pratica 
pelas  mulheres  que  vivem  de  fiar  e  tecer,  das  quaes  antigeunente 
havia  grande  numero  ha  província  de  Minas,  aliment€uido  com  seu 
trabalho  esse  ramo  de  industria  outr'ora  mui  importante  e  flo- 
rescente. 

Mas  o  motirão  não  consiste  simplesmente  no  desempenho  de 
uma  tarefa  de  trabalho.  O  dono  ou  dona  da  casa  tem  por  obriga- 
ção regalar  os  seus  trabalhadores  do  melhor  modo  possível,  e  a 
reu*nião  e  a  boa  mesa  trazem  sempre  como  consequência  natural 
os  divertimentos  e  folguedos.  Assim  trabalha-se  de  dia,  e  á  noite  toca 
a  comer  e  beber,  a  dançar,  cantar  e  folgar. 

Como  Íamos  contando,  havia  motirão  em  casa  de  Umbelina.  Tinha 
ella  convideulo  as  comadres  e  amigas  mais  chegadas  da  villa  e  das 
visinhanças  a  virem  passar  alguns  dias  em  sua  casa,  afim  de  ajuda- 
rem-na  a  desmáhchar  algumas  arrobas  de  lã  e  algodão,  que  queria 
pôr  no  tear,  e  para  as  regalar  punha  em  actividade  toda  a  sua  perí- 
cia de  quitandeira  mestra  e  de  quiluieira  abalisada. 

A  noite,  como  de  costume,  havia  toques,  cantigas  e  folguedos,  e 
então  appareciam  também  lá  alguns  rapazes  da  villa  e  dos  arre- 
dores. A  sociedade  de  Umbelina  era  em  verdade  de  pessoas  do  povo 
e  de  baixa  condição,  mas  honra  lhe  seja  feita,  era  tudo  gente  com- 
portada e  de  bons  costumes.  Ella  era  incapaz  de  chamar  á  sua  casa 
vadios,  peraltas  e  mulheres  perdidas  para  junto  da  companhia  de 
uma  filhei,  que  era  a  menina  dos  seus  olhos,  e  cuja  reputação  zelava 

com  o  maior  recato  e  solicitude Resoavam  as  violas  e 

adufes;  o  folguedo  já  tinha  começado  á  sombra  da  figueira  do  ter- 
reiro. 

Alem  do  luar,  que  estava  soberbo,  duas  grandes  fogueiras  accesas 
no  terreiro  a  alguma  distancií^  íUumínavam  de  um  modo  original  e 
píttoresco  o  âmbito,  dentro  do  qual  se  desenhavam  destacando-se 
vivamente  as  figuras  d^aquella  curiosa  e  interessante  reunião  uns 
no  centro,  dançando,  outros  em  derredor,  sentados  pelo  chão  ou  em 
tamboretes  e  cepos  de  páo  como  servindo  de  cerca  e  limite  áquelle 
recinto.  O  clarão  das  fogueiras  avermelhava  a  cupola  gigantesca  da 


HIBTOBIA  DA  LITTB&ATnEA  BRA8ILEIRA  247 

figueira,  que  com  sua  espessa  folhagem  abrigava  os  convivas  do 
orvalho  frio  da  noite. 

Eugénio  chegou-se  á  roda  tolhido  e  resabiado.  Porem  Margarida, 
que  apenas  o  avistou  soltou  um  grito  de  alegre  sorpreza,  e  veio 
immediatamente  coUocar-se  ao  pé  d*elle,  fez  com  que  logo  cobrasse 
animo  e  presença  de  espirito,  e  tomasse  assento  na  roda  com  todo 
o  desembaraço,  como  qualquer  dos  habituados. 

Attrahidos  pela  belleza  de  Margarida,  como  dissemos,  alguns 
rapazes  frequentavam  a  casa  de  Umbelina,  e  lhe  requestavam  a 
filha.  Esta,  porem,  não  lhes  dava  a  mínima  attenção,  e  em  sua  cân- 
dida innocencia  nem  mesmo  suspeitava  o  verdadeiro  motivo, 
porque  tanto  a  festejavam. 

Entre  esses  aspirantes  ao  amor  da  rapariga,  o  que  mais  padecia 
era  um  certo  rapaz  por  nome  Luciano.  Era  um  moço,  que  teria  a 
rigor  seus  vinte  e  cinco  annos,  de  bdnita  e  agradável  presença, 
tropeiro  bem  piincipiado,  que  já  tinha  alguns  lotes  de  burros  no 
caminho  do  Rio,  e  que  alem  de  tudo  se  tinha  em  grande  conta  de 
bonito,  de  rico  e  de  bem  nascido,  pelo  que  "não  deixava  de  ser  sum- 
mamente  ridículo,  quando  nfió  era  insolente  e  malcreado 

Sabe  o  leitor  o  que  é  quatragem? 

Não  sabe.  E*  uma  dansa. 

E'  a  dansa  original  e  pittoresca  de  nossos  camponezes,  dansa  favo- 
rita do  roceiro  em  seus  dias  de  festa,  e  que  faz  as  delicias  do  tro- 
peiro nos  serões  do  rancho  apoz  as  fadigas  da  jornada. 

Dansa  vistosa  e  variegada,  entremeada  de  cantares  e  tangeres, 
já  cheia  de  requebros  e  languidamente  balanceada  ao  som  de  uma 
cantiga  maviosa,  já  freneticamente  sapateada  ao  ruido  de  palmas, 
adufes  e  tambores. 

Sem  ter  o  desgarre  e  desenvoltura  do  batuque  brutal,  nfto  é  tam- 
bém arrastada  e  enfadonha  como  a  quadrilha  de  salão;  ora  salta  e 
brinca  estrepitosa  e  alegre,  ora  se  requebra  em  mórbidas  e  compas- 
sadas evoluções. 

Como  o  próprio  nome  indica,  forma-se  de  um  grupo  de  quatro 
pessoas.  Â  musica  é  desempenhada  pelos  dansantes,  que  alem  de 
uma  garganta  bem  limpa  e  afinada,  devem  ter  nas  mãos  ao  menos 
uma  viola,  e  um  adufe.  Há  uma  quantidade  incalculável  de  coplas 
para  acompanhar  esta  dansa,  e  a  musa  popular  cada  dia  engendra 
novas.  São  pela  maior  parte  toscas  e  mesmo  burlescas  e  extrava- 
gantes; todavia  algumas  ha  impregnadas  d'essa  maviosa  e  singela 
poesia,  que  só  a  natureza  sabe  inspirar. 

Dansava-se  a  quatragem  no  motirão  da  tia  Umbelina.  Margarida 


248  HI6T0BIA  DA  LITTEXATimA  BRABILBISA 

estava  sentada  junto  de  Eugénio,  de  cujo  lado  nfio  se  arredara 
desde  que  este  havia  chegado. 

la-se  formar  Yiova  roda  de  dansadores  ;  Luciano,  que  tinha  a  viola 
em  punho,  dirigio-se  a  Margarida,  e  convidou-a  para  a  dansa.  EUa 
recusou-se  pretextando  já  ter  dansado  muito  e  achar-se  fatigada. 

—  Ent&o  venha  esse  mocinho,  que  ahi  está  com  a  senhora,  disse 
Luciano. 

Com  este  convite  o  rapaz  procurava  mesmo  occasião  de  travar-sc 
de  razões  com  o  estudante,  afim  de  desahsifar  o  ciúme  e  depeito  que 
por  dentro  o  corroiam  »  (1). 

Devchse  ler  no  roanance  a  lucta  entre  Luciano  e  Eugénio; 
tem  perfeita  côr  local.  Repare-se  na  maneira  brasileira  da  lin- 
guagem. Griphei  algujnas  palavras  ©  dizeres  no  intuito  de  des- 
pertar a  atlenção  do  leitor. 

Bernardo  era  do  numero  dos  que  se  não  preoccupam  com 
as  portentosas  maravilhas  do  purismo ;  não  quebrava  a  cabeça 
nem  perdia  o  somno,  scismando  sobre  a  collocação  dos  pro- 
nomes e  outras  brilhaturas  da  espécie... 


José  Bonifácio  de  Andrada  e  Silva  (1827-1886).  —  E'  esle 
um  dos  homens  de  letras  menos  estudados  e  aquilatados  no 
Brasil.  Herdeiro  de  um  grande  nome,  os  aduladores  politicos 
tomaram  bem  cedo  conta  d'elle  e  meteram-no  nas  regiões 
mysteriosas  da  mythologia  de  convenção. 

Fizeram  do  neto  de  Andrada  um  estadista,  um  pensador 
politico,  um  sábio  publicista,  um  professor  enoeríto,  um  juris- 
consulto originai  e  não  sei  mais  que,  esquecendo-se  todos  de 
não  ser  o  famoso  paulista  mais  do  que  um  orador  académico 
e  um  poeta  de  talento. 

N'esla  dupla  qualidade  é  que  vae  ser  estudado  e  contemplado 
n'este  livro. 

Antes  de  tudo  o  poeta. 

Logo  em  começo  surge  uma  questão  preliminar.  Sal>e-se 
que,  apesar  dei  haver  muita  originalidade  intrínseca  no  lyris- 
mo  nacional,  não  se  pode  negar  n'elle  pela  face  meramente 

(U  o  Seminariêta,  pag*  119  e  seguintes. 


HI8T0SIA  DA  UTTKltíLTnSA  BBA8ILBIBA  249 

exterior,  uma  certa  influição  reflectiva  da  influencia  de  alguns 
poetas  europeus. 

Chateaubriand,  Lamartine,  Byron,  Musset  e  Victor  Hugo 
foram  os  indirectos  influidores  do  romantismo  brasileiro. 

Pois  bem,  resta  saber  quando  e  como  começou  a  orientação 
exercida  por  Victor  Hugo. 

Antes  de  tudo,  releva  ponderar  que  a  acção  de  Victor  Hugo 
foi  meramente  exterior,  simples  questão  de  forma.  Mas  d'onde 
partio  essa  simples  modiflcação  do  estylo  poético  entre  nós  ? 

José  Bonifácio,  Luiz  Delfino,  Pedro  Luiz  e  Tobias  Barretto 
têm  passado  pelos  iniciadores  do  hugoanismo  em  nossa 
poesia.  Isto  demanda  uma  explicação. 

Ha  a  notar  antes  do  mais  a  questão  da  idade  :  José  Boni- 
fácio era  de  1827,  Luiz  Delfino  de  1834,  Pedro  Luiz  e  Tobias 
Barreto  ambos  de  1839.  José  Bonifácio  éra,  pois,  sete  annos 
mais  velho  do  que  Luiz  Delfino  e  doze  mais  do  que  os  outros 
dois. 

O  poeta  paulista,  poremi,  não  possuio  logo  de  principio  a 
intuição  hugoana  da  forma.  Só  mais  tarde  ella  lhe  chegou, 
mais  ou  menos  incompletamente. 

Nunca  publicou  livros  que  corressem  o  paiz,  foi  um  traba- 
lhador solitário,  inserindo  de  longe  em  longe  alguns  versod 
em  ephemeros  jornaes.  Seu  folheto  de  1840  sob  o  titulo  de 
Rosas  e  Goivos^  pelo  que  tenho  ouvido  referir  d^elle,  é  me- 
díocre como  documento  lilterario  e  está  fora  da  intuição  de 
que  se  trata. 

Os  versos,  que  appareceram  em  1861  nas  Trovas  Burlescas 
de  Getulino  e  em  1862  na  Bibliotheca  Brasileira  de  Quintino 
Bocayuva,  em  alguns  pontos  já  se  lhe  aproximam  mais 
algum  tanto,  náo  tendo,  porém,  ainda  a  forma  pura  do 
moderno  lyrismo  de. Hugo. 

Gomo  quer  que  seja,  porem,  José  Bonifácio  não  teve  discí- 
pulos, não  passando  de  um  simples  precursor  isolado.  Como 
escola,  como  movimento  litterario  o  condoreirismo  começou 
no  Recife. 

Luiz  Delfino,  com  ser  cinco  annos  mais  velho  do  que  Pedro 
Luiz  e  Tobias,  não  os  antecedeu,  na  poesia. 

Delfino  veio  tarde  de  sua  província  para  o  Rio  de  Janeiro 


250  HISTORIA  DÁ  LITTBRATtTRA  BRA8ILBIRA 

estudar  os  preparatórios.  Creio  que  os.  seus  primeiros  ensaios 
poéticos  são  de  1855  ou  56,  justamente  no  tempo  em  que  prin- 
cipiaram os  outros  dois. 

Delflno  nunca  foi  assíduo  na  imprensa ;  também  nunca  pu- 
blicou livros.  Até  1880  pouco,  bem  pouco  publicou  em  jor- 
naes.  Nos  últimos  annos  é  que,  já  rico  pela  clinica,  príncipiou 
a  ter  actividade  litteraria ;  mas,  n'este  tempo,  nem  já  elle  tem 
sido  mais  condoreiro,  nem  a  escola  existe  mais.  Dissoiveu-se 
ha  muitos  annos. 

Delflno  foi  um  poeta  intermitlente,  sem  acçáo  directa  sobre 
o  publico,  e  não  teve  discípulos  no  tempo  e  no  sentido  a  que 
alludo.  Actualmente  elle  tem  o  seu  pequeno  cenáculo  ador- 
nado de  outras  vistas. 

Restam  Pedro  Luiz  e  Tobias  Barretto.  São  ambos  de  1839,  o 
notável  anno  em  que  nasceram  também  Carlos  Gomes  e  Ma- 
chado de  Assis,  e  em  que  se  começou  a  a^tar  o  movimento 
da  maioridade. 

Pedro  Luiz,  aJém  de  não  ter  começado  antes  de  seu  emulo, 
não  era  um  temperamento  litlerario. 

Apenas  formado  em  1860,  atirou-se  á  politica.  Publicou 
umas  cinco  ou  seis  poesias  nos  jornaes  do  Rio,  em  estylo 
semi-hugoano.  E'  um  typo  apagado  pela  politica. 

O  condoreirismo,  como  escola,  em  sua  dupla  manifestação 
de  lyrísmo  e  poesia  social,  foi  iniciado  em  1862  por  Tobias 
no  Recife.  O  poeta  possuia  essa  intuição  desde  os  seus  pri- 
meiros ensaios  de  Sergipe  e  Bahia.  Em  seu  logar  demonstrarei 
isto  cabalmente. 

Considerarei,  entretanto,  os  três  poetas  do  sul  como  pre- 
decessores. 

A  escola,  como  tal,  só  existiu  depois  que  no  Recife  Tobias, 
Castro  Alves,  Plinio.  de  Lima,  Guimarães  Júnior,  Victoríano 
Falhares,  Castro  Rebello,  Altino  de  Araújo,  e  muitos  outros 
obedeceram  a  uma  intuição  geral  e  tiveram  mais  ou  menos 
uma  só  feição  litteraria. 

O  condoreirismo  teve,  porem,  duas  phases,  a  do  nortei  e  a 
do  sul. 

No  sul  elle  foi  pregado  directamente  por  Castro  Alves, 
quando  em  1868,  o  moço  bahiajio  passou-se  para  S.  Paulo. 


HIBTOBIA  BA  LITTBRATURA  BKÁ8ILEIBÁ  2Sl 

Quasi  Ioda  a  gente  n'aquelle  tempo  no  Rio  de  Janeird  e  pro- 
víncias do  Sul  fez  versos,  imitando  a  maneira  do  poeta  das 
Espumas  Fluctuantes.  Os  mais  notáveis  seguidores  do  género 
foram  Carlos  Ferreira,  nas  Rosas  Loucas,  Mucio  Teixeira, 
nas  Sombras  e  Clarões,  e  Elzeario  Pinto,  em  algumas  compo- 
sições soltas. 

Dada  esta  previa  explicação,  avistemos  o  poeta  em  José 
Bonifácio.  Foi  lyrico  e  epico-lyrico. 

DisUnguiu-se  dos  seus  contemporâneos  e  companheiros  de 
luctas  académicas  em  não  ter  sacrificado  fortemente  no  altar 
do  byronismo. 

Teve  sempre  e  desde  então  uma  nota  valentemente  objec- 
tiva que  o  levava  a  extasiar-se  diante  de  scenas  naturaes  e  de 
factos  da  sociedade.  O  estylo  n'elle  teve  também  sempre  certa 
individualidade,  que  o  separava  dos  mais. 

O  poeta  possue  vigor  e  segurança  de  tintas ;  tem  destreza 
e  facilidade  na  mSLo.  Sabe  pintar.  Taes  são  seus  méritos. 
Exaggera-se  muitas  veizes,  faz  allegorias,  toma-se  visionário, 
entra  no  domínio  das  apparições.  Sâo  seus  defeitos. 

As  poesias  de  José  Bonifácio  que  pude  colligir  para  o  estu- 
dar sâo  :  Um  pé,  Tu  e  eu,  O  retrato,  Suprema  Visio,  Aspi- 
ração, A  amante  do  poeta,  Camões,  Lendo  Camões,  O  Cor- 
neta  da  Morte,  Não  e  Sim,  O  Redivivo,  O  adeus  de  Gonzaga, 
Primus  inter  pares,  A  caridade,  A  margem  da  Corrente, 
Alvares  de  Azevedo,  e  um  soneto  sem  titulo  que  começa  — 
Os  tristes  olhos  meus  tão  empregados. 

Alem  d'estas,  tenho  mais  diante  de  mim  :  Que  importa? 
Guaturamo  e  Arvore  Sécca,  impressas  na  Bibliotheca  Brasi- 
leira, e  ainda  Rodrigues  dos  Santos,  Saudades  do  Escravo, 
Calàbar,  Enlevo,  Garibaldi,  Teu  nome,  Prometheo,  Saudade, 
Olinda  e  O  Tropeiro.  Ao  total  trinta  peças.  Julgo  ser  o  suffl- 
ciente  para  conhecer  o  poeta. 

O  seu  livrinho  das  Rosas  e  Goivos  nâo  o  pude  encontrar, 
por  mais  que  o  procurasse,  falta  que  não  creio  ser  demasiado 
sensivel. 

Supponho  terem  ficado  esparsas  muitas  outras  composições, 
que  devem  parar  em  máos  dos  parentes  do  auctor.  Uma  edição 
completa  d'ellas  torna-se  urgente  para  a  verdadeira  compre- 


252  filSTO&U  DA  LlTTSBATtnU  BRASILSIfiÁ 

hensão  do  poeta.  Elle  é  um  lyrico  dos  mais  elegantes  do 
Brasil. 

Ouçamol-o;  eis  uma  bella  amostra  de  lyrismo,  a  poesia 
O  pi : 

u  Adorem  outros  palpitantes  seios^ 

Seios  de  neve  pura; 
De  angélico  sorrir  meiga  fragrância, 
Ou  sobre  coUo  de  nevada  garça, 
Cahindo  a  medo  em  ondas  aloiradas, 
Bastos  anneis  de  tranças  perfumadas. 

Adorem  o  coral  do  lábio  ingrato 

Na  alvura  do  alabastro, 
A  voz  suave,  o  pallido  reflexo 
Da  luz  do  céo  em  face  de  criança; 
Ou  sobre  altar  erguido  á  formosura, 
Na  fronte  ebúrnea  a  mórbida  brancura. 

Adorem  outros  de  um  airoso  porte 

Revelados  contornos, 
A  magestade  da  belleza  altiva, 
O  desdenhoso  passo,  o  gesto  ousado, 
A  descuidosa  m&o,  que  a  trança  alisa 
Na  tripode  infernal  a  pythonisa. 

Não,  núo  quero  painéis  de  tal  encanto. 

Tenho  gostos  humildes, 
Amo  espreitar  a  negligente  perna. 
Que  mal  se  escohde  nas  rendadas  saias, 
Ou  ver  subindo  o  patamar  da  escada 
Sem  azas  a  voar  um  pé  de  fada! 

Um  pé,  como  eu  jâ  vi  de  tez  mimosa, 

De  tez  folha  de  rosa. 
Leve,  esguio,  pequeno,  carinhoso, 
Apertado  a  gemer  n'um  sapatinho; 
Um  pé  de  matar  gente  e  pizar  flores, 
Namorado  da  lue^  e  pae  de  amores! 

Um  pé,  como  eu  já  vi,  subindp  a  escada 
Da  casa  de  um  doutor; 


EI8T0RIA  DA  UTTBBATimA  BRABILXIftA  253 

Da  moiçola  gentil  a  erguida  saia 
Deixou-me  ver  a  delicada  perna!... 
Padres,  não  me  negueis,  se  estais  em  calma 
Um  coraç&o  no  pé,  na  perna  um*alma. 

Um  pé,  como  eu  já  vi,  junto  á  ottomana, 

Em  fervido  festim, 
Tremendo  de  walsar,  envergonhado 
Sob  a  meia  subtil,  e  a  côr  do  pejo 
Deixando  fluctuar  na  veia  azul, 
Reciuebro,  amor,  feitiço,  —  um  pé  tafull 

Poeta  do  amor  e  da  saudade. 
Depois  de  morto  peço, 
Em  vez  de  cruz  sobre  a  funérea  pedra 
A  forma  de  seu  pé;  foi  o  meu  culto 
Quero  sonhar  o  resto  em  quanto  a  lua 
Chorosa  e  triste  pelo  céo  íluctua...  n 


o  lyrismo  delicioso  d' America. 

ufacío  de  Aadrada  sentia  o  calar,  a  seiva,  a  impetuo- 
3  dos  sonhadores  meridionaes.  Eil-o,  tirando  o  Retrato 
a  amada  : 

u  Incline  o  rosto  um  pouco...  assim...  ainda... 
Arqueie  o  braço,  a  m&o  sobre  a  cintura; 
Deixe  fugir-lhe  um  riso  á  bocca  pura 
E  a  convinha  aYiimar  da  face  linda. 

Erga  a  ponta  do  pé...  que  graça  infinda! 
Quero  nos  olhos  ver-lhe  a  formosura. 
Feitiço  azul  de  orvalho  que  fulgura, 
Froco  de  luz  suave  que  não  finda. 

Ha  pouca  luz...  eu  vejo-a...  está  sentada. 
P€issou-]he  a  sombra  de  um  cuidado  agora 
Na  ruguinha  da  fronte  jambeada... 

Eníadou-se?...  meu  Deus,  eil-a  que  chora 
Pois  cahiu-me  o  pincel;  que  mão  ousada! 
Pintar  de  Yioite  o  levantair  da  aurora!...  n 


254  HISTORIA  DA  LITTERATUKA  BRASILEIRA 

Sáo  effusões  nossas  :  alguma  cousa  de  ethereo,  mimoso, 
subtil,  que  suavemente  embriaga  ao  modo  dos  aromas  ador- 
mecedores  do  Oriente. 

Coisas  assimi  sáo  possíveis  ás  margens  do  Tielé,  do  Capi- 
baribe,  do  Parahyba ;  é  uma  poesia  sabida  da  mesma  fonte 
d'onde  sabem  os  beija-flores,  e  as  irisadas  borboletas  de 
nossas  mattas. 

Ouçamol-o  ainda ;  fedem  as  recordações  : 

«  Tu  e  eu!  que  ventura  e  vida  immensa! 
Que  lindo  sol!  que  bella  primavera! 
Pudesse  eu  ver-te  ainda!  Oh!  quem  me  dera 
Tua  alma  remoçar  e  a  minha  crença! 
Aquecer-me  ao  clarão  esmorecido 
Dessa  restea  de  sol,  meio  sumido! 

Mas  os  dias  de  outr'ora  nâo  volveram! 
Mas  é  já  tarde  pr'a  falar  de  amores! 
Os  nossos  sonhos,  nossas  pobres  flores 
Em  seu  próprio  jardim  já  feneceram! 
Foi  d'ancia  de  viver...  nuo  sei  de  que... 
Decifra  o  mytho,  e,  se  o  nâo  podes,  cré. 

Inda  te  escuto  a  voz,  inda  á  noitinha 
Vejo  tua  sombra  a  perseguir-me  os  passos; 
Inda  em  meu  sonho,  em  plácidos  abraços, 
Contemplo  esfaima  que  me  diz  que  és  minha! 
Mas  da  tarde  á  serena  claridade 
Quero  chamar-te  e  chamo-te  saudade! 

N'outro  tempo,  meu  Deus,  não  era  assim, 

Tudo  entáo  me  falava  só  de  amores  : 

A  brisa,  o  orvalho,  o  ninho,  o  céo,  as  flores, 

A  natureza  inteira,  o  mar  sem  fim! 

Até  cada  rumor  dos  arvoredos 

Era  um  Linho  d^amor,  —  tinha  segredos! 

Em  nossa  vasta  solidão  sem  termos 
Não  se  ouvia  do  mundo  um  só  respiro. 
Tinhas  tu  em  meu  peito  o  teu  retiro, 
Eu  em  teu  coração  meus  doces  ermos! 
Minha  alma  era  tua  alma  repartida. 
Duas  vidas  ligadas  n'uma  vida. 


r 


HISTORIA  DA  LITTERATUSA  BRA8ILEIBA  255 

Oh!  não  yiamos  do  mundo  o  vai-vem, 
A  festa,  a  luz,  a  dansa,  as  doudas  falas; 
Só  viviam,  meu  Deus,  naquellas  salas 
Tu  e  eu  tâo  somente  e  mais  'ninguém; 
O  meu  teu  ser,  o  teu  meu  sentimento. 
Unidos  coração  e  pensamento... 

Mas  6  vis&o  flned  a  vista  me  arde... 
Vi  um  altar...  ouvi  um  juramento... 
De  tua  doce  voz  o  meigo  accento 
Murmurou-me  um  adeus...  Era  já  tarde! 
Ai!  despertei  do  sonho  em  que  vivi 
Sem  luz,  sem  sol,  quero  dizer,  sem  ti!  » 

Vô-se  bem  qua  nâo  é  o  lyrisma  pobre,  sem  fulgores  de 
forma  e  exhuberancias  de  sentimento,  dos  máos  poetas.  Tam- 
b^n  nâo  é  a  pieguice  do  lamartinismo  atfectado. 

Teu  nome  é  na  mesma  intuiçâ^o  : 

u  Teu  nome  foi  um  sonho  do  passado; 
Foi  um  murmúrio  eterno  em  meus  ouvidos; 
Foi  som  de  uma  harpa  que  embalou-me  a  vida; 
Foi  um  sorriso  d*alma  entre  gemidos! 

Teu  nome  foi  um  echo  de  soluços. 

Entre  as  minhas  canções,  entre  os  meus  prantos; 

Foi  tudo  que  eu  amei,  que  eu  resumia. 

Dores,  prazer,  ventur8^  amor,  encantos! 

Escrevi-o  nos  troncos  do  arvoredo. 
Nas  alvas  praias  onde  bate  o  mar; 
Das  cstrellas  íiz  letras,  soletrei-o 
Por  noite  bella  ao  mórbido  luar! 

Escrevi-o  nos  prados  verdejantes 
Com  as  folhas  da  rosa  ou  da  açuceha! 
Oh!  quantas  vezes  n'aza  perfumada 
Correu  das  brisas  em  manhan  serena?! 

Mas  na  estrella  morreu,  cabio  nos  troncos, 
Nas  praias  se  apagou,  muchou  nas  flores; 
Só  guardada  ficou-me  aqui  no  peito 
—  Saudade  oq  maldiçõo  dos  teus  amores.  » 


256  HI8T0BIA  BA.  LITTEBATUBA  BBABILBIBA 

N'assa  mesma  corrente  de  lyrismo  pessoal  e  recordativo  sâo 
os  versos  sob  a  denominação  Que  importa  ?  N'elles  ha  um 
trarvor  especial,  uma  nota  de  despeito  e  vingança,  que  me- 
rece ser  apereciaxia. 

A  poesia  em  Pernambuco  é  citada  como  pertencendo  ao 
grande  galanteador  Maciel  Monteiro.  E'  um  engano  em  que 
também  laborei  por  algumi  tempo.  Eii-a  : 

u  Podes  sorrir-te  embora!  As  flores  murcham. 
Mas  nâo  morre  o  perfume  sobre  o  chãol 
Que  importa  o  riso  sobre  o  lábio  ingrato, 
Se  inda,  mulher,  te  bate  o  coração?! 

Fada  orgulhosa  nos  salões  brilhantes 
Vagas  sem  tino,  no  dansar  louquejas; 
E  as  pennas  brancas  da  plumagem  alva 
Cahiram  todas  :  n'um  paul  doidejas! 

Vale  acaso  essa  vida  de  delírio, 
Aquelles  sonhos  de  paixão  fervente. 
Os  quentes  beijos,  os  abraços  temos, 
E  o  céo  tranquillo  sobre  a  terra  ardente? 

Ai!  que  louca  tu  foste!  As  nossas  festas 
Tinham  por  luzes  os  clarões  da  lua; 
Ainda  hoje  ás  vezes,  solitária  e  bella, 
Tua  imagem  triste  no  luar  fluctual 

Não  chorei. . .  oh  hão!  Lá  quando  um  dia 
Emmudecer  o  som  da  louca  festa, 
Essa  historia  de  gozos  infinitos 
Hão  de  contar-te  as  brisas  da  floresta! 

Teu  pranto  em  flo  pelas  faces  murchas 
Ha  de  ser  minha  única  vingança; 
Serás  a  estatua  muda  da  saudade 
No  sepulcro  deserto  da  esperança!... 

Embalde  o  tentas...  Minha  imagem  sempre 
Como  um  remorso  surgirá  perdida! 
Eu  sou  tua  sombra,  seguirei  teu  corpol 
Eu  sou  tua  alma,  seguirei  tua  vida!  » 


HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  BRA8ILXIBA  257 

}uâo  distante  se  está  do  lyrismo  de  Magalhães  I  A  língua 

1  tomado  mais  flexibilidade,  mais  amplitude,  mais  sonori- 

íe,  mais  tintas,  mais  ardores. 

1*  preciso  pôr  termo  ao  que  tinha  de  dizer  do  poeta, 

►  o  posso  fazer  sem  dar  ao  menos  uma  qualquer  amostra 

estylo  de  Andrada  no  género  epico-lyrico. 

eja  o  Redivivo,  consagrada  á  memoria  de  um  dos  nossos 

)es  na  campanha  do  Paraguay,  essa  famosa  guerra  que 

nteou  nossa  coragem,  nosso  patriotismo,  a  unidade  de 

ir  de  nosso  povo,  a  inveja  de  nossos  visinhos  e  tanto 

ndesceu  a  imaginação  de  nossos  poetas  : 

(1  Dorme  o  batalhador!...  por  que  choral-o? 
Armas  em  funeral!  —  silencio,  oh  bravos! 

Que  a  dôr  não  o  desperte! 
Tão  só...  tão  grande...  sobre  a  terra  inerte! 
A  pátria  além...  partido  o  coração... 
Saudade  immensa  e  immensa  solidão!... 

Não  o  despertem!  —  eUe  dorme  agora 
Embalado  nos  braços  da  metralh£^ 

Ao  trom  da  artilheria  : 
Por  lençol  —  a  bandeira  :  em  terra  f lia 
Tem  por  leito  —  os  trophéos;  por  travesseiro 
Tem  o  canhão  no  somno  derradeiro! 

Sorrindo  adormeceu  —  a  espada  em  punho! 
A  imaginar,  sonhando,  ouvir  no  espaço 

O  clarim  da  investida! 
A'  cabeceira  —  a  morte  agradecida; 

—  A  os  pés  —  a  gloria;  e  ao  lado  ajoelhada 

—  A  pátria,  pobre  mâi  desventurada! 

Segura  as  rédeas  do  corcel  sem  dono 
Formosura  sinistra  —  olhar  infindo!  — 

E'  a  deusa  da  guerra! 
Mede  os  espaços,  os  confins  da  terra... 
Quer  despertal-o...  treme...  o  passo  é  incerto... 
Bstende  a  mão  e  aponta  p'ra  o  deserto! 

i^uando  elle  adormeceu,  na  mente  insana 
íomericas  visões  lhe  appareceram! 

roRiA  II  17 


HIBTOEIA  DA  UTTBRjLTUKA  BBAB1LEI&& 

Olhou  fito  o  seu  norte... 
Eu  sou  a  eternidade  —  disse  á  morte, 
Do  meu  ginete  o  pé  a  terra  abola, 
Quando  eu  caminho  —  a  viraç&o  nem  falai 

E  que  elemas  visões!?  —  nu  raarchíi  ousada, 
Para  saudal-o  os  mortos  levontavam-se, 

Tocavam  as  cornetas, 
As  pegas  disparavam  nas  carretas, 
E,  ao  cabo  do  caminho,  a  doce  paz 
Lhe  preparava  os  arcos  triumphaes! 

Elle  via,  qual  mar  tempestuoso. 
Ondas  revoltas,  umas  apú7.  outras, 

Da  audaí  cavalleria 
As  cargas,  que  a  victoria  presidia ; 
E,  galgfínâo  a  galope  a  immensídade. 
Dizia  &  morte  ;  —  eu  sou  a  eternidade! 

As  montanhas  se  abatem,  quando  eu  passo; 
O  rio  inclina  o  dorso  e  me  saúda. 

Se  me  apeio  em  caminho! 
Omeucavalloéaguia,  océuéninho: 
A  fome,  a  peste,  a  chuva,  em  véus  de  fumo. 
São  meus  soldados,  guiam-me  no  rumo! 

E  que  eternas  visões  —  em  vale  immonso, 
A  narina  incendida,  o  peito  arfando, 

O  ginete  parava! 
Eis  a  voragem!...  lè.  no  fundo  a  lava 
Que  entornam  os  voIcOes  de  artilheria, 
E  um  exercito  de  mortos,  que  se  erguia! 

Depois  nuvem  de  fogo...  uns  sons  lreme'ndo3... 
Um  estalar  de  ossos...  ais...  mil  pragas... 

Uma  orcheslra  infernnll 
N"um  mar  de  sangue  o  sol  como  fanal! 
Os  tambores  rufando...  armas  quebradas,,. 
Bandeiras  rotas...  relintim  de  espadas! 

LJm  trovejar  sem  fim...  um  largo  incêndio... 

Mas  elle  á  frente,  no  corcel,  fitando 


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HISTORIA  DA  LirTBKATURA  BSASIUIftA  259 

O  infinito  —  seu  norte, 
Dizia  à  eternidade  :  eu  sou  a  morte, 
Meu  cavaUo  é  o  destino,  o  céu  mortalh€^ 
Meu  braço  é  raio,  o  coraç&o  muralha! 

Ao  vêr-me,  tremuleuite  as  palmas  dobra 
A  palmeira;  estreitam-se  os  banhados; 

O  arroio  nem  transborda; 
No  firmamento  azul  o  sol  acorda! 
Quem  é,  pergunta  a  noite  á  ventania, 
Este  archanjo  de  luz  e  poesia? 

£'  da  floresta  o  rei,  exclama  o  vento; 
£*  o  espectro  do  sol,  affirma  a  estrella; 

D6LS  aguas  o  senhor. 
Murmura  o  rio  um  cântico  de  amor; 
E  a  tempestade  diz  :  meu  cavalleiro. 
Tens  por  corcel  as  azas  do  peimpeiro! 

E  corre  e  corre...  ao  cabo  da  carreira 
Immenso  boqueirão...  fosso  sem  bordas... 

Tranca-lhe  o  espaço  a  cruz! 
Em  baixo  a  densa  treva!. . .  o  cimo  é  luz! 
Basta,  lhe  brada  a  voz  da  immensidade, 
A  morte  foi  teu  guia  á  eternidade! 

Armas  em  contínebcia!  —  é  um  morto  vivo!  , 
Eil-o  que  passa  agora,  erguido  ao  alto 

No  esquife  da  victoria! 
O  Brasil  o  saúda,  e  tu,  Historia, 
Um  poema  de  luz  de  novo  escreves! 
Soldados,  cortejae  Andrade  Neves!  )> 

« 

Ha  n'isto  imaginação,  movimento,  vida,  brilho. 

Eu  náo  gosto  de  receitas ;  odeio  o  mister  dos  boticários ; 
para  mim  todos  os  géneros  poéticos  são  bons,  uma  vez  que 
revelem  talento ;  nâo  canso  em  o  repetir. 

Clássicos,  românticos,  realistas,  parnasianos,  condoreiros, 
socialistas,  satânicos...  todos  me  agradam,  sob  uma  só  con- 
diçâxD  :  não  serem  medíocres. 

Os  versos  de  José  Bonifácio  revelam  um  talento,  uma  indi- 
vidualidade fora,  muito  fora  do  commum. 


260  HISTORIA  DA  LITTSRATI7EA  BBA8ILEIBA 

Nto  O  acho  igualmente  metrítorio  na  sua  qualidade  de  poli- 
tico e  de  orador  parlamentar. 

Sei  bem  que  justamente  por  esse  lado  é  que  elle  foi  redu- 
zido a  mytho. 

E'  preciso  estudal-o  por  essa  face ;  e  se  o  pode  bem  fazer 
apreciando  um  seu  celebre  discurso  da  Gamara  dos  Depu- 
tados, om  1879,  quando  se  discutiu  a  reforma  da  Consti- 
tuição no  sentido  de  se  encartar  n'ella  o  systema  da  eleição 
directa.  E'  isto  necessário  para  haver  n'este  livro  a  figura 
completa  de  José  Bonifácio.  Depois  do  poeta,  o  orador. 

O  celebre  paulista  não  é  para  mim,  o  que  vulgarmente  d'elle 
se  diz,  um  grande  pensador,  addicionado  ao  mais  perfeito 
dos  oradores.  Não;  é  simplesmente  para  mim,  como  para 
tantos  outros,  um  poeta  de  mérito,  que  errou  o  seu  caminho. 

Gomo  poeta,  esphera  em  que  devia  se  ter  concentrado, 
poude  elle  escrever  paginas  animadas,  quaes  o  Primus  inter 
pares  ou  o  Redivivo.  Gomo  orador,  por  mais  que  isto  pareça 
estranho,  pouco  se  elevou  acima  do  nivel  da  vulgaridade  e  das 
amplificações  estudadas. 

Por  certo  não  se  está  mais  na  epocha  em  que  qualquer  ho- 
mem verboso,  tendo  á  mão  algumas  dezenas  de  phrases  so- 
nantes e  de  interjeições  enthusiasticas,  podia  conquistar  os 
foros  de  grande  orador. 

Se  para  o  romancista,  e  até  para  o  poeta  hodierno,  requer-se 
mais  profusa  receita  do  que  a  que  d'antes  manipulava,  que  se 
dirá  do  orador,  maximè  do  orador  parlamentar  ? 

Hoje,  depois  de  tantas  revoluções  ensaguentadas  para  os 
povos  e  de  tantas  crises  profundas  para  os  pensadores,  depois 
que  os  mais  graves  problemas  philosophicos  e  sociaes  pas- 
saram das  surdas  meditações  dos  sábios  para  a  mente  das 
massas  popularres,  depois  da  evolução  do  socialismo,  do  natu- 
ralismo philosophico  e  das  ideias  positivas,  o  orador  politico 
e  social  não  é  mais  o  agitador  vulgar,  o  glossador  de  pobres 
vacuídades. 

Deve  ser  o  politico  profundo,  debaixo  de  cuja  palavra  vi- 
brante encontre  asylo  a  ideia  do  pensador ;  atraz  do  homem 
que  fala  e  apaixona,  Im  de  estar  o  homem  que.  medita  e  re- 
solve. Que  encerra,  eu  o  pergunto, de  verdadeiramente  exlraor- 


niSTOBIA  DA  LITTSRATT7SA  BBABILBIBA  261 

ílinario  e  admirável  o  discurso  citado  7  Deixando  de  lado  por 
brevidade  as  questões  de  forma,  a  parte  esthetica  da  peça,  o 
estylo  pesado  e  palavroso,  vejam-se  as  ideias,  as  doctrinas  do 
orador. 

Antes  de  tudo,  qual  a  philosophia  social  de  José  Bonifácio  7 

Este  ultimo  representante  da  doctrinarismo  andradico,  para 
repetir  a  justa  palavra  de  Pereira  Barretto,  um  dos  mais  ele- 
vados espirites  brasileiros,  era  exactamente  um  doctrinario  ro- 
mântico á  guiza  de  Benjamim  Gonstant. 

Dizel-o,  é  assignalar  o  enorme  atraso  em  que  laborava  o  il- 
lustre  conselheiro  e  lavrar  a  condemnaçâo  de  seus  ingénuos 
admiradores. 

Seu  discurso,  depurado  ao  crysol  da  analyse  e  escoimado 
das  phrases  que  lhe  obscurecem  o  pensamentos  reduz-se  a 
uma  veJha  apologia  á  soberania  popular,  outra  á  eleição  di- 
recta com  o  senso  da  Constituição,  ladeadas  ambas  de  alguns 
errinhos  de  historia  geral  e  historia  do  Brasil. 

Depois  da  revolução  de  1789,  esse  phenomeno  histórico  mal 
comprehendido,  thema  predilecto  de  todos  os  declamadores 
moderno6,  espalharam-se  entre  os  povos  filiados  na  raça  e  na 
civilisação  latinas  as  extravagantes  ideias  de  soberania  e  iner- 
rancia  popular  de  que  o  romantismo  da  Restauração  apossou- 
se,  jogando-as  pelo  mundo. 

Pasto  condimentado  para  os  tribunos  de  todos  os  tamanhos, 
vieram  ellas  girando  até  á  nossa  terra  e  até  aos  nossos  dias, 
produzindo  na  Europa  muitas  commoções  inúteis  e  aqui  o 
descrédito  dos  partidos  e  o  nosso  politico  atraso. 

A  soberania  popular,  já  o  disse  uma  vez,  é  alguma  cousa  de 
análogo  ao  direito  divino  dos  reis  e  á  infallibilidade  dos 
papas  (1). 

O  conceito  do  povo  como  soberano,  isto  é,  como  podendo 
elle  só  dictar  as  leis  ao  Estado  e  á  sociedade  é  um  conceito 
metaphysico  e  vão.  A  direcção  das  ideias  não  parte  do  povo 
como  massa  inerte.  Este  lento  offlcio  pertencei  á  sciencia  em 
geral,  representada  por  todos  os  seus  operários,  grandes  ou 
pequenos,  e  se  ella  não  pretende  a  inerrancia,  como  pre- 
tendel-o-ão  as  massas  de  que  falava  José  Bonifácio  7 

(1)  Nos  —  Estudos  sobre  a  Poesia  Popular  Brasileira ;  cap,  I. 


HlflTOBIiL  BA  LITTBSATnSA.  VRABUMOLA. 

O  povo,  no  quei  elle  tem  de  melhor  e  mais  nobre,  nâo  pre- 
oisa  qu<e  para  illudil-o  lhe  preguemos  nos  farrapos  com  que  se 
cobre,  no  abatimento  a  que  o  temos  deixado  cair  por  nossas 
theorias  falaciosas,  algumas  tiras  bordadas  de  vã  soberania... 

E  chasqueal-o>  depois  de  exhauril-o. 

O  povo  pôde  e  deve  intervir  na  direcção  dos  seus  destinos ; 
para  isto  basta  o  seu  direito  á  liberdade  e  ao  progresso.  Elle 
tem  jus  ao  melhoramento  e  á  cultura  e  tanto  basta  para  jus- 
tificar que  lance  máos  olhos  para  os  governos  que  lh'os  ne- 
gam, 6  que  n'um  dia  de  desespero  os  atire  por  terra.  Para 
tanto  náo  precisa  agaloar-se  como  soberano,  pela  mesma 
forma  que  um  homem  de  estudo  nâ,o  tem  mister  de  empunhar 
o  báculo  da  infaUibUidade  para  demonstrar  um  facto  ou  esta- 
belecer uma  theoria.  O  caso  é  o  mesmo. 

A  ideia  da  soberania  popular,  transformada  por  Guizot  em 
soberama  da  razão,  não  tem  o  fundamento  da  sciencia,  a 
sancção  da  historia,  nem  faz  a  fecilidade  das  nações. 

Não  tem  o  fundamento  da  sciencia ;  pois  que  todos  sabem, 
excepto  os  declamadores,  que  esta  banio  do  horizonte  humano 
todas  as  noções  abstrusas  e  de  impossível  veriflcação  pratica^ 
fazendo  a  devida  justiça  aos  preconceitos  transcendentaes. 

Não  tem  a  sancção  dos  factos ;  porque  a  historia,  a  despeito 
das  theorias  aéreas,  mostra  o  povo  sempre  opprimido,  subju- 
gado, conquistando  dia  por  dia,  passo  a  passo,  a  sua  emanci- 
pação pela  industria,  pelas  artes,  pela  sciencia,  em  nome  de 
seu  trabalho,  e  não  em  nome  de  umi  predicado  que  lhe  nâo 
assiste.  A  soberania  não  é,  nunca  foi  um  facto  positivo,  um 
facto  adquirido ;  mas  um  simples  anhélo  despido  de  senso. 

Não  faz  a  fecilidade  das  nações ;  porque  aquellas  que, 
como  a  França  e  a  Hespanha,  tanto  a  têm  proclamado,  hão 
sido  a  preza  da  anarchia,  para  passar  depois  ás  fauces  do  des- 
potismo. 

E*  inútil  apontar  os  factos  de  hontem,  que  estão  no  conhe- 
cimento de  todos.  Foi  em  nome  d'esta  soberania  que  Luix 
Philippe  crêou  o  censo  elevado  e  formou  o  paiz  legal,  o  rei- 
nado dós  burguezes  intolerantes.  Foi  ainda  em  seu  nome  que 
o  segundo  império  conservou  o  suffragio  universal,  servindo, 


BTVrOBIA  DA  LITTE&ATXmA  BBABILBIBA  263 

cruel  ironia  I...  para  jusUflcação  do  mais  pretencioso  e  ridi- 
culo  governo  dos  modeanos  tempos. 

E  é  com  estas  vacuidades  metaphysicas,  como  diria  Strauss, 
que  José  Bonifácio  de  Andrada  queria  regenerar  este  paiz  e 
abrir-lhe  a  estrada  larga  do  futuro !. . . 

Cuidado  I A  soberania  em  logar  da  actividade  e  do  trabalho 
livre,  ás  vezes  traz  um  Luiz  Bonaparte  e  este  quasi  sempre 
entre  as  névoas  de  seus  desatinos  deixa  lobrigar  ao  loflige 
Sedan...  ^ 

A  politica  é  uma  sciencia  pratica  e  complexa  que  nio  pres- 
cinde do  conhecimento  do  meio  social.  Isto  faz  lembrar  o  que 
entre  niós  se  dizia  e  se  esperava  da  eleição  direita,  encomiada 
por  José  Bonifácio. 

A  infantilidades  de  um  individuo  são  fáceis  de  desculpar, 
se  elle  não  tem  por  si  a  lição  da  experiência ;  as  ingenui- 
dades, porém,  de  um  povo  de  quatrocentos  annos  de  exis- 
tência, a  que  se  podem  addicionar  mais  três  séculos  empre- 
gados por  seus  maiores  em  conquistar  e  flrmar  a  própria 
autonomia,  não  devem  passar  sem  reparo. 

A  sociedade  brasileira  acordou  um  dia  sobresaltada  e  sen- 
tiu-se  doente.  Queixava-se  de  falta  de  liberdade  politica  e  de 
muitos  males  sociaes ;  queixava-se  de  poucas  rendas  para  o 
seu  commercio  e  sua  agricultura. 

Urge  um  remédio  para  tanto  soffrimento,  bradaram  todos, 
e  todos  apontaram  para  a  panacéa  da  eleição  directa. 

Todos,  conservadores  e  liberaes,  chefes  e  vice-chefea,  os 
aristocratas  e  o  vulgacho,  enamoraram-se  da  eleição  directa... 

Não  comprehendiam  os  ingénuos  que  oe  males  de  uma  na- 
ção, fundos,  palpitantes  como  as  suas  próprias  entranhas,  ve- 
lhos, chronicos,  callosos  como  a  estupidez  de  um  buschiman, 
nâo  se  extirpam  de  momento  e  por  meio  de  uma  medida  que 
só  afíecta  a  superfície,  a  tona  de  nossos  desconchavos. 

Pois  como?  Uma  simples  mudança  no  modo  pratico  de 
eleger  algumas  dúzias  de  palradores,  nos  havia  de  trazer  a  éra 
das  prosperidades  I 

Nâo !  Só  o  trabalho  lento  de  algumas  gerações  e  estas  bem 
inspiradas  de  seus  deveres,  um  serviço  gradual  e  paulatino, 


264  HISTORIA  DA.  LITTBRATimA  BRASILBIBA 

começando  pela  reforma  de  nossa  intuição,  atrazadissima 
do  mundo,  nos  poderá  salvar.  Atirar  á  face  de  um  povo  que 
se  confessa  desanimado  a  futilidade  da  eleição  directa,  como 
o  meio  único  de  salvação  é  dolorosamente  irrisório ;  é  corno 
atirar  em  cima  de  um  homem  chagado  uma  porção  de  brazas. 

Opino,  e  commigo  todos  os  homens  desprendidos  das  peias 
partidárias,  que  ella  só  por  si  e  sem  ser  secundada  por  uma 
serie  complexa  de  reformas,  que  tragam  uma  total  mudança 
em  nossa  decrépita  educação  nacional,  para  nada  vale,  de 
nada  presta. 

Foi  com  a  eleição  directa  que  Guizot  deitou  por  terra  a  mo- 
narchia  de  Julho ;  foi  com  ella  que  aquelle  notável  homem 
de  estado  ia  suffocando  as  liberdades  francezsis. 

Mas  ouça-se  José  Bonifácio  : 

('  A  constituição  do  império,  disse  elle,  assenta  sobre  três  princí- 
pios :  soberania  universal,  unidade  da  soberania  organisada  e  equi- 
líbrio do  mandato...  n 

O  orador  unge  o  seu  doctrinarismo  com  o  óleo  saneio  do 
mysticismo. 

Alli  está  o  numero  três,  o  numero  typico  das  lendas  e 
mythos  populares,  a  triada  infallivel  :  soberania  universal, 
unidade  da  soberania  organisada  e  equUibrio  do  mantado!... 
Três  palavrões  vasios,  inania  verba,  com  que  se  têm  embalado 
algumas  gerações  de  bacharéis  I 

Parece  que  se  está  a  ouvir  uma  das  gentilissimas  preleções 
do  supposto  direito  publico  ensinado  em  nossas  faculdades 
jurídicas. 

Ainda  se  gasta  o  tempo  em  articular  despropósitos  nebu- 
losos, aéreos,  metaphysicos  e  nullos.  Unidade  da  soberania 
organisada. . .  que  quer  isto  dizer  ? 

A  velha  prosa  franceza  de  Constant  só  sabe  excitar  o  riso. 

Se  José  Bonifácio  tivesse  lido  os  trabeilhos  sociológicos  ou 
jurídicos  de  um  Spencer  ou  de  um  Gneist,  veria  que  lá  não  se 
encontram,  em  logar  de  factos  e  demonstrações,  taes  e  tantas 
vaporosas  logomachias. 


HISTOBIA  DA  LITTBEATURA  *  BEASILEIRA  265 

Disse  ainda  o  orador  : 

cc  Qual  é,  em  suprema  e  ultima  analyse,  a  garantia  da  unideule  e 
divisfio  da  soberania?  A  garantia  doesta  unidade  e  divisão  é  ainda  a 
mesma  soberania  nacional.  » 

Esta  ultima  e  seus  dois  appendices,  conforme  o  orador,  são 
a  base  da  constituição ;  mas  logo  exclama  que  a  garantia  do 
segundo,  isto  é,  da  tofiidade  da  saberania  organisada,  é  a 
mesma  soberania  I... 

Vão  jogo  de  palavras  e  nada  mais.. 

D'esl'arte  aquelle  pretendido  phantasma  é  base  e  é  cupola, 
é  tudo  justamente  porque  nada  é... 

Acabe-se  de  uma  veíz  com  isto,  e  dêm  os  deputados  e  sena- 
dores o  exemplo  de  discutir  questões  sérias,  com  argumentos 
sérios  e  proveitosos. 

A'  vista  de  tanta  inanidade,  quasi  que  sou  levadJo  a  dizer 
que  não  existe  systema  algum  de  eleições  que  nos  possa  ga- 
rantir uma  bôa  representação,  não  tanto  por  intervir  o  poder, 
como  vulgarmente  se  propala,  no  pleito  das  urnas,  como  pela 
falta  de  pessoal  habilitado  em  que  se  possa  votar. 

O  illustre  orador  era  partidário  do  suffragio  universal  di- 
recto, e,  como  o  não  podia  ver  applicado  no  Brasil,  conten- 
tava-se  com  o  suffragio  directo  limitado  com  o  censo  da  con- 
stituição. 

Repellia  as  duas  condições  do  projecto  do  governo  impostas 
aos  futuros  votantes  :  a  renda  de  400$000,  e  o  saber  ler  e  es- 
crever. Achava  que  exigir  essa  quantia  de  renda  era  muito, 
porque  a  capacidade  não  se  marca  pelo  dinheiro.  De  accôrdo. 
Par  mim  é  indifferente  que  o  votante  produza  cem,  duzentos 
ou  trezentos  alqueires.  A  renda  maior  ou  menor  pouco  im- 
porta, se  houver  outras  garantias  para  uma  bôa  escolha. 

Ouçamol-o  : 

(( Duas  são  as  condições  do  direito  do  voto  :  a  vontade  e  o  discer- 
nimento. O  discemimefato,  porém,  não  depende  nem  de  saber  ler  e 
escrever,  nem  da  sciencia,  nem  da  instrucção...  » 

Deixando  de  parte  a  vontade,  cuja  intervenção  era  escusado 
lembrar,  porque  ou  ella  é  bem  ou  mal  applicada;  se  bem, 


266  HI8T0BIA  DA  LlTTBBATtJKA  BBA8II.XIBA 

não  é  ianlo  uma  oon(iiçâ.o,  como  uma  necessidade,  se  mal, 
nada  produz ;  deixando  de  lado  a  vontade,  dizia,  quanto  ao 
discernimento,  sem  ao  menos  saber  le>r  e  escrever,  nâo  é 
tanto  sem  contestação  o  que  pensava  o  illustre  conselheiro. 

Disse  que,  se  vingasse  o  projecto,  teríamos  desenove  vigé- 
simas partes  da  população  s^ido  governadas  por  uma  vigé- 
sima parte. 

E  que  é  que  tem  sempre  acontecido  aqui  e  por  todo  algures? 
Isto  mesmo. 

Nos  próprios  paizes  onde  o  suffragio  universal  é  mais  lato 
e  radicado  é  uma  chimera  suppôí  que  todo  o  povo  concon^ 
ás  umas  e  ainda  mais  que  todo  elle  toma  parte  no  govemoL 

Demais,  na  hypothese  contraria  ao  projecto  e  que  Boni- 
fácio de  Andrada  advogava,  teríamos  um  resultado,  também 
pouco  satisfactorio,  isto  é,  as  massas  incultas  governando  os 
cidadãos  que  têm  luzes. 

Como  sahir  da  difflculdade  7 

Eis  o  ponto  a  que  chegam  as  reformas  da  superílcie,  quando 
não  se  penetra  no  âmago  podre  dos  erros  que  pedem  remédio. 

Porque,  desde  muito,  não  promoveram,  por  todos  os  meios 
possíveis,  a  instrucção  do  povo  ?  Eis  o  grande  problema,  sem 
cuja  solução  tudo  o  mais  é  edificar  sobre  areia. 

Os  errinhos  de  historia  commettidos  pelo  orador,  e  de  que 
falei,  não  consistem  tanto  no  modo  de  narrar  os  factos,  como 
na  maneira  de  os  apreciar. 

Aquelles  successos  da  Grécia  e  Roma  que  lembrou  para  fun- 
damentar a  soberania  popular  e  o  direito  das  massas  ao  voto 
politico,  são  devaneios  de  poeta. 

O  foram  romano  e  o  agora  atheniense  não  são  símiles  que 
nos  aproveitem  a  nós,  pobres  epígonos  modernos  do  Brasil. 

Outros  impulsos  e  outras  leis  regeram  o  desenvolvimento 
das  civilisações  antigas.  No  que  disse  de  nossas  luctas  da 
Independência,  com  a  intenção  manifesta  de  justificar  os  ve- 
lhos Andradas,  de  que  a  príncipio  a  revolução  não  tinha  um 
alcance  separatista,  o  novo  philosopho  da  historia  braáleíra 
illudiu-se  bellamente. 

Três  factos  concorrem  para  proval-o  :  a)  a  lei  geral  orgânica 
das  sociedades  que  tendem  a  desaggregar-se  das  metr(^!>oies. 


HISTOSIA  DA  LITTERATURA  BSilSILSIKA  267 

em  chegando  aquellas  a  oerto  grau  de  desenvolvimento  :  b) 
os  próprios  antecedentes  dados  aqui  no  Brasil ;  c)  os  resul- 
tados ílnaes  da  revolução. 

O  primeiro  facto  tem  sua  justificação  em  toda  a  historia  da 
America.  Antes  do  Brasil,  já  as  colónias  inglezas  haviam  na 
mór  parte  sacudido  o  jugo  e  o  mesmo  tinham  feito  muitas 
hespanholas. 

O  segundo  é  também  reaUssimo  :  as  tentativas  da^/ncon/Í- 
dencia  e  de  1817,  sem  falar  n'outras,  sáo  caracteristicas  n'este 
sentido.  A  corrente  geral  era  pela  separação,  que  veiu  a  veri- 
flcar-se,  e  náo  para  crôar  a  grande  monarchia,  de  que  só 
alguns  ambiciosos  ou  medíocres  da  epocha  se  poderiam  lem- 
brar. 

A  opinião  não  separatista  era  em  minoria  e  foi  levada  de 
vencida  pela  vontade  da  nação,  dirigida  pelas  leis  naturajis- 
ticas  da^  historia. 

O  sonho  do  velho  Andrada  foi  um  delíquio  passageiro,  que 
felizmente  não  se  contaminou,  se  é  que  realmente  elle  o  teve. 
Pouco  importa  que  isto  pareça'  a  alguns  menoscabar  da  ^ge- 
ração  de  heróes  da  Independência. 

Os  que  não  a^creditam  na  divinisaçâo  dos  heróes,  porque 
sabem  que  a  evolução  social  é  lenta,  entrando  n'ella  cumula- 
tivamente o  trabalho  de  todos,  têm  um  ^outro  modo  de  explicar 
os  successos  de  1822. 

Para  concluir  : 

José  Bonifácio  fod  um  homem  de  merecimento  em  geral ; 
na  poesia  teve  ^grande  valor ;  na  politica  foi  menos  conside- 
rável ;  era  eloquente,  mas  não  profundo. 

Laurindo  José  da  Silva  Rabello  (1826-1864).  Foi  um  dos 
talentos  poéticos  mais  valentes  da  phase  meidia  de  nosso  ro- 
mantismo (1). 

E',  talvez,  o  espirito  menos  devidamente  aquilatado  de  nossa 
vida  litteraria,  onde  deveria  sempre  ter  occupado  o  primeiro 
plano. 

E*  n'este  livro  incluído  na  terceira  phase  da  romântica,  por 

(1)  Aa  biographias  existentes  de  Laurindo  o  dão  como  nascido  en  1826 ; 
creio,  porem»  haver  ahi  engano  de  6  annos.  Parece>me  que  o  poeta  é  de  1S20. 


268  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRASILEIRA 

um  simples  malivo  de  methodo,  nâo  que  elle  devesse  nada  a 
Alvarez  de  Azevedo  ou  a  qualquer  outro  do  tempo. 

Laurindo,  que  foi  o  talento  mais  espontâneo  que  tem  exis- 
tido no  Brasil,  em  1844,  aos  desoito  annos,  já  era  poeta,  qual 
sempre  se  mostrou,  quando  Azevedo  era  ainda  um.  menino  de 
treze  annos,  que  prmcipiava  os  preparatórios. 

Norberto  Silva  o  íllia  na  escola  de  Magalhães.  E'  um  grande 
absurdo.  Magalhães  era  quinze  annoe  mais  velho  e  começou 
antes ;  porem  jamais  existiram  dois  temperamentos  VBlo  dia- 
metralmente oppostos. 

Laurindo  era  um  talento  intuitivo*,  ^espontâneo,  natural, 
dotado  de  todas  as  qualidades  brilhantes  da  intelligencia ;  era 
um  causeur  inesgotável,  um  orador  torrencial,  um  humorista 
perpetua,  um  repentista  sempre  lesto,  addicionado  de  um 
singular  talento  lyrico. 

Era  um  homem  do  povo,  um  espirito  inquieto  e  ambulante, 
um  homem  das  ruas,  das  festas,  a  mais  perfeita  personifi- 
cação de  uma  classe  de  Índoles  litlerariets  que  ja  têm  desappa- 
recido  de  todo. 

Que  tem  que  ver  com  tudo  isto  Magalhães  ?  Absolutamente 
nada. 

Não  se  antecipem  factos  e  idéas ;  comece-se  pelo  principio, 
—  a  biographia  do  poeta ;  porque  este  a  tevei  n'um  tecido  de 
sofTrimentos. 

As  condições  de  seu  viver  e  sua  origem  explicam  n'elle  per 
feitamente  a  singular  juncçáo  do  lyrismo  elegíaco  e  da  satyra. 

Nasceu  no  Rio  de  Janeiro  de  pais  paupérrimos,  de  baixa 
classe,  isto  é,  de  mestiços,  em  cujas  veias  corria,  além  de 
tudo,  o  sangue  cigano.  Não  é  embalde  que  se  descende  de 
uma  raça  que  foi  três  séculos  escravisada  e  da  raça  nómada, 
abatida  e  ossiflcadamente  triste  dos  ciganos,  esse  singular 
problema  ethnographico. 

O  longo  e  temeroso  património  de  la^imas,  penetrando 
todo  o  ser  pensante  ei  emocional,  se  lhe  transmitte  por  heredi- 
tariedade e  vae  accentuar-lhe  a  physionomia  com  os  traços 
indeléveis  do  soffrimento. 

Juntae  agora  a  tudo  isto  a  indigência  absoluta  dos  pais,  a 
quem  todo  o  trabalho  era  difflcultado  pela  atroz  concurrencia 


HI8TOSIA  DA  LITTBRATUKA  BRA8ILEIBA.  269 

feita  pelos  estranhos  ao  proletário  nacional ;  juntae  as  scenas 
de  desolação  que  cercaram  a  primeira  infância  do  poeta ;  addi- 
cionae-lhe  por  cima  as  peripécias  terríveis  que  o  assaltaram 
durante  a  attribulada  existência,  tudo  isso  n*uma  intelligencia 
de  elite,  e  comprehendereis  Laurindo  Rabello. 

Elle  veiu  ao  mundo,  ao  que  se  diz  em  1826.  Seu  aprendizado 
das  primeiras  leiras  foi  feito  entre  innumeras  difflculdades. 

Conseguindo  no  meio  de  grandes  embaraços  entrar  para  o 
Seminário  de  S.  José,  onde  chegou  a  receber  ordens  menores, 
teve  de  abandonar  a  carreira  ecclesiastica,  por  intrigai  que 
lhe  moveram  padres  influentes  d^aqueille  tempo,  invejosos  do 
seu  talento  oratório,  que  os  iria  a  todos  eclipsar. 

Tentou,  então,  a  carreira  das  armas,  matriculando-se  na 
Escola  militar,  que  teve  de  deixar,  por  haver  escripto  umas 
salyras  contra  o  director. 

Matriculou-se  na  Escola  de  medicina  do  Rio  de  Janeiro. 

Por  esse  tempo,  baldo  inteiramente  de  recursos,  passou 
pela  provação  de  vêr  louca  a  irmã,  por  lhe  haver  fallecido  o 
noivo. 

Deixou  a  escola  medica,  por  completa  falta  de  meios.  En- 
controu, porém,  a  mão  caridosa  do  Dr.  SaJustiano  Vieira 
Souto,  que  o  levou  para  a  Bahia,  em  cuja  academia  matricu- 
lou-se. 

Depois  de  ahi  estar,  e  ter  passado  por  crudelistima  enfer- 
midade, chegou-llie  a  noticia  do  fallecimento  da  irmíí.  Mais 
tarde  um  pouco  morreu-lhe  a  mãe,  flcando-lhe  a  familia  redu- 
zida a  um  só  irmão. 

Para  cumulo  de  infortúnios,  este  leve  fim  desastroso,  suc- 
cumbindo  assassinado  barbaramente. 

O  leitor  me  relevará  entrar  n'estas  minudencias.  São  neces- 
sárias para  a  inteira  compreihensão  da  indole  do  poeta  ;  mos»- 
iram  como  elle  foi  feito  pela  natureza  e  pelos  acontecimentos  ; 
indicam  specialmente  a  razão  occulta  d^aquella  melancólica, 
d^aquelle  tom  elegíaco  ante  o  qual  as  tristezas  de  Azevedo, 
Lessa,  Bernardo  e  Andrada,  são  brinquedos  de  criança. 

Laurindo  tovc  a  m^Mancolia  negra,  próxima  da  loucura, 
que  o  n9o  assaltou  pria  elasticidade  pasmosa  de  seu  tempe- 
ramento. 


270  HI8T0BIA  BA  LITTBRATUSA  B&ASILBISA 

D'ahi  esse  duplo  estado  de  depressão  que  se  exhalava  em 
suspiros  e  de  arrebatamento  que  se  traduzia  em  saiyras. 
Conheceu  também  o  terreno  intermédio  das  facécias  e  das 
pilhérias. 

Formado,  a  fortuna  não  lhe  sorriu. 

Estabelecido  no  Rio  de  Janeiro,  não  achou  clinica;  teve  de 
seguir  como  medico  do  exercito  para  o  Rio  Grande  do  Sul. 
Voltando  ao  Rio,  mais  tarde  seguiu  o  mesmo  emprego  até  1882, 
quando  deram-lhe  um  lugar  de  professor  no  curso  annexo  á 
Escola  militar  d'esta  capital. 

Pouco  aproveitou  d*essa  ultima  posição,  pois  falleceu  em 
princípios  de  1864  aos  trinta  e  oito  annos  de  idade. 

Laurindo  era  um  d^esses  talentos  de  acção  directa  e  pessoal, 
que  mais  se  apreciam  pelo  contacto  immediato. 

As  intelligencias  doesta  casta  são  essencialmente  perdulárias 
e  descuidosas ;  produzem  todos  os  dias  aos  fragmentos,  des- 
baratando as  próprias  forças ;  é  gente  que  não  se  c(Hicentra 
para  edificar  alguma  cousa  que  persista. 

Em  palestras,  discuissões  oraes,  discursos  de  occasião,  im- 
provisos poéticos  malbaratou  Laurindo  as  suas  faculdades. 

Tinha  seu  cenáculo  constante  onde  se  distinguiam  homens 
como  Castro  Lopes,  Pires  Ferrão,  Eduardo  de  Sã,  Ferreira 
Pinto  e  sobre  todos  Constantino  Gomes  de  Souza,  tão  infeliz 
quanto  elle. 

De  passagem,  devo  aqui  noitar  que  os  críticos  da  moda,  em 
tratando  dos  amigos  que  cercavam  o  poeta  fluminense,  occul- 
tam  sempre  o  nome  de  Constantino  de  Souza,  o  mais  illustre 
de  todos  I... 

E'  que  o  pobre  e  sisudo  moço  ora  um  simples  provinciano, 
tinha  o  crime  de  haver  nascido  em  Sergipe  e  não  adulava  os 
prepotentes  do  dia...  E'  castigado  por  isso  (1). 

Laurindo,  além  do  dissipar  o  seu  talento,  não  teve  cuidado 
em  salvar  o  que  escreveu,  nem  de  reunir  o  que  publicou 
pelos  jomaes ;  por  isso  se  perderam  d'elle  poemas  e  dramas 
e  correm  anonymas  pelas  gazetas  muitas  producções  suas. 

Estou  reduzido  para  o  julgar  ao  pequeno  volume  de  poe- 

(1)  Vide  nas  Obras  Poéticas  de  Laurindo  o  estudo  preliminar  por  Nor- 
berto Silva.  N&o  fala  em  Constantino  !!.. . 


HI8T0BIA  BA  UTTEBATITEA  BRASILBIBA  271 

sias  editado  por  B.  L.  Gamier  em  1876  e  aJguns  outros  tra- 
balboè  alvande  colhidos. 

Quanto  á  parte  inédita  de  sua  acção  sobre  quantos  o  conhe- 
ceram, tenho  interpelado  directamente  a  tradição. 

Mais  de  vinte  pessoas  intelligentes,  illustradas  e  insuspeitas 
tenho  interrogado  sobre  Laurindo.  Fehz  ente  1  Nunca  ouvi 
gabar  tanto  um  morto,  um  pobre  diabo,  que  não  deixou  des- 
cendentes. Esse  testemunho  colhido  da  tradição  quero  eu  aqui 
depol-o  em  honra  ao  genial  poeta. 

Todos  me  falam  d'elle  commovidos,  assombrados  por  tão 
descommunal  intelligencia,  sempre  lesta,  sempre  prompta, 
espontânea,  alígera,  posta  em  provas  continuamente  na  con- 
versação, na  oratória,  em  discussões  de  todo  o  género,  era 
toda  a  casta  de  improvisos  poéticos,  em  todos  os  estylos, 
sérios,  satyricos,  humorísticos,  galhofeiros  ou  até  pornogra- 
phicos. 

Era  uma  inundação  perenne  de  força  e  graça,  um  desper- 
dício de  calor  e  seiva.  O  mais  adorável  dos  bohemios  ladeado 
de  peregrino  talento  e  de  bondosa  alma. 

Do  causeur  e  do  orador  não  resta  mais  nada  além  do  teste- 
munho dos  contemporâneos.  Do  repentista  quasi  tudo  se 
perdeu. 

No  improviso  poético  elle  não  excedia  a  Moniz  Barretto ; 
ultrapassava-o  na  palestra  e  ímmensamente  na  oratória  ;  pois 
é  preciso  que  se  saiba  que  o  repentista  bahiano  não  possuía 
o  dom  da  palavra.  O  fluminense  o  sobrepujava  também  na 
satyra  e  no  talento  lyrico. 

Tal  a  razão  pela  qual  os  versos  meditados  de  Moniz  Barretto 
são  fracos,  ao  passo  que  de  Laurindo  restam,  algumas  poesias 
que  entram  afoitamente  no  numero  das  mais  bellas  que  se 
têm  esçripto  na  America. 

'N'este  numero  se  contam  :  O  que  são  meus  versos,  O  meu 
segredo,  O  gemo  e  a  morte,  A  linguagem,  dos  tristes,  A'  morte 
de  José  de  Assis,  Sobre  o  tumulo  de  Labaiut,  Adeus  ao 
mundo,  A  minha  vida,  Amor  e  lagrimas.  Saudade  branca,  A' 
Bahia,  Amor  perfeito,  Dous  impossiveis.  Não  posso  mais, 

Laurindo  é  um  lyrico.  Seu  lyrísmo  teve  duas  manifestações 
principaes  :  uma  elegíaca,  inspirada  pela  tristeza  incurável 


^ 


272  HISTORIA  DA  LITTSBATUBA  BKASILBI&A 

de  sua  raça  e  de  sua  vida  social ;  outra  satyrica,  insuflada  pela 
ironia,  manifeslando-se  severa  ou  galhofeiramente.  Esta 
ultima  parte  anda  quasí  toda  inédita.  Não  tenho  lazeres  para 
procural-a.  Conheço^  todavia,  até  certo  ponto.  Da  outra  mani- 
festação, a  elegia,  existem  boas  amostras  no  volume  a  que  me 
hei  referido. 

Na  poesia  d'Qste  soíTredor  os  predicados  principaes  são  : 
simplicidade  e  clareza  de  fórma^  verdade  de  sentimentos, 
riqueza  de  ideias,  formando  o  todo  um  estylo  pessoal,  alguma 
cousa,  que  o  separa  dos  outros  cantores  do  tempo. 

Devo  começar  pelo  que  o  poeta  nos  deixou  de  mais  leve, 
do  mais  singelo. 

Eis  as  suas  sensações  e  impressões  diante  de  um  amor-per- 
feito  : 

{(  Sôccou-se  a  rosa...  era  rosa; 
Flor  tâo  fraca  e  melindrosa, 
Muito  nâo  pôde  durar. 
Exposta  a  tantos  calores, 
Embora  fossem  de  amores, 
Cedo  devia  seccar. 

Porem  tu,  amor-perfeito. 

Tu,  nascido,  tu  affeito 

Aos  incêndios  que  amor  tem, 

Tu  que  abrasas,  tu  que  inflammas. 

Tu  que  vegetas  nas  chammas. 

Porque  scccaste  também? 

Ali!  bem  sei.  De  accesas  fragoas 
As  chammas  são  tuais  agoas, 
O  fogo  é  agoa  de  amor. 
Como  as  rosas  se  murcharam, 
Porque  as  agoas  lhe  faltaram, 
Sem  fogo  murchaste,  flor. 

E'  assim,  que  bem  florente 
Eras,  quando  o  fogo  ardente 
De  uns  olhos  que  raios  são. 
Em  breve,  mas  doce  praso, 
Te  orvalhou  n'aquclle  vaso, 
Que  já  foi  meu  corarão... 


HI8T0BIA  DA  UmitATUSA  BSA8ILBIBA  273 

Seccaste,  porque  esse  pranto 
Que  chorei,  que  choro  ha  tanto, 
De  lodo  o  fogo  apagou. 
Triste,  sem  fogo,  sem  fragoa 
Seccaste,  como  sem  agoa, 
  triste  rosa  seccou. 

Que  olhos  foram  aquellesi 
Quando  eu  mais  liava  d^elles 
Meu  presente  e  meu  porvir, 
Faziam  cruéis  ensaios 
Para  matar-me...  Eram  raios, 
Tinham  por  fim  destruir. 

Destruiram-me  :  comtudo 
Perdoo  o  pezar  agudo. 
Perdoo  a  pungente  dôr 
Que  soíTri  nos  meus  tormentos, 
Pelos  felizes  momentos 
Que  me  deram  n'esta  ílôr. . . 

Ai!  querido  amor-perfeitol 
Como  vivi  satisfeito, 
Quando  te  vi  florescer! 
Ai!  não.houve  creatura 
No  prazer  e  na  ventura 
Que  me  pudesse  exceder. 

Ail  sécca  flor,  de  hom  grado. 
Se  tanto  pedisse  o  fado, 
Quizera  sacrificar 
liberdade  e  pensamento, 
Sangue,  vida,  movimento. 
Luz,  olfato,  sohs  e  ar; 

S(S  paia  vôr-te  florente, 
Como  quando  o  fogo  ardente. 
De  uns  olhos  que  raios  s&o, 
Em  breve  mas  doce  praso, 
Te  orvalhou  n'aquelle  vaso^ 
Que  já  foi  meu  coração...  »  (í) 


9  PoeticoM^  pag.  162, 
oiixA  n 


18 


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274  HIBTOBIA  DA  LITTS&ATUBA  B&AfilLBUlA 

A  apreciação  das  sensações  e  emoções  do  poeta  n'estes  rá- 
pidos versos  mostra  um  ser  ardente^  um  coração  abrasado 
pela  desdita  e  pelo  amor. 

Laurindo  veiu  a  feúlecer  atacado  n'esie  órgão  central  da 
vida.  O  coração  matou-o ;  não  foi  a  tuberculose,  como  falsa- 
mente alguns  pensaram.  Sei  bem  d*isto. 

O  poeta  inflammava-se  e  vegetava  nas  chammas,  segundo 
sua  expressão.  Esse  ereiismo  de  toda  a  sua  organisação  extra- 
vasava-se  em  sua  continua  ebulição  mental. 

O  abaJo  intimo,  o  estremecer  constante  de  sua  vida  psy- 
chica  torturou-o  sempre.  Ello'  meismo  pintou  esse  estado  de 
espirito  na  poesia  O  meu  segredo,  que  é  uma  verdadeira  auto- 
biographía,  em  os  Dous  impossíveis^  que  são  uma  bella  pa- 
gina de  psychologia. 

Ouçam  esta  ultima  : 

(( Jamais!  Quando  a  razão  e  o  sentimento 
Disputam-se  o  dominio  da  vontade, 
Se  uma  nobre  altivez  nos  alimehta^ 
Não  se  perde  de  todo  a  Uberdade. 

A  lucta  é  forte  :  o  coração  succumbe 
Quasi  nas  anciãs  do  luctar  terrível; 
A  paixão  o  devora  quasi  inteiro, 
Devoral-o  de  todo  é  impossível! 

Jamais!  A  chamma  crepitante  lastra. 
Em  curso  impetuoso  se  propaga, 
Lancem-lhe  embora  prantos  sobre  prantos, 
E*  inútil,  que  o  fogo  não  se  apaga. 

Mas  chega  um  ponto  em  que  lhe  acena  o  ímpeto 
Em  que  não  queima  já,  mas  martyrisa, 
Bm  que  tristeza  branda  e  não  loucura 
A*  razão  se  sujeita  e  harmonisa. 

E*  n^esse  ponto  de  indizível  tempo 
Onde,  por  mysterioso  encantamento, 
O  sentir  a  razão  vencer  não  pode. 
Nem  a  razão  vencer  o  sentimento. 


HIBTOBIA  DA  LITTIEATUEA  X&ABUJmUL  275 

No  fuhdo  de  noss^olma  um  espectáculo 
Se  levanta  de  triste  magestade, 
Se  de  um  lado  a  raz&o  seu  facho  accende, 
De  outro  os  lyríos  seus  planta  a  saudade... 

Melancólica  paz  domina  o  sitio, 
Só  da  raz&o  o  facho  hnixoleia 
Quaado  por  entre  os  lyrios  da  saudade 
Do  zôlo  semi-morto  a  serpe  ondeial 

Dois  limites  entfto  na  actividade 
Conhece  o  ser  pensante,  o  ser  sensivd  : 
Um  Impossível  —  a  razão  escreve, 
Escreve  o  sentimento  —  outro  impossivell 

Amei-te!  Os  meus  extremos  compensaste 
Com  tanta  ingratid&o,  tanta  dureza. 
Que  assim  como  adorar-te  foi  loucura, 
Mais  extremos  te  dar  fora  baixeza... 

Minh'alma  nos  seus  brios  offendida, 
De  prompto  a  seus  extremos  poz  remate, 
Que  mesmo  apmxonada  uma  alma  nobre 
Desespera-se,  morre,  nao  se  abate. 

Pode  queixar-se  inteira  a  felicidade 
De  teu  olhar  de  fogo  inextinguivei, 
Acabar  minha  crença,  meu  futuro... 
Aviltar-mel  jamais!  £'  impossivell 

Mas  a  razão,  que  salva  da  baixeza 

O  coração  depois  de  idolatrar-te, 

Me  anima  a  abandonar-te,  a  n&o  querer^te. 

Mas  a  esquecer-te,  nfto,  sempre  hei  de  amar-tei... 

Porém  amar-te  doesse  amor  latente, 
Raio  de  luz  celeste  e  sempre  puro. 
Que  tem  no  seu  passado  o  seu  presente,        " 
E  tem  no  seu  presente  o  seu  futuro. 

Tão  livre,  tfto  despido  de  interesse. 
Que  para  nunca  cdMindonar  seu  p(Mto, 
Para  nunca  esquecer- te,  nem  precisa 
B«ber,  te  vendo,  vida  no  Xmi  roeio. 


276  HISTOBIA  DA  LITTSRATURA  BRASILEIRA 

Que,  desprezando  altivo  quantas  graças, 
No  teu  semblante,  no  teu  porte  via, 
Adora  respeitoso  aquella  imagem 
Que  d'elles  copiou  na  phantasia...  » 


Vè-se  que  o  poeta  era  d'esses  espirites  reflexivos,  que  se  vol- 
tam sobre  si  mesmos,  que  padecem,  e  se  analysam  no  meio  do 
suas  luctas. 

Era  também  altivo ;  mas  era  sincero ;  fugia^  sumia-se  e  não 
esquecia,  nem  deixava  de  amar,  como  elle  mesmo  disse. 

Claro  se  mostra  que  Laurindo  não  tocava  instrumento,  não 
era  virtuose ;  sua  poesia  não  era  rhetorica  e  cheia  de  phrases, 
era  a  expressão  natural  de  seus  affectos. 

Note  o  leitor  que  vae  n'uma  verdadeira  gradação.  Já  vislum- 
brou n'alma  do  poeta  suas  ternuras  diante  de  uma  flor  dada 
por  sua  amante ;  já  entre  os  seus  segredos  sorprendeu  a  lucta 
funda  que  elle  travou  para  vencer  uma  paixão  ingratamente 
relribuida... 

Um  passo  mais  e  vel-o-ha  prantear  loucamente  diante  das 
saudades  que  lhe  arrancou  a  lembrança  de  sua  irman. 

Não  insistirei  n'e«te  ponto,  porque  já  toquei  n'elle  quando 
falei  de  Araújo  Vianna,  marquez  de  Sapucahy  (í). 

Está-se  em  plena^elegia.  Um  passo  mais,  e  em  Meu  segredoy 
na  Linguagem  dos  tristes  e  vinte  outras  poesias,  se  verá  o 
soffredor  fluminense,  o  pobre  mestiço  proletário  diante  de 
seu  viver,  diante  de  seu  destino.  A  elegia  então  geme  e  dóe 
ouvil-a. 

Não  ha  artificio ;  a  simplicidade  da  linguagem  deixa  vasa- 
rem-se  atravéz  de  seus  poros  as  exhalações  de  uma  alma  dila- 
cerada. Elle  teve  bem  razão  de  eussim  dizer  em  —  O  que  são 
meus  versos : 

«  Se  é  vate  quem  accesa  a  phantasia 
Tem  de  divina  luz  na  chamma  eterna; 
Sc  é  vate  quem  do  mundo  o  movimento 
Co  movimento  das  cançOes  governa; 

(1)  Vidtt  DO  1*  ToL,  as  paginas  consagradas  ao  Marqutz  de  Sapucahy. 


HI8T0BIA  DA  LITTBBATUEA.  BBASILIISÁ  277 

Se  6  vate  quem  tem  n*alma  sempre  abertas 
Doces,  límpidas  fontes  de  ternura, 
Veladas  por  amor,  onde  se  miram 
As  faces  de  querida  formosura; 

Se  é  vate  quem  dos  povos,  quando  fala, 
As  paixões  vivifica,  excita  o  pasmo, 
E  da  gloria  recebe  sobre  a  arena 
As  palmas  que  lhe  offrece  o  enthusiasmo; 

Eu  triste,  cujo  fraco  pensamento 

Do  desgosto  gelou  fatal  quebranto; 

Que,  de  tanto  gemer  desfallecido, 

Nem  sequer  movo  os  echos  com  meu  canto; 

Eu  triste,  que  só  tenho  abertas  n*alma 
Envenenadas  fontes  de  agonia, 
Malditas  por  amor,  a  quem  nem  sombra 
De  amiga  formosura  o  céo  confia; 

Eu  triste,  que,  dos  homens  despresado, 
Só  entregue  a  meu  mal,  quasi  em  delírio. 
Actor  no  palco  estreito  da  desgraça. 
Só  espero  a  coroa  do  martyrio; 

Vate  nâo  sou,  mortaes;  bem  o  conheço; 
Meus  versos,  pela  dôr  só  inspirados,  — 
Nem  são  versos,  —  menti,  —  sâo  ais  sentidos, 
A*s  vezes,  sem  querer,  d*alma  exhalados; 

São  fel  que  o  coração  verte  em  golfadas^ 
Por  continuas  angustias  comprimido; 
São  pedaços  das  nuvens,  que  m'encobrem 
Do  horísonte  da  vida  o  sol  querido; 

São  anneis  da  cadeia  que  arrojou-me 
Aos  pulsos  a  desgraça,  ímpia,  sanhuda; 
São  gotas  do  veneno  corrosivo. 
Que  em  pranto  pelos  olhos  me  transuda. 

Sôcca  de  fé,  minha  alma  os  lança  ao  mundo, 
Do  caminho  que  levam  descuidada, 
Qual,  ludibrio  do  vento,  as  séccas  folhas 
Solta  a  esmo  no  ar  planta  mirrada...  » 


278  HI8T0KIA  DA  UTTBXATUBA  BRA8ILSIBA 

Este  podia  assim  falar ;  podia  chorar  sem  rebuço,  sem  se 
tomar  ridículo ;  tinha  para  isto  o  privilegio  dos  softrimentos 
de  uma  vida  flagellada.  Era  uma  alma  de  tempera.  Podia 
também  rir ;  porque  só  o  havia  de  fazer  quando  a  effusáo 
fosse  bastante  forte  para  mandar  a  gargalhada  brotar  atravéz 
das  magoas. 

Laurindo  não  era  uma  natureza  unitária,  de  uma  só  faceta, 
uima  d'essas  organisaçOes  simplistas,  que  tomam  a  direcção 
que  lhes  imprime  o  curso  dos  acontecimentos. 

Um  entesinho  d*esses,  se  as  cousas  lhe  correm  bem  e  poG- 
sue  certa  habilidade  litteraria,  atira-se  aos  versinhos  fáceis,  e 
também  ao  pagode,  á  crápula,  á  sucia,  e  vae  engrossar  a 
cohorte  dos  peraltas  e  bohemios  letrados. 

Vê-se  então  a  frivolidade  galante  dos  cafés  e  botequins.  Os 
versos  que  fazem,  os  folhetins  que  escrevem,  parecem-se  com 
as  gravatinhas  listradas,  as  bengalinhas  leves  que  con- 
duzem... 

Se,  porém,  as  cousas  não  correram  bem,  as  difflculdades 
sérias  surgiram  de  fauces  abertas,  então  o  entesinho  dese- 
quilibra-se  de  todo,  estiola-se,  murcha,  inutilisa-se.  Vae  para 
o  tumulo  ou  para  o  hospicio. 

Nosso  poeta  não  era  d'essa  qualidade  de  gente. 

Foi  do  numero  d'aquelles  homens  ousados  que  naufragam  ; 
mas  nadam  sempre  para  as  costas  e  vão  surgir  adiante  com  as 
mãos  dilaceradas,  nús,  famintos,  e  sempre  enérgicos  e  cheios 
de  esperança. 

Foi  do  numero  d'esses  que  respondiam  m  infortúnio  com  a 
ironia,  ao  desespero  com  a  gargalhada. 

Erai  batido ;  ix)rem  não  se  deixava  prender ;  era  vencido, 
mas  não  se  rendia. 

Forte  casta  de  homens  que  se  batem  como  heróes,  choram 
como  leões  e  riem  como  gigantes.  Esses  sahem  fora  da  medida 
commun.  Foi  por  isso  que  Laurindo  por  onde  passou  inte- 
ressou a  todos  com  as  scintilações  de  seu  espirito,  de  suas 
satyras,  de  suas  pilhérias. 

A  Bahia  e  Porto  Alegre  ainda  hoje  lembram-se  de  seus  chis- 
tosos ditos  e  de  suas  singularidades ;  o  Rio  de  Janeiro  rio-se 
durante  vinte  annos  pelo  diapasão  do  seu  risa  franco  e  sonoro. 


r 


HI8T0BIA  DA  LITTERATUEA  BRASILEIRA  279 

Era  a  gargalhada  irónica  e  profunda  do  pariá,  do  mestiço, 
do  cigano,  do  proletário  n'uma  pátria  ingrata,  explorada  pela 
cubica  de  uma  burguezia  d'estranhos  e  pela  ganância  de  poli- 
tiqueiros relapsos. 

Grande  porção  da  obra  do  poeta,  por  esta  face  particular 
rissima  de  seu  talento,  perdeu-se,  porque  foi  oral.  Outra 
porção  d'ella  existe  impressa  e  esparsa  por  ahi  algures. 

Na  Mamiota,  no  Sino  dos  Barbadinhos,  na  Voz  da  juvenr 
tude  e  n*outrad  publicações  da  epocha  póde-se  joeirar  muita 
cousa  no  alludido  sentido. 

Não  tenho  tempo  de  o  fazer  e  indico  o  trilho  a  investiga- 
dores futuros,  que  desejem  estudar  a  fundo  o  escriptor. 

Existem  também  por  ahi  inéditas  em  copias  que  algumas 
pessoas  possuem  muitas  composições  de  pura  pomographia^ 
iguaes  ou  superiores  pelo  chiste  ás  producções  do  género  attri- 
buidas  a  Bocage. 

Antes  de  dizer  algumas  palavras  ílnaes  sobre  o  talento  do 
repentista  e  do  poeta  faceto,  é  utíl  um  passo  mais  na  senda  da 
elegia. 

O  poeta  estava  na  Bahia,  fazendo  o  curso  medico ;  alli  não 
tinha  ainda  escripto  a  Saudade  branca,  dedicada  á  memoria 
de  sua  irman,  quando  cahiu  gravemente  enfermo.  Esteve  ás 
portas  da  morte.  Convencido  absolutamentei  que  ia  morrer, 
escreveu  o  Adeiís  ao  mundo. 

Todos  os  encantos  da  natureza  e  d»  sociedade  lhe  appa- 
recem  para  receber-lhe  o  adeus  da  ultima  despedida. 

Quem  já  uma  vez  perdeu  entes  queridos,  porções  d'alma 
que  se  foram,  leia ;  é  pungente  : 

((  Já  do  batel  da  vida 
Sinto  toroar-me  o  leme  a  mão  da  morte : 

E  perto  avisto  o  porto 
Immenso  nebuloso,  e  sempre  noite, 

Qiamado  —  Eternidade! 
Como  é  tão  bello  o  sol!  Quantas  grinaldas 

Não  tem  de  mais  a  aurorai 
Como  requinta  o  brilho  a  luz  dos  astros! 
Como  são  recendentes  os  aromas 
Que  se  exhalam  das  flores!  Que  harmonia 


280  HI8T0SIA  DA  LITTSBATURA  B&ABILSISA 

N&o  se  desfrncta  no  cantar  das  aves. 
No  embater  do  mar,  e  das  cascatas. 
No  sasorrar  dos  límpidos  ribeiros, 
Na  natureza  inteira,  quando  os  olhos 
Do  moribiíndo,  quasi  extinctos,  bebem 

Seus  últimos  encantos! 
Quanio  eu  guardava,  ao  menos  na  esperança. 
Para  o  dia  seguinte  o  sol  de  um  dia, 
De  uma  noite  o  luar  para  outras  noites; 
Quando  durar  contava  mais  que  um  prado. 
Mais  que  o  mar,  que  a  cascata  erguer  meu  canto, 
E  nmrmural-o  n*um  jeurdim  de  amores; 
Quando  julgava  a 'natureza  minha. 
Desdenhava  os  seus  dons  :  eil-a  vingada  : 
Cedo  de  vermes  rojarei  ludibrio, 
E  vida  alardearão  fracos  arbustos 
Sobre  meu  lar  de  morto!  A  noite,  o  dia, 
O  inverno,  o  ver&o,  a  primavera, 
A  aurora^  a  tarde,  as  nuvens,  e  as  estrellaa, 
A  rir-se  passarão  sobre  meus  ossos! 
N&o  importa.  N&o  é  perder  o  mundo 
O  que  me  azeda  os  pallidos  instantes 
Que  conto  por  gemidos.  Meu  tormento, 
Minha  dôr,  é  morrer  longe  da  pátria, 
Da  m&i,  e  dos  irm&os  que  tanto  adoro. 

Quando  da  pátria  me  ausentei,  n&o  tinha 
Nada,  que  lhes  deixar,  que  lhes  dissesse 
O  que  eram  elles  dentro  de  minh*alma. 
Mendigo,  a  quem  cedi  pequena  esmola, 
Deu-me  quatro  sementes  de  saudade ; 
Ao  meu  jardim  domestico  levei-as. 
Cavei,  reguei  a  terra  com  meu  pranto, 
E  plantei  as  saudades.  Soluçando 
Chamei  alli  os  meus  :  n  Aqui  vos  deixo 
(Disse  apontando  &  plantaç&o)  em  flores 
K  Minh^alma  toda  inteira;  aqui  vos  deixo  - 
c(  Um  thesouro  enterrado.  Jóias,  ouro, 
«  Riquezas,  n&o,  n&o  tem,  porém  na  terra 
Estéril  n&o  ser&.  »  Ondas  de  prcmto 
Aíogaram-me  a  voz  :  houve  silencio; 
Palpei  de  novo  o  ch&o;  vi  que  de  novo 


J 


HISTORIA  DA  LITTBRATtntA  BBA8ILIIBA  281 

Cavado  estava!  A  terra  se  afundara, 
E  as  sementes  nadavam  sobre  lagrimas, 
Que  minha  m&i  e  minha  irm&  choravam... 
Replantei-as,  orei,  beijei  a  terra, 
£  parti...  Trouxe  d^alma  só  metade; 
E  o  coração?  deixei-o  n'um  abraço. 

Certo  estou  de  que  a  pleulte^  já  crescida, 

Terá  brotado  ílôr.  Se  ao  menos  dado 

Me  .fosse  colher  uma...  ver  a  terra 

Pelo  pranto  dos  meus  s£intificada! 

Se  uma  d*essas  saudades  eníeitar-me 

Viesse  a  minha  eça,  ou  meu  sudário, 

Ou,  pela  mão  materna  transplantada, 

Encravaivrae  as  raizes  no  sepulchro... 

E'  tfio  pouco,  meus  Deus!...  Eu  não  vos  peço 

Soberbo  mausuléo,  estatua  augusta 

De  tumulo  de  rei;  Assaz  desprezo 

Esses  gigantes  de  oiro 
Com  entramhas  de  pó.  Mortalha  escassa 
De  grosseiro  burel,  que  bordem  lagrimas; 
Terra  só  quamto  baste  p'ra  um  cadáver, 
E  as  minhas  saudades,  e  entre  ellas 
Uma  cruz  com  os  braços  bem  abertos. 
Que  peça  a  todos  preces..  Terra,  terra 
Perto  dos  meus  e.no  torráò  da  pátria, 
E*  só  quanto  supi^ico.      « 

^■'  A  morte  é  dura. 
Porem  longe  da  pátria  é  dupla  a  morte. 
Desgraçado  do  mísero,  que  expira 
Longe  dos  seus,  que  molha  a  lingua,  secca 
Pelo  fogo  da  febre,  em  caldo  estranho; 
Que  vigílias  de  amor'nã.o  tem  comsiga, 
Nem  palavras  amigas  que  lhe  adocem-^  . 
O  tédio  dos  remédios,  nem  um  seio,  ..'.•  ,^  . 
Um  seio  palpitante  de  cuidados 
Onde  descance  a  languida  cabeça! 
Feliz,  feliz  aquelle,  a  quem  náo  cercam 
N'esse  momento  acerbo  indifferentes 
Olhos  sem  pranto;  qne  na  mão  gelada 
Sente  a  macia  dextra  d*amizade    :     . 
N*uin  aperto  de  dôr  prender-lhe  a  vida! 


j>.-  * 


1 


282  HISTORIA  DA  LXTTSBAT17&A  BRABILUBA 

Feliz  o  que  no  arfar  da  a'ncia  extrema 
De  desvelada  irmft  piedoso  lenço, 
Húmido  de  saudades  vem  limpar-lhe 
As  frias  bagas  dos  flnaes  suoresl 

Feliz  o  que  repete  a  extrema  prece, 

Ensinada  por  ella,  e  beijar  pôde 

O  lenho  do  Senhor  nas  mãos  matemasl 

Desgraçado  de  mim!...  Talvez  bem  cedo 
Longe  de  mãi,  de  irm&os,  longe  da  pátria 
Tenha  de  me  finar...  Ramo  perdido 
Do  tronco  que  o  gerou,  e  arremessado 
Por  mão  de  génio  máo  á  plaga  alheia, 
Mirrarei  esquecido!  O9  céos  o  querem. 
Os  céos  são  immutaveis  :  aos  decretos 
Do  Senhor  curvarei  a  fronte  humilde, 
Como  christÃo  que  sou.  Eternidade, 
Recebe-me  a  teu  bordo!...  Adeus,  ó  mundo! 

Já  sinto  da  geada  dos  sepulchros 
O  pavoroso  írio  enregelar-me... 
A  campa  vejo  aberta,  e  lá  do  fundo 
Um  esqueleto  em  pó  vejo  a  acenar-me... 

Entremos.  Deve  haver  n*estes  logares 
Mudança  grave  na  mundana  sorte; 
Quem  sempre  a  morte  achou  no  lar  da  vido, 
Deve  a  vida  encontrar  no  lar  da  morte. 

Vamos.  Adeus,  ó  mâi,  irmãos  e  amigos! 
Adeus,  terra,  adeus,  mares,  adeus,  céus!... 
Adeus,  que  vou  viagem  de  finados... 
Adeus...  adeus...  adeus! 

Adeus,  ó  sol,  que  amigo  illuminaste 
Meu  pobre  berço  com  os  raios  teus... 
lUumina-me  agora  a  sepultura  :  — 
Adeus,  meu  sol,  adeus! 

Floresinhas,  que  quando  era  menino 
Tanto  servistes  aos  brinquedos  meus. 
Vegetai,  vegetai-me  sobre  a  campa :  — 
Adeus,  flores,  adeiui! 


I 

j 


HIflTOmiA  DA  LITTISATUBA  BRA8TT.KTKA  283 

VÓS,  cujo  canto  tanto  me  encantava, 
Da  madrugada  alígeros  orpheus, 
Uma  nenia  cantoi-me  ao  pôr  da  tarde  : 
Passarinhos,  adeus! 

Vamos.  Adeus  ó  m&i,  irmãos  e  amigos! 
Adeus,  terra,  adeus,  mares,  adeus,  céus!... 
Adeus  :  que  vou  viagem  de  finados!... 
Adeus!...  adeusl...  adeus! » 


Então  ?  Eu  disse  bem  :  é  uma  pagina  singular  esta ;  é  uma 
das  elegias  mais  doloridas  que  já  uma  vez  foram  escriptas  em 
qualquer  língua.  Em  portuguez  nenhuma  outra  a  excede  em 
singeleza  e  smceridade. 

Laurindo  era  um  nomem  da  plebe  e  sempre  viveu  em  estado 
próximo  da  indigência.  Náo  privava  com  o  imperador,  nâo  era 
sócio  do  Instituto  Histórico  e  tão  pouco  era  um  protegido  dos 
régios  magnatas  da  litteratura  do  seu  tempo. 

Não  era  apaniguado  do  Magalhães,  Porto^Alegre,  Octaviano, 
Macedo  e  outros  influentes. da  epocha.  Pelo  contrario,  noto  no 
jornalismo  do  tempo  completo  silencio  sobre  o  poeta  flumi- 
nense. 

Repare-se  que  Fernando  Wolf  nem  uma  só  vez  faz  mensão 
do  seu  nome.  E'  que  aquelles,  que  forneceram  os  aponta- 
mentos para  a  obra  do  escriptor  austríaco,  guardaram  silencio 
sobre  o  desditoso  trovista. 

E,  todavia,  a  injustiça  aquil  é  clamorosa ;  porque  elle  foi  um 
dos  mais  valentes  talentos  poéticos  de  nossa  lingua.  Se  não 
teve  fama,  entre  os  grandes,  gozou  da  mais  completa  notorie- 
dade que  nosso  povo  tem  outorgado  aos  seíus  dilectos. 

Laurindo  Rabello  e  Gregório  de  Mattos  foram  os  poetais  da 
plebe,  do  grande  numero  no  Brasil. 

Homens  do  povo,  falavam  para  elle  a  sua  linguagem. 

Entre  nós  a  litteratura,  ou  mais  propriamente  a  poesia, 
tem  tido  duas  expressões,  capitães  e  divergentes. 

De  um  lado,  nota-se  o  grande  grupo  dos  poetas  por  plano 
e  reflexão,  os  espíritos  estudiosos  e  illustrados  que  têm  pror 
curado  acompanhar  as  ideias  do  tempo  em  que  vivem  e  acli- 
mal-6Ls  no  paiz. 


284  HISTORIA  DA  LITTBEATUSA  BRA8ILEIBA 

Têm  merecimento  e  prestaram  bons  serviços;  mas  não 
foram  as  boccas  enthusiasticas  e  prophetícas  por  onde  falava 
a  naç9x>. 

De  outro  lado,  estende-se  em  linha  o  troço  dos  que  nada, 
ou  quasi  nada  sabiam  do  estrangeiro,  ou  que  nada  ou  quasi 
nada  se  impressionaram  com  o  que  por  lá  corria,  mas,  em 
paga,  estavam  identificados  com  o  nosso  povo  e  eram  d*elle 
uma  voz,  um  soluço,  um  lamentos  um  cântico,  alguma  cousa 
que  lhe  sahia  d*alma.  São  as  duas  correntes  geraes  de  nossa 
litteratura.  Até  hoje  têm  andado  divergentes. 

£'  por  isso  que  ainda  não  tivemos  um^  poeta  d^aquella  pri- 
meira plana  em  que  fulgem  os  vultos  de  Camões,  Tasso,  Mii 
ton,  Goethe  e  d'outros  astros  d'ess©  tamanlio. 

Só  quando  as  duas  correntes  se  encontrarem  na  cabeça  e  no 
coração  de  um  homem,  a  um  tempo  a  synthese  d©  sua  raça 
e  o  espelho  de  seu  século,  só  então  possuiremos  quem  nos  vá 
representar  na  região  dos  grandes  génios. 

Laurindo  não  passou  de  um  talento,  notável  talento  em  vc^ 
dade. 

Sinto  não  poder  aqui  estudal-o  como  satyrico  e  humorista. 
A  necessidade  de  resumir-me,  e,  em  parte,  a  falta  de  mat^ 
riaes  agora  á  mão  obrigam-me  a  passar  adiante,  dizendo  ape- 
nas duas  palavras  sobre  o  repentista. 

Por  esta  face  só  Moniz  Barretto  podia  com  elle;  muitas  vezes 
degladiaram-se  na  Bahia. 

No  improviso  oratório,  como  já  disse,  Laurindo  não  tinha 
rival  então ;  no  improviso  poético  acompanhava  o  repentista 
bahiano.  Eis  aqui  um  soneto  dirigido  á  cantora  MarieUa 
Landa  : 

«  Tão  doce  como  o  som  da  doce  avena 
Modulada  na  clave  da  saudade; 
Como  a  brisa  a  voar  na  soledade, 
Brandc^  singela,  limpida  e  seretia; 

Ora  em  notas  de  goso,  ora  de  pena. 
Já  cheia  de  solemne  magestade. 
Já  languida  exprimindo  piedade, 
Sempre  essa  voz  é  bella,  sempre  amena. 


K' 


HI8T0BIA  DA  UTTE&ATTTRA  BKABILBISA  285 

Mulher,  do  canto  teu  no  dom  superno 

A  dadiva  descubro  mais  subida 

Que  de  um  Deus  pode  dar  o  amor  paterno. 

E  mính'alma  n'um  extasi  embebida, 
Aos  teus  lábios  deseja  um  canto  eterno, 
E,  só  para  gosal-o,  eterna  vida...  » 

Moniz  Barretto  enthusiasmado,  atirou-lhe  este  mote  Tens 
nas  mãos  teu  porvir^  teu  bem,,  teu  {ado^  que  o  poeta  flumi- 
nense glosou  assim,  dirigindo-se  á  mesma  cantora  : 

u  Disseste  a  nota  amena  da  alegria, 
E,  arrebatado  então  n'esse  momento 
De  um  doce,  divinal  contentamento, 
Eu  senti  que  minh'alma  aos  céos  subia... 

Disseste  a  nota  da  melancolia, 
Negra  nuvem  toldou-me  o  pensamento  ; 
Senti  que  agudo  espinho  virulento 
Do  coração  as  fibras  me  rompia. 

E's  anjo  ou  nume,  tu  que  doesta  sorte 
Trazes  o  peito  humano  arrebatado 
Em  successivo  e  rápido  transporte? 

Anjo  ou  nume  não  és;  mas,  se  te  é  dado 

No  canto  dar  a  vida  ou  dar  a  morte, 

Tdns  nas  mãos  teu  porvir,  teu  bem,  teu  fado,..  » 

Basta ;  o  qu&  ahi  fica  é  sufflciente  para  dar  uma  amostra  da 
limpidez,  clareza  e  simplicidade  dos  improvisos  do  lyrico.  flu- 
minense. 

Para  concluir. 

Laurindo  é  um  poeta  de  caracter  autonómico  em  meio  dos 
seus  pares. 

Mais  moço  que  Magalhães  e  Porto  Alegre,  appareceu  depois 
d'elles,  sem  lhes  seguir  as  pisadas. 

Mais  moço  apenas  três  annos  que  Gonçalves  Dias,  appa- 
receu mais  ou  menos  pelo  mesmo  tempo  e  nâo  lhe  deveu  abso- 
lutamente nadaw 


286  HISTOBIA  DA  LITTSBATITBA.  BBABILBOUL 

Igual  independência  mantém  em  íace  de  Azevedo,  Lessa, 
Bernardo  e  Andrada,  pouco  mais  moços  do  que  elle. 

A  qualidade  predominante  da  sua  poesia  é  a  nota  elegíaca. 
Nao  é  a  chamada  poesia  sentimental  e  lamurienta. 

O  poeta  não  se  lastima ;  também  não  se  insurge,  nem  se 
rende ;  nâo  é  um  revoltado,  que  blaspheme,  nem.  um  submel- 
tido  que  se  prostre  vencido.  Nào ;  elle  é  naturalmente  olegiaco. 
O  pranto  lhe  sahe  espontâneo  &  não  o  espanta ;  não  se  cou- 
verte  em  motivo  de  queixa  ou  de  ódio. 

Aquillo  não  é  fingido,  não  arma  ao  efíeito;  é  assim  por 
Índole. 

Luiz  José  Junqueira  Predie  (1832-1855).  De  S.  Paulo  c  do 
Rio  de  Janeiro  é  tempo  de  chegar  á  Bahia. 

De  Laurindo  Rabello  ó  natural  a  passagem  para  Junqueira 
Freire,  seu  amigo  e  por  elle  prantoiado  em  bellos  versos. 

O  decennio  de  1850  a  60  na  Bahia  foi  uma  epocha  de  grande 
animação  lilterdria ;  igual  só  houve  halli,  no  tempo  de  Gre- 
gório de  Mattos,  no  século  xvn. 

A  começar  pela  Igreja,  fulgiam  então  o  arcebispo  Romualdo 
de  Seixas,  distincto  pelo  seu  saber,  e  os  frades  Itaparica,  Ar- 
sénio da  Natividade  e  Raymundo  Nonato,  famosos  pelo  seu 
talento  oratório. 

O  ensino  medico  fulgurava  em  Eduardo  França,  Jonathas 
Abott,  Ataliba  e  Malaquias  dos  Santos. 

A  eloquência  política  falava  pela  bocca  de  Mauricio  Wan- 
derley,  Landulpho  Medrado,  Fernandes  da  Cunha,  Barbosa  de 
Almeida,  Victor  de  Oliveira  e  João  Barbosa. 

O  jornalismo  politico  possuia  um  combatente,  que  valia  por 
vinte,  Guedes  Cabral  (i). 

A  bella  litteratura  formava  a  linha  da  frente  com  Moniz  Bar- 
retto,  o  repentista,  Agrário  de  Menezes,  o  dramaturgo,  Manoel 
Pessoa  da  Silva,  o  satyrico,  Augusto  de  Mendonça,  Rodri- 
gues da  Costa,  Gualberto  de  Passos  ev  algum  tempo,  Lau- 
rindo Rabello,  os  lyristas.  D'esse  grupo  era  Junqueira  Preire. 

Este  poeta  é  de  31  de  dezembro  de  1832 ;  em  1851  ratrou 

(1)  Naõ  confundir  com  o  moco  auctor  das  Funeçôeê  do  Certbro, 


HIBTOSIA  DA  LITTBBATinU  BRABIUUBA  287 

I>ara  a  ordem  dos  Benediciinos,  professando  no  anno  se- 
guinte. 

Foi  a  isto  levado  em  parte  por  conselhos  &  em  parte  por  des- 
gostos privados,  o  que  sei  por  informações  particulares  e  fide- 
dignas. 

Tendo  de  seguir  em  1854  para  o  Rio  de  Janeiro,  pediu,  a 
rogos  ^de  sua  mãe,  que  ficaria  desemparada  na  Bahia,  a  secu- 
larisacâo  e  a  obteve. 

Pouco  depois  iaiiccia  de  moléstia  cardíaca  aos  24  de  junho 
de  1855.  Tinha  pouco  mais  de  22  annos. 

Tractando-se  doeste  poeta,  apparece  logo  uma  questão  ini- 
cial :  um  poeta  monge  em  pleno  século  xix  I... 

Isto  agitou  a  turbulência  leviana  da  critica  nacional  e  come- 
çaram logo  a  f  ormar-se  as  lendas. 

Uns  deram  o  moço  frade  como  um  espirito  mysUco,  d'uma 
religiosidade  ideialista  e  remontada,  que  fugiu  das  torpezas 
do  materialismo  mundano  para  abrigar-se  ao  puro  retiro  do 
claustro. 

Outros  pintar.am-no  como  um  espirito  forte,  uma  alma  agi- 
tada pela  impiedade,  pela  descrença,  pela  mais  atroz  philo- 
sophia,  obrigada  a  metter-se  nas  asphixiantes  compressas  da 
clausura,  onde  viveu  em  perpetua  lucta. 

Finalmente,  quiz-se  v6r  n'elle,  nem  um  mystico,  nem  um 
Ímpio;  a  mas  o.Anacreonta  dos  claustros,  um  D.  Juan  dis- 
farçado em  monge.  »  Não  julgo  provada  nenhuma  d'essas  opi- 
niões. 

O  estudo  attento  dos  versos  do  poeta,  a  leitura  dos  prólogos 
das  Inspirações  do  claustro  e  das  CorUradicções  PoeticaSy  e, 
especialmente,  de  um  fragmento  de  autobiographia  que  d'elle 
flcou,  levam-me  a  outras  conclusões. 

A  ideia  de  ter  sido  Junqueira  um  mystico  foi  levianamente 
forjada  do  simples  facto  de  sua  entrada  para  o  convento. 

Prova  por  demais  frágil ;  porque  sabe-se  bem  hoje  que  não 
foi  a  vocação  irresistível  que  o  impelliu  ;  o  claustro  foi  um  re- 
curso, uim  expediente  de  occasião,  levianamente  abraçado 
pelo  poeta. 

Não  é  só  isto ;  a  leitura  do  moço  bahiano  dá  por  terra  com  o 
supposto/nysticismo,  o  que  pôde  verificar  quem  o  quizer. 


288  HI8T0BIA  DA  LirTSSATtrBÁ  B&ABILBIBA 

Também  não  foi  um  espirito  que  rompesse  todos  os  laços 
tradicionaes,  fizesse  tabula  rasa  completa  das  velhas  crenças. 

0  poeta  foi  educado  no  regimem  catholico;  mais  tarde, 
abalado  pela  philosophia  e  pela  litteratura  de  seu  tempo, 
cahíu  n'um  estado  d^  vacillação  e  incerteza. 

Ora,  pendia  para  as  vehlas  ideias,  ora  para  as  novas,  aliás 
pouco  definidas. 

Pelo  que  toca  ao  caracter  erótico  e  sensual  de  seu  tempe- 
ramento, é  ainda  uma  nota  inexacta.  Junqueira  havia  tido 
um  amor  de  puerícia  e  este  amor  contrariado,  não  seá  porque 
circumstancias,  nunca  mais  se  lhe  apagou  do  coraç-^o.  E'  pos- 
sível que  tivesse,  além  d^aquella,  uma  ou  outra  intriga  amo- 
rosa. 

Não  é  essa,  porém,  a  nota  predominante  do  seu  lyrísmo. 
Por  este  lado  é  muito*  inferior  aos  diversos  românticos  aoa- 
lysados  até  aqui. 

E*  mister  peneirar  n'alma  do  poeta,  e  apreciar  as  suas  opi- 
niões. 

No  Prologo  das  Inspirações  do  Claustro  lô-se  isto  : 

(c  As  poesias  presentes  agradarão  a  bem  poucos  :  agradarfto  ape- 
nas a  algumas  almas  fortes,  que  não  puderam  ainda  ser  eivadas 
nem  do  cancro  do  scepticismo,  nem  da  mania  do  mysticismo  :  agra- 
darão apenas  a  alguns  homens  completamente  livres,  que  não  sujei- 
taram-se  ainda  senão  ás  luzes  da  razão.  Ora,  estes  homens  sfto 
bem  raros  na  sociedade  actual,  porque  a  hyperbole  dos  systemas  e 
das  crenças  traz  em  si  não  sei  que  talisman,  que  arrasta  todoa  os 
espíritos,  por  bem  formados  que  sejão. 

Pela  mão  invizivel  da  Providencia  fui  arrojado  ha  trez  annos 
para  o  coração  do  claustro. 

Por  essa  inclassificável  acção  de  que  hoje  me  espanto,  tive  as 
bênçãos  de  uns  e  os  escarneos  de  outros.  Erão  ainda  os  homens 
mysticos  e  os  scepticos  que  louvavam-me  ou  vituperavam-me.  Pela 
mão  invisível  da  Providencia  fui  arrojado  outra  vez  para  o  torvd- 
linho  da  sociedade. 

Por  isso  tive  a  maldição  de  quasi  todos.  Erão  ainda  os  mysticos, 
que  não  pejavam-se  de  cantar  a  paUnodia  dos  louvores,  que  me 
haviam  magnificamente  dispensado,  —  erão  os  scepticos,  que  com- 
punham doeste  acontecimento  um  marcialico  epigramma...  O  aspecto 


HISTORIA  DA  LITTBEATUXA  BBA8IXJEIBA  289 

social,  que  parecem  ter  estas  composições,  obriga-me  ainda  a  nâo 
Analisar  de  súbito  este  prologo. 

O  que  cantas?  perguntar-me-hôo.  O  que  podia  eu  cantar,  encer- 
rado nas  muredlias  solitárias  de  um  claustro,  ouvindo  a  cada  hora 
os  toques  continuados  de  um  sino  que  chama  á  oração,  vendo  uma 
turma  de  homens  com  vestidos  talares  negros  que  levavam-me  á 
recordação  dos  costumes  dos  tempos  antigos,  passeando  sempre 
sobre  um  chão  povoado  de  sepulchros,  conversando  com  o  silencio 
do  dia  e  a  solidão  da  noite? 

Cantei  o  monge  e  a  morte. 

Cantei  o  monge,  porque  elle  soffre,  soffre  muito. 

Cantei  o  monge,  porque  o  jnundo  o  despreza. 

Cantei  o  monge,  porque  elle  é  hoje  uma  cousa  inútil  e  ociosa,  em 
consequência  de  suas  instituições  anachronicas. 

Cantei  o  monge,  porque  elle  não  tem  culpa  de  ser  máo,  nem  pôde 
por  si  só  ser  bom. 

Cantei  o  monge,  porque  elle  é  infeliz. 

Cantei  o  monge,  porque  elle  é  escravo,  não  da  cruz,  mas  do  arbi- 
trio  estúpido  de  outro  homem. 

Cantei  o  monge,  porque  não  ha  ninguém  que  se  occupe  de  cantal-o. 

E  por  isso  que  cantei  o  monge  cantei  também  a  morte.  E'  ella  o 
epilogo  mais  bello  de  sua  vida  :  é  seu  único  triumpho... 

Na  verdade,  ao  homem  sincero  cunante  de  sua  pátria,  doe-lhe  den- 
tro da  alma  ver  tanta  gente  estacionada,  sem  nada  fazer,  podendo 
produzir  tanto  bem.  Não!  a  caridade  que  o  Christo  ensinou,  não  é 
egoísta  :  Imagem  real  do  pelicano,  que  arranca  o  coração  para  dal- 
o  aos  filhos!  Muitos,  a  quem  tomam  o  cuidado  de  chamar  Ímpios, 
censuram  o  monge  no  monge.  Eu  deploro-o  somente,  porque  elle  não 
é  criminoso. 

A  instituição,  a  instituição  é  que,  depois  de  lhe  tirar  o  trabalho, 
hoje  em  dia  já  não  preciso,  de  rotear  montanhas,  não  lhe  forneceu 
outro  qualquer  em  ordem  ás  necessidades  da  época,  mas  antes  con- 
vidou-o  a  uma  espécie  de  ócio,  no  qual  elle  não  pôde  ser  mais  que 
máo  e  desgraçado.  » 

Estas  palavras  do  prologo  das  Coniradicções  poéticas  são 
ainda  mais  expresssivas  como  pintura  do  estado  psychologlco 
do  auctor  : 

«  Este  livro  é  a  historia  de  minha  vida. 

Minha  vida  tem  sido  a  continiudade  de  circumstancias  todas  con- 
trarias, todas  variadas,  todas  repugnantes  quasi. 

HISTORIA  n  19 


n 


390  HIBTOBXA  DA  LITTBBATXTRáL  BBABILSIKA 

Mea  livro,  pois,  sendo  a  expressão  doestas  circumstancias,  é  iodo 
contrario,  todo  variado,  todo  repugnante  quasi,  como  tem  sido 
minha  vida. 

Eis  aqui  a  raz&o  de  minhas  Coniradicções  poéticas. 

Uma  educaç&o  christfi,  porem  livre,  que  minha  m&e  soube  dar- 
me  imprimio-me  entre  seus  ósculos  matemos  o  sentimento  religioao 
lá  bem  no  âmago  de  meu  coraçfto. 

As  minhas  poesias  orthodoxas,  portanto  pertencem  a  minha  mfte. 
S&o  sua  inspiração. 

O  ardor  da  juventude,  a  ambiç&o  da  sciencia,  a  sociedade  cor- 
rompida, degeneraram  em  mim  o  homem  feito  por  minha  mãe.  A 
proporção  que  estudava,  ia-me  tornando  mais  philosopho,  isto  é, 
mais  vaidoso,  mais  ignorante,  mais  incrédulo. 

As  minhas  poesias  philosophicas  pertencem  a  esses  accessos  de 
loucura. 

Entrou-me  quasi  n'esse  tempo  essa  visão  ehcantada,  essa  hallu- 
cinação  febril,  que  mata  o  coração  e  o  espirito,  depois  de  tel-os  bem 
gasto.  O  amor! 

As  minhas  poesias  eróticas  pei*tencem  a  esses  segundos  accessos 
de  loucura. 

Depois  d*esses  errores,  a  mão  da  doença,  preludio  do  castigo 
eterno,  arrojou-me  por  varias  vezes  ás  aprazíveis  paisagens  do  nosso 
bello  recôncavo,  e  vi  a  pastorinha  singela  correndo  no  campo  lá 
pela  madrugada,  e  as  cabanas  innocentes  dos  pescadores,  e  tudo 
isso  encantou-me.  Foi  um  segundo  amor,  porém  mais  puro. 

As  minhas  poesias  campestres  pertencem  a  essas  phases  de  des- 
graça, sim,  mas  de  inhocencia. 

Hoje  que  se  tám  desvanecido  estes  momentos  tão  doces  de  lou- 
cura juvenil,  como  uma  noite  mysteriosa  n'um  palácio  de  fadas, 
assento-me  tranquillo  em  cima  de  um  cômoro  de  folhas  seccas,  que 
de  quando  em  quando  cahiram  da  arvore,  e  deixaram-a  por  ílm  só 
com  seu  tronco  e  suas  galhas  mirradas. 

Aqui  separo  as  mais  verdes  das  mais  seccas,  as  maiores  das 
menores,  para  fazer  uma  camada,  e  plantar  sobre  ella  um  nome 
pobre  e  mesquinho,  que  talvez  não  nasça... 

Estes  cantos  são  meus  dias  antigos,  são  minha  vida  vivida,  aão 
todo  o  meu  passado. 

Eu  amo  todos  esses  tempos,  como  um  pai  ama  os  esqueletos  de 
deus  filhos,  que  já  não  são,  mas  que  já  foram  uns  mais  bonitos, 
outros  mais  feios. 

Eu  amo  todos  esses  tempos,  porque  custaram-me  suores  e  sangue. 

Eis  aqui  porque  eu  conservo  intactas  as  minhas  Coniradicções 


HI8T0BIA  DA  LITTISATUSA  B&A8I£BIEA  291 

poéticas.  Nem  as  reduza  a  um  systema,  a  um  pensamento  uni- 
forme, cdnstantc,  único.  Ápresènto-as  quaes  s&o. 
Nunca  poeta  foi  hypocrita.  >i 

N&o  é  tudo;  no  fragmento  de  autobiographia  que  vem 
citado  no  estudo  do  poeta  escrípto  pelo  Conselheiro  Franklin 
Dória  ha  alguma  cousa  mais  completa  ainda  sobre  a  puerícia, 
os  estudos,  as  primeiras  ideias  do  moço  frade. 

Tudo  isto  fala  bem  alto ;  as  três  lendas  inventad:is  á  conta 
do  moço  poeta  desappareceimi  confusas  á  batidas  por  estas 
confissões  irrecusáveis  de  uma  transparência  absd^luta.  Jun- 
queira era  um  pobre  joven  nervoso,  apprehensívo,  que  se  viu 
attrahido  por  duas  intuiçOee  diversas. 

A  educação  religiosa  e  a  corrente  do  século  travaram  lucta 
em  sua  alma ;  suas  crenças  vacillaram,  seus  sentimentos  se 
resentiram. 

D'ahi  certa  dubiedade,  certo  dualismo  em  seus  escríptos ; 
justamente  o  mesmo  abalo  que  se  dera  em  Azevedo  e  em  seus 
companheiros.  Apenas  Junqueira  era  mais  lúcido,  mais  racio- 
cinador  e  menos  imaginoso,  menos  poeta. 

O  bahiano  é,  como  todos  09  bons  poetas  brasileiros,  um 
bom  lyrista ;  seu  lyrismo  tem  quatro  notas  principaes  :  reli- 
giosa, philosophica,  amorosa,  popular.  Dou  este  ultimo  nome 
ao  punhado  de  poesias  que  se  inspiram  de  scenas  do  viver  de 
nossas  classes  pobres  e  aldeães. 

Infelizmente  não  são  abundantes  as  peças  do  género,  que, 
ao  meu  vêr,  são  as  melhores  do  auctor. 

As  principaes  d'ellas  são  :  A  Orphan  na  Costura,  nas  Ins- 
pirações do  Claustro,  e  O  Banho,  O  Canto  do  gallo,  O  menes- 
trel do  Sertão,  nas  Contradicções  Poéticas, 
.  Nos  outras  géneros  as  mais  saborosas  são  :  Porque  Canto, 
Meu  filho  no  Claustro,  A  flor  murcha  no  altar,  Frei  Bastos^ 
entre  diversas  mais. 

Não  é  possível  discutir  e  exemplificar  todas  as  manifes- 
tações do  talento  poético  de  Junqueira ;  como  amostra  de  seu 
cstylo  aqui  vae  —  A  flor  murcha  no  altar  : 

n  Está  murcha  :  —  assim  nos  foge 
A  briza  que  corre  agorcu 


2^  HI8T0BIA  DA  LITTEBATURA  BSABILXIEA 

Está  murcha  :  —  assim  o  fumo 
Cresce,  cresce,  —  e  se  evapora. 
Está  murcha  :  —  assim  o  dia 
Em  raios  afoga  a  aurora. 

Está  murcha  :  —  assim  a  morte 
Do  mundo  as  glorias  desfaz  : 
Assim  um'hora  de  gosto 
Mil  horas  de  dores  traz  : 
Assim  o  dia  desmancha 
Os  sonhos  que  a  noite  faz. 

Está  murcha...  Ainda  agora 
—  Eu  a  vi,  —  nao  era  assim. 
Era  linda,  era  viçosa, 
Acesa  como  o  rubim, 
Reinava,  comb  a  rainha, 
Sobre  as  flores  do  jardim. 

Foi  a  donzella  mimosa, 
Foi  passear  entre  as  flores. 
Foi  conservar  co'6ls  roseiras, 
Foí-lhes  contar  seus  amores. 
Julgando  que  sobre  as  rosas 
Nâo  se  reclinam  traidores. 

Ella  foi  co*os  pés  formosos 
Deixando  Ynimoso  rastro. 
Qual  no  céu  passou  de  noite, 
Correndo,  fulgindo,  um  astro, 
E  esta  rosa  foi  cortada 
Com  seus  dedos  de  alabastro. 

A  rosa  ficou  mais  bella 
N'aquella  \1rginea  mão. 
Encheu  de  perfume  os  ares. 
Talvez  com  mais  expansão. 
Mas  a  virgem  teve  pena 
De  pôl-a  em  seu  coração. 

Entrou  no  templo  a  donzella 
Coberta  co'o  véo  de  renda. 


HIBTOBIA  DA  LITTSBATUBA  BBABILUBA  293 

Teme  que  aos  olhos  dos  homens 
Sua  modestía  se  offenda  : 
Como  a  cortina  das  aras. 
Que  aos  ímpios  se  nfto  desvenda. 

Leva  a  modéstia  na  fronte, 
Leva  no  peito  a  oraç&o 
Leva  seu  livro  doirado, 
Leva  pura  devoção  : 
Leva  a  rosa,  a  linda  rosa 
Nos  dedos  da  breve  mão. 

Rezou  :  e  depois  ergueu-se, 
Dirigiu-se  ao  sanctuario, 
Modesta,  qual  sua  prece, 
Qual  a  luz  do  alampadario  : 
E  depôz  a  linda  rosa 
Ao  pé  do  sahto  Calvário. 

Os  anjos  depois  vieram. 
Respiraram  sobre  a  ílôr. 
A  ílôr  cobrou  mais  belleza, 
Mais  gala  e  mais  esplendor. 
Alli  ao  pé  do  Calvário 
Deu  mais  expansivo  odor. 

Alli  parecia  aos  olhos 
Crescer,  crescer...  Mas  agora? 
Agora  murcha,  tão  murcha. 
Não  tem  a  gala  de  outr^ora, 
—  Assim  o  fumo  do  tecto 
Cresce,  cresce,  e  se  evapora. 

Assim  as  horas  do  tempo 
Correndo,  correndo  vão. 
Assim  passou  inda  ha  pouco 
O  matutino  clarão. 
Assim  hontem  foste  infante. 
Assim  hoje  és  ancião. 

Murcha,  murcha!  não  expande 
Jamais  seu  odor  intehso. 


294  HISTORIA  DA  UTTBBATUBA  BBA8ILEIBA 

Ha-de  seccar,  feliz  d'ella, 
Junto  a  Cruz  do  Deus  immenso. 
Ha-de  aspirar  sobre  as  aras 
O  cheiro  de  grato  incenso. 

Feliz!  —  seu  leito  de  mortCt 

Sobre  as  aras  ella  tem. 

A  prece  que  vai  ao  céu, 

Sobr^ella  primeiro  vem. 

A  myrrba  que  a  Deus  incensa, 

Incensa  a  ella  também.  » 


Ha  simplicidade  a  certa  melodia  popular  n^estes  e  n^autros 
vôrsos  do  poeta  bahiano. 

Elle  HÃO  possruia  o  vigor  de  Azevedo  e^  José  Bonifácio,  a  doce 
melancolia  de  Bernardo  Guimarães  e  Aureliano  Lessa,  nem 
a  exhuberancia  de  Laurindo  Rabello. 

Elle,  Augusto  de  Mendonça  e  Franco  de  Sá  servem  de  tran- 
sição entre  o  grupo  de  poetas  do  sul,  que  tenho  estado  a  ana- 
lysar,  grupo  a  que  pertencem  também  Teixeira  de  Mello  e 
Casimiro  de  Abreu,  ainda  nSLo  estudados,  e  a  plêiada  do  norte 
em  cujo  numero  contam-se  Pedro  de  Calazans,  Trajanò  Gal- 
vão, Dias  Gameiro,  Bruno  Seabra,  Francklin  Dbria,  Bitten- 
court Samjpaio,  Gentil  Homem,  Juvenal  Galeno,  Joajquim 
Serra,  Souza  Andrade,  e  Costa  Ribeiro  :  bella  cohorte  de 
poetas  pouco  apreciados  e  mal  retribuídos  em  seu'  mereci- 
mento. 

O  leátor  não  se  esqueça  de  que  está  no  que  eu  chamei  a 
terceira  phase  do  romantismo  no  Brasil,  o  tempo  do  scepti- 
cismo  e  do  sentimentalismo  a  Byron  e  Lamartine. 

Já  se  viu  que  Alvares  de  Azevedo,  Aureliano  Lessa,  Ber- 
nardo Guimarães,  José  Bonifácio  e  Laurindo  Rabello,  todos 
filhos  do  sul,  obedeceram  a  essa  tendência  que  variavam  de 
vez  em  quando,  inserindo  em  seus  cantares  algumas  notas 
de  naturalismo  brasileiro,  alguns  tons  de  paisagens  e  de  sce- 
nas  nacionaes. 

Por  esse  mesmo  tempo  começou  a  íormar-se  nas  províncias 
do  norte,  sob  a  influencia  da  escola  do  Recife,  aquella  pha- 
lange  de  poetas  citados  acima. 


HIBTOBIA  DA  LITTBBATUBA  BRA.8ILBIBA  295 

A  differença^  que  julgo  importante  e  característica,  entre  os 
dous  grupos  é  que  no  do  sul  predominou  o  sentimentalismo 
sobre  o  naturalismo  rústico  e  popular  e  no  do  norte  predo- 
minou este  sobre  aquelle. 

Entre  os  dous  grupos,  como  um  laço  que  os  prende,  figuram 
os  dous  bahianos  Junqueira  Freire  e  Augusto  de  Mendonça  e  o 
maranhense  Franco  de  Sá,  que  poetaram  nos  dous  sentidos 
que  apontei. 

Para  concluir  com  Junqueira  Freira  deixo  ainda  aqui  uma 
observação  :  elle  nada  deveu  a  Alvares  de  Azevedo  na  for- 
mação de  sua  intuição  poética.  Pouco  até  o  leu,  se  é  que 
jamais  o  leu. 

Só  em  meíados  ou  fins  de  1853  poderiam  ter  chegado  á 
Bahia  as  obras  d'este  poeta,  publicadas  n'este  anno. 

Desde  quatro  ou  cinco  annos  antes  Junqueira  poetava  no 
estylo  que  sempre  conservou.  A.Lyra  dos  vinte  annos  não  pro- 
duziu as  Inspirações  do  claustro. 

São  duas  correntes  parallelas  e  esse  parellelismo^é  devido 
ás  correntes  geraes  das  ideias  e  á  athmosphera  do  tempo. 

Não  houve  imitação  directa,  como  inexatamente  eu  mesmQ 
tinha  dito  na  Litteratura  Brasileira  e  a  Critica  Moderna^  pe- 
queno erro  aliás  que  um  estudo  mais  .completo  dos  factos  leva- 
me  gostosamente  a  corrigir  agora. 

O  mesmo  não  se  pôde  dizer  de  Franco  de  Sá,  três  annos 
mais  novo  do  que  Junqueira,  e  cujas  primeiras  poesias  datam 
de  1853. 

António  Augusto  de  Mendonça  (1830-1880).  D'aquelle  grupo 
de  poetas  e  litteratos  que  figuraram  vivamente  no  decennio 
de  d  850  a  60  na  Bahia,  filiados  na  phase  romântica  estudada 
agora,  Augusto  de  Mendonça,  com  ser  dos  mais  meritórios, 
foi  o  mais  infeliz  na  lucta  pela  gloria. 

Junqueira  Freire  morrera  a  propósito  e  cresceu  facilmente 
em  fama ;  Agrário  teve  a  vantagem  de  cultivar  um  género 
pouco  explorado  no  Brasil  —  o  dramático,  e  fácil  lhe  foi  obter 
nomeada,  tendo  também  fallecido  emt  boa  hora ;  Moniz  Bar- 
retfo  deixou  filhos  que  lhe  ficaram  apregoando  o  nome.  Só  o 
pobre  Mendonça  é  hoje  ainda  um  illustre  desconhecido. 


296  HISTORIA  DA  LITTEBATXTBA  BRA8ILEIEA 

Além  de  tudo,  seus  companheiros  de  luctas  de  1850  fôram-se 
todos,  elle  deixou-se  ílcar  até  1880,  e  teve  assim  de  assistir  ao 
advento  da  chamada  escola  condoreira,  que  veiu  substituir  a 
sua  própria  escola. 

Castro  Alves,  seu  patrício,  cresceu  rapidamente  em  fama, 
tomou-se  immensamente  conhecido,  e  o  infeliz  Mendonça 
viveu  ainda  dez  annos  mergulhado  no  esquecimento. 

E,  todavia,  essa  indifferença  do  publico  é  uma  grande  injus- 
tiça. Foi  um  lyrico  suave,  doce,  melancólico,  d*uma  melan- 
colia tema  e  plácida. 

O  poeta  passou  por  algumas  inclemências  na  vida ;  ficou 
orphão  ainda  na  puerícia,  tendo  ao  seu  cargo  pesada  familia. 
Não  poude  seguir  um  curso  académico  e  teve  de  ser  empre- 
gado publico  de  província  com  pequenos  vencimentos.  Esta 
posição  esquerda  e  inferíor  ao  seu  merecimanto  inílltrou-lhe 
n'alma  perpetua  tristeza.  Mas  era  uma  tristeza  resignada  e 
contida. 

Tinha  muita  facilidade  de  escrever,  muita  doçura  e  musica 
no  verso  ;  muita  nitidez,  muita  naturalidade  na  linguagem.  E' 
uma  poesia  apasiguada,  boa  companheira  para  aplacar 
grandes  dores. 

O  poeta  não  apparece  esgiiedelhado  a  inchar  as  bochechas 
e  a  gritar  para  que  se  ouça  e  se  veja  que  elle  alli  está  a  decla- 
mar cóleras  e  enthusiasmos  ;  não  se  põe  a  berrar  palavrões,  a 
rufar  tambores,  a  badalar  bombos  n'uma  pancadaria  feroz... 

Não,  elle  chega  de  manso  e  nos  diz  algumas  phrases  ao 
ouvido  macia  e  socegadamente.  Passa  e  vae-se. 

Castro  Alves  o  comparava  ironicamente  ao  cabocolinho  de 
nossas  maltas.  Póde-se  acceitar  a  denominação ;  peior  seria  s<* 
o  poeta  fosse  uma  arara  ou  maracanan  grítadeira. 

Mendonça  foi  um  poeta  de  indole  lamartiniana ;  creio  poder 
comparal-o  a  Victor  de  Laprade ;  não  é  a  grande  poesia ;  |>o- 
rém  é  ainda  uma  alta  poesia. 

E'  obvio  que  eu  podia  desenvolver  o  retrato  do  poeta ;  a 
economia  doeste  livro  obriga-me  a  deter-me  e  a  nSo  passar 
d'esses  rápidos  traços. 

O  talentoso  bahiano  deixou  muitas  composições  esparsas  ; 


'A 


HISTOBIA  DA  LITTBRATUKA  BRA8ILBISA  297 

ixou  também  em  livro  um  volume  de  suas  Poesias  (1860)  e 
i  poema  A  Messalina  (1866).  ^ 

i  publicação  de  suas  obras  toma-se  necessária  ^3ara  sua 
apleta  rehabilitaçâo.  f 

ruma  só  poesia  A  Saudade  da  Sepulchro  vae  o  ^Wtor  ter 
bello  especimem  dos  sentimentos,  do  estylo,  do  lâfento  do         jí 
ta.  • '. 

