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Full text of "Historia da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal"

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HISTORIA 

DA    ORIGEM 

ESTABELECIMENTO 
DA  INQUISIÇÃO 

EM 

PORTUGAL 

POR 

A.    HERCULANO 


Decima  edição  definitiva  conforme  com  as  edições  da  vida  do  autor 
dirigida  por 

DAVID   LOPES 

Professor  da  Faculdade  de  Letras  da  Universidade  de  Lisboa 


TOMO    II 


LIVRARIA   BERTRAND 

LISBOA 

LIVRARIA   FRANCISCO   ALVES 

RIO   X>E   JAXEIRO  —  S.    PAULO 
BELO    HORIZONTE 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/historiadaorige02herc 


JHLISTORIA 

DA  ORIGEM 

h 

ESTABELECIMENTO  DA  INQUISIÇÃO 


HISTORIA 

DA    ORIGEM 

E 

ESTABELECIMENTO 
DA  INQUISIÇÃO 

EM 

PORTUGAL 

POR 

A.    HERCULANO 


Decima  edição  definitiva  conforrae  com  as  edições  da  vida  do  autor 
dirigida  por 

DAVID    LOPES 

Professor  da  Faculdade  de  Letras  da  Universidade  de  Lisboa 


TOMO    II 


LIVRARIA     BERTRAND 


73  —  Rua  Garrett,  —  75 

LISBOA 


LIVRARIA  FRANCISCO  ALVES 


Rio   DE   JANEIRO 
S.    PAULO  —  BELO    HORISONTE 


COMrosio  E  IMPRESSO  NA   IISIPRENSA  PORTUGAL-BRASIL 
Rua  da  Alegria,  30  —  Lisboa 


Livfto  ;v 


LIVRO  IV 


Bulia  de  perdão  de  7  de  abril  de  1533.  Apprecia- 
ção  delia. — Procedimento  da  corte  de  Portugal. — 
Negociações  com  o  papa  em  Marselha.  —  Envia- 
tura  de  D.  Henrique  de  Meneses,  e  instrucções  da- 
das ao  arcebisto  do  Funchal. — Diligencias  balda- 
das em  Roma  para  annullar  o  perdão.  Insistência 
dos  embaixadores.  Protrahem-se  os  debates.  O 
papa  resolve  difinitivamente  manter  a  bulia  de 
perdão.  Breve  de  2  de  abril  de  1534,  —  Tentativas 
de  transacção  propostas  por  D.  Henrique  de  Mene- 
ses.— Procedimento  do  arcebispo  do  Funchal,  suas 
relações  com  Duarte  da  Paz,  e  traições  deste. — 
Resistência  em  Portugal  ao  cumprimento  da 
bulia  de  7  do  abril,  e  perseguições  contra  os  con- 
versos.— Breve  de  26  de  julho. — Morte  de  Cle- 
mente VII  e  eleição  de  Paulo  iii.  Caracter  do  novo 
papa. — Renovam-se  as  negociações. — Intervenção 
do  embaixador  hespanhol.— O  papa  manda  sus- 
pender os  eífeitos  dos  breves  de  2  de  abril  e  26 
de  julho.— Novos  debates  sobre  a  bulia  de  7  de 
abril.— Transacção  proposta  pela  corte  de  Portu- 
gol    e  bases  ofterecidas  para  ella. — Intrigas  em 


8  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Roma.  Progresso  da  lucta,  e  resolução  final  sobre 
as  modificações  do  perdão  e  sobre  o  restabeleci- 
mento do  tribunal  da  fé.— Conselhos  de  D.  Henri- 
que de  Meneses  e  do  arcebispo  a  elrei  acerca 
desta  matéria. — Dobrez  da  cúria  romana.— Accu- 
sações  de  Sinigaglia  contra  o  governo  português. 
— Despeito  mutuo  das  duas  cortes. — Ajustes  ver- 
gonhosos do  núncio  com  os  christãos-novos. — 
Elrei  pensa  em  transigir  com  os  conversos  para 
que  acceitem  a  Inquisição  modificada— Reacção 
do  espirito  de  intolerância. — Revalida-se  por  mais 
três  annos  a  lei  de  14  de  junho  de  1532. — Breve  de 
20  de  julho  de  1535  annullando  os  eífeitos  dessa  lei. 
— Diligencias  da  corte  de  Portugal  para  obter  a 
rovocação  de  Sinigaglia,  e  instrucçôes  aos  embai- 
xadores para  repetirem  as  tentativas  de  accordo. 
— Idéa  de  fazer  com  que  Carlos  V  intervenha 
energicamente  na  questão.  —  Novas  intrigas. — 
Deslealdade  do  arcebispo.— Irritação  extrema  do 
papa. — Bulia  de  12  de  outubro  revalidando  e  am- 
pliando a  de  7  de  abril  de  1.532.— D.  Martinho  de 
Portugal  é  desmascarado.  Mutua  malevolencia  en- 
tre elle  e  D.  Henrique  de  Meneses. — Influencia  da 
bulia  de  12  de  outubro  em  Portugal. 

A  suspensão  do  estabelecimento  do  tribu- 
nal da  fé  em  em  Portugal  era  apenas  um 
allivio  temporário  que  se  concedia  aos  desdi- 
tosos hebreus.  Como  vimos,  a  bulia  pontifícia 
indicava  de  modo  assas  explicito  que,  dadas 
certas  circumstancias,  a  anterior  concessão 
se  renovaria,  A  espada  de  Damocles  ficara 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  9 

pendente  sobre  a  raça  proscripta.  Assim,  em- 
bora procurasse  conciliar  a  benevolência 
d'e]rei  trahindo  a  causa  em  que  estava  empe- 
nhado e,  até,  para  melhor  disfarçar  a  sua  des- 
lealdade e  conduzir  os  occultos  meneios  em 
que  se  embrenhara,  Duarte  da  Paz  devia  de- 
dicar-se  activamente  a  sollicitar  o  perdão  dos 
seus  co-religionarios  pelo  que  respeitava  ao 
possado.  Fora  o  que  fizera  e,  embora  repel- 
lido  por  Santiquatro,  obtivera,  conforme  dis- 
semos, a  dicisiva  protecção  da  maioria  dos 
cardeaes.  Obstava  a  resistência  de  Pucci  (1) 
e  a  do  embaixador  português,  a  quem,  pelo 
menos,  cumpria  guardar  as  apparencias  do 
zelo,  se  na  realidade  o  não  tinha.  Uma  cir- 
cumstancia,  porém,  veio  fazer  triumphar  a 
causa  dos  christãos-novos,  e  foi  o  ausentar- 
se  temporariamente  de  Roma  o  cardeal  San- 
tiquatro. Aproveitou-se  o  ensejo.  Num  consis- 
tório celebrado  nesse  meio  tempo  deu-se  de- 
ferimento ás  supplicas  dos  conversos,  recu- 
sando o  papa  admittir  como  parte  neste  ne- 
gocio o  embaixador  português  (2),  e  a  7  de 


(1)  Caria  de  Santiquatro  a  D.  João  III,  na  G.  2,  M. 
5,  N."  51,  no  Arch.  Nac. 

(2)  «O  modo  que  se  nisso  teve  é  individo  e  desor- 
denado,  querer  passar  as  ditas  provisões  (as  da 


10  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

abril  de  1533  expediu-se,  emfim,  a  bulia  de 
perdão,  que  completava  e  parecia  verificar  de- 
finitivamente o  favor  transitório  obtido  pelo 
diploma  de  17  de  outubro  do  anno  anterior. 

Na  bulia  de  7  de  abril  o  papa  rememorava 
a  do  estabelecimento  da  Inquisição  e  os  fun- 
damentos propostos  pela  corte  de  Portugal, 
em  que  ella  se  estribava,  e  alludia  ao  breve 
de  17  de  outubro,  sem  expressar  os  seus  mo- 
tivos ;  porque  esse  acto  ficava  virtualmente 
justificado  pelas  razões  que  legitimavam  as 
providencias  agora  tomadas.  O  primeiro  facto 
que  se  estabelecia  como  base  para  as  provi- 
sões da  bulia  era  o  da  conversão  forçada  dos 
judeus,  facto  sobre  que  se  guardara  silencio 
na  supplica  para  se  concederem  os  poderes 
de  inquisidor-mór  ao  minimo  Fr.  Digo  da 
Silva,  e  que,  portanto,  invalidava  a  bulia  de 
17  de  dezembro  de  1531,  pelo  vicio  de  subre- 
pção.  Clemente  vii  dividia  em  duas  categorias 
os  judeus  e  mouros  portugueses;  uma  da- 
quelles  que  haviam  sido  obrigados  á  força  a 
receber  o  baptismo ;  outra  dos  que  tinham 
voluntariamente  entrado  no  grémio  da  igreja, 


1  Hl  lia  de  perdão)  a  petição  das  partes  sem  querer 
ouvir  primeiro  o  embaixador».  Minuta  d'Instrucç.  á 
D.  Maslinlio,  G.  2,  M.  2,  N."  3.5. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  11 

OU  que,  filhos  de  conversos,  haviam  s^do  bap- 
tisados  na  infância  com  annuencia  de  seus 
pães.  Quanto  aos  primeiros,  a  bulia  de  per- 
dão reproduzia  no  seu  preambulo  as  doutri- 
nas dos  antigos  conselheiros  de  D.  Manuel,  e 
nomeiadamente  do  bispo  do  Algarve,  D.  Fer- 
nando Coutinho.  «Não  devem  —  dizia  o  papa 
—  ser  contados  como  membros  da  igreja  os 
que  foram  baptisados  violentamente,  e  elles 
teriam  todo  o  direito  de  se  queixarem  de  ser 
corrigidos  e  castigados  como  christãos,  com 
quebra  dos  princípios  da  justiça  e  equidade». 
Quanto  aos  outros  espontaneamente  conver- 
tidos, ou  procreados  por  pães  christãos,  con- 
siderado o  tracto  em  que  viviam  com  aquel- 
les  cuja  conversão  fora  fingida,  e  o  poder  das 
suggestões  diabólicas,  entendia  que,  no  caso 
de  serem  verdadeiras  as  accusações  levanta- 
das contra  elles,  convinha  que  fossem  tracta- 
dos  com  a  brandura  e  commisseração  pro 
prias  do  espirito  evangélico,  antes  de  serem 
punidos  com  o  rigor  do  gladio  espiritual,  ao 
passo  que  reputava  cousa  atroz  tolerar  perse- 
guições e  insultos  contra  os  que,  sincera- 
mente entrados  no  grémio  catholico,  se  ti- 
nham tornado  suspeitos  só  pela  circumstancia 
de  procederem  de  pães  ou  avós  judeus.  A' 
vista  destas  ponderações,  cuja  solidez  era  in- 


12  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

dispLilavel,  Ciemente  vii  avocava  a  si  todas  as 
causas  de  heresia,  fossem  ellas  quaes  fossem, 
e  em  qualquer  estado  que  estivessem,  sem 
excepção  de  nenhum  foro  ou  tribunal,  e  an- 
nullava  todos  os  processos,  salvo  os  de  con- 
demnados  como  relapsos,  que  não  seriam  fá- 
ceis de  achar,  dado  o  pouco  tempo  que  a 
Inquisição  tinha  de  existência.  Declarava  (aliás 
com  bem  pouca  verdade)  que  procedia  assim 
de  motu-proprio  e  espontânea  vontade,  sem 
que  nisso  interviessem  supplicas  dos  chris- 
tãos-novos,  nem  instancias  de  ninguém.  Para 
se  verificarem  os  effeitos  da  bulia,  estabele- 
cia-se  a  forma  de  obter  o  perdão.  Marco  delia 
Ruvere  era  incumbido  de  publicar  solemne- 
mente  em  Portugal,  por  si  ou  por  seus  dele- 
gados, aquella  resolução  pontifícia  em  todas 
as  dioceses  e  povoações  do  reino  e  conquis- 
tas. Depois  da  publicação,  durante  três  meses 
para  os  presentes  e  quatro  para  os  ausentes 
(ficando  aliás  ao  arbítrio  do  núncio  encurtar 
ou  estender  este  praso),  seriam  recebidos  á 
reconciliação  todos  e  quaesquer  culpados  de 
crimes  contra  a  fé,  confessando  as  suas  cul- 
pas ao  representante  da  corte  de  Roma  ou 
aos  sacerdotes  que  elle  para  isso  deputasse. 
Os  nomes  e  appelidos  dos  reconciliados  de- 
veriam  ser   escriptos  pelos  respectivos  con- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  13 

fessores  num  livro  ou  caderno.  Aquelles  re- 
gistos ficavam  constituindo,  digamos  assim, 
para  esses  culpados,  quer  christãos-novos 
quer  não,  o  livro  da  vida.  Qualquer  delles  que 
fizesse  esta  demonstração  seria  por  esse  facto 
absolvido.  Designavam-se  cuidadosa  e  especi- 
ficadamente as  diversas  situações  em  que 
poderiam  achar-se  aquelles  a  quem  a  conces- 
são era  applicavel,  para  que  ninguém  fosse 
excluído  do  beneficio  do  perdão.  Naturaes  ou 
extrunhos  domiciliados  no  paiz,  homens  ou 
mulheres,  seculares  ou  ecclesiasticos  de  qual- 
quer graduação,  pessoas  livres  ou  encarcera- 
das, réus  sentenciados  ou  não,  accusados  ou 
simplesmente  diffamados  de  heresia,  por 
mais  condemnavel  que  ella  fosse,  blasphemos, 
sacrílegos,  a  todos  e  a  tudo  se  estendia  a 
absolvição  pontifícia.  Como,  porém,  para  se 
cumprirem  as  condições  do  perdão  era  ne- 
cessário que  os  que  delle  careciam  estives- 
sem no  pleno  uso  dos  seus  direitos  civis, 
ordenava  se  na  bulia  a  immediata  soltura  dos 
presos  e  detidos,  e  a  faculdade  de  voltarem  á 
pátria  os  degredados  e  banidos,  não  come- 
çando a  correr  o  praso  de  reconciliação  para 
os  encarcerados  senão  do  dia  em  que  fossem 
postos  em  liberdade,  e  para  os  desterrados 
senão  daquelle  em  que  se  lhes  expedissem  os 


14  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

salvo-conduclos  precisos  para  poderem  voltar 
aos  seus  lares.  Os  que  se  aproveitassem  do 
beneficio  da  bulia  ficariam  hábeis  para  con- 
servarem quaesquer  dignidades  ecclesiasticas, 
ainda  as  mais  elevadas,  se  delias  estavam  ou 
tinham  ficado  revestidos,  e  também  para  as 
obterem  de  futuro,  devendo  ser  admittidos 
sem  embaraço  algum  ás  ordens  sacras.  Sendo 
seculares,  tiravam-se-lhes  todas  as  notas  de 
infâmia,   de   modo  que  igualmente  ficassem 
hábeis  para  servir  cargos  públicos  e  receber 
honras,  distincções  e  mercês.  Uma  das  provi- 
sões mais  importantes  da  bulia  era  a  que  se 
referia  aos  bens  dos  processados.  Annullando 
quaesquer    sentenças    proferidas    contra    os 
christãos-novos,  e  com  ellas  os  seus  effeitos, 
restituía  aos  réus  os  bens  que  lhes  houvessem 
sido  sequestrados  ou  confiscados  e  que  ainda 
não  estivessem  definitivamente  incorporados 
no  fisco.  O  núncio  ou  os  seus  delegados  de- 
viam  passar  certidões  dos  registos  dos  per- 
doados aos  que  as  pedissem,  recommendan- 
do-se  que  taes  cédulas  fossem' gratuitas,  e  não 
servissem    de    pretexto    a    exacção   alguma. 
Aquellas  cédulas  seriam  um  titulo  para  o  re- 
conciliado não  ser  perseguido.  O  que  antes  de 
vir  buscar  o  perdão  tivesse  já  sido  culpado  e 
penitenciado  ou  reconciliado  pela  Inquisição, 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  15 

e  depois  houvesse  recahido  na  heresia  e  o 
confessasse  agora,  não  deviam  por  isso  repu- 
tá-lo relapso,  porque  toda  a  criminalidade  an- 
terior ficaria  completamente  expungida.  Aos 
próprios  relapsos  julgados  como  taes  dava-se 
ainda  um  meio  de  salvação,  a  revista  do  pro- 
cesso pelo  núncio.  Só  depois  de  confirmada  a 
sentença  nesta  ultima  instancia  se  lhes  appli- 
caria  a  pena.  Não  o  sendo,  reduzia-se  tudo 
para  o  réu  a  uma  penitencia  secreta,  pela  quali 
do  mesmo  modo  que  nos  outros  casos  tam- 
bém já  definitivamente  julgados,  devia  ser 
substituída  a  penitencia  publica,  abjurando 
primeiramente  o  confesso  os  seus  erros  con- 
forme as  leis  da  igreja.  Se  depois  do  perdão 
reincidissem,  applicar-se-lhes-hiam  as  devidas 
penas;  mas,  provando  elles  que  o  baptismo 
fora  forçado,  essas  penas  nunca  seriam  as  de- 
cretadas contra  os  relapsos.  Aquelles  de  quem 
constasse  ao  núncio  que  eram  publicamente 
infamados,  posto  que  não  convencidos,  do 
crime  de  heresia,  podiam  justificar-se  perante 
elle  secretamente  com  duas  ou  três  testemu- 
nhas idóneas,  sem  formulas  judiciaes,  e,  se 
entendessem  que  deviam  abjurar,  podiam  fa- 
zê-lo  do  mesmo  modo  em  segredo.  Final- 
naímente,  se  houvesse  alguns  que  deixassem 
passar  o  praso  do  perdão  sem  o  soUicitarem 


16  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

e  quizessem  depois  obtê-io,  lomar-se-hia  co- 
nhecimento do  negocio  na  nunciatura,  e  defe- 
rir-se-hia  este  á  cúria  romana  para  o  resolver, 
ficando  tanto  os  inquisidores  como  os  ordina- 
narios  inhibidos  por  um  anno  de  procederem 
contra  taes  culpados.  Para  que  todas  estas 
providencias  tivessem  o  devido  effeilo,  o  papa 
fulminava  a  excommunhão,  a  suspensão  e  o 
interdicto  contra  todos  os  juizes,  de  um  e  de 
outro  foro,  e  contra  todas  as  dignidades  eccle- 
siasticas,  sem  excepção  de  jerarchia,  ou  con- 
tra outros  quaesquer  individuos  que  obstas- 
sem directa  ou  indirectamente  á  execução  da 
bulia,  prohibindo  que  a  esta  se  attribuisse  o 
defeito  de  subrepticia,  e  negando  desde  logo 
a  validade  a  quaesquer  excepções  e  limitações 
que  se  lhe  posessem,  ainda  quando  emanas- 
sem da  sé  apostólica.  Recommendava  o  pon- 
tifice  ao  seu  representante  na  corte  de  Lisboa 
que,  se  lhe  fosse  necessário  auxilio  do  braço 
secular  para  remover  quaesquer  obstáculos  á 
plena  execução  daquellas  providencias,  invo- 
casse o  dicto  auxilio,  e  exhortava  D.  João  iii 
para  que,  obedecendo  á  sancta  sé,  desse  todo 
o  favor  ao  bispo  de  Sinigaglia  no  cumpri- 
mento da  sua  missão.  Derogava,  emfim,  para 
este  caso,  todas  as  provisões  de  direito  canó- 
nico e  de  quaesquer  letras  apostólicas  oppos- 


HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO  17 

tas  ás  actuaes,  bem  como  os  privilégios  civis 
dos  inquisidores  em  que  elles  podessem  es- 
tribar-se  para  procederem  de  modo  contrario 
ás  resoluções  pontifícias  (1). 

