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H^atòãtti CoUese l.ttirai:s
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MARY OSGOOD KUND
The sum ol $6,000 wtts bequeathed to the CoUege by Mary
Otgood, of Medford, in 1860; íd 1883 the fand becamc
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mott needed for the College Library, so
as best to promote the objecta
of the College.
HISTORIA
DA
UTTERATURA BRASILEIRA
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H. GÂRNIER, Livreiro-Editor, Raa do Ouvidor, 71
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popular dos Ciganos da Cidade Nova, 1 vol. in-8.* ene. 3S000, br ^£000
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HISTORIA
DA
LITTERATURA BRASILEIRA
LIVRO IV
TERCEIRA ÉPOCA
OU período de transformação romântica
(1830-1870)
CAPITULO I
Poesia. O romantismo. Sua primeira phase.
O momento histórico aberto agora diante dos olhos dos
leitores, o romantismo, representa só por si quasi toda a
litteratura do século XIX, e, todavia, ainda n&o tem sido bem
apreciado. Distendido entre dois inimigos, dois rivaes podero-
sos, tem levado golpes á direita e á esquerda. Nós os homens
do ultimo quartel do século não assistimos a sua lucta com o
classismo, pugna brilhante de que sahiu victorioso : presencia-
mos em compensação seu pelejar com o naturalismo e dez ou-
tras theorias, que o pretenderam definitivamente enterrar.
Estas em seu enthusiasmo juvenil acreditam nada dever
ao velho systema... Pernicioso erro histórico. Deviam reparar
que a litteratura se rege pela lei da evolução, é uma verdadeira
organisação de pbylogenesis das ideias. Nada existe sem ant»-
BUTORIA U 1
Z HISTOBIA DA LITTEEATU&A BRASIL£IBA
cedentes, mesmo na evolução cenogenetica, e os anteceden-
tes das doutrinas de hoje sáo justamente o próprio roman-
tismo... Mas que é, que foi o romantismo ? Ha vinte respostas
a esta pergunta. Aprecicm-se algumas d'cllas.
O romantismo foi uma reacção religiosa contra a philoso-
phia do século XVIII. Assim pensam alguns, illudidos pelo pri-
meiro momento da romântica franceza, a phase tolamente
denominada emanuelica. Não pôde haver maior engano em
historia litteraria.
A par de alguns poetas catholicos, o systema produziu, por
exemplo, poetas de um materialismo sem mescla. O mesmo
na critica, na philosophia e no resto. Byron, Edgar Poé, BaJ-
zac, Saínle-Beuve, Baudelaire, para não falar em Goethe, não
foram catholicos. Veja-se outra.
O romantismo, se não foi uma volta ao christianismo puro,
foi certamente uma reacção contra a Renascença, um retorno
ás scenas e á vida da edade media... Existe ahi muito oscre\1-
nhador de momento, que possue da litteratura do XIX século
essa misera noção e traça-lhe táo acanhada característica. Um
erro, uma triste vista superflcialissima dos factos intellec-
tuaes.
Que tém que ver Leopardi, Musset, Shelley com a edade
media 7
Os movimentos de reacção e retorno em litteratura e em po-
litica são sempre movimentos negativos, e seria um despropó-
sito que o século XIX, o grande creador dos estudos histó-
ricos, o introductor em todas as sciencias do principio da his-
toricidade, viesse alentar-se de uma poesia anachronica, em-
perrada, reaccionária contra as leis do desenvolvimento pro-
gressivo das ideias. Impossível.
Não podendo as duas fórmulas lembradas conter e explicar
todos os phenomcnos litterarios do tempo, imaginaram-se ou-
tras. O romantismo era o scepticismo, a duvida philosophica
e religiosa levada para a poesia. Byron, injustamente, foi
inventado para symbolisar esta tendência.
Digo inventado ; porque o grande Byron, ao menos cá pelo
nosso mundo latino, é menos o valente poeta inglez do
que um certo typo convencional crêado pela critica franceza.
HIBTOBIA DA UTTBBATXntA BBÁ8ILSIRA ó
Este modo de explicar o romantismo é graciosamente estéril.
Schiller e Victor Hugo, Tennyson e Wordsworth ficariam
fora do quadro.
Houve recurso a outros expedientes : o romantismo é o sen-
timentalismo na litteratura, é a continuação da melancbolia
de Rousseau, distendia por todo o século xix. Sáo bem
conhecidos os typos de Werther, Corina, Adolpho, Olympio,
René, Jocelyn, Lelia e muitos outros chamados para jusUfl-
carem a theoria. Esta explicação é até a predominante geral-
mente no grande publico.
Um homem romântico é um typo pallido e tristonho, exhl-
bindo magoas e desconsolos.
Uma moça roínantica é uma creaturinha meio phantasUca,
de olhos langues, descoradas faces, um todo feito de sonhos e
chymeras...
Quem não vê que os delírios passageiros d6 um tempo não
podem constituir a força, a substancia activa de uma littera-
lura ? Não é o bom ou o máo humor dos poetas que marca a
Índole das doutrinas e dos systemas Utterarios. O romcui-
tismo não possuio somente chorões reaes ou affectados ; teve
também muitos espíritos equilibrados e expansivos a com-
municarem enthusiasmos e alegrias.
Foi preciso á critica inventar outra medida, outra toéza
para marcar os poetas, romancistas e dramaturgos.
O romantismo foi o predomínio da imaginação, o princi-
pado da phantasia.
Que é um livro romântico ? E' um livro phantastico, eivado
de miragens, de encantamentos, como o Ashavérus de Quinet.
Que é um heróe romântico ? E" um ente raro, miraculoso, uma
espécie de archetypus em contraste com o mundo positivo,
vivendo d'uma vida ideial.
Victor Hugo crêou uma galeria d'elles : Bug-Jargal, Jean
Vcdgean, Quasímodo, Hernâni, Cimourdin, Lantenac, An-
gelOj e trinta outros.
Por menos que se deseje uma litteratura que seja uma
expressão da realidade, uma notação da vida mundana, não
é possível desconhecer a falsidade das crêaçõês dos romances
e dramas do grande lyrista francez.
i
4 HIBTOBIA DA UTTBRATUBA BRA.8ILBIBÁ
Se O romantismo tivesse ílcado n'aquilIo, teria sido um mo-
vimento insignificante, despresivel, e o próprio Hugo, se ti-
vesse produsido só esses disparates, seria hoje um nome es-
quecido, justamente esquecido.
Houve, porém, momentos em que os românticos deixavam
os sonhos e approximavam-se da realidade. Balzac foi um
d^elles- Para esses o romantismo era a ultima palavra das
crêações litterarias : tinha uma base scientiflca, e seu fim era
representar a vida das almas humanas, a historia natural
dos caracteres, como a biologia é a historia natural da vida
orgânica nos seus domínios inferiores.
Era esta uma pretençâo exagerada, em desacordo com as
maiores invenções do systema.
Não estavam esgotadas as doutrinas e as explicações.
E* mister aprender a natureza da theoria feita pelos seus
grandes representantes. Em 1830, em artigo consagrado ás
poesias de André Dovale, artigo reproduzido no prologo de
Hernâni^ Victor Hugo definia a nova escola — o dominio do lir
beralismo na arte. Se bem entendo o poeta espirituadista, o ro-
mantismo não era uma questão de ideias philosophicas, se-
não uma certa franquia na escolha dos eissumptos e no modo
de os tratar. Os clássicos tinham assumptos, ideias e lingua-
gem consagrados ; labutavam n*um circulo estreito a remexer
velhos manequins d'uma rhetorica estafada. O classismo era
uma espécie de pagem da velha realeza. As ideias revolucio-
narias abalarami os thronos, entraram pela litteratura a den-
tro 6 desconcertaram as poentas cabelleiras clássicas.
Houve um grande acordar para a vida, a liberdade penetrou
em todos os recessos do pensamento. Este o grande feito do
romantismo.
E* a verdade em parte ; não dá, porém, toda a medida das no-
vas tendências. Bem cedo o novo systema teve também sua
rhetorica vasia e retumbante, inanida e fútil. Victor Hugo bem
contribuio para formal-a e diflundil-a pelo mundo latino. Ao
lado e ao tempo do cantor das Contemplações^ Alf. Musset,
depois dos desvarios de 1830, ridicularisava a grande escola
de que era elle um dos mais prestimosos ornamentos.
Em 1836, em artigo inserto na Revue des deux Mondes^ sa*
HISTORIA DA LITTBRATUBA BKABUiBISA 5
tyrisava a litteratura corrente, mostrando não ter ella nada
avançado além da que a precedera a não ser o emprego abu-
sivo de adjectivos... O primeiro poeta írancez do século XIX
poz o dedo em cima de uma das chagas da romântica. Espiritos
de segunda e terceira classe, rábulas e mezinheiros das lettras,
immiscuiram-se no meio dos grandes mestres e deitaram a
perder o trabalho dos progonos.
Sem ideias e sem vis creadora, apegarara-se ás franjas da
linguagem e esvasiaram a litteratura do século.
A satyra dò auctor de Don Paez e de Porcia attinge perfeita-
mente o alvo ; tem a sensatez da justiça.
Comprehende-se, entretanto, não ser sufflciente o gracejo
humorístico do poeta de Rolla para definir e diferenciar um
movimento litterario, que se protrahiu por mais de setenta
annos.
Mais profundo, ou antes, profundamente serio, foi o pro-
gramma traçado á nova escola por Frederico Schlegel em
Í796. Sabe-se que os críticos allemães excluem da escola ro-
mântica Lessing, Klopstock, Herder, Goethe e Schiller.
O movimento romântico allemão é para elles posteríor ao
famoso período clássico em que floresceram aquelles grandes
génios, e começou com Schlegel no anno pre-citado.
Ainda fazendo tão grande desconto, o romantismo germâ-
nico é bem anterior ao seu pretencioso irmão francez.
O manifesto litterario de Schlegel consigna como ideia capi-
tai da doutrina o approveitar-se ella dos ensinamentos da
sciencia, da historia e da critica. E' evidentemente um pre-
nuncio, uma antecipação ao philosophismo ou scientitícismo
defendido por alguns poetas post-romanticos. Schlegel queria
apenas fornecer á poesia armas novas; approximal-a das
grandes luctas modernas, sem despil-a, porém, de seu cara-
cter especifico. Mal comprehendida a ideia do romântico te-
desco, pode-se tombar nas mais grosseiras extravagâncias.
Em todo caso, seu programma não foi seguido ; a poesia ca-
minhou por um lado e a sciencia por outro.
A doutrina de Schlegel, incompleta e inefflcaz para explicar
a índole da poesia e da litteratura do século, foi adoptada e
desenvolvida por aquelles moços, que hnnaram a Heine e
6 HISTOBIA DA LITTEBATTJBA BRABILBIRA
BcBrne por chefes, e são conhecidos na historia com o nome
de Joven Allemanha.
Para elles o grande disideratum da litteratura do tempo era
luctar, pugnar pela Uberdade politica, social e religiosa. De
via para tanto lançar de preferencia mão da prosa.
Seria isto muito bom nos pamphletos políticos, nos escri-
ptos de polemica, nas obras de critica. Na poesia o eterno e se-
diço badalSLT contra Deus e o Christo, contra o papa e os reis,
será de muito alcance nas mãos ou na bocca dos enthusiastas
e propagandistas ; mas como arte, como poesia, é preferível ir
alli a um sitio qualquer ouvir uma sertaneja cantar algumas
trovas populares.
O que alguns sonhadores novos, tomados de anciãs dema-
gógicas ou de religiophobia, julgam conquista novíssima de
suas cabeças, é em verdade cousa bem velha no s«io do velho
romantismo. Não o explica, entretanto.
Mais alentada é a ideia de quem, como Grimm, julga ser a
notação fundamental da litteratura do XIX século — a volta
de todcLS e de cada uma das nações ás sucLS crêações popu-
lares.
Foi esta certamente uma das grandes obras do romantismo.
Ajudado pela critica, pela linguistica e pela mythographia,
elle penetrou na região encantada das lendas, dos contos, das
canções, das crenças populares. A nativisação, a nacional i-
sação da poesia e da litteratura em geral foi, talvez, o maior
feito do romantismo. Não o explica de todo.
Tão pouco o exclarece dizer, com Zola, que sua funcção
histórica foi preparar a lingua para ser empregada pelo natu-
ralismo hodierno. Rezultado inconsciente este, não consti-
tuiu jamais o programma de uma escola.
Que foi então o romantismo ?
Tentarei explical-o. A diíTerança existente entre a litteratura
do século XIX e a litteratura dos outros tempos é a mesma que
existe entre a sciencia e a philosophia do século XIX e a
sciencia e philosophia dos outros tempos.
A evolução intellectual obedece á lei do consensxis em todas
as suas faces. Philosophia nova, litteratura nova.
Ora, a philosophia dos outros séculos estava no absoluto e
HISTOBIA BA LITTS&ATUBA BBASIUSIRA. 7
a nossa estú no relativo ; a antiga era aprion e a nossa é após-
teriori. Aquella tinha um direito universal, urna grammatica
universal, uma arte universal, um modelo universal para
tudo ; esta ensina ser o direito uma funcçâo da vida nacional,
a lingua uma formação nacional, a poesia uma ideialisação
nacional. Ha tantos direitos, grammaticas e artes originaes,
quantõis são as raças que dividem a humanidade. ^
A poesia clássica tinha ideias, linguagem, forma predeter-
minadas ; a poesia nova quebrou o molde antigo e vasou-se
em tantos moldes novos, quantos povos e até quantos indivi-
dues de génio poetaram.
O romantismo foi, pois, uma mudança de methodo na lit-
teratura ; foi a introducção do principio da relatividade nas
producções litterarias ; foi o constante appello para o regimen
da historicidade na evolução da vida poética e artística.
D'ahi a liberdade, a generalidade de suas creações ; elle des-
centralisou as lettras ; nacionalisou-as n'uns pontos, provin-
cialisou-as n'outros, individualisou-as quasi por toda a parte.
N*este sentido largo o romantismo é a litteratura do presente
e póde-se dizer que será a do futuro, não passando os syste-
mas de hoje de resultados necessários seus.
Foi a reforma nas sciencias do espirito, a reforma dos me-
thodos históricos, que influio immediatamente na litteratura.
Os seus iniciadores partiram da analyse dos factos, da rela-
tividade das cousas ; sahiram do absoluto e procederam por
via de inducção. Lessing reformou a critica litteraria, Winc-
kelmann a critica artística, Kant a critica do conhecimento,
Herder a critica histórica, Wolf, Heyne, Hermann, Lobeck,
Kreuzer a critica mythologica. Gõthe e Schiller surgiram e a
poesia nova estava creada. Movimento análogo dava-se entre
os Inglezes, influenciados pela philosophia de Hume.
A historia litteraria, como se escreve em Brasil e Portugal,
faz partir a nova litteratura de Montesquieu, de Voltaire e
nomeadamente de Rousseau. E' esquecer que o melhor das
ideias de Montesquieu e Voltaire, em quem todos falam ejque
ninguém lô, é proveniente da Inglaterra, habitada e estudada
por elles.
Rousseau, que se inspirou também na Inglaterra e na Suissa,
BIBTOBIÀ DA UTTXai.TITSA, BKASILKIBÁ
u duas influencias pemiciosissimas : a politica, do Con-
íociai, abstracta, ideológica, absoluta, cujos máos eflei-
levoluçâo patentou ; nada mais contrario á intuição po-
lo século XIX ; a litteraria, da Nova Heloísa e do EmUiOy
imana, doentia, anti-cullural, cujos desatinos cobri-
e descrédito uma parte dos seus adeptos,
sseau não é o pae da litteratura do século XIX nas suas
laçOes. Maior influencia teve Diderot, sem comtudo
íhefe da intuição litteraria dos novos tempos.
ima de fazer do amigo de Madame d'Epinay o supremo
ador das ideias do mundo hodierno é alguma cousa de
;o à mania de fazer de Carlos Magno um francez, da
othica um producto da Qallia, da Renascença e da Re-
umas aflltiadas do espirito parisiense.
tteratura do século XIX, a despeito de sua grande varie-
obedece a um principio commum ; n'ella o espirito per-
ite vae descobrir os fios directores de uma grande uni-
ie methodo e de intuitos geraes.
Europa atravessou períodos diversos em seu desenvol-
to phylogenetico, e mesmo na formação ontogenica de
im de seus grandes representantes,
le e Victor Hugo, por exemplo, podem servir de bell<»
mina de ontogenesis litterario. Atravessaram phazes
as o s&o como uma espécie de resumo da evoluçÃo cul-
le allemSes ô francezes.
ramos as vistas para o nosso paiz.
rimeira irrupção do rcHnaatismo no Brasil, é costume
se, foi o presente feito de Paris por Domingos de Maga-
de seus Suspiros Poéticos e Saudades em 1836, justa-
I no anno em que o bom Musset ridicularisava os exces-
is ultra-romanticos.
)rovei anteriormente a falsidade d'esse boato histórico.
:císo recuar dez annos para pegar nas mãos as pri-
s manifestações brasileiras da escola.
s indiquei ; e é inútil repetirme agora (1).
amos, entretanto, de Magalhães e do anno de 1836.
a parte qus trata de Maciel Mon-
1
HI8T0BIA DA UTTBEATUBil BSAfllLKIBA 9
Os phenomenos históricos na vida positiva das nações nao
se produzem em globo, nem se produzem isoladamente^
como as abstracções de um quadro lógico. Manifestam-se
orgânica e gradativamente.
O primeiro trabalho a fazer-se agora aqui, antes da cara-
cterisaçáo especifica dos lypos litl^rarios, é a notação precisa
das phases da evoluç&o.
A litteratura rege-se pela lei do desenvolvimento á maneira
das formações biológicas. Ainda como as creações bioló-
gicas, ella tem a sua lucta pela existência, onde as ideias
mais fracas são devoradas pelas mais fortes. As ideias lèm
todas um elemento hereditário e tradicional e um elemento
novo de adaptação a novas necessidades & a novos meios.
Cada nação tem seu património de ideias representativas
do seu desenvolvimento natural : é a phylogenia liiteraria,
repetindo a linguagem de Hãckel. Cada grande typo tem for-
ças e impulsos próprios, alem d'aquelles que recebe por
herança : é a ontogenia litteraria, para falar ainda como o
celebre naturalista.
A ideia de força e de lucta domina sempre as grandes e até
as pequenas litteraturas; é o pugnar das ideias, das theorias,
das opiniões; são as polemicas, a guerra intestina dos syste-
mas. Uma litteratura pacifica é uma litteratura morta.
As lettras seguem a meircha da civilisação, porque ellas são
um producto da cultura e não da natureza.
Entre nós, como por toda a parte, o romantismo passou
por momentos diversos. Cada momento teve seus progonos
e seus epígonos.
O primeiro momento da romântica brasileira foi aberto sob
a influencia de Lamartine ; é a pheise religiosa, emanuelica.
Domingos de Magalhães foi o progono, o chefe.
Porto Alegre, Teixeira e Sousa, Norberto Silva, João Car-
doso foram os continuadores, os epígonos.
A esta phase seguiu-se muito de perto, e pode-se dizer
quasi simultaneamente, o momento do indianismo, do ame-
ricanismo, inspirado por Chateaubriand e Cooper.
Gonçalves Dias foi o propulsor nunca excedido do género.
Viu-se o curioso phenomeno de constituírem-se satélites do
10 HISTOBIA DA LITTEBATURA BRASILEIRA
grande poeta maranhense todos aquelles, mais velhos, que
tinham aberto a phase proximamente anterior. Foram-no du-
rante algum tempo, deixando-o mais tarde. Alem desses, o
indianismo na poesia teve outros cultores, todos pequenos e
hoje anonymos.
Não falo no romance e no drama que serão vistos depois ;
falo da poeisia, cujo desenvolvimento foi mais normal.
Depois do indianismo rasgou outras perspectivas ao ro-
mantismo brasileiro o genial espirito de um moço de vinte
annos.
Vinha imbuido de ideias mais geraes, mais universaes. A
poesia não era d'aqui nem d'ali. Pallida e melancholica pere-
grina, era a hospeda das almas ardentes em todos os tempos,
sob todos os céus, ao calor de todos os soes, ao susurrar de
todas as brisas.
Byron e Musset eram os deuzes instigadores d'esses enthu-
siasmos juvenis. Alvares de Azevedo foi o progono de uma
grande geração. Bernardo Guimarães, Aureliemo Lessa, José
Bonifácio, Teixeira de Mello, Casimiro de Abreu, Bittencourt
Sampaio, Pranklim Dória, Bruno Seabra, e trinta outros for-
maram em grupo em tomo da figura do poeta da Lyra dos
Vinte Annos. Isto em sentido muito geral.
O romantismo não se podia esquecer, deixar-se morrer
n'essa poesia de muitas magoas e poucas alegrias.
Novos talentos forcejaram por arrancal-o áquelle torpor.
Como acontecera nos anteriores movimentos, pediram um
chefe á litteratura da velha Europa.
D'esta vez foi Victor Hugo, com o seu lyrismo ardente,
arrebatado, e com seu humanitarismo sympathico, o mestre
escolhido. Tobias Barreto foi o provocador do movimento.
Cercaram-no em ruidoso alvoroço, n'uma espécie de natura-
lismo lyrico e socialista, as bellas figuras de Castro Alves,
Victoriano Falhares, Guimarães Júnior, Altino de Araújo,
Castro Rebello, ao norte do Brasil; e ao sul, sob a influen-
cia directa de Castro Alves, Carlos Ferreira, Elseario Pinto e
alguns outros, que desapparecem no anonymato.
Foi em rigor o ultimo instajito do romantismo consciente-
mente praticado como tal.
HI8T0BIA DA LITTESATUBÁ BKA8ILXIBA 11
Depois principiaram a surdir tentativas de reforma. Sylvio
Roméro (1) atacou o velho systema em repetidos artigos de
critica, apresentando a fórmula de uma poesia nova, inspi-
rada na sciencia e na philosophia do dia. Adoptada, n'aquelle
tempo, a mesma intuição pelo moço Teixeira de Souza, foi
depois exagerada, especialmente por Martins Júnior e raros
mais.
Ao lado d*esse philosophismo ou si^ientificismo, ergueu-se
o lyrismo despreoccupado, visando fazer a poesia pela poe-
sia, cultivando de preferencia a forma. Eram os seguidores
de Leconte de Lisle e de Banville.
E' o grupo a que seu o nome de parnasianos. Inclinavam-se
já para um naturalismo selecto, já para os puros domínios
da phantasia. Quasi toda a moderna poesia brasileira veio
postar-se d'este lado da montanha. Seu representante
máximo foi o Dr. Luiz Delflno dos Santos.
Com ser já homem velho em idade e velho nas letras,
antiga poeta condoreiro, nunca havia tomado parte activa
em nossas luctas. Nos últimos vinte annos do século, porém,
desenvolveu uma tal actividade e chegou a um grau tal de
renome que foi preciso d^então em diante contar com elle.
Em deredor doesse decantado poeta luctaram quasi todos os
moços, disse eu, e, entre outros, devo lembrar os nomes de
Theophilo Dias, Raymundo Correia, Alberto de Oliveira,
Olavo Bilac e vinte outros com os quaes me hei de occupar
opportunamente.
Taes as principaes phases do romantismo brasileiro na
poesia. No romance e no theatro a evolução não s& fez tão
normalmente, tão logicamente.
O romance e o theatro hão tido entre nós uma espécie de
desenvolvimento episódico e esporádico.
O romance teve uma phase embryonaria no velho Teixeira
e Souza; assumiu as proporções de estudo social em Joa-
quim Manoel de Macedo; multiplicou-se, para attender a
todas as cambiantes da nossa população, em José de Alencar;
adstringiu-sc ás populações campesinas em Franklin Tá-
vora ; tomou feições psychologicas em Machado de Assis e
(1) Peço licença para, como tantos outros, falar no meu nome em 3*. pessoa.
12 HIBTOBIA DA LITTERATURA BRABILBIfiÁ
naturalistas em Aluizio Azevedo. Em tomo- d'estes têm gyrado,
em suas respectivas épocas, Manoel de Almeida, Escragnodle
Taunay, Bernardo Guimarães, Carneiro Vilella, Araripe Jú-
nior, Celso de Magalhães, Inglez de Sousa, Raul Pompéa e
outros.
O theatro mostra um desenvolvimento ainda inferior ao do
romance.
Penna, Macedo, Alencar e Agrário iniciaram a comedia, e
balbuciaram o drama nacional. Não lembro agora as produo-
ções dramáticas de Magalhães, Norberto Silva, Porto Alegre
e Ernesto França ; porque não tiveram grande» influencia.
Os epígonos do theatro foram Quintino Bocayuva, Castro
Lopes, Pinheiro Guimarães, Sizenando Nabuco, Achilles Va-
rejáo, França Júnior, Arthur Azevedo, sem falar em Machado
de Assis e Franklin Távora, mais illustres no romance e no
conto.
Foi este o romantismo brasileiro (1).
Será estudado especialmente na poesia, na critica, na his-
toria, na philosophia, nas sciencias, nas artes, em todas as
manifestações em summa da intelligencia d'esta nação.
O romantismo brasileiro, em seu acanhado circulo, asylou
os mesmos debates que o seu congénere europeu. Seu maior
titulo, a meu vêr, foi arrancar-nos em parte da imitação por-
tugueza, approximar-nos de nós mesmos e do grande mundo.
Seu inicio havia sido no decennio antecedente ; mas seu
maior impulso foi nos primeiros annos do reinado do segundo
imperador ; os dias diíficeis da Regência tinham passado ;
abria-se uma época de grandes esperanças.
Com a inauguração do império, a existência da corte e das
sessões da camará dos deputados e do senado no Rio de Ja-
neiro, os melhores talentos das províncias affluiam a esta
cidade para onde deslocou-se o centro do pensamento brasi-
leiro. O decennio de 1840 a 50 foi talvez um dos de maior effer-
vecencia litteraria havidos no Brasil.
(1) A determiaaç&o das phases do romantismo brasileiro foi já por mim
feita na Litteratura Bragileira e a Critica Moderna, no Epilogo^ e recen-
temente, sob forma mais completa, na memoria litteraria que faz parte
do livro do 4*. Centenário do Brasil.
HIBTORU DA UTTIBATU&A BSASILBilU 13
O estudo das revistas do tempo, nomeadamente a Revista
do Instituto Histórico^ a Minerva Brasiliense e a Guanabara,
facilita a reconstrucção narrativa do romantismo brasileiro.
Foi o tempo em que Magalhães, Porto Alegre, Varnhagen,
Torres Homem, Penna, Macedo, Gonçalves Dias, Nunes Ri-
beiro, Adet, Bourgain, Norberto Silva, Mello Moraes, Pereira
da Silva, Ignacio Accioli, Abreu e Lima, Joaquim Caetano, e
vinte outros conheciam-se, relacionavam-se, encontravam-se
no Instituto Histórico, em casa de Paula Brito, ou na Petalo-
gica do Largo do Rocio.
Monte Alverne ainda vivia e era uma força attractiva para
essa gente. Não existia n^aquelle grupo nenhum génio de pri-
meira grandeza; mas achavam-se ali alguns dos mais valo-
rozos talentos que este paiz tem produzido.
O decennio anterior (183040) foi dos primeiros ensaios
d'aquella pleiaula d'escriptores. Todo este periodo é o que se
poderia chamar a escola fluminense na litteratura brasileira.
O Rio de Janeiro é uma lindíssima cidade, capaz de ser
uma terra de poetas e pensadores. O homem, em lucta com a
vida do espirito, precisa de procurar descançoi e alentos ao
mundo exterior, e aqui elle os poderá achar e variadíssimos.
E' uma cidade de pedra como Paris, e não de tijolos como
Londres, De um lado é cercada pelo msur, que lhe proporciona
o bellissimo porto, semeado de ilhas e circulado de morros;
de outro lado estende-se pela planície a dentro a encontrar
outras montanhas, que a fecham como em circulo. Tudo isto
adereçado de viçosa e pujante vegetação ; grandes pedaços de
malta virgem diao em muitos arrabaldes ainda hoje o espe-
ctáculo das florestas do interior.
A principio a população era retraída e modesta. Depois,
nos quarenta e nove annos do reinado do segundo impe-
rador, mudou ella inteiramente de aspecto e de índole. O
commercio cresceu ; os interesses mulliplicaram-se ; uma
enorme immigração das províncias e do estrangeiro invadiu a
cidade, onde tudo tomou um aspecto transitório e fluctuante.
Dizem que só por si este famoso Rio vale todo o Brasil...
Não duvido que assim seja ; porém não conheço nutra cidade
no paiz menos nacional do que esta. E* sem duvida a primeira
14 HISTORIA DA LITTERATUHA £BASILBIRA
na riqueza material, nos interesses de momento, nos pra-
zeres fáceis, nos arranjos politicos. Não- é a primeira no
amor e nas tradições da pátria. Um não sei que de sceptico,
material e frivolo invadiu o geral dos espiritos ; o amor do
dinheiro sem trabalho, o favoritismo politico e o goso mer-
cenário das mulheres tomaram proporções assustadoras n'uma.
terra deposta em leito de granito, cercada de montanhas de
granito, onde parece que os caracteres deviam ser de bronze
e as intelligencias de ouro... Entretanto, a primeira phase do
romantismo mostra ainda algumas intelligencias sérias.
Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882).
Não darei por meudo a biographia d'este escriptor.
Basta-me referir que Uçisceu no Rio de Janeiro em 1811 ;
formou-se em medicina em sua cidade natal, onde em 1832
publicou seu primeiro volume de poesias. Em 1833 partiu
para a Europa, cujos principaes paizes visitou, tendo por
companheiros Salles Torres Homem e Araújo Porto Alegre.
De volta ao Brasil em flns de 1836, anno em que publicou em
Pariz os celebrados Suspiros Poéticos^ serviu de secretario
do governo nas províncias do Maranhão e Rio-Grande do
Sul.
Foi deputado geral. Continuou a escrever, publicando :
António José ou o Poeta e a Inquisição, em 1839 ; Olgiato, em
1841 ; Amancia, em 1844 ; Memoria histórica documentada da
revolução do Maranhão, em 1848; a Confederação dos Ta-
moyos, em 1856. Abraçou a carreira diplomática, represen-
tando o Brasil em diversos paizes da Europa e da America.
Palleceu em Roma em 1882, deixando ainda publicadas ou-
tras obras.
Nenhum escriptor brasileiro fez tão rápida c tão brilhante
carreira ; nenhum teve tanta fama, tão fácil nomeada e ne-
nhum cahio tão depressa e tão profundamente. Hoje é preciso
rehabilital-o, ftxando-o num logar definitivo.
Quandoí appareceram as primeiras obras de Magalhães a
imprensa desencadeou-se em louvaminhas formidolosas.
Cada um queria ser ainda mais exagerado do que o seu ante-
HISTOBIA DA LITTSRATUBÁ BBA8ILEIBÁ 15
cessor em balançar o Ihuribulo e incânsar o ídolo. Salles
Torres Homem, Norberto Silva, Manuel de Macedo, Fer-
nandes Pinheiro, Nunes Ribeiro e Araújo Porto Alegre foram
os mais empenhados naquelle doce lidar.
Tudo isto passou ; o poeta deixou de ser lido, seu nome
velou-se de olvido, e quando, morto o illustre brasileiro, seu
cadáver aportou a esta cidade, apenas um dos seus velhos
amigos se apresentara para o levar ao descanço do tu-
mulo...
Que liçdo a futuros escriptores I Houve injustiça em
tanto esquecimento ; houvera antes excesso em tantos lou-
vores. Este homem deve entrar para a historia, levando com-
sigo o valor exacto dos seus trabalhos. Aglumas notas capi-
tães lhe descubro : era activo e linha desejos de influir ; por
isso tentou diversos géneros : o lyrismo impessoal nos Su&piros
Poéticos, a elegia nos Mysterios, a epopéa na Confederação
dos TamoyoSy o theatro no António José e no Olgiato, o
lyrismo subjectivista na Urania, a philosophia nos Factos do
Espirito Humano e na Alma e o Cérebro. Era um talento serio,
encarava tudo com um certo ar de solemnidade, prestes a
descombsu» em dureza.
Era também grave na escolha dos assumptos. Percorram-se
por exemplo, as paginas de seus Suspiros Poéticos ; tudo sâo
assumptos elevadas e grandiosos. A execução, porém, ficava
sempre abaixo do objecto. Nenhum poeta do século se ocu-
pou de cousas t5o remontadas e tarpbem nenhum accu-
mulou tanta prosa metrificada. Era um talento objecti-
vista, nutrido de uma philosophia palavrosa e vaga, de um
pantheismo abscondito. Espirito capaz de interessar-se por
grandes factos da historia e grandes scenas da natureza, não
possuía o dom de identíficar-se com a grande vida do uni-
verso, e trazer de lá alguma cousa da poesia eterna, que cir-
cula e se expande por toda a ímmensa cadeia dos seres. A
natureza lhe apparecia como um organismo abstracto e pro-
saicamente finalístico.
Deve ser estudado com amor e interesse, porque foi um
trabalhador e porque amou este paiz. Veja-se o poeta e ouça-se
o philosopho. Felizmente elle não pertence a certo grupo de
16 HISTORIA DA LITTXSATU&A BRASILBIBA
charlatães, tâo communs em seu tempo, que julgava estar
a grandeza íntellectual em multiplicar livros e livros para
tormento do publico e especialmente da critica.
Magalhães não escreveu muito; suas obras completas em
primorosa edição de luxo não passam de dez volumes, perfei-
tamente portáteis (i).
Possúe quatro producções capitães por onde for principal-
mente conhecido pelo publico brasileiro. Dão a medida dos
seus talentos e dos seus defeitos. O poeta lyrico acha-se nos
Suspiros ; o poeta épico mostra-se na Cor^ederação ; o drama-
tista encerra-se no António José ; o philosopho palentea-se nos
Factos do Espirito humano.
Deflnir estes livros é determinar a natureza, a indole do
talento do escriptor ; é desenhar-lhe a alma.
Como pensava em poesia? EUe mesmo vae dizer. Educado
em pleno regimen clássico, nunca foi mais do que um cIBíS-
sico entre os românticos. A forma e o fundo de sua poesia
são de um classismo pouco variado e pouco vigoroso.
lia uma certa nota dura e áspera que flca a vibrar perpe-
tuamente ao ouvido. Do romantismo elle tomou apenas três
sestros capitães : fazer da poesia uma succursal da religião,
maldizer systematicamente do presente, divinisar o poeta e
a sua missão.
O auctor é typico en cada uma d'essas manifestações
mórbidas da romântica.
As provas são fáceis ; eil-o que fala do caracter e da natu-
reza de sua poesia :
« O ílm deste livro, ao menos aquelle a que nos propa-
zemos, que ignoramos se attingimos, é o de elevar a poesia
á sublime fonte donde ella emana, como o effluvio d'agua,
que da rocha se precipita, e ao seu cume remonta, ou como
a reflexão da luz ao corpo luminoso ; vingar ao mesmo tempo
a poesia das profanações do vulgo, indicando apenas no
Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.
A poesia, este aroma Talma, deve de continuo subir ao
Senhor; som accorde da intelligencia, deve sanUflcar as vir-
(1) Reiiro-me á ediç&o Garnier das obras completas de Magalhães*
HIBTOBIA DA LITTERAllTEA BBABILXIRA 17
ludes e amaldiçoar os vícios. O poeta^ empunhando a lyra da
Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do
Justo e do Bello...
O poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno der-
ramado na fonte, onde morrem quantos ahi procuram apla-
car a sôde. Ora, nossa religião, nossa moral é aquella que
nos ensinou o Pilho de Deus, aquella que civilisou o mundo
moderno, aquella que illumina a Europa e a America : e só
este bálsamo sagrado devem verter os cantos dos poetas bra-
sileiros (1). »
Por mais respeitáveis que hajam sido os sentimentos re-
ligiosos do nosso romântico, é dubitavel que andasse bem
avisado em confundir a poesia com a religião. Emquanto a
critica moderna não se convencer que existem no espirito
humano tendências diversas e irreductiveís, creadoras de
outras tantas manifestações também diversas e irreductiveís,
havemos de apreciar os terriveis desmantelos de que o nosso
tempo tem sido por demais abundante. Poesia religiosa e
religião poética, arte scientiflca e sciencia artística, e outras
tantas antinomias grotescas, são o ridículo de nossos dias. To-
das as crêações intellectuaes e emocionaes da humanidade
entram num schema epecial : religião, arte, sciencia, poli-
tica, industria direito e moral são as sete grandes institui-
ções da humanidade.
Não ha outras. A sciencia alli abrange a philosophia, e
a politica margôa a moral e o direito.
E' isto, pois : existem as formações religiosas, as artísticas,
as philosophico-scientiílcas, as oconomico-induslriacs e as
elhico-politicas e jurídicas. Em o espirito humano deve rei-
nar a paz, e por isso cumpre que suas crêações fundamentaes
nâo andem em lucta ; o conflicto entre ellas, confliclo muitas
vezes crudelissimo, deve cessar ; convém que andem o mais
possível de accordo.
São, porém, distinctas ; confundil-as é prova de estreiteza
intellectual. O espírito religioso pôde não ter nada de poético ;
o poeta pôde nada ter de religioso.
(1) Suêpiroê Poeticoê, prefacio, sob o titulo— L^cfe.
mSTORU II 2
18 HI8T0BIA DA LITTERATUBA BEABILEIBA
A confusão das duas cousas foi um erro grosseiro do
romantismo. E nosso poeta compartilhou d'esse erro.
Outro abuso em que tropeçou foi a mania, igualmente ro-
mântica, de maldizer de seu tempo, sem razão para o fazer.
Era uma das. formas do patlios rhetorico. « Tu vais, ohl livro,
ao meio do turbilhão em que se debate nossa pátria; onde
a trombeta da mediocridade abala todos os ossos e desperta
todas as ambições; onde tudo •está gelado, excepto o
egoismo... » (1).
Era uma das formas da vaidade do poeta. Póde-se dizer sem
receio; porque, feitas as reducções devidas no seu talento,
ainda fica elle sendo um homem grandemente apreciável.
Aquellas palavras e outras similhantes foram preparando a
crescente indisposição do publico diante de Magalhães. Re-
fere a tradição que, de volta de sua primeira viagem á Eu-
ropa, ao avistar elle a cidade do Rio do Janeiro, saúdara-a
com esta imprecação : « Oh I terra de ignorantes !... » Avalie-
se do encommodo causado por taes palavras no centro do
chauvinismo brasileiro.
O poeta dizia a verdade ; a occasião é que era imprópria.
Como lyrico o livro capital de Magalhães, disse eu, são os
StLspiros Poéticos. E' uma collecção de poesias enormes, eri-
çadas de prosaismos capazes de molestar o mais contentavel
dos leitores. Foi um dos grandes defeitos do romantismo fran-
cez passados para o Brasil : o desmedido comprimento das
poesias.
Quando se tem, por exemplo, contado a fortuna de haver
lido um Lied allemão, delicioso pela forma e pelo fundo,
comprimido em duas ou três estrophes, e se encontram a
Invocação ao anjo da poesia, O Vate, A Poesia, Deos c o
Homem de Domingos de Magalhães, é para deveras irritar.
São peças trotadas num diapasão monótono, numa rheto-
rica subalterna de uma longura de estafar.
O fundo das ideias é um espiritualismo a Cousin com
laivos de pantheismo.
Não existem galas nem effusões lyricas ; o tom é pesado, a
métrica indisciplinada.
(1) Stitpiroê Poetiroê^ Lede, in fine%
HI8T0KIA DA LITmATUBA BSABILXntA 19
Um pedaço ao acaso :
(c Quando se arrouba o pensamento humano,
E todo no infinito se cohcentra,
De milhões de prodígios povoado ;
Quando sobre o fastigio de alto monte,
Como um colibre sobre altivo robre,
Na vastidão sidérea a vista espraia ;
E vê o sol, que no Oriente assoma.
Como n'um lago em própria luz nadando,
E a noite, que se abysma no occidente.
Arrastando seu ma*nto tenebroso.
De pallidas estrellas semeado ;
Quando dos gelos, que alcantis coroam,
Vô a enchente rolar em cataractas.
Por cem partes abrindo largo leito,
Fragas e pinheiraes desmoronando ;
Quando vô as cidades enterradas
A seus pés na planície, e negros potitos
Aqui e alli moverem-se sem ordem
Como abelhas em torno da colmeia ;
O homem então se abate ; um suor frio,
Qual o suor que o moribundo cAa,
Rega-Ihe o corpo extactico ; sua alma.
Como um subtil vapor que o lyrio exhala,
Ferido pelo raio matutino.
Da terra se levanta ; e o corpo algente
Qual um combro de pó morto parece... »
E' este o eslylo : períodos enormes, idéas de pouca monta.
Não tem a profundeza da poesia alleman, a ideíalidade da
ingleza, nem os brilhos da franceza.
Tem os defeitos do systema romântico, possuindo poucos
de seus méritos.
A mania romanesca de considerar o poeta o rei dos homens
nâo lhe foi estranha. Diz d'elle na peça O Vaie :
(( Umas vezes soberbo, impetuoso,
Qual águia que sublime o céo devassa,
B do céo sobre a terra os olhoa descei
t
20 Hlfl.TOBlÁ DA LITTERATUEA BRABILEIBi
Teu Ígneo, alado génio, no ar suspenso :
Nôo, oh mortaes, nfto vos perteriço (exclama),
Eu sou órgão de um Deos ; um Deos me inspira ;
Seu interprete sou ; oh! terra! ouvi-me. n
Era esta a geral importância que os poetas românticos sup-
punham caber-lhes em partilha. Uma innocente illusão e
nada mais.
O nosso fluminense escreveu poesias que são verdadeiras
ladainhas ; é um outro defeito seu.
Eis um exemplo :
(c Santa Religião, amor divino,
Que benefícios sobre a terra espalhas!
Quanto é mysterioso o Ser que inflammas!
De quanto ellc é capaz!... Vejo donzellas,
Reboradas por ti, vencer a morte!...
Oh! das Religiões a mais perfeita.
Oh! única de Deos e do homem digna!
Religi&o plantada ho Calvário,
E co'o sangue de Christo alimentada!
Religi&o de amor, de paz, de vida! »
Falta só juntar a cada um destes versos o respectivo — ora
pro nobis — para sahir uma perfeita ladainha, Pôra melhor
que o auctor dos Suspiros Poéticos pugnasse pela religião em
boa prosa, deixando o verso para outros assumptos.
O poeta, porém, nem sempre foi assim fraco; teve seus
momentos felizes ; aqui e alli surgem elles em suas obras.
Naquella de que se trata agora acha-se inserta a celebrada ode
a Napoleão cm Waterloo, uma das producções mais elevada.s
do romantismo pátrio. Não é toda igual ; quasi sempre, po-
rém, é digna de apreço. Eis os trechos principaes :
«( Waterloo!... Waterloo! Lição sublime
Este nome revela á Humanidade!
Um oceano de pó, de fogo e fumo
Aqui varreo o exercito invencível,
Como a explosão outr'ora do Visuvio
Até seus tectos inundou Pompéa...
r*.
HISTOBIA DA UTTXSATUaA BBÀSIIiXIIU 21
O pastor que apascenta seu rebanho,
O corvo que sanguíneo pasto busca.
Sobre o leâo de granito esvoçando ;
O echo da floresta, e o peregrino
Que indígador visita estes logares :
Waterloo!... Waterloo!... dizendo passam...
Sim, aqui stava o génio das victorías,
Medindo o campo com seus olhos de aguial
O infernal retintim do embate d*armas,
Os trovões dos canhões que ribombavam,
O sibilo das balas que gemiam,
O horror, a confusão, gritos, suspiros,
Eram como uma orchestra a seus ouvidos!
Nada o turbaval Abóbadas de balas,
Pelo inimigo aos cehtos disparadas,
A seus pés se curvavam respeitosas,
Quaes submissos leões ; e, nem ousando
Tocal-o, ao seu ginete os pés lambiam...
Oh! porque nôo venceu? O Anjo da gloria
O hymno da victoria ouvio ires vezes ;
E três vezes bradou : E* cedo ainda!
A espada lhe gemia na bainha,
E inquieto relinchava o audaz ginete.
Que soia escutar o horror da guerra,
£ o fumo respirar de mil bpmbardas.
Na pugna os esquadrões se encarniçavam ;
Roncavam pelos ares os pelouros ;
Mil vermelhos fuzis se cmmaranhavam ;
Encruzadas espadas e as baionetas,
E as lanças faiscavam retinindo.
EUe só impassível como a rocha.
Ou de ferro fundido estatua equestre.
Que invisível poder magico ahima.
Via seus batalhões cahir feridos,
Como muros de bronze, por cem raios;
£ no céo seu destino decifrava...
Grouchy, Grouchy, a nós, eia, ligeiro.
Ah! nfio deixes teus bravos companheiros
Contra a enchente luctar, que mal vencida
Uma após outra em turbilhões se eleva,
22 HISTOBIA DA UTTBSATnKA. BKASlLIIKâ.
Como vQgas do oceano encapellado.
Que furibundas se alçam, luctam, batem
Cobtra o penedo, e como em pô recuam,
E de novo no pleito se arremessam...
Eíl-o sentado em cima do rochedo.
Ouvindo o echo fúnebre das ondas,
Que murmuram seu cântico de morle ;
Braços cruzados sobre o largo peito.
Qual naufrago escapado da tormenta,
Que as vagas sobre o escoltio regeitaram.
Ou qual marmórea estatua sobre um tumulo.
Que grande ideia occupa, e kurbilhona
Naquella alma tão grande como o mundo? »
E' unia cousa singular esta poesia ; não se parece com
nenhuma outra do auctor. O inonienlo psychologico que a
produziu toi único em toda a vida de Magalhães.
Todos os outros trabalhos poéticos do notável fluminense
foram feitos suavemente, pacatamente, ao correr da penna,
entre uma palestra e uma chávena de café ; o poeta não se
alterava; conversando, ia escrevendo, e, interronipendo-se
para despachar alguém, voltava sem perturbação ao tra-
balho, ao que se conta.
Tinha facilidade em escrever; mas quasi sempre a facili-
dade oriunda da vulgaridade, da pouca madureza.
Assim foram escriptos os Mysterios, a Con/cderafâo, eia
Tragedias.
Magalhães não era propriamente um temperamento poé-
tico, uma alma iyrica.
Bem poucas das qualidades da grande poesia elle possuía ;
como lyrico é quasi illcgivel. D'elle ílcará o exemplo de con-
slancia e amor ao trabalho. Ter-se-hilo sempre em attençilo os
sforços para dar-nos theatro, poesia épica, lyrismo e
►phia. O Napoleão cm Watcrloo, esse seu quasi mira-
producto, garantil-o-ha contra o esquecimento. E' su-
ão decantado Cinque Maggio de Manzoni.
mol-o na poesia épica.
Llhães, educado na escola clássica, Qcou sempre eivado
HIBTOBIA DA UTTXBATURA. BRABILBIRA 23
dos sestros e amaneirados do systema. O romantismo, como
poesia das sociedades novas, havia banido o poema épico, a
pseudo-epopéa litteraria, só admissivel na civilisaçáo Occi-
dental até o século xvi.
Magalhães, no falsissimo empenho de crêar uma littera-
tura nacional, falsissimo, porque a nacionalisação de uma
litteratura nuo é cousa para ser feita com as regrinhas de um
programma; Magalhães, nessa empenho, que deve ser um
resultado das forças inconscientes da historia, quiz dotar-nos
com uma epopéa brasileiral... Para isto escolheu um epi-
sodio da conquista do Brasil, a resistência dos tamoyus con-
tra os portuguezes.
O episodio é bem escolhido, por ser um facto histórico,
por collocar frente a frente os conquistadores e os venci-
dos, por ser o momento da fundação do Rio de Janeiro, a
grande cidade da America do Sul, e por trazer á scena a
figura sympathica do padre Anchieta. Mas que prosaismol
que falta de vida 1 que falta de forçai que situações falsas !
E' um grande cartapacio em dez cantos em versos brancos,
num estylo bronco e duro que raro melhora. Poucos terão a
paciência de levar-lhe a leitura ao flm,
A ideia mesma do poema épico para o Brasil é uma infan-
tilidade. Gente de hontem, sem mythos, sem tradições, sem
heróes populares, pequena nação burguesa de outro dia, nós
não possuímos definitivamente feições épicas.
Como representação ethnica dos brasileiros, o livro é sem
préstimo, por falso e incompleto ; falso, porque a pintura dos
caracteres selvagens e dos colonos é inexacta; incompleto,
porque falta alli o elemento negro, sem duvida, sob o ponto
de vista do trabalho, o mais considerável do Brasil.
A falsidade dos typos indígenas, dos Aimbires, das Igua-
sús, dos Pindobuçús e outros salta aos olhos. E' só abrir o
poema e ler ao acaso. São portuguezes da classe media com
cores selvagens.
Paça-se a synthese dos factos, como elles se deram. O decen-
nio de 1830 a 40 foi o tempo áureo de Magalhães ; os Suspiros
tinham levantado barulho em 1836 ; o António José havia ar-
rancado applausos em 1838. São as duas obras capitães do
24 HI8T0BIA DA LITTBBATURA. BBA8IL1IBA
poeta, aquellas de que algumas pessoas do povo de certa cul-
tura se lembram ainda.
No decennio de 1840 a 50 o escriptor pouco produziu.
Sahiram Olgiato em 41; Amancia em 44; a Memoria da
Revolução do Maranhão em 48. São ires cousas inúteis, de
uma fraqueza incontestável. E' que o astro de Gonçalves Dias
(1846) crescia no horizonte, e a estrella de Magalhães come-
çava a empallidecer.
Ao decennio de 1850 a 60, já em seui declinio, pertencem a
Con(ederação dos Tamoyos — 1850, os Mysterios e Cânticos
Fúnebres — 1858, e os Factos do Espirito humano neste ul-
timo anno.
Então Gonçalves Dias, Penna, Alvares de Azevedo e Ma-
cedo jã pertenciam á historia ou eram vultos conhecidos. As
condições do meio litterario já não eram as mesmas do
tempo dos Suspiros Poéticos. A poesia brasileira havia
ganho muito em vida, em graça e em primores de estylo.
O talento de Alencar era já uma realidade. Magalhães tinlia
ficado estacionário entre o imperador, Porto-Alegre e Nor-
berto Silva no Instituto Histórico.
Em nossa litteratura, então como ainda hoje, havia um
cenáculo, e aquellc era da gente do Instituto em torno do
imperante, moço, enthusiasta; porém negativo na sua boa
vontade.
José de Alencar pegou do poema de Magalhães e íez-lhe a
crítica desapiedada ; o barulho foi enorme, o escândalo era
inaudito. Agitaram-se Israel e Judá ; poseram-se a postos os
defensores dp poeta. Mas foi embalde.
Soares de Azevedo, Macedo, Monte-Alverne, o próprio
Monte-Alverne!... perderam seu tempo. A derrota era um
facto consummado. O poeta era um homem de pouca energia
para a lucta; não sahiu a campo; nada disse. Alencar ficara
triumphante. Desde então o sceptro litterario passou ás suas
mãos.
Os pontos de vista do escriptor cearense não eram dos
mais elevados, nem dos mais correctos em critica litteraria ;
mas estavam na altura de seu tempo no Brasil.
O poema é em geral fraco, e é realmente para admirar o
HIBTOBIA DA LITTBItATUBA BSABIUIIKA 25
tempo gasto por Perdinand Wolí em o analysar e gabar. Ha
em todo elle um ou outro pedaço mais elevado e mais poe^
tico. Os melhores, a meu ver, sáo a descripçâo do Amazonas,
a partida dos guerreiros pela floresta, os queixumes» de
Iguassú, e um pequeno trecho sobre Anchieta.
Iguassú é a amante de Aimbire, o heróe do powna. Mar-
chando este chefe á frente de seus guerreiros a ferir a lucta
com os portuguezes, a heroina assiste de sobre um monte á
partida d'aquelle troço por entre a floresta. Punge-lhe a sau-
dade, e o poeta escreve estes versos.
n Um ai do peito a misera soltando,
A maviosa voz desVarte exhala :
Cl Só, eis-me aqui no cimo da montanha.
Dos meus abandonada ; como um tronco
Despido, inútil no alto da collina,
A que os ramos quebrou Tupan co*a frecha.
Só, eis-me aqui, do velho pai ausente,
Ausente do querido bem amado,
Como viúva, solitária rola
Em deserto areal seu mal carpindo!
Ainda hoje o caro pai vi a meu lado ;
Ainda hoje o amante eu vi!... Fugiram ambos,
Velozes como os cervos da floresta :
Ja fui feliz ; mas hoje desgraçada!... »
E os echos responderam — desgraçada!
(( Desgraçada!... E ainda vivo? Antes á guerra
O pai e o bravo amante acompanhasse ;
Ouvindo sua voz, seu rosto vendo,
Acabcu: a s^u lado melhor fora. »
E os echos responderam — melhor foral
(f Génios, que as grotas povo€ds e os valles,
Centos, que repetis os meus accentos,
Ide, e do amado murmurai no ouvido
Que a amante sua de saudades morre. »
2Q HISTORIA DA LirTBaATUBA B&ASILBIEA
E OS echos responderam — morre... morre!
Morre... morre! soou por largo tempo.
O canto cala um pouco a triste moça,
Murmurando dos echos o estribilho,
Como se algum presagio concebesse.
Os "negros olhos de chorar cançados
Co'as mãos ella os enxuga ; mas de novo .
Desses doridos olhos as estanques
Lagrimas brotam, que lhe o peito aljoíram...
Como goteja em bagas abundantes
Da fendida taboca a pura lympha...
Suspira e geme, e continua o canto ;
Mas temendo que os echos lhe respondam,
Em meia voz começa compassada :
(c Porque tão cedo, oh sol, hoje raiaste?
Porque ílammejas como accesas brazas?
Ah! tu me queimas ; teu calor modera,
Que na marcha os guerreiros enlanguece.
D*esta terra que é tuc^ doestes bosques,
Que após da enchente do geral deluvio
Plantou Tamandfiu^é para seus filhos,
Hoje os Tamoyos em defeza marcham.
Tamandaré foi pai dos avós nossos ;
Sempre Tamandaré a ti foi caro ;
Tu, oh sol, o aqueceste na velhice ;
Aquece os filhos seus ; mas ohl não tanto.
Olhos meus, de chorar cançados olhos,
Que tetides mais que vêr? Já não distingo
Naquelles densos bosques os guerreiros.
Entre os arribas e as sapucaias.
Nada mais vejo que prazer me cause.
Só estou sobre a terra! Vinde, oh feras!
Não ha quem me defenda : vinde ao menos
Menos dura é a morte que a saudade.
Sim, morrerei n
E mais dizer não pôde ;
Em meio de um gemido a voz faltou-lhe.
Os lábios lhe tremiam convulsivos,
Como flores batidas pelos ventos.
HI8T0BIA DA LITTBRATUEA. BBA8ILBIB4 37
Cruza os braços no collo, os olhos cerra,
Pehde a fronte, e no peito o queixo apoia,
As derretidas perlas entornando.
Tal n'um jardim a pallida açucena
De matutino orvalho o cálix cheio.
Se o zephyro a bafeja, a fronte inclina,
Puros crystaes em lagrimas vertendo.
Não sei se dorme, ou se respira ainda;
Mas parece ehtre pedras bella estatua,
Que do abandono o desalento exprimel
O sol, que ao resurgir a vio chorosa,
N*esse mesmo logar chorosa a deixa » (1)
E' este o tom do poema em seus melhores pedaços ; é evi-
íeníemente muito pouco épico.
Magalhães procurou influir lambem no theatro. Nesta es-
hera o António José ou o Poeta e a Inquisição dá a medida
3 seu talento.
AindsL neste ponto o poeta não foi um romântico emérito,
•tes baniram a tragedia em favor do drama; o illustre flu-
nense náo esteve por isso e presenteou seus patricios com
Kluctois do género.
ntonio José, interpretada pelos grandes talentos de João
íano e Estella Sezefreda, agradou bastante nos annos de
e proximamente posteriores (2).
>e-i7)e ainda n'este ponto censurar o poeta. Sua tragedia
ia obra incolor, sem vida, sem um só typo verdadeira-
ie accentuado, sem acção dramática. E' um desconcerto
ítuo. Marianna tem um caracter dúbio; não se pôde
vèr se ella é simples companheira e amiga de António
Dia se verdadeira amante.
ynio José, o protagonista, o espirituoso judêo das
' Portuguezas, o gaiato brasileiro dos autos, é transfor-
iizm racíocinador pedante. Pala uma linguagem im-
] em Portugal em principies do século XVIII. O conde
3ira ó um Meceneis pacato, medroso, sem talento e sem
eder&ção dos Tamoyos, C. IV.
gedÍA foi representada pela primeira vez em 1838, e sahiu publi-
(HO s«!gruinte.
28 HISTORIA DA UrTERATUBA BRABILEIKA
influencia no meio politico que o cercava. Frei Gil é um Lovô-
lace de roupeta, sem graça, sem habilidade, transformado
depois numa Magdalena arrependida. A tragedia em scena
bem executada por artistas de talento illude um pouco ; lida é
lastimável quasi.
De toda ella Acaram mais ou menos na memoria dos que a
ouviram aquelle verso da scena II do III acto entre António
José c o Conde de Ericeira :
u Nasce de cima a corrupção dos povos »
e aquelles da mesma scena um pouco anteriores :
« Poeta que calcula quando escreve,
Que lima quanto diz, porque não íira,
Que procura agradar a todo o mundo.
Que, medroso, não quer aventurar-se.
Que vá poetisar para os conventos. »
O seguinte monologo de António José na scena !.• do
V acto nâo é máo :
<f Morrer... morrer... Quem sabe o que é a morte...
Porto de salvamento, ou de naufrágio!...
E a vida? um sonho n'um baixel sem leme...
Sonhos entremeados de outros sonhos.
Prazer, que em dôr começa e cm dòr acaba.
O que foi minha vida e o que é agora?
Uma masmorra alumiada apenas,
Onde tudo se vê confusamente,
Onde a escassez da luz o horror augmenta,
E interrompe o recôndito mysterio.
Eis o que é a vida!... Mal que a luz se extingue,
O horror e a confusão desapparecem.
O palácio e a mesmorra se confundem,
Completa-se o mysterio... Eis o que é a morte. »
Rara era a composição do poeta fluminense em que elle
não vasava uma metaphysicasinha tirada do eclectismo íran-
cez. Na tragedia de que se trata o protagonista quasi não
abre a bocca que não seja para ensinar philosophia aos seus
companheiros. Seria preciso transportar para aqui a mor
HI8T0UA DA LITTIBATUBA BBASIUnU 29
da tragedia, se o quizesse provar praticamente. Vejam
acto, scena V, onde começa : Sim^ dizes òem, la-
.. ladrões, sicários; 2.* acto, scena IV, onde começa —
s aziagoSy em que o homem ; 3^ acto, scena II, onde diz
dos homens a fraca natureza!... ou no mesmo acto e
este pedaço que é transcripto para de uma vez dar-se
cacta idéa do defeito assignalado :
n Sim, a philosophia! Onde está ella?
Termo pomposo e vfio!... Quereis que eu chore
Como Heraclito sempre atrabiliário,
Aborrecendo os homens com quem vivo?
Ou que como Demócrito me ria
De tudo quanto vejo? Por ventura
Nisso consiste a natureza humana?
Quereis que eu seja estóico como Zeno?
Que diga que nao solTro, quando sofTro?
Por ventura nâo somos nós sensíveis?
Quereis que de Epicuro as leis seguindo,
Só me entregue ao prazer, ou que, imitando
A Crates e a Diógenes, me cubra
Com roto manto, viva desprezado,
Sem me importar co'as cousas doeste mundo.
Como o cão que passeia pelas ruas?
Be eu vou seguir de Sócrates o exemplo.
Pugnar pela razão, a morte é certa. »
im a poesia dramática do celebrado fluminense,
lyrismo as galas e os mimos da natureza cediam o
s trechos raciocinantes de um metaphysicismo sem
) drama em balde procurareis a vida subterrânea
hun)€Uia, essa alguma cousa de tenebroso que os
génios vão encontrar sob as douraduras exteriores
social dos indivíduos.
pintura, digo mal, nessa revelação que se íaz por
ião por descripções, é que vai a força dos grandes
as. D'ella Magalhães não teve nem siquer o pre-
x>.
por ultimo, o philosopho e conclua-se.
sphera o escriptor fluminense deixou três obras :
30 mSTOBIA DA LITTBRATUBA 3EA8IIJSIEA
Factos do Espirito Humano, A Alma e o Cérebro^ Pensa-
mentos e Commentarios.
A primeira é a mais importante, analysal-a é conhecer a
philosophia do autor.
Os Factos do Espirito humano appareceram em Pariz em
1858.
O poeta, como disse, entrelaçou aos voos, um pouco amor-
tecidos, de sua imaginação pedaços de sua métaphysica; o
philosopho exhibiu provas de uma poesia desgraciosa nas
paginas do seu livro.
Na histoi*ia dos dous dominios intellectuaes em que mais se
exercitou não pôde fazer uma figura muito eminente, como á
mania patriótica quiz a principio parecer.
Magalhães foi um romântico tímido e um velho espiritua-
lista catholisante.
Dotado de pouco vigor de imaginação, nâo teve brilhos
de estylo; pouco profundo, nâo devassou seriamente nenhum
dos segredos da sciencia. Seu melhor livro de poesias é, como
sa viu, de 1836 ; elle balbuciava então as primeiras palavras
de um systema litterario já decadente, cujos corypheus já
eram vultos da historia.
Quando appareceu como philosopho, foi cousa para sor-
prender a todos, que o suppunham alheio ás especulações
profundas, e que deviam ter notado a sua incompetência para
as graves questões.
Os Factos do Espirito humano, com ares de um quadro da
philosophia do século xix, ScLo uma vclleidade. O autor, que,
desde algum tempo, vivia na Europa, devendo estar em dia
com a sciencia da época, e afflrmando estar, mostra-se alli
demasiswlo débil. Seu livro é um espécie de cantilena decla-
matória, onte nao se encontra um methodo scienUflco, nem
a segurança e a elevação das idéas.
Como é que o Visconde de Araguaya, — com a pretenção
de « aventurar-se em novas theorias, tratando de todas as
grandes questões da philosophia ; eixpondo os systemas mais
acreditados e aceitos ; refutaiido os que lhe pareciam contrá-
rios aos factos, e procurando por um modo diverso do que o
fizeram outros, resolver com a maior clareza que lhe foi pos-
HISTORIA DA LXmBATUBA 3UEA8ILBISA 3Í
ilgumas difílculdades » mostrou-se tão fortemente atrás
•andes pensadores, então já vulgarisados ?
lei suprennia porque deve a historia julgar dos homens
iptores, é aferil-os pelo gráo de desenvolvimento da
em q&e floreceram, claro é que Magalhães não sae
engrandecido da operação da critica. Não passou de
scipulo de MonfAlverne, desenvolvido por Cousin.
ílle que ouvío a Th. Joufiroy, em Pariz... Quanto dista
sãmente profundo e do estylo sóbrio do insigne eclec-
dí um escriptor quasi vulgar, sem elevação de idéas,
meza de doutrina, sem finezas de analyse, sem habili-
) forma. Girou num circulo de raio tão curto, que não
nxergar os grandes astros que illustraram o seu
Todos os nobres espiritos que esclareceram com sua
Jlemanha, a Inglaterra, a Itália e a França em seu
o Visconde de Araguya os não referio, e, todavia, veio
s que expunha as theorias mais acreditadas e seguia
ophia que mais exalta o espirito humano I...
todo romântico desconsolado e impertinente, elle
o seu século ; porque o não comprehendeu. Já
dica e inaproveitável certa maneira de insurreição
tempo em que se vive que até um escriptor de mi-
atura deve fugir de repetil-a : é d'esse appello para
alismo industrial e outras momices da espécie que
losso autor a empregou como quem estava ás vol-
uma novidade. Publicou o seu livro, que trata de
moraes, porque « não falta quem cure dos inte*
iteríaes ; quem com escriptos os aconselhe, com dis-
; apregoe, com obras os promova, com vantagens e
cite a cobiça a procural-os, e não será elle dei mais
de tanto materialismo industrial I » (1).
por esta passagem sermonatica, que Magalhães foi
rupuloso em repetir as antigualhas desprestigiadas,
liano Vera, sem dar-se aliás por grande escriptor,
• á vulgaridade, cahiu no extremo opposto também
; cc Nao quero ser o censor de meu. tempo, porque
n sou de meu tempo », disse elle. A escolher entre
cfo Espirito Humano^ prologo^
32 HI8TOBIA DA LITTBKÁTUBA BBABILEIIU
OS dous extremos, antes este ultimo com todos os seus prejuí-
zos, do que a choramiga banal dos companheiros de Ara-
guaya. Fazem estes uma impressão ainda mais incommoda
do que a dos optimistas estólidos que andam, a cada instante,
a badalar sobre as maravilhas da época. Por falar occasional-
mente no professor de Nápoles, vem a propósito para medir
por elle o nosso philosopho.
Este foi um ecléctico ferrenho, como Vera era um hegelianò
fanático; entretanto, que distancia não vae entre a vasta col-
lecção de obras do espirituoso italiano e os livros magros do
escriptor brasileiro ! O napolitano abriu francamente lucta
com os mais notáveis pensadores que eram adversos ao seu
systema. Schopenhauer, Hartmann, Strauss, Darwin, entre
tantos outros, soffreram-lhe' os golpes ; e, se as suas razões
nem sempre são das mais nutridas, o ridículo que joga aos
contrários é sempre bem aproveitado. No brasileira ha
ainda mais fraqueza scientiflca, e de todo anda ausente o
espirito.
Tenho pressa em desvendar a celebre exposição da sensi-
bilidade, o que elle chamou a sua theoria nova.
O livro começa por uns capítulos onde o autor tratou de
generalidades da philosophia, como elle a entendia e discu-
tiu, inspirado em Cousin e depois delle, os systemas de Locke
e de Condillac. Recuando até ao capitulo vni, seja-me dado
estudal-o ahi. E' onde se acha a nova theoria da sensibilidade
e os novos achados de nosso autor são muito interessantes.
Consistem nisto : elle é um duo-dynamista, como tantos
outros ; admitte duas entidades immateriaes no homem, a
alma com o pensamento e a vontade, e a força vital^ que se
encarrega da vida, e a que elle attribue a faculdade de sen-
tir. Neste ultimo ponto é que se suppõe original; todos os
mais assertos seus confessa implicitamente que são velhos na
historia da philosophia.
Não é muita cousa, e se se souber que Ahrens, no seu
Curso de Psychologia publicado em 1835, já emittira mais ou
menos aquella doutrina, a pretendida novidade se reduz
quasi a nada.
Tal foi ; Ahrens admittia que o corpo tem como 6ua a
mSTOBIA DA LITTXBATUBA B&A8ILBISA. 33
bilidãde, além de certo conhecimento que lhe é próprio
ã o qual o espirito nada contribue.
corpo por si pertencem, segundo o celebre publicista
eriano, a sensibilidade e a imaginação « distincta do
qual pôde crescer no cérebro, e o espirito perceber ob-
que elle não produziu ou para os quaes cooperou íraca-
), (1).
alhães não contesta o papel importantíssimo dos ner-
lo cérebro na producção das sensações, mas para elle
Dfgcios sáo instrumentos de um principio superior.
!? A alma, respondem os espiritualistas em còro. A
ital, responde o philosopho-poeta, folheando talvez as
3 do livro esquecido de Ahrens.
3dos os obstruidores do terreno da sciencia são os
3rigosos os sectários, como o nosso autor, dessa triada
em : um corpo, uma força vital e um espirito. O corpo
a-se, a força vital vive, e a alma pensa e quer.
5so compatricio, inclinado ao idealismo ei ao mysti-
como se verá, julga que é muito grosseiro e mun-
ilma «entir, como já lhe foi por Tobias Barretto pon-
e atira esse pesado encargo para o seu companheiro
!, o principio vital (2).
lismo é uma doutrina biforme e incommoda; o ani-
mais lógico ; ambos desapparecem confusos diante
pção de Rostan (3).
r dos Stispiros Poéticos, que, apezar de medico, dá
de não conhecer este distincto collega, é bastante
; meio polytheista, delicia-se em admittir as enti-
do numero daquelles, que se julgam forçados a
r a entidade transcendental — alma, como se ex-
rzen, e contentam-se com a outra, espécie de sobe-
aterial, que preside aos phenomenos vitaes (4).
e só está satisfeito com ambas. E' o requinte do
, obra citada.
de Tobias Barretto sobre os Faeto$ do Eêpirito Humano de
nserto no Jornal do Recife, em 1869.
tion des PrineipeM de VOrganieiême, 2* édition, Paris 1846.
jia delia voluntá, p. 6.
uA n 3
34 HI8T0BIA DA LTTTEBATXTBA BRASILEIRA
metaphysicismo. Não entra no plano deste trabalho o estudo
do que seja a vida ; não tenho, pois, que apreciar o quanto é
inadmissível a concepçío de Barthez e Lordat, tão plena-
mente admittida pelo poeta dos Cânticos Fúnebres.
Fugindo ao prazer que dar-me-hia a eíxposição das ideias
de L. Rostan, hoje abandonadas pela theoria de uma ma-
téria já de si viva, a chamada theoria do carbono; fugindo á
opportunidade de apreciar a invectiva de Littré contra os que
consagram a doutrina de ser a vida uma transformação das
leis physico-chimicas (1), conceda-se ao escriptor brasileiro a
existência de um principio vital, distincto e independente do
corpo e dalma e vejam-se os motivos porque lhe attrlbue o
privilegio da sensibilidade.
O digno philosopho, em 1858, estava num ponto de vista
mais atrazado do que Jouffroy em 1830, quando escreveu a
memoria sobre a Legitimidade da separaçâit da psychologia e
da physiologia.
O autor, a priorista, não se sente muito obrigado a pro-
var as suas asserções; eis a segurança com que estabelece a
premissa de sua argumentação :
« A existência de uma força immaterial que organisa o
corpo é tão incontestável, como a existência de um espirito
que pensa, e que não tem consciência de ser elle quem orga-
nisou o seu corpo, e quem opera no interior dos órgãos
d'elle » (2).
O obscuro pelo mais obscuro...
A existência na terra de um diplomata da lua é tão incon-
testável, como o é no interior de nosso globo a existência do
inferno, que não tem consciência de ser elle quem ergueu-
Ihe na superfície as montanhas !...
Emfim... concedido : existe o que o philosopho quer. Ouça-
mol-o ainda :
« A sensibilidade está na força vital. E' essa força quem se
modifica e produz a sensação que se apresenta á nossa
alma » (3).
(1) Médeeine et MédedM, 2* édition, pages. 335 e 56.
(2) Cap, 8*.
(3) Cap, citado.
mSTOBIA DA LITTBKATUBA BRABILBISA 35
proposição parecia uma grande novidade; cumpria ao
or proval-a, e porque não fazel-o, quando « infeliz-
em favor do que elle diz não pôde citar a opinião de
n philosopho antigo ou moderno, pois todos de com-
ccôrdo attribuem á alma a sensibilidade? »
)retende justificar a sua descoberta, e devo apreciar,
um, a força de seus argumentos.
a sensibilidade, diz, estivesse n'alma intelligente e
j cada vez que ella se lembrasse de uma sensação a
de novo ; como de cada vez que se lembra de uma
5o a concebe de novo ; mas se se lembra de uma dôr,
m cheiro,- ella não os sente de novo, e quando se
le uma côr, não a vê e só a representa em um
[ualquer percebido por ella » (1).
ao philosopho demonstrado, por um dos seus criti-
ue este argumento é f utilíssimo, nada vale. Prova de
r quanto a prevalecer o seu dito, fora mister des-
ibem a alma humana da vontade I De certo, quando
ramos de uma volição passada, não a queremos de
0 não basta ; preciso é dizer ainda ao autor de 01
•que é que, ao lembrar-nos de uma concepção, a
os de novo, e o mesmo se não dá com a sensação.
3ssario pedir auxilio a uma ordem scientitlca supe-
fazel-o. Pois não viu o philosopho que, sendo, se-
ína a sua própria escola, a memoria uma faculdade
, um vez que evoca phenomenos do entendimento,
^ do círculo a que pertence, e aquillo que reproduz
m seu caracter primitivo?
3S termos, quando a memoria se exerce, em tal
re factos pertencentes á ordem íntellectual, e estes
am como são, isto é, como idéas.
to não se dá quando se exerce sobre factos que
1 á sensibilidade ou á vontade. Neste caso, ella
p. 159.
Tobias Barretto no Jornal do Recife^ em 1969, no referido
36 HIBTOBIA DA LITTEBATUEA BRASILEIRA
resuscita só aquillo que é de sua alçada, a idéa da sensação
ou da volição, e não estas em si mesmas.
Magalhães queria que ella fosse adianta e resuscitasse os
próprios phenomenos de uma esphera estranha, isto é, queria
que nós todos fossemos uns allucinadosl
A razão physiologica do que acabo de referir o nobre poeta
devia conhecer. Devia saber que nos phenomenos da memo-
ria não se agitam as partes do cérebro onde trabalham a sen-
sibilidade e a vontade.
Só a fraqueza d'este primeiro argumento do philosopho
me dispensava de ir adiante. E', porém, necessário proseguir
e examinar os outros motivos que allegou.
« O engano dos philosophos, que fazem da passividade de
sentir uma faculdade da alma humana intelligente, provém
de que a alma parece ter consciência das sensações, e imme-
diatamente sentil-as. Mas a consciência de uma sensação
nada mais é do que a consciência da percepção de alguma
cousa acompanhada de sensação » (1).
No terreno da psychologia, contesto que não haja con-
sciência das sensações, e sim somente deis percepções que as
acompanham.
Existem sensações parfeitamente conhecidas pela consciên-
cia que não lhe trazem a percepção de cousa alguma; a sen-
sação de dôr, por exemplo, na maioria dos casos.
O digno medico devia conhecer o estado, que os physiolo-
gitas denominam hypocondria, no qual até as sensações ge-
raes não localisadas tornam-se patentes á consciência, sem
todavia trazerem a percepção de objecto algum.
Mas nem é preciso recorrer a um estado pathologico para
patentear o engano dos factos do Espirito humano.
Basta recordar que a sensação especial de cheiro, em mui-
tos casos, não nos refere a percepção de um objecto. Podemos
sentir o aroma de uma flor sem que a vejamos ei saibamos
qual ella seja. A percepção é que nunca se dá sem a sensação
que se pôde executar sem aquella.
Até em casos mórbidos a percepção vem acompsmhada de
(1) Loco cit.
HI8T0SU DA LITTBBAT0AA. BRABILBIBÁ 37
seu inseparável appendice. Nas aUucinações dá-se a percep-
ção sem objecto exterior, mas sempre seguida de sensações
guaesquer que ellas sejam. São até estas as falsas sensações
que originam as falsas percepções, ou aUucinações psycho-
sensorías. A que se reduz, á vista disto, a argiimentaç&o de
Maj^alMes ? Elle nada provou, limitando-se a afílrmar gra-
tuitamente. As sensações, até pelo órgão da sciencia mais
cheia de desabuses, são declaradas actos da consciência,
ainda que esta ultima tenha sido, até agora, inexplicável em
;ua intimidade.
« Nós podemos, diz Huxley, classificar as sensações com as
moções, as volições e os pensamentos na categoria dos esta-
os de ctmsciencia. O que vem a ser a consciência de um acto
le se passa em nós ignoramol-o. Como acontece que um
\enomeno tão notável, qual a apparição da consciência dos
los se patenteie como o resultado da irritação do tecido ner-
jo, nós não podemos conhecer, nem mais nem menos
que a apparição dos Djins, quando Aladino sopra a sua
pada. £, depois, todos os factos finaes da natureza
un-se no mesmo caso » (1).
esta a verdade das cousas, é este o respeito da sciencia,
ido manejada por espritos da tempera do insigne natura-
piíilosopho.
galhâes recusou á consciência o conhecimento da sensa-
lem dar, para tanto, prova séria.
ta-me até comprehender como lhe pôde entrar no pen-
ío a possibilidade de ter-se a consciência de uma per-
sem, ao mesmo tempo, haver a da sensação que a
. Seria bom que o philosopho fosse mais explicito
onto.
s de acabar o cap. vni de seu livro, como o tinha come-
yr uma serie de quasi banalidades, o autor passou ao
onde exhibio o seu mais famoso argumento. As ni-
com que abrio esse capitulo são umas inopportuni-
bra a ordem dos sentidos exteriores no tocante ao
ue elles prestam á intelligencia ; aquellas com que o
iie JPhysiologia Elementar^ p. 210. Traduc. de Daily.
«38 HISTOBIA DA LITTEllATnKA BBABILBIBÁ
fechou São umas objecções que, fingio, se lhe fariam, e ás
quaes respondeu antecipadamente.
A principal consiste nuns considerandos sobre uma expe-
riência de Flourens.
O autor simula que alguém lhe diga : os bellos achados do
naturalista francez, que tanto apreciaes, achados com os
quaes provou que se a um animal tirarem-se os dous lóbulos
cerebraes, elle perde todos os seoitidos, deixa de ver e de
ouvir; perde todos os instinctos; não sabe mais defender-se
nem abrigar-se, nem fugir, nem comer; perde emflm toda a
intelligencia, toda a percepção, toda a volição, toda a accáo
espontânea; estas bellas experiências vos são contrarias, por-
que requerem também para o animal uma intelligencia além
da faculdade de sentir, uma percepção, uma livre vontade e
consciência, e, portanto, uma alma, que se serve do cérebro,
como instrumento (1)...
E' esta a objecção a que tem de responder.
Parece que se está a assistir a um dos saráos philosophicos,
que tinham logar no Rio de Janeiro no tempo da mocidade
do autor, e que são por elle tão elogiados na sua biographia
de MonfAlverne (2).
Alli o velho franciscano fazia proesas e o poeta da Urânio,
ainda em embrião, discutia se os animaes têm almal,,,
O philosopho sophysticou; presentiu que a physiologia
cerebral lhe é adversa, e, para quebrar o valor da opposição,
pejou-a de consequências, aos olhos de sua gente absurdas,
para sahlr assim victorioso.
Ninguém, a não ser algum desasisado, iria das experiên-
cias de Flourens concluir que o animal tem liberdade e alma,
quando, em todo o caso, no próprio homem são ambas,
liberdade e alma, questão aberta, e a sciencia não parece
muito dispota a reconhecel-as pelo velho methodo e no velho
estylo. Não é tal a conclusão que se deve tirar daquellas pre-
missas para ir-se ao encontro de Magalhães.
Basta concluir que os animaes, sem a velha alma, têm uma
intelligencia, como têm uma sensibilidade, cousas que nin-
(i; Pag. 166 e 167.
(2) opúsculos Históricos e Litterarios,
HISTORIA DA LITTX&ATirBA BBASILBIKA 39
sinceramente atreve-se mais hoje a contestar; basta,
tudo, concluir que de certos elementos do cérebro de-
1 ã sensibilidade, como d'elles depende a intelligencia,
imbem como declamava a velha metaphysica matéria-
mas segundo ensinam os que pensam como Ludwig
e todos os monistas ideialistas.
alhães phantasiou argumentar com algum pobretão
s para melhor levar-lhe vantagem.
lestáo hodierna, já decidida, sobre os animaes não é se
\m ou não alma, e sim em que gráo possuem intelli-
e quanto, e como, distam do homem. Para o insigne
imavel Haeckel os animaes superiores têm todas as
dadas, que nós outros costumanos chamar espiri-
por consagração da lingua, propriedades que só dif-
jas do homem quantitativamente e não qualUatioar
i).
)re visconde devia ser bastante atilado para conhecer
mça dos dous pontos de vista,
ramos.
irimeiras paginas do cap IX os Pactos do Espirito
encerram o seu mais vigoroso argumento. Achilles
r a campo. Eil-o : « Para que uma cousa se distinga
. é necessário que ella não seja a causa mesma da
[uer distinguir. Nada se distingue de si mesmo, senão
que não é elle » (2).
. a proposição erigida pelo philosopho em principio
jue serve de maior ao seu arrasoado.
se o eu fosse sensível, prosegue o autor, e recebesse
ão como uma affecçâo, ou modificação sua, elle
stinguiria delia, elle sei ia a sensação mesma, como
!e Gondillac; não teria por conseguinte percepção
3 mil sensações diversas que nelle se succedessem
isando, e elle, modiflcando-se de sensação em sen-
Tia sempre a ultima, sem distinguir-se de ne-
(3).
-ia Natural da Creaçaô, Liç&o 10*, Paris, 3* edição.
íòid
40 HI8T0BIA DA UTTSBATUBA BSASILEIRA.
Tudo isto não se dá; o eu se distingue das sensações, logo
ellas lhe não pertencem. A tanto queria chegar o argumen-
tador ín barbara.
Eis um resultado esdrúxulo da velha metaphysica ; o mo-
tivo de taes e tão crassos enganos é a aprioristica noção de
causa que tinha o nosso autor.
Diz que não nos distinguimos de nossas affecções; que uma
nossa idéa somos nós mesmos pensando; uma nossa volição
somos nós mesmos querendo.
Certamente não nos podemos distinguir de nossas affec-
ções, se por distinguir entender-se, como queria Magalhães,
separar-se no todo, formando existências e substancias á
parte.
Esta, porém, não é a verdade das cousas ; abstracta, e até
concretamente, eu me distingo de minhcis idéas e volições,
como me distingo de minhas sensações. Sim; minha intuição
do mundo e da realidade admitte perfeitamente que eu me
distinga, por exemplo, da idéa que formo do Aimbire de Ma-
galhães. Tanto é isto verdade que, desapparecida a idéa, eu
ainda persisto tão integralmente como d'antes.
Não se comprehende a razão porque o nobre autor abriu
uma excepção em desfavor das sensações; destas o eu se dis-
tingue ; do mais não, segundo elle. Porque ? A resposta não é
capaz de tranquilisar a qualquer. O eu, phantasiado aqui
como espécie de entidade nebulosa, se distingue das sensa-
ções, porque as objectiva, diz o sábio brasileiro.
Ora, outro tanto, pergunto, não se dará com a volição e a
idéa ? Será certo que estas também se não objectivam ? A
idéa que formava o nosso escriptor do seu vulto de gigante,
que?
<( Entre os seus marechaes ordens dictava b,
não estaria objectivada ? A idéa que, como poeta, phantasiou
do vencido de Waterloo não o teria sido nunca?
N'este decHve da espiritualidade á antiga elle foi direito ao
mysUcismo, e nos últimos capítulos de seu livro assegurou
que não temos certeza da existência real do universo, e que
pensamos nelle, porque é um pensamento de Deus, que nol-
o communica com a mesma arte c pela mesma forma por-
HI8T0BIA DA LITTXBATUSA BBA8ILBIBA 41
magnetisado percebe as idéas que vão pela mentei do
3tisadorI
L recente transformação da visão em Deus do padre
ranche, ou parodia da razão impessoal de Cousin, acho-
hantastica, que a não julgo merecedora de um exame,
lilosopho não foi por certo dos mais profundos.
)EL DE Araújo Porto alegre (1806-1879).
escriptor ainda não foi bem estudado. Coberto de exa-
3 elogios pela velha critica do paiz, alçado ao seUmo
r Fernandes Pinheiro e Wolf, não é directamente co-
) pelo publico. Sabe-se que foi autor de uma col-
le versos sob o titulo de Brasilianas e de um enorme
em dous volumes sobre Colombo. Hoje a idéa geral-
iceita é a de ser esse homem a encarnação da poesia
i, empolada, campanuda. Entretanto, é preciso rever
Izos e estudar o amoravel rio-grandense com doçura
3ialidade.
tal estudo não ó fatcil, como á primeira vista se pôde
) Porto Alegre teve uma vida trabalhosa e exercida em
uma actividade. Foi pintor, architecto, poeta lyrico,
íco, dramatista e critico. Seus productos de pintor e
ecto estão quasi esquecidos.
o de uma grandeza que se imponha; o sello da me-
nelles irrecusável. Os principaes d'entre todos são :
lies na fogueira, um retrato de D. Pedro I, o quadro
çâo da Academia das Bellas-Artes, a antiga deco-
theatro de S. Pedro de Alcântara, a galeria da Sa-
i D. Pedro II, o plano da igreja de SanfAnna e do
Brasil. O desenho é bom ; a pintura de pouca vida, e
tura sem audácias e sem originalidade.
ios de Porto Alegre para o theatro são também de
nonta. Não assim os productos do lyrista, do épico
o.
5 é que o illustre rio-grandense é um immortal para
E' onde vai ser o centro de minhas apreciações. A
L do autor do Colombo vem muito bem traçada em
42 HI8T0BIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
Fernando Wolf, sobre apontamentos fornecidos pelo pró-
prio escriplor. Darei uns ligeiríssimos toques.
Porto Alegre nasceu em Rio-Pardo, no Rio-Grande do Sul,
em 1806; estudou humanidades na capital da provinda. Mu-
dou-se para o Rio de Janeiro em 1826. Estudou pintura com
João Baptista Debret; viajou a Europa de 1831 a 37. De volta
ao Brasil residio no Rio de Janeiro até 1859 (1). Neste anno
abraçou a carreira consular na Europa, onde morreu, em
1879, vinte annos depois.
Para bem comprehender a vida intellectual de Porto Alegre
e assistir a sua evolução intima, é mister recorrer ás datas de
suas obras.
A pintura foi seu ponto de partida; a escola das Bellas-
Artes serviu-lhe de aprendizado (1826-1828). Seus primeiros
quadros são de 1829 e 30. Isto foi pas"sageiro ; de 1835 em
diante a poesia, a critica, a litteratura em geral, são a sua
principal preoccupação.
Em 1836 redige com Magalhães e Torres Homem a pequena
revista Nictheroy em Pariz; ahi apparecem um estudo sobre a
Musica no Brasil, um artigo de viagem sobre os Contornos
de Nápoles, e o Canta sobre as minas de Cumas.
O Prologo dramático é de 1837; os primeiros artigos sobre
a escola fluminense de pintura de 1841 ; Angélica e Firmino
de 1843; d'este anno são O Voador e diversos artigos de critica
artística publicados na Minerva Brasiliense.
A Destruição das florestas é de 1845; o Corcovado de 1847, a
Estatua Amasonica de 1848.
Estas datas não vêm a esmo ; servem bem para marcar o
logar do escriptor em nossa litteratura e determinar os de-
graos de sua evolução intellecto-emocional.
Geralmente se repete que Porto Alegre foi um discípulo
subserviente de Magalhães, por um lado, e por outro, o pae
intellectual de Gonçalves Dias. Erro e erro nocivíssimo. O
próprio poeta era o primero a collocar-se assim por aquelle
modo incorrectamente. No prologo de suas Brasilian€Ls de-
clara ser discípulo e continuador de Magalhães e dá a en-
(1) Le BréêU Liitéraire, pag. 169 e seg.
HISTORIA DA LITTBEATX7SA BEABILBISA 43
er que influiu n'outros poetas : « O nome Brasilianas,
lei a este livrinho provem das primeiras tentativas que
lamparam ha vinte annos na Minerva Brasiliense, e da
;ão que tive; a qual me paireceu não ter sido baldada,
le íoi logo comprehendida por alguns engenhos mais
los e superiores, que trilharam a mesma vereda.
im, pois, esta pequena collecção não tem hoje outro
imento alem do de mostrar que também desejei seguir
fipanhar o Sr. Magalhães na reforma, da arte, feita por
1 1836, com a publicação dos Suspiros Poéticos, e com-
1 em 1856 com o seu poema da Conícderação dos Ta-
)) (1).
ha contestar uma tal ou qual influencia de Magalhães
irito de Porto Alegre, quanto ás tendências geraes da
influencia oriunda das relações da amizade e nada
Alegre era talento muito diverso e muito mais bem
Tinha mais objectividade intellectual, mais imagina-
ior profusão de linguagem, mais colorido, mais vida
ma.
orlo Alegre predominava o talento descriptivo, em
ies um philosophismo impertinente que lhe inspirava
torias tiradas.
;lo, os dous amavam-se muito e citam-se nos respec-
emas. Póde»-se dizer que o poeta rio-grandense per-
► cenáculo de Magalh-les, mas entrava em perfeito pé
iade.
) a haver influído no espirito de outros é certo ; desse
porém, não foi Gonçalves Dias.
LO o diz francamente ; insinuou-o a Fernando Wolf,
Bveu isto : « II a eu beaucoup d^imitateurs, entre
itonio Gonçalves Dias, qui ne dissimule pas avoir
premières inspirations des Brasilianas » (2).
amente o talento das classiflcações htterarias não
> do escriptor de Vienna.
unas^ Vienna, 1863, Obêercação.
. p. 174.
44 HISTOKIA DA LTCTEBATint BBASILEIBA
Onde Gonçalves Dias fez similhante confissão ? Não pude
ainda encontrar .
E demais a cousa é chronologicamente impossível. Os PH-
meros Cantos de Gonçalves Dias sáo de 1846.
A mór porção das peças do volume o poeta maranhense
trouxe-as de Coimbra, datadas de três e quatro annos antes.
As únicas Brasilianas de Porto Alegre anteriores são O Voa-
dor de 1843, e a Destruição das florestas de 1845. A primeira
nada tem no assumpto e no estylo que podesse influir
no espirito do poeta dos Tymbiras. A outra, anterior de al-
guns mezes apenas ao livro dos Primeiros Cantos, é verda-
deiramente posterior a mór porção d'estes; e nem era apta
para inspirar o indianismo do escriptor maranhense. São
duas intuições bem diversas, e isto é o principal. Estudemos
o poeta lyrico.
O lyrismo de Porto Alegre não tem mimos, delicadezas,
doçuras de forma, exhuberancias de idéas ; não sao as expan-
sões ternas de uma alma amaviosa. ^
Tem grandes quadros, bellas pinturas, os signaes da força
de uma alma enérgica.
Em todo o volume das BrasiliaruLs não existe uma só amos-
tra de poesia pessoal, intima, psychologia. Tudo são sceneis
do mundo exterior, ou da historia. Se Magalhães pódei ser
considerado uma espécie de precursor entre nós da poesia
philosophica, o pintor rio-grandense é um antecipador da
poesia histórica, de uma historicidade envolta e confusa com
a natureza. Neste sentido é característico o poemeto escripto
em 1835, o canto sobre as ruinas de Cumas, intitulado a Voz
da Natureza.
E' alguma cousa de similhante aos pequenos poemas da
Lenda dos Séculos de Victor Hugo ; mas muito anterior. O
poeta dá a palavra ao Horisonte, ao Circeum, a Gaeta, ao Oce-
no, ao Tuberão, á Columna Dórica, a um Rouxinol, a Pon-
tia, a Pandataria, a uma Gaivota, ao Amphitheatro, a Pithe-
cusa, a Rochyta, a Cáprea,,ao Vesúvio, a diversas Vozes, a
um Pastor, desenvolvendo grandes quadros em que cada um
entra com as suas recordações.
HISTOBIA DA LITTSRATtJSA BBA8ILEIBA 45
leito geral é bello; ha certas tintas bem coloridas no
te algumas sombras.
s são alguns fragmentos de prosa metrificada. Provem
um dos defeitos do talento do nosso poeta : 6 muito
il. Em seus escriptos ao lado de uma pagina boa, ou
niravel, ha sempre algumas paginas más.
loemeto citado sio muitas as agradáveis, e eis uma
o canto do Pastor :
(f Toca a hora ; silencio! A hora sôa
Em que o globo inílammado,
Que o dia á terra mostra.
Do ethereo oceano ao fundo rola,
E das celestes vagas já levahta
Ás gotas luminosas que borrifam
O vasto firmamento.
Salve, estrellante noite.
Que do berço da aurora resurgindo
De um manto adamantino te apavonas
Nas cerúleas campinas!
/'agai na immensidade, ardentes cirios,
}ue só a immensidade ora me ehcanta.
Mesquinha á mente a terra me parece,
íysticos sonhos, célica harmonia.
Adejai vossas azas,
Resoai no infinito ;
ombras de amor, passai, passai ligeiras,
fiuiçai, e repeti em muda lingua
O nome que idolatro.
3mo rápida a mente rola e paira
Sobre o mar do silencio!
Como brilha nas trevas
) insólito explendor o simulacro
le da imaginação hardido surge
Em ideiaes effluvios,
magico voltija, vai-se, e volta!
le da contemplação, da paz, oh noite!
! quão ditoso sinto o movimento
e o coração agita a par dos quadros
e desenrola a mão de alma saudade,
povir áureos paços me franqueias,
46
HI8T0BIA DA LITTEBATURA BBASILBIBA
Que O cinzel da esperança, a phantasia
Com myslico arteíicio adorna, e doira!
Doce esperança, espectro luminoso,
Coroado de estrellas caroaveis,
Tu no peito me escreves
O liome que idolatro.
Tua imagem só vejo em toda parte :
Do limpido regato a nivea espuma
Na corrente descreve em alvas letras
Sobre um fundo de azul teu caro nome.
Dulçoroso murmúrio é o teu sorriso,
E o teu olhar um raio de ventura.
A flor que cede ao zephyro, e balança,
Retrata o teu donaire gracioso ;
E o perfume que exhalam suas pétalas
Teus ditos innocentes assimilha.
A saudosa elegia
Que entoa o rouxinol entre mil flores,
E' o hymno de ternura da tua alma :
Tua image, anteposta á natureza,
Divinisa, embalsama-me a existência.
Do rio a crespa vaga que deslisa.
Minha doce esperança representa.
Correndo de hora em hora té que chegue
Ao mar delicioso em que vogando
Solte as velas da vida, e feliz frua
De teus lábios o hálito de rozas ;
E abraçado me entregues...
Cessai, sonhos de amor! vinde a meus lábios
Em suspiros morrer mysteriosos.
Fere, lyra amorosa,
Entoa co'o meu canto em puro accordo
O nome que idolatro.
Invoquei, minha bella, a eternidade •,
Entre os anjos pairar almejo agora.
Meu amor já desdenha a terra nossa.
Só posso refrescar a calma intensa
Entre os lúcidos astros,
Effluvios, que levanta do universo
K"
II8T0BU DA LITTBRATUKA B1U8ILBIBA 47
Á evitertia torrente.
A Doíte eu invoquei, para nas trevas
Do siJencio occaltar as divas scenas.
Que vehemente peiix&o me volve n'alma.
Amor eu invoquei, sylphos sidéreos,
Diaphanas visões, que em ronda aérea
Me envolvem de almos sonhos.
Invoquei-te, esperança, a ti me volvo,
Ehte mysterioso, já que longe...
Mas que digo? jamais longe nfto podes
Viver do teu amante.
Mais próxima que a luz e ar que respiro,
£u te guardo no adito de minha alma!
Invoco ora saudoso
O anjo consolador, anjo do vate.
Que desdobra em minha alma as azas ígneas
Para escrever no céo entre as estrellas
O nome que idolatro. » (1)
âo é este um fragmento de delicioso IjTismo, como alguns
'eparam ao leitor na litteratura européa e até na litteratura
íJeira. Falta-lhe a musica da palavra, producto do rythmo
rima; faltam-lhe as ondulações de um estylo mimoso,
ha ahi alguma cousa da grande poesia, ha esse vago, esse
erminado, que abrem indefinidas perspectivas na leí-
los bons poetas.
oesia, digna desse nome, disse Renan, nutre-se de mys-
t obscuridade. Nao era preciso que o linguista e histo-
/rancez o houvesse af firmado.
íesia íoi sempre um producto das regiões crepuscu-
'alma humana, uma exhalaçâo d'essa alguma cousa
nós vive de sonhos e chiméras.
da Voz da Natureza ha nas Brasilianas dous poe-
íuito afamadas : A Destruição das Florestas o O Corço-
Teriores áquelle em força e graças de pensamento e
lo superiores como tentativa de nacionalisação da
ctncíM, p&g, 236 e seg.
HIBTOSTi. DA LiTTEBATDBA SKAB1I.BIBA
nho aíflrmado cincoenta vezes que um caracter nacio-
> se decreta nem se fabrica, é producçâo espontânea.
;e também trinta vezes que a simples escolha do as-
) nÊLo é garantia da indole nacional na poesia,
.cionalismo não é uma questão exterior, é um facto
log:ico; nem é uma questão de ideias, é uma formação
ida e gradual dos sentimentos,
oluçao das emoções é muito mais lenta do que a das
é por isso que um caracter nacional, quei é uma es-
te expoente da alma de um povo, é um producto do
um producto da historia.
juanto partissem de uma noção critica inexacta, os
ens de Porto Alegre e outros tiveram mérito, como
as ao appello do romantismo, quando este era uma
5 tradições populares.
sposta de Porto Alegre foi pintar algumas de nossas
naturaes, como a ascençSo ao Corcovado, ou culíuraes,
uma cultura semi-barbara, como a Destruição das Plo-
iposla de Gonçalves Dias foi descrever o viver do cabo-
n'isto julgaram consistir toda a vida nacional I...
>tudos de ethnographia e demographia brasileira não
n ainda quando escreveram aquelles notáveis roman-
lem a nossa historia estava bem construida.
tarde é que as influencias ethnicas da população fo-
tudadas e um olhar lançado sobre os cantos, os con-
superstições, os costumes populares (i).
struição das Florestas tem três cantos, a Derribada, a
\da e a Meditação. O ultimo é medíocre; o mais valente
çundo; o primeiro occupa uma posição íntennedia
ao merecimento.
im trecho para comprehensão e&acta do estylo do
io-grandense :
« Na tnSo do escravo acicalado ferro
Brilha, e reflecte do africano vulto
9: Eãtudot lobrea Poeiia Popular BratUeira, Cantoi Populofit
I, Conto% Poputaret do Bratil — pelo autor.
HlãtOftlÁ DA WfíVkkfÚlUL 6BA0ILÈlftÁ 49
Sorriso delator de interno gozo!
B sôfrego acudindo á voz do íncola,
Qne na córnea busina o madrugara,
\ntes que a aurora os montes contornasse,
Va frondente floresta se aprofunda.
Jrada contente a parceiral caterva,
^rompta agitando as foices e os machados
)ue no ar lampejam, qual sinistros raios,
fede coa vista os seculares troncos,
>*esse8 gigantes que laceram nuvens ;
>ue tantas estações, e tantas eras,
s céos e a terra em porfiada lide
onosos empregaram na estructura
ue tem por coraç&o cerne de ferro,
nde verazes os annaes do mundo
n multíplices rolos se recatam.
*orompe o capataz com gesto fero,
ras canções do peito borbotando,
le alentam do machado o golpe ; troa
hymno devastador, que em curta quadra
nça por terra mil possantes troncos,
nhre dos evos, pompa da natura,
s largos botareos, que a base escoram,
10 solo se entranham tripartidos,
no ingentes giboias no profundo,
ha o machado a corpolenta crosta.
me o chão, treme o ar, geme e se esfolha
upUa verdegai do amplo madeiro,
)nvulso largando os verdes fructos,
nisa o bosque com medonho estrondo,
as aves manda ao céo, e á toca as feras ;
celeuma de confusas vozes
laude a queda dos pujantes lenhos.
o uma anta feroz, sibilo agudo
a c'os dedos os sovados lábios
ío capataz, e açula a turba,
novo metro e variado modo,
um golpe extinguir o parque excelso,
incólume surgio do catacUsmoI
ices e os machados manobrando,
unputando o perístilio umbroso
3rde tenda, monumento inculto,
n 4
.1 !
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«
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s?
I
V
50 HISTORIA DA LITTEEATUBA BRASILBIBA
Que de indómitas feras fora asylo,
E os acentos canoros de mil aves
Nas perfumadas folhas embebera ;
E onde em bárbaro coro a simia astuta
Outr-ora se embalava, até que a frecha
Do certeiro Tamoyo, o ar fendendo,
{' ^ Co*a ponla hervada lhe enfiasse a morte.
Como columnas de arruinados templos
Jazem prostradas em confuso enleio
f. As grossas hastes, desmedidas, fortes,
\ . D^essas umbellas, que subindo aos astros
No regaço do sol fruiam ávidas
Os puros raios de vital conforto!
A prenhe sombra de fragrância e fresco.
Que cem plantas mimosas protegia,
N&o mais amparará bolh&o ruidoso.
Que a estiva sôde dissipava ás feras.
Oh! que espectáculo grandioso e triste
Meus olhos, abarcando, contemplaram!
O ferro iconoclasta retalhando
A verdejante chlamyde da terra,
O seu manto sem par, e cuidadoso
Poupar avaro inúteis esqueletos
De eivados troncos, carcomidos galhos,
Aonde a viridente primavera
Em vão tentara, em contumazes lustros,
. Nos podres garfos de raiz annosa
Seu insuflo vital verter benigna!
Ruínas sacras, que eu lastimo e adoro,
Das aves throno, e odâo harmonioso!
Hoje achanado teu sublime porte
Rola na terra os prostylões soberbos
De odoros acroterios, onde a arara,
O brilho apavonando de seu manto
Como uma flor alada resplendia. » (1)
Os trechos citados são capazes d^ definir o talento lyrico
de Porto Alegre no que elle tinha de mais significativo.
Nâo seria difficil agora apontar pedaços duros, prosaicas,
sem o mínimo valor poético. Prefiro mostrar os bellos frag-
^'V (1) BrctêilianaSf Vienna, 1863, pag. 45 e segt.
r ..
HIBTOBIA BA LITTBBATU&A BRA8ILBIBA 51
mentos, as passagens em que o talento, como espirito alado,
desíerio grandes e harmoniosos voos. Este livro nâo quero
que seja uma galeria de estatuas decepadas; desejo antes
que pareça uma assembléa de almas vivas quei se movam e
agitem em animada e deleitosa convivência
O merecimento capital do poeta rio-grandense era a habi-
lidade em desenhar em seus versos uma serie de quadros e
scenas exteriores. O colorido não é sempre dos mais bril-
hantes; mas o desenho é correcto e amplo.
Porto Alegre era enthusiasta e um pouco fanfarrão na sua
conversação ; o mesmo em sua poesia : sopra em cima de seu
leitor de vez emquando alguns termos empolados, campa-
nudos, capazes de tonteal-o.
Seu lyrismo não tem doçuras, delicadezas, mimos de ideia
9 de forma. Abre perspectivas, tem paizagens, mostra dese-
ihos e algumas bellas cores por vezes.
Seus méritos e defeitos acham-se acumulados no seu, por
ns tão encarecido, por outros tão escarnecido, e por todos
10 mal estudado, poema — Colombo.
Nenhum outro poema da lingua portugueza é tão longo,
o massante em alguns pontos e eriçado de um maravil-
so tão deslocado e extravagante; nenhum outro, porem,
ssue de longe em longe versos tão sonoros, tão vigorosos,
valentes c tantas passagens tão nutridas, tão elevadas,
fortes, tão eloquentes.
olombo é uma galeriet, uma pinacotheca cheia de bellis-
os quadros perdidos, prejudicados no meio de telas mal
ostas e mal acabadas. A viagem do observador é ator-
la por difflculdades e tropeços ; mas compensada pela bel-
de muitas scenas que se lhe deparam ante os olhos.
3oeta revela grande imaginação, grande vigor de traços,
le destreza de desenho, muita leitura, muita instrucção.
de proporções, de medida, pouca habilidade em tecer
irédo, raros dotes dramáticos, nenhuma synthese poe-
lenhum quadro deflnitivo e justo do caracter do seu
eis os defeitos do livro.
lum outro ha na lingua portugueza de leitura tão desi-
L parte maravilhosa é decididamente a mais fraca. Ha
&2 filâTO&ÍA DÁ LlTTS&ÁTtTBA BEABIL&ISA
pedaços falados por Pamorphio que são verdadeiras estopa»
das. O caracter de Colombo não é lambem muito nitido.
Não é uma figura audaz e illuminada de navegador e de
génio. E' uma espécie de beato, cheio de amuletos, um mata-
mouros armado de uma cruz contra o demónio, que lhe appa-
rece não se sabe bem por que motivo em caminho.
Porto Alegre, educado no regimen do pseudo-classicismo,
julgava-se ainda obrigado a escrever um poema á antiga,
cheio de apparições diabólicas, de encantamentos, de infer-
nos e o mais... Era não ter uma bem clara intuição das fei-
ções e do caracter da poesia moderna.
Livre-me Deus da mania de querer fornecer preceitos a poe-
tas. Mas um homem do nosso tempo de luctas burguezas, de
trabalhos mecânicos, de creações industriaes, querendo pin-
tar um illuminado do Renascimento, um temerário do tempo
das grandes navegações e das grandes descobertas, em sua
monomania por descobrir um Novo Mundo, e lançando-se
para isto ao meio das solidões immensas do oceano descon-
hecido, um homem de nosso tempo, diante de um tal espec-
táculo, tem n'alma d'esse audacioso e no scenario immenso
em que ella se agitava os elementos indispensáveis ao seu
poema. Não ha mister da intervenção de Pamorphio nenhum.
Sem sahir da realidade tem a trama inesgotável da epopéa
moderna. E' por isso que toda a mythologia malfazeja, toda
a demonologia do Colombo é árida, estéril e de leitura pe-
nosa; é por isso ainda que todas as scenas reaes, todas as
pinturas da vida positiva, as luctas de borda, os levantes, as
nostalgias da pátria, as peripécias da navegação, as descri-
pções de tempestades, os panoramas da natureza são de uma
execução valente e, por vezes, admirável. Os exemplos bor-
bulham por toda a parte. B' só procural-os, o que é um pouco
enfadonho, attenta a grande extensão do poema.
Colombo é em dois volumes com quarenta cantos e um pro-
logo de 70 paginas. O todo do livro é de 950 paginas, contendo
muitos milhares de versos.
No canto X apparece em scena Pamorphio e só deáxa de
importunar a gente com suas diabruras no canto XXIV. E*
a porção mais massante do livro; entretanto é aquella ondld
mSTORIÁ DA LITTXKATUSA. BRASILBIltÁ 53
se lêem boas paginas sobre as theoganias e civilisações do
México e Perú.
Pamorphio mostrara estas regiõs em espirito ao nauta.
Porto Alegre patenteia ahi grande erudição; bem se conhece
quanto se preparou para escrever o seu poema.
O Colombo é, como disse, cheio de paginas agradáveis,
especialmente em descripções.
Eis aqui uma :
u Curveteia o corcel ; no reste a lança,
O ibero pujante aguarda o emulo.
De um tranco volve o Cavalleiro negro
O tudesco ginete, e no bomeio
Gruda a manopla, e espera, qucd de bronze
Estatua equestre, que na trompa sòe
O terrível signal. Lavra o silencio ;
O fôlego suspende a corte e o povo :
Quasí se ouvia sob os peitos de aço
Bater o coração dos lidadores.
Os fervidos clarins abrem a lide.
Das hostes justadoras se arremetem
Os cabos tríumphantes, e no encontro
As lanças estalaram. Pavorosos,
Nitrindo de furor em pé recuam
Os ardentes cavallos. Bradam todos :
Boa láhça, Marquez! Alçam-se as damas
E, flores rosciando, a Cadix honram.
Somente entregue a si, e ao seu destino,
Não colhe uma ovação o forasteiro.
Retomam novas armas, e se investem
Com dobrado vigor : ambos tocados,
Cavo som suas armas restnigiram.
Varados os broqueis, as rijas lanças
Nas couraças sulcando se inflammaram.
Paimas crepitcun na dourada teia.
Alegres as donzeUas no ar agitam
Níveos lenços e charpas multicores :
Kasim iia estiva pompa, em grato asylo,
dimosas rolos no festim nectario,
co sibilo feroz de anta membruda,
plumagem batendo, se alçam tímidas
54 HIBTOBIA PA UTTBSATUBA BRASILEISA
Pelos átrios odôros da floresta.
Nôo cedem no valor ; de novo ao prélio
As infrangiveis lanças correm, cruzam,
Batem, resoam, vergam como a lamina
De agudo estoque n'um marmóreo peito.
No nspido encontrão ambos tremeram.
Dormente o braço cede, e no chão rola
Do marquez o broquel, qual disco hellenio
Que em olympico jogo mede o estádio.
O negro cavalleiro ent&o recua,
Recua o hespanhol ; ganham seus postos.
De novo embraça o valeroso Cadix
Um áureo escudo, e o contrario envida.
VÍZ6UT1, em regra ferem ; resupino
Cai o marquez nas ancas do ginete :
Do elmo cede o engaste ; núa a fronte,
Seu rosto radiou mavórcio brilho.
Um súbito palor obumbra a festa ;
Soluçam as donzellas, e nas turmas
Sinistro borborinho se propaga.
Mas Cadix reganhado o prumo, investe
Como um tigre furente ; de um só golpe
As negras brafoneiras despedaça ;
E a lança revirando abola e fende
^ O elmo côr da noite! Estrondam bravos,
Renasce em toda a liça alma esperança :
Castella vai vencer. Oh! como é grande
A explosõo que fervendo amor da pátria,
Sem querer pelos lábios se despede.
Dão de rédea aos alipedes cavallos,
E na volta, entre vivas, grita e bravos,
N'um choque extremo e horrendo as fortes lanças
Pelo ar em mil farpas voltijaram!
Desnudam as espadas, cruzam talhos.
Qual em noite calmosei, em selva escura,
Abrazados de amor o cirio accendem
Errantes vagalumes, taes os ferros
Retalhando o arnez revesam fogos (1).
Com alguma ironia diziam os contemporâneos ser Porto
(1) Colombo, 1* vol ; prologo, pag, 62 e seg.
HI8T0BIA DA LITTSRATU&A BRASILBnUL 55
AJegre o primeirD pintor entre os poetas e o primeiro poeta
ontre os pintores no Brasil.
A satyra é evidente. Com Porto Alegre a cousa não ha de
ser assim; teve mérito em ambas as espheras, e, quanto ao
seu estylo de poeta, no que elle tinha de mais eminente, era
a juncçào do talento do pintor ao talento do escriptor : sua
facidté maitresse era a descripção.
O talento de deiscrever tem atravessado phases diversas,
Uwibam tem passado pela lei da evolução. A applicação doesta
no^o á esthetica e á critica litteraria é capaz da renovar todo
o antigo processo de analyse intellectual. Tudo obedece a um
desenvolvimento constante; mas isto não é só verdade das
3reações exteriores da humanidade : a poUlica, o direito, a
iciencia, a arte... E' também certo das qualidades internas do
.^pirilo; as aptidões da intelligencia têm-se desenvolvido,
ovas forças mentaes têm despontado. Os próprios sentidos
víeriores hão progredido. Retomando o centro do assumpto,
atarei que a descripçilo hoje na littoratura não é já a relação
:lís ou menos exacta de um facto^ de um phenomeno qual-
er. Quer-se mais, quer-se que a palavra pinte directamente
cousas. Os francezes têm levado isto ao supremo requinte,
orosa de Michelet, de Victor-Hugo, de Théophilo Gautier,
Paul de Saínt- Victor, esses grandes pinturistas, foi a prosa
) havia tirado todos os recursos e abusado de todas as i-
zas do vocubulario. E não foram somente esses românticos
nesíres proclamados da linguagem ; os modernos escri-
ss canninharam no mesmíssimo terreno. Taine, os Gon-
t, Flaubert, Leconte de Lisle, Daudet, Banville seguiram
trilha,
ferry, Sainte Beuve, Scherer e Renan eram prosaistas de
grosto, escriptores mais sóbrios, mais flnos, mais deli-
; menos ricos, porem mais deliciosos.
^ Alegrre acha-se sem duvida mal collocado entre tão
3 companhia. Como prosador era medíocre. Mas foi um
ssos mais destros descriptores em verso. Seus quadros
ruros, sâo animados, são vivazes.
5 ainda a descrípção á moderna, a palavra como tinta^
^oresj como os escriptores recentes exageram sem conr
56 HISTORIA BA LITTBRATimA BBA8ILXIRA
seguir o almejado intento. E' a descripção á antiga, meio rhe-
torica por vezes; mas valente e lúcida.
O artista poeta não quiz abusar de seu savoir faire de pin-
tor para não cahir na requintada maneira dos seus contem-
porâneos.
N'isto andou, sem o saber, de perfeito accôrdo com Eu-
génio Fromentin, escriptor e pintor como elle. Este celebrado
chefe da escola africana da pintura franceza foi ao mesmo
tempo um dos primeiros prosadores de seu paiz.
Nunca li em lingua nenhuma livros mais attrahentes pelo
cstylo do que Une année dans le Sahel^ Un été dans le Sahara^
Dominique, e Les mattres d'autrefois^ do illuslre fllho da Ro-
chella.
O insigne pintor, sem ser sectário do antigo modo de des-
crever, não achava regular o género moderno.
Eis como elle próprio, depois de bellissimas paginas, cara-
cterisa, synthetisando, seu modo de julgar a questão : « E' in-
contestável que a plástica tem suas leis, seus limites, suas
condições de existência, aquillon que, cm uma palavra, con-
stilue o seu dominio.
Eu percebia iguaes motivos para a litleratura conservar e
preservar o seu. Uma ideia pôde ser expressa ao mesmo
tampo de duas maneiras differentes, com a condição de pres-
tar-se a essas duas maneiras.
Escolhida, porém, sua forma, e reflro-me á sua forma litte-
raría, não via que ella exigisse nem melhor, nem mais do
que pôde comportar a linguagem escripta.
lia formas para o espirito, como existem formas para os
olhos; a lingua que fala á vista não é a mesma que fala á
alma. E o livro existe, não para repetir a obra do pintor, se-
não para exprimir tudo o que ella não pode dizer. Na pratica
a demonstração de tal verdade me apazigou; eu a tirava
d'uma experiência muito segura e decisiva.
Conclui d'ahi, com o mais intenso prazer, que tinha na mfto
dois instrumentos differentes : podia-se perfeitatamente se-
parar o que convinha a um, do que era conveniente a outro
E eu o flz. A parte do pintor era necessariamente tão limi-
tada, que a do escriptor se me antolhava immensa. Tive ape-
-i ^--
niTOBIA DÁ LITTISATUXÁ UABUXIBA 57
nas o cuidado de não me illudir com o instrumento mudanto
de offlcio » (1).
Esia questão das relações entre a pintura, a plástica e a
poesia, bem antes de Fromentin, fora magistralmente discu-
tida por Lessing no be-llo livro do Laocoonte, publicado em
1763. Já n'esse tempo o illustre progono allemâo tinha esgo-
tado o debate.
Porto Alegre n&o tinha grandes recursos de estylo, nem
forcejava por fazer a lingua pintar.
Não tirava os recursos, todos os recursos que podem ser ti-
rado do vocabulário portuguez. N*este ponto elle tinha, é
(verdade, uma certa monomania : a posse de um determinado
lumero de termos desusados, esquecidos. Era uma doença
[ue tinha em commum com Odorico Mendes.
Não é de taes recursos que lançam mão os pinturistas da
nguagem; não hão mister de mergulhar pelo mundo soter-
do das palavras archaicas e abandonadas. Sem sahir das
giões da vida, imprimem exquisito e fulgurante colorido ás
as ideias.
\.nles de despedir-me de Porto Alegre, como poeta, fora
tda possível dizer qualquer cousa a cerca de alguns traba-
s safyricos que deixou. Doeste numero são os versos debica-
os da antiga colónia portugueza do Rio de Janeiro sobre
icantada náo Vasco da Gama, a grande e maravilhosa náo,
2un elles, que ahi vinha impor admiração e respeito aos
'>is, e, antes de entrar n'este porto, encalhou lá fora, ava-
iose e sendo rebocada por um pequeno vaso de guerra
>na]. E* também doesse numero a introducção ao poema
mhador nnovido contra o jornalista Justiniano José da
a em 1844.
>oeta rio-grandense é desconhecido por este lado e jus-
\ie desconhecido.
possuía a vis cómica e nem a satyrica. Os versos são
cres.
$ palavras ainda sobre o crítico para concluir este perfil.
Klegre deixou, além das obras de que tenho falado, di-
£té dUznM le Saharat par Eugène Fromentin, 7* édition, Puis
do magnifico prefacio.
58 HISTORIA BA LITTESATURA BRASILEIRA
versas artigos e discursos de indole litteraria. Os artigos ver-
sam especialmente sobre as artes no Brasil com particulari-
dade a pintura.
Os principaes referem-se á antiga escola fluminense e á des-
cripção de diversas exposições realisadcLs na Academia das
Bellas-Artes. Estes artigos andam dispersos na revista do Insti-
tuto Histórico, em a Minerva Brasiliense e n'outras publicações
periódicas.
Os discursos foram pronunciados no Instituto em sessões
annuaes commemorativas dos sócio» fallecidos, durante o
tempo em que o poeta foi o orador offlcial d'aquella asso-
ciação.
Porto Alegre não era um critico por indole e temperamento
litterario; não era também um orador consummado e cor-
recto. Era um homem sensato, instruído, investigador e serio,
capaz de sahir-se airosamente d^aquillo de que se deixava
encarregar.
Para a gloria e a perfeita comprehensão da personalidade
litteraria do afamado rio-grandense é indispensável que al-
guém lhe pubhque em volume accessivel ao grande publico
esses escriptos que ellc deixou soterrados nos jornaes e
revistas. O jornal garante leitura mais numerosa; mas é so-
mente no dia de sua appariçâo. O livro assegura uma apre-
ciação mais duradoura.
Em definitiva, Porto Alegre foi um bom desenhista, um
poeta lyrico de grande talento descriptivo, um poeta épico
sem proporções, mas onde o lyrista apparecia para salval-o re-
petidas vezes ; um critico amoravel e intelligente. Seu poema,
segundo o dito de uma celebre personagem, que o lesse até o
fim só achou o revisor e a dita personagem, a quem o livro
era dedicado.
Mas os bons trechos, que alli se encontram, seriam sofre-
gamente lidos pelos mais exigentes espirites, se alguém se
lembrasse de os colher e enfeáchar n'um pequeno volume.
Passo a outros.
No decennio de 1840 a 1850 appareceram as primeiras obras
de Teixeira e Souza, Norberto Silva, Dutra e Mello, Manoel
de Macedo e Gonçalves Dias.
HI8T0BIA DA LITTSIU.TURA BBA8ILKIBA 59
Dividi o movimento romântico em diversas épocas.
A primeira foi inaugurada por Magalhães; gyram em torno
delle Porto Alegre, Teixeira e Souza^ Norberto Silva e Dutra
e Mello,
Macedo vai figurar especialmente no romance e no theatro.
lonçaJves Dias abre uma outra phase á nossa romântica. O
riterio para grupar as escolas é a natureza intrínseca de
ada uma d'ellas. O critério psira grupar os epígonos em torno
os che/es é a chronologia, náo tanto dos indivíduos como das
3ras. Porto Alegro é de 1806, mas seus primeií-os ensaios são
ísleriores aos de Magalhães, nascido em 1811.
Segue-se depois Teixeira e Souza, de 1812, cuja primeira
ra é de J840; vem após Norberto Silva, de 1820, tendo a
meira obra em 1840 ou 41.
lo movimento iniciado por Magalhães, prendem-se, alem
poetas citados, Francisco Octaviano de Almeida Rosa^
7 Cardoso de Menezes e Souza^ Joaquim José Teixeira^
,oel Pessoa da SUva, António Rangel Torres Bandeira^
usto Colin, Padre Corrêa de Almeida, e Sijmphronio
ipio Alvares Coelho. A essa tendência obedeceram tam-
António Pelix Martins e José Maria Velho da Silva em
I já tive occasião de falsur.
am-se os principaes d*entre tantos escriptores e poetas.
orno Gonçalves TEixsmA e Souza (1812-1861).
um mestiço, fllho de uma pobre família de Cabo Frio,
vincia do Rio de Janeiro.
'a apetnas o ensino das primeiras letras, foi forçado
?, por apertos pecunarios dos pais, a aprender o offlcio
inteiro.
5 mister» já em Gabo Frio, já no Rio de Janeiro, para
SSOU-S& em 1825, conservou-se até 1830. De volta en-
a cidade natal, foi nomeado mestre-escola, emprego
-ceu larg-QS anno6, sendo em 1855 despachado escrí-
íommercio no Rio. Falleceu em 1 de dezembro de
I homem activíssimo e de muito bons desejos. E' o
60 HI8T0BIA DA LITTEEATUBA BRASILEIRA
nosso poeta artezâo. Escreveu bastante, tentando géneros di-
versos. Publicou duas ou três tragedias, um grande poema
épico sobre a Independência do Brasil, uma espécie de poema
lyrico sobre uma tradição de sua terra, grande porção de cân-
ticos lyricos, e seis ou sete romances.
E' uma bagagem litteraria assas pesada e de um manejar
difflcultoso. E' um grande inconveniente escrever muito, espe-
cialmente quando esse muito escrever não obedece a um
plano e a uma idéa dirigente.
Torna-se a obra de um escriptor d*esses um matagal dam-
ninho em que se perde improficuamente o leitor, e d'onde
sae irritado o criticoí, lastimando o precioso tempo perdido
em atravessar matos e barrancos.
Causa dó a cegueira, a inópia de um escrevinhador, de
um sporcatore di carta, gastador de Unta e papel...
O nosso Teixeira e Souza não é precisamente um tão pro-
fuso e diffuso productor de livros. Mas teria andado- bem em
escrever menos. Nas letras as mais das vezes o silencio é de
ouro, e a sobriedade é sempre de brilhante.
As tragedias e o longo poema épico fazem mal á reputação
litteraria de Teixeira e Souza. Fora melhor que os não tivesse
produzido. Quasi o mesmo se pôde dizer de seus fracos e en-
fadonhos cânticos lyricos.
Postos estes productos á margem, ainda restam o poema
lyrico o os romances do escriptor para dar a medida e mos-
trar a Índole de seu talento (1).
Primeiro o poeta, e isto rapidamente.
Quando digo que o poeta de Cabo Frio era bem intencio-
nado, avanço uma verdade. Era patriota e nacionalista; force-
java por tomar parte nos esforços da geração de seu tempo no
empenho de dotar o Brasil com uma litteratura. Então não
tínhamos ainda vergonha de ser brasileiros, sonhávamos
ainda com a formação de uma pátria autónoma e progressiva-
Como a mulher perdida que abre a sua porta ao primeiro
viandante, o espirito nacional não havia ainda desesperado
(1) Estes escríptos de pouco valor sdo as tragedias — Cometia, O coooZ-
leiro Teutonieo ; as colíecções de poesias sob o titulo de Cantieoê Lyricoê
o poema épico denominado — A Independência do Broêil.
HlfiTOftlA DA UTTllUTtmA BSASItXlfiÁ 61
de sj, não desejava ainda escancarrar as nossas casas a quan-
tos desconhecidos queiram tomar conta d'ellas. Nacionalismo
nâo era ainda synonimo de atraso e emperramento; era apenas
a sãlva-guarda das tradições, a consciência de um povo que
sa queria formar livre e forte, aproveitando as lições das na-
ções cultas, sem perder sua Índole, sua feição peculiar. O poeta
inda estava, pois, no bom terreno.
O romantismo brasileiro no seu primeiro momento foi uma
rolaçâo do espirito da velha escola mineira. Ao memos em
ule foi assim.
Depois é que a imitação do romantismo francez, a maca-
leaçâo, o plagiato impensado do francesismo suffocou em
ssa litteratura o sentir nacional.
) poeta estava cheio de boas intenções ; porem em littera-
a as boas intenções, que se não realisam, ou realisam-se
I e incompletamente, não têm valor, são como bilhetes
ncos, papeis que nada valem.
' o caso dô Teixeira e Souza.
or mais bondoso que eu queira ser n'esta geral excursão
s domínios da litteratura pátria, não posso sophysmar
inha impressão no estudo das obras d'este escriptor.
poeta se me revelou acanhado, ermo de graças, de vida,
ovimento, de seiva, de enthusiasmo. Nem força e mascu-
ide, nem graciosidade e meiguice. Não tem quasi nen-
dos signaes distincUvos dos bons poetas, ou ainda dos
s secundários, mas interessantes na sua inferioridade.
"Ças leituras conheço em quelquer litteratura tão enfa-
s e tão nullamente compensadoras como a do poema
r dias de um noivado.
Vylo é áspero, a métrica pesada e dura; o fundo um
tma de trivialidade e de phantasmagoria de insurpor-
>n textura. Nada mais) fácil do que adduzir trechos para
ahi diante, dos olhos dos scepUcos as provas absolutas
afílrmo. . .
stante indicar ao leitor toda a conversação no canto
io poema entre o protagonista Corimbába e o velho.
> que elle encontrou nas brenhas de uma matta, e
ais particularmente as scenas do quinto canto, passa-
62 mSTOBIA DA LITTEfiATUBA BRABILEIRA
das entre o mesmo Corimbaba e os bruxos e entes sobrenatu-
raes do Rochedo encarUado, onde o moço amante e recem-
marido de Myriba vai inquirir do futuro. Ohl leitura displi-
cente!... Peço dispensa de trazel-a para aqui. Prefiro mostrar
o trecho que me pareceu mais agradável em todo o poema^
São no 2^ canto os descantes entre os dous amsuites em a
noite do noivado. Corimbaba começa e Myriba lhe responde.
Fi' por esta forma :
(( Se acaso te hão conheces
Por formosa, ó minha amada,
Vai á beira de uma fonte,
E te verás retratada :
Quando, pelo sol corada,
A pastar por entre flores
O teu rebanho levares ;
Dirão estes lavradores :
— Alli vem, quem faz formosa
Á nossa aldeia ditosa. »
(( Se acaso te não conheces
Por formoso, ó meu amado,
Vae ás ribeiras do rio,
E te verás retratado :
Verás o rio apressado
Só de inveja suspirar,
E tua imagem formosa
Nas ondas querer levar :
Das raparigas na idéa
Serás o bello d^Aldéa. »
a Eu sou em tudo ditoso,
E tu linda, ó minha amada ;
Tens os olhos matadores
Como a rolfnha engraçada, n
« E' feito de lindas flores
Nosso ninho, ó meu amado,
E junto á terna rolinha
Tu poisarás descançado. n
HI8T0BIA BA UTTEBATUBA. BRA8ILBIRA 63
(( Sou um passYo, que luzir
Vendo d^aurora os encantoa,
Pelo prado alegremente
Solta seus festivos cantos :
Eu te adoro, ó minha amada.
Eu te amo, como a ave
Ama a luz da madrugada!
Tu és quem minha alma adora,
E's minha brilhante aurora. »
« Sou a flor, que, á noute, o seio
Fecha ás sombras descorada,
E que o abre a receber
O pranto da madrugada :
Eu te amo, como a flor,
Ao orvalho, que lhe presta
Mais graça, mais viço e côr :
Tu tens de meu seio a posse.
Tu és meu orvalho doce. i>
<( Como a bella larangeira,
Entre as arvYes mais airosa,
Assim é entre as do campo
A minha amada formosa. »
f( Como o cedro, na montanha
Entre as arvYes mais airoso,
Assim é entre os do campo
O meu amado formoso. »
c( Sobre o seu leito de flores
Traze, ó noite, â minha amada
Brando sonino sem temores :
Em tomo volvei-lhe, ó brisas.
Porem com manso rumor ;
Traz-lhe, amante pensamento,
Comigo sonhos de amor.
O* sabiás, não canteis
Junto d'amada querida.
Se ella fôr de amor vencida
Repousar junto a meu lado. »
64 mSTO&IA DA tlTT&lLÀTtllA SRABltSIltA
(( Meu amado, sem temor
Ha-de dormir nos meus braços,
Um somno bra'ndo de amor :
Passae, brandas virações,
Mas sem bafejo violento.
Traz-lhe de amor doce sonho,
Amoroso pensamento ;
E, se dormir nos meus braços.
Entre flores, sobre ramos.
Não canteis, ó gaturamos
Para nfio quebrar seu somno. »
f( Colherei as sapucaias,
E as guaticas saborosas,
O cajá, e o verde coco,
Jaboticabas gostosas :
N'um samburá enfeitado,
Por mim mesmo, de mil flores,
Eu virei depor contente
Junto aos pés dos meus amores. »
f( Colherei, todos os dias.
Pelo valle as mais cheirosas.
Engraçadas manacás.
Roxas, e brancas formosas ;
Depois de as ter no meu seio.
Espalharei com cuidado
Sobre a roupa tua, e um cheirx)
Tomarão mais delicado, n
X Correrei o valle e o monte,
E o fugitivo veado,
Quaty, caxinglô, cutia,
Tudo será apanhado ;
E cheio d'alto prazer
Eu t'os virei oferecer. »
c( Hei*de apanhar n'um lacinho,
Armado na larangeira,
Sabiás e beija-flores,
E a rolinha faceira :
E tudo. quanto eu colher
Será para te ofTrecer. n
HIBTOKIA BA UTTSBATXnU BBASILSIRA 65
(( Cabtaref todos os dias
A gentil belleza tua ;
Porque, tu, ó minha bella,
£*s formosa, como a lua. »
(( Dos teus dons, dos teus encantos,
Meu coração tem o rol ;
Porque tu, ó meu formoso,
E's tâo bello, como sol » (1).
O poema é escripto em versos brancos, na mór parte pro-
saicos. De todo elle a pedaço mais agradavelmente legivel sáo
as estrophes rimadas que foram acima transcríptas. O con-
trario dá-se no Colombo, também escripto em versos soltos, e
onde os versos rimados estão sempre abaixo dos outros.
Texeira e Souza forcejou por ser nacional; faltaram-Ihe,
porém, a imaginação ei o vigor artístico. E* em nossa littera-
iura um poeta de ordem terciária.
Atirou-se denodadamente ao romance ; de 1843 a 1856 pu-
blicou. O Filho do pescador, Tardes de um pintor ou as intri-
gas de um iesuita, Gonzaga ou a conjuração de Tiradentes, A
Providencia, Maria ou a menina roubada. As fatalidades de
dous jovens.
Escriptos n'uin eslylo descurado, e em linguagem por vezes
incorrecta, acham-se cheios quasi sempre de salteadores, es-
conderijos, subterrâneos, assassinatos, incêndios, envenena-
mentos, resurreições, e toda a patacoada, todas as ficelles do
género pavoroso.
De laes romances, os melhores sáo As Fatalidades de dous
jovens^ As Tardes de um pintor e A Providencia. São estudos
da ultima phase dos tempos coloniaes, o descambar do sé-
culo XVIII.
No meio das irregularidades de uns enredos emmaranha-
dos, destacam-se certas paginas aproveitáveis. No Filho do
pescador, a scena do banquete por occasião do casafhento de
Laura com Augusto; nas Tardes de um pintor, a descripção
da cidade do Rio e especialmente do bairro de S. Chrístovão
(1) Os Tre$ Dias de Um Noioado, Rio de Janeiro, Typ. Imparcial ds
Paula Brito, 1844 ; pay. S7 e seg.
HI8T0MA n 5
66 HI8T0BIA DA LITTEBATUSA BRA8ILBIRA
nos meiados e flns do eculo XVIII *; na Providencia, a des-
cripção da Aldeia de S. Pedro e da procissão dos Passos ; nas
Fatalidades de dous iovens, a decripçâo de uma festa popular,
de um samba. Transladarei esta para aqui. E' assim :
« Meia hora depois que começou a festança dos comes e bebes, a
lauttt mesa de doce estava reduzida a pratos vasios, chicaras e gar-
rafas. Era o campo em que havia sido Troya!
Tirou-se, pois, a mesa do meio da sala e começaram os matutos
a gritar :
— Vamos brincar, gente, vamos brincar.
— Âhi nada {arta, disse o dono da casa, pai da noiva ; hai viola,
e hai tudo : — quem ó que toca?
— E seu Mané Canellas.
— Mas havia duas violas...
— Antão o outro tocador ha de ser seu capilôo Chico-Pedro ; elle
canta bem o desafio!
— Prompto, disse o capitôo Chico Pedro.
— Pois antão vamos a isto, disse o dono da casa.
— Vamos, vamos embora.
— Venham as muieres para cá : aqui cabe duas rodas.
— MenifiQS, venham para cá, venham dançar, disse o chefe da
famia.
— Elias já vao, sinhô, estfio se apromptando ; disse a dona da
casa, lá de um quarto do interior.
— Também ainda as violas hão estão temperadas nem nada, e já
estão chamando a gente... murmurou uma moçoila, que já sentia
suas cócegas, ouvindo falar em dança.
— Temperem as violas, temperem as violas.
Todavia, temperadas as violas, vieram se chegando as moças e
í)s rnpn z(?s e formaram» duas rodas e dois tocadores encostaram
seus pinhos aos peitos e começaram a repinicar a bella Tyranna^
dança muito usada n^aquelle bom tempo, bem como o Chico do Via-
mão, a To'niinha, etc.
Estas danças eram dançadas por quatro pessoas em cada roda,
e as rodas podiam ser tantas quantas coubessem na sala. Havia a
Chula, dança de um, dançando por sua vez, até ir tirar outrem, que
vinha dançar, e o que dançava se ia assentar, e assim por diante
até que um tirava o tocador, e terminava esta dança ; mas durante
este dançado, em solo, os tocadores não cantavam, o que não acon-
tecia em nenhuma das outras danças, em que a cantiga do tocador é
que determina as voltas das rodas dos dançadores.
HISTORIA DA LITTBRATUBA BRASILEIRA 67
Havia também o Sarrabulho, dunça de dous; isto é, sahia um que
dançava só, e depois tirava outrem, que com elle dançava, e o pri-
meiro que havia dançado assentava-se, ficando o outro dançando,
que por seu turno ia buscar outro, e assim até o fifti, que era quando
um que dançava ia tirar o tocador, que também dançava, dando a
despedida, isto é, cantando a ultima cantiga desta dança. Tinham
também o Vai de roda^ a mais divertida, a que menos cansavc^ e a
mais favorável de todas as danças aos senhores namorados, que
não desperdiçam estas bellas occasiões. O Vai de roda^ pois, é uma
dança que por facillima pôde n'ella dançar todo o bicho careta,
ainda mesmo que nulica tivesse dançado : n'ella dançam n'uma
grande roda tantas pessoas quantas caibam. Todas as mais danças
sâo sempre de quatro pessoas. De todas estas danças, bem que todas
requeressem extrema graça no dançador (excepto no Vai de roda),
todavia era a Chula a que mais dependia disto ; e era por assim
dizer a pedra de toque do bom dançador.
E, pois, o Sr. Mané Canellas foi o primeiro que botou sua cantiga,
e, repinicando sua viola, cantou :
«( Em nome de Deus começo.
Padre, Filho, EspYito-Santo,
E' a primeira cantiga
Que n'este odilorio canto. »
Elle queria dizer aiuiitorio. O capitão Chico Pedro, que alem de
bom cantador tinha aza de grande improvisador, tomou o ultimo
verso da cantiga de Mané Canellas, e cantou com toda a força de
seus pulmões, que elle os tinha de um Stentor. Cantou pois assim :
íc Que n*este oditorio canto,
Eu também quero cantar,
Esta primeira cantiga
Em antes de começar. »
Pegai*am-se pois os dois cantadores no desafio, e nâo poucas
vezes suas cantigas eram meia dúzia de insultos lançados á cara
com todo o azedume de uma affronta. Dançaram varias danças, des-
cançaram algumas vezes, e, quando de novo principiavam, os dois
cantantes travavam logo sua contenda de desafio.
O Mané Canellas era o arguente e o capitôo Chico Pedro o defen-
dente. A multidão tomava parte no combate dos dois, e dividida em
dois partidos, cada um animava seu heroe com cem vivas, palmas e
68 HISTORIA DÁ LITTERATURA BRA8ILBIBA
outros applausos. Já o bom Mané Canellas desesperava do venci-
mento, quando julgou confundir seu contendor com a seguinte can-
tiga :
(( Estudastes a grammatica,
E também a tilogia ;
Dizei-mé qual é das aves
Que dá leite quando cria. »
Elle queria dizer theologia. Quando, porém, o Mané Canellas
acabou de cantar esta cantiga, todos julgaram que o capitão Chico
Pedro se calasse vencido, porque ninguém sabia que ave era esta ;
mas o capitão Chico Pedro, que no sentir de Mané Canellas havia
estudado a grammatica e a theologia, e não havia estudado para
tolo, não deixou os circumstantes por longo tempo incertos ; quando,
pois, foi occasião de cantar, abrio a bocca e cantou :
« Que dá leite quando cria
Vos direi com mais socego ;
Mas das aves é morcego
Que dá leite quando cria. »
Quando o capitão Chico Pedro acabou a cantiga, todo mundo bateu
palmas e gritou : «< Viva seu capitão Chico Pedro! Viva e viva! » Os
vivas, as palmas, os applausos prolongaram-se por muito tempo :
foi uma ovação completa. Deu-se a despedida d'essa dança : e anda
ella, o mesmo Mané Canellas confessou que não havia quem can-
tasse o desafio como o capitão Chico Pedro.
Pouco depois principiou outra dança em que os cantadores des-
envolveram toda a sua habilidade. Depois da cantiga cantavam
elles um estribilho, que era sempre o mesmo e era assim :
c< Bravo, Maricas, meu bem,
Aqui está quem te adorou :
Não se ponha de joelhos.
Que eu não sou senhor, não sou. »
N'esta cantiga, na occasião em que o cantador cantava estas pa-
lavras — Não se ponha de joelhos — , os homens dançantes, dan-
çando mesmo, curvavam o joelho diante de dama, isto é, cada um
diante da dama com quem dançava, a qual durante esta genuflexão,
também dançahdo sempre, voltava costas ao marmanjo, que de
joelhos a seus pés dançava. Era uma bella mimica.
HI8T0BIA DA LITTESATUBA BRASILEIEA <39
No fím d*esta dança, Mané Canellas cantou esta cantiga :
f< Vamos dar a despedida,
Mas antes quero dizer, '
Que seu Flávio e seu Júlio
As pazes devem fazer. )>
Júlio dançava n*uma roda, íez-se de desentendido. Flávio, que
dançava n'outra, começou a murmurar grosseiramente, e de um
modo atrevido. O capitão Chico Pedro cantou também assim :
i( As pazes devem fazer,
E não se opponha ninguém,
Porque todos desta casa
Devem sahir muito bem. »
Acabou-se a dança, annunciou-se a ceia, e todos se encaminha-
ram para a varanda, onde se achavam estendidas sobre o chão três
ou quatro esteiras, meio cobertas por grandes toalhas, e estas por
pratos com vários guizados e assados, e todos, tanto homens, como
senhoras, assentaram-se em roda das toalhas, e principiaram a
comer e a beber desencabrestadamente. Começaram também as
saúdes e ditos » (1).
E um dos trechos mais supportaveis do estylo do Teixeira
e Souza; ainda assim encerra quarenta e uma vezes os termos
dança^ dançador^ dançar^ dançava^ e outras variantes do gé-
nero.
Náo vejo ser mister demorar-me ainda a caracterisar o ta-
lento do autor fluminense. Para este escriptor basta uma rá-
pida sUhouette.
Joaquim Norberto de Souza Silva (1820-1891).
Pilho do Rio de Janeiro, nasceu em 1820, no mesmo anno
de Macedo, e três annos antes de Gonçalves Dias e Dutra e
Mello. Não se graduou em academia alguma ; fez alguns estu-
(1) Aê fatalidades de Dios Joeenê^ voi. 2*, pag. 36 e seg. : Rio de Ja-
neií-o, ediç&o de 1874.
70 HI8T0BIA DA LITTEAATimA BKABILEIIUl
dos de humanidades em sua cidade natal e metteu-se ainda
moço no íunccionalismo publico, empregando-se na Secre-
taria do ministério do Império.
Bem cedo jogou-se ao cultivo das letras e ás luctas da im-
prensa.
E' um dos brasileiros que mais escreveram e em espheras
mais variadas.
Sua obra é uma das mais opulentas, e, em compensação,
das mais confusas das produzidas n'este paiz.
D'ahi certa difflculdade em bem tomar os traços physiono-
micos e característicos do escriptor.
Dividir é uma condiçio par bem comprehender ; devo pra-
tical-o com Joaquim Norberto. Sua vasta obra, parte publi-
cada em livros, parte esparsa em jornaes e revistas, pode sof-
írer a seguinte divisSo : novella, theatro, poesia, critica litte-
raria e historia.
Será preciso juntar a isto a estatística; porque o primeiro
trabalho que tivemos no género é devido á penna doeste autor.
Qqero falar do Censo Geral do Império, escripto e organisado
por Norberto Silva, na sua qualidade de empregado publico.
E' producçilo de valor, merecedora de attenção e aqui desde
já cilada, por ser apta a dar uma das notas, um dos tons da
physionomia espiritual do notável fluminense : a paciência
de esmeuçar, pesquizar, inquirir e verificar os detalhes.
Náo é ahí, porém, que vou fazer o centro da minha ana-
lyse.
Das cinco regiões em que se manifestou a vida espiritual de
Norberto, na esphera puramente litteraria, a novella e o
theatro não são aquellas em que elle mais se distinguio. Os
poucos ensaios praticados por este lado devem ser conside-
rados tentativas em géneros para os quaes o autor tinha pou-
quissima aptidão. Sáo produclos fracos, de leitura massante,
8 hoje completamente esquecidos.
No conto e novella pouco mais publicou além do volume
intitulado Romances e Novellas, apparecido em 1852 em Ni-
Iheroy, e d'0 Martyrio de Tira-Dentes ou Frei José do Des-
terro, impresso trinta annos mais tarde, em 1882 no Rio de
Janeiro. No theatro seus principaes produclos são a tragedia
HISTOBU DA LITTIBATUSA BBABILBIfiA 71
Clytemnestra e o drama Amador Bueno, São obras de pe-
quena monta, passos errados de um homem que procurava
seu caminho. Tanto a tragedia, como o drama, são de 1&43;
d*es9ei tempo da puerícia do autor são também as narrativas
reunidas no citado volume de 1852.
E' na poesia, na historia politica e na historia litteraría que
mais accentuada se nos mostrará a feição do autor. Ainda
n'estas três espheras podem-se fazer divisões e reducções, ten-
dentes a mostrar qual a especialidade em que foi elle mais
eminente. Supponho que os seus maiores títulos estão nos
trabalhos de historia litteraria.
Vêr-se-ha, adiante. Por agora, e quanto antes, o poeta.
Na poesia a obra de Joaquim Norberto é das mais avul-
tadas no Brasil. Sem falar de Clytemnestra, que é em verso,
elle tem nada menos de cinco volumes de poesias : Modula-
ções Poéticas, Dircieu de Marília, O livo dos meus amores.
Cantos Épicos, Flores entre espinhos, e possue espalhada em
jornaes e periódicos matéria para mais três ou quatro. A tanto
deve montar o grande numero de baUatas, de canções ameri-
canas e d^outras composições poéticas espalhadas por Norberto
un peu partout. Já não falo nos grandes poemas que dizia
possuir intitulados O Brasil e Os Palmares. D'estes existem
apenas fragmentos publicados ; difflcil se toma saber se os
ultimou. Já não falo também nas promessas feitas pelo poeta
de diversas coUecções lyricas sob a denominação de Novas
modtiUições poéticas, Can^cioneiro das bandeiras ou cantos ira-
flicionaes dos antigos paúUsias^ e outras assim. Estas prova-
velmente nunca existiram. O escriptor fluminense por certo
trabalhou muito, um pouco de mais talvez, mas foi também
muito pródigo em promessas, e algumas delias irrealisaveis.
Onde foi, por exemplo, que Joaquim Norberto colligio os
Cantos tradicionaes dos antigos bandeirantes? Onde os en-
controu ? O autor era fácil n'estas pequenas fraudes, capazes
de illudir espíritos pouco perspicazes. Obedecendo a este ses-
tro, deu as pretendidas respostas de Marília ás lyras de Gon-
zaga.
A mesma inspiração levou-o á insinuação de serem suas
americanas cantos tradiciorui£s dos nheengaçáras ou bardos
HI8T0BIA Di. LlTTKRATmU. BBASII.XI&&
:il... Onde encontrou Jíoberto os nheengaçáras e os
lios?
lanlo, o espirito desprevenido, de algum europeu,
le de nossas cousas, poderá suppôr a existência reaJ
los dos bandeirantes e dos cantos dos nheengaçáras,
rincos da imaginação do poeta.
isto e lh'o censuro, porque, como já fiz ver, elle é um
de merecimento, e a exactidão histórica é um' dos
rl«s. Prosigamos. O poela em Norberto mostra três
s principaes : lyrismo objectivista, lyrismo erótico e
mero de composições que os allemSes costumam desi-
b a denominação de epico-lyricas.
illatas, as Flores entre espinhos e os Cantos épicos po-
m servir para testemunhar o talento do aulor po esses
los.
ismo das Ballaías tem um certo espirito, um tom semi-
r denunciador das boas intuições litterarias do es-
. S5o quadros tradicionacs e históricos, descriplos
tonalidade Tacil e algum tanto pallida. Náo tem calor,
nmunicam enthusiasmo, mio dão febre, não despertam
Òes. São poesias de critico, feitas penosamente sob um
issenlado, n'um cânon determinado e preconcebido. As
laes são : A morte da filha, O iillimo abraço, A victitna
dade, O monte do Bispo, O mendigo, O suicida, D. Ma-
cula B O canto do marinheiro. Aqui e alli apparecem al-
notas doces e amenas. D'este género são as da ultima
; citada — O canto do marinheiro. Aqui vae, como
liflcação do talento de Norberto, no que elle tinha de
electo :
n Nasci, como ave marinha.
Sobre estas ondas do mar ;
Na triste minha barquinha
Cresci da onda ao embalar.
Na minha infância innocente
Por terras nuvens tomei,
E d'essa illusao contente
Mil vezes — Terral — grilei
HI8T0BIA DA LXTTXBATnBA BEASUJURA 78
Ao sOvo da tempestade
As ondas via dansar,
Cheio de temeridade
Punha-me logo a rezar.
Amei a brisa, que asinha
Foi-me tormenta cruel ;
Amei a onda marinha.
Foi-me qual onda inflei.
Amei depois uma estrella,
Que no ceu via brilhar,
Ou, fnda mais grata e bella^
Sobre as aguas scintillar.
Na terra um dia encontrando
De meu simor lhe falei,
Porém á terra voltando
Em vão por ella busquei.
Mas ainda como estrella
No ceu a vejo brilhar,
Ou, inda mais grata e bella,
Sobre as aguas scintillar.
Na minha pátria inconstante.
No oceano, vou morrer.
Onde possa a minha amante
Sobre as aguas vir me ver!... n (1).
Era este o lyrismo do poeta fluminense em seus momentos
mais felizes. As baltatas denunciam uma certa intuição da
poesia popular; não que Norberto Silva a conhecesse pratica-
mente, tivesse-a colligido e estudado com esmero. Era uma
imitação, uma contrafacção inconsciente ; porém não despida
de mérito. Em todo o caso, é sempre uma poesia mais simples
do que a de Magalhães e Porto-Alegre, sem ter absolutamente
o viço da de Gonçalves Dias.
No lyrismo que chamei erótico duas faces se podem distin-
(1) Minerva Bra$ilien$€, pag. 997.
74 HISTORIA BA LTm&ATXTBA BBA8ILBIEA
guir no autor fluminense : uma pessoal, estampada no Liúro
dos meus amores e outra exterior e anecdotica nas Piores
entre espinhos. E* a erótica da pilhéria, a poetisaçâo de casos
e contos de um sabor meio picante.
Aguns têm chiste. Dão bem todos a conhecer a indole bona-
cheirona, pacata e calma do escriptor. Homem de estudo e de
trabalho, é certo, nâo se afadigava, fugia de aborrecer-se e
irritar-se; era alegre, bem humorado, palestrador; na conver-
sação era cheio de anecdotas e gaiatices.
Um optimista em summa. Sua poesia, eile nâo a tinha co-
mo um castigo, ou como uma doença; era antes um desen-
fado, uma succursal do ócio e da preguiça. Era elle próprio
quem dizia : « O que entendem por trabalhar? Assim per-
guntava lord Byron e por si mesmo respondia, que compu-
zéra o seu^ lindo poema Lara n'aquelle anno de galhofas, em
noite que se recolhia de uma mascarada.
Menor pretençáo ainda devem ter estes insignificantes con-
tos á vista do poema do bardo inglez.
Não são, pois, fructos de trabalho, mas ephemeras produ-
cções de uma das variedades do» ócio ou da preguiça a que
muitos como eu se entregam por desenfado, aflm de não cahir
em verdadeiro spleen^ e que não seriam levadas ao cabo se ra-
pidamente, durante a sua gestão, acudisse á mente a ideia de
que era uma applicação séria em horas em que o espirito pa-
rece rebellar-se contra tanta servidão, pois que também elle
tem o seu capricho. E' como as primas donas. Nem por outra
cousa se deve entender a poesia.
Arregimentar os poetas entre os homens que trabalham se-
ria dar-lhes uma occupação; mas dar-lhes uma occupação que
nada rendesse seria também uma das maiores ironias aos
olhos do século das locomotivas, dos caminhos de ferro, do
lelegrapho eléctrico, da photographia, e talvez da navegação
aérea, e que em vez de Apollo invoca Mercúrio » (1).
Em medo das ironias do poeta bem se divisa sua theoria da
arte. Esta era para elle um desenfado, lim brinco, um em-
prego doce da actividade.
(1) FloreM entre eêpinhoe, conioi poetiêoe. Rio de Janeiro, 1864.
HI8T0BIA DA LITTXBATUBA BKABILBISA 75
Nao era, ao contrario, e como pensam muitos, uma espécie
de condemnaçâo que pesa sobre o espirito humano, alguma
cousa de doloroso a que elle náo se pode esquivar, uma impo-
sição fatal a que não pode fugir. Eu bem sei o que se pode
dizer pró e contra as duas theorias; porem nâo tenho obriga-
ção de discutil-as agora.
Basta-me ponderar que o romantismo europeu e o brasi-
leiro tiveram representantes das duas feições, que levadas ao
excesso, produziram verdadeiras extravagâncias.
Aquelles bohemios debochados e frívolos, de um lado, e
aquelles mancebos tétricos, misantropicos, candidatos ao tu-
mulo, de outro lado, que aqui tivemos, foram nitidos exem-
plares das duas escolas entre nós. Gonçalves Dias, com todo
o seu talento e com toda a sua gravidade^ era um represen-
tante da theoria opposta á de Norberto. Patenteia-o bem este
pedaço do prologo dos Primeiros Cantos : « Com a vida iso-
lada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa
arena politica para ler em minha alma, reduzindo á lingua-
gem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem -do
improviso, e as idéas que em mim desperta a vista de uma
paisagem ou do oceano, o aspecto emílm da natureza. Casar
assim o pensamento com o sentimento, o coração com o en-
tendimento, a idéa com a paixão, colorir tudo isto com a ima-
ginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, puri-
ficar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a
Poesia, a Poesia grande e santa, a Poesia como eu a compre-
hendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder tra-
duzir.
O esforço, ainda vão, para chegar a tal resultado é sempre
digno de louvor; talvez seja este o só merecimento doeste vo-
lume. O Publico o julgará; tanto melhor se elle o despreza,
porque o autor interessa em acabar com essa vida desgra-
çada que se diz de poeta. »
Ainda mais explicito é no prefacio dos Últimos Cantos :
« Eis os meus últimos cantas, o meu ultimo volume de poesiaJ
soltas, os últimos harpejos de uma lyra, cujas cordas foram
estalando, muitas aos balanços ásperos da desventura, e ou-
tras, talvez a maior parte, com as dores de um espirito en-
BI8T0IIIA DA. UTTBBATUEA BBA8ILS1K4
flcticías, mas nem por isso menos agudas, produzidas
laginação, como se a realidade já não fosse por si bas-
enosa, ou que o espirito, afteito a certa dose de soffri-
i, se sobresallasse de sentir menos pesada a costu-
larga.
leio de rudes trabalhos, de occupações estéreis, de cul-
pungentes, inquieto do presente, incerto do futuro,
ando um olliar ctieio de lagrimas e saudades sobre o
Lssado, percorri este primeiro estádio da minha vida
ia. Desejar e soíTrer, eis toda a minha vida n'este pe-
e estes desejos immensos, indisiveis, e nunca satis-
:aprichosos como a imaginação, vagos como o oceano,
eis como a tempestade ; e estes sofTrimentos de todos
, de lodos os instantes, obscuros, implacáveis, renas-
ligados á minha existência, reconcentrados ean minha
devorados commigo, umas vezes me deixaram sem
sem coragem, e se reproduziram em pallidos reflexos
eu sentia, ou me forçaram a procurar um allivio, uma
io no estudo, e a esquecer-me da realidade com as (Ic-
' ideal H.
se comprehenderá o signiflcado d'estas citações ; meu
izer a historia das idéas de preferencia & simples apre-
isthetica.
das consequências da Iheoria abraçada por Norberto
requerer para os poetas o privilegio de serem suslen-
ic possível fôr, pelo governo do Estado.
as azedas queixas contra a indi(Terença di'este. Ainda
lonto é preciso ouvil-o para bem com prebendei -o.
no prefacio das Flores entre espinhos : 'i Ninguém
6s comprebendeu melhor do que o governo a missSo
a.
listro a quem abi se recommenda algum moço de ima-
1 ardente; capaz como Torquato Tasso de ter na ca-
eia dúzia de epopéas esplendidas (Será verdade?}, ou
atro como Calderon e Lopez de La Vega (Lope de
1 primeira cousa que lhe faz é dar-lhe um emprego que
Ktise, que lhe petrifique a imaginação e o tome na
: mais chilra prosa deste mundo e, ainda para mal do9
BI8T0BIA DA LITTXKATXmA BRA8ILSIRA 77
seus peccados, sujeita-lhe a inspiração livre e ousada ao livro
do ponto I
Entrando para a repartição a que o destinam elle pôde,
antes de agarrar-se como um bicho de seda ás folhas do orça-
mento, de que fará o seu triste nutrimento, bater na testa e
dizer como André Chenier antes de entregar a cabeça ao gume
triangular da ensanguentada guilhotina : — E' pen6^ pois
aqui havia alguma cousa 1 »
Vô-se bem que o poeta queixa-se do século positivo, mat€'
rialisado, americanisado, e queixa-se também do governo que
nâo protege os poetas, não lhes garante o brilho do talento
em occupações adequadas, e, quando muito, os brutalisa nas
repartições publicas.
A censura é tão geralmente repetida pelos homens de le-
tras n'este paiz que se pôde bem suppôr não haver ahi de
todo um simples capricho romântico.
O queixume é bean velho e nâo terá algum fundamento?
Infelizmente tem-no e profundíssimo. Creio, porém, não ser
um phenomeno peculiar ao século XIX ; é antes alguma
cousa de particular á nossa terra, onde quasi tudo está ainda
por fazer.
Nada n'este paiz está organisado; tudo está á flor do solo,
nada tem raízes; nós por emquanto não temos pátria.
Isto é ainda uma immensa feitoria, onde as industrias, o
commercio, as emprezas, todas as fontes económicas estão
na mão dos estrangeiros.
A maioria dos nacionaes tem de seu para viver a mendici-
dade, a praça na tropa do linha ou nas melicias uirbanas e o
miserando funccionalismo publico.
Os homens de letras, que não se abrigam no funcciona-
lismo, que vão viver das respectivas profissões, arrastam
existência penosíssima.
Que vale aqui a profissão de medico, de engenheiro, de
advogado, diante especialmente da pobreza geral e da já
crescida concurrencia estrangeira nas duas primeiras? Resta
a profissão da imprensa, no jornal ou rio livro.
Mas, qual foi ahi o brasileiro que já viveu de uma ou outra
cousa?
HISTORIA DA. UTTXBATUKA BBABILBIRA
iriplor brasileiro, passa pelas quatro phases seguintes
illusSo e abatimento, consignadas aqui como alto-
3 á critica :
>r pouco que Ifinha praticado, conhece logo que a sua
da lhe rende; não ha publico para os seus produclos e
errismo medonho lá esti no fundo de todas as suas
as. E' a pliase inLroductoria, a da inutilidade econo-
) seu trabalho.
a falta de colação no mercado para seus livros, elle
L OS empregos públicos, ou, se 6 graduado, exercer
iroflssâo, e como titulo apresenta seus escriptos, suas
npressas. Se em tal cae, está perdido : « O sujeitinho é
I, diz o governo, anda prcoccupado com litteratices;
ivém... Medico ou advogado poeta, diz o povo, nJo
ledicina, não tem pratica do fdro; nada, não o con-
II E' a phase seguinte á inicial, é a da repulsa c a&on-
lomo um ente quasi inutilisado.
ilido pelo lado pratico da vida, raro 6 aquelle que per
ogo n'essa segunda phase abandona a mór parte o ter-
e, porém, por qualquer circumstancia, ou por energia
o homem de leltras continua, enlão tem que entrar no
periodo do tormento. Todos se aborrecem com
importuno que teima em querer ter distincção, fama,
pelo seu talcnlo e seu trabalho. E' o periodo das des-
luras, dos ataques, das inimizades gratuitas e temí-
! o homem é espertalhão e tratou de acostar-se a um
se formou em tâmo de si uma claque, inda poderá
tempo aguentar-se na refrega, enganado pelos elo-
s amigos e camaradas, todos mais ou menos interess-
; cujo barulho 6 infantilmente tomaiio como a opinifLo
a paiz... Se não fez assim, se por indole é arredio e
icurou quem lhe guardasse as costas, está irremedia-
;e perdido; ninguém o salva do esquecimento ou de
inda peior — o descrédito. E' a phase do desengano
,0, da tristeza intima, por se haver perdido o tempo
3 um sonho phantastico, a gloria, n'uma pátria que
jer, ou não a pôde dar...
lasi ninguém resiste á terceira provação. Se alguém,
HISTORIA DA LITTBRATURA BSABILEIJIA 79
se algum desabusado, por excessiva confiança em si próprio,
ou por demasiado aferro a suas convicções, teima em pro-
duzir só com o fim de fazer triumphar suas idéas, indepen-
dentemente de qualquer compensação, n'este ultimo e ex-
tremo caso, elle terá de passar pela mais horrível provação
porque pôde passar um homem de lulas mtellectuaes : — a
consciência da inutilidade de seus esforços!...
Tudo em pura perda!...
Ninguém se moveu, ninguém se convenceu! Tudo flcou
como era d'antes : os mesmos erros, as mesmas fatuidades,
as mesmas injustiças... « Ora, este brasileiro querer ter a ra-
zão, querer pugnar por doutrinas e princípios, ter a prelen-
çáo de fazer a critica do nossa situação intellcctuall Nfto é pos-
sivell... » E' a linguagem geral.
« Quem foi que disse isto? onde está oscripto? é em algum
livro francez, ou allemão, ou inglez, ou mesmo portuguez?
Se é, bem; é acceitavel... Se náo, ora, P. que Náo seja parvo;
ora, F, o filho de Sergipe^ ou ali de Macahé, querendo ter
idéas e saber das cousasl... Pedante! » E' o modo geral de re-
flectir de todos ; é nas lettras a manifestação da geral male-
dicência nacional, tão duramente descripta por Burmeister.
O leitor me perdoe este carregado quadro de diagnose pa-
tra. Não veio a esmo, nem são declamações. São confissões
sinceras, filhas do observação e da experiência de um homem
que tem passado por todos aquelles estádios da malevolencia
brasileira, e que ama seu paiz, que anhela por seu pro-
gresso. São um pedaço dò auto-psychologia nacional, que
fomeíce um critério para a benevolência para com os nossos
pobres escriptores. Coitados! Luctam tanto e são tão mal tra-
tados! Mais indulgência com clles.
Quem escreve estas paginas, ao começar em sua puerícia
litteraria seus primeiros estudos críticos, usava de certo ri-
gor, oriundo da inexperiemcia.
Os annos e os amargos soffrimentos, que lhe infligiram,
longe de o azedarem, o predispuzeram para melhor compre-
hender as innumeras difflculdades que assaltam os escriptores
brasileiros. Quero falar d'aquelles que conquistaram palmo a
palmo o seu terreno como perfeitos heróes. Náo me refiro a
HiarORU DA LITTIRATVSA BKABItSI&A
u Irinta íllhotes da politica omnipotenlc, mcllidos nas
de longe em longe por desenfado, e perpetuamente in-
os pelos aduladores, que nunca faltam. Comprehendo,
9 queixas de Joaquim Norberto e fajço justiça plena aos
lorços.
sludos de historia brasileira, quer a historia propria-
dita, quer a historia lilteraria, faziam o fundo de seu
lento, 6 começaram a prooccupal-o desde os seus mais
annos. Elle não começou pela poesia e passou depois
historia; nSo; enfrentou-as ao mesmo tempo. D'ahi o
[- de contos, lendas, tradições de quasl todas as suas
;ões poéticas.
iroprias Flores entre espinhos esse caracter é evidenle.
ncipio do segundo conto poético, A con/wsdo, traz um
em miniatura do Rio de Janeiro no tempo do velho
I. E' apto a dar segura idéa do espirito e das quali-
oeticas de J. Norberto. O finai narra a historia de uma
ue confessara ao padre, cheia de lagritliãs, ter morto
o... Eis a transcripçâo do princípio :
Cl Sobre &a azas da alegria.
Entre engaooa ruidosos.
Entre vivas jubilosos,
Expir&ra o Carnaval.
Ohl quanta moça faceiro.
Que muito se divertira.
Morrer com pena não vira
Esse triduo sem iguaL
A rotula então perdera
Todo o sigillo, se abrindo,
E um rosto moreno e lindo
Livre e ousado se mostrou ;
E mais de um braço certeiro
Achou ura alvo condigno,
Em que amável, benigno,
Os seus tiros empregou.
Oh como ent&o era grato
Ver bcllo limão de cheiro ■ ^
HI8T0BIA DA LITTBBATT7SA BBA8ILXIBA 81
N'ura peito meigo, faceiro
Espargir mimoso odor!
Era como doce beijo,
Que, dos lábios se arrancando,
Lá ia ardente voando,
Que as azas lhe dava amor.
Outras vezes, mais ousado,
O amante penetrava —
No lar que a moça habitava
Como uma pura Vestal ;
E então, globos de cera,
Contra globos mais mimosos,
Dedos tremlos... receiosos...
Espremiam... menos mal!
Ainda sobre as calçadas,
Quaes conchinhas de mil cores.