'  isto : 

>, 

í(  Sobre  um  sepulchro  isolado 

Roxa  saudade  vi  eu;  •    , 

Solitária  vicejava 

No  chão  frio  em  que  nasceu; 

Nunca  saudade  tâo  triste 

Em  sonhos  me  appareceu!... 

Nuança!... 
Senti  então  pelo  rosto 
Turva  lagrima  sentida 

Deslisar... 

Foi  á  hora  do  sol  posto... 
Hora  de  muito  scismar! 
Quando  o  archanjo  da  poesia 
Harmonisa  o  céo  com  a  terra 
Na  mesma  melancolia... 
Na  mesma  doce  tristeza, 
Que  ás  vezes  nos  faz  chorar, 
E  chorar  a  natureza 
Ao  lento  morrer  do  dia! 

Cheguei...  beijei  a  saudade 
Que  assim,  tão  erma  encontrei; 
Com  ella  sympathisei; 
Porque  —  da  minha  orphandadc 
N'este  deserto  profundo, 
Pobre  engeitado  do  mundo, 
Só  com  saudades  me  achei! 

Estranha,  viva  agonia 
Resumbrava-lhe  na  côr; 
Na  muda  expressão  dizia 
Tantas  penas,  tanta  dôr, 
Que  só  no  reino  da  morte 


298  HIBTOBÍA  DA  LITTBKATUSA  BRABILBDU 

D'uma  lagrima  podia 
Ter  nascido  aquella  flor... 

A  saudade! 
Emblema  de  muito  amorl... 

Poeta  ás  dores  affeito, 
Tentei  debalde  arrancal-a, 
Para  no  fundo  do  peito, 
Como  um  thesouro,  plantal-a. 
Debalde!  porque  a  infeliz 
Tinha  encravada,  segura 
No  fundo  da  sepultura 
A  desgraçada  raiz! 

Ah!  quem  soubera  o  destino 
D'aquella  flor  merencória! 
Quem  a  sua  ignota  historia 
Porventura  escutará? 
Quem?...  se  a  flor  mysteriosa, 
No  seu  recinto  funéreo. 
Muda  como  o  cemitério 
Para  todos  sempre  está? 

Quem  sabe!...  talvez  que  á  triste, 
Que  no  sepulchro  descánça, 
D^entre  as  sombras  do  futuro 
Lhe  sorria  uma  esperança... 
TalvezI... 

Quem  adivinha  se  a  brisa. 
Que  docemente  a  embalança 
Nao  lhe  vai  de  amor  falar? 
Se  o  SÓI...  se  o  sol  ao  deixal-a, 
Nôo  lhe  deixa  em  despedida 
N'um  raio  um  gérmen  de  vida, 
Saudoso  de  a  náo  levar? 

Se  ardente,  extremoso  affecto, 
Se  estremecida  paixão 
Que  já  no  peito  nSo  cabe, 
Por  indizivel  feitiço, 
Não  lhe  dá  alento  e  viço 
Co'o  sangue  Ho  coração? 
Quem  sabe!... 


HIBTOBIA  PA  LITTBRATXmA  BRA8ILSIBÁ  299 

Sei  que  a  misera  saudade, 
Quando  no  feio  horisonte 
Feia  surge  a  tempestade; 
E  da  cupola  do  céo 
Nem  sol,  nem  tímida  estrella, 
Atravez  do  espresso  véo, 

Despede  um  raio  de  luz; 
Sei  que  a  misera  saudade, 
Porque  o  vento  a  não  desfolhe. 
Nem  as  pétalas  lhe  açoite, 
Encosta-se  —  ou  dia  ou  noite  — 
Nos  brc^:os  de  sua  cruz.  » 

Nâo  ha  ahi  as  agitações,  os  çsteirtores  dos  desesperadas; 
D  poeta  encarava  a  vida  melancolicamente,  mas  havia  resi- 
gnação em  sua  tristeza. 

Elle  foi  também  um  habil  repentista  da  escola  de  Muniz 
Barretto  e  Laurindo  Rabello.  A  posteridade  acabará  por  fazer 
justiçai  a  este  escriptor. 


António  Joaquim  Franco  de  Sa  (1836-1856).  Era  filho  do 
Maranhão  e  estudou  direito  no  Recife. 

Foi  contemporâneo  de  Pedro  de  Calasans,  Gentil  Homem, 
Trajano  Galvão,  Dias  Carneiro,  Franklin  Dória,  Gosta  Ri- 
beiro, Gomes  de  Castro,  Marques  Rodrigues  e  outros  bellos 
talentos  que  figuraram  em  Pernambuco  no  decennio  de  1850 
a  60.  Falleceu  aos  vinte  annos. 

Sua  poesia  tem  duas  notas  capitães  :  é  pessoal,  recordativa 
e  intima,  ou  é  humorística.  Esta  nota  é  em  especial  referente 
a  episódios  da  vida  estudantesca  do  norte. 

As  peças  princípaes  do  género  são  :  Meus.  namoros  de 
Olinda,  Amor  e  Namoro^,  As  Visinhas,  A  Sabbatina,  A  Esbelta. 
As  outras  enchem,  o  resto  do  volume  de  versos  do  joven  ma- 
ranhense. 

O  estylo  é  simples,  a  metrificação  sonora  e  correcta,  os  pen- 
samentos não  são  vulgares ;  bem  pelo  contrario,  tudo  indica 
que  o  paiz  perdeu  em  Franco  de  Sá  um  bom  e  mavioso  poeta. 

De  seu  livro,  publicado  por  seu  irmão,  destacarei  como 


300  HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBA  BBA8ILBIBA 

apta  a  exemplificar  o  seu  estylo  —  a  poesia  —  Ao  dia  7  de  se- 
tembro. 

Era  em  1855;  o  poeta  saudou  assim  o  anniversaria  da  inde- 
pendência brasileira  : 

((  Ao  sopro  dos  ventos,  ao  som  das  cascatas. 
Em  leito  pomposo,  formado  por  Deus, 
Um  Índio  gigante,  nascido  nas  mattas, 
Dormia,  cercado  de  mil  pigmeus. 

De  zonas  ardentes  e  frigidas  zonas 
O  vasto  colosso  se  estende  através; 
Repousa-lhe  a  fronte  no  immenso  Amazonas, 
E  as  aguas  do  Prata  murmuram-lhe  aos  pés. 

Soffria  ha  três  seclos  cruel  pesadelo, 
E  a  turba  de  insectos,  pedrada  ao  redor, 
Lançara-lhe  ferros,  sorrindo-se  ao  vel-o 
Co*os  olhos  fechados  e  o  corpo  em  suor. 

E  as  aves  que  gemem,  as  feras  que  rugem, 
Os  ventos  que  zunem,  os  próprios  fuzis 
N&o  quebram-lhe  o  somnol  Crearam  ferrugem 
Nos  pulsos  tão  nobres  cadeias  tão  vis! 

Sorriam-se  elles!...  Sem  verem  que  o  somno 
Somente  o  retinha  !no  mesmo  lugar. 
Bem  como  o  menino  reputa-se  dono 
Da  onça  dormida  que  o  pode  tragar. 

Sorriam-sc  elles!  Sem  verem  que  aos  poucos 
Nas  veias  o  sangue  fervia  aânal; 
No  orgulho  embuçados,  não  vicun,  que  loucos! 
Que  a  hora  batia  solemne  e  fatal 

Mas  eis  de  repente  surgiu  no  horisonte 
Qual  surge  nas  trevas  brilhante  pharol. 
Um  dia  de  glorias,  os  valles  e  o  monte 
Enchendo  de  vida,  banhando  de  sol! 

Romperam  mil  cantos,  cessaram  queixumes, 
Do  trino  das  aves  encheu-se  o  vergel, 
E  o  prado  de  flores,  e  a  flor  de  perfumes, 
(  ;  E  os  ramos  de  f  ructos,  e  os  f ructos  de  mel! 


HI8T0BIA  DA  liiITTEBATURA  BRABUJEIBA.  301 

Do  lago  e  do  rio,  do  tigre  e  da  pomba, 
Dos  ventos  nos  troncos,  da  brisa  na  ílôr, 
Da  terra,  dos  ares,  do  mar  que  ribomba, 
Um  hymno  de  bençam  se  eleva  ao  Senhor! 

Aos  fervidos  raios  do  sol  fulgurante, 
Do  hymno  ineffavel  ao  magico  som. 
Do  longo  lethargo  desperta  o  gigante. 
Que  excelso  destino  tivera  por  dom. 

Desperta...  e  dos  membros  sacode  as  cadeias, 
Qual  rija  borrasca  das  nuvens  o  véu, 
Qual  águia  das  azas  sacode  as  areias, 
Abrindo-as  velozes  nos  campos  do  céu. 

£  á  turba  insensata,  que  ao  vel-o  se  assombra. 
Atira  dos  lábios  sorriso  de  dó. 
Em  vez  de  vingança  prestando-lhe  sombra. 
Que  o  sol  doesse  dia  tornara-os  em  pó! 

Desde  esse  momento,  sahindo  da  selva, 
As  terras  demanda,  que  um  dia  verá; 
Se  acaso  o  caminho  nem  sempre  é  de  relva, 
Que  importa,  diz  elle,  se  avanço  p'ra  lá? 

Se  ás  vezes  duvida,  se  treme,  se  cança. 
Ao  sol  de  setembro  renasce  outra  vez 
Nos  membros  a  força,  no  peito  a  esperança, 
E  a  marcha  prosegue  com  mais  rapidez. 

E  vendo  esse  dia,  que  tanto  memora. 
Por  sobre  o  horisonte  de  novo  surgir, 
Co'um  brado  espo'ntaneo  saudamos-lhe  a  aurora. 
Honrando  o  passado,  com  fé  no  porvir 

Oh!  hoje  que  raia  táo  limpida  e  calma, 
Nós  filhos  do  índio,  saudemol-a  nós, 
Com  rosas  na  fronte,  com  jubiIon'alma, 
E  o  riso  nos  lábios  e  o  canto  na  voz! 

Saudemol-a  todos!  Taes  dias  são  arcos 
Na  senda  que  ao  templo  da  gloria  conduz. 
Nas  eras  passadas,  são  fulgidos  marcos. 
Que  as  trevas  separam  de  enchentes  de  luz! 


1 


302  HI8T0BIA  BA  LITTBEATUBA  BRABILEIEA 

Por  ella  cuúmados,  com  força  dobrada 
A'liça  da  pátria  voemos  também, 
Se  espinho  e  poeira  tivermos  na  estrada, 
Mais  de  uma  coroa  teremos  além! 

Corramos,  lutemos,  cingindo  de  louros 
A  fronte  que  bate  de  ardor  juvenil! 
Um  nome  leguemos  aos  nossos  vindouros, 
Cubramos  de  glorias  o  nosso  Brasil! 

Unidos  reguemos  de  nossos  suores 
A  planta,  legado  de  avós  e  de  pais, 
Seus  pomos  dourados,  no  gosto  melhores, 
Os  ramos  vergados  carregue'inda  mais! 

E  como  o  guerreiro,  depois  da  victoria. 
No  ganho  estandarte  repousa  por  íim ; 
Depois  das  fadigas,  envoltos  na  gloria. 
Soldados  da  pátria,  durmamos  assim! 

• 

Virão  nossos  filhos,  colhendo  esses  pomos 
Que  tomem  maduros  benéficos  soes, 
Depôr-nos  coroas,  bem  como  as  depomos 
Na  imagem  querida  dos  nossos  heróes. 

£  após  venha  a  historia,  que  os  feitos  estampa, 
Os  nossos  narrando  com  traços  fieis, 
£  honroso  epitaphio  nos  grave  na  campa, 
Cercando-a  de  fióres  e  novos  lauréis.  » 


N'esse  tempo  ainda  havia  enthusiasmo  geral  pela  emanci- 
pação nacional ;  havia  toda  a  confiança  em  virmos  a  ser  uma 
nação  forte  e  prospera. 

Ainda  ncLo  se  tinha  inventado  a  Iheoria  geitosa,  que  se  vae 
agora  insinuando,  de  ser  em  tudo  conveniente  submetter  este 
paiz  á  influencia  do  chamado  adiantamento  europêo. 

Poucos  hâo  de  calcular,  o  que  vae  de  insidia  n'esta  calansh 
tosa  insinuação...  Bemdicto  seja  o  nome  de  Franco  de  Sá,  o 
nome  de  um  patriota. 

E'  urgente  passar  adiante. 

Voltemos,  ó  leitor,  ao  sul,  ao  Rio  de  Janeiro  a  ouvir  os 
carmes  de  Teixeira  de  Mello  e  Casimiroi  de  Abreu.  Sfto  dois 


j 


HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BRABILBISA  903 

patrícios,  dois  amigos,  que  entram  perfeitamente  na  intuição 
geral  da  epocha. 

Depois  iremos  escutar  a  ronda  aérea  dos  cantares  nortistas, 
de  que  Junqueira  Freire,  Augusto  de  Mendonça  e  Franco  de 
Sá  já  nos  deixaram  nos  ouvidos  alguns  sons  intensos  e  expres- 
sivos. 

José  Alexandre  Teixeira  de  Mello  (1833...)-  Eis  aqui  um 
poeta  de  grande  merecimento,  inteiramente  esquecido. 

Eu  mesmo,  que  estudo  com  interesse  e  carinho  tudo  que  se 
refere  ao  Brasil,  conhecia-o  só  vagamente  de  nome ;  nunca 
o  havia  lido  attentamente  I...  E  assim  terão  feito  muitos  outros. 

Para  que  ler  as  poesias  de  Teixeira  de  Mello,  os  dramas  de 
Agrário,  os  romances  de  Alencar,  se  alli  estão  as  drogas  de 
Ohnet,  de  Montepin,  de  Du  Boisgobey,  que  posso  ingerir, 
arrotar  depois  as  essências  de  Pariz,  e  passar  por  homem  de 
tom  e  adiantado  ? 

E'  a  regra  geral  :  uma  curiosidade  inquieta  e  malsaine  pelo 
que  vem  de  fora  e  completa  ignorância  do  que  se  produz  na 
pátria. . . 

Entretanto»,  Teixeira  de  Mello  foi  um  lyrista  de  primeira 
ordem  no  Brasil,  sem  ter  quem  o  exceda  em  Portugal  na  phase 
correspondente  ao  seai  desenvolvimento. 

O  poeta,  de  certo  tempo  em  diante,  abandonou  quasi  intei- 
ramente a  sua  arte  divina. 

Empregado  superior  da  Bibliotheca  Nacional,  dedicou-se 
com  força  ao  estudo  da  historia  pátria. 

N'esta  esphera  são  dignos  de  nota  o  livro  que  publicou  sob 
o  titulo  de  Ephemerides  Nacionaes  e  a  Memoria  consagrada  á 
questão  das  Missões,  secular  pendência  entre  o  Brasil  e  a 
Republica  Argentina,  só  recentemente  resolvida. 

Também»  são  dignos  de  apreço  diversos  estudos  seus  publi- 
cados nos  Annaesi  da  Bibliotheca  Nacional  e  na  Gazeta  Litte- 
roTÍa. 

Mas  é  do  poeta  que  deivo  especialmente  falar,  e  por  este 
lado,  elle  está  nas  Sombras  e  Sonhos  e  nos  Myosotis,  especial- 
mente no  primeiro  doestes  livros. 

Teixeira  de  Mello  teve  por  amigos  e  companheiros  littera- 


304  HISTOBIA  DA  LITTERATtTRA  BRA8ILSIBA 

rios  Casimiro  de  Abreu  e  o  Dr.  Luiz  Delfino  dos  Santos  que  o 
offuscaram  inteiramente  sem.  possuir  merecimento  superior  ao 
seu. 

Casimiro,  primando  pela  simplicidade,  que  ás  vezes  chegava 
ao  chatismo,  morreu  pouco  depois  de  publicar  as  Primaveras^ 
e  viu-se  repentinamente  celebre. 

Luiz  Delfino  dos  Santos,  primando  pela  elevação  que  des- 
camba muitas  vezes  no  exaggero,  no  gongorismo  esdrúxulo, 
fez  ruidosa  carreira  medica,  juntou  cabedaes  e  aguardou  a 
vinda  de  um  momento  propicio  para  alçaras©  ao  posto  de 
pontífice  máximo  de  um  grupo  de  sectários. 

Teixeira  de  Mello,  que  tem  a  simplicidade  sem  a  chateza  e 
a  elevação  sem  a  bombasticidade,  nâo  teve  nenhuma  d'essas 
consagrações  enthusiasticas  :  ainda  hoje  elle  é  um  obscuro. 

Eu  sou  o  primeiro  a  collocal-o  em  seiui  lugar ;  não  que  o  seu 
merecimento  fosse  jamais  contestado  :  nem  negado  nem  afflr- 
mado ;  simplesmente  despercebido,  como  non  avenu. 

As  Sombras  e  Sonhos  são  um  livro  notável  e  superior  aos 
seus  companheiros  de  datas  Primaveras  e  Enlevos  (1). 

Estes  três  livros,  a  que  se  .devem  juntar  as  Primeiras  Paginasi 
de  Pedro  de  Calasans,  as  Flores  Silvestres  de  Bittencourt  Sam- 
paio e  as  Flores  e  Fructos  de  Bruno  Seabra,  podem  bem  ser»- 
vir  de  thermometro  para  aquilatar-se  a  temperatura  poética 
dos  annos  que  vão  de  1855  a  62  no  Brasil  (2). 

O  movimento  continuou  no  mesmo  sentído  pelos  annos  de 
62  a  64  com  as  publicações  de  Fagundes  Varella,  que  inau- 
guroiu  o  que  eu  chamei  o  naturalismo  bacchico,  que  serviu  de 
passagem  para  a  escola  condoreira  (3). 

O  livro  de  Teixeira  de  Mello  é  exhuberante  de  seiva,  como 
são  tantos  outros  do  animado  e  luxuriante  lyrismo  brasileiro. 

O  que  individualisa  e  distingue  as  feições  da  poesia  d>»te 
auctor  é  certa  singularidade,  certa  elevação  graciosa  e  deli- 
cada das  plirases,  certa  garridice  das  imagens  :  alguma  cousa 
que  lembra  Victor  Hugo  nos  bons  tempos,  quando  elle  não 

ri)  As  Somhrafí  e  Sonho^t  de  Teixeira   de  Mello  sâo  de  ]«58;  os  Fnleros 
de  Franklin  Dória  e  as  Primaveras  de  Casimiro  de  Abreu  são  de  1>^59. 

(2)  As  Primeiras  Pauinas  de  Calasans  são  de  1855 ;  as  Flores  Sihèstres 
de  Sanfipaio,  de  18(>();  as  Flores  e  Frurtos  de  Seabra,  de  1S62. 

(3)  Veja-so  —  A  Litteraturn  Braúleira  e  a  Critica  Moderna,  pag.  185 


HI8T0BIA  DA  LITTBSATUBA  BRABILBIRA  305 

lia  ainda  gongorismos,  a  phase  em  que  escreveu  Sara  la 
gneíise  e  outras  jóias  d'esse  quilate, 
idicareí  ligeiros  trechos  aptos  a  documentarem  o  que  digo. 
am  : 

<(  Tinhas  então  no  olhar  a  morbideza 
Da  infância  que  presente  a  mocidade; 
Tinhas  na  fronte  o  sello  da  belleza 
E  n*alma  a  sombra  ^^a^za  da  saudade. 

Amemos  como  á  luz  as  .nariposas, 
Como  a  ílôr  ama  o  orvalho  que  a  remoçai 
Amar  não  é  topar  pela  existência. 
Como  a  topaste,  um'alma  irmã  da  nossa? 

O  amor  é  a  vida  na  mulher  que  um  dia 
Ao  passar  pelo  espelho  achou-se  linda! 
Ama  e  vive,  mulher!  quando  morreres... 
Quando  morrermos...  viverás  ainda!  » 

i  isto  que  é  melhor  ainda ;  o  poeta  fala  de  um  mundo  á 

(f  Onde  haja  musgo  em  que  teça 
Um  ninho  em  que  eu  adormeça 
Com  meus  amores  implumes; 
Onde  nâo  vinguem  espinhos; 
Onde  o  sol  entre  carinhos 
Viva  de  azul  e  perfumes! 

Procurei  no.  mundo  todo 
Um  ponto,  per'la  no  lodo, 
Onde  o  amor  fosse  verdade! 
Onde  a  vida  fosse  um  lago! 
Nosso  baixel...  um  afago! 
Nosso  briza...  a  mocidade!  » 

lyrismo  alado  do  xix  século.  Eis  ainda  superior : 

ic  A  cada  riso  d'ella  eu  via  o  mundo 
Sumir-se  a  nossos  pés  e  o  céo  se  abrir! 
Então  eu  m'esquecia  de  mim  mesmo, 
Do  mundo  que  a  esperava  e  do  porvir! 

ISTORÍA    11  íi-> 


906  HI8T0BIA  DA  LITTBRATURA  BBABILEIBA 

A  tarde  era  uma  aurora  mais  risonha, 
A  insomnia  minha  etefna  companheira, 
Sylphide  o  tempo,  as  illusões  um  berço 
Em  que  pensei  dormir  a  vida  inteira...  » 

Ou  este  brado  : 

(( Meu  peito  o  abysmo,  teu  amor  o  raio, 
Meus  lábios  harpa  em  que  passou  teu  nome, 
Tudo  mentiu-mel  As  emoções  se  foram 
Como  as  neblinas  que  a  manhan  consome,  n 

Ou  ainda  este  : 

c<  Quanta  ventura  a  trescalar  em  tudo! 
Quanto  silencio  a  perfumar  a  selva! 
£  quanto  sol  a  enamorar  as  ílôres 
E  quanta  ílôr  a  enamorar  a  relvai  » 

Ou  finalmente  estas  quadras  de  uma  bellissima  poesia  á 
Lua: 

u  Quando  sacodes  sobre  a  noite  as  azas 
Lagrymas  cahem,  gcu^ça  que  não  torna, 
Como  o  sereno  que  a  descuido  a  aurora 
Por  sobre  as  flores  —  toda  riso  —  entorna! 

Tu  passas  núa,  escabellada  e  muda, 
Levada  em  braços  de  milhões  de  anjinhos, 
E  vaes,  quem  sabe?  te  banhar  nos  lagos 
Em  que  lav€un-se  o  sol  e  os  passarinhos... 

Eu  te  vejo  passar,  t&o  perto  ãs  vezes, 

No  meu  deserto,  fugitiva  embora! 

Tu  és  o  cysne  que  em  meus  cantos  canta; 

Tu  és  a  amante  que  em  meus  prantos  chora!  n 

São  fragmentos  citados  a  esmo ;  outros  mais  bellos  existem 
no  livro,  que  deve  ser  lido  com  a  maior  attençâo.  E'  um  bom 
companheiro  para  horas  de  desalento. 

Outra  qualidade  particular  das  poesias  de  Teixeira  de  Mello 


HI8T0BIA  DA  LITTE&A7JKA.  BBA8ILBISA  307 

é  a  completa  correcção  da  lingua  e  da  forma  métrica.  O  poeta 
ó  impeccavel ;  é  um  primoroso  romântico  e  um  verdadeiro 
precursor  dos  parnasianos  modernos. 

P6de-se  só  por  elle  aquilatar  o  progresso  da  poesia  brasi- 
leira em  ires  séculos  de  vida. 

No  regimen  clássico  a  lingua  nfto  tinha  essa  elasticidade, 
essa  flexibilidade,  esse  doce  torneio,  essa  capacidade  capri- 
chosa e  ondulante  de  ostentar-se  em  bellas  phrases. 

Reparem-se  os  seguintes  decasyllabos,  ou  versos  chamados 
de  Gregório  de  Mattos ;  note-se  a  doçura,  a  mobilidade  da 
expressão. 

No  velho  poeta  bahiano  do  século  xvii  esse  metro,  par  elle 
introduzido  na  lingua,  era  ainda  áspero  e  duro.  O  vocabu- 
lário era  então  p6U[*co;^as  palavras  obrigatórias  appareciam 
sempre. 

A  poesia  tinha  um  pequeno  lexicon  de  convençfto  que 
não  deixava  jamais. 

Léam  estes  versos  e  reparem  bem  que  estam  a  ouvir  um 
lyrista  de  um  tempo  cheio  de  exigências  : 

«  Tanto  orvalho  por  noites  d'encanto 
Molha  as  plantas  abertas  em  flor! 
£  meus  lábios  molhou-m'os  o  pranto 
Sempre,  sempre  que  abriu-m'os  amor, 

Tanto  sol  n^estas  veigas  tranquillas 
Ergue  as  flores*— já  mortas  talvez! 
Requeimasse-me  embora  as  pupillas . 
Eu  quizera,  'nascendo  outra  vez, 

Requeimal-as  de  novo!...  Bemdicto 
Seja  aquelle  que  á  livida  flor 
Abre  em  jorros  o  sol,  e  ao  proscripto 
Abre  o  sol  —  sempre  puro  —  do  amor! 

Venha  um  beijo  de  fogo  aquecer-me  : 
Tenho  n'alina  do  hinverno  os  rigores! 
Deixa  á  vida  de  novo  prender-me 
A  esperar  pelo  sol  —  como  as  flores. 


308  HI8T0BIA  DA  LITTBRAT17BA  BRABILSIBA 

Sim!  minh'alma  pertence  á  esperança 
Como  á  terra  meu  corpo  que  é  seu. 
Por  um  fio,  mulher,  d'essa  trança 
Se  soubesses  que  amor  te  dou  eu! 

Nunca  a  língua  de  fogo  d*um  beijo 
De  meus  lábios  queimou-me  os  pallores! 
A  teus  pés,  anjo  meu,  eu  desejo 
De  perfumes  viver  como  as  flores. 

Tens  perfumes  na  voz  que  embriaga  : 
Como  os  anjos  tu  caYitas  falando, 
E  dos  seios  na  túmida  vaga 
Tens  perfumes  que  alentam  matando... 

Tens  perfumes  na  boca  mimosa! 
Um  azul  beija-flôr  do  vergel 
Já  tomou-a  por  folhas  de  rosa 
E  uma  abelha  por  favos  de  mel.  . 

Por  amar  já  soffri  tanto,  tanto! 
Faz-me  um  dia  esquecer  que  soffri. 
N'um  requebro  do  olhar  —  por  encanto 
Como  Deus  —  cria  um  mundo  pYa  ti! 

Abre  as  azas  da  tua  belleza 
Sobre  o  abysmo  do  meu  coraç&ol 
No  silencio  da  virgem  deveza. 
Que  me  esconde,  serei  teu  irmão. 

Nós  teremos  por  tenda  as  campinas 
Em  que  a  relva  se  veste  de  flor. 
Estas  névoas  por  alvas  cortinas. 
Estes  ermos  por  leito  de  amor! 

Vai,  que  cu  sei,  tanto  amor  pelo  mundo 
E  tu  deixas-me,  virgem,  sozinho! 
Dá-me  um  riso,  só  um,  mas  tão  fundo 
Que  me  faça  encurtar  o  caminho... 

Que  te  custa  flngir  um  sorriso 
—  Ténue  gotta  no  mar  da  esperança! 
Dá-me  amor,  dá-me  vida...  preciso 
De  viver...  Que  te  custa,  criança? 


HI8T0BIA  DÁ  LITTSSATU&A  BSABILSIBA  309 

Vem  tu  ser  meu  condão  de  ventura! 
Abre  os  lábios  e  dá-me  a  existencicil 
Como  o  oiro,  que  €u>  fogo  se  apura, 
Regenere-me  a  tua  innocencicu 

E*  um  mundo  que  tiras  do  nada 

E  onde  podes  mandar  —  como  Deus... 

Solta  a  voz  e  verás  n*alvorada 

Que  rebenta  a  um  soriso  dos  teus...  » 


Eu  nto  sou  clássico,  e  nem  romântico,  e  nem  parnasiano ; 
Ho  estou  com  a  velha,  nem  com  a  nova  geração...  quero  estar 
)m  a  nonissima^  com  aquella  que  ainda  ha  de  vir.  Por  cima 
além  das  escolas  actuaes  vislumbro  alguma  cousa  de  supe- 
or  que  ha  de  ser  a  poesia  do  tempo  futuro. 
Quaesquer,  porém,  que  venham  a  ser  as  conquistas  e  os 
'ogressos  do  lyrismo  do  porvir,  ninguém  contestará  que 
ses  versos  serão  sempre  e  sempre  um  bello  espécimen  de 
na  poesia  sonora,  perfumosa,  irisada  e  macia  como  as  pen- 
is  sedosas  de  matisados  pássaros. 

Poi  necessária  a  longa  serie  de  seis  gerações  de  taJentos  po& 
os,  todos  empenhados  em  aperfeiçoar  o  instrumento  de  seus 
ntos,  para  a  arte  chegar  a  esse  apuro,  verdadeiramente 
Bcursor  do  parnasianismo  recente.  De  igual  requinte  é  a 
ça  intitulada  Phantasia  : 

i<  Nayade  viva  da  legenda  aíntiga, 
Deixa  o  seio  do  rio  em  que  te  encantas! 
Dá-me  um  riso  d^amor,  gotta  do  orvalho 
Que  em  noites  de  verão  desperta  as  plantas. 

Vem  ás  horas  dos  pallidos  vampiros 
Sobre  as  azas  em  pó  das  borboletas! 
Algum  sylpho  talvez  te  espere  em  cuidos 
Sobre  os  seios  azúes  das  violetas! 

Não  vês  a  natureza  a  somno  solto 
Nos  braços  do  silencio,  immovel,  fria? 
A  alma  vagando,  estrella  d*outros  mundos, 
Pelos  campos  da  lofra  phantasia? 


dlO  HI8T0BIA  DA  LITTBRAT17SA  BBABILBIIU 

E  OS  ventos  que  adormecem  como  a  noite 
Nos  cabellos  das  arvores  do  vai? 
Nem  soluçam  gemidos  que  te  assustem 
Esses  mortos  que  dormem  no  hervaçal. 

Desce  ás  horas  do  amor  e  dos  mysterios! 
Poisa  o  pé  sem  temor...  é  chão  de  flôresi 
Quáhdo  os  vivos  resonam  como  os  mortos, 
Vem  banhar-te  comigo  em  mar  de  amoresi 

Aos  cleurOes  do  luar,  que  despertou-te, 
Ouve-se  a  estrella  a  scintillar  dormindo! 
Ouve-se  a  hriza  a  desfolhar  saudades! 
Ouve-se  a  folha  a  suspirar  cahindol 

Vem,  flor  do  rio,  perfumada  em  risos; 
Vem  flor  dos  bosques,  orvalhada  em  pranto! 
Mas  se  inda  assim  o  coração  te  treme, 
D*essas  azas  que  tens  faze  o  teu  manto. 

Dá-me  um  hymno  dos  teus  na  voz  maguada  ; 
Dá-me  um  canto  do  céu  na  voz  tristinha! 
Já  que  o  mundo  dos  vivos  me  abandona, 
Vem,  prínceza  do  vai,  vem  tu  ser  minha! 

Vem  teus  sonhos  de  amor  que  a  alma  embalsama 
Desfolhar  sobre  mim  e  o  meu  futuro! 
O  mundo  não  te  espreita!...  e  só  da  noite 
Brilhão  olhos  de  Deus  no  manto  escuro. 

Mas...  se  a  aurora  acordar  teu  pae  que  dorme?! 
Se  a  briza  despertar  no  campo  as  flores?! 
Vem  sempre!  um  anjo  deve  amar  mais  cedo, 
Mais  cedo  enlanguecer,  morrer  de  amoresi  » 

Teixeira  de  Mello  é  o  que  na  linguagem  escolástica  da  cri- 
tica se  chama  um  ideialista. 

Por  ahi  ainda  existe  muita  gente  que  suppõe  serem  ideior 
lismo  e  realismo  dois  systemas,  duas  theorias,  duas  doutrinas 
oppostas  da  arte,  quando  apenas,  na  phrase  felicíssima  de 
Edmond  Scherer,  sã.o  os  dois  poios  entre  os  quaes  se  tem 
movido  em  todos  os  tempos  toda  a  poesia^  toda  a  art»  humana 
em  geral. 


J 


HIBTOBIA  DA  LITTERATUBA  BRASILSIBA  311 

Esta  co-relação  do  ideial  e  do  real,  apezar  das  extrava- 
meias  dos  críticos,  é  uma  verdade  que  brota  á%  toda  a 
storia  da  intelligencia  do  homom. 

Ha  quem  baralhe  e  confunda  as  noções  que  parece  sabirtlíi 
iquellas  palavras,  applicadas  ás  producções  artistieas  • 
lerarias. 

Os  equívocos  agglomerain-se  e  as  tentaçOes  infundadae  e# 
resentam ;  a  quem  conhecer,  porém,  um  pouco  o  espirito 
mano  e  couber  a  certeza  do  que  ella  vale  nos  tempos  mo- 
gnos as  vistas  parciaes  não  cegarão. 
\.  ideia  mais  persistente,  que  uma  das  mais  robustas  edifi- 
5ões  philosophicas  do  xix  século  — ,  a  de  Hegel,  —  trouxe 
mundo,  foi  a  do  caracter  relatwo  da  verdade. 
^ara  tal  achado,  álprimeira  vista  tikr  simples,  houve  neces- 
ade  de  todo  o  génio  do  illustre  allemão,  no  intuito  de 
erminal-o,  e  de  toda  a  sciencia  e  habilidade  de  Comte  e  de 
jncer  aflm  de  o  divulgar  (1). 

inda  bem  :  o  principio  é  geral  e  sua  applicação  deve  ser 
ipleta ;  as  ideias  absolutas  sobre  poesia  são  uma  herança 
^elha  e  abstrusa  metaphysica  e  absurdas  como  uma  these 
astrologia.  D'ora  avante  a  pretenção  de  governo  único  e 
potico,  por  parte,  da  um  modo  de  ver  parcial,  é  um  falsea- 
ito  de  doutrinas,  um  quadro  incompleto  do  espirito  do 
po. 

as  interrogue-se  a  historia.  Lá  também,  lá  na  antiguidade, 
ido  a  consciência  humana  serena  e  imperturbável,  porque 
la  era  ainda  pouco  complicada,  modesta  e  tímida,  porque 
►ração  era  ainda  pouco  exigente;  quando  a  consciência 
lana,  diante  de  todos  os  fundos  problemas,  se  mostrava 
ente  cam\  a  razão  das  cousas,  vinha  de  quando  em  ve2 
restea  de  sombra  empallidecer-lhe  o  brilho. 
)ri  as  obras  dos  grandes  génios,  os  mais  arredados  de  nós 
quizerdes,  d*esses  d'aquelle  tempo  em  que  não  eixisUam 
3L  clássicos,  românticos,  realistas,  parnasianos,  impassi- 
impressionistas  e  tutti  quanti ;  abri,  por  exemplo,  o  livro 
)b. 

/'ide  Ed.  Scherer,  Melangeê  d*Hiêtoire  Religieuêe,  artígo  lobrt  H«|c»l. 


312  HISTOBIA  DA  LITTEBATUBA  BBABILEIBA. 

O  es?pdrito  do  sublime  sofTredor  é  açoitado  por  todas  as  fla- 
gedlações  que  lhe  atira  o  inipletcavel  habitador  das  trevas.  Ahi 
Satan  é  o  destino ;  a  grande  lucta  da  humanidade  está  tra- 
vada (1). 

Abri  Eschylo  :  todos  conhecem  essa  poesia  travosa  de  sup- 
plicios,  embrigada  de  subime  padecer.  Ahi  Prometheu  é  o 
génio  preso,  e  todavia  conspirado... 

Abri  Homero  abri  Sophocles,  abri  Virgílio,  abri  Lucrerio. 
Onde  haverá  mais  ideial,  isto  é,  mais  transfigurações  do 
homem  e  da  natureza,  e,  ao  mesmo  teimpo,  mais  realidade, 
isto  é,  mais  vida,  mais  lucta,  mais  tormento,  mais  dôr  ? 

E,  se  fôr  ponderado  que  entre  o  homem  de  hoje  e  o  de  então 
ha  todo  o  vasto  labor  de  sonhos  cedestes,  de  desapego  da  vida, 
de  anciãs  para  Deus,  que  enche  uma  extensa  secção  da  histo- 
ria, a  idade-media,  e  constituo  o  caracter  dei  muitos  séculos, 
a  parcialidade  systematica  de  todo  se  aniquila. 

Nós  outros  os  de  hoje  somos  os  filhos  de  uma  civilisação 
complexa  (2). 

Todas  as  expansões  reaes  e  sentidas  do  homem  antigo, 
sobremodo  do  grego  e  do  romano,  *entrelaçaram-se  a  todos  os 
Ímpetos  para  o  desconhecido  do  homem  da  idade-meia,  onde 
larga  parte  tiveram  os  semitas,  especialmente  judeus  e 
árabes. 

A  alma  moderna  é  a  somma  de  todas  aquellas  elTusões ;  o 
pensamento  hodierno  agita-se  por  todos  os  lados. 

Na  grande  litteratura  correm  as  ondas  de  todas  as  anciãs 
ineffaveis,  desde  o  sagrado  enthusiasmo  pela  mulher  até  a 
sede  estupenda  pela  eternidade ;  desde  a  mimosa  expansão 
pelo  espectáculo  das  flores  até  ao  dilacerante  desespero  pelo 
céu  que  atormenta. 

Ali  ha  de  tudo;  o  medíocre  é  que  é  exclusivo;  são  as 
grandes  ideias  incarnadas  na  forma  brilhante ;  todos  os  son- 
hos como  todas  as  realidades,  todos  os  pesadelos  como  todos 
os  risos,  a  duvida  a  a  crença,  a  maldição  e  a  prece !...  Vejam- 
se  as  obras  mais  perfeitas  que  resumem  o  xix  século. 

Onde  ha  ahi  poesia  mais  sonhadora,  mais  utópica  do  que  a 

(1)  Vide  Ern.  Rcnan,  Le  Livre  de  Job ;  analyse  do  poema. 

(2)  Vide  H.  Tainc,  Philoêophie  de  VArt  en'^Grèce;  o  momento. 


HISTORIA  BÁ  LITTSRATUSA  BBASILEIBA  313 

de  Fatist,  a  de  Manfredo,  a  do  Ashaverus  ?  N^essas  indomáveis 
torrentes  de  impetuoso  lyrismo  os  velhos  e  novos  mysterioe, 
as  velhas  e  novas  impossibilidades  se  attestam,  e,  comtudos 
onde  livros  mais  humanos,  uma  poesia  em  que  a  ©xacUdáo 
que  nos  toca  seja  mais  seria  e  implacável  ?  E'  o  caso  de  todo 
Shakespeare. 

Mas  deixo  esta  ordem  de  motivos  e  toco  n'outra. 

Que  entendem  por  ideialismo  no  terreno  da  arte  ?  Se  fosse 
a  suprema  expressão,  o  mais  sublimado  gráo  das^ concepções 
humanas,  então  nada  haveria  de  serio  que  vedasse  os  poetas 
de  por  elle  moldarem  suas  obras. 

Se  o  julgam  synonimo  de  extravagâncias,  accervo  de  im- 
possibilidades phantasticas,  n'este  caso  tombam  em  falso,  sem 
a  mínima  razão. 

Mas  nenhuma  d'estas  explicações  é  a  exacta ;  a  primeira  é 
apenas  uma  vaga  aspirado  mjetaphysica ;  a  outra  é  eviden- 
temente desparatada. 

Nem  tanto  exaggero  de  um  lado  e  d'outro ;  o  ideial  é  tam- 
bém relativo;  nílo  se  concebe  á  priori;  depende  deis  ideias 
que  formamos  das  cousas. 

Esta  simples  verdade  mostra  bem  sua  indole  e  seu  valor ;  é 
o  fundamento  mesmo  da  arte  e  a  historia  mostra  sua  con- 
stante variação. 

Que  é  o  realismo  ?  Se  é  a  velha  pretenção  de  fazer  da  arte 
uma  photographia  eternamente  a  retratar  scenas  do  mundo, 
na  pintura  não  passais  da  paisagem  e  na  poesia  da  descri- 
pçao.      ' 

E,  se  o  intento  é  julgar  que  o  mister  único  da  poesia,  da 
arte,  da  litteratura  é  reproduzir  o  que  parece  certo,  real,  posi- 
tivo para  as  intelligencias,  n'este  caso,  o  critério  de  cada  uma 
d'ellas  é  variável,  ou,  por  outra,  as  ideias  diversas  de  cada 
um  trarão  o  ideiahsmo,  cujo  sentido  philosophico  é  assim 
ainda  uma  vez  determinado. 

Mas  o  realismo  deve  ser  entendido  de  modo  diverso,  isto  é, 
como  aquillo  que  a  sciencia  e  a  experiência  forem  tirando 
a  limpo,  e  a  consequência  aqui  é  que  elle  é  necessário,  é  uma 
força  que  se  impõe  inefvitavelmente. 

Ideialismo  e  realismo,  portanto,  são  principios  que  não  se 


314  HISTORIA  DA  LITTE&ATURA  BBABILEIKA 

combatem ;  unem-se  e  resguardam-s©  convenientemente.  A 
poesia  6  a  arte  vivem  do  consorcio  de  ambos. 

Um  espirito  comprehensivo  afug^eoita  as  ideias  apertadas  c 
frágeis  e  aspira  sempre  pela  harmonia  das  cousas. 

Existem,  porém^  uns  críticos  que  se  nutrem  de  acanhadas 
noções  e  apegam-se  ao  incompleto  com  obstinação, 

D'ahi  um  bom  numero  de  juízos  desponderados  que  se  vão 
espalhando  €m<  dois  sentidos  oppostos  e  a  completa  incapaci- 
dade para  a  comprehensão  verdadeira  da  intuição  moderna 
em  litteiratura  e  arte. 

E'  esse  o  motivo  dos  exaggeros  pró  ou  contra  o  realismo 
hodierno  e  pró  ou  contra  a  concepção  phílosophica  da  poesia. 

Abrem  um  livro  qualquer  e  lêem,  por  exemplo,  esta  apos- 
trophe  :  «  Geographos  da  intellígencia,  marcai  sobre  a  carta 
do  espirito  humano  n'este  polo  a  sciencia,  n'aquelle  outro  a 
poesia  I ))  (1). 

Tomam  demasiado  á  letra  a  intimação  e  condemnam 
uma  das  mais  fecundas  ideias  da  lítteratura  contemporânea  : 
a  poesia  fundada,  ou  melhor,  a  poesia  adaptada  ás  novas  ten- 
dências do  espirito  humano.  Entretanto,  as  duas  cousas  se 
excluem  absolutamente  quanto  ao  methodo  e  podem  harmo- 
nisar-se  quanto  ás  intuições  geraes. 

Idêntica  é  a  cegueira  que  lança  o  abysmo  entre  ideialistas  e 
realistas  extremados,  aos  quaes  falta  uma  comprehensão  total 
da  humanidade  e  da  natureza. 

Comi  esta  critério  e  com  taes  ideias  é  que  se  deve  julgar 
o  mimoso  lyrista  José  Alexandre  Teixeira  de  Mello,  em  cujas 
poesias  o  ideial  e  o  real  se  irmanam  e  consorciam  admiravel- 
mente. 


CASiMmo  José  Marques  de  Abreu  (1837-1860).  Bem  diffe- 
reocite.  do  de  Teixeira  de  Mello  foi  o  destino  litterario  de  Casi- 
miro de  Abreu  ;  não  houve  jamais  entre  nós  poeta  mais  lido  ; 
tem  sido  o  predilecto  do  bello  sexo  nacional.  E  essa  notorie- 
dade é  bem  cabida  ;  o  moço  fluminense  foi  um  espirito  de  me- 
recimento. 

(1)  Charles  Magnin  Cau$eriêê  et  MéditaUorf  litteraireê ;  edào.  de  1842. 


HISTORIA  BÁ  LITTl&ATUSÁ  BBÁ8ILBIBÁ  315 

Em  tomo  de  seu  nome  formourse  logo  uraia  lenda  de  soffri- 
nientos  e  outorgaram-lhe  a  coroa  do  martyro... 

O  poeta,  na  opinião  geral,  haveria  sido  umd.  pobre  victima 
de  rigores  paternos ;  teria  sido  aiado  ao  poste  do  commercio, 
como  a  um  supplicio ;  teria  sido  contrariado  em  sua  vocação, 
maltratado,  injuriado,  por  entregar-se  a  qualquer  leitura; 
náo  teria  recebido  educação  alguma  litteraria ;  teria  sido  des- 
teorrado  para  Portugal  afim  de  lhe  acabarem  alli  com  as  vel- 
leidades  e  recalcitrações  em  poetar. 

Ha  em  tudo  isto  mais  de  um  exaggero  e  mais  de  uma  illu- 
8ão. 

O  próprio  Casimiro  de  Abreu  nos  prólogos  que  poz  em 
frente  das  Primaveras^  de  Camões  e  o  Jáo,  e  no  fragmento 
A  Virgem.  Loura  offerece  documentos  para  as  lamentações 
que  levantaram  á  conta  de  seu  martyrologio. 

Igual  intenção  revela-se  em  sua  poesia  Dores  : 

«  Ha  dores  fundas,  agohias  lentas, 
Dramas  pungentes  que  ninguém  consola 

Ou  suspeita  sequer! 
Magoas  maiores  do  que  a  dôr  d'um  dia, 
Do  que  a  morte  bebida  em  taça  morna 

De  lábios  de  mulher! 

Doces  falas  de  amor  que  o  vento  espalha, 
Juras  sentidas  de  constcuicia  eterna 

Quebradas  ao  nascer; 
Perfídia  e  olvido  de  passados  beijo3... 
S&o  dores  essas  que  o  tempo  cicatrísa 

Dos  an^nos  no  volver. 

Se  a  donzella  infiel  nos  rasga  as  folhas 
Do  livro  d^almo,  magoado  e  triste 

Suspira  o  coração; 
Mas  depois  outros  olhos  nos  captivam, 
£  loucos  vamos  em  delírios  novos 

Ard^r  n'outra  paixão. 

Amor  é  o  rio  claro  das  delicias 

Que  atravi^sa  o  deserto,  a  veiga,  o  prado, 


316  HI8T0BIA  DA  LITTBBATUKA  BSABILMBA 

E  O  mundo  todo  o  tem! 
Que  importa  ao  viajor  que  a  sede  abraza, 
Que  quer  banhar-se  n'essas  aguas  cicutas, 

Ser  aqui  ou  além? 

A  veia  corre,  a  fonte  n&o  se  estanca, 

E  as  verdes  margens  hao  se  crestam  nunca 

Na  calma  dos  verões; 
Ou  quer  na  primavera,  ou  quer  no  inverno, 
No  doce  anceio  do  bulir  das  ondas 

Palpitam  corações. 

Não!  a  dôr  sem  cura,  a  dôr  que  mata, 
E\  moço  ainda,  e  perceber  na  mente 

A  duvida  a  sorrirl 
E'  a  perda  dura  dum  futuro  inteiro 
E  o  desfolhar  sentido  das  gentis  coroas^ 

Dos  sonhos  do  porvir! 

E'  vêr  que  nos  arrancam  uma  a  uma 
Das  azas  do  talento  as  pennas  de  ouro^ 

Que  voam  para  Deus! 
E'  vôr  que  nos  apagam  d'alma  as  crenças 
E  que  profanam  o  que  santo  temos 

Co'o  riso  dos  atheus! 

E*  assistir  o  desabar  tremendo, 
N*um  mesmo  dia,  dlllusões  douradas. 

Tão  cândidas  de  fé! 
E'  vêr  sem  dó  a  vocação  torcida 
Por  quem  devera  dar-Uie  alento  e  vida 

E  respeital-a  até! 

E'  viver,  ílôr  nascida  nas  montanhas, 
Pra  aclimar-se,  apertada  'n'uma  estufa 

A'  falta  de  ar  e  luz! 
E'  viver,  tendo  n^alma  o  desalento. 
Sem  um  queixume,  a  disfarçar  as  dores 

Carregando  a  cruz! 

Oh!  ninguém  sabe  como  a  dôr  é  funda, 
Quanto  pranto  se  engole  e  quanta  angustia. 


HIBTOBIA  DA  LITTE&ATURA  BBA8ILEIBA  317 

A  alma  nos  desfaz! 
Horas  ha  em  que  a  voz  quasi  blasphema... 
E  o  suicídio  nos  acceha  ao  longe 

Nas  longas  saturnaes.  » 

Devem-se  lêr  estas  e  outras  passagens  similhantes  cuni 
grano  salis. 

Náo  é  verdade  que  o  manceba  não  soffresse  contrariedadeís 
na  vida,  d'essas  contrariedades  de  menino,  de  criança,  diga-se 
assim,  que  intenta  seguir  um  rumo  que  não  é  precisamente 
a^quelle  que  a  familia  deseja. 

Nos  temperamentos  excessivamente  impressionáveis  e 
doentios,  como  o  de  Casimiro,  ás  vezes  essas-  pequenas  luctas 
transformam-se  emi  grandes  pugnas  e  deixam  sulcos  inapa- 
gaveis. 

Mas  d'aJii  a  concluir  que  sua  bella  infância  na  Barra  de 
São  João,  sua  estada  na  poética  Priburgo,  onde  estudou  al- 
guns preparatórios,  sua  residência  na  esplendida  Rio  de  Ja- 
neiro, onde  foi  caixeiro  estimado,  e  na  histórica  Lisboa,  onde 
exerceu  igual  profissão  com  a  mesma  distincção,  concluir  que 
'  tudo  isto  foi  o  inferno  em  vida,  me  parece  um  pouco  exagge- 
rado. 

Nem  tanto  ao  mar  nem  tanto  á  terra ;  nem  vida  de  rosas 
nem  tratos  inquisitoriaes. 

E'  preciso  que  me  comprebendam  :  eu  não  contesto  a  sin- 
ceridade do  poeta  quando  relata  os  seus  soffrimentos.  Creio 
bem  em  tudo  que  nos  conta. 

Censuro  os  excessos  dos  seus  panegyristas  e  procuro  dia- 
gnosticar-lhe  a  verdadeira  medida  e  intensidade  das  dores. 

Todo  aquelle  barulho  era  apenas  pela  mor  parte  um  dese- 
quilíbrio orgânico  e  subjectivo-,  estimulado  por  uma  exquisita 
mania  da  epocha. 

O  poeta  foi  victima  d©  sua  organisação  franzina  e  débil  e  das 
tolices  e  extravagâncias  do  meio  social  que  o  cercava. 

E'  certo  que  o  pai  lhe  vedou  a  matricula  n'uma  academia  e 
o  atirou  ao  commercio. 

Este  facto  simplíssimo,  e  muitas  vezes  vantajoso,  escan- 
deceu  a  caJbeça  do  poeta  e  appareceu-lhe  como  um  supplicio 


318  HI8T0BIA  DA  LITTXBATUBA  BKABITiKTBA. 

intolerável.  D*ahi  a  exacerbação,  a  iristeza,  o  desespero  in- 
timo. Tudo  pura  subjectividade. 

A  razão  d*isto  ?  E'  a  seguinte  :  n'aquelle  tempo  estávamos 
na  pha^e  agudíssima  da  sensiblerie  nacional ;  o  romanticismo 
melancolisante  imperava  sem  estorvo  algum. 

A  sociedade  dividia-se  em  dois  grandes  grupos  :  os  hooiens 
práticos  e  positivos  e  os  poetas  e  sonhadores. 

Os  primeiros  eram  os  homens  sérios,  os  outros  eram  os 
bohemios,  os  génios  sedentos  d'ideial ;  aquelles  eram  os  6ur- 
guezes  chatos  e  estúpidos,  na  linguagem  dos  génios  ;  estes 
para  os  seus  inimigos  não  passavam*  de  uns  malucos^  uns 
extravagantes  nocivos. 
O  desaccordo  não  podia  ser  mais  completo. 
Os  taes  homens  sérios  tinham  sua  profissão  de  fé  e  o  pri- 
meiro artigo  d*ella  era  a  guerra  aos  terríveis  insensatos,  os 
desalmados  poetas ;  o  segundo  artigo  era  a  propaganda  e  o 
endeosamento  da  ignorância. 

Os  intitulados  génios  tinham  seu  programma,  cujo  primeiro 
artigo  era  a  libação  do  cognac  e  o  segundo  era  a  vadiagem. 

Havia  por  certo  algumas  excepções  de  um*  lado  e  d*outro ; 
mas  essa  era  a  intuição  geral  da  epocha. 

Litteratura  e  commercio  eram  duas  cousas  inconciliáveis ; 
poesia  e  negocio  eram  o  cão  e  o  gato,  viviam  em  perpetua 
lucta,  as  duas  profissões  eram  incompatíveis. 

Ainda  me  lembro  bem  do  tempo  em  que  a  condição  pri- 
mordial para  ser  bem  acceito  no  commercio,  ser  logo  bem 
empregado  e  ter  bôa  e  forte  protecção  era  ser  bem  estúpido, 
ter  a  cabeça  bem  feichada  ás  insinuções  das  letras  de  forma. 
Foi  isto  justamente  na  epocha  em  que  para  os  poetas  e  litte- 
ratos  a  carreira  do  commercio  era  a  região  do  prosaismo  duro 
e  insupportavel. 

Quanta  illusão,  quanto  despropósito  de  uma  banda  e  d'oo- 
tral 

Ao  pai  de  Casimiro,  burguez  ignorante  do  velho  estylo,  a 
ideia  do  filho  querer  ser  homem  de  letras,  escriptor  e  poeta, 
aflgurava-se  umi  desparate,  uma  imitação  da  vadiagem  lítterata 
do  tempo.  Ao  moço  poeta,  ideialista,  sonhador,  o  commercio 
surgia  na  imaginação  como  a  região  aspeora  da  morte  que  lhe 


HISTORIA  DA  LITTESATUBA  BBABILBIBA  319 

vinha  crestar  todas  os  devaneios  e  esperanças.  )Era  a  lucta 
entre  dois  animaes  bravios  e  ferozes  :  o  carrancismo  e  o  n> 
manticismo. 

Era  uma  lucta  em  falso,  oriunda  de  uma  péssima  orientação 
social. 

O  pobre  poeta  especialmente  foi  victima  de  preoccupações 
phantasistas  de  seu  meio,  exaggeradas  por  seu  temperamento 
mórbido,  preoccupações  que  não  teve  força  para  combater. 

Hoje  tudo  isto  passou  ;  já  não  achamos  tão  prosaica  a  vida 
mercantil,  nem  tão  poetíco  o  doutorismo,  muitas  vezes  inerte 
e  que  leva  não  raro  ao  completo  pauperismo. 

Casimiro  de  Abreu,  em  sua  ingenuidade,  suppunha  ser  mais 
adequado  á  poesia  o  viver  do  homem  '.graduado  n'uma  aca- 
demia qualquer.  O  poeta  desejava  talvez  formar-se  em  direito. 

Ora,  os  nossos  bacharéis  em  direito,  que  não  se  vão  metter 
no  commercio  ou  na  lavoura,  as  duas  profissões  anti-poeticas 
dos  românticos,  ou  vão  ser  advogados,  ou  magistraidos,  ou 
empregados  de  secretaria,  ou  professores... 

Qual  d'estas  carreiras  é  mais  poética  do  que  a  do  com- 
mercio? 

Será  a  do  advogado  a  luctar  com  velhacos  de  toda  a  casta, 
com»  meirinhos  ensebados  e  escrivães  capciosos  e  grosseiros  ? 

Será  a  do  magistrado  a  luctar  com  ladrões,  assassinos  e 
relapsos  de  toda  a  ordem  ? 

Será  ã  do  empregado  de  secretaria  a  aziniflcar-se  no  meio 
da  papellada  do  expeditíhte  e  das  importunações  dos  preten- 
dentes 7 

Será  a  do  punhado  de  professores  dos  cursos  jurídicos  e 
dos  cursos  secundários  a  ouvir  muitas  vezes  sandices  de 
rapazes  vadios  ou  estúpidos  ? 

Creio  que  não.  Parece-me  quei  em.  todo  'caso  antes  a  car- 
reira mercantil,  tão  cheia  de  encantos,  especialmente  nas  lojas 
e  armarinhos  elegantes,  parada  habitual  do  high-life  em 
mais  de  uma  cidade  rica  e  pretendida  mui  civilisada... 

Em  que  pese  a  Casimiro,  não  creio  no  prosaismo  do  com- 
mercio. 

Esta  nobre  profissão  e  esta  illustre  e  poderosa  classe,  um 
dos  mais  valentes  propulsores  do  progresso  universal,  poderá 


320  HISTOBIA  DA  LITTERATUILA.  BKABILEIBA 

ter  OS  seus  ridiculos,  os  seus  sestros  e  emperramentos ;  mas 
possue  em  compeaisação  muita  vida,  muito  enthusiasmo,  ia 
dizer,  muita  poesia. 

E  quaatos  poetas  não  a  têm  seguido  e  cultivados  sem  por 
isso  perder  ou  sequer  enfraquecer  o  estro  ! 

Foi  o  caso,  entre  nós,  do  grande  Fernando  Schmid,  celebre 
poeta  allemão,  conhecido  sob  o  pseudonymo  de  Dranmor. 

E  para  que  estas  e  outras  considerações  que  poderia  aUe- 
gar  ?  O  poeta  é,  o  poeta  nasce,  como  diz  o, povo. 

Não  é  a  carreira  que,  na  lucta  pela  existencici,  no  embate  das 
relações  sociaes,  lhe  é  dado  abraçar  que  o  vae  fazer  poeta.  Se 
tal  fora,  nâo  teriam  apparecido  nem  Dante,  nem»  Tassoi,  nem 
Camões,  e  menos  ainda  Shakespeare,  verdadeiro  homem  de 
negócios. 

Casimiro  de  Abreu  é  de  1837 ;  seu  talento  poético  desen- 
volveu-se  de  ifô4  a  60,  anno  de  seuj  fallecimento, 

Foi  na  crise  aguda  do  lamuriar  dos  românticos. 

O  poeta,  franzinof  de  corpo,  predisposto  á  tuberculose,  fez 
de  seu  coração  umi  ninho  para  asylar  e  aquecer  todas  as  illu- 
i^ões,  scismas,  vaporosidades,  sonhares  irisados  e  phantasias 
aladcLS  de  seu  tempo. 

Esta  impressionabilidade  mórbida,  expressa  na  lingua- 
gem! Q  nas  formas  mais  simples  do  falar  portuguez  enreque- 
cido,  sonorisado,  amenisado  no  Brasil,  eis  a  poesia  de  Casi- 
miro de  Abreu. 

A  facilidade  dos  tons,  a  despretenciosidade  da  plástica  lhe 
dão  todo  o  valor. 

O  poeta  fala  de  suas  magoas,  de  suas  ambições,  de  seus 
anhelos  n'aquelle  mesmo  tom  em  que  se  queixaria  á  sua  mâe 
das  saudades  que  teve  por  ella  n'ausencia,  ou  das  dores  que 
sentia  em  seu  débil  peito  ao  borbotar  das  golfadas  de  sangue. 
Ninguém  resiste,  não  ha  coração  que  não  se  abrande. 

Doce  e  miserando  moço,  queremos  chorar  comíigo  as  dores 
que  nos  contas  em-  tão  sonorosa  linguagem  ;  dá-nosi  dos  teus 
suspiros,  reparte  comnosco  a  tua  monodia  !  E'  a  linguagem  dt 
todos. 

A  poesia  aqui  é  tão  intima,  tão  pessoal,  que  dizer  mal  d'ella 
equivaleria  a  dizer  mal  do  caracter  do  poeta ;  e  quem  seria 


HI8T0BIA  DA  LITTBBATUBA  BEASILBIBA  321 

capaz  de  deixar  de  amar  um  táa  delicado  a  sincero  compa- 
nheiro? 

Importa  isto  absolver  completamente  a  tristeza  systematica 
da  poesia  romântica  ?  Da  forma  alguma.  A  tristeza  systematica 
e  affectada  é  e  será  sempre  censurável;  mas  Casimiro  foi  sin- 
cero e  escapa  ás  severidades  da  critica. 

Hoje  as  cousas  estão  mudadas ;  não  existem  mais  tristezas 
e  lamurias  affectadas ;  agora  estamos  no  período  das  alegrias, 
dos  enthusiasmos  fingidos. 

Os  que  principiamos  a  ler  os  poetas  e  escriptores  ha  uns 
quarenta  annos  atraz  ainda  encontramos  a  litteratura  mergu- 
lhada nas  trevas  da  melancolia. 

Assisti  e  tomei  parte  na  reacção  contra  esse  estado  de  pre- 
guiça mental. 

E'  preciso,  porém,  dizer  aos  de  hoje,  que  já  acharam  a  muta- 
ção feita,  como  era  aquelle  lamuriar  litterario  e  qua  batalhas 
foi  preciso  ferir  para  debellar  o  inimigo  e  preparar  o  actual 
estado  de  cousas  que  elles,  os  presumpçosos  de  hoje,  julgam 
ser  obra  sua... 

Em  1870  comecei  a  atacar  o  adversário,  e  em  1872,  a  pro- 
pósito da  poetisa  Narcisa  Amália,  que  ainda  teimava  em  cho- 
ramigar,  em  fazer  de  Casimiro  de  Abreu,  menos  a  sinceri- 
dade, escrevi  isto  : 

«  Na  vida  da  litteratura  no  século  xix  ha  um  quadro  mal 
desenhado,  um  quadro  sombrio,  que  ha  de  parecer  extrava- 
gante a  futuros  apreciadores  :  é  o  da  tristeza  romântica. 

Parece  impossível  que  a  uma  vivacidade  scientiflca  séria  e 
despreoccupada  juntasse  o  nosso  tempo  uma  expressão  artís- 
tica somnolenta  e  mórbida.  Mas  o  facto  é  real  e  tem  a  sua  jus- 
tificativa histórica.  O  que  parece  a  todo  propósito  insusten- 
tável é  a  teima  impertinente  de  se  querer  sempre,  hoje  como 
hontem,  chorar  pela  mesma  gamma,  suspirar  fingidamente 
pela  mesma  clave.  E'  uma  inconsiderada  porfia  que  se  des- 
tina a  parecer  carunchosa  e  ridícula  ao  vindouro  obseirvador. 

O  papel  da  tristeza  e  da  alegria  na  litteratura  contemporânea 
é  um  symptoma  bem  pouco  para  contentar.  Os  poetas  lan- 
çaram-se  precipitadamente  além  do  termo  da  estancia  querida 
do  seu  ideial  :  a  melancolia  deixou  de  ser  um  estado  mais  ou 

HISTORIA  II  21 


322  HISTOKIA  DA  LITTSBATXrBA.  BSABILEIRA 

menas  passageiro  do  espirito  para  tornar-se,  extremo  despro- 
pósito I...  o  alvo  supremo  dos  sonhadores. 

Gomo  o  mysticismo  alexandrino  procurava  na  destruição  a 
suprema  condiçclo  para  fruir  a  eterna  verdade,  o  romantismo 
dos  últimos  tempos  buscava  no  desespero  sentimental  a 
ultima  ratio  do  bello  inflnito !  A  doença  propagou-se  deshu- 
mana  e  atrocsmente ;  tomou-se  endémica. 

Em  meio  do  geral  desanimo  a  alegria  afogou-se  em  prantos, 
velou-se  de  soluças,  sumio-se,  e,  quando  se  ousava  mostrar, 
era  forçada  e  mentida. 

Era  o  humorismo^  essa  creação  modeima,  esse  rir  desconso- 
lado  e  factício  de  uma  tristeza  falsa,  que  se  suppunha  incu* 
ravel.  A  natureza  humana  se  achava  contrafeita ;  e  certamente 
a  historia  bem  estava  indicando  quad  devia  ser  o.ideial  do 
século  XIX. 

A  alegria  pagã,  serenidade  magestosa  da  vida  sft  da  antigui- 
dade, a  agonia  dolorosa  do  espirito  ascético  medieval,  anhelo 
mystico  do  theologismo  cbristão,  tinham  passado. 

Exclusivas,  na  orbita  da  respectiva  evolução,  legaram  ao 
tempo  da  Renascença  um  espirito  dúbio,  que,  pendendo,  já 
para  o  sonho  e  para^  o  céu,  já  para  a  realidade  e  para  a  terra, 
se  distendeu  no  período  de  três  séculos  até  nós. 

No  século  actual  os  dous  impulsos  deviam  contra-balancar- 
se.  Mas  não  foi  assim ;  e  viu-se  que  na  sua  primeira  metade 
este  século  pertenceu  quasi  exclusivamente  ás  scismas  do 
transcendentalismo,  e  só  a  custo  agora  vai  buscando  a  direcção 
opposta,  já  parecendo  que  se  pretende  exaggerar.  O  ideialismo 
abstruso  e  o  empirismo  grosseiro  perderam  o  sentido  d€is  suas 
lutas.  A  sciencia  hodierna  pisa,  um  terreno  mais  solido 
em  que  não  se  nos  deparam  as  extravagâncias.  E*  o  que  a 
historia  vae  fazendo  para  as  producçOes  da  humanidade  íllhas 
do  sentimento  e  as  creações  oriundas  da  intellígencia.  Umas  e 
outras  corresponderam  sempre  em  todos  os  tem^pos  aos  im« 
petos  do  homem  para  explicar  o  enigma  do  universo. 

As  velhas  doutrinas  poéticas  e  religiosas  de  um  lado  e  as 
metaphysicas  e  scientiflcas  de  outro,  tóm  um  desaggravo 
justo,  que  deve  porém  ficar  nas  paginas  da  historia. 


HISTORIA  DA  LITTSEATUEA  BRABILBIEA  323 

E  é  O  que  nâ.a  CQmprehendein  todos  aquelles  que  ainda  hoje 
lhes  querem  dar  o  influxo  da  vida. 

Os  poetas  da  primeira  porção  do  século  excederam-se ;  a 
sua  tristeza  foi  vestindo  todas  as  formas  possíveis  até  a  de 
fingida  alegria. 

Esta  em  sua  vitalidade  exacta  raramente  se  denunciava. 
Tudo  indicava  uma  falsa  expansão  da  vidai.  Os  scismadores 
enganaram-se.  O  alvo,  o  fim,  o  ideal  da  arte,  repita-se  a  ver- 
dadei  mil  vezes,  está  em  estampar  a  realidade  do  homem  e  da 
natureza. 

Ora,  a  existência  de  ambos  não  se  affirma  nem  pela  aJegría 
nem  pela  tristeza,  que  são  momentos  excepcionaes,  são  horas 
de  anomalia.  Quando  um  dos  dous  cahe  em  algum  dos  extre- 
mos arranca-nos  logo  o  espanto.  »  Que  tarde  feia II  »  fala  o 
moça  que  sente  um  vago  medo  diante  do  céo  carregado... 
»  Que  adivinhas  ?  »  diz  o  velho  á  moçoila,  que  loucamente  gar- 
galha... Ouvimol-o  diariamente.  E'  que  a  tristeza,  bem  como 
a  alegria,  em  sua  expressão  exaggerada,  passam  pelo  coração 
como  rápidos  toques  de  luz  ou  de  somíbra  que  coírem  sobre 
o  fundo  limpido  da  vida. 

O  intimo  d*€ista/é  a  actividade,  a  lucta,  o  trabalho,  cuja 
physionomia  principal  é  a  sisudeza.  E  sejamos  justos,  não  é 
mais  consolador,  depois  de  tantas  illusões  arrancadas,  depois 
do  perpassar  áspero  das  revoluções,  mostrar-se  a  humanidade 
serena  e  altiva,  séria  e  desapaixonada  ? 

Não  é  mais  sublime  a  poesia  que  partindo  do  intimo  d©  um 
coração  por  onde  ficaram  as  impressões  do  flagício,  qual  uma 
onda  alva,  crystallina,  trasborda  por  cima  d'essas  agruras  e 
se  vae  expraiar  alem  fulgurante,  transparente?  Mais  va- 
lente, por  certo,  é  o  coração,  que  além»  doa  dissabrores  da 
vida,  pôde,  calando-os,  arrojar  a  ode  esplendida  de  mara- 
vilhas. 

E'  a  poesia  impávida,  essa  suave  ambrósia  que  os  eleitos 
de  tempos  a  tempos  vêm  dar-nos  a  saborear. 

Suguemos  esses  perfumes  que  são  hoje  os  que  mais  nos 
podem  aviventar.  Depois  da  revolução  politica  do  século  XVIII 
tivemos  o  romanticismo  plangente  por  uma  aberração ;  depois 
da  revolução  philosophica  e  religiosa,  que  vae  adiantadiO, 


'\ 


324  HI8T0SIA  DA  LITTXRATURA  BRâBILBIBA 

tentemos  a  poesia  humana^  sem  delíquios,  sem  extrava- 
gâncias. Tem  ella  por  condição  moetrar-se»  serena  e  mages- 
tosa,  como  a  vida  do  homem  na  virilidade  »  (1). 

O  beilo  talento  de  Casimiro  de  Abreoi  deixou-se  influenciar 
pela  intuição  geral  de  seu  tempo. 

A  poesia  sentimental,  recordativa,  pessocd,  intima,  toda 
eivada  de  melancolismo  é  que  reeôa  principalmente  no  seu 
alaúde. 

Os  exemplos  pollulam  em  todo  livro  das  Primaveras ;  é 
abrir  o  volume  e  ler  ao  acaso.  Os  dotes  principaes  do  poeCa 
são  a  simplicidade  e  a  espontaneidade  da  forma  alliadaa  ao 
calor  e  á  intensidade  do  sentimento. 

E'  muitas  vezes  um  cantar  de  fogo  disfarçado  emi  volatas 
doces  e  subtis  como  cochichos  de  brisas  e  ílôres ;  é  alguma 
cousa  de  doloroso,  de  vehemente  velada  em  gazas  de  seda  e 
arminho ;  sentida  como  uma  punhalada,  mas  suave  e  macia 
como  pétalas  de  odorosos  jasanins. 

Não  quero  ir  longe ;  basta-me  abrir  a  primeira  pagina  e 
lêr  a  invocação  A' 


*** 


«  Falo  a  ti,  doce  virgem  dos  meus  sonhos, 
Visão  dourada  d'um  scismar  tão  puro, 
Que  sorrias  por  noites  de  vigília 
Entre  as  rosas  gentis  do 'meu  futuro. 

Tu  m^inspiraste,  oh  musa  do  silencio. 
Mimosa  ílôr  da  languida  saudade! 
Por  ti  correu  meu  estro  ardente  e  louco 
Nos  verdores  febris  da  mocidade. 

Tu  vinhas  pelas  horas  das  tristezas 
Sobre  o  meu  hombro  debruçar-te  a  medo, 
A  dizer-me  baixinho  mil  cantigas, 
Como  vozes  subtis  d'algum  segredo! 

Por  ti  eu  me  embarquei,  cantando  e  rindo, 
—  Marinheiro  de  amor  —  no  batel  curvo. 
Rasgando  affouto  em  hynmos  d*esperança 
As  ondas  verde-azues  d'um  mar  que  é  turvo. 

(1)  Vide  Eêiudos  de  Litteratura  Contemporânea^  artigo  sobro  a  Alegria 
e  a  Triãtesa  na  Poesia. 


HISTOBIA  DA  LITTBBATUBA  BRABILEISA  325 

Por  ti  corri  sedento  atraz  da  gloria ; 
Por  ti  queimei-me  cedo  em  seus  fulgores  ; 
Queria  de  harmonia  encher-te  a  vida, 
Palmas  na  fronte  —  no  regaço  ílóres! 

Tu,  que  foste  a  vestal  dos  sonhos  d^ouro, 
O  anjo  tutelar  dos  meus  a!hhelos, 
Estende  sobre  mim  as  azas  brancas... 
Desenrola  os  anneis  dos  teus  cabellosi 

Muito  gelo,  meu  Deus,  crestou-me  as  galas! 
Muito  vento  do  sul  varreu-me  as  flores! 
Ai  de  mim  —  se  o  relento  de  teus  risos 
Não  molhasse  o  jardim  dos  meu§  amores! 

N&o  Vesqueças  de  mim!  Eu  tenho  o  peito 
De  sanctas  illusOes,  de  crenças  cheio! 
—  Guarda  os  cantos  do  louco  sertanejo 
No  leito  virginal  que  tens  no  seio. 

Podes  lôr  o  meu  livro  :  —  adoro  a  infância. 
Deixo  a  esmola  na  encherga  do  mendigo. 
Creio  em  Deus,  amo  a  pátria,  e  em  noites  lindas, 
Minh'alma  —  aberta  em  flor  —  sonha  comtigo. 

• 

Se  entre  as  rosas  das  minhas  —  Primaveras  — 
Houver  rosas  gentis,  de  espinhos  nuas  ; 
Se  o  futuro  atirar-me  algumas  palmas. 
As  palmas  do  cantor  —  são  todas  tuas!  »> 

A  poesia  chorosa  o  sentimentalista  em  Casimiro  de  Abreu  6 
gostosamente  legivel. 

E'  que  a  imaginação  travessa  do  brasileiro  sabe  ungil-a  de 
graciosidade ;  é  que  muitas  notas  alegres  e  saborosamente 
cómicas  apparecem  para  diversiílcal-a,  para  differencial-a 
com  agrado. 

Esta  ultima  circumtancia  não  tem  sido  notada,  como  se 
devia,  em  Casimiro  de  Abreu  ;  sendo, entretanto,  uma  das 
melhores  manifestações  de  seu  talento. 

O  poeta  não  foi  só  um  sentimentalista,  qual  se  diz  geral- 


326  HIBTOSIA  DA  LITTBRATUltA  B&ABILEtRA 

mente,  foi  também  algumas  vezes  expansivo  e  alegre. 
Esta  nota  acha-se  em  Scena  Intima^  Juramento^  Segredos^ 
Quando ? 

Por  ser  o  poeta  muito  conhecido  quero  ser  parco  em  cita- 
ções. 

As  peças  que  reproduzi  —  Dores^  e  A***  servem  bem  para 
exemplificar  o  seu  estylo  na  poesia  melancólica  e  na  amorosa. 

O  Juramento  é  só  por  si  sufflciente  para  mostrar  o  talento 
faceto  do  poeta  : 

((  Tu  dizes,  ó  Mariquinhas, 
Que  não  crés  nas  juras  minhas, 
Que  nunca  cumpridas  s&ol 
Mas  se  eu  não  te  jurei  nadc^ 
Como  has-de  tu,  estouvada, 
Saber  se  eu  as  cumpro  ou  nfto? 

Tu  dizes  que  eu  sempre  minto, 
Que  protesto  o  que  nâo  sinto. 
Que  todo  o  poeta  é  vario, 
Que  é  borboleta  incoihstanie  ; 
Mas  agora,  n*este  instante, 
Eu  vou  provar-te  o  contrario. 

Vem  cá!  —  Sentada  a  meu  lado, 
Com  esse  rosto  adorado. 
Brilhante  de  sentimento, 
Ao  collo  o  braço  cingido. 
Olhar  no  meu  embebido. 
Escuta  o  meu  juramento. 

Espera  :  —  inclina  essa  fronte... 

Assim!.. .  —  Pfiureces  no  monte 

Alvo  lyrio  debruçado! 

—  Agora,  se  em  mim  te  fias, 

Fica  seria,  não  te  rias, 

O  jureunento  é  sagrado  : 

«  —  Eu  juro  sobre  estas  tranças, 
(c  E  pelas  chammeis  que  lanças 


HISTOBIA  DA  LITTESATUBA  BRASILEIRA  327 

((  D*esses  teus  olhos  divinos  ; 

fc  Eu  juro,  minha  innocente, 

((  Embalar-te  docemente 

((  Ao  som  dos  mais  ternos  hymnos! 

íc  Pelas  ondas,  pelas  flores, 
«  Que  se  estremecem  de  amores  — 
f<  Da  brisa  ao  sopro  lascivo ; 
«  Eu  juro,  por  minha  vida, 
«Deitar-me  a  teus  pés,  querida, 
f(  Humilde  como  um  captivol 

(c  Pelos  lyríos,  pelas  rosas, 
((  Pelas  estrellas  formosas, 
u  Pelo  sol  que  brilha  agora, 
M  —  Eu  juro  dar-te,  Maria, 
«  Quarenta  beijos  por  dia, 
f(  £  dez  abraços  por  hora!  n 

O  juramento  está  feito, 

Foi  dito  co*a  m&o  no  peito 

Apontando  ao  coração ; 

E  agora  —  por  vida  minh€^ 

Tu  verás,  ó  moreninha, 

Tu  verás  se  o  cumpro  ou  nfio!...  »  (1) 

Não  vejo  que  seja  mister  desenvolver  deniasiado  a  caracte- 
ristica  d'este  poeta  immiensamente  conhecido.  Basta  uma  só 
nota  mais. 

Nio  tinha  defeitos  7  Por  certo  os  tinha,  e  entre  edles  o  prin- 
cipal é  por  vezes  descambar  na  vulgaridade  até  cahir  na 
prosa.  Isto,  porém,  ó  raro. 

Se  faço  esta  declaração  é  no  intuito  de  evitar  a  transfor- 
maçtlo  (J'este  livro  n'um  compendio  dei  elogios.  Meu  alvo  ndo 
é  encomiar  nem  vituperar.  Comprehender  e  explicar,  eis  o  fim 
da  critica ;  sabe-se  hoje. 

(1)  ObrcLê  Completas  de  Casimiro  de  Abreu,  sexta  ediçfio,  pag.  206. 


328  HISTORIA  DA  LITTESATURA  B&ASILIIBA 


CAPITULO  IV 


Poesia.  —  Quarta  phase  do  romantismo. 


Vamos  agora  ás  regiões  do  norte  ouvir  ainda  um  punhado 
de  cantores,  quasi  totalmente  desconhecidos  no  sul  do  paiz. 

Nós  aqui  temos  d'estas  singularidades  :  exceptuados  os  polí- 
ticos, que  logram  ser  deputados  ou  senadores  e  installar-se  de 
quando  em  vez  ou  perpetuamente  no  Rio  de  JaneirOi  os  ta- 
lentos das  províncias  ficam  condemnados  ao  olvido,  especial- 
mente os  das  províncias,  hoje  Estadosi,  do  norte. 

Não  quero  agora  esplanar  as  causas  doeste  desarranjo,  que 
se  vae  accentuando  cada  vez  mais  e  assumindo  as  proporções 
de  verdaxleiro  desdém  por  tudo  quanto  é  nortista,  tudo  que 
não  é  do  Rio  e  das  cinco  provincas  ou  Estados  do  sul... 

Não  quero  fazel-o  agora,  por  me  não  desviar  do  assumpto 
capital  d'este  livro ;  apenas  declaro  bem  alto  que  felizmente 
não  participo  de  taes  preconceitos  e  exclusivismos  :  do  norte 
ou  do  sul,  de  leste  ou  do  oeste  o  talento  é  para  mim  sempre 
bem  vindo. 

Não  trabalho  para  fragmentos  do  Brasil,  meu  labor  é  para  o 
grande  todo,  a  grande  pátria.  Nada  de  seporatísmos  insen- 
satos. 

Os  poetas  que  se  vão  agora  destacar  sfio  :  Pedro  de  Cala- 
sans,  Trajano  Galvão,  Marques  Rodrigues,  Gentil  Homem, 
Dias  Carneiro,  Souza  Andrade,  Bruno  Seabra,  Bittencourt 
SampaiOy  Franklin  Daria,  Costa  Ribeiro,  Elzeario  Pinto,  José 
Maria  Gomes  de  Souza,  Joaquim  Serra,  e  Juvenal  Galeno. 

Vejam-se  apenas  os  principaes  d'entre  elles,  aos  quaes  se 
poderiam  juntar  José  Coriolano,  Berúcio  Fontenelle,  Paes  de 
Andrade  e  outros  da  mesma  índole.  São  poetas  de  Sergipe^ 
Bahia.  Pernambuco,  Ceará,  Maranhão,  Piauhy  e  Pará. 


HISTOSIA  DA  LITISBATUSA  BBA8ILBIBA  329 

Pedro  de  Calasans  (1836-1874).  A  província  de  Sergipe,  com 
ír  a  menor  e  a  mais  desprotegida  do  Brasil,  não  é  um-  ter- 
mo safaro  e  ingrato  para  a  intelligencia.  Bem  pelo  contrario, 
uitos  espíritos  illustres  têm  alli  visto  a  luz  do  mundo. 
Nós  alli  também  temos  contado  nossas  notabilidades ;  basta- 
e  agora  lembrar  os  nomes  de  um  educador  como  Totoias 
>ite,  um  medico  qual  José  Lourenço  de  Magalhães,  um  ora- 
r  como  Frei  Santa  Cecilia,  um  linguista  como  Joáo  Ribeiro, 
>oetas  como  Pedro  de  Calasans,  Bittencourt  Sampaio,  To- 
is  Barretto,   Constantino  Gomes,   José  Maria  Gomes  de 
uza,  Joaquim  Esteves,  Pedro  Moreira,  José  Jorge,  Justi- 
no de  Mello,  Eugénio  Pontes  e  Elzeario  da  Lapa  Pinto. 
)'6ste  grupo  de  illustres  sergipanos  serSo  vistos  n'este  logar 
lelles  que  naturalmente  entram  na  phase  ora  estudada, 
omeçarel  por  Calasans. 

ascido  em  1836,  o  ajino  de  Bocayuva,  de  Franco  de  Sá  e 
nklin  Dória,  estudou  direito  no  Recife  de  1855  a  59. 
seu  primeiro  livro.  Paginas  Soltas^  publicado  em  1855, 
desenove  annos  de  idade,  dá-o  como  estudante  acade- 
j ;  as  Ultimas  paginas^  em  1858,  mostran>no  na  mesma 
lidade. 

período  académico  foi  o  mais  notável  da  vida  do  moço 
ípano. 

i  enorme  a  nomeada  que  desfructou  em<  Pernambuco, 
tudante  de  direito,  o  jornalista,  o  critico,  o  poeta,  porque 
'gipano  era  tudo  isto,  foram  igualmente  gabados,  admi- 
3.  Foi  aquelle  um  tempo  de»  forte  movimento  litterario  na 
capital  nortista.  Os  mais  illustres  d'esses  moços  de  que 
acima  n'este  capitulo  foram  collegas  de  Calasans. 
pois  de  bacharelado  retirou-se  o  poela  para  a  sua  pro- 
i,  onde  casou-se  com  uma  rica  herdeira  e  foi  eleito  depu- 
a^eral  no  periodo  de  1861-64. 

Rio  de  Janeiro  a  principio  ainda  a  fortuna  pareceu  sorrir 
^en  reprasentante  da  nação  e  escriptor  provinciano. 
3ainaxa  o  poeta  não  fez  figura  alguma,  porque  não  tinha 
ies  oratórias ;  mas  na  imprensa  tornou-se  logo  perfeita- 
I  saliente, 
casamento  não  tinha  sido  dos  mais  felizes ;  havia  incom- 


330  HISTORIA  DA  LITTBEATURA  BRA6ILXIBA 

patibilidade  de  génios  entre  os  dois  esposos.  Desfez-se  o  equi- 
líbrio e  o  joven  poeta  cahiu  e  nunca  mais  se  levantou  de  todo. 
Partiu  para  o  Velho  Mundo. 

Na  Europa  em  1864  ainda  fez  algumas  publicações  meri- 
tórias. 

De  volta  ao  Brasil,  no  decennio  qua  vao  de  entáo  a  1874 
epocha  de  sua  morte,  ainda  produziu  ;  mas  quasi  nada  publi- 
cou. Suppunha-se  que  tivesse  fallecido  no  Rio  Grande  do  Sul; 
mas  hoje,  depois  do  bello  estudo  que  lhe  foi  consagrado  pelo 
Dr.  Dinarte  Ribeiro,  sabe-se  que  sua  morte  occorreu  no  mar 
n'uma  segunda  viagem  á  Europa. 

O  leitor  não  leve  a  mal  a  incerteza  e  indecisão  que  emprego 
nos  dados  biographicos  de  Calasans ;  os  sergipanos  nunca 
foram  ciosos  de  suas  glorias,  ninguém  ali  se  preoccupa  com 
estas  cousas,  não  existem  escriptos  que  possam  orientar  o 
historiador.  O  que  sei  da  biographia  do  poeta  devo^  a  infoc^ 
mações  oraes  colhidas  em  Pernambuco. 

Elle  publicou  as  seguintes  obras  :  Paginas  Soltas  (1855).  VI- 
timos  Paginas  (1858),  Ophenisia  (1864),  Wiesbade  (1864),  e 
Uma  Scêna  de  n^ossos  dias  (1864).  Deixou  vários  inéditos,  um 
dos  quaos  sob  o  titulo  de:  Camerino  já  foi  publicado  ^1875). 
São  volumes  de  poesias,  excepto  Uma  Scéna  de  nossos  dias 
que  é  um  drama  (1). 

O  poeta  sergipano  merece  attenção  especial  da  critica ;  ha 
n'elle  uns  tantos  symptomas  particulares  que  não  devem  pas- 
sar despercebidos. 

A  primeira  nota  que  lhe  assignalo  ó  um  certo  caracter  de 
independência,  especialmente  nas  ultimas  producções. 

Em  seu  tempo  a  litteratura  brasileira  obedecia  a  duas  ten- 
dências principaes  :  a  corrente  de  Alvares  de  Azevedo  e  a  de 
Gonçalves  Dias,  oi  sentimentalismo  descrente  e  o  indianismo. 

Calasans  evitou  um  e  outro ;  em  seus  versos  nem.  surgem 
os  Renés,  Manfredos  e  Rolas  eníasítiados,  nem  apparecem  as 
cabildas  de  selvagens. 

(1)  Vide  Luiz  Francisco  da  Veiga  —  Estudo  tobre  Dutra  e  Mtllo^  noU, 
em  que  fala  de  Calasans,  e  no  Almcmach  Popular  Broiileiro  {de  Porto- Ale- 
gre) de  1900  o  Estudo  do  Dr.  Dinai^  Ribeiro. 


.    HISTORIA  DA  LITTEBATITltA  BBASILBIBA  331 

O  poeta,  sempre  muiíto  correcto  de  lingueigein  e  de»  forma 
métrica,  antolha-se-me»  alegre,  expeinsivo,  crente,  Revela  por 
outro  lado  ideieis  liberaes  sobre  o  povo  e  o  governo  ei  é  um 
valente  profligador  da  escravidão.  E'  esta  uma  outra  nota  sua. 

Tudo  isto  é  fácil  verificar  nas  producções  do  auctor ;  não  o 
mostro  directamente  por  ter  de  attender  a  cousas  mais  inte- 
ressantes. 

Não  é  só  esse  caracter  de  seriedado,  essa  auswicia  de  senti- 
mentalismo impalpável  e  mórbido  que  assignala  a  Calasans  e 
aos  seus  companheiros  do  norte  um  lugar  dlstíncto  na  poesia 
romântica  brasileira  na  phase  de  1865  —  a  66.  Aquelles  poetas 
foram  também  verdadeiras  precursores  do  realismo  contem- 
porâneo. 

Eu  me  explico. 

A  poesia  sob  a  influencia  dos  moços  poetas  da  escola  de  São 
Paulo,  ou  n'ella  filiados,.  Azevedo,  Lessa,  Bonifácio  de  An- 
drada,  Laurindo,  Junqueira. . .  tinha  como  feição  característica 
a  subjectividade,  os  alfectos  pessoaes,  íntimos  de  seus  au- 
ctores  ;  a  poesia,  sob  a  direcção  dos  moços  do  norte,  na  escola 
do  Recife,  buscou  intuitqs  mais  objectivos,  mais  exteriores, 
mais  geraes.  Gentil  Homem,  Trajano  Galvão,  Dias  Carneiro, 
Bittencourt  Sampaio,  Franklin  Dória,  Joaquim  Serra,  Corio- 
lano,  Juvenal  Galeno  deram  mais  attenção  aos  costumes, 
situações,  lendas,  factos  populares ;  deixaram-se  inspirar 
doesse  realismo  campesino,  nacional,  bucólico. 

Em  Calasans  não  existe  esta  nota ;  elle  não  vibrou  esta  tecla; 
seu  realismo  é  outro ;  é  o  realismo  da  cidade,  da  gente  culta, 
dos  salões  civilisados,  das  altas  classes. 

O  poeta  pinta  cruamente  os  vicios  da  civihsação,  especial- 
mente os  desgarros  da  imulher  elegante. 

As  provas  estão  em  todos  os  seus  livros ;  vede  nas  Ultimas 
Paginas  especialmente  Per  arnica  silentia  lunae^  Sete  Somnos, 
Fel  por  Mel,  e  Mulheres  ,  de  ouro ;  lede  todo  o  poemeto 
Wieshade. 

Este  género  de  poesia,  realista  em  essência,  assume  nos 
lábios  do  cantor  sergipano  uns  tons  de  satyra,  dignos  de 
serem  ouvidos. 


332  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BBABILBIBA 

Eis  aqui  um  pedaço  das  Mulheres  de  ouro  : 

H  Mulheres  sensuaes!  que  o  ténue  seUo 
Da  pureza  carnal  vos  não  romperam, 
Em  beijos,  a  escaldar,  os  libertinos  ; 
De  que  vos  orgulhaês?  porque,  do  mundo 
No  sórdido  festim,  temeis  manchal-cw, 
—  De  vossas  vestes  as  custosas  beu^ras, 
Por  descuido,  ao  roçar  pelos  amiculos 
Da  pobre  meretriz?  que  vos  distingue? 
Vós  todas  sois  mulheres,  rebolcadas 
No  lodoso  bordel,  no  lodo  impuro 
Do  século  em  que  viveis!... 

Por  tardas  noutes. 
Nos  cândidos  lencóes,  que  a  neve  embaçam, 
Que  loucos  pensamentos,  que  volúpias. 
Quando  a  sós,  nâo  pensaes!  —  e  o  corpo  virgem, 
Meio  posto  em  nuez,  na  sôde  hysterica, 
E  a  face  a  enrubecer,  bem  como  as  flores 
Do  eloendro  da  Itália,  e  os  olhos  negros 
Cabidos  em  langor,  e  o  lábio  tremulo... 
Em  que  pensaes  entoo?... 

Quando  a  balança 
Da  paterna  ambição  curva  uma  concha 
Ao  peso  de  ouro,  que  a  nobreza  compra 
E  o  anadema  de  virgem;  vós,  que  amadas 
Talvez  fostes  de  alguém,  que  n'outra  concha 
Depõe  riquezas  de  um  talento  fértil, 
Os  sonhos  de  um  porvir,  glorias,  espYanças... 
(  E  a  sedenta  balança  immovel,  queda!) 
E  o  fogo  do  seu  estro,  e  os  sentimentos 
Resumidos  n*um  só,  e  os  seus  anhelos... 
(E  a  sedenta  balemça  immovel  inda!) 
E  os  prantos  de  sua  alma,  e  os  seus  segredos 
Mais  Íntimos  do  peito,  e  crenças,  tudo... 
(E  a  sedenta  balança  immovel  sempre!) 
Por  elle  o  que  fizestes?  —  desprezal-o, 
Como  as  flores  pretéritas  de  um  baile! 


i 


\ 


HIBTOBIA  DA  LITTSBATUfiA  BaASILUXA  333 

O*  mulheres  de  marmor!  que  esquecestes 
Aquelle  coraç&o,  que  tanto  amou-vos, 
Que  em  febre  delirante  aperta  e  beija 
—  Pobre  louco!  —  o  pfidlor  inda  das  flores 
De  suas  illusões  — -  fanadas  todasl 

Vós,  mulheres,  que  sois?  porque  evitardes 
As  que  a  vida  trasladam  d'esses  quadros 

Da  antiga  Babylonia?... 
Menos  rudes  não  sois,  nem  sois  mais  bellasl 
Mais  impuras  —  talvezl  ellas  vendiam 
As  horas  de  prazer,  vendiam  caro 
As  bellezas  do  corpo  a  larga  de  ouro, 
Vós  por  ouro  vendeis  a  vossa  vida. 

Mercadejais  vossa  almal 

Não  ha  descrel-o,  pois  :  gasta-se  a  honra 

No  brilhar  dos  salões,  onde  se  esfolham 

Da  capella  da  virge,  uma  por  uma, 

As  meigas  flores,  que  a  innocencia  aroma! 

N*esse  borbuletar  de  mil  amores 

Muito  riso  se  murcha,  e  mais  de  um  lyrío 

Perde  o  meigo  viçar  dos  seus  perfumes!  » 

)  poeta  castiga  n'estes  versos  a  falsa  virgindade,  oriunda 
vicies  da  educação  corrente,  e  profliga  a  anciã  de  riqueza 
geral  dos  casamentos. 

íaveflria,  entretanto,  uma  observação  a  fazer-lhe  e  é  esta  :  na 
p  parte  dos  enlaces  matrimoniaes  não  são  somente  as  fami- 

das  moças  que  procuram  fazer  bons  negócios,  arranjando 
voQ  ricos  ;  infelizmente,  em  muito  maior  escala,  os  homens 
le  buscam  arranjar-se,  fazendo  bõa  negociata  argentaria... 

rçsultado  é,  muitas  vezes,  na  posterior  vida  matrimonial 
rem  regularmente  arraniados,..  os  homens.  O  poeta  devia 
sido  meus  completo  e  castigar  á  direita  e  á  esquerda, 
poesia  romântica  em  sua  generalidade  não  comprehendeu 
da  social ;  demasiado  hábeis  em  pintar  seus  seoitimentos 
;oaes  e  Íntimos,  faltava  aos  românticos  o  estudo  e  a 
reza  para  pintarem  os  sentimentos  alheios  e  comprehen- 
m  as  aíleições  collectivas. 


1 


334  HISTORIA  DA  LITTEBATUEA  BRA8ILBIBA 

Tad  O  motivo  de  desacertarem  sempre  sobre  a  mulher. 

Reparem-se  as  poesias  românticas ;  n'ellas  a  mulher  ou  é 
logo  elevada  á  categoria  de  anjo,  fada,  sylphide,  ente  sorbre- 
natural ;  ou  é  arrastada  logo  á  lama  como  vil  peccadora.  Não 
ha  meio  termo  :  nâo  se  concebe  que  entre  anjo  e  demónio  ha 
uma  gradação  infinita  que  comprehende  a  realidade  da  vida. 

Calasans  coi-participou  d'essa  anomalia  litteraria,  ainda  que 
tivesse  sido  dos  menos  achacados». 

No  poemeto  Wiesbade,  uma  das  mais  interessantes  pro- 
ducções  da  romântica  brasileira,  as  feições  realistas  sfto  ainda 
mais  definidas. 

O  poeta  faz  a  pintura  seVeira  da  sociedade  elegante  d©  joga- 
dores de  roleta  n'aquella  cidade  allemã. 

E'  digno  de  lôr-se  esse  retrato  da  vida  social  eiu*opéa  feita 
por  um  americano. 

Calasans  era  um  romântico  que  sabia  vôr,  sabia  observar. 

E  esta  nota  do  talento  do  moço  sergipano  nâo  passou  des- 
percebida ao  critico  M.  P.  Oliveira  Telles  no  seu  bello  estudo 
sobre  Wiesbade  (1). 

Apenas  se  deve  accrescentar  que  essa  qualidade  o  escriptor 
sergipano  revelou-a  desde  os  seus  primeiros  ensaios. 

Algumas  palavras  sobre  o  lyrista,  antes  de  passar  a  outro. 

Como  lyrico  o  desventurado  poefta  não  foi  dos  mais  valentes 
do  Brasil  pedo  que  toca  á  vida,  ao  vigor  da  imaginação  e  ao 
calor  e  exuberância  das  imagens.  Tem  correcção,  tem  facili- 
dade ;  não  temi  riqueza  ei  brilho. 

Em  seus  livros,  s©  nâo  existem  muitas  peças  verda- 
deiramente superiores  no  sentido  de  quei  falo,  sobram  bellos 
pedaços  de  bem  alentada  poesia. 

Eis  um  trecho  : 

(c  E  as  horas  vão  tão  breves,  quando  uma  alma 
Vai  n'outra  alma  encontrar  porções  de  vidai 
Quahdo  o  olhar,  que  nos  olha,  é  meigo  e  temo, 
Quando  a  voz,  que  nos  fala,  estremecidatl 

(1)  Vide  O  Microscópio,  Recife,  1882,  n.  2,  pag.  12. 


HISTOBIA  DA  LZTTSRATUUA  BRA8IUBISA  335 

£  OS  dias  vÂo  subtis,  tôo  perfumados 
Bem  como  da  odalisca  o  olente  banhol 
E  a  vida  é  tão  suave,  quando  o  mundo, 
Alheio  ao  nosso  goso  é-nos  extranho! 

O  azul  do  armamento  é  t&o  sem  nódoas, 
Às  nuvens  de  um  trajar  tão  setinoso, 
As  ílôres  teem  segredos  tâo  queridos, 
E  os  ventos  um  soprar  tâo  melindrosol 

E  o  sol  no  seu  zenith  equilibrado, 
A  terra  vivecendo  em  seus  dfiirdejos. 
Vem  beijar-nos  o  craneo  com  seus  raios, 
Comnosco  repartir  vem  seus  lampejos! 

E  o  mar  tranquillo,  qucd  dormir  de  infante, 
Refranjando  de  espuma  a  praia  nuda, 
Nos  conta  ao  coração  seus  mil  arcanos 
N'uma  phrase  sentida  inda  que  muda! 

E  a  lua,  a  nossa  lua,  em  seus  pallores 
Nos  revela  o  sentir  dos  seus  mysterios; 
Sabemos  entender  as  orvalhadas, 
Que  a  noite  choviscou  em  cemitérios! 

E  os  dias  vão  subtis,  e  as  horas  doces 
Como  um  canto  ao  luar  das  Granadiaas^ 
E  a  vida  vai  suave,  como  o  orvalho 
Do  cálix  a  pingar  d'alvas  boninas! 

E-  as  horas  vão  tão  breves,  quando  uma  alma 
Véií  n^outra  alma  encontrar  perções  de  vida! 
Qucuido  o  olhar,  que  nos  olha,  é  meigo  e  terno. 
Quando  a  voz,  que  nos  fala,  estremecida!  »  (1) 

•mo  expressão  lyrica  ii'aquilloi  que  o  poeta  possuía  de 
selecto,  é  digna  de  leitura  a  bella  poesia  A  Pomba  do 
,  cujo  principio  é  este  : 

c(  Brilhava  a  lua  sob  um  céo  de  seda. 
Recamado  de  estrellas  diamantinas, 

JltimoM  Pagina*^  112. 


336  HI8T0BIA  DA  LITTESATUEA  BEABILSIRA 

Como  donzella  nos  salões  de  um  baile 
Aos  trementes  clarões  das  serpentinas. 

N'uma  planície,  que  florestas  fecham, 
Escondendo  fiu)s  mortaes  um  paraiso, 
A  m&o  do  Eterno  se  esmerou  pintando 
Um  manso  lago  do  crystal  mais  liso. 

Fulgente  lamina  de  metcd  pulido 
O  lago  solitário  parecia, 
Onde  os  bafejos  de  uma  aragem  branda 
Finos  traços  na  ílôr,  leve,  esculpicu 

E  da  floresta  nas  selvagens  harpas 
Expiravam  do  amor  longinquas  noteis, 
Como  os  murmúrios  de  adormida  nympha, 
Bater  das  azas  de  gentis  gaivotas. 

£  da  noite  a  mudez  n*alma  fnfundia 
Philtro  indivisel  de  arroubada  scisma, 
E  um  céo  de  enlevos  suggería  a  ideia, 
Lindas  nuanças  de  dourado  prisma. 

E  os  olhos  fitos  na  estrellada  €d)obada, 
Pensava...  o  que  eu  pensava?  um  sonho  vago; 
Quando  disperto  ás  harmonias  sanctas 
De  uma  fada  de  amor,  que  habita  o  lago, 

Indeciso,  encantado,  em  sobresalto, 
Distincto  vejo,  na  azulada  veia. 
Fiel  transumpto  de  sonhada  imagem. 
Que  Deus  de  um  riso  por  capricho  crôa, 

N'um  batel  de  marfim,  orlado  de  ouro, 
De  carmineo  veludo  atapetado, 
Vi-a  sentada,  com  a  madeixa  ao  vento. 
Em  riquíssimas  colchas  de  brocado. 

E  os  finos  dedos  ameigando  as  cordas 
De  uma  lyra,  que  o  Libano  provôra, 
Soltai^a  um  hymno  doce  c  mavioso. 
Qual  somente  Eloah  nos  céos  taiigera  »  (1). 

(1)  Ultimas  PajinaSf  pag.  121. 


J 


HISIOBIA  DA  LITrSBATTTUA  BRASILSIBA  337 

Tcd  o  estylo  do  poeta,  illustre  por  ter  sido  um  reaccionário 
contra  as  pieguices  litterarias  de  seu  tempo.  Só  esta  nota  lhe 
assignalaria  logar  eminente  em  nossas  letras. 

Francisco  Leite, Bittencourt  Sampaio  (1834-1896).  A  pas- 
sagemi  de  Galasans  a  Bittencourt  Sampaio  é  fácil  e  natural  : 
ambos  coevos,  ambos  sergipanos,  ambos  poetas  de  mereci- 
mento. 

Em  Bittencourt  Sampaio  predomina  o  lyrismo  local,  tradi- 
cionalista, campesino,  popular.  Por  este  lado  é  um  dos  me- 
lhores poetas  do  Brasil ;  é  mais  natural  e  espontâneo  do  que 
Dias  Carneiro,  Trajano  Galvão  e  Bruno  Seabra  e  é  mais  ele- 
vado e  artístico  do  que  Juvenal  Galeno.  Rivalisa  com  Joaquim 
Serra  e  Mello  Moraes  Filho. 

Bittencourt  Sampaio  formou-se  em  direito,  pasí^ando  pelas 
duas  faculdades  jurídicas  do  Brasil,  a  de  Pernambuco  o  a 
de  S.  Paulo. 

Depois  de  bacharelado  em  1858  ou  59,  residiu  algum  tempo 
em  Sergipe. 

Foi  eleito  deputado  no  regimen  liguelro  ;  no»  parlamento  não 
se  tomou  saliente.  Ficou  residindo  no  Rio  de  Janeiro,  onde 
falleceu  em  1896. 

Sua  carreira  litteraria  tem  duas  phases  perfeitamente  dis- 
tinctas  :  a  académica,  representada  no  bello  livrinho  das 
Flores  Sylvestres  publicado  em  1860,  e  a  posterior  exercida 
no  Rio  de  Janeiro,  representada  na  Divina  Epopéa. 

Esta  Dwina  Epopéa  é  nada  mais  nada  menos  do  que  a  tra- 
ducção  em  versos  brancos  do  quarto  evangelho ;  é  uma  publi- 
cação extravagante  no  gosto  da  traducção  também,  em  versos 
brancos  das  Catilinarias  de  Cicero  pelo  Dr.  Hanvultando  (1). 

A  decadência  poética  de  Bittencourt  Sampaio  se  me  cmtolha 
evidente. 

Na  historia  litteraria  este  poeta  possuirá  uim  lugar  elevado 
sempre  pelas  deliciosas  Flores  Sylvestres. 

Deve  ser  estudado  ahi. 

Ha  n'ellas  duas  qualidades  de  composições,  as  de  inspi- 

(1)  Este  é  o  auctor  dos  Sentimentos  Harmónicos  e  dos  Opúsculos  Recrea- 
tivos e  Populares, 

HISTOBU  U  iZ 


338  HISTORIA  DA  LITTBfiATUBA  BRASILSIIUL 

raçáo  local  e  sertaneja  e  as  de  inspiração  mais  geral.  N^umas 
e  n'outras  os  dotes  principaes  do  poeta  são  —  a  melodia  do 
verso,  a  graciosidade  que  o  faz  primar  em  pequenos  quadros, 
e  certa  nostalgia  pelas  scênas,  peda  vida  simples,  fácil,  descui- 
dosa  das  regiões  sertanejas  e  campesinas. 

Os  versos  do  poeta  ostenitam  o  dcnguismo,  a  faceírice  das 
morenas  quentes  do  interior.  Está-se  agora  evidentemente 
diante  de  um  problema  litterario  e  ethnographico. 

Já  se  viu  que  a  litteratura  brasileira  desde  os  seus  primór- 
dios queria  ser  a  expressão  de  nossa  raça. 

Mas  qual  era  a  nossa  raça  ?  Aqui  principiavam  as  duvidas ; 
uns  buscavam  a  feição  principal  de  nosso  povo  no  portuguez, 
outros  no  caboclo,  rarissimos  no  africano. 

O  romantismo  reavivou  este  debate  e  deu  até  certo  ponto  a 
palma  aos  selvagens  pelo  órgão  de  Gonçalvea  Dias,  José  de 
Alencar  e  outros. 

Ao  lado,  porém,  d'estes  mestres  e  com  mais  Uno  e  mais 
critério  do  que  ellee,  levantou-se  um  grupo  de  moços  que  fcH 
procurar  no  povo  actual,  como  elle  se  acha  constituído  no 
mestiço  physico  e  moral,  em  suas  tradições  e  costumes,  a 
no6sa  physionomia  peculiar  de  nação. 

D'ahi  proveio  esse  lyrismo  da  roça,  do  sertão,  dos  matutos, 
dos  tabaréos,  lyrismo  simples,  expressivo  e  mimoso,  quando 
sae  do  alaúde  de  um  poeta  de  talento. 

N'este  caso  acha-se  Bittencourt  Sampaio,  com  a  bellas  poe- 
sias A  Cigana^  Bem  te  m,  A  Rosa  dos  Bosques,  A  Somnambula, 
O  Canto  da  serrana.  Tarde  de  Verâo^  O  Canto  do  gaúcho^ 
Nossa  Senhora  da  Piedade,  O  Lenhador^  O  Tropeiro^  A  Mu- 
cama e  outras  do  género. 

Cumpre  advertir  que  essa  espécie  de  poesia  só  \am  graça 
quando  sabe  alliar  á  verdade  os  primores  da  arte,  as  genti- 
lezas e  galas  do  estylo ;  quando  é  obra  de  um  verdadeiro 
artista.  Fora  d'ahi  só  tem  valor  quando  é  puramente  popular. 
Ou  inteiramente  popular,  anonyma,  colhida  da  bocca  dos 
menestréis  dos  sertões,  ou  então  transfigurada,  depurada,  ele- 
vada pelos  poetas  de  talento. 

Quando  não  é  uma  nem  outra  cousa,  quando  é  um  genaro 
hybrido,  que  nem  é  popular,  nem  culto,  qual  a  produz  Ju- 


HIBTOBIA  PA  LITTIEATUBA  BBABILXimA  339 

!nal  Galeno,  essa  poesia  é  a  mais  enjoativa  triaga  que  se  pode 

laginar. 

Um  poeta  c['este  ultima  espécie  nem  tem  o  mérito  do  Iro- 

!Íro,  do  matuto,  do  tabaréo,  do  caypira,  do  sertanejo  que 

iscanta  suas  trovas,  nem  tem  o  merecimento  de  um  Bitten- 

urt  Sampaio,  de  um  Joaquim  Serra,  de  um  Gentil  Homem, 

j^outros  assim. 

O  poeta  sergipano,  disse  eu,  é  no  género  um  dos  melhores 

'  nosso  paiz.  Ouçam-no  para  concluir  que  assim  é. 

Eis  O  tropeiro  : 

H  Camarada,  toca  avante, 
Que  o  sol  se  vai  occultar ; 
Mais  uma  legoa  adeante 
Devemos  nós  sestear. 

Vês  o  céu?  está  formoso 
Brilha  a  estrella  do  pastor ; 

O  tropeiro  vai  saudoso, 
Vai  cantando  o  seu  amor. 

Lã  deixei  na  minha  terra 
A  mulher  com  quem  casei ; 
Ao  descer  d'aquella  serra 
Saudoso  pranto  choreil 

Que  a  morena  é  minha  vida, 
£'  na  terra  a  minha  flor ; 

A  mfnh*almà  vai  partida. 
Só  me  alenta  o  seu  amor. 

Vivo  ao  sol,  á  chuva,  ao  vento, 
Cuidando  só  do  que  é  meu ; 
Mas  de  cunor  o  pensamento, 
Ai!  morena,  ó  todo  teu! 

Sai-me  do  peito  um  suspiro. 
Quando  vejo  o  sol  se  pór ; 

Tem  poesia  o  retiro, 
Também  tenho  o  meu  amor. 

Olha  a  tropa,  camarada, 
Que  não  se  vá  dispersar ; 
Iremos,  se  está  cançada, 
N'aquelle  pouso  pousar. 


340  HI8T0BIA  DA  LITTEBATUItA  BRASILEIRA 

O  rancho  nâo  é  seguro? 
Pouco  importa  ao  meu  valor. 

Deus  conhece  do  futuro, 
Fez-me  forte  o  seu  amor. 

A  garrucha  trago  ao  lado, 
E  o  meu  trabuco  também  : 
Cobre  o  po'nche  adamascado 
O  punhcd  que  á  cinta  vem. 

Valente  quem  fôr  que  o  diga, 
Ousado  venha  quem  fôr. 

Sei  chorar  minha  cantiga. 
Sei  morrer  também  de  amor. 

Dá-me,  patrício,  a  viola,    , 
Quero  a  modinha  ferir; 
O  meigo  canto  da  rola 
Não  tem  mais  doce  cârpirl 

Que  o  tropeiro  apaixonado 
Tem  na  voz  muito  langor. 

O  meu  peito  vai  ralado, 
Só  me  alenta  o  meu  amor. 

A  ílôr  do  vale  mimosa 
Tem  perfume  a  rescender ; 
Gosto  de  V3l-a  chorosa 
De  manhd  ao  sol  hascer. 

E*  como  ella  a  florzinha 
A  desmaiar-se  de  dôr. 

A  morena  é  toda  minha, 
Deu-me  todo  o  seu  amor. 

Agora  venha  agoa-ardente, 
Quero  o  fandango  tocar  : 
Passa-se  a  vida  innocente 
Quando  se  vive  a  dançar. 

O  trabalho  do  costeio 
Nâo  dosaí^iiuia  ao  Senhor. 

De  chilenas  sapateio, 
No  dançar  vai  muito  amor. 

D'araponga  se  ouve  o  canto 
Lá  para  as  bandas  do  vai : 


HISTOBIA  DA  LITTEBATXTEA  BRASILEIRA  341   * 

A  noite  tem  seu  encanto, 
E  esta  vida  é  sem  igual. 

Mas  é  hora  da  partida, 
Diz  a  estrella  em  seu  fulgor ; 

Vai  minh'alma  entristecida, 
Só  me  alenta  o  seu  amor. 

Quando  voltar  para  a  terra, 
Para  a  terra  onde  eu  nasci, 
Subirei,  contente  a  serra. 
Que  tâo  triste  hontem  desci! 

E  nos  braços  da  morena, 
Gosando  da  vida  a  ílôr, 

Ai!  direi,  a  minha  Helena 
E'  somente  o  meu  amor  »  (1). 

Veja-sd  bem  que  esta  linguagem  é  nacional,  este  typo  é 

cLsileiro. 

Lieiam  A  Mucama : 

c(  Eu  gosto  bem  doesta  vida. 
Porque  nâo  hei  de  gostar? 
A  minha  branca  qfuerída 
N&o  hei  de  nunca  deixar. 
Eu  gosto  bem  d*esta  vida. 
Porque  n&o  hei  de  gostar? 

Tenho  camisa  mui  fina 
Com  mui  fino  cabeção  ; 
As  minhas  saias  da  China 
São  feitas  de  babadão. 
Tenho  camisa  mui  fina 
Com  mui  fino  ceú^eção. 

—  ((  Sinhá,  permitte  que  eu  saia? 
(c  —  A'  tarde  pôde  sahir.  » 
Visto  então  a  minha  saia, 

Lá  me  vou  a  sacudir. 

—  «  Sinhá,  permitte  que  eu  saia? 
«  —  A'  tarde  pôde  sahir.  » 

Flores  Sylcestret,  Rio  de  Janeiro,  18G0,  pag.  137 


342  HISTORIA  BA  LITTERATVRA  BRA8ILEIBA 

Deito  O  meu  torço  com  graça 
£  a  minha  beoa  também; 
Atravesso  a  rua,  a  praça, 
Dizem  logo  :  «  eil-a  que  vem!  » 
Deito  o, meu  torço  com  graça 
E  a  minha  beca  também. 


Se  arrasto  bem  as  chinellas 
As  chaves  fazem  tim...  tim... 
Vejo  £^)rir-se  uma  janella 
D^onde  alguém  olha  p*ra  mim. 
Se  arrasto  bem  as  chinellas 
As  chaves  fazem  tim...  tim... 

E  o  velho  diz  do  sobrado  : 
u  Minha  criola,  vem  cá.  m 
N&o  gosto  do  seu  chamado, 
NSo  sou  crioula :  pYa  lá! 
E  o  velho  diz  do  sobrado  : 
«  Minha  crioula^  vem  cá.  » 

Os  moços  todos  me  adoram, 
Me  chameun  da  noite  flôr ; 
Atraz  de  mim  elles  choram, 
Por  elles  nfto  sinto  íimor, 
09  moços  todos  me  adoram, 
Me  chamam  da  noite  ílôr. 

Tenho  alguém  que  no  caminho 
A*  noite  me  vem  falar ; 
Que  com  affago  c  carinho 
Sabe  a  mucama  abraçar. 
Tenho  alguém  que  no  C€uninho 
A*  Yioite  me  vem  falar. 

Que  me  diz  com  voz  mansinha 
O  que  eu  nunca  ouvi  dizer  : 
(c  Minha  preta,  tu  és  minha, 
Has  de  comigo  viver!  n 
Que  me  diz  com  voz  mansinha 
O  que  eu  nunca  ouvi  dizer. 


BISTOSIA  DA  LITTSBATtTRA  BBABILXIBiW  343 

E*  sinhô  moçol  Que  agrada! 
E*  sinhô  como  nfto  hal 
Diz-me  sempre  :  h  Tem  cuidado! 
Não  contes  'nada  a  sinliál  » 
E'  sinhô  moço!  Que  agrado! 
E'  sinhô  como  n&o  ha! 

Já  nem  tenho  mais  saudade 
Da  minha  terra  gentil! 
Vivo  escrava  da  amizade, 
Quero  morrer  no  Brasil. 
Já  nem  tenho  mais  saudade 
Da  minha  terra  gentil! 

A*  noite  sei  o  meu  ca!hto, 
Que  faz  o  peito  gemer ; 
Mas  n*estes  olhos  o  pranto 
Jamais  ninguém  ha  de  ver! 
A'  noite  sei  o  meu  canto, 
Que  faz  o  peito  gemer. 

Eu  gosto  bem  doesta  vida, 
Porque  nfio  hei  de  gostar? 
A  minha  branca  querida 
Não  hei  de  nunca  deixar. 
Eu  gosto  bem  doesta  vida, 
Porque  não  hei  de  gostar?  »  (1) 

ainda  um  typo  nacional  bem  desenhado. 

etste  o  estylo,  o  tom  geral  do  auctor.  Fora  possivel  fazer 

Ls  citações  e  mostral-o  em  outros  géneros.  E'  preciso, 

n,  pcurar. 

mos  adiante  :  sem  sahir  de  Sergipe  temos  ainda  n*esta 

L 

É  Maria  Gomes  de  Souza  (1837-1893).  Filho  da  cidade  da 
cia,  este  poeta  nasceu,  ao  que  presumo,  em  1837 ; 
)u  ha  poucos  annos,  reduzido  á  extrema  pobreza,  na 
)  de  Barbacena  em  Minas  Geiues. 

ores  Syleestres,  pag.  141.  Foi  esta  Mucama  de  Sampois  que  inspirou 
ta  de  Mello  Moraes  Filho. 


Mi  HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  BRASILEIRA 

Existem  d'elle  dois  volumes  impressos,  um  sob  o  nome 
de  Estanciarias  e  outro  denominado  Velhice  e  Mocidade.  Am- 
bos deixam  agradável  impress<lo.  E'  o  lyrismo  brasileiro. 
Quero  definir  o  poeta  em  duas  palavras  :  elle  vibrou  as  cordas 
do  lyrismo  local,  do  lyrismo  subjectivista  e  especialmente  do 
género  epico-lyrico. 

Doeste,  sua  principal  feição,  são  um  bello  espécimen  os 
versos  que  dedicou  a  Henrique  Dias. 

Eil-os  aqui  : 

«  Do  Norte  a  gentil  sultana 
Cedeu,  pela  prima  vez, 
Sua  cerviz  soberana 
Ao  férreo  jugo  hollcmdez. 
Ai!  pobre  da  malfadada, 
Tão  cruamente  algemada, 
Ao  copo  do  servilismo! 
Que  triste  que  foi-lhe  a  sinal 
Nem  uma  luz  a  illumina 
Nas  profundezas  do  abysmo! 

Seus  lindos  rios  saudosos, 

Seus  frescos,  flóreos  palmares, 

Seus  passeuínhos  formosos 

De  harmonia  enchendo  os  ares, 

Suas  campinas  de  flores, 

Seus  matizes,  seus  verdores 

Vão  ser  bens  d'um  outro  dohol... 

E  tu,  sultana  do  Norte, 

Pelos  caprichos  da  sorte, 

Vaes  dormir  d'escrava  o  somnol  ! 

Nem  mais  a  lua  te  banha 
Com  seus  arroios  de  prata, 
Quando  da  etherea  montanha 
Nos  lagos  teus  se  retrata ; 
Que  se  expira  a  liberdade 
No  seio  de  uma  cidade 
Tudo  ahi  também  expira. 
Como  da  moça  os  encantos 
Vão  morrer  nos  frios  prantos. 
Nos  tristes  ais  que  suspira... 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBA  BBASILBIBA  345 

Porem  nãol  Ao  longe  sôa 
O  grito  horrendo  da  guerra, 
E  ao  som,  que  ao  lo'nge  reboa, 
O  fero  hollandez  se  aterra! 
Erguem-se  as  vastas*  bandeiras. 
Marcham  avante  eis  fileiras. 
Que  em  seu  soccorro  lá  vèm  ; 
Pois  que  do  Norte  a  sultcma 
Sua  cerviz  soberana 
Nunca  curvou  a  ninguém. 

Ao  retroar  das  metralhas. 
Da  guerra  ao  tufão  que  sôa, 
Como  o  génio  das  batalhas, 
Henrique  Dias  lá  vôa! 
Da  larga  mão  bronzeada 
Va^e  pendente  a  núa  espada, 
—  Raio  que  os  máindões  fulminai 
E  cada  golpe  que  vibra 
Faz  quebrar  fibra  por  fibra 
Dos  mandões  a  raça  indiana. 

Preto,  mais  nobre  que  um  nobre, 
Ou  nobre  como  um  Bragança, 
Sob  a  epiderme  de  cobre 
Uma  alma  d'oiro  descança! 
E,  se  as  coroas  coubessem 
A^quelles  que  se  expozessem 
Da  sua  pátria  em  defesa. 
Seria  o  rei  mais  perfeito... 
Se  é  que  a  purpura  ~  do  peito 
Não  faz  murchar  a  nobreza... 

Matando  a  todos  de  inveja 
Com  sua  nobre  altivez, 
Temeu-o  então  na  peleja 
O  fero  povo  hoUáhdez. 
E  tu,  valente  soldado. 
Corajoso  e  denodado 
Despedes  golpes  de  morte; 
Por  teu  denodo  guerreiro 
Livraste  do  captiveiro 
A  linda  filha  do  Norte. 


346  HISTORIA  DA  LITTEBATITItA  BRAfilLEI&A 

Então  a  gentil  captiva 
Sua  belleza  assumio, 
E  ei^uendo  a  cerviz  altiva 
Ao  seo  guerreiro  sorrio  : 
Assim  a  virgem  formosa 
Expõe  as  faces  de  rosa 
Aos  beij(5s  do  amante  seu, 
Tão  satisfeita  e  contente 
Do  rico  e  lindo  presentp 
Que  pela  festa  lhe  deu. 

Feliz  quem  leva  da  espada 
Em  prol  de  sua  nação! 
Ou  quem,  vendo-a  escravisada, 
Expira,  como  Catão! 
Catão!  Afnda  parece 
Que  o  Capitólio  estremece 
A'  voz  do  grande  Romano! 
Catão!  Com  quanta  saudade 
Vio  calcada  a  liberdade. 
Aos  pés  do  Cczar  tyranno! 

Foi  assim  Henrique  Dias, 
Valente  como  ninguém! 
De  sua  nobre  ousadia 
Deu-lhe  o  Brasil  parabém. 
Oh!  Bayard  da  liberdade, 
Teu  nome  famoso  ba-de 
Affrontar  do  tempo  a  acção  ; 
E  a  par  dos  nobres  guerreiros, 
E  dos  heróes  brasileiros 
Terás  a  tua  oblação  »  (1). 

Estes  versos  são  de  1857;  n'elles  ha  uma  certa  ousadia, 
uma  certa  vivacidade  que  agradsirn. 

Se  Calasans  primou  no  semi-realismo  dos  salões,  se' Bit- 
tencourt Sampaio  ssdientou-se  no  Ivrismo»  local  e  sertanejo, 
José  Maria  Gomes  de  Souza  foi  um  bom  cultor  da  poesia  his- 
tórica e  patriótica ;  e  esta  poesia  objectivista  é  muitas  vezes 

(1)  Lyra  Sergipana^  Aracaju,  1883  ;  pag.  1.  Cito  a  poesia  por  um  exem  - 
piar  que  possuo  corrigido  pela  m&o  do  próprio  auetor. 


HISTORIA  DA  LITTK&ATURA  BBABILSIBA  347 

ma  das  grandes  vozes  de  um  povo ;  é  a  naçfto  que  se  revê  nos 

3US  heróes. 


Elzeario  da  Lapa  Pinto  (1840-1897)  é  também  um  filho  de 

ergipe,  onde  veio  á  luz  em  1840. 

Sua  biographia  é  obscura ;  abandonando  a  província  natal, 

sidiu  na  Bahia  e  mais  tarde  no  Rio  de  Janeiro  em>  condi- 

ies  idênticas  ás  de  José  Maria  Gomes  de  Souza  em  Minas. 

illeceu  em  1897. 

Pobres  talentos  desprezados,  marlyrisados  pela  cruel  indif- 

*ença  de  um  publico  futilissimo  I 

Blzeario  publicou  muitas  producçOes  pelos  jornaes  em 

neros  diversas ;  sua  nota  predominante  ó,  como  em  José 

iria,  o  género  epico»-lyrico. 

í'este  estylo  escreveu  elle  O  Festim  de  Balthazar,  uma  das 

ysíBLS  mais  bellas  da  lingua  portugueza  no  século  xix. 

ruma  historia  documentada  da  litteratura  brasileira  seria 

a  lacuna  a  falta  dei  tã.o  interessante  inspiração. 

y  este  o  Festim  de  Balthazar  : 

«  Queimai  perfumes,  escravasl 
Trazei-nos  sslndalo  e  flores! 
Vinho!  do  vinho  09  vapores 
Levem  presagios  cruéis! 
Por  Boal!  Senhores  e  donas, 
N&o  morra  o  prazer  da  festa! 
Por  Baal!  Por  Baal!  sôe  a  orchesta, 
Tangei,  tangei,  menestréis!  » 

As  \\iz%9  tremem  nas  salas. 

Treme  o  ouro  e  a  pedraria; 

Das  amphoras  transborda  a  orgia 

Como  as  espumas  do  mar  : 

—  «  Por  Baal!  Senhores  e  donas, 

Repete  a  nobre  assembléa. 

Ao  grande  rei  de  Qialdéa! 

Ao  grande  rei  Balthazar!  n 

Rompe  a  orchestra  —  e  as  concubinas 
Com  08  seios  nús,  palpitantes, 


HISTOKIA  DA  LlTTSaATITKA  S&ABILXIBA 

Entoam  febris  descantes. 
Lasciva,  ideal  canç&o ; 
E  em  volta  ao  seu  throno  d'ouro 
Nabonid,  rei  poderoso. 
Solta  a  alma  abadar  no  gozOi 
Em  que  se  afoga  a  raz&o. 

E  ferve,  referve  a  orgia 
Ao  som  da  orctiestra  estridente!... 
E  a  lua  toca  o  occidente. 
Sobre  a  cidade  immortal : 
Talvez  mande  a  peregrina. 
Do  monte  EphraiD  pendida. 
Um  raio  por  despedida 
Do  Cedron  sobre  o  crystal. 

Manda,  sim,  sobre  minas 
Que  abi  só  resta  um  montão 
Mirando  a  gentil  captiva. 
Dilecta  filha  de  Abrahfto  : 

—  Cl  Ai  terra  de  Deus  querida! 
'  Ai  terra  da  Promissfiol 

i<  Terra,  terra  bemfadada, 
Outr'ora  —  esposa  de  Arfto, 
Hoje  minas  dispersas, 
Hoje  o  lucto  e  a  escravidfto  ; 

—  Ai  terra  de  Deus  queridal 
Ai  terra  da  Promiss&o! 

i<  Teus  filhos  gemem  distatate. 
Jamais  aqui  voltarão... 
Murchai,  gardenias  do  pradol 
Chorai,  divino  Jord&o : 

—  Ai  terra  de  Deus  queridal 
Ai  terra  da  Promiss&o ! 

II  Onde  as  endechas  saudosas 
Dos  cantores  de  Si&o? 
Aves  do  céu,  vossos  carmes 
N&o  solleis  mais  aqui,  nfiol 

—  Ai  terra  de  Deus  queridal 
Al  terra  da  Promias&ol 


HI8T0BIA  DA  UTTBRATIXRA  BBA8ILBIEA  349 

(( Lyrio  pendido  no  valle, 
Varreu-te  acaso  o  tufáo? 
Nem  uma  gotta  de  orvalho! 
IsaacI  DavidI  Salom&o! 

—  Ai  terra  de  Deus  queridal 
Ai  terra  da  Promissão!  » 

E  pela  encosta  do  monte 

A  tristesinha  la  vai, 

Mandando  um  ultimo  pranto. 

Um  doce  e  sehtido  ai, 

De  um  lado  Ã  immersa  Sodoma, 

Do  outro  ao  monte  Sinai. 

E  cresce,  recresce  a  orgia 
Nos  salões  de  Balthazar, 
Ondas  de  pura  harmonia. 
Anciãs  de  puro  gozar, 

—  Entanto  a  cidade  dorme 
Envolta  no  manto  enorme 
Da  noite  —  somno  fatal! 

E  aquelle  peito  gigante 
Devora  sede  arquejante 
De  vicios,  sede  infernal! 

Nas  salas  grato  ruido, 
Luzes,  perfumes  e  amor  ; 
Lá  fora  estranho  rugido, 
Surdo,  ao  longe,  e  ameaçador. 
No  horizonte  um  fumo  denso 
Se  eleva,  bem  como  o  incenso 
Nas  salas  e  a  embriaguez... 
Que  importa  ao  rei  o  horizonte. 
Se  as  flores  ornam-lhe  a  fronte. 
Se  o  âmbar  corre-lhe  aos  pés?! 

«  Ao  rei!  ao  rei  poderoso! 
Ao  reino  que  não  tem  fim! 
Como  o  Eufrates  caudaloso 
Corra  a  onda  do  festim!  »    . 

—  ((  Perdão :  as  taças,  senhores. 
Não  podem,  tão  sem  lavores, 


350  HIBTOAIA  DA  LITTXRATUSA  BBABILBIRA 

A'  festa  de  um  rei  convir  ; 
Temos  os  vasos  sagrados!... 
S&o  soberbos,  cinzelados, 
Do  ouro  fino  de  Ophir. 

«  Trazei-m'os  n  já  vacillanle 
Diz  o  rei :  «  Viva  o  Selohorl  » 
E  ruge  o  vento  distante, 
Como  um  gemido  de  dôr. 
Entram  luzidos  criados 
Trazendo  os  vasos  sagrados 
Do  templo  de  Salomão... 
—  E  ruge  o  vento  mais  forte, 
Lançando  vascas  de  morte 
Pelos  umbraes  do  sal&o. 

(( Transborde  o  néctar,  amigosi 
Eis  os  vasos  de  Jehovahl 
N^esses  lavores  antigos, 
Vô-se  a  captiva  Judá.  >» 
E  cresce  o  estranho  rugido, 
Surdo,  rouco,  indefinido... 
((  São  os  soluçosr  do  Iranl  » 
E  ruge,  ruge  mais  perto... 
((  Sâo  os  ventos  do  deserto 
Sobre  as  areias  de  Oman!  » 

Nas  caçoulas  fumegantes 
Arde  o  myrto  e  o  aloés, 
Ao  som  das  notas  vibrantes 
Sobe,  sobe  a  embriaguez. 
c(  Por  Baalí  Por  Boal!  Pelos  Medos! 
Quebrem-se  as  harpas  nos  dedos 
Trema  o  tecto  do  sal&ol  n 
Horror!  ao  tinir  das  taças, 
Núncio  de  eternas  desgraças. 
Brame  na  sala  um  tuffto. 

cc  Depressa,  luzes,  depressa... » 
Diz  o  rei :  «  longe  o  terror! 
Mas  não...  >i  e  o  vaso  arremessa, 
Recua  tremulo...  horror! 


HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BSABILKIRA  351 

£'  que,  em  meio  á  noite  brusca, 
Mão,  que  de  brilhos  offusca, 
Toda  a  sala  illuminou; 
Cometa,  a  correr  ardente, 
Estranha  cifra  candente, 
Pelas  paredes  traçoul 

c<  Meu  collar  de  pedrarias 
Aquelle  que  decifrar! 
Venham  magos  e  adivinhos, 
Depressa,  Beltisasar. 
Elle,  o  mais  sábio  de  todos. 
Pôde  o  mysterio  explicar!  » 

E  dorme  a  cidade  lassa 
Dos  vicios  na  prostração, 
E  cresce,  cresce  o  rugido 
Qual  resonar  de  um  volcão  : 
Ou  é  tremenda  borrasca, 
Ou  é  povo  em  multidão. 

Entre  os  famosos  convivas 

Mais  um  conviva  apparece. 

As  sandálias  do  proscripto 

Traz...  quem  é  que  o  n&o  conhece? 

Diante  do  rei  se  inclina, 

Do  rei,  que  ao  vel-o  estremece. 

(( Bemvindo  sejas,  captivo, 
Daniel  Beltisasar ; 
Se  sabes  lôr  no  impossivel. 
Tens  alli,  podes  falar  : 
Terás  um  manto  de  purpura. 
Terás  meu  reglo  collar.  » 

De  novo  ante  o  rei  se  inclina 
A  cabeça  do  anci&o. 
Depois,  elevando  a  fronte 
Altiva,  e  estendendo  à  mão, 
Busca  achar  da  ignota  cifra 
A  divina  inspiração. 


352  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BBA8ILEIBA 

Nem  do  Tibre  o  velho  roble, 
Nem  os  cedros  do  occidente 
A  fronte  mais  alto  elevam, 
Mais  nobre,  mais  imponentel 
O  génio  é  como  as  estrellas. 
Beija  os  pés  do  Omnipotente. 

((  Rei!  escuta  a  voz  do  Eterno, 
Que  por  meus  lábios  te  fala : 
O  crime  mais  execrahdo 
O  teu  reinado  assignala  : 
Vê,  revô  tua  sentença 
Escripta  em  letras  de  opala. 

K  Não  ouves  bramir  confuso 
Como  o  arfar  da  tempestade? 
São  os  Persas  que  se  arrojam 
Sobre  os  muros  da  cidade  : 
Perdeu-te  a  lascívia  impura, 
Reil  perdeu-te  a  impiedade. 

cc  Profanaste  os  vasos  santos 
Nas  torpezas  de  um  festim, 
Teus  dias  foram  contados 
Como  os  da  bella  SéboimI 
Agora  o  brinde,  senhores, 
—  Ao  reino  que  não  tem  íim!  » 

Gesto  grave,  altivo,  acerbo. 
Assim  fala  o  escravo  hebreu. 
Soletrando  o  ardente  verbo. 
Que  mão  de  raio  escreveu  : 
E  depois,  braços  pendidos, 
Olhos  de  chammu  incendidos. 
Verberando  a  maldição. 
Deixa  a  sala,  onde  se  espalha, 
Como  trevosa  mortalh8^ 
O  terror  na  escuridão. 

E  quando  o  raio  primeiro 
Do  sol,  singrando  o  horisonte. 
Rompe  o  denso  nevoeiro 
Sobre  o  cabeço  do  monte. 


HISTORIA  DA  LITTERATURA   BRASILEIRA  353 

£m  vez  da  cidade  altiva, 
Vô  —  desgreíihada  captiva, 
A  dissoluta  Babel, 
E  alem  dos  muros  colossos, 
D'aquelle  povo  os  destroços 
E  um  homem  só  —  Daniel!  )>  (1) 

E'  uni  bello  poemeto  em  verdade;  traz  a  data  de  1866;  antes 
lepois  o  poeta  nâo  chegou  mais  a  essa  altura. 
ílzeario  Pinto  será  sempre  o  poeta  do  Festim  de  Balthasar, 
no  Odorico  Mendes  será  o  poeta  da  Tarde,  como  Domingos 
Magalhães  será  o  poeta  de  Napoleão  em  Waterloo^  e  tantos 
TOS  vates  d6  uma  só  poesia. 

.  bella  producção  do  malfadado  sergipano  são  esses  versos 
es,  vibrantes,  inspirados,  nessa  eterna  poesia  dos  hebreus, 
ira  e  grave  a  modular  suas  estranhas  endechas  desde  o 
\o  Pentatheuco  até  as  Orieniaes  do  sonhador  francez  e  as 
ressantes  producções  de  Schefer,  Bodenstedt,  Daumer  e 
as  lyristas  allemães.  E'  a  poesia  oriental  rejuvenescida 
e  os  espiritas  do  occidente  n'umi  século  curiosa  das  bel- 
5  da  liWeratura  universal.  Nos  últimos  annos  Luiz  Delfino 
Santos  tem  seguida  muito  esta  direcção  sem  todavia 
lar  a  graciosidade,  movimento  e  brilho  do  Festim  de  Bal- 
ir,  quie  tem  sido  até  agora  no  Brasil  o  mais  perfeito  pro- 
>  do  género, 
ancemos. 

iNKLiN  Américo  de  Menezes  Dória  (1836 ).  —  Na 

la  de  poetas  e  escriptores  que  figuraram  de  1855  a  1860 

ecife  contavam-se  os  dois  bahianos  Franklin  Dória  e 

io  de  Menezes. 

;te  direi  quando  falar  dos  dramatistas  ;  do  outro  agora  é 

jo  de  tratar. 

tarefa  6  fácil.  Dória  ahi  anda  ás  vistas  de  todos ;  foi 
proeminente  na  politica,  occupou  elevadas  posições, 

[miradores  e  amigos,  sua  biographia  corre  amplamente 

riuna  de  Franklin  Dória,  deve-a  elle  principalmente  ao 

'/•«  Sergipana f  Aracaju,  1883,  pag.  58. 

ISTORIA     II  23 


354  HISTOBIA  DA  LITTBRATUBA  BRASILBIILA 

seu  bom  senso,  á  sua  perspicácia  e  atilamento,  que  o  levaram 
a  iniciar-se  a  geito  na  politica  e  a  cercar-se  de  bons  e  presli- 
mosos  amigos. 

Não  tenho  que  lhe  contar  a  vida ;  íica  isto  a  escrij>lores 
mais  habilitados.  E'  trabalho  aliás  já  feito  (1). 