Taes  eram  os  pontos  mais  notáveis  da  bulia 
de  7  de  abril.  Particularisámos  as  disposições 
especiaes  nella  contidas,  porque  a  sua  maté- 
ria, como  é  fácil  de  prever,  despertou  serias 
resistências  e  deu  origem  a  vivos  debates.  O 
pensamento  geral  dessa  bulia  é  indubitavel- 
mente honroso  para  a  memoria  de  Clemente  vii, 
porque  representa  a  protecção  aos  opprimidos 
e  condiz  com  o  espirito  de  tolerância  evangé- 
lica, O  desenvolvimento,  porém,  da  idéa  fun- 
damental daquelle  acto  do  primaz  da  igreja 
nem  sempre  resiste  á  analyse.  A  cúria  ro- 
mana punha-lhe  o  sello  da  sua  individualidade. 
Constituia-se  o  núncio,  e  núncio  tal  como  Si- 
nigaglia,  árbitro  supremo  das  questões  sobre 
os  desvios  em  matérias  de  fé,  e  os  bispos  fi- 
cavam equiparados,  sob  esse  aspecto,  aos  de- 
mais  poderes,   funccionarios   e    magistrados 


(1)  Bulia  Sempiterno  Regi,  na  G.  2,  M.  2,  N.»  11, 
e  no  CoUeclorio  das  BulJas  do  Sancto-Officio,  f.  32. 
Omitlimos  algumas  circumstancias  secundarias 
desta  extensa  bulia  por  não  serem  essenciaes  para 
a  in',elligencia  da  subsequente  narrativa. 

TOMO  II  2 


18  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

ecclesiasticos  ou  civis.  O  caracter  e  os  direi- 
tos inauferíveis  do  episcopado  confundiam-se 
nesta  parte  com  outras  quaesquer  funcções 
de  delegação  ou  concessão  pontifícia.  Pelo  que 
tocava  aos  christãos-novos,  Marco  delia  Ru- 
vere  podia  considerar-se  como  o  bispo  uni- 
versal de  todas  as  dioceses  do  reino  e  con- 
quistas, immediata  e  exclusivamente  suffraga- 
neo  da  sancta  sé.  Na  verdade,  desde  que  havia 
a  fazer  distincções  entre  os  réus ;  desde  que 
se  tractava  de  confissões,  de  abjurações,  de 
penitencias  e  ainda  de  condemnações  em  cer- 
tos casos,  era  necessário  submetter  isso  tudo 
a  alguma  magistratura  independente  de  um 
rei  absoluto  e  fanático,  de  quem  eram  servos 
os  bispos  de  Portugal.  Mas  tudo  procedia  de 
serem  as  provisões  da  bulia  em  grande  parte 
illogicas  em  relação  aos  seus  fundamentos. 
Desde  que  o  papa  altamente  proclamava  o 
principio  de  que  um  individuo  constrangido  a 
receber  o  baptismo  não  ficava  por  esse  facto 
mais  christão  do  que  outro  que  nunca  fosse 
baptisado,  desprezando  as  ridiculas  distincções 
de  violências  precisas  e  de  violências  condi- 
cionaes,  inventadas  pelos  theologos  e  cano- 
nistas  para  darem  plausibilidade  ás  mais  ab- 
surdas tyrannias ;  desde  que  dessa  máxima 
indubitável  resultava  outra  igualmente  certa. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  19 

a  de  que  não  era  passível  de  nenhuma  lei 
contra  os  herejes  quem  não  adoptara  espon- 
taneamente a  fé  christan,  a  consequência  se- 
ria ordenar  ao  núncio  que  acceitasse  aos  mem- 
bros das  famílias  hebraicas  a  livre  declaração 
da  sua  verdadeira  crença,  e  prohibir  severa- 
ramente  ao  rei,  commínando-lhes  graves  pe 
nas,  que  tomasse  a  religião  por  pretexto  para 
perseguir  os  seus  súbditos,  advertindo-o  de 
que,  se  lhe  convinha  legar  á  historia  mais  lim 
nome  de  tyranno,  o  fizesse  em  nome  das  con 
veniencias  dvis,  e  não  calumniasse  o  christia- 
nismo.  Aquelles  que  declarassem  que  a  sua 
conversão  fora  espontânea  e  sincera,  devia 
deixá-los  entregues,  não  ás  formulas  singula- 
res e  anti-canonicas  da  Inquisição,  mas  ao  di- 
reito commum  da  igreja,  á  acção  legitima  do 
episcopado,  cuja  integridade  cumpria  restabe- 
lecer. Gomo  primaz  do  orbe  catholico,  era  o 
que  incumbia  ao  papa,  e  a  sua  responsabili- 
dade acabava  ahi.  Se,  porém,  os  bispos  se 
mostrassem  depois  ou  subservientes  á  cruel- 
dade do  poder  civil,  ou  remissos  no  desem- 
penho dos  seus  deveres,  a  elle,  também  como 
primaz,  tocava  revocá-los  ao  espirito  do  evan- 
gelho, ou  supprir  a  negligencia  dos  prelados 
pelos  meios  que  as  leis  da  igreja  lhe  faculta- 
vam. O  illogico  da  bulia  ia  até  o  absurdo.  Ha- 


20  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

via,  por  exemplo,  nada  mais  monstruoso,  sup- 
posta  a  doutrina  que  o  papa  invocava,  do  que 
deixar  subsistir  penas,  embora  menos  rigoro- 
sas, contra  os  chamados  relapsos,  ainda  mos- 
trando que  haviam  sido  compellidos  a  receber 
o  baptismo?  Não  declarava  a  própria  bulia 
que  semelhante  procedimento  seria  intolerá- 
vel? 

D.  Martinho  de  Portugal,  que,  depois  da 
partida  de  Brás  Neto,  ficara  único  represen- 
tante da  corte  portuguesa  em  Roma,  e  que 
fora  confirmado  em  fevereiro  desse  anno  na 
dignidade  de  arcebispo  do  Funchal,  metrópole 
das  conquistas  (1),  não  tendo  podido  obstar 
á  resolução  do  pontifice,  também  não  podia, 
sem  denunciar  certa  connivencia,  naquelle  ne- 
gocio, deixar  de  escrever  a  elrei  acerca  de  um 
successo  de  tanta  monta.  O  que  sabemos  é 
que  pouco  tardou  em  chegar  a  Portugal 
aquelle    importante    diploma.  Fosse,   porém, 


(1)  Bulia  de  10  de  fevereiro,  no  M.  13  de  Bulias 
N.o  8,  no  Arcii,  Nac.  Nos  Annaes  de  D.  João  ni  por 
Sousa  (Mennor.  e  Doe,  p.  378)  enconlra-se  memoria 
de  15:000  cruzados  remettidos  em  fevereiro  de  1532 
a  D.  Martinlio  para  certos  gastos.  Esta  somma  não 
parece  ter  sido  destinada  ao  negocio  da  Inquisição, 
como  se  poderia  suspeitar,  mas  sim  ao  da  erecção 
do  bispado  do  Funchal  em  metrópole  das  índias. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  21 

que  actuassem  ainda  as  mesmas  causas  que 
até  ahi  parece  terem  gerado  o  inexplicável  si- 
lencio da  corte  de  Lisboa ;  fosse  que  houvesse 
algumas  desconfianças  de  D.  Martinho,  ape- 
sar da  profunda  impressão  que  semelhante 
facto  devia  produzir,  o  arcebispo  embaixador 
não  recebeu  resposta  ou  instrucções  algumas 
que  servissem  de  norma  ao  seu  procedimento 
ulterior  (1).  Elrei,  a  quem  não  era  possivel  oc- 
cultar  o  estado  a  que  as  cousas  tinham  che- 
gado, queixou-se  amargamente  ao  núncio  da 
resolução  do  pontífice  e  exigiu  delle  que  fosse 
o  orgam  do  seu  vivo  sentimento  (2).  Existe 
um  memorial  em  nome  de  D.  João  iii,  eviden- 
temente   redigido   nesta   conjunctura   (3),   no 


(1)  Carta  de  Santiquatro,  1.  cit. 

(2)  Ibid. 

(3)  Esta  memoria,  que  se  acha  na  G.  2,  M.  2,  N.» 
29,  é,  sem  duvida,  feita  logo  que  a  bulia  de  7  de  abnl 
ciiegou  a  Portugal;  porque,  depois  de  indicar  rapi- 
damente os  factos  anteriores  e  alludir  ao  breve  que 
suspendera  a  Inquisição,  accrescenta:  «os  dictos 
christãos-novos  ouverão  agora  outra  bulia  de  per- 
dão, etc».  Santiquatro  diz  expressamente  que  elrei 
«hauendo  de  cio  notizia  (da  expedição  da  bulia  de  7 
de  abril)  fece  scriuere  per  il  nuntio  a  la  santitá  di 
N.  S.  pregando  quella  uolesse  reuocare  Tesecutione 
delia  detta  boUa».  Carta  de  Santiquatro,  1.  cit. 


22  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

qual  se  apresentavam  a  Clemente  vir  muitas 
das  ponderações  que  depois  mais  extensa- 
mente veremos  allegadas  contra  a  bulia  de  7 
de  abril,  cuja  revogação  ahi  se  pedia.  O  que 
não  veremos  é  renovarem-se,  ao  menos  tão 
amplamente,  as  concessões  que  durante  a  pri- 
meira impressão  de  desalento  a  intolerância 
julgava  necessário  fazer  para  salvar  o  resto 
das  suas  conquistas.  Propunha-se  naquella 
supplica  ou  memoria  que,  mantida  a  Inquisi- 
ção como  fora  concedida,  se  modificassem  os 
terríveis  resultados  que  tinham  para  as  victi- 
mas  as  suas  fataes  sentenças;  que  os  con- 
demnados  como  herejes  não  fossem  entregues 
ao  braço  secular,  evitando  assim  a  morte,  e 
sendo  apenas  desterrados  para  fora  do  rei- 
no; que  se  lhes  não  confiscassem  os  bens,  e 
que  estes  ficassem  para  os  seus  herdeiros 
christãos,  ou,  quando  não  os  tivessem,  para 
obras  pias;  que  os  reconciliados,  isto  é,  os 
confessos  que  obtivessem  perdão  dos  inquisi- 
dores, não  fossem  penitenciados  com  cárcere 
perpetuo,  nem  também  se  lhes  confiscassem 
os  bens,  mas  que,  tirando-se-lhes  os  filhos, 
para  se  não  corromperem  com  o  tracto  e 
conveniência  paterna,  se  reservassem  esses 
bens  para  elles,  ficando  os  réus  privados  dos 
direitos  civis,  e  não  podendo  exercer  outras 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  23 

profissões  senão  as  de  trabalho  manual ;  que 
os  filhos  e  netos  dos  sentenciados,  uma  vez 
que  se  mostrassem  extranhos  aos  crimes  dos 
progenitores,  não  padecessem  nota  de  infâ- 
mia, e  ficassem  habilitados  para  usarem  de 
todos  os  seus  direitos  e  para  obterem  quaes- 
quer  honras  e  dignidades  (1). 

Chegou  semelhante  supplica  ás  mãos  de 
Clemente  vu "?  Ignoramol-o.  O  que  é  certo  é 
qne  nas  ulteriores  negociações  não  se  acha 
a  menor  refereneia  ás  propostas  largamente 
favorareis  aos  christãos-novos  que  nella  se 
continham.  A  estes,  por  vantajosíssimas  que 
fossem  essas  condições,  era,  sem  compara- 
ção, mais  útil  a  prompta  execução  da  bulia 
de  7  de  abril.  Por  outra  parte,  fácil  é  de  ima- 
ginar se  o  bi:-po  de  Sinigaglia  se  conformaria 
de  boa  vontade  com  as  exigências  d'elrei.  Os 
proventos  incalculáveis  e  a  influencia  que  lhe 
resultavam  da  missão  que  se  lhe  conferira 
são  evidentes.  Marco  delia  Ruvere  não  era 
homem  que  de  bom  grado  cedesse  de  taes 
vantagens,  e  as  informações  particulares  com 
que  havia  de  acompanhar  a  pretensão,  se  é 
que  o  memorial  chegou  a  Roma,  mal  podiam 


(1)  Memoria,  1.  cit. 


24  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ser  favoráveis  a  essa  pretensão.  Assim,  o 
único  resultado  da  demonstração  d'elrei  foi 
expedir-se  nos  fins  de  julho  um  breve  ao 
bispo  de  Sinigaglia  para  que  levasse  a  effeito 
as  decretadas  providencias,  recommendando- 
se-lhe  ao  mesmo  tempo  que  fizesse  todos  os 
esforços  para  o  poder  civil  abrogar  a  lei  que 
prohibia  aos  christãos-novos  a  saída  do  rei- 
no (1). 

Postas  as  cousas  em  taes  termos,  não  era 
possivel  aos  ministros  portugueses  dissimu- 
lar por  mais  tempo.  Expediram-se,  emfim,  or- 
dens e  instrucções  ao  arcebispo  do  Funchal, 
nas  quaes  se  lhe  ordenava  seguisse  o  papa 
até  a  cidade  de  Marselha,  onde  os  negócios 
geraes  da  igreja  e  as  circnmstancias  politicas 
da  Europa  o  obrigavam  a  residir  por  algum 
tempo.  A  pretensão  d'elrei  reduzia-se  agora 
á  suspensas  da  bulia  e  á  revogação  do  breve 
relativo  á  sua  prompta  execução,  até  que  che- 
gasse á  cúria  um  embaixador  extraordinário, 
que  para  lá  se  destinava,  e  que  de  accordo 
com  o  arcebispo,  proporia  as  razões  que  o 


(1)  Ibid.  —  O  breve  do  mez  de  juliio  dirigido  ao 
núncio  não  o  encontrámos;  mas  a  sua  existência  e 
objecto  mencionam-se  no  Memorial  dos  chrislãos- 
novos.  Sym.,  vol  31,  f.  31  e  segg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  25 

governo  português  tinha  a  oppor  contra  as  am- 
plas concessões  feitas  aos  conversos  (1).  Di- 
rigiu-se,  portanto,  o  arcebispo  a  Marselha, 
aonde  chegara  o  papa  a  12  de  outubro  (2). 
Um  dos  primeiros  actos,  porém,  de  Clemente 
VII,  depois  de  se  achar  em  França,  fora  reva- 
lidar a  bulia  de  7  de  abril  e  escrever  energi- 
camente a  D.  João  III  para  que  obedecesse  ás 
provisões  nellas  contidas  (3).  Nascia  este  pro- 
cedimento das  suggestões  do  núncio.  Dando 
conta  da  sua  missão,  avisava  o  papa  de  que 
pedira  a  elrei  facilitasse  a  execução  dos  man- 
dados apostólicos;  mas  que  as  suas  diligen- 
cias haviam  sido  baldadas,  bem  como  o  tinham 
sido  as  supplicas  dos  christãos-novos,  que. 


(1)  Carta  de  Santiquatro,  1.  cil. 

(2)  Pallavicino,  Istoria  dei  Concilio  di  Trento,  L. 
3,  cap.  14. 

(3)  No  rápido  esboço  da  historia  das  primeiras  ne- 
gociações relativas  á  Inquisição,  contido  na  carta  de 
Santiquatro  acima  citada,  não  se  allude  a  esta  cir- 
cumstancia,  nem  no  Arcliivo  Nacional  se  encontra  o 
breve  dirigido  a  D.  João  III.  Todavia  no  Memorial 
dos  Christãos  novos  menciona-se  o  facto  como 
cousa  sabida  na  cúria  romana,  e  na  copia  do  Pro- 
cesso da  Inquisição  que  consultou  Fr.  M.  de  S.  Dâ- 
maso (Verd.  Elucid.  Argum.  n.°  8)  estava  inserido  o 
breve,  que  começa  Ex  litteris  nuntii,  e  é  datado  de 
19  de  outubro. 


26  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

para  obterem  o  mesmo  fim,  não  haviam  pou- 
pado esforços.  Segundo  se  dizia,  D.  João  iii 
estava  persuadido  de  que  o  pontífice  accedera 
ás  sollicitações  de  Duarte  da  Paz,  sem  as  ne- 
cessárias informações,  por  peitas  que  rece- 
bera, e  a  elle  próprio  núncio  dava  mostras  de 
lhe  ser  odiosa  a  sua  estada  em  Portugal  (1). 
Terminava  o  bispo  de  Sinigaglia  recapitu- 
lando todos  os  escândalos  que  se  tinham  prao- 
ticado  nesta  matéria,  e  aconselhando  o  pro- 
cedimento que  acerca  da  execução  da  bulia 
se  devia  ulteriormente  seguir. 