Ou quaes despencadas flores,
Vô-se a cera do» limões :
Signal de que o combate
Fora forte e vigoroso,
E de parte a parte honroso
Aos valentes foliões.
Mas agora? Eis a cidade
Toda santa e penitente ;
Do Jcmeiro a boa gente
Se apressa a se confessar ;
Molhos, banhos, mil enganos
Aos incautos impingira.
Porém, agora suspira
Nas igrejas a rezar...
Oh! era um povo devoto.
Cantado pelo poeta
Naquella lyra selecta
Que o seu Rio engrandeceu ;
Sim, S. Carlos fez no mundo
Celebrada esta cidade
Pela religiosidade
Que tinha... mas que perdeu.
XXISTOBU Xi
HISTOBIA DA LITTEBATltRA BBABILBIKA
Pela rua todo o povo
Em procissíio caminhava,
E o sacro terço entoava
Ante o alfar da ni5i de Deos í
Quantos luzea n"essas noiles
Nao reflectiam de uns olhos
Que tinham setlas a molhos
Para convencer a aliíeus!
Através das verdes rolulas
Brilhava muito semblante,
Com seu olhar penetrante,
Vendo a pia procíss&o ;
Nas contas de seu rosário
As moças ali rezavam,
E se alguma vez peccavum,
Peccavam de coiaçâol
Bello tempol Quão depressa
Dei:;ou a nossa cidade!
A nova sociedade
Tudo — ai tudo! — reformou!
Tanta dansa e patuscada
De nossa paterna gente,
Tsinto (olguedo innocenie.
Tudo — ai tudo! — se acabou!
JA ia a quaresma em meio,
£ a cidade penitente
Lá corria diligente
Ao templo a desobrigar ;
Ia pela madi-ugadà, '
Antes que ns trevas fugissem,
A esperar que se abrissem
As portas de par em par. n (1)
1 poesia muito elevada esta; em género algum
rapassou a media.
le aconteceu no género epico-lyrico, onde é lal-
Palta-Ihe força na inventiva e brilho no estylo.
re etpinhoê, pag. 11 e seguinlea.
HIBTOKIA DA. UTTXBATUBA BBA8ILBIRA 83
Nas ballatas apparece as vezes certa naturalidade e nos
contos poéticos certa graça apreciáveis.
Nos Cantos Épicos reina quasi sempre innegavel prosaismo.
Bem quizera escondel-o; porem náo posso. Os Cantos Épicos
são umas narrativas em versos brancos sobre alguns factos
históricos.
O auctor publicou seis n'um pequeno volume em 1861; sâo
os seguintes : A cabeça do Martyr, A coroa de fogo^ O Ypi-
ranga, A Visão do proscripto^ A festa do Cruzeiro, Os Gua-
rarapes,
O primeiro refere-se á cabeça de Tiradentes que fora collo-
cada n'um poste em Villa Rica e recolhida alta noite por pie-
dosas mãos; o segundo trata do martyrio de António José nas
fogueiras da Inquisição; o terceiro é relativo ao brado de nos-
sa Independência por Pedro P; o quarto é atlinente á Napo-
leão em Santa Helena; o quinto é sobre a creação da ordem
do Cruzeiro entre nós; o ultimo é referente á celebre batalha
ganha pelos pernambucanos sobre os hollandezes.
Norberto publicou um seplimo sob o titulo. O berço livre
dedicado á promulgação da lei de 28 de setembro de 1871 (1).
As intenções foram boas; a execução deixou sempre a de-
sejar. A litteratura brasileira possue alguns espécimens no
género de subido valor. Nós não temos vigor épico, talento
dramático e grande chiste cómico.
Em compensação temos volubilidades e ternuras lyricas. O
calor lyrico, junto em algumas almas a certos ímpetos va-
ronis, tem dado, de longe em longe, algumas producções,
que se podem chamar epico-lyricas, de grande merecimento.
Cinco poetas especialmente, uns pertencentes á escola con-
doreira, outros verdadeiros antecessores delia, foram os mes-
tres reconhecidos doeste género de cantos : José Bonifácio,
Bom O RetUvivo e o Primus inter pares ; Pedro Luiz, com
Tira-Dentes, Nunes Machado, Terribilis Dea e Os voluntários
la Morte ; Luiz Delfino, com as Solemnia Verba ; Tobias Bar-
6to, com A' Vista do Recife, Os Voluntários Pernambucanos,
(1) A Feãta litteraria por oceoêiâo de fundar-ãe na capital do Império
Associação doêhomenêde Lettroi do BroêU. Rio de Janeiro, 1883, pag. 125.
HIBTOBIA DA LITTXSATUBA. B&ABILIULL
; do Norte, A Capitulação Montevideo, A' Polónia;
Ives, ccwn O Navio Negreiro, As Vozes d'Alrica e Pe-
Por todas estas poesias corre um calor, uma vida,
rai de enthusiasmo, que prende e electrisa. Náo 3e
10 de pensar nos seus defeitos; a fúria poética nos
A aquelles cantos typicos podem se juntar Napoleão
rloo de Magalhães, nosso conhecido já, e O Festim
isar de Elseario Pinto, olvidado poeta sergipano,
existirão talvez por aJii; aquellas sao as mais nota-
portuguezes tiveram um poeta, mais conhecido por
ances e dramas, que foi um feliz cultor do género
CO. Quero falar de Mendes Leal, com o Ave-Cesar, O
Negro e principalmente com a Crus e o Crescente.
cipal antecessor do condoreirismo em nossa lingua,
de poesia imitado de Victor Hugo, que produzio
' muita cousa boa e muita cousa ruim.
n Norberto nâo teve jamais o vigor de qualquer dos
ados. Seus Cantos Épicos sHa inferiores ás suas pro-
sias lyricas. Os taes cantos sâo cheios de allegorias,
liílcaçOes, de machinas rhetoricas de velho uso, tudo
embaraçar-lhes a leitura. Qualquer deites pôde sei^
mplo. A coroa de fogo, verbi gratta, começa por uma
;ação de Lisboa a dormir e a apparecer-Ihe, também
: de matrona, o Rio de Janeiro, sob o nome de Gua-
Ista se mostra de semblante amorenado, como a tez
, e outras pieguices molestantes. Segue-se um dia-
e as duas cidades-matronas a respeito do poeta que
ieira, tudo n'um tom displicente de meter dó... E*
ir. Quem quizer vá inteirar-se por si (1). Norberto é
linente na poesia.
pressa de avistalo nos seus trabalhos de historia e
«raria.
I é mais apreciável, por ser <mde está mais a gosto
I harmcmia com a sua índole. N'esta espbera o pri-
'anto* Epieot, por J. Norberto de Souza Silva, Rio de Juieiro,
II e seguinlea.
HISTOBIA DA LITTERATirBA BRASILEIRA 85
meiro elogio que lhe faço é o seguinte : hoje é impossível
escrever a historia, principalmente a historia litteraria do Bra-
sil, sem recorrer ás publicações d'este laborioso escriptor. E'
que existem certas averiguações, especialmente na historia
da litteratura, que pertencem de direito a Norberto Silva. Di-
vidamos o assumpto e comecemos pela historia do Brasil.
N'este campo de acção o escriptor não nos dotou com uma
obra geral sobre todo o paiz, ao menos n'algum período de
seus annaes. Deu-nos quatro producções príncipaes : Memo-
ria Histórica e Documentada das Aldeias dos índios da Pro-
vinda do Rio de Janeiro^ Historia da Conjuração Mineira^ Esr
tudo sobre o Descobrimento do Brasil^ As Brasileiras Cele-
bres. As duas primeiEas sobrelevam de muito as duas ulti-
mas.
Os méritos principaes do historiador são a clareza na
exposição e o acuramento das pesquizas. Não ha movimento
dramático, nem ha vistas phílosophicas, nem ha vivacidade
de estylo. Em compensação ha critério, bom senso, conhe-
cimento da assumpto. No livro sobre as aldeias do Rio de Ja-
neiro fornece bons dados para o conhecimento da fundação
das principaes cidades da província e formação da população.
No livro sobre a conjuração de Minas lança muita luz sobre
a vida politica dos mineiros e do Brasil em geral nos flns do
século XVIII, sobre a sociedade de Villa Rica, sobre o caracter
dos poetas e escriptores do tempo e vinte outros pontos secun-
dários.
Contribuiu para reduzir as proporções assustadoras que vae
tomando entre nós o mytho de Tira-Dentes. Não contesto aos
brasileiros o direito de phantasiar heróes e encher de semi-
deuzes o ceu de sua historia; se lhes praz crôar uma mytho-
logia politica, crêem-na como lhes bem quadrar.
Estão no seu direito, e, quanto a Tira-Dentes, nas paginas
mesmas d'este livro, ja tive ensejo de manifestar a minha
sympathia. O que não posso tolerar é a pretenção estólida
e brutalisante de se querer impedir o direito da critica.
Ainda hoje não posso comprehender os selvagens ataques de
que foi victima Norberto Silva, por haver tocado de leve na
figura de Tira-Dentes I
86 HISTORIA DA LITTEKATnRA BRA8ILBIBA
E isto da parte de espíritos que se dizem liberaes!
E* uma grosseira intolerencia, só próprias de ânimos sel-
vagens. Além de tudo, é uma enormíssima injustiça ; porque
o livro de Norberto, bem longe de ser obra de reaccionário, é
um livro animado de fortíssimo espirito liberal, alentados ím-
petos democráticos. Qual o motivo pelo quaJ grandes e con-
sagrados heróes, divinisados pela humanidade inteira, podem
ter sido visitados no seu nimbo de luzes e sombras pela cri-
tica, e não se ha-de fazer o mesmo no Brasil a certos heróe-
sinhos de hontem?
Qual a razão pela qual um Strauss pode chegar até Christo
e airrancar-lhe parte da aureola, e nãjo poderá um Norberto
praticar o mesmo em Tira-Deníes? Ora, deixemo-nos de phan-
tasias inúteis e respeitemos antes de tudo a verdade.
Nossa democracia não precisa, para viver, de ílrmar-se em
exaggeros e falsidades.
Antes de tudo respeitemos os direitos da sciencia. O livro
de Norberto Silva é um bom e equitativo serviço em prol da
verdade. Não é obra de reacção; é antes de propaganda libe-
ral.
Como historiador, a época melhor conhecida de nossa his-
toria por J. Norberto é o século XVIII em Minas.
E' pena que não tenha elle tirado de seus estudos um tra-
balho de conjuncto.
A predilecção, porem, que tinha pelo assumpto é evidente.
Como poeta, novellísta, historiador, critico litterarío, sempre
e sempre elle voltava ao assumpto. Na poesia, A Cabeça do
martyr é dedicada ao protagonista da Conjuração mineira ; no
conto, O Martyrio de Tira-Dentes é referente ao assumpto; na
historia, o livro a que me tenho referido; na historia littera-
ria, os interessantes prólogos e notas que acompanham as
edições de Gonzaga e dos dois Alvarengas, alem do estudo
consagrado a Cláudio.
Taes e tantas pesquizas sobre a historia mineira no des-
cambar do século XVIII devem ser considerados dos melhores
serviços pelo operoso fluminense prestados ás lettras pátrias. O
pequeno volume sobre as Brasileiras celebres tem grande nu-
mero do paginas relativas ao assumpto predilecto. Como
HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA 87
amostra do estylo de Norberto darei aqui um trecho d'esse
bello livrinho, e seja um de assumpto mineiro.
Eil-o :
A rica capitania de Minas Geraes achava-se sob a pressão do
terror e das perseguições. Ah! e que calamidade! Dir-sc-hia que o
anjo da agonia tinha estendido as azas enlutadas sohrc Villa Rica,
e que o hymno da consternação echoava de todos os labíosl
Por toda a parte a justiça sequestrava. Nfto exigia tôo somente o
ouro, as jóias, os Irastes, os escravos e os animaes domésticos ;
sequestrava também a roupa do corpo, roubava também o tecto, o
lar e o pão, e a familia isolada, malquista, ahi fícava nua á face do
céu, ahi vivia sem habitação, ahi morria sem alimento!
O medo precedia os irirolizes atirados como náufragos da tempes-
tade politica a praias inhospitas. Eram os lázaros da inconfidência,
cujo contacto se temia como se tisnasse a mais pura e cândida
reputação. Ante elles se fechavam todas as portas, porque a piedade
e a compaixão erão synonimos de complicidade no diccionario do
governo colonial.
Ainda a sentença não havia impresso o ferrete da infâmia sobre es
descendentes dos martyres da independência brasileira e já sobre
elles pezava a mão negra e mirrada do destino acerbo que os aguar-
dava!
Descendente das mais notáveis famílias da capitania de São Paulo,
distinguia-se também dona Barbara Heliodora Guilherniina da Sil-
veira pela sua formosura e pelas suas prendas, e esses dotes, que
lhe deram a natureza e a educação, attrahiram a attenção, merece-
ram a sympathia, captivaram o amor do coronel Ignacio José de
Alvarenga Peixoto.
Era elle poeta como Thomaz A^ntonio Gonzaga e, como o cantor
da belleza de Villa Rica, celebrou a belleza de São João d'El Rei.
Dotada de imaginação brilhante, sentindo ò estro borbulhar-lhe no
cérebro, a joven donzella retribuia afeição por afeição e folgava com
poder pagar-lhe igu6dments versos por versos, e o commercio das
inus€Ls sanctiílcou e engrandeceu aquelle amor em que mutuamente
se abrasavam.
Bacharel formado em cânones na universidade de Coin.^'»\i e des-
jpachado ouvidor da camarca do Rio das Mortes, depois de ur sor-
vido de juiz de fora de Cintra em Portugal, Ignacio José de Alva-
renga, abandonou a carreira que abraçcu^a com tantos sacrifícios,
que tâo longas viagens, e tão aturados estudos lhe havia custado;
0squeceu-se para sempre do seu ninho natal, esse magestoso Ric de
BI8T0BIA DA LITTEKATDBA BBABILSIBA
m seu céo esplendido, com sua magnifica bahia, suas
lontanhas, suas bellaa florestas e estabeleceu-se no paiz,
iamanles e de gemmas de ouro.
a sede d'es3es thesouros, mas o amor pelas grandes em-
m o chamava a novas lidas que seguia. Bem depressa se
dos ricas fazendas dos Pinheiros na freguesia de Santo
1 Valle da Piedade e do ^genho de Paraopeba de Villa
terras e aguas mitaeraes da Boavista, de Santa RuAna, de
de Sôo Gonçalo Velho, de Manoel José de Castro, do
Fogo, dos Espigões do Aterrado, do Ourofalla, de Sanla
inda outras, onde trabalhavam perto de duzentos escm-
leta favorecido da fortuna oITereccu a sua mio, deu o seu
Al que n5o possuía senão os seus dotes naturaes.
18 lidas, n'aquelles enganos d'alma, passaram os dias
céu legitimou o consorcio d'estas duas almas com três
ia filha, sendo que esta, que os precedeu, era a mais que-
us pais, passava como O anjo da felicidade domcsllco,
va a alegria e o riso de toda a casa.
ú Ignacio José de Alvarenga, alma afiliada pela lyra da
riais deixou de cultivar o talento com que Deos o destin-
em sua esposa no meio de seus deveres caseiros, de sua
mãí, esqueceu-se de seus versos e votou-se de todo o corn-
agSo de sua filha Maria Ephígenia, t&o formosa aos doze
lhe derao o nome de princcza do Brasil e essa antonom.i-
le falta de recursos que havia no logar para uma educa-
da mediocre, D. Barbara Heliodora empregou lodos os
u alcance e a peso de ouro logrou que viessem se estabe-
la villa, junto do seu domicilio, os melhores mestres que
a capitania, e emquanto os filhos varões se entregavam
IS infantis, aos jogos pueris, pois eram ainda de tenra
rmosa menina estudava e se aperfeiçoava não só na sua
10 nas estrangeiras e aihda nas bellas artes ; a dansa, a
desenho illustravam-lhe o espirito e lhe serviam de agra-
stenimenlo. A" maneira, porém, que a dislincta e virtuosa
•ava de esforços e se extremava pela educação de sua filha,
o amor maternal, excedia-se em affeição, exagerava es
hos. Já nSo a amava ; adornva-a e exigia dos mestres nSo
paciência como deferehcia para com aquella que, dizia
ser tratada como prínceza.
ticos os tempos. Sob a mascara da amizade penetrava a
n em todas as casas, ouvia todas as palestras, e depois
HI8T0BIA DA LITTSBATtrRA BBA8ILSIKA 89
delatava tudo com a mira nas recompensas politicas. Havia o coro-
nel Ignacio José de Alvarenga Peixoto, tomado activa parte na con-
juração mineira ; a denuncia o involvera na lista dos implicados, e
o despotismo colonial, viu n'elle um dos chefes mais ardentes da
causa nacional, e interpretou no enthusiasmo pelas cousas da pátria,
que nota-se nas suas poesias, a prova cabal de sua complicidade. Foi
arrancado do seio de sua familia, preso e conduzido ao Rio de
Janeiro, onde o lançaram nas masmorras asquerosas e immundas
da fortaleza da ilha das Cobras.
Uma portaria expedida pelo governador visconde de Barbacena
em 9 de setembro de 1789 mandou sequestrar-lhe todos os bens,
para o fisco e camará real. No dia 13 de outubro de 1789 achava-se
D. Barbara Heliodora na sua casa do arraial de S. Gonçalo, na fre-
guezia deSan^Antonio do Valle da Piedade, termo da villa de S.
João d'El-Rei, abraçada com seus filhos, misturando suas lagrimas
com os ais das tristes criancinhas, que em vâo chamavam o desdi-'
toso pai, quando viu entrar o desembargador Luiz Ferreira de Araújo
e Azevedo, ouvidor geral e corregedor da comarca do rio das
Mories, com o escrivão de seu cargo, e o meirinho mor, e exigir
d'ella o juramento para que declarasse os bens que houvesse do seu
casal, sob pena de perjúrio e das em que incorrem os que subnegam
bens a invehtario, e para logo procedeu ao sequestro e real appre-
hensão.
Toda aquella grande fortuna accumulada com o trabalho suado
de tantos annos e que ainda não estava consolidada, pois havia divi-
das a solver, foi fazer porte do acervo amontoado pelo fisco na
penhora dos behs dos implicados.
D. Barbara Heliodora submetteu-se ao despotismo colonial. En-
tregou todos os bens de sua sumptuosa casei, sua pesada baixela de
prata, as jóias que recebera de seus pais, e de seu marido, e até uma
caixa de rapé que tinha o seu retrato circulado de pedras preciosas.
Deus dias depois requeria ella que achava-se casada com carta
de ametade, que de seu matrimonio existiam filhos e que sendo na
f ornma das leis do reino em todo e qualquer caso livre a meiação da
mulher, se procedesse antes do sequestro o inventario e partilha
para se saber o que pertencia da meiação a cada um, e na parte que
tocasse a seu marido se procedesse ao sequestro, ficando a parte
d^ella livre e desembarcada.
O seu requerimento foi attendido ; procedeu-se na forma da lei, e
£iâsim pôde alia amparar a miséria de seus filhos e preparar-se um
fVituro menos acerbo.
Nâo foi, porém, bastante para a tranquillidade de sua alma. A
HI8TOBIA DA LITTXBATTIBA BRA8ILEISA
]ue via fugir metade da mais iniporlante parte do sequestro,
a delação dos vassallos Heis o meio de envolver a iUustre
com os implicados, c seu nome veio a figurar nas duas
devassas que se procederam por esse tempo.
na antonomazia de princeza do Brasil, pela qual era conhe-
.■en Maria Ephigenia, um crime de leza magestadc. uma idéa
endencia nacional ; e o próprio professor de musica de sua
sé Manoel Xavier, foi por duas vezes chamado a depor em
:>rém nada disse que a comprometi es se, e o depoimento de
tiemuntia catiiu não só por falta de provas como por nimia-
isignificanle.
la sua prisão da Ilha das Cotiros, levava o coronel os olhos
simos pelas serranias da magniSca bahia que o vira
lá penhascos horriveis e incultas brenhas cansavam-lhe a
le em vão procurava pelo ninho de sua desditosa prole ; sól-
io um brado de agonia, e atirava-se sobre a barra dura que
ia de leito, e cborava. Pouoo a pouco se resignava e a poesia
e da saudade vinha emfim com as suas azasdeouroafugal-o,
le o pranto e traduzir-lhe os gemidos em harmonias cro-
a imagem da sua esposa lhe estava sempre presente como
% lembrança, ahi também para seu martyrío via nos braços
s aquella (Ilha, aquelle anjo que aos doze annos era todo o
nlo, toda a sua alegria e orgulho, h (1)
isloria lilteraria Norberto não possue uma obra com-
>u a aimunciar uma historia da littcratura brasileira;
e livro nâo foi escripto.
mais preslimosos Iraballios no género siSo a Inlroduc-
íodulações Poéticas, diversos árligos na Minerva Bra-
, na Revista Popular, e especialmente, os esludos e
ue acompanham as edições dos autores da Brasilia
cca do Sr. Gamier.
irlo Silva dirigiu a publicação de Gonzaga, Silva Alva-
Alvarenga Peixolo, Gonçulvos Di.is, Alvaros de Aze-
asimiro de Abreu e Laurindo Rabnllo.
ns ser\'iços do escriptor fluminense iVesta esphera ndo
caracter theorico e doutrinário; elle é pouco fecundo
liUiroM CelêbreM, pag. 182 e seguintes.
HiarOEIA DA LITTISATUltA BRASILEIRA 91
em recursos de analyses e apreciações litterarias. Seu mérito
positivo, por este lado, está na parte biographica dos autores,
na verificação das datas e dos factos.
Bem se vê ser este um trabalho prcliipinar indispensável
para quem tiver de emprehender a historia da litteratura bra-
sileira. E' bem possível escrevel-a sem rocorrer nunca ás pu-
blicações de J. M. Pereira da Silva e do Cónego Fernandes
Pinheiro. Estes não foram pródigos nem de theorias, nem de
factos; seus livros sâo copias mais ou menos hábeis dos ante-
cessores.
Norberto não; é caprichoso e tem probidade litteraria. Seus
defeitos capitães sâo falta de cultura clássica e falta de cul-
tura philosophica e scientiflca. D'ahi a ausência de ideia diri-
gente no complexo de seus trabalhos e o desalinho perpetuo
da forma em seus escriptos (1).
António Francisco Dltra e Mello (1823-1846). — A his-
toria d'este moço é rápida e commovedora. Filho do Rio de
Janeiro (8 de agosto de 1823), bem cedo ficara orphâo, c bem
cedo tomara sobre os hombros o pesadíssimo encargo de nu-
merosa familia pobre, composta de sua mãi e quatro ou cinco
irmãos menores. Dutra e Mello era também um menor, e
ainda na infância, quando lhe morrêo o pai. Cedo arrojou-se
aos estudos de humanidades, atirando-se loucamente ao tra-
balho, levando por diante o aprendizado das linguas ingleza,
frajiceza e latina, da historia, geographia e mathematicas ele-
mentares. Com dezeseis ou dezesetc annos conhecia a fundo
algumas d'eslas matérias e jo^gou-se ao magistério, e aos la-
bores lilterarios. Labutando excessivamente, inaniu-se em
(1) Cahe ás vezes em descuidos compromettedores, capazes de denunciar-
he ausência de elementares conhecimentos. Lopc de Voga cra para elle
''jopes de la Vega, No Martyrio de Tiradentcs fala tres vezes no eomno
fo philo9opho Emenideê (pag. IV, 113 e 117) ; queria dizer Epímenides.
ifa Historia da Conjuração Mineira fala duas ou tres vezes no despotismo
alorUdl com. seus algozes^ seus espias e delatores^ suas masmorras^ com
tuiM algemaã^ com suas forcas caudinas..,.
Parece que Joaquim Norberto estava esquecido do que eram Forcas
ludincíSm ..
92 HISTORIA DA LITTEBATUBA BRABILEIBA
pouco tempo, vindo a fallecer com vinte e dous annos e meio,
a 22 de fevereiro de 1846. Antes e depois de Dutra e Mello
muitos brasileiros de talento morreram na juventude, deixan-
do renome na litteratura (1).
Nenhum, porém, como ellc, é merecedor de tantas sympa-
thias. Os outros succumbiram pela mór parte por debilidade
natural, ou por descalabros produzidos pelo vicio. O moço
fluminense caiiio victimado pelo dever, esmagado pelo tra-
balho, que lhe devorou as forças e engolio-lhe a vida. Nen-
hum foi tão puro, tão ingénuo, tão idealista, nenhum tão pro-
funda e verdadeiramente melancólico. Também nenhum teve
tanta instrucção em tão verdes annos. Por este lado, só talvez
Bernardino Ribeiro poderia hombrear com elle.
Muitos estragaram-se por sestros e manias românticas, o
que se não pôde absolutamente dizer dos dous fluminenses,
naíurezas sérias, devotadas ao trabalho, e cuja vida passou-se
em tempos anteriores ás sentimentalidades e choramigas
systematicas.
O período das laslimações lamurientas, das phantasias
mórbidas, dos desmanteles aéreos foi nos vinte annos decor-
ridos entre 1845-1865. Foi o tempo da maior intensidade da
sensiblérie nacional. Seguio-se o período da escola que has-
teou a bandeira do victor-hugoismo, a que os nossos críticos
denominaram a plêiada condoreira. Os sectários d'esta nova
formula conservaram-sc n'um terreno intermédio entre o ve-
(1) Aqui dou uma lista extrahida do excellente estudo sobre Dutra e Mello
devido á penna do Sr. Luiz Francisco da Veiga. E' esta : José Joaquim
Cândido de Macedo Júnior — com 18 annos menos 15 dias ; António Joaquim
Franco de Sá — com 19 annos, 6 mezes e 12 dias ; Manoel António Alvares
de Azevedo — com 20 annos, 7 mezes e 13 dias ; Francisco Bernardino
Ribeiro — com 21 annos, 11 mezes e 4 dias ; Luiz José Junqueira Freire —
com 22 annos, 5 mezes e 24 dias : António Francisco Dutra e Mello — com
22 annos, 6 mezes e 14 dias ; Casimiro José Marques de Abreu — com 23 annos,
9 mezes e 14 dias *, António de Castro Alves — com 24 annos, 3 mezes c
22 dias ; Manoel António de Almeida — com 29 annos e 11 dias ; Agrário
de Souza Menezes — com 29 annos, 5 mezes e 29 dias ; Félix Xavier da
Cunha — com 31 annos, 5 mezes e 5 dias ; Aureliano José Lessa — com
menos de 33 annos de idade ; Luiz Carlos Martins Penna — com 33 annos,
1 mez e 2 dias ; Luiz Nicoláo Fagundes Varella — com 33 annos, 6 mezes
e 1 dia ; Joaquim Gomes do Souza — com 34 annos, 3 mezes e 17 dias ;
Trajano Galvão de Carvalho — com 34 annos, 5 mezes e 25 dias . Muitos
outros falleoeram antes de completar os quarenta annos.
1^
HISTOBIA DA LITTBBATUBA BSABIUUBA 93
lho romantismo e o naturalismo novo. Nem chorões, como os
primeiros, nem táo nédios & gargalhadores, como os últimos.
Em nossa qualidade de povo superflcial, nós não podemos
ainda passar sem aflectações.
Náo sendo aqui a litteratura um producto forte, original,
espontaeno de uma raça enérgica, pois em rigor ella não pas-
sa de um negocio de imitação do estrangeiro em sua quasi to-
talidade, nós andamos a chorar ou a rir, conforme nos tocam
de fora...
Hontem eram tristezas e magoas por toda a parle, hoje são
alegrias e risos em toda a linha...
Antes isto. Ha apenas a lastimar que quasi nada seja verda-
deiro ; porque quasi tudo não passa de superfetação.
Hontem no meio de algums que choravam deveras, como
foi por certo Dutra e Mello, viam-se alguns jagunços nédios,
rubicundos, fortes, alegres, a choramigar também.
Era sem duvida ridiculo.
Hoje no meio de alguns que riem deveram, amplamente:,
sinceramente, ha alguns pobres doentes, pallidos, dyspepU-
cos, phthysicos ou hystericos, que teimam em se dizer sadios
(é o termo consagrado) e apostoram mostrar-nos as feias den-
taduras (1)...
E' um ridiculo de não menor vulto. E é o que se vê por ahi
agora.
Ora, vamos, com franquezci, é um despaxate; n'um caso e
n'outro não passa de uma afíectação.
Nasce tudo de uma concepção superficial da arte e da lit-
teratura, que são verdadeiros expoentes da natureza e da cul-
tura humana e não simples caprichos da vontade, se é que a
vontade pôde ter caprichos.
A vida humana não é um tecido de pilhérias, nem de des-
venturas; é antes um labutar constante em busca de um fu-
turo, de um alvo longínquo que nos escapa sempre.
O flm de homem não é gozar, nem soffrer; é trabalhar, é
luctar.
(1) Nâo esquecer que estas paginas foram escriptas em plena phase
naturalUta e parnasiana. Com os recentes symbolUtas voltaram as eho^
rcuieiras.
9-1 BIBTOKIA DA LITtEEATUILA BBA8ILE1BA
Ora, O liabalho lem dores e tem alegrias. Por isso uma vida
Ioda clif ia de risos, seria a de um frívolo; uma vida toda cheia
de prantos, seria a de um monomaniaco.
Tal a razilo pela qual uma litteratura puramente galhofeira
é um impossível o uma litteratura puramente tétrica não
ainda.
i razão ainda pela qual nas grandes lilteraturas encon-
1 manifestações amplas d'aqueiles dois estados do espí-
njunctamenle; porque eites dois é que constituem a
sso os grandes poetas s3o aquelles que têm uma nola
(dos os estados d'alma, e nSo esses seres incompletos,
>ssuem uma sú faceta e tangem alaúdes de uma só
poeta, só por ser triste ou ser alegre, nao merece cen-
e a tristeza ou a alegria fôr sincera. Melhor será, sem
, que e!le seja uma natureza mais complexa e variada,
1 uma tecla para cada grupo de emoções. Ninguém
' do que Shakespeare pôde ser invocado para symbo-
riqueza d'alma humana nos dcwninios da poesia. Sua
brd tem uni accorde para quantas mulaçCes possam se
lentro em nós.
Uca não deve ser mesquinha o exigir de um tempera-
mais do que aquillo que elle podo dar. Todas as notas
isiveís n'uma litteratura, predominando esta ou aquel-
forme a índole do povo, e a maior ou menor complexi-
1 intensidade dos temperamentos individuaes. Os nos-
lliores poíítas condoreiros tiveram isto de bom : nSo
[rivolos, nem tétricos; ao lado de muitas paginas por
oam lagrimas, quantas paginas enthusíastícas e fes-
\ vida é isto. Seu alvo é a actividade, aconteça o que
er.
uma litteratura moderna, tanlo como a alleman, desde
;, é uma tão nítida encarnaçã.o d'esse pensamento.
embrar o lypo do Faust.
Ddo o caso, isto é o principal, devemos fugir dos exces-
lãnticos, dos excessos parnasianos, dos excessos rea-
í de quaosquer outros sestros unitários e prejudiciaes;
HI8T0BIA DA LITTBBATUBA BRA8ILXIBA 95
fujamos de uma receita, de um tabeliã, de um cânon, de umi
pragramma exclusivista. A arte é a regicLo da Uberdade; seja
cada um livre de preconceitos e só consulte sua intuição, sua
individualidade. A arte deve ser a antípoda da politica, deve
scT a consagração do individualismo extremado*
O poeta deve ser o que elle é e nâ.o deve atlender a catechis
mos alheios. Deve estar n^altura de seu tempo, deve possuir-
Ihe a intuição geral; mas esta respira-se com o ar da vida;
faz parte da atmosphera social, impõe-se por si mesma. Escu-
sado é procural-a. E' uma acquisção quasi inconsciente.
O tdm geral de uma época inocula-se em todos insensivel-
menle. E' uma espécie de vegetação geral de que todos res-
piram os parfumes, ainda os mais refractários. O modo de
compreliender e exprimir a intuição geral é que é a obra pes-
soal dos artistas.
Raramente haverá um d'esses dualismos em perfeito estado
de polaridade n'um mesmo tempo e n'um meismo paiz, como
aconteceu em França na século xvni, no theatro. A julgar a
sociedade da época pela tragedia, era uma população de he-
póes, de cavalheiros, de caracteres talhados em mrissimos
modelos.
A julgal-a pela comedia, era uma sociedade corrompida até
á medula. Qual a que andava com a verdade? A comedia por
certo, que se inspirava na vida real; a tragedia não passava
de um género convencional e falso n^aquelle tempo. Volva-
mos ao nosso fluminense.
Elle obedeceu á intuição de sua época entre nós; não foi
um reaccionário; era um perfeito producto de seu meio.
Sua meninice passou-se no tempo do 1* imperador, sua ado-
lescência no período da Regência. Tinha dezesete annos
quando inaugurou-se o segundo reinado; a phase de sua acti-
vidade litteraria decorreu de 1S40 a 18'i6. Nascido no mesmo
anno de Gonçalves Dias, não checou a conhecel-o; quando
este surgia para a fama n'aquelle ultimo anno com a publi-
cação dos Primeiros Cantos, olle atufava-se no silencio do
sepulchro.
E' impossível negar o vigor e o enthusiasmo da geração
que entrava em scena com o moço imperador. Na politica
IH) HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
Euzebio, Paraná, Vasconcellos, Uruguay, Alves Branco,
Abrantes e trinta outros estavam na plenitude do talento.
Na historia Varnhagen, Norberto Silva, Pereira da Silva e
João Lisboa iniciavam suas valiosas pesquizas. Na carlogra-
phia Joaquim Caetano preparava-se admiravelmente. Na ju-
risprudência, Nabuco, Rebouças, Teixeira de Freitas habili-
tavam-se com brilho.
Na poesia Magalhães, Porto Alegre, Gonçalves Dias, e Fran-
cisco Octaviano ja cantavam bem alto.
No theatro e no romance Macedo e Penna eram realidades
c Alencar pouco depois appareceria. Na critica Adct, Nunes
Ribeiro e Torres Homem dictaVam leis.
Hão-de convir commigo que ahi estão alguns dos mais
fulgurantes nomes que brilham em nosso Armamento íntel-
lectual.
Pois bem; era um tempo de grandes esperanças, um tempo
do enthusiasmo, a iniciação da pátria livre no caminho do
futuro.
A mocidade era activa e séria. N'esse meio, como productos
espontâneos do clima social, brotaram Bernardino Ribeiro e
Dutra e Mello, os dois heróes da mocidade da época. Morre-
ram ambos pouco além dos vinte annos, senhores de profunda
e variada instrucçáo. Dutra e Mello foi amigo de Porto Al^re,
Nunes Ribeiro, Norberto e Macedo, todos jovens como elle e
todos dados aos bons e profícuos estudos.
A poesia de Dutra e Mello resente-se do estado de seu espi-
rito, do caracter de sua individualidade. No moço escriptor pre-
dominava a reflexão mórbida, travosa de melancolia, de desa-
lento, de desgosto pela vida e pelo mundo. Juntava-se a isto
uma fervente fé religiosa, um singular desejo de morrer para
gozar do infinito. . .
Ninguém em nossa litteratura se preoccupou tanto com o
au dela, com o lendemain de la mort. Se nâo tivesse morrido
tão cedo, teria talvez ac€d)ado pelo suicídio ou peda loucura.
Não é que seu pensamento fosse obscuro, cheio de irregula-
ridades e inconsequencias; bem pelo contrario, era profun-
damente claro e tonificado pela lógica. E' que no organismo
do moço poeta havia qualquer desequilíbrio, que o feria íov-
HISTORIA DA LITTSBATUBA BBABILXIBA 97
temente nas fontes da vida, abatendo-lhe daxnasíado o systema
nervoíso.
D'ahi essa tristeza incurável, t&o profunda talvez como a de
Mauríce de Guerin e de Amiel.
Variadas composições poéticas e artigos em prosa ficaram
do merencório mancebo. Grande porção das poesias é de pe-
queno mérito.
Duas merecem especial mensão; porque n'ellas oxtravasou-
se inteiramente a alma do poeta. Quero falar da Manhan iia
Ilha dos Ferreiros ô da Noite. Só esta ultima era sufflciente
para sagrar o vate.
Ouçam um fragmento da Manhan :
c( Oh! corramos a ver tantas bellezas
Vistas sempre e t&o novas sempre á vista.
Que magica mudança!
Que oceano de vida! Submergido
Qual átomo no espaço, ora me sinto
Abalar como um ramo sacudido
Aos tufões do nordeste...
Oh! que frescura que electrisa e animal
A alma se expande, em sensações se abysma!
Bella rompe a manhan ; qual pudibunda
Arreceiosa noiva, se colora
De vermelho o oriente, e roxo um circulo
Abraçando o horizonte, a côr vislumbra
D*uns lábios em que a dôr vem debuxar-se.
Não luceja inda Vénus, despenhada
Após o dia se perdeu na tarde...
Mas alta lá no céo divulgo a lua ;
Pela manhan sorpreza na carreira
Desmaiada se esvae. Nos niveos braços
Nuvens a tomam ; semelhara a imagem
D*um guerreiro, nas ondas do combate,
Erguida a lança, ameaçando a morte.
Que a treda baila sibilando encontra.
Pende sobre o ginete, e inda no rosto
A ultima expressão paira, e^na bocca
O suspiro 6 a palavra se enregelam,
HISTORU u 7
98 HISTORIA BA LITTBBATUBA BRABILBIRA
Em vórtices rolando pelos ares
Turbilhões d'harmohias se diffundem.
Cada nota é soberba consonohcia ;
Cada leve cantar um instrumento ;
Cada arvore uma orchestra, onde se exhala
Em suspiros, em árias, em gorgeios,
A musica da terra. Oh! que 8ua\âssimo
Concerto que ondulando a melodia
Domina um todo que embriaga o ou\'ido.
Passada a aurora vae. Lá rompe as nuvens
Fulgido raio dardejando aos ares ;
Estira-se no mar ; escamas d'ouro
Luzem brilhando no oceano immenso.
Nova scena de pompa se afigura ;
Cada montanha té has aguas roça
Largo manto d'azul. Crôas aurejam
Na fronte erguida ; é cada qual monarcha,
E um cortejo de príncipes sfio todas
Âo monarcha da luz. Rápido estenda
Seu tapete cerúleo o cêo que o espera, n (1)
E assim se prolonga mais ou menos n'esta forma e por este
gosto o quadro da manhan sobre a cidade do llio de Janeiro
visto da ilha dos Ferreiros, situada na bahia.
Os versos sahiram impressos em o. n.*^ 15 da Minerva, a !-•
de junho de 1844; o poeta Unha pouco mais de vinte annos.
Bem se nota que seu viver subjectivo de espirito merencório
e tristonho não lhe impedia de v6r com os olhoâ bem abertos
as scenas do mundo exterior. Mas o embevecimento pelos
grandes quadros, pelos deslumbrantes panoramas durava
pouco.
Os reclamos do mundo interior não custavam muito em
apparecer. A meditação succedia logo á coníemplaçâto ; o
mundo subjectivo tomava logo a dianteira, e a poesia, que
principiava por um quadro da realidade ambiente, passava
um tanto adiante a perder-se nas sombras da melancolia psy-
chica.
(1) Minerva BraêiUente, pag. 462.
HI8T0BIA DA LITTSBATirBA BRABILBUÁ 99
Na poesia Uma Manhan este facto não se desmente; o poeta
passou ás suas queixas, até acabar assim :
(( Minh'alma inda tão limpa e tão serena
Como este céo d'Âmerica, tfto calma
Como este golfo languido, amoroso,
Tão fresca e nova, como a aurora d*hoje,
Apraz-se aqui na solidão, fugindo
Ao sorrir frio e cynico dos homens.
A natureza, Deus, ella : eis seu mundo,
Que o outro só de horrores se povoa. » (1)
Dutra e Mello, segundo me informou o venerando barão de
Tautphceus, que foi seu collega de magistério no CoUegio
Matheus Ferreira, era alto, magro, esguio, pallido e profun-
damente melancólico pela certeza da phtysica que o consu-
mia; immensamente dedicado ao estudo, enthusiasta impeor-
territo pelas letras. Alma cândida^ ideialista, profundamente
religiosa, assim se consumiu precipitadamente.
A Noite é uma das producções mais sinceramente melancó-
licas que já uma vez foram escriptas por mão de brasileiro.
Por ser de difflcil accesso, por ainda andar perdida nas
paginas da Minerva, ou de ephemeros ForUegios, convido o
leitor a percorrer commigo alguns trechos :
Luminoso esteirão mal deixa ao longe,
D'ouro e purpura accêso, o vasto carro
Em que o dia cercado de seus raios
Pelo ether passeia :
E a Noite melancólica e sombria,
Colhendo sobre a fronte os soltos cachos
Dos húmidos cabellos,
Em torno aos hombros ageitando o manto,
Lança ás rédeas a mão, solta a carreira
A seus hegros ginetes.
Emquanto despeitosas murcham, pendem
Nas campinas as ílôres,
Emquanto um suspirar surdo e longínquo
Lamenta a ausência do explendor do dia,
(1) Minerva Brasilieme, pag. 463.
100 HI8T0BIA DA LITTSRATUKA BKA8ILEIRA
Lúcidas, brilham tremulas estrellas
De pharóes lhe servindo. Ai! como é triste
A solitária marcha d'amargura
Que abatida percorre a linda Noite!
Seus negros olhos, e a carroça ebanea
Que pelos céos a tira,
As suas lohgas roupas tenebrosas,
Olhos desviam que o fulgor da aurora
Rutilante convida.
Oh! ninguém busca vêl-a! Aves e plantas,
Homens, tudo a abandonai Ingratos, fogem
Como ao leito mortal do extincto amigo!...
Tu és, ó dia, o predilecto encanto
Da natureza ihteira ;
Todos amam colher as áureas flores
Que as rodas do teu carro á terra lançam ;
Para o teu rutilar voltam-se os olhos,
E ninguém busca a Noite. O somno os prende,
Emquanto vagaroso vai seu plaustro
As campinas dos céos plácido arando.
Mas tu me és sempre deleitosa e cara.
Oh Noite melancólica ; a minh'alma
Attractivos em ti descobre ancíosal
N&o ama o pyrilampo a luz do dia,
Nem as aves da morte então soluçam! ...
Noite amiga dos homelhs! No silencio.
Na calma vaporosa que desdobras.
No socego dos campos, das florestas,
A vida interna saborejo ardente.
Só entÃo vive o espirito do homem ;
Tenaz rebenta o pensamento algemas ;
Linguagem de ternura e sentimento
Lhe fala o coraç&o nas doces horas ;
Surge a contemplação dos seios d'alma
Em cujas dobras cerra-se €U36 combates
Da vida labyrinthica do mundo ;
E fresca mõo na fronte vem poisar-nos
Mansa a philosophia animadora.
Noite amiga dos homens! Teus*mysterios
Coração de quem ama não deslembra.
HI8T0BIA DA LITTI&ATUSA BRA8ILEIBA tOl
Podem muitos cantar-te em lyras d'ouro
Enlaçadas de brancas sempre-vivas,
De perlas, nfto de lagrimas, bordadas ;
Sdns de fogo, arrancar das lisas cordas,
Conflal-os á brisa das cidades.
Sem que um riso de mofa os enregele ;
Correr dedos na lyra olhando uns olhos,
E vêr descer um beijo e as m&os queimar-lhes.
Mas eu n*harpa de bronze dos finados,
Onde a roxa perpétua, onde o suspiro
Abraçando a saudade se entrelaçam,
D*onde um véo cór da morte â terra desce,
Eu só posso cabtar fúnebres cantos.
Carpidas nenias que o feliz desama.
Só no campo e lá quando abrindo as azas
Tu me acolhes saudosa, ó Noite, experto
Essa lembrança que só tu conheces.
Que eu guardo, e que uma tumba nos comparte.
Noite amiga dos homens! Quando imperas.
Maior o creador se nos antolha :
Que importa do teu sol a pompa, ó dia?
Essa luz tríumphal, de resplendores.
Esse golphão da vida p*ra os sehtidos?
Que importa esse brilhar da atmosphcra,
Esse vario matiz que adorna a terra?
Perde-se a alma encarando o firmamento
Qu€U[ido, ó Noite, o sombreias. Vô brilhando
Milhões de estrellas, que a distancia immensa
Minora á vista Luminosa a facha.
Que em tomo a infindos soes, fniindos mundos
Abysmando a ras&o lhe patenteia .
E tu, magica chave das sciencias.
Tu, vasta analogia,
Quaes véos nâo rasgas, desdobrando â vista
Mysteríos que o entrever mais engrandecei
Noite ! ó noite formosa ! Eu que amo os astros.
Eu, que)i*elles suspeito mais que as luzes,
Nfio sei te abandonar, pois reflectindo
Prezo vér n*esses globos outros mudos
102 HIBTOBIA DA LITTS&ATURA BSÁ8ILXI21A
Mais felizes que o nosso, onde outros seres
Mal, dôr, peccado e morte não conheçam ;
Onde o sopro da duvida n&o tolde
 argêntea luz da cândida verdade ;
E onde a hypothese louca e ambiciosa
CreaçOes moribuYidas n&o produza.
Noite amiga dos homens! Teus altares
Não se mancham de tantos malefícios
Em que as aras do dia se deturpam ;
Unes o esposo á esposa, e aos dous a prole ;
A familia vê juntos os seus membros ;
Irmãos, irmãs, em doce entretimento,
Fruem prazeres que interrompe o dia.
Riso, amizade e gosto sobrevoa
N*essa amen§. e tranquilla sociedade.
A alma se acrysola e purifica
Das escorias que o dia lhe injectara » (1).
Dutra e Mello deixou também alguns artigos de critica litte-
raria. Os mais notáveis são os referentes á Moreninha de Joa-
quim Manoel de Macedo e ás Lyras de Thomaz António Gon-
zaga.
Ouzo dizer que o moço fluminense era mais um tempera-
mento de critico do que um temperamento de poeta. Seus
dois artigos de cirtica, dois simples ensaios, são dos melhores
escriptos n'este paiz.
Era em 1840 a 45 ; o género apenas começava entre nós e
começava dirigido por dois estrangeiros Santiago Nunes Ri-
beiro e Emílio Adet. Porto Alegre, Torres Homem e Dutra e
Mello deixaram amostras n'essa direcção.
Mas Nunes Ribeiro e Emilio Adet pouco escreveram; Porto
Alegre alirou-se a outros trabalhos. Torres Homem meteu-se
totalmente na politica e Dutra e Mello morreu; a critica teve
de ficar muda.
Mais tarde chegou ás mãos de Norberto Silva, Cónego Fer-
nandes Pinheiro e Sotero dos Reis ; porém Norberto foi antes
um pesquizador de factos históricos do que um critico, Fer-
nandes Pinheiro e Sotero dos Reis foram dois rhetoricos des-
)1) Minerva BrattU'en#e, 2». serie, pag. 279
HI8T0BIA DA LITTXBATURA BBABILSIBA 103
pidos de qualquer talento analytico. De todos os géneros litte-
rarios e scientiflcos é aquelle que tem tido n'este paia um de-
senvolvimento mais enfezado e rachitico.
E' isto natural; a critica só pode tomar um forte ascendente
nas litteraturas abundantes e robustamente constituídas.
Tal a razão pela qual a critica é um producto essencialmente
novo, resultado da lucta e do embale de muitas correntes
e direcções litterarias e scientiflcas.
Wolf, Winckelmann e Lessing foram os fundadores da cri-
tica moderna. Desde então as producçôes litterarias deixaram
de ser consideradas crêações caprichosas, e entraram na cate-
goria dos factos normaes, históricos, relacionados com o meio,
as raças, as instituições fundamentaes dos diversos povos.
Herder, Niebuhr, Ottfried Mttller andaratm pelo mesmo ca-
minho por onde enveradaram mais tarde Gervinus, Hermann
Hettner e Julian Schmidt.
. Desde então a critica tinha deixado de ser uma categorisa-
çdo da rhetorica e havia abraçado o methodo das investiga-
ções scientiflcas.
Sainte Beuve e Scherer assim o comprehenderam; os livros
de Taine e mais tarde oe de Guyau, Paul Bourget e Zola popu-
larisaram os novos processos; o movimento propagou-se e
chegou até ao Brasil.
Dutra e Mello em 1845 nio podia ter essa nova e forte intui-
ção da critica. Ainda assim, sua intelligencia era tão nitida e
poderosa que os ensaios que produzira no género ainda hoje
interessam pela segurança e elevação das idéas.
O meu ílto não é escrever um diccionario biographico de
brasileiros illustres; não tenho inclinações para o género.
Meu flm é fazer a historia do pensamento brasileiro, indi-
vidualisado, encarnado nos seus mais dignos representative
men. Neste sentido o artigo de Dutra e Mello sobre a More-
ninha é uma revelação; vem mostrar em sua culminação como
pensava em litteratura a forte geração de 1840.
Conversemos com o moço critico ; sua convivência é pro-
veitosa, ouçamol-o :
f( O romance, essa nova forma litternria que se reproduz espan*
iosaiuente, que mana caudal e soberba da França, da Inglaterra
104 HISTOBIA DA LITTEEAT171LA BRASILXIBA
e da AUemanha, tem sido a mais fecunda e caprichosa manifesta-
ção de idéas do século actual. E' incalculável o numero de paginas
semivivas, pallidas e esboçadas, raramente sublimes, consoladoras
ou ascéticas, mas com frequência dotadas de um verhiz brilhante,
de um colorido fogoso, que a improvisação enthusiasmada pela ma-
nia d*um mundo de leitores arranca do berço horaciano, onde um
novennio de cuidados as aguardava. Fluctuando aqui e ali, um
publico insaciável as abraça, devora-as com avidez, deixa-as com
indifferença, calca, rola na poeira e esquece para sempre.
Não foi conhecido o romance pela antiguidade ; a forma épica,
centralisando n'um só homem raios de luz dispersos, personifi-
cando n'uma figura um século e annexando e fazendo entrar no seu
vasto molde a gloria e feitos de uma e mais gerações ; a tragedia,
medindo o alcance de uma situação, extrahindo á força do génio e
reflexão tudo o que ella ofTerece, levantando-se ás grandes idéas
religiosas, politicas e philosophicas, não podiam ser coevos do espi-
rituoso e vivo narrador das scenas domesticas, do apprcciador das
qualidades parciaes, da vida objectiva, dos caracteres isolados meio
trágicos, meio cómicos. O drama, e tão somente o drama, podia
raiar no horisonte, quasi nos fogos da aurora do romance, Shakes-
peare e Cervantes deviam brilhar no mesmo século.
O romance é, pois, nascido em tempos mais recentes ; e, se o
consideramos no pé em que está hoje, elle é genuíno filho doeste
século. Sentio uma necessidade que se pronunciava ; votou-se a
preenchél-a e fez-se uma potencia. Esposando a imprensa joi*nalis-
tica, tomou-se um colosso ; mas, com dolo ou sem elle, ambos se
eYiganaram : o jornalismo veio a ser exigente ; o romance para satís-
fazél-o desenvolveu fertilidade espantosa, e o aborto começou. Tendo
de satisfazer um gosto que se depravava, elle se depravou também ;
esqueceu-se de que devia fazer a educação do povo, ou pelo ir.enos
de que podia aproveitar o seu prestigio para isso. Penetrando na
cabana humilde, na recamara sumptuosa, no leito da indigência,
no aposento do fausto, perdeu de vista o fanal que devia guial-o ;
deslembrou-se de levar a toda a parte a imagem da virtude, a con-
solação mitigadora, a esperança e o horror do vicio.
Demais, multiplicando-se, invadindo términos sagrados, elle apre-
goou as mais exaggeradas pretençOes ; subdividio-se* em classes
numerosas, que cada uma abrange populações inteiras ; tornou-se
Protheo sem lembrar-se que — La force c'esi Júpiter^ ce n'e$t pas
Prothée. E' bem de crer que meditando seriamente na sua mocidade,
elle se arrependa um pouco da quadra propicia que terá perdido.
Avelhentado pelas suas devassidões, lançando os olhos para essa
r
HI8T0BIA DA LITTEBATUBA BRASILEIRA 105
prole immensa de invalidas monstruosas e cynicas rhapsodias,
achará para alivio de sua dòr, aqui, alli apenas um íllho vigoroso
nm Quentin Durward, um Werther, um Onq-Mars, um Notre-
Dame de Paris, e poucos outros ; e quando em todos ao demais achar
verificado o urceus exit do Velhusino, abraçando a pedra do sepul-
chro, cahirâ exânime e tremendo da hora do juizo final da posteri-
dade. A arte, revelando-se pela bocca de uma critica posthuma e
severa, vendo surgir das catacumbas columnares de olvidados
jomaes esse numero sem fim de Quasimodos, dir-lhes-ha voltando
a face — Néscio vos. Como quer que seja, o romance tem percorrido
ama esphera de gloria na Europa ; o seu império tomou-se exclu-
«vo. Digamos porém em abono da verdade que se as loucas preten-
çOes do roma!hce philosophico tém mangrado em geral, o romcuice
histórico nos tem dado primores e muitas pennas se crearam repu-
tações continentaes n*este género, e á frente d*ellas Walter Scott.
Em Portugal tem elle prosperado com vigor : e naturalmente um
povo que se mergulha com saudade na recordação de suas passadas
glorias; um paiz onde varões, que emularam com a fortaleza das
grandes personagens da antiguidade, imprimiram na historia qua-
dros sublimes de dedicação e valor ; onde a cavallería, os Mouros e
os Árabes deixaram vestigos indeléveis, onde uma turma de littera-
tos fortes nos sentimentos que dieta o amor da pátria empunha
agora a penna ; este paiz, dizemos, n&o podia deixar de entrever no
romance histórico a forma congénita e adaptada às ideias que nutre.
Elle nos tem dado pois algumas paginas tocantes e grandiosas ; elle
tem sabido interpretar e revelar essas grandes acções, e temos para
nós que ainda nos não deo quanto poderá dar-nos. O Sr. Alexandre
Herculano é talvez o que mais se tem distinguido na serie d*esses
escriptores, e nós lhe votamos em nossa humilde intelligencia os
louvores que por certo merece, mas outorgados por outra bocca.
Somos demasiadamente microscópicos para ousarmos tecer-lhe
encómios.
Entre nós começa o romance apenas a despontar : temos tido esbo-
ços ténues, ensaios ligeiros que já muito promettem ; mas inda nin-
guém manejou, que o saibamos, o romance histórico, nem tao pouco
o philosophico ; quanto a este, porém, leve é a perda a serem toma-
dos por modelo os delírios da escola franceza : um Louis Lambert,
por exemplo. E comtudo o romance histórico pôde achar voga entre
nós ; tem uma actualidade que nfto deve desprezar. As investigações
históricas a que deve proceder quiçá, trarão luz sobre alguns pontos
obscuros que homens devotados á historia do paiz buscam hoje lu-
cidar; pôde tornar-se de envolta moralisador e poético, se bem
106 HISTOBIA DA LITTEBATURA BRASILBIBA
cahir no preceito : Omne Itdit punctum qui miscuit utile dulci. Se a
vida prosaica e positiva que o principio eterno da contradicç&o entre
os gostos e as circumstancias do homem nos obriga a ir vivendo,
deixar-nos alguma vaga para recolhermos e ordenarmos algumas
idéas sobre esta matéria, esperamos cedo voltar ainda á questão.
Quanto ao mais, autores de merecimento, poetas distinctos se tèm
occupado do romance sentimental e bellas paginas h&o produzido ;
outros géneros vâo sendo cultivados, e contamos cedo ver-nos inde-
cisos no preferir em frente de numerosos rivaes igualmente aquila-
tados em mérito. E, pois, realisem-se ao menos estas esperanças :
pleiteie-se um pouco, debelle-se a indifferença que nos gela, e as
fixas cores de um clima poético venham coUocar-se na paleta do
artista!
Por ventura nossa podemos annunciar ao publico que um novo
romance acaba de sahir dos prelos. No meio da tempestade eleito-
ral em que o positivismo egoista sacia os olhos, inda uma vo2
d^harmonia ousa espraiar-se. Uma vagabunda e feiticeira imagina-
ção desdobra suas azas d*ouro e nácar n'essa atmosphera carregada
de vapores. As imprecações foribundas que a orgia da politica faz
retumbar de toda a parte parecem querer suffocar-lhe os sons. Pen-
sar na belleza, meditar na virtude, enthusiasmar-se no casto amor
das lettras, s&o crimes para elles. Porém almas ha que inda Yi*esta
quadra Yião se desmentem da humanideide : a chamma sagrada
arde em silencio em muitos corações e queira Deos breve tornado
em raio n&o desça a exterminal-os.
O Sr. Joaquim Manoel de Macedo é felizmente um d*aquelles que
repelle o contacto doesse gérmen terrível, d'esse gorgulho que espe-
daça o fructo de tantos disvelos ; e, como para consolar-nos da época
triste em que lidamos, elle nos outorga um mimo, apresenia-nos
a Moreninha, a viva, a espirituosa filha de sua rica fantasia ingé-
nua e bella, innocente e jovial. Em uma hora de enfado nos appa-
receo esta interessante creatura, e ao vel-a tôo risonha, transpirando
ainda o beijo do adeos final q\ie nas faces lhe imprimira o autor,
hós a tomamos nos braços, e despindo as rugas do semblante, lhe
ouvimos as palavras de ternura, de amor e sentimento que nos
murmurava no ouvido. Resta-nos agora agradecer ao autor as horas
de gosto que nos facultara e em nome dos amantes das lettras, o
novo protesto que acaba de lançar contra a indifferença. Para cum-
prirmos um dever, daremos ao publico uma noticia da sua enge-
nhosa producção e seja esta a minima recompensa da adhesão e
amor que nutre pelo ideal. Podesse ou nfio o autor, lançando mfto
de uma grande verdade moral, circumdal-a de factos envolvendo-a
HISTORIA DA LITTBUATUKA BBASILXIBA 107
n*uma acç&o qualquer e fazel-a sobresahir da luta e successão
d^esses factos ; ou inversamente, attentalido um facto e as conse-
quências ethologicas n*elle englobadas, desenvolvel-as no correr
dam plano ; podesse ou não tomar uma grande figura histórica,
uma paixão transcendente, ou na escala do amor um grão de maior
vulto, dedicação e nobreza, uma abnegação sublime, e tratal-a com
toda a expansibilidade de talento que possue, isso não nos diz
respeito, e fora questão de ultra critica.
Devemos aceitar a sua producção tal qual, collocarmo-nos no
ponto de vista para que a destinara, e compararmos a ideia que o
possoia e a maneira porque nol-a traduzio. Tal é o nosso dever, e
gostoso nos é dizer que o autor desempenhou completamente o fim
que se propoz.
Um d*esses amores de infância que a sympathia gera, que um
nào-sei que vigora, e que o tempo consolida ; um amor abençoado
pela voz moribunda d'um ancião, nascido e embalado com a cari-
dade em dois ternos corações ; esse amor de um joven de treze
annos e d'um anjo de oito, forma o centro de todo o movimento.
Scenas da vida escholastica, cujo quadrar exacto com a verdade
nenhum estudante negará, uma inconstância inqualificável, mas
fundada, quadros da vida amatoria da juventude inconsiderada, epi-
sódios bem combinados, se engrupam, se harmonisam e realçam
eom belleza o todo.
O romance estréa interessante ; o primeiro capitulo é d'iim aca-
bado inquestionável ; tudo o que se passa n'elle é tão natural, tão
expressivo que a imaginação nol-o apresenta cdnda como se o vira-
mos. O dialago é rapi<lo, insinuante, e cheio de vida ; os caracteres
bem annunciados e o contraste entre a figura molle, graciosa e ro-
mântica de Aítgnsío e a Índole positiva, secca e egoista dos seus col-
idas, faz um bello effeito. Os ataques que soffre e a defeza que lhos
oppõe o campeão da volubilidade, têm por vezes muita agudeza e
pico.
Para nós, que desejamos no dialogo tanta energie^ como ancie-
dade no enredo, é este um dos principaes titules do nosso autor a
justos louvores. A carta de Fabrício, aprendiz sem vocação, que
«ahihdo do seu elemento suffoca-se n'uma atmosphera mais subtil, é
cheia de pedaços cómicos, e d*alguma:S observações sobre o carac-
ter das nossas bellas que lhes devem desagradíir sobremodo. Os
piíncipios cynicos do pérfido estudante são detestáveis; e uma
vimos nós seriamente agastada contra elle saciar sua vingança ao
vek) em taes apuros. Em confidencia diremos ao autor que uma
108 HI8T0BIA DA LITTBRATimA BBA8ILSIBA
senhora de muita perspicácia o accusa altamente de haver tratado
com leveza a paixão predilecta do seu sexo ; de ter calumniado o
coraç&o feminino, e de ter feito tão aprazivel um episodio que tanto
as offende (pensa ella).
Transportemos-nos agora ao foco da acção, a essa ilha encantada
de cuja descripção dispensou-nos o bom gosto do autor : dizemos
bom gosto, porque o elemento discriptivo (pedra de toque aliás do
mérito poético) é hoje tão insulsamente empregado que menos inte-
ressa do que fatiga. Aqui bem longe de traçar-nos uma topographia
exacta do salão, de desenrolar-nos brilhantes hypotypósis ou de
espraiar-se em longas observações pathologico-moraes sobre toda
a companhia, o autor define as senhoras em duas palavras e che-
gando aos homens diz : Quanto aos homens... não vai a pena. Vamos
adicínie. Isto nos agrada muito e em veixlade parece-nos muito
melhor deixar transluzir e manifestar-se pelos factos o caracter de
uma personagem do que fatigar-se ao principio em descrevel-a. A
synthese n*este caso pertence ao leitor, e n'isto se basea a forma
dramática. De mais os factos bem produzidos poupam longas pre-
parações ao autor e fazem nascer no espirito uma serie de re-
flexões.
A Sra. D. Violante é o typo de uma classe numerosa entre 'nôs, que
o autor sentio e desenhou com justeza. Tão cómico nos pareceo
este lanço, tão fulminador o contraste em que o misero Augusto
se vô a respeito de seus collegeis, tal a impertinência da bruxa que
o persegue e tão bem cabida a escapula e vingança obtida pelo dia-
gnostico treméhdo do estudante, que não podemos suster por muito
tempo o riso. A nobreza com que Augusto declina de si o papel
odioso de que Fabrício o busca incumbir, lhe attrahe um duello
curioso ; a mesa é o campo de batalha em que os dois campeões vão
pugnar, e a interessante Moreninha que apenas deixou-se entrever
deve apparecer em toda a luz.
Travessa como o filho de Erycina, volúvel como o beija-flôr«
inquieta como a borboleta, irínocente commo um anjo, ella é roman-
ticamente bella. Uma viveza graciosa, uma agitação continua, uma
sagacidade e tino talvez sobremaneira em tal idade, mas a par de
tudo um fundo de bondade, de simpleza e ternura, taes são alguns
dos attríbutos d'essa linda creação. Porém que terrivel talento na
satyra! Que malícia, que ironia, que promptidão de respostas!
Como desmascara, como fere, como retalhai Que settas de fogo não
crava ella aqui na sonsa D. Quinquina, alli na vaidosa D. Clemen-
tina, e mais longe no desastrado Fabrício?! A luta dos estudantes
HI8T0KIA DA LITTERATUBA BEA8ILEIEA 109
Dão nos foi tâo saborosa como os remoques satyricos da Moreninha.
Este caracter tem para nós bastante originalidade e rivalisa com
muitas figuras traçadas por grandes pincéis.
A conversação de Augusto com a Sra, D, Anna vem lançar os pri-
meiros clarões sobre o fio da historia. Mas (pela simplicidade do
enredo) assim como facilmente previmos no principio o que veto a
realisar^e na scena do jantar, assim bem se antevê qual seja
a beUa menina que Augusto commemora com tanta saudade e ter-
nura. Entendamo-nos : não fazemos disto motivo de censura senão
que louvamos o autor por nos ter poupado a um labyrintho de factos.
Simples ou nâo seu plano foi bem executado, o que já é não pouco
mérito (1).
Que diremos ainda ao leitor? O romance prosegue e vôa ao fim
com rapidez, tudo se liga e se esclarece. Na scena do jardim a desa-
piedada Moreninha vibra ainda a sua arma favorita : Augusto, vic-
tima de uma de suas travessuras, vê-se pouco depois em crítica po-
sição. A passagem a que nos referímos (um pouco romanesca) faz
rir por certo, e, levada mais longe, faria fechar o livro a muita
gente; felizmente é co€u*ctada, mas parece um tanto livre.
Fazem-se notáveis ainda (uma, pela graça, outra, pelo sentimen-
talismo) a conferencia dos quatro escolásticos e a scena do pedilu-
vio séhtimental. O autor dispara algumas settas contra os charla-
tães e curandeiros que muito nos agradaram. O resto do romance
corre a mesma esteira e por toda a parte ha muito que louvar, sobre-
tudo o caracter de D. Gabriella. Entretanto parece-nos extrema con-
descendência das três jovens que uma a uma se deixam confundir
por Augusto, depois da derrota da sua companheira. A hora doeste
rendez-vous e o tom da sociedade entre nós tornam pouco verosímil
tal passagem. Va feito : Le vrai peut quclquefois n'étre pas vrai-
imblable.
Recapitulemos. A Moreninha, producção que em verdade honra a
seu autor, é uma aurora que nos promette um bello dia, uma ílôr que
desabrocha radiosa donde vingarão pomos saborosos ; uma espe-
rança com todos os laivos de certeza. O desenho é simples e regular;
nâo se vê perplexo o espiríto, nem se agita com anciedade pelo êxito ;
as explicações fazem-se pouco esperar. O disforme, o horroroso são
allieios ao plano ; a ausência de grandes paixões, de rasgos sublimes,
parece derívar-se da linha strícta que o autor se traçara, não
dando ao seu romance uma côr philosophica. Toques sombrios, posi-
(1) Omitto aqui um longo fragmento por não tomar demasiado extensa
esta citação.
110 HISTORIA DA LITTBRATURA BRABILBIBA
ções arriscadas nao derramam n^elle o terror ; reinam em toda a
parte jovialidade, abandono e harmonia.
O estylo é fino, irónico e singelo. Ordem, luz, graça e ligação o
tornam de uma transparência crystalina, dâo-lhe um polido, uma
lisura nunca desmentidos. Porém do meio doesta serenidade, d*este
négligé escapam-se faiscas brilhantes. Respostas enérgicas, ditos
agudos, imagens vivas matisam-lhe a contexturcu O colorido é por
vezes ardente, e quasi sempre animado, próprio e gracioso. Mas
íerio-nos sobretudo a profundeza de observação que por aqui, por
ali se nota, a finura de tacto na apreciaç&o dos costumes e o parti
cular e írisante da côr. O autor retrata bem o seu paiz no que des-
creve ; sabe ver, sabe exprimir. Tudo se diz de passagem, rapida-
mente ; tudo se pinta n*um traço : nada ha de carregado.
L^ style c*esi Vhomme, disse Buffon ; e na verdade se as idéos
constituem o fundo do estylo, se a sua ligação e clareza decidem da
essencialidade d*elle, e se o moral e a intellectual do homem são o
que as ideias o fazem ser, o homem deve retratar-se no estylo. Vè-se
que uma facilidade, uma simpleza, um não sei que de franco, de
Interessante, de desempedido, são os dotes principaes do estylo em
que é manejado a Moreninha; e tal julgamos ser o caracter do
autor. Longe a affectação, os campanudos vocábulos, longe o amar
neirado archaismo e o assustador neologismo. Linguagem casta e
severa, acção viva e seguida, rigida moral, cór appropriada, eis o
que nos cumpre.
Poderíamos agora lembrar ao autor um ou outro pequeno defeito,
algum traço puco firme, alguma leve antilogiei, uma ou outra expres-
são menos feliz ; mas com que fim? Não será elle com a modéstia e
bom senso que lhe conhecemos^ o primeiro a censural-os? Deixemos
áquelles que têm olhos de prisma que tudo decompõem o gosto
pedantesco de se efncarniçarem n^essas bagatellas. Toda a luz tem
sombras, todo o caracter defeitos, toda a obra incorrecções.
O physico, o moral e o intellectual resentem-se igualmente da con-
tingência mundana. Não somos partidários d'essa crítica esmiunça-
dora, que alguém já chamou maledicência. A grande crítica, a crítica
das bellezas, tal qual a quiz o autor dos Mariyres, é essa a que nos
importa. Tudo o que é diminuto e acanhado lhe escapa : o silencio
e a indifferença, eis o seu juizo em casos taes ; e assim pensamos
nós. Forma->se muito melhor o gosto dizendo-se — Faze como isto
do que Não laças como aquUlo, A educação moral levará á misan-
tropia e suicidio se em vez de apresentar-nos o quadro edificante da
viríude nos mostrasse o pavoroso aspecto do crime. O bello e o bom
têm por si sós bastante força para attrahir as almas bem formadas.
HI8TOBIA DA LITTBRATUBA BBABILBIRA 111
sem que mister seja o desgosto e horror pelo disforme e pelo máo
para determinal-as a ksso.
Pedimos agora ao nosso coUega e amigo, depois de tâo bem fadado
ebsejo, algumas paginas em prol da verdade. Lance ainda o seu pin-
cel novas cores sobre a tela, e venha algum lenitivo a tantas intelli-
gencias, magoaxlas pelo materi£Llismo, torpeza e libertinagem que
transudam quasi todos os romances modernos ; venha um alimento
para alguns homens obscuros que vivem de meditaç&o e de espe-
rança, que se nutrem do ideal e sentimento ; que inda vêm com a
fé, que inda vivem pela humanidade, que inda marcham para Deos.
Taes são as reflexões que nos tem suggerído a leitura da interes-
sante MoreninhQ^ livro que nos ministrou suave passatempo, livro
a que o publico tem feito justiça, e de que seu autor deve dar-se os
parabéns » (1).
De dez em dez annos um punhado de moços levanta-se
cheio de entusiasmos e d'esperanças, alçando a bandeira da
regeneração litteraria : são os novos, os fllhos da ultima gera-
ção.
Nada mais digno de respeito e attençSes do que o labutar
da mocidade em prol de novas ideias, de um novo sentir.
Pode ella ser injusta nas suas apreciações, ser leviana em
(1) Minerva BrasilienMe^ 1^ serie pag. 746 e seguintes.
O leitor nfto me levará a mal o lhe ir pondo diante dos olhos largos fhig-
mentos de escriptos dos autores que vamos juntos apreciando. O meu fim
poupar-lhe o grandíssimo trabalho de ir verificar por si o que lhe eu vou
afifirmando. A maior diíficuldade que se depara a quem trata da litteratura
brasileira nâo é formar uma id^iia de seu desenvolvimento e dos espíritos
que n'ella figuraram.
A grande, a immensa diífículdade consiste em ter á máo os productos
d^essa gente. Muitos d'elles náo deixaram livros, e o que escreveram anda
esparso por jornaes e periódicos.
Outros fizeram em livro publicações de limitadíssima tiragem, que se não
reproduziram mais. Quasi tudo isto não se encontra nas livrarias e tem-se
de recorrer aos belchiores e bíbliothecas. Estas, por sua vez, sáo muito lacu-
oosas. Autores ha de difflciilimo accesso ; por se não saber onde pára algum
exemplar de escriptos seus. Nesse trabalho de busca perde-se um tempo
enorme e preciosíssimo. Tal o motivo principal do retardamento doesta his-
toria, começada em 1881.
Mas uma cousa é verdadeira, e é esta : nâo ha um só autor mencionado
n*este livro que não tenha sido directamente pesquizado, lido e estudado
por mim ; não tive o menor auxiliar em ninguém, nem acceitei nunca os
juízos formulados por outrem. Disto tenho fundado orgulho e o declaro sem
rebuço.
112 HISTORIA DA LITTERATTJBA BRABILEIILA
suas audácias; mas é sempre merecedora de applausos pela
pureza de seus intentos.
Ha apenas a ponderar uma cousa : a nullidade da privi-
legio... Todas as gerações têm igual direito ás attenções da
historia; porque todas ellas houveram seu dia de enthusiasmo
e de coragem para a lucta. Todas cumpriram a missão que a
historia lhes assignalou e todas sentiram depois a arena do
combate faltar-lhes sob as plantas e o horisonte das grandes
pugnas estreitar-se-lhes sobre a cabeça. E' este o destino de
todos, são estas as condições mesmas do progresso.
Que illustre que foi a nova geração do tempo de Magalhães,
quando Bernardino Ribeiro era professor de jurisprudência
aos vinte annos e Dutra e Mello era sábio aos vinte e díois ;
quando Martins Penna mostrava aptidões raras para o thea-
tro e Gonçalves Dias preludiava nunca ouvidas melodias I
Ohl bemaventurados os moços que trabalham, e todos os
que trabalharam; abençosida seja a memoria dos que se fina-
ram em meio da jornada, tendo ajudado a levantar este paiz.
E o moço poeta autor da Noite foi um d'esses...
Francisco Octaviano de Almeida Rosa (1825-1889).
Dois annos mais moço que Dutra e Mello e Gonçalves Dias,
era da idade do segundo imperador.
Pormou-se em jurisprudência em São Paulo em 1845. Seus
primeiros ensaios litterarios datam de dous ou três annos
antes e são adequados á intuição do tempo; por isso é elle
desde ja contemplado n'esta inicial phase do romantismo
pátrio. Estabelecido no Rio de Janeiro, sua terra natal, bem
cedo atirou-se ao jomaUsmo e á politica, grangeando desu-
sado renome.
Passou por muito tempo por chefe emérito da poesia e da
jornalística entre nós.
A alta posição politica do senador Octaviano parece ter sido o
principal factor de sua grande nomeada nas letras. Este phe-
nomeno das chefaturas litterarias no Brasil é uma curiosidade
digna de estudo.
O nacional tem o espirito sacerdotal e o sestro da passivi-
HISTORIA DA IJTTBEATTTBA BBA8ILBIBA 113
dade e obedienca em elevadíssimo gráo. Não gosta muito das
differenciações e das luctas; deseja caminhar por manadas,
guiado por um chefe, quero dizer, uma figura decorativa,
um nome passado á categoria de phrase magica, só por si
capaz de apadrinhar a prole.
Dahi os alvoroços, não por um ideial, por um principio di-
rector das letras, mas por um chefe, um idolo, um homem
que possa dar attestados de intelligencia e fornecer prólogos
para os livros dos estreiantes.
Este sacerdotalismo tem sido a causa de gravíssimos dam-
nos para as pátrias letras. Luctas mesquinhas, intranzigen-
cias fátuas hão sido o menor desses males.
Francisco Octaviano não foi um temperamento litterario
irresistivel ; fez litteratura incidentalmente. Produziu versos
originaes e traduziu fragmentos de Byron em sua mocidade;
logo a politica o attrahiu. Em prosa o pouco praticado por elle
foi ainda consagrado á poUtica.
Apezar porém de sua parca e fragmentadissima producçâo
litteraria, tem direito de entrar n'este livro como poeta e jorna
lista. Não deve trazer o porte altivo dos mestres, dos chefes,
dos grandes heróes do pensamento; deve vir com o sorriso
amável dois bons campanheiros.
O poeta em F. Octaviano passou por duas phases; a pri-
meira, abrangendo o decennio de 1840 a 50, foi de vacillações
e tentativas de pequeno valor. Como soe acontecer em simi-
Ihantes assumptos, as datas ahi não têm um significado ab-
soluto, especialmente tratando-se de Francisco Octaviano que
nunca teve actividad6 nas letras e jamais publicou um só li-
vro.
E' difflcillimo reconstruir a historia intellectual de um ho-
nem que de longe em longe publicou uma ou outra poesia
destacada em paginas de ephemeros jornaes e periódicos.
Tenho certeza de haverem sido de pequeno préstimo os tenta-
mens de Almeida Rosa na poesia em sua phase académica e
logo depois.
Os documentos não me falham de todo, e não se deve ob-
jectar com a sua verdura de annos então, porque nos jovens
brasileiros a maior efrervecencia poética vae até aos vinte e
msroiUA n 8
114 HISTORIA BA LITTSRAT17HA BRASILEIBA
cinco annos na maioria dos casos; poucas vezes chega aos
trinta e raramente os ultrapassa. Paio da mór intensidade do
talento e das effusões lyricas.
D'aquella primitiva phase litteraria de Octaviano Rosa res-
tam poesias originaes e traduzidas por onde se possa aqui la-
tar-lhe o espirito.
Não se distinguem nem pelo fundo nem pelo estylo. Sfto
restos de um classismo estafado, ou timidos passos na vareda
de um romantismo incolor. Leiam-se a ode dirigida ao velho
Martim Francisco Ribeiro de Andrada^ a espistola endereçada
a Joaquim Norberto de Souza Silva, e a canção intitulada
Adeus á Vida,
£is o principio da primera :
« Que ha sido o galardão, que outorga a pátria
Aos varões que a serviram?... Qual o premio
Que seus feitos illustres mereceram?...
Despreso!... esquecimento!...
Nfto, a pátria náo é... n&o se a injurie.
Que ella seingra de vêr taes injustiças...
Dos homens o ciúme, a negra inveja
Esses crimes engendram.
Oh! que apagar taes nódoas se n&o possam,
Que a historia em suas paginas ostentai...
Que n&o possaes desconhecer, vindouros,
A ingratidão dos povoa!...
Eil-o ao pézo curvado das cadeias,
O heróe de Marathona a vida arrasta...
Qual seu crime?... o livrar homens ingratos,
Defender sua pátria. . . » (1)
A espitola a Norberto SUva tem este intróito :
K Como as almas, Norherio, se estasiam
No doce recordar dos doces tempos
Em que a outras o Iman d*amisade
(1) Vide Florilêigo Branleiro da Jn/ancia^ por João Rodrigues da Fon-
seca Jordão, pag. 172.
HISTORIA DA LITTBBATUBA BRA8ILBIRA 115
As havia attrahido, e confundia
Os prazeres de uma, e penas d*outra!...
Longe, ausente de ti, do exímio vate.
Do brasileiro sabiá canoro,
Cujos trinados me arroubavam sempre,
E ao êxtase e prazer me remontavam,
Longe (direi também?...) dos meus amores
Da minha Aonia terna e Armia ingrata,
Que sou? Misera ovelha, que na rocha
Deslembrado pastor abandonara.
Ah! bem triste é, Norberto, estar ausente
De tudo o que no mundo nos é caro » (1).
O Adeu^ d vida preludia assim :
te Adeus, m&iha vida,
Vida sem prazer,
Fruir-te nâo posso.
Adeus, vou morrer !
Mirrada doença
O alento me prende,
A pallida morte
Seus braços me estende,
Revolve-se a terra,
A cova se abriu.
Meu corpo baixou,
A lousa cahiu.
Do mundo lllusOes
Na campa findaram,
Quaes flores viçosas
Depressa murcharam... » (2).
N'este mesmo tom proseguem as três citadat? poesias, que
tii andam nos livros de classe propostas por modelos á moei-
a.de. Esse era o estylo e aquella a intuição litteraria do en-
>mmiado fluminense.
Comparem aquillo com. os versos, mui poucos annoe de-
>is, escriptos por Alvares de Azevedo n'aqu6lle mesmo São
1) Vide Florileigo Braêileiro, pag. 229.
;S) Citado Florilégio, pag, 196.
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116
HISTOBIA DA LITTEBATT7KA BRASILEIRA
Paulo e n^aquella mesma idade e digam qual dos dois era ja
de facto e deveria ser mais tarde o verdadeiro mestre. Nâo é
preciso ajuntar mais nada para dar bem a comprehender o
meu pensamento.
A segunda phase da vida poética de Octaviano abriu-se no
Rio de Janeiro. Bem cedo relacionado com os primeiros espi-
rites nacionaes na litteratura de seu tempo, Gonçalves Dias,
Macedo, Alencar, seu gosto apurou-se, seu talento robuste-
ceu-se.
O periodo de 1850 a 65 foi o de sua melhor producçao na
poesia e no jornalismo.
Depois a politica absorveu-o de todo. A esse tempo se pren-
dem os fragmentos que traduziu de Schelly, Hood, Byron e
outros poetas estrangeiros; são também d'essa época alguns
versos de própria lavra.
Não são producções de primeira ordem, ostentam, todavia,
certa graciosidade.
A este numero pertencem os Desejos de doente^ aqui cita-
dos como documentação indispensável :
(c Querida, quando eu morrer,
Com tua boquinha breve
Nfio me venhas tu dizer :
— A terra te seja leve. — -
Nesse dia vem calçada
De botinas de setim ;
Quero a terra bem pisada.
Tendo teu pé sobre mim.
Em paga de meus amores,
Quando tombar o caixão,
Deita-lhe um ramo de flores
Colhidas por tua mão.
E se mais posso pedir-te,
Nesta eterna despedida
Deixa dos olhos cahlr-te
Uma lagrima sentida » (1).
(1) Traduccões e Poetias de F, Octaviano, publicadas pelo Dr. Amorim
Caryalho, pag. 39.
V
r
HISTORIA DA LITTBRATUKA BKABILBIKA 117
Se isto não é o que se pode chamar um producto poético
disgracioso, não tem por certo grande elevação. Como docu-
mento psychologico tem algum alcance, por deixar vêr um
pouco da alma plácida e um tanto epicureana do vate flu-
minense, tomando esse qualiflcativo no bam sentido. Infe-
lizmente por este lado é-me impossível fazer grandes entra-
das, por falta de publicações do poeta por onde conseguisse
estudal-o detalhadamente.
Pelo que pude ler das producçõcs do autor em sua segunda
phase, denotam ellas certo mimo e delicadezas de idéa e de
forma, sem elevar-se demasiado, sem attingir ao amplo e
vasto lyrismo, sem chegar ás alturas da grande arte. O poeta
não passou de certa mediania ; podem testemunhal-o os se-
guintes versos por elle escriptos em Buenos-Ayres a 26 de
junho de 1865, ao completar quarenta annos de idade. O
illustre fluminense já era então de grande notoriedade em
nossa politica e tinha ido á Republica Argentina celebrar o
tractado da tríplice alliança. Eil-.os :
(t Na manhã d'este dia o sol da pátria
Vinha aquecer-me o leito em que eu dormia,
E meus fllhos com beijos me accordavam
Na manhã doeste dia.
De um letdo minha mãe me abençoava,
A esposa do outro lado me sorria :
O coração pulsava-me arrojado
Na manhan d*este dia.
Como tudo mudou! Hoje, isolado.
Em terra estranha, nebulosa e fria.
Não me veio aquecer o sol da pátria
Na manhan d*este dia.
Santa mãe! terna esposa, caros filhos!
Não ouvis uns gemidos de agdnia?
S&o echos da saudade de minha alma
Na manhan doeste dia » (1).
{1, Gaveta de Xoticias de 27 de junho de T-ííC.
118 HISTOBIA DA LITTSfiATURA BRASILEIRA
Nâo sâo sem interesse estes versos; lembram o decantado Se
eu morresse amanhan de Alvares de Azevedo.
Dáo bem a conhecer o estylo do poeta no que elle tem de
mais doce e suav«. Não quero suppor ter sido obra pura e
exclusiva da sympathia politica o grande renome de Pr. Octa-
viano em litteratura.
Alguma cousa de regularmente bom deva ter elle produ-
zido, e deste numero é a mimosa poesia Plôr do valle. Não sei
a data precisa d'estes versos; creio serem pouco posteriores
aos acima citados.
E' uma interessante elegia :
c« Ouviste um dia os cânticos do anjo?
Viste em seu rosto da belleza as cores?
E na manhan de doce primavera
Flôr do valle nascendo entre as mais flores?
Então puro era o céu e verde o campo
E a vida allegremente lhe sorria ;
Folgava em seu primor de mocidade,
E nos braços de Deus adormecia.
E tão bella e tão castal descuidosa
Do futuro em presente tão risonho!
Apenas em sua alma e quasi a furto
Vaga imagem de amor sorria em sonho...
Tanto mancebo esbelto que a cercava
Com olhares de cândidos amores!...
Porém ella, mais pura e mais formosa,
Flôr do valle brincava entre as mais flores!
A brisa da manhan lhe ouvia os cantos
E o echo da campina os repetia,
A tarde, sobre a relva perfumada,
Canta!hdo novamente adormecia.
E cantava e dormia! e veio o inverno
E trouxe sua névoa e seus rigores,
E acharam-na sem vida, descorada
Flôr do valle morrendo entre as mais flores!
r
HI6T0SIA DA LITTBIULTURA BBA8ILBIRA 119
Quando voltou depois a primavera.
As florinhas e o campo vicejaram,
O valle fez-se verde, o céu sereno,
Mas os cantos do anjo não voltaram...
£u lhe ouvi a voz harmcfnlosa.
Eu vi a ílôr do valle em seus verdores...
Hoje só ouço o mtirmurar do vento.
A flor do valle abandonou as flores! » (1)
Sáo delicados e meigos estes versos, dedicados pelo poeta a
uma filha morta ; estão a revelar um* alma doce, voltada para
a lemura.
Paz bem esta melodia moderada e plácida; aqui não ha
estertores; Octaviano era dos que sabem chwar sem se tomar
massantes e ridículos.
Elle era um homem calmo, de trato ameno, palestrador
engenhoso, fluente, gostosamente, deliciosamente erUraínant,
ao que referem seus inlimos.
Creio bem que assim fosse; era um espirito de feições clás-
sicas próprio para ter vivido em Pariz no século xvii.
Não era um homem de nosso tempo com suas luctas e suas
durezas.
De resto foi meticuloso e indeciso; natureza essencialmente
sceptica.
No jornalismo exibiUh-se n'esse caracter. Suas poesias foram
sempre curtas, leves; seus artigos de jornal também rápidos,
breves. Poi sempre alheio aos grandes desenvolvimentos de
analyse e de doutrina e refractário ao espirito critico.
Era um improvisador correcto, simples, fácil; mas de curto
vôo. Sua passagem pelo jornalismo foi célere e não deixou a
mesma impressão da de Torres Homem ou de Justiniano da
Rocha.
O poeta fluminense não foi um jornalista por vocação; fez
caminho pela imprensa, como necessidade politica.
E' bem difflcil saber se elle foi um temperamento litterario,
transviado na politica, ou um temperamento politico, immis-
(1) PcuUheon Fluminenge por Lery dos Santos, pag. 314.
120 HISTORIA DA LITTEBATURA BRABILEUA
cuindo-se de vez em quando na litteratura, ou uma e outra
cousa ao mesmo tempo.
As duas qualidades nâo se excluem. Podem combinar^se
perfeitamente o a historia superabunda em exemplos.
Parece-me que em Octaviano ambas as tendências e inclina-
ções entraram em partes mais ou menos iguaes; mas sem
grandes estímulos de um lado e d'outro.
Tal a razão pela qual não assumiu jamais uma posição defi-
nitiva na politica e na litteratura brasileira. Nem Gonçalves
Dias, nem Silva Paranhos foi elle.
Por mais que se o queira favorecer, é impossível negar-lhe
n^aquellas duas espheras uma attitude mais ou menos ambí-
gua. D'ahí o estado psychologico especial, característico,
como esse em que tombam aquelles que se dividiram entre
duas actividades sem abandonar-se deilnítavamente a uma
d'ellas.
Ficam a suppõr que uma das tendências prejudicou a ou-
tra. Octavieuio Rosa crê ter-lhe sido fatal a politica; mais de
uma vez manífestou-se a este respeito.
O artigo posto por elle á frente dos Vãos Icarios de Rozendo
Moniz Barretto é neste sentido typico ; n'esse artigo escreveu
isto : «... sahiu-me de encontro a politica, a intecunda Messa-
lina, que de seus braços convulsos pelo hysterismo a nin-
guém deixa sahir senão quebrantado e inútil ; veio-me ao
encontro, arras tou-me para suas orgias.,. »
Sejamos francos : uma critica forte e rigorosa, que preci-
sasse de dizer todas as cousas com os seus próprios nomes e
os nomes com todas a letras, estabeleceria que o senador Octa-
viano não passou no fundo de um acanhado romântico, um
espirito estreito, incapaz em todo tempo de emprehender
qualquer cousa de profundo e vivo em politica; foi uma natu-
reza sem relevo, que representou durante mais de trinta
annos uma figura equívoca em nossas luctas partidárias,
foi um estadista sem planos, um diplomata sem normas, como
foi um jornalista sem grande vida, um poeta sem alto ideíal.
Em rigor, esse bello cariseur pertence áquella classe de ro-
mânticos byronianos para quem a política é uma pescaria ao
destino, um jogo á ventura, em que se vae tentar fortuna.
HI8T0BIA DA UTTBlUTintA BSABILBIEA 131
Que um critico desabusado, um espectador livre de precon-
ceitos, que de nossa politicia tem apenas o conhecimento das
grandes tropelias que n'ella se praticam, venha chamal-a de
Messalina, concebe-se.
Mas que um factor d'essa politica, um diplomata, um sena-
dor, um chefe de partido, um homem de Estado, um accla-
mado mestre, venha dizel-o, não se pôde comprehender.
P. Octaviano entrou em nossas luctas sociaes como um ho-
mem de letras, um adorado poeta, um publicista cheio de
talento e esperanças, como apregoaram os seus admiradores
de sempre. E entáo porque náo compehendeu a politica ao theor
de um espirito culto e desinteressado? Porque nâo vio n'ella
a sciencia da vida nacional a que os homens de talento e
caracter sáo obrigados a leivar o seu contingente em prol do
progresso e do futuro? Quaes foram jamais os seus planos, os
seus estudos, as suas lucubrações sociaes?
Na politica^ ou se entra em nome de um principio, de um
programma serio, de um alvo fecundo e realisavel, ou nao se
toma parte n'ella deflnitivamente. E' esta a razão pela qual
todos os grandes vultos, todos os notáveis estadistas, todos
aquelles que se bateram em nome de um systema, de uma
causa em bem da pátria, nunca se arrependeram de seus esfor-
ços, quaesquer que tivessem sido as agruras do caminho. E'
por isso também que todos aquelles que vêem na politica ape-
nas uma vasta aventura e n'ella ingeriram-se sem ideal,
sem vistas elevadas, ao cabo de tempos recuam espavoridos,
arreliados, desilludidos. Entáo começam as queixas, as
queixas infundadas, estéreis, ridículas...
Quando e como o senador Octaviano bateu-se em nome de
vastas ideias ? Como e quando elle fez a grande politica pro-
gressiva e scientiflca? Como e quando elle lutou por fazer
vencer seus planos, suas maduras convicções?
No meio de nossos políticos mais notáveis occupa uma posi-
ção secundaria.
Resta caracterisar agora o jornalista; n'esta qualidade elle
foi cem vezes mais encommiado do que como poeta.
Entre os poetas era um pouco difflcil outorgar-lhe o diploma
122 HISTORIA DA LITTBEATUKA BRA8ILEISA
de mestre; mudaram de táctica e lhe conflaram a chefia da
jornalística.
• Aqui o mylho podia melhor sustentar-se : nada mais vago
do que o renome de um jornalista; nada de mais difflcil veriQ-
saçáo. O jornal é lido ás pressats.
Mais tarde é attirado a um lado, a um canto e ninguém mais
pega n^elle. Os de annos atrazados são desdruidos pelos ven-
dilhões para embrulhos. Escapam umas cinco ou seis collec-
ções, muitas vezes incompletas, que vâo dormir nas biblio-
thecas o pesado somno das cousas mysteriosas. Ninguém
mais os vae ler.
Ahi é fácil crear lendas e levantar pedestaes.
Melteram o senador Octaviano n'este nimbo trevoso e de^
ram-lhe nomeada de semi-deus.
Todavia, a critica séria não poude ainda descobrir quaes as
notáveis e fecundas ideias propagadas por Francisco Octa-
viano; quaes os principies quo elle fez triumphar.
E' este o signal inilludivel do jornalista de talento : fazer
triumphar doutrinas e opiniões.
Percorre-se a historia poUtica e social do Brasil contempo-
râneo ; veem-se os iniciadores de idéas, os portadores de no-
vas doutrinas, os combatentes de todas as opiniões.
Não se encontra o senador Octaviano... A sua fama como
jornalista foi talvez mais infundada do que sua nomeada de
grande poeta.
No Brasil são muito fáceis estas bulhentas e rápidas famas
litterarias conferidas a políticos poderosos por seus adula-
dores, mestres eméritos no systema de crear lendas facil-
mente aceitas por uma opinião indiscplinada, como a nossa.
Francisco Octaviano, senador e chefe do partido liberal na
província do Rio de Janeire, foi da plêiada das notabilidades
de convenção.
Todas as qualidades lhe foram attribuidas. Passou por
poeta, jornalista, diplomata, orador, homem de Estado, tudo
isto com grandeza. A historia tem bons motivos para discor-
dar em grande parte de similhante pensar.
O illustre senador foi apenas uma das mais nitidas encar-
nações do espirito indeciso do segundo reinado no Brasil.
'■í
HI8TOIUA DA liITTSKATURA BRABIUUKA 123
Quando digo que Octaviano é uma nítida incarnação do
espirito indeciso do segundo reinado, devo dar explicações.
Não sou do numero d'aquelles que se deixam tomar de in-
definidas tristezas e entram a dizer mal de seu tempo; já
estou bastante sceptico a cerca de taes esconjures; são um
phenomeno vulgar na historia e repetido constantemente no
curso dos acontecimentos humanos.
Para mim o meu tempo em definitiva não é melhor nem
peior do que os seus antecessores, e a idade contemporânea
não é melhor nem peior do que as que a antecederam. Deve-
se, porém, distinguir o que se refere á humanidade em geral do
que diz respeito particularmente á nação brasileira. Se a huma-
nidade no seu todo não retrograda, nem estaciona, as nações
têm épocas de parada, e épocas de grandes crises e pertur-
bações.
O segundo reinado entre nós, no seu final especialmente,
foi uma d'essas épocas de estacionamento e crise. O Brasil
no XIX século realisou notáveis avanços.
Os reinados de João 6.® e Pedro 1.^ a Regência e o segundo
reinado nos seus primeiros vinte e cinco annos foram épocas
de forte evolução.
O longo periodo do governo de Pedro 2.^ em sua primeira
phase, foi tempo de progresso; não contrariou as tendências
das épocas anteriores e deixou avançar a evolução normal da
vida politica e social do paiz.
Nos dois ulUmos decennios o gérmen máo do systema, o
micróbio politico, que jaz no fundo de todas as organisaçOes
sociaes, veio á tona e operou com intensidade, collocando o
paiz na posição indecisa e vacillante de quem pára cansado
para tomar fôlego...
Volvamos a Octaviano Rosa e resumamos.
Como poeta, não foi um espirito activo; pouco produziu e
jamais alcançou a grande poesia nem pela forma, nem pela
profundeza do pensamento.
No jornalismo floresceu na época de transição entre Justi-
niano de Rocha e Quintino Bocayuva, isto é, symbolisa uma
semi-decadencia. Foi um escriptor amsmeirado, sem grande
124 HISTORIA DA LITTEBATITRA BBASILBIBA
vigor de ideias. Não tinha calor, não tinha vida; era fluente,
mas de uma fluência mortiça e doentia.
Só produziu rápidos fragmentos, por ser pouca apto para
tomar uma ideia, uma doutrina e desenvolvel-as em todas
as suas faces. Sua phrase náo tinha colorido, nem linha
nervo.
João Cardoso de Menezes e Souza, darão db Paranapia-
CABA (1827...) E' também um mytho litterario este, ao gosto e
pelo geito do Brasil.
A mythologia litteraria entre nós segue andar inverso a
toda mythologia em geral.
Esta foi sempre uma representação do pensamento primi-
tivo, indeialisação do passado obscuro e\ longiquo. Aquli a
cousa é diversa; os heróes divinisados são sempre recentes
e a canonisação dura emqueuito o individuo existe ahi em
carne e osso e pode prestar algum favor... Morto o ho-
mem, desapparecido o semi-deus, esvae-se a lenda e lá flea
um logar vazio no aJtar dos crentes fervorosos e... interes-
sados.
Qual o brasileiro notável, fallecido a distancia de mais de
dez ou vinte annos, que seja o objecto de uma veneração
especial da parle de nós outros, povo superficial e prodigio-
samente ingrato ?
Que espécie de gloria reservamos nós para Gregório de Mal
tos, Cláudio, Alvarenga, Basílio, Gonzaga, Andrada e outros
d'essa estatura ?
Quem ahi guarda e zela a memoria de Magalhães, de Ma-
cedo, de Varnhagen, de Gonçalves Dias, de Alencar, de João
Lisboa e outros ainda hontem insensados ?
Onde estão os crentes, onde param elles?
E' que o mérito litterario, scienUfico, politico, todo e qual
quer mérito não é aqui a outhorga de uma opinião lúcida e
disciplinada, não é uma palma offerecida pela critica e pela
justiça. E' um negocio de camarilla, de claque, de conveniên-
cias e sympathias de apaniguados. A nação em geral não
toma parte n'estas cousas; estão fora de sua alçada entre nós.
Só a vivos, disse eu, é concedida a canonisação nas letras ;
HI8T0BIA DA LimOLATUSA BBASILBIBA 125
mas não é cousa que vá bater á porta dos mais meritórios. O
processo é especialissimo, tem manhas occultas, que requerem
estudo especial. Este assumpto constituo um interessante
capitulo do psychologia nacional, que não pôde ser agora
esplanado.
Basta-me dizer, por emquanto, que a fama, o ruido em
torno de um nome no Brasil é sempre uma occupação e em-
preza de alguns grupos e em certos e determinados casos a
politica não é estranha ao negocio.
Uma cousa posso também desde já avançar e é esta : o me-
recimento positivo, obtido por trabalhos sérios e de difflcil
apreciação, especialmente na esphera scientiflca, esse nunca
foi reconhecido e proclamado pelos brasileiros, em se tra-
tando de patrícios seus. Sempre, pelo contrario, é constante-
mente negado quasi a ferro e fogo, se preciso fôr.
Todos os tropeços imagináveis, todos os obstáculos e óbices
são inventados; não ha injuria, não ha calumnia, que não saia
da immensa forja da maledicência. E' um horror de fazer en-
louquecer. E' seanpre necessário que do estrangeiro nos man-
dem dizer : « 'Não sejais estúpidos : vosso patrício tem razão I a
Então, sim ; todos curvam a cabeça e abrem as boccas, sub-
missos ao mando da Europa e espantados da existência
ffaquelle monstro cá n'esta terra de macacos e papagaios!...
Felizes aquelles que logo em vida tiveram o bom quinhão
tfestas lutas brasileiras. Paranapiacaba é d'este numero. Para
que perturbal-o em seus idyllios de gloria ? Elle é querido, é
proclamado grande homem por um grupo, e é de boa poli-
dez deixal-o em suas illusões...
Deram-lhe o titulo de conselho e os brazões de barão por
stus serviços ás letras.,.
Limitar-me-hei a enumerar esses serviços.
E ílcará feita a critica e tirado o retrato do illustre titular.
O conselheiro João Cardoso é de 1827, anno em que nasce-
ram José Bonifácio e Bernardo Guimarães; creio ser d'esse
anno também João Silveira de Souza.
O primeiro livro de João Cardoso, a Harpa gemedora, é de
1849 ; desta mesma data são as Rosas e Goivos de José Bonl-
íacio e as Minhas Canções de Silveira de Souza. N'esse tempo
126 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
figuravam também em S. Paula Aureliaho Lessa e Alvares de
Azevedo.
Todos elles vâo formar a phase especial do romantismo bra-
sileiro presidida por este ultimo.
O barão de Paranapiacaba figura na phase presidida por
Magalhães, por haver afflnidades entre elles.
Ao passo que os seus coevos © collegas se enlr^aram
resolutamente ao romantismo a até ao ultra-romantismo, o
futuro barão teve sempre veleidades clássicas ; é hoje ainda, e
sempre foi, um espirito tardigrado. Ainda hoje vive no tempo
de Garção e Filinto, ainda hoje tem o cheiro da Arcádia uli-
syponense.,.
Tem-se manifestado como poeta e como publicista. N'esta
ultima qualidade só tem produzido trabalhos de encom-
menda do governo, em a sua qualidade de empregado
publico. O barão fod duzante anno© director de uma das
secções do Thezouro Nacional. Entre os trabalhos de tal
género, e que ouso considerar os melhores devidos á sua
penna, figura um sobre a colonísação estrangeira n Brasil
e outro sobre a descriminação de impostos geraes, provin-
ciaes e municipaes entre nós.
Adiante direi alguma cousa de taes escriptos. Por agora
ver-se-ha o poeta.
O barão de Paranapiacaba não é, nem foi jamais, ura tem-
peramento litterario e menos ainda poético.
Os seus livros em prosa, disse, são devidos a incumbências
do governo; estão bem longe de ser obras espontâneas, filhas
das necessidades fundamentaes de um espirito.
Os livros de poesia reduzem-se a quatro.
Dois são as traducções do Jocelyn de Lamartine e das
Fabulas de La Fontaine.
Os dois outros são a Harpa gemedora e a Homenagem a
Camões. Este é um pequeno volume de occasião sem prés-
timo quasi nenhum e o primeiro é também de diminuto valoi'.
Ha uma circumstancia especial, que deve ser notada para
mostrar como a litteratura é uma superfetação na índole do
nosso titular.
HISTOEIÀ DA LITTEKATUItA BBASILMBA 127
Reflro-me á interrupção enorme que vai do seu primeiro
livro do poesias aos seus companheiros recentes.
Da Harpa gemedora, prosaica até no titulo, á traducçâo do
Jocelyn vâo 26 annos; d*ella á Homenagem a Camões vâo 31 ;
d'ella á primeira edição das Fabulas, 34.
Aquelle primeiro e grande intervallo foi preenchido por pe-
quenos artigos de circumstancia e leves poesias esparsas.
Entre estas figura A Serra de Paranapvacaba, fonte inspi-
radora do titulo de seu baronato.
O poeta deu também o nome a uma rua da capital do im-
pério americano. . .
Compare-se esta vida, só accidenialmente votada ás letras,
com a actividade de seu contemporâneo — Gonçalves Dias.
Este falleceu aos 41 annos de sua idade, tendo apenas 20 de
actividade litteraria (1843-1863).
ífesie curto intervallo deixou pegadas indeléveis na poesia,
no theatro, na critica da historia e na ethnographía d'este
paiz. Um quadro synoptico de sua vida vem proval-o irrecu-
savelmente. Eis os seus livros :
Em 1843 — PatkuU, em 1844 — Beatriz de Cenci, 1846 —
Primeiros Cantos, 1847 — D. Leonor de Mendonça, 1848 —
Segundos Cantos, Os Tymbiras^ 1849 — Rellexões sobre Ber-
redo, 1850 — Últimos Cantos, Boabdil, 1852 — O Brasil e a
Oceania, 1854 — estudo sobre as» Amazonas, sobre o Desco-
brimento do Brasil, Vocabulário da lingtia geral usada no rio
Amazonas, 1857 — edição geral e augmentadia de todos os
Cantos^ 1858 — Uiccionario da lingua tupy, 1860 — Relatório
da viagem de exploração ao Norte e as ultimas composições
poéticas.
E' este o elencho das publicações de Gonçalves Dias, pelas
datas, deixando de parte grande porção de artigos pelos jor-
naes e revistas.
Ninguém foi mais sinceramente um homem de letras n'esla
terra do que esse pobre mestiço, obscuro e desdenhado, feliz-
mente pouco tempo, porque logo Alexandre Herculano nos
mandou dizer — que elle tinha talento, mais talento do que
muitos dos nomes já feitos na litteratura dos dois paizes...
O barão de Paranapiacaba até a morte de Gonçalves Dias
128 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
era quasi obscuro. Sua grande nemeada é uma creação dos
conservadores de 1868 em diante.
Tem trabalhos de poeta e de publicista, adiantei eu ; na poe-
sia tem producções originaes e traduzidas. As originaes po-
dem soffrer a divisão em três grupos : a Harpa gemedora^
symbolisando a primeira maneira do poeta, peças soltas, das-
quaes é a mais notável a já referida Serra de Paranapiacaba^
individualisando a segunda maneira do cantor paulista,
maneira que vem finalmente caracterisar-se na Camoneana
brasileira (i).
Vejamos tudo isto methodicamemte. A Hai^a gemedora é
um producto enfezado ; são poesias que nada exprimem nem
do que se pensou nem do que se sentiu n'este paiz em seu
tempo.
Póde-se bem ajuizal-o, lendo a Imprecação do indio, peça que
o illustre barão achou digna de figurar na grande festa litte-
raria celebrada em 1883 no Rio de Janeiro em honra ao Dr, Vi-
cente Quesada, ministro argentino.
E' uma longa poesia em versos brancos trotados em monó-
tono diapasão, referindo as queixas de um caboclo a Tupá^
por haver sido conquistada sua terra... A these já n'aqu6lle
tempo (1849) era gasta e toleirona. Ha evidente intenção de
imitar Gonçalves Dias, cujos Primeiros Cantos, como já disse,
corriam mundo desde 1846.
A peça tem 172 vesos taludos ; ouçam-se apenas os pri-
meiros :
i< Tupá, Tupá, porque mudaste em sangue
A crystalina Ijrmpha dos regatos?
Porque prostraste com tufões medonhos
Os troncos gigantescos das palmeiras,
A cuja sombra, em leitos de boninas.
Dormíamos em paz tranquillo somno?
Porque já náo branquôa, alem, ha serra
O itutinga nas pedras reboando,
E não seméa a viração da tarde
Nuvens de fiôres sobre a verde grcmama?
(1) O Conselheiro João Cardoso é filho de Santos em S. Paulo.
HIBTOKIA DA LITTBBATITBA BBA8ILIIRA 129
Em vez do grato aroma das mangueiras,
Que nos traziam zephiros nas azas,
Mephitico odor de sangue infecto.
Em vez dos hymnos do plumoso bando.
Que em doce accorde os echos despertavam,
O som doestas algemas que rocheam
Pulsos dos alhos da floresta virgem. »
Compare-se esta prosaica rima de versos soltos com a De-
precação de Gonçalves Dias, antiga poesia publicada nos Prir
meiros cantos sobre a mesma these :
c( Tup€Ln, ó Deus grandel cobriste o teu rosto
Com denso velamen de pennas gentis ;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes désjte da perda infeliz! n
e veja-se a distancia. Já nem se compare ás posteriores poesias
americanas do poeta maranhense publicadas nos Ultinios
Cantos; porque seria injustiça, sabendo-se que a /mpre-
cação do índio é da primeira mocidade do nobre barão.
Não é só n'esse género exterior de poesias americanas que
Paranapiacaba foi um poeta de terceira ordem. Na poesia pes-
soal é ainda inferior. Sabe-se que o romantismo n'6sse género
fez verdadeiras maravilhas. Sua acção no theatro foi notável,
no romance immensa, na poesia social e philosophica dis-
tincta ; mas na poesia subjectiva, pessoal, intima, no lyrismo
individualista foi quasi inexcedivel. Isto em todas as littera-
turas da Europa e da America. E essa enorme corrente
de poesia pessoal e subjectiva vai ser no futuro uma das
grandes fontes por onde se ha-de reconstruir a psychologia
do século XDC
De certo tempo a esta parte começou-se a desdenhar da poe-
sia pessoal em prol de uma poesia mais geral. O argumento
principal a favor desta é o seguinte : « Que nos Importam a
nós a idéas e os sentimentos de cada um, que temos nós com
as alegrias e magoas alheias ? Dêm-nos alguma cousa que se
refira e interesse a todos, uma poesia geral para toda a socie-
dade. »
Ouzo dizer que este ai^mento é inepto. Primeiramente,
BIRORU n 9
130 HIBTOBIA DA LITTBEÀTURA BRABILBUU
toda e qualquer meuiifesiação da psychologia dos indivíduos,
maxime dos grandes poetas, nos deve interessar a todos como
documentos authenticos de humanos caracteres, como minia-
turas em que se vai retratar a vida inteira de uma época.
Aqui o que parece particular é ao contrario verdadeiramente
geral. Depois, não é só isto : as producções que se dizem
de caracter social, universal, em essência se reduzem a modos
de ver e apreciar particulares, individuaes d© um dado autor
sobre a vida collectiva de um dado período histórico.
Aqui o que parece geral não passa veramente de aprecia-
ções particulares, individualissimas. No fundo cahe-se na
mesma cousa.
A poesia pessoal, portanto, ainda e sempre teri um gran-
díssimo valor, se uma critica impertinente níLo a matar defl-
nitivamente.
Pois |}em, n*este género, que se me antolha a pedra de toque
do talento dos poetas românticos, o Barão de Paranapiacaba
foi demasiado pobre.
Pode sabel-o com certeza quem lêr, por enemplo, as Sau-
dades da Infância. O poeta reporta-se á quadra da meninice,
procura em imagem os sítios onde brincara, punge-lhe sau-
dosa a lembrança de sua mãi já fallecida. Os sentimentos sfto
puros; os versos é que não são lá mui grande cousa.
Alli 16m-se phrases assim :
<c Agora o que resta
Ao pobre cantor
Sem gozos na terra,
Immerso na 4âr?
Se a aurora desdobra
Seu manto de flores,
Se trinam seus hymnos
Do bosque os cantores,
• 8e ruge a tormenta
Da noite no horror.
Se fere os seus olhos
Do raio o fulgor,
HISTORIA BA LITTXBATUBA BBAIILBIRA 131
8e o pranto roxeia
Seus túrgidos olhos,
Se o peito lhe pungem
Da dôr 06 abrolhos,
Em. balde procura
Maternas caricias,
Em v&o ; que fugiram
Da infância as delicieis.
Em vei da barmonia
Da V02 materbal,
Escuta somente
Um som sepulchral.
Ohl que sina acerba e crua,
Céos! que tão agro existir!
Asrael, vem com teu sopro
Esta lembrança extinguir. »
Bem se vé, que isto é fraco.
Se quízerem, comparem-lha as duas poesias da já citado O.
Dias sobre assumpto similhante Recordação^ Recordação e
Desejo. São ambas da primeira mocidade do poeta marap
nhense e appareceram nos Primeiros Cantos,
Se a Harpa gemedora nâ,o é bem garantidora do talento poe-
lico do nobre barJo, prQcurem-se seus grande^ titi^los por
outra parte. Entre a Harpa e a Homenagem a Camões elle
espalhou poesias por vários jomaes e periódicos.
A Serra de Paranapiaçaba é uma d'essas e á chegc^da a pfí-
casjo de ser lida. E' uma poesia emphatica escrípta em deci-
mas octosyllabas e quadras duodecasyllabas qua^i todas cr-
iadas sob o pixito de vistq. do rythmo.
Só toco n'esta assumpto, porque o bar&o de Paranapiaeaba
é ingenuamente apontado como impeccavel na forma e elle
me^o labora Q'essa illusão.
Ainda não sabe que a poesia, no tocante á metreflcação, tem
de aUender a três cousas perfeitamente distinctas e indispen-
t
ÍS2 HI8T0BIA DA LITTERATUSA BBA8ILEIBA
sáveis para a belleza musical e rythmica da forma, e vem a
ser : 1.* o metro em particular, isto é, o verso em si ; este deve
ser correcto, obedecendo a um numero determinado de syl-
labas que deverão ligar-se naturalmente e ser longas ou
breves em certos e determinados legares ; 2.* a rima que de-
verá ser espontânea, fácil e rica ; 3.* a estrophação, isto é, a
disposição dos versos por dísticos, tercetos, quadras, quinti-
lhas, sextilhas, oitavas, decimas, etc., de modo que as rimas
obedeçam a um determinado concerto de graves e agudos^
conditio sine qua non da melodia poética.
E' a conhecida questão das rimas masculinas e femininas,
segundo a expressão da métrica franceza, verdadeiro modelo
no género.
Na lingua portugueza, por ser pobre de rimas masculinas^
não se exige esse rigorismo nos dísticos, nos tercetos e até
nas quadras, excepto se estas são em versos demasiado lon-
gos, a saber, de 12, 13 e 14 syllabas. Da quintilha em diante,
porém, o rigor é indispensável, sob ' pena de não se fazerem
estrophes e sim verdadeiros amontoados de verso sem arte e
sem harmonia.
Ora, é justamente o caso de nosso barão nas quadras e deci-
mas da Serra de Paranapiacaba.
Em toda a poesia existem apenas duas quadras que sahiram
por acaso correctas sob o ponto de vista da estrophaçâo. As
duas primeiras condições da métrica são obeservadas mais ou
menos geralmente pelo poeta ; a ultima elle desconhece quasi
sempre.
Se toco em tal ponto, repito, é por ser este escriptor por
toda a critica fluminense, que aliás liga enormíssima impor-
tância ao assumpto, apontado como correctíssimo na fiorma.
Respondo-lhe que não ha tal ; o barão tem muita poesia in-
correcta e a celebre Serra é uma delias. A poesia é evidente-
mente imitada do Gigante de Pedra de Gonçalves Dias. O
metro é o mesmo em ambas e o tom o mesmíssimo ; ambas
começam apostrophando o gigante, que dorme.
No tocante ao metro, apenas Gonçalves Dias não se limitou
ás quadras duodecasyllabas e ás decimas octosyllabaji; na di-
HIBTOEIA DA LITTSBATUEA BRABILUBA 133
visáo IV de sua famosa poesia introduzio qualro «slrophes de
doze versos seplesyllabos. A producçâo de Gonçalves Dias é
correctíssima em todos os géneros de estrophes em que é es-
cripta, quadras, decimas e duodécimas. A do barão é cem
vezes mais fraca em estylo e inspiração e só contém duas qua-
dras certas occasionalmente.
Aqui flca inserida a decantada poesia, levando grifadas as
terminações dos versos errados no tocante ás rimas mascu-
inaes e femininas :
(( Dorme, repousa em teu somno,
Da força assombroso emblema^
Que tens o oceano por throno
E as nuvens por diadema!
Immovel, silenciosa,
Ergues a fronte orgulhosa
Ao sólio da tempestade ;
E os prelúdios da tormenta
Vais ouvir, de medo isenta.
Do espaço na immensidade.
Salve! soberbo gigante,
Altivo Titão do mar.
Que a teus pés triste descante
Ouves a vaga entoar!
E em teu manto de esmeraldas
Envolves as vastas faldas
E as empinadas cimeiras ;
E a brisa te agita os cachos,
E os verdejantes penachos
Da coroa das palmeirasl
Teus troncos gravados do sello dos tempos
Agitam aos ventos as soltas madeixas^
Quaes harpas eólias, susurram nos ares
Canções magoadas, sentidas endeixas.
E*s berço do raio! Sublime harmdnia
Entoa em teu seio o trom dos trovões ;
E os échos ao longe repetem em coro
A orchestra tremenda de roucos tufões.
134 HI8TOKIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
Do raio ao ribombo horrendo
£ ao som do trovão que estruge^
De pavor estremecendo
A feroz pemthera ruge.
Une-se â orchestra assombrosa —
Uma nota sonorosa —
Que do fundo abysmo sae...
E* o som da cataracta,
Que em alvos flocos de prata
N*um leito de pedras cae.
Que magestade sublimei
Que pomposa poesia!
JehovcQi seu dedo imprime
N'este quadro de magia.
Esta cascata da serra
Parece um hymno que a terra
Espontânea aos céos eleva.
Então nossa alma se humilha,
E ao ver esta maravilha^
Na gloria de Deos se enleva,
Occultas nas veias, oh serra fragosa,
De ouro e de gemmas thesouro intiniio,
Retalham teu solo torrentes sem conta,
Que nascem das umas de rijo granito.
Povoam-te as selvas e negras gargantas
Innumeras feras e eYiormes reptis ;
Áhi cantam aves que as cores do Íris
Desdobram nas azas de vário matiz.
Horríveis despenhadeiros.
Profundos, vertiginosos^
São os degraus altaneiros
De teus tergos magestosos.
A's vezes de horrendo tombo
Se escuta o surdo ribombo
Que ao longe resôa a espaços...
E* despegado rochedo
Que no errigiado fraguedo
Se vai fazendo em pedaços.
HISTOBIA DA LITTB&ATUllA BIUSIUUBA 135
Além, que plaino azulado
Se prende no azul dos céus I
E* o mar que encapellado
Ergue os moveis escarcéosi
Então a vista desmaia
No espado que além se espraia
A perder-se no infinito :
E esse immenso panorama
Do Eterno o nome proclama
Na face da terra escnpio»,
Desenham-se às vezes arfando nas ondas
As vellas de um barco na brisa er^unadas;
Qual alva gsdvota que a ílôr do Oceano
Eriçando desflora com as azas nevadas.
t>os topes aéreos, estreitos e golphos
Semelham regatos talhando as campinas ;
Quaes pontos esparsos desdobram-se aos olhoâ
As casas e torres, ilhéos e collinas.
De teu pico o sol dourado
Se balança a fulgurar ;
E o seu clarão desmaiado
Verte a lua sobre o mar.
Outro céu de anil scintilla
Na superfície tranquilla
Doesse espelho iremulante :
E em baixo a vaga chorosa
Beija a areia preguiçosa
Morrendo em flor alvejante.
Quem sabe se o cataclysmo
Que ptfniu a humanidade^
N&o te fez surgir do abysmo
Das ondas na immensidade?
Quem sabe, fragosa serra,
Se és coetânea da terra,
E do berço oriental?
Quem sabe de quanta vida
Tu foste a extrema guarida
No diluvio universal?
136 HIBTOBIA DA LITTEBATUSA BRABILBIBA
Plantou-te nos mares o braço divino,
Ingente montanha, barreira das ctndas^
Quem dera. perder-me comtigo nas nuvens,
Também devassando mysterios que sondas!
Prodígios que encerras, são cordas sonoras
D'uma harpa sublime de maga /larmoVita,
Que os hymnos que exhala, perennes descantam
Á gloria do Eterno de noite e de dia. n
Sâ,o deseseis estrophes emphaticas e erradas todas, excepto
duas. O Gigante de Pedra tem vinte e duas estancias todas
correctissimas, excepto uma em que o auctor dos Tymbiras
deixou razoavelmente de ser demasiado rigoroso. Convido o
leitor a ir veriflcal-o nos Últimos Cantos do grande poeta, dis-
pensando-me de citar.
Entre as producções, que se dizem originaes, do barão de
Paranapiacaba tem merecido especiaes e fervorosos gabos a
decantada Camoneana Brasileira ou Homenagem a Camões
no tricentenário de sua morte.
Esta Camoneana Brasileira, desparatada coisa similhante
a uma Homereana turca, ou a uma Shakespeareana mongo-
Uca, mereceu ser o primeiro livro da serie de uma nova BiblUh
theca Escolar, sendo adoptada nas aulas primarias, onde deve
substituir a leitura dos- Luziadas.
Creio nâo ser mister juntar mais nada para mostrar qual a
desgraçada intuição reinante sobre cousas litterarias na mente
do barão de Paranapiacaba e d'aquelles que o tem protegido...
Ora bem; o livro foi feito para emendar, para polir, para
variar e modemisar o poema de Camões...
« Resumi, diz o novo polidor no seu Prologo, resumi os tre-
chos mais bellos do poema, dando-lhes feição moderna e va-
riada metrilicação. »
Que horror! Um espirito cançado e retrogrado, querendo
modemisar um monumento genial, novo, fresco, matinal^
como sb fora hontem escripto, uma creação que não tem
data ; porque é contemporânea de todas as phazes da cul-
tura humana, como os Luziadas l Custa em verdade conter a
indignação. E ha e houve simples que applaudiram aquillo!...
Modemisar CamõesI Em todo o percurso da historia da lit-
r-
HISTORIA DA L1TTBKAT17BA BEABILSISA 137
teratura brasileira bem vê o leitor ser a maior bernardice em
que tem tropeçado... E não íoi um homem do tempo da coló-
nia, nem um pobre provinciano que a realisou...
O livro é acompanhado de notas em que o autor, repetindo
desgeitosamente elementares noticias mythologicas lidas por
todjBi a gente em Decharme, Max-MúUer, Bréal, Eugénio e Emí-
lio Burnouf, Des Essarts, Renan, Gubematis e vinte outros
elementarissimos mythologos, suppõe santamente que elle
está a lançar no Brasil as bases da mythologia comparada I
Insiste demasiado nas taes notas sobre esta nova empresa
e volta á carga em as notas da traducção das Fabulas de La
Pontaine de que direi em breve.
Esta traducção faz também parte da Bibliotheca Esco-
lar, está adoptada e tem custado contos de réis ao governo para
ler a gloria de impingir aos estudantes um La Pontaine moder-
nisado a par de um Camões também modemisado. Nem se
pense que o baráo nutre duvidas sobre os melhoramentos
praticados em Camões. E' o caso que, alguns membros do
Conselho de Instrucção Publica acharam excellentes as corre-
gidelas passadas ao6 Luziadas, estranhando apenas a grande
sabedoria das notas.,.
O titular lhes respondeu assim : « Constou-me que alguns
disUnctos membros do Conselho do: Instrucção Publica, ao
apreciarem a Camoneana Brasileira, ha pouco adoptada (sic)
pelo Governo Imperial para uso das escolats, entenderam que
as notas explicativas dos assumptos mythologicos, contidas
n'aquelle opúsculo estavam acima dos meios de comprehen-
sáo das crianças. Se esses cavalheiros se referem á lingua-
gem das alludidas notas, observarei que essa é a mais sin-
geJa e corrente possível, acompanhando o movimento evolu-
tvo do nosso bello idioma e evitando as transposições, os hy-
perbatons e outras figuras de dicção, que tomam difflcil não
só a intelligencia do texto camoneano, como também a ele-
mentar analyse grammatical e lógica de certos períodos. Para
os tenros cérebros da infância é quasi sempre um ecúleo o
processo syntactíco de algumas estancias dos Luziadas. Logo
na invocação ha uma notável amostra de collocação inversa e
transporta, estando no fim da segunda oitava, isto é, dezeseis
138 HISTORIA DA LITTEKATURA BBA8ILBIRA
versos abaixo a oração principal, seguida de multiplices e
complicados complementos. Algumas estancieis adiante de-
para-se a celebre paissagem : '
— Mfiu^cTvllha fatal de nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande — .
trecho que offerece mais visos de amphigouri do que <te
corrente pedodo clássico » (1).
E assim vsu por diante n'esta serie de heresias o illustre bar
râo.
Parece que estamos a ouvir o padre José Agostinho de Ma-
cedo. E taes cousas mandam-se ensinar aos alumnosi das
aulas do Rio de Janeiro. Que idB>a formam esses senhores de
um monumento litterario ou artístico, uma obra prima do
espirito humano? Modernisar 06 Luziadas é o mesmo que pas-
sar um reboco de salão ou de maçapéz brasileiro na face da
Notre-Dame de Paris^ ou da Cathedral de Strasburgo^ ou dar
uma pintadéla de tauá ou tabatinga nacional na Vénus de
MUo^ ou no Apollo de Belvedere.
Para bem apreciar as horrorosas mutilações, praticadas nos
Luziadas^ é bastante vèr como o livrinho fluminense escanga-
lhou as principaes passagens do poema. Vejam o Adamastor^
a Ignez de Castro^ a Ilha dos Amores,,, vejam e pasmem. No-
tem como, por exemplo, aquelle sublime trecho de poesia do
Adamastor^ aquella narrativa dramatisada e diaJogada entre
o fero gigante e o Gama, trecho em que ambos falam em pri-
meira pessoa, apparece desfigurado, miseramente informe...
Gama narrava sua viagem ao rei Mouro, e referiu-lhe o caso
do Adamastor :
« Porém já cinco soes eram passados ,etc. »
K Oh! Potestade, disse, sublimada, etc. »
(( Não acabava, quando uma figura, etc. »
« E disse : Ohl gente ousada mais que quantas, etc. »
<f £ lhe disse eu : — Quem és tu? que este estupendo, etc. »
(( Eu sou aquelle occulto, e grande Cabo, etc. n
(1) Fabulas de Lafontainc, vertidas e annotadas pelo Barão de Paranapia-
caba, vol. l.« pa^. LXI. —
HI8T0BIA X>A LITTESATURA BRASILEIRA 199
Náo cahirei no desparate de transcrever as vinte e quatro
estancias do episodio do Adamastor^ que parecem, pela fres-
cura da linguagem, escriptas hontem por algum poeta de
génio, para Comparal-as ás quadras em alexandrinos do nobre
barão. O dialogo entre o Gama e o Gigante desapparece; a
fala do Adamastor muda-se nUsto :
(( O monstro futurou torrentes de desgraças,
Vingança e mal, sem conto, aos luzos vcdorosos ;
Predisse a quem passasse os términos vedados
Naufrágios, perdições, castigos horrorosos... » (1).
Parece incrivel ; custa a admittir que apparecesse n*este
tempo uma empreza doestas. Duvido que nos Estados-Unidos,
com todo o seu materialismo, como nós costumamos tola-
mente dizer, houvesse um simples que se lembrasse de emen-
dar e modemisar Shakespeare. Se o leitor quer uma vez por
todas apreciar o género de gentilezas dispensadas a Camões
no dia do centenário pelo barão de Paranapiacaba, compare o
canto 2." dos Luziadas ao canto 2."* da Camoneana Brasileira.
Veja aquellas bellas estrophes referentes a Vénus quando
vae falar a Júpiter :
fc E como ia affrontada do caminho,
Tão formosa no gesto se mostrava... etc.
Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo collo, que a neve escurecia... etc.
Cum delgado cendal as partes cobre.
De quem vergonha é natural reparo... etc. »
Toda esta poesia do canto 2.^ mudou-se n*estas doze quadras
isperas e erradas, onde ha treze quês e nenhuma belleza :
Cf Eis presto as Nereidas, surgindo das furnas,
Rodeiam a frota, que oscilla nas aguas ;
Tritão que, soberbo, levava Dione,
Da ardente petrina se abraza nas fraguas.
(1) Camoneana Bra«iietra, pag. 88.
140 HIBTOBIA DA LITTERATURA BBABILEl&A
Encostam as nymphas os peitos nas quilhas,
Que, ao magico impulso, da costa recuam ;
A faina referve, restruge a celeuma,
E os Mouros se arrojam nas vagas, que estuam.
Ao céo, que o salvara, dá graças o Gama.
E invoca o soccorro da Guarda Divina ;
O supplice rogo, que a turba enternece,
A's plantas de Jove conduz Erycineu
Os paramos fende da abobada etherea ;
Perpassa de estrellas a esphera brilhante ;
Penetra, segure^ recessos do empyreo,
E surge ante o sólio do grande Tonante.
A face, aff rontada do afan do caminho.
De gloria e belleza, serena, resplende ;
O olhar, em que a força do amor se concentra.
Espaços, estrellas e poios accende.
Com fina escumilha velando os encantos.
Tal como ante os olhos surgira de Anchises,
Os numes iiUlamma, mostrando, entre sombras,
Dos lyríos divinos incertos matizes.
Fluctua áurea coma, beijando-lhe o coUo ;
Andando, estremecem-lhe os seios de neve ;
Desejo arrojado se enlaça ás columnas,
E sobe a thezouros, que a mente descreve.
Estala em ciúmes Vulcano irritado ;
O peito de Marte transborda delicias ;
E' mais melindrosa, que triste, Acídalia.
Do pae, que a esfremece, recebe as caricias.
Altera uma sombra de vaga tristeza
O meigo sorriso, que os lábios lhe inílora ;
Semelha seu rosto, banhado de pranto,
Cecém, rociada do aljôfar da aurora.
O pae do univeirso, beijando-a nos olhos,
Ao peito a conchegci, limpando-lhe o pranto ;
Prediz-lhe a grandeza futura dos Luzos
— Terror do universo, dos evos espanto. —
HIBTOBIA !>▲ LITTBXATirBA BSABILBIKA 141
Descreve-lhe as quinas, varrendo o oceano,
Que ferve, abrasado de fogo e metralha ;
E como em conquistas na face da terra
O luso domínio se firma e se espalha.
O filho de Maia, batendo os talares,
A frota a Melinde dirige, em bonança;
E manda por ordem de Jove supremo,
Que tenha uma trégua tão longa provança » (1).
Compare-se esta poesia palavrosa e molle com o brilhante
e terso laconismo de Camões e ter-se-á perfeita ideia de como
foi resumido e modemisado o grande poema portuguez.
Os críticos allemães da escola romântica de Schiegel, Tieck
e Novalis, no começo do xix século, nas suas investigações
sobre a poesia das nações européas, collocáram os Luziadas
muito acima da Jerusalém Libertada de Tasso, como mani-
festação sincera do ideial cavalheiresco e christão. E' uma
das mais finas e delicadas provas do espirto critico dos
allemães que eu conheço. A Jerusalém não emprega a mylho-
logia, e os Luziadas a empregam ; a Jerusalém canta as
proesas dos cavalleíros da idade media, e os Luziadas can-
tam as façanhas de navegadores modernos ; a Jerusalém
refere-se a um facto da historia do christíanismo, da historia
da Igreja, por assim dizer, e os Luziadas referem-se a um
facto da historia do commercio e da navegação, de um pe-
queno povo d'um canto da Europa 1 E, todavia, aquelles crí-
ticos deram a preferencia á obra de Camões sobre a de Tasso,
como incarnação do espírito de nobreza e de ideialismo, da
intuição cavalheiresca e chrístã !
Qual a rasão ? E' que no Tasso tão elevados intuitos appa-
recém no plano exterior do livro e não se mostram n'alma
do poeta, alheio áquella ordem de sentimentos ; e em Camões,
jem esse haver sido o alvo de sua obra, aquella ef florescência
le sentir apparece sincera e espontaneamente ; porque tal
)ra a alma do poela portuguez.
Que se vae concluir d'isto ? E' que a leitura dos Luziadas
(1) Camoneana Bniêileira, p. 27,
142 HISTORIA DA LITTBRATURA BRASILBIBA
nâo é indispensável nas aulas primarias somente como
auxiliar para o estudo da lingua ; é antes e acima de tudo
um grandíssimo estimulante para o caracter, um saudável
tónico para a elevação moral da vontade ; é que a substituição
de um livro como os Luziadas por um monstrengo ao geito
da Camoneana Brasileira é um d'esses phenomenos singu-
lares, só por si sufficientes para caracterisarem uma época.
Deixe-se este ingrato assumpto e vejam-se os outros ser-
viços^prestados pelo baráo de Paranapiacaba ás letras bra-
sileiras.
Ainda no terreno da poesia se lhe deve a traducçâo do
pequeno poema de Byron Oscar (VAlva^ do Jocelyn de
Lamartine e das Fabulas de La Pontaine. Nem de propósito
o barilo poderia encontrar três poetas de génios táo dissi-
milhantes entre si e tão diversos do seu para os traduzir...
Byron, isto é, a velha poesia saxónica comprimida por
seis séculos de cultura, irrompendo de repente em ousada
rebeldia contra hypocrisias e convenções ; Lamartine, isto é,
um sceptico eivado de doce ideialismo, um espirito ondu-
lante, cuja poesia é personalissima e inseparável da forma
que elle lhe deu ; La Fontaine, isto é, uma das mais nitidas
incarnações do génio gaulez, todo nutrido de — esprit et
gloire, um homem, cuja poesia leve e bregeira é ao mesmo
tempo profundamente verdadeira, como manifestação de^um
caracter nacional, poesia, cujo fundo é ainda mais inseparável
de sua primitiva forma do que a de Jocelyn... E foi a esta
gente que o barão de Paranapiacaba tentou traduzir I... Três
génios tão diversos, tão independentes, tão ousados, mettidos
nas compressas de um espirito curto, pesado, áspero, dis-
pondo de um vocabulário parco e d'uma imaginação ras-
teira !
Em geral sou infenso a traducções de poetas. Trasladados
em prosa flcam mortos ; vertidos para verso, flcam sempre
desfigurados. Uma traducção poética difficilmente dará. o
desenho da obra traduzida e jamais fornecerá o colorido. As
melhores traducções existentes, como a da lliada por Voss,
a do Faust por Marc Monnier são obras de terceira ordem.
HIBTOBIA DA LITTSEÁTUIU BBASItXIBA 143
Não podem jamais reproduzir o rylhmo, o tom, a melodia
do original.
O barão de Paranapiacaba deu, por exemplo, o sentido, a
traducção das ideias do Jocehjn e das Fabulas ; mas a
poesia T Evaporou*se.
Para provar não se precisa ir muito l(Hige. E* abrir o La
Fontainei, logo na primeira pagina e lér a primeira (abula, A
(Agarra e a formiga :
« La cígale, ayant chahté
Tout rété,
Se troava fort dépourvue
Quand la bise fut venue :
Pas un seuI petit morceau
De mouche ou de vermisseau.
EUe alia crier íamine
Chez la fourmi, sa voisine,
La priant de lui prêter
Quelque grain pour subsister
Jusqu'à la saison houvelle.
« Je vous paierai, lui dit-elle,
Avant Toút, foi d^animal,
Intérôt et principal. »
La fourmi n'est pas préteuse :
Cest là son moíndre défaut
— Que faisiez-vous au temps chaud?
Dit-eUe à cette emprunteuse.
— Nuit et jour à tout venant
Je chantais, ne vous déplaise.
— Vous chantiez, j'en suis fort aisel
Eh bíen, dánsez maintenant. »
E' um pequeno pedaço em vinte e dois versos, formando
m todo harmonioso, n'um estylo singelo, n'um tom popular
encantar a quem conhece bem a lingua. A pequena fabula
^meça rimando os versos dois a dois. De repente, sem
udar o metro, muda o poeta o systema da rima ; tudo sem
forço, sem transição brusca.
Nole-se aquella maneira popular que se mostra nas expres-
es — quarui la bise fiit venue, elle alia crier famine, avant
144 HIBTOBIÁ DA LITTBSATUBA BRABUJURA
Voút, foi iTanimdl, à touí venant, ne vous déplaise^ — e
outi-as.
Repare-se como passou tudo isto para a língua portugrueza.
O traductor começou por distribuir a fabula em quadras,
tirando-lhe desde logo a feição plástica ; as duas primeiras
são supportaveis ; seguem-se duas inteiramente más, por
alheias quasi ao original ; as quatro ultimas não reproduzem
a poesia de La P'ontaine na sua suave simplicidade. E, entre-
tanto, é uma das melhores versões de toda a collecção. E*
esta :
« Havendo a cigarra
Cantado no estio,
Achou-se em apuros
No tempo de frio.
De mosca ou de verme
Não tendo migalha,
Procura a formiga
Rogando que a valha. »
aCARRA
« Chegar-se a abastados
E* sina dos pobres ;
Por isso, amiguinha,
Me empreste cdguns cobres.
Preciso ir á feira
Comprar cereal,
Com que me alimente
Na quadra hybernal.
Em vindo a colheita,
Eu juro pagar,
Com prémios e tudo,
O que me emprestar. »
Não gosta a formiga
De dar emprestado ;
E* n*eUa o defeito
Mais leve, hotado.
HIBTOBIA DA LITTEKATUSA BSA8ILSIBA 145
FORMIGA
« Nos niezes calmosos
Você que fazia? »
CIGARRA
(I Andava cantando
De noite e de dia. »
FORBilGA
K Cantava no estio?
Que bella vidinha!
Agora tem fome ;
Pois dance, visinha. »
O leitor faça por si o cotejo.
Nâo me devo despedir do barSlo de Paranapiacaba na qua-
lidade de poeta, sem apreciar umas singulares ideias suas,
n'cste assumpto, exaradas em carta-prologo á Musa Latina
do Dr. Castro Lopes.
Elle escreve uma carta impertinente sobre o estado actual
da poesia no Brasil e em França, defendendo o velho roman-
tismo contra o parnasianismo e o naturalismo. E* impos-
sível em tão poucas paginas accumular tantas inexactidões
e incongruências.
Começa por uma confissão que não é de todo correcta :
a Admirador e sectário do romantismo, laudator temporis
actí, sou, como já o foram muitos outros, excluído da lista
d'esses poetas geniaes, ricos de fogo sagrado e cultores irre-
prehensiveis da forma, que desthronaram de sua immortal
sede o Archanjo inspirador da poesia a Chateaubriand,
LamarUne e Victor Hugo, para recoUocar no cimo do Par-
naso a Musa que accendeu oi estro do poeta de Ascra » (1).
Quanta illusão e desconcerto I
Por entre as ironias do velho poeta, bem se conhece a alta
conta em que elle se tem e isto seria o menos, se não reve-
(1) Musa Latina, pag. U. —
HISTORIA n 10
1
146 HISTORIA DA LITTESATUBA BRASILEIRA
lasse também o profundo desconhecimento em que labora
das cousas lilterarias nos dois paizes que tomou para centro
de suas referencias.
Dá-se por estrénuo sectário do romantismo ; a verdade é
que jamais comprehendeu e assimilou bem as doutrinas e a
Índole d'esse systema ; a verdade é que jamais passou de- um
pseudo-classico entre os românticos.
Porque, referindo-se á litteratura estrangeira, falou só na
franceza? E' bem exacto que os brasileiros lêem de prefe-
rencia livros francezes ; más de um mestre tinha-se o direito
de esperar indicações lucrativas sobre o movimento da bella
litteratura na Allemanha, na Inglaterra e na Itália para a
boa comprehensáo das correntes poéticas na segunda metade
do século XIX.
O que disse de França está cheio de innumeras lacunas e
desacertos.
De Chateaubriand, Lamartine e Victor Hugo passou, sem
caracterisar ofi factos, aos parnasianos, cuja indole desco-
nheceu, eaos naturalistas, cuja critica fez inexactamente.
Fora mais regular que desse uma noção ampla do roman-
tismo em geral e especialmente n^aquelle paiz ; aqui indicasse
as intuições diversas abrigadas no seio do grande systema e
determinadamente suas phases successivas até abrir espaço
a outras doutrinas. Veria a figura de Stael e Gonstant ao
lado e em inverso sentido da de Chateaubriand ; comprehen-
deria a significação do bello talento de Vigny, saberia que
Lamartine e Hugo passaram por mais de uma mutação ; veria
o lugar de Sainte Beuve e Sand ; encontraria em caminho
Dumas, Sue e Balzac e os entenderia ; conheceria a posição
de Musset ; Theophilo Gautier deixaria de ser um enigma ;
e, assim progressivamente, passaria por de Laprade, por
Dumas Filho, por Feydau, Augier, por Sardou e todos os
epígonos dos grandes mestres do systema. Quando chegasse
ao momento da dissolução da velha doutrina comprehen-
deria a poesia mórbida e .satânica de Baudelaire, as reacções
scienti{icistas de Sully-Prudhomme, as resurreições históricas
e ethnofjiraphicas de Leconte de Lisle, o realismo bruto de
Richepin e o naturalismo selecto de Coppée. Comprebenderia
HI8T0BIA DÁ LITTEBATtTBA BSABILEIBJL 147
também o movimento do romance, divisando a signiílcaçào
dos trabalhos de Flauberi, dos Goncourts, de Daudet e de
Zola. Saberia que nem todas aquellas tentativas de reforma
possuem igual mérito e veria o motivo pelo qual a reforma
no romance tem sido mais vigorosa do que na poesia, sem
comtudo deixar de ser ainda vacillante e desregrada por
mais de um lado.
N'estas differentes escolas ha verdadeiras gradações.
E' um erro encerral-as todas no parnasianismo e no natu-
ralismo^ como praticou o barão, e ainda maior equivoco é dar
uma só côr tanto a um como a outro.
Ha vinte maneiras de interpetrar o naturalismo e outras
tantas de praticar o parnasianismo. O anathema do velho
poeta não pôde ferir senão algum lado esconso das novas
doutrinas.
Quando passa ao Brasil sua exposição é terrivelmente
estreita e inexacta.
Refere somente três nomes, sem lhes comprehender o
significado ; e a prova é esta : « Admiro Theophilo Dias no
Brasil e Castilho e Suares de Passos em Portugal ; são dignos
emulos de Bocage e Nicoláo Tolentino » (1).
Singular período este I
Que género de ligação achou Paranapiacaba entre Theo-
philo Dias e Castilho ? Que lôm elles de peculiar com Bocage
e mais ainda com Tolentino ?
E a que vem alli Soares de Passos ?
São d'essas ligações que revelam completa ausência de
senso critico.
O barâo de Paranapiacaba deveria ser mais justo, mais
imparcial para com as modernas gerações de poetas brasi-
leiros que têm sido tão gentis para com elle...
O numero dos novos poetas é bem crescido ; não são três,
são três dúzias. Nem todos possuem o mesmo e igual mérito;
alguns, porém, sã.o altamente apreciáveis.
Como quer que seja, o barão de Paranapiacaba não vae bem
inspirado em esconjurar as novas tendoncias em nome de
(1) Mu9a Latina, pag. XXVI. —
-.>
V
■»- . '
148 HISTORIA DA LITTBRATURA BKAfllUEIEA
V um passado que náo volta mais. Deixe suas ideias absolutas ;
Èf coUoque-se no relativo e náo queira representar o papel de
J^ reaccionário. Tudo passa ; tudo tem valor bem limitado ; o
r y romantismo não desmente a regra geral.
í . A lei que rege a historia brasileira é a mesma que dirige a
de qualquer outro povo : a evolução transformista. Por maior
que seja a cegueira dos imitadores, a precipitação dos copistas
|V. e plagiários, sempre a litteratura brasileira não é uma cousa
f. ; que lhes pertença exclusivamente. Apezar de tudo, um povo
».'; é sempre o factor principal de sua vida e de sua litteratura-
V; - Podem os políticos ineptos e os escrevinhadores madraços
*' desvial-o de seu caminho. Cedo ou tarde encontrará a larga
estrada de suas tendências naturaes.
Ponhamo-nos a par dos inilludiveis e magestosos problemas
scienliflcos e litterarios que se degladiam no velho mundo ;
mas premunamo-nos contra as imitações trapentas, contra
as theses charlatanescas, os erros bojudos com pretenções
a verdades demonstradas. Sobretudo, robusteçamos o nosso
senso critico, e ponhamol-o em condições de insistir á febre
devoradora de innovações inconscientes e banaes. Nosso
tempo já está desilludido de formulas ; aprendamos afinal
qual o valor d'ellas.
A receita é fácil ; factos e mais factos, bom senso e mais
bom senso.
Como não era ridícula para os espíritos comprehensivos a
velha teima do letrado nacional, afflrmando, obstinada e
rancorosamente com a bocca aberta entre ponteagudos coUa*
rinhos, o pescoço enrolado no clássico lenço de seda, nos
dedos a infallivel pitada, as excellencias únicas das cantatas |
do Garção e das odes do Philinto? Do velho systema, que foi
levado de vencida e hoje alimenta apenas as lucubrações dos
tontos decrépitos e desmemoriados, a defesa obstinada
quando a lemos nos livros de 1820 a 30 nos provoca o riso...
D'elle restam apenas as obras immortaes, as obras primas '
dos homens de génio ; as apologias insensatas enjoam-nos.
Mesmíssimo é o caso do romântico, amortecido e embría-
\ gado das fumaças de 1830, ainda hoje sonhando com as wal-
kyrias, as fadas, as castellãs medievicas ; ainda hoje pallido
h'.
4
k.
HISTORIA DA LITTSBATUBA BRASILEIRA 149
sonhador a Man{redo ou a Rolla, pobre tolo de comedia, que
nos arrebenta de riso... Entretanto, é mui para vêr a segu-
rança, a infaillibilidade do pontiílce do prologo do Crom-
wellj esse lastimoso acervo de phrases túrgidas e aéreas
que não lemos hoje sem um sorriso de ironia.
Da enfatuada escola os programmas sexquipedaes moles-
tam-nos a mais não poder. Restam-lhe as raras inspirações
sérias e profundas ; tudo mais esvaeceu-se.
Cada uma d'eslas formulas, ao nascer, annunciava a littera-
cura definitiva,
O mesmo temos estado a presenciar nos últimos trinta
annos com a successão do romantismo. Não menos de cinco
syslemas têm surgido a proclamar a litteratura impeccavel :
o satanismo, com as suas cóleras affectadas, suas maldições
caricatas, seu pessimismo de almanach ; o parnasianismo, com
seus versos escovados, suas descripções de paizes que não
viu, suas theogonias pantafaçudas, suas orientalidades idio-
tas, seu tom de um prophetismo de nicromante ; o scientifi^
cismo poético, vacillando entre as triagas descriptivas de
Julío Veme e as tafularias psychologicas de Sully Pru-
dhomme c André Lefèvre, scientificismo productor quasi
sempre de uma poesia de contrafacção, com seus problemas
indigestos, suas thescs pretenciosas e prosaicas, uma poesia
de compendio em summa; o naturalismo, de escaJpello em
punho, farejando pústulas para as romper, ou alvas pernas
para as apalpar, para as beijar, com suas verdades e seus exa-
geros, com suas bellas pinturas e suas sensações novas, com
suas bagatellas, seus erros, seus disparates quando manejado
pelos tolos e pedantes, com suas descripções brilhantes, suas
analyses finas, seu grande sopro de realidade quando archi-
tectado pelos Daudets e Zolas. Finalmente o symbolismo, com
seus nevoentos mysterios.
Porque é que a reforma prosperou no romance, e tem quasi
sempre abortado na poesia ? A natureza intima das d^ias artes,
das duas manifestações litterarias o explica ; o romance é um
producto sui generis, que pode vacillar entre a sciencia e a
fantasia, entre a demooistração de um facto e a improvisação
imaginosa : a poesia, ao contrario, tem um terreno especial e
150 HISTORIA DA LITTBRATU&A BRA8IL2IRA
seu ; quando entra a transformar-se em sciencia perde-se na
prosa e na vulgaridade.
O romance póde-se dizer um producto recente, quasi do
XIX século ; a poesia é uma filha das eras primitivas, que se
vae tornando cada vez mais rara e vendo cada vez mais res-
tricto o seu terreno.
A poesia deve ser sempre a expressão de um estado emo-
cional, subjectivo, intimo ; o romance deve ser o estudo phy-
siologico dos caracteres sociaes.
A poesia é como a musica ; é vaga e não deve ser submet
tida ás exigências demonstrativas. Eis porque todos os formu-
ladores de theses, quando passam á experiência, nada fazem
de aproveitável ; é sempre uma poesia de arrièrc-penséc^ pre-
meditada, vestida em umas japonas doutrinarias, sem espon-
taneidade, som limpidez, sem effusão, sem graça, uma cousa
tcrrivel em summa.
Eis porque não nos devemos muito enthusiasmar com as
cinco soluções que aprendemos recentemente de França.
Se tomarmos a defesa opiniática de similhantes doutrinas,
provisórias como tudo que é obra da evolução humana, corre-
remos o perigo de fazer a figura do velho clássico ou do velho
romântico, que ficou atraz pintada.
E, todavia, não julgo extinctas na humanidade as fontes da
poesia.
As novas intuições que determinaram a nova phase do pen-
samento humano, podendo dar pasto ao romance e ao drama
analyticos, bem poderão aproveitar as syntheses, as largas
visualidades, os sentimentos generosos e altruistas, as expan-
sões intimas, em formular uma poesia viva, enérgica, ampla,
cnthusiasta, uma poesia de todas as grandes emoções que
experimentamos na lucta gigantesca e terrível da civilisação
moderna.
Uma poesia sem catechismos rhetoricos, som as pequena.-'
receitas que os pretensos reformadores nos têm querido im-
pingir ; mas, uma poesia em que se vazem todas as lutas,
todas as perplexidades, todas as effusões, todos os desa-
lentos, todas as esperanças, todas as certezas, todas as duvi-
das, todas as mutações, em summa, do espirito moderno.
HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA 151
Tenhamol-a também no Biusil.
E o bário de Paranapiacaba já náo é mais apto para nol-a
dar. Nem atrapalhe aquelles que têm enlhusiasmo e desejcun
progredir.
Este ultimo termo leva-me naturalmente a dizer algumas
palavras flnaes sobre o illustre paulistano. E é na sua quaJi-
dade de publicista. Em 1875 o digno escriptor publicou, por
incumbência governamental, um livro sob o titulo de Thcscs
sobre a colonisação do Brasil. E' um trabalho interessante,
merecedor do atlenciosa leitura. Náo contem ideias e planos
originaes ; é antes um apanhado de doutrinas aliunde espa-
lhadas.
O livro é melhodico e basta elle refedr-se a um di>s mais
importantes problemas da nossa actualidade para despertar o
interesse. Parecerá estranho, que, tractando agora de poetas,
lenha de gastar uma ou mais paginas sobre um assumpto tâo
distanciado, a colonisação.
Dois motivos me levam a proceder por forma contraria :
em primeiro lugar, segundo, o methodo adoptado n'este livro,
tenho obrigação de dar de uma vez, salvo raríssimas excep-
ções, o perfil inteiro de cada um dos meus heróes, por mais
variadas que hajam sido suas manifestações espirituaes ; de-
pois, desejo que esta obra seja mais uma historia da cultura
brasileira em sua totalidade, do que uma historia litteraria
no velho e acanhado estylo.
Esta dupla consideração justificar-me-á do defeito indicado,
se defeito ahi existe.
O livro do barão de Paranapiacaba tem por fim estudar as
causas que na segunda metade do século* xix tôm determinado
um maior movimento immigratorio para os Estados-Unidos e
Republica Argentina do que para o Brasil. A seu vêr, taes
causas são as seguintes :
(c I. A falta de liberdade de consciência; a não existência do
casamento civil como instituição ; a imperfeita educação, a
ignorância e a immoralidade do clero ; a ambição de mando
temporal da parte do Episcopado Brasileiro, traduzindo-se
na luta impropriamente chamada — questão religiosa.
152 HI8T0BIA DA LITTERATURÂ BRASILEIRA
II. A insufílciencia do ensino e principalmente a ausência de
instrucçâo agrícola e profissional.
III. O diminuto numero de instituições de credito, especial-
mente de bancos destinados a auxiliar a pequena lavoura e
industria.
IV. As restricções e estorvos, que a Legislação e a Publica
Administração do Império põe á liberdade de industria,
peando, em vez de desenvolver, a iniciativa individual.
V. Os defeitos da led de locação de serviços e dos contractos
de parceria com estrangeiros ; as lacunas e a inexecução da
lei das terras publicas e a não existência do imposto territorial
sobre os terrenos baldios e sem edificação.
VI. A falta de transporte e de vias de communicação, que
liguem o cen[ro e o interior do Império aos mercados con-
sumidores e exportadores.
VIL A creação de colónias longe d'esses mercados e em
terreno ingrato e não preparado, bem como a falta de provi-
dencias para recepção dos immigrantes © colonos nos portos
do Império e para seu estabelecimento permanente nas coló-
nias do Estado, ou nos lotes de terras, que compram.
VIII. A incúria em fazer conhecido o Brasil nos Estados,
d'ondo procede a emigração, de que necessitamos, e em
refuteu*, por todos os meios de bem entendida publicidade e
por pennas hábeis e desinteressadas os escriptos, por meio
dos quaes n'aquelles Estados nos deprimem, exageram nossos
erros em relação aos emigrantes e nos levantara odiosos
aleives i (1).
Tal o resumo das ideias do illustre funccionario apresen-
tadas ao governo.
Alguns pontos batem em cheio no âmago da questão ; algu-
mas d'essas theses são verdadeiras.
Outras, porém, não são evidentemente causas do eífeito que
se aponta e se procura remover. A primeira é uma d^ellas.
(1) Obra citada^ pag. 31
HIBTOUA DA LITTXBATUSA BBABILIIBA 153
O livro foi escripto em 1874 ainda no tempo da nossa cha-
mada questão religiosa ; o autor, impressionado por ella,
elevou a conhecida tolerância e quasi indiferença religiosa
dos brasileiros a um verdadeiro espirito inquisitorial e fez
d'isso phantasticamente um grande obstáculo á immigraçâ.o
Outras das theses são igualmente mal collocadas, e consti-
tuem verdadeiros círculos viciosos, quero dizer, que o au-
tor aponta como causa da falta de immigração factos que são
antes destinados a desapparecer justamente quando tivermos
grande população. São cousas que não se podem remover por
disposições legislativas, e que só uma população basta poderá
affastar. D'este modo, não é porque taes factos se dão entre
nós, que não vem cá a immigração ; ao contrario, é porque
esta não tem vindo que os factos se verificam.
Como poderá um pai2 ainda em via de formação, como o
Brasil, possuir, por exemplo, as vias de communicação, as
industrias, as fabricas, as instituições económicas, as crea-
ções de credito, as fortes e amplas normas de vida governa-
tiva, commercial, social, politica e em geral todas as grandes
maravilhas que fazem o orgulho de velhas nações como a
Inglaterra, a Allemanhíi, a Itália, a França ? Um impossivel a
olhos vistos.
Só o trabalho leaito do tempo é apto a desenvolver as forças
latentes de nossa nacionalidade e produzir a evolução normal
de nosso progresso.
Um dos maiores e mais nocivos erros, que vivemos todos
nós aqui a commetter, é a velha mania da europeolatria, que
envolve dois grandes despropósitos, a subserviência em imi-
tar tudo que no velho mundo se faz, e a vaidade de querer
parecer bem alli.
Não vemos diariamente homens políticos pôrem-se á frente
de propagandas, anti-patrioticas e nocivas a nosso paiz, uns
só pela mania de imitar, outros só para terem gabos dos cír-
culos estrangeiros existentes aqui, serem falados nos seus jor-
naes e figurarem nas folhas européas? Não admira, pois, que
haja quem faça as maiores loucuras para ser notado em
França ou na Allemanha ou na Inglaterra ou na Itália...
Ninguém se quer contentar com a parca notoriedade, a
154 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
pequena fama que a pátria pôde dar... E' uma nota da psycho-
logia brasileira.
Doeste ultimo peccado parece nâo ser viclima o barão de
Paranapiacaba ; mas com certeza soffre do sestro da imitação
européa em alta dose. Pôra melhor que o seu livro fosse mais
directamenta um estudo da vida brasileira do que um apa-
nhado de notas de auctores estrangeiros.
O nosso publicista negligenciou alguns dados, muitos dados
do seu. problema. Nâo tomou as questões de conveaiienle
altura. De outra forma, teria notado que a simples imitação
do que se faz na Europa náo é sempre o nosso mais acertado
caminho, teria visto que temos acções a praticar, providencias
a levar por diante que sio o inverso do que se pratica em
qualquer outra parte.
Sob o ponto de vista da colonisaçSU), verbi-graíia, a teima
cm comparar nossas condições com as dos Estados-Unidos e
Republica Argentina, as duas grandes nações americanas que
recebem immigrantes, a referida teima é um horrendo ab-
surdo.
Os Estados-Unidos são um paiz de clima quasi uniforme,
com excepção do território comparativamente pequeno do
extremo sul ás margens do Golpho mexicano. Possuia jã uma
população enérgica, apta a assimilar a de seus parentes alle-
inães, quando estes começaram a affluir para alli. E estes
espalhavam-se por toda a extensão do território, não
indo acantoar-se n'um ponto, como se tem feito no Brasil. A
nova população formou-se e cresceu, sem mudar de aspecto.
Todos são amencanos e falam inglez. E' singularissimo este
facto : apezar dos muitos milhões de immigrantes entrados na
republica, nao haver um só districto, por pequeno que seja,
d'onde a lingua ingleza tenha desapparecido e o americano
seja considerado estrangeiro. E' o que não acontece no Brasil
A Republica Argentina é também inteiramente dissimi-
Ihante do nosso paiz. E'^ um« território muito menor,muito mais
igual pelo clima e mais unido geographicamente. A coloni-
saçâo espalha-se e é facilmente assimilada. E, quando acon-
tecer que o não seja, os Argentinos saberão por-lhe óbices,
como praticaram os Americanos com os Chins.
HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA 155
No Brasil nada se tem feito com plano e sob a direcção de
ideias justas e scientiílcas.
Começou-se por desacreditar o clima de todo o norte e
dícclarar aptas rara a colonisação somente as quatro provín-
cias do extremo sul.
Picam possessos os fautores desse erro quando se lhes fala
em espalhar os colonos por todo o paiz. E' que isto seria
matar-lhes o plano de crear no sul uma população diversa da
do resto do território, população que dentro de cincoenta
ou sessenta annos dê o grito da robellião separatista desman-
telando assim aquella íamosa peça de architectura politica de
que falava o grande Andrada.
São notórios os argumentos terroristas d'essa gente contra
quem não lhes facilita os planos. Conhecedores da vaidade
nacional, que nos leva a todos á ambição de passarmos por
culiantados, lançam em rosto aos adversários o espantalho de
nativistas e atrazados l . . . Diante da força probante de taes
razões curvam-se todos. Entretanto, ainda é tempo de dizer a
verdade.
Ha hoje três systemas sobre a colonisação do Brasil por
estrangeiros : a) o dos immobilistas intranzigentes que nada
querem fazer por este lado ; b) o dos políticos interesseiros
que aspiram pela transformação completa dos quatro Estados
do Sul, e cj o da colonisação integral e progressiva. Este
ultimo é o meu systeona.
N'outro lugar d'este livro, tratando das lutas de brasileiros
e portuguezes em 1822, a propósito do V. de S. Leopoldo, dis-
cuti rapidamente o facto da colonisação incompleta, aqui pra-
ticada pelos descobridores, e avancei algumas desconfianças
sobre o futuro da raça portugueza n^este paiz, se não fôr con-
venientemente encaminhado o problema do moderno povoa-
mento com elementos estrangeiros.
Westa questão, minhas ideias resumem-se nas seguntes
theses, offerecidas em estylo aphoristico para serem bem
comprehendidas :
1.* A antiga colonisação do Brasil pelos portuguezes foi
lacunosa, especialmente no alto norte e grande oeste do paiz.
156 HISTORIA DA LITTERATimA BRASILEIRA
2.* Mesmo no sul e leste sua influencia tende a diminuir,
alli pela introducção de fortes elementos estranhos, e cá pela
superabundância dos mestiços de sangue indio e africano ;
3.* O meio de formar no Brasil uma naçáo forte é attraliir a
colonisação estrangeira por modo diverso do que tem sido até
agora praticado ;
4.* Deve-se acabar com o systema de cuidar só do sul,
deixando o norte e o centro em completo esquecimento.
5.* E' preciso acabar uma vez por todas com o descrédito
que estultamente foi lançado sobre o clima do norte e do oeste
do paiz, reconhecendo que em todo o vasto planalto brasileiro
ha zonas perfeitamente appropriadas á colonisação européa ;
6/ Náo faço distincção entre europeus do Norto ou do Sul
para a immigraçilo brasileira ; todos sao pcrfeitemenle
aptos, com a condição de misturarem-se c espalliarcm-sc por
todo o paiz;
7.* Este systema de colonisação integral do Brasil, assimi-
lando os elementos estrangeiros, maximé portuguezes, é pre-
vidente e patriótico, sem ser por forma alguma hostil aos
europeus ;
8.* Muito, pelo contrario, é contar sempre e sempre com
ellcs para a organisação e engrandecimento de nossa pátria.
9.* Não se devem, po(rém, despresar os elementos nacionacs,
que podem ser aproveitados para a colonisação geral.
E' esta a summa das minhas ideias. Não ha ahi exagerado
nativismo,, Acendrado patriotismo é que n'ellas palpita.
Negal-o ? Só o poderão fazer os rábulas da politiquice...
Da leitura do livro do barão de Paranapiacaha bem se
deduz não ser clle d'estc numero, e o digo em honra sua.
HISTORIA DA LITTBKATnBA BRABILBIBA 157
CAPITULO II
Poesia. — Segunda phase do romantismo.
E' agora a segundo momento do romantismo brasileiro, a
phase inaugurada por Gonçalves Dias. E' o seu ponto culmi-
nante. O poeta maranhense e José de Alencar, o celebre
romancista do Ceará, são inquestionavelmente os dois mais
illustres e significativos typos da litteratura romântica entre
nós.
Talentos omnimodos, quer um, quer outro, prendem-se pelo
la^o commum do indianismo e pela patriótica empreza de,
evitando os exclusivos moldes portuguezes, dar cores pró-
prias á nossa litteratura. Caminharam impávidos para a
frente, guiados por seu ideial, alentados pelo enthusiasmo
das boas causas.
Quasi não ficou um recanto das patiras letras em que elles
não pozessem as mãos e com ellas os brilhos de seus talentos
e os sons festivos de suas victorias.
Na poesia, no theatro, na historia, na ethnographia Gon-
çalves Dias fez-se ouvir com elevação e inquestionado valor.
Romance, drama, comedia, folhetim, politica, critica, pole-
mica, poesia, por tudo passou José de Alencar e seria preciso
torcer e marear a imparcialidade da historia para negar-lhe
os desusados titulos de seu merecimento.
Eu não sou e nunca fui indianista : sempre estive na brecha
batendo os exaggeros do systema, quando das mãos dos dois
grandes mestres passou ás dos sectários medíocres. Mas esse
velho, e por mim tão maltratado indianismo, teve um gran-
díssimo alcance : foi uma palavra de guerra para unir-nos e
fazer-nos trabalhar por nós mesmos nas letras.
Conseguido esse resultado, os dois chefes calaram as
tiorbas selvagens e empunharam outros instrumentos. E,
d'esVarte, a mor porção de suas obras é constf uida fora das
158 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIEA
inspirações do indianismo ; mas as melhores, porque
escriptas com toda a alma, são as que ficam dentro do cir-
culo d'aquelle. E' por isso que as poesias americanas sâo
ainda e sempre as mais saborosas de Gonçalves Dias, e o
Guarany e a Iracema os mais valentes romances de José de
Alencar.
A maior vantagem da romântica entre nós, já o disse uma
vez e o repito agora, foi afastar-nos da exclusiva influencia,
da imitação portugucza, O romantismo porluguez possuía
um triumvirato, por todos admirado, em que era vedado
locar : Garrett, Herculano e Castilho. Tiveram no Brasil admi-
radores e não tiveram imitadores. Isto ó significativo.
Os talentos nacionaes, embebidos na contemplação da natu-
reza e da vida americana e das bellezas da litteratura européa,
não quedaram a imitar os três corypheus luzos.
Devemos isto aos Gonçalves Dias, aos Alencares, aos Pen-
nas, aos Macedos, aos Alvares de Azevedo, aos Agrários.
António Gonçalves Dias (1823-18(>4) não precisa que lhe
trace a biographia. Este trabalho está feito, definitivamente
feito, por António Henriques Leal no Hl vol. do Pantheon
Maranhense, Consignarei apenas algumas datas e farei
algumas observações que me ellas despertam. As datas
ajudam a comprehender a formação do talento do poeta dos
Tymbiras, EUe é um completo producto de sua raça, do
meio cm que passou a infância e dos estudos que fez em
Coimbra. As viagens posteriores de quasi nada lhe serviram.