Para  prendel-o  a  seu  tempo  ei  ao  seu  meio  e  assim  facilitar 
ao  meu  leitor  a  comprehensáo  doesse  typo  litterario,  basla-me 
dizer  que  o  poeta  é  de  1836  e  nasceu  na  pittoresca  Ilha  dos 
Frades  na  vasta  Bahia  de  Todos  os  Santos;  formou-se  era 
direito  em  Pernambuco  em  1859 ;  atirou-se  depois  á  advo- 
cacia, ao  magistério  e  especialmente  á  politica ;  foi  presidente 
de  província,  deputado  geral  e  ministro  de  Estado. 

Franklin  Dória  é  talvez  mais  um  politico  do  que  um  tempe- 
ramento litterario ;  por  esta  face  elle  pode  ser  apreciado  como 
poeta,  como  orador,  como  critico,  como  jurista. 

O  poeta  publicou  em  1859  uma  coUecçáo  lyrica  sob  o  titulo 
de  Enlevos  e  em  1874  uma  traducçâo  da  Evangelina  de  Long- 
fellow,  além  de  uma  ou  outra  peça  destacada  pelos  jomaes 
e  periódicos. 

O  orador  parlamentar  proferiu  bom  numero  de  discursos 
alguns  dos  quaes  correm  em  brochuras.  Na  critica  só  lhe  co- 
nheço um  estudo  sobre  Junqueira  Freire  e  outro  sobre  Pedra 
Branca.  Como  advogado  e  jurista  possue  um  livro  sob  o 
titulo  de  Questões  Jurídicas  e  outro  sobre  a  Letra  de  Cambio, 

N'estas  duas  ultimas  qualidades  nada  ha  a  dizer  de  especial 
sobre  Franklin  Dória  ;  seus  estudos  a  respeito  dos  autores  das 
Contradicções  Poéticas  e  dos  Túmulos  nada  encerram  de  su 
perior ;  os  livros  jurídicos  são  de  caracter  pratico. 

Ouça-se  principalmente  o  poeta  e  no  que  elle  tiver  de  mais 
original.  Deixe-se  a  bella  traducçâo  da  Evangelina  e  abraxn-se 
os  Enlevos, 

A  poesia  doeste  bahiano  é  plácida,  religiosa,  contemplativa, 
resignada ;  nada  de  tumultos,  de  luctas  d'alma,  de  combates 
do  espirito. 

Possue,  porém,  méritos  bem  assignalados  :  é  correcta  de 

(1)  Vide  nos  Eêtadiêtas  e  Parlamentar eê  por  Timon  —  o  folheio  sobrf 
Conselheiro  Franklin  Dória.  O  conselheiro  F.  Dória  teve  no  império  «» 
titulo  de  Barão  de  Loreto. 


i 

1 


I 

f 


HIBTOaXA  DA  LITTlBATTrSA  BRASILBIRA  355 

guagôQi  e  de  metro,  é  quasi  sempre  de  caracter  objectivo ; 

a  em  algumas  peças  duas  qualidades  que  a  prendem  a 

ihor  poesia  do  norte,  a  saber,  vigor  descriptivo  e  caracter  \ 

Honal  e  brasileiro. 

)  poeta  não  foi  em  sua  puerícia  litteraría  refractário  ás 

luencias  do  meio  nortista ;  elle  mesmo  dá  conta  das  con- 

5es  que  contribuiram  ali  para  a  formação  de  seu  talento. 

liz  no  prologo  dos  Enlevos  : 

..  folgo  de  declarar,  que  meus  versos  quasi  todos  vieram  á  lux 
i  longe  do  tumultuar  dos  homens,  no  seio  perfumado  das  solt* 
)  campestres.  Foi  em  uma  ilha  pittoresca  e  a  mais  bonita  de  um 
»osinho,  derramado,  com  a  inimitável  symetria  com  que  s&o 
ostas  as  cousas  da  natureza,  pelas  aguas  aniladas  da  vasta 
a  de  Todos-os-Santos. 

ta  ilha,  em  cujo  interior  se  condensam  formosas  florestas  e  se 
^am  floridos  valles ;  cujas  costas  são  povoadas  por  centelhares 
isinhas  de  pescadores ;  antiga  propriedade  de  meus  antepassa- 
na  maior  parte  dé  seu  território,  coube  por  successão,  conforme 
luca  lei  dos  morgados,'  a  meu  pae,  e  é  a  sua  residência,  ha  bom 
[e  annos.  Ahi  foi  onde  nasci...  E'  a  minha  <(  ilha  encantada  », 
Q  sem  outras  feiticeiras  mais  do  que  as  moreínas  camponezas, 
uas  e  jovlaes ;  e  sem  mais  outras  delicias,  que  n&o  sejam  os 
is  das  moitas  circumvisinhas,  a  sombra  e  o  fresco  das  man- 
is,  os  sonoros  cochichos  deis  palmas  do  coqueiro,  o  azul  trans- 
te  de  um  ceu  desannuviado,  a  misturar-se  imperceptivelmente 
verde  das  sumidades  dos  montes  longínquos,  e  a  espelhar^se 
leríicie  de  um  estreito  canal. 

que  impaciência  eu  volvia  ás  praias  da  ilha,  depois  de  con- 
3  meus  trabalhos  escolásticos  do  anno  lectivo,  na  Faculdade 
3ito  doesta  cidade!  Era,  observadas  as  devidas  proporções,  a 
/Iva  da  passagem  do  poeta  florentino  da  região  sombria  do 
)rio  para  o  recinto  luminoso  e  bemaventurado  do  paraíso.  A 
lhos  se  patenteava  um  pequeno  mundo,  que  eu  achava  sempre 
smpre  novo,  embora  o  conhecesse  desde  pequenino,  e,  longe 
m  uma  quasi  solidão  de  exiUo,  o  trouxesse  todo  estampado 
te  com  lagrimas  de  saudade.  N'esses  sítios  de  mim  tão  que- 
peravarse  em  minha  natureza  physica  e  moral  uma  pro- 
codificação,  uma  espécie  de  resurreição  dupla,  produzida 
es  sadios  do  campo  e  pela  presença  dos  entes  que  me  são 
*os...  A  ilha  era  o  abrigo  providencial  que  me  preparava  o 


356  HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BBASILBIBA 

tlestino,  para  restaurar-me  as  forças  gastas  do  corpo,  e  renovar-me 
as  do  espirito,  que  vergava  ao  peso  do  tristeza  e  do  tédio. 

Dir-se-hia  que,  depois  de  tantas  fadigas,  o  céu  querendo  recom- 
pensar-me  ,  se  interessava  directamente  pela  minha  ventura. 

Por  uma  coincidência  deliciosa  acontecia,  que  desapressado  da 
tarefa  de  meu  exame,  que  caia  para  os  flns  de  novembro,  eu  chc- 
ij^nva  á  ilha  nos  lindos  dias  de  verão.  A  perspectiva  dos  campos  era 
risonha  e  fresca. 

A.  estação  das  graças  e  das  flores  derramava  sobre  ella  as  tintas 
folies  e  deslumbrantes  de  sua  paleta  mimosa.  O  sol,  roçando  com 
os  raios  vivamente  luminosos  as  campinas,  os  riachos,  as  vargens, 
os  bosques,  as  praias,  as  ondas,  convertia  tudo  em  ouro  puro,  como 

0  rei  Midas  da  fabula.  A  cicopira,  uma  das  arvores  symbolicas  dos 
nossos  matos,  enfeitava-se  de  íloresinhas  roxas,  como  de  um  veu  de 
viuvez  :  cada  uma  das  outras  arvores  parecia  um  vasto  e  hcurmo- 
nico  ramalhete,  que  impregnava  a  atmosphera  de  exquisitos  per- 
fumes. 

De  momento  a  momento  ouviam-se  gorgeios,  trinados  á  porfia 
lior  bandos  de  pássaros  de  differentes  familias ;  o  borborinho  das 
VHgas  do  canal;  um  som  mysterioso  que  partia  da  espessura;  um 
como  soluçar  de  saudade,  que  trazia  de  longe  a  viração  que  refres- 
cava. Era  a  musica  da  solidão. 

Orei,  em  uma  linda  manhã,  eu  subia  pelos  outeiros,  e  d*abi  espe- 
]'nva  pelo  raiar  do  sol,  para  íita-lo  na  intensidade  de  seu  brilho.  O 
raiar  do  sol  é  a  scena  mais  animada  e  alegre,  que  ainda  contemplei, 
fói  a  das  cidades  ;  é,  portanto,  a  que  mais  me  tem  impressionado. 

Prefiro-a  á  do  occaso,  que  é  de  uma  tristeza  monótona,  que 
ni>prime  e  abafa  o  espirito.  Ora,  cu  ia  ao  povoado  dos  pescadores, 

1  eudeiros  de  meu  pac,  escutar-lhes  a  narração  de  sua  vida  no  mar, 
(*ercada  de  trabalhos,  tempestades  e  perigos ;  entreter-me  com  a 
confidencia  dos  episódios  romanescos  de  seus  amores  e  de  suas  su- 
perstições. 

Gastava  horas  inteiras  doeste  modo,  sentado  á  popa  de  uma  canoa 
encalhada  na  areia,  ou  reclinado  sobre  palhas  macias,  debaixo  de 
unia  arvore  copada,  que  elles  costumam  plantar  em  frente  das 
])obres  habitações,  para  abriga-los  com  a  doce  sombra,  quando 
levam  em  terra  a  concertar  seus  apparelhos  de  pescaria,  ou  a  fabri- 
ca rYiovos. 

Outras  tardes  eu  as  preenchia  com  passeios  caprichosos  pelo  cen- 
tro inculto  da  ilha,  onde  vagava  a  tôa,  puerilmente  preoccupado  do 
(inanto  ia  vendo  e  ouvindo. 

Muitas,  emfim,  eram  destinadas  para  ligeiras  viagens  por  mar. 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATIJXA  BBABIUEIEA  357 

pie  eu  fazia  só,  ou  em  companhia  de  minha  família,  a  algum  ponto 
la  ilha,  ou  ás  ilhas  da  visinhabça.  Boa  parte  da  noite  deslisava-se-nu) 
im  conversações  intimas  ^  fáceis,  em  algum  outro  entretenimentd. 
)epois,  recolhia-me  ao  quarto,  para  lôr,  escrever,  scismar  »  (1). 


O  poeta  nâo  6  do  numero  d'aquelles  que  julgam  nada  dever 

natureza  exterior,  esses  que  entendem  que  a  poesia  n'elles 

alguma  cousa  de  eterno  e  immutavel,  incapaz  de  augmentar 

u  diminuir  :  algum  cousa  como  o  perfume  na  ílôr  ou  o 

sneno  na  cicuta. 

Nâo ;  Dória  é  franco  e  nao  esconde  o  que  deveu  á  natureza 
:terior. 

Essa  subjectividade  absoluta  da  poesia  é  um  resíduo  do 
lho  innatismo  das  ideias  e  sentimentos. 
Também  não  acho  absolutamente  razoável  a  ideia  de  todo 
ntraria  de  uma  poesia  completamente  exterior,  communí- 
da  ao  homem  por  não  sei  que  filtros  magos. 
Botae  o  estúpido,  o  imbecil  diante  da  mais  esplendida 
ma  da  natureza  e  vede  se  elle  experimenta  o  mais  levo 
lUmento  poético ;  ficará  insensivel  qual  uma  pedra. 
)  objectivismo  absoluto  da  poesia  é  uma  herança  do  empi- 
no superficial  e  tolo.  Aqui  é  como  na  sciencia ;  a  syntheso 
í  é  objectiva  de  todo,  nem  de  todo  subjectiva ;  a  syntheso 
;omo  já  uma  vez  eu  disse,  bi-lateral  (2). 
ranklin  Dória  tem  paginas  de  boa  e  bella  descripção ;  a 
sia  d*alma  casa-se  ahl  com  a  poesia  da  natureza. 
evela-se  um  grande  exemplo  no  Sol  Nascente.  Vede  : 

f(0  hálito  de  Deus  o  sol  accende ; 
E  o  sol  o  manto  de  oiro  presto  estende 
Sobre  o  ether  azul  e  a  terra  e  o  mar  : 
Tudo  luz,  tudo  brilha,  tudo  enca*nt6L, 
Se  espreguiça,  se  agita,  se  alevanta, 
Ao  seu  ardente  e  penetrante  olhar. 

As  nuvens  são  corcéis,  que  dispararam 
Da  arena  afogueada  que  formcu^am 

>ag.  IX. 

^ide  Estudoê  de  LiUeratura  Contemporânea t  artigo  sobre  Zola. 


r)58  HISTORIA  DA  LITTBEATURA  BRASILEIRA 

As  faixas  do  horisohte  em  combust&o : 
Freios  partidos,  pelo  ar  galopam ; 
Sangue  vivo  escumando,  ora  se  topam, 
Ora  em  procura  do  infinito  vão. 

A  branca  estx  ella  que  o  crespuc'lo  adorna 
E  torrentes  de  amor  languida  entorna. 
Nos  trasílôres  celestes  se  sumiu  : 
Longa  saia  de  malha  coruscante 
Do  mar,  que  chora  e  ri  no  mesmo  instante. 
As  entranhas  geladas  constringiu. 

O  orvaJho  transparente  o  chão  prateia  : 
Aqui  sobre  uma  ílôr  tremulo  ondeia^ 
Sobre  outra  n'uma  lagrima  se  esvae  ; 
Aqui  p£u:*ece  pedra  preciosa, 
Ali,  bem  como  chuva  luminosa, 
Lento  e  suave  do  arvoredo  cae. 

Ave  enorme,  do  chão  vôa  a  neblina! 
Frouxo  clarfto  de  lâmpada  illumina 
Do  valle  o  solitário  penetrai, 

—  Pagina  em  flores  que  a  sorrir  se  deixam, 
E  sobre  a  qual  dois  edtos  cerros  fecham 
Parenthesis  de  pedra  colossal. 

Ali  o  monte  de  coroa  erguida. 
Que  ao  céu  implora  co'uma  voz  sumida, 
Ao  menos,  uma  gotta  de  liquor 
Para  a  ferida,  que  lhe  o  raio  abrira, 

—  Gladio  que  a  nuvem  da  bainha  tira 
No  campo  do  procella,  todo  horror... 

Mattas,  que  enche,  á  só  noite,  a  phantasia 

De  abusões,  de  gemidos  de  agonia, 

De  pallidos  lemures  infernaes. 

Do  sol  nascente  aos  raios  purpurinos, 

Entre  a  harmonia  de  singelos  hymnos, 

Como  tão  magestosas  acordaes! 

Vós  sois  um  miíndo  nebuloso  e  vasto, 
Em  que  apenas  se  imprime  o  leve  rasto 


HIBTOKIA  DA  LITTBKATU&A  BBASILBI&A  359 

Da  avesinha,  da  íer€^  ou  do  reptil : 

Em  lugar  de  palácio  altivo  e  nobre, 

Que  o  oiro  e  a  lama  ao  mesmo  tempo  cobre, 

Simples  ninho  abrigaes,  rude  covil. 

Oh!  eu  irei  um  dia,  eu  o  primeiro, 
Vagueiar,  namorado  e  aventureiro, 
Por  vossos  labyrinthos  de  cipó  ; 
Ver  a  azul  borboleta  que  esvoaça, 
A  suçuarana  que  raivada  passa, 
E  a  cobra  de  coral  rojar  no  pó! 

E  voltarei  co'a  mente  incendiada! 

E  sentirei  a  vida  mais  ousada. 

Mais  rubro  o  céu  das  minhas  illusCesl 

Colombo,  cheio  de  riqueza  immensa ; 

Homem,  cheio  de  espYanças  e  de  crença ; 

Poeta,  cheio  de  mil  inspirações! 

E'  toda  um  paraíso  agora  a  terra. 
Abraçam-se  coUina,  outeiro  e  serra, 
Com  a  sua  coroa  cada  qual : 
Aquella  tem  pennacho  de  esmeralda, 
Esta  de  malmequer  áurea  grinalda, 
O  outeiro  a  choça,  que  atalaia  o  vai. 

Tudo  agora  começa  seu  cciminho  : 
O  verme  sae  do  pó,  a  ave  do  ninho. 
Da  casinha  de  palha  o  pescador ; 
A  abelha  infatigável  da  colmeia, 
Da  luz  o  brilho,  da  palavra  a  ideia, 
O  perfume  do  cálice  da  flor. 

Que  orchestra  sobe  ao  céu!  O  mar  vozeia. 
Murmura  a  fonte,  o  pássaro  gorgeia, 
E  a  brisa  da  manhã  vóa  a  gemer  ; 
Canta  á  viola  a  joven  camponeza, 
O  desditoso  chora,  o  crente  resa... 
D'est'arte  faz  a  dor  echo  ao  prazer! 

Quão  bello  é  o  sol  nascente!  Olhos  abertos, 
Penetra  os  poios  de  crystal  cobertos. 


360  HIBTOELL  BA  LITTXRATTnU  BRASILEIRA 

Devassa  nunca  vistos  areiaes  ; 
Pharol  do  tempo,  leão  de  áureas  crinas, 
Diz,  topando  nos  craneos  das  minas  : 
—  Aqui  foram  impérios  colossaes!  — 

Pêndula  que  se  agita  no  infinito, 
Que  ouve  talvez  da  eternidade  o  grito, 
Atalaia  de  todas  as  acções, 
Anhelado,  redoira  na  memoria 
Era  feliz,  que  etemisou  a  gloria, 
Sempre  amada  dos  grandes  corarOes, 

Quão  bello  é  o  sol  nascente!  Elle  afugenta 
Do  ar  a  cerração  grossa  e  cinzenta, 
D*alma  a  tristeza  e  os  pensamentos  vis  : 
Aos  homens  todos  ao  lavor  convida  ; 
E  dã  força,  e  vigor,  e  alento,  e  vida 
Ao  que  ^  desgraçado,  ao  que  é  feliz. 

Ao  mendigo,  que  fina-se,  consola 
Com  a  promessa  de  abundante  esmola, 
Ou  de  algum  protector  bom,  liberal ; 
Ao  pobre  manda  um  raio  de  ventura ; 
Ao  orphão,  desvalida  creatura, 
Faz  sonhcu*  doce  afago  maternal. 

EUeí  diz  ao  que  é  forte :  Hoje  clemência! 
Ao  que  é  fraco  :  Mais  um  dia  paciência! 
Aquelle  que  lamenta-se  :  Esperae! 
Aos  tristes  elle  diz  :  Sede  contentes! 
Ao  meu  influxo  borbulhae,  sementes! 
Preciosas  idéas,  borbulhael 

Elle  diz  ao  poeta  :  Alevantae-vos! 

Dos  grandes  pensamentos  inspirae-vosl 

Ide,  correi,  correi  ás  multidõesi 

A  fé  levae-lhes  no  queimar  dos  h3niinos, 

Como  outr'ora  os  Apóstolos  divinos   , 

Levaram  graça  e  luz  a  mil  nações. 

Aos  lábios  todos  elle  diz  :  Sorri-vos! 
A  toda  ílôr  e  coração  :  Abri-vos! 


HI8T0BIA  BA  LTFTEaATUKA  BBA8ILEIBA  361 

Lançae  perfumes,  transbordae  de  cunor! 
Para  tudo  o  que  nasce  e  vive  e  sente 
E'  bello,  sempre  bello  o  sol  nascente, 
Reverberando  aos  pés  do  Creador!  »  (1) 


E'  uma  bella  poesia  descriptiva ;  n'este  género  é  também 
interessante  A  Mangueira. 

No  lyrismo  popular  e  campiesino  são  dignos  de  leitura 
A  Ilhôa  e  a  Missa  do  Gallo,  que  não  reproduzo  por  brevi- 
dade. 

Na  oratória  parlamentar  Franklin  Dória  é  um  orador  plá- 
cido, macio,  socegado  e  correcto.  Nada  de  vehemencias,  de 
enthusiasmos,  de  calorosos  Ímpetos.  No  género  apaniguado 
e  sereno  é  bom,  é  apreciável. 

Quetm<  só  gosta  de  um  orador  quando  elle  grita  e  gesticula 
como  uro  possesso,  náo  o  ouça;  quem  se  contenta  e  dá-se 
por  bem  pago  com  um  tom  familiar,  simples,  misturado  de 
certa  ironia  e  malícia,  pôde  ouvil-o. 

De  resto,  o  poeta  e  o  orador  estáo  em  perfeita  e  completa 
harmonia ;  não  estão  na  primeira  ília  dos  poetas  e  oradores  do 
Brasil;  mas  occupam  um  dos  primeiros  logares  na  segunda 
fileira. 


Trajano  Galvão  dk  Carvalho  (1830-1864).  Nâo  foi  um 
grande  poeta;. mas  é  indispensável  falar  de  sua  pessoa  em 
nossa  historia  litteraria ;  ha  n^elle  algo  de  especial,  alguma 
cousa  que  lhe  garante  um  nome. 

Quero  me  referir  á  circumstancia  de  ter  sido  elle  o  primeiro 
a  dar  ingresso  á  raça  negra  e  captivos  d'essa  raça  em  nossa 
poesia- 

Antes  de  Trajano  um  ou  outro  poeta  havia  de  passagem 
tocado  nos  escravos  pretos  ;  mas  só  de  passagem  e  sempre 
como  um  simples  protesto  contra  a  escravidão. 

Trajano  foi  adiante ;  collocou-se  mais  no  intimo  do  viver 
dos  escravos  e  pintou  typos  mais  reaes. 

(1)  Enlevoê,  pag.  7. 


362  HISTOSXA  DA  LITTBBATX7BA  BBÂ8ILBUU 

Infelizmente  poucas  poesias  tfease  maranhense  restam  em 
geral  e  especialmente  no  género  de  que  trato  (1). 

As  doeste  conhecidas  sãx>  —  o  Calhambola,  a  Crioula^  Nu- 
ranian  e  Jovino-o  senhor  (Tescravos. 

O  leitor  bem  comprehende  a  importância  do  facto  a  quB  me 
refiro. 

A  ethnographia,  a  despeito  dos  esconjuros  de  alguns  espi- 
ritas systematicos,  6  e  será  ainda  por  muito  tempo  uai  auxi- 
liar poderosíssimo  da  historia  e  da  politica ;  na  critica  e  nas 
producções  litterarias  é  preciso  contar  com  ella. 

Era  um  cousa  a  ser  observada  e  notauia  por  toda  a  gente  : 
na  ^litteralura  brasileira  a  raça  negra,  apezar  de  ter  contri- 
buído com  um  grande  numero  de  habitantes  d'este  paiz,  de 
ser  o  principal  factor  de  nossa  riqueza,  de  se  ter  entrelaçado 
immensamente  na  vida  familiar  pátria,  de  estar  por  toda  a 
parte  em  summa,  nunca  foi  assumpto  predilecto  de  nossos 
poetas,  romancistas  e  dramaturgos. 

O  Índio  e  o  branco  obtiveram  sempre  a  preferencia.  Mais 
tarde  os  mestiços,  sob  os  nomes  de  sertanejos^  matutos,  taba- 
réos,  caypiras,  tiveram  lambem  sua  quota  das  attenções 
geraes  dos  litteratos. 

Muitos  decantaram  as  morenas,  as  m^reninhas^  as  formosas 
cór  de  jambo ;  muitos  chegaram  até  ás  mulatas,  ás  dengosas 
mulatinha^  com  seus  cabeções  rendados  a  enfeitiçar  toda  a 
gente  e  outras  pieguices  da  espécie.  Ninguém  jamais  se  lem- 
brou do  negro,  nem  como  ente  humano,  nem  como  escravo. 

Só  modernamente  raríssimos  de  passagem  e  sempre  como 
motivos  para  declamações  fugitivas. 

Tal  é  o  caso  até  de  bons  poetas,  como  Gonçalves  Dias  com 
a  sua  Escrava,  de  Bittencourt  Sampaio  com  a  sua  Captíva^  de 
Luiz  Delfino  com  a  sua  Filha  d' Africa  e  d'outros  de  igual  Ín- 
dole e  estylo. 

No  theatro  ha  o. caso  phenomenal  do  Demónio  Familiar  de 

(1)  o  que  existe  de  poesias  de  Trajano  Galvão  anda  nas  Três  Lyrtu, 
publicadas  no  Maranhão  em  1863,  no  Parnaso  Maranhense,  allí  pubiieado 
em  1861  e  no  Pantheon  Maranhense  (2.»  vol.)  do  Dr.  A.  Henriques  LeaL 
As  Três  Lyras  são  de  Trajano,  Marques  Rodrigues  e  Gentil  Homem. 
Ultimamente,  appareceram  em  volume  especial,  as  poesias  de  Trajano. 
Pouco  adianta  esta  publicação  ao  que  já  se  sabia  do  poeta. 


r^ 


HISTOBIA  PA  LITTSHATUBA  BBASILSIBA  303 

Alencar,  onde  ha  um  typo  negro,  e  no  romance  o  das  Victimas 
Algozes  de  J.  Manoel, de  Macedo. 

Mas  a  comedia  d&  Alencar,  sobre  ser  facto  isolado  e  não 
seguido,  tomou  apenas  o  escravo  prelo  n'um  carácter  exce- 
pcional e  bastante  e  raro. 

O  romance  de  Macedo,  sobre  ser, medíocre,  foi  escripto  nos 
últimos  annos  da  vida  do  auctor  e  com  pretençõds  anti-aboli- 
cionistas.  E'  uma  obra  de  partido,  que  nâo  teve  repercus- 
são (1). 

Os  pobres  negros,  os  tristíssimos  captivos  náo  acharam 
quem  se  condoêsse  d*elles,  quem  sympatisasse  com  o  seu 
rude  e  áspero  viver. 

Declamações  acerca  do  facto  da  escravidão  houve-as  ahi  a 
granel ;  especialmente  na  época  do  movimento  abolicionista 
não  houve  versejador  que  não  se  quizesse  celebrizar  á  custa 
dos  negros  1 

Dos  que  na  litteratura  se  occuparam  com  elles  só  quatro  o 
fizeram  demorada  e  conscientemente  :  Trajano  Galvão,  Cas^ 
tro  Alves,  Celso  de  Magalhães  e  Mello  Moraes  Filho  (2). 

Trajano  tem  o  miarita  da  antecedência ;  elle  coUocou-se  no 
ponto  de  vista  de  um  lyrismo  semi-descriptivo  e  galante; 
em  suas  poesias  o  escravo  não  protesta,  o  poeta  dá-lhe  a  pa- 
lavra e  o  'Calhambola,  a  crioula,  a  nuranian  descanta  suas 
preienções,  seus  desejas. 

Castro  Alves  tomou  outro  caminho ;  escreveiu  odes  de  indi- 
gnaçáo,  de  cólera,  no  estylo  pomposo  e  meio  declsunatorio 
de  Victor  Hugo ;  tal  a  indole  do  Navio  Negreiro,  das  Vozes 
<r Africa,  e  da  mór  parte  da  Cachoeira  de  Paulo  Aftonso. 

N'esta  a  intriga  de  amor  entre  Lucas  e  Maria  não  tem  natu- 
ralidade, nem  a  côr  própria  do  viver  do  escravo  brasileiro. 

São  amores  e  luctas  românticas  mais  próprias  de  fidalgos 
hispanhóes  e  de  condes  italianos  do  que  de  um  pobre  preto, 
escravo  das  margens  do  S.  Francisco. 
O  poeta  bahiano  possuía  a  imaginação  e  o  tom  alteroso  dos 

(1)  N&o  falo  da  Escraoa  Izaura  de  Bernardo  Guimarães ;  porque  a  bella 
filha  da  imaginaç&o  do  poeta  mineiro  era  uma  verdadeira  branca  eterati- 
êoda. 

(2)  Se  me  foese  licito  falar  de  mim  próprio,  lembraria  que  no  poemeto  O» 
Palmarei  decantei  também  conscientemente  os  escravos. 


3G4  HISTOBIA  DA  LTFTBRATURA  B&ABILSULá. 

lyristas  pomposos ;  mas  não  tinha  o  espirito  de  observação, 
o  naturalismo  apto  a  sorprender  as  scenas  populares. 

Celso,  a  bello  taJentOs  que  eu  fui  o  primeiro  a  dar  a  co- 
nhecer ao  Brasil  em  geral  (i),  no  seu  poema  Os  CalhafnJ)olns, 
approxima-se  muito  mais  da  vida  psychologica  e  real  do  ca- 
ptivo.  E'  pena  que  tivesse  se  limitado  a  considerar  só  o  escravo 
fugido,  isto  é,  o  escravo  fora  de  seu  viver  normal. 

Mello  Moraes  Pilho  seguiu  por  outra  vereda  e  por  vereda 
tal  que,  por  este  lado,  não  se  parece  com  um  só  dos  poetas 
brasileiros,  a  não  ser  com  o  próprio  Trajano  Galvão. 

Mello  Moraes  nao  ostenta  aquollas  opulências,  aquelle  far- 
falhar de  bonitas  ph  rases  do  gosto  de  Castro  Alves ;  sua  ma- 
neira é  outra ;  elle  colloca-se  no  meio  do  facto  da  escravidão, 
mettcrse  entre  os  captivos  e  os  senhores,  assiste  o  viver 
d^aquelle  mundo  etspecial  das  Fazendas  e  diz,  sem  grandes 
adornos,  as  cruezas  que  viu.  São  pequenos  quadros,  pequenos 
esboços  pelos  quaes  circula  a  verdade,  a  sinceridade. 

Selo  assim  :  Partida  de  escravos,  Ama  de  leite,  O  legado 
da  morta,  Os  filhos,  Immigração,  O  remorso  de  Lucas,  Mãe 
de  Créação,  Verba  testamentária,  A  Feiticeira,  Ingénuos,  A 
familia,  Escravo  fugido.  Cantiga  do  eito,  A  Reza,  A  Novena.  A 
Rede  e  outras  interessantes  peças  espalhadas  pelos  Cantos  do 
Equador. 

Trajano  Galvão  é  um  predecessor  doesse  género  de  poesia : 
por  isso  é  aqui  lembrado  com  distincção. 

Elle  era  íllho  do  Maranhão;  nasceu  em  1830;  esteve  algum 
tempo  em  Portugal ;  fez  estudos  em  S.  Paulo  e  Olinda,  for- 
mando^se  emi  1855.  Attirou-so  depois  á  lavoura  (2). 

Três  notas  distingo  em  Trajano  :  o  lyrismo  geral  de  que 
seus  versos  A'  Lua  sáo  um  exemplo,  o  lyrismo  locaJ,  campe- 
sino em  que  descreveu  o  viver  do  escravo,  e  o  lyrismo  saty- 
nco  e  pilhérico.  As  duas  ultimas  notas  são  as  de  mais  valor. 

Aqui  insiro  a  Crioula  e  o  Nariz  palaciano,  como  exemplifi- 
cações do  estylo  do  poeta. 

(1)  Até  enUlo  esse  crítico,  romancista  e  poeta  era  apenas  conhecido  no 
Recife  e  em  S.  Luiz  do  Maranhão.  Vide  Reoiita  Brasileira  durante  o  anno 
de  1879. 

(2)  Vide  sua  biogr.aphia  no  Pantheon  Aiaranhen$e  de  A.  Henriques  Leal. 


J 


HIBTOBIA  DA  LITTEBÁTUBA  BBA8ILBIBA  365 

k  Crioula  é  esta  : 

«  Sou  captiva...  qu'importa?  folgando 
Hei-de  o  vil  captiveiro  levar!... 
Hei-de  sim,  que  o  feitor  tem  mui  brando 
Coração,  que  se  pode  amansar!... 
Como  é  terno  ó  feitor,  quando  chama. 
A*  noiílnba,  escondido  co'a  rama 
No  caminho  —  ó  crioula,  vem  cá!  — 
Ha  hi  nada  que  pague  o  gostinho 
De  poder-se  ao  feitor  no  caminho, 
Faceirando,  dizer  —  não  vou  lá  — ? 

Tenho  um  pente  coberto  de  Ihamas 
De  ouro  âno,  que  tal  brilho  tem, 
Que  raladas  de  inveja  as  mucamas 
Me  sobr'olham  com  ar  de  desdém. 
Sou  da  roça ;  mas,  sou  tarefeira... 
Roça  nova  ou  feraz  capoeira, 
Corte  arroz  ou  apanhe  algodão, 
Cá  comigo  o  feitor  não  se  cansa; 
Que  o  meu  cófo  não  mente  á  balança 
Cinco  arrobas  e  a  concha  no  chão! 

Ao  tambor,  quando  saio  da  pinha 
Das  captivas,  e  danço  gentil 
Sou  senhora,  sou  alta  rainha. 
Não  captiva,  de  escravos  a  mil! 
Com  requebros  a  todos  assombro. 
Voam  lenços,  occultam-me  o  hombro, 
Entre  palmas,  applausos,  furor!... 
Mas,  se  alguém  ousa  dar-me  uma  punga, 
O  feitor  de  ciúmes  resniung€^ 
Pega  a  taça,  desmancha  o  tambor! 

Na  quaresma  meu  seio  é  só  rendas, 
Quando  vou-me  a  fazer  cohíissão  ; 
E  o  vigário  vê  cousas  nas  fendas, 
Que  quisera  antes  vô-las  nas  mãos... 
Senhor  padre,  o  feitor  me  inquieta  ; 
E'  peccado...?  não,  filha,  antes  peta... 


366  HI8T0RIA  DA.  LITTBEATURA  BBA8ILXIBA 

Gosa  a  vida...  esses  mimos  dos  céos 
E's  formosa...  e  nos  olhos  do  padre 
Eu  vi  cousa  que  temo  n&o  quadre 
Co'o  sagrado  ministro  de  Deus... 

Sou  formosa...  e  meus  olhos  estrellaâ 
Que  traspassam  negrumes  do  céo ; 
Attractivos  e  formas  tfto  bellas 
PYa  que  foi  que  a  natura  m*os  deu? 
E  este  fogo,  que  me  arde  "nas  veias 
Como  o  sol  nas  ferventes  arôas, 
Porque  arde?  Quem  foi  que  o  ateiou? 
Apaga-lo  vou  já  —  não  sou  tola... 
E  o  feitor  lá  me  chama  —  ó  crioula! 
E  eu  respondo-lhe  branda  »  já  vou...  n  (1) 

O  Nariz  palaciano  é  satyra  dirigida  contra  os  aduladores 
sempro  lestos  e  promptos  a  bajularem  os  presidentes  mal 
desembarcavam  nas  provincias. 

E*  como  segue  : 

Cl  Festivaes  repicam  sinos, 
Troa  no  forte  o  canhão, 
Correm  velhos  e  meninos, 
Ferve  todo  o  Maranhão  : 
Vem  doutores,  vem  soldados, 
E  os  públicos  empregados 
Com  seu  illustre  inspector. 
Porque  accorre  tanto  povo? 
Chegou  presidente  hovo, 
Nosso  Deus,  nosso  senhor... 

Mineiro  para  torresmo. 

Ou  bahiano  càrurú? 

Seja  quem  fôr,  é  o  mesmo, 

Temos  nariz,  e  elles... 

Presidente  maranhense? 

Que  tolo  ha'hi  que  em  tal  pense?! 

(1)  TrBê  Lfjras,  pag.  12. 


HIBTOBIA  DA  LITTERATURA  BRABILBIBA  367 

Nem  por  graça  isso  se  diz. . . 
índio  ou  chim  não  nos  desbcmca, 
N&o  ha  mais  forte  edavabca, 
Do  que  um  vermelho  nariz. 

Feliz  Ires  e  quatro  vezes 
Quem  rubro  nariz  sortiu!... 
Nos  políticos  revezes 
Que  narigudo  affundiu? 
Diz  errada  voz  imiga. 
Que  impera  só  a  barriga 
Nos  negócios  do  paiz  ; 
O  que  a  mente  minha  alcança, 
E*  que,  se  o  lucro  é  da  panç6^ 
O  trabalho  é  do  nariz. 

Por  isso  no  grande  entrudo, 

Que  chamam  governo  cá, 

Folga  muito  o  harigudo, 

Quando  nos  chega  um  bachá  : 

Pencas  agudas  e  rombas. 

Mil  elephantinas  trombas, 

N'esse  dia  tomam  sol :  ^ 

Qual  torreia,  qual  se  achata. 

Qual  na  ponta  faz  batat€L, 

Qual  se  enrosca  e  é  caracol. 

Bem  como  na  culta  França, 
Cada  qual  seus  animaes 
Leva,  cheio  de  esperança, 
Aos  concursos  regionaes ; 
Este  um  carneiro  merino, 
Aquelle  um  touro  turino, 
Outro  um  cavallo  andaluz  : 
Tal,  quando  o  mandarim  salta. 
Um  por  um,  a  illustre  malta, 
Seu  rubro  nariz  conduz. 

E  assim  como  então  é  de  uso 

A  chusmada  feira  erguer 

Aos  céos  o  rumor  confuso 

Dos  que  vem  comprar,  vender  ;  5 


368  HI8T0BIÁ  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

O  anho  bala,  grunhe  o  cerdo, 
Ornêa  o  jumento  lerdo, 
Brioso  nitre  o  corcel ; 
Tal  a  turba  neuigada 
Nos  trombones  a  chegada 
Festeja  do  bacharel. 

Vem  por  entre  esta  harmonia 
O  da  corto  homem  cortez, 
Foz  á  esquerda  cortezia, 
A  dextra  mesura  fez... 
Mil  narizes  sobem,  descem ; 
(Nâo  de  pudor)  enrubecem 
No  furor  de  cortejar. 
Vibram  talhos  de  montantes, 
D'essas  espadas  gigantes 
Que  Roldão  soube  jogar... 

Na  camará  do  seu  palácio, 
Vindo  da  Municipal, 
Vé-se  o  illústre  pascacio 
Como  pisado  n'um  gral : 
•         Curte  comsigo,  nem  geme. 

Que  um  bom  ncuiz  é  bom  leme 
Posto  á  popa...  em  bom  lugar! 
Um  por  um  os  mo'nsti*os  olha, 
Que  o  tiabalho  está  na  escolha, 
Do  que  melhor  lhe  quadrar. 

Por  mais  que  se  ponha  em  guarda 
Apesar  de  quanto  diz, 
Vista  beca  ou  vista  farda 
Por  força  leva  nariz... 
Porque,  diz  em  consciência, 
Pondo  de  parte  a  Excellencia, 
Tu,  presidente,  o  que  és? 
Julgas-te  inqualificável? 
E's  um  ente  narigavcl 
Da  cabeça  até  os  pés. . . 

Embora  prudente  e  calmo. 
Se  um  nariz  de  guarnições, 


_i 


BIBTO&IA  DA  LITTBBAItTRA  BRASILEIRA  969 

Poder  suspender-te  um  palmo 
N'estes  tempos  de  eleições, 
Vae  tudo  comtigo  abcdxo, 
Mais  asneiras,  que  um  borracho, 
Juro-te  que  has  de  fazer... 
Pois  como  do  teu  ofâcio 
Terás  o  pleno  exercício. 
Se  suspenso  o  has  de  exercer? 

Permitta,  Vossa  Excellencia, 
Que  aos  sábios  ponha  a  questão, 
E'  caso  de  consciência, 
E*  um  ((  quid  júris  »  rat&o... 
N'estes  contractos  occultos 
Dizei  vós,  sábios  consuitos, 
Que  tendes  as  leis  de  cor, 
Quem  é  que  fica  lesado? 
O  mui  nobre  narigado. 
Ou  o  vil  ^[larigador?  »  (1) 

tem  claro  está  que  Trajaao  era  gaiato,  era  engraçado ;  esles 
SOS  são  gostosamente  cómicos.  E'  pena  que  o  poeta  não 
)SS6  deixado  muitas  composições  do  género. 
)eixando  de  deter  o  meu  leitor  ante  Benicio  Fontenelle^ 
phanio  Bittencourt,  José  Coriolano,  Marques  Rodrigues, 
bóa  Serra,  Dias  Carneiro,  é  bom  fazel-o  parar  diante  de 

ENTiL  Homem  de  almeida  Braga  (1834-1876). 
nas  poesias  foram,  em,  parte,  reunidas  no  pequeno  volume 
o  título  de  Sonidos ;  outras  andam  esparsas  no  Parnaso 
anhense,  neis  Três  Lyras,  nas  Harmonias  Brasileiras  de 
edo  Soares  e  emi  diversos  jomaes,  não  falando  no  poe- 
>  Clara  Verbena,  de  que  ha  um  fragmento  publicado  sob 
eudonymo  de  Flávio  Reimar. 

ntil   foi  poeta  e  folhetinista;  n'esta  ultima  qualidade 
>u  o  bello  volume  intitulado  Entre  o  Céo  e  a  Terra. 
todos  os  poetas  que  fornecem  matéria  para  este  capitulo 
3  acabo  de  estudar  na  ordem  em  que  v&o  ahi  descriptos, 

Fres  Lyroêt  pag.  44. 
HISTOBIA  n  24 


370  HISTOBIA  DA  LITTERATU&A  BRASILEIRA 

é  aquelle  cuja  leitura  mais  me  agradou.  Os  outros  têm  muita 
cousa  boa  no  meio  de  muita  cousa  ruim ;  de  Gentil  nada  vi 
quo  fosse  realmente  mau ;  tudo  é  por  alguma  fcu^  bom. 

lia  n'elle  um  lado  tradicional  e  lendário  que  bem  se  mostra 
em  í?.  José  de  Riba-Mar,  nV  Outeiro  da  Cruz^  n'0  Morro  do 
Piranhenga  e  n'A  Ilha  de  Maranhão ;  ha  uma  face  popular, 
qu(í  se  vê  em  Caiueiro  pequenino  e  em  Olhos  negros ;  uma 
feição  humoristica  que  se  expande  em  Clara  Verbena^  alem  do 
lyrismo  pessoal  e  amoroso  que  se  exhibe  em  todas  as  outras 
po('.sías. 

Vejamos  isto  e  procedamos  com  ordem. 

Eu  disse  que  na  poesia  de  Gentil  ha  um  lado  tradicional  e 
lendário  e  uma  face  popular.  Tudo,  em  verdade,  se  reduz 
a  uni  fundo  commum  de  inspiração. 

Ha  por  ahi  muita  gente  que  ainda  hoje  suppõe  que  toda  a 
sabedoria  popular,  todo  o  folk4ore  se  reduz  ás  quadrinhas  dos 
improvisadores  anonymos  e  ás  festas  de  Igreja  em  que  o 
povo  mais  ou  menos  accidentalmente  toma  parte. 

Não,  a  cousa  não  é  assim  tão  simples  como  se  possa  acre- 
ditai*. 

( )  povo  tocou  em  tudo ;  seu  saber  é  uma  encyclopedia  in- 
leiíu. 

S6  na  parte  propriamente  poética  elle  tem  os  Reizados,  as 
Cheganças,  os  Romances,  as  Xacaras,  as  Orações,  os  Versos 
geraes  ou  Cantigas  soltas,  as  Parlendas... 

Mas  não  fica  ahi  :  elle  tem  os  mythos,  os  contos,  as  adi- 
vinhas, os  dictados,  os  annexins,  as  lendas  de  legares  e  de 
ty])09  celebres,  as  danças,  as  festas  propriamente  suas»,  as 
benzeduras,  uma  medicina  e  therapeutica  especiaeSi  uína 
aslronomia  sua,  as  fabulas  de  plantas  e  animaes,  profecias,  a 
interpretação  original  que  vae  fazendo  diariamente  dos  aiMMi- 
tecimentos  políticos  ;  tem  tudo  isto,  além  do  capitulo  immeiíso 
das  superstições. 

No  Brasil  pouco  se  tem  investigado  o  nosso  povo  por  faoe 
tão  interessante  (1). 

(1)  Consagrei  a  este  assumpto  nada  menos  de  quatro  obras  :  I  CooUoê 
populareê  do  Brasa;  II  Contoê  populares  do  Brasil ;  m  Estudom  9obrt 
a  poesia  popular  brasileira ;  IV  Uma  espertesa. 


.1 

1 


HIBTOSIA  DA  LITTISATUKA.  BBAfULIIKA.  371 

O  Maranhão  é  uma  de  nassas  províncias  onde  o  espirito 
Dopular  é  mais  vivaz  ;  por  isso  os, seus  poetas  náo  foram  es- 
ranhos  a  essa  ordem  da  inspiração,  mais  rara. nos  poetas  do 
lul,  e  em  geral  desprezada  pelos  imitadores  servis  das  litte- 
aturas  estrangeiras. 

Em  todo  o  poetar  de  Gentil  ha  esse  doce  sabor  das  creaçGes 
y^ricas  do  povo ;  o  estylo  do  maranhense  o  revela  sempre,  ou 
elate  alguma  lenda,  alguma  tradição,  ou  se  colloque  no  meio 
o  povo  e  cante  ao  desaQo  com  elle  no  seu  estylo. 

O  poeta  deve  fazer  como  o  musico  de  talento,  o  qual, 
uando  se  apodera  de  um  motivo  popular,  o  transforma  e 
ansflgura,  imprimindo-lhe  o  cunho  da  arte. 

Gentil  assim  procedia,  guiado  por  seu  fino  gosto  e  seguro 
3nso.  E'  o  que  nem  sempre  faz  Juvenal  Galeno  em  suas  paro- 
as  e  imitaçOeis  da  poesia  popular. 
O  poeta  maranhense,  tomando  o  velho  motivo  do  povo  : 

Cajueiro  pequenino, 
Carregadinho  de  llôr, 
Eu  tamhem  sou  pequenino 
Ccirregadinho  de  amor  » 

lesônvodveu  n*estas  bellissimas  quadras,  nas  quaes  a  arte 
ajusta  e  adapta  perfeitamente  ao  tom  desalinhado  e  pro- 
ido  das  massa-s  : 

u  Já  de  ha  muito  o  sol  ó  morto 
Brilha  na  terra  o  luar. 
Nas  palmas  d'altos  coqueiros 
Brinca  o  vento  a  susurrar. 

No  céu  as  âxas  estrellas 
Apenas  véem-se  luzir. 
As  aves  dormem  na  matta, 
Parece  a  matta  dormir. 

Dos  ares  cai  denso  orvalho 
Sobre  a  gramma,  sobre  a  flor. 
E  a  brisa,  de  aromas  cheia, 
Das  flores  brinca  ao  redor. 


372  filBTO&IA  DA  UTTBfiATXmA  BRASILEIRA 

Tudo  é  sileYicio  que  fala ; 
Tem  vozes  a  solid&o. 
Fala  o  ser  calado  e  mudo, 
Cada  voz  é  uma  canção. 

Ouve,  escuta,  cajueiro, 
O  canto  que  eu  vou  cantar. 
Ao  frio  vento  que  passa, 
A*  luz  do  frouxo  luar. 

A  taes  horas  um  menino 
E'  certo  deve  ir  dormir ; 
Mas  quem  por  noite  como  esta 
Pode  algum  somno  sentir? 

Deus  te  deu  folhas  e  ramos 
E  flores  também  te  deu. 
Deu-me  affecto  e  sympathias, 
De  mil  desejos  me  encheu. 

Das  flores  nascem-te  os  fructos, 
Dos  ramos  nasce-te  a  flor ; 
De  minh*alma  o  puro  affecto, 
Do  meu  peito  o  doce  amor. 

Nas  tuas  folhas  luzentes 
Sol  e  chuva  hão  de  caliir. 
No  meu  peito  as  alegrias, 
Os  desgostos  hão  de  vir. 

Mets  em  quanto  o  puro  orvalho 
Te  dá  vida  e  te  dá  flor. 
Os  amores  de  minh'alma 
Prest6Lm-mc  vida  melhor. 

Cresce,  cresce,  cajueiro, 
Que  eu  também  hei  de  cresrer, 
Se  murchares  algum  dia, 
Eu  também  hei  de  morrer. 

Somos  ambos  pequeninos, 
Vivemos  ambos  no  chão. 
Se  dizes  que  és  meu  amigo. 
Eu  digo  —  sou  teu  irmão. 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUEA  BBABILKIBA  373 

Minha  mâi  n'este  terreiro, 
Quando  eu  nasci,  te  plantou  ; 
Criou-te  com  sombra  e  agoa, 
Com  seu  leite  me  criou. 

Nasceste  á  porta  de  casa, 
Sempre  abrigado  do  sol. 
Ardores  do  meio  dia 
Eram  clarões  de  arrebol. 

Fui  crescendo,  cajueiro, 
E  tu  cresceste  também. 
O  segredo  que  eu  te  disse 
Nfio  o  contes  a  ninguém. 

Somos  eunbos  pequeninos. 
Queremos  ambos  viver. 
Cresce,  cresce,  cajueiro, 
Que  eu  também  hei  de  crescer  »  (1). 


Quem  só  comprehende  a  poesia  como  uma  sucursal  da  phi- 
sophía  pondo  em  verso  um  systema  doutrinário,  o  darwi- 
smo,  o  pessimismo,  o  positivismo,  ou  outro  qualquer ;  quem 
a  comprehende  quando  ella  so  faz  militante  e  pamphle- 
[•ia  e  põe  em  versos  uma  d'essas  declamações  de 
oudhon,  por  exemplo,  contra  papas,  imperadores,  aristo- 
itas  e  proprietários,  quem  tiver  fé  absoluta  e  exclusiva  em 
ruma  d'essas  cartilhas  litterarias  que  ahi  andam,  não  leia 
versos  de  Gentil  Homem. 

Juem,  porém,  sabe  que,  por  uma  lei  inilludivel  da  historia, 
oesia  é  sempre  a  emoção  desperta  em  nós  pelo  espectáculo 
;  coiusas  e  que  essa  emoção  ha  de  Vciriar  necessariamente 
n  a  intuição  geral  de  cada  época,  e  que,  portanto,  quando 
fala  enn  poesia  philosophica,  apenas  se  quer  dizer  uma  poe- 
que  retarate  os  sentimeoitos  em  nós  produzidos  pela  nova 
lição  que  a  sciencia  desde  Galileai,  Copérnico  e  Bacon  vem 
parando  na  civilisação  occidental,  esse  pode  ler  Gentil  ou 
Jquer  outro  bom  poeta ;  porque  todo  bom  poeta  é  sempre 

TrcM  LyroMj  pag.  157. 


374  HIBTQBIA  DA  LrmnuLTUiLk  BSAsnjmu 

e  fataJmente  um  documento  interessante  ()e  uma  época  dada, 
sem  que  tenha  adrede  procurado  ser. 

E'  bem  provável  que  elle,  comi  o  seu  sabor  popular  desa- 
grade, por  atrazado.  Para  todo  moço,  que  começa,  ser  adian- 
tado, por  via  de  regra,  é  ter  aspirações  a  commetter  algum 
assassinato  litterarío  ou  artístico.  E'  já  uma  enfermidade  que 
se  tornou  geralmente  contagiosa. 

Todo  rapaz  que  lança  um  primeiro  olhar  para  o  mundo  das 
letras  a  das  artes,  descobre  logo  não  sei  que  symptomas  de 
fraqueza  n^esta  ou  n'aquella  creação  secular  da  intelligencia, 
e  apresenta  logo  terríveis  desejos  de  dar-lhe  o  coup  de  grdce. 
Matar  imia  antigualha,  que  gloría !  Assim,  um  enterra  a 
arma  na  poesia  em  geral,  que  é  uma  doente  importuna ;  outro 
nas  formas  dramáticas,  que  não  podem  mais  saUsfazer  as 
necessidadesi  modernas ;  este  nas  artes  indistinctamente,  como 
brincos  inúteis  e  infantis ;  aquelle  no  romance,  que  não  se  faz 
logo  scientíflco  de  uma  vez...  E'  o  diabo;  é  uma  geral  sede  de 
matar  alguma  cousa  ! 

Já  nem  se  fale  em  religião,  em  metaphysica,  na  philosophia 
mesma;  porque  doestas  é  já  velha  tolice  tratar  diante  da 
sciencia,  que  as  matou  ha  muito. 

Ora,  pois,  vou  dizer  o  que  penso  com  toda  a  sinceridade  : 
não  creio  na  morte  de  cousa  alguma  n^este  mundo;  todas 
aquellas  crêações  que  s©  suppunham  mortas,  não  morrerani 
de  facto ;  modiflcaram-se,  transformaram-se  apenas.  Tem  sido, 
é  e  será  sempre  este,  entre  outros,  o  caso  da  poesia. 

Eis  a  razão,  porque  ainda  gasto  o  tempo  em  analysar  poe^ 
tas  e  ainda  ouso  recommendar  os  versos  de  um  Gentil  Ho- 
mem, por  exemplo. 

Eu  disse  acima  que  elle  tem  também,  bellas  amostras  de 
lyrismo  pessoal  e  amoroso  e  também  boas  provas  de  lyrismo 
humorístico.  E'  verdade. 

O  primeiro  anda  especialmente  em  suas  poesias  soltas ;  o 
ultimo  mais  pronunciadamente  em  Clara  Verbena. 

Este  bello  poema  encerra  todos  os  geneiros,  todos  os  estylos 
do  poeta ;  a  ligação  ahi  feita  entre  o  lyrismo  sentimental  e  o 
bumorísmo  galhofeiro  mostra  summa  habilidade. 


J 


HISTOBIA  DA  LimBATUSA  BRAHILKTRA  375 

Creio  que  o  poema  não  chegou  a  sesr  publicado  por  inteiro  ; 
i  os  dois  cantos  publicados  em  1866  no  Bio. 

Abre-se  o  livro  por  uma  dedicatória  a  Oonçalves  Dias  em 

lontados  versos ;  prosegue  descrevendo  a  cidado  do  Rio  de 

uieiro,  a  heroina  Clara  Verbena,  a  casa  d*esta,  Petrópolis,  o 

Icazar  e  vinte  incidentes  diversos,  ligados  entre  si  por  gra- 

osas  transições. 

Um  dos  pedaços  melhores  é  aquelle  em  que  o  poeta  lamenta 

morte  de  seu  íllho.  Ha  em  tudo  um  tom  de  naturalidade,  eu 

go  naturalidade  e  não  naturalismo,  de  encantar.  E'  ler  ao 

aso. 

Dou  aqui  os  versos  dirigidos  a  Gonçalves  Dias  : 

((  O  hálito  de  Deus  tocou-lhe  a  fronte, 
£  lhe  formou  em  tomo  uma  coroa  : 
Arco  de  luz  no  cimo  de  alio  monte, 
Beijo  do  génio  dado  em  uma  alma  hôa. 
Feitura  humilde,  ao  Creeulor  defronte 
Logo  se  poz,  e  um  cântico  resôa... 
Era  o  poeta  feito  em  um  momento, 
Grande  no  verbo  e  grande  em  pensamento. 

Apostolo  novo  aos  povos  ehviado. 
Falou  sublime  á  gente  americana, 
Em  phrase  culta,  em  rythmo  elevado 
Como  o  cantor  da  raça  luzitana. 
A  voz  no  tymbre  puro  e  afinado 
E*  quasi  angelical,  mais  do  que  humana; 
Evangelho  de  amor  e  de  poesia 
Era  o  que  a  terra  em  sua  voz  ouvia. 

Do  seu  talento  o  vóo  altivo  e  nobre 
Liga  ao  presente  as  pósteras  idades, 
E  no  passado  um  muhdo  elle  descobre 
Bello,  rico  de  seiva  e  heroicidades. 
Nada  ao  olhar  do  poeta  o  tempo  encobre  ; 
Dá  vida  a  um  povo  morto,  ergue  cidades  ; 
D^alma  o  sentir,  do  coraç&o  as  dores 
Traduz  em  sons  de  pérolas  e  flores. 

Soberbo  evocador  de  um  século  extincto, 
Eil-o  do  nada  a  vida  levantando. 


376  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BRASILEIRA 

Luz  na  imaginação  e  o  pincel  tincto 
Na  cór  que  o  sol  no  céo  hos  mostra  quando 
Roxo  de  um  lado  e  d*outro  azul  retincto. 
Mil  caprichosas  formas  desenhando, 
Une  os  toques  de  alvura  resplendente 
Da  opala  cu)  brilho  lácteo  e  transparente. 

Foi-lhe  dura  a  missfio !  Foi  sacriâcio, 
Que  elle  soube  cumprir  com  força  e  crença! 
De  co^ss&o  constante  fez  ofílcio, 
Cantou  do  coraçfto  a  dôr  immensa. 
Trouxe  consolação  por  beneficio 
Aos  que  soíírem  no  amor  e  na  descrença, 
Rasgando  o  peito,  e,  novo  pelicano. 
Dando  vida  em  seu  sangue  ao  lábio  humano! 

Fez  em  si  mesmo  a  cruda  autopsia 
Da  ideia  e  do  sentir  ainda  em  vida ; 
Em  cada  canto  o  coração  gemia. 
Em  cada  verso  a  alma  era  despida. 
Nada  occultou  ;  a  musa  não  mentia  . 
Na  voz  da  queixa  extreme  e  dolorida, 
No  riso  triste,  no  prazer  de  instantes. 
Rápido  goso  d*almas  sempre  €unantes. 

Privilegio  do  génio!  em  seus  cahtares 
Fez  mais  nossa  que  sua  a  excelsa  gloria 
No  culto  expressa,  em  múltiplos  altares. 
Que  erguidos  são  no  templo  da  memoricu 
Se  foí-Ihe  a  vida  um  quadro  de  pezares, 
Fica  do  vate  a  peregrina  historia. 
Pondo  em  relevo  a  desejada  cVôa 
De  um  talento  brilhante  e  uma  alma  bôa. 

E  viveu,  e  cantou!  no  soffrimento 
A  própria  inspiração  deu-lhe  amargura ; 
E  a  luz,  que  o  aclarava  em  pensamento, 
Fez-lhe  a  sorte  infeliz,  áspera  e  dura. 
A  distincção  do  génio  é  um  tormento ; 
A  flor  da  gloria  é  uma  sombra  escura ; 
Raio  de  amor  na  frohte  ao  escolhido, 
E*  um  cântico  d*anjos  n*um  gemido. 


HISTORIA  DA  LITTBBATUBA  BRASILBISA  377 

E  até  na  morte  a  pallida  desdita 

De  perto  o  acompanhou  na  anciã  extrema ; 

Cantou-lhe  uma  ccuiç&o  triste,  infinita 

Nas  afílicçOes  de  um  gélido  poema. 

O  mar  ouviu-lhe  uma  oração  bemdicta... 

Quem  ha  que  n&o  se  enlute  e  que  hfio  gema, 

Ouvindo  o  estertor  de  uma  agonia 

Suffocada  no  mar  pela  onda  fria?! 

Vôde-o  no  estreito  esquife  abandonado, 

Sem  uma  prece  de  amor  na  ultima  hora! 

Vede  o  corpo  na  arôa  sepultado, 

E  o  branco  olcyon  da  praia,  que  inda  chora! 

£  o  mar,  cruel,  resonma  socegado 

Â*  luz  da  tarde  ou  aos  clarões  da  aurora, 

Rindo  ao  fresco  terral,  ao  frio  vento, 

Ao  som  de  um  triste  e  fúnebre  lamento! 

Dorme  em  paz  na  frieza  do  sudário. 
Descansa  agora  da  penosa  lida! 
Por  ti  do  século  nosso  o  enorme  horário 
Fez  ouvir  a  pancada  estremecida. 
Do  mar  a  profundez  é  o  teu  sacrário, 
Guarda  de  uma  existência  mui  querida, 
E  o  monumento  erguido  á  tua  gloria 
Guardará  de  teus  cantos  a  memoria  »  (1). 

ão  versos  dignos  do  assumpto.  Mais  um  trecho  do  centro 
poema  e  concluirei  : 

«  Havia  em  Botafogo  uma  casinha 
Escondida  entre  as  copas  do  arvoredo. 
Via-se  o  mar  e  os  montes  ;  á  tardinha 
Chegava-lhe  á  janella  miuto  a  medo 
A  dona,  a  fada,  a  rosa,  o  sonho  lindo 
D*aquelle  amor  de  um  velho,  amor  infindo. 

Era  Clara  Verbena.  Vinte  e  um  annos 
Encontravam  na  moça  a  gentilesa 
De  airoso  porte  e  uns  olhos  soberanos, 
Cheios  de  luz,  de  graça  e  morbidesa. 

'^lara  Verbena^  pag.  9. 


378  HISTOBIA  DA  LITTBRATURA  BKABILBIBA 

Era  formosa ;  branca  ou  se  morena, 
Dtzer-vol-o  n&o  seL  Clara  Verbena 

Não  tinha  de  mna  ingleza  o  jaspe  frio, 
Nem  da  hespanhola  a  tez  fosca  e  rosada, 
Nfto  da  franceza  o  affecto,  e  o  ar  sombrio 
Da  italiáha  bella  apaixonada.  / 

Era  a  magnólia  aberta  e  recendente, 
Modesta  e  viva  em  perfumoso  ambiente. 

Ninguém  nunca  lhe  viu  outro  vestido, 
Que  nfto  fosse  cambraia  branca  e  lisa ; 
Crespo  o  cabello  em  caracóes  mettído. 
Botina  escura,  que  o  tapete  alisa. 
O  extracto  de  Verbena  era  o  perfume 
D'aquelle  anjo  mulher,  d'aquelle  nume. 

Seja  o  Aristarcho  em  pea  ;  se  a  rima  obriga 

A  por  junto  do  aroma  o  deus  latfno, 

Nfto  fica  menos  certa  da  cantiga 

A  parelha  fínal.  O  máo  ensino 

De  meu  mestre  Musset  poz-me  o  defeito. 

Que  me  torna  por  vezes  imperfeito. 

Extracto  de  verbena!  oh,  como  é  grato 
O  producto  de  chimica  franceza! 
Que  pura  exhalaçâo,  que  doce  extracto, 
Que  sonhos  nos  faz  ter!  quanta  grandesa 
Nos  lembra  este  perfume  em  tempos  idos 
Por  gregos  e  romanos  bem  vividos! 

Exprime  hos  effluvios  a  doçura 
Da  graça  feminil  em  mulher  bella, 
E  a  robustez  da  civica  figura 
Posta  na  rua  ou  praça  ou  na  janella. 
Era  a  verbena  dos  heróes  a  c'rôa 
Nos  tempos  idos  de  virtude  á  tôa. 

Fraqueza  e  hombridade  em  l6tço  unidas. 
Beijos  de  moça  em  horas  socegadas. 
Forte  aperto  de  mfto,  vozes  ouvidas 
Em  meio  Às  multidões  muito  agitadas. 
Sello  estreito,  marcado,  e  lacre  vivo 
Da  gloria  e  do  que  a  amor  vô  se  captivo. 


HI8T0BIA  DA  Lim&ÁTUBA  BRÃBJLMOLA.  379 

O  sândalo  é  traidor  ;  perturba  o  senso, 
Enerva,  gasta  as  forças,  elanguece  ; 
Accende  uma  fogueira  em  luva  ou  lenço. 
Depois  aquelle  incêndio  se  amortece. 
Cruel  mentira,  o  sândalo  dá  morte 
Quando  mais  da  volúpia  no  transporte. 

O  resedâ  produz  dôr  de  cabeça, 
O  mel  inglez  é  doce  em  demasia ; 
Não  ha  quem  nfio  dormite  e  n&o  padeça 
Cheirando  do  jasmim  a  essência  fria. 
A  rosa  é  mui  vulgar  e  o  f rangipana 
Cança,  aborrece,  irrita,  aturde  e  engana. 

O  mais,  que  enfeita  e  alonga  a  extensa  lista 
D*eztractos  essenciaes,  de  aguas  cheirosas, 
Nfto  vale  que  o  passemos  em  revista. 
Que  lhe  demos  aqui  menções  honrosas. 
A  palma  é  da  verbena  ;  a  gloria  é  doesta, 
Deusa  do  lar,  dos  bailes  e  da  festa. 

Era  Clara  o  asseio,  a  graça  e  o  gosto 
De  uma  dona  de  casa  cuidadosa ; 
Tudo  quanto  a  cercava  era  composto 
De  esmero  e  luz  e  arte  e  amor  e  rosa. 
Moveis,  tapetes,  vidros,  douraduras. 
Vasos  finos,  esplendidas  figuras, 

A  sala,  o  gabinete,  a  estreita  alcova, 
O  pateo,  o  corredor,  jardim,  dispensa. 
Tudo  andava  mais  limpo  do  que  a  escova. 
Que  nunca  trabalhou  ;  peço  licença 
Para  nada  dizer  sobre  a  cosinha 
Na  qual  jamais  pisou  Clara,  a  rainha  »  (1). 

poesia  Gentil  Homem  fo^i  taml)em  um  eximio  traductor  ; 
mera  o  que  deixou  de  mais  eminente  é  a  versão  de  Elod 
fredo  de  Vigny. 
smoção  do  poema  estrangeiro  é  mais  ou  menos  transmit- 

a  versão  não  se  limita  a  trasladar  phrases ;  o  tom  e  o 
ido,  tanto  quanto  é  possível  em  traducções,  apparece. 

Iara  Verbena^  pag.  22. 


380  HI8T0BIA  DA  LITTBRATUEA  BRA8ILEISA 

Ultimando,  nSo  esquecerei  recommendar  o  bello  volume  de 
folhetins  —  Entre  o  Céo  c  a  Terra,  devidos  á  penna  dos  escri- 
ptor  maranhense. 

Elle  tinha  graçai,  nâo  fazia  esgares  e  contorsões  para  pro- 
vocar o  riso  nos  outros ;  também  náo  dava  gargalhadas,  ria 
doce  e  abundantemente  como  um  homem  de  educação  e  de 
espirito. 

Os  seus  folhetins  tèm  côr  local  e  brasileirismo ;  os  typos 
descriptos  s&o  nacionaes;  lede  Natal,  Pobre  Serapião,  An- 
ninha  e  outros  bellos  trechos  do  livro,  e  verificai. 

Nas  circumstancias  de  nossa  litteratura,  que  se  precisa 
definir  e  caracterísar  cada  vez  mais,  é  o  melhor  elogio  que  se 
lhe  pôde  fazer. 

Gentil  é  um  benemérito  das  pátrias  letras ;  não  o  deixarei 
sem  dar  uma  rápida  idéa  de  sua  brílheinte  passagem  pela 
imprensa  do  Maranhão. 

Para  isto  abrimos  espaço  á  penna  competente  de  um  pa- 
trício seu  : 

«  Não  mencionaremos  os  jornaes  que  elle  abrilhantou  com 
sua  collaboração  fora  da  provincia  natal ;  daremos  rápida 
noticia  de  sua  passagem  pelo  jornalismo  maranhense. 

Em  1859,  a  convite  de  Sotero  dos  Reis,  escreveu  elle  no  Pu- 
blicador  Maranhetíse  uma  serie  de  notáveis  folhetins  littera- 
rios,  verdadeiros  primores  no  género.  Eram  fantasias  sem 
substancia,  a  nuga  diificU  de  Horácio,  e  que  denunciavam 
grande  aptidão.  Usando  do  pseudonymo  Flávio  Jlemuir,  que 
^lle  illustrou  como  traductor  de  Eloá,  e  auctor  do  poema  CZÔm 
Verbena,  os  folhetins  de  Gentil  Braga  no  Publicador  Mara- 
nhense foram  suas  credencias  no  jornalismo  da  pro^incia. 

Como  redactor  da  Ordem  e  Progresso,  desde  1860  alé  i86i, 
publicou  elle  nesse  periódico  artigos  admiráveis,  taes  como  os 
que  discutiram  a  entrada  do  corsário  Sumter,  durante  a 
guerra  dos  Estados  Unidos,  no  porto  do  Maranhão,  susten- 
tando as  boas  doutrinas  da  neutralidade.  Esses  artigos  moti* 
varam  um  aviso  do  ministro  de  estrangeiros  explicando  o 
direito  dos  neutros. 

Não  menos  importante  foi  a  analyse  da  presidência  Primo 
de  Aguiar,  paginas  brilhantes,  que  depois  foram  colleccio- 


H18T0&IA  DA  LITTX&ATtTRA  BRABILSIBA  381 

ladas  em  livro,  formando  o  lancinante  opúsculo  —  Um  Presi- 
ente  e  uma  Assembléa. 

Na  Coalisâo,  que  também  redigiu  de  1862  a  1867,  além  de 
umerosos  artigos  sobre  politica  geral  e  local,  publicou  Gentil 
raga  vários  trabalhos  de  critica  li  Iteraria,  e  o  minucioso 
same  do  tratado  da  VíUa  da  UniãOy  artigos  enérgicos  e  inci- 
vos,  que  reunidos  em  irni  folheto,  tiveram  grande  voga  no 
io  de  Janeiro. 

En  1867  collaborou  no  Semanário  Maranhense  e  os  artigos 
)  litteratura  amena  que  inserio  n*essa  revista  foram  todos  de 
ai  merecimento. 

Desde  1874  até  1876  collaborou  no  Liberal  em  algumas  chro- 
cas  graciosas  que  feriam  o  adversário  com  o  ridiculo. 
Moço,  com  pouco  mais  de  quarenta  annos,  desappareceu 
sde  mundo  Gentil  Homem  de  Almeida  Braga,  deixando  em 
MO  muitos  trabalhos  litterarios,  e  perdendo  n'elle  o  jorna- 
imo  politico  um  luctador  valente,  que  pelejava  com  as  mc- 
Qres  e  mais  invcnciveis  armas. 

Entre  as  muitas  intelligencias  superiores  que  o  Maranhão 
1  desapparecerem  na  força  da  mocidade,  como  Gomes  de 
uza,  Gonçalves  Dias,  Lisboa  Serra,  Franco  de  Sá,  Trajano 
Ivão,  Marques  Rodrigues  e  Celso  de  Magalhães,  occupa  lu- 
r  notável  esse  moço  poeta  e  prosador  distincto,  recom- 
endável como  jornalista  esclarecido  e  politico  digno  de 

o  (1). 

Jão  palavras  de  Joaquim  Serra,  amigo  e  companheiro  do 
3ta.  E'  pena  que  este  tenha  dito  mal  de  Francisco  Primo 
Souza  Aguiar,  o  illustre  engenheiro,  o  emérito  professor 
Escola  Militar,  um  dos  homens  mais  illustrados  que  o 
Lsil  tem  possuído. 

L  este  meu  saudoso  mestra  de  historia,  a  quem  devo  a  com- 
hensão  do  valor  do  factor  germânico  e  anglo-  saxonio  em 
;empos  modernos,  rendo  aqui  um  pequeno  c  obscuro  preito 
reconhecimento.  Primo  de  Aguiar  foi  um  dos  elementos  de 
lha  formação,  desde  1865,  com  a  sua  concepção  ethnogra- 
ca  da  historia. 

A  Imprema  no  Maranhão  1820-1880^  por  Ign^tus,  Rio  de  Janeiro 
p  pa^.  131. 


* 


t 


382  HISTORIA  DA  LITTB£AT0]tA  BRABILBUIA 

Bruno  Henrique  de  Almeida  Seabra  (1837-1876).  A  pas- 
sagem do  maranhense  Gentil  Homem  ao  paraense  Bruno  Sea- 
bra é  naturalissima. 

Mais  de  um  laço  os  prende ;  tinham  a  mesma  idade,  com 
pequena  diflerença,  falleceram  no  mesmo  anno,  ambos  foram 
cultores  do  lyrismo  local  e  humorístico. 

Bruno  Seabra  nasceu  aos  6  de  outubro  de  1837  no  Pará ; 
estudou  humanidades  na  provincia  natal,  principiou  o  curso 
da  Escola  Militar  do  Rio  que  teve  de  abandonar  pela  fraqueza 
de  sua  compleição. 

Atirou-se  ao  funccionalismo  publico,  refugium  ultimo  de 
todos  os  talentos  brasileiros,  e  que  talve^  nos  seja  também 
em  breve  tomado,  dando-se  preferencia  aos  filhos  d^ootros 
paizes...  Exerceu  empregos  no  Rio,  Maranhão,  Paraná  e 
Bahia,  onde  falleceu  em  1876  (1). 

Bruno  Seabra  escreveu  romances,  comedias,  folhetins  c 
poeisias.  Estas  sã,o  as  suas  melhores  producções  e  entre  ellas 
sobresahe  o  livro  das  Flores  e  Fructas,  um  dos  melhores  (fc 
nossa  litteratura  romântica. 

Bruno  é  e  será  sempre  o  poeta  das  Flores  e  Fructos. 

Suas  primeiras  producções  datam  de  1855 ;  o  bello  volume 
predilecto  é  de  1862. 

Que  ha  de  bom  n'este  poeta  ?  Duas  cousas  apenas  :  quan<k 
os  seus  contemporâneos  quasi  todos  procuravam  inspira^ 
ções  estrangeiras,  elle  buscava  assumptos  nacionaes ;  quando 
quasi  todos  os  seus  col legas  e  rivaes  choramigavam  perpe- 
tuamente,  elle  vivia  a  rir-se  galhardamente.  Basta  isto  pait 
assignalar  um  lugar  especial  a  este  lyrista. 

O  nacionalismo,  o  popularismo  de  Bruno  Seabra  é  uma  bor- 
dadura de  artista  sobre  scenas  do  povo ;  é  no  género  de  Bb* 
tencourt  Sampaio,  Francklin  Dona,  Trajano  Galvão,  Oeotí! 
Homem,  Joaquim  Serra,  Mello  Moraes  Filho  e  alguns  outros 
poetas  brasileiros. 

Em  matéria  de  inspirações  populares  só  supporto,  como  p 
dei  a  entender,  dois  extremos  :  ou  a  rude  cançSLo  do  povo  es 

(1)  Vida  Sacramento  Blake  —  Dieeionario  Bibtiographioo  iSrouíIct-' 
1.*  vol.  pag.  429. 


HI8T0SIA  DA  LITTBBATUaA  BRABILBUA  383 

ua  profunda  espontaneidade,  ou  o  lavor  artístico  do  poeta  de 
ilenlo  sobre  quadros  e  motivos  populares. 
Ou  os  Cantos  populares  do  Brasil^  como  a  plebe  os  sabe  e 
spete  6  eu  06  colligi  sem  lhes  mudar  uma  palavra,  ou  alguma 
ousa  de  ideialisado  e  artistico  ao  gosto  de  Na  Aldêa,  Thereza 
o  Bruno  Seabra,  ou  A  Missa  do  Gallo^  A  Casa  Maldita  de  Joa- 
uim  Serra,  ou  A  Cigana,  Bem  te  vi,  A  Mucama  de  Bitten- 
>urt  Sampaio,  ou  A  Mulata^  A  -Romaria  do  Bom  Despacho 
}  Mello  Moraes  Filho,  ou  Os  Tabaréos,  Os  Trovadores  das 
eivas,  O  Anno  Bom,  Scena  Sergipana  de  Tobias  Barretto,  ou 
lalquer  pagina  análoga  de  Dias  Carneiro,  de  Gentil  Ho- 
em,  de  Celso  Magalhães,  de  alguns  mais. 

0  meio  termo  aqui  é  insupportavel ;  a  imitação,  a  parodia 

1  inimitável,  do  imparodiavel,  como  acontece  com  muitas 
s  composições  de  Juvenal  Galeno,  é  sem  grande  préstimo, 
m  serio  valor. 

tVote  bem.  o  leitor,  que  eu  disse  em  muitas  e  não  disse  em 

las  as  producções  de  Juvenal  Galeno ;  porque  este  possue 

rumas  em  que  fez  até  certo  ponto  obra  de  artista,  o  que  se 

•á  em  breve. 

Bruno  foi  um  poeta  apurado  e  do  flno  gosto. 

^áo  é  preciso  levantar  theorias  a  respeito  d'elle ;  é  um 

ico  de  duas  facetas  principaes  ;  já  as  indiquei  e  basta  agora 

er  que  a  veia  cómica  sobrepujava  o  lyrismo  campesino  em 

IS  versos. 

>  melhor  meio  de  o  conhecer  é  lel-o ;  escutai-o  no  popula- 
no. 

a  Aldéa  é  assim  : 

«  Olhai  —  que  paz  se  agasalha 
Nesta  casinha  de  palha 
Â'  sombra  deste  pomari 
Olha!  vê...!  que  amenidade! 
Abre  a  ílôr  da  mocidade 
Na  soleira  deste  lar! 

Olha!  —  as  flores  vêm  surrindo 
Dos  verdes  ramos,  caindo 


384  HIBTOBIA  DA  LITTXBATVKA  BEA8ILEIRA 

Aos  beijos  dos  colibris! 
Olhai  —  este  harém  de  verdura 
Onde  amor  bebe  a  ternura 
Das  saudosas  juritys ! 

Olhai  —  esses  montes  virentes 

Estes  arbustos  ílorehtes, 

Estes  risonhos  vergéis! 

Olha!  — os  céos  que  além  descobres... 

Que  reis  tiveram  mais  nobres, 

Mais  deslumbrantes  docéis? 

Olha!  —  os  dourados  insectos 
Nos  seus  enleios  de  affectos 
Dourando  a  hervagem  do  chão! 
E*  tradiç&o  —  que  são  flores 
Animadas  dos  ardores 
D'uma  extremosa  paixão... 

Olha. . .  vê. . . !  não  são  chimerasl 
São  iris,  são  primaveras 
Na  tela  do  nosso  amor ; 
Amor  aqui  faz  pousada 
No  romper  da  madrugada, 
Nas  horas  do  sol  se  pôr! 

Não  cuides  ser  a  ventura 
Esse  ouropel  que  fulgura 
Sob  os  tectos  dos  salões, 
Onde  a  mentira  prospera, 
E  o  perfume  degenera 
Das  flores,  das  affeiçOesl 

Que  valem  ruidosos  fastos, 
Quando  os  corações  vão  gastos 
De  affectos,  de  amor,  de  fé? 
A  ventura  verdadeira 
Vive  Ã  sombra  hospitaleira 
Da  casinha  de  sapé. 

Olhai  —  que  paz  se  agasalha 
N'esta  casinha  de  palha 


HI8T0SIA  DA  LITTISATURA.  BTtABnílTKA  385 

A*  sombra  d*este  pomari 
Olhai  yô...I  que  amenidadel 
Abre  a  flor  da  mocidade 
Na  soleira  doeste  larl  »  (1) 

Nâo  basta  esta ;  Thereza  deve  ser  lida ;  eil-a  : 

cí  Quem  vem  da  egreja?  Thereza 
Que  foi  casar-se...  surpreza! 
Não  esperava  este  azari 
Nunca  me  turbara  a  idéa 
Esta  lembrança  tão  feia 
De  que  podia  casar! 

Que  não  cuidei  vejo  agora, 
Por  que  m'o  aíârma  esta  hora, 
Que  inesperada  bateul 
Casadal  vejo-a  casadal 
Jesusl  como  está  mudada! 
Pois  t€unbem  mudarei  eu. 

Seccae,  espr'anças  viçosas, 
Emurchecei,  perfumosas 
Flores,  que  eu  tanto  reguei! 
Coração,  meu  pobre  alho, 
Velho  'slás,  segue  o  meu  trilho, 
Enruga  como  enruguei ! 

Casou-se  aquella  tngueira, 
Que  para  nós  tão  fagueira 
Se  mostrava ;  já  casou! 
Aquella  mesma  Thereza, 
Que  a  correr  pela  deveza. 
Tantas  vezes  nos  ccmsou! 

• 

Olhem  como  vem  pimponal 
E*  uma  senhora  dona. 
Reparem  como  ella  vem... 
Seu  marido  vem  com  ella 
Todo  cheio  de  cautella. 
Que  muitos  ciúmes  tem! 

^lóres  e  Fructos,  pag.  5. 

u  25 


384  HISTORIA  BA  LITTXRATUEA  BBA8ILEISA 

Aos  beijos  dos  colibris! 
Olhai  —  este  harôm  de  verdura 
Onde  amor  bebe  a  ternura 
Das  saudosas  juritys ! 

Olha!  —  esses  montes  virentes 

Estes  arbustos  florehtes, 

Estes  risonhos  vergéis! 

Olha!  — os  céos  que  além  descobres... 

Que  reis  tiveram  mais  nobres, 

Mais  deslumbrantes  docéis? 

Olha!  —  os  dourados  insectos 
Nos  seus  enleios  de  affectos 
Dourando  a  hervagem  do  chão! 
E'  tradição  —  que  sâo  flores 
Animadas  dos  ardores 
D*uma  extremosa  paixfto... 

Olha. . .  vê. . . !  n&o  s&o  chimcras! 
Sâo  iris,  são  primaveras 
Na  tela  do  nosso  amor  ; 
Amor  aqui  faz  pousada 
No  romper  da  madrugada, 
Nas  horas  do  sol  se  pôr! 

Não  cuides  ser  a  ventura 
Esse  ouropel  que  fulgura 
Sob  os  tectos  dos  salões, 
Onde  a  mentira  prospera, 
E  o  perfume  degenera 
Das  flores,  das  affeições! 

Que  valem  ruidosos  fastos, 
Quando  os  corações  vão  gastos 
De  affectos,  de  amor,  de  fé? 
A  ventura  verdadeira 
Vive  á  sombra  hospitaleira 
Da  casinha  de  sapé. 

Olha!  —  que  paz  se  agasalha 
N'esta  casinha  de  palha 


HISTORIA  DA  LITTXBATXntA  BSABILUBA  385 

A*  sombra  â*este  pomari 
Olhai  VÔ...1  que  amenidadel 
Abre  a  flor  da  mocidade 
Na  soleira  doeste  lari  »  (1) 

NSLo  basta  esta ;  Thereza  deve  ser  lida ;  eil-a  : 

«  Quem  vem  da  egreja?  Thereza 
Que  foi  casar-se...  surpreza! 
Não  esperava  este  azari 
Nunca  me  turbcira  a  idéa 
Esta  lembrança  tão  feia 
De  que  podia  casarl 

Que  não  cuidei  vejo  agora, 
Por  que  m'o  afârma  esta  hora. 
Que  inesperada  bateu! 
Casada!  vejo-a  casada! 
Jesus!  como  está  mudada! 
Pois  também  mudarei  eu. 

Seccae,  espr^ançais  viçosas, 
Emurchecei,  perfumosas 
Flores,  que  eu  tanto  reguei! 
Coraç&o,  meu  pobre  filho, 
Velho  'slás,  segue  o  meu  trilho, 
Enruga  como  enruguei ! 

Casou-se  aquella  tngueira, 
Que  para  nós  tâo  fagueira 
Se  mostrava ;  já  casou! 
Aquella  mesma  Thereza, 
Que  a  correr  pela  devez€^ 
Tantas  vezes  nos  cansou! 

Olhem  como  vem  pimpona! 
E*  uma  senhora  dona. 
Reparem  como  ella  vem... 
Seu  mfiu^ido  vem  com  ella 
Todo  cheio  de  cautell€^ 
Que  muitos  ciúmes  tem! 

(1)  Flores  e  Frueto»,  pag.  5. 

msiORU  u  2S 


386  HIBTOBIA  DA  LITTXRATXTBA  VtLÁSnXOLL 

Olhae-a,  como  nos  foge! 
Como  mais  esquivos  hoje 
Seus  olhos  fogem  de  nós! 
Agora  que  está  casada... 
Não  irá  mais  á  latada 
Colher  as  uvas  a  sós... 

Jéi  n&o  veste  saias  curtas, 
Como  outr'ora  a  colher  murtas, 
Jambos  ou  maracujá. 
Pelos  declives  dos  montes 
Ia,  e  depois  vinha  ás  fontes, 
E  nós  estávamos  lá... 

Vem?  é  outra!  é  outra...  olhae-a! 
E'  vestido,  não  é  saia^ 
Thereza  a  mesma  nRo  é! 
E  que  vestido  comprido! 
Náo  deixa  ver  o  vestido 
Nem  a  pontinha  do  pé!... 

Adeus,  senhora  Thereza! 
Salve  o  pobre  na  pobrezei, 
Que  isso  nSlo  lhe  íica  bem! 
Soberba  co*o  seu  marido, 
Soberba  co*o  seu  vestido, 
Já  não  conhece  ninguém! 

Deixe-se  de  soberbias, 
Lembre-se  d'aquelles  dias, 
A*  sombra  dos  cafezaes... 
Descora...  não  tenha  modo! 
Vá  tranquilla  que  o  segredo 
Da  minha  bocca...  jamais... 

Jamais...  e  jamais  supponha 
Seu  marido  que  a  vergonha 
A'  casa  lhe  hei  de  eu  levar... 
Jamais ,  senhora  Thereza, 
Que  eu  também  tenho  a  certeza 
De  algum  dia  me  casar  » (1). 

(1)  Flores  e  Fructos^  pag.  88. 


r^r 


\ 


HIBTOBIA  DA  LITTSRATUBA  BSABILBIBA  387 

Leiam-se  outras  no  volume,  especialmente  A  laqòa  dos 

wres. 

No  poetar  cómico  e  humoristico  Bruno  Seabra  é  um  repre- 

atante  do  género  realista,  d^aquelle  realismo  que  substituiu 

romantiâmo  antes  de  apparecer  o  moderno  naturalismo 

16  alias  tem  melhor  se  desenvolvido  no  romance. 

Poi  género  cultivado  especialmente  em^  Pernambuco  por 

>uza  Pinto  e  Celso  de  Magalhães ;  é  consistente  na  photo- 

aphia  rápida  do  certos  quadros,  photographia  de  cores  \ 

res,  de  pouca  imaginação  e  em  tom  simples ;  Bruno  Sea- 

a  lhe  metia  certo  humorismo  picante. 

São  do  género  —  O  vestido  carmesim^  Nós>  e  Vós^  Os  meus 

ios  em  leilão.  Moreninha,  Flora,  Afilha  do  mestre  Anselmo, 

jenuidade,  Laura,  Mal  áe  um  beiio,  Ignez,  Quiprocó,  e 

trás.  Eis  aqui  alguns  espécimens. 

\Ioreninha  é  esta  : 

«  Moreninhei,  dás-me  um  beijo? 

—  E  o  que  me  dá,  meu  senhor? 

—  Este  cravo... 

—  OrcL,  esse  cravo! 
De  que  me  serve  uma  flor? 
Ha  tantas  flores  nos  campos! 
Hei  de  agora,  meu  senhor, 
Dar-lhe  um  beijo  por  um  cravo? 
E*  barato ;  guarde  a  flor. 

—  Dá-me  o  beijo,  moreninha, 
Dou-te  um  corte  de  cambraia.  — 

—  Por  um  beijo  tanto  panno! 
Compro  de  graça  uma  saia! 
Olhe  que  perde  na  troca. 
Como  eu  perdera  co'a  flor ; 
Tanto  panno  por  um  beijo... 
Sai-lhe  caro,  meu  senhor. 

—  Anda  cá...  ouve  um  segredo... 

—  Aí,  pois  quer  flar-se  em  mim? 
Deus  o  livre;  eu  falo  muito, 
Toda  a  mulher  é  assim... 


388  HI8T0BIA  DA  LITTBRATURÁ  B&ASILXI&A 

E  um  segredo...  ora  um  segredo... 
Pelos  modos  que  lhe  vejo 
Quer  o  meu  beijo  de  graça, 
Um  segredo  por  um  beijo!? 

—  Quero  dizcr-te  aos  ouvidos 
Que  tu  és  uma  rainha... 

Acha,  pois?  e  o  que  tem  isso? 
Quer  ser  rei,  por  vida  minha? 

—  Quem  dera  que  tu  quizesses... 

N&o  duvide,  que  o  farei ; 
Meu  senhor,  case  com  ella, 
A  rainha  o  fará  rei... 

—  Cascw-me?...  inda  sou  tão  moço... 

—  Como  é  creança  esta  ovelha! 
Pois  eu  pYa  beijar  creanças, 
Adeusinho,  já  sou  velha  »  (1). 

Depois  d*este  dialogo,  vae  aqui  um  quadro  de  sala  brevi: 
simo ;  é  Flora  : 

(( Agora...  agora!...  murmurei  baixinho 
Nos  ouvidos  de  Flora,  a  gentil  Flora! 
N&o  ha  tempo  a  perder,  é  pouco  o  tempo! 
Dai-me  o  beijo  de  amor...  agora!...  agora!... 

Agora...  agora!...  que  propicio  instante 
Para  o  beijo  de  amor  que  Amor  implora! 
Esconde  o  rosto  por  detrás  do  leque, 
Como  quem  nfio  me  viu...  agora...  agora!... 

Ha  mais  de  um  anno  que  este  amor  faminto 
Na  esperança  de  um  beijo  se  vigora! 
Ha  tanto  tempo!...  meu  amor...  meu  anjo! 
Agora...  agora!  dai-me  o  beijo...  agora!... 

Voltou  seu  rosto  :  por  detrás  do  leque 
Por  um  triz  eu  beijara  a  gentil  Flora, 
Se  o  maldicto  do  pae  não  vem  saudar-me, 
Perguntando  a  surrír  —  não  dáhça  agora?! 

(1)  Flôreê  e  Fruetoê,  pa«.  100. 


HI8T0BIA  DA  LTTTBBATURA  BRABILBISA  389 

Ha  mais  de  um  anno  que  este  amor  faminto 
Na  esperança  de  um  beijo  se  vigora ; 
£  quando  cuido  havel-o,  bate  as  azas... 
Ldve-te  a  breca  o  pae,  querida  Flora!  »  (1) 

Como  estes  versos  ha  muitos  ali  ainda  mais  bellos  e  expres- 
sivos. Nâo  os  cito  por  brevidade. 
As  Piores  e  Pructos  silo  dignos  de  repetidas  leituras. 

Joaquim  Maria  Serra  Sobrinho  (1837-1888). 

Além  de  Odorico  Mendes,  Gonçalves  Dias  e  Franco  de  Sá, 
que  já  estudei  em  capítulos  anteriores,  além  de  Trajano  Gal- 
vrão  e  Gentil  Homem,  vistos  mais  ou  menos  individuadamente 
ateste  capitulo,  restam  ainda  dois  illustres  poetas  marar 
ihenses  a  analysar  n'este  mesmo  logar  ;  Joaquim  Serra  e  Joa- 
luim  de  Souza  Andrade, 

Digo  que  faltam  dois  e  a  verdade  seria  dizer  que  faltam 
rinta  ou  quarenta,  tal  a  abundância  de  talentos  poéticos 
i*aquella  província  dos  annos  de  1850  a  1870. 

De  todas  as  regiões  do  Brasil  é  o  Maranhão  a  mais  fácil  de 
studar  sob  o  ponto  de  vista  litterario. 
As  Três  Lyras  contêm  as  melhores  poesií:;^  de  Trajano, 
entil  6  Marques  Rodrigues ;  o  Parnaso  Maranhense^  além 
>s  versos  d'estes  três,  de  Odorico,  de  Gonçalves  Dias  e 
rance  de  Sá,  traz  os  de  quarenta  e  seis  vates  mais.  E'  um 
tal  de  cincoenta  e  dois  poetas  I  (2). 

1)  Flore»  e  Frueto»,  pag.  102 

5?)  Eil-os  :  António  Gonçalves  Dias,  António  Marques  Rodrigues,  António 
iquim  Franco  de  Sá,  António  da  Cunha  Rabello,  Augusto  César  dos  Reis 
íol.  Augusto  Olympio  Gomes  de  Castro,  Alfredo  Valle  de  Carvalho, 
tonio  César  de  Berredo,  Aufifusto  Frederico  Colin,  António  A.  de  Carvalho 
iveira.  Ayres  da  Serra  Souto  Maior,  Caetano  Cândido  Catanhede,  Caetano 
Brito  Souza  Gaioso,  Cestino  Franco  de  Sá,  Coriolano  César  Ferreira  Rosa, 
nardo  de  Freitas,  Francisco  Sotéro  dos  Reis,  Frederico  José  Corrêa, 
mcisco  Dias  Carneiro,  Fernando  Vieira  de  Souza,  Felippe  Franco  de  Sá, 
>io  Gomes  Farias  de  Mattos,  Francisco  Sotèro  dos  Reis  Júnior,  Gentil 
mem  de  Almeida  Braga,  João  Duarte  Lisboa  Serra,  José  Ricardo  JauíTert, 
6  Bernardes  Belfort  Serra,  José  Pereira  da  Silva,  Joaquim  Maria  Serra 
>rinho,  José  Mariano  da  Costa,  Joaquim  de  Sousa  Andrade,  Joáo  Emiliano 
le  de  Carvalho,  J.  J.  da  Silva  Maçarona,  João  António  Coqueiro,  D.  Jesuina 
STUsta  Serra,  Luiz  António  Vieira  da  Silva,  Luiz  Vieira  Ferreira,  Luiz 
^uel  Quadros,  Manoel  Odorico  Mendes,  Manoel  Benicío  Fontenelle,  D 


390  HISTORIA  DA  LITTEBATUEA  BRASILEIRA 

O  Pantheon  Maranhense,  considerável  obra  de  António  Hen- 
riques Leal,  põe  os  seus  leitores  em  contacto  com  os  homens 
mais  distinctos  da  provinca  em  todas  as  espheras  da  activi- 
dade social. 

Os  Sessenta  Annos  de  Jornalismo  (1820-80)  por  Ignotus 
(Joaquim  Serra)  são  um  excellente  escorço  da  publicislica  ma- 
ranhense no  século  xix. 

Juntae  agora  a  tudo  isto  as  bellas  edições  dos  auctores  pn> 
vincianos  dirigidas  por  Bellarmino  de  Mattos  em  suas  ofíi- 
cinas,  comprehendendo  livros  de  Sotéro  dos  Reis,  de  Gon- 
çalves Dias,  de  João  Francisco  Lisboa,  de  Souza  Andrade  e 
comprehendereis  a  abundância  de  documentos  e  a  facilidade 
do  trabalho. 

Verdade  é  que  a  obtenção  doestas  e  d'outras  obras  provin- 
cianas nem  sempre  é  cousa  fácil  a  quem  reside  no  Rio  de  Ja- 
neiro. 

A  primeira  necessidade  do  critico  litterario  é  fazer  n'uni 
pessoal  tão  grande  de  escriptores  a  indispensável  escoiha,  a 
selecção  histórica  do  mérito. 

No  meio  d'aquelles  cincoenta  e  dois  poetas  podem-se  notar 
uns  seis  ou  oito  que  levantam  a  cabeça  mais  alto.  E  Joaquim 
Serra  é  certamjente  d'este  numero. 

Não  era,  reparai  bem,  só  a  poesia  que  então  fulgurava  no 
Maranhão ;  lembrai-vos  do  brilho  intenso  do  jornalismo  poli- 
tico, da  eloquência  forense  e  tribunicía,  da  historia,  da  critica 
litteraria,  e,  para  bem  attingirdes  a  comprehensâo  completa 
dos  factos,  não  esqueçais  que  só  por  si  a  figura  imponente  de 
João  Francisco  Lisboa  é  sufflciente  para  illuminar  uma  epo- 
cha  inteira. 

Joaquim  Serra  viveu  n'aquelle  meio  e  gozou  da  bella  cama- 
radagem de  peregrinos  talentos  ;  fez  parte  d'aquelle  grupo  que 
escreveu  em  coUaboração  o  interessante  romance  A  Casca  da 
Canelleira. 

Maria  Firmina  dos  Reis,  Nuno  Alvares  Pereira  e  Souza,  Pedro  Weneseop 
Catanhede,  Raymondo  Brito  Gomes  de  Souza,  R.  Alexandre  Valle  de  Car- 
vaUio,  R.  A.  de  Carvalho  Figueira,  Ray mundo  Pereira  e  Souza,  Ricardo 
Henriques  Leal,  R.  Valentiniano  de  M.  Rego,  Severiano  António  de  Azevedo, 
Trajano  Galv&o  de  Carvalho,  F.  F.  de  Gouvéa  Pimentel  Belleza. 


HISTOSIA  DA  LITTEBATUBA  BRABILBIBA  391 

Joaquim  Serra  é  unia  natureza  de  fácil  apreciaç&o ;  foi  um 
lomeni  alegre,  expansivo,  de  um  optimismo  inalterável. 

N*uma  alma  assim  argamassada,  o  enthusiasmo  tem  entrada 
rança;  se  o  temperamento  é  de  poeta,  a  poeisia  será  ahi 
imples,  galhofeira,  ousada,  patriótica ;  se  o  temperamento  é 
6  politico,  a  intuição  politica  será  o  liberalismo  em  sua  mais 
ella  expressão,  esse  liberalismo  confiante  no  espirito  hu- 
lano,  crente  no  seu  progresso  indeflnito,  enthusiasUco  pelo 
âm  estar  do  povo,  liberalismo  alheio  á  democratisação  for- 
ida  6  destruidora,  que  mata  e  arrasa  sem  construir. 
O  nosso  maranhense  teve  ambos  os  temperamentos  :  foi  um 
>eta  e  um  jornalista  politico ;  por  uma  e  outra  face  suas  qua- 
lades  principaes  são  o  brasileirismo  de  suas  inspirações, 
humorismo  amoravel  de  seu  estylo. 
EUe  foi  um  optimista ;  já  o  disse,  e  o  meu  leitor  não  se 
pante,  nem  esbogalhe  demasiado  os  olhos. 
Não  sei  que  espécie  de  aragem  pestifera  soprou  sobre  certos 
)iritos,  que  agora  andam  a  descobrir  pessimismos  e  pes?i- 
stas  por  toda  a  parte. . . 

á  começam  a  brotar  do  chão  as  theorias  e  cada  um  assi- 
lia  pátria  especial  á  epidemia ;  uns  a  julgam  oriunda  da 
ssia,  por  causa  da  lucta  entre  o  czarismo  e  o  nihilismo,  e 
is  por  causa  do  génio  sombrio  da  raça  slava ;  outros  a 
òxn  provir  da  Allemanha  por  causa  do  militarismo  e  do 
irito  supposto  phantastíco  do  povo,  personalisado  em  Scho- 
hauer ;  estes,  nada  podendo  admittir  que  não  tenha  sua 
:em  na  portentosa  França,  gritam  bem  alto  que  a  maia- 
a  pessimista  irradiou  de  Pariz,  engendrada  alli  por  Plau- 
^  por  Goncourt  e  os  mais  ousados  chefes  do  naturalismo  ; 
elles  julgam-na  um  producto  da  complicadíssima  civili- 
,o  modeima;  aqueiroutros  correm  em  defeza  do  nosso 
limado  e  archi-prodigioso  tempo,  e  dão  a  cousa  como  um 
lucto  do  theologismo  da  edade-media ;  os  aryanos  extre- 
mos a  põem  na  conta  dos  semitas  ;  estes  cheios  de  razão  o 
onstram  entre  os  aryanos  desde  os  remotíssimos  tempos 
ndia  buddhica  I...  E  ctssim  vae  o  debate. 
io  conheço  outro  assumpto  em  que  as  tolices  e  patacoadas 
am  occupado  área  tão  considerável. 


392  HISTOBIA  DA  LITTBRATUKA  BEABILBntÀ 

Uma  velhíssima  e  constitucional  tendência  da  organisação 
humana  dadas  certas  e  determinadas  circumstancias  fm  ele- 
vada á  categoria  de  mytho  inexplicável. 

O  nosso  Joaquim  Serra  não  dará  por  este  lado  grandes  afa- 
zeres aos  críticos ;  elle  soffreu  da  molesUa  contraria,  era  um 
optimista;  digeria  bem  e  sabia  dar  gostosas  gargalhadas.  Tant 
mieux  pour  lui. 

Sua  biographia  é  simples  e  escreve-se  em  quatro  palavras. 
Pilho  do  Maranhão,  fez  alli  alguns  estudos  de  humanidades ; 
sem  ter  a  massada  de  ir  a  uma  academia  buscar  um  diploma, 
verdadeiro  trambolho  muitas  vezes,  atirou-se  logo  muito 
moço  ao  jornalismo  de  sua  terra  natal ;  começou  também 
desde  logo  a  cultivar  a  poesia. 

Mais  tarde  passou-se  para  o  Rio  de  Janeiro,  onde  sua  vida 
e  sua  arma  foi  sempre  o  jornalismo.  Foi  deputado  n'uma  ou 
duas  legislaturas ;  no  parlamento  não  se  destacou  por  quali- 
dade alguma  especial. 

Chegado  a  este  ponto,  é-me  preciso  agora  dividir  o  as- 
sumpto ;  mostrarei  o  poeta  e  depois  o  jornalista. 

Desde  muito  moço  principiou  elle  a  exhibir-se  n'uma  e 
n'outra  êsphera ;  seus  primeiros  ensaios  são  de  1858,  59  e  60 
no  Publicador  Maranhense,  dirigido  então  por  Sotéro  dos 
Reis. 

Serra  tinha  alli  por  companheiros  Gentil  Homem  e  Marques 
Rodrigues  ;  Serra  usava  do  pseudonymo  de  Pietro  de  Casid- 
lamare,  Gentil  do  de  Flávio  Reimar  e  Rodrigues  do  de  Sancho 
Falstaff. 

Já  então  era  notável  o  poeta. 

N'esta  qualidade  deixou  publicados  quatro  livros  :  Versos 
de  Pietro  de  Castellamare,  Salto  de  Leucade,  Um  Coração 
de  Mulher,  Quadros. 

N'estas  obras,  entre  producções  originaes,  ha  muitas  tra- 
ducções,  nomeadamente  dos  poetas  americanos. 

Quem  lê  as  poesias  de  Joaquim  Serra  é  logo  agradave^ 
mente  impressionado  pela  espontaneidade  do  tom,  pela  sim- 
plicidade das  cores,  pelo  brasileirismo  dos  quadros. 

Sente-se  immediatamente  que  se  está  a  tratar  com  um  ho- 
mem que  veio  do  povo,  que  conviveu  com  elle,  que  o  con- 


HIBTOBIA  DA  LITTEBATXnEtA  SBABILBIBA  393 

becia,  que  se  inspirou  de  sua  poesia,  de  suas  lendas,  de  suas 
tradições ;  um  homem,  e  isto  é  o  principal,  que  tendo  mais 
iarde  lido  os  auctores  estrangeiros,  e  havendo-os  até  estu- 
lado  e  traduzido,  nem  por  isso  sentiu  estancar-se-lhe  a  fonte 
lo  antigo  brasileirismo  e  quebrar-se-lhe  na  lyra  a  corda  das 
intigas  melodias  sertanejas. 

Serra  foi  um  poeta  local,  eivado  do  impressionismo  cam- 
)esino  e  popular,  e  náo  tinha  vergonha  de  sél-o ;  antes  o  pa- 
enteava  com  desembaraço. 

Acho-Ihe  razão  n'islo. 

Mais  de  uma  vez  no  curso  d'esta  historia,  tenho  defen- 
ido  03  foros  d'esse  poetar  sertanegista,  popularista,  ou  como 
fie  queiram  chamar.  E'  um  género  difflcilimo  ;  porque  tem  a 
laior  facilidade  em  descambar  do  bello  para  o  ridiculo. 

No  viver  das  populações  campesinas,  especialmente  em 
Igumas  lendas  tradicionaes,  em  alguns  costumes  graciosos, 
a  muita  poesia ;  mas  é  só  isto.  Se  se  quer  ir  além  e  divisar 
oesia  em  tudo  alli,  até  n*aquillo  que  é  de  um  prosaismo  aca- 
punhador,  é  um  gravíssimo  desacerto, 
Não  vamos  nós  agora  suppôr  que  só  na  ignorância,  na  ru- 
eza,  na  barbaria  do  sertanejo  é  que  ha  poesia,  e  que  esta  haja 
ihido  foragida  dos  centros  civilisados  e  se  tenha  ido  abrigar 
)solutamente  entre  matutos^  tabaréos,  caypiras,  sertanejos, 
irimpeiros,  e  quantas  classes  rudes  e  semi-bravias  habitam 
vasta  zona  central  do  enormíssimo  Brasil. 
E'  preciso  muito  geito  com  estas  coisas ;  não  queiramos  á 
pça  de  exaltar  a  sertanegidade  da  poesia,  tornal-a  de  todo 
licula;  deixemos  de  cLgriculíorices  muito  exaggeradas,  até  na 
opria  litteratura.  Se  o  bucolismo  grego  degenerou  em 
ilras  parvoiçadas,  não  será  o  mattulismo  brasileiro  que 
-de  escapar  da  geral  decadência  de  todo  excesso. 
A.contece  á  poesia  o  que  se  dá  com  a  moral,  cujo  impera- 
o  categórico,  segundo  Kant,  é  :  «  procede  de  modo  tal  que 
notivo  de  tua  acção  possa  servir  de  fundamento  a  uma  lei 
i versai.  » 

3  philosopho  quiz  dizer  que  tão  elevado,  tão  nobre,  tão 
^interessado  deve  ser  o  movei  da  conducta  de  cada  um,  que 


394  HISTOBIA  DA  LITTEBATUBA  BRABILBIBA 

este  movei  possa  servir  de  nonna  para  as  acções  de  todos. 
Esta  possível  generalidade  é  que  interessa  aqui. 

Em  poesia  deve-se  dar  alguma  coisa  de  análogo ;  de\x 
haver  também  uma  espécie  de  vmperaiivo  categórica  para  a 
arte  moderna  :  a  Emociona-te  e  produz  de  maneira  tal  que  o 
estimulo  de  tua  emoção  e  de  tua  obra  possa  servir  de  norma 
a  uma  esthetica  universal.  » 

Isto  não  importa  do  modo  algum  a  proscripção  do  indivi- 
duaiismo,  do  nacionalismo,  ou  de  toda  outra  qualquer  diffe- 
renciação  justa,  necessária  e  hábil  na  litteratura  e  n^arte: 
não  importa  absolutamente  a  absolvição  de  certo  unlversa- 
Usmo,  certo  cosmopolitismo  banal  e  impertinente. 

Bem  pelo  contrario :  isto  quer  dizer  que  em  lodo  e  qual- 
quer assumpto,  por  mais  local  que  seja,  deve-se  procurar 
aquella  face  geral  capaz  de  interessar  ao  homem,  a  lodos  os 
homens  de  qualquer  tempo  e  de  qualquer  lugar. 

Appliquemos  a  regra  á  nossa  hypothese. 

Comprehendei-se  bem  que  se  o  principio  da  esthetica  serta- 
neja se  estendesse,  se  generalisasse,  e  avassalasse  todos  os 
poetas  brasileiros  desde  1500  até  hoje,  nSo  haveria  n'este 
mundo  coisa  tâo  insípida  quanto  a  litteratura  nacional.  Já  ^c 
vê,  pois,  que  o  principio  do  seirtanegismo  não  comporta  a 
generalisação  e  muito  menos  a  universalidade. 

E  se  o  sertanegismo,  o  campesinismo  fôr  d'aquillo  que  hou 
ver  de  mais  secundário,  do  mais  particular,  de  menos  gerdl 
e  capaz  de  interesse,  ainda  peior  será  elle.  E  d'este  ultimo 
possuímos  infelizmente  muitas  amostras  em  nossa  litteratura. 

Em  que  condições  então  a  nossa  poesia  campesina  é  accei- 
tavel  ? 

Só  quando  é  capaz  de  amoldar-se  ao  que  eu  chamei  o  impe- 
rativo categórico  da  esthetica,  só  guando  é  susceptivei  de 
servir  de  norma,  áh  generalisar-se. 

Tem  ella  este  característico  quando  é  manejada  pelos  poetas 
de  provado  talento  e  apurado  gosto  artístico. 

O  poeta,  assim  armado  de  génio,  toma  o  motivo  p<H)ular,  a 
lenda,  o  conto,  a  tradição,  o  costume,  extrae  de  tudo  isto  a 
seiva  poética  e  dá-lhe  a  forma  artistica  geral,  universal. 

Serra  escreve  correntemente,  sem  rabiscar,  sem  preoc<^u- 


J 


HISTORIA  DA  LITTEAATUSA  BRASILEIRA  395 

pações  estylisticas.  O  verso  lhe  sae  natural  e  espontâneo ;  se 
vem  errado,  não  o  corrige,  deixa-o  ficar  assim  mesmo.  Por 
este  modo  se  explicam  bastantes  versos  incorrectos  em  poeta 
tão  correntio  e  fluente. 

No  género,  que  tenho  discutido,  o  característico  do  escriptor 
niaranhense  está  em  escolher  sempre  um  facto  simples  e  nar- 
ral-o  tal  qual,  pelo  seu  lado  mais  genérico ;  faz  um  esboço 
rápido,  claro,  de  tom  realista,  n'um  desenho  firme,  porém 
elementar  e  sem  complicações. 

Por  isso  O  Mestre  de  Resa,  Rasto  de  Sangue,  Cantiga  á 
Viola,  O  Roceiro  de  Volta  sâo  modelos  da  espécie.  E'  indispen- 
sável citaJ-os  para  que  o  meu  ledtor  se  convença  do  que  lhe 
af firma 

Eis  O  Mestre  de  Resa  : 

«  Era  um  velhinho  teso 
Exouisito  no  porte  e  no  trajar ; 

Por  isso  a  viUa  em  peso 
Quando  o  via  se  punha  a  cochicharl 
Se  da  lista  talarmos  o  vigário, 

E  mais  o  bolicaiio, 

Bem  como  o  juiz  de  paz. 

Era  o  mestre  de  resa 
O  primeiro  na  villa ;  com  certeza 
O  homem  ir^ais  capaz  1 
Depois  d'Ave-Maria 

Vem  elle  cada  dia 

Co'o  meninos  da  villa, 
E  alli  no  largo,  atraz  da  freguezia, 

Põe  todos  n'uma  fila  : 
As  perguntas  começam  e  as  respostas, 

E'  um  nunca  acabar! 
Os  rapazes  em  pé  e  de  mãos  postas, 
Elle  em  frente  do  linha  a  passear! 

A  resa  ou  é  falada, 
Ou  em  coro  cantada,  uma  balbúrdia! 
Quanta  doutrina  nova  e  mascavada! 

Qu€uita  oraç&o  estúrdia! 
As  beatas  morriam  de  alegria 
Co*o  dialogo  d'Eva  e  da  serpente. 


396  HISTORIA  DÁ  LITTIBATUSA  BBABIUSntA 

E  O  psalmo  da  baleia 

£  a  santa  melodia 

Dos  asnos  da  Judéa 

E  magos  do  Oriente! 
Sabe  o  mestre  umas  resas  milagrosas 
Contra  a  faca  de  ponta  e  mau  olhado, 

E  cobras  venenosas, 
E  o  jaguar  a  rugir  esfomeado!... 
Se  quereis  não  cahir  n*um  sumidouro, 
Elle  tem  orações  prodigiosas, 
Outras  que  fazem  achar  grande  thesouro 

Occulto  e  enterrado! 
Mora  n*aquella  casa  de  uma  porta, 

Ao  lado  da  ribeira  ; 

Na  frente  tem  uma  horta. 

No  fundo  uma  ingazeira. 
Reside  alli  o  homem  milagreiro, 

O  apostolo  da  roça  ; 
E'  de  velhas  devotas  um  viveiro 

A  sua  pobre  choça! 

Salve  o  mestre  da  resa, 
Na  villa  personagem  popular! 
Eil-o  que  passa...  vale  quanto  pesa!... 

Deixemol-o  passar!  )>  (1) 

E'  um  typo  este  quasi  desapparecido  actualmente  das  po- 
voações do  interior. 

Eis  agora  uma  scôna  do  viver  das  fazendas  de  criação  do 
norte ;  é  o  Rasto  de  Sangue  : 

«  E'  a  hora  do  crepúsculo  ; 
Que  viraçôo  tâo  grata! 
Geme  o  riacho  quérulo. 
Nem  um  cantor  na  mata! 

Desce  a  ladeira  Íngreme 
Um  touro  de  repente, 
E  vai  nas  frescas  aguas 
Fartar  a  sede  ardente. 

(1)  Quadrot,^  pag.  42. 


f 


Quadroêf  pag.  46. 


filBTOBIA  BA  LTCTBATITSA  BBA8ILBIEA  397 

Os  juncos  tremem,  súbito 
Sôa  medonho  ronco, 
E  o  jaguar  precipite 
Pula  de  traz  de  um  tronco! 

Debalde  o  touro  curva-se 
Recua,  dá  um  salto... 
£*  o  jaguar  mais  flácido. 
Sabe  pular  mais  altol 

O  touro  parte  célere, 
Soltabdo  um  grito  horrendo! 
Sobre  elle  a  fera  escancha-se, 
Também  lá  vai  correndo! 

Voam  por  esses  pcu'€unos, 
O  touro  em  grandes  brados, 
Saltar  querem  das  orbitas 
Seus  olhos  inflammados! 

Espuma,  arquejai  a  língua 
Da  bocca  vai  pendente! 
Garras  e  dentes  crava-lhe 
A  fera  impacientei 

Largo  rastilho  rúbido 
Embebe-se  na  areia, 
O  sangue  jorra  cálido 
Da  lacerada  veia! 

Gohtrahe-se  a  forte  victima 
Luctando  com  bravezal 
Porém  o  algoz  impávido 
Lá  vai...  náo  deixa  a  presa! 

Correram  mais!  Que  insânia! 
Que  scena  pavorosa, 
Passada  no  silencio 
Da  selva  escura,  umbrosal 

Emfim  n*um  precipício 

Os  dous  v&o  baquear... 

Cahlram  lá  exânimes  | 

O  touro  e  o  jaguar!  »  (1)  .j 

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398  HISTORIA  DA  LITTBRATUBA  BItASILSmA 

Ha  n'isto  muita  côr  local. 

Apreciem  agora  a  naturalidade  d'esta  scèna  real  e  vulg%- 
rissima  na  roça  : 

((  Eil-o  ahil  £'  o  Vicente, 
E  mais  o  ruço-queimado! 
Oh,  homem,  fala  co*a  gente! 
Venha  um  abraço  apertado... 

Que  demorai  Seis  semanas! 
Pois  patuscas  li*essa  idade? 
Eu  aqui  a  plantar  cannas, 
Tu  folgando  na  cidade! 

Toma  a  bençfto  do  padrinho, 
Menino,  deixa  esse  gallo ; 
Moleque,  sahe  do  caminho, 
Tira  a  sella  do  cavallo. 

Solta-o  depois  no  terreiro 
Fecha  a  cancella  co'a  tranca... 
Compadre,  tome  primeiro 
Um  bocadinho  da  branca. 

Se  acaso  n&o'stÁ  com  sôde 
Prove  um  pouco  da  coalhada ; 
Vamos,  deita-te  na  rode, 
EstÀs  massado  da  jornada. 

Quantos  dias  de  viagem? 
Seis  dias  e  meio...  —  Safa! 
Aonde  deixaste  o  pagem? 

—  Adoeceu  com  a  estafa. 

—  Ruins  caminhos,  a  ponte 
Quebraram...  que  malvadeza! 
O  rio  de  monte  a  monte 
Com  medonha  correnteza! 

—  Compadre,  foi  o  diabo, 
N&o  caio  n*outra  tão  cedo ; 
De  vale'ntfio  não  me  gabo, 
D*essas  cousas  tenho  medo. 


HIBTOBIA  DA  LITTBRATimA  BBABILSIBA  399 

SÓ  por  ser  negocio  urgente 
Fui  agora,  sem  vontade... 

—  Deixa-te  <l*iS80,  Vicente, 
E  os  prazeres  da  cidade? 

—  Os  prazeres!  Porventura 
Eu  acho  aquillo  bonito? 

—  O  que  dizes,  creatura? 
~  O  que  disse  e  tenho  dito! 

—  Sou  matuto,  sertanejo, 
N&o  ha  nada  como  a  roça... 
Lá  na  cidade  n&o  vejo 
Cousa  que  me  faça  mossa! 

—  Pois  a  côile  nao  te  agrada? 
Nâo  falas  serio,  eu  aposto... 
Gostas  da  roça  e  da  estrada? 
Vicente,  nfio  gostas...  —  Gosto! 

—  Trocar  t&o  lindos  recreios  : 
O  theatro,  a  contradansa, 

As  luminárias,  passeios, 

As  modas  vindas  de  França, 

Pela  derrub€^  a  capina, 
O  roçado  e  a  coivara. 
Caçadas  de  sururina, 
Esperas  de  capivara! 

E*  tremenda  exquisitice, 
E'  uma  loucura  immensa! 
Desculpa  se  no  que  disse 
Vês  um  vislumbre  de  offensa. . . 

— -  Comtigo  não  dou  cavaco, 
Dize  tudo,  mas  escuta, 
Mette  a  viola  'no  sacco. 
Depois  arenga  e  disputa  : 

Na  cidade  nasce  o  dia  | 

Saudado  por  mercadores  ;  ' 

No  campo  o  sol  irradia  : 

Entre  gorgeios  e  flores!  j 

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400  niSTOfiU  DA  LITTEBATUSA  BRABILBIBA 

O  sabiá  que  na  mata 
Canta  os  hymnos  da  alvorada, 
Eu  prefiro  â  serenata 
Lá  na  cidade  tocada. 

A  caçada  na  floresta, 
Ou  a  pesca  na  lagôa, 
Anteponho  a  qualquer  festa 
D*essas  que  a  corte  apregoa. 

Se  fores  hoje  ao  theatro 
E  vires  mulheres  nuas, 
Fazendo  o  diabo  a  quatro 
Como  o  garoto  das  ruas. 

Desejarás  muitas  vezes 
Os  nossos  rudes  folguedos, 
As  festas  dos  camponezes 
A'  sombra  dos  arvoredos! 

—  Oh,  compadre,  que  loucura! 
Isso  que  diz  náo  tem  senso! 
POe  a  roça  n'uma  altura!... 

—  O  que  digo  é  o  que  penso! 

—  Nfio  penso  eu!  —  Paciência, 
Eu  n&o  teimo  com  teimoso... 

—  Passa  até  a  indecencia 
O  parallelo  afírontoso! 

—  O  que  queres?  sou  receiro... 

—  Porém  pôde  ter  miolol... 

—  E's  um  bobo!...  Capurreiro! 

—  Que  pateta!  —  Forte  tolo! 

A  conversa  dava  em  bilga, 

Gritaria  e  alvoroço... 

Mas  na  porta  voz  amiga 

Murmurou  :  *Stá  prompto  o  almoço!  »  (1) 

Joaquim  Serra  não  tocou  somente  a  viola  do  setanejo ;  ma- 
nejou também  a  harpa  das  inspirações  sociaes  e  a  lyra  das 
emoções  amorosas. 

(1)  Quadroêt  pag.  53. 


HISTOBIA  DA  LITTEEATUEA  BBA8ILEIBA  401 

N*este  género  são  bellissimos  os  versos  A  Minha  Madona. 

Como  jornalista,  entretanto,  é  que  este  auclor  adquiriu  mais 
ntensa  nomeada. 

Suas  primeiras  armas  íêl-ajs  elle  no  Maranhão  desde  1859 

60  no  Publicador  Maranhense,  então  sob  a  direcção»  de 
lotéro  dos  Reis,  como  disse. 

Serra,  como  já  notei,  usava  então  do  pseudonymo  de  Pietro 
e  Castellamare,  assignando  poesias  e  folhetins. 
Em  1862  com  alguns  amigos  fundiou  a  Coalisão  que  advo- 
3Lva  em  politica  o  partido  liberal,  e  conservou-se  na  redacção 
é  1865. 

Em  1867  fundou  o  Semanário  Maranhense,  onde  collabo^ 
ram  Gentil,  Souza  Andrade,  Henriques  Leal,  Cezar  Mar- 
les,  Sotéro  dos  Reis,  Sabbas  da  Costa  e  Celso  de  Maga- 
ães,  então  apenas  estudante  de  preparatórios  (1). 

0  periodo  liguei ro  de  62  a  68,  o  nosso  jornalista  passou-o 

1  sua  província,  com  algumas  pequenas  estadas  no  Rio.  De 
Ião  em  diante  estabeleceu-se  definitivamente  n'esta  capital, 
áe  fez  parte  das  redacções  da  Reforma,  do  Diário  Offícial, 
Folha  Nova  e  do  Paiz. 

í^estas  duas  ultimas  folhas  foi  o  auctor  da  interesssante  pu- 

jação  sob  o  titulo  de  Tópicos  do  dia.  Era  um  artigo  diário 

sagrado  ao  acontecimento  mais  saliente  da  occasião. 

's  méritos  d'este  brasileiro  como  jornalista  são  de  fundo 

3  íórraa. 
fundo  é  sempre  apreciável  pelo  bom  senso  do  auctor, 
liberalismo  jamais  desmentido,  sua  habilidade  em  dis- 

lir  o  lado  fraco  dos  planos  e  acontecimentos  políticos  da 

3ha. 

forma  é  agradável  pela  sua  simplicidade,  seu  desalinho 

trai,  uma  das  faces  do  humorismo  e  da  ironia  do  ma- 

lense» 

le  espalhou  pelos  jornaes  matéria  para  muitos  volumes ; 

L  útil  que  tivesse  feito  uma  escolha  dos  seus  melhores 

os  políticos  e  litterarios  e  os  publicasse  em  livro. 

!k>nsulte-8e  o  livro  de  Ignotuã  já  citado. 

HISTORIA  n  26 


402  HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIBA 

Não  O  tez,  6  apenas  lhe  conheço  em  prosa  o  pequeno 
volume  que  publicou  em  1883  relativo  a  imprensa  do  Mara- 
nhão. 

D'este  livrinho  recommendo  especialmente  os  capítulos 
segundo  e  terceiro  sobre  a  imprensa  partidária  e  sobre  os 
jornalistas  eminentes  no  Rio  e  em  sua  terra  natal. 

Como  documentação  do  estylo  e  das  ideias  do  escriptor 
repito  aqui  dois  pequenos  trechos. 

Eis  o  primeiro  : 

«  A  existência  da  impretisa  politica  é  uma  necessidade  urgente  em 
todos  os  centros  de  grande  actividade. 

Em  regra  geral  essa  imprensa,  que  se  intitula  neutra  ou  impar- 
cial, não  cumpre  com  a  fidelidade  que  fora  para  desejar  o  seu  pro- 
gramma  de  inteira  isempção  de  animo  nas  luctas  que  dividem  a 
sociedade.  Como  que  ella  se  resente  d^essa  obrigação  que  tinha  o 
cidadão  de  Sparta  de,  por  força,  manifestar-se  em  favor  de  algoma 
das  opiniões  que  dividiam  a  republica. 

A  falta  de  imprehsa  politica  como  que  obriga  aquella,  que  se  diz 
incolor,  a  imiscuir-se  nas  contendas  partidárias  e  a  julgar  d'ellas  de 
um  modo  arbitrário,  como  quem  desconhece  as  paixOes  e  enthu- 
siasmos  que  se  acham  em  jogo. 

Ainda  mesmo  não  filiada  aos  partidos  que  litigam,  essa  imprensa 
neutra  ou  imparcial,  em  matéria  de  ensino,  de  religião,  de  escolas 
económicas,  tem  sempre  o  seu  ponto  de  vista  especial,  já  advogahdo 
a  não  obrigatoriedade  do  ensino,  o  proteccionismo  industrial,  ou  o 
privilegio  de  certos  cultos.  D'ahi  uma  falsa  doutrinação  dos  leitores; 
falsa,  pelo  menos  perante  a  consciência  d^aquelles  que  desejariam 
ver  semeadas  idéas  contrarias. 

A  imprensa  politica  tem  em  "nosso  paiz  prestado  grandes  e  iin- 
portantes  benefícios.  A  ella  se  deve  tudo  quanto  de  bom  e  salutar  ha 
sido  promulgado  pelos  poderes  públicos,  porque  só  ella  tem  agitado 
as  grandes  questões  sociaes,  que  hoje  se  acham  solvidas,  ou  em  via 
de  solução. 

O  despotismo  sempre  fugiu  d'ella,  porque  deve-lhe  certas  derro- 
tas ;  entre  nós  a  tyrannia  encontrou  o  seu  mais  valente  inimigo 
no  Joilíialismo  partidário,  arma  formidável  e  invencível. 

Da  imprensa  politica  entre  nós  se  pode  dizer  o  mesmo  que  das 
reuniões  populares  na  Inglaterra,  disse  Gladstone  : 

«  A  historia  do  Reino  Unido,  nestes  últimos  cincoenta  annos,  mos- 
tra como  a  agitação  politica  favorece  o  triumphar  das  gra'ndes  can- 
sas, sem  nunca  cahir  na  vertigem  revolucionaria.  » 


; 


HI8T0BIA  BA  LITTXSATUBA  BRA8ILBIBA  403 

De  facto  :  nos  dias  angustiosos  que  precederam  a  declaração  da 
independência,  de  que  importância  n&o  foi,  por  exemplo,  o  jornal  de 
Gonçedves  Ledo  e  do  frade  Sampaio?  E,  ao  lado  do  Reverbero,  quanto 
Mo  cooperou,  em  bem  da  mesma  ideia,  *  o  Regíãador^  org&o  dos 
Andradas? 

De  que  vedia  não  forcun,  depois  da  fundação  do  império,  os  sep- 
viços  da  Aurora,  da  Sèntinella  do  Serro,  do  Argos,  da  Astréa,  do 
Independe^nte,  do  Tamoyo^  do  Observador  Constitucional  e  de  outros 
esforçados  athletas? 

ET  uma  accusação  sem  procedência  essa  que  fazem  ã  imprensa  poli- 
Uca  pelos  excessos  e,  por  vezes,  intemperança  da  linguagem  uaada 
nas  discussões.  Sem  por  forma  alguma  querer  negar  que  ha  ainda 
muito  a  fazer  na  educação  politica  dos  partidos  entre  nós,  é  ínncgA- 
yel  que  a  imprehsa  partidária  tem  os  erros,  exaggerações  e  intole- 
râncias do  grupo  que  representa. 

Espelho  fiel  da  sociedade  e  dos  interesses  que  nella  se  agitam,  não 
é  licito  exigir  da  imprensa  politica  aquillo  que  ainda  falta  €U)8  par- 
tidos militantes,  isto  é  :  escola  quanto  a  doutrinas,  e  respeito  pela 
opinião  que  não  é  a  nossa. 

Fora  d*ahi,  porém,  cabe  de  direito  á  imprensa  politica  a  maior 
parte  da  gloria  pelas  conquistas  da  civilisação  com  que  temos  assi- 
gnalado  nossa  vida  publica  »  (1). 

Ainda  mais  significativo  é  o  trecho  seguinte  em  que  elle 
dá  uma  rápida  ideia  de  alguns  dos  mais  eminentes  jorna- 
listas nossos ;  por  ahi  pode-se  apreciar  o  escriptor  no  offlcio 
de  critico  litterarío.  E'  isto  : 

a  Sem  duvida  que  é  para  encher  de  orgulho  a  um  paiz  novo  como 
o  nosso  o  facto  de  contar,  entre  os  seus  jornalistas,  homens  da  força 
de  Evaristo  da  Veiga,  Salles  Torres  Homem,  Justiniano  da  Rocha  e 
Firmiho  Silva,  sem  falar  de  notabilidades  que  ainda  vivem  e 
que  podem  emparelhar  com  as  mais  illustres. 

Evaristo,  o  patriota  ardente  e  publicista  esforçado,  elle  que,  no 
dizer  de  um  nosso  distincto  escriptor,  era  a  encarnação  de  notável 
epocha,  cujo  nome  symbolisa  a  parte  mais  brilhante  da  democracia 
do  Brasil;  o  redactor  da  Aurora  Fluminense  fazia  com  os  seus  escrip- 
tos  vibrar  a  alma  da  pátria  e  constituiu-se  uma  força  decisiva  nos 
dias  do  primeiro  reinado. 

(1)  SeêêerUa  annoi  de  jornalismo  —  A  Imprensa  no  Maranhão  (ISK^ 
1880)  pag.  7S. 


.! 


^ 


404  HISTORIA  DA  LITTE&ATURA  BRASILEIRA 

A  Aurora  não  foi  somente  um  grande  instrumento  de  combate,  foi 
monumento  de  sabedoria  e  de  elegância  litteraria. 

Salles  Torres  Homem,  esse  artista  da  palavra,  cujo  eslylo  brilha  e 

fere  como  o  raio,  esse  pehsador  profundo,  foi  escriptor  de  tempeni 

forte.  Pamphletista  como  Cormenin,  seus  artigos,  quer  nos  jornal 

litterarios,  quer  nos  jornaes  politicos,  sôo  productos  de  grande  valor 

S^çm  qualquer  tempo  e  em  qualquer  paiz. 

^  :  Justiniano  José  da  Rocha,  o  discutidor  mais  eloquente  e  illustraido 
que  temos  tido,  de  uma  fecundidade  seductora,  espirito  de  lucidez 
pasmosa,  de  verbo  crystallino  e  vibrante ;  e  Firmino  Silva,  intelli- 
gencia  alimentada  em  sólidos  estudos,  talento  brilhante  e  de  grande 
ductilidade,  são  nomes  que  o  jornalismo  fluminense  archíva  no  livro 
de  ouro  de  seus  brazões  e  fidalguia. 

Não  menos  illustre  que  qualquer  d'esses,  José  de  Aleticar  fulgiu  oa 
imprensa  da  capital  do  império  como  luminoso  phai^oL  Ninguém 
melhor  do  que  elle  tratou  com  erudição  de  qualquer  assumpto  doo- 
trinario,  ninguém  elevava  a  mais  alto  grão  a  critica  litteraria,  e,  na 
polemica  incisiva,  quer  apaixonado  ou  humorístico,  era  elle  um 
batalhador  enorme,  de  phrase  máscula  e  scintillanle. 

E  mais  Tavares  Bastos,  pensador  eloquente  e  inspirado,  cujo 
estylo  vale  o  bronze. 

Pois  bem,  lá  no  extremo  norte  fulguraram  também  outras  estrel- 
las  que  podem,  sem  grande  desvantagem,  competir  com  estas  í.t 
constellação  jornalistica  que  fulgio  no  Rio  de  Janeiro. 

Tanto  nos  dias  difficeis  que  seguiram  a  independehcia,  como  du- 
rante as  despóticas  obstinações  do  primeiro  reinado;  na  época  agi- 
tadíssima da  minoridade,  como  no  periodo  decorrido  depois  do  — 
QtieTO  Já  —  que  abriu  o  reinado  actual :  em  todas  essas  quadras  tem 
o  Maranhão  possuído  jornalistas  notáveis  e  uma  imprensa  recom- 
mendavel  pelo  patriotismo,  saber  e  bom  gosto  litterario. 

Sem  querer  formar  parallelos  e  approximações,  podemos  todavia 
dizer  que,  a  cada  uma  dessas  grandes  individualidades  que  aponta- 
mos, como  os  primeiros  vultos  do  jornalismo  que  teve  sua  sede  ca 
corte,  corresponde  um  nome,  uma  capacidade,  em  tudo  similhante, 
na  imprensa  do  Mara'nhão. 

E*  assim  que,  a  Evaristo  podemos  oppor  José  Cândido  ou  Odorico 
Mendes ;  a  Torres  Homem  e  Justiniano  da  Rocha,  João  Lisboa  oa 
Sotéro  dos  Reis  »  (1). 

•  (1)  Sessenta  annoê  de  jornalismo,  pag.  103. 


HISTORIA  DA  LITTERATTJEA  BBASILEIBA  405 

Em  resumo,  Joaquim  Serra  foi  um  meritório  poeta  e  um 
assignalado  jornalista. 

Robusto,  alegre  e  espansivo,  seu  bom  humor  habitual, 
ieixando  intactas  suas  primitivas  impressões,  encantuou-o 
ia  região  aprazivel  do  lyrismo  pátrio  e  do  liberalismo  tradi- 
íional  e  preservou-o  de  innovações  perigosas  e  precipitadas. 

A  invasão  das  ideias  modernas  espalhadas  pela  philosophia 
lo  ultimo  quartel  do  século  xix  fez-se  n'elle  cautelosa  e  de- 
noradamente,  sem  desmoronar  de  súbito  e  de  vez  o  antigo 
diflcio  de  suas  crenças  e  intuições. 

Bem  pelo  contrario,  apesar  de  ter  bastante  lido  e  se  haver 
Ilustrado  bastante,  póde-se  em  rigor  dizer  que  íundamental- 
lente  o  seu  espirito  conservou  a  mesma  attitude  e  a  mesma 
•escura  primitivas. 

Joaquim  de  Souza  Andrade  é  quasi  inteiramente  desconhe- 

do,  o  que  facilmente  se  explica  pela  Índole  de  seu  poetar. 

'  merecedor,  porém,  de  attenção. 

Descubro-lhe  alguns  signaes  característicos  ;  primeiramente 

I  nossos  poetas  é,  creio,  o  único  a  occupar-se  de  assumpta 

íiericano  estranho  ao  Brasil,   um  assumpto  colhido  nas 

publicas  hespanhohas  (1) ;  depois,  é  um  poeta  de  forte  ele- 

ção  de  ideias ;  mas  de  forma  muitas  vezes  áspera  e  rude 

quasi  inintelligivel. 

Váo  é  possível  entrar  em  grandes  desenvolvimentos. 

3  leitor  muna-se  dos  dois  volumes  de  Souza  Andrade  publi- 

los  sob  o  titulo  —  Impressos  —  no  Maranhão  em  1868 ; 

i-os  a  começar  pelo  principio,  O  Guesa  Errante^  passando 

Dois  ás  peças  soltas. 

Lndrade  viajou  e  tomou  o  grande  faro  da  litteratura  do 

ulo  no  estrangeiro ;  mas  não  assimilou  uma  tendência 

tlquer  definitiva.  D'ahi  certa  indecisão  em  seus  ideiaes 

ertas  vacillações  em  suas  poesias. 

ao  possuia  também  a  destreza  e  a  habilidade  da  forma ; 

longe  em  longe  ou  ás  vezes  de  perto  em  perto  apparece 

Nos  meus  UUimoê  HarpejoM  flz  o  mesmo  no  Poema  d<u  Américas. 


406  HIBTOBIA  DA  LITTEBATXTBA  BBA8ILEIRA 

algum  verso,  alguma  estropher  excellente,  ou  até  admirável,  e 
depois  succedem-se  pedaços  e  pedaços  muito  menos  felizes. 

Uma  cousa,  porém,  é  preciso  que  se  diga  :  o  poeta  sae  quaà 
inteiramente  fora  da  toada  commum  da  poetisaçã.0  do  seu 
meio;  suas  ideias  e  linguagem  têm  outra  estnictura. 

E'  pena  que  a  forma  não  obedeça  a  uma  igual  differençiaçáo: 
porque,  se  tal  acontecesse,  Andrade  seria  um  poeta  de  pri- 
meira ordem. 

A  funcçâo  da  critica  é  em  tal  caso  simplesmente  mostrar, 
apontar  o  caminho. 

O  poeta,  com  suas  audácias,  suas  bellezas,  suas  obscuri- 
dades, suas  asperezas,  acha-se  todo  no  singular  poema  —  O 
Guesa  Errante.  Na  ouverture  que  cito  apreciem  o  estylo  - 
as  intuições  d'este  maranhense  : 

Folga,  imaginação  divina!  Os  Andes 
VulctínÍGOs  elevam  os  cumes  calvos, 
Circumdados  de  gelos,  mudos,  alvos, 
Nuvens  fluctuando  —  que  espectáculos  grauidesl 

Lá  onde  o  ponto  do  condor  negreja, 
Scintillando  no  espaço  como  brilhos 
D'olhos,  e  cae  a  prumo  sobre  os  filhos 
Do  Ihama  descuidado  ;  onde  lampeja 

Rugindo  a  tempestade  ;  onde,  deserto 
O  azul  sertão,  formoso  e  deslumbrante, 
Arde  do  sol  o  incêndio,  delirante 
No  seio  a  palpitar  do  céu  aberto. 