Com  a  chegada  do  arcebispo  do  Funchal  a 
Marselha,  a  ira,  que  no  animo  de  Clemente  vii 
deviam  ter  produzido  as  informações  de  Marco 
delia  Ruvere,  parece  haver  abrandado.  Ou  que 
o  embaixador,  compellido  pelas  instrucções 
que  emfim  recebera,  procedesse  com  mais 
energia,  ou  porque  se  empregassem  meios  oc- 
cultos  para  tornar  propicias  algumas  influen- 
cias poderosas  na  cúria,  é  certo  que  o  papa 
conveio  a  final  em  ceder,  quanto  á  prompta 


(1)  «Rex. . .  credeus,  ut  dicebalur,  Clemenlern  de 
hujus  modi  negoliis  nom  informatum,  pocunia  tau- 
tum  motum,  veniain  prcedictam  concessisse  . . . 
nuntii  paesentiani  oslondebat  abhorrere»:  i.  cit., 
f.  32. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  27 

execução  da  bulia  de  7  de  abril,  e  em  esperar 
dous  mezes,  até  que  chegasse  o  novo  agente 
que  se  annunciava  e  que,  de  accordo  com  o 
arcebispo,  devia  apresentar  e  explanar  as  gra- 
ves objecções  que  elrei  tinha  a  oppor  contra 
o  perdão.  Em  consequência  disso,  expedi- 
ra m-se  a  18  de  dezembro  dous  breves,  um  ao 
núncio,  para  que  suspendesse  a  execução  dos 
mandados  apostólicos,  e  outro  a  elrei,  avisan- 
do-o  da  resolução  tomada  (1). 

Estes  factos  passavam  nos  últimos  mezes 
de  1533.  Em  dezembro  desse  mesmo  anno  ti- 
nha já  o  papa  voltado  a  Roma  (2).  Transmit- 
tido  á  corte  o  êxito  da  negociação  em  Marse- 
lha, foi  encarregado  D.  Henrique  de  Meneses 
da  missão  extraordinária  juncto  á  cúria  ro- 
mana. Cumpria,  porém,  preparar  todas  as  ar- 
mas para  combater  o  perdão  de  7  de  abril; 
colligir  todos  os  factos  e  argumentos  que  po- 
dessem  invalidá-lo.  Não  era  negocio  fácil.  Cle- 
mente VII  tinha  de  antemão  mandado  exami- 
nar as  doutrinas  da  bulia  e  os  seus  funda- 
mentos na  universidade  de  Bolonha,  e  dous 


(1)  Carta  de  Santiquatro,  1.  cit.  -  Breves  Licet 
superioribus  e  Quod  optavit  cit.  na  Verd.  Elucid.  Ar- 
gum.  N.o  9. 

(2)  Palavicino,  L.  3,  cap.  i  (1 


28  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

(los  mais  celebres  professores  daquella  es- 
chola  de  jurisprudência,  Parisio,  depois  ele- 
vado ao  cardinalato,  e  Veroi,  tinham  redigido 
duas  extensas  dissertações  nas  quaes  as  pro- 
videncias do  pontifice  a  favor  dos  christãos- 
novos  eram  plenamente  justificadas  (1),  Gon- 
sultava-se  entretanto  em  Portugal  sobre  as 
instrucções  que  se  deviam  dar  de  viva  voz  e 
por  escripto  ao  novo  agente  que  se  enviava  a 
Roma  e  ao  que  já  lá  se  achava.  Assentou-se 
em  que  a  primeira  cousa  que  cumpria  extra- 
nhar  no  procedimento  do  papa  era  que,  tendo 
sido  concedida  a  Inquisição  havia  tão  pouco 
tempo,  agora,  sem  se  darem  novas  circums- 
tancias,  se  annullasse  esse  acto  anterior;  que, 
attendendo-se  para  isso  ás  supplicasdos  chris- 
tãos  (embora  na  bulia  se  dissesse  falsamente 
o  contrario)  nunca  se  quizcra  dar  ouvidos  ao 
embaixador  português.  Julgou-se  também  ne- 
cessário recapitular  com  clareza  as  causas 
que  houvera  para  a  instituição  do  tribunal  da 
fé,  e  ponderar-se  que,  á  vista  dessas  causas, 


(1)  As  duas  consultas,  assas  difíusas,  acham-se, 
precedidas  dos  respectivos  quesitos,  na  Symmicta, 
vol.  31,  de  f.  223  a  363.  —  Parece  pelo  seu  contexto 
haverem  sido  redigidas  na  coujunctura  da  expedi- 
ção da  bulia  de  7  de  abril,  ou  proximamente. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  29 

devera  ter  sido  o  papa  quem  trabalhasse  no 
estabelecimento  da  Inquisição,  em  vez  de  se 
lhe  mostrar  adverso;  que,  admittindo  ter  ha- 
vido no  principio  da  conversão  dos  judeus  al- 
guma violência,  se  devia  advertir  que  esta  não 
fora  precisa,  mas  condicional,  e  que,  portanto, 
para  os  conversos,  os  quaes,  aliás,  tinham  fre- 
quentado depois  por  muitos  annos  os  sacra- 
mentos da  igreja,  dando-se  por  christãos,  era 
obrigativo  o  baptismo ;  que  O  rei  godo  Sise- 
buto  forçara  os  judeus  a  converterem-se,  e, 
todavia,  fora  elogiado  de  religiosíssimo  pelos 
padres  do  xii  concilio  toledano,  e  que  igual 
louvor  mereciam  os  príncipes  que  o  imita- 
vam; que  os  judeus  tinham  tido  tempo  de 
saírem  do  reino,  e  muitos  o  haviam  feito ;  que 
os  que  ficaram  com  capa  de  christãos  não 
eram  provavelmente  nem  uma  cousa  nem  ou- 
tra, escarnecendo  por  incrédulos  dos  sacra- 
mentos que  recebiam;  que  a  bulia  estendia  o 
perdão  aos  obstinados,  cousa  prohibida  pelos 
cânones,  e  que  perdoar  no  foro  externo  por 
confissões  secretas,  que  podiam  ser  fingidas, 
era  absurdo  ;  que  semelhante  perdão  seria  um 
escândalo  para  o  orbe  catholico ;  que  para  os 
arrependidos  serem  perdoados  bastavam  as 
provisões  canónicas  e  o  tempo  de  graça  que 
a  Inquisição   costumava   conceder;    que  se, 


30  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

apesar  de  todas  estas  considerações,  o  papa 
insistisse  no  perdão  geral,  este  negocio  deve- 
ria ser  commettido  ao  inquisidor-mór  e  aos 
seus  delegados,  limitando-se  o  dicto  perdão 
aos  que,  arrependidos,  viessem  especificada- 
mente confessar  seus  erros,  substituindo-se 
para  esses  as  penas  de  direito  por  penitencias 
arbitrarias,  publicas  ou  occultas,  e  escreven- 
do-se  as  confissões,  assignadas  pelo  confessor 
e  pelo  confitente,  em  registos,  por  onde  de- 
pois se  podessem  saber  os  delictos  que  lhes 
haviam  sido  perdoados,  ficando  em  todo  o 
caso  excluidos  do  perdão  os  relapsos.  Sobre- 
tudo, devia  insistir  o  embaixador  em  que  de 
nenhum  modo  este  negocio  se  commettesse 
ao  núncio,  mas  sim  a  uma  pessoa  que  o  rei 
designasse,  declarando-se  que  sem  esta  con- 
dição se  não  podia  admittir  nenhuma  resolu- 
ção pontifícia  relativa  ao  assumpto.  Cumpria 
exigir  a  conservação  do  tribunal  da  fé  como 
fora  concedido  e  agora  se  propunha  de  novo, 
suspendendo-se  quaesquer  provisões  passadas 
a  favor  dos  judeus,  e,  finalments,  insinuar  se 
a  Clemente  vii  ser  voz  publica  em  Portugal 
que  todas  essas  providencias  contrarias  á  In- 
quisição eram  obtidas  por  avultadas  peitas 
dadas  na  cúria  romana,  dando-lhe  também  a 
entender  que  novos  actos  no  mesmo  sentido 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  31 

não  fariam  senão  confirmar  semelhantes  accu- 
sações  (1). 

Taes  foram  eai  substancia  as  instrucções 
enviadas  ao  arcebispo  do  Funchal.  Análogas 
deviam  ser  as  que  se  deram  a  D.  Henrique 
de  Meneses  acerca  da  bulia  de  7  de  abril,  em- 
bora mais  desenvolvidas  (2).  Gomo,  porém,  se 
queria  salvar  a  todo  o  custo  a  Inquisição,  e 
era  necessária  nova  concessão  por  causa  de 
Fr.  Diogo  da  Silva  ter  recusado  o  cargo  de 
inquisidor-mór,  redigiram-se  uns  apontamen- 
tos especiaes  sobre  esse  objecto.  Nelles,  pre- 
suppondo-se  a  revogação  da  bulia  de  7  de 


(1)  «he  fama  nestes  reynos  que  por  peita  grossa 
de  dinheiro  que  se  deo  em  sua  corte  se  negoceam 
estas  provisões  contra  tão  santa  e  tão  necessária 
obra» :  Minuta  sem  data  na  G.  2,  M.  2,  N.°  35,  no 
Are.  Nacion.  Do  seu  contexto  vê-se  que  este  projecto 
de  instrucções  pertence  á  epoclia  em  que  o  coiloca- 
mos.  Era,  talvez,  destinado  a  D.  Martinho,  porque 
diz  na  rubrica  que  é  a  «instrucção  que  S.  A.  deve 
mandar  escrever  ao  embaixador».  Se  fosse  para  D. 
Henrique  diria  «.dar  ao  embaixador y>. 

(2)  As  instrucções  ao  novo  agente  sobre  a  revo- 
gação do  perdão  não  nos  foi  possível  descobri-las; 
mas  alludem  a  ellas  vários  documentos  posteriores, 
e  as  allegações  offerecidas  pelos  dous  ministros  (Ra- 
gioni  dei  Re:  Symm,,  vol.  31,  f.  366)  das  quaes  va- 
mos falar,  estão  indicando  o  que  dizemos  no  texto. 


32  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

abril,  o  rei  propunha  modificações,  não  na 
idéa  fundamental  da  instituição,  mas  sim  no 
modo  de  regular  os  seus  plKmeiros  actos.  Era 
uma  verdadeira  transacção  que  se  offerecia. 
Imaginavam-se  meios  de  satisfazer  em  parte 
aos  fins  que  o  papa  tivera  em  mente  nas  am- 
plas concessões  do  perdão.  A'  matéria  da 
bulia  de  17  de  dezembro  de  1531  accrescen- 
tavam-se  vários  artigos.  Estatuir-se-hia  que 
qualquer  individuo,  de  qualquer  parte  do  reino 
e  seus  domínios,  que  no  tempo  de  graça,  que 
os  inquisidores  haviam  de  dar,  viesse  perante 
elles  pedir  perdão  dos  crimes  que,  em  geral, 
houvesse  commettido  contra  a  fé,  fosse  absol- 
vido sem  o  obrigarem  a  especificá-los.  Isto  seria 
applicavel  só  aos  que  não  estivessem  accusa- 
dos  judicialmente  ou  presos,  embora  corresse 
voz  e  fama  contra  elles,  e  ainda  que  a  seu 
respeito  houvesse  inquéritos  e  provas  de  he- 
resia, não  podendo  em  tempo  algum  fazer-se- 
Ihes  cargo  dos  crimes  perpetrados  antes  do 
perdão.  Os  assim  reconciliados,  cumpridas  as 
leves  penitencias  secretas  que  se  deixaria  ao 
arbítrio  dos  inquisidores  irapor-lhes,  ficariam 
no  goso  de  todos  os  seus  direitos  e  plena- 
mente rehabilitados.  Aos  ausentes  conceder- 
se-hia  um  anno  de  espera.  Contra  os  culpados 
e  presos,  e  contra  aquelles  que  não  viessem 


HISTORIA   DA    INQUISIÇÃO  33 

110  tempo  de  graça  implorar  o  perdão  proce- 
der-se-hia  segundo  o  costume  e  direito.  Re- 
gistar-se-hiam  os  nomes  dos  reconciliados, 
assignando  estes  nos  registos,  e  com  elles  os 
inquisidores  da  respectiva  localidade  e  duas 
testemunhas  obrigadas  a  guardar  segredo  ab- 
soluto sob  pena  de  excommunhão.  O  inquisi- 
dor-mór  e  seus  delegados,  cujas  largas  attri- 
buições  se  particularisavam,  ficariam,  como 
em  compensação,  auctorisados  para  procede- 
rem, derogadas  nesta  parte  as  disposições  do 
direito  canónico,  a  todos  os  actos  inquisito- 
riaes  sem  intervenção  dos  bispos,  podendo 
avocar  a  si  todas  as  causas  de  heresia, 
ainda  que  corressem  perante  juizes  apos- 
tólicos, e  até  perante  os  núncios  e  legado 
à  latere.  Prevenindo-se  o  caso  de  não  con- 
vir o  papa  no  que  se  apontava  de  novo, 
em  vez  de  se  recuar  insistir-se-hia  pura  e 
simplesmente  na  renovação  da  bulia  de  17 
de  dezembro  de  1531,  mudado  o  nome  do 
inquisidor-mór,  o  qual  em  logar  do  con- 
fessor d'elrei,  o  mínimo  Fr.  Diogo  da  Silva, 
seria  o  capellão-mór  D.  Fernando  de  Mene- 
ses Coutinho,  bispo  de  Lamego.  Ultimamente, 
a  nova  bulia  devia  conter  a  derogação  ex- 
pressa e  particularisada  da  de  7  de  abril 
e  de  quaesquer  outras  letras  apostólicas 
TOMO  n  3 


34  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

que  podessem  impedir  a  livre  acção  do  tri- 
bunal da  fé  (1). 

Munido  com  estas  instrucções,  com  cartas 
para  Santiquatro  e  para  o  próprio  Clemente 
VII,  e,  além  disso,  com  o  mais  que  se  julgara 
necessário  para  o  bom  desempenho  daquella 
missão,  D.  Henrique  de  Meneses  chegou  a 
Roma  em  fevereiro  de  1534  (2).  Apresentada 
ao  papa  a  credencial  do  novo  agente  (3),  os 
dous  embaixadores  tractaram  o  assumpto 
com  o  cardeal  Pucci.  Entendia  o  protector  de 
Portugal,  que  o  terem-se  demorado  tanto  as 
diligencias  que  se  faziam  agora  tornava  o  em- 
penho difficultosissimo ;  porque,  expedida  a 
bulia  de  perdão.  Clemente  vii  repugnaria  for- 
temente a  voltar  atraz,  sendo,  em  regra,  mais 
fácil  na  cúria  impedir  qualquer  negocio  do 
que  desfazê-lo  depois  de  concluido  (4).  Entre- 
tanto, associando  os  seus  esforços  aos  dos 
ministros  portugueses,  elle  obteve  do  papa 


(1)  Instrucção  sem  data,  G.  2,  M.  1,  N.°  22,  no 
Arch.  Nac. 

(2)  Carta  de  Santiquatro  a  elrei,  na  G.  2,  M.  5, 
N.»  51. 

(3)  A  minuta  da  credencial  acha-se  no  M.  2  de 
Cartas  Missivas  sem  data  N."  104,  no  Arch.  Nac. 

(4)  Carta  de  Santiquatro,  1.  cit. 


HíSTORIA  DA   IMUUISÍÇÃO  36 

uma  longa  audiência  em  que  o  assumpto  foi 
miudamente  debatido.  Três  dias  durou  a  dis- 
cussão, que  teve  por  único  resultado  mandar 
Clemente  vii  redigir  a  minuta  de  um  breve, 
em  que  severamente  se  ordenava  a  D.  João  in 
cessasse  de  pôr  obstáculos  á  plena  e  inteira 
execução  da  bulia  de  7  de  abril  (1).  A'  vista 
de  tal  resolução,  a  causa  da  tolerância  e  da 
humanidade  parecia  haver  triumphado,  em- 
bora, como  se  acreditava  em  Portugal,  essa 
victoria  houvesse  custado  aos  christãos-novos 
grandes  sacrifícios  pecuniários.  Não  desani- 
maram, todavia,  nem  Pucci  nem  D.  Henrique 
de  Meneses.  A'  força  de  considerações  e  sup- 
plicas,  obtiveram  uma  nova  revisão  da  maté- 
ria. Os  cardeaes  De  Cesis  e  Campeggio,  ho- 
mens de  cuja  sciencia  o  papa  especialmente 
confiava,  foram  nomeiados  para  tractarem  o 
assumpto  com  Santiquatro  e  com  os  repre- 
sentantes do  governo  português,  intervindo 
nas  conferencias,  como  consultores,  eminentes 
theologos  e  canonistas  (2).  Uma  longa  expo- 


(1)  ibid. 

(2)  Preambulo  do  breve  Venit  ad  nos  de  2  de 
abril  de  1534,  no  M.  19  de  Bulias  n."  12,  no  Arch. 
Nac  — Memoriale,  na  Symm.,  vol.  31,  f.  33  e  segg. 
—  Carta  de  Santiquatro,  1.  cit.  —  Carta  de  D.  Henri- 


36  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

sição,  redigida  em  conformidade  das  instruc- 
ções  vocaes  e  escriptas  que  D.  Henrique  re- 
cebera, serviu  de  base  aos  debates.  Esta 
exposição  encerrava  todas  as  considerações  e 
argumentos  que  podiam  salvar  o  edifício  va- 
cillante  da  Inquisição,  e  annuUar  as  providen- 
cias benéficas  com  que  o  papa  quizera  reme- 
diar o  erro  de  a  haver  concedido.  Insistia-se 
ahi  na  fútil  distincção  da  força  precisa  e  da 
força  condicional  em  relação  ao  baptismo  dos 
judeus,  pintando-se  como  doce  violência  as 
atrocidades  de  1497,  e  appelando-se  para  o 
consentimento  tácito  dos  convertidos  por 
trinta  e  cinco  annos,  durante  os  quaes  não 
haviam  sido  perseguidos,  podendo  ter-se  con- 
firmado, em  tão  largo  período,  nas  doutrinas 
do  christianismo.  Dizia-se  que  o  governo  os 
tractava,  honrava  e  protegia  como  outros 
quaesquer  indivíduos,  e  que  nenhuns  ódios 
alimentavam  contra  elles  os  christãos-velhos, 
aí¥irmativa  cuja  impudência  seria  incrível,  se 
não  existisse  essa  singular  exposição.  Asse- 
verava-se  que  na  probidade  das  pessoas  que 
se  elegiam  para  exercerem  os  cargos  da  In- 
(|iiisição,  estava  a  melhor  garantia  dos  chris- 


que  de  Meneses  de  10  de  abril  de  1534,  G.  2,  M.  5, 
N."  36,  no  Arch.  Nac 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  37 

tãos- novos,  em  cuja  conservação  no  reino  o 
estado  altamente  interessava,  por  exercerem, 
a  bem  dizer  exclusivamente,  a  industria  fabril 
e  o  commercio.  Deste  facto  se  pretendia  de- 
duzir também  argumento  contra  a  accusação, 
que,  segundo  parece,  nas  anteriores  discus- 
sões o  papa  fizera  ao  governo  português,  de 
que  o  zelo  da  fé  não  significava  da  parte  deste 
senão  o  desejo  de  os  espoliar,  por  via  dos 
confiscos,  das  avultadas  riquezas  que  pos- 
suíam ;  porque,  além  de  não  se  dever  suppor 
tal  da  piedade  e  catholicismo  d'elrei,  sendo 
essas  riquezas  em  jóias  e  dinheiro,  e  não  em 
propriedades,  elles  punham  tudo  a  salvo  fór;i 
do  reino,  apenas  se  conheciam  culpados  (1), 
Entravam  depois  os  embaixadores  em  largas 
considerações  sobre  os  inconvenientes  que 
resultavam  do  theor  da  bulia  de  7  de  abril  e 
da  forma  do  perdão  nella  estabelecida.  A  pri- 
meira ponderação  era  dirigida  contra  a  parte 
menos  defensável  da  bulia.  Reflectia-se  que, 
presuppondo-se  os  baptismos  violentos,  e  con- 
cluindo-se  d'ahi  que  os  indivíduos  violentados 


(1)  A  falsidade  de  todos  estes  embustes  diplomá- 
ticos está  provada  pelo  contexto  dos  alvarás  de  20 
e  21  de  abril  de  141)9  e  da  lei  de  14  de  junho  de  1532, 
cuja  matéria  anteriormente  exposémos. 