Nascido em 1823 em Caxias, passou ahi e em São Luiz os
quinze primeiros annos de sua vida. De 1838 a 18'i5 viveu
em Portugal, formando-so em direito na Universidade coim-
brã. Foram sete annos que alguma cousa lhe deixaram no
espirito.
Passando rapidamente pelo Maranhão (18i546), em
melados de 1846 achou-se no Rio de Janeiro que liabitou segui-
damente até 1854, fazendo apenas uma rápida viagem ao norte
(1851). De 54 a 58 viveu na Europa, que tornou a visitar de
1862 a 64, anno em que fallac(?u do volta ao Brasil. O inter-
HISTOKIA DA LITTERATUBA BBA8ILSIBA 159
vallo de flns de 1858 a 62, passou-o em viagens pelas provín-
cias do Norte na celebre commissão das borboletas.
Em 1862 antes de seguir pela ultima vez para o velho
mundo, á busca de melhoíras para sua saúde, tocou ainda
rapidamente no seu amado Rio de Janeiro-
Gonçalves Dias morreu aos quarenta e um annos ; d'estes,
treze a quatorze f oram passados na Europa e o resto no
Brasil.
Taes algarismos não vêm aqui a esmo ; comparados
áquelles em que appareceram os seus livros, e já. foram indi-
cados ao tratar do barão de Paranapiacaba, bem mostram
que o poeta, morto em 1864 aos quarenta e um annos, se
tivesse desapparecido em ifô4, aos trinta e um, nós teriamos
o nosso Gonçalves Dias completo.
Todas as sucis obras foram escriptas até esse anno, com-
prehendendo os Cantos, os dramas, os artigos de critica da
historia do Brasil, os Tymbiras, e o trabalho ethnographico
sob o titulo O Brasil e a Oceania,
Em dez annos (44-54) Gonçalves Dias desenvolveu pasmosa
actividade. O ultimo decennio foi relativamente estéril : rela-
tórios, dando conta de commissões que exerceu, e um pu-
nhado de poesias originaes e traduzidas, são os productos
d'esse tempo.
De resto, cumpre notar que o poeta maranhense não
passou por dois grandes llagellos que assaltam de ordinário
os homens de leiras n'este paiz : a guerra litieraria e a
penúria económica. O talento do poeta não foi jamais con-
testado. Contribuiu muito para isto o artigo encomiástico
escripto por Alexandre Herculano sobre os Primeiros Cantos.
Não passou por grandes difflculdades para viver. Teve sempre
empregos e boas commissões. N'este sentido foi de grande
auxilio a amisade que lhe votou sempre o segundo impe-
rador.
No moço maranhense existem quatro aspectos principaes,
ja o deixei ver : o poeta, o dramatista, o critico de historia e
o ethnologo.
*
Apreciemol-os, principiando pela sua feição preponderante,
o poeta.
160 HI8T0BIA D V LITTBSATUBA BRASJJJSLRX
Ha vinte maneiras diversas de estudar e apreciar um
escriptor. Podem-se procurar as relações geraes que elle teve
com a cultura de seu tempo, mostrando o que lhe deveu e
em que a adiantou ; podem-se, em dadas circumstancias,
indagar o que fez e o que representa ha evolução intellectual
de seu paíz ; póde-se>-lh6 desmontar o espirito, procurando os
elementos que o constituíram e qual a tendência que n'elle
predominou.
N'esta investigação deve-se apontar a acção do meio
physico e social, a parte da natura e a parte da cuUura, insistir
nos elementos hereditários accumulados na raça^ e os ele-
mentos novos provenientes da educação scientiflca.
Póde-se-lhe fazer apenas uma apreciação esthelic^ a defi-
nição do género em que figurou ; póde-se fazer a pintura
de seus modos, sestros, impulsos e tics, quadro physiolo-
gico.
Pode-se desfiar o encadeiamento normal de suas ideias,
quadro psychologico.
Póde-se fazer a simples critica impressionista, dizendo o
género e a indole das emoções que desperta.
Póde-se, que sei eu ? limitar a geiate a apontar simplesmente
suas obras e o conteúdo geral d'ellas, ou tomar outro ca-
minho qualquer.
Qual doestes methodos vou applicar a Gonçalves Dias ?
Não sei. Digo o que penso d'elle, sem me preoccupar com
systemas e amaneirados críticos.
O auctor de Marabá, da Mãe d'Agua, do Leito de Folhas
Verdes, do Gigante de Pedra, do Y JucaPirania, dos Tym-
biras, que é também o auctor das Sextilhas de Frei Antão^
isto é, o auctor do que ha de mais nacional e do que ha de
mais portuguez em nossa litteratura, é um dos mais nitidos
exemplares do povo, do genuíno povo brasileiro. E' o typo do
mestiço physico e moral de que tenho falado repetidas vezes
n'este livro. Gonçalves Dias era filho de portuguez e mame-
luca, quero dizer, descendia das três raças que constituíram
a população nacional e representava-lhes as principaes ten-
dências.
HI8T0BIA DA LITTEnATUSA BRASILEIRA 101
O mesliçamento, como se sabe, 6 no seu inicio uma íonte
de perturbações e desequilíbrios.
O mestiço é o depositário de tendências, Índoles e incli-
nações diversas, que nem sempre acham um ponto de apoio,
ordem e flxidade. D'ahi o seu caracter inquieto, contradi-
ctorio, anormal. Tal a razSLo da constante turbulência das
populações americanas.
Creio que íoi Herbert Spencer quem primeiro tirou seguras
illações doesse estado physiologico dos povos dò continente
para a sua politica. E' de esperar, porém, que uma mais
forte acção do tempo acabe por trazer-nos a tranquillidade or-
gânica e social a nós os americanos.
Nosso poeta aos africanos, o sangue que menos lhe corria
nas veias, deveu aquella espansibilidade de que era dotado,
aquella ponta de alegria que não o deixou jamais e que espe-
cialmente noto em suas cartas.
Aos indígenas, as melancolias súbitas, a resignação, a pas-
sividade com que supportava os factos e acontecimentos,
deixando-se ir ao sabor d'elles.
Aos portuguezes deveu o bom senso, a nitidez e clareza
das idéas, a religiosidade que o não abandonou jamais, a
energia da vontade, as preoccupações phantasistas, um
certo ideialismo mórbido e impalpável.
Juntae a tudo isto fortes impressões de luzes e cores e
vida e movimento, fornecidas pela natureza tropical, que se
3xpande pela região em fora que vae de Caxias a São Luiz,
untae ainda as scenas marítimas da primeira viagem a Por-
ugral, nâo esqueçais os quadros da natureza e da vida pro-
inciana no velho reino, e nem tão pouco os panoramas indes-
riptiveis do Rio de Janeiro e região circumvisínha ; trazei
esse concurso de factos e circumstancias as leituras dos
oetas latinos e modernos, o estudo das chronicas coloniaes,
tereis os elementos predominantes e fundamentaes do
lento poético d'esse valente e mimoso lyrista.
Se Gonçalves Dias tivesse sido uma mediocridade, teria
íado exclusivamente n'aquella poesia piegas do tempo do
'ovador de Coimbra, nota predominante na litteratura por-
iirsTORU n Jl
1G2 HISTOBIA DA LITTERATUBA BBABILSIBA
tugueza do tempo em que o maranhense fez alli o curso de
direito.
Garett, Herculano e Castilho em 4345, annos ulUmos
passados pelo poeta em Portugal, já tinham publicado suas
principaes obras e já eram notabilidades indiscutidas lá.
Mas a evolução natural do romantismo tinha já attingido a
phase do sentimentalismo aíTectado e esterilisante. O mara-
nhense, já de si bastante melancólico, aprendeu aquella ma-
neira e deixou-se eivar da moléstia geral.
O sentimentalismo é, por certo, uma das notas mais inten-
sas do seu trovar ; é preciso, entretanto, ser muito surdo para
^- não ouvir que um intenso naturalismo americano, um certo
mysticismo religioso, e o calor e a effusáo lyrica juntam ás
notas monótonas d'aquelle sentimentalismo as volatas e as
íauiíarras de uma poesia variada, ampla, serena, meiga,
ousada e embriagadora.
A volta do poeta para o Brasil, sua nova estada no Mara-
nhão, sua subsequente partida para o Rio de Janeiro entram
como factores na formação de seu talento. A's primitivas
impressões americanas tinham-se juntado as impressões do
meio portuguez. Se elle tivesse sempre permanecido alli, se
novas sensações, novas fontes de vida e poesia não se lhe
viessem juntar no espirito, não teria passado, como Gonçalves
Crespo, de um poeta delicado, geitoso, miniaturesco, porém
mediano.
O direito, dizem os modernos juristas allemães sectários
do darwinismo, é uma funcção da vida nacional, é um pro-
ducto cultural de uma raça, de um povo dado. Póde-se dizer
L^,. o mesmo da poesia ; ella também é uma funcção da vida
nacional ; uma poesia geral para todos os povos é alguma
cousa de análogo a um direito, uma lei para todas as nações.
E' por isso que o critério ethnographico, introduzido por
mim na critica nacional desde 1869-70, é ainda hoje a meus
olhos a base principal da comprehensão das litteraturas,
nomeadamente a litteratura de um povo misturado como o
povo brasileiro. Emquanto não houver aqui uma bem nitida
comprehensão d'essa ordem de ideias, a politica e a vida
social serão o objecto de investigações e expedientes pura-
HISTOBIA DA LITTBKATURA BBASILEIBA 163
mente empíricos, a litteratura e a critica serão apenas uma
rhetorica banal mais ou menos habilmenta manejada.
Quatro séculos foram suíficientes para crêar n^este paiz
uma população exclusivamente nacional, que se distingue
já perfeitamente dos factores que a formaram, população
que se vae cada vez mais integrando á parte e tendendo a
regeitar as influencias estranhas. Logo no flm de dois séculos
o Índio tinha dado quasi tudo que podia dar e começou a ser
considerado como força inerte ; ao cabo de três séculos com-
prehendeu-se que o portuguez, como chefe, era já um obstá-
culo e separamo-nos d'elle.
Chegamos depois ao ponto de dispensar o concurso do
negro ; já lhe vedamos ha muito as entradas com a extincção
do trafico, e não contamos só com elle para o trabalho ;
estamos com a escravidão acabada.
O significado histórico d'esses factos é que os três elementos
primitivos da população já deram, como elementos separados,
o que tinham de dar; o povo brasileiro deve-se considerar t
em essência constituído, e, a esforços de trabalho, energia,
bom senso e perseverança, adquirir o seu lugar na historia
e na politica do mundo-
Se, porém, acha que não tem ainda forças bastantes para
as grandes luctas do progresso, se ainda precisa do auxilio
de braços e intelUgencias de estranhos, dirija a innoculação
dos elementos immigratorios e coloniaes com tino e cri-
tério. Não entregue zonas inteiras aos estrangeiros ; espalhe-
os por todo o paiz e assimile-os.
Esta é que é a ideia patriótica, ensinada pela historia de
nossa própria pátria, sobre a immigração. Não os planos,
filhos do interesse pessoal de espíritos nocivos, como certos
políticos perigosos, que ainda nos podem causar males irre-
paráveis...
Não cesso de combater ideias que julgo prejudiciaes ao
progresso e á unidade do povo brasileiro.
Em um paiz como o nosso, ainda novo, sem tradições bem
formadas, sem cohesão social bem compacta, nunca é de
mais insistir sobre o seu caracter popular e histórico.
Ainda mais é isto indis^pensavel, tt*atando-se de um poeta
164 HI8T0BIA DA XITTEBATURA BRABILBIRÁ
como Gonçalves Diais, um genuíno brasileiro, um mestiço
physico e moral, que será ainda por muitos séculos uma das
mais authenticas manifestações d'alma d'este povo.
Uma critica mesquinha e incorrecta espalhou ahi ter sido
o poeta maranhense um exaggerado cantor de Índios, nâo
se occupando de mais nada. Nâo pôde haver maior injus-
tiça.
A verdade é que o poeta, evidentemente sem plano esco-
lástico, espontaneamente e sem impulsoâ -doutrinários,
deixou-se influir pela vida dos selvagens, como em Y
JucorPirama e dez outras composições ; pelas tradições portu-
guezas, como nas Sextilhas de Frei Antão e em Leonor de
Mendonça ; pelos solTrimeaitos dos escravos pretos, como na
Escrava e na Meditação.
A vida e os sentimentos, as phantasías dos mestiços, dos
brasileiros propriamente ditos, não são esquecisdos. Bem pelo
contrario, Marabá, a Mãe d' Agua e vinte outras o attestam.
Um talento, como o de Gonçalves Dias, não podia flcar na
poesia pura e exclusivamente indiana, e de facto não ílcou. A
poesia pessoal e subjectiva, a poesia exterior e descriptiva,
além de todas aquellas notas acima indicadas, inebriaram
a alma do sonhador brasileiro.
O mesmo se deu com Alencar, que tratou do índio puro
no Ubiraiára, do índio em contacto com os . colonisa-
dores em Iracema e Guarany, da vida colonial nas Minas de
Prata, da vida dos sertões do norte no Sertaneja, da vida das
fazendas do sul em Til e no Tronco do Ipé, da vida elegante
do Rio de Janeiro em Senhora, Luciola, Diva, Sonhos de
Ouro, de nosso viver burguez no Demónio Familiar... Isto
para só lembrar suas príncípaes obras.
Teria sido uma lacuna imperdoável, se esses dois grandes
agitadores da lítteratura brasileira tivessem odvídado os ín-
dios ; teria sido censurável curteza de vistas, se nos quizessem
perpetuamente molestar com elles. Tiveram o bom senso de
se conservar no justo meio termo.
Eu bem sei que houve ahi uma hora de desvairamento
em que se quiz pregar como verdade absoluta só ser brasi-
leira a producçâo que cheirasse a caboclos...
HISTORIA DA LITTSEATURA BRASILEIRA 165
A chamada poesia puramente indiana é uma poesia biforme,
que nem é brasileira, nem indígena. A raça selvagem, com
todos os encantos e allucinações do homem criança, virgem e
travessamente agradável, com todos os apparentes effluvios
de poesia immensa, é hoje vulto mudo a esvair-se no centro de
nossa vida, na marulho de nossa civilisação. N&o quiz ou não
poude sentir as agitações>de um outro viver, escutar os ruidos
de outras formas de anceios, de liberdade, de crenças, de
luctas que a turba, ás vezes tyrannica, dos conquistadores lhe
quiz fazer entender. A raça selvagem está morta; nós não
temos nada mais a temer ou a esi)erar d'ella. O colono euro-
peu não teve que dar grandes batalhas a um inimigo tenaz :
teve, que presenciar o desfilar triste e compungidor da mul-
tidão selvaticamente boa e sympathica dos adoradores de
Tupan.,.
Todos conhecem os poucos casos de resistência da parte
dos Índio, todos se lembram da retirada de Japy-Assú 4
frente das tribus do interior, que só pararam, diz a lenda,
diante do Amazonas, fo(rça bastante valente para as fazer
suster.
O espectáculo é triste : aqueJle povo não tinha o sentimento
profundo e apaixonado da pátria; não palpitava n^eJle ao
meno3 o valor de heróes, que inspirara uma pagina bri-
lhante da historia da Grécia, a dignidade de fugir combatendo
que nobihtou a reiirada dos Dez Mil
Ainda hoje foge diante da civilisação. Como que uma lei
desconhecida o repelle para longe de nossas istituições ; pa-
rece que Anhangá borrifou sobre elle todas as Icigrimas da
desgraçai...
O índio não representa, entre nós, por exemplo, o que
em França significava o velho fundo da população gallo-
romana, o terceiro estado, o povo que fez a Revolução. Em-
balde se procurará um serio e profundo principio social e civil
ledxado por elle. Em pouco modificou o génio, o caracter
los conquistadores.
A razão está, me parece, n'esta lei histórica da conquista da
America : quanto mais civilisada era a população indígena,
anto mais résisUa e deixava vestígios. A inversa é verda-
166 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
deira. As dominações dos impérios adiantados do México e do
Peru 6 a do sedvalíco Brasil a confirmam*
Um povo que fugiu difficilmente poderia deixar impressos
no vulto do que lhe occupou o lugar os seus toques, ainda
os mais decisivos. O indio não ó o brasileiro. O /jue este
sente, o qua busca, o que espera, o que crê, não é o que
sentia, procurava, ou cria aquelie.
Sáo, pois, o génio, a força primeára do brctsUeiro e não os
do gentio que deivem constituir a poesia, a litleratura nacional.
O indio não deixou uma historia por onde procurássemos
reviver sua physionomia perdida. Não nos pôde dar, por
exemplo, o roonance histórico ou o romance de costumes
propriamente taes. Não conhecemos sua vida intima. E que
no fundo hão revelado sobre elle quantos o têm estudado nos
seus romances e nos seus poemas ? O que tem dito se reduz a
uma exposição de usanças meramente exteriores, conhecidas
desde o século xvi, e que todos trajam de um só modo em
ligor.
Argumentam com P. Cooper ; é umi grave equivoco. A glo-
ria do romancista americano provém propriamente de seu
estylo vivo e penetrante ; ^áo de haver descripto a estatura do
selvagem, no que, aliás, ficou atraz de Agostinho Thíerry, no
pensar de Guizot.
Ninguém tomará, certamente, o pinturista historiador fran-
cez por um. poeta anglo-saxonia ou normando^ por haver
brilhantemente descripto esses povos ainda em estado de bar-
baria.
Cooper também nada tem de pelle-vermelha. Foi, talvez,
mais feliz nos seus romances de marinha. Não creou uma lit-
teratura para sua pátria, por haver falado de selvagens ; Cha-
teaubriand o precedera e tão pouco a creara para lá ou para a
França. Por seu talento vivaz, o americano imprimiu ao ro-
mance histórico uma côr mais animada, ainda que mais falsa,
do que lhe dera Walter-Scott, e mais nada.
Será um dos fundadores da litteratura de seu paiz por
outros serviços, não especialmente por falar de caboclos, que
lá se acham agora reduzidos a diminutíssimo numero, e ainda
fugindo da civilisação, que lhes causa susto.
HISTORIA DA LITTERATUiUk BBAAILSIBA l(i7
O senso popular despresou tal poesia, porque não é a sua,
porque não fala das suas esperanças. Os mais vulgares prin-
cípios darte a condeninam lambem. A velha e soberana ver-
dade que a litteratura é a grande arteira, o pulso da socie-
dade, que sofTre de suas agitações, de suas anciãs, também se
lhe oppõe. A escola puramente indiana está desacreditada;
os melhores poetas do paiz andam já desde muito por outro
lado.
O pensamento d'aquella escola encerra para quem bem
attender á estructura actual da sociedade brasileira, quem
reflectir sobre suas leis históricas, alguma cousa que é
a negação do génio ryicionaL Diz-nõs em sua pretenção de glo-
rias : não tendes um intimo vosso, não podeis achar poesia no
vosso próprio ser, sois uma estatua morta, sem vida, sem pal-
pitações, que necessita pedir aos homens, perseguidos por
vossos maiores, um enlevo que vos inspire. E' pungente...
Para quem assim comprehende as cousas, individualidade
d'um povo, génio d'uma nação é palavra balofa que no brasi-
leiro exprime nada, qua só no tupy pôde achar esse quid
ignoto que elle nos pôde emprestar.
A nacionalidade da poesia brasileira só pôde ter uma solu-
ção : — acostar-se ao génio, ao verdadeiro espirito populsu*,
como elle sae do complexo de nossas origens ethnicas. E' uma
questão de instincto dos povos essa do nacionalismo litterario.
Isto vem espontaneamente ; as nações têm todas uma força
particular que as define e individualisa. Todos sabem qual é
ella no inglez, no allemão, no francez... Também teremos, se
o náo temos ainda bem definido, o nosso espirito próprio. — ■
O génio doeste paiz, ainda vago e indeterminado, um dia,
ouso esperal-o, se expandirá aos raios de um forte ideial que
o ha-de fecundar. Andar, porém, estonteado hoje, como
sempre, no empenho de nacionalisar a poesia, a litteratura,
parece-me cousa igual á lucta inútil do antigo vidente, do
antigo propheta quando buscava furtar-se á acção do Deus
jue o dominava... O indicio nacional ha-de apparecer, sem
lue haja necessidade de o procurar adrede ; o poeta é antes
le tudo homem e homem de um paiz. Seus sentimentos mais
108 HI6T0RIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
arraigados, ajs inclinações mais íorles de seu povo hâo-de
forçosamente apparecer.
'As leis da selecção na litleratura e no povo brasileiro dáo a
perceber que a raça que ha-de vir a triumphar na lucta pela
vida, n'este paiz, é a raça branca. A raça selvagem e a negra,
uma espoliada pela ooaiquista, outra embrutecida pela escra-
vidão, pouco, bem pouco, cnseguiráo directamente para si.
Os seus próprios recursoa volver-se-hio em vantagem dos
brancos.
Prova-o o facto do cruzamento em que tendem a predo-
minar o typo & a Índole do europeu, ajudado pela mescla do
sangue selvagem e negro, o que mais o habilita a supportar
os rigores de nosso clima.
Se houvera necessidade de fazer applicação rigorosa ao Bra-
sil da theoria ethnologica procurando a raça que definitiva-
mente nos represente, melhor que Portugal o nosso paiz offe-
rcceria ampla possibilidade para a empreza; porque não
fura preciso levantar á altura de uma raça uma simples classe
da população, como alli praticou alguém com os mosarabes.
Entre nós o concurso de três raças inteiramente distinctas,
em todo o rigor de expressão, deu-nos uma sub-raça, propria-
mente brasileira-o mestiço. O elemento mais progressivo terá
sido o branco, que vae assimilando o que de necessário á vid)a
lhe podem fornecer os outros dois factores.
A historia o prova ; edla nos mostra a intelligencia e a activi-
dade mais especialmente residindo no branco puro ou no mes-
tiço ; e nunca no indio ou no negro estremes de qualquer
mistura.
Mas como o branco inteiramente puro, cousa que se vae
tornando cada vez mais rara no paiz, pouco se distinguiria de
seu ascendente europeu, é indispensável convir que o typo,
a encarnação perfeita do genuino brasileiro, como a selecção
biológica e histórica o tem produzido, está, por emquanto, na
vasta classe de mestiços de toda a ordem na sua ímmensa
variedade de cores. »
Esta grande fusão ainda não está completa, e é por isso que
ainda não temos um espirito, um caracter inteiramente ori-
ginal.
HIBTOBIA DA LITTSBATURA BRABILSIBA 169
Minha these, em resumo, é que a victoria na lucta pela vida,
entre nós, pertencerá no porvir ao branco ; mas que este, para
esta mesma victoria, attentas as agruras do clima, tem Udo
necessidade do aproveilar-se do que de útil as outras duas
raças lhe têm podido fornecer, maximé a preta, com que tem
mais cruzado.
Pela selecção natural, todavia, depois de prestado o auxilio
de que necessita, o typo branco irá tomando a preponde-
rância até mostrar-se talvez depurado e bello como no velho
mundo. Será quando já estiver melhor acclimado no conti-
nente.
Dous factos contribuirão principalmente para tal resultado :
de um lado a extincção do trafico africano e o desappareci-
mento constante dos indios, e de outro a crescente immi-
gração européa. Esta, porém, deverá ser bem dirigida, deverá
ser bem espalhada, para não ser desequilibrado o paiz, e não
desapparecer o primitivo elemento portuguez, que nos creou.
A' luz de taes idéas, de accôrdo com as vistas mais pro-
fundas da sciencia de hoje, nenhum é o papel reservado ao
indianismo exclusivo e systematico.
O leitor comprehenderá a razão de discutir eu insistente-
mente, tratando de Gonçalves Dias, a questão do indianismo.
Foi uma poesia útil como um tónico, um abalo necessário im-
posto aos nervos de nossos burguezes para os arredar da ma-
nia das imitações européas ; mas não podia ser exclusivista.
Encaremos ainda mais de perto o nosso auctor.
Gonçalves Dias em sua carreira propriamente de poeta atra-
vessou duas phases, ambas muito curtas, porém ambas bem
distinctas uma da outra. De 1840 a 1845 é a phase de Coimbra;
o poeta escreveu então grande parte das peças que figuram
nos Primeiros Cantos. As melhores d'este volume, é verdade,
foram escriptas no Maranhão nos mezes de 1845 a 46 que o
auctor alli passou.
Desde nimiero são as poesias Seus Olhos e Adeus aos meus
Amigos do Maranhão.
Paço aqui incidentalmente uma notação e é esta : de decen-
nio em decennio a lilteratura brasileira fez no xix século um
progresso que se assignalou pela publicação de um livro : em
170 HISTOBIA DA LITTERATUBA BBA8ILBIBA
1836 OS Suspiros poéticos de Magalhães, em 18'j6 os Primeiros
Cantos de Gonçalves Dias, em 1856 o Guarany de Alencar, em
1866 os Cantos e Phantasias de Varella, em 1876 o Selvagem
de Couto de Magalhã.es e os Ensaios de Sciencia de Baptista
Caetano, em 1886 os Menores e Loucos em direito criminal^
de Tobias Barretto.
A segunda phase da vida poética de Gonçalves Dias é tam-
bém de cinco annos em rigor, vae de 1845 a 1850 ; pois que
os Últimos Cantos, publicados em 1851, já estavam promptos
desde o anno anterior. Depois doesta época o poeta^quasi
mais nada produziu. Náo se poderá talvez dizer que tenha
influído para isto em qualquer gráo e em qualquer sentido
seu casamento, effectuado em 1852.
E' preciso definir mais directamente o talento deste mestiço.
EUe era antes e acima de tudo um poeta : tinha a vibrati-
lidade das sensações, a ideiaçáo prompta e móbil, a lingua-
gem fluida, sonora e cadente, o espirito sonhador e contem-
plativo, a imaginação sempre prompta a desferir o vôo. Náo
era da raça d^aquelles que confudem a poesia com a elo-
quência, a musica d'alma com os sons de um instrumento.
« Ha poetas, diz um grande critico, ha poetas para os quaes
a poesia é um instrumento encantado, a rabeca de Paganini,
ou um outro instrumento qualquer, mas em summa um ins-
trumento de virtuosidade. Ha outros para quem a poesia é
uma voz, uma Unguagem, a expressão natural e espontânea
d'alma. Victor-Hugo é o maior d'entre os primeiros ; Racine,
André Chenier, Lamartine sáo da ultima familia. »
Gonçalves Dias é também doesta derradeira familia. Entra
bem n'esse grupo seleccionado por Scherer, auctor d'aquellas
palavras.
Gonçalves Dias era sobretudo um poeta, já disse ; falta
ajuntar que na poesia era sobretudo um lyrico. Mas que veni
a ser um lyrico ? Podem-se dar vinte respostas a esta per-
gunta.
Eugénio Promentin, o illustre pintor e critico, assim define
o género, falfimdo de Rubens :
<( Tout cela nous conduit à une déflnition plus complete en-
HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA 171
core, à un mot que je vais dire et qui dirait tout : Rubens ©st
un lyrique et le plus lyrique de tous les peintres. Sa prompti-
tude imaginative, Tintensité de son style, son rythme sonare
et progressif, la partée de ca rhythme, son trajet pour ainsi
dire vertical, appelez tout cela du lyrisme, et vous ne serez
pas loin de la vérité » (1).
Para Promentin são, pois, a promptidâo da imaginação, a
intensidade do estylo, seu rythmo sonoro e progressivo, a
altura d'este rythmo, que constituem a essência do lyrismo.
Não é precisamente n'este sentido que entendo a palavra e
o facto que ella exprime ; nâo é pelo menos n'este sentido que
a applico a Gonçalves Dias. Elle tinha, por certo, imaginação
ágil, tinha brilho de estylo, tinha sonoridade de rythmo;
porém não são «ssas as qualidades que mais o distinguiram.
Parecerme que a justeza do sentimento, a doçura das ima-
gens, a delicadeza das tintas, a facilidade das ideas, a espon-
taneidade da forma, o vôo sereno de todas as forças mentaes,
eram de preferencia seus predicados. Tudo isto n'uma alma
profundamente sincera.
Eu não quero tecer encómios ao poeta ; não soii um fazedor
de elogios. Não quero trepar o escriptor maranhense em
pedestal tão alto que o não possa depois enxergar. Estou jul-
gando o poeta em primeira instancia ; estou vendo-o no meio
de seus pares do Brasil e de Portugal ; não o quero equiparar
aos primeiros lyristas de seu século em todo o mundo, ainda
que, estou certo, ella seria bem recebido em tão brilhante
companhia.
Percorrei toda a collecção dos Cantos^ e convencer-vos-
heis que Seus Olhos, Rosa no Mar, Lyra, Os Suspiros, A Temr
pestade. Não me deixes, Zulmira, A Um>a Poetisa, Rola, Ainda
uma vez — adeus, A Flor de Amor, Gulnare e Mustaphá, O
Gigante de Pedra, Leito de Folhas Verdes, Y-Juca-Pirama,
Marabá, A Mãe d' Agua, Olhosi Verdes, Menina e Moça, Ve-
lhice e Mocidade, O Anjo da Harmonia, A Concha e a Virgem,
Meu Anjo — escuta, O Beijo, Saudades e algumas outras são
(1) Les Maltres d'autrefois, pag. 93.
172 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
bellissimas poesias, das mais encantadoras da lingua portu-
gueza.
Nâo faço especial menção dos Tymbiras, porque não passam
elles de um fragmento de poema sem caracter épico, d'onde
se colhem apenas alguns pedaços lyricos.
Náo é preciso citar trechos e trechos de Gonçalves Dias para
comprovar o que tenho avançado ; porque suas obras são de
íacil accesso ; elle é, com Alvares de Azevedo, Casimira de
Abreoi, Fagundes Varella e poucos outros, do numero dos
\ poetas mais populares no Brasil. Não me julgo, porém, deso-
brigado de indicar ainda algumas notações para a boa com-
prehensão do poeta.
Teve, como em parte já dissei, perfeita intuição do problema
- ethnographico em o Brasil. Não se deduz este facto da simples
consideração exterior da escolha de certos assumptos. Do
intimo de alguns cantos brotam as notas comprobatórias do
que afflrmo.
No Gigante de Pedra lè-se isto :
(( E no féretro de montes
Inconcusso, immovel, fito,
Escurece os horisontes
O gigante de granito :
Com soberba indifferença
Sente extincta a antiga crença
Dos Tamoyos, dos Pagés ;
Nem vô que duras desgraças,
Que luta^ de novas raças
Se lhe atropellam aos pés!
Viu primeiro os íncolas
Robustos das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homereas festas,
A' luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmure!
E em Guanabara esplendida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e varío.
Dos moços prazenteiros,
EI8T0BIA DA LITTXSATITRA BBABILXISA 173
E os cantos da victoria
Tangidos no boró.
E das ygaras concavas
A frota aparelhada.
Vistosa, e formosissima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mais que frágeis.
Os ventos contrastar :
£ a caça leda e rápida
Por serras, por devezas,
E os cantos da janubia
Junto ás lenhas accesas,
Quando o*tapuya mísero!
Seus feitos vae narrari
E o gérmen da discórdia
Crescendo em duras brigas.
Ceifando os brios rústicos
Das iribus sempre amigas^
— Tamoy a raça cmtigua,
Feroz Tupinambâ!
Lá vae a gente improvida,
Naçáo vencida, imbelle.
Buscando as matas ínvias,
D*onde outra tribu a expelle ;
Jaz o page sem gloria.
Sem gloria o maracál
Depois em náos ílammivomas
Um troço hardido e forte.
Cobrindo os campos húmidos
De fumo, e sangue, e morte.
Traz dos reparos hórridos
D*altissimo pavez :
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As poriuguezas quinas.
Murchos os lises cândidos
Do improvido gatUez! n
174 HISTORIA DA LITTBRATtntA BEABILBIBA
O poeta possuía a intuição histórica e etlinica d'este paiz, o
que importa um elogio, attenta a ignorância, por assim dizer
systematica, dos nossos homens de letras em tudo o que
se refere a assumptos nacionaes.
Presentiu, adivinhou intelligentemente a importância das
crenças fetichistas dos aborígenes. EUe nâo ficou em a des-
cripção puramente exterior dos costumes indigenas. Na me-
moria O Brasil e a Oceania penetrou-lhes nas crenças, e, logo
noa primeiros versos dos Tymbiras^ mostra que na poesia
comprehendia a importância d'aquella região psychalogica :
(( Os ritos semi-barbaros dos Piagas,
Cultores de Tupan, e a terra virgem
D*onde como d'um throno, emíim se abriram
Da Cruz de Christo os piedosos braços ;
As festas, e batalhas mal sahgradas
Do povo Americano, agora extincto,
Hei-de cantar na lyra... »
E' conhecido hoje o valor especial que a philosaphia e a
sciencia moderna em geral ligam ás crenças dos selvagens e
do homem lírimitivo.
Gonçalves Dias, com ser muito catholico, se não dedignou
de demorar-se no fetichismo bárbaro.
Creio que o primeiro que o elogiou por esta face partícula-
rissima foi o Sr. Teixeira Mendes ; acho-lhe toda razão, sendo
preciso ajuntar que o poeta teve em geral a intuição do estado
subjectivo das populações brasileiras, não se limitando ao
velho fetichismo tupy, como suppõe o Sr. Mendes. Os docu-
mentos d'esta asserção andam esparsos por suas obras, bas-
tando-me lembrar a Mãe d' Agua.
Outra nota muito particular da poesia de Gonçalves Dias é
a verdade e a intensidade de tons que lhe vem de seu viver
intimo, psychologico. O poeta soffreu e as recordações são a
trama perpetua de sua poesia. Ainda até nas descripções de
scenas exteriores, como acontecia ao seu coevo Dutra e Mello,
vinham as recordações assaltal-o.
Eu sou do numero d*aquelles que ainda apreciam a poesia
intima, recordativa, pessoal. Paço minhas estas palavras de
HISTORIA DA LITTEEATITBA BRABILBIRA 175
PrancescQ de Sanctis, falando das Contemplações de Victor
Hugo :
« Indietro dunque 1 acccttiamo le consolazione che il poeta
offre a sè, e ad altrui, e viviamo dí memorie. Autrefois 1 Di
rimembranza in rimembranza, di dolop© in dolore, giun-
giaino alia nostra etó Úorita, quando per noi il cielo era an-
cora azzurro ed il prato ancor verde : a ciascuna pagina di
queste poesie è attaccata una nostra memoria, un fantasma,
che ci si leva ritto dinanzi, e ci dice : Ti ricordi ? E noi bene-
diciamo la poesia, che con un tratto di peaina ci apre il regno
delia mor\jò ed evoca le ombre de nostri cari » (1).
O cónego Fernandes Pinheiro dissa uma vee que os Cân-
ticos Fúnebres de Magalhães são superiores ás Contempla-
ções de Hugo. Eu náo conheço uma igual heresia em critica
littteraria. Não cahirei no lapso de julgar superiores os Cantos
á obra magnifica do poeta francez, que se me antolha a melhor
de quantas produziu. Nem é mais aquelle lyrismo limpido
e brihante, mas de curiós horisontes das Odes e Bailadas e
das Orientaes, náo é também aquella poesia ousada, de largas
perspectivas, mas palavrosa, da Lenda dos Séculos, da Pie-
dade Suprew4i e dos últimos livros do poeta. E' um lyrismo
valente, impetuoso, ardente e ao mesmo tempo refle«ivo, me-
ditabundo, um consorcio soberbo de philosophia e poesia.
Creio não errar dizeaido ser aquelle bello livro a obra mair
irèsse do poeta francez. Os Cantos de nosso patrício não che-
gam tâo aJto ; porem supportariam muito melhor o parallelo
do que os Cânticos Fúnebres do poeta fluminense.
Em todo caso, o pensamento de De Sanctis sobre o papel
das recordações, das memorias da alma na poesia de xix sé-
culo é applicavel aos Cantos. Ha alli muita composição
mimosa que são como folhas arrancadas do coração de cada
um de nós todos os que temos soffrido na vida. Ide procural-
as, que as encontrareis.
Ainda uma vez — adeus I pôde servir de exemplo ; sBo
(1) Saggi CrUiei di Francesco de Sanctis, terza edizione, Napoli, 1874.
176 HISTORIA DA LITTEBATURA BBABILBIKA
estrophes escriptas com o sangue qu6 brota de feridas cau-
sadas por acerbos soffrimentos :
« Emíim te vejo! — emfim posso,
Curvado a teus pés dizer-te,
Que n&o cessei de querer-te,
Pezar de quanto soíTri.
Muito penei! Cruas anciãs,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado,
A não lembrar-me de til
D*um mundo a outi*o impellido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas azas dos ventos,
Do mar na crespa cervizl
Bedd&o, ludibrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males n&o sente,
Nem se condóe do infeliz!
Louco, afílicto, a saciar-me
D*aggravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida.
Passos da morte senti.
Mas quasi no passo extremo,
No ultimo arcar da esperança,
Tu me vieste á lembrança :
Quiz viver mais e vivi!
Vivi ; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez ;
Rever-me em teu rosto amigo.
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
■
Mas que tehs? N&o me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA IV
Sei a aiílicçfto quanto pôde,
Sei quanto ella desfigura,
E eu nílo vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!
Nenhuma voz me dirígesl... j
Julgas-te acaso offendida? 1
Deste-me amor, e a vida j
Que m'a darias — bem sei ; i
Mas lembrem-te aquelles feros
Corações, que se metteram
Entre nós, e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
Oh! se lutei!... mas devera
Exp6r-te em publica praça,
Como um alvo á populaça,
Um alvo aos dicterios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacriâcio acceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teua?
Devera, sim ; mas pensava.
Que de mim, ^esquecerias.
Que, sem mim, alegres dias
T'esperavam ; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me acceitcuria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu quinhão de dôr!
Que me enganei, ora o vejo ;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar ;
Erro foi, mas nfto foi crime,
Nâo te esqueci, eu t'o juro ;
Sacrifiquei meu futuro.
Vida e gloria por te amar! -
Tudo, tudo e na miséria
D*um martyrio prolongado,
HISTORIA II 12
178 HISTOBIA PA LITTEBATURA BltABlUUBA
Letito, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti conâei ;
(( Ella é feliz (me dizia)
(( Seu descanço é obra minha. »
Negou-m'o a sorte mesquinha.
Perdoa, que me enganei!
Tantos encantos me tinham,
Ta'nta illus&o me eifagava
De noite, quando acordava.
De dia em sonhos talvezl
Tudo isso agora onde para?
Onde a illusão dos meus sonhos?
Tantos projectos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
Enganei-mel... Horrendo cháos
N^essas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra,
Não pode voltar atraz!
A marga irris&ol reflecte :.
Quando eu gozar-te puderem
Martyr quiz ser, cuidei qu'era...
E um louco fui, nada mais!
Louco, julguei adomar-me
Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co*o que se chama ideial?
O meu eras tu, não outro ;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, ha ausência do mal.
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora.
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz ;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a puzera...
E eu! eu fui que a não quiz!
J
HI8T0BIA DA UTTX&ATUKA BRA8ILSI&A 179
E's d*outro agora, e p'ra sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quasi descrendo dos céos!
Doe-te de mim, pois me encontras
Em ta'nta miséria posto,
Que a express&o d*este desgosto
Será um crime ante Deos!
Doe-te de mim, que tlmploro
Perd&o, a teus pós curvado ;
Perdãol... de nâo ter ousado
Viver contente e felizl
Perdão da minha miséria.
Da dôr que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
Adeus, qu*eu parto, senhora ;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida comtigo.
Ter sepultura entre os meus :
Negou-me n'esta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz commovida
Soluçar um breve — Adeus!
Lerás porem algum dia
Meus versos, d'alma arrancados,
D'amargo pranto banhadoa.
Com sangue escriptos, ^ e ent&o
Confio que te commovas,
Que a minha dór te apiade.
Que chores, não de saudade.
Nem de amor, — de compaixfto. »
) poeta é também hábil em pintar scenas da natureza exte-
r, animados quadros da terra americana. A paisagem em
s versos ó sempre brasileira, ou se trate de scenas da vida
180 HISTOBIA DA LITTBBATUEA BRASILEIRA
social, OU da vida da natureza. Os exemplos superabundam.
Leiam estas esirophes de Rosa no Mar :
(( Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cahe :
Vem um'onda bonançosa,
Qulmpiedosa
A ílôr comsigo retrahe.
Á meiga flor sobrenada,
De agastada,
A virge' a não quer deixar!
Bóia a ílôr, a virgem bella
Vai traz ella.
Rente, rente á beira mar.
Vem a onda bonançosa.
Vem a rosa.
Foge a onda, a ílôr também
Se a onda foge, a donzella
Vai sobre ellal
Mas foge, se a onda vem.
Muitas vezes enganada.
De enfadada
Não quer deix€ur de insistir ;
Das vagas menos se espanta.
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir. »
E' uma rápida descripção d*um facto simplissimo e feita
com grande habilidade. Quando me refiro a certa viveza de
cores e de descripção em Gonçalves Dias, deva ajuntar logo
que no generoi deixou apenas pequenos quadros esparsos em
suas poesias.
Não estava ainda em moda a descripção moderníssima que
se protrae por paginas e paginas. Vejamos uma pequena
scena natural. São versos dos Tymbiras :
H Era a hora em que a flor balança o cálix
Aos doces beijos da serena brisa,
HI8T0BIA DA XJTTSaATUIlA. BRABILBIRA 181
Quando a ema soberba alteia o collo,
Roçando apenas o matiz relvoso;
Quando o sol vem doirando 09 altos montes,
E as ledas aves á porAa trinam,
E a verde coma dos frondosos cedros
Move o perfume, que embalsama os ares ;
Quando a corrente meio occulta sôa
De sob o denso véu da parda névoa ;
Quando nos pannos das mais brancas Yiuvens
Desenha a aurora melindrosos quadros
Gentis orlados com listões de fogo ;
Quando o vivo carmim do esbelto cactus
Refulge a medo abrilhantado esmalte,
Doce poeira de aljofradas gotas,
Ou pó subtil de pérolas desfeitas.
Era a hora gentil, íilha de amores,
Era o nascer do sol, libando as meigas.
Risonhas faces da luzente aurorai
Era o canto e o perfume, a luz e a vida,
Uma só coisa e muitas, melhor face
Da sempre varia e bella natureza :
Um quadro antigo, que já vimos todos.
Que todos com prazer vemos de novo.
Ama o filho do bosque contemplar-te.
Risonha aurora, ama acordar comtigo ;
Ama espreitar hos céus a luz que nasce,
Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo.
Já tímidos reflexos, já torrentes
De luz, que fere obliqua os €dtos cimos. »
E* sóbria ; mas é bello ; a simplicidade aqui nSLo é filha da
>breza, mas sim da doce placidez do espirito.
Fora possível estender mais esta analyse ; tenho, porém,
*e6sa em dizer alguma cousa do dramatista, do critico e do
hnologo. O que escrevi do poeia é sufflciente para dal-o bem
conhecer.
O theatro de Gonçalves Dias é todo de obras de sua verde
)ciclade.
:::onsta dos dramas Boabdil, Patkull^ Beatrice de Venci e
182 HISTOBIA DA LITTSRATUKA BRABILIIBA
Leonor de Mendonça. Traduziu também a Noiva de Messina
de Schiller.
No theatro Gonçalves Dias não se elevou tSo alto como no
lyrismo; ainda assim seus ensaios dramáticos sâo revela-
dores de grande talento. Pôra para desejar que as nossas
emprezas theatraes levassem sempre á scena.os dramas do
auctor meLranhense, escriptos em linguagem ampla e correcta,
e os accompanhassem dos dramas de Agrario^das comedias de
Penna, e dos dramas e comedias de Macedo e Alencar.
Seria conveniente) dar de vez em quando aJguma cousa dos
velhos, Magalhães, Porto-Alegre, Norberto Silva, Ferreira
França e dos mais modernos VareJSo, Castro Lopes, Machado
de Assis, Távora e muitos brasileiros quô I6m cultivado
o género. No meio de muita frandulaguem sem valor, encon-
Iram-se muitos trabalhos de merecimento, que o grande João
Caetano náo se dedignava de levar á scena.
Tenhamos n'isto e no mais um poucachinho de patriotismo.
Leonor de Mendonça do poeta maranhense, por exemplo, é
um bellissimo drama.
O Conservatório do Rio de Janeiro ineptam^nte em 1846
poz-lhe embaraços á representação a pretexto de ser incor-
recto de linguagem I...
Singularissima censura esta, tratando-se de um oscriptor,
como o nosso poeta, de todos os nossos auctores o mais
preoccupado em cingir-se aos modelos clássicos e mais che-
gado ao sestro de aportugxwzar a linguagem, isto é, aflnal-a
pelo tom do velho reino !...
Se eu tivesse de fazer uma censura a Gonçalves Dias pelo
lado da linguagem, seria justamente a inversa & que lhe foi
dirigida pelo Consen^atorío, a saber, o pouco brasiteirismo de
sua lingua e de seu estylo. N'este ponto Alencar teve a cora-
gem de romper com todos os velhos preconceitos, deixando
doflnitivamente de lado, por imprestáveis, os rigores lusi-
tanos. Basta^^ isto para ser o celebre cearence um benemérito
das letras brasileiras.
Gonçalves Dias para vingar-se dos seus gratuitos censores,
conforme é fama, escreveu as magnificas Sextilhas de Prei
Antão oní estylo e lingruagem do começo do século xvii.
HISTORIA DA LITTBRATimA BBABILEIBA 183
LeúnoT de Mendonça é precedida de um excellente prologo^
onde o auctor expõe os seus desígnios e ideias sobre a axte«
Ouçamol-o, falando de sua própria obra : « Direi, não o que
flz, mas o que pretendi fazer.
A acção do drama é a morte de Leonor de Mendonça por
seu marido : dizem os escriptores do tempo que D. Jayme,
induzido por falsas apparencias, matou sua mulher ; dizem-no
porém de tal maneira, que facilmente podemos conjecturar
que não foram tão falsas as apparencias codno elles nol*as
indicam. O auctor podia então escolher a verdade moral ou a
verdade histórica, Lecmor de Mendonça culpada e condem-
nada, oui Leonor de Mendonça innocente e assassinada. Certo
que a primeira offerecia mais interesse para a scena e maiis
moral para o drama ; a paixão deveria então ser forte, tem-
pestuosa e frenética, porque fora do dever não ha limite nas
acções dos homens : haveria cansaço o abatimento no amor
e reacções violentas para o crime, haveria uma lucta tenaz e
continua entre os sentimentos da mulher e os da esposa, entre
a mãe e a amante, entre o dever e a paixuo : no fim estaria o
remorso e o castigo e n'elles a moral. Ha n'isto matéria para
n>ais de um bom dramsu
Leonor de Mendonça, innocente e castigada, será infeliz,
desesperada ou resignada. Ora, o romorso, é mais instructivo
do que o desespero e do que a resignação, como o crime
é mais dramático do que a virtude : pena é que assim seja,
mas assim é. Se em prova dMsto me fosse preciso trazer algum
exemplo, eu citaria o Paliero de Byron e o Faliero de Dela-
vígne.
Porque então segui o peior ? E' porque tenho para mim que
ioda a obra artística ou lítteraria deve conter um pensamento
severo : debaixo das flores da poesia deve esconder-sei uma
verdade incisiva e áspera, como diz Victor Hugo, em cada
mulher formosa ha sempre um esquehUo.
Foi este pensamento, a fatalidade. Não aquella fatalidade
implacável que perseguiu a família dos Atridas, nem aquella
outra cega e terrível que Wemer descreve no seu drama —
Vinte e quatra de Fevereiro. E' a fatalidade cá da terra a que
eu quiz descrever, aquella fatalidade que nada tem de Deus
184 HISTOBIA DA LITTEBATURA BRÂ8ILSIBA
e tudo dos homens, qufii é filha das circumstancias e que
dimana toda dos nossos hábitos e da nossa civilisaçâo ; aquella
fatalidade, emfim, que faz com que um hoonem pratique tal
crime porque vive em tal tempo, n'estas ou n'aquellas cir-
cumstancias. Repito : não analyso o que fiz, digo apenas o
que era meu desejo fazer.
Leonor de Mendonça não tem nem um só crime, nem um
só vicio ; tem só defeitos. D. Jayme nâo tem nem crimes nem
vicios, tem também e somente defeitos. Os defeitos da du-
queza sãQ filhos da virt-ude ; os do duque são filhos da des-
graça : a virtude que é santa, a desgraça que é veneranda.
Orai, como o que liga o homens entre si não é, em geral, nem
o exercicio nem o sentimento da virtrUde, mas sim a co-relação
dos defeitos, a duqueza e o duque não se poderiam amar, por-
que eram os seus defeitos de differente natureza. Quando
algum dia a luta sa tra.vasse entre eunbos, o mais fori,e espe-
daçaria o mais fraco ; e assim foi.
Ha ahí também outro pensamento sobre que tanto se tem
falado e nada feito, e vem a ser a eterna sujeição das mu-
lheres, o eterno dominio dos homens. Se não obrigassem
D. Jayme a casar contra a sua vontade, não haveria o casa-
mento, nem a luta, nem o crime. Aqui está a fatalidade, que
é filha dos nossos hábitos. Se a mulher não fosse escrava,
como é de facto, ^ D. Jayme não mataria sua mulher. Houve
n'essa morte a fatalidade, filha da civilisaçâo que foi e que
ainda é hoje. »
Estas ideias são sans e não destoam do merecimento da
obra. Não ha n'esta aquella riqueza de pensamentos e finas
observações sobre os dominios recônditos da aJma humana,
que fazem o assombro de quem lê Shakespeare. Mas quantos
compartem com o grande dramatista igual thezouro? Nem
Byron, e nem o próprio Goethe. Por essa face Shakespeare
campêa isolado. Pôra um absurdo tomar essa medida para
unidade comparativa.
Diz-se vulgarmente que uma obra dramática só é bem apre-
ciada quando é vista no palco. O próprio Gonçalves Dias o
repete no alludido prologo : « Se o drama não fôr represen-
tado, será bom como obra litteraria, mas nunca como drama. »
HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA 185
Tenho medo de dizer uma herezia; porém, peJo que me
toca, aprecio mais os dramas, especialmente dos grandes
mestres, quando os leio. Se, alem da leitura, occorrer uma
boa representação, meu conhecimento da obra nâo augmen-
tará grande coisa, quanto á obra litteraria em si.
Se nunca li o drama e só o ouvi representar, nada sei dizer
sobre elle, porque o que apreciei no palco foi o trabalho dos
actores, sua voz, seus gestos, seu jogo scenico, seu savoir dire
e soogít fcáxe em scena, e nâo a creação do poeta directa-
mente.
Uma representa^ção theatral é uma arte que se sobrepõe á
outra e a vela em grande parte. O talento dos actores produz
uma como segunda creação que pôde até certo ponto difflcul-
tar a exacta intelligencia da primeira.
Nunca vi os dramas de Gonçalves Dias em scena. Creio
nâo ser um impecilio para os apreciar. Leonor de Mendonça^
por exemplo, bem representada, bem interpretada por actores
de forte vôo deve ser grandemente drsimatica. De todo o
drama o Acto II, que constitue todo elle o Quadro terceiro, é
o mais bello, especialmente nas scenas V e VI. As scenas pas-
sam-se em casa do velho Affon^ Alcoforado, entre elle e seus
filhos António, Manoel e Laura. O moço Anionio Alcoforado
tem já feito declarações á Duqueza, com quem deveria ter uma
entrevista á noite justamente na véspera da partida do moço
para a Africa. A noite é caliginosa, medonha ; todos acham
imprudente a sabida do moço a deshoras e só. O velho pae não
se pode conter e o interpela. Trava-se forte luta no espirito de
António Alcoforado entre o respeito paterno, o amor á Du-
queza, o dever de não lhe marear o nome, confessando o seu
intento, e a obrigação de não mentir. O lance é bello, e eil-o
aqui :
ACTO II, SCENA V,
(O Velho Alcoforado, Laura, António Alcoforado, Manoel, que entra).
Manoel — Eis a espada, meu irmão. Boas noites, Laura.
Laura. — Boas noites, irmão.
186 HISTORIA DA LITTBRAtintA BAABILBISA
Manoel. — A vossa bençfto, meu pae.
O Velho. — Deus vos abençoe. Trocastes a vossa espada T
Manoel. — Nio, meu pae, emprestou.
O Velho — Como ! pois ides sahir, António ?
Alcoforado. — Sim, meu pae : estava só á espera da vossa
benção e da vossa permissão.
O Velho. — Iáe&...
Alcoforado. — Vou...
O Velho. — Concebo a vossa hesitação. Como é amanhã o
dia de finados, ides orar pelos mortos, como é de um bom
chrístão.
Alcoforado. — Não, senhor.
O Velho. — Não I... Ah 1 sim I... Como sois bom filho, ide-s
talvez antes de vos partirdes, orar sobre a sepultura de vossa
mãe.
Alcoforado. — Não, senhor !
O Vdho. — Não !... Ah I bem. Como sois bom amigo, ides
talvez despedir-vos dos vossos amigos.
Alcoforado. — Não, senhor.
O Velho. — Não ! Então a que sahis ?
Alcoforado. — Não me interrogueis, meu pae.
O velho. — Ides sozinho ?
Alcoforado. — Sozinho.
O Velho. — E não quereis leivar o nosso criado na vossa
companhia 7
Alcoforado. — Não o posso levar.
O Velho. — Pois eu vos digo que não sahireis sem que me
digais primeiro o que vos obriga a sahir.
Alcoforada. — Peço-vos que me não interrogueis, meu pae.
0 Velho. — Que vos não interrogue 1... Pretendeis sahir a
deshoras e sem testemunhas, de espada e com os vestidos con-
certados, e não quereis que vos interrogue I... Ondes ides vós
senhor?
Alcoforado. — Eu vol-o supplico.
O Velho. — Oh ! isto merece uma explicação, Retírai^vos.
f
BI8T0BIA DA LITTXSATUBA BBABILEIBA 181
SCENA VI.
(O Velho Alcoforado, Alcoforado).
O Velho. — Vede a que me obrigam os voesos mysterios,
que oxalá não sejam escandalosodl... Fazeis que um pae
expulse seus filhos da sua presença, porque elle terá talvez
de voa dizer algumas tfessas rigidas verdades que por elles
náo devem ser ouvidas. Onde ides, mancebo ?
Aleoiorado. — Senhor, náo o posso dizer.
O Velho. — Vós náo ides cumprir com os deveres de amigo,
nena de fllho, nem de christáo ; ao que ides, pois 7 Passar tal-
vez a aoite em algum lupanar, ou sobre a banca do jogo, ou
em orgias de homens intemperantes e envilecidos, ou escalar
algum muro como ladráo nocturno para roubar a honra de
alguma família honesta, ou bater surrateiramente a alguma
porta humana para pagar a recepção cordial que durante o
dia vos fez algum homem honrado e franco com a traição de
um libertino. E* infame !
Alcoforado. — Meu pae.
O Velho. — Dizei, senhor, dizei na vossa consciência que
não ides praticar alguma accao criminosa.
Aleoiorado. — Em consciência, náo o sei.
O Velho — Sei-o eu, senhor I... Sei que o homem que mar-
cha treda e cautelosamente apalpando as trevas, e que não
ousa confessar altamente as suas acções, muito se assimilha
aquella ave da máo agouro, cujos olhos não podem supportar
a luz do dia, cujo canto é um annuncio de desventura ; sei
que tão grande mysterio pôde encobrir uma virtude muito
preclara, ou um vicio muito vergonhoso. Dizei que ides pra-
ticar uma d'essas virtudes cobertas com o preciso manto da
modéstia, diaphano para Deus, impenetrável para os ho-
mens...
Alcoforado. — Nunca vos menti, senhor...
O Velho. — E se o houvésseis feito, a Providencia Divina
188 HISTORIA DA LITTERATURA BRABILSISA
que VOS guiasse no caminho da vida, porque teríeis morrido
para mim. Talvez me julgueis severo por me crerdes pouco
sensível, o por suppordes talvez que o tempo, que gelou o
sangue nas minhas veias, já me fez esquecer da quadra em
que fui da vossa idade, emi que também fui novo e chedo de
esperanças na vida e em que tambeim dizia comigo o que
agora lá vós estaes dizendo comvosco : Além n'aquelle marco
deixarei este caminho e tomarei outra vereda. Não ; sou indul-
gente e pouco severo a ponto de vos confessar que também
fui novo, e que alguns erros commetti quando tinha a vossa
idade. Pois quem é perfeito n'este mundo ? Mas eu vos asse-
guro que a minha vida escripta, comquanto em parte me pe-
zasse d'ella, não me traria um só remorso, nem me desconcei-
tuaria a minha velhice ; asseguro-vos ainda que em vésperas
de um dia duas vezes sanctiflcado pela religiáo e pelo senti-
mento, nunca 8d)andoneà eu o tecto de meus pães, como
homem sem crença e filho pouco respeitoso, para me entregar
ás carícias de uma creatura sem pejo. Ha limites em tudo,
mancebo.
Alcoforado. — Senhor, porque me suppondes capaz de tão
negro feito, ou porque vos mereço tal conceito ? Acaso me
tenho eu mostrado revel aos vossos conselhos, ou terei desa-
prendido as vossas lições ? Não, senhor : se não vou praticar
uma virtude, também não é o vicio nem o críme quem lá fora
me está chamando. Não é criminosa a acção que vou praticar :
ju«ro-vos...
O Velho. — Jurai, senhor, jurai ! No meu tempo o hocnem
que ambicionava uma espada, ou que já a podia trazer com-
sigo, tinha o juramento por uma cousa veneranda e sagrada,
e usava d'ell6 apenas nas circumstancias de momento. Era o
vassallo que jurava lealdade a seu rei ; era o cidadão que
jurava amor a sua patría ; era oi guerreiro que jurava morrer
com o seu companheiro d'armas. Por isto o juramento era
entre elles uma religião, e os mais altos como os mais humil-
des não se atreviam a quebral-o. Hoje porém fizeram d'elle
uma formula para os usos da vida, e a criança desde o berço
aprende a balbuc/iar essa palavra vazia de sentido, que n'outra
tempo foi symbolo de fé e era condão de prodígios.
HISTOBIA DA LITTSEATUBA BKA8ILEIBA 18^
Alcolorado. — Como vos poderei eu conflar um segredo que
me não pertence 7 Ha bem tempo que vô-lo teria dito, se elle
fosse todo meu, e se a minha confissão a ninguém mais com-
promeUesse. Eu vos respeita como meu pae, eu vos amo como
amigo, eu vos estimo como homem probo e cheio de integri-
dade ; sei que é impossível trahirdes um segredo, mas devo
eu trahil-o primeiro? Aconselhae-me, vós que tendes expe-
rencia da vida ; dizei-mo, que sois meu mestre ; posso eu
íazô-lo ?
O Velho, — O segredo é inviolável ; tendes razao.
Alcoforado. — Deixai-me então sahir, bom pae. Oh 1 se sou-
bésseis quanto soffro por vos não poder conflar tudo I... Sede
indulgente mais uma vez, talvez a derradeira. Esta demora
me tem martyrisado ; largos annos tenho vivido n'estes cur^
tos instantes I Deixai-me partir.
O Velho. — E não ha perigo 7
Alcoforado. — Nenhum ! nenhum ! eu vo-lo asseguro.
O Velho. — E aquella espada 7
Alcoforado. — Foi um capricho de meu irmão que não sabe
a que vou. Dir-lhe-hia um segredo que vos não digo a vós 7
Bem vedes que nada arrisco : dexarei a espada, e é até melhor
que eu vá desarmado.
O Velho. — Levarás a espada 1
Alcoforado. — Bom pae, quanto vos agradeço.
O Velho. — Vae, e Deus seja comligo.
Alcoforado. — Irei e voltarei bem depressa {cingindo a
espada) o mais depressa que eu puder. Vereis que nada me
acontece. Meu Deus I como partiria eu tão alegre, se de alguma
cousa me arreceiasse.
O Velho. — Vae, meu fllho.
Alcoforado. — Nada recieis. Adeus, bom pae. (Vae-s^.)
O Velho (ficando pensativo : alguns dobres ao longe.) —
Meu fllho I meu fllho I... (Vae-se.)
E' significativo tudo isto.
Meu desejo seria fazer uma historia exhaustiva da littera-
\
190 HI8T0BIA DA LITTBBATUBA BBASILEIBA
tura brasileira ; tudo indagar e tudo deixar ver. Do theatro
de Gonçalves Dias haveria bastantes observações a tentar ;
mas é urgente rezumir e passar adiante.
O poeta dos Tymbiras deixou, entre outros pequenos escri-
plos em prosa, quatro que merecem especial menção e sâo
estes : Reflexões sobre os Annaes históricos do Maranhão por
Berredo, Resposta á Religião, Amazonas se ellas existiram no
Brasil, O Descobrimento do Brasil por pedro Alvares Cabral
foi devido a um mero acaso ? São ensaios sobre» a historia de
nossa pátria.
São escriptos n*aquelle estylo claro, simples e barmonioso
da proisa de Gonçalves Dias, uma das melhores do Brasil« o
que se pôde bem ver nos bellos prólogos das diversas coileo-
ções de Cantos e de Leonor de Mendonça.
N'este numero deveria também contar a celebre critica que
fez da Independência do Brasil de Teixeira e Souza. Isto des-
perta-me uma observação que não devo calar.
Os escriptores da épocha romântica quasi tanto como os de
hoje atacavam-se com desuzado encarniçamento. Gonçalves
Dias, de ordinário tão pacato, zurziu desapiedadameaile o
pobre poeta dos Três Dias de um. Noivado, por causa de seu
poema épico A Independência do Brasil. Seguiu-se José de
Alencar que flagellou horrivelmente a Confederação dos Ta-
moys de Magalhães ; depois Bernardo Guimarães sovou niedo-
nhamente os Tymbiras de Gonçalves Dias e Franklin Távora
a Iracema de Alencar.
Foram criticas azedas, de caracter puramente polemistico
e irrita.ntei, que tiveram porem grande echo.
As Reflexões de Gonçalves Dias sobre os Annaes de Berredo
são um bello artigo, onde lança pela primeira vez o seu brado
de sympathia pela raça tupy, indicando o muito que lhe deve-
mos. No mesmo espirito é o artigo em resposta ao periódico
A Religião. A memoria sobre As Amazonas é uma resposta a
um programma do Instituto Histórico apresentado pelo impe-
rador D. Petro II.
O poeta revelou-se ahi grande conhecedor dos chronistas e
viajantes dos nossos tempos coloniaes, e com subido critério
HISTO&IA DA LITTBSATUBA BRABILBIRA 191
desfez o rosário de sonhos e exaggeros dos que crearam e pro-
pagaram no Brasil similhante lenda.
Chamo em especial a attençâo para as paginas em que Gon-
çalves Dias fala e insiste largamente sobre as decantadas
pedras verdes, as pedras das Amazonas, que mais tarde vie-
ram a servir para enganosas pretenções de Barbosa Rodri-
gues. Este em seus escriptos nunca citou o poeta (i)...
Ig^ualmente interessante, ou por ventura superior, é o
escripto sobre o descobrimento do Brasil. Gonçalves Dias com-
bate n'elle, victoriosamente ao meu vêr, a ideia de ler sido
proposital a chegada ao Brasil da parte de Pedro Álvares Ca-
bral, ideia esta sustentada galhardamente por Joaquim Nor-
berto de Souza Silva.
Não me é possível, descer a uma analyse meiída de taes
escriptos nem mesmo da interessantíssima memoria O Brasil
e a Oceania. Esta é um verdadeiro livro em que o poeta passou
em revista o que nos chronistas e viajantes se encontra sobre
os povos selvagens do Brasil e da novíssima parte do mundo
no intuito, um pouco frívolo em verdade, de vêr quaes d'elles
estavam em condições mais adequadas para receber a civili-
saç&o christan.
A parte relativa á Oceania, pelo muito que já sabemos de
seus antigos habitantes, graças sobretudo i sciencia ingleza,
está hoje muito atrazada. O que se refere aos índios do Brasil
ainda agora, apezar de bons progressos reaíisados por este
lado, pôde lêr-se com proveito.
Entre outros destaco o interessante capítulo — Se os ame-
ricanos caminhavam para o progresso ou para a decadência ;
o que pensamos dos tupys.
Leiam-se todos estes trabalhos do escríptor maranhense e
ver-se^ha bem nitidamente que elle não foi só um notável
lyrista, foá também um destro dramaturgo e um homem sabe-
dor em assumptos de historia e ethnographia brasileira.
Agora, porém, é tempo d^ ultimar este perfil e o farei em
poucas palavras.
Tanto quanto soube fazel-o, mostrei a {ormação biológica
do talento de Gonçalves Dias, indicando o que elle deveu ás
(1) Vide Obroê PoêihumoB de Gonçalves Diasi toL Hl» pag. 270 e seguintes.
192 HISTOBIA DA LITTEBATURA BRABILBI&A
raças que o formaram e ao meio em que viveu, isto é, encarei-o
no seu desenvolvimento ontogenetico e em suas relações
oom a philagenia dos povos de que descende, nâo esquecendo
a adaptação ao ineio de Coimbra, do MsLranhio e do Rio, onde
viveu principalmente.
Está dito tudo ? Nâo. Resta ainda alguma cousa para cara-
cterisal-o de vez. Resta saber o que d'elle flcou e ficará de pé
para o pensamento do povo brasileiro, emquanto existir um
povo brasileiro...
A lucta pela existência na litteratura e na arte tem dois mo-
mentos capitães : um que é feito pelo próprio escriptor em
sua vida, e outro que é feito pela consciência publica e pela
historia depois de sua morte. Este ultimo é o que tem maior
alcance e definitivo valor (1).
Têm-se visto mediocridades, ajudadas por um meio pro-
picio, levantarem-se em falsas muletas e suspender as cabe-
ças acima do nivel commum, a ponto de todo o mundo olhar
para ellas. Mais tarde ha uma reversão, allue-se o terreno e lá
se vae por elle a dentro a oollossal figura, que estava trepada
nâo em pedestal de barro, conforme a figura biblica, mas em
pernas de páo, segundo o brinquedo de nossos camponios...
A* vezes também dá-se o contrario ; o talento e o próprio
génio nâo podem abrir caminho em seu tempo, ou só o
podem limitadamente. Mais adiante dá-se o que se pôde cha-
mar a lucta reversiva pela vida no seio da historia e as ideias
batidas, e repellidas outr'ora sahem victoriosas d'essa pugna
posthuma.
A historia da sciencia e a da litteratura estão cheáas de phe-
nomenos similhantes. Victor Cousin não será um exemplo do
(1) Esta linguagem tomada a Darwin e Hâckel é aqui a mais própria para
dar a explicaçáo dos phenomenos litterarios. Nem é uma novidade em meus
escriptos, nomeadamente na LitteratU7*a Brasileira e a Critica Moderna^
nos Eêtudos êobre a Poeêia Popular do Brasil, na Introducção á Historia
da Litteratura Brasileira^ e n'este livro, principalmente no cap. — Tfieo
riat da historia do Brasil — publicado ha muito nos Lucros e Perda» e
na Revista dos Estudos Livres (de Lisboa.)
Não se deve perder de vista que a maior parte d'esta obra já tinha sahido
impressa em jornaes e periódicos, antes de apparecer em livro. E' assim qve
na Gcueta de Noticias de 23 de dezembro de 1886 sahiu um fragmento
d'ella em que vem bem accentuada a applicaç&o da lucta darwiniana na
litteratura e nas oòrcts cParte: E'o cap. I d'este volume.
filBTOBIA DA LimSATintA BBA8ILXISÁ 193
primeiro caso? Shakespeare e Lamarck não serão do segundo?
O nosso Gonçalves Dias, no seu pugnar pelas ideias, pelo
bello e pela gloria, não foi nem um derrotado, nem um vicio-
ríoso d*esses que fazem o seu caminho por entre cem bata-
lhas. Elle estava mais ou menos n'altura de seu meio e de seu
momento histórico, e esse momento era uma epocha de enthu-
siasmo e esperanças para este paiz.
O poeta achou a formula própria d*essas aspirações.
D^^esse syiichronismo entre o seu sentir e o sentir de sua
pátria n'um momento dado é que lhe vem o mérito e a natu-
reza de sua gloria : uma gloria plácida e doce, sem ruidos ;
mas sem abatimentos e eclipses.
Que é que ainda vive d'elle, e parece que viverá sempre ?
Uma dúzia de poesias lyricas, e certamente das melhores em
que uma vez se vasou a lingua de Camões.
CAPITULO
Poesia. — Terceira phase do romantismo.
O romantismo brasileiro não ficou estacionado em sua se-
gunda phase, o indianismo ; passou adiante e foi espreitar o
que se fazia no grande mundo, no estrangeiro, para implantar
novos achados, novas conquistas em nosso paiz.
Entretanto, parece singular que o systema litterarío, que
mais parecia coadunar-se ao espirito nacional, tenha sido
justamente aquelle que menos seiva revelou e menos fructos
produziu. E assim foi ; o indianismo só contou dois grandes
cultores n'este paiz, Gonçalves Dias na poesia e José d^Alencar
no romance.
Os outros nossos escriptores caminharam pol* diverso lado,
msioRu n 13
194 HISTOBIA DA LITTESíIlTTTSA BRABILBISA
e, se por acaso cultivaram de passagem o género, íoi isso
como um limitado preito prestado a tcLo illustres chefes.
Magalhães, por espirito de imitação, escreveu a Contede-
ração dos Tamoyos ; Norberto Silva escreveu, em igual espi-
rito, suas Aifíiericanas ; Machado de Assis, pelo mesmo mo-
tivo, as suas ; mas isto íoi a excepção.
O mesmo em Franklin Távora, com o seu romance Os índios
do Jaguaribe, e Junqueira Freire, com seus versos O Hymno
da Cabocla. São casos isolados. Tal se pôde dizer dâ Mello
Moraes Filho, com seus Escravos Vermelhos e seus Mythos
e Poemas e de Araripe Júnior, com Jacyna-a Marabá.
Em rigor, só conheço dois cultores systematicos e teimosos
do indianismo : Macedo Soares, no sul, com suas poesias
Almas Errantes^ A Maldição do Piaga, O Canto da Indiana^ e
outras, e Santa Helena Magno, no norte, em seu livro dos
Harpejos Poéticos.
Macedo Soares, porém, bem cedo abandonou a poesia, atí-
rando-se á jurisprudência e á linguistica, e Santa Helena
Magno era preferível nos seus versos de caracter mais geral.
Posteriormente só Vilhena Alves e Severiano Beeerra na
poesia, José Veríssimo no conto e Marques de Carvalho no
romance têm cultivado mais ou meinos o indianismo. Em
regra, repito, o género só teve no Brasil dois cultores de ele-
vada estatura : o poeta do Maranhão e o romancista do Geará.
Os outros dedicaram-lhe um ou outro momento rápido de at-
tenção.
O indianismo não teve forças para constituir-se principio
dominante e avassallar todas as intelligencias.
Apezar do talento de Gonçalves Dias, os jovens poetas,
seus contemporâneos. Alvares de Azevedo, Bernardo Guima-
rães^ Aureliano Lessa, Almeida Freitas, Silveira de Souza^
Laurindo Rabello, José Bonitacio, Félix da Cunha^ Junqueira
Freire, Franco de Sá, Augusto de Mendonça, seguiram outros
caminhos. E' a plêiada que constitue a terceira phase do ro-
mantismo brasileiro.
Podem-se-lhe juntar os nomes de Trajano Galvão, Pedro de
Calazans, Teixeira de Mello, Costa Ribeiro, Franklin Dória,
Casimvro de Abreu, BUtenoourt Sampaio, Bruno Seabra, Pa-
HI8T0BIA DA LITTBRATITBA BBA8ILXIRA 195
gundes Varella, José Maria Gomes de Souza^ Pedro Luiz,
Souza Andrade, J. Coriolano, Gentil Homem, Joaquim Serra,
Rozendo Moniz, Ferreira de Menezes e vinte outros.
O leitor não esmoreça... Tantos nomes, e ainda está na
terceira phase do romantismo e entre os poetas... Seria um
não acabar mais, se fora a desenvolver toda essa gente e
outros. tantos que ainda ahi faltam.
Felizmente em historia litteraria dá-se alguma cousa de
parecido ao que acontece em grammatica. Ahi não ha neces-
sidade de declinar todos 06 nomes e conjugar todos os verbos.
Dão-se os paradigmas das declinações e conjugações regulares
e- tanto basta. A indicação dos phenomenos irregulares vem
completar a theoría e ilca tudo acabado.
O mesmo pi6de-se ir aqui praticando ; ha poetas que se con-
jugam por outros ; basta referil-os aos seus respectivos para-
digmas. Assim será que dos muitos acima lembrados, bastará
conjugar os irregulares, quero dizer, bastará interrogar de
perto os espíritos originaes, aquelles que de qualquer forma
e em qualquer gráo iíiíluiram no desenvolvimento littera-
rio do paiz.
Não se espante, por outro lado, o leitor de não ver entre
tantos poetas, alguns bem medíocres, os nomes de Manoel de
Macedo e Machado de Assis, por exemplo. Peço-lhe para não
esquecer que elles o outros irão figurar entre romancistas c
dramaturgos.
Manoel António Alvares de Azevedo (1831-1852). E' um
dos poetas mais lidos e amados no Brasil ; elle mais pelos
estudantes e Casimiro de Abreu mais pelas moças. Gonçalves
Dias, Castro Alves e Fagundes Varella vêm logo após na popu-
laridade. Isto no Brasil em geral ; porquanto, no norte em
especial, nenhum é mais lido e mais recitado do que Tobias
Barretlo, sendo para lembrar que a notoriedade d*osle tende
a augmontar em todo o paiz, ao passo que a dos outros leni
permanecido estacionaria.
Vê-se bem que me reíiro ao puro movimento romântico ;
hodiernamente novos poetas, alentados por outros impulsos
c por outros ideiaos, vão tomando a dianteira c é bom possivol
196 HI8T0BIA BA LITTBRATUBA BBABILBX&â.
que algum venha a gozar brevemente de grande popularidade.
Como quer que seja, ainda entre eJles nâo existe nenhum
que haja angarriado, entre os oontemporeanos Oi enorme pres-
tigio desfructado pelos cinco românticos ha pouco lembrados,
nem até a influencia de segunda ordenu exercida por Jun-
queira Freire e Bernardo Guimarães. Mas, por emquanto,
ainda é cedo. Em todo caso, ninguém fará esquecer a figura
sympathica do sonhador da Lyra dos Vinte Annos.
Este moço nao tem biographia no sentido technico e mono-
tono da palavra. Foi filho de um estudante de direito, natural
do Rio de Janeiro, e que fazia seu curso em S. Paulo. O
menino nasceu n'esta ultima cidade n'aquelle memorável
anno de» 1831 que viu sahir do Brasil D. Pedro I e inaugurar-
se a Regência. O menino não devia passar nunca de estu-
dante.
Quando o segundo reinado se inaugurava em 1840, o pe-
queno começava seus primeiros estudos. Em 1847 bachare-
lava-se em leiras no Imperial Collegio de Pedro 2.*, em 1848,
no anno da revolução de Pernambuco, já o heróico mancebo
achava-se em S. Paulo a cursar os estudos jurídicos. De 48 a
5i Azevedo viveu n'aquella cidade.
N'estes quatro annos escreveu elle tudo que deixou. Fal-
leceu em abril de 52 no Rio de Janeiro.
O decennio de 46 a 56 é a phase culminante do romantismo
brasileiro, já o disse, e não é escusado repetil-o para lembrar
que a figura mais alta da epocha é, após Dias e Alencar, incon-
testavelmente o moço auctor de Macário.
Qualquer que íeja nossa actual presumpçâo e o nosso alTc-
ctado desdém de hoje pelas nossas Faculdades de Direito, des-
dém reflexo e de imitação, sem fundamento serio, a historia
não poderá negar terem sido essas Faculdades a grande pepi-
nièrc d'onde têm sabido os mais notáveis obreiros de nossa
politica e de nossas leiras.
O tempo de Alvares de Azevedo fod, especialmente em S.
Paulo, uma phase de agitação, de liberalismo, de enthu-
siasmo, do ronioonionto de ideias e opiniões. Alli se acharam
reunidos aquelles moços que levaram por dante os dois
maiores pnenomcnos da litteratura da epocha.
HI8T0BIA DA LITTERÁTT7SA BBASILEIBA 197
Em Azevedo melhor do que e»m nenhum outro distingo eu
os dois symptomas : l.® é elle um producto local, indígena,
filho de um meio intellectual, de uma academia brasileira;
2."* arranca-nos de uma vez da influencia exclusiva portugueza.
Antes de Azevedo, os outros chefes, coíno Porto Alegre,
Magalhães e Gonçalves Dias, tinham ido estudar na Europa.
Já nem falo nos escriptores coloniaes, porque quasi todos
elles fizeram cursos no velho mundo.
A crèaçcLo de faculdades brasileiras foi de um alcance intel-
lectual extraordinário ; logo na esphera politica e administra-
tiva começamos a ter homens, como Euzebio, Zacharias,
Nabuco, Rio Branco e oitenta outros qua sâo filhos de aca-
demias nacionaes e alguns d'elles não puzcram jamais os
pés na Europa, ou os puzeram rapidamente. Foram sempre
os melhores. O mesmo se deu na litteratura. Azevedo, Ber-
nardo Guimarães, Junqueira Freire, Macedo, Agrario, Alen*
car, Lessa, Laurindo, Penna são filhos de escolas nacionaes e
com elles tudo o que ha de mais illustre em nossa vida espiri-
tual no XEX século. Penna só foi ao velho mundo colher a
morte e Alencar apressal-a mais.
A litteratura de um povo incipiente deve ter desses obreiros
afferrados ao solo, d'esses que preferem ficar no seu paiz,
conservando o pouco que saíem, a ir esbanjal-o por ahi al-
gures.
Bem profundas são as palavras de Jacob Grimm : « E' pre-
ferível aprender sem viajar do que viajar sem aprender ;
porque o menos que pôde succeder é esquecer o pouco que
se sabe no meio do muito que se ignora. »
Magnifico pensamento de um grande homem e que deveria
ser uma espécie de imperativo categórico para os escriptores
brasileiros.
O segundo feito de Azevedo, que o compartilha com seus
companheiros de luctas, é, ao envez do que se poderia pensar,
um corollario do primeiro. Desde que não houve mais neces-
sidade de ir a Coimbra buscar instrucção, desd-e que se podia
ficar na pátria e educar o espirito, não houve mais o mono-
pólio dos auctores da antiga metrópole.
Não ha nada mais escusado na esphera dos phenomenos
198 HI8T0BIA DA LITTEBATUBA BRABILSOtA
inlellectuaes do que a pretençáo d^alguns escriptores portu-
guezes quererem insinuar-se como intermediários entre nós
e a sciencia e litteratura européas I...
Pois se posso ler o darwinismo em Darwin, o comlisnio
em Comta, o pessimismo em Schopenhauer^ a philosophia do
Inconsciente em Hartmann ; se posso ler o meu Hâckel, o
meu Strauss, o meu Ihering, o meai Noiré, o meu Spencer ;
se nâo conheço melhor Hamlet do que o de Shakespeare, nem
consta haver melhor ChUd-Harold do que o de Byron, psira
que ir ali a quem quer que seja pedir auxilio 7
Azevedo comprehendeu-ò logo, e andou sempre a lembrar
e a citar os bons escriptores gregos, latinos, inglezes, ita-
lianos, allemães e fraiicezes. Especialmente Shakespeare,
Tasso, Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand são os
seus auctores predilectos.
Para o universalismo litlerario de nosso romantismo, espe-
cialmente na phase historiada agora, parece ter sido de grande
influxo a acção mental exercida na mocidade do tempo, íjup
se preparava no Rio de Janeiro para os cursos superiores, por
um punhado de estrangeiros illustradissimos, especialmente
inglezes e allemães, que eram então a gloria do magistério
secundário no Brasil.
Por esta face e n'este sentido devo aqui consignar, como
operários eméritos de nosso progresso mental, os nomes de
Planitz, Tautphoeus, Calogeras, Freesa no Rio de Janeiro,
e Júlio Pranck em Sâo Paulo.
O gosto pela leitura e a forte instrucçâo preparatória, Aze-
vedo levou-os do Rio de Janeiro. Levou» d'aqui também as
tintas de sua imaginação desperta pela belleza primaveril
d'esta região. São Paulo deu-lhe o gosto de escrever, a emu-
lação, o enthusiasmo, a vida livre do académico, o desvaira-
mento.da poesia da epocha.
Juntae a tudo isto a melancólica innata, oriunda de um
temperamento franzino e enfermo, e tereis os elementos d'essa
intelligencia e desvendar-se-vos-hão os segredos d'aquclle
coração.
Eu não quero decompol-o. Repugna-me ás vezes este offlcío
de anatomista do espirito. Ha uma certa impiedade em
*■»!
. HISTORIA DA LITTEBATUSA BBABILEISA 199
netrar assim indiscreta e brutalmente pela alma a dentro
de um poeta, de um homem que soffreu, ainda mesmo quando
este homem e este poeta sáo um^ mancebo de vinte annos,
quasi virgem de senUmientos.
Procederei por outro modo ; antes pintor que anatomista,
antes uma teda do que uma mesa de operações.
Muito se tem escripto de Alvares de Azevedo ; mas é licito
ainda hoje pôr em duvida que o poeta haja sido bem estu-
dado.
A rhetoríca maléfica descobriu que elle se impregnara do
espirito de Byron e Musset e se flzeora sceptico. Isto é dizer
muito pouco, é quasi nada dizer.
Resta ainda e sempre determinar os motivos d'essas predi-
lecções dio poeta e definir a natureza de seu scepticismo.
Sceptica é quasi toda a gente, é quasi o mundo inteiro. A gene-
ralidade do qualificativo não tem forçai de definir.
As preoccupações da velha critica nâo ficaram ahi ; foram
adiante e levantaram o problema de saber se o poeta era sin-
cero no seu scepticismo, em sua descrença, nas suas idéas,
no seu modo de viver.
Pormaram-se logo dois partidos : uns affirmavam que o
moço escriptor era um espirito meigo, delicado, virgem, puro
e singelo, náo conhecendo as diabruras e irregularidades da
vida senão pelos livros dos poetas e romancistas românticos.
D'est'arte, seus sentimentos eram impoUutos, seu viver reca-
tado, seu corpo estreme de qualquer impureza. Nada de cha-
rutos, de vinho, de cognac, de passeiatas, de sucias, de bebe-
deiras, de lúbricos prazeres com as mulheres perdidas.
O poeta era um solitário ; seus desvarios eram puros jogos,
innocentes brincos de sua imaginação...
Os que assim têm discreteado, suppondo elevar o caracter
do mc^ço escriptor, aviltam-no de facto, reduzindo-o a uma
espécie de maniaco, um ente mórbido, entregue talvez a
algum vicio occulto.
E' escusado lembrar que, deturpado o caracter do joven
poeta, estragam também a sua obra, que fica reduzida a uma
cousa aeria, imponderável, phantastica e nulla.
HI8T0SIA DA LITTERATUBA BSASILBIBA
Outros, julgando-se muito desabusados^ tombam para o
extremo opposto. Pintam o autor da Noite na Taverna como
um monstrengo moral, um ser depravado, corrupto, ébrio,
devasso, mettido em extravagâncias e desatinos de toda a
casta. Estes suppõem elevar a obra, deturpando o caracter do
homem. Tudo isto é falso, íalsissimo.
Nem anjo, nem demónio.
Foi uma natureza intelligente e ideialista, porém mórbida,
desequilibrada de origem, e ainda mais enfraquecida pelo
estudo e agitada pela leitura dos sonhadores do tempo.
Chegou a fazer algims d'esses pagodes próprios de estu-
dantes, essa poesia pratica da vida que bem se desfructa na
quadra da mocidade, encantadora phase cheia de delicias an-
tigamente em São Paulo e Olinda. Hoje, seja dito de passagem,
tem isto muito arrefecido. O poeta não teve, porém, tempo,
nem opportunidade de travar um amor serio, uma paixão sin-
cera e pura.
Precoce em tudo, estranhava que esse affecto não lhe tivesse
ainda chegado. D*ahi, por este lado, o dualismo que se nota
nas coanposições lyricas de género amoroso em Azevedo. A's
vezes é um lyrismo idyUico e todo confiante, mas puramente
ideial ; outras vezes é a amargura de quem não encontrou
aindici um coração que o comprehendesse, ou a pintura d'al-
guma scena lasciva.
Outro dualismo dá-se nas opiniões, crenças e doutrinas do
poeta. Ideialista e crente por indole, educado n'um regimen
religioso, o sopro do século abalou-o em metade.
Esta revolução não se fez por intermédio da sciencia e de
ideias positivas ; fez-se por meio da poesia e da litteratura
romântica. D'ahi esse desequilibrio, esse cambalear, essas
duas facetas do génio e das inspirações do moço escriptor.
Posição aliás commum a um grande numero de espíritos em
um século de tão rápidas renovações e mutações intellec-
tuaes.
Determinar aquelle dualismo, n'uma e n'outra esphera, é o
trabalho da critica para com elle. Vida quasi toda subjectiva,
a^tada pela leitura, não teve, repito, ensejo de amar, nem de
i
HISTORIA DA LITTBRATORA BRABILKIRA 201
gozar á farta. D'ahi o desanimo, a excitação, a impoleniCia da
vontade.
Sua melancólica, que aliás era ingenita e ainda mais se
desenvolveu pela vacillaçâo de suas idéas, não veio de injus-
tiças soíTrídas, de luctas sociaes, de problemas scientiftcos em
desharmonia com seus sentimentos. Não veio da trahição de
amantes nem de amigos. Elle não tem um canto de alegria
pelo amor satisfeito e retribuídos nem de tristeza peJo amor
trahido. São sempre queixas de nao ter podido achar mu-
lheres puras e somente Messalinas.., E' sincero n'isto e tragi-
camente sincero.
Não foi um viciado, um libertino, que fizesse a poesia de
seus vícios ; não foi também uma alma cândida e virgem, que
se mostrasse por systema viciada. Foi um melancólico, um
imaginoso, um lyrico, que enfraqueceu as energias da vontade
e os impulsos fortes da vida no estudo, e enfermou o espirito
com a leitura desordenada dos românticos a Heine, Byron,
Shelley, Sand e Musset.
A vacinação mental se conhece por todos os seus escriptos,
ora crentes, ora descrentes. A falta de energia para envolver-
se em intrigas amorosas serias que o acalmassem, conhece-se
nas confissões que tantas vezes repete de não ter tido um só
amor profundo e somente sonhos fallsizes.
Ouçamol-o mais de perto.
Elle é positivo n'este sentido, e tantas são as provas que
dífficu Idade ha só em escolhel-as.
E' bastante abrir a Lyra dos Vinte annos e ler aquollas
poesias ideialistas que se intitulam : No mar, Sonhando, Seis-
mas. Tenho um seio que delira. Quando d noite no leito per-
fumado, A T., Animn Mea, Vida, Saudades, Virgem Morta,
Minha Musa e vinte outras, e depois passar a ler Um canto do
jfcculo, onde se vê isto :
Eu vaguei pela vida sem conforto,
Esperei minha amante noite e dia
E o ideial não veio...
Farto da vida, breve serei morto...
Nem poderei ao menos na agonia
Descançar-lhe no seio...
202 HI8T0BIA DA LITTBRATtTRA BKASILBIBÁ
Passei como Don Juan ehtre as donzellas,
Suspirei as canções mais doloridas,
£ ninguém me escutou...
Oh! nunca â virgem flor das faces bellas.
Sorvi o mel, nas longas despedidas...
Meu Deus, ninguém me amou! ))
Estas ideias e este estado psychologíco repetem-se & farta
cm muitas composições do poeta, nomeadamente nas Ideias
Intimas :
u O pobre leito meu, desfeito ainda,
Aqui languido á noite abati-me
Em váos delírios anhelarido um beijo...
E a donzella ideial nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embedou estremecendo...
Foram sonhos comtudo! A minha vida
Se esgota em illusões. E quamdo a fada
Que divinisa meu penseu* ardente
Um instante em seus braços me descahça
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos...
Me ateia o sangue, me enlanguece a fronte...
Um espirito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora...
E das nuvens de hacar da ventura
Rolo tremendo á solidão da vidai...
Oh! ter vinte anno9 sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzella!
E sem na vida ter sentido nunca
Na fiuave attracção de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de goso!
Oh! nos meus sonhos, pelas hoites minhas,
Passam tantas visões sobre meu peito !
Pallor de febre meu semblante cobre.
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram.
Um nome de mulher... e vejo languida
No véo suave de amorosas sombras
Semi-núa, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem.
HI8T0EIA BA LITTERA.T17&A. B&ÂBILSISA 203
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida,
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... Inda a procuro :
Embalde a chamo, embalde as minhas lagrimas
Banham meus olhos e suspiro e gemo...
Imploro uma illusão... Tudo é silencio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu soffro tanto!
Nunca virás illuminar meu peito
Com um raio de luz d*esses teus olhos? »
E' inútil continuar. E' uma posição especial. Porque nfto
amou o poeta a alguém ? Ndo encontraria ninguém em seu
caminho que lhe merecesse os affectos 7
No Rk) de Janeiro, nas relações de sua família, nunca se lhe
deparou uma bedla fluminense que o prendesse em suas lon-
gas tranças e o enleiasse nos brilhos do seu olhar ?
Em S. Paulo, terra de tantas bellezas, nenhuma o engraçou?
Em uma das cartas que dirigiu a seu amigo Luiz António da
Silva Nunes revela que frequentava alli a boa sociedade e
chegou a conhecer duas lindai paulistanas, que o tocaram de
leve. Declara logo, porém, que não sentia amor por ellas.
A razáo de tantos escrúpulos e difficuldades ? Seria o poeta
muito exagerado no seu ideial da mulher ? Seria acanhado 7
Seria tímido 7
Pek) pedaço ultimo transcripto poder-se-hia crer que nem
teve nunca amor positivo a uma donzella, nem mesmo
gozara os encantos de mulher alguma. Esta ultima supposiçdo
seria falsa, diante de declarações authenticas feitas pelo pro-
pno poeta :
u Oh! nâo maldigam o mancebo exhauslo
Que nas orgias gastou o peito insano...
Que foi ao lupanar pedir um leito.
Onde a sede febril lhe adormecesse!
Não podia dormir! nas longas noites
Pediu ao vicio os beijos de veneno ...
^
204 HI8T0BIA DA LiTTBllATXmA BRÁBUiSnU
E amou a saturnal, o vinho, o jogo
E a convulsão nos seios da perdida!
Misérrimo! não creu... Não o maldigam,
Se uma sina fatal o arrebatava...
Se na torrente das paixões dormindo
Foi naufragar nas \solidOes do crime.
Oh! não maldigam o mancebo exhausto
Que no vicio embalou, a rir, os sonhos,
Que lhe manchou as perfumadas tranças
Nos travesseiros da mulher sem brio!
Se elle poeta nodoou seus lábios...
E' que fervia um coração de fogo
E da matéria a convulsão impura
A voz do coração emmudecia!
E quando pia manhã da longa insomnia
Do leito perfumado elle se erguia.
Sentindo a brisa lhe beijar no rosto
E a febre arrefecer nos rouxos lábios...
E o corpo adormecia e repousava
Na serenada relva da campina...
E as aves da manhã em torno d'elle
Osísonhos do poeta acalentavam...
Vinha um anjo de amor unil-o ao peito,
Vinha uma nuvem derramar-lhe a sombra
E a alma que chorava a infâmia d*elle,
Seccava o pranto e suspirava ainda! n
Sempre assim ; gozos materiaes, anciãs por um amor puro
6 sincero, que lhe não veio jamais. A cousa está liquidida e
póde-se ir adiante.
Esta posição especial que assignalo em Alvares de Azevedo,
de ser ardente, voluptuoso, sequioso de gozar e ao mesmo
tempo não ter amado jamais, não haver tido ém sua vida uma
paixão amorosa, o que é perfeitamente explicável, porque o
poeta morreu muito moço, é diversa do dualismo de ideial
msTOBiÁ DA srmsATiniA bbabilbi&á 205
e ironia, de sinceridade e sarcasmo, de pureza e grosseria que
também se nos depara em seus versos.
Este dualismo de outra espécie era conscientemente prati-
cado, era systematico e tinha alguma cousa de artificial. O
poeta o praticou de caso pensado e elle mesmo tem o cuidado
de o avisar, precedendo a segunda parte da Lyra dos Vinte
Annos doestas palavras, que revelam suas ideias, seus planos,
suas preoccupações de artista :
cc Cuidado, leitor, ao voltar esta pagina! Aqui dissipa-sc o mundo
visionário e platónico. Vamos entrar n'um mundo novo, terra phan-
tastica, verdadeira ilha Barataria de D. Quichote, onde Sancho é
rei e vivem Panurgio, sir John Falstaff, Bardolph, Figaro e o Sga-
narello de D. João Tenório : a pátria dos sonhos de Cervantes e
Shakespeare.
Quasi depois de Ariel esbarramos em Caliban. A razSo é simples.
E' que a unidade d'este livro funda-se n'uma binomia : duas almas
que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de
poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
Demais, perdôem-me os poetas do tempo, isto aqui é um thema,
sinão mais novo, menos esgotado que o sentimentalismo, tuo
iashionable desde Werther até René.
Por um espirito de contradicção, quando os homens se vêem
inundados de paginas amorosas preferem um conto de Bocacciu,
uma caricatura de Rabelais, uma scena de Falstaff, no Henrique IV
de Shakespeare, um provérbio phantastico d'aquelle polisson
Alfredo de Musset a todas as ternuras elegíacas d'essa poesia de
arremedo que anda na moda e reduz as moedas de ouro sem liga
dos grandes poetas ao troco de cobre, divisivel até ao extremo, dos
liliputianos poetastros. Antes da quaresma ha o carnaval.
Ha uma crise nos séculos como nos homens. E' quando a poesia
cegou deslumbrada de íitar-se no mysticismo e cahiu do céu sen-
tindo exhaustas as suas azas de ouro. O poeta acorda na terra.
Demcds o poeta é homem ; homo $um, como dizia o celebre romano.
Vô, ouve, sente, e, o que é mais, sonha de noite as bellas visões pal-
páveis de acordado. Tem nervos, tem fibras e tem artérias, isto é,
antes e depois de ser um ente ideialista, é um ente que tem corpo!
E digam o que quizerem, sem esses elementos, que sou o pri-
meiro a reconhecer muito prosaicos, não ha poesia. Que acontece?
Na exhaustão cauisada pelo sentimentalismo, a alma ainda tremula
e resoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua
206 HISTORIA DA LITTEBATUBA BBA8ILBIBA
vida é amor e canto, que pode sinSo fazer o poema dos amores da
vida real? Poema talvez novo ; mas qua encerra em si muita ver-
dade e muita natureza, e que sem ser obsceYio pode ser erótico, sem
ser monótono.
Digam e creiam o que quizerem : todo o vaporoso da visão abs-
tracta nâo interessa tanto como a realidade formosa da bella mulher
a quem amamos.
O poema ent&o começa pelos últimos crepúsculos do mysticismo,
brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia purís-
sima banha com seu reflexo ideial a belleza sensível e nua. Depois,
a doença da vida, que nâo dá ao mundo objectivo cores tão azuladas
como o !nome britânico de blue devils^ descarna e injecta de fel cada
vez mais o coração. Nos mesmos lábios ohde suspirava a monodia
amorosa, vem a satyra que morde.
£^ assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema
irónico. Goethe depois de Werther creou o Faust. Depois da Pari-
sina e o Giaour de Byron vem o Cain e D. Juan, D. Juan que começa
como Cain pelo amor e acaba como elle pela descrença venenosa
e sarcástica. »
E* uma pagina interessante esta como documentação do
pensau* do poeta sobre a vida e sobre as condições da arte. O
romantismo nâo foi assim tão despido de realidade e senso cri-
tico, qual queremos nós os homens de hoje suppôr.
Eis ahi em Alvares de Azevedo, que toda a gente agora
costuma apresentar como um ente chimerico, cheio de phan-
tasias estúrdias, um forte appello para as duras realidades da
vida. Devemos, pois, em mais de um ponto corrigir nossos
levianos juizos. Onde mais verdade, já nâo digo em Balzac e
Stendhal, mas do que em Goethe e Byron ?
O auctor da Lyra dos Vinte annos obedeceu ás influencias
de suà epocha, a esse estado de vacillaçâo,tão característico do
XIX século.
D'ahi a dubiedade, aliás conscientei, de sua intuição e de
sua poesia. Eu bem sei que os grandes tempos de forte e más-
cula, poesia, de immensas eflusões artísticas são as epochas de
fé. E' costume dizer-se isto.
Creio haver ahi um bom fundo de verdade no tocante ás
creações épicas e outras equivalentes, que acompanham sem-
pre as grandes synlheses religiosas e philosophicas. Assim
HIBTOBIA DA LFTTBItATITSA BRASILBIBA 207
no tempo de Phidias, assim no tempo de Dante, assim no
lempo de Miguel Angelo. Todo o século xix foi uma epocha de
uclase fortes commoções intellectuaes ; os dogmas surgiam e
ombavam, sem poder alliciar todos n'uma crença apazigua-
lora e universal. Este oscillar constante ainda perdura.
Tudo isto é verdade, e bem compreheíndo os que vacillam.
r a lucta entre o sentimento e a ideia.
Desgraçados dos que a soffrem ! Trazem n'alma os im-
ulsos encontrados da ideiaes diversos, e são o theatro de com-
ités e perturbações intimas. E passa muitas vezes o vulgo
naro e diz : « Grande tolo I E' um sentimental I... E' um espi-
to atrazado ; não se adiantou ainda 1... »
E' que o vulgo estúpido está acostumado com certas almas
> pedra, duras como os saibros doe caminhos, em que todos
zam e não dSo signaes ae dôr.
O mundo extasia-se diante d'esses seres insensíveis que
da tomam a serio e mudam de doutrinas e crenças, como
muda um par do calças... Homens que passam do mais
íal christianismo, por exemplo, ao mais requintado mate-
lismo sem a menor commoção intima. Singulares entes I...
}uanto a mim, é que jamais foram sinceros ; nunca tiveram
•dadeiro aferro a suas crenças. Do contrario sentiriam o
oroar d'ellas.
dvares de Azevedo foi dos que sentiam as ddres d^alma ;
um supposto aírazado... De Sanctis também ó um tal,
indo escreve estas palavras : « II dolore come ritempra
imo, cosi rinfresca Tingeno. II dolore è il Colombo chè
B ai poeta um mondo nuovo. Egli gitta Tanima in una
íTSSL situazioni, elle muta gli occhi, si che ella vegga le
se cose sotto nuove forme o nuovi colori. Nelle supremo
iture Tuomo vede come scomparire il suo antico me, e dal
ulto dei mondo estertore si ritira in sè stesso » (1).
Javras doestas escreve o sábio escriptor, uma das glorias
lalia moderna. Entre nós certos ingénuos de tempos a esta
3 levantaram o falso conceito do pretendido adianta-
to^ como critério definitivo da poesia... Não vê esta gente
3to um formidável desacerto 7
Saggi Critici di Francesco da Sanctis, pag. 433.
208 HIBTOBLà DA LITTBSATUBA BBABILBIftA
Não ha uma poesia adiantada e outra airazada ; a poesia é
o que ella é e mais nada ; a poesia é bda ou md, sincera ou
a[[ectada. O conceito de atraso au adiantamento só tem appli-
cação na sciencia.
Em sua essência a boa poesia não tem data. Dante é tão
adiantado como Shakespeare, Milton tanto como Byron,
Ariosto tanto como Schiller.
Assim não entendem certos aristarchos; para elles a Iliada é
atrazada^ a Dtoirui Comedia é atrazada, Othello é atrazado^ os
Luziadas são atrazados,., Deve-se modernisar tudo isto...
Alvares de Azevedo era um talento possante n'uma orga-
nisaçâo franzina. Não podia viver nmito, era doentio ; era em
essência um melancólico. Isto póde-se dizer d'elle ; porque é
a verdade manifestada em sua vida e em seus escriptoe. Como
melancólico era impossível que attingisse n'ai*te áquella sere-
nideuie de Goethe, por exemplo. Applicar-lhe o conceito erró-
neo em poesia de adiantamento ou atraso é que é formidável
desconcerto.
. O poeta quasi só produziu queixumes ; porque era desequi-
librado. « No intimo da melancolia encontrar-se-á talvez sem-
pre uma falta de equilíbrio das faculdades, e, como causa
final, algum desarranjo orgânico.
* O melancoUco é um ser incompleto, enfermo, ferido nas
fontes da vida, que poderá exhalar queixas eloquentes ; mas
que nunca attingirá á grande arte.
O verdadeiro artista, o que domina a natureza e o homem,
que os reproduz n'uma concepção impessoal, um Shakes-
peare, um Goethe, um Walter Scott, esse é um» são. Não sabe
o que é apalpar o pulso. A paz de seu espirito não está á
mercê do tempo que faz, contempla a vida com serenidade. A
melancolia resulta de uma organisão nervosa, impressio
navel, delicada, exquisita, porém incompatível com a faar-
ihonia das forças e a elasticidade de um temperamento ro-
busto. »
São palavras de Edmond Scherer a propósito de Maurice de
Guérin. Applicam-se perfeitamente ao nosso poeta.
Dada esta ideia geral da natureza de seu talento e das vicis-
HI8T0BIA DA LITTXBATURA BRASILEIRA 209
situdes de seu estado espiritual, resta analysar mais directa-
mente os seus escriptos.
Em Alvares de Azevedo ha um poeta lyrico e o esboço de um
critico, de um dramatista e de um conteur, O lyrismo do joven
artista náo é o simples lyrisma melancólico a Lamartine. Ha
n'elle grande variedadie introduzida por pinturas objecti-
vistas, por scenas de costumes, por cantos políticos, por pas-
sagens humorísticas.
Quando se fala em Azevedo vem logo á mefite» a ideia de
um lacrymoso perpetuo. Pois é um grande erro.
Ha n'elle paginas de um objectivismo completo : Pedro Ivo^
Thereza, Cantiga do Sertanejo, Na Minha Terra, Crepiisculo
no mar, Crepúsculo nas montanhas, e muitas outras. Em Glo-
ria Moribunda, Cadáver de poeta. Sombra de D. Juan, Bohe-
mios. Poema do Frade, e no Conde Lopo, recentemente publi-
cado, ha muito d'esse satanismo, d'esse desprazer da vida em
que veiu acabar o romantismo. Ha apenas mais talento do
que em Baudelaire ; porque, de envolta com os desalentos e
extravagâncias do género, em Azevedo apparecem manifes-
tações de lyrismo que não possuia tâo eloquentes o poeta
francez.
Esse lyrismo pódei soíTrer uma divisão capital ; ideialismo e
humorismo. N'um e n'outro ha notas pessoaes e geraes. Ha
difflculdade em mostrar trechos pela abundância de fragmen-
tos typicos. Leiam-se Anima Mea, Harmonia, Tarde de Verãa,
Saudades, Virgem morta, Spleen c Charutos, Meu desejo. La-
grimas da Vida, Malva Maçã, Namoro a CavaUo e vinte
outras.
Não reproduzirei aqui nenhuma d'essas ; as obras do poeta
andam ahi e podem e devem ser lidas. Só uma inclurei n'este
lugar ; por que só por si é apta a fazer amar esse rapaz, esse
espirito desequilibrado e revolto ; mas essa alma enthusiasta
e capaz de grandes dedicações. São os versos que o poeta
dirige á sua mãe :
« Es tu, alma divina, essa Madona
Que nos embala na manhan da vida.
Que ao amor indolente se abandona
E beija uma criança adormecida.
msTORu n 14
210 HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
No leito solitário és tu quem vela
Tremulo o coração que a dôr anceia,
Nos ais do soffrimento inda mais bella
Pranteando isobre uma alma que prantefa.
E se pallida sonhas na ventura
O affecto virginal, da gloria o brilho,
Dos sonhos no luar, a mente pura
Só delira ambições pelo teu filho!
Pensa em mim, como em ti saudoso penso,
Quando a lua no mar se vai doirando :
— Pensamento de nme ó como o incenso
Que 06 anjos do SeYihor beijam passando.
Creatura de Deus, oh mâi saudosa,
No silencio da noite e no retiro
A ti vôa minh'alma esperançosa,
E do pallido peito o meu suspirol
Oh! vêr meus sonhos se mirar ainda
De teus sonhos nos mágicos espelhos...
Viver por ti de uma esperança infinda
E sagrar meu porvir nos teus joelhos...
E sentir que essa briza que murmura
As saudades da mãi bebeu passando...
E adormecer de novo na ventura
Aosisonhos d'oiro o coração voltando...
Ah! se eu nfto posso respirar no vento,
Que adormece no valle das campinas,
A saudade de m&i no desalento,
E o perfume das lagrimas divinas...
Ide, ao menos, de amor meus pobres cantoe,
No dia festival em que ella chora.
Com ella suspirar i\os doces prantos,
Dizer-lhe que também eu soffro agora.
Se a estrella d'alva, a pérola do dia,
Que vô o pranto que meu rosto inunda,
Meus ais na solidão lhe não confia
Enão lhe conta minha dôr profunda...
j
HISTOBIil DA LITTBBATUBA BRABILBIBA 211
Que a ílôr do peito desbotou na vida,
^ o orvalho da febre requeimou-a ;
Que nos lábios da m&i na despedida
O perfume do céo abandonou-a!...
Mas não irei turvar as alegrias
E o jubilo da noite susurrante,
Só porque a magoa desnuou meus dias
E zombou de meus sonhos delirantes.
Tu bem sabes, meu Peus, eu só quizera
Um momento sequer encher de flores,
Contar-lhe que'nâo finda a primavera,
A doirada estação dos meus amores...
Desfolhando da palhda coroa
Do amor do filho a perfumada fiór
Na mfto que o embalou, que o abençoa,
Uma saudosa lagrima depor...
SufTocando a saudade que delira
E que as noites sombrias me consome,
O nome d'ella perfumar na lyra,
De amor e sonhos coroar seu nome! » (1).
E' uma d'essas paginas deliciosas, eivadas de brancas o
doces 6 saudosas ideias ; paginas feitas de mimo e candura,
próprias para contrastarem tantas outras cheias de amargas
ironias.
Creio que se o meu leitor foi agora reler o seu Alvares do
Azevedo, poderá comigo ch^ar a esta conclusão : as me-
lhores paginas do poeta são aquellas em queelle deu expansíto
a seu talento mais natural e intimo, o talento lyrico.
O que distingue seu lyrismo d'entre todos os c^ue tenlio até
agora examinado é certo modernismo, certa frescura das
tintas e das imagens.
Em Magalhães, Porto Alegre, Moniz Barretto, Maciel Mon-
teiro e outros ha um certo four na forma que lembra ainda o
velho classismo. O mesmo em parte em Gonçalves Diais. No
(1) Obroê de Alvares de Azevedo, 5.* ediç&o, 18S4, tomo 1,*, pag. 249.
212 HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
auctor da Lyra dos Vinte armos a cousa ó outra e a impressão
que deixa é bem diversa ; o tom é novo ; vè-se nitidamente
que se está a tratar com um filho do século.
O humorismo é também novo, e é a primeira vez qua appa-
rece na poesia brasileira essa bella manifestação da alma mo-
derna. Convém não confundir o humour com a chalaça, a
velha pilhéria portugueza ; essa Uvemol-a sempre, e sempre a
possuiu\ o reino.
O humour á ingleza e allemá nós não o cultivamos jamais,
nem Portugal tâo pouco. O primeiro que o exprimiu em nossa
lingua foi Alvares de Azevedo, profundamente lido nas litte-
raturas do norte.
O humour é diverso das vis cómica^ do espirito e da satyra^
ainda que possa ter com elles alguma analogia. A comedia
é o riso com certa malignidade ; o espirito é a graça, a pilhéria
para divertir ; a satyra é um castigo empregado como tal, mos-
trando cólera.
O humour é uma especial disposição da alma que procura
em todos os factos o lado contrario, sem indignaçã.o. Requer
finura, força analytica, philosophia, scepticismo e graça n'um
mixtum compositum especialissímo, que não anda por ahi a
se baratear. Azevedo o possuiu até certo ponto.
Eu disse que o poeta abrigava em si o esboço de um conteur,
d'um dramatista e d'um critico. O corUeur está n'essa tão afa-
mada Noit/e na Taverna, onda ha algumas bellezas entre mui-
tas extravagencias e affectações. O dramatista está nos Bohe-
mios e em Macário, fragmentos informes para o palco, porem
contendo algumas ideias felizes.
Pelo que me toca, prefiro o poeta.
O critico me parece também de não mui avultado alcance.
O drama e o conto exigem muita observação, muita ana-
lyse, muita tensão no espirito, a par de muita imaginação
creadora. Não creio que aquellas qualidades predominassem
no espirito do poeta.
A critica exige muita lógica, comprehensáo muito nítida,
ausência de toda nebulosidade, nada de sestros fanáticos,
intuição rápida, aptidão philosophica intensa, assimilação
prompta.
HISTORIA DA. LITTERATUKA BKABILBISA 213
Azevedo nâo era propriamente isto. A prova está antes de
tudo no facto de elle próprio, desconhecendo radicalmente a
missão, o alcance e o objectivo da critica, ainda laborar na
velha e errcmea noçáo de ser ella a parasita que vive de alheia
seiva, e outras momices da espécie, que podem ser lidas no
prefacio do Conde Lopo.
No6 ensaios do género, deixados pelo poeta, o estylo é por
vezes pesado, obscuro e amaneirado e as contradicções e
obscuridades formigam.
Não é que ache completa razão em Wolf e Norberto Silva
quando accusam geralmente a prosa de Azevedo. Ha excesso
de rigor ; o moço paulista deixou algumas paginas saborosar
mente escriptas.
Eis aqui uma d*ellas :
(( O que eu lhe vou dizer é triste, é lastimoso para quem o diz :
tanto mais que elle o faz com a plena convicção de que fala ao indif-
fercfntismo.
E' uma miséria o estado do nosso theatro : é uma miséria vôr que
só temos João Caetano e a Ludovina. A representação de uma boa
concepção dramática se torna difficil. Quando só ha dou-s actores
de forç£^ sujeitamo-nos ainda a ter só dramas coxos, sem força
e sem vida, ou a ver estropiar as obras do génio.
Os melhores dramas de Schiller, de GcBthe, de Dumas não se
realiseun como devem. O Sardanapalo de Byron traduzido por uma
penna talentosa foi Julgado impossivel de levar^e â scena. No caso
do Sardanapalo estão os dramas de Shakespeare que, modificados
por uma inteUigencia fecunda, deveriam produzir muito effeito. Se
o povo sabe o que é o Hamlet, Othello... deve-o ao reflexo gelado de
Ducis. Comtudo, seria fácil apresentar-se no theatro de S. Pedro
alguma cousa de melhor do que isso. Com o simples trabalho de tra-
ducção se poderiam popularisar os trabalhos de Emile Deschamps,
Auguste Barbier, Léon de Vailly e Alfredo de Vigny, que traduzi-
ram Romeo e Julieta, Macbeth, Júlio César, Hamlet e Othello,
Quando o theatro se faz uma espécie de taberna de vendilhão, vá
que se especule com a ignora'ncia do povo. Mas quando a Com-
panhia do theatro está debaixo da inspecção immediata do Governo,
deverá continuar esse systema verdadeiramente immundo? não :
o theatro não deve ser escola de depravação e máo gosto. O theatro
tem um fim moralisador e litterario : é um verdadeiro apostolado do
beUo. D'ahi devem sahir as inspirações para as massas. Não basta
214 HISTOBIA DA LITTBRATXTBA BBASILBIBA
que o drama sanguinolento seja capaz de fazer agitarem-se as fibras
em peitos de homens cadáveres. Não basta isto : é necessário que
o sonho do poeta deixe imprassões ao coração e agite n'alma senti-
mentos de homem.
Para isso é preciso gosto na escolha dos espectáculos, na escolha
dos actores, nos ensaios, nas decorações. E' doesse todo de figuras
grupadas com arte, do effeito das scencis, que depende o Interesse.
Talma o sabia. João Caetano, por uma verdadeira adivinhação do
génio, lembra-se d'isto.
Além essas composições sem alma, que servem apenas para
amesquinhar a platéa, esses quadros de terror e de abuso de mor-
tualha que servem apenas para atufar de tédio o cor€tçâo do homem
que sente, mas que pensa e reflecte no que sente e no que pens€u
Mas o que é uma desgraça, o que é a miséria das misérias é o
abandono em que está entre nós a Comedia.
Entre hós parece que acabaram os bellos tempos da Comedi«i.
Verdadeiros blasés^ parece que só amamos as impressões fortes,
que preferimos estremecer, chorar, a rir d'aquellas boas risadas de
outr^ora.
Em lug6Lr da musa de Menandro e de Terêncio, temos hoje uma
musa asquerosa que apparece nas taboas do palco á meia noite,
como uma bruxa, que revolve-se immunda com a bocca cheia de
chufas obscenas, em chão de lodo hedionda creatura, bastarda da
bóa filha de Moliêre, adiante da qual o pudor, digo mal, até o impu-
dor tem de corar.
O estrangeiro que assiste aquellas saturnaes vergonhosas da
scena cré assistir a um sabbaih de feiticeiras e, como o Fausi de
Goethe bo Brocken, sente-se tomado de asco invencível por aquellas
feialdades nuas. O sócco romano-grego tornou-se o tamanco im-
m.undo da vagabunda desbocada!
E' triste pensal-o; — mas se é verdade que o theatro é o espalho da
sociedade, que negra existência deve ser a da gente que applaude
frenética aquella torrente de lodo que salpica as faces dos especta-
dores!
A farça embotou o gosto e matou a Comedia. O palhaço enforcou
o homem de espirito. Arlequin fez achar ínsipido o Tartufo.
E, comtudo, nós que nos fizemos homem no tempo em que João
Caetano se não envergonhava de representar Casanova, nós que o
vimos, não ha muito, vestir o disfarce de Robin, embuçar-se no
maYito roto de Don César de Bazan, que soltamos boas gargalhadas
ante o Auio de Gil Vicente e Robert Macaire, não podemos deixar de
lamentar que elle desdenhe a mascara da Comedia.
HJBTOBIA DA LITTSKATUSA BBABILEIBA 215
E comtudo Molière — um geniol — era cómico. Shakespeare pre-
feria a galhofa das alegres mulheres de Windsor — What you
-wUl, A tempestade^ etc, aos monólogos de Henrique III, ao deses-
pero do rei Lear, ó duvida de Hamlet. Kean despia o albornoz e o
turbante do Mouro de Veneza para tomar o abdómen protuberahte
e o andar vertiginoso, as faces ardentes de embriaguez do bon
vivant^ cavalleiro da noite, amante da lua, sir John Falstaff!
Haja algum impulso da parte d'onde deve vir e esperamos que
haja entre nós theatro, drama e comedia.
A !nossa mocidade laboriosa se animará a emprehender trabalhos
dramáticos. Começar&o por traducções, estudarão o theatro hespa-
nhol de Calderon e Lope de Vega, o theatro cómico inglez de Sha-
kespeare até Sheridan, o theatro francez de Molière, Regnard,
Beaumarchais e mais modernamente enriquecido pelo repertório de
Scribe e pelos provérbios de Leclercq e de Alfredo de Musset, os que
tiverem mais génio, os que tiverem estudado o theatro grego, o
theatro francez, o theatro inglez e o theatro allemâo, depois d*esse
estudo attento e consciehcíoso poderão talvez nos dar noites mais
litterarias, mais cheias de emoções do que aquellas em que assis-
timos e melodramas caricatos, as paixões falsas, todas aquellas
concepções que movem-se e falam como um homem, mas que
quando se lhes bate no coração dão um som cavernoso e metaUico
como o peito ôco de uma estatua de bronze! » (1)
E' bom este modo de dizer e são acertadas estas ideias.
Onde não posso acompanhar o poeta é quando escreve
cousas assim :
«... segundo nosso muito humilde parecer, sem lingua á parte não
ha litteratura á parte. E (releve-se-nos dizel-o em digressão) acha-
mol-a por isso, sinão ridicula, de mesquinha pequefaez a lembrança
do Sr. Santiago Nunes Ribeiro ; ja d'antes apresentada pelo collec-
tor das preciosidades poéticas do primeiro Parnaso Brasileiro.
D'outra feita alongar-nos-hemos meus a lazer por essa questão e
essa polemica secundaria que alguns poetas e maus modernamente
o Sr. Gonçalves Dias parecem ter indigitado : a saber que a nossa
litteratura deve ser aquillo que elle intitulou nas suas collecções
poéticas poesias americanas. Não negamos a nacionalidade d'esse
género. Crie o poeta poemas indicos, como o Thalaba de Southey,
reluza-se o b£u*do dos perfumes asiáticos, como nsis Orientaes
Victor Hugo, na Noiva de Abydos Byron, no Lallah-Rook Thomas
(!) Obroã de Alvares de Azevedo, quinta edição, vol. Ill, pag. 237.
(
216 HISTORIA J>X LITTBBATURA BRA8ILEIBA
Moore, devaneie romances á européa ou á chineza, que por isso nào
perderôo sua nacionalidade litterarla os seus poemas » (1).
Por este pedaço, em má hora escripto, claroi se vê que o
auctor de Macário não sabia bem o que era uma lingua, uma
litteratura, o que era o indianismo, nem o que eram o Brasil e
Portugal.
Ter ou não ter uma litteratura não é questão de querer ou
não querer,.. E' um phenomeno fatal, biologico-historico, que
se está produzindo no Brasil, como se produziu em Portugal.
Ou se queira, ou não se queira, o Brasil não está na Europa,
nem o Rio de Janeiro á margem do Tejo...
Estamos n'outro continente, temos outro clima, outra natu-
reza, outro meio, outras raças mescladas no povo, outras
fontes económicas, outras aspirajções, outro ideial. A lingua
vae se alterando constantemente.
Ora, meio á parte, raça á parte, ideial á parte produziu
necessariamente litteratura á parle. Nem é isto motivo para
vaidades ; é phenomeno sem mérito ; porque é em essência
quasi mecânico. A vontade aqui pouco, bem pouco poderá
influir.
Não é o facto do indianismo, commum aliás a toda a Ame-
rica, que nos garante uma litteratura. Esta começou a formar-
se no Brasil no dia em que os indios, os negros e os colonisa-
dores entraram a viver juntos, a trabalhar juntos, a solTrer
juntos, a cantar juntos. No dia em que o primeiro mestiço
cantou a primeira quadrinha popular nos eitos dos engenhos,
n'esse dia começou de originar-se a litteratura brasileira, que
homens como Gregório de Mattos, Durão, Basílio, Alvarenga,
Taques, Andrada, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Penna,
Macedo, Bernardo Guimarães, Alencar, Agrário, Francisco
Lisboa e o próprio Azevedo opulentaram ei encaminharam
para uma dilTerenciação cada vez mais crescente.
O segredo das teimas dos que negam esse phenomeno Ião
vulgar acha-se no desconhecimento dos mais elementares
principies de critica relativamente ao conceito do que seja
uma litteratura, e na completa ignorância da ethnographia,
(1) Obras de Alvares de Azevedo, quinta edição, vol. III, pag. 183.
HIBTOBIA T>X LITTBSATUEA BRA8ILSIBA 217
da historia e, em geral, de todos os problemas que se referem
ao Brasil.
AuRELiANO José Lessa (1828-1861.) Estamos em São Paulo;
a academia de direito está animada ; cheios de enthusiasmo
os moços cultivam a bella litteratura ; é no período que vae
de 1846 a 1856. E' donde então partem os raios que illuminani
e alentam as pátrias letras.
Ao lado dos poetas e litteratos havia os publicistas e ora-
dores ; é o tempo de Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa,
Bernardo Guimarães, José Bonifácio, Pelix da Cunha, Fer-
reira Vianna, Paulino de Souza, José de Alencar, Duarte de
Azevedo e muitos e muitos outros.
O movimento, inaugurado no Rio de Janeiro, por Ma^-
Ihâes, Porto Alegre, Gonçalves Dias, Penna e Macedo, chega
até a capital paulista, os moços metem-se n^elle e o adiantam.
Aureliano Lessa é um dos obreiros n'aquella faina. EUe, Aze-
vedo e Bernardo Guimarães eram os mais applaudidos poetas
da epocha. Icun juntos publicar As três Lyras.
Bernardo e Aureliano eram mineiros e amavam-se extrema-
mente. A estima entre ambos era mais profunda do que entre
qualquer d'elles e Azevedo. Razões psychologicas havia para
isto ; os dois mineiros eram plácidos, avessos a essa turbu-
lência de ideias adequada á indole do moço auctor dos Bohe-
mios.
O romantismo penetrou em Azevedo por todos os poros,
sacudiu-lhe todas as fibras, tomou-lhe os sentimentos e as
ideias.
Os dois mineiros, comquanto affectadoe do mal até certo
ponto, a despeito de haverem adquirido certos hábitos acadé-
micos, nâ.0 deixaram no intimo de ser profundamente ideia-
listas e crentes, religiosos até em alto gráo. A leitura attenta
de Lessa sobre tudo o prova irrecusavelmentei.
Azevedo falleceu logo sem ter tempo sequer de acabar o
curso académico.
Os dois mineiros, retirados aos seus sertões, continuaram
a viver descuidosamente, em todo o desleixo de verdadeiros
poetas e veirdadeiros merídionaes.
218 HIBTOBIil DA LITTERATU&A BSABIU&I&A.
Bernardo morreu já quasi sexagenário ; Lessa o antecedera
de muito. Pinou-se aos trinta e três annos de idade, aos 21 de
fevereiro da 1861.
Dos três amigos elle é que deixou menor nomeada. Um teve
parentes cuidadosos que lhe publicaram immediatamenle as
obras e gosou a felicidade de fazer a bella poesia de uma
morte a propósito. O outro viveu bastcmte para ter tempo de
publicar. uns poucos de volumes de versos e uns poucos de
romances. Mas Lessa não era inferior aos dois.
Azevedo era dos três o talento mais possante ; porém mais
desigual e mais desequilibrado ; Lessa era o que alliava mais
naturalidade a mais ideialismo ; sua poesia era a emanação
espontânea e doce de um rozal florido; nada de pose ; tomava
o tom do momento ; a nota d*alma na occasião. Bernardo era
também natural ; mas sem tanto ideialismo talvez e com
maior numero de incorrecções.
De Lessa não ficaram obras ; doze annos depois de sua
morte um irmão carinhoso, após haver gasto larga tempo a
apanhar aqui e alli algumas de suas producções, publicou
um punhado d^ellas, sob o titulo de Poesias posthumas do
Dr. Aureliano José Lessa, E um livrinho de pouco mais de
cem pstginas.
Os espirites grosseiros, que julgam o mérito de um escriptor
pelo montão de obras que elle deixa, espantar-se-háo de ser
n'esta historia contemplado quem tão pouco l^ou ás letras...
Lessa não vale pelo que fez ; vale pelo que era. Poeta de
talento, como tal deve ser tratado.
E' preciso vel-o em seu meio e para isto o melhor é dar a
palavra a seu patrício, coUega, rival e amigo, Beimardo Gui-
marães : <c Nasceu Aureliano José Lessa em 1828, na cidade
da Diamantina, n'essa região do norte de Minas, tão fecunda
em pedras preciosas, como em talentos superiores. Estudou
preparatórios no Seminário de Congonhas do Campo, onde,
graças á lucidez e promptidão de sua intelligencia, unidas
a uma memoria das mais felizes, fez rápidos progressos. Ahi
parece que se deu ao estudo comi msds applicação e assidui-
dade do que nos cursos superiores, pois em matérias prepa-
ratórias possuia larga e solida instrucção.
HISTOBIA DA LITTBIUTUBA BBABILBIBA 219
Transportado a S. Paulo, apenas sahido da infância, aílm
de frequentar o curso jurídico, sua vida académica foi um
longo delirio infantil, um incessante devaneio poético.
Achava elle então em S. Paulo um circulo numeroso de
moços apaixonados pela poesia, no meio dos qua^s nSLo podia
deixar de dar larga expansão ao seu extraordinário gosto
pelas bellas letras.
 paixão pela poesia e pela litteratura amena distrahia por
demais n'aquella epocha a mocidade académica dei seus estu-
dos escolares.
Aureliano, Alvares de Azevedo, José Bonifácio, Cardoso de
Mendes, Silveira de Souza, Paulo do Vallei, Ferreira Torres,
Lopes de Araújo, o portuguez Agostinho Gonçalves, e vários
outros mancebos, entre os quaes se contava também o auctor
d'e5tas linhas, eram como um bando de canários, que per-
turbavam com seus constantes gorgeios os severos estu-
dos dos alumnos de Themis : eram uma verdadeit*a Arcádia
no seio da Academia.
No meio d'essa plêiada de cantores, o guaturamo da Dia-
mantina não podia flcar mudo.
Graças á sua fácil intelligencia, poucas horas bastavam a
Aureliano para desempenhar os seus deveres escolásticos ; o
resto do tempo dissipava-o elle alegremente em convivên-
cias e palestras, improvisando estrophes fugitivas, ou dis-
cutindo litteratura entre seus amigos. Nas polemicas e cer-
tames académicos a palavra lhe borbotava dos lábios coro
uma promptidão e abundância prodigiosas.
Com a mesma facilidade com que dissertava sobre littera-
tura amena, embrenhava-se também com incrível volubilidade
nos mais intrincados labyrinthos da metaphysica.
Como todos os espirites dotados de comprehensão extre-
mamente fácil, mas a quem faltam a calma e paciência neces-
sárias para reflectirem, tomava sofTregamente as primeiras
intuições de sua intelligencia como verdades irrecusáveis, e
assim por vezes de erro em erro era levado aos mais estranhos
paradoxos, que elle todavia não deixava de defender com o
accento da mais intima convicção, e com uma dialéctica ines-
gotável em recursos.
220 HISTORIA DA LITTSRATXJBA BBA8ILBISA
I
Essa mania do paradoxo, e o gosto de metaphysicar (deixem
passar a expressão) o eanmaranhavam ás vezes em tal con-
fusão de raciocinios, que o tomavam completamentei inintel-
ligivel.
O pendor de seu espirito para as concepções transcenden-
taes da philosophia reílecte-se até em algumas de suas compo-
sições poéticas, nas quaes o conceito é por vezes tão subtil e
alambicado, que prejudica grandJemente a clareza.
Aureliano tomou o gráo de bacharel, cm Olinda, em 185i.
Deixando os bancos académicos, a sua norma ordinária de
viver em nada se alterou. Continuou sempre o mesmo, sempre
alegre e despreoccupado, olhando co-m indifferença o pre-
sente, bom ou máo, e completamente descuidado do futuro.
O génio folgazão e imprevidente da puericia parecia nunca
mais querer abandonal-o. Era sempre a mesma criança tra*
vessa, espirituosa, volúvel e doudejante. Epicurista por natu-
reza, Aureliano quereria passar a vida em um cantinuo
festim.
Não vá, porém, o leitor pensar que era elle um d'esses sen-
sualistas libertinos e descridos, como os que a imaginaçáx)
de Byron creou á sua própria imagem e similhança, ou um
conviva crapuloso das tascas e dos bordéis, como esses que
Alvares de Azevedo, exagerando Musset, tanto folgava de
esboçar, esperdiçando em táo monstruosas creações as bri-
lhantes cores de sua rica paleta.
Não ; Aureliano não tinha parentesco algum com D. Juan,
nem tão pouco com J. Rolla, e muito menos com Bocage.
Era um epicurista sui generis. Suas orgias, se orgieis sí
podem chamar, nunca tinham por theatro o lupanar ou a
casa de jogo, ou outro qualquer lugar de devassidão ou crá-
pula grosseira. Eram delirios galhofeiros em roda da mesa,
em companhia de alguns poucos amigos.
O fumo dos vinhos elles evaporavam rindo, cantando, poe-
tisando, ou em passatempos, não direi escolásticos, mas
quasi infantis.
Era uma devassidão do espirito, se assim me posso expri-
mir, jovial e inoftensiva, e não os gozos do sensualismo mato-
HI8T0BIA DA LITTEBATUBA BBABILUBA 221
rial. Eram, desculpem-me se repito tantas vezes a phrase que
melhor o caracterisa, eram orgias de criança » (i).
Este pedaço é instmctivo, duplamente instructivo ; revela
uma parte da indole de Lessa e uma parte da intuiçio rei-
nante em 1850 em São Paulo.
Estava-se então na phase do sentiinentàlismo na romântica
brasileira Esta é a verdade ; mas expressa de um modo tão
geral que se flca a ignorar a realidade da historia, a reali-
dade da vida como ella se passou.
Dizer que n'aquelle tempo a poesia choramigava é a ver-
dade ; mas náo toda a verdade ; é preciso ajuntar alguma
cousa mais ; é preciso dizer antes de tudo quem chorava com
razão e quem pranteava sem ella ; é mister sobre tudo mostrar
no meio de tanto pranto muito riso franco e jovial que passava
gárrulo e sonoro.
E' necessário accrescentar ainda outra cousa : no meio
d'aquelle grande lamuriar houve muita rebeldia, muito brado,
muito grito em prol de novas crenças, de novos idéaes. Foi
um tempo de agitação e toda epocha de agitação merece
grandes preitos da historia.
Devem-se tomar estas precauções antes» de julgar definiti-
vamente Aureliano Lessa.
O estado fragmentado em que ficaram as producções do
poeta é ainda uma attenuante para juizos rigorosos.
No descuidoso mineiro descubro três largas portas por
onde o assaltavam as impressões da poesia : a meditação que
o levava a certo naturalismo semi-philosophico, o amor que
se lhe traduzia em doces e languorosos arroubos, a melan-
colia, que nos seus lábios tinha um. travor dolorosíssimo.
 melancolia não é lá uma cousa tão desparatada como
muita gente por ahi anda agora a julgar ; é antes uma genuína
fllha da civilisação moderna, é uma das formulas do pessi-
mismo, é o seu primeiro passo.
Ora, toda a humanidade é hoje mais ou menos pessimista.
A epocha das grandes alegrias, a phase heiroica do homem,
está passada.
(1) Poenoê Poêthuma» do Dr. Aureliano José Les^sa, Rio de Janeiro,
1873 ; pag, VI.
222 HISTORIA DA LITTBAATURA BKA8ILEIBA
Por isso não se deve ser leviana e julgar mal dos outros sem
provas cabaes.
Pelo que me toca, estou completamente convencido da sin-
ceridade de Aujreliano ; este nunca escreveu versos por sys-
tema e calculo, nclo cogitou jamais de glorias ; sua poesia era
espontânea como a sua conversação ; nada de pose, repito.
Começo por mostrar o poeta pelo sombrio lado da melan-
colia. Ouçam :
« Ha tormentos sem nome, ha desenganos
Mais negros que o horror da sepultura ;
Dores loucas, e cheias de amargura,
E momentos mais longos do que os annos.
N&o s&o da vida os passageiros damnos
Que dobram minha fronte ; a desveVitura
Eu a desdenho... A minha sorte dura
Fadou-me dentro d'alma outros tyrannos.
As dores d'alma, sim ; ella somente
Algoz de si, acha um prazer cruento
Em torturar-se ao fogo lentamente.
Oh! isto é que é 'soffrer! Nenhum tormento
Vale um gemido só da alma tremente,
Nem séculos as dores de um momefato! »
Na mesma indole sfto escriptos estes outros versos :
« Ohl nâo me pergunteis porque motivo
Pende-me a fronte ao peso da amargura,
Quando um suspiro tremulo, afflictivo,
Sobre os meus lábios pallidos murmura.
Quando ao fundo do lago a pedra desce.
Globo de espuma á jflôr do lago estala :
Assim é o suspiro : elle apparece,
Porque no coraç&o cai dôr que o rala.
Do lago a face lisa espelha flores,
No fundo a vista nâo divisa o ceno ;
Assim dentro do peito escondo as dores,
Mandando aos lábios um sorriso ameno.
HISTORIA DA LITTBBATUBA BRABILBUtA 233
Mas quando uma afílicç&o acerba e crua
Mais que um rochedo o coretç&o me opprime,
Qu6Lndo nas chammas do sofírer estua
Como no incêndio o resequido vime ;
Nâo choro, n&o ! De augustias ílagellado,
Um queixume sequer eu nfio profiro ;
Descai-me a fronte, pehso no meu fado...
Oh! não me pergunteis porque suspiro!... »
Podéra citar outras provas (l'essas dores acerbas. Náo é pre-
ciso ; passo ao lyrismo expansivo das effusões amoro-
sas. N'elle apparece o brasUeirismo, isto é, o calor, o anceio
do goso vasado em forma doce e delicada. Entre as produc-
ções do género as mais significativas sao Leviana, A..., Duas
Auroras, Tu, Canto de amor, Qtteixa, além de outras.
Eil-o que inebria-se no6 fulgores de sua amante :
(I Lá despontam no levante
Entre cândidos vapores.
Os primeiros resplendores
Do purpurino arrebol.
Já da noite os véos .sombrios
No occidente empallidecem ;
Sobe a luz, as nuvens descem
Foge a 'noite, assoma o sol.
Sobre o paramo dos ares
Um véo de luz se derrama,
Que nas pérolas da gramma
Vem sorrindo scintillar.
Estão as viçosas flores
Abrindo os botões odoros
E mil pássaros sonoros
Sobre as ramas a trinar.
Preguiçoso rola o rio
As verdes praias beijando,
Longamente murmurando
Um carpido adeus de amor.
224 HISTORIA BA UTTBBATUAA BRA8ILEISA
Da folhagem do arvoredo
Docas lagrimas go^tejemi
E mil zephyros adejam
Pousando de flor em flor.
Vem commigo, ó minha amada,
Saudar esta aurora bella ;
N&o tenho sem ti, donzella,
Nem um completo prazer.
Vem, do teu amahte ao lado,
Pousar n'este chão de flores,
E a linguagem dos amores
Com as aves aprender.
Vem, depressa, ó minha pomba!
Vem com teus lábios risonhos
Contar-me os singelos sonhos
Que em tua alma o céo verteu.
Eu quero também contar-te
Um sonho, um sonho mui bello,
Desejo, ó virgem, vertel-o,
Guardal-o no seio teu.
Traze os teus louros cabellos
Soltos â brisa ligeira,
Assim como a vez primeira,
Que n'este prado te vi!
Na minha lyra dourada
Vibráhdo as cordas sonoras.
Cantarei duas auroras,
Uma nos céos, — outra em ti! »
Estes versos intitulam-se Duas Auroras, uma na esplanada
dos céos, outra no olhos e no sorriso de sua amante. O quadro
é gracioso e prenunciador do apuro a que devia com o tempo
chegar a evolução do moderno lyrismo brasileiro.
Eis outra pagina delicada e meiga, a poesia Tu :
u Teus olhos são como a noite
Trevas e luz;
O' anjo, o céo em teus olhos
Se reproduzi
HISTORIA DA LITTBBATUIIA BBASILBIBA 225
Ta*alina ainda n&o conhece
Teu coraç&o;
Rvbor que te accende as faces
E* sem raz&o.
InnocentOf quem gozara
Comtigo O céo!
Quem dos amores comtigo
Rasgara o véol
Quem descerrara teus lábios
Cum doce beijo!...
Dizendo — amor ~ e em teus olhos
Vira um desejol
Tua face é como a aurora
Púrpura e luz!
O* anjo, a aurora em teu rosto
Se reproduz!
Quero viver em teus olhos,
O' innocente!
Quero adorar-te prostrado
Eternamente! »
E' singelo e amável isto ; é docemente lyrico. Ha quinhentos
géneros de poesia. Aprecio todos elles quando revelam since-
ridade a talento.
A poesia pôde ser crente ou descrente, alegre ou triste,
pacata ou revolucionaria, popular ou aristocrática, lyrica,
dramática, epicai, patriótica, humorisUca, satyrica, elegiaca,
descriptiva, cómica, meiga, ardente, voluptuosa, mystica,
religiosa^ impenitente, scientiílca... pôde ser o que ella quizer
e desejar ser ; estou sempre disposto a aprecial-a, se fõr a
expressão natural de um temperamento.
O que não tolero facilmente são o exclusivismo, a estrei-
teza de vistas, as igrejinhas fanáticas.
ff Nos tempos modernos, diz Lessing, a arte recuou muito os
seus limites. Hoje pretende-se que sua imitação se estenda a
toda a naturezai visivel de que o bello é apenas uma pequenina
parte. Expressão e verdade, assegura-se, são as suas pri-
meiras leis. Como a própria natureza sabe sempre, quando
BuioKu; n 15
226 HI8T0BIA DA LITTBBATURA BBA8ILSIRA
sô faz preciso, sacrificar a belleza a designios mais elevados,
deve também o artista subordinar esta mesma belleza á voca-
ção mais geral que o attrahe a tudo imitar, e seguir-lhe as leis
somente na medida em que se coadunam, com a verdade e a
expressão. »
São palavras do Laocoonte ou os limites da poesia e da pin-
tura, excellente livro, onde se acham em gérmen muitas das
ideias mais tarde desenvolvidas por Taine, Promentin e
Guyau, os três illustres estheticos francezes a que se pren-
dem Bourget e Veron.
Lessing fala n*esse tópico da pintura e repelle aquelle
modo de pensar no que diz respeito a esta arte.
O que é assim até certo ponto inecxacto com referencia á pin-
tura é de palpitanta verdade tratando-se da poesia. Esta deve
estender os seus limites a todos os domínios da phenomena-
lidade universal. O grande Cosmos é o seu objecto.
Eu bem sei que se diz que a sciencia, e sua filha mais velha
a industria, e sua filha mais nova a democracia, batendo os
mysterios, materialisando a vida e igualando as classes,
têm trazido á poesia duríssimas provações; mas acredito
que ella sahirá victoriosa de tão rudes combates.
Não creio ser em pura perda o tempo que tenho e<%tado a
empregar em ler e discutir poetas. Por isso diga-se amda uma
palavra sobre Aureliano Lessa.
Não se limitou! á poesia subjectiva ou pessoal de suas
magoas ou de seus amores. De vez em quando lançava um
largo olhar sobre o grande universo e envolvia-se no turbilhão
das espheras pelos espaços fora. Então desferia d*esses
hymnos pantheisticos, dos quaes O Sol e A Créação são dois
bellos espécimens. Leia-se aqui esta ultima, que não deva ser
confundida com o Hymaio da Créação, também do poeta (i).
Eil-a :
u Quando Uído era Deus, quando só EUe
Pejava o horror do espaço;
Deus disse : — é bom que surja o Universo
Recuemos um passo. —
(1) Vide Poetío* Poãthuma$: lAde O «Sol, Hymno da Créação^ A' Tardm^
O PoeUHt A Créação, etc.
HIBTOBIÀ DA UTTEBATUBA BBASILBIRA 227
Depois co*a dextra contrahindo o vácuo
Informe, e tenebroso,
Deixou cahir o Universo inteiro
No espaço luminoso :
O sUetocio expandiu-se; era um sussurro
De sublime harmonia;
Hymno da vida, porque o sol gyrava
O primitivo dia.
Um chuveiro de mundos despenhou-se
Pelos deserto» ares,
Ck)mo a saraiva, ou como os grftos de arôa
Lá no fundo dos mares.
Rodava a terra verde, e a lua pallida,
Ia a noite após ellas.
Mas caiu sobre as trevas, que fugiam,
Uma chuva de estrellas.
Os cometas correram desgrenhados,
Quaes prófugos do inferno,
Levando aos astros dos confins da esphera
Os decretos do Eterno.
Do seu leito de abysmos o oceano
Tenta em vfto levantar-se;
Vem tombando, mugindo e espumando
Co*as terras abraçar-se.
Abre o condor as azas sobre nuvens,
Leviathan nos mares;
E os jubados leões, bramindo atroam
Os echos dos palmares.
Vem descendo dos montes, debruçados
Como enormes serpentes
Pelas campinas té beber no oceano,
Os rios e as correntes.
Os pássaros cantando, a luz da aurora
Flóreos botões desata;
A selva freme, a viração murmura.
Sussurrando a cascata.
. I
228 HISTOBIA DA LITTBRATUBA BRA8ILBIRA
Immovel nos umbraes da Etemidadd«
Té li o tempo estava;
Mas após ò primeiro movimento
Já veloz caminhavcu
Então milhões de mundos, e mais mundos,
Céos, e céos ao redor.
Todos em brado universal cantaram
Hosana ao Creador.
No meio da harmdhia do Universo
Deus despertou o homem.
Lançando sobre a terra um véo de nuvens
Que ao seu olhar o somem.
Co'a dextra incerta tateando os ares
O homem despertava...
Ébrio de vida, os membros apalpando
— Tu quem és? — perguntava.
Tentou falar; do peito a voz lhe brota,
E recua adinirado;
As aves cantam, e o cantar das aves
Escuta extasiado.
Quiz caminhar, correu pela planície,
E galgou as collinas :
Derrama em torno, ao longe, o olhar vago,
Vô montes c campinas.
Os echos escutou por muito tempo,
Encruzados os braços,
E de lá vem descendo pensa li vo
Com vagarosos passos.
Debalde as vistas erra pelos lit)ncos
Da numerosa selva;
Em v&o percorre as grutas, íaligado
Assenta-se na relva.
Pensa, medita, e erguendo-se mais forte
De novo a selva explora ;
Volve, revolve tudo e o vazio
Do coração deplora.
i
HISTOBIA DA LITTXEATUBA BSABILBISA 229
Súbito estaca palpitante o peito,
E co'o abraço aberto...
Est&o seus olhos devorando a scena,
Que descortinam perto...
Na borda de uma fonte crystallina
A mulher se mirava ;
Rubra de pejo, as graças inda nuas
Co*as brancas mãos tapava.
Ria-se á sua imagem; para ella
Os braços estendia...
Mas vendo a sombra abrír-lhe um terno abraço
Recuava e sorrieu
Elle exclama : eras tu! E ella fugia
Co*as faces em rubor...
N&o pôde proseguir, caiu, cahiram,
E levantou-se Amor! » (1)
Lessa eira um temperamento ideialista e religioso ; não da
religiosidade exterior de praticas e ceremonías ; sim da neces-
sidade da alçar o espirito ás origens, ás syntheses ultimas do
universo, a essas causas primeiras e firmes que o positivismo
deseja banir da mente do homem e Kant declarou constí-
tuirem outros tantos problemas insolúveis scientificamente
6 indestructiveis ante a natureea intrínseca da razão humana.
E' a esphera em que se debatem as duas velhas intuições —
do dualismo e do morúsmo. E' o terreno perpetuo das reli-
giões e das metaphysicas.
De ordinário se diz que a intuição monistica do universo é
um producto da raça aryana e a intuição dualistica uma
obra dos semitas. Assim parece ser a quem estuda super-
ficialmente a historia da philosophia. Um olhar mais profundo
do espirito critico por esse lado irá discernir nos dois maiores
génios dos semitas, Moysés na alta antiguidade e Spinosa nos
tempos modernos, dois monistas no alto e elevado sentido,
mas d*um monismo que se pôde alliar com o ideialismo. Lessa
(1) Poêêioê Poêthumoê, pag. 48.
230 HIBTOBIA DA LITTBBATUEA. BKABILBI&A
parece ter lobrigado vagamente essa aspiração da intelli-
gencia.
Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1827-1884). A pcis-
sagem de Alvares de Azevedo e Aureliano Lessa para Bei^
nardo Guimarães é muito natural. Já se viu que foram com-
panheiros. Obedecem mutatis mutandis & mesma intuição.
Bernardo viveu apenas muito mais do que os seus d(HS
amigos e teve tempo de publicar treee obras. São dez ro-
mances e três volumes de poesias. Teve tempo de tratar de seu
bilan litterario e providenciar sobre sua fama.
Tem-se pois em face um poeta e um romancista ; deve-se
começar pelo primeiro, que foi também; por onde principiou o
notável sertanejo.
O mais antigo volume de versos de Bernardo appareceu
em S. Paulo em 1852 sob o titulo de Cantos da Solidão. Publi-
cou sob a mesma denominação segunda edição no Rio de
Janeiro em 1858 ; o volume vinha augmentado com as Ins-
pirações da Tarde.
Em 1865 surgiu nova edição sob o nome de Poesias de B. J.
da Silva Guimarães. O livro contém, além d'aquellas duas
partes, Poesias diversas^ Evocações e a Bahia de Botafogo. E'
a mais significativa obra poética do nosso mineiro; é uma
das melhores da lingua portugueza.
Em 1876 sahiram as Novas Poesias e em 1883 as Folhas do
Outomno. A decadência è evidente.
Deve-se ainda e sempre procurar o lyrista n'aquelle pri-
meiro livro de sua mocidade.
Bernardo é d^aquelles poetas que lucram em ser relidos ;
descobrem-se-lhe novas bellezas.
Possue boas amostras de lyrismo naturalista, como em
Invocação^ e Ermo; de lyrismo philosophico, como em o
Desvanear do Sceptico ; de lyrismo amoroso, como nas Evo-
cações ; de lyrismo humorístico, como na Orgia dos Duendes^
no Diluvio de papel, em o Nariz perante os poetas.
Mas isto não define o poeta, não o individualisa ; será pre-
ciso descobrir uma nota que seja só d'elle, que o affaste de
seus competidores. E esta nota eu creio tel-a achado : são as
f
HISTOBIA DA LITTEBATUSA BBA8ILBIBA 231
tintas sertanejas de sua paleta e o tom brasileiríssimo de sua
lingua.
Eu me explico.
Magalhães, Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo e muitos
outros poetas nacionaes, do norte ou do sul, eram filhos da
região da costa ou quando muito da que se chama a região
das mattas próxima ás costas. Viveram*, além disto, nas
grandes cidades ao contacto de estrangeiros e quasi nada
conheceram das diversas zonas do paiz.
Gonçalves Dias, que poderia fazer por este lado uma excep-
ção, não a faz, porque só nos últimos annos próximos á sua
morte viajou os sertões do norte.
Por mais brasileira que fosse a intuição d*esses homens,
não o i>oderia ser tanto como a de Bernardo Guimarães. Esie
nasceu e viveu em plena luz, no coração do Brasil, na piar
nalto central.
Filho de Minas, elle viajou muito os sertOes de sua pro-
vinda e das de Goyaz, São Paulo e Rio de Janeiro.
Bernardo tinha o génio de bohemio, era um caminhador :
não apodrecia n*um canto ; movia-se constantemente. Possuia
o instíncto do pittoresco.
Junte-se a isto o conviver intimo com o povo, o falar con-
stante de sua linguagem e saber-se-ha o motivo pelo qual o
intelligente mineiro em seus versos e em seus romances é
uma das mais nitidas incarnações do espirito nacional.
Todos os seus escriptos versam sobre assumptos brasi-
leiros ; mas ha n'elles alguma cousa mais do que a simpleis
escolha do assumpto; ha o brasileirismo subjectivo, espon-
teneo, inconsciente, oriundo d'alma e do coração.
Um traço mais.
Bernardo, com ser um sertanejo, um homem^ habituado á
vida singela e píttoresca do interior, não era um» d'esses espí-
ritos curtos, maldizentes, que praguejam contra todo o pro-
gresso, um d'esses obcecados que desejariam ficasse o Brasil
perpetuamente entregue aos caboclos na sua inveterada estu-
pidez. Muito pelo contrario, Bernardo foi sempre avesso aos
caboclismos exagerados. Era um espirito liberal e progres-
sivo.
232 HISTORIA DA LITTEKATimA BEASILBIBA
Amava a civilísaçao, nGLo leivava o seu amor pela paizagem,
ao ponto de gostar mais de uma bella matta do que <|*uma
bella cidade. N*este sesitído, a poeisia O Ermo é muito interes*
santo e significativa.
O poeta possuia uma boa intuição d*essas duas forças,
que constituem] os dois poios enti^e os quaes gira toda a evo-
lução da humanidade : a natureza e a cultura (Natur und
Kultur).
O maior erro da intuição romântica, erro desenvolvido pela
influencia maleflca da philosophia do século XVIII, foi o exag-
gero das bondades e grandezas do chamado estado de natu-
reza, corrompido mais tarde pela civilisação.
A natureza era aqui elefvada á categoria de uma potencia
bemfazeja e divina, que tinha inspirado as maiores crêaçOes
da humanidade.
N'este sentido feilava-se n'uma Religião Natural, n'uma Poe-
sia Natural, n'um Direito Natural, n'uma Philosophia Natural^
n*uma Esthetica Natural...
V6-se, pois, que a romântica andava também a falar muito
em Mamâe-Natureza, e que o romantismo também se poderia
chamar o naturalismo ; mas era um naturalismo vaporoso.
Os grandes estudos de historia, ethnographia e anihropo-
logia mostraram o homem em estado de natureza mergulhado
na miséria e na ignorância e mostraram que a Mãe-Natura
não produziu nunca arte, ou direito, ou religião, ou poesia,
ou philosophia ; mostraram flnalmente que tudo isto é o resul-
tado da evolução lenta da cimlisaçao humana. A intuição do
cultural substituiu o conceito erróneo do natural.
Era lógico, e dever-se-ia esperar que o termo naturalismo
desapparesse da scena. Porém não foi assim.
A palavra flcou para signíflcar, não esse bucolismo con-
vencional, mas aquelle systema, aquella maneira de encarar
o homem como elle é, como elle se desenvolve individual e
collectivamente sob a dupla influencia das forças physicas e
da cultura social.
Bernardo Guimarães teve um presentimento poético da
intuição contemporânea.
No Ermo elle começa por convidar a sua musa para leval-o
X
HI8T0BIA PA XJTTXBATimA BBASILIUtA 233 ^
s solidões deshabitadas ; apraz-se em taes ermos inebriado
3las bellezas naturaes do sitio, e assim esclama :
« Como ô formoso o céo da pátria minha!
Que sol brilhante e vivido resplende
Suspenso n*essa cnpola serena!
Terra feliz, tu és da natureza
A filha mais mimosa; ella sorrindo
N*um enlevo de amor te encheu d*encantos.
Das mais donosas galas enfeitou-te;
Belleza e vida te espargio na face,
E em teu seio entornou fecunda seiva!
Oh! paire sempre sobre os teus deserios
Celeste benção; bem* fadada sejas
Em teu destino, ó pátria; em ti recobre
A prole de Eva o Éden que perdera!
Olha : — qual vasto manto que fluctua
Sobre os homhros da terra, ondêa a selva,
E ora surdo murmúrio ao céo levanta,
Qual prece humilde, que no ar se perde.
Ora açoitada dos tufões revoltos.
Ruge, sibila, sacudindo a grenha.
Qual hórrida bacchante. AUi despenha-se
Pelo dorso do monte alva cascata.
Que, de alcantis enormes debruçada.
Em argêntea espadana ao longe brilhe^
Qual longo véo de neve, que esvoaça.
Pendente aos hombros de formosa virgem,
E já, descendo a colear nos vaUes,
As plagas fertitisc^ e as sombras peja
D*almo frescor e plácidos murmúrios^.
AUi campinas, róseos horisontes.
Límpidas veias, onde o sol tremula.
Como em dourada escama reflectindo
Flóreas balsas, collinas vicejantes,
Toucadas de palmeiras graciosas.
Que em céo limpido e claro balanceam
A coma verde-escura. Alem montanhas.
Eternos cofres d*ouro e pedraria.
Coroadas de píncaros rugosos
Que se embebem no azul do Armamento,
Ou se te apraz, desçamos n*esse valle. *
y
X
234 HI8T0BIA DA LITTERATUSA BRABILEUtA
Manso asylo de sombi-as e mysterio,
Cuja mudez talvez jamais quebrara
Humaino passo revolvendo as folhas,
E que nunca escutou mais que os arrulhos
Da casta pomba, e o soluçar da fonte...
Onde se cuida ouvir, entre os suspiros
Da folha que estremece, os ais carpidos
Dos manes do índio, que inda chora
O doce Éden que os brancos lhe roubaram!...
Que é feito pois d*essas guerreiras tribus,
Que outr'ora estes desei^tos animavam?
Onde foi 'esse povo inquieto e rude,
De brônzea côr, de torva catadura,
Com seus cânticos selváticos de guerra
Restrugindo no fundo dos desertos,
A cujos sons medonhos a panthera
Em seu covil de susto estremecia?
Oh! floresta, que é feito de teus filhos? » (1)
O poeta prosegue pranteando o dôsapparecimenlo dos pri-
mitivos Íncolas, a destruiçâx) das mattas, a mudança operada
pelos colonos. Prantéa a morte de tantas scenas naiutats.
De repente muda de linguagem e exclama :
« Mas, n&o te queixes, musa; s&o decretos
Da eterna providencia irrevogáveis!
Deixa passar destruição e morte
N*essas risonhas e fecundas plagas.
Como charrua, que revolve a terrs^
Onde germinam do porvir os fructos.
O homem fraco aind6^ e que hoje a custo,
Da creaç&o a obra mutilando.
Sem nada produzir destrue apenas,
Amanha creeu^á; sua mâo potente.
Que doma e sobrepuja a natureza.
Ha de imprimir um dia forma nova
Na face d'este solo immneso e bello :
Tempo virá em que n'essa vallada
Onde íluctua a coma da floresta,
Linda cidade surja, branquejando
(1) Poesias^ pag. 59. —
J
HISTORIA DA LITTXEATUBA BBABILBIKA 235
Como um bando de garças na planície;
£ em logar doesse brando rumorejo
Abi murmurará a voz de um povo;
Essas encostas broncas e sombrias
Serão risonhos parques sumptuosos;
Esses rios que vão por entre sombras
Ondas caudaes serenas resvalando,
Em vez do tope escuro das florestas,
Reflectirão no límpido regaço
Torres, palácios, coruchéos brilhantes,
Zimbórios magestosos, e castellos
De bastiões sombrios coroados,
Esses bulcões da guerra, que do seio
Com horrendo fragor raios despejam.
Rasgar-se-h&o os serros altaneiros,
Encher-se-hão dos valles os abysmos :
Mil estradas, qual vasto labyrintho,
Cruzar-se-hSLo por mohtes e planuras;
Curvar-se-hão os rios sob arcadas
De pontes colossaes ; canaes immensos
Virão surcar a face das campinas,
E estes montes verão talvez um dia,
Cheios de assombro, junto ás abas suas
Velejarem os lenhos do oceano! » (1)
N'este gosto prosegue o poeta, que assim se expressava em
1849 ou 50 n^esta peça, uma das mais antigas de sua lavra.
Acho escusado insistir em cada uma das principaes mani-
festações do lyrismo do illustre mineiro.
Algumas palavras sobre o que chamei o seu lyrismo natu-
ralista.
O Devaneiar do Sceptico é o poeta diante da philosophia ;
pôde flcar de lado. No Ermo é o poeta diante de natureza e da
cultura ; já foi visto ahi. Invocação é o poeta em face do Uni-
verso, do Cosmos, da Creação. E' un dos hymnos mais objec-
tivos e ao mesmo tempo mais enthusiastas que já uma vez
foram escriptosi em toda a America.
Alenta essa poesia notável um ideialismo exhuberante, um
(1) Idem, pag. 68.
236 HI8T0KIA DA LITTSKATimA BRA8ILBDU.
dynamismo que de tudo transpira e so communica ao leitor.
O universo inteiro palpita animado e exhala-se em perennes
hymnos. E' a poesia que de tudo transuda.
O poeta exclama :
(c Voz do deserto, espirito melódico,
Que as cordas vibras d*essa lyra immensa,
Onde resoam mysticas hosannas.
Que iiiteira a creaç&o a Deus exalça;
Salve, ó anjo! minha alma te saúda,
Minha alma que, a teu sopro despertada,
Murmura, qual vergel harmonioso
Pelas brisas celestes embalado...
Salve, ó génio dos desertos,
Grande voz da solid&o.
Salve, ó tu, que aos céus exalças
O hymno da creaçfiol
Sobre nuvem de perfumes
Te deslizas sonoroso,
E o rumor de tuas azas
E' hymno melodioso.
Que celeste cherubim
Te deu essa harpa sublime,
Que em variados accentos
A.S dulias dos céos exprime?
Harpa immensa de mil cordas
D'dnde em caudal, pura enchente,
Estão suaves harmonias
Transbordando eternamente?
De uma corda a prece humilde
Como um perfume se exhala
Entoando o sacro hosanna.
Que do Eterno ao throno se ala.
Outra como que prantôa
Com voz fúnebre e dorida
O fatal poder da morte
E as amarguras da vida.
I
r
HIBTOUÂ DA LXrmtATUEA BRABUJDSA 287
N*esta brotado amor suspira,
£ lamenta-se a saudade;
N'est*outra ruidosa e férrea
Troa 'a voz da tempestade.
Carpe as magoas do infortúnio
De uma voz triste e chorosa,
E só geme sob o manto
Da noite silenciosa.
Outra o hymno dos prazeres
Entoa lôda e sonora,
E com cânticos festivos
Saúda nos céos a aurora.
Salve, ó génio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céos exalças
O hyníno da créaçâol... n
A poesia prosegue sempre alentada. Convido o leitor a
tomar do volume e repassar tão bcllos versos.
São escriptos n'esse espirito de um theismo dynamistico
universal ao gosto de Leibnitz, certamente mais poético do
que a atomicidade absoluta de Demócrito.
A melhor e mais fulgente manifestação do talento poético
de Bernardo Guimarães são as cinco primeiras peças da serie
que intitulou — Evocações^ a saber : Sunt lacrimx rerum^
Preludio, Primeira, Segunda, Terceira Evocação.
Ahi entra-se em pleno lyrismo pessoal, mas de uma pessoa-
lidade amável e deliciosa. O poeta evoca as suas antigas
amantes e fal-as desfilar ante elle. O sentimento 6 profundo e
real ; as Evocações lembram as Noites do primeiro poeta
francez do XIX século, Alfredo de Musset.
A forma é de uma doçura e sonoridade de encantar.
N&of sei se o diga, não sei se deva deixar aqui a manifes-
tação de uma circumstancia puramente pessoal : nunca pude
ler esses versos do poeta mineiroi, e eu os tenho lido bem
vezes!... sem sentir sincera emoção.
Para mim, aquillo é a poesia verdadeira, feita com as lagri-
mas da realidade, com as desillusões da vida.
238 HISTORIA BA LITTBBATUSA BRA8ILSIBA
Nfto transcrevo nada para não cotpm* o risco de transcrever
quasi tudo. Recommendo taa bellas paginas aos amantes da
boa poesia.
Aqui devera ílcar quite com o poeta, se não fora a neces-
sidade de juntar mais ^gumas palavras, afim de prendel-o
á evolução geral de nossa litteratura, marcando ahi o seu
lugar.
A critica puramente descriptiva nfta tem valor, se conside-
rações mais serias lhe nao vêm imprimir o caracter scienti-
flco. Entre nós já se pôde assim falar.
Na.0 sei bem se a poesia, o romance, o drama, a comedia, o
folhetim, o conto, a novella estáo ou nâo completamente
transformados hoje no Brasil. Mas sei que a critica litteraria
está em grande parte.
Nos últimos trinta annos tentos têm sido os assumptos de
caracter puramente brasileiro em que se ha tocado, tal e tão
pronunciado o esforço em conhecer bem o passado nacional,
que uma serie da factos e de problemas ahi estáo a reclamar
o estudo de resolutos obreiros por muitos e muitos annos
ainda.
A medida que a corrente estrangeira, que sempre tivemos
e sempre havemos de ter, na litteratura nos atirava á poesia
hugoana, e mais tarde a poesia de SuUy Prudhomme e Le-
conte de lisle, e mais tarde ainda ao romance de Zola e ao
mesmo tempo á critica alleman ou ao positivismo de Comte,
ou ao evolucionismo de Spencer, ao passo que os represen-
tantes entre nós do espirito do tempo punham-nos ao contacto
das ideias européas, a pteiada dos aflerrados ás nossas fau-
dições, outra phalange de operários que sempre tivemos e
sempre deveremos ter, abria brecha na préhistoria, na anthro-
pologia, na linguistica a na historia nacional.
São dous movimentos que se completam, duas tendências
que sa harmonisam. Devemos ser homens de nosso tempo
e também de nosso paiz.
Este dupla tendência modiflcou entre nós a critica litteraria.
E' por isso que aquelle que bem conhecer o seu Sainle-Beuvç
ou o seu Taine ou o seu Scherer, mas desconhecer as tra-
balhos de Baptiste Caetano, Couto de Magalhães, Baptista de
HISTOBIA DA LITTBBATtTRA BSABILBIBA 239
Lacerda, Ferreira Penna, Capislrano de Abreu, Rodrigues
Peixoto, Frederico Hartt, Macedo Soares, Barbosa Rodrigues,
Pacheco Júnior, Lameira de Andrade, João Ribeiro e muitos
outros sobre a archelogia, a linguistica, a ethnographia e a
historia do Brasil, não poderá amplamentei entre nós exercer a
eritica.
O mais que poderá fazer é colher em livros europeus meia
dúzia de regnis, inspiradas pela analyse de escriptores
estrangeiros, e cortar com ellas a roupa em que se devem
envolver os nossos auctores. Isto é irregular e improfícuo.
Tal o methodo, entretanto, de que muito se tem abusado no
Brasil.
Em geral os nossos chamados homens de letras lêm livros
europeus e especialmente livros írancezes ; raros occupam-se
de assumptos brasileiros.
Innumeros são os poetas e litteratos que não sabem duas
palavras da historia do paiz ; raríssimos aquelles que se
acham em estado de formular um juízo mais ou menos regu-
lar sobre o passado e o presente nacional.
E, todavia, quem tiver o gosto da erudição, da anthropo-
logia, da linguistica, das sciencias naturaes, etc, encontrará
no Brasil vastíssimo campo ás suas pesquizas.
Emquanto não nos applicarmos a descobrír, esclarecer, des-
vendar os muitos assumptos scienliflcos que se nos deparam
entre nós e quie attrahem sempre e sempre sábios europeus ás
nossas plagas, não fundaremos nossa Utteratura scientiflca,
nem resguardaremos de quaesquer attaques nossa litteratura
propriamente dita.