Coração  vivol  —  Nos  jardins  da  America 
Infante  adoração  dobrou  sua  crehça 
Ante  o  bello  signal,  que  a  nuvem  ibérica 
Em  sua  noite  envolveu  ruidosa  e  densa. 

Cândidos  Incas!  Quando  já  campeiam 
Os  heroes  vencedores  do  innocente 
índio  nú,  quando  os  templos  incendeiam, 
Já  sem  virgens,  sem  oiro  reluzente. 

Sem  as  sombras  dos  reis  filhos  de  Manco, 
Vio-se...  (que  tinham  feito?  e  pouco  havia 


HISTOBIA  DA  LITTEEAT17SA  BBABIUUSA.  407 

A  fazer-se...)  n'um  leito  puro  e  branco 
A  corrupção  que  os  braços  estendOia! 

E  da  existência  meiga,  afortunada, 
O  róseo  fio  nesse  albor  ameno 
Foi  destruido.  Como  ensanguentada 
A  terra  fez  sorrir  o  céo  serenol 

Foi  tal  a  maldição  dos  que  caldos 
Morderam  a  face  dessa  mãi  querida 
A  contrair-se  aos  beijos  denegridos, 
Que  o  desespero  imprime  ao  fim  da  vida  , 

Que  resentio-se,  verdejante  e  válido, 
O  floripondio  em  flor  ;  e  quando  o  vento 
Mugindo  estorce-o,  doloroso  e  pallido, 
Gemidos  se  ouvem  no  amplo  firmamento! 

£  o  sol  que  resplandece  na  montanba 
As  noivas  não  encontra,  não  se  abraçcun 
No  puro  amor ;  e  os  fánfarrOes  d'Hespanha, 
Em  sangue  edeneo  os  pés  lavando,  passam. 

Caiu  a  noite  da  nação  formosa  \ 
Cervaes  romperam  por  nevado  armento, 
Quemdo  com  a  ave  a  corte  deliciosa 
Festejava  o  purpúreo  nascimento. 

Assim  volvia  o  olhar  o  Guesa  Errante 
As  meiíeiadas  cimas,  como  altares 
Do  génio  pátrio,  que  a  ficar  distemte 
Vôa  a  alma  beijar  além  dos  ares. 

E  enfraquecido  o  coração,  perdoa 
Pungentes  males  que  lhe  deram  os  seus» 
Talvez  feridas  settas  abençoa 
Na  hora  saudosa,  murmurando  adeus. 

Porém  não  se  interrompa  esta  paisagem 
Do  sol  no  espaçol  mysteriosa  a  calma 
No  horizonte,  na  luz  bella  miragem 
Errando,  sonhos  de  doirada  palmeu 


408  HISTORIA  DA  LITTEBATURA  BRASILSniA 

Folga,  imagínaç&o  divina!  Sobre 
As  ondas  do  Pacifico  azulado 
O  phantasma  da  Serra  projectando 
Áspero  o  cinto  de  nevoeiros  cobre  : 

D'onde  as  torrentes  espumando  saltam 
E  o  lago  anila  seus  lençóes  d'espelho, 
E  as  columnas  dos  picos  d'um  vermelho 
Clarão  ao  longe  as  solidões  esmaltam. 

A  forma  os  Andes  tomam  solitária 
Da  eternidade  feita  vendaval 
E  compellindo  os  mares,  procellaria, 
Condensa  e  negra,  indómita,  infernal! 

(Ao  que  sobe  do  oceano,  avista  a  curva 
Perdendo-se  do  ether  ho  infilnito, 
Treme-lhe  o  coração  ;  a  mente  turva 
S'inclina  e  beija  a  terra  —  Deus  bemdito!) 

Ou  a  da  noite  austral,  co'a  ilôr  do  prado 
Communicando  o  astro  ;  ou  a  do  bronco 
E  convulsivo  se  annellar  d'um  tronco 
De  constrictor  o  páramo  abrazado  »  (1). 

Uma  leitura  cuidadosa  das  producções  de  Souza  Andrade 
irá  descobrir  n'elle  boas  ideias  e  grandes  bellezas  obscure- 
cidas por  descuidos  e  defeitos. 

Ha  muita  cousa  no  pessimismo,  no  satanismo  liodierno  que 
tem  ali  suas  predecessoras. 

Leia-se,  por  exemplo,  Vascas  do  Justo^  e,  como  esta,  outras 
composições  do  auctor. 


Juvenal  Galeno  é  escriptor  de  quem  direi  pouco;  elle 
já  está  implicitamente  julgado  nas  paginas  precedentes  d'este 
capitulo ;  já  lhe  ílz  muitas  referências. 

Tem  passado  pela  mais  completa  incarnação  da  intuição 

(1)  Impres$08tpSLg.  7.  Ultimamente  apparcceu,  em  edição  especial,  completo 
O  Guesa  Errante.  Convém  ser  lido  por  inteiro. 


HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  BBASILBIBA  409 

popular  em  nossa  lilteratura ;  ha  n'este  ponto  razões  pró  e 
razões  contra. 

Contra  póde-se  dizer  que  não  foi  elle  o  primeiro  a  inspirar- 
se  no  viver  de  nosso  povo,  nem  foi  o  que  o  fez  com  mais 
talento  e  mais  arte. 

A  favor  póde-se  asseverar  quê  nenhum  de  nossos  escriptores 
como  elle  se  interessou  tanto  e  tão  constantemente  com 
as  nossas  classes  populares,  ninguém  as  acompanhou  tão 
amoravelmente,  tão  apaixonadamente.  Este  livro  é  um  livro 
de  consciência,  de  amor  e  de  verdade,  em  que  pretendo  dar  do 
melhor  de  meu  espirito  em  favor  de  minha  pátria. 

Por  isso  faço  plena  justiça  a  todos  os  que  entre  nós  sup- 
portaram  o  pesadíssimo  encargo  das  letras. 

Juvenal  Galeno  é,  por  esta  face,  um  benemérito ;  foi  um 
activo  e  um  trabalhador.  Seu  maior  defeito  foi  faltar-lhe  a  cul- 
tura precisa  para  entrar  plenamente  nos  domínios  litterarios 
e  artísticos. 

Esta  falta  inicial,  apesar  de  todo  o  seu  bom  senso  e  de 
toda  a  sua  intelligencia,  conservou-o  sempre  em  uma  posição 
inferior. 

Já  disse  anteriormente  que  o  poetar  de  Galeno  é  quasi  todo 
n'um  género,  pelo  menos,  incompleto  e  desageitado ;  porque 
nem  é  a  ideialisação  artística  do  viver  popular,  nem  é  a  colheita 
directa  de  seu  cancioneiro. 

Este  ponto,  deixei-o  bem  assignalado  n'este  capitulo  por 
diversas  vezes. 

Pouco  ha  a  juntar  agora,  bastando-me  ponderar  que  não 
se  deve  por  isto  desprezar  a  obra  litteraria  do  escriptor  ser- 
tanejo. 

Apezar  do  defeito  apontado,  ha  muito  que  apreciar  e  lou- 
var nos  livros  d'este  cearense. 

O  conhecimento  pratico  dos  costumes  populares,  o  amor 
ás  classes  proletárias,  o  liberalismo,  o  devotamento  ao  pro- 
gresso, a  sympathia  profunda  por  tudo  quanto  é  nacional,  são 
qualidades  inilludiveis  n'este  sympathico  auctor  nortista. 

Quem  d'isto  duvidar  leia  nas  Lendas  e  Canções  Populares 
o  prologo  sob  o  titulo  historia  doeste  livro,  e  leia-o  com 
attenção. 


410  HISTORIA  DA  LITTISSATUBA  BRA8ILEIBA 

Ahi  diz  O  poeta,  terminando  : 

((  Sei  que  mal  recebido  serei  Yios  salões  aristocráticos,  e  entre 
alguns  críticos  que,  estudando  nos  livros  do  estrangeiro  o  nosso 
povo,  desconhecem-no  a  ponto  de  escreverem  que  o  Brasil  nfio  leni 
poesia  popular!  Esquecidos  de  que  a  poesia  nasceu  com  o  homein 
e  só  com  o  homem  morrerá  ;  de  que  nâo  ha  povo  que  não  tenha  a  sua 
lenda,  a  sua  ca*nçâo,  a  sua  poesia,  bella,  original,  toda  filha  de  soa 
alma,  e  que  não  exprima  a  sua  saudade,  o  seu  amor,  a  sua  magoa; 
de  que  no  estado  selvagem  o  Brasil  teve  essa  poesia  no  canto  das 
tribus,  que  commemoravam  seus  feitos  guerreiros  e  as  aventuras 
de  seu  viver  errante,  entoando,  aos  sons  da  tniiòia,  do  torem^  do 
murmure  ou  do  maracd,  a  canção  intima,  a  tradicional,  a  da  guerra, 
e  a  de  seus  costumes  ;  de  que  Yios  tempos  coloniaes  o  povo  cantavia 
a  oppressão  que  soffria,  as  suas  aspirações  á  liberdade,  o  capfi- 
veiro  de  seus  filhos,  a  devastação  de  suas  florestas  ;  de  que  na  inde- 
pendência o  brasileiro  cantou  as  peripécias  da  luta,  a  \ictoria,  os 
heróes,  os  hymnos  do  livre;  de  que  hoje,  illaqueado  por  sua  boa 
fé,  lendo  na  lei  —  liberdade,  e  nos  factos  —  despotismo,  canta  nâo 
só  os  seus  amores  e  as  lendas  do  passado,  como  também  os  sens 
pezares  de  cidadão!  E  de  que  o  povo  sabe  ca^ntar,  como  sabe  chorar, 
gemer  e  suspirar,  nasceu  cantando,  como  os  passarinhos,  como  tudo 
que  tem  voz,  porque  o  bom  Deus  assim  o  quiz,  assim  o  íadoa 
poetai  »  (1) 

O  poeta  admirava-se  de  que  em  1865  houvesse  quem  contes- 
tasse no  Brasil  a  existência  da  poesia  popular  I 

Era  em  1865  na  phase  dos  românticos  ignorantes  e  alrã- 
zados... 

Mais  espantado  ficaria  elle,  se  lhe  dissessem  que  hoje, 
quarenta  annos  depois,  ainda  temos  aqui  admiradores,  tão 
enthusiastâs  de  todos  quantos  são  desaffeiçoados  ao  Brasil, 
que  levam  a  mal  qualquer  defesa  justa,  qualquer  elogio  fun- 
dado que  se  faça  ao  que  é  nosso. 

Galeno  tem  uma  ou  outra  poesia  em  que  é  mais  artista: 
o  Velho  Jangadeiro,  a  Jangada  e  outras  mais  são  d'esta  es- 
pécie. 

Lendoê  e  Canções  Populares,  Ceará,  1865    pag  18. 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUBÁ  BRA8ILEISA  411 

Como  exemplificação  do  seu  estylo  no  que  tem  de  mais 
geral,  cito  aqui  o  —  Meu  Roçado  : 

«  Que  bello  está!  Feito  em  regra, 
Bem  limpinho,  bem  plantado. 
Algum  milho  e  feij&o  verde 
Vai-me  dando  o  meu  roçado ; 
Já  tirou-me  dos  apertos 
De  quem  trabalha  alugado. 

Outro  sou  com  meu  roçado... 

Ventura! 
Fugiu-me  a  fome  de  casa, 
Agora  vejo  a  fartural 

Bem  a  Joanna  me  dizia 

Nas  horas  de  privação  : 

—  <(  Homem,  faze  um  roçadinho, 

«  Planta  arroz,  planta  feijão, 

(( Que  esta  vida  de  alugado 

(c  Ao  pobre  não  serve  não! 

Duzentos  passos  de  terra 
Arrendei  para  o  roçado, 
E  empurrei  no  matto  a  foice, 
E  depois  de  broqueado. 
Fui  á  derruba  e  pical-o 
Espanando  o  meu  machado! 

Secco  o  malto,  fiz  a  cama 
E  acabando  de  asseiral-o, 
Puz-lhe  fogo...  que  buraco! 
Não  custou  encoivaral-o! 
Fazia  Joanna  as  coivaras, 
E  eu  tratava  de  cerc€d-o. 

Vindo  que  fosse  o  inverno, 
Pláhtal-o  fomos  um  dia, 
As  covas  eu  preparava, 
O  resto  Joanna  fazia, 
Punha  a  semente,  e  de  terra 
Com  seu  pé  a  cova  enchia. 


412  HISTORIA  DA  LITTEBATURÀ  BKASILEIBA 

Bom  inverno!  Em  pouco  tempo 
Meu  legume  vi  nascer! 
Chamei  Joanna  para  vel-o... 
Tudo  ent&o  era  prazer! 
Que  alegria  sente  a  gente 
■  Vendo  o  que  plaiita  crescer! 

Bom  inverno!  Após  a  limpa 
Todo  o  milho  apendoou  ; 
A  mandioca  escurece... 
O  meu  ÉU^roz  cacheou  ; 
Girimum  e  feijão  verde 
Logo  em  casa  se  provou! 

Agora  nosso  alimento 
Tiramos  lá  do  roçado, 
Comemos  tão  satisfeitos 
Do  que  foi  por  nós  plantado... 
Mesmo  lembrando  as  fadigas, 
Que  nos  custou  o  bocado! 

Se  é  preciso  a  minha  Joanna 
De  milho  faz  um  angu; 
Com  dois  páos  de  mandioca 
No  caco  faz  um  beijú  ; 
Se  mais  quer...  traz  do  roçado 
De  macachôra  um  urú. 

Sempre  aqui  a  meza  posta, 
Em  breve,  em  breve  o  dinheiro! 
Qulmporta  pesada  renda. 
Que  m'importa  o  dizimeiro? 
Inda  assim!  Hei  de  ter  milho 
Para  mais  d'um  estaleiro! 

Mais  doce  me  corre  a  vida 
Por  causa  do  meu  roçado  ; 
Ai,  Joanna,  bem  me  dizias, 
Que  um  laco  de  chão  plantado, 
E*  melhor  do  que  a  penúria. 
De  quem  trabalha  alugado!  »  (1) 

(1)  Lendas  e  Canções  Populares^  pag.  101. 


J 


HISTOBIA  PA  UTTEBATUBA  B&àBiLBIBJl  413 

Galeno  possúe  em  verso  Lendas  e  Canções  Populares^ 
Lyra  Cearense  e  Canções  da  Escola  e  em  prosa  Scénas  Popu- 
lares. Sâo  obras  que  devem  ser  lidas,  por  darem  uma  ideia 
de  nossas  populações  centraes. 


CAPITULO  V 


Poesia.  —  Quinta  phase  do  romantismo. 


Já  foram  percorridas  quatro  phases  diversas  do  romantismo 
brasileiro  :  o  emanuelismo  de  MagalhêLes  e  seu  grupo,  o 
indianismo  de  Gonçalves  Dias,  o  subiectivismo  de  Alvares  de 
Azevedo  e  sua  plêiada,  o  sertanegismo  dos  poetas  do  norte. 
Falta  agora  atravessar  os  dois  últimos  estádios  da  romântica 
entre  nós  :  o  lyrismo  esp€ci(ico  de  Pedro  Luiz  e  Fagundes  Va- 
rella,  e  o  condoreirismo  de  Tobias  Barretto,  Castro  Alves  e 
seus  mais  próximos  seguidores. 

Isto  feito,  esteurá  encerrada  a  historia  da  poesia  romântica 
e  aberto  o  espaço  para  a  historia  d'aquellas  doutrinas  e 
theorias  que  tem  disputado  a  herança  e  substituição  do  velho 
e  glorioso  systema. 

Antes,  porém,  de  encetar  a  narrativa  dos  feitos  de  Pedro 
Luiz  e  Fagundes  Varella,  é  de  necessidade  instante  aqui  de^ 
pôr  algumas  vistas  theoricas.  São  necessárias  para  a  eluci- 
dação dos  typos  htterarios. 

A  popularidade  immensa,  e,  em  mais  de  um  ponto,  perfei- 
tamente exaggerada  dos  livros  de  critica  artística  e  litteraria 
de  Hippolyto  Taine,  trouxe  a  crença  geralmente  admittida  da 


414  HIBTOBIA  DA  LITTEBATUBA  BBABILEI&A 

capacidade  magica  de  três  palavras  para  a  explicaçãa  com- 
pleta dos  phenomenos  litterarios  e  congéneres. 

Meio^  raça  e  momento  sáo  a  trindade  portentosa  do  cri- 
ticar contemporâneo;  servem  para  solver  todas  as  difflcul- 
dades. 

Onde  encontram  um  facto  qualquer  fora  do  communi  re- 
correm muitos  ao  meio^  e  o  façanhudo  factor  apparece  e 
arreda  os  embaraços. 

Outros  deixam  de  lado  o  meio  e  agarram  a  muleta  do  mo- 
mento ;  alguns,  finalmente,  calçam  as  botas  da  raça. 

Não  quero,  nem  posso  contestar  a  influencia  de  qualquer 
d'estes  factores  no  desenvolvimento  e  na  formação  dos  pro- 
ductos  litterarios.  Bem  pelo  contrario,  muitas  vezes  tenho 
recorrido  também  a  elles  e  ainda  agora  vou  de  novo  recorrer. 

Mas  sustento  que,  só  por  si,  elles  sâo  incapazes  de  reve- 
lar, de  esclarecer  o  problema,  todp  o  segredo  dos  génios 
e  dos  grandes  talentos  das  lettras. 

Para  tomal-o  bem  claro,  náo  tenho  necessidade  de  em- 
pregar grande  esforço  e  pesquizar  grandes  recursos.  E'  bas- 
tante olhar  para  uma  phase  qualquer  de  uma  litteratura 
notável. 

Seja  a  Inglaterra,  ou  seja  a  Âllemanha,  ou  seja  a  França 
em  alguma  hora  decisiva  do  xix  século. 

Tome-se  o  primeiro  d'estes  paizes  nas  três  iniciaes  décadas 
do  século. 

O  momento,  o  meio,  e  a  raça  sáo  os  mesmos  ;  como  explicar 
só  por  elles  Byron,  Wordsworth,  Shelley,  Keats,  tâo  diversos 
entre  si  ? 

Repare-se  que  não  falo  no  escossez  Walter-Scott,  nem  no 
irlandez  Thomaz  Moore. 

Como  explicar  no  romantismo  de  1830  em  França  Lamar- 
tine,  Hugo,  Musset,  Balzaic,  Vigny,  tão  dissimilhantes  ?  A 
raça,  o  meio  e  o  momento  foram  os  mesmos. 

E'  que  n'estas  inquirições  tomam-se  sempre  esses  elementos 
como  tudo,  n'elles  encerra-se  a  totalidade  dos  agentes  e  rea- 
gentes e  esquece-se  um  factor  primordial,  um  núcleo  indis- 
pensável, uma  força  viva,  um  centro  de  energia,  a  individuar 
lidade. 


\ 


HIBTQBIA  BA  UTTSBATiniA  BEABILBIKA  415 

Além  da  raça,  que  é  geral  para  uirt  povo,  para  uma  nação 
lada,  além  do  meio,  que  também  é  geral  pelo  menos  para 
ima  grande  fracção  d'esse  povo,  além  do  momento  que  tam- 
)em  é  geral  ao  menos  para  cada  geração  doesse  mesmo  povo, 
i  preciso  que  o  critico  assignale  e  dê  conta  de  alguma  cousa 
[e  inicial,  de  primitivo,  de  fundamental,  a  individualidade^ 
ue  em  cada  homem  é  uma  resultante  obscura  de  toda  a 
volução  cósmica  e  humana,  a  resultante  de  um  passado  inde- 
^rminado  pela  complexidade  inexplicável  de  sua  indeilnita 
uração. 

Quero  com  isto  apenas  deixar  assentado  que  os  factores 
e  Taine  não  explicam  tudo,  que  elles  são  muito  bons  apenas 
3mo  agentes  modificadores  de  um  elemento  importantíssimo, 
individualidade,  considerada  esta  como  um  centro,  umla 
>mma  de  energias,  um  núcleo  de  força  e  acção. 
Assim  considerada,  ella  escapa  ao  influxo  da  critica,  é  uma 
pecie  de  présupposto,  de  substratum  irreductivel. 
Só  os  três  factores  de  Taine  é  que  podem  ser  submettidos 
>  exame  da  historia. 

Isto  posto,  qual  d^elles  tem  mais  contribuído  para  a  for- 
ação,  a  especialisação,  a  diflerenciação  do  caracter  brasi* 
ro7 

A  raça,  tenho  sempre  eu  supposto ;  o  meio,  tem  sempre 
5pondido  um  intelligente  e  destro  critico  brasileiro  Araripe 
nior. 

□onvem  examinar  isto. 

(  A  questão  da  historia  da  litteratura  nacional,  diz  elle, 
Lis  do    que  outra,  entendo  só  pôde  ser  resolvida  pela  con- 
itraçáo  das  nossas  vistas  sobre  o  meio  physico.  E'  o  único 
itor  estável  de  nossa  historia,  o  único  que  se  consegue 
)mpanhar,  sem  soluções  de  continuidade.  » 
>into  estar  em  desaccôrdo  com  o  illustre  critico.  O  meio 
ijsico,  que  também  foi  contemplado  n'este  livro  em  capi- 
3  especial,  é  para  mim  um  agente  de  differenciação,  e,  por 
)  mesmo,  não  é  o  elemento  estável  e  resistente. 
l'  unidade  nacional  é  garantida,  a  meu  vêr,  pelos  agentes 
raes  e  pela  energia  ethnica. 
'oram  as  qualidades  moraes  e  intellectuaes  do  colonisa- 


416  HISTORIA  BA  LITTBBATirRA  BRA8ICEIRA 

dor,  ajudado  pelas  raças  a  que  se  alliou,  sua  cultura,  suas 
lettras,  religião,  legislação,  costumes,  industrias,  etc,  que 
mantiveram  o  desevolvimento  unitário  do  Brasil. 

Nosso  problema  histórico  se  me  afigura  ser  este  :  indicar 
a  formação  do  povo  brasileiro,  como  um  producto  sociológico 
especial,  distinoto  do  portuguez. 

Para  isto  deve-se  considerar,  com  os  factos,  o  colonisador 
europeu  como  o  elemento  principal  de  nossa  formação,  e 
em  seguida  mostrar  os  elementos  que  se  lhe  juntaram,  que 
o  alteraram  até  certo  ponto,  produzindo  o  brasileiro. 

E'  claro  que  se  o  portuguez  não  soffresse  aqui  influencia 
nenhuma  estranha,  o  Brasil  séria  a  reproducção  de  Portugal. 

O  brasileiro  mostra-sc,  porém,  differenciado  do  portuguez. 
Qual  a  razão  ?  Por  effeitos  do  meio  physico  principalmente, 
diz  o  Dr.  Araripe.  Por  effeito  principalmente  das  raçcLs  com 
que  elle  tem  cruzado,  digo  eu,  e  parece-me  que  mais  acer- 
tadamente. 

O  meio  exerceu  e  vai  exercendo,  não  resta  duvida, 
entre  nós,  grande  acção ;  mas,  sendo  elle  um  agente  pri- 
mordial para  a  formação  primitiva  das  raças  e  para  a  expli- 
cação das  civilisações  autochtones,  nas  civilisações  trans- 
plantadas, sobre  povos,  que  immigraram  já  de  posse  de 
suas  qualidades  históricas,  o  meio  physico,  sendo  um  factor 
ainda  muito  importante,  não  é,  comtudo,  o  principal. 

Existem  d'islo  provas  por  toda  a  parte. 

Que  é  que  mantém  a  diversidade  entre  os  povos  que  na 
Europa  occupam  a  mesma  zona  e  o  mesmo  clima  ha  muitos 
séculos  ?  Será  o  meio  idêntico  entre  muitos  d'elles  ?  Evi- 
dentemente são  as  suas  qualidades  ethnicas  e  suas  tradições 
históricas. 

Que  é  que  estabelece  a  distancia  na  America  entre  as  nações 
que  experimentam  quasi  o  mesmo  clima  ?  São  ainda  as  di- 
versidades de  raça  e  de  tendências  moraes  e  intellectuaes. 

Os  meios  eram  tudo  para  a  humanidade  primitiva  e  pré- 
histórica. 

Uma  vez  estabelecidas  as  raças  históricas,  uma  vez  en- 
trados, como  estam,  nos  tempos  actuaes,  os  povos  não  são 
mais  um  joguete  dos  climas. 


HIBTOEIA  DA  LITTEEATUBA  BBASILBIBA  417 

Ha  uma  muralha  que  representa  muitos  millenios  de  luta 
em  que  a  humanidade  adquiriu  todas  as  qualidades,  que  hoje 
a  distinguem.  Os  climas  passaram  para  o  segundo  plano  e 
os  agentes  ethnicos,  physiologicos  e  moraes,  tomaram-lhes 
a  dianteira. 

Em  nossa  historia  o  factor  permanente,  nos  quatro  séculos 
já  percorridos,  tem  sido  o  porluguez.  Em  sua  passagem  para 
o  brasileiro^  é  ainda  a  um  elemento  ethnologico,  é  á  mesti- 
çagem, que  se  deve  pedir  a  explicação  do  phenomeno.  O 
clima  fica  em  segundo  plano.  , 

O  clima,  tomsuido-o  na  accepção  mais  geral,  insisto  em 
dizer,  foi  um  agente  valentíssimo  na  formação  das  raças  e 
das  civilisações  autochtones. 

Nas  épochas  propriamente  históricas  sua  acção  tem  conti- 
nuado ;  mas  já  não  é  apreciável,  ou,  pelo  menos,  não  o  é 
tanto  quanto  o  phenomeno  dos  mestiçamentos  dos  povos. 

Durante  muitos  millenios  pôde  elle  formar  as  raças  préhis- 
toricas  e  esboçar  os  povos  actuaes.  Mas  a  sua  acção  é  tão 
lenta,  que  não  se  deixa  notar  nitidamente  nas  civilisações  mo- 
dernas. 

Duvido  que  haja  um  anthropologista  capaz  de  determinar 
com  segurança  quaes  as  transformções  experimentadas  nos 
últimos  dois  mil  annos,  pelas  populações  da  Europa,  trans- 
formações produzidas  só  pelo  clima. 

Quaes  as  modificações  operadas  pelo  meio  nos  povos  indo- 
germânicos,  immigrados  para  o  occidente  ?  A  historia  não 
sabe  responder. 

Tão  longe  quanto  é  possível  subir  na  corrente  dos  tempos, 
logo  que  os  hellenos,  os  latinos,  os  celtas,  os  germanos,  etc, 
apparecem  na  historia,  já  se  nos  antolham  com  seus  cara- 
cteres distinctivos.  O  mesmo  póde-se  dizer  das  velhas  raças 
semiticas  e  das  suppostas  turanas. 

O  mais  assombroso  exemplo  da  influencia  do  clima  que  se 
conhece,  é  a  exercida  sobre  os  aryanos  da  índia.  Compara- 
dos aos  da  Europa,  nota-se-lhes  uma  enorme  distancia.  Mas, 
quantos  milhares  de  annos  não  trouxeram  o  estupendo  re- 
sultado ?  E  este  mesmo  por  sua  lentid&o  é  hoje  apontado 

HISTORIA  n  B7 


418  HISTOBIA  PA  LITTBBATURA.  BSASILKIR4 

post  factum  e  não  foi  cousa  assignalavel,  dia  a  dia,  pelos 
historiadores. 

Ha  quatrocentos  annos  é  o  porluguez  transformado  aqui 
pelo  clima...  Até  que  ponto  tem  chegado  esta  modificaçáo? 

Náo  creio,  que  haja  quem  possa  responder.  Só  d'aqui  a  três 
mil  annos  será  talvez  possível  ao  futuro  historiador  dizer 
qual  a  deformação  produzida  nos  aryanos  pelo  clima  doeste 
paiz. 

Mas  então  provavelmente  esta  terra  terá  passado  por  uma 
dúzia  de  mutações  históricas,  como  a  Grécia,  como  a  Itália, 
como  a  Gallia,  como  a  Hespanha,  como  a  Bretanha.  Ella  pro- 
vavelmente não  será  mais  o  Brasil,  quero  dizer,  não  será  a 
terra  da  actual  nação  brasileira, . . 

O  povo  actual  se  obliterará  provavelmente  nas  raças  absor- 
ventes do  norte,  nos  anglo-saxonios  e  germânicos,  por 
exemplo. 

Na  lucta  pela  posse  da  terra  não  sei  os  povos  que  nos 
obstinamos  a  chamar  latinos  estarão  livres  de  outras  in- 
vasões, á  guisa  das  operadas  no  começo  da  idade  média. 
Parece-me  que  não. 

Haverá  talvez  só  uma  differença  :  é  que  a  invasão  mo- 
derna vai-se  fazendo  lentamente  pela  colonisação. 

Nao  sei  o  que  será  dos  povos  fracos  da  America  do  Sul, 
quando  os  Estados-Unidos  e  a  Allemanha  tiverem  noventa  ou 
cem  milhões  de  habitantes  e  sentirem  necessidade  de  despejar 
gente  para  as  zonas  meridionaes. 

Oxalá  que,  n'esse  tempo  tenhamos  um  povo  feito  e  resis- 
tente, capaz  de  absorver  aquellas  sobras,  sem  perder  a  sua 
individualidade. 

Em  todo  caso,  o  que  a  historia  então  ha  de  consignar 
com  segurança  é  aquillo  que  hoje  em  dia  já  ella  determina, 
isto  é,  as  mutações  e  mescleis  das  raças.  A  acção  do  clima 
não  poderá  ser  seguida  passo  a  passo. 

Em  nossa  historia  de  quatro  séculos  não  sei  que  diíterenças 
tenha  o  meio  produzido  no  caboclo,  no  negro  e  mesmo  no 
portuguez.  O  que  noto  a  olhos  nús  é  o  mestiço. 

Este  é  o  brasileiro  por  excellencia,  é  o  agente  em  torno  do 
qual  faço  mover  a  nossa  historia  litteraria  e  politica.  E  n'elle 


HI8T0BIA  DA  LITTBEATITSA  BRASILBIBA  419 

evidentemente  influe  muito  mais  o  contacto  das  raças  do 
que  a  acção  do  clima. 

Esta  é  longinqucL,  apreciável  a  largos  espaços  e  de  diffl- 
cultosa  determinaçcLo,  até  no  próprio  futuro. 

Supponhamos  que,  d'aqui  a  mais  quatrocentos  annos,  as 
três  raças  primordiaes  de  nossa  população  tenham-se  entra- 
laçado  completamente;  que  não  haja  mais  caboclos  puros, 
nem  negros  puros  ;  que  uma  sabiamente  dirigida  corrente  de 
immigração  branca  nos  tenha  vindo  ajudar  n'esta  obra  da 
obliteração  das  cores  escuras;  que  o  typo  brasileiro  seja 
então  bem  carècterisado ;  qual  será  ahi  a  obra  da  selecção 
ethnica  e  qual  a  da  selecção  do  nieio  ? 
Por  certo  a  primeira  será  mais  profunda. 
Ha  além  de  tudo,  uma  razão  peculiar  ao  Brasil  e  é  esta  : 
o  clima  aqui  nada  tem  mais  a  mudar  no  indio  e  no  negro, 
que  já  são  obras  da  zona  tropical,  nada  quasi  terá  mais  a 
fazer  com.  o  mestiço,  o  genuino  brasileiro,  que  recebe  dos 
dois  povos  tropicaes  os  elementos  de  resistência. 

Determinada  assim  a  influencia  do  factor  ethnologico,  resta 
marcar,  na  obra  da  selecção  ethnica,  o  mestiçamento, 
quem  mais  tem  contribuído,  se  o  indio,  ou  se  o  negro.  O 
Dr.  Âraripe  ainda  aqui  se  mostra  em  desaccordo,  dando  a 
preferencia  ao  caboclo. 

No  livro  sobre  seu  parente,  José  de  Alencar,  referindo-se 

ao  incontestável  predomínio  dos  mestiços  de  negro  e  branco 

entre  nós,  doutrina  evidentíssima,  por  mim  sustentada,  veio 

elle  com  umas  reducções,  não  de  todo  Armadas  nos  factos. 

Devo  cital-o  para  ser  claro  :  «  Com  igual  precipitação  em 

um   recente  trabalho,   aliás  notabilissimo,   sobre  a  Poesia 

Popular  no  Brasil,  foi  elle  levado  a  dar  ao  elemento  africano. 

maior  preponderância  no  nosso  desenvolvimento  estheiico. 

Digo  precipitação,  porque  o  critico  não  teve  tempo  de  lem- 

brar-se  que,  para  decidir  esta  questão,  seria  necessário  dividir 

primeiro  o  Brasil  em  zonas. 

No  Pará,  Amazonas,  Ceará  e  Rio  Grande  do  Norte,  por 
exemplo,  o  elemento  negro  é  quasi  nullo ;  tudo  cabe  ao  indí- 
gena; as  influencias  d*aquella  raça  apenas  chegaram  alli 
por  contra-golpe. 


420  HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  BRASILEULA 

No  Rio  de  Janeiro,  Bahia  e  Minas,  é  onde  pôde  ter  lugar 
a  applicaçâo  do  negrismo  em  toda  a  sua  plenitude.  » 

Nlo  sé  trata  de  applicação  de  negrismo ;  trata-se  de  deter- 
minar a  formação  dos  brasileiros  como  um  povo  á  parte,  dis- 
tincto  do  portuguez,  e,  para  isto,  buscam-se  os  factores  da 
operação. 

O  portuguez  entrou  em  uma  evolução  de  differenciação 
de  seu  typo  originário  pela  acção  do  meio  physico,  do  negro, 
do  Índio  e  das  correntes  estrangeiras.  E'  o  phenomenoi  com- 
plexo que  se  quer  determinar  e  não  somente  a  esthetica  do 
brasileiro,  ou  a  applicação  do  negrismo.,.  expressão-  injuriosa 
e  de  mao  gosto. 

Pondo  em  balanço  a  influencia  do  negro  e  a  do  indio,  sou 
levado,  pelos  factos,  a  dar  a  preponderância  áquelle  contra 
este. 

No  Brasil  só  as  extremas  terras  das  fronteiras  é  que  abrem 
uma  excepção  positiva.  São  as  províncias  pouco  povoadas  do 
alto  norte  e  do  oeste,  onde  o  indio  campôa  ainda  inútil  e 
donde  será  expellido,  logo  que  o  branco  e  o  negro  alli  pene- 
trarem amplamente.  E'  o  caso  do  Amazonas,  Matlo-Grosso,  e, 
até  certo  ponto,  de  Paraná,  Goyaz  e  Pará.  Do  Rio  Grande  do 
Sul  o  indio  tem  desapparecido,  mas  alli  o  branco  predomina. 

A  mestiçagem  com  a  negro  não  é  muito  abundante  e  com  o 
indio  ainda  menos. 

Todo  o  resto  do  Brasil  entra  na  formula  que  tracei  :  Ma- 
ranhão, Rio  Grande  do  Norte,  Parahyba,  Pernambuco,  Ala- 
goas, Sergipe,  Bahia,  Espirito-Santo,  Rio  de  Janeiro,  S.  Paulo, 
Minas  Geraes,  Santa  Gatharina  e  o  próprio  Geará  e  Piauhy. 

Ainda  mais  :  a  influencia  ethnographica  da  mestiçagem  do 
negro  com  o  branco  tende  a  ganhar  terreno  nas  províncias  em 
que  o  caboclo  ainda  vive  mais  ou  meoios  desassombrado.  A 
colonisação  do  Brasil  vai  de  leste  para  o  poente  e  a  vez  de  ren- 
dèrem-se  os  últimos  reductos  do  caboclo  ha  de  chegar.  Não  ha 
precipitação  de  minha  parte;  ha  apenas  a  consignação  de 
factos  positivos. 

Onde  é,  entre  nós,  maior  a  população,  maior  é  a  mesfi- 
çagem  de  origem  africana  e  portugueza.  Bem  se  vô  que  o 
alto  norte  e  o  longiquo  oeste  ficam  fora  da  fórmula^ 


HISTORIA  DA  LITTEKATUKA  BRASILEIRA  421 

O  facto  do  predománio  no  Brasil  povoado  da  população 
oriunda  do  mestiçamento  das  raças  branca  e  negra  tem  sido 
contestada  acremente  e  é,  pois,  necessário  insistir  para  esta- 
belecer a  verdade. 

O  Dr.  Araripe  Júnior  tem  n'este  ponto  sido  um  constante 
adversário,  cujos  argumentos  merecem  serio  e  detido  exame. 

Minha  afílrmaçáo  foi  sempre  esta  :  no  Brasil  a  maior  parte 
da  população  é  de  mestiços ;  entre  estes,  no  corpo  colonisado 
de  nosso  solo,  predomina  a  mestiçagem  africo-lusitana,  e  são 
uma  excepção  apenas  as  regiões  do  alto  norte  e  do  ejctremo 
occidente,  onde  o  caboclo  puro  é  ainda  mais  ou  menoe  abun- 
dante e  donde  será  eXpellido  quando  o  branco  e  seu  auxiliar 
negro  alli  penetrarem  amplamente. 

Nas  regiões  povoadas,  próximas  das  zonas  extremas  do 
norte  e  oeste,  o  mestiçamento  do  branco  e  indio  é  talvez  igual 
ou  um  pouco  superior  ao  do  branco  e  negro.  Mas  isto  é  a  ex- 
cepção ;  o  resto  do  paiz  entra  plenamente  na  minha  formula. 

O  phenomeno  que  hoje  se  passa  diante  de  nossos  olhos, 
depois  de  quatrocentos  annos  da  descorberta,  é  eloquentís- 
simo. O  indio  desappareceu  de  toda  a  região  verdadeira- 
mente povoada  do  Brasil  ante  a  concurrencia  do  branco  e  do 
negro.  Morreu,  sumiu-se,  em  parte  obliterou-se  nos  cruza- 
mentos. 

Sob  este  ponto  de  vista,  o  Brasil  pôde  ser  dividido  em  três 
secções  : 

a)  Estados  donde  o  selvagem  puro  desappareceu  já  total- 
mente, deixando  ap>enas  adlguns  descendentes  no  mestiça- 
mento geral ; 

b)  Estados  onde  elle  existe  puro  em  pequenas  levas  acan- 
toado em  regiões  desertas  e  tem  alguns  representantes  no 
mestiçamento ; 

c)  Estados  onde  existe  puro  em  numero  pouco  considerável 
internado  em  desconhecidos  recessos,  e  em  numero  mais  con- 
siderável desfigurado  nois  cruzamentos. 

No  primeiro  caso  estão  as  províncias  do  Rio  de  Janeiro, 
Rio  Grande  do  Sul,  Sergipe,  Alagoas,  Pernambuco,  Parahyba, 
Rio  Grande  do  Norte  e  Ceará. 


422  HISTOaiA  DA  LITTERATUBA.  BRASILXIBA 

Na  segunda  hypothese  estâa  Santa  Catharina,  Paraná,  S. 
Paulo,  Minas,  Bahia,  Espirito  Santo,  Piauhy  e  Maranhão. 

Na  terceira  acham-se  Pco^,  Amazonas,  Matto  Grosso  e 
Goyaz.  Eis  ahi  os  vinta  Estados  da  Republica. 

A  formula  é,  pois,  applicavel  a  todo  o  paiz  ;  menos  ás  fron- 
teiras do  norte  e  do  oeste,  que,  mais  tempo  menos  tempo, 
acabarão  por  entrar  na  regra  geral. 

O  Dr.  Araripe  Júnior  objectou  com  relação  ao  Ceará  e  ao  Rio 
Grande  do  Norte.  Não  conheço  praticamente  estas  regiões ; 
mas  appello  de  seu  testemunho  para  a  auctoridade  de  dous  ho- 
mens insuspeitos  :  o  Dr.  Amaro  Bezerra  e  o  Conselheiro  Tris- 
tão Araripe. 

O  primeiro,  a  quem  propuz  a  questão,  aflançou-me  ter  per- 
corrido por  vezes  todo  Rio  Grand-e  do  Norte  e  que  alli,  incon- 
testavelmente, predomina  a  mestiçagem  africana. 

O  outro,  pai  do  Dr.  Araripe  Júnior,  em  sua  Historia  do 
Ceará,  assim  se  expressa  :  «  O  que  em  toda  a  America  suc- 
cede,  acontece  também  no  Ceará.  A  população  indigena  é 
hoie  insigniiicantissima  na  província  e  tem  quasi  desappare- 
ddo.  »  (Pag.  19)  (1). 

Ha  na  obra  do  conselheiro  Tristão  de  Araripe  muitas  pas- 
sagens como  esta.  Tratando  dos  cruzamentos  dos  selvagens, 
mostra  que  foram  pouco  abundantes  com  o  brunco  e  mais 
constantes  com  os  próprios  negros  para  os  quaes  os  índios 
tinham  predilecção. 

Eis  o  trecho  :  «  Nunca  puderam  os  directores  conseguir  a 
realisação  de  casamentos  entre  a  raça  branca  e  a  indigena; 
mui  raro  foi  o  consorcio  que  entre  ambas  se  deu  e  se  dá 
hoje ;  todavia,  entre  os  indios  e  as  castas  mestiças,  foram  e 
são  frequentes  as  uniões  conjugaes,  pela  decidida  inclinação 
que  têm  os  indios  aos  mulatos,  pardos  e  negros  »  (pag.  31). 

Deduzo  destas  citações  que  o  indio  puro  tem  desappare- 
cido  da  provinda  e  que  na  mestiçagem  em  que  delio-se,  foi 
com  o  concurso  do  negro,  e,  portanto,  este  leva-lhe  vantagem, 
porque  ainda  ali  existe  puro  aos  milhares,  ou  desfigurado  nos 
cruzamentos  com  o  branco  e  com  o  próprio  caboclo. 

(1)  Isto  dizia  o  Conselheiro  Tristão  de  Alencar  Araripe  ha  mais  de 
40  annos. 


HI8T0BIÁ  BA  LITTXRATXntA  BEAfilLSISA  423 

Os  Estados  do  Rio  Grande  do  Norte  e  Ceará  não  podem  ficar 
fora  da  formula  que  tracei  e  ser-me-hia  fácil  demonstrar  o 
mesmo  para  todo  o  resto  do  Brasil  colonisado. 

O  Dr.  Araripe  Júnior  appellou  para  a  Exposição  Anthropo- 
lógica  Brasileira  havida  não  ha  muitos  annos  no  Rio  de  Ja- 
neiro. 

Ora  bem,  a  exposição  foi  incompleta  e  inexacta  no  titulo ; 

seria  quando  muito  uma  Exposição  Anthropologica  Indiana. 

Uma  exposição  anthropologica  brasileira  deveria  ter,  pelo 

menos,  quatro  secções  :  a  secçãol  portugueza^  a  africana,  a 

tupi,  e  a  resteuite  —  a  n\estiça. 

Na  primeira  deveria  estar  exhibido  o  homem*  da  peninsula 
ibérica  em  todas  as  suas  manifestações  histoiricas  e  préhisto^ 
ricas ;  na  segunda  o  homem  africano  e  suas  industrias ;  na 
terceira  o  homem  americano  e  na  ultima  o  brasileiro  actual. 
Nada  d'isto  viu-se  ali  onde  apenas  estavam  agglomerados 
alguns  objectos  referentes  ao  homo  americanus. 

Aquelle  fragmento  de  exposição  teve  um  valor  relativo; 
mas  não  prova  o  que  o  Dr.  Araripe  pretende.  Pelo  contrario 
prova  o  que  tenho  afflrmado.  Quem  lá  esteve  no  dia  da  aber- 
tura e  nos  subsequentes  poude  ver  o  seguinte  : 

Dentro  do  edifico  e  nas  ruas  adjacentes  agitavam-se  os  visi- 
tantes, isto  é,  08  brancos,  os  negros  e  os  mestiços  destas  em 
todas  as  suas  gradações...  e  ots  reis  da  terra,  os  caboclos, 
onde  se  achavam  ?  Não  foram  vistos  senão  representados  em 
telas  ou  emi  barro... 

Para  cumulo  da  irrisão  fofam  mandados  vir  do  Rio  Doce 
meia  dúzia  de  indios  aldeados,  meia  dúzia  de  antigos  monar- 
chãs  das  selvas,  que  se  deixau'am  ficar  lá  para  o  Corpo  de  Bom- 
beiros, como  um  oòjecto  de  curiosidaxie,  á  guiza  de  animaes 
raros,  expostos  ás  vistas  de  um  publico  enfastiado...  E  é  este 
o  predomínio  do  caboclo  ?  Não  pódei  haver  maior  cegueira. 

O  Índio  brasileiro  está  condemnario  á  sorte  dos  povos  da 
Polynesia.  Ali  não  só  o  homemi  desappareceu  ante  o  concurso 
europeu,  como  ainda  desap pareceram  algumas  espécies  ani- 
mães  e  até  vegetaes  com  a  introducção  das  espécies  estran- 
geiras. E'  facto  provado  por  centenas  de  viajantes  e  que  M.  de 


424  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BBASILEULA 

Qualrefages  pôz  a  limpo  na  Revista  Scientiiica  de  PaHz^  de  9 
de  junha  de  1877. 

O  Índio  não  é  ainda  plenamente  entre  nós  um  objecto  de 
sciencia ;  é  antes,  e  acima  de  tudo,  um  assumpta  de  poesia. 
Excepção  feita  dos  trabalhos  linguisticos  de  Baptista  Cajetano, 
alguns  estudos  de  Couto  de  Magalhães  e  Carlos  Hartt,  sob  o 
ponto  de  vista  ethnographico,  tudo  o  mafs  que  no  Brasil  se 
tem  escripto  á  conta  do  selvagem;  é  sem  mérito  absoluta- 
mente (1). 

E  se  a  queífâo  é  de  amor  para  com  as  raças  que  consU- 
tuiram  o  nosso  povo,  porquei  motivo  não  se  estuda  o  negro, 
como  se  estuda  o  indio  ?  Porque  motivo  em  nosso  Musew  não 
ha  uma  secção  africana?  Porque  não  se  investigam  as 
linguas  dos  negros,  sua  poesia,  seus  contos  anonymoÃ,  seus 
usos  e  costumes,  suas  danças  e  festas,  suas  idéas  religio- 
sas, etc.  ? 

E*  que  para  esta  enormissima  injustiça  contribue  com  Ioda 
a  sua  força  a  massa  immensa  do  prejuizo  nacional...  Ninguém 
tem  a  coragem  de  estudar  o  negro  para  não  passar  por  ewado 
de  casta.,.  Esta  é  a  questão  e,  muitas  vezes,  o  maior  defensor 
do  indio  contra  o  negro  é  o  pardo  evidente  e  carregado! 

E'  ainda  um  resíduo  do  romantismo.  O  Dr.  Araripe,  folgo 
em  reconhecel-o,  não  participa  grandemente  da  mania  in- 
diana. 

Hoje  defende  o  caboclismo  mais  por  uma  tradição  da 
escola  a  que  pertencera  em  sua  puerícia  litteraria  do  que 
por  uma  preoccupação  systematica. 

A  verdade  é,  em  geral,  que  se  deseja  fazer  do  estudo  do 
selvagem  uma  especialidade.  O  intento  pôde  ser  em  certo  sen- 
tido louvável,  mas  tem  sido  improfícuo. 

Não  possuímos  ainda  a  calma  necessária,  nem  os  methodos 
precisos  para  abordar  o  estudo  das  raças  selvagens  objectiva- 
mente, como  um  problema  puramente  anthropologico  ou 
histórico.  Sonhamos  ainda  e  sempre  um  Brasil  tapuio. 

Se  na  própria  Europa  e  nos  Estados-Unidos  os  grandes 
estudos  amcricanistas  são  ainda  muito  incertos  ;  se  os  immen- 

(1)  Cumpre  abrir  excepção  também  em  prol  de  alguns  estudos  de  Capis- 
trano  de  Abreu  e  algumas  paginas  de  Barbosa  Rodrigues. 


HISTORIA  DA  LITTBRATURA  BRASILEIRA  425 

SOS  trabalhos  sobre  as  civilisações  do  México,  Guatemala  e 
Peru  são  na  máxima  parte  fluctuantes,  como  se  deprehende  de 
todos  os  congressos  europeus,  o  que  não  se  dará  com  o 
Brasil,  sem  especiaJistas,  sem-  escolas  adequadas  ? 

Dá-se  o  que  se  tem  visto  :  hypotheses  phantasmagorícas  e 
absurdas,  phrases,  phrases  e  mais  phrases... 

Ainda  não  ha  muito  a  Exposição  o  demonstrou.  O  espe- 
cimem  préhistorico  velho  de  muitos  millenios,  pertencente, 
por  certo,  a  uma  raça  differente  do  indio  do  tempo  da  desco- 
berta, achava-se  mesclado  aos  espécimens  dos  tempos  colo- 
niaes  e  até  aos  pertencentes  ás  populações  mestiçadas  da 
actualidade  I 

Apezar  da  bôa  vontade  do  pessoal  do  Museu,  d'alli  não  sur- 
giu uona  destas  obras  imponentes  e  decisivas  que  podesse  elu- 
cidar de  uma  vez  os  problemas  e  trevas  que  cercam  as  nossas 
raças  selvagens.  Não  critico ;  assignalo  apenas  um  facta 

Como  quer  que  seja,  porém,  e  a  despeito  das  difficuldades, 
os  estudos  americanos,  apezar  de  imperfeitíssimos,  acham-se 
iniciados  entre  nós,  protegidos  pelo  romantismo  e  «m  grande 
parte  pela  fatuidade  nacional,  que  ainda  adormiece  no  ledo 
sonho  de  julgar-se  indigena,,, 

E'  a  velha  mania  da  nobreza  tupinambá  de  que  muitos  bra- 
sileáros  sâo  ainda  em  extremo  affectados. 

No  tempo  da  Independência  a  moléstia  chegou  a  seu  auge, 
e  até  mulatos,  como  o  finado  Francisco  Gomes  Brandão,  to- 
maram nomes  indigenas.  Elle  chamou-se  Acaxjaba  de  Monte- 
zuma. 

Um  disparate,  como  outro  qualquer. 

Louvo  os  estudos  americanos ;  mas  como  estudos^  não 
como  pasto  a  velleidades  ethnicas. 

Deveríamos  também  iniciar  os  estudos  africanos.  O  negro, 
espalhado  pela  Africa  &  America,  é  uma  raça  que  ofierece  inte- 
ressantíssimos problemas. 

Muitos  sábios  europeus,  seguindo  o  exemplo  de  Bleek,  atí- 
rain>-se  a  estas  pesquizas.  Façamos  o  mesmo.  O  negro  e  seu 
parente  mestiço  tocam  o  nosso  povo  bem  de  perto.  Não  seja- 
mos presumpçosos,  nem  tenhamos  medo  de  dizer  a  verdade. 

O  predomínio  apparente  do  indianismo  na  civilisação  bra- 


426  HI8T0BIA  DA  LirTBfiÁTtTRA  BBABILXIRA 

sileira  é  um  velho  prejuízo,  difflcil  de  extirpar.  Causas  nume- 
rosas e  especiae^  coutribuiram  para  arraigal-o,  e  hoje  ainda 
elle  está  de  pé. 

Estriba-se  falsamente  em  razões  litterarias,  históricas,  geo- 
graphicas  e  sociaes.  Na  litteratura  apparec©  como  um  pro- 
testo contra  os  invasores;  vê-se  no  indio  a  encamação  do 
génio  do  Brasil  e  o  nativismo  traduz-se  no  caboclismo. 

Na  historia  appella-se  para  o  numero  avultado  das  Iribus 
primitivas,  e  recorre-se  á  grande  porção  de  aldeiamentos  dos 
selvagens  catechisados  na  zona  colonisada.  E*  emhalde  que  se 
demonstra  serem  as  enumerações  dos  velhos  chronistas 
inexactas,  tomando  elles  simples  denominações  de  famílias  c 
de  variedades  de  um  só  grupo  por  outras  tantas  tribus  e  na- 
ções diversas. 

E'  embalde  que  se  mostra  a  decadência  progressiva  dod 
aldeiamentos  e  sua  extincçãx)  quasi  completa  desde  o  sé- 
culo xvui. 

Sempre  o  prejuízo  vai  fazendo  seu  caminho. 

Na  geographia  appella-se  para  as  nomes  tupis  que  abundam 
em  nossa  carta,  sem  reparar  que  esse  phenomeno  natural 
nada  prova,  além  do  respeito  á  tradição.  Na  esphera  social  o 
indio  tem  mais  sympathias,  deixou  ha  mais  tempo  de  ser  es- 
cravisado  e,  por  ser  menos  escuro  do  que  o  negro,  é  mais  que- 
rido. 

O  caboclo  é  mais  ideialisado,  mais  estudado,  mais  conhe- 
cido. 

Sonhamos  um  Brasil  tapuio,  disse  eu,  e  nâo  reparamos  que 
desejamos  o  mal.  Todas  as  nações  americanas  em  que  o  ele- 
mento europeu  náo  predomina,  como  o  México,  Peru,  Equa- 
dor e  Bolivia,  são  as  menos  progressivas  do  continente.  Não 
podem  competir  com  os  Estados-Unidos,  o  Chile,  a  Republica 
Argentina  e  o  próprio  Brasil. 

Devemos  desejar  que  em  nosso  paiz  a  immensa  mestiçagem 
da  população  seja  habilmente  reforçada  pelo  elemento  branca 
Mas  historicamente  é  de  justiça  e  verdade  conferir  ao  negro 
papel  mais  eminente  do  que  ao  botocudo,  ente  fraco,  desequi- 
librado e  prestes  a  cxtinguir-se.  E'  a  luta  pela  existência ;  o 
mais  débil  devia  ser  devorado.  O  exacto  conhecimento  de 


HISTOItIA  DX  LITTBRATXTRA  BRABILBIRA  427 

nossas  condições  ethnographicas  facilita  a  comprehensão  dos 
typos  litlerarios. 


Pedro  Luiz  Pereira  de  Souza  (1839-1884).  Toraou-se  fa- 
moso por  ter  escripto  quatro  poesias  celebres.  Era  filho  de 
um  fazendeiro  abastado,  e  tambemi  abastado  foi  elle,  juntando 
a  isto  o  facto  de  pertencea*  a  certa  aristocracia  politica  e  in- 
fluente da  Província  do  Rio  diei  Janeiro.  D'ahi  a  facilidade  de 
sua  carreira  nas  letras  e  na  vida  social. 

Como  já  disse  em  outro  logar  doeste  livro,  elle  nasceu 
em  1839,  no  anno  de  Machado  de  Assis,  Carlos  Gomes  e 
Tobias  Barrelto,  e  emquanto  estes  três  oriundos  de  famílias 
obscuras  marcavam  passo,  já  em  1860  Pedro  Luiz,  aos  vinte 
e  um  annos,  apresentava-se  formado  em  direito  e  entrava 
com  grande  ruido  na  politica^  tomando  parte  na  redacção 
do  Correiro  Mercantil  em  1861. 

Pouco  depois  em  1862-63  foi  um  dos  redactores  da  Actuali- 
dade ao  lado  de  Lafayette  Rodrigues  Pereira  e  Flávio 
Pamese  (1).  , 

Era  uma  epocha  de  anciedteide  ;  acabávamos  de  ter  uma  du- 
vida com  o  Perii  e  uma  grave  questão  com  a  Inglaterra; 
nossa  politica  no  Rio  da  Prata,  e  especialmente  no  Estado 
Oriental,  atravessava  uma  crise  perigosa  que  se  resolveu 
com  a  guerra;  o  partido  conservador  tinha  apodrecido  no 
poder  de  que  se  havia  assenhoreado  desde  1848,  e  formava-se 
a  Liga,  o  chamado  partido  Progressista;  a  litteratura  tinha 
baixado  na  poesia  á  choramiga  banalissima;  era  um  ma- 
rasmo geral  que  occultava  o  trabalho  surdo  da  evolução  para 
um  futuro  melhor. 

Quando  em  1862-63  Pedro  Luiz  e  seus  collegas  da  Acttia- 
lidade  batiam-se  na  politica,  alheavam  e  jogavam  longe  suas 
qualidades  litterarias,  no  Recife  um  punhado  de  moços  fun- 
daram aquelle  memorável  movimento  espiritual,  que  tem 
vindo  a  durar  até  hoje  e  que  foi  o  foco  d'onde  se  tem  espa- 

(1)  Vide  a  biographia  de  Pedro  Luiz  no  Pantheon  Fluminenêe  de  Lery 
dos  Santos. 


428  flIBTOBIA  DA  LITTE&ATURA  BBA8ILEISA 

Ihado  por  todo  o  Brasil  as  novas  ideias  que  modificaram  a 
nossa  velha  intuição  romântica. 

Tobias  Barretto,  Castro  Alves,  Franklin  Távora,  Araripe 
Júnior,  Victoriano  Palheu^es,  Guimaràeis  Júnior,  Carneiro  Vi- 
lella,  Celso  de  Magalhães,  Cardoso  Vieira,  Castro  Rebello, 
José  Hygino,  Plinio  de  Lima,  José  Jorge,  Generino  dos  San- 
tos, Souza  Pinto,  Annibal  Falcão,  Clóvis  Beviláqua,  Arthur 
Orlando,  Inglez  de  Souza,  Marques  de  Carvalho,  Rocha  Lima, 
Martins  Júnior,  João  Freitas,  João  Bandeira,  Virgílio  Erigido, 
Alvares  da  Costa,  e  outros  e  muitos  outros,  foram  os  sustenla- 
dores  do  movimento  alli  durante  os  últimos  quarenta  annos, 
movimento  em  que  o  auctor  d^esta^  linhas  teve  alguma  parte. 

Começou-se  pelo  que  mais  tarde  a  critica  do  Rio  de  Janeiro 
veio  a  chamar  o  condoreirismo  na  poesia ;  passou-se  á  critica 
litteraria,  á  philosophia  positiva,  ao  darw^inismo,  aos  estudos 
de  poesia  popular,  ao  romance  de  costumes  e  histórico,  á 
poesia  socialista  c  scientiílca,  ao  naturalismo  do  direito  e 
a  outras  grandes  manifestações  do  pensamento  moderno. 

Durante  este  tempo  Pedro  Luiz  esterilisava-se  na  politica, 
Lafayette  mecanisava-se  na  chicana  forense  c  na  chicana  par- 
tidária, Farnese  fallecia  precocemente.  E,  comtudo,  Pedro 
Luiz  tem  direito  a  figurar  em  nossa  historia  litteraria,  duplo 
direito  como  poeta  e  como  orador. 

Destacarei  especialmente  o  poeta.  Para  o  julgar  existem 
além  das  quatro  celebres  peças,  Terribilis  Dea,  Voluntários 
da  Morte^  Nunes  Machado  e  Sombra  de  Tira-Dentes^  um 
punhado  de  outras  insertas  na  Revista  Mensal  do  Ensaio 
Philosophico  Paulistano. 

N'esta  interessante  publicação  académica,  onde  se  acham 
os  mais  antigos  escriptos  de  Tavares  Bastos,  Macedo  Soares, 
Bittencourt  Sampaio  e  Francisco  Belisario,  o  poeta  publicou 
versos,  discursos  e  folhetins. 

N'esta  phase  paulistana  predominavam  em  sua  lyra  os  sons 
doces  e  ternos  de  um  lyrismo  plácido,  que  nada  tinha,  aliás, 
de  especial  e  distincto.  Se  não  descia  até  ao  chatismo,  não 
Rttingia  a  uma  grande  altura. 

Os  seguintes  versos  sob  o  titulo  —  O  que  eu  quero  —  se^ 


j 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATTTBA  BKA8ILXIRA  429 

vem  bem  para  exemplificação  do  estylo  antigo  do  vate  flu- 
minense : 

((  Eu  quero  n*esta  vida  um  sonho  lindo 
Que  passe  como  a  nuvem  côr  de  rosa, 
Hei-de  dizer,  depois,  cerrando  os  olhos 
—  Oh!  flor  do  cemitério,  és  bem  formosa. 

Não  quero  muito  não  :  á  fresca  sombra 
Do  viçoso  jardim  da  mocidade, 
Quero  dois  dias  m'emballar  tranquillo 
Gozando  amor  em  doce  liberdade. 

Quero  ver  sempre  o  céo  puro  e  sereno, 
Nuvens  de  amor  e  o  sol  sempre  dourado, 
E  aos  doces  beijos  da  mulher  que  eu  amo 
Hão  de  ir  morretido  as  dores  do  passado. 

Debaixo  da  mangueira  eu  hei  de  vôl-a 
Ao  meio  dia  languida  dormindo. 
Soltos  cabellos  fluctuando  ao  vento. 
No  seu  sonho  gentil  irá  sorrindo. 

A*  noite  quando  a  lua  dos  amores 
Vier  chorar  debaixo  do  arvoredo, 
Encostada  indolente  no  meu  hombro 
Ella  ha  de  ouvir-me  virginal  segredo. 

Oh!  sombra  dos  amores  tão  formosa 
Como  é  viva  e  formosa  a  borboleta, 
Eu  serei  para  ti  —  a  doce  aragem, 
Tu  serás  para  mim  —  a  violeta. 

Quero  dois  dias  —  na  macia  grama 
Reclinado  a  sonhar  sobre  um  canteirol 
Passarei  minhas  horas  perfumadas 
Como  a  cândida  flor  do  jasmineiro. 

Será  vida  bem  curta,  porém  bellal 
Sem  ambição,  sem  glorias  e  sem  dores, 
Basta  um  raio  do  sol  tendo  a  meu  lado 
Uns  lábios  de  mulher  e  algumas  flores* 


430  HISTOSIA  BA  LITTBBATUBA  BRASILBnU 

Posso  morrer  depois,  e  que  m'importa 
Tendo  a  vida  corrido  vaporosa? 
Que  hei  de  murmurar,  cerrando  os  olhos. 
Oh!  ílôr  do  cemitério,  és  bem  formosa!  »  (1) 

As  quatro  poesias  celebres  de  Pedro  Luiz  são  de  cunho 
politico  e  social ;  na  género  são  das  mais  antigas  que  se 
escreveram  no  Brasil. 

Nunes  Machado  é  de  1860,  o  ultimo  anno  do  curso  acadé- 
mico, 8  versa  sobre  o  pranteado  revolucionário  pernambucano. 
A  Sombra  de  Tira-Dentes  é  de  1862,  por  occasiáo  de  eregir-se 
em  uma  das  praças  do  Rio  de  Janeiro  a  estatua  de  Pedro  L  O 
poeta  insurge-se  contra  o  preito  prestado  ao  primeiro  im- 
perador e  proclama  o  direito  de  Tira-Dentes  a  ter  elle  e  só 
elle  uma  estatua,  como  o  proto-martyr  da  indlependencia  na- 
cional. Tem  elle  razdo  no  culto  que  rende  ao  heróe  mineiro ; 
mas  é  injusto  para  com  o  fllho  de  D.  João  VI. 

Na  grande  obra  da  prosperidade,  do  engrandecimento  c 
da  independência  do  Brasil,  não  ha  lugar  para  um  culto  só 
e  espaço  para  um  só  pedestal,  ha  largueza  bastante  para 
muitos  cultos  e  altura  sufflciente  para  cem  estatuas. 

E  no  meio  delias  manda  a  justiça  e  ordena  a  historia  que 
se  alevante  o  busto  do  primeiro  imperador. 

Não  sou  suspeito  e  não  tenho  medo  de  dizer  a  verdade. 

Os  Voluntários  da  Morte  são  de  1863  e  consagrados  á  revo- 
lução da  Polónia ;  é  um  brado  de  dôr  e  sympathia  pelo  des- 
ditoso povo  europeu. 

Terribilis  Dea  é  de  1865  e  refere-se  a  um  dos  episódios  da 
guerra  do  Brasil  contra  o  Paraguay. 

Os  defeitos  dessas  poesias  são  o  abuso  de  allegorias  e  appa- 
rições  e  o  tom  declamatório ;  os  méritos  —  o  espirito  demo- 
crático, liberal,  altaneiro,  a  fúria  canora  que  por  èllas  cir- 
cula. 

Pedro  Luiz  não  fez  escola,  não  deixou  discípulos.  Retirado 
para  a  sua  fazenda,  ahi  passou  obscuramente  o  decennio  de 
1868  a  1878. 

(1)  RevUta  Meneai  do  Ensaio  Philotophiaco  Paulistano,  2.*  serie, 
S.  Paulo,  Maio  de  1861»  n.  1.%  pag.  15. 


HI8T0RU  DA  UTTSBATX7KA  BSABILBXBA  431 

A  ascençâo  do  partido  liberal  ao  poder  trouxe-o  de  novo 
á  vida  nesta  ultima  data ;  foi  deputado  e  chegou  a  ministro ; 
mas  o  poeta  havia  desapparecido  e  o  orador  já  não  tinha  os 
Ímpetos  de  1864  a  68. 

A  politica  e  a  criminosa  indifferença  do  nosso  publico  por 
assumptos  litterarios  foram  matando  aos  poucos  aquelle  ta- 
lento, que  foi  cahindo  no  scepticismo. 

E  quando  teremos  nós  espirito  publico  preparado  para  as 
lutas  e  conquistas  do  espirito,  quando  teremos  completa 
emancipação  intellectual,  se  ainda  hoje  vemos  perfeitos  le- 
vianos, verdadeiros  trahidores  insurgirem-se  contra  a  pátria, 
cujos  progressos  amesquinham  e  prostrarem-se  ás  plantas 
de  escriptores  estranhos  a  mendigar  as  migalhas  de  sua 
mesa  ? 

Esqueçamol-os  e  vamos  ouvir  os  versos  de  um  patriota, 
de  um  brasileiro  e  independente,  um  desses  que  não  rece- 
biam senha  e  ousavam  falar  por  si. 

Passa  a  Sombra  de  Tira-Dentes,  ponhamos  o  ouvido  á 
escuta  : 

a  Façam  alas!...  O  préstito  se  avança... 
Reluzem  as  espadas...  Preso  á  lança 
Estremece  o  sagrado  pavilhão  : 
Elle  vem  nos  contar  a  grande  historia... 
Despertamos  ao  sol  de  nossa  gloria. 
Ao  medonho  estampido  do  canhão. 

A  orchestra  militar  vibra  seus  hymnos, 
E  o  povo  treme,  como  se  os  destinos 
Surgissem  gloriosos  lá  do  céo. 
Façam  alas!...  São  íilhos  doesta  terra, 
Que  vão  erguer  aos  cânticos  da  guerra 
De  feitos  nossos  perennal  trophéo. 

Bafeja  o  mundo  aragem  de  esperança ; 
Lá  do  heróico  passado  uma  lembrança 
Evocaram  na  tuba  marcial  : 
São  levitas  da  pátria  agradecida, 
Que  vão,  cheios  de  fé,  de  fro'nte  erguida, 
N*68ga  marcha  solemne,  triumphal. 


432  HI8T3BIA  DA  LITTEBATUBA  B&ABILBUtA. 

Esses  louros  da  pátria  ensanguentados, 
Pelo  fogo  divino  illuminados, 
Tinham  direito  á  saudação  viril ; 
E  os  vindouros,  em  civica  romagem, 
Vão  prestar-lhes  esplendida  homenagem, 
Sahindo  agora  do  marasmo  vil. 

Hoje  se  elevam  tradições  queridas! 
Na  poeira  dos  annos  esquecidas. 
Até  hoje  iiinguem  as  acordou. 
E'  divida  sagrada  ao  sangue  altivo, 
Que,  saltando  na  algema  do  captivo, 
Como  lava  de  fogo  arrebentou. 

Façam  alas!...  A'  sombra  do  passado 

Vái-se  elevar  no  Pantheon  sagrado 

A  columna  mais  alta  da  nação... 

Ha  de  ser  o  heroe  de  nosso  empyreol 

Sobre  as  lendas  que  expliceum-lhe  o  martyrio, 

Vao  collocar  o  popular  brasão. 

Vem  à  frente  do  povo  a  magestade... 
E'  uma  festa  em  que  a  nossa  liberdade 
Vae  cantar  a  Odysséa  do  valor. 
Aos  rufos  compassados  dos  tambores, 
Ehtre  nuvens  de  pólvora  e  de  flores, 
Alas!...  Alas!...  ao  povo,  ao  imperador. 


Das  nuvens  lá  do  céo,  soberbo  se  avizinha 
Das  glorias  do  Brasil  o  magico  signal! 
Coberto  está  de  um  véo...  porém  lÀ  se  adivinha 
Da  liberdade  um  Deus  no  immenso  pedestal! 

Da  terra  que  conserva  em  seu  leito  gelado 
Aquelle  que  rompera  os  elos  do  grilhão  ; 
Que  guarda  o  sangue  ardente  á  pátria  derramado 
E  as  lagrimas  de  cólera  em  dias  de  afflicç&o  ; 

Da  terra  em  que  se  deu  martyrio  glorioso, 
E  aos  raios  d*essa  luz  por  fim  se  libertou, 
Surgir  um  dia  deve  um  vulto  portentoso, 
E  88S0  —  eil-o  acolá,  qu»  a  pátria  alevantou«.. 


■ 

li 


HI8T0BIA  DA  LITTBSATUBA  BBABILXI&A  433 

Que  palmas  de  valor  não  murcha  a  grande  historial  ^ 

O  povo  esquece  um  dia  os  inclytos  varões ;  * 

Mas  do  famoso  heróe  granitica  memoria  .| 
Terá  sempre  a  seus  pés  do  mundo  as  gerações... 

E  se  alguém  perguntar  aos  povos,  com  espanto. 
Que  fez  o  cidadfto  que  o  povo  assim  guardou  : 
Dir&o  :  Morreu  aquil  Calvário  sacro-santol 
O  sangue  d*esse  Christo  a  pátria  baptisou! 


Rasga-se  o  véol...  Que  apparece? 
Quem  é  esse  cavalleiro, 
Que,  no  ímpeto  guerreiro. 
Estende  o  braço  viril? 
N&o  é  esse  o  heróico  vulto 
Que  a  historia  tanto  apregoa, 
Que  o  povo  inteiro  abençoa 
Como  o  anjo  do  Brasil? 

Não  é,  não!...  Vergonha  immensal 
N'esta  quadra  corrompida. 
Com  a  fronte  envilecida. 
Sem  glorias  e  sem  pudor, 
O  Brasil,  cruzando  os  braços  , 
Dobra  os  joelhos  contrícto. 
Ante  a  massa  de  granito 
Do  primeiro  imperador. 

Curvae-vos,  raça  de  ingratosl 
Nos  dias  de  cobardia 
Festeja-se  a  tyrannia, 
Fazem-se  estatuas  aos  reisl... 
Embora  tenham  da  pátria 
Ouvido  os  longos  gemidos. 
Os  cadafalsos  erguidos, 
E  postergadas  as  leis. 

■ 

Vede!...  Ali  surge  da  terra. 
Como  da  febre  no  sonho. 
Um  patíbulo  medonho. 
Meu  Deus!  Porque  recuaes?... 

BfToiUA  n  28 


43 1  HISTORIA  DA  LITTBRATXmA  BRABILBIBA 

Sobre  a  taboa  ensanguentada 
Aquella  face  jà fria 
Não  vem  turbar  a  alegria 
Doestes  cantos  festivaes... 

Não  recueis  de  uma  sombra! 
O  frio  braço  do  espectro 
Não  pôde  quebrar  um  sceptro 
Que  tendes  por  divinal! 
Envolto  em  sua  bandeira, 
Triste,  pallido,  calado, 
Também  elle  é  convidado 
Doesta  festa  imperial... 

E'  esse  o  heróe  soberbo, 
O  filho  da  liberdade. 
Que  a  cega  posteridade 
N'essa  baixeza  esqueceu  ; 
Sonhador,  que  sonhou  tanto 
Na 'noite  do  capliveiro, 
Foi  elle  o  martyr  primeiro, 
Que  pela  pátria  morreu. 

Elle,  sim!...  Quando  nas  trevas 
Todos  curvavam  a  fronte, 
Divisou  lá  no  horisonte 
Doce  esperança  —  uma  luz... 
E  quiz  carregar,  ousado 
Da  liberdade  o  Atlante, 
Sobre  os  hombros  de  gigante 
A  terra  de  Santa  Ci^uz. 

Que  importa  ali  sucumbisse 
No  cadafalso  maldito, 
E  da  Independência  o  grito 
Morresse  nos  lábios  seus? 
Que  importa  a  morte  affrontosa, 
Se  no  cadáver  gelado, 
Pelo  Brasil  retalhado, 
Choveram  bênçãos  dos  céos?I 

Insensato!  derramara 
Esse  sangue  generoso 


HI8T0BIÁ  I>A  LITTBBATX7SA  BBA8ILBIBA.  435 

Sobre  o  solo  venenoso 
Em  tempos  de  escravid&ol 
Cahiu  no  chão  ás  golfadas, 
Foram  bemditas  sementes  : 
Do  sangue  do  Tira-Dentes 
Brotou-nos  a  salvação. 

Pensei  que  o  idolo  santo, 
Que  adorássemos  agora, 
Do  homem  fosse  que  outr'ora 
A  pátria  muda  chorou. 
Hoje  percebo  assombrado 
Que  a  maldição  fulminada 
Contra  essa  fronte  elevada 
Té  no  futuro  chegou. 

Hoje  o  Brasil  se  ajoelha, 
E  se  ajoelha  contílcto, 
Ante  a  massa  de  granito 
Do  primeiro  imperador. 
Não  molda  ninguém  no  bronze 
O  valente  dos  valentes, 
A  sombra  de  Tira-Dentes, 
Esse  braço  redemptori 

Não  precisa  de  uma  estatual 
Nós  o  vemos  radiante 
N'uma  aureola  brilhahte 
De  liberdade  e  de  fé... 
Sobre  a  taboa  enscmguentada, 
Triste,  pallido,  callado. 
Frio  espectro  do  passado, 
No  pelourinho,  de  pé. 


Da  terra  que  conserva  em  seu  leito  gelado 
Aquelle  que  rompera  os  elos  do  grilhão, 
Que  guarda  o  sangue  ardente  á  pátria  derramado 
E  as  lagrimas  de  cólera  em  dias  de  afílicção ; 

Da  terra  em  que  se  deu  martyrio  glorioso, 
E,  aos  raios  dessa  luz,  por  íim  se  libertou. 
Surgir  um  dia  deve  um  vulto  portentoso... 
Mas  este  é  um  bronze  vil  que  a  corte  alevantou...  w 


436  HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BBA8ILBIRA 

Eis  ahi ;  é  um  brado  de  guerra  democrático,  liberal,  repu- 
blicano; poesia  social,  revolucionaria,  combatente,  um  cantar 
enthusiastico,  vibrante  que  estamos  aqui  habituados  a  ouvir 
de  certos  privilegiados. 

Quando  a  30  de  março  de  1862  Pedro  Luiz  espalhou  pelo 
povo  da  capital  do  Império  em  folhas  avulsas  esses  valejites 
versos,  ainda  não  era  celebre  Anthero  do  Quental,  ainda  não 
era  dia  para  Guilherme  Braga  e  menos  inda  para  Guerra 
Junqueiro.  Nossa  autonomia  litteraria  foi  sempre  uma  reali- 
dade para  os  grandes  espíritos,  e  uma  mentira  para  os  me- 
díocres. 

Os  bellos  versos  de  Pedro  Luiz,  que  acabei  de  citar,  des- 
pertam uma  observação,  e  é  esta :  elles  mostram  entre  nós 
o  progresso  das  idéas  democráticas. 

Percorra  por  este  lado  o  leitor  todo  o  curso  da  historia  da 
litteratura  brasileira ;  parta  de  Bento  Teixeira,  que  se  dava 
por  feliz  em  dedicar  sua  Prosopopéa  ao  governador  de  Pe^ 
nambuco;  passe  pelos  encomiastas  e  aduladores  das  aca- 
demias dos  Esquecidos^  Felizes  e  Selectos^  que  viviam  a 
incensar  os  governadores  geraes,  nem  ousando  levantar  as 
vistas  até  aos  thronos  dos  Reis  —  Nossos  Senhores  ;  chegue 
á  épocha  de  Pombal  e  aprecie  ainda  as  louvaminhas  ao  rei 
e  ao  poderoso  ministro ;  atravesse  o  tempo  de  Maria  I  e  veja 
como  os  próprios  poetas  mineiros  eram  submissos  nos  seus 
cantares  dirigidos  a  Excelsa  Ramha ;  venha  até  aos  tempos 
do  primeiro  reinado,  e  vá  notando  o  progredir  da  ousadia 
da  musa  no  seu  trato  com  os  reis  e  os  poderosos;  chegue 
aos  nossos  dias  e  assignale  a  distancia  que  vae,  por  exemplo, 
de  tudo  aquillo  aos  versos  de  Pedro  Luiz  e  ao  Régio  Saltim- 
banco de  Fontoura  Xavier. 

Luiz  Nicolao  Fagundes  Varella  —  (1841-1875)  —  é,  como 
já  disse,  o  laço  que  prende  o  byronismo  de  Alvares  de  Aze- 
vedo e  companheiros,  o  sertanegismo  de  Bittencourt  Sampaio 
e  collegas  ao  hugoanismo  sociaUstico  da  escola  condoreira. 

E'  um  poeta  de  grande  mérito,^  uma  singular  figura  digna 


HI8T0BIÁ  BA  LITTIKATUIU  BRABILUSA  437 

de  reverencias  e  attenções.  E'  muito  conhecido,  bastante  lido 
e  muito  mal  estudado. 

NcLo  existe  d'elle  ao  menos  um  bom  esboço  biographico ; 
porquanto  os  dous  que  ahi  correm,  devidos  ás  pennas  de 
Lery  dos  Santos  e  Visconti  Coaracy,  estão  cheios  de  erros  e 
fortes  lacunas. 

Coaracy  repete  o  que  leu  em  Lery,  e,  pois,  refutar  este  é 
refutal-o  implicitamente  e  vice-versa.  —  «  Em  1865,  escreve 
aquelle,  matriculou-se  na  Faculdade  de  S.  Paulo.  Cursou 
a  academia  durante  dous  annos  e  durante  esse  tempo,  esti- 
mulado pelos  collegas,  publicou  as  suas  primeiras  poesias. 
Por  essa  épocha,  seu  coração  inflammou-se  de  amor  por  for- 
mosa donzella. 

Com  ella  casou-se  e  teve  um  filho,  ao  qual  dedicava  extre- 
moso affecto.  Resolvido  a  concluir  os  seus  estudos  na  facul- 
dade de  Olinda,  partiu  para  Pernambuco,  como  passageiro 
no  vapor  francez  Bearn. 

Este  navio  naufragou  na  altura  dos  Abrolhos.  Várella  de- 
senvolveu então  grande  energia,  e,  pondo  em  pratica  a  sua 
experiência  adquirida  na  viagem  que  fizera  a  Goyaz,  atravéz 
de  sertões,  dirigiu  a  construcçáo  de  cabanas  para  accommo- 
dação  dos  náufragos,  e  de  mais  trabalhos  para  obtenção  de 
soccorros. 

Chegando  finalmente  a  Pernambuco,  passou  alli  um  anno 
em  proseguir  nos  seus  estudos,  e,  regressando  por  occasião 
das  ferias,  ao  Rio  de  Janeiro,  quasi  perdeu  a  razão  ao  saber 
que  a  morte  lhe  havia  roubado  â  esposa  e  o  filho. 

Este  golpe  tremendo  cortou-lhe  o  futuro  e  enegreceu-lhe  a 
existência.  D'alli  em  diante,  Varella  vagueava  pelos  campos, 
abria  caminho  atravez  das  florestas,  vadeava  ribeiros  e  pas- 
sava a  nado  caudalosos  rios,  condoendo-se  com  os  africanos 
escravos  que  encontrava,  contando  suas  torturas  aos  tropeiros 
em  cujos  pousos  parava,  suspirando  pela  morte,  e  foi  por  essa 
occasião  que  escreveu  o  sentido  Cântico  do  Calvário  (1).  » 

Este  pedaço  biographico  é  um  tecido  de  inexactidões ;  não 

(1)  Obraê  Completa*  de  L.  N.  Fagundes  Varella,  l.»vol.,  pag.  48,—  Noti- 
cia Biographiea, 


438  HIBTOaiA  DA  LITTERATUBA  BSASIUORA 

foi  em  1865  que  o  poeta  se  matriculau  em  S.  Paulo ;  a  morte 
de  seu  íllho  nãjo  occorreu  durante  sua  estada  no  Recife  (e  não 
Olinda  como  inexactamente  diz  o  biographo) ;  n&o  esteve 
dous  annos  apenas  na  faculdade  jurídica  do  sul;  não  escre- 
veu o  Cântico  do  Calvário  na  volta  de  Pernambuco  durante 
as  ferías. 

A  verdade  é  que  Varella,  nascido  em  1841,  tendo  feito  em 
1852  a  viagem  a  Catalão  em  Goyaz,  havendo  residido  tempo^ 
rariamente  em  Angra  dos  Reis,  Petrópolis  e  Nictheray,  já 
em  1860  e  61  achava-se  em  S.  Paulo  ultimando  os  prepara- 
tórios e  matriculando-se  logo  em  seguida. 

Em  1861  publicou  as  Nocturnas^  em  1862  o  Pendão  Aurú 
Verde,  em  1864  as  Vozes  da  America  e  no  anno  seguinte  os 
Cantos  e  Phantasias  (1). 

Quando  em  1866  appareceu  em  Pernambuco,  já  ia  prece- 
dido de  grande  fama  preparada  pelos  quatro  livros  acima 
citados  e  no  ultimo  d'elles  já  ia  encerrado  o  Cântico  do  Cal- 
vário, dedicado  á  memoría  de  seu  filho,  fallecido  a  11  de 
dezemhro  de  1863. 

Não  é  absolutamente  crivei  qne  Varella  levasse  três  longos 
annos  para  ter  a  noticia  do  passamento  de  um  ser  que  ido- 
latrava. 

O  fallecimento  de  sua  mulher,  cuja  data  precisa  não  pude 
obter,  é  que  talvez  tenha  occorrido  nos  últimos  tempos  da 
estada  do  poeta  no  Recife. 

De  1867  em  diante  torna-se  obscura  a  biographia  do  illustre 
fluminense. 

Sei  apenas  que  iniciou  então  vida  erradia  pelo  Rio,  Niclhe- 
roy,  Rio  Claro,  Mangaratiba,  Angra  dos  Reis  e  outras  locali- 
dades da  província  do  Rio  de  Janeiro. 

Aind^  assim  passou  a  segundas  núpcias  e  publicou  dous 
novos  livros.  Cantos  Meridionaes  e  Cantos  do  Ermo  e  da 
Cidade.  Deixou  duas  fllhas  e  dous  inéditos  :  o  Diário  de  Lor 

(1)  Quando  tratei  de.  Gonçalves  Dias,  disse  que  os  Cant09  e  PhcmicaioM 
eram  de  1866.  Agora  digo  que  elles  sáo  de  1865.  Para  o  fim  que  alli  tinha 
em  vista  não  ha  nisto  contradicção.  O  livro  traz  no  fh>nte8picío  a  data  de 
1865 ;  mas  só  se  espalhou  pelo  publico  em  princípios  de  1866. 


HISTOBIA  DA  LITTEBATURA  BRABILEIBA  439 

zaro  e  Anchieta  ou  o  Evangelho  nas  Selvas^  que  correm 
hoje  publicados.  FaJleceu  em  1875  aos  trinta  e  quatro  annos 
de  idade. 

Estudcinol-o  mais  de  perto. 

No  Brasil  até  hoje  têm  existido  cinco  poetas  verdadeira- 
mente descuidosos,  andarilhos,  boheniios  :  Gregório  de  Mat- 
tos no  século  xvii  e  Laurindo  Rahello,  Âureliamo  Lessa, 
Bernardo  Guimarães  e  Fagundes  Varella  no  século  xix. 

Destes  cinco  os  mais  populares  foram  Gregório,  o  satyrico, 
Laurindo,  o  elegíaco,  e  Varella,  o  lyrista. 

09  dous  mineiros  tiveram  uma  notoriedade  mais  limitada. 
Durante  quinze  annos,  de  1860  a  1875,  especialmente  nas 
rodas  de  estudantes,  emi  S,  Paulo,  Recife  e  Rio  de  Janeiro, 
Varella  era  sempre  o  bem  vindo,  o  companheiro  querido, 
applaudido,  idolatrado. 

EUe  náo  chegou  a  ultimar  o  curso  académico,  a  graduar-se, 
e  a  seguir  uma  qualquer  dessas  carreiras  que  se  abrem  aos 
bacharéis  em  direito. 

Deixou-se  sempre  ficar  na  vida  indefinível  do  bohemio,  sem 
rumo,   sem  destino  determinado. 

Qual  a  razáo  ?  Vicios  de  educação  ?  Vicios  de  escola  ?  Ten- 
dência natural  ?  Tristeza  nativa  ?  Alguma  amarga  decepção  ? 

Não  sei  bem  ao  certo ;  nem  a  leitura  das  obras  do  poeta  é 
por  esta  face  uma  garantia  absolutamente  segura  de  desco- 
brir a  verdade. 

A  obra  do  poeta,  apparentemente  lógica,  é  uma  das  mais 
contradictorias  que  possuímos;  apparentemente  pessoal,  é 
uma  das  mais  impessoaes  de  nossa  litteratura. 

Mas,  emíim,  é  por  onde  terei  de  esludal-o.  De  sua  leitura 
deprehendi  o  seguinte  :  Varella  não  foi  um  triste,  nem  um 
alegre,  nem  um  crente,  nem  um  sceptico,  nem  um  liberal, 
nem  um  auctoritario  ;  porque  foi  tudo  isto  ao  mesmo  tempo, 
conforme  o  ensejo  e  a  occasião.  Foi  uma  natureza  múltipla, 
variada,  excessivamente  excitavel,  atormentada  por  estímulos 
diversos.  Varella  foi  um  agitado. 

D'ahi  a  variedade  de  suas  impressões  e  a  mobilidade  dos 
tons  de  seu  cantar ;  d'ahi  essa  morbideza  inconsciente  e  irre- 
sistível que  se  evapora  da  mor  parte  de  suas  composições.  Tal 


440  HISTOBIA  PA  LITTBSATUBA  B&ABIUmUL 

a  característica  fundamental  de  seu  genia,  de  seu  temperar 
mento  de  poeta. 

As  producções,  pois,  que  mais  o  definem  s&o  aqudlas  em 
que  apparecem  essas  incertezas,  essas  flu^tuaçOes,  essas  né- 
voas, esses  claros  e  escuros,  essas  vagas  aspirações,  esses 
sonhos  róseos  e  dubiois,  esses  matizes  impalpavtís,  essas  on- 
dulações chimericas  de  um  espirito  inconsist^ite  adormecida 
n*uma  espécie  de  embriaguez.  E*  o  que  eu  chamei  o  lyrismo 
bacchico. 

Entretanto,  a  falsa  critica  entre  nós  tem  dado  a  Vsurella  como 
caracterisaçclo  principal  a  tristeza  romântica... 

E'  um  erro  refutado  pelo  próprio  poeta,  quando  diz  em 
Velha  Canção  : 

((  Não  sou  desses  génios  duros, 
Inimigos  do  prazer. 
Que  julgam  que  a  humanidade 
SóYiasceu  para  gemer ; 

Gosto  de  queimar  incenso 
Sobre  as  azas  da  alegria, 
Julgo  que  ser  louco  a  tempo 
Também  ô  sabedoria...  » (1) 

Ou  no  Ermo : 

a  Eu  não  detesto  nem  maldigo  a  vida, 
Nem  do  despeito  me  remorde  a  chaga...  »  (2) 

Ou  em  Oração  : 

tt  Eu  quero  andari  Eu  sei  que  no  futuro 
Inda  ha  rozas  de  amor,  inda  ha  perfumes. 

Ha  sonhos  de  encantari 
N&o,  eu  tíSlo  sou  d'aquelles  que  a  descrença 
Para  sempre  curvou,  e  sobre  a  cinza 

Debruçam-se  a  chorcu*  »  (3). 

(1)  Obrai  Completai,  I.  pag.  279. 

(2)  Idem,  II,  pag.  72. 

(3)  Idêm^  iòid.,  pag.  96. 


J 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATUSA  BSA8ILXIBA  441 

Ou  finalmente  em  Acusmata  : 

cc  Sinto  que  fui  feliz,  e  n'essa  quadra 
Nem  tristezas  cantei,  nem  amarguras, 
Mas  Deos,  a  vida,  a  mocidade  e  a  gloria  »  (1). 

Nada  mais  claro;  a  critica  illudiu-se  completamente. 

Outra  falsa  caracterisaçáo  do  poeta  é  a  que  o  apresenta 
como  sertanegista^  bíicolista  por  indole  e  tendência  irresis- 
tível. 

Sinto  vêr  compartilhado  este  erro  por  Franklin  Távora,  o 
illustre  romancista  e  hábil  critico,  em  seu  bello  estudo  sobre 
o  escriptor  fluminense,  n'estas  palavras  :  «  Varella  é  o  can- 
tor das  meias  malícias  e  das  meias  innocencias  existentes 
n'essa  região  pdttoresca  e  animada,  que  não  é  a  cidade  des- 
lumbrante nem  a  solidão  bravia,  que  é  simplesmente  o  campo 
ou  a  roça  ou  o  maMo,  isto  é,  um  theatro  modesto  de  folguedos 
ingénuos,  amores  tímidos,  graças  vergonhosas,  mais  virtudes 
que  vícios,  mais  natureza  que  arte,  mais  desinteresse  que 
calculo,  n'essa  região  que  está  para  a  civilisação  como  o  arre- 
bol está  para  o  dia,  nesse  plano  onde  perfis  garridos  e  ima- 
gens toscas  se  debuxam  sob  uma  luz  crepuscular  que  os 
não  deixva  ver  em  completo  relevo. 

Se  a  minha  critica  não  se  engana,  Varella  pôde  ser  aferido 
pela  poesia  A  Roça,  que  é  uma  das  que  trazem  mais  funda- 
mente impresso  o  signal  da  sua  physionomia  poética  »  (2). 

Távora  é  levado  a  esta  coaiclusão,  além  d'A  Roça,  pela  lei- 
tura de  Mimosa  e  Antonico  e  Corá. 

Ponho^me  em  completo  desaccordo.  Estas  três  composições 
campesinas  e  sertanegistas  são  productos  esporádicos  e  exce- 
pcionaes  na  vasta  obra  de  Varella. 

Em  rigor  até  reduzen>se  ás  duas  primeiras,  porque  Anto- 
nico e  Corá  quasi  nada  tem  de  essencialmente  roceiro,  não 
passando  da  narrativa  extravagante  de  um  caso  de  bigamia, 
tão  próprio  do  sertão  como  da  cidade. 

Restam  A  Roça  e  Mimosa,  bellas  producções  em  verdade, 

(1)  Obroê  Completas,  II,  pag.  271. 
(S)  Idem,  h  pag.  25. 


442  HISTOBIA  DA  LITTERATURA  BKASILEISÂ. 

que  desapparecem  no  meio  da  muiltidáo  de  poesias  do  auctor 
fluminense. 

Varella,  que  viajou  as  regiões  marítimas  do  Brasil,  as  re- 
giões das  mattas  e  as  regiões  dos  sertões,  dedicou  alguns 
cantos  ás  scenas  que  mais  o  captivaram  por  todas  ellas. 

A'  vida  sertaneja  couberam  as  duas  poesias  encomiadas 
pelo  critico.  Tal  foi  e  nada  mais. 

Não  é  isto  sufflciente  para  constituir-lhe  a  característica 
especial  e  dar-lhe  alto  posto  n'um  género  em  que  elle  difficil- 
mente  poderia  luctar  com  Bittencourt  Sampaio,  Joaquim 
Serra,  Bruno  Seabra,  Trajano  Galvão,  Mello  Moraes  Pilho  e 
outros  já  lembrados  n*este  livro. 

Em  Mimosa  mesma  o  que  encanta  é  o  doce  lyrismo  amo- 
roso do  2.**  canto  e  não  as  notas  puramente  sertanejas,  aliás 
raras  e  fracas. 

Insisto  em  dizer,  o  traço  pessoal  do  lyrismo  de  Fagundes  Va- 
rella é  certo  phantasiar  vago  e  dolente,  aerio  e  brumoso, 
cheio  de  doçuras  e  sonoridades,  alguma  cousa  de  impalpável 
e  chimerico,  de  vaporoso  e  dúbio,  como  os  sonhos  de  um 
espirito  alheiado  da  realidade. 

Esta  nota  espalha-se  por  toda  a  sua  obra,  especialmente  em 
As  Selvas,  Névoas,  Gualter,  A  Enchente,  Juvcnilia,  Cântico  do 
Calvário,  Madrugada  á  beira  mar,  Acusmuta,  Visões  da  Noite 
e  trinta  outras.  E'  quasi  abrir  seus  livro?  ao  acaso  e  lêr. 

No  seu  próprio  poema  de  Anchieta  as  melhores  passa- 
gens são  os  trechos  em  que  a  propósito  de  scenas  naturaes, 
deixa  de  lado  a  vida  do  Christo  narrada  pelo  missionaiio,  e 
cae  em  effusões  lyricas  do  género  predilecto. 

O  mesmo  em  todos  os  poemetos  para  não  falar  nas  poesias 
mais  curtas. 

O  nosso  scismador  não  gostava  da  claridade  em  todo  o  seu 
esplendor,  não  apreciava  o  viver  positivo  das  cidades,  as  lu- 
ctas  da  imprensa,  as  agitações  politicas,  uma  carreira  normal 
e  segura.  Amava  o  retiro,  as  sombras  das  mattas,  o  abandono 
que  o  deixasse  sonhar. 

Não  ha  poeta  algum  da  lingua  portugueza  que  tenha  em- 
pregado tanto  a  palavra  névoa,  e  elle  vivia  n'um  paiz  tropical, 
n'uma  terra  banhada  de  luz... 


HISTORIA  DA  LITTESATUSA  BBABILXIRA  443 

—  As  névoas  elle  as  tinha  no  espirito.  E  esse  ser  agitadiço, 
essa  alma  exhuberante  e  lyríca  dava-se  bem  na  embríagiiez 
dos  sonhos  e  das  scismas  indeflniveis.  E  quando  o  vago,  o 
brumoso,  o  f urtacôr  dos  anhelos  aeros  não  lhe  era  gerado  pela 
própria  j^hantasia,  elle  o  provocava  nas  doçuras  tentadoras  do 
vinho.  O  poeta  mesmo  pintou  esta  situação  do  seu  espirito  na 
verdade  imponente  desta  encantadora  pagina  : 

Cf  Escravo,  enche  essa  taça, 

Enche-a  depressa  e  canta! 
Quero  espancar  a  nuvem  da  desgraça 
Que  além  nos  ares  lutulenta  passa 

E  meu  génio  quebranta. 

Tenho  n*alma  a  tormenta, 

Torméhta  horrenda  e  fríal 
Debade  a  doida  conjural-a  tenta. 
Luta,  vacilla  e  tomba  macilenta 

Nas  vascas  da  agoniai 

Pois  bem,  seja  de  vinho, 

No  delirar  insano, 
Que  afogue  minhas  lagrimas  mesquinho!... 
Então  envolto  em  purpura  e  arminho 

Serei  um  soberano! 

Cresce,  transpõe  as  bordas 

De  brílhaYite  crystal. 
Torrente  amada  que  o  prazer  acordas... 
Toma  a  guitarra,  escravo!  afina  as  cordas, 

E  viva  a  saturnal! 

Já  corre-me  nas  veias 

Um  sangue  mais  veloz... 
Anjos...  inspirações...  mundos  de  ideias, 
Sacudi-me  da  fronte  as  sombras  feias 

D*este  scismar  atroz! 

Que  celestes  beifagens! 

Que  languidos  perfumesi 
Que  vaporosas,  lúcidas  imagens 
Dansam  vestidas  de  subtis  roupagens 

Entre  esplendidos  lumea! 


444  HI8T0B1A  DA  LITTERATUBA  BIIABILBIBA 

Tange  mais  brando  ainda 
Esse  mago  instrumento!... 

Mais...  ainda  mais!  Que  maravilha  infinda! 

Que  plaga  immensa,  luminosa  e  linda! 
Que  de  vozes  no  vento! 

Sâo  as  huris  divinas 
Que  junto  a  mim  perpassam, 
Ou  de  Schiraz  as  virgens  peregrinas, 
Que  cingidas  de  rosas  purpurinas 
Choram  Bulbul  e  passam? 

Oh!  nõo,  que  não  s&o  ellas. 

Mas  ai!  meus  sonhos  s&o! 
São  do  passado  as  vividas  estrellas, 
Que  á  flux  rebentam  cada  vez  mais  bellas, 

De  mais  puro  clarfio! 

São  meus  prazeres  idos! 

Minha  extincta  esperança! 
Sôo...  Mas  que  nota  fere-me  os  ouvidos? 
Escravo  estulto,  abafa  esses  gemidos! 

Canta  o  riso  e  a  bonança! 

Canta. a  paz  e  a  ventura 

O  mar  e  o  céo  azul!... 
Quero  olvidar  minha  comedia  escura, 
E  a  ledos  sons  as  larvas  da  loucura 

Bater  como  Saul! 

Leva-me  ás  densas  mattas 

Onde  viveu  Celuta ; 
Faze-  me  um  leito  á  margem  das  cascatas 
Ou  nas  alfombras  húmidas  e  gratas 

De  recôndita  gruta... 

Assim...  assim!  Fagueiras, 

Escuto  já  nos  ares 
As  vozes  das  donzellas  prazenteiras, 
Que  dansam  ritido  ao  lume  das  fogueiras 

No  centro  dos  palmares. 


HIBTOKIA  DA  LITTEBAT17SA  B&ABILUBA  445 

Mais  vinhol  Ohl  philtro  mago! 

Só  tu  podes  no  mundo 
Mudar  os  gyros  do  destino  vago, 
E  fazer  do  martyrio  um  doce  afago, 

De  uma  taça  no  fundol 

Ohl  patriarcha  antigol 

Ohl  bebedor  feliz, 
Do  roxo  sumo  da  parreira  amiga! 
Teu  nome  invoco,  abrago-me  comtigo, 

Vem,  vem  ser  meu  juiz! 

Basta,  servo,  de  cantos ; 

Quero  dormir,  sonhar, 
Sinto  do  v£nho  os  últimos  encantos... 
Molham-me  as  faces  amorosos  prantos, 

Vou  reviver  e  amar!  »  (1) 

N'esta  região  de  sonhos  e  apparições  doiradas  se  comprazia 
o  poeta.  Era  uma  necessidade  de  seu  espirito  e  do  espirito  de 
tantos  e  tantos  outros. 

Em  que  pese  a  rigidos  positivistas,  a  illusâo  ha  tido  e  conti- 
nuará a  ter  grandissima  parte  na  vida  da  humanidade;  a 
illusáo  tem  sido  um  factor  do  progresso.  Muitas  creações  secu- 
lares foram  originadas  inconscientemente  para  preencher  essa 
funcçSo. 

As  religiões,  as  mythologias,  as  lendas,  as  artes  em  grande 
parte  cumprem  esse  mister. 

Muitas  industrias  tiveram  origem  nessa  necessidade  fun- 
damental do  espirito  humano.  O  cultivo  da  vinha  entra  nesse 
numero. 

Quem  uma  vez  disse  que  o  homem  tem  necessidade  de  illu- 
dir-s^  e  esquecer^  tanto  que  elle  é  o  único  animal  que  se  em- 
briagOy  disse  uma  grandei  verdade.  E'  isto  mesmo ;  o  contrario 
é  phantasiar  grandezas  que  não  possuímos. 

Varella  era  do  numero  desses  que  sabem  o  que  valem  chi- 
meras  e  illuisões,  como  preservativos  contra  as  asperezas  da 
realidade  crua.  Sua  poesia  era  uma  filha  da  phantasia  alada  e 
impalpável. 

(1)  Obrca  ComplêtcUy  II,  a  p«ça  intitulada  Dicenão, 


446  HISTO&IA  DA  LITTBBATTTBA  BRASILEIRA 

EUe  mesmo  o  disse  na  primeira  pagina  de  seus  Cantos  do 
Ermo  e  da  Cidade  : 


u  Louras  abelhas,  leves  borboletas, 

Volúveis  beija-ílôres, 
Rápidos  génios,  hospedes  dos  ares. 

Solitários  cantores, 
Amantes  uns  das  pompas  das  cidades, 

Das  galas  e  das  festas 
Outros  amigos  das"  planicies  vastas 

E  das  amplas  florestas  ; 
Alado  mundo,  turbilhão  volante, 

Bando  de  sonhos  vagos, 
Ora  adjando  em  capriohosos  gyros. 

Ora  em  doces  afagos 
Pousando  sobre  as  frontes  scismadoras.. 

Vede,  desponta  o  dia, 
Sacudi  vossas  azas  vaporosas. 

Exultai  de  alegial 
Ide  sem  medo,  lúcidas  chimeras, 

S&o  horas  de  partir I... 
Ide,  correi,  voed,  que  vos  desejo 

O  mais  almo  porvir!...  » 


Estas  citações  não  enganam,  não  deixam  duvida. 

Sa  a  poesia  é  uma  co>pia  exacta,  uma  photographia  do 
mundo  exterior,  Varella,  apezar  de  seu  grande  talento  descri- 
ptivo,  foi  um  poeta  de  altura  secundaria. 

Se,  porém,  a  poesia  é  uma  região  encantada,  crêada,  pelas 
almas  de  eleição  para  delicia  e  prazer  de  nós  outros  os  pobres 
condemnados  ás  cruezas  da  vida,  elle  foi  um  dos  mais  altos  de 
nossos  poetas,  porque  poucos  foram  tão  amoravelmente  ideia- 
listas  e  phantasiosos. 

Eu  bem  podera  agora  enumerar  as  obras  do  auctor,  pe^ 
correr  com  os  meus  leitores  as  melhores  de  suas  composições 
em  diversos  géneros,  prolongar  este  perfil,  descendo  a  minu- 
dencias.  Seria  trabalho  fácil ;  mas  creio  ser  inuUl ;  porque  a 
physiooomia  particular  do  poeta  já  eu  a  dei. 

Basta-me  consignar,  terminando,  que  as  suas  melhores  qua- 


J 


HI8T0BIA  DA  LITTSBATURA  BBA8IUUBA  447 

lidados  são  a  espontaneidade»  a  musica  e  a  doçura  dos  versos, 
o  vigor  e  a  segurança  das  descripções,  a  abundância  e  a  ri- 
queza das  imagens. 

As  novas  gerações  devem  sempre  ler  o  delicioso  sonhador 
dos  Cantos  Meridionaes  e  dos  Cantos  e  Phantasias.  Não  pôde 
haver  mais  intelligente  e  sincero  companheiro.  Lêde-o,  lêde-o. 


Luus  Gonzaga  Pinto  da  Gama  (1830-1882)  é  merecedor  de 
altenções  e  sympathias  particulares. 

Orador,  jornalista  e  poeta,  era  um  quasi  negro  que  náo  tinha 

pejo  de  sua  raça;  pelo  contrario  foi  o  seu  defensor  constante. 

Tinha  sido  escravo  ,e  foi  depois  o  mais  antigo,  o  mais 

apaixonado,  o  majs  enthusiasta,  o  mais  sincero  abolicionista 

brasileiro. 

Eu  disse  uma  vez  que  a  escravidão  nacional  nunca  havia 
produzido  um  Terêncio,  um  Epicteto,  ou  siquer  umi  Spartaco. 
Ha  agora  uma  excepção  a  fazer  :  a  escravidão  entre  nós 
produziu  Luiz  Gama,  que  teve  muito  de  Terêncio,  de  Epic- 
teto e  de  Spartaco. 

Natural  da  provincia  da  Bahia,  era  filho  de  uma  pobre  es- 
crava africana.  Vendido  ainda  moço  para  S.  Paulo,  conseguio 
ahi,  por  sua  honestidade,  intelligencia  e  perseverança,  liber- 
tar-se ;  conseguiu  fazer  bons  estudos  de  humanidades,  con- 
seguiu» praticar  no  foro,  conseguiu  fazer-se  habilissimo  advo- 
gado, influente  orador,  perito  jornalista. 

Foi  isto  no  decennio  de  1850  a  60,  e  desde  este  tempo  o 
denodado  batalhador  iniciou/  a  campanha  abolicionista. 

No  foro,  na  tribuna  do  jury,  na  imprensa,  a  voz  amiga  e 
protectora  de  Luiz  Gama  não  se  fazia  esperar,  era  a  salva- 
guarda espontânea  dos  miseros  captivos. 

Não  pertence  especialmente  á  historia  litteraria  a  narrativa 
das  luctas,  das  cruentas  batalhas  em  que  se  achou  envolvido 
esse  intemerato  patriota  na  guerra  pertinaz  e  lendária  que  mo- 
veu durante  trinta  annos  contra  a  escravidão  no  Brasil. 

A  historia  social  se  encarregará  destes  factos  um  dia  e  sa- 
bel-o-ha  fazer  mais  habilmente  do  que  eu,  que  não  possuo 
agora  os  indispensáveis  documentos. 


448  HISTORIA  DA  LITrBSATUBA  BRABILXIRA 

A'  minha  tarefa  pertence  o  poeta,  um  dos  mais  engraçados 
satyricos  de  nossas  letras. 

As  palavras  de  caracter  theorico  depostas  no  começo  deste 
capitulo  têm  agora  sua  inteira  applicação. 

Luiz  Gama  era  quasi  de  todo  um  negro,  era  um  represen- 
tante extremado  do  immenso  mestiçamenlo  de  nossa  actual 
população.  E  sua  côr  nunca  foi  um  embaraço  á  generosidade 
de  seu  coração  e  á  actividade  de  sua  intelligenoia. 

Como  poeta  Luiz  Gama  deixou  somente,  ao  que  supponho,  o 
volume  intitulado  —  Primeiras  Trbvas  Burlescas  de  Getur 
Uno  —  de  que  existem  duas  ediçOes,  sendo  a  segunda  correcta 
e  augmentada,  do  Rio  de  Janeiro,  Typ.  de  Pinheiro  &  C,  1861. 

Contem  trinta  e  nove  poeisias  satyrícas  em  tom  acre  e  estylo 
burlesco,  excepto  três  ou  quatro  em>  tom  sedo.  Deste  numero 
são  as  ultimas,  que  denomínam-se  Minha  mãe  e  No  Cemitério 
de  S.  Benedicto  em  São  Paulo. 

Esta  revela  os  sentimentos  philantropicos  de  Luiz  Gama 
sobre  a  escravidão.  Elle  refere-se  á' sepultura  de  um  escravo 
n^estes  termos  : 

((  Em  lúgubre  recinto  escuro  e  frio. 
Onde  reina  o  silencio  aos  mortos  dado, 
Entre  quatro  paredes  descoradas. 
Que  o  caprichoso  luxo  não  adorna. 
Jaz  de  terra  coberto  humano  corpo, 
Que  escravo  succumbiu,  livre  nascendo, 
Das  hórridas  cadeias  desprendido. 
Que  só  forjam  sacrílegos  tyrannos. 
Dorme  o  somno  feliz  da  eternidade. 
Não  cercam  a  morada  lutuosa 
Os  salgueiros,  os  fúnebres  cyprestes. 
Nem  lhe  guarda  os  humbraes  da  sepultura 
Pesada  lage  de  espartano  mármore. 
Somente  levantado  em  quadro  negro 
Epitaphío  se  lô,  que  impGe  silencio! 
Descansam  n*este  lar  caliginoso 
O  mísero  captivo,  o  desgraçado!... 
Aqui  não  vem  rasteira  a  vil  lisonja 
Os  feitos  decantar  da  tyrahnia. 
Nem,  ofTascando  a  luz  da  sã  verdade, 


HI8T0BIA  DA  LITTERATURA  BSASILBIBA  449 

Eleva  o  crime,  perpetua  a  infâmia. 

Aqui  não  se  ergue  altar  ou  throno  d'ouro 

Ao  torpe  mercador  de  carne  humana. 

Aqui  se  curva  o  filho  respeitoso 

Ante  a  lousa  materna,  e  o  pranto  em  fio 

Cae-lhe  dos  olhos  revelando  mudo 

A  historia  do  passado.  Aqui  nas  sombras 

Da  funda  escuridão  do  horror  eterno, 

Dos  braços  de  uma  cruz  pende  o  mysterio, 

Faz-se  o  sceptro  bordão,  andrajo  a  túnica. 

Mendigo  o  rei,  o  potentado  escravo!  »  (1) 

São  generoisoâ  sentimentos  e  ainda  mais  cândidos  são 
aquelles  que  transpiram  dos  versos  Minha  Mãe. 

Também-  na  íamilia  negra  e  escrava  paJpátavam  corações 
puros,  cheios  de  magnânimos  e  elevados  affe^tos. 

Versos  assim  são  um  verdadeiro  documento  : 

((  Era  mui  bella  e  formosa, 
Era  a  mais  linda  pretinha, 
Da  adusta  Lybia  rainha, 
E  no  Brasil  pobre  escraval 
Oh,  que  saudade  que  eu  tenho 
Dos  seus  mimosos  carinhos, 
Quando  c'os  tenros  filhinhos 
Ella  sorrindo  brincava. 

Éramos  dois  —  seus  cuidados. 
Sonhos  de  sua  alma  bella; 
Ella  a  palmeira  singela, 
Na  fulva  areia  nascida! 
Nos  roliços  braços  de  ébano 
De  amor  o  fructo  apertava, 
£  á  nossa  bocca  junctava 
Um  beijo  seu,  que  era  vida, 

QuEindo  o  prazer  entreabria 
Seus  lábios  de  roixo  lyrio, 
Ella  fingia  o  martyrio 
Nas  trevas  da  solidão. 

(1)  Trocai  Burleicat,  pag.  187. 

BI8T0IIU  n  29 


450  HI8T0BIA  DA  LITTERATUSA  BBABILEISA 

Os  alvos  dentes  nevados 
Da  liberdade  eram  mytho, 
No  rostoa  dôr  do  aíflicto, 
Negra  a  côr  da  escravidão. 

Os  olhos  negros,  altivos, 
Dous  artros  eram  luzentes  ; 
Eram  estrellas  cadentes 
Por  corpo  humano  sustidas. 
Foram  espelhos  brilhantes 
Da  'nossa  vida  primeira, 
Foram  a  luz  derradeira 
Das  nossas  crenças  perdidas. 

Tâo  terna  como  a  saudade 
No  frio  chão  das  campinas. 
Tão  meiga  como  as  boninas 
Aos  raios  do  sol  de  abril. 
No  gesto  grave  e  sombria, 
Como  a  vaga  que  fluctúa, 
Plácida  mente  —  era  a  lua 
Reflectindo  em  céos  de  anil. 

Suave  o  génio,  qual  rosa 
Ao  despontar  da  alvorada, 
Quando  treme  enamorada 
Ao  sopro  d^aura  fagueira. 
Bra'ndinha  a  voz  sonorosa. 
Sentida  como  a  rolinha. 
Gemendo  triste,  sósinha, 
Ao  som  da  aragem  faceira. 

Escuro  c  ledo  o  semblante, 
De  encantos  sorria  a  fronte, 
—  Baça  nuvem  no  horísonte 
Das  ondas  surgindo  á  flor ; 
Tinha  o  coração  de  santa. 
Era  seu  ipeito  de  archanjo. 
Mais  pura  n'alina  que  um  anjo, 
Aos  pés  de  seu  Creador. 

Se,  junto  á  cruz  penitente, 
A  Deus  orava  contricta, 


, 


HISTORIA  DA  LITTEEATinLA  BSA8ILSIBA  451 

Tinha  uma  prece  infinita 
Gomo  o  dobrar  do  sineiro  ; 
Ás  lagrimas  que  brotavam 
Eram  pérolas  sentidas, 
Dos  lindos  olhos  vertidas 
Na  terra  do  captiveiro  »  (1). 

Na  satyra  o  poeta  zurziu  muito<s  dos  nossos  vicios  sociaes 
e  politicos.  O  tom  era  quasi  sempro  bastantei  exaggerado. 
Umas  vezes  tinha  graça  e  outras  descambava  algum  tanto 
para  o  desenxabido  e  triviaJ. 

O  estylo  nos  melharers  casos  era  este  : 

Pelas  ruas  vagava,  em  desatino, 
Em  busca  de  seu  asno  que  fugira. 
Um  pobre  paspalhão  apatetado. 
Que  dizia  chamar-se  Macambira. 

A  todos  perguntava  se  n&o  viram 
O  bruto  que  era  seu,  e  desertara  ; 
Elle  é  sério  (dizia),  está  ferrado, 
E  tem  branco  o  focinho,  é  malacdra. 

Eis  que  ehcontra  postado  n'uma  esquina 
Um  esperto,  ardiloso  capadócio. 
Dos  que  mofam  da  pobre  humanidade, 
Vivendo,  por  milagre,  em  santo  ócio, 

Olá,  senhor  meu  amo,  lhe  pergunta 

O  pobre  do  matuto,  agoniado  : 

c<  Por  aqui  não  passou  o  meu  burrego, 

<(  Que  tem  russo  o  focinho,  o  pé  calçado?  » 

Responde-lhe  o  tratante,  em  tom  de  mofa  : 
((  O  seu  burro,  senhor,  aqui  passou, 
«  Mas  um  guapo  Ministro  fel-o  presa, 
«  E  n'um  parvo  Barão  o  transformou!  » 

Oh,  Virgem  Santa!  (exclama  o  tabaréo, 
Da  cabeça  tirando  o  seu  chapéo) 
Se  me  pilha  o  Ministro  neste  estado. 
Serei  Conde,  Marquez  e  Deputado!.,,  »  0B) 

íi)   Trovas  Burlescai,  pag.  183. 
(2)  Idem,  pag.  113. 


452  HISTOBIA  DA  LITTERATXTRA  B&ABILSIRA 

Um  dos  sestros  mais  combatidos  por  este  satyrico  foi  a 
mania  da  branquidade,  mania  que  devasta  grande  porção  de 
verdadeiros  mestiços,  que  pretendem  ter  prosápia  fidalga. 
Sabe-se  que  a  mistura  das  três  raças  fundamentaes  de  nossa 
população  deu-se  em  larguíssima  escala,  e  é  phenomeno  inil- 
ludivel ;  o  numera  dos  brancos  puros  é  muito  pouco  avultado, 
e,  náo  obstante,  quasi  toda  a  gente  tem  suas  veleidades  a  des- 
cender de  sangue  azul...  Contra  isso  insurgi u-se  o  bardo 
bahiano  e  com  razão.  Na  poesia  Quem  sou  eu?,  que  tomou- 
popular  sob  o  iiiilt  A  Bodarrada,  escreveu  isto  : 

((  Se  negro  sou  ou  sou  bode, 
Pouco  importa.  O  (pie  isto  pôde?    . 
Bodes  ha  de  toda  a  casta, 
Pois  que  a  espécie  é  mui  vasta... 
Ha  cinzentos,  ha  rajados, 
Baios,  pampas  e  malhados, 
Bodes  negros,  bodes  brancos, 
E,  sejamos  todos  francos. 
Uns  plebeus  e  outros  nobres. 
Bodes  ricos,  bodes  pobres. 
Bodes  sábios,  importantes, 
E  também  alguns  tratantes... 
Aqui,  nesta  boa  terra. 
Marram  todos,  tudo  beria. 
Nobres  Condes  e  Duquezas, 
Ricas  Damas  e  Marquezas, 
Deputados,  Senadores, 
Gentis  homens,  vereadores ; 
Bellas  Damas  emproadas, 
De  nobreza  empantuíadas ; 
Repimpeulos  principotes. 
Orgulhosos  íidalgotes, 
Frades,  Bispos,  Cardeaes, 
Fanfarrões  imperiaes. 
Gentes  pobres,  nobres  gentes, 
Em  todos  ha  meus  parentes. 
Entre  a  brava  militança. 
Fulge  e  brilha  alta  bodança ; 
Guardas,  cabos,  furriéis. 
Brigadeiros,  coronéis, 


HI8T0BIA  DA  LITTB&ATUEA  BRABILSIBÁ  453 

Destemidos  marechaes, 
Rutilantes  generaes, 
Capitães  de  mar  e  guerra, 
—  Tudo  marrc^  tudo  berra. 
Na  suprema  eternidade, 
Obde  habita  a  Divindade, 
Bodes  ha  sanctiíicados, 
Que  por  nós  são  adorados. 
Entre  o  coro  dos  cmginhos 
Também  ha  muitos  bodinhos. 
O  amante  de  Syringa 
Tinha  pello  e  má  catinga ; 
O  deus  Mydas,  pelas  contas, 
Na  cabeça  tinha  pontas; 
Jove  quahdo  foi  menino, 
Chupitou  leite  caprino ; 
E,  segundo  o  antigo  mytho, 
Também  Fauno  foi  cabrito. 
Nos  dominios  de  Plutão, 
Guarda  um  bode  o  Alcorão  ; 
Nos  lundus  e  nas  modinhas 
São  cantadas  as  bodinhas. 
Pois,  se  todos  têm  rabicho. 
Para  que  tanto  capricho? 
Haja  paz,  haja  alegria, 
Folgue  e  brinque  a  bodaria ; 
Cesse,  pois,  a  matinada. 
Porque  tudo  é  bodarrada  I  »  (1) 


Comprehendamos  e  admitíamos  a  franqueza  de  Luiz  Gama ; 
ella  não  era  do  numero  d'aquelles,  que,  apezar  de  certos  acci- 
dentes  innegaveis  da  cõr  teimam  em  se  dizer  latinos,.. 

Se  na  própria  Europa  o  latinismo  iJe "certos  povos  não  passa 
de  um  simples  phenomeno  linguistico ;  se  tal  é  o  caso  dos  ro- 
maicos  que  são  slavos,  dos  hespanhóes  que  são  iberos,  dos 
portuguezes  que  o  são  tamJDem,  dos  francezes  que  são  celtas  ; 
se  os  legítimos  reporesentantes  ethnicoa  dos  latinos  são  em 
rigor  pura  e  simplesmente  os  ijalianos  do  centro,  qual  será  a 


(1)  Troeoê  Barleêcas,  pag.  141. 


454  HISTORIA  DA  LITTEBATURA  BRASILEIRA 

fracção  em  que  se  acha  entre  nós  representada  directamente 
aquella  valida  raça  ? 

Não  deixa  de  causar  certa  extranhesa  a  segurança,  a  ra- 
diante seriedade  com  que  diariamente,  por  exemplo,  jorna- 
listas, patentemente  oriundos  de  Índios  e  africanos,  dizem  : 
Nós  os  latinos,,. 

Temho  sérias  duvidas  sobre  essa  latinisação.  Deve  estar 
entre;  nós  na  decima  dynaminisaçá.o;  porquanlo  dos  ires  fa- 
ctores que  constituíram  este  povo,  dous  —  índios  e  africanos  -  - 
nada  tinham  evidentemente  de  latinos,  e  o  terceiro,  resultado 
complicadíssimo  da  uma  longa  evolução  ethnica,  terá  nas 
veias  um  décimo  talvez  de  sangue  romana.. 

A  íllusão  a  esta  respeito,  o  que  faz  suppôr  os  portuguezes 
descendentes  directos  do  antigo  povo  rei,  é  o  facto  de  falaram 
elles  em  idioma  novo-latino.  Mas  este  facto  histórico,  de  facil- 
líma  explicação,  é  de  nenhum  valor  em  ethnographia. 

A  população  portugueza  em  sua  base  fundamental  é  de  ibe- 
ros a  que  se  ligaram  ligures,  cedtas,  phenicios,  carthagineses, 
godos,  suevos,  árabes,  almohades,  almoravides,  mouros  de 
toda  a  casta,  sem  falar  de  escravoe  negros  e  indianos  que  se 
lhe  addicíonaram  em  tempo. 

Os  romanos  entraram  também  com  o  seu  contingente,  im- 
portantíssimo pelo  lado  cultural  e  insignificante  pelo  numero. 

Representam  talvez  menos  ainda  de  um  decima  da  popu- 
lação. Avalie-se,  á  luz  d'estes  factos,  qual  será  a  propcwrçâo 
do  latinismo  no  Brasil  (1).  Entretanto,  motivos  psychodo- 
gicos,  como  a  paixão  do  melhoramento,  levam-nos  a  acreditar 
n'uma  íllusão  ethnologica.  Isto  se  comprehende  e  é  até  descul- 
pável. 

E'  verdade,  porém,  por  outro  lado,  que,  em  rigor,  não  preci^ 
samos  da  quaesquer  enganos  n'este  sentido,  não  precisamos 
de  apadrínhar-nos  com  o  estreito  manto  do  velho  latinismo; 
porque  o  concurso  de  tão  diverscLs  raças  em  nossa  terra  vai-nos 
produzindo  uma  população  intelligente,  bella  e  valida,  tão 
digna  como  as  mais  dignas,  devendo  n'ena,  porem,  predo- 
minar o  elemento  branco  inicial,  o  portuguez. 

(1)  Poderá  esta  proporção  modificar-sei  se  tivermos  por  muitos  e  muitos 
annos  forte  immigraç&o  de  italianos  do  centro,  infelizmente  os  que  menos 
emigram ;  e  com  a  condição  de  se  deixorem  assimilar. 


HISTORIA  DA  LITTBBATURA  DRABILEIBA  455 

RozENDO  Moniz  Barretto  (1845-1897).  Não  foi  um  poda  de 
tão  elevado  estro  quanto  Pedro  Luiz  e  Fagundes  Varella ;  mas 
é  um  espirito  meritório. 

Era  filho  do  illustre  improvisador  Francisco  Moniz  Barretto 
e  irmão  do  notável  rabequista  Francisco  Moniz  Barretto  Filho. 

Nasceu  na  Bahia  em  1845  e  fez  alli  os  estudos  prepara- 
tórios, matriculando-se  na  faculdade  medica. 

Ainda  bem  joven,  começou  a  relacionar-se  com  o  cenáculo 
que  cercava  seu  pai,  ligando-se  mais  particularmente  a  Au- 
gusto de  Mendonça,  Agrário  de  Menezes  e  Alvares  da  Silva. 

Seguiu  para  a  companha  do  Paraguay  quando  ainda  cur- 
sava o  4.**  anno  medico.  De  volta  em  186»  prestou  os  exames 
flnaes  do  4."  5.®  e  B**  annos  académicos,  graduando-se  n'essa 
occasião. 

Seus  primeiros  ensaios  litterarios  sahiram  a  lume  na  Re- 
vista Académica  da  Bahia.. 

Publicou  as  seguintes  obras  :  O  Cólera  na  Campanha  (Thes© 
inaugural)  1868  :  Cantos  da  Aurora  (Poesias)  1868 ;  Voos  Ica- 
rios  (Poesias)  1873 ;  Favos  e  Travos^  (Romance)  1874  ;  A  Expo- 
sição Nacional  de  i875  (Relatório)  1876 ;  Progressos  do  Brasil 
durante  o  sectão  XVIII  (These  de  concurso)  1879  ;  Interpretação 
philosophica  dos  factos  históricos  (These  de  concurso)  1880 ; 
Preito  a  Camões  (Prosa  e  verso)  1880 ;  José  Maria  da  Silva 
Paranhos  (Elogio  histórico)  1884;  Moniz  Barretto  o  Repentista 
(Estudo)  1887,  Tributos  e  Crenças  (Poesias)  1890. 

Doestes  onze  Kvros  os  de  mais  vigor,  me  parece,  são  os  Can- 
tos da  Aurora^  os  Voos  Içarias^  o  Elogio  histórico  de  Paror 
nhos  e  o  Estudo  sobre  Moniz  Barretto.  Nos  dois  primeiros  Ro- 
zendo  ostenta-se  poeta  correcto  e  nos  dois  últimos  critico  ati- 
lado. 

O  escriptor  bahiano  foi  essencialmente  um  litterato,  no  sen- 
tido especial  que  particularmente  se  liga  a  esta  palavra.  Gos- 
tava das  artes  e  das  letras  por  ellas  mesmas,  sem  ambições  e 
sem  especialidades. 

Pela  simples  inspecção  dos  títulos  de  suas  obras,  vê-se  que 
elle  foi  um  espirito  voltejador,  que  parou  aqui  e  alli  por  neces- 
sidades de  momento.  Medicina,  industria,  artes,  historia,  phi- 
losophia,  politica,  poesia,  romance,  critica,  de  tudo  ha  um 


456  HISTORIA  DA  LITTBRATTTRA  BRASILEIRA 

pouco  alli.  Intelligente,  estudioso,  facilmente  assimilador,  o 
talento  d'este  prestimoso  bahiano  em  tudo  tocou  rápido  com 
certa  distincção. 

Se,  porémi,  edle  possuiu  alguma  nota  que  lhe  fosse  mais  pes- 
soal e  lhe  vibrasse  n'alma  com  maior  intensidade,  essa  fci 
certamente  a  poesia.  Leiam-se  os  seus  livros  de  versos ;  se  nem 
todas  as  composições  que  encerram  são  iguaJmente  perfeitas, 
elevadas,  distinctas,  entre  ellas  algumas  se  encontram  verda- 
deiramente bellas. 

Seu  estylo  poético  está  bem  representando,  no  que  elle  pos- 
súe  de  mais  selecto  nos  versos  intitulados  —  A  Captiva  de 
um  seio. 

Vem  nos  Voos  Icarios  e  sáo  em  estylo  lyrico.  Ouçam  cslc-s 
dos  Cantos  da  Aurora  nm  estylo  epico-lyrico ;  é  a  poesia  intitu- 
lada —  O  Génio  : 

(t  Que  força  és  tu  maravilhoso  agente 
De  creaçOes  divinas. 
Que  tens  no  craneo  luminosa  enchente 

Com  que  o  mundo  fascinas! 
Para  onde  vaes,  arauto  do  infinito, 
Que  os  séculos  attens  ao  curso  teu, 
Que  a  rigidez  convences  do  granito 
E  arrebatas  na  chispa  o  raio  ao  céo? 

Desmentldor  ovante  do  impossivel, 

Que  as  crenças  retemperas 

Das  idéas  na  fronte  enexhaurivel, 

Da  gloria  nas  espheras! 
D*onde  o  teu  ser  dimana,  antagonista 
Da  sorte  neste  humano  tremedal! 
D'onde  tiraste  o  sol  que  tens  na  vista! 
Como  serves  ao  bem  no  próprio  mal! 

Bem  vejo  —  em  ti  —  que  no  fulgor  do  Empyreo 

O  átomo  animou-se; 
Que  de  Satan,  motor  do  teu  martyrio, 

A  inveja  originou-se. 
Baixaste  á  terra  e,  respeitando  as  raias 
Dos  dominios  guardados  pela  fé, 
Disseste  ao  throno  da  razão;  —  NSo  caias.  — 
E  o  throno  da  raz&o  ficou  de  pé. 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATimA  BBASILBIBA  457 

De  pego  em  pego  resvalando  incerta, 

Que  fora  a  humanidade, 
Se  o  teu  animOf  aos  erros  sempre  alerta, 

Nâo  guiasse  á  verdade? 
No  prophetico  verbo  de  Izaias 
Dos  tyrannos  zombastes,  arma  de  Deus, 
£  a  vinda  predisseste  do  Messias, 
Calcando  as  fúrias  de  hórridos  atheus. 

Ao  tempo  que  apagar  quiz  as  idéas 

Heróicas,  —  torvo  e  fero 
Contrapuzeste  a  voz  das  epopéas 

Na  trombeta  de  Homero. 
Vendo  uma  geraç&o  oppressa,  á  mingua 
De  bens,  que  o  despotismo  lhe  usurpou, 
Da  eloquência  divina  ungiste  a  lingua 
E  com  ella  Demosthenes  falou. 

Nas  almas,  contra  o  negro  scepticismo, 

Com  Sócrates  entraste; 
Do  corpo  contra  os  males  o  aphorísmo 

De  Hyppocrates  guardaste. 
Âo  pensamento  dando  leis,  no  erróneo 
Caminho  que  ao  teu  methodo  se  oppoz. 
Mais  forte  que  o  poder  do  Macedónio, 
Os  evos  Aristóteles  transpoz. 

Ao  contemplar  o  Homem  do  Calvário 

Abraçaste  o  Evangelho. 
Entre  os'  bárbaros,  martyr  solitário, 

Foste  do  Christo  o  espelho. 
Os  gemidos  do  Golgotha  acolhendo. 
Quando  espirava  o  Filho  de  Jehová, 
Entregaste  ao  porvir  o  crime  horrendo 
E  aos  mortos  prometteste  Josaphat. 

Quando  pensava  o  mundo  que  o  teu  sólio 

Era  feito  em  pedaços, 
TriumphantB  ascendeste  ao  capitólio 

E  á  fama  abriste  os  braços. 
Aos  pósteros  mostrando  a  Grécia  e  o  Lacio, 
De  Itália  ergueste,  em  cultos  festivaes, 
Eschylo,  Juvenal,  Phidias,  Horácio, 
A*s  aras  de  oblações  uhiversaes. 


458  HISTORIA  DA  LITTBRATtTBA  BRASILEIRA 

De  iodos  esses  cérebros  de  fogo, 

Fundidos  n'um  instante, 
Vasaste  a  essência,  que  inflammou-se  logo 

Na  cabeça  do  Dante. 
Daquelle  craneo,  cheio  de  prodigios, 
A  transcender  dos  orbes  a  amplidão, 
Miraste  o  inferno  que  deixou  vestígios 
Em  versos  de  volcanica  impressão. 

Depois  que  assim  cahtaste  ampla  victoria 

Pelo  estro  mais  intenso, 
Subiste,  enchendo  o  Pantheon  da  historia. 

Neste  mosaico  immenso. 
Ao  theatro  Shakespeare,  á  esculptura 
Miguel  Angelo,  á  musica  Mozart, 
Kant  á  critica^  Rubens  á  pintura. 
Newton  aos  astros  e  Colombo  ao  mar. 

Ao  troar  do  canhão,  que  acende  a  guerra 

Em  fogo  sempre  novo. 
Impondo  um  Bonaparte  aos  reis  da  terra, 

Enthronizaste  o  povo. 
Águia,  illesa  entre  nuvens  de  metralha, 
Feriu-te  as  pandas  azas  Waterloo, 
Mas  os  trophéus  do  génio  da  batalha 
De  Guttenberg  a  filha  registrou. 

Nessa  invenção  pasmosa,  que  te  entrega 

A's  bençáos  do  vindouro, 
Descança,  que  jamais  ella  te  nega 

Ante  os  Ídolos  de  ouro, 
Coroado  deis  folhas  do  loureiro 
Que  offusca  os  ouropéis  de  mil  brazões. 
Sobrevives  a  escravos  do  dinheiro 
Que  atiraram-te  ao  mérito  baldões. 

Entranhe-se  comtigo  o  pensamento 

Nos  abysmos  mais  fundos. 
Sondando  o  mar  de  luz  do  firmamento 

Nos  enxames  de  mundos. 
Da  natureza,  a  ohrir-te  o  almo  regaço, 
Vô-se  pela  arte  retribues  o  ardor. 
Tu,  que  já  tens  contra  o  poder  do  espaço 
A  bússola,  o  telegrapho,  o  vapor. 


. 


HISTOBIA  BA  LITTBSATURA  BRASILEIRA  459 

Em  ti  se  ostente,  divinal  columna, 

A  inspiração  que  ensina 
Nos  certames  da  imprensa  e  da  tribuna. 

Na  escola  e  ha  ofíicina. 
Suppressor  du  tyrannica  distancia, 
Terás  sempre  a  energia  que  destróe 
No  espirito  a  barreira  ignorância 
£  na  matéria  os  óbices  do  heróe. 

Gloria  ao  trabalho,  em  que  tens  nobre  accesso. 

Em  prol  da  humanidade, 
Para  afíirmar  conquistas  do  progresso 

No  amor  da  liberdade! 
Mas,  propulsor  da  industria  e  da  sciencia, 
Em  mil  veredaà  que  lhe  vaes  abrir, 
Por  mais  que  o  fim  procures  da  existência. 
Tua  origem  háo  negues  ao  porvir. 

Génio!  Génio!  que  a  mente  humana  excedes 

Em  miriflco  arroubo, 
Queres  ter  a  alavanca  de  Archimedes 

E  deslocar  o  globo?! 
Has  de  tombar,  quando  te  falte  o  apoio 
Que  os  orbes  equilibra  na  amplidão ; 
Has  de  sumir-te,  qual  se  perde  o  arroio 
Neis  aguas  de  oceânica  invasão. 

Então,  quando  o  império  teu  desabe, 

Com  que  tanto  fulgiste. 
Dirás  ao  mundo,  a  quem  teu  íim  não  cabe. 

Que  só  por  Deus  cahiste, 
E  trahsformado  em  astro,  para  ao  manto 
Do  firmamento  addir  mais  esplendor, 
Has-de  ser  sempre  o  élo  sacrosanto 
Que  prenda  a  creatura  ao  Creador.  » 

Os  dois  livros  onde  revelou  qualidades  de  critico  são,  como 
eu  mesmo  já  disse,  a  Elogio  de  Rio  Branco  e  o  Estudo  sobre 
Moniz  Barretto. 

O  primeiro  é  um  trabalho  de  momento  em  forma  oratória, 
no  estylo  apologético  dos  escriptos  do  género ;  é  um  elogio 
académico.  Contém  bellas  paginas  e  acertadas  ponderações. 


460  HISTORIA  DA  LITTIBATUBA  BRASILEIRA 

A  obra  sobre  a  repentista  Moniz  Barretto  é  um  bom  e  inte- 
peissante  livro  sobre  o  vate  bahiano  e  a  litteratura  de  seu 
tempo. 

E'  trabalho  documentado  sobre  o  movimento  litterario  da 
Bahia  entre  os  annos  de  1830  a  1870.  Com  tratar  de  seu  pai, 
por  quem  Unha  veirdadeira  e  fundada  admirado,  o  auctor  nâo 
dascae  no  elog^io  banal  e  impertinente. 

Ha  no  estudo  uma  certa  objectividade,  como  dizem  os  alle- 
mães,  que  o  preserva  da  futilidiade  encomiástica. 

O  estylo  do  escriptor  exhibe-se  bem  no  seguinte  pedaço, 
descriptivo  dos  f esteios  do  dia  2  de  julho  na  Bahia.  E'  isto  : 

a  A  Grécia  antiga,  que  encheu  os  poemas  de  Homero  e  os  dramas 
de  Eschylo,  preparava,  á  sombra  da  paz,  os  seus  guerreiros  nos 
jogos  olympicos. 

O  cavalleirismo  da  idade  média,  com  sua  divisa  —  Deus,  pátria  e 
damas  —  tanto  se  recommenda  nos  bellicos  arrojos  de  cruzadas  a 
Jerusalém,  quanto  no  delírio  festival  dos  paladinos  em  justas  e  tor- 
neios de  Hespanha. 

Actualmente  as  exposições  internacionaes,  sobrelevando  a  todos 
os  manifestos  da  civílisaç&o  antiga  e  medieva,  synthetisam,  em 
festas  do  trabalho,  em  ceríamens  da  industria,  os  progressos  do 
homem  na  eterna  luta  do  espirito  com  a  matéria. 

Guardadas  as  proporções,  não  era  mehos  edificante,  expressivo  e 
fecutido,  em  dias  de  prosperidade,  o  povo  bahiano  patriocamente 
absorto,  para  incentivo  próprio  e  exemplo  aos  vindouros,  na  com- 
memoração  jubilosa  do  seu  inolvidável  2  de  julho. 