H8  HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO 

não  podiam  ser  tidos  por  christãos,  nem  estar 
portanto,  sujeitos  á  penalidade  contra  os  he- 
rejes,  parecia  absurdo  faciiitar-se-lhes  por  ou- 
tro lado  a  confissão  sacramental,  para  obte- 
rem ura  perdão  que,  como  judeus,  não  era 
applicavel,  convertendo-se  assim  em  buíra  o 
acto  da  confissão ;  que  este  absurdo  trazia 
consequências  mais  absurdas,  e  tal  era  a  de 
ficarem  dahi  avante  esses  judeus  confessos, 
não  só  recebendo  os  sacramentos,  mas  até 
administrando-os,  havendo  muitos  que  tinham 
recebido  ordens  sacras.  Se  esta  ponderação 
era  grave,  outras  havia  que  estavam  longe  de 
ter  a  mesma  força.  Observava-se,  por  exemplo, 
que,  não  podendo  ser  perseguidos  depois  do 
jíerdão  os  não-processados  que  o  viessem 
pedir,  confessando  em  termos  geraes  que  ti- 
nham delinquido  contra  a  fé,  seguir-se-hia  que 
qualquer  delicto  religioso  que  houvessem  an- 
teriormente perpetrado,  e  que  só  depois  viesse 
a  descubrir-se,  ficaria  impune,  sem  que,  toda- 
via, delle  tivessem  especialmente  podido  per- 
dão. Muitas  outras  disposições  da  bulia  eram 
combatidas  com  mais  ou  menos  plausibili- 
dade por  assegurarem  a  impunidade  aos  que, 
a  troco  de  uma  comedia  de  arrependimento, 
quizessem  continuar  occultamente  no  erro, 
conservando  bens,  cargos  e  dignidades  civis 


HISTORIA  DA  IN5QUISIÇÃO  39 

e  ecclesiasticas,  sem  responsabilidade  pelos 
actos  da  sua  vida  passada.  Como  se  aos  chris- 
tãos-novos  fosse  a  cousa  mais  fácil  do  mundo 
sair  do  reino,  contra punha-se  á  providencia 
pela  qual  se  mandavam  soltar  os  presos,  para 
irem  fazer  as  confissões  perante  o  núncio,  o 
inconveniente  de  que  esses  individues  se  po- 
riam a  salvo  fora  do  paiz,  sem  se  aproveita- 
rem do  concedido  beneficio.  Lembravam-se 
ao  papa  os  resultados  políticos  que  nas  rela- 
ções entre  Portugal  e  Castella  podia  ter  o  es- 
tender-se  o  perdão  aos  estrangeiros  residentes 
no  reino.  Muitos  dos  chamados  christãos- 
novos  eram  judeus  hespanhoes,  que,  proces- 
sados e  condemnados  em  Hespanha,  haviam 
buscado  asylo  em  Portugal,  offendendo  as 
provisões  da  bulia,  não  só  a  Inquisição  da- 
quelle  paiz,  mas  também  os  interesses  da 
coroa  castelhana  pela  exempção  dos  confis- 
cos, além  do  que,  seria  este  o  meio  de  fugi- 
rem muitos  herejes  daquellas  províncias  para 
Portugal,  vista  a  facilidade  de  mostrarem  com 
testemunhas  falsas,  longa  residência  neste 
paiz,  sobre  o  qual  recahiria  a  infâmia  de  ser 
um  receptáculo  de  herejes.  Esta.  mesma  cir- 
cumstancia,  de  se  estenderem  aos  estrangei- 
ros todas  as  condições  do  pei^dão,  o  tornava 
duplicadamente  perigoso  na  questão  dos  réus 


40  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

julgados.  A  permissão  de  se  fazerem  julgar 
de  novo  perante  o  núncio  trazia  o  odioso  so- 
bre a  Inquisição  e  sobre  os  prelados  de  Cas- 
tella,  contra  os  quaes  lhes  seria  fácil  provar 
quanto  quizessem,  longe  dos  delatores  e  das 
testemunhas  que  o  tinham  feito  condemnar. 
Depois  destas  considerações,  a  exposição  di- 
latava-se  pelos  logares  communs  a  que  a  in- 
tolerância costuma  soccorrer-se  contra  o  es- 
pirito da  mansidão  e  indulgência  evangélicas. 
Insistia-se  nos  effeitos  fataes  da  falta  de  cas- 
tigo ;  nos  abusos  que  havia  de  trazer  a  cer- 
teza da  impunidade ;  nas  fingidas  declarações 
de  arrependimento,  e  na  impossibilidade  de 
avaliar  até  que  ponto  as  reconciliações  eram 
sinceras.  Dous  objectos,  além  de  tudo  o  mais, 
reputavam  gravissimos  os  agentes  de  D. 
João  III.  Era  um  abranger  o  perdão  os  chris- 
tãos-velhos,  especificando-se,  até,  para  maior 
escândalo,  as  mais  elevadas  jerarchias  eccle- 
siasticas,  affronta  profunda  á  nação  portugue- 
sa, tão  pundonorosa  em  matérias  de  religião, 
e  que,  portanto,  não  tinha  de  aproveitar  per- 
dões de  tal  natureza.  Outro  era  o  commetter- 
se  ao  núncio,  sendo  estrangeiro,  o  encargo  de 
regular  e  applicar  as  concessões  da  bulia, 
contra  todos  os  usos  estabelecidos,  visto  que 
só  uma  pessoa  natural  do  reino  estaria  no 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  41 

caso  de  appreciar  as  circumstancias  que  se 
davam  acerca  de  cada  um  dos  indivíduos  que 
viesse  sollicitar  o  perdão  (1). 

O  resto  da  exposição,  partindo  do  presup- 
posto  de  se  revogar  a  bulia  de  7  de  abril,  não 
era  mais  do  que  a  pharaphrase  das  instruc- 
ções  que  acima  substanciámos  sobre  as  mu- 
danças que  elrei  propunha  se  fizessem  na 
nova  bulia,  pela  qual,  reconstituída  a  Inquisi- 
ção, devia  ser  nomeiado  inquisidor-mór  o 
bispo  de  Lamego.  A  única  circumstancia  que 
se  omittia  era  a  ordem  secreta  de  pedir, 
dado  que  vigorasse  a  bulia  de  7  de  abri!,  e 
quando  outra  cousa  se  não  vencesse,  a  futura 
reproducção,  pura  e  simples,  da  bulia  de  17 
de  dezembro  de  1531,  com  a  única  alteração 
do  nome  do  inquisidor-mór  (2). 

Taes  foram,  em  summa,  os  pontos  sobre  que 
versou  o  novo  debate  perante  os  cardeaes  De 
Cesis  e  Campeggio,  a  quem  clemente  vii  com- 
mettera  a  definitiva  decisão  deste  negocio.  Pro- 
trahiu-se  a  contenda  por  muitos  dias.  De  parte 
a  parte,  faziam-se  esforços  incríveis  para  obter 
a  victoria.  Se  o  que  se  dizia  em  Portugal  era 


(1)  Raggioni  dei  He:  Symm.  Lusit,  vol.  S-1,  f.  366 
e  segg. 

(2)  Ibid. 


42  lliSTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

verdade  ;  se  o  ouro  dos  hebreus  aviventava  na 
cúria  romana  o  espirito  da  caridade  evangélica, 
deve-se  confessar  que  elles  não  o  haviam  pou- 
pado. As  diligencias  de  Santiquatro  e  dos  em- 
baixadores eram  incessantes.  D.  João  ni  obtive- 
ra anteriormente  do  seu  cunhado,  Carlos  v,  car- 
tas para  o  papa,  nas  quaes  o  imperador  recom- 
mendava  vivamente  o  negocio  (1).  A  grande 
maioria,  porém,  dos  cardeaes  e  outras  pes- 
soas influentes  na  cúria  ou  protegiam  aberta- 
mente a  causa  dos  christãos-novos  ou  incli- 
navam-se  á  indulgência.  Ainda  antes  da  en- 
viatura  de  D.  Henrique  de  Meneses,  o  embai- 
xador hespanhol  e  o  cardeal  de  Sancta-Cruz, 
acompanhando  o  arcebispo  do  Funchal  ao  Va- 
ticano, para  entregarem  as  cartas  do  impe- 
rador acerca  deste  negocio,  tinham  falado  ao 
pontifice  de  um  modo  inteiramente  contrario 
ás  recommendacões  escriptas  de  Carlos  v,  lou- 
vando a  resolução  que  o  papa  tomara  de  con- 
ceder o  amplo  perdão  de  7  de  abril  (2).  Eram 
instrucções  secretas  que  para  isso  tinham,  e 


(1)  Vejam-se  as  cartas  de  D.  Martinho  de  14  de 
março  e  de  13  de  septembro  de  1535  (G.  2,  M.  I,  N." 
48  e  M.  2,  N.°  50,  do  Arch.  Nac.)  onde  se  allude  a 
estes  factos  anteriores. 

(2)  Carta  de  D.  Martinho  de  14  de  março,  1.  cil. 


HISTORIA    DA    INOflSíÇÃO  43 

não  passavam  as  rogativas  da  corte  de  Cas- 
lella  de  uma  decepção,  ou  haviam  sabido  os 
christãos-novos  chamar  ao  seu  partido  o  re- 
presentante do  imperador?  Ignoramo-lo.  En- 
tretanto, D,  Henrique  recebera  em  Lisboa  or- 
dem positiva  para  conduzir  o  negocio  de  ac- 
cordo  com  o  agente  de  Castella  (1),  poderoso 
apoio,  na  verdade,  attenta  a  influencia  de  Car- 
los V  em  Roma,  se  a  protecção  fosse  sincera. 
Nem  as  razões  que  os  ministros  de  Portu- 
gal apresentavam  contra  a  politica  de  tole- 
rância adoptada  pelo  pontífice,  nem  os  seus 
esforços  indirectos,  nem  o  apoio  moral  de 
Carlos  V,  se  existia,  tiveram,  todavia,  força 
bastante  para  alterar  essa  politica.  Em  resul- 
tado dos  debates,  os  theologos  que  haviam 
assistido  como  consultores  ás  conferencias 
dos  ministros  portugueses  com  os  cardeaes 
Santiquatro,  De  Cesis  e  Campeggio,  redigiram 
uma  larga  defesa  da  bulia  de  7  de  abril  em 
que  se  analysavam  e  refutavam  os  argumen- 
tos oppostos.  Além  desta,  apresentou-se  em 
nome  do  papa  outra  dissertação  não  menos 
extensa,  e  cujo  intuito  era  o  mesmo.  Porven- 
tura, a  sua  redacção  pertencia  aos  dois  car- 


(1)  Carta  de  D.  Martinho  He  14  de  março,  1.  cit. 


44  HlSroRIA    DA   1N'0UI81í:ÃO 

deães  commissarios  e  resumia  as  pondera- 
ções a  que  haviam  recorrido  iia  discussão 
oral  (1).  Posto  que,  como  já  advertimos,  a 
bulia,  pelo  illogico  das  suas  deducções  pre- 
ceptivas, em  relação  aos  seus  fundamentos 
theoricos,  e  pelo  desprezo  das  verdadeiras 
doutrinas  da  igreja  acerca  da  auctoridade 
episcopaN  que  as  attribuições  conferidas  ao 
núncio  nesta  parte  annullavam,  fosse,  absolu- 
tamente falando,  fácil  de  combater  não  o  era, 
relativamente,  para  homens  fjue  lhe  oppunham 
pretensões  muito  mais  absurdas,  e  essencial- 
mente contrarias,  não  só  á  disciplina  da  igreja, 
mas  também  á  Índole  do  christianismo  e  ás 
(radições  evangélicas.  Na  essência,  a  razão 
estava  do  lado  do  papa,  e  embora,  numa  ou 
noutra  particularidade,  ás  ponderações  feitas 
em  nome  d'elrei  não  se  podessem  oppor  de- 
cisivos argumentos,  é  certo  que  o  todo  das 
respostas  dadas  pelos  cardeaes  e  pelos  con- 
sultores produz  a  convicção.  Rememorando 
as  palavras  e  obras  de  Christo,  dos  apóstolos 
e  dos  padres  primitivos ;  a  doçura  com  que 


(1)  ICslas  (luns  allogações  constituem  os  N.»*  IG  e 
17  dos  documenlos  junclos  ao  memorial  dos  Ch.ris- 
tãos-novos  de  15ii,  na  Symm.  Lusit.,  voJ.  31,  f.  395 
e  seíí-K. 


HíSTOIUA   DA   INOUISIÇAO  40 

se  devia  inculcar  o  christianismo,  o  respeito 
que  cumpria  ter-se  á  liberdade  do  alvedrio 
humano  na  adopção  de  uma  crença  nova,  e  a 
mdulgencia  de  que  antigamente  se  usava  para 
com  as  fragilidades  e  desvios  dos  neophytos, 
que  vinham,  aliás,  espontaneamente  e  sem 
nenhuma  coacção  alistar-se  então  debaixo 
das  bandeiras  da  cruz,  os  defensores  da  bulia 
de  7  de  abril  punham  em  contraste  com  esse 
admirável  quadro  de  tolerância  e  de  modera- 
ção nos  primeiros  séculos  da  igreja  as  sce- 
nas  de  bruta  tyrannia  com  que  se  procedera 
em  Portugal  á  conversão  dos  judeus.  Ao 
quadro  do  abandono  em  que  os  prelados  e 
clero  de  Portugal  tinham  deixado  homens 
trazidos  sem  vocação  ao  grémio  da  igreja, 
elles  contrapunham  o  zelo  modesto,  mas  in- 
cessante, a  paciência  e  brandura  com  que  na 
origem  do  christianismo  os  apóstolos  e  os 
seus  immediatos  successores  iam  guiando  os 
débeis  passos  dos  convertidos,  e  alimentando 
com  a  instrucção  religiosa  os  ânimos  vacil- 
lantes  dos  que,  abrindo  os  olhos  á  luz  da 
eterna  verdade,  ainda  não  tinham  a  robustez 
precisa  para  supportar  todo  o  seu  explendor, 
sacrificando  até,  ás  vezes,  a  disciplina  christã 
a  hábitos  arreigados  que  não  era  possível 
extirpar  de  repente,  quando  esses  hábitos  não 


Aiy  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

íeriam  a  pureza  do  christianismo.  Este  con- 
traste, estribado  de  um  lado  no  Novo  Testa- 
mento e  nos  monumentos  primordiaes  da 
igreja,  e  do  outro  nos  factos  que  se  haviam 
passado  em  Portugal  nos  últimos  quarenta 
annos,  era  fulminante.  «Se,  porém  —  diziam — 
as  tradições  e  a  practica  da  mansidão  e  in- 
dulgência da  igreja  para  com  aquelles  que  de 
livre  vontade  entravam  no  seu  grémio  eram 
taes,  quanto  maior  devia  ser  a  brandura  e  a 
caridade  para  com  homens  violentados  ao 
baptismo  e  abandonados  nas  trevas  dos  seus 
erros»  ?  Os  theologos  de  Clemente  vii  vinham 
depois  á  concessão  da  bulia  de  17  de  dezem- 
bro de  1531  e  á  inconsistência  que  se  notava 
entre  esse  facto  e  a  bulia  de  perdão.  Nesta 
parte  a  resposta  não  era  menos  fulminante. 
«Sua  sanctidade — diziam  elles  —  entende  que 
é  melhor  referir  ingenuamente  a  verdade,  do 
que  recorrer  a  subtilezas.  Levaram-no  a  con- 
ceder a  Inquisição  por  meio  de  informações 
sinistras,  persuadindo-lhe  cousas  que  prefere 
calar,  para  não  fazer  os  que  a  soUicitaram 
odiosos  a  seus  próprios  naturaes,  infaman- 
do-os  perante  o  orbe  christão  com  o  ferrete 
da  deslealdade.  Seria  essa  a  consequência  de 
se  patenteiarem  as  mentiras  que  forjaram 
para  perder  esta  misera  gente.  Só  depois,  sua 


HISTORIA   DA    INOUISIÇÃ.O  4/ 

sanctidade  soube  que  os  factos  eram  pela 
maior  parte  mui  alheios  do  que  se  pintava,  e 
isto  por  mformações  de  diversos  individuos, 
dadas  por  escrito  e  vocalmente.  As  barbari- 
dades que  se  practicam  são  taes  que  custa  a 
perceber  como  haja  forças  humanas  que  pos- 
sam sofíVer  tanta  crueldade».  —  Passavam  de- 
pois a  fazer  o  extracto  de  uma  dessas  infor- 
mações dignas  do  maior  credito.  —  «Se  é  de- 
latado, ás  vezes  por  testemunhas  falsas, 
qualquer  desses  malaventurados,  por  cuja 
redempção  Christo  morreu,  os  inquisidores 
arrastam-no  a  um  calabouço,  onde  lhe  não  é 
licito  ver  céu  nem  terra  e,  nem  sequer,  falar 
com  os  seus  para  que  o  soccorram.  Accu- 
sam-no  testemunhas  occultas,  e  não  lhe  reve- 
lam nem  o  logar  nem  o  tempo  em  que  pra- 
cticou  isso  de  que  o  accusam.  O  que  pôde  é 
adivinhar  e,  se  atina  com  o  nome  de  alguma 
testemunha,  tem  a  vantagem  de  não  servir 
contra  elle  o  depoimento  dessa  testemunha. 
Assim,  mais  útil  seria  ao  desventurado  ser 
feiticeiro  do  que  christão.  Escolhem-lhe  depois 
um  advogado,  que,  frequentemente,  em  vez 
de  o  defender,  ajuda  a  levá-lo  ao  patíbulo.  Se 
confessa  ser  christão  verdadeiro  e  nega  com 
constância  os  cargos  que  delle  dão,  condem- 
nam-no  ás  chammas  e  os  seus  bens  são  con- 