E' preciso deixar de lado o methodo exterior de julgar os
productos litteraríos por meio de convenções rhetorícas. E'
mister procurar emi toda a vida nacional o elemento popular,
vivo, constante, crêador. E' urgente investigal-o na historia
politica e social e na historia litteraria e das artes.
E, apezar de contarmos aquelles poucos escriptores que se
vão occupando dos estudos nacionaes, é ainda hoje uma ver-
dade afflrmar que somos um povo que sé desconheça
A historia brasileira está em geral quasi toda por escrever
e sem ella nos perderemos sempre em divagações, não tere-
240 HI8T0BIA DA UmnULTU&A B&ABILSIBA
mos um espirito próprio, nem a consciência de nós mesmos.
Tal o critério fundamental das indagações litterarias.
Os livros dos novos e dos velhos poetas devem ser um
corollario de nossa própria evolução, sob pena de nada vale-
rem, de nada representarem, salva o testemunho de algum
raro espirito, algum raro pensador, tão geral, tão universal,
tão humano, que vá tomar assento entre os mais illustres
representantes de nossa espécie e lá fulgir entre os génios que
que não têm pátria, entre os Shakespeares, os Dantes, os
Ooethes, cousa que não sei se já nos aconteceu...
Bernardo Guimarães, á luz de taes ideias, não é um desclas-
sificado. Muito pelo contrario elle é um élo normal, e uma
das figuras mais interessantes de nossa litteratura.
Cursou, como se viu, direito em S. Paulo, onde foi comr
panheiro de Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa, José Boni-
fácio, Silveira de Souza, Fedix da Cunha, José de Alencar e
outros estudantes enthusiastas e estrosna^ d*aquelles boas
tempos. Foi a epocha de maior effoíTescencia romântica em
nossas academias.
A* poesia religiosa de Magalhães e á poesia cabocla de Gon-
çalves Dias aquelles moços fizeram succeder uma poesia mais
ampla, mais agitada, mais comprehensiva. Avantajaram-se
aos seus predecessores em conhecer melhor as litteraturas
estrangeiras, em preoccupar-se mais das questões sociaes, e
em cultivar mais a forma. Trabalhairam' em horizonte mais
vasto e com armas mais brilhantes.
Entre elles distinguia-se Bernardo Guimarães por um ly-
rismo sereno, plácido, confiante, quasi bucólico. Era mineiro
e levava a influencia de Gonzaga e dos sertões nataes. Foi
sempre contrario ao indianismo e por isso criticou de Gon-
çalves Dias.
Inimigo de formalidades, logo ao formar-se, relirou-se aos
seus serros, d'onde não mais sahiu, sinão rapidamente para o
Rio de Janeiro, que de prompto abandonou, acolhendo-se ao
seu planalto, onde passou a vida sem ter empregos públicos,
ao que supponho, e onde foi o ulimo Abencerage do roman-
tismo. Poz-se então a cultivar o romance, de que falarei em
breíve, com um sainete especial.
HISTORIA DA LITTBSATtTRA BRABILBIRA ^1
Seus livros do género sáo novellas de um enredo simples,
de um estylo leve, despretencioso, semeado de lyrismo e de
algumas notas humorísticas.
E' justamente o mesmo que se dá nos versos.
N'dstes as Poesias levam vantagem, como disse, ás Novas
Poesias e ás Folhas do Outomno. As melhores imagens doesta
ultima collecç&o são edições novas de seus versos antigos. O
livro é quasi um complexo de neaiias. As melhores peças são,
como lyrismo, Flor sem nome e Saudades do Sertão do Oeste
de Minas ; e como humorismo A Moda e o Hymna d Preguiça.
Por estas quatro ligeiras composições aprecia-se perfeita-
mente a inlole poética do nosso mineiro. Elle foi no fundo
uma natureza sceptica, a que se ligaram certas tendências epi-
curistas.
D'ahi o seiu lyrismo voluptuoso de um lado e de outro .a
ponta de sarcasmo que se deixa vêr em muitos dos seus
versos.
Mas o auctor das Evocações foi verdadeiramente um poeta,
quero dizer, um espirito descuidoso e contemplativo, um espi-
rito móbil e impressionavei. Nunca desmentio sua vocaçáo.
Não sei se o mesmo aconteceria a Alvares de Azevedo, se
continuasse a viver.
Quem sabe se não teria elle, como José Bonifácio e Félix
da Cunha, e mais que todos Francisco Octaviano, tomado
estranho caminho na direcção da politica 7
Tudo que ahi vaô dito de Bernardo Guimarães, na quali-
dade de poeta, ei que lhe é favorável, não quier significar abso-
lutamente que elle não tenha também os seus defeitos. Tem
nos e bastantes : é muitas vezes prosaico, por vezes incorrecto
6 não poucas superficial.
Possue certa delicadeza e propriedade de tintas, possue faci-
lidade e presteza de vôo ; mas não tem força ; intêressa^^ mas
não captiva. E* claro^^ que faço excepção das Evocações.
O romancista em Bernardo Guimarães é merecedor de
attenção pelo caracter nacional das suas narrações, pela sim-
plicidade dod enredos, pela facilidade do estylo.
O escríptor mineiro pôde ser tomado como um documeato
marsoBu, n 16
242 HIBTOBIA DA LITTBKATimA. BBA8ILEIRA
para estudar as transformações da lingua porlugueza n' Ame-
rica.
Tomando-se Gregório da Mattos nos melados do século xvn,
TaqueSinos melados do século xviii e o nosso mineiro em
melo dò século xix, temos o thermometro certo das alterações
e transformações progressivas da língua no Brasil.
Nas locuções, no modo de dizer, no agrupamento das pala-
vras, no tour da phrase, o espirito atilado vae marcar as varia-
ções.
As publicações de Bernardo Guimarães, no romance, sáo :
O Ermitão do Muquem (1858), Lendas e Romances, Historias
e. Tradições da Provincia de Minas Gerais, O Garimpeiro
(1872), O Seminarista (1872), O índio Afíonso (1873), A Escrava
Isaura (1875), Mauricio ou os Paulistas em S. João d^ElRei
(1877), A Ilha Maldita (1879), O Pão de Ouro (1879), e Rozaura
— a Engeitada (1882). Alguns são simples ensaios, sem alento
e descuidosamente escriptos.
Os mais significativos, a meu ver, são : O Garimpeiro^ O
Seminarista, Mauricio, A Escrava Isaura.
O Seminarista é um pequeno estudo de género ; é a narra-
tiva romantisada de um facto real. E* a historia de um> rapaz,
filho de um mediano fazendeiro de Minas, que, tendo amoroso
enleio por uma bella menina da visinhança, é obrigado a
metter-se n'um seminário e tomar ordens.
A paixão, a principio acalmada pelos estudos, penitencias
e macerações da especiei, rebenta forte por novos encontros
nos tempos das ferias, e violentíssima, quando o moço padre
vem prompto para cantar sua missa nova e é chamado para
ouvir de confissão uma moça agonisante. Era ella, era Afor-
rando, a heroina, e elle Eugénio tinha-a alli á mão, mas
próxima á tumba !...
Seguem-se peripécias atrozes e o joven padre sae louco
furioso, no momento de sua primeira missa.
O livro deixa-se ler docementa ; não é atordoador e cheio de
convulsões ; a acção corre serena e vata dineita a seu fim. Tem
muita verdade psychologica e muita exactidão de tintas nas
scenas locaes. Não tem aquelle aspecto doutrinário, esca-
vador, scientiflço, technico, que tem invadido o romance
HISTORIA DA LITTERATimA BRASILEIRA 243
moderno, ás vezes levada a tal exàggexro que antes ler um
tratado de pathologia, especialmentei de moléstias do systema
nervoso e das faculdades mentaes, do que ler taes livros, que,
aflnal de contasi, nem sciencia, nem arte sáo. O nosso livro
não tem aquelle aspecto demonstrativo de uma equaçfto algé-
brica nem o tonv realista de um processo crime.
O romance é vasado nos velhos moldes ; mas tem verdade,
d'essa verdade que se impunha a uan homem que tinha os
olhos abertos, como Bernardo Guimarães e sabia observar,
ainda que o nâo ostentasse.
A Escrava Haura 'é um estudo social. Assenta sobre o facto
da escravidão que existiu entre nós. Trata-se de uma bella
rapariga, intelligentei, graciosa, prendada e alva, como um
exemplar de boa raça aryana. A pobre, entretanto, era ca-
ptiva e requestada pelo senhor...
Consegue fugir em companhia de seu pae, e, da cidade de
Campos na província do Rio de Janeiro, onde corre o prin-
cipal da acção, vae ter ao Recife.
Ahi passa por livre, frequenta boas rodas, vae a reuniões,
t^m admiradores.
E' descoberta e -presa afinal, voltando ao poder do cruel
senhor, de cujas garras é arrancada por um moço rico que se
tomara por ella de profundo alTecto.
O facto é possível e deu-se até mais de uma vez ; ha vera-
cidade em geral, apar de algumas incongruências e ficelles.
O Garimpeiro é uma narrativa local, é romance de cos-
tumes. ^ Tem boas paginas descriptivas, regulares quadros de
género. D'estc numero é a cavalhada^ que occorre logo no
segundo capitulo.
Na mesma indolé e^ tendência é Maurício^ ainda que mais
significativo como estudo e como intuição ethnographia.
Maurício é romance de costumes sob o ponto de vista his-
tórico. ,Refere-se á lucta havida em Minas em. tempos colo-
niaes entre os paulistas, os ousados bandeirantes ^que desbra-
varam e povoaram aquelles sertões, e os portuguezes, os rei-
nóes, os emboabas avarentos, que se aprestavam a enthe-
zourar o trabalho alheio.
E' um bello livro, onde ha muitas verdades, quer em scenas
244 HI8T0BIA DA LITTBRATURA BRABILSnU
da natureza, quer em scenas da vida humana. D'aquellas é um
exempla o capitulo que se intitula a gruta de Irabussú e d'estas
o capitulo — a caçada.
Muita gente hoje crê só haver exactidão e verdade no ro-
mance de actualidade e.no moderno naturalismo. E* um exag-
gero.
N'esse falso presupposto repellem o romance histórico e o
género que n'Allemanha, teve em Auerbach um* denodado cul»
tor. São dois peremptórios juizos que precisam de revisfio.
Pelo que diz respeito ao elemento histórico em o, romance,
a historicidade ahi, como em tudo, é susceptivel de alhar-se á
verdade.
Bem arranjada estaria a humanidade, se a pobresinha nãio
podesse tomar pé no terreno do passado. Então, adeus poli-
tica, adeus historia, adeus sciencia. Viveria au jour le jour.
Além da momeoito actual e presente nada !... E* justamente
a intuição do selvagem.
Pelo que toca ao estudo das populações campezinas, é elio
também susceptível de muita» verdade. Não é só nos grandes
centros populosos que ha entes humanas. N*uma aldeia tam-
bém se vive, também ha almas, também ha paixões. Onde
mais verdade do que em Hermann e Doroihea? Em igual
direcção correm as novellas de Auerbach.
O naturalismo pôde bem abrigar-se n'um e outro terreno.
No primeiro caso tem-se o que o moço critico brasileiro
Clóvis Beviláqua denominou o naturalismo tradicionalista^ a
propósito de Franklin Távora, e no segundo o que, a propó-
sito do mesmo romancista, eu chamei o naturalismo aldeão e
campezino.
Ora, acontece que em Maurício de Beornardo Guimar&es di
se a juncção das duas tendências : a vida tradicional nas po-
pulações ruraes. E* também o caso do Cabelleira, do MtUuto e
de Lourenço, os tree notáveis livros de Franklin Távora.
Este romancista e Bernardo Guimarães são, pois, dois pre-
decessores do naturalismo á contemporânea e merecem bon-
roso logar na pátria litteratura.
Quem se deleitar somente com os estudos de physiologia
e psychiatría, que se encontram -nas obras primas do
EIBTOftU DA LimftATUSA BEAftltSlttÁ 245
lismo contemporâneo, não poderá achar grande prazer nas
pinturas rápidas e singelas de simples costumes populares
que se lhe deparam nos romances de Bernardo Guimarães.
Quem, porém, acha algum interesse em tudo o que é hu-
mano, em toda e qualquer manifestação do viver de um povo,
pôde e deve ler nos romances do mineiro bellos quadros por
todos élles esparsos.
Aqui vae um exemplo ; é o motirão em casa da tia Umbelina
nos capítulos XI e XII do Seminarista.
Lá vae um tópico :
H Alguns dias depois da prohibição imposta a Eugénio, a casa de
Umbelina amanhecia em grande animação e alvoroço. Via-se lá
entrando e sahindo mais gente do que de ordinário ; matavam-se
frangos, o forno trabalhava, o fogão deitava fumaça mais do que de
costume, e reinava actividade e movimento, que faria crer que
n^aquelle dia alli se festejava algum baptisado ou casamento.
Não havia porem nada disso. O que havia em casa de Umbelina
era apenas um moiirão.
Motirãol só esta palavra nos faz resoar ex>s ouvidos os alegres
rumores dos descantes e folguedos da roça, o estrépito dos sapa-
teados da dança camponeza por entre a zoada dos adufes e violas,
e nos transporta ao meio das rústicas e singelas scéhas de prazer
da vida do sertanejo.
Motirão!... mas eu não sei se todos os meus leitores saberão a
significação doesta palavra, que julgo ser genuina brasileira, e que
talvez não poderão encontrar em diccionario algum. Portanto é
necesseuio deíinil-a.
£' o motirão um costume dos pequenos lavradores, ou da gente
pobre dos campos, que vivem como aggregados dos grandes fazen-
deiros, e que não possuindo terras, e menos ainda braços para cul-
tíval-as, nem por isso deixam de plantar boas roças, ou de exercer
uma pequena industria, de que tiram a subsistência.
Quando chega o tempo de qualquer dos serviços de roça, que con-
sistem n*estas quatro operações principaes, — roçar, plantar, capinar
e colher, — o pequeno roceiro convida seus parentes, amigos e
conhecidos da visínhança para virem ajudal-o, e todos pelo direito
costumeiro são obrigados a vir dar-lhe uma mão, é a phrase usada,
— ficando o que assim se aproveita dos serviços dos visinhos na
obrigação de acudir também ao chamado d*estes para o mesmo fim.
246 HISTOBIA DA LITTEBATUBA BBA8ILEIBA
Já se vô que a calhandra de Lafontaine erraria seus cálculos, e
perderia inevitavelmente os seus filhotes, se tivesse de haver-se
com os bons lavradores doesta nossa abençoada terra.
O motirão constitue pois como uma espécie de sociedade de auxí-
lios mútuos, baseada unicamente nos costumes e usanças dessa
boa gente, que não dispondo muitas vezes sinão do seu único braço
para o serviço, planta todavia roças consideráveis, e obtém a colheita
necessária para a sua subsistenci6L
Este uso nâo é somente dos roceiros, e é também posto em pratica
pelas mulheres que vivem de fiar e tecer, das quaes antigeunente
havia grande numero ha província de Minas, aliment€uido com seu
trabalho esse ramo de industria outr'ora mui importante e flo-
rescente.
Mas o motirão não consiste simplesmente no desempenho de
uma tarefa de trabalho. O dono ou dona da casa tem por obriga-
ção regalar os seus trabalhadores do melhor modo possível, e a
reu*nião e a boa mesa trazem sempre como consequência natural
os divertimentos e folguedos. Assim trabalha-se de dia, e á noite toca
a comer e beber, a dançar, cantar e folgar.
Como Íamos contando, havia motirão em casa de Umbelina. Tinha
ella convideulo as comadres e amigas mais chegadas da villa e das
visinhanças a virem passar alguns dias em sua casa, afim de ajuda-
rem-na a desmáhchar algumas arrobas de lã e algodão, que queria
pôr no tear, e para as regalar punha em actividade toda a sua perí-
cia de quitandeira mestra e de quiluieira abalisada.
A noite, como de costume, havia toques, cantigas e folguedos, e
então appareciam também lá alguns rapazes da villa e dos arre-
dores. A sociedade de Umbelina era em verdade de pessoas do povo
e de baixa condição, mas honra lhe seja feita, era tudo gente com-
portada e de bons costumes. Ella era incapaz de chamar á sua casa
vadios, peraltas e mulheres perdidas para junto da companhia de
uma filhei, que era a menina dos seus olhos, e cuja reputação zelava
com o maior recato e solicitude Resoavam as violas e
adufes; o folguedo já tinha começado á sombra da figueira do ter-
reiro.
Alem do luar, que estava soberbo, duas grandes fogueiras accesas
no terreiro a alguma distancií^ íUumínavam de um modo original e
píttoresco o âmbito, dentro do qual se desenhavam destacando-se
vivamente as figuras d^aquella curiosa e interessante reunião uns
no centro, dançando, outros em derredor, sentados pelo chão ou em
tamboretes e cepos de páo como servindo de cerca e limite áquelle
recinto. O clarão das fogueiras avermelhava a cupola gigantesca da
HIBTOBIA DA LITTB&ATnEA BRA8ILEIRA 247
figueira, que com sua espessa folhagem abrigava os convivas do
orvalho frio da noite.
Eugénio chegou-se á roda tolhido e resabiado. Porem Margarida,
que apenas o avistou soltou um grito de alegre sorpreza, e veio
immediatamente coUocar-se ao pé d*elle, fez com que logo cobrasse
animo e presença de espirito, e tomasse assento na roda com todo
o desembaraço, como qualquer dos habituados.
Attrahidos pela belleza de Margarida, como dissemos, alguns
rapazes frequentavam a casa de Umbelina, e lhe requestavam a
filha. Esta, porem, não lhes dava a mínima attenção, e em sua cân-
dida innocencia nem mesmo suspeitava o verdadeiro motivo,
porque tanto a festejavam.
Entre esses aspirantes ao amor da rapariga, o que mais padecia
era um certo rapaz por nome Luciano. Era um moço, que teria a
rigor seus vinte e cinco annos, de bdnita e agradável presença,
tropeiro bem piincipiado, que já tinha alguns lotes de burros no
caminho do Rio, e que alem de tudo se tinha em grande conta de
bonito, de rico e de bem nascido, pelo que "não deixava de ser sum-
mamente ridículo, quando nfió era insolente e malcreado
Sabe o leitor o que é quatragem?
Não sabe. E* uma dansa.
E' a dansa original e pittoresca de nossos camponezes, dansa favo-
rita do roceiro em seus dias de festa, e que faz as delicias do tro-
peiro nos serões do rancho apoz as fadigas da jornada.
Dansa vistosa e variegada, entremeada de cantares e tangeres,
já cheia de requebros e languidamente balanceada ao som de uma
cantiga maviosa, já freneticamente sapateada ao ruido de palmas,
adufes e tambores.
Sem ter o desgarre e desenvoltura do batuque brutal, nfto é tam-
bém arrastada e enfadonha como a quadrilha de salão; ora salta e
brinca estrepitosa e alegre, ora se requebra em mórbidas e compas-
sadas evoluções.
Como o próprio nome indica, forma-se de um grupo de quatro
pessoas. Â musica é desempenhada pelos dansantes, que alem de
uma garganta bem limpa e afinada, devem ter nas mãos ao menos
uma viola, e um adufe. Há uma quantidade incalculável de coplas
para acompanhar esta dansa, e a musa popular cada dia engendra
novas. São pela maior parte toscas e mesmo burlescas e extrava-
gantes; todavia algumas ha impregnadas d'essa maviosa e singela
poesia, que só a natureza sabe inspirar.
Dansava-se a quatragem no motirão da tia Umbelina. Margarida
248 HI6T0BIA DA LITTEXATimA BRABILBISA
estava sentada junto de Eugénio, de cujo lado nfio se arredara
desde que este havia chegado.
la-se formar Yiova roda de dansadores ; Luciano, que tinha a viola
em punho, dirigio-se a Margarida, e convidou-a para a dansa. EUa
recusou-se pretextando já ter dansado muito e achar-se fatigada.
— Ent&o venha esse mocinho, que ahi está com a senhora, disse
Luciano.
Com este convite o rapaz procurava mesmo occasião de travar-sc
de razões com o estudante, afim de desahsifar o ciúme e depeito que
por dentro o corroiam » (1).
Devchse ler no roanance a lucta entre Luciano e Eugénio;
tem perfeita côr local. Repare-se na maneira brasileira da lin-
guagem. Griphei algujnas palavras © dizeres no intuito de des-
pertar a atlenção do leitor.
Bernardo era do numero dos que se não preoccupam com
as portentosas maravilhas do purismo ; não quebrava a cabeça
nem perdia o somno, scismando sobre a collocação dos pro-
nomes e outras brilhaturas da espécie...
José Bonifácio de Andrada e Silva (1827-1886). — E' esle
um dos homens de letras menos estudados e aquilatados no
Brasil. Herdeiro de um grande nome, os aduladores politicos
tomaram bem cedo conta d'elle e meteram-no nas regiões
mysteriosas da mythologia de convenção.
Fizeram do neto de Andrada um estadista, um pensador
politico, um sábio publicista, um professor enoeríto, um juris-
consulto originai e não sei mais que, esquecendo-se todos de
não ser o famoso paulista mais do que um orador académico
e um poeta de talento.
N'esla dupla qualidade é que vae ser estudado e contemplado
n'este livro.
Antes de tudo o poeta.
Logo em começo surge uma questão preliminar. Sal>e-se
que, apesar dei haver muita originalidade intrínseca no lyris-
mo nacional, não se pode negar n'elle pela face meramente
(U o Seminariêta, pag* 119 e seguintes.
HI8T0SIA DA UTTKltíLTnSA BBA8ILBIBA 249
exterior, uma certa influição reflectiva da influencia de alguns
poetas europeus.
Chateaubriand, Lamartine, Byron, Musset e Victor Hugo
foram os indirectos influidores do romantismo brasileiro.
Pois bem, resta saber quando e como começou a orientação
exercida por Victor Hugo.
Antes de tudo, releva ponderar que a acção de Victor Hugo
foi meramente exterior, simples questão de forma. Mas d'onde
partio essa simples modiflcação do estylo poético entre nós ?
José Bonifácio, Luiz Delfino, Pedro Luiz e Tobias Barretto
têm passado pelos iniciadores do hugoanismo em nossa
poesia. Isto demanda uma explicação.
Ha a notar antes do mais a questão da idade : José Boni-
fácio era de 1827, Luiz Delfino de 1834, Pedro Luiz e Tobias
Barreto ambos de 1839. José Bonifácio éra, pois, sete annos
mais velho do que Luiz Delfino e doze mais do que os outros
dois.
O poeta paulista, poremi, não possuio logo de principio a
intuição hugoana da forma. Só mais tarde ella lhe chegou,
mais ou menos incompletamente.
Nunca publicou livros que corressem o paiz, foi um traba-
lhador solitário, inserindo de longe em longe alguns versod
em ephemeros jornaes. Seu folheto de 1840 sob o titulo de
Rosas e Goivos^ pelo que tenho ouvido referir d^elle, é me-
díocre como documento lilterario e está fora da intuição de
que se trata.
Os versos, que appareceram em 1861 nas Trovas Burlescas
de Getulino e em 1862 na Bibliotheca Brasileira de Quintino
Bocayuva, em alguns pontos já se lhe aproximam mais
algum tanto, náo tendo, porém, ainda a forma pura do
moderno lyrismo de. Hugo.
Gomo quer que seja, porem, José Bonifácio não teve discí-
pulos, não passando de um simples precursor isolado. Como
escola, como movimento litterario o condoreirismo começou
no Recife.
Luiz Delfino, com ser cinco annos mais velho do que Pedro
Luiz e Tobias, não os antecedeu, na poesia.
Delfino veio tarde de sua província para o Rio de Janeiro
250 HISTORIA DÁ LITTBRATtTRA BRA8ILBIRA
estudar os preparatórios. Creio que os. seus primeiros ensaios
poéticos são de 1855 ou 56, justamente no tempo em que prin-
cipiaram os outros dois.
Delflno nunca foi assíduo na imprensa ; também nunca pu-
blicou livros. Até 1880 pouco, bem pouco publicou em jor-
naes. Nos últimos annos é que, já rico pela clinica, príncipiou
a ter actividade litteraria ; mas, n'este tempo, nem já elle tem
sido mais condoreiro, nem a escola existe mais. Dissoiveu-se
ha muitos annos.
Delflno foi um poeta intermitlente, sem acçáo directa sobre
o publico, e não teve discípulos no tempo e no sentido a que
alludo. Actualmente elle tem o seu pequeno cenáculo ador-
nado de outras vistas.
Restam Pedro Luiz e Tobias Barretto. São ambos de 1839, o
notável anno em que nasceram também Carlos Gomes e Ma-
chado de Assis, e em que se começou a a^tar o movimento
da maioridade.
Pedro Luiz, aJém de não ter começado antes de seu emulo,
não era um temperamento litlerario.
Apenas formado em 1860, atirou-se á politica. Publicou
umas cinco ou seis poesias nos jornaes do Rio, em estylo
semi-hugoano. E' um typo apagado pela politica.
O condoreirismo, como escola, em sua dupla manifestação
de lyrísmo e poesia social, foi iniciado em 1862 por Tobias
no Recife. O poeta possuia essa intuição desde os seus pri-
meiros ensaios de Sergipe e Bahia. Em seu logar demonstrarei
isto cabalmente.
Considerarei, entretanto, os três poetas do sul como pre-
decessores.
A escola, como tal, só existiu depois que no Recife Tobias,
Castro Alves, Plinio. de Lima, Guimarães Júnior, Victoríano
Falhares, Castro Rebello, Altino de Araújo, e muitos outros
obedeceram a uma intuição geral e tiveram mais ou menos
uma só feição litteraria.
O condoreirismo teve, porem, duas phases, a do nortei e a
do sul.
No sul elle foi pregado directamente por Castro Alves,
quando em 1868, o moço bahiajio passou-se para S. Paulo.
HIBTOBIA BA LITTBRATURA BKÁ8ILEIBÁ 2Sl
Quasi Ioda a gente n'aquelle tempo no Rio de Janeird e pro-
víncias do Sul fez versos, imitando a maneira do poeta das
Espumas Fluctuantes. Os mais notáveis seguidores do género
foram Carlos Ferreira, nas Rosas Loucas, Mucio Teixeira,
nas Sombras e Clarões, e Elzeario Pinto, em algumas compo-
sições soltas.
Dada esta previa explicação, avistemos o poeta em José
Bonifácio. Foi lyrico e epico-lyrico.
DisUnguiu-se dos seus contemporâneos e companheiros de
luctas académicas em não ter sacrificado fortemente no altar
do byronismo.
Teve sempre e desde então uma nota valentemente objec-
tiva que o levava a extasiar-se diante de scenas naturaes e de
factos da sociedade. O estylo n'elle teve também sempre certa
individualidade, que o separava dos mais.
O poeta possue vigor e segurança de tintas ; tem destreza
e facilidade na mSLo. Sabe pintar. Taes são seus méritos.
Exaggera-se muitas veizes, faz allegorias, toma-se visionário,
entra no domínio das apparições. Sâo seus defeitos.
As poesias de José Bonifácio que pude colligir para o estu-
dar sâo : Um pé, Tu e eu, O retrato, Suprema Visio, Aspi-
ração, A amante do poeta, Camões, Lendo Camões, O Cor-
neta da Morte, Não e Sim, O Redivivo, O adeus de Gonzaga,
Primus inter pares, A caridade, A margem da Corrente,
Alvares de Azevedo, e um soneto sem titulo que começa —
Os tristes olhos meus tão empregados.
Alem d'estas, tenho mais diante de mim : Que importa?
Guaturamo e Arvore Sécca, impressas na Bibliotheca Brasi-
leira, e ainda Rodrigues dos Santos, Saudades do Escravo,
Calàbar, Enlevo, Garibaldi, Teu nome, Prometheo, Saudade,
Olinda e O Tropeiro. Ao total trinta peças. Julgo ser o suffl-
ciente para conhecer o poeta.
O seu livrinho das Rosas e Goivos nâo o pude encontrar,
por mais que o procurasse, falta que não creio ser demasiado
sensivel.
Supponho terem ficado esparsas muitas outras composições,
que devem parar em máos dos parentes do auctor. Uma edição
completa d'ellas torna-se urgente para a verdadeira compre-
252 filSTO&U DA LlTTSBATtnU BRASILSIfiÁ
hensão do poeta. Elle é um lyrico dos mais elegantes do
Brasil.
Ouçamol-o; eis uma bella amostra de lyrismo, a poesia
O pi :
u Adorem outros palpitantes seios^
Seios de neve pura;
De angélico sorrir meiga fragrância,
Ou sobre coUo de nevada garça,
Cahindo a medo em ondas aloiradas,
Bastos anneis de tranças perfumadas.
Adorem o coral do lábio ingrato
Na alvura do alabastro,
A voz suave, o pallido reflexo
Da luz do céo em face de criança;
Ou sobre altar erguido á formosura,
Na fronte ebúrnea a mórbida brancura.
Adorem outros de um airoso porte
Revelados contornos,
A magestade da belleza altiva,
O desdenhoso passo, o gesto ousado,
A descuidosa m&o, que a trança alisa
Na tripode infernal a pythonisa.
Não, núo quero painéis de tal encanto.
Tenho gostos humildes,
Amo espreitar a negligente perna.
Que mal se escohde nas rendadas saias,
Ou ver subindo o patamar da escada
Sem azas a voar um pé de fada!
Um pé, como eu jâ vi de tez mimosa,
De tez folha de rosa.
Leve, esguio, pequeno, carinhoso,
Apertado a gemer n'um sapatinho;
Um pé de matar gente e pizar flores,
Namorado da lue^ e pae de amores!
Um pé, como eu já vi, subindp a escada
Da casa de um doutor;
EI8T0RIA DA UTTBBATimA BRABILXIftA 253
Da moiçola gentil a erguida saia
Deixou-me ver a delicada perna!...
Padres, não me negueis, se estais em calma
Um coraç&o no pé, na perna um*alma.
Um pé, como eu já vi, junto á ottomana,
Em fervido festim,
Tremendo de walsar, envergonhado
Sob a meia subtil, e a côr do pejo
Deixando fluctuar na veia azul,
Reciuebro, amor, feitiço, — um pé tafull
Poeta do amor e da saudade.
Depois de morto peço,
Em vez de cruz sobre a funérea pedra
A forma de seu pé; foi o meu culto
Quero sonhar o resto em quanto a lua
Chorosa e triste pelo céo íluctua... n
o lyrismo delicioso d' America.
ufacío de Aadrada sentia o calar, a seiva, a impetuo-
3 dos sonhadores meridionaes. Eil-o, tirando o Retrato
a amada :
u Incline o rosto um pouco... assim... ainda...
Arqueie o braço, a m&o sobre a cintura;
Deixe fugir-lhe um riso á bocca pura
E a convinha aYiimar da face linda.
Erga a ponta do pé... que graça infinda!
Quero nos olhos ver-lhe a formosura.
Feitiço azul de orvalho que fulgura,
Froco de luz suave que não finda.
Ha pouca luz... eu vejo-a... está sentada.
P€issou-]he a sombra de um cuidado agora
Na ruguinha da fronte jambeada...
Eníadou-se?... meu Deus, eil-a que chora
Pois cahiu-me o pincel; que mão ousada!
Pintar de Yioite o levantair da aurora!... n
254 HISTORIA DA LITTERATUKA BRASILEIRA
Sáo effusões nossas : alguma cousa de ethereo, mimoso,
subtil, que suavemente embriaga ao modo dos aromas ador-
mecedores do Oriente.
Coisas assimi sáo possíveis ás margens do Tielé, do Capi-
baribe, do Parahyba ; é uma poesia sabida da mesma fonte
d'onde sabem os beija-flores, e as irisadas borboletas de
nossas mattas.
Ouçamol-o ainda ; fedem as recordações :
« Tu e eu! que ventura e vida immensa!
Que lindo sol! que bella primavera!
Pudesse eu ver-te ainda! Oh! quem me dera
Tua alma remoçar e a minha crença!
Aquecer-me ao clarão esmorecido
Dessa restea de sol, meio sumido!
Mas os dias de outr'ora nâo volveram!
Mas é já tarde pr'a falar de amores!
Os nossos sonhos, nossas pobres flores
Em seu próprio jardim já feneceram!
Foi d'ancia de viver... nuo sei de que...
Decifra o mytho, e, se o nâo podes, cré.
Inda te escuto a voz, inda á noitinha
Vejo tua sombra a perseguir-me os passos;
Inda em meu sonho, em plácidos abraços,
Contemplo esfaima que me diz que és minha!
Mas da tarde á serena claridade
Quero chamar-te e chamo-te saudade!
N'outro tempo, meu Deus, não era assim,
Tudo entáo me falava só de amores :
A brisa, o orvalho, o ninho, o céo, as flores,
A natureza inteira, o mar sem fim!
Até cada rumor dos arvoredos
Era um Linho d^amor, — tinha segredos!
Em nossa vasta solidão sem termos
Não se ouvia do mundo um só respiro.
Tinhas tu em meu peito o teu retiro,
Eu em teu coração meus doces ermos!
Minha alma era tua alma repartida.
Duas vidas ligadas n'uma vida.
r
HISTORIA DA LITTERATUSA BRA8ILEIBA 255
Oh! não yiamos do mundo o vai-vem,
A festa, a luz, a dansa, as doudas falas;
Só viviam, meu Deus, naquellas salas
Tu e eu tâo somente e mais 'ninguém;
O meu teu ser, o teu meu sentimento.
Unidos coração e pensamento...
Mas 6 vis&o flned a vista me arde...
Vi um altar... ouvi um juramento...
De tua doce voz o meigo accento
Murmurou-me um adeus... Era já tarde!
Ai! despertei do sonho em que vivi
Sem luz, sem sol, quero dizer, sem ti! »
Vô-se bem qua nâo é o lyrisma pobre, sem fulgores de
forma e exhuberancias de sentimento, dos máos poetas. Tam-
b^n nâo é a pieguice do lamartinismo atfectado.
Teu nome é na mesma intuiçâ^o :
u Teu nome foi um sonho do passado;
Foi um murmúrio eterno em meus ouvidos;
Foi som de uma harpa que embalou-me a vida;
Foi um sorriso d*alma entre gemidos!
Teu nome foi um echo de soluços.
Entre as minhas canções, entre os meus prantos;
Foi tudo que eu amei, que eu resumia.
Dores, prazer, ventur8^ amor, encantos!
Escrevi-o nos troncos do arvoredo.
Nas alvas praias onde bate o mar;
Das cstrellas íiz letras, soletrei-o
Por noite bella ao mórbido luar!
Escrevi-o nos prados verdejantes
Com as folhas da rosa ou da açuceha!
Oh! quantas vezes n'aza perfumada
Correu das brisas em manhan serena?!
Mas na estrella morreu, cabio nos troncos,
Nas praias se apagou, muchou nas flores;
Só guardada ficou-me aqui no peito
— Saudade oq maldiçõo dos teus amores. »
256 HI8T0BIA BA. LITTEBATUBA BBABILBIBA
N'assa mesma corrente de lyrismo pessoal e recordativo sâo
os versos sob a denominação Que importa ? N'elles ha um
trarvor especial, uma nota de despeito e vingança, que me-
rece ser apereciaxia.
A poesia em Pernambuco é citada como pertencendo ao
grande galanteador Maciel Monteiro. E' um engano em que
também laborei por algumi tempo. Eii-a :
u Podes sorrir-te embora! As flores murcham.
Mas nâo morre o perfume sobre o chãol
Que importa o riso sobre o lábio ingrato,
Se inda, mulher, te bate o coração?!
Fada orgulhosa nos salões brilhantes
Vagas sem tino, no dansar louquejas;
E as pennas brancas da plumagem alva
Cahiram todas : n'um paul doidejas!
Vale acaso essa vida de delírio,
Aquelles sonhos de paixão fervente.
Os quentes beijos, os abraços temos,
E o céo tranquillo sobre a terra ardente?
Ai! que louca tu foste! As nossas festas
Tinham por luzes os clarões da lua;
Ainda hoje ás vezes, solitária e bella,
Tua imagem triste no luar fluctual
Não chorei. . . oh hão! Lá quando um dia
Emmudecer o som da louca festa,
Essa historia de gozos infinitos
Hão de contar-te as brisas da floresta!
Teu pranto em flo pelas faces murchas
Ha de ser minha única vingança;
Serás a estatua muda da saudade
No sepulcro deserto da esperança!...
Embalde o tentas... Minha imagem sempre
Como um remorso surgirá perdida!
Eu sou tua sombra, seguirei teu corpol
Eu sou tua alma, seguirei tua vida! »
HISTORIA DA LITTEBATUSA BRA8ILXIBA 257
}uâo distante se está do lyrismo de Magalhães I A língua
1 tomado mais flexibilidade, mais amplitude, mais sonori-
íe, mais tintas, mais ardores.
1* preciso pôr termo ao que tinha de dizer do poeta,
► o posso fazer sem dar ao menos uma qualquer amostra
estylo de Andrada no género epico-lyrico.
eja o Redivivo, consagrada á memoria de um dos nossos
)es na campanha do Paraguay, essa famosa guerra que
nteou nossa coragem, nosso patriotismo, a unidade de
ir de nosso povo, a inveja de nossos visinhos e tanto
ndesceu a imaginação de nossos poetas :
(1 Dorme o batalhador!... por que choral-o?
Armas em funeral! — silencio, oh bravos!
Que a dôr não o desperte!
Tão só... tão grande... sobre a terra inerte!
A pátria além... partido o coração...
Saudade immensa e immensa solidão!...
Não o despertem! — eUe dorme agora
Embalado nos braços da metralh£^
Ao trom da artilheria :
Por lençol — a bandeira : em terra f lia
Tem por leito — os trophéos; por travesseiro
Tem o canhão no somno derradeiro!
Sorrindo adormeceu — a espada em punho!
A imaginar, sonhando, ouvir no espaço
O clarim da investida!
A' cabeceira — a morte agradecida;
— A os pés — a gloria; e ao lado ajoelhada
— A pátria, pobre mâi desventurada!
Segura as rédeas do corcel sem dono
Formosura sinistra — olhar infindo! —
E' a deusa da guerra!
Mede os espaços, os confins da terra...
Quer despertal-o... treme... o passo é incerto...
Bstende a mão e aponta p'ra o deserto!
i^uando elle adormeceu, na mente insana
íomericas visões lhe appareceram!
roRiA II 17
HIBTOEIA DA UTTBRjLTUKA BBAB1LEI&&
Olhou fito o seu norte...
Eu sou a eternidade — disse á morte,
Do meu ginete o pé a terra abola,
Quando eu caminho — a viraç&o nem falai
E que elemas visões!? — nu raarchíi ousada,
Para saudal-o os mortos levontavam-se,
Tocavam as cornetas,
As pegas disparavam nas carretas,
E, ao cabo do caminho, a doce paz
Lhe preparava os arcos triumphaes!
Elle via, qual mar tempestuoso.
Ondas revoltas, umas apú7. outras,
Da audaí cavalleria
As cargas, que a victoria presidia ;
E, galgfínâo a galope a immensídade.
Dizia & morte ; — eu sou a eternidade!
As montanhas se abatem, quando eu passo;
O rio inclina o dorso e me saúda.
Se me apeio em caminho!
Omeucavalloéaguia, océuéninho:
A fome, a peste, a chuva, em véus de fumo.
São meus soldados, guiam-me no rumo!
E que eternas visões — em vale immonso,
A narina incendida, o peito arfando,
O ginete parava!
Eis a voragem!... lè. no fundo a lava
Que entornam os voIcOes de artilheria,
E um exercito de mortos, que se erguia!
Depois nuvem de fogo... uns sons lreme'ndo3...
Um estalar de ossos... ais... mil pragas...
Uma orcheslra infernnll
N"um mar de sangue o sol como fanal!
Os tambores rufando... armas quebradas,,.
Bandeiras rotas... relintim de espadas!
LJm trovejar sem fim... um largo incêndio...
Mas elle á frente, no corcel, fitando
■■l '
HISTORIA DA LirTBKATURA BSASIUIftA 259
O infinito — seu norte,
Dizia à eternidade : eu sou a morte,
Meu cavaUo é o destino, o céu mortalh€^
Meu braço é raio, o coraç&o muralha!
Ao vêr-me, tremuleuite as palmas dobra
A palmeira; estreitam-se os banhados;
O arroio nem transborda;
No firmamento azul o sol acorda!
Quem é, pergunta a noite á ventania,
Este archanjo de luz e poesia?
£' da floresta o rei, exclama o vento;
£* o espectro do sol, affirma a estrella;
D6LS aguas o senhor.
Murmura o rio um cântico de amor;
E a tempestade diz : meu cavalleiro.
Tens por corcel as azas do peimpeiro!
E corre e corre... ao cabo da carreira
Immenso boqueirão... fosso sem bordas...
Tranca-lhe o espaço a cruz!
Em baixo a densa treva!. . . o cimo é luz!
Basta, lhe brada a voz da immensidade,
A morte foi teu guia á eternidade!
Armas em contínebcia! — é um morto vivo! ,
Eil-o que passa agora, erguido ao alto
No esquife da victoria!
O Brasil o saúda, e tu, Historia,
Um poema de luz de novo escreves!
Soldados, cortejae Andrade Neves! )>
«
Ha n'isto imaginação, movimento, vida, brilho.
Eu náo gosto de receitas ; odeio o mister dos boticários ;
para mim todos os géneros poéticos são bons, uma vez que
revelem talento ; nâo canso em o repetir.
Clássicos, românticos, realistas, parnasianos, condoreiros,
socialistas, satânicos... todos me agradam, sob uma só con-
diçâxD : não serem medíocres.
Os versos de José Bonifácio revelam um talento, uma indi-
vidualidade fora, muito fora do commum.
260 HISTORIA DA LITTSRATI7EA BBA8ILEIBA
Nto O acho igualmente metrítorio na sua qualidade de poli-
tico e de orador parlamentar.
Sei bem que justamente por esse lado é que elle foi redu-
zido a mytho.
E' preciso estudal-o por essa face ; e se o pode bem fazer
apreciando um seu celebre discurso da Gamara dos Depu-
tados, om 1879, quando se discutiu a reforma da Consti-
tuição no sentido de se encartar n'ella o systema da eleição
directa. E' isto necessário para haver n'este livro a figura
completa de José Bonifácio. Depois do poeta, o orador.
O celebre paulista não é para mim, o que vulgarmente d'elle
se diz, um grande pensador, addicionado ao mais perfeito
dos oradores. Não; é simplesmente para mim, como para
tantos outros, um poeta de mérito, que errou o seu caminho.
Gomo poeta, esphera em que devia se ter concentrado,
poude elle escrever paginas animadas, quaes o Primus inter
pares ou o Redivivo. Gomo orador, por mais que isto pareça
estranho, pouco se elevou acima do nivel da vulgaridade e das
amplificações estudadas.
Por certo não se está mais na epocha em que qualquer ho-
mem verboso, tendo á mão algumas dezenas de phrases so-
nantes e de interjeições enthusiasticas, podia conquistar os
foros de grande orador.
Se para o romancista, e até para o poeta hodierno, requer-se
mais profusa receita do que a que d'antes manipulava, que se
dirá do orador, maximè do orador parlamentar ?
Hoje, depois de tantas revoluções ensaguentadas para os
povos e de tantas crises profundas para os pensadores, depois
que os mais graves problemas philosophicos e sociaes pas-
saram das surdas meditações dos sábios para a mente das
massas popularres, depois da evolução do socialismo, do natu-
ralismo philosophico e das ideias positivas, o orador politico
e social não é mais o agitador vulgar, o glossador de pobres
vacuídades.
Deve ser o politico profundo, debaixo de cuja palavra vi-
brante encontre asylo a ideia do pensador ; atraz do homem
que fala e apaixona, Im de estar o homem que. medita e re-
solve. Que encerra, eu o pergunto, de verdadeiramente exlraor-
niSTOBIA DA LITTSRATT7SA BBABILBIBA 261
ílinario e admirável o discurso citado 7 Deixando de lado por
brevidade as questões de forma, a parte esthetica da peça, o
estylo pesado e palavroso, vejam-se as ideias, as doctrinas do
orador.
Antes de tudo, qual a philosophia social de José Bonifácio 7
Este ultimo representante da doctrinarismo andradico, para
repetir a justa palavra de Pereira Barretto, um dos mais ele-
vados espirites brasileiros, era exactamente um doctrinario ro-
mântico á guiza de Benjamim Gonstant.
Dizel-o, é assignalar o enorme atraso em que laborava o il-
lustre conselheiro e lavrar a condemnaçâo de seus ingénuos
admiradores.
Seu discurso, depurado ao crysol da analyse e escoimado
das phrases que lhe obscurecem o pensamentos reduz-se a
uma veJha apologia á soberania popular, outra á eleição di-
recta com o senso da Constituição, ladeadas ambas de alguns
errinhos de historia geral e historia do Brasil.
Depois da revolução de 1789, esse phenomeno histórico mal
comprehendido, thema predilecto de todos os declamadores
moderno6, espalharam-se entre os povos filiados na raça e na
civilisação latinas as extravagantes ideias de soberania e iner-
rancia popular de que o romantismo da Restauração apossou-
se, jogando-as pelo mundo.
Pasto condimentado para os tribunos de todos os tamanhos,
vieram ellas girando até á nossa terra e até aos nossos dias,
produzindo na Europa muitas commoções inúteis e aqui o
descrédito dos partidos e o nosso politico atraso.
A soberania popular, já o disse uma vez, é alguma cousa de
análogo ao direito divino dos reis e á infallibilidade dos
papas (1).
O conceito do povo como soberano, isto é, como podendo
elle só dictar as leis ao Estado e á sociedade é um conceito
metaphysico e vão. A direcção das ideias não parte do povo
como massa inerte. Este lento offlcio pertencei á sciencia em
geral, representada por todos os seus operários, grandes ou
pequenos, e se ella não pretende a inerrancia, como pre-
tendel-o-ão as massas de que falava José Bonifácio 7
(1) Nos — Estudos sobre a Poesia Popular Brasileira ; cap, I.
HlflTOBIiL BA LITTBSATnSA. VRABUMOLA.
O povo, no quei elle tem de melhor e mais nobre, nâo pre-
oisa qu<e para illudil-o lhe preguemos nos farrapos com que se
cobre, no abatimento a que o temos deixado cair por nossas
theorias falaciosas, algumas tiras bordadas de vã soberania...
E chasqueal-o> depois de exhauril-o.
O povo pôde e deve intervir na direcção dos seus destinos ;
para isto basta o seu direito á liberdade e ao progresso. Elle
tem jus ao melhoramento e á cultura e tanto basta para jus-
tificar que lance máos olhos para os governos que lh'os ne-
gam, 6 que n'um dia de desespero os atire por terra. Para
tanto náo precisa agaloar-se como soberano, pela mesma
forma que um homem de estudo nâ,o tem mister de empunhar
o báculo da infaUibUidade para demonstrar um facto ou esta-
belecer uma theoria. O caso é o mesmo.
A ideia da soberania popular, transformada por Guizot em
soberama da razão, não tem o fundamento da sciencia, a
sancção da historia, nem faz a fecilidade das nações.
Não tem o fundamento da sciencia ; pois que todos sabem,
excepto os declamadores, que esta banio do horizonte humano
todas as noções abstrusas e de impossível veriflcação pratica^
fazendo a devida justiça aos preconceitos transcendentaes.
Não tem a sancção dos factos ; porque a historia, a despeito
das theorias aéreas, mostra o povo sempre opprimido, subju-
gado, conquistando dia por dia, passo a passo, a sua emanci-
pação pela industria, pelas artes, pela sciencia, em nome de
seu trabalho, e não em nome de umi predicado que lhe nâo
assiste. A soberania não é, nunca foi um facto positivo, um
facto adquirido ; mas um simples anhélo despido de senso.
Não faz a fecilidade das nações ; porque aquellas que,
como a França e a Hespanha, tanto a têm proclamado, hão
sido a preza da anarchia, para passar depois ás fauces do des-
potismo.
E* inútil apontar os factos de hontem, que estão no conhe-
cimento de todos. Foi em nome d'esta soberania que Luix
Philippe crêou o censo elevado e formou o paiz legal, o rei-
nado dós burguezes intolerantes. Foi ainda em seu nome que
o segundo império conservou o suffragio universal, servindo,
BTVrOBIA DA LITTE&ATXmA BBABILBIBA 263
cruel ironia I... para jusUflcação do mais pretencioso e ridi-
culo governo dos modeanos tempos.
E é com estas vacuidades metaphysicas, como diria Strauss,
que José Bonifácio de Andrada queria regenerar este paiz e
abrir-lhe a estrada larga do futuro !. . .
Cuidado I A soberania em logar da actividade e do trabalho
livre, ás vezes traz um Luiz Bonaparte e este quasi sempre
entre as névoas de seus desatinos deixa lobrigar ao loflige
Sedan... ^
A politica é uma sciencia pratica e complexa que nio pres-
cinde do conhecimento do meio social. Isto faz lembrar o que
entre niós se dizia e se esperava da eleição direita, encomiada
por José Bonifácio.
A infantilidades de um individuo são fáceis de desculpar,
se elle não tem por si a lição da experiência ; as ingenui-
dades, porém, de um povo de quatrocentos annos de exis-
tência, a que se podem addicionar mais três séculos empre-
gados por seus maiores em conquistar e flrmar a própria
autonomia, não devem passar sem reparo.
A sociedade brasileira acordou um dia sobresaltada e sen-
tiu-se doente. Queixava-se de falta de liberdade politica e de
muitos males sociaes ; queixava-se de poucas rendas para o
seu commercio e sua agricultura.
Urge um remédio para tanto soffrimento, bradaram todos,
e todos apontaram para a panacéa da eleição directa.
Todos, conservadores e liberaes, chefes e vice-chefea, os
aristocratas e o vulgacho, enamoraram-se da eleição directa...
Não comprehendiam os ingénuos que oe males de uma na-
ção, fundos, palpitantes como as suas próprias entranhas, ve-
lhos, chronicos, callosos como a estupidez de um buschiman,
nâo se extirpam de momento e por meio de uma medida que
só afíecta a superfície, a tona de nossos desconchavos.
Pois como? Uma simples mudança no modo pratico de
eleger algumas dúzias de palradores, nos havia de trazer a éra
das prosperidades I
Nâo ! Só o trabalho lento de algumas gerações e estas bem
inspiradas de seus deveres, um serviço gradual e paulatino,
264 HISTORIA DA. LITTBRATimA BRASILBIBA
começando pela reforma de nossa intuição, atrazadissima
do mundo, nos poderá salvar. Atirar á face de um povo que
se confessa desanimado a futilidade da eleição directa, como
o meio único de salvação é dolorosamente irrisório ; é corno
atirar em cima de um homem chagado uma porção de brazas.
Opino, e commigo todos os homens desprendidos das peias
partidárias, que ella só por si e sem ser secundada por uma
serie complexa de reformas, que tragam uma total mudança
em nossa decrépita educação nacional, para nada vale, de
nada presta.
Foi com a eleição directa que Guizot deitou por terra a mo-
narchia de Julho ; foi com ella que aquelle notável homem
de estado ia suffocando as liberdades francezsis.
Mas ouça-se José Bonifácio :
(' A constituição do império, disse elle, assenta sobre três princí-
pios : soberania universal, unidade da soberania organisada e equi-
líbrio do mandato... n
O orador unge o seu doctrinarismo com o óleo saneio do
mysticismo.
Alli está o numero três, o numero typico das lendas e
mythos populares, a triada infallivel : soberania universal,
unidade da soberania organisada e equUibrio do mantado!...
Três palavrões vasios, inania verba, com que se têm embalado
algumas gerações de bacharéis I
Parece que se está a ouvir uma das gentilissimas preleções
do supposto direito publico ensinado em nossas faculdades
jurídicas.
Ainda se gasta o tempo em articular despropósitos nebu-
losos, aéreos, metaphysicos e nullos. Unidade da soberania
organisada. . . que quer isto dizer ?
A velha prosa franceza de Constant só sabe excitar o riso.
Se José Bonifácio tivesse lido os trabeilhos sociológicos ou
jurídicos de um Spencer ou de um Gneist, veria que lá não se
encontram, em logar de factos e demonstrações, taes e tantas
vaporosas logomachias.
HISTOBIA DA LITTBEATURA * BEASILEIRA 265
Disse ainda o orador :
cc Qual é, em suprema e ultima analyse, a garantia da unideule e
divisfio da soberania? A garantia doesta unidade e divisão é ainda a
mesma soberania nacional. »
Esta ultima e seus dois appendices, conforme o orador, são
a base da constituição ; mas logo exclama que a garantia do
segundo, isto é, da tofiidade da saberania organisada, é a
mesma soberania I...
Vão jogo de palavras e nada mais..
D'esl'arte aquelle pretendido phantasma é base e é cupola,
é tudo justamente porque nada é...
Acabe-se de uma veíz com isto, e dêm os deputados e sena-
dores o exemplo de discutir questões sérias, com argumentos
sérios e proveitosos.
A' vista de tanta inanidade, quasi que sou levadJo a dizer
que não existe systema algum de eleições que nos possa ga-
rantir uma bôa representação, não tanto por intervir o poder,
como vulgarmente se propala, no pleito das urnas, como pela
falta de pessoal habilitado em que se possa votar.
O illustre orador era partidário do suffragio universal di-
recto, e, como o não podia ver applicado no Brasil, conten-
tava-se com o suffragio directo limitado com o censo da con-
stituição.
Repellia as duas condições do projecto do governo impostas
aos futuros votantes : a renda de 400$000, e o saber ler e es-
crever. Achava que exigir essa quantia de renda era muito,
porque a capacidade não se marca pelo dinheiro. De accôrdo.
Par mim é indifferente que o votante produza cem, duzentos
ou trezentos alqueires. A renda maior ou menor pouco im-
porta, se houver outras garantias para uma bôa escolha.
Ouçamol-o :
(( Duas são as condições do direito do voto : a vontade e o discer-
nimento. O discemimefato, porém, não depende nem de saber ler e
escrever, nem da sciencia, nem da instrucção... »
Deixando de parte a vontade, cuja intervenção era escusado
lembrar, porque ou ella é bem ou mal applicada; se bem,
266 HI8T0BIA DA LlTTBBATtJKA BBA8II.XIBA
não é ianlo uma oon(iiçâ.o, como uma necessidade, se mal,
nada produz ; deixando de lado a vontade, dizia, quanto ao
discernimento, sem ao menos saber le>r e escrever, nâo é
tanto sem contestação o que pensava o illustre conselheiro.
Disse que, se vingasse o projecto, teríamos desenove vigé-
simas partes da população s^ido governadas por uma vigé-
sima parte.
E que é que tem sempre acontecido aqui e por todo algures?
Isto mesmo.
Nos próprios paizes onde o suffragio universal é mais lato
e radicado é uma chimera suppôí que todo o povo concon^
ás umas e ainda mais que todo elle toma parte no govemoL
Demais, na hypothese contraria ao projecto e que Boni-
fácio de Andrada advogava, teríamos um resultado, também
pouco satisfactorio, isto é, as massas incultas governando os
cidadãos que têm luzes.
Como sahir da difflculdade 7
Eis o ponto a que chegam as reformas da superílcie, quando
não se penetra no âmago podre dos erros que pedem remédio.
Porque, desde muito, não promoveram, por todos os meios
possíveis, a instrucção do povo ? Eis o grande problema, sem
cuja solução tudo o mais é edificar sobre areia.
Os errinhos de historia commettidos pelo orador, e de que
falei, não consistem tanto no modo de narrar os factos, como
na maneira de os apreciar.
Aquelles successos da Grécia e Roma que lembrou para fun-
damentar a soberania popular e o direito das massas ao voto
politico, são devaneios de poeta.
O foram romano e o agora atheniense não são símiles que
nos aproveitem a nós, pobres epígonos modernos do Brasil.
Outros impulsos e outras leis regeram o desenvolvimento
das civilisações antigas. No que disse de nossas luctas da
Independência, com a intenção manifesta de justificar os ve-
lhos Andradas, de que a príncipio a revolução não tinha um
alcance separatista, o novo philosopho da historia braáleíra
illudiu-se bellamente.
Três factos concorrem para proval-o : a) a lei geral orgânica
das sociedades que tendem a desaggregar-se das metr(^!>oies.
HISTOSIA DA LITTERATURA BSilSILSIKA 267
em chegando aquellas a oerto grau de desenvolvimento : b)
os próprios antecedentes dados aqui no Brasil ; c) os resul-
tados ílnaes da revolução.
O primeiro facto tem sua justificação em toda a historia da
America. Antes do Brasil, já as colónias inglezas haviam na
mór parte sacudido o jugo e o mesmo tinham feito muitas
hespanholas.
O segundo é também reaUssimo : as tentativas da^/ncon/Í-
dencia e de 1817, sem falar n'outras, sáo caracteristicas n'este
sentido. A corrente geral era pela separação, que veiu a veri-
flcar-se, e náo para crôar a grande monarchia, de que só
alguns ambiciosos ou medíocres da epocha se poderiam lem-
brar.
A opinião não separatista era em minoria e foi levada de
vencida pela vontade da nação, dirigida pelas leis naturajis-
ticas da^ historia.
O sonho do velho Andrada foi um delíquio passageiro, que
felizmente não se contaminou, se é que realmente elle o teve.
Pouco importa que isto pareça' a alguns menoscabar da ^ge-
ração de heróes da Independência.
Os que não a^creditam na divinisaçâo dos heróes, porque
sabem que a evolução social é lenta, entrando n'ella cumula-
tivamente o trabalho de todos, têm um ^outro modo de explicar
os successos de 1822.
Para concluir :
José Bonifácio fod um homem de merecimento em geral ;
na poesia teve ^grande valor ; na politica foi menos conside-
rável ; era eloquente, mas não profundo.
Laurindo José da Silva Rabello (1826-1864). Foi um dos
talentos poéticos mais valentes da phase meidia de nosso ro-
mantismo (1).
E', talvez, o espirito menos devidamente aquilatado de nossa
vida litteraria, onde deveria sempre ter occupado o primeiro
plano.
E* n'este livro incluído na terceira phase da romântica, por
(1) Aa biographias existentes de Laurindo o dão como nascido en 1826 ;
creio, porem» haver ahi engano de 6 annos. Parece>me que o poeta é de 1S20.
268 HISTOBIA DA LITTEBATURA BRASILEIRA
um simples malivo de methodo, nâo que elle devesse nada a
Alvarez de Azevedo ou a qualquer outro do tempo.
Laurindo, que foi o talento mais espontâneo que tem exis-
tido no Brasil, em 1844, aos desoito annos, já era poeta, qual
sempre se mostrou, quando Azevedo era ainda um. menino de
treze annos, que prmcipiava os preparatórios.
Norberto Silva o íllia na escola de Magalhães. E' um grande
absurdo. Magalhães era quinze annoe mais velho e começou
antes ; porem jamais existiram dois temperamentos VBlo dia-
metralmente oppostos.
Laurindo era um talento intuitivo*, ^espontâneo, natural,
dotado de todas as qualidades brilhantes da intelligencia ; era
um causeur inesgotável, um orador torrencial, um humorista
perpetua, um repentista sempre lesto, addicionado de um
singular talento lyrico.
Era um homem do povo, um espirito inquieto e ambulante,
um homem das ruas, das festas, a mais perfeita personifi-
cação de uma classe de Índoles litlerariets que ja têm desappa-
recido de todo.
Que tem que ver com tudo isto Magalhães ? Absolutamente
nada.
Não se antecipem factos e idéas ; comece-se pelo principio,
— a biographia do poeta ; porque este a tevei n'um tecido de
sofTrimentos.
As condições de seu viver e sua origem explicam n'elle per
feitamente a singular juncçáo do lyrismo elegíaco e da satyra.
Nasceu no Rio de Janeiro de pais paupérrimos, de baixa
classe, isto é, de mestiços, em cujas veias corria, além de
tudo, o sangue cigano. Não é embalde que se descende de
uma raça que foi três séculos escravisada e da raça nómada,
abatida e ossiflcadamente triste dos ciganos, esse singular
problema ethnographico.
O longo e temeroso património de la^imas, penetrando
todo o ser pensante ei emocional, se lhe transmitte por heredi-
tariedade e vae accentuar-lhe a physionomia com os traços
indeléveis do soffrimento.
Juntae agora a tudo isto a indigência absoluta dos pais, a
quem todo o trabalho era difflcultado pela atroz concurrencia
HI8TOSIA DA LITTBRATUKA BRA8ILEIBA. 269
feita pelos estranhos ao proletário nacional ; juntae as scenas
de desolação que cercaram a primeira infância do poeta ; addi-
cionae-lhe por cima as peripécias terríveis que o assaltaram
durante a attribulada existência, tudo isso n*uma intelligencia
de elite, e comprehendereis Laurindo Rabello.
Elle veiu ao mundo, ao que se diz em 1826. Seu aprendizado
das primeiras leiras foi feito entre innumeras difflculdades.
Conseguindo no meio de grandes embaraços entrar para o
Seminário de S. José, onde chegou a receber ordens menores,
teve de abandonar a carreira ecclesiastica, por intrigai que
lhe moveram padres influentes d^aqueille tempo, invejosos do
seu talento oratório, que os iria a todos eclipsar.
Tentou, então, a carreira das armas, matriculando-se na
Escola militar, que teve de deixar, por haver escripto umas
salyras contra o director.
Matriculou-se na Escola de medicina do Rio de Janeiro.
Por esse tempo, baldo inteiramente de recursos, passou
pela provação de vêr louca a irmã, por lhe haver fallecido o
noivo.
Deixou a escola medica, por completa falta de meios. En-
controu, porém, a mão caridosa do Dr. SaJustiano Vieira
Souto, que o levou para a Bahia, em cuja academia matricu-
lou-se.
Depois de ahi estar, e ter passado por crudelistima enfer-
midade, chegou-llie a noticia do fallecimento da irmíí. Mais
tarde um pouco morreu-lhe a mãe, flcando-lhe a familia redu-
zida a um só irmão.
Para cumulo de infortúnios, este leve fim desastroso, suc-
cumbindo assassinado barbaramente.
O leitor me relevará entrar n'estas minudencias. São neces-
sárias para a inteira compreihensão da indole do poeta ; mos»-
iram como elle foi feito pela natureza e pelos acontecimentos ;
indicam specialmente a razão occulta d^aquella melancólica,
d^aquelle tom elegíaco ante o qual as tristezas de Azevedo,
Lessa, Bernardo e Andrada, são brinquedos de criança.
Laurindo tovc a m^Mancolia negra, próxima da loucura,
que o n9o assaltou pria elasticidade pasmosa de seu tempe-
ramento.
270 HI8T0BIA BA LITTBRATUSA B&ASILBISA
D'ahi esse duplo estado de depressão que se exhalava em
suspiros e de arrebatamento que se traduzia em saiyras.
Conheceu também o terreno intermédio das facécias e das
pilhérias.
Formado, a fortuna não lhe sorriu.
Estabelecido no Rio de Janeiro, não achou clinica; teve de
seguir como medico do exercito para o Rio Grande do Sul.
Voltando ao Rio, mais tarde seguiu o mesmo emprego até 1882,
quando deram-lhe um lugar de professor no curso annexo á
Escola militar d'esta capital.
Pouco aproveitou d*essa ultima posição, pois falleceu em
princípios de 1864 aos trinta e oito annos de idade.
Laurindo era um d^esses talentos de acção directa e pessoal,
que mais se apreciam pelo contacto immediato.
As intelligencias doesta casta são essencialmente perdulárias
e descuidosas ; produzem todos os dias aos fragmentos, des-
baratando as próprias forças ; é gente que não se c(Hicentra
para edificar alguma cousa que persista.
Em palestras, discuissões oraes, discursos de occasião, im-
provisos poéticos malbaratou Laurindo as suas faculdades.
Tinha seu cenáculo constante onde se distinguiam homens
como Castro Lopes, Pires Ferrão, Eduardo de Sã, Ferreira
Pinto e sobre todos Constantino Gomes de Souza, tão infeliz
quanto elle.
De passagem, devo aqui noitar que os críticos da moda, em
tratando dos amigos que cercavam o poeta fluminense, occul-
tam sempre o nome de Constantino de Souza, o mais illustre
de todos I...
E' que o pobre e sisudo moço ora um simples provinciano,
tinha o crime de haver nascido em Sergipe e não adulava os
prepotentes do dia... E' castigado por isso (1).
Laurindo, além do dissipar o seu talento, não teve cuidado
em salvar o que escreveu, nem de reunir o que publicou
pelos jomaes ; por isso se perderam d'elle poemas e dramas
e correm anonymas pelas gazetas muitas producções suas.
Estou reduzido para o julgar ao pequeno volume de poe-
(1) Vide nas Obras Poéticas de Laurindo o estudo preliminar por Nor-
berto Silva. N&o fala em Constantino !!.. .
HI8T0BIA BA UTTEBATITEA BRASILBIBA 271
sias editado por B. L. Gamier em 1876 e aJguns outros tra-
balboè alvande colhidos.
Quanto á parte inédita de sua acção sobre quantos o conhe-
ceram, tenho interpelado directamente a tradição.
Mais de vinte pessoas intelligentes, illustradas e insuspeitas
tenho interrogado sobre Laurindo. Fehz ente 1 Nunca ouvi
gabar tanto um morto, um pobre diabo, que não deixou des-
cendentes. Esse testemunho colhido da tradição quero eu aqui
depol-o em honra ao genial poeta.
Todos me falam d'elle commovidos, assombrados por tão
descommunal intelligencia, sempre lesta, sempre prompta,
espontânea, alígera, posta em provas continuamente na con-
versação, na oratória, em discussões de todo o género, era
toda a casta de improvisos poéticos, em todos os estylos,
sérios, satyricos, humorísticos, galhofeiros ou até pornogra-
phicos.
Era uma inundação perenne de força e graça, um desper-
dício de calor e seiva. O mais adorável dos bohemios ladeado
de peregrino talento e de bondosa alma.
Do causeur e do orador não resta mais nada além do teste-
munho dos contemporâneos. Do repentista quasi tudo se
perdeu.
No improviso poético elle não excedia a Moniz Barretto ;
ultrapassava-o na palestra e ímmensamente na oratória ; pois
é preciso que se saiba que o repentista bahiano não possuía
o dom da palavra. O fluminense o sobrepujava também na
satyra e no talento lyrico.
Tal a razão pela qual os versos meditados de Moniz Barretto
são fracos, ao passo que de Laurindo restam, algumas poesias
que entram afoitamente no numero das mais bellas que se
têm esçripto na America.
'N'este numero se contam : O que são meus versos, O meu
segredo, O gemo e a morte, A linguagem, dos tristes, A' morte
de José de Assis, Sobre o tumulo de Labaiut, Adeus ao
mundo, A minha vida, Amor e lagrimas. Saudade branca, A'
Bahia, Amor perfeito, Dous impossiveis. Não posso mais,
Laurindo é um lyrico. Seu lyrísmo teve duas manifestações
principaes : uma elegíaca, inspirada pela tristeza incurável
^
272 HISTORIA DA LITTSBATUBA BKASILBI&A
de sua raça e de sua vida social ; outra satyrica, insuflada pela
ironia, manifeslando-se severa ou galhofeiramente. Esta
ultima parte anda quasí toda inédita. Não tenho lazeres para
procural-a. Conheço^ todavia, até certo ponto. Da outra mani-
festação, a elegia, existem boas amostras no volume a que me
hei referido.
Na poesia d'Qste soíTredor os predicados principaes são :
simplicidade e clareza de fórma^ verdade de sentimentos,
riqueza de ideias, formando o todo um estylo pessoal, alguma
cousa, que o separa dos outros cantores do tempo.
Devo começar pelo que o poeta nos deixou de mais leve,
do mais singelo.
Eis as suas sensações e impressões diante de um amor-per-
feito :
{( Sôccou-se a rosa... era rosa;
Flor tâo fraca e melindrosa,
Muito nâo pôde durar.
Exposta a tantos calores,
Embora fossem de amores,
Cedo devia seccar.
Porem tu, amor-perfeito.
Tu, nascido, tu affeito
Aos incêndios que amor tem,
Tu que abrasas, tu que inflammas.
Tu que vegetas nas chammas.
Porque scccaste também?
Ali! bem sei. De accesas fragoas
As chammas são tuais agoas,
O fogo é agoa de amor.
Como as rosas se murcharam,
Porque as agoas lhe faltaram,
Sem fogo murchaste, flor.
E' assim, que bem florente
Eras, quando o fogo ardente
De uns olhos que raios são.
Em breve, mas doce praso,
Te orvalhou n'aquclle vaso,
Que já foi meu corarão...
HI8T0BIA DA UmitATUSA BSA8ILBIBA 273
Seccaste, porque esse pranto
Que chorei, que choro ha tanto,
De lodo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem fragoa
Seccaste, como sem agoa,
 triste rosa seccou.
Que olhos foram aquellesi
Quando eu mais liava d^elles
Meu presente e meu porvir,
Faziam cruéis ensaios
Para matar-me... Eram raios,
Tinham por fim destruir.
Destruiram-me : comtudo
Perdoo o pezar agudo.
Perdoo a pungente dôr
Que soíTri nos meus tormentos,
Pelos felizes momentos
Que me deram n'esta ílôr. . .
Ai! querido amor-perfeitol
Como vivi satisfeito,
Quando te vi florescer!
Ai! não.houve creatura
No prazer e na ventura
Que me pudesse exceder.
Ail sécca flor, de hom grado.
Se tanto pedisse o fado,
Quizera sacrificar
liberdade e pensamento,
Sangue, vida, movimento.
Luz, olfato, sohs e ar;
S(S paia vôr-te florente,
Como quando o fogo ardente.
De uns olhos que raios s&o,
Em breve mas doce praso,
Te orvalhou n'aquelle vaso^
Que já foi meu coração... » (í)
9 PoeticoM^ pag. 162,
oiixA n
18
y
.r'
274 HIBTOBIA DA LITTS&ATUBA B&AfilLBUlA
A apreciação das sensações e emoções do poeta n'estes rá-
pidos versos mostra um ser ardente^ um coração abrasado
pela desdita e pelo amor.
Laurindo veiu a feúlecer atacado n'esie órgão central da
vida. O coração matou-o ; não foi a tuberculose, como falsa-
mente alguns pensaram. Sei bem d*isto.
O poeta inflammava-se e vegetava nas chammas, segundo
sua expressão. Esse ereiismo de toda a sua organisação extra-
vasava-se em sua continua ebulição mental.
O abaJo intimo, o estremecer constante de sua vida psy-
chica torturou-o sempre. Ello' meismo pintou esse estado de
espirito na poesia O meu segredo, que é uma verdadeira auto-
biographía, em os Dous impossíveis^ que são uma bella pa-
gina de psychologia.
Ouçam esta ultima :
(( Jamais! Quando a razão e o sentimento
Disputam-se o dominio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimehta^
Não se perde de todo a Uberdade.
A lucta é forte : o coração succumbe
Quasi nas anciãs do luctar terrível;
A paixão o devora quasi inteiro,
Devoral-o de todo é impossível!
Jamais! A chamma crepitante lastra.
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
E* inútil, que o fogo não se apaga.
Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martyrisa,
Bm que tristeza branda e não loucura
A* razão se sujeita e harmonisa.
E* n^esse ponto de indizível tempo
Onde, por mysterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode.
Nem a razão vencer o sentimento.
HIBTOBIA DA LITTIEATUEA X&ABUJmUL 275
No fuhdo de noss^olma um espectáculo
Se levanta de triste magestade,
Se de um lado a raz&o seu facho accende,
De outro os lyríos seus planta a saudade...
Melancólica paz domina o sitio,
Só da raz&o o facho hnixoleia
Quaado por entre os lyrios da saudade
Do zôlo semi-morto a serpe ondeial
Dois limites entfto na actividade
Conhece o ser pensante, o ser sensivd :
Um Impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento — outro impossivell
Amei-te! Os meus extremos compensaste
Com tanta ingratid&o, tanta dureza.
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza...
Minh'alma nos seus brios offendida,
De prompto a seus extremos poz remate,
Que mesmo apmxonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, nao se abate.
Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguivei,
Acabar minha crença, meu futuro...
Aviltar-mel jamais! £' impossivell
Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a n&o querer^te.
Mas a esquecer-te, nfto, sempre hei de amar-tei...
Porém amar-te doesse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro.
Que tem no seu passado o seu presente, "
E tem no seu presente o seu futuro.
Tão livre, tfto despido de interesse.
Que para nunca cdMindonar seu p(Mto,
Para nunca esquecer- te, nem precisa
B«ber, te vendo, vida no Xmi roeio.
276 HISTOBIA DA LITTSRATURA BRASILEIRA
Que, desprezando altivo quantas graças,
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquella imagem
Que d'elles copiou na phantasia... »
Vè-se que o poeta era d'esses espirites reflexivos, que se vol-
tam sobre si mesmos, que padecem, e se analysam no meio do
suas luctas.
Era também altivo ; mas era sincero ; fugia^ sumia-se e não
esquecia, nem deixava de amar, como elle mesmo disse.
Claro se mostra que Laurindo não tocava instrumento, não
era virtuose ; sua poesia não era rhetorica e cheia de phrases,
era a expressão natural de seus affectos.
Note o leitor que vae n'uma verdadeira gradação. Já vislum-
brou n'alma do poeta suas ternuras diante de uma flor dada
por sua amante ; já entre os seus segredos sorprendeu a lucta
funda que elle travou para vencer uma paixão ingratamente
relribuida...
Um passo mais e vel-o-ha prantear loucamente diante das
saudades que lhe arrancou a lembrança de sua irman.
Não insistirei n'e«te ponto, porque já toquei n'elle quando
falei de Araújo Vianna, marquez de Sapucahy (í).
Está-se em plena^elegia. Um passo mais, e em Meu segredoy
na Linguagem dos tristes e vinte outras poesias, se verá o
soffredor fluminense, o pobre mestiço proletário diante de
seu viver, diante de seu destino. A elegia então geme e dóe
ouvil-a.
Não ha artificio ; a simplicidade da linguagem deixa vasa-
rem-se atravéz de seus poros as exhalações de uma alma dila-
cerada. Elle teve bem razão de eussim dizer em — O que são
meus versos :
« Se é vate quem accesa a phantasia
Tem de divina luz na chamma eterna;
Sc é vate quem do mundo o movimento
Co movimento das cançOes governa;
(1) Vidtt DO 1* ToL, as paginas consagradas ao Marqutz de Sapucahy.
HI8T0BIA DA LITTBBATUEA. BBASILIISÁ 277
Se 6 vate quem tem n*alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces de querida formosura;
Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da gloria recebe sobre a arena
As palmas que lhe offrece o enthusiasmo;
Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfallecido,
Nem sequer movo os echos com meu canto;
Eu triste, que só tenho abertas n*alma
Envenenadas fontes de agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céo confia;
Eu triste, que, dos homens despresado,
Só entregue a meu mal, quasi em delírio.
Actor no palco estreito da desgraça.
Só espero a coroa do martyrio;
Vate nâo sou, mortaes; bem o conheço;
Meus versos, pela dôr só inspirados, —
Nem são versos, — menti, — sâo ais sentidos,
A*s vezes, sem querer, d*alma exhalados;
São fel que o coração verte em golfadas^
Por continuas angustias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m'encobrem
Do horísonte da vida o sol querido;
São anneis da cadeia que arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo.
Que em pranto pelos olhos me transuda.
Sôcca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludibrio do vento, as séccas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada... »
278 HI8T0KIA DA UTTBXATUBA BRA8ILSIBA
Este podia assim falar ; podia chorar sem rebuço, sem se
tomar ridículo ; tinha para isto o privilegio dos softrimentos
de uma vida flagellada. Era uma alma de tempera. Podia
também rir ; porque só o havia de fazer quando a effusáo
fosse bastante forte para mandar a gargalhada brotar atravéz
das magoas.
Laurindo não era uma natureza unitária, de uma só faceta,
uima d'essas organisaçOes simplistas, que tomam a direcção
que lhes imprime o curso dos acontecimentos.
Um entesinho d*esses, se as cousas lhe correm bem e poG-
sue certa habilidade litteraria, atira-se aos versinhos fáceis, e
também ao pagode, á crápula, á sucia, e vae engrossar a
cohorte dos peraltas e bohemios letrados.
Vê-se então a frivolidade galante dos cafés e botequins. Os
versos que fazem, os folhetins que escrevem, parecem-se com
as gravatinhas listradas, as bengalinhas leves que con-
duzem...
Se, porém, as cousas não correram bem, as difflculdades
sérias surgiram de fauces abertas, então o entesinho dese-
quilibra-se de todo, estiola-se, murcha, inutilisa-se. Vae para
o tumulo ou para o hospicio.
Nosso poeta não era d'essa qualidade de gente.
Foi do numero d'aquelles homens ousados que naufragam ;
mas nadam sempre para as costas e vão surgir adiante com as
mãos dilaceradas, nús, famintos, e sempre enérgicos e cheios
de esperança.
Foi do numero d'esses que respondiam m infortúnio com a
ironia, ao desespero com a gargalhada.
Erai batido ; ix)rem não se deixava prender ; era vencido,
mas não se rendia.
Forte casta de homens que se batem como heróes, choram
como leões e riem como gigantes. Esses sahem fora da medida
commun. Foi por isso que Laurindo por onde passou inte-
ressou a todos com as scintilações de seu espirito, de suas
satyras, de suas pilhérias.
A Bahia e Porto Alegre ainda hoje lembram-se de seus chis-
tosos ditos e de suas singularidades ; o Rio de Janeiro rio-se
durante vinte annos pelo diapasão do seu risa franco e sonoro.
r
HI8T0BIA DA LITTERATUEA BRASILEIRA 279
Era a gargalhada irónica e profunda do pariá, do mestiço,
do cigano, do proletário n'uma pátria ingrata, explorada pela
cubica de uma burguezia d'estranhos e pela ganância de poli-
tiqueiros relapsos.
Grande porção da obra do poeta, por esta face particular
rissima de seu talento, perdeu-se, porque foi oral. Outra
porção d'ella existe impressa e esparsa por ahi algures.
Na Mamiota, no Sino dos Barbadinhos, na Voz da juvenr
tude e n*outrad publicações da epocha póde-se joeirar muita
cousa no alludido sentido.
Não tenho tempo de o fazer e indico o trilho a investiga-
dores futuros, que desejem estudar a fundo o escriptor.
Existem também por ahi inéditas em copias que algumas
pessoas possuem muitas composições de pura pomographia^
iguaes ou superiores pelo chiste ás producções do género attri-
buidas a Bocage.
Antes de dizer algumas palavras ílnaes sobre o talento do
repentista e do poeta faceto, é utíl um passo mais na senda da
elegia.
O poeta estava na Bahia, fazendo o curso medico ; alli não
tinha ainda escripto a Saudade branca, dedicada á memoria
de sua irman, quando cahiu gravemente enfermo. Esteve ás
portas da morte. Convencido absolutamentei que ia morrer,
escreveu o Adeiís ao mundo.
Todos os encantos da natureza e d» sociedade lhe appa-
recem para receber-lhe o adeus da ultima despedida.
Quem já uma vez perdeu entes queridos, porções d'alma
que se foram, leia ; é pungente :
(( Já do batel da vida
Sinto toroar-me o leme a mão da morte :
E perto avisto o porto
Immenso nebuloso, e sempre noite,
Qiamado — Eternidade!
Como é tão bello o sol! Quantas grinaldas
Não tem de mais a aurorai
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas
Que se exhalam das flores! Que harmonia
280 HI8T0SIA DA LITTSBATURA B&ABILSISA
N&o se desfrncta no cantar das aves.
No embater do mar, e das cascatas.
No sasorrar dos límpidos ribeiros,
Na natureza inteira, quando os olhos
Do moribiíndo, quasi extinctos, bebem
Seus últimos encantos!
Quanio eu guardava, ao menos na esperança.
Para o dia seguinte o sol de um dia,
De uma noite o luar para outras noites;
Quando durar contava mais que um prado.
Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto,
E nmrmural-o n*um jeurdim de amores;
Quando julgava a 'natureza minha.
Desdenhava os seus dons : eil-a vingada :
Cedo de vermes rojarei ludibrio,
E vida alardearão fracos arbustos
Sobre meu lar de morto! A noite, o dia,
O inverno, o ver&o, a primavera,
A aurora^ a tarde, as nuvens, e as estrellaa,
A rir-se passarão sobre meus ossos!
N&o importa. N&o é perder o mundo
O que me azeda os pallidos instantes
Que conto por gemidos. Meu tormento,
Minha dôr, é morrer longe da pátria,
Da m&i, e dos irm&os que tanto adoro.
Quando da pátria me ausentei, n&o tinha
Nada, que lhes deixar, que lhes dissesse
O que eram elles dentro de minh*alma.
Mendigo, a quem cedi pequena esmola,
Deu-me quatro sementes de saudade ;
Ao meu jardim domestico levei-as.
Cavei, reguei a terra com meu pranto,
E plantei as saudades. Soluçando
Chamei alli os meus : n Aqui vos deixo
(Disse apontando & plantaç&o) em flores
K Minh^alma toda inteira; aqui vos deixo -
c( Um thesouro enterrado. Jóias, ouro,
« Riquezas, n&o, n&o tem, porém na terra
Estéril n&o ser&. » Ondas de prcmto
Aíogaram-me a voz : houve silencio;
Palpei de novo o ch&o; vi que de novo
J
HISTORIA DA LITTBRATtntA BBA8ILIIBA 281
Cavado estava! A terra se afundara,
E as sementes nadavam sobre lagrimas,
Que minha m&i e minha irm& choravam...
Replantei-as, orei, beijei a terra,
£ parti... Trouxe d^alma só metade;
E o coração? deixei-o n'um abraço.
Certo estou de que a pleulte^ já crescida,
Terá brotado ílôr. Se ao menos dado
Me .fosse colher uma... ver a terra
Pelo pranto dos meus s£intificada!
Se uma d*essas saudades eníeitar-me
Viesse a minha eça, ou meu sudário,
Ou, pela mão materna transplantada,
Encravaivrae as raizes no sepulchro...
E' tfio pouco, meus Deus!... Eu não vos peço
Soberbo mausuléo, estatua augusta
De tumulo de rei; Assaz desprezo
Esses gigantes de oiro
Com entramhas de pó. Mortalha escassa
De grosseiro burel, que bordem lagrimas;
Terra só quamto baste p'ra um cadáver,
E as minhas saudades, e entre ellas
Uma cruz com os braços bem abertos.
Que peça a todos preces.. Terra, terra
Perto dos meus e.no torráò da pátria,
E* só quanto supi^ico. «
^■' A morte é dura.
Porem longe da pátria é dupla a morte.
Desgraçado do mísero, que expira
Longe dos seus, que molha a lingua, secca
Pelo fogo da febre, em caldo estranho;
Que vigílias de amor'nã.o tem comsiga,
Nem palavras amigas que lhe adocem-^ .
O tédio dos remédios, nem um seio, ..'.• ,^ .
Um seio palpitante de cuidados
Onde descance a languida cabeça!
Feliz, feliz aquelle, a quem náo cercam
N'esse momento acerbo indifferentes
Olhos sem pranto; qne na mão gelada
Sente a macia dextra d*amizade : .
N*uin aperto de dôr prender-lhe a vida!
j>.- *
1
282 HISTORIA DA LXTTSBAT17&A BRABILUBA
Feliz o que no arfar da a'ncia extrema
De desvelada irmft piedoso lenço,
Húmido de saudades vem limpar-lhe
As frias bagas dos flnaes suoresl
Feliz o que repete a extrema prece,
Ensinada por ella, e beijar pôde
O lenho do Senhor nas mãos matemasl
Desgraçado de mim!... Talvez bem cedo
Longe de mãi, de irm&os, longe da pátria
Tenha de me finar... Ramo perdido
Do tronco que o gerou, e arremessado
Por mão de génio máo á plaga alheia,
Mirrarei esquecido! O9 céos o querem.
Os céos são immutaveis : aos decretos
Do Senhor curvarei a fronte humilde,
Como christÃo que sou. Eternidade,
Recebe-me a teu bordo!... Adeus, ó mundo!
Já sinto da geada dos sepulchros
O pavoroso írio enregelar-me...
A campa vejo aberta, e lá do fundo
Um esqueleto em pó vejo a acenar-me...
Entremos. Deve haver n*estes logares
Mudança grave na mundana sorte;
Quem sempre a morte achou no lar da vido,
Deve a vida encontrar no lar da morte.
Vamos. Adeus, ó mâi, irmãos e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus, que vou viagem de finados...
Adeus... adeus... adeus!
Adeus, ó sol, que amigo illuminaste
Meu pobre berço com os raios teus...
lUumina-me agora a sepultura : —
Adeus, meu sol, adeus!
Floresinhas, que quando era menino
Tanto servistes aos brinquedos meus.
Vegetai, vegetai-me sobre a campa : —
Adeus, flores, adeiui!
I
j
HIflTOmiA DA LITTISATUBA BRA8TT.KTKA 283
VÓS, cujo canto tanto me encantava,
Da madrugada alígeros orpheus,
Uma nenia cantoi-me ao pôr da tarde :
Passarinhos, adeus!
Vamos. Adeus ó m&i, irmãos e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus : que vou viagem de finados!...
Adeus!... adeusl... adeus! »
Então ? Eu disse bem : é uma pagina singular esta ; é uma
das elegias mais doloridas que já uma vez foram escriptas em
qualquer língua. Em portuguez nenhuma outra a excede em
singeleza e smceridade.
Laurindo era um nomem da plebe e sempre viveu em estado
próximo da indigência. Náo privava com o imperador, nâo era
sócio do Instituto Histórico e tão pouco era um protegido dos
régios magnatas da litteratura do seu tempo.
Não era apaniguado do Magalhães, Porto^Alegre, Octaviano,
Macedo e outros influentes. da epocha. Pelo contrario, noto no
jornalismo do tempo completo silencio sobre o poeta flumi-
nense.
Repare-se que Fernando Wolf nem uma só vez faz mensão
do seu nome. E' que aquelles, que forneceram os aponta-
mentos para a obra do escriptor austríaco, guardaram silencio
sobre o desditoso trovista.
E, todavia, a injustiça aquil é clamorosa ; porque elle foi um
dos mais valentes talentos poéticos de nossa lingua. Se não
teve fama, entre os grandes, gozou da mais completa notorie-
dade que nosso povo tem outorgado aos seíus dilectos.
Laurindo Rabello e Gregório de Mattos foram os poetais da
plebe, do grande numero no Brasil.
Homens do povo, falavam para elle a sua linguagem.
Entre nós a litteratura, ou mais propriamente a poesia,
tem tido duas expressões, capitães e divergentes.
De um lado, nota-se o grande grupo dos poetas por plano
e reflexão, os espíritos estudiosos e illustrados que têm pror
curado acompanhar as ideias do tempo em que vivem e acli-
mal-6Ls no paiz.
284 HISTORIA DA LITTBEATUSA BRA8ILEIBA
Têm merecimento e prestaram bons serviços; mas não
foram as boccas enthusiasticas e prophetícas por onde falava
a naç9x>.
De outro lado, estende-se em linha o troço dos que nada,
ou quasi nada sabiam do estrangeiro, ou que nada ou quasi
nada se impressionaram com o que por lá corria, mas, em
paga, estavam identificados com o nosso povo e eram d*elle
uma voz, um soluço, um lamentos um cântico, alguma cousa
que lhe sahia d*alma. São as duas correntes geraes de nossa
litteratura. Até hoje têm andado divergentes.
£' por isso que ainda não tivemos um^ poeta d^aquella pri-
meira plana em que fulgem os vultos de Camões, Tasso, Mii
ton, Goethe e d'outros astros d'ess© tamanlio.
Só quando as duas correntes se encontrarem na cabeça e no
coração de um homem, a um tempo a synthese d© sua raça
e o espelho de seu século, só então possuiremos quem nos vá
representar na região dos grandes génios.
Laurindo não passou de um talento, notável talento em vc^
dade.
Sinto não poder aqui estudal-o como satyrico e humorista.
A necessidade de resumir-me, e, em parte, a falta de mat^
riaes agora á mão obrigam-me a passar adiante, dizendo ape-
nas duas palavras sobre o repentista.
Por esta face só Moniz Barretto podia com elle; muitas vezes
degladiaram-se na Bahia.
No improviso oratório, como já disse, Laurindo não tinha
rival então ; no improviso poético acompanhava o repentista
bahiano. Eis aqui um soneto dirigido á cantora MarieUa
Landa :
« Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Brandc^ singela, limpida e seretia;
Ora em notas de goso, ora de pena.
Já cheia de solemne magestade.
Já languida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bella, sempre amena.
K'
HI8T0BIA DA UTTE&ATTTRA BKABILBISA 285
Mulher, do canto teu no dom superno
A dadiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.
E mính'alma n'um extasi embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gosal-o, eterna vida... »
Moniz Barretto enthusiasmado, atirou-lhe este mote Tens
nas mãos teu porvir^ teu bem,, teu {ado^ que o poeta flumi-
nense glosou assim, dirigindo-se á mesma cantora :
u Disseste a nota amena da alegria,
E, arrebatado então n'esse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh'alma aos céos subia...
Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento ;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.
E's anjo ou nume, tu que doesta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em successivo e rápido transporte?
Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida ou dar a morte,
Tdns nas mãos teu porvir, teu bem, teu fado,.. »
Basta ; o qu& ahi fica é sufflciente para dar uma amostra da
limpidez, clareza e simplicidade dos improvisos do lyrico. flu-
minense.
Para concluir.
Laurindo é um poeta de caracter autonómico em meio dos
seus pares.
Mais moço que Magalhães e Porto Alegre, appareceu depois
d'elles, sem lhes seguir as pisadas.
Mais moço apenas três annos que Gonçalves Dias, appa-
receu mais ou menos pelo mesmo tempo e nâo lhe deveu abso-
lutamente nadaw
286 HISTOBIA DA LITTSBATITBA. BBABILBOUL
Igual independência mantém em íace de Azevedo, Lessa,
Bernardo e Andrada, pouco mais moços do que elle.
A qualidade predominante da sua poesia é a nota elegíaca.
Nao é a chamada poesia sentimental e lamurienta.
O poeta não se lastima ; também não se insurge, nem se
rende ; nâo é um revoltado, que blaspheme, nem. um submel-
tido que se prostre vencido. Nào ; elle é naturalmente olegiaco.
O pranto lhe sahe espontâneo & não o espanta ; não se cou-
verte em motivo de queixa ou de ódio.
Aquillo não é fingido, não arma ao efíeito; é assim por
Índole.
Luiz José Junqueira Predie (1832-1855). De S. Paulo c do
Rio de Janeiro é tempo de chegar á Bahia.
De Laurindo Rabello ó natural a passagem para Junqueira
Freire, seu amigo e por elle prantoiado em bellos versos.
O decennio de 1850 a 60 na Bahia foi uma epocha de grande
animação lilterdria ; igual só houve halli, no tempo de Gre-
gório de Mattos, no século xvn.
A começar pela Igreja, fulgiam então o arcebispo Romualdo
de Seixas, distincto pelo seu saber, e os frades Itaparica, Ar-
sénio da Natividade e Raymundo Nonato, famosos pelo seu
talento oratório.
O ensino medico fulgurava em Eduardo França, Jonathas
Abott, Ataliba e Malaquias dos Santos.
A eloquência política falava pela bocca de Mauricio Wan-
derley, Landulpho Medrado, Fernandes da Cunha, Barbosa de
Almeida, Victor de Oliveira e João Barbosa.
O jornalismo politico possuia um combatente, que valia por
vinte, Guedes Cabral (i).
A bella litteratura formava a linha da frente com Moniz Bar-
retto, o repentista, Agrário de Menezes, o dramaturgo, Manoel
Pessoa da Silva, o satyrico, Augusto de Mendonça, Rodri-
gues da Costa, Gualberto de Passos ev algum tempo, Lau-
rindo Rabello, os lyristas. D'esse grupo era Junqueira Preire.
Este poeta é de 31 de dezembro de 1832 ; em 1851 ratrou
(1) Naõ confundir com o moco auctor das Funeçôeê do Certbro,
HIBTOSIA DA LITTBBATinU BRABIUUBA 287
I>ara a ordem dos Benediciinos, professando no anno se-
guinte.
Foi a isto levado em parte por conselhos & em parte por des-
gostos privados, o que sei por informações particulares e fide-
dignas.
Tendo de seguir em 1854 para o Rio de Janeiro, pediu, a
rogos ^de sua mãe, que ficaria desemparada na Bahia, a secu-
larisacâo e a obteve.
Pouco depois iaiiccia de moléstia cardíaca aos 24 de junho
de 1855. Tinha pouco mais de 22 annos.
Tractando-se doeste poeta, apparece logo uma questão ini-
cial : um poeta monge em pleno século xix I...
Isto agitou a turbulência leviana da critica nacional e come-
çaram logo a f ormar-se as lendas.
Uns deram o moço frade como um espirito mysUco, d'uma
religiosidade ideialista e remontada, que fugiu das torpezas
do materialismo mundano para abrigar-se ao puro retiro do
claustro.
Outros pintar.am-no como um espirito forte, uma alma agi-
tada pela impiedade, pela descrença, pela mais atroz philo-
sophia, obrigada a metter-se nas asphixiantes compressas da
clausura, onde viveu em perpetua lucta.
Finalmente, quiz-se v6r n'elle, nem um mystico, nem um
Ímpio; a mas o.Anacreonta dos claustros, um D. Juan dis-
farçado em monge. » Não julgo provada nenhuma d'essas opi-
niões.
O estudo attento dos versos do poeta, a leitura dos prólogos
das Inspirações do claustro e das CorUradicções PoeticaSy e,
especialmente, de um fragmento de autobiographia que d'elle
flcou, levam-me a outras conclusões.
A ideia de ter sido Junqueira um mystico foi levianamente
forjada do simples facto de sua entrada para o convento.
Prova por demais frágil ; porque sabe-se bem hoje que não
foi a vocação irresistível que o impelliu ; o claustro foi um re-
curso, uim expediente de occasião, levianamente abraçado
pelo poeta.
Não é só isto ; a leitura do moço bahiano dá por terra com o
supposto/nysticismo, o que pôde verificar quem o quizer.
288 HI8T0BIA DA LirTSSATtrBÁ B&ABILBIBA
Também não foi um espirito que rompesse todos os laços
tradicionaes, fizesse tabula rasa completa das velhas crenças.
0 poeta foi educado no regimem catholico; mais tarde,
abalado pela philosophia e pela litteratura de seu tempo,
cahíu n'um estado d^ vacillação e incerteza.
Ora, pendia para as vehlas ideias, ora para as novas, aliás
pouco definidas.
Pelo que toca ao caracter erótico e sensual de seu tempe-
ramento, é ainda uma nota inexacta. Junqueira havia tido
um amor de puerícia e este amor contrariado, não seá porque
circumstancias, nunca mais se lhe apagou do coraç-^o. E' pos-
sível que tivesse, além d^aquella, uma ou outra intriga amo-
rosa.
Não é essa, porém, a nota predominante do seu lyrísmo.
Por este lado é muito* inferior aos diversos românticos aoa-
lysados até aqui.
E* mister peneirar n'alma do poeta, e apreciar as suas opi-
niões.
No Prologo das Inspirações do Claustro lô-se isto :
(c As poesias presentes agradarão a bem poucos : agradarfto ape-
nas a algumas almas fortes, que não puderam ainda ser eivadas
nem do cancro do scepticismo, nem da mania do mysticismo : agra-
darão apenas a alguns homens completamente livres, que não sujei-
taram-se ainda senão ás luzes da razão. Ora, estes homens sfto
bem raros na sociedade actual, porque a hyperbole dos systemas e
das crenças traz em si não sei que talisman, que arrasta todoa os
espíritos, por bem formados que sejão.
Pela mão invizivel da Providencia fui arrojado ha trez annos
para o coração do claustro.
Por essa inclassificável acção de que hoje me espanto, tive as
bênçãos de uns e os escarneos de outros. Erão ainda os homens
mysticos e os scepticos que louvavam-me ou vituperavam-me. Pela
mão invisível da Providencia fui arrojado outra vez para o torvd-
linho da sociedade.
Por isso tive a maldição de quasi todos. Erão ainda os mysticos,
que não pejavam-se de cantar a paUnodia dos louvores, que me
haviam magnificamente dispensado, — erão os scepticos, que com-
punham doeste acontecimento um marcialico epigramma... O aspecto
HISTORIA DA LITTBEATUXA BBA8IXJEIBA 289
social, que parecem ter estas composições, obriga-me ainda a nâo
Analisar de súbito este prologo.
O que cantas? perguntar-me-hôo. O que podia eu cantar, encer-
rado nas muredlias solitárias de um claustro, ouvindo a cada hora
os toques continuados de um sino que chama á oração, vendo uma
turma de homens com vestidos talares negros que levavam-me á
recordação dos costumes dos tempos antigos, passeando sempre
sobre um chão povoado de sepulchros, conversando com o silencio
do dia e a solidão da noite?
Cantei o monge e a morte.
Cantei o monge, porque elle soffre, soffre muito.
Cantei o monge, porque o jnundo o despreza.
Cantei o monge, porque elle é hoje uma cousa inútil e ociosa, em
consequência de suas instituições anachronicas.
Cantei o monge, porque elle não tem culpa de ser máo, nem pôde
por si só ser bom.
Cantei o monge, porque elle é infeliz.
Cantei o monge, porque elle é escravo, não da cruz, mas do arbi-
trio estúpido de outro homem.
Cantei o monge, porque não ha ninguém que se occupe de cantal-o.
E por isso que cantei o monge cantei também a morte. E' ella o
epilogo mais bello de sua vida : é seu único triumpho...
Na verdade, ao homem sincero cunante de sua pátria, doe-lhe den-
tro da alma ver tanta gente estacionada, sem nada fazer, podendo
produzir tanto bem. Não! a caridade que o Christo ensinou, não é
egoísta : Imagem real do pelicano, que arranca o coração para dal-
o aos filhos! Muitos, a quem tomam o cuidado de chamar Ímpios,
censuram o monge no monge. Eu deploro-o somente, porque elle não
é criminoso.
A instituição, a instituição é que, depois de lhe tirar o trabalho,
hoje em dia já não preciso, de rotear montanhas, não lhe forneceu
outro qualquer em ordem ás necessidades da época, mas antes con-
vidou-o a uma espécie de ócio, no qual elle não pôde ser mais que
máo e desgraçado. »
Estas palavras do prologo das Coniradicções poéticas são
ainda mais expresssivas como pintura do estado psychologlco
do auctor :
« Este livro é a historia de minha vida.
Minha vida tem sido a continiudade de circumstancias todas con-
trarias, todas variadas, todas repugnantes quasi.
HISTORIA n 19
n
390 HIBTOBXA DA LITTBBATXTRáL BBABILSIKA
Mea livro, pois, sendo a expressão doestas circumstancias, é iodo
contrario, todo variado, todo repugnante quasi, como tem sido
minha vida.
Eis aqui a raz&o de minhas Coniradicções poéticas.
Uma educaç&o christfi, porem livre, que minha m&e soube dar-
me imprimio-me entre seus ósculos matemos o sentimento religioao
lá bem no âmago de meu coraçfto.
As minhas poesias orthodoxas, portanto pertencem a minha mfte.
S&o sua inspiração.
O ardor da juventude, a ambiç&o da sciencia, a sociedade cor-
rompida, degeneraram em mim o homem feito por minha mãe. A
proporção que estudava, ia-me tornando mais philosopho, isto é,
mais vaidoso, mais ignorante, mais incrédulo.
As minhas poesias philosophicas pertencem a esses accessos de
loucura.
Entrou-me quasi n'esse tempo essa visão ehcantada, essa hallu-
cinação febril, que mata o coração e o espirito, depois de tel-os bem
gasto. O amor!
As minhas poesias eróticas pei*tencem a esses segundos accessos
de loucura.
Depois d*esses errores, a mão da doença, preludio do castigo
eterno, arrojou-me por varias vezes ás aprazíveis paisagens do nosso
bello recôncavo, e vi a pastorinha singela correndo no campo lá
pela madrugada, e as cabanas innocentes dos pescadores, e tudo
isso encantou-me. Foi um segundo amor, porém mais puro.
As minhas poesias campestres pertencem a essas phases de des-
graça, sim, mas de inhocencia.
Hoje que se tám desvanecido estes momentos tão doces de lou-
cura juvenil, como uma noite mysteriosa n'um palácio de fadas,
assento-me tranquillo em cima de um cômoro de folhas seccas, que
de quando em quando cahiram da arvore, e deixaram-a por ílm só
com seu tronco e suas galhas mirradas.
Aqui separo as mais verdes das mais seccas, as maiores das
menores, para fazer uma camada, e plantar sobre ella um nome
pobre e mesquinho, que talvez não nasça...
Estes cantos são meus dias antigos, são minha vida vivida, aão
todo o meu passado.
Eu amo todos esses tempos, como um pai ama os esqueletos de
deus filhos, que já não são, mas que já foram uns mais bonitos,
outros mais feios.
Eu amo todos esses tempos, porque custaram-me suores e sangue.
Eis aqui porque eu conservo intactas as minhas Coniradicções
HI8T0BIA DA LITTISATUSA B&A8I£BIEA 291
poéticas. Nem as reduza a um systema, a um pensamento uni-
forme, cdnstantc, único. Ápresènto-as quaes s&o.
Nunca poeta foi hypocrita. >i
N&o é tudo; no fragmento de autobiographia que vem
citado no estudo do poeta escrípto pelo Conselheiro Franklin
Dória ha alguma cousa mais completa ainda sobre a puerícia,
os estudos, as primeiras ideias do moço frade.
Tudo isto fala bem alto ; as três lendas inventad:is á conta
do moço poeta desappareceimi confusas á batidas por estas
confissões irrecusáveis de uma transparência absd^luta. Jun-
queira era um pobre joven nervoso, apprehensívo, que se viu
attrahido por duas intuiçOee diversas.
A educação religiosa e a corrente do século travaram lucta
em sua alma ; suas crenças vacillaram, seus sentimentos se
resentiram.
D'ahi certa dubiedade, certo dualismo em seus escríptos ;
justamente o mesmo abalo que se dera em Azevedo e em seus
companheiros. Apenas Junqueira era mais lúcido, mais racio-
cinador e menos imaginoso, menos poeta.
O bahiano é, como todos 09 bons poetas brasileiros, um
bom lyrista ; seu lyrismo tem quatro notas principaes : reli-
giosa, philosophica, amorosa, popular. Dou este ultimo nome
ao punhado de poesias que se inspiram de scenas do viver de
nossas classes pobres e aldeães.
Infelizmente não são abundantes as peças do género, que,
ao meu vêr, são as melhores do auctor.
As principaes d'ellas são : A Orphan na Costura, nas Ins-
pirações do Claustro, e O Banho, O Canto do gallo, O menes-
trel do Sertão, nas Contradicções Poéticas,
. Nos outras géneros as mais saborosas são : Porque Canto,
Meu filho no Claustro, A flor murcha no altar, Frei Bastos^
entre diversas mais.
Não é possível discutir e exemplificar todas as manifes-
tações do talento poético de Junqueira ; como amostra de seu
cstylo aqui vae — A flor murcha no altar :
n Está murcha : — assim nos foge
A briza que corre agorcu
2^ HI8T0BIA DA LITTEBATURA BSABILXIEA
Está murcha : — assim o fumo
Cresce, cresce, — e se evapora.
Está murcha : — assim o dia
Em raios afoga a aurora.
Está murcha : — assim a morte
Do mundo as glorias desfaz :
Assim um'hora de gosto
Mil horas de dores traz :
Assim o dia desmancha
Os sonhos que a noite faz.
Está murcha... Ainda agora
— Eu a vi, — nao era assim.
Era linda, era viçosa,
Acesa como o rubim,
Reinava, comb a rainha,
Sobre as flores do jardim.
Foi a donzella mimosa,
Foi passear entre as flores.
Foi conservar co'6ls roseiras,
Foí-lhes contar seus amores.
Julgando que sobre as rosas
Nâo se reclinam traidores.
Ella foi co*os pés formosos
Deixando Ynimoso rastro.
Qual no céu passou de noite,
Correndo, fulgindo, um astro,
E esta rosa foi cortada
Com seus dedos de alabastro.
A rosa ficou mais bella
N'aquella \1rginea mão.
Encheu de perfume os ares.
Talvez com mais expansão.
Mas a virgem teve pena
De pôl-a em seu coração.
Entrou no templo a donzella
Coberta co'o véo de renda.
HIBTOBIA DA LITTSBATUBA BBABILUBA 293
Teme que aos olhos dos homens
Sua modestía se offenda :
Como a cortina das aras.
Que aos ímpios se nfto desvenda.
Leva a modéstia na fronte,
Leva no peito a oraç&o
Leva seu livro doirado,
Leva pura devoção :
Leva a rosa, a linda rosa
Nos dedos da breve mão.
Rezou : e depois ergueu-se,
Dirigiu-se ao sanctuario,
Modesta, qual sua prece,
Qual a luz do alampadario :
E depôz a linda rosa
Ao pé do sahto Calvário.
Os anjos depois vieram.
Respiraram sobre a ílôr.
A ílôr cobrou mais belleza,
Mais gala e mais esplendor.
Alli ao pé do Calvário
Deu mais expansivo odor.
Alli parecia aos olhos
Crescer, crescer... Mas agora?
Agora murcha, tão murcha.
Não tem a gala de outr^ora,
— Assim o fumo do tecto
Cresce, cresce, e se evapora.
Assim as horas do tempo
Correndo, correndo vão.
Assim passou inda ha pouco
O matutino clarão.
Assim hontem foste infante.
Assim hoje és ancião.
Murcha, murcha! não expande
Jamais seu odor intehso.
294 HISTORIA DA UTTBBATUBA BBA8ILEIBA
Ha-de seccar, feliz d'ella,
Junto a Cruz do Deus immenso.
Ha-de aspirar sobre as aras
O cheiro de grato incenso.
Feliz! — seu leito de mortCt
Sobre as aras ella tem.
A prece que vai ao céu,
Sobr^ella primeiro vem.
A myrrba que a Deus incensa,
Incensa a ella também. »
Ha simplicidade a certa melodia popular n^estes e n^autros
vôrsos do poeta bahiano.
Elle HÃO possruia o vigor de Azevedo e^ José Bonifácio, a doce
melancolia de Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa, nem
a exhuberancia de Laurindo Rabello.
Elle, Augusto de Mendonça e Franco de Sá servem de tran-
sição entre o grupo de poetas do sul, que tenho estado a ana-
lysar, grupo a que pertencem também Teixeira de Mello e
Casimiro de Abreu, ainda nSLo estudados, e a plêiada do norte
em cujo numero contam-se Pedro de Calazans, Trajanò Gal-
vão, Dias Gameiro, Bruno Seabra, Francklin Dbria, Bitten-
court Samjpaio, Gentil Homem, Juvenal Galeno, Joajquim
Serra, Souza Andrade, e Costa Ribeiro : bella cohorte de
poetas pouco apreciados e mal retribuídos em seu' mereci-
mento.
O leátor não se esqueça de que está no que eu chamei a
terceira phase do romantismo no Brasil, o tempo do scepti-
cismo e do sentimentalismo a Byron e Lamartine.
Já se viu que Alvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Ber-
nardo Guimarães, José Bonifácio e Laurindo Rabello, todos
filhos do sul, obedeceram a essa tendência que variavam de
vez em quando, inserindo em seus cantares algumas notas
de naturalismo brasileiro, alguns tons de paisagens e de sce-
nas nacionaes.
Por esse mesmo tempo começou a íormar-se nas províncias
do norte, sob a influencia da escola do Recife, aquella pha-
lange de poetas citados acima.
HIBTOBIA DA LITTBBATUBA BRA.8ILBIBA 295
A differença^ que julgo importante e característica, entre os
dous grupos é que no do sul predominou o sentimentalismo
sobre o naturalismo rústico e popular e no do norte predo-
minou este sobre aquelle.
Entre os dous grupos, como um laço que os prende, figuram
os dous bahianos Junqueira Freire e Augusto de Mendonça e o
maranhense Franco de Sá, que poetaram nos dous sentidos
que apontei.
Para concluir com Junqueira Freira deixo ainda aqui uma
observação : elle nada deveu a Alvares de Azevedo na for-
mação de sua intuição poética. Pouco até o leu, se é que
jamais o leu.
Só em meíados ou fins de 1853 poderiam ter chegado á
Bahia as obras d'este poeta, publicadas n'este anno.
Desde quatro ou cinco annos antes Junqueira poetava no
estylo que sempre conservou. A.Lyra dos vinte annos não pro-
duziu as Inspirações do claustro.
São duas correntes parallelas e esse parellelismo^é devido
ás correntes geraes das ideias e á athmosphera do tempo.
Não houve imitação directa, como inexatamente eu mesmQ
tinha dito na Litteratura Brasileira e a Critica Moderna^ pe-
queno erro aliás que um estudo mais .completo dos factos leva-
me gostosamente a corrigir agora.
O mesmo não se pôde dizer de Franco de Sá, três annos
mais novo do que Junqueira, e cujas primeiras poesias datam
de 1853.
António Augusto de Mendonça (1830-1880). D'aquelle grupo
de poetas e litteratos que figuraram vivamente no decennio
de d 850 a 60 na Bahia, filiados na phase romântica estudada
agora, Augusto de Mendonça, com ser dos mais meritórios,
foi o mais infeliz na lucta pela gloria.
Junqueira Freire morrera a propósito e cresceu facilmente
em fama ; Agrário teve a vantagem de cultivar um género
pouco explorado no Brasil — o dramático, e fácil lhe foi obter
nomeada, tendo também fallecido emt boa hora ; Moniz Bar-
retfo deixou filhos que lhe ficaram apregoando o nome. Só o
pobre Mendonça é hoje ainda um illustre desconhecido.
296 HISTORIA DA LITTEBATXTBA BRA8ILEIEA
Além de tudo, seus companheiros de luctas de 1850 fôram-se
todos, elle deixou-se ílcar até 1880, e teve assim de assistir ao
advento da chamada escola condoreira, que veiu substituir a
sua própria escola.
Castro Alves, seu patrício, cresceu rapidamente em fama,
tomou-se immensamente conhecido, e o infeliz Mendonça
viveu ainda dez annos mergulhado no esquecimento.
E, todavia, essa indifferença do publico é uma grande injus-
tiça. Foi um lyrico suave, doce, melancólico, d*uma melan-
colia tema e plácida.
O poeta passou por algumas inclemências na vida ; ficou
orphão ainda na puerícia, tendo ao seu cargo pesada familia.
Não poude seguir um curso académico e teve de ser empre-
gado publico de província com pequenos vencimentos. Esta
posição esquerda e inferíor ao seu merecimanto inílltrou-lhe
n'alma perpetua tristeza. Mas era uma tristeza resignada e
contida.
Tinha muita facilidade de escrever, muita doçura e musica
no verso ; muita nitidez, muita naturalidade na linguagem. E'
uma poesia apasiguada, boa companheira para aplacar
grandes dores.
O poeta não apparece esgiiedelhado a inchar as bochechas
e a gritar para que se ouça e se veja que elle alli está a decla-
mar cóleras e enthusiasmos ; não se põe a berrar palavrões, a
rufar tambores, a badalar bombos n'uma pancadaria feroz...
Não, elle chega de manso e nos diz algumas phrases ao
ouvido macia e socegadamente. Passa e vae-se.
Castro Alves o comparava ironicamente ao cabocolinho de
nossas maltas. Póde-se acceitar a denominação ; peior seria s<*
o poeta fosse uma arara ou maracanan grítadeira.
Mendonça foi um poeta de indole lamartiniana ; creio poder
comparal-o a Victor de Laprade ; não é a grande poesia ; |>o-
rém é ainda uma alta poesia.
E' obvio que eu podia desenvolver o retrato do poeta ; a
economia doeste livro obriga-me a deter-me e a nSo passar
d'esses rápidos traços.
O talentoso bahiano deixou muitas composições esparsas ;
'A
HISTOBIA DA LITTBRATUKA BRA8ILBISA 297
ixou também em livro um volume de suas Poesias (1860) e
i poema A Messalina (1866). ^
i publicação de suas obras toma-se necessária ^3ara sua
apleta rehabilitaçâo. f
ruma só poesia A Saudade da Sepulchro vae o ^Wtor ter
bello especimem dos sentimentos, do estylo, do lâfento do jí
ta. • '.
' isto :
>,
í( Sobre um sepulchro isolado
Roxa saudade vi eu; • ,
Solitária vicejava
No chão frio em que nasceu;
Nunca saudade tâo triste
Em sonhos me appareceu!...
Nuança!...
Senti então pelo rosto
Turva lagrima sentida
Deslisar...
Foi á hora do sol posto...
Hora de muito scismar!
Quando o archanjo da poesia
Harmonisa o céo com a terra
Na mesma melancolia...
Na mesma doce tristeza,
Que ás vezes nos faz chorar,
E chorar a natureza
Ao lento morrer do dia!
Cheguei... beijei a saudade
Que assim, tão erma encontrei;
Com ella sympathisei;
Porque — da minha orphandadc
N'este deserto profundo,
Pobre engeitado do mundo,
Só com saudades me achei!
Estranha, viva agonia
Resumbrava-lhe na côr;
Na muda expressão dizia
Tantas penas, tanta dôr,
Que só no reino da morte
298 HIBTOBÍA DA LITTBKATUSA BRABILBDU
D'uma lagrima podia
Ter nascido aquella flor...
A saudade!
Emblema de muito amorl...
Poeta ás dores affeito,
Tentei debalde arrancal-a,
Para no fundo do peito,
Como um thesouro, plantal-a.
Debalde! porque a infeliz
Tinha encravada, segura
No fundo da sepultura
A desgraçada raiz!
Ah! quem soubera o destino
D'aquella flor merencória!
Quem a sua ignota historia
Porventura escutará?
Quem?... se a flor mysteriosa,
No seu recinto funéreo.
Muda como o cemitério
Para todos sempre está?
Quem sabe!... talvez que á triste,
Que no sepulchro descánça,
D^entre as sombras do futuro
Lhe sorria uma esperança...
TalvezI...
Quem adivinha se a brisa.
Que docemente a embalança
Nao lhe vai de amor falar?
Se o SÓI... se o sol ao deixal-a,
Nôo lhe deixa em despedida
N'um raio um gérmen de vida,
Saudoso de a náo levar?
Se ardente, extremoso affecto,
Se estremecida paixão
Que já no peito nSo cabe,
Por indizivel feitiço,
Não lhe dá alento e viço
Co'o sangue Ho coração?
Quem sabe!...
HIBTOBIA PA LITTBRATXmA BRA8ILSIBÁ 299
Sei que a misera saudade,
Quando no feio horisonte
Feia surge a tempestade;
E da cupola do céo
Nem sol, nem tímida estrella,
Atravez do espresso véo,
Despede um raio de luz;
Sei que a misera saudade,
Porque o vento a não desfolhe.
Nem as pétalas lhe açoite,
Encosta-se — ou dia ou noite —
Nos brc^:os de sua cruz. »
Nâo ha ahi as agitações, os çsteirtores dos desesperadas;
D poeta encarava a vida melancolicamente, mas havia resi-
gnação em sua tristeza.
Elle foi também um habil repentista da escola de Muniz
Barretto e Laurindo Rabello. A posteridade acabará por fazer
justiçai a este escriptor.
António Joaquim Franco de Sa (1836-1856). Era filho do
Maranhão e estudou direito no Recife.
Foi contemporâneo de Pedro de Calasans, Gentil Homem,
Trajano Galvão, Dias Carneiro, Franklin Dória, Gosta Ri-
beiro, Gomes de Castro, Marques Rodrigues e outros bellos
talentos que figuraram em Pernambuco no decennio de 1850
a 60. Falleceu aos vinte annos.
Sua poesia tem duas notas capitães : é pessoal, recordativa
e intima, ou é humorística. Esta nota é em especial referente
a episódios da vida estudantesca do norte.
As peças princípaes do género são : Meus. namoros de
Olinda, Amor e Namoro^, As Visinhas, A Sabbatina, A Esbelta.
As outras enchem, o resto do volume de versos do joven ma-
ranhense.
O estylo é simples, a metrificação sonora e correcta, os pen-
samentos não são vulgares ; bem pelo contrario, tudo indica
que o paiz perdeu em Franco de Sá um bom e mavioso poeta.
De seu livro, publicado por seu irmão, destacarei como
300 HI8T0BIA DA LITTEBATUBA BBA8ILBIBA
apta a exemplificar o seu estylo — a poesia — Ao dia 7 de se-
tembro.
Era em 1855; o poeta saudou assim o anniversaria da inde-
pendência brasileira :
(( Ao sopro dos ventos, ao som das cascatas.
Em leito pomposo, formado por Deus,
Um Índio gigante, nascido nas mattas,
Dormia, cercado de mil pigmeus.
De zonas ardentes e frigidas zonas
O vasto colosso se estende através;
Repousa-lhe a fronte no immenso Amazonas,
E as aguas do Prata murmuram-lhe aos pés.
Soffria ha três seclos cruel pesadelo,
E a turba de insectos, pedrada ao redor,
Lançara-lhe ferros, sorrindo-se ao vel-o
Co*os olhos fechados e o corpo em suor.
E as aves que gemem, as feras que rugem,
Os ventos que zunem, os próprios fuzis
N&o quebram-lhe o somnol Crearam ferrugem
Nos pulsos tão nobres cadeias tão vis!
Sorriam-se elles!... Sem verem que o somno
Somente o retinha !no mesmo lugar.
Bem como o menino reputa-se dono
Da onça dormida que o pode tragar.
Sorriam-sc elles! Sem verem que aos poucos
Nas veias o sangue fervia aânal;
No orgulho embuçados, não vicun, que loucos!
Que a hora batia solemne e fatal
Mas eis de repente surgiu no horisonte
Qual surge nas trevas brilhante pharol.
Um dia de glorias, os valles e o monte
Enchendo de vida, banhando de sol!
Romperam mil cantos, cessaram queixumes,
Do trino das aves encheu-se o vergel,
E o prado de flores, e a flor de perfumes,
( ; E os ramos de f ructos, e os f ructos de mel!
HI8T0BIA DA liiITTEBATURA BRABUJEIBA. 301
Do lago e do rio, do tigre e da pomba,
Dos ventos nos troncos, da brisa na ílôr,
Da terra, dos ares, do mar que ribomba,
Um hymno de bençam se eleva ao Senhor!
Aos fervidos raios do sol fulgurante,
Do hymno ineffavel ao magico som.
Do longo lethargo desperta o gigante.
Que excelso destino tivera por dom.
Desperta... e dos membros sacode as cadeias,
Qual rija borrasca das nuvens o véu,
Qual águia das azas sacode as areias,
Abrindo-as velozes nos campos do céu.
£ á turba insensata, que ao vel-o se assombra.
Atira dos lábios sorriso de dó.
Em vez de vingança prestando-lhe sombra.
Que o sol doesse dia tornara-os em pó!
Desde esse momento, sahindo da selva,
As terras demanda, que um dia verá;
Se acaso o caminho nem sempre é de relva,
Que importa, diz elle, se avanço p'ra lá?
Se ás vezes duvida, se treme, se cança.
Ao sol de setembro renasce outra vez
Nos membros a força, no peito a esperança,
E a marcha prosegue com mais rapidez.
E vendo esse dia, que tanto memora.
Por sobre o horisonte de novo surgir,
Co'um brado espo'ntaneo saudamos-lhe a aurora.
Honrando o passado, com fé no porvir
Oh! hoje que raia táo limpida e calma,
Nós filhos do índio, saudemol-a nós,
Com rosas na fronte, com jubiIon'alma,
E o riso nos lábios e o canto na voz!
Saudemol-a todos! Taes dias são arcos
Na senda que ao templo da gloria conduz.
Nas eras passadas, são fulgidos marcos.
Que as trevas separam de enchentes de luz!
1
302 HI8T0BIA BA LITTBEATUBA BRABILEIEA
Por ella cuúmados, com força dobrada
A'liça da pátria voemos também,
Se espinho e poeira tivermos na estrada,
Mais de uma coroa teremos além!
Corramos, lutemos, cingindo de louros
A fronte que bate de ardor juvenil!
Um nome leguemos aos nossos vindouros,
Cubramos de glorias o nosso Brasil!
Unidos reguemos de nossos suores
A planta, legado de avós e de pais,
Seus pomos dourados, no gosto melhores,
Os ramos vergados carregue'inda mais!
E como o guerreiro, depois da victoria.
No ganho estandarte repousa por íim ;
Depois das fadigas, envoltos na gloria.
Soldados da pátria, durmamos assim!
•
Virão nossos filhos, colhendo esses pomos
Que tomem maduros benéficos soes,
Depôr-nos coroas, bem como as depomos
Na imagem querida dos nossos heróes.
£ após venha a historia, que os feitos estampa,
Os nossos narrando com traços fieis,
£ honroso epitaphio nos grave na campa,
Cercando-a de fióres e novos lauréis. »
N'esse tempo ainda havia enthusiasmo geral pela emanci-
pação nacional ; havia toda a confiança em virmos a ser uma
nação forte e prospera.
Ainda ncLo se tinha inventado a Iheoria geitosa, que se vae
agora insinuando, de ser em tudo conveniente submetter este
paiz á influencia do chamado adiantamento europêo.
Poucos hâo de calcular, o que vae de insidia n'esta calansh
tosa insinuação... Bemdicto seja o nome de Franco de Sá, o
nome de um patriota.
E' urgente passar adiante.
Voltemos, ó leitor, ao sul, ao Rio de Janeiro a ouvir os
carmes de Teixeira de Mello e Casimiroi de Abreu. Sfto dois
j
HISTORIA DA LITTEBATUBA BRABILBISA 903
patrícios, dois amigos, que entram perfeitamente na intuição
geral da epocha.
Depois iremos escutar a ronda aérea dos cantares nortistas,
de que Junqueira Freire, Augusto de Mendonça e Franco de
Sá já nos deixaram nos ouvidos alguns sons intensos e expres-
sivos.
José Alexandre Teixeira de Mello (1833...)- Eis aqui um
poeta de grande merecimento, inteiramente esquecido.
Eu mesmo, que estudo com interesse e carinho tudo que se
refere ao Brasil, conhecia-o só vagamente de nome ; nunca
o havia lido attentamente I... E assim terão feito muitos outros.
Para que ler as poesias de Teixeira de Mello, os dramas de
Agrário, os romances de Alencar, se alli estão as drogas de
Ohnet, de Montepin, de Du Boisgobey, que posso ingerir,
arrotar depois as essências de Pariz, e passar por homem de
tom e adiantado ?
E' a regra geral : uma curiosidade inquieta e malsaine pelo
que vem de fora e completa ignorância do que se produz na
pátria. . .
Entretanto», Teixeira de Mello foi um lyrista de primeira
ordem no Brasil, sem ter quem o exceda em Portugal na phase
correspondente ao seai desenvolvimento.
O poeta, de certo tempo em diante, abandonou quasi intei-
ramente a sua arte divina.
Empregado superior da Bibliotheca Nacional, dedicou-se
com força ao estudo da historia pátria.
N'esta esphera são dignos de nota o livro que publicou sob
o titulo de Ephemerides Nacionaes e a Memoria consagrada á
questão das Missões, secular pendência entre o Brasil e a
Republica Argentina, só recentemente resolvida.
Também» são dignos de apreço diversos estudos seus publi-
cados nos Annaesi da Bibliotheca Nacional e na Gazeta Litte-
roTÍa.
Mas é do poeta que deivo especialmente falar, e por este
lado, elle está nas Sombras e Sonhos e nos Myosotis, especial-
mente no primeiro doestes livros.
Teixeira de Mello teve por amigos e companheiros littera-
304 HISTOBIA DA LITTERATtTRA BRA8ILSIBA
rios Casimiro de Abreu e o Dr. Luiz Delfino dos Santos que o
offuscaram inteiramente sem. possuir merecimento superior ao
seu.
Casimiro, primando pela simplicidade, que ás vezes chegava
ao chatismo, morreu pouco depois de publicar as Primaveras^
e viu-se repentinamente celebre.
Luiz Delfino dos Santos, primando pela elevação que des-
camba muitas vezes no exaggero, no gongorismo esdrúxulo,
fez ruidosa carreira medica, juntou cabedaes e aguardou a
vinda de um momento propicio para alçaras© ao posto de
pontífice máximo de um grupo de sectários.
Teixeira de Mello, que tem a simplicidade sem a chateza e
a elevação sem a bombasticidade, nâo teve nenhuma d'essas
consagrações enthusiasticas : ainda hoje elle é um obscuro.
Eu sou o primeiro a collocal-o em seiui lugar ; não que o seu
merecimento fosse jamais contestado : nem negado nem afflr-
mado ; simplesmente despercebido, como non avenu.
As Sombras e Sonhos são um livro notável e superior aos
seus companheiros de datas Primaveras e Enlevos (1).
Estes três livros, a que se .devem juntar as Primeiras Paginasi
de Pedro de Calasans, as Flores Silvestres de Bittencourt Sam-
paio e as Flores e Fructos de Bruno Seabra, podem bem ser»-
vir de thermometro para aquilatar-se a temperatura poética
dos annos que vão de 1855 a 62 no Brasil (2).
O movimento continuou no mesmo sentído pelos annos de
62 a 64 com as publicações de Fagundes Varella, que inau-
guroiu o que eu chamei o naturalismo bacchico, que serviu de
passagem para a escola condoreira (3).
O livro de Teixeira de Mello é exhuberante de seiva, como
são tantos outros do animado e luxuriante lyrismo brasileiro.
O que individualisa e distingue as feições da poesia d>»te
auctor é certa singularidade, certa elevação graciosa e deli-
cada das plirases, certa garridice das imagens : alguma cousa
que lembra Victor Hugo nos bons tempos, quando elle não
ri) As Somhrafí e Sonho^t de Teixeira de Mello sâo de ]«58; os Fnleros
de Franklin Dória e as Primaveras de Casimiro de Abreu são de 1>^59.
(2) As Primeiras Pauinas de Calasans são de 1855 ; as Flores Sihèstres
de Sanfipaio, de 18(>(); as Flores e Frurtos de Seabra, de 1S62.
(3) Veja-so — A Litteraturn Braúleira e a Critica Moderna, pag. 185
HI8T0BIA DA LITTBSATUBA BRABILBIRA 305
lia ainda gongorismos, a phase em que escreveu Sara la
gneíise e outras jóias d'esse quilate,
idicareí ligeiros trechos aptos a documentarem o que digo.
am :
<( Tinhas então no olhar a morbideza
Da infância que presente a mocidade;
Tinhas na fronte o sello da belleza
E n*alma a sombra ^^a^za da saudade.
Amemos como á luz as .nariposas,
Como a ílôr ama o orvalho que a remoçai
Amar não é topar pela existência.
Como a topaste, um'alma irmã da nossa?
O amor é a vida na mulher que um dia
Ao passar pelo espelho achou-se linda!
Ama e vive, mulher! quando morreres...
Quando morrermos... viverás ainda! »
i isto que é melhor ainda ; o poeta fala de um mundo á
(f Onde haja musgo em que teça
Um ninho em que eu adormeça
Com meus amores implumes;
Onde nâo vinguem espinhos;
Onde o sol entre carinhos
Viva de azul e perfumes!
Procurei no. mundo todo
Um ponto, per'la no lodo,
Onde o amor fosse verdade!
Onde a vida fosse um lago!
Nosso baixel... um afago!
Nosso briza... a mocidade! »
lyrismo alado do xix século. Eis ainda superior :
ic A cada riso d'ella eu via o mundo
Sumir-se a nossos pés e o céo se abrir!
Então eu m'esquecia de mim mesmo,
Do mundo que a esperava e do porvir!
ISTORÍA 11 íi->
906 HI8T0BIA DA LITTBRATURA BBABILEIBA
A tarde era uma aurora mais risonha,
A insomnia minha etefna companheira,
Sylphide o tempo, as illusões um berço
Em que pensei dormir a vida inteira... »
Ou este brado :
(( Meu peito o abysmo, teu amor o raio,
Meus lábios harpa em que passou teu nome,
Tudo mentiu-mel As emoções se foram
Como as neblinas que a manhan consome, n
Ou ainda este :
c< Quanta ventura a trescalar em tudo!
Quanto silencio a perfumar a selva!
£ quanto sol a enamorar as ílôres
E quanta ílôr a enamorar a relvai »
Ou finalmente estas quadras de uma bellissima poesia á
Lua:
u Quando sacodes sobre a noite as azas
Lagrymas cahem, gcu^ça que não torna,
Como o sereno que a descuido a aurora
Por sobre as flores — toda riso — entorna!
Tu passas núa, escabellada e muda,
Levada em braços de milhões de anjinhos,
E vaes, quem sabe? te banhar nos lagos
Em que lav€un-se o sol e os passarinhos...
Eu te vejo passar, t&o perto ãs vezes,
No meu deserto, fugitiva embora!
Tu és o cysne que em meus cantos canta;
Tu és a amante que em meus prantos chora! n
São fragmentos citados a esmo ; outros mais bellos existem
no livro, que deve ser lido com a maior attençâo. E' um bom
companheiro para horas de desalento.
Outra qualidade particular das poesias de Teixeira de Mello
HI8T0BIA DA LITTE&A7JKA. BBA8ILBISA 307
é a completa correcção da lingua e da forma métrica. O poeta
ó impeccavel ; é um primoroso romântico e um verdadeiro
precursor dos parnasianos modernos.
P6de-se só por elle aquilatar o progresso da poesia brasi-
leira em ires séculos de vida.
No regimen clássico a lingua nfto tinha essa elasticidade,
essa flexibilidade, esse doce torneio, essa capacidade capri-
chosa e ondulante de ostentar-se em bellas phrases.
Reparem-se os seguintes decasyllabos, ou versos chamados
de Gregório de Mattos ; note-se a doçura, a mobilidade da
expressão.
No velho poeta bahiano do século xvii esse metro, par elle
introduzido na lingua, era ainda áspero e duro. O vocabu-
lário era então p6U[*co;^as palavras obrigatórias appareciam
sempre.
A poesia tinha um pequeno lexicon de convençfto que
não deixava jamais.
Léam estes versos e reparem bem que estam a ouvir um
lyrista de um tempo cheio de exigências :
« Tanto orvalho por noites d'encanto
Molha as plantas abertas em flor!
£ meus lábios molhou-m'os o pranto
Sempre, sempre que abriu-m'os amor,
Tanto sol n^estas veigas tranquillas
Ergue as flores*— já mortas talvez!
Requeimasse-me embora as pupillas .
Eu quizera, 'nascendo outra vez,
Requeimal-as de novo!... Bemdicto
Seja aquelle que á livida flor
Abre em jorros o sol, e ao proscripto
Abre o sol — sempre puro — do amor!
Venha um beijo de fogo aquecer-me :
Tenho n'alina do hinverno os rigores!
Deixa á vida de novo prender-me
A esperar pelo sol — como as flores.
308 HI8T0BIA DA LITTBRAT17BA BRABILSIBA
Sim! minh'alma pertence á esperança
Como á terra meu corpo que é seu.
Por um fio, mulher, d'essa trança
Se soubesses que amor te dou eu!
Nunca a língua de fogo d*um beijo
De meus lábios queimou-me os pallores!
A teus pés, anjo meu, eu desejo
De perfumes viver como as flores.
Tens perfumes na voz que embriaga :
Como os anjos tu caYitas falando,
E dos seios na túmida vaga
Tens perfumes que alentam matando...
Tens perfumes na boca mimosa!
Um azul beija-flôr do vergel
Já tomou-a por folhas de rosa
E uma abelha por favos de mel. .
Por amar já soffri tanto, tanto!
Faz-me um dia esquecer que soffri.
N'um requebro do olhar — por encanto
Como Deus — cria um mundo pYa ti!
Abre as azas da tua belleza
Sobre o abysmo do meu coraç&ol
No silencio da virgem deveza.
Que me esconde, serei teu irmão.
Nós teremos por tenda as campinas
Em que a relva se veste de flor.
Estas névoas por alvas cortinas.
Estes ermos por leito de amor!
Vai, que cu sei, tanto amor pelo mundo
E tu deixas-me, virgem, sozinho!
Dá-me um riso, só um, mas tão fundo
Que me faça encurtar o caminho...
Que te custa flngir um sorriso
— Ténue gotta no mar da esperança!
Dá-me amor, dá-me vida... preciso
De viver... Que te custa, criança?
HI8T0BIA DÁ LITTSSATU&A BSABILSIBA 309
Vem tu ser meu condão de ventura!
Abre os lábios e dá-me a existencicil
Como o oiro, que €u> fogo se apura,
Regenere-me a tua innocencicu
E* um mundo que tiras do nada
E onde podes mandar — como Deus...
Solta a voz e verás n*alvorada
Que rebenta a um soriso dos teus... »
Eu nto sou clássico, e nem romântico, e nem parnasiano ;
Ho estou com a velha, nem com a nova geração... quero estar
)m a nonissima^ com aquella que ainda ha de vir. Por cima
além das escolas actuaes vislumbro alguma cousa de supe-
or que ha de ser a poesia do tempo futuro.
Quaesquer, porém, que venham a ser as conquistas e os
'ogressos do lyrismo do porvir, ninguém contestará que
ses versos serão sempre e sempre um bello espécimen de
na poesia sonora, perfumosa, irisada e macia como as pen-
is sedosas de matisados pássaros.
Poi necessária a longa serie de seis gerações de taJentos po&
os, todos empenhados em aperfeiçoar o instrumento de seus
ntos, para a arte chegar a esse apuro, verdadeiramente
Bcursor do parnasianismo recente. De igual requinte é a
ça intitulada Phantasia :
i< Nayade viva da legenda aíntiga,
Deixa o seio do rio em que te encantas!
Dá-me um riso d^amor, gotta do orvalho
Que em noites de verão desperta as plantas.
Vem ás horas dos pallidos vampiros
Sobre as azas em pó das borboletas!
Algum sylpho talvez te espere em cuidos
Sobre os seios azúes das violetas!
Não vês a natureza a somno solto
Nos braços do silencio, immovel, fria?
A alma vagando, estrella d*outros mundos,
Pelos campos da lofra phantasia?
dlO HI8T0BIA DA LITTBRAT17SA BBABILBIIU
E OS ventos que adormecem como a noite
Nos cabellos das arvores do vai?
Nem soluçam gemidos que te assustem
Esses mortos que dormem no hervaçal.
Desce ás horas do amor e dos mysterios!
Poisa o pé sem temor... é chão de flôresi
Quáhdo os vivos resonam como os mortos,
Vem banhar-te comigo em mar de amoresi
Aos cleurOes do luar, que despertou-te,
Ouve-se a estrella a scintillar dormindo!
Ouve-se a hriza a desfolhar saudades!
Ouve-se a folha a suspirar cahindol
Vem, flor do rio, perfumada em risos;
Vem flor dos bosques, orvalhada em pranto!
Mas se inda assim o coração te treme,
D*essas azas que tens faze o teu manto.
Dá-me um hymno dos teus na voz maguada ;
Dá-me um canto do céu na voz tristinha!
Já que o mundo dos vivos me abandona,
Vem, prínceza do vai, vem tu ser minha!
Vem teus sonhos de amor que a alma embalsama
Desfolhar sobre mim e o meu futuro!
O mundo não te espreita!... e só da noite
Brilhão olhos de Deus no manto escuro.
Mas... se a aurora acordar teu pae que dorme?!
Se a briza despertar no campo as flores?!
Vem sempre! um anjo deve amar mais cedo,
Mais cedo enlanguecer, morrer de amoresi »
Teixeira de Mello é o que na linguagem escolástica da cri-
tica se chama um ideialista.
Por ahi ainda existe muita gente que suppõe serem ideior
lismo e realismo dois systemas, duas theorias, duas doutrinas
oppostas da arte, quando apenas, na phrase felicíssima de
Edmond Scherer, sã.o os dois poios entre os quaes se tem
movido em todos os tempos toda a poesia^ toda a art» humana
em geral.
J
HIBTOBIA DA LITTERATUBA BRASILSIBA 311
Esta co-relação do ideial e do real, apezar das extrava-
meias dos críticos, é uma verdade que brota á% toda a
storia da intelligencia do homom.
Ha quem baralhe e confunda as noções que parece sabirtlíi
iquellas palavras, applicadas ás producções artistieas •
lerarias.
Os equívocos agglomerain-se e as tentaçOes infundadae e#
resentam ; a quem conhecer, porém, um pouco o espirito
mano e couber a certeza do que ella vale nos tempos mo-
gnos as vistas parciaes não cegarão.
\. ideia mais persistente, que uma das mais robustas edifi-
5ões philosophicas do xix século — , a de Hegel, — trouxe
mundo, foi a do caracter relatwo da verdade.
^ara tal achado, álprimeira vista tikr simples, houve neces-
ade de todo o génio do illustre allemão, no intuito de
erminal-o, e de toda a sciencia e habilidade de Comte e de
jncer aflm de o divulgar (1).
inda bem : o principio é geral e sua applicação deve ser
ipleta ; as ideias absolutas sobre poesia são uma herança
^elha e abstrusa metaphysica e absurdas como uma these
astrologia. D'ora avante a pretenção de governo único e
potico, por parte, da um modo de ver parcial, é um falsea-
ito de doutrinas, um quadro incompleto do espirito do
po.
as interrogue-se a historia. Lá também, lá na antiguidade,
ido a consciência humana serena e imperturbável, porque
la era ainda pouco complicada, modesta e tímida, porque
►ração era ainda pouco exigente; quando a consciência
lana, diante de todos os fundos problemas, se mostrava
ente cam\ a razão das cousas, vinha de quando em ve2
restea de sombra empallidecer-lhe o brilho.
)ri as obras dos grandes génios, os mais arredados de nós
quizerdes, d*esses d'aquelle tempo em que não eixisUam
3L clássicos, românticos, realistas, parnasianos, impassi-
impressionistas e tutti quanti ; abri, por exemplo, o livro
)b.
/'ide Ed. Scherer, Melangeê d*Hiêtoire Religieuêe, artígo lobrt H«|c»l.
312 HISTOBIA DA LITTEBATUBA BBABILEIBA.
O es?pdrito do sublime sofTredor é açoitado por todas as fla-
gedlações que lhe atira o inipletcavel habitador das trevas. Ahi
Satan é o destino ; a grande lucta da humanidade está tra-
vada (1).
Abri Eschylo : todos conhecem essa poesia travosa de sup-
plicios, embrigada de subime padecer. Ahi Prometheu é o
génio preso, e todavia conspirado...
Abri Homero abri Sophocles, abri Virgílio, abri Lucrerio.
Onde haverá mais ideial, isto é, mais transfigurações do
homem e da natureza, e, ao mesmo teimpo, mais realidade,
isto é, mais vida, mais lucta, mais tormento, mais dôr ?
E, se fôr ponderado que entre o homem de hoje e o de então
ha todo o vasto labor de sonhos cedestes, de desapego da vida,
de anciãs para Deus, que enche uma extensa secção da histo-
ria, a idade-media, e constituo o caracter dei muitos séculos,
a parcialidade systematica de todo se aniquila.
Nós outros os de hoje somos os filhos de uma civilisação
complexa (2).
Todas as expansões reaes e sentidas do homem antigo,
sobremodo do grego e do romano, *entrelaçaram-se a todos os
Ímpetos para o desconhecido do homem da idade-meia, onde
larga parte tiveram os semitas, especialmente judeus e
árabes.
A alma moderna é a somma de todas aquellas elTusões ; o
pensamento hodierno agita-se por todos os lados.
Na grande litteratura correm as ondas de todas as anciãs
ineffaveis, desde o sagrado enthusiasmo pela mulher até a
sede estupenda pela eternidade ; desde a mimosa expansão
pelo espectáculo das flores até ao dilacerante desespero pelo
céu que atormenta.
Ali ha de tudo; o medíocre é que é exclusivo; são as
grandes ideias incarnadas na forma brilhante ; todos os son-
hos como todas as realidades, todos os pesadelos como todos
os risos, a duvida a a crença, a maldição e a prece !... Vejam-
se as obras mais perfeitas que resumem o xix século.
Onde ha ahi poesia mais sonhadora, mais utópica do que a
(1) Vide Ern. Rcnan, Le Livre de Job ; analyse do poema.
(2) Vide H. Tainc, Philoêophie de VArt en'^Grèce; o momento.
HISTORIA BÁ LITTSRATUSA BBASILEIBA 313
de Fatist, a de Manfredo, a do Ashaverus ? N^essas indomáveis
torrentes de impetuoso lyrismo os velhos e novos mysterioe,
as velhas e novas impossibilidades se attestam, e, comtudos
onde livros mais humanos, uma poesia em que a ©xacUdáo
que nos toca seja mais seria e implacável ? E' o caso de todo
Shakespeare.
Mas deixo esta ordem de motivos e toco n'outra.
Que entendem por ideialismo no terreno da arte ? Se fosse
a suprema expressão, o mais sublimado gráo das^ concepções
humanas, então nada haveria de serio que vedasse os poetas
de por elle moldarem suas obras.
Se o julgam synonimo de extravagâncias, accervo de im-
possibilidades phantasticas, n'este caso tombam em falso, sem
a mínima razão.
Mas nenhuma d'estas explicações é a exacta ; a primeira é
apenas uma vaga aspirado mjetaphysica ; a outra é eviden-
temente desparatada.
Nem tanto exaggero de um lado e d'outro ; o ideial é tam-
bém relativo; nílo se concebe á priori; depende deis ideias
que formamos das cousas.
Esta simples verdade mostra bem sua indole e seu valor ; é
o fundamento mesmo da arte e a historia mostra sua con-
stante variação.
Que é o realismo ? Se é a velha pretenção de fazer da arte
uma photographia eternamente a retratar scenas do mundo,
na pintura não passais da paisagem e na poesia da descri-
pçao. '
E, se o intento é julgar que o mister único da poesia, da
arte, da litteratura é reproduzir o que parece certo, real, posi-
tivo para as intelligencias, n'este caso, o critério de cada uma
d'ellas é variável, ou, por outra, as ideias diversas de cada
um trarão o ideiahsmo, cujo sentido philosophico é assim
ainda uma vez determinado.
Mas o realismo deve ser entendido de modo diverso, isto é,
como aquillo que a sciencia e a experiência forem tirando
a limpo, e a consequência aqui é que elle é necessário, é uma
força que se impõe inefvitavelmente.
Ideialismo e realismo, portanto, são principios que não se
314 HISTORIA DA LITTE&ATURA BBABILEIKA
combatem ; unem-se e resguardam-s© convenientemente. A
poesia 6 a arte vivem do consorcio de ambos.
Um espirito comprehensivo afug^eoita as ideias apertadas c
frágeis e aspira sempre pela harmonia das cousas.
Existem, porém^ uns críticos que se nutrem de acanhadas
noções e apegam-se ao incompleto com obstinação,
D'ahi um bom numero de juízos desponderados que se vão
espalhando €m< dois sentidos oppostos e a completa incapaci-
dade para a comprehensão verdadeira da intuição moderna
em litteiratura e arte.
E' esse o motivo dos exaggeros pró ou contra o realismo
hodierno e pró ou contra a concepção phílosophica da poesia.
Abrem um livro qualquer e lêem, por exemplo, esta apos-
trophe : « Geographos da intellígencia, marcai sobre a carta
do espirito humano n'este polo a sciencia, n'aquelle outro a
poesia I )) (1).
Tomam demasiado á letra a intimação e condemnam
uma das mais fecundas ideias da lítteratura contemporânea :
a poesia fundada, ou melhor, a poesia adaptada ás novas ten-
dências do espirito humano. Entretanto, as duas cousas se
excluem absolutamente quanto ao methodo e podem harmo-
nisar-se quanto ás intuições geraes.
Idêntica é a cegueira que lança o abysmo entre ideialistas e
realistas extremados, aos quaes falta uma comprehensão total
da humanidade e da natureza.
Comi esta critério e com taes ideias é que se deve julgar
o mimoso lyrista José Alexandre Teixeira de Mello, em cujas
poesias o ideial e o real se irmanam e consorciam admiravel-
mente.
CASiMmo José Marques de Abreu (1837-1860). Bem diffe-
reocite. do de Teixeira de Mello foi o destino litterario de Casi-
miro de Abreu ; não houve jamais entre nós poeta mais lido ;
tem sido o predilecto do bello sexo nacional. E essa notorie-
dade é bem cabida ; o moço fluminense foi um espirito de me-
recimento.
(1) Charles Magnin Cau$eriêê et MéditaUorf litteraireê ; edào. de 1842.
HISTORIA BÁ LITTl&ATUSÁ BBÁ8ILBIBÁ 315
Em tomo de seu nome formourse logo uraia lenda de soffri-
nientos e outorgaram-lhe a coroa do martyro...
O poeta, na opinião geral, haveria sido umd. pobre victima
de rigores paternos ; teria sido aiado ao poste do commercio,
como a um supplicio ; teria sido contrariado em sua vocação,
maltratado, injuriado, por entregar-se a qualquer leitura;
náo teria recebido educação alguma litteraria ; teria sido des-
teorrado para Portugal afim de lhe acabarem alli com as vel-
leidades e recalcitrações em poetar.
Ha em tudo isto mais de um exaggero e mais de uma illu-
8ão.
O próprio Casimiro de Abreu nos prólogos que poz em
frente das Primaveras^ de Camões e o Jáo, e no fragmento
A Virgem. Loura offerece documentos para as lamentações
que levantaram á conta de seu martyrologio.
Igual intenção revela-se em sua poesia Dores :
« Ha dores fundas, agohias lentas,
Dramas pungentes que ninguém consola
Ou suspeita sequer!
Magoas maiores do que a dôr d'um dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!
Doces falas de amor que o vento espalha,
Juras sentidas de constcuicia eterna
Quebradas ao nascer;
Perfídia e olvido de passados beijo3...
S&o dores essas que o tempo cicatrísa
Dos an^nos no volver.
Se a donzella infiel nos rasga as folhas
Do livro d^almo, magoado e triste
Suspira o coração;
Mas depois outros olhos nos captivam,
£ loucos vamos em delírios novos
Ard^r n'outra paixão.
Amor é o rio claro das delicias
Que atravi^sa o deserto, a veiga, o prado,
316 HI8T0BIA DA LITTBBATUKA BSABILMBA
E O mundo todo o tem!
Que importa ao viajor que a sede abraza,
Que quer banhar-se n'essas aguas cicutas,
Ser aqui ou além?
A veia corre, a fonte n&o se estanca,
E as verdes margens hao se crestam nunca
Na calma dos verões;
Ou quer na primavera, ou quer no inverno,
No doce anceio do bulir das ondas
Palpitam corações.
Não! a dôr sem cura, a dôr que mata,
E\ moço ainda, e perceber na mente
A duvida a sorrirl
E' a perda dura dum futuro inteiro
E o desfolhar sentido das gentis coroas^
Dos sonhos do porvir!
E' vêr que nos arrancam uma a uma
Das azas do talento as pennas de ouro^
Que voam para Deus!
E' vôr que nos apagam d'alma as crenças
E que profanam o que santo temos
Co'o riso dos atheus!
E* assistir o desabar tremendo,
N*um mesmo dia, dlllusões douradas.
Tão cândidas de fé!
E' vêr sem dó a vocação torcida
Por quem devera dar-Uie alento e vida
E respeital-a até!
E' viver, ílôr nascida nas montanhas,
Pra aclimar-se, apertada 'n'uma estufa
A' falta de ar e luz!
E' viver, tendo n^alma o desalento.
Sem um queixume, a disfarçar as dores
Carregando a cruz!
Oh! ninguém sabe como a dôr é funda,
Quanto pranto se engole e quanta angustia.
HIBTOBIA DA LITTE&ATURA BBA8ILEIBA 317
A alma nos desfaz!
Horas ha em que a voz quasi blasphema...
E o suicídio nos acceha ao longe
Nas longas saturnaes. »
Devem-se lêr estas e outras passagens similhantes cuni
grano salis.
Náo é verdade que o manceba não soffresse contrariedadeís
na vida, d'essas contrariedades de menino, de criança, diga-se
assim, que intenta seguir um rumo que não é precisamente
a^quelle que a familia deseja.
Nos temperamentos excessivamente impressionáveis e
doentios, como o de Casimiro, ás vezes essas- pequenas luctas
transformam-se emi grandes pugnas e deixam sulcos inapa-
gaveis.
Mas d'aJii a concluir que sua bella infância na Barra de
São João, sua estada na poética Priburgo, onde estudou al-
guns preparatórios, sua residência na esplendida Rio de Ja-
neiro, onde foi caixeiro estimado, e na histórica Lisboa, onde
exerceu igual profissão com a mesma distincção, concluir que
' tudo isto foi o inferno em vida, me parece um pouco exagge-
rado.
Nem tanto ao mar nem tanto á terra ; nem vida de rosas
nem tratos inquisitoriaes.
E' preciso que me comprebendam : eu não contesto a sin-
ceridade do poeta quando relata os seus soffrimentos. Creio
bem em tudo que nos conta.
Censuro os excessos dos seus panegyristas e procuro dia-
gnosticar-lhe a verdadeira medida e intensidade das dores.
Todo aquelle barulho era apenas pela mor parte um dese-
quilíbrio orgânico e subjectivo-, estimulado por uma exquisita
mania da epocha.
O poeta foi victima d© sua organisação franzina e débil e das
tolices e extravagâncias do meio social que o cercava.
E' certo que o pai lhe vedou a matricula n'uma academia e
o atirou ao commercio.
Este facto simplíssimo, e muitas vezes vantajoso, escan-
deceu a caJbeça do poeta e appareceu-lhe como um supplicio
318 HI8T0BIA DA LITTXBATUBA BKABITiKTBA.
intolerável. D*ahi a exacerbação, a iristeza, o desespero in-
timo. Tudo pura subjectividade.
A razão d*isto ? E' a seguinte : n'aquelle tempo estávamos
na pha^e agudíssima da sensiblerie nacional ; o romanticismo
melancolisante imperava sem estorvo algum.
A sociedade dividia-se em dois grandes grupos : os hooiens
práticos e positivos e os poetas e sonhadores.
Os primeiros eram os homens sérios, os outros eram os
bohemios, os génios sedentos d'ideial ; aquelles eram os 6ur-
guezes chatos e estúpidos, na linguagem dos génios ; estes
para os seus inimigos não passavam* de uns malucos^ uns
extravagantes nocivos.
O desaccordo não podia ser mais completo.
Os taes homens sérios tinham sua profissão de fé e o pri-
meiro artigo d*ella era a guerra aos terríveis insensatos, os
desalmados poetas ; o segundo artigo era a propaganda e o
endeosamento da ignorância.
Os intitulados génios tinham seu programma, cujo primeiro
artigo era a libação do cognac e o segundo era a vadiagem.
Havia por certo algumas excepções de um* lado e d*outro ;
mas essa era a intuição geral da epocha.
Litteratura e commercio eram duas cousas inconciliáveis ;
poesia e negocio eram o cão e o gato, viviam em perpetua
lucta, as duas profissões eram incompatíveis.
Ainda me lembro bem do tempo em que a condição pri-
mordial para ser bem acceito no commercio, ser logo bem
empregado e ter bôa e forte protecção era ser bem estúpido,
ter a cabeça bem feichada ás insinuções das letras de forma.
Foi isto justamente na epocha em que para os poetas e litte-
ratos a carreira do commercio era a região do prosaismo duro
e insupportavel.
Quanta illusão, quanto despropósito de uma banda e d'oo-
tral
Ao pai de Casimiro, burguez ignorante do velho estylo, a
ideia do filho querer ser homem de letras, escriptor e poeta,
aflgurava-se umi desparate, uma imitação da vadiagem lítterata
do tempo. Ao moço poeta, ideialista, sonhador, o commercio
surgia na imaginação como a região aspeora da morte que lhe
HISTORIA DA LITTESATUBA BBABILBIBA 319
vinha crestar todas os devaneios e esperanças. )Era a lucta
entre dois animaes bravios e ferozes : o carrancismo e o n>
manticismo.
Era uma lucta em falso, oriunda de uma péssima orientação
social.
O pobre poeta especialmente foi victima de preoccupações
phantasistas de seu meio, exaggeradas por seu temperamento
mórbido, preoccupações que não teve força para combater.
Hoje tudo isto passou ; já não achamos tão prosaica a vida
mercantil, nem tão poetíco o doutorismo, muitas vezes inerte
e que leva não raro ao completo pauperismo.
Casimiro de Abreu, em sua ingenuidade, suppunha ser mais
adequado á poesia o viver do homem '.graduado n'uma aca-
demia qualquer. O poeta desejava talvez formar-se em direito.
Ora, os nossos bacharéis em direito, que não se vão metter
no commercio ou na lavoura, as duas profissões anti-poeticas
dos românticos, ou vão ser advogados, ou magistraidos, ou
empregados de secretaria, ou professores...
Qual d'estas carreiras é mais poética do que a do com-
mercio?
Será a do advogado a luctar com velhacos de toda a casta,
com» meirinhos ensebados e escrivães capciosos e grosseiros ?
Será a do magistrado a luctar com ladrões, assassinos e
relapsos de toda a ordem ?
Será ã do empregado de secretaria a aziniflcar-se no meio
da papellada do expeditíhte e das importunações dos preten-
dentes 7
Será a do punhado de professores dos cursos jurídicos e
dos cursos secundários a ouvir muitas vezes sandices de
rapazes vadios ou estúpidos ?
Creio que não. Parece-me quei em. todo 'caso antes a car-
reira mercantil, tão cheia de encantos, especialmente nas lojas
e armarinhos elegantes, parada habitual do high-life em
mais de uma cidade rica e pretendida mui civilisada...
Em que pese a Casimiro, não creio no prosaismo do com-
mercio.
Esta nobre profissão e esta illustre e poderosa classe, um
dos mais valentes propulsores do progresso universal, poderá
320 HISTOBIA DA LITTERATUILA. BKABILEIBA
ter OS seus ridiculos, os seus sestros e emperramentos ; mas
possue em compeaisação muita vida, muito enthusiasmo, ia
dizer, muita poesia.
E quaatos poetas não a têm seguido e cultivados sem por
isso perder ou sequer enfraquecer o estro !
Foi o caso, entre nós, do grande Fernando Schmid, celebre
poeta allemão, conhecido sob o pseudonymo de Dranmor.
E para que estas e outras considerações que poderia aUe-
gar ? O poeta é, o poeta nasce, como diz o, povo.
Não é a carreira que, na lucta pela existencici, no embate das
relações sociaes, lhe é dado abraçar que o vae fazer poeta. Se
tal fora, nâo teriam apparecido nem Dante, nem» Tassoi, nem
Camões, e menos ainda Shakespeare, verdadeiro homem de
negócios.
Casimiro de Abreu é de 1837 ; seu talento poético desen-
volveu-se de ifô4 a 60, anno de seuj fallecimento,
Foi na crise aguda do lamuriar dos românticos.
O poeta, franzinof de corpo, predisposto á tuberculose, fez
de seu coração umi ninho para asylar e aquecer todas as illu-
i^ões, scismas, vaporosidades, sonhares irisados e phantasias
aladcLS de seu tempo.
Esta impressionabilidade mórbida, expressa na lingua-
gem! Q nas formas mais simples do falar portuguez enreque-
cido, sonorisado, amenisado no Brasil, eis a poesia de Casi-
miro de Abreu.
A facilidade dos tons, a despretenciosidade da plástica lhe
dão todo o valor.
O poeta fala de suas magoas, de suas ambições, de seus
anhelos n'aquelle mesmo tom em que se queixaria á sua mâe
das saudades que teve por ella n'ausencia, ou das dores que
sentia em seu débil peito ao borbotar das golfadas de sangue.
Ninguém resiste, não ha coração que não se abrande.
Doce e miserando moço, queremos chorar comíigo as dores
que nos contas em- tão sonorosa linguagem ; dá-nosi dos teus
suspiros, reparte comnosco a tua monodia ! E' a linguagem dt
todos.
A poesia aqui é tão intima, tão pessoal, que dizer mal d'ella
equivaleria a dizer mal do caracter do poeta ; e quem seria
HI8T0BIA DA LITTBBATUBA BEASILBIBA 321
capaz de deixar de amar um táa delicado a sincero compa-
nheiro?
Importa isto absolver completamente a tristeza systematica
da poesia romântica ? Da forma alguma. A tristeza systematica
e affectada é e será sempre censurável; mas Casimiro foi sin-
cero e escapa ás severidades da critica.
Hoje as cousas estão mudadas ; não existem mais tristezas
e lamurias affectadas ; agora estamos no período das alegrias,
dos enthusiasmos fingidos.
Os que principiamos a ler os poetas e escriptores ha uns
quarenta annos atraz ainda encontramos a litteratura mergu-
lhada nas trevas da melancolia.
Assisti e tomei parte na reacção contra esse estado de pre-
guiça mental.
E' preciso, porém, dizer aos de hoje, que já acharam a muta-
ção feita, como era aquelle lamuriar litterario e qua batalhas
foi preciso ferir para debellar o inimigo e preparar o actual
estado de cousas que elles, os presumpçosos de hoje, julgam
ser obra sua...
Em 1870 comecei a atacar o adversário, e em 1872, a pro-
pósito da poetisa Narcisa Amália, que ainda teimava em cho-
ramigar, em fazer de Casimiro de Abreu, menos a sinceri-
dade, escrevi isto :
« Na vida da litteratura no século xix ha um quadro mal
desenhado, um quadro sombrio, que ha de parecer extrava-
gante a futuros apreciadores : é o da tristeza romântica.
Parece impossível que a uma vivacidade scientiflca séria e
despreoccupada juntasse o nosso tempo uma expressão artís-
tica somnolenta e mórbida. Mas o facto é real e tem a sua jus-
tificativa histórica. O que parece a todo propósito insusten-
tável é a teima impertinente de se querer sempre, hoje como
hontem, chorar pela mesma gamma, suspirar fingidamente
pela mesma clave. E' uma inconsiderada porfia que se des-
tina a parecer carunchosa e ridícula ao vindouro obseirvador.
O papel da tristeza e da alegria na litteratura contemporânea
é um symptoma bem pouco para contentar. Os poetas lan-
çaram-se precipitadamente além do termo da estancia querida
do seu ideial : a melancolia deixou de ser um estado mais ou
HISTORIA II 21
322 HISTOKIA DA LITTSBATXrBA. BSABILEIRA
menas passageiro do espirito para tornar-se, extremo despro-
pósito I... o alvo supremo dos sonhadores.
Gomo o mysticismo alexandrino procurava na destruição a
suprema condiçclo para fruir a eterna verdade, o romantismo
dos últimos tempos buscava no desespero sentimental a
ultima ratio do bello inflnito ! A doença propagou-se deshu-
mana e atrocsmente ; tomou-se endémica.
Em meio do geral desanimo a alegria afogou-se em prantos,
velou-se de soluças, sumio-se, e, quando se ousava mostrar,
era forçada e mentida.
Era o humorismo^ essa creação modeima, esse rir desconso-
lado e factício de uma tristeza falsa, que se suppunha incu*
ravel. A natureza humana se achava contrafeita ; e certamente
a historia bem estava indicando quad devia ser o.ideial do
século XIX.
A alegria pagã, serenidade magestosa da vida sft da antigui-
dade, a agonia dolorosa do espirito ascético medieval, anhelo
mystico do theologismo cbristão, tinham passado.
Exclusivas, na orbita da respectiva evolução, legaram ao
tempo da Renascença um espirito dúbio, que, pendendo, já
para o sonho e para^ o céu, já para a realidade e para a terra,
se distendeu no período de três séculos até nós.
No século actual os dous impulsos deviam contra-balancar-
se. Mas não foi assim ; e viu-se que na sua primeira metade
este século pertenceu quasi exclusivamente ás scismas do
transcendentalismo, e só a custo agora vai buscando a direcção
opposta, já parecendo que se pretende exaggerar. O ideialismo
abstruso e o empirismo grosseiro perderam o sentido d€is suas
lutas. A sciencia hodierna pisa, um terreno mais solido
em que não se nos deparam as extravagâncias. E* o que a
historia vae fazendo para as producçOes da humanidade íllhas
do sentimento e as creações oriundas da intellígencia. Umas e
outras corresponderam sempre em todos os tem^pos aos im«
petos do homem para explicar o enigma do universo.
As velhas doutrinas poéticas e religiosas de um lado e as
metaphysicas e scientiflcas de outro, tóm um desaggravo
justo, que deve porém ficar nas paginas da historia.
HISTORIA DA LITTSEATUEA BRABILBIEA 323
E é O que nâ.a CQmprehendein todos aquelles que ainda hoje
lhes querem dar o influxo da vida.
Os poetas da primeira porção do século excederam-se ; a
sua tristeza foi vestindo todas as formas possíveis até a de
fingida alegria.
Esta em sua vitalidade exacta raramente se denunciava.
Tudo indicava uma falsa expansão da vidai. Os scismadores
enganaram-se. O alvo, o fim, o ideal da arte, repita-se a ver-
dadei mil vezes, está em estampar a realidade do homem e da
natureza.
Ora, a existência de ambos não se affirma nem pela aJegría
nem pela tristeza, que são momentos excepcionaes, são horas
de anomalia. Quando um dos dous cahe em algum dos extre-
mos arranca-nos logo o espanto. » Que tarde feia II » fala o
moça que sente um vago medo diante do céo carregado...
» Que adivinhas ? » diz o velho á moçoila, que loucamente gar-
galha... Ouvimol-o diariamente. E' que a tristeza, bem como
a alegria, em sua expressão exaggerada, passam pelo coração
como rápidos toques de luz ou de somíbra que coírem sobre
o fundo limpido da vida.
O intimo d*€ista/é a actividade, a lucta, o trabalho, cuja
physionomia principal é a sisudeza. E sejamos justos, não é
mais consolador, depois de tantas illusões arrancadas, depois
do perpassar áspero das revoluções, mostrar-se a humanidade
serena e altiva, séria e desapaixonada ?
Não é mais sublime a poesia que partindo do intimo d© um
coração por onde ficaram as impressões do flagício, qual uma
onda alva, crystallina, trasborda por cima d'essas agruras e
se vae expraiar alem fulgurante, transparente? Mais va-
lente, por certo, é o coração, que além» doa dissabrores da
vida, pôde, calando-os, arrojar a ode esplendida de mara-
vilhas.