Imagine-sc  uma  combinação  maravilhosa  de  flores,  luzes,  bandei- 
ras, insígnias,  emblemas  e  divisas  de  todos  as  cores,  h'uma  columna 
de  numerosos  batalhões  patrióticos,  perfeitamente  uniformisados 
e  desfilando  em  marcha  tríumphal  até  o  ponto  objectivo  ;  imagine-se 
uma  jovialissíma  convivência  de  parentes  e  amigos,  com  todos  os 
attractivos  de  confortável  saráo,  em  cada  habitação  por  onde  pas- 
sava o  deslumbrante  préstito,  atravez  de  alguns  kilometros ;  ima- 
gine-se o  inexprimível  conjunto  de  girandolas,  fogos  cambiantes, 
hymnos  marciaes,  palmas  e  vivas  esirepilosos  a  discursos  e  versos 
que  acendiam  a  chamma  do  patriotismo  em  mais  de  cem  mil  almas. 
Acima  de  tudo  isto  imagine-se  a  alacriade  popular  a  transluzir, 
durante  uma  semana,  em  todos  os  semblantes,  sem  distincção  de 
sexos,  idades,  raças,  condições  e  classes,  identificados  em  hcxura  da 
pátria,  influídos  por  um  só  desejo  —  o  de  folgarem  até  o  derradeiro 


HI8T0BIA  DA  LITTERATUBA  BRA8ILBIBA  461 

instante  do  incomparável  dia  2  de  julho,  que  aliás  durava  muitos 
dias,  reproduzindo-se  os  festejos,  em  miniatura,  por  alguns  aiTa- 
baldes  e  cidades  da  provincia. 

Lia-se  a  faustissima  data  ao  lo'ngo  das  ruas,  no  meio  das  praças, 
em  palácios  e  tugúrios,  no  templo  e  no  theatro,  na  escola  e  na  oííi* 
ciua,  em  claustros  e  fortalezas,  nos  hospitaes  e  nos  quartéis,  em  far- 
das bordadas  e  vestidos  de  seda,  em  blusas  e  casaceis,  por  sobre  a 
cabeça  e  o  coração  de  patriotas  a  festejarem  o  2  de  julho. 

Na  cidade  de  S,  Salvador,  a  3  de  maio,  começavam,  media;  i  te  uma 
associaç&o  composta,  de  cidadãos  distinctos,  os  aprestos  para  o  vis- 
toso palanque,  artisticamente  destinado  a  servir  de  recept€u:ulo  dos 
emblemas  da  emancipação,  isto  é,  dous  grandes  carros  onde  se 
fixavam  as  garbosas  figuras  de  um  caboclo  e  sua  companheira  sup- 
plantando  o  despotismo  em  forma  de  dragão. 

Durante  dous  mezes  preparavam-se  clero,  nobreza  e  povo  com  as 
mesmas  previsões  de  quem  resolve  uma  viagem  ã  roda  do  mundo. 
Taes  preparativos,  ás  vezes,  denunciados  por  falsos  boatos,  mor- 
mente quando  a  situação  era  dos  conservadores,  obrigavam  o  presi- 
dente da  provincia  a  requisitar  do  governo  geral  mais  força  de  linha, 
com  receio  da  alteração  da  ordem  publica.  Gratuitas  apprehensões 
da  politica,  inteiramente  desmentidas  pela  Índole  pacifica  e  ordeira 
de  povo  bahiano. 

Três  dias  antes  de  raiar  a  tão  auspiciosa  aurora,  um  bando  de  cen- 
tenas de  cavalleiros  e  milhares  de  peões,  mascarados  e  vestidos 
phantasticamente,  percorria  as  ruas  principaes  da  cidade  alta,  dis- 
tribuindo em  avulsos  e  apregoando  em  verso  o  programma  da  solem- 
nisação. 

Os  estudantes  de  medicin8^  os  alumnos  do  lyceu  e  de  collegios 
particulares,  os  lavradores,  os  caixeiros  naciohaes,  os  jornalistas  e 
os  typographos,  os  artistas,  os  artífices  e  até  a  puerícia  escolar, 
alistavam-se,  constituindo  regimentos  e  batalhões,  devidamente 
organizados,  com  os  seus  distinctivos.  patentes,  direitos  de  prece- 
dência e  recursos  pecuniários  para  músicos,  archotes  e  despezas 
eventuaes. 

Dessas  legiões  de  pcúsanos  sahiram  briosos  voluntários  para  a 
campanha  do  Paraguay,  onde  ganharam  a  victoria  ou  perderam  a 
vida  em  holocausto  ao  desaggravo  da  pátria. 

A*  noite  de  1  de  julho  formava,  em  ordem  de  marcha,  qued  se  fosse 
um  corpo  de  exercito,  a  enorme  columna,  subdividida  em  brigadas, 
sob  a  direcção  de  verdadeiros  militares,  taes  como  o  marechal  Luiz 
da  Fraiiça,  os  brigadeiros  Favilla,  Evaristo  Ladisláo  e  Faria  Rocha, 
os  coronéis  Marcolino  Moura  e  Manoel  Jeronymo,  sendo  o  coui^ 


462  HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

mando  chefe,  algumas  vezes,  assumido  por  cidadãos  de  maior  in- 
fluencia na  occasião,  como  por  exemplo,  em  1874,  o  conselheiro  Dan- 
tas. 

Chegados  ao  largo  da  Lapinha,  quasi  ao  alvorecer  do  incompará- 
vel dia,  e  depois  de  um  trajecto  de  muitas  horas,  as  phalajiges  patrió- 
ticas, tendo  á  frente  os  restantes  veteranos  da  Independência,  ves- 
tidos como  outr'ora  durante  a  campanha,  e  perfilados  em  torno  da 
bandeira  vetusta,  reliquia  de  Pirajá,  ajuntavam-se  á  guarda  nacio- 
nal e  á  tropa  de  linha,  resplendentes  em  seus  uniformes,  guarne- 
cidos de  folhas  auri-verdes. 

Ao  restrugir  dos  clarins,  tambores,  bandas  militares  e  foguetes, 
movia-se  o  préstito  entre  alas  compactas  de  povo  apinhado  nas 
ruas  e  sob  a^  acclamações  de  galantes  senhoras,  que  engrinal- 
davam as  janellas  colgadas  de  seda  e  damasco.  Assim  eram  condu- 
zidos á  mdo  os  dous  carros  symbolicos,  chegando,  ás  2  horas  da 
tarde,  ao  terreiro  de  Jesus,  onde  entravam  como,  em  1823,  o  exer- 
cito emancipador,  quando  as  forças  lusitanas,  commemdadas  pelo 
general  Madeira,  desoccuparam  a  leal  e  valorosa  cidade. 

Não  era  mais  imponente  a  entrada  triumphal  dos  heróes  gregos 
e  romanos,  em  regresso  de  suas  cruentas  victorias  na  Ásia  e  na 
Africa. 

Que  indiscriptivel  e  magestoso  enthusiasmo  no  auge  do  delirio, 
em  toda  aquella  catadupa  de  gente  a  reluzir,  a  ferver,  a  redemoinhar 
sob  chuva  de  flores  e  poesias  em  avulsos,  acenos  de  chapèos  e  len- 
ços, explosões  de  vivas  e  baterias  de  palmas!  Entoados,  depois,  os 
cânticos  religiosos,  atroavam  canhões  e  fuzis  nas  descargas  que 
respondiam  em  continência  ao  solemne  Te-Deum^  celebrado  em 
acção  de  graças  no  vasto  recinto  da  cathedral! 

Quasi  ao  cahir  da  noite  desfilava  a  tropa  em  cortejo  á  effigie  do 
imperante  e  dos  obreiros  da  Independência. 

Estrangeiros  recemviíidos  pasmavam,  deslumbrados  ante  o  ma- 
gnético effeito  daquelle  imprevisto  quadro,  digno  de  perpetuar-se 
em  telas  de  Salvator  Rosa  e  paginas  de  Victor  Hugo. 

Dir-se-hia  que  a  natureza  e  a  arte  combinavam-se  em  seus 
melhores  productos  para  condignamente  solemnisar-se  o  dia  dos 
bravos  no  limpido  azul  do  céo,  no  máximo  fulgor  do  sol,  na  supera- 
bundância e  no  viço  das  flores,  nos  trajos  do  bello-sexo,  no  garbo  e 
no  lustre  da  tropa  em  grande  parada,  nos  trophéos  de  armas  emmol- 
durando  efflgies  de  heróes,  'nas  bandeiras  galhardamente  desfral- 
dadas, na  repercussão  dos  hymnos  marciaes,  desferidos  aos  quatro 
ventos,  nas  salvas  de  artilheria  a  responder  pelo  mar,  nas  expan- 


HI8T0BIA  DA  LITTBBATUKA  B&A8ILBIRA  463 

Soes,  em  summa,  da  alma  publica,  tributaria  das  glorias  avitas, 
guardadas  pelo  amor  da  pátria  »  (1). 

E  foi  n'um  meia  d'esses  que  sa  desenvolveu  o  talesnto  po^ 
tico  do  celebrado  repentista ;  e  fod  adli  que  a  scentedha  sa- 
grada despertou  o  talento  do  filho,  comimiunicando-lhd  esse 
enthusiasmo,  essa  confiança,  essa  temerosa  impavidez,  que 
lhe  serviram  de  ampara  no  meio  das  crudelissimas  injustiças, 
que  o  assaltaram  constantemente  da  parte  de  mequinhos  de- 
tractores... 


Não  ultimo  este  capitulo  sem  lembrar  os  nomes  de  Luiz  José 
Pereira  da  Silva  (2),  Fe»rreira  de  Menezes,  Octaviano  Hudson  e 
Augusto  Bmiilio  ZaJuar. 

Este  ultimo  era  portuguez  abrasileirado  e  tem  direito  a  figu- 
rar em  nossa  historia  litterarie^  porque  intellectualmente  fcH 
producçâo  doeste  paiz. 

Não  assim  José  Feliciano  de  Castilho  e  Faustino  Xavier  de 
Novaes,  transplantados  {vara  cá  em  idadie  madura,  já  feitos 
espiritualmente. 


CAPITULO  VI 
Poesia.  —  Sexta  e  ultima  phase  do  romantismo 


Vae-se  agora  assistir  á  dissolução  do  romantismo  na  poesia 
brasileira.  A  ultima  escola  poética  de  valor  formada  dentro 
do  circulo  da  romântica  entre  nós  íoi  a  escola  do  Recife, 

(1)  Monia  Barretto,  pag.  91  e  seguintes, 

(2)  NAo  confundir  com  o  Conselheiro  Joáo  Manoel  Pereira  da  Silva,  o 
velho  auctor  doa  Varões  lUiatrei  do  Broêil  e  de  muitas  outras  obras. 


464  HISTOBIA  DA  LITTEBATT7BA  BSAStLEIRA 

conhecida  sob  a  denominação  de  escola  condoreira.  Já  me 
tenho  referido  a  ella  por  diversas  vezes. 

Foi  sob  a  égide  de  Victor  Hugo  que  o  movimento  condo- 
reiro  se  iniciara ;  mas  esta  circumstancia,  verdadeira  até 
certo  ponto,  deve  ser  limitada  em  mais  de  um  sentido. 

Os  nossos  poetas,  tomando  algumas  tintas  á  paleta  hugo- 
niana,  nâo  insufflaram  de  todo  em  seus  cantos  outra  vidfi, 
deram  apenas  outra  roupagem  ás  suas  próprias  ideias. 

A  influencia  de  Hugo  foi  mais  exterior  e  occasional,  do  que 
orgânica  e  fundamental ;  simples  questão  de  forma,  de  mor- 
phologia  poética. 

Como  quer  que  seja,  porém,  a  Victor  Hugo  estava  reservada 
a  missão  de  fechar  o  romantismo  no  mundo  actual.  Não  só 
todos  os  seus  antigos  companheiros  e  emulos  tinham  já 
desappcu^ecido  da  scena  quando  elle  morreu,  como  era  elle 
o  único  poeta  que  ainda  ousava  empregar  o  primitivo  eslylo, 
e  sahir  á  rua  com  o  velho  manto  da  escola.  Também  entre 
nós  a  ultima  phase  do  romantismo  foi  cheia,  mais  ou  menos, 
com  a  acção  do  poeta  das  Contemplações. 

Os  momentos  anteriores  pertenceram  a  outros ;  Ghateau- 
briand,  Lamartine,  Byron,  Musset,  e  o  próprio  Beranger, 
tiveram  cada  um  a  sua  hora  de  acção.  Victor  Hugo  teve  a 
ultima  e  em  certo  sentido  a  mais  brilhante. 

Influenciados  por  elle  já  se  viu  que  foram  José  Bonifácio 
de  Andrada,  Pedro  Luiz  e  Luiz  Delfino  (1).  Influenciados  por 
elle  foram,  como  se  vae  vêr,  Tobias  Barretto,  Castro  Alves, 
Victoriano  Falhares,  Guimarães  Júnior,  e  aJguns  outros 
illustres  poetas  nacionaes. 

Vamo-nos,  pois,  leitor,  transportar  á  bella  cidade,  a  grande 
capital  do  norte,  para  assistir  alli  ao  desabrochar  e  ao  desen- 
volvimento da  poesia  e  das  letras  nos  derradeiros  quarenta 
annos.  O  que  eu  aqui  chamo  a  escola  litteraria  do  Recife, 
como  já  falei  em  escola  bahiaiia,  escola  mineira^  escola  flu- 
minense, escola  paulista,  escola  maranhense,  tem  atravessado 
três  phases  bem  caracterisadas. 

(1)  Por  considerações  de  methodo  deixei  este  poeta  para  ser  estudado  em 
um  capitulo  subsequente  deste  livro. 


HI8T0BIA  DA  UTTS&iLTUSA  BSÂBILEIBA  465 

A  primeira  épocha,  puramente  poética  e  ainda  exercida  sob 
a  influencia  do  romantismo,  iniciou-se  nos  fins  de  1862  e 
princípios  de  1863  e  chegou  até  1870. 

Foi  o  tempo  do  hugoanismo  da  forma,  do  condorei^smo 
do  estro  sobre  uma  poesia  patriótica  e  socialistica  em  suas 
melhores  manifestações,  a  epocha  de  Tobias,  Castro  Alves, 
Falhares,  Luiz  Guimarães,  Plinio  de  Lima,  José  Jorge,  que 
formaram  a  plêiada  hugoniana. 

Carneiro  Vilella,  Santa  Helena  Magno,  Eduardo  de  Car- 
valho reagiram,  conservando  as  tendências  lamartinianae. 
Franklin  Távora  e  Araripe  Júnior,  ainda  sob  a  influencia 
de  Gonçalves  Dias  e  Alencar,  começavam  a  dedicar-se  m 
romance. 

Souza  Pinto  e  Generino  dos  Santos,  ainda  estreiantes,  va- 
cinavam incertos. 

A  segunda  phase  correu  de  1870  a  1877  ou  78.  Começaram 
as  reacções  da  critica  em  face  do  romantismo  em  geral. 

O  auctor  Teste  livro  em  quatro  artigos  successivos  em 
1870,  para  só  falar  d'este  anno,  atacou  o  sentimentalismo 
exaggerado  e  o  indianismo  decrépito  dos  Harpejos  Poéticos 
de  Santa  Helena  Magno,  o  hugoanismo  retumbante  das  Es- 
pumas Fluctuantes  de  Castro  Alves,  o  lyrismo  subiectivista, 
o  humorismo  pretencioso  das  Phalenas  de  Machado  de  Assis, 
e  a  defesa  que  das  velhas  ideias  fizera  Quintiliano  da  Silva, 
um  moço  de  grande  talento  e  má  intuição.  Começou  então 
uma  grande  fermentação  de  ideias,  alimentada  pela  curio- 
sidade e  pela  sôde  de  saber  de  Celso  de  Magalhães,  Souza 
Pinto,  Generino  dos  Santos,  Inglez  de  Souza,  Clementino 
Lisboa,  Lagos,  Justiniano  de  Mello  e  muitos  outros.  Tobias 

foi  também  do  numero  dos  reactores. 

A  poesia  se  transformou  e  a  critica  exerceu-se  em  larga 
escala.  A  terceira  phase  vem  de  1878  ou  1879  e  continua  ainda 
nos  diaes  actuaes.  A  critica  e  os  estudos  jiiridicos  e  sociaes 
tomam  a  dianteira  á  poesia,  que  mostra  também  feições  mais 
severas. 

E'  o  tempo  dos  moços  Clóvis  Beviláqua,  Annibal  Falcão, 
Arthur  Orlando,  Martins  Júnior,  Alvares  da  Costa,  João 
Freitas,  Virgílio  Brigido,  a  que  se  devem  juntar  os  nomes 

HISTORIA  11  30 


> 


466 


HIBTOBIA  DA  LITTIBATITAA  BRASILEIRA 


de  tres  lentes  da  Faculdade  jurídica  :  Tobias,  que  nunca  mai^ 
sahíu  de  Pernambuco,  onde  ficou  sempre  a  luctar,  José 
Hygino,  o  illustrado  jurista  e  pesquizador  da  historia  pátria, 
e  Jo^o  Vieira,  celebre  criminalista. 

Tal  é  em  rápido  escorço  a  successão  dos  momentos  diver- 
sos da  escola  litteraria  de  Pernambuco. 

Só  o  primeiro  tempo  entra  no  plano  d'este  volume ;  o  se- 
gundo e  o  terceiro  deverão  apparecer  no  volume  subsequente. 

Nos  successos  que  vou  narrar  pôde  ser  que  entre  os  nomes 
dos  obreiros,  que  enlâo  tanto  trabalharam  por  dar  lustre  a 
este  paiz,  haja  uma  vez  por  outra  de  apparecer  o  meu  cen- 
surado nome. 

Podel-o-ia  calar,  mas  não  o  farei,  não  por  vaidade,  que 
não  tenho,  sim  em  resposta  indispensável  a  uma  critica  que 
me  não  dá  tregoas,  que  se  gloria  de  atacar-me. 

O  ódio  que  me  vota  é  em  grande  parte  oriundo  da  justâça 
que  tenho  ousado  fazer  a  illustres  escriptores  das  provindas 
que  ella,  a  critica  mesquinha,  quizera  sempre  conservar 
em   completa  obscuridade,   e  não  poude ;   porque  eu   não 

deixei !... 

Peço  desculpas  ao  leitor  imparcial  e  recommendo-lhe  a 
maior  attenção  aos  documentos  que  terei  de  adduzir  sobre 
mim  e  sobre  os  meus  companheiros  da  escola  de  Pernam- 
buco (1). 

(1)  Para  calar  a  critica  dou  aqui  uma  lista  dos  principaes  artigos  com 
que  contribui  de  1870  a  1873  para  a  morte  do  romantismo  e  propaganda  de 
novos  ideiaes :' 

!.•  A  Poesia  dos  Harpajos  Poéticos,  preparado  em  novembro  de  1869  e 
publicado  no  periódico  intitulado  Crença  no  Recife,  em  abril  de  1870.  N'esta 
critica  ao  livro  de  Santa  Helena  Magno  apresentava  pela  vez  primeira  a 
idéa  da  poesia  fundada  no  criticismo  contemporâneo,  e  combatia,  consequên- 
cia lógica,  o  romantismo  choroso  e  o  indianismo  brasileiro. 

2,*  O  que  entendemos  por  poesia  critica,  e  duas  Cartas  a  Manoel  Quía- 
tiliano  da  Silca,  publicado  tudo  em  abril  e  maio,  de  1870,  na  Crença^  fir- 
mando as  mesmas  idéas,  no  primeiro  enunciadas. 

(3).*  A  Poesia  das  Phalenas  —  na  Crença,  de  30  de  maio  do  mesmo 
anno.  N'esta  critica  ao  livro  de  Machado  de  Assis  eram  combatidos  o  sen 
lyrismo  subjectioista  e  o  seu  humorismo  prclcncioso. 

4.*  A  Poesia  das  Espumas  Fluctuantes.  A  critica  ao  illustre  Castro  Alves, 
então  ainda  vivo,  atacava  sobre  tudo  as  imita(;ões  directas  de  Victor  Hago 
feitas  pelo  poeta.  No  Americano  do  Recife,  em  setembro  de  1870. 

5.*   Systenia  das    Contradicções  Poéticas,    pix>vando  a  extenuação   já 


HISTOBIA  DA  LITT8&ATUBA  BBA8ILBIBA  467 

Antes  de  entrar  na  caracterisação  directa  e  especialisada 
dos  typos  que  figuraram  no  período  que  ora  historio,  é  mister 
àax  aqui  ainda  uma  ou  duas  paginas  de  syntheee  geral  sobre 
o  movimento  de  Pernambuco. 

De  todo9  os  centros  intellectuaes  do  Brstsil,  se  é  que  neste 
paiz  os  ha  bem  caracterisados,  a  cidade  do  Recife,  nos 
últimos  quarenta  annos  do  século  XIX,  foi  o  que  levou  a 
palma  aos  outros  na  iniciativa  das  idéas. 

Desde  logo  cumpre-me  avisar  ao  meu  leitor  que  eu  n&o 
sou  pernambucano,  nem  quero  ter  em  mui  exagerada  conta 

adiantada  das  differentes  doutrinas  de  poesia,  que  haviam  figurado  na  his- 
toria litteraria  do  XIX  século.  Correio  Pernambucano  em  1871. 

6.*  A  Poesia  e  o#  nossoê  Poetas^  combatendo  o  romantismo  religioso  de 
Gonçalves  de  Malgalhães  e  o  gentilismo  de  Gonçalves  Dias,  no  Correio 
Pernambucano  em  1871. 

7.*  A  propósito  de  um  Livro^  critica  das  Peregrinas  de  Victoriano  Fal- 
hares, cm  Junho  de  1871  no  Diário  de  Pernambuco^  combatendo  a  poesia 
chula  de  recitações  em  theatros  e  salas,  e  defendendo  contra  Ed.  Scherer  o 
lyrismo  impessoal,  distincto  do  lyrismo  indioidualista^ 

8.*  Uma  pagina  sobre  Litteratura  Nacional^  no  Mooimento  do  Recife, 
de  15  de  maio  de  1872,  estudando  a  influencia  do  meio  e  da  raça  sobre  o 
espirito  brasileiro* 

9.*  Realismo  e  ideialismo,  no  Movimento  de  23  de  maio  de  1872. 

10*  As  Legendas  e  as  Epopéa^,  no  mesmo  jornal  e  anno. 

11. •  A  Poesia  e  a  Religião,  O  Maraoilhoso,  idem,  idem. 

12.*  A  Poesia  e  a  Seiencia,  ibid.,  idem,  Todos  no  mesmo  espirito,  com- 
batendo velhos  erros  e  reformas  pouco  firmes. 

13.*  Camões  e  os  Lusíadas,  no  Diário  de  Pernambuco  de  meiados  de 
1872,  sobre  o  prefacio  do  Uvro  de  Joaquim  Nabuco.  Agitava^se  de  novo  a 
questão  do  indianismo. 

14.*  A  Rotina  Litteraria,  no  Jornal  do  Recife  cm  1872.  Synthese  das 
direcções  erróneas  da  litteratura  brasileira  no  século  XIX. 

15.*  Um  artigo  apreciativo  das  Cartas  de  Sempronio  a  Cincinnato  contra 
Senio,  no  Diário  de  Pernambuco  de  fins  de  1872.  Batia  com  inteira  inde- 
pendência os  três  combatentes  igualmente. 

16.*  Uns  Versos  de  Moça,  a  propósito  das  Nebulosa*  da  Sra*  Narcisa 
Amália,  na  Republica  do  Rio  de  Janeiro  em  1873.  Tratava-se  do  papel  da 
alegria  e  da  tristes  a  na  poesia. 

17.*  A  Critica  Litteraria,  em  julho  de  1873  no  Liberal  do  Recife.  Defen- 
díam-se  algumas  idéas  do  autor  contra  uma  critica  villan. 

18.*  O  Romantismo  no  Brasil,  no  Trabalho  do  Recife,  em  abril,  maio, 
junho  e  julho  de  1873.  Combatia-se  o  decrépito  systema. 

19.*  Uma  these  sobre  Económica  Politica  apresentada  ao  lente  d'aquella 
matéria  na  Faculdade  de  Direito  do  Recife,  em  setembro  de  1873.  AvaUava- 
se  do  volor  do  socialismo  contra  a  economia  politica,  da  critica  religiosa 
contra  a  theologia  medieval,  e  do  positivismo  contra  a  metaphysica. 


^    17,  «*^ 


468  HI8TOBIA  DÁ  LITTEBATURA  SBASILBISA 

O  ultimo  movimento  espiritual  alli  provocado,  como  também 
não  aprecio  largamente  a  tão  decantada  aptidão  da  grande 
província  do  norte  para  as  lides  das  idéas  livres,  com  suas 
três  e  tâo  mal  apreciadas  revoluções  do  xix  século.  Nem  17, 
24  e  48  me  prendem  com  força,  nem  é  para  decantar  taes 
factos  que  movo  agora  a  penna. 

Mina  pretenção  é  mais  modesta,  visa  á  epocha  recente  e 
a  idéas  de  natureza  muito  diversa.  O  movimento  a  que  me 
refiro  teve  por  factores  individues  pela  mór  parte  extranhos 
áquella  terra,  e  só  alli  nasceu  pelo  facto,  quasi  accidentaU  de 
terem  elles  ido  lá  fazer  o  seu  curso  académico. 

A  gloria,  pois,  que  de  tal  facto  possa  advir  a  Pernambuco 
é  puramente  reflexa ;  mas  não  é  menos  verdade  que  foi  na 
bella  Veneza  transplantada,  para  repetir  a  velha  phrase  do 
poeta,  que  as  cousas  se  passaram. 

A  meia  dúzia  de  idéas  mais  estimáveis,  que  em  outros 
pontos  do  paiz,  como  S.  Luiz,  Bahia,  Rio  de  Janeiro,  S.  Paulo 
e  Porto  Alegre,  tem  vindo  nos  últimos  tempos  a  agitar  na  es 
phera  litteraria  os  espirites,  desde  1862  que  no  Recife  come- 
çaram a  vir  á  luz,  e  a  prosperar  no  jornahsmo. 

O  terreno  revolvido,  a  sciencia,  a  critica,  a  poesia,  o  foi 
ali  largamente,  tanto  quanto  na  Brasil  isto  podia  acontecer. 
Uma  fatalidade,  que  se  prende  de  um  lado  ao  desprezo  da 
capital  para  com  a  imprensa  provinciana,  e,  de  outro,  á  po- 
sição pouco  vantajosa  dos  trabalhadores  de  que  se  vai  falar, 
é  a  razão  explicativa  de  terem  ficado  elles  quasi  ignorados. 

Devo  começar  pela  poesia. 

A  primeira  phase  das  lutas  que  tenho  de  rapidamente  his- 
toriar foi  a  da  formação  da  escola  nacional,  que  arvorou  a 
bandeira  pantheistica  e  revolucionaria  de  Victor  Hugo,  com 
seu  estylo  forte  e  rutilante. 

Seu  chefe  ali  foi  Tobias  Barretto  de  Menezes,  que  levou  o 
systema  preparado  de  Sergipe,  sua  pátria,  onde  o  cultivava 
desde  annos  antes. 

O  joven  poeta  aportou  em  Pernambuco  em  fins  de  1862. 
Desde  então,  sua  voz  se  fez  ouvir,  e  em  torno  delle  grupa- 
ram-se  muitos  enthusiastas  aproveitáveis,  deixando  as  velhas 
tendências.  Entre  outros  se  contavam  Castro  Alves,  Victo- 


HISTOBIA  BA  LITTBBATURA  BBAflUJBIlLL  469 

riano  Falhares,  Plinio  de  Lima,  Guimarães  Júnior  e  mais 
tarde  Castro  Rebello  e  Altino  de  Araújo. 

Os  chefes  e  os  discípulos  náo  viveram  depois  muito  cordial- 
mente ;  a  emulação  toruara-os  rivaes,  nâo  contestando,  po- 
rém, nenhum  em  Pernambuco  ao  poeta  sergipano  o  prestigio 
da  iniciativa.  A  vida  académica  no  Recife  nesse  tempo  foi 
muito  aprazível. 

Era  a  phase  da  guerra  como  Paraguay.  As  festas  patrió- 
ticas se  repetiam  com  as  noticias  de  nossas  victoriase  um 
enthusiasmo  sincero  se  fazia  sentir  entre,  os  moços. 

O  iheatro,  sob  a  direcção  de  bons  artistas,  e  o  saião,  ao 
influxo  das  bellas  pernambucanas,  recebia  com  o  recitativo 
um  brilho  vivo.  Os  poetas  tiveram  principalmente  por  musa 
o  patriotismo,  o  enthusiasmo  esthetico  e  o  amor.  Ao  lado 
desta  tríplice  manifestação  exhibia-se  a  poesia  philosophica 
e  um  lyrismo  brilhante  e  sadio.  A  primeira  necessidade  da 
joven  escola  foi  banir  o  byronismo  affectado  e  o  lamartinismo 
lamuriento,  que  tinhctm  tido  tantos  represen tentes  festejados. 

Nas  folhas  do  Recife  de  1862  á  1870  existem  numerosas 
producções  que  attestam  o  que  aqui  se  afflrma.  E*  uma  ques- 
tão de  datas ;  é  só  veriflcal-as. 

Alguns  livros  depois  foram  publicados  reproduzindo 
aquellas  peças.  Entre  outros,  Espumas  Fluctuantes  de  Castro 
Alves,  Mocidade  e  Tristeza,  Scentelhas,  Peregrinas  de 
Falhares,  Corymbos  de  Guimarães  Júnior. 

Os  versos  de  Tobias  Barrelto  ficaram  espalhados  pelas 
paginas  dos  jornaes,  até  que  em  1881  no  Rio  de  Janeiro  se 
imprimio  em  livro  uma  parte  delles  sob'  o  titulo  de  Dias  e 
Noites  (1). 

Entretanto,  Castro  Alves,  discípulo  muito  aproveitado,  mas 
sem  a  intuição  philosophica,  o  sentimento  exacto  e  a  correc- 
ção plástica  do  mestre,  passando  pelo  Rio  de  Janeiro,  onde 
teve  ruidoso  acolhimento,  foi  proseguir  o  seu  curso  em 
S.  Paulo,  fez-se  lá  ouvir  e  creou  asseclas,  que  depois  pro- 
chamaram  a  nossa  poesia  hugoniana  como  um  rebento 
d'aquelle  solo... 

(1)  Existe  uma  edição  posterior  muito  mais  completa;  é  de  1893. 


470  HI8T0BIA  DA  LITTBRATUBA  BRA8ILBIBA 

Isto  já  em  1868,  quando  a  escola,  como  tal,  entrava  em 
decadência. 

E'  que  de  Tobias  Barretto  e  Castro  Alves,  passando  para 
08  seus  discípulos,  ostensivos  ou  não,  o  estylo  se  exagerara, 
tornando-se  uma  maneira  áspera  de  poetar.... 

A  falta  de  sentimentos  e  de  idéas  foi  supprida  pela  phan- 
tasmagoria  de  uma  linguagem  empolada  e  gongorica. 

A'  ultra-romantica  generosa  e  enthusiastica  dos  Dias  e 
Noites  e  Espumas  Fluctuantes  succedeu,  entre  outros  syste- 
mas,  no  Recife  o  realismo  de  Celso  de  Magalhães,  Generino 
dos  Santos  e  Souza  Pinto.  Tinham  antes  trabalhado  nas 
fileiras  dos  adeptos  de  Hugo,  e  reagiram  afinal. 

Seu  systema,  porém,  náo  repousava  na  vasta  intuição  natu- 
ralista do  mundo  e  da  humanidade,  preparada  pelo  evo- 
lucionismo e  pela  critica. 

O  realimo  litterario  e  poético  de  que  se  fizeram  os  cory- 
pheus  não  foi  o  corollario  do  naturalismo  scienti[ico  que 
substituio  as  velhas  construçções  metaphysicas. 

Era  já  depois  de  1868 ;  nas  Poesias  de  Celso  de  Magalhães 
e  nas  Idéas  e  Sonhos  de  Souza  Pinto  se  nos  depara  esta  nova 
tendência,  afflrmada  mais  fortemente  nos  periódicos  acadé- 
micos apparecidos  dahi  em  diante,  maximé  no  Trabalho  em 
1873. 

Hoje  tudo  isso  é  corrente  na  mór  parte  do  paiz ;  mas  é 
preciso  não  olvidar  a  origem.  Continuavam  os  poetas  a 
sacrificar  ao  romantismo  ou  ao  estreito  realismo,  quando 
o  autor  destas  linhas  offereceu  a  idéa  de  uma  poesia,  que, 
firme  na  moderna  intuição  criticisla,  edificada  pelos  estudos, 
históricos,  de  um  lado,  e  pelas  sciencias  naturaes  e  philoso- 
phicas,  de  outro,  fosse  a  crystaJlisação  das  vistas  mais  adian- 
tadas do  espírito  contemporâneo. 

Um  critico  francez,  sondando  os  motivos  intimes  da  poesia 
sceptica  de  Byron  e  Goethe,  encontrou-os  no  estado  social 
incongruente  dos  fins  do  século  xvni  e  começos  do  xix. 

Por  um  raciocínio  simples,  fui  levado  a  concluir  para  a 
poesia  nova  uma  intuição  diversa.  Esta  não  podia  mais  ser 
pedida  nem  ao  decrépito  espiritualismo  metaphysico  de  Cou- 


HIBTOBIA  DA  LITTXSATUBA  BRÁ8ILBISA  471 

sia  e  Jouffroy,  nem  ás  vistas  pantheisticas  de  Quinei,  ou  ao 
socialismo  revolucionário  de  Hugo. 

Havia  também  de  ser  diíTerente  de  outras  soluções  que 
começavam  a  apparecer,  como  o  realismo  de  Coppée  e  Riche- 
pin,  e  como  o  positivismo  estéril  de  alguns  outros. 

Só  a  concepçâLo  agnóstica  do  universo,  que  é  o  grande  feito 
da  sciencia  do  dia,  concepção  que  tem  o  tríplice  apoio  do 
positivismo  de  Comte,  das  idéas  evolucionistas  do  Spencer 
e  da  critica  religiosa  allemâ,  é  que  podia,  a  meu  vèr,  ser 

a  inspiradora  da  arte  actual. 

Similhante  idéa,  pouco  comprehendida  entre  nós,  foi  ati- 
rada á  luz  na  Crença,  periódico  publicado  no  Recife  em  1870, 
e  desenvolvida  nos  annos  seguintes  em  diversos  jornaes  da 
quella  capital. 

Um  dos  indispensáveis  recursos  da  theoria,  foi  combater 
o  romantismo,  de  preferencia  no  seu  predilecto  representante 
—  o  indianismo  brasileiro.  Igual  opposiçâo  foi  feita  ao  falso 
ideaUsmo  e  ás  únicas  pretendidas  concepções  realistas*  Todas 
as  obras,  quer  de  critica,  quer  de  poesia,  que  tenho  publicado 
no  Rio  de  Janeiro,  nâo  passam  de  documentos  dessa  intuição 
litteraria  e  em  grande  parte  são  reproducção  do  que  havia 
publicado  antes  no  Recife. 

Por  outro  lado,  o  moderno  naturalismo  do  romance  brasi- 
leiro, qual  o  comprchenderam  o  distincto  escriptor  Franklin 
Távora  e  o  esperançosa  Luiz  Dolzani,  é  também  um  producto 
do  movimento  do  norte. 

Estes  autores  depois  ausentaram-se,  trazendo  para  o  sul 
suas  idéas  já  feitas  e  desenvolvidas. 

E'  tempo  de  passar  á  sciencia  e  á  critica. 

Algumas  idéas  que,  a  propósito  de  nossa  chamada  questão 
religiosa,  foram  discutidas  no  Rio  de  Janeiro,  entre  outros 
por  GanganeUi,  annos  antfes  o  haviam  sido  no  Recife  por  um 
escriptor,  que  tinha  tanto  mais  de  illustrado  do  que  o  notável 
chefe  da  maçonaria  brasileira,  quanto  é  mais  do  que  elle 
desconhecido. 

ReQro-me  a  Abreu  e  Lima.  E'  impossível  agora  aqui  fazer 
em  traços  miúdos  a  característica  desta  nobre  individuali- 
dade. A  occasião  não  é  a  mais  apropriada. 


472  HISTORIA  DA  LITTXEATUBA  BBASILIIltA 

Gomo  06  poucos  homens  de  mérito  real  neste  paiz,  tem 
elle  sido  largamente  desdenhado.  Seus  trabalhos  de  patriota 
liberal,  que  o  pôz  o  braço  ao  serviço  da  independência  da 
C40lumbia  e  da  Bolivia  ao  lado  do  celebre  libertador  da  Ame- 
rica do  Sul,  íôram  esquecidos.  Seus  escriptos  em  que  íoi 
o  primeiro,  entre  nós,  a  encetar  a  critica  sem  reserva,  pro- 
fligando  as  autoridades  de  palha,  engrandecidas  por  nossa 
fatuidade,  foram  por  e&ta  ridicularisados.  Apresso-me  em  di- 
zêl-o  :  Abreu  e  Lima  náo  é  para  mim  mais  do  que  um  autor  de 
ordem  terciária,  medido  pela  bitola  de  seus  congéneres  eu- 
ropeus. Aferido,  porém,  pelo  padrão  brasileiro,  elle  se  os- 
tenta muito  acima  do  nivel  de  seusi  rivaes  pátrios,  por  mais 
endeusados  que  tenham  sido  em  detrimento  seu. 

Em  sua  longa  carreira  ha  a  distinguir  o  que  fez  como  pa- 
triota americano,  liberal  e  militar,  e  o  que  fez  como  escri- 
plor.  Por  este  lado  ainda  se  deve  separar  o  que,  logo  de  volta 
da  Columbia,  effectuou  no  Rio  de  Janeiro  e  o  que  mais  tarde 
publicou  em  Pernambuco. 

Em  uma  e  em  outra  esphera,  se  nem  sempre  suas  idéas 
foram  originaes  e  seguras,  seu  exemplo  foi  sempre  para  imi- 
tar-se.  Independente  e  ousado,  nunca  se  prostrou  aos  pés  de 
nossos  governos  insensatos;  independente  e  illustrado,  foi 
quem  primeiro  brandio  neste  paiz  o  látego  da  critica  sobre  a 
enfumada  lenda  de  homens  como  Cunha  Barbosa,  Adolpbo 
Varnhagen,  Ferreira  França,  Diogo  Feijó,  Nascimento  Pei- 
tosa,  Pinto  de  Campos  e  outros  tantos  semi-deuses  que  gyram 
na  atmosphera  empoeirada  de  nossa  politica  e  de  nossas  le- 
tras. Pelo  que  mais  interessa  neste  momento,  devo  somente 
indicar  que  nos  annos  de  1866  e  1867,  já  velho  e  próximo  ao 
tumulo,  sustentou  pela  imprensa  uma  luta  renhida,  cujos 
resultados  foram  dous  livros  intitulados  As  Bíblias  Falsifi- 
cadas^ e  O  Deus  dos  Judeus  e  o  Deus  dos  Christâas. 

Ao  total  três  respostas  a  um  padre  imprudente,  que  occu- 
pava  um  alto  assento  na  Igreja  brasileira.  As  qualidades  deste 
contendor  nâ.o  erami  das  mais  próprias  para  engrandecer 
a  pugna  e  dar  fulgor  ao  adversário  liberal.  E,  todavia,  aqui 
dentro  do  nosso  horizonte,  Abreu  e  Lima  brilhou. 

Elle,  por  certo,  ignorava,  como  todos  de  seu  tempo,  o 


HISTOKIA  DA  LimSATITBA  NLàBEUKaUL  473 

grande  thesouro  que  constitue  a  moderna  sciencia  da  exe- 
gese bíblica.  A  nova  critica  religiosa  lhe  era  desconhecida. 
De  um  ponto  de  vista  voltairiano,  porém,  e  com  a  intuição 
de  un>  velho  catholico,  muito  antes  da  InlaUibUidade  e  da 
scisão  de  Doellinger,  elle  delucidou  a  questão  das  biblias  pro- 
testantes, ditas  falsificadas,  e  discutio  outros  pontos  contro- 
versos, como  o  purgatório,  a  inquisição,  o  culto  das  imagens... 

No  terreno  do  direito  ecclesiastico  privado  escreveu  sobre 
o  padroado,  o  beneplácito  imperial,  ausência  dos  bispos  de 
suas  dioceses.  De  envolta  lá  se  acham  acertadas  idéas  sobre 
o  casamento  civil,  liberdade  religiosa,  immigração  estran- 
geira, concordata  com  Roma... 

A  obra  do  general  pennauece  despercebida,  quando  seu 
digno  su<^cessor,  amontoando  volumes  sobre  volumes,  causou 
ruido  no  Rio  de  Janeiro.  A  longa  serie  intitulada  a  Igreja  e  o 
Estado,  apezar  de  sua  bôa  intenção,  é  um  dos  maiores  monu- 
mentos de  nossa  má  cultura  metaphysica. 

Nem  no  Recife,  nem  no  Rio,  os  dous  illustres  corypheus 
produziram  pensamentos  originaes. 

Mas  o  general  tem,  alem  de  outros,  o  prestígio  da  antedencia. 

A'  forte  luta  sustentada  pelo  autor  do  Socialismo  e  o  autor 
da  Jerusalém  succedêram  outras  menos  ruidosas  e  mais  fe- 
cundas. 

A  grande  transformação  do  pensamento  hodierno,  produ- 
zida pela  ascendência  da  Allemanha,  o  único  representative 
man  que  teve  no  Brasil  encontrou-o  em  Pernambuco.  Ainda 
neste  ponto  o  iniciador  foi  Tobias  Barretto  na  reacção  philoso- 
phica  e  no  germ/inismo.  Eu  não  conheço  maior  metamorphose 
operada  em  um  espirito  do  que  a  effectuada  no  escriptor  ser- 
gipano. 

O  chefe  da  poesia  hugoana  brasileira  fez-se  igualmente  o 
evangelista  de  germanismo  entre  nós... 

A  critica  foi  a  grande  porta  por  onde  nos  foi  fazendo  co 
nhecer  a  Allemanha ;  a  critica  em  sua  totalidade  applicada  á 
phílosophia,  á  religião,  á  litteratura,  á  política  e  ao  direito. 
Tobias  Barretto  percorreu  todos  estes  districtos  da  sciencia, 
sem  que  sua  antiga  intuição  romântica  o  perturbasse.  Disse 
Victor  Hugo  de  Sainte-Beuve  que  este  tinha  um  pouco  do 


474  BtlSTOBIA  DÁ  LITTBBATTTBA  BBASILEIBA 

poeta  no  critico  e  um  pouco  do  critico  em  o  poeta.  O  nosso 
escriptor  conseguio  separar  de  todo  os  dous  dominios.  Sua 
phantasia  nfto  ennevôava  a  sua  razão. 

Desde  1870  que,  abandonando  quasi  totalmente  a  poesia ; 
atrou-se  á  critica  em  seus  variados  ramos,  e  mais  tarde  ao 
direito.  A  sua  nova  intuição  ©laborada  pelo  estudo  profundo 
do  positivismo,  do  darwinismo,  das  escolas  de  sciencia  reli- 
giosa allemã,  maxime  a  strauss-bauriana  e  pela  leitura  dos 
historiadores  litterarios,  como  Julian  Schmidt  e  H.  Hettner,  e 
dos  publicistas,  como  Mohl  e  Gneist,  derramou-se  em  variados 
escriptos.  O  germanismo  de  Tobias  Barretto  flrmava-se, 
quanto  á  sciencia  na  intuição  monistica  do  mundo  e  da  huma- 
nidade, presuppondo  o  conhecimento  de  Gomte  e  de  Darwin  ; 
é  na  litteratura  promovia  implicitamente  a  applicaçáo  do 
principio  da  selecção  natural  entre  as  nações,  fazendo-nos 
jogar  á  margem  as  migalhas  da  civilisaçâo  franceza  e  mergu- 
lhar na  grande  corrente  da  cultura  allemã.  Similhante  modo  de 

pensar  envolvia  por  força  a  necessidade  da  critica  objectiva, 
isto  é,  daquella  que,  não  guardando  preferencias,  estudando 
os  homens  e  os  factos  como  elles  são,  lavra  o  seu  juizo  sem 
tergiversar,  por  mais  enérgico  que  possa  ser. 

Mas  eis  que  no  Rio  de  Janeiro  só  de  1874  em  diante  é  que 
pela  vez  primeira  os  nomes  de  Darwin  e  Gomte  foram  con- 
scientemente pronunciados  em  publico  em  conferencias  e  es- 
criptos, quando  em  Pernambuco  eram  de  vulgar  noticia  entre 
os  moços  de  talento  desde  1869  (1). 

A  critica-sciencia,  pois,  não  nasceu  no  Rio  com  a  rhetorica 
do  Gonego  Pinheiro. 

Escusado  é  advertir  que  o  germanismo  litterario  do  escri- 
ptor sergipano  foi  letra  quasi  sem  desconto  em  certos  circulos 
brasileiros,  onde  a  lingua  allemã  era  um  espécie  de  epigraphia 
accadeana. 

Espécie  de  contagium  animatum^  a  tíva  nacional  só  se  apega 
aos  defeitos  daquelles  que  entre  nós  ousam  pensar. 

(1)  As  primeiras  exhibições  sobre  Darwin  foram  no  Rio  de  Janeiro  as 
conferencias  do  Dr.  Miranda  de  Azevedo,  em  1875 »  apparecidas  depois  em 
folhetos.  —  Sobre  Comte,  os  artigos  do  Sr.  Miguel  Lemos»  a  datar  de  1S74, 
e  publicados  em  opúsculo  em  1877. 


HI9T0BIA  DA  LITTEBATT7BA  BRASILXISA  475 

O  que  havia  de  enfesado  na  poesia  de  Hugo  facilmente  pro- 
pagou-se ;  o  que  ha  de  vivificante  na  Allemanha  nós  o  repel- 
limos. 

O  escriptor  dos  Estudos-  Allemães  foi  uma  grande  intelli- 
gencía  e  um  grande  coração,  mas  um  homem  em  certo  sentido 
exclusivista.  Seu  espirito  podia  percorrer,  sem  duvida,  larga 
parte  da  escala  do  saber  humano,  mostrando,  comtudo,  uma 
faceta  predilecta.  Em  poesia  teve  elle  um  mestre,  —  um  no- 
tável espirito.  Sempre  produzia  por  si,  com  exuberância 
d'alma ;  et,  todavia,  em  sua  paleta  havia  de  ordinário  entre 
outras  uma  Unta  certa  I  Em  litteratura  e  critica  teve  também 
um  ideal  :  a  alma  de  uma  raça,  o  espirito  tedesco.  Sempre 
pensava  por  si,  com  segurança ;  e,  todavia,  sua  penna,  que 
podia  molhar-se  em  tinta  preta,  havia  de  trazer,  ás  mais  das 
vezes,  alguns  pingos  rubros  das  preferencias  germânicas. 

Isto  é  bom,  os  iniciadores  devem  ser  arrebatados,  systema- 
ticos,  exclusivos.  E'  uma  condição  de  victoria. 

O  autor  deste  livro,  espirito  que  deseja  acertar,  foge  desses 
caprichos. 

Em  poesia,  o  philosophismo  criticista,  porque  éra  a  feição 
do  tempo ;  em  philosophia  e  litteratura,  ainda  o  criticismo 
evolucionista,  e  mais  a  verdade  de  onde  quer  que  ella  viesse. 
Isto  envolvia  uma  serie  de  afflrmações  e  negações,  que  appa- 
recêram  nos  jornaes  de  Pernambuco  em  oito  annos,  —  os  ([uj 
medeiaram  entre  1869  e  1876. 

Pelo  que  toca  á  litteratura,  em  sua  face  restricta,  no  que 
mais  interessa  por  ora,  esse  pensamento  quer  dizer,  pelo  lado 
negativo  :  abandono  do  indianismo  e  do  lusismo  exclu-sivos, 
igual  desprezo  dos  sonhos  românticos  e  do  falso  realismo ; 
pela  face  positiva  :  nova  intuição  da  poesia  em  geral  e  espe- 
cialmente da  americana ;  nova  concepção  da  poesia  popular 
brasileira  e  da  historia  litteraria  da  nação,  onde  devem  pesar 
todos  os  elementos  ethnicos  do  paiz.  Em  todo  este  movimento 
critico  do  norte,  sem  duvida  superior  á  evolução  poética,  fllia- 
ram-se  alguns  jovens  escriptores,  que  foram  depois  residir 
e  trabalhar  em  outros  pontos  do  paiz ;  taes  foram,  entre  mui- 
tos, Celso  de  Magalhães,  Rocha  Lima  e  Araripe  Júnior. 

Eu  falei  poucas  linhas  acima  em  nossa  poesia  popular.  No 


476  HI8T0BIA  DA  LITTEEATUBA  BBASILBIBA 

Rio  de  Janeiro  não  se  tinha  tratado  de  similhante  assumpto 
antes  do  excdlente  escripio  do  no<tavel  critico  Celso  de  Maga- 
lhães, intitulado  —  A  poesia  popular  brasileira,  publicado  no 
Recife  1873.  Depois  é  que  o  Conselheiro  Alencar  mimoseou 
os  seus  leitores  com  o  seu  escripto  —  O  nosso  cancioneiro. 

Esta  rápida  noticia  do  desenvolvimento  de  idéas  levado  a 
effeito  na  bella  cidade  onde  estudei,  que  é  a  minha  pátria  intel- 
lectual,  não  leva  por  alvo  engrandecer  os  meus  companheiros 
de  lides  e  muito  menos  a  mim  próprio.  Restabelecer  a  ver- 
dade de  alguns  factos  e  comprimir  um«LS  pretenções  indé- 
bitas, eis  o  motivo  dirigente  destas  paginas. 

Infelizmente  do  Brasil  não  se  pôde  dizer  o  que  da  Alie- 
manha  escreveu  o  sábio  Virchow  :  «  A  meu  vêr  não  temos 
agora  mais  nada  que  pedir  para  nós ;  havemos  chegado  ao 
ponto  emi  que  devemos,  sobretudo,  propôr-nos,  por  nossa 
moderação,  por  uma  certa  abnegação  de  nossas  preferencias 
c  opinões  pessoaes,  fazer  perdurar  as  disposições  favoráveis 
que  a  nação  ha  testemunhado  a  nosso  respeito.  » 

Quem  dera  que  ahi  tivéssemos, chegado  (1). 

Tobias  Barretto  de  Menezes  (1839-1889).  —  Este  iniciador 
da  escola  condoreira  na  poesia  nacional,  mestre  do  alletnã' 
nismo  na  critica,  doutrinador  do  naturalismo  no  direito,  nas- 
ceu na  villa  de  Campos,  na  província  de  Sergipe,  aos  7  de 
junho  de  1839.  Seu  pae,  Pedro  Barretto  de  Menezes^  era  alli 

(1)  Para  que  nâo  haja  engano,  nem  se  suscitem  duvidas  sobre  os  diversos 
trabalhadores  da  escola  do  Recife  nas  três  phases,  sob  o  ponto  de  yista  da 
iniciativa  de  cada  um,  dou  aqui  a  seguinte  indicação  synoptica. 

Os  propulsores  foram  estes  : 

1.'  Phase:  —  na  poesia  —  Tobias  e  logo  após  Castro  Alves  e  Victoriano 
Falhares ;  no  romance  e  no  conto  —  Franklin  Távora ;  no  ecUcUrianismo 
religioêo  —  Abreu  e  Lima. 

2."  phase :  —  na  reacção  philosophica  e  no  germaniêmo  Tobias,  na 
reforma  da  critica  litteraria  e  no  criticiimo  poético  o  escríptor  d'este  livro ; 
no  realismo  poético  Celso  de  Magalhães  e  Souza  Pinto ;  no  romance  Luiz 
Dolzani  e  Clementino  Lisboa ;  no  folk-lore  Celso  de  Magalhãos  e  logos  após 
o  auctor  d'este  livro. 

3."  phase:  —  na  intuição  nooa  do  direito  —  Tobias  e  depois  José  Hygino, 
Clóvis  Beviláqua,  Arthur  Orlando  e  João  Vieira;  na  poesia  seientijtea 
Martins  Júnior ;  no  critica  litteraria,  Clóvis  Beviláqua,  Arthur  Orlando 
Alvares  da  Costa,  na  erudição  na  historia  local  —  José  Hygino.—  £'  isto 
esta  é  a  verdade  e  esta  é  a  justiça. 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATUllA  BBASILIIXA  477 

escrivão  de  orphâos ;  mas  o  município  não  era  populoso  e 
rico,  o  cartório  quasi  nada  rendia  e  o  funccionario  não  pas- 
sou jamais  acima  da  pobreza. 

O  pae  do  poeta  tinha  génio  folgazão  e  satyrico,  pronunciado 
talento  anecdotico  e  innegavel  queda  para  as  luctas  politicas 
locaes,  nas  quaes  se  revelara  intelligente,  insubmisso  e  desa- 
busado. 

Sua  mãe  —  D.  Emerenciana  de  Menezes  —  era  meiga,  de 
génio  suave  e  doce,  temperamento  melancólico  e  cheio 
de  resignação.  Pedro  era  mestiço  accentuado;  D.  Emerenciana 
passaria  par  fldalgamente  branca  em  qualquer  parte  do 
Brasil. 

Campos  demora  em  uma  planície,  quasi  na  confluência  do 
riacho  Jabibery  no  Rio-Real.  A  região  é  áspera,  a  terra  es- 
florada  a  trechos,  cheia  de  arêiaes  extensos,  contrastados  por 
bellas  e  frescas  moitas  de  altas  quichabeiras  nas  margens 
do  Real  e  do  Jabibery.  E*  um  pedaço  d'essa  região,  caracte- 
risticamente chamada  no  Norte  —  o  agreste  —  que  é  a  passa- 
gem das  terras  das  mattas  para  a  zona  dos  sertões. 

A  vegetação  é  falha  em  geral  e  de  pequena  apparencia, 
excepto,  como  é  o  caso  em  Campos,  nas  margens  dos  rios. 
Predominam  as  catingas,  mangabeiras,  guabirabas,  quicha 
beiras  e  imbuzeiros.  E'  pronunciada  a  antithese  entre  a  pla- 
nície areinta  e  estéril  e  as  altas  moitas  frescas  que  bordam  os 
rios.  O  clima  é  quente,  appetitosos  os  banhos  nos  poços  sob 
as  folhudas  ramagens,  os  luares  esplendidos,  o  ar  impre- 
gnado do  cheiro  das  plantas  campezinas. 

Bem  se  comprehende  a  selvagem  e  original  poesia  que  um 
meio  d'esses  iria  accumulando  n'alma  intelUigente  do  fllho  de 
Emerenciana  e  Pedro  Barretto.  Quem  viu  aquellas  paragens 
entende  bem  o  que  vêm  a  sêr  os  roupões  de  sombra  desves- 
tidos pelos  qnichabdes  e  sente  a  vordade  de  versos  como 
estes  : 

((  Aos  reflexos  da  lúa  que  pratêa 
Os  brancos  arôaes  de  minha  terra. 
Ao  vivo  trescalar  das  guabirabas 
Nas  aragens  de  um  céo  desabafado  »  (1). 

^1)  Dias  e  Noites,  Rio,  1893 ;  pag.  262. 


478  HI8T0BIA  DA  LITTEBATITBA  BRASILEIRA 

Tobias  estudou  primeiras  lettras  em  sua  terra  natal  com  o 
professor  Manoel  Joaquim  de  Oliveira  Campos,  figura  notável 
na  proívincia,  como  poeta^  jurista  e  politico.  A  convivência 
doeste  espirito,  addicionada  á  de  Pedro  Barretto,  influiu  consi- 
deravelmente na  formaç&o  do  talento  e  da  compleixâx)  intelle- 
ctual  do  joven  sergipano. 

Aprendidos  as  primeiras  lettras  de  1846  a  49,  partiu  en  1850 
o  futuro  poeta  dos  Dias  e  Noites  para  a  cidade  da  Estancia 
a  cursar  a  aula  de  latim  do  padre  Domingos  Quirino  de 
Souza  6  seguir  as  licções  de  musica  do  maestro  Marcello  Santa  \ 
Fé.  Na  Estancia  demorou-se  até  1852.  No  anno  seguinte  par- 
tiu para  o  Lagarto  a  completar  os  estudos  de  latinidade  sob  a 
direcção  do  famoso  professor  padre  José  Alves  Pitangueira, 
em  cuja  casa  viveu  até  1854.  No  anno  subsequente»  abriu  aula 
de  primeiras  lettras,  iniciando  d'est'arte,  aos  deseseis  annos, 
a  carreira  do  magistério,  seu  modo  de  viver  mais  constante 
até  á  morte. 

Em  1857,  aos  dezoito  annos,  por  conselho  do  Dr.  Salustiano 
Orlando,  entrou  em  concurso  para  o  provimento  da  cadeira 
de  latim  da  villa  de  Itabayana,  na  qual  foi  provido,  pois  que 
tinham  sido  brilhantíssimas  as  provas  dadas  de  sua  capacidade 
e  competência  no  assumpto.  Em  Itabayana  demorou-se  até 
fins  de  1860.  De  dezembro  de  1858  existe  a  bella  elogia,  em 
estylo  ovidiano,  dirigida  a  seus  discipulos,  por  occasiáo  do 
encerramento  do  curso,  tendo  se  seguir  o  joven  professor 
para  Campos  em  descanço  das  ferias.  E*  como  segue  : 

Tandem  jam  superest  tantum  valedicere  vobis ; 

Quando  quidem  cedo,  stante  magistério, 
Quod  finitum  hodie  nunquam  mihi  forte  reduci 

Possit,  allqui  cadat  sic  literis  dociles 
Formandi  juvencs  ;  quid  ita?  certo  grave  múnus 

Commissum  immerito  parvo  aliquando  niihi. 
Vellem,  Discipuli,  vobis,  qui  repitis  isthuc, 

Ut  posscm  sapiehs,  in  rudibus  tenebris 
Lúmen  ego  proeferre,  erudiens  itidem,  et  vos 

Memet,  adhuc  vídeo,  viribus  exiguis 
Quam  doceo ;  desunt  autem  magnae  Sophiae  ml 

Principia,  atque  ideo  jam  cogor  ad  studium. 


mSTOBIA  DA  LITTSBATUBA  BBABILBIBA  479 

Ât  VOS  licturus  ;  desiderio  madeíit  cor 

Planctibus  obtectis;  ergo  valete,  Boni. 

Semper  ero,  atque  fui,  inter  amicos  me  nunierate. 
Vos  qui  pendo,  dabunt  têmpora  temperius.  )i 

Primeira  lettras,  musica  e  latim  foram  as  cousas  únicas 
aprendidas  por  Tobias  em  Sergipe  e  elle  costumava  dizer  mais 
tarde,  quando  já  era  mestre  profundo  de  direito  no  Recife, 
que  latim  e  musica  eram  as  únicas  disciplinas  que  suppunha 
bem  conhecer. 

Desde  os  quinze  annos  de  idade  começou  a  poetar  e  a 
escrever  trechos  musicaes.  Doestas  primitivas  manifestações 
de  seu  talento  existem  ainda  algumas  amostras  de  que  darei 
exemplos  no  correr  d'estas  paginas. 

O  anno  de  1861  passou-o  todo  o  moço  sergipano  na  Bahin, 
onde  conviveu  com  o  seu  parente  Moniz  Barrçtto,  o  famoso 
repentista  e  cursou  diversas  aulas  de  preparatórios,  entre  as 
quaes  avultava  a  de  philosophia,  sob  a  direcção  do  theologo  e 
conhecido  orador  sagrado  Frei  Itaparica.  Tobias  chegara  á 
velha  capital  brasileira  com  a  intenção  de  fazer  o  curso  theolo- 
gico  e  receber  ordens  sacras.  Deu  logo  entrada  no  seminário, 
onde  passou  este  dia  e  a  noite  apenas,  retirando-se  no  dia 
seguinte  pela  manhã.  Durante  a  noite  passada  n'aquelle 
mansuéto  retiro,  dizem  as  lendas  correntes  a  seu  respeito, 
commettera  a  imprudência  de  começar  a  cantar  no  silencio 
do  dormitório  uma  modinha  de  seu  repertório  sergipense. 
Esta  anecdota  era  referida  pelo  padre  José  António  de 
Vasconcellos;  mas  creio  que  é  simples  crêação  lendária.  A 
verdade  é  que,  sabido  do  seminário,  o  irrequieto  sergipano 
vagou  pela  cidade  á  procura  de  certos  patrícios  que  não  che- 
gou a  encontrar  n'aquelle  dia.  A'  noite  foi  ao  theatro  de  São 
João;  assistiu  ao  espectáculo,  findo  o  qual,  um  companheiro 
do  occasião  levou-o  a  dormir  n'uma  estalagem  de  segunda  ou 
terceira  ordem.  Poucas  horas  ahi  demorou-se,  porque  foi 
acordado  aos  grilos  de  fogo. 

Effectivamente  a  estalagem  estada  a  arder.  Era  de  madru- 
gada. Não  sem  novas  difflculdades  conseguiu  descobrir  o 
paradeiro  dos  patrícios  que  andava  a  procurar,  e  em  cuja 


9» 

frir_'rrXfi  *:  ;:.xjrí':-  l  n-.r  pLr.-r  i:  Vrzipo  na  BiMiolheca 
}^^z,,yc  i  l^r  :-r  ;:*:»T*-L5  ricz.Li:^!*:^,  nmfàianienle  Quinei  e 
V.'.v>f  E-r:»,  r-.i  í:tto  iis  C:^:^r-.;:C£;:<i#  inass  de  perto  o 


Ni  Bah^i  í^ra  coe. j^arir-n  ir  R  usen i:»  Moriz.  de  seu  irmão 
Praiif^scx  o  ci^^ro  tãlrcktf.:--  mxto  zil.rTamenle  no  esque- 
ç:ir-í:ctc-.  e  a-i>:'5  tlr.is  i:-  inr^jilivel  rqienlísia  citado 
linhas  ac-nia.  Na  bella  cr^^í'^  i^ihiina  -r-s  es^zios  e  leituras  o 
ai>K-r%-er=::ri  de  íi-i:'.  drumi.-Ir.e  dizi^cuto  lazer  para  a 
produção :  por  isso  Tuasí  na.ia  alli  escreveo*  Tenho  apeoas 
conhecimento  d-  d-ís  p«c-e^:i^=.  Uma.  crnsagrada  ao  Dois  de 
Julho^  o  -ia  Mhiino  p  jr  ex*^eI!ecc:a ;  o  poeta  m'a  recitou 
por  vezes:  mas  çuardei  de  mr^moria  ap*enas  duas  estrophes, 
que  reproduzi  em  seu  livro  dos  Dias  e  Smtes  (i). 

A  outra  —  Anhéíos  —  an  Ja  no  mesmo  volume  incompleta 
o  com  a  data  errada,  e  sobr*_'  e''.a  falirei  mais  de  espaço. 

As  pequenas  economias  levadas  de  Itaba\'ana  estavam  esgo- 
tadas desde  meiados  de  i8õi  e  os  preparatórios  não  estavam 
prestados,  posto  qup  aprendi  ios  em  sua  quasi  generali- 
dade (2). 

De  Sergipe  não  vinha  recurso  algum;  era  mister  bater  em 
retirada.  O  desanino  principiava  a  ganhar  o  espirito  enthu- 
sasta  do  pobre  ex-professor  de  latim,  que  já  n*esse  tempo 
havia  perdido  sua  cadeira. 

Foi  em  tal  transe,  ao  travor  doesse  acabnínhamento,  que  se 
deu  o  passo  a  mim  referido  com  lagrimas  nos  <rfbos  :  deitado 
em  sua  rede,  lia  a  coUecção  de  trechos  de  prosadores  e  poetas 
de  Charles  André:  a  alma  esla\'a  ennegrecida  pelo  desmo- 
ronar de  todos  os  planos ;  n'iim  momento  de  impaciência 
atirou  pelos  ares  o  livro,  que  foi  cahir  esparramado  a  um 
canto  da  pequena  sala. 

(i)  Dioê  e  Noiteê^  pag.  200.  edição  de  1893. 

(2)  Krão  :  latim,  francez,  inglez,  arithmeiica,  álgebra,  geometria,  historia 
uriívenia],  gcographia,  historia  do  Brasil,  philosophia,  rhetoríca  e  poética. 


HISTORIA  DA  LITTBBATUXA  BBABILBI&A  481 

Levantou-se,  apanhou-o,  estava  aberto  n'uma  pagina, 
onde  se  liam  uns  versos,  entre  os  quaes  se  achava  este  :  on 
perd  son  avenir  par  trop  (Timpatience...  Os  temperamentos 
poéticos,  quando  atribulados,  vêem  presagios  em  qualquer 
cousa.  Aquellas  palavras  foram  um  bálsamo  para  esse  espirito 
acabrunhado.  Mas  era  indispensável  partir  e  teve  de  reco- 
Iher-se  a  Sergipe.  Em  Campos  passou  o  anno  inteiro  de  1862; 
pois  só  em  dezembro  seguiu  para  o  Recife,  sem  recursos,  é 
certo,  porém  cheio  de  esperanças,  confiado  na  mocidade  e  no 
talento.  Saudou  a  bella  Veneza  transplantada  com  a  famosa 
ode  A*  Vista  do  Reciie,  escripta  a  bordo  do  pequeno  paquete 
que  o  conduzira  do  Aracaju.  Mas  nem  tudo  foram  rosas  em 
Pernambuco  para  o  novo  hospede.  Poucos  dias  depois  de 
sua  chegada,  em  janeiro  de  1863,  era  atacado  de  variola  de 
máo  caracter;  o  lance  foi  criiel,  esteve  quasi  ao  desamparo 
e  escapou  milagrosamente  á  morte.  Foi  o  passo  mais  afílictivo 
de  sua  existência,  segundo  m'o  revelou  sempre. 

Uma  vez  curado,  porém,  repassou  os  preparatórios  durante 
1863,  prestando-os  todos  nos  exames  do  ílm  do  anno. 

Em  março  de  1864  estava  matriculado  no  curso  jurídico. 
N'esse  tempo  fez  concurso  de  latim  para  o  preenchimento 
da  cadeira  vaga  no  Collegio  das  Artes;  apezar  de  brilhantes 
provas,  náo  foi  provido  na  cadeira;  entrou  de  novo  em  con- 
curso da  mesma  disciplina  no  anno  sieguinte.  Ainda  não  foi 
provido  n'ella;  o  que  também  lhe  aconteceu  com  a  de  philo- 
sophia  do  Gymnasio  Pernambucano,  para  a  qual  concorreu 
em  1867,  a  despeito  de  ter  sido  coUocado  sempre  em  primeiro 
logar.  Deveria  íormar-se  em  flns  de  1868,^  o  que  nâo  acon- 
teceu, por  haver  perdido  por  faltas,  em  1866,  o  terceiro  anno 
do  curso,  que  só  veio  a  concluir  em  dezembro  de  1869. 

Depois  de  formado  ainda  residiu  no  Recife,  onde  abriu  um 
collegio  de  instrucção  secundaria,  sendo  que  durante  o  curso 
académico  fora  sempre  no  ensino  que  encontrara  meios  de 
subsistência.  Leccionava  francez,  latim,  historia,  rhetorica, 
philosophia  e  matlienialicas  clenipotarcs. 

Nâo  metendo  em  linha  de  conta  os  tempos  de  Sergipe  e 
Bahia,  ó  licito  dizer  que  o  período  de  flns  de  1862  a  princípios 
de  1871  constitue  a  sua  primeira  phase  do  Recife,  na  qual  culti- 

HISTORU  n  31 


482  mSTOltlÁ  DA  IITTISATUBA  BBASILIIEA 

VOU  preponderantemente  a  poesia,  iniciando  apenas  a  acção 
critica,  que  encheu  o  periodo  seguinte  (fevereiro  de  1871  a  ou- 
tubro de  1881)  que  constitue  a  phase  da  Escada,  do  nome  da 
pequena  cidade  pernambucana,  onde  habitou  n'esse  tempo. 
Ao  período  de  (Ins  de  1881  a  junho  de  1889,  segunda  phase 
do  Recife,  pertence  a  acção  juridica,  exercida  pelo  magistério 
na  Paculdeuie  de  Direito.  Os  factos  mais  notáveis  da  vida 
espiritual  do  escriptor  durante  esses  três  períodos  de  activi- 
dade sâo  os  seguintes  :  em  1862  publicou  —  A'  Vista  do 
Recife;  em  1863  —  Pela  morte  de  um  amigo,  Dia  de  Pinados 
no  Cemitério^  A'  uma  Mulher  de  talento;  em  1864  —  A*  Polónia, 
Trovadores  das  Selvas,  Amália,  InspiraçãÁ),  Mãe  e  PUho, 
Depois  de  ouvir  a  ária  final  da  Traviata;  em  1865  —  Capitulação 
de  Montevideo,  Voos  e  Quedas,  Lenda  Civil,  Ideia,  Voluntá- 
rios Pernambucanos,  Sete  de  Setembro,  Pelo  dia  em  que  nas- 
ceste, Leões  do  Norte,  Em»  nome  de  uma  pernambucana^ 
Philippa,  além  de  alguns  discursos  e  um  artigo  sobre  as  poe- 
sias de  Paes  de  Andrade;  em  1866  —  Lenda  Rústica,  Gemo  da 
Humanidade,  Os  Tabaréos,  Suprema  Visio,  Contemplação, 
Quando  nasceste.  Amar,  Supplica,  A  Caridade,  Cármen,  Oh ! 
isto  mata,  além  de  um  artigo  sobre  as  poesias  de  Lycurgo  de 
Paiva  e  sustentou  uma  polemica  com  Castro  Alves;  em  1867 
— Polka  Imperial,  Présentimento,  A  Luva  (traducção),  O  beijo, 
Leocadia,  Como  é  bom!  cantaU  Malévola,  A  Viuva  de  Pedro 
Affonso,  LuctOrS  d'alma.  Sê  meiga  e  terna^  Porque  me  feriste? 
A  Bottini,  Adelaide  do  Amaral,  além  de  um  artigo  sobre 
Nahum;  em  1868,  ao  de  mais  de  varias  poesias,  Guizot  e  a 
escola  espiritualifta  do  século  XIX;  Sobre  uma  theoria  de 
S.  Thomaz,  Theologia  e  Theodicéa  não  sâo  sciencias;  em  1869 
—  A  Religião  Natural  de  Julcs  Simon;  Os  Pactos  do  Espirito 
Hurriano  de  Gonçalves  de  Magalhães,  A  Força  Motriz;  e  varias 
poesias;  em  1870,  redigiu  —  O  Americano  e  publicou,  além  de 
diversas  poesias,  como  Decadência^  Volta  dos  Voluntários^  O 
Rei  reina  e  não  governa,  Diante  de  um  batalhão  que  voltava 
da  Campanha,  alguns  artigos,  como  Os  homens  e  os  prin- 
cipiou, Moysés  e  Laplace,  Politica  BrasUeira,  Notas  de  critica 
religiosa^  Theologia  Rationalis  confutaiio,  A  Religião  perante 
a  psychologia,  Chronica  dos  desparates;  em  1871  —  A  Sciencia 


t       « 


HI8T0BIA  BA  UmOULTUSA  BBASILBIBA  4S3 

d'alma  ainda  e  sempre  contestada^  Uma  Excursão  nos  domí- 
nios da  sciencia  bibUca,  Uma  Lacta  de  gigantes^  O  Direilo 
Publico  Brasileiro  do  Marquez  de  S.  Vicente,  A  Questão  do 
poder  moderador  (principio);  em  1872  —  A  Provinda  e  o  pro- 
vincialismo^  O  Atraso  da  philosophia  entre  nós,  O  romance  no 
Brasil  (inacabado);  em  1873  —Sobre  um  Escripto  de  Alexandre 
Herculano,  Auerbach  e  Victor  Hugo,  Uma  Excursão  nos  domí- 
nios da  sciencia  bíblica  (o  final);  em  1874,  redigiu  o  periódico 
—  Um  Signal  dos  Tempos,  onde  iniciou  a  publicação  de  —  A 
Alma  da  mulher,  Principios  da  estylistica  moderna,  Hartmann 
e  a  philosophia  do  inconsciente,  R.  Gneist  como  publicista. 
Socialismo  em  liíteratura.  Carolina  Michaelis  e  a  nova  geração 
em  Portugal,  Sobre  David  Strauss,  A  Musa  da  felicidade,  Vic- 
tor Hugo  e  o  Congresso  de  Genebra ;  em  1875,  redigiu  —  O 
Deutscher  Kaempier  e  publicou  —  Brasilien  wie  es  ist.  Ensaios 
e  Estudos  de  Philosophia  e  Critica,  A  Comarca  da  Escada,  O 
Desabuso  (periódicos  estes  dois),  e  sustentou  polemicas  com 
os  Srs.  Albino  Meira  e  José  Carlos  Rodrigues;  em  1876  —  O 
Povo  da  Escada  (periódico);  em  1877  —  Aqui  para  nós,  A  Igual- 
dade (periódicos);  em  1878  —  Ein  offener  Brief  an  die  deutsche 
Presse,  Jurisprudência  da  vida  diária  (a  propósito  do  livro  do 
mesmo  titulo  de  R.  Ihering);  em  1879,  redigiu  —  o  periódico 
Contra  a  Hypocrisia,  onde  se  acha  o  artigo  famoso  —  Delietos 
por  omissão;  publicou  —  Um  Discruso  em  mangas  de  camisa, 
acompanhado  de  notas,  e  proferiu  vários  discursos  na  assem- 
bléa  provincial  de  Pernambuco,  sendo  d*esse  anno  também  o 
artigo  —  A  Questão  parlamentar  do  dia;  em  1880  —  Algwna 
Cousa  lambem  a  propósito  de  Meyerbeer,  O  hãckelismo  em  zoo- 
logia, O  dia  de  Camões,  Organisação  communal  da  Rússia  (co- 
meço), Treitschke  e  o  movimento  anti-semitico  n^AllemMnha 
(inacabado);  em  1881  —  Traços  sobre  a  vida  religiosa  no  Bra- 
sil, Ensaio  sobre  a  tentativa  criminal.  Fundamento  do  dir^to 
de  punir,  Uma  nova  intuição  do  direito  (começo).  Influencia  do 
saUo  na  litteratura,  Estudos  AUemães  (como  revista  mensal); 
em  1882  —  Mandato  Criminal  (these  de  concurso),  Estudos  Al- 
lemães  (livro),  Theoria  da  mora,  Direito  autoral.  Sobre  o  ar- 
tigo 10  do  Código  Criminal;  em  1883  —  As  Artes  e  a  industria 
artística,  As  Flores  perante  a  industria,  Préhistoria  da  litíera- 


484  HI8T0BIA  DA  LITTSBATXTEA.  KHAflTT.KTIlA 

tura  cUissica  aUeman^  além  da  polemica  com  o&  padres  do  Ma- 
ranhão; em  1884  —  Notas  sobre  a  evolução  emocional  e  men- 
tal do  homem,  Variações  anti-sociologicas  (princípio);  em  1885 
—  Introducção  ao  estudo  do  direito^  Prolegomenos  do  estudo 
do  direito  criminal;  em  1886  conclusão  da  —  Analyse  do  Ar- 
tigo iO  do  Código  Crimiyial,  formando  a  2.*  edição  dos  Me- 
nores e  Loucos  em  Direito  Criminal;  em  1887  —  Recordação 
de  Kant^  Traços  de  Litteratura  comparaday  Oliveira  Martins  e 
a  historia  do  Povo  de  Israel,  Variações  anti-sociologicas  (Qnal); 
em  1888  —  Commentario  ao  Código  Criminal  (inacabaido),  A 
Irreligião  do  futuro  de  Guyau,  Questões  Vigentes  de  Philoso- 
phia  e  de  Direito,  Deixemo-nos  de  lendas,  Self-govemment, 
polemica  com  o  Dr.  José  Hygino ;  em  1889  a  2.*  edição  dos 
Ensaios  e  Estudos. 

Ahi  ficam,  em  ordem  chronologica^  indicadas  as  principaes 
publicações  quo  fez  de  poesias  e  artigos  pelos  jomaes  ou  em 
avulso. 

Cumpre,  porém,  acrescentar,  para  melhor  comprehensão 
dos  factos,  que,  abandonando  quasi  completamente  a  poesia 
de  1870  em  diante,  atirou-se  mais  de  perto  ao  estudo  da  cri- 
tica, da  philosophia  e  do  direito,  coincidindo  com  isso  o  es- 
quecimento em  que  foi  deixando  os  seus  mestres  francezes, 
substituídos  pelos  allemães,  de  cuja  língua  se  apoderou  com- 
pletamepte,  acabando  por  fallal-a  e  escrevel-a  correcta  e  ele- 
gantemente. 

Retirado  na  Escada  desde  1871,  vítcu  principalmente  da 
advocacia  em  que  teve  amiudadas  occasiões  de  abrir  vio- 
lentas luctas  com  os  juizes  da  comarca  e  com  os  mandões 
políticos  locaes.  Montou  alli  uma  pequejia  typographia, 
onde  imprimiu  os  periódicos  da  epocha  escadense  citeuios 
linhas  atraz,  além  de  brochuras,  como  :  Brasilien  wie  es  ist, 
Ein  offener  Brief,  Discursa  em  m/mgas  de  Camisa,  Funda- 
memío  do  direito  de  punir,  Estudos  Allemães  (revista),  etc. 

Em  lucta  renhida  com  herdeiros  de  seu  sogro,  teve  a  casa 
cercada  por  capangas,  foi  insultado,  ameaçado  de  morte  e 
compellido  a  mudar-se  para  o  Recife. 

Era  em  outubro  de  1881.  Nos  começos  do  anno  seguinte 
entrou  em  concurso  para  o  logar  de  lente  da  faculdade  de 


HIBTOBIA  DA  UTTBKATinU.  BKAflILSnU.  485 

direito,  a  justa  scientiflca  mais  brilhante  de  que  rezam  os 
amiaes  académicos  de  Pernambuco.  Tirou  a  cadeira,  a  des- 
peito da  guerra  que  lhe  moveram,  a  favor  do  candidato 
Dr.  Augusto  de  Freitas,  o  Conselheiro  Sousa  Dantas  e  o 
Dr.  Sancho  Pimentel,  devido  principalmente  ao  alto  espirito 
de  justiça  do  imperador  D.  Pedro  n,  que  oppôz  embargos  á 
deslavada  prepotência  dos  politiqueiros  relapsos. 

Curto  foi  o  periodo  do  magistério  jurídico  de  Tobias  Bar^ 
retto  :  apenas  sete  annos  incompletos,  de  82  a  89,  sendo  que 
nos  últimos  dois  annos  a  moléstia  não  o  deixava  comparecer 
ás  aulas.  Na  Faculdade  regeu  as  cadeiras  de  philosophia  do 
direito,  direito  publico,  direito  criminal,  economia  politica  e 
pratica  do  processo.  Esta  ultima  foi  a  cadeira  que  lhe  coube, 
quando  de  substituto  passou  a  cathedratico. 

Um  de  seus  primeiros  actos,  após  sua  entrada  para  a 
Faculdade,  foi  estimulal-a  a  dirigir-se  ao  professor  Holtzen- 
dortf  em  apoio  da  fundação  Bluntschli.  A  carta,  para  tal  ílm 
endereçada  ao  sábio  allemão,  foi  redigida  na  sua  lingua  e  era 
uma  bellissima  peça.  Tobias  era  o  auctor. 

Pouco  depois  teve  occasião  de,  servindo  de  paranymphG 
ao  Dr.  Hermenegildo  de  Almeida,  recitar  seu  celebre  discurso 
sobre  a  Ideia  do  Direito,  em  que  apostolava  a  intuição  mo- 
nistico-darwiniana  d'essa  e  de  outras  crêações  humanas. 
Sahiram-lhe  ao  encontro  os  redactores  da  Civilisação,  órgão 
offlcial  dos  padres  do  Maranhão.  Travou-se  renhida  polemica, 
em  que  a  padralhada  intolerante  cobriu  dos  mais  feios  bal- 
dões o  professor  pernambucano. 

Prestou  aos  padres  poderoso  auxilio  o  Dr.  António  Carneiro 
da  Cunha,  sob  a  pseudonymo  de  Hunger,  Era  isto  em  1883. 
N'esfe  anno  appareceu  seu  bello  livrinho  —  Menores  e 
Loucos  em  Direito  Criminal,  de  que  tirou  segunda  edição 
mais  completa  em  1886.  N'este  ultimo  anno  abriu  o  curso  de 
litteratura  comparada,  no  qual  pronunciou  trinta  e  tantas  pre- 
lecções, em  pequena  parte  reproduzidas  nos  artigos  sob  o 
mesmo  titulo  publicados  no  Jornal  do  Recife  (1). 

Em  1888,  já  presa  da  moléstia,  que  o  tinha  de  victimar, 

(1)  Acham^se  na  edição  dos  Ettudoê  aUemãeê,  do  Rio  de  Janeiro. 


486  HIBTOBZA  DA  LITTEBATUSA  BBASILXIKA 

travou  com  o  Dr.  José  Hygíno  a  prolongada  discussão,  em 
que,  sob  o  pseudonymo  de  Beslier,  interveiu  furiosamente 
o  já  citado  Dr.  António  Carneiro  da  Cunha.  Este  conceituado 
medico  deliciava-se,  entre  os  maiores  insultos  e  impropérios, 
em  pintar  o  estado  mórbido  do  polemista  adverso,  no  claro 
intuito  de  o  atemorisar,  sabendo  como  os  doentes  graves  sáo 
impressionáveis  á  notificação  do  péssimo  estado  de  sua  saúde 
e  á  lembrança  da  morte  proximamente  irremediável. 
•  Carneiro  da  Cunha  publicava  pela  Província,  jornal  de 
seu  irmão  José  Mariano,  cousas  como  esta  :  «  Se  aos  olhos 
de  um  leigo  é  de  toda  a  evidencia  o  mal  que  o  persegue  e 
que  lhe  attenúa,  senão  faz  desapparecer,  a  imputação,  com 
maior  clareza  se  apresenta  a  mim  que  tenho  acompanhado 
pari-passu^  de  visti  aique  auditu,  a  decomposição  de  seu 
organismo.  » 

E'  incrível,  dito  de  sangue  frio  por  um  medico  intelligente, 
que  nada  tinha  a  vêr  com  a  questão  da  organisação  do  5cJ/- 
govemment,  objecto  da  disputa  entre  o  Dr.  José  Hygino  e 
seu  collega  da  Académica I E'  incrível;  mas  é  a  verdade  e  traz  a 
data  de  7  de  dezembro  de  1888. 

A  polemica  do  Dr.  José  Hygino  e  os  impropérios  do 
Dr.  Carneiro  da  Cunha  apressaram  no  escríptor  sergipano  a 
decomposição  do  organismo...  Os  seis  mezes  que  ainda  viveu 
em  1889  não  passaram  de  uma  dolorosa  agonia.  Não  sahia 
mais  á  rúa,  teve  de  recorrer  a  subscripções  publicas  para 
manter  a  grande  e  pesada  família. 

Ainda  assim  seus  desaffectos  não  o  deixavam  em  descanso; 
divertiam-se  em  passar  telegrammas,  dando-o  por  morto.  Li 
algumas  d'essas  falsas  noticias,  e,  ainda  aos  19  de  fevereiro, 
me  avisava  elle  :  «  Devo  prevenil-o  de  uma  cousa;  se  lhe 
mandarem  alguma  noticia  ou  telegramma,  dando-me  como 
morto,  não  acceite  logo.  Ha  por  aqui  gente  encarregada  de 
espalhar  falsas  noticias  n'este  sentido,  afim,  não  só  de  incom- 
modar-me,  como  de  difficultar  a  arrecadação  das  subscri- 
pções.,, »  O  alvo  príncipal  d'estas  era  tentar  uma  viagem  em 
busca  de  melhoras!  O  mal  progrediu,  a  viagem  não  se  fez, 
o  malogrado  escríptor  fallecia  na  noite  de  26  de  junho 


HI8T0BIA  !>▲  UTTBRATU&A  BRABTTilTKA  487 

de  1889.  Seis  dias  antes  tinha-me  soluçado  suas  magoas  n'6S- 
tas  palavras  pungentes  como  farpas  :  a  Estou  reduzido  ás 
proporções  de  pensionista  da  caridade  publica,..  »  Que 
exemplo  a  futuros  escriptores  nas  regiões  brasilicas  1 

Dados  os  traços  geraes  de  sua  vida,  é  tempo  de  vêr  o 
homem  de  lettras  :  foi  poeta,  orador  e  critico. 

Destaque-se  a  figura  do  primeiro. 

Quando  se  estuda  Tobias  Barretto,  na  qualidade  de  poeta, 
a  primeira  questão  a  discutir  é  a  de  sua  precedência  ou  não 
a  Castro  Alves  como  fundador  da  escola,  intitulada  con- 
doreira  pelos  críticos  fluminenses. 

Todos  eram  levados,  até  certo  tempo,  a  afflrmar  a  antece- 
dência do  poeta  bahiano;  mas  tal  asserto  fundava-se  em 
meras  presumpções  e  na  illusoria  apparencia  dos  factos. 
Castro  Alves  tinha  deixado  o  Recife  em  1867,  passado  á  Bahia 
e  logo  após  ao  Rio  de  Janeiro  e  S.  Paulo,  onde  se  tornara  conhe- 
cido, crêara  adeptos  e  passara  por  iniciador  de  um  movi- 
mento de  que  fora  apenas  co-paurticipe.  Castro  Alves,  além 
de  ser  bahiano,  a  gente  mais  feliz  do  Brasil,  era  filho  de  um 
lenteJ  da  Academia  de  medicina  da  cidade  do  Salvador,  per- 
tencia a  uma  família  altamente  collocada,  tinha  excellenteis 
relações,  entrava  na  vida  rodeado  de  facilidades.  Seu  amigo, 
o  poderoso  politico  e  orador  —  Fernandes  da  Cunha,  inci- 
tara-o  a  ir  continuar  o  curso  jurídico  em  São  Paulo  e  déra-lhe 
carta  de  recommendaçáo  para  seu  có-religionario,  o  celebre 
José  de  Alencar,  potencia  litteraría  de  primeira  ordem  no 
Rio  de  Janeiro.  O  auctor  de  Iracema  recebeu  o  poeta  á'0 
Navio  Negreiro  na  Tijuca  com  honras  principescas.  Para  o 
apresentar  ao  publico  do  Rio,  o  que  importa  dizer  ao  publico 
brasileiro,  usara  do  expediente,  muito  acertado  aliás,  de 
dirigir  a  seu  respeito  uma  carta  pela  imprensa  a  Machado  de 
Assis,  que  respondeu  no  mesmo  tom  encomiástico,  enalte- 
cendo os  méritos  do  poeta.  Este,  já  muito  conhecido  no  Re- 
cife e  na  Bahia,  tornou-se  de  súbito  popular  no  Rio  e  Sio 
Paulo,  para  onde  pouco  depois  seguiu.  Era  um  bello  exem- 
plsur  de  moço,  fino,  esbelto,  elegante,  apto  a  conquistar  todas 
as  sympathias.  Os  annos  de  1868  e  69,  que  passou  nas  duas 
grandes  capitães  do  Sul,  foram  para  elle  de  ruidosos  e  mere- 


488  mSTOBIA  DA  LITTBRATU&A.  BBABILEIKA 

eidos  triumphos.  A  publicação  das  Espumas  Fluctuaníes 
pouco  após,  1870,  completou-lhe  a  nomeada,  ainda  mais  ac- 
crescida  por  sua  morte,  quasi  trágica^  logo  no  anno  seguinte. 
Quem  poderia  acreditar  que  tivesse  elle  em  Tobias  Barretto, 
que  se  deixara  ficar  no  Recife  e  logo  em  seguida  se  asylara 
na  obscura  Escada,  um  antecessor? 

E  eis  ahi  como  um  facto  incontestável,  de  vulgar  noticia 
em  Pernambuco,  ílcou  esquecido  e  tem  de  ser  demonstrado 
para  ser  restituido  á  historia.  A  publicação  dos  Dias  e  Noites, 
onze  annos  posterior  á  das  Espumas  Pluctuantes,  contribuiu 
nâo  pouco  para  o  fatal  esquecimento. 

Tobias  era  mais  velho  oito  annos  que  a  auctor  de  ijon- 
zaga  e  em  Sergipe,  Bahia  e  Pernambuco  o  antecedera  na 
poesia. 

Para  proval-o  basta  cotejar  factos  e  datas.  Felizmente  exis- 
tem versos  de  Castro  Alves  de  1860  nos  folhetos  commemo- 
rativos  dos  festejos  annuaes  do  Gymnasio  Bahiano,  onde  es- 
tudou preparatórios  o  futuro  auctor  da  Cachoeira  de  Paulo 
Affonso.  Por  elles  decide-se  peremptoriamente  a  questão  de 
precedência. 

Os  falsificadores  da  historia  em  prol  do  poeta  bahiano  es- 
quecem-se  de  que  este  em  1860  era  um  menino  de  treze  e 
em  1862  um  rapazinho  de  quinze  annos,  ao  passo  que  o 
poeta  sergipano  na  primeira  d'aquellas  datas  era  j4  um 
moço  de  vinte  e  um  annos  e  na  segunda,  quando  chegou  a 
Pernambuco,  tinha  já  vinte  e  três,  era  um  latinista  eximio  e 
estava  na  plenitude  do  talento.  Ainda  mais  :  nas  Espumas 
Fluctuante^  os  versos  mais  antigos  datam  de  1864,  o  que 
mostra  ter  o  auctor  desprezado  suas  composições  anteriores, 
por  não  possuírem  a  tonalidade  que  mais  tarde  deu  a  seu 
talento  (1). 

íl)  Previno  uma  objecç^  :  na  edição  de  1884  das  Etpumoê,  da  Casa 
Garnier,  a  poesia  —  Immenêiê  orbibug  anguii  traz  a  data  do  Rio  de  Janeiro 
em  1860.  Ora,  toda  a  gente  sabe  que  Castro  Alves  só  veiu  ao  Rio  em  1888. 
Aquillo  é  erro  typographico  ;  a  poesia  vem  na  1>  e  na  2.'  edições  das  Etpa»- 
mas  com  a  data  de  13  de  outubro  de  1869.  Igualmente  a  poesia  —  Ao 
Mecting  do  Comité  du  Pain  traz  n^aquella  edição  Garnier  a  data  de  1861. 
E'  outro  erro  ;  a  poesia,  que  naõ  vem  na  1/  e  na  2.*  edições  da  Bahia,  é  de 
1871  e  refere-se  á  guerra  franco-aUeman  de  1870-1871. 


HI8T0BIA  DA  LITTIRATinEUk  BltABn«inU  489 

Aqui  vae  a  poesia  de  Castro  Alves,  em  1860,  dedicada  ao 
Dois  de  Julho  : 

((  Eis  que  chega-se  o  dia  feliz 
Para  nós  Brasileiros  ãeis, 
Que  com  força  e  heróico  valor 
Rebentamos  os  jugos  crúeis. 

Eis  que  chega-se  o  dia  no  qual^ 
Derretidos  os  ferros  servis, 
Retomamos  a  nossa  cidade 
Ao  resôo  dos  fortes  fuzis. 

Este  dia  em  que  nós  orgulhosos 
Vencedores  no  grão  Pirajá 
Destroç€unos  com  ferro  e  com  fogo 
Portuguezes  que  erravam  por  cá. 

Dia  em  que  nossos  pais  bem  contentes 
Se  apossando  de  toda  a  Cidade, 
Entre  vivas  immensos  bradaram 
Liberdade  ao  Brasil!  -—  Liberdade! 

Ja  nosso  peito  liberto 
Com  amplitude  batia, 
E  absorta  nossa  mente 
Sobre  a  paUia  revolvia. 

E  nosso  povo  abalado 
Té  dentro  do  coração 
Grandes  brados  repetia 
Com  energia  e  paixão. 

Foi  assim!...  a  liberdade 
Desta  vasta  regifio 
Indelével  se  plantou 
Do  povo  no  coraçfto  »  (1). 

Nada  ha  n^eistes  versos  que  indique  o  futuro  eslylo  do 
auctoiF  áV  Navio  Negreiro;  e  quam*,  em  1860,  escrevia  por  essa 

(1)  Poeiuxê  e  alloeuçõe*  reeUadoê  noê  outeiroê  ou  fut€i8  literárias ^ 
haeidoM  no  Gymnoêio  Bahiano  a  doiê  de  julho  e  sete  de  setembro  do 
corrente  ouino.  Bahia,  typographia  do  Diário,  1860,  pag.  10. 


490  HISTORIA  DA  LITTB&ATUBA  BBA8ILIIRA 

forma,  dois  annos  mais  tarde,  ainda  quasi  menino  e  simples 
preparatorianos  não  podia  ter  sido  o  iniciador  de  um  novo 
momento  litterario. 

Só  dos  dezesete  annos  (1864)  em  diantes  soò  a  influencia  de 
Tobias  no  Recife,  o  futuro  auctor  das  Vozes  (T Africa  tomou 
o  võo  em  que  depois  subiu  tcLo  alto. 

Para  cortar  a  questáo,  não  seria  preciso  mais  do  que  repro- 
duzir n'esle  logar  os  versos,  em  1861,  na  mesma  Bahia  pelo 
poeta  sergipano  consagrados  ao  mesmo  Dois  de  Julho,  e  de 
que  restam  estas  estrophes  : 

((  Na  frente  dos  bellos  dias, 
Que  trajam  mais  viva  luz, 
Desfilando  entre  harmonias 
No  vasto  Império  da  Cruz, 
Passa  um  dia  sublimado, 
Qual  guerreiro  namorado, 
.  Valente,  bravo  e  gentil, 
Que  traz  a  gloria  estampada 
Na  face  meio  embaçada 
Pelo  alento  do  fuzil. 

N'este  dia  sempre  novo, 
Entre  os  applausos  do  mar. 
Entre  os  niidos  do  povo, 
Vai  a  Cidade  falar... 
Actriz  magestosa  e  bella, 
Falando  só  e  só  ella 
Diante  de  duas  nações. 
Representa  nm  alto  feito, 
Que  arranca  bravos  do  peito 
De  emmudecidos  canhões...  » 

Aqui  já  se  sente  o  estylo  que  se  apurou  mais  tarde  no  Génio 
da  Hwnanidade,  nos  Voluntários  Pernambucanos,  na  Vista 
do  Reciie.  Bastava  só  isto  para  matar  a  questáo;  mas  existe 
cousa  melhor ;  existem  versos  da  phase  sergipana  e  bahiana 
do  auctor  dos  Dias  e  Noites,  quando  o  seu  talento  era  natural, 
espontâneos  virgem  ainda  de  qualquer  influencia  do  poeta 
das  Contemplações.  As  tendências  condoreiras  eram  n'elle 


HI8T0BIA.  DA  UmiATUSA  B&ABILBULA.  491 

ingenitas,  sem  os  exageros  posteriores  a  1861,  depois  que,  o 
moço  brasileiro  lèra  na  Bibliotheca  da  Bahia  as  obras  do 
genial  vidente  da  Lenda  dos  Séculos  e  se  apaixonara  por  ellas. 
D^entre  taes  poesias,  das  mais  antigas  escríptas  por  Tobias, 
antes  da  phase  do  Recife,  destacarei  apenas  Scéna  Sergi- 
panay  O  Beiia-flór  e  Anhélos,  que  se.  devem  contar  entre  as 
mais  bellas  devidas  á  sua  penna.  A  primeira  não  passa  de 
fragmento  de  uma  composição  mais  vasta  intitulada  —  Ser- 
gipe, de  que  se  salvou  a  estrophe  inicial,  perderam-se  algu- 
mas que  se  lhe  seguiam  e  as  estrophes  flnaes,  restando 
apenas  na  memoria  do  poeta,  além  da  primeira,  as  estancias 
centraes  descriptivas  da  scèna  do  banho  nos  riachos  do  sertão. 
E'  de  fins  de  1858,  escripta  na  Itabayana  e  diz  : 

«  Vede  a  bella  miserável 
Da  minha  pátria...  Eil-a  aqui. 
Falai-lhe...  Como  é  affavel! 
Como  vos  chama!  Segui ; 
Qu'ella  inda  tem  seus  verdores, 
Seus  rebanhos  e  pastores 
Desgarrados  pelo  vai... 
Tem  alli  macia  alfombra 
N*aquelle  roupão  de  sombra 
Que  desveste  o  quichabal... 


E  nas  almas  das  donzellas 
Toda  a  graça  se  contem  ; 
Quando  eu  brincava  com  eUas 
Eu  era  virgem  também... 
Por  tardes  de  bello  estio 
Via-as  despir-se  no  rio, 
Não  tínham  pôjo  de  mim... 
Meus  olhos  se  deslumbravam 
De  formas  que  se  arquôavam 
Como  lyras  de  marfim. 

Quando  a  dona  do  vestido 
Que  eu  me  apressava  em  levar, 
Dizia  :  u  Como  é  sabido! 
Vem  trazer  para  me  olhcir...  n 


1 


492  HISTORIA  DA  LITTXKATnSA  BKABILKIltA 

Vendo-me  ent&o  pequenino  : 
c(  Quem  faz  conta  de  um  menino?... 
Criança,  de  que  te  influés?  » 
Gritavam  corpinhos  húmidos  ; 
Esta  aqui  —  de  seios  túmidos, 
Aqueila  —  de  olhos  azúes... 

Nem  já  me  lembra  qual  era, 
Que,  em  mim  se  arrimando  ent&o, 
«  Meu  noivo,  dizia  :  —  espera!  » 
Outras  vezes  :  «  meu  irm&o!  » 
Como  acabava  depressa 
Tanto  amor,  tanta  promessa 
De  coração  \irginal!... 
Ah!  bellos  tempos  ditosos 
Em  que  os  enganos  sfio  gozos 
E  os  beijos  n&o  fazem  mal! 

Um  beijo  é  todo  o  segredo 
Deposto  na  linda  mfto ; 
Milagre!...  pomba  sem  medo. 
Brincando  com  o  gavião... 
Meio  vergada  em  desleixo. 
Com  a  innocencia  em  que  a  deixo. 
Na  areia  imprimindo  o  pé. 
Com  certa  graça  fraterna 
Sufralda,  descobre  a  perna, 
E  me  olha  e  diz  :  <(  o  que  é?  » 

Fica-lhe  a  bocca  entreaberta. 
Dizendo  sorrindo  assim ; 
Meu  olhar  se  desconcerta... 
Porque  não  foge  de  mim? 
Tomo-lhe  as  mãos  pequeninas. 
Esguias,  brancas,  divinas, 
E,  n'um  ligeiro  abraçar, 
Volvendo  o  corpo  em  contrario, 
Rebenta-se-lhe  o  rosário, 
E  ella  se  pOe  a  chorar... 

Chega-se  á  margem  sombria. 
As  auras  partem  de  lá ; 


HI8T0BIA  DA  LITTBRATUBA  BKA8ILSIBA  493 

Rolam  na  relva  macia. 
Trepam  nas  ramas  da  ingá. 
E,  húmidas  como  o  focinho 
De  mimoso  cachorrinho, 
Farejam-lhe  a  *nivea  mão, 
£  vêm  ganir-me  no  ouvido, 
Como  um  quebrado  tinido 
Das  cordas  da  solid&o...  n 


Tinha  mais  de  desenove  annos  o  moço  professor,  quando 
escreveu  esses  versos,  reveladores  de  um  poeta  completo,  se- 
nhor da  métrica  e  da  lingua;  e  o  seu  futuro  emulo  não  pas- 
sava então  de  uma  criança  de  onze  annos,  perdida  ainda  nas 
primeiras  lettras. 

De  1860  é  a  famosa  odesinha  —  O  Beiia-flór,  uma  das  pro- 
ducções  mais  lindas  da  lyrica  brasileira.  Tinha  o  auctor  vinte 
e  um  annos,  quando  a  imaginou;  era  um  quadro  de  género, 
cujas  condições  muitas  vezes  me  reproduziu,  recitando  as 
quatro  estrophes  centraes,  unicetô  que  conservava  de  côr.  A 
repetidos  rogos,  aproveitando  um  momento  feliz,  o  poeta 
recompoz  o  quadro,  addicionando  ás  quatro  sextilhas  de  Ser- 
gipe as  três  do  ooaneço  e  as  três  do  flnal. 

Isto  em  1870;  mas  é  digno  do  nota  que  as  estancias  dez 
annos  mais  velhas  sêLo  as  mais  bellas. 

Eis  aqui  : 

u  Era  uma  moça  franzina, 
Bella  visão  matutina 
D'aquellas  que  é  raro  vôr, 
Corpo  esbelto,  eólio  erguido. 
Molhando  o  branco  vestido 
No  orvalho  do  amanhecer. 

Vêde-a  lá  :  timida,  esquiva... 
Que  bocca!...  é  a  flor  mais  viva, 
Que  agora  está  no  jardim  ; 
Mordendo  a  polpa  do  lábio, 
Como  quem  suga  o  résabio 
Dos  beijos  de  um  chenibiml 


494  HI8T0BIA  DA  UTTMBlLTUBJl  SBABILEOUl 

Nem  viu  que  as  auras  gemeram 
£  os  ramos  estremeceram, 
Quando  um  pouco  alli  se  ergueu... 
Nos  alvos  dentes,  viçosa. 
Parte  o  talo  de  uma  rosa 
Que  docemente  colheu. 

£  a  fresca  rosa  orvalhada, 
Que  contrasta  descorada 
De  seu  rosto  a  nivea  tez, 
Beijando  os  maõsinhas  suas. 
Parece  que  diz  :  —  nós  duas!... 
£  a  brisa  emenda  :  —  n6s  trez!... 

Vae  nesse  andar  descuidoso, 
Quando  um  beijarílôr  teimoso 
Brincar  entre  os  galhos  vem, 
Sente  o  aroma  da  donzella, 
Perneira  na  face  d'ella 
£  quer-lhe  os  lábios  também. 

Treme  a  virgem  de  sorpresa, 
Leva  do  braço  em  defesa. 
Vai  com  o  braço  a  ílor  da  m&o ; 
Nas  azas  d*ave  mimosa 
Quebra-se  a  fiôr  melindrosa, 
Que  rola  esparsa  no  chão. 

Não  sei  o  que  a  virgem  íala, 
Que  abre  o  peito  e  mais  trescaia. 
Do  trescalar  de  uma  ílór  : 
Vôa  em  cima  o  passarinho... 
Vae  já  tocando  o  biquinho 
Nos  beiços  de  rubra  cór. 

A  moça,  que  se  envergonha 
De  correr,  meio  risonha 
Procura  se  desviai* ; 
N'este  empenho  os  seios  ambos 
Deixa  vér  :  inconhos  jambos 
De  algum  celeste  pomarl... 


HI8T0BIA  DA  LimBÂTURA  BlUSILBlltA  495 

Forte  lucta,  lucta  incrível 
Por  um  beijol  E*  impossível 
Dizer  tudo  que  se  deu. 
Tanta  cousa  que  se  esquece 
Na  vidai  Mas  me  parece 
Que  o  passarfiQho  venceol... 

Conheço  a  moça  franzina 
Que  a  fronte  cândida  inclina 
Ao  sopro  de  casto  amor  : 
Seu  rosto  fica  mais  lindo. 
Quando  eila  conta  sorrindo 
A  historia  do  beija-flôr.  » 

As  quatro  sextilhas  intermédias,  em  que  se  desenha  a  enar- 
guêia  da  moça  com  a  rosa,  perseguidas  pelo  colibri,  que  ora 
peneirava  sobre  a  ílôr  ora  sobre  os  laibios  da  donzella,  sáo  de 
puro  estylo  hugoano  nos  bons  tempos  das  Odes  e  Baladas  e 
das  Orientaes,  Sáo,  como  disse,  de  1860,  quando  Castro  Alves 
escrevia  ainda  no  detestável  gosto  dos  versinhos  ao  Dois  de 
Julho  atraz  citados.  E  cumpre  relembrar  que  então  o  seiu 
rival  de  Sergipe  nâo  sabia  o  íranoez  e  de  Victor  Hugo  nem 
o  nome  conhecia. 

Em  Anhélos,  escripta  em  1861,  na  Bahia,  nos  dias  de  deses- 
peranças, já  o  poeta  conhecia  o  grande  mestre  das  Contem- 
plações; mas  ainda  não  lhe  sacrificava  a  sua  individualidade. 

Anhélos  foi  enviada  da  capital  bahiana  ao  maestro  José  da 
Annunciaçáo,  morador  na  Itabayana  em  Sergipe,  que  a  pôz 
em  musica.  Desde  então  é  alli  cantada,  como  pude  verificar. 

E'  um  brado  de  revolta  de  um  espirito  já  abalado  pelos 
desgostos  e  pela  philosophia  do  século.  Ouçam  este  repto  de 
moço  : 

((  hTeste  mundo,  juncado  de  enganos, 
O  prazer  onde  cichar  eu  n&o  sei... 
Que  é  das  flores,  que  a  vida  períumanii 
Venturosos  da  terra?  Dizei! 

Não  olheis  para  a  sombra  que  passa ; 
Quero  triste  viver,  ôrmo  e  só... 


496  HISTORIA  DÁ  LITTEBATURA.  BBA8ILBIBA 

Minha  noiva  me  espera  nas  nuvens, 
Minha  gloria  das  campas  no  pó. 

Nem  tenteis  impedir-me  a  passagem. 
Que  "não  curvo  a  cabeça  a  ninguém  : 
Para  entrar  nos  combates  da  sorte 
Tenho  azas  e  garras  também. 

Sou  um  filho  das  plagas  selvagens, 
Onde  o  peito  não  teme  bater  ; 
Aprendi  os  queixumes  das  rolas, 
E  a  cascata  ensinou-me  a  gemerl 

Preste,  preste  a  lançar-me  ás  alturas, 
Tenho  as  rédeas  da  morte  na  m&o. 
Pelo  trilho  que  as  águias  abriram 
Trás  as  anciãs  do  meu  coraç&o. 

• 

Os  tormentos  da  vida  me  cabem, 
Os  espinhos  da  rosa  são  meus  : 
Mas  não  posso  encontrar  quem  me  diga 
Onde  est&o  os  thezouros  de  Deus. 

Interpello  as  estreitas  que  choram, 
£  as  estreitas  não  sabem  dizer; 
Falo  aos  ventos  e  os  ventos  respondem  : 
Também  nós  procuramos  saber... 

E'  assim  :  tudo  tem  sua  magou, 
Tudo  tem  sua  sombra  de  horror. 
Que,  d^éhvolta  com  a  sombra  da  terra, 
Vae  lançar-se  nos  pós  do  Senhor!...  »  (1) 

Aqui  sente^se  já  a  mâx>  firme  e  a  intelligencia  desanuviada 
de  um  espirito  que  pensa.  Â  questão  de  precedência  está  deci- 
dida; e,  se  alguma  duvida  podesse  ainda  restar,  seria  infalli- 
velmente  dissipada  per  —  Ã'  Vista  do  Recife,  escripta  abordo 
do  paquete,  que  conduziu  o  poeta  a  Pernambuco,  e  alli  publi- 
cada pouco  após  a  sua  cliegada  em  1862.  Foram  os  primeiros 
voos  verdadeiramente  condoreiros  na  poesia  brasileira.  Foi 

(1)  Vem  imcompleta  e  com  data  errada  nos  Dias  e  Noites,  pag.  106. 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATCBA  BRASILBISA  497 

onde  Castro  Alves  principiou  a  aprender  e  com  elle  Victo- 
ríano  Falhares  e  todos  os  que  depois  os  seguiram.  Aprecie  o 
leitor  : 

((  E'  a  cidade  valente 
Brio  da  altiva  nação, 
Soberba,  illustre,  candente 
Como  uma  immensa  explosão  : 
De  pedra,  ferro  e  bravura. 
De  auror€^  de  formosura. 
De  gloria,  fogo  e  loucura... 
Quem  é  que  lhe  põe  a  m&o? 

Magoas  tem  que  estão  guardadas. 
Quando  as  vingar  é  sem  dó! 
Raça  das  Romãs  tombadas, 
Das  Babylonias  em  pó, 
Quer  ter  louros  que  reparta ; 
Vencer,  morrer  não  na  farta... 
Grande,  d'altura  de  Sparta, 
Aflronta  o  mundo  ella  só!... 

Com  os  seios  entumescidos 
Do  gérmen  de  muito  heroe, 
Tem  nos  olhos  aguerridos 
Fulminea  luz  que  destroe. 
Detesta  a  classe  tyranna, 
Comsigo  mesma  inhumana, 
Vê  seu  sangue  que  espadana, 
Ri  de  raiva,  e  diz  :  não  dóe!... 

No  seu  pisar  progressivo 
Ostenta  um  certo  desdém  ; 
Suspendendo  o  collo  altivo. 
Não  rende  preito  a  ninguém. 
Lô  no  céo  seu  fado  escripto; 
Quando  o  Brasil  solta  um  grito, 
Franze  a  testa  de  granito, 
E  diz  ao  estrangeiro  :  vem!... 

Sim,  eu  vejo,  ainda  a  espada 
Na  tua  dextra  reluz. 
Cabocla  civilisada 
De  pernas  e  braços  nús, 

HISTORIA  II  32 


498  HISTORIA  DA  LITTEBATURA  BRA6ILEIBA 

Cidade  das  galhardias, 
Que  no  teu  puhho  confias, 
Coeva  de  Henrique  Dias, 
Guerreira  da  Santa  Cruz! 

Estremecida,  ridente, 
Como  que  esperas  alguém. 
Ouves  um  som  de  torrente? 
E'  a  grandeza  que  vem... 
Teu  hcdito  alimpa  os  ares, 
Por  cima  do  azul  dos  mares 
Prolongam-se  os  teus  olhares. 
Que  vão  namorar  além... 

Não  te  pegam  em  descuido  ; 
Teu  movimento  é  fatal. 
£  a  liberdade,  esse  fluido, 
Que  forma  o  gladio,  o  punhal, 
Nos  teus  contornos  ondula, 
Nas  tuas  veias  circula, 
E  vai  chocar-te  a  medula, 
Dos  ossos  de  pedra  e  cal. 

E'  um  lidar  incessante, 
Cai-te  da  fronte  o  suor ; 
Ferve  tua  alma  brilhante, 
E  tudo  é  bello  em  redor. 
O  assombro  lambe-te  a  planta, 
Na  estrella,  que  se  alevanta, 
Pousado  um  archanjo  canta  : 
Vai  ser  do  mundo  a  maior! 

Tens  aberta  a  tua  historia, 
Laboras  como  um  crysol ; 
Como  um  estygma  de  gloria, 
Nos  hombros  queimarte  o  sol. 
A  guerra,  a  guerra  é  teu  cio, 
Fera!...  O  estrangeiro  frio 
Se  aquece  ao  beijo  macio 
Dos  teus  lábios  de  arrebol. 

Assopras  nas  grandes  tubas. 
Que  despertam  as  nações  ; 


HIBTOEIA  DA  UTTEEATITSA  BEA8ILSIBA  499 

£riçam-se  as  férreas  jubas, 
Uivam  as  revoluções... 
Teus  ediâcios  doirados 
Váo-se  erguendo,  penetrados 
Da  voz  dos  Nunes  Machados, 
Do  grito  dos  Camarões!... 

Com  a  morte  bebes  a  vida ; 
N&o  te  ab£das,  não  te  dóesi 
D'oiro  e  luz  sempre  nutrida. 
Novas  idéas  remóes, 
£'  que  Ã  voz  das  liberdades, 
Calcadas  as  potestades. 
Germinam,  brotam  cidades 
Do  sepulcbro  dos  heroes! 

Possa  a  coragem  de  novo 
Teu  bafo  ardente  inspirar, 
£  a  gloria  sahir  do  povo, 
Como  tu  surges  do  mar... 
O  coração  te  o  adivinha. 
De  fome  o  ferro  defínha, 
Ruge  o  gladio  na  bainha. 
Como  na  gruta  o  jaguar... 

Sejam  meus  votos  aceitos, 
Dá-me  ver  tuas  £u;ções, 
Dá-me  sugar  esses  peitos, 
Que  amamentaram  leões... 
Sahiste  nua  das  matas. 
Não  temes,  não  te  recatas ; 
Contra  a  frota  dos  piratas 
Açula  os  teus  aquilões...  » 

Diante  d*ista  cessam  todas  as  duvidas,  e  deive-se  ir  adiante 
a  estudar  no  seu  intimo  a  indole  do  poeta. 

A  quem  o  aprecia  historicamente,  e  sob  o  critério  evolutivo, 
é  impossível  que  se  não  imponha  a  verdade  de  ter  elle,  n'esse 
caracter,  atravessado  três  períodos  bem  distinctos  :  phase 
sergipano-bahiana  (1857-62),  phase  do  Recife  (1862-71),  phase 
final  da  Escada  e  dos  posteriores  tempos  na  capital  pernam- 
bucana (1871-87).  Esta  ultima  data,  anterior  dois  annos  á  sua 


500  HISTOBIA  DA  LITTEBATX7SA  BKASILEIBA 

morte,  é  indicada  pelo  facto  de  ser  aquejla  em  que  escreveu 
sua  derradeira  poesia,  intitulada  —  A'  Augiista  Cortesi  (1). 

Do  primeiro  periodo,  cuja  característica  parece  ser  a  de  um 
lyrismo  singelo,  naturalistico,  campesino,  restam,  além  de 
pequenos  trechos  esparsos  e  das  poesias  atraz  referidas,  os 
curiosos  versos  brancos  que  occorrem  nos  Dias  e  Noites,  sob 
o  titulo  —  Deusa  Ignota,  interessantes  como  documento  psy- 
chologico  (2).  E'  o  periodo  ante-hugoano,  apto  a  deixar  sor- 
prender  o  talento  e  a  alma  do  poeta  em  toda  a  sua  esponta- 
neidade (3). 

Do  segundo,  peculiarmente  condoreiro,  cuja  característica 
é,  ao  lado  de  muitas  cousas  doces  e  deliciosas,  muito  arrouba- 
mento,  nomeadamente  nas  odes  marciaes,  servem  de  docu- 
mentos as  poesias  escriptas,  a  datar  de  —  A'  Vista  do  Recife, 
dentro  da  phase  indicada.  As  principaes  são  :  —  Pela  Morte  de 
um  amigo,  —  A'  Polónia,  —  Capitulação  de  Montevideo,  — 
Voos  e  Quedas,  —  Voluntários  Pernambucanos,  —  Leões  do 
Norte,  —  Sete  de  Setembro,  —  Em  nome  de  uma  pemam- 
buÀ^ana,  —  Lenda  Rústica,  —  Lenda  CiM,  —  Génio  da  Hu- 
manidade, —  Os  Tabaréos,  Os  Trovadores  das  Selvas,  ele. 

Do  terceiro,  cuja  característica  é  o  abandono  do  pathos  e 
da  declamação  hogoana  e  a  volta  á  simplicidade  primitiva, 
apenas  reforçada  pelo  saber  e  pela  experiência,  são  exempli- 
ficações todas  as  peças  posteríores  a  melados  de^  1870,  como  : 
—  Que  mimo!  —  Anno  Bom,  —  Impossivel,  —  Nada^  —  Libia 
Drog,  —  Augusta  Cortesi,  —  Sempre  bella,  —  Ignorabimus, 
Decadência,  —  Variação  a  Heinc,  —  Incrédula,  Ainda  e 
Sempre,  —  Por  brincadeira,  —  Giuseppína  de  Senespleda,  — 
D.  Hermina  de  Araújo,  —  Desanimo,  —  Urna  Sergipana,  ele. 

Para  se  bem  comprehender  a  funcçáo  da  escola  do  Recife,  a 
que  me  venho  ora  reportando,  cumpre  não  esquecer  que,  ao 
tempo  de  seu  inicio,  a  poesia  nacional  atravessava  um  mo- 
mento de  decadência.  Se  se  representar  por  uma  extensa 

(1)  Dias  e  Noit'*8,  edição  de  1893,  pag.  11. 

(2)  Op.  cit.  pag.  258. 

(3)  A  este  periodo  pertencem  tres  modinhas  que  se  cantam  em  Serpnpc  e 
me  foram  agora  enviadas:  Eu  amo  o  genco...  Houoe  tempo  em  que  meus 
olhoÊ.,.  Quando  á  mesa  dos  praseres...  que  sahirâo  na  próxima  edicâodos 
Dias  e  Noites. 


HISTOBIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA  501 

linha  curva,  cheia  de  altos  e  baixas  a  evolução  geral  da  poesia 
brasileira,  se  verá  que  ella  começa  rasteira  em  1592  ou  93  na 
Prosopopéa  de  Bento  Teixeira;  eleva-se  um  pouco  de  1670 
a  96  em  Botelho  de  Oliveira  e  Gregório  de  Mattos;  descamba 
nos  successores  doestes  da  Academia  dos  Esquecidos;  eleva-se 
de  novo  de  1760  ou  65  a  1792  com,  a  escola  mineiray  com 
Cláudio,  Alvarenga  Peixoto,  Gonzaga,  Silva  Alvarenga;  desce 
em  seguida  com  os  últimos  poetas  clássicos  de  1792  a  1830 
ou  36;  torna  a  subir  com  a  primeira  e  a  segunda  geração  dos 
românticos  de  1836  a  1852  ou  pouco  depois;  descamba  de 
novo,  com  os  successores  de  Alvares  de  Azevedo,  até  1863; 
sobe  então  com  o  advento  de  Tobias,  Castro  Alve^,  Falhares, 
Luiz  Guimarãies  no  norte,  e  Varella,  Machado  de  Assis,  Luiz 
Delfino  no  sul.  Como,  porém,  Machado  só  mais  tarde,  na 
qualidade  de  romancista,  é  que  deu  toda  a  medida  de  seu 
talento,  e  Luiz  Delfino,  mais  tarde  ainda,  na  qualidade  de 
parnasiano^  é  que  se  revelou  poeta  de  primeira  ordem,  e 
Varella  não  teve  força  para  crôar  escola,  não  passando  de  um 
continuador  dos  tendências  de  Alvares  de  Azevedo  combi- 
nadas com  as  de  Casimiro  de  Abreu;  é  forçoso  concluir  que 
á  escola  condoreira  coube  representar  os  últimos  fulgores  do 
romantismo  e  fechar-lhe  o  cyclo  evolutivo.  A  linha  represen- 
tativa do  desenvolvimento  poético,  após  os  condoreiros,  baixa 
de  novo  de  1870  ou  71  até  1879  ou  80,  voltando  a  subir,  com 
os  parnasianos,  Delfino,  Bilac,  Raymundo  Correia,  Alberto 
de  Oliveira,  Theophilo  Dias  e  com  os  divergentes,  Murat, 
Mucio  Teixeira,  e  outros,  até  encontrEu*  Cruz  e  Souza  e  os 
symbolistas,  não  se  podendo,  por  emquanto,  dizer  se  vae 
em  marcha  ascencional  ou  depressivci,  ao  findar  o  século  xix 
e  iniciar-se  o  século  xx. 

Ao  despontar  o  movimento  hugoano,  os  grandes  poetas  ro- 
mânticos brasileiros  estavam  emmudecidos  pela  morte,  ou 
pelo  cansaço.  O  tom  geral  da  poesia  era  o  das  chatas  lamurias 
de  um  lamartinismo  de  terceira  ou  quarto  mão. 

Na  politica  acabava  de  apodrecer  no  governo  o  velho  par- 
lidarismo  conservador,  que  nos  asphyxiava  desde  1848.  A 
questão  Christie,  as  com  o  Estado  Oriental  e  com  o  Paraguay 
produziam  no  paiz  um  enthusiasmo  desusado.  Lá  fora,  no 


502  HISTOBIA  DA  LITTERATtTBA.  BBABILBIRA 

grande  mundo,  estavam  em  todo  o  seu  auge  a  revolução  da 
Polónia,  a  guerra  dos  franceses  no  México,  a  guerra  civil  dos 
Estados-Unidos.  Os  movimentos  precursores  da  unificação  da 
Itália  e  da  Allemanha,  de  Sadowa  e  de  Sedan,  da  tomada  de 
Roma  e  da  revolução  d'Hespanha  andavam  no  ar.  Era  um 
período  de  agitação  geral.  Na  poesia  universal  tinham  se  ca- 
lado as  grandes  vozes  de  Shelley,  Byron,  Musset,  Vigny,  La- 
martine,  e  ainda  não  se  distinguicim  as  de  Leconte  de  Lâsle, 
Prudhomme,  Goppée.  Só  a  forte  trompa  épica  de  Victor 
Hugo  resoava  nos  quatro  pontos  do  horizonte,  proclamando 
os  abusos  dos  reis  e  as  esperanças  dos  povos.  Era  natural 
que  o  ouvissem  no  Brasil;  e  foi  o  que  aconteceu  no  Recife. 
Tobias,  Castro  Alves  e  Victoriano  Falhares,  deixando  o  sub- 
jectivismo piegas  da  poesia  corrente,  interessaram-se  em  seus 
cantos  peleis  questões  publicas,  os  factos  políticos  e  sociaes, 
as  aspirações  geraes  humanas  ou  meramente  nácionaes. 

Uma  tal  poesia,  tendo  a  enorme  vantagem  de  ser  a  ex- 
pressão exacta  de  um  momento  histórico,  e,  n'este  sentido,  a 
phase  condoreira  da  escola  do  Recife  é  a  mais  immediata- 
mente  nacional  de  toda  a  nossa  litteratura,  não  podia  ser 
duradoura.  Tinha  de  viver  emquanto  se  podesse  alimentar 
do  enthusiasmo  publico;  e  é  por  isso  que  durou  justamente 
o  tempo  que  duraram  a  guerra  do  Paraguay  e  os  mais  legí- 
timos ardores  da  primeira  campanha  pela  emancipação  dos 
escravos;  e  é  por  isso  ainda  que,  de  tudo  quanto  produziu 
em  poesia,  o  mais  característico  é  o  que  se  refere  a  esses 
dois  grandes  factos,  os  cantos  marciaes  de  Tobias  e  os  eraan- 
cipacionistas  de  Castro  Alves. 

Os  nomes  doestes  dois  poetas  estão  condemnados  a  appa- 
recer  sempre  emparelhados  na  historia  litteraria,  por  sua 
acção  commum,  por  sua  primitiva  amisade,  por  seu  rompi- 
mento flnal,  que  os  tornou  rivaes.  Este  ultimo  facto  deu-se 
por  questões  de  bastidores,  por  causa  das  actrizes  Eugenia 
Camará  e  Adelaide  do  Amaral.  Os  dois  brigaram,  ínjuriarain- 
se  mutuamente.  Houve  polemica  litteraria  pelos  jomaes;  mas 
a  littqratura  era  mero  pretexto.  Passaram  a  capitanear  dois 
partidos  théatraes,  cujo  idolos  eram  as  duas  actrizes,  e  a 
recitar  poesias  e  discursos  de  parte  a  parte  nas  noites  de 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATUSA  BRABILSIBA  503 

espectáculo  do  Santa  Isabel...  A  emulação  entre  os  dois,  o 
desejo  de  brilhar  cada  um  mais  do  que  o  rival  não  deixava 
de  ter  também  ahi  larga  parte.  £  como  nào  mais  terei,  no 
curso  doeste  livro,  de  falar  concurrentemente  de  um  e  de 
outro,  direi,  desde  já,  o  que  penso  de  um  cotejo  que  se 
poderia  fazer  entre  ambos.  Um  inspirou-se  mais  na  natu- 
reza e  na  vida  histórica  e  popular  da  nação,  outro  mais  na 
vida  social;  um  cantou  —  Os  Tabarcós,  —  Os  Trovadores  das 
Selvas^  — Os  Voluntários  Pernambucanos,  o  outro  —  O  Navio 
Negreiro^  —  As  Vozes  dVl/nca;  um  —  O  Génio  da  Humani- 
dade, —  A  Caridade,  —  A  Polónia;  outro  —  O  Livro  e  a  Ame- 
rica, —  Pedro  Ivo.  Tobias  foi  mais  lyrico,  mais  suave,  mais 
terno,  quando  amoroso;  mais  crepitante,  quando  encarrava  os 
grandes  assumptos.  Castro  mais  arrojado,  mais  audacioso, 
mais  vago  em  geral.  As  poesias  dos  Dias  e  Noites  são  mais 
para  serem  lidas,  as  das  Espumas  Fluctuantes  para  serem 
recitadas.  Um  é  o  segundo  élo  da  cadeia,  de  que  o  outro  foi 
o  primeiro  e  Victoriano  Falhares  o  terceiro. 

Mas  é  preciso  vêr  mais  de  perlo  a  natureza  intima  do  talento, 
poético  do  sergipano.  Quem  lôr  attentamente  suas  produc- 
ções,  notará  que  ellas  se  dividem  em  quatro  categorias  prin- 
cipaes,  desprezando  as  satyricas  que  são  em  numero  redu- 
zidíssimo :  geraes  ou  naturalistas,  amorosas,  patrióticas,  es- 
theticas.  Estas  são  as  inspiradas  por  espectáculos  e  festas  a 
que  assistia.  As  outras,  quasi  todas  igualmente  inspirações 
de  momento,  com  terem  um  caracter  maus  geral,  servem  tamr 
bem  para  provar  que  o  poeta  cantava  sem  preoccupaçOes 
pe(Culiares,  ao  deslisar  dos  factos,  au  four  le  iour,  como  os 
pássaros  cantam  ao  clarão  matinal.  Nada  de  piamos  precon- 
cebidos, da  concepção  solitária  e  amadurecida  de  vastas 
obras.  O  moço  poeta  era  uma  d'essas  naturezas  descuidosas, 
sonhadoras,  problemáticas,  capazes  de  se  inflammarem  por 
qualquer  cousa. 

D'essa  qualidade  essencial  origínou-se  exactamente  o  maior 
de  seus  defeitos  de  poeta  :  baratear  demasiado  o  seu  talento. 
E'  para  impressionar  o  enthusiasmo  enorme  de  que  se  deixava 
apoderar  muitas  vezes  diante  de  actores  e  cantoras  medío- 
cres. A  fonte  perenne  do  sentimento  era  n'elle  não  raro  um 


504  HISTOBIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA 

incoveniente  :  ardia  por  cousas  insignificantes ;  em  tudo 
achava  um  encanto,  um  motivo  para  transbordar. 

Tudo  a  seus  olhos  tomava  proporções  excepcionaes.  O 
Brasil  era  —  a  ioven  pátria  de  heróes,  uma  lasca  do  globo  que 
dá  para  vinte  nações;  a  Tamborini  tinha  —  phrases  de  ouro  na 
bocca  e  sua  —  voz  era  a  medida  do  que  vae  da  terra  ao  céo;  o 
rabequista  Moniz  Barretto  —  o  génio  que  ser  maior  é  morrer; 
o  Recife  -^  a  cidade  das  galhardias,  da  raça  das  Romãs  tom- 
badas, das  Babylonias  em  pó...  Ao  travéz  do  sensório  do 
poeta  as  cousas  e  os  factos  se  avolumavam;  o  inspirado  só 
podia  cantar  o  que  era  grande,  e,  quando  o  objecto  era  pe- 
queno e  vulgar,  a  imaginação  suppria  o  que  lhe  faltava  em 
imponência  e  elevação. 

Era  um  exaggero,  até  certo  ponto  desculpável,  porque 
d'elle  têm  sido  co-participadores  todos  os  bons  poetas.  Póde-se 
até  dizer  que  é  inevitável,  por  ser  uma  das  condições  da 
arte. 

Não  é  sem  razão  aíflrmar  que  a  arte  só  é  possível,  sendo 
vaga,  indefinida,  indeterminada,  e,  para  tudo  dizer  n'uma 
palavra,  sendo,  em  certo  sentido,  faísa.  A  arte  é  sempre  falsa, 
cotejada  com  a  realidade  núa;  porque  lhe  está  sempre  acima 
ou  abaixo;  mas  é  sempre  verdadeira,  cotejada  com  o  estado 
emocional  do  poeta,  que  é,  em  certo  sentido,  um  visionário. 

O  poeta  sergipano,  eu  o  julgo  mais  apreciável  nas  suas 
composições  geraes  e  naturalistas,  como  —  O  Génio  da  Huma- 
nidade, —  Beijaflôr,  —  A  Caridade,  —  Lenda  Civil,  —  Lenda 
Rústica,  —  Tabareós^  —  Anno  Bom.  Ahi  seu  talento  é  todo 
objectivista.  Nas  poesias  amorosas  o  admiro  pela  doçura  dos 
affectos,  pureza  dos  sentimentos,  meiguice  da  imagens,  deli- 
cadeza das  phrases  e  dos  tons.  Não  existem  nmitas  outras 
mais  docemente  ternas  na  língua  portugueza,  e  servem  espe- 
cialmente para  provar  quão  desastrada  foi  a  critica,  quando 
só  quiz  vêr  n'este  poeta  palavrões  e  gongorismos...  E'  mister 
não  o  ter  lido  ou  caprichar  em  dizer  d'elle  sempre  mal  a  des- 
peito de  tudo. 

As  inspiradas  pelo  sentimento  esthetico,  desperto  pelos 
espectáculos  dramáticos  e  peculiarmente  pela  musica,  agra- 


HISTOKIA  DA  LITTB&ATIT&A  BRABILEIKA  505 

dam  como  modelos  de  força  e  de  graça,  as  duas  azas  do  espi- 
rito no  dominio  artistico. 

As  patrióticas  são  alguma  cousa  de  original,  que  não  en- 
contra muitas  congéneres  em  todas  as  litteraturas.  Áquelle 
falar  tem  algo  de  desusado;  são  phrases  vibrantes  que  soam 
como  os  clarins  dos  alarmas;  trazem  á  mente  a  limpidez  das 
espadas,  o  silvo  das  balas  e  o  troar  dos  canhões.  E,  todavia, 
não  são  para  mim  as  suas  melhores  poesias;  acho-o  supe- 
rior nas  dos  dous  primeiros  géneros. 

Mas  tudo  isto  é  ainda  insufâciente  para  destacar  nitida  a 
figura  do  poeta. 

E'  indispensável  estudal-o  por  três  faces  principaes  :  pelo 
lado  psychologico  em  suas  ideias  e  sentimentos  e  pecuUar- 
mente  na  expressão  que  deu  a  seus  amores;  pelo  lado  da  sua 
intuição  na<5ionalista;  finalmente,  pelo  lado  da  forma  e  do 
estylo. 

Nos  seus  trabalhos  de  artista,  nos  seus  productos  de  ima- 
ginação e  sentimento,  nas  poesias  e  discursos,  em  summa, 
é  que  se  pôde  bem  apreciar  a  nobre  grandeza  d'alma  de 
Tobias  Barretto. 

A  ironia,  a  cólera,  a  rudeza,  as  acerbas  invectivas  do  pole- 
mista e  do  critico  desappareciam  de  todo  e  as  bellas  quali- 
dades moraes  do  seu  temperamento  tomavam  o  ascen- 
dente, quando  elle,  esquecidas  as  luctas  em  que  andava  metr 
tido,  deixava  falar  apenas  a  sua  emoção  diante  das  scênas 
e  dos  factos  que  o  impressionavam  como  homem  e  como 
estheta. 

Especialmente  em  face  da  mulher'  sua  emotividade  to- 
mava as  formas  da  mais  deliciosa  candura.  Mas  não  era  só 
ella;  todos  os  grandes  phenomenos  espirituaes  tinham  o 
condão  de  o  exaltar.  Nos  Dias  e  Noites  são  innumeras  as 
provas  d'isso.  Todas  as  nobres  paixões  e  alevantados  anhelos 
humanos  e  altruistas  acham  alli  uma  nota  para  os  exprimir. 

Todas  as  grandes  culminancias  intellectuaes  e  moraes  têm 
alli  um  harmonioso  accõrde. 

O  génio,  a  supremacia  da  inteJligencia  arrancam-lhe  sempre 
phrases  de  enthusiastíco  e  sentido  louvor.  As  notas  variam; 
majs  o  preito  é  sempre  arde»nte. 


1 


506  HISTORIA  DA  LITTERATtTRA  BRASILEIRA 

A'  vezes  diz  assim,  mostrando  quanta  esperança  tem  no 
progresso  e  quanta  confiança  no  valor  do  talento  : 

Cf  Fator  em  geniosl...  Que  me  quer  nos  lábios 
Esta  phrase,  este  mel  d'acres  ressabios, 

Este  riso  de  dor? 
Embrígados  do  céo,  que  em  áureas  taças 
Bebem  os  tragos  de  infemaes  desgraças 

Em  honra  do  Senhor! 

Génio!...  é  sondar  o  golphfto  do  ineffaveJ, 
E'  ter  um  coração,  monstro  insaciável 

D'esperança  e  porvir, 
Calcando  o  mundo,  que  lhe  diz  :  padeça!... 
Este  horisonte  aperta-lhe  a  cabeça, 

E  elle  tende  a  subir. 

Génio!...  elle  manda  â  aurora  que  desponte  ; 
Sobe;  os  futuros  roçam-lhe  na  fronte 

Perto,  perto  do  céo... 
Sacode-se  dos  pés  a  poeira  humana. 
Nos  paramos  azucs  da  lucta  insana 

Levanta-se  o  trophéo. 

Os  grandes  dias  do  progresso  humano 
Custam  a  vir.  O  génio  soberano, 

D'alma  branca  e  louçan. 
Cresce,  cresce,  debruça-se  nos  montes 
E  arranca  lá  dos  fundos  horizontes 

A  estreita  da  manhan!...  » 

O  homem  de  génio  é,  como  se  vê,  para  o  poeta  uma  corao 
força  natural  que  arranca  dos  fundos  horizontes  a  luz  ei  a 
vida. 

Nas  poesias  consagradas  a  Arthur  Napoleão,  Mr.  Reichert, 
Moniz  Barretto  e  outras  volta  sempre  a  essas  effusões  em  face 
da  supremacia  da  intelligencia  e  do  génio. 

Nos  versos  a  Mr  Reichert  aponta  a  ideia  a  radiar  na  fronte 
dos  homens  de  talento  como  a  luz  d'alva  nas  montanhas  e  nas 

altas  torres. 
A  imagem  é  bella  e  suggestiva,  apta  a  revelar  o  enUiu- 


HI8T0BIA  DA  LITTEBATU&A  BIUL8ILXIKA  507 

siasmo  do  poeta  pelas  grandes  forças  íniellectuaes,  para  elie 
sempre  vicloriosas  em  um  futuro  queJquer  : 

Mas  que  importa?  O  espaço  é  grande  : 

Talentos,  astros,  brilhae; 

Que  á  luz,  que  de  vós  se  expande, 

O  tempo  se  abrindo  vae! 

Pelos  degráos  das  edades 

Vâo  rolando  as  potestades, 

Que  lá  n&o  podem  chegar... 