48  HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO 

fiscados.  Se  confessa  taes  ou  taes  actos,  mas 
dizendo  que  os  practicou  sem  má  tenção, 
tractam-no  do  mesmo  modo,  sob  pretexto  de 
que  nega  as  intenções.  Se  acerta  a  confessar 
ingenuamente  aquillo  de  que  é  culpado,  re- 
duzem-no  á  ultima  indigência  e  encerram-no 
em  cárcere  perpetuo.  Chamam  a  isto  usar 
com  o  réu  de  misericórdia.  O  que  chega  a 
provar  irrecusavelmente  a  sua  innocencia  é, 
em  todo  o  caso,  mulctado  em  certa  somma, 
para  que  se  não  diga  que  o  tiveram  retido 
sem  motivo.  Já  se  não  fala  em  que  os  presos 
são  constrangidos  com  todo  o  género  de  tor- 
mentos a  confessar  quaesquer  delictos  que  se 
lhes  attribuam.  Morrem  muitos  nos  cárceres, 
e  ainda  os  que  saem  soltos  ficam  deshonra- 
dos,  elles  e  os  seus,  com  o  ferrete  de  perpe- 
tua infâmia.  Em  summa,  os  abusos  dos  in- 
quisidores sãos  taes,  que  facilmente  poderá 
entender  quem  quer  que  tenha  a  menor  idéa 
da  Índole  do  christianismo,  que  elles  são  mi- 
nistros de  Satanaz  e  não  de  Christo».  —  Tal 
era  o  extracto.  Accrescentavam  os  theologos 
que,  certificado  por  testemunhos  indubitáveis 
destes  factos,  convencido  de  que  o  dever  de 
pontifice  era  edificar  e  não  destruir,  e  vendo 
que  os  inquisidores  tractavam  os  conversos, 
não  como  pastores,  mas  como  ladrões  e  mer- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  49 

cenários,  não  só  suspendera  a  Inquisição, 
mas  também,  conhecendo  que  contribuirá, 
por  falta  de  são  conseliio,  para  taes  horrores, 
quizera  dar  uma  reparação  ás  victimas,  con- 
cedendo aquelle  amplo  perdão ;  que  não  lhe 
importava  se  os  seus  predecessores  tinham, 
acaso  levianamente,  concedido  ou  tolerado 
taes  cousas  nos  outros  reinos  de  Hespanha: 
importavam-lhe  os  exemplos  dos  apóstolos, 
que  o  espirito  divino  alumiava ;  porque  elle 
não  suppunha  ser  vigário  de  Innocencio  viii, 
de  Alexandre  vi  ou  de  outro  qualquer  papa, 
mas  sim  daquelle  de  quem,  conforme  o  sen- 
tir da  igreja,  era  próprio  compadecer-se  e 
perdoar.  Notava-se,  emfim,  que  elreiextranhas- 
se  tanto  esta  indulgência  e  tolerância  do  pon- 
titice,  quando  seu  pae  havia  concedido  aos 
christãos-novos  privilégios  e  exempções  que 
elle  próprio  confirmara,  ao  passo  que  o  pon- 
tífice, absolvendo-os  agora,  não  fazia,  propria- 
mente, senão  dilatar  por  um  praso  demasiado 
curto  os  eífeitos  das  concessões  havidas  por 
elles  da  benevolência  real  (1). 


(1)  Nas  respostas  dos  theologos  e  cardeaes,  nas 
allegaçòes  dos  christãos-novos,  em  todos  os  docu- 
mentos nos  quaes  se  allude  aos  privilégios  conce- 
didos por  D.  Manuel  aos  seus  súbditos  hebreus  e 

TOMO  II  4 


50  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Todas  as  considerações  offerecidas  por 
parte  d'elrei  eram  contradictas  com  jgual 
energia,  se  não  sempre  com  a  mesma  felici- 
dade de  doutrina  e  raciocinios,  nos  dous  me- 
morandos da  cúria  romana.  Vendo  o  negocio 
perdido  na  commissão  escolhida  para  o  tra- 
ctar,  os  agentes  de  Portugal  redobravam  de 


conlirmados  por  D  João  lu,  suppõe-se  constanle- 
menle  que  o  praso  em  que  por  aquelles  privilegies 
ficavam  immunes  da  perseguição  era  de  vinte  e 
nove  annos.  Entretanto,  sendo  a  primeira  concessão, 
feita  em  1497,  de  vinte,  e  a  prorogação  feita  em  1512, 
de  mais  dezeseis  (veja-se  o  voJ.  i,  p.  188),  era  rigoro- 
samente de  trinta  e  seis  esse  praso,  porque  é  obvio 
que  se  devia  contar  depois  de  expirado  o  periodo  da 
primeira  concessão.  D.  João  m  parece,  porém,  ter  con- 
siderado essa  prorogação  como  devendo  contar-seda 
data  em  que  foi  expedida,  isto  é  de  1512,  sendo  aliás 
clara  a  intelligencia  contraria  a  quem  ler  o  respec- 
tivo diploma,  inserido  em  confirmação  de  1522,  no 
L.  I  da  Chancellaria  de  D.  João  ni,  f.  44  v.  Acceita- 
ram  os  christãos-novos  aquella  interpretação  for- 
çada, on  alteraram-se  os  transumptos  que  se  lhes 
deram  quando  se  confirmou  a  concessão  em  1522? 
No  systema  de  deslealdade  que  então  predominava, 
não  sabemos  o  que  pensar  a  tal  respeito.  Notaremos 
a  circumstancia  singular  de  não  acharmos  na  Chan- 
cellaria de  D,  Manuel  um  diploma  tal  como  a  pro- 
rogação do  1512,  encontrando-o  na  do  seu  succes- 
sor.  E'  um  facto  para  nós  inexplicável. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  51 

instancias  para  com  Clemente  vii,  a  fim  de 
obterem  uma  resolução  menos  desfavorável. 
O  resultado,  porém,  dos  seus  esforços  não 
chegou  a  mais  do  que  a  propor- lhes  elle  uma 
transacção,  que  aliás,  á  vista  das  suas  instru- 
cções,  não  podiam  acceitar.  Era  voltar  tudo  ao 
antigo  estado,  revogando-se  a  bulia  de  7  de 
abril,  supprimindo-se  inteiramente  a  Inquisi- 
ção, e  começando-se  de  novo  a  tractar  de 
raiz  o  assumpto.  Debaixo  destas  condições,  o 
papa  não  duvidava  de  vir  a  conceder  uma 
Inquisição  ainda  mais  rigorosa  (2). 

Não  restava,  pois,  meio  algum  de  esquivai 
por  então  o  golpe.  O  mais  que  se  pôde  alcan 
çar  foi  que,  em  vez  do  breve,  cuja  minuta  es- 
tava redigida,  para  compellir  elrei  a  aquies 
cer  á  bulia  de  perdão,  se  escrevesse  outro 
mais  moderado  na  forma,  mas,  porventura. 
no  essencial  ainda  mais  enérgico.  Nesse  breve, 
expedido  a  2  de  abril,  o  papa  indicava  sum- 
mariamente  o  processo  da  negociação  e  de- 
clarava a  D.  João  III  que,  embora  não  fosse 
obrigado  a  dar-lhe  satisfiação  da  maneira  poi 


(2)  InstrucçÓGS  sem  data,  ma«  que  «íVidenlemenU 
são  de  1535,  na  G.  13,  M.  8,  N."  2,  e  Carta  de  D 
Henrique  de  Meneses  de  10  de  abwl  d«  1534,  G  2. 
M.  5,  N.o  36,  110  Arch.  Nac 


52  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

que  procedia  como  supremo  pastor,  comtudo. 
por  deferência  com  elle,  dar-lhe-hia  razão  de 
si,  apontando-lhe  os  motivos  que  tivera  para 
rejeitar  as  supplicas  dos  seus  embaixadores. 
Estes  motivos  eram  em  substancia  os  mes- 
mos dos  memorandos  dos  cardeaes  e  tlieolo- 
gos,  expostos  com  admirável  lucidez,  simpli- 
cidade e  elegância,  sem  perderem  um  ápice 
da  sua  força.  Concluia  o  pontífice  asseve- 
rando que  estava  certo  da  obediência  d'elrei 
e  assegurando  a  este  que,  se  tivesse  de  fazer 
novas  ponderações,  a  corte  de  Roma  estava 
prompta  a  ouvi-las  uma  e  mil  vezes  (1).  Pou- 
cos dias  depois,  Clemente  vii  escrevia  ao 
núncio,  avisando-o  da  expedição  deste  breve. 
Esperava  o  papa  que,  respondendo-se  ahi  a 
todas  as  objecções,  elrei  não  poria  mais  obs- 
táculos á  execução  da  bulia.  Ordenava-lhe, 
portanto,  que  cumprisse  o  que  nela  se  esta- 
tuía, repetindo-lhe,  comtudo,  a  advertência 
que  já  por  muitas  vezes  lhe  fizera,  advertên- 
cia que,  aliás,  não  provava  demasiada  con- 
fiança nas  qualidades  moraes  do  bispo  de 
Sinigaglia,  de  que  nem  elle,  sob  pena  de  sus- 
pensão, nem  os  seus  ministros  e  familiares, 


(1)  Breve    Venít  ad  nos  de  2  de  abril  de  1534,  no 
M.  19  de  Bulias  N.o  12,  no  Arch.  Nac. 


HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO  53 

sob  pena  de  excommunhão,  se  aproveitassem 
das  circumstancias  para  fazerem  extorsões 
aos  christãos-novos,  fosse  com  que  pretexto 
fosse,  sem  exceptuar  o  de  suppostas  dadivas 
voluntárias,  ou  o  de  despesas  pela  feitura  de 
quaesquer  diplomas  (1). 

Na  mesma  conjunctura  escreviam  os  agen- 
tes d'elrei  para  Portugal  dando  conta  do  in- 
feliz resultado  da  negociação.  O  arcebispo  do 
Funchal  sustentava  que  o  mal  procedera  prin- 
cipalmente de  se  ter  pedido  o  favor  de  Cas- 
tella,  divulgando-se  assim  o  negocio,  e  acon- 
selhava elrei  sobre  o  procedimento  que  devia 
adoptar.  Desgostoso,  porque  sabia  que  a  mis- 
são de  D.  Henrique  de  Meneses  nascera  de 
se  desconfiar  delle,  nem  por  isso  se  tinha  mos- 
trado mais  frouxo  (2).  O  cardeal  Santiquatro 
e  o  embaixador  extraordinário,  D.  Henrique, 


(1)  Breve  Ex  iitterarum  de  9  de  abril  de  1534,  ori- 
ginal no  M.  20  de  Bulias  N."  4,  e  uma  versão  portu- 
guesa na  G.  2,  M.  2,  N.»  5,  no  Arch.  Nac. 

(2)  A  existência  desta  carta  do  arcebispo  a  elrei 
(bem  como  de  outras  anteriores  e  posteriores  que 
não  podemos  encontrar),  e  o  pouco  que  acerca  do 
seu  conteúdo  dizemos  no  texto  deduzem-se  das  duas 
cartas  do  mesmo  D.  Martmho,  de  março  e  septem- 
bro  de  1535,  que  se  acham  na  G.  2,  M.  1,  N.°  48,  e 
M.  2,  N."  50. 


54  HISTORIA    DA   INQUISIÇÃO 

esereTerom  lambem.  A  carto  deste  ultimo,  que 
ainda  existe,  e  que  foi  enviada  pelo  mesmo 
mensageiro  que  trouxe  o  breve,  é  um  docu- 
mento importante,  porque  nos  mostra  como, 
apesar  desse  breve,  ainda  não  estava  tudo  ir- 
remediavelmente perdido.  Havia  pontos  em 
que  o  papa  parecia  inabalável,  e  a  opinião  ge- 
ral na  cúria  ia  conforme  com  elle :  no  resto 
era  fácil  vir  a  um  accordo.  D.  Henrique  lem- 
brava a  exequibilidade  da  transacção  que  Cle- 
mente vil  propunha  de  se  revogarem  absolu- 
tamente os  dous  actos  de  17  de  dezembro  de 
1531,  que  creara  a  Inquisição,  e  o  de  7  de 
abril,  que  virtualmente  a  annullava,  tractando- 
se  de  novo  o  assumpto,  ou  sobreestando  por 
emquanlo  na  resolução  dessa  matéria.  A'cerca 
disto  remettia  a  elrei  um  projecto  de  breve  que 
o  pontifice  lhe  ordenava  communicasse  ao  seu 
soberano.  Gomo  é  de  crer,  o  embaixador  acha- 
va que  elrei  teria  razão  de  se  offender  do  pro- 
cedimento do  papa ;  mas  advertia  que  medi- 
tassem bem  os  seus  conselheiros  na  resolu- 
ção que  deviam  e  podiam  adoptar,  de  modo 
que  depois  se  não  vacillasse,  e,  posto  que  pou- 
co explicitamente,  suggeria  como  possivel  a 
idéa  de  se  quebrarem  as  relações  com  a  corte 
pontifícia,  mandando-os  retirar  de  Roma,  a  ei- 
le  e  ao  arcebispo.  Quanto  ao  negocio  em  si, 


HISTORIA  DA  IMQUISIÇÃO  55 

havia  a  escolher  entre  duas  soluções,  ambas 
as  quaes  o  papa  acceitaria.  Consistia  a  pri- 
meira no  que  já  se  apontara,  de  voltar  tudo 
ao  estado  anterior  á  concessão  do  tribunal  da 
fé :  consistia  a  segunda  em  substituir-se  a 
bulia  de  7  de  abril  por  outra,  onde  se  fariam 
as  modificações  que  o  papa  acceitava,  figuran- 
do-se  que  era  soUicitada  pelo  próprio  rei,  e 
que  seria  minutada  por  Santiquarto.  Adoptado 
este  expediente,  obter-se-hia  com  vantagem  o 
posterior  restabelecimento  da  Inquisição,  ain- 
da quando  fosse  preciso  derogar  para  isso  al- 
guma provisão  de  direito  canónico.  D.  Henri- 
que parecia  inclinar-se  para  a  primeira  solução. 
Voltando  tudo  ao  estado  antigo,  sairia  de  Por- 
tugal o  núncio,  cuja  persistência  neste  paiz  era 
o  mais  duro  obstáculo  á  boa  conclusão  do  ne- 
gocio. Ganhar-se-hia  assim  tempo,  mudariam 
os  homens  e  as  cousas,  e  elrei  teria  tempo  de 
tornar  favorável  o  animo  do  papa.  Seguindo 
o  outro  arbítrio,  o  embaixador  offerecia  a  D. 
João  III  um  conselho  suggerido  por  Santiqua- 
tro.  Era  que  não  ficassem  de  graça  aos  he- 
breus as  suppostas  sollicitações  do  monar- 
cha ;  e  que,  por  modo  de  penitencia,  se  lhes 
extorquissem  vinte  ou  trinta  mil  cruzados  ou, 
emfim,  outra  qualquer  somma,  que  seria  re- 
partida com  Clemente  vii,  descontente  d  elrei 


56  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

por  não  lhe  ter  acudido  em  diversas  circums- 
Lancias  apuradas  (1).  Assegurava  ser  geral  na 
cúria  a  opinião  de  que,  sobretudo,  interessava 
á  honra  d'eh'ei  e  á  memoria  de  seu  pae  con- 
ceder-se  o  perdão,  e  lembrava  que  em  Roma 
não  se  queria  senão  dinheiro  (2).  Remettia  de 
novo  copia  dos  memorandos  a  favor  da  bulia 
de  7  de  abril,  aos  quaes,  dizia,  talvez  ironica- 
mente, fácil  era  responder,  posto  que  elle  para 
isso  não  estivesse  habilitado.  O  resto  da  carta 
referia-se  ao  acabamento  da  sua  missão,  á  bre- 
vidade com  que  pedia  novas  instrucções,  e  a 
certas  mercês  que  o  cardeal  Sancta-Cruz  sol- 
licitava  d'elrei.  Por  fim,  recommendavaj  que 
no  caso  de  se  adoptar  a  segunda  solução  que 
propunha,  se  obtivesse  de  Carlos  v  que  fizesse 
novas  instancias  ao  papa  sobre  o  assumpto. 
Uma  carta  de  Santiquatro  para  elrei  acom- 
panhava   a    do    embaixador    extraordinário, 


(1)  «O  que  diz  SaiiUquatro  he  que  o  nom  levem 
estes  Judeos  tão  saboroso,  e  que  lhes  dem  penitencia 
de  vinte  ou  trinta  mil  crusados,  ou  os  que  V.  A.  ou- 
ver  por  bem,  e  que  partaes  co  papa  para  suas  ne- 
cessidades, com  quem,  diz,  que  V.  A.  nom  tem  com- 
prido em  muitas  cousas  em  que  as  o  papa  teve» : 
Carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  10  de  abril  de  1534,  G. 
2,  M.  2,  N.o  36- 

(2)  (íQua  norr  querem  senão  dinheiros,  ibid. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  57 

tendo  por  objecto  reforçar  as  considerações 
que  nella  se  faziam  (1). 

Vê-se  que  havia  um  ponto  em  que  discor- 
davam os  dous  ministros  portugueses.  Era  o 
da  intervenção  do  gabinete  de  Castella  neste 
negocio.  Emquanto  o  arcebispo  indicava  como 
fatal  essa  intervenção  e  attribuia  a  ella  prin- 
cipalmente os  maus  resultados  da  empreza, 
D.  Henrique  de  Meneses  aconselhava  novas  e 
apertadas  instancias,  para  obter  o  favor  de 
Carlos  V,  no  caso  de  se  quererem  continuai 
as  negociações.  E'  obvio  que  a  protecção  de- 
cisiva do  imperador  era  assas  forte  para  coa- 
gir Clemente  vii,  que,  por  motivos  extranhos 
ao  nosso  assumpto,  a  nenhum  príncipe  da 
Europa  devia  temer  tanto  como  ao  poderoso 
monarcha  da  Hespanha  :  a  manifestação  clara 
e  precisa  dos  seus  desejos  nesta  matéria  equi- 
valeria sem  duvida  a  uma  ordem  formal. 
Embora  o  arcebispo  allegasse  o  dúplice  pro- 
cedimento anterior  do  ministro  hespanhol  em 
Roma,  ainda  suppondo  que  tal  procedimento 
fosse  resultado  de  insinuações  secretas,  a 
consequência  não  era,  como  elie  entendia, 
inutilisar  essa  arma  irresistível ;  era  fazer  di- 


fl)  Ibid. 