E' a poesia impávida, essa suave ambrósia que os eleitos
de tempos a tempos vêm dar-nos a saborear.
Suguemos esses perfumes que são hoje os que mais nos
podem aviventar. Depois da revolução politica do século XVIII
tivemos o romanticismo plangente por uma aberração ; depois
da revolução philosophica e religiosa, que vae adiantadiO,
'\
324 HI8T0SIA DA LITTXRATURA BRâBILBIBA
tentemos a poesia humana^ sem delíquios, sem extrava-
gâncias. Tem ella por condição moetrar-se» serena e mages-
tosa, como a vida do homem na virilidade » (1).
O beilo talento de Casimiro de Abreoi deixou-se influenciar
pela intuição geral de seu tempo.
A poesia sentimental, recordativa, pessocd, intima, toda
eivada de melancolismo é que reeôa principalmente no seu
alaúde.
Os exemplos pollulam em todo livro das Primaveras ; é
abrir o volume e ler ao acaso. Os dotes principaes do poeCa
são a simplicidade e a espontaneidade da forma alliadaa ao
calor e á intensidade do sentimento.
E' muitas vezes um cantar de fogo disfarçado emi volatas
doces e subtis como cochichos de brisas e ílôres ; é alguma
cousa de doloroso, de vehemente velada em gazas de seda e
arminho ; sentida como uma punhalada, mas suave e macia
como pétalas de odorosos jasanins.
Não quero ir longe ; basta-me abrir a primeira pagina e
lêr a invocação A'
***
« Falo a ti, doce virgem dos meus sonhos,
Visão dourada d'um scismar tão puro,
Que sorrias por noites de vigília
Entre as rosas gentis do 'meu futuro.
Tu m^inspiraste, oh musa do silencio.
Mimosa ílôr da languida saudade!
Por ti correu meu estro ardente e louco
Nos verdores febris da mocidade.
Tu vinhas pelas horas das tristezas
Sobre o meu hombro debruçar-te a medo,
A dizer-me baixinho mil cantigas,
Como vozes subtis d'algum segredo!
Por ti eu me embarquei, cantando e rindo,
— Marinheiro de amor — no batel curvo.
Rasgando affouto em hynmos d*esperança
As ondas verde-azues d'um mar que é turvo.
(1) Vide Eêiudos de Litteratura Contemporânea^ artigo sobro a Alegria
e a Triãtesa na Poesia.
HISTOBIA DA LITTBBATUBA BRABILEISA 325
Por ti corri sedento atraz da gloria ;
Por ti queimei-me cedo em seus fulgores ;
Queria de harmonia encher-te a vida,
Palmas na fronte — no regaço ílóres!
Tu, que foste a vestal dos sonhos d^ouro,
O anjo tutelar dos meus a!hhelos,
Estende sobre mim as azas brancas...
Desenrola os anneis dos teus cabellosi
Muito gelo, meu Deus, crestou-me as galas!
Muito vento do sul varreu-me as flores!
Ai de mim — se o relento de teus risos
Não molhasse o jardim dos meu§ amores!
N&o Vesqueças de mim! Eu tenho o peito
De sanctas illusOes, de crenças cheio!
— Guarda os cantos do louco sertanejo
No leito virginal que tens no seio.
Podes lôr o meu livro : — adoro a infância.
Deixo a esmola na encherga do mendigo.
Creio em Deus, amo a pátria, e em noites lindas,
Minh'alma — aberta em flor — sonha comtigo.
•
Se entre as rosas das minhas — Primaveras —
Houver rosas gentis, de espinhos nuas ;
Se o futuro atirar-me algumas palmas.
As palmas do cantor — são todas tuas! »>
A poesia chorosa o sentimentalista em Casimiro de Abreu 6
gostosamente legivel.
E' que a imaginação travessa do brasileiro sabe ungil-a de
graciosidade ; é que muitas notas alegres e saborosamente
cómicas apparecem para diversiílcal-a, para differencial-a
com agrado.
Esta ultima circumtancia não tem sido notada, como se
devia, em Casimiro de Abreu ; sendo, entretanto, uma das
melhores manifestações de seu talento.
O poeta não foi só um sentimentalista, qual se diz geral-
326 HIBTOSIA DA LITTBRATUltA B&ABILEtRA
mente, foi também algumas vezes expansivo e alegre.
Esta nota acha-se em Scena Intima^ Juramento^ Segredos^
Quando ?
Por ser o poeta muito conhecido quero ser parco em cita-
ções.
As peças que reproduzi — Dores^ e A*** servem bem para
exemplificar o seu estylo na poesia melancólica e na amorosa.
O Juramento é só por si sufflciente para mostrar o talento
faceto do poeta :
(( Tu dizes, ó Mariquinhas,
Que não crés nas juras minhas,
Que nunca cumpridas s&ol
Mas se eu não te jurei nadc^
Como has-de tu, estouvada,
Saber se eu as cumpro ou nfto?
Tu dizes que eu sempre minto,
Que protesto o que nâo sinto.
Que todo o poeta é vario,
Que é borboleta incoihstanie ;
Mas agora, n*este instante,
Eu vou provar-te o contrario.
Vem cá! — Sentada a meu lado,
Com esse rosto adorado.
Brilhante de sentimento,
Ao collo o braço cingido.
Olhar no meu embebido.
Escuta o meu juramento.
Espera : — inclina essa fronte...
Assim!.. . — Pfiureces no monte
Alvo lyrio debruçado!
— Agora, se em mim te fias,
Fica seria, não te rias,
O jureunento é sagrado :
« — Eu juro sobre estas tranças,
(c E pelas chammeis que lanças
HISTOBIA DA LITTESATUBA BRASILEIRA 327
(( D*esses teus olhos divinos ;
fc Eu juro, minha innocente,
(( Embalar-te docemente
(( Ao som dos mais ternos hymnos!
íc Pelas ondas, pelas flores,
« Que se estremecem de amores —
f< Da brisa ao sopro lascivo ;
« Eu juro, por minha vida,
«Deitar-me a teus pés, querida,
f( Humilde como um captivol
(c Pelos lyríos, pelas rosas,
(( Pelas estrellas formosas,
u Pelo sol que brilha agora,
M — Eu juro dar-te, Maria,
« Quarenta beijos por dia,
f( £ dez abraços por hora! n
O juramento está feito,
Foi dito co*a m&o no peito
Apontando ao coração ;
E agora — por vida minh€^
Tu verás, ó moreninha,
Tu verás se o cumpro ou nfio!... » (1)
Não vejo que seja mister desenvolver deniasiado a caracte-
ristica d'este poeta immiensamente conhecido. Basta uma só
nota mais.
Nio tinha defeitos 7 Por certo os tinha, e entre edles o prin-
cipal é por vezes descambar na vulgaridade até cahir na
prosa. Isto, porém, ó raro.
Se faço esta declaração é no intuito de evitar a transfor-
maçtlo (J'este livro n'um compendio dei elogios. Meu alvo ndo
é encomiar nem vituperar. Comprehender e explicar, eis o fim
da critica ; sabe-se hoje.
(1) ObrcLê Completas de Casimiro de Abreu, sexta ediçfio, pag. 206.
328 HISTORIA DA LITTESATURA B&ASILIIBA
CAPITULO IV
Poesia. — Quarta phase do romantismo.
Vamos agora ás regiões do norte ouvir ainda um punhado
de cantores, quasi totalmente desconhecidos no sul do paiz.
Nós aqui temos d'estas singularidades : exceptuados os polí-
ticos, que logram ser deputados ou senadores e installar-se de
quando em vez ou perpetuamente no Rio de JaneirOi os ta-
lentos das províncias ficam condemnados ao olvido, especial-
mente os das províncias, hoje Estadosi, do norte.
Não quero agora esplanar as causas doeste desarranjo, que
se vae accentuando cada vez mais e assumindo as proporções
de verdaxleiro desdém por tudo quanto é nortista, tudo que
não é do Rio e das cinco provincas ou Estados do sul...
Não quero fazel-o agora, por me não desviar do assumpto
capital d'este livro ; apenas declaro bem alto que felizmente
não participo de taes preconceitos e exclusivismos : do norte
ou do sul, de leste ou do oeste o talento é para mim sempre
bem vindo.
Não trabalho para fragmentos do Brasil, meu labor é para o
grande todo, a grande pátria. Nada de seporatísmos insen-
satos.
Os poetas que se vão agora destacar sfio : Pedro de Cala-
sans, Trajano Galvão, Marques Rodrigues, Gentil Homem,
Dias Carneiro, Souza Andrade, Bruno Seabra, Bittencourt
SampaiOy Franklin Daria, Costa Ribeiro, Elzeario Pinto, José
Maria Gomes de Souza, Joaquim Serra, e Juvenal Galeno.
Vejam-se apenas os principaes d'entre elles, aos quaes se
poderiam juntar José Coriolano, Berúcio Fontenelle, Paes de
Andrade e outros da mesma índole. São poetas de Sergipe^
Bahia. Pernambuco, Ceará, Maranhão, Piauhy e Pará.
HISTOSIA DA LITISBATUSA BBA8ILBIBA 329
Pedro de Calasans (1836-1874). A província de Sergipe, com
ír a menor e a mais desprotegida do Brasil, não é um- ter-
mo safaro e ingrato para a intelligencia. Bem pelo contrario,
uitos espíritos illustres têm alli visto a luz do mundo.
Nós alli também temos contado nossas notabilidades ; basta-
e agora lembrar os nomes de um educador como Totoias
>ite, um medico qual José Lourenço de Magalhães, um ora-
r como Frei Santa Cecilia, um linguista como Joáo Ribeiro,
>oetas como Pedro de Calasans, Bittencourt Sampaio, To-
is Barretto, Constantino Gomes, José Maria Gomes de
uza, Joaquim Esteves, Pedro Moreira, José Jorge, Justi-
no de Mello, Eugénio Pontes e Elzeario da Lapa Pinto.
)'6ste grupo de illustres sergipanos serSo vistos n'este logar
lelles que naturalmente entram na phase ora estudada,
omeçarel por Calasans.
ascido em 1836, o ajino de Bocayuva, de Franco de Sá e
nklin Dória, estudou direito no Recife de 1855 a 59.
seu primeiro livro. Paginas Soltas^ publicado em 1855,
desenove annos de idade, dá-o como estudante acade-
j ; as Ultimas paginas^ em 1858, mostran>no na mesma
lidade.
período académico foi o mais notável da vida do moço
ípano.
i enorme a nomeada que desfructou em< Pernambuco,
tudante de direito, o jornalista, o critico, o poeta, porque
'gipano era tudo isto, foram igualmente gabados, admi-
3. Foi aquelle um tempo de» forte movimento litterario na
capital nortista. Os mais illustres d'esses moços de que
acima n'este capitulo foram collegas de Calasans.
pois de bacharelado retirou-se o poela para a sua pro-
i, onde casou-se com uma rica herdeira e foi eleito depu-
a^eral no periodo de 1861-64.
Rio de Janeiro a principio ainda a fortuna pareceu sorrir
^en reprasentante da nação e escriptor provinciano.
3ainaxa o poeta não fez figura alguma, porque não tinha
ies oratórias ; mas na imprensa tornou-se logo perfeita-
I saliente,
casamento não tinha sido dos mais felizes ; havia incom-
330 HISTORIA DA LITTBEATURA BRA6ILXIBA
patibilidade de génios entre os dois esposos. Desfez-se o equi-
líbrio e o joven poeta cahiu e nunca mais se levantou de todo.
Partiu para o Velho Mundo.
Na Europa em 1864 ainda fez algumas publicações meri-
tórias.
De volta ao Brasil, no decennio qua vao de entáo a 1874
epocha de sua morte, ainda produziu ; mas quasi nada publi-
cou. Suppunha-se que tivesse fallecido no Rio Grande do Sul;
mas hoje, depois do bello estudo que lhe foi consagrado pelo
Dr. Dinarte Ribeiro, sabe-se que sua morte occorreu no mar
n'uma segunda viagem á Europa.
O leitor não leve a mal a incerteza e indecisão que emprego
nos dados biographicos de Calasans ; os sergipanos nunca
foram ciosos de suas glorias, ninguém ali se preoccupa com
estas cousas, não existem escriptos que possam orientar o
historiador. O que sei da biographia do poeta devo^ a infoc^
mações oraes colhidas em Pernambuco.
Elle publicou as seguintes obras : Paginas Soltas (1855). VI-
timos Paginas (1858), Ophenisia (1864), Wiesbade (1864), e
Uma Scêna de n^ossos dias (1864). Deixou vários inéditos, um
dos quaos sob o titulo de: Camerino já foi publicado ^1875).
São volumes de poesias, excepto Uma Scéna de nossos dias
que é um drama (1).
O poeta sergipano merece attenção especial da critica ; ha
n'elle uns tantos symptomas particulares que não devem pas-
sar despercebidos.
A primeira nota que lhe assignalo ó um certo caracter de
independência, especialmente nas ultimas producções.
Em seu tempo a litteratura brasileira obedecia a duas ten-
dências principaes : a corrente de Alvares de Azevedo e a de
Gonçalves Dias, oi sentimentalismo descrente e o indianismo.
Calasans evitou um e outro ; em seus versos nem. surgem
os Renés, Manfredos e Rolas eníasítiados, nem apparecem as
cabildas de selvagens.
(1) Vide Luiz Francisco da Veiga — Estudo tobre Dutra e Mtllo^ noU,
em que fala de Calasans, e no Almcmach Popular Broiileiro {de Porto- Ale-
gre) de 1900 o Estudo do Dr. Dinai^ Ribeiro.
. HISTORIA DA LITTEBATITltA BBASILBIBA 331
O poeta, sempre muiíto correcto de lingueigein e de» forma
métrica, antolha-se-me» alegre, expeinsivo, crente, Revela por
outro lado ideieis liberaes sobre o povo e o governo ei é um
valente profligador da escravidão. E' esta uma outra nota sua.
Tudo isto é fácil verificar nas producções do auctor ; não o
mostro directamente por ter de attender a cousas mais inte-
ressantes.
Não é só esse caracter de seriedado, essa auswicia de senti-
mentalismo impalpável e mórbido que assignala a Calasans e
aos seus companheiros do norte um lugar dlstíncto na poesia
romântica brasileira na phase de 1865 — a 66. Aquelles poetas
foram também verdadeiras precursores do realismo contem-
porâneo.
Eu me explico.
A poesia sob a influencia dos moços poetas da escola de São
Paulo, ou n'ella filiados,. Azevedo, Lessa, Bonifácio de An-
drada, Laurindo, Junqueira. . . tinha como feição característica
a subjectividade, os alfectos pessoaes, íntimos de seus au-
ctores ; a poesia, sob a direcção dos moços do norte, na escola
do Recife, buscou intuitqs mais objectivos, mais exteriores,
mais geraes. Gentil Homem, Trajano Galvão, Dias Carneiro,
Bittencourt Sampaio, Franklin Dória, Joaquim Serra, Corio-
lano, Juvenal Galeno deram mais attenção aos costumes,
situações, lendas, factos populares ; deixaram-se inspirar
doesse realismo campesino, nacional, bucólico.
Em Calasans não existe esta nota ; elle não vibrou esta tecla;
seu realismo é outro ; é o realismo da cidade, da gente culta,
dos salões civilisados, das altas classes.
O poeta pinta cruamente os vicios da civihsação, especial-
mente os desgarros da imulher elegante.
As provas estão em todos os seus livros ; vede nas Ultimas
Paginas especialmente Per arnica silentia lunae^ Sete Somnos,
Fel por Mel, e Mulheres , de ouro ; lede todo o poemeto
Wieshade.
Este género de poesia, realista em essência, assume nos
lábios do cantor sergipano uns tons de satyra, dignos de
serem ouvidos.
332 HISTORIA DA LITTEBATUBA BBABILBIBA
Eis aqui um pedaço das Mulheres de ouro :
H Mulheres sensuaes! que o ténue seUo
Da pureza carnal vos não romperam,
Em beijos, a escaldar, os libertinos ;
De que vos orgulhaês? porque, do mundo
No sórdido festim, temeis manchal-cw,
— De vossas vestes as custosas beu^ras,
Por descuido, ao roçar pelos amiculos
Da pobre meretriz? que vos distingue?
Vós todas sois mulheres, rebolcadas
No lodoso bordel, no lodo impuro
Do século em que viveis!...
Por tardas noutes.
Nos cândidos lencóes, que a neve embaçam,
Que loucos pensamentos, que volúpias.
Quando a sós, nâo pensaes! — e o corpo virgem,
Meio posto em nuez, na sôde hysterica,
E a face a enrubecer, bem como as flores
Do eloendro da Itália, e os olhos negros
Cabidos em langor, e o lábio tremulo...
Em que pensaes entoo?...
Quando a balança
Da paterna ambição curva uma concha
Ao peso de ouro, que a nobreza compra
E o anadema de virgem; vós, que amadas
Talvez fostes de alguém, que n'outra concha
Depõe riquezas de um talento fértil,
Os sonhos de um porvir, glorias, espYanças...
( E a sedenta balança immovel, queda!)
E o fogo do seu estro, e os sentimentos
Resumidos n*um só, e os seus anhelos...
(E a sedenta balemça immovel inda!)
E os prantos de sua alma, e os seus segredos
Mais Íntimos do peito, e crenças, tudo...
(E a sedenta balança immovel sempre!)
Por elle o que fizestes? — desprezal-o,
Como as flores pretéritas de um baile!
i
\
HIBTOBIA DA LITTSBATUfiA BaASILUXA 333
O* mulheres de marmor! que esquecestes
Aquelle coraç&o, que tanto amou-vos,
Que em febre delirante aperta e beija
— Pobre louco! — o pfidlor inda das flores
De suas illusões — - fanadas todasl
Vós, mulheres, que sois? porque evitardes
As que a vida trasladam d'esses quadros
Da antiga Babylonia?...
Menos rudes não sois, nem sois mais bellasl
Mais impuras — talvezl ellas vendiam
As horas de prazer, vendiam caro
As bellezas do corpo a larga de ouro,
Vós por ouro vendeis a vossa vida.
Mercadejais vossa almal
Não ha descrel-o, pois : gasta-se a honra
No brilhar dos salões, onde se esfolham
Da capella da virge, uma por uma,
As meigas flores, que a innocencia aroma!
N*esse borbuletar de mil amores
Muito riso se murcha, e mais de um lyrío
Perde o meigo viçar dos seus perfumes! »
) poeta castiga n'estes versos a falsa virgindade, oriunda
vicies da educação corrente, e profliga a anciã de riqueza
geral dos casamentos.
íaveflria, entretanto, uma observação a fazer-lhe e é esta : na
p parte dos enlaces matrimoniaes não são somente as fami-
das moças que procuram fazer bons negócios, arranjando
voQ ricos ; infelizmente, em muito maior escala, os homens
le buscam arranjar-se, fazendo bõa negociata argentaria...
rçsultado é, muitas vezes, na posterior vida matrimonial
rem regularmente arraniados,.. os homens. O poeta devia
sido meus completo e castigar á direita e á esquerda,
poesia romântica em sua generalidade não comprehendeu
da social ; demasiado hábeis em pintar seus seoitimentos
;oaes e Íntimos, faltava aos românticos o estudo e a
reza para pintarem os sentimentos alheios e comprehen-
m as aíleições collectivas.
1
334 HISTORIA DA LITTEBATUEA BRA8ILBIBA
Tad O motivo de desacertarem sempre sobre a mulher.
Reparem-se as poesias românticas ; n'ellas a mulher ou é
logo elevada á categoria de anjo, fada, sylphide, ente sorbre-
natural ; ou é arrastada logo á lama como vil peccadora. Não
ha meio termo : nâo se concebe que entre anjo e demónio ha
uma gradação infinita que comprehende a realidade da vida.
Calasans coi-participou d'essa anomalia litteraria, ainda que
tivesse sido dos menos achacados».
No poemeto Wiesbade, uma das mais interessantes pro-
ducções da romântica brasileira, as feições realistas sfto ainda
mais definidas.
O poeta faz a pintura seVeira da sociedade elegante d© joga-
dores de roleta n'aquella cidade allemã.
E' digno de lôr-se esse retrato da vida social eiu*opéa feita
por um americano.
Calasans era um romântico que sabia vôr, sabia observar.
E esta nota do talento do moço sergipano nâo passou des-
percebida ao critico M. P. Oliveira Telles no seu bello estudo
sobre Wiesbade (1).
Apenas se deve accrescentar que essa qualidade o escriptor
sergipano revelou-a desde os seus primeiros ensaios.
Algumas palavras sobre o lyrista, antes de passar a outro.
Como lyrico o desventurado poefta não foi dos mais valentes
do Brasil pedo que toca á vida, ao vigor da imaginação e ao
calor e exuberância das imagens. Tem correcção, tem facili-
dade ; não temi riqueza ei brilho.
Em seus livros, s© nâo existem muitas peças verda-
deiramente superiores no sentido de quei falo, sobram bellos
pedaços de bem alentada poesia.
Eis um trecho :
(c E as horas vão tão breves, quando uma alma
Vai n'outra alma encontrar porções de vidai
Quahdo o olhar, que nos olha, é meigo e temo,
Quando a voz, que nos fala, estremecidatl
(1) Vide O Microscópio, Recife, 1882, n. 2, pag. 12.
HISTOBIA DA LZTTSRATUUA BRA8IUBISA 335
£ OS dias vÂo subtis, tôo perfumados
Bem como da odalisca o olente banhol
E a vida é tão suave, quando o mundo,
Alheio ao nosso goso é-nos extranho!
O azul do armamento é t&o sem nódoas,
Às nuvens de um trajar tão setinoso,
As ílôres teem segredos tâo queridos,
E os ventos um soprar tâo melindrosol
E o sol no seu zenith equilibrado,
A terra vivecendo em seus dfiirdejos.
Vem beijar-nos o craneo com seus raios,
Comnosco repartir vem seus lampejos!
E o mar tranquillo, qucd dormir de infante,
Refranjando de espuma a praia nuda,
Nos conta ao coração seus mil arcanos
N'uma phrase sentida inda que muda!
E a lua, a nossa lua, em seus pallores
Nos revela o sentir dos seus mysterios;
Sabemos entender as orvalhadas,
Que a noite choviscou em cemitérios!
E os dias vão subtis, e as horas doces
Como um canto ao luar das Granadiaas^
E a vida vai suave, como o orvalho
Do cálix a pingar d'alvas boninas!
E- as horas vão tão breves, quando uma alma
Véií n^outra alma encontrar perções de vida!
Qucuido o olhar, que nos olha, é meigo e terno.
Quando a voz, que nos fala, estremecida! » (1)
•mo expressão lyrica ii'aquilloi que o poeta possuía de
selecto, é digna de leitura a bella poesia A Pomba do
, cujo principio é este :
c( Brilhava a lua sob um céo de seda.
Recamado de estrellas diamantinas,
JltimoM Pagina*^ 112.
336 HI8T0BIA DA LITTESATUEA BEABILSIRA
Como donzella nos salões de um baile
Aos trementes clarões das serpentinas.
N'uma planície, que florestas fecham,
Escondendo fiu)s mortaes um paraiso,
A m&o do Eterno se esmerou pintando
Um manso lago do crystal mais liso.
Fulgente lamina de metcd pulido
O lago solitário parecia,
Onde os bafejos de uma aragem branda
Finos traços na ílôr, leve, esculpicu
E da floresta nas selvagens harpas
Expiravam do amor longinquas noteis,
Como os murmúrios de adormida nympha,
Bater das azas de gentis gaivotas.
£ da noite a mudez n*alma fnfundia
Philtro indivisel de arroubada scisma,
E um céo de enlevos suggería a ideia,
Lindas nuanças de dourado prisma.
E os olhos fitos na estrellada €d)obada,
Pensava... o que eu pensava? um sonho vago;
Quando disperto ás harmonias sanctas
De uma fada de amor, que habita o lago,
Indeciso, encantado, em sobresalto,
Distincto vejo, na azulada veia.
Fiel transumpto de sonhada imagem.
Que Deus de um riso por capricho crôa,
N'um batel de marfim, orlado de ouro,
De carmineo veludo atapetado,
Vi-a sentada, com a madeixa ao vento.
Em riquíssimas colchas de brocado.
E os finos dedos ameigando as cordas
De uma lyra, que o Libano provôra,
Soltai^a um hymno doce c mavioso.
Qual somente Eloah nos céos taiigera » (1).
(1) Ultimas PajinaSf pag. 121.
J
HISIOBIA DA LITrSBATTTUA BRASILSIBA 337
Tcd o estylo do poeta, illustre por ter sido um reaccionário
contra as pieguices litterarias de seu tempo. Só esta nota lhe
assignalaria logar eminente em nossas letras.
Francisco Leite, Bittencourt Sampaio (1834-1896). A pas-
sagemi de Galasans a Bittencourt Sampaio é fácil e natural :
ambos coevos, ambos sergipanos, ambos poetas de mereci-
mento.
Em Bittencourt Sampaio predomina o lyrismo local, tradi-
cionalista, campesino, popular. Por este lado é um dos me-
lhores poetas do Brasil ; é mais natural e espontâneo do que
Dias Carneiro, Trajano Galvão e Bruno Seabra e é mais ele-
vado e artístico do que Juvenal Galeno. Rivalisa com Joaquim
Serra e Mello Moraes Filho.
Bittencourt Sampaio formou-se em direito, pasí^ando pelas
duas faculdades jurídicas do Brasil, a de Pernambuco o a
de S. Paulo.
Depois de bacharelado em 1858 ou 59, residiu algum tempo
em Sergipe.
Foi eleito deputado no regimen liguelro ; no» parlamento não
se tomou saliente. Ficou residindo no Rio de Janeiro, onde
falleceu em 1896.
Sua carreira litteraria tem duas phases perfeitamente dis-
tinctas : a académica, representada no bello livrinho das
Flores Sylvestres publicado em 1860, e a posterior exercida
no Rio de Janeiro, representada na Divina Epopéa.
Esta Dwina Epopéa é nada mais nada menos do que a tra-
ducção em versos brancos do quarto evangelho ; é uma publi-
cação extravagante no gosto da traducção também, em versos
brancos das Catilinarias de Cicero pelo Dr. Hanvultando (1).
A decadência poética de Bittencourt Sampaio se me cmtolha
evidente.
Na historia litteraria este poeta possuirá uim lugar elevado
sempre pelas deliciosas Flores Sylvestres.
Deve ser estudado ahi.
Ha n'ellas duas qualidades de composições, as de inspi-
(1) Este é o auctor dos Sentimentos Harmónicos e dos Opúsculos Recrea-
tivos e Populares,
HISTOBU U iZ
338 HISTORIA DA LITTBfiATUBA BRASILSIIUL
raçáo local e sertaneja e as de inspiração mais geral. N^umas
e n'outras os dotes principaes do poeta são — a melodia do
verso, a graciosidade que o faz primar em pequenos quadros,
e certa nostalgia pelas scênas, peda vida simples, fácil, descui-
dosa das regiões sertanejas e campesinas.
Os versos do poeta ostenitam o dcnguismo, a faceírice das
morenas quentes do interior. Está-se agora evidentemente
diante de um problema litterario e ethnographico.
Já se viu que a litteratura brasileira desde os seus primór-
dios queria ser a expressão de nossa raça.
Mas qual era a nossa raça ? Aqui principiavam as duvidas ;
uns buscavam a feição principal de nosso povo no portuguez,
outros no caboclo, rarissimos no africano.
O romantismo reavivou este debate e deu até certo ponto a
palma aos selvagens pelo órgão de Gonçalvea Dias, José de
Alencar e outros.
Ao lado, porém, d'estes mestres e com mais Uno e mais
critério do que ellee, levantou-se um grupo de moços que fcH
procurar no povo actual, como elle se acha constituído no
mestiço physico e moral, em suas tradições e costumes, a
no6sa physionomia peculiar de nação.
D'ahi proveio esse lyrismo da roça, do sertão, dos matutos,
dos tabaréos, lyrismo simples, expressivo e mimoso, quando
sae do alaúde de um poeta de talento.
N'este caso acha-se Bittencourt Sampaio, com a bellas poe-
sias A Cigana^ Bem te m, A Rosa dos Bosques, A Somnambula,
O Canto da serrana. Tarde de Verâo^ O Canto do gaúcho^
Nossa Senhora da Piedade, O Lenhador^ O Tropeiro^ A Mu-
cama e outras do género.
Cumpre advertir que essa espécie de poesia só \am graça
quando sabe alliar á verdade os primores da arte, as genti-
lezas e galas do estylo ; quando é obra de um verdadeiro
artista. Fora d'ahi só tem valor quando é puramente popular.
Ou inteiramente popular, anonyma, colhida da bocca dos
menestréis dos sertões, ou então transfigurada, depurada, ele-
vada pelos poetas de talento.
Quando não é uma nem outra cousa, quando é um genaro
hybrido, que nem é popular, nem culto, qual a produz Ju-
HIBTOBIA PA LITTIEATUBA BBABILXimA 339
!nal Galeno, essa poesia é a mais enjoativa triaga que se pode
laginar.
Um poeta c['este ultima espécie nem tem o mérito do Iro-
!Íro, do matuto, do tabaréo, do caypira, do sertanejo que
iscanta suas trovas, nem tem o merecimento de um Bitten-
urt Sampaio, de um Joaquim Serra, de um Gentil Homem,
j^outros assim.
O poeta sergipano, disse eu, é no género um dos melhores
' nosso paiz. Ouçam-no para concluir que assim é.
Eis O tropeiro :
H Camarada, toca avante,
Que o sol se vai occultar ;
Mais uma legoa adeante
Devemos nós sestear.
Vês o céu? está formoso
Brilha a estrella do pastor ;
O tropeiro vai saudoso,
Vai cantando o seu amor.
Lã deixei na minha terra
A mulher com quem casei ;
Ao descer d'aquella serra
Saudoso pranto choreil
Que a morena é minha vida,
£' na terra a minha flor ;
A mfnh*almà vai partida.
Só me alenta o seu amor.
Vivo ao sol, á chuva, ao vento,
Cuidando só do que é meu ;
Mas de cunor o pensamento,
Ai! morena, ó todo teu!
Sai-me do peito um suspiro.
Quando vejo o sol se pór ;
Tem poesia o retiro,
Também tenho o meu amor.
Olha a tropa, camarada,
Que não se vá dispersar ;
Iremos, se está cançada,
N'aquelle pouso pousar.
340 HI8T0BIA DA LITTEBATUItA BRASILEIRA
O rancho nâo é seguro?
Pouco importa ao meu valor.
Deus conhece do futuro,
Fez-me forte o seu amor.
A garrucha trago ao lado,
E o meu trabuco também :
Cobre o po'nche adamascado
O punhcd que á cinta vem.
Valente quem fôr que o diga,
Ousado venha quem fôr.
Sei chorar minha cantiga.
Sei morrer também de amor.
Dá-me, patrício, a viola, ,
Quero a modinha ferir;
O meigo canto da rola
Não tem mais doce cârpirl
Que o tropeiro apaixonado
Tem na voz muito langor.
O meu peito vai ralado,
Só me alenta o meu amor.
A ílôr do vale mimosa
Tem perfume a rescender ;
Gosto de V3l-a chorosa
De manhd ao sol hascer.
E* como ella a florzinha
A desmaiar-se de dôr.
A morena é toda minha,
Deu-me todo o seu amor.
Agora venha agoa-ardente,
Quero o fandango tocar :
Passa-se a vida innocente
Quando se vive a dançar.
O trabalho do costeio
Nâo dosaí^iiuia ao Senhor.
De chilenas sapateio,
No dançar vai muito amor.
D'araponga se ouve o canto
Lá para as bandas do vai :
HISTOBIA DA LITTEBATXTEA BRASILEIRA 341 *
A noite tem seu encanto,
E esta vida é sem igual.
Mas é hora da partida,
Diz a estrella em seu fulgor ;
Vai minh'alma entristecida,
Só me alenta o seu amor.
Quando voltar para a terra,
Para a terra onde eu nasci,
Subirei, contente a serra.
Que tâo triste hontem desci!
E nos braços da morena,
Gosando da vida a ílôr,
Ai! direi, a minha Helena
E' somente o meu amor » (1).
Veja-sd bem que esta linguagem é nacional, este typo é
cLsileiro.
Lieiam A Mucama :
c( Eu gosto bem doesta vida.
Porque nâo hei de gostar?
A minha branca qfuerída
N&o hei de nunca deixar.
Eu gosto bem d*esta vida.
Porque n&o hei de gostar?
Tenho camisa mui fina
Com mui fino cabeção ;
As minhas saias da China
São feitas de babadão.
Tenho camisa mui fina
Com mui fino ceú^eção.
— (( Sinhá, permitte que eu saia?
(c — A' tarde pôde sahir. »
Visto então a minha saia,
Lá me vou a sacudir.
— « Sinhá, permitte que eu saia?
« — A' tarde pôde sahir. »
Flores Sylcestret, Rio de Janeiro, 18G0, pag. 137
342 HISTORIA BA LITTERATVRA BRA8ILEIBA
Deito O meu torço com graça
£ a minha beoa também;
Atravesso a rua, a praça,
Dizem logo : « eil-a que vem! »
Deito o, meu torço com graça
E a minha beca também.
Se arrasto bem as chinellas
As chaves fazem tim... tim...
Vejo £^)rir-se uma janella
D^onde alguém olha p*ra mim.
Se arrasto bem as chinellas
As chaves fazem tim... tim...
E o velho diz do sobrado :
u Minha criola, vem cá. m
N&o gosto do seu chamado,
NSo sou crioula : pYa lá!
E o velho diz do sobrado :
« Minha crioula^ vem cá. »
Os moços todos me adoram,
Me chameun da noite flôr ;
Atraz de mim elles choram,
Por elles nfto sinto íimor,
09 moços todos me adoram,
Me chamam da noite ílôr.
Tenho alguém que no caminho
A* noite me vem falar ;
Que com affago c carinho
Sabe a mucama abraçar.
Tenho alguém que no C€uninho
A* Yioite me vem falar.
Que me diz com voz mansinha
O que eu nunca ouvi dizer :
(c Minha preta, tu és minha,
Has de comigo viver! n
Que me diz com voz mansinha
O que eu nunca ouvi dizer.
BISTOSIA DA LITTSBATtTRA BBABILXIBiW 343
E* sinhô moçol Que agrada!
E* sinhô como nfto hal
Diz-me sempre : h Tem cuidado!
Não contes 'nada a sinliál »
E' sinhô moço! Que agrado!
E' sinhô como n&o ha!
Já nem tenho mais saudade
Da minha terra gentil!
Vivo escrava da amizade,
Quero morrer no Brasil.
Já nem tenho mais saudade
Da minha terra gentil!
A* noite sei o meu ca!hto,
Que faz o peito gemer ;
Mas n*estes olhos o pranto
Jamais ninguém ha de ver!
A' noite sei o meu canto,
Que faz o peito gemer.
Eu gosto bem doesta vida,
Porque nfio hei de gostar?
A minha branca querida
Não hei de nunca deixar.
Eu gosto bem doesta vida,
Porque não hei de gostar? » (1)
ainda um typo nacional bem desenhado.
etste o estylo, o tom geral do auctor. Fora possivel fazer
Ls citações e mostral-o em outros géneros. E' preciso,
n, pcurar.
mos adiante : sem sahir de Sergipe temos ainda n*esta
L
É Maria Gomes de Souza (1837-1893). Filho da cidade da
cia, este poeta nasceu, ao que presumo, em 1837 ;
)u ha poucos annos, reduzido á extrema pobreza, na
) de Barbacena em Minas Geiues.
ores Syleestres, pag. 141. Foi esta Mucama de Sampois que inspirou
ta de Mello Moraes Filho.
Mi HISTORIA DA LITTEBATUSA BRASILEIRA
Existem d'elle dois volumes impressos, um sob o nome
de Estanciarias e outro denominado Velhice e Mocidade. Am-
bos deixam agradável impress<lo. E' o lyrismo brasileiro.
Quero definir o poeta em duas palavras : elle vibrou as cordas
do lyrismo local, do lyrismo subjectivista e especialmente do
género epico-lyrico.
Doeste, sua principal feição, são um bello espécimen os
versos que dedicou a Henrique Dias.
Eil-os aqui :
« Do Norte a gentil sultana
Cedeu, pela prima vez,
Sua cerviz soberana
Ao férreo jugo hollcmdez.
Ai! pobre da malfadada,
Tão cruamente algemada,
Ao copo do servilismo!
Que triste que foi-lhe a sinal
Nem uma luz a illumina
Nas profundezas do abysmo!
Seus lindos rios saudosos,
Seus frescos, flóreos palmares,
Seus passeuínhos formosos
De harmonia enchendo os ares,
Suas campinas de flores,
Seus matizes, seus verdores
Vão ser bens d'um outro dohol...
E tu, sultana do Norte,
Pelos caprichos da sorte,
Vaes dormir d'escrava o somnol !
Nem mais a lua te banha
Com seus arroios de prata,
Quando da etherea montanha
Nos lagos teus se retrata ;
Que se expira a liberdade
No seio de uma cidade
Tudo ahi também expira.
Como da moça os encantos
Vão morrer nos frios prantos.
Nos tristes ais que suspira...
HI8T0BIA DA LITTEBATUBA BBASILBIBA 345
Porem nãol Ao longe sôa
O grito horrendo da guerra,
E ao som, que ao lo'nge reboa,
O fero hollandez se aterra!
Erguem-se as vastas* bandeiras.
Marcham avante eis fileiras.
Que em seu soccorro lá vèm ;
Pois que do Norte a sultcma
Sua cerviz soberana
Nunca curvou a ninguém.
Ao retroar das metralhas.
Da guerra ao tufão que sôa,
Como o génio das batalhas,
Henrique Dias lá vôa!
Da larga mão bronzeada
Va^e pendente a núa espada,
— Raio que os máindões fulminai
E cada golpe que vibra
Faz quebrar fibra por fibra
Dos mandões a raça indiana.
Preto, mais nobre que um nobre,
Ou nobre como um Bragança,
Sob a epiderme de cobre
Uma alma d'oiro descança!
E, se as coroas coubessem
A^quelles que se expozessem
Da sua pátria em defesa.
Seria o rei mais perfeito...
Se é que a purpura ~ do peito
Não faz murchar a nobreza...
Matando a todos de inveja
Com sua nobre altivez,
Temeu-o então na peleja
O fero povo hoUáhdez.
E tu, valente soldado.
Corajoso e denodado
Despedes golpes de morte;
Por teu denodo guerreiro
Livraste do captiveiro
A linda filha do Norte.
346 HISTORIA DA LITTEBATITItA BRAfilLEI&A
Então a gentil captiva
Sua belleza assumio,
E ei^uendo a cerviz altiva
Ao seo guerreiro sorrio :
Assim a virgem formosa
Expõe as faces de rosa
Aos beij(5s do amante seu,
Tão satisfeita e contente
Do rico e lindo presentp
Que pela festa lhe deu.
Feliz quem leva da espada
Em prol de sua nação!
Ou quem, vendo-a escravisada,
Expira, como Catão!
Catão! Afnda parece
Que o Capitólio estremece
A' voz do grande Romano!
Catão! Com quanta saudade
Vio calcada a liberdade.
Aos pés do Cczar tyranno!
Foi assim Henrique Dias,
Valente como ninguém!
De sua nobre ousadia
Deu-lhe o Brasil parabém.
Oh! Bayard da liberdade,
Teu nome famoso ba-de
Affrontar do tempo a acção ;
E a par dos nobres guerreiros,
E dos heróes brasileiros
Terás a tua oblação » (1).
Estes versos são de 1857; n'elles ha uma certa ousadia,
uma certa vivacidade que agradsirn.
Se Calasans primou no semi-realismo dos salões, se' Bit-
tencourt Sampaio ssdientou-se no Ivrismo» local e sertanejo,
José Maria Gomes de Souza foi um bom cultor da poesia his-
tórica e patriótica ; e esta poesia objectivista é muitas vezes
(1) Lyra Sergipana^ Aracaju, 1883 ; pag. 1. Cito a poesia por um exem -
piar que possuo corrigido pela m&o do próprio auetor.
HISTORIA DA LITTK&ATURA BBABILSIBA 347
ma das grandes vozes de um povo ; é a naçfto que se revê nos
3US heróes.
Elzeario da Lapa Pinto (1840-1897) é também um filho de
ergipe, onde veio á luz em 1840.
Sua biographia é obscura ; abandonando a província natal,
sidiu na Bahia e mais tarde no Rio de Janeiro em> condi-
ies idênticas ás de José Maria Gomes de Souza em Minas.
illeceu em 1897.
Pobres talentos desprezados, marlyrisados pela cruel indif-
*ença de um publico futilissimo I
Blzeario publicou muitas producçOes pelos jornaes em
neros diversas ; sua nota predominante ó, como em José
iria, o género epico»-lyrico.
í'este estylo escreveu elle O Festim de Balthazar, uma das
ysíBLS mais bellas da lingua portugueza no século xix.
ruma historia documentada da litteratura brasileira seria
a lacuna a falta dei tã.o interessante inspiração.
y este o Festim de Balthazar :
« Queimai perfumes, escravasl
Trazei-nos sslndalo e flores!
Vinho! do vinho 09 vapores
Levem presagios cruéis!
Por Boal! Senhores e donas,
N&o morra o prazer da festa!
Por Baal! Por Baal! sôe a orchesta,
Tangei, tangei, menestréis! »
As \\iz%9 tremem nas salas.
Treme o ouro e a pedraria;
Das amphoras transborda a orgia
Como as espumas do mar :
— « Por Baal! Senhores e donas,
Repete a nobre assembléa.
Ao grande rei de Qialdéa!
Ao grande rei Balthazar! n
Rompe a orchestra — e as concubinas
Com 08 seios nús, palpitantes,
HISTOKIA DA LlTTSaATITKA S&ABILXIBA
Entoam febris descantes.
Lasciva, ideal canç&o ;
E em volta ao seu throno d'ouro
Nabonid, rei poderoso.
Solta a alma abadar no gozOi
Em que se afoga a raz&o.
E ferve, referve a orgia
Ao som da orctiestra estridente!...
E a lua toca o occidente.
Sobre a cidade immortal :
Talvez mande a peregrina.
Do monte EphraiD pendida.
Um raio por despedida
Do Cedron sobre o crystal.
Manda, sim, sobre minas
Que abi só resta um montão
Mirando a gentil captiva.
Dilecta filha de Abrahfto :
— Cl Ai terra de Deus querida!
' Ai terra da Promissfiol
i< Terra, terra bemfadada,
Outr'ora — esposa de Arfto,
Hoje minas dispersas,
Hoje o lucto e a escravidfto ;
— Ai terra de Deus queridal
Ai terra da Promiss&o!
i< Teus filhos gemem distatate.
Jamais aqui voltarão...
Murchai, gardenias do pradol
Chorai, divino Jord&o :
— Ai terra de Deus queridal
Ai terra da Promiss&o !
II Onde as endechas saudosas
Dos cantores de Si&o?
Aves do céu, vossos carmes
N&o solleis mais aqui, nfiol
— Ai terra de Deus queridal
Al terra da Promias&ol
HI8T0BIA DA UTTBRATIXRA BBA8ILBIEA 349
(( Lyrio pendido no valle,
Varreu-te acaso o tufáo?
Nem uma gotta de orvalho!
IsaacI DavidI Salom&o!
— Ai terra de Deus queridal
Ai terra da Promissão! »
E pela encosta do monte
A tristesinha la vai,
Mandando um ultimo pranto.
Um doce e sehtido ai,
De um lado à immersa Sodoma,
Do outro ao monte Sinai.
E cresce, recresce a orgia
Nos salões de Balthazar,
Ondas de pura harmonia.
Anciãs de puro gozar,
— Entanto a cidade dorme
Envolta no manto enorme
Da noite — somno fatal!
E aquelle peito gigante
Devora sede arquejante
De vicios, sede infernal!
Nas salas grato ruido,
Luzes, perfumes e amor ;
Lá fora estranho rugido,
Surdo, ao longe, e ameaçador.
No horizonte um fumo denso
Se eleva, bem como o incenso
Nas salas e a embriaguez...
Que importa ao rei o horizonte.
Se as flores ornam-lhe a fronte.
Se o âmbar corre-lhe aos pés?!
« Ao rei! ao rei poderoso!
Ao reino que não tem fim!
Como o Eufrates caudaloso
Corra a onda do festim! » .
— (( Perdão : as taças, senhores.
Não podem, tão sem lavores,
350 HIBTOAIA DA LITTXRATUSA BBABILBIRA
A' festa de um rei convir ;
Temos os vasos sagrados!...
S&o soberbos, cinzelados,
Do ouro fino de Ophir.
« Trazei-m'os n já vacillanle
Diz o rei : « Viva o Selohorl »
E ruge o vento distante,
Como um gemido de dôr.
Entram luzidos criados
Trazendo os vasos sagrados
Do templo de Salomão...
— E ruge o vento mais forte,
Lançando vascas de morte
Pelos umbraes do sal&o.
(( Transborde o néctar, amigosi
Eis os vasos de Jehovahl
N^esses lavores antigos,
Vô-se a captiva Judá. >»
E cresce o estranho rugido,
Surdo, rouco, indefinido...
(( São os soluçosr do Iranl »
E ruge, ruge mais perto...
(( Sâo os ventos do deserto
Sobre as areias de Oman! »
Nas caçoulas fumegantes
Arde o myrto e o aloés,
Ao som das notas vibrantes
Sobe, sobe a embriaguez.
c( Por Baalí Por Boal! Pelos Medos!
Quebrem-se as harpas nos dedos
Trema o tecto do sal&ol n
Horror! ao tinir das taças,
Núncio de eternas desgraças.
Brame na sala um tuffto.
cc Depressa, luzes, depressa... »
Diz o rei : « longe o terror!
Mas não... >i e o vaso arremessa,
Recua tremulo... horror!
HISTORIA DA LITTERATUBA BSABILKIRA 351
£' que, em meio á noite brusca,
Mão, que de brilhos offusca,
Toda a sala illuminou;
Cometa, a correr ardente,
Estranha cifra candente,
Pelas paredes traçoul
c< Meu collar de pedrarias
Aquelle que decifrar!
Venham magos e adivinhos,
Depressa, Beltisasar.
Elle, o mais sábio de todos.
Pôde o mysterio explicar! »
E dorme a cidade lassa
Dos vicios na prostração,
E cresce, cresce o rugido
Qual resonar de um volcão :
Ou é tremenda borrasca,
Ou é povo em multidão.
Entre os famosos convivas
Mais um conviva apparece.
As sandálias do proscripto
Traz... quem é que o n&o conhece?
Diante do rei se inclina,
Do rei, que ao vel-o estremece.
(( Bemvindo sejas, captivo,
Daniel Beltisasar ;
Se sabes lôr no impossivel.
Tens alli, podes falar :
Terás um manto de purpura.
Terás meu reglo collar. »
De novo ante o rei se inclina
A cabeça do anci&o.
Depois, elevando a fronte
Altiva, e estendendo à mão,
Busca achar da ignota cifra
A divina inspiração.
352 HISTORIA DA LITTEBATUBA BBA8ILEIBA
Nem do Tibre o velho roble,
Nem os cedros do occidente
A fronte mais alto elevam,
Mais nobre, mais imponentel
O génio é como as estrellas.
Beija os pés do Omnipotente.
(( Rei! escuta a voz do Eterno,
Que por meus lábios te fala :
O crime mais execrahdo
O teu reinado assignala :
Vê, revô tua sentença
Escripta em letras de opala.
K Não ouves bramir confuso
Como o arfar da tempestade?
São os Persas que se arrojam
Sobre os muros da cidade :
Perdeu-te a lascívia impura,
Reil perdeu-te a impiedade.
cc Profanaste os vasos santos
Nas torpezas de um festim,
Teus dias foram contados
Como os da bella SéboimI
Agora o brinde, senhores,
— Ao reino que não tem íim! »
Gesto grave, altivo, acerbo.
Assim fala o escravo hebreu.
Soletrando o ardente verbo.
Que mão de raio escreveu :
E depois, braços pendidos,
Olhos de chammu incendidos.
Verberando a maldição.
Deixa a sala, onde se espalha,
Como trevosa mortalh8^
O terror na escuridão.
E quando o raio primeiro
Do sol, singrando o horisonte.
Rompe o denso nevoeiro
Sobre o cabeço do monte.
HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA 353
£m vez da cidade altiva,
Vô — desgreíihada captiva,
A dissoluta Babel,
E alem dos muros colossos,
D'aquelle povo os destroços
E um homem só — Daniel! )> (1)
E' uni bello poemeto em verdade; traz a data de 1866; antes
lepois o poeta nâo chegou mais a essa altura.
ílzeario Pinto será sempre o poeta do Festim de Balthasar,
no Odorico Mendes será o poeta da Tarde, como Domingos
Magalhães será o poeta de Napoleão em Waterloo^ e tantos
TOS vates d6 uma só poesia.
. bella producção do malfadado sergipano são esses versos
es, vibrantes, inspirados, nessa eterna poesia dos hebreus,
ira e grave a modular suas estranhas endechas desde o
\o Pentatheuco até as Orieniaes do sonhador francez e as
ressantes producções de Schefer, Bodenstedt, Daumer e
as lyristas allemães. E' a poesia oriental rejuvenescida
e os espiritas do occidente n'umi século curiosa das bel-
5 da liWeratura universal. Nos últimos annos Luiz Delfino
Santos tem seguida muito esta direcção sem todavia
lar a graciosidade, movimento e brilho do Festim de Bal-
ir, quie tem sido até agora no Brasil o mais perfeito pro-
> do género,
ancemos.
iNKLiN Américo de Menezes Dória (1836 ). — Na
la de poetas e escriptores que figuraram de 1855 a 1860
ecife contavam-se os dois bahianos Franklin Dória e
io de Menezes.
;te direi quando falar dos dramatistas ; do outro agora é
jo de tratar.
tarefa 6 fácil. Dória ahi anda ás vistas de todos ; foi
proeminente na politica, occupou elevadas posições,
[miradores e amigos, sua biographia corre amplamente
riuna de Franklin Dória, deve-a elle principalmente ao
'/•« Sergipana f Aracaju, 1883, pag. 58.
ISTORIA II 23
354 HISTOBIA DA LITTBRATUBA BRASILBIILA
seu bom senso, á sua perspicácia e atilamento, que o levaram
a iniciar-se a geito na politica e a cercar-se de bons e presli-
mosos amigos.
Não tenho que lhe contar a vida ; íica isto a escrij>lores
mais habilitados. E' trabalho aliás já feito (1).
Para prendel-o a seu tempo ei ao seu meio e assim facilitar
ao meu leitor a comprehensáo doesse typo litterario, basla-me
dizer que o poeta é de 1836 e nasceu na pittoresca Ilha dos
Frades na vasta Bahia de Todos os Santos; formou-se era
direito em Pernambuco em 1859 ; atirou-se depois á advo-
cacia, ao magistério e especialmente á politica ; foi presidente
de província, deputado geral e ministro de Estado.
Franklin Dória é talvez mais um politico do que um tempe-
ramento litterario ; por esta face elle pode ser apreciado como
poeta, como orador, como critico, como jurista.
O poeta publicou em 1859 uma coUecçáo lyrica sob o titulo
de Enlevos e em 1874 uma traducçâo da Evangelina de Long-
fellow, além de uma ou outra peça destacada pelos jomaes
e periódicos.
O orador parlamentar proferiu bom numero de discursos
alguns dos quaes correm em brochuras. Na critica só lhe co-
nheço um estudo sobre Junqueira Freire e outro sobre Pedra
Branca. Como advogado e jurista possue um livro sob o
titulo de Questões Jurídicas e outro sobre a Letra de Cambio,
N'estas duas ultimas qualidades nada ha a dizer de especial
sobre Franklin Dória ; seus estudos a respeito dos autores das
Contradicções Poéticas e dos Túmulos nada encerram de su
perior ; os livros jurídicos são de caracter pratico.
Ouça-se principalmente o poeta e no que elle tiver de mais
original. Deixe-se a bella traducçâo da Evangelina e abraxn-se
os Enlevos,
A poesia doeste bahiano é plácida, religiosa, contemplativa,
resignada ; nada de tumultos, de luctas d'alma, de combates
do espirito.
Possue, porém, méritos bem assignalados : é correcta de
(1) Vide nos Eêtadiêtas e Parlamentar eê por Timon — o folheio sobrf
Conselheiro Franklin Dória. O conselheiro F. Dória teve no império «»
titulo de Barão de Loreto.
i
1
I
f
HIBTOaXA DA LITTlBATTrSA BRASILBIRA 355
guagôQi e de metro, é quasi sempre de caracter objectivo ;
a em algumas peças duas qualidades que a prendem a
ihor poesia do norte, a saber, vigor descriptivo e caracter \
Honal e brasileiro.
) poeta não foi em sua puerícia litteraría refractário ás
luencias do meio nortista ; elle mesmo dá conta das con-
5es que contribuiram ali para a formação de seu talento.
liz no prologo dos Enlevos :
.. folgo de declarar, que meus versos quasi todos vieram á lux
i longe do tumultuar dos homens, no seio perfumado das solt*
) campestres. Foi em uma ilha pittoresca e a mais bonita de um
»osinho, derramado, com a inimitável symetria com que s&o
ostas as cousas da natureza, pelas aguas aniladas da vasta
a de Todos-os-Santos.
ta ilha, em cujo interior se condensam formosas florestas e se
^am floridos valles ; cujas costas são povoadas por centelhares
isinhas de pescadores ; antiga propriedade de meus antepassa-
na maior parte dé seu território, coube por successão, conforme
luca lei dos morgados,' a meu pae, e é a sua residência, ha bom
[e annos. Ahi foi onde nasci... E' a minha <( ilha encantada »,
Q sem outras feiticeiras mais do que as moreínas camponezas,
uas e jovlaes ; e sem mais outras delicias, que n&o sejam os
is das moitas circumvisinhas, a sombra e o fresco das man-
is, os sonoros cochichos deis palmas do coqueiro, o azul trans-
te de um ceu desannuviado, a misturar-se imperceptivelmente
verde das sumidades dos montes longínquos, e a espelhar^se
leríicie de um estreito canal.
que impaciência eu volvia ás praias da ilha, depois de con-
3 meus trabalhos escolásticos do anno lectivo, na Faculdade
3ito doesta cidade! Era, observadas as devidas proporções, a
/Iva da passagem do poeta florentino da região sombria do
)rio para o recinto luminoso e bemaventurado do paraíso. A
lhos se patenteava um pequeno mundo, que eu achava sempre
smpre novo, embora o conhecesse desde pequenino, e, longe
m uma quasi solidão de exiUo, o trouxesse todo estampado
te com lagrimas de saudade. N'esses sítios de mim tão que-
peravarse em minha natureza physica e moral uma pro-
codificação, uma espécie de resurreição dupla, produzida
es sadios do campo e pela presença dos entes que me são
*os... A ilha era o abrigo providencial que me preparava o
356 HISTORIA DA LITTERATUBA BBASILBIBA
tlestino, para restaurar-me as forças gastas do corpo, e renovar-me
as do espirito, que vergava ao peso do tristeza e do tédio.
Dir-se-hia que, depois de tantas fadigas, o céu querendo recom-
pensar-me , se interessava directamente pela minha ventura.
Por uma coincidência deliciosa acontecia, que desapressado da
tarefa de meu exame, que caia para os flns de novembro, eu chc-
ij^nva á ilha nos lindos dias de verão. A perspectiva dos campos era
risonha e fresca.
A. estação das graças e das flores derramava sobre ella as tintas
folies e deslumbrantes de sua paleta mimosa. O sol, roçando com
os raios vivamente luminosos as campinas, os riachos, as vargens,
os bosques, as praias, as ondas, convertia tudo em ouro puro, como
0 rei Midas da fabula. A cicopira, uma das arvores symbolicas dos
nossos matos, enfeitava-se de íloresinhas roxas, como de um veu de
viuvez : cada uma das outras arvores parecia um vasto e hcurmo-
nico ramalhete, que impregnava a atmosphera de exquisitos per-
fumes.
De momento a momento ouviam-se gorgeios, trinados á porfia
lior bandos de pássaros de differentes familias ; o borborinho das
VHgas do canal; um som mysterioso que partia da espessura; um
como soluçar de saudade, que trazia de longe a viração que refres-
cava. Era a musica da solidão.
Orei, em uma linda manhã, eu subia pelos outeiros, e d*abi espe-
]'nva pelo raiar do sol, para íita-lo na intensidade de seu brilho. O
raiar do sol é a scena mais animada e alegre, que ainda contemplei,
fói a das cidades ; é, portanto, a que mais me tem impressionado.
Prefiro-a á do occaso, que é de uma tristeza monótona, que
ni>prime e abafa o espirito. Ora, cu ia ao povoado dos pescadores,
1 eudeiros de meu pac, escutar-lhes a narração de sua vida no mar,
(*ercada de trabalhos, tempestades e perigos ; entreter-me com a
confidencia dos episódios romanescos de seus amores e de suas su-
perstições.
Gastava horas inteiras doeste modo, sentado á popa de uma canoa
encalhada na areia, ou reclinado sobre palhas macias, debaixo de
unia arvore copada, que elles costumam plantar em frente das
])obres habitações, para abriga-los com a doce sombra, quando
levam em terra a concertar seus apparelhos de pescaria, ou a fabri-
ca rYiovos.
Outras tardes eu as preenchia com passeios caprichosos pelo cen-
tro inculto da ilha, onde vagava a tôa, puerilmente preoccupado do
(inanto ia vendo e ouvindo.
Muitas, emfim, eram destinadas para ligeiras viagens por mar.
HI8T0BIA DA LITTBRATIJXA BBABIUEIEA 357
pie eu fazia só, ou em companhia de minha família, a algum ponto
la ilha, ou ás ilhas da visinhabça. Boa parte da noite deslisava-se-nu)
im conversações intimas ^ fáceis, em algum outro entretenimentd.
)epois, recolhia-me ao quarto, para lôr, escrever, scismar » (1).
O poeta nâo 6 do numero d'aquelles que julgam nada dever
natureza exterior, esses que entendem que a poesia n'elles
alguma cousa de eterno e immutavel, incapaz de augmentar
u diminuir : algum cousa como o perfume na ílôr ou o
sneno na cicuta.
Nâo ; Dória é franco e nao esconde o que deveu á natureza
:terior.
Essa subjectividade absoluta da poesia é um resíduo do
lho innatismo das ideias e sentimentos.
Também não acho absolutamente razoável a ideia de todo
ntraria de uma poesia completamente exterior, communí-
da ao homem por não sei que filtros magos.
Botae o estúpido, o imbecil diante da mais esplendida
ma da natureza e vede se elle experimenta o mais levo
lUmento poético ; ficará insensivel qual uma pedra.
) objectivismo absoluto da poesia é uma herança do empi-
no superficial e tolo. Aqui é como na sciencia ; a syntheso
í é objectiva de todo, nem de todo subjectiva ; a syntheso
;omo já uma vez eu disse, bi-lateral (2).
ranklin Dória tem paginas de boa e bella descripção ; a
sia d*alma casa-se ahl com a poesia da natureza.
evela-se um grande exemplo no Sol Nascente. Vede :
f(0 hálito de Deus o sol accende ;
E o sol o manto de oiro presto estende
Sobre o ether azul e a terra e o mar :
Tudo luz, tudo brilha, tudo enca*nt6L,
Se espreguiça, se agita, se alevanta,
Ao seu ardente e penetrante olhar.
As nuvens são corcéis, que dispararam
Da arena afogueada que formcu^am
>ag. IX.
^ide Estudoê de LiUeratura Contemporânea t artigo sobre Zola.
r)58 HISTORIA DA LITTBEATURA BRASILEIRA
As faixas do horisohte em combust&o :
Freios partidos, pelo ar galopam ;
Sangue vivo escumando, ora se topam,
Ora em procura do infinito vão.
A branca estx ella que o crespuc'lo adorna
E torrentes de amor languida entorna.
Nos trasílôres celestes se sumiu :
Longa saia de malha coruscante
Do mar, que chora e ri no mesmo instante.
As entranhas geladas constringiu.
O orvaJho transparente o chão prateia :
Aqui sobre uma ílôr tremulo ondeia^
Sobre outra n'uma lagrima se esvae ;
Aqui p£u:*ece pedra preciosa,
Ali, bem como chuva luminosa,
Lento e suave do arvoredo cae.
Ave enorme, do chão vôa a neblina!
Frouxo clarfto de lâmpada illumina
Do valle o solitário penetrai,
— Pagina em flores que a sorrir se deixam,
E sobre a qual dois edtos cerros fecham
Parenthesis de pedra colossal.
Ali o monte de coroa erguida.
Que ao céu implora co'uma voz sumida,
Ao menos, uma gotta de liquor
Para a ferida, que lhe o raio abrira,
— Gladio que a nuvem da bainha tira
No campo do procella, todo horror...
Mattas, que enche, á só noite, a phantasia
De abusões, de gemidos de agonia,
De pallidos lemures infernaes.
Do sol nascente aos raios purpurinos,
Entre a harmonia de singelos hymnos,
Como tão magestosas acordaes!
Vós sois um miíndo nebuloso e vasto,
Em que apenas se imprime o leve rasto
HIBTOKIA DA LITTBKATU&A BBASILBI&A 359
Da avesinha, da íer€^ ou do reptil :
Em lugar de palácio altivo e nobre,
Que o oiro e a lama ao mesmo tempo cobre,
Simples ninho abrigaes, rude covil.
Oh! eu irei um dia, eu o primeiro,
Vagueiar, namorado e aventureiro,
Por vossos labyrinthos de cipó ;
Ver a azul borboleta que esvoaça,
A suçuarana que raivada passa,
E a cobra de coral rojar no pó!
E voltarei co'a mente incendiada!
E sentirei a vida mais ousada.
Mais rubro o céu das minhas illusCesl
Colombo, cheio de riqueza immensa ;
Homem, cheio de espYanças e de crença ;
Poeta, cheio de mil inspirações!
E' toda um paraíso agora a terra.
Abraçam-se coUina, outeiro e serra,
Com a sua coroa cada qual :
Aquella tem pennacho de esmeralda,
Esta de malmequer áurea grinalda,
O outeiro a choça, que atalaia o vai.
Tudo agora começa seu cciminho :
O verme sae do pó, a ave do ninho.
Da casinha de palha o pescador ;
A abelha infatigável da colmeia,
Da luz o brilho, da palavra a ideia,
O perfume do cálice da flor.
Que orchestra sobe ao céu! O mar vozeia.
Murmura a fonte, o pássaro gorgeia,
E a brisa da manhã vóa a gemer ;
Canta á viola a joven camponeza,
O desditoso chora, o crente resa...
D'est'arte faz a dor echo ao prazer!
Quão bello é o sol nascente! Olhos abertos,
Penetra os poios de crystal cobertos.
360 HIBTOELL BA LITTXRATTnU BRASILEIRA
Devassa nunca vistos areiaes ;
Pharol do tempo, leão de áureas crinas,
Diz, topando nos craneos das minas :
— Aqui foram impérios colossaes! —
Pêndula que se agita no infinito,
Que ouve talvez da eternidade o grito,
Atalaia de todas as acções,
Anhelado, redoira na memoria
Era feliz, que etemisou a gloria,
Sempre amada dos grandes corarOes,
Quão bello é o sol nascente! Elle afugenta
Do ar a cerração grossa e cinzenta,
D*alma a tristeza e os pensamentos vis :
Aos homens todos ao lavor convida ;
E dã força, e vigor, e alento, e vida
Ao que ^ desgraçado, ao que é feliz.
Ao mendigo, que fina-se, consola
Com a promessa de abundante esmola,
Ou de algum protector bom, liberal ;
Ao pobre manda um raio de ventura ;
Ao orphão, desvalida creatura,
Faz sonhcu* doce afago maternal.
EUeí diz ao que é forte : Hoje clemência!
Ao que é fraco : Mais um dia paciência!
Aquelle que lamenta-se : Esperae!
Aos tristes elle diz : Sede contentes!
Ao meu influxo borbulhae, sementes!
Preciosas idéas, borbulhael
Elle diz ao poeta : Alevantae-vos!
Dos grandes pensamentos inspirae-vosl
Ide, correi, correi ás multidõesi
A fé levae-lhes no queimar dos h3niinos,
Como outr'ora os Apóstolos divinos ,
Levaram graça e luz a mil nações.
Aos lábios todos elle diz : Sorri-vos!
A toda ílôr e coração : Abri-vos!
HI8T0BIA BA LTFTEaATUKA BBA8ILEIBA 361
Lançae perfumes, transbordae de cunor!
Para tudo o que nasce e vive e sente
E' bello, sempre bello o sol nascente,
Reverberando aos pés do Creador! » (1)
E' uma bella poesia descriptiva ; n'este género é também
interessante A Mangueira.
No lyrismo popular e campiesino são dignos de leitura
A Ilhôa e a Missa do Gallo, que não reproduzo por brevi-
dade.
Na oratória parlamentar Franklin Dória é um orador plá-
cido, macio, socegado e correcto. Nada de vehemencias, de
enthusiasmos, de calorosos Ímpetos. No género apaniguado
e sereno é bom, é apreciável.
Quetm< só gosta de um orador quando elle grita e gesticula
como uro possesso, náo o ouça; quem se contenta e dá-se
por bem pago com um tom familiar, simples, misturado de
certa ironia e malícia, pôde ouvil-o.
De resto, o poeta e o orador estáo em perfeita e completa
harmonia ; não estão na primeira ília dos poetas e oradores do
Brasil; mas occupam um dos primeiros logares na segunda
fileira.
Trajano Galvão dk Carvalho (1830-1864). Nâo foi um
grande poeta;. mas é indispensável falar de sua pessoa em
nossa historia litteraria ; ha n^elle algo de especial, alguma
cousa que lhe garante um nome.
Quero me referir á circumstancia de ter sido elle o primeiro
a dar ingresso á raça negra e captivos d'essa raça em nossa
poesia-
Antes de Trajano um ou outro poeta havia de passagem
tocado nos escravos pretos ; mas só de passagem e sempre
como um simples protesto contra a escravidão.
Trajano foi adiante ; collocou-se mais no intimo do viver
dos escravos e pintou typos mais reaes.
(1) Enlevoê, pag. 7.
362 HISTOSXA DA LITTBBATX7BA BBÂ8ILBUU
Infelizmente poucas poesias tfease maranhense restam em
geral e especialmente no género de que trato (1).
As doeste conhecidas sãx> — o Calhambola, a Crioula^ Nu-
ranian e Jovino-o senhor (Tescravos.
O leitor bem comprehende a importância do facto a quB me
refiro.
A ethnographia, a despeito dos esconjuros de alguns espi-
ritas systematicos, 6 e será ainda por muito tempo uai auxi-
liar poderosíssimo da historia e da politica ; na critica e nas
producções litterarias é preciso contar com ella.
Era um cousa a ser observada e notauia por toda a gente :
na ^litteralura brasileira a raça negra, apezar de ter contri-
buído com um grande numero de habitantes d'este paiz, de
ser o principal factor de nossa riqueza, de se ter entrelaçado
immensamente na vida familiar pátria, de estar por toda a
parte em summa, nunca foi assumpto predilecto de nossos
poetas, romancistas e dramaturgos.
O Índio e o branco obtiveram sempre a preferencia. Mais
tarde os mestiços, sob os nomes de sertanejos^ matutos, taba-
réos, caypiras, tiveram lambem sua quota das attenções
geraes dos litteratos.
Muitos decantaram as morenas, as m^reninhas^ as formosas
cór de jambo ; muitos chegaram até ás mulatas, ás dengosas
mulatinha^ com seus cabeções rendados a enfeitiçar toda a
gente e outras pieguices da espécie. Ninguém jamais se lem-
brou do negro, nem como ente humano, nem como escravo.
Só modernamente raríssimos de passagem e sempre como
motivos para declamações fugitivas.
Tal é o caso até de bons poetas, como Gonçalves Dias com
a sua Escrava, de Bittencourt Sampaio com a sua Captíva^ de
Luiz Delfino com a sua Filha d' Africa e d'outros de igual Ín-
dole e estylo.
No theatro ha o. caso phenomenal do Demónio Familiar de
(1) o que existe de poesias de Trajano Galvão anda nas Três Lyrtu,
publicadas no Maranhão em 1863, no Parnaso Maranhense, allí pubiieado
em 1861 e no Pantheon Maranhense (2.» vol.) do Dr. A. Henriques LeaL
As Três Lyras são de Trajano, Marques Rodrigues e Gentil Homem.
Ultimamente, appareceram em volume especial, as poesias de Trajano.
Pouco adianta esta publicação ao que já se sabia do poeta.
r^
HISTOBIA PA LITTSHATUBA BBASILSIBA 303
Alencar, onde ha um typo negro, e no romance o das Victimas
Algozes de J. Manoel, de Macedo.
Mas a comedia d& Alencar, sobre ser facto isolado e não
seguido, tomou apenas o escravo prelo n'um carácter exce-
pcional e bastante e raro.
O romance de Macedo, sobre ser, medíocre, foi escripto nos
últimos annos da vida do auctor e com pretençõds anti-aboli-
cionistas. E' uma obra de partido, que nâo teve repercus-
são (1).
Os pobres negros, os tristíssimos captivos náo acharam
quem se condoêsse d*elles, quem sympatisasse com o seu
rude e áspero viver.
Declamações acerca do facto da escravidão houve-as ahi a
granel ; especialmente na época do movimento abolicionista
não houve versejador que não se quizesse celebrizar á custa
dos negros 1
Dos que na litteratura se occuparam com elles só quatro o
fizeram demorada e conscientemente : Trajano Galvão, Cas^
tro Alves, Celso de Magalhães e Mello Moraes Filho (2).
Trajano tem o miarita da antecedência ; elle coUocou-se no
ponto de vista de um lyrismo semi-descriptivo e galante;
em suas poesias o escravo não protesta, o poeta dá-lhe a pa-
lavra e o 'Calhambola, a crioula, a nuranian descanta suas
preienções, seus desejas.
Castro Alves tomou outro caminho ; escreveiu odes de indi-
gnaçáo, de cólera, no estylo pomposo e meio declsunatorio
de Victor Hugo ; tal a indole do Navio Negreiro, das Vozes
<r Africa, e da mór parte da Cachoeira de Paulo Aftonso.
N'esta a intriga de amor entre Lucas e Maria não tem natu-
ralidade, nem a côr própria do viver do escravo brasileiro.
São amores e luctas românticas mais próprias de fidalgos
hispanhóes e de condes italianos do que de um pobre preto,
escravo das margens do S. Francisco.
O poeta bahiano possuía a imaginação e o tom alteroso dos
(1) N&o falo da Escraoa Izaura de Bernardo Guimarães ; porque a bella
filha da imaginaç&o do poeta mineiro era uma verdadeira branca eterati-
êoda.
(2) Se me foese licito falar de mim próprio, lembraria que no poemeto O»
Palmarei decantei também conscientemente os escravos.
3G4 HISTOBIA DA LTFTBRATURA B&ABILSULá.
lyristas pomposos ; mas não tinha o espirito de observação,
o naturalismo apto a sorprender as scenas populares.
Celso, a bello taJentOs que eu fui o primeiro a dar a co-
nhecer ao Brasil em geral (i), no seu poema Os CalhafnJ)olns,
approxima-se muito mais da vida psychologica e real do ca-
ptivo. E' pena que tivesse se limitado a considerar só o escravo
fugido, isto é, o escravo fora de seu viver normal.
Mello Moraes Pilho seguiu por outra vereda e por vereda
tal que, por este lado, não se parece com um só dos poetas
brasileiros, a não ser com o próprio Trajano Galvão.
Mello Moraes nao ostenta aquollas opulências, aquelle far-
falhar de bonitas ph rases do gosto de Castro Alves ; sua ma-
neira é outra ; elle colloca-se no meio do facto da escravidão,
mettcrse entre os captivos e os senhores, assiste o viver
d^aquelle mundo etspecial das Fazendas e diz, sem grandes
adornos, as cruezas que viu. São pequenos quadros, pequenos
esboços pelos quaes circula a verdade, a sinceridade.
Selo assim : Partida de escravos, Ama de leite, O legado
da morta, Os filhos, Immigração, O remorso de Lucas, Mãe
de Créação, Verba testamentária, A Feiticeira, Ingénuos, A
familia, Escravo fugido. Cantiga do eito, A Reza, A Novena. A
Rede e outras interessantes peças espalhadas pelos Cantos do
Equador.
Trajano Galvão é um predecessor doesse género de poesia :
por isso é aqui lembrado com distincção.
Elle era íllho do Maranhão; nasceu em 1830; esteve algum
tempo em Portugal ; fez estudos em S. Paulo e Olinda, for-
mando^se emi 1855. Attirou-so depois á lavoura (2).
Três notas distingo em Trajano : o lyrismo geral de que
seus versos A' Lua sáo um exemplo, o lyrismo locaJ, campe-
sino em que descreveu o viver do escravo, e o lyrismo saty-
nco e pilhérico. As duas ultimas notas são as de mais valor.
Aqui insiro a Crioula e o Nariz palaciano, como exemplifi-
cações do estylo do poeta.
(1) Até enUlo esse crítico, romancista e poeta era apenas conhecido no
Recife e em S. Luiz do Maranhão. Vide Reoiita Brasileira durante o anno
de 1879.
(2) Vide sua biogr.aphia no Pantheon Aiaranhen$e de A. Henriques Leal.
J
HIBTOBIA DA LITTEBÁTUBA BBA8ILBIBA 365
k Crioula é esta :
« Sou captiva... qu'importa? folgando
Hei-de o vil captiveiro levar!...
Hei-de sim, que o feitor tem mui brando
Coração, que se pode amansar!...
Como é terno ó feitor, quando chama.
A* noiílnba, escondido co'a rama
No caminho — ó crioula, vem cá! —
Ha hi nada que pague o gostinho
De poder-se ao feitor no caminho,
Faceirando, dizer — não vou lá — ?
Tenho um pente coberto de Ihamas
De ouro âno, que tal brilho tem,
Que raladas de inveja as mucamas
Me sobr'olham com ar de desdém.
Sou da roça ; mas, sou tarefeira...
Roça nova ou feraz capoeira,
Corte arroz ou apanhe algodão,
Cá comigo o feitor não se cansa;
Que o meu cófo não mente á balança
Cinco arrobas e a concha no chão!
Ao tambor, quando saio da pinha
Das captivas, e danço gentil
Sou senhora, sou alta rainha.
Não captiva, de escravos a mil!
Com requebros a todos assombro.
Voam lenços, occultam-me o hombro,
Entre palmas, applausos, furor!...
Mas, se alguém ousa dar-me uma punga,
O feitor de ciúmes resniung€^
Pega a taça, desmancha o tambor!
Na quaresma meu seio é só rendas,
Quando vou-me a fazer cohíissão ;
E o vigário vê cousas nas fendas,
Que quisera antes vô-las nas mãos...
Senhor padre, o feitor me inquieta ;
E' peccado...? não, filha, antes peta...
366 HI8T0RIA DA. LITTBEATURA BBA8ILXIBA
Gosa a vida... esses mimos dos céos
E's formosa... e nos olhos do padre
Eu vi cousa que temo n&o quadre
Co'o sagrado ministro de Deus...
Sou formosa... e meus olhos estrellaâ
Que traspassam negrumes do céo ;
Attractivos e formas tfto bellas
PYa que foi que a natura m*os deu?
E este fogo, que me arde "nas veias
Como o sol nas ferventes arôas,
Porque arde? Quem foi que o ateiou?
Apaga-lo vou já — não sou tola...
E o feitor lá me chama — ó crioula!
E eu respondo-lhe branda » já vou... n (1)
O Nariz palaciano é satyra dirigida contra os aduladores
sempro lestos e promptos a bajularem os presidentes mal
desembarcavam nas provincias.
E* como segue :
Cl Festivaes repicam sinos,
Troa no forte o canhão,
Correm velhos e meninos,
Ferve todo o Maranhão :
Vem doutores, vem soldados,
E os públicos empregados
Com seu illustre inspector.
Porque accorre tanto povo?
Chegou presidente hovo,
Nosso Deus, nosso senhor...
Mineiro para torresmo.
Ou bahiano càrurú?
Seja quem fôr, é o mesmo,
Temos nariz, e elles...
Presidente maranhense?
Que tolo ha'hi que em tal pense?!
(1) TrBê Lfjras, pag. 12.
HIBTOBIA DA LITTERATURA BRABILBIBA 367
Nem por graça isso se diz. . .
índio ou chim não nos desbcmca,
N&o ha mais forte edavabca,
Do que um vermelho nariz.
Feliz Ires e quatro vezes
Quem rubro nariz sortiu!...
Nos políticos revezes
Que narigudo affundiu?
Diz errada voz imiga.
Que impera só a barriga
Nos negócios do paiz ;
O que a mente minha alcança,
E* que, se o lucro é da panç6^
O trabalho é do nariz.
Por isso no grande entrudo,
Que chamam governo cá,
Folga muito o harigudo,
Quando nos chega um bachá :
Pencas agudas e rombas.
Mil elephantinas trombas,
N'esse dia tomam sol : ^
Qual torreia, qual se achata.
Qual na ponta faz batat€L,
Qual se enrosca e é caracol.
Bem como na culta França,
Cada qual seus animaes
Leva, cheio de esperança,
Aos concursos regionaes ;
Este um carneiro merino,
Aquelle um touro turino,
Outro um cavallo andaluz :
Tal, quando o mandarim salta.
Um por um, a illustre malta,
Seu rubro nariz conduz.
E assim como então é de uso
A chusmada feira erguer
Aos céos o rumor confuso
Dos que vem comprar, vender ; 5
368 HI8T0BIÁ DA LITTERATUBA BRASILEIRA
O anho bala, grunhe o cerdo,
Ornêa o jumento lerdo,
Brioso nitre o corcel ;
Tal a turba neuigada
Nos trombones a chegada
Festeja do bacharel.
Vem por entre esta harmonia
O da corto homem cortez,
Foz á esquerda cortezia,
A dextra mesura fez...
Mil narizes sobem, descem ;
(Nâo de pudor) enrubecem
No furor de cortejar.
Vibram talhos de montantes,
D'essas espadas gigantes
Que Roldão soube jogar...
Na camará do seu palácio,
Vindo da Municipal,
Vé-se o illústre pascacio
Como pisado n'um gral :
• Curte comsigo, nem geme.
Que um bom ncuiz é bom leme
Posto á popa... em bom lugar!
Um por um os mo'nsti*os olha,
Que o tiabalho está na escolha,
Do que melhor lhe quadrar.
Por mais que se ponha em guarda
Apesar de quanto diz,
Vista beca ou vista farda
Por força leva nariz...
Porque, diz em consciência,
Pondo de parte a Excellencia,
Tu, presidente, o que és?
Julgas-te inqualificável?
E's um ente narigavcl
Da cabeça até os pés. . .
Embora prudente e calmo.
Se um nariz de guarnições,
_i
BIBTO&IA DA LITTBBAItTRA BRASILEIRA 969
Poder suspender-te um palmo
N'estes tempos de eleições,
Vae tudo comtigo abcdxo,
Mais asneiras, que um borracho,
Juro-te que has de fazer...
Pois como do teu ofâcio
Terás o pleno exercício.
Se suspenso o has de exercer?
Permitta, Vossa Excellencia,
Que aos sábios ponha a questão,
E' caso de consciência,
E* um (( quid júris » rat&o...
N'estes contractos occultos
Dizei vós, sábios consuitos,
Que tendes as leis de cor,
Quem é que fica lesado?
O mui nobre narigado.
Ou o vil ^[larigador? » (1)
tem claro está que Trajaao era gaiato, era engraçado ; esles
SOS são gostosamente cómicos. E' pena que o poeta não
)SS6 deixado muitas composições do género.
)eixando de deter o meu leitor ante Benicio Fontenelle^
phanio Bittencourt, José Coriolano, Marques Rodrigues,
bóa Serra, Dias Carneiro, é bom fazel-o parar diante de
ENTiL Homem de almeida Braga (1834-1876).
nas poesias foram, em, parte, reunidas no pequeno volume
o título de Sonidos ; outras andam esparsas no Parnaso
anhense, neis Três Lyras, nas Harmonias Brasileiras de
edo Soares e emi diversos jomaes, não falando no poe-
> Clara Verbena, de que ha um fragmento publicado sob
eudonymo de Flávio Reimar.
ntil foi poeta e folhetinista; n'esta ultima qualidade
>u o bello volume intitulado Entre o Céo e a Terra.
todos os poetas que fornecem matéria para este capitulo
3 acabo de estudar na ordem em que v&o ahi descriptos,
Fres Lyroêt pag. 44.
HISTOBIA n 24
370 HISTOBIA DA LITTERATU&A BRASILEIRA
é aquelle cuja leitura mais me agradou. Os outros têm muita
cousa boa no meio de muita cousa ruim ; de Gentil nada vi
quo fosse realmente mau ; tudo é por alguma fcu^ bom.
lia n'elle um lado tradicional e lendário que bem se mostra
em í?. José de Riba-Mar, nV Outeiro da Cruz^ n'0 Morro do
Piranhenga e n'A Ilha de Maranhão ; ha uma face popular,
qu(í se vê em Caiueiro pequenino e em Olhos negros ; uma
feição humoristica que se expande em Clara Verbena^ alem do
lyrismo pessoal e amoroso que se exhibe em todas as outras
po('.sías.
Vejamos isto e procedamos com ordem.
Eu disse que na poesia de Gentil ha um lado tradicional e
lendário e uma face popular. Tudo, em verdade, se reduz
a uni fundo commum de inspiração.
Ha por ahi muita gente que ainda hoje suppõe que toda a
sabedoria popular, todo o folk4ore se reduz ás quadrinhas dos
improvisadores anonymos e ás festas de Igreja em que o
povo mais ou menos accidentalmente toma parte.
Não, a cousa não é assim tão simples como se possa acre-
ditai*.
( ) povo tocou em tudo ; seu saber é uma encyclopedia in-
leiíu.
S6 na parte propriamente poética elle tem os Reizados, as
Cheganças, os Romances, as Xacaras, as Orações, os Versos
geraes ou Cantigas soltas, as Parlendas...
Mas não fica ahi : elle tem os mythos, os contos, as adi-
vinhas, os dictados, os annexins, as lendas de legares e de
ty])09 celebres, as danças, as festas propriamente suas», as
benzeduras, uma medicina e therapeutica especiaeSi uína
aslronomia sua, as fabulas de plantas e animaes, profecias, a
interpretação original que vae fazendo diariamente dos aiMMi-
tecimentos políticos ; tem tudo isto, além do capitulo immeiíso
das superstições.
No Brasil pouco se tem investigado o nosso povo por faoe
tão interessante (1).
(1) Consagrei a este assumpto nada menos de quatro obras : I CooUoê
populareê do Brasa; II Contoê populares do Brasil ; m Estudom 9obrt
a poesia popular brasileira ; IV Uma espertesa.
.1
1
HIBTOSIA DA LITTISATUKA. BBAfULIIKA. 371
O Maranhão é uma de nassas províncias onde o espirito
Dopular é mais vivaz ; por isso os, seus poetas náo foram es-
ranhos a essa ordem da inspiração, mais rara. nos poetas do
lul, e em geral desprezada pelos imitadores servis das litte-
aturas estrangeiras.
Em todo o poetar de Gentil ha esse doce sabor das creaçGes
y^ricas do povo ; o estylo do maranhense o revela sempre, ou
elate alguma lenda, alguma tradição, ou se colloque no meio
o povo e cante ao desaQo com elle no seu estylo.
O poeta deve fazer como o musico de talento, o qual,
uando se apodera de um motivo popular, o transforma e
ansflgura, imprimindo-lhe o cunho da arte.
Gentil assim procedia, guiado por seu fino gosto e seguro
3nso. E' o que nem sempre faz Juvenal Galeno em suas paro-
as e imitaçOeis da poesia popular.
O poeta maranhense, tomando o velho motivo do povo :
Cajueiro pequenino,
Carregadinho de llôr,
Eu tamhem sou pequenino
Ccirregadinho de amor »
lesônvodveu n*estas bellissimas quadras, nas quaes a arte
ajusta e adapta perfeitamente ao tom desalinhado e pro-
ido das massa-s :
u Já de ha muito o sol ó morto
Brilha na terra o luar.
Nas palmas d'altos coqueiros
Brinca o vento a susurrar.
No céu as âxas estrellas
Apenas véem-se luzir.
As aves dormem na matta,
Parece a matta dormir.
Dos ares cai denso orvalho
Sobre a gramma, sobre a flor.
E a brisa, de aromas cheia,
Das flores brinca ao redor.
372 filBTO&IA DA UTTBfiATXmA BRASILEIRA
Tudo é sileYicio que fala ;
Tem vozes a solid&o.
Fala o ser calado e mudo,
Cada voz é uma canção.
Ouve, escuta, cajueiro,
O canto que eu vou cantar.
Ao frio vento que passa,
A* luz do frouxo luar.
A taes horas um menino
E' certo deve ir dormir ;
Mas quem por noite como esta
Pode algum somno sentir?
Deus te deu folhas e ramos
E flores também te deu.
Deu-me affecto e sympathias,
De mil desejos me encheu.
Das flores nascem-te os fructos,
Dos ramos nasce-te a flor ;
De minh*alma o puro affecto,
Do meu peito o doce amor.
Nas tuas folhas luzentes
Sol e chuva hão de caliir.
No meu peito as alegrias,
Os desgostos hão de vir.
Mets em quanto o puro orvalho
Te dá vida e te dá flor.
Os amores de minh'alma
Prest6Lm-mc vida melhor.
Cresce, cresce, cajueiro,
Que eu também hei de cresrer,
Se murchares algum dia,
Eu também hei de morrer.
Somos ambos pequeninos,
Vivemos ambos no chão.
Se dizes que és meu amigo.
Eu digo — sou teu irmão.
HI8T0BIA DA LITTEBATUEA BBABILKIBA 373
Minha mâi n'este terreiro,
Quando eu nasci, te plantou ;
Criou-te com sombra e agoa,
Com seu leite me criou.
Nasceste á porta de casa,
Sempre abrigado do sol.
Ardores do meio dia
Eram clarões de arrebol.
Fui crescendo, cajueiro,
E tu cresceste também.
O segredo que eu te disse
Nfio o contes a ninguém.
Somos eunbos pequeninos.
Queremos ambos viver.
Cresce, cresce, cajueiro,
Que eu também hei de crescer » (1).
Quem só comprehende a poesia como uma sucursal da phi-
sophía pondo em verso um systema doutrinário, o darwi-
smo, o pessimismo, o positivismo, ou outro qualquer ; quem
a comprehende quando ella so faz militante e pamphle-
[•ia e põe em versos uma d'essas declamações de
oudhon, por exemplo, contra papas, imperadores, aristo-
itas e proprietários, quem tiver fé absoluta e exclusiva em
ruma d'essas cartilhas litterarias que ahi andam, não leia
versos de Gentil Homem.
Juem, porém, sabe que, por uma lei inilludivel da historia,
oesia é sempre a emoção desperta em nós pelo espectáculo
; coiusas e que essa emoção ha de Vciriar necessariamente
n a intuição geral de cada época, e que, portanto, quando
fala enn poesia philosophica, apenas se quer dizer uma poe-
que retarate os sentimeoitos em nós produzidos pela nova
lição que a sciencia desde Galileai, Copérnico e Bacon vem
parando na civilisação occidental, esse pode ler Gentil ou
Jquer outro bom poeta ; porque todo bom poeta é sempre
TrcM LyroMj pag. 157.
374 HIBTQBIA DA LrmnuLTUiLk BSAsnjmu
e fataJmente um documento interessante ()e uma época dada,
sem que tenha adrede procurado ser.
E' bem provável que elle, comi o seu sabor popular desa-
grade, por atrazado. Para todo moço, que começa, ser adian-
tado, por via de regra, é ter aspirações a commetter algum
assassinato litterarío ou artístico. E' já uma enfermidade que
se tornou geralmente contagiosa.
Todo rapaz que lança um primeiro olhar para o mundo das
letras a das artes, descobre logo não sei que symptomas de
fraqueza n^esta ou n'aquella creação secular da intelligencia,
e apresenta logo terríveis desejos de dar-lhe o coup de grdce.
Matar imia antigualha, que gloría ! Assim, um enterra a
arma na poesia em geral, que é uma doente importuna ; outro
nas formas dramáticas, que não podem mais saUsfazer as
necessidadesi modernas ; este nas artes indistinctamente, como
brincos inúteis e infantis ; aquelle no romance, que não se faz
logo scientíflco de uma vez... E' o diabo; é uma geral sede de
matar alguma cousa !
Já nem se fale em religião, em metaphysica, na philosophia
mesma; porque doestas é já velha tolice tratar diante da
sciencia, que as matou ha muito.
Ora, pois, vou dizer o que penso com toda a sinceridade :
não creio na morte de cousa alguma n^este mundo; todas
aquellas crêações que s© suppunham mortas, não morrerani
de facto ; modiflcaram-se, transformaram-se apenas. Tem sido,
é e será sempre este, entre outros, o caso da poesia.
Eis a razão, porque ainda gasto o tempo em analysar poe^
tas e ainda ouso recommendar os versos de um Gentil Ho-
mem, por exemplo.
Eu disse acima que elle tem também, bellas amostras de
lyrismo pessoal e amoroso e também boas provas de lyrismo
humorístico. E' verdade.
O primeiro anda especialmente em suas poesias soltas ; o
ultimo mais pronunciadamente em Clara Verbena.
Este bello poema encerra todos os geneiros, todos os estylos
do poeta ; a ligação ahi feita entre o lyrismo sentimental e o
bumorísmo galhofeiro mostra summa habilidade.
J
HISTOBIA DA LimBATUSA BRAHILKTRA 375
Creio que o poema não chegou a sesr publicado por inteiro ;
i os dois cantos publicados em 1866 no Bio.
Abre-se o livro por uma dedicatória a Oonçalves Dias em
lontados versos ; prosegue descrevendo a cidado do Rio de
uieiro, a heroina Clara Verbena, a casa d*esta, Petrópolis, o
Icazar e vinte incidentes diversos, ligados entre si por gra-
osas transições.
Um dos pedaços melhores é aquelle em que o poeta lamenta
morte de seu íllho. Ha em tudo um tom de naturalidade, eu
go naturalidade e não naturalismo, de encantar. E' ler ao
aso.
Dou aqui os versos dirigidos a Gonçalves Dias :
(( O hálito de Deus tocou-lhe a fronte,
£ lhe formou em tomo uma coroa :
Arco de luz no cimo de alio monte,
Beijo do génio dado em uma alma hôa.
Feitura humilde, ao Creeulor defronte
Logo se poz, e um cântico resôa...
Era o poeta feito em um momento,
Grande no verbo e grande em pensamento.
Apostolo novo aos povos ehviado.
Falou sublime á gente americana,
Em phrase culta, em rythmo elevado
Como o cantor da raça luzitana.
A voz no tymbre puro e afinado
E* quasi angelical, mais do que humana;
Evangelho de amor e de poesia
Era o que a terra em sua voz ouvia.
Do seu talento o vóo altivo e nobre
Liga ao presente as pósteras idades,
E no passado um muhdo elle descobre
Bello, rico de seiva e heroicidades.
Nada ao olhar do poeta o tempo encobre ;
Dá vida a um povo morto, ergue cidades ;
D^alma o sentir, do coraç&o as dores
Traduz em sons de pérolas e flores.
Soberbo evocador de um século extincto,
Eil-o do nada a vida levantando.
376 HISTORIA DA LITTEBATUBA BRASILEIRA
Luz na imaginação e o pincel tincto
Na cór que o sol no céo hos mostra quando
Roxo de um lado e d*outro azul retincto.
Mil caprichosas formas desenhando,
Une os toques de alvura resplendente
Da opala cu) brilho lácteo e transparente.
Foi-lhe dura a missfio ! Foi sacriâcio,
Que elle soube cumprir com força e crença!
De co^ss&o constante fez ofílcio,
Cantou do coraçfto a dôr immensa.
Trouxe consolação por beneficio
Aos que soíírem no amor e na descrença,
Rasgando o peito, e, novo pelicano.
Dando vida em seu sangue ao lábio humano!
Fez em si mesmo a cruda autopsia
Da ideia e do sentir ainda em vida ;
Em cada canto o coração gemia.
Em cada verso a alma era despida.
Nada occultou ; a musa não mentia .
Na voz da queixa extreme e dolorida,
No riso triste, no prazer de instantes.
Rápido goso d*almas sempre €unantes.
Privilegio do génio! em seus cahtares
Fez mais nossa que sua a excelsa gloria
No culto expressa, em múltiplos altares.
Que erguidos são no templo da memoricu
Se foí-Ihe a vida um quadro de pezares,
Fica do vate a peregrina historia.
Pondo em relevo a desejada cVôa
De um talento brilhante e uma alma bôa.
E viveu, e cantou! no soffrimento
A própria inspiração deu-lhe amargura ;
E a luz, que o aclarava em pensamento,
Fez-lhe a sorte infeliz, áspera e dura.
A distincção do génio é um tormento ;
A flor da gloria é uma sombra escura ;
Raio de amor na frohte ao escolhido,
E* um cântico d*anjos n*um gemido.
HISTORIA DA LITTBBATUBA BRASILBISA 377
E até na morte a pallida desdita
De perto o acompanhou na anciã extrema ;
Cantou-lhe uma ccuiç&o triste, infinita
Nas afílicçOes de um gélido poema.
O mar ouviu-lhe uma oração bemdicta...
Quem ha que n&o se enlute e que hfio gema,
Ouvindo o estertor de uma agonia
Suffocada no mar pela onda fria?!
Vôde-o no estreito esquife abandonado,
Sem uma prece de amor na ultima hora!
Vede o corpo na arôa sepultado,
E o branco olcyon da praia, que inda chora!
£ o mar, cruel, resonma socegado
Â* luz da tarde ou aos clarões da aurora,
Rindo ao fresco terral, ao frio vento,
Ao som de um triste e fúnebre lamento!
Dorme em paz na frieza do sudário.
Descansa agora da penosa lida!
Por ti do século nosso o enorme horário
Fez ouvir a pancada estremecida.
Do mar a profundez é o teu sacrário,
Guarda de uma existência mui querida,
E o monumento erguido á tua gloria
Guardará de teus cantos a memoria » (1).
ão versos dignos do assumpto. Mais um trecho do centro
poema e concluirei :
« Havia em Botafogo uma casinha
Escondida entre as copas do arvoredo.
Via-se o mar e os montes ; á tardinha
Chegava-lhe á janella miuto a medo
A dona, a fada, a rosa, o sonho lindo
D*aquelle amor de um velho, amor infindo.
Era Clara Verbena. Vinte e um annos
Encontravam na moça a gentilesa
De airoso porte e uns olhos soberanos,
Cheios de luz, de graça e morbidesa.
'^lara Verbena^ pag. 9.
378 HISTOBIA DA LITTBRATURA BKABILBIBA
Era formosa ; branca ou se morena,
Dtzer-vol-o n&o seL Clara Verbena
Não tinha de mna ingleza o jaspe frio,
Nem da hespanhola a tez fosca e rosada,
Nfto da franceza o affecto, e o ar sombrio
Da italiáha bella apaixonada. /
Era a magnólia aberta e recendente,
Modesta e viva em perfumoso ambiente.
Ninguém nunca lhe viu outro vestido,
Que nfto fosse cambraia branca e lisa ;
Crespo o cabello em caracóes mettído.
Botina escura, que o tapete alisa.
O extracto de Verbena era o perfume
D'aquelle anjo mulher, d'aquelle nume.
Seja o Aristarcho em pea ; se a rima obriga
A por junto do aroma o deus latfno,
Nfto fica menos certa da cantiga
A parelha fínal. O máo ensino
De meu mestre Musset poz-me o defeito.
Que me torna por vezes imperfeito.
Extracto de verbena! oh, como é grato
O producto de chimica franceza!
Que pura exhalaçâo, que doce extracto,
Que sonhos nos faz ter! quanta grandesa
Nos lembra este perfume em tempos idos
Por gregos e romanos bem vividos!
Exprime hos effluvios a doçura
Da graça feminil em mulher bella,
E a robustez da civica figura
Posta na rua ou praça ou na janella.
Era a verbena dos heróes a c'rôa
Nos tempos idos de virtude á tôa.
Fraqueza e hombridade em l6tço unidas.
Beijos de moça em horas socegadas.
Forte aperto de mfto, vozes ouvidas
Em meio Às multidões muito agitadas.
Sello estreito, marcado, e lacre vivo
Da gloria e do que a amor vô se captivo.
HI8T0BIA DA Lim&ÁTUBA BRÃBJLMOLA. 379
O sândalo é traidor ; perturba o senso,
Enerva, gasta as forças, elanguece ;
Accende uma fogueira em luva ou lenço.
Depois aquelle incêndio se amortece.
Cruel mentira, o sândalo dá morte
Quando mais da volúpia no transporte.
O resedâ produz dôr de cabeça,
O mel inglez é doce em demasia ;
Não ha quem nfio dormite e n&o padeça
Cheirando do jasmim a essência fria.
A rosa é mui vulgar e o f rangipana
Cança, aborrece, irrita, aturde e engana.
O mais, que enfeita e alonga a extensa lista
D*eztractos essenciaes, de aguas cheirosas,
Nfto vale que o passemos em revista.
Que lhe demos aqui menções honrosas.
A palma é da verbena ; a gloria é doesta,
Deusa do lar, dos bailes e da festa.
Era Clara o asseio, a graça e o gosto
De uma dona de casa cuidadosa ;
Tudo quanto a cercava era composto
De esmero e luz e arte e amor e rosa.
Moveis, tapetes, vidros, douraduras.
Vasos finos, esplendidas figuras,
A sala, o gabinete, a estreita alcova,
O pateo, o corredor, jardim, dispensa.
Tudo andava mais limpo do que a escova.
Que nunca trabalhou ; peço licença
Para nada dizer sobre a cosinha
Na qual jamais pisou Clara, a rainha » (1).
poesia Gentil Homem fo^i taml)em um eximio traductor ;
mera o que deixou de mais eminente é a versão de Elod
fredo de Vigny.
smoção do poema estrangeiro é mais ou menos transmit-
a versão não se limita a trasladar phrases ; o tom e o
ido, tanto quanto é possível em traducções, apparece.
Iara Verbena^ pag. 22.
380 HI8T0BIA DA LITTBRATUEA BRA8ILEISA
Ultimando, nSo esquecerei recommendar o bello volume de
folhetins — Entre o Céo c a Terra, devidos á penna dos escri-
ptor maranhense.
Elle tinha graçai, nâo fazia esgares e contorsões para pro-
vocar o riso nos outros ; também náo dava gargalhadas, ria
doce e abundantemente como um homem de educação e de
espirito.
Os seus folhetins tèm côr local e brasileirismo ; os typos
descriptos s&o nacionaes; lede Natal, Pobre Serapião, An-
ninha e outros bellos trechos do livro, e verificai.
Nas circumstancias de nossa litteratura, que se precisa
definir e caracterísar cada vez mais, é o melhor elogio que se
lhe pôde fazer.
Gentil é um benemérito das pátrias letras ; não o deixarei
sem dar uma rápida idéa de sua brílheinte passagem pela
imprensa do Maranhão.
Para isto abrimos espaço á penna competente de um pa-
trício seu :
« Não mencionaremos os jornaes que elle abrilhantou com
sua collaboração fora da provincia natal ; daremos rápida
noticia de sua passagem pelo jornalismo maranhense.
Em 1859, a convite de Sotero dos Reis, escreveu elle no Pu-
blicador Maranhetíse uma serie de notáveis folhetins littera-
rios, verdadeiros primores no género. Eram fantasias sem
substancia, a nuga diificU de Horácio, e que denunciavam
grande aptidão. Usando do pseudonymo Flávio Jlemuir, que
^lle illustrou como traductor de Eloá, e auctor do poema CZÔm
Verbena, os folhetins de Gentil Braga no Publicador Mara-
nhense foram suas credencias no jornalismo da pro^incia.
Como redactor da Ordem e Progresso, desde 1860 alé i86i,
publicou elle nesse periódico artigos admiráveis, taes como os
que discutiram a entrada do corsário Sumter, durante a
guerra dos Estados Unidos, no porto do Maranhão, susten-
tando as boas doutrinas da neutralidade. Esses artigos moti*
varam um aviso do ministro de estrangeiros explicando o
direito dos neutros.
Não menos importante foi a analyse da presidência Primo
de Aguiar, paginas brilhantes, que depois foram colleccio-
H18T0&IA DA LITTX&ATtTRA BRABILSIBA 381
ladas em livro, formando o lancinante opúsculo — Um Presi-
ente e uma Assembléa.
Na Coalisâo, que também redigiu de 1862 a 1867, além de
umerosos artigos sobre politica geral e local, publicou Gentil
raga vários trabalhos de critica li Iteraria, e o minucioso
same do tratado da VíUa da UniãOy artigos enérgicos e inci-
vos, que reunidos em irni folheto, tiveram grande voga no
io de Janeiro.
En 1867 collaborou no Semanário Maranhense e os artigos
) litteratura amena que inserio n*essa revista foram todos de
ai merecimento.
Desde 1874 até 1876 collaborou no Liberal em algumas chro-
cas graciosas que feriam o adversário com o ridiculo.
Moço, com pouco mais de quarenta annos, desappareceu
sde mundo Gentil Homem de Almeida Braga, deixando em
MO muitos trabalhos litterarios, e perdendo n'elle o jorna-
imo politico um luctador valente, que pelejava com as mc-
Qres e mais invcnciveis armas.
Entre as muitas intelligencias superiores que o Maranhão
1 desapparecerem na força da mocidade, como Gomes de
uza, Gonçalves Dias, Lisboa Serra, Franco de Sá, Trajano
Ivão, Marques Rodrigues e Celso de Magalhães, occupa lu-
r notável esse moço poeta e prosador distincto, recom-
endável como jornalista esclarecido e politico digno de
o (1).
Jão palavras de Joaquim Serra, amigo e companheiro do
3ta. E' pena que este tenha dito mal de Francisco Primo
Souza Aguiar, o illustre engenheiro, o emérito professor
Escola Militar, um dos homens mais illustrados que o
Lsil tem possuído.
L este meu saudoso mestra de historia, a quem devo a com-
hensão do valor do factor germânico e anglo- saxonio em
;empos modernos, rendo aqui um pequeno c obscuro preito
reconhecimento. Primo de Aguiar foi um dos elementos de
lha formação, desde 1865, com a sua concepção ethnogra-
ca da historia.
A Imprema no Maranhão 1820-1880^ por Ign^tus, Rio de Janeiro
p pa^. 131.
*
t
382 HISTORIA DA LITTB£AT0]tA BRABILBUIA
Bruno Henrique de Almeida Seabra (1837-1876). A pas-
sagem do maranhense Gentil Homem ao paraense Bruno Sea-
bra é naturalissima.
Mais de um laço os prende ; tinham a mesma idade, com
pequena diflerença, falleceram no mesmo anno, ambos foram
cultores do lyrismo local e humorístico.
Bruno Seabra nasceu aos 6 de outubro de 1837 no Pará ;
estudou humanidades na provincia natal, principiou o curso
da Escola Militar do Rio que teve de abandonar pela fraqueza
de sua compleição.
Atirou-se ao funccionalismo publico, refugium ultimo de
todos os talentos brasileiros, e que talve^ nos seja também
em breve tomado, dando-se preferencia aos filhos d^ootros
paizes... Exerceu empregos no Rio, Maranhão, Paraná e
Bahia, onde falleceu em 1876 (1).
Bruno Seabra escreveu romances, comedias, folhetins c
poeisias. Estas sã,o as suas melhores producções e entre ellas
sobresahe o livro das Flores e Fructas, um dos melhores (fc
nossa litteratura romântica.
Bruno é e será sempre o poeta das Flores e Fructos.
Suas primeiras producções datam de 1855 ; o bello volume
predilecto é de 1862.
Que ha de bom n'este poeta ? Duas cousas apenas : quan<k
os seus contemporâneos quasi todos procuravam inspira^
ções estrangeiras, elle buscava assumptos nacionaes ; quando
quasi todos os seus col legas e rivaes choramigavam perpe-
tuamente, elle vivia a rir-se galhardamente. Basta isto pait
assignalar um lugar especial a este lyrista.
O nacionalismo, o popularismo de Bruno Seabra é uma bor-
dadura de artista sobre scenas do povo ; é no género de Bb*
tencourt Sampaio, Francklin Dona, Trajano Galvão, Oeotí!
Homem, Joaquim Serra, Mello Moraes Filho e alguns outros
poetas brasileiros.
Em matéria de inspirações populares só supporto, como p
dei a entender, dois extremos : ou a rude cançSLo do povo es
(1) Vida Sacramento Blake — Dieeionario Bibtiographioo iSrouíIct-'
1.* vol. pag. 429.
HI8T0SIA DA LITTBBATUaA BRABILBUA 383
ua profunda espontaneidade, ou o lavor artístico do poeta de
ilenlo sobre quadros e motivos populares.
Ou os Cantos populares do Brasil^ como a plebe os sabe e
spete 6 eu 06 colligi sem lhes mudar uma palavra, ou alguma
ousa de ideialisado e artistico ao gosto de Na Aldêa, Thereza
o Bruno Seabra, ou A Missa do Gallo^ A Casa Maldita de Joa-
uim Serra, ou A Cigana, Bem te vi, A Mucama de Bitten-
>urt Sampaio, ou A Mulata^ A -Romaria do Bom Despacho
} Mello Moraes Filho, ou Os Tabaréos, Os Trovadores das
eivas, O Anno Bom, Scena Sergipana de Tobias Barretto, ou
lalquer pagina análoga de Dias Carneiro, de Gentil Ho-
em, de Celso Magalhães, de alguns mais.
0 meio termo aqui é insupportavel ; a imitação, a parodia
1 inimitável, do imparodiavel, como acontece com muitas
s composições de Juvenal Galeno, é sem grande préstimo,
m serio valor.
tVote bem. o leitor, que eu disse em muitas e não disse em
las as producções de Juvenal Galeno ; porque este possue
rumas em que fez até certo ponto obra de artista, o que se
•á em breve.
Bruno foi um poeta apurado e do flno gosto.
^áo é preciso levantar theorias a respeito d'elle ; é um
ico de duas facetas principaes ; já as indiquei e basta agora
er que a veia cómica sobrepujava o lyrismo campesino em
IS versos.
> melhor meio de o conhecer é lel-o ; escutai-o no popula-
no.
a Aldéa é assim :
« Olhai — que paz se agasalha
Nesta casinha de palha
Â' sombra deste pomari
Olha! vê...! que amenidade!
Abre a ílôr da mocidade
Na soleira deste lar!
Olha! — as flores vêm surrindo
Dos verdes ramos, caindo
384 HIBTOBIA DA LITTXBATVKA BEA8ILEIRA
Aos beijos dos colibris!
Olhai — este harém de verdura
Onde amor bebe a ternura
Das saudosas juritys !
Olhai — esses montes virentes
Estes arbustos ílorehtes,
Estes risonhos vergéis!
Olha! — os céos que além descobres...
Que reis tiveram mais nobres,
Mais deslumbrantes docéis?
Olha! — os dourados insectos
Nos seus enleios de affectos
Dourando a hervagem do chão!
E* tradiç&o — que são flores
Animadas dos ardores
D'uma extremosa paixão...
Olha. . . vê. . . ! não são chimerasl
São iris, são primaveras
Na tela do nosso amor ;
Amor aqui faz pousada
No romper da madrugada,
Nas horas do sol se pôr!
Não cuides ser a ventura
Esse ouropel que fulgura
Sob os tectos dos salões,
Onde a mentira prospera,
E o perfume degenera
Das flores, das affeiçOesl
Que valem ruidosos fastos,
Quando os corações vão gastos
De affectos, de amor, de fé?
A ventura verdadeira
Vive à sombra hospitaleira
Da casinha de sapé.
Olhai — que paz se agasalha
N'esta casinha de palha
HI8T0SIA DA LITTISATURA. BTtABnílTKA 385
A* sombra d*este pomari
Olhai yô...I que amenidadel
Abre a flor da mocidade
Na soleira doeste larl » (1)
Nâo basta esta ; Thereza deve ser lida ; eil-a :
cí Quem vem da egreja? Thereza
Que foi casar-se... surpreza!
Não esperava este azari
Nunca me turbara a idéa
Esta lembrança tão feia
De que podia casar!
Que não cuidei vejo agora,
Por que m'o aíârma esta hora,
Que inesperada bateul
Casadal vejo-a casadal
Jesusl como está mudada!
Pois t€unbem mudarei eu.
Seccae, espr'anças viçosas,
Emurchecei, perfumosas
Flores, que eu tanto reguei!
Coração, meu pobre alho,
Velho 'slás, segue o meu trilho,
Enruga como enruguei !
Casou-se aquella tngueira,
Que para nós tão fagueira
Se mostrava ; já casou!
Aquella mesma Thereza,
Que a correr pela deveza.
Tantas vezes nos ccmsou!
•
Olhem como vem pimponal
E* uma senhora dona.
Reparem como ella vem...
Seu marido vem com ella
Todo cheio de cautella.
Que muitos ciúmes tem!
^lóres e Fructos, pag. 5.
u 25
384 HISTORIA BA LITTXRATUEA BBA8ILEISA
Aos beijos dos colibris!
Olhai — este harôm de verdura
Onde amor bebe a ternura
Das saudosas juritys !
Olha! — esses montes virentes
Estes arbustos florehtes,
Estes risonhos vergéis!
Olha! — os céos que além descobres...
Que reis tiveram mais nobres,
Mais deslumbrantes docéis?
Olha! — os dourados insectos
Nos seus enleios de affectos
Dourando a hervagem do chão!
E' tradição — que sâo flores
Animadas dos ardores
D*uma extremosa paixfto...
Olha. . . vê. . . ! n&o s&o chimcras!
Sâo iris, são primaveras
Na tela do nosso amor ;
Amor aqui faz pousada
No romper da madrugada,
Nas horas do sol se pôr!
Não cuides ser a ventura
Esse ouropel que fulgura
Sob os tectos dos salões,
Onde a mentira prospera,
E o perfume degenera
Das flores, das affeições!
Que valem ruidosos fastos,
Quando os corações vão gastos
De affectos, de amor, de fé?
A ventura verdadeira
Vive á sombra hospitaleira
Da casinha de sapé.
Olha! — que paz se agasalha
N'esta casinha de palha
HISTORIA DA LITTXBATXntA BSABILUBA 385
A* sombra â*este pomari
Olhai VÔ...1 que amenidadel
Abre a flor da mocidade
Na soleira doeste lari » (1)
NSLo basta esta ; Thereza deve ser lida ; eil-a :
« Quem vem da egreja? Thereza
Que foi casar-se... surpreza!
Não esperava este azari
Nunca me turbcira a idéa
Esta lembrança tão feia
De que podia casarl
Que não cuidei vejo agora,
Por que m'o afârma esta hora.
Que inesperada bateu!
Casada! vejo-a casada!
Jesus! como está mudada!
Pois também mudarei eu.
Seccae, espr^ançais viçosas,
Emurchecei, perfumosas
Flores, que eu tanto reguei!
Coraç&o, meu pobre filho,
Velho 'slás, segue o meu trilho,
Enruga como enruguei !
Casou-se aquella tngueira,
Que para nós tâo fagueira
Se mostrava ; já casou!
Aquella mesma Thereza,
Que a correr pela devez€^
Tantas vezes nos cansou!
Olhem como vem pimpona!
E* uma senhora dona.
Reparem como ella vem...
Seu mfiu^ido vem com ella
Todo cheio de cautell€^
Que muitos ciúmes tem!
(1) Flores e Frueto», pag. 5.
msiORU u 2S
386 HIBTOBIA DA LITTXRATXTBA VtLÁSnXOLL
Olhae-a, como nos foge!
Como mais esquivos hoje
Seus olhos fogem de nós!
Agora que está casada...
Não irá mais á latada
Colher as uvas a sós...
Jéi n&o veste saias curtas,
Como outr'ora a colher murtas,
Jambos ou maracujá.
Pelos declives dos montes
Ia, e depois vinha ás fontes,
E nós estávamos lá...
Vem? é outra! é outra... olhae-a!
E' vestido, não é saia^
Thereza a mesma nRo é!
E que vestido comprido!
Náo deixa ver o vestido
Nem a pontinha do pé!...
Adeus, senhora Thereza!
Salve o pobre na pobrezei,
Que isso nSlo lhe íica bem!
Soberba co*o seu marido,
Soberba co*o seu vestido,
Já não conhece ninguém!
Deixe-se de soberbias,
Lembre-se d'aquelles dias,
A* sombra dos cafezaes...
Descora... não tenha modo!
Vá tranquilla que o segredo
Da minha bocca... jamais...
Jamais... e jamais supponha
Seu marido que a vergonha
A' casa lhe hei de eu levar...
Jamais , senhora Thereza,
Que eu também tenho a certeza
De algum dia me casar » (1).
(1) Flores e Fructos^ pag. 88.
r^r
\
HIBTOBIA DA LITTSRATUBA BSABILBIBA 387
Leiam-se outras no volume, especialmente A laqòa dos
wres.
No poetar cómico e humoristico Bruno Seabra é um repre-
atante do género realista, d^aquelle realismo que substituiu
romantiâmo antes de apparecer o moderno naturalismo
16 alias tem melhor se desenvolvido no romance.
Poi género cultivado especialmente em^ Pernambuco por
>uza Pinto e Celso de Magalhães ; é consistente na photo-
aphia rápida do certos quadros, photographia de cores \
res, de pouca imaginação e em tom simples ; Bruno Sea-
a lhe metia certo humorismo picante.
São do género — O vestido carmesim^ Nós> e Vós^ Os meus
ios em leilão. Moreninha, Flora, Afilha do mestre Anselmo,
jenuidade, Laura, Mal áe um beiio, Ignez, Quiprocó, e
trás. Eis aqui alguns espécimens.
\Ioreninha é esta :
« Moreninhei, dás-me um beijo?
— E o que me dá, meu senhor?
— Este cravo...
— OrcL, esse cravo!
De que me serve uma flor?
Ha tantas flores nos campos!
Hei de agora, meu senhor,
Dar-lhe um beijo por um cravo?
E* barato ; guarde a flor.
— Dá-me o beijo, moreninha,
Dou-te um corte de cambraia. —
— Por um beijo tanto panno!
Compro de graça uma saia!
Olhe que perde na troca.
Como eu perdera co'a flor ;
Tanto panno por um beijo...
Sai-lhe caro, meu senhor.
— Anda cá... ouve um segredo...
— Aí, pois quer flar-se em mim?
Deus o livre; eu falo muito,
Toda a mulher é assim...
388 HI8T0BIA DA LITTBRATURÁ B&ASILXI&A
E um segredo... ora um segredo...
Pelos modos que lhe vejo
Quer o meu beijo de graça,
Um segredo por um beijo!?
— Quero dizcr-te aos ouvidos
Que tu és uma rainha...
Acha, pois? e o que tem isso?
Quer ser rei, por vida minha?
— Quem dera que tu quizesses...
N&o duvide, que o farei ;
Meu senhor, case com ella,
A rainha o fará rei...
— Cascw-me?... inda sou tão moço...
— Como é creança esta ovelha!
Pois eu pYa beijar creanças,
Adeusinho, já sou velha » (1).
Depois d*este dialogo, vae aqui um quadro de sala brevi:
simo ; é Flora :
(( Agora... agora!... murmurei baixinho
Nos ouvidos de Flora, a gentil Flora!
N&o ha tempo a perder, é pouco o tempo!
Dai-me o beijo de amor... agora!... agora!...
Agora... agora!... que propicio instante
Para o beijo de amor que Amor implora!
Esconde o rosto por detrás do leque,
Como quem nfio me viu... agora... agora!...
Ha mais de um anno que este amor faminto
Na esperança de um beijo se vigora!
Ha tanto tempo!... meu amor... meu anjo!
Agora... agora! dai-me o beijo... agora!...
Voltou seu rosto : por detrás do leque
Por um triz eu beijara a gentil Flora,
Se o maldicto do pae não vem saudar-me,
Perguntando a surrír — não dáhça agora?!
(1) Flôreê e Fruetoê, pa«. 100.
HI8T0BIA DA LTTTBBATURA BRABILBISA 389
Ha mais de um anno que este amor faminto
Na esperança de um beijo se vigora ;
£ quando cuido havel-o, bate as azas...
Ldve-te a breca o pae, querida Flora! » (1)
Como estes versos ha muitos ali ainda mais bellos e expres-
sivos. Nâo os cito por brevidade.
As Piores e Pructos silo dignos de repetidas leituras.
Joaquim Maria Serra Sobrinho (1837-1888).
Além de Odorico Mendes, Gonçalves Dias e Franco de Sá,
que já estudei em capítulos anteriores, além de Trajano Gal-
vrão e Gentil Homem, vistos mais ou menos individuadamente
ateste capitulo, restam ainda dois illustres poetas marar
ihenses a analysar n'este mesmo logar ; Joaquim Serra e Joa-
luim de Souza Andrade,
Digo que faltam dois e a verdade seria dizer que faltam
rinta ou quarenta, tal a abundância de talentos poéticos
i*aquella província dos annos de 1850 a 1870.
De todas as regiões do Brasil é o Maranhão a mais fácil de
studar sob o ponto de vista litterario.
As Três Lyras contêm as melhores poesií:;^ de Trajano,
entil 6 Marques Rodrigues ; o Parnaso Maranhense^ além
>s versos d'estes três, de Odorico, de Gonçalves Dias e
rance de Sá, traz os de quarenta e seis vates mais. E' um
tal de cincoenta e dois poetas I (2).
1) Flore» e Frueto», pag. 102
5?) Eil-os : António Gonçalves Dias, António Marques Rodrigues, António
iquim Franco de Sá, António da Cunha Rabello, Augusto César dos Reis
íol. Augusto Olympio Gomes de Castro, Alfredo Valle de Carvalho,
tonio César de Berredo, Aufifusto Frederico Colin, António A. de Carvalho
iveira. Ayres da Serra Souto Maior, Caetano Cândido Catanhede, Caetano
Brito Souza Gaioso, Cestino Franco de Sá, Coriolano César Ferreira Rosa,
nardo de Freitas, Francisco Sotéro dos Reis, Frederico José Corrêa,
mcisco Dias Carneiro, Fernando Vieira de Souza, Felippe Franco de Sá,
>io Gomes Farias de Mattos, Francisco Sotèro dos Reis Júnior, Gentil
mem de Almeida Braga, João Duarte Lisboa Serra, José Ricardo JauíTert,
6 Bernardes Belfort Serra, José Pereira da Silva, Joaquim Maria Serra
>rinho, José Mariano da Costa, Joaquim de Sousa Andrade, Joáo Emiliano
le de Carvalho, J. J. da Silva Maçarona, João António Coqueiro, D. Jesuina
STUsta Serra, Luiz António Vieira da Silva, Luiz Vieira Ferreira, Luiz
^uel Quadros, Manoel Odorico Mendes, Manoel Benicío Fontenelle, D
390 HISTORIA DA LITTEBATUEA BRASILEIRA
O Pantheon Maranhense, considerável obra de António Hen-
riques Leal, põe os seus leitores em contacto com os homens
mais distinctos da provinca em todas as espheras da activi-
dade social.
Os Sessenta Annos de Jornalismo (1820-80) por Ignotus
(Joaquim Serra) são um excellente escorço da publicislica ma-
ranhense no século xix.
Juntae agora a tudo isto as bellas edições dos auctores pn>
vincianos dirigidas por Bellarmino de Mattos em suas ofíi-
cinas, comprehendendo livros de Sotéro dos Reis, de Gon-
çalves Dias, de João Francisco Lisboa, de Souza Andrade e
comprehendereis a abundância de documentos e a facilidade
do trabalho.
Verdade é que a obtenção doestas e d'outras obras provin-
cianas nem sempre é cousa fácil a quem reside no Rio de Ja-
neiro.
A primeira necessidade do critico litterario é fazer n'uni
pessoal tão grande de escriptores a indispensável escoiha, a
selecção histórica do mérito.
No meio d'aquelles cincoenta e dois poetas podem-se notar
uns seis ou oito que levantam a cabeça mais alto. E Joaquim
Serra é certamjente d'este numero.
Não era, reparai bem, só a poesia que então fulgurava no
Maranhão ; lembrai-vos do brilho intenso do jornalismo poli-
tico, da eloquência forense e tribunicía, da historia, da critica
litteraria, e, para bem attingirdes a comprehensâo completa
dos factos, não esqueçais que só por si a figura imponente de
João Francisco Lisboa é sufflciente para illuminar uma epo-
cha inteira.
Joaquim Serra viveu n'aquelle meio e gozou da bella cama-
radagem de peregrinos talentos ; fez parte d'aquelle grupo que
escreveu em coUaboração o interessante romance A Casca da
Canelleira.
Maria Firmina dos Reis, Nuno Alvares Pereira e Souza, Pedro Weneseop
Catanhede, Raymondo Brito Gomes de Souza, R. Alexandre Valle de Car-
vaUio, R. A. de Carvalho Figueira, Ray mundo Pereira e Souza, Ricardo
Henriques Leal, R. Valentiniano de M. Rego, Severiano António de Azevedo,
Trajano Galv&o de Carvalho, F. F. de Gouvéa Pimentel Belleza.
HISTOSIA DA LITTEBATUBA BRABILBIBA 391
Joaquim Serra é unia natureza de fácil apreciaç&o ; foi um
lomeni alegre, expansivo, de um optimismo inalterável.
N*uma alma assim argamassada, o enthusiasmo tem entrada
rança; se o temperamento é de poeta, a poeisia será ahi
imples, galhofeira, ousada, patriótica ; se o temperamento é
6 politico, a intuição politica será o liberalismo em sua mais
ella expressão, esse liberalismo confiante no espirito hu-
lano, crente no seu progresso indeflnito, enthusiasUco pelo
âm estar do povo, liberalismo alheio á democratisação for-
ida 6 destruidora, que mata e arrasa sem construir.
O nosso maranhense teve ambos os temperamentos : foi um
>eta e um jornalista politico ; por uma e outra face suas qua-
lades principaes são o brasileirismo de suas inspirações,
humorismo amoravel de seu estylo.
EUe foi um optimista ; já o disse, e o meu leitor não se
pante, nem esbogalhe demasiado os olhos.
Não sei que espécie de aragem pestifera soprou sobre certos
)iritos, que agora andam a descobrir pessimismos e pes?i-
stas por toda a parte. . .
á começam a brotar do chão as theorias e cada um assi-
lia pátria especial á epidemia ; uns a julgam oriunda da
ssia, por causa da lucta entre o czarismo e o nihilismo, e
is por causa do génio sombrio da raça slava ; outros a
òxn provir da Allemanha por causa do militarismo e do
irito supposto phantastíco do povo, personalisado em Scho-
hauer ; estes, nada podendo admittir que não tenha sua
:em na portentosa França, gritam bem alto que a maia-
a pessimista irradiou de Pariz, engendrada alli por Plau-
^ por Goncourt e os mais ousados chefes do naturalismo ;
elles julgam-na um producto da complicadíssima civili-
,o modeima; aqueiroutros correm em defeza do nosso
limado e archi-prodigioso tempo, e dão a cousa como um
lucto do theologismo da edade-media ; os aryanos extre-
mos a põem na conta dos semitas ; estes cheios de razão o
onstram entre os aryanos desde os remotíssimos tempos
ndia buddhica I... E ctssim vae o debate.
io conheço outro assumpto em que as tolices e patacoadas
am occupado área tão considerável.
392 HISTOBIA DA LITTBRATUKA BEABILBntÀ
Uma velhíssima e constitucional tendência da organisação
humana dadas certas e determinadas circumstancias fm ele-
vada á categoria de mytho inexplicável.
O nosso Joaquim Serra não dará por este lado grandes afa-
zeres aos críticos ; elle soffreu da molesUa contraria, era um
optimista; digeria bem e sabia dar gostosas gargalhadas. Tant
mieux pour lui.
Sua biographia é simples e escreve-se em quatro palavras.
Pilho do Maranhão, fez alli alguns estudos de humanidades ;
sem ter a massada de ir a uma academia buscar um diploma,
verdadeiro trambolho muitas vezes, atirou-se logo muito
moço ao jornalismo de sua terra natal ; começou também
desde logo a cultivar a poesia.
Mais tarde passou-se para o Rio de Janeiro, onde sua vida
e sua arma foi sempre o jornalismo. Foi deputado n'uma ou
duas legislaturas ; no parlamento não se destacou por quali-
dade alguma especial.
Chegado a este ponto, é-me preciso agora dividir o as-
sumpto ; mostrarei o poeta e depois o jornalista.
Desde muito moço principiou elle a exhibir-se n'uma e
n'outra êsphera ; seus primeiros ensaios são de 1858, 59 e 60
no Publicador Maranhense, dirigido então por Sotéro dos
Reis.
Serra tinha alli por companheiros Gentil Homem e Marques
Rodrigues ; Serra usava do pseudonymo de Pietro de Casid-
lamare, Gentil do de Flávio Reimar e Rodrigues do de Sancho
Falstaff.
Já então era notável o poeta.
N'esta qualidade deixou publicados quatro livros : Versos
de Pietro de Castellamare, Salto de Leucade, Um Coração
de Mulher, Quadros.
N'estas obras, entre producções originaes, ha muitas tra-
ducções, nomeadamente dos poetas americanos.
Quem lê as poesias de Joaquim Serra é logo agradave^
mente impressionado pela espontaneidade do tom, pela sim-
plicidade das cores, pelo brasileirismo dos quadros.
Sente-se immediatamente que se está a tratar com um ho-
mem que veio do povo, que conviveu com elle, que o con-
HIBTOBIA DA LITTEBATXnEtA SBABILBIBA 393
becia, que se inspirou de sua poesia, de suas lendas, de suas
tradições ; um homem, e isto é o principal, que tendo mais
iarde lido os auctores estrangeiros, e havendo-os até estu-
lado e traduzido, nem por isso sentiu estancar-se-lhe a fonte
lo antigo brasileirismo e quebrar-se-lhe na lyra a corda das
intigas melodias sertanejas.
Serra foi um poeta local, eivado do impressionismo cam-
)esino e popular, e náo tinha vergonha de sél-o ; antes o pa-
enteava com desembaraço.
Acho-Ihe razão n'islo.
Mais de uma vez no curso d'esta historia, tenho defen-
ido 03 foros d'esse poetar sertanegista, popularista, ou como
fie queiram chamar. E' um género difflcilimo ; porque tem a
laior facilidade em descambar do bello para o ridiculo.
No viver das populações campesinas, especialmente em
Igumas lendas tradicionaes, em alguns costumes graciosos,
a muita poesia ; mas é só isto. Se se quer ir além e divisar
oesia em tudo alli, até n*aquillo que é de um prosaismo aca-
punhador, é um gravíssimo desacerto,
Não vamos nós agora suppôr que só na ignorância, na ru-
eza, na barbaria do sertanejo é que ha poesia, e que esta haja
ihido foragida dos centros civilisados e se tenha ido abrigar
)solutamente entre matutos^ tabaréos, caypiras, sertanejos,
irimpeiros, e quantas classes rudes e semi-bravias habitam
vasta zona central do enormíssimo Brasil.
E' preciso muito geito com estas coisas ; não queiramos á
pça de exaltar a sertanegidade da poesia, tornal-a de todo
licula; deixemos de cLgriculíorices muito exaggeradas, até na
opria litteratura. Se o bucolismo grego degenerou em
ilras parvoiçadas, não será o mattulismo brasileiro que
-de escapar da geral decadência de todo excesso.
A.contece á poesia o que se dá com a moral, cujo impera-
o categórico, segundo Kant, é : « procede de modo tal que
notivo de tua acção possa servir de fundamento a uma lei
i versai. »
3 philosopho quiz dizer que tão elevado, tão nobre, tão
^interessado deve ser o movei da conducta de cada um, que
394 HISTOBIA DA LITTEBATUBA BRABILBIBA
este movei possa servir de nonna para as acções de todos.
Esta possível generalidade é que interessa aqui.
Em poesia deve-se dar alguma coisa de análogo ; de\x
haver também uma espécie de vmperaiivo categórica para a
arte moderna : a Emociona-te e produz de maneira tal que o
estimulo de tua emoção e de tua obra possa servir de norma
a uma esthetica universal. »
Isto não importa do modo algum a proscripção do indivi-
duaiismo, do nacionalismo, ou de toda outra qualquer diffe-
renciação justa, necessária e hábil na litteratura e n^arte:
não importa absolutamente a absolvição de certo unlversa-
Usmo, certo cosmopolitismo banal e impertinente.
Bem pelo contrario : isto quer dizer que em lodo e qual-
quer assumpto, por mais local que seja, deve-se procurar
aquella face geral capaz de interessar ao homem, a lodos os
homens de qualquer tempo e de qualquer lugar.
Appliquemos a regra á nossa hypothese.
Comprehendei-se bem que se o principio da esthetica serta-
neja se estendesse, se generalisasse, e avassalasse todos os
poetas brasileiros desde 1500 até hoje, nSo haveria n'este
mundo coisa tâo insípida quanto a litteratura nacional. Já ^c
vê, pois, que o principio do seirtanegismo não comporta a
generalisação e muito menos a universalidade.
E se o sertanegismo, o campesinismo fôr d'aquillo que hou
ver de mais secundário, do mais particular, de menos gerdl
e capaz de interesse, ainda peior será elle. E d'este ultimo
possuímos infelizmente muitas amostras em nossa litteratura.
Em que condições então a nossa poesia campesina é accei-
tavel ?
Só quando é capaz de amoldar-se ao que eu chamei o impe-
rativo categórico da esthetica, só guando é susceptivei de
servir de norma, áh generalisar-se.
Tem ella este característico quando é manejada pelos poetas
de provado talento e apurado gosto artístico.
O poeta, assim armado de génio, toma o motivo p<H)ular, a
lenda, o conto, a tradição, o costume, extrae de tudo isto a
seiva poética e dá-lhe a forma artistica geral, universal.
Serra escreve correntemente, sem rabiscar, sem preoc<^u-
J
HISTORIA DA LITTEAATUSA BRASILEIRA 395
pações estylisticas. O verso lhe sae natural e espontâneo ; se
vem errado, não o corrige, deixa-o ficar assim mesmo. Por
este modo se explicam bastantes versos incorrectos em poeta
tão correntio e fluente.
No género, que tenho discutido, o característico do escriptor
niaranhense está em escolher sempre um facto simples e nar-
ral-o tal qual, pelo seu lado mais genérico ; faz um esboço
rápido, claro, de tom realista, n'um desenho firme, porém
elementar e sem complicações.
Por isso O Mestre de Resa, Rasto de Sangue, Cantiga á
Viola, O Roceiro de Volta sâo modelos da espécie. E' indispen-
sável citaJ-os para que o meu ledtor se convença do que lhe
af firma
Eis O Mestre de Resa :
« Era um velhinho teso
Exouisito no porte e no trajar ;
Por isso a viUa em peso
Quando o via se punha a cochicharl
Se da lista talarmos o vigário,
E mais o bolicaiio,
Bem como o juiz de paz.
Era o mestre de resa
O primeiro na villa ; com certeza
O homem ir^ais capaz 1
Depois d'Ave-Maria
Vem elle cada dia
Co'o meninos da villa,
E alli no largo, atraz da freguezia,
Põe todos n'uma fila :
As perguntas começam e as respostas,
E' um nunca acabar!
Os rapazes em pé e de mãos postas,
Elle em frente do linha a passear!
A resa ou é falada,
Ou em coro cantada, uma balbúrdia!
Quanta doutrina nova e mascavada!
Qu€uita oraç&o estúrdia!
As beatas morriam de alegria
Co*o dialogo d'Eva e da serpente.
396 HISTORIA DÁ LITTIBATUSA BBABIUSntA
E O psalmo da baleia
£ a santa melodia
Dos asnos da Judéa
E magos do Oriente!
Sabe o mestre umas resas milagrosas
Contra a faca de ponta e mau olhado,
E cobras venenosas,
E o jaguar a rugir esfomeado!...
Se quereis não cahir n*um sumidouro,
Elle tem orações prodigiosas,
Outras que fazem achar grande thesouro
Occulto e enterrado!
Mora n*aquella casa de uma porta,
Ao lado da ribeira ;
Na frente tem uma horta.
No fundo uma ingazeira.
Reside alli o homem milagreiro,
O apostolo da roça ;
E' de velhas devotas um viveiro
A sua pobre choça!
Salve o mestre da resa,
Na villa personagem popular!
Eil-o que passa... vale quanto pesa!...
Deixemol-o passar! )> (1)
E' um typo este quasi desapparecido actualmente das po-
voações do interior.
Eis agora uma scôna do viver das fazendas de criação do
norte ; é o Rasto de Sangue :
« E' a hora do crepúsculo ;
Que viraçôo tâo grata!
Geme o riacho quérulo.
Nem um cantor na mata!
Desce a ladeira Íngreme
Um touro de repente,
E vai nas frescas aguas
Fartar a sede ardente.
(1) Quadrot,^ pag. 42.
f
Quadroêf pag. 46.
filBTOBIA BA LTCTBATITSA BBA8ILBIEA 397
Os juncos tremem, súbito
Sôa medonho ronco,
E o jaguar precipite
Pula de traz de um tronco!
Debalde o touro curva-se
Recua, dá um salto...
£* o jaguar mais flácido.
Sabe pular mais altol
O touro parte célere,
Soltabdo um grito horrendo!
Sobre elle a fera escancha-se,
Também lá vai correndo!
Voam por esses pcu'€unos,
O touro em grandes brados,
Saltar querem das orbitas
Seus olhos inflammados!
Espuma, arquejai a língua
Da bocca vai pendente!
Garras e dentes crava-lhe
A fera impacientei
Largo rastilho rúbido
Embebe-se na areia,
O sangue jorra cálido
Da lacerada veia!
Gohtrahe-se a forte victima
Luctando com bravezal
Porém o algoz impávido
Lá vai... náo deixa a presa!
Correram mais! Que insânia!
Que scena pavorosa,
Passada no silencio
Da selva escura, umbrosal
Emfim n*um precipício
Os dous v&o baquear...
Cahlram lá exânimes |
O touro e o jaguar! » (1) .j
J
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íi
398 HISTORIA DA LITTBRATUBA BItASILSmA
Ha n'isto muita côr local.
Apreciem agora a naturalidade d'esta scèna real e vulg%-
rissima na roça :
(( Eil-o ahil £' o Vicente,
E mais o ruço-queimado!
Oh, homem, fala co*a gente!
Venha um abraço apertado...
Que demorai Seis semanas!
Pois patuscas li*essa idade?
Eu aqui a plantar cannas,
Tu folgando na cidade!
Toma a bençfto do padrinho,
Menino, deixa esse gallo ;
Moleque, sahe do caminho,
Tira a sella do cavallo.
Solta-o depois no terreiro
Fecha a cancella co'a tranca...
Compadre, tome primeiro
Um bocadinho da branca.
Se acaso n&o'stÁ com sôde
Prove um pouco da coalhada ;
Vamos, deita-te na rode,
EstÀs massado da jornada.
Quantos dias de viagem?
Seis dias e meio... — Safa!
Aonde deixaste o pagem?
— Adoeceu com a estafa.
— Ruins caminhos, a ponte
Quebraram... que malvadeza!
O rio de monte a monte
Com medonha correnteza!
— Compadre, foi o diabo,
N&o caio n*outra tão cedo ;
De vale'ntfio não me gabo,
D*essas cousas tenho medo.
HIBTOBIA DA LITTBRATimA BBABILSIBA 399
SÓ por ser negocio urgente
Fui agora, sem vontade...
— Deixa-te <l*iS80, Vicente,
E os prazeres da cidade?
— Os prazeres! Porventura
Eu acho aquillo bonito?
— O que dizes, creatura?
~ O que disse e tenho dito!
— Sou matuto, sertanejo,
N&o ha nada como a roça...
Lá na cidade n&o vejo
Cousa que me faça mossa!
— Pois a côile nao te agrada?
Nâo falas serio, eu aposto...
Gostas da roça e da estrada?
Vicente, nfio gostas... — Gosto!
— Trocar t&o lindos recreios :
O theatro, a contradansa,
As luminárias, passeios,
As modas vindas de França,
Pela derrub€^ a capina,
O roçado e a coivara.
Caçadas de sururina,
Esperas de capivara!
E* tremenda exquisitice,
E' uma loucura immensa!
Desculpa se no que disse
Vês um vislumbre de offensa. . .
— - Comtigo não dou cavaco,
Dize tudo, mas escuta,
Mette a viola 'no sacco.
Depois arenga e disputa :
Na cidade nasce o dia |
Saudado por mercadores ; '
No campo o sol irradia :
Entre gorgeios e flores! j
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I
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400 niSTOfiU DA LITTEBATUSA BRABILBIBA
O sabiá que na mata
Canta os hymnos da alvorada,
Eu prefiro â serenata
Lá na cidade tocada.
A caçada na floresta,
Ou a pesca na lagôa,
Anteponho a qualquer festa
D*essas que a corte apregoa.
Se fores hoje ao theatro
E vires mulheres nuas,
Fazendo o diabo a quatro
Como o garoto das ruas.
Desejarás muitas vezes
Os nossos rudes folguedos,
As festas dos camponezes
A' sombra dos arvoredos!
— Oh, compadre, que loucura!
Isso que diz náo tem senso!
POe a roça n'uma altura!...
— O que digo é o que penso!
— Nfio penso eu! — Paciência,
Eu n&o teimo com teimoso...
— Passa até a indecencia
O parallelo afírontoso!
— O que queres? sou receiro...
— Porém pôde ter miolol...
— E's um bobo!... Capurreiro!
— Que pateta! — Forte tolo!
A conversa dava em bilga,
Gritaria e alvoroço...
Mas na porta voz amiga
Murmurou : *Stá prompto o almoço! » (1)
Joaquim Serra não tocou somente a viola do setanejo ; ma-
nejou também a harpa das inspirações sociaes e a lyra das
emoções amorosas.
(1) Quadroêt pag. 53.
HISTOBIA DA LITTEEATUEA BBA8ILEIBA 401
N*este género são bellissimos os versos A Minha Madona.
Como jornalista, entretanto, é que este auclor adquiriu mais
ntensa nomeada.
Suas primeiras armas íêl-ajs elle no Maranhão desde 1859
60 no Publicador Maranhense, então sob a direcção» de
lotéro dos Reis, como disse.
Serra, como já notei, usava então do pseudonymo de Pietro
e Castellamare, assignando poesias e folhetins.
Em 1862 com alguns amigos fundiou a Coalisão que advo-
3Lva em politica o partido liberal, e conservou-se na redacção
é 1865.
Em 1867 fundou o Semanário Maranhense, onde collabo^
ram Gentil, Souza Andrade, Henriques Leal, Cezar Mar-
les, Sotéro dos Reis, Sabbas da Costa e Celso de Maga-
ães, então apenas estudante de preparatórios (1).
0 periodo liguei ro de 62 a 68, o nosso jornalista passou-o
1 sua província, com algumas pequenas estadas no Rio. De
Ião em diante estabeleceu-se definitivamente n'esta capital,
áe fez parte das redacções da Reforma, do Diário Offícial,
Folha Nova e do Paiz.
í^estas duas ultimas folhas foi o auctor da interesssante pu-
jação sob o titulo de Tópicos do dia. Era um artigo diário
sagrado ao acontecimento mais saliente da occasião.
's méritos d'este brasileiro como jornalista são de fundo
3 íórraa.
fundo é sempre apreciável pelo bom senso do auctor,
liberalismo jamais desmentido, sua habilidade em dis-
lir o lado fraco dos planos e acontecimentos políticos da
3ha.
forma é agradável pela sua simplicidade, seu desalinho
trai, uma das faces do humorismo e da ironia do ma-
lense»
le espalhou pelos jornaes matéria para muitos volumes ;
L útil que tivesse feito uma escolha dos seus melhores
os políticos e litterarios e os publicasse em livro.
!k>nsulte-8e o livro de Ignotuã já citado.
HISTORIA n 26
402 HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIBA
Não O tez, 6 apenas lhe conheço em prosa o pequeno
volume que publicou em 1883 relativo a imprensa do Mara-
nhão.
D'este livrinho recommendo especialmente os capítulos
segundo e terceiro sobre a imprensa partidária e sobre os
jornalistas eminentes no Rio e em sua terra natal.
Como documentação do estylo e das ideias do escriptor
repito aqui dois pequenos trechos.
Eis o primeiro :
« A existência da impretisa politica é uma necessidade urgente em
todos os centros de grande actividade.
Em regra geral essa imprensa, que se intitula neutra ou impar-
cial, não cumpre com a fidelidade que fora para desejar o seu pro-
gramma de inteira isempção de animo nas luctas que dividem a
sociedade. Como que ella se resente d^essa obrigação que tinha o
cidadão de Sparta de, por força, manifestar-se em favor de algoma
das opiniões que dividiam a republica.
A falta de imprehsa politica como que obriga aquella, que se diz
incolor, a imiscuir-se nas contendas partidárias e a julgar d'ellas de
um modo arbitrário, como quem desconhece as paixOes e enthu-
siasmos que se acham em jogo.
Ainda mesmo não filiada aos partidos que litigam, essa imprensa
neutra ou imparcial, em matéria de ensino, de religião, de escolas
económicas, tem sempre o seu ponto de vista especial, já advogahdo
a não obrigatoriedade do ensino, o proteccionismo industrial, ou o
privilegio de certos cultos. D'ahi uma falsa doutrinação dos leitores;
falsa, pelo menos perante a consciência d^aquelles que desejariam
ver semeadas idéas contrarias.
A imprensa politica tem em "nosso paiz prestado grandes e iin-
portantes benefícios. A ella se deve tudo quanto de bom e salutar ha
sido promulgado pelos poderes públicos, porque só ella tem agitado
as grandes questões sociaes, que hoje se acham solvidas, ou em via
de solução.
O despotismo sempre fugiu d'ella, porque deve-lhe certas derro-
tas ; entre nós a tyrannia encontrou o seu mais valente inimigo
no Joilíialismo partidário, arma formidável e invencível.
Da imprensa politica entre nós se pode dizer o mesmo que das
reuniões populares na Inglaterra, disse Gladstone :
« A historia do Reino Unido, nestes últimos cincoenta annos, mos-
tra como a agitação politica favorece o triumphar das gra'ndes can-
sas, sem nunca cahir na vertigem revolucionaria. »
;
HI8T0BIA BA LITTXSATUBA BRA8ILBIBA 403
De facto : nos dias angustiosos que precederam a declaração da
independência, de que importância n&o foi, por exemplo, o jornal de
Gonçedves Ledo e do frade Sampaio? E, ao lado do Reverbero, quanto
Mo cooperou, em bem da mesma ideia, * o Regíãador^ org&o dos
Andradas?
De que vedia não forcun, depois da fundação do império, os sep-
viços da Aurora, da Sèntinella do Serro, do Argos, da Astréa, do
Independe^nte, do Tamoyo^ do Observador Constitucional e de outros
esforçados athletas?
ET uma accusação sem procedência essa que fazem ã imprensa poli-
Uca pelos excessos e, por vezes, intemperança da linguagem uaada
nas discussões. Sem por forma alguma querer negar que ha ainda
muito a fazer na educação politica dos partidos entre nós, é ínncgA-
yel que a imprehsa partidária tem os erros, exaggerações e intole-
râncias do grupo que representa.
Espelho fiel da sociedade e dos interesses que nella se agitam, não
é licito exigir da imprensa politica aquillo que ainda falta €U)8 par-
tidos militantes, isto é : escola quanto a doutrinas, e respeito pela
opinião que não é a nossa.
Fora d*ahi, porém, cabe de direito á imprensa politica a maior
parte da gloria pelas conquistas da civilisação com que temos assi-
gnalado nossa vida publica » (1).
Ainda mais significativo é o trecho seguinte em que elle
dá uma rápida ideia de alguns dos mais eminentes jorna-
listas nossos ; por ahi pode-se apreciar o escriptor no offlcio
de critico litterarío. E' isto :
a Sem duvida que é para encher de orgulho a um paiz novo como
o nosso o facto de contar, entre os seus jornalistas, homens da força
de Evaristo da Veiga, Salles Torres Homem, Justiniano da Rocha e
Firmiho Silva, sem falar de notabilidades que ainda vivem e
que podem emparelhar com as mais illustres.
Evaristo, o patriota ardente e publicista esforçado, elle que, no
dizer de um nosso distincto escriptor, era a encarnação de notável
epocha, cujo nome symbolisa a parte mais brilhante da democracia
do Brasil; o redactor da Aurora Fluminense fazia com os seus escrip-
tos vibrar a alma da pátria e constituiu-se uma força decisiva nos
dias do primeiro reinado.
(1) SeêêerUa annoi de jornalismo — A Imprensa no Maranhão (ISK^
1880) pag. 7S.
.!
^
404 HISTORIA DA LITTE&ATURA BRASILEIRA
A Aurora não foi somente um grande instrumento de combate, foi
monumento de sabedoria e de elegância litteraria.
Salles Torres Homem, esse artista da palavra, cujo eslylo brilha e
fere como o raio, esse pehsador profundo, foi escriptor de tempeni
forte. Pamphletista como Cormenin, seus artigos, quer nos jornal
litterarios, quer nos jornaes politicos, sôo productos de grande valor
S^çm qualquer tempo e em qualquer paiz.
^ : Justiniano José da Rocha, o discutidor mais eloquente e illustraido
que temos tido, de uma fecundidade seductora, espirito de lucidez
pasmosa, de verbo crystallino e vibrante ; e Firmino Silva, intelli-
gencia alimentada em sólidos estudos, talento brilhante e de grande
ductilidade, são nomes que o jornalismo fluminense archíva no livro
de ouro de seus brazões e fidalguia.
Não menos illustre que qualquer d'esses, José de Aleticar fulgiu oa
imprensa da capital do império como luminoso phai^oL Ninguém
melhor do que elle tratou com erudição de qualquer assumpto doo-
trinario, ninguém elevava a mais alto grão a critica litteraria, e, na
polemica incisiva, quer apaixonado ou humorístico, era elle um
batalhador enorme, de phrase máscula e scintillanle.
E mais Tavares Bastos, pensador eloquente e inspirado, cujo
estylo vale o bronze.
Pois bem, lá no extremo norte fulguraram também outras estrel-
las que podem, sem grande desvantagem, competir com estas í.t
constellação jornalistica que fulgio no Rio de Janeiro.
Tanto nos dias difficeis que seguiram a independehcia, como du-
rante as despóticas obstinações do primeiro reinado; na época agi-
tadíssima da minoridade, como no periodo decorrido depois do —
QtieTO Já — que abriu o reinado actual : em todas essas quadras tem
o Maranhão possuído jornalistas notáveis e uma imprensa recom-
mendavel pelo patriotismo, saber e bom gosto litterario.
Sem querer formar parallelos e approximações, podemos todavia
dizer que, a cada uma dessas grandes individualidades que aponta-
mos, como os primeiros vultos do jornalismo que teve sua sede ca
corte, corresponde um nome, uma capacidade, em tudo similhante,
na imprensa do Mara'nhão.
E* assim que, a Evaristo podemos oppor José Cândido ou Odorico
Mendes ; a Torres Homem e Justiniano da Rocha, João Lisboa oa
Sotéro dos Reis » (1).
• (1) Sessenta annoê de jornalismo, pag. 103.
HISTORIA DA LITTERATTJEA BBASILEIBA 405
Em resumo, Joaquim Serra foi um meritório poeta e um
assignalado jornalista.
Robusto, alegre e espansivo, seu bom humor habitual,
ieixando intactas suas primitivas impressões, encantuou-o
ia região aprazivel do lyrismo pátrio e do liberalismo tradi-
íional e preservou-o de innovações perigosas e precipitadas.
A invasão das ideias modernas espalhadas pela philosophia
lo ultimo quartel do século xix fez-se n'elle cautelosa e de-
noradamente, sem desmoronar de súbito e de vez o antigo
diflcio de suas crenças e intuições.
Bem pelo contrario, apesar de ter bastante lido e se haver
Ilustrado bastante, póde-se em rigor dizer que íundamental-
lente o seu espirito conservou a mesma attitude e a mesma
•escura primitivas.
Joaquim de Souza Andrade é quasi inteiramente desconhe-
do, o que facilmente se explica pela Índole de seu poetar.
' merecedor, porém, de attenção.
Descubro-lhe alguns signaes característicos ; primeiramente
I nossos poetas é, creio, o único a occupar-se de assumpta
íiericano estranho ao Brasil, um assumpto colhido nas
publicas hespanhohas (1) ; depois, é um poeta de forte ele-
ção de ideias ; mas de forma muitas vezes áspera e rude
quasi inintelligivel.
Váo é possível entrar em grandes desenvolvimentos.
3 leitor muna-se dos dois volumes de Souza Andrade publi-
los sob o titulo — Impressos — no Maranhão em 1868 ;
i-os a começar pelo principio, O Guesa Errante^ passando
Dois ás peças soltas.
Lndrade viajou e tomou o grande faro da litteratura do
ulo no estrangeiro ; mas não assimilou uma tendência
tlquer definitiva. D'ahi certa indecisão em seus ideiaes
ertas vacillações em suas poesias.
ao possuia também a destreza e a habilidade da forma ;
longe em longe ou ás vezes de perto em perto apparece
Nos meus UUimoê HarpejoM flz o mesmo no Poema d<u Américas.
406 HIBTOBIA DA LITTEBATXTBA BBA8ILEIRA
algum verso, alguma estropher excellente, ou até admirável, e
depois succedem-se pedaços e pedaços muito menos felizes.
Uma cousa, porém, é preciso que se diga : o poeta sae quaà
inteiramente fora da toada commum da poetisaçã.0 do seu
meio; suas ideias e linguagem têm outra estnictura.
E' pena que a forma não obedeça a uma igual differençiaçáo:
porque, se tal acontecesse, Andrade seria um poeta de pri-
meira ordem.
A funcçâo da critica é em tal caso simplesmente mostrar,
apontar o caminho.
O poeta, com suas audácias, suas bellezas, suas obscuri-
dades, suas asperezas, acha-se todo no singular poema — O
Guesa Errante. Na ouverture que cito apreciem o estylo -
as intuições d'este maranhense :
Folga, imaginação divina! Os Andes
VulctínÍGOs elevam os cumes calvos,
Circumdados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens fluctuando — que espectáculos grauidesl
Lá onde o ponto do condor negreja,
Scintillando no espaço como brilhos
D'olhos, e cae a prumo sobre os filhos
Do Ihama descuidado ; onde lampeja
Rugindo a tempestade ; onde, deserto
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
No seio a palpitar do céu aberto.
Coração vivol — Nos jardins da America
Infante adoração dobrou sua crehça
Ante o bello signal, que a nuvem ibérica
Em sua noite envolveu ruidosa e densa.
Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heroes vencedores do innocente
índio nú, quando os templos incendeiam,
Já sem virgens, sem oiro reluzente.
Sem as sombras dos reis filhos de Manco,
Vio-se... (que tinham feito? e pouco havia
HISTOBIA DA LITTEEAT17SA BBABIUUSA. 407
A fazer-se...) n'um leito puro e branco
A corrupção que os braços estendOia!
E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruido. Como ensanguentada
A terra fez sorrir o céo serenol
Foi tal a maldição dos que caldos
Morderam a face dessa mãi querida
A contrair-se aos beijos denegridos,
Que o desespero imprime ao fim da vida ,
Que resentio-se, verdejante e válido,
O floripondio em flor ; e quando o vento
Mugindo estorce-o, doloroso e pallido,
Gemidos se ouvem no amplo firmamento!
£ o sol que resplandece na montanba
As noivas não encontra, não se abraçcun
No puro amor ; e os fánfarrOes d'Hespanha,
Em sangue edeneo os pés lavando, passam.
Caiu a noite da nação formosa \
Cervaes romperam por nevado armento,
Quemdo com a ave a corte deliciosa
Festejava o purpúreo nascimento.
Assim volvia o olhar o Guesa Errante
As meiíeiadas cimas, como altares
Do génio pátrio, que a ficar distemte
Vôa a alma beijar além dos ares.
E enfraquecido o coração, perdoa
Pungentes males que lhe deram os seus»
Talvez feridas settas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.
Porém não se interrompa esta paisagem
Do sol no espaçol mysteriosa a calma
No horizonte, na luz bella miragem
Errando, sonhos de doirada palmeu
408 HISTORIA DA LITTEBATURA BRASILSniA
Folga, imagínaç&o divina! Sobre
As ondas do Pacifico azulado
O phantasma da Serra projectando
Áspero o cinto de nevoeiros cobre :
D'onde as torrentes espumando saltam
E o lago anila seus lençóes d'espelho,
E as columnas dos picos d'um vermelho
Clarão ao longe as solidões esmaltam.
A forma os Andes tomam solitária
Da eternidade feita vendaval
E compellindo os mares, procellaria,
Condensa e negra, indómita, infernal!
(Ao que sobe do oceano, avista a curva
Perdendo-se do ether ho infilnito,
Treme-lhe o coração ; a mente turva
S'inclina e beija a terra — Deus bemdito!)
Ou a da noite austral, co'a ilôr do prado
Communicando o astro ; ou a do bronco
E convulsivo se annellar d'um tronco
De constrictor o páramo abrazado » (1).
Uma leitura cuidadosa das producções de Souza Andrade
irá descobrir n'elle boas ideias e grandes bellezas obscure-
cidas por descuidos e defeitos.
Ha muita cousa no pessimismo, no satanismo liodierno que
tem ali suas predecessoras.
Leia-se, por exemplo, Vascas do Justo^ e, como esta, outras
composições do auctor.
Juvenal Galeno é escriptor de quem direi pouco; elle
já está implicitamente julgado nas paginas precedentes d'este
capitulo ; já lhe ílz muitas referências.
Tem passado pela mais completa incarnação da intuição
(1) Impres$08tpSLg. 7. Ultimamente apparcceu, em edição especial, completo
O Guesa Errante. Convém ser lido por inteiro.
HISTORIA DA LITTEBATUBA BBASILBIBA 409
popular em nossa lilteratura ; ha n'este ponto razões pró e
razões contra.
Contra póde-se dizer que não foi elle o primeiro a inspirar-
se no viver de nosso povo, nem foi o que o fez com mais
talento e mais arte.
A favor póde-se asseverar quê nenhum de nossos escriptores
como elle se interessou tanto e tão constantemente com
as nossas classes populares, ninguém as acompanhou tão
amoravelmente, tão apaixonadamente. Este livro é um livro
de consciência, de amor e de verdade, em que pretendo dar do
melhor de meu espirito em favor de minha pátria.
Por isso faço plena justiça a todos os que entre nós sup-
portaram o pesadíssimo encargo das letras.
Juvenal Galeno é, por esta face, um benemérito ; foi um
activo e um trabalhador. Seu maior defeito foi faltar-lhe a cul-
tura precisa para entrar plenamente nos domínios litterarios
e artísticos.
Esta falta inicial, apesar de todo o seu bom senso e de
toda a sua intelligencia, conservou-o sempre em uma posição
inferior.
Já disse anteriormente que o poetar de Galeno é quasi todo
n'um género, pelo menos, incompleto e desageitado ; porque
nem é a ideialisação artística do viver popular, nem é a colheita
directa de seu cancioneiro.
Este ponto, deixei-o bem assignalado n'este capitulo por
diversas vezes.
Pouco ha a juntar agora, bastando-me ponderar que não
se deve por isto desprezar a obra litteraria do escriptor ser-
tanejo.
Apezar do defeito apontado, ha muito que apreciar e lou-
var nos livros d'este cearense.
O conhecimento pratico dos costumes populares, o amor
ás classes proletárias, o liberalismo, o devotamento ao pro-
gresso, a sympathia profunda por tudo quanto é nacional, são
qualidades inilludiveis n'este sympathico auctor nortista.
Quem d'isto duvidar leia nas Lendas e Canções Populares
o prologo sob o titulo historia doeste livro, e leia-o com
attenção.
410 HISTORIA DA LITTISSATUBA BRA8ILEIBA
Ahi diz O poeta, terminando :
(( Sei que mal recebido serei Yios salões aristocráticos, e entre
alguns críticos que, estudando nos livros do estrangeiro o nosso
povo, desconhecem-no a ponto de escreverem que o Brasil nfio leni
poesia popular! Esquecidos de que a poesia nasceu com o homein
e só com o homem morrerá ; de que nâo ha povo que não tenha a sua
lenda, a sua ca*nçâo, a sua poesia, bella, original, toda filha de soa
alma, e que não exprima a sua saudade, o seu amor, a sua magoa;
de que no estado selvagem o Brasil teve essa poesia no canto das
tribus, que commemoravam seus feitos guerreiros e as aventuras
de seu viver errante, entoando, aos sons da tniiòia, do torem^ do
murmure ou do maracd, a canção intima, a tradicional, a da guerra,
e a de seus costumes ; de que Yios tempos coloniaes o povo cantavia
a oppressão que soffria, as suas aspirações á liberdade, o capfi-
veiro de seus filhos, a devastação de suas florestas ; de que na inde-
pendência o brasileiro cantou as peripécias da luta, a \ictoria, os
heróes, os hymnos do livre; de que hoje, illaqueado por sua boa
fé, lendo na lei — liberdade, e nos factos — despotismo, canta nâo
só os seus amores e as lendas do passado, como também os sens
pezares de cidadão! E de que o povo sabe ca^ntar, como sabe chorar,
gemer e suspirar, nasceu cantando, como os passarinhos, como tudo
que tem voz, porque o bom Deus assim o quiz, assim o íadoa
poetai » (1)
O poeta admirava-se de que em 1865 houvesse quem contes-
tasse no Brasil a existência da poesia popular I
Era em 1865 na phase dos românticos ignorantes e alrã-
zados...
Mais espantado ficaria elle, se lhe dissessem que hoje,
quarenta annos depois, ainda temos aqui admiradores, tão
enthusiastâs de todos quantos são desaffeiçoados ao Brasil,
que levam a mal qualquer defesa justa, qualquer elogio fun-
dado que se faça ao que é nosso.
Galeno tem uma ou outra poesia em que é mais artista:
o Velho Jangadeiro, a Jangada e outras mais são d'esta es-
pécie.
Lendoê e Canções Populares, Ceará, 1865 pag 18.
HI8T0BIA DA LITTEBATUBÁ BRA8ILEISA 411
Como exemplificação do seu estylo no que tem de mais
geral, cito aqui o — Meu Roçado :
« Que bello está! Feito em regra,
Bem limpinho, bem plantado.
Algum milho e feij&o verde
Vai-me dando o meu roçado ;
Já tirou-me dos apertos
De quem trabalha alugado.
Outro sou com meu roçado...
Ventura!
Fugiu-me a fome de casa,
Agora vejo a fartural
Bem a Joanna me dizia
Nas horas de privação :
— <( Homem, faze um roçadinho,
« Planta arroz, planta feijão,
(( Que esta vida de alugado
(c Ao pobre não serve não!
Duzentos passos de terra
Arrendei para o roçado,
E empurrei no matto a foice,
E depois de broqueado.
Fui á derruba e pical-o
Espanando o meu machado!
Secco o malto, fiz a cama
E acabando de asseiral-o,
Puz-lhe fogo... que buraco!
Não custou encoivaral-o!
Fazia Joanna as coivaras,
E eu tratava de cerc€d-o.
Vindo que fosse o inverno,
Pláhtal-o fomos um dia,
As covas eu preparava,
O resto Joanna fazia,
Punha a semente, e de terra
Com seu pé a cova enchia.
412 HISTORIA DA LITTEBATURÀ BKASILEIBA
Bom inverno! Em pouco tempo
Meu legume vi nascer!
Chamei Joanna para vel-o...
Tudo ent&o era prazer!
Que alegria sente a gente
■ Vendo o que plaiita crescer!
Bom inverno! Após a limpa
Todo o milho apendoou ;
A mandioca escurece...
O meu ÉU^roz cacheou ;
Girimum e feijão verde
Logo em casa se provou!
Agora nosso alimento
Tiramos lá do roçado,
Comemos tão satisfeitos
Do que foi por nós plantado...
Mesmo lembrando as fadigas,
Que nos custou o bocado!
Se é preciso a minha Joanna
De milho faz um angu;
Com dois páos de mandioca
No caco faz um beijú ;
Se mais quer... traz do roçado
De macachôra um urú.
Sempre aqui a meza posta,
Em breve, em breve o dinheiro!
Qulmporta pesada renda.
Que m'importa o dizimeiro?
Inda assim! Hei de ter milho
Para mais d'um estaleiro!
Mais doce me corre a vida
Por causa do meu roçado ;
Ai, Joanna, bem me dizias,
Que um laco de chão plantado,
E* melhor do que a penúria.
De quem trabalha alugado! » (1)
(1) Lendas e Canções Populares^ pag. 101.
J
HISTOBIA PA UTTEBATUBA B&àBiLBIBJl 413
Galeno possúe em verso Lendas e Canções Populares^
Lyra Cearense e Canções da Escola e em prosa Scénas Popu-
lares. Sâo obras que devem ser lidas, por darem uma ideia
de nossas populações centraes.
CAPITULO V
Poesia. — Quinta phase do romantismo.
Já foram percorridas quatro phases diversas do romantismo
brasileiro : o emanuelismo de MagalhêLes e seu grupo, o
indianismo de Gonçalves Dias, o subiectivismo de Alvares de
Azevedo e sua plêiada, o sertanegismo dos poetas do norte.
Falta agora atravessar os dois últimos estádios da romântica
entre nós : o lyrismo esp€ci(ico de Pedro Luiz e Fagundes Va-
rella, e o condoreirismo de Tobias Barretto, Castro Alves e
seus mais próximos seguidores.
Isto feito, esteurá encerrada a historia da poesia romântica
e aberto o espaço para a historia d'aquellas doutrinas e
theorias que tem disputado a herança e substituição do velho
e glorioso systema.
Antes, porém, de encetar a narrativa dos feitos de Pedro
Luiz e Fagundes Varella, é de necessidade instante aqui de^
pôr algumas vistas theoricas. São necessárias para a eluci-
dação dos typos htterarios.