Como  nas  torres,  nos  montes 

A  luz  d'alva,  em  vossas  frontes 

Vô-se  a  ideia  radiar...  » 

Nos  versos  a  Moniz  BarrettOy  alludindo  ás  luctas  do  talento, 
contra  as  torpezas  do  mundo  maJdito,  que  aOnal  tem  de  o 
contemplar  na  sua  ascençãx)  intérmina  pelas  regiões  do  ideial 
8  da  gloria,  prorompe  n'estas  palavras  de  inalterada  con- 
fiança : 

O  talento  em  seus  fulgores 
Banha,  embebe  as  multidões  ; 
O  pasmo  atira-lhe  —  flores, 
A  inveja  vil  —  maldições... 
E  elle  diz  :  ((  não  esperdiço, 
Tudo  se  presta  ao  serviço 
Da  obra  descommunal...  » 
Para  a  c'rôa  apanha  os  cultos, 
E  08  motejos,  os  insultos 
Servem  pr'a  o  seu  pedestal. 

Na  linguagem  do  céo  —  génio  e  grandeza, 

Na  linguagem  da  terra  —  pobre  ailista! 

E*  assim,  porque  Deus,  baixando  á  terra, 

Se  rebuça  has  noites  tenebrosas  *, 

Ou,  quando  ao  mundo  envia  os  seus  archanjos, 

E'  sempre  n'uma  nuvem  que  os  encobre... 

Oh!  tu  és  gramde  sim,  poeta  do  arco! 

Tu  que  sabes  tirar  notas  sentidas, 

Filhas  do  coraçáo,  preciosas,  fulgidas, 

Como  jóia,  que  treme  em  coUo  alvíssimo ; 

Notas  que  saltam,  borbulhosas,  quentes, 


508  HISTORIA  DA  LITTBRATUSA  BRASILEIBA 

Como  rojam  da  pálpebra  da  moça, 
No  €u*far  do  áeio,  as  lagrimas  primeiras, 
A  primeira  expressão  dos  seus  amores... 
Por  entre  a  luz  de  incendiada  sarça 
Das  intimas  visões,  diz  Deus  ao  génio  : 
Que  tens  tu  a  teu  lado? 

A  minha  lyra. 
Calca-lhe  o  peito,  sonda-Ihe  as  entranhas ; 
£  ella  exhala  perfumes,  brota  risos, 
Golpha  prantos,  riquezas,  luzes,  sonhos... 
Que  tens  tu  a  teu  lado? 

O  meu  thesouro. 
Derrama,  entorna-o  sobre  o  mundo  absorto... 
E  nesse  despenhar  de  sons  angélicos. 
Suspiram  aves,  esvoaçam  flores, 
Correm  auras  celestes,  redolentes. 
Que  balançam  brincando  os  lyrios  d'alma ; 
Passam  meiguices,  murmurar  de  affagos. 
Tremer  de  lábios,  estalar  de  beijos... 
Que  tens  tu  a  teu  lado? 

Oh!  uma  virgem! 
E*  tua  gloria  :  abraça-te  com  ella...  » 

A  grandeza,  a  elevação  dos  Sientimentos  do  poeta  não  se 
desmente,  quando  fala  dos  povos  e  dos  horrores  da  guerra. 
A  generosidade  e  o  perdão  são  as  cordas  mais  vibrantes  da 
sua  lyra,  quando  devassa  esses  assumptos.  E'  assim  em 
—  A'  Polónia,  em  —  Sete  de  Setembro,  em  —  Os  Leões  do 
Norte, 

Mas,  para  que  fique  demonstrado  o  que  aíflrmo,  bastante  é 
citar  estes  últimos  versos  da  poesia  que  traz  por  titulo  — 
N'um  dia  nacional,  escripla  em  1865,  quando  se  iniciava  a 
guerra  do  Paraguay  : 

((  Perante  os  vendavaes  os  troncos  rangem, 
A*  face  dos  leões  a  grei  se  esconde, 
Ao  grito  dos  heroes  as  armas  tremem. 
Cada  guerreiro  que  por  nós  combate 
E*  a  ira  de  Deus  que  se  faz  homem ; 
Tem  na  espada  o  relâmpago,  e  no  peito 


jr- 


HI8T0BIA  DA  UTTESATUBA  BBABILEISA  509 

O  subterrâneo  palpitar  da  pátria. 
Labora  a  chamma,  a  serpe  se  contorce, 
A  guerra  avança,  o  Paraguay  recua!... 
Do  século  que  passa  o  génio  ousado, 
Que  conduz  as  nações  ao  grande,  ao  bello, 
DeUnba  e  morre  alli,  como  um  antigo 
Prisioneiro  de  Francia.  As  férreas  portas 
O  Brasil  vai-lhe  abrir,  dissera  o  povo. 
Ma^  nós,  que  combatemos  e  que  amamos 
As  victorias  sem  sangue,  como  auroras 
Que  não  têm  arrebol ;  nós,  que  vencemos. 
Sejamos  bons.  A  obra  heróica  do  homem, 
O  triumpho,  a  conquista,  o  louro,  a  palma, 
Todos  os  feitos  da  grandeza  humana, 
Face  á  face  com  Deus,  com  as  obras  suas, 
Não  igualam,  n&o  valem  na  belleza 
Uma  gotta  de  orvalho,  que  scintilla 
No  cálix  de  uma  ílor... 

No  céo,  na  terra 
O  que  ha  de  grande,  as  arvores,  as  aguas, 
A  procella  com  todos  os  seus  raios, 
O  oceano  com  toda  a  sua  colora, 
Face  á  face,  grandeza  por  grandeza, 
Lucta  por  lucta,  esforço  por  esforço, 
Também  não  valem,  no  ideal  que  encerram. 
Uma  paixão  que  se  no  peito  esmague. 
Um  só  dever  cumprido,  um  grito,  um  Ímpeto, 
No  fundo  d'alma  comprimido  e  mortol 

Limpas  de  sahgue  as  espadas. 
Limpos  de  sangue  os  trophéos. 
De  gloria  as  faces  banhadas. 
Banhados  de  gloria  os  céos  ; 

Açoitam  nossos  ouvidos 
De  ethereas  harpas  os  sons... 
Perdão  aos  pobres  vencidos. 
Guerreiros,  sejamos  bons!  » 

Assumpto  da  predilecção  dos  nobres  affectos  do  generoso 
sergipano  era  a  mulher,  na  sua  obra  incessante  pelo  bem, 
pela  caridade,  pelo  amor.  N'este  sentido  sáo  typicas  as  peças 


510  HIBTOBIA  X>A  LITTXBATnRÁ  BBASILSIBA 

intituladas  —  A'  Caridade^  —  Dia  de  Pinados  no  Cemitério  e 
vários  trechos  de  outras. 

Devem  ser  lidas  na  integra,  limitando-me  eu  a  transcrever 
aqui  a  primeira  : 

((  Fazei  o  bem  :  sobre  a  terra 
E*  a  belleza  suprema ; 
Tem  mais  luz  do  que  um  poema, 
Vale  mais  do  que  um  trophéo. 
Por  uma  dadiva  ao  pobre. 
Que  é  de  Deos  o  grande  eleito, 
Podeis  comprar-lhe  o  direito 
De  c(ue  eUe  goza  no  céo. 

Se  ao  grito  dos  que  padecem 
O  mundo  cerra  os  ouvidos, 
Se  do  prazer  nòs  ruídos 
Perdeu-se  de  Deus  a  voz  ; 
De  torpezas  maculada 
Do  Christo  a  veste  inconsutil, 
Parece  que  foi  mutil 
O  ter  morrido  por  nós! 

Será  que  o  sol  da  bondade 
Vá  no  occaso  se  escondendo? 
Será  que  Deus  vá  descendo 
A'  força  do  homem  subir? 
Por  isso  de  dia  em  dia 
Ganha  o  vício  mais  encantos, 
E  vô-se  a  virtude  em  prantos 
E  a  impiedade  a  sorrir? 

Será  que  os  raios  divinos 
Tenham  emfim  resfriado? 
Que,  indifferente  e  calado, 
O  céu  nos  contemple?  Náo  : 
Deus  perdoa  ao  mundo  ingrato, 
£  €U)s  suspiros  de  quem  soffre. 
Tem  sempre  aberto  o  seu  cofre 
De  amor  e  consolação. 

E  desse  amor  o  perfume, 
Que  alimenta  a  caridade, 


HISTORIA  DA  LITTSBATUBA  BBASIUSISA  511 

No  seio  da  humanidade 
Brotal-o  quando  Deus  quer, 
Lançando  mão  d'uma  estrella 
Mais  viva  do  firmamento, 
Forma  d*ella  um  sentimento 
No  coraç&o  da  mulher. 

Nem  cremos  que  ás  outras  ahnas 
Taes  pens€unentos  assomem ; 
N&o,  não  é  caheça  d'homem 
Qu*estas  idéas  contém ; 
E*  da  mulher  que  ellas  partem, 
Da  mulher,  que  suspirando, 
Mesmo  sorrindo  e  cantando. 
Ensina  a  fazer  o  bem. 

Geme  a  familia  do  bravo 
Que  a  morte  cobrio  de  louros  ; 
Que  custa  abrir-lh^  os  thesouros 
Bondosos  do  coraç&o?... 
E  assim  falarem  unidas, 
Como  echos  de  um  só  abysmo, 
A  voz  do  patriotismo 
E  a  voz  da  religião? 

Se  é  bella  assim  a  virtude 
Face  ã  face  com  a  opulência, 
Derramando  aquella  essência, 
Que  em  harmonias  se  esvae  ; 
Que  custa  dar  um  sorriso, 
Dar  um  óbolo,  um  carinho 
A*s  aves,  que  não  têm  ninho, 
Aos  filhos,  que  não  têm  pae? 

A  caridade  inda  sôa 
N€is  fibras  do  humano  peito  : 
Como  no  céo  satisfeito 
Vai  ficar  o  moço  Deus, 
Jesus,  o  amigo  dos  tristes 
Quando  os  astros  lhe  contarem, 
E  estas  vozes  lá  chegarem 
Nas  azas  dos  a:njos  seus!...  » 


512  HISTORIA  DA  LITTERATUKA  B&ABILEIBA 

Versos  íoaum  estes  recitados  n'uma  festividade  promovida 
em  prol  d'alguns  infelizes  em  1866. 

Poeta,  digno  d'este  nome,  se  adora  a  mulher,  no  seu  labutar 
pelos  pobres,  pelos  desgraçados,  é  impo>ssivel  que  não  tenha 
n'alma  doces  phrases  meigas  para  as  crianças  desvalidas,  e 
o  nosso  vate  as  teve. 

Para  proval-o  basta  ouvir  estas  magoadas  palavras,  postas 
na  bocca  de  um  íllho  do  bravo  capitão  Pedro  Afíonso,  quando 
no  Recife  se  promoveu,  em  1867,  umi  espectáculo  em.  favor  da 
fan^ilia  d'aquelle  digno  official,  reduzida  á  miséria  com  a 
morte  de  seu  heróico  chefe  : 

u  De  minha  mãi  os  cabcllos 
A  dôr  da  viuvez  espalha... 
Meu  pae  morreu  na  batalha, 
Grandes  da  pátria,  escutae  : 
Não  sei  quem  é  que  permitte 
Que  se  tenha  um  máo  destino, 
Que  se  soffra  tão  menino. 
Que  a  gente  flquc  sem  pae... 

Pôde  ficar  nas  florestas 
Pássaro  orphão  perdido ; 
Existe  um  desconhecido. 
Que  nâo  no  deixa  morrer ; 
Manda  ao  sol  que  lance  um  raio 
Para  aquecel-o  no  ninho, 
E  diz  :  abre  o  teu  biquinho. 
Venho  dar-te  o  que  comer. 

Dorme  no  berço  a  criança. 
Que  perde  o  seu  pae  valente  ; 
Languece,  definha,  sente 
Falta  de  paterno  amor... 
Ai!  quando  as  aves  se  aquecem 
Pelos  cuidados  divinos. 
Não  acho  bom  que  os  meninos 
Chorem  de  frio,  Senhor! 

O  caçador  das  montanhas 
Exclama,  sondando  o  ninno, 


HIBTOBIA  DA  LITTBEATT7RA  BEABILUSA  513 

Que  bellol...  meu  passarinho! 
E  ao  seio  críal-o  vae  : 
N&o  diz  o  homem  que  aspira, 
Que  atrás  da  gloria  se  lança, 
Bravo!...  achei  uma  criança 
Tenra  e  mimosa,  sem  pae!...  » 


NoLo  é  embalde,  nem  é  a  esmo  que  vou  allegando  esses 
factos  e  vou  documentando  esse  lado  brilhante  d'alma  do 
auctor  dos  Dias  e  Noites. 

E'  que  os  seus  adversários,  despeitados  talvez  com  as  suas 
franquezas  de  critico  e  polemista,  timbraram  sempre,  e  tim- 
bram ainda,  em  mosiral-o  ao  publico  qual  um  caracter  áspero 
e  sem  piedade.  E  tamanho  erro  não  pôde  passar  sem  pro- 
testo diante  da  realidade.  E  a  mais  eloquente  demonstração 
está  nas  poesias  inspiradas  ao  grande  sergipano  pela  paixão 
amorosa,  quje  o  avassalou  por  duas  vezes  com  a  máxima 
energia.  E'  n'esse  ponto,  sobre  todos  delicado,  sobre  todos 
capaz  de  deixar  iiisinuarem-se  escorias  menos  nobres  na  pu- 
reza do  metal  dos  profundos  affectos,  que  se  pôde  pôr  á 
prova  a  dignidade  nativa  do  homem. 

O  poeta  sergipano  sae  remido  d'essa  provação.  Pondo  de 
parte  pequenos  e  inoflensivos  galanteios,  dirigidos  a  diversas 
bellezas  pernambucanas,  teve  elle  dois  profundissimos 
amores,  que  o  dominaram,  por  completo.  O  primeiro  foi  com 
a  lindissima  Leocadia  Cavalcanti  e  levou-o  quasi  ás  portas  do 
suicidio.  Desde  que  a  viu,  sentiu-se  subjugado.  Na  qualidade 
de  professar  d'um  dos  irmãos  da  encantadora  moça,  travou 
relações  com  sua  familia,  frequentou-lhe  a  casa  e  teve  repe- 
tidos ensejos  de  a  vêr,  de  a  conversar  e  deixár-se  submelter 
de  todo  ao  jugo  de  cruel  paixão. 

Animado  pela  grande  consideração  pessoal  de  que  era 
cercado,  pensou  em  casar-se  com  a  aristocrática  donzella.  O 
pae  doesta  oppôz-se  tenazmente. 

Prejuízos  de  nobreza  foram  a  causa  principal  da  má  von- 
tade paterna. 

Esse  doloroso  idyllio  durou  uns  três  ou  quatro  annos. 
Durante  todo  elle,  até  o  desenlace  flnal,  o  poeta  sergipano 

HISTORIA  n  33 


514  HISTOBIA  DA  LITTBRATXJBA  BBABILEIIIA 

andou  offuscado  e  preso  de  uma  verdadeira  adoração.  Falou 
sempre  e  continuamente  a  essa  mulher  em  tom  de  cândida 
submissão,  como  se  se  dirigisse  a  uma  santa,  a  um  ser  supe- 
rior e  sobrenatural. 

Ainda  em  1868  assisti,  no  Recife,  ao  fmal  doesse  encanta- 
mento. 

Nos  Dias  e  Noites  acham-se  alguns  documentos  por  onde 
se  pôde  aquilatar  do  gráo  a  que  chegou.  Digo  alguns,  porque 
a  mór  parte  das  poesias  off erecidas  pelo  enamorado  vate  á  sua 
dama  nunca  veio  a  lum^  e,  com  ella,  ficou  íóra  das  vistas 
profanas. 

As  existentes  no  volume  impresso  são  as  abaixo  indicadas, 
as  quaes  devem  ser  lidas  na  ordem  em  que  váo  aqui  enume- 
radas, por  ser  essa  a  do  natural  desenvolvimento  dos  factos 
3  da  situação  psychologíca  do  apaixonado  sonhador  :  Penso 
em  ti  —  Ideia  —  Hcec  olim  meminisse  iuvabit  —  Pelo  dia  em 
que  nasceste  —  Leocadia  —  Suprema  Visto  —  Amar  —  ET 
cedo  —  Cármen  —  Supplica  —  Contemplação  —  Tão  longe 
assim  —  Ohl  isto  mata  —  Não  faleis  em  mim  —  Sé  meiga  e 
tema  —  Porque  me  feriste-  —  Como  é  bom!.,,  Cantae  —  Malé- 
vola —  Luctas  d'alma  —  Fatalidade. 

Náò  é  sem  interesse  analysar  n'estas  paginas  esse  curioso 
caso  de  psychologia  humana. 

O  poeta  começa  por  uma  verdadeira  invocação,  uma  per- 
feita prece ;  pposegue  n'uma  adoração  completa,  sempre  re- 
ceioso  e  timido,  a  pedir  a  sua  alma  que  se  acrysole  e  depure, 
até  o  desenlace,  só  encontrando  palavras  de  quasi  humilhação 
diante  de  seu  idolo. 

Pôde  convencer-se  quem  quizer,  percorrendo  as  poesias 
Jtadas.  Aqui  deixarei  algumas  notações  indispensáveis,  resu- 
nidos  trechos  comprobativos.  A  primeira  preghiéra  é   em 
estylo  de  soluçada  e  timorata  supplica  : 

Perdoa,  se,  nas  horas  que  se  embebem 
No  coração,  mais  cheias  de  amargura, 
Mais  pesadas  de  amor  e  de  saudade, 
Penso  em  ti...  Do  teu  seio  moduloso 
Sinto  a  onda  empolada  em  anciãs  doces 
.  Quebrar-se  junto  a  mim. 


r' 


HI8T0BIA  DA  LITmULTUSA  BBA8ILIIBA  515 

Ohl  minha  estrellaf 
Noiva  dos  lyrios^  pérola  celeste, 
Lagrima  d'anjo  sobre  mim  chorada. 
Que  te  somes  no  fundo  de  minh*alma, 
Perdoa,  se,  nas  horas  do  repouso, 
Quando  da  morte  me  deslumbra  o  riso, 
Tenho  desejos  tímidos  de  vêr-te ; 
Que  não  agaste  do  teu  anjo  as  azas. 
Que  nfto  te  acorde;  de  invejar-te  o  sonho, 
E  dar-te  um  beijo  na  m&ozinha  casta 
Que  deixaste  pender  íóra  do  leito... 
Perdoa  ainda,  se  arroubado,  insomne, 
Quando  na  testa  do  levante  pallido 
Menos  beUa  que  tu  a  alva  fulgura, 
Ruminando  a  doçura  do  teu  nome, 
Nos  perfumes,  nos  bafos  matutinos. 
Vagos  longes  de  um  caintico  ineffavel. 
Que  vem  do  céo,  aspiro  a  essência  tua... 

Ohl  n&o  poder  te  amar  com  mais  candura! 
Se  este  amoroso  querer  e  louco  cinhélo 
Não  é  amor  que  se  revele  aos  anjos. 
Porque  não  tenho  um  coração  mais  puro? 
C^o  inditoso,  que  adormido  sonha 
Beijar-Ihe  os  olhos  peregrina  imagem, 
Acorda  e  sente  o  odor,  palpando  as  vestes 
Do  sonho  certo,  que  lhe  diz  :  olhai-mel 
Blasphema,  estorce-se  e  não  pôde  vôl-o!... 
Que  horrível  transei  £  é  assim  que  eu  te  amo, 
£'  assim  que  te  adoro,  e  não  te  beijo, 
Que  não  posso  dizer-te,  e,  nesta  lucta. 
Rindo  assisto  aos  combates  tenebrosos 
Que  se  dão  na  minh^alma,  e  sempre  amando, 
Nem  de  meus  olhos  este  amor  confio... 

Quizera,  virgem,  que  meus  versos  débeis. 
Meus  pensares  ao  ar  soltos,  perdidos, 
De  mistura  com  as  auras  vespertinas. 
Modulassem  de  manso  aos  teus  ouvidos  ; 

Que  falassem  do  céo,  da  tarde  limpida. 
Derramando  em  tu*alma  um  vago  enleio  : 


516  HX810BIA  BA  UTTBBATITBA  BBASILBnU 

Que  ta  pudesses,  entendendo  as  queixas, 
Meus  versos,  tímida,  esconder  no  seia 

£,  como  a  santa  da  legenda,  quando, 
Cortando  o  vôo  a  virginaes  amores. 
Teu  pae  acaso  perguntasse  :  filha. 
Que  tens  no  seio?  respondesses :  flores...  » 

O  poeta  pede  perdão  até  de  pensar  em  sua  quierida,  de  pro- 
nunciar-lhe  o  nome,  de  dedicar-Uie  amor,  t&o  caslo,  capaz  de 
ser  revelado  aos  próprios  anjos,  e,  ainda  assim,  nã.o  se  atreve 
a  dizel-o,  e  deseja  mais  puro  o  coração  para  a  poder  amar 
com  mais  candura.  E  esse  inicial  acaríciante  anhélo,  que  não 
se  ousa  manifestar,  expresso  em  Penso  em  (i,  prolonga-se  em 
Ideia^  em  que  diz  : 

<(  Amo-te  muito.  Não  temas 
Que  possa  dizel-o.  Espera— 
Gomtigo  a  sós  eu  quizera 
Beijcur  as  mãos  do  Senhor ; 
No  ninho  das  rolas  castas, 
No  cálix  das  flores  puras 
Gu6u*dar  as  nossas  ternuras, 
O  nosso  morrer  de  amor« 

Quizera  aquecer-te  n'alma, 
Cândida,  meiga  avesinha. 
Unida  ao  meu  peito,  minha... 
Como  dizer ?..«  minha  irman  ; 
Comtigo  brincar  á  tarde 
Na  mesma  sombra  florida. 
Respirar  a  mesma  vida 
Nos  perfumes  da  manhan. 

E  á  noite,  quando  medito. 
Quando  as  lagrimas  enxugo 
No  fogo  de  um  verso  de  Hugo, 
Mais  durável  que  um  trophéo. 
Pudera  ver-te  a  meu  lado 
Chegar  anciosa  e  louca, 
E  dar-me  na  tua  bocca 
Alguma  cousa  do  céo. 


HISTORIA  DA  UTTIKATnBA  BEianiHTUA  517 

Pudera  ver-te  mimosa. 
Com  a  trança  desfeita,  esparsa» 
Movendo  as  roupas  de  garça. 
Nos  meus  segredos  bulir, 
Juntando  ao  calor,  á  vida 
Do  livro  amado  que  leio 
O  p€dpitar  de  teu  seio, 
E  a  graça  de  teu  sorrir. 

Só  tu  puderas,  passando, 
Qual  um  aroma  aos  ruidos 
De  harmoniosos  vestidos, 
Meu  coraç&o  acordcur. 
Derramando  enternecida 
De  amor,  de  cândidos  zelos, 
O  cheiro  dos  teus  cabellos 
No  fundo  do  meu  pensar.  » 

E*  o  tom  do  mais  delicada  ideialismo,  quero  dizer,  da  ex- 
pressão  mais  doce  e  terna,  dada  a  unia  paixão  real.  Esta, 
porém,  sentia-se  crescer  e  avassallar  o  animo  do  descuidoso 
estudante;  pois  estes  factos  se  passaram  em  seu  curso  acar 
demico  de  fins  de  1865  a  68.  A  obsessão  cresceu;  mas  nunca 
chegou  a  perder  as  formas  da  mais  requintada  delicadeza  : 

Tudo  que  bate  no  meu  peito  ancioso, 
Tudo  que  sonho,  que  medito  e  creio, 
Minh'ahna  toda  ó  uma  só  ideia, 
Cravada,  immovel  em  teu  alvo  seio. 


D*innotos  astros  na  região  de  neve, 
Dos  voos  do  anjo  na  altitude  immensa 
Brilha  a  pupilla  dos  teus  olhos  negros, 
Prodígio  escuro  em  que  minh'alma  pensa. 

E  sempre  á  face  do  revolto  abysmo 
Do  meu  sonhar  esta  visão  sagrada  : 
Teu  rosto  meigo,  tua  alvura  santa, 
Como  uma  garça  ã  beira  mar  poisadal... 

Tu  és  o  ermo,  a  solidão  florida. 
Que  a  mente  exalta  de  um  delirio  vago, 
Passando  n^alma  o  deslizar  da  nuvem, 
O  azul  do  céo,  a  limpidez  do  lago...  u 


i±- 


518  HIBTOBIA  DÁ  LITTXBATUSA. 

SgLo  phrases  de  Haec  olim  meminisse  juvabit;  até  ahi  n&o 
ousa  ainda  o  amoroso  sequer  queixar-se ;  contempla,  adora, 
recorda-se  e  embevece-se  na  recordação.  As  magoas  começam 
em  Pelo  dia  em  que  nasceste;  ahi  já  ousa  interpellar  o  ídolo, 
mas  ainda  muito  de  leve,  deolarando^se  pequeno  para  tocal-o  : 

«  Por  ti  conservo  sorrisos 
Pela  dor  não  apagados, 
Como  títulos  gravados 
Em  face  de  mausoléo. 
Contemplo  o  resto  de  infância 
Que  a  tua  testa  alumia, 
Qual  o  íim  de  um  beUo  dia, 
Crepusculando  no  céo. 

Bem  sei  que  sonhas  venturas 
£  a  aragem  que  te  balouça, 
Franzina,  Icmguida  moça, 
Náo  te  consente  pender. 
Socege^  flor  boliçosci, 
Deixa  em  teu  seio  innocente, 
Vertida  em  lagrima  quente, 
Minh^alma  se  recolher. 

Bella!...  nem  sentes  o  ruir  da  víde^ 
Celeste  arroio  que  te  cobre  a  planta, 
Bafejada  dos  céos,  estremecida, 
Etherea,  límpida,  impalpável,  santal 

Fulges,  como  de  orvalho  perfumoso 
Pérola,  solta  ao  matinal  gotejo  : 
Noiva  do  redo  pallido,  mimoso, 
Que  no  cálix  da  flor  sorve-a  de  um  bejo! 

Transparece  o  candor  d*alma  sem  magoas  ; 
A  noite,  ao  dia  estranha,  sobranceira. 
Teu  trajo  sôa,  como  o  som  das  aguas. 
Teu  corpo  treme  e  tua  sombra  cheira... 

E  tu'alma  também  porque  não  vôa? 
Podíamos  subir,  vagar  atoa 

Pelo  infinito  sós ; 
Eu  faria  de  amor  hymnos  e  preces, 
Um  ninho  para  ti...  Se  tu  quizesses, 

Um  ninho  para  nós. 


HI8T0BIA  DA  LITTSBATXrBA.  B&A8ILBULA  519 

Que  receias?  teu  lábio  não  murchece, 
De  moça  eterna  o  raio  te  circumda  : 
Da  fronte  o  lyno  n&o  descai.  Parece 
Que  uma  alma  exterior  teu  corpo  inunda. 

Como  em  flóreo  botfto  fechas  as  graças 
£  de  um  peito  aos  anhelos  doloridos, 
A*8  anciãs  loucas,  n&o  te  volves,  passas... 
Cuidas  que  é  o  soar  de  teus  vestidos. 

Edenica  romfi,  que  um  anjo  parte, 
E'-te  a  bocca,  entreabrindo-se  risonha  : 
Sou  pequeno,  bem  sei,  pstra  tocar-te, 
De  que  tamanho  queres  qu'eu  me  ponha? 

N'um  fio  odoro  tua  imagem  sigo, 
Teu  doce  nome  como  um  hymho  entoo  : 
Eleva-me,  que  amar-te  é  voar  comtigo, 
Ser  águia  e  d'anjo  acompanhar-te  o  vôo. 

£il-a  de  brilhos  no  seu  throno  alçada! 
Eu  te  saúdo,  burity  do  outeiro, 
Que  balanças  a  coma  alumiada 
Do  sol  nascente  ao  radiar  primeiro. 

Ouves?  eu  amo-te.  Inda  nâo  sentiste 
A  mão  que  acarecia  a  sombra  tua? 
Meu  amor  é  o  scismar  da  fera  triste. 
Fitando  estúpida  o  clarão  da  lua...  » 

Sempre  o  mesmo  respeito,  a  mesma  timidez,  a  mesma  des- 
confiança de  si,  chegando  apenas  a  balbuciar  quasi  apagados 
queixumes...  O  encantamento  é  completo;  e  explica-se  por 
feitamente  pelo  natural  acanhamento  do  poeta,  famoso  esla- 
dante,  é  certo,  apontado  pelo  seu  talento,  glorioso,  popular, 
porém  mestiço  e  pobre,  a  namorar  uma  Siqueira  Cavalcanti 
de  Pernambucol  Quem  sabe  do  gráo  de  enthusiasmo  que 
ainda  tinha,  ha  quarenta  annos  passados,  de  sua  prosápia 
aquella  familia,  pôde  bem  aquilatar  o  estado  d'espirito  do 
apaixonado  sergipano.  Talvez  por  isso  deu  sempre  o  auctor 
dos  Dias  e  Noites  ao  seu  amor  pela  beila  aristocrática  pronun- 
ciada expressão  mystica.  Sempre  avistava-a  entre  nuvens. 


520  HISTORIA  BA  LITTBRATnSA  BRABTT.TBIRA 

B'uma  região  supra-sensivel,  celeste,  superior,  até  onde  po- 
diam vagamente  chegar  suas  doloridas  queixas.  Embalado  em 
sonhos,  cego  d*enthusiasmo,  a  adoração  crescia  e  alçava  o 
tom,  quando  a  natural  meiguice  da  moça,  que  sinceramente 
o  apreciava,  o  encantava  em  suas  conversações, 

N'essas  horas  essa  nova  Beatriz  chegava  a  fazer  parte  da 
comitiva  da  própria  divindade.  O  poeta  tomava-Ihe  o  nome 
e  o  cantava,  em  acróstico  e  glossa,  ao  gosto  dos  últimos  tem- 
pos da  edade  media  e  do  Renascimento.  Ouvide  : 

H  livro  de  luz  em  que  o  Senhor  medita 
E  ás  mãos  dos  anjos  não  é  dado  abrir, 
Onde  as  estrellas  aprenderam  juntas 
Com  as  rosas  puras  a  chorar  e  a  rir, 
Alma  que  serve  de  alimento  ás  ílôres, 
De  cuja  essência  a  creação  trescala, 
Ingénua  e  cândida,  escutando  em  sonhos, 
A  \\}z  da  santa  que  do  céo  vos  fala... 

Vós  sois  na  terra  a  encarnação  brilhante 
Do  sacro  amor  que  a  vossos  pães  adita, 
Rutila  estrophe  de  um  poema  d*oiro, 
Livro  de  luz  em  que  o  Senhor  medita... 
Lagrima  d'alva  que  no  seio  cálido 
Da  nuvem  rubra  vos  deixou  cahir. 
Pagina  alvíssima  em  que  Deus  escreve 
E  ás  mãos  dos  anjos  não  é  dado  abrir... 

Virgem  serena,  a  cujos  olhos  timidos 

A  lua  gosta  de  fazer  perguntas, 

Biblia  celeste  de  mysteríos  castos. 

Onde  as  estrellas  aprenderam  juntas. 

Com  as  brisas  tehues,  a  dizer  as  queixas 

De  alguma  dôr  que  só  Deus  pôde  ouvir. 

Com  as  ondas  cérulas,  com  as  auroras  pcdlidas. 

Com  as  rosas  puras  a  chorar  e  a  rir... 

Fronte  em  que  passam  d'outro  mundo  as  scismas, 
Rosto  banhctdo  em  matlnaes  albores, 
Peito  onde  arquejam  do  infinito  as  vagas, 
Alma  que  serve  de  alimento  ás  ílcures, 


HI8T0BIA  DA  LITTXBATURA  BRABUJOSA  521 

Mimo  do  sol,  que  vos  attrahe  os  raios, 
E  as  vossas  graças  pelo  céo  propala, 
Vós  sois  a  alvura  dos  eternos  lyrios, 
De  cuja  essência  a  creação  trescala... 

E  quão  piedosas  n&o  ser&o  as  preces 
Dos  vossos  lábios  divinaes,  risonhos! 
Tranças  esparsas,  joelhada,  extática. 
Ingénua  e  cândida,  escutando  em  sonhos, 
Por  entre  os  cantos  áaa  espheras  lúcidas, 
E  os  ais  sentidos  que  o  universo  exheda, 
E  os  sons  mellífluos  do  psaltcrio  angélico, 
A  voz  da  santa  que  do  céo  vos  fala!  » 

As  lettras  do  nome  da  mulher  amada  abrem  os  versos  da 
primeira  estrophe,  que  é  glossada  nas  seguintes. 

Esta  poesia  em  sua  exaltação,  que  só  encontra  suas  eguaes 
em  plena  edade  media,  é  uma  verdadeira  oração,  como  os 
adoradores  faziam  á  Madona. 

O  poeta  havia  começado,  repito,  pela  mais  humilde  admi- 
ração; ia-se  sentindo  preso,  mas  chegava  a  pedir  perdão  dia 
ousadia  de  amar  aquella  que  o  captivara.  E'  a  primitiva  phase 
n'esta  historia  de  Tobias  e  Leocadia.  Depois,  ás  primeiras 
difflculdades,  surgiram  as  primeiras  queixas  de  um  amor, 
que  se  revelava  fatalmente  atordoado,  como  o  fitar  da  fera 
ao  clarão  da  lua  inaccessivel  e  prodigiosa.  E'  a  segunda 
phase.  Vem  após  um  periodo  de  embevecimento  mystico,  em 
que  as  fugazes  esperanças  acalentam  a  alma,  deixam-na 
suspensa  em  extasis,  n'um  mixto  incoherente  de  sonho,  de 
encantamento,  de  visões,  de  desejos,  de  suspiros,  de  aba- 
fados anhélos,  de  que  Suprema  Visio  é  uma  das  expressões 
mais  typicas  existentes  em  nossa  litteratura.  Lede  : 

<(  Mostra-me  a  nuvem,  que  te  trouxe  á  terra, 
Dize-me  a  estrella  que  no  seio  affagas, 
Formosa  ondina  das  celestes  vagas, 
Que  ouves  bater  o  coração  de  Deus. 
Deixa  que  eu  possa,  d'amoroso  afíecto, 
Morrer...  gu6U*dar  em  tua  rósea  bocca 
Minh^alma,  est*alma,  que  se  estorce  louca, 
Tacteando  as  trevas  dos  cabellos  teus« 


522  HISTORIA  DA  LITTERATUSA  BRASILBIRA 

Para  agradar-te  n&o  contei  commigo... 
Calado  e  triste,  que  attracçôes  eu  tinha? 
Contei  somente  com  a  desdita  minha ; 
Não  achas  bello  padecer  assim? 
N&o  te  seduzem  meus  tormentos  rudes, 
E  as  grfiindes  luctas  de  uma  vida  escura? 
Não  te  apaixon£is  pela  desventura? 
Toca  em  meu  peito,  e  chorarás  por  mim... 

Se  ouso  um  instante  imaginar-te  as  formas, 
A  idéa  hesita,  o  coração  recua ; 
O  inteiro  hrilho  da  belleza  tua 
Do  céo  as  nuvens  n&o  me  deixam  vêr... 
Génio  das  flores,  quero  ahrir-te  o  seio  ; 
Quero  sondar-te,  divinal  mysierio ; 
Voar,  nutrir-me  do  teu  corpo  aéreo ; 
Lagrima  d^áhjo,  quero  te  heber. 

Tai*de,  bem  tarde,  quando  a  mente  envolve 
Das  noites  claras  o  fatal  quebranto, 
Pedindo  aos  astros  o  perdido  encanto 
De  alguma  esperança,  que  já  não  sorri ; 
Quando  a  alma  solta  as  doloridas  pétalas, 
De  ermos  suspiros  ao  profundo  abalo, 
E'  de  joelhos  que  teu  nome  exhalo, 
Que  anceio  e  choro,  meditando  em  ti. 

Nem  tenho  um  anjo,  que  me  apare  as  lagrimas 
Debalde  a  lua,  que  madruga  amena, 
Vem  desgrenhar-se,  como  que  de  pena. 
Pallida  e  loira  sobre  o  peito  meu. 
E  eu  digo  á  lua  :  devagar...  nfto  bulas 
Nas  maguas  fundas  de  quem  ama  e  chora, 
Vê...  n&o  na  toques  ;  ella  dorme  agora, 
E  eu  sinto  o  alento  do  respiro  seu. 

Oh!  quem  beijara-lhe  a  m&osinha  casta, 
Que  vem,  no  meio  de  subtis  perfumes. 
Tirar  suspiros,  desprender  queixumes 
Do  intimo  seio  que  ella  abrio?  Senhor!... 
Se  para  ornal-a  n&o  descubro  flores. 
Se  embalde  mimos  pelo  céo  procuro  ; 
Peço-vos,  dai-me  um  coraç&o  mais  puro. 
Pará  abr€Lzal-a  do  mais  puro  amor. 


HI8T0BIA  DA  LITTIBATinLA.  BRASUJOIU.  523 

Do  que  se  aspira  n'esta  vida  ingrata, 
Um  riso,  um  gesto,  uma  caricia,  um  beijo. 
Gozo,  que  mate  o  meu  soífrer...  n&o  vejo... 
Mas  olha,  escuta  :  é  o  supremo  adeus! 
Para  minh^alma  embalsamar-se  extática, 
E  ao  c6o  voar  inebriada  e  louca, 
Cerrada  a  ilór  de  tua  rósea  becca, 
Dárme  o  aroma  dos  cabellos  teus.  » 

Passado  esse  atordoamento  em  que  o  poeta  só  de  joelhos 
é  que  achava  que  deveria  falar  á  sua  Madona,  segue-se  um 
período  mais  humano  em  que  lhe  declara  o  seu  amor  sem 
rodeios;  mas  sempre  envolto  em  radiantes  roupagens,  em 
idyllicos  murmúrios.  Amar,  E  cedo,  Cármen  sfio  a  expres- 
são (Tesse  momento  de  confiança,  certo  despertada  por 
fagueiras  promessas.  E*  de  notar  a  perpetua  doçura,  a  inal- 
terável meiguice,  a  nunca  desmentida  delicadeza  dos  senti- 
mentos e  da  sua  natural  expressão  em  as  citadas  peças 
lyricas.  Não  existem  mais  mimosas  em  nossa  lingua. 

Basta  percorrer  algumas  estrophes  d'essas  composições 
para  ter  a  prova,  nunca  desmentida,  de  haver  sabido  o  lyrista 
sergipano  para  seus  transportes  amorosos  achar  sempre  as 
expressões  do  mais  requintado  idealismo.  Eis  aqui  : 

«  Amar  é  fazer  o  ninlio, 
Que  duas  almas  contem. 
Ter  medo  de  estar  sosinho. 
Dizer  com  lagrimas  :  vem, 
Flor,  querida,  noiva,  esposa... 
Cabemos  na  mesma  lousa... 
Julieta,  eu  sou  Romeu  ; 
Correr,  gritar  :  onde  vamos? 
Que  luz!  que  cheiro,  onde  estamos? 
£  ouvir  uma  voz  :  no  céo! 

Vagar  em  campos  floridos 
Que  a  terra  mesma  não  tem  ; 
Chegarmos  loucos,  perdidos 
Onde  não  chega  ninguém... 
E,  ao  pé  de  correntes  calmas, 
Que  espelham  virentes  palmas, 


524  HISTORIA  DA  LITTXRATU&A  BSABItBISA 

Dizer-te  :  senta-te  aqui ; 
E  além,  na  margem  sombria, 
•  Vôr  mna  corça  bravia. 
Pasmada,  olbando  p*ra  ti!  » 

Esse  ninho  de  duas  almas,  que  vagam,  embriagadas  de 
luz,  de  perfumes,  pelos  paramos  celestes,  e  só  descem  para 
perderem-se  em  campos  floridos,  onde  n&o  chega  ninguém; 
esse  ninho  que  parece  vae  pender  mysterioso  do  cimo  de 
virentes  palmas,  ao  murmúrio  das  lymphas  encantadas,  ó 
uma  bellissima  imagem,  só  excedida  pela  lembrança  do  poeta 
em  realçar  a  formusura  de  sua  querida,  fazendo  deter-se 
diante  d'ella  pasmada  de  vèl-a  uma  corça  bravia.  Mas  o  surto 
lyrico  do  ideialismo  poético  é  prodigioso  em  mutaçGes. 
Agora  é  sob  a  forma  de  flor  pendente  de  orvalhado  ramo  e 
quei  deve  ser  de  leve  colhida  nas  madrugadas  longínquas, 
quando  nem  ainda  começavam  os  cantos  da  passarada  gár- 
rula, que  surge  a  imagem  do  amor  do  poeta.  Essa  collabo* 
ração  da  natureza  nos  festins  d'alma  humana  é  um  dos  si- 
gnaes  da  boa  poesia.  Eis  o  mimoso  quadro  : 

«  E*  cedo...  as  avesinhas  não  cantaram, 
Nem  d'alva  ao  longe  se  presente  a  vinda ; 
Da  noite  as  sombras  não  se  dissiparam. 
Ha  muita  estrella  pelos  céos  ainda... 

Venho  colher-te.  Porém  tu  me  molhas 
Com  o  teu  orvalho  no  florido  ramo; 
Qu^eu  tenho  medo  de  tocar-te  as  folhas, 
Qu*eu  tenho  medo  de  dizer-te  :  eu  te  amo! 

Do  céo  descido  teu  olhar  supremo 
E*  o  infinito  que  se  entranha  em  mim. 
Scismo  em  tua  sombra ;  se  te  encaro,  tremo!... 
Se  isto  é  amor,  eu  nunca  amei  assim! 

Rosa  dos  valles,  vem  ver  como  és  linda 
No  liso  espelho  desta  fonte  calma  : 
Queres  mais  bella,  mais  brilhante  ainda, 
Rasga-me  o  peito,  mir&>te  em  minh*alma!  n 


BIBTOBIA  DA  UTTBSATUEA  BSA8ILRIKA  525 

Vô-se,  sente-se  a  doce  illusão  do  amoroso  lyrista  n'este 
período  roais  intenso  da  esperança.  Chega  a  sonhar  o  seu 
amor,  cuidado  por  flores,  em  encantado  abrigo,  a  entoar  a 
prece  mystica  das  eternas  venturas  : 

((  Ha  muita  sombra,  meu  amor,  no  valle, 
No  valle  ameno  em  que  medito  a  sós  ; 
Muita  delicia,  que  enlahguece  os  olhos, 
E  muita  flor  para  cuidar  de  nós... 

Alli,  nós  ambos,  pelo  céu  guardados, 
Do  amor  mais  puro  no  encantado  abrigo, 
Tu  me  dirias  :  em  que  tanto  scismas?... 
Abre  o  teu  Uvro,  quero  ler  comtigo. 

Juntos,  ouvindo  o  murmurar  das  aves  , 
Batendo  as  azas  entre  os  arvoredos, 
Mfios  enlaçadas,  um  no  outro  âtos, 
Nós  dois  línidos,  arroubados,  quedos ; 

De  nossos  olhos  na  linguagem  mystica, 
Falando  presos  de  amoroso  enleio, 
Eu  te  pudera  desvendar  minh*alma. 
Tu  me  puderas  revelar  teu  seio... 

Depois,  nas  horas  em  que  o  pranto  é  doce, 
De  uma  doçura  a  que  ninguém  resiste. 
Nós  dois,  Ã  margem  de  sereno  lago. 
Ao  pé  de  um  tronco  desfolhado  e  triste ; 

Ahl  li'essas  horas  em  que  o  céu  é  calmo, 
Ao  vago  anhélo  dos  suspiros  meus, 
Eu  juntaria  tuas  mãos  de  seda, 
Mfios  de  criança  para  orar  a  Deus...  » 

Doestes  protestos,  d'estas  revelações  de  fundas  ternuras 
resuma  a  confiança;  algum  raio  da  embriagante  ventura,  que 
desce  do  céu  do  amor  sobre  os  seus  eleitos,  deveria  ter  illu- 
minado  a  alma  do  poeta.  Dias  mais  escuros  tinham,  porém, 
de  chegar. 

Sob  a  pres.çfio  paterna,  alem,  talvez,  d'outras  causas  desco- 
nhecidas, a  formosa  cndina  das  celestes  vagas^  foi-se  re- 


526  maroBiA  da  litteraturâ  bbabilkiba 

trahindo  aos  poucos,  não  sem  lucta  e  sem  constrangimento. 
Em  unisono  accórde  o  coraç&o  do  apaixonado  mancebo,  foi 
desferindo  as  sentidas  notas  das  situações  desenganadas,  em 
accentuado  crescendo  até  o  rompimento  final.  Mas  ainda 
ahi,  ainda  na  crise  decisiva  as  magoas  do  iriste  foram  sempre 
como  ofteren.las  depostas  no  altar  d'uma  divindade.  Sujh 
plica,  Ohl  isto  mata,  Não  faleis  em  mim,  Porque  me  feriste. 
Como  é  bom,..  caiUae,  Malévola,  Luctas  d' alma  são  a  ex- 
pressão  d^essa  ultima  phase  do  idyllio  de  Tobias  e  Leocadia 
do  qual  a  derradeira  nota  parece  estar  en  Fatalidade.  Em 
Supplica  ouvem-se  as  primeiras  desconfianças;  mas  com 
que  timidez  são  expressas  !  Quem  só  conheceu  o  génio  arre- 
batado do  escriptor  sergipano  em  suas  polemicas  e  n*outros 
passos  de  sua  vida,  quasi  não  pôde  acreditar  que  fosse  elle 
capaz  de  tanta  meiguice.  Mas  é  este  um  signal  das  grandos 
almas  :  os  extremos  nas  fortes  paixões. 
Supplica  parece  cochichada  á  surdina  : 

((  Que  brancas  formas  ao  meu  peito  afago ! 
Não,  são  chymeras  pela  mente  esparsas; 
NAo,  é  a  tíscuma  que  acolchoa  o  lago ; 
Não,  é  a  alvura  de  serenas  garças... 

Não  me  maltrates,  tu,  que  tens  no  seio 
Tanto  rebento  de  paixões  viçosas 
D'alma  supérflua,  que  amanhece  cheio 
Do  teu  sorriso  o  coração  das  rosas. 

Os  astros  limpos,  a  tremer  sedentos 
Da  luz  que  gu€u*das,  como  em  um  thesoiro. 
Pedem  um  íio  dos  teus  pehseunentos 
Para  adornarem  suas  frontes  de  oiro. 

E  a  onda  pede,  para  arfar  mais  bella, 
A  inquietitude  que  o  teu  corpo  abala ; 
E  a  aura  da  tarde  supplicante  anhela 
Pelas  essências,  que  tua  booca  exhala. 

Bocca  mimosa,  que  uma  aurora  encerra, 
Que  meiga  espira  virginal  fragrância! 
Formou-a  Deus  para  supprir  na  terra 
Das  flores  mudas  a  perpetua  infância. 


r 


HISTOBIA  DA  LITTBRATUBA  BRABILSimA  527 

Boquinha  €ú!>erta  ao  matinal  rorejo, 
Que  existe  só  pcLra  sorrir  nos  prados, 
Falar  ao  céo  e  receber  o  beijo 
Que  Deus  envia  aos  coraçOes  magoados. 

Olha...  se  meiga,  como  tu  pareces, 
Tema  criasses,  nos  vergéis  nascida. 
Pobre  avezinha,  e  por  amor  lhe  desses 
Na  ílór  dos  lábios  o  alento  e  a  vida ; 

Um  dia,  ingrata,  te  esquecendo  d*ella. 
Com  quem,  tu  sabes,  ninguém  mais  se  importa, 
Quando  a  lembrança  te  viesse,  oh  bella, 
Nfio  chorarias  de  encontral-a  morta?  » 

A  nota  capital  nas  ultimas  poesias  citadas  é  a  do  amor  que 
faz  o  sacrifício  de  si  mesmo,  procurando  occultar-se,  che- 
gando até,  em  certos  passos,  a  protestar  a  sua  inexistência. 
E'  singular  este  mixto  de  orgulho  e  humilhação,  esta  rara 
mescla  de  devotamente  e  receio,  de  esquivança  e  attracçâo. 
Eis  como  fala  em  Oh  I  isto  mata  : 

«  Não  tenho  forças  para  tanta  lucta, 
Lucta  d'archanjo,  que,  se  mais  um  raio 
Do  seio  ardente  me  lançares,  caio ; 
Que  eu  já  não  posso  com  teu  meigo  olhar. 
Por  ti  sem  vida,  abandonado  &  sorte. 
Gosto  das  noites,  que  me  causam  medo. 
Gosto  da  rosa,  que  me  espinha  o  dedo, 
Gosto  de  tudo  que  me  faz  chorar. 

Carpindo  magoas  que  comprimo  n'alma. 
Gemendo  queixas  de  fatal  desgosto, 
N&o  sei  que  névoa  te  passou  no  rosto, 
Nfto  sei  que  sombra  nos  teus  olhos  vi... 
Mandas  que  eu  fuja,  que  n&o  mais  te  adore? 
Temes  que  um  sonho  revelado  seja? 
Queres  que  eu  morra,  que  n&o  mais  te  veja? 
Pois  bem  ;  nSo  temas  ;  fugirei  de  ti. 

De  ti,  de  mim...  que  pensarfio  as  rosas, 
Qua*ndo  ao  correr  das  viraçOes  macias. 


528  HIBTO&IA  DA  LITTBBATTntA  BBA8ILBIBA 

Das  tardes  frescas  nas  mansões  sombrias, 
Me  virem  triste,  lacrimoso  a  sós? 
Ohl  isto  mata!...  E  que  respondo  ás  flores, 
Quando,  insensiveis  a  meu  longo  pranto, 
Disserem  rindo  qu*é  do  teu  encanto? 
Qu'é  da  criança  mais  gentil  que  nós? 

Talvez  cuidasses  que  te  amar  podesse... 
N&o  que  o  teu  nome  nem  siquer  profiro! 
Foi-te  contado  por  algum  suspiro. 
Por  algum  astro,  por  alguma  ílór? 
Quem  é  que  veio  devassar  mysteríos 
Na  gruta  opaca  do  meu  pensamento? 
£*  falso,  é  falso  o  que  te  disse  o  vento... 
Mentio  a  estrella  que  falou  de  amor  ...» 

Melindrado  pelas  opposições  aristocráticas  da  familia  da 
gentil  namorada,  o  poeta  chega  a  negar  o  seu  amor ;  mas 
essas  evasivas  não  passam  de  novas  conflssões.  E  prosegue 
em  Não  faleis  em  mim  : 

«  E  hei  de  acabar  desventurado  e  triste, 
Falando  ás  flores  que  me  n&o  respondem, 
Buscando  uns  olhos  que  de  mim  se  escondem, 
P'ra  me  nfto  darem  illusões  de  amor? 
Hei  de  acabar!...  e  do  fatal  poema. 
Sim,  deste  psalmo  que  a  chorar  desflro, 
O  ultimo  verso  é  o  ultimo  suspiro. 
Suspiro  eterno  de  ineffavel  dór. 

Qual  brava  corça  das  virentes  selvas. 
Na  sombra  occulta  a  se  nutrir  de  espinhos, 
Minh*alma  pobre,  que  "tAo  tem  carinhos. 
Amargas  penas  na  soid&o  remoe  : 
Pasmando  aos  mimos  da  mulher  que  adoro, 
VisAo  que  abraço  pelos  raios  delia, 
Transido  soffro  a  suspirar  :  oh  bella, 
O  sol  que  brilha,  também  queima  e  doei 

Morrer  por  ella...  que  loucura  minhal 
Longe,  bem  longe  o  seu  olhar  diviso... 
Que  tenho  eu,  para  pedir-lhe  um  riso, 
Que  tenho  eu,  para  adoral-a  assim? 


HISTOBIA  DA  LXTTXRÁTUSA  BBABILIZBA  529 

Astros  da  noite,  que  me  olhaes  attentos, 
Dizei,  dizei  que  esta  paixão  me  mata. 
Mas,  por  amor,  não  lhe  chameis  ingrata, 
Ride  com  ella  e  n&o  faieis  em  mim...  » 


O  amor,  que  se  procura  n'estes  versos  retrahir  e  desf8u*çar, 
consegue  apenas,  em  Porque  me  feriste?  proromper  em 
novas  preces.  O  pensamento,  como  um  raio  morto,  procura 
mais  e  mais  acrysolar-se  : 

((  Bem  como  as  flores,  em  botão  fechadas, 
A'  espera  d'alva,  que  n'as  venha  abrir, 
No  peito  magoas,  a  doer  caladas, 
Pedem  um  raio  para  as  expandir. 
Fita-me,  eu  quero  do  martyrio  santo, 
Que  o  céo  me  outorga,  offerecer-te  a  palma ; 
Deixa  em  teus  olhos  depurar  minh*alma, 
E  em  teus  cabellos  enxugcur  meu  pranto. 

Desde  que,  ao  ver-te,  ajoelhei-me  absorto, 
£  á  hora  extrema  o  coração  bateu, 
Meu  pensamento,  qual  um  raio  morto, 
Gahiu-te  aos  pés  e  "nunca  mais  se  ergueu. 
Quiz  perguntar-te  :  por  que  me  feriste? 
Fitei-te  os  olhos  e  tremi  de  medo... 
Tive  receio  de  morrer  tão  cedo, 
Tendo  o  desgosto  de  viver  tão  triste... 

Tu,  que  sorrindo  minha  fronte  abrasas, 
Porque  não  deixas  que  te  possa  amar? 
Eu  dispensara  do  meu  anjo  as  azas, 
Bastara  um  anjo  para  nos  guardcu*. 
Fói'ma  visivel  de  minha  alma  errante, 
Que  o  meu  penoso  coração  dedilhas... 
Oh!  minha  estrella,  que  de  longe  brilhas, 
Nada  te  importa  que  eu  soluce  ou  cantei 

Para  em  teu  seio  penetrar  a  furto, 
E  haurir  o  orvalho  da  pureza  em  flor, 
Longo...  infinito...  o  pensamento  ó  curto. 
Curtos  os  voos  do  meu  casto  amor. 

HisfiORu  n  34 


^30  HISTOBIA  DA  LITTSRATUKA  BRA8IL1IBA 

Quantas  e  quantas  já  lá  v&o  perdidas 
Lagrimas  d*alma^  que  se  quebra  em  anciãs! 
Pude  nos  sonhos  aspirar  fragrâncias... 
E  achei  as  rosas  de  manha  cahidas! 

Ai!  deste  amor  o  anciar  dorido 
Cubra,  suffoque  do  mysterio  o  véo. 
Génio  dos  anjos,  se  te  amei  perdido, 
N&o  rias,  ouve  :  dir-Vo-hei  no  céo... 
Fita-me ;  eu  quero,  acrysolado  e  santo. 
Do  meu  tormento  offerecer-te  a  palma, 
Deixa  em  teus  olhos  depurar  minh'alma, 
£  em  teus  cabellos  enxugar  meu  pranto.  » 

O  poeta,  como  se  v6,  em  revolta  contra  os  obstáculos 
oppostos  á  sua  felicidade,  não  prorompe  em  blasphemias, 
nem  tem  palavras  duras  contra  a  sua  amada.  Requinta  a 
doçura  e  a  delicadeza. 

Sabe  já  que  nada  poderá  alcançar;  mas  as  ultimas  notas 
do  psalmo  que  desfere,  segundo  sua  própria  expressão,  cada 
vez  sáo  mais  ternas  e  mais  apaixonadas.  Â  divindade  con- 
tinua a  seus  odhos  a  merecer-lhe  toda  a  dedicação. 

Obediente  ás  ordens  paternas,  a  moça  pernambucana  foi 
aos  poucos  cortando  as  relações  com  o  ardente  sergipano. 
Foi  sob  a  impressão  d*esse  retrahimento  da  formosa  andina 
que  foram  escriptos  estes  versos  de  um  lyrismo  encsmtador  : 

«  Podes  rir  e  não  crôr  no  que  soffro, 
Nem  ouvidos  prestar  aos  meus  ais, 
E  o  festão  de  esperanças  fagueiras 
Desfolhar-me  na  face ;  índa  mais... 

Podes  vir  laurear-me  d'espinhos. 
Sem  que  o  pobre  uma  queixa  profira, 
Vêr-me  triste  e  dizer  :  que  loucura  I 
Vôr-me  louco  e  dizer  :  é  mentira  1 

Podes,  bella,  a  meus  olhos  cançados, 
Que  sem  ver-te  na  sombra  fallecem, 
Ordenar  que  não  ousem  âtar-te. 
Que  os  meus  olhos  chorando  obedecem. 


HX8T0BIA  DA  UmEATintA.  T>mAlffT.»imil  5S1 

Maa  qaerer  que  minlia  alma  te  esqaeça^ 
Mas  dar  ordens  ao  meu  coração. 
Mas  impor-lhe  que  deixe  de  amar-te, 
Prohibir-me  que  soífra?...  isto  nSoI 

Meu  amor,  este  amor  que  me  mata, 
De  minli*alma  no  seio  profundo, 
Traduzindo  o  silencio  dos  astros* 
Encerrando  a  grandeza  do  mundo, 

£'  a  onda  que  vem  do  inânito. 
Que  n&o  geme  sequer,  nem  murmura. 
Dos  meus  olhos  trazendo  a  tristeza. 
Dos  teus  lábios  a  doce  frescura. 

£'  o  susto  da  flor  que  descora 

Por  um  beijo  do  sol  que  na  ofíende ; 

O  segredo  de  brando  favonio, 

Que  suspira  e  ninguém  comprehende. 

E*  a  gloria  do  mar  que  se  ufana 
De  apanhar  a  botina  e  a  meia 
Da  donzella,  que  foi  por  brinquedo 
Descalçar  um  pézinbo  na  areia. 

E*  o  orgulho  da  vaga  empolada, 
Que  se  julga  mais  rica  e  ditosa 
De  embalar  uma  lagrima  d'anjo 
No  batel  de  uma  folha  de  rosa. 

Meu  amor  é  a  rola  selvagem 
De  um  cabello  prendida  no  laço ; 
E*  o  lyrio  que  diz :  n&o  me  mates  ! 
Ao  tuAo  que  lhe  diz  :  eu  te  abraço  1 

Mas  tu  foges  de  miml...  ouve,  espera: 
Se  procuras  saber  quem  eu  sou. 

Diga  o  anjo  que  sempre  commigo 
Minhas  magoas  sentio  e  chorou. 

Diga  a  lua  a  quem  conto  os  meus  sonhos, 
A  quem  dou  para  ver  e  guardar 
Meu  thesouro  de  lagrimas  puras 
Que  as  angustias  me  querem  roubar.  » 


532  HI8T0BIA  DA  LITTEBATUSÀ  BSABILBISA 

Mas  no  poeta  lyrico  havia  já  em  1867,  anno  em  que  foram 
escríptos  os  versos  acima  citados,  a  íibra  de  um  luctador 
sedento  de  glorias.  As  grandes  aspirações  pelo  futuro,  a  con- 
sciência de  uma  carreira  a  preencher  vieram  em  auxilio  do 
pobre  estudante.  Ao  idolo  adorado  pede  ainda  piedade  e  com- 
paixão ;  mas,  enlregue  aos  tufões  da  sorte,  tem  a  coragem  de 
aguardar  futuras  glorias,  que  o  hão  de  valer,  porque  náo  as 
renega.  E'  a  psychologia  que  transpira  de  Luctas  (TAlma  : 

<(  Como  é  sublime  o  combater  de  uma  almci, 
Que  abriu  as  azas  aos  tufões  da  sorte  I 
Leva  no  seio  um  oceano  amargo, 
Transcende  as  nuvens  soberana  e  forte ; 
Toma-lhe  o  vento  as  esperanças  todas; 
Mas  não  succumbe,  mas  não  foge  á  morte... 
Como  é  sublime  o  combater  de  uma  alma, 
Que  abriu  as  azas  aos  tufões  da  sorte ! 

Sim  I  E  que  importa  que  na  fronte  curva 

Presinta  o  frio  de  funérea  lagem  ? 

De  uma  tristeza  no  fatal  suspiro, 

De  uma  lembrança  na  veloz  passagem, 

Escuto  ao  longe  o  coração,  que  bate, 

E  a  voz  de  um  anjo,  que  me  diz  :  coragem  I 

Sim  I  E  que  importa  que  na  fronte  curva 

Presinta  o  frio  de  funérea  lagem  ? 

Sorte  maldita,  que  me  tens  ferido, 

Tu  me  venceste,  mas  eu  não  me  entrego ! 

Na  mente  escura,  como  um  vasto  globo 

De  noite  negra  tacteando  cego. 

Encontro  as  crenças  de  futuras  glorias. 

Que  hão  de  valer-me,  porque  as  não  renego. 

Sorte  maldita,  que  me  feres  n'alma. 

Tu  me  venceste,  mas  eu  não  me  entrego ! 

Possa  meu  pranto  fecundar  a  terra. 
Donde  rebentam  da  piedade  as  flores ; 
E  tu,  que  assistes  de  minha  alma  ás  luctas, 
Sô  compassiva  para  tantas  dores. 
Morta  a  palavra  pelo  soffrímento, 
Perdido  o  riso  pelos  dissaliui'Os, 


j 


HUTO&IA  BA  LITTBBATUSA.  BKABILBnUL  533 

Possa  meu  pranto  fecundar  a  terra, 
Donde  rebentam  da  piedade  as  ílores...  » 

O  rompimento  deu-se  em  meiados  de  1868,  depois  de  peri- 
pécias varias  que  não  podem  ser  aqui  narradas. 

Os  versos  a  que  poz  o  titulo  de  Fatalidade  desvendam,  até 
certo  ponto,  n'esse  transe  o  coração  de  seu  auctor. 

E*  para  notar  ainda  ahi  a  respeitosa  admiração  do  poeta  dos 
Dias  e  Noites  por  essa  mulher  que  lhe  encheu  durante  cerca 
de  quatro  annos  a  alma  de  irisados  e  deliciosos  sonhos  e  da 
qual  nunca  mais  falou  até  morrer  sem  visivel  emoção  : 

Disse  ao  verme  da  terra  águia  celeste : 
(( Dóe-me  ver-te  no  pó ;  minh'alma  é  nobre ; 
Porque  não  ousas  remontar  ás  nuvens  ?  » 
<<  Não  tenho  azas...  »  lhe  responde  o  pobre. 

«  Tenho-as  eu  ;  posso  erguer-te  ao  infinito, 
Onde  voam  as  almas  que  suspiram.  » 
A  águia  e  o  verme  n'um  olhar  trocado 
Se  embeberam  de  luz;  e  ambos  subircun. 

As  nuvens  fogem  para  abrir  caminho 

Ao  rápido  voar  da  ave  altaneira; 

E  os  astros  dizem  rindo :  (c  vem  da  terra, 

Trazendo  aos  pés  de  Deus  um  grão  de  poeira...  » 

Quando  assim  mais  alturas  devassavam. 
Esta  águia  qiie  dizia:  u  o  espaço  é  nosso, 
Vamos  juntos  ao  céo,  entras  commigo...  » 
Disse  ao  ente  infeliz:  «  ai !  já  não  posso  !...  » 

u  Pois  agora  que  o  mundo  está  tão  longe. 
Que  tão  alto  voaste,  é  que  me  deixas  ?...  » 
(f  Lembrei-me  que  eu  sou  grande  e  tu  pequeno, 
Tenho  pejo  de  ouvir  as  tuas  queixas...  » 

E*  assim  que  ao  abysmo  tormentoso 
Meigo  sorriso  um  coração  sirrasta, 
E,  na  borda  fatal  do  precipício. 
Tu  recuas,  e  eu?...  sumo-me.  Basta...  » 


584  HISTORIA  DA  UTTBBATUHA  BRABILXIRA 

Depois  de  taes  e  tantas  citações,  bem  se  comprehende  o  alvo 
que  tive  em  vista.  Alem  de  pdr  debaixo  dos  olhos  do  leitor 
bellos  trechos  do  lyrismo  pátrio,  quiz  desfazer  falsas  allega- 
çOes,  ainda  hoje  correntes,  sobre  o  auctor  dos  Dias  e  Noites, 
patenteando  aos  espirites  imparciaes  todo  o  mundo  de  ter- 
nura e  de  delicadeza  existente  noe  sentimentos  do  poeta,  que 
foi  verdadeiramente  uma  alma  bao,  generosa  e  amoravel. 

A  segunda  paixão  sentida  por  elle  foi  na  cidade  da  Es- 
cada por  uma  bella  morena  de  nome  Maria  d'Albuquerque, 
intelligente  amadora  do  canto  e  do  piano.  Tobias  residia  então 
na  pequena  cidade  pernambucana,  onde  tinha  banca  de  advo- 
gado. A  musica  os  approximára.  Começaram  cantando  e 
tocando  juntos  e  acabaram  namorados.  Teve  esse  complicado 
convívio  phases  varias;  mas  nunca  passou  as  raias  das  conve- 
niências. Deu  logar  a  pequenos  lieder,  notáveis  pela  intensi- 
dade e  calor  das  notas.  Eis  aqui  alguns  : 

(f  Vinde  commigo  ver  essa  belleza, 
Iiic6U*naç&o  do  espirito  das  flores, 
Ultima  nympha  que  encontrei  perdida, 
Solitária  na  ilha  dos  amores. 

Como  cara  mil  vezes  depurada, 
Realça-lhe  o  candor  da  fronte  linda  ; 
Natureza  cruel  e  demoníaca, 
Da  família  de  Lelia  e  de  Lucinda ; 

Bastos,  crespos  cabellos  de  mulata. 
Sendo  ella  aliás  de  pura  raça  aryana. 
Olhos  d*aguia,  mãozinhas  de  criança, 
Bocca  de  rosa  e  dentes  de  africana... 

E'  esta  a  imagem  que  peguei  n'um  sonho, 
Sonho  de  amor,  febril  e  delirante ; 
A  mais  moça,  a  mais  quente  das  dez  virgens, 
A  que  o  reino  dos  céos  é  similhante...  » 

Estes  versos  trazem  o  titulo  de  Por  brincadeira. 
Uma  vez,  porém,  n'esse  declive,  escreve  o  poeta  : 


nSTOBIÁ  DA  UTTBRATUBA  B&ASILIIBA  535 

«  Tu  és  morena  e  sublime 
Como  a  hora  do  sol  posto ; 
E  no  crepúsculo  eterno 
Que  Venvolve  o  lindo  rosto 
O  céu  espalha  ternuras 
D'aIvoradas  e  jasmins... 
E  passam  roçando  r*alma 
As  azas  dos  cheruhins. 

Teu  corpo  que  tem  o  cheiro 
De  cem  capellas  de  rozas, 
Que  fenche  a  roupa  de  quebros, 
De  ondulações  graciosas, 
Teu  corpo  derrama  essências 
Ck>mo  uma  campina  em  íIcn*... 
Beijal-ol...  íòra  loucura... 
Gozal-o!...  morrer  de  amor!...  » 

São  já  os  cálidos  tons  dos  ardores  meridionaes;  mas  sempre 
^aciosos  e  em  linguagem  selecta.  Um  passo  mais  e  o  inilam- 
mavel  poeta  sente-se  abalado  e  a  moça,  como  de  razão, 
esquiva  : 

((  Quando  te  mostro  essa  porção  de  sombras 
Que  o  teu  cabello  me  lançou  na  fronte 
E  os  ais  sentidos  que  no  ermo  exhalo, 
Pedindo  ao  ermo  que  a  ninguém  os  conte ; 

Quando  te  falo  no  profundo  affecto 
Que  tua  bocca  me  imprimio  no  seio, 
Teus  meigos  olhos  me  respondem  tímidos  : 
Como  é  possível  este  amor  ?  não  creio. 

Como  é  possível?!  tens  razão...  As  almas 
Não  sobem  todas  á  serena  altura, 
Donde  se  exepellem  deste  mundo  as  maguas 
E  lá  mais  vivo  o  coração  fulgurcu 

Não  sobem  todas.  Entretanto  eu  soffro. 
Ninguém  percebe  a  minha  dôr;  eu  choro. 
Ninguém  conhece  do  meu  pranto;  eu  morro, 
E  tu  perguntas  com  que  fim  te  adoro  ?i... 


536  HI8T0BIA  DA  UTTBBATnBA  BBJJOJJaJUL 

Podes  dizer-me  com  que  âm  rebentam 
Brancas  boninas  no  deserto  ?  e  as  aves, 
Que  o  sol  saúdam,  com  que  fim  gorgeiam, 
E  acordam  d'alma  as  emoções  suaves?... 

A  flor  das  veigas  e  dos  céos  a  estrella, 
Que  meigos  prantos  entre  si  derramaml  — 
A  flor  não  sobe  nem  a  estralla  desce, 
Qual  o  motivo  por  que  tanto  se  amam?...  » 

Igual  sentimento  repete-se  insistentemente  n'estes  outros 
versos  : 

((  Eis-me  á  borda  do  abysmo  arrastado 
Deste  amor  aos  impulsos  fataes ; 
E  teus  olhos,  que  assim  me  levaram. 
Já  parecem  dizer  :  é  de  mais  ! 

E'  de  mais,  bem  o  sei,  a  loucura 
Com  que  c^o  cabira  a  teus  pés. 
E  da  poeira  de  luz,  que  te  envolve 
Quiz  ousado  romper  através. 

Vi-te  bella;  encarei  as  estrellas, 
N&o  achei  quem  dissesse  :  onde  vais  ? 
E  minh*alma  perdeu-se  nas  sombras 
De  teu  negro  cabello...  E'  de  mais... 

Fazes  bem;  meu  amor  não  tem  azas 
Para  ao  longe  comtigo  voar; 
Pobre,  louco,  misérrimo  e  triste... 
Eu  que  tenho  ?  que  posso  eu  te  dar  ?  » 


Entretanto,  a  bella  morena  sentia  por  seu  apaixonado  sin- 
Cíe^a  inclinação,  que  não  se  podia  expandir,  porque  havia 
entre  elles  o  abysmo  das  grandes  e  fundas  conveniências  so- 
ciaes.  Por  isto  dizia-lhe  elle  em  delicado  tom  de  queixume  : 

f(  Um  riso,  um  gesto,  umeis  palavras  doces, 
Eis  a  riqueza  do  teu  grande  amorl... 
Se  Deus  quizesse  reduzil-o  a  orvalho. 
Não  ensopava  a  pet1a  de  uma  flor... 


HI8TOBZA  DA  UTTS&LTURiL  BRASILIIEA  537 

Entretanto,  minha  alma,  que  te  adora, 
Esta  alma,  que  a  teus  pés  cahiu  ferida, 
N'esse  pingo  de  amor,  quasi  invisível. 
Acha  gozos  do  céo,  que  lhe  dfto  vida  I...  » 

E  como  se  ella  sentisse  mais  preza  e  chegasse  até  ás  lagri- 
mas, teve  elle  este  brado  de  dõr  que  poz  remate  a  essa  situa- 
ção desagradável  : 

«  Ver-te  chorar !  E  náo  poder  prostrar-me 
Dos  olhos  teus  ao  infantil  quebranto, 
£,  como  o  orvalho  da  manhã  nos  campos. 
Nas  minhas  barbas  imbeber-te  o  prantol 

Ver-te  chorar  I  E  n&o  poder  as  lagrimas, 
Que  tu  vertias  com  virgíneo  pejo, 
N*um  cofre  d*oiro  recolhel-as  todas, 
Seccal-as  todas  ao  calor  de  um  beijo!... 

Que  beijo  I  O  echo  dos  abysmos  d'alma, 
Se  abrindo  aos  raios  da  belleza  tua : 
Um  beijo  enorme  de  oceano  immenso 
Na  branca  praia,  solitária  e  nua ! 


Tu  trazes  iltas  nos  cabellos  negros. 
Nos  seios  quentes  o  calor  dos  ninhos, 
Na  fronte  a  sombra  do  cahir  das  tardes. 
Flores  na  mão,  no  coração  espinhos...  » 

N'estas  effusões  pela  gentil  Maria  de  Albuquerque  está-se 
bem  longe  do  delicioso  ideialismo  inspirado  pela  incompa- 
rável Leocadia,  é  certo  ;  mas  a  compostura  é  ainda  completa  e 
a  attitude  do  poeta  respeitável,  como  respeitável  é  tudo  quanto 
sentido  e  sincero  produz  o  coração  humano. 

O  embevecimento  de  Tobias  diante  da  mulher,  de  que  até 
em  seus  discursos  e  ensaios  críticos  existem  muitas  amos- 
tras, não  se  fez  sentir  somente  em  relação  ás  suas  apaixona- 
das. Desde  os  seus  primeiros  annos  no  Recife  frequentou 
excellentes  rodas  e  teve  óptimas  e  escolhidas  relações,  que 


&88  HIBTOBIA  DA  LITTIBATURA  BBA8ILBIBA 

entreteve  sempre  com  muita  carinho.  Teve  assim  ensejo  de 
conhecer  e  tratar  dístinctissimas  senhoras,  solteiras  e  casa- 
das, pelas  quaes  foi  muito  estimado,  retribuindo-Ihes  os  nobres 
affectos  com  a  mais  elevada  e  selecta  amisade.  A  algumas 
d'estas  dedicou  poesias  que  se  contam  entre  as  melhores  que 
produziu.  Feda-lhes  objectivamente,  por  assim  dizer,  mas 
com  um  arrebatamento,  um  enlhusiasmo,  um  calor,  verda- 
deiramente raros  na  amisade.  São  notáveis  taes  prcxiucções 
como  superiores  modelos  de  estylo  e  eflus&o  lyríca. 

N'esse  numero  contam-se  os  versos  postos  no  álbum  de 
D.  Amália  Pinto  de  Lemos  que  seria  crime  nao  transcrever  : 

«  Que  vem  fazer  eín  pagina  tâo  alva 
Uma  idéa  mortal,  humana,  imprópria, 
Como  em  fronte  infantil  ruga  sombria  ? 
Ah !  se  ao  appello  de  teus  olhos  sérios 
Responde  tudo,  que  palpita  e  brilha ; 
A  ílôr,  a  estraila,  o  coração  respondem 
N'um  canto  vago,  immaculado,  ethereo ; 
Possa,  minh'alma  ennevoada,  agreste. 
De  um  nome  angélico  atirar  as  syllabas 
Ao  mar,  ao  céo,  á  luz,  ao  vento,  ás  águias. 
Capazes  de  apanhar  a  poeira  fulgida 
Do  chão  que  pisas,  e,  n'um  vôo  celeste. 
Ir,  por  brinquedo,  sacudir  as  a^as 
No  seio  branco  da  mais  linda  nuvem... 

Feito  de  riso  e  doçura, 
Aura  do  céo  respirável. 
Teu  nome  santo,  ineffavel, 
Tão  puro  que  os  lábios  meus 
Têm  susto  de  proferil-o, 
Desperdiçar-Ihe  os  odores, 
Amália  I...  é  o  abrir  das  ílôres 
Pronunciado  por  Deusl 

Bem  como  do  sol  reflectem 
Os  longos  raios  na  lua. 
Dardeja  na  face  tua 
Paterno  olhar  do  Senhor; 
Nem  sei  o  que  é  mais  visível, 


HI8T0ÍEIÂ  DA  LITTXBATITBA  BBABIUnLà  599 

Se  do  teu  rosto  a  lindeza. 
Do  teu  corpo  a  subtileza, 
Ou  da  tua  alma  o  candor !... 

Mas  é  verdade  que  soffres  ?... 
T&o  moça,  soffres  t&o  cedo ! 
Dize:  que  angélico  dedo 
Bolio-te  no  coraçfio  ? 
Ou  foi  a  aragem  da  tarde 
Que  o  teu  bordado  de  sonhos 
Esperançosos,  risonhos, 
Arrebatou-te  da  mão  ? 

Dize:  no  céo,  nas  espheras 
Fitaste  um  olhar  mais  triste  ?... 
Tão  tema  ás  flores  sorriste, 
Que  a  alma  puderam-te  vâr  ? 
Pois  as  flores  todas,  todas. 
Já  sabem  do  teu  segredo, 
£  se  ellas  sabem...  tem  medo 
Que  as  aves  queiram  saber. 

Os  rinhos  n&o  s&o  capazes 
D*esconder  este  mysterio ; 
Nem  mesmo  o  tumulo  é  sério, 
Para  gufiu*dar  esta  dor... 
As  rosas  n&o  são  amigas, 
A  quem  abras  o  teu  peito. 
Cruéis  que  dizem  :  bem  feito, 
Quem  te  mandou  ter  amor  ? 

De  um  peito  débil,  nos  sonoros  rythmos. 
Como  que  se  ouve  o  tropear  de  instantes 
Que  vão  correndo  fugitivos,  trépidos... 
Não  ouças  :  canta.  Que  disse  eu  ?  não  cantes  I 
Não ;  não  recebas  do  piano  os  bafos. 
Que  são  veneno  para  a  tua  dôr  : 
Esconde  o  peito  dessas  auras  frias, 
Que  passam  cheias  de  saudade  e  amor. 

Dizem  que  as  serpes  habitar  costumam 
Ninhos  sem  aves,  por  ahi  desertos ; 


540  .  HIBTOSIA  DA  LITTBaATUSA  BRABUJEIRA. 

E  a  morte  gosta  de  beijar  os  seios, 

Que  as  magoas  deixam  para  os  céos  abertos. 

Não  penses  nisso ;  em  tua  fronte  limpida 

Corre  da  vida  o  matinal  frescor  : 

Esconde  o  peito  dessas  auras  frias, 

Que  passam  cheias  de  saudade  e  amor. 

Como  se  calam  da  esperança  os  hymnos, 
Ruido  d'azas  que  ao  teu  lado  ouviste ! 
Ao  céu  perguntas  :  porque  morre  a  virgem  ? 
E  o  céo  te  escuta  num  silencio  triste. 
E*  que  tens  medo  de  fechar  os  olhos, 
Cerrar  os  lábios  e  perder  a  côr... 
Esconde  o  peito  dessas  auras  frias, 
Que  passam  cheias  de  saudade  e  amor. 

Tudo  faz  mal  ao  coraç&o  :  a  folha 
Que  cabe,  o  ramo  que  estremece,  a  vaga 
Que  geme  á  tarde,  uma  lembraça  ao  longe, 
Um  raio  tremulo,  um  olhar  que  afaga, 
Tudo  faz  mal  ao  coraç&o  :  a  aurora, 
O  riso,  o  pranto,  o  desfolhar  da  flor... 
Esconde  o  peito  dessas  auras  frias, 
Que  passam  cheias  de  saudade  e  amor.  » 

A  ouvertura  em  versos  brancos  é  solemne ;  as  oitavas  se- 
guintes em  redondilha  maior,  o  verso  popular  por  excellen- 
cia,  constituem  uma  espécie  de  allégro  e  são  das  mais  delica- 
damente bellas  de  nossa  língua,  só  encontrando  iguaes  em 
João  de  Deus,  um  dos  primeiros  lyricos  do  meio  dia  da  Eu- 
ropa; as  oitavas  flnaes,  em  versos  saphicos,  são  docemente 
magoadas,  n'aquelle  plangente  ritomello,  ao  molde  dos  velhos 
cancioneiros,  tão  do  gosto  de  nosso  idioma. 

Em  igual  elevação  lyrica  adejam  as  poesias  consagradas 
a  D.  Paulina  Monteiro  de  Siqueira  Calvalcanti,  senhora  de 
rara  distíncçâo,  um  dos  mais  dignos  caracteres  femininos  da 
sociedade  pernambucana  no  ultimo  quartel  do  século  xa,  e 
esposa  do  honrado  cavalheiro  António  dos  Santos  de  Siqueira 
Cavalcanti. 

Essa  intelligente  e  illustrada  senhora,  cujo  sal&o  no  Recife 
lembrava  os  salões  parisienses  do  bom  tempo,  nascera  no 


HIBTOSIA  PA  LZm&ÁTTnU  BSABZLinLiL  541 

mar,  em  viagem  feita  por  seus  pais  á  Europa.  O  poeta,  em 
versos  ao  seu  natalicio,  alludindo  a  essa  circumstancia,  dizia  : 

((  Sobre  as  azas  cherubicas  suspenso, 
Deus  sobre  os  mundos  estendendo  o  braço, 
Nasceste  linda  e  o  oceano  immenso 
Embalou-te  cantando  em  seu  regaço. 

Embalde  o  archcmjo  do  mysterio,  triste, 
Cerrara  os  lábios  do  universo  mudo  : 
Os  flóreos  risos  que  primeiro  abriste 
De  Deus  e  d'alma  revelaram  tudo. 

Tudo...,  o  meigo  candor  das  alvoradas, 
Das  tardes  calmas  o  segredo  fundo, 
O  silencio  das  noites  estrelladas. 
Foi  por  teus  olhos  revelado  ao  mundo... 

E  é  se  revendo  em  tua  face  pura 

Que  os  archanjos  de  Deus  se  julgam  bellos. 

Dize  :  que  é  que  o  teu  olhar  procura 

No  céu,  na  terra  em  fulgidos  anhelos  ? 

E'a  meiguice  dos  primeiros  dias. 

Que  ao  longe  exhalam  divinaes  fragrâncias? 

Não ;  nos  olhos  ainda  balbucias 

De  anjo  e  menina  as  innocentes  anciãs. 

Rindo  affagas  a  cândida  plumagem 
De  tua  infância  pelas  azas  prosa ; 
Em  cada  flor  se  estampa  a  tua  imagem, 
Teu  hálito  embalsanoa  a  natureza... 

Sobre  as  azas  cherubicas  suspenso  , 
Deus  sobre  os  mundos  estendemdo  o  braço. 
Nasceste  linda  e  o  oceano  immenso 
Embalou-te  cantando  em  seu  regaço.  » 

E'  0  lyrismo  em  sua  forma  selecta,  em  seu  mais  puro 
esmero.  Quatro  ou  cinco  poesias,  n'esle  gosto,  teve  o  illustre 
sergipano  ensejo  de  dedicar  ao  anniversario  natalicio  de  sua 
distintíssima  amiga.  Sempre  achava  na  lyra  algum  som  novo, 


542  HISTORIA  DA  LITTSBATUBA  BBABILUEA 

exhalado  de  cordas  intactas,  e  cada  vez  subia  mais  alto.  Eis-a 
prova : 

«  NÓ8,  as  estreilas  que  no  ceu  pensamos, 
As  folhas  mortas  que  no  pó  jazemos, 
Os  olhos  tristes  que  já  n&o  choramos... 
Ah  !  que  a  ventura  de  chorar  perdemos !... 
De  orvalho  as  gottas  pelo  chão  bebidas, 
Porque  em  seu  cálix  n&o  nos  quiz  a  flor, 
Banhar-nos  do  anjo  no  clar&o  viemos, 
E  as  nossas  preces  a  seus  pés  depor. 

As  auras  frescas,  de  bem  longe  vindas, 
Que  a  bocca  rubra  da  criança  abrimos  , 
Nem  lhe  passamos  pelas  faces  lindas, 
Que  temos  pena  de  levar-lhe  os  mimos ; 
As  rosas  murchas,  por  ninguém  colhidas 
Que  inda  podemos  reviver  de  amor, 
Banhar-nos  do  anjo  no  clar&o  viemos, 
E  as  nossas  preces  a  seus  pés  depor... 

Assim  teu  astro,  nas  cerúleas  dobras 
Do  manto  eterno,  mais  e  mais  fulgura ; 
Nasceste  bella,  como  s&o  as  obras. 
Todas  as  obras,  em  que  Deus  se  apura. 
E  nesta  hora  em  que  naceste,  belia, 
E  a  terra  encheu-se  dos  fulgores  teus  , 
O  mar  revolto  era  um  bater  de  palmas, 
E  o  céo  azul  era  aattençâo  de  Deus. 

Lembram-se  as  flores,  que  sentiram  quente 
No  seio  a  força  desse  novo  encanto  , 
Mais  o  calor  de  um  coraç&o  ardente  , 
Que  se  alimenta  de  ternura  e  pranto ; 
Lembram-se  as  flores  que  aos  ouvidos  d'ellas 
Chegaram  ténues  os  vagidos  teus  : 
E  o  mar  revolto  era  um  bater  de  palmas  , 
E  o  céo  azul  era  a  attenç&o  de  Deus...  » 

Dada  a  noticia  inicial  do  poeta  em  Tobias  Barretto,  em  suas 
relações  com  Castro  Alves,  em  a  ideia  geral  de  sua  evoluçfto 
na  divina  arte,  dos  géneros  diversos  que  cultivou,  e,  mais 


HISTOBIA  BA  UTTSIATinU  BBASILBIBA  543 

peculiarmente,  indicados  os  seus  sentimentos  no  que  tocava 
á  mulher  em  geral,  aos  génios,  aos  talentos,  ás  crianças,  aos 
povos,  e,  ainda  mais  de  perto,  apontados  os  seus  aflectos  no 
que  dizia  respeito  ás  damas  que  lhe  compartilharam  o  amor 
ou  a  simples  amisade,  náo  se  acha  esgotada  a  tarefa  da  cri- 
tica e  da  historia,  por  este  lado,  a  seu  respeito. 

Por  mais  distincto  que  se  tivesse  elle  revelado  em  tudo  isso, 
seria,  ainda  assim,  um  poeta  de  ordem  secundaria,  se  não 
houvesse  su*alma  vibrado  em  altas  e  magnificas  notas  diante 
dos  magnos  assumptos,  os  especiflcos  problemas  que  sfto  a 
pedra  de  toque  da  poesia  moderna  :  o  enygma  do  universo,  a 
humanidade  em  seu  destino  e  sua  grandeza,  a  morte,  a  pátria, 
o  trabalho,  a  vida  social  em  suas  múltiplas  feições.  Felizmente 
para  tudo  isto  existem  alguns  cânticos  em  suas  producções. 

E'  o  que  me  falta  mostrar  para  concluir-lhe  o  perfil  de  poeta, 
até  hoje  pouco  apiBCiado  em  seu  legitimo  valor. 

O  sombrio  mysterio,  que  vela  todas  as  cousas,  é  o  assumpto 
de  Voos  e  Quedas^  canto  philosophico,  cheio  de  elevadas 
ideias,  de  fortes  pensamentos,  escripto  em  1866,  e  que  con- 
stitue  um  dos  mais  authenticos  productos  da  poesia  condo- 
reira  na  escola  pernambucana.  Convém  ser  lida  como  docu- 
mentação da  litteratura  da  época.  Abre  assim  : 

Cf  Quebrei  a  cr'ôa  de  espinho, 
Que  a  minha  fronte  sangrou  : 
Como  a  serpe  occupa  o  ninho 
Que  o  pássaro  abandonou, 
Jaz  em  meu  peito  o  desgosto... 
Do  abysmo  lava-me  o  rosto 
A  onda  crepuscular ; 
De  minh  alma  a  fibra  extrema 
Sai  nas  unhas  do  problema. 
Que  nfio  se  deixa  pegar... 

Vér  o  mysterio  eriçado 
Rodeando  os  mausoléos, 
Morrer...  subindo  agarrado 
No  escarpamento  dos  céos, 
E'  triste!  Mas  é  a  vida... 
O  homem,  de  tenta  lida 


544  HIBTOBIÁ  DA  LITTERATI7BA  BBASUJO&Á 

Cançado,  indagando  vai; 
Chora  embalde,  grita,  escuta, 
E  a  terra,  m&i  prostituta, 
N&o  lhe  diz  quem  é  seu  pail...  » 

N'este  gosto,  n'esta  elevação  prosegue  por  mais  vinte  e  duas 
decimas  octosyllabas,  que  lembram  as  da  famosa  poesia  Les 
Mages  de  Victor  Hugo,  uma  das  peças  typicas  do  lyrismo 
romântico  francez,  na  opinião  de  Brunetière.  Os  versos  do 
poeta  das  Contemplações,  escriptos  no  mesmo  metro  e  na 
mesma  forma  estrophica,  revelam  mais  imaginação  e  mais 
talento  verbal ;  porém  muito  menos  profundeza  de  ideias. 

Em  autonomia  de  pensamento  e  em  instrucçâo  real  o  poeta 
brasileiro  sobrepujava  o  seu  mestre  de  estylo  francez. 

Mais  característico  ainda  do  que  os  Voos  e  Quedas,  no  que 
diz  respeito  ao  problema  das  origens  do  universo  e  dos  des- 
tinos humanos,  é  este  soneto,  escripto  quinze  annos  mais 
tarde  : 

c(  Quanta  iUusão  !...  O  céo  mostra-se  esquivo 
£  surdo  ao  brado  do  universo  inteiro... 
De  duvidas  cruéis  prisioneiro. 
Tomba  por  terra  o  pensamento  altivo. 

Dizem  que  o  Christo,  o  fllho  de  Deus  vivo, 
A  quem  chameun  também  Deus  verdadeiro, 
Veio  o  mundo  remir  do  captiveiro, 
E  eu  vejo  o  mundo  ainda  t&o  captivo ! 

Se  os  reis  são  sempre  os  reis,  se  o  povo  ignavo 
Náo  deixou  de  provar  o  duro  freio. 
Da  tyrannia,  e  da  miséria  o  travo. 

Se  é  sempre  o  mesmo  engodo  e  falso  enleio. 
Se  o  homen  chora  e  continua  escravo. 
De  que  foi  que  Jesus  salvar-nos  veio  ?...  » 

Este  pensamento  da  inefflcacia  do  christianismo  para  a 
libertação  ha  humanidade,  afíirmado  agora  sem  rebuço,  já, 
em  época  muito  anterior,  tinha  o  poeta  suggerido,  sob  forma 
dubitativa,  quando  disse,  nos  versos  A'  Caridade,  falando  do 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  BRASILEIRA  545 

Christo  :  Parece  que  foi  inútil  o  ter  morrido  por  nós.  Em 
ambos  os  casos,  porém,  sempre  com  pronunciado  comedi- 
mento. No  puro  terreno  da  arte  evitou  sempre  assumir  atti- 
tude  doutrinaria  e  philosophante.  Das  árduas  questões  da 
philosophia  transportava  para  a  poesia  apenas  o  perfume,  por 
assim  dizer,  ou  os  grandes  tons  da  intuição  geral. 

E'  o  que  se  nota  n'este  bella  synthese  da  evolução  humana, 
inspirada,  ao  que  parece,  pela  leitura  do  Ahasverus  de  Quinet, 
e  que  ahi  corre  sob  o  titulo  de  O  Génio  da  Humanidade  : 

u  Sou  eu  quem  assiste  ás  luctas, 
Que  dentro  d^alma  se  dão. 
Quem  sonda  todas  as  grutas 
Profundas  do  coração  : 
Quiz  vôr  dos  céus  o  segredo ; 
Rebelde,  sobre  um  rochedo 
Cravado,  fui  Prometheu ; 
Tive  sôde  do  infinito, 
Génio,  feliz  ou  maldito, 
A  Hiynanidade  sou  eu. 

Ergo  o  braço,  acceno  aos  ares, 
E  o  ceu  se  azulando  vae  ; 
Estendo  a  mão  sobre  os  mares, 
E  os  mares  dizem  :  passeie !... 
Satisfazendo  ao  anhelo 
Do  bom,  do  grande  e  do  bello. 
Todas  as  formas  tomei  : 
Com  Homero  fui  poeta, 
Com  Izaias  propheta, 
Com  Alexandre  fui  rei. 

Ouvi-me  :  venho  de  longe, 
Sou  guerreiro  e  sou  pastor  ; 
As  minhas  barbas  de  monge 
Tém  seis  mil  annos  de  dôr  : 
Entrei  por  todas  as  portas 
Das  grandes  cidades  mortas, 
Aos  bafos  do  meu  corcel, 
E  ainda  sinto  os  resabios 
Dos  beijos  que  dei  nos  lábios 
Da  prostituta  Babel. 

B1ST0IUA  n  35 


546  HISTORIA  DA  LITTEBATIT&A  BBASILBIBA 

£  vi  Pentapolis  núa. 
Que  não  corava  de  mim, 
Dizendo  ao  sol :  eu  sou  tua, 
Beijarme...  queimarme  assim! 
£  dentro  havia  risadas 
De  cinco  irmâes  abraçadas 
Em  voluptuoso  furor... 
Anciãs  de  febre  e  loucura, 
Chiando  em  polpas  de  alvura. 
Lábios  em  brazas  de  amorl... 

Travei-me  em  luctas  immensas. 
Por  vezes,  cançado  e  nú. 
Gritei  ao  céo  :  em  que  pensas? 
Ao  mar  :  de  que  choras  tu? 
Caminho...  e  tudo  o  que  faço 
Derramo  sobre  o  regaço 
Da  historia,  que  é  minha  irm&  : 
Chamem-me  Byron  ou  Goethe, 
Na  fronte  do  meu  ginete 
Brilha  a  estrella  da  manha. 

E  no  meu  canto  solemne 

Vibra  a  ira  do  Senhor  : 

Na  vida,  nesse  perenne 

Crespusculo  interior, 

O  Ímpio  diz  :  anoitecei 

O  justo  diz  :  amanhece! 

Vão  ambos  na  sua  fé... 

E  às  tempestades  que  abalam 

As  crenças  d'alma,  que  estalam, 

Só  eu  resisto  de  pé!... 

De  Deus  ao  immenso  ouvido 
A  Humanidade  é  um  tropel, 
£  a  natureza  um  ruído 
Das  €Lbelha^  com  seu  mel, 
Das  flores  com  seu  orvalho. 
Dós  moços  com  seu  trabalho 
De  S6Lnta  e  nobre  ambiç&o, 
De  pensamentos  que  voam, 
De  gritos  d'alma  que  echoam 
No  fundo  do  coração !...  » 


HIBTOEIA  DA  UTTBSATIXRA  BRASILUSa  547 

E'  um  dos  bons  espécimens  de  poesia  phiiosophica  em  a  litte- 
ratm*a  nacional.  E'  de  1866,  do  periodo  recifence,  quando  o  au- 
ctor  obedecia  ainda  á  intuição  de  Hugo  e  Quinet  em  cousas 
d'arte  :  a  phase  condoreira,  qualificativo  este  dado  por  Gapis- 
trano  de  Abreu  e  que  ficou  admittido  e  consagrado.  De  igual 
periodo,  mas  de  três  annos  antes,  é  a  bella  ode  á  morte  de 
J.  Macário,  companheiro  de  casa  do  poeta  em  1863  e  n'esta 
data  fallecido.  E'  um  mixto  de  audácia  e  piedade,  de  irreve- 
rência e  prece,  digna  de  attenção  e  de  estudo.  O  poeta  era 
um  «imples  preparatoriano;  mas  já  tinha  a  alma  baralhada 
pela  especifica  lucta  n'ella  travada  entre  o  espirito  pagão  ino- 
culado para  leitura  dos  clássicos  latinos  e  o  espirito  religioso, 
herança  da  educaçã.0  recebida  no  meio  familiar.  Estes  versos 
s&o  uma  interessante  pagina  de  psychologia,  alem  do  valor 
lyrico  que  encerram  : 

»  Olhai...  um  cadáver  de  braços  cruzados! 
Nos  punhos  cerrados,  nos  olhos  cerrados. 
Nos  lábios  cerrados  que  a  morte  deixou, 
Com  as  forças  eternas,  guardando  o  segredo 
De  luz  ou  de  sombra!  Meu  Deus»  tenho  medo! 
Morrer  tão  depressa,  quem  foi  que  mandou? 

T&o  joven!  De  joven  no  seu  devaneio 
Dissera  á  esperança  :  que  trazes  no  seio? 
Dissera  ao  futuro  :  que  fechas  na  m&o? 
Do  seio  da  louca  vòou-lhe  a  mentira, 
E  a  mão  do  phantasmei,  que  larga  se  abrira, 
Foi  1&  um  repouso  dos  mortos  no  chão... 

T&o  vivo!  Batia-lhe  o  peito  ancioso, 
Sentia  nas  fibras  o  harpejo  mimoso, 
E  os  cantos,  ao  longe,  das  glorias  irmans...  , 
Mas  é  que  Deus  julga-se  um  pouco  tentado, 
Que  aasopia  e  apaga  o  olhar  destinado. 
Que  o  leito  devassa  das  suas  manhans... 

E  morra  quem  sonha,  quem  ama,  quem  sente 
Falarem-lhe  as  noutes,  quem  ouve  a  torrente 
Das  eras,  que  descem  dos  cimos  azues... 
E  morra  quem  tenta,  padece  e  aspira, 


548  HIBTOBIA  DA  LITTSBATX7BA  BRÀBILBIKA 

Quem  súa,  bebendo  seus  prantos!  Mentira! 
Minha  alma,  n&o  temas  é  Deus,  não  recues... 

Ah,  Senhor !  e  mais  um  dia 
Que  mal  vos  fazem  as  rosas? 
Nossas  coroas  mimosas 
Porque  mandais  desmanchar? 
Nâo  tendes  lá  tanta  estrella, 
Cujos  cheiros  sâo  fulgores, 
Precisaes  das  nossas  flores, 
Das  pérolas  do  nosso  mar? 

Era  um  menino...  Contente 
De  seu  intimo  thesouro, 
Dizia  :  conquisto  um  louro 
Para  leval-o  a  meu  pai. 
O  coração  adiantado 
Bateu-lhe  a  ultima  hora. 
Cahio.  E  sobre  elle  agora 
Só  uma  lagrima  cahe... 

Lagrima  séria,  pesada, 
Grossa  lagrima  de  chumbo, 
Que  léi  se  afunda,  retumbo 
Dos  abysmos  sepulchraes; 
Mais  rica,  mais  preciosa 
Que  as  jóias  de  vossa  aurora; 
Pois  é  um  pai  quem  na  chora. 
Senhor,  que  nunca  chorais!... 

Pensar  na  morte,  que  os  lauréis  desfolha, 
Pensar  na  morte,  que  n&o  tem  porvir, 
E*  na  própria  caveira,  que  se  antholha, 
Tropeçar  e  cahir !  » 


A  enérgica  imprecação  iniciaJ,  singularmente  expressiva  na 
bella  epizeuxis,  que  representa  o  cadáver  guardando,  cm 
as  forças  eternas,  o  segredo  de  luz  ou  de  sombra  dos  destinos, 
nos  punhos  cerrados,  nos  olhos  cerrados,  nos  lábios  cerrados, 
como  em  desafio  á  divindade,  a  quem  se  pergunta  porque  fez 
tão  derpessa  morrer  um  joven,  cede  o  passo  ás  oitavas  que  sfto 


HI8T0BIÁ  DA  LITTBEATUBA  BKABTLKTTiA  549 

uma  formosa  preghiéra  :  que  mal  vos  fazem  os  rozas?  preci- 
saes  de  nossas  flôresy  das  pérolas  de  nosso  m/ur  ?  Deixae-nos 
as  lagrimas,  para  nós  mms  preciosas  do  que  as  galas  de 
vossa  aurora,  vós  que  nunca  choraesi 

O  lyrismo  n*essas  três  oitavas  attingiu  a  esphera  da  grande 
arte,  eterna  e  impessoal.  Fundo  e  forma  se  completam ;  um 
pensamento  peregrino  toma  a  expressão  simples  e  transpa- 
rente dos  altos  factos  moraes. 

09  versos  consagrados  em  1863  á  morte  de  J.  Macário  s&o 
dignos  dos  inspirados  vinte  annos  mais  tarde  pelo  passa- 
mento de  D.  Hermina  de  Araújo,  já  n*este  livro  referidos. 
Outro  assumpto. 

O  poeta  sergipano  consagrou  ao  labor  humano  uns  versos, 
isto  é,  escreveu,  como  tantos  outros,  também  um  Hymno  ao 
Trabalho  (1).  E*  um  cântico  enthusiastico  em  que  pinta  os 
operários  de  rir  nos  lábios  e  callos  nas  mãos,  no  qual  prophe- 
tisa  que  vae  o  gladio  morrer  na  bainha,  vae  na  gruta  sumir-se 
o  leão  e  outras  maravilhas  puramente  socialistas.  E*  uma  de 
suas  poesias  de  assumpto  mais  geral  e  dignas  de  serem 
conhecidas.  Começa  por  esta  estrophe  : 

((  O  trabalho  é  a  vida  que  avança 
Em  procura  do  bom,  do  melhor : 
As  estrellas  do  eJém  brilham  menos 
Do  que  as  gottas  do  humano  suor.  » 

e  acaba  por  esta  outra  : 

K  Que  ruído  de  forjas  ardentes  1 
Que  susurro  em  presença  de  Deus! 
Os  cyclopes,  vibrando  os  martellos, 
E  as  faíscas,  batendo  nos  céus !...  » 

O  enthusiasmo  não  se  desmente  em  toda  ella. 

A  concepção  melhor  que  se  pôde  ter  da  poesia  consiste  em 
tomar  as  cousas,  os  factos,  os  phenomenos  physicos  ou  so- 
ciaes  e  extrahir  d^elles  a  nota  fundamental  e  typica  que  lhes 

(1)  Sahiu  em  jornaes  de  Pernambuco  em  1874  ou  75.  N&o  vem  nos  Diat 
e  NoHeM 


550  HISTOBIA  DA  LITTKRATUBA  BRASILEIRA 

constitue  a  essência,  ou  o  significado  superior.  N'este  sen- 
tido, até  a  cobra,  o  sapo,  a  podridão,  o  mal,  o  vicio,  a  feial- 
dade,  tudo  tem  poesia.  —  E  se  assim  é,  se  existe  poesia  até 
nos  factos  minimos  e  á  primeira  vista  insignificantes,  que  se 
dirá  das  grandes  crèações,  dos  altos  feitos  humanos^  da  arte, 
por  exemplo  ?  Por  este  lado,  poucos  poetas  são  tão  dignos  de 
apreço  como  Tobias  Barretto.  As  suas  effusões  lyricas  pela 
opera  e  pelo  drama,  as  duas  formas  d'arte  que  lhe  foi  dado 
em  Pernambuco  melhor  apreciar ;  a  expressão  que  deu  ás 
emoções,  por  ellas  despertas  em  sua  alma,  sâo  um  curioso 
estudo  de  psychologia  a  ser  feito  por  quem  tiver  gosto  e 
lazer.  Numerosas  são  as  poesias  inspiradas  por  esse  eretismo 
esthetico  sempre  vibrante  e  prompto  a  desferir  o  vôo.  As  prin- 
cipaes  são  :  Augrista  Cortesi,  Libia  Drog,  Adelaide  do  Amaral, 
Júlia  Tamboriniy  Bottini^  Giv^eppina  de  Senespleda,  Ida  Gio- 
vanm,  Moniz  Barretto,  Joaquim  Augusto,  Arthur  Napoleão, 
Reichert,  Hermenegildo.  São  actores,  pianistas,  violinistas, 
cantoras,  actrizes,  frautistas  de  talento  que  fizeram  o  encanto 
de  suas  noites  de  estheta  e  pagão,  para  quem  um  galho  de 
rozas  pela  janella  tinha  mais  valor  do  que  bons  assados  sobre 
a  mesa.  Envio  o  leitor  para  o  volume  dos  Dias  e  Noites.  Mas 
para  lhe  tirar  em  parte  o  trabalho  ponho-Ihe  sob  os  olhos  os 
versos  escriptos  pelo  poeta  após  a  audição  da  mimosa  polka 
a  que  o  seu  auctor,  o  Padre  Cândido  de  Figueiredo,  poz  o 
titulo  de  imperial.  E  veja  que  lindos,  que  mimosos  versos- ! 
Eil-os  : 

«  Esta  polka  é  o  néctar  dos  anjos 
Preparado  de  orvalho  e  de  mel; 
E'  o  som  da  carreira  infinita 
De  auri-rubro  celeste  corcel. 

E*  cascata  de  vivos  diamantes, 
Borrifando  um  tapiz  de  esmeraldas; 
E'  o  brinco  de  deusas  travessas, 
DesfoUiando  lauréis  e  grinaldas. 

Peregrina  harmonia  de  anhélos, 
Dê  ternuras,  de  castos  desejos, 


HISTORIA  DA  LITTBBATUSA  B&ABILBIBA  551 

CoDÍQS&o  de  soluços  e  prantos, 
De  suspiros,  affagos  e  beijos... 

Esta  polka  é  o  hálito  ardente 
De  cem  pallidas  virgens  formosas, 
Que  adormecem,  cantando  abraçadas 
Sobre  um  leito  coberto  de  rosas. 

E'  a  doce  agonia  sonora 
Da  menina  pudica  e  modesta, 
Que  murmura,  sonhando  agastada 
De  algum  sylpho  beijal-a  na  testa... 

E'  o  modo  da  noiva  que  sente 
Mâo  de  sombra  tirar-lhe  a  capella ; 
E  o  seu  anjo,  escondendo  a  cabeça, 
Canta  um  hymno,  e  despede-se  d'ella. 

Sfto  auroras  que  ao  longe  sacodem 
Áureas  franjas  de  rutilo  véo  : 
Tudo  isto  guardado  n'um  sonho, 
Tudo  isto  passado  no  céo... 

E  parece  que  ao  som  doesta  polka 
Falam,  cantam  vlsOes  sobre-humanas  ; 
E  levantam-se,  cheios  de  peroleis, 
Alvos  braços  de  lindas  sultanas. 

E  p€u*ece  que  ao  som  d*csta  polka 
Brandem  gládios,  que  tiram  scentelhas. 
Multidões  de  guerreiros  gigantes. 
Balançando  as  plumagens  vermelhas... 

E  contempla-se  um  rosto  encantado, 
D'esses  rostos  que  Byron  descreve, 
Como  um  dia  polar,  calmo  e  bello, 
Bello  alho  do  sol  e  da  neve. 

Sfto  arfadas  de  seios  feridos 
Por  saudosas  e  gratas  lembranças ; 
Sfto  gaivotas,  que  batem  as  azas, 
Sfto  donzellas,  que  soltam  as  tranças. 


552  HISTORIA  DA  LITTEBATTT&A  BEABILEIRA 

São  mysterios  que  ahi  se  descobrem, 
Louca»  fadas,  que  rompem  as  vestes, 
Cherubins,  que  apedrejam  com  astros 
Esse  bando  de  garças  celestes. 

S&o  edenicos  pomos  mordidos, 
Doces  saibos  por  elles  deixados ; 
Temos  olhos,  que  trocam  afíectos, 
Rubros  lábios  a  furto  osculados... 

Esta  polka  é  o  amor  que  enlouquece, 
O  tormento,  o  ciúme  que  fala : 
E'o  sangue,  jorrando  em  golphadas 
D'alvo  peito  que  Othello  apunhalau 

São  pedaços  de  carta  amorosa 
Lacerada  por  mão  feminina. 
Que,  animados  de  amor,  se  tornaram 
Borboletas  azúes  da  campina... 

São  cochichos  das  brisas  odoras. 
São  recados  de  occultos  amores, 
Que  as  estrellas  recebem  das  ondas, 
Que  os  €urchanjos  recebem  das  flores. 

Não  ha  mais...  não  sei  mais  o  que  diga  : 
São  palavras  de  mimo  e  carinho. 
Que  profere,  embalando  nos  braços, 
Joven  mãi  ao  primeiro  filhinho...  » 

A  imaginação  do  poeta  n'um  cascatear  de  vivos  diamantes, 
desfere  o  võo  do  enthusiasmo  esthetico  até  chegar  a  um  facto 
verdadeiramente  humano»  que  vale  tudo  :  as  doces  caricias 
de  uma  joven  mãe  ao  primeiro  filhindo,..  E*  incontestavel- 
mente muito  mimoso.  Mas  os  factos  puramente  sociaes,  a 
vida  humana  de  todos  os  dias,  as  luctas  e  as  desgraças  de 
toda  a  hora  tinham  também  o  condão  de  tanger-lhe  as  cordas 
lyricas.  Excellente  exemplo  d'isto  são  as  duas  famosas  lendas 
a  que  poz  os  nomes  de  rústica  e  civil.  A  primeira  é  o  facto. 
vulgarissimo  ainda  em  meiados  do  século  xix  no  interior  do 
Brasil,  de  vingar  pela  morte  a  culpa  da  deshonra  feminina. 


HISTORIA  DA  LITTERATXTSA  BRASILEIRA  553 

E'  uma  scôna  campestre,  bella  na  sua  violenta  atrocidade, 
descripta  com  um  vigor  de  colorido  e  um  movimento  de 
acção  verdadeiramente  pouco  vulgares  na  pátria  litteratura. 

Eil-a  aqui ;  é  quasi  toda  em  versos  brancos,  como  iguaes 
nunca  escreveu  o  próprio  Gonçalves  Dias  : 

<c  Como  um  perfume  que  embalsama  os  campos 

E  as  abelhas  attrahe  â  ílôr  que  o  exhala, 

Vaga  o  renome  da  mulher  mais  linda 

Que  na  selva  se  vio.  Rivaes  perdidos 

Já  no  punho  mediram-se  por  ell£u 

Por  eUa  triste  o  sertanejo  bravo, 

Que  amostra  da  corage'a  côr  e  a  seiba, 

Sangue  nos  olhos  e  suor  na  fronte, 

Deixou  tombar  aos  soes  do  meio  dia 

Pelo  ermo  a  cabeça  atormentada. 

Lá  se  avista  uma  choça.  AUi  se  esconde 
No  seu  ninho  de  palha  a  ave  esgarrada  : 
Cançada  e  louca  e  só,  núa  se  atira 
Nesse  banho  do  céo,  fervendo  em  sonhos. 
Que  é  o  seu  dormir.  Sobre  eUa  arregalados 
Da  noite  os  astros,  através  das  frestas. 
No  leito  vôem-na  estremecida,  anciosa 
Revelar  ao  seu  anjo  espavorido 
Daquelle  corpo  os  cândidos  myterios. 
Divino  sangue  lhe  realça  as  veias; 
E,  do  somno  emergindo  á  face  nitida, 
Nas  alvas  carnes  docemente  escorrem 
Ténues  fios  azues  de  ondas  celestes. 

Abandonada  assim,  de  riso  em  riso. 
De  sonho  em  sonho,  dilatando  as  graças, 
Não  acorda,  desbrocha,  abre  com  as  flores, 
E  a  estreUa  da  mcmhã  lhe  accende  os  olhos 
Inquietos,  grandes,  que  borbulham  d'alma... 
A  esmo  lavram  nos  seus  lombos  rígidos 
Louros  cabellos,  fluctuando  esparsos, 
Ck>mo  uma  irradiação  do  sol  nos  mares. 
Basto,  abundante,  pesa-lhe  nos  hombros 
O  massiço  das  tranças,  balançadas, 
Como  torrentes,  que  d'um  monte  cahem. 


554  HI8T0BIA  DA  UTTEBATX7BA  BRASILBIBA 

Em  suas  ondas  rolando  arêas  de  oiro. 

E  has  de  vêr  :  este  archanjo  é  condemnado, 

Esta  pomba  cahio  em  laço  ignóbil. 

Esta  mulher  se  mancha  em  lodo  infame ! 

Prostituta,  com  seios  de  donzella, 

Offrece  aos  beijos  vis  aquella  testa 

Branca,  pendida,  como  a  lua  baça. 

Lá  para  o  occaso,  ao  despontar  do  dia. 

E  nem  sei  como  os  sopros  da  lascívia 

Não  lhe  murcharam  inda  os  beiços  rúbidos, 

Folhas  de  riso  e  mel,  que  abrem  polposas, 

Ao  biquinho  dos  pássaros  implumes. 

Que  ella  tira  do  ninho  e  traz  no  seio.  I 

Por  que  muda  de  côr  a  cada  instante  ? 

Dir-se-ia  fluctuarem-lhe  no  rosto 

As  sombras  vagas  de  visOes  angélicas ; 

Que  altamente  se  elevam  e  revoam  ' 

De  su*alma  na  escura  immensidade 

Legiões  que  passam,  cândidas,  purpúreas, 

E  atraz...  o  anjo  pallido  da  morte  I 

O  bosque  verde,  a  solidão  florida. 

As  grutas  cheias  de  mysterio  e  sombra, 

Moitas  folhudas,  onde  a  rola  geme, 

E  debaixo  remoe  a  corça  arisca. 

Eis  ahi,  trescalando,  as  mil  alcovas 

Do  prostíbulo  immenso  dessa  douda. 

De  bem  longe  a  pomba  linda 
Pungindo  sentou-se  aqui  : 
E  pensas  que  ódio  finda, 
Que  não  se  lembram  de  ti  ? 

E*  já  muito  e  não  se  estanca 
Dos  teus  o  pranto  infeliz ; 
Cresce,  cresce  a  barba  branca 
Do  velho  que  te  maldiz... 

Em  braços  d'homem  repousas. 
As  tranças  varrem-te  o  chão  : 
Por  que  ensinas  essas  cousas 
A'8  flores  da  solidão? 


HISTORIA  DA  LITTERATVBA  BRABILBIBA  555 

No  vicio  teu  corpo  illustre 
Não  murcha,  sempre  gentil ! 
£'  como  uma  ílór  palustre, 
Que  cheira  no  lodo  vil. 

De  beijos  queimada,  esqueces 
Que  a  morte  vê...  pois  bem  : 
Tu  peccas  e  adormeces !... 
Espera,  o  raio  ahi  vem. 

E'  noite,  bem  noite.  Na  estrada  arenosa. 
Que  em  léguas  de  plaino  se  vê  branquear. 
Qual  serpe  disforme  de  prata  lustrosa. 
Que  ahi  se  estirasse  dormindo  ao  luar, 

Vae  um  cavalleiro...  Fluctuam  nos  ares 
Ao  sopro  do  vento,  que  açoita  cruel. 
Os  fios  ligeiros  de  negros  pensares 
E  as  crinas  brilhantes  de  negro  corcel. 

A  senda  achatada  sumio-se  na  mata, 
E  o  vulto  nocturno  com  ella  embocou. 
Do  ventre  das  brenhas,  que  tém  a  cascata. 
Rugido  medonho  na  mata  estrondou. 

E*  d*onça  terrível,  que  vae  diligente 
Na  secca  folhagem  pisando  subtil. 
Refuga  o  carvcdlo  na  mão  do  valente. 
Como  um  pyrilampo  clarêa  o  fuzil. 

Sua  arma  querida,  que  não  desfogona. 
Diabo I...  medrosa!...  lhe  mente  esta  vez  ; 
Medroso  o  cavallo  também  no  abandona, 
Lançando-o  por  terra,  n'um  gyro  que  fez. 

Mas  elle,  que  a  queda  previne  adestrado, 
De  um  salto  adiante  se  firma  de  pé  I 
Com  as  rédeas  seguras,  cabello  eriçado, 
Lembranças  perdidas,  nem  sabe  o  que  é  I... 

Ninguém  lhe  apparece.  Cavalga  ligeiro ; 
Palavras  soturnas  murmura  e  sorri. 
Caminha...  e  sahindo  n'um  largo  terreiro, 
Quem  visse-lhe  o  gesto,  diria  :  é  aqui !... 


556  HI8T0BIA  DA  LITTBSATITBA  BKÂSILEIBÂ 

De  certo  a  aragem  campestre 
Levemente  sussurrou 
Na  palha.  Uma  estatua  equestre 
Diante  da  choça  brotou. 

Mas  eil-o  já  de  pé.  N'um  braço  d'arvore 

Enfia  as  rédeas  e  o  ginete  espera. 
Avança  e  pára...  O  coração  se  encolhe. 
Com  o  ferro  em  punho,  de  bainha  argêntea, 
Faz  um  aceno  rápido  de  sombra, 
Como  impondo  silencio  á  natureza, 
E  ao  monstro  horrivel,  que  lhe  morde  n*alma. 
Avança  e  chega.  Cede  a  porta  frágil, 
E  entra  lúgubre  o  espectro  da  vingança. 
Na  lareira  incinzada  um  lenho  ardendo 
Brota  de  um  sopro  a  tocha,  que  allumia 
O  misérrimo  cdvergue.  Olhou  em  roda, 
E  nos  lÉd)ios  correu-lhe  um  riso  tremulo, 
Porque  ella  apparece  emfim !  Coitada ! 

Resona  a  pobre,  despida^ 
Com  o  corpo  todo  risonho, 
Suada,  lidando  em  sonho 
De  amor  e  beijos  talvez... 
Como  que  um  tépido  orvalho 
Sobre  ella  a  noite  derrama, 
E  lingua  de  etherea  fianmia 
Lambe-lhe  a  flórea  nudez. 

EUe  a  vê...  sua  irmã  I...  Retira  os  olhos, 
Lança-lhe  em  cima  um  véo,  que  acaso  encontra, 
Chega-se  a  ella,  trava-lhe  do  braço, 
Sacode-a  e  diz  :  acorda,  eu  vim  matar-te ! 
Mal  estremunha,  a  victima  conhece 
O  seu  algoz,  que  descarrega  o  golpe. 

Rugindo  :  a  um  velho  pai  este  offereço, 
E  mais  este  que  é  meu,  e,  agora  morta, 
A  punhalada  ultima,  profunda, 
Seja  este  beijo  que  saudosa  envi£^ 
Por  despedida,  minha  m£LÍ...  Calou-se. 
E  o  toque  desses  lábios  enraivados. 
Que  poisaram  na  fronte  de  um  cadever, 
Queimando-o.  lhe  deixou  medonho  estigma. 


HISTORIA  DA  LITTERATtTKA  BKASILSIltA  557 

Já  começava  á  desbrochar,  corando, 

A  papoula  dos  céos,  a  aurora.  Os  pássaros 

E  as  flores  confundiam  sruas  preces. 

No  momento  em  que  as  choças  humilhadas 

Aos  pés  da  Virgem  Santa  um  hymno  erguendo, 

No  levante  a  sorrir,  a  alva  tremia, 

Como  cruz  de  diamante  em  seio  pallido, 

E  suavíssimas  vozes  de  donzellas 

Cantavam  —  Salve,  sleUa  matutina! 

Passava  um  cavalleiro  a  trote  surdo 

De  agitado  corcel.  Com  as  mãos  crispadas, 

Olhos  torvos,  cabeça  descoberta. 

Que  os  bafos  matinaes  nfio  refrescavam. 

Era  horrível  I...  O  anci&o  rústico  e  íorte. 

Que  madruga,  aspirando  o  aroma  puro 

Da  guabiraba,  a  se  benzer  dizia  : 

u  Nunca  vi  de  manha  cara  tfio  feia !...  » 

E'  uma  das  peças  lyricas  mais  lindas  do  romantismo  bra- 
sileiro. Fundo  e  forma  n'ella  se  ajustam  n'uma  deliciosa  har- 
monia. Versos  soltos  tãjo  bem  feitos  só  na  obra  de  António 
de  Castilho  se  encontram.  Este  foi,  e  não  Garrett,  o  mestre 
incomparável  da  métrica  em  geral  e  peculiarmente  do  verso 
branco  em  o  romantismo  portuguez.  O  auctor  das  Folhas 
Cahidas  e  de  Camões  excedeu  o  d*A  Noite  do  Castello  e  dos 
Ciúmes  do  Bardo  por  outros  dotes  e  jamais  como  metrifi- 
cador. Sectário  das  tradições  bocagianas,  no  que  diz  respeito 
ao  esmero  da  métrica,  Castilho  chegou  a  apuros  de  forma 
não  alcançados  pelo  vate  da  Adosinda,  continuador  n'este 
particular  de  Filinto  Elysio,  que  nunca  possuiu  os  dotes  plás- 
ticos do  inimitável  sonetista^  seu  contemporâneo.  Na  cor- 
rente de  Castilho  e  Bocage  se  collocou  Tobias,  quanto  ao 
verso  em  geral  e  peculiarmente  o  verso  branco  ou  solto,  o 
mais  difflcil  da  língua,  por  ser  o  que  mais  insensivelmente 
pode  descambar  na  prosa,  attenta  a  falta  da  íllusão  da  rima. 
Os  versos  do  género  no  poeta  dos  Dias  e  Noites  evitaram 
sempre  esse  risco.  Melhores  não  conheço  na  língua. 

Após  a  lenda  rústica,  a  scêna  da  roça,  é  preciso  16r  o  drama 
social  da  cidade,  a  lenda  civil,  a  scêna  de  salão.  E*  esta  : 


S58  HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  B&ABILBISA 

((  A  lua  é  meio  loura,  o  céo  sereno. 
Desperta,  alegre,  estremecida,  languida, 
A  noite  é  uma  viuva  de  quinze  annos, 
Prostituída  envolta  em  trajos  negros... 
E*  a  hora  em  que,  ao  ouvido  attento,  s6a, 
No  relógio  e  no  peito  palpitantes, 
O  tropel  dos  momentos  que  galopam 
Fugitivos  após  do  immenso  nada. 
Branca  cidade  alvulta  ao  pé  dos  mares  ; 
E  os  seus  templos,  em  extasis  tranquillos, 
Erguem  as  torres,  como  orelhas  fitas 
Escutando  o  silencio  das  alturas... 
Porém  lá,  d'onde  vêm  uns  sons  d^orgia. 
Palácio  ingente,  resfolgando  estúpido. 
Com  os  seus  pétreos  pulmões,  atira  aos  ares 
Baforadas  de  musica  e  prazeres 
Salão  de  baile  festival,  ruidoso. 
Tonto  de  aromas,  um  paul  de  luzes, 
Onde  batem  rasgados,  descorbertos, 
Corações  femininos,  impalpáveis. 
Que  escorregam  das  mãos  cheios  de  lodo... 
E*  alli  que  uma  deusa  attrae  e  prende, 
Em  longos  fios  de  cabellos  negros. 
Almas  sêccas,  nutridas  nos  seus  lábios  : 
Luminosa  metade  de  uma  sombra. 
Isto  é,  de  um  marido  que  a  acompanha, 
Idiota  como  um  cão...  N'um  angulo  escuro, 
Como  sua  alma,  habita  o  desgraçado. 
Dorme,  ronca,  desperta,  horrível,  sujo. 
Massa  rude.  animal,  esboço  d'homem !  • 
Geme  ás  vezes  também;  seus  ais  são  uivos... 
E  ella  em  baile  a  sorrir  I... 

Gracil,  mimosa, 
Ao  aperto  do  cinto,  que  a  adereça. 
Aos  abraços  do  amante,  expande  brilhos, 
Como  ílôr  que  rescende  machucada, 
Inílammavel  morena,  que  esperdiça 
De  seu  rosto  suado  as  bagas  de  oiro, 
E,  arfando  em  ondeis  de  vaidade  e  seda. 
Nos  frescores  do  linho  a  tez  banhapdo. 
Fala,  e  seu  bafo  matutino,  ethereo, 


HIBTOUA  DA  LITTBBATUSA  BBABILSISÂ  659 

Embebe  as  almas,  embriaga  as  ílôres. 

CoUo  nú,  seios  túmidos,  que  lembram 

Rígidos  papos  de  selvagens  pombas, 

Bocca  cheia  de  pérola  e  doçura. 

Tingindo  de  emocOes  as  faces...  ella, 

No  senho  grave,  nos  olhares  fervidos. 

No  voluptuoso  sacudir  das  tranças. 

Dizer  parece  ao  homem  que  a  contempla  : 

u  Eu  sou  rica,  eu  sou  bella,  eu  sou...  infame.  » 

Pouco  a  pouco  escoava-se  a  corrente ; 

Cessara  o  riso,  o  crepitar  do  espirito  ; 

Morrera  a  lua ;  a  noite  penetrava 

Na  ílòr  que  abria  ;  o  mar,  sult&o  lascivo, 

Babava  as  plantas  da  cidade  núa ; 

Cahia  o  orvalho ;  a  terra-m&i  chorava 

No  noivado  da  sombra  e  do  silencio. 

Na  sala  exhausta  as  luzes  somnolentas 

De  suave  clarão  banham  as  faces 

Da  senhora,  que  fulge  reclinada 

Em  colchins  de  mollez8^  desleixosa. 

Pesa-lhe  o  sommo  na  cabeça  languida. 

Como  gotta  de  chuva  em  flóreo  cálice  ; 

Fogem-lhe  os  olhos  trémulos,  cadentes, 

Que  vão  lá  s'immergir  adormecidos 

No  oceano  interior  d'alma  enfadada... 

Está  só.  De  repente  se  escancara 

Porta  occulta,  que  atira  um  vulto  horrível, 

N'uma  golphada  lúgubre  de  sombra. 

Que  vem  manchar  aquella  claridade. 

E'  elle,  o  triste,  o  misero  que  soffre... 

Vendo-o,  a  deidade  nem  se  quer  se  move ; 

O  espectro  vivo  se  approxima  d*eUa, 

E  com  as  mãos  afagando-a  por  cima. 

Como  rasgando  a  nuvem  que  a  circunda 

De  luz,  de  sonho  e  de  deslumbramento, 

Âjoelha-se,  pega-lhe  na  dextra, 

Querendo-a  só  beijar...  Ella  o  repelle, 

E,  dando-lhe  com  o  pé,  toda  agastada, 

Diz-lhe  :  «  Sae-te  d'aqui  :  porque  não  morres  7  n 

Ai  I  que  esta  acção  bãteu-lhe  como  um  raio, 

Como  um  raio  aclarando  as  trevas  intimas ; 

E  o  calado,  miserrímo  indolente. 


560  HI8T0BIA  DA  LITTEBATXTSA  BBABUSIBA 

De  um  salto  poz-se  em  pé,  grande,  sublime, 

Da  estatura  de  um  tronco  solitário, 

Que  range,  como  dentes  de  gigante. 

Pelos  rábidos  ventos  açoitado... 

Com  os  dedos  descamados,  penteando 

As  crinas  do  leão,  que  surge  n^elle, 

Abre  a  custo  um  sorriso  tenebroso 

De  sarcasmo,  de  insânia  e  de  amargura. 

Fica  assim  a  pensar,  como  escutando 

O  ruido  que  faz  sua  cabeça, 

Que  lhe  parece  decepada,  enorme, 

De  degráo  em  degráo  rolando  tonta 

Na  escadaria  lobrega  do  inferno. 

Treme  ;  e,  com  um  punhal  na  mão  cerrada, 

Aperta  a  raiva,  a  sede  de  vingança ; 

Dá  um  passo,  inteiriça-se,  e  murmura  : 

K  Como  os  outros  v&o  rir  doeste  homem  mocho!. 

Na  verdade,  que  o  facto  é  bem  notável  : 

Soffrer,  soffrer,  soffrer,  e  n'um  instante 

Dizer  :  não  soffro  mais !  Porque  não  morro  ?... 

Perguntaste ;  pois  bem,  acceito  a  morte. 

Anda,  brinca,  sorri,  deusa,  morena. 

Linda,  moça,  feliz,  lasciva...  diabo  1 

Eu  sacudo  dos  hombros  esta  vida 

Salpicada  de  infâmias  e  misérias; 

Não  na  quero  viver.  Minha  deshonra 

Fica  só  de  uma  côr,  a  côr  do  sangue... 

Uma  nódoa  somente,  a  de  assassino  ! 

Ah!  mulheres  cruéis,  falsas...  bonitas. 

Corrompem-se,  e  depois  que  venha  um  anjo 

Amarral-as  á  cruz  pelos  cabellos  : 

Magdfidenas,  chorosas,  penitentes, 

De  joelhos  cabidas,  desgrenhadas, 

Mendigando  perdão...  Será  verdade 

Que  Deus  crê  n^estas  cousas  ?  Não  te  toco ; 

Vai  lavar-te,  criança  enlameada : 

Vai  lavar-te,  e  depois...  mas  em  que  fonte? 

Inda  mesmo  que  Deus  te  mergulhasse 

Na  luz  do  abysmo,  d'onde  os  soes  borbulham, 

E  a  meus  olhos  sequiosos,  que  não  choram, 

Te  mostrasse  lavada,  branca,  núa. 

Eu  diria  ao  meu  Deus  :  tem  lama  ainda ! 


HISTORIA  BA  LITTSBATT7RA  BKABUiEIBA  561 

Como  surgindo  vfto  do  peito  agora 

Brios  que  herdei  de  minha  raça  de  onças ! 

Lembra-me  que  a  meu  pai  contei  um  dia 

Ter  visto  minha  irm&  com  os  pés  descalços, 

Desvairada,  ella  só,  falando  a  um  homem, 

E  elle  me  perguntou  :  onde  a  enterraste  ? ! 

Vô  meus  dedos,  repara...  elles  tém  garras, 

E  eu  deixei-as  crescer  para  mateur-te !  )> 

Suffocada  de  fogo  a  voz  lhe  falta, 

O  infelice  recua.  A  bella  immovel 

Tem  os  olhos  cravados  no  phantasma ; 

Arrebenta-lhe  estúpida  risada, 

Cheira  uma  rosa  e  diz  :  a  Sempre  és  um  bruto !... 

Admiro  a  transição,  pasmo  de  ver-te 

Impetuoso  e  feroz  ;  mas  n&o  me  assusto ! 

Vamos !...  grita  ao  punhal,  açula  os  raios ; 

Os  despresos,  os  ódios  fulminantes, 

Que  venham  sobre  mim.  Ah!  que  me  importa?!... 

Tenho  sede  de  chamma.  Anjo  ou  demónio, 

Sob  as  azas  do  sol  me  aqueço  e  durmo... 

Vaidosa  !  e  porque  nào,  se  é  que  sou  bella? 

Sonhos  de  amores  perfumosos,  tépidos. 

São  efíluvios  de  mim ;  exhalo-os  n'alma 

De  quantos  honro  com  a  deshonra  minha... 

Bella  infame!...  Olha,  tu,  que  te  parece? 

Doeste  seio  é  que  sahe  a  estrella  d'alva!...  » 

Oh!  dir-se-hia  que  tinha  enlouquecido. 

A  pobre  da  mulher  que  assim  falava ; 

Cega,  raivosa,  pallida,  risonha, 

Toda  agitada  de  um  tremor  esplendido. 

Volvendo  as  roupas,  que  o  seu  corpo  engolpham, 

Ao  refluxo  da  soda  um  pé  mostrando. 

Deixa  ver  arrendados  deslumbrantes, 

Como  de  um  oceano  a  escuma  alvíssima; 

E,  da  vaga  ao  abrir,  pula  nos  olhos 

O  fulgor  de  um  diamante  em  charpa  de  ouro. 

Que  é  da  cintura,  e  serve-lhe  na  perna... 


O  raio  doudo,  que  a  mulher  vibrara, 

Varou  chiando  o  coraçfio  do  espectro. 

«  Porque  náo  posso,  brada  o  homem  fero, 

HISTORIA  II  36 


562  HIBTOSXA  DA  UTTEaATUSÀ  BBÀSILSIRA 

Metter  a  m&o  no  fundo  de  minha  alma, 
E  atirar-te  na  cara  as  cinzas  d'ella  ?...  » 

O  negocio  vai  mal,  não  cotinúo  ; 

Que  a  cousa  se  complica ;  lá  se  avenham...  » 

  lucta  domestica,  a  terrível  scèna  de  ciúme  é  ahi  bem  e 
vigorosamente  descripta.  O  poeta  era  observador,  tinha  o 
espirito  critico,  sabia  vêr  os  factos  e  sorprender  o  jogo  das 
paixões.  Mas  foi  por  suas  poesias  patrióticas  que  Tobias  se 
tornou  mais  conhecido  no  meio  brasileiro  entre  seus  con- 
temporâneos e  riváes. 

Ahi  teve  notas  que  lhe  forajn  peculiares,  que,  uma  vez 
ouvidas,  nâ,o  se  confundem  com  as  de  todos  aquelles  que, 
por  occasião  da  guerra  do  Paraguay,  cantaram  os  nossos 
feitos  ou  estimularam  os  nossos  brios. 

D'ellas  darei,  como  amostra,  apenas  Os  Voluntários  Per- 
nambucanos : 

«  Ja  fomos  a  gente  ousada 
Que  um  mundo  virgem  produz ; 
Já  viu  a  Europa  assustada 
Gládios  e  caboclos  nús 
Pul€u:*em  grandes,  valentes, 
Vermelhos,  resplandecentes. 
Do  abysmo  dos  occidentes, 
Lavados  em  sangue  e  luz !... 

Hoje  a  idéa  em  nossa  terra 
Fulmina  a  espada  voraz  : 
Que  somos  ?  Lavas  de  guerra, 
Petrificadas  em  paz ; 
E  pois  n&o  venham  ignavos 
Na  língua  dos  ferros  bravos 
Deixar  os  ameurgos  travos 
Desse  horror  que  o  sangue  faz. 

O  Brasil,  de  coma  intonsa, 
Dorme  e  deixa-se  afagar  ; 
Macio,  qual  pello  d'onça, 
Não  no  queiram  íPQUltar  : 


BI8T0BIA  DA  LITTXRATUBA  BRA8ILII1A  .  568 

Os  que  repousam  nas  campas, 
Sentem  que  o  vento  dos  pampas 
Lhes  açoita  as  áureas  lampas, 
E  os  faz  com  raiva  acordar !... 

Para  estes  vultos  brilhantes 
Morrer...  é  n&o  combater  ; 
E'  apear-se  uns  instantes. 
Do  valle  ao  fundo  descer, 
Fitar  a  noite  estrellada, 
E,  á  espera  d*outra  alvorada, 
Dormir  nos  copos  da  espada, 
Deixando  o  sangue  escorrer ! 

Que  athletas!  que  espectros  grandes! 
Lá  por  onde  o  sol  tombou. 
No  topo  altivo  dos  Andes 
Um  cavalleiro  estacou... 
Susurram  voos  angélicos, 
Lambem-se  os  gládios  famélicos, 
Dir-se-hiam  relinchos  bellicos 
Que  o  brônzeo  corcel  soltou  I... 

Muita  coragem,  que  dorme, 
Desperta  da  guerra  ao  som  : 
Fumega  o  banquete  enorme 
De  ferro  e  fogo  I  Está  bom !... 
Tudo  ri,  palpit€^  avança... 
Que  o  rei  também  tome  a  lança. 
Se  tem  brios  um  Bragança, 
Se  tem  valor  um  Bourbon ! 

O  povo  sacode  o  sommo 
Da  cabeça  que  descai  : 
Senhor !  d'altura  do  throno 
Vede  a  mão  de  vosso  pai. 
Limpando  todas  as  frontes, 
Passando  em  montes  c  montes. 
Por  cima  dos  horizontes 
A'  cata  do  Paraguay!... 

E  temos  peitos  vetustos, 
Que  batem  sempre  leaes ; 


I 


564  HI8T0SIA  DA  LITTBBATUBA  B&ABXUOBA 

Âmagos  d'homens  robustos, 
Que  ainda  guardam  mortaes, 
Antigas,  ferventes  ascas... 
Do  tronco  saltam  as  lascas  : 
Mazeppas,  Árabes,  Guascas, 
Vôde  lá  :  quem  corre  mais?... 

No  coração  desta  gente 
O  bravo  suffoca  o  ai. 
Que  ferros  1  o  cedro  ingente 
De  um  golpe  derreira  e  cai ; 
Ceda  a  republica  insana. 
Se  emíim  não  se  desengana. 
Espada  pernambucana, 
Desembainha-te  e  vai ! 

Vai  tu,  que  nSo  geras  fracos. 

Cidade,  que  eibres  aos  soes... 

Cornélia  m&i  de  cem  Grachos,  | 

Viuva  de  oitenta  heroes  I  i 

Quem  ha  que  o  collo  te  dobre  ? 

Terrível,  sincera,  nobre,  | 

Limpaste  as  faces  de  cobre 

Das  batalhas  nos  crysóes ! 

Não  fala,  não  ri,  não  medra 
Comtigo  estranha  altivez ; 
Tu  tens  nas  unhas  de  pedra 
Cabello  e  trapo  hollandez... 
Teu  bafo,  que  accende  a  gloria. 
Suspende  a  poeira  da  historia 
Em  turbilhões  de  victoria; 
Venceste  por  uma  vez  I 

• 

Levantas  o  braço  forte 
E  o  raio  matas  na  mão ! 
Como  um  aceno  de  morte, 
Os  Guararapes  lã  estão!... 
Volúpias  de  fogo  exhalas, 
As  pétreas  juntas  estralas, 
E  pões-te  a  salvo  das  balas 
Por  detrôs  de  Camcu^ão. 