58  HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO 

ligencias  para  a  tornar  de  fina  tempera,  bus- 
cando por  todos  os  modos  que  a  protecção 
de  Castella  fosse  efficaz  e  sincera.  Porque, 
[)OÍs,  pretendia  affastá-la  o  arcebispo,  homem 
astuto,  e  que  a  si  próprio  se  gabava  de  que 
só  algum  negocio  impossivel  seria  o  que  elle 
não  soubesse  levar  a  cabo  (1 )  ?  É  licito  sup- 
por  que  desejava  prolongar  a  lucta,  porque 
interessava  em  residir  na  corte  de  Roma,  e 
|)orque,  apesar  das  exaggerações  que  lemos 
na  correspondência  que  delle  nos  resta  acer- 
ca dos  próprios  serviços,  o  arcebispo  trahia  o 
seu  dever,  acaso  porque  dessa  deslealdade 
tirava  os  meios  para  realisar  os  desígnios 
que  nutria.  Documentos  posteriores  revelam- 
nos  a  este  respeito  uma  vergonhosa  historia, 
um  desses  quadros  que  não  raro  passarão 
ante  os  olhos  do  leitor,  e  que  provam  o  erro 
dos  que  suppõem  que  o  século  xvi,  inferior 
sob  tantos  aspectos  ao  nosso,  valia  mais  do 
que  elle  pelo  lado  moral. 

D.  Martinho  era  um  grande  ambicioso.  Não 


(1)  «Se  este  negocio  se  pudera  fazer  como  V.  A. 
queria,  eu  o  acabara  em  lempo  de  Clemente,  ou 
deste  papa,  ou  de  qualquer  que  íora;  mas  pois  eu 
não  pude,  não  foi  acabavel»:  C.  de  D.  Martinho  de 
13  de  setembro  de  153.5,  G.  2,  M.  1,  N.»  50. 


HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO  59 

contente  com  achar-se  elevado  á  dignidade  de 
embaixador  e  de  arcebispo  primaz  do  Oriente, 
punha  a  mira  na  purpura  cardinalicia,  con- 
tando com  o  favor  de  Clemente  vii  (1).  Para 
isto  carecia  de  não  alienar  o  animo  do  pon- 
tifice,  íirme  no  seu  propósito  de  favorecer  os 
christãos-novos ;  precisava,  além  disso,  de 
conciliar  a  benevolência  dos  individues  mais 
influentes  na  cúria,  que,  como  temos  visto,  os 
protegiam  energicamente.  Depois,  se  era  ver- 
dade, como  dizia  D.  Henrique  de  Meneses, 
que  em  Roma  o  que  se  queria  era  dinheiro, 
um  homem  a  quem  os  escrúpulos  não  in- 
commodavam  devia,  para  chegar  aos  seus 
fins,  aproveitar  todos  os  meios  de  o  obter. 
Sabemos  pela  boca  dos  conselheiros  de  D. 
João  III  que  em  Portugal  se  acreditava  geral- 
mente que  a  benevolência  da  cúria  para  com 
os  christãos-novos  não  era  gratuita,  e  o  pró- 
prio papa  não  estava  exempto  de  taes  suspei- 
tas. Nessa  hypothese,  comprar   um  simples 


(1)  Esta  narrativa  é  deduzida  de  án&s  cartas  de 
D.  Henrique  de  Meneses,  de  outubro  e  novembro  de 
1535,  e  de  outras  de  Santiquatro,  de  10  e  16  de  no- 
vembro desse  anno  e  de  28  de  maio  de  1536,  que  se 
acham  na  G.  20,  M.  7,  N.o^  1,  23,  24  e  2G,  no  Arcli 
Noc. 


()0  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

arcebispo  não  seria  cousa  que  excedesse  os 
recursos  dos  conversos.  Fosse  como  fosse,  é 
certo  que,  ao  chegar  D.  Henrique  a  Roma, 
existiam  já  relações  occultas  entre  D.  Marti- 
nho  e  Duarte  da  Paz,  os  quaes  todos  os  dias 
tinham  conferencias  secretas  (i).  Tractava 
naquelle  tempo  o  arcebispo  de  remover  uma 
grande  diffículdade  que  se  oppunha  ás  suas 
miras.  Era  a  da  bastardia,  por  ser  filho  do 
bispo  de  Évora  e  de  uma  certa  Briolanja  de 
Freitas  (2),  o  que  o  excluia  do  cardinalato. 
Clemente  vii  não  o  ignorava,  mas  mdiíferente 
a  essa  circumstancia  (3),  conveio  em  repre- 
sentar um  papel  na  farça  que,  para  obter  os 


(1)  «e  por  aue  isto  lie  perdido,  e  o  foi  muito  ha. . . 
lie  que  des  que  aqui  sou  atégora,  ontem,  e  ante- 
ontem, e  oje,  e  cada  dia  o  arcebispo  tem  oras  e  por- 
tas por  onde  lalla  canto  quer  com  Duarte  da  Paz»: 
C.  de  D.  Henrique  de  1  de  novembro  de  1535 :  G.  20, 
M.  7.  N.o  23.  É  a  isto  que  se  refere  o  breve  Exponi 
nobis  de  12  de  junho  de  1536  (M.  14  de  Bulias  N.°  7 
6  M.  24,  N.o  35),  em  que  se  annulla  o  processo  da 
legitimação  do  arcebispo,  ibi:  «minus  quam  conve- 
niret  ad  regia  negotia,  et  nimis  ad  sua  intentas, 
minus  probè  et  etiam  quam  par  esset,  etc». 

(2)  Breve  Exponi  nobis,  1.  cit. 

(3)  «Quasi  che  avosse  piacere  (Clemente  vii)  che 
uno  bastardo  venisse  ai  grado  dei  cardinalato» :  C. 
de  Santiquatro,  G.  20,  M.  7,  N.»  2b. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  61 

seus  fins,  o  enviado  português  imagina- 
ra. Uns  certos  Correias,  que  se  achavam  em 
Roma,  fingiram,  de  accordo  com  este,  deman- 
dá-lo em  razão  de  alguns  bens,  verdadeiros 
ou  suppostos,  em  que  diziam  não  dever  D. 
Martinho  succeder  por  ser  bastardo.  O  em- 
baixador negou  a  excepção,  e  o  papa  no- 
meiou  juizes  para  dirimirem  a  contenda.  O 
arcebispo  accumulou  então  toda  a  casta  de 
documentos  falsos,  e  fez  instituir  quantos  in- 
quéritos quiz  de  testemunhas  compradas, 
com  que  provou  judicialmente  que  era  legi- 
timo. Os  registos  da  cúria  estavam  cheios  de 
supplicas  em  que  por  diversas  vezes  e  em 
diíferentes  epochas  D.  Martinho  reconhecera 
a  sua  bastardia  e  delia  pedira  dispensa  ;  mas 
como  o  processo  não  passava  de  uma  co- 
media, nem  a  parte  adversa  impugnou  as 
provas,  nem  os  juizes  fizeram  caso  do  facto 
sabido,  e  a  legitimidade  do  arcebispo  foi  jul- 
gada por  sentença  (1).  Assim  preparado,  só 
restava  esperar  pela  conjunctura  de  alguma 
creação  de  cardeaes,  e  ter  a   seu  favor  os 


(1)  «ritrovato  le  falsitá  dei  testimonii  et  dei  no- 
tarii  et  le  collusioni  delle  parti»:  Ibid.  Veja- se  o 
breve  Exponi  nobis,  onde  a  farça  vem  ongamente 
descripta. 


62  HISTORIA  DA  iNunisiçÃo 

conselheiros  do  papa,  no  que  Duarte  da  Paz, 
que  soubera  captar-lhes  a  benevolência,  lhes 
poderia  ser  grandemente  útil.  Em  todas  estas 
cousas  procedia  o  astuto  prelado  com  se- 
gredo e  disfarce,  de  modo  que  D.  Henrique 
de  Meneses  só  mais  tarde  veio  a  descubrir 
o  alvo  a  que  o  arcebispo  mirava.  Assim,  ven- 
dido no  meio  daquelles  torpes  enredos,  e  en- 
ganado com  as  apparencias  de  zelo  do  seu 
collega,  contribuia  involuntariamente  para  il- 
ludir  elrei,  exaggerando  os  serviços  de  D. 
Martinho  e  a  sua  incansável  acti\ddade  (1). 

Se  o  embaixador  ordinário  em  Roma  trahia 
a  confiança  do  seu  soberano,  provavelmente 
para  se  ajudar  em  proveito  das  suas  ambi- 
ções particulares  do  agente  dos  christãos-no- 
vos,  este  não  desmentia  por  sua  parte  o  ca- 
racter com  que  já  o  leitor  o  vio  apparecer  no 
fim  do  precedente  livro.  Se  as  suas  offertas 
para  vender  os  hebreus  portugueses,  que  nos 
actos  externos  servia  com  tanto  zelo,  tinham 


(1)  C.  de  D.  Henrique,  já  citada,  de  10  de  abril  de 
1534.  Como  veremos  odianle,  o  despeito  do  embai- 
xador extraordinário  subiu  ao  ultimo  ponto  quando 
no  anno  seguinte  descubriu  a  trama  do  arcebispo, 
a  quem  chama  eate  tredor :  C.  de  D.  H.  de  Meneses 
de  1  de  novembro  de  1535,  G.  20,  M.  7,  N.o  23. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  63 

sido  formalmente  acceitas,  ou  se  apenas  a 
esse  infame  trafico  se  dera  um  assenso  tá- 
cito, não  saberíamos  dizê-lo.  É  certo,  porém, 
que,  ao  mesmo  passo  que  parecia  obter  para 
os  seus  tão  assignalado  triumpho  na  cúria 
romana,  elle  denunciava  para  o  reino,  por  in- 
tervenção do  arcebispo,  os  mais  notáveis  en- 
tre os  pseudo-christãos  que  tractavam  de  se 
pôr  a  salvo  fugindo  de  Portugal,  e  indicava 
quaes  seria  conveniente  prender  e  processar, 
suggerindo  as  providencias  que  reputava 
convenientes  para  obstar  á  sua  fuga  e  offere- 
cendo-se  para  a  isso  pôr  obstáculos  em  Itii- 
lia  (1).  Se  outr'ora  Duarte  da  Paz,  mandando 
a  elrei  a  cifra  por  meio  da  qual  deviam  cor- 
responder-se,  exigia  o  maior  segredo,  recom- 
mendando  que  nem  o  próprio  embaixador 
Brás  Neto  soubesse  das  suas  relações  com  o 


(1)  «e  para  verdes  a  vertude  que  ha  neile  (em 
Duarte  da  Paz)  vos  envio  com  esta  carta  as  pró- 
prias cartas  que  elle  la  deu  ao  arcebispo  do  Fun- 
chal para  me  enviar,  porque  me  descobria  alguns 
de  sua  gente,  e  dos  principaes,  que  de  cá  se  queriam 
fugir,  para  serem  presos  e  se  proceder  contra  elles, 
e  o  que  nisso  se  offerecia  fazer  e  as  provisões  mi- 
nhas que  para  isso  me  requeria,  etc».  Carta  de  D. 
João  III  a  Santiquatro  de. . .  de. . .  de  1536,  G.  2,  M. 
1,  N.°  28. 


64  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

soberano,  como  escrevia  agora  por  interven- 
ção de  D.  Martinho?  Forçoso  é  suppormos 
que  entre  estes  dous  homens  havia  laços 
mysteriosos,  que  o  prelado  não  podia  que- 
brar sem  se  perder  a  si  próprio.  Fora  disto,  a 
confiança  do  astuto  hebreu  seria  inexplicá- 
vel. O  que  é  certo  é  que  ambos  os  dous  ga- 
nhavam na  prorogação  da  lucta.  Por  um  lado 
o  arcebispo,  que  tinha  a  chave  do  negocio  da 
Inquisição,  mal  poderia  ser  substituído,  e  a 
prova  era  que  D.  João  iii,  em  vez  de  o  remo- 
ver se  limitara  a  collocar  ao  pé  delle  um  ho- 
mem ou  mais  activo  ou  de  maior  confiança. 
Por  outro  lado  Duarte  da  Paz,  por  cujas 
mãos  corriam  os  recursos  de  que  os  chris- 
tãos-novos  dispunham  para  escaparem  ao 
extermínio,  quantas  mais  difficuldades  susci- 
tasse á  definitiva  realisação  das  vantagens 
que  elle  próprio  obtinha,  mais  proventos  po- 
dia auferir  das  tenebrosas  negociações  que 
lhe  eram  confiadas.  Esta  hypothese,  que  se 
estriba  em  grandes  probabilidades,  dado  o 
caracter  dos  dous  agentes,  explica  de  modo 
assas  plausível  esses  factos  de  repugnante 
immoralidade. 

Que  era  o  que  se  passava  em  Portugal  en 
tretanto?  A  bulia  de  7  de  abril  continha  as 
disposições  mais  explicitas,  as  comminações 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  65 

mais  severas,  e  precavia,  quanto  a  previdência 
humana  o  podia  alcançar,  todas  as  resistên- 
cias. Numa  corte,  que  se  dizia  tão  profunda- 
mente possuida  das  crenças  catholicas,  como 
a  portuguesa,  a  linguagem  do  supremo  pastor, 
as  ameaças  terríveis  com  que  sanccionava  as 
suas  providencias  deviam  fazer  curvar  todas 
as  cabeças.  Suppondo  que  as  disposições  da- 
quella  bulia  não  se  estribassem,  como  estri- 
bavam, nas  doutrinas  irrefragaveis  do  chris- 
tianismo,  e  que  fosse  controversa  a  convem- 
encia  do  concedido  perdão,  é  claro  que  o  papa, 
de  quem  o  próprio  D.  João  iii  reconhecera  de- 
pender o  estabelecimento  da-  Inquisição,  sol- 
iicitando-o  delle,  podia  annuUá-la  do  mes- 
mo modo  que  a  instituirá.  As  censuras,  por- 
tanto, fulminadas  no  diploma  de  7  de  abril 
cahiriam  justissimamente  sobre  a  cabeça  da- 
quelles  que  desobedecessem.  Não  importava 
a  existência  do  breve  de  2  de  abril  de  1534 
Embora  Clemente  vii  deixasse  ahi  a  porta 
aberta  ás  tergiversações,  promettendo  ou- 
vir todas  as  queixas  que  elrei  quizesse 
fazer  contra  o  perdão  ou  contra  as  condi- 
ções delle;  isso  não  obstava  ao  cumpri- 
mento, porque  a  bulia  invalidara  de  ante- 
mão quasquer  actos  pontifícios  posteriores 
que  podessem  servir  de  obstáculo  á  suo 
TOMO  ir  5 


66  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

execução  (1).  Estas  obvias  considerações^ 
capazes  de  conter  os  espirites  timoratos  ou 
sinceramente  crentes,  não  fizeram,  todavia,  a 
minima  impressão  em  Portugal,  e  esse  diplo- 
ma, cujas  provisões  pareciam  irresistiveis,  foi, 
nos  resultados,  nuUo  ou  insignificante.  Tanto 
é  certo  que  o  fanatismo  nos  seus  furores  não 
sabe  recuar  diante  de  negação  das  doutrinas 
que  propugna,  e  que  a  hypocrisia  faz  joguete 
até  da  própria  mascara,  quando  lhe  não  resta 
outro  meio  de  ludibriar  o  céu  e  a  terra. 