A popularidade immensa, e, em mais de um ponto, perfei-
tamente exaggerada dos livros de critica artística e litteraria
de Hippolyto Taine, trouxe a crença geralmente admittida da
414 HIBTOBIA DA LITTEBATUBA BBABILEI&A
capacidade magica de três palavras para a explicaçãa com-
pleta dos phenomenos litterarios e congéneres.
Meio^ raça e momento sáo a trindade portentosa do cri-
ticar contemporâneo; servem para solver todas as difflcul-
dades.
Onde encontram um facto qualquer fora do communi re-
correm muitos ao meio^ e o façanhudo factor apparece e
arreda os embaraços.
Outros deixam de lado o meio e agarram a muleta do mo-
mento ; alguns, finalmente, calçam as botas da raça.
Não quero, nem posso contestar a influencia de qualquer
d'estes factores no desenvolvimento e na formação dos pro-
ductos litterarios. Bem pelo contrario, muitas vezes tenho
recorrido também a elles e ainda agora vou de novo recorrer.
Mas sustento que, só por si, elles sâo incapazes de reve-
lar, de esclarecer o problema, todp o segredo dos génios
e dos grandes talentos das lettras.
Para tomal-o bem claro, náo tenho necessidade de em-
pregar grande esforço e pesquizar grandes recursos. E' bas-
tante olhar para uma phase qualquer de uma litteratura
notável.
Seja a Inglaterra, ou seja a Âllemanha, ou seja a França
em alguma hora decisiva do xix século.
Tome-se o primeiro d'estes paizes nas três iniciaes décadas
do século.
O momento, o meio, e a raça sáo os mesmos ; como explicar
só por elles Byron, Wordsworth, Shelley, Keats, tâo diversos
entre si ?
Repare-se que não falo no escossez Walter-Scott, nem no
irlandez Thomaz Moore.
Como explicar no romantismo de 1830 em França Lamar-
tine, Hugo, Musset, Balzaic, Vigny, tão dissimilhantes ? A
raça, o meio e o momento foram os mesmos.
E' que n'estas inquirições tomam-se sempre esses elementos
como tudo, n'elles encerra-se a totalidade dos agentes e rea-
gentes e esquece-se um factor primordial, um núcleo indis-
pensável, uma força viva, um centro de energia, a individuar
lidade.
\
HIBTQBIA BA UTTSBATiniA BEABILBIKA 415
Além da raça, que é geral para uirt povo, para uma nação
lada, além do meio, que também é geral pelo menos para
ima grande fracção d'esse povo, além do momento que tam-
)em é geral ao menos para cada geração doesse mesmo povo,
i preciso que o critico assignale e dê conta de alguma cousa
[e inicial, de primitivo, de fundamental, a individualidade^
ue em cada homem é uma resultante obscura de toda a
volução cósmica e humana, a resultante de um passado inde-
^rminado pela complexidade inexplicável de sua indeilnita
uração.
Quero com isto apenas deixar assentado que os factores
e Taine não explicam tudo, que elles são muito bons apenas
3mo agentes modificadores de um elemento importantíssimo,
individualidade, considerada esta como um centro, umla
>mma de energias, um núcleo de força e acção.
Assim considerada, ella escapa ao influxo da critica, é uma
pecie de présupposto, de substratum irreductivel.
Só os três factores de Taine é que podem ser submettidos
> exame da historia.
Isto posto, qual d^elles tem mais contribuído para a for-
ação, a especialisação, a diflerenciação do caracter brasi*
ro7
A raça, tenho sempre eu supposto ; o meio, tem sempre
5pondido um intelligente e destro critico brasileiro Araripe
nior.
□onvem examinar isto.
( A questão da historia da litteratura nacional, diz elle,
Lis do que outra, entendo só pôde ser resolvida pela con-
itraçáo das nossas vistas sobre o meio physico. E' o único
itor estável de nossa historia, o único que se consegue
)mpanhar, sem soluções de continuidade. »
>into estar em desaccôrdo com o illustre critico. O meio
ijsico, que também foi contemplado n'este livro em capi-
3 especial, é para mim um agente de differenciação, e, por
) mesmo, não é o elemento estável e resistente.
l' unidade nacional é garantida, a meu vêr, pelos agentes
raes e pela energia ethnica.
'oram as qualidades moraes e intellectuaes do colonisa-
416 HISTORIA BA LITTBBATirRA BRA8ICEIRA
dor, ajudado pelas raças a que se alliou, sua cultura, suas
lettras, religião, legislação, costumes, industrias, etc, que
mantiveram o desevolvimento unitário do Brasil.
Nosso problema histórico se me afigura ser este : indicar
a formação do povo brasileiro, como um producto sociológico
especial, distinoto do portuguez.
Para isto deve-se considerar, com os factos, o colonisador
europeu como o elemento principal de nossa formação, e
em seguida mostrar os elementos que se lhe juntaram, que
o alteraram até certo ponto, produzindo o brasileiro.
E' claro que se o portuguez não soffresse aqui influencia
nenhuma estranha, o Brasil séria a reproducção de Portugal.
O brasileiro mostra-sc, porém, differenciado do portuguez.
Qual a razão ? Por effeitos do meio physico principalmente,
diz o Dr. Araripe. Por effeito principalmente das raçcLs com
que elle tem cruzado, digo eu, e parece-me que mais acer-
tadamente.
O meio exerceu e vai exercendo, não resta duvida,
entre nós, grande acção ; mas, sendo elle um agente pri-
mordial para a formação primitiva das raças e para a expli-
cação das civilisações autochtones, nas civilisações trans-
plantadas, sobre povos, que immigraram já de posse de
suas qualidades históricas, o meio physico, sendo um factor
ainda muito importante, não é, comtudo, o principal.
Existem d'islo provas por toda a parte.
Que é que mantém a diversidade entre os povos que na
Europa occupam a mesma zona e o mesmo clima ha muitos
séculos ? Será o meio idêntico entre muitos d'elles ? Evi-
dentemente são as suas qualidades ethnicas e suas tradições
históricas.
Que é que estabelece a distancia na America entre as nações
que experimentam quasi o mesmo clima ? São ainda as di-
versidades de raça e de tendências moraes e intellectuaes.
Os meios eram tudo para a humanidade primitiva e pré-
histórica.
Uma vez estabelecidas as raças históricas, uma vez en-
trados, como estam, nos tempos actuaes, os povos não são
mais um joguete dos climas.
HIBTOEIA DA LITTEEATUBA BBASILBIBA 417
Ha uma muralha que representa muitos millenios de luta
em que a humanidade adquiriu todas as qualidades, que hoje
a distinguem. Os climas passaram para o segundo plano e
os agentes ethnicos, physiologicos e moraes, tomaram-lhes
a dianteira.
Em nossa historia o factor permanente, nos quatro séculos
já percorridos, tem sido o porluguez. Em sua passagem para
o brasileiro^ é ainda a um elemento ethnologico, é á mesti-
çagem, que se deve pedir a explicação do phenomeno. O
clima fica em segundo plano. ,
O clima, tomsuido-o na accepção mais geral, insisto em
dizer, foi um agente valentíssimo na formação das raças e
das civilisações autochtones.
Nas épochas propriamente históricas sua acção tem conti-
nuado ; mas já não é apreciável, ou, pelo menos, não o é
tanto quanto o phenomeno dos mestiçamentos dos povos.
Durante muitos millenios pôde elle formar as raças préhis-
toricas e esboçar os povos actuaes. Mas a sua acção é tão
lenta, que não se deixa notar nitidamente nas civilisações mo-
dernas.
Duvido que haja um anthropologista capaz de determinar
com segurança quaes as transformções experimentadas nos
últimos dois mil annos, pelas populações da Europa, trans-
formações produzidas só pelo clima.
Quaes as modificações operadas pelo meio nos povos indo-
germânicos, immigrados para o occidente ? A historia não
sabe responder.
Tão longe quanto é possível subir na corrente dos tempos,
logo que os hellenos, os latinos, os celtas, os germanos, etc,
apparecem na historia, já se nos antolham com seus cara-
cteres distinctivos. O mesmo póde-se dizer das velhas raças
semiticas e das suppostas turanas.
O mais assombroso exemplo da influencia do clima que se
conhece, é a exercida sobre os aryanos da índia. Compara-
dos aos da Europa, nota-se-lhes uma enorme distancia. Mas,
quantos milhares de annos não trouxeram o estupendo re-
sultado ? E este mesmo por sua lentid&o é hoje apontado
HISTORIA n B7
418 HISTOBIA PA LITTBBATURA. BSASILKIR4
post factum e não foi cousa assignalavel, dia a dia, pelos
historiadores.
Ha quatrocentos annos é o porluguez transformado aqui
pelo clima... Até que ponto tem chegado esta modificaçáo?
Náo creio, que haja quem possa responder. Só d'aqui a três
mil annos será talvez possível ao futuro historiador dizer
qual a deformação produzida nos aryanos pelo clima doeste
paiz.
Mas então provavelmente esta terra terá passado por uma
dúzia de mutações históricas, como a Grécia, como a Itália,
como a Gallia, como a Hespanha, como a Bretanha. Ella pro-
vavelmente não será mais o Brasil, quero dizer, não será a
terra da actual nação brasileira, . .
O povo actual se obliterará provavelmente nas raças absor-
ventes do norte, nos anglo-saxonios e germânicos, por
exemplo.
Na lucta pela posse da terra não sei os povos que nos
obstinamos a chamar latinos estarão livres de outras in-
vasões, á guisa das operadas no começo da idade média.
Parece-me que não.
Haverá talvez só uma differença : é que a invasão mo-
derna vai-se fazendo lentamente pela colonisação.
Nao sei o que será dos povos fracos da America do Sul,
quando os Estados-Unidos e a Allemanha tiverem noventa ou
cem milhões de habitantes e sentirem necessidade de despejar
gente para as zonas meridionaes.
Oxalá que, n'esse tempo tenhamos um povo feito e resis-
tente, capaz de absorver aquellas sobras, sem perder a sua
individualidade.
Em todo caso, o que a historia então ha de consignar
com segurança é aquillo que hoje em dia já ella determina,
isto é, as mutações e mescleis das raças. A acção do clima
não poderá ser seguida passo a passo.
Em nossa historia de quatro séculos não sei que diíterenças
tenha o meio produzido no caboclo, no negro e mesmo no
portuguez. O que noto a olhos nús é o mestiço.
Este é o brasileiro por excellencia, é o agente em torno do
qual faço mover a nossa historia litteraria e politica. E n'elle
HI8T0BIA DA LITTBEATITSA BRASILBIBA 419
evidentemente influe muito mais o contacto das raças do
que a acção do clima.
Esta é longinqucL, apreciável a largos espaços e de diffl-
cultosa determinaçcLo, até no próprio futuro.
Supponhamos que, d'aqui a mais quatrocentos annos, as
três raças primordiaes de nossa população tenham-se entra-
laçado completamente; que não haja mais caboclos puros,
nem negros puros ; que uma sabiamente dirigida corrente de
immigração branca nos tenha vindo ajudar n'esta obra da
obliteração das cores escuras; que o typo brasileiro seja
então bem carècterisado ; qual será ahi a obra da selecção
ethnica e qual a da selecção do nieio ?
Por certo a primeira será mais profunda.
Ha além de tudo, uma razão peculiar ao Brasil e é esta :
o clima aqui nada tem mais a mudar no indio e no negro,
que já são obras da zona tropical, nada quasi terá mais a
fazer com. o mestiço, o genuino brasileiro, que recebe dos
dois povos tropicaes os elementos de resistência.
Determinada assim a influencia do factor ethnologico, resta
marcar, na obra da selecção ethnica, o mestiçamento,
quem mais tem contribuído, se o indio, ou se o negro. O
Dr. Âraripe ainda aqui se mostra em desaccordo, dando a
preferencia ao caboclo.
No livro sobre seu parente, José de Alencar, referindo-se
ao incontestável predomínio dos mestiços de negro e branco
entre nós, doutrina evidentíssima, por mim sustentada, veio
elle com umas reducções, não de todo Armadas nos factos.
Devo cital-o para ser claro : « Com igual precipitação em
um recente trabalho, aliás notabilissimo, sobre a Poesia
Popular no Brasil, foi elle levado a dar ao elemento africano.
maior preponderância no nosso desenvolvimento estheiico.
Digo precipitação, porque o critico não teve tempo de lem-
brar-se que, para decidir esta questão, seria necessário dividir
primeiro o Brasil em zonas.
No Pará, Amazonas, Ceará e Rio Grande do Norte, por
exemplo, o elemento negro é quasi nullo ; tudo cabe ao indí-
gena; as influencias d*aquella raça apenas chegaram alli
por contra-golpe.
420 HISTORIA DA LITTEBATUSA BRASILEULA
No Rio de Janeiro, Bahia e Minas, é onde pôde ter lugar
a applicaçâo do negrismo em toda a sua plenitude. »
Nlo sé trata de applicação de negrismo ; trata-se de deter-
minar a formação dos brasileiros como um povo á parte, dis-
tincto do portuguez, e, para isto, buscam-se os factores da
operação.
O portuguez entrou em uma evolução de differenciação
de seu typo originário pela acção do meio physico, do negro,
do Índio e das correntes estrangeiras. E' o phenomenoi com-
plexo que se quer determinar e não somente a esthetica do
brasileiro, ou a applicação do negrismo.,. expressão- injuriosa
e de mao gosto.
Pondo em balanço a influencia do negro e a do indio, sou
levado, pelos factos, a dar a preponderância áquelle contra
este.
No Brasil só as extremas terras das fronteiras é que abrem
uma excepção positiva. São as províncias pouco povoadas do
alto norte e do oeste, onde o indio campôa ainda inútil e
donde será expellido, logo que o branco e o negro alli pene-
trarem amplamente. E' o caso do Amazonas, Matlo-Grosso, e,
até certo ponto, de Paraná, Goyaz e Pará. Do Rio Grande do
Sul o indio tem desapparecido, mas alli o branco predomina.
A mestiçagem com a negro não é muito abundante e com o
indio ainda menos.
Todo o resto do Brasil entra na formula que tracei : Ma-
ranhão, Rio Grande do Norte, Parahyba, Pernambuco, Ala-
goas, Sergipe, Bahia, Espirito-Santo, Rio de Janeiro, S. Paulo,
Minas Geraes, Santa Gatharina e o próprio Geará e Piauhy.
Ainda mais : a influencia ethnographica da mestiçagem do
negro com o branco tende a ganhar terreno nas províncias em
que o caboclo ainda vive mais ou meoios desassombrado. A
colonisação do Brasil vai de leste para o poente e a vez de ren-
dèrem-se os últimos reductos do caboclo ha de chegar. Não ha
precipitação de minha parte; ha apenas a consignação de
factos positivos.
Onde é, entre nós, maior a população, maior é a mesfi-
çagem de origem africana e portugueza. Bem se vô que o
alto norte e o longiquo oeste ficam fora da fórmula^
HISTORIA DA LITTEKATUKA BRASILEIRA 421
O facto do predománio no Brasil povoado da população
oriunda do mestiçamento das raças branca e negra tem sido
contestada acremente e é, pois, necessário insistir para esta-
belecer a verdade.
O Dr. Araripe Júnior tem n'este ponto sido um constante
adversário, cujos argumentos merecem serio e detido exame.
Minha afílrmaçáo foi sempre esta : no Brasil a maior parte
da população é de mestiços ; entre estes, no corpo colonisado
de nosso solo, predomina a mestiçagem africo-lusitana, e são
uma excepção apenas as regiões do alto norte e do ejctremo
occidente, onde o caboclo puro é ainda mais ou menoe abun-
dante e donde será eXpellido quando o branco e seu auxiliar
negro alli penetrarem amplamente.
Nas regiões povoadas, próximas das zonas extremas do
norte e oeste, o mestiçamento do branco e indio é talvez igual
ou um pouco superior ao do branco e negro. Mas isto é a ex-
cepção ; o resto do paiz entra plenamente na minha formula.
O phenomeno que hoje se passa diante de nossos olhos,
depois de quatrocentos annos da descorberta, é eloquentís-
simo. O indio desappareceu de toda a região verdadeira-
mente povoada do Brasil ante a concurrencia do branco e do
negro. Morreu, sumiu-se, em parte obliterou-se nos cruza-
mentos.
Sob este ponto de vista, o Brasil pôde ser dividido em três
secções :
a) Estados donde o selvagem puro desappareceu já total-
mente, deixando ap>enas adlguns descendentes no mestiça-
mento geral ;
b) Estados onde elle existe puro em pequenas levas acan-
toado em regiões desertas e tem alguns representantes no
mestiçamento ;
c) Estados onde existe puro em numero pouco considerável
internado em desconhecidos recessos, e em numero mais con-
siderável desfigurado nois cruzamentos.
No primeiro caso estão as províncias do Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Parahyba,
Rio Grande do Norte e Ceará.
422 HISTOaiA DA LITTERATUBA. BRASILXIBA
Na segunda hypothese estâa Santa Catharina, Paraná, S.
Paulo, Minas, Bahia, Espirito Santo, Piauhy e Maranhão.
Na terceira acham-se Pco^, Amazonas, Matto Grosso e
Goyaz. Eis ahi os vinta Estados da Republica.
A formula é, pois, applicavel a todo o paiz ; menos ás fron-
teiras do norte e do oeste, que, mais tempo menos tempo,
acabarão por entrar na regra geral.
O Dr. Araripe Júnior objectou com relação ao Ceará e ao Rio
Grande do Norte. Não conheço praticamente estas regiões ;
mas appello de seu testemunho para a auctoridade de dous ho-
mens insuspeitos : o Dr. Amaro Bezerra e o Conselheiro Tris-
tão Araripe.
O primeiro, a quem propuz a questão, aflançou-me ter per-
corrido por vezes todo Rio Grand-e do Norte e que alli, incon-
testavelmente, predomina a mestiçagem africana.
O outro, pai do Dr. Araripe Júnior, em sua Historia do
Ceará, assim se expressa : « O que em toda a America suc-
cede, acontece também no Ceará. A população indigena é
hoie insigniiicantissima na província e tem quasi desappare-
ddo. » (Pag. 19) (1).
Ha na obra do conselheiro Tristão de Araripe muitas pas-
sagens como esta. Tratando dos cruzamentos dos selvagens,
mostra que foram pouco abundantes com o brunco e mais
constantes com os próprios negros para os quaes os índios
tinham predilecção.
Eis o trecho : « Nunca puderam os directores conseguir a
realisação de casamentos entre a raça branca e a indigena;
mui raro foi o consorcio que entre ambas se deu e se dá
hoje ; todavia, entre os indios e as castas mestiças, foram e
são frequentes as uniões conjugaes, pela decidida inclinação
que têm os indios aos mulatos, pardos e negros » (pag. 31).
Deduzo destas citações que o indio puro tem desappare-
cido da provinda e que na mestiçagem em que delio-se, foi
com o concurso do negro, e, portanto, este leva-lhe vantagem,
porque ainda ali existe puro aos milhares, ou desfigurado nos
cruzamentos com o branco e com o próprio caboclo.
(1) Isto dizia o Conselheiro Tristão de Alencar Araripe ha mais de
40 annos.
HI8T0BIÁ BA LITTXRATXntA BEAfilLSISA 423
Os Estados do Rio Grande do Norte e Ceará não podem ficar
fora da formula que tracei e ser-me-hia fácil demonstrar o
mesmo para todo o resto do Brasil colonisado.
O Dr. Araripe Júnior appellou para a Exposição Anthropo-
lógica Brasileira havida não ha muitos annos no Rio de Ja-
neiro.
Ora bem, a exposição foi incompleta e inexacta no titulo ;
seria quando muito uma Exposição Anthropologica Indiana.
Uma exposição anthropologica brasileira deveria ter, pelo
menos, quatro secções : a secçãol portugueza^ a africana, a
tupi, e a resteuite — a n\estiça.
Na primeira deveria estar exhibido o homem* da peninsula
ibérica em todas as suas manifestações histoiricas e préhisto^
ricas ; na segunda o homem africano e suas industrias ; na
terceira o homem americano e na ultima o brasileiro actual.
Nada d'isto viu-se ali onde apenas estavam agglomerados
alguns objectos referentes ao homo americanus.
Aquelle fragmento de exposição teve um valor relativo;
mas não prova o que o Dr. Araripe pretende. Pelo contrario
prova o que tenho afflrmado. Quem lá esteve no dia da aber-
tura e nos subsequentes poude ver o seguinte :
Dentro do edifico e nas ruas adjacentes agitavam-se os visi-
tantes, isto é, 08 brancos, os negros e os mestiços destas em
todas as suas gradações... e ots reis da terra, os caboclos,
onde se achavam ? Não foram vistos senão representados em
telas ou emi barro...
Para cumulo da irrisão fofam mandados vir do Rio Doce
meia dúzia de indios aldeados, meia dúzia de antigos monar-
chãs das selvas, que se deixau'am ficar lá para o Corpo de Bom-
beiros, como um oòjecto de curiosidaxie, á guiza de animaes
raros, expostos ás vistas de um publico enfastiado... E é este
o predomínio do caboclo ? Não pódei haver maior cegueira.
O Índio brasileiro está condemnario á sorte dos povos da
Polynesia. Ali não só o homemi desappareceu ante o concurso
europeu, como ainda desap pareceram algumas espécies ani-
mães e até vegetaes com a introducção das espécies estran-
geiras. E' facto provado por centenas de viajantes e que M. de
424 HISTOBIA DA LITTEBATURA BBASILEULA
Qualrefages pôz a limpo na Revista Scientiiica de PaHz^ de 9
de junha de 1877.
O Índio não é ainda plenamente entre nós um objecto de
sciencia ; é antes, e acima de tudo, um assumpta de poesia.
Excepção feita dos trabalhos linguisticos de Baptista Cajetano,
alguns estudos de Couto de Magalhães e Carlos Hartt, sob o
ponto de vista ethnographico, tudo o mafs que no Brasil se
tem escripto á conta do selvagem; é sem mérito absoluta-
mente (1).
E se a queífâo é de amor para com as raças que consU-
tuiram o nosso povo, porquei motivo não se estuda o negro,
como se estuda o indio ? Porque motivo em nosso Musew não
ha uma secção africana? Porque não se investigam as
linguas dos negros, sua poesia, seus contos anonymoÃ, seus
usos e costumes, suas danças e festas, suas idéas religio-
sas, etc. ?
E* que para esta enormissima injustiça contribue com Ioda
a sua força a massa immensa do prejuizo nacional... Ninguém
tem a coragem de estudar o negro para não passar por ewado
de casta.,. Esta é a questão e, muitas vezes, o maior defensor
do indio contra o negro é o pardo evidente e carregado!
E' ainda um resíduo do romantismo. O Dr. Araripe, folgo
em reconhecel-o, não participa grandemente da mania in-
diana.
Hoje defende o caboclismo mais por uma tradição da
escola a que pertencera em sua puerícia litteraria do que
por uma preoccupação systematica.
A verdade é, em geral, que se deseja fazer do estudo do
selvagem uma especialidade. O intento pôde ser em certo sen-
tido louvável, mas tem sido improfícuo.
Não possuímos ainda a calma necessária, nem os methodos
precisos para abordar o estudo das raças selvagens objectiva-
mente, como um problema puramente anthropologico ou
histórico. Sonhamos ainda e sempre um Brasil tapuio.
Se na própria Europa e nos Estados-Unidos os grandes
estudos amcricanistas são ainda muito incertos ; se os immen-
(1) Cumpre abrir excepção também em prol de alguns estudos de Capis-
trano de Abreu e algumas paginas de Barbosa Rodrigues.
HISTORIA DA LITTBRATURA BRASILEIRA 425
SOS trabalhos sobre as civilisações do México, Guatemala e
Peru são na máxima parte fluctuantes, como se deprehende de
todos os congressos europeus, o que não se dará com o
Brasil, sem especiaJistas, sem- escolas adequadas ?
Dá-se o que se tem visto : hypotheses phantasmagorícas e
absurdas, phrases, phrases e mais phrases...
Ainda não ha muito a Exposição o demonstrou. O espe-
cimem préhistorico velho de muitos millenios, pertencente,
por certo, a uma raça differente do indio do tempo da desco-
berta, achava-se mesclado aos espécimens dos tempos colo-
niaes e até aos pertencentes ás populações mestiçadas da
actualidade I
Apezar da bôa vontade do pessoal do Museu, d'alli não sur-
giu uona destas obras imponentes e decisivas que podesse elu-
cidar de uma vez os problemas e trevas que cercam as nossas
raças selvagens. Não critico ; assignalo apenas um facta
Como quer que seja, porém, e a despeito das difficuldades,
os estudos americanos, apezar de imperfeitíssimos, acham-se
iniciados entre nós, protegidos pelo romantismo e «m grande
parte pela fatuidade nacional, que ainda adormiece no ledo
sonho de julgar-se indigena,,,
E' a velha mania da nobreza tupinambá de que muitos bra-
sileáros sâo ainda em extremo affectados.
No tempo da Independência a moléstia chegou a seu auge,
e até mulatos, como o finado Francisco Gomes Brandão, to-
maram nomes indigenas. Elle chamou-se Acaxjaba de Monte-
zuma.
Um disparate, como outro qualquer.
Louvo os estudos americanos ; mas como estudos^ não
como pasto a velleidades ethnicas.
Deveríamos também iniciar os estudos africanos. O negro,
espalhado pela Africa & America, é uma raça que ofierece inte-
ressantíssimos problemas.
Muitos sábios europeus, seguindo o exemplo de Bleek, atí-
rain>-se a estas pesquizas. Façamos o mesmo. O negro e seu
parente mestiço tocam o nosso povo bem de perto. Não seja-
mos presumpçosos, nem tenhamos medo de dizer a verdade.
O predomínio apparente do indianismo na civilisação bra-
426 HI8T0BIA DA LirTBfiÁTtTRA BBABILXIRA
sileira é um velho prejuízo, difflcil de extirpar. Causas nume-
rosas e especiae^ coutribuiram para arraigal-o, e hoje ainda
elle está de pé.
Estriba-se falsamente em razões litterarias, históricas, geo-
graphicas e sociaes. Na litteratura apparec© como um pro-
testo contra os invasores; vê-se no indio a encamação do
génio do Brasil e o nativismo traduz-se no caboclismo.
Na historia appella-se para o numero avultado das Iribus
primitivas, e recorre-se á grande porção de aldeiamentos dos
selvagens catechisados na zona colonisada. E* emhalde que se
demonstra serem as enumerações dos velhos chronistas
inexactas, tomando elles simples denominações de famílias c
de variedades de um só grupo por outras tantas tribus e na-
ções diversas.
E' embalde que se mostra a decadência progressiva dod
aldeiamentos e sua extincçãx) quasi completa desde o sé-
culo xvui.
Sempre o prejuízo vai fazendo seu caminho.
Na geographia appella-se para as nomes tupis que abundam
em nossa carta, sem reparar que esse phenomeno natural
nada prova, além do respeito á tradição. Na esphera social o
indio tem mais sympathias, deixou ha mais tempo de ser es-
cravisado e, por ser menos escuro do que o negro, é mais que-
rido.
O caboclo é mais ideialisado, mais estudado, mais conhe-
cido.
Sonhamos um Brasil tapuio, disse eu, e nâo reparamos que
desejamos o mal. Todas as nações americanas em que o ele-
mento europeu náo predomina, como o México, Peru, Equa-
dor e Bolivia, são as menos progressivas do continente. Não
podem competir com os Estados-Unidos, o Chile, a Republica
Argentina e o próprio Brasil.
Devemos desejar que em nosso paiz a immensa mestiçagem
da população seja habilmente reforçada pelo elemento branca
Mas historicamente é de justiça e verdade conferir ao negro
papel mais eminente do que ao botocudo, ente fraco, desequi-
librado e prestes a cxtinguir-se. E' a luta pela existência ; o
mais débil devia ser devorado. O exacto conhecimento de
HISTOItIA DX LITTBRATXTRA BRABILBIRA 427
nossas condições ethnographicas facilita a comprehensão dos
typos litlerarios.
Pedro Luiz Pereira de Souza (1839-1884). Toraou-se fa-
moso por ter escripto quatro poesias celebres. Era filho de
um fazendeiro abastado, e tambemi abastado foi elle, juntando
a isto o facto de pertencea* a certa aristocracia politica e in-
fluente da Província do Rio diei Janeiro. D'ahi a facilidade de
sua carreira nas letras e na vida social.
Como já disse em outro logar doeste livro, elle nasceu
em 1839, no anno de Machado de Assis, Carlos Gomes e
Tobias Barrelto, e emquanto estes três oriundos de famílias
obscuras marcavam passo, já em 1860 Pedro Luiz, aos vinte
e um annos, apresentava-se formado em direito e entrava
com grande ruido na politica^ tomando parte na redacção
do Correiro Mercantil em 1861.
Pouco depois em 1862-63 foi um dos redactores da Actuali-
dade ao lado de Lafayette Rodrigues Pereira e Flávio
Pamese (1). ,
Era uma epocha de anciedteide ; acabávamos de ter uma du-
vida com o Perii e uma grave questão com a Inglaterra;
nossa politica no Rio da Prata, e especialmente no Estado
Oriental, atravessava uma crise perigosa que se resolveu
com a guerra; o partido conservador tinha apodrecido no
poder de que se havia assenhoreado desde 1848, e formava-se
a Liga, o chamado partido Progressista; a litteratura tinha
baixado na poesia á choramiga banalissima; era um ma-
rasmo geral que occultava o trabalho surdo da evolução para
um futuro melhor.
Quando em 1862-63 Pedro Luiz e seus collegas da Acttia-
lidade batiam-se na politica, alheavam e jogavam longe suas
qualidades litterarias, no Recife um punhado de moços fun-
daram aquelle memorável movimento espiritual, que tem
vindo a durar até hoje e que foi o foco d'onde se tem espa-
(1) Vide a biographia de Pedro Luiz no Pantheon Fluminenêe de Lery
dos Santos.
428 flIBTOBIA DA LITTE&ATURA BBA8ILEISA
Ihado por todo o Brasil as novas ideias que modificaram a
nossa velha intuição romântica.
Tobias Barretto, Castro Alves, Franklin Távora, Araripe
Júnior, Victoriano Palheu^es, Guimaràeis Júnior, Carneiro Vi-
lella, Celso de Magalhães, Cardoso Vieira, Castro Rebello,
José Hygino, Plinio de Lima, José Jorge, Generino dos San-
tos, Souza Pinto, Annibal Falcão, Clóvis Beviláqua, Arthur
Orlando, Inglez de Souza, Marques de Carvalho, Rocha Lima,
Martins Júnior, João Freitas, João Bandeira, Virgílio Erigido,
Alvares da Costa, e outros e muitos outros, foram os sustenla-
dores do movimento alli durante os últimos quarenta annos,
movimento em que o auctor d^esta^ linhas teve alguma parte.
Começou-se pelo que mais tarde a critica do Rio de Janeiro
veio a chamar o condoreirismo na poesia ; passou-se á critica
litteraria, á philosophia positiva, ao darw^inismo, aos estudos
de poesia popular, ao romance de costumes e histórico, á
poesia socialista c scientiílca, ao naturalismo do direito e
a outras grandes manifestações do pensamento moderno.
Durante este tempo Pedro Luiz esterilisava-se na politica,
Lafayette mecanisava-se na chicana forense c na chicana par-
tidária, Farnese fallecia precocemente. E, comtudo, Pedro
Luiz tem direito a figurar em nossa historia litteraria, duplo
direito como poeta e como orador.
Destacarei especialmente o poeta. Para o julgar existem
além das quatro celebres peças, Terribilis Dea, Voluntários
da Morte^ Nunes Machado e Sombra de Tira-Dentes^ um
punhado de outras insertas na Revista Mensal do Ensaio
Philosophico Paulistano.
N'esta interessante publicação académica, onde se acham
os mais antigos escriptos de Tavares Bastos, Macedo Soares,
Bittencourt Sampaio e Francisco Belisario, o poeta publicou
versos, discursos e folhetins.
N'esta phase paulistana predominavam em sua lyra os sons
doces e ternos de um lyrismo plácido, que nada tinha, aliás,
de especial e distincto. Se não descia até ao chatismo, não
Rttingia a uma grande altura.
Os seguintes versos sob o titulo — O que eu quero — se^
j
HI8T0BIA DA LITTEBATTTBA BKA8ILXIRA 429
vem bem para exemplificação do estylo antigo do vate flu-
minense :
(( Eu quero n*esta vida um sonho lindo
Que passe como a nuvem côr de rosa,
Hei-de dizer, depois, cerrando os olhos
— Oh! flor do cemitério, és bem formosa.
Não quero muito não : á fresca sombra
Do viçoso jardim da mocidade,
Quero dois dias m'emballar tranquillo
Gozando amor em doce liberdade.
Quero ver sempre o céo puro e sereno,
Nuvens de amor e o sol sempre dourado,
E aos doces beijos da mulher que eu amo
Hão de ir morretido as dores do passado.
Debaixo da mangueira eu hei de vôl-a
Ao meio dia languida dormindo.
Soltos cabellos fluctuando ao vento.
No seu sonho gentil irá sorrindo.
A* noite quando a lua dos amores
Vier chorar debaixo do arvoredo,
Encostada indolente no meu hombro
Ella ha de ouvir-me virginal segredo.
Oh! sombra dos amores tão formosa
Como é viva e formosa a borboleta,
Eu serei para ti — a doce aragem,
Tu serás para mim — a violeta.
Quero dois dias — na macia grama
Reclinado a sonhar sobre um canteirol
Passarei minhas horas perfumadas
Como a cândida flor do jasmineiro.
Será vida bem curta, porém bellal
Sem ambição, sem glorias e sem dores,
Basta um raio do sol tendo a meu lado
Uns lábios de mulher e algumas flores*
430 HISTOSIA BA LITTBBATUBA BRASILBnU
Posso morrer depois, e que m'importa
Tendo a vida corrido vaporosa?
Que hei de murmurar, cerrando os olhos.
Oh! ílôr do cemitério, és bem formosa! » (1)
As quatro poesias celebres de Pedro Luiz são de cunho
politico e social ; na género são das mais antigas que se
escreveram no Brasil.
Nunes Machado é de 1860, o ultimo anno do curso acadé-
mico, 8 versa sobre o pranteado revolucionário pernambucano.
A Sombra de Tira-Dentes é de 1862, por occasiáo de eregir-se
em uma das praças do Rio de Janeiro a estatua de Pedro L O
poeta insurge-se contra o preito prestado ao primeiro im-
perador e proclama o direito de Tira-Dentes a ter elle e só
elle uma estatua, como o proto-martyr da indlependencia na-
cional. Tem elle razdo no culto que rende ao heróe mineiro ;
mas é injusto para com o fllho de D. João VI.
Na grande obra da prosperidade, do engrandecimento c
da independência do Brasil, não ha lugar para um culto só
e espaço para um só pedestal, ha largueza bastante para
muitos cultos e altura sufflciente para cem estatuas.
E no meio delias manda a justiça e ordena a historia que
se alevante o busto do primeiro imperador.
Não sou suspeito e não tenho medo de dizer a verdade.
Os Voluntários da Morte são de 1863 e consagrados á revo-
lução da Polónia ; é um brado de dôr e sympathia pelo des-
ditoso povo europeu.
Terribilis Dea é de 1865 e refere-se a um dos episódios da
guerra do Brasil contra o Paraguay.
Os defeitos dessas poesias são o abuso de allegorias e appa-
rições e o tom declamatório ; os méritos — o espirito demo-
crático, liberal, altaneiro, a fúria canora que por èllas cir-
cula.
Pedro Luiz não fez escola, não deixou discípulos. Retirado
para a sua fazenda, ahi passou obscuramente o decennio de
1868 a 1878.
(1) RevUta Meneai do Ensaio Philotophiaco Paulistano, 2.* serie,
S. Paulo, Maio de 1861» n. 1.% pag. 15.
HI8T0RU DA UTTSBATX7KA BSABILBXBA 431
A ascençâo do partido liberal ao poder trouxe-o de novo
á vida nesta ultima data ; foi deputado e chegou a ministro ;
mas o poeta havia desapparecido e o orador já não tinha os
Ímpetos de 1864 a 68.
A politica e a criminosa indifferença do nosso publico por
assumptos litterarios foram matando aos poucos aquelle ta-
lento, que foi cahindo no scepticismo.
E quando teremos nós espirito publico preparado para as
lutas e conquistas do espirito, quando teremos completa
emancipação intellectual, se ainda hoje vemos perfeitos le-
vianos, verdadeiros trahidores insurgirem-se contra a pátria,
cujos progressos amesquinham e prostrarem-se ás plantas
de escriptores estranhos a mendigar as migalhas de sua
mesa ?
Esqueçamol-os e vamos ouvir os versos de um patriota,
de um brasileiro e independente, um desses que não rece-
biam senha e ousavam falar por si.
Passa a Sombra de Tira-Dentes, ponhamos o ouvido á
escuta :
a Façam alas!... O préstito se avança...
Reluzem as espadas... Preso á lança
Estremece o sagrado pavilhão :
Elle vem nos contar a grande historia...
Despertamos ao sol de nossa gloria.
Ao medonho estampido do canhão.
A orchestra militar vibra seus hymnos,
E o povo treme, como se os destinos
Surgissem gloriosos lá do céo.
Façam alas!... São íilhos doesta terra,
Que vão erguer aos cânticos da guerra
De feitos nossos perennal trophéo.
Bafeja o mundo aragem de esperança ;
Lá do heróico passado uma lembrança
Evocaram na tuba marcial :
São levitas da pátria agradecida,
Que vão, cheios de fé, de fro'nte erguida,
N*68ga marcha solemne, triumphal.
432 HI8T3BIA DA LITTEBATUBA B&ABILBUtA.
Esses louros da pátria ensanguentados,
Pelo fogo divino illuminados,
Tinham direito á saudação viril ;
E os vindouros, em civica romagem,
Vão prestar-lhes esplendida homenagem,
Sahindo agora do marasmo vil.
Hoje se elevam tradições queridas!
Na poeira dos annos esquecidas.
Até hoje iiinguem as acordou.
E' divida sagrada ao sangue altivo,
Que, saltando na algema do captivo,
Como lava de fogo arrebentou.
Façam alas!... A' sombra do passado
Vái-se elevar no Pantheon sagrado
A columna mais alta da nação...
Ha de ser o heroe de nosso empyreol
Sobre as lendas que expliceum-lhe o martyrio,
Vao collocar o popular brasão.
Vem à frente do povo a magestade...
E' uma festa em que a nossa liberdade
Vae cantar a Odysséa do valor.
Aos rufos compassados dos tambores,
Ehtre nuvens de pólvora e de flores,
Alas!... Alas!... ao povo, ao imperador.
Das nuvens lá do céo, soberbo se avizinha
Das glorias do Brasil o magico signal!
Coberto está de um véo... porém lÀ se adivinha
Da liberdade um Deus no immenso pedestal!
Da terra que conserva em seu leito gelado
Aquelle que rompera os elos do grilhão ;
Que guarda o sangue ardente á pátria derramado
E as lagrimas de cólera em dias de afflicç&o ;
Da terra em que se deu martyrio glorioso,
E aos raios d*essa luz por fim se libertou,
Surgir um dia deve um vulto portentoso,
E 88S0 — eil-o acolá, qu» a pátria alevantou«..
■
li
HI8T0BIA DA LITTBSATUBA BBABILXI&A 433
Que palmas de valor não murcha a grande historial ^
O povo esquece um dia os inclytos varões ; *
Mas do famoso heróe granitica memoria .|
Terá sempre a seus pés do mundo as gerações...
E se alguém perguntar aos povos, com espanto.
Que fez o cidadfto que o povo assim guardou :
Dir&o : Morreu aquil Calvário sacro-santol
O sangue d*esse Christo a pátria baptisou!
Rasga-se o véol... Que apparece?
Quem é esse cavalleiro,
Que, no ímpeto guerreiro.
Estende o braço viril?
N&o é esse o heróico vulto
Que a historia tanto apregoa,
Que o povo inteiro abençoa
Como o anjo do Brasil?
Não é, não!... Vergonha immensal
N'esta quadra corrompida.
Com a fronte envilecida.
Sem glorias e sem pudor,
O Brasil, cruzando os braços ,
Dobra os joelhos contrícto.
Ante a massa de granito
Do primeiro imperador.
Curvae-vos, raça de ingratosl
Nos dias de cobardia
Festeja-se a tyrannia,
Fazem-se estatuas aos reisl...
Embora tenham da pátria
Ouvido os longos gemidos.
Os cadafalsos erguidos,
E postergadas as leis.
■
Vede!... Ali surge da terra.
Como da febre no sonho.
Um patíbulo medonho.
Meu Deus! Porque recuaes?...
BfToiUA n 28
43 1 HISTORIA DA LITTBRATXmA BRABILBIBA
Sobre a taboa ensanguentada
Aquella face jà fria
Não vem turbar a alegria
Doestes cantos festivaes...
Não recueis de uma sombra!
O frio braço do espectro
Não pôde quebrar um sceptro
Que tendes por divinal!
Envolto em sua bandeira,
Triste, pallido, calado,
Também elle é convidado
Doesta festa imperial...
E' esse o heróe soberbo,
O filho da liberdade.
Que a cega posteridade
N'essa baixeza esqueceu ;
Sonhador, que sonhou tanto
Na 'noite do capliveiro,
Foi elle o martyr primeiro,
Que pela pátria morreu.
Elle, sim!... Quando nas trevas
Todos curvavam a fronte,
Divisou lá no horisonte
Doce esperança — uma luz...
E quiz carregar, ousado
Da liberdade o Atlante,
Sobre os hombros de gigante
A terra de Santa Ci^uz.
Que importa ali sucumbisse
No cadafalso maldito,
E da Independência o grito
Morresse nos lábios seus?
Que importa a morte affrontosa,
Se no cadáver gelado,
Pelo Brasil retalhado,
Choveram bênçãos dos céos?I
Insensato! derramara
Esse sangue generoso
HI8T0BIÁ I>A LITTBBATX7SA BBA8ILBIBA. 435
Sobre o solo venenoso
Em tempos de escravid&ol
Cahiu no chão ás golfadas,
Foram bemditas sementes :
Do sangue do Tira-Dentes
Brotou-nos a salvação.
Pensei que o idolo santo,
Que adorássemos agora,
Do homem fosse que outr'ora
A pátria muda chorou.
Hoje percebo assombrado
Que a maldição fulminada
Contra essa fronte elevada
Té no futuro chegou.
Hoje o Brasil se ajoelha,
E se ajoelha contílcto,
Ante a massa de granito
Do primeiro imperador.
Não molda ninguém no bronze
O valente dos valentes,
A sombra de Tira-Dentes,
Esse braço redemptori
Não precisa de uma estatual
Nós o vemos radiante
N'uma aureola brilhahte
De liberdade e de fé...
Sobre a taboa enscmguentada,
Triste, pallido, callado.
Frio espectro do passado,
No pelourinho, de pé.
Da terra que conserva em seu leito gelado
Aquelle que rompera os elos do grilhão,
Que guarda o sangue ardente á pátria derramado
E as lagrimas de cólera em dias de afílicção ;
Da terra em que se deu martyrio glorioso,
E, aos raios dessa luz, por íim se libertou.
Surgir um dia deve um vulto portentoso...
Mas este é um bronze vil que a corte alevantou... w
436 HISTOBIA DA LITTEBATURA BBA8ILBIRA
Eis ahi ; é um brado de guerra democrático, liberal, repu-
blicano; poesia social, revolucionaria, combatente, um cantar
enthusiastico, vibrante que estamos aqui habituados a ouvir
de certos privilegiados.
Quando a 30 de março de 1862 Pedro Luiz espalhou pelo
povo da capital do Império em folhas avulsas esses valejites
versos, ainda não era celebre Anthero do Quental, ainda não
era dia para Guilherme Braga e menos inda para Guerra
Junqueiro. Nossa autonomia litteraria foi sempre uma reali-
dade para os grandes espíritos, e uma mentira para os me-
díocres.
Os bellos versos de Pedro Luiz, que acabei de citar, des-
pertam uma observação, e é esta : elles mostram entre nós
o progresso das idéas democráticas.
Percorra por este lado o leitor todo o curso da historia da
litteratura brasileira ; parta de Bento Teixeira, que se dava
por feliz em dedicar sua Prosopopéa ao governador de Pe^
nambuco; passe pelos encomiastas e aduladores das aca-
demias dos Esquecidos^ Felizes e Selectos^ que viviam a
incensar os governadores geraes, nem ousando levantar as
vistas até aos thronos dos Reis — Nossos Senhores ; chegue
á épocha de Pombal e aprecie ainda as louvaminhas ao rei
e ao poderoso ministro ; atravesse o tempo de Maria I e veja
como os próprios poetas mineiros eram submissos nos seus
cantares dirigidos a Excelsa Ramha ; venha até aos tempos
do primeiro reinado, e vá notando o progredir da ousadia
da musa no seu trato com os reis e os poderosos; chegue
aos nossos dias e assignale a distancia que vae, por exemplo,
de tudo aquillo aos versos de Pedro Luiz e ao Régio Saltim-
banco de Fontoura Xavier.
Luiz Nicolao Fagundes Varella — (1841-1875) — é, como
já disse, o laço que prende o byronismo de Alvares de Aze-
vedo e companheiros, o sertanegismo de Bittencourt Sampaio
e collegas ao hugoanismo sociaUstico da escola condoreira.
E' um poeta de grande mérito,^ uma singular figura digna
HI8T0BIÁ BA LITTIKATUIU BRABILUSA 437
de reverencias e attenções. E' muito conhecido, bastante lido
e muito mal estudado.
NcLo existe d'elle ao menos um bom esboço biographico ;
porquanto os dous que ahi correm, devidos ás pennas de
Lery dos Santos e Visconti Coaracy, estão cheios de erros e
fortes lacunas.
Coaracy repete o que leu em Lery, e, pois, refutar este é
refutal-o implicitamente e vice-versa. — « Em 1865, escreve
aquelle, matriculou-se na Faculdade de S. Paulo. Cursou
a academia durante dous annos e durante esse tempo, esti-
mulado pelos collegas, publicou as suas primeiras poesias.
Por essa épocha, seu coração inflammou-se de amor por for-
mosa donzella.
Com ella casou-se e teve um filho, ao qual dedicava extre-
moso affecto. Resolvido a concluir os seus estudos na facul-
dade de Olinda, partiu para Pernambuco, como passageiro
no vapor francez Bearn.
Este navio naufragou na altura dos Abrolhos. Várella de-
senvolveu então grande energia, e, pondo em pratica a sua
experiência adquirida na viagem que fizera a Goyaz, atravéz
de sertões, dirigiu a construcçáo de cabanas para accommo-
dação dos náufragos, e de mais trabalhos para obtenção de
soccorros.
Chegando finalmente a Pernambuco, passou alli um anno
em proseguir nos seus estudos, e, regressando por occasião
das ferias, ao Rio de Janeiro, quasi perdeu a razão ao saber
que a morte lhe havia roubado â esposa e o filho.
Este golpe tremendo cortou-lhe o futuro e enegreceu-lhe a
existência. D'alli em diante, Varella vagueava pelos campos,
abria caminho atravez das florestas, vadeava ribeiros e pas-
sava a nado caudalosos rios, condoendo-se com os africanos
escravos que encontrava, contando suas torturas aos tropeiros
em cujos pousos parava, suspirando pela morte, e foi por essa
occasião que escreveu o sentido Cântico do Calvário (1). »
Este pedaço biographico é um tecido de inexactidões ; não
(1) Obraê Completa* de L. N. Fagundes Varella, l.»vol., pag. 48,— Noti-
cia Biographiea,
438 HIBTOaiA DA LITTERATUBA BSASIUORA
foi em 1865 que o poeta se matriculau em S. Paulo ; a morte
de seu íllho nãjo occorreu durante sua estada no Recife (e não
Olinda como inexactamente diz o biographo) ; n&o esteve
dous annos apenas na faculdade jurídica do sul; não escre-
veu o Cântico do Calvário na volta de Pernambuco durante
as ferías.
A verdade é que Varella, nascido em 1841, tendo feito em
1852 a viagem a Catalão em Goyaz, havendo residido tempo^
rariamente em Angra dos Reis, Petrópolis e Nictheray, já
em 1860 e 61 achava-se em S. Paulo ultimando os prepara-
tórios e matriculando-se logo em seguida.
Em 1861 publicou as Nocturnas^ em 1862 o Pendão Aurú
Verde, em 1864 as Vozes da America e no anno seguinte os
Cantos e Phantasias (1).
Quando em 1866 appareceu em Pernambuco, já ia prece-
dido de grande fama preparada pelos quatro livros acima
citados e no ultimo d'elles já ia encerrado o Cântico do Cal-
vário, dedicado á memoría de seu filho, fallecido a 11 de
dezemhro de 1863.
Não é absolutamente crivei qne Varella levasse três longos
annos para ter a noticia do passamento de um ser que ido-
latrava.
O fallecimento de sua mulher, cuja data precisa não pude
obter, é que talvez tenha occorrido nos últimos tempos da
estada do poeta no Recife.
De 1867 em diante torna-se obscura a biographia do illustre
fluminense.
Sei apenas que iniciou então vida erradia pelo Rio, Niclhe-
roy, Rio Claro, Mangaratiba, Angra dos Reis e outras locali-
dades da província do Rio de Janeiro.
Aind^ assim passou a segundas núpcias e publicou dous
novos livros. Cantos Meridionaes e Cantos do Ermo e da
Cidade. Deixou duas fllhas e dous inéditos : o Diário de Lor
(1) Quando tratei de. Gonçalves Dias, disse que os Cant09 e PhcmicaioM
eram de 1866. Agora digo que elles sáo de 1865. Para o fim que alli tinha
em vista não ha nisto contradicção. O livro traz no fh>nte8picío a data de
1865 ; mas só se espalhou pelo publico em princípios de 1866.
HISTOBIA DA LITTEBATURA BRABILEIBA 439
zaro e Anchieta ou o Evangelho nas Selvas^ que correm
hoje publicados. FaJleceu em 1875 aos trinta e quatro annos
de idade.
Estudcinol-o mais de perto.
No Brasil até hoje têm existido cinco poetas verdadeira-
mente descuidosos, andarilhos, boheniios : Gregório de Mat-
tos no século xvii e Laurindo Rahello, Âureliamo Lessa,
Bernardo Guimarães e Fagundes Varella no século xix.
Destes cinco os mais populares foram Gregório, o satyrico,
Laurindo, o elegíaco, e Varella, o lyrista.
09 dous mineiros tiveram uma notoriedade mais limitada.
Durante quinze annos, de 1860 a 1875, especialmente nas
rodas de estudantes, emi S, Paulo, Recife e Rio de Janeiro,
Varella era sempre o bem vindo, o companheiro querido,
applaudido, idolatrado.
EUe náo chegou a ultimar o curso académico, a graduar-se,
e a seguir uma qualquer dessas carreiras que se abrem aos
bacharéis em direito.
Deixou-se sempre ficar na vida indefinível do bohemio, sem
rumo, sem destino determinado.
Qual a razáo ? Vicios de educação ? Vicios de escola ? Ten-
dência natural ? Tristeza nativa ? Alguma amarga decepção ?
Não sei bem ao certo ; nem a leitura das obras do poeta é
por esta face uma garantia absolutamente segura de desco-
brir a verdade.
A obra do poeta, apparentemente lógica, é uma das mais
contradictorias que possuímos; apparentemente pessoal, é
uma das mais impessoaes de nossa litteratura.
Mas, emíim, é por onde terei de esludal-o. De sua leitura
deprehendi o seguinte : Varella não foi um triste, nem um
alegre, nem um crente, nem um sceptico, nem um liberal,
nem um auctoritario ; porque foi tudo isto ao mesmo tempo,
conforme o ensejo e a occasião. Foi uma natureza múltipla,
variada, excessivamente excitavel, atormentada por estímulos
diversos. Varella foi um agitado.
D'ahi a variedade de suas impressões e a mobilidade dos
tons de seu cantar ; d'ahi essa morbideza inconsciente e irre-
sistível que se evapora da mor parte de suas composições. Tal
440 HISTOBIA PA LITTBSATUBA B&ABIUmUL
a característica fundamental de seu genia, de seu temperar
mento de poeta.
As producções, pois, que mais o definem s&o aqudlas em
que apparecem essas incertezas, essas flu^tuaçOes, essas né-
voas, esses claros e escuros, essas vagas aspirações, esses
sonhos róseos e dubiois, esses matizes impalpavtís, essas on-
dulações chimericas de um espirito inconsist^ite adormecida
n*uma espécie de embriaguez. E* o que eu chamei o lyrismo
bacchico.
Entretanto, a falsa critica entre nós tem dado a Vsurella como
caracterisaçclo principal a tristeza romântica...
E' um erro refutado pelo próprio poeta, quando diz em
Velha Canção :
(( Não sou desses génios duros,
Inimigos do prazer.
Que julgam que a humanidade
SóYiasceu para gemer ;
Gosto de queimar incenso
Sobre as azas da alegria,
Julgo que ser louco a tempo
Também ô sabedoria... » (1)
Ou no Ermo :
a Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga... » (2)
Ou em Oração :
tt Eu quero andari Eu sei que no futuro
Inda ha rozas de amor, inda ha perfumes.
Ha sonhos de encantari
N&o, eu tíSlo sou d'aquelles que a descrença
Para sempre curvou, e sobre a cinza
Debruçam-se a chorcu* » (3).
(1) Obrai Completai, I. pag. 279.
(2) Idem, II, pag. 72.
(3) Idêm^ iòid., pag. 96.
J
HI8T0BIA DA LITTXBATUSA BSA8ILXIBA 441
Ou finalmente em Acusmata :
cc Sinto que fui feliz, e n'essa quadra
Nem tristezas cantei, nem amarguras,
Mas Deos, a vida, a mocidade e a gloria » (1).
Nada mais claro; a critica illudiu-se completamente.
Outra falsa caracterisaçáo do poeta é a que o apresenta
como sertanegista^ bíicolista por indole e tendência irresis-
tível.
Sinto vêr compartilhado este erro por Franklin Távora, o
illustre romancista e hábil critico, em seu bello estudo sobre
o escriptor fluminense, n'estas palavras : « Varella é o can-
tor das meias malícias e das meias innocencias existentes
n'essa região pdttoresca e animada, que não é a cidade des-
lumbrante nem a solidão bravia, que é simplesmente o campo
ou a roça ou o maMo, isto é, um theatro modesto de folguedos
ingénuos, amores tímidos, graças vergonhosas, mais virtudes
que vícios, mais natureza que arte, mais desinteresse que
calculo, n'essa região que está para a civilisação como o arre-
bol está para o dia, nesse plano onde perfis garridos e ima-
gens toscas se debuxam sob uma luz crepuscular que os
não deixva ver em completo relevo.
Se a minha critica não se engana, Varella pôde ser aferido
pela poesia A Roça, que é uma das que trazem mais funda-
mente impresso o signal da sua physionomia poética » (2).
Távora é levado a esta coaiclusão, além d'A Roça, pela lei-
tura de Mimosa e Antonico e Corá.
Ponho^me em completo desaccordo. Estas três composições
campesinas e sertanegistas são productos esporádicos e exce-
pcionaes na vasta obra de Varella.
Em rigor até reduzen>se ás duas primeiras, porque Anto-
nico e Corá quasi nada tem de essencialmente roceiro, não
passando da narrativa extravagante de um caso de bigamia,
tão próprio do sertão como da cidade.
Restam A Roça e Mimosa, bellas producções em verdade,
(1) Obroê Completas, II, pag. 271.
(S) Idem, h pag. 25.
442 HISTOBIA DA LITTERATURA BKASILEISÂ.
que desapparecem no meio da muiltidáo de poesias do auctor
fluminense.
Varella, que viajou as regiões marítimas do Brasil, as re-
giões das mattas e as regiões dos sertões, dedicou alguns
cantos ás scenas que mais o captivaram por todas ellas.
A' vida sertaneja couberam as duas poesias encomiadas
pelo critico. Tal foi e nada mais.
Não é isto sufflciente para constituir-lhe a característica
especial e dar-lhe alto posto n'um género em que elle difficil-
mente poderia luctar com Bittencourt Sampaio, Joaquim
Serra, Bruno Seabra, Trajano Galvão, Mello Moraes Pilho e
outros já lembrados n*este livro.
Em Mimosa mesma o que encanta é o doce lyrismo amo-
roso do 2.** canto e não as notas puramente sertanejas, aliás
raras e fracas.
Insisto em dizer, o traço pessoal do lyrismo de Fagundes Va-
rella é certo phantasiar vago e dolente, aerio e brumoso,
cheio de doçuras e sonoridades, alguma cousa de impalpável
e chimerico, de vaporoso e dúbio, como os sonhos de um
espirito alheiado da realidade.
Esta nota espalha-se por toda a sua obra, especialmente em
As Selvas, Névoas, Gualter, A Enchente, Juvcnilia, Cântico do
Calvário, Madrugada á beira mar, Acusmuta, Visões da Noite
e trinta outras. E' quasi abrir seus livro? ao acaso e lêr.
No seu próprio poema de Anchieta as melhores passa-
gens são os trechos em que a propósito de scenas naturaes,
deixa de lado a vida do Christo narrada pelo missionaiio, e
cae em effusões lyricas do género predilecto.
O mesmo em todos os poemetos para não falar nas poesias
mais curtas.
O nosso scismador não gostava da claridade em todo o seu
esplendor, não apreciava o viver positivo das cidades, as lu-
ctas da imprensa, as agitações politicas, uma carreira normal
e segura. Amava o retiro, as sombras das mattas, o abandono
que o deixasse sonhar.
Não ha poeta algum da lingua portugueza que tenha em-
pregado tanto a palavra névoa, e elle vivia n'um paiz tropical,
n'uma terra banhada de luz...
HISTORIA DA LITTESATUSA BBABILXIRA 443
— As névoas elle as tinha no espirito. E esse ser agitadiço,
essa alma exhuberante e lyríca dava-se bem na embríagiiez
dos sonhos e das scismas indeflniveis. E quando o vago, o
brumoso, o f urtacôr dos anhelos aeros não lhe era gerado pela
própria j^hantasia, elle o provocava nas doçuras tentadoras do
vinho. O poeta mesmo pintou esta situação do seu espirito na
verdade imponente desta encantadora pagina :
Cf Escravo, enche essa taça,
Enche-a depressa e canta!
Quero espancar a nuvem da desgraça
Que além nos ares lutulenta passa
E meu génio quebranta.
Tenho n*alma a tormenta,
Torméhta horrenda e fríal
Debade a doida conjural-a tenta.
Luta, vacilla e tomba macilenta
Nas vascas da agoniai
Pois bem, seja de vinho,
No delirar insano,
Que afogue minhas lagrimas mesquinho!...
Então envolto em purpura e arminho
Serei um soberano!
Cresce, transpõe as bordas
De brílhaYite crystal.
Torrente amada que o prazer acordas...
Toma a guitarra, escravo! afina as cordas,
E viva a saturnal!
Já corre-me nas veias
Um sangue mais veloz...
Anjos... inspirações... mundos de ideias,
Sacudi-me da fronte as sombras feias
D*este scismar atroz!
Que celestes beifagens!
Que languidos perfumesi
Que vaporosas, lúcidas imagens
Dansam vestidas de subtis roupagens
Entre esplendidos lumea!
444 HI8T0B1A DA LITTERATUBA BIIABILBIBA
Tange mais brando ainda
Esse mago instrumento!...
Mais... ainda mais! Que maravilha infinda!
Que plaga immensa, luminosa e linda!
Que de vozes no vento!
Sâo as huris divinas
Que junto a mim perpassam,
Ou de Schiraz as virgens peregrinas,
Que cingidas de rosas purpurinas
Choram Bulbul e passam?
Oh! nõo, que não s&o ellas.
Mas ai! meus sonhos s&o!
São do passado as vividas estrellas,
Que á flux rebentam cada vez mais bellas,
De mais puro clarfio!
São meus prazeres idos!
Minha extincta esperança!
Sôo... Mas que nota fere-me os ouvidos?
Escravo estulto, abafa esses gemidos!
Canta o riso e a bonança!
Canta. a paz e a ventura
O mar e o céo azul!...
Quero olvidar minha comedia escura,
E a ledos sons as larvas da loucura
Bater como Saul!
Leva-me ás densas mattas
Onde viveu Celuta ;
Faze- me um leito á margem das cascatas
Ou nas alfombras húmidas e gratas
De recôndita gruta...
Assim... assim! Fagueiras,
Escuto já nos ares
As vozes das donzellas prazenteiras,
Que dansam ritido ao lume das fogueiras
No centro dos palmares.
HIBTOKIA DA LITTEBAT17SA B&ABILUBA 445
Mais vinhol Ohl philtro mago!
Só tu podes no mundo
Mudar os gyros do destino vago,
E fazer do martyrio um doce afago,
De uma taça no fundol
Ohl patriarcha antigol
Ohl bebedor feliz,
Do roxo sumo da parreira amiga!
Teu nome invoco, abrago-me comtigo,
Vem, vem ser meu juiz!
Basta, servo, de cantos ;
Quero dormir, sonhar,
Sinto do v£nho os últimos encantos...
Molham-me as faces amorosos prantos,
Vou reviver e amar! » (1)
N'esta região de sonhos e apparições doiradas se comprazia
o poeta. Era uma necessidade de seu espirito e do espirito de
tantos e tantos outros.
Em que pese a rigidos positivistas, a illusâo ha tido e conti-
nuará a ter grandissima parte na vida da humanidade; a
illusáo tem sido um factor do progresso. Muitas creações secu-
lares foram originadas inconscientemente para preencher essa
funcçSo.
As religiões, as mythologias, as lendas, as artes em grande
parte cumprem esse mister.
Muitas industrias tiveram origem nessa necessidade fun-
damental do espirito humano. O cultivo da vinha entra nesse
numero.
Quem uma vez disse que o homem tem necessidade de illu-
dir-s^ e esquecer^ tanto que elle é o único animal que se em-
briagOy disse uma grandei verdade. E' isto mesmo ; o contrario
é phantasiar grandezas que não possuímos.
Varella era do numero desses que sabem o que valem chi-
meras e illuisões, como preservativos contra as asperezas da
realidade crua. Sua poesia era uma filha da phantasia alada e
impalpável.
(1) Obrca ComplêtcUy II, a p«ça intitulada Dicenão,
446 HISTO&IA DA LITTBBATTTBA BRASILEIRA
EUe mesmo o disse na primeira pagina de seus Cantos do
Ermo e da Cidade :
u Louras abelhas, leves borboletas,
Volúveis beija-ílôres,
Rápidos génios, hospedes dos ares.
Solitários cantores,
Amantes uns das pompas das cidades,
Das galas e das festas
Outros amigos das" planicies vastas
E das amplas florestas ;
Alado mundo, turbilhão volante,
Bando de sonhos vagos,
Ora adjando em capriohosos gyros.
Ora em doces afagos
Pousando sobre as frontes scismadoras..
Vede, desponta o dia,
Sacudi vossas azas vaporosas.
Exultai de alegial
Ide sem medo, lúcidas chimeras,
S&o horas de partir I...
Ide, correi, voed, que vos desejo
O mais almo porvir!... »
Estas citações não enganam, não deixam duvida.
Sa a poesia é uma co>pia exacta, uma photographia do
mundo exterior, Varella, apezar de seu grande talento descri-
ptivo, foi um poeta de altura secundaria.
Se, porém, a poesia é uma região encantada, crêada, pelas
almas de eleição para delicia e prazer de nós outros os pobres
condemnados ás cruezas da vida, elle foi um dos mais altos de
nossos poetas, porque poucos foram tão amoravelmente ideia-
listas e phantasiosos.
Eu bem podera agora enumerar as obras do auctor, pe^
correr com os meus leitores as melhores de suas composições
em diversos géneros, prolongar este perfil, descendo a minu-
dencias. Seria trabalho fácil ; mas creio ser inuUl ; porque a
physiooomia particular do poeta já eu a dei.
Basta-me consignar, terminando, que as suas melhores qua-
J
HI8T0BIA DA LITTSBATURA BBA8IUUBA 447
lidados são a espontaneidade» a musica e a doçura dos versos,
o vigor e a segurança das descripções, a abundância e a ri-
queza das imagens.
As novas gerações devem sempre ler o delicioso sonhador
dos Cantos Meridionaes e dos Cantos e Phantasias. Não pôde
haver mais intelligente e sincero companheiro. Lêde-o, lêde-o.
Luus Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) é merecedor de
altenções e sympathias particulares.
Orador, jornalista e poeta, era um quasi negro que náo tinha
pejo de sua raça; pelo contrario foi o seu defensor constante.
Tinha sido escravo ,e foi depois o mais antigo, o mais
apaixonado, o majs enthusiasta, o mais sincero abolicionista
brasileiro.
Eu disse uma vez que a escravidão nacional nunca havia
produzido um Terêncio, um Epicteto, ou siquer umi Spartaco.
Ha agora uma excepção a fazer : a escravidão entre nós
produziu Luiz Gama, que teve muito de Terêncio, de Epic-
teto e de Spartaco.
Natural da provincia da Bahia, era filho de uma pobre es-
crava africana. Vendido ainda moço para S. Paulo, conseguio
ahi, por sua honestidade, intelligencia e perseverança, liber-
tar-se ; conseguiu fazer bons estudos de humanidades, con-
seguiu» praticar no foro, conseguiu fazer-se habilissimo advo-
gado, influente orador, perito jornalista.
Foi isto no decennio de 1850 a 60, e desde este tempo o
denodado batalhador iniciou/ a campanha abolicionista.
No foro, na tribuna do jury, na imprensa, a voz amiga e
protectora de Luiz Gama não se fazia esperar, era a salva-
guarda espontânea dos miseros captivos.
Não pertence especialmente á historia litteraria a narrativa
das luctas, das cruentas batalhas em que se achou envolvido
esse intemerato patriota na guerra pertinaz e lendária que mo-
veu durante trinta annos contra a escravidão no Brasil.
A historia social se encarregará destes factos um dia e sa-
bel-o-ha fazer mais habilmente do que eu, que não possuo
agora os indispensáveis documentos.
448 HISTORIA DA LITrBSATUBA BRABILXIRA
A' minha tarefa pertence o poeta, um dos mais engraçados
satyricos de nossas letras.
As palavras de caracter theorico depostas no começo deste
capitulo têm agora sua inteira applicação.
Luiz Gama era quasi de todo um negro, era um represen-
tante extremado do immenso mestiçamenlo de nossa actual
população. E sua côr nunca foi um embaraço á generosidade
de seu coração e á actividade de sua intelligenoia.
Como poeta Luiz Gama deixou somente, ao que supponho, o
volume intitulado — Primeiras Trbvas Burlescas de Getur
Uno — de que existem duas ediçOes, sendo a segunda correcta
e augmentada, do Rio de Janeiro, Typ. de Pinheiro & C, 1861.
Contem trinta e nove poeisias satyrícas em tom acre e estylo
burlesco, excepto três ou quatro em> tom sedo. Deste numero
são as ultimas, que denomínam-se Minha mãe e No Cemitério
de S. Benedicto em São Paulo.
Esta revela os sentimentos philantropicos de Luiz Gama
sobre a escravidão. Elle refere-se á' sepultura de um escravo
n^estes termos :
(( Em lúgubre recinto escuro e frio.
Onde reina o silencio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas.
Que o caprichoso luxo não adorna.
Jaz de terra coberto humano corpo,
Que escravo succumbiu, livre nascendo,
Das hórridas cadeias desprendido.
Que só forjam sacrílegos tyrannos.
Dorme o somno feliz da eternidade.
Não cercam a morada lutuosa
Os salgueiros, os fúnebres cyprestes.
Nem lhe guarda os humbraes da sepultura
Pesada lage de espartano mármore.
Somente levantado em quadro negro
Epitaphío se lô, que impGe silencio!
Descansam n*este lar caliginoso
O mísero captivo, o desgraçado!...
Aqui não vem rasteira a vil lisonja
Os feitos decantar da tyrahnia.
Nem, ofTascando a luz da sã verdade,
HI8T0BIA DA LITTERATURA BSASILBIBA 449
Eleva o crime, perpetua a infâmia.
Aqui não se ergue altar ou throno d'ouro
Ao torpe mercador de carne humana.
Aqui se curva o filho respeitoso
Ante a lousa materna, e o pranto em fio
Cae-lhe dos olhos revelando mudo
A historia do passado. Aqui nas sombras
Da funda escuridão do horror eterno,
Dos braços de uma cruz pende o mysterio,
Faz-se o sceptro bordão, andrajo a túnica.
Mendigo o rei, o potentado escravo! » (1)
São generoisoâ sentimentos e ainda mais cândidos são
aquelles que transpiram dos versos Minha Mãe.
Também- na íamilia negra e escrava paJpátavam corações
puros, cheios de magnânimos e elevados affe^tos.
Versos assim são um verdadeiro documento :
(( Era mui bella e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Lybia rainha,
E no Brasil pobre escraval
Oh, que saudade que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c'os tenros filhinhos
Ella sorrindo brincava.
Éramos dois — seus cuidados.
Sonhos de sua alma bella;
Ella a palmeira singela,
Na fulva areia nascida!
Nos roliços braços de ébano
De amor o fructo apertava,
£ á nossa bocca junctava
Um beijo seu, que era vida,
QuEindo o prazer entreabria
Seus lábios de roixo lyrio,
Ella fingia o martyrio
Nas trevas da solidão.
(1) Trocai Burleicat, pag. 187.
BI8T0IIU n 29
450 HI8T0BIA DA LITTERATUSA BBABILEISA
Os alvos dentes nevados
Da liberdade eram mytho,
No rostoa dôr do aíflicto,
Negra a côr da escravidão.
Os olhos negros, altivos,
Dous artros eram luzentes ;
Eram estrellas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da 'nossa vida primeira,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas.
Tâo terna como a saudade
No frio chão das campinas.
Tão meiga como as boninas
Aos raios do sol de abril.
No gesto grave e sombria,
Como a vaga que fluctúa,
Plácida mente — era a lua
Reflectindo em céos de anil.
Suave o génio, qual rosa
Ao despontar da alvorada,
Quando treme enamorada
Ao sopro d^aura fagueira.
Bra'ndinha a voz sonorosa.
Sentida como a rolinha.
Gemendo triste, sósinha,
Ao som da aragem faceira.
Escuro c ledo o semblante,
De encantos sorria a fronte,
— Baça nuvem no horísonte
Das ondas surgindo á flor ;
Tinha o coração de santa.
Era seu ipeito de archanjo.
Mais pura n'alina que um anjo,
Aos pés de seu Creador.
Se, junto á cruz penitente,
A Deus orava contricta,
,
HISTORIA DA LITTEEATinLA BSA8ILSIBA 451
Tinha uma prece infinita
Gomo o dobrar do sineiro ;
Ás lagrimas que brotavam
Eram pérolas sentidas,
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do captiveiro » (1).
Na satyra o poeta zurziu muito<s dos nossos vicios sociaes
e politicos. O tom era quasi sempro bastantei exaggerado.
Umas vezes tinha graça e outras descambava algum tanto
para o desenxabido e triviaJ.
O estylo nos melharers casos era este :
Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca de seu asno que fugira.
Um pobre paspalhão apatetado.
Que dizia chamar-se Macambira.
A todos perguntava se n&o viram
O bruto que era seu, e desertara ;
Elle é sério (dizia), está ferrado,
E tem branco o focinho, é malacdra.
Eis que ehcontra postado n'uma esquina
Um esperto, ardiloso capadócio.
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, em santo ócio,
Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado :
c< Por aqui não passou o meu burrego,
<( Que tem russo o focinho, o pé calçado? »
Responde-lhe o tratante, em tom de mofa :
(( O seu burro, senhor, aqui passou,
« Mas um guapo Ministro fel-o presa,
« E n'um parvo Barão o transformou! »
Oh, Virgem Santa! (exclama o tabaréo,
Da cabeça tirando o seu chapéo)
Se me pilha o Ministro neste estado.
Serei Conde, Marquez e Deputado!.,, » 0B)
íi) Trovas Burlescai, pag. 183.
(2) Idem, pag. 113.
452 HISTOBIA DA LITTERATXTRA B&ABILSIRA
Um dos sestros mais combatidos por este satyrico foi a
mania da branquidade, mania que devasta grande porção de
verdadeiros mestiços, que pretendem ter prosápia fidalga.
Sabe-se que a mistura das três raças fundamentaes de nossa
população deu-se em larguíssima escala, e é phenomeno inil-
ludivel ; o numera dos brancos puros é muito pouco avultado,
e, náo obstante, quasi toda a gente tem suas veleidades a des-
cender de sangue azul... Contra isso insurgi u-se o bardo
bahiano e com razão. Na poesia Quem sou eu?, que tomou-
popular sob o iiiilt A Bodarrada, escreveu isto :
(( Se negro sou ou sou bode,
Pouco importa. O (pie isto pôde? .
Bodes ha de toda a casta,
Pois que a espécie é mui vasta...
Ha cinzentos, ha rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos.
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres.
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra.
Marram todos, tudo beria.
Nobres Condes e Duquezas,
Ricas Damas e Marquezas,
Deputados, Senadores,
Gentis homens, vereadores ;
Bellas Damas emproadas,
De nobreza empantuíadas ;
Repimpeulos principotes.
Orgulhosos íidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeaes,
Fanfarrões imperiaes.
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos ha meus parentes.
Entre a brava militança.
Fulge e brilha alta bodança ;
Guardas, cabos, furriéis.
Brigadeiros, coronéis,
HI8T0BIA DA LITTB&ATUEA BRABILSIBÁ 453
Destemidos marechaes,
Rutilantes generaes,
Capitães de mar e guerra,
— Tudo marrc^ tudo berra.
Na suprema eternidade,
Obde habita a Divindade,
Bodes ha sanctiíicados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos cmginhos
Também ha muitos bodinhos.
O amante de Syringa
Tinha pello e má catinga ;
O deus Mydas, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quahdo foi menino,
Chupitou leite caprino ;
E, segundo o antigo mytho,
Também Fauno foi cabrito.
Nos dominios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão ;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas.
Pois, se todos têm rabicho.
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria ;
Cesse, pois, a matinada.
Porque tudo é bodarrada I » (1)
Comprehendamos e admitíamos a franqueza de Luiz Gama ;
ella não era do numero d'aquelles, que, apezar de certos acci-
dentes innegaveis da cõr teimam em se dizer latinos,..
Se na própria Europa o latinismo iJe "certos povos não passa
de um simples phenomeno linguistico ; se tal é o caso dos ro-
maicos que são slavos, dos hespanhóes que são iberos, dos
portuguezes que o são tamJDem, dos francezes que são celtas ;
se os legítimos reporesentantes ethnicoa dos latinos são em
rigor pura e simplesmente os ijalianos do centro, qual será a
(1) Troeoê Barleêcas, pag. 141.
454 HISTORIA DA LITTEBATURA BRASILEIRA
fracção em que se acha entre nós representada directamente
aquella valida raça ?
Não deixa de causar certa extranhesa a segurança, a ra-
diante seriedade com que diariamente, por exemplo, jorna-
listas, patentemente oriundos de Índios e africanos, dizem :
Nós os latinos,,.
Temho sérias duvidas sobre essa latinisação. Deve estar
entre; nós na decima dynaminisaçá.o; porquanlo dos ires fa-
ctores que constituíram este povo, dous — índios e africanos - -
nada tinham evidentemente de latinos, e o terceiro, resultado
complicadíssimo da uma longa evolução ethnica, terá nas
veias um décimo talvez de sangue romana..
A íllusão a esta respeito, o que faz suppôr os portuguezes
descendentes directos do antigo povo rei, é o facto de falaram
elles em idioma novo-latino. Mas este facto histórico, de facil-
líma explicação, é de nenhum valor em ethnographia.
A população portugueza em sua base fundamental é de ibe-
ros a que se ligaram ligures, cedtas, phenicios, carthagineses,
godos, suevos, árabes, almohades, almoravides, mouros de
toda a casta, sem falar de escravoe negros e indianos que se
lhe addicíonaram em tempo.
Os romanos entraram também com o seu contingente, im-
portantíssimo pelo lado cultural e insignificante pelo numero.
Representam talvez menos ainda de um decima da popu-
lação. Avalie-se, á luz d'estes factos, qual será a propcwrçâo
do latinismo no Brasil (1). Entretanto, motivos psychodo-
gicos, como a paixão do melhoramento, levam-nos a acreditar
n'uma íllusão ethnologica. Isto se comprehende e é até descul-
pável.
E' verdade, porém, por outro lado, que, em rigor, não preci^
samos da quaesquer enganos n'este sentido, não precisamos
de apadrínhar-nos com o estreito manto do velho latinismo;
porque o concurso de tão diverscLs raças em nossa terra vai-nos
produzindo uma população intelligente, bella e valida, tão
digna como as mais dignas, devendo n'ena, porem, predo-
minar o elemento branco inicial, o portuguez.
(1) Poderá esta proporção modificar-sei se tivermos por muitos e muitos
annos forte immigraç&o de italianos do centro, infelizmente os que menos
emigram ; e com a condição de se deixorem assimilar.
HISTORIA DA LITTBBATURA DRABILEIBA 455
RozENDO Moniz Barretto (1845-1897). Não foi um poda de
tão elevado estro quanto Pedro Luiz e Fagundes Varella ; mas
é um espirito meritório.
Era filho do illustre improvisador Francisco Moniz Barretto
e irmão do notável rabequista Francisco Moniz Barretto Filho.
Nasceu na Bahia em 1845 e fez alli os estudos prepara-
tórios, matriculando-se na faculdade medica.
Ainda bem joven, começou a relacionar-se com o cenáculo
que cercava seu pai, ligando-se mais particularmente a Au-
gusto de Mendonça, Agrário de Menezes e Alvares da Silva.
Seguiu para a companha do Paraguay quando ainda cur-
sava o 4.** anno medico. De volta em 186» prestou os exames
flnaes do 4." 5.® e B** annos académicos, graduando-se n'essa
occasião.
Seus primeiros ensaios litterarios sahiram a lume na Re-
vista Académica da Bahia..
Publicou as seguintes obras : O Cólera na Campanha (Thes©
inaugural) 1868 : Cantos da Aurora (Poesias) 1868 ; Voos Ica-
rios (Poesias) 1873 ; Favos e Travos^ (Romance) 1874 ; A Expo-
sição Nacional de i875 (Relatório) 1876 ; Progressos do Brasil
durante o sectão XVIII (These de concurso) 1879 ; Interpretação
philosophica dos factos históricos (These de concurso) 1880 ;
Preito a Camões (Prosa e verso) 1880 ; José Maria da Silva
Paranhos (Elogio histórico) 1884; Moniz Barretto o Repentista
(Estudo) 1887, Tributos e Crenças (Poesias) 1890.
Doestes onze Kvros os de mais vigor, me parece, são os Can-
tos da Aurora^ os Voos Içarias^ o Elogio histórico de Paror
nhos e o Estudo sobre Moniz Barretto. Nos dois primeiros Ro-
zendo ostenta-se poeta correcto e nos dois últimos critico ati-
lado.
O escriptor bahiano foi essencialmente um litterato, no sen-
tido especial que particularmente se liga a esta palavra. Gos-
tava das artes e das letras por ellas mesmas, sem ambições e
sem especialidades.
Pela simples inspecção dos títulos de suas obras, vê-se que
elle foi um espirito voltejador, que parou aqui e alli por neces-
sidades de momento. Medicina, industria, artes, historia, phi-
losophia, politica, poesia, romance, critica, de tudo ha um
456 HISTORIA DA LITTBRATTTRA BRASILEIRA
pouco alli. Intelligente, estudioso, facilmente assimilador, o
talento d'este prestimoso bahiano em tudo tocou rápido com
certa distincção.
Se, porémi, edle possuiu alguma nota que lhe fosse mais pes-
soal e lhe vibrasse n'alma com maior intensidade, essa fci
certamente a poesia. Leiam-se os seus livros de versos ; se nem
todas as composições que encerram são iguaJmente perfeitas,
elevadas, distinctas, entre ellas algumas se encontram verda-
deiramente bellas.
Seu estylo poético está bem representando, no que elle pos-
súe de mais selecto nos versos intitulados — A Captiva de
um seio.
Vem nos Voos Icarios e sáo em estylo lyrico. Ouçam cslc-s
dos Cantos da Aurora nm estylo epico-lyrico ; é a poesia intitu-
lada — O Génio :
(t Que força és tu maravilhoso agente
De creaçOes divinas.
Que tens no craneo luminosa enchente
Com que o mundo fascinas!
Para onde vaes, arauto do infinito,
Que os séculos attens ao curso teu,
Que a rigidez convences do granito
E arrebatas na chispa o raio ao céo?
Desmentldor ovante do impossivel,
Que as crenças retemperas
Das idéas na fronte enexhaurivel,
Da gloria nas espheras!
D*onde o teu ser dimana, antagonista
Da sorte neste humano tremedal!
D'onde tiraste o sol que tens na vista!
Como serves ao bem no próprio mal!
Bem vejo — em ti — que no fulgor do Empyreo
O átomo animou-se;
Que de Satan, motor do teu martyrio,
A inveja originou-se.
Baixaste á terra e, respeitando as raias
Dos dominios guardados pela fé,
Disseste ao throno da razão; — NSo caias. —
E o throno da raz&o ficou de pé.
HI8T0BIA DA LITTBRATimA BBASILBIBA 457
De pego em pego resvalando incerta,
Que fora a humanidade,
Se o teu animOf aos erros sempre alerta,
Nâo guiasse á verdade?
No prophetico verbo de Izaias
Dos tyrannos zombastes, arma de Deus,
£ a vinda predisseste do Messias,
Calcando as fúrias de hórridos atheus.
Ao tempo que apagar quiz as idéas
Heróicas, — torvo e fero
Contrapuzeste a voz das epopéas
Na trombeta de Homero.
Vendo uma geraç&o oppressa, á mingua
De bens, que o despotismo lhe usurpou,
Da eloquência divina ungiste a lingua
E com ella Demosthenes falou.
Nas almas, contra o negro scepticismo,
Com Sócrates entraste;
Do corpo contra os males o aphorísmo
De Hyppocrates guardaste.
Âo pensamento dando leis, no erróneo
Caminho que ao teu methodo se oppoz.
Mais forte que o poder do Macedónio,
Os evos Aristóteles transpoz.
Ao contemplar o Homem do Calvário
Abraçaste o Evangelho.
Entre os' bárbaros, martyr solitário,
Foste do Christo o espelho.
Os gemidos do Golgotha acolhendo.
Quando espirava o Filho de Jehová,
Entregaste ao porvir o crime horrendo
E aos mortos prometteste Josaphat.
Quando pensava o mundo que o teu sólio
Era feito em pedaços,
TriumphantB ascendeste ao capitólio
E á fama abriste os braços.
Aos pósteros mostrando a Grécia e o Lacio,
De Itália ergueste, em cultos festivaes,
Eschylo, Juvenal, Phidias, Horácio,
A*s aras de oblações uhiversaes.
458 HISTORIA DA LITTBRATtTBA BRASILEIRA
De iodos esses cérebros de fogo,
Fundidos n'um instante,
Vasaste a essência, que inflammou-se logo
Na cabeça do Dante.
Daquelle craneo, cheio de prodigios,
A transcender dos orbes a amplidão,
Miraste o inferno que deixou vestígios
Em versos de volcanica impressão.
Depois que assim cahtaste ampla victoria
Pelo estro mais intenso,
Subiste, enchendo o Pantheon da historia.
Neste mosaico immenso.
Ao theatro Shakespeare, á esculptura
Miguel Angelo, á musica Mozart,
Kant á critica^ Rubens á pintura.
Newton aos astros e Colombo ao mar.
Ao troar do canhão, que acende a guerra
Em fogo sempre novo.
Impondo um Bonaparte aos reis da terra,
Enthronizaste o povo.
Águia, illesa entre nuvens de metralha,
Feriu-te as pandas azas Waterloo,
Mas os trophéus do génio da batalha
De Guttenberg a filha registrou.
Nessa invenção pasmosa, que te entrega
A's bençáos do vindouro,
Descança, que jamais ella te nega
Ante os Ídolos de ouro,
Coroado deis folhas do loureiro
Que offusca os ouropéis de mil brazões.
Sobrevives a escravos do dinheiro
Que atiraram-te ao mérito baldões.
Entranhe-se comtigo o pensamento
Nos abysmos mais fundos.
Sondando o mar de luz do firmamento
Nos enxames de mundos.
Da natureza, a ohrir-te o almo regaço,
Vô-se pela arte retribues o ardor.
Tu, que já tens contra o poder do espaço
A bússola, o telegrapho, o vapor.
.
HISTOBIA BA LITTBSATURA BRASILEIRA 459
Em ti se ostente, divinal columna,
A inspiração que ensina
Nos certames da imprensa e da tribuna.
Na escola e ha ofíicina.
Suppressor du tyrannica distancia,
Terás sempre a energia que destróe
No espirito a barreira ignorância
£ na matéria os óbices do heróe.
Gloria ao trabalho, em que tens nobre accesso.
Em prol da humanidade,
Para afíirmar conquistas do progresso
No amor da liberdade!
Mas, propulsor da industria e da sciencia,
Em mil veredaà que lhe vaes abrir,
Por mais que o fim procures da existência.
Tua origem háo negues ao porvir.
Génio! Génio! que a mente humana excedes
Em miriflco arroubo,
Queres ter a alavanca de Archimedes
E deslocar o globo?!
Has de tombar, quando te falte o apoio
Que os orbes equilibra na amplidão ;
Has de sumir-te, qual se perde o arroio
Neis aguas de oceânica invasão.
Então, quando o império teu desabe,
Com que tanto fulgiste.
Dirás ao mundo, a quem teu íim não cabe.
Que só por Deus cahiste,
E trahsformado em astro, para ao manto
Do firmamento addir mais esplendor,
Has-de ser sempre o élo sacrosanto
Que prenda a creatura ao Creador. »
Os dois livros onde revelou qualidades de critico são, como
eu mesmo já disse, a Elogio de Rio Branco e o Estudo sobre
Moniz Barretto.
O primeiro é um trabalho de momento em forma oratória,
no estylo apologético dos escriptos do género ; é um elogio
académico. Contém bellas paginas e acertadas ponderações.
460 HISTORIA DA LITTIBATUBA BRASILEIRA
A obra sobre a repentista Moniz Barretto é um bom e inte-
peissante livro sobre o vate bahiano e a litteratura de seu
tempo.
E' trabalho documentado sobre o movimento litterario da
Bahia entre os annos de 1830 a 1870. Com tratar de seu pai,
por quem Unha veirdadeira e fundada admirado, o auctor nâo
dascae no elog^io banal e impertinente.
Ha no estudo uma certa objectividade, como dizem os alle-
mães, que o preserva da futilidiade encomiástica.
O estylo do escriptor exhibe-se bem no seguinte pedaço,
descriptivo dos f esteios do dia 2 de julho na Bahia. E' isto :
a A Grécia antiga, que encheu os poemas de Homero e os dramas
de Eschylo, preparava, á sombra da paz, os seus guerreiros nos
jogos olympicos.
O cavalleirismo da idade média, com sua divisa — Deus, pátria e
damas — tanto se recommenda nos bellicos arrojos de cruzadas a
Jerusalém, quanto no delírio festival dos paladinos em justas e tor-
neios de Hespanha.
Actualmente as exposições internacionaes, sobrelevando a todos
os manifestos da civílisaç&o antiga e medieva, synthetisam, em
festas do trabalho, em ceríamens da industria, os progressos do
homem na eterna luta do espirito com a matéria.
Guardadas as proporções, não era mehos edificante, expressivo e
fecutido, em dias de prosperidade, o povo bahiano patriocamente
absorto, para incentivo próprio e exemplo aos vindouros, na com-
memoração jubilosa do seu inolvidável 2 de julho.
Imagine-sc uma combinação maravilhosa de flores, luzes, bandei-
ras, insígnias, emblemas e divisas de todos as cores, h'uma columna
de numerosos batalhões patrióticos, perfeitamente uniformisados
e desfilando em marcha tríumphal até o ponto objectivo ; imagine-se
uma jovialissíma convivência de parentes e amigos, com todos os
attractivos de confortável saráo, em cada habitação por onde pas-
sava o deslumbrante préstito, atravez de alguns kilometros ; ima-
gine-se o inexprimível conjunto de girandolas, fogos cambiantes,
hymnos marciaes, palmas e vivas esirepilosos a discursos e versos
que acendiam a chamma do patriotismo em mais de cem mil almas.
Acima de tudo isto imagine-se a alacriade popular a transluzir,
durante uma semana, em todos os semblantes, sem distincção de
sexos, idades, raças, condições e classes, identificados em hcxura da
pátria, influídos por um só desejo — o de folgarem até o derradeiro
HI8T0BIA DA LITTERATUBA BRA8ILBIBA 461
instante do incomparável dia 2 de julho, que aliás durava muitos
dias, reproduzindo-se os festejos, em miniatura, por alguns aiTa-
baldes e cidades da provincia.
Lia-se a faustissima data ao lo'ngo das ruas, no meio das praças,
em palácios e tugúrios, no templo e no theatro, na escola e na oííi*
ciua, em claustros e fortalezas, nos hospitaes e nos quartéis, em far-
das bordadas e vestidos de seda, em blusas e casaceis, por sobre a
cabeça e o coração de patriotas a festejarem o 2 de julho.
Na cidade de S, Salvador, a 3 de maio, começavam, media; i te uma
associaç&o composta, de cidadãos distinctos, os aprestos para o vis-
toso palanque, artisticamente destinado a servir de recept€u:ulo dos
emblemas da emancipação, isto é, dous grandes carros onde se
fixavam as garbosas figuras de um caboclo e sua companheira sup-
plantando o despotismo em forma de dragão.
Durante dous mezes preparavam-se clero, nobreza e povo com as
mesmas previsões de quem resolve uma viagem ã roda do mundo.
Taes preparativos, ás vezes, denunciados por falsos boatos, mor-
mente quando a situação era dos conservadores, obrigavam o presi-
dente da provincia a requisitar do governo geral mais força de linha,
com receio da alteração da ordem publica. Gratuitas apprehensões
da politica, inteiramente desmentidas pela Índole pacifica e ordeira
de povo bahiano.
Três dias antes de raiar a tão auspiciosa aurora, um bando de cen-
tenas de cavalleiros e milhares de peões, mascarados e vestidos
phantasticamente, percorria as ruas principaes da cidade alta, dis-
tribuindo em avulsos e apregoando em verso o programma da solem-
nisação.
Os estudantes de medicin8^ os alumnos do lyceu e de collegios
particulares, os lavradores, os caixeiros naciohaes, os jornalistas e
os typographos, os artistas, os artífices e até a puerícia escolar,
alistavam-se, constituindo regimentos e batalhões, devidamente
organizados, com os seus distinctivos. patentes, direitos de prece-
dência e recursos pecuniários para músicos, archotes e despezas
eventuaes.
Dessas legiões de pcúsanos sahiram briosos voluntários para a
campanha do Paraguay, onde ganharam a victoria ou perderam a
vida em holocausto ao desaggravo da pátria.
A* noite de 1 de julho formava, em ordem de marcha, qued se fosse
um corpo de exercito, a enorme columna, subdividida em brigadas,
sob a direcção de verdadeiros militares, taes como o marechal Luiz
da Fraiiça, os brigadeiros Favilla, Evaristo Ladisláo e Faria Rocha,
os coronéis Marcolino Moura e Manoel Jeronymo, sendo o coui^
462 HISTORIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
mando chefe, algumas vezes, assumido por cidadãos de maior in-
fluencia na occasião, como por exemplo, em 1874, o conselheiro Dan-
tas.
Chegados ao largo da Lapinha, quasi ao alvorecer do incompará-
vel dia, e depois de um trajecto de muitas horas, as phalajiges patrió-
ticas, tendo á frente os restantes veteranos da Independência, ves-
tidos como outr'ora durante a campanha, e perfilados em torno da
bandeira vetusta, reliquia de Pirajá, ajuntavam-se á guarda nacio-
nal e á tropa de linha, resplendentes em seus uniformes, guarne-
cidos de folhas auri-verdes.
Ao restrugir dos clarins, tambores, bandas militares e foguetes,
movia-se o préstito entre alas compactas de povo apinhado nas
ruas e sob a^ acclamações de galantes senhoras, que engrinal-
davam as janellas colgadas de seda e damasco. Assim eram condu-
zidos á mdo os dous carros symbolicos, chegando, ás 2 horas da
tarde, ao terreiro de Jesus, onde entravam como, em 1823, o exer-
cito emancipador, quando as forças lusitanas, commemdadas pelo
general Madeira, desoccuparam a leal e valorosa cidade.
Não era mais imponente a entrada triumphal dos heróes gregos
e romanos, em regresso de suas cruentas victorias na Ásia e na
Africa.
Que indiscriptivel e magestoso enthusiasmo no auge do delirio,
em toda aquella catadupa de gente a reluzir, a ferver, a redemoinhar
sob chuva de flores e poesias em avulsos, acenos de chapèos e len-
ços, explosões de vivas e baterias de palmas! Entoados, depois, os
cânticos religiosos, atroavam canhões e fuzis nas descargas que
respondiam em continência ao solemne Te-Deum^ celebrado em
acção de graças no vasto recinto da cathedral!
Quasi ao cahir da noite desfilava a tropa em cortejo á effigie do
imperante e dos obreiros da Independência.
Estrangeiros recemviíidos pasmavam, deslumbrados ante o ma-
gnético effeito daquelle imprevisto quadro, digno de perpetuar-se
em telas de Salvator Rosa e paginas de Victor Hugo.
Dir-se-hia que a natureza e a arte combinavam-se em seus
melhores productos para condignamente solemnisar-se o dia dos
bravos no limpido azul do céo, no máximo fulgor do sol, na supera-
bundância e no viço das flores, nos trajos do bello-sexo, no garbo e
no lustre da tropa em grande parada, nos trophéos de armas emmol-
durando efflgies de heróes, 'nas bandeiras galhardamente desfral-
dadas, na repercussão dos hymnos marciaes, desferidos aos quatro
ventos, nas salvas de artilheria a responder pelo mar, nas expan-
HI8T0BIA DA LITTBBATUKA B&A8ILBIRA 463
Soes, em summa, da alma publica, tributaria das glorias avitas,
guardadas pelo amor da pátria » (1).
E foi n'um meia d'esses que sa desenvolveu o talesnto po^
tico do celebrado repentista ; e fod adli que a scentedha sa-
grada despertou o talento do filho, comimiunicando-lhd esse
enthusiasmo, essa confiança, essa temerosa impavidez, que
lhe serviram de ampara no meio das crudelissimas injustiças,
que o assaltaram constantemente da parte de mequinhos de-
tractores...
Não ultimo este capitulo sem lembrar os nomes de Luiz José
Pereira da Silva (2), Fe»rreira de Menezes, Octaviano Hudson e
Augusto Bmiilio ZaJuar.
Este ultimo era portuguez abrasileirado e tem direito a figu-
rar em nossa historia litterarie^ porque intellectualmente fcH
producçâo doeste paiz.
Não assim José Feliciano de Castilho e Faustino Xavier de
Novaes, transplantados {vara cá em idadie madura, já feitos
espiritualmente.
CAPITULO VI
Poesia. — Sexta e ultima phase do romantismo
Vae-se agora assistir á dissolução do romantismo na poesia
brasileira. A ultima escola poética de valor formada dentro
do circulo da romântica entre nós íoi a escola do Recife,
(1) Monia Barretto, pag. 91 e seguintes,
(2) NAo confundir com o Conselheiro Joáo Manoel Pereira da Silva, o
velho auctor doa Varões lUiatrei do Broêil e de muitas outras obras.
464 HISTOBIA DA LITTEBATT7BA BSAStLEIRA
conhecida sob a denominação de escola condoreira. Já me
tenho referido a ella por diversas vezes.
Foi sob a égide de Victor Hugo que o movimento condo-
reiro se iniciara ; mas esta circumstancia, verdadeira até
certo ponto, deve ser limitada em mais de um sentido.
Os nossos poetas, tomando algumas tintas á paleta hugo-
niana, nâo insufflaram de todo em seus cantos outra vidfi,
deram apenas outra roupagem ás suas próprias ideias.
A influencia de Hugo foi mais exterior e occasional, do que
orgânica e fundamental ; simples questão de forma, de mor-
phologia poética.
Como quer que seja, porém, a Victor Hugo estava reservada
a missão de fechar o romantismo no mundo actual. Não só
todos os seus antigos companheiros e emulos tinham já
desappcu^ecido da scena quando elle morreu, como era elle
o único poeta que ainda ousava empregar o primitivo eslylo,
e sahir á rua com o velho manto da escola. Também entre
nós a ultima phase do romantismo foi cheia, mais ou menos,
com a acção do poeta das Contemplações.
Os momentos anteriores pertenceram a outros ; Ghateau-
briand, Lamartine, Byron, Musset, e o próprio Beranger,
tiveram cada um a sua hora de acção. Victor Hugo teve a
ultima e em certo sentido a mais brilhante.
Influenciados por elle já se viu que foram José Bonifácio
de Andrada, Pedro Luiz e Luiz Delfino (1). Influenciados por
elle foram, como se vae vêr, Tobias Barretto, Castro Alves,
Victoriano Falhares, Guimarães Júnior, e aJguns outros
illustres poetas nacionaes.
Vamo-nos, pois, leitor, transportar á bella cidade, a grande
capital do norte, para assistir alli ao desabrochar e ao desen-
volvimento da poesia e das letras nos derradeiros quarenta
annos. O que eu aqui chamo a escola litteraria do Recife,
como já falei em escola bahiaiia, escola mineira^ escola flu-
minense, escola paulista, escola maranhense, tem atravessado
três phases bem caracterisadas.
(1) Por considerações de methodo deixei este poeta para ser estudado em
um capitulo subsequente deste livro.
HI8T0BIA DA UTTS&iLTUSA BSÂBILEIBA 465
A primeira épocha, puramente poética e ainda exercida sob
a influencia do romantismo, iniciou-se nos fins de 1862 e
princípios de 1863 e chegou até 1870.
Foi o tempo do hugoanismo da forma, do condorei^smo
do estro sobre uma poesia patriótica e socialistica em suas
melhores manifestações, a epocha de Tobias, Castro Alves,
Falhares, Luiz Guimarães, Plinio de Lima, José Jorge, que
formaram a plêiada hugoniana.
Carneiro Vilella, Santa Helena Magno, Eduardo de Car-
valho reagiram, conservando as tendências lamartinianae.
Franklin Távora e Araripe Júnior, ainda sob a influencia
de Gonçalves Dias e Alencar, começavam a dedicar-se m
romance.
Souza Pinto e Generino dos Santos, ainda estreiantes, va-
cinavam incertos.
A segunda phase correu de 1870 a 1877 ou 78. Começaram
as reacções da critica em face do romantismo em geral.
O auctor Teste livro em quatro artigos successivos em
1870, para só falar d'este anno, atacou o sentimentalismo
exaggerado e o indianismo decrépito dos Harpejos Poéticos
de Santa Helena Magno, o hugoanismo retumbante das Es-
pumas Fluctuantes de Castro Alves, o lyrismo subiectivista,
o humorismo pretencioso das Phalenas de Machado de Assis,
e a defesa que das velhas ideias fizera Quintiliano da Silva,
um moço de grande talento e má intuição. Começou então
uma grande fermentação de ideias, alimentada pela curio-
sidade e pela sôde de saber de Celso de Magalhães, Souza
Pinto, Generino dos Santos, Inglez de Souza, Clementino
Lisboa, Lagos, Justiniano de Mello e muitos outros. Tobias
foi também do numero dos reactores.
A poesia se transformou e a critica exerceu-se em larga
escala. A terceira phase vem de 1878 ou 1879 e continua ainda
nos diaes actuaes. A critica e os estudos jiiridicos e sociaes
tomam a dianteira á poesia, que mostra também feições mais
severas.
E' o tempo dos moços Clóvis Beviláqua, Annibal Falcão,
Arthur Orlando, Martins Júnior, Alvares da Costa, João
Freitas, Virgílio Brigido, a que se devem juntar os nomes
HISTORIA 11 30
>
466
HIBTOBIA DA LITTIBATITAA BRASILEIRA
de tres lentes da Faculdade jurídica : Tobias, que nunca mai^
sahíu de Pernambuco, onde ficou sempre a luctar, José
Hygino, o illustrado jurista e pesquizador da historia pátria,
e Jo^o Vieira, celebre criminalista.
Tal é em rápido escorço a successão dos momentos diver-
sos da escola litteraria de Pernambuco.
Só o primeiro tempo entra no plano d'este volume ; o se-
gundo e o terceiro deverão apparecer no volume subsequente.
Nos successos que vou narrar pôde ser que entre os nomes
dos obreiros, que enlâo tanto trabalharam por dar lustre a
este paiz, haja uma vez por outra de apparecer o meu cen-
surado nome.
Podel-o-ia calar, mas não o farei, não por vaidade, que
não tenho, sim em resposta indispensável a uma critica que
me não dá tregoas, que se gloria de atacar-me.
O ódio que me vota é em grande parte oriundo da justâça
que tenho ousado fazer a illustres escriptores das provindas
que ella, a critica mesquinha, quizera sempre conservar
em completa obscuridade, e não poude ; porque eu não
deixei !...
Peço desculpas ao leitor imparcial e recommendo-lhe a
maior attenção aos documentos que terei de adduzir sobre
mim e sobre os meus companheiros da escola de Pernam-
buco (1).
(1) Para calar a critica dou aqui uma lista dos principaes artigos com
que contribui de 1870 a 1873 para a morte do romantismo e propaganda de
novos ideiaes :'
!.• A Poesia dos Harpajos Poéticos, preparado em novembro de 1869 e
publicado no periódico intitulado Crença no Recife, em abril de 1870. N'esta
critica ao livro de Santa Helena Magno apresentava pela vez primeira a
idéa da poesia fundada no criticismo contemporâneo, e combatia, consequên-
cia lógica, o romantismo choroso e o indianismo brasileiro.
2,* O que entendemos por poesia critica, e duas Cartas a Manoel Quía-
tiliano da Silca, publicado tudo em abril e maio, de 1870, na Crença^ fir-
mando as mesmas idéas, no primeiro enunciadas.
(3).* A Poesia das Phalenas — na Crença, de 30 de maio do mesmo
anno. N'esta critica ao livro de Machado de Assis eram combatidos o sen
lyrismo subjectioista e o seu humorismo prclcncioso.
4.* A Poesia das Espumas Fluctuantes. A critica ao illustre Castro Alves,
então ainda vivo, atacava sobre tudo as imita(;ões directas de Victor Hago
feitas pelo poeta. No Americano do Recife, em setembro de 1870.
5.* Systenia das Contradicções Poéticas, pix>vando a extenuação já
HISTOBIA DA LITT8&ATUBA BBA8ILBIBA 467
Antes de entrar na caracterisação directa e especialisada
dos typos que figuraram no período que ora historio, é mister
àax aqui ainda uma ou duas paginas de syntheee geral sobre
o movimento de Pernambuco.
De todo9 os centros intellectuaes do Brstsil, se é que neste
paiz os ha bem caracterisados, a cidade do Recife, nos
últimos quarenta annos do século XIX, foi o que levou a
palma aos outros na iniciativa das idéas.
Desde logo cumpre-me avisar ao meu leitor que eu n&o
sou pernambucano, nem quero ter em mui exagerada conta
adiantada das differentes doutrinas de poesia, que haviam figurado na his-
toria litteraria do XIX século. Correio Pernambucano em 1871.
6.* A Poesia e o# nossoê Poetas^ combatendo o romantismo religioso de
Gonçalves de Malgalhães e o gentilismo de Gonçalves Dias, no Correio
Pernambucano em 1871.
7.* A propósito de um Livro^ critica das Peregrinas de Victoriano Fal-
hares, cm Junho de 1871 no Diário de Pernambuco^ combatendo a poesia
chula de recitações em theatros e salas, e defendendo contra Ed. Scherer o
lyrismo impessoal, distincto do lyrismo indioidualista^
8.* Uma pagina sobre Litteratura Nacional^ no Mooimento do Recife,
de 15 de maio de 1872, estudando a influencia do meio e da raça sobre o
espirito brasileiro*
9.* Realismo e ideialismo, no Movimento de 23 de maio de 1872.
10* As Legendas e as Epopéa^, no mesmo jornal e anno.
11. • A Poesia e a Religião, O Maraoilhoso, idem, idem.
12.* A Poesia e a Seiencia, ibid., idem, Todos no mesmo espirito, com-
batendo velhos erros e reformas pouco firmes.
13.* Camões e os Lusíadas, no Diário de Pernambuco de meiados de
1872, sobre o prefacio do Uvro de Joaquim Nabuco. Agitava^se de novo a
questão do indianismo.
14.* A Rotina Litteraria, no Jornal do Recife cm 1872. Synthese das
direcções erróneas da litteratura brasileira no século XIX.
15.* Um artigo apreciativo das Cartas de Sempronio a Cincinnato contra
Senio, no Diário de Pernambuco de fins de 1872. Batia com inteira inde-
pendência os três combatentes igualmente.
16.* Uns Versos de Moça, a propósito das Nebulosa* da Sra* Narcisa
Amália, na Republica do Rio de Janeiro em 1873. Tratava-se do papel da
alegria e da tristes a na poesia.
17.* A Critica Litteraria, em julho de 1873 no Liberal do Recife. Defen-
díam-se algumas idéas do autor contra uma critica villan.
18.* O Romantismo no Brasil, no Trabalho do Recife, em abril, maio,
junho e julho de 1873. Combatia-se o decrépito systema.
19.* Uma these sobre Económica Politica apresentada ao lente d'aquella
matéria na Faculdade de Direito do Recife, em setembro de 1873. AvaUava-
se do volor do socialismo contra a economia politica, da critica religiosa
contra a theologia medieval, e do positivismo contra a metaphysica.
^ 17, «*^
468 HI8TOBIA DÁ LITTEBATURA SBASILBISA
O ultimo movimento espiritual alli provocado, como também
não aprecio largamente a tão decantada aptidão da grande
província do norte para as lides das idéas livres, com suas
três e tâo mal apreciadas revoluções do xix século. Nem 17,
24 e 48 me prendem com força, nem é para decantar taes
factos que movo agora a penna.
Mina pretenção é mais modesta, visa á epocha recente e
a idéas de natureza muito diversa. O movimento a que me
refiro teve por factores individues pela mór parte extranhos
áquella terra, e só alli nasceu pelo facto, quasi accidentaU de
terem elles ido lá fazer o seu curso académico.
A gloria, pois, que de tal facto possa advir a Pernambuco
é puramente reflexa ; mas não é menos verdade que foi na
bella Veneza transplantada, para repetir a velha phrase do
poeta, que as cousas se passaram.
A meia dúzia de idéas mais estimáveis, que em outros
pontos do paiz, como S. Luiz, Bahia, Rio de Janeiro, S. Paulo
e Porto Alegre, tem vindo nos últimos tempos a agitar na es
phera litteraria os espirites, desde 1862 que no Recife come-
çaram a vir á luz, e a prosperar no jornahsmo.
O terreno revolvido, a sciencia, a critica, a poesia, o foi
ali largamente, tanto quanto na Brasil isto podia acontecer.
Uma fatalidade, que se prende de um lado ao desprezo da
capital para com a imprensa provinciana, e, de outro, á po-
sição pouco vantajosa dos trabalhadores de que se vai falar,
é a razão explicativa de terem ficado elles quasi ignorados.
Devo começar pela poesia.
A primeira phase das lutas que tenho de rapidamente his-
toriar foi a da formação da escola nacional, que arvorou a
bandeira pantheistica e revolucionaria de Victor Hugo, com
seu estylo forte e rutilante.
Seu chefe ali foi Tobias Barretto de Menezes, que levou o
systema preparado de Sergipe, sua pátria, onde o cultivava
desde annos antes.
O joven poeta aportou em Pernambuco em fins de 1862.
Desde então, sua voz se fez ouvir, e em torno delle grupa-
ram-se muitos enthusiastas aproveitáveis, deixando as velhas
tendências. Entre outros se contavam Castro Alves, Victo-
HISTOBIA BA LITTBBATURA BBAflUJBIlLL 469
riano Falhares, Plinio de Lima, Guimarães Júnior e mais
tarde Castro Rebello e Altino de Araújo.
Os chefes e os discípulos náo viveram depois muito cordial-
mente ; a emulação toruara-os rivaes, nâo contestando, po-
rém, nenhum em Pernambuco ao poeta sergipano o prestigio
da iniciativa. A vida académica no Recife nesse tempo foi
muito aprazível.
Era a phase da guerra como Paraguay. As festas patrió-
ticas se repetiam com as noticias de nossas victoriase um
enthusiasmo sincero se fazia sentir entre, os moços.
O iheatro, sob a direcção de bons artistas, e o saião, ao
influxo das bellas pernambucanas, recebia com o recitativo
um brilho vivo. Os poetas tiveram principalmente por musa
o patriotismo, o enthusiasmo esthetico e o amor. Ao lado
desta tríplice manifestação exhibia-se a poesia philosophica
e um lyrismo brilhante e sadio. A primeira necessidade da
joven escola foi banir o byronismo affectado e o lamartinismo
lamuriento, que tinhctm tido tantos represen tentes festejados.
Nas folhas do Recife de 1862 á 1870 existem numerosas
producções que attestam o que aqui se afflrma. E* uma ques-
tão de datas ; é só veriflcal-as.
Alguns livros depois foram publicados reproduzindo
aquellas peças. Entre outros, Espumas Fluctuantes de Castro
Alves, Mocidade e Tristeza, Scentelhas, Peregrinas de
Falhares, Corymbos de Guimarães Júnior.
Os versos de Tobias Barrelto ficaram espalhados pelas
paginas dos jornaes, até que em 1881 no Rio de Janeiro se
imprimio em livro uma parte delles sob' o titulo de Dias e
Noites (1).
Entretanto, Castro Alves, discípulo muito aproveitado, mas
sem a intuição philosophica, o sentimento exacto e a correc-
ção plástica do mestre, passando pelo Rio de Janeiro, onde
teve ruidoso acolhimento, foi proseguir o seu curso em
S. Paulo, fez-se lá ouvir e creou asseclas, que depois pro-
chamaram a nossa poesia hugoniana como um rebento
d'aquelle solo...
(1) Existe uma edição posterior muito mais completa; é de 1893.
470 HI8T0BIA DA LITTBRATUBA BRA8ILBIBA
Isto já em 1868, quando a escola, como tal, entrava em
decadência.
E' que de Tobias Barretto e Castro Alves, passando para
08 seus discípulos, ostensivos ou não, o estylo se exagerara,
tornando-se uma maneira áspera de poetar....
A falta de sentimentos e de idéas foi supprida pela phan-
tasmagoria de uma linguagem empolada e gongorica.
A' ultra-romantica generosa e enthusiastica dos Dias e
Noites e Espumas Fluctuantes succedeu, entre outros syste-
mas, no Recife o realismo de Celso de Magalhães, Generino
dos Santos e Souza Pinto. Tinham antes trabalhado nas
fileiras dos adeptos de Hugo, e reagiram afinal.
Seu systema, porém, náo repousava na vasta intuição natu-
ralista do mundo e da humanidade, preparada pelo evo-
lucionismo e pela critica.
O realimo litterario e poético de que se fizeram os cory-
pheus não foi o corollario do naturalismo scienti[ico que
substituio as velhas construçções metaphysicas.
Era já depois de 1868 ; nas Poesias de Celso de Magalhães
e nas Idéas e Sonhos de Souza Pinto se nos depara esta nova
tendência, afflrmada mais fortemente nos periódicos acadé-
micos apparecidos dahi em diante, maximé no Trabalho em
1873.
Hoje tudo isso é corrente na mór parte do paiz ; mas é
preciso não olvidar a origem. Continuavam os poetas a
sacrificar ao romantismo ou ao estreito realismo, quando
o autor destas linhas offereceu a idéa de uma poesia, que,
firme na moderna intuição criticisla, edificada pelos estudos,
históricos, de um lado, e pelas sciencias naturaes e philoso-
phicas, de outro, fosse a crystaJlisação das vistas mais adian-
tadas do espírito contemporâneo.
Um critico francez, sondando os motivos intimes da poesia
sceptica de Byron e Goethe, encontrou-os no estado social
incongruente dos fins do século xvni e começos do xix.
Por um raciocínio simples, fui levado a concluir para a
poesia nova uma intuição diversa. Esta não podia mais ser
pedida nem ao decrépito espiritualismo metaphysico de Cou-
HIBTOBIA DA LITTXSATUBA BRÁ8ILBISA 471
sia e Jouffroy, nem ás vistas pantheisticas de Quinei, ou ao
socialismo revolucionário de Hugo.
Havia também de ser diíTerente de outras soluções que
começavam a apparecer, como o realismo de Coppée e Riche-
pin, e como o positivismo estéril de alguns outros.
Só a concepçâLo agnóstica do universo, que é o grande feito
da sciencia do dia, concepção que tem o tríplice apoio do
positivismo de Comte, das idéas evolucionistas do Spencer
e da critica religiosa allemâ, é que podia, a meu vèr, ser
a inspiradora da arte actual.
Similhante idéa, pouco comprehendida entre nós, foi ati-
rada á luz na Crença, periódico publicado no Recife em 1870,
e desenvolvida nos annos seguintes em diversos jornaes da
quella capital.
Um dos indispensáveis recursos da theoria, foi combater
o romantismo, de preferencia no seu predilecto representante
— o indianismo brasileiro. Igual opposiçâo foi feita ao falso
ideaUsmo e ás únicas pretendidas concepções realistas* Todas
as obras, quer de critica, quer de poesia, que tenho publicado
no Rio de Janeiro, nâo passam de documentos dessa intuição
litteraria e em grande parte são reproducção do que havia
publicado antes no Recife.
Por outro lado, o moderno naturalismo do romance brasi-
leiro, qual o comprchenderam o distincto escriptor Franklin
Távora e o esperançosa Luiz Dolzani, é também um producto
do movimento do norte.
Estes autores depois ausentaram-se, trazendo para o sul
suas idéas já feitas e desenvolvidas.
E' tempo de passar á sciencia e á critica.
Algumas idéas que, a propósito de nossa chamada questão
religiosa, foram discutidas no Rio de Janeiro, entre outros
por GanganeUi, annos antfes o haviam sido no Recife por um
escriptor, que tinha tanto mais de illustrado do que o notável
chefe da maçonaria brasileira, quanto é mais do que elle
desconhecido.
ReQro-me a Abreu e Lima. E' impossível agora aqui fazer
em traços miúdos a característica desta nobre individuali-
dade. A occasião não é a mais apropriada.
472 HISTORIA DA LITTXEATUBA BBASILIIltA
Gomo 06 poucos homens de mérito real neste paiz, tem
elle sido largamente desdenhado. Seus trabalhos de patriota
liberal, que o pôz o braço ao serviço da independência da
C40lumbia e da Bolivia ao lado do celebre libertador da Ame-
rica do Sul, íôram esquecidos. Seus escriptos em que íoi
o primeiro, entre nós, a encetar a critica sem reserva, pro-
fligando as autoridades de palha, engrandecidas por nossa
fatuidade, foram por e&ta ridicularisados. Apresso-me em di-
zêl-o : Abreu e Lima náo é para mim mais do que um autor de
ordem terciária, medido pela bitola de seus congéneres eu-
ropeus. Aferido, porém, pelo padrão brasileiro, elle se os-
tenta muito acima do nivel de seusi rivaes pátrios, por mais
endeusados que tenham sido em detrimento seu.
Em sua longa carreira ha a distinguir o que fez como pa-
triota americano, liberal e militar, e o que fez como escri-
plor. Por este lado ainda se deve separar o que, logo de volta
da Columbia, effectuou no Rio de Janeiro e o que mais tarde
publicou em Pernambuco.
Em uma e em outra esphera, se nem sempre suas idéas
foram originaes e seguras, seu exemplo foi sempre para imi-
tar-se. Independente e ousado, nunca se prostrou aos pés de
nossos governos insensatos; independente e illustrado, foi
quem primeiro brandio neste paiz o látego da critica sobre a
enfumada lenda de homens como Cunha Barbosa, Adolpbo
Varnhagen, Ferreira França, Diogo Feijó, Nascimento Pei-
tosa, Pinto de Campos e outros tantos semi-deuses que gyram
na atmosphera empoeirada de nossa politica e de nossas le-
tras. Pelo que mais interessa neste momento, devo somente
indicar que nos annos de 1866 e 1867, já velho e próximo ao
tumulo, sustentou pela imprensa uma luta renhida, cujos
resultados foram dous livros intitulados As Bíblias Falsifi-
cadas^ e O Deus dos Judeus e o Deus dos Christâas.
Ao total três respostas a um padre imprudente, que occu-
pava um alto assento na Igreja brasileira. As qualidades deste
contendor nâ.o erami das mais próprias para engrandecer
a pugna e dar fulgor ao adversário liberal. E, todavia, aqui
dentro do nosso horizonte, Abreu e Lima brilhou.
Elle, por certo, ignorava, como todos de seu tempo, o
HISTOKIA DA LimSATITBA NLàBEUKaUL 473
grande thesouro que constitue a moderna sciencia da exe-
gese bíblica. A nova critica religiosa lhe era desconhecida.
De um ponto de vista voltairiano, porém, e com a intuição
de un> velho catholico, muito antes da InlaUibUidade e da
scisão de Doellinger, elle delucidou a questão das biblias pro-
testantes, ditas falsificadas, e discutio outros pontos contro-
versos, como o purgatório, a inquisição, o culto das imagens...
No terreno do direito ecclesiastico privado escreveu sobre
o padroado, o beneplácito imperial, ausência dos bispos de
suas dioceses. De envolta lá se acham acertadas idéas sobre
o casamento civil, liberdade religiosa, immigração estran-
geira, concordata com Roma...
A obra do general pennauece despercebida, quando seu
digno su<^cessor, amontoando volumes sobre volumes, causou
ruido no Rio de Janeiro. A longa serie intitulada a Igreja e o
Estado, apezar de sua bôa intenção, é um dos maiores monu-
mentos de nossa má cultura metaphysica.
Nem no Recife, nem no Rio, os dous illustres corypheus
produziram pensamentos originaes.
Mas o general tem, alem de outros, o prestígio da antedencia.
A' forte luta sustentada pelo autor do Socialismo e o autor
da Jerusalém succedêram outras menos ruidosas e mais fe-
cundas.
A grande transformação do pensamento hodierno, produ-
zida pela ascendência da Allemanha, o único representative
man que teve no Brasil encontrou-o em Pernambuco. Ainda
neste ponto o iniciador foi Tobias Barretto na reacção philoso-
phica e no germ/inismo. Eu não conheço maior metamorphose
operada em um espirito do que a effectuada no escriptor ser-
gipano.
O chefe da poesia hugoana brasileira fez-se igualmente o
evangelista de germanismo entre nós...
A critica foi a grande porta por onde nos foi fazendo co
nhecer a Allemanha ; a critica em sua totalidade applicada á
phílosophia, á religião, á litteratura, á política e ao direito.
Tobias Barretto percorreu todos estes districtos da sciencia,
sem que sua antiga intuição romântica o perturbasse. Disse
Victor Hugo de Sainte-Beuve que este tinha um pouco do
474 BtlSTOBIA DÁ LITTBBATTTBA BBASILEIBA
poeta no critico e um pouco do critico em o poeta. O nosso
escriptor conseguio separar de todo os dous dominios. Sua
phantasia nfto ennevôava a sua razão.
Desde 1870 que, abandonando quasi totalmente a poesia ;
atrou-se á critica em seus variados ramos, e mais tarde ao
direito. A sua nova intuição ©laborada pelo estudo profundo
do positivismo, do darwinismo, das escolas de sciencia reli-
giosa allemã, maxime a strauss-bauriana e pela leitura dos
historiadores litterarios, como Julian Schmidt e H. Hettner, e
dos publicistas, como Mohl e Gneist, derramou-se em variados
escriptos. O germanismo de Tobias Barretto flrmava-se,
quanto á sciencia na intuição monistica do mundo e da huma-
nidade, presuppondo o conhecimento de Gomte e de Darwin ;
é na litteratura promovia implicitamente a applicaçáo do
principio da selecção natural entre as nações, fazendo-nos
jogar á margem as migalhas da civilisaçâo franceza e mergu-
lhar na grande corrente da cultura allemã. Similhante modo de
pensar envolvia por força a necessidade da critica objectiva,
isto é, daquella que, não guardando preferencias, estudando
os homens e os factos como elles são, lavra o seu juizo sem
tergiversar, por mais enérgico que possa ser.
Mas eis que no Rio de Janeiro só de 1874 em diante é que
pela vez primeira os nomes de Darwin e Gomte foram con-
scientemente pronunciados em publico em conferencias e es-
criptos, quando em Pernambuco eram de vulgar noticia entre
os moços de talento desde 1869 (1).
A critica-sciencia, pois, não nasceu no Rio com a rhetorica
do Gonego Pinheiro.
Escusado é advertir que o germanismo litterario do escri-
ptor sergipano foi letra quasi sem desconto em certos circulos
brasileiros, onde a lingua allemã era um espécie de epigraphia
accadeana.
Espécie de contagium animatum^ a tíva nacional só se apega
aos defeitos daquelles que entre nós ousam pensar.
(1) As primeiras exhibições sobre Darwin foram no Rio de Janeiro as
conferencias do Dr. Miranda de Azevedo, em 1875 » apparecidas depois em
folhetos. — Sobre Comte, os artigos do Sr. Miguel Lemos» a datar de 1S74,
e publicados em opúsculo em 1877.
HI9T0BIA DA LITTEBATT7BA BRASILXISA 475
O que havia de enfesado na poesia de Hugo facilmente pro-
pagou-se ; o que ha de vivificante na Allemanha nós o repel-
limos.
O escriptor dos Estudos- Allemães foi uma grande intelli-
gencía e um grande coração, mas um homem em certo sentido
exclusivista. Seu espirito podia percorrer, sem duvida, larga
parte da escala do saber humano, mostrando, comtudo, uma
faceta predilecta. Em poesia teve elle um mestre, — um no-
tável espirito. Sempre produzia por si, com exuberância
d'alma ; et, todavia, em sua paleta havia de ordinário entre
outras uma Unta certa I Em litteratura e critica teve também
um ideal : a alma de uma raça, o espirito tedesco. Sempre
pensava por si, com segurança ; e, todavia, sua penna, que
podia molhar-se em tinta preta, havia de trazer, ás mais das
vezes, alguns pingos rubros das preferencias germânicas.
Isto é bom, os iniciadores devem ser arrebatados, systema-
ticos, exclusivos. E' uma condição de victoria.
O autor deste livro, espirito que deseja acertar, foge desses
caprichos.
Em poesia, o philosophismo criticista, porque éra a feição
do tempo ; em philosophia e litteratura, ainda o criticismo
evolucionista, e mais a verdade de onde quer que ella viesse.
Isto envolvia uma serie de afflrmações e negações, que appa-
recêram nos jornaes de Pernambuco em oito annos, — os ([uj
medeiaram entre 1869 e 1876.
Pelo que toca á litteratura, em sua face restricta, no que
mais interessa por ora, esse pensamento quer dizer, pelo lado
negativo : abandono do indianismo e do lusismo exclu-sivos,
igual desprezo dos sonhos românticos e do falso realismo ;
pela face positiva : nova intuição da poesia em geral e espe-
cialmente da americana ; nova concepção da poesia popular
brasileira e da historia litteraria da nação, onde devem pesar
todos os elementos ethnicos do paiz. Em todo este movimento
critico do norte, sem duvida superior á evolução poética, fllia-
ram-se alguns jovens escriptores, que foram depois residir
e trabalhar em outros pontos do paiz ; taes foram, entre mui-
tos, Celso de Magalhães, Rocha Lima e Araripe Júnior.
Eu falei poucas linhas acima em nossa poesia popular. No
476 HI8T0BIA DA LITTEEATUBA BBASILBIBA
Rio de Janeiro não se tinha tratado de similhante assumpto
antes do excdlente escripio do no<tavel critico Celso de Maga-
lhães, intitulado — A poesia popular brasileira, publicado no
Recife 1873. Depois é que o Conselheiro Alencar mimoseou
os seus leitores com o seu escripto — O nosso cancioneiro.
Esta rápida noticia do desenvolvimento de idéas levado a
effeito na bella cidade onde estudei, que é a minha pátria intel-
lectual, não leva por alvo engrandecer os meus companheiros
de lides e muito menos a mim próprio. Restabelecer a ver-
dade de alguns factos e comprimir um«LS pretenções indé-
bitas, eis o motivo dirigente destas paginas.
Infelizmente do Brasil não se pôde dizer o que da Alie-
manha escreveu o sábio Virchow : « A meu vêr não temos
agora mais nada que pedir para nós ; havemos chegado ao
ponto emi que devemos, sobretudo, propôr-nos, por nossa
moderação, por uma certa abnegação de nossas preferencias
c opinões pessoaes, fazer perdurar as disposições favoráveis
que a nação ha testemunhado a nosso respeito. »
Quem dera que ahi tivéssemos, chegado (1).
Tobias Barretto de Menezes (1839-1889). — Este iniciador
da escola condoreira na poesia nacional, mestre do alletnã'
nismo na critica, doutrinador do naturalismo no direito, nas-
ceu na villa de Campos, na província de Sergipe, aos 7 de
junho de 1839. Seu pae, Pedro Barretto de Menezes^ era alli
(1) Para que nâo haja engano, nem se suscitem duvidas sobre os diversos
trabalhadores da escola do Recife nas três phases, sob o ponto de yista da
iniciativa de cada um, dou aqui a seguinte indicação synoptica.
Os propulsores foram estes :
1.' Phase: — na poesia — Tobias e logo após Castro Alves e Victoriano
Falhares ; no romance e no conto — Franklin Távora ; no ecUcUrianismo
religioêo — Abreu e Lima.
2." phase : — na reacção philosophica e no germaniêmo Tobias, na
reforma da critica litteraria e no criticiimo poético o escríptor d'este livro ;
no realismo poético Celso de Magalhães e Souza Pinto ; no romance Luiz
Dolzani e Clementino Lisboa ; no folk-lore Celso de Magalhãos e logos após
o auctor d'este livro.
3." phase: — na intuição nooa do direito — Tobias e depois José Hygino,
Clóvis Beviláqua, Arthur Orlando e João Vieira; na poesia seientijtea
Martins Júnior ; no critica litteraria, Clóvis Beviláqua, Arthur Orlando
Alvares da Costa, na erudição na historia local — José Hygino.— £' isto
esta é a verdade e esta é a justiça.
HI8T0BIA DA LITTBRATUllA BBASILIIXA 477
escrivão de orphâos ; mas o município não era populoso e
rico, o cartório quasi nada rendia e o funccionario não pas-
sou jamais acima da pobreza.
O pae do poeta tinha génio folgazão e satyrico, pronunciado
talento anecdotico e innegavel queda para as luctas politicas
locaes, nas quaes se revelara intelligente, insubmisso e desa-
busado.
Sua mãe — D. Emerenciana de Menezes — era meiga, de
génio suave e doce, temperamento melancólico e cheio
de resignação. Pedro era mestiço accentuado; D. Emerenciana
passaria par fldalgamente branca em qualquer parte do
Brasil.
Campos demora em uma planície, quasi na confluência do
riacho Jabibery no Rio-Real. A região é áspera, a terra es-
florada a trechos, cheia de arêiaes extensos, contrastados por
bellas e frescas moitas de altas quichabeiras nas margens
do Real e do Jabibery. E* um pedaço d'essa região, caracte-
risticamente chamada no Norte — o agreste — que é a passa-
gem das terras das mattas para a zona dos sertões.
A vegetação é falha em geral e de pequena apparencia,
excepto, como é o caso em Campos, nas margens dos rios.
Predominam as catingas, mangabeiras, guabirabas, quicha
beiras e imbuzeiros. E' pronunciada a antithese entre a pla-
nície areinta e estéril e as altas moitas frescas que bordam os
rios. O clima é quente, appetitosos os banhos nos poços sob
as folhudas ramagens, os luares esplendidos, o ar impre-
gnado do cheiro das plantas campezinas.
Bem se comprehende a selvagem e original poesia que um
meio d'esses iria accumulando n'alma intelUigente do fllho de
Emerenciana e Pedro Barretto. Quem viu aquellas paragens
entende bem o que vêm a sêr os roupões de sombra desves-
tidos pelos qnichabdes e sente a vordade de versos como
estes :
(( Aos reflexos da lúa que pratêa
Os brancos arôaes de minha terra.
Ao vivo trescalar das guabirabas
Nas aragens de um céo desabafado » (1).
^1) Dias e Noites, Rio, 1893 ; pag. 262.
478 HI8T0BIA DA LITTEBATITBA BRASILEIRA
Tobias estudou primeiras lettras em sua terra natal com o
professor Manoel Joaquim de Oliveira Campos, figura notável
na proívincia, como poeta^ jurista e politico. A convivência
doeste espirito, addicionada á de Pedro Barretto, influiu consi-
deravelmente na formaç&o do talento e da compleixâx) intelle-
ctual do joven sergipano.
Aprendidos as primeiras lettras de 1846 a 49, partiu en 1850
o futuro poeta dos Dias e Noites para a cidade da Estancia
a cursar a aula de latim do padre Domingos Quirino de
Souza 6 seguir as licções de musica do maestro Marcello Santa \
Fé. Na Estancia demorou-se até 1852. No anno seguinte par-
tiu para o Lagarto a completar os estudos de latinidade sob a
direcção do famoso professor padre José Alves Pitangueira,
em cuja casa viveu até 1854. No anno subsequente» abriu aula
de primeiras lettras, iniciando d'est'arte, aos deseseis annos,
a carreira do magistério, seu modo de viver mais constante
até á morte.
Em 1857, aos dezoito annos, por conselho do Dr. Salustiano
Orlando, entrou em concurso para o provimento da cadeira
de latim da villa de Itabayana, na qual foi provido, pois que
tinham sido brilhantíssimas as provas dadas de sua capacidade
e competência no assumpto. Em Itabayana demorou-se até
fins de 1860. De dezembro de 1858 existe a bella elogia, em
estylo ovidiano, dirigida a seus discipulos, por occasiáo do
encerramento do curso, tendo se seguir o joven professor
para Campos em descanço das ferias. E* como segue :
Tandem jam superest tantum valedicere vobis ;
Quando quidem cedo, stante magistério,
Quod finitum hodie nunquam mihi forte reduci
Possit, allqui cadat sic literis dociles
Formandi juvencs ; quid ita? certo grave múnus
Commissum immerito parvo aliquando niihi.
Vellem, Discipuli, vobis, qui repitis isthuc,
Ut posscm sapiehs, in rudibus tenebris
Lúmen ego proeferre, erudiens itidem, et vos
Memet, adhuc vídeo, viribus exiguis
Quam doceo ; desunt autem magnae Sophiae ml
Principia, atque ideo jam cogor ad studium.
mSTOBIA DA LITTSBATUBA BBABILBIBA 479
Ât VOS licturus ; desiderio madeíit cor
Planctibus obtectis; ergo valete, Boni.
Semper ero, atque fui, inter amicos me nunierate.
Vos qui pendo, dabunt têmpora temperius. )i
Primeira lettras, musica e latim foram as cousas únicas
aprendidas por Tobias em Sergipe e elle costumava dizer mais
tarde, quando já era mestre profundo de direito no Recife,
que latim e musica eram as únicas disciplinas que suppunha
bem conhecer.
Desde os quinze annos de idade começou a poetar e a
escrever trechos musicaes. Doestas primitivas manifestações
de seu talento existem ainda algumas amostras de que darei
exemplos no correr d'estas paginas.
O anno de 1861 passou-o todo o moço sergipano na Bahin,
onde conviveu com o seu parente Moniz Barrçtto, o famoso
repentista e cursou diversas aulas de preparatórios, entre as
quaes avultava a de philosophia, sob a direcção do theologo e
conhecido orador sagrado Frei Itaparica. Tobias chegara á
velha capital brasileira com a intenção de fazer o curso theolo-
gico e receber ordens sacras. Deu logo entrada no seminário,
onde passou este dia e a noite apenas, retirando-se no dia
seguinte pela manhã. Durante a noite passada n'aquelle
mansuéto retiro, dizem as lendas correntes a seu respeito,
commettera a imprudência de começar a cantar no silencio
do dormitório uma modinha de seu repertório sergipense.
Esta anecdota era referida pelo padre José António de
Vasconcellos; mas creio que é simples crêação lendária. A
verdade é que, sabido do seminário, o irrequieto sergipano
vagou pela cidade á procura de certos patrícios que não che-
gou a encontrar n'aquelle dia. A' noite foi ao theatro de São
João; assistiu ao espectáculo, findo o qual, um companheiro
do occasião levou-o a dormir n'uma estalagem de segunda ou
terceira ordem. Poucas horas ahi demorou-se, porque foi
acordado aos grilos de fogo.
Effectivamente a estalagem estada a arder. Era de madru-
gada. Não sem novas difflculdades conseguiu descobrir o
paradeiro dos patrícios que andava a procurar, e em cuja
9»
frir_'rrXfi *: ;:.xjrí':- l n-.r pLr.-r i: Vrzipo na BiMiolheca
}^^z,,yc i l^r :-r ;:*:»T*-L5 ricz.Li:^!*:^, nmfàianienle Quinei e
V.'.v>f E-r:», r-.i í:tto iis C:^:^r-.;:C£;:<i# inass de perto o
Ni Bah^i í^ra coe. j^arir-n ir R usen i:» Moriz. de seu irmão
Praiif^scx o ci^^ro tãlrcktf.:-- mxto zil.rTamenle no esque-
ç:ir-í:ctc-. e a-i>:'5 tlr.is i:- inr^jilivel rqienlísia citado
linhas ac-nia. Na bella cr^^í'^ i^ihiina -r-s es^zios e leituras o
ai>K-r%-er=::ri de íi-i:'. drumi.-Ir.e dizi^cuto lazer para a
produção : por isso Tuasí na.ia alli escreveo* Tenho apeoas
conhecimento d- d-ís p«c-e^:i^=. Uma. crnsagrada ao Dois de
Julho^ o -ia Mhiino p jr ex*^eI!ecc:a ; o poeta m'a recitou
por vezes: mas çuardei de mr^moria ap*enas duas estrophes,
que reproduzi em seu livro dos Dias e Smtes (i).
A outra — Anhéíos — an Ja no mesmo volume incompleta
o com a data errada, e sobr*_' e''.a falirei mais de espaço.
As pequenas economias levadas de Itaba\'ana estavam esgo-
tadas desde meiados de i8õi e os preparatórios não estavam
prestados, posto qup aprendi ios em sua quasi generali-
dade (2).
De Sergipe não vinha recurso algum; era mister bater em
retirada. O desanino principiava a ganhar o espirito enthu-
sasta do pobre ex-professor de latim, que já n*esse tempo
havia perdido sua cadeira.
Foi em tal transe, ao travor doesse acabnínhamento, que se
deu o passo a mim referido com lagrimas nos <rfbos : deitado
em sua rede, lia a coUecção de trechos de prosadores e poetas
de Charles André: a alma esla\'a ennegrecida pelo desmo-
ronar de todos os planos ; n'iim momento de impaciência
atirou pelos ares o livro, que foi cahir esparramado a um
canto da pequena sala.
(i) Dioê e Noiteê^ pag. 200. edição de 1893.
(2) Krão : latim, francez, inglez, arithmeiica, álgebra, geometria, historia
uriívenia], gcographia, historia do Brasil, philosophia, rhetoríca e poética.
HISTORIA DA LITTBBATUXA BBABILBI&A 481
Levantou-se, apanhou-o, estava aberto n'uma pagina,
onde se liam uns versos, entre os quaes se achava este : on
perd son avenir par trop (Timpatience... Os temperamentos
poéticos, quando atribulados, vêem presagios em qualquer
cousa. Aquellas palavras foram um bálsamo para esse espirito
acabrunhado. Mas era indispensável partir e teve de reco-
Iher-se a Sergipe. Em Campos passou o anno inteiro de 1862;
pois só em dezembro seguiu para o Recife, sem recursos, é
certo, porém cheio de esperanças, confiado na mocidade e no
talento. Saudou a bella Veneza transplantada com a famosa
ode A* Vista do Reciie, escripta a bordo do pequeno paquete
que o conduzira do Aracaju. Mas nem tudo foram rosas em
Pernambuco para o novo hospede. Poucos dias depois de
sua chegada, em janeiro de 1863, era atacado de variola de
máo caracter; o lance foi criiel, esteve quasi ao desamparo
e escapou milagrosamente á morte. Foi o passo mais afílictivo
de sua existência, segundo m'o revelou sempre.
Uma vez curado, porém, repassou os preparatórios durante
1863, prestando-os todos nos exames do ílm do anno.
Em março de 1864 estava matriculado no curso jurídico.
N'esse tempo fez concurso de latim para o preenchimento
da cadeira vaga no Collegio das Artes; apezar de brilhantes
provas, náo foi provido na cadeira; entrou de novo em con-
curso da mesma disciplina no anno sieguinte. Ainda não foi
provido n'ella; o que também lhe aconteceu com a de philo-
sophia do Gymnasio Pernambucano, para a qual concorreu
em 1867, a despeito de ter sido coUocado sempre em primeiro
logar. Deveria íormar-se em flns de 1868,^ o que nâo acon-
teceu, por haver perdido por faltas, em 1866, o terceiro anno
do curso, que só veio a concluir em dezembro de 1869.
Depois de formado ainda residiu no Recife, onde abriu um
collegio de instrucção secundaria, sendo que durante o curso
académico fora sempre no ensino que encontrara meios de
subsistência. Leccionava francez, latim, historia, rhetorica,
philosophia e matlienialicas clenipotarcs.
Nâo metendo em linha de conta os tempos de Sergipe e
Bahia, ó licito dizer que o período de flns de 1862 a princípios
de 1871 constitue a sua primeira phase do Recife, na qual culti-
HISTORU n 31
482 mSTOltlÁ DA IITTISATUBA BBASILIIEA
VOU preponderantemente a poesia, iniciando apenas a acção
critica, que encheu o periodo seguinte (fevereiro de 1871 a ou-
tubro de 1881) que constitue a phase da Escada, do nome da
pequena cidade pernambucana, onde habitou n'esse tempo.
Ao período de (Ins de 1881 a junho de 1889, segunda phase
do Recife, pertence a acção juridica, exercida pelo magistério
na Paculdeuie de Direito. Os factos mais notáveis da vida
espiritual do escriptor durante esses três períodos de activi-
dade sâo os seguintes : em 1862 publicou — A' Vista do
Recife; em 1863 — Pela morte de um amigo, Dia de Pinados
no Cemitério^ A' uma Mulher de talento; em 1864 — A* Polónia,
Trovadores das Selvas, Amália, InspiraçãÁ), Mãe e PUho,
Depois de ouvir a ária final da Traviata; em 1865 — Capitulação
de Montevideo, Voos e Quedas, Lenda Civil, Ideia, Voluntá-
rios Pernambucanos, Sete de Setembro, Pelo dia em que nas-
ceste, Leões do Norte, Em» nome de uma pernambucana^
Philippa, além de alguns discursos e um artigo sobre as poe-
sias de Paes de Andrade; em 1866 — Lenda Rústica, Gemo da
Humanidade, Os Tabaréos, Suprema Visio, Contemplação,
Quando nasceste. Amar, Supplica, A Caridade, Cármen, Oh !
isto mata, além de um artigo sobre as poesias de Lycurgo de
Paiva e sustentou uma polemica com Castro Alves; em 1867
— Polka Imperial, Présentimento, A Luva (traducção), O beijo,
Leocadia, Como é bom! cantaU Malévola, A Viuva de Pedro
Affonso, LuctOrS d'alma. Sê meiga e terna^ Porque me feriste?
A Bottini, Adelaide do Amaral, além de um artigo sobre
Nahum; em 1868, ao de mais de varias poesias, Guizot e a
escola espiritualifta do século XIX; Sobre uma theoria de
S. Thomaz, Theologia e Theodicéa não sâo sciencias; em 1869
— A Religião Natural de Julcs Simon; Os Pactos do Espirito
Hurriano de Gonçalves de Magalhães, A Força Motriz; e varias
poesias; em 1870, redigiu — O Americano e publicou, além de
diversas poesias, como Decadência^ Volta dos Voluntários^ O
Rei reina e não governa, Diante de um batalhão que voltava
da Campanha, alguns artigos, como Os homens e os prin-
cipiou, Moysés e Laplace, Politica BrasUeira, Notas de critica
religiosa^ Theologia Rationalis confutaiio, A Religião perante
a psychologia, Chronica dos desparates; em 1871 — A Sciencia
t «
HI8T0BIA BA UmOULTUSA BBASILBIBA 4S3
d'alma ainda e sempre contestada^ Uma Excursão nos domí-
nios da sciencia bibUca, Uma Lacta de gigantes^ O Direilo
Publico Brasileiro do Marquez de S. Vicente, A Questão do
poder moderador (principio); em 1872 — A Provinda e o pro-
vincialismo^ O Atraso da philosophia entre nós, O romance no
Brasil (inacabado); em 1873 —Sobre um Escripto de Alexandre
Herculano, Auerbach e Victor Hugo, Uma Excursão nos domí-
nios da sciencia bíblica (o final); em 1874, redigiu o periódico
— Um Signal dos Tempos, onde iniciou a publicação de — A
Alma da mulher, Principios da estylistica moderna, Hartmann
e a philosophia do inconsciente, R. Gneist como publicista.
Socialismo em liíteratura. Carolina Michaelis e a nova geração
em Portugal, Sobre David Strauss, A Musa da felicidade, Vic-
tor Hugo e o Congresso de Genebra ; em 1875, redigiu — O
Deutscher Kaempier e publicou — Brasilien wie es ist. Ensaios
e Estudos de Philosophia e Critica, A Comarca da Escada, O
Desabuso (periódicos estes dois), e sustentou polemicas com
os Srs. Albino Meira e José Carlos Rodrigues; em 1876 — O
Povo da Escada (periódico); em 1877 — Aqui para nós, A Igual-
dade (periódicos); em 1878 — Ein offener Brief an die deutsche
Presse, Jurisprudência da vida diária (a propósito do livro do
mesmo titulo de R. Ihering); em 1879, redigiu — o periódico
Contra a Hypocrisia, onde se acha o artigo famoso — Delietos
por omissão; publicou — Um Discruso em mangas de camisa,
acompanhado de notas, e proferiu vários discursos na assem-
bléa provincial de Pernambuco, sendo d*esse anno também o
artigo — A Questão parlamentar do dia; em 1880 — Algwna
Cousa lambem a propósito de Meyerbeer, O hãckelismo em zoo-
logia, O dia de Camões, Organisação communal da Rússia (co-
meço), Treitschke e o movimento anti-semitico n^AllemMnha
(inacabado); em 1881 — Traços sobre a vida religiosa no Bra-
sil, Ensaio sobre a tentativa criminal. Fundamento do dir^to
de punir, Uma nova intuição do direito (começo). Influencia do
saUo na litteratura, Estudos AUemães (como revista mensal);
em 1882 — Mandato Criminal (these de concurso), Estudos Al-
lemães (livro), Theoria da mora, Direito autoral. Sobre o ar-
tigo 10 do Código Criminal; em 1883 — As Artes e a industria
artística, As Flores perante a industria, Préhistoria da litíera-
484 HI8T0BIA DA LITTSBATXTEA. KHAflTT.KTIlA
tura cUissica aUeman^ além da polemica com o& padres do Ma-
ranhão; em 1884 — Notas sobre a evolução emocional e men-
tal do homem, Variações anti-sociologicas (princípio); em 1885
— Introducção ao estudo do direito^ Prolegomenos do estudo
do direito criminal; em 1886 conclusão da — Analyse do Ar-
tigo iO do Código Crimiyial, formando a 2.* edição dos Me-
nores e Loucos em Direito Criminal; em 1887 — Recordação
de Kant^ Traços de Litteratura comparaday Oliveira Martins e
a historia do Povo de Israel, Variações anti-sociologicas (Qnal);
em 1888 — Commentario ao Código Criminal (inacabaido), A
Irreligião do futuro de Guyau, Questões Vigentes de Philoso-
phia e de Direito, Deixemo-nos de lendas, Self-govemment,
polemica com o Dr. José Hygino ; em 1889 a 2.* edição dos
Ensaios e Estudos.
Ahi ficam, em ordem chronologica^ indicadas as principaes
publicações quo fez de poesias e artigos pelos jomaes ou em
avulso.
Cumpre, porém, acrescentar, para melhor comprehensão
dos factos, que, abandonando quasi completamente a poesia
de 1870 em diante, atirou-se mais de perto ao estudo da cri-
tica, da philosophia e do direito, coincidindo com isso o es-
quecimento em que foi deixando os seus mestres francezes,
substituídos pelos allemães, de cuja língua se apoderou com-
pletamepte, acabando por fallal-a e escrevel-a correcta e ele-
gantemente.
Retirado na Escada desde 1871, vítcu principalmente da
advocacia em que teve amiudadas occasiões de abrir vio-
lentas luctas com os juizes da comarca e com os mandões
políticos locaes. Montou alli uma pequejia typographia,
onde imprimiu os periódicos da epocha escadense citeuios
linhas atraz, além de brochuras, como : Brasilien wie es ist,
Ein offener Brief, Discursa em m/mgas de Camisa, Funda-
memío do direito de punir, Estudos Allemães (revista), etc.
Em lucta renhida com herdeiros de seu sogro, teve a casa
cercada por capangas, foi insultado, ameaçado de morte e
compellido a mudar-se para o Recife.
Era em outubro de 1881. Nos começos do anno seguinte
entrou em concurso para o logar de lente da faculdade de
HIBTOBIA DA UTTBKATinU. BKAflILSnU. 485
direito, a justa scientiflca mais brilhante de que rezam os
amiaes académicos de Pernambuco. Tirou a cadeira, a des-
peito da guerra que lhe moveram, a favor do candidato
Dr. Augusto de Freitas, o Conselheiro Sousa Dantas e o
Dr. Sancho Pimentel, devido principalmente ao alto espirito
de justiça do imperador D. Pedro n, que oppôz embargos á
deslavada prepotência dos politiqueiros relapsos.
Curto foi o periodo do magistério jurídico de Tobias Bar^
retto : apenas sete annos incompletos, de 82 a 89, sendo que
nos últimos dois annos a moléstia não o deixava comparecer
ás aulas. Na Faculdade regeu as cadeiras de philosophia do
direito, direito publico, direito criminal, economia politica e
pratica do processo. Esta ultima foi a cadeira que lhe coube,
quando de substituto passou a cathedratico.
Um de seus primeiros actos, após sua entrada para a
Faculdade, foi estimulal-a a dirigir-se ao professor Holtzen-
dortf em apoio da fundação Bluntschli. A carta, para tal ílm
endereçada ao sábio allemão, foi redigida na sua lingua e era
uma bellissima peça. Tobias era o auctor.
Pouco depois teve occasião de, servindo de paranymphG
ao Dr. Hermenegildo de Almeida, recitar seu celebre discurso
sobre a Ideia do Direito, em que apostolava a intuição mo-
nistico-darwiniana d'essa e de outras crêações humanas.
Sahiram-lhe ao encontro os redactores da Civilisação, órgão
offlcial dos padres do Maranhão. Travou-se renhida polemica,
em que a padralhada intolerante cobriu dos mais feios bal-
dões o professor pernambucano.
Prestou aos padres poderoso auxilio o Dr. António Carneiro
da Cunha, sob a pseudonymo de Hunger, Era isto em 1883.
N'esfe anno appareceu seu bello livrinho — Menores e
Loucos em Direito Criminal, de que tirou segunda edição
mais completa em 1886. N'este ultimo anno abriu o curso de
litteratura comparada, no qual pronunciou trinta e tantas pre-
lecções, em pequena parte reproduzidas nos artigos sob o
mesmo titulo publicados no Jornal do Recife (1).
Em 1888, já presa da moléstia, que o tinha de victimar,
(1) Acham^se na edição dos Ettudoê aUemãeê, do Rio de Janeiro.
486 HIBTOBZA DA LITTEBATUSA BBASILXIKA
travou com o Dr. José Hygíno a prolongada discussão, em
que, sob o pseudonymo de Beslier, interveiu furiosamente
o já citado Dr. António Carneiro da Cunha. Este conceituado
medico deliciava-se, entre os maiores insultos e impropérios,
em pintar o estado mórbido do polemista adverso, no claro
intuito de o atemorisar, sabendo como os doentes graves sáo
impressionáveis á notificação do péssimo estado de sua saúde
e á lembrança da morte proximamente irremediável.
• Carneiro da Cunha publicava pela Província, jornal de
seu irmão José Mariano, cousas como esta : « Se aos olhos
de um leigo é de toda a evidencia o mal que o persegue e
que lhe attenúa, senão faz desapparecer, a imputação, com
maior clareza se apresenta a mim que tenho acompanhado
pari-passu^ de visti aique auditu, a decomposição de seu
organismo. »
E' incrível, dito de sangue frio por um medico intelligente,
que nada tinha a vêr com a questão da organisação do 5cJ/-
govemment, objecto da disputa entre o Dr. José Hygino e
seu collega da Académica I E' incrível; mas é a verdade e traz a
data de 7 de dezembro de 1888.
A polemica do Dr. José Hygino e os impropérios do
Dr. Carneiro da Cunha apressaram no escríptor sergipano a
decomposição do organismo... Os seis mezes que ainda viveu
em 1889 não passaram de uma dolorosa agonia. Não sahia
mais á rúa, teve de recorrer a subscripções publicas para
manter a grande e pesada família.
Ainda assim seus desaffectos não o deixavam em descanso;
divertiam-se em passar telegrammas, dando-o por morto. Li
algumas d'essas falsas noticias, e, ainda aos 19 de fevereiro,
me avisava elle : « Devo prevenil-o de uma cousa; se lhe
mandarem alguma noticia ou telegramma, dando-me como
morto, não acceite logo. Ha por aqui gente encarregada de
espalhar falsas noticias n'este sentido, afim, não só de incom-
modar-me, como de difficultar a arrecadação das subscri-
pções.,, » O alvo príncipal d'estas era tentar uma viagem em
busca de melhoras! O mal progrediu, a viagem não se fez,
o malogrado escríptor fallecia na noite de 26 de junho
HI8T0BIA !>▲ UTTBRATU&A BRABTTilTKA 487
de 1889. Seis dias antes tinha-me soluçado suas magoas n'6S-
tas palavras pungentes como farpas : a Estou reduzido ás
proporções de pensionista da caridade publica,.. » Que
exemplo a futuros escriptores nas regiões brasilicas 1
Dados os traços geraes de sua vida, é tempo de vêr o
homem de lettras : foi poeta, orador e critico.
Destaque-se a figura do primeiro.
Quando se estuda Tobias Barretto, na qualidade de poeta,
a primeira questão a discutir é a de sua precedência ou não
a Castro Alves como fundador da escola, intitulada con-
doreira pelos críticos fluminenses.
Todos eram levados, até certo tempo, a afflrmar a antece-
dência do poeta bahiano; mas tal asserto fundava-se em
meras presumpções e na illusoria apparencia dos factos.
Castro Alves tinha deixado o Recife em 1867, passado á Bahia
e logo após ao Rio de Janeiro e S. Paulo, onde se tornara conhe-
cido, crêara adeptos e passara por iniciador de um movi-
mento de que fora apenas co-paurticipe. Castro Alves, além
de ser bahiano, a gente mais feliz do Brasil, era filho de um
lenteJ da Academia de medicina da cidade do Salvador, per-
tencia a uma família altamente collocada, tinha excellenteis
relações, entrava na vida rodeado de facilidades. Seu amigo,
o poderoso politico e orador — Fernandes da Cunha, inci-
tara-o a ir continuar o curso jurídico em São Paulo e déra-lhe
carta de recommendaçáo para seu có-religionario, o celebre
José de Alencar, potencia litteraría de primeira ordem no
Rio de Janeiro. O auctor de Iracema recebeu o poeta á'0
Navio Negreiro na Tijuca com honras principescas. Para o
apresentar ao publico do Rio, o que importa dizer ao publico
brasileiro, usara do expediente, muito acertado aliás, de
dirigir a seu respeito uma carta pela imprensa a Machado de
Assis, que respondeu no mesmo tom encomiástico, enalte-
cendo os méritos do poeta. Este, já muito conhecido no Re-
cife e na Bahia, tornou-se de súbito popular no Rio e Sio
Paulo, para onde pouco depois seguiu. Era um bello exem-
plsur de moço, fino, esbelto, elegante, apto a conquistar todas
as sympathias. Os annos de 1868 e 69, que passou nas duas
grandes capitães do Sul, foram para elle de ruidosos e mere-
488 mSTOBIA DA LITTBRATU&A. BBABILEIKA
eidos triumphos. A publicação das Espumas Fluctuaníes
pouco após, 1870, completou-lhe a nomeada, ainda mais ac-
crescida por sua morte, quasi trágica^ logo no anno seguinte.
Quem poderia acreditar que tivesse elle em Tobias Barretto,
que se deixara ficar no Recife e logo em seguida se asylara
na obscura Escada, um antecessor?
E eis ahi como um facto incontestável, de vulgar noticia
em Pernambuco, ílcou esquecido e tem de ser demonstrado
para ser restituido á historia. A publicação dos Dias e Noites,
onze annos posterior á das Espumas Pluctuantes, contribuiu
nâo pouco para o fatal esquecimento.
Tobias era mais velho oito annos que a auctor de ijon-
zaga e em Sergipe, Bahia e Pernambuco o antecedera na
poesia.
Para proval-o basta cotejar factos e datas. Felizmente exis-
tem versos de Castro Alves de 1860 nos folhetos commemo-
rativos dos festejos annuaes do Gymnasio Bahiano, onde es-
tudou preparatórios o futuro auctor da Cachoeira de Paulo
Affonso. Por elles decide-se peremptoriamente a questão de
precedência.
Os falsificadores da historia em prol do poeta bahiano es-
quecem-se de que este em 1860 era um menino de treze e
em 1862 um rapazinho de quinze annos, ao passo que o
poeta sergipano na primeira d'aquellas datas era j4 um
moço de vinte e um annos e na segunda, quando chegou a
Pernambuco, tinha já vinte e três, era um latinista eximio e
estava na plenitude do talento. Ainda mais : nas Espumas
Fluctuante^ os versos mais antigos datam de 1864, o que
mostra ter o auctor desprezado suas composições anteriores,
por não possuírem a tonalidade que mais tarde deu a seu
talento (1).
íl) Previno uma objecç^ : na edição de 1884 das Etpumoê, da Casa
Garnier, a poesia — Immenêiê orbibug anguii traz a data do Rio de Janeiro
em 1860. Ora, toda a gente sabe que Castro Alves só veiu ao Rio em 1888.
Aquillo é erro typographico ; a poesia vem na 1> e na 2.' edições das Etpa»-
mas com a data de 13 de outubro de 1869. Igualmente a poesia — Ao
Mecting do Comité du Pain traz n^aquella edição Garnier a data de 1861.
E' outro erro ; a poesia, que naõ vem na 1/ e na 2.* edições da Bahia, é de
1871 e refere-se á guerra franco-aUeman de 1870-1871.
HI8T0BIA DA LITTIRATinEUk BltABn«inU 489
Aqui vae a poesia de Castro Alves, em 1860, dedicada ao
Dois de Julho :
(( Eis que chega-se o dia feliz
Para nós Brasileiros ãeis,
Que com força e heróico valor
Rebentamos os jugos crúeis.
Eis que chega-se o dia no qual^
Derretidos os ferros servis,
Retomamos a nossa cidade
Ao resôo dos fortes fuzis.
Este dia em que nós orgulhosos
Vencedores no grão Pirajá
Destroç€unos com ferro e com fogo
Portuguezes que erravam por cá.
Dia em que nossos pais bem contentes
Se apossando de toda a Cidade,
Entre vivas immensos bradaram
Liberdade ao Brasil! -— Liberdade!
Ja nosso peito liberto
Com amplitude batia,
E absorta nossa mente
Sobre a paUia revolvia.
E nosso povo abalado
Té dentro do coração
Grandes brados repetia
Com energia e paixão.
Foi assim!... a liberdade
Desta vasta regifio
Indelével se plantou
Do povo no coraçfto » (1).
Nada ha n^eistes versos que indique o futuro eslylo do
auctoiF áV Navio Negreiro; e quam*, em 1860, escrevia por essa
(1) Poeiuxê e alloeuçõe* reeUadoê noê outeiroê ou fut€i8 literárias ^
haeidoM no Gymnoêio Bahiano a doiê de julho e sete de setembro do
corrente ouino. Bahia, typographia do Diário, 1860, pag. 10.
490 HISTORIA DA LITTB&ATUBA BBA8ILIIRA
forma, dois annos mais tarde, ainda quasi menino e simples
preparatorianos não podia ter sido o iniciador de um novo
momento litterario.
Só dos dezesete annos (1864) em diantes soò a influencia de
Tobias no Recife, o futuro auctor das Vozes (T Africa tomou
o võo em que depois subiu tcLo alto.
Para cortar a questáo, não seria preciso mais do que repro-
duzir n'esle logar os versos, em 1861, na mesma Bahia pelo
poeta sergipano consagrados ao mesmo Dois de Julho, e de
que restam estas estrophes :
(( Na frente dos bellos dias,
Que trajam mais viva luz,
Desfilando entre harmonias
No vasto Império da Cruz,
Passa um dia sublimado,
Qual guerreiro namorado,
. Valente, bravo e gentil,
Que traz a gloria estampada
Na face meio embaçada
Pelo alento do fuzil.
N'este dia sempre novo,
Entre os applausos do mar.
Entre os niidos do povo,
Vai a Cidade falar...
Actriz magestosa e bella,
Falando só e só ella
Diante de duas nações.
Representa nm alto feito,
Que arranca bravos do peito
De emmudecidos canhões... »
Aqui já se sente o estylo que se apurou mais tarde no Génio
da Hwnanidade, nos Voluntários Pernambucanos, na Vista
do Reciie. Bastava só isto para matar a questáo; mas existe
cousa melhor ; existem versos da phase sergipana e bahiana
do auctor dos Dias e Noites, quando o seu talento era natural,
espontâneos virgem ainda de qualquer influencia do poeta
das Contemplações. As tendências condoreiras eram n'elle
HI8T0BIA. DA UmiATUSA B&ABILBULA. 491
ingenitas, sem os exageros posteriores a 1861, depois que, o
moço brasileiro lèra na Bibliotheca da Bahia as obras do
genial vidente da Lenda dos Séculos e se apaixonara por ellas.
D^entre taes poesias, das mais antigas escríptas por Tobias,
antes da phase do Recife, destacarei apenas Scéna Sergi-
panay O Beiia-flór e Anhélos, que se. devem contar entre as
mais bellas devidas á sua penna. A primeira não passa de
fragmento de uma composição mais vasta intitulada — Ser-
gipe, de que se salvou a estrophe inicial, perderam-se algu-
mas que se lhe seguiam e as estrophes flnaes, restando
apenas na memoria do poeta, além da primeira, as estancias
centraes descriptivas da scèna do banho nos riachos do sertão.
E' de fins de 1858, escripta na Itabayana e diz :
« Vede a bella miserável
Da minha pátria... Eil-a aqui.
Falai-lhe... Como é affavel!
Como vos chama! Segui ;
Qu'ella inda tem seus verdores,
Seus rebanhos e pastores
Desgarrados pelo vai...
Tem alli macia alfombra
N*aquelle roupão de sombra
Que desveste o quichabal...
E nas almas das donzellas
Toda a graça se contem ;
Quando eu brincava com eUas
Eu era virgem também...
Por tardes de bello estio
Via-as despir-se no rio,
Não tínham pôjo de mim...
Meus olhos se deslumbravam
De formas que se arquôavam
Como lyras de marfim.
Quando a dona do vestido
Que eu me apressava em levar,
Dizia : u Como é sabido!
Vem trazer para me olhcir... n
1
492 HISTORIA DA LITTXKATnSA BKABILKIltA
Vendo-me ent&o pequenino :
c( Quem faz conta de um menino?...
Criança, de que te influés? »
Gritavam corpinhos húmidos ;
Esta aqui — de seios túmidos,
Aqueila — de olhos azúes...
Nem já me lembra qual era,
Que, em mim se arrimando ent&o,
« Meu noivo, dizia : — espera! »
Outras vezes : « meu irm&o! »
Como acabava depressa
Tanto amor, tanta promessa
De coração \irginal!...
Ah! bellos tempos ditosos
Em que os enganos sfio gozos
E os beijos n&o fazem mal!
Um beijo é todo o segredo
Deposto na linda mfto ;
Milagre!... pomba sem medo.
Brincando com o gavião...
Meio vergada em desleixo.
Com a innocencia em que a deixo.
Na areia imprimindo o pé.
Com certa graça fraterna
Sufralda, descobre a perna,
E me olha e diz : <( o que é? »
Fica-lhe a bocca entreaberta.
Dizendo sorrindo assim ;
Meu olhar se desconcerta...
Porque não foge de mim?
Tomo-lhe as mãos pequeninas.
Esguias, brancas, divinas,
E, n'um ligeiro abraçar,
Volvendo o corpo em contrario,
Rebenta-se-lhe o rosário,
E ella se pOe a chorar...
Chega-se á margem sombria.
As auras partem de lá ;
HI8T0BIA DA LITTBRATUBA BKA8ILSIBA 493
Rolam na relva macia.
Trepam nas ramas da ingá.
E, húmidas como o focinho
De mimoso cachorrinho,
Farejam-lhe a *nivea mão,
£ vêm ganir-me no ouvido,
Como um quebrado tinido
Das cordas da solid&o... n
Tinha mais de desenove annos o moço professor, quando
escreveu esses versos, reveladores de um poeta completo, se-
nhor da métrica e da lingua; e o seu futuro emulo não pas-
sava então de uma criança de onze annos, perdida ainda nas
primeiras lettras.