!^ 


HIBTOXIA  DA  ZJTTEKATUEA  SBASILEISA  565 

Guerreiro  a  morrer  affeito 
Defende  o  Brasil,  que  é  seu ; 
A  hora  sôa  no  peito, 
  cicatriz  é  tropheu. 
Da  pátria  as  manhãs  coradas, 
As  tardes  acaboclcuias. 
Flores,  mulheres  amadas, 
São  estrophes  de  Tyrteu...  » 

São  estimulos  lançados  n'alma  do  Brasil  guerreiro  nos 
bellos  dias  da  lucta  mais  popular  que  já  uma  vez  foi  ferida 
em  nossa  historia.  O  Tyrteu  nacional,  o  Ruckert  brasileiro 
esteve  n^adtura  da  situação.  Seu  patriotismo  intratável  tinha 
alguma  cousa  de  irreductivel  e  feroz,  como  o  despertar  de 
um  mundo  selvagem,  apenas  adormecido  pela  cultura. 
A  gente  ousada,  produzida  por  um  mundo  virgem,  acordava, 
ao  som  da  guerra,  para  o  enorme  banquete  de  ferro  e  íogol... 
E  fomos  e  avançamos  e  vencemos.  Era  a  primeira  vez  que 
attrahiamos  sobre  nós  a  attenção  do  mundo,  ferindo  batalhas 
e  praticando  feitos  que  podem  ser  contados  entre  os 
mais  brilhantes  do  século  xix.  O  que  houve  então  de  enthu- 
siasmo  n'alma  brasileira  achou  sua  forma  imperecivel  na 
poesia  nos  inolvidáveis  cantos  marciaes  de  Tobias  Barretto. 
Voluntários  Pernambucanos,  Capitulação  de  Montevideo, 
Leões  do  Norte,  Sete  de  Setembro,  Partida  de  Voluntários, 
Em  nome  de  uma  pernambucana  têm,  no  seu  género,  um 
logar  á  parte  nas  pátrias  leitras. 

O  Brasil  guerreiro,  porém,  não  occultava  ás  vistas  do  poeta 
o  Brasil  popular,  na  sua  ingénua  e  deliciosa  rudeza.  Os 
Tabaréos,  Trovadores  das  Selvas,  Anno  Bom  são  d^isso  a 
prova.  O  pensador  do  Génio  da  Humanidade,  rutilo  cântico 
synthetico  da  evolução  inteira  da  espécie ;  o  vate  naturalista 
que  se  tinha  n'0  Beija-Flôr  revelado  um  pintor  de  género, 
capaz  de  sorprender  em  sua  ingenuidade  um  trecho  da 
natureza  viva;  o  cyclopico  T^Tteu  da  Vista  do  Recife,  dVs 
Voluntários  Pernambucanos ;  o  meigo  sonhados  de  Suprema 
Visio,  de  Leocadia;  o  desdenhoso  Paust  de  Voos  e  Quedas ; 
o  myslico  de  O  Dia  de  finados  no  Cemitério,  tinha,  como 
bom  brasileiro,  de  empunhar  a  viola  campesina  e  cantar 


566  mSTOBIA  DA  LITTBSATUEA  BBABILIIBÁ 

alguma  de  nossas  lendas,  quaesquer  de  nossos  costumes,  no 
estylo  despreoccupado  das  cousas  plebéas. 

Se  o  n&o  tivesse  feito  não  teria  sido  o  grande,  o  completo 
poeta  que  n'elle  admiro.  Vamos  ouvir  —  Tabaréos.  Conver- 
savam dois  camponios,  em  noite  de  São  João,  laslimando-se 
um  dos  rigores  de  sua  amada,  rebatendo-o  o  outro  rude- 
mente, quando  surge  terceiro,  um  entbusiasta,  cheio  dds 
innocentes  bravatas  dos  simples  : 

—  u  A  noite  bole-me  n*alma, 
E  eu  sinto  não  sei  que  pena... 
Amor  de  minha  morena? 
Quebrantos  de  seu  olhar? 
Grossas  auras  repassadas 
De  perfumes  e  lembranças, 
Carregam-me  as  esperanças, 
£  eu  só  me  vingo  em  chorar..., 

—  Chorar?  que  bem  fazem  lagrimas? 
A*  folha  sêcca  cibrazada 
Não  vale  a  fresca  orvalhada... 
Chorar!...  eu  nunca  chorei : 
Ergo  a  fronte,  aparo  o  raio. 
Desgraçado  e  sempre  altivo, 
Não  morro,  porque  não  vivo; 
Não  choro,  porque  não  sei. 

,  —  Não  sei  I  quem  é  que  não  sabe 

N'uma  lagrima  sentida  | 

Alliviar-se  da  vida, 

Que  pesa  no  coração? 

Não  sabes  como  são  tristes 

Os  olhos  de  quem  não  chora. 

Como  o  teu  resto  descora 

Ao  calor  deste  sertão? 

—  Deste  sertãol  é  bem  duro 
Soltar  inútil  queixume, 
Amar,  sentir  um  perfume 
De  que  não  se  sabe  a  flor... 
Não  me  recordes,  não  fales 

I  No  meu  rosto  descorado. 


j 


HISTORIA  DA  LITTSSAT17RA  BSA8ILBIKA  567 

No  meu  olhar  desvairado  : 
N&o  bulas  com  a  minha  dôr. 

Interrompendo  os  lamentos, 
Calaram-se.  Ambos  attentos 
Ouvem  como  que  um  tropel, 
Que  se  augmenta,  que  se  engrossa... 
A  poucos  passos  da  choça 
Nitriu  fogoso  corcel. 

E  a  todos,  que  alli  se  achavam, 

—  Guarde-os  Deus!  não  me  esperavam!... 
Disse  um  moço  que  esbarrou. 

De  casa  aqui  n'uma  hora! 
S&o  rasgos  de  quem  ncimora... 
Palavra  dada,  aqui  estou! 

—  Gonsta-me  que  ha  muito  arrojo 
Nos  festejos  de  Sôo  João, 

Vim  hoje  vêr  a  novena 
E  conversar  com  a  morena 
Que  trago  no  coração. 

Conversar?!  e  vim  disposto 

A  carregal-a  também 

Nas  ancas  do  meu  murzéllo, 

Demónio  que  só  eu  séllo, 

Só  eu  monto  e  mais  ninguém... — 

Olharam-se  todos. — Tu  és  um  damnadol  — 
Disseram.  E  o  moço  já  estava  de  pé : 
N'um  cepo  de  angico,  depois  assentado, 
Contava  proezas,  mostrando  quem  é. 

Conversa  o  terrível,  que  sabe  de  tudo, 

De  espectro  e  phantasma  que  á  noite  se  vê  : 

Um  diz  :  -*  é  mentira!  O  camponio  pelludo 

De  um  pulo  soerguendo,  responde-lhe  : — o  que?! 

—  A  noite  formosa  do  Santo  Baptista 
Tem  muitas  virtudes,  sustenta  o  rapaz. 
Eu  conto  uma  historia  da  bella  entrevista 
Que  tém  os  valentes  com  o  diablo  sagaz. 


568  HI8T0BIA  DA  UTTEEATUBA  BRABILXIBA 

Peguei,  como  ensinam,  de  um  galho  de  arruda, 
Depuz  no  caminho  que  s'encruza  allí  : 
Gritei  pelo  nome  da  fera  sanhuda, 
E  ao  cheiro  da  herva  com  poucas  eu  vi... 

Em  negro  cavallo  de  arreios  de  fogo 
Figura  medonha  me  diz  :  aqui  estou! 
Senti-me  medroso  de  entrar  neste  jogo; 
N&o  sei...  de  repente  meu  sangue  esquentou. 

Nos  olhos,  no  punho  correu-me  a  coragem; 
Que  estava  montado  no  meu  alazâo; 
Cravei-lhe  as  esporas,  cheguei-me  á  visagem, 
Tomei-lhe  a  distancia,  metti-lhe  ò  facão. 

E  o  ferro  tinia  no  corpo  de  pedra, 
Faiscas  enormes  cahiam  no  ch&o; 
Eu  cego  bradava  :  commigo  não  medra! 
Virou-se  n'um  porco,  metti-lhe  o  fac&o. 


Virou-se...  virou-se...  piquei  o  cavallo,  | 

Bem  alto  dizendo-lhe  :  é  como  quizer!... 
Lancei-me  por  cima,  queria  pegal-o...  , 

E  esta?!...  O  diabo  virado  em  mulher!... 

—  ((  Metto  o  facão  na  baimba; 
Pergunto-lhe  :  e  quem  és  tu? 
D'alto  a  baixo  era  Joanninha, 
Por  alcunha  —  Pucassú. 

Mas  aqui  havia  engano  : 
Como  é  qu'esta  meretriz, 
Que  morreu,  ha  mais  de  um  anno, 
De  cousa  que  não  se  diz. 

Vinha  encontrar-se  commigo? 
Não  acho  a  causa.  Só  sei 
Que  ante  a  cara  do  inimigo 
Fui  firme,  nâo  recuei. 

Nao  fugi,  nfto  tive  medo 
Das  astúcias  infemaes. 
Ella  pedio-me  segredo, 
Por  isto  não  digo  o  mais.  » 


HISTORIA  DA  LITTBRATUBA  BSABILBISA  569 

Ja  tive  occasião  de  notar  que  a  poesia,  que  pretende  assu- 
mir o  tom  popular  só  tem  mérito  quando  o  artista,  tomando, 
por  assim  dizer,  o  motivo  anonymo,  a  lenda  do  povo,  sabe 
revestil-os  das  roupagens  cultas  da  arte.  Fora  d*isso  tal 
género  não  produz  senão  pastiches  mais  ou  menos  despre- 
siveis.  O  poeta  dos  Dias  e  Noites  possuia  felizmente  a  verda- 
deira intuição.  Sua  musa  aldeian  não  andava  de  pés  des- 
calços, nem  dizia  as  barbaridades  de  linguagem  tão  de  moda 
nos  máos  cultores  do  género. 

O  Brasil  não  tinha  para  o  poeta  somente  a  face  social,  a 
guerreira,  a  patriótica,  a  popular ;  tinha  também  uma  face 
politica  que  lhe  não  passou  despercebida.  E  se  os  enthu- 
siasmos  juvenis  dos  tempos  académicos,  as  illusões  do  pe- 
ríodo que  vae  em  seu  poetar  de  1862  a  69  não  na  deixavam 
bem  nitidamente  vôr,  o  mesmo  não  aconteceu  ao  homem 
maduro,  que  ja  tinha  deixado  os  bancos  escolares.  Por  isso, 
em  1870,  escrevia  assim  em  Decadência  : 

«  Nós  já  não  temos  caracteres  nobres^ 
Nem  voz,  nem  sombra  de  Catões  e  Grachos  : 
O  céo  tem  pena  de  nos  vôr  tão  pobres, 
O  mar  tem  raiva  de  nos  vôr  tão  fracos. 

Por  que  não  Vergues,  oh !  Brasil,  fecundo 
Por  vastas  ambições,  por  fortes  brios?... 
Que  gloria  é  esta  de  mostrar  ao  mundo, 
Em  vez  de  grandes  homens,  grandes  rios?... 

Bastas  selvas,  um  céo  azul  immenso, 
Que  os  corações  em  flor  bafeja  e  rega; 
Uma  terra  abrazada  como  incenso, 
Que  do  sol  no  thuribulo  fumega? 

Nada  vai,  se  não  ha  quem  se  offereça 
Para  d'6dma  arrancar-te  o  negro  espinho... 
Tudo  em  baixol...  não  surge  uma  cabeça 
Em  que  as  altas  idéas  façam  ninho!... 

Donde  é  que  teu  primor,  pátria,  derivas? 
Por  que  ao  orgulho  ingénua  te  abandonas? 
Ai!...  as  outreis  nações  dizem  altivas  : 
Pitt,  ou  Bismarck;  e  nós?...  o  Amazonas!... 


'  I 


570  HIBTOBIA  DA  LITTBBATX7BA  BRASILEIRA 

O  sceptro  é  nuUo;  e  os  ânimos  languescem 
Da  indiferença  no  pesado  somno... 
Nâo  vêm  as  horas  em  que  as  aguas  crescem, 
£  a  onda  morde  na  raiz  do  ihrono... 

Que  o  povo  fale,  isto  é,  prenda  na  bocca 
A  escuma,  a  raiva,  o  fel  dos  oceanos, 
E  a  braza  dos  vulcões!  matéria  pouca 
Para  cuspir  na  face  dos  tyrannos... 

Tyrannos?  sim,  que  matam  o  progresso, 
Que  suffocam  a  luz  e  o  direito, 
Para  quem  toda  idéa  é  um  excesso!... 
Nao  ha  mais  fogo  do  Brasil  no  peito!...  » 

S&o  magoados  carmes  de  quem  começava  a  desilludir-se 
das  grandezas  e  prosperidades  do  Império.  E'  um  perfeito 
brado  de  republicanismo.  Era,  como  foi  dito,  ^m  1870;  a 
carreira  do  poeta  estava,  pode-se  dizer,  terminada.  Versos 
ainda  elle  os  escreveria  até  as  vésperas  da  morte ;  mas  suas 
preoccupações  principaes  estavam  n'outra  parte.  A  critica,  a 
philosophia,  o  direito  tinham-no  quasi  de  todo  absorvido. 

Entretanto,  a  boa  ordem  do  methodo  manda-me  que  re- 
suma o  papel  d'ess6  homem  como  poeta  na  litteratura  bra- 
sileira. E  eis  aqui  este  resumo  :  a  acção  de  Tobias  Barretto 
na  poesia  nacional  foi  reagir  )con,t»ra  o  nosso  decadente 
lyrismo  lamartiniano  e  choramigas,  que  em  1862-63  tinha  che- 
gado ao  extremo  da  banalidade. 

A  reacção  fel-a  elle  quanto  ao  fundo  e  quanto  á  forma. 

Quanto  ao  fundo,  abandonando  o  subjectivismo  infecundo 
e  impertinente  e  procurando  assumptos  mais  geraes,  quer 
da  vida  humana  em  suas  diversas  gradações,  como  no  Génio 
da  Humanidade,  bello  fragmento  em  que  lançou  um  olhar 
sobre  a  evolução  histórica  do  homem,  em  A  Polónia^  em  que 
pranteou  as  desditas  de  um  generoso  povo  revoltado,  em 
Lenda  Civil,  em  que  tratou  de  um  episodio  da  vida  faustosa 
dos  salões^  em  Lenda  Rústica,  em  que  se  referiu  a  um 
drama  da  vida  sertaneja,  em  Os  Tabaréos  que  se  reportam  a 
uma  lenda  popular  da  noite  de  São  João,  em  Trovadores  das 


HI8T0BIA  DA  LITmUTTTRA  BKáHTT.KTHA  571 

Selvas  que  cotejam  a  vida  do  campo  com  a  das  cidades,  em 
Scêna  Sergipana,  que  fala  de  recordações  da  infância  nas 
populações  provincianas ;  quer,  especialmente,  procurando 
assumptos  patrióticos  aptos  a  estimularem  a  alma  da  nação, 
como  em  A'  Vista  do  Recite,  Voluntários  Pernambucanos, 
Leões  do  Norte,  Sete  de  Setembro,  Decadência;  quer,  final- 
mente, aproveitando  as  emoções  altruístas  e  civilisadoras  das 
artes,  como  em  as  poesias  dirigidas  a  Reichert,  Bottini, 
Arthur  Napoleão,  Senespleda,  Moniz  Barretto  Filho,  Ade- 
laide do  Amaral,  Cortesi,  Libia  Drog  e  outros  artistas  de 
talento. 

Quanto  á  forma,  a  reacção  fêl-a  elle  inoculando  nos  versos 
mais  audácias  de  linguagem,  mais  impetuosidade  de  movi- 
mento, mais  colorido  de  imagens,  ad  instar  da  reforma  de 
Victor  Hugo  em  o  lyrismo  francez. 

Eis  ahi  o  que  foi  o  chefe  da  escola  condoreira  na  poesia  : 
um  lyrista  brilhante  pela  imaginação,  enternecedor  pelo 
sentimento. 

Paulina  Moser,  poetisa  alleman,  nos  interessantes  versos 
que  lhe  dirigiu,  disse  que  elle  no  allemanismo  achara  o  génio 
que  o  havia  de  levar  á  posteridade  : 

<(  Nationalstolz  auf  Wahrheit  gebaut 

Wolt  allemal  Ehr  und  Achtung  gebOhrt; 

Du,  Meneses,  hast  im  dem  Deutschthum  geachaut 

Den  Genius,  der  Dich  zur  Unsterblichkeit  f ahrt.  » 

Eu  o  creio  bem;  mas  ainda  quando  o  teuto-sergipano  não 
houvesse  escripto  uma  só  palavra  como  prosador,  uma  só 
pagina  de  critica,  ou  de  philosophia,  ou  de  direito,  ou  de 
politica,  seu  nome  ficaria  garantido  por  suas  producções  poé- 
ticas, seria  sempre  lembrado  como  o  iniciador  de  um  consi- 
derável movimento  no  lyrismo  nacional.  E'  tempo  de  apre- 
ciar o  orador. 


O  que  havia  de  sentimento  e  imaginativa  em  Tobias  Barretto 
não  fez  d*elle  somente  um  poeta  :  produziu  também  um  ora- 


572  HI8T0BIA  BA  LITTBEÁTUKA  BKASILBntA. 

dor.  E  foi  esta  uma  das  mais  interessantes  notações  de  seu 
temperamento.  Poderse  até  dizer  que  ella  influiu  em  todas  as 
outras  manifestações  e  qualidades  de  seu  espirito ;  porque  a 
acção  mais  intensa  de  sua  intelligencia  e  de  seu  saber  foi  de 
principio  a  ílm  directa  e  pessoal. 

Sua  poesia  mesma,  antes  de  apparecer  nas  paginas  dos 
jornaes  e  periódicos,  era  por  elle  recitada  ante  o  publico  ou 
no  circulo  de  seus  amigos  e  assumia  no  calor  de  sua  decla- 
mação um  brilho,  um  colorido  duplicado. 

As  ideias  espalhadas  nos  seus  ensaios  de  critica,  de  litte- 
ratura,  de  philosophia  —  adquiriam  um  tom  mais  incisivo  e 
assimilável,  quando,  o  que  de  ordinário  acontecia,  as  ex- 
punha em  suas  longas  e  attrahentes  conversações. 

Já  nem  é  preciso  falar  nos  seus  estudos  jurídicos,  apa- 
nhados naturaes  de  suas  prelecções  académicas,  singulares 
mixtos  de  palestra  e  eloquência  espontânea.  Nâo  é,  pois,  um 
erro  afflrmar  ter  sido,  talvez,  a  nota  mais  vivaz  d'esse  homem 
a  sua  acção  directa  pela  palavra,  no  meio  em  que  se  desen- 
volveu, no  circulo  dos  que  o  conheceram  e  com  elle  tra- 
taram, o  seu  incomparável  talento  de  causeur. 

Imaginai  um  espirito  desabusado,  hábil  em  fazer  um  espe- 
cial consorcio  de  lyrismo,  de  humour  e  de  erudição;  um 
homem  versado  n'umas  poucas  de  linguas  e  nas  respectivas 
litteraturas ;  uma  memoria  assombrosa  cheia  de  factos  scien- 
tiílcos,  de  apreciações  estheticas,  de  pilhérias  e  anecdotas  de 
toda  a  casta,  e  tereis  uma  ideia  de  sua  conversação,  de  seu 
talento  de  prasear. 

O  tom  era  popular  e  a  voz  tinha  um  timbre  peculiaríssimo. 
Não  se  furtava,  não  se  enclausurava,  não  fugia  do  grande 
mundo ;  ao  contrario,  ninguém  era  mais  accessivel,  mais 
fácil  de  ser  encontrado,  porque  ninguém  era  mais  amigo  de 
sahir,  de  andar,  de  distrahir-se  palestrando.  Conta-se  do  afa- 
mado hegeliano  Vera,  o  celebre  professor  de  Nápoles,  que 
elle  dizia  gostar  de  residir  nos  hotéis  para  ter  ensejo  de  rela- 
cíonar-se  com  muita  gente  afim  de  combater  os  prejuízos. 
Tobias  gostava  immenso  da  sociedade,  dos  theatros^  dos 
boteis,  dos  cafés,  não  para  combater  prejuízos,  porque  não 
assumia  jamais  altitudes  de  reformador,  de  evangelista,  mas 


HZBTOJUJL  DA  UTTBBATUBA  BSABILIXBA  573 

para  satisfazer  seu  espirito  inquieto,  móbil,  sôfrego  de  ruido, 
de  mutações,  de  eflusões  novas. 

Era  um  estudioso  addiccionado  a  um  temperamento  mun- 
dano e  amigo  dos  prazeres,  equilibrado  por  não  sei  que 
secreta  musa  que  lhe  dava  ares  de  perpetua  juvenilidade. 

Era  um  amável  conversador  ;  e  por  isso  quem  o  ouvia  acu- 
radamente ficava  para  sempre  sous  le  charme.  D'ahi  o  pres- 
tigio de  seu  nome  na  roda  de  seus  Íntimos,  de  seus  amigos, 
de  seus  discípulos.  E  o  orador  ?  O  orador  era  n'elle  aquelle 
mesmo  palestrador,  um  pouco  mais  excitado,  mais  nervoso 
e  mais  eloquente  pela  commocã.o. 

Eu  disse,  paginas  atraz,  haver  na  poesia,  após  o  estylo 
grandioso  da  phase  recifense  de  1862  a  71,  o  auctor  passado, 
nos  últimos  annos,  a  uma  maneira  mais  singela;  e,  para  expe 
rimental-o,  basta  quem  quizer  lôr  nos  Dias  e  Noites  as  peças 
posteriores  áquella  ultima  data.  O  mesmo  aconteceu  ao  seu 

estylo  na  oratória^  e  em  tudo  mais. 

A  primeira  maneira  era  clara  e  lúcida;  mas  um  pouco  so- 
lemne,  devido  á  influencia  de  Hugo,  Quinet,  Pelletan,  Miche- 
let  e  Herculano.  O  temperamento  popular  e  desabusado  do  es- 
criptor  sergipano  acabou  logo  com  isto,  com  essa  solemni- 
dade  da  sua  phase  franceza,  e  o  estylo  do  orador  e  do 
prosador,  como  o  do  poeta,  mudou  para  um  tom  simples, 
corrente,  unido,  igual,  revestindo  sempre  a  masculinidade  de 
um  pensamento  nutrido  de  ideias  e  de  força  autonómica. 

A  eloquência  d©  Tobias  Barretto  foi  uma  das  mais  bellas 
cousas  que  pude  apreciar  na  vida. 

O  orador  assomava  na  tribuna  :  era  um  pequeno  homem 
nervoso,  excessivamente  nervoso  ;  a  figura  attrahia  logo  pela 
singular  expressão  do  rosto,  pela  admirável  conformação  da 
testa,  pela  estranha  fulguração  dos  olhos. 

Começava  a  falar;  a  voz  era  forte,  vibrante,  timbrada,  so- 
nora, sem  a  mais  leve  aspereza ;  era  voz  acostumada  a  can- 
tar, percebia-se  de  súbito.  Não  se  deve  esquecer  que  o  orador 
era  musico  e  bom  barytono. 

O  discurso  principiava  doce,  suave,  mas  não  á  surdina;  era 
doce,  porém  logo  de  principio  claro,  nitido,  de  todo  intelli- 
givel;  o  tom  era  simples;  mas  a  torrente  cerrada  e  abun- 


574  HI8T0BIA  DA  LTCTIRATUBA  BSABUiBIBA 

dante.  Logo  após  o  calor  ia  dominando  o  orador,  o  accionado 
se  agitava,  a  imaginação  desprendia  o  vôo;  ouviam-se  entfto 
períodos  poéticos,  saborosos,  bellissimos. 

Mas  debaixo  d'aquelle  poeta  estava  um  scientista ;  a  lógica 
reclamava  os  seus  direitos  e  appareciam  Os  raciocínios,  os 
argumentos ;  ouviam-se  então  interessantes  trechos  doutri- 
nários. Porém  aquelle  scientista  era  também  um  mundano, 
um  pilhérico,  um  satyrisador ;  surgia  o  humour  e  as  garga- 
lhadas rebentavam  espontâneas. 

Piei  ao  meu  methodo  de  fazer  este  livro  representar  o  duplo 
papel  de  historia  e  de  anthologia  litteraria,  não  devo  occultar 
trechos  comprobatórios  do  que  floa  afflrmado. 

Eis  um  documento  do  primeiro  estylo  do  orador,  quando 
o  lyrismo  romautico  era  a  nota  fundamental  em  suas  eíTu- 
sões  estheticas,  e  todas  as  suas  ideias  tomavam  essa  colo* 
ração;  eis  como,  em  1865,  saudou  a  capitulação  de  Monte* 
vidéo  e  estimuloui  novas  hostes  a  partirem  para  as  lides  da 
guerra  : 

Cf  E*  inútil  preambular.  Um  pensamento  fraterno,  radiante,  su- 
premo, fluctúa  sobre  as  nossas  cabeças,  de  parelha  com  o  estan- 
darte da  gloria.  Accesa  em  nossas  almas  a  idéa  de  engrandecimento, 
sentimo-nos  grandes,  queremos  luctar. 

E*  neste  momento  que,  afundando-nos  na  abundância  de  uma 
existência  de  moços  esperançosa  e  vivida,  achamos,  tocamos, 
alguma  coisa  de  mais,  e  essa  demasia,  senhores,  é  que,  somos  bra- 
sileiros, essa  demasia  é  que  ao  livro  deste  povo  épico  e  generoso 
ajunta-se  a  estrophe  gigantesca  e  sublime  de  um  de  seus  rútilos 
feitos. 

O  Brasil  agitarse,  a  mocidade  o  rodeia;  o  Brasil  triumpha,  a  mo- 
cidade ajoelha-se  com  elle  para  contemplar  nos  pátrios  céus  o  vôo 
de  suas  victorías. 

E  na  face  de  tudo  que  tem  um  pouco  d*a1ma  para  sentir,  um  pouco 
de  sangue  para  derramar,  um  pouco  de  vida  para  morrer,  lavra  a 
claridade  de  um  sentimento  que  absorve  todo  o  viver  positivo  e 
ordinário;  paixão  nobilitante,  purificadora,  que  o  coração  de  um 
homem  mal  pode  conter,  com  todos  os  seus  ímpetos,  que  tendem 
ao  passado,  que  tendem  ao  futuro,  com  todas  as  suas  avançadas 
para  a  morte  e  para  a  vida,  para  o  ceu,  para  a  gloria,  para  a  luz, 
para  Deus...  e  este  sentimento,  senhores,  é  o  patriotismo. 


HISTORIA  DA  LITTEBATUSA  BIU81LBIEA  575 

Pôde  haver  quem  diga  :  tempo  virá  em  que  o  grito  dos  alarmas, 
o  lampejar  das  espadas  nada  signiâquem;  sim,  mas  lá  mesmo 
adiante,  aonde  nos  promeitem  levar  os  pontífices  do  progresso, 
quando  o  gladio  tiver  sido  substituído  pela  palavra,  a  força  pela 
idéa,  o  raio  que  fulmina  pelo  raio  que  esclarece,  lá  mesmo  o 
homem  deixar-se-ha  vibrar  dessa  paixão,  que  será  sempre  no  seu 
peito  o  estremecimento  enorme  das  selvas,  dos  campos,  das  soli- 
dões da  pátria. 

O  Brasil  era  o  colosso  da  paz;  o  Brasil,  esse  pedaço  do  globo,  cuja 
sombra  bastara  para  eclipsar  qualquer  sol  que  se  lhe  puzes«e 
diante,  tolerou  por  muito  tempo  os  insultos  de  ridículas  pequenezas. 

Dizem  que  as  águias,  só  depois  de  muito  soffrer,  déterminam-se 
a  punir  com  a  morte  as  avesinhas  insignificantes,  cujos  pios  as  in- 
commodam.  Tal  aconteceu. 

O  gigante  principia  a  vingar-se,  o  pantheon  da  historia  começa  a 
renovar-se  de  grandes  vultos,  as  campas  de  grandes  mortos,  os 
céus  de  grandes  astros. 

A  morte  que  se  conquista  pela  pátria,  nfio  é  uma  dessas  mortes 
lúgubres,  choradas,  mysteriosas,  communs,  não;  morrer  assim,  ao 
fumegar  das  batalhas,  é  desembaraçar-se  de  um  dos  enigmas  do 
nosso  destino,  é  resolver  o  problema  da  grandeza  humana;  morrer 
assim  é  engrcmdecer-se. 

Parabéns  aos  mortos,  que,  ao  rolarem  no  abysmo  da  eternidade, 
atiraram  por  cima  de  nós  o  manto  de  suas  glorias.  Parabéns  á  pá- 
tria que,  com  toda  força,  com  toda  masculinidade  de  uma  romana, 
é  capaz  de  desarmar,  se  os  tem,  o  braço  dos  seus  Coriolcmos,  lan- 
çar no  meio  dos  combates  a  sua  prole  de  Scipiões,  e  ver  emâm  fartas 
de  triumphos  as  anciãs  de  seu  coraç&o  generoso. 

Montevideo  cahio  rendida  e  precisa  que  o  Brasil  lhe  dô  a  máo 
para  levantal-a. . .  eis  a  victoria! 

Fostes  chamados...  disse  mal,  offerecestes-vos  para  dar  mais  um 
testemunho  da  pátria  e  de  vós. 

E'  magnifico.  A  idéa  da  morte,  que  talvez  neste  momento  per- 
passa em  vossas  almas  rápida  e  deslumbrante,  é  a  sombra  de  um 
emjo  que  atravessa  as  immensidades  das  alturas.  O  passado  é  um 
deserto,  o  futuro  ó  uma  floresta. 

Para  os  povos  caminharem  é  preciso  que  se  corte,  que  se  quebre, 
que  se  esmague  alguma  coisa.  A  guerra  é  o  alarido  da  humanidade. 
As  torrentes  fazem  ruido  quando  cabem,  cts  nações  fozem  ruído 
quando  sobem.  A  guerra  é  a  prece  dos  povos  que  se  exprimem  pela 
bocca  das  bombardas. 

E  o  futuro  escuta.  E'  o  fogo  do  ceu  que  vem  lançar  por  terra  os 


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576  HISTORIA  DA  LITTEBATXTEA  BRASUJU&A 

ídolos  do  mal,  déspotas  e  tyraonos  que  ainda  podem  viver  á  luz  da 
civilisação. 

E'  a  occasiáo,  pela  historia  offerecida,  para  o  forte  apparecer,  o 
fraco  denuiiciar-se,  o  pequeno  engrandecer-se. 

E  aproveitai-a,  vós. 

Porquanto,  nestes  tempos  corrompidos  em  que  as  acçOes  boas,  as 
nobres  e  assignaladas  acções,  aos  olhos  dos  homens  degeneres,  pa- 
recem demasiado  grandes,  impraticáveis,  enormes,  como  os  ro- 
chedos vibrados  pelos  heroes  de  Homero;  nesta  quadra  só  se  encon- 
tra em  vós  outros  todo  o  vigor  e  dignidade  que  tiveram  os  primogé- 
nitos da  pátria. 

Sois  pernambucanos;  e  no  moço  império  predestinado,  sympa< 
thico,  Pernambuco  é  um  poder.  Provai-o  mais  esta  vez.  Nào  consin- 
tais que  a  idéa  vil  de  uma  recompensa  inútil  embace  o  lustre  de 
vossas  pretensões  magnânimas. 

Qucuido  dilacerados,  ardentes  tiverdes  empolgado,  afagado  nos 
braços  a  victoria,  e  quem  quer  que  seja  pretender  tocar,  deixar 
alguma  honra  em  vossos  peitos,  em  cada  um  de  vós  a  coragem  terá 
de  responder  :  basta-me  a  cicatriz. 

Soldados,  ide,  na  benção  de  vossa  bandeira,  receber  os  acenos 
da  gloria,  os  incitamentos  do  porvir.  » 

Este  tom  lyrico  mudou  desde  que,  de  1870  em  diante,  o 
poeta  cedeu  o  logar  ao  critico  e  a  influencia  germânica  se  fez 
sentir  no  orador  e  no  escriptor.  Foi  isío  na  phase  da  Escada 
e  na  subsequente  do  Recife.  Uma  cousa,  porém,  é  para  notar 
na  oratória  de  Tobias,  e  vem  a  sôr  a  qualidade  que  ella  con- 
servou sempre  em  commum  com  sua  poesia  :  occupar-se 
constantemente  de  grandes  assumptos  e  nâo  descer  jamais  a 
algumas  demasias  de  linguagem  que  uma  ou  outra  vez  em- 
pregou na  critica  e  mais  ainda  na  polemica.  Na  poesia  e  na 
eloquência  elle  se  sentia  no  pleno  dominio  da  arte,  adejava 
alto  e  tomava-se  plenamente  impessoal.  O  patriotismo,  o 
progresso,  os  dias  gloriosos  nacionaes,  a  arte,  a  educação  da 
mulher,  o  estado  politico  e  social  do  Brasil  foram  os  assump- 
tas de  seus  discursos,  quer  nos  tempos  de  estudante,  quer 
posteriormente  nos  dias  da  maturidade.  No  Club  Popular  da 
Escada^  na  Assembléa  Provincial  de  Pernambuco  ou  na  Pd- 
culdade  de  Direito  do  Recife  sempre  e  sempre  as  palavras  do 


HISTORIA  DA  LITTBSATUBA  BKABILBI&A  577 

orador  tiveram  a  elevação  dos  carmes  do  poeta,  repito;  e  no- 
iaçâo  é  esta  que  convém  ser  feita  e  pôde  ser  verificada  por 
quem  se  dér  ao  trabalho  de  lêr  os  discursas  d'este  escriptoF, 
mal  apreciado  por  quem  o  conhece  somente  através  de  suas 
polemicas  ou  de  seus  repentes  satyricos. , 

Natureza  múltipla  e  complexa,  deve  ser  julgado  na  totali- 
dade de  suas  manifestações  e  náo  pelo  processo  unitário  e  sim- 
plista de  seus  desaffectos.  Eis,  n'esta  saudação  ao  Sete  de 

Setembro,  como  falava  do  caracter  moral  do  progresso  e  da 
generosidade  de  sentimentos  que  devíamos  ter  para  com 
aquelles  que  vencemos  : 

((  E'  sempre  linda  e  puríssima  a  face  dos  dias  de  triumpho  qne 
brotaram  do  coração  dos  povos,  dias  gloriosos  debaixo  dos  quaes 
enroscam-se  entorpecidos,  calcados,  os  séculos  de  tormentos,  e  as 
nações  fazem  aJto  para  revolver  as  paginas  sombrias  do  passado 
e  aspirar  as  frograncicis  do  futuro. 

Nem  isto  vai  contra  o  progresso,  pois  que  as  nações  n&o  ca- 
minham condemnadas,  como  essa  mulher  da  Bíblie^  a  não  volver 
os  olhos  atraz,  para  não  se  transformarem  em  estatuas  de  sal. 

O  progresso  não  pôde  ser  o  esquecimento  do  pass€ido,  porque  o 
passado  está  sempre  comnosco,  no  fundo  de  nossas  lembranças,  no 
cofre  de  nossas  saudades,  no  seio  de  nosseis  glorias. 

O  progresso  não  é  o  ruído  das  paixões  humanas,  das  paixões  mes- 
quinhas que  refervem,  que  se  agitam  pelo  espirito  da  desordem;  eUe 
é  menos  uma  marcha  do  que  uma  ascensão;  é  a  vibração  de  todas 
as  sympathias,  o  azulamento  de  todos  os  céus,  a  transfiguração  de 
todos  os  martyres;  é  o  vôo  da  civilí sacão,  o  vôo  da  ave  lúgubre,  car- 
regando  o  Prometheu  do  Cáucaso  aos  Alpes,  dos  Alpes  aos  Andes, 
dos  Andes...  aos  Céus,  o  redemoinhar  das  coisas  em  tomo  dos  povos, 
o  redemoinhar  dos  povos  em  tomo  das  idéas,  o  redemoinhar  das 
idéas  em  torno  de  Deus. 

Mas  na  gloria  de  todos  não  se  absorvem  as  glorias  de  cada  um  : 
temos  a  nossa  historia,  devemos  abríl-a;  temos  o  nosso  dia,  devemos 
saudal-o... 

E  o  dia  de  hoje,  a  ídéa  de  hoje,  o  sol  de  hoje,  o  sol  da  liberdade, 
diante  do  qual  ajoelhamo-nos  entoando  o  cântico  dos  fortes,  tinha 
já  muitas  vezes  borbulhado  do  Oriente,  quando  a  tjrrannia  pudera 
contel-o,  suffocal-o  em  sua  aurora  e  retirar  as  mãos  ensanguen- 
tadas. 

Para  ella  o  Brasil  grande,  livre,  isto  era  um  sonho... 

HisTORu  n  37 


578  HISTOBIA  DA  LITTEBATU&A  B&AfilLBI&A 

£  é  de  notar,  senhores,  que  este  sonho  que  se  fez  idéa,  esta  idéa 
que  se  fez  dia,  este  dia  que  se  fez  gloria,  tinha  sido  em  seu  prin- 
cipio uma  loucura  de  poetas,  de  poetas  amorosos  como  Dirceu  e 
Cláudio,  mas  de  poetas  que  procuram,  de  poetas  que  sondam,  de 
poetas  que  acham. 

Ainda  é  de  notar  que  ao  tempo  em  que  o  direito  divino  rolava  na 
poeira  com  a  cabeça  de  Luiz  XVI,  o  direito  do  povo  cahia  ludibriado 
com  o  pender  da  fronte  de  um  brasileiro;  mas  o  ultimo  suspiro  do 
martyr  encontrou  logo  no  espaço  o  primeiro  grito  da  liberdade,  essa 
grande  funcç&o  que  Deus  deu  ao  homem,  que  Bruto  deu  á  Roma, 
que  a  Revolução  deu  aos  povos. 

Somos  livres  de  uma  liberdade  adquirida  pela  força  das  idéas, 
sejamos  grandes  de  uma  grandeza  adquirida  pela  força  do  coração. 

Somos  fortes  para  vencer,  sejamos  nobres  para  perdoar. 

Beijemos  a  m&o  do  passado  que  é  velho,  a  velhice  é  uma  realeza; 
apertemos  a  mão  do  futuro  que  é  moço,  a  mocidade  é  um  noivado. 

Mandemos  as  paixGes  que  se  calem,  e  teçamos  as  coroas  do  mérito. 

Nunca  poupemos  um  tributo  de  louvor  á  memória  do  heróe,  a 
quem  já  demos  testemunho  de  gratidão,  um  daquelles  vultos  que  de 
longe  em  longe  Deus  suscita  para  ajudal-o  a  impellir  o  universo  nos 
largos  destinos  a  que  elle  o  conduz;  cavalleiro  de  bronze  que  con- 
templa o  desenrolar  dos  séculos,  grandes  ondas  da  eternidade,  esta- 
cado, sublime  em  promontório  de  granito. 

Sejamos  verdadeiros  e  justos.  Estranhos,  sejamos  amigos;  patrí- 
cios, sejamos  irmãos;  e,  nessa  irmandade  de  sentimentos,  comba- 
tamos o  inimigo  commum,  confiados,  apegados  a  esse  pensamento 
de  gloria,  esse  pensamento  grandioso  que  fluctúa  no  estandarte  bra- 
sileiro... » 

São  palavras  ainda  do  estylo  lyrico  de  1865.  Quatorze  ajinos 
mais  tarde,  eis  como  falava  do  poder  e  da  liberdade,  e  note 
se  o  estylo  sóbrio  e  forte  que  coloria  sua  eloquência  : 

((  Meus  Senhores.  ^  Não  sei  se  bem  comprehendo  o  intuito  da 
vossa  festa ;  não  sei  se  descubro  ao  longe  o  alvo  que  tendes  em  mira. 
Como  quer,  porém,  que  seja,  desde  que  se  trata  de  uma  festa  popu- 
lar, que  importa  a  consagração  de  um  justo  renome,  pelo  culto 
devotado  a  um  homem  de  grande  mérito,  apresentando-me  entre 
vós,  eu  não  faço  mais  do  que  ceder  ao  pendor  natural  que  me  faz 
abraçar  todas  as  causas,  onde  sinto  palpitar  o  coração  do  povo.  E 
sabendo  como  sei  que  a  causa  precípua  é  nobre,  eu  que  ha  muito  já 
troquei  a  bluza  do  poeta  pelo  casacão  do  philosopho,  e  como  tal,  não 


HI8T0BIA  DA  UTTBRATiniA  BBABILEIBA  579 

crendo  nas  finalidades  da  natureza,  descreio  também  quasi  tanto 
do  valor  das  finalidrdes  sociaes,  n&o  me  dei  ao  trabalho  de  reflectir 
previamente  que  effeitos  de  ordem  moral  ou  de  ordem  politica  podem 
resultar  deste  ruido  de  enthusiasmo,  deste  bater  de  azas  invisiveis, 
com  o  qual  vem  misturar-se,  como  uma  nota  dissona,  minha  palar 
vra  selvagem.  N&o  me  dei  ao  trabalho  de  ponderar,  por  um  lado, 
as  susceptibilidades  feridas,  os  desgostos  eu;ordados,  os  despeitos 
enfurecidos,  e^  por  outro  lado,  a  sorte  que  me  possa  aguardar,  pela 
ousada  extravagância  de  acceder  tão  de  bom  grado  ao  vosso 
convite,  maximé  por  ser  eu  um  representante  da  província  e  não 
dever  descarte  violar  uma  das  regras  sacrosantas  da  pragmática 
dos  partidos,  que  é  o  deputado  divorciar-se  inteiramente  do  povo  e 
dar  com  o  pé  na  escada  por  onde  subiu... 

Nâo  reflecti,  não  ponderei  nada  disto.  Bem  sei,  meus  senhores, 
que  o  liberalismo  entre  nós,  o  liberalismo  de  salfio,  que  tem  suas 
cerimonias  e  etiquetas  de  baUe,  n&o  tolera  de  boa  vontade  estas 
manifestações  da  praça  publica. 

Não  se  distinguindo  em  cousa  alguma  pela  divisa  do  século, 
que  é  o  t€ilento  de  ousar,  o  liberalismo  corrente  do  nosso  tempo,  é 
um  trabalho  que  cança,  é  um  mister  que  fatig6^  sobretudo  se  se 
attende  que  elle  se  move  dentro  de  formulas  economico-mercantis 
e  escreve  a  sua  vida  por  partidas  dobradas. 

Mas  eu  ainda  não  cancei  de  ser  liberal,  o  que  vale  dizer  que 
ainda  não  cancei  de  crer  na  realidade  de  uma  força  superior  que 
nos  descobre  um  mundo  melhor,  que  nos  impelle  para  elle;  ainda 
me  não  senti  obrigado  a  ajoelhar-me  diante  dos  Ídolos  e  pedir  perdão 
da  minha  virtude,  a  única,  talvez,  de  que  me  posso  lisongear,  a  vir- 
tude de  poder  pensar  no  povo  sem  pensar  no  rei,  este  dous  conceitos 
que  para  mim  serão  sempre  os  dous  termos  de  uma  antinomia  do 
sentimento,  mil  vezes  mais  inconciliável  que  as  antinomias  da 
razão.  Qualquer  que  seja  o  tédio  que  me  inspira  o  espectáculo  da^ 
cousas,  não  cheguei  ciinda  áquelle  estado,  que  produz  o  desgosto 
da  vida,  o  estado  de  incapacidade  para  crear  um  ideal.  Dahi  a  espon- 
taneidade, com  que  me  associo  a  todas  as  emoções  populares;  dahi 
o  Ímpeto  irresistível  que  me  faz  sorver  na  taça  da  liberdade,  essa 
feiticeira  de  todos  os  tempos,  o  esquecimento  de  mim  mesmo,  o 
desprezo  do  perigo,  a  paixão  do  desconhecido,  o  enthusiasmo  do 
heroísmo  e  talvez  também  um  pouco  de  ingenuidade  por  chegar  a 
capacitar-me  que  estas  acções  do  povo  tem  sempre  alguma 
influencia  no  animo  dos  poderosos...  A  realidade  é  que  a  marcha 
sinistra  e  tertuosa,  que  ha  levado  até  hoje  o  governo  do  paiz,  apenas 
nos  tem  deixado  como  única  liberdade  consoladora,  como  único 


580  niBTOBIA  DA  LITTEBATXTBA  BBA8ILEIBA 

favor  da  sua  longanimidade  o  direito  infecundo  de  falar,  de  esvair- 
DOS  em  palavras,  o  que  é  tão  pouco  efíicaz  pcu^a  combater  os  nossos 
males,  quão  pouco  efficaz  seria,  para  causar  dor  no  coração  de  um 
déspota,  morder  raivosa  e  loucamente  no  bronze  de  sua  estatua... 

Qualquer  que  seja  o  sentido  que  se  ligue  a  esta  manifestação, 
qualquer  que  seja  o  valor  e  alcance  politico  que  se  lhe  dê,  a  physio- 
nomia  moral  que  se  lhe  imprima ;  ou  se  tenha  como  um  facto,  ainda 
que  não  commun,  todavia  natural  e  lógico,  não  da  lógica  vulgar, 
mas  da  lógica  do  coração,  por  ser  a  expressão  adequada  de  um  sen- 
timento alto  e  nobilit€mte ;  ou  ao  contrario,  e  de  accordo  com  os 
princípios  da  velha  sciencia  da  vúta,  que  ensina  a  fazer  da  submis- 
são e  da  baixeza  uma  espécie  de  ingrediente  para  a  felicidade,  se 
considere  tudo  isto  como  extemporâneo,  inconveniente  e  prejudicial ; 
em  uma  palavr6^  senhores  :  ou  o  murmúrio  da  vossa  festa  vá  soar 
aos  ouvidos  do  poder,  como  um  grito  de  enthusiasmo  innocente,  ou 
como  um  grito  de  rebeldia,  como  rugido  de  prazer  ou. como  rugido 
de  cólera ;  eu  vos  declaro  :  não  tenho  tempo  de  pensso*  no  perigo, 
só  tenho  tempo  de  pensar  na  gloria ;  commungo  na  vossa  mesa, 
associo-me  a  vós,  estou  comvosco  !... 

Felizmente  não  se  trat€^  é  bom  dizel-o  em  honra  vossa,  de 
render  um  preito  ceremonial,  e  apenas  recommendado  pelo  ritaal 
do  partido,  a  um  desses  campeões  da  boa  dita,  honny  soit  qui  mal  ]i 
pense^  cavalheiros  do  successo  que  pelos  feitiços  da  fada,  isto  é, 
pelas  artes  da  politica,  acordaram  uma  manhan  e  encontraram-se 
celebres.  Sim,  não  se  trata  de  juncar  de  flores  o  caminho,  por  onde 
tem  de  passar  um  favorito  de  Gesar.  Mas  isto  não  é  tudo,  nem  isto 
só  seria  capaz  de  dar  ao  vosso  festim  a  cór  histórica  de  um  acon- 
tecimento, a  cór  poética  de  uma  grande  obra.  O  que  aqui  mais 
importa  observar  e  fazer  subir  á  tona  da  consciência,  é  que  vós  nfio 
vos  propondes  mesmo  pagar  tributos  de  admiração  vulgar  a  um 
deputado  pernambucano,  simplesmente  como  tal,  a  um  membro 
da  chamada  representação  nacional,  a  um  daquelles  muitos  sacer- 
dotes da  theologia  constitucional,  da  metaphysica  parlamentar,  por 
cujo  encanto,  ao  proferir  palavras  santas  de  misera  condescendên- 
cia, o  vinho  transforma-se  em  sangue^  isto  é,  os  ministros  da  coroa 
se  convertem  de  repente  em  ministros  da  nação.  Não,  meus 
senhores,  vosso  intuito  é  mais  elevado.  Como  todas  as  grandes  re- 
velações do  espirito  popular,  também  esta  encerra  a  sua  particula 
divina,  a  sua  porção  de  ideal,  que  eu  presumo  extrahir  e  resumir 
assim  :  Estais  sem  duvida  pagando  uma  duvida  de  justo  reconheci- 
mento para  com  o  moço  impávido,  uma  das  mais  bellas  encarna<?õe8 
do  iustum  et  tenacem  propositi  virum  —  sonhado  pelo  poeta ;  ren- 


HIBTOBIA  DA  LITTSRATUSA  BRA8ILBISA  581 

dendo  um  preito  de  gratidão  ao  vosso  representante,  sim,  mas  a 
mn  que  já  o  era  de  direito,  antes  de  sel-o  de  facto,  pois  ha  realmente 
épocas  cheias  de  lutas  a  sustentar  e  de  questões  a  resolver,  que 
nomeiam  por  si  mesmas  os  seus  dignos  combatentes  :  a  época 
actual  em  Pernambuco  é  uma  delias,  e  José  Mariano  é  o  seu  legiti- 
mo interprete.  O  sentido  desta  solemnidade  n&o  é,  pois,  queimar 
algumas  bagas  de  barato  incenso  diante  do  idolo  de  um  povo,  ou 
de  uma  classe  delle ;  n&o  é  homologar,  por  meio  do  enthusiasmo 
sincero  de  uma  populaç&o  ávida  e  sedenta  de  acções  heróicas,  os 
juizos  encomiásticos  da  corte,  esse  tumulo  da  naç&o,  da  corte  sempre 
suspeita  de  miséria,  vilania  e  corrupção  em  qualquer  grão.  O  sentido 
de  tudo  isto  é  altamente  moral  :  é  a  celebração  do  renascimento  de 
uma  raça  de  gigantes,  que  parecia  extincta ;  o  sentido  de  tudo  isto 
é  a  glorificação  de  um  caracter. 

Meus  sonhores !  Assim  como  em  philosq[>hia  natural,  o  que  se 
chama  um  typo,  marca  o  ponto  culminante  do  desenvolvimento 
morphologico  da  espécie,  da  mesma  íórma  em  philosophia  social, 
o  que  se  chama  um  caracter,  marca  o  ponto  culminante  do  desen- 
volvimento histórico  de  um  povo...  Mas  que  é  ser  um  caracter? 
Digamol-o  em  poucas  palavras. 

Que  um  mesmo  homem,  nos  diversos  dominios  de  sua  actividade, 
produza  muita  cousa  significativa,  não  é  um  phenomeno  sorprehen- 
dente,  pelo  contrario,  à  vista  da  riqueza  da  natureza  humana,  é  um 
facto  comprehensivel  e  facilmente  explicável,  pela  variedade  dos 
dotes  naturaes.  Numa  só  pessoa  assentam,  como  se  ella  para  isso 
nascesse,  diversas  formas  da  vida,  do  mesmo  modo  que  no  actor  uma 
multidão  de  papeis.  Todo  homem  possue  em  sua  phantasia  um  Pro- 
teu  interior,  que  se  transforma  a  cada  passo,  que  a  cada  passo  toma 
feições  differentes.  Esta  é  a  lei  commun.  Mas  também  contra  esta 
lei  de  mutabilidade  indeiinita,  contra  esta  capacidade  de  transforma- 
ção, este  talento  diplomático  da  natureza  humana,  ha  espíritos  que 
reagem,  não  sei  se  por  um  privilegio  especial,  ou  por  esforço  próprio, 
e  tomando  nas  mãos,  por  assim  dizer,  todos  os  raios  esparsos  da  acti- 
vidade sem  destino,  os  concentram  em  um  só  ponto,  e  os  dirigem  a 
um  só  ílm.  São  espíritos  que  se  restringem,  naturezas  que  se  sim- 
plificam, e  de  uma  simplicidade,  que  até  ás  vezes  nos  parece  unifor- 
midade monótona.  Mas  uma  tal  uniformidade  é  potente  e 
grandiosa ;  em  similhantes  naturezas  toda  a  riqueza  espiritual  se 
converte  na  firmeza  e  energia  de  uma  convicção.  São  espíritos,  em 
summa,  para  quem  toda  a  philosophia  humana  é  philosophia  da 
vontade ;  para  elles  a  vida  da  alme  não  começa  por  um  acto  de 
pensar,  mas  por  um  acto  de  querer,  e  em  cada  um  de  seus   actos 


582  HISTOBIA  BA  LITTBItATUItA  BBABILBIBA 

elles  parecem  dizer  :  o  que  eu  não  sou  por  mini  mesmo,  eu  n&o  o 
sou  ;  eu  sou  somente  aquillo  que  pratico ;  e  d'est*arte  para  elles  até 
a  própria  liberdade  não  é  tanto  um  estado  natural,  um  dom  do  céo, 
um  presente  dos  deuses,  como  antes  e  sobretudo  um  resultado  do 
trabalbo,  um  producto,  uma  obra,  uma  conquista  do  homem.  Bis 
áhi  o  que  é  o  caracter,  esse  grande  fecundador  das  capacidades 
humanas,  alguma  cousa  de  similhante  a  a/juelle  âel  servo  da  pará- 
bola de  Jesus,  que  faz  render  os  talentos,  que  lhe  foram  confiados ; 
o  caracter,  que  é  uma  força,  que  é  fonte  de  toda  a  honradez,  e  com 
a  honradez  a  sinceridade,  e  com  a  sinceridade  até  a  aptítude  ao 
martyrio,  a  disposiç&o  ao  sacriâcio. 

Traçemdo  assim,  meus  senhores,  uma  espécie  de  ideial  do 
homem  de  bem,  eu  não  faço  mais  do  que  tirar  os  próprios  traços  da 
sympathica  figura  do  moço  pernambucano.  E*elle  mesmo  que  me 
fornece  esta  medida  accommodada  ao  tamanho'  dos  grandes 
homens  :  é  elle  mesmo,  sim,  com  a  sua  vontade  de  uma  só  peça, 
com  a  sua  fé  inabalável,  com  a  sua  personalidade  cerrada,  inacce»- 
sivel,  como  um  bárbaro,  aos  cálculos  da  prudência,  mas  também 
inaccessivel,  como  um  heroe,  ás  suggestões  do  poder.  E  tal  acaba 
de  mostrar-se  no  combate  virgoroso  em  que  se  empenhou,  e  do  qual 
não  é  pequeno  resultado  a  consciência  do  dever  cumprido. 

Entretanto  aqui  acode-me  uma  ponderação  relevante ;  —  vós 
sabeis,  senhores,  como  o  bello  procedimento  do  illustre  represen- 
tante de  Pernambuco,  de  quem  hoje  se  pôde  dizer  que  se  esperava 
tudo  mas  não  se  esperava  tanto,  como  a  sua  attitude  p€urlamentar, 
ainda  que  admirável  e  bonita,  e  talvez  que  mesmo  por  ser  bonita  e 
admirável,  tem  suscitado,  ao  lado  da  grande  corrente  da  opinião 
applausiva,  uma  pequena  corrente  de  opinião  desaccordc,  quer  na 
direcção  do  enthusiasmo,  quer  no  modo  de  julgar  e  apreciar  a 
efflcacia  da  cousa,  a  conveniência  do  acto;  —  opinemdo  os  que  se 
pretendem  mais  sensatos,  os  políticos  de  ofâcio,  que  no  poite  de 
Mariano  um  pouco  mais  de  reserve^  um  pouco  mcds  de  attenção 
aos  interesses  communs  do  partido  não  teria  sido  mão.  Não  teria 
sido  máo!.,.  E'  assim  que  se  exprimem  negativa,  indirectamente 
por  faltar-lhes  a  coragem  de  afUrmeir  positivamente...  que  teria 
sido  bom. 

Mas  isso  será  exacto?  Será  exacto  que  Meu^iano  foi  além  do 
que  lhe  impunham  os  seus  deveres  de  politico  ?  Terá  elle  por  ventu- 
ra, desconhecendo  a  velha  verdade  que  o  homem  não  tem  sempre 
bastante  força  para  seguir  toda  a  sua  razão,  violado  a  regra  de 
conducta,  ou  antes  a  lei  social,  pela  qual  todo  aquelle,  que  quer 
trabalhar  e  influir  de  um  modo  efQcaz,  d^ve  aprender  9  su})ordi- 


HISTORIA  DA  LITTERATUBA  BBABILBIBA  583 

nar-se,  a  servir  aos  grandes  partidos,  dentro  dos  quaes  se  executa  o 
processo  da  historia?  !...  Será  isto  exacto ?  Não  de  certo.  A  intran- 
sigência dos  caracteres  torna-se  dureza  e  asperidade  reprovável, 
quando  elles,  unguibus  et  rostro^  loucamente  agarrados  ao  seu  pro- 
pósito, querem  ser  invariáveis,  não  obstante  haver  variado  a  face 
das  cousas ;  querem  permanecer  immutaveis,  a  despeito  de  ter-se 
nmdado  a  posição  do  mundo.  Porém  no  caso  vertente,  onde  é  que 
isto  se  dava  ?  Na  desintelligencia  do  moço  deputado  com  um  mi- 
nistro arrogante,  onde  é  que  estava  empenhada  a  salvação  do  par- 
tido, para  que  fosse  preciso,  indeclinavelmente  preciso.  Mariano 
ceder  e  recuar  ? 

Ah  1  meus  senhores,  eu  não  tinha  necessidade  de  juntar  mais 
esta  parcella  á  mhiha  somma  de  experiências,  ao  meu  já  tão 
crescido  capital  de  decepções,  sohre  o  que  são,  sobre  o  que  valem 
os  liberaes,  eu  digo,  os  liberaes  officiaes  da  nossa  terra.  Mas  ainda 
me  deixo  tomar  de  admiração  e  de  espeinto,  em  presença  de  factos 
de  tal  ordem,  diante  deste  e  de  tantos  outros  documentos  de  pobreza 
do  liberalismo  em  acção.  Quando  a  baixeza  é  um  meio  de  subir  e 
engrandecer,  naturalmente  a  independência  toma-se  um  crime. 
E  é  isto,  ao  certo,  o  que  se  dá  em  relação  aos  calmos  e  prudentes 
juizes  do  acto  de  José  Mariano  :  não  estão  no  caso  de  comprehender 
um  procedimento,  que  destoa  do  modo  commum  de  contemporisar 
e  obedecer. 

Houve  um  tempo,  senhores,  em  que  somente  o  homem  honesto 
podia  ser  e  dizer-se  liberal.  Foi  naquelles  túrbidos  dias,  em  que  o 
simples  riso  de  desdém  sobre  a  marcha  dos  negócios  públicos  era 
um  motivo  de  paracer  suspeito  aos  governos.  Hoje,  porém,  a  cousa 
é  diversa.  Hoje  é  liberal  todo  aquelle  que  sabe  especulcu*  com  feli- 
cidade. O  liberalismo  tornou-se  um  artigo  da  moda^  um  costume  do 
dia^  um  obiecto  de  negocio.  D^ahi  a  singularidade,  para  não  dizer  a 
impudência,  com  que  se  renega  no  parlamento  o  que  se  proclamou 
nas  ru£Ls ;  d*ahi  o  triste  espectáculo  da  morte  dos  caracteres,  do 
abatimento  dos  espíritos,  que  não  ousam  ser  o  que  são,  que  se  en- 
vergonham do  seu  passado,  para  se  deixarem  arrastar  pelo  ca- 
minho das  conveniências.  E*  nada  existe,  com  effeito,  de  mais  con- 
tristador  :  o  partido  liberal,  que  se  adorna  de  grandes  promessas, 
que  se  alimenta  de  esperanças,  que  vive  sempre  com  os  seus  navios 
de  velas  desfraldadas  d  espera  de  vento,  que  nos  conduza  ao  paiz 
da  felicidade^  quando  as  occasiões  se  levantam  bellas  e  oportunas, 
quando  os  ventos  sopram  favoráveis,  tem  medo  de  se  fazer  ao  mar, 
e  recua  espavorido  diante  dos  seus  próprios  desígnios!...  Nada 
axist^  realmente  4^  mais  ridiculo  e  hmnilhante  do  que  vel-os,  com 


584  HIBTOBIA  DA  LITTSRATTTBA  BBA8ILEI&A. 

iodos  OS  seus  gestos  de  grandeza  e  phrases  de  altivez,  curvarem-se 
resignados  ao  mando  de  quem  mais  pôde,  elles,  pobres  liberaes 
reproducções  photographicas  do  retrato  de  Polónio,  o  fiel  compa- 
nheiro de  Hamlet,  no  celebre  drama  de  Shakespeare.  Eis  o  caso  : 
está  o  rei  com  o  seu  inseparável,  e  trava-se  entre  ambos  o  seguinte 
coUoquio  : 

Hajnlet  :  —  Vês  là  em  cima  aquella  nuvem  que  tem  quasi  a 
forma  de  um  camello  ? 

Polónio  :  —  Pelo  céo,  magestade  I  assimilha-se  de  certo  a  um 
camello. 

Hamlet  :  —  Mas  quer  me  parecer  que  é  similHcmte  a  uma  do- 
ninha. 

Polónio  :  —  Realmente,  tem  as  costas  de  uma  doninha ! 

Hamlet  :  —  Nôo  :  ella  parece-me  mais  uma  balôa. 

Polónio  :  —  Com  effeito,  magestade  !  E*  toda  como  uma  balôa  !... 

Ahi  tendes  a  imagem  do  que  se  dá  com  os  nossos  homens,  querc* 
dizer,  com  os  liberaes  do  dia.  E'  isto  mesmo  :  a  nuvem  será  doninha, 
ou  balÔ£L,  conforme  mais  agreuiar  ao  capricho  imperial.  E'  assim  que, 
por  exemplo,  o  rei  dirá  :  a  agricultura  está  morta,  é  preciso  auxi- 
lial-6^  e  elles  acudirão  :  é  verdade,  a  agricultura  está  morta,  carece  de 
muito  auxilio.  Mas  logo  depois,  o  rei  observará  que  náo  é  tanto  as- 
sim, que  ha  cousas  mais  importantes  a  auxiliar  do  que  a  agricultu- 
ra ;  e  todos  dirão :  é  exacto ;  para  que  auxilio  á  agricultura?  Como 
vôdes,  pela  bocca  de  Polónio  exprimiu-se  antecipadamente  o  libe- 
ralismo da  nossa  época.  A  fígura  cómica  do  régio  adulador  é  a  sua 
mais  perfeita  encarnação. 

Voltando  ao  centro  do  assupto  :  fizestes  bem,  meus  senhores  i 
Illustres  cavalheiros  do  Monte  Pio  dos  honorários  e  da  Associação 
Commercial^  fizestes  muito  bem  em  dar  assim  um  testemunho  de 
reconhecimento  e  admiração  pela  imponente  attitude  do  vosso  nobre 
comprovinciano.  Eista  festa  é  um  symptoma  da  abundância  de  sen- 
timentos e  affectos  elevados,  que  ainda  vigoram  no  seio  deste  povo. 
A  acção,  que  assim  praticais,  não  será  destituída  de  profícuos  resul- 
tados, ella  é  a  faisci,  de  que  talvez  gerar-se-ha  o  grande  incêndio; 
não  o  incêndio  revolucionário  e  destruidor ;  eu  não  sou,  não  quero 
ser  pregador  de  revolução ;  mas  o  incêndio  das  grandes  paixões 
sociaes,  que  é  preciso  que  se  inflammem  por  meio  de  taes  espectá- 
culos, e,  ainda  mais,  por  um  excune  de  consciência  politica^  pela  con- 
fissão dos  nossos  erros,  pela  critica  de  nós  mesmos.  A  indolência, 
o  abatimento  de  Pernambuco,  é  um  phenomeno  anómalo,  que  dá 
que  fazer  ao  observador  philosopho,  como  pôde  dar  que  pensar  ao 


HISTORIA  DA  LITTSRATUSA  BBABILBIBA  585 

naturalista  o  apagamento  de  um  volc&o.  Importa,  pois,  que  vos  re- 
ergais  e  reconquisteis  os  postos  perdidos. 

Agora  a  vós,  geralmente  a  vós,  brilhcmte  porção  do  povo  per- 
nambucano, permitti  que  eu  ouse  impor  uma  obrigação.  N^esta 
hora,  em  que  exultais  e  ardeis  de  enthusiasmo,  talvez  o  nome  de 
José  Mariano  já  esteja  registrado  no  livro  da  condemnação.  £'  mis- 
ter, portanto,  que  contraiais  aqui,  neste  momento  solemne,  um 
compromisso  de  homens  de  bem  :  que  nunca,  nunca  deixal-o-heis 
ficar  só.  E  contando  com  o  vosso  apoio,  com  o  apoio  dos  vossos  brios, . 
o  seu  triumpho  será  sempre  inevitável.  Se  porém  está  escripto, 
quod  Deus  avertat^  se  está  escripto  no  livro  das  nossas  misérias, 
que  tudo  será  inútil,  q  que  a  voz  altiva  do  moço  terá  de  perder-se 
na  algazcurra  dos  festins  da  immoralidade  vencedora,  como  a  voz 
angustiosa  do  naufrago  no  ruido  do  oceano,  eu  posso  aíflrmal-o,  e 
acreditai-me,  senhores,  José  Mariano  não  curvará  a  fronte.  Quando 
tudo  lhe  falte,  quando  tudo  o  abandone,  parodiando  aqui  palavras 
de  um  grande  mestre,  restar-lhe-ha  sempre  e  sempre  o  instincto 
indómito  de  uma  alma,  para  quem  a  macula  moral  do  servilismo  é 
o  mal  absoluto  e  irremediável.  Que  a  sociedade  se  estrague  e  role 
de  queda  em  queda  no  abysmo  da  degradação,  que  os  caracteres 
se  apaguem,  que  a  prostituição  tome  as  vestes  da  dignidade,  como 
Messalina  a  purpura  de  rainha ;  ainda  uma  vez  vos  affirmo  :  elle 
não  aceita  a  derrota.  Sentirá  no  seu  coração  o  desprezo  da  ignomi- 
nia, e  este  sentimento  far-lhe-ha  as  vezes  de  victoria ;  continuará 
a  fortificar-se  no  exemplo  dos  heróes,  e  abraçando  a  estatua  dos 
deuses  immortaes,  o  dever,  o  pudor,  a  justiça,  adjural-os-ha  para 
que  vinguem  o  seu  poder  desconhecido!...  » 

Palavras  são  estas  de  1879,  pronunciadas  n'uma  manifes 
tacão  popular  feita  ao  Dr.  José  Mariano,  representante  então 
de  Pernambuco  em  a  camará  dos  deputados.  Tobias,  n'esse 
tempo  residente  ainda  na  Escada,  era  membro  da  Assembléa 
Provincial  pernambucana,  onde,  entre  outros  debates,  pro- 
pugnou notavelmente  pela  educação  intellectual  da  mulher 
brasileira. 

N'este  assumpto  pronunciou  três  dos  seus  mais  notáveis 
discursos  (1). 

No  Club  Popular  da  Escada,  por  elle  crêado,  é  que  proferiu 

íl)  Vide  —  Diêeur%09  — ,  por  Tobias  Barretto,  Rio  de  Janeiro,  Laemmert 
et  C.  editores,  1900 ;  pag.  45,  79  e  107. 


586  HISTORIA  DA  UTTBBATinU  BRASILBIBA 

em  1877  a  celebre  oraçfto,  apparecida  dois  annos  mais  tarde 
em  avulso  sob  o  nome  de  Um  discurso  em  mangas  de  ca- 
misa, suggestivo  titulo  que  tanto  deu  que  falar.  E'  um  forte 
quadro  do  deplorável  estado  social  e  politico  de  Brasil  no 
ultimo  decennio  do  Império.  Na  observação  preliminar,  que 
se  lê  na  pumeira  pagina  do  alludido  opúsculo,  escrevia  o  já 
então  critico  e  philosopho,  aos  11  de  fevereiro  de  1879,  estas 
palavras  descortinadoras,  até  certo  ponto,  do  modo  como  elle 
próprio  julgava  a  sua  tentativa  da  crèação  de  um  club  polí- 
tico e  a  sua  posição  na  pequena  cidade  pernambucana  :  a  Em 
setembro  de  1877,  appareceu-me  a  ideia  de  organisar  n*esta 
cidade,  e  á  similhança  de  outros  já  algures  existentes,  um 
pequeno  Club  Popular.  Como  todas  as  lembranças  infelizes, 
que  em  nosso  paiz  têm  a  propriedade  de  germinar  com  a 
mesma  rapidez  do  alho  plantado  em  noite  de  S.  João,  se- 
gundo a  crença  vulgar,  a  minha  ideia  promptamente  grelou  ; 
mas  também,  com  a  mesma  promptidão,  marchou  e  morreu. 
Foi  esta  ainda  uma  das  muitas  illusões  de  que  se  tem  alen- 
tado o  meu  espirito  n'esta  bella  terra,  onde  aiiás  vim  sepultar 
os  dois  mais  caros  objectos  de  meu  coração  e  de  minha 
phantasia  :  —  minha  Mãe  e  meu  futuro  I...  » 

Brado  é  este  de  dôr  que  a  forma  humorística  não  consegue 
ílludír  e  desfarçar.  Outros  mais  graves  lôr-se-háo  de  ouvir  no 
correr  de  seu  estudo,  como  pensador,  o  que  me  lembra  sêr 
tempo  de  passar  ao  critico. 

Mas  isto,  por  motivos  de  conveniência  da  economia  interna 
d'este  livro,  ficará  melhor  em  volume  subsequente,  quando 
houver  de  estudar  o  movimento  da  critica  e  da  philosophia 
entre  nós  a  datar  de  1870  e  annos  seguintes. 


HISTORIA  DA  LITTBRATUBA  BBA8ILBIBA  587 


CAPITULO  VII. 


Poesia.  Ainda  sexta  e  ultima  phasb  do  romantismo. 


António  de  Castro  Alves  (1847-1871).  E'  um  dos  nomes 
mais  afamados  da  moderna  poesia  brasileira.  Tem  sido 
muito  lido  e  muito  estudado,  quasi  sempre  n'um  tom  dilhy- 
rambico  e  encomiástico.  Mas  ainda  ha  alguma  cousa  de  pro- 
veitoso a  dizer  a  respeito  d'eUe. 

Antes  de  tudo,  umas  rápidas  notas  biographicas.  Para  isto 
vou  cingir-me  ao  que  existe  de  mais  authentico  em  tal 
assumpto,  a  biographia  do  poeta  escripta  por  seu  cunhado 
o  Dr.  Augusto  Alves  Guimaráeai,  e  publicada  nos  números  2 
e  5,  anno  I,  da  Gazeta  Litíeraria  do  Rio  de  Janeiro. 

Castro  Alves  nasceu  na  camarca  da  Cachoeira,  perto  do 
Curralinho,  na  fazenda  CabaceircLs,  aos  14  de  março  de  1847. 

Seu  pai  era  medico  e  mais  tarde  tirou  uma  cadeira  na  fa- 
culdade da  Bahia.  O  futuro  auclor  do  Navio  Negreiro  estudou 
preparatórios  no  Gymnasio  Bahiano  sob  a  direcção  do 
Dr.  Abilio  César  Borges,  Barão  de  Macaúbas. 

Em  1862  seguiu  para  o  Recife,  onde  ainda  foi  preparato- 
riano  durante  dois  annos,  matriculando-se  em  1864.  Conser 
vou-ae  em  Pernambuco  até  flns  de  1867,  partindo  para  i 
Bahia,  e,  logo  em  começo  do  anno  seguinte,  para  Sâo  Paulo, 
de  passagem  pedo  Rio  de  Janeiro. 

Em  Sáo  Pauto  continuou  o  curso  académico,  interrom- 
pendo-o  logo  ap6s;  porque  aos  11  de  novembro  do  mesmo 
anno  de  1868,  andando  á  caça,  disparou  casualmente  um  tiro 
no  calcanhar. 

Gerou-se-lhe  ahi  longa  e  pertinaz  enfermidade,  tendo  de  se 
lhe  amputar  no  anno  seguinte  no  Rio  de  Janeiro  o  terço  infe- 
rior da  perna.  Depauperado  p  orjfanjsmo,  sobreyçío-lhe  a 


588  HIBTOBIA  DA  LITTBBATUBA  BRA8ILSIBA 

moléstia  pulmonar.  Teve  de  demandar  de  novo  as  plagas  da 
província  natal  em  dezembro  de  1869.  Seguiu  para  os  ser- 
tões, demorando-se  em  Curralinho  e  Rozario  de  Orobó  em 
1870  até  setembro,  época  em  que  voltou  á  capital  da  provín- 
cia, onde  falleceu  a  6  de  julho  de  1871. 

São  as  principaes  datas  de  sua  vida  exterior.  Até  aqui  o 
tiabalho  dos  bíographos  (1). 

E'  mister  analysar  e  reconstruir  a  vida  psychologica  do 
poeta. 

A  carreira  litteraria  de  Castro  Alves,  que  abrange  apenas 
o  curto  espaço  de  pouco  mais  de  onze  annos,  pode  rigorosa- 
mente ser  dividida  em  quatro  épocas  : 

a)  phase  primitiva  (186(>63),  tempo  dos  preparatórios  na 
Bahia  e  no  Recife,  reatando  d'entáo  pouquissimós  documen- 
tos; 

b)  período  áureo  do  Recife  (1864-67),  tempo  do  Gonzaga  e 
de  grande  parte  das  poesias; 

c)  época  de  S.  Paulo  e  Rio  de  Janeiro,  menos  de  dois  annos 
(1868-69)  ; 

d)  ultima  phase  da  Bahia  apenas  de  anno  e  meio  —  (1870- 
71).  Dos  onze  annos,  quatro  de  pura  meninice  litteraria  quasi 
nada  avultam  em  sua  carreira.  Restam  os  sete  ou  sete  e  meio 
seguintes  a  contar  de  1864  —  até  a  data  do  fallecimento  do 
poeta. 

D'estes  sete,  quatro,  os  mais  fecundos  de  sua  vida,  foranoi 
passados  no  Recife  com  pequenas  estadas  na  Bahia.  Dos  três 
e  meio  annos  restantes,  somente  menos  de  um  (1868  até  no- 
vembro) passou  com  saúde.  Os  que  se  lhe  seguiram  foram 
preenchidos  pelos  acerbos  soffrimentos  da  moléstia  do  pé  e 
da  tuberculose. 

Releva,  portanto,  ficar  bem  assentado  que  o  poeta,  che- 
gando a  São  Paulo  em  março  de  1868,  adoeceu  d'ahi  a  oito 
mezes  em  novembro,  e  retirou-se  definitivamente  em  abril 
do  anno  seguinte.  Pouco,  bem  pouco  podia  ter  elle  escripto 
alli.  A  mór  parte  de  suas  producções  ou  são  dos  tempos 

(1)  Vide  Gaseta  Litteraria,  ns.  citados. 


HISTORIA  DA  LITTSBATURA  BRABILBI&A  589 

áureos  do  norte,  antes  de  sua  vinda  ao  sul,  ou  dos  melan- 
cholicos  dias  da  Bahia  depois  d'essa  viagem  (1). 

Pertencem  á  primeira  categoria  — ,  além  do  drama  Gon- 
zagcL,  as  poesias  —  Hebréa,  Duas  Ilhas^  Visão  dos  Mortos^ 
Pedro  Ivo^  O  Século,  Quem  dá  aos  pobres  empresta  a  Deus, 
Mocidade  e  morte,  Ao  Dois  de  Julho,  Três  Amores,  Gondo- 
leiro de  amor,  Sub  tegmine  {agi,  O  vóo  do  génio,  A  Maciel 
Pinheiro,  Dalila,  A  Boa  Vista,  O  coração,  A  uma  actriz,  O 
Livro  e  a  America,  e  todo  ou  quasi  todo  o  poema  —  A  Ca- 
choeira de  Paulo  Affonso. 

São  da  segunda  espécie  as  poesias  —  Dedicatória,  O  {an- 
tasma  e  a  canção.  Poesia  e  mendicidade,  Versos  de  um  via- 
jante, Onde  estás  ?  A  uma  estrangeira.  Pelas  sombras.  As 
duas  {lôres.  Os  anjos  da  meia  noite,  O  Hospede,  Aves  de  arri- 
bação. Os  perfumes,  A  Guilherme  de  C.  Alves,  Uma  pagina 
da  escola  realista,  Coup  d^étrier.  Se  eu  te  dissesse.  Saudação 
a  Palmares,  Horas  de  saudade.  Pé,  esperança  e  caridade. 
Deusa  incruenta  e  No  meeting  do  Comité  du  pain. 

Bem  se  vê  que  ahi  está  a  maior  porção  da  obra  do  poeta  e 
o  que  n'ella  ha  de  mais  selecto. 

Foram  escriptas  no  Rio  de  Janeiro  e  em  São  Paulo  apenas 
—  O  laço  de  [ita,  Ahasverus  e  o  génio,  O  adeus  de  Thereza, 
A  volta  da  primavera,  Boa-Noite,  Adormecida,  Jesuiias, 
Hymno  ao  somno,  No  álbum  de  L,  C.  Amoedo,  Murmúrios 
da  tarde.  Ode  ao  dois  de  Julho,  O  tonel  das  Danaides,  A  Luiz, 
A  Joaquim  Augusto,  Immensis  orbibus  anguis.  Canção  do 
bohemio,  E  tarde.  Quando  eu  morrer.  Está  assim  contada  e 
destribuida  a  quasi  totalidade  das  producções  do  vate 
bahiano. 

Digo  quasi  totalidade ;  porque  não  estão  incluídas  n'ellas 
quatro  bem  notáveis  :  Vozes  d'A{rica,  O  Navio  Negreiro,  Tra- 
gedia no  Lar,  e  Adeus  —  meu  canto  I  —  Doestas  as  duas  pri 
meiras  são  do  Recife  e  Bahia  antes  da  viagem ;  as  outras  da 
Bahia  depois  d'ella. 

Fica  assim   bem   averiguado  haver  o   poeta  chegado  a 

(])  A  estada  do  poeta  no  sul  durou  22  mezes,  que  tantos  vão  de  fevereiro 
de  68  a  novembro  inclusive  de  69.  Destes  2t  mezes  —  13  foram  passados 
em  S.  Paulo. 


590  HIBTOBIA  BA  LITTB&ATTTRA  BRABILSIftA 

S.  Paulo  aos  vinte  e  um  annos  de  idade,  na  plenitude  do 
talento,  já  feito  nas  letras,  precedido  de  fama,  acompanhado 
dos  elogios  que  soube  conquistar  no  Recife,  na  Bahia  e  no 
Rio  de  Janeiro.  Alencar  e  Machado  de  Assis  encarregaram-se 
de  o  apadrinhar  contra  as  invectivas  malévolas  da  inveja  do 
anonymato  litterario. 

Desde  1864  Castro  Alves  e  Tobias  Barretio  foram  os  mais 
notáveis  talentos  da  faculdade  de  direito  do  Recife. 

Em  1866  formaram-se  os  dois  partidos  theatraes  das  duas 
actrizes,  que  foram  a  causa  do  romprimento  dos  dois  poetas. 
Castro  decidiu-se  por  uma  e  Tobias  por  outra.  Victoriano 
Falhares  era  do  lado  do  poeta  bahiano.  As  duas  actrizes 
tinham  muito  talento;  a  diva  de  Castro  Alves  era  uma  livre 
e  ousada  mulher ;  a  outra  era  timída  e  recatada. 

Tobias  tinha  dito  uma  vez  : 

u  Sou  grego,  pequeno  e  forte 
Das  forças  do  coração, 
Vi  de  Sócrates  a  morte, 
E  conversei  com  Plat&o... 
Soa  grego,  gosto  das  flores, 
Dos  perfumes,  dos  rumores; 
Mas  minha  alma  inda  tem  fé... 
Meus  instinctos  não  esmago, 
Não  sonho,  n&o  me  embriago 
Nos  banquetes  de  Phrinél...  » 

A  invectiva  era  dura,  e  é  fama  que  então  Castro  Alves  lhe 
repondera  : 

(c  Sou  hebreu;  n6o  beijo  as  plantas 
Da  mulher  de  Putiphar...  n 

Dos  camarotes  e  platéa  do  theatro  passou  para  a  imprensa 
f)  malfadada  lucta. 

O  poeta  bahiano  na  Luz  e  o  sergipano  na  Revista  Litte- 
raria  aggrediram-se  desapiedada  e  tristemente.  Assim  quebra- 
ram as  relações  e  tornaram-se  inconciliáveis,  por  futilidades, 
dois  grandes  talentos,   dignos  de  reciprocamente  se  esti- 
marem. 


H18T0KIA  DA  LITTSSATUEA  BBABILSIEA  591 

Entretanto,  Castro  continuou  a  produzir. 

Começou  e  adiantou  aquella  serie  de  cantos  que  intitulou 
O  poema  dos  Escravos ;  escreveu  o  drama  Gonzaga  ou  a 
Revolução  de  Minas,  além  de  outros  trabalhos  de  vulto  infe- 
rior. Porém  elle  era  um  moço  ardente  e  inexperiente.  O  en- 
ihusiasmo  pela  actriz  passou  adiante  e  ella  encadèou-o  c  su- 
gou-lhe  a  seiva  opulenta  da  mocidade. 

E*  ji  tempo  de  escutar  os  lamentos  do  poeta  e  chorar  com 
elle  as  suas  magoas. 

Já  doente  aos  13  de  outubro  de  1809  em  Immensis  orbibus 
anguis  pranteava  elle  : 

M  Assim,  minh^alma,  assiui  um  dia  adormeceste 
Na  floresta  ideal  da  ardente  mocidade... 
Abria  a  phantasia  a  pétala  celeste... 
Zumbia  o  sonho  d^ouro  em  doce  obscuridade... 

Assim,  minh^alma,  deste  o  seio  (ó  dôr  inimensa!) 
Onde  a  paix&o  corria  indómita  e  fremente! 
Assim  bebeu-te  a  vida,  a  mocidade  e  crença 
Não  bocca  de  mulher...  mas  de  fatal  serpentel...  » 

Aos  3  de  novembro  do  mesmo  anno  em  F  tardei  falou 
assim  : 

M  Treda  noite!  Minh^alma  era  o  sacrário 
A  lâmpada  do  amor  velava  emteuito, 
Virgem  flor  enfeitava  a  borda  virgem 
Do  vaso  sacrosanto, 

Quando  EUa  veio  •—  a  negra  feiticeira 
A  libertina,  lúgubre  bacchante, 
Lascivo  olhar,  a  trança  desgrenhada, 
A  roupa  gottejante. 

Foi  minha  crença  —  o  vinho  dessa  orgia, 
Foi  minha  vida  —  a  chamma  que  apagou-se. 
Foi  minha  mocidade  -—  o  toro  lúbrico, 
Minh'alma  o  tredo  alcouce...  » 

Estas  notas  sfto  intensas  e  verdadeiras;  revelam  alguns 


592  HI8T0BIÁ  DA  LITTBRATITBA  BRA8ILEIBA 

(l'esses  soffrimentos  íntimos,  que  são  sempre  os  mais  terrí- 
veis e  tenazes  e  os  que  mais  despercebidos  são  peio  inundo 
ignaro. 
Devo  dizer  mais  directamente  dos  livros  do  poeta. 

Castro  Alves  deixou  três  obras  :  Espumas  PluctuarUes, 
Gonzaga  e  O  Poema  dos  Escravos, 

Este  ultimo  não  ficou  acabado.  Existem  apenas  d'elle  dois 
fragmentos,  um  episodio  A  Cachoeira  de  Paulo  Affonso^  uro 
punhado  de  poesias,  sob  o  titulo  de  Manuscriptos  de  Stenio. 

O  Poema  dos  Escravos  nâo  era  na  mente  do  auctor  uma 
epopéa  no  velho  e  commum  sentido,  a  saber,  um  enredo, 
uma  acção  especial,  desenrolada  par  personagens  typicas. 
Era  antes  uma  collecção  de  poesias  soltas,  desprendidas 
entre  si,  referentes,  todas,  porém,  ao  facto  social  da  escra- 
vidão. E  aqui  se  toca  o  intimo  mesmo  do  talento  do  moço 
bahiano.  Quem  o  lê  attentamente  nota  logo  dois  tons 
fundamentaes  em  sua  lyra  :  —  o  lyrismo  gracioso  dos 
amores,  das  paixões,  das  effusões  í)artículares,  e  o  cantar 
brilhante  do  socialista,  do  democrata  social.  As  producções 
em  que  predomina  o  primeiro  tom  são  interessantes ;  mas 
contam  muitas  congéneres  na  litteratura  brasileira.  Aquellas 
em  que  sobresae  a  outra  nota  —  possuem  poucas  similares 
entre  nós. 

Castro  Alves  em  nossa  historia  litteraria  representa  um 
duplo  papel.  Por  um  lado,  elle  foi  o  apostolo  andante,  o  São 
Paulo  do  condoreírísmo.  Não  ficou  parado  no  Recife ;  depois 
do  ter  alli  luctado  em  prol  da  nova  poesia,  passou  á  Bahia 
e  d'ahi  ao  Rio  e  a  São  Paulo.  Estes  são  os  quatro  centros 
intellectuaes  mais  notáveis  do  Brasil ;  n'elle9  o  poeta  fez-se 
ouvir  e  creou  adeptos. 

Sua  maneira  espalhou-se  então  por  todo  o  paíz.  Escusado 
é  dizer  que  a  mwlíocridade  dos  mãos  discípulos  foi-se  to^ 
nando  cada  vez  mais  accentuada,  até  cahir  nos  mais  extrava- 
gantes despropósitos. 

Foi  um  tempo  de  verdadeira  pathología  litteraria  de  que  o 
poeta  bahiano  não  foi  aliás  o  culpado. 
Por  outro  lado,  tomou  eile  muito  ao  serio  o  seu  c€u*acter 


HISTORIA  DA  LITTXRATUBA  BBABILBIRA 


593 


de  poeta,  e  concentrou  ahi  todos  os  esforços  e  energias  de 
seu  espirito.  Quiz  deixar  obra  durável. 

Para  tanto  largou,  por  algum,  por  bastante  tempo  de  parte 
suas  preoccupações  particulares,  seus  epbemeros  amores,  e 
lançou  olhares  curiosos  sobre  a  nossa  sociedade.  Um  facto 
ahi  havia  que  o  impressionou  sobre  todos,  o  facto  cruel  e 
repugnante  da  escravidão) ;  e  elle  tentou  fazer  o  poema  dos 
escravos. 

Ahi  vae  a  sua  verdadeira  originalidade.  Antes  e  depois  d'elle, 
entre  nós  e  no  estrangeiro,  alguns  poetas  tomaram  como 
assumpto  de  seus  cantãires  o  phenomeno  extravagante  da 
escravidão.  Mas  Castro  Alves  tem  entre  todos  uma  nota 
especial.  E'  bem  verdade  que  nâo  se  coUocou  em  o  ponto 
de  vista  determinado  da  escravidão  brasileira.  Por  outros 
termos,  é  bem  verdade  que  elle  nâo  fez  a  psychologia  nem  a 
sociologia  do  escravo,  não  se  poz  no  meio  dos  captivos,  nos 
engenhos  e  nas  fazendas,  para  lhes  photographar  com  niti- 
dez naturalística  o  viver  pungente  e  as  profundíssimas  mi- 
sérias. 

O  poeta  nã.0  architectou  o  romance  cruel  e  realista  dos 
escravos,  Noio;  seu  caminho  foi  outro,  ensinado,  apontado 
pela  Índole  mesma  de  seu  talento.  Ao  poeta,  bastou-lhe  para 
o  excitar  e  commover  o  facto  geral  e  indistincto  da  escra- 
vidão. Só  isto  foi  sufílciente  para  levantar-lhe  o  sentimento,  e 
este  sentimento  foi  a  indignação  e  a  cólera.  O  poeta  n&o  des- 
ceu a  descrever  scenas  ;  alludio  rapidamente  a  ellas  e  suppôl- 
as  com  razão  conhecidas  de  todos.  Elle  é  da  familia  do  can- 
tor dos  Chatiments;  indigna-se,  encolerisa-se  e  larga  o  azor 
rague  nos  verdugos,  nos  oppressores  dos  miseros  captivos. 

O  espirito  de  Castro  Alves  é  o  de  um  tribuno,  de  um  agi- 
tador ;  sua  poesia  é  a  expressão  natural  de  seu  caracter,  de 
seu  temperamento. 

Elle  é  assim  um  dos  mais  nítidos  exemplares  entre  nós  do 
poeta  socialista,  quero  dizer,  do  poeta  que  em  sua  arte  preoc- 
cupa-se  com  certas  ideias  e  problemas  que  se  agitam  na  vida 
politica  e  social  da  nação.  Tem-se  muito  discutido  o  valor 
desta  poesia.  Uns  a  atacam,  outros  a  defendem. 


mSTORU  u 


38 


504  HIBTORIA  DA  LITTSBATURA.  BRA8ILBZXA 

Que  imparta  isto?  N&o  é  exactamente  o  que  se  dá  com 
todas  as  cousas  ? 

Os  que  lhe  são  adversos  n&o  se  esquecem  de  dizer  que  a 
arte  nada  deve  ter  com  theorias  e  systemas  quaesquer,  scien- 
tííicos^  philosophicos,  políticos  ou  sociaes.  Sua  base  é  o  sen- 
timento, seu  ílm  ó  a  emoç&o  esthetica,  o  bello.  Nada  de 
hybridismos  n'arte.  Mas  será  certo  que  a  poesia  deva  per- 
manecer sempre  na  egoismisação  de  nossos  affectos,  de  nos- 
sas tendências  individuaes  7 

Náo  será  útil  e  salutar  lançar  de  vez  em  quando  as  vistas 
sobre  a  vida  coUectiva,  sobre  a  existência  geral  7 

Nosso  próximo  vale  bem  o  sacriflcio,  se  sacrifício  ahi 
existe. 

Castro  Alves  n&o  perdeu  seu  tempo  ;  bem  ao  contrario  este 
paiz  deverá  sempre  lêr  todos  os  bellos  versos  em  que  elle 
foi  o  porta-voz,  a  expressão  grandíloqua  da  consciência  da 
pátria.  Antes  da  lei  de  28  de  setembro  de  1871,  que  declarou 
livres  todos  os  nascidos  no  Brasil,  a  poesia  já  se  havia  hon- 
rado com  as  Vozes  cT Africa  e  O  Navio  Negreiro, 

Eu  bem  sei  que  podia  agora  esquadrinhar  os  escriptos  do 
poeta  e  indicar  n'elles  descuidos  e  extravagâncias.  Uma  cri- 
tica elementar  iria  fazel-o  com  vantagem ;  não  o  farei  eu.  E' 
preferível  ouvir  agora  alguma  cousa  do  poeta,  e  seja  — 
Adeus,  meu  canto  I  —  E*  assim  : 

((  Adeus,  meu  canto!  é  a  hora  da  partida... 
O  oceano  do  povo  s^encapela. 
Filho  da  tempestade,  irmão  do  raio, 
Lança  teu  grito  ao  vento  da  procela. 
O  inverno  envolto  em  mantos  de  geada 
Cresta  a  rosa  de  amor  que  além  se  erguera... 
Ave  de  £Lrribaç&o,  vôa,  annuncia 
Da  liberdade  a  santa  primavera. 

B*  preciso  partir,  aos  horizontes 
Mandar  o  grito  errante  da  vedeta. 
Ergue-te,  ó  luz!  estrella  para  o  povo, 
Para  os  tyranos,  —  lúgubre  cometa. 
Adeus,  meu  canto!  na  revolta  praça 
Ruge  o  clcuim  tremendo  da  batalha. 


I 


HISTORIA  DA  LITTSRATUBA  BRABILUEA  506 

Agoia  —  talvez  as  azas  te  espedacem. 
Bandeira  —  talvez  rasgue-te  a  metralha. 

Mas  não  importa  a  ti,  que  no  banquete 
O  manto  sybarita  náo  trajaste,  — 
Que  se  os  louros  não  tens  na  altiva  fronte 
Também  da  orgia  a  cYôa  renegaste. 
A  ti  que  herdeiro  d*uma  raça  livre 
Tomaste  o  velho  amez  e  a  cota  d*armaa; 
E  no  ginete  que  escarvava  os  valles 
A  cometa  esperaste  dos  alarmas. 

E*  tempo  agora  pYa  quem  sonha  a  gloria 
E  a  luta...  e  a  lutai  essa  fatal  fornalha» 
Onde  referve  o  bronze  das  estatuas, 
Que  a  mão  dos  séculos  no  futuro  talha... 
Pcuie,  pois,  solta  livre  aos  quatro  ventos 
A  alma  cheia  das  crenças  do  poeta!... 
Ergue-te,  ó  luz!  estrella  para  o  povo. 
Para  os  tyranos  —  lúgubre  cometa. 

Ha  muita  virgem  que  ao  patíbulo  impuro 
A  mão  do  algoz  arrasta  pela  trança; 
Muita  cabeça  d'ancião  cui-vada, 
Muito  riso  afagado  de  criança. 
Dirás  â  virgem  :  —  Minha  irmã,  espera; 
Eu  vejo  ao  longe  a  pomba  do  futuro, 
Meu  pai,  dirás  ao  velho,  dá-me  o  fardo 
Que  atropela-te  o  passo  mal  seguro... 

A  cada  berço  levarás  a  crença, 
A  cada  campa  leviu^ás  o  pranto!... 
Nos  berços  nús,  nas  sepulturas  razas, 
—  Irmão  do  pobre  —  viverás  meu  canto. 
E  pendido  atravez  de  dous  eJbysmos, 
Com  os  pés  na  terra  e  a  fronte  no  infinito, 
Traze  a  benção  de  Deus  ao  captiveiro, 
Levanta  a  Deus  do  captiveiro  o  grito! 

Eu  sei  que  ao  longe,  na  praça, 
Ferve  a  onda  popular, 
Que  ás  vezes  é  pelourinho, 
Mas  poucas  vezes  —  altar... 


596  HISTORIA  DÀ  LITTEBATTTRA  BRASILEIRA 

Que  zomba  do  bardo  attento, 
Curvo  aos  murmúrios  do  vento 
Nas  florestas  do  existir, 
Que  baba  fe)  e  ironia 
Sobre  o  ovo  da  utopia. 
Que  guarda  a  ave  —  o  porvir. 

Eu  sei  que  o  ódio,  o  egoismo, 
A  hypocrisia,  a  ambição. 
Almas  escuras  de  grutas, 
Onde  nao  desce  um  clarão ; 
Peitos  surdos  ás  conquistas, 
Olhos  fechados  ás  vistas, 
Vistas  fechadas  á  luz; 
Do  poeta  solitário 
Lançam  pedras  ao  calvário, 
Lançam  blasphemias  á  cruz. 

Eu  sei  que  a  raça  impudente 

Do  scriba,  do  phariseu, 

Que  ao  Christo  eleva  o  patibulo, 

A*  fogueira  o  Galileu; 

E*  o  fumo  da  chamma  vasta. 

Sombra  —  que  o  século  —  arrasta, 

Negra,  torcida,  a  seus  pés  : 

Tronco  enraigado  no  inferno, 

Que  se  arquêa,  escuro,  eterno, 

Das  idades  atravez. 

E  elles  dizem  reclinados 

Nos  festins  de  Balthasar  : 

—  Que  importuno  é  esse  que  canta 

Lá  no  Euphrate  a  soluçar? 

Prende  aos  ramos  do  salgueiro 

A  Ijrra  do  captiveiro, 

Propheta  de  maldição, 

Ou,  cingindo  a  augusta  fronte 

Com  as  rosas  d^Anacreonte, 

Canta  o  amor  e  a  creação... 

Sim!  cantai-  o  campo,  as  selvas, 
As  tardes,  a  sombra,  a  luz! 


HIflTOBIA  DA  LITTKRATUEA  PRABILBIBA  597 

Soltar  su*alma  com  o  bando 
Das  borboletas  azues, 
Ouvir  o  vento  que  geme. 
Sentir  a  folha  que  treme, 
Como  um  seio  que  pulou, 
Das  mattas  entre  os  desvios 
PasscLT  nos  eoitros  bravios 
Por  onde  o  jaguar  passou; 

E'  bello...  e  já  quantas  vezes 
Nâo  saudei  a  terra  —  o  céo, 
E  o  universo  —  biblia  immensa 
Que  Deus  no  espaço  escreveu?... 
Que  vezes  nas  cordilheiras, 
Pelas  selvas  brasileiras 
Eu  lancei  minha  canção, 
Escutando  as  ventanias, 
Vagas,  tristes  prophecias. 
Gemerem  na  escuridão?!... 

Já  tambern  amei  as  flores, 
As  mulheres,  o  arrebol, 
E  o  sino  que  chora  triste 
Ao  morno  calor  do  sol; 
Ouvi  saudoso  a  viola, 
Que  o  sertanejo  consola 
Junto  á  fogueira  do  leir, 
Amei  a  linda  serrsuia 
Cantando  a  molle  iyrana 
Pelas  noites  de  luar! 

• 

Da  infância  o  tempo  fugindo, 
Tudo  mudou-se  em  redor, 
Um  dia  passa  em  minh'alma 
Das  cidades  o  rumor... 
Sôa  a  ideia,  sôa  o  medho, 
O  cyclope  do  trabalho, 
Prepara  o  raio  do  sol  — 
Tem  o  povo  —  mar  violento  — 
Por  armas  o  pensamento, 
A  verdade  —  por  pharol! 


596  laSTOBIA  DÁ  LITTBBATimA  BRABILSISA 

E  O  homen,  vaga  que  nasce 
No  oceano  popular, 
Tem  que  impellir  os  espirites, 
Tem  uma  plaga  a  buscar. 
Oh!  maldição  ao  poeta, 
Que  foge,  falso  propheta, 
Nos  dias  de  provação! 
Que  mistura  o  tosco  iambo 
Com  o  thyiio  dythirabo 
Nos  poemas  d'afflicçâoI... 

((  Trabalhar!  )>  brada  na  sombra 
A  voz  immensa  —  de  Deus! 
«  Braços,  voltai-vos  p'ra  terra. 
Homens,  voltai-vos  p'rd  os  céos!... 
Poetas,  sábios,  selvagens, 
Sois  as  santas  equipagens 
Da  náo  —  civilisaçâo. 
Marinheiro  —  sobe  aos  mastros, 
Piloto,  estuda  nos  astros, 
Gageiro,  olha  a  cerração!  » 

Uivava  a  negra  tormenta 
Na  enxárcia,  nos  mastaréos. 
Uivavam  nos  tombadilhos 
Gritos  insontes  de  réos. 
Vi  a  equipagem  medrosa 
Da  morte,  a  vaga  horrorosa 
Seu  próprio  irmão  sacudir... 
E  bradei  :  «  Meu  canto,  vôa. 
Terra  ao  longe,  terra  á  proa!... 
Vejo  a  terra  do  porvir!  ...» 

Companheiro  da  noite  mal  dormida, 
Que  a  mocidade  vela  sonhadora. 
Primeira  folha  d*arvore  da  vida, 
Estrella  que  annuncia  a  luz  á  aurora! 
Da  harpa  do  meu  amor  nota  perdida. 
Orvalho  que  do  seio  se  evapora, 
E*  tempo  de  partii*...  vôa,  meu  canto. 
Que  tantas  vezes  orvalhei  de  pranto!... 


HIBTOBIA  BA  LITTBKATUBA  BRABILBISA  599 

Tu  foste  a  estrella  Vésper  que  alumia 
Aos  pastores  d* Arcádia  nos  fraguedos! 
Ave  —  que  no  meu  peito  se  aquecia. 
Ao  murmúrio  talvez  dos  meus  segredos... 
Mas  hoje...  que  sinistra  ventania 
Muge  nas  selvas,  ruge  nos  rochedos. 
Condor  sem  rumo,  errante,  que  esvoaça, 
Deixo-te  entregue  ao  vento  da  desgraça! 

Quero-te  assim;  na  terra  o  teu  fadário 
E*  ser  o  irm&o  do  escravo  que  trabalha, 
E*  chorar  junto  á  cruz  do  seu  calvário» 
E*  bramir  do  senhor  na  bacchanalha... 
Se  —  vivo  —  seguirás  o  itinerário, 
Mas,  se  —  morto  —  rolares  na  mortalha, 
Terás,  selvagem  filho  da  floresta. 
Nos  raios  e  trovões  hymnos  de  festa. 

Quando  a  piedosa,  errante  caravana. 
Se  perde  nos  desertos,  peregrina. 
Buscando  na  cidade  musulmana 
Do  sepulchro  de  Deus  a  vasta  mina, 
Olha  o  sol  que  se  esconde  na  savana. 
Pensa  em  Jerusalém,  sempre  divina, 
Morre  feliz,  deixando  sobre  a  estrada 
O  marco  miliario  d*uma  ossada 

E  mesmo  quando  a  turba  horripil£uite, 
Hypocríta,  sem  fé,  bacchante  impura. 
Possa  curvar-te  a  fronte  de  gigante. 
Possa  quebrar-te  as  malhas  da  armadura; 
Tu  deixarás  na  liça  o  férreo  guante, 
Que  ha  de  colher  a  geraçáo  futura... 
Mas,  não...  crê  no  porvir,  na  mocidade. 
Sol  brilhante  do  céo  da  liberdade! 

Canta,  filho  do  sol  da  zona  ardente, 
Estes  serros  soberbos,  altflinados! 
Emboca  a  tuba  lúgubre,  estridente. 
Em  que  aprendeste  a  rebramir  teus  bradosl 
Levanta  —  das  orgias  do  presente, 
Levanta  —  dos  sepulchros  do  passado. 


600  HI8T0BIA  DA  LITTXRATXrSA  BBA8ILBIKA 

Voz  de  ferro!  levanta  as  almas  grandes 
Do  sul  ao  norte...  do  oceano  aos  Andes !...  » 

Ainda  mais  eloquentes  do  que  esta  são  as  Vozes  d' Africa, 
a  Tragedia  no  Lar  e  sobre  todas  o  Navio  Negreiro.  Taes  poe- 
sias foram  avulsamente  publicadas  em  folhas  soltas  em  1870 
e  71.  Espalharam-se  por  todo  o  Brasil,  fizeram  grande  sen- 
sação, foram  decoradas  e  eram  recitadas  nos  salões. 

Não  sei  qual  o  critico  illustr"è  que  aconselhou  o  maior 
cuidado  em  distinguir  na  poesia  franceza,  especialmente  na 
de  Victor  Hugo,  a  eloquência  da  verdadeira  e  estreme  poe- 
sia. Esta  observação  é  exacta  e  não  pode  ser  illudida. 

Ha  muitos  trechos  na  poesia  romântica,  repletos  de  ima- 
gens, cheios  de  sonoridades,  de  requebros,  de  adjectivações, 
de  apostrophes,  que  são  verdadeiros  typos,  verdadeiros  espé- 
cimens de  eloquência.  Entretanto,  e  por  via  de  regra,  nem 
sempre  são  os  mais  poéticos. 

Este  caracter  pertence  áquelles  em  que  se  nota  mais  sim- 
plicidade, mais  sentimento,  mais  vida  intima,  mais  sinceri- 
dade. 

Os  povos  meridionaes,  por  indole  exaggerados  e  propensos 
á  rhetorica,  quasi  nunca  observsim  a  alludida  distincção.  Gos- 
tam das  fortes  imagens,  dos  rendilhados  das  phrases,  do 
farfalhar  das  palavras,  de  toda  a  exterioridade  bulhenta 
emflm. 

Por  isso  entre  nós  o  que  mais  agradou  de  Castro  Alves, 
foram  os  palavrões,  as  bombas^  toda  a  falsa  eloquência  dos 
versos. 

Felizmente  salva-se  elle  na  historia;  porque  teve  o  bom  in- 
stinclo  de  escrever  bellos  pedaços  de  simples  poesia. 

Os  epígonos  se  apoderaram  do  falso  estylo  e  o  levaram 
ao  requinte  do  exaggero  :  foi  a  quarta  potencia  do  gongo- 
rismo,  verdadeira  teratologia  litteraria. 

Na  prosa  a  cousa  alastrou  ainda  mais. 

Foi  esse  por  muito  tempo  o  chie  na  arte  de  escrever  brasi- 
leira; e  era  a  banalidade  chromatisada,  a  tolice  rythmada  e 
faiscante. 


HI8T0BIA  DA  LITTIBATUBA  BBA8ILBIRA  601 

N*esse  tempo  aquillo  é  que  era  ter  estylo;  fora  d'alli  toda  a 
gente  escrevia  mal,  não  tinha  gosto  nem  grammatica. 

Aquillo  sim;  era  a  ultima  palavra. 

Hoje  a  preoccupação,  o  tic  são  outros,  e  não  vêm  ao  caso 
expôl-os  agora.  O  que  é  preciso  dizer  é  que  o  auctor  da  Ca- 
choeira de  Paulo  Affonso,  no  pouco  que  fez  em  prosa  não  foi 
tão  exaggerado  como  os  seus  discipulos.  Na  introducção  da 
Luz  o  foi  bastante  por  imitar  Hugo  e  Quinet;  na  Carta  ás 
Senhoras  Bahianas  foi  menos;  no  drama  Gonzaga,  feliz- 
mente, ainda  menos. 

Duas  palavras  sobre  este.  ensaio  dramático  para  Analisar. 

E'  uma  bella  tentativa;  tem  vida  e  encerra  movimento;  ha 
alli  typos  bem  desenhados.  Gonzaga  e  Silvério  são  do  nu- 
mero. 

O  escravo  Luiz  parece-me  falso,  é  muito  eloquente  e  in- 
slruido  para  a  sua  condição. 

A  melhor  qualidade  do  drama  é  o  sopro  de  liberalismo, 
o  enthusiasmo  patriótico  por  todo  elle  espalhado. 

Se  o  grande  ideial  da  arte  é  tirar  do  facto  particular  e  iso- 
lado a  nota  humana  e  universal,  que  possa  ser  entendida  por 
todos,  Castro  Alves,  a  despeito  de  alguns  descuidos,  foi  um 
apreciável,  um  notabilissimo  poeta. 

E'  talvez  maior  que  Fagundes  Varella,  maior  que  o  bom 
Casimiro  de  Abreu,  maior  que  Bernardo  Guimarães,  que 
muitos  de  nossos  românticos. 

Transporta-nos  a  horisontes  mais  amplos;  faz-nos  assistir 
a  lutas  mais  fortes,  a  paixões  mais  intensas;  mostra-nos  almas 
mais  activas  e  mais  ousadas.  Seu  nome  não  poderá  ser  senão 
sempre  admirado. 

ViCTORiANO  J.  Marinho  Falhares.  —  Foi  amigo  intimo  de 
Castro  Alves  e  seu  companheiro  nas  luctas  theatraes.  Não 
chegou  a  acabar  o  curso  de  preparatórios. 

Pobre  e  desprotegido,  procurou  ganhar  a  vida  e  deixou-se 
por  isso  de  estudos.  Teve  sempre  um  talento  muito  natural 
e  espontâneo,  não  perdento»  jamais  o  gosto  das  lettras;  cul- 
tivou sempre  a  poesia  com  distincção  e  amor. 

Publicou  trez  volumes  de  versos  —  Mocidade  e  Tristeza  em 


602  HIBTpSDL  BA  LirTERATUKA  BRASILBÍBA 

1866,  Centelhas  em  1870,  Peregrinas  n'este  ultimo  anno.  O 
estylo  é  o  mesmo  do  condoreirismo. 

Em  Mocidade  e  Tristeza  predomina  o  lyrismo  pessoal,  in- 
timo, subjectivo. 

Nas  Centelhas  encontram-se  os  cantos  patrióticos  do  poeta 
inspirados  pela  guerra  do  Paraguay. 

Nas  Peri^rinas  avultam  poesias  de  intenção  doutrinaria  c 
philosophlca. 

No  lyrismo  pessoal  esta  pequena  canção  deflne  o  estylo  do 
poeta  : 

ff  Adeus!  Já  nada  tenho  que  dizer-te; 
Minhas  horas  ânaes  trémulas  correm. 
Dá-me  o  ultimo  riso  pYa  que  eu  possa 
Morrer  cantando,  como  as  aves  morrem. 

Ai  d*aquell&  que  fez  do  euínor  seu  mundo! 
Nem  deuses,  nem  demónios  o  soccorrem. 
Dá-me  o  ultimo  olhar  para  que  eu  possa 
Morrer  sornndo,  como  os  anjos  morrem. 

Foste  a  serpente,  e  eu  inda  te  adoro! 
Que  vertigens  meu  cérebro  percorrem! 
Mente  a  ultima  vez  para  que  eu  possa 
Morrer  sonhando,  como  os  doidos  morrem.  »  (1) 

Como  esta,  ha  outras  muitas  em  suas  obras.  Acho  inútil 
abrir  discussâx)  n^este  terreno,  mostrando  a  natureza  intima 
do  lyrismo  pessoal  do  auctor. 

Julgo-o  de  mais  valor  nas  poesias  patrióticas.  Estes  versos 
Ao  Brasil  definem-lhe  bem  a  maneira  n'este  género  de  com- 
posições : 

ff  E*  hora  de  acordar.  Rebrame  na  floresta 
O  furacão  do  sul,  terrível,  infernal; 
Embocca  o  teu  boré,  a  rubra  massa  apresta; 
Sô  outra  vez  caboclo,  oh!  filho  de  Cabral! 

(1)  Peregrinoêt  pag.  33. 


'    HIBTOSIA  DA  LITTERATUEA,  BBA8ILBIRA  603 

E'  duro  despertar  do  somno  da  ventura 
Sentindo  arder  no  rosto  a  nódoa  do  baldão. 
E  eu  vejo  em  tua  Í6u;e  alguma  cousa  escurai 
Oh!  alho  de  Cabral,  sô  outra  vez  le&o! 

A  trahiç&o  rapace  esbulha  o  teu  direito; 
Retcdham  tuas  leis  á  ponta  de  punhal; 
Empenna  a  tua  setta,  amarra  a  aljava  ao  peito  : 
Sê  outra  vez  Tupan,  oh!  alho  de  Cabral. 

Ha  muito  que  teu  sangue  ondeia  na  campina; 
Não  mostres  tua  chaga  ao  dia  de  amanhcui, 
Empunha  pressuroso  o  raio,  que  fulmina; 
Oh!  filho  de  Cabral,  sô  outra  vez  Tupan! 

E'  nada  o  desarmor  de  coraçOes  corruptos, 
Que  impellem-te,  sem  dó,  aos  turbilhões  do  mal, 
Sem  seres  Roma,  tens  Tiberios,  Gracchos,  Bnilfjs, 
Serás  sempre  o  Brasil,  oh!  filho  de  Cabral! 

Nas  garras  do  tufão,  que  zune  pelos  pampíis. 
Desfraldas  orgulhoso  o  pavilhão  gentil. 
Esculpirás  teu  busto  em  cima  de  mil  campas; 
E,  filho  de  Cabral,  serás  sempre  —  o  Brasil! 

Creára  Deus  em  ti  um  outro  mundo  á  parte, 
Qual  o  segundo  Adão,  que  te  perdeu  também? 
O  monstro  da  ambição  consegue  desvairar-te, 
E  n*ara  da  vaidade  immolas  o  teu  bem. 

Fugiste,  ingénuo,  á  selva,  e  á  beira  mar  sentado 
Sorriste  ao  viajor  que  ao  longe  appareceu. 
Em  troca  de  ouropéis  de  um  munso  refalsado, 
Leão,  deixaste  a  juba  ás  plantas  do  europeu. 

O  que  ganhaste?  Um  rei!  O  que  perdeste?  Tudo! 
E  a  America  rugiu  fitando  o  teu  senhor. 
Bem  tarde  conheceste  o  quanto  foras  rudo; 
Já  tinhas  sobre  o  peito  o  pé  do  domador. 

Agora...  é  caminhar  com  os  olhos  no  horisonte, 
Um  dia  o  Pharaó  vacilla  ante  José! 


1 


(K)4  HISTOBIA  DA  LITTERATUBA  BRASILEIRA 

Não  ha  martyr  algum  sem  resplendor  na  fronte, 
N&o  ha  diluvio  algum  sem  barca  de  Noé.  n  (1) 

O  poeta  foi  sempre  um  espirito  liberal,  progessivo,  ávido  de 
luz  e  de  gloria. 

Collocado  entre  dois  rivaes  potentissimos  Tobias  e  Castro 
Alves,  teve  força  bastante  para  fazer  um  nome  cercado  de 
nomeada  e  sympathia. 

Nem  se  pense  que,  por  menos  culto  do  que  os  dois,  tivesse 
sido  um  sectário  sem  autonomia.  Nâo;  teve  notas  suas,  ori- 
ginaes;  na  poesia  marcial  especialmente  possuia  um  forte 
vigor  de  colorido  na  descripçâo. 

Nada  poderia  fazer  melhor  ao  leitor  do  que  lhe  dar  aqui  a 
vêr  o  quadro  em  que  pinta  a  batalha  de  Riachuclo  : 

<(  Foi  prodígio!  Riachuelo  assombra. 
E*  custoso  pensar  n'essa  batalha  : 

Deus  alli  trabalhou. 
AUi  da  morte  diffundiu-se  a  sombra, 
Em  manto,  que  era  purpura  e  mortalha, 

E  que  ao  mundo  espantou. 

O  direito  de  um  lado,  d'outro  a  raiva, 
Rancor  de  abutre,  o  ódio  sem  motivo; 

Um  capricho  do  mal. 
Fecha-se  o  tempo,  e  a  morte,  qual  saraiva^ 
Fulmina  o  homen  livre  e  o  captivo 

Em  combate  infernal. 

A  peleja  rompeu  como  um  incêndio; 
Um  diluvio  de  fogo  innunda  o  rio. 

Que  referve  em  cachão, 
E  rola  e  sobe  e  engole  o  vilipendio 
De  mistura  co'a  legião  sem  brio, 

Que  defende  o  falcão. 

Foi  hora  de  explosão  e  de  loucura; 
Hora  sem  luz,  sem  vida,  hora  de  morte; 

Uma  hora,  que  é  um  fim. 
Hora  que  aterra  o  anjo  da  bravura, 

(1)  Centelhoêt  pag.  11. 


HISTORIA  DA  LITTBBATUSA  BRABILSISA  C05 

Hora  em  que  tudo  oscilla,  até  a  sorte, 
Hora  sem  outra  assim! 

Transformou-se  em  catastrophe  a  coragem; 
Surgiu  de  unhas  de  tigre  o  heroismo; 

Foi  tudo  combustão! 
Rasgou-se  o  rio  em  hórrida  voragem, 
E  sedentos  travaram-se  no  aJbysmo 

A  hyena  e  o  leão. 

tudo  range,  vacilla,  chia,  estala; 

O  machado,  o  vapor,  o  arpéo,  a  espada. 

Homérico  fragor! 
Os  navios  varados  pela  bala; 
A  bandeira  voando  esfarrapada, 

E  os  Brasidas  sem  côr !... 

Luctam,  morrem,  ou  matam  nos  seus  postos, 
Os  sabres  nús  faíscam  mil  centelhas  : 

Duello  de  volcões! 
Corusca  o  desespero  pelos  rostos 
Onde  as  edmas  reflectem-se  vermelhas 

Já  do  céu  aos  clarões! 

Barroso  empolga  o  génio  do  perigo; 
Quasi  estatua  de  chofre  se  electrisa, 

E  embocca  o  porta-voz. 
E  porte  e  vôa  e  cáe  sobre  o  inimigo 
Em  quem,  já  fundo,  o  medo  paraJysa 

O  delirio  feroz. 

A  victoria  scintilla  de  repente 
Como  luz  de  relâmpago;  a  esquadra, 

Como  um  órgão,  soou 
Nas  mil  notas  do  hymno  refulgente 
Que  a  epopéa  brasileira  enquadra, 

E  que  o  mundo  saudou!...  »  (1) 

São  vigorosos  e  potentes  versos,  dignos  do  glorioso  feito 
que  descrevem.  A  este  poeta  não  tem  sido  feita  a  justiça  que 
lhe  é  devida.  Seu  nome  deve  ser  lembrado  como  um  exemplo 

(1)  Centelhas t  pag.  36. 


<)04  HI8T0BIA  DA  LITTEBATURA  BRASILEIRA 

Não  ha  martyr  algum  sem  resplendor  na  fronte, 
Não  ha  diluvio  algum  sem  barca  de  Noé.  )>  (1) 

O  poeta  foi  sempre  um  espirito  liberal,  progessivo,  ávido  de 
luz  e  de  gloria. 

Collocado  entre  dois  rivaes  potentíssimos  Tobias  e  Castro 
Alves,  teve  força  bastante  para  fazer  um  nome  cercado  de 
nomeada  e  sympathia. 

Nem  se  pense  que,  por  menos  culto  do  que  os  dois,  tivesse 
sido  um  sectário  sem  autonomia.  Náo;  teve  notas  suas,  ori- 
ginaes;  na  poesia  marcial  especialmente  possuia  um  forte 
vigor  de  colorido  na  descripçâo. 

Nada  poderia  fazer  melhor  ao  leitor  do  que  lhe  dar  aqui  a 
vèr  o  quadro  em  que  pinta  a  batalha  de  Riachuclo  : 

«  Foi  prodigiol  Riachuelo  assombra. 
£'  custoso  pensar  n'essa  batalha  : 

Deus  alli  trabalhou. 
Alli  da  morte  diffundiu-se  a  sombra, 
Em  manto,  que  era  purpura  e  mortalha, 

E  que  ao  mundo  espantou. 

O  direito  de  um  lado,  doutro  a  raiva. 
Rancor  de  abutre,  o  ódio  sem  motivo; 

Um  capricho  do  mal. 
Fecha-se  o  tempo,  e  a  morte,  qual  saraiva^ 
Fulmina  o  homen  livre  e  o  captivo 

Em  combate  infernal. 

A  peleja  rompeu  como  um  incêndio; 
Um  diluvio  de  fogo  innunda  o  rio. 

Que  referve  em  cachão, 
E  rola  e  sobe  e  engole  o  vilipendio 
De  mistura  co'a  legião  sem  brio. 

Que  defende  o  falcão. 

Foi  hora  de  explosão  e  de  loucura; 
Hora  sem  luz,  sem  vida,  hora  de  morte; 

Uma  hora,  que  é  um  fim. 
Hora  que  aterra  o  anjo  da  bravura, 

(1)  Ccnteihoê,  pag.  11. 


HISTORIA  DA  LITTBRATUKA  BRA8ILSIEA  C05 

Hora  em  que  tudo  oscilla,  até  a  sorte, 
Hora  sem  outra  assim! 

Transformou-se  em  catastrophe  a  coragem; 
Surgiu  de  unhas  de  tigre  o  heroismo; 

Foi  tudo  combustão! 
Rasgou-se  o  rio  em  hórrida  voragem, 
E  sedentos  travaram-se  no  aJbysmo 

A  hyena  e  o  leão. 

Tudo  range,  vacilla,  chia,  estala; 

O  machado,  o  vapor,  o  arpéo,  a  espada, 

Homérico  fragor! 
Os  navios  varados  pela  bala; 
A  bandeira  voando  esfarrapada, 

E  os  Brasidas  sem  côr !... 

Luctam,  morrem,  ou  matam  nos  seus  postos. 
Os  sabres  nús  faíscam  mil  centelhas  : 

Duello  de  volcões! 
Corusca  o  desespero  pelos  rostos 
Onde  as  edmas  reflectem-se  vermelhas 

Já  do  céu  aos  clarões! 

Barroso  empolga  o  génio  do  perigo; 
Quasi  estatua  de  chofre  se  electrisa, 

E  embocca  o  porta-voz. 
E  parte  e  vôa  e  cáe  sobre  o  inimigo 
Em  quem,  já  fundo,  o  medo  paralysa 

O  delirio  feroz. 

A  victoria  scintilla  de  repente 
Como  luz  de  relâmpago;  a  esquadra, 

Como  um  orgáo,  soou 
Nas  mil  notas  do  hymno  refulgente 
Que  a  epopéa  brasileira  enquadra, 

E  que  o  mundo  saudou!...  »  (1) 

São  vigorosos  e  potentes  versos,  dignos  do  glorioso  feito 
que  descrevem.  A  este  poeta  nâo  tem  sido  feita  a  justiça  que 
lhe  é  devida.  Seu  nome  deve  ser  lembrado  como  um  exemplo 

(1)  Centelhas j  pag.  36. 


608  HISTOBIA  DA  LITTSRATU&A.  BRA8ILBIRA 

Gonzaga.  Não  se  diga  que  este  é  portuguez;  então  Anchieta 
também  é. 

O  nome  do  missionário  leva-me  a  falar  da  grande  novidade 
do  livro,  as  poesias  do  padre,  traduzidas  do  tupy  e  do  hes- 
panhol.  Ahí  mesmo  noto  uma  lacuna. 

Mello  Moraes  deveria  incluir  os  textos  originaes  ao  lado 
da  traducção  do  padre  Cunha.  Ha  todos  os  indícios  de  que 
este  não  interpretou  bem  o  pensamento  de  Anchieta.  Pelo 
menos  lembro-me  de  ter  isto  ouvido  da  boca  do  mais  abali- 
sado  conhecedor  do  tupy,  que  possuímos,  o  Dr.  Baptista  Cae- 
tano. 

Em  todo  o  caso,  Mello  Moraes  é  benemérito  das  lettras  em 
ter  contribuido  para  uma  melhor  comprehensáo  do  typo  do 
jesuita  canarim.  Anchieta  não  é  de  certo  o  creador  de  nossa 
litteratura,  como  pensa  o  poeta,  é  o  precursor  delia. 

Uma  litteratura  em  massa  não  tem  nunca  um  creador  ;  tem 
elementos  e  tem  órgãos.  Os  elementos  da  nossa  são  todas  as 
tradições  populares  provindas  das  três  raças  que  consti- 
tuíram nossa  actual  população,  tradições  modificadas  pelo 
meio  e  pela  mestiçagem. 

Os  órgãos  são  os  espíritos  autonómicos  que  têm  contri- 
buido para  a  nossa  diíTerenciação  nacional. 

O  Dr.  Araripe  Júnior  adduziu  algures  uma  consideração 
para  o  estudo  do  caracter  do  padre  José,  e  vem  a  ser  uma 
certa  tendência  jogralesca  de  seu  espirito. 

O  achado  não  será,  talvez,  de  todo  infundado;  mas  n'este 
ponto,  deve-se  desconfiar  de  duas  cousas.  Primeiramente,  é 
sabido  que  no  tempo  de  Anchieta  a  farça,  a  chacota^  a  satyra 
erão  géneros  litterarios  em  moda,  impuham-se  até  aos  espi- 
rites mais  sérios,  ainda  que  não  estivessem  em  harmonia 
directa  com  o  caracter  do  poeta.  Era  pouco  mais  ou  menos  o 
mesmo  que  em  sentido  opposto  se  viu  no  t^mpo  do  roman- 
tismo decadente  quando  a  lumuria  affectada  se  fez  moda. 

Rapazes  nédios,  sanguíneos,  sadios,  folgazões,  desses  que, 
segundo  o  adagio,  não  mandam  seu  quinhão  ao  vigário,  cho- 
ramigavam  p'ra  ahi,  que  era  uma  verdadeira  calamidade. 
Entretanto,  tudo  falso  !  Quem  dirá  que  as  jogralices  do  padre 
não  estejam  n'esse  caso,  não  esprimam  antes  um  resultado 


r^ 


HI8T0BIA  DA  LITTERATTTBA  BBABILEIBA  609 

do  systema  litterario  do  tempo  do  que  um  temperamento  ver- 
dadeiramente terenciano?  Demais,  o  Dr.  Araripe  abusa  muito 
doeste  género  de  explicações.  Quasi  em  tudo  elle  descobre  o 
humour,  a  facécia;  os  termos  jogral^  jogralices  vêm  a  miúdo 
ao  bico  de  sua  penna.  Quando  tratou  dos  nossos  romances 
sertaneios  anonymos,  elle  fundou  sua  theoria  na  iogralidade. 

Agora  com  Anchieta  o  mesmo;  o  mesmíssimo,  explicando 
a  Guerra  dos  Mascates  de  Alencar.  E'  uma  preoccupaçâo  evi- 
dente do  critico. 

E'  bem  certo  que  o  Curso  de  Litteratura  tem  lacunas;  mas, 
em  compensação,  tem  grandes  méritos;  é  o  transumpto  de  uma 
bibliotheca  inteira.  Especialmente  a  litteratura  do  segundo 

reinado  está  bem  representada.  Estão  ali  excerptos  de  cerca 
de  cem  escriptores.  O  prefacio  é  bem  escripto  e  alentado  de 
boas  idéas  em  sua  quasi  generalidade. 

As  melhores  obras  de  Mello  Moraes  Filho  são  as  de  con- 
tribuição ethnographica  e,  acima  de  todas,  as  de  poesia.  Os 
livros  de  ethnographia  são  —  Cancioneiro  dos  Ciganos,  Os 
Ciganos  no  Brasil,  Festas  e  Tradições  popiUares  do  Brasil, 
Quadros  e  Chronicas  (1). 

Todo  e  qualquer  estudo  que  contribua  para  o  esclareci- 
mento das  populações  nacionaes,  todo  .e  qualquer  esforço 
para  fazer  a  luz  sobre  as  origens,  os  costumes,  a  psychologia 
de  nossas  classes  populares,  deve  ser  bem  recebido  e  enco- 
rajado. 

A  despeito  de  alguns  trabalno:»  emprehendidos  por  geogra- 
phos,  geólogos,  ethnologos  e  linguistas  nacionaes,  o  Brasil 
ainda  não  conhece  bem  o  seu  território,  nem  sabe  as  filiações 
das  tribus  indias  e  africanas,  que  lhe  constituíram  grandís- 
sima parte  da  população. 

As  observações  e  pesquizas  directas  são  entre  nós  bem  par- 
cas, ainda  mettendo  em  conta  as  levadas  a  effeito  por  euro- 
peus ou  anglo-americanos,  longa  ou  limitadamente  resi- 
dentes no  paiz. 

Tomada  a  ettpiographia  como  base  para  os  estudos  histó- 
ricos e  sociaes,  quantos  problemas  não  estão  ahi  a  tentar-nosl 

(1)  Deixo  de  falar  no  Cancioneiro  Fluminense  e  nas  Serenatas  e  Saráoê 
recentemente  publicado^*,  porque  não  têm  caracter  de  estudos  ethnographicos. 

HISTORIA  r  39 


610  HIBTOBIA  DA  LITTBRATURA  BRASILEIRA 

O  povo  brasileiro  é  o  resultado  de  muitos  factores  physicá 
e  moralmente. 

Que  devemos  aos  portuguezes,  aos  negros,  aos  indios? 

Seria  necessário  responder  a  estas  questOes,  e  elucidal^s 
a  fundo,  sob  todos  os  aspectos.  Seria  até  preciso  subdividir 
cada  um  d'aquelles  problemas  capitães. 

Entre  os  portuguezes  vêr  a  acçáo  dos  ilhéos,  dos  minhotos 
e  transmontanos,  dos  alemtejanos,  dos  algarvios,  suas  migra- 
ções para  o  Brasil,  as  direcções  de  suas  correntes,  suas  pre- 
ferencias para  estabelecerem-se  n'esta  ou  n'aquella  província, 
nos  tempos  da  colónia  e  ainda  hoje. 

Praticar  o  mesmo  para  com  os  negros ;  verificar  a  acção 
das  diversas  tribus  africanas,  suas  modificações  no  meio 
americano,  suas  linguas,  sua  aptidão  intellectual,  etc. 

Qual  a  contribuição  dos  negros  da  costa  oriental  e  qual  a 
dos  negros  das  costas  do  occidente  ?  Dos  negros  do  grupo 
bantú,  do  grupo  felupo,  do  grupo  mande,  etc?  Dever-se-hia 
responder. 

Idêntico  processo  para  os  indígenas.  Quaes  as  raças  prehis- 
toricas  e  os  seus  representantes  actuaes  ?  E  quaes  os  povos 
invasores  em  suas  diversas  raças  e  a  contribuição  de  cada 
uma  d'ellas  ? 

Peito  isto,  estaríamos  muito  longe  de  ter  esgotado  o  as- 
sumpto. Restaria  ainda  e  sempre  investigar  o  que  devejnos 
aos  hoUandezes,  que  senhorearam  durante  annos  quasi  todo 
o  norte  do  Biasil.  A  estada  dos  francezes  no  Maranhão  nâo 
deixou  alli  vestigios  de  qualquer  ordem,  não  modificou  de 
qualquer  forma  as  populações  d'aquella  provinda  ? 

Quanto  a  francezes,  que  lhes  devemos  pela  acção  intel- 
lectual de  seus  livros,  de  sua  litteratura  que  imitamos,  de 
seus  costumes,  de  suas  modas  que  macaqueamos  ? 
"  A  vizinhança  dos  hespanhóes  nas  províncias  dag  fron- 
teiras não  actua  em  qualquer  gráo  sobre  os  povos  próximos  ? 

Quanto  a  hespanhóes,  a  imitação  de  sua  poesia  pelos  auc- 
tores  nacionaes  no  século  XVII  nada  influiu  ?  E  o  tempo 
que  pertencemos  á  Hespanha  nada  produziu  ? 

As  colónias  allemães  do  Rio  Grande,  de  Santa  Catharina, 


HISTOBIA  DA  LITTEBATUfiA  BRAfilLSIBA  611 

Paraná  e  S.  Paulo  não  exercem  acçáo  algema?  E  o  contin- 
gente italiano  que  tende  a  crescer? 

E'  mister  determinar  tudo  isto,  e  ainda  assim  não  ficarão 
exhauridos  os  nossos  problemas  ethnographico-historicos. 

Faltaria,  por  outro  lado,  determinar  a  indole,  o  caracter,  o 
impulso  das  populações  mestiçadas,  ponto  capital  da  nossa 
vida  de  nação. 

Todas  estas  questões  constituem  um  trabalho  colossal,  que 
só  poderá  ser  íeito  aos  fragmentos  e  no  decurso  de  varias  ge- 
rações. 

E'  o  grande  estudo  da  demographia  apenas  iniciado  no 
Brasil. 

Mello  Moraes  Filho,  poeta  cultor  do  nacionalismo  pátrio, 
tem-se  dedicado  a  alguns  d'estes  assumptos. 

Tomou  para  objecto  de  suas  pesquizas  a  raça  mais  ou  me- 
nos nómada  dos  ciganos,  que  são  mais  abundantes  no  Brasil 
do  que  geralmente  se  pensa. 

Por  pouco  que  tenham  os  ciganos  conlribuido  para  o  con- 
juncto  da  intuição  intellectual  das  classes  mais  baixas  de 
nosso  povo,  ainda  assim  apresenta  um  certo  interesse  o 
estudo  d'essa  raça,  que  constitue  no  velho  mundo  um  dos 
problemas  mais  intrincados  da  ethnographia. 

Especialmente  na  Hespanha  e  nos  paizes  slavos  os  tziganos 
existiram  desde  os  mais  antigos  tempos  em  numero  conside- 
rável. Mais  ou  menos  mesclados,  ou  mais  ou  menos  puros, 
no  exercício  de  certas  industrias,  na  originalidade  de  seu 
viver,  na  singularidade  de  sua  musica,  de  suas  danças,  de 
sua  poesia,  elles  não  deixaram  de  influir  sobre  o  espirito 
popular  dos  slavos  e  hespanhóes,  para  não  falar  de  outras 
nações. 

Têm  sido  o  objecto  de  uma  litteratura  inteira ;  sua  lingua, 
seus  costumes,  crenças,  festas,  danças,  musica  hão  sido  o 
assumpto  de  muitas  publicações  interessantes.  O  ponto  mais 
obscuro  é  o  de  sua  origem  e  filiação  ethnographica,  de  suas 
migrações  primitivas. 

O  Cancioneiro  dos  Ciganos  é  uma  porção  de  quadrinhas 
divididas  em  três  series  —  Lyricas,  elegíacas,  funerárias.  E' 
bem  verdade  que  o  collector  é  amigo  de  alguns  ciganos  exis- 


n 


012  HISTORIA  DA  LITTEBATUBA  B&ASILSnUL 

lentes  n*esta  cidade  e  por  intermédio  d*elles  poude  relaoicmar- 
se  com  os  restos  da  população  d'esta  raça  residentes  aqui  no 
Jlio. 
O  livro  offerece,  pois,  as  garantias  de  uma  pesquiza  directa 

0  pessoal.  As  quadrinhas  reproduzidas  foram  ouvidas  e  cot 
legidas  pela  próprio  auctor.  Aquillo  tudo  é  sincero  e  de  pri- 
meira mfto.  E,  todavia,  tenho  duas  objecções  a  oppôr. 

A  pequena  população  cigana  aqui  da  cidade  nova,  ji  mes- 

1  içada,  sedentária,  desviada  de  seus  hábitos  primitivos,  será 
um  exemplar  ethnologico  digno  de  conflança  7 

As  quadrinhas  que  repete,  feitas  em  lingua  portugueza, 
serão  todas  produzidas  por  ciganos?  Não  serão  muitas 
aprendidas  das  populações  que  os  cercam  ?  Limito-me  a  per- 
guntar. 

O  livro  Os  Ciganos  no  Brasil  constitue  a  parte  critica  da 
obra  do  auctor  por  este  lado.  Acha-se  dividido  em  quatro 
partes  :  —  Actualidade  e  tradições^  Trovas  ciganas,  Novo  can- 
cioneiro, Vocabulário.  A  primeira  e  a  ultima  são  as  mais 
apreciáveis. 

O  alvo  do  auctor  n'estes  estudos  foi  provar  que  no  corpo 
<la  poesia,  contos,  lendas  e  tradições  populares  do  Brasil  não 
(levemos  contar,  como  eu  próprio  havia  feito,  somente  com 
portuguezes,  africanos,  indios  e  mestiços  d*estas  três  raças. 
Devemos  contar  também  com  um  factor  geralmente  esque- 
cei do,  o  cigano. 

Elle  tem  razão ;  creio,  porém,  que  exaggerou  bastante  as 
cousas  em  certos  pontos. 

Pode-se  bem  apreciar  no  capitulo  consagrado  ao  estudo  das 
superstições.  O  auctor  dá  ahi  uma  importância  por  demais 
saliente  ao  contigente  calon. 

Convém  ouvil-o : 

«  Entre  as  raças  existentes  no  Brasil  e  as  colonisadoras  as  rela- 
ções religiosas  são  tão  disparatadas  como  a  aproximação  dos  dous 
typos  zoológicos,  completamente  extremes  —  o  branco  e  o  negro. 

O  caboclo  bravo,  sem  a  menor  idéa  de  Deus,  como  attestam  os 
rhronistas ;  o  negro  idolatra  no  período  mais  atrazado  da  escala 
dos  cultos,  protestam  contra  um  ideal  definido  no  regimen  espiri- 
tual. O.s  deuses  tupy-guaranys,  comprehendendo  mythos  homeo- 


HI8T0XIA  ]>Á  LITmULTUBA  BBABILBXSA  613 

morphos  e  anthropomorphos  nem  mesmo  pertenciam  aos  nossos 
índios,  segundo  investigações  de  recentes  cunericanistas,  mas  eram 
aconomodações;  as  tríbus  africanas,  que  para  aqui  vieram,  não  iam 
mais  longe  nas  suas  adorações,  do  que  â  transmiss&o  que  íazLemi 
das  faculdades  rudimentares  do  seu  cérebro  pouco  denso  aos  mani- 
panços^  elevados  â  categoria  de  divindades  nos  candomblés  convul- 
sionarios. 