Emquanto  os  hebreus  portugueses  busca- 
vam abrigo  contra  as  perseguições  no  seio 
de  Clemente  vii,  e  parecia  aos  olhos  do  mun- 
do que  emfim  lhes  raiara  o  dia  da  redempção, 
elles  gemiam,  sem  descanço  nem  tréguas,  no 
meio  dos  martyrios  que  os  seus  amigos  lhes 


(1)  «ac  easdem  praesentes  litteras  de  subreptionis 
vel  obreptionis  vitio  seu  intentionis  nostrae  deffectu 
notari  vel  impugnar!  non  posse,  nec  sub  quibusvis 
revocationibus,  modificationibus,  limitationibus  et 
suspensionibus  quarumcumque  similiumlitterarum, 
etiam  per  nos  et  sedem  eandem  factis  et  faciendis, 
nullatenús  comprehensas,  sed  ab  illis  semper  ex- 
ceptas  esse,  et  quotiés  revocatae  vel  limitatae  fuerint, 
totiés  in  eum,  in  quo  ad  praesens  existunt,  statum 
restituías  et  reintegratas  existere»  :  Bulia  SempiteT' 
no  Regi,  7  de  abril  de  1533,  1.  çit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  67 

haviam  preparado.  Já  vimos  quaes  eram  as 
informações  obtidas  em  Roma  sobre  o  sys- 
tema  de  perseguição  adoptado  pelos  inquisi- 
dores portugueses,  systema  que  na  essência 
vinha  a  ser  o  seguido  em  Castella.  Aos  hor- 
rores practicados  dentro  dos  muros  do  lúgu- 
bre tribunal  e  que  já  naquelles  princípios, 
conforme  se  deprehende  dos  factos  mencio- 
nados nos  memorandos  da  cúria  romana, 
eram  semelhantes  aos  de  que  nos  restam 
tantos  vestígios  em  tempos  posteriores,  ajun- 
ctava-se  a  perseguição  civil,  que,  dando  im- 
pulso aos  processos  contra  os  herejes,  con- 
vertia os  tribunaes  ecclesiasticos  ordinários 
numa  espécie  de  Inquisições  supplementares. 
a's  vezes,  o  rei  mandava  proceder  a  in(!Jueri- 
tos  nos  districtos  mais  remotos,  onde  a  In- 
quisição não  tinha  delegados.  A'  vista  desses 
inquéritos,  expediam-se  ordens  regias  dirigi- 
das aos  respectivos  prelados  para  fazerem 
capturar  taes  ou  taes  indivíduos  e  proces- 
sarem-nos  como  judeus.  Os  tribunaes  ecclesias- 
ticos transmittiam  então  essas  ordens  aos 
magistrados  do  logar  onde  as  victimas  resi- 
diam. Estes  magistrados  eram,  porventura,  os 
mesmos  que  os  haviam  culpado.  Para  pren- 
derem os  suspeitos  e  conduzirem-nos  á  ca- 
beça da  diocese,  nomeiavam-se,  não  os  offlciaes 


68  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

de  justiça  da  comarca  ou  concelho,  mas  agua- 
zis  e  guardas  extraordinários,  para  o  que  se 
escolhiam,  ás  vezes,  inimigos  pessoaes  dos 
presos.  Pelos  bens  destes,  que  immediata- 
mente  se  punham  em  almoeda,  se  pagavam 
a  esses  esbirros  postiços  grossas  subvenções, 
e  exemplos  houve  de  comprarem  a  vil  preço 
os  próprios  magistrados  os  bens  dos  réus, 
com  o  pretexto  de  que  era  urgente,  para  oc- 
correr  ás  despezas  do  transito,  realisar  di- 
nheiro de  contado.  Assim,  ficavam  os  que 
eram  mais  pobres  reduzidos  á  miséria  antes 
de  condemnados.  Os  maus  tractamentos  que 
padeciam  pelo  caminho,  rodeiados  de  guardas 
ferozes,  e  expostos  ao  fanatismo  da  gentalha, 
fáceis  são  de  imaginar.  Sabendo  da  existên- 
cia da  bulia  de  7  de  abril,  as  victimas  inter- 
punham recurso  para  o  núncio ;  mas,  reduzi- 
dos á  indigência,  poderiam  esperar  protecção 
efficaz  de  um  homem  como  Sinigaglia?  Teria 
eile  força  para  lh'a  dar?  Neste  concerto  fatal 
entre  o  poder  civil  e  a  Inquisição,  todas  as 
denuncias,  ainda  as  fundadas  nos  pretextos 
mais  frivolos,  eram  avidamente  acolhidas,  e 
assim  acontecia  virem  a  provar  alguns  indi- 
víduos, retidos  nas  masmorras  annos  e  annos, 
que  os  seus  accusadores  eram  os  verdadei- 
ros culpados  nos  delictos  que  lhes  attribuiam 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  69 

a  elles,  e  que  só  para  Íh'os  imputarem  haviam 
perpetrado.  A  obscuridade  da  pobreza  e  o 
esplendor  da  opulência  eram  igualmente  inú- 
teis para  os  indivíduos  da  raça  proscripta. 
Bastaria  para  perder  qualquer  delles  ter  um 
inimigo ;  quanto  mais  odiando-os  a  grande 
maioria  da  população  (1).  Como  se  isto  não 
bastasse,  os  processos  da  Inquisição  de  Cas- 
tella  vinham  pelos  seus  eífeitos  reflectir  em 
Portugal.  Em  consequência  das  relações  en- 
tre os  chiistãos-novos  dos  dous  países,  os 
hebreus  portugueses  achavam-se,  ás  vezes, 
gravemente  compromettidos,  ou  porque  eram, 
posto  que  estrangeiros  e  ausentes,  condemna- 
dos  lá  como  herejes,  ou  porque  os  inquisido- 
res hespanhoes  enviavam  transumptos  dos 
respectivos  processos  aos  prelados  e  depois 
aos  inquisidores  de  Portugal.  Existe  uma 
supplica  em  que  um  mancebo  desta  raça  in- 
feliz descreve  com  rápidos  traços  a  sua  his- 
toria. Era  um  desses  valentes  que  diariamente 
combatiam  pela  fé  nas  praças  d'Africa,  pra- 
ças que  D.  João  ni,  entretido  em  accender  as 


(1)  Instrumentos  authenticos  sobre  processos  fei- 
tos a  vários  indivíduos  em  Chaves,  na  Madeira  e 
em  Évora,  na  Symm  Lusit.,  vol.  31,  f.  109,  137,  151 
V.,  161 


70  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

fogueiras  da  Inquisição,  pensava  já  em  aban- 
donar covardemente  aos  infiéis.  Alli  fizera 
estremados  serviços  e  fora  armado  cavalleiro 
ainda  na  flor  da  juventude.  Envolvido,  não 
sabemos  como,  num  processo  remettido  de 
Costella,  e  condemnado  a  cárcere  perpetuo, 
fora  arrastado  durante  sete  annos  de  mas- 
morra em  masmorra,  até  que  á  força  de  ro- 
gos, obtivera  como  allivio  a  reclusão  no  con- 
vento da  Trindade  de  Lisboa.  Dous  annos 
depois,  o  desgraçado  mancebo,  que  durante 
esse  periodo  padecera  de  continuo  o  marty- 
rio  da  lome,  lançando  os  olhos  aterrados  para 
um  longo  futuro,  pedia  a  el-rei  que,  levando- 
Ihe  em  conta  os  seus  serviços  e  o  padecer  de 
nove  annos,  o  deixasse  ir  morrer  nas  plagas 
da  Africa  em  defesa  do  christianismo,  vili- 
pendiado em  Portugal  pelas  atrocidades  dos 
inquisidores  (1). 

Quando  a  bulia  de  7  de  abril  de  1533  che- 
gara a  Portugal,  Marco  delia  Ruvere  trans- 
mittira  aos  metropolitanos  e  aos  demais  pre- 
lados copias  authenticas  delia,  sem  disso  dar 
parte  ao  governo.  Esta  circumstancia  obstava 
á   execução   das   letras  apostólicas  pelo  lado 


(1)  Corpo  Chroiiol..   P.í,  M.  53,  N.»  63,  no  Arch. 

Noc. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  71 

civil.  Assim,  os  bispos  limitaram-se  a  accei- 
tá-las  sem  procederem  á  sua  promulgação. 
Sabía-se  da  existência  da  concessão ;  os 
christãos-novos  invocavam-na ;  mas  os  seus 
eíTeitos  não  podiam  realisar-se  na  practica.  A' 
vista,  porém,  do  breve  de  2  de  abril  de  1534, 
o  próprio  núncio  entendeu  que  devia  dar 
tempo  a  elrei  para  apresentar  em  Roma 
novas  ponderações,  refutando,  se  podesse,  as 
que  se  offereciam  por  parte  da  sancta  sé. 
Conseguintemente,  dirigiu  aos  prelados  do 
reino  uma  circular  para  que  sobreestivessem 
na  publicação  official  do  perdão  e  suspendes- 
sem qualquer  acto  tendente  á  execução  da 
bulia  (1).  Neste  estado  de  cousas,  a  corte  de 
Portugal  não  carecia  de  se  apressar  extraor- 
dinariamente, além  de  que  as  respostas  ás 
considerações  do  breve  de  2  de  abril  não 
eram  fáceis  de  achar.  As  consultas  a  este 
respeito  protrahiram-se  por  alguns  mezes, 
durante  os  quaes  a  situação  de  D.  Henrique 
de  Meneses  e  de  Santiquatro  se  tornava  cada 
vez  mais  espinhosa  pela  falta  das  instrucções 
e  dos  esclarecimentos  indispensáveis  para  po- 
derem aproveitar  os  últimos  raios  de  espe- 


(1)  Consta   isto  da  Instrucção  sem  data  que  se 
acha  na  G.  13,  M.  8,  N.°  2. 


72  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

rança  que  ainda  lhes  restavam  (1).  Assim,  D. 
Henrique,  offendido  com  as  immoralidades 
que  via  practicar  na  corte  de  Roma,  insis- 
tia com  elrei  para  que  o  mandasse  retirar 
delia  (2).  Uma  circumstancia,  já  de  antemão 
prevista,  veio  entretanto  augmentar  os  emba- 
raços que  rodeia vam  os  agentes  de  Portugal. 
Desde  a  sua  volta  de  ]\Iarselha,  Clemente  vii 
não  gosara  de  um  momento  de  saúde.  EUe 
próprio  parecia  persuadido  de  que  a  morte 
se  avizinhava.  Com  a  vinda  do  estio,  os  pade- 
cimentos axacerbaram-se-lhe.  Não  era  a  ve- 
lhice que  o  conduzia  ao  tumulo,  porque  tinha 
apenas  cincoenta  e  seis  annos.  Dores  violen- 
tas no  estômago  eram,  sobretudo,  o  seu  mal. 
Havia  quem  acreditasse  que  morria  envene- 
nado. Segundo  alguns  escriptores,  a  cúria  ro- 
mana detestava-o,  os  príncipes  desconfiavam 
delle,  e  a  sua  reputação  era  geralmente  má. 
Foi  tido  na  conta  de  avaro,  desleal,  pouco 
bemfazejo,  posto  que  não  vingativo,  o  que  tal- 


(1)  Carta  de  Santiquatro,  na  G.  2,  M.  5,  N.o  51. 

(2)  C.  de  D.  H.  de  Meneses  de  19  de  agosto  de  1534, 
no  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  53,  N."  82.  As  insistên- 
cias para  ser  exonerado  daquelle  cargo  repetem-se 
nas  cartas  de  21  de  agosto  e  25  de  setembro  do 
mesmo  anno:  Ibid.  N.c'^  80  e  113. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  73 

vez  se  deve  attribuir  á  sua  natural  timidez. 
Em  compensação,  passava  por  sagaz,  circums- 
pecto  e  atilado,  de  modo  que  o  seu  juizo  era 
sempre  o  melhor,  quando  o  temor  ou  outras 
paixões  não  o  olTuscavam  (1).  Os  últimos  me- 
zes  da  sua  vida  foram  uma  dilatada  agonia. 
Vindo  a  fallecer  nos  fins  de  setembro,  já  em 
julho  o  consideravam  como  moribundo  e  lhe 
subministravam  os  últimos  sacramentos  (2). 
Naquella  situação  angustiada  do  espirito,  em 
que  a  consciência  põe  diante  do  homem  a 
verdade  em  toda  a  sua  nudez,  e  em  que  os 
affectos  mundanos  recuam  á  voz  imperiosa 
da  convicção  ou  dos  remorsos,  Clemente  vii 
mandou  expedir  em  26  de  julho  um  breve,  no 
qual,  recapitulando  summariamente  o  estado 
da  questão,  e  ponderando  que  por  quatro  me- 
zes  esperara  debalde  uma  resolução  da  corte 
de  Lisboa,  ordenava  ao  bispo  de  Sinigaglia 
fizesse  vigorar  a  bulia  de  7  de  abril,  estatuindo 
que,  se  D.  João  iii  ou  os  seus  ministros  po- 


(1)  Ciacconius,  Vitse  Pontif.  T.  3,  col.  470. 

(2)  «Papa  Clemente  un  giorno  dipoi  che  io 
rebbi  comuiiicato  per  viatico,  estendo piú  in  loaltro 
mondo  che  in  questo,  espedi  un  altro  breve  direito 
ai  suo  núncio  sopra  la  medessima  executione  delJa 
detta  bolla» :  Carta  de  Santiquatro,  cit. 


7-4  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

sessem  taes  obstáculos,  que  as  solemnidades 
da  publicação  não  podessem  realisar-se,  ficas- 
sem os  culpados  livres  de  todas  as  penas  ca- 
nónicas impostas  nos  tribunaes  ecclesiasticos, 
e  considerados  como  absolvidos,  independen- 
temente das  formalidades  prescritas  naquella 
bulia,  applicando,  aliás,  as  censuras  alli  fulmi- 
nadas para  domar  todas  as  resistências  (1). 
No  preambulo  do  breve.  Clemente  vii  alludia 
ao  seu  estado,  á  vizinhança  da  morte  e  ao 
brado  da  própria  consciência.  Esse  diploma 
era,  digamos  assim,  uma  verba  do  seu  testa- 
mento como  pae  commum  dos  fiéis.  Fossem 
quaes  fossem  os  abusos  e  corrupções  que 
acerca  deste  negocio  se  houvessem  dado  na 
cúria  romana,  admittindo,  até,  que  motivos 
menos  puros  tivessem  (como  se  dizia  em 
Portugal,  e  era  verdade)  (2)  influído  no  animo 
do  papa,  é  certo  que  naquelle  momento  so- 
lemne  a   sua  resolução  exprimia  um  senti- 


(1)  Breve  Ciun  inter  alia  de  26  de  julho  de  1534, 
cit.  na  Verd.  Elucid.  Argum.  N."  10,  e  versão  por- 
tuguesa na  G.  2,  M.  1,  N.°  40,  no  Arch.  Nac. 

(2)  «...  toda  a  importunação  que  se  fez  ao  Cle- 
mente pêra  dar  esse  breve  á  ora  da  morte  foy 
porque  lhe  dysse  o  seu  confessor,  induzido  dos 
christãos-novos,  que  por/ft  tinha  avydo  o  dinheyro 
deles,  que  era  concyencyn  non  lhe  deyxar  o  per- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  75 

mento  legitimo  e  a  convicção  sincera,  alheia 
a  todas  as  considerações  terrenas,  de  que  na 
causa  dos  christãos-novos  interessavam  igual- 
mente a  religião,  a  justiça  e  a  humanidade. 

Fallecido  Clemente  vii  a  25  de  setembro,  e 
reunido  o  conclave,  começaram  os  enredos 
eleitoraes.  Nessa  conjunctura  escrevia  D.  Hen- 
rique de  Meneses  a  elrei,  fazendo  votos  para 
que  subisse  á  cadeira  pontifícia  algum  indivi- 
duo cujo  animo  fosse  favorável  ás  pretensões 
da  corte  portuguesa.  «Mas  —  accrescentava 
elle  —  hão-de  escolhê-lo  trinta  e  seis  diabos, 
que  tantos  são  os  cardeaes  eleitores.»  Apesar, 
porém,  da  qualificação  que  dava  aos  mem- 
bros do  conclave,  pedia  a  Deus  que  os  alu- 
miasse naquelle  empenho  (1).  A  final  saiu 
eleito,  a  23  de  outubro,  o  cardeal  Alexandre 


dão  lympo  e  lyvre.  E  isto  he  verdade  e  assy  o 
dysse  Santiquatro  ao  papa  paulo  perante  noos. 
Ora  veja  V.  A.  canta  verdade  vos  diz  la  o  núncio 
que  o  papa  non  tinha  avrjdo  dinheyro,  o  qual  nún- 
cio he  o  que  cá  escreve  canto  mal  se  faz»:  l.a  C. 
de  D.  H.  de  Meneses  de  29  de  outubro  de  1534: 
Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  53,  N.«  135. 

(1)  C.  de  D.  H.  de  Meneses  de  4  de  outubro  de 
1534:  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  53,  N.»  120,  no  Arch. 
Nac.  Veja-se  também  a  C.  de  25  de  septembro, 
ibid.  N."'  113. 


76  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Farnese,  decano  do  sacro  collegio,  com  o 
nome  de  Paulo  iii.  Eis  como  o  arcebispo  do 
Funchal,  homem  cujo  defeito  não  era  por 
certo  a  falta  de  capacidade,  pintava  a  D, 
João  III  o  novo  pontifice.  Paulo  iii  tinha  se- 
tenta annos,  e  afíirmava  que  havia  de  viver 
ainda  sete,  mas  que,  se  passasse  além  delles, 
viveria  outros  tantos.  Cria  o  vulgo  que  este 
vaticinio  o  fazia  por  ser  astrólogo,  ao  passo 
que  o  papa  dava  a  entender  que  era  por  di- 
vina revelação.  Nobre  e  rico,  a  sua  eleição  não 
encontrara  resistência,  nem  fora  nem  dentro 
do  conclave.  A  reunião  de  um  concilio,  onde 
se  procurasse  pôr  termo  ás  dissidências  sus- 
citadas por  Luthero  e  por  outros  reformado- 
res, era  idéa  geralmente  bem  acceita  na  Eu- 
ropa, mas  a  que  sempre  Clemente  vii  repu- 
gnara. Paulo  iii,  que  a  adoptara  emquanto 
cardeal,  não  podia  deixar  de  mostrar-se  em- 
penhado em  que  se  realisasse  aquelle  pensa- 
mento. Assim,  apressou-se  em  enviar  para 
diversas  partes  núncios  que  tractassem  o  as- 
sumpto com  os  príncipes  catholicos.  Um  dos 
seus  primeiros  actos  foi  nomeiar  uma  com- 
missão  de  vários  cardeaes  para  procederem 
á  reforma  dos  abusos  introduzidos  na  cúria 
romana.  Dizia  estar  resolvido  a  restabelecer  o 
império  da  rigorosa  justiça,  desprezando  to- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  77 

das  as  influencias  e  esmagando  todas  as  reac- 
ções. Affirmava  que  não  queria  augmentar  a 
própria  fortuna,  e  que  duas  netas  que  tinha 
as  casaria,  não  com  membros  de  familias 
reaes,  mas  sim  com  individues  iguaes  a  ellas 
em  condição.  Aproveitando,  todavia,  os  exem- 
plos dos  seus  predecessores,  promoveu  ao 
cardinalato  dous  netos  que  também  tinha, 
posto  que  nenhum  excedesse  a  quinze  annos 
de  idade,  abuso  extremo,  que  aliás  elle  reco- 
nhecia e  de  que  promettia  abster-se  logo  que 
estivessem  concluidas  as  reformas  que  medi- 
tava. Não  se  conhecia  pessoa  que  o  domi- 
nasse, e  todas  as  resoluções  tomava  de  seu 
motu-proprio.  Era  prolixo  e  pouco  practico 
em  relação  ás  formulas  de  chancellaria,  ado- 
ptando de  preferencia  as  do  século  anterior. 
Tractava  com  menos  consideração  os  embai- 
xadores, dando-lhes  raramente  audiência,  e 
valia  mais  para  elle  um  cardeal  do  que  todos 
os  ministros  estranjeiros  junctos.  Gosava  da 
opinião  geral  de  incorruptivel,  e  estabelecera 
como  regra  respeitar  os  actos  do  seu  prede- 
cessor, para  tirar  o  costume  inveterado,  dizia 
elle,  de  destruir  um  papa  o  que  outro  havia 
feito,  isso,  porém,  não  obstava  a  que  fosse 
grandemente  cioso  da  auctcridade  e  regalias 
da  sé  apostólica,  quebrando  quaesquer  exem- 


78  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

pções  OU  privilégios  concedidos  por  esta,  fosse 
a  que  principe  fosse,  quando  esses  privilégios 
feriam  de  algum  modo  as  prerogativas  legiti- 
mas e  os  direitos  da  cúria  romana  (1). 