De 1860 é a famosa odesinha — O Beiia-flór, uma das pro-
ducções mais lindas da lyrica brasileira. Tinha o auctor vinte
e um annos, quando a imaginou; era um quadro de género,
cujas condições muitas vezes me reproduziu, recitando as
quatro estrophes centraes, unicetô que conservava de côr. A
repetidos rogos, aproveitando um momento feliz, o poeta
recompoz o quadro, addicionando ás quatro sextilhas de Ser-
gipe as três do ooaneço e as três do flnal.
Isto em 1870; mas é digno do nota que as estancias dez
annos mais velhas sêLo as mais bellas.
Eis aqui :
u Era uma moça franzina,
Bella visão matutina
D'aquellas que é raro vôr,
Corpo esbelto, eólio erguido.
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.
Vêde-a lá : timida, esquiva...
Que bocca!... é a flor mais viva,
Que agora está no jardim ;
Mordendo a polpa do lábio,
Como quem suga o résabio
Dos beijos de um chenibiml
494 HI8T0BIA DA UTTMBlLTUBJl SBABILEOUl
Nem viu que as auras gemeram
£ os ramos estremeceram,
Quando um pouco alli se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa.
Parte o talo de uma rosa
Que docemente colheu.
£ a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada
De seu rosto a nivea tez,
Beijando os maõsinhas suas.
Parece que diz : — nós duas!...
£ a brisa emenda : — n6s trez!...
Vae nesse andar descuidoso,
Quando um beijarílôr teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzella,
Perneira na face d'ella
£ quer-lhe os lábios também.
Treme a virgem de sorpresa,
Leva do braço em defesa.
Vai com o braço a ílor da m&o ;
Nas azas d*ave mimosa
Quebra-se a fiôr melindrosa,
Que rola esparsa no chão.
Não sei o que a virgem íala,
Que abre o peito e mais trescaia.
Do trescalar de uma ílór :
Vôa em cima o passarinho...
Vae já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cór.
A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviai* ;
N'este empenho os seios ambos
Deixa vér : inconhos jambos
De algum celeste pomarl...
HI8T0BIA DA LimBÂTURA BlUSILBlltA 495
Forte lucta, lucta incrível
Por um beijol E* impossível
Dizer tudo que se deu.
Tanta cousa que se esquece
Na vidai Mas me parece
Que o passarfiQho venceol...
Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor :
Seu rosto fica mais lindo.
Quando eila conta sorrindo
A historia do beija-flôr. »
As quatro sextilhas intermédias, em que se desenha a enar-
guêia da moça com a rosa, perseguidas pelo colibri, que ora
peneirava sobre a ílôr ora sobre os laibios da donzella, sáo de
puro estylo hugoano nos bons tempos das Odes e Baladas e
das Orientaes, Sáo, como disse, de 1860, quando Castro Alves
escrevia ainda no detestável gosto dos versinhos ao Dois de
Julho atraz citados. E cumpre relembrar que então o seiu
rival de Sergipe nâo sabia o íranoez e de Victor Hugo nem
o nome conhecia.
Em Anhélos, escripta em 1861, na Bahia, nos dias de deses-
peranças, já o poeta conhecia o grande mestre das Contem-
plações; mas ainda não lhe sacrificava a sua individualidade.
Anhélos foi enviada da capital bahiana ao maestro José da
Annunciaçáo, morador na Itabayana em Sergipe, que a pôz
em musica. Desde então é alli cantada, como pude verificar.
E' um brado de revolta de um espirito já abalado pelos
desgostos e pela philosophia do século. Ouçam este repto de
moço :
(( hTeste mundo, juncado de enganos,
O prazer onde cichar eu n&o sei...
Que é das flores, que a vida períumanii
Venturosos da terra? Dizei!
Não olheis para a sombra que passa ;
Quero triste viver, ôrmo e só...
496 HISTORIA DÁ LITTEBATURA. BBA8ILBIBA
Minha noiva me espera nas nuvens,
Minha gloria das campas no pó.
Nem tenteis impedir-me a passagem.
Que "não curvo a cabeça a ninguém :
Para entrar nos combates da sorte
Tenho azas e garras também.
Sou um filho das plagas selvagens,
Onde o peito não teme bater ;
Aprendi os queixumes das rolas,
E a cascata ensinou-me a gemerl
Preste, preste a lançar-me ás alturas,
Tenho as rédeas da morte na m&o.
Pelo trilho que as águias abriram
Trás as anciãs do meu coraç&o.
•
Os tormentos da vida me cabem,
Os espinhos da rosa são meus :
Mas não posso encontrar quem me diga
Onde est&o os thezouros de Deus.
Interpello as estreitas que choram,
£ as estreitas não sabem dizer;
Falo aos ventos e os ventos respondem :
Também nós procuramos saber...
E' assim : tudo tem sua magou,
Tudo tem sua sombra de horror.
Que, d^éhvolta com a sombra da terra,
Vae lançar-se nos pós do Senhor!... » (1)
Aqui sente^se já a mâx> firme e a intelligencia desanuviada
de um espirito que pensa. Â questão de precedência está deci-
dida; e, se alguma duvida podesse ainda restar, seria infalli-
velmente dissipada per — Ã' Vista do Recife, escripta abordo
do paquete, que conduziu o poeta a Pernambuco, e alli publi-
cada pouco após a sua cliegada em 1862. Foram os primeiros
voos verdadeiramente condoreiros na poesia brasileira. Foi
(1) Vem imcompleta e com data errada nos Dias e Noites, pag. 106.
HI8T0BIA DA LITTEBATCBA BRASILBISA 497
onde Castro Alves principiou a aprender e com elle Victo-
ríano Falhares e todos os que depois os seguiram. Aprecie o
leitor :
(( E' a cidade valente
Brio da altiva nação,
Soberba, illustre, candente
Como uma immensa explosão :
De pedra, ferro e bravura.
De auror€^ de formosura.
De gloria, fogo e loucura...
Quem é que lhe põe a m&o?
Magoas tem que estão guardadas.
Quando as vingar é sem dó!
Raça das Romãs tombadas,
Das Babylonias em pó,
Quer ter louros que reparta ;
Vencer, morrer não na farta...
Grande, d'altura de Sparta,
Aflronta o mundo ella só!...
Com os seios entumescidos
Do gérmen de muito heroe,
Tem nos olhos aguerridos
Fulminea luz que destroe.
Detesta a classe tyranna,
Comsigo mesma inhumana,
Vê seu sangue que espadana,
Ri de raiva, e diz : não dóe!...
No seu pisar progressivo
Ostenta um certo desdém ;
Suspendendo o collo altivo.
Não rende preito a ninguém.
Lô no céo seu fado escripto;
Quando o Brasil solta um grito,
Franze a testa de granito,
E diz ao estrangeiro : vem!...
Sim, eu vejo, ainda a espada
Na tua dextra reluz.
Cabocla civilisada
De pernas e braços nús,
HISTORIA II 32
498 HISTORIA DA LITTEBATURA BRA6ILEIBA
Cidade das galhardias,
Que no teu puhho confias,
Coeva de Henrique Dias,
Guerreira da Santa Cruz!
Estremecida, ridente,
Como que esperas alguém.
Ouves um som de torrente?
E' a grandeza que vem...
Teu hcdito alimpa os ares,
Por cima do azul dos mares
Prolongam-se os teus olhares.
Que vão namorar além...
Não te pegam em descuido ;
Teu movimento é fatal.
£ a liberdade, esse fluido,
Que forma o gladio, o punhal,
Nos teus contornos ondula,
Nas tuas veias circula,
E vai chocar-te a medula,
Dos ossos de pedra e cal.
E' um lidar incessante,
Cai-te da fronte o suor ;
Ferve tua alma brilhante,
E tudo é bello em redor.
O assombro lambe-te a planta,
Na estrella, que se alevanta,
Pousado um archanjo canta :
Vai ser do mundo a maior!
Tens aberta a tua historia,
Laboras como um crysol ;
Como um estygma de gloria,
Nos hombros queimarte o sol.
A guerra, a guerra é teu cio,
Fera!... O estrangeiro frio
Se aquece ao beijo macio
Dos teus lábios de arrebol.
Assopras nas grandes tubas.
Que despertam as nações ;
HIBTOEIA DA UTTEEATITSA BEA8ILSIBA 499
£riçam-se as férreas jubas,
Uivam as revoluções...
Teus ediâcios doirados
Váo-se erguendo, penetrados
Da voz dos Nunes Machados,
Do grito dos Camarões!...
Com a morte bebes a vida ;
N&o te ab£das, não te dóesi
D'oiro e luz sempre nutrida.
Novas idéas remóes,
£' que à voz das liberdades,
Calcadas as potestades.
Germinam, brotam cidades
Do sepulcbro dos heroes!
Possa a coragem de novo
Teu bafo ardente inspirar,
£ a gloria sahir do povo,
Como tu surges do mar...
O coração te o adivinha.
De fome o ferro defínha,
Ruge o gladio na bainha.
Como na gruta o jaguar...
Sejam meus votos aceitos,
Dá-me ver tuas £u;ções,
Dá-me sugar esses peitos,
Que amamentaram leões...
Sahiste nua das matas.
Não temes, não te recatas ;
Contra a frota dos piratas
Açula os teus aquilões... »
Diante d*ista cessam todas as duvidas, e deive-se ir adiante
a estudar no seu intimo a indole do poeta.
A quem o aprecia historicamente, e sob o critério evolutivo,
é impossível que se não imponha a verdade de ter elle, n'esse
caracter, atravessado três períodos bem distinctos : phase
sergipano-bahiana (1857-62), phase do Recife (1862-71), phase
final da Escada e dos posteriores tempos na capital pernam-
bucana (1871-87). Esta ultima data, anterior dois annos á sua
500 HISTOBIA DA LITTEBATX7SA BKASILEIBA
morte, é indicada pelo facto de ser aquejla em que escreveu
sua derradeira poesia, intitulada — A' Augiista Cortesi (1).
Do primeiro periodo, cuja característica parece ser a de um
lyrismo singelo, naturalistico, campesino, restam, além de
pequenos trechos esparsos e das poesias atraz referidas, os
curiosos versos brancos que occorrem nos Dias e Noites, sob
o titulo — Deusa Ignota, interessantes como documento psy-
chologico (2). E' o periodo ante-hugoano, apto a deixar sor-
prender o talento e a alma do poeta em toda a sua esponta-
neidade (3).
Do segundo, peculiarmente condoreiro, cuja característica
é, ao lado de muitas cousas doces e deliciosas, muito arrouba-
mento, nomeadamente nas odes marciaes, servem de docu-
mentos as poesias escriptas, a datar de — A' Vista do Recife,
dentro da phase indicada. As principaes são : — Pela Morte de
um amigo, — A' Polónia, — Capitulação de Montevideo, —
Voos e Quedas, — Voluntários Pernambucanos, — Leões do
Norte, — Sete de Setembro, — Em nome de uma pemam-
buÀ^ana, — Lenda Rústica, — Lenda CiM, — Génio da Hu-
manidade, — Os Tabaréos, Os Trovadores das Selvas, ele.
Do terceiro, cuja característica é o abandono do pathos e
da declamação hogoana e a volta á simplicidade primitiva,
apenas reforçada pelo saber e pela experiência, são exempli-
ficações todas as peças posteríores a melados de^ 1870, como :
— Que mimo! — Anno Bom, — Impossivel, — Nada^ — Libia
Drog, — Augusta Cortesi, — Sempre bella, — Ignorabimus,
Decadência, — Variação a Heinc, — Incrédula, Ainda e
Sempre, — Por brincadeira, — Giuseppína de Senespleda, —
D. Hermina de Araújo, — Desanimo, — Urna Sergipana, ele.
Para se bem comprehender a funcçáo da escola do Recife, a
que me venho ora reportando, cumpre não esquecer que, ao
tempo de seu inicio, a poesia nacional atravessava um mo-
mento de decadência. Se se representar por uma extensa
(1) Dias e Noit'*8, edição de 1893, pag. 11.
(2) Op. cit. pag. 258.
(3) A este periodo pertencem tres modinhas que se cantam em Serpnpc e
me foram agora enviadas: Eu amo o genco... Houoe tempo em que meus
olhoÊ.,. Quando á mesa dos praseres... que sahirâo na próxima edicâodos
Dias e Noites.
HISTOBIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA 501
linha curva, cheia de altos e baixas a evolução geral da poesia
brasileira, se verá que ella começa rasteira em 1592 ou 93 na
Prosopopéa de Bento Teixeira; eleva-se um pouco de 1670
a 96 em Botelho de Oliveira e Gregório de Mattos; descamba
nos successores doestes da Academia dos Esquecidos; eleva-se
de novo de 1760 ou 65 a 1792 com, a escola mineiray com
Cláudio, Alvarenga Peixoto, Gonzaga, Silva Alvarenga; desce
em seguida com os últimos poetas clássicos de 1792 a 1830
ou 36; torna a subir com a primeira e a segunda geração dos
românticos de 1836 a 1852 ou pouco depois; descamba de
novo, com os successores de Alvares de Azevedo, até 1863;
sobe então com o advento de Tobias, Castro Alve^, Falhares,
Luiz Guimarãies no norte, e Varella, Machado de Assis, Luiz
Delfino no sul. Como, porém, Machado só mais tarde, na
qualidade de romancista, é que deu toda a medida de seu
talento, e Luiz Delfino, mais tarde ainda, na qualidade de
parnasiano^ é que se revelou poeta de primeira ordem, e
Varella não teve força para crôar escola, não passando de um
continuador dos tendências de Alvares de Azevedo combi-
nadas com as de Casimiro de Abreu; é forçoso concluir que
á escola condoreira coube representar os últimos fulgores do
romantismo e fechar-lhe o cyclo evolutivo. A linha represen-
tativa do desenvolvimento poético, após os condoreiros, baixa
de novo de 1870 ou 71 até 1879 ou 80, voltando a subir, com
os parnasianos, Delfino, Bilac, Raymundo Correia, Alberto
de Oliveira, Theophilo Dias e com os divergentes, Murat,
Mucio Teixeira, e outros, até encontrEu* Cruz e Souza e os
symbolistas, não se podendo, por emquanto, dizer se vae
em marcha ascencional ou depressivci, ao findar o século xix
e iniciar-se o século xx.
Ao despontar o movimento hugoano, os grandes poetas ro-
mânticos brasileiros estavam emmudecidos pela morte, ou
pelo cansaço. O tom geral da poesia era o das chatas lamurias
de um lamartinismo de terceira ou quarto mão.
Na politica acabava de apodrecer no governo o velho par-
lidarismo conservador, que nos asphyxiava desde 1848. A
questão Christie, as com o Estado Oriental e com o Paraguay
produziam no paiz um enthusiasmo desusado. Lá fora, no
502 HISTOBIA DA LITTERATtTBA. BBABILBIRA
grande mundo, estavam em todo o seu auge a revolução da
Polónia, a guerra dos franceses no México, a guerra civil dos
Estados-Unidos. Os movimentos precursores da unificação da
Itália e da Allemanha, de Sadowa e de Sedan, da tomada de
Roma e da revolução d'Hespanha andavam no ar. Era um
período de agitação geral. Na poesia universal tinham se ca-
lado as grandes vozes de Shelley, Byron, Musset, Vigny, La-
martine, e ainda não se distinguicim as de Leconte de Lâsle,
Prudhomme, Goppée. Só a forte trompa épica de Victor
Hugo resoava nos quatro pontos do horizonte, proclamando
os abusos dos reis e as esperanças dos povos. Era natural
que o ouvissem no Brasil; e foi o que aconteceu no Recife.
Tobias, Castro Alves e Victoriano Falhares, deixando o sub-
jectivismo piegas da poesia corrente, interessaram-se em seus
cantos peleis questões publicas, os factos políticos e sociaes,
as aspirações geraes humanas ou meramente nácionaes.
Uma tal poesia, tendo a enorme vantagem de ser a ex-
pressão exacta de um momento histórico, e, n'este sentido, a
phase condoreira da escola do Recife é a mais immediata-
mente nacional de toda a nossa litteratura, não podia ser
duradoura. Tinha de viver emquanto se podesse alimentar
do enthusiasmo publico; e é por isso que durou justamente
o tempo que duraram a guerra do Paraguay e os mais legí-
timos ardores da primeira campanha pela emancipação dos
escravos; e é por isso ainda que, de tudo quanto produziu
em poesia, o mais característico é o que se refere a esses
dois grandes factos, os cantos marciaes de Tobias e os eraan-
cipacionistas de Castro Alves.
Os nomes doestes dois poetas estão condemnados a appa-
recer sempre emparelhados na historia litteraria, por sua
acção commum, por sua primitiva amisade, por seu rompi-
mento flnal, que os tornou rivaes. Este ultimo facto deu-se
por questões de bastidores, por causa das actrizes Eugenia
Camará e Adelaide do Amaral. Os dois brigaram, ínjuriarain-
se mutuamente. Houve polemica litteraria pelos jomaes; mas
a littqratura era mero pretexto. Passaram a capitanear dois
partidos théatraes, cujo idolos eram as duas actrizes, e a
recitar poesias e discursos de parte a parte nas noites de
HI8T0BIA DA LITTEBATUSA BRABILSIBA 503
espectáculo do Santa Isabel... A emulação entre os dois, o
desejo de brilhar cada um mais do que o rival não deixava
de ter também ahi larga parte. £ como nào mais terei, no
curso doeste livro, de falar concurrentemente de um e de
outro, direi, desde já, o que penso de um cotejo que se
poderia fazer entre ambos. Um inspirou-se mais na natu-
reza e na vida histórica e popular da nação, outro mais na
vida social; um cantou — Os Tabarcós, — Os Trovadores das
Selvas^ — Os Voluntários Pernambucanos, o outro — O Navio
Negreiro^ — As Vozes dVl/nca; um — O Génio da Humani-
dade, — A Caridade, — A Polónia; outro — O Livro e a Ame-
rica, — Pedro Ivo. Tobias foi mais lyrico, mais suave, mais
terno, quando amoroso; mais crepitante, quando encarrava os
grandes assumptos. Castro mais arrojado, mais audacioso,
mais vago em geral. As poesias dos Dias e Noites são mais
para serem lidas, as das Espumas Fluctuantes para serem
recitadas. Um é o segundo élo da cadeia, de que o outro foi
o primeiro e Victoriano Falhares o terceiro.
Mas é preciso vêr mais de perlo a natureza intima do talento,
poético do sergipano. Quem lôr attentamente suas produc-
ções, notará que ellas se dividem em quatro categorias prin-
cipaes, desprezando as satyricas que são em numero redu-
zidíssimo : geraes ou naturalistas, amorosas, patrióticas, es-
theticas. Estas são as inspiradas por espectáculos e festas a
que assistia. As outras, quasi todas igualmente inspirações
de momento, com terem um caracter maus geral, servem tamr
bem para provar que o poeta cantava sem preoccupaçOes
pe(Culiares, ao deslisar dos factos, au four le iour, como os
pássaros cantam ao clarão matinal. Nada de piamos precon-
cebidos, da concepção solitária e amadurecida de vastas
obras. O moço poeta era uma d'essas naturezas descuidosas,
sonhadoras, problemáticas, capazes de se inflammarem por
qualquer cousa.
D'essa qualidade essencial origínou-se exactamente o maior
de seus defeitos de poeta : baratear demasiado o seu talento.
E' para impressionar o enthusiasmo enorme de que se deixava
apoderar muitas vezes diante de actores e cantoras medío-
cres. A fonte perenne do sentimento era n'elle não raro um
504 HISTOBIA DA LITTERATURA BRASILEIRA
incoveniente : ardia por cousas insignificantes ; em tudo
achava um encanto, um motivo para transbordar.
Tudo a seus olhos tomava proporções excepcionaes. O
Brasil era — a ioven pátria de heróes, uma lasca do globo que
dá para vinte nações; a Tamborini tinha — phrases de ouro na
bocca e sua — voz era a medida do que vae da terra ao céo; o
rabequista Moniz Barretto — o génio que ser maior é morrer;
o Recife -^ a cidade das galhardias, da raça das Romãs tom-
badas, das Babylonias em pó... Ao travéz do sensório do
poeta as cousas e os factos se avolumavam; o inspirado só
podia cantar o que era grande, e, quando o objecto era pe-
queno e vulgar, a imaginação suppria o que lhe faltava em
imponência e elevação.
Era um exaggero, até certo ponto desculpável, porque
d'elle têm sido co-participadores todos os bons poetas. Póde-se
até dizer que é inevitável, por ser uma das condições da
arte.
Não é sem razão aíflrmar que a arte só é possível, sendo
vaga, indefinida, indeterminada, e, para tudo dizer n'uma
palavra, sendo, em certo sentido, faísa. A arte é sempre falsa,
cotejada com a realidade núa; porque lhe está sempre acima
ou abaixo; mas é sempre verdadeira, cotejada com o estado
emocional do poeta, que é, em certo sentido, um visionário.
O poeta sergipano, eu o julgo mais apreciável nas suas
composições geraes e naturalistas, como — O Génio da Huma-
nidade, — Beijaflôr, — A Caridade, — Lenda Civil, — Lenda
Rústica, — Tabareós^ — Anno Bom. Ahi seu talento é todo
objectivista. Nas poesias amorosas o admiro pela doçura dos
affectos, pureza dos sentimentos, meiguice da imagens, deli-
cadeza das phrases e dos tons. Não existem nmitas outras
mais docemente ternas na língua portugueza, e servem espe-
cialmente para provar quão desastrada foi a critica, quando
só quiz vêr n'este poeta palavrões e gongorismos... E' mister
não o ter lido ou caprichar em dizer d'elle sempre mal a des-
peito de tudo.
As inspiradas pelo sentimento esthetico, desperto pelos
espectáculos dramáticos e peculiarmente pela musica, agra-
HISTOKIA DA LITTB&ATIT&A BRABILEIKA 505
dam como modelos de força e de graça, as duas azas do espi-
rito no dominio artistico.
As patrióticas são alguma cousa de original, que não en-
contra muitas congéneres em todas as litteraturas. Áquelle
falar tem algo de desusado; são phrases vibrantes que soam
como os clarins dos alarmas; trazem á mente a limpidez das
espadas, o silvo das balas e o troar dos canhões. E, todavia,
não são para mim as suas melhores poesias; acho-o supe-
rior nas dos dous primeiros géneros.
Mas tudo isto é ainda insufâciente para destacar nitida a
figura do poeta.
E' indispensável estudal-o por três faces principaes : pelo
lado psychologico em suas ideias e sentimentos e pecuUar-
mente na expressão que deu a seus amores; pelo lado da sua
intuição na<5ionalista; finalmente, pelo lado da forma e do
estylo.
Nos seus trabalhos de artista, nos seus productos de ima-
ginação e sentimento, nas poesias e discursos, em summa,
é que se pôde bem apreciar a nobre grandeza d'alma de
Tobias Barretto.
A ironia, a cólera, a rudeza, as acerbas invectivas do pole-
mista e do critico desappareciam de todo e as bellas quali-
dades moraes do seu temperamento tomavam o ascen-
dente, quando elle, esquecidas as luctas em que andava metr
tido, deixava falar apenas a sua emoção diante das scênas
e dos factos que o impressionavam como homem e como
estheta.
Especialmente em face da mulher' sua emotividade to-
mava as formas da mais deliciosa candura. Mas não era só
ella; todos os grandes phenomenos espirituaes tinham o
condão de o exaltar. Nos Dias e Noites são innumeras as
provas d'isso. Todas as nobres paixões e alevantados anhelos
humanos e altruistas acham alli uma nota para os exprimir.
Todas as grandes culminancias intellectuaes e moraes têm
alli um harmonioso accõrde.
O génio, a supremacia da inteJligencia arrancam-lhe sempre
phrases de enthusiastíco e sentido louvor. As notas variam;
majs o preito é sempre arde»nte.
1
506 HISTORIA DA LITTERATtTRA BRASILEIRA
A' vezes diz assim, mostrando quanta esperança tem no
progresso e quanta confiança no valor do talento :
Cf Fator em geniosl... Que me quer nos lábios
Esta phrase, este mel d'acres ressabios,
Este riso de dor?
Embrígados do céo, que em áureas taças
Bebem os tragos de infemaes desgraças
Em honra do Senhor!
Génio!... é sondar o golphfto do ineffaveJ,
E' ter um coração, monstro insaciável
D'esperança e porvir,
Calcando o mundo, que lhe diz : padeça!...
Este horisonte aperta-lhe a cabeça,
E elle tende a subir.
Génio!... elle manda â aurora que desponte ;
Sobe; os futuros roçam-lhe na fronte
Perto, perto do céo...
Sacode-se dos pés a poeira humana.
Nos paramos azucs da lucta insana
Levanta-se o trophéo.
Os grandes dias do progresso humano
Custam a vir. O génio soberano,
D'alma branca e louçan.
Cresce, cresce, debruça-se nos montes
E arranca lá dos fundos horizontes
A estreita da manhan!... »
O homem de génio é, como se vê, para o poeta uma corao
força natural que arranca dos fundos horizontes a luz ei a
vida.
Nas poesias consagradas a Arthur Napoleão, Mr. Reichert,
Moniz Barretto e outras volta sempre a essas effusões em face
da supremacia da intelligencia e do génio.
Nos versos a Mr Reichert aponta a ideia a radiar na fronte
dos homens de talento como a luz d'alva nas montanhas e nas
altas torres.
A imagem é bella e suggestiva, apta a revelar o enUiu-
HI8T0BIA DA LITTEBATU&A BIUL8ILXIKA 507
siasmo do poeta pelas grandes forças íniellectuaes, para elie
sempre vicloriosas em um futuro queJquer :
Mas que importa? O espaço é grande :
Talentos, astros, brilhae;
Que á luz, que de vós se expande,
O tempo se abrindo vae!
Pelos degráos das edades
Vâo rolando as potestades,
Que lá n&o podem chegar...
Como nas torres, nos montes
A luz d'alva, em vossas frontes
Vô-se a ideia radiar... »
Nos versos a Moniz BarrettOy alludindo ás luctas do talento,
contra as torpezas do mundo maJdito, que aOnal tem de o
contemplar na sua ascençãx) intérmina pelas regiões do ideial
8 da gloria, prorompe n'estas palavras de inalterada con-
fiança :
O talento em seus fulgores
Banha, embebe as multidões ;
O pasmo atira-lhe — flores,
A inveja vil — maldições...
E elle diz : (( não esperdiço,
Tudo se presta ao serviço
Da obra descommunal... »
Para a c'rôa apanha os cultos,
E 08 motejos, os insultos
Servem pr'a o seu pedestal.
Na linguagem do céo — génio e grandeza,
Na linguagem da terra — pobre ailista!
E* assim, porque Deus, baixando á terra,
Se rebuça has noites tenebrosas *,
Ou, quando ao mundo envia os seus archanjos,
E' sempre n'uma nuvem que os encobre...
Oh! tu és gramde sim, poeta do arco!
Tu que sabes tirar notas sentidas,
Filhas do coraçáo, preciosas, fulgidas,
Como jóia, que treme em coUo alvíssimo ;
Notas que saltam, borbulhosas, quentes,
508 HISTORIA DA LITTBRATUSA BRASILEIBA
Como rojam da pálpebra da moça,
No €u*far do áeio, as lagrimas primeiras,
A primeira expressão dos seus amores...
Por entre a luz de incendiada sarça
Das intimas visões, diz Deus ao génio :
Que tens tu a teu lado?
A minha lyra.
Calca-lhe o peito, sonda-Ihe as entranhas ;
£ ella exhala perfumes, brota risos,
Golpha prantos, riquezas, luzes, sonhos...
Que tens tu a teu lado?
O meu thesouro.
Derrama, entorna-o sobre o mundo absorto...
E nesse despenhar de sons angélicos.
Suspiram aves, esvoaçam flores,
Correm auras celestes, redolentes.
Que balançam brincando os lyrios d'alma ;
Passam meiguices, murmurar de affagos.
Tremer de lábios, estalar de beijos...
Que tens tu a teu lado?
Oh! uma virgem!
E* tua gloria : abraça-te com ella... »
A grandeza, a elevação dos Sientimentos do poeta não se
desmente, quando fala dos povos e dos horrores da guerra.
A generosidade e o perdão são as cordas mais vibrantes da
sua lyra, quando devassa esses assumptos. E' assim em
— A' Polónia, em — Sete de Setembro, em — Os Leões do
Norte,
Mas, para que fique demonstrado o que aíflrmo, bastante é
citar estes últimos versos da poesia que traz por titulo —
N'um dia nacional, escripla em 1865, quando se iniciava a
guerra do Paraguay :
(( Perante os vendavaes os troncos rangem,
A* face dos leões a grei se esconde,
Ao grito dos heroes as armas tremem.
Cada guerreiro que por nós combate
E* a ira de Deus que se faz homem ;
Tem na espada o relâmpago, e no peito
jr-
HI8T0BIA DA UTTESATUBA BBABILEISA 509
O subterrâneo palpitar da pátria.
Labora a chamma, a serpe se contorce,
A guerra avança, o Paraguay recua!...
Do século que passa o génio ousado,
Que conduz as nações ao grande, ao bello,
DeUnba e morre alli, como um antigo
Prisioneiro de Francia. As férreas portas
O Brasil vai-lhe abrir, dissera o povo.
Ma^ nós, que combatemos e que amamos
As victorias sem sangue, como auroras
Que não têm arrebol ; nós, que vencemos.
Sejamos bons. A obra heróica do homem,
O triumpho, a conquista, o louro, a palma,
Todos os feitos da grandeza humana,
Face á face com Deus, com as obras suas,
Não igualam, n&o valem na belleza
Uma gotta de orvalho, que scintilla
No cálix de uma ílor...
No céo, na terra
O que ha de grande, as arvores, as aguas,
A procella com todos os seus raios,
O oceano com toda a sua colora,
Face á face, grandeza por grandeza,
Lucta por lucta, esforço por esforço,
Também não valem, no ideal que encerram.
Uma paixão que se no peito esmague.
Um só dever cumprido, um grito, um Ímpeto,
No fundo d'alma comprimido e mortol
Limpas de sahgue as espadas.
Limpos de sangue os trophéos.
De gloria as faces banhadas.
Banhados de gloria os céos ;
Açoitam nossos ouvidos
De ethereas harpas os sons...
Perdão aos pobres vencidos.
Guerreiros, sejamos bons! »
Assumpto da predilecção dos nobres affectos do generoso
sergipano era a mulher, na sua obra incessante pelo bem,
pela caridade, pelo amor. N'este sentido sáo typicas as peças
510 HIBTOBIA X>A LITTXBATnRÁ BBASILSIBA
intituladas — A' Caridade^ — Dia de Pinados no Cemitério e
vários trechos de outras.
Devem ser lidas na integra, limitando-me eu a transcrever
aqui a primeira :
(( Fazei o bem : sobre a terra
E* a belleza suprema ;
Tem mais luz do que um poema,
Vale mais do que um trophéo.
Por uma dadiva ao pobre.
Que é de Deos o grande eleito,
Podeis comprar-lhe o direito
De c(ue eUe goza no céo.
Se ao grito dos que padecem
O mundo cerra os ouvidos,
Se do prazer nòs ruídos
Perdeu-se de Deus a voz ;
De torpezas maculada
Do Christo a veste inconsutil,
Parece que foi mutil
O ter morrido por nós!
Será que o sol da bondade
Vá no occaso se escondendo?
Será que Deus vá descendo
A' força do homem subir?
Por isso de dia em dia
Ganha o vício mais encantos,
E vô-se a virtude em prantos
E a impiedade a sorrir?
Será que os raios divinos
Tenham emfim resfriado?
Que, indifferente e calado,
O céu nos contemple? Náo :
Deus perdoa ao mundo ingrato,
£ €U)s suspiros de quem soffre.
Tem sempre aberto o seu cofre
De amor e consolação.
E desse amor o perfume,
Que alimenta a caridade,
HISTORIA DA LITTSBATUBA BBASIUSISA 511
No seio da humanidade
Brotal-o quando Deus quer,
Lançando mão d'uma estrella
Mais viva do firmamento,
Forma d*ella um sentimento
No coraç&o da mulher.
Nem cremos que ás outras ahnas
Taes pens€unentos assomem ;
N&o, não é caheça d'homem
Qu*estas idéas contém ;
E* da mulher que ellas partem,
Da mulher, que suspirando,
Mesmo sorrindo e cantando.
Ensina a fazer o bem.
Geme a familia do bravo
Que a morte cobrio de louros ;
Que custa abrir-lh^ os thesouros
Bondosos do coraç&o?...
E assim falarem unidas,
Como echos de um só abysmo,
A voz do patriotismo
E a voz da religião?
Se é bella assim a virtude
Face ã face com a opulência,
Derramando aquella essência,
Que em harmonias se esvae ;
Que custa dar um sorriso,
Dar um óbolo, um carinho
A*s aves, que não têm ninho,
Aos filhos, que não têm pae?
A caridade inda sôa
N€is fibras do humano peito :
Como no céo satisfeito
Vai ficar o moço Deus,
Jesus, o amigo dos tristes
Quando os astros lhe contarem,
E estas vozes lá chegarem
Nas azas dos a:njos seus!... »
512 HISTORIA DA LITTERATUKA B&ABILEIBA
Versos íoaum estes recitados n'uma festividade promovida
em prol d'alguns infelizes em 1866.
Poeta, digno d'este nome, se adora a mulher, no seu labutar
pelos pobres, pelos desgraçados, é impo>ssivel que não tenha
n'alma doces phrases meigas para as crianças desvalidas, e
o nosso vate as teve.
Para proval-o basta ouvir estas magoadas palavras, postas
na bocca de um íllho do bravo capitão Pedro Afíonso, quando
no Recife se promoveu, em 1867, umi espectáculo em. favor da
fan^ilia d'aquelle digno official, reduzida á miséria com a
morte de seu heróico chefe :
u De minha mãi os cabcllos
A dôr da viuvez espalha...
Meu pae morreu na batalha,
Grandes da pátria, escutae :
Não sei quem é que permitte
Que se tenha um máo destino,
Que se soffra tão menino.
Que a gente flquc sem pae...
Pôde ficar nas florestas
Pássaro orphão perdido ;
Existe um desconhecido.
Que nâo no deixa morrer ;
Manda ao sol que lance um raio
Para aquecel-o no ninho,
E diz : abre o teu biquinho.
Venho dar-te o que comer.
Dorme no berço a criança.
Que perde o seu pae valente ;
Languece, definha, sente
Falta de paterno amor...
Ai! quando as aves se aquecem
Pelos cuidados divinos.
Não acho bom que os meninos
Chorem de frio, Senhor!
O caçador das montanhas
Exclama, sondando o ninno,
HIBTOBIA DA LITTBEATT7RA BEABILUSA 513
Que bellol... meu passarinho!
E ao seio críal-o vae :
N&o diz o homem que aspira,
Que atrás da gloria se lança,
Bravo!... achei uma criança
Tenra e mimosa, sem pae!... »
NoLo é embalde, nem é a esmo que vou allegando esses
factos e vou documentando esse lado brilhante d'alma do
auctor dos Dias e Noites.
E' que os seus adversários, despeitados talvez com as suas
franquezas de critico e polemista, timbraram sempre, e tim-
bram ainda, em mosiral-o ao publico qual um caracter áspero
e sem piedade. E tamanho erro não pôde passar sem pro-
testo diante da realidade. E a mais eloquente demonstração
está nas poesias inspiradas ao grande sergipano pela paixão
amorosa, quje o avassalou por duas vezes com a máxima
energia. E' n'esse ponto, sobre todos delicado, sobre todos
capaz de deixar iiisinuarem-se escorias menos nobres na pu-
reza do metal dos profundos affectos, que se pôde pôr á
prova a dignidade nativa do homem.
O poeta sergipano sae remido d'essa provação. Pondo de
parte pequenos e inoflensivos galanteios, dirigidos a diversas
bellezas pernambucanas, teve elle dois profundissimos
amores, que o dominaram, por completo. O primeiro foi com
a lindissima Leocadia Cavalcanti e levou-o quasi ás portas do
suicidio. Desde que a viu, sentiu-se subjugado. Na qualidade
de professar d'um dos irmãos da encantadora moça, travou
relações com sua familia, frequentou-lhe a casa e teve repe-
tidos ensejos de a vêr, de a conversar e deixár-se submelter
de todo ao jugo de cruel paixão.
Animado pela grande consideração pessoal de que era
cercado, pensou em casar-se com a aristocrática donzella. O
pae doesta oppôz-se tenazmente.
Prejuízos de nobreza foram a causa principal da má von-
tade paterna.
Esse doloroso idyllio durou uns três ou quatro annos.
Durante todo elle, até o desenlace flnal, o poeta sergipano
HISTORIA n 33
514 HISTOBIA DA LITTBRATXJBA BBABILEIIIA
andou offuscado e preso de uma verdadeira adoração. Falou
sempre e continuamente a essa mulher em tom de cândida
submissão, como se se dirigisse a uma santa, a um ser supe-
rior e sobrenatural.
Ainda em 1868 assisti, no Recife, ao fmal doesse encanta-
mento.
Nos Dias e Noites acham-se alguns documentos por onde
se pôde aquilatar do gráo a que chegou. Digo alguns, porque
a mór parte das poesias off erecidas pelo enamorado vate á sua
dama nunca veio a lum^ e, com ella, ficou íóra das vistas
profanas.
As existentes no volume impresso são as abaixo indicadas,
as quaes devem ser lidas na ordem em que váo aqui enume-
radas, por ser essa a do natural desenvolvimento dos factos
3 da situação psychologíca do apaixonado sonhador : Penso
em ti — Ideia — Hcec olim meminisse iuvabit — Pelo dia em
que nasceste — Leocadia — Suprema Visto — Amar — ET
cedo — Cármen — Supplica — Contemplação — Tão longe
assim — Ohl isto mata — Não faleis em mim — Sé meiga e
tema — Porque me feriste- — Como é bom!.,, Cantae — Malé-
vola — Luctas d'alma — Fatalidade.
Náò é sem interesse analysar n'estas paginas esse curioso
caso de psychologia humana.
O poeta começa por uma verdadeira invocação, uma per-
feita prece ; pposegue n'uma adoração completa, sempre re-
ceioso e timido, a pedir a sua alma que se acrysole e depure,
até o desenlace, só encontrando palavras de quasi humilhação
diante de seu idolo.
Pôde convencer-se quem quizer, percorrendo as poesias
Jtadas. Aqui deixarei algumas notações indispensáveis, resu-
nidos trechos comprobativos. A primeira preghiéra é em
estylo de soluçada e timorata supplica :
Perdoa, se, nas horas que se embebem
No coração, mais cheias de amargura,
Mais pesadas de amor e de saudade,
Penso em ti... Do teu seio moduloso
Sinto a onda empolada em anciãs doces
. Quebrar-se junto a mim.
r'
HI8T0BIA DA LITmULTUSA BBA8ILIIBA 515
Ohl minha estrellaf
Noiva dos lyrios^ pérola celeste,
Lagrima d'anjo sobre mim chorada.
Que te somes no fundo de minh*alma,
Perdoa, se, nas horas do repouso,
Quando da morte me deslumbra o riso,
Tenho desejos tímidos de vêr-te ;
Que não agaste do teu anjo as azas.
Que nfto te acorde; de invejar-te o sonho,
E dar-te um beijo na m&ozinha casta
Que deixaste pender íóra do leito...
Perdoa ainda, se arroubado, insomne,
Quando na testa do levante pallido
Menos beUa que tu a alva fulgura,
Ruminando a doçura do teu nome,
Nos perfumes, nos bafos matutinos.
Vagos longes de um caintico ineffavel.
Que vem do céo, aspiro a essência tua...
Ohl n&o poder te amar com mais candura!
Se este amoroso querer e louco cinhélo
Não é amor que se revele aos anjos.
Porque não tenho um coração mais puro?
C^o inditoso, que adormido sonha
Beijar-Ihe os olhos peregrina imagem,
Acorda e sente o odor, palpando as vestes
Do sonho certo, que lhe diz : olhai-mel
Blasphema, estorce-se e não pôde vôl-o!...
Que horrível transei £ é assim que eu te amo,
£' assim que te adoro, e não te beijo,
Que não posso dizer-te, e, nesta lucta.
Rindo assisto aos combates tenebrosos
Que se dão na minh^alma, e sempre amando,
Nem de meus olhos este amor confio...
Quizera, virgem, que meus versos débeis.
Meus pensares ao ar soltos, perdidos,
De mistura com as auras vespertinas.
Modulassem de manso aos teus ouvidos ;
Que falassem do céo, da tarde limpida.
Derramando em tu*alma um vago enleio :
516 HX810BIA BA UTTBBATITBA BBASILBnU
Que ta pudesses, entendendo as queixas,
Meus versos, tímida, esconder no seia
£, como a santa da legenda, quando,
Cortando o vôo a virginaes amores.
Teu pae acaso perguntasse : filha.
Que tens no seio? respondesses : flores... »
O poeta pede perdão até de pensar em sua quierida, de pro-
nunciar-lhe o nome, de dedicar-Uie amor, t&o caslo, capaz de
ser revelado aos próprios anjos, e, ainda assim, nã.o se atreve
a dizel-o, e deseja mais puro o coração para a poder amar
com mais candura. E esse inicial acaríciante anhélo, que não
se ousa manifestar, expresso em Penso em (i, prolonga-se em
Ideia^ em que diz :
<( Amo-te muito. Não temas
Que possa dizel-o. Espera—
Gomtigo a sós eu quizera
Beijcur as mãos do Senhor ;
No ninho das rolas castas,
No cálix das flores puras
Gu6u*dar as nossas ternuras,
O nosso morrer de amor«
Quizera aquecer-te n'alma,
Cândida, meiga avesinha.
Unida ao meu peito, minha...
Como dizer ?..« minha irman ;
Comtigo brincar á tarde
Na mesma sombra florida.
Respirar a mesma vida
Nos perfumes da manhan.
E á noite, quando medito.
Quando as lagrimas enxugo
No fogo de um verso de Hugo,
Mais durável que um trophéo.
Pudera ver-te a meu lado
Chegar anciosa e louca,
E dar-me na tua bocca
Alguma cousa do céo.
HISTORIA DA UTTIKATnBA BEianiHTUA 517
Pudera ver-te mimosa.
Com a trança desfeita, esparsa»
Movendo as roupas de garça.
Nos meus segredos bulir,
Juntando ao calor, á vida
Do livro amado que leio
O p€dpitar de teu seio,
E a graça de teu sorrir.
Só tu puderas, passando,
Qual um aroma aos ruidos
De harmoniosos vestidos,
Meu coraç&o acordcur.
Derramando enternecida
De amor, de cândidos zelos,
O cheiro dos teus cabellos
No fundo do meu pensar. »
E* o tom do mais delicada ideialismo, quero dizer, da ex-
pressão mais doce e terna, dada a unia paixão real. Esta,
porém, sentia-se crescer e avassallar o animo do descuidoso
estudante; pois estes factos se passaram em seu curso acar
demico de fins de 1865 a 68. A obsessão cresceu; mas nunca
chegou a perder as formas da mais requintada delicadeza :
Tudo que bate no meu peito ancioso,
Tudo que sonho, que medito e creio,
Minh'ahna toda ó uma só ideia,
Cravada, immovel em teu alvo seio.
D*innotos astros na região de neve,
Dos voos do anjo na altitude immensa
Brilha a pupilla dos teus olhos negros,
Prodígio escuro em que minh'alma pensa.
E sempre á face do revolto abysmo
Do meu sonhar esta visão sagrada :
Teu rosto meigo, tua alvura santa,
Como uma garça ã beira mar poisadal...
Tu és o ermo, a solidão florida.
Que a mente exalta de um delirio vago,
Passando n^alma o deslizar da nuvem,
O azul do céo, a limpidez do lago... u
i±-
518 HIBTOBIA DÁ LITTXBATUSA.
SgLo phrases de Haec olim meminisse juvabit; até ahi n&o
ousa ainda o amoroso sequer queixar-se ; contempla, adora,
recorda-se e embevece-se na recordação. As magoas começam
em Pelo dia em que nasceste; ahi já ousa interpellar o ídolo,
mas ainda muito de leve, deolarando^se pequeno para tocal-o :
« Por ti conservo sorrisos
Pela dor não apagados,
Como títulos gravados
Em face de mausoléo.
Contemplo o resto de infância
Que a tua testa alumia,
Qual o íim de um beUo dia,
Crepusculando no céo.
Bem sei que sonhas venturas
£ a aragem que te balouça,
Franzina, Icmguida moça,
Náo te consente pender.
Socege^ flor boliçosci,
Deixa em teu seio innocente,
Vertida em lagrima quente,
Minh^alma se recolher.
Bella!... nem sentes o ruir da víde^
Celeste arroio que te cobre a planta,
Bafejada dos céos, estremecida,
Etherea, límpida, impalpável, santal
Fulges, como de orvalho perfumoso
Pérola, solta ao matinal gotejo :
Noiva do redo pallido, mimoso,
Que no cálix da flor sorve-a de um bejo!
Transparece o candor d*alma sem magoas ;
A noite, ao dia estranha, sobranceira.
Teu trajo sôa, como o som das aguas.
Teu corpo treme e tua sombra cheira...
E tu'alma também porque não vôa?
Podíamos subir, vagar atoa
Pelo infinito sós ;
Eu faria de amor hymnos e preces,
Um ninho para ti... Se tu quizesses,
Um ninho para nós.
HI8T0BIA DA LITTSBATXrBA. B&A8ILBULA 519
Que receias? teu lábio não murchece,
De moça eterna o raio te circumda :
Da fronte o lyno n&o descai. Parece
Que uma alma exterior teu corpo inunda.
Como em flóreo botfto fechas as graças
£ de um peito aos anhelos doloridos,
A*8 anciãs loucas, n&o te volves, passas...
Cuidas que é o soar de teus vestidos.
Edenica romfi, que um anjo parte,
E'-te a bocca, entreabrindo-se risonha :
Sou pequeno, bem sei, pstra tocar-te,
De que tamanho queres qu'eu me ponha?
N'um fio odoro tua imagem sigo,
Teu doce nome como um hymho entoo :
Eleva-me, que amar-te é voar comtigo,
Ser águia e d'anjo acompanhar-te o vôo.
£il-a de brilhos no seu throno alçada!
Eu te saúdo, burity do outeiro,
Que balanças a coma alumiada
Do sol nascente ao radiar primeiro.
Ouves? eu amo-te. Inda nâo sentiste
A mão que acarecia a sombra tua?
Meu amor é o scismar da fera triste.
Fitando estúpida o clarão da lua... »
Sempre o mesmo respeito, a mesma timidez, a mesma des-
confiança de si, chegando apenas a balbuciar quasi apagados
queixumes... O encantamento é completo; e explica-se por
feitamente pelo natural acanhamento do poeta, famoso esla-
dante, é certo, apontado pelo seu talento, glorioso, popular,
porém mestiço e pobre, a namorar uma Siqueira Cavalcanti
de Pernambucol Quem sabe do gráo de enthusiasmo que
ainda tinha, ha quarenta annos passados, de sua prosápia
aquella familia, pôde bem aquilatar o estado d'espirito do
apaixonado sergipano. Talvez por isso deu sempre o auctor
dos Dias e Noites ao seu amor pela beila aristocrática pronun-
ciada expressão mystica. Sempre avistava-a entre nuvens.
520 HISTORIA BA LITTBRATnSA BRABTT.TBIRA
B'uma região supra-sensivel, celeste, superior, até onde po-
diam vagamente chegar suas doloridas queixas. Embalado em
sonhos, cego d*enthusiasmo, a adoração crescia e alçava o
tom, quando a natural meiguice da moça, que sinceramente
o apreciava, o encantava em suas conversações,
N'essas horas essa nova Beatriz chegava a fazer parte da
comitiva da própria divindade. O poeta tomava-Ihe o nome
e o cantava, em acróstico e glossa, ao gosto dos últimos tem-
pos da edade media e do Renascimento. Ouvide :
H livro de luz em que o Senhor medita
E ás mãos dos anjos não é dado abrir,
Onde as estrellas aprenderam juntas
Com as rosas puras a chorar e a rir,
Alma que serve de alimento ás ílôres,
De cuja essência a creação trescala,
Ingénua e cândida, escutando em sonhos,
A \\}z da santa que do céo vos fala...
Vós sois na terra a encarnação brilhante
Do sacro amor que a vossos pães adita,
Rutila estrophe de um poema d*oiro,
Livro de luz em que o Senhor medita...
Lagrima d'alva que no seio cálido
Da nuvem rubra vos deixou cahir.
Pagina alvíssima em que Deus escreve
E ás mãos dos anjos não é dado abrir...
Virgem serena, a cujos olhos timidos
A lua gosta de fazer perguntas,
Biblia celeste de mysteríos castos.
Onde as estrellas aprenderam juntas.
Com as brisas tehues, a dizer as queixas
De alguma dôr que só Deus pôde ouvir.
Com as ondas cérulas, com as auroras pcdlidas.
Com as rosas puras a chorar e a rir...
Fronte em que passam d'outro mundo as scismas,
Rosto banhctdo em matlnaes albores,
Peito onde arquejam do infinito as vagas,
Alma que serve de alimento ás ílcures,
HI8T0BIA DA LITTXBATURA BRABUJOSA 521
Mimo do sol, que vos attrahe os raios,
E as vossas graças pelo céo propala,
Vós sois a alvura dos eternos lyrios,
De cuja essência a creação trescala...
E quão piedosas n&o ser&o as preces
Dos vossos lábios divinaes, risonhos!
Tranças esparsas, joelhada, extática.
Ingénua e cândida, escutando em sonhos,
Por entre os cantos áaa espheras lúcidas,
E os ais sentidos que o universo exheda,
E os sons mellífluos do psaltcrio angélico,
A voz da santa que do céo vos fala! »
As lettras do nome da mulher amada abrem os versos da
primeira estrophe, que é glossada nas seguintes.
Esta poesia em sua exaltação, que só encontra suas eguaes
em plena edade media, é uma verdadeira oração, como os
adoradores faziam á Madona.
O poeta havia começado, repito, pela mais humilde admi-
ração; ia-se sentindo preso, mas chegava a pedir perdão dia
ousadia de amar aquella que o captivara. E' a primitiva phase
n'esta historia de Tobias e Leocadia. Depois, ás primeiras
difflculdades, surgiram as primeiras queixas de um amor,
que se revelava fatalmente atordoado, como o fitar da fera
ao clarão da lua inaccessivel e prodigiosa. E' a segunda
phase. Vem após um periodo de embevecimento mystico, em
que as fugazes esperanças acalentam a alma, deixam-na
suspensa em extasis, n'um mixto incoherente de sonho, de
encantamento, de visões, de desejos, de suspiros, de aba-
fados anhélos, de que Suprema Visio é uma das expressões
mais typicas existentes em nossa litteratura. Lede :
<( Mostra-me a nuvem, que te trouxe á terra,
Dize-me a estrella que no seio affagas,
Formosa ondina das celestes vagas,
Que ouves bater o coração de Deus.
Deixa que eu possa, d'amoroso afíecto,
Morrer... gu6U*dar em tua rósea bocca
Minh^alma, est*alma, que se estorce louca,
Tacteando as trevas dos cabellos teus«
522 HISTORIA DA LITTERATUSA BRASILBIRA
Para agradar-te n&o contei commigo...
Calado e triste, que attracçôes eu tinha?
Contei somente com a desdita minha ;
Não achas bello padecer assim?
N&o te seduzem meus tormentos rudes,
E as grfiindes luctas de uma vida escura?
Não te apaixon£is pela desventura?
Toca em meu peito, e chorarás por mim...
Se ouso um instante imaginar-te as formas,
A idéa hesita, o coração recua ;
O inteiro hrilho da belleza tua
Do céo as nuvens n&o me deixam vêr...
Génio das flores, quero ahrir-te o seio ;
Quero sondar-te, divinal mysierio ;
Voar, nutrir-me do teu corpo aéreo ;
Lagrima d^áhjo, quero te heber.
Tai*de, bem tarde, quando a mente envolve
Das noites claras o fatal quebranto,
Pedindo aos astros o perdido encanto
De alguma esperança, que já não sorri ;
Quando a alma solta as doloridas pétalas,
De ermos suspiros ao profundo abalo,
E' de joelhos que teu nome exhalo,
Que anceio e choro, meditando em ti.
Nem tenho um anjo, que me apare as lagrimas
Debalde a lua, que madruga amena,
Vem desgrenhar-se, como que de pena.
Pallida e loira sobre o peito meu.
E eu digo á lua : devagar... nfto bulas
Nas maguas fundas de quem ama e chora,
Vê... n&o na toques ; ella dorme agora,
E eu sinto o alento do respiro seu.
Oh! quem beijara-lhe a m&osinha casta,
Que vem, no meio de subtis perfumes.
Tirar suspiros, desprender queixumes
Do intimo seio que ella abrio? Senhor!...
Se para ornal-a n&o descubro flores.
Se embalde mimos pelo céo procuro ;
Peço-vos, dai-me um coraç&o mais puro.
Pará abr€Lzal-a do mais puro amor.
HI8T0BIA DA LITTIBATinLA. BRASUJOIU. 523
Do que se aspira n'esta vida ingrata,
Um riso, um gesto, uma caricia, um beijo.
Gozo, que mate o meu soífrer... n&o vejo...
Mas olha, escuta : é o supremo adeus!
Para minh^alma embalsamar-se extática,
E ao c6o voar inebriada e louca,
Cerrada a ilór de tua rósea becca,
Dárme o aroma dos cabellos teus. »
Passado esse atordoamento em que o poeta só de joelhos
é que achava que deveria falar á sua Madona, segue-se um
período mais humano em que lhe declara o seu amor sem
rodeios; mas sempre envolto em radiantes roupagens, em
idyllicos murmúrios. Amar, E cedo, Cármen sfio a expres-
são (Tesse momento de confiança, certo despertada por
fagueiras promessas. E* de notar a perpetua doçura, a inal-
terável meiguice, a nunca desmentida delicadeza dos senti-
mentos e da sua natural expressão em as citadas peças
lyricas. Não existem mais mimosas em nossa lingua.
Basta percorrer algumas estrophes d'essas composições
para ter a prova, nunca desmentida, de haver sabido o lyrista
sergipano para seus transportes amorosos achar sempre as
expressões do mais requintado idealismo. Eis aqui :
« Amar é fazer o ninlio,
Que duas almas contem.
Ter medo de estar sosinho.
Dizer com lagrimas : vem,
Flor, querida, noiva, esposa...
Cabemos na mesma lousa...
Julieta, eu sou Romeu ;
Correr, gritar : onde vamos?
Que luz! que cheiro, onde estamos?
£ ouvir uma voz : no céo!
Vagar em campos floridos
Que a terra mesma não tem ;
Chegarmos loucos, perdidos
Onde não chega ninguém...
E, ao pé de correntes calmas,
Que espelham virentes palmas,
524 HISTORIA DA LITTXRATU&A BSABItBISA
Dizer-te : senta-te aqui ;
E além, na margem sombria,
• Vôr mna corça bravia.
Pasmada, olbando p*ra ti! »
Esse ninho de duas almas, que vagam, embriagadas de
luz, de perfumes, pelos paramos celestes, e só descem para
perderem-se em campos floridos, onde n&o chega ninguém;
esse ninho que parece vae pender mysterioso do cimo de
virentes palmas, ao murmúrio das lymphas encantadas, ó
uma bellissima imagem, só excedida pela lembrança do poeta
em realçar a formusura de sua querida, fazendo deter-se
diante d'ella pasmada de vèl-a uma corça bravia. Mas o surto
lyrico do ideialismo poético é prodigioso em mutaçGes.
Agora é sob a forma de flor pendente de orvalhado ramo e
quei deve ser de leve colhida nas madrugadas longínquas,
quando nem ainda começavam os cantos da passarada gár-
rula, que surge a imagem do amor do poeta. Essa collabo*
ração da natureza nos festins d'alma humana é um dos si-
gnaes da boa poesia. Eis o mimoso quadro :
« E* cedo... as avesinhas não cantaram,
Nem d'alva ao longe se presente a vinda ;
Da noite as sombras não se dissiparam.
Ha muita estrella pelos céos ainda...
Venho colher-te. Porém tu me molhas
Com o teu orvalho no florido ramo;
Qu^eu tenho medo de tocar-te as folhas,
Qu*eu tenho medo de dizer-te : eu te amo!
Do céo descido teu olhar supremo
E* o infinito que se entranha em mim.
Scismo em tua sombra ; se te encaro, tremo!...
Se isto é amor, eu nunca amei assim!
Rosa dos valles, vem ver como és linda
No liso espelho desta fonte calma :
Queres mais bella, mais brilhante ainda,
Rasga-me o peito, mir&>te em minh*alma! n
BIBTOBIA DA UTTBSATUEA BSA8ILRIKA 525
Vô-se, sente-se a doce illusão do amoroso lyrista n'este
período roais intenso da esperança. Chega a sonhar o seu
amor, cuidado por flores, em encantado abrigo, a entoar a
prece mystica das eternas venturas :
(( Ha muita sombra, meu amor, no valle,
No valle ameno em que medito a sós ;
Muita delicia, que enlahguece os olhos,
E muita flor para cuidar de nós...
Alli, nós ambos, pelo céu guardados,
Do amor mais puro no encantado abrigo,
Tu me dirias : em que tanto scismas?...
Abre o teu Uvro, quero ler comtigo.
Juntos, ouvindo o murmurar das aves ,
Batendo as azas entre os arvoredos,
Mfios enlaçadas, um no outro âtos,
Nós dois línidos, arroubados, quedos ;
De nossos olhos na linguagem mystica,
Falando presos de amoroso enleio,
Eu te pudera desvendar minh*alma.
Tu me puderas revelar teu seio...
Depois, nas horas em que o pranto é doce,
De uma doçura a que ninguém resiste.
Nós dois, Ã margem de sereno lago.
Ao pé de um tronco desfolhado e triste ;
Ahl li'essas horas em que o céu é calmo,
Ao vago anhélo dos suspiros meus,
Eu juntaria tuas mãos de seda,
Mfios de criança para orar a Deus... »
Doestes protestos, d'estas revelações de fundas ternuras
resuma a confiança; algum raio da embriagante ventura, que
desce do céu do amor sobre os seus eleitos, deveria ter illu-
minado a alma do poeta. Dias mais escuros tinham, porém,
de chegar.
Sob a pres.çfio paterna, alem, talvez, d'outras causas desco-
nhecidas, a formosa cndina das celestes vagas^ foi-se re-
526 maroBiA da litteraturâ bbabilkiba
trahindo aos poucos, não sem lucta e sem constrangimento.
Em unisono accórde o coraç&o do apaixonado mancebo, foi
desferindo as sentidas notas das situações desenganadas, em
accentuado crescendo até o rompimento final. Mas ainda
ahi, ainda na crise decisiva as magoas do iriste foram sempre
como ofteren.las depostas no altar d'uma divindade. Sujh
plica, Ohl isto mata, Não faleis em mim, Porque me feriste.
Como é bom,.. caiUae, Malévola, Luctas d' alma são a ex-
pressão d^essa ultima phase do idyllio de Tobias e Leocadia
do qual a derradeira nota parece estar en Fatalidade. Em
Supplica ouvem-se as primeiras desconfianças; mas com
que timidez são expressas ! Quem só conheceu o génio arre-
batado do escriptor sergipano em suas polemicas e n*outros
passos de sua vida, quasi não pôde acreditar que fosse elle
capaz de tanta meiguice. Mas é este um signal das grandos
almas : os extremos nas fortes paixões.
Supplica parece cochichada á surdina :
(( Que brancas formas ao meu peito afago !
Não, são chymeras pela mente esparsas;
NAo, é a tíscuma que acolchoa o lago ;
Não, é a alvura de serenas garças...
Não me maltrates, tu, que tens no seio
Tanto rebento de paixões viçosas
D'alma supérflua, que amanhece cheio
Do teu sorriso o coração das rosas.
Os astros limpos, a tremer sedentos
Da luz que gu€u*das, como em um thesoiro.
Pedem um íio dos teus pehseunentos
Para adornarem suas frontes de oiro.
E a onda pede, para arfar mais bella,
A inquietitude que o teu corpo abala ;
E a aura da tarde supplicante anhela
Pelas essências, que tua booca exhala.
Bocca mimosa, que uma aurora encerra,
Que meiga espira virginal fragrância!
Formou-a Deus para supprir na terra
Das flores mudas a perpetua infância.
r
HISTOBIA DA LITTBRATUBA BRABILSimA 527
Boquinha €ú!>erta ao matinal rorejo,
Que existe só pcLra sorrir nos prados,
Falar ao céo e receber o beijo
Que Deus envia aos coraçOes magoados.
Olha... se meiga, como tu pareces,
Tema criasses, nos vergéis nascida.
Pobre avezinha, e por amor lhe desses
Na ílór dos lábios o alento e a vida ;
Um dia, ingrata, te esquecendo d*ella.
Com quem, tu sabes, ninguém mais se importa,
Quando a lembrança te viesse, oh bella,
Nfio chorarias de encontral-a morta? »
A nota capital nas ultimas poesias citadas é a do amor que
faz o sacrifício de si mesmo, procurando occultar-se, che-
gando até, em certos passos, a protestar a sua inexistência.
E' singular este mixto de orgulho e humilhação, esta rara
mescla de devotamente e receio, de esquivança e attracçâo.
Eis como fala em Oh I isto mata :
« Não tenho forças para tanta lucta,
Lucta d'archanjo, que, se mais um raio
Do seio ardente me lançares, caio ;
Que eu já não posso com teu meigo olhar.
Por ti sem vida, abandonado & sorte.
Gosto das noites, que me causam medo.
Gosto da rosa, que me espinha o dedo,
Gosto de tudo que me faz chorar.
Carpindo magoas que comprimo n'alma.
Gemendo queixas de fatal desgosto,
N&o sei que névoa te passou no rosto,
Nfto sei que sombra nos teus olhos vi...
Mandas que eu fuja, que n&o mais te adore?
Temes que um sonho revelado seja?
Queres que eu morra, que n&o mais te veja?
Pois bem ; nSo temas ; fugirei de ti.
De ti, de mim... que pensarfio as rosas,
Qua*ndo ao correr das viraçOes macias.
528 HIBTO&IA DA LITTBBATTntA BBA8ILBIBA
Das tardes frescas nas mansões sombrias,
Me virem triste, lacrimoso a sós?
Ohl isto mata!... E que respondo ás flores,
Quando, insensiveis a meu longo pranto,
Disserem rindo qu*é do teu encanto?
Qu'é da criança mais gentil que nós?
Talvez cuidasses que te amar podesse...
N&o que o teu nome nem siquer profiro!
Foi-te contado por algum suspiro.
Por algum astro, por alguma ílór?
Quem é que veio devassar mysteríos
Na gruta opaca do meu pensamento?
£* falso, é falso o que te disse o vento...
Mentio a estrella que falou de amor ...»
Melindrado pelas opposições aristocráticas da familia da
gentil namorada, o poeta chega a negar o seu amor ; mas
essas evasivas não passam de novas conflssões. E prosegue
em Não faleis em mim :
« E hei de acabar desventurado e triste,
Falando ás flores que me n&o respondem,
Buscando uns olhos que de mim se escondem,
P'ra me nfto darem illusões de amor?
Hei de acabar!... e do fatal poema.
Sim, deste psalmo que a chorar desflro,
O ultimo verso é o ultimo suspiro.
Suspiro eterno de ineffavel dór.
Qual brava corça das virentes selvas.
Na sombra occulta a se nutrir de espinhos,
Minh*alma pobre, que "tAo tem carinhos.
Amargas penas na soid&o remoe :
Pasmando aos mimos da mulher que adoro,
VisAo que abraço pelos raios delia,
Transido soffro a suspirar : oh bella,
O sol que brilha, também queima e doei
Morrer por ella... que loucura minhal
Longe, bem longe o seu olhar diviso...
Que tenho eu, para pedir-lhe um riso,
Que tenho eu, para adoral-a assim?
HISTOBIA DA LXTTXRÁTUSA BBABILIZBA 529
Astros da noite, que me olhaes attentos,
Dizei, dizei que esta paixão me mata.
Mas, por amor, não lhe chameis ingrata,
Ride com ella e n&o faieis em mim... »
O amor, que se procura n'estes versos retrahir e desf8u*çar,
consegue apenas, em Porque me feriste? proromper em
novas preces. O pensamento, como um raio morto, procura
mais e mais acrysolar-se :
(( Bem como as flores, em botão fechadas,
A' espera d'alva, que n'as venha abrir,
No peito magoas, a doer caladas,
Pedem um raio para as expandir.
Fita-me, eu quero do martyrio santo,
Que o céo me outorga, offerecer-te a palma ;
Deixa em teus olhos depurar minh*alma,
E em teus cabellos enxugcur meu pranto.
Desde que, ao ver-te, ajoelhei-me absorto,
£ á hora extrema o coração bateu,
Meu pensamento, qual um raio morto,
Gahiu-te aos pés e "nunca mais se ergueu.
Quiz perguntar-te : por que me feriste?
Fitei-te os olhos e tremi de medo...
Tive receio de morrer tão cedo,
Tendo o desgosto de viver tão triste...
Tu, que sorrindo minha fronte abrasas,
Porque não deixas que te possa amar?
Eu dispensara do meu anjo as azas,
Bastara um anjo para nos guardcu*.
Fói'ma visivel de minha alma errante,
Que o meu penoso coração dedilhas...
Oh! minha estrella, que de longe brilhas,
Nada te importa que eu soluce ou cantei
Para em teu seio penetrar a furto,
E haurir o orvalho da pureza em flor,
Longo... infinito... o pensamento ó curto.
Curtos os voos do meu casto amor.
HisfiORu n 34
^30 HISTOBIA DA LITTSRATUKA BRA8IL1IBA
Quantas e quantas já lá v&o perdidas
Lagrimas d*alma^ que se quebra em anciãs!
Pude nos sonhos aspirar fragrâncias...
E achei as rosas de manha cahidas!
Ai! deste amor o anciar dorido
Cubra, suffoque do mysterio o véo.
Génio dos anjos, se te amei perdido,
N&o rias, ouve : dir-Vo-hei no céo...
Fita-me ; eu quero, acrysolado e santo.
Do meu tormento offerecer-te a palma,
Deixa em teus olhos depurar minh'alma,
£ em teus cabellos enxugar meu pranto. »
O poeta, como se v6, em revolta contra os obstáculos
oppostos á sua felicidade, não prorompe em blasphemias,
nem tem palavras duras contra a sua amada. Requinta a
doçura e a delicadeza.
Sabe já que nada poderá alcançar; mas as ultimas notas
do psalmo que desfere, segundo sua própria expressão, cada
vez sáo mais ternas e mais apaixonadas. Â divindade con-
tinua a seus odhos a merecer-lhe toda a dedicação.
Obediente ás ordens paternas, a moça pernambucana foi
aos poucos cortando as relações com o ardente sergipano.
Foi sob a impressão d*esse retrahimento da formosa andina
que foram escriptos estes versos de um lyrismo encsmtador :
« Podes rir e não crôr no que soffro,
Nem ouvidos prestar aos meus ais,
E o festão de esperanças fagueiras
Desfolhar-me na face ; índa mais...
Podes vir laurear-me d'espinhos.
Sem que o pobre uma queixa profira,
Vêr-me triste e dizer : que loucura I
Vôr-me louco e dizer : é mentira 1
Podes, bella, a meus olhos cançados,
Que sem ver-te na sombra fallecem,
Ordenar que não ousem âtar-te.
Que os meus olhos chorando obedecem.
HX8T0BIA DA UmEATintA. T>mAlffT.»imil 5S1
Maa qaerer que minlia alma te esqaeça^
Mas dar ordens ao meu coração.
Mas impor-lhe que deixe de amar-te,
Prohibir-me que soífra?... isto nSoI
Meu amor, este amor que me mata,
De minli*alma no seio profundo,
Traduzindo o silencio dos astros*
Encerrando a grandeza do mundo,
£' a onda que vem do inânito.
Que n&o geme sequer, nem murmura.
Dos meus olhos trazendo a tristeza.
Dos teus lábios a doce frescura.
£' o susto da flor que descora
Por um beijo do sol que na ofíende ;
O segredo de brando favonio,
Que suspira e ninguém comprehende.
E* a gloria do mar que se ufana
De apanhar a botina e a meia
Da donzella, que foi por brinquedo
Descalçar um pézinbo na areia.
E* o orgulho da vaga empolada,
Que se julga mais rica e ditosa
De embalar uma lagrima d'anjo
No batel de uma folha de rosa.
Meu amor é a rola selvagem
De um cabello prendida no laço ;
E* o lyrio que diz : n&o me mates !
Ao tuAo que lhe diz : eu te abraço 1
Mas tu foges de miml... ouve, espera:
Se procuras saber quem eu sou.
Diga o anjo que sempre commigo
Minhas magoas sentio e chorou.
Diga a lua a quem conto os meus sonhos,
A quem dou para ver e guardar
Meu thesouro de lagrimas puras
Que as angustias me querem roubar. »
532 HI8T0BIA DA LITTEBATUSÀ BSABILBISA
Mas no poeta lyrico havia já em 1867, anno em que foram
escríptos os versos acima citados, a íibra de um luctador
sedento de glorias. As grandes aspirações pelo futuro, a con-
sciência de uma carreira a preencher vieram em auxilio do
pobre estudante. Ao idolo adorado pede ainda piedade e com-
paixão ; mas, enlregue aos tufões da sorte, tem a coragem de
aguardar futuras glorias, que o hão de valer, porque náo as
renega. E' a psychologia que transpira de Luctas (TAlma :
<( Como é sublime o combater de uma almci,
Que abriu as azas aos tufões da sorte I
Leva no seio um oceano amargo,
Transcende as nuvens soberana e forte ;
Toma-lhe o vento as esperanças todas;
Mas não succumbe, mas não foge á morte...
Como é sublime o combater de uma alma,
Que abriu as azas aos tufões da sorte !
Sim I E que importa que na fronte curva
Presinta o frio de funérea lagem ?
De uma tristeza no fatal suspiro,
De uma lembrança na veloz passagem,
Escuto ao longe o coração, que bate,
E a voz de um anjo, que me diz : coragem I
Sim I E que importa que na fronte curva
Presinta o frio de funérea lagem ?
Sorte maldita, que me tens ferido,
Tu me venceste, mas eu não me entrego !
Na mente escura, como um vasto globo
De noite negra tacteando cego.
Encontro as crenças de futuras glorias.
Que hão de valer-me, porque as não renego.
Sorte maldita, que me feres n'alma.
Tu me venceste, mas eu não me entrego !
Possa meu pranto fecundar a terra.
Donde rebentam da piedade as flores ;
E tu, que assistes de minha alma ás luctas,
Sô compassiva para tantas dores.
Morta a palavra pelo soffrímento,
Perdido o riso pelos dissaliui'Os,
j
HUTO&IA BA LITTBBATUSA. BKABILBnUL 533
Possa meu pranto fecundar a terra,
Donde rebentam da piedade as ílores... »
O rompimento deu-se em meiados de 1868, depois de peri-
pécias varias que não podem ser aqui narradas.
Os versos a que poz o titulo de Fatalidade desvendam, até
certo ponto, n'esse transe o coração de seu auctor.
E* para notar ainda ahi a respeitosa admiração do poeta dos
Dias e Noites por essa mulher que lhe encheu durante cerca
de quatro annos a alma de irisados e deliciosos sonhos e da
qual nunca mais falou até morrer sem visivel emoção :
Disse ao verme da terra águia celeste :
(( Dóe-me ver-te no pó ; minh'alma é nobre ;
Porque não ousas remontar ás nuvens ? »
<< Não tenho azas... » lhe responde o pobre.
« Tenho-as eu ; posso erguer-te ao infinito,
Onde voam as almas que suspiram. »
A águia e o verme n'um olhar trocado
Se embeberam de luz; e ambos subircun.
As nuvens fogem para abrir caminho
Ao rápido voar da ave altaneira;
E os astros dizem rindo : (c vem da terra,
Trazendo aos pés de Deus um grão de poeira... »
Quando assim mais alturas devassavam.
Esta águia qiie dizia: u o espaço é nosso,
Vamos juntos ao céo, entras commigo... »
Disse ao ente infeliz: « ai ! já não posso !... »
u Pois agora que o mundo está tão longe.
Que tão alto voaste, é que me deixas ?... »
(f Lembrei-me que eu sou grande e tu pequeno,
Tenho pejo de ouvir as tuas queixas... »
E* assim que ao abysmo tormentoso
Meigo sorriso um coração sirrasta,
E, na borda fatal do precipício.
Tu recuas, e eu?... sumo-me. Basta... »
584 HISTORIA DA UTTBBATUHA BRABILXIRA
Depois de taes e tantas citações, bem se comprehende o alvo
que tive em vista. Alem de pdr debaixo dos olhos do leitor
bellos trechos do lyrismo pátrio, quiz desfazer falsas allega-
çOes, ainda hoje correntes, sobre o auctor dos Dias e Noites,
patenteando aos espirites imparciaes todo o mundo de ter-
nura e de delicadeza existente noe sentimentos do poeta, que
foi verdadeiramente uma alma bao, generosa e amoravel.
A segunda paixão sentida por elle foi na cidade da Es-
cada por uma bella morena de nome Maria d'Albuquerque,
intelligente amadora do canto e do piano. Tobias residia então
na pequena cidade pernambucana, onde tinha banca de advo-
gado. A musica os approximára. Começaram cantando e
tocando juntos e acabaram namorados. Teve esse complicado
convívio phases varias; mas nunca passou as raias das conve-
niências. Deu logar a pequenos lieder, notáveis pela intensi-
dade e calor das notas. Eis aqui alguns :
(f Vinde commigo ver essa belleza,
Iiic6U*naç&o do espirito das flores,
Ultima nympha que encontrei perdida,
Solitária na ilha dos amores.
Como cara mil vezes depurada,
Realça-lhe o candor da fronte linda ;
Natureza cruel e demoníaca,
Da família de Lelia e de Lucinda ;
Bastos, crespos cabellos de mulata.
Sendo ella aliás de pura raça aryana.
Olhos d*aguia, mãozinhas de criança,
Bocca de rosa e dentes de africana...
E' esta a imagem que peguei n'um sonho,
Sonho de amor, febril e delirante ;
A mais moça, a mais quente das dez virgens,
A que o reino dos céos é similhante... »
Estes versos trazem o titulo de Por brincadeira.
Uma vez, porém, n'esse declive, escreve o poeta :
nSTOBIÁ DA UTTBRATUBA B&ASILIIBA 535
« Tu és morena e sublime
Como a hora do sol posto ;
E no crepúsculo eterno
Que Venvolve o lindo rosto
O céu espalha ternuras
D'aIvoradas e jasmins...
E passam roçando r*alma
As azas dos cheruhins.
Teu corpo que tem o cheiro
De cem capellas de rozas,
Que fenche a roupa de quebros,
De ondulações graciosas,
Teu corpo derrama essências
Ck>mo uma campina em íIcn*...
Beijal-ol... íòra loucura...
Gozal-o!... morrer de amor!... »
São já os cálidos tons dos ardores meridionaes; mas sempre
^aciosos e em linguagem selecta. Um passo mais e o inilam-
mavel poeta sente-se abalado e a moça, como de razão,
esquiva :
(( Quando te mostro essa porção de sombras
Que o teu cabello me lançou na fronte
E os ais sentidos que no ermo exhalo,
Pedindo ao ermo que a ninguém os conte ;
Quando te falo no profundo affecto
Que tua bocca me imprimio no seio,
Teus meigos olhos me respondem tímidos :
Como é possível este amor ? não creio.
Como é possível?! tens razão... As almas
Não sobem todas á serena altura,
Donde se exepellem deste mundo as maguas
E lá mais vivo o coração fulgurcu
Não sobem todas. Entretanto eu soffro.
Ninguém percebe a minha dôr; eu choro.
Ninguém conhece do meu pranto; eu morro,
E tu perguntas com que fim te adoro ?i...
536 HI8T0BIA DA UTTBBATnBA BBJJOJJaJUL
Podes dizer-me com que âm rebentam
Brancas boninas no deserto ? e as aves,
Que o sol saúdam, com que fim gorgeiam,
E acordam d'alma as emoções suaves?...
A flor das veigas e dos céos a estrella,
Que meigos prantos entre si derramaml —
A flor não sobe nem a estralla desce,
Qual o motivo por que tanto se amam?... »
Igual sentimento repete-se insistentemente n'estes outros
versos :
(( Eis-me á borda do abysmo arrastado
Deste amor aos impulsos fataes ;
E teus olhos, que assim me levaram.
Já parecem dizer : é de mais !
E' de mais, bem o sei, a loucura
Com que c^o cabira a teus pés.
E da poeira de luz, que te envolve
Quiz ousado romper através.
Vi-te bella; encarei as estrellas,
N&o achei quem dissesse : onde vais ?
E minh*alma perdeu-se nas sombras
De teu negro cabello... E' de mais...
Fazes bem; meu amor não tem azas
Para ao longe comtigo voar;
Pobre, louco, misérrimo e triste...
Eu que tenho ? que posso eu te dar ? »
Entretanto, a bella morena sentia por seu apaixonado sin-
Cíe^a inclinação, que não se podia expandir, porque havia
entre elles o abysmo das grandes e fundas conveniências so-
ciaes. Por isto dizia-lhe elle em delicado tom de queixume :
f( Um riso, um gesto, umeis palavras doces,
Eis a riqueza do teu grande amorl...
Se Deus quizesse reduzil-o a orvalho.
Não ensopava a pet1a de uma flor...
HI8TOBZA DA UTTS<URiL BRASILIIEA 537
Entretanto, minha alma, que te adora,
Esta alma, que a teus pés cahiu ferida,
N'esse pingo de amor, quasi invisível.
Acha gozos do céo, que lhe dfto vida I... »
E como se ella sentisse mais preza e chegasse até ás lagri-
mas, teve elle este brado de dõr que poz remate a essa situa-
ção desagradável :
« Ver-te chorar ! E náo poder prostrar-me
Dos olhos teus ao infantil quebranto,
£, como o orvalho da manhã nos campos.
Nas minhas barbas imbeber-te o prantol
Ver-te chorar I E n&o poder as lagrimas,
Que tu vertias com virgíneo pejo,
N*um cofre d*oiro recolhel-as todas,
Seccal-as todas ao calor de um beijo!...
Que beijo I O echo dos abysmos d'alma,
Se abrindo aos raios da belleza tua :
Um beijo enorme de oceano immenso
Na branca praia, solitária e nua !
Tu trazes iltas nos cabellos negros.
Nos seios quentes o calor dos ninhos,
Na fronte a sombra do cahir das tardes.
Flores na mão, no coração espinhos... »
N'estas effusões pela gentil Maria de Albuquerque está-se
bem longe do delicioso ideialismo inspirado pela incompa-
rável Leocadia, é certo ; mas a compostura é ainda completa e
a attitude do poeta respeitável, como respeitável é tudo quanto
sentido e sincero produz o coração humano.
O embevecimento de Tobias diante da mulher, de que até
em seus discursos e ensaios críticos existem muitas amos-
tras, não se fez sentir somente em relação ás suas apaixona-
das. Desde os seus primeiros annos no Recife frequentou
excellentes rodas e teve óptimas e escolhidas relações, que
&88 HIBTOBIA DA LITTIBATURA BBA8ILBIBA
entreteve sempre com muita carinho. Teve assim ensejo de
conhecer e tratar dístinctissimas senhoras, solteiras e casa-
das, pelas quaes foi muito estimado, retribuindo-Ihes os nobres
affectos com a mais elevada e selecta amisade. A algumas
d'estas dedicou poesias que se contam entre as melhores que
produziu. Feda-lhes objectivamente, por assim dizer, mas
com um arrebatamento, um enlhusiasmo, um calor, verda-
deiramente raros na amisade. São notáveis taes prcxiucções
como superiores modelos de estylo e eflus&o lyríca.
N'esse numero contam-se os versos postos no álbum de
D. Amália Pinto de Lemos que seria crime nao transcrever :
« Que vem fazer eín pagina tâo alva
Uma idéa mortal, humana, imprópria,
Como em fronte infantil ruga sombria ?
Ah ! se ao appello de teus olhos sérios
Responde tudo, que palpita e brilha ;
A ílôr, a estraila, o coração respondem
N'um canto vago, immaculado, ethereo ;
Possa, minh'alma ennevoada, agreste.
De um nome angélico atirar as syllabas
Ao mar, ao céo, á luz, ao vento, ás águias.
Capazes de apanhar a poeira fulgida
Do chão que pisas, e, n'um vôo celeste.
Ir, por brinquedo, sacudir as a^as
No seio branco da mais linda nuvem...
Feito de riso e doçura,
Aura do céo respirável.
Teu nome santo, ineffavel,
Tão puro que os lábios meus
Têm susto de proferil-o,
Desperdiçar-Ihe os odores,
Amália I... é o abrir das ílôres
Pronunciado por Deusl
Bem como do sol reflectem
Os longos raios na lua.
Dardeja na face tua
Paterno olhar do Senhor;
Nem sei o que é mais visível,
HI8T0ÍEIÂ DA LITTXBATITBA BBABIUnLà 599
Se do teu rosto a lindeza.
Do teu corpo a subtileza,
Ou da tua alma o candor !...
Mas é verdade que soffres ?...
T&o moça, soffres t&o cedo !
Dize: que angélico dedo
Bolio-te no coraçfio ?
Ou foi a aragem da tarde
Que o teu bordado de sonhos
Esperançosos, risonhos,
Arrebatou-te da mão ?
Dize: no céo, nas espheras
Fitaste um olhar mais triste ?...
Tão tema ás flores sorriste,
Que a alma puderam-te vâr ?
Pois as flores todas, todas.
Já sabem do teu segredo,
£ se ellas sabem... tem medo
Que as aves queiram saber.
Os rinhos n&o s&o capazes
D*esconder este mysterio ;
Nem mesmo o tumulo é sério,
Para gufiu*dar esta dor...
As rosas n&o são amigas,
A quem abras o teu peito.
Cruéis que dizem : bem feito,
Quem te mandou ter amor ?
De um peito débil, nos sonoros rythmos.
Como que se ouve o tropear de instantes
Que vão correndo fugitivos, trépidos...
Não ouças : canta. Que disse eu ? não cantes I
Não ; não recebas do piano os bafos.
Que são veneno para a tua dôr :
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Dizem que as serpes habitar costumam
Ninhos sem aves, por ahi desertos ;
540 . HIBTOSIA DA LITTBaATUSA BRABUJEIRA.
E a morte gosta de beijar os seios,
Que as magoas deixam para os céos abertos.
Não penses nisso ; em tua fronte limpida
Corre da vida o matinal frescor :
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Como se calam da esperança os hymnos,
Ruido d'azas que ao teu lado ouviste !
Ao céu perguntas : porque morre a virgem ?
E o céo te escuta num silencio triste.
E* que tens medo de fechar os olhos,
Cerrar os lábios e perder a côr...
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor.
Tudo faz mal ao coraç&o : a folha
Que cabe, o ramo que estremece, a vaga
Que geme á tarde, uma lembraça ao longe,
Um raio tremulo, um olhar que afaga,
Tudo faz mal ao coraç&o : a aurora,
O riso, o pranto, o desfolhar da flor...
Esconde o peito dessas auras frias,
Que passam cheias de saudade e amor. »
A ouvertura em versos brancos é solemne ; as oitavas se-
guintes em redondilha maior, o verso popular por excellen-
cia, constituem uma espécie de allégro e são das mais delica-
damente bellas de nossa língua, só encontrando iguaes em
João de Deus, um dos primeiros lyricos do meio dia da Eu-
ropa; as oitavas flnaes, em versos saphicos, são docemente
magoadas, n'aquelle plangente ritomello, ao molde dos velhos
cancioneiros, tão do gosto de nosso idioma.
Em igual elevação lyrica adejam as poesias consagradas
a D. Paulina Monteiro de Siqueira Calvalcanti, senhora de
rara distíncçâo, um dos mais dignos caracteres femininos da
sociedade pernambucana no ultimo quartel do século xa, e
esposa do honrado cavalheiro António dos Santos de Siqueira
Cavalcanti.
Essa intelligente e illustrada senhora, cujo sal&o no Recife
lembrava os salões parisienses do bom tempo, nascera no
HIBTOSIA PA LZm&ÁTTnU BSABZLinLiL 541
mar, em viagem feita por seus pais á Europa. O poeta, em
versos ao seu natalicio, alludindo a essa circumstancia, dizia :
(( Sobre as azas cherubicas suspenso,
Deus sobre os mundos estendendo o braço,
Nasceste linda e o oceano immenso
Embalou-te cantando em seu regaço.
Embalde o archcmjo do mysterio, triste,
Cerrara os lábios do universo mudo :
Os flóreos risos que primeiro abriste
De Deus e d'alma revelaram tudo.
Tudo..., o meigo candor das alvoradas,
Das tardes calmas o segredo fundo,
O silencio das noites estrelladas.
Foi por teus olhos revelado ao mundo...
E é se revendo em tua face pura
Que os archanjos de Deus se julgam bellos.
Dize : que é que o teu olhar procura
No céu, na terra em fulgidos anhelos ?
E'a meiguice dos primeiros dias.
Que ao longe exhalam divinaes fragrâncias?
Não ; nos olhos ainda balbucias
De anjo e menina as innocentes anciãs.
Rindo affagas a cândida plumagem
De tua infância pelas azas prosa ;
Em cada flor se estampa a tua imagem,
Teu hálito embalsanoa a natureza...
Sobre as azas cherubicas suspenso ,
Deus sobre os mundos estendemdo o braço.
Nasceste linda e o oceano immenso
Embalou-te cantando em seu regaço. »
E' 0 lyrismo em sua forma selecta, em seu mais puro
esmero. Quatro ou cinco poesias, n'esle gosto, teve o illustre
sergipano ensejo de dedicar ao anniversario natalicio de sua
distintíssima amiga. Sempre achava na lyra algum som novo,
542 HISTORIA DA LITTSBATUBA BBABILUEA
exhalado de cordas intactas, e cada vez subia mais alto. Eis-a
prova :
« NÓ8, as estreilas que no ceu pensamos,
As folhas mortas que no pó jazemos,
Os olhos tristes que já n&o choramos...
Ah ! que a ventura de chorar perdemos !...
De orvalho as gottas pelo chão bebidas,
Porque em seu cálix n&o nos quiz a flor,
Banhar-nos do anjo no clar&o viemos,
E as nossas preces a seus pés depor.
As auras frescas, de bem longe vindas,
Que a bocca rubra da criança abrimos ,
Nem lhe passamos pelas faces lindas,
Que temos pena de levar-lhe os mimos ;
As rosas murchas, por ninguém colhidas
Que inda podemos reviver de amor,
Banhar-nos do anjo no clar&o viemos,
E as nossas preces a seus pés depor...
Assim teu astro, nas cerúleas dobras
Do manto eterno, mais e mais fulgura ;
Nasceste bella, como s&o as obras.
Todas as obras, em que Deus se apura.
E nesta hora em que naceste, belia,
E a terra encheu-se dos fulgores teus ,
O mar revolto era um bater de palmas,
E o céo azul era aattençâo de Deus.
Lembram-se as flores, que sentiram quente
No seio a força desse novo encanto ,
Mais o calor de um coraç&o ardente ,
Que se alimenta de ternura e pranto ;
Lembram-se as flores que aos ouvidos d'ellas
Chegaram ténues os vagidos teus :
E o mar revolto era um bater de palmas ,
E o céo azul era a attenç&o de Deus... »
Dada a noticia inicial do poeta em Tobias Barretto, em suas
relações com Castro Alves, em a ideia geral de sua evoluçfto
na divina arte, dos géneros diversos que cultivou, e, mais
HISTOBIA BA UTTSIATinU BBASILBIBA 543
peculiarmente, indicados os seus sentimentos no que tocava
á mulher em geral, aos génios, aos talentos, ás crianças, aos
povos, e, ainda mais de perto, apontados os seus aflectos no
que dizia respeito ás damas que lhe compartilharam o amor
ou a simples amisade, náo se acha esgotada a tarefa da cri-
tica e da historia, por este lado, a seu respeito.
Por mais distincto que se tivesse elle revelado em tudo isso,
seria, ainda assim, um poeta de ordem secundaria, se não
houvesse su*alma vibrado em altas e magnificas notas diante
dos magnos assumptos, os especiflcos problemas que sfto a
pedra de toque da poesia moderna : o enygma do universo, a
humanidade em seu destino e sua grandeza, a morte, a pátria,
o trabalho, a vida social em suas múltiplas feições. Felizmente
para tudo isto existem alguns cânticos em suas producções.
E' o que me falta mostrar para concluir-lhe o perfil de poeta,
até hoje pouco apiBCiado em seu legitimo valor.
O sombrio mysterio, que vela todas as cousas, é o assumpto
de Voos e Quedas^ canto philosophico, cheio de elevadas
ideias, de fortes pensamentos, escripto em 1866, e que con-
stitue um dos mais authenticos productos da poesia condo-
reira na escola pernambucana. Convém ser lida como docu-
mentação da litteratura da época. Abre assim :
Cf Quebrei a cr'ôa de espinho,
Que a minha fronte sangrou :
Como a serpe occupa o ninho
Que o pássaro abandonou,
Jaz em meu peito o desgosto...
Do abysmo lava-me o rosto
A onda crepuscular ;
De minh alma a fibra extrema
Sai nas unhas do problema.
Que nfio se deixa pegar...
Vér o mysterio eriçado
Rodeando os mausoléos,
Morrer... subindo agarrado
No escarpamento dos céos,
E' triste! Mas é a vida...
O homem, de tenta lida
544 HIBTOBIÁ DA LITTERATI7BA BBASUJO&Á
Cançado, indagando vai;
Chora embalde, grita, escuta,
E a terra, m&i prostituta,
N&o lhe diz quem é seu pail... »
N'este gosto, n'esta elevação prosegue por mais vinte e duas
decimas octosyllabas, que lembram as da famosa poesia Les
Mages de Victor Hugo, uma das peças typicas do lyrismo
romântico francez, na opinião de Brunetière. Os versos do
poeta das Contemplações, escriptos no mesmo metro e na
mesma forma estrophica, revelam mais imaginação e mais
talento verbal ; porém muito menos profundeza de ideias.
Em autonomia de pensamento e em instrucçâo real o poeta
brasileiro sobrepujava o seu mestre de estylo francez.
Mais característico ainda do que os Voos e Quedas, no que
diz respeito ao problema das origens do universo e dos des-
tinos humanos, é este soneto, escripto quinze annos mais
tarde :
c( Quanta iUusão !... O céo mostra-se esquivo
£ surdo ao brado do universo inteiro...
De duvidas cruéis prisioneiro.
Tomba por terra o pensamento altivo.
Dizem que o Christo, o fllho de Deus vivo,
A quem chameun também Deus verdadeiro,
Veio o mundo remir do captiveiro,
E eu vejo o mundo ainda t&o captivo !
Se os reis são sempre os reis, se o povo ignavo
Náo deixou de provar o duro freio.
Da tyrannia, e da miséria o travo.
Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio.
Se o homen chora e continua escravo.
De que foi que Jesus salvar-nos veio ?... »
Este pensamento da inefflcacia do christianismo para a
libertação ha humanidade, afíirmado agora sem rebuço, já,
em época muito anterior, tinha o poeta suggerido, sob forma
dubitativa, quando disse, nos versos A' Caridade, falando do
HISTORIA DA LITTERATURA BRASILEIRA 545
Christo : Parece que foi inútil o ter morrido por nós. Em
ambos os casos, porém, sempre com pronunciado comedi-
mento. No puro terreno da arte evitou sempre assumir atti-
tude doutrinaria e philosophante. Das árduas questões da
philosophia transportava para a poesia apenas o perfume, por
assim dizer, ou os grandes tons da intuição geral.
E' o que se nota n'este bella synthese da evolução humana,
inspirada, ao que parece, pela leitura do Ahasverus de Quinet,
e que ahi corre sob o titulo de O Génio da Humanidade :
u Sou eu quem assiste ás luctas,
Que dentro d^alma se dão.
Quem sonda todas as grutas
Profundas do coração :
Quiz vôr dos céus o segredo ;
Rebelde, sobre um rochedo
Cravado, fui Prometheu ;
Tive sôde do infinito,
Génio, feliz ou maldito,
A Hiynanidade sou eu.
Ergo o braço, acceno aos ares,
E o ceu se azulando vae ;
Estendo a mão sobre os mares,
E os mares dizem : passeie !...
Satisfazendo ao anhelo
Do bom, do grande e do bello.
Todas as formas tomei :
Com Homero fui poeta,
Com Izaias propheta,
Com Alexandre fui rei.
Ouvi-me : venho de longe,
Sou guerreiro e sou pastor ;
As minhas barbas de monge
Tém seis mil annos de dôr :
Entrei por todas as portas
Das grandes cidades mortas,
Aos bafos do meu corcel,
E ainda sinto os resabios
Dos beijos que dei nos lábios
Da prostituta Babel.
B1ST0IUA n 35
546 HISTORIA DA LITTEBATIT&A BBASILBIBA
£ vi Pentapolis núa.
Que não corava de mim,
Dizendo ao sol : eu sou tua,
Beijarme... queimarme assim!
£ dentro havia risadas
De cinco irmâes abraçadas
Em voluptuoso furor...
Anciãs de febre e loucura,
Chiando em polpas de alvura.
Lábios em brazas de amorl...
Travei-me em luctas immensas.
Por vezes, cançado e nú.
Gritei ao céo : em que pensas?
Ao mar : de que choras tu?
Caminho... e tudo o que faço
Derramo sobre o regaço
Da historia, que é minha irm& :
Chamem-me Byron ou Goethe,
Na fronte do meu ginete
Brilha a estrella da manha.
E no meu canto solemne
Vibra a ira do Senhor :
Na vida, nesse perenne
Crespusculo interior,
O Ímpio diz : anoitecei
O justo diz : amanhece!
Vão ambos na sua fé...
E às tempestades que abalam
As crenças d'alma, que estalam,
Só eu resisto de pé!...
De Deus ao immenso ouvido
A Humanidade é um tropel,
£ a natureza um ruído
Das €Lbelha^ com seu mel,
Das flores com seu orvalho.
Dós moços com seu trabalho
De S6Lnta e nobre ambiç&o,
De pensamentos que voam,
De gritos d'alma que echoam
No fundo do coração !... »
HIBTOEIA DA UTTBSATIXRA BRASILUSa 547
E' um dos bons espécimens de poesia phiiosophica em a litte-
ratm*a nacional. E' de 1866, do periodo recifence, quando o au-
ctor obedecia ainda á intuição de Hugo e Quinet em cousas
d'arte : a phase condoreira, qualificativo este dado por Gapis-
trano de Abreu e que ficou admittido e consagrado. De igual
periodo, mas de três annos antes, é a bella ode á morte de
J. Macário, companheiro de casa do poeta em 1863 e n'esta
data fallecido. E' um mixto de audácia e piedade, de irreve-
rência e prece, digna de attenção e de estudo. O poeta era
um «imples preparatoriano; mas já tinha a alma baralhada
pela especifica lucta n'ella travada entre o espirito pagão ino-
culado para leitura dos clássicos latinos e o espirito religioso,
herança da educaçã.0 recebida no meio familiar. Estes versos
s&o uma interessante pagina de psychologia, alem do valor
lyrico que encerram :
» Olhai... um cadáver de braços cruzados!
Nos punhos cerrados, nos olhos cerrados.
Nos lábios cerrados que a morte deixou,
Com as forças eternas, guardando o segredo
De luz ou de sombra! Meu Deus» tenho medo!
Morrer tão depressa, quem foi que mandou?
T&o joven! De joven no seu devaneio
Dissera á esperança : que trazes no seio?
Dissera ao futuro : que fechas na m&o?
Do seio da louca vòou-lhe a mentira,
E a mão do phantasmei, que larga se abrira,
Foi 1& um repouso dos mortos no chão...
T&o vivo! Batia-lhe o peito ancioso,
Sentia nas fibras o harpejo mimoso,
E os cantos, ao longe, das glorias irmans... ,
Mas é que Deus julga-se um pouco tentado,
Que aasopia e apaga o olhar destinado.
Que o leito devassa das suas manhans...
E morra quem sonha, quem ama, quem sente
Falarem-lhe as noutes, quem ouve a torrente
Das eras, que descem dos cimos azues...
E morra quem tenta, padece e aspira,
548 HIBTOBIA DA LITTSBATX7BA BRÀBILBIKA
Quem súa, bebendo seus prantos! Mentira!
Minha alma, n&o temas é Deus, não recues...
Ah, Senhor ! e mais um dia
Que mal vos fazem as rosas?
Nossas coroas mimosas
Porque mandais desmanchar?
Nâo tendes lá tanta estrella,
Cujos cheiros sâo fulgores,
Precisaes das nossas flores,
Das pérolas do nosso mar?
Era um menino... Contente
De seu intimo thesouro,
Dizia : conquisto um louro
Para leval-o a meu pai.
O coração adiantado
Bateu-lhe a ultima hora.
Cahio. E sobre elle agora
Só uma lagrima cahe...
Lagrima séria, pesada,
Grossa lagrima de chumbo,
Que léi se afunda, retumbo
Dos abysmos sepulchraes;
Mais rica, mais preciosa
Que as jóias de vossa aurora;
Pois é um pai quem na chora.
Senhor, que nunca chorais!...
Pensar na morte, que os lauréis desfolha,
Pensar na morte, que n&o tem porvir,
E* na própria caveira, que se antholha,
Tropeçar e cahir ! »
A enérgica imprecação iniciaJ, singularmente expressiva na
bella epizeuxis, que representa o cadáver guardando, cm
as forças eternas, o segredo de luz ou de sombra dos destinos,
nos punhos cerrados, nos olhos cerrados, nos lábios cerrados,
como em desafio á divindade, a quem se pergunta porque fez
tão derpessa morrer um joven, cede o passo ás oitavas que sfto
HI8T0BIÁ DA LITTBEATUBA BKABTLKTTiA 549
uma formosa preghiéra : que mal vos fazem os rozas? preci-
saes de nossas flôresy das pérolas de nosso m/ur ? Deixae-nos
as lagrimas, para nós mms preciosas do que as galas de
vossa aurora, vós que nunca choraesi
O lyrismo n*essas três oitavas attingiu a esphera da grande
arte, eterna e impessoal. Fundo e forma se completam ; um
pensamento peregrino toma a expressão simples e transpa-
rente dos altos factos moraes.
09 versos consagrados em 1863 á morte de J. Macário s&o
dignos dos inspirados vinte annos mais tarde pelo passa-
mento de D. Hermina de Araújo, já n*este livro referidos.
Outro assumpto.
O poeta sergipano consagrou ao labor humano uns versos,
isto é, escreveu, como tantos outros, também um Hymno ao
Trabalho (1). E* um cântico enthusiastico em que pinta os
operários de rir nos lábios e callos nas mãos, no qual prophe-
tisa que vae o gladio morrer na bainha, vae na gruta sumir-se
o leão e outras maravilhas puramente socialistas. E* uma de
suas poesias de assumpto mais geral e dignas de serem
conhecidas. Começa por esta estrophe :
(( O trabalho é a vida que avança
Em procura do bom, do melhor :
As estrellas do eJém brilham menos
Do que as gottas do humano suor. »
e acaba por esta outra :
K Que ruído de forjas ardentes 1
Que susurro em presença de Deus!
Os cyclopes, vibrando os martellos,
E as faíscas, batendo nos céus !... »
O enthusiasmo não se desmente em toda ella.
A concepção melhor que se pôde ter da poesia consiste em
tomar as cousas, os factos, os phenomenos physicos ou so-
ciaes e extrahir d^elles a nota fundamental e typica que lhes
(1) Sahiu em jornaes de Pernambuco em 1874 ou 75. N&o vem nos Diat
e NoHeM
550 HISTOBIA DA LITTKRATUBA BRASILEIRA
constitue a essência, ou o significado superior. N'este sen-
tido, até a cobra, o sapo, a podridão, o mal, o vicio, a feial-
dade, tudo tem poesia. — E se assim é, se existe poesia até
nos factos minimos e á primeira vista insignificantes, que se
dirá das grandes crèações, dos altos feitos humanos^ da arte,
por exemplo ? Por este lado, poucos poetas são tão dignos de
apreço como Tobias Barretto. As suas effusões lyricas pela
opera e pelo drama, as duas formas d'arte que lhe foi dado
em Pernambuco melhor apreciar ; a expressão que deu ás
emoções, por ellas despertas em sua alma, sâo um curioso
estudo de psychologia a ser feito por quem tiver gosto e
lazer. Numerosas são as poesias inspiradas por esse eretismo
esthetico sempre vibrante e prompto a desferir o vôo. As prin-
cipaes são : Augrista Cortesi, Libia Drog, Adelaide do Amaral,
Júlia Tamboriniy Bottini^ Giv^eppina de Senespleda, Ida Gio-
vanm, Moniz Barretto, Joaquim Augusto, Arthur Napoleão,
Reichert, Hermenegildo. São actores, pianistas, violinistas,
cantoras, actrizes, frautistas de talento que fizeram o encanto
de suas noites de estheta e pagão, para quem um galho de
rozas pela janella tinha mais valor do que bons assados sobre
a mesa. Envio o leitor para o volume dos Dias e Noites. Mas
para lhe tirar em parte o trabalho ponho-Ihe sob os olhos os
versos escriptos pelo poeta após a audição da mimosa polka
a que o seu auctor, o Padre Cândido de Figueiredo, poz o
titulo de imperial. E veja que lindos, que mimosos versos- !
Eil-os :
« Esta polka é o néctar dos anjos
Preparado de orvalho e de mel;
E' o som da carreira infinita
De auri-rubro celeste corcel.
E* cascata de vivos diamantes,
Borrifando um tapiz de esmeraldas;
E' o brinco de deusas travessas,
DesfoUiando lauréis e grinaldas.
Peregrina harmonia de anhélos,
Dê ternuras, de castos desejos,
HISTORIA DA LITTBBATUSA B&ABILBIBA 551
CoDÍQS&o de soluços e prantos,
De suspiros, affagos e beijos...
Esta polka é o hálito ardente
De cem pallidas virgens formosas,
Que adormecem, cantando abraçadas
Sobre um leito coberto de rosas.
E' a doce agonia sonora
Da menina pudica e modesta,
Que murmura, sonhando agastada
De algum sylpho beijal-a na testa...
E' o modo da noiva que sente
Mâo de sombra tirar-lhe a capella ;
E o seu anjo, escondendo a cabeça,
Canta um hymno, e despede-se d'ella.
Sfto auroras que ao longe sacodem
Áureas franjas de rutilo véo :
Tudo isto guardado n'um sonho,
Tudo isto passado no céo...
E parece que ao som doesta polka
Falam, cantam vlsOes sobre-humanas ;
E levantam-se, cheios de peroleis,
Alvos braços de lindas sultanas.
E p€u*ece que ao som d*csta polka
Brandem gládios, que tiram scentelhas.
Multidões de guerreiros gigantes.
Balançando as plumagens vermelhas...
E contempla-se um rosto encantado,
D'esses rostos que Byron descreve,
Como um dia polar, calmo e bello,
Bello alho do sol e da neve.
Sfto arfadas de seios feridos
Por saudosas e gratas lembranças ;
Sfto gaivotas, que batem as azas,
Sfto donzellas, que soltam as tranças.
552 HISTORIA DA LITTEBATTT&A BEABILEIRA
São mysterios que ahi se descobrem,
Louca» fadas, que rompem as vestes,
Cherubins, que apedrejam com astros
Esse bando de garças celestes.
S&o edenicos pomos mordidos,
Doces saibos por elles deixados ;
Temos olhos, que trocam afíectos,
Rubros lábios a furto osculados...
Esta polka é o amor que enlouquece,
O tormento, o ciúme que fala :
E'o sangue, jorrando em golphadas
D'alvo peito que Othello apunhalau
São pedaços de carta amorosa
Lacerada por mão feminina.
Que, animados de amor, se tornaram
Borboletas azúes da campina...
São cochichos das brisas odoras.
São recados de occultos amores,
Que as estrellas recebem das ondas,
Que os €urchanjos recebem das flores.
Não ha mais... não sei mais o que diga :
São palavras de mimo e carinho.
Que profere, embalando nos braços,
Joven mãi ao primeiro filhinho... »
A imaginação do poeta n'um cascatear de vivos diamantes,
desfere o võo do enthusiasmo esthetico até chegar a um facto
verdadeiramente humano» que vale tudo : as doces caricias
de uma joven mãe ao primeiro filhindo,.. E* incontestavel-
mente muito mimoso. Mas os factos puramente sociaes, a
vida humana de todos os dias, as luctas e as desgraças de
toda a hora tinham também o condão de tanger-lhe as cordas
lyricas. Excellente exemplo d'isto são as duas famosas lendas
a que poz os nomes de rústica e civil. A primeira é o facto.
vulgarissimo ainda em meiados do século xix no interior do
Brasil, de vingar pela morte a culpa da deshonra feminina.
HISTORIA DA LITTERATXTSA BRASILEIRA 553
E' uma scôna campestre, bella na sua violenta atrocidade,
descripta com um vigor de colorido e um movimento de
acção verdadeiramente pouco vulgares na pátria litteratura.
Eil-a aqui ; é quasi toda em versos brancos, como iguaes
nunca escreveu o próprio Gonçalves Dias :
<c Como um perfume que embalsama os campos
E as abelhas attrahe â ílôr que o exhala,
Vaga o renome da mulher mais linda
Que na selva se vio. Rivaes perdidos
Já no punho mediram-se por ell£u
Por eUa triste o sertanejo bravo,
Que amostra da corage'a côr e a seiba,
Sangue nos olhos e suor na fronte,
Deixou tombar aos soes do meio dia
Pelo ermo a cabeça atormentada.
Lá se avista uma choça. AUi se esconde
No seu ninho de palha a ave esgarrada :
Cançada e louca e só, núa se atira
Nesse banho do céo, fervendo em sonhos.
Que é o seu dormir. Sobre eUa arregalados
Da noite os astros, através das frestas.
No leito vôem-na estremecida, anciosa
Revelar ao seu anjo espavorido
Daquelle corpo os cândidos myterios.
Divino sangue lhe realça as veias;
E, do somno emergindo á face nitida,
Nas alvas carnes docemente escorrem
Ténues fios azues de ondas celestes.
Abandonada assim, de riso em riso.
De sonho em sonho, dilatando as graças,
Não acorda, desbrocha, abre com as flores,
E a estreUa da mcmhã lhe accende os olhos
Inquietos, grandes, que borbulham d'alma...
A esmo lavram nos seus lombos rígidos
Louros cabellos, fluctuando esparsos,
Ck>mo uma irradiação do sol nos mares.
Basto, abundante, pesa-lhe nos hombros
O massiço das tranças, balançadas,
Como torrentes, que d'um monte cahem.
554 HI8T0BIA DA UTTEBATX7BA BRASILBIBA
Em suas ondas rolando arêas de oiro.
E has de vêr : este archanjo é condemnado,
Esta pomba cahio em laço ignóbil.
Esta mulher se mancha em lodo infame !
Prostituta, com seios de donzella,
Offrece aos beijos vis aquella testa
Branca, pendida, como a lua baça.
Lá para o occaso, ao despontar do dia.
E nem sei como os sopros da lascívia
Não lhe murcharam inda os beiços rúbidos,
Folhas de riso e mel, que abrem polposas,
Ao biquinho dos pássaros implumes.
Que ella tira do ninho e traz no seio. I
Por que muda de côr a cada instante ?
Dir-se-ia fluctuarem-lhe no rosto
As sombras vagas de visOes angélicas ;
Que altamente se elevam e revoam '
De su*alma na escura immensidade
Legiões que passam, cândidas, purpúreas,
E atraz... o anjo pallido da morte I
O bosque verde, a solidão florida.
As grutas cheias de mysterio e sombra,
Moitas folhudas, onde a rola geme,
E debaixo remoe a corça arisca.
Eis ahi, trescalando, as mil alcovas
Do prostíbulo immenso dessa douda.
De bem longe a pomba linda
Pungindo sentou-se aqui :
E pensas que ódio finda,
Que não se lembram de ti ?
E* já muito e não se estanca
Dos teus o pranto infeliz ;
Cresce, cresce a barba branca
Do velho que te maldiz...
Em braços d'homem repousas.
As tranças varrem-te o chão :
Por que ensinas essas cousas
A'8 flores da solidão?
HISTORIA DA LITTERATVBA BRABILBIBA 555
No vicio teu corpo illustre
Não murcha, sempre gentil !
£' como uma ílór palustre,
Que cheira no lodo vil.
De beijos queimada, esqueces
Que a morte vê... pois bem :
Tu peccas e adormeces !...
Espera, o raio ahi vem.
E' noite, bem noite. Na estrada arenosa.
Que em léguas de plaino se vê branquear.
Qual serpe disforme de prata lustrosa.
Que ahi se estirasse dormindo ao luar,
Vae um cavalleiro... Fluctuam nos ares
Ao sopro do vento, que açoita cruel.
Os fios ligeiros de negros pensares
E as crinas brilhantes de negro corcel.
A senda achatada sumio-se na mata,
E o vulto nocturno com ella embocou.
Do ventre das brenhas, que tém a cascata.
Rugido medonho na mata estrondou.
E* d*onça terrível, que vae diligente
Na secca folhagem pisando subtil.
Refuga o carvcdlo na mão do valente.
Como um pyrilampo clarêa o fuzil.
Sua arma querida, que não desfogona.
Diabo I... medrosa!... lhe mente esta vez ;
Medroso o cavallo também no abandona,
Lançando-o por terra, n'um gyro que fez.
Mas elle, que a queda previne adestrado,
De um salto adiante se firma de pé I
Com as rédeas seguras, cabello eriçado,
Lembranças perdidas, nem sabe o que é I...
Ninguém lhe apparece. Cavalga ligeiro ;
Palavras soturnas murmura e sorri.
Caminha... e sahindo n'um largo terreiro,
Quem visse-lhe o gesto, diria : é aqui !...
556 HI8T0BIA DA LITTBSATITBA BKÂSILEIBÂ
De certo a aragem campestre
Levemente sussurrou
Na palha. Uma estatua equestre
Diante da choça brotou.
Mas eil-o já de pé. N'um braço d'arvore
Enfia as rédeas e o ginete espera.
Avança e pára... O coração se encolhe.
Com o ferro em punho, de bainha argêntea,
Faz um aceno rápido de sombra,
Como impondo silencio á natureza,
E ao monstro horrivel, que lhe morde n*alma.
Avança e chega. Cede a porta frágil,
E entra lúgubre o espectro da vingança.
Na lareira incinzada um lenho ardendo
Brota de um sopro a tocha, que allumia
O misérrimo cdvergue. Olhou em roda,
E nos lÉd)ios correu-lhe um riso tremulo,
Porque ella apparece emfim ! Coitada !
Resona a pobre, despida^
Com o corpo todo risonho,
Suada, lidando em sonho
De amor e beijos talvez...
Como que um tépido orvalho
Sobre ella a noite derrama,
E lingua de etherea fianmia
Lambe-lhe a flórea nudez.
EUe a vê... sua irmã I... Retira os olhos,
Lança-lhe em cima um véo, que acaso encontra,
Chega-se a ella, trava-lhe do braço,
Sacode-a e diz : acorda, eu vim matar-te !
Mal estremunha, a victima conhece
O seu algoz, que descarrega o golpe.
Rugindo : a um velho pai este offereço,
E mais este que é meu, e, agora morta,
A punhalada ultima, profunda,
Seja este beijo que saudosa envi£^
Por despedida, minha m£LÍ... Calou-se.
E o toque desses lábios enraivados.
Que poisaram na fronte de um cadever,
Queimando-o. lhe deixou medonho estigma.
HISTORIA DA LITTERATtTKA BKASILSIltA 557
Já começava á desbrochar, corando,
A papoula dos céos, a aurora. Os pássaros
E as flores confundiam sruas preces.
No momento em que as choças humilhadas
Aos pés da Virgem Santa um hymno erguendo,
No levante a sorrir, a alva tremia,
Como cruz de diamante em seio pallido,
E suavíssimas vozes de donzellas
Cantavam — Salve, sleUa matutina!
Passava um cavalleiro a trote surdo
De agitado corcel. Com as mãos crispadas,
Olhos torvos, cabeça descoberta.
Que os bafos matinaes nfio refrescavam.
Era horrível I... O anci&o rústico e íorte.
Que madruga, aspirando o aroma puro
Da guabiraba, a se benzer dizia :
u Nunca vi de manha cara tfio feia !... »
E' uma das peças lyricas mais lindas do romantismo bra-
sileiro. Fundo e forma n'ella se ajustam n'uma deliciosa har-
monia. Versos soltos tãjo bem feitos só na obra de António
de Castilho se encontram. Este foi, e não Garrett, o mestre
incomparável da métrica em geral e peculiarmente do verso
branco em o romantismo portuguez. O auctor das Folhas
Cahidas e de Camões excedeu o d*A Noite do Castello e dos
Ciúmes do Bardo por outros dotes e jamais como metrifi-
cador. Sectário das tradições bocagianas, no que diz respeito
ao esmero da métrica, Castilho chegou a apuros de forma
não alcançados pelo vate da Adosinda, continuador n'este
particular de Filinto Elysio, que nunca possuiu os dotes plás-
ticos do inimitável sonetista^ seu contemporâneo. Na cor-
rente de Castilho e Bocage se collocou Tobias, quanto ao
verso em geral e peculiarmente o verso branco ou solto, o
mais difflcil da língua, por ser o que mais insensivelmente
pode descambar na prosa, attenta a falta da íllusão da rima.
Os versos do género no poeta dos Dias e Noites evitaram
sempre esse risco. Melhores não conheço na língua.
Após a lenda rústica, a scêna da roça, é preciso 16r o drama
social da cidade, a lenda civil, a scêna de salão. E* esta :
S58 HISTORIA DA LITTEBATUSA B&ABILBISA
(( A lua é meio loura, o céo sereno.
Desperta, alegre, estremecida, languida,
A noite é uma viuva de quinze annos,
Prostituída envolta em trajos negros...
E* a hora em que, ao ouvido attento, s6a,
No relógio e no peito palpitantes,
O tropel dos momentos que galopam
Fugitivos após do immenso nada.
Branca cidade alvulta ao pé dos mares ;
E os seus templos, em extasis tranquillos,
Erguem as torres, como orelhas fitas
Escutando o silencio das alturas...
Porém lá, d'onde vêm uns sons d^orgia.
Palácio ingente, resfolgando estúpido.
Com os seus pétreos pulmões, atira aos ares
Baforadas de musica e prazeres
Salão de baile festival, ruidoso.
Tonto de aromas, um paul de luzes,
Onde batem rasgados, descorbertos,
Corações femininos, impalpáveis.
Que escorregam das mãos cheios de lodo...
E* alli que uma deusa attrae e prende,
Em longos fios de cabellos negros.
Almas sêccas, nutridas nos seus lábios :
Luminosa metade de uma sombra.
Isto é, de um marido que a acompanha,
Idiota como um cão... N'um angulo escuro,
Como sua alma, habita o desgraçado.
Dorme, ronca, desperta, horrível, sujo.
Massa rude. animal, esboço d'homem ! •
Geme ás vezes também; seus ais são uivos...
E ella em baile a sorrir I...
Gracil, mimosa,
Ao aperto do cinto, que a adereça.
Aos abraços do amante, expande brilhos,
Como ílôr que rescende machucada,
Inílammavel morena, que esperdiça
De seu rosto suado as bagas de oiro,
E, arfando em ondeis de vaidade e seda.
Nos frescores do linho a tez banhapdo.
Fala, e seu bafo matutino, ethereo,
HIBTOUA DA LITTBBATUSA BBABILSISÂ 659
Embebe as almas, embriaga as ílôres.
CoUo nú, seios túmidos, que lembram
Rígidos papos de selvagens pombas,
Bocca cheia de pérola e doçura.
Tingindo de emocOes as faces... ella,
No senho grave, nos olhares fervidos.
No voluptuoso sacudir das tranças.
Dizer parece ao homem que a contempla :
u Eu sou rica, eu sou bella, eu sou... infame. »
Pouco a pouco escoava-se a corrente ;
Cessara o riso, o crepitar do espirito ;
Morrera a lua ; a noite penetrava
Na ílòr que abria ; o mar, sult&o lascivo,
Babava as plantas da cidade núa ;
Cahia o orvalho ; a terra-m&i chorava
No noivado da sombra e do silencio.
Na sala exhausta as luzes somnolentas
De suave clarão banham as faces
Da senhora, que fulge reclinada
Em colchins de mollez8^ desleixosa.
Pesa-lhe o sommo na cabeça languida.
Como gotta de chuva em flóreo cálice ;
Fogem-lhe os olhos trémulos, cadentes,
Que vão lá s'immergir adormecidos
No oceano interior d'alma enfadada...
Está só. De repente se escancara
Porta occulta, que atira um vulto horrível,
N'uma golphada lúgubre de sombra.
Que vem manchar aquella claridade.
E' elle, o triste, o misero que soffre...
Vendo-o, a deidade nem se quer se move ;
O espectro vivo se approxima d*eUa,
E com as mãos afagando-a por cima.
Como rasgando a nuvem que a circunda
De luz, de sonho e de deslumbramento,
Âjoelha-se, pega-lhe na dextra,
Querendo-a só beijar... Ella o repelle,
E, dando-lhe com o pé, toda agastada,
Diz-lhe : « Sae-te d'aqui : porque não morres 7 n
Ai I que esta acção bãteu-lhe como um raio,
Como um raio aclarando as trevas intimas ;
E o calado, miserrímo indolente.
560 HI8T0BIA DA LITTEBATXTSA BBABUSIBA
De um salto poz-se em pé, grande, sublime,
Da estatura de um tronco solitário,
Que range, como dentes de gigante.
Pelos rábidos ventos açoitado...
Com os dedos descamados, penteando
As crinas do leão, que surge n^elle,
Abre a custo um sorriso tenebroso
De sarcasmo, de insânia e de amargura.
Fica assim a pensar, como escutando
O ruido que faz sua cabeça,
Que lhe parece decepada, enorme,
De degráo em degráo rolando tonta
Na escadaria lobrega do inferno.
Treme ; e, com um punhal na mão cerrada,
Aperta a raiva, a sede de vingança ;
Dá um passo, inteiriça-se, e murmura :
K Como os outros v&o rir doeste homem mocho!.
Na verdade, que o facto é bem notável :
Soffrer, soffrer, soffrer, e n'um instante
Dizer : não soffro mais ! Porque não morro ?...
Perguntaste ; pois bem, acceito a morte.
Anda, brinca, sorri, deusa, morena.
Linda, moça, feliz, lasciva... diabo 1
Eu sacudo dos hombros esta vida
Salpicada de infâmias e misérias;
Não na quero viver. Minha deshonra
Fica só de uma côr, a côr do sangue...
Uma nódoa somente, a de assassino !
Ah! mulheres cruéis, falsas... bonitas.
Corrompem-se, e depois que venha um anjo
Amarral-as á cruz pelos cabellos :
Magdfidenas, chorosas, penitentes,
De joelhos cabidas, desgrenhadas,
Mendigando perdão... Será verdade
Que Deus crê n^estas cousas ? Não te toco ;
Vai lavar-te, criança enlameada :
Vai lavar-te, e depois... mas em que fonte?
Inda mesmo que Deus te mergulhasse
Na luz do abysmo, d'onde os soes borbulham,
E a meus olhos sequiosos, que não choram,
Te mostrasse lavada, branca, núa.
Eu diria ao meu Deus : tem lama ainda !
HISTORIA BA LITTSBATT7RA BKABUiEIBA 561
Como surgindo vfto do peito agora
Brios que herdei de minha raça de onças !
Lembra-me que a meu pai contei um dia
Ter visto minha irm& com os pés descalços,
Desvairada, ella só, falando a um homem,
E elle me perguntou : onde a enterraste ? !
Vô meus dedos, repara... elles tém garras,
E eu deixei-as crescer para mateur-te ! )>
Suffocada de fogo a voz lhe falta,
O infelice recua. A bella immovel
Tem os olhos cravados no phantasma ;
Arrebenta-lhe estúpida risada,
Cheira uma rosa e diz : a Sempre és um bruto !...
Admiro a transição, pasmo de ver-te
Impetuoso e feroz ; mas n&o me assusto !
Vamos !... grita ao punhal, açula os raios ;
Os despresos, os ódios fulminantes,
Que venham sobre mim. Ah! que me importa?!...
Tenho sede de chamma. Anjo ou demónio,
Sob as azas do sol me aqueço e durmo...
Vaidosa ! e porque nào, se é que sou bella?
Sonhos de amores perfumosos, tépidos.
São efíluvios de mim ; exhalo-os n'alma
De quantos honro com a deshonra minha...
Bella infame!... Olha, tu, que te parece?
Doeste seio é que sahe a estrella d'alva!... »
Oh! dir-se-hia que tinha enlouquecido.
A pobre da mulher que assim falava ;
Cega, raivosa, pallida, risonha,
Toda agitada de um tremor esplendido.
Volvendo as roupas, que o seu corpo engolpham,
Ao refluxo da soda um pé mostrando.
Deixa ver arrendados deslumbrantes,
Como de um oceano a escuma alvíssima;
E, da vaga ao abrir, pula nos olhos
O fulgor de um diamante em charpa de ouro.
Que é da cintura, e serve-lhe na perna...
O raio doudo, que a mulher vibrara,
Varou chiando o coraçfio do espectro.
« Porque náo posso, brada o homem fero,
HISTORIA II 36
562 HIBTOSXA DA UTTEaATUSÀ BBÀSILSIRA
Metter a m&o no fundo de minha alma,
E atirar-te na cara as cinzas d'ella ?... »
O negocio vai mal, não cotinúo ;
Que a cousa se complica ; lá se avenham... »
 lucta domestica, a terrível scèna de ciúme é ahi bem e
vigorosamente descripta. O poeta era observador, tinha o
espirito critico, sabia vêr os factos e sorprender o jogo das
paixões. Mas foi por suas poesias patrióticas que Tobias se
tornou mais conhecido no meio brasileiro entre seus con-
temporâneos e riváes.
Ahi teve notas que lhe forajn peculiares, que, uma vez
ouvidas, nâ,o se confundem com as de todos aquelles que,
por occasião da guerra do Paraguay, cantaram os nossos
feitos ou estimularam os nossos brios.
D'ellas darei, como amostra, apenas Os Voluntários Per-
nambucanos :
« Ja fomos a gente ousada
Que um mundo virgem produz ;
Já viu a Europa assustada
Gládios e caboclos nús
Pul€u:*em grandes, valentes,
Vermelhos, resplandecentes.
Do abysmo dos occidentes,
Lavados em sangue e luz !...
Hoje a idéa em nossa terra
Fulmina a espada voraz :
Que somos ? Lavas de guerra,
Petrificadas em paz ;
E pois n&o venham ignavos
Na língua dos ferros bravos
Deixar os ameurgos travos
Desse horror que o sangue faz.
O Brasil, de coma intonsa,
Dorme e deixa-se afagar ;
Macio, qual pello d'onça,
Não no queiram íPQUltar :
BI8T0BIA DA LITTXRATUBA BRA8ILII1A . 568
Os que repousam nas campas,
Sentem que o vento dos pampas
Lhes açoita as áureas lampas,
E os faz com raiva acordar !...
Para estes vultos brilhantes
Morrer... é n&o combater ;
E' apear-se uns instantes.
Do valle ao fundo descer,
Fitar a noite estrellada,
E, á espera d*outra alvorada,
Dormir nos copos da espada,
Deixando o sangue escorrer !
Que athletas! que espectros grandes!
Lá por onde o sol tombou.
No topo altivo dos Andes
Um cavalleiro estacou...
Susurram voos angélicos,
Lambem-se os gládios famélicos,
Dir-se-hiam relinchos bellicos
Que o brônzeo corcel soltou I...
Muita coragem, que dorme,
Desperta da guerra ao som :
Fumega o banquete enorme
De ferro e fogo I Está bom !...
Tudo ri, palpit€^ avança...
Que o rei também tome a lança.
Se tem brios um Bragança,
Se tem valor um Bourbon !
O povo sacode o sommo
Da cabeça que descai :
Senhor ! d'altura do throno
Vede a mão de vosso pai.
Limpando todas as frontes,
Passando em montes c montes.
Por cima dos horizontes
A' cata do Paraguay!...
E temos peitos vetustos,
Que batem sempre leaes ;
I
564 HI8T0SIA DA LITTBBATUBA B&ABXUOBA
Âmagos d'homens robustos,
Que ainda guardam mortaes,
Antigas, ferventes ascas...
Do tronco saltam as lascas :
Mazeppas, Árabes, Guascas,
Vôde lá : quem corre mais?...
No coração desta gente
O bravo suffoca o ai.
Que ferros 1 o cedro ingente
De um golpe derreira e cai ;
Ceda a republica insana.
Se emíim não se desengana.
Espada pernambucana,
Desembainha-te e vai !
Vai tu, que nSo geras fracos.
Cidade, que eibres aos soes...
Cornélia m&i de cem Grachos, |
Viuva de oitenta heroes I i
Quem ha que o collo te dobre ?
Terrível, sincera, nobre, |
Limpaste as faces de cobre
Das batalhas nos crysóes !
Não fala, não ri, não medra
Comtigo estranha altivez ;
Tu tens nas unhas de pedra
Cabello e trapo hollandez...
Teu bafo, que accende a gloria.
Suspende a poeira da historia
Em turbilhões de victoria;
Venceste por uma vez I
•
Levantas o braço forte
E o raio matas na mão !
Como um aceno de morte,
Os Guararapes lã estão!...
Volúpias de fogo exhalas,
As pétreas juntas estralas,
E pões-te a salvo das balas
Por detrôs de Camcu^ão.
!^
HIBTOXIA DA ZJTTEKATUEA SBASILEISA 565
Guerreiro a morrer affeito
Defende o Brasil, que é seu ;
A hora sôa no peito,
 cicatriz é tropheu.
Da pátria as manhãs coradas,
As tardes acaboclcuias.
Flores, mulheres amadas,
São estrophes de Tyrteu... »
São estimulos lançados n'alma do Brasil guerreiro nos
bellos dias da lucta mais popular que já uma vez foi ferida
em nossa historia. O Tyrteu nacional, o Ruckert brasileiro
esteve n^adtura da situação. Seu patriotismo intratável tinha
alguma cousa de irreductivel e feroz, como o despertar de
um mundo selvagem, apenas adormecido pela cultura.
A gente ousada, produzida por um mundo virgem, acordava,
ao som da guerra, para o enorme banquete de ferro e íogol...
E fomos e avançamos e vencemos. Era a primeira vez que
attrahiamos sobre nós a attenção do mundo, ferindo batalhas
e praticando feitos que podem ser contados entre os
mais brilhantes do século xix. O que houve então de enthu-
siasmo n'alma brasileira achou sua forma imperecivel na
poesia nos inolvidáveis cantos marciaes de Tobias Barretto.
Voluntários Pernambucanos, Capitulação de Montevideo,
Leões do Norte, Sete de Setembro, Partida de Voluntários,
Em nome de uma pernambucana têm, no seu género, um
logar á parte nas pátrias leitras.
O Brasil guerreiro, porém, não occultava ás vistas do poeta
o Brasil popular, na sua ingénua e deliciosa rudeza. Os
Tabaréos, Trovadores das Selvas, Anno Bom são d^isso a
prova. O pensador do Génio da Humanidade, rutilo cântico
synthetico da evolução inteira da espécie ; o vate naturalista
que se tinha n'0 Beija-Flôr revelado um pintor de género,
capaz de sorprender em sua ingenuidade um trecho da
natureza viva; o cyclopico T^Tteu da Vista do Recife, dVs
Voluntários Pernambucanos ; o meigo sonhados de Suprema
Visio, de Leocadia; o desdenhoso Paust de Voos e Quedas ;
o myslico de O Dia de finados no Cemitério, tinha, como
bom brasileiro, de empunhar a viola campesina e cantar
566 mSTOBIA DA LITTBSATUEA BBABILIIBÁ
alguma de nossas lendas, quaesquer de nossos costumes, no
estylo despreoccupado das cousas plebéas.
Se o n&o tivesse feito não teria sido o grande, o completo
poeta que n'elle admiro. Vamos ouvir — Tabaréos. Conver-
savam dois camponios, em noite de São João, laslimando-se
um dos rigores de sua amada, rebatendo-o o outro rude-
mente, quando surge terceiro, um entbusiasta, cheio dds
innocentes bravatas dos simples :
— u A noite bole-me n*alma,
E eu sinto não sei que pena...
Amor de minha morena?
Quebrantos de seu olhar?
Grossas auras repassadas
De perfumes e lembranças,
Carregam-me as esperanças,
£ eu só me vingo em chorar...,
— Chorar? que bem fazem lagrimas?
A* folha sêcca cibrazada
Não vale a fresca orvalhada...
Chorar!... eu nunca chorei :
Ergo a fronte, aparo o raio.
Desgraçado e sempre altivo,
Não morro, porque não vivo;
Não choro, porque não sei.
, — Não sei I quem é que não sabe
N'uma lagrima sentida |
Alliviar-se da vida,
Que pesa no coração?
Não sabes como são tristes
Os olhos de quem não chora.
Como o teu resto descora
Ao calor deste sertão?
— Deste sertãol é bem duro
Soltar inútil queixume,
Amar, sentir um perfume
De que não se sabe a flor...
Não me recordes, não fales
I No meu rosto descorado.
j
HISTORIA DA LITTSSAT17RA BSA8ILBIKA 567
No meu olhar desvairado :
N&o bulas com a minha dôr.
Interrompendo os lamentos,
Calaram-se. Ambos attentos
Ouvem como que um tropel,
Que se augmenta, que se engrossa...
A poucos passos da choça
Nitriu fogoso corcel.
E a todos, que alli se achavam,
— Guarde-os Deus! não me esperavam!...
Disse um moço que esbarrou.
De casa aqui n'uma hora!
S&o rasgos de quem ncimora...
Palavra dada, aqui estou!
— Gonsta-me que ha muito arrojo
Nos festejos de Sôo João,
Vim hoje vêr a novena
E conversar com a morena
Que trago no coração.
Conversar?! e vim disposto
A carregal-a também
Nas ancas do meu murzéllo,
Demónio que só eu séllo,
Só eu monto e mais ninguém... —
Olharam-se todos. — Tu és um damnadol —
Disseram. E o moço já estava de pé :
N'um cepo de angico, depois assentado,
Contava proezas, mostrando quem é.
Conversa o terrível, que sabe de tudo,
De espectro e phantasma que á noite se vê :
Um diz : -* é mentira! O camponio pelludo
De um pulo soerguendo, responde-lhe : — o que?!
— A noite formosa do Santo Baptista
Tem muitas virtudes, sustenta o rapaz.
Eu conto uma historia da bella entrevista
Que tém os valentes com o diablo sagaz.
568 HI8T0BIA DA UTTEEATUBA BRABILXIBA
Peguei, como ensinam, de um galho de arruda,
Depuz no caminho que s'encruza allí :
Gritei pelo nome da fera sanhuda,
E ao cheiro da herva com poucas eu vi...
Em negro cavallo de arreios de fogo
Figura medonha me diz : aqui estou!
Senti-me medroso de entrar neste jogo;
N&o sei... de repente meu sangue esquentou.
Nos olhos, no punho correu-me a coragem;
Que estava montado no meu alazâo;
Cravei-lhe as esporas, cheguei-me á visagem,
Tomei-lhe a distancia, metti-lhe ò facão.
E o ferro tinia no corpo de pedra,
Faiscas enormes cahiam no ch&o;
Eu cego bradava : commigo não medra!
Virou-se n'um porco, metti-lhe o fac&o.
Virou-se... virou-se... piquei o cavallo, |
Bem alto dizendo-lhe : é como quizer!...
Lancei-me por cima, queria pegal-o... ,
E esta?!... O diabo virado em mulher!...
— (( Metto o facão na baimba;
Pergunto-lhe : e quem és tu?
D'alto a baixo era Joanninha,
Por alcunha — Pucassú.
Mas aqui havia engano :
Como é qu'esta meretriz,
Que morreu, ha mais de um anno,
De cousa que não se diz.
Vinha encontrar-se commigo?
Não acho a causa. Só sei
Que ante a cara do inimigo
Fui firme, nâo recuei.
Nao fugi, nfto tive medo
Das astúcias infemaes.
Ella pedio-me segredo,
Por isto não digo o mais. »
HISTORIA DA LITTBRATUBA BSABILBISA 569
Ja tive occasião de notar que a poesia, que pretende assu-
mir o tom popular só tem mérito quando o artista, tomando,
por assim dizer, o motivo anonymo, a lenda do povo, sabe
revestil-os das roupagens cultas da arte. Fora d*isso tal
género não produz senão pastiches mais ou menos despre-
siveis. O poeta dos Dias e Noites possuia felizmente a verda-
deira intuição. Sua musa aldeian não andava de pés des-
calços, nem dizia as barbaridades de linguagem tão de moda
nos máos cultores do género.
O Brasil não tinha para o poeta somente a face social, a
guerreira, a patriótica, a popular ; tinha também uma face
politica que lhe não passou despercebida. E se os enthu-
siasmos juvenis dos tempos académicos, as illusões do pe-
ríodo que vae em seu poetar de 1862 a 69 não na deixavam
bem nitidamente vôr, o mesmo não aconteceu ao homem
maduro, que ja tinha deixado os bancos escolares. Por isso,
em 1870, escrevia assim em Decadência :
« Nós já não temos caracteres nobres^
Nem voz, nem sombra de Catões e Grachos :
O céo tem pena de nos vôr tão pobres,
O mar tem raiva de nos vôr tão fracos.
Por que não Vergues, oh ! Brasil, fecundo
Por vastas ambições, por fortes brios?...
Que gloria é esta de mostrar ao mundo,
Em vez de grandes homens, grandes rios?...
Bastas selvas, um céo azul immenso,
Que os corações em flor bafeja e rega;
Uma terra abrazada como incenso,
Que do sol no thuribulo fumega?
Nada vai, se não ha quem se offereça
Para d'6dma arrancar-te o negro espinho...
Tudo em baixol... não surge uma cabeça
Em que as altas idéas façam ninho!...
Donde é que teu primor, pátria, derivas?
Por que ao orgulho ingénua te abandonas?
Ai!... as outreis nações dizem altivas :
Pitt, ou Bismarck; e nós?... o Amazonas!...
' I
570 HIBTOBIA DA LITTBBATX7BA BRASILEIRA
O sceptro é nuUo; e os ânimos languescem
Da indiferença no pesado somno...
Nâo vêm as horas em que as aguas crescem,
£ a onda morde na raiz do ihrono...
Que o povo fale, isto é, prenda na bocca
A escuma, a raiva, o fel dos oceanos,
E a braza dos vulcões! matéria pouca
Para cuspir na face dos tyrannos...
Tyrannos? sim, que matam o progresso,
Que suffocam a luz e o direito,
Para quem toda idéa é um excesso!...
Nao ha mais fogo do Brasil no peito!... »
S&o magoados carmes de quem começava a desilludir-se
das grandezas e prosperidades do Império. E' um perfeito
brado de republicanismo. Era, como foi dito, ^m 1870; a
carreira do poeta estava, pode-se dizer, terminada. Versos
ainda elle os escreveria até as vésperas da morte ; mas suas
preoccupações principaes estavam n'outra parte. A critica, a
philosophia, o direito tinham-no quasi de todo absorvido.
Entretanto, a boa ordem do methodo manda-me que re-
suma o papel d'ess6 homem como poeta na litteratura bra-
sileira. E eis aqui este resumo : a acção de Tobias Barretto
na poesia nacional foi reagir )con,t»ra o nosso decadente
lyrismo lamartiniano e choramigas, que em 1862-63 tinha che-
gado ao extremo da banalidade.
A reacção fel-a elle quanto ao fundo e quanto á forma.
Quanto ao fundo, abandonando o subjectivismo infecundo
e impertinente e procurando assumptos mais geraes, quer
da vida humana em suas diversas gradações, como no Génio
da Humanidade, bello fragmento em que lançou um olhar
sobre a evolução histórica do homem, em A Polónia^ em que
pranteou as desditas de um generoso povo revoltado, em
Lenda Civil, em que tratou de um episodio da vida faustosa
dos salões^ em Lenda Rústica, em que se referiu a um
drama da vida sertaneja, em Os Tabaréos que se reportam a
uma lenda popular da noite de São João, em Trovadores das
HI8T0BIA DA LITmUTTTRA BKáHTT.KTHA 571
Selvas que cotejam a vida do campo com a das cidades, em
Scêna Sergipana, que fala de recordações da infância nas
populações provincianas ; quer, especialmente, procurando
assumptos patrióticos aptos a estimularem a alma da nação,
como em A' Vista do Recite, Voluntários Pernambucanos,
Leões do Norte, Sete de Setembro, Decadência; quer, final-
mente, aproveitando as emoções altruístas e civilisadoras das
artes, como em as poesias dirigidas a Reichert, Bottini,
Arthur Napoleão, Senespleda, Moniz Barretto Filho, Ade-
laide do Amaral, Cortesi, Libia Drog e outros artistas de
talento.
Quanto á forma, a reacção fêl-a elle inoculando nos versos
mais audácias de linguagem, mais impetuosidade de movi-
mento, mais colorido de imagens, ad instar da reforma de
Victor Hugo em o lyrismo francez.
Eis ahi o que foi o chefe da escola condoreira na poesia :
um lyrista brilhante pela imaginação, enternecedor pelo
sentimento.
Paulina Moser, poetisa alleman, nos interessantes versos
que lhe dirigiu, disse que elle no allemanismo achara o génio
que o havia de levar á posteridade :
<( Nationalstolz auf Wahrheit gebaut
Wolt allemal Ehr und Achtung gebOhrt;
Du, Meneses, hast im dem Deutschthum geachaut
Den Genius, der Dich zur Unsterblichkeit f ahrt. »
Eu o creio bem; mas ainda quando o teuto-sergipano não
houvesse escripto uma só palavra como prosador, uma só
pagina de critica, ou de philosophia, ou de direito, ou de
politica, seu nome ficaria garantido por suas producções poé-
ticas, seria sempre lembrado como o iniciador de um consi-
derável movimento no lyrismo nacional. E' tempo de apre-
ciar o orador.
O que havia de sentimento e imaginativa em Tobias Barretto
não fez d*elle somente um poeta : produziu também um ora-
572 HI8T0BIA BA LITTBEÁTUKA BKASILBntA.
dor. E foi esta uma das mais interessantes notações de seu
temperamento. Poderse até dizer que ella influiu em todas as
outras manifestações e qualidades de seu espirito ; porque a
acção mais intensa de sua intelligencia e de seu saber foi de
principio a ílm directa e pessoal.
Sua poesia mesma, antes de apparecer nas paginas dos
jornaes e periódicos, era por elle recitada ante o publico ou
no circulo de seus amigos e assumia no calor de sua decla-
mação um brilho, um colorido duplicado.
As ideias espalhadas nos seus ensaios de critica, de litte-
ratura, de philosophia — adquiriam um tom mais incisivo e
assimilável, quando, o que de ordinário acontecia, as ex-
punha em suas longas e attrahentes conversações.
Já nem é preciso falar nos seus estudos jurídicos, apa-
nhados naturaes de suas prelecções académicas, singulares
mixtos de palestra e eloquência espontânea. Nâo é, pois, um
erro afflrmar ter sido, talvez, a nota mais vivaz d'esse homem
a sua acção directa pela palavra, no meio em que se desen-
volveu, no circulo dos que o conheceram e com elle tra-
taram, o seu incomparável talento de causeur.
Imaginai um espirito desabusado, hábil em fazer um espe-
cial consorcio de lyrismo, de humour e de erudição; um
homem versado n'umas poucas de linguas e nas respectivas
litteraturas ; uma memoria assombrosa cheia de factos scien-
tiílcos, de apreciações estheticas, de pilhérias e anecdotas de
toda a casta, e tereis uma ideia de sua conversação, de seu
talento de prasear.
O tom era popular e a voz tinha um timbre peculiaríssimo.
Não se furtava, não se enclausurava, não fugia do grande
mundo ; ao contrario, ninguém era mais accessivel, mais
fácil de ser encontrado, porque ninguém era mais amigo de
sahir, de andar, de distrahir-se palestrando. Conta-se do afa-
mado hegeliano Vera, o celebre professor de Nápoles, que
elle dizia gostar de residir nos hotéis para ter ensejo de rela-
cíonar-se com muita gente afim de combater os prejuízos.
Tobias gostava immenso da sociedade, dos theatros^ dos
boteis, dos cafés, não para combater prejuízos, porque não
assumia jamais altitudes de reformador, de evangelista, mas
HZBTOJUJL DA UTTBBATUBA BSABILIXBA 573
para satisfazer seu espirito inquieto, móbil, sôfrego de ruido,
de mutações, de eflusões novas.
Era um estudioso addiccionado a um temperamento mun-
dano e amigo dos prazeres, equilibrado por não sei que
secreta musa que lhe dava ares de perpetua juvenilidade.
Era um amável conversador ; e por isso quem o ouvia acu-
radamente ficava para sempre sous le charme. D'ahi o pres-
tigio de seu nome na roda de seus Íntimos, de seus amigos,
de seus discípulos. E o orador ? O orador era n'elle aquelle
mesmo palestrador, um pouco mais excitado, mais nervoso
e mais eloquente pela commocã.o.
Eu disse, paginas atraz, haver na poesia, após o estylo
grandioso da phase recifense de 1862 a 71, o auctor passado,
nos últimos annos, a uma maneira mais singela; e, para expe
rimental-o, basta quem quizer lôr nos Dias e Noites as peças
posteriores áquella ultima data. O mesmo aconteceu ao seu
estylo na oratória^ e em tudo mais.
A primeira maneira era clara e lúcida; mas um pouco so-
lemne, devido á influencia de Hugo, Quinet, Pelletan, Miche-
let e Herculano. O temperamento popular e desabusado do es-
criptor sergipano acabou logo com isto, com essa solemni-
dade da sua phase franceza, e o estylo do orador e do
prosador, como o do poeta, mudou para um tom simples,
corrente, unido, igual, revestindo sempre a masculinidade de
um pensamento nutrido de ideias e de força autonómica.
A eloquência d© Tobias Barretto foi uma das mais bellas
cousas que pude apreciar na vida.
O orador assomava na tribuna : era um pequeno homem
nervoso, excessivamente nervoso ; a figura attrahia logo pela
singular expressão do rosto, pela admirável conformação da
testa, pela estranha fulguração dos olhos.
Começava a falar; a voz era forte, vibrante, timbrada, so-
nora, sem a mais leve aspereza ; era voz acostumada a can-
tar, percebia-se de súbito. Não se deve esquecer que o orador
era musico e bom barytono.
O discurso principiava doce, suave, mas não á surdina; era
doce, porém logo de principio claro, nitido, de todo intelli-
givel; o tom era simples; mas a torrente cerrada e abun-
574 HI8T0BIA DA LTCTIRATUBA BSABUiBIBA
dante. Logo após o calor ia dominando o orador, o accionado
se agitava, a imaginação desprendia o vôo; ouviam-se entfto
períodos poéticos, saborosos, bellissimos.
Mas debaixo d'aquelle poeta estava um scientista ; a lógica
reclamava os seus direitos e appareciam Os raciocínios, os
argumentos ; ouviam-se então interessantes trechos doutri-
nários. Porém aquelle scientista era também um mundano,
um pilhérico, um satyrisador ; surgia o humour e as garga-
lhadas rebentavam espontâneas.
Piei ao meu methodo de fazer este livro representar o duplo
papel de historia e de anthologia litteraria, não devo occultar
trechos comprobatórios do que floa afflrmado.
Eis um documento do primeiro estylo do orador, quando
o lyrismo romautico era a nota fundamental em suas eíTu-
sões estheticas, e todas as suas ideias tomavam essa colo*
ração; eis como, em 1865, saudou a capitulação de Monte*
vidéo e estimuloui novas hostes a partirem para as lides da
guerra :
Cf E* inútil preambular. Um pensamento fraterno, radiante, su-
premo, fluctúa sobre as nossas cabeças, de parelha com o estan-
darte da gloria. Accesa em nossas almas a idéa de engrandecimento,
sentimo-nos grandes, queremos luctar.
E* neste momento que, afundando-nos na abundância de uma
existência de moços esperançosa e vivida, achamos, tocamos,
alguma coisa de mais, e essa demasia, senhores, é que, somos bra-
sileiros, essa demasia é que ao livro deste povo épico e generoso
ajunta-se a estrophe gigantesca e sublime de um de seus rútilos
feitos.
O Brasil agitarse, a mocidade o rodeia; o Brasil triumpha, a mo-
cidade ajoelha-se com elle para contemplar nos pátrios céus o vôo
de suas victorías.
E na face de tudo que tem um pouco d*a1ma para sentir, um pouco
de sangue para derramar, um pouco de vida para morrer, lavra a
claridade de um sentimento que absorve todo o viver positivo e
ordinário; paixão nobilitante, purificadora, que o coração de um
homem mal pode conter, com todos os seus ímpetos, que tendem
ao passado, que tendem ao futuro, com todas as suas avançadas
para a morte e para a vida, para o ceu, para a gloria, para a luz,
para Deus... e este sentimento, senhores, é o patriotismo.
HISTORIA DA LITTEBATUSA BIU81LBIEA 575
Pôde haver quem diga : tempo virá em que o grito dos alarmas,
o lampejar das espadas nada signiâquem; sim, mas lá mesmo
adiante, aonde nos promeitem levar os pontífices do progresso,
quando o gladio tiver sido substituído pela palavra, a força pela
idéa, o raio que fulmina pelo raio que esclarece, lá mesmo o
homem deixar-se-ha vibrar dessa paixão, que será sempre no seu
peito o estremecimento enorme das selvas, dos campos, das soli-
dões da pátria.
O Brasil era o colosso da paz; o Brasil, esse pedaço do globo, cuja
sombra bastara para eclipsar qualquer sol que se lhe puzes«e
diante, tolerou por muito tempo os insultos de ridículas pequenezas.
Dizem que as águias, só depois de muito soffrer, déterminam-se
a punir com a morte as avesinhas insignificantes, cujos pios as in-
commodam. Tal aconteceu.
O gigante principia a vingar-se, o pantheon da historia começa a
renovar-se de grandes vultos, as campas de grandes mortos, os
céus de grandes astros.
A morte que se conquista pela pátria, nfio é uma dessas mortes
lúgubres, choradas, mysteriosas, communs, não; morrer assim, ao
fumegar das batalhas, é desembaraçar-se de um dos enigmas do
nosso destino, é resolver o problema da grandeza humana; morrer
assim é engrcmdecer-se.
Parabéns aos mortos, que, ao rolarem no abysmo da eternidade,
atiraram por cima de nós o manto de suas glorias. Parabéns á pá-
tria que, com toda força, com toda masculinidade de uma romana,
é capaz de desarmar, se os tem, o braço dos seus Coriolcmos, lan-
çar no meio dos combates a sua prole de Scipiões, e ver emâm fartas
de triumphos as anciãs de seu coraç&o generoso.
Montevideo cahio rendida e precisa que o Brasil lhe dô a máo
para levantal-a. . . eis a victoria!
Fostes chamados... disse mal, offerecestes-vos para dar mais um
testemunho da pátria e de vós.
E' magnifico. A idéa da morte, que talvez neste momento per-
passa em vossas almas rápida e deslumbrante, é a sombra de um
emjo que atravessa as immensidades das alturas. O passado é um
deserto, o futuro ó uma floresta.
Para os povos caminharem é preciso que se corte, que se quebre,
que se esmague alguma coisa. A guerra é o alarido da humanidade.
As torrentes fazem ruido quando cabem, cts nações fozem ruído
quando sobem. A guerra é a prece dos povos que se exprimem pela
bocca das bombardas.
E o futuro escuta. E' o fogo do ceu que vem lançar por terra os
;i
r i
576 HISTORIA DA LITTEBATXTEA BRASUJU&A
ídolos do mal, déspotas e tyraonos que ainda podem viver á luz da
civilisação.
E' a occasiáo, pela historia offerecida, para o forte apparecer, o
fraco denuiiciar-se, o pequeno engrandecer-se.
E aproveitai-a, vós.
Porquanto, nestes tempos corrompidos em que as acçOes boas, as
nobres e assignaladas acções, aos olhos dos homens degeneres, pa-
recem demasiado grandes, impraticáveis, enormes, como os ro-
chedos vibrados pelos heroes de Homero; nesta quadra só se encon-
tra em vós outros todo o vigor e dignidade que tiveram os primogé-
nitos da pátria.
Sois pernambucanos; e no moço império predestinado, sympa<
thico, Pernambuco é um poder. Provai-o mais esta vez. Nào consin-
tais que a idéa vil de uma recompensa inútil embace o lustre de
vossas pretensões magnânimas.
Qucuido dilacerados, ardentes tiverdes empolgado, afagado nos
braços a victoria, e quem quer que seja pretender tocar, deixar
alguma honra em vossos peitos, em cada um de vós a coragem terá
de responder : basta-me a cicatriz.
Soldados, ide, na benção de vossa bandeira, receber os acenos
da gloria, os incitamentos do porvir. »
Este tom lyrico mudou desde que, de 1870 em diante, o
poeta cedeu o logar ao critico e a influencia germânica se fez
sentir no orador e no escriptor. Foi isío na phase da Escada
e na subsequente do Recife. Uma cousa, porém, é para notar
na oratória de Tobias, e vem a sôr a qualidade que ella con-
servou sempre em commum com sua poesia : occupar-se
constantemente de grandes assumptos e nâo descer jamais a
algumas demasias de linguagem que uma ou outra vez em-
pregou na critica e mais ainda na polemica. Na poesia e na
eloquência elle se sentia no pleno dominio da arte, adejava
alto e tomava-se plenamente impessoal. O patriotismo, o
progresso, os dias gloriosos nacionaes, a arte, a educação da
mulher, o estado politico e social do Brasil foram os assump-
tas de seus discursos, quer nos tempos de estudante, quer
posteriormente nos dias da maturidade. No Club Popular da
Escada^ na Assembléa Provincial de Pernambuco ou na Pd-
culdade de Direito do Recife sempre e sempre as palavras do
HISTORIA DA LITTBSATUBA BKABILBI&A 577
orador tiveram a elevação dos carmes do poeta, repito; e no-
iaçâo é esta que convém ser feita e pôde ser verificada por
quem se dér ao trabalho de lêr os discursas d'este escriptoF,
mal apreciado por quem o conhece somente através de suas
polemicas ou de seus repentes satyricos. ,
Natureza múltipla e complexa, deve ser julgado na totali-
dade de suas manifestações e náo pelo processo unitário e sim-
plista de seus desaffectos. Eis, n'esta saudação ao Sete de
Setembro, como falava do caracter moral do progresso e da
generosidade de sentimentos que devíamos ter para com
aquelles que vencemos :
(( E' sempre linda e puríssima a face dos dias de triumpho qne
brotaram do coração dos povos, dias gloriosos debaixo dos quaes
enroscam-se entorpecidos, calcados, os séculos de tormentos, e as
nações fazem aJto para revolver as paginas sombrias do passado
e aspirar as frograncicis do futuro.
Nem isto vai contra o progresso, pois que as nações n&o ca-
minham condemnadas, como essa mulher da Bíblie^ a não volver
os olhos atraz, para não se transformarem em estatuas de sal.
O progresso não pôde ser o esquecimento do pass€ido, porque o
passado está sempre comnosco, no fundo de nossas lembranças, no
cofre de nossas saudades, no seio de nosseis glorias.
O progresso não é o ruído das paixões humanas, das paixões mes-
quinhas que refervem, que se agitam pelo espirito da desordem; eUe
é menos uma marcha do que uma ascensão; é a vibração de todas
as sympathias, o azulamento de todos os céus, a transfiguração de
todos os martyres; é o vôo da civilí sacão, o vôo da ave lúgubre, car-
regando o Prometheu do Cáucaso aos Alpes, dos Alpes aos Andes,
dos Andes... aos Céus, o redemoinhar das coisas em tomo dos povos,
o redemoinhar dos povos em tomo das idéas, o redemoinhar das
idéas em torno de Deus.
Mas na gloria de todos não se absorvem as glorias de cada um :
temos a nossa historia, devemos abríl-a; temos o nosso dia, devemos
saudal-o...
E o dia de hoje, a ídéa de hoje, o sol de hoje, o sol da liberdade,
diante do qual ajoelhamo-nos entoando o cântico dos fortes, tinha
já muitas vezes borbulhado do Oriente, quando a tjrrannia pudera
contel-o, suffocal-o em sua aurora e retirar as mãos ensanguen-
tadas.
Para ella o Brasil grande, livre, isto era um sonho...
HisTORu n 37
578 HISTOBIA DA LITTEBATU&A B&AfilLBI&A
£ é de notar, senhores, que este sonho que se fez idéa, esta idéa
que se fez dia, este dia que se fez gloria, tinha sido em seu prin-
cipio uma loucura de poetas, de poetas amorosos como Dirceu e
Cláudio, mas de poetas que procuram, de poetas que sondam, de
poetas que acham.
Ainda é de notar que ao tempo em que o direito divino rolava na
poeira com a cabeça de Luiz XVI, o direito do povo cahia ludibriado
com o pender da fronte de um brasileiro; mas o ultimo suspiro do
martyr encontrou logo no espaço o primeiro grito da liberdade, essa
grande funcç&o que Deus deu ao homem, que Bruto deu á Roma,
que a Revolução deu aos povos.
Somos livres de uma liberdade adquirida pela força das idéas,
sejamos grandes de uma grandeza adquirida pela força do coração.
Somos fortes para vencer, sejamos nobres para perdoar.
Beijemos a m&o do passado que é velho, a velhice é uma realeza;
apertemos a mão do futuro que é moço, a mocidade é um noivado.
Mandemos as paixGes que se calem, e teçamos as coroas do mérito.
Nunca poupemos um tributo de louvor á memória do heróe, a
quem já demos testemunho de gratidão, um daquelles vultos que de
longe em longe Deus suscita para ajudal-o a impellir o universo nos
largos destinos a que elle o conduz; cavalleiro de bronze que con-
templa o desenrolar dos séculos, grandes ondas da eternidade, esta-
cado, sublime em promontório de granito.
Sejamos verdadeiros e justos. Estranhos, sejamos amigos; patrí-
cios, sejamos irmãos; e, nessa irmandade de sentimentos, comba-
tamos o inimigo commum, confiados, apegados a esse pensamento
de gloria, esse pensamento grandioso que fluctúa no estandarte bra-
sileiro... »
São palavras ainda do estylo lyrico de 1865. Quatorze ajinos
mais tarde, eis como falava do poder e da liberdade, e note
se o estylo sóbrio e forte que coloria sua eloquência :
(( Meus Senhores. ^ Não sei se bem comprehendo o intuito da
vossa festa ; não sei se descubro ao longe o alvo que tendes em mira.
Como quer, porém, que seja, desde que se trata de uma festa popu-
lar, que importa a consagração de um justo renome, pelo culto
devotado a um homem de grande mérito, apresentando-me entre
vós, eu não faço mais do que ceder ao pendor natural que me faz
abraçar todas as causas, onde sinto palpitar o coração do povo. E
sabendo como sei que a causa precípua é nobre, eu que ha muito já
troquei a bluza do poeta pelo casacão do philosopho, e como tal, não
HI8T0BIA DA UTTBRATiniA BBABILEIBA 579
crendo nas finalidades da natureza, descreio também quasi tanto
do valor das finalidrdes sociaes, n&o me dei ao trabalho de reflectir
previamente que effeitos de ordem moral ou de ordem politica podem
resultar deste ruido de enthusiasmo, deste bater de azas invisiveis,
com o qual vem misturar-se, como uma nota dissona, minha palar
vra selvagem. N&o me dei ao trabalho de ponderar, por um lado,
as susceptibilidades feridas, os desgostos eu;ordados, os despeitos
enfurecidos, e^ por outro lado, a sorte que me possa aguardar, pela
ousada extravagância de acceder tão de bom grado ao vosso
convite, maximé por ser eu um representante da província e não
dever descarte violar uma das regras sacrosantas da pragmática
dos partidos, que é o deputado divorciar-se inteiramente do povo e
dar com o pé na escada por onde subiu...
Nâo reflecti, não ponderei nada disto. Bem sei, meus senhores,
que o liberalismo entre nós, o liberalismo de salfio, que tem suas
cerimonias e etiquetas de baUe, n&o tolera de boa vontade estas
manifestações da praça publica.
Não se distinguindo em cousa alguma pela divisa do século,
que é o t€ilento de ousar, o liberalismo corrente do nosso tempo, é
um trabalho que cança, é um mister que fatig6^ sobretudo se se
attende que elle se move dentro de formulas economico-mercantis
e escreve a sua vida por partidas dobradas.
Mas eu ainda não cancei de ser liberal, o que vale dizer que
ainda não cancei de crer na realidade de uma força superior que
nos descobre um mundo melhor, que nos impelle para elle; ainda
me não senti obrigado a ajoelhar-me diante dos Ídolos e pedir perdão
da minha virtude, a única, talvez, de que me posso lisongear, a vir-
tude de poder pensar no povo sem pensar no rei, este dous conceitos
que para mim serão sempre os dous termos de uma antinomia do
sentimento, mil vezes mais inconciliável que as antinomias da
razão. Qualquer que seja o tédio que me inspira o espectáculo da^
cousas, não cheguei ciinda áquelle estado, que produz o desgosto
da vida, o estado de incapacidade para crear um ideal. Dahi a espon-
taneidade, com que me associo a todas as emoções populares; dahi
o Ímpeto irresistível que me faz sorver na taça da liberdade, essa
feiticeira de todos os tempos, o esquecimento de mim mesmo, o
desprezo do perigo, a paixão do desconhecido, o enthusiasmo do
heroísmo e talvez também um pouco de ingenuidade por chegar a
capacitar-me que estas acções do povo tem sempre alguma
influencia no animo dos poderosos... A realidade é que a marcha
sinistra e tertuosa, que ha levado até hoje o governo do paiz, apenas
nos tem deixado como única liberdade consoladora, como único
580 niBTOBIA DA LITTEBATXTBA BBA8ILEIBA
favor da sua longanimidade o direito infecundo de falar, de esvair-
DOS em palavras, o que é tão pouco efíicaz pcu^a combater os nossos
males, quão pouco efficaz seria, para causar dor no coração de um
déspota, morder raivosa e loucamente no bronze de sua estatua...
Qualquer que seja o sentido que se ligue a esta manifestação,
qualquer que seja o valor e alcance politico que se lhe dê, a physio-
nomia moral que se lhe imprima ; ou se tenha como um facto, ainda
que não commun, todavia natural e lógico, não da lógica vulgar,
mas da lógica do coração, por ser a expressão adequada de um sen-
timento alto e nobilit€mte ; ou ao contrario, e de accordo com os
princípios da velha sciencia da vúta, que ensina a fazer da submis-
são e da baixeza uma espécie de ingrediente para a felicidade, se
considere tudo isto como extemporâneo, inconveniente e prejudicial ;
em uma palavr6^ senhores : ou o murmúrio da vossa festa vá soar
aos ouvidos do poder, como um grito de enthusiasmo innocente, ou
como um grito de rebeldia, como rugido de prazer ou. como rugido
de cólera ; eu vos declaro : não tenho tempo de pensso* no perigo,
só tenho tempo de pensar na gloria ; commungo na vossa mesa,
associo-me a vós, estou comvosco !...
Felizmente não se trat€^ é bom dizel-o em honra vossa, de
render um preito ceremonial, e apenas recommendado pelo ritaal
do partido, a um desses campeões da boa dita, honny soit qui mal ]i
pense^ cavalheiros do successo que pelos feitiços da fada, isto é,
pelas artes da politica, acordaram uma manhan e encontraram-se
celebres. Sim, não se trata de juncar de flores o caminho, por onde
tem de passar um favorito de Gesar. Mas isto não é tudo, nem isto
só seria capaz de dar ao vosso festim a cór histórica de um acon-
tecimento, a cór poética de uma grande obra. O que aqui mais
importa observar e fazer subir á tona da consciência, é que vós nfio
vos propondes mesmo pagar tributos de admiração vulgar a um
deputado pernambucano, simplesmente como tal, a um membro
da chamada representação nacional, a um daquelles muitos sacer-
dotes da theologia constitucional, da metaphysica parlamentar, por
cujo encanto, ao proferir palavras santas de misera condescendên-
cia, o vinho transforma-se em sangue^ isto é, os ministros da coroa
se convertem de repente em ministros da nação. Não, meus
senhores, vosso intuito é mais elevado. Como todas as grandes re-
velações do espirito popular, também esta encerra a sua particula
divina, a sua porção de ideal, que eu presumo extrahir e resumir
assim : Estais sem duvida pagando uma duvida de justo reconheci-
mento para com o moço impávido, uma das mais bellas encarna<?õe8
do iustum et tenacem propositi virum — sonhado pelo poeta ; ren-
HIBTOBIA DA LITTSRATUSA BRA8ILBISA 581
dendo um preito de gratidão ao vosso representante, sim, mas a
mn que já o era de direito, antes de sel-o de facto, pois ha realmente
épocas cheias de lutas a sustentar e de questões a resolver, que
nomeiam por si mesmas os seus dignos combatentes : a época
actual em Pernambuco é uma delias, e José Mariano é o seu legiti-
mo interprete. O sentido desta solemnidade n&o é, pois, queimar
algumas bagas de barato incenso diante do idolo de um povo, ou
de uma classe delle ; n&o é homologar, por meio do enthusiasmo
sincero de uma populaç&o ávida e sedenta de acções heróicas, os
juizos encomiásticos da corte, esse tumulo da naç&o, da corte sempre
suspeita de miséria, vilania e corrupção em qualquer grão. O sentido
de tudo isto é altamente moral : é a celebração do renascimento de
uma raça de gigantes, que parecia extincta ; o sentido de tudo isto
é a glorificação de um caracter.
Meus sonhores ! Assim como em philosq[>hia natural, o que se
chama um typo, marca o ponto culminante do desenvolvimento
morphologico da espécie, da mesma íórma em philosophia social,
o que se chama um caracter, marca o ponto culminante do desen-
volvimento histórico de um povo... Mas que é ser um caracter?