Para  os  negros  nunca  foram  as  conjurações  as  fórmulas  do  com- 
mercio  com  os  fetiches. 

Nos  serviços  que  conhecemos,  ás  uncções  narcóticas,  ás  mace- 
rações, ás  excitações  das  dansas,  ao  pango  e  ás  beberaragens  teta- 
nisantes,  attribuimos  as  acções  pretendidamente  magicas. 

O  Índio  e  o  negro,  no  nosso  modo  de  entender,  contribuíram 
apenas  para  a  nossa  mythologia  popular,  o  que  se  verifica  com  a 
crença  da  Caipora^  das  UyáraSy  do  Sacy-serêré  e  dos  Dongás. 

Emquanto  a  supertições  propriamente  ditas,  augúrios,  encanta- 
mentos e  rezas,  a  collaboraçào  portugueza  é  evidente,  apezar  de 
pouco  avultada. 

Um  factor,  porém,  com  o  qual  nunca  contamos  —  o  cigano  — 
parac&-nos  ahi  representar  o  principal  papel,  mais  de  accórdo  com 
a  Índole  e  tradições  da  raça,  com  seu  caracter  mysterioso  e  remoto. 

O  portuguez,  como  espirito  mais  praticc,  mais  preoccupado,  por 
conseguinte  menos  impressionavel,  aceitava  o  milagre  como  uma 
imposição,  sem  indageur,  sem  mutilal-o  para  crear  outros  deuses. 

Na  sua  fatuidade  genealógica,  estava  engrandecer  o  culto  externo, 
humanísando  a  divindade.  Dídii  o  alistamento  dos  santos  no  exer- 
cito com  soldo  e  patente;  a  Virgem  servindo  de  madrinha  ás  cri- 
anças; os  santos  padroeiros  de  cidades,  protectores  de  namoros  e 
casamentos;  a  intervenção  directa  das  entidades  celestes  na  vida 
publica  e  privada. 

Remontando-nos  á  linguagem  dos  oráculos,  aos  exorcismos,  a 
concepções  claramente  supersticiosas,  náo  deve  ser  muito  o  que  de 
Portugal  recebemos,  explicando-se  o  facto  pelo  seu  génio  nacional. 

Navegadores  audazes,  entregues  ás  conquistas  de  terras  para  o 
rei,  os  portuguezes  constituíam  uma  nação  marítima.  E  o  terror  e 
o  medo,  que  geram  o  maravilhoso,  seriam  para  elles  elementos  per- 
turbadores, incompatíveis  com  o  successo  de  suas  temerárias  em- 
prezas. 

Os  homens  do  mar  não  sonham  ou  sonham  pouco;  a  tempestade 
os  desafia,  a  fadiga  os  prostra,  o  oceano  canta-lhes  ao  ouvido  uma 
cançfio  monótona  que  os  adormece. 

Sem  a  floresta,  onde  em  cada  arvore  se  enrosca  um  fantasma,  em 


614  HISTOBIA  DA  LITTEBATTTBA  BBASILBIRA 

cada  montanha  se  asyla  um  monstro;  sem  os  sonhos  que  dâo  corpo 
e  movimento  éts  creaçOes  bizarras,  as  superstições  são  pouco  pro- 
váveis ou  quasi  inpossiveis. 

O  que  adiantamos  n&o  é  negar  em  absoluto  o  quinh&o  que  da 
metrópole  nos  coube  de  crendices  populares;  mas  é,  fazendo  o  inven- 
tario da  herança  psychica  das  raças  colonisadoras,  marcar  ao  ci- 
gano o  logar  que  lhe  é  indisputável  na  fonnaçâo  desse  género  de 
poesia,  que  tem  doutrinado  as  nossas  classes  baixas. 

Antes  de  tudo,  devemos  lembrar-nos  que  não  ha  uma  abus&o,  um 
encatamento,  uma  oraçlo,  que  não  seja  um  echo  partido  das  nos- 
sas mattas  virgens...  E  as  partidas  ciganas  errantes,  pelos  sertões, 
ahi  vivem  ha  séculos;  e  o  nacionalismo  brasileiro,  refractário  ás 
grandes  cidades,  delias  repercute  como  uma  correnteza  á  distancia. 

Estudando  a  psychologia  dos  grupos  coloniaes,  embora  se  re- 
conhença  a  actual  mestiçagem  do  pensamento  supersticioso,  não  é 
de  boa  critica  attribuir  somente  ao  portuguez  e  ao  negro  o  que, 
pelos  hábitos  e  tendências  naturaes,  mais  pertence  ao  cigano,  natu- 
reza crédula,  fantasiosa,  visionaria. 

O  fetichismo  das  nações  da  Africa  Occidental  é  o  lado  bruto  do 
naturalismo;  e  os  contos  das  fadas,  a  reza  de  Santa  Helena,  legendas 
cavalheirescas  e  ascéticas  da  idade  médicu 

Ao  portuguez  devemos  o  Lobis-homen,  a  Mulu-sem-cabeça,  o  Pesa- 
deUo  e  algumas  rezas,  nâo  persistindo  o  mais.  Assim,  o  systema 
de  enguiços,  a  lenda  de  D.  Branca,  prognósticos  por  meio  de  espe- 
lhos, dados,  amoras... 

Póde-se  observar  o  que  é  commum  nas  crenças  dos  calons,  remi- 
niscências do  fetichismo  dos  africanos,  o  que  comprova  as  influen- 
cias pre-historicas  da  mythologia  destes  na  doutrina  sacerdotal 
deuiuelles. 

Em  todo  o  caso,  o  que  cumpre  estabelecer  é  que  na  creação  in- 
forme de  nossa  theogonia  nacional  destacam-se  quatro  individuali- 
dades :  —  o  caboclo,  o  portuguez  e  o  negro,  dominando  no  degráo 
mais  elevado  a  cigana  que  lô  a  sina,  que  possue  um  ritual  completo 
de  oráculos,  de  pragas  e  de  exorcismos  »  (1). 

Depois  d'estas  theses,  passa  Mello  Moraes  a  citar  uma  boa 
porçÉlo  de  superstições  que  suppõe  produzidas  pelos  ciganos. 

Não  sei,  nem  é  possivel  saber,  se  elle  tem  razão  n'este 
ponto;  porquanto  eu  faço  esta  observação  :  as  referidas 
superstições  nos  vieram  de  Portugal,  d'onde  também  vieram 

1^  Os  Ciganos  no  Brasil,  pag.  hít  e  seguintes. 


r 


HISTORIA  Da  LITTSBATURA  BRàSILJURA  615 

OS  ciganos,  de  forma  que  a  questão  reduz-se  a  estes  termos  : 
as  superstições,  pragas,  orações  e  parlendas,  vindas  da  me- 
trópole, foram  alli  uma  obra  dos  ciganos  7 

Tal  pergunta  não  poderá  ter  jamais  uma  resposta  scien* 
tiflca;  porque  presuppõe  uma  questão  ainda  mais  geral,  que 
é  esta  :  a  que  povo  ou  a  que  raça  se  deve  attribuir  a  origem  das 
superstições,  ainda  hoje  existentes  no  meio  das  populações 
da  Europa  ?  E'  de  boa  critica  attribuil-as  a  uma  raça  primi- 
tiva especial  ?  Não  serão  antes  uma  collaboração  de  muitos  e 
variados  factores  ?  Mello  Moraes  levantou,  pois,  no  Brasil 
uma  questão  insolúvel. 

Tudo  que  em  nosso  paiz  se  refere  a  negros  só  poderá  ser 
proficuamente  estudado  n'Africa;  tudo  que  se  reporia  a  por- 
tuguezes  só  pode  ser  bem  pesquizado  em  Portugal. 

Ora,  os  ciganos,  que  se  transportaram  para  o  Brasil,  eram 
portuguezes,  o  que  importa  dizer  que  já  vinham  desfigu- 
rados, complicados  ethnographicamente,  cheios  de  ideias  e 
sentimentos  extranhos. 

A  despeito  doestas  reducções  que  faço,  a  contribuição 
ethnographica  —  Os  Ciganos  no  Brasil  —  é  livro  que  merece 
ser  lido ;  porque  encerra  boas  paginas  e  interessantes  in- 
formações. Como  exemplificação  do  estylo  do  escriptor  trans- 
crevo aqui  um  trecho  do  capitulo  que  trata  da  familia  cigana 
e  do  ceremonial  dos  casamentos  n'ella. 

E'  assim  : 

«  O  lar  cigano  teve  os  seus  eslylos  particulares,  coloridos  dos 
refiexos  dos  dias  antigos! 

As  leis  de  evolução,  que  annuUaram  os  factos  isolados,  encontram 
esses  pariás  na  eminência  de  uma  civilisação  no  apogeu,  de  onde, 
impellidos  por  forças  inconscientes,  desceram  como  homens  e  ainda 
rodeam  como  phantasmas. 

Em  sua  vida,  fértil  de  riscos  e  aventuras,  no  templo  ou  na  praça, 
na  cidade  ou  nos  desertos,  o  habito  das  outras  sociedades  jamais 
marcou-lhes  as  tradições  e  os  preceitos  de  uma  moral  sem  quebra. 

Surgindo  dos  nevoeiros  pre-historicos  ou  não,  o  certo  é  que  elles 
altearam-se  á  perfectibilidade  sociológica,  no  tocante  á  instituição 
da  familia. 

Pelo  viço  de  suas  legendas,  pelo  symbolismo  das  suas  manifes- 


616  HISTOSIA  DA  LITTBSATinU.  BBÁBILBXEA. 

taçõôs  sensíveis,  pela  inviolabilidade  de  seu  regimen  privativo,  pôde 
ezcluir-se  de  seus  costumes  a  polygamia,  a  promiscuidade,  o  in- 
cesto, etc.,  sendo  unicamente  adoptada  entre  elles  a  monogamia 
como  união  sexual,  estado  que  assignala  o  supremo  desenvolvi- 
mento das  collectividades  humanas. 

Gomo  conjuncto  ethnico,  o  casamento  dos  ciganos  da  Qdade  Nova 
abrangia  toda  uma  série  de  particularidades  typicas  da  raça,  disse- 
melhantes a  mais  náo  serem  das  que  se  notam  nas  outras,  que  mais 
têm  influído  no  nosso  meio. 

A  intervenção  paterna  como  mediemeira  dos  contractos,  os  usos 
excêntricos  entre  os  noivos  e  parentes,  a  lealdade  de  revelação  que 
infamava,  a  prova  sacramental  do  Gade,  que  assentava  sobre  a  vir- 
gindade as  bases  da  família  nascente,  —  imprimiam  nesses  pactos 
uma  característica  sem  analogias  nas  nossas  camadas  populares. 

Na  sua  convivência,  o  escrúpulo  de  corpo  estranho  determina 
allianças  entre  parentes  próximos  e  —  cousa  extraordinária !  —  a 
ínfecundídade  nfio  os  fere,  observando  nós  por  excepção,  entre  essa 
gente,  casos  pathologicos,  o  que  também  se  pôde  expliicar  pela 
embriaguez  no  acto  da  copula,  as  privações,  as  tristezas  prolon- 
gadas, a  míseric^  etc... 

Em  nossas  visitas  medicas  á  casa  de  muitos  delles,  o  que  nos  fez 
espécie  foi  a  quantidade  de  surdos-mudos  que  existe  na  casta.  Attes- 
tamos  ter  prestado  os  nossos  serviços  proíissíonaes  a  famílias,  nas 
quaes  dous  ou  mais  de  seus  membros  soffrem  deste  mal. 

Do  concurso  dos  sexos  não  só  transmittem  aos  descendentes 
heranças  physíologícas  e  pathologicas,  caracteres  reductíveis  e 
irreductiveis,  como  também  a  individualidade  moral,  que  varia  como 
aspecto,  mas  que  não  se  evapora  como  essência. 

Referíndo-nos  aos  casamentos,  os  ciganos  do  Rio  de  Janeiro,  até 
1850,  não  tinham  passado  da  phase  primitiva,  assim  como  ainda 
hoje  as  partidas  de  Minas,  Bahia  e  Maranhão,  no  dizer  insuspeito 
do  Sr.  Pinto  Noites,  o  mais  alto  representante  dos  instinctos  nó- 
madas de  seu  povo. 

Delle,  que  arma  a  sua  barraca  ao  vento  lúgubre  das  nossas  flo- 
restas e  das  velhas  runins  com  quem  privamos,  passemos  ás  infor- 
mações, que  são  tanto  mais  exactas,  quanto  são  elles  personagens 
authenticos. 

Em  geral  o  amor  não  tomava  parte  nesses  actos.  Não  era  neces- 
sário, para  que  as  allianças  se  realísassem,  sympathia  commum, 
estremecimento,  affecto... 

Dahi  insuccessos  frequentes,  que  se  manifestavam  pelo  enfado 
e  desprcuser  de  uma  vida  inteira,  da  mulher  ou  do  homem,  constran- 


r 

I 


HISTOBIA  DÁ  UTTBKATnBA  BRABILEISA  617 

gidos  pelo  dever  a  risos  fingidos,  e  a  sorverem  resignados  a  ultima 
gotta  de  amargura  que  lhes  envenenava  os  dias. 

Essas  núpcias  realisavam-se  fatalmente,  como  por  desfastio  dos 
pais,  que  se  lembravam  de  que  um  filho  estava  em  idade  de  tomar 
estado,  n&o  assistindo  aos  da  noiva  o  direito  de  recusa. 

Entre  calons  o  dominlo  da  igualdade  é  absoluto.  Negar  uma  moça 
pedida  a  casamento,  implica  estabelecer  uma  lucta  de  preconceitos, 
em  que  o  provocador  terá  de  ser  vencido  pelas  acusações,  expondo 
a  murmúrios  malévolos  e  á  calumnia  uma  reputação  ás  vezes  imma- 
culadcu 

Conhecido  o  dilemm6L,  o  sim  constituía  a  regra,  a  menos  que  a 
rapariga  náo  houvesse  tropeçado  na  deshonra. 

Os  tramites  a  seguir  eram  vulgares  e  as  scenas  desdobravam-se 
naturalmente. 

Assim,  quando  um  bato  (pai)  tinha  um  filho,  maior  de  17  annos, 
official  de  justicia  ou  com  um  emprego  qualquer,  dirigia-se  com  elle 
á  casa  de  um  outro  bato  que  tivesse  uma  filha  núbil. 

A*  distancia,  percebidas  as  intenções,  aquelle  os  recebia  favora- 
velmente, com  agrados  declamatórios,  modos  expansivos,  ditos 
chistosos... 

Os  dous  conferenciavam  em  segredo,  por  algum  tempo. 

O  rapaz,  desconfiado  e  timido,  de  pé  e  afastad'  escorajido  uma 
portada,  alongava  o  olhar  de  soslaio,  estirava  o  pescoço,  suspendia 
a  respiração,  apanhemdo  no  ar  pcdavras  desconnexas. 

Se  a  filha  não  estava  pura,  o  pai,  que  por  instantes  acariciara  uma 
illusão,  cobria  o  rosto  de  vergonha,  lamentava-se  e,  soluçando,  des- 
vendava o  mysterio  da  dor  que  o  pungia. 

E  esta  lealdade  não  o  aviltava  diante  dos  seus,  mais  tarde  sabe- 
dores do  occorrido,  nem  no  animo  do  progenitor  do  malogrado  noivo, 
que  o  aconselhava  de  casal-a  com  um  quiérdapanin,  alvitre  aceito 
sem  exame  e  posto  em  prática  de  seguida. 

O  consorsio  com  estrangeiro  importava  exclusão  ignominiosa  da 
tribu  e  pela  tribu. 

O  contrario,  porém,  da\'a-se  quando  a  mãi  de  amanhã  fosse  a 
virgem  de  hoje. 

O  avelhantado  bato,  radiante  de  jubilo  e  felicidade,  vendo  afun- 
dar-se  no  tumulo,  mas  resurgir  no  futuro,  chamava  a  filha  e,  tre- 
mulo de  contentamento,  arrebatado  de  enthusiasmo,  entregava  ao 
homem  de  sua  casta  um  thesouro  de  virtudes  para  riqueza  de  sua 
prole. 

Então  o  pai  do  pretendente  dirigia-se  a  este  : 


^18  HIBTOBIA  DA  tITTBRATURA  BRASILEIRA 

—  Aproxima-le;  chega-te,  meu  filho.  Olha  que  teu  lio  aceita  a  tua 
mao  e  se  compraz  de  que  faças  parte  de  sua  íamilia. 

O  filho,  obedecendo  : 

•^  Agradeço,  meu  tio,  a  honra  que  me  dá,  certo  de  que,  tmquanto 
eu  tiver  um  praio  de  feifão  e  uma  pitanga,  saberei  repartir  com  sua 
filha  e  minha  futura  consorte. 

Nesta  occasiào  apparecia  a  sogra,  com  a  chusma  de  filhos,  pa- 
rentes e  escravos,  endireitando  o  chalé  vermelho,  pulando  de  satis- 
feita, rindo  e  gritando. 

O  primo,  pai  do  noivo,  enfiava  as  mãos  nas  algibeiras  do  colete, 
empertigava-se,  e  depois,  com  o  abraço  aberto,  corria  para  ella, 
tocando-se  protestos  cordiaes  e  amistosos. 

O  noivo  beijava-lhe  respeitosamente  a  dextra,  tomava  a  bençôo 
ao  sogro,  inclinava-se  diante  de  sua  noiva  e  um  pequeno  dialogo 
se  entabolava  : 

—  Só  lhe  posso  garantir,  meu  primo,  que  sua  filha  nunca  se  arre- 
penderá. Meu  filho  —  nâo  é  porque  o  seja  —  é  muito  ganhador  da 
vida  :  tem  queda  para  as  barganhas,  não  tem  vicios,  é  humilde  e 
emfim  —  é  bom  á  boca  cheia!  Quanto  ao  ser  pobre,  todos  o  são. 

—  Sim,  meu  primo,  eu  sei  o  quanto  elle  é  bom,  e  foram  sempre 
esses  os  meus  desejos;  o  que  se  quer  é  fortuna. 

—  E*  verdade,  interrompe  a  reflectida  sogrc^  a  sorte  é  que  é 
tudo. 

—  Dizes  bem,  minha  filha,  accrescenta  a  avó,  é  só  delia  que  care- 
cemos. 

—  Quanto  á  meniiia,  prosegue  o  pai  orgulhoso  —  é  o  que  se  vè  : 
muito  laxinzinha:  é  mesmo  uma  alma  de  Deus.  D6-lhe  seu  filho  um 
vestidinho  de  chita,  uns  tamancos  e  banha  para  os  cabellos,  quando 
ella  precisar,  e  é  bastante  para  sermos  todos  felizes. 

— •  Isso,  responde  o  pai  do  noivo,  terá  ella,  graças  a  Deus,  porque 
o  menino  tem  baque  para  o  dinheiro  e  não  é  cocando. 

Terminados  os  incidentes  da  negociação,  a  que  os  ciganos  cha- 
mam dar  a  barroada^  começavam  logo  a  entrar  os  tios,  compadres, 
primos  e  mais  parentela,  que  vinham  dar  os  parabéns. 

A  casa  era  lavada  de  ponta  a  ponta,  o  soalho  coberto  de  areia,  e 
enfeitavam  a  talha  de  ramagens  floridas. 

Duas  ou  três  violas,  encordoadas  de  novo,  deviam  ficar  á  espera 
dos  tocadores  dos  bródios,  que  principiavam  na  noite  immediata  4 
do  pedido  e  se  prolongavam  até  á  do  noivado. 

Em  todas  as  direcções  partiam  emissários,  portadores  de  parti- 
cipações e  convites. 

Esta  formalidade  era  de  rigor,  não  se  excluindo  mesmo  os  ini- 


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HISTOBIA  DA  LITTEBAXUEA  BRASILEIRA  619 

migos;  porquanto,  o  cascunento  e  a  morte  são  para  os  cahns  os 
acontecimentos  mais  solemnes  da  vida. 

Na  manhã  seguinte,  ao  levantar  do  sol,  o  noivo,  pressuroso,  mi- 
moseava  a  noiva  comum  enorme  ramalhete  de  cravos  brancos  e 
encarnados,  e  consecutivamente  com  outras  dadivas  esponsaes, 
bem  como  sabonetes  finos,  vidros  de  cheiros,  peças  de  fita  côr  de 
rosa,  amarella,  escarlate,  cortes  de  vestido  encarnado,  côr  de  cravo, 
amarello  e  azul,  lenços  bordados  de  vários  matizes,  tudo  isto  acom- 
penhando  de  jasmins  do  Cabo,  alecrim,  cranivas,  etc. 

Diariamente,  para  quantos  chevagam,  estendiam-se  esteiras  re- 
pletas de  iguarias  exquisitas,  ensopados,  abundância  de  assados  e 
grandes  lombos  de  carne  de  porco,  vianda  sobremodo  estimada 
pelos  ciganos. 

Erguiam-se  brindes,  rosgavam-se  comprimentos,  bebia-se  com 
enthusiasmo  á  saúde  do  ditoso  par. 

Ao  anoitecer,  dansas,  os  chorados  na  viola,  os  descantes  espe- 
ciaes  e  os  bródios... 

No  dia  do  noivado,  que  cahia  sempre  n'um  sabbado,  enfeitavam 
a  casa  com  apparato  e  gosto.  Na  porta  fincavam  bellos  troncos  de 
mangueira  e  a  atmosphera  que  se  respirava  lá  dentro  trescalava  de 
odores  indistinctos,  pela  mistura  das  essências  acres  com  o  fumo 
do  benjoim  e  alfazema  que  ardiam. 

A's  três  peu^a  as  quatro  horas  da  tarde  a  habitação  fervia  de  gente, 
os  vizinhos  abelhudos  estavam  attentos  e  os  transeuntes  paravam 
na  rua. 

No  meio  da  lufa-lufa,  as  matronas  que  acompanhavam  os  noivos, 
os  padrinhos,  a  familia,  encaminhavam-se  á  freguezia. 

Para  os  actos  a  que  nos  referimos,  havia  quatro  madrinhas  :  duas 
iam  á  igreja  e  duas  ficavam. 

Recebidos  em  matrimonio,  de  volta  do  templo,  atacavam-se  giran- 
dolas,  e,  apenas  os  esposos  transpunham  o  lar,  cascatas  de  flores 
cahiam-lhes  em  ondas  sobre  a  fronte,  irisadas  e  odoríferas. 

Os  menestréis  preludiavcun  nas  violas  as  suas  toadas,  os  can- 
tadores improvisavam  os  seus  epithalamios  inspirados  e  os  convi- 
dados, de  tochas  accesas,  formavam  alas  por  onde  passavam  os 
recem-casados. 

A'  meia  noite  retiravam-se  todos  para  um  lado  da  sala,  adian- 
tando-se  os  noivos  e  as  duas  madrinhas. 

As  violas  e  as  canções  vibravam  m6ds  fortes. 

Sobre  um  movei,  cinco  lençóes,  alvos  como  uma  hóstia,  aroméi- 
tisados  com  alfazema  e  salpicados  de  flores,  achavam-se  superpos- 
tos. 


620  HISTORIA  DA  LITTSRATX7BA  BllASILBIBA 

Quatro  tochas  accesas,  encostadas  a  uma  meza,  derramavam 
sobre  o  linho  uma  luz  de  ambai*  e  ouro.  As  janellas  fechavam-se,  a 
inquietaç&o  transparecia  cm  todos  os  semblantes  :  o  rito  sagrado 
do  Gade  ia  cuniprir-se. 

E  os  padrinhos,  que  também  eram  quatro,  desdobraveun  os  len- 
çóes,  os  suspendiam  acima  da  cabeça,  juntando  as  extremidades, 
passando  um  ao  outro  os  cirios  que  sustinham,  alongando  o  braço 
opposto  e  formavam  o  quarto  onde  a  sacrifício  incruento  deveria  cele- 
brar-se. 

Ent&o  nelle  entravam  os  desposados  e  as  duas  secerdotizas. 

Os  instrumentos  tangiam  meus  vigorosos,  como  que  para  suffocar 
algum  gemido  de  dor... 

Umas  das  matronas  despia  a  noiva,  deitava-a  sobre  um  leito,  in- 
troduzia-lhe  o  dedo  indicador  no  vestíbulo  da  vagina,  despedaçava 
a  membrana  hymen,  enxugando  na  camisa  de  cambraia  as  gottas 
de  sangue  da  virgindade. 

Vestida  novamente,  a  um  signal  ajustado,  os  padrinhos  largavam 
os  lenções  e  o  marido  mostrava  no  Gade  as  rozas  da  pureza  aos 
alaridos  do  festim. 

Depois  da  musica,  dos  cantos,  das  palmas  e  das  flores,  o  noivo 
recitava  um  discurso. 

Bravos,  trovas,  felicitações... 

O  Gade^  solemnemente  acondicionado  n'uma  ccdxinda  de  preço, 
embebido  de  aromas  suaves,  coberto  de  folhas  de  alecrim,  ficava 
pertencendo  ao  esposo,  que  o  guardava  para  sempre  como  penhor 
de  sua  alliança. 

E  o  bródio  recomeçava...  »  (1) 

Ainda  no  terreno  da  ethnographia  falta  dar  uma  rapidís- 
sima ideia  do  livro  —  Festas  e  Tradições  Populares  do  Bra- 
sil, superior  ao  que  se  intitula  Quadros  e  Chronicas. 

Sáo  estas  as  principaes  festas  descriptas  :  A  noite  de  Natal, 
A  véspera  de  Reis,  São  Sebastião,  O  entrudo,  O  carnaval, 
Quinta-Feira  santa,  Sexta-feira  da  Paixão,  A  festa  do  Divino, 
A  procissão  de  S.  Jorge,  A  véspera  de  S.  João,  O  dous  de 
julho,  O  sete  de  setembro,  O  dia  de  finados. 

Por  este  quadra  bem  claro  se  vè  que  doestas  festas  apenas 
em  cinco  (Natal,  Reis,  São  João,  Espirito-Santo  e  Entrudo) 
ha  folganças  de  cunho  verdadeiramente  popular. 

(1)  Os  Ciganos  no  Brasil,  pag.  71  e  seguintes. 


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HISTORIA  DA  LITTXRATITEA  BKABILBIBA  621 

As  outras  são  festas  de  Igreja  e  festas  patrióticas,  queridas 
do  povo  é  certo ;  mas  onde  elle  é  simples  espectador. 

Mello  Moraes  tem  em  alta  escala  o  sentimento  nacional ; 
porém  nunca  sahiu  da  cidade  da  Bahia,  onde  passou  a  in- 
fância, e  da  cidade  do  Rio  de  Janeiro,  onde  reside  hoje,  dois 
centros  quasi  inteiramente  impróprios  para  o  estudo  de  tudo 
quanto  se  refere  ao  nosso  povo. 

Este  só  pode  ser  com  proveito  inquirido  e  investigado  nas 
villas  e  aldeias  do  interior,  nas  fazendas,  nos  engenhos,  nos 
sitios  agrícolas,  nos  sertões,  nas  praias  de  pescadores,  etc. 
Mello  Moraes  tem  andado  fora  de  taes  recursos  e  meios  de 
analyse. 

Tudo  quanto  é  possível  colher  aqui  no  Rio  entre  as  classes 
proletárias,  ciganos,  negros,  velhas  pedintes...  elle  tem  pro- 
curado enthesourar.  Isto  não  basta.  Elle  não  viu  nunca  o 
povo  no  seu  trabalho,  nem  no  seu  folgar  no  interior  do  Brasil. 

Nunca  viu  um  polirão  para  flagem  de  algodão,  uma  botada 
de  engenho,  umas  partilhas  de  rezes  em  fazendas  de  criar, 
um  campear  de  vaqueiros,  uma  derrubada  de  mattas,  uma 
emenda  de  pescaria,  uma  viagem  em  canoas  ao  longo  de 
extensos  rios,  um  safrear  de  farinha  ou  de  assucar,  um  plan- 
tio e  colhéta  de  legumes,  emfim  um  qualquer  d'esses  muitos 
afazeres  do  nosso  povo  em  seus  trabalhos,  em  suas  indus- 
trias locaes. 

Também  não  viu  ainda  o  povo  divertir-se ;  não  viu  um 
samba  com  as  suas  mil  cantigas  e  suas  vinte  danças  diversas, 
uma  festa  de  casamento  na  roça,  um  bando  de  Gongos  em  dia 
de  Reis,  um  bando  de  Tayêras  em  dia  de  Natal  e  Anno-Bom, 
um  Bumba-meu-boi  feito  em  regra,  uma  festança  de  Mouros, 
de  Marujos,  um  auto  do  Cavallo-marinho,  do  Zé-do-Valle,  do 
António  Geraldo,  do  Cego,  da  Cabrinha,  etc,  etc,  ainda  hoje 
representados  no  norte;,  e  em  menor  escala  no  sul  do  Bra- 
sil (1). 

E'  pena  que  o  poeta  e  imaginoso  escriptor,  com  a  pers- 
picácia de  observação  de  que  é  dotado,  não  haja  tido  amplos 

(1)  Em  1878  em  Paraty,  na  província  ds  Rio  de  Janeiro,  e  em  princípios 
de  1888,  na  fazenda  dAAratingaúba  (município  da  Laguna),  na  província 
de  Santa  Catharina,  vi  algumas  doestas  folganças  populares. 


] 


622  HI8T0BIA  DÁ  LITTERATURA  BRA8ILEIBA 

ensejos  de  estudar  o  povo,  onde  elle  se  apresenta  estreme, 
puro,  original,  não  mesclado  ás  classes  alheiatorias  da  Capi- 
tal Federal. 

Dispondo  apenas  dos  recursos  que  pode  aqui  encontrar, 
é  admirável  que  haja  conseguido  tantas  informações,  como 
aquellas  que  se  nos  deparam  nas  Festas  Populares  e  nos  Ci- 
ganos no  BrcLsU. 

O  auctor  tem  recorrido  a  velhos  do  norte,  residentes  n'esta 
cidade,  e  por  via  tradicional  construiu  alguns  artigos  de  seu 
livro  das  festas.  Por  esta  forma  descreveu  muito  bem,  por 
exemplo,  o  brinquedo  dos  Congos,  também  chamados  — 
Cucumbys. 

Pelo  que  tenho  dito  até  aqui  d'este  escriptor,  deixa-se  ver 
bem  clara  a  direcção  geral  de  seu  espirito  litterario.  Em- 
quanto  os  acluaes  auctores  pátrios  quasi  todos  se  atiram 
esfaimados  a  busca  de  um  ideial,  ou  de  uma  norma  no  es- 
trangeiro, Mello  Moraes  entesou  seu  arco  e  arrojou  a  setta 
n'uma  só  direcção,  e  esta  direcção  é  o  corpo  d'este  paiz,  a 
alma  d'este  povo,  o  coração  d'esta  pátria.  Amar,  estudar, 
descrever  esta  terra  é  o  seu  ideial  de  artista.  E  n'este  afan, 
n'este  luctar  pelo  brasileirismo,  o  passado,  as  tradições,  o 
viver  extincto  das  gerações  que  foram,  prendem-se-lhe  mais 
ao  coração  do  que  o  espectáculo  da  vida  presente.  E'  fácil 
ainda  mais  aprecial-o,  estudando  o  poeta. 

Por  esta  face  analysado,  o  auctor  dos  Cantos  do  Equador  c 
dos  Mythos  e  Poemas  é  de  ordinário  collocado  no  grupo  dos 
condoreiristas,  como  sectário  de  Castro  Alves.  Isto  não  é 
exacto,  ou  só  é  admissivel  em  diminuta  parte. 
.  Quando  em  1867  os  dois  poetas  se  encontraram  na  Bahia, 
já  Mello  possuia  fundamentalmente  o  systema  poético  que 
até  hoje  tem  conservado. 

Este  systema  encerra  dois  elementos  principaes  :  certa  dis- 
posição phantasista  dos  quadros  e  scenas,  determinado 
aferro  a  assumptos  nacionaes.  Aquelle  foi  aprendido  dos  ro- 
mânticos em  geral,  especialmente  Quinet,  e  este  om  parti- 
cular de  Bittencourt  Sampaio. 

Segundo  confissões  do  próprio  poeta,  taes  foram  os  au- 
ctores que  mais  influiram  na  sua  fechnica  artistica. 


HIBTOKIA  DA  LITTERATURA  BRASILBISA  628 

A  acçào  de  Castro  Alves,  se  existiu,  ó  quasi  inapreciável. 
Admittida,  confessada  aquella  outra  influencia  estranha,  na 
obra  poética  de  Mello  Moraes,  ainda  lhe  flcam  elementos 
próprios,  de  caracter  autonómico  e  original. 

Tem  mais  força  do  que  Bittencourt  Sampaio  e  mais  simpli- 
cidade 6  intuição  brasileira  do  que  Castro  Alves. 

A  tendência  para  os  assumptos  nacionaes,  a  disposiçã^o  do 
espirito  para  reflectir  os  sentimentos,  os  aflectos,  as  eflusões 

d'alma  nacional,  era  no  poeta  uma  predisposição  nativa. 

Foi  talvez  reforçada  com  a  leitura  das  Piores  Sylvestres  do 
lyrista  sergipano ;  mas  o  que  acabou  por  aferral-o  completa 
e  definitivamente  ao  nacionalismo  pátrio  foi  a  leitura  dos 
Estudos  sobre  a  Poesia  e  os  Contos  Populares  do  Brasil  do 
auctor  doeste  livro,  publicados  na  Revista  Brasileira  no  cor- 
rer da  anno  de  1879. 

Estes  impulsos  externos  não  crêaram  no  espirito  do  poeta, 
repito,  inclinações  e  attitudes  novas ;  reforçaram  apenas  ten- 
dências originaes  e  instinctivas. 

De  1880  em  diante  a  producçáo  litteraria  de  Mello  Moraes 
triplicou  e  tudo  trouxe  a  côr  de  suas  affeições  intimas,  que 
era  a  côr  do  céu  de  sua  terra. 

Seus  dois  livros  de  poesias  são  os  Cantos  do  Equador  de 
1881  e  os  Mythos  e  Poemas  de  1884  (1). 

A  critica  de  taes  livros  já  está  implicitamente  feita,  no  que 
até  aqui  tenho  dito  do  auctor ;  mas  é  preciso  insistir,  porque 
a  cousa  vale  bem  a  pena. 

O  talento  principal  de  Mello  Moraes  é  o  talento  de  poeta  ; 
a  nota  fundamental  de  sua  arte  é  o  Ivrismo  nacionalista. 
Dizer  isto  é  dizer  muito ;  mas  este  muito  é  ainda  bem  pouco 
para  definir  a  Índole  d'essa  poesia. 

Ser  nacionalista  é  cousa  que  se  tem  dito  de  muito  poeta  e 
litterato,  e  muitas  vezes  sem  razão.  N'cste  auctor  o  naciona- 
lismo exhibe  qualidades  especiae^. 

Primeiramente,  elle  é  um  nativista  n'uma  época  em  que 
esta  qualidade,  para  muitos,  parece  ser  um  crime,  n'uma 

(1)  Ultimamente,  a  casa  Garnier  tirou  uma  edi<;íío  definitiva  sob  o  titulo 
único  de  Cantos  do  Equador. 


624  HI8T0BIA  DA  LITTERATURÂ  BBA8ILSIBA 

época  de  alheiaçáo  quasi  completa  do  caracter  nacional,  pros- 
tituído, aviltado  por  um  sem  numero  de  imitações  e  de  baju- 
lações a  estrangeiros.  Litteratos  e  políticos  têm  perdido  a 
cabeça  atraz  do  sonho  pernicioso  do  estrangeirismo. 

A  mania  do  povoamento  a  todo  trance  nos  políticos,  a  mo- 
léstia de  plagiar  nos  litteratos  têm  abastardado  completa- 
mente certa  parte  de  nossos  homens  públicos  n'uma  e  n'ou- 
tra  esphera.  Felizmente  ha  hoje,  como  sempre,  o  grupo  dos 
que  protestam  e  o  poeta  é  d'este  numero. 

Outra  qualidade,  e  essa  fundamental  do  nacionalismo  do 
auctor,  é  ser  elle  consciente,  assegurado  por  um  plano  regu- 
larmente organisado  e  seguido  á  risca. 

D^antes  os  nossos  nacionalistas  eram  duplamente  lacuno- 
sos  :  nã.0  abrangiam  todos  os  factores  da  alma  brasjleira,  e, 
d'aquelles  de  que  tratavam,  nâo  passavam  das  manifesta- 
ções exteriores. 

Em  Mello  Moraes  a  critica  intelligente  vae  mostrar  que  elle 
escapou  a  esse  duplo  motivo  de  inferioridade. 

Antes  de  tudo,  ella  notará  a  existência  completa  do  quadro 
dos  agentes  que  constituíram,  differenciaram,  integraram  o 
nosso  povo. 

Natureza  exterior,  índios,  negros,  portuguezes  e  mestiços  lá 
estão.  Depois  notará  que  dos  índios,  por  exemplo,  não  se 
poz  a  descrever  usanças  meramente  secundarias.  Repro- 
duziu suas  lendas,  penetrando-lhes  assim  na  psychologia; 
quanto  aos  negros,  não  declamou  sobre  o  facto  da  escra- 
vidão ;  observou  a  vida  do  captivo  e  reproduziu-lhe  as  peri- 
pécias principaes. 

Entre  as  poesias  que  dão  conta  de  scônas  de  nossa  natu- 
reza tropical  deslacam-se  :  —  Ponte  de  lianas,  A  sucuriuba, 
Tarde  tropical,  Floresta  submergida,  Noites  do  equador, 
Tempestade  dos  trópicos. 

Dentre  as  que  se  referem  a  assumptos  indianos  avultam  : 

—  O  sangue  do  jaguar,  No  ccu  e  na  terra,  A  lenda  do  algo- 
dão, A  tapera  da  lua,  A  lenda  das  pedras  verdes,  A  lenda  da 
abóbora. 

Nas  que  têm  por  assumpto  o  negro  escravo  deslinguem-se  : 

—  A  rede,  A  novena,  A  ama  de  leite,  Partida  de  escravos. 


HI8T0SIA  DA  LITTBBATinU.  BBA8ILEIBA  625 

Verba  testamentária,  O  legado  da  morta,  Mãi  de  criação,  A 
feiticeira,  Ingénuos,  Escravo  {ugido,  A  reza,  Ckintiga  no  eito. 

Os  assumptos  portuguezes  apparecem  em  Alma  penada, 
Saudação  dos  mortos.  Os  Immortaes.  Estes  últimos  são  de- 
dicados ao  centenário  de  Camões... 

Os  assumptos  de  intuição  brasiliana  particular,  intuição 
mestiça,  são  os  mais  abundantes.  E'  bastante  referir  —  A  mu- 
lata, A  tabaróa,  A  caipora.  No  pouso,  O  palácio  da  mãi  d'agua, 
Bem-te-vi,  Trovador  do  sertão,  A  sereia  do  Jaburu,  A  luz 
dos  afogados,  A  endemoninhada,  A  romaria  do  Bom-Despa- 
cho,  A  véspera  de  Beis. 

Todos  estes  assumptos  foram  tratados  com  graciosidades  e 
mimos  de  lyrista.     . 

E'  já  tempo  de  cital-o  sob  as  suas  differentes  faces.  E*  bom 
vir  de  mais  longe,  a  natureza;  eis  a  Tarde  Tropical  : 

K  E'  a  hora  do  dia  em  que  das  mattas 
Desce  a  sombra  da  basta  gamelleira, 
E,  saltando  das  lapas,  as  cascatas 
Espadanam  das  aguas  a  poeira... 
Em  que  a  onç6^  lambendo  as  ruivas  patas, 
Rente  o  peito  com  o  chão  da  cordilheira. 
Encurva  o  dorso  e  cerra,  ao  abandono, 
Os  olhos  d'ouro,  de  fadiga  e  somno... 

Em  que  o  indio  perdido  na  savana 
Conta  a  Tuj^an  seus  bárbaros  segredos... 
E  a  tarde,  bella  moça  americana. 
Côa  a  luz  do  crepúsculo  em  brônzeos  dedos  I 
Em  que  as  flores  vermelhas  da  liana, 
Da  ponte  de  cipós  dos  arvoredos, 
Cahindo  ao  sopro  da  macia  aragem 
S'estendem  sob  as  redes  do  selvagem  !... 

Hora  de  amor,  de  prece,  hora  de  encanto ! 
Tu  murmuras  nos  rios  transparentes ; 
E  tens  por  voz  da  guaraponga  o  canto 
E  o  ronco  das  giboias  nas  vertentes ! 
Quando  tinges  no  occaso  o  claro  manto 
E  além  descambas  d'esses  céus  ardentes, 

HISTORIA  II  40 


^ 


626  HISTORIA  DÁ  UTTEEATUfiA  BIUL8ILBIBA 

Mão  de  mysterio,  por  velar-te  a  urna, 
Ergue  no  espaço  a  lâmpada  nocturna  1 

E'  já  quasi  ao  sol  posto,  quando  a  terra 
Trescala  de  selvática  harmonia... 
Que  á  cascavel  que  dorme  pela  serra 
Espanta  o  silvo  da  cauan  bravia ! 
E.se  ruge  o  jaguar  que  o  fogo  aterra, 
Aceso  &  porta  da  cabana  esguia, 
Retumbam  echos  nos  rechedos  fundos, 
—  Titans  rolando  do  Equador  nos  mundos  1... 

Os  cactus  em  ílôr  pela  clareira 
S*illuminam  de  insectos  scintillantes ; 
E  a  velha  da  tribu,  a  feiticeira, 
Evoca  os  génios  da  floresta  errantes, 
E  se  os  lumes  sinistros  da  fogueira 
Aos  sortilégios  lustram  mais  fumantes, 
As  corujas  nos  ares  ululando 
A*  face  do  crescente  vâo  voando ! 

Hora  de  amor,  de  adoração,  de  crença, 
Ave-Maria  1  —  Estrella  dos  palmares  I 
Tu  mitigas  do  escravo  a  dôr  intensa, 
A'  santa  uncção  dos  mysticos  cantares  I 
Quando  baixas  do  céu,  a  selva  immensa 
Manda  esperar-te  os  largos  nenuphares... 
E  o  oceano,  na  vaga  que  íluctua, 
Reflecte  de  teus  pés  a  meia  lua ! 

Nos  braços  do  lethargo,  á  frouxa  luz 

Do  sol  que  morre,  ~  dorme  a  natureza  I 

E  as  rolas  pelas  moitas  dos  bambus 

Arrulam  doces  cantos  de  tristeza! 

E  o  caboclo  que  leva  os  íUhos  nús. 

Do  Amazonas  á  rija  correnteza. 

Penetrando  a  floresta,  em  mudo  assombro, 

A  um  tem  pela  mfio,  —  traz  outro  ao  hombro !... 

Tardes  de  minha  terra  I  ó  prado !  ó  flores  ! 
Bosques  cheios  de  sombra  e  de  harmonias ! 
Valles  e  serras,  mágicos  vapores, 
Ninho  das  garças  nas  lagoas  frias  I 


I 


r 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  BSA8XLBI1LA  627 

VÓS  recordais-me  a  trilha  dos  amores, 
O  colmo  das  deixadas  phantasias, 
Por  onde  essa  illus&o  que  a  alma  nos  cança 
Pendura  as  redes  d*ouro  da  esperança ! 

Adeus,  ó  tarde,  adeus  1  que  os  horizontes 
Cobrem  do  dia  morto  o  corpo  algente... 
Turva  neblina  rola  pelos  montes, 
—  Cinzas  das  azas  doesse  sol  poente ! 
Ave-Maria  I  ao  céu  quando  remontes, 
Da  natureza  eterna  ao  hymno  ardente. 
Que  a  ti  subam  d'esVharpa  os  sons  íinaes 
Aos  enlevos  das  tardes  tropicaes  I  »  (1) 

Depois  da  natureza  vem  o  selvagem  e  é  bom   que  se 
ouça  a  Lenda  da  Abóbora  : 

((  De  assalto  as  sombras,  quaes  piratas  negros, 
Tomam  €is  matas  ásperas,  bravias... 
O  jaguar  como  um  arco  empola  o  dorso, 
Se  estirando  das  patas  luzidias. 

Luzes  de  estrellas,  de  macias  ílammas, 
Silenciosas  brilham  pallecentes ; 
Gemem  ventos  vezanos  que  aos  tapuyos 
São  oráculos  dos  mágicos  parentes... 

Aos  fogos  canibaes  de  cem  fogueiras 
Pendem  ramas  de  trevas  cavalgadas ; 
E  os  caboclos  soturnos,  nos  espetos 
Viram  do  morto  as  regiões  tostadas. 

Um  rugido  no  etr...  Jacaré  torvo 
Da  onça  o  flanco  fulvo  chicoteai... 
Partio-lhe  a  cauda  a  fera...  elle  sumio-se, 
Deixando  um  rastro  de  sangrenta  arêa. 

Aos  bailes  do  terreiro,  as  feiticeiras 
Se  encolhem  tremulas,  atiçando  as  brazas ; 
E  grita  a  alma  perdida  e  as  aves  tontas... 
Abrem  no  espaço  rubro  as  curvas  azas. 

(1)  Cantoê  do  Equadar,  pag.  28,  ediç&o  de  1881. 


628  RI8T0BIA  DA  LITTESÂTinLI,  BBA8ILBIRA 

Em  alarido  enorme  as  tribos  pávidas 
Enchem  de  espanto  as  naturaes  paragens ; 
Mutilações  de  dó...  soluços...  prantos... 
Nos  corpos  nús  funéreas  tatuagens  I 

D^  Yâia  o  chefe  poderoso,  a  rode 
Na  cabana  lá  está  —  selvagem  horto ! 
As  carpideiras  lanham-se,  e  agachado 
Contempla  o  chefe  Yéda  o  filho  morto.  * 

N&o  quer  vasos  de  terra !  —  as  igaçabas 
S&o  a  seus  olhos  miseros  sarcophagos ; 
E  rincha  o  marabd^  e  os  ritos  cumprem-se 
A*8  dansas  funeraes  dos  anthropophagos. 

Guarnecendo  a  maloca,  em  altos  postes 
As  cabeças  das  victimas  âncadas ; 
Os  pregoeiros  sopram  nas  buzinas 
P*ra  traz  vergando  as  frontes  gateadas. 

De  quando  em  quando,  em  contracções  atléticas, 

Um  braço  armado  gira  subitaneo  ; 

O  captivo  resiste,  e  ao  resistil-o 

A  massa  tomba  e  se  estilhaça  um  craneo !... 

Em  confusa  algazarra  os  povos  Íncolas 
Na  cordilheira  buscam  tredo  acoite ; 
E  em  torno  do  defunto  os  fachos  6u:dem 
De  génios  máos  esvasiando  a  noite. 

N'uma  abóbora  desforme 
Abriu-lhe  o  sepulchro  Yéda  : 
Foi  pertinho  da  cabana 
Por  baixo  da  sapucaia. 

Sentou-o  no  seu  jazigo, 
Uniu-lhe  ao  peito  os  joelhos, 
Com  seus  coleu^es  de  dentes, 
Seus  diademas  vermelhos. 

Um  bando  de  pombas  bravas 
Mortas  flcaram-lhe  aos  pés, 


HISTOIOA  BA  LITTSRATUBA  BBABILKISA  629 

A  canan  que  espanta  as  cobras, 
Que  Incta  com  as  cascavéis. 

De  flecha  e  clava  e  membys 
Cercou  a  múmia  querida  : 
Para  os  combates  da  morte 
Levava  as  armas  da  vida. 

E  de  vôl-o  triste,  triste, 
Chorando  seu  filho  ahi, 
A  rola...  as  rolas  gemiam 
Nas  palmas  do  licury. 

Desce  o  chefe  a  montanha  :  a  visital-o 
Segue  á  luz  da  manhã  que  além  domina ; 
Aqui  e  alli,  mil  troncos  suarentos 
E  o  insecto  que  zumbe  da  matina  ! 

Do  rochedo  aos  degraos  sobem  vapores, 
—  Erma,  vasta  e  fumante  escadaria!... 
£  o  abutre  pellado  a  testa  esconde 
Debaixo  d*aza  voadora  e  fria ! 

Yáia  proseguio...  mas  avistando 
A  abóbora  tumular  d*esses  caminhos. 
Notou  que  enormes  peixes  se  escapavam 
Da  planta  cheia  de  algaçaes  marinhos. 

No  terror  que  o  agita,  o  caso  infausto 
Leva  á  óca  dos  seus,  â  tribu  inteira!... 
E  as  trompas  soam  nas  quebradas  longas, 
Suppondo  auguros  a  naç&o  guerreira ! 

Quatro  meninos  gémeos  que  attentavam 
O  chefe  —  peurtem,  sem  demorc^  inquietos. 
Famintos,  nús,  zebrados,  offegantes, 
A*  grande  pescaria  em  seus  desertos. 

Reunem-se  os  pagés,  velhos,  mulheres, 
De  lábio  roto  e  faces  taciturnas ; 
E  emqucmto  uns  trepam  no  curvoredo  excelso. 
Outros  se  escapam  das  baixinhas  fumas. 


1 


630  HIBTOBIA  DA  LlTTSSATtTSA  BBABILEIEÂ. 

Os  caboclinhos  viram 
A  abóbora  —  e  sem  assombro 
Ergueram-ii*a  contentes 
Ao  pequenino  hombro ; 

Porem  do  centro  o  liquido 
Pingando  cabe,  gotteja, 
E  dos  milbões  de  poros 
Mareja,  sim,  mareja ! 

E  nisso  assoma  Yáia 
Grave,  sombrio,  quedo ; 
Elles  disparam  rápidos 
Com  indizivel  medo, 

No  chão  se  íUbrira  o  fructo 
Que  inunda  extremos  lares... 
D'est*agua  —  o  mytho  bárbaro 
Do  Génesis  dos  mares !  »  (1) 

Depois  dos  indígenas,  os  escravos  negros  em  seus  soffri- 
mentos. 
São  d'elles  uma  copia  a  Mãe  de  criação ;  eil-a  aqui  : 

«  Era  já  velha  a  mísera  pretinha  ; 
Tão  extremosa  como  as  m&es  que  o  sáo  : 
Era  escrava...  porem  que  amor  que  tinha 
Aquelle  a  quem  foi  mâe  de  criação  ! 

Cuidava  tanto  delle...  Quando  o  via 
Dos  estudos  chegar,  chegar-se  a  ella. 
Parece  que  a  ventura  se  embebia, 
Como  um  raio  de  luz,  nos  seios  delia. 

Seu  filho  lhe  morrera  em  tenra  infância... 
A  sorte  do  captivo  é  a  dos  revezes ; 
Ella  o  criara,  e  d'alma  n'abundancia 
O  consagrara  filho  duas  vezes. 

Quizeram  libertal-a ;  a  liberdade 
Tomou  como  uma  offensa  e  não  cedeu  ; 

(1)  Mythoê  e  Poemoi^  pag.  33,  edição  de  1884. 


HUTOKU  DA  L1TTRKA.TITKA  BKA8ILEIKA  631 

Depois...  ic  Minha  senhora,  é  caridade 
Nâo  me  apartar  do  filho  que  me  deu,  » 

Scismava  alegre  tanta  scima  vaga, 
Pedia  a  Deus  por  elle  tanto,  tanto. 
Que  só  de  crél-o  auzente  era  aziaga 
A  hora  que  o  furtava  ao  seu  encanto... 

Mas  os  tempos  passaram  :  tudo  acaba  ; 
Nem  no  senho  feliz  o  foi  siquer ! 
Ha  filhos- reptis  que  cospem  baba, 
Lethal  veneno  a  um  seio  de  mulher. 

Elle  o  fizei'a.  A"quetla  que  os  vagidos 
De  seu  berço  acudiu,  ó  mães  bondosas. 
Que  velara,  acalmando  os  seus  gemidos 
De  criança,  nas  noites  dolorosas, 

Levou-ihe  ao  rosto  a  mão  de  matricida !... 

A  pobre  velha  lá  mordfira  o  chão  : 

—  II  Com  meu  sangue  de  escrava  dei-Ihe  a  vida.  . 

A  seos  pés,  meu  senhor...  perdfio  I  perdilo  !  »  (1) 

Alem  de  lodos  esses,  os  mestiços  occupam  largo  espaço 
ias  obras  do  poeta.  Não  é  preciso  ouvir  nada  mais,  alem  á'A 
Mulata  : 

<•  Eu  sou  mulala  vaidosa, 
Linda,  faceira,  mimosa, 
Quaes  muitas  brancas  não  são  I 
Tenho  requebros  maia  bellos  , 
Se  a  noite  são  meus  cabellos, 
O  dia  é  meu  coraçSo. 

Sob  a  camisa  bordada, 
Pina,  tão  alva,  rendada, 
Treme-me  o  seio  moreno  : 
E'  como  o  jambo  cheiroso, 
Que  pende  ao  galho  frondoso 
Coberto  pelo  sereno  I 

(I)  Canto»  do  Equador,  pag.  1S5. 


632  HISTOBIA  DA  UTTEBJlTUKL  VRÃBJLKaJL 

Nos  bicos  da  chinellinha, 
Quem  vôa  mais  levesinha, 
Mais  levesinha  do  que  eu  ?... 
Eu  sou  mulata  tafula ; 
No  samba,  rompendo  a  chula, 
Jamais  ninguém  me  venceu. 

Ao  aânar  da  viola. 
Quando  estalo  a  castanhola, 
Ferve  a  dansa  e  o  desafio ; 
Peneiro  n*um  molle  anceio, 
Vou  mansa  n'um  bambaleio, 
Qual  vai  a  garça  no  rio. 

Aos  moços  todos  esquiva, 
Sendo  de  todos  captiva. 
Demoro  os  olhares  meus ; 
«  Que  tentação...  que  maldicta... 
Bravo !  mulata  bonita !  » 
—  Adeus,  meu  yôyô,  adeus... 

Minhas  yáyás  da  janella 
Me  atiram  cada  olhadella... 
Ai !  ddrse  ?  mortas  assim  l 
£  eu  sigo  mais  orgulhosa. 
Como  se  a  cara  raivosa 
N&o  fosse  feita  p*ra  mim. 

Na  fronte,  ainda  que  baça, 
Me  assenta  o  troço  de  cassa 
Melhor  que  c'rôa  gentil  ; 
£  eu  posso  dizer  ufana 
Que,  qual  mulata  bahiana, 
Outra  n&o  ha  no  BrasU. 

Nos  meus  pulsos  delicados 
Trago  coraes  engrazados. 
Contas  d*ouro  e  coralinas ; 
Prendo  meu  panno  á  cintura, 
Que  mais  realça  á  brancura 
Das  saias  de  rendas  finas. 


HI8T0BIA  DA  UTTUULTUBA  BEA8XLBIBA  633 

Se  tanho  um  desejo  agora, 
De  meus  aífectos  senbora, 
Sei  encontral-o  no  amor. 
—  Ai  1  muluta  I  ai  i  borboleta  1 
£'  tua  sina  inquieta, 
Tu  pousas  de  flor  em  flor. 

Meus  brincos  de  pedraria 
Tocam,  fazendo  harmonia 
Com  meu  cordão  reluzente ; 
Na  correntinha  de  prata 
Tem  sempre  e  sempre  a  mulata 
Figuinhas  de  boa  gente. 

Eu  gosto  bem  d*esta  vida, 
Que  assim  se  passa  esquecida 
De  tudo  que  é  triste  e  v&o ! 
Um  dito  bem  requebrado. 
Um  mimo,  um  riso,  um  agrado, 
Captivam  meu  coração. 

Nos  presepes  da  Lapinha 
S6  a  mulata  é  rainha, 
Meiga  a  mostrar-se  de  novo ; 
De  sua  face  ao  encanto 
Vai-se  o  fervor  pelo  santo, 
Pr*a  o  santo  não  olha  o  povo  1 

Minha  existência  é  de  flores, 
De  sonhos,  de  luz,  de  amores, 
Alegre  como  um  festim ! 
Escrava,  na  terra  um  dono, 
Outro  no  céu  sobre  um  throno. 
Que  é  meu  Senhor  do  Bomflm ! 

Na  fronte  ainda  que  baça, 
Me  assenta  o  troço  de  cassa. 
Melhor  que  c'róa  gentil ; 
E  eu  posso  dizer  ufana 
Que  qual  mulata  bahiana. 
Outra  n&o  ha  no  BrasU.  n  (1) 


(1)  CcuUoê  do  Equador^  pag.  53. 


684  HiarroBiÁ  da  littebatusa.  bsabilbi&a. 

A  parte  portugueza  ô  a  mais  exigua,  sem  ser  a  menos 
notável.  Por  brevidade  deixo  de  citar  algum  trecho  pro 
bativo,  o  que  também  faço  em  relaçôo  aos  Nocturnos  e  Phanr 
tasias  que  se  lêem  nos  Cantos  do  Equador. 

De  tudo  que  ahi  fica  expendido  é  fácil  concluir  que  a 
poesia  de  Mello  Moraes  Pilho  possue  uma  das  qualidades 
mais  preconisadas  da  poesia  contemporânea,  a  objectividade. 
E  assim  é ;  em  nenhum  de  seus  livros  deu  elle  entrada  a 
producções  puramente  pessoaes  e  subjectivas.  Mas  essa  ob- 
jectividade é  ideialisada ;  d'ella  o  poeta  extrae  aquellas  tin- 
tas, aquelles  tons,  que  mais  se  coadunam  com  a  indole  de 
sua  intelligencia.  Em  quanto  os  outros  mudaram  de  rumo 
em  busca  do  parnasianismo  contemporâneo,  elle  deixou-se 
flcar  no  tradicionalismo,  embeber  de  nacionalismo,  como 
um  adorador  consciente  do  pasado,  de  que  náo  faz  segredo 
nenhum  e  deseja  antes  que  todos  o  saibam. 

Ao  passo  que  os  nossos  escriptores  hodiernos  atiram-se 
quasi  todos»  á  imitação  da  Europa,  o  Dr.  Mello  Moraes  vai 
imperturbável  o  seu  caminho,  e,  por  isso,  como  naciona- 
lista, deverá  ser  contado  entre  os  melhores  de  nossos  poetas. 
Tem  imaginação,  delicadezas  de  sentimento,  variedade  de 
tintas,  subtilezas  de  forma,  em  summa,  aquelle  vago, 
«  aquelle  ponto  imponderável,  impalpável,  aquelle  átomo 
irreductivel,  aquelle  nada  que  em  todas  as  cousas  deste 
mundo  intitula-se  a  inspiração,  a  graça,  ou  o  dom,  e  que  é 
tudo  »,  repetindo  a  phrase  justa  do  pintor  Promentin. 

Luiz  Caetano  P.  Guimarães  Júnior  (1845-1898).  Na  seriação 
dos  poetas  hugonianos,  depois  d'aquelles  que  ficaram  analysa- 
dos,  e  antes  de  Luiz  Guimarães  Júnior,  deveriam  desfilar 
as  figuras  de  José  Jorge  de  Siqueira  Filho,  Pedro  Ribeiro 
Moreira,  Plinio  Xavier  de  Lima  e  António  Alves  de  Car- 
valhal. 

A  falta  de  documentos,  adequados  a  esse  flm,  priva-me 
doesse  prazer. 

Surge  também  agora  de  frente  o  vulto  de  Gonçalves 
Crespo.  Deve  ser  elle  incluído  n'uma  historia  da  litteratura 
brasileira  ? 


HIHTOBU  DA  LimRA.TUIU  BKASILURA  6S6 

No  começo  d'esle  livro  eu  disse  que  deveria  nos  tempos 
eoloniacs  reciamar  como  brasileiros  todos  03  nascidos  n'e8te 
paiz,  ainda  que  se  tivessem  na  juventude  retirado  para  Por- 
tugal e  de  lá  nSA  houvessem  mais  voltado  á  pátria  (í). 

E'  de  fácil  intuição  este  pensar.  Então  n&o  existia  a  na- 
nonalidade  brasileira,  toda  a  cultura  era,  alem  d'isso,  íwbida 
em  Portugal,  e  o  facto  do  nascimento  era  o  critério  único 
aara  a  separação  que  se  quizesse  estabelecer  entre  os  escríp- 
tores.  Hoje,  porém,  já  n5o  é  assim. 

Um  brasileiro  que  deixa  a  sua  pátria,  carecedora  de  seus 
esforços,  e  onde  se  Ibe  abre  grande  arena  para  a  actividade, 
i  vae  residir,  em  plena  juventude,  definitivamente  na  antiga 
metrópole,  alli  se  educa,  íaz-se  intellectualmente,  envolve- 
;e  na  vida  publica,  esquecendo-se  de  todo  das  velhas  relaçOes 
3  tradiçCes  que  lhe  cercaram  a  infância,  nlo  tenho  mais  o  di- 
reito de  o  reclamar,  de  o  chamar  um  dos  nossos.  E'  o  caso 
íxactamente  do  auctor  das  Miniaturas  e  dos  Noctitmos. 

Em  compensação  para  subslituil-o  tenho  em  seu  tempo 
liguem  e  este  alguém  é  ^níonio  de  Souza  Pinío,  auctor  das 
Méas  e  Sonhos,  do  Estudo  sobre  Pombal,  e  d'outros  livros 
d'igual  interesse. 

Pinto  é  um  produclo  espiritual  do  Brasil ;  veio  de  sua  terra 
nenino,  fez  aqui  toda  a  sua  educação,  formando-se  n'uma 
icademia  nacional.  E'  mister  vollar-me,  porém,  para  Luiz 
iíuimarSes  Júnior. 

E'  um  filho  da  escola  do  Recife ;  nio  foi  jamais  um  con- 
joreirista  extremado ;  era  já  um  elo  natural  entre  o  roman- 
tismo brasileiro  e  o  nosso  parnasianismo. 

N'arte  mostrou  sempre  tendências,  que  lhe  outorgam  este 
:aracter. 

Luia  Guimarães  era  natural  do  Bio  de  Janeiro;  Olho  de  fa- 
nilia  abastada  passou  a  infância  e  a  primeira  mocidade  na 
jatria  e  em  Petrópolis,  como  alumno  do  CoUegio  Calogeras. 

Inclinado  desde  então  aos  prazeres  e  passa-tempos  dos 
ialOes,  ainda  mais  se  lhe  apurou  essa  tendência  em  S3o  Paulo 


II  Vide  o  cap.  1  do  1*  vol. 


696  HISTOBIA  DA  UTTBRiTUSA  BBASILBIBA 

e  no  Recife,  cujas  academias  cursou  com  a  doce  fama  de  es- 
tudante rico. 

Depois  de  formado  em  ílns  de  1809,  passou  rapidamente 
pelo  jornalismo  e  pelos  salOes  fluminenses,  sendo  attrahido 
logo  á  carreira  diplomática,  o  mais  falso  de  todos  os  modos 
de  vida  que  pôde  um  homem  occupar  sobre  a  terra. 

Âhi  ainda  mais  se  apurou  o  scepticismo  elegante,  o  dan- 
dysmo  artístico  de  nosso  compatriota.  Elle  é  quasi  um  es- 
trangeiro para  nós.  E  aqui  releva  apontar,  desde  já,  o  especial 
género  de  contradicção  de  nosso  publico  lettrado  á  conta  de 
Guimarães  Júnior. 

E  é  este  :  quasi  todos  os  que  se  suppoem  com  direito  a 
votar  no  assumpto  consideram  os  seus  primeiros  livros  do 
Recife  o  do  Rio  mais  ou  menos  insigniflcantes  e,  quanto  ao 
ultimo,  —  Sonetos  e  Rimas^  —  prodigiosamente  admirável. 
Comprehendo  bem  a  revira-volta.  Podem  lá  ser  bons  uns 
livros  feios,  publicados  em  papel  commun,  em  typos  secun- 
dários ?  Não  é  possível. 

Mas  aquelle  livrinho  gentil,  vindo  do  estrangeiro,  da 
pátria  das  artes,  de  Roma,  em  edição  chie,  e,  logo  após,  em 
segunda  tiragem  de  Lisboa,  em  reliure  elegante,  aquillo  sim, 
é  que  são  versos  bellos... 

Que  coisa  bonital  Que  bibelots!  Confesso  que  não  vou 
por  este  caminho. 

Nunca  havia  lido  nada  de  Luiz  Guimarães.  Em  1868  e  09  — 
conheci-o  no  Recife  e  não  sei  que  espécie  de  preoccupação 
afastou-me  d'elle  e  privou-me  em  absoluto  de  lèl-o.  Então  já 
o  moço  fluminense  tinha  levado  á  scena  o  drama  As  Quedas 
Fataes  e  publicado  na  imprensa  pernambucana  bom  numero 
de  poesias  e  folhetins. 

Faço  esta  conflssão,  que  poderia  calar  e  que  a  muitos  pa- 
recerá extravagante,  porque  d'ella  vou  tirar  uma  conclusão 
favorável  ao  nosso  poeta  e  folhetinista. 

Li  agora,  por  obrigação  do  offlcio,  seus  livros  e  declaro 
que  me  deixaram  agradável  impressão.  Não  desgostei  d'elles; 
mas  justamente  na  ordem  inversa  á  estabelecida  pelo  geral 
dos  leitoreá. 

Acho  que  em  sua  phase  brasileira,   entre  1802  e  72  o 


HI8T0UÂ  DA  UTTUUTUIU  BlUBILSISA  637 

poeta  foi  mais  espontâneo,  mais  sincero,  sua  arte  mais  sen- 
tida, mais  humana;  ent&o  o  contista  e  o  folhetinista  era  mais 
despreoccupado,  mais  vivaz,  mais  lúcido  do  que  depois  pa- 
receu ser. 

Ouso  dizer,  pois,  que,  assim  considerados,  os  Corimbos 
s&o  superiores  aos  Sonetos  e  Rimas.  Estes  revelam  mais 
apuros  e  requintes  de  forma;  aquelles  simplesmente  mais 
alma  e  esta  é  tudo  em  poesia. 

A  razão  parece  militar  de  meu  lado.  A  poesia  é  uma 
d'essas  intuições  e  eflusões  inlimas  qua  só  têm  vida  quando 
partem  do  coração,  bem  acalentado  e  aquecido  pelo  bafejo  da 
pátria. 

Assim  como'  a  prece  e  os  monólogos  Íntimos  nós  só  os 
fazemos  na  lingua  materna,  ainda  que  vivamos  em  terra 
estrangeira  e  falemos  a  linguagem  alheia,  também  a  poesia 
só  pode  ser  verdadeiramente  vivida  na  lingua  pátria  e 
quando  esta  nos  é  transmittida  directamente  no  paiz  natal. 

Em  nossos  dias  em  que  se  fala  tanto  de  hypnotismo  e  sug- 
gestão,  e  mui  acertadamente,  porque  ha  muita  verdade 
n^esses  phenomenos,  é  bem  possível  fazer  d'elles  uma  ap- 
plicação  á  critica  litteraria. 

A  intitulada  lei  dos  meios,  com  toda  a  sua  influencia,  não 
será  um  caso  de  suggestão  espontânea  da  natureza  e  da  so- 
ciedade 7 

Ninguém  se  pode  furtar  á  acção  de  seu  tempo  e  de  seu 
ambiente  physico  e  social ;  todas  as  nossas  ideias  são  oriun- 
das das  impressões  que  d'ali  nos  vêm;  o  meio  é,  pois,  o  grande 
suggestor  de  todos  os  nossos  pensamentos.  Taes  verdades 
são  ainda  mais  instantes  e  inilludiveis  n'alma  sensível  e  fa- 
cilmente agitavel  dos  poetas. 

Estes,  como  os  insectos  que  tomam  a  côr  das  folhas  em 
que  se  occultam  e  repousam,  tomam  a  côr  e  a  forma  da 
sociedade  que  os  acolhe,  e  a  mais  propicia  para  lhes  desen- 
volver o  génio  é  incontestavelmente  a  da  pátria,  a  da  terra 
natal. 

Os  Corymbos  são  o  repositório  dos  cantos  do  poeta  dos 
dezoito  aos  vinte  e  cinco  annos,  quando  elle  não  tinha  sabido 
de  seu  paiz  e  aprendido  na  diplomacia  a  arte  das  formas 


638  HISTORIA  DA  LITTX&ATURA  BRABILEIBA 

polidas  e  aptas  a  esconderem  e  refolharem  o  pensamento 
e  o  sentir. 

Como  factura,  como  mão  d'obra,  como  producto  de  ouri- 
vesaria, os  Sonetos  e  Rimas  deixam  os  Corymbos  muito  a 
perder  de  vista ;  como  expressões  francas  de  uma  alma  de 
rapaz,  estes,  repito,  ganham  a  palma. 

Mas  tudo  istoi  é  ainda  muito  genérico;  é  preciso  per- 
scrutar mais  de  perto  o  auctor ;  qual  o  valor  e  o  alcance  de 
seu  talento  ?  E'  o  que  é  preciso  ser  dito  em  poucas  palavras. 
Luiz  QuimarSles  Júnior  não  foi  uma  intelligencia  apta  para 
a  sciencia,  a  critica,  a  philosophia,  as  especulações  que  exi- 
gem profunda  tensão  de  espirito.  Na  bella  litteratura  mesma 
—  o  romance  e  o  drama  lhe  eram  interdictos,  ainda  que  os 
tivesse  tentado  por  vezes. 

Os  géneros  que  lhe  ficavam  de  molde  eram  a  poesia  leve, 
o  conto  rápido  e  o  folhetim  minúsculo.  Â  primeira  é  que  lhe 
assenta  melhor. 

Em  seus  livros  de  poesias  não  encontrei  uma  só  producção 
que  me  parecesse  de  todo  má ;  também  não  se  me  deparou 
nenhuma  verdadeiramente  superior  e  imponente. 

O  poeta  não  ultrapassa  certa  distancia  em  seu  võo ;  vae 
a  certa  altura,  é  verdade,  e  deixa-se  lá  pairar  graciosamente  ; 
mas  não  se  perde  nas  nuvens. 

Não  produz  brilhantes  raros  engastados  em  flnissimo  ouro; 
espalha  rubis,  turquezas,  saphyras  e  topázios  em  graciosas 
jóias  de  ouro  médio  e  faz  deliciosas  filigranas  de  bôa  prata. 
Também  não  desce  ao  estanho  e  ao  cobre. 

Não  é  poeta  para  alentar  a  gente  nos  momentos  das  grandes 
dores,  das  grandes  crises  do. espirito  ;  é  um  diligente  e  pra- 
zenteiro camarada  para  certas  horas  de  descuido  ou  de  en- 
fado. 

No  conto  e  no  folhetim,  no  meio  de  paginas  desgeitosas 
e  banaes,  contam-se  algumas  bem  nutridas  e  gostosamente 
legíveis. 

Por  este  lado  sua  obra  acha-se  encerrada  nas  Historias 
para  gente  alegre^  nos  Contos  sem  pretençâo^  nas  Pilagranas, 
e  nas  Curvas  e  Zig-zags. 
Sinto  pressa  de  concluir,  e  quero  logo  mostar  ao  leitor  as 


f 


HISTORIA  DÁ  LITTBBATUBA  BUA,ftIL»TEA  639  J 

provas  do  que  lhe  tenho  affirmado.  Vae  vêr  por  si  mesmo 
alguma  cousa  do  poeta  e  do  prosaista. 
Dos  Corymbos  aprecie  Recuerdo  : 

(c  Nós  estávamos  sós.  Triste  e  saudosa 

Surgia  a  lua  no  elevado  monte  : 

Cheia  de  orvalho  suspirava  a  rosa,  4 

Cheia  de  rosas  suspirava  a  fonte. 

Ao  pé  de  nós  a  aragem  murmurava  : 

Nos  curvos  ramos  da  mangueira  em  ílor ; 
Nos  nossos  lábios  a  iilus&o  cantava,  \ 

Nos  nossos  olhos  despontava  o  amor. 

Nós  estávamos  sos.  EUa  tremia 
Cravando  o  olhar  nos  mudos  olhos  meus  : 
O  que  eu  lhe  disse,  o  que  ella  me  dizia 
Foi  um  mysterio  que  sumio-se  em  Deus... 

A  natureza  festival  sorrindo 
Nos  attrahia  e  nos  forçava  a  amar  : 
Dizia  o  céo  :  —  como  este  par  ó  lindot 
Dizia  a  noite  :  e  como  é  bom  sonharl 

Todo  o  mysterio  que  seduz  e  encanta, 
Tudo  o  que  corta  a  solidão  baixinho  : 
O  som  d*um  beijo,  o  estremecer  da  planta. 
O  vôo  das  aves,  procurando  o  ninho ; 

A  folha  secca  que  resvala  e  freme. 
Da  lua  o  raio  solitário  e  vago, 
O  molle  orvcdho  que  nas  urzes  treme, 
A  sombra  inquieta  que  pertuba  o  lago ; 

Tudo  assistio  ao  virginal  encanto 
Das  nossas  crenças  para  sempre  unidas  : 
Viram  dois  rostos  confundindo  o  pranto, 
E  duas  almas  confundindo  as  vidasl 

As  doidas  phrases  que  a  chorar  dissemos 
D*aquella  noite  na  eternal  mudez, 
O  louco  abraço,  as  juras  que  fizemos  : 
—  Nfto  se  repetem  :  fazem-se  umci  vez!  »  (1) 

(1  )Corymbo9y  pag.  27. 


"^ 


640  HISTOBIA  DA  LITTBRATnSA.  BBABILEIBA 

Dos  Sonetos  e  Rimas  note  A  morte  da  águia  : 

A  bordo  vinha  uma  aguio.  Era  um  presente 
Que  um  potentado,  —  um  certo  rei  do  Oriente, 
Mandava  a  outro  :  —  um  mimo  soberano. 
Era  uma  águia  real.  Entre  a  sombria 
Grade  da  jaula  o  seu  olhar  luzia, 
Profundo  e  triste  como  o  olhar  humano. 

Aos  balanços  do  barco  ella  curvava 
Ao  niveo  coUo  a  fronte  que  scismava. 
E  emquanto  as  ondas  túrbidas  gemieon 
Ao  som  do  vento  em  fúnebres  lamentos, 
Ella  pensava  nos  longinquos  ventos 
Que  do  Hymalaia  os  píncaros  varriam. 

Fora  uma  infame  e  traiçoeira  bala, 
Que  do  régio  fusil  negra  vassalla, 
Invisivel  —  uma  aza  lhe  partira  : 
Cheia  de  luz,  tranquilla,  magestosa, 
Dobrando  a  fronte  branca  e  poderosa. 
Aos  pés  de  um  rei  a  águia  real  cahira. 

Os  bonzos  vis,  propheticos  doutores, 
Sondando-lhe  a  ferida  e  as  cruas  dores, 
Que  um  venenoso  bálsamo  tentava 
Apaziguar  em  vâo,  —  diziam  rindo  : 
(c  N&o  ha  no  mundo  um  exemplar  mais  lindo  : 
Vale  um  império.  »  —  E  a  águia  agonisava. 

Um  dia,  emâm,  o  animal  valente 
Resistindo  aos  martyrios,  —  largamente 
Respirou  a  amplid&o.  A  aza  possante 
Abrir  tentou  de  novo.  Aberta  estava 
A  jaula  colossal  que  o  esperava  : 
Forçoso  era  partir.  Desde  esse  instante 

A  aguía  sombria  e  muda  e  pensativa, 
Solemne  martyr,  victima  captiva. 
Terror  dos  vis,  e  symbolo  dos  bravos, 
Pedio  a  morte  a  Deus.  —  Pedio-a  anciosa. 


I 


HISTOBIA  DA  UTTXBATURA  BKABIIiUBA  G4t 

Longe,  porem,  da  corte  vergonhosa 
D*esse  covarde  e  baixo  rei  de  escravos. 

Pedio  o  morte  a  Deus,  o  cataclismo. 
As  convulsões  eléctricas  do  abysmo. 
As  batalhas  do  arl  Morrer  n*um  grito 
Vibrante,  immenso,  heróico,  soberano, 
E  fremente  rolar  no  azul  do  Oceano 
Como  um  titão  cabido  do  infinito. 

Morrer  livre,  cercada  de  victorias. 
Com  suas  azas  —  pavilhão  de  glorias  — 
Inundadas  da  luz  que  o  sol  espalha  : 
Ter  o  fundo  do  meu*  por  catacumba. 
As  orações  do  vento  que  retumba, 
E  as  cambraias  da  espuma  por  mortalha. 

Emtanto,  melancólica,  tristonha, 
Como  um  gigante  mórbido  que  sonhu, 
Fitava,  ás  vezes,  o  revolto  Oceano 
Com  esse  olhar  nublado  e  delirante. 
Com  que  saudava  a  César  triumphante 
O  moribundo  gladiator  romano. 

O  commandeinte  —  urso  do  mar  bondoso  — 
Disse  um  dia  ao  escravo  rancoroso. 
Ao  carcereiro  estúpido  e  inclemente  : 
«  Leve-a  ao  convez.  Verá  que  esse  desmaio 
Basta  pcura  apagal-o  um  brando  raio 
Dq  l6trgo  sol  no  rúbido  oriente.  » 

Subio  então  a  jaula  ao  tombadilho  : 
Do  nato  dia  o  purpurino  brilho 
Salpicava  de  luz  o  céo  nevado... 
E  a  águia  elevando  a  pálpebra  dormente, 
Abrio  as  azas  ao  clarão  nascente 
Como  as  hastes  de  um  leque  illuminado. 

O  mar  gemia,  lobrego  e  espumante, 
Açoitando  o  navio;  —  alem  —  distante, 
Nas  vaporosas  bordas  do  horisonte, 
As  matutinas  névoas  que  ondulavam, 

HISTORIA  n  il 


•  m 


642  HI8T0BIA  BA  LITTEBATURA  BSABILBIBA 

Em  suas  varias  curvas  figuravam 

Os  largos  flancos  triumphaes  de  um  monte. 

«  Abra-lhe  a  porta  da  prisão  »,  (ridente 
O  commandante  disse)  :  (c  Esta  corrente 
Para  conter-lhe  o  vôo  é  mais  que  forte  : 
VoarI  pobre  infeliz!  causa  piedade! 
Dô-lhe  um  momento  de  ar  e  liberdade, 
Único  meio  de  a  salvar  da  morte  » 

Quando  a  porta  se  abrio,  —  como  uma  tromba, 
Como  o  invencível  furacão  que  curomba 
Da  tempestade  as  negras  barricadas, 
A  águia  lançou  por  terra  o  escravo  pasmo, 
E,  desprendendo  um  grito  de  sarcasmo, 
Moveu  as  azas  soltcus  e  espalmadas. 

Pairou  sobre  o  navio  —  immensa  e  bella  — 
Como  uma  branca,  uma  isolada  vela 
A  demandar  um  livre  e  novo  mundo; 
Crescia  o  sol  nas  nuvens  refulgentes, 
E  como  um  turbilhão  de  águias  frementes, 
Zunia  o  vento  na  amplidão,  —  profundo. 

Ella  lutou,  anciosa!  Atra  agonia 
Suffocava-a.  O  escravo  lhe  estendia 
Os  miseráveis  e  covardes  braços  ; 
Nú  o  Ocecmo  ao  longe  scintillava, 
E  a  rainha  do  ar,  em  vão,  buscava 
Onde  pousar  os  grandes  membros  lassos. 

Sobre  o  barco  pairou  ainda,  —  e  alçando. 
Alçando  mais  os  vãos  e  afogando 
Na  luz  do  sol  a  fronte  alvinitente, 
Ébria  de  espaço,  ébria  de  liberdade, 
Como  um  astro  que  cai  da  immensidade, 
Afundou-se  nas  ondas  de  repente.  »  (1) 

Nas  poesias  de  Luiz  Guimarães  predominam  as  impres- 
sões pessoaes,  subjectivas.  Os  quadros  da  natureza  exterior 
são  em  pequeno  numero  e  de  mérito  secundário. 

(1)  Sonetos  e  Rimoê,  2.*  ediç&o,  pag.  13. 


HISTOBIA  DA  LITTESATURA  BBA8ILBI&A  643 

Tem  poucas,  quasí  raras,  paginas  de  caracter  nacionaL 
Os  Sonetos  e  Rimas  trazem  no  género  apenas  A  Sertaneia ; 
os  Corymbos  apenas  A  Choça  do  Lenhador. 

Nos  contos  e  folhetins  o  auctor  é  mais  abundante  em  notas 
locaes,  algumas  bem  apanhadas  e  descriptas  com  habilidade 
e  agudeza. 

Doeste  género  se  me  antolha  ser  A  Mucama,  que  vou  pôr 
sob  as  vistas  de  quem  me  lê  : 

«  E*  o  mino  da  casa  ;  as  meninas  contam-lhe  todos  os  segredos ; 
os  escravos  a  respeitam;  as  visitas  reconhecem  n'ella  a  herdeira 
presumptiva  das  malicias  e  indiscreções  da  íamilia;  e  sua  vida  re- 
sume-se  em  ser  a  companheira  da  senhora  moça  em  solteira,  e  a 
criada  particular  da  senhora  moça  quando  se  casa! 

E*  a  favorita  do  lar  domestico;  uma  espécie  de  Montespan  retinta, 
azougada,  de  cahello  aprumado,  por  cujas  mãos  teem  de  passar 
todos  os  requerimentos  que  se  dirijam  á  edta  sabedoria  do  conci- 
liábulo famUiar.  Em  Inglaterra  chama-se  Betty;  em  França  Mar- 
ton;  em  Portugal  Maria;  no  Brasil  perde  o  nome  de  baptismo  para 
grangear  o  honroso  qualificativo  de  mucama. 

Contam  as  chronicas  antigas  que  o  melhor  meio  de  se  attrahir  a 
confiança  dos  monarchas,  era  em  primeiro  logar  angcoiar  a  sym- 
pathia  das  favoritas.  Ninguém  levará  a  mal  essa  observação,  desde 
que  se  lembrar  da  Pompadour,  da  La  Vallière,  da  duqueza  de  Berry, 
da  duqueza  de  Chevreuse,  da  Maintenon,  da  Parabère  e  de  outras 
estreUas  galcmtes  do  escandaloso  horisonte  do  século  XVIII. 

Pois  no  Brasil,  e  especialmente  no  Rio  de  Janeiro,  essa  plêiade  de 
figuras  gentis,  essaâ  duquezas,  princezas,  marquezas,  loiras,  mo- 
renas, infiéis,  ousadas,  encantadoras,  resumem-se  n'um  simples 
perfil,  cujo  maior  luxo  é  o  de  trazer  o  cahello  áspero  repartido  e 
empinado,  os  olhos  vivos,  o  dente  claro,  o  motejo  e  o  muxoxo 
promptos,  o  vestidinho  engommado,  a  côr  envernisadamente  negra 
e  uma  insolência  â  prova  dos  mais  ríspidos  preconceitos  sociaes. 

Será  preciso  nomear  a  mucama?  Quem  nao  a  reconheceu  já  nos 
rápidos  traços,  que  ahi  deixamos,  embora  toscos  e  incolores? 

Um  espirito  superior  em  nossa  litteratura,  desenhou  em  quadro 
de  mestre  a  physionomia  garrida,  impertinente,  cruel,  engraçada 
e  arisca  do  moleque,  o  demónio  familiar,  o  secretario  do  senhor 
moço,  o  terror  das  visitas,  e  o  cofre  indiscreto  de  todos  os  mysterios 
da  casa  e  da  visinhança! 

Só  a  mesma  penna  seria  capaz  de  pôr  em  relevo  o  iyyo  da  mucam» 


644  HISTORIA  DA  LITTEBATITRA  BSABILBIBA 

brasileira.  Devo-lhe  esta  vénia,  antes  de  metter  a  mão  na  custosa 
seara. 

A  mucama  é  uma  confidente,  —  que  digo?  é  uma  pessoa  da 
familia,  uma  parenta  e  quasi  sempre  uma  filha.  Identifica-se  com 
os  gostos,  os  defeitos,  os  cacoetes  dos  senhores,  a  tal  ponto  que  eu 
ouvi  um  sujeito  perguntar,  ha  tempos,  á  minha  vista,  á  mucama, 
durante  o  jantar  : 

—  Oh!  pequenal  devo  principiar  pelo  frango  ou  pelo  carneiro? 
EUa  respondeu  não  sei  o  que,  e  curvou-se  immediatamente,  para 

dizer  qualquer  cousa  ao  ouvido  da  menina. 
O  sujeito,  respeitando  o  meu  honesto  pasmo,  disse-me  rindo  : 

—  E'  a  mucama  de  minha  filha. 
E  ao  meu  ouvido  : 

—  E*  um  Éizouguel 

A  mucama  é  quem  veste  a  nossa  noiva,  quem  a  pentéa,  quem  lhe 
ensina  o  meio  de  nos  fazer  ciúmes  no  ar,  quem  vê  primeiro  os  figu- 
rinos da  ama  e  os  escolhe,  quem  nota  os  defeitos  e  as  hellezas  das 
visitas  da  casa,  quem  as  despede  á  porta  da  rua,  quando  lhe  apraz, 
quem  acompanha  a  menina  á  chácara,  ao  quarto,  â  cama,  e  é  quem^ 
na  hora  do  noivado,  lhe  prega  o  ultimo  alfinete,  murmurando  seja 
o  que  fôr  que  obriga  a  noiva  a  corar  e  a  rir  diabolicamente. 

—  E  vai  se  casar  sempre  com  o  Santos,  nhanhfi?  perguntou  uma 
á  senhora  moça,  no  dia  em  que  esta  acceitara  o  pedido  do  preten- 
dente. 

—  Vou.  O  que  é  que  tem? 

—  Não  era  eu!  Olhe,  disso  estava  elle  livre! 

—  Porque? 

—  E  a  verruga  do  pescoço? 

—  A  verruga? 

Os  olhos  da  noiva  brilharam,  e  suas  faces  tingiram-sc  de  um  pur- 
purino  arrebol. 

—  Só  hoje  foi  que  eu  dei  pela  cousa  I  proseguio  o  demónio  negro. 
E  matisava  as  palavras  de  gargalhadas  intermittentes.  Hoje  â  hora 
do  chá ! 

'  —  Mas... 

—  Ora,  linha  que  vôr  ;  uma  moça  do  Cassino,  uma  moça  fregueza 
da  Noire  Dame  e  que  anda  no  coupé  do  papai ! 

—  Explica-te  !  explica-te  I 

—Eu  lhe  conto.  Quando  a  gente  veio  tomar  chá,  eu  dei  para  ficar 
por  traz  d*elle.  Meu  dito,  meu  feito,  NSo  tirei  mais  os  olhos  de  cima 
do  homem.  Conversa  pucha  conversa;  e  abaixa  aqui,  e  abaixa 
acolá,  o  certo  é  que  d*uma  vez  que  elle  se  debruçava  para  um  lado, 


HI8T0BIA  DA  LITTSItATUKA  BKASILBIBA  645 

O  collarínho  affastou-se,  e  eu  vi  com  estes  olhos  mesmo,  uma  ver- 
ruga do  tamanho  d'um  tento  com  que  meu  senhor  joga  o  solo  I 

—  Feissima,  hein  ? 

-~  Deus  me  defenda !  parecia  um  besouro...  Então,  com  pena  de 
nhanhft... 

—  Está  bom.  Vai  te  deitar. 

—  Nfto  quer  neula  mais  ? 

—  Nfto,  acudio  a  menina  um  pouco  febril.  Vai-te  deitar. 

No  dia  seguinte,  desmemchava-se  o  casamento.  Doesta  vez,  a  fa- 
talidade rebentou  no  seio  de  uma  família  sob  o  aspecto  d*uma... 
verruga  ?  Qual  ?  sob  o  aspecto  d'uma  mucama  I 

A  mesma  menina,  atenasada  pelo  demónio  negro,  cazou  com  um 
biltre  que  a  injuriava  dia  e  noite,  para  dar  razão  á  mucama.  Isso  é 
vulgar ! 

A  mucana  consegue  dominar  todos  os  representantes  da  família, 
desde  o  chefe  até  o  ultimo  parente.  E'  muitas  vezes  o  pomo  da  dis- 
córdia. Uns  defendem-na,  outros  censuram-na ;  outros  nem  a  cen- 
suram nem  a  defendem  ;  ficando  ella  na  posição  altamente  histórica 
de  Helena,  pela  qual  brigaram  os  valentes  heróes  de  Homero  ! 

A  educação  brasileira,  que  não  é  por  fim  de  contas  o  ideal  das 
educações  racionaes,  deve  banir  de  seu  grémio  essa  íigura  irónica, 
traidora  e  graciosa  da  mucama. 

A  mucama  é  um  perigo  ;  um  pengo  que  se  insinua,  quasi  imper- 
ceptivelmente,  á  maneira  do  arranhão  do  gato  ou  das  febres  inter- 
mittentes.  Depende  muitas  vezes  d'ella  o  socego  do  lar  domestico, 
e  não  é  para  admirar  que  o  seu  espirito  infernal  sirva  de  peso  na 
bedança  das  nossas  contribuições  sociaes  e  politicas. 

Em  tempo  de  eleições  : 

—  Rapariga,  vai  vôr  quando  passa  o  Cunha  e  entrega-lhe  isto. 
São  as  chapas  da  nossa  freguezia ! 

Pouco  depois  pára  junto  á  janella  um  Cupido,  que  costuma  corte- 
jar a  menina  da  casa. 

—  Então,  pequena,  o  que  ha  de  novo  ? 

—  Nada.  Só  eu  que  aqui  estou  á  espera  do  sr.  Cunha,  para  lhe  dar 
as  chapeis. 

—  Que  chapas  ? 

—  Eu  sei  ?  1  Da  freguezia  do  meu  senhor  !  Olhe  I 
E  mostra  o  embrulho. 

O  Cupido  tem  uma  súbita  inspiração. 

—  Oh,  pequena,  dá  cá  isso ! 

—  Para  que  ? 

—  Ora  vamos  1  Dá  cá,  e  toma  estas ! 


646  HISTOBIA  DA  LITTERATU&A  BRA8ILXI&A 

—  Hein  ? 

—  Se  me  queres  bem  1...  Nâo  sejas  má...  então  ? 
E  trocam-se  os  embrulhos. 

O  certo  é  que,  na  apuração  das  cédulas,  o  homem  entra  em  c€Lsa 
desorientado  : 

—  Isto  só  por  artes  do  diabo !  vocifera  elle.  Rapagira  I 

Vem  a  mucana ;  olhos  serenos,  peito  tranquillo,  e  com  um  sor- 
riso apenas  malicioso  no  canto  da  boca. 

—  Entregaste  as  chapas  ao  Cunha  ? 

—  Sim,  Sr. !  Elle  que  diga ! 

—  Diabo,  diabo  I... 

E  emquanto  o  derrotado  heróe  da  freguezia  arranca  os  cabellos 
e  as  barbas  a  mãos  jimtaâ,  a  mucama  estala  de  riso,  por  taz  do  ba<&- 
tidor  da  senhora  moça ! 

A  mucama  está  coUocada  entre  o  escravo  e  a  familia ;  nem  é  pro- 
priamente filh6^  nem  propriamente  escrava. 

Para  ella  se  inventou  um  meio  termo  de  censura  e  de  caricia ; 
um  quasi  beliscão  e  um  quasi  beijo. 

Ella  nasceu  no  mesmo  dia  em  que  a  menina  veio  ao  mundo ;  os 
gostos,  os  dissabores,  as  malicias,  as  ingenuidades,  os  caprichos 
da  menina  refletem-se  n'ella. 

Se  estÁ  pezarosa  a  senhora,  a  mucama  pezarosa  está;  se  a  senhora 
vive  alegre,  o  mundo  descobre  esse  lisongeiro  estado  no  nariz  es- 
perto, no  cabello  relusente  e  nos  lábios  perigosos  do  travesso  de- 
mónio. 

A  menina  esconde  um  segredo,  dous  segredos,  o  maior  segredo 
de  sua  aJma  a  sua  mãe;  á  mucama,  não.  E  tente-o ! 

Ella  vem  surrateiramente  como  a  cobra,  como  a  pulga,  como  a 
traição.  Olha  para  a  senhora  moça ;  tosse  de  manso ;  demora-se 
em  arrumcu*  alguma  cousa  na  toUlete ;  estaca  a  examinar  um  vidro 
de  perfume ;  pergunta  mil  vezes  se  não  ha  necessidade  de  cousa 
alguma,  e  por  âm  exhala  um  retumbante  suspiro,  com  os  olhos 
piedosamente  erguidos  ao  tecto. 

—  O  que  tens  tu  ? 

E  palavrp  depois  de  palavra,  phrase  em  seguida  a  phrase,  ques- 
tões, reticencias,  armadilhas,  maliciosas  perfídias,  até  que  emfím... 

Até  que  emíim,  a  mucama  ao  romper  do  dia,  vai  contar  â  dona 
da  casa,  com  certo  aprumo,  tudo  quanto  a  menina  occultou  ás  la- 
grimas e  supplicas  maternas. 

E*  uma  raça  damninha  realmente,  mas  é  o  lado  espirituoso,  é  o 
lado  galante,  é  o  lado  anecdotico  e  gentil  da  escravidão  brasileira. 


BI8X0KU  DA  LITTE&ATUBA  B&ASlLttRA 

De  todos  08  escravos,  o  mais  perigoso,  terrível,  invenci 
é  a  mucama.  Terrível,  por  ser  justamente  o  mais  seduct 
Ha  pais  que  dizem,  apresentando  a  fllha  ao  noivo,  c 
melhor  elogia  : 

—  N&o  tem  parentes ! 

Se  elles  dissessem  :  —  Nfto  lera  mucama !  seria  cousa  d( 
com  mais  vantagem,  o  espirito  e  o  socego  dum  noivo  con 

A  propósito  de  noivo...  Um  janota  fluminense,  rap 
atoleimado,  rico,  aocio  do  Jockey-Club,  e  talento  capaz  d 
bilhar,  levar  a  cal>o  uma  dúzia  de  carambolas  em  dez  d 
um  moço  perfeito  emflm  !  —  estava  a  pular  de  cobiça  p 
uma  herdeira  riquíssima,  cento  e  cíncoenta  apólices,  de 
magniflcos,  madrinha  millionaría,  etc,  etc.  I 

A  menina  era  galante,  mas  ingénua,  de  forma  que  o  si 
quasí  por  ganha  a  partida.  Havia,  porém,  uma  barreii 
da  aventura ;  e  que  barreira,  Virgem  purríssima  I  —  ' 
mucama  I 

Pai,  mãi,  irmão,  amigos,  todos  amaldiçoavam  o  dia 
janota  põz  os  olhos...  nas  apólices  da  donzella.  A  mãe, 
conferencias  intimas  tratara  de  aconselhar  a  filha. 

—  Eu  tenho  mais  de  vinte  annos,  mamSe.  Ou  me  cas' 
ou  ent&o  a  lei... 

A  lei  eia  um  dos  recursos  a  que  se  prendia  a  lógica  do 
Em  todas  as  suas  cartas  elle  falava  na  lei... 

A  menina  sentia-se  vencida  e  fascinada. 

A  mucama,  por  caprícho  ou  por  commiseraçAo  de  famil 
se  a  cortar  a  crise. 

No  momento  de  se  deitar,  disse-lhe  a  senhora  moça,  ( 
incendiada  e  o  seio  convulsivo  ; 

—  Se  papai  n&o  consentir,  eu  hei  de  ser  tirada  por  justií 
A    mucama   deixou    de    desncolchetar   o   vestido   de 

olhando-a  com  certa  penetração. 

—  Nunca  me  viste  ? 

—  Estou  admirada ! 

—  Oh  !  oh  !  porque  ? 

—  Porque  esse  moço  lhe  quer  tanto  bem  como  a  mim ! 

—  Hein  I 

—  Vamos  apostar ! 

—  Estás  doidft  ? 

—  Vamos  aposloi',  siiiliá!  Em  sendo  horas  amanhã  ei 
o  portáo,  e  o  que  se  passar,  vosmicé  verá  da  janella  do  ja 

—  Que  vaes  tu  fazer,  rapariga  ? 


r48  HISTOBIA  DA  LITTEKATUBA  BRABILBISA 

—  Verá! 

Os  olhos  da  mucama  fulguravam  como  duas  brazas  infemaes. 
A  menina  sorrio  desdenhosa  e  entregou-se  toda  aos  ineffaveis  ar- 
roubos de  sua  poética  aventura. 

Na  tarde  do  seguinte  dia,  a  mucama  approximou-se  á  senhora 
moça.  Estava  luzidia,  viçosa,  enfeitada,  rutillante  de  perversidade 
e  malícia. 

—  Espere  um  pouco,  sinhá ! 
— -  Esperar  porque,  maluca? 

—  Pela  prova  que  eu  lhe  disse  hontem.  Elle  ha  de  vir  buscar  a 
resposta  da  carta... 

—  Se  tu  fizeres  alguma  cousa... 

—  Esconda-se  vosmicê  por  traz  da  persiana  e  conhecerá  quem  é 
o  sujeitinho.  Também  pôde  acreditar,  se  elle  não  fôr  como  os  outros, 
eu  mesma  lhe  direi  :  —  caze-se  já,  já  sem  perda  de  tempo ! 

—  Tola ! 

A's  dez  horas  da  noute,  o  silencio  cercava  toda  a  sumptuosa  habi- 
tação. A  menina,  entre  a  curiosidade  e  o  enleio,  acondicionou-se  â 
sombra  da  persiana.  Era  a  hora  em  que  o  janota  vinha  regular- 
mente trocar  entre  as  mãos  da  mucama  as  epistolas  amatorias. 

Tic,  tac^  lie,  tic,  tac,  iac. 

Lá  vinha  elle !  Chegou  emfim !  Examinou  se  alguém  o  seguia,  se 
alguém  o  via,  se  o  espreitava  alguém...  Adiantou-se  até  o  portão. 
A  mucama  sahio-lhe  ao  encontro. 

—  Então  ?  indagou  o  janota,  estendendo  a  mão,  á  espera  da  caxta 
habitual. 

—  Hoje  não  ha,  meu  senhor!...  acudio  ella,  desfazendo-se  em 
meneios  e  momos  graciosos. 

—  Tua  senhora  ? 

—  Não  está  em  casa. 

—  Como?! 

—  E'  verdade...  eu  estou  só. 

—  A  familia  toda  sahio  ? 

—  Todinha. 

E,  momentos  depois,  ouvio-se  no  silencio  da  noute,  o  niido  sonoro 
d'um  beijo. 

Inmiediatamente,  porém,  estalou  uma  gargalhada  vibrante, 
acerada,  estridente,  e  o  portão  fechou-se  com  estrondo  nas  barbas 
do  novo  D.  Juan. 

A  gargalhada  crescia  de  fúria,  de  expansão  e  de  sonoridade. 

Ao  mesmo  tempo  descerrava-se  a  persiana  e  surgia  o  rosto  colé- 
rico e  pallido  da  illudida  enamorada. 


r 


HISTORIA  DA  UTTBRATDBA  BRASILSIKA 

—  Então,  sinhá  ?  Ganhei  ou  perdi  a  apostu  ? 

O  janota  enfurecido  tentou  abrir  o  portão.  Acordou  o  fei 
nas.  Ia  despertando  o  alarma  na  casa.  Acbou  mais  comm 
rar-se.  Fel-o  com  a  maior  prudência  e...  presteza. 

Quando  a  mucama  approximou-se  á  senhora  moça,  m 
comprimir  as  risadas  que  a  suflocavum. 

A  menina  oUiava-a  pasma  e  muda,  sem  saber  se  devia 
ou  acarinhal-a. 

—  Olhe,  sinhà  —  obaer\'ou  o  demónio  com  um  ar  genui 
infernal  —  d'e8ses  homens  hu  por  ahi  aos  centos,  como  as 
Não  vale  a  pena !  Nem  para  mim  1 

E  enxugou  desdenhosamente  a  face. 

Nunca  mais  se  falou  no  namoro  da  moça,  nem  se  vio  a  < 
teimada  do  janota.  A  familia  mal  sabia  a  que  attríbuir 
metamorphose. 

Um  dia,  em  segredo,  a  menina  narrou  a  scena  do  ron 
&  mfie,  a  mãe  ao  pai,  o  pai  ao  filho ;  e  de  commum  aocor 
deram  alforriar  a  crioula,  conservando-a,  porém,  no  poste 
cama  predilecta. 

Ella  preferio  ser  ainda,  ser  sempre,  ser  toda  a  vida,  n 
mas...  escrava. 

Mettemich  não  seria  mais  diplomata,  nem  Machiavel  i 
tuto.  «  (1) 

Luiz  Guimarães  Júnior,  por  mais  que  se  o  queira,  i 
sivel  collocal-o  na  primeira  ordem  dos  escriptores  brai 
Vae  para  a  segunda  categoria. 

Ausente  da  pátria,  durante  metade  da  existência, 
foi  um  combatente  activo  em  nossas  lactas  pela  ve: 
pelo  progresso.  Paltou-lhe  sempre  para  tanto  a  paixat 
ella  o  ideia). 


Luiz  Delfino  dos  Santos  (1834...)  Quem  tiver  de  e 
a  historia  da  poesia  brasileira,  ao  findar  a  phase  do 
tismo,  antes  de  passar  aos  scientificistas,  parnasianos 
bolistas,  successores  do  antigo  systema,  ha  de  enco: 
com  diversos  românticos,  que,  presentindo  a  dissolU' 
velhas  doutrinas,  tiveram  bastante  senso  e  bastantf 


(1)  Filagraniu,  p«g.  203  e  seguintes. 


650  HISTORIA  DA  LITTSRATU&A  BRABILSIUA 

lidade  de  espirito  para  tomar  assento  entre  os  grupos  no- 
vos que  se  iam  formando. 

D*esse  numero  é,  como  se  viu,  Luiz  Guimarães  Júnior; 
d'esse  numero  é  também  Luiz  Delfino  dos  Santos,  antigo 
condoreiro.  Ambos  vieram  abrigar-se  aos  arraiaes  parna- 
sianos. 

Doesse  numero  também  foram  Celso  de  Magalhães^  Antó- 
nio de  Souza  Pinto  e  Generino  dos  Santos.  Ha  apenas  uma 
differença  e  esta  6  de  importância  capital  :  estes  não  se 
alistaram  entre  os  d'aquelle  grupo,  coUocaram-se  n'um  ponto 
de  vista  especial,  alguma  cousa,  que  não  é  parnasianismo, 
nem  scientiflcismo,  nem  o  realismo  ou  o  naturalismo,  como 
vulgarmente  sáo  interpretados. 

E'  alguma  cousa  que  não  sei  que  nome  possa  ou  deva  ter, 
que  a  mim  se  me  afigura  uma  espécie  de  conceptualismo 
semi-philosophico  e  semi-poetico,  bem  equilibrado ;  porém 
de  pequeno  alcance. 

Celso  de  Magalhães,  fallecido  em  1879,  e  Sousa  Pinto,  ainda 
existente  em  Pernambuco,  são  mais  dois  temperamentos  de 
críticos  do  que  de  poetas. 

Em  terceiro  e  ultimo  volume  doesta  obra,  destinado  ao 
estudo  da  prosa  na  época  romântica  e  post  —  romântica, 
estudo  do  theatro,  do  romance,  do  conto,  da  historia,  da  phi- 
losophia,  das  sciencias,  da  critica,  do  jornalismo,  encontrarei 
estas  duas  figuras  e  me  hei  de  deter  ante  ellas. 

Quanto  a  Generino  dos  Santos,  sua  passagem  entre  os  ro- 
mânticos foi  demasiado  rápida  e  não  deixou  vestígios  dura- 
douros ;  sua  melhor  florescência,  sob  o  influxo  do  positi- 
vismo e  de  novos  ideiaes,  é  phenomeno  recente,  que  ílca 
também  dentro  do  termino  que  pretendo  impor  a  este  livro. 

Dos  velhos  românticos,  que  passaram  a  novas  doutrinas, 
só  dous  devem  agora  ser  contemplados,  por  terem  outr'ora 
muito  batalhado  sob  a  antiga  bandeira.  Um,  Guimarães  Jú- 
nior, já  o  foi ;  o  outro,  Luiz  Delfino  dos  Santos,  vae  sêl-o. 

Não  conheço  ninguém  mais  difflcil  de  ser  estudado  con- 
scienciosamente em  nossa  litteratura  que  este  poeta. 

Dar  d'elh'  uma  simples  noticia,  após  a  leitura  de  quinze  ou 
Ainte  peças  publicadas  avulsamente  nos  jornaes,  seria  por 


HISTORIA  DA  LITTERATUEA  BRA8ILSIRA  651 

certo  fácil.  Porem  não  se  trata  d'isto ;  a  cousa  é  mais  seria. 

E'  um  homem  que  deve  ser  biographado  e  cuja  vida  nao 
se  encontra  escripta.  Não  se  ha-de  ir  indagal-a  d'elle  mesmo. 
E'  um  homem  que  deve  ser  estudado  em  seus  livros  e  nâo 
os  possúe. 

Não  se  ha-de  andar  por  ahi  a  pescar  uma  ou  outra  poesia 
pelos  jornaes. 

Pensa-se  que  elle  tem  escriplo  pouco,  os  seus  íntimos 
acham  logo  meio  fácil  de  desmentir  a  gente,  afflrmando 
convictos  que  o  homem  possue  material  para  trinta  ou 
quarenta  volumes.  Só  em  sonelos  tem  cerca  de  três  mil 
espécimens. 

Como  vêr  tudo  isto  para  nâo  se  asseverarem  erros,  que 
podem  ser  outras  tantas  injustiças?  Hão  de  confessar  que  a 
cousa  é  mais  difflcil  do  que  se  pode  suppôr. 

Vou  dizer  d'elle  o  que  sei  síne  ira  ac  studio. 

O  que  penso  a  seu  respeito  é  ainda  hoje  fundamentalmente 
o  mesmo  que  publiquei  em  1882  no  opúsculo  —  O  natura- 
lismo em  litteraíura,  e  de  que  hei-de  aqui  reproduzir  o  tó- 
pico principal.  Apenas  lhe  juntarei  um  appendice  mais 
brando  ;  porque  está  é  uma  obra  de  historia  e  aquelle  folheto 
era  um  simples  artigo  de  polemica. 

Fica  assim,  desdo  já,  prevenida  a  objecção,  que  me  hão  de 
fazer  todos  os  que  se  encommodam,  quando  attenúo  um 
pouco  o  rigor  d'alguns  antigos  juizos  meus  á  conta  de  certos 
escriptores. 

Luiz  Delfino  dos  Santos  é  filho  de  Santa  Çatharina,  onde 
nasceu  em  183^4.  Estudou  alli  alguns  preparatórios,  ulti- 
mando os  outros  no  Rio  de  Janeiro.  Cursou  aqui  a  faculdade 
medica,  doutorando-se  em  1857  ou  58,  ao  que  supponho. 

Desde  três  ou  quatro  annos  antes  cultivava  a  poesia.  Pez 
algumas  publicações  isoladas,  espexiialmente  na  Revista  Po- 
pular e  no  Jornal  das  Famílias,  pelos  annos  de  1860  a  64. 
Depois  emudeceu  quasi  do  todo. 

O  medico  absorveu  quasi  inteiramente  o  poeta ;  nâo  digo 
bem,  porque  o  poeta  continuou  a  vibrar  as  cordas  de  seu 
instrumento  em  segredo;  a  anciã  de  fazer  carreira  clinica  e 


652  HISTORIA  DA  LITTEAATUBA  BRASILEIRA 

juntar  fortuna  retirou-o  da  arena  da  litteratura  activa  e  con- 
flnou-o  no  mundo  dos  doentes  e  dos  negócios. 

Depois  ficou  elle  rico,  e,  de  certo  tempo  a  esta  parte,  co- 
meçou a  ter  saudades  do  mundo  litterario,  do  ruido  da  im- 
prensa, por  onde  havia  passado  muitos  annos  antes  como 
relâmpago. 

As  luctas  litterarias,  porém,  têm  as  suas  leis  que  não 
são,  que  não  podem  ser  impunemente  violadas. 

De  seu  menospreço  provêm  todos  os  defeitos,  todas  as 
maculas  da  obra  do  poeta.  Ser  escriptor,  especialmente  em 
nosso  tempo  de  lucta  e  movimento,  não  é  garatujar  em  se- 
gredo tiras  de  papel  e  as  ir  accumulando  nas  gavetas, 
nas  pastas  ou  aos  cantos  da  casa ;  ser  escriptor  é 
perseguir  um  ideial,  é  traçar  um  plano  de  jornada  e  ir  por 
elle  em  fora,  é  defender  uma  causa,  é  ter  o  instincto  da  com- 
batividade litteraria  e  scientifica  sempre  alerta ;  ser  escriptor 
é  essencialmente  ser  um  luctador  sempre  na  brecha  no  meio 
de  seu  grupo,  de  seus  camaradas,  dando  a  mão  aos  que  des- 
fallecem,  sem  arredar  a  arma  da  face  do  inimigo. 

Cada  livro,  cada  opúsculo,  cada  brochura,  que  se  publi- 
cam são  outros  tantos  actos,  outras  tantas  acções  da  grande 
peleja. 

Cada  livro  tem  a  sua  historia ;  e  qual  é  a  historia  dos  qua- 
renta volumes  incumbados  do  Dr.  Luiz  Delfino  dos  Santos  ? 

Ninguém  sabe.  O  poeta  não  tinha,  não  teve  jamais  o  espi- 
rito, o  temperamento  litterario.  O  senso  do  combate  pelas 
letras  lhe  faltou  sempre. 

D'ahi  quatro  falhas  impreenchiveis  na  sua  vida  de  auctor  : 
scindiu  sua  carreira,  o  que  é  sempre  um  mal ;  perdeu  o 
melhor  tempo,  a  phase  da  mocidade  para  apparecer  e  luc- 
tar;  abandonou  os  seus  coevos,  os  seus  companheiros  natu- 
raes,  que  cresceram  a  seu  lado  sem  o  conhecer;  appareceu 
tarde,  depois  dos  cincoenta  annos,  no  meio  de  uma  geração 
de  estranhos,  que  não»  o  podiam  estimar  como  camarada  ou 
como  irmão.  A  cada  um  o  seu  dia.  Não  se  joga  inpunemente 
com  o  tempo. 

Segue-se  d'ahi  que  o  poeta  catharinense  não  tenha  mere- 
cimento ?  Absolutamente  não. 


HISTORIA  DA  LITTSRATURA  BRASILEIRA  653 

Pelo  que  tenho  lido  d*elle  cheguei  a  esta  conclusão  que  me 
parece  verdadeira  :  em  sua  esthesia  poética  predomina  a 
imaginação  e  faz  quasi  completa  ausência  o  sentimento. 

Ora,  a  imaginação  só  por  si,  sem  a  fonte  caudal  do  sentir, 
só  intermittentemente  pode  fazer  obra  boa.  D'ahi  a  desigual- 
dade tão  manifesta  que  salta  logo  diante  de  quem  lê  as  pro- 
ducções  do  auctor.  Por  uma  ou  duas  poesias  boas,  deparam- 
se-nos  depois  cinco  e  seis  aleijadas,  extravagantes. 

Os  principaes  defeitos  de  Luiz  Delfino,  falta  de  livros  appa- 
recidos  a  propósito  e  que  fossem  outros  tantos  actos  e  outras 
tantas  phases  de  sua  evolução,  falta  de  interesse  por  nossas 
questões  nacionaes,  falta  de  sentimento,  e  o  estylo  palavroso 
e  affectado,  já  foram  por  mim  apontados  em  1882  n'estes  ter- 
mos : 

«  E'  um  escriptor  sem  livros!...  Bello  chefe,  grande  ge- 
neral sem  batalhas  I...  Sua  posição  é  commoda;  mas  seu 
mérito,  como  factor  nas  lutas  nacionaes,  é  nenhum.  Nunca  se 
decidio,  nunca  tomou  um  partido  em  nossas  lutas.  Este 
signal  é  também  caracteristico  e  eu  chamo  a  attenção  do 
leitor  para  elle. 

Ninguém  conhece  as  suas  opiniões  scientiflcas,  politicas, 
ou  litterarias.  Sabe-se  apenas  que  tem  publicado,  a  largos 
intervallos,  algumas  poesias  bombásticas  pelos  jornaes  do 
Rio  de  Janeiro. 

E'  pouco,  é  muito  pouco.  Ter  a  cabeça  erguida,  querer 
intimidar  a  gente  com  chefias,  e  não  ter  escripto,  discutido,  lu- 
tado; conservar-se  como  um  incógnito,  e,  emquanto  os  outros 
se  batiam  peito  a  peito,  emquanto  a  sua  geração  sustentava 
nos  hombros  os  encargos  intellectuaes  da  pátria,  ficar  ahi 
para  um  canto,  como  um  burguez  a  enriquecer,  é  prova  de 
grande  tino  pratico,  é  prova  de  uma  grande  força  de  vontade 
para  libertar-se  das  necessidades  da  vida,  mas  não  é  prova 
de  um  temperamento  litterario,  de  uma  organisação  de  poeta. 

Nada  seria  se  a  sua  fortuna  lhe  tivesse  vindo  pelas  letras, 
como  a  de  Victor  Hugo  ou  a  de  Zola,  por  exemplo.  O  Dr. 
Luiz  Delfino  será  tudo ;  mas  não  é,  não  foi  jamais  um  factor 
intellectual  no  Brasil.  Através  do  poeta  eu  quero  vêr  o  ho- 


C51  HIBTOBIA  DA  LITTEBATURA  BBABILBIBA 

mem ;  quero  vôr  o  patriota,  quero  vêr  o  espirito  imbuido  de 
uma  ídéa,  tendo  a  seu  cargo  a  defesa  de  uma  causa. 

Onde,  em  que  tempo  o  Dr.  Delfino  ha  combatido  em  prol 
de  qualquer  cousa?  Elle  não  tem,  pois,  o  direito  de  car- 
regar o  sobrolho  e  olhar  de  soslaio  para  aquelles,  que  o 
não  enxergam  no  caminho.  Sim  ;  neste  paiz,  nos  últimos 
trinta  annos,  poetas  e  romancistcis,  críticos  e  jornalistas, 
médicos,  legistas,  engenheiros  têm  escripto  folhetos  e 
livros;  têm  travado  na  imprensa  cem  batalhas.  Em  qual 
d'ellas  foi  visto  o  Dr.  Luiz  Delfino?  Como  pensa  elle  em 
politica,  em  philosophia,  em  critica  litteraria,  em  scien- 
cia?  Qual  é  a  sua  opinião  sobre  o  indianismo,  o  nacionalismo 
litterario,  a  poesia  popular,  o  romantismo,  a  reacção  natu- 
ralista, a  philosophia  da  arte,  a  historia  litteraria  do  paiz  ? 
Que  pensa  elle  sobre  todas  estas  questões  que  todo  poeta  de 
hoje  deve  conhecer  e  responder  com  segurança  e  vistas  pró- 
prias ?  Nada,  absolutamente  nada.  Vive  a  sonhar  com  o  Le- 
vante por  imitação  e  porque  elle  é  um  desterrado  no  meio 
das  nossas  letras. 

Não  conhece  o  paiz  e  por  isso  nossos  problemas  não  o 
tocam. 

Vejamo-lo  em  suas  producções. 

Neste  ponto  seja  minha  primeira  afílrmação  a  seguinte  :  é 
um  poeta  palavroso,  emphatico,  desigual,  obscuro  e  ás- 
pero. Não  tem  sentimento,  não  tem  idéas,  nem  origina- 
lidade. E*  o  mais  perfeito  exemplo  que  conheço  da  mecânica 
verseiadora  nos  tempos  modernos.  E'  um  diletante  que  faz 
versos  por  luxo ;  a  poesia  é  para  elle  um  traíste  de  salão,  ou 
um  bom  coupé  para  sahir  á  rua. 

O  eslylo  6  bombástico  e  martelanle ;  é  imitado  de  Victor 
Hugo  deturpadamente.  Atordoa  os  ouvidos  e  o  bom  senso ; 
mas  não  commove ;  não  tem  graça,  nem  dehcadezas  de 
expressão  e  sentimento.  O  fundo  é  mesquinho.  Sua  esthetica 
litteraria  é  a  de  um  romantismo  túrbido,  furioso.  Se  não 
tem  delicadezas,  se  não  tem  o  sentimento  natural  e  simples, 
também  não  tem  força. 

Quando  o  verso  lhe  sae  corrente  é  mais  pelo  habito,  por  uma 
adaptação  mecânica,  do  que  por  ser  sentido.  Os  seus  versos 


HISTORIA  DA  LITTBRAT17BA  BRASILEIRA  655 

novos  publicados  na  Gazeíinha  mostram  essa  dextreza  do 
habito ;  os  mais  antigos  da  Revista  Popular  são  insuppor- 
taveis. 

E'  um  espirito  que  tem  pretenções  á  amplitude ;  mas  é 
árido  e  desconnexo.  E'  o  romantismo  na  phase  estéril  da 
nuUidade  latente. 

Tem  um  lexicon  poético  escolhido  a  dedo.  As  palavras  : 
sandado^  ebriez^  ebrioso,  lúbrico,  leão,  colossal,  enorme, 
curva,  curvatura,  ebriado,  e  outras  apparecem  obrigatoria- 
mente em  seus  versos.  Mecanisação  da  memoria. 

Temperamento  de  burguez,  educado  litterariamente  no 
tempo  do  romantismo  palavroso,  sem  larga  intuição,  sem 
grande  talento,  o  dr.  Luiz  Delflno  da  arte  só  possue  as  exte- 
rioridades.  Alma  plácida  e  enfastiada,  procura  illudir-se  a 
si  e  aos  outros  com  o  retintim  das  phrases. 

Não  existe  um  só  pensamento,  uma  só  tendência  na  litte- 
ratura  brasileira  de  que  elle  fosse  o  auctor.  » 

Esta  pagina  de  reacção,  contra  exaggeros  que  se  come- 
çavam a  espalhar  em  torno  de  Luiz  Delflno,  é  verdadeira  em 

w 

sentido  geral ;  porem  é  incompleta.  Eu  então  só  quiz  vêr 
os  defeitos  do  poeta,  deixando  totalmente  de  lado  o  mérito, 
qualquer  mérito  que  elle  por  ventura  possuísse. 

Como  resenha  da  face  esdrúxula  e  extravagante  do  talento 
do  cantor  catharinense,  parece-me  completo  o  quarto  trans- 
cripto. 

Mas  não  basta ;  a  historia  precisa  de  alguma  cousa  mais. 

Não  se  trata  só  de  apontar  defeitos;  porque  se  um  typo 
Utterario  não  tem  mérito  algum,  então  deve  ser  excluído  dos 
livros  de  analyse. 

Se  é  incluído  é  porque  tem  alguns  títulos,  que  o  amparem 
e  esses  títulos  devem  ser  francamente  apresentados  á  apre- 
ciação da  posteridade. 

Eu  disse  em  principio  que  o  Dr.  Luiz  Delflno  é  um  talento 
muito  desigual  em  suas  producções  :  grande-s  defeitos  no 
meio  de  bellezas. 

Se  pois  mostra  bellezas  é  que  seu  espirito  possue  qua- 
lidades bastantes  para  as  produzir.  Indicar  essas  qualidades 


656  HISTORIA  DA  LITTSRATUBA  BRABILEIBA 

é  O  que  falta  e  é  o  que  vou  praticar  agora  em  nome  da  impar- 
cialidade histórica. 

São  estas  :  o  poeta  possue  vigor  de  imaginação,  facilidade, 
abundância,  elevação  de  tom,  brilho  de  tintas. 

Creio  que  está  dito  tudo.  As  ideialisaçõe^,  os  quadros,  as 
creações  do  auctor  podem  não  ser  plácidos,  bem  equilibra- 
dos, de  desenho  correcto,  de  contextura  segura,  bem  deli- 
neada e  lógica. 

Nunca  se  mostram  em  compensação  rachiticos,  enfezados, 
nuUos.  Ha  sempre  n'elles,  pelo  menos,  certa  grandeza  de 
intuitos,  certo  vigor  dcscriptivo  e  pitoresco  de  forma,  certa 
aisance  que  indica  o  artista  de  pulso  forte. 

Estou  bem  certo  de  que,  se  o  poeta  publicar  agora  e  de  pan- 
cada tudo  o  que  tem  escripto,  o  bom  e  o  ruim,  não  fará  grande 
favor  a  sua  fama.  Se  praticar  uma  selecção  e  publicar  uns 
dous  ou  três  volumes  do  que  possuir  mais  perfeito  e  aca- 
bado, muito  fará  por  sua  gloria  e  poderá  occupar  um  alto 
logar  entre  os  mais  valentes  lyristas  de  nosso  paiz. 

Devo  cital-o,  e,  na  difflculdade  de  fazer  uma  escolha  intei- 
ramente acertada,  limito-me  a  mostrar  as  primeiras  estrophes 
das  —  Solemnia  Verba  : 

((  Revolta  a  entranha,  gottejando  sangue, 
Polluta  a  carne,  rota  e  palpitante. 
Olhos  sem  lume,  o  corpo  inerte  e  exangue, 
Lecerada,  qual  tronco  de  gigante. 
Que  o  raio  lasca,  e  que  do  vento  a  sanha 
D'alto  a  baixo  derroca  da  montanha... 

Nas  vascas  d'agonia  a  Hespanha  estava  !... 
Embalde  a  liberdade  austera  e  honesta 
Máscula  força  e  um  novo  ardor  lhe  dava 
Quer  erguel-a...  brodaram-lhe :  não  presta. 
Mas...  vem  um  rei ;  abate-a ;  e  (cousa  estranha  I) 
Bastou  :  'stá  viva  :  resurgiu  a  Hespanha!...  •— 

E'  ella!...  Vede-a...  é  ella!...  Embraça  o  manto, 
Que  pela  espalda  câe-lhe  longamente ; 


HI8T0BIA  DA  LITTERATÚILà  BRASILSIEA  651 

No  olhar...  prazer,  enleio,  orgulho,  espanto  ; 
A  regia  c*rôa  lhe  illumina  a  frente ; 
E  por  meio  do  povo,  que  é-lhe  espolio. 
Rasga  a  estrada  de  Apio  ao  Capitólio. 

Para  saudar  o  império,  que  surgia, 

Dentre  as  brumas  da  aspérrima  tormenta, 

Que  inda  montes  e  valles  envolvia, 

A  primavera  festival  rebenta, 

E,  espedaçando  o  manto  das  neblinas, 

Ergue  a  fronde  enrolada  de  boninas. 

íris  de  paz  atou  o  céu  â  terra, 
Chiou  no  campo  o  hymno  da  charrua, 
E  o  clangoroso  som  oa  voz  da  guerra 
Por  valles,  montes,  serras,  não  estua  : 
Riem-se  as  esperanças  e  os  desejos, 
Musicas  bricam  pelo  ar  e  harpejos. 

Ha  como  o  esvoaçar  do  anjo  da  gloria 
Desde  os  seus  Piryneos  ao  Guadarrama!... 
Que  pagina  voltou-se  á  sua  historia  ? 
E  esse  heróe,  que  a  voltou,  como  se  chama  ? 
Que  Odysséa  essa  mão  recem-chegada 
Vae  escrever  na  pagina  voltada? 

Das  velhas  cathedraes  nos  campanários 
Uns  gigantes  molossos  bronzeados, 
Negros  espectros,  feios,  legendários. 
Ladraram  de  alegria,  oM  de  assustados. 
Interrompendo  o  seu  profundo  somno, 
Porque  subia  Affonso  XII  ao  throno. 

Longos  reptis  de  bronze  ajoelhados. 
Como  leOes  a  um  domador  de  feras. 
Nos  seus  moiiOes  de  ferro  acorrentados, 
Com  carcereiros  de  feições  severas, 
Saúdam  roucos,  como  a  populaça, 
Ao  ultimo  que  os  doma,  e  os  vence  e  passo. 

Em  Madrid  os  altíssimos  senhores 
Pompeíavam  librés  de  vari^  cores  : 

HISTORIA  n  4t 


658  BI8T0BIA  DA  LITTBRATVBA  BRASILSnU 

Como  um  riso.  dè  Deus  o  sol  brilhava ; 
Forrava  o  céu  um  céu  de  galhardetes, 
£  entre  gritos,  repiques  e  foguetes, 
Ria-se  austeramente  a  Calatraval  I... 

Os  cantores  de  todas  as  victorias 

Os  servos  vis  de  todos  os  traidores, 

Thuriferarios  de  fictícias  glorias, 

Beijando  o  pó  dos  pés  aos  seus  senhores, 

Só  estes  vêem  a  vida,  a  paz  e  flores 

Onde  os  mais  vêem  grilhOes,  miséria,  horrores. 

Mas  onde  andavas  tu,  ó  linda  escrava  ? 
Por  onde,  e  em  que  dourados  devaneios 
Por  um  momento  rugidora  e  brava 
Ensanguentavas  teus  formosos  seios  ? 
Qual  era  a  tua  idéa  e  o  teu  caminho. 
Nua,  descalça,  rota,  em  desalinho  ? 

Descabellada,  em  lúbrica  loucura, 
Grande,  como  uma  estranha  divindade, 
Palpando  as  trevas  de  uma  noite  escura, 
O  que  buscavas  tu  na  liberdade  ? 
Por  onde,  escrava  de  cem  reis,  tu  voas, 
Sceptros  partindo,  e  espedaçando  cYóas  ?... 

E  tropeçou  nas  coroas  dos  senhores  I... 
E  tropeçou  na  espada  dos  bandidos ; 
Tropeçou  nas  bandeiras  multicores, 
Nos  punhaes  dos  seus  príncipes  vencidos  I... 
Em  cada  passo  um  abysmo  escancarado, 
£  em  cada  abysmo  um  gríto  do  passado  1 

Como  em  hartos  rochedos  seculares, 
Tropeçavam  seus  pés  nas  cathedraes !... 
E  amoedando  os  vasos  dos  altares. 
Moldando  em  arma  os  bronzes  colossaes, 
E  os  buréis,  como  lábaros,  brandindo, 
Anfella  os  monges  foram-se  reunindo... 

Foi-lhe  barreira  a  igreja,  o  padre,  o  monge^ 
Os  escribas  da  lei  degenerada ; 


HIStOBIA  DA  LITTBBATUBA  BRASILEIRA 

E  a  pobre  liberdade  ia  de  longe 
Vendo  a  cruz  do  Calvário  alevantada... 
E  á  louca  multidão,  que  além  se  espraia, 
EUa  ouvia  bradar  :  —  crucificai-a. 

Um  povo  repassado  da  ferrugem 
Das  cadeias,  e  tendo  a'  alma  vincada         , 
Dos  velhos  elos,  como  as  vagas  mugem 
Quando  se  alteiram  na  procella  irada, 
Ergueu-se ;  e  as  roucas  vozes  ecoaram ;   .  . 

—  Que  é  dos  nossos  grilhões,  que  nos  roubaram  f.«« 

Surgiu  embalde  a  voz  omnipotente 
Sobre  o  murmúrio  dessem  ingente  mar  ; 
Como  o  rugido  do  leão  fremente. 
Passou  a  voz  da  Emilio  Castellar. 

—  Vae  com  teus  sonhos,  lhe  gritava  o  povo, 
Nossos  grilhões...  nossos  grilhões  de  novo.  — 

Armada  sentinella  do  futuro, 

Immovel,  como  estatua  num  rochedo, 

Via  sem  ódio,  sem  paixão,  sem  medo. 

Em  convulsões  do  povo  o  mar  impuro, 

E  na  tremenda  agitação  que  lavra 

Da  boca  sáe-lhe  um  sol :  —  era  a  palavra.  — 

Aquelle  mar  que  cresce,  ferve,  estua. 
Como  leão  nas  jaulas  indomado, 
Elle  arremessa  a  voz  candente  sue^ 
Como  um  Cyclope  um  monte  derrancado ; 
E  monte  a  monte  —  Encelado  moderno  —    , 
Cáe  dentro  desse  mar  seu  verbo  eterno. 

•• 

—  Vós,  que  vendeis  a  vossa  liberdade, 

O  que  sereis  na  historia  ?  O  que  ser  ha  de 
Quem  sem  pejo  alma  vende,  um  monstro  enorme, 
Cabeças  a  milhões,  e  um  só  molosso, 
Que  embriagado  sobre  o  sangue  dorme, , 
Inda  a  rugir  famélico  de  um  osso. 

Erguei-vos,  povos,  ergue-te,  nação ; 
Crava  os  olhos  no  espaço  luminosos ; 


96Q  mSTOBIA  DA  LITTEEATVRA  BSABIUEIEÁ 

Tu  és  a  força,  q  indómito  leôo, 
Porém  na  jaula  e  em  somno  vergonhoso  : 
Falta-te  a  idéa,  íalta-te  a  vontade... 
Tens  a  força  e  n&o  tens  a  liberdade ! 

Só  darás  uma  prole  corrompida, 

Terra  da  Hespanha  ?  terra  grande  outr'ora, 

Quando  pugnava  independência  e  vida, 

E  enchia  a  historia  de  clarões  de  aurora, 

£  enchia  o  mundo  de  fulgentes  brilhos  I... 

Oh !  Hespanha,  onde  estão  teus  grandes  filhos  ? 

Evoca.  Rasga  as  ^dras  tumulares, 
Quebra  o  ossário  dos  teus  velhos  soldados, 
Ergue  o  lençol  dos  annos  seculares, 
Enche  as  cryptas  poentas  dos  teus  brados, 
Chama,  evoca  outra  vez,  ó  povo  ingrato... 
Responde  o  Cid  7...  Acode  o  Viriato  ?... 

Os  grandes  capitães  não  vem.  Passaram. 
Não  tens  direito  mais  ao  teu  reclamo ; 
Dormem.  Podem  dormir  que  trabalharam  ; 
Patriei,  que,  ainda  assim  mesmo,  eu  tanto  amo. 
Porque  em  fim  mesmo  assim  envilecida 
£'s  minha  pátria,  oh !  eu  te  devo  a  vida. 

Porque  não  fundaremos  na  justiça 
Um  grande  império,  Castellar  bradava. 
Temos  sido  o  repasto  da  cobiça, 
Hespanha,  deixa  emflm  de  ser  escrava, 
Oh !  pátria  de  minha  alma,  Hespanha  miuha, 
De  ti  mesma  levanta-te  rainha. 

Acabemos  de  vez  a  vil  tutela, 
Dos  que  se  crêem  legítimos  senhores 
De  vós,  soberdos  filhos  de  Castella ; 
Fujam  de  vez  os  olhos  oppressores, 
A  lei  por  vós  formada  e  vos  aceite, 
Seja  o  único  rei  que  se  respeite. 

Bella  esperança  que.  o  porvir  nos  doura, 
Berço,  ninho  de  amor,  que  nos  embala, 


f 


HIBTOBIA  DA  UTTBSATU&A  BBABILBIBA  601 

Mimosa  e  doce  como  a  moça  Ipura, 
Que  aos  tenros  filhos  com  carinho  fala, 
Ama-te  o  velho,  adora-te  a  criança. 
Bello  sol  de  alegria  e  de  esperança. 

Nâo  temais,  reis  do  mundo,  o  gladio  delia : 
N&o  é  a  liberdade  algoz  tremendo ; 
Como  o  sol  passa  em  horas  de  procella 
A  face  d'ouro  em  nuvens  escondendo 
Mas  sempre  sol  e  rei  da  immensidade... 
Assim  é  elle...  o  sol  da  liberdade... 

Vejo-te,  Hespanha,  soberana  e  bella, 
Ao  banquete  da  paz  chamando  os  povos, 
Firmando  emíim  galhardamente  nella 
A  conquista  dosi  teus  direitos  novos... 
Viva  a  paz,  que  engrandece  e  que  consola... 
E'  a  paz  a  —  Republica  hespanhola,  — 

E  o  que  é  a  paz  ?  Sabei,  ó  hespanhóes  , 

E*  o  vusso  salário  ao  lar  fruido, 

O  campo  roteado,  o  fllho  instruído... 

Sfio  estes  os  pacíficos  heróes. 

Que  hão  de  renhir  batalhas  á  miséria, 

E  a  luz  plantar  nos  coruchéus  da  Ibéria...  »  (1) 

É'  impossivel  continuar  a  citaçáo,  por  demasiado  longa. 
O  que  ahi  flca  é  mais  que  sufflciente  para  representar  o 
estylo  do  poeta,  quando  elle  era  um  sectário  do  condorei- 
rismo. 

Hoje  sua  maneira  iem-se  modiflcado  no  sentido  do  puro 
parnasianismo.  Victor  Hugo  deixou  de  ser  seu  mestre ;  Le- 
conte  de  Lisle  exerce  hoje  esta  funcçáo.  Quem  quizér  conhe- 
cer do  caminho  andado  pelo  poeta,  iasla  que  leia  d'elle  o 
bellissimo  quadro  intitulado  Três  Irmães  e  o  compare  a  So- 
lemnia  Verba.  Avaliará  a  distancia. 

Creio  poder  concluir  com  segurança  :  O  Dr.  Luiz  Delfino 
dos  Santos  não  está  destinado  a  representar  na  liistoria, 

(l)  Éíoiêta  Broêileira,  Tomo  1.%  pag.  290  e  seguintes. 


662  flIBTORIA  DA  LITTERATUBA  BBABILBIBA 

como  por  ahi  apregoaram  em  certa  época  admiradores  seus, 
o  primeiro  papel,  a  primeira  figura  de  nossa  poesia.  Bem 
longe  d'isso.  Também  n&o  ficará  no  logar  inferior  que  j&  um 
dia,  em  utilissima  reacç&o,  lhe  assignalei.  Sua  posiçdi)  será 
bem  considerável,  principalmente  coroo  poeta  de  imagina- 
ção. 


FIM    DO    SEGUNDO    VOLUMU 


À 


-l 1_ 


ERRATA  DO  2.«  VOLUME 

PAGINAS                LINHAS  ERROS                             EMENDAS 

79 17 que  Não que  não 

158 14 e  da  vida ,  da  vida 

197 3 inteliectual, intelleclual  nosso, 

249 1 influição  reflectida.,  feição  reflectida 

363 5 e  raro  raro 

418. 17    sei  os  povos sei  se  os  povos 

430 15 tem  elle  razão tem  razão 

490 24 Vai  a  Cidade Vaea  Cidade 

549 16 callos calos 

632 26 troço torço 

655 24 quarto quadro 

E  vários  outros  menos  consideráveis. 


índice 


T*rol«n  «poM  ou  ptriodfi  d»  transfomuçld  rom 
(1880-18T0) 

Capitulo  I.  —  Posai*.  O  romaoliamo.  Siu  piimein  pbMa 

C^itnlo  II.  —  PoMÍ&.  Segunda  phaae  do  romantismo ... 

Capitulo  III.  —  Terceira  phaae  do  romanliamo 

Capitulo  IV.  —  Quarta  phaae  do  romantismo 

Capitnlo  V.  —  Quinta  phaae  do  romantismo 

Capitulo  VI.  —  Sexta  e  ultima  phaae  do  romaatismo 

Capitulo  VII.  —  Ainda  sexta  e  ultim&  phaM  do  romantismo. . . 


>B  Stlnls-Fèrof.  391.11 


^^^^^^^Qé^Pg^^^S^^