Tal  era  o  homem  que  ia  agora  ser  árbitro 
na  contenda  entre  D.  João  iii  e  os  seus  súbdi- 
tos de  raça  hebréa.  As  instrucções  da  corte 
de  Portugal  só  haviam  chegado  a  Roma  a  24 
de  septembro,  véspera  da  morte  de  Clemente 
VII  (2).  Eleito  o  novo  papa,  os  agentes  de  D. 
João  III  tractaram  sem  demora  de  aproveitar 
a  nova  situação,  visto  que  o  pontífice  estava 
desligado  dos  compromissos  do  seu  anteces- 
sor. O  essencial  era  suspender-se  a  execução 
dos  diplomas  precedentemente  expedidos.  Pu- 
nham nisto  todo  o  empenho ;  porque,  muni- 
dos de  novos  argumentos,  e  sabendo  o  pro- 
cedimento que  lhes  mandavam  adoptar,  im- 
portava-lhes  principalmente  reduzir  de  novo 
tudo  á  tela  da  discussão  (3).  O  conde  de  Ci- 
fuentes,  embaixador  de  Carlos  v,  recebera  a 
final  instrucções  precisas  para  favorecer  ener- 


(1)  Carta   de   D.    Martinho   de   14  de  março  de 
1535,  na  G.  2,  M.  1,  N."  48. 

(2)  Ibid.  —  C.  de  Santiquatro,  I.  cit. 

(3)  Carta  de  D.  Martinho,  cit.  —  Carta  de  Santi- 
quatro, 1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  79 

gicamente  as  pretensões  da  corte  de  Portugal, 
e  o  próprio  imperador  escrevera  sobre  isso  ao 
novo  papa,  que  em  duas  audiências  successi- 
vas  concedidas  aos  ministros  de  D.  João  iii, 
nos  dias  subsequentes  á  eleição,  tomou  conhe- 
cimento do  estado  daquelle  espinhoso  negocio. 
Santiquatro,  a  quem  Duarte  da  Paz  tentara 
comprar  com  a  offerta  de  uma  pensão  de  oi- 
tocentos cruzados  annuaes,  e  que  a  rejeitara, 
tomou  a  defesa  do  rei  de  Portugal  nessas 
conferencias,  a  que  haviam  sido  chamadas 
diversas  pessoas.  Um  certo  Burla,  que  exer- 
cia o  cargo  de  redactor  dos  diplomas  pontifí- 
cios e  que  favorecia  os  christãos-novos,  foi 
ahi  violentamente  aggredido  pelo  cardeal,  que 
lhe  lançou  em  rosto  os  seus  occultos  meneios, 
e  nessa  conjunctura  soube  D.  Henrique  de 
Meneses  da  concessão  do  breve  de  26  de  ju- 
lho cuja  existência  Clemente  vii  prohibira  se 
fizesse  conhecer  em  Roma  antes  da  sua  mor- 
te. Estavam  também  presentes  na  sala,  posto 
que  não  interviessem  no  debate,  Duarte  da 
Paz  e  outro  christão-novo,  chamado  Diogo 
Rodrigues  Pinto.  D.  Henrique  de  Meneses, 
que  por  muito  tempo  guardara  silencio,  de- 
clarou positivamente  a  Paulo  iii  que  não  tra- 
ctaria  de  cousa  alguma  emquanto  visse  alli 
aquelles  dous  homens.  Replicou-lhe  o  papa 


8t  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

que,  posto  que  não  houvessem  sido  chama- 
dos, e  que  elle  estivesse  prompto  a  mandá-los 
sair  do  aposento,  não  era  possivel  deixar  de 
ouvi-los  num  assumpto  que  tanto  interessava 
aos  seus  clientes.  Assentou-se  a  final  em  que 
se  nomeiasse  uma  commissão  para  examinar 
o  negocio,  a  qual  o  exporia  ao  pontífice,  para 
com  justiça  se  tomar  sobre  a  matéria  uma 
resolução  definitiva  (1). 

Em  resultado  do  que  se  passara  na  ultima 
conferencia  e  dos  esforços  combinados  do  car- 
deal Pucci  e  do  conde  de  Gifuentes,  que  nesta 
conjunctura  tinha  mostrado  os  maiores  dese- 
jos de  fazer  triumphar  a  causa  em  que  D. 
João  III  estava  empenhado  (2),  o  papa  orde- 
nou a  feitura  de  um  breve  dirigido  ao  núncio, 
em  que  se  lhe  ordenava  a  suspensão  da  bulia 
de  7  de  abril  de  1533,  ou  da  execução  delia, 
se  já  estivesse  publicada,  dando-se  por  de 
nenhum  efifeito  o  breve  que  Clemente  VII  fi- 
zera expedir  antes  de  morrer.  Mandou  igual- 
mente redigir  outro  endereçado  a  elrei,  no 
qual  o  avisava  de  que,  tendo-lhe  os  embaixa- 
dores apresentado  as  réplicas  ao  diploma  de 


(1)  2.»  Carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  29  de  ou- 
tubro de  1534:  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  53,  N."  137. 

(2)  Ibid. 


HISTORIA  DA  IXQUISIÇÃO  81 

2  de  abril  de  1534  enviadas  de  Portugal,  sup- 
plicando-lhe  que  as  fizesse  maduramente  exa- 
minar, elle  instituirá  uma  commissão  para  es- 
te fim,  ordenando  entretanto  a  suspensão  da 
bulia,  mas  ordenando  também  que  os  inqui- 
sidores, e  ainda  os  ordinários  se  abstivessem 
de  qualquer  procedimento  judicial  contra  os 
suspeitos  ou  accusados  de  heresia,  soltando- 
se  os  presos  com  fiança,  ou  sem  ella,  se  os 
seus  bens  estivessem  sequestrados,  sendo  uni- 
camente excluidos  do  beneficio  os  relapsos  (1). 
Para  fazer  cumprir  essas  providencias  Paulo 
III  reconduzia  interinamente  no  cargo  de  nún- 
cio o  bispo  de  Sinigaglia  (2). 

A  situação  deste  em  Portugal  não  era  me- 
nos difficultosa  do  que  a  dos  agentes  de  D. 
João  III  o  havia  sido  até  ahi  em  Roma.  Com 
o  breve  de  26  de  julho  viera  a  noticia  da  mor- 
te provável  de  Clemente  Vil,  noticia  que  não 
tardou  em  se  realisar.  Queria  Marco  delia  Ru- 


(1)  Breves  de  3  e  de  26  de  novembro  de  1534,  no 
M.  12  de  Bulias  N.°  12  e  M.  7  N.»  15,  e  uma  versão 
do  ultimo  na  G.  2,  N.»  9,  no  Arch.  Nac.  O  primeiro 
destes  breves  só  foi  expedido  posteriormente  á  sua 
data.  Veja-se  a  carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  5  de 
novembro  de  1534:  Corpo  Chronol.,  P.  I,  M.  54,  N.°  5. 

(2)  Breve  de  10  de  novembro  de  1534,  no  M.  23 
de  Bulias  N.»  3. 

TOMO  II  o 


82  HISTORIA.  DA  INQUISIÇÃO 

vere  cumprir  os  mandados  pontifícios:  oppu- 
nha-se  elrei.  Já  anteriormente  o  monarcha  via 
com  maus  olhos  o  núncio,  e  não  lh'o  escon- 
dia (1).  Augmentava  esse  facto  a  mutua  indis- 
posição. D.  João  III  prohibiu  expressamente 
que  tivessem  effeito  a  bulia  de  perdão  e  o 
breve  que  a  revalidava;  mas  o  repi'esentanle 
de  Roma,  desprezando  a  coleria  d'elrei,  maii- 
dou-os  publicar  e  intimar  por  notários  apos- 
tólicos em  todas  ao  dioceses  do  reino  (2). 
Chegadas  as  cousas  a  taes  termos,  ás  suas 
sollicitações  na  cuiúa  o  governo  português  ti- 
nha de  ajunctar  outra  não  menos  instante,  a 
da  immediata  i-emoção  de  Sinigaglia.  Enti'e- 
tanto  este,  resolvido  a  proteger  os  conversos 
até  onde  lhe  fosse  possivel  fazê-lo  sem  grave 
compromettimento,  apenas  recebeu  de  Roma 
o  breve  inhibindo-o  a  elle  e  aos  ordinários  de 
qualquer  procedimento  ulterior  acerca  dos 
christãos-novos,  intimou  aos  prelados  a  reso- 


(1)  MemonaJe:  Symm.,  vol.  31,  f.  35 

(2)  «Nuntius  ipse  viriliter  se  gerens,  etiam  contra 
ejusdem  regis  voluntatem,  seu  potius  uon  pauci  mo- 
menti  coleram,  tam  buliam  priman  veniaí,  quam 
breve  paedictum  declaratorium  in  omnibus  diclo- 
rum  regnorum  diocesis  per  ejusdem  Nuntii  notá- 
rios fecit  publicari  et  intimari' .  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  83 

lução  pontifícia,  fazendo-lhes  ao  mesmo  tem- 
po sentir  que,  se  não  lhes  era  licito  cumprir 
a  bulia  do  perdão,  também  o  não  era  offen- 
dê-Ia,  e  advertindo-os  de  que  essa  resoluc^^ão 
de  modo  nenhum  prejudicava  ao  facto  da  in- 
timação, publicação  e  promulgação  da  mes- 
ma bulia,  não  se  devendo,  portanto,  reputar 
infirmada  nas  suas  disposições  ou  nos  seus 
futuros  effeitos  (1). 

Em  conformidade  com  o  arbítrio  que  ado- 
ptara, Paulo  III  escolheu  por  commissarios 
para  examinarem  de  novo  e  resolverem  a 
questão  que  se  ventilava  com  a  corte  de  Por- 
tugal dous  dos  homens  mais  hábeis  que  ha- 
via na  cúria,  e  de  quem  o  papa  confiava  os 
mais  árduos  negócios,  o  bispo  milevitano  Je- 
ronymo  Ghinucci,  auditor  da  camará  apostó- 
lica, e  o  bispo  pisauriense  Jacob  Simonetta, 
auditor  da  Rota,  ambos  elevados  ao  cardina- 
lato  poucos  mezes  depois  (2).  Os  embaixado- 


(1 )  Copia  da  monitoria  do  núncio,  dirigida  aos 
prelados,  com  a  data  evidentemente  antecipada  de  3 
de  novembro  de  1534,  no  Corpo  Chronol.,  P.  I,  M. 
54,  N.o  2. 

(2)  Carta  de  D.  Martintio  cit. — Ciacconius,  T.  3, 
col.  569  e  seg.— «Os  juizes  que  são,  ao  menos  um 
delles,  os  melhores  da  terra».  Carta  de  D.  Henrique 


Oé  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

res  e  Santiquatro,  como  protector  de  Portu- 
gal, tinham  a  combater  não  só  as  razões  que 
haviam  servido  para  corroborar  o  breve  de 
2  de  abril  e  a  bulia  de  perdão  geral,  mas 
também  as  limitações  com  que  Clemente  vii 
promettia  restabelecer  a  Inquisição,  depois  de 
reduzidas  a  effeito  as  providencias  daquella 
bulia.  Quanto  aos  fundamentos  em  que  os 
cardeaes  e  theologos  da  anterior  commissão 
estribavam  a  manutenção  dessas  providencias, 
oppunham-se-lhes  considerações  que  os  con- 
selheiros de  D.  João  iii  julgavam  assas  fortes 
para  os  invalidar.  Entendiam  os  canonistas  e 
theologos  portugueses  que,  dada  a  hypothese 
de  ter  sido  a  conversão  forçada,  passara  isto 
havia  tantos  annos  que  a  maior  parte  dos  en- 
tão baptisados  eram  fallecidos,  muitos  expa- 
triados, e  outros  que  ainda  viviam  tinham  ac- 
ceitado  o  facto,  ficando  no  paiz  e  vivendo 
com  exterioridades  de  christãos,  não  sendo, 
em  todo  o  caso,  esta  razão  da  violência  appli- 
cavel  aos  refugiados  espanhoes:  que  a  força, 
a  tê-la  havido,  fora  condicional,  e  segundo  a 
doutrina  canónica,  esta  não  podia  servir  de 


de  Meneses  de  17  de  março  de  1535,  na  G.  2,  M.  5, 
N.o  55. — «O  Simonelta...  como  eJle  é  de  bom  ho- 
mem e  de  letrado».  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  85 

escusa  ao  crime  de  heresia;  que  os  filhos  e 
netos  dos  primeiros  conversos,  embora  edu- 
cados a  occultas  por  seus  pães  na  lei  de  Moy- 
sés,  podiam  ter-se  convencido  da  verdade  do 
christianismo,  seguindo-o  na  apparencia  por 
tanto  tempo,  assistindo  aos  actos  do  culto, 
aprendendo  a  doutrina  catholica,  e  ouvindo  os 
pregadores.  Discutiam  depois  os  princípios 
invocados  em  Roma  acerca  da  liberdade  e 
espontaneidade  da  compulsão  condicional,  is- 
to é,  doutrinas  mais  ou  menos  exaggeradas 
de  intolerância  e  fanatismo,  e  tornavam  a  ci- 
tar em  abono  da  compulsão  exemplos  de  prín- 
cipes piedosos,  argumento  a  que  já  tinham 
recorrido,  alludindo  a  Sisebuto.  Quanto  a  elles, 
o  sangue  e  as  tribulações  dos  hebreus,  longe 
de  mancharem  a  memoria  d'elrei  D.  Manuel, 
deviam  ser  para  o  fallecido  monarcha  um  ti- 
tulo de  gloria;  porque  os  que  haviam  perdido 
suas  almas  por  contumazes  tinham- no  feito 
apesar  delle,  e  os  sinceramente  convertidos 
deviam  agradecer- lhe  o  ganharem  o  céu.  Vê- 
se  que  a  accusação  do  desleixo  que  houvera 
em  doutrinar  os  conversos  ferira  vivamente 
os  defensores  da  intolerância,  e  que  procura- 
vam por  todos  os  modos  provar  que  nesta 
parte  o  papa  fora  mal  informado;  mas  limita- 
vam-se  a  vagas  negativas.  Entrando  no  exa- 


86  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

me  da  defesa  das  provisões  especiaes  para  se 
verificar  o  perdão,  aggrediam  vantajosamente 
os  seus  adversários,  sustentando  que  a  bulia 
não  providenciava  acerca  daquelles  que, 
indo  manifestar  perante  o  núncio  que  ha\dam 
sido  baptisados  á  força,  se  apresentassem 
francamente  como  sectários  da  lei  de  Moysés. 
Era,  talvez,  esse  o  lado  mais  vulnerável  da 
bulia.  Debalde  tinham  querido  os  theologos 
de  Clemente  vii  applicar  aos  pseudo-conver- 
sos  certas  provisões  daquelle  diploma.  Todas 
versavam  sobre  as  condições  e  formas  do 
perdão,  e,  segundo  as  doutrinas  em  que  a 
bulia  se  estribava,  os  que  nunca  haviam  con- 
sentido em  serem  christãos  não  podiam  ser 
perdoados,  porque  não  eram  passíveis  de  pe- 
na alguma.  Suppondo,  porém,  que  devessem 
ser  incluídos  na  categoria  daquelles  acerca 
dos  quaes  o  papa  se  reservava  prover,  á  vis- 
ta das  suas  declarações  e  dos  informes  do 
núncio,  entendiam,  e  entendiam  bem,  que  ne- 
nhuma outra  solução  razoável  havia,  se  não 
ordenar  que  os  deixassem  sair  do  reino  com 
seus  bens  a  viverem  onde  quizessem  como 
judeus.  Mas  ponderavam  que  nesta  hypothe- 
se,  todos  diriam  ter  sido  baptisados  á  força, 
e  iriam  muitos  levar  para  a  Turquia  e  para 
outros   paizes  d'infiéis  as  suas  avultadas  ri- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  87 

quezas,  deixando  Portugal  empobrecido.  Nes- 
ta parte  o  pensamento  dos  fanáticos  revela-se 
cora  uma  innocencia  quasi  pueril.  O  remédio 
aos  males  que  receia vam  seriam  a  tolerância; 
seria  repor  as  cousas  no  estado  em  que  se 
tinham  conservado  durante  quatro  séculos. 
Essa  solução  simples,  razoável,  christan,  era 
a  que  não  lhes  occorria.  Queriam  persegui- 
ção e  ouro.  Como,  porém,  as  provisões  da 
bulia  de  7  de  abril  eram  ás  vezes  illogicas,  em 
relação  aos  princípios  geraes  que  nella  se  es- 
tabeleciam, a  defesa,  poderosa,  irresistível  na 
doutrina  geral,  era  não  raro  fraca  nas  parti- 
cularidades. A'  objecção  de  que,  dando-se  co- 
mo meio  de  obter  o  perdão  a  confissão  auri- 
cular, viriam,  para  se  porem  a  salvo,  os  que 
ainda  eram  judeus  occultos,  a  abusar  de  um 
sacramento  em  que  não  criam,  tinham  res- 
pondido em  Roma  que  não  era  de  presumir 
procedessem  assim  os  que  fossem  sincera- 
mente sectários  da  lei  de  Moysés.  A  réplica 
dos  theologos  portugueses  era  nesta  parte  de- 
cisiva. Que  tinham  os  pseudo- christãos  feito 
durante  mais  de  trinta  annos,  senão  demons- 
trar a  vaidade  de  semelhante  supposição,  abu- 
sando de  todos  os  sacramentos?  Os  que  qui- 
zessem  ficar  no  reino,  e  seriam  muitos,  por- 
que o  governo  não  lhes  havia  de  tolerar  que 


88  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

levassem  comsigo  as  suas  riquezas,  procede- 
riam infallivelmente  assim.  Proseguiam  discu- 
tindo de  novo,  com  mais  ou  menos  felicidade, 
as  formulas  e  condições  do  perdão,  reforçan- 
do as  ponderações  sobre  os  inconvenientes 
anteriormente  lembrados,  e  apontando  outros 
não  propostos  nas  conferencias  passadas.  Ver- 
saram principalmente  sobre  a  certeza  da  im- 
punidade que  se  dava  aos  culpados  de  here- 
sia, ainda  admittido  o  presupposto  de  que  não 
eram  aquelles  que  não  tinham  acceitado  vo- 
luntariamente o  baptismo.  Depois,  mostravam 
por  novas  faces  a  impropriedade  de  ser  um 
estrangeiro,  o  núncio,  quem  julgasse  de  novo 
os  já  sentenciados,  e  que  se  concedesse  a  es- 
tes a  revisão  dos  processos,  tornando  a  insis- 
tir na  injuria  á  Inquisição  e  prelados  de  Cas- 
tella  que  ia  envolvida