Digamol-o em poucas palavras.
Que um mesmo homem, nos diversos dominios de sua actividade,
produza muita cousa significativa, não é um phenomeno sorprehen-
dente, pelo contrario, à vista da riqueza da natureza humana, é um
facto comprehensivel e facilmente explicável, pela variedade dos
dotes naturaes. Numa só pessoa assentam, como se ella para isso
nascesse, diversas formas da vida, do mesmo modo que no actor uma
multidão de papeis. Todo homem possue em sua phantasia um Pro-
teu interior, que se transforma a cada passo, que a cada passo toma
feições differentes. Esta é a lei commun. Mas também contra esta
lei de mutabilidade indeiinita, contra esta capacidade de transforma-
ção, este talento diplomático da natureza humana, ha espíritos que
reagem, não sei se por um privilegio especial, ou por esforço próprio,
e tomando nas mãos, por assim dizer, todos os raios esparsos da acti-
vidade sem destino, os concentram em um só ponto, e os dirigem a
um só ílm. São espíritos que se restringem, naturezas que se sim-
plificam, e de uma simplicidade, que até ás vezes nos parece unifor-
midade monótona. Mas uma tal uniformidade é potente e
grandiosa ; em similhantes naturezas toda a riqueza espiritual se
converte na firmeza e energia de uma convicção. São espíritos, em
summa, para quem toda a philosophia humana é philosophia da
vontade ; para elles a vida da alme não começa por um acto de
pensar, mas por um acto de querer, e em cada um de seus actos
582 HISTOBIA BA LITTBItATUItA BBABILBIBA
elles parecem dizer : o que eu não sou por mini mesmo, eu n&o o
sou ; eu sou somente aquillo que pratico ; e d'est*arte para elles até
a própria liberdade não é tanto um estado natural, um dom do céo,
um presente dos deuses, como antes e sobretudo um resultado do
trabalbo, um producto, uma obra, uma conquista do homem. Bis
áhi o que é o caracter, esse grande fecundador das capacidades
humanas, alguma cousa de similhante a a/juelle âel servo da pará-
bola de Jesus, que faz render os talentos, que lhe foram confiados ;
o caracter, que é uma força, que é fonte de toda a honradez, e com
a honradez a sinceridade, e com a sinceridade até a aptítude ao
martyrio, a disposiç&o ao sacriâcio.
Traçemdo assim, meus senhores, uma espécie de ideial do
homem de bem, eu não faço mais do que tirar os próprios traços da
sympathica figura do moço pernambucano. E*elle mesmo que me
fornece esta medida accommodada ao tamanho' dos grandes
homens : é elle mesmo, sim, com a sua vontade de uma só peça,
com a sua fé inabalável, com a sua personalidade cerrada, inacce»-
sivel, como um bárbaro, aos cálculos da prudência, mas também
inaccessivel, como um heroe, ás suggestões do poder. E tal acaba
de mostrar-se no combate virgoroso em que se empenhou, e do qual
não é pequeno resultado a consciência do dever cumprido.
Entretanto aqui acode-me uma ponderação relevante ; — vós
sabeis, senhores, como o bello procedimento do illustre represen-
tante de Pernambuco, de quem hoje se pôde dizer que se esperava
tudo mas não se esperava tanto, como a sua attitude p€urlamentar,
ainda que admirável e bonita, e talvez que mesmo por ser bonita e
admirável, tem suscitado, ao lado da grande corrente da opinião
applausiva, uma pequena corrente de opinião desaccordc, quer na
direcção do enthusiasmo, quer no modo de julgar e apreciar a
efflcacia da cousa, a conveniência do acto; — opinemdo os que se
pretendem mais sensatos, os políticos de ofâcio, que no poite de
Mariano um pouco mais de reserve^ um pouco mcds de attenção
aos interesses communs do partido não teria sido mão. Não teria
sido máo!.,. E' assim que se exprimem negativa, indirectamente
por faltar-lhes a coragem de afUrmeir positivamente... que teria
sido bom.
Mas isso será exacto? Será exacto que Meu^iano foi além do
que lhe impunham os seus deveres de politico ? Terá elle por ventu-
ra, desconhecendo a velha verdade que o homem não tem sempre
bastante força para seguir toda a sua razão, violado a regra de
conducta, ou antes a lei social, pela qual todo aquelle, que quer
trabalhar e influir de um modo efQcaz, d^ve aprender 9 su})ordi-
HISTORIA DA LITTERATUBA BBABILBIBA 583
nar-se, a servir aos grandes partidos, dentro dos quaes se executa o
processo da historia? !... Será isto exacto ? Não de certo. A intran-
sigência dos caracteres torna-se dureza e asperidade reprovável,
quando elles, unguibus et rostro^ loucamente agarrados ao seu pro-
pósito, querem ser invariáveis, não obstante haver variado a face
das cousas ; querem permanecer immutaveis, a despeito de ter-se
nmdado a posição do mundo. Porém no caso vertente, onde é que
isto se dava ? Na desintelligencia do moço deputado com um mi-
nistro arrogante, onde é que estava empenhada a salvação do par-
tido, para que fosse preciso, indeclinavelmente preciso. Mariano
ceder e recuar ?
Ah 1 meus senhores, eu não tinha necessidade de juntar mais
esta parcella á mhiha somma de experiências, ao meu já tão
crescido capital de decepções, sohre o que são, sobre o que valem
os liberaes, eu digo, os liberaes officiaes da nossa terra. Mas ainda
me deixo tomar de admiração e de espeinto, em presença de factos
de tal ordem, diante deste e de tantos outros documentos de pobreza
do liberalismo em acção. Quando a baixeza é um meio de subir e
engrandecer, naturalmente a independência toma-se um crime.
E é isto, ao certo, o que se dá em relação aos calmos e prudentes
juizes do acto de José Mariano : não estão no caso de comprehender
um procedimento, que destoa do modo commum de contemporisar
e obedecer.
Houve um tempo, senhores, em que somente o homem honesto
podia ser e dizer-se liberal. Foi naquelles túrbidos dias, em que o
simples riso de desdém sobre a marcha dos negócios públicos era
um motivo de paracer suspeito aos governos. Hoje, porém, a cousa
é diversa. Hoje é liberal todo aquelle que sabe especulcu* com feli-
cidade. O liberalismo tornou-se um artigo da moda^ um costume do
dia^ um obiecto de negocio. D^ahi a singularidade, para não dizer a
impudência, com que se renega no parlamento o que se proclamou
nas ru£Ls ; d*ahi o triste espectáculo da morte dos caracteres, do
abatimento dos espíritos, que não ousam ser o que são, que se en-
vergonham do seu passado, para se deixarem arrastar pelo ca-
minho das conveniências. E* nada existe, com effeito, de mais con-
tristador : o partido liberal, que se adorna de grandes promessas,
que se alimenta de esperanças, que vive sempre com os seus navios
de velas desfraldadas d espera de vento, que nos conduza ao paiz
da felicidade^ quando as occasiões se levantam bellas e oportunas,
quando os ventos sopram favoráveis, tem medo de se fazer ao mar,
e recua espavorido diante dos seus próprios desígnios!... Nada
axist^ realmente 4^ mais ridiculo e hmnilhante do que vel-os, com
584 HIBTOBIA DA LITTSRATTTBA BBA8ILEI&A.
iodos OS seus gestos de grandeza e phrases de altivez, curvarem-se
resignados ao mando de quem mais pôde, elles, pobres liberaes
reproducções photographicas do retrato de Polónio, o fiel compa-
nheiro de Hamlet, no celebre drama de Shakespeare. Eis o caso :
está o rei com o seu inseparável, e trava-se entre ambos o seguinte
coUoquio :
Hajnlet : — Vês là em cima aquella nuvem que tem quasi a
forma de um camello ?
Polónio : — Pelo céo, magestade I assimilha-se de certo a um
camello.
Hamlet : — Mas quer me parecer que é similHcmte a uma do-
ninha.
Polónio : — Realmente, tem as costas de uma doninha !
Hamlet : — Nôo : ella parece-me mais uma balôa.
Polónio : — Com effeito, magestade ! E* toda como uma balôa !...
Ahi tendes a imagem do que se dá com os nossos homens, querc*
dizer, com os liberaes do dia. E' isto mesmo : a nuvem será doninha,
ou balÔ£L, conforme mais agreuiar ao capricho imperial. E' assim que,
por exemplo, o rei dirá : a agricultura está morta, é preciso auxi-
lial-6^ e elles acudirão : é verdade, a agricultura está morta, carece de
muito auxilio. Mas logo depois, o rei observará que náo é tanto as-
sim, que ha cousas mais importantes a auxiliar do que a agricultu-
ra ; e todos dirão : é exacto ; para que auxilio á agricultura? Como
vôdes, pela bocca de Polónio exprimiu-se antecipadamente o libe-
ralismo da nossa época. A fígura cómica do régio adulador é a sua
mais perfeita encarnação.
Voltando ao centro do assupto : fizestes bem, meus senhores i
Illustres cavalheiros do Monte Pio dos honorários e da Associação
Commercial^ fizestes muito bem em dar assim um testemunho de
reconhecimento e admiração pela imponente attitude do vosso nobre
comprovinciano. Eista festa é um symptoma da abundância de sen-
timentos e affectos elevados, que ainda vigoram no seio deste povo.
A acção, que assim praticais, não será destituída de profícuos resul-
tados, ella é a faisci, de que talvez gerar-se-ha o grande incêndio;
não o incêndio revolucionário e destruidor ; eu não sou, não quero
ser pregador de revolução ; mas o incêndio das grandes paixões
sociaes, que é preciso que se inflammem por meio de taes espectá-
culos, e, ainda mais, por um excune de consciência politica^ pela con-
fissão dos nossos erros, pela critica de nós mesmos. A indolência,
o abatimento de Pernambuco, é um phenomeno anómalo, que dá
que fazer ao observador philosopho, como pôde dar que pensar ao
HISTORIA DA LITTSRATUSA BBABILBIBA 585
naturalista o apagamento de um volc&o. Importa, pois, que vos re-
ergais e reconquisteis os postos perdidos.
Agora a vós, geralmente a vós, brilhcmte porção do povo per-
nambucano, permitti que eu ouse impor uma obrigação. N^esta
hora, em que exultais e ardeis de enthusiasmo, talvez o nome de
José Mariano já esteja registrado no livro da condemnação. £' mis-
ter, portanto, que contraiais aqui, neste momento solemne, um
compromisso de homens de bem : que nunca, nunca deixal-o-heis
ficar só. E contando com o vosso apoio, com o apoio dos vossos brios, .
o seu triumpho será sempre inevitável. Se porém está escripto,
quod Deus avertat^ se está escripto no livro das nossas misérias,
que tudo será inútil, q que a voz altiva do moço terá de perder-se
na algazcurra dos festins da immoralidade vencedora, como a voz
angustiosa do naufrago no ruido do oceano, eu posso aíflrmal-o, e
acreditai-me, senhores, José Mariano não curvará a fronte. Quando
tudo lhe falte, quando tudo o abandone, parodiando aqui palavras
de um grande mestre, restar-lhe-ha sempre e sempre o instincto
indómito de uma alma, para quem a macula moral do servilismo é
o mal absoluto e irremediável. Que a sociedade se estrague e role
de queda em queda no abysmo da degradação, que os caracteres
se apaguem, que a prostituição tome as vestes da dignidade, como
Messalina a purpura de rainha ; ainda uma vez vos affirmo : elle
não aceita a derrota. Sentirá no seu coração o desprezo da ignomi-
nia, e este sentimento far-lhe-ha as vezes de victoria ; continuará
a fortificar-se no exemplo dos heróes, e abraçando a estatua dos
deuses immortaes, o dever, o pudor, a justiça, adjural-os-ha para
que vinguem o seu poder desconhecido!... »
Palavras são estas de 1879, pronunciadas n'uma manifes
tacão popular feita ao Dr. José Mariano, representante então
de Pernambuco em a camará dos deputados. Tobias, n'esse
tempo residente ainda na Escada, era membro da Assembléa
Provincial pernambucana, onde, entre outros debates, pro-
pugnou notavelmente pela educação intellectual da mulher
brasileira.
N'este assumpto pronunciou três dos seus mais notáveis
discursos (1).
No Club Popular da Escada, por elle crêado, é que proferiu
íl) Vide — Diêeur%09 — , por Tobias Barretto, Rio de Janeiro, Laemmert
et C. editores, 1900 ; pag. 45, 79 e 107.
586 HISTORIA DA UTTBBATinU BRASILBIBA
em 1877 a celebre oraçfto, apparecida dois annos mais tarde
em avulso sob o nome de Um discurso em mangas de ca-
misa, suggestivo titulo que tanto deu que falar. E' um forte
quadro do deplorável estado social e politico de Brasil no
ultimo decennio do Império. Na observação preliminar, que
se lê na pumeira pagina do alludido opúsculo, escrevia o já
então critico e philosopho, aos 11 de fevereiro de 1879, estas
palavras descortinadoras, até certo ponto, do modo como elle
próprio julgava a sua tentativa da crèação de um club polí-
tico e a sua posição na pequena cidade pernambucana : a Em
setembro de 1877, appareceu-me a ideia de organisar n*esta
cidade, e á similhança de outros já algures existentes, um
pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes,
que em nosso paiz têm a propriedade de germinar com a
mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, se-
gundo a crença vulgar, a minha ideia promptamente grelou ;
mas também, com a mesma promptidão, marchou e morreu.
Foi esta ainda uma das muitas illusões de que se tem alen-
tado o meu espirito n'esta bella terra, onde aiiás vim sepultar
os dois mais caros objectos de meu coração e de minha
phantasia : — minha Mãe e meu futuro I... »
Brado é este de dôr que a forma humorística não consegue
ílludír e desfarçar. Outros mais graves lôr-se-háo de ouvir no
correr de seu estudo, como pensador, o que me lembra sêr
tempo de passar ao critico.
Mas isto, por motivos de conveniência da economia interna
d'este livro, ficará melhor em volume subsequente, quando
houver de estudar o movimento da critica e da philosophia
entre nós a datar de 1870 e annos seguintes.
HISTORIA DA LITTBRATUBA BBA8ILBIBA 587
CAPITULO VII.
Poesia. Ainda sexta e ultima phasb do romantismo.
António de Castro Alves (1847-1871). E' um dos nomes
mais afamados da moderna poesia brasileira. Tem sido
muito lido e muito estudado, quasi sempre n'um tom dilhy-
rambico e encomiástico. Mas ainda ha alguma cousa de pro-
veitoso a dizer a respeito d'eUe.
Antes de tudo, umas rápidas notas biographicas. Para isto
vou cingir-me ao que existe de mais authentico em tal
assumpto, a biographia do poeta escripta por seu cunhado
o Dr. Augusto Alves Guimaráeai, e publicada nos números 2
e 5, anno I, da Gazeta Litíeraria do Rio de Janeiro.
Castro Alves nasceu na camarca da Cachoeira, perto do
Curralinho, na fazenda CabaceircLs, aos 14 de março de 1847.
Seu pai era medico e mais tarde tirou uma cadeira na fa-
culdade da Bahia. O futuro auclor do Navio Negreiro estudou
preparatórios no Gymnasio Bahiano sob a direcção do
Dr. Abilio César Borges, Barão de Macaúbas.
Em 1862 seguiu para o Recife, onde ainda foi preparato-
riano durante dois annos, matriculando-se em 1864. Conser
vou-ae em Pernambuco até flns de 1867, partindo para i
Bahia, e, logo em começo do anno seguinte, para Sâo Paulo,
de passagem pedo Rio de Janeiro.
Em Sáo Pauto continuou o curso académico, interrom-
pendo-o logo ap6s; porque aos 11 de novembro do mesmo
anno de 1868, andando á caça, disparou casualmente um tiro
no calcanhar.
Gerou-se-lhe ahi longa e pertinaz enfermidade, tendo de se
lhe amputar no anno seguinte no Rio de Janeiro o terço infe-
rior da perna. Depauperado p orjfanjsmo, sobreyçío-lhe a
588 HIBTOBIA DA LITTBBATUBA BRA8ILSIBA
moléstia pulmonar. Teve de demandar de novo as plagas da
província natal em dezembro de 1869. Seguiu para os ser-
tões, demorando-se em Curralinho e Rozario de Orobó em
1870 até setembro, época em que voltou á capital da provín-
cia, onde falleceu a 6 de julho de 1871.
São as principaes datas de sua vida exterior. Até aqui o
tiabalho dos bíographos (1).
E' mister analysar e reconstruir a vida psychologica do
poeta.
A carreira litteraria de Castro Alves, que abrange apenas
o curto espaço de pouco mais de onze annos, pode rigorosa-
mente ser dividida em quatro épocas :
a) phase primitiva (186(>63), tempo dos preparatórios na
Bahia e no Recife, reatando d'entáo pouquissimós documen-
tos;
b) período áureo do Recife (1864-67), tempo do Gonzaga e
de grande parte das poesias;
c) época de S. Paulo e Rio de Janeiro, menos de dois annos
(1868-69) ;
d) ultima phase da Bahia apenas de anno e meio — (1870-
71). Dos onze annos, quatro de pura meninice litteraria quasi
nada avultam em sua carreira. Restam os sete ou sete e meio
seguintes a contar de 1864 — até a data do fallecimento do
poeta.
D'estes sete, quatro, os mais fecundos de sua vida, foranoi
passados no Recife com pequenas estadas na Bahia. Dos três
e meio annos restantes, somente menos de um (1868 até no-
vembro) passou com saúde. Os que se lhe seguiram foram
preenchidos pelos acerbos soffrimentos da moléstia do pé e
da tuberculose.
Releva, portanto, ficar bem assentado que o poeta, che-
gando a São Paulo em março de 1868, adoeceu d'ahi a oito
mezes em novembro, e retirou-se definitivamente em abril
do anno seguinte. Pouco, bem pouco podia ter elle escripto
alli. A mór parte de suas producções ou são dos tempos
(1) Vide Gaseta Litteraria, ns. citados.
HISTORIA DA LITTSBATURA BRABILBI&A 589
áureos do norte, antes de sua vinda ao sul, ou dos melan-
cholicos dias da Bahia depois d'essa viagem (1).
Pertencem á primeira categoria — , além do drama Gon-
zagcL, as poesias — Hebréa, Duas Ilhas^ Visão dos Mortos^
Pedro Ivo^ O Século, Quem dá aos pobres empresta a Deus,
Mocidade e morte, Ao Dois de Julho, Três Amores, Gondo-
leiro de amor, Sub tegmine {agi, O vóo do génio, A Maciel
Pinheiro, Dalila, A Boa Vista, O coração, A uma actriz, O
Livro e a America, e todo ou quasi todo o poema — A Ca-
choeira de Paulo Affonso.
São da segunda espécie as poesias — Dedicatória, O {an-
tasma e a canção. Poesia e mendicidade, Versos de um via-
jante, Onde estás ? A uma estrangeira. Pelas sombras. As
duas {lôres. Os anjos da meia noite, O Hospede, Aves de arri-
bação. Os perfumes, A Guilherme de C. Alves, Uma pagina
da escola realista, Coup d^étrier. Se eu te dissesse. Saudação
a Palmares, Horas de saudade. Pé, esperança e caridade.
Deusa incruenta e No meeting do Comité du pain.
Bem se vê que ahi está a maior porção da obra do poeta e
o que n'ella ha de mais selecto.
Foram escriptas no Rio de Janeiro e em São Paulo apenas
— O laço de [ita, Ahasverus e o génio, O adeus de Thereza,
A volta da primavera, Boa-Noite, Adormecida, Jesuiias,
Hymno ao somno, No álbum de L, C. Amoedo, Murmúrios
da tarde. Ode ao dois de Julho, O tonel das Danaides, A Luiz,
A Joaquim Augusto, Immensis orbibus anguis. Canção do
bohemio, E tarde. Quando eu morrer. Está assim contada e
destribuida a quasi totalidade das producções do vate
bahiano.
Digo quasi totalidade ; porque não estão incluídas n'ellas
quatro bem notáveis : Vozes d'A{rica, O Navio Negreiro, Tra-
gedia no Lar, e Adeus — meu canto I — Doestas as duas pri
meiras são do Recife e Bahia antes da viagem ; as outras da
Bahia depois d'ella.
Fica assim bem averiguado haver o poeta chegado a
(]) A estada do poeta no sul durou 22 mezes, que tantos vão de fevereiro
de 68 a novembro inclusive de 69. Destes 2t mezes — 13 foram passados
em S. Paulo.
590 HIBTOBIA BA LITTB&ATTTRA BRABILSIftA
S. Paulo aos vinte e um annos de idade, na plenitude do
talento, já feito nas letras, precedido de fama, acompanhado
dos elogios que soube conquistar no Recife, na Bahia e no
Rio de Janeiro. Alencar e Machado de Assis encarregaram-se
de o apadrinhar contra as invectivas malévolas da inveja do
anonymato litterario.
Desde 1864 Castro Alves e Tobias Barretio foram os mais
notáveis talentos da faculdade de direito do Recife.
Em 1866 formaram-se os dois partidos theatraes das duas
actrizes, que foram a causa do romprimento dos dois poetas.
Castro decidiu-se por uma e Tobias por outra. Victoriano
Falhares era do lado do poeta bahiano. As duas actrizes
tinham muito talento; a diva de Castro Alves era uma livre
e ousada mulher ; a outra era timída e recatada.
Tobias tinha dito uma vez :
u Sou grego, pequeno e forte
Das forças do coração,
Vi de Sócrates a morte,
E conversei com Plat&o...
Soa grego, gosto das flores,
Dos perfumes, dos rumores;
Mas minha alma inda tem fé...
Meus instinctos não esmago,
Não sonho, n&o me embriago
Nos banquetes de Phrinél... »
A invectiva era dura, e é fama que então Castro Alves lhe
repondera :
(c Sou hebreu; n6o beijo as plantas
Da mulher de Putiphar... n
Dos camarotes e platéa do theatro passou para a imprensa
f) malfadada lucta.
O poeta bahiano na Luz e o sergipano na Revista Litte-
raria aggrediram-se desapiedada e tristemente. Assim quebra-
ram as relações e tornaram-se inconciliáveis, por futilidades,
dois grandes talentos, dignos de reciprocamente se esti-
marem.
H18T0KIA DA LITTSSATUEA BBABILSIEA 591
Entretanto, Castro continuou a produzir.
Começou e adiantou aquella serie de cantos que intitulou
O poema dos Escravos ; escreveu o drama Gonzaga ou a
Revolução de Minas, além de outros trabalhos de vulto infe-
rior. Porém elle era um moço ardente e inexperiente. O en-
ihusiasmo pela actriz passou adiante e ella encadèou-o c su-
gou-lhe a seiva opulenta da mocidade.
E* ji tempo de escutar os lamentos do poeta e chorar com
elle as suas magoas.
Já doente aos 13 de outubro de 1809 em Immensis orbibus
anguis pranteava elle :
M Assim, minh^alma, assiui um dia adormeceste
Na floresta ideal da ardente mocidade...
Abria a phantasia a pétala celeste...
Zumbia o sonho d^ouro em doce obscuridade...
Assim, minh^alma, deste o seio (ó dôr inimensa!)
Onde a paix&o corria indómita e fremente!
Assim bebeu-te a vida, a mocidade e crença
Não bocca de mulher... mas de fatal serpentel... »
Aos 3 de novembro do mesmo anno em F tardei falou
assim :
M Treda noite! Minh^alma era o sacrário
A lâmpada do amor velava emteuito,
Virgem flor enfeitava a borda virgem
Do vaso sacrosanto,
Quando EUa veio •— a negra feiticeira
A libertina, lúgubre bacchante,
Lascivo olhar, a trança desgrenhada,
A roupa gottejante.
Foi minha crença — o vinho dessa orgia,
Foi minha vida — a chamma que apagou-se.
Foi minha mocidade -— o toro lúbrico,
Minh'alma o tredo alcouce... »
Estas notas sfto intensas e verdadeiras; revelam alguns
592 HI8T0BIÁ DA LITTBRATITBA BRA8ILEIBA
(l'esses soffrimentos íntimos, que são sempre os mais terrí-
veis e tenazes e os que mais despercebidos são peio inundo
ignaro.
Devo dizer mais directamente dos livros do poeta.
Castro Alves deixou três obras : Espumas PluctuarUes,
Gonzaga e O Poema dos Escravos,
Este ultimo não ficou acabado. Existem apenas d'elle dois
fragmentos, um episodio A Cachoeira de Paulo Affonso^ uro
punhado de poesias, sob o titulo de Manuscriptos de Stenio.
O Poema dos Escravos nâo era na mente do auctor uma
epopéa no velho e commum sentido, a saber, um enredo,
uma acção especial, desenrolada par personagens typicas.
Era antes uma collecção de poesias soltas, desprendidas
entre si, referentes, todas, porém, ao facto social da escra-
vidão. E aqui se toca o intimo mesmo do talento do moço
bahiano. Quem o lê attentamente nota logo dois tons
fundamentaes em sua lyra : — o lyrismo gracioso dos
amores, das paixões, das effusões í)artículares, e o cantar
brilhante do socialista, do democrata social. As producções
em que predomina o primeiro tom são interessantes ; mas
contam muitas congéneres na litteratura brasileira. Aquellas
em que sobresae a outra nota — possuem poucas similares
entre nós.
Castro Alves em nossa historia litteraria representa um
duplo papel. Por um lado, elle foi o apostolo andante, o São
Paulo do condoreírísmo. Não ficou parado no Recife ; depois
do ter alli luctado em prol da nova poesia, passou á Bahia
e d'ahi ao Rio e a São Paulo. Estes são os quatro centros
intellectuaes mais notáveis do Brasil ; n'elle9 o poeta fez-se
ouvir e creou adeptos.
Sua maneira espalhou-se então por todo o paíz. Escusado
é dizer que a mwlíocridade dos mãos discípulos foi-se to^
nando cada vez mais accentuada, até cahir nos mais extrava-
gantes despropósitos.
Foi um tempo de verdadeira pathología litteraria de que o
poeta bahiano não foi aliás o culpado.
Por outro lado, tomou eile muito ao serio o seu c€u*acter
HISTORIA DA LITTXRATUBA BBABILBIRA
593
de poeta, e concentrou ahi todos os esforços e energias de
seu espirito. Quiz deixar obra durável.
Para tanto largou, por algum, por bastante tempo de parte
suas preoccupações particulares, seus epbemeros amores, e
lançou olhares curiosos sobre a nossa sociedade. Um facto
ahi havia que o impressionou sobre todos, o facto cruel e
repugnante da escravidão) ; e elle tentou fazer o poema dos
escravos.
Ahi vae a sua verdadeira originalidade. Antes e depois d'elle,
entre nós e no estrangeiro, alguns poetas tomaram como
assumpto de seus cantãires o phenomeno extravagante da
escravidão. Mas Castro Alves tem entre todos uma nota
especial. E' bem verdade que nâo se coUocou em o ponto
de vista determinado da escravidão brasileira. Por outros
termos, é bem verdade que elle nâo fez a psychologia nem a
sociologia do escravo, não se poz no meio dos captivos, nos
engenhos e nas fazendas, para lhes photographar com niti-
dez naturalística o viver pungente e as profundíssimas mi-
sérias.
O poeta nã.0 architectou o romance cruel e realista dos
escravos, Noio; seu caminho foi outro, ensinado, apontado
pela Índole mesma de seu talento. Ao poeta, bastou-lhe para
o excitar e commover o facto geral e indistincto da escra-
vidão. Só isto foi sufílciente para levantar-lhe o sentimento, e
este sentimento foi a indignação e a cólera. O poeta n&o des-
ceu a descrever scenas ; alludio rapidamente a ellas e suppôl-
as com razão conhecidas de todos. Elle é da familia do can-
tor dos Chatiments; indigna-se, encolerisa-se e larga o azor
rague nos verdugos, nos oppressores dos miseros captivos.
O espirito de Castro Alves é o de um tribuno, de um agi-
tador ; sua poesia é a expressão natural de seu caracter, de
seu temperamento.
Elle é assim um dos mais nítidos exemplares entre nós do
poeta socialista, quero dizer, do poeta que em sua arte preoc-
cupa-se com certas ideias e problemas que se agitam na vida
politica e social da nação. Tem-se muito discutido o valor
desta poesia. Uns a atacam, outros a defendem.
mSTORU u
38
504 HIBTORIA DA LITTSBATURA. BRA8ILBZXA
Que imparta isto? N&o é exactamente o que se dá com
todas as cousas ?
Os que lhe são adversos n&o se esquecem de dizer que a
arte nada deve ter com theorias e systemas quaesquer, scien-
tííicos^ philosophicos, políticos ou sociaes. Sua base é o sen-
timento, seu ílm ó a emoç&o esthetica, o bello. Nada de
hybridismos n'arte. Mas será certo que a poesia deva per-
manecer sempre na egoismisação de nossos affectos, de nos-
sas tendências individuaes 7
Náo será útil e salutar lançar de vez em quando as vistas
sobre a vida coUectiva, sobre a existência geral 7
Nosso próximo vale bem o sacriflcio, se sacrifício ahi
existe.
Castro Alves n&o perdeu seu tempo ; bem ao contrario este
paiz deverá sempre lêr todos os bellos versos em que elle
foi o porta-voz, a expressão grandíloqua da consciência da
pátria. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, que declarou
livres todos os nascidos no Brasil, a poesia já se havia hon-
rado com as Vozes cT Africa e O Navio Negreiro,
Eu bem sei que podia agora esquadrinhar os escriptos do
poeta e indicar n'elles descuidos e extravagâncias. Uma cri-
tica elementar iria fazel-o com vantagem ; não o farei eu. E'
preferível ouvir agora alguma cousa do poeta, e seja —
Adeus, meu canto I — E* assim :
(( Adeus, meu canto! é a hora da partida...
O oceano do povo s^encapela.
Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela.
O inverno envolto em mantos de geada
Cresta a rosa de amor que além se erguera...
Ave de £Lrribaç&o, vôa, annuncia
Da liberdade a santa primavera.
B* preciso partir, aos horizontes
Mandar o grito errante da vedeta.
Ergue-te, ó luz! estrella para o povo,
Para os tyranos, — lúgubre cometa.
Adeus, meu canto! na revolta praça
Ruge o clcuim tremendo da batalha.
I
HISTORIA DA LITTSRATUBA BRABILUEA 506
Agoia — talvez as azas te espedacem.
Bandeira — talvez rasgue-te a metralha.
Mas não importa a ti, que no banquete
O manto sybarita náo trajaste, —
Que se os louros não tens na altiva fronte
Também da orgia a cYôa renegaste.
A ti que herdeiro d*uma raça livre
Tomaste o velho amez e a cota d*armaa;
E no ginete que escarvava os valles
A cometa esperaste dos alarmas.
E* tempo agora pYa quem sonha a gloria
E a luta... e a lutai essa fatal fornalha»
Onde referve o bronze das estatuas,
Que a mão dos séculos no futuro talha...
Pcuie, pois, solta livre aos quatro ventos
A alma cheia das crenças do poeta!...
Ergue-te, ó luz! estrella para o povo.
Para os tyranos — lúgubre cometa.
Ha muita virgem que ao patíbulo impuro
A mão do algoz arrasta pela trança;
Muita cabeça d'ancião cui-vada,
Muito riso afagado de criança.
Dirás â virgem : — Minha irmã, espera;
Eu vejo ao longe a pomba do futuro,
Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo
Que atropela-te o passo mal seguro...
A cada berço levarás a crença,
A cada campa leviu^ás o pranto!...
Nos berços nús, nas sepulturas razas,
— Irmão do pobre — viverás meu canto.
E pendido atravez de dous eJbysmos,
Com os pés na terra e a fronte no infinito,
Traze a benção de Deus ao captiveiro,
Levanta a Deus do captiveiro o grito!
Eu sei que ao longe, na praça,
Ferve a onda popular,
Que ás vezes é pelourinho,
Mas poucas vezes — altar...
596 HISTORIA DÀ LITTEBATTTRA BRASILEIRA
Que zomba do bardo attento,
Curvo aos murmúrios do vento
Nas florestas do existir,
Que baba fe) e ironia
Sobre o ovo da utopia.
Que guarda a ave — o porvir.
Eu sei que o ódio, o egoismo,
A hypocrisia, a ambição.
Almas escuras de grutas,
Onde nao desce um clarão ;
Peitos surdos ás conquistas,
Olhos fechados ás vistas,
Vistas fechadas á luz;
Do poeta solitário
Lançam pedras ao calvário,
Lançam blasphemias á cruz.
Eu sei que a raça impudente
Do scriba, do phariseu,
Que ao Christo eleva o patibulo,
A* fogueira o Galileu;
E* o fumo da chamma vasta.
Sombra — que o século — arrasta,
Negra, torcida, a seus pés :
Tronco enraigado no inferno,
Que se arquêa, escuro, eterno,
Das idades atravez.
E elles dizem reclinados
Nos festins de Balthasar :
— Que importuno é esse que canta
Lá no Euphrate a soluçar?
Prende aos ramos do salgueiro
A Ijrra do captiveiro,
Propheta de maldição,
Ou, cingindo a augusta fronte
Com as rosas d^Anacreonte,
Canta o amor e a creação...
Sim! cantai- o campo, as selvas,
As tardes, a sombra, a luz!
HIflTOBIA DA LITTKRATUEA PRABILBIBA 597
Soltar su*alma com o bando
Das borboletas azues,
Ouvir o vento que geme.
Sentir a folha que treme,
Como um seio que pulou,
Das mattas entre os desvios
PasscLT nos eoitros bravios
Por onde o jaguar passou;
E' bello... e já quantas vezes
Nâo saudei a terra — o céo,
E o universo — biblia immensa
Que Deus no espaço escreveu?...
Que vezes nas cordilheiras,
Pelas selvas brasileiras
Eu lancei minha canção,
Escutando as ventanias,
Vagas, tristes prophecias.
Gemerem na escuridão?!...
Já tambern amei as flores,
As mulheres, o arrebol,
E o sino que chora triste
Ao morno calor do sol;
Ouvi saudoso a viola,
Que o sertanejo consola
Junto á fogueira do leir,
Amei a linda serrsuia
Cantando a molle iyrana
Pelas noites de luar!
•
Da infância o tempo fugindo,
Tudo mudou-se em redor,
Um dia passa em minh'alma
Das cidades o rumor...
Sôa a ideia, sôa o medho,
O cyclope do trabalho,
Prepara o raio do sol —
Tem o povo — mar violento —
Por armas o pensamento,
A verdade — por pharol!
596 laSTOBIA DÁ LITTBBATimA BRABILSISA
E O homen, vaga que nasce
No oceano popular,
Tem que impellir os espirites,
Tem uma plaga a buscar.
Oh! maldição ao poeta,
Que foge, falso propheta,
Nos dias de provação!
Que mistura o tosco iambo
Com o thyiio dythirabo
Nos poemas d'afflicçâoI...
(( Trabalhar! )> brada na sombra
A voz immensa — de Deus!
« Braços, voltai-vos p'ra terra.
Homens, voltai-vos p'rd os céos!...
Poetas, sábios, selvagens,
Sois as santas equipagens
Da náo — civilisaçâo.
Marinheiro — sobe aos mastros,
Piloto, estuda nos astros,
Gageiro, olha a cerração! »
Uivava a negra tormenta
Na enxárcia, nos mastaréos.
Uivavam nos tombadilhos
Gritos insontes de réos.
Vi a equipagem medrosa
Da morte, a vaga horrorosa
Seu próprio irmão sacudir...
E bradei : « Meu canto, vôa.
Terra ao longe, terra á proa!...
Vejo a terra do porvir! ...»
Companheiro da noite mal dormida,
Que a mocidade vela sonhadora.
Primeira folha d*arvore da vida,
Estrella que annuncia a luz á aurora!
Da harpa do meu amor nota perdida.
Orvalho que do seio se evapora,
E* tempo de partii*... vôa, meu canto.
Que tantas vezes orvalhei de pranto!...
HIBTOBIA BA LITTBKATUBA BRABILBISA 599
Tu foste a estrella Vésper que alumia
Aos pastores d* Arcádia nos fraguedos!
Ave — que no meu peito se aquecia.
Ao murmúrio talvez dos meus segredos...
Mas hoje... que sinistra ventania
Muge nas selvas, ruge nos rochedos.
Condor sem rumo, errante, que esvoaça,
Deixo-te entregue ao vento da desgraça!
Quero-te assim; na terra o teu fadário
E* ser o irm&o do escravo que trabalha,
E* chorar junto á cruz do seu calvário»
E* bramir do senhor na bacchanalha...
Se — vivo — seguirás o itinerário,
Mas, se — morto — rolares na mortalha,
Terás, selvagem filho da floresta.
Nos raios e trovões hymnos de festa.
Quando a piedosa, errante caravana.
Se perde nos desertos, peregrina.
Buscando na cidade musulmana
Do sepulchro de Deus a vasta mina,
Olha o sol que se esconde na savana.
Pensa em Jerusalém, sempre divina,
Morre feliz, deixando sobre a estrada
O marco miliario d*uma ossada
E mesmo quando a turba horripil£uite,
Hypocríta, sem fé, bacchante impura.
Possa curvar-te a fronte de gigante.
Possa quebrar-te as malhas da armadura;
Tu deixarás na liça o férreo guante,
Que ha de colher a geraçáo futura...
Mas, não... crê no porvir, na mocidade.
Sol brilhante do céo da liberdade!
Canta, filho do sol da zona ardente,
Estes serros soberbos, altflinados!
Emboca a tuba lúgubre, estridente.
Em que aprendeste a rebramir teus bradosl
Levanta — das orgias do presente,
Levanta — dos sepulchros do passado.
600 HI8T0BIA DA LITTXRATXrSA BBA8ILBIKA
Voz de ferro! levanta as almas grandes
Do sul ao norte... do oceano aos Andes !... »
Ainda mais eloquentes do que esta são as Vozes d' Africa,
a Tragedia no Lar e sobre todas o Navio Negreiro. Taes poe-
sias foram avulsamente publicadas em folhas soltas em 1870
e 71. Espalharam-se por todo o Brasil, fizeram grande sen-
sação, foram decoradas e eram recitadas nos salões.
Não sei qual o critico illustr"è que aconselhou o maior
cuidado em distinguir na poesia franceza, especialmente na
de Victor Hugo, a eloquência da verdadeira e estreme poe-
sia. Esta observação é exacta e não pode ser illudida.
Ha muitos trechos na poesia romântica, repletos de ima-
gens, cheios de sonoridades, de requebros, de adjectivações,
de apostrophes, que são verdadeiros typos, verdadeiros espé-
cimens de eloquência. Entretanto, e por via de regra, nem
sempre são os mais poéticos.
Este caracter pertence áquelles em que se nota mais sim-
plicidade, mais sentimento, mais vida intima, mais sinceri-
dade.
Os povos meridionaes, por indole exaggerados e propensos
á rhetorica, quasi nunca observsim a alludida distincção. Gos-
tam das fortes imagens, dos rendilhados das phrases, do
farfalhar das palavras, de toda a exterioridade bulhenta
emflm.
Por isso entre nós o que mais agradou de Castro Alves,
foram os palavrões, as bombas^ toda a falsa eloquência dos
versos.
Felizmente salva-se elle na historia; porque teve o bom in-
stinclo de escrever bellos pedaços de simples poesia.
Os epígonos se apoderaram do falso estylo e o levaram
ao requinte do exaggero : foi a quarta potencia do gongo-
rismo, verdadeira teratologia litteraria.
Na prosa a cousa alastrou ainda mais.
Foi esse por muito tempo o chie na arte de escrever brasi-
leira; e era a banalidade chromatisada, a tolice rythmada e
faiscante.
HI8T0BIA DA LITTIBATUBA BBA8ILBIRA 601
N*esse tempo aquillo é que era ter estylo; fora d'alli toda a
gente escrevia mal, não tinha gosto nem grammatica.
Aquillo sim; era a ultima palavra.
Hoje a preoccupação, o tic são outros, e não vêm ao caso
expôl-os agora. O que é preciso dizer é que o auctor da Ca-
choeira de Paulo Affonso, no pouco que fez em prosa não foi
tão exaggerado como os seus discipulos. Na introducção da
Luz o foi bastante por imitar Hugo e Quinet; na Carta ás
Senhoras Bahianas foi menos; no drama Gonzaga, feliz-
mente, ainda menos.
Duas palavras sobre este. ensaio dramático para Analisar.
E' uma bella tentativa; tem vida e encerra movimento; ha
alli typos bem desenhados. Gonzaga e Silvério são do nu-
mero.
O escravo Luiz parece-me falso, é muito eloquente e in-
slruido para a sua condição.
A melhor qualidade do drama é o sopro de liberalismo,
o enthusiasmo patriótico por todo elle espalhado.
Se o grande ideial da arte é tirar do facto particular e iso-
lado a nota humana e universal, que possa ser entendida por
todos, Castro Alves, a despeito de alguns descuidos, foi um
apreciável, um notabilissimo poeta.
E' talvez maior que Fagundes Varella, maior que o bom
Casimiro de Abreu, maior que Bernardo Guimarães, que
muitos de nossos românticos.
Transporta-nos a horisontes mais amplos; faz-nos assistir
a lutas mais fortes, a paixões mais intensas; mostra-nos almas
mais activas e mais ousadas. Seu nome não poderá ser senão
sempre admirado.
ViCTORiANO J. Marinho Falhares. — Foi amigo intimo de
Castro Alves e seu companheiro nas luctas theatraes. Não
chegou a acabar o curso de preparatórios.
Pobre e desprotegido, procurou ganhar a vida e deixou-se
por isso de estudos. Teve sempre um talento muito natural
e espontâneo, não perdento» jamais o gosto das lettras; cul-
tivou sempre a poesia com distincção e amor.
Publicou trez volumes de versos — Mocidade e Tristeza em
602 HIBTpSDL BA LirTERATUKA BRASILBÍBA
1866, Centelhas em 1870, Peregrinas n'este ultimo anno. O
estylo é o mesmo do condoreirismo.
Em Mocidade e Tristeza predomina o lyrismo pessoal, in-
timo, subjectivo.
Nas Centelhas encontram-se os cantos patrióticos do poeta
inspirados pela guerra do Paraguay.
Nas Peri^rinas avultam poesias de intenção doutrinaria c
philosophlca.
No lyrismo pessoal esta pequena canção deflne o estylo do
poeta :
ff Adeus! Já nada tenho que dizer-te;
Minhas horas ânaes trémulas correm.
Dá-me o ultimo riso pYa que eu possa
Morrer cantando, como as aves morrem.
Ai d*aquell& que fez do euínor seu mundo!
Nem deuses, nem demónios o soccorrem.
Dá-me o ultimo olhar para que eu possa
Morrer sornndo, como os anjos morrem.
Foste a serpente, e eu inda te adoro!
Que vertigens meu cérebro percorrem!
Mente a ultima vez para que eu possa
Morrer sonhando, como os doidos morrem. » (1)
Como esta, ha outras muitas em suas obras. Acho inútil
abrir discussâx) n^este terreno, mostrando a natureza intima
do lyrismo pessoal do auctor.
Julgo-o de mais valor nas poesias patrióticas. Estes versos
Ao Brasil definem-lhe bem a maneira n'este género de com-
posições :
ff E* hora de acordar. Rebrame na floresta
O furacão do sul, terrível, infernal;
Embocca o teu boré, a rubra massa apresta;
Sô outra vez caboclo, oh! filho de Cabral!
(1) Peregrinoêt pag. 33.
' HIBTOSIA DA LITTERATUEA, BBA8ILBIRA 603
E' duro despertar do somno da ventura
Sentindo arder no rosto a nódoa do baldão.
E eu vejo em tua Í6u;e alguma cousa escurai
Oh! alho de Cabral, sô outra vez le&o!
A trahiç&o rapace esbulha o teu direito;
Retcdham tuas leis á ponta de punhal;
Empenna a tua setta, amarra a aljava ao peito :
Sê outra vez Tupan, oh! alho de Cabral.
Ha muito que teu sangue ondeia na campina;
Não mostres tua chaga ao dia de amanhcui,
Empunha pressuroso o raio, que fulmina;
Oh! filho de Cabral, sô outra vez Tupan!
E' nada o desarmor de coraçOes corruptos,
Que impellem-te, sem dó, aos turbilhões do mal,
Sem seres Roma, tens Tiberios, Gracchos, Bnilfjs,
Serás sempre o Brasil, oh! filho de Cabral!
Nas garras do tufão, que zune pelos pampíis.
Desfraldas orgulhoso o pavilhão gentil.
Esculpirás teu busto em cima de mil campas;
E, filho de Cabral, serás sempre — o Brasil!
Creára Deus em ti um outro mundo á parte,
Qual o segundo Adão, que te perdeu também?
O monstro da ambição consegue desvairar-te,
E n*ara da vaidade immolas o teu bem.
Fugiste, ingénuo, á selva, e á beira mar sentado
Sorriste ao viajor que ao longe appareceu.
Em troca de ouropéis de um munso refalsado,
Leão, deixaste a juba ás plantas do europeu.
O que ganhaste? Um rei! O que perdeste? Tudo!
E a America rugiu fitando o teu senhor.
Bem tarde conheceste o quanto foras rudo;
Já tinhas sobre o peito o pé do domador.
Agora... é caminhar com os olhos no horisonte,
Um dia o Pharaó vacilla ante José!
1
(K)4 HISTOBIA DA LITTERATUBA BRASILEIRA
Não ha martyr algum sem resplendor na fronte,
N&o ha diluvio algum sem barca de Noé. n (1)
O poeta foi sempre um espirito liberal, progessivo, ávido de
luz e de gloria.
Collocado entre dois rivaes potentissimos Tobias e Castro
Alves, teve força bastante para fazer um nome cercado de
nomeada e sympathia.
Nem se pense que, por menos culto do que os dois, tivesse
sido um sectário sem autonomia. Nâo; teve notas suas, ori-
ginaes; na poesia marcial especialmente possuia um forte
vigor de colorido na descripçâo.
Nada poderia fazer melhor ao leitor do que lhe dar aqui a
vêr o quadro em que pinta a batalha de Riachuclo :
<( Foi prodígio! Riachuelo assombra.
E* custoso pensar n'essa batalha :
Deus alli trabalhou.
AUi da morte diffundiu-se a sombra,
Em manto, que era purpura e mortalha,
E que ao mundo espantou.
O direito de um lado, d'outro a raiva,
Rancor de abutre, o ódio sem motivo;
Um capricho do mal.
Fecha-se o tempo, e a morte, qual saraiva^
Fulmina o homen livre e o captivo
Em combate infernal.
A peleja rompeu como um incêndio;
Um diluvio de fogo innunda o rio.
Que referve em cachão,
E rola e sobe e engole o vilipendio
De mistura co'a legião sem brio,
Que defende o falcão.
Foi hora de explosão e de loucura;
Hora sem luz, sem vida, hora de morte;
Uma hora, que é um fim.
Hora que aterra o anjo da bravura,
(1) Centelhoêt pag. 11.
HISTORIA DA LITTBBATUSA BRABILSISA C05
Hora em que tudo oscilla, até a sorte,
Hora sem outra assim!
Transformou-se em catastrophe a coragem;
Surgiu de unhas de tigre o heroismo;
Foi tudo combustão!
Rasgou-se o rio em hórrida voragem,
E sedentos travaram-se no aJbysmo
A hyena e o leão.
tudo range, vacilla, chia, estala;
O machado, o vapor, o arpéo, a espada.
Homérico fragor!
Os navios varados pela bala;
A bandeira voando esfarrapada,
E os Brasidas sem côr !...
Luctam, morrem, ou matam nos seus postos,
Os sabres nús faíscam mil centelhas :
Duello de volcões!
Corusca o desespero pelos rostos
Onde as edmas reflectem-se vermelhas
Já do céu aos clarões!
Barroso empolga o génio do perigo;
Quasi estatua de chofre se electrisa,
E embocca o porta-voz.
E porte e vôa e cáe sobre o inimigo
Em quem, já fundo, o medo paraJysa
O delirio feroz.
A victoria scintilla de repente
Como luz de relâmpago; a esquadra,
Como um órgão, soou
Nas mil notas do hymno refulgente
Que a epopéa brasileira enquadra,
E que o mundo saudou!... » (1)
São vigorosos e potentes versos, dignos do glorioso feito
que descrevem. A este poeta não tem sido feita a justiça que
lhe é devida. Seu nome deve ser lembrado como um exemplo
(1) Centelhas t pag. 36.
<)04 HI8T0BIA DA LITTEBATURA BRASILEIRA
Não ha martyr algum sem resplendor na fronte,
Não ha diluvio algum sem barca de Noé. )> (1)
O poeta foi sempre um espirito liberal, progessivo, ávido de
luz e de gloria.
Collocado entre dois rivaes potentíssimos Tobias e Castro
Alves, teve força bastante para fazer um nome cercado de
nomeada e sympathia.
Nem se pense que, por menos culto do que os dois, tivesse
sido um sectário sem autonomia. Náo; teve notas suas, ori-
ginaes; na poesia marcial especialmente possuia um forte
vigor de colorido na descripçâo.
Nada poderia fazer melhor ao leitor do que lhe dar aqui a
vèr o quadro em que pinta a batalha de Riachuclo :
« Foi prodigiol Riachuelo assombra.
£' custoso pensar n'essa batalha :
Deus alli trabalhou.
Alli da morte diffundiu-se a sombra,
Em manto, que era purpura e mortalha,
E que ao mundo espantou.
O direito de um lado, doutro a raiva.
Rancor de abutre, o ódio sem motivo;
Um capricho do mal.
Fecha-se o tempo, e a morte, qual saraiva^
Fulmina o homen livre e o captivo
Em combate infernal.
A peleja rompeu como um incêndio;
Um diluvio de fogo innunda o rio.
Que referve em cachão,
E rola e sobe e engole o vilipendio
De mistura co'a legião sem brio.
Que defende o falcão.
Foi hora de explosão e de loucura;
Hora sem luz, sem vida, hora de morte;
Uma hora, que é um fim.
Hora que aterra o anjo da bravura,
(1) Ccnteihoê, pag. 11.
HISTORIA DA LITTBRATUKA BRA8ILSIEA C05
Hora em que tudo oscilla, até a sorte,
Hora sem outra assim!
Transformou-se em catastrophe a coragem;
Surgiu de unhas de tigre o heroismo;
Foi tudo combustão!
Rasgou-se o rio em hórrida voragem,
E sedentos travaram-se no aJbysmo
A hyena e o leão.
Tudo range, vacilla, chia, estala;
O machado, o vapor, o arpéo, a espada,
Homérico fragor!
Os navios varados pela bala;
A bandeira voando esfarrapada,
E os Brasidas sem côr !...
Luctam, morrem, ou matam nos seus postos.
Os sabres nús faíscam mil centelhas :
Duello de volcões!
Corusca o desespero pelos rostos
Onde as edmas reflectem-se vermelhas
Já do céu aos clarões!
Barroso empolga o génio do perigo;
Quasi estatua de chofre se electrisa,
E embocca o porta-voz.
E parte e vôa e cáe sobre o inimigo
Em quem, já fundo, o medo paralysa
O delirio feroz.
A victoria scintilla de repente
Como luz de relâmpago; a esquadra,
Como um orgáo, soou
Nas mil notas do hymno refulgente
Que a epopéa brasileira enquadra,
E que o mundo saudou!... » (1)
São vigorosos e potentes versos, dignos do glorioso feito
que descrevem. A este poeta nâo tem sido feita a justiça que
lhe é devida. Seu nome deve ser lembrado como um exemplo
(1) Centelhas j pag. 36.
608 HISTOBIA DA LITTSRATU&A. BRA8ILBIRA
Gonzaga. Não se diga que este é portuguez; então Anchieta
também é.
O nome do missionário leva-me a falar da grande novidade
do livro, as poesias do padre, traduzidas do tupy e do hes-
panhol. Ahí mesmo noto uma lacuna.
Mello Moraes deveria incluir os textos originaes ao lado
da traducção do padre Cunha. Ha todos os indícios de que
este não interpretou bem o pensamento de Anchieta. Pelo
menos lembro-me de ter isto ouvido da boca do mais abali-
sado conhecedor do tupy, que possuímos, o Dr. Baptista Cae-
tano.
Em todo o caso, Mello Moraes é benemérito das lettras em
ter contribuido para uma melhor comprehensáo do typo do
jesuita canarim. Anchieta não é de certo o creador de nossa
litteratura, como pensa o poeta, é o precursor delia.
Uma litteratura em massa não tem nunca um creador ; tem
elementos e tem órgãos. Os elementos da nossa são todas as
tradições populares provindas das três raças que consti-
tuíram nossa actual população, tradições modificadas pelo
meio e pela mestiçagem.
Os órgãos são os espíritos autonómicos que têm contri-
buido para a nossa diíTerenciação nacional.
O Dr. Araripe Júnior adduziu algures uma consideração
para o estudo do caracter do padre José, e vem a ser uma
certa tendência jogralesca de seu espirito.
O achado não será, talvez, de todo infundado; mas n'este
ponto, deve-se desconfiar de duas cousas. Primeiramente, é
sabido que no tempo de Anchieta a farça, a chacota^ a satyra
erão géneros litterarios em moda, impuham-se até aos espi-
rites mais sérios, ainda que não estivessem em harmonia
directa com o caracter do poeta. Era pouco mais ou menos o
mesmo que em sentido opposto se viu no t^mpo do roman-
tismo decadente quando a lumuria affectada se fez moda.
Rapazes nédios, sanguíneos, sadios, folgazões, desses que,
segundo o adagio, não mandam seu quinhão ao vigário, cho-
ramigavam p'ra ahi, que era uma verdadeira calamidade.
Entretanto, tudo falso ! Quem dirá que as jogralices do padre
não estejam n'esse caso, não esprimam antes um resultado
r^
HI8T0BIA DA LITTERATTTBA BBABILEIBA 609
do systema litterario do tempo do que um temperamento ver-
dadeiramente terenciano? Demais, o Dr. Araripe abusa muito
doeste género de explicações. Quasi em tudo elle descobre o
humour, a facécia; os termos jogral^ jogralices vêm a miúdo
ao bico de sua penna. Quando tratou dos nossos romances
sertaneios anonymos, elle fundou sua theoria na iogralidade.
Agora com Anchieta o mesmo; o mesmíssimo, explicando
a Guerra dos Mascates de Alencar. E' uma preoccupaçâo evi-
dente do critico.
E' bem certo que o Curso de Litteratura tem lacunas; mas,
em compensação, tem grandes méritos; é o transumpto de uma
bibliotheca inteira. Especialmente a litteratura do segundo
reinado está bem representada. Estão ali excerptos de cerca
de cem escriptores. O prefacio é bem escripto e alentado de
boas idéas em sua quasi generalidade.
As melhores obras de Mello Moraes Filho são as de con-
tribuição ethnographica e, acima de todas, as de poesia. Os
livros de ethnographia são — Cancioneiro dos Ciganos, Os
Ciganos no Brasil, Festas e Tradições popiUares do Brasil,
Quadros e Chronicas (1).
Todo e qualquer estudo que contribua para o esclareci-
mento das populações nacionaes, todo .e qualquer esforço
para fazer a luz sobre as origens, os costumes, a psychologia
de nossas classes populares, deve ser bem recebido e enco-
rajado.
A despeito de alguns trabalno:» emprehendidos por geogra-
phos, geólogos, ethnologos e linguistas nacionaes, o Brasil
ainda não conhece bem o seu território, nem sabe as filiações
das tribus indias e africanas, que lhe constituíram grandís-
sima parte da população.
As observações e pesquizas directas são entre nós bem par-
cas, ainda mettendo em conta as levadas a effeito por euro-
peus ou anglo-americanos, longa ou limitadamente resi-
dentes no paiz.
Tomada a ettpiographia como base para os estudos histó-
ricos e sociaes, quantos problemas não estão ahi a tentar-nosl
(1) Deixo de falar no Cancioneiro Fluminense e nas Serenatas e Saráoê
recentemente publicado^*, porque não têm caracter de estudos ethnographicos.
HISTORIA r 39
610 HIBTOBIA DA LITTBRATURA BRASILEIRA
O povo brasileiro é o resultado de muitos factores physicá
e moralmente.
Que devemos aos portuguezes, aos negros, aos indios?
Seria necessário responder a estas questOes, e elucidal^s
a fundo, sob todos os aspectos. Seria até preciso subdividir
cada um d'aquelles problemas capitães.
Entre os portuguezes vêr a acçáo dos ilhéos, dos minhotos
e transmontanos, dos alemtejanos, dos algarvios, suas migra-
ções para o Brasil, as direcções de suas correntes, suas pre-
ferencias para estabelecerem-se n'esta ou n'aquella província,
nos tempos da colónia e ainda hoje.
Praticar o mesmo para com os negros ; verificar a acção
das diversas tribus africanas, suas modificações no meio
americano, suas linguas, sua aptidão intellectual, etc.
Qual a contribuição dos negros da costa oriental e qual a
dos negros das costas do occidente ? Dos negros do grupo
bantú, do grupo felupo, do grupo mande, etc? Dever-se-hia
responder.
Idêntico processo para os indígenas. Quaes as raças prehis-
toricas e os seus representantes actuaes ? E quaes os povos
invasores em suas diversas raças e a contribuição de cada
uma d'ellas ?
Peito isto, estaríamos muito longe de ter esgotado o as-
sumpto. Restaria ainda e sempre investigar o que devejnos
aos hoUandezes, que senhorearam durante annos quasi todo
o norte do Biasil. A estada dos francezes no Maranhão nâo
deixou alli vestigios de qualquer ordem, não modificou de
qualquer forma as populações d'aquella provinda ?
Quanto a francezes, que lhes devemos pela acção intel-
lectual de seus livros, de sua litteratura que imitamos, de
seus costumes, de suas modas que macaqueamos ?
" A vizinhança dos hespanhóes nas províncias dag fron-
teiras não actua em qualquer gráo sobre os povos próximos ?
Quanto a hespanhóes, a imitação de sua poesia pelos auc-
tores nacionaes no século XVII nada influiu ? E o tempo
que pertencemos á Hespanha nada produziu ?
As colónias allemães do Rio Grande, de Santa Catharina,
HISTOBIA DA LITTEBATUfiA BRAfilLSIBA 611
Paraná e S. Paulo não exercem acçáo algema? E o contin-
gente italiano que tende a crescer?
E' mister determinar tudo isto, e ainda assim não ficarão
exhauridos os nossos problemas ethnographico-historicos.
Faltaria, por outro lado, determinar a indole, o caracter, o
impulso das populações mestiçadas, ponto capital da nossa
vida de nação.
Todas estas questões constituem um trabalho colossal, que
só poderá ser íeito aos fragmentos e no decurso de varias ge-
rações.
E' o grande estudo da demographia apenas iniciado no
Brasil.
Mello Moraes Filho, poeta cultor do nacionalismo pátrio,
tem-se dedicado a alguns d'estes assumptos.
Tomou para objecto de suas pesquizas a raça mais ou me-
nos nómada dos ciganos, que são mais abundantes no Brasil
do que geralmente se pensa.
Por pouco que tenham os ciganos conlribuido para o con-
juncto da intuição intellectual das classes mais baixas de
nosso povo, ainda assim apresenta um certo interesse o
estudo d'essa raça, que constitue no velho mundo um dos
problemas mais intrincados da ethnographia.
Especialmente na Hespanha e nos paizes slavos os tziganos
existiram desde os mais antigos tempos em numero conside-
rável. Mais ou menos mesclados, ou mais ou menos puros,
no exercício de certas industrias, na originalidade de seu
viver, na singularidade de sua musica, de suas danças, de
sua poesia, elles não deixaram de influir sobre o espirito
popular dos slavos e hespanhóes, para não falar de outras
nações.
Têm sido o objecto de uma litteratura inteira ; sua lingua,
seus costumes, crenças, festas, danças, musica hão sido o
assumpto de muitas publicações interessantes. O ponto mais
obscuro é o de sua origem e filiação ethnographica, de suas
migrações primitivas.
O Cancioneiro dos Ciganos é uma porção de quadrinhas
divididas em três series — Lyricas, elegíacas, funerárias. E'
bem verdade que o collector é amigo de alguns ciganos exis-
n
012 HISTORIA DA LITTEBATUBA B&ASILSnUL
lentes n*esta cidade e por intermédio d*elles poude relaoicmar-
se com os restos da população d'esta raça residentes aqui no
Jlio.
O livro offerece, pois, as garantias de uma pesquiza directa
0 pessoal. As quadrinhas reproduzidas foram ouvidas e cot
legidas pela próprio auctor. Aquillo tudo é sincero e de pri-
meira mfto. E, todavia, tenho duas objecções a oppôr.
A pequena população cigana aqui da cidade nova, ji mes-
1 içada, sedentária, desviada de seus hábitos primitivos, será
um exemplar ethnologico digno de conflança 7
As quadrinhas que repete, feitas em lingua portugueza,
serão todas produzidas por ciganos? Não serão muitas
aprendidas das populações que os cercam ? Limito-me a per-
guntar.
O livro Os Ciganos no Brasil constitue a parte critica da
obra do auctor por este lado. Acha-se dividido em quatro
partes : — Actualidade e tradições^ Trovas ciganas, Novo can-
cioneiro, Vocabulário. A primeira e a ultima são as mais
apreciáveis.
O alvo do auctor n'estes estudos foi provar que no corpo
<la poesia, contos, lendas e tradições populares do Brasil não
(levemos contar, como eu próprio havia feito, somente com
portuguezes, africanos, indios e mestiços d*estas três raças.
Devemos contar também com um factor geralmente esque-
cei do, o cigano.
Elle tem razão ; creio, porém, que exaggerou bastante as
cousas em certos pontos.
Pode-se bem apreciar no capitulo consagrado ao estudo das
superstições. O auctor dá ahi uma importância por demais
saliente ao contigente calon.
Convém ouvil-o :
« Entre as raças existentes no Brasil e as colonisadoras as rela-
ções religiosas são tão disparatadas como a aproximação dos dous
typos zoológicos, completamente extremes — o branco e o negro.
O caboclo bravo, sem a menor idéa de Deus, como attestam os
rhronistas ; o negro idolatra no período mais atrazado da escala
dos cultos, protestam contra um ideal definido no regimen espiri-
tual. O.s deuses tupy-guaranys, comprehendendo mythos homeo-
HI8T0XIA ]>Á LITmULTUBA BBABILBXSA 613
morphos e anthropomorphos nem mesmo pertenciam aos nossos
índios, segundo investigações de recentes cunericanistas, mas eram
aconomodações; as tríbus africanas, que para aqui vieram, não iam
mais longe nas suas adorações, do que â transmiss&o que íazLemi
das faculdades rudimentares do seu cérebro pouco denso aos mani-
panços^ elevados â categoria de divindades nos candomblés convul-
sionarios.
Para os negros nunca foram as conjurações as fórmulas do com-
mercio com os fetiches.
Nos serviços que conhecemos, ás uncções narcóticas, ás mace-
rações, ás excitações das dansas, ao pango e ás beberaragens teta-
nisantes, attribuimos as acções pretendidamente magicas.
O Índio e o negro, no nosso modo de entender, contribuíram
apenas para a nossa mythologia popular, o que se verifica com a
crença da Caipora^ das UyáraSy do Sacy-serêré e dos Dongás.
Emquanto a supertições propriamente ditas, augúrios, encanta-
mentos e rezas, a collaboraçào portugueza é evidente, apezar de
pouco avultada.
Um factor, porém, com o qual nunca contamos — o cigano —
parac&-nos ahi representar o principal papel, mais de accórdo com
a Índole e tradições da raça, com seu caracter mysterioso e remoto.
O portuguez, como espirito mais praticc, mais preoccupado, por
conseguinte menos impressionavel, aceitava o milagre como uma
imposição, sem indageur, sem mutilal-o para crear outros deuses.
Na sua fatuidade genealógica, estava engrandecer o culto externo,
humanísando a divindade. Dídii o alistamento dos santos no exer-
cito com soldo e patente; a Virgem servindo de madrinha ás cri-
anças; os santos padroeiros de cidades, protectores de namoros e
casamentos; a intervenção directa das entidades celestes na vida
publica e privada.
Remontando-nos á linguagem dos oráculos, aos exorcismos, a
concepções claramente supersticiosas, náo deve ser muito o que de
Portugal recebemos, explicando-se o facto pelo seu génio nacional.
Navegadores audazes, entregues ás conquistas de terras para o
rei, os portuguezes constituíam uma nação marítima. E o terror e
o medo, que geram o maravilhoso, seriam para elles elementos per-
turbadores, incompatíveis com o successo de suas temerárias em-
prezas.
Os homens do mar não sonham ou sonham pouco; a tempestade
os desafia, a fadiga os prostra, o oceano canta-lhes ao ouvido uma
cançfio monótona que os adormece.
Sem a floresta, onde em cada arvore se enrosca um fantasma, em
614 HISTOBIA DA LITTEBATTTBA BBASILBIRA
cada montanha se asyla um monstro; sem os sonhos que dâo corpo
e movimento éts creaçOes bizarras, as superstições são pouco pro-
váveis ou quasi inpossiveis.
O que adiantamos n&o é negar em absoluto o quinh&o que da
metrópole nos coube de crendices populares; mas é, fazendo o inven-
tario da herança psychica das raças colonisadoras, marcar ao ci-
gano o logar que lhe é indisputável na fonnaçâo desse género de
poesia, que tem doutrinado as nossas classes baixas.
Antes de tudo, devemos lembrar-nos que não ha uma abus&o, um
encatamento, uma oraçlo, que não seja um echo partido das nos-
sas mattas virgens... E as partidas ciganas errantes, pelos sertões,
ahi vivem ha séculos; e o nacionalismo brasileiro, refractário ás
grandes cidades, delias repercute como uma correnteza á distancia.
Estudando a psychologia dos grupos coloniaes, embora se re-
conhença a actual mestiçagem do pensamento supersticioso, não é
de boa critica attribuir somente ao portuguez e ao negro o que,
pelos hábitos e tendências naturaes, mais pertence ao cigano, natu-
reza crédula, fantasiosa, visionaria.
O fetichismo das nações da Africa Occidental é o lado bruto do
naturalismo; e os contos das fadas, a reza de Santa Helena, legendas
cavalheirescas e ascéticas da idade médicu
Ao portuguez devemos o Lobis-homen, a Mulu-sem-cabeça, o Pesa-
deUo e algumas rezas, nâo persistindo o mais. Assim, o systema
de enguiços, a lenda de D. Branca, prognósticos por meio de espe-
lhos, dados, amoras...
Póde-se observar o que é commum nas crenças dos calons, remi-
niscências do fetichismo dos africanos, o que comprova as influen-
cias pre-historicas da mythologia destes na doutrina sacerdotal
deuiuelles.
Em todo o caso, o que cumpre estabelecer é que na creação in-
forme de nossa theogonia nacional destacam-se quatro individuali-
dades : — o caboclo, o portuguez e o negro, dominando no degráo
mais elevado a cigana que lô a sina, que possue um ritual completo
de oráculos, de pragas e de exorcismos » (1).
Depois d'estas theses, passa Mello Moraes a citar uma boa
porçÉlo de superstições que suppõe produzidas pelos ciganos.
Não sei, nem é possivel saber, se elle tem razão n'este
ponto; porquanto eu faço esta observação : as referidas
superstições nos vieram de Portugal, d'onde também vieram
1^ Os Ciganos no Brasil, pag. hít e seguintes.
r
HISTORIA Da LITTSBATURA BRàSILJURA 615
OS ciganos, de forma que a questão reduz-se a estes termos :
as superstições, pragas, orações e parlendas, vindas da me-
trópole, foram alli uma obra dos ciganos 7
Tal pergunta não poderá ter jamais uma resposta scien*
tiflca; porque presuppõe uma questão ainda mais geral, que
é esta : a que povo ou a que raça se deve attribuir a origem das
superstições, ainda hoje existentes no meio das populações
da Europa ? E' de boa critica attribuil-as a uma raça primi-
tiva especial ? Não serão antes uma collaboração de muitos e
variados factores ? Mello Moraes levantou, pois, no Brasil
uma questão insolúvel.
Tudo que em nosso paiz se refere a negros só poderá ser
proficuamente estudado n'Africa; tudo que se reporia a por-
tuguezes só pode ser bem pesquizado em Portugal.
Ora, os ciganos, que se transportaram para o Brasil, eram
portuguezes, o que importa dizer que já vinham desfigu-
rados, complicados ethnographicamente, cheios de ideias e
sentimentos extranhos.
A despeito doestas reducções que faço, a contribuição
ethnographica — Os Ciganos no Brasil — é livro que merece
ser lido ; porque encerra boas paginas e interessantes in-
formações. Como exemplificação do estylo do escriptor trans-
crevo aqui um trecho do capitulo que trata da familia cigana
e do ceremonial dos casamentos n'ella.
E' assim :
« O lar cigano teve os seus eslylos particulares, coloridos dos
refiexos dos dias antigos!
As leis de evolução, que annuUaram os factos isolados, encontram
esses pariás na eminência de uma civilisação no apogeu, de onde,
impellidos por forças inconscientes, desceram como homens e ainda
rodeam como phantasmas.
Em sua vida, fértil de riscos e aventuras, no templo ou na praça,
na cidade ou nos desertos, o habito das outras sociedades jamais
marcou-lhes as tradições e os preceitos de uma moral sem quebra.
Surgindo dos nevoeiros pre-historicos ou não, o certo é que elles
altearam-se á perfectibilidade sociológica, no tocante á instituição
da familia.
Pelo viço de suas legendas, pelo symbolismo das suas manifes-
616 HISTOSIA DA LITTBSATinU. BBÁBILBXEA.
taçõôs sensíveis, pela inviolabilidade de seu regimen privativo, pôde
ezcluir-se de seus costumes a polygamia, a promiscuidade, o in-
cesto, etc., sendo unicamente adoptada entre elles a monogamia
como união sexual, estado que assignala o supremo desenvolvi-
mento das collectividades humanas.
Gomo conjuncto ethnico, o casamento dos ciganos da Qdade Nova
abrangia toda uma série de particularidades typicas da raça, disse-
melhantes a mais náo serem das que se notam nas outras, que mais
têm influído no nosso meio.
A intervenção paterna como mediemeira dos contractos, os usos
excêntricos entre os noivos e parentes, a lealdade de revelação que
infamava, a prova sacramental do Gade, que assentava sobre a vir-
gindade as bases da família nascente, — imprimiam nesses pactos
uma característica sem analogias nas nossas camadas populares.
Na sua convivência, o escrúpulo de corpo estranho determina
allianças entre parentes próximos e — cousa extraordinária ! — a
ínfecundídade nfio os fere, observando nós por excepção, entre essa
gente, casos pathologicos, o que também se pôde expliicar pela
embriaguez no acto da copula, as privações, as tristezas prolon-
gadas, a míseric^ etc...
Em nossas visitas medicas á casa de muitos delles, o que nos fez
espécie foi a quantidade de surdos-mudos que existe na casta. Attes-
tamos ter prestado os nossos serviços proíissíonaes a famílias, nas
quaes dous ou mais de seus membros soffrem deste mal.
Do concurso dos sexos não só transmittem aos descendentes
heranças physíologícas e pathologicas, caracteres reductíveis e
irreductiveis, como também a individualidade moral, que varia como
aspecto, mas que não se evapora como essência.
Referíndo-nos aos casamentos, os ciganos do Rio de Janeiro, até
1850, não tinham passado da phase primitiva, assim como ainda
hoje as partidas de Minas, Bahia e Maranhão, no dizer insuspeito
do Sr. Pinto Noites, o mais alto representante dos instinctos nó-
madas de seu povo.
Delle, que arma a sua barraca ao vento lúgubre das nossas flo-
restas e das velhas runins com quem privamos, passemos ás infor-
mações, que são tanto mais exactas, quanto são elles personagens
authenticos.
Em geral o amor não tomava parte nesses actos. Não era neces-
sário, para que as allianças se realísassem, sympathia commum,
estremecimento, affecto...
Dahi insuccessos frequentes, que se manifestavam pelo enfado
e desprcuser de uma vida inteira, da mulher ou do homem, constran-
r
I
HISTOBIA DÁ UTTBKATnBA BRABILEISA 617
gidos pelo dever a risos fingidos, e a sorverem resignados a ultima
gotta de amargura que lhes envenenava os dias.
Essas núpcias realisavam-se fatalmente, como por desfastio dos
pais, que se lembravam de que um filho estava em idade de tomar
estado, n&o assistindo aos da noiva o direito de recusa.
Entre calons o dominlo da igualdade é absoluto. Negar uma moça
pedida a casamento, implica estabelecer uma lucta de preconceitos,
em que o provocador terá de ser vencido pelas acusações, expondo
a murmúrios malévolos e á calumnia uma reputação ás vezes imma-
culadcu
Conhecido o dilemm6L, o sim constituía a regra, a menos que a
rapariga náo houvesse tropeçado na deshonra.
Os tramites a seguir eram vulgares e as scenas desdobravam-se
naturalmente.
Assim, quando um bato (pai) tinha um filho, maior de 17 annos,
official de justicia ou com um emprego qualquer, dirigia-se com elle
á casa de um outro bato que tivesse uma filha núbil.
A* distancia, percebidas as intenções, aquelle os recebia favora-
velmente, com agrados declamatórios, modos expansivos, ditos
chistosos...
Os dous conferenciavam em segredo, por algum tempo.
O rapaz, desconfiado e timido, de pé e afastad' escorajido uma
portada, alongava o olhar de soslaio, estirava o pescoço, suspendia
a respiração, apanhemdo no ar pcdavras desconnexas.
Se a filha não estava pura, o pai, que por instantes acariciara uma
illusão, cobria o rosto de vergonha, lamentava-se e, soluçando, des-
vendava o mysterio da dor que o pungia.
E esta lealdade não o aviltava diante dos seus, mais tarde sabe-
dores do occorrido, nem no animo do progenitor do malogrado noivo,
que o aconselhava de casal-a com um quiérdapanin, alvitre aceito
sem exame e posto em prática de seguida.
O consorsio com estrangeiro importava exclusão ignominiosa da
tribu e pela tribu.
O contrario, porém, da\'a-se quando a mãi de amanhã fosse a
virgem de hoje.
O avelhantado bato, radiante de jubilo e felicidade, vendo afun-
dar-se no tumulo, mas resurgir no futuro, chamava a filha e, tre-
mulo de contentamento, arrebatado de enthusiasmo, entregava ao
homem de sua casta um thesouro de virtudes para riqueza de sua
prole.
Então o pai do pretendente dirigia-se a este :
^18 HIBTOBIA DA tITTBRATURA BRASILEIRA
— Aproxima-le; chega-te, meu filho. Olha que teu lio aceita a tua
mao e se compraz de que faças parte de sua íamilia.
O filho, obedecendo :
•^ Agradeço, meu tio, a honra que me dá, certo de que, tmquanto
eu tiver um praio de feifão e uma pitanga, saberei repartir com sua
filha e minha futura consorte.
Nesta occasiào apparecia a sogra, com a chusma de filhos, pa-
rentes e escravos, endireitando o chalé vermelho, pulando de satis-
feita, rindo e gritando.
O primo, pai do noivo, enfiava as mãos nas algibeiras do colete,
empertigava-se, e depois, com o abraço aberto, corria para ella,
tocando-se protestos cordiaes e amistosos.
O noivo beijava-lhe respeitosamente a dextra, tomava a bençôo
ao sogro, inclinava-se diante de sua noiva e um pequeno dialogo
se entabolava :
— Só lhe posso garantir, meu primo, que sua filha nunca se arre-
penderá. Meu filho — nâo é porque o seja — é muito ganhador da
vida : tem queda para as barganhas, não tem vicios, é humilde e
emfim — é bom á boca cheia! Quanto ao ser pobre, todos o são.
— Sim, meu primo, eu sei o quanto elle é bom, e foram sempre
esses os meus desejos; o que se quer é fortuna.
— E* verdade, interrompe a reflectida sogrc^ a sorte é que é
tudo.
— Dizes bem, minha filha, accrescenta a avó, é só delia que care-
cemos.
— Quanto á meniiia, prosegue o pai orgulhoso — é o que se vè :
muito laxinzinha: é mesmo uma alma de Deus. D6-lhe seu filho um
vestidinho de chita, uns tamancos e banha para os cabellos, quando
ella precisar, e é bastante para sermos todos felizes.
— • Isso, responde o pai do noivo, terá ella, graças a Deus, porque
o menino tem baque para o dinheiro e não é cocando.
Terminados os incidentes da negociação, a que os ciganos cha-
mam dar a barroada^ começavam logo a entrar os tios, compadres,
primos e mais parentela, que vinham dar os parabéns.
A casa era lavada de ponta a ponta, o soalho coberto de areia, e
enfeitavam a talha de ramagens floridas.
Duas ou três violas, encordoadas de novo, deviam ficar á espera
dos tocadores dos bródios, que principiavam na noite immediata 4
do pedido e se prolongavam até á do noivado.
Em todas as direcções partiam emissários, portadores de parti-
cipações e convites.
Esta formalidade era de rigor, não se excluindo mesmo os ini-
r
HISTOBIA DA LITTEBAXUEA BRASILEIRA 619
migos; porquanto, o cascunento e a morte são para os cahns os
acontecimentos mais solemnes da vida.
Na manhã seguinte, ao levantar do sol, o noivo, pressuroso, mi-
moseava a noiva comum enorme ramalhete de cravos brancos e
encarnados, e consecutivamente com outras dadivas esponsaes,
bem como sabonetes finos, vidros de cheiros, peças de fita côr de
rosa, amarella, escarlate, cortes de vestido encarnado, côr de cravo,
amarello e azul, lenços bordados de vários matizes, tudo isto acom-
penhando de jasmins do Cabo, alecrim, cranivas, etc.
Diariamente, para quantos chevagam, estendiam-se esteiras re-
pletas de iguarias exquisitas, ensopados, abundância de assados e
grandes lombos de carne de porco, vianda sobremodo estimada
pelos ciganos.
Erguiam-se brindes, rosgavam-se comprimentos, bebia-se com
enthusiasmo á saúde do ditoso par.
Ao anoitecer, dansas, os chorados na viola, os descantes espe-
ciaes e os bródios...
No dia do noivado, que cahia sempre n'um sabbado, enfeitavam
a casa com apparato e gosto. Na porta fincavam bellos troncos de
mangueira e a atmosphera que se respirava lá dentro trescalava de
odores indistinctos, pela mistura das essências acres com o fumo
do benjoim e alfazema que ardiam.
A's três peu^a as quatro horas da tarde a habitação fervia de gente,
os vizinhos abelhudos estavam attentos e os transeuntes paravam
na rua.
No meio da lufa-lufa, as matronas que acompanhavam os noivos,
os padrinhos, a familia, encaminhavam-se á freguezia.
Para os actos a que nos referimos, havia quatro madrinhas : duas
iam á igreja e duas ficavam.
Recebidos em matrimonio, de volta do templo, atacavam-se giran-
dolas, e, apenas os esposos transpunham o lar, cascatas de flores
cahiam-lhes em ondas sobre a fronte, irisadas e odoríferas.
Os menestréis preludiavcun nas violas as suas toadas, os can-
tadores improvisavam os seus epithalamios inspirados e os convi-
dados, de tochas accesas, formavam alas por onde passavam os
recem-casados.
A' meia noite retiravam-se todos para um lado da sala, adian-
tando-se os noivos e as duas madrinhas.
As violas e as canções vibravam m6ds fortes.
Sobre um movei, cinco lençóes, alvos como uma hóstia, aroméi-
tisados com alfazema e salpicados de flores, achavam-se superpos-
tos.
620 HISTORIA DA LITTSRATX7BA BllASILBIBA
Quatro tochas accesas, encostadas a uma meza, derramavam
sobre o linho uma luz de ambai* e ouro. As janellas fechavam-se, a
inquietaç&o transparecia cm todos os semblantes : o rito sagrado
do Gade ia cuniprir-se.
E os padrinhos, que também eram quatro, desdobraveun os len-
çóes, os suspendiam acima da cabeça, juntando as extremidades,
passando um ao outro os cirios que sustinham, alongando o braço
opposto e formavam o quarto onde a sacrifício incruento deveria cele-
brar-se.
Ent&o nelle entravam os desposados e as duas secerdotizas.
Os instrumentos tangiam meus vigorosos, como que para suffocar
algum gemido de dor...
Umas das matronas despia a noiva, deitava-a sobre um leito, in-
troduzia-lhe o dedo indicador no vestíbulo da vagina, despedaçava
a membrana hymen, enxugando na camisa de cambraia as gottas
de sangue da virgindade.
Vestida novamente, a um signal ajustado, os padrinhos largavam
os lenções e o marido mostrava no Gade as rozas da pureza aos
alaridos do festim.
Depois da musica, dos cantos, das palmas e das flores, o noivo
recitava um discurso.
Bravos, trovas, felicitações...
O Gade^ solemnemente acondicionado n'uma ccdxinda de preço,
embebido de aromas suaves, coberto de folhas de alecrim, ficava
pertencendo ao esposo, que o guardava para sempre como penhor
de sua alliança.
E o bródio recomeçava... » (1)
Ainda no terreno da ethnographia falta dar uma rapidís-
sima ideia do livro — Festas e Tradições Populares do Bra-
sil, superior ao que se intitula Quadros e Chronicas.
Sáo estas as principaes festas descriptas : A noite de Natal,
A véspera de Reis, São Sebastião, O entrudo, O carnaval,
Quinta-Feira santa, Sexta-feira da Paixão, A festa do Divino,
A procissão de S. Jorge, A véspera de S. João, O dous de
julho, O sete de setembro, O dia de finados.
Por este quadra bem claro se vè que doestas festas apenas
em cinco (Natal, Reis, São João, Espirito-Santo e Entrudo)
ha folganças de cunho verdadeiramente popular.
(1) Os Ciganos no Brasil, pag. 71 e seguintes.
r
HISTORIA DA LITTXRATITEA BKABILBIBA 621
As outras são festas de Igreja e festas patrióticas, queridas
do povo é certo ; mas onde elle é simples espectador.
Mello Moraes tem em alta escala o sentimento nacional ;
porém nunca sahiu da cidade da Bahia, onde passou a in-
fância, e da cidade do Rio de Janeiro, onde reside hoje, dois
centros quasi inteiramente impróprios para o estudo de tudo
quanto se refere ao nosso povo.
Este só pode ser com proveito inquirido e investigado nas
villas e aldeias do interior, nas fazendas, nos engenhos, nos
sitios agrícolas, nos sertões, nas praias de pescadores, etc.
Mello Moraes tem andado fora de taes recursos e meios de
analyse.
Tudo quanto é possível colher aqui no Rio entre as classes
proletárias, ciganos, negros, velhas pedintes... elle tem pro-
curado enthesourar. Isto não basta. Elle não viu nunca o
povo no seu trabalho, nem no seu folgar no interior do Brasil.
Nunca viu um polirão para flagem de algodão, uma botada
de engenho, umas partilhas de rezes em fazendas de criar,
um campear de vaqueiros, uma derrubada de mattas, uma
emenda de pescaria, uma viagem em canoas ao longo de
extensos rios, um safrear de farinha ou de assucar, um plan-
tio e colhéta de legumes, emfim um qualquer d'esses muitos
afazeres do nosso povo em seus trabalhos, em suas indus-
trias locaes.
Também não viu ainda o povo divertir-se ; não viu um
samba com as suas mil cantigas e suas vinte danças diversas,
uma festa de casamento na roça, um bando de Gongos em dia
de Reis, um bando de Tayêras em dia de Natal e Anno-Bom,
um Bumba-meu-boi feito em regra, uma festança de Mouros,
de Marujos, um auto do Cavallo-marinho, do Zé-do-Valle, do
António Geraldo, do Cego, da Cabrinha, etc, etc, ainda hoje
representados no norte;, e em menor escala no sul do Bra-
sil (1).
E' pena que o poeta e imaginoso escriptor, com a pers-
picácia de observação de que é dotado, não haja tido amplos
(1) Em 1878 em Paraty, na província ds Rio de Janeiro, e em princípios
de 1888, na fazenda dAAratingaúba (município da Laguna), na província
de Santa Catharina, vi algumas doestas folganças populares.
]
622 HI8T0BIA DÁ LITTERATURA BRA8ILEIBA
ensejos de estudar o povo, onde elle se apresenta estreme,
puro, original, não mesclado ás classes alheiatorias da Capi-
tal Federal.
Dispondo apenas dos recursos que pode aqui encontrar,
é admirável que haja conseguido tantas informações, como
aquellas que se nos deparam nas Festas Populares e nos Ci-
ganos no BrcLsU.
O auctor tem recorrido a velhos do norte, residentes n'esta
cidade, e por via tradicional construiu alguns artigos de seu
livro das festas. Por esta forma descreveu muito bem, por
exemplo, o brinquedo dos Congos, também chamados —
Cucumbys.
Pelo que tenho dito até aqui d'este escriptor, deixa-se ver
bem clara a direcção geral de seu espirito litterario. Em-
quanto os acluaes auctores pátrios quasi todos se atiram
esfaimados a busca de um ideial, ou de uma norma no es-
trangeiro, Mello Moraes entesou seu arco e arrojou a setta
n'uma só direcção, e esta direcção é o corpo d'este paiz, a
alma d'este povo, o coração d'esta pátria. Amar, estudar,
descrever esta terra é o seu ideial de artista. E n'este afan,
n'este luctar pelo brasileirismo, o passado, as tradições, o
viver extincto das gerações que foram, prendem-se-lhe mais
ao coração do que o espectáculo da vida presente. E' fácil
ainda mais aprecial-o, estudando o poeta.
Por esta face analysado, o auctor dos Cantos do Equador c
dos Mythos e Poemas é de ordinário collocado no grupo dos
condoreiristas, como sectário de Castro Alves. Isto não é
exacto, ou só é admissivel em diminuta parte.
. Quando em 1867 os dois poetas se encontraram na Bahia,
já Mello possuia fundamentalmente o systema poético que
até hoje tem conservado.
Este systema encerra dois elementos principaes : certa dis-
posição phantasista dos quadros e scenas, determinado
aferro a assumptos nacionaes. Aquelle foi aprendido dos ro-
mânticos em geral, especialmente Quinet, e este om parti-
cular de Bittencourt Sampaio.
Segundo confissões do próprio poeta, taes foram os au-
ctores que mais influiram na sua fechnica artistica.
HIBTOKIA DA LITTERATURA BRASILBISA 628
A acçào de Castro Alves, se existiu, ó quasi inapreciável.
Admittida, confessada aquella outra influencia estranha, na
obra poética de Mello Moraes, ainda lhe flcam elementos
próprios, de caracter autonómico e original.
Tem mais força do que Bittencourt Sampaio e mais simpli-
cidade 6 intuição brasileira do que Castro Alves.
A tendência para os assumptos nacionaes, a disposiçã^o do
espirito para reflectir os sentimentos, os aflectos, as eflusões
d'alma nacional, era no poeta uma predisposição nativa.
Foi talvez reforçada com a leitura das Piores Sylvestres do
lyrista sergipano ; mas o que acabou por aferral-o completa
e definitivamente ao nacionalismo pátrio foi a leitura dos
Estudos sobre a Poesia e os Contos Populares do Brasil do
auctor doeste livro, publicados na Revista Brasileira no cor-
rer da anno de 1879.
Estes impulsos externos não crêaram no espirito do poeta,
repito, inclinações e attitudes novas ; reforçaram apenas ten-
dências originaes e instinctivas.
De 1880 em diante a producçáo litteraria de Mello Moraes
triplicou e tudo trouxe a côr de suas affeições intimas, que
era a côr do céu de sua terra.
Seus dois livros de poesias são os Cantos do Equador de
1881 e os Mythos e Poemas de 1884 (1).
A critica de taes livros já está implicitamente feita, no que
até aqui tenho dito do auctor ; mas é preciso insistir, porque
a cousa vale bem a pena.
O talento principal de Mello Moraes é o talento de poeta ;
a nota fundamental de sua arte é o Ivrismo nacionalista.
Dizer isto é dizer muito ; mas este muito é ainda bem pouco
para definir a Índole d'essa poesia.
Ser nacionalista é cousa que se tem dito de muito poeta e
litterato, e muitas vezes sem razão. N'cste auctor o naciona-
lismo exhibe qualidades especiae^.
Primeiramente, elle é um nativista n'uma época em que
esta qualidade, para muitos, parece ser um crime, n'uma
(1) Ultimamente, a casa Garnier tirou uma edi<;íío definitiva sob o titulo
único de Cantos do Equador.
624 HI8T0BIA DA LITTERATURÂ BBA8ILSIBA
época de alheiaçáo quasi completa do caracter nacional, pros-
tituído, aviltado por um sem numero de imitações e de baju-
lações a estrangeiros. Litteratos e políticos têm perdido a
cabeça atraz do sonho pernicioso do estrangeirismo.
A mania do povoamento a todo trance nos políticos, a mo-
léstia de plagiar nos litteratos têm abastardado completa-
mente certa parte de nossos homens públicos n'uma e n'ou-
tra esphera. Felizmente ha hoje, como sempre, o grupo dos
que protestam e o poeta é d'este numero.
Outra qualidade, e essa fundamental do nacionalismo do
auctor, é ser elle consciente, assegurado por um plano regu-
larmente organisado e seguido á risca.
D^antes os nossos nacionalistas eram duplamente lacuno-
sos : nã.0 abrangiam todos os factores da alma brasjleira, e,
d'aquelles de que tratavam, nâo passavam das manifesta-
ções exteriores.
Em Mello Moraes a critica intelligente vae mostrar que elle
escapou a esse duplo motivo de inferioridade.
Antes de tudo, ella notará a existência completa do quadro
dos agentes que constituíram, differenciaram, integraram o
nosso povo.
Natureza exterior, índios, negros, portuguezes e mestiços lá
estão. Depois notará que dos índios, por exemplo, não se
poz a descrever usanças meramente secundarias. Repro-
duziu suas lendas, penetrando-lhes assim na psychologia;
quanto aos negros, não declamou sobre o facto da escra-
vidão ; observou a vida do captivo e reproduziu-lhe as peri-
pécias principaes.
Entre as poesias que dão conta de scônas de nossa natu-
reza tropical deslacam-se : — Ponte de lianas, A sucuriuba,
Tarde tropical, Floresta submergida, Noites do equador,
Tempestade dos trópicos.
Dentre as que se referem a assumptos indianos avultam :
— O sangue do jaguar, No ccu e na terra, A lenda do algo-
dão, A tapera da lua, A lenda das pedras verdes, A lenda da
abóbora.
Nas que têm por assumpto o negro escravo deslinguem-se :
— A rede, A novena, A ama de leite, Partida de escravos.
HI8T0SIA DA LITTBBATinU. BBA8ILEIBA 625
Verba testamentária, O legado da morta, Mãi de criação, A
feiticeira, Ingénuos, Escravo {ugido, A reza, Ckintiga no eito.
Os assumptos portuguezes apparecem em Alma penada,
Saudação dos mortos. Os Immortaes. Estes últimos são de-
dicados ao centenário de Camões...
Os assumptos de intuição brasiliana particular, intuição
mestiça, são os mais abundantes. E' bastante referir — A mu-
lata, A tabaróa, A caipora. No pouso, O palácio da mãi d'agua,
Bem-te-vi, Trovador do sertão, A sereia do Jaburu, A luz
dos afogados, A endemoninhada, A romaria do Bom-Despa-
cho, A véspera de Beis.
Todos estes assumptos foram tratados com graciosidades e
mimos de lyrista. .
E' já tempo de cital-o sob as suas differentes faces. E* bom
vir de mais longe, a natureza; eis a Tarde Tropical :
K E' a hora do dia em que das mattas
Desce a sombra da basta gamelleira,
E, saltando das lapas, as cascatas
Espadanam das aguas a poeira...
Em que a onç6^ lambendo as ruivas patas,
Rente o peito com o chão da cordilheira.
Encurva o dorso e cerra, ao abandono,
Os olhos d'ouro, de fadiga e somno...
Em que o indio perdido na savana
Conta a Tuj^an seus bárbaros segredos...
E a tarde, bella moça americana.
Côa a luz do crepúsculo em brônzeos dedos I
Em que as flores vermelhas da liana,
Da ponte de cipós dos arvoredos,
Cahindo ao sopro da macia aragem
S'estendem sob as redes do selvagem !...
Hora de amor, de prece, hora de encanto !
Tu murmuras nos rios transparentes ;
E tens por voz da guaraponga o canto
E o ronco das giboias nas vertentes !
Quando tinges no occaso o claro manto
E além descambas d'esses céus ardentes,
HISTORIA II 40
^
626 HISTORIA DÁ UTTEEATUfiA BIUL8ILBIBA
Mão de mysterio, por velar-te a urna,
Ergue no espaço a lâmpada nocturna 1
E' já quasi ao sol posto, quando a terra
Trescala de selvática harmonia...
Que á cascavel que dorme pela serra
Espanta o silvo da cauan bravia !
E.se ruge o jaguar que o fogo aterra,
Aceso & porta da cabana esguia,
Retumbam echos nos rechedos fundos,
— Titans rolando do Equador nos mundos 1...
Os cactus em ílôr pela clareira
S*illuminam de insectos scintillantes ;
E a velha da tribu, a feiticeira,
Evoca os génios da floresta errantes,
E se os lumes sinistros da fogueira
Aos sortilégios lustram mais fumantes,
As corujas nos ares ululando
A* face do crescente vâo voando !
Hora de amor, de adoração, de crença,
Ave-Maria 1 — Estrella dos palmares I
Tu mitigas do escravo a dôr intensa,
A' santa uncção dos mysticos cantares I
Quando baixas do céu, a selva immensa
Manda esperar-te os largos nenuphares...
E o oceano, na vaga que íluctua,
Reflecte de teus pés a meia lua !
Nos braços do lethargo, á frouxa luz
Do sol que morre, ~ dorme a natureza I
E as rolas pelas moitas dos bambus
Arrulam doces cantos de tristeza!
E o caboclo que leva os íUhos nús.
Do Amazonas á rija correnteza.
Penetrando a floresta, em mudo assombro,
A um tem pela mfio, — traz outro ao hombro !...
Tardes de minha terra I ó prado ! ó flores !
Bosques cheios de sombra e de harmonias !
Valles e serras, mágicos vapores,
Ninho das garças nas lagoas frias I
I
r
HISTORIA DA LITTERATURA BSA8XLBI1LA 627
VÓS recordais-me a trilha dos amores,
O colmo das deixadas phantasias,
Por onde essa illus&o que a alma nos cança
Pendura as redes d*ouro da esperança !
Adeus, ó tarde, adeus 1 que os horizontes
Cobrem do dia morto o corpo algente...
Turva neblina rola pelos montes,
— Cinzas das azas doesse sol poente !
Ave-Maria I ao céu quando remontes,
Da natureza eterna ao hymno ardente.
Que a ti subam d'esVharpa os sons íinaes
Aos enlevos das tardes tropicaes I » (1)
Depois da natureza vem o selvagem e é bom que se
ouça a Lenda da Abóbora :
(( De assalto as sombras, quaes piratas negros,
Tomam €is matas ásperas, bravias...
O jaguar como um arco empola o dorso,
Se estirando das patas luzidias.
Luzes de estrellas, de macias ílammas,
Silenciosas brilham pallecentes ;
Gemem ventos vezanos que aos tapuyos
São oráculos dos mágicos parentes...
Aos fogos canibaes de cem fogueiras
Pendem ramas de trevas cavalgadas ;
E os caboclos soturnos, nos espetos
Viram do morto as regiões tostadas.
Um rugido no etr... Jacaré torvo
Da onça o flanco fulvo chicoteai...
Partio-lhe a cauda a fera... elle sumio-se,
Deixando um rastro de sangrenta arêa.
Aos bailes do terreiro, as feiticeiras
Se encolhem tremulas, atiçando as brazas ;
E grita a alma perdida e as aves tontas...
Abrem no espaço rubro as curvas azas.
(1) Cantoê do Equadar, pag. 28, ediç&o de 1881.
628 RI8T0BIA DA LITTESÂTinLI, BBA8ILBIRA
Em alarido enorme as tribos pávidas
Enchem de espanto as naturaes paragens ;
Mutilações de dó... soluços... prantos...
Nos corpos nús funéreas tatuagens I
D^ Yâia o chefe poderoso, a rode
Na cabana lá está — selvagem horto !
As carpideiras lanham-se, e agachado
Contempla o chefe Yéda o filho morto. *
N&o quer vasos de terra ! — as igaçabas
S&o a seus olhos miseros sarcophagos ;
E rincha o marabd^ e os ritos cumprem-se
A*8 dansas funeraes dos anthropophagos.
Guarnecendo a maloca, em altos postes
As cabeças das victimas âncadas ;
Os pregoeiros sopram nas buzinas
P*ra traz vergando as frontes gateadas.
De quando em quando, em contracções atléticas,
Um braço armado gira subitaneo ;
O captivo resiste, e ao resistil-o
A massa tomba e se estilhaça um craneo !...
Em confusa algazarra os povos Íncolas
Na cordilheira buscam tredo acoite ;
E em torno do defunto os fachos 6u:dem
De génios máos esvasiando a noite.
N'uma abóbora desforme
Abriu-lhe o sepulchro Yéda :
Foi pertinho da cabana
Por baixo da sapucaia.
Sentou-o no seu jazigo,
Uniu-lhe ao peito os joelhos,
Com seus coleu^es de dentes,
Seus diademas vermelhos.
Um bando de pombas bravas
Mortas flcaram-lhe aos pés,
HISTOIOA BA LITTSRATUBA BBABILKISA 629
A canan que espanta as cobras,
Que Incta com as cascavéis.
De flecha e clava e membys
Cercou a múmia querida :
Para os combates da morte
Levava as armas da vida.
E de vôl-o triste, triste,
Chorando seu filho ahi,
A rola... as rolas gemiam
Nas palmas do licury.
Desce o chefe a montanha : a visital-o
Segue á luz da manhã que além domina ;
Aqui e alli, mil troncos suarentos
E o insecto que zumbe da matina !
Do rochedo aos degraos sobem vapores,
— Erma, vasta e fumante escadaria!...
£ o abutre pellado a testa esconde
Debaixo d*aza voadora e fria !
Yáia proseguio... mas avistando
A abóbora tumular d*esses caminhos.
Notou que enormes peixes se escapavam
Da planta cheia de algaçaes marinhos.
No terror que o agita, o caso infausto
Leva á óca dos seus, â tribu inteira!...
E as trompas soam nas quebradas longas,
Suppondo auguros a naç&o guerreira !
Quatro meninos gémeos que attentavam
O chefe — peurtem, sem demorc^ inquietos.
Famintos, nús, zebrados, offegantes,
A* grande pescaria em seus desertos.
Reunem-se os pagés, velhos, mulheres,
De lábio roto e faces taciturnas ;
E emqucmto uns trepam no curvoredo excelso.
Outros se escapam das baixinhas fumas.
1
630 HIBTOBIA DA LlTTSSATtTSA BBABILEIEÂ.
Os caboclinhos viram
A abóbora — e sem assombro
Ergueram-ii*a contentes
Ao pequenino hombro ;
Porem do centro o liquido
Pingando cabe, gotteja,
E dos milbões de poros
Mareja, sim, mareja !
E nisso assoma Yáia
Grave, sombrio, quedo ;
Elles disparam rápidos
Com indizivel medo,
No chão se íUbrira o fructo
Que inunda extremos lares...
D'est*agua — o mytho bárbaro
Do Génesis dos mares ! » (1)
Depois dos indígenas, os escravos negros em seus soffri-
mentos.
São d'elles uma copia a Mãe de criação ; eil-a aqui :
« Era já velha a mísera pretinha ;
Tão extremosa como as m&es que o sáo :
Era escrava... porem que amor que tinha
Aquelle a quem foi mâe de criação !
Cuidava tanto delle... Quando o via
Dos estudos chegar, chegar-se a ella.
Parece que a ventura se embebia,
Como um raio de luz, nos seios delia.
Seu filho lhe morrera em tenra infância...
A sorte do captivo é a dos revezes ;
Ella o criara, e d'alma n'abundancia
O consagrara filho duas vezes.
Quizeram libertal-a ; a liberdade
Tomou como uma offensa e não cedeu ;
(1) Mythoê e Poemoi^ pag. 33, edição de 1884.
HUTOKU DA L1TTRKA.TITKA BKA8ILEIKA 631
Depois... ic Minha senhora, é caridade
Nâo me apartar do filho que me deu, »
Scismava alegre tanta scima vaga,
Pedia a Deus por elle tanto, tanto.
Que só de crél-o auzente era aziaga
A hora que o furtava ao seu encanto...
Mas os tempos passaram : tudo acaba ;
Nem no senho feliz o foi siquer !
Ha filhos- reptis que cospem baba,
Lethal veneno a um seio de mulher.
Elle o fizei'a. A"quetla que os vagidos
De seu berço acudiu, ó mães bondosas.
Que velara, acalmando os seus gemidos
De criança, nas noites dolorosas,
Levou-ihe ao rosto a mão de matricida !...
A pobre velha lá mordfira o chão :
— II Com meu sangue de escrava dei-Ihe a vida. .
A seos pés, meu senhor... perdfio I perdilo ! » (1)
Alem de lodos esses, os mestiços occupam largo espaço
ias obras do poeta. Não é preciso ouvir nada mais, alem á'A
Mulata :
<• Eu sou mulala vaidosa,
Linda, faceira, mimosa,
Quaes muitas brancas não são I
Tenho requebros maia bellos ,
Se a noite são meus cabellos,
O dia é meu coraçSo.
Sob a camisa bordada,
Pina, tão alva, rendada,
Treme-me o seio moreno :
E' como o jambo cheiroso,
Que pende ao galho frondoso
Coberto pelo sereno I
(I) Canto» do Equador, pag. 1S5.
632 HISTOBIA DA UTTEBJlTUKL VRÃBJLKaJL
Nos bicos da chinellinha,
Quem vôa mais levesinha,
Mais levesinha do que eu ?...
Eu sou mulata tafula ;
No samba, rompendo a chula,
Jamais ninguém me venceu.
Ao aânar da viola.
Quando estalo a castanhola,
Ferve a dansa e o desafio ;
Peneiro n*um molle anceio,
Vou mansa n'um bambaleio,
Qual vai a garça no rio.
Aos moços todos esquiva,
Sendo de todos captiva.
Demoro os olhares meus ;
« Que tentação... que maldicta...
Bravo ! mulata bonita ! »
— Adeus, meu yôyô, adeus...
Minhas yáyás da janella
Me atiram cada olhadella...
Ai ! ddrse ? mortas assim l
£ eu sigo mais orgulhosa.
Como se a cara raivosa
N&o fosse feita p*ra mim.
Na fronte, ainda que baça,
Me assenta o troço de cassa
Melhor que c'rôa gentil ;
£ eu posso dizer ufana
Que, qual mulata bahiana,
Outra n&o ha no BrasU.
Nos meus pulsos delicados
Trago coraes engrazados.
Contas d*ouro e coralinas ;
Prendo meu panno á cintura,
Que mais realça á brancura
Das saias de rendas finas.
HI8T0BIA DA UTTUULTUBA BEA8XLBIBA 633
Se tanho um desejo agora,
De meus aífectos senbora,
Sei encontral-o no amor.
— Ai 1 muluta I ai i borboleta 1
£' tua sina inquieta,
Tu pousas de flor em flor.
Meus brincos de pedraria
Tocam, fazendo harmonia
Com meu cordão reluzente ;
Na correntinha de prata
Tem sempre e sempre a mulata
Figuinhas de boa gente.
Eu gosto bem d*esta vida,
Que assim se passa esquecida
De tudo que é triste e v&o !
Um dito bem requebrado.
Um mimo, um riso, um agrado,
Captivam meu coração.
Nos presepes da Lapinha
S6 a mulata é rainha,
Meiga a mostrar-se de novo ;
De sua face ao encanto
Vai-se o fervor pelo santo,
Pr*a o santo não olha o povo 1
Minha existência é de flores,
De sonhos, de luz, de amores,
Alegre como um festim !
Escrava, na terra um dono,
Outro no céu sobre um throno.
Que é meu Senhor do Bomflm !
Na fronte ainda que baça,
Me assenta o troço de cassa.
Melhor que c'róa gentil ;
E eu posso dizer ufana
Que qual mulata bahiana.
Outra n&o ha no BrasU. n (1)
(1) CcuUoê do Equador^ pag. 53.
684 HiarroBiÁ da littebatusa. bsabilbi&a.
A parte portugueza ô a mais exigua, sem ser a menos
notável. Por brevidade deixo de citar algum trecho pro
bativo, o que também faço em relaçôo aos Nocturnos e Phanr
tasias que se lêem nos Cantos do Equador.
De tudo que ahi fica expendido é fácil concluir que a
poesia de Mello Moraes Pilho possue uma das qualidades
mais preconisadas da poesia contemporânea, a objectividade.
E assim é ; em nenhum de seus livros deu elle entrada a
producções puramente pessoaes e subjectivas. Mas essa ob-
jectividade é ideialisada ; d'ella o poeta extrae aquellas tin-
tas, aquelles tons, que mais se coadunam com a indole de
sua intelligencia. Em quanto os outros mudaram de rumo
em busca do parnasianismo contemporâneo, elle deixou-se
flcar no tradicionalismo, embeber de nacionalismo, como
um adorador consciente do pasado, de que náo faz segredo
nenhum e deseja antes que todos o saibam.
Ao passo que os nossos escriptores hodiernos atiram-se
quasi todos» á imitação da Europa, o Dr. Mello Moraes vai
imperturbável o seu caminho, e, por isso, como naciona-
lista, deverá ser contado entre os melhores de nossos poetas.
Tem imaginação, delicadezas de sentimento, variedade de
tintas, subtilezas de forma, em summa, aquelle vago,
« aquelle ponto imponderável, impalpável, aquelle átomo
irreductivel, aquelle nada que em todas as cousas deste
mundo intitula-se a inspiração, a graça, ou o dom, e que é
tudo », repetindo a phrase justa do pintor Promentin.
Luiz Caetano P. Guimarães Júnior (1845-1898). Na seriação
dos poetas hugonianos, depois d'aquelles que ficaram analysa-
dos, e antes de Luiz Guimarães Júnior, deveriam desfilar
as figuras de José Jorge de Siqueira Filho, Pedro Ribeiro
Moreira, Plinio Xavier de Lima e António Alves de Car-
valhal.
A falta de documentos, adequados a esse flm, priva-me
doesse prazer.
Surge também agora de frente o vulto de Gonçalves
Crespo. Deve ser elle incluído n'uma historia da litteratura
brasileira ?
HIHTOBU DA LimRA.TUIU BKASILURA 6S6
No começo d'esle livro eu disse que deveria nos tempos
eoloniacs reciamar como brasileiros todos 03 nascidos n'e8te
paiz, ainda que se tivessem na juventude retirado para Por-
tugal e de lá nSA houvessem mais voltado á pátria (í).
E' de fácil intuição este pensar. Então n&o existia a na-
nonalidade brasileira, toda a cultura era, alem d'isso, íwbida
em Portugal, e o facto do nascimento era o critério único
aara a separação que se quizesse estabelecer entre os escríp-
tores. Hoje, porém, já n5o é assim.
Um brasileiro que deixa a sua pátria, carecedora de seus
esforços, e onde se Ibe abre grande arena para a actividade,
i vae residir, em plena juventude, definitivamente na antiga
metrópole, alli se educa, íaz-se intellectualmente, envolve-
;e na vida publica, esquecendo-se de todo das velhas relaçOes
3 tradiçCes que lhe cercaram a infância, nlo tenho mais o di-
reito de o reclamar, de o chamar um dos nossos. E' o caso
íxactamente do auctor das Miniaturas e dos Noctitmos.
Em compensação para subslituil-o tenho em seu tempo
liguem e este alguém é ^níonio de Souza Pinío, auctor das
Méas e Sonhos, do Estudo sobre Pombal, e d'outros livros
d'igual interesse.
Pinto é um produclo espiritual do Brasil ; veio de sua terra
nenino, fez aqui toda a sua educação, formando-se n'uma
icademia nacional. E' mister vollar-me, porém, para Luiz
iíuimarSes Júnior.
E' um filho da escola do Recife ; nio foi jamais um con-
joreirista extremado ; era já um elo natural entre o roman-
tismo brasileiro e o nosso parnasianismo.
N'arte mostrou sempre tendências, que lhe outorgam este
:aracter.
Luia Guimarães era natural do Bio de Janeiro; Olho de fa-
nilia abastada passou a infância e a primeira mocidade na
jatria e em Petrópolis, como alumno do CoUegio Calogeras.
Inclinado desde então aos prazeres e passa-tempos dos
ialOes, ainda mais se lhe apurou essa tendência em S3o Paulo
II Vide o cap. 1 do 1* vol.
696 HISTOBIA DA UTTBRiTUSA BBASILBIBA
e no Recife, cujas academias cursou com a doce fama de es-
tudante rico.
Depois de formado em ílns de 1809, passou rapidamente
pelo jornalismo e pelos salOes fluminenses, sendo attrahido
logo á carreira diplomática, o mais falso de todos os modos
de vida que pôde um homem occupar sobre a terra.
Âhi ainda mais se apurou o scepticismo elegante, o dan-
dysmo artístico de nosso compatriota. Elle é quasi um es-
trangeiro para nós. E aqui releva apontar, desde já, o especial
género de contradicção de nosso publico lettrado á conta de
Guimarães Júnior.
E é este : quasi todos os que se suppoem com direito a
votar no assumpto consideram os seus primeiros livros do
Recife o do Rio mais ou menos insigniflcantes e, quanto ao
ultimo, — Sonetos e Rimas^ — prodigiosamente admirável.
Comprehendo bem a revira-volta. Podem lá ser bons uns
livros feios, publicados em papel commun, em typos secun-
dários ? Não é possível.
Mas aquelle livrinho gentil, vindo do estrangeiro, da
pátria das artes, de Roma, em edição chie, e, logo após, em
segunda tiragem de Lisboa, em reliure elegante, aquillo sim,
é que são versos bellos...
Que coisa bonital Que bibelots! Confesso que não vou
por este caminho.
Nunca havia lido nada de Luiz Guimarães. Em 1868 e 09 —
conheci-o no Recife e não sei que espécie de preoccupação
afastou-me d'elle e privou-me em absoluto de lèl-o. Então já
o moço fluminense tinha levado á scena o drama As Quedas
Fataes e publicado na imprensa pernambucana bom numero
de poesias e folhetins.
Faço esta conflssão, que poderia calar e que a muitos pa-
recerá extravagante, porque d'ella vou tirar uma conclusão
favorável ao nosso poeta e folhetinista.
Li agora, por obrigação do offlcio, seus livros e declaro
que me deixaram agradável impressão. Não desgostei d'elles;
mas justamente na ordem inversa á estabelecida pelo geral
dos leitoreá.
Acho que em sua phase brasileira, entre 1802 e 72 o
HI8T0UÂ DA UTTUUTUIU BlUBILSISA 637
poeta foi mais espontâneo, mais sincero, sua arte mais sen-
tida, mais humana; ent&o o contista e o folhetinista era mais
despreoccupado, mais vivaz, mais lúcido do que depois pa-
receu ser.
Ouso dizer, pois, que, assim considerados, os Corimbos
s&o superiores aos Sonetos e Rimas. Estes revelam mais
apuros e requintes de forma; aquelles simplesmente mais
alma e esta é tudo em poesia.
A razão parece militar de meu lado. A poesia é uma
d'essas intuições e eflusões inlimas qua só têm vida quando
partem do coração, bem acalentado e aquecido pelo bafejo da
pátria.
Assim como' a prece e os monólogos Íntimos nós só os
fazemos na lingua materna, ainda que vivamos em terra
estrangeira e falemos a linguagem alheia, também a poesia
só pode ser verdadeiramente vivida na lingua pátria e
quando esta nos é transmittida directamente no paiz natal.
Em nossos dias em que se fala tanto de hypnotismo e sug-
gestão, e mui acertadamente, porque ha muita verdade
n^esses phenomenos, é bem possível fazer d'elles uma ap-
plicação á critica litteraria.
A intitulada lei dos meios, com toda a sua influencia, não
será um caso de suggestão espontânea da natureza e da so-
ciedade 7
Ninguém se pode furtar á acção de seu tempo e de seu
ambiente physico e social ; todas as nossas ideias são oriun-
das das impressões que d'ali nos vêm; o meio é, pois, o grande
suggestor de todos os nossos pensamentos. Taes verdades
são ainda mais instantes e inilludiveis n'alma sensível e fa-
cilmente agitavel dos poetas.
Estes, como os insectos que tomam a côr das folhas em
que se occultam e repousam, tomam a côr e a forma da
sociedade que os acolhe, e a mais propicia para lhes desen-
volver o génio é incontestavelmente a da pátria, a da terra
natal.
Os Corymbos são o repositório dos cantos do poeta dos
dezoito aos vinte e cinco annos, quando elle não tinha sabido
de seu paiz e aprendido na diplomacia a arte das formas
638 HISTORIA DA LITTX&ATURA BRABILEIBA
polidas e aptas a esconderem e refolharem o pensamento
e o sentir.
Como factura, como mão d'obra, como producto de ouri-
vesaria, os Sonetos e Rimas deixam os Corymbos muito a
perder de vista ; como expressões francas de uma alma de
rapaz, estes, repito, ganham a palma.
Mas tudo istoi é ainda muito genérico; é preciso per-
scrutar mais de perto o auctor ; qual o valor e o alcance de
seu talento ? E' o que é preciso ser dito em poucas palavras.
Luiz QuimarSles Júnior não foi uma intelligencia apta para
a sciencia, a critica, a philosophia, as especulações que exi-
gem profunda tensão de espirito. Na bella litteratura mesma
— o romance e o drama lhe eram interdictos, ainda que os
tivesse tentado por vezes.
Os géneros que lhe ficavam de molde eram a poesia leve,
o conto rápido e o folhetim minúsculo. Â primeira é que lhe
assenta melhor.
Em seus livros de poesias não encontrei uma só producção
que me parecesse de todo má ; também não se me deparou
nenhuma verdadeiramente superior e imponente.
O poeta não ultrapassa certa distancia em seu võo ; vae
a certa altura, é verdade, e deixa-se lá pairar graciosamente ;
mas não se perde nas nuvens.
Não produz brilhantes raros engastados em flnissimo ouro;
espalha rubis, turquezas, saphyras e topázios em graciosas
jóias de ouro médio e faz deliciosas filigranas de bôa prata.
Também não desce ao estanho e ao cobre.
Não é poeta para alentar a gente nos momentos das grandes
dores, das grandes crises do. espirito ; é um diligente e pra-
zenteiro camarada para certas horas de descuido ou de en-
fado.
No conto e no folhetim, no meio de paginas desgeitosas
e banaes, contam-se algumas bem nutridas e gostosamente
legíveis.
Por este lado sua obra acha-se encerrada nas Historias
para gente alegre^ nos Contos sem pretençâo^ nas Pilagranas,
e nas Curvas e Zig-zags.
Sinto pressa de concluir, e quero logo mostar ao leitor as
f
HISTORIA DÁ LITTBBATUBA BUA,ftIL»TEA 639 J
provas do que lhe tenho affirmado. Vae vêr por si mesmo
alguma cousa do poeta e do prosaista.
Dos Corymbos aprecie Recuerdo :
(c Nós estávamos sós. Triste e saudosa
Surgia a lua no elevado monte :
Cheia de orvalho suspirava a rosa, 4
Cheia de rosas suspirava a fonte.
Ao pé de nós a aragem murmurava :
Nos curvos ramos da mangueira em ílor ;
Nos nossos lábios a iilus&o cantava, \
Nos nossos olhos despontava o amor.
Nós estávamos sos. EUa tremia
Cravando o olhar nos mudos olhos meus :
O que eu lhe disse, o que ella me dizia
Foi um mysterio que sumio-se em Deus...
A natureza festival sorrindo
Nos attrahia e nos forçava a amar :
Dizia o céo : — como este par ó lindot
Dizia a noite : e como é bom sonharl
Todo o mysterio que seduz e encanta,
Tudo o que corta a solidão baixinho :
O som d*um beijo, o estremecer da planta.
O vôo das aves, procurando o ninho ;
A folha secca que resvala e freme.
Da lua o raio solitário e vago,
O molle orvcdho que nas urzes treme,
A sombra inquieta que pertuba o lago ;
Tudo assistio ao virginal encanto
Das nossas crenças para sempre unidas :
Viram dois rostos confundindo o pranto,
E duas almas confundindo as vidasl
As doidas phrases que a chorar dissemos
D*aquella noite na eternal mudez,
O louco abraço, as juras que fizemos :
— Nfto se repetem : fazem-se umci vez! » (1)
(1 )Corymbo9y pag. 27.
"^
640 HISTOBIA DA LITTBRATnSA. BBABILEIBA
Dos Sonetos e Rimas note A morte da águia :
A bordo vinha uma aguio. Era um presente
Que um potentado, — um certo rei do Oriente,
Mandava a outro : — um mimo soberano.
Era uma águia real. Entre a sombria
Grade da jaula o seu olhar luzia,
Profundo e triste como o olhar humano.
Aos balanços do barco ella curvava
Ao niveo coUo a fronte que scismava.
E emquanto as ondas túrbidas gemieon
Ao som do vento em fúnebres lamentos,
Ella pensava nos longinquos ventos
Que do Hymalaia os píncaros varriam.
Fora uma infame e traiçoeira bala,
Que do régio fusil negra vassalla,
Invisivel — uma aza lhe partira :
Cheia de luz, tranquilla, magestosa,
Dobrando a fronte branca e poderosa.
Aos pés de um rei a águia real cahira.
Os bonzos vis, propheticos doutores,
Sondando-lhe a ferida e as cruas dores,
Que um venenoso bálsamo tentava
Apaziguar em vâo, — diziam rindo :
(c N&o ha no mundo um exemplar mais lindo :
Vale um império. » — E a águia agonisava.
Um dia, emâm, o animal valente
Resistindo aos martyrios, — largamente
Respirou a amplid&o. A aza possante
Abrir tentou de novo. Aberta estava
A jaula colossal que o esperava :
Forçoso era partir. Desde esse instante
A aguía sombria e muda e pensativa,
Solemne martyr, victima captiva.
Terror dos vis, e symbolo dos bravos,
Pedio a morte a Deus. — Pedio-a anciosa.
I
HISTOBIA DA UTTXBATURA BKABIIiUBA G4t
Longe, porem, da corte vergonhosa
D*esse covarde e baixo rei de escravos.
Pedio o morte a Deus, o cataclismo.
As convulsões eléctricas do abysmo.
As batalhas do arl Morrer n*um grito
Vibrante, immenso, heróico, soberano,
E fremente rolar no azul do Oceano
Como um titão cabido do infinito.
Morrer livre, cercada de victorias.
Com suas azas — pavilhão de glorias —
Inundadas da luz que o sol espalha :
Ter o fundo do meu* por catacumba.
As orações do vento que retumba,
E as cambraias da espuma por mortalha.
Emtanto, melancólica, tristonha,
Como um gigante mórbido que sonhu,
Fitava, ás vezes, o revolto Oceano
Com esse olhar nublado e delirante.
Com que saudava a César triumphante
O moribundo gladiator romano.
O commandeinte — urso do mar bondoso —
Disse um dia ao escravo rancoroso.
Ao carcereiro estúpido e inclemente :
« Leve-a ao convez. Verá que esse desmaio
Basta pcura apagal-o um brando raio
Dq l6trgo sol no rúbido oriente. »
Subio então a jaula ao tombadilho :
Do nato dia o purpurino brilho
Salpicava de luz o céo nevado...
E a águia elevando a pálpebra dormente,
Abrio as azas ao clarão nascente
Como as hastes de um leque illuminado.
O mar gemia, lobrego e espumante,
Açoitando o navio; — alem — distante,
Nas vaporosas bordas do horisonte,
As matutinas névoas que ondulavam,
HISTORIA n il
• m
642 HI8T0BIA BA LITTEBATURA BSABILBIBA
Em suas varias curvas figuravam
Os largos flancos triumphaes de um monte.
« Abra-lhe a porta da prisão », (ridente
O commandante disse) : (c Esta corrente
Para conter-lhe o vôo é mais que forte :
VoarI pobre infeliz! causa piedade!
Dô-lhe um momento de ar e liberdade,
Único meio de a salvar da morte »
Quando a porta se abrio, — como uma tromba,
Como o invencível furacão que curomba
Da tempestade as negras barricadas,
A águia lançou por terra o escravo pasmo,
E, desprendendo um grito de sarcasmo,
Moveu as azas soltcus e espalmadas.
Pairou sobre o navio — immensa e bella —
Como uma branca, uma isolada vela
A demandar um livre e novo mundo;
Crescia o sol nas nuvens refulgentes,
E como um turbilhão de águias frementes,
Zunia o vento na amplidão, — profundo.
Ella lutou, anciosa! Atra agonia
Suffocava-a. O escravo lhe estendia
Os miseráveis e covardes braços ;
Nú o Ocecmo ao longe scintillava,
E a rainha do ar, em vão, buscava
Onde pousar os grandes membros lassos.
Sobre o barco pairou ainda, — e alçando.
Alçando mais os vãos e afogando
Na luz do sol a fronte alvinitente,
Ébria de espaço, ébria de liberdade,
Como um astro que cai da immensidade,
Afundou-se nas ondas de repente. » (1)
Nas poesias de Luiz Guimarães predominam as impres-
sões pessoaes, subjectivas. Os quadros da natureza exterior
são em pequeno numero e de mérito secundário.
(1) Sonetos e Rimoê, 2.* ediç&o, pag. 13.
HISTOBIA DA LITTESATURA BBA8ILBI&A 643
Tem poucas, quasí raras, paginas de caracter nacionaL
Os Sonetos e Rimas trazem no género apenas A Sertaneia ;
os Corymbos apenas A Choça do Lenhador.
Nos contos e folhetins o auctor é mais abundante em notas
locaes, algumas bem apanhadas e descriptas com habilidade
e agudeza.
Doeste género se me antolha ser A Mucama, que vou pôr
sob as vistas de quem me lê :
« E* o mino da casa ; as meninas contam-lhe todos os segredos ;
os escravos a respeitam; as visitas reconhecem n'ella a herdeira
presumptiva das malicias e indiscreções da íamilia; e sua vida re-
sume-se em ser a companheira da senhora moça em solteira, e a
criada particular da senhora moça quando se casa!
E* a favorita do lar domestico; uma espécie de Montespan retinta,
azougada, de cahello aprumado, por cujas mãos teem de passar
todos os requerimentos que se dirijam á edta sabedoria do conci-
liábulo famUiar. Em Inglaterra chama-se Betty; em França Mar-
ton; em Portugal Maria; no Brasil perde o nome de baptismo para
grangear o honroso qualificativo de mucama.
Contam as chronicas antigas que o melhor meio de se attrahir a
confiança dos monarchas, era em primeiro logar angcoiar a sym-
pathia das favoritas. Ninguém levará a mal essa observação, desde
que se lembrar da Pompadour, da La Vallière, da duqueza de Berry,
da duqueza de Chevreuse, da Maintenon, da Parabère e de outras
estreUas galcmtes do escandaloso horisonte do século XVIII.
Pois no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, essa plêiade de
figuras gentis, essaâ duquezas, princezas, marquezas, loiras, mo-
renas, infiéis, ousadas, encantadoras, resumem-se n'um simples
perfil, cujo maior luxo é o de trazer o cahello áspero repartido e
empinado, os olhos vivos, o dente claro, o motejo e o muxoxo
promptos, o vestidinho engommado, a côr envernisadamente negra
e uma insolência â prova dos mais ríspidos preconceitos sociaes.
Será preciso nomear a mucama? Quem nao a reconheceu já nos
rápidos traços, que ahi deixamos, embora toscos e incolores?
Um espirito superior em nossa litteratura, desenhou em quadro
de mestre a physionomia garrida, impertinente, cruel, engraçada
e arisca do moleque, o demónio familiar, o secretario do senhor
moço, o terror das visitas, e o cofre indiscreto de todos os mysterios
da casa e da visinhança!
Só a mesma penna seria capaz de pôr em relevo o iyyo da mucam»
644 HISTORIA DA LITTEBATITRA BSABILBIBA
brasileira. Devo-lhe esta vénia, antes de metter a mão na custosa
seara.
A mucama é uma confidente, — que digo? é uma pessoa da
familia, uma parenta e quasi sempre uma filha. Identifica-se com
os gostos, os defeitos, os cacoetes dos senhores, a tal ponto que eu
ouvi um sujeito perguntar, ha tempos, á minha vista, á mucama,
durante o jantar :
— Oh! pequenal devo principiar pelo frango ou pelo carneiro?
EUa respondeu não sei o que, e curvou-se immediatamente, para
dizer qualquer cousa ao ouvido da menina.
O sujeito, respeitando o meu honesto pasmo, disse-me rindo :
— E' a mucama de minha filha.
E ao meu ouvido :
— E* um Éizouguel
A mucama é quem veste a nossa noiva, quem a pentéa, quem lhe
ensina o meio de nos fazer ciúmes no ar, quem vê primeiro os figu-
rinos da ama e os escolhe, quem nota os defeitos e as hellezas das
visitas da casa, quem as despede á porta da rua, quando lhe apraz,
quem acompanha a menina á chácara, ao quarto, â cama, e é quem^
na hora do noivado, lhe prega o ultimo alfinete, murmurando seja
o que fôr que obriga a noiva a corar e a rir diabolicamente.
— E vai se casar sempre com o Santos, nhanhfi? perguntou uma
á senhora moça, no dia em que esta acceitara o pedido do preten-
dente.
— Vou. O que é que tem?
— Não era eu! Olhe, disso estava elle livre!
— Porque?
— E a verruga do pescoço?
— A verruga?
Os olhos da noiva brilharam, e suas faces tingiram-sc de um pur-
purino arrebol.
— Só hoje foi que eu dei pela cousa I proseguio o demónio negro.
E matisava as palavras de gargalhadas intermittentes. Hoje â hora
do chá !
' — Mas...
— Ora, linha que vôr ; uma moça do Cassino, uma moça fregueza
da Noire Dame e que anda no coupé do papai !
— Explica-te ! explica-te I
—Eu lhe conto. Quando a gente veio tomar chá, eu dei para ficar
por traz d*elle. Meu dito, meu feito, NSo tirei mais os olhos de cima
do homem. Conversa pucha conversa; e abaixa aqui, e abaixa
acolá, o certo é que d*uma vez que elle se debruçava para um lado,
HI8T0BIA DA LITTSItATUKA BKASILBIBA 645
O collarínho affastou-se, e eu vi com estes olhos mesmo, uma ver-
ruga do tamanho d'um tento com que meu senhor joga o solo I
— Feissima, hein ?
-~ Deus me defenda ! parecia um besouro... Então, com pena de
nhanhft...
— Está bom. Vai te deitar.
— Nfto quer neula mais ?
— Nfto, acudio a menina um pouco febril. Vai-te deitar.
No dia seguinte, desmemchava-se o casamento. Doesta vez, a fa-
talidade rebentou no seio de uma família sob o aspecto d*uma...
verruga ? Qual ? sob o aspecto d'uma mucama I
A mesma menina, atenasada pelo demónio negro, cazou com um
biltre que a injuriava dia e noite, para dar razão á mucama. Isso é
vulgar !
A mucana consegue dominar todos os representantes da família,
desde o chefe até o ultimo parente. E' muitas vezes o pomo da dis-
córdia. Uns defendem-na, outros censuram-na ; outros nem a cen-
suram nem a defendem ; ficando ella na posição altamente histórica
de Helena, pela qual brigaram os valentes heróes de Homero !
A educação brasileira, que não é por fim de contas o ideal das
educações racionaes, deve banir de seu grémio essa íigura irónica,
traidora e graciosa da mucama.
A mucama é um perigo ; um pengo que se insinua, quasi imper-
ceptivelmente, á maneira do arranhão do gato ou das febres inter-
mittentes. Depende muitas vezes d'ella o socego do lar domestico,
e não é para admirar que o seu espirito infernal sirva de peso na
bedança das nossas contribuições sociaes e politicas.
Em tempo de eleições :
— Rapariga, vai vôr quando passa o Cunha e entrega-lhe isto.
São as chapas da nossa freguezia !
Pouco depois pára junto á janella um Cupido, que costuma corte-
jar a menina da casa.
— Então, pequena, o que ha de novo ?
— Nada. Só eu que aqui estou á espera do sr. Cunha, para lhe dar
as chapeis.
— Que chapas ?
— Eu sei ? 1 Da freguezia do meu senhor ! Olhe I
E mostra o embrulho.
O Cupido tem uma súbita inspiração.
— Oh, pequena, dá cá isso !
— Para que ?
— Ora vamos 1 Dá cá, e toma estas !
646 HISTOBIA DA LITTERATU&A BRA8ILXI&A
— Hein ?
— Se me queres bem 1... Nâo sejas má... então ?
E trocam-se os embrulhos.
O certo é que, na apuração das cédulas, o homem entra em c€Lsa
desorientado :
— Isto só por artes do diabo ! vocifera elle. Rapagira I
Vem a mucana ; olhos serenos, peito tranquillo, e com um sor-
riso apenas malicioso no canto da boca.
— Entregaste as chapas ao Cunha ?
— Sim, Sr. ! Elle que diga !
— Diabo, diabo I...
E emquanto o derrotado heróe da freguezia arranca os cabellos
e as barbas a mãos jimtaâ, a mucama estala de riso, por taz do ba<&-
tidor da senhora moça !
A mucama está coUocada entre o escravo e a familia ; nem é pro-
priamente filh6^ nem propriamente escrava.
Para ella se inventou um meio termo de censura e de caricia ;
um quasi beliscão e um quasi beijo.
Ella nasceu no mesmo dia em que a menina veio ao mundo ; os
gostos, os dissabores, as malicias, as ingenuidades, os caprichos
da menina refletem-se n'ella.
Se estÁ pezarosa a senhora, a mucama pezarosa está; se a senhora
vive alegre, o mundo descobre esse lisongeiro estado no nariz es-
perto, no cabello relusente e nos lábios perigosos do travesso de-
mónio.
A menina esconde um segredo, dous segredos, o maior segredo
de sua aJma a sua mãe; á mucama, não. E tente-o !
Ella vem surrateiramente como a cobra, como a pulga, como a
traição. Olha para a senhora moça ; tosse de manso ; demora-se
em arrumcu* alguma cousa na toUlete ; estaca a examinar um vidro
de perfume ; pergunta mil vezes se não ha necessidade de cousa
alguma, e por âm exhala um retumbante suspiro, com os olhos
piedosamente erguidos ao tecto.
— O que tens tu ?
E palavrp depois de palavra, phrase em seguida a phrase, ques-
tões, reticencias, armadilhas, maliciosas perfídias, até que emfím...
Até que emíim, a mucama ao romper do dia, vai contar â dona
da casa, com certo aprumo, tudo quanto a menina occultou ás la-
grimas e supplicas maternas.
E* uma raça damninha realmente, mas é o lado espirituoso, é o
lado galante, é o lado anecdotico e gentil da escravidão brasileira.
BI8X0KU DA LITTE&ATUBA B&ASlLttRA
De todos 08 escravos, o mais perigoso, terrível, invenci
é a mucama. Terrível, por ser justamente o mais seduct
Ha pais que dizem, apresentando a fllha ao noivo, c
melhor elogia :
— N&o tem parentes !
Se elles dissessem : — Nfto lera mucama ! seria cousa d(
com mais vantagem, o espirito e o socego dum noivo con
A propósito de noivo... Um janota fluminense, rap
atoleimado, rico, aocio do Jockey-Club, e talento capaz d
bilhar, levar a cal>o uma dúzia de carambolas em dez d
um moço perfeito emflm ! — estava a pular de cobiça p
uma herdeira riquíssima, cento e cíncoenta apólices, de
magniflcos, madrinha millionaría, etc, etc. I
A menina era galante, mas ingénua, de forma que o si
quasí por ganha a partida. Havia, porém, uma barreii
da aventura ; e que barreira, Virgem purríssima I — '
mucama I
Pai, mãi, irmão, amigos, todos amaldiçoavam o dia
janota põz os olhos... nas apólices da donzella. A mãe,
conferencias intimas tratara de aconselhar a filha.
— Eu tenho mais de vinte annos, mamSe. Ou me cas'
ou ent&o a lei...
A lei eia um dos recursos a que se prendia a lógica do
Em todas as suas cartas elle falava na lei...
A menina sentia-se vencida e fascinada.
A mucama, por caprícho ou por commiseraçAo de famil
se a cortar a crise.
No momento de se deitar, disse-lhe a senhora moça, (
incendiada e o seio convulsivo ;
— Se papai n&o consentir, eu hei de ser tirada por justií
A mucama deixou de desncolchetar o vestido de
olhando-a com certa penetração.
— Nunca me viste ?
— Estou admirada !
— Oh ! oh ! porque ?
— Porque esse moço lhe quer tanto bem como a mim !
— Hein I
— Vamos apostar !
— Estás doidft ?
— Vamos aposloi', siiiliá! Em sendo horas amanhã ei
o portáo, e o que se passar, vosmicé verá da janella do ja
— Que vaes tu fazer, rapariga ?
r48 HISTOBIA DA LITTEKATUBA BRABILBISA
— Verá!
Os olhos da mucama fulguravam como duas brazas infemaes.
A menina sorrio desdenhosa e entregou-se toda aos ineffaveis ar-
roubos de sua poética aventura.
Na tarde do seguinte dia, a mucama approximou-se á senhora
moça. Estava luzidia, viçosa, enfeitada, rutillante de perversidade
e malícia.
— Espere um pouco, sinhá !
— - Esperar porque, maluca?
— Pela prova que eu lhe disse hontem. Elle ha de vir buscar a
resposta da carta...
— Se tu fizeres alguma cousa...
— Esconda-se vosmicê por traz da persiana e conhecerá quem é
o sujeitinho. Também pôde acreditar, se elle não fôr como os outros,
eu mesma lhe direi : — caze-se já, já sem perda de tempo !
— Tola !
A's dez horas da noute, o silencio cercava toda a sumptuosa habi-
tação. A menina, entre a curiosidade e o enleio, acondicionou-se â
sombra da persiana. Era a hora em que o janota vinha regular-
mente trocar entre as mãos da mucama as epistolas amatorias.
Tic, tac^ lie, tic, tac, iac.
Lá vinha elle ! Chegou emfim ! Examinou se alguém o seguia, se
alguém o via, se o espreitava alguém... Adiantou-se até o portão.
A mucama sahio-lhe ao encontro.
— Então ? indagou o janota, estendendo a mão, á espera da caxta
habitual.
— Hoje não ha, meu senhor!... acudio ella, desfazendo-se em
meneios e momos graciosos.
— Tua senhora ?
— Não está em casa.
— Como?!
— E' verdade... eu estou só.
— A familia toda sahio ?
— Todinha.
E, momentos depois, ouvio-se no silencio da noute, o niido sonoro
d'um beijo.
Inmiediatamente, porém, estalou uma gargalhada vibrante,
acerada, estridente, e o portão fechou-se com estrondo nas barbas
do novo D. Juan.
A gargalhada crescia de fúria, de expansão e de sonoridade.
Ao mesmo tempo descerrava-se a persiana e surgia o rosto colé-
rico e pallido da illudida enamorada.
r
HISTORIA DA UTTBRATDBA BRASILSIKA
— Então, sinhá ? Ganhei ou perdi a apostu ?
O janota enfurecido tentou abrir o portão. Acordou o fei
nas. Ia despertando o alarma na casa. Acbou mais comm
rar-se. Fel-o com a maior prudência e... presteza.
Quando a mucama approximou-se á senhora moça, m
comprimir as risadas que a suflocavum.
A menina oUiava-a pasma e muda, sem saber se devia
ou acarinhal-a.
— Olhe, sinhà — obaer\'ou o demónio com um ar genui
infernal — d'e8ses homens hu por ahi aos centos, como as
Não vale a pena ! Nem para mim 1
E enxugou desdenhosamente a face.
Nunca mais se falou no namoro da moça, nem se vio a <
teimada do janota. A familia mal sabia a que attríbuir
metamorphose.
Um dia, em segredo, a menina narrou a scena do ron
& mfie, a mãe ao pai, o pai ao filho ; e de commum aocor
deram alforriar a crioula, conservando-a, porém, no poste
cama predilecta.
Ella preferio ser ainda, ser sempre, ser toda a vida, n
mas... escrava.
Mettemich não seria mais diplomata, nem Machiavel i
tuto. « (1)
Luiz Guimarães Júnior, por mais que se o queira, i
sivel collocal-o na primeira ordem dos escriptores brai
Vae para a segunda categoria.
Ausente da pátria, durante metade da existência,
foi um combatente activo em nossas lactas pela ve:
pelo progresso. Paltou-lhe sempre para tanto a paixat
ella o ideia).
Luiz Delfino dos Santos (1834...) Quem tiver de e
a historia da poesia brasileira, ao findar a phase do
tismo, antes de passar aos scientificistas, parnasianos
bolistas, successores do antigo systema, ha de enco:
com diversos românticos, que, presentindo a dissolU'
velhas doutrinas, tiveram bastante senso e bastantf
(1) Filagraniu, p«g. 203 e seguintes.
650 HISTORIA DA LITTSRATU&A BRABILSIUA
lidade de espirito para tomar assento entre os grupos no-
vos que se iam formando.
D*esse numero é, como se viu, Luiz Guimarães Júnior;
d'esse numero é também Luiz Delfino dos Santos, antigo
condoreiro. Ambos vieram abrigar-se aos arraiaes parna-
sianos.
Doesse numero também foram Celso de Magalhães^ Antó-
nio de Souza Pinto e Generino dos Santos. Ha apenas uma
differença e esta 6 de importância capital : estes não se
alistaram entre os d'aquelle grupo, coUocaram-se n'um ponto
de vista especial, alguma cousa, que não é parnasianismo,
nem scientiflcismo, nem o realismo ou o naturalismo, como
vulgarmente sáo interpretados.
E' alguma cousa que não sei que nome possa ou deva ter,
que a mim se me afigura uma espécie de conceptualismo
semi-philosophico e semi-poetico, bem equilibrado ; porém
de pequeno alcance.
Celso de Magalhães, fallecido em 1879, e Sousa Pinto, ainda
existente em Pernambuco, são mais dois temperamentos de
críticos do que de poetas.
Em terceiro e ultimo volume doesta obra, destinado ao
estudo da prosa na época romântica e post — romântica,
estudo do theatro, do romance, do conto, da historia, da phi-
losophia, das sciencias, da critica, do jornalismo, encontrarei
estas duas figuras e me hei de deter ante ellas.
Quanto a Generino dos Santos, sua passagem entre os ro-
mânticos foi demasiado rápida e não deixou vestígios dura-
douros ; sua melhor florescência, sob o influxo do positi-
vismo e de novos ideiaes, é phenomeno recente, que ílca
também dentro do termino que pretendo impor a este livro.
Dos velhos românticos, que passaram a novas doutrinas,
só dous devem agora ser contemplados, por terem outr'ora
muito batalhado sob a antiga bandeira. Um, Guimarães Jú-
nior, já o foi ; o outro, Luiz Delfino dos Santos, vae sêl-o.
Não conheço ninguém mais difflcil de ser estudado con-
scienciosamente em nossa litteratura que este poeta.
Dar d'elh' uma simples noticia, após a leitura de quinze ou
Ainte peças publicadas avulsamente nos jornaes, seria por
HISTORIA DA LITTERATUEA BRA8ILSIRA 651
certo fácil. Porem não se trata d'isto ; a cousa é mais seria.
E' um homem que deve ser biographado e cuja vida nao
se encontra escripta. Não se ha-de ir indagal-a d'elle mesmo.
E' um homem que deve ser estudado em seus livros e nâo
os possúe.
Não se ha-de andar por ahi a pescar uma ou outra poesia
pelos jornaes.
Pensa-se que elle tem escriplo pouco, os seus íntimos
acham logo meio fácil de desmentir a gente, afflrmando
convictos que o homem possue material para trinta ou
quarenta volumes. Só em sonelos tem cerca de três mil
espécimens.
Como vêr tudo isto para nâo se asseverarem erros, que
podem ser outras tantas injustiças? Hão de confessar que a
cousa é mais difflcil do que se pode suppôr.
Vou dizer d'elle o que sei síne ira ac studio.
O que penso a seu respeito é ainda hoje fundamentalmente
o mesmo que publiquei em 1882 no opúsculo — O natura-
lismo em litteraíura, e de que hei-de aqui reproduzir o tó-
pico principal. Apenas lhe juntarei um appendice mais
brando ; porque está é uma obra de historia e aquelle folheto
era um simples artigo de polemica.
Fica assim, desdo já, prevenida a objecção, que me hão de
fazer todos os que se encommodam, quando attenúo um
pouco o rigor d'alguns antigos juizos meus á conta de certos
escriptores.
Luiz Delfino dos Santos é filho de Santa Çatharina, onde
nasceu em 183^4. Estudou alli alguns preparatórios, ulti-
mando os outros no Rio de Janeiro. Cursou aqui a faculdade
medica, doutorando-se em 1857 ou 58, ao que supponho.
Desde três ou quatro annos antes cultivava a poesia. Pez
algumas publicações isoladas, espexiialmente na Revista Po-
pular e no Jornal das Famílias, pelos annos de 1860 a 64.
Depois emudeceu quasi do todo.
O medico absorveu quasi inteiramente o poeta ; nâo digo
bem, porque o poeta continuou a vibrar as cordas de seu
instrumento em segredo; a anciã de fazer carreira clinica e
652 HISTORIA DA LITTEAATUBA BRASILEIRA
juntar fortuna retirou-o da arena da litteratura activa e con-
flnou-o no mundo dos doentes e dos negócios.
Depois ficou elle rico, e, de certo tempo a esta parte, co-
meçou a ter saudades do mundo litterario, do ruido da im-
prensa, por onde havia passado muitos annos antes como
relâmpago.
As luctas litterarias, porém, têm as suas leis que não
são, que não podem ser impunemente violadas.
De seu menospreço provêm todos os defeitos, todas as
maculas da obra do poeta. Ser escriptor, especialmente em
nosso tempo de lucta e movimento, não é garatujar em se-
gredo tiras de papel e as ir accumulando nas gavetas,
nas pastas ou aos cantos da casa ; ser escriptor é
perseguir um ideial, é traçar um plano de jornada e ir por
elle em fora, é defender uma causa, é ter o instincto da com-
batividade litteraria e scientifica sempre alerta ; ser escriptor
é essencialmente ser um luctador sempre na brecha no meio
de seu grupo, de seus camaradas, dando a mão aos que des-
fallecem, sem arredar a arma da face do inimigo.
Cada livro, cada opúsculo, cada brochura, que se publi-
cam são outros tantos actos, outras tantas acções da grande
peleja.
Cada livro tem a sua historia ; e qual é a historia dos qua-
renta volumes incumbados do Dr. Luiz Delfino dos Santos ?
Ninguém sabe. O poeta não tinha, não teve jamais o espi-
rito, o temperamento litterario. O senso do combate pelas
letras lhe faltou sempre.
D'ahi quatro falhas impreenchiveis na sua vida de auctor :
scindiu sua carreira, o que é sempre um mal ; perdeu o
melhor tempo, a phase da mocidade para apparecer e luc-
tar; abandonou os seus coevos, os seus companheiros natu-
raes, que cresceram a seu lado sem o conhecer; appareceu
tarde, depois dos cincoenta annos, no meio de uma geração
de estranhos, que não» o podiam estimar como camarada ou
como irmão. A cada um o seu dia. Não se joga inpunemente
com o tempo.
Segue-se d'ahi que o poeta catharinense não tenha mere-
cimento ? Absolutamente não.
HISTORIA DA LITTSRATURA BRASILEIRA 653
Pelo que tenho lido d*elle cheguei a esta conclusão que me
parece verdadeira : em sua esthesia poética predomina a
imaginação e faz quasi completa ausência o sentimento.
Ora, a imaginação só por si, sem a fonte caudal do sentir,
só intermittentemente pode fazer obra boa. D'ahi a desigual-
dade tão manifesta que salta logo diante de quem lê as pro-
ducções do auctor. Por uma ou duas poesias boas, deparam-
se-nos depois cinco e seis aleijadas, extravagantes.
Os principaes defeitos de Luiz Delfino, falta de livros appa-
recidos a propósito e que fossem outros tantos actos e outras
tantas phases de sua evolução, falta de interesse por nossas
questões nacionaes, falta de sentimento, e o estylo palavroso
e affectado, já foram por mim apontados em 1882 n'estes ter-
mos :
« E' um escriptor sem livros!... Bello chefe, grande ge-
neral sem batalhas I... Sua posição é commoda; mas seu
mérito, como factor nas lutas nacionaes, é nenhum. Nunca se
decidio, nunca tomou um partido em nossas lutas. Este
signal é também caracteristico e eu chamo a attenção do
leitor para elle.
Ninguém conhece as suas opiniões scientiflcas, politicas,
ou litterarias. Sabe-se apenas que tem publicado, a largos
intervallos, algumas poesias bombásticas pelos jornaes do
Rio de Janeiro.
E' pouco, é muito pouco. Ter a cabeça erguida, querer
intimidar a gente com chefias, e não ter escripto, discutido, lu-
tado; conservar-se como um incógnito, e, emquanto os outros
se batiam peito a peito, emquanto a sua geração sustentava
nos hombros os encargos intellectuaes da pátria, ficar ahi
para um canto, como um burguez a enriquecer, é prova de
grande tino pratico, é prova de uma grande força de vontade
para libertar-se das necessidades da vida, mas não é prova
de um temperamento litterario, de uma organisação de poeta.
Nada seria se a sua fortuna lhe tivesse vindo pelas letras,
como a de Victor Hugo ou a de Zola, por exemplo. O Dr.
Luiz Delfino será tudo ; mas não é, não foi jamais um factor
intellectual no Brasil. Através do poeta eu quero vêr o ho-
C51 HIBTOBIA DA LITTEBATURA BBABILBIBA
mem ; quero vôr o patriota, quero vêr o espirito imbuido de
uma ídéa, tendo a seu cargo a defesa de uma causa.
Onde, em que tempo o Dr. Delfino ha combatido em prol
de qualquer cousa? Elle não tem, pois, o direito de car-
regar o sobrolho e olhar de soslaio para aquelles, que o
não enxergam no caminho. Sim ; neste paiz, nos últimos
trinta annos, poetas e romancistcis, críticos e jornalistas,
médicos, legistas, engenheiros têm escripto folhetos e
livros; têm travado na imprensa cem batalhas. Em qual
d'ellas foi visto o Dr. Luiz Delfino? Como pensa elle em
politica, em philosophia, em critica litteraria, em scien-
cia? Qual é a sua opinião sobre o indianismo, o nacionalismo
litterario, a poesia popular, o romantismo, a reacção natu-
ralista, a philosophia da arte, a historia litteraria do paiz ?
Que pensa elle sobre todas estas questões que todo poeta de
hoje deve conhecer e responder com segurança e vistas pró-
prias ? Nada, absolutamente nada. Vive a sonhar com o Le-
vante por imitação e porque elle é um desterrado no meio
das nossas letras.
Não conhece o paiz e por isso nossos problemas não o
tocam.
Vejamo-lo em suas producções.
Neste ponto seja minha primeira afílrmação a seguinte : é
um poeta palavroso, emphatico, desigual, obscuro e ás-
pero. Não tem sentimento, não tem idéas, nem origina-
lidade. E* o mais perfeito exemplo que conheço da mecânica
verseiadora nos tempos modernos. E' um diletante que faz
versos por luxo ; a poesia é para elle um traíste de salão, ou
um bom coupé para sahir á rua.
O eslylo 6 bombástico e martelanle ; é imitado de Victor
Hugo deturpadamente. Atordoa os ouvidos e o bom senso ;
mas não commove ; não tem graça, nem dehcadezas de
expressão e sentimento. O fundo é mesquinho. Sua esthetica
litteraria é a de um romantismo túrbido, furioso. Se não
tem delicadezas, se não tem o sentimento natural e simples,
também não tem força.
Quando o verso lhe sae corrente é mais pelo habito, por uma
adaptação mecânica, do que por ser sentido. Os seus versos
HISTORIA DA LITTBRAT17BA BRASILEIRA 655
novos publicados na Gazeíinha mostram essa dextreza do
habito ; os mais antigos da Revista Popular são insuppor-
taveis.
E' um espirito que tem pretenções á amplitude ; mas é
árido e desconnexo. E' o romantismo na phase estéril da
nuUidade latente.
Tem um lexicon poético escolhido a dedo. As palavras :
sandado^ ebriez^ ebrioso, lúbrico, leão, colossal, enorme,
curva, curvatura, ebriado, e outras apparecem obrigatoria-
mente em seus versos. Mecanisação da memoria.
Temperamento de burguez, educado litterariamente no
tempo do romantismo palavroso, sem larga intuição, sem
grande talento, o dr. Luiz Delflno da arte só possue as exte-
rioridades. Alma plácida e enfastiada, procura illudir-se a
si e aos outros com o retintim das phrases.
Não existe um só pensamento, uma só tendência na litte-
ratura brasileira de que elle fosse o auctor. »
Esta pagina de reacção, contra exaggeros que se come-
çavam a espalhar em torno de Luiz Delflno, é verdadeira em
w
sentido geral ; porem é incompleta. Eu então só quiz vêr
os defeitos do poeta, deixando totalmente de lado o mérito,
qualquer mérito que elle por ventura possuísse.
Como resenha da face esdrúxula e extravagante do talento
do cantor catharinense, parece-me completo o quarto trans-
cripto.
Mas não basta ; a historia precisa de alguma cousa mais.
Não se trata só de apontar defeitos; porque se um typo
Utterario não tem mérito algum, então deve ser excluído dos
livros de analyse.
Se é incluído é porque tem alguns títulos, que o amparem
e esses títulos devem ser francamente apresentados á apre-
ciação da posteridade.
Eu disse em principio que o Dr. Luiz Delflno é um talento
muito desigual em suas producções : grande-s defeitos no
meio de bellezas.
Se pois mostra bellezas é que seu espirito possue qua-
lidades bastantes para as produzir. Indicar essas qualidades
656 HISTORIA DA LITTSRATUBA BRABILEIBA
é O que falta e é o que vou praticar agora em nome da impar-
cialidade histórica.
São estas : o poeta possue vigor de imaginação, facilidade,
abundância, elevação de tom, brilho de tintas.
Creio que está dito tudo. As ideialisaçõe^, os quadros, as
creações do auctor podem não ser plácidos, bem equilibra-
dos, de desenho correcto, de contextura segura, bem deli-
neada e lógica.
Nunca se mostram em compensação rachiticos, enfezados,
nuUos. Ha sempre n'elles, pelo menos, certa grandeza de
intuitos, certo vigor dcscriptivo e pitoresco de forma, certa
aisance que indica o artista de pulso forte.
Estou bem certo de que, se o poeta publicar agora e de pan-
cada tudo o que tem escripto, o bom e o ruim, não fará grande
favor a sua fama. Se praticar uma selecção e publicar uns
dous ou três volumes do que possuir mais perfeito e aca-
bado, muito fará por sua gloria e poderá occupar um alto
logar entre os mais valentes lyristas de nosso paiz.
Devo cital-o, e, na difflculdade de fazer uma escolha intei-
ramente acertada, limito-me a mostrar as primeiras estrophes
das — Solemnia Verba :
(( Revolta a entranha, gottejando sangue,
Polluta a carne, rota e palpitante.
Olhos sem lume, o corpo inerte e exangue,
Lecerada, qual tronco de gigante.
Que o raio lasca, e que do vento a sanha
D'alto a baixo derroca da montanha...
Nas vascas d'agonia a Hespanha estava !...
Embalde a liberdade austera e honesta
Máscula força e um novo ardor lhe dava
Quer erguel-a... brodaram-lhe : não presta.
Mas... vem um rei ; abate-a ; e (cousa estranha I)
Bastou : 'stá viva : resurgiu a Hespanha!... •—
E' ella!... Vede-a... é ella!... Embraça o manto,
Que pela espalda câe-lhe longamente ;
HI8T0BIA DA LITTERATÚILà BRASILSIEA 651
No olhar... prazer, enleio, orgulho, espanto ;
A regia c*rôa lhe illumina a frente ;
E por meio do povo, que é-lhe espolio.
Rasga a estrada de Apio ao Capitólio.
Para saudar o império, que surgia,
Dentre as brumas da aspérrima tormenta,
Que inda montes e valles envolvia,
A primavera festival rebenta,
E, espedaçando o manto das neblinas,
Ergue a fronde enrolada de boninas.
íris de paz atou o céu â terra,
Chiou no campo o hymno da charrua,
E o clangoroso som oa voz da guerra
Por valles, montes, serras, não estua :
Riem-se as esperanças e os desejos,
Musicas bricam pelo ar e harpejos.
Ha como o esvoaçar do anjo da gloria
Desde os seus Piryneos ao Guadarrama!...
Que pagina voltou-se á sua historia ?
E esse heróe, que a voltou, como se chama ?
Que Odysséa essa mão recem-chegada
Vae escrever na pagina voltada?
Das velhas cathedraes nos campanários
Uns gigantes molossos bronzeados,
Negros espectros, feios, legendários.
Ladraram de alegria, oM de assustados.
Interrompendo o seu profundo somno,
Porque subia Affonso XII ao throno.
Longos reptis de bronze ajoelhados.
Como leOes a um domador de feras.
Nos seus moiiOes de ferro acorrentados,
Com carcereiros de feições severas,
Saúdam roucos, como a populaça,
Ao ultimo que os doma, e os vence e passo.
Em Madrid os altíssimos senhores
Pompeíavam librés de vari^ cores :
HISTORIA n 4t
658 BI8T0BIA DA LITTBRATVBA BRASILSnU
Como um riso. dè Deus o sol brilhava ;
Forrava o céu um céu de galhardetes,
£ entre gritos, repiques e foguetes,
Ria-se austeramente a Calatraval I...
Os cantores de todas as victorias
Os servos vis de todos os traidores,
Thuriferarios de fictícias glorias,
Beijando o pó dos pés aos seus senhores,
Só estes vêem a vida, a paz e flores
Onde os mais vêem grilhOes, miséria, horrores.
Mas onde andavas tu, ó linda escrava ?
Por onde, e em que dourados devaneios
Por um momento rugidora e brava
Ensanguentavas teus formosos seios ?
Qual era a tua idéa e o teu caminho.
Nua, descalça, rota, em desalinho ?
Descabellada, em lúbrica loucura,
Grande, como uma estranha divindade,
Palpando as trevas de uma noite escura,
O que buscavas tu na liberdade ?
Por onde, escrava de cem reis, tu voas,
Sceptros partindo, e espedaçando cYóas ?...
E tropeçou nas coroas dos senhores I...
E tropeçou na espada dos bandidos ;
Tropeçou nas bandeiras multicores,
Nos punhaes dos seus príncipes vencidos I...
Em cada passo um abysmo escancarado,
£ em cada abysmo um gríto do passado 1
Como em hartos rochedos seculares,
Tropeçavam seus pés nas cathedraes !...
E amoedando os vasos dos altares.
Moldando em arma os bronzes colossaes,
E os buréis, como lábaros, brandindo,
Anfella os monges foram-se reunindo...
Foi-lhe barreira a igreja, o padre, o monge^
Os escribas da lei degenerada ;
HIStOBIA DA LITTBBATUBA BRASILEIRA
E a pobre liberdade ia de longe
Vendo a cruz do Calvário alevantada...
E á louca multidão, que além se espraia,
EUa ouvia bradar : — crucificai-a.
Um povo repassado da ferrugem
Das cadeias, e tendo a' alma vincada ,
Dos velhos elos, como as vagas mugem
Quando se alteiram na procella irada,
Ergueu-se ; e as roucas vozes ecoaram ; . .
— Que é dos nossos grilhões, que nos roubaram f.««
Surgiu embalde a voz omnipotente
Sobre o murmúrio dessem ingente mar ;
Como o rugido do leão fremente.
Passou a voz da Emilio Castellar.
— Vae com teus sonhos, lhe gritava o povo,
Nossos grilhões... nossos grilhões de novo. —
Armada sentinella do futuro,
Immovel, como estatua num rochedo,
Via sem ódio, sem paixão, sem medo.
Em convulsões do povo o mar impuro,
E na tremenda agitação que lavra
Da boca sáe-lhe um sol : — era a palavra. —
Aquelle mar que cresce, ferve, estua.
Como leão nas jaulas indomado,
Elle arremessa a voz candente sue^
Como um Cyclope um monte derrancado ;
E monte a monte — Encelado moderno — ,
Cáe dentro desse mar seu verbo eterno.
••
— Vós, que vendeis a vossa liberdade,
O que sereis na historia ? O que ser ha de
Quem sem pejo alma vende, um monstro enorme,
Cabeças a milhões, e um só molosso,
Que embriagado sobre o sangue dorme, ,
Inda a rugir famélico de um osso.
Erguei-vos, povos, ergue-te, nação ;
Crava os olhos no espaço luminosos ;
96Q mSTOBIA DA LITTEEATVRA BSABIUEIEÁ
Tu és a força, q indómito leôo,
Porém na jaula e em somno vergonhoso :
Falta-te a idéa, íalta-te a vontade...
Tens a força e n&o tens a liberdade !
Só darás uma prole corrompida,
Terra da Hespanha ? terra grande outr'ora,
Quando pugnava independência e vida,
E enchia a historia de clarões de aurora,
£ enchia o mundo de fulgentes brilhos I...
Oh ! Hespanha, onde estão teus grandes filhos ?
Evoca. Rasga as ^dras tumulares,
Quebra o ossário dos teus velhos soldados,
Ergue o lençol dos annos seculares,
Enche as cryptas poentas dos teus brados,
Chama, evoca outra vez, ó povo ingrato...
Responde o Cid 7... Acode o Viriato ?...
Os grandes capitães não vem. Passaram.
Não tens direito mais ao teu reclamo ;
Dormem. Podem dormir que trabalharam ;
Patriei, que, ainda assim mesmo, eu tanto amo.
Porque em fim mesmo assim envilecida
£'s minha pátria, oh ! eu te devo a vida.
Porque não fundaremos na justiça
Um grande império, Castellar bradava.
Temos sido o repasto da cobiça,
Hespanha, deixa emflm de ser escrava,
Oh ! pátria de minha alma, Hespanha miuha,
De ti mesma levanta-te rainha.
Acabemos de vez a vil tutela,
Dos que se crêem legítimos senhores
De vós, soberdos filhos de Castella ;
Fujam de vez os olhos oppressores,
A lei por vós formada e vos aceite,
Seja o único rei que se respeite.
Bella esperança que. o porvir nos doura,
Berço, ninho de amor, que nos embala,
f
HIBTOBIA DA UTTBSATU&A BBABILBIBA 601
Mimosa e doce como a moça Ipura,
Que aos tenros filhos com carinho fala,
Ama-te o velho, adora-te a criança.
Bello sol de alegria e de esperança.
Nâo temais, reis do mundo, o gladio delia :
N&o é a liberdade algoz tremendo ;
Como o sol passa em horas de procella
A face d'ouro em nuvens escondendo
Mas sempre sol e rei da immensidade...
Assim é elle... o sol da liberdade...
Vejo-te, Hespanha, soberana e bella,
Ao banquete da paz chamando os povos,
Firmando emíim galhardamente nella
A conquista dosi teus direitos novos...
Viva a paz, que engrandece e que consola...
E' a paz a — Republica hespanhola, —
E o que é a paz ? Sabei, ó hespanhóes ,
E* o vusso salário ao lar fruido,
O campo roteado, o fllho instruído...
Sfio estes os pacíficos heróes.
Que hão de renhir batalhas á miséria,
E a luz plantar nos coruchéus da Ibéria... » (1)
É' impossivel continuar a citaçáo, por demasiado longa.
O que ahi flca é mais que sufflciente para representar o
estylo do poeta, quando elle era um sectário do condorei-
rismo.
Hoje sua maneira iem-se modiflcado no sentido do puro
parnasianismo. Victor Hugo deixou de ser seu mestre ; Le-
conte de Lisle exerce hoje esta funcçáo. Quem quizér conhe-
cer do caminho andado pelo poeta, iasla que leia d'elle o
bellissimo quadro intitulado Três Irmães e o compare a So-
lemnia Verba. Avaliará a distancia.
Creio poder concluir com segurança : O Dr. Luiz Delfino
dos Santos não está destinado a representar na liistoria,
(l) Éíoiêta Broêileira, Tomo 1.% pag. 290 e seguintes.
662 flIBTORIA DA LITTERATUBA BBABILBIBA
como por ahi apregoaram em certa época admiradores seus,
o primeiro papel, a primeira figura de nossa poesia. Bem
longe d'isso. Também n&o ficará no logar inferior que j& um
dia, em utilissima reacç&o, lhe assignalei. Sua posiçdi) será
bem considerável, principalmente coroo poeta de imagina-
ção.
FIM DO SEGUNDO VOLUMU
À
-l 1_
ERRATA DO 2.« VOLUME
PAGINAS LINHAS ERROS EMENDAS
79 17 que Não que não
158 14 e da vida , da vida
197 3 inteliectual, intelleclual nosso,
249 1 influição reflectida., feição reflectida
363 5 e raro raro
418. 17 sei os povos sei se os povos
430 15 tem elle razão tem razão
490 24 Vai a Cidade Vaea Cidade
549 16 callos calos
632 26 troço torço
655 24 quarto quadro
E vários outros menos consideráveis.
índice
T*rol«n «poM ou ptriodfi d» transfomuçld rom
(1880-18T0)
Capitulo I. — Posai*. O romaoliamo. Siu piimein pbMa
C^itnlo II. — PoMÍ&. Segunda phaae do romantismo ...
Capitulo III. — Terceira phaae do romanliamo
Capitulo IV. — Quarta phaae do romantismo
Capitnlo V. — Quinta phaae do romantismo
Capitulo VI. — Sexta e ultima phaae do romaatismo
Capitulo VII. — Ainda sexta e ultim& phaM do romantismo. . .
>B Stlnls-Fèrof. 391.11
^^^^^^^Qé^Pg^^^S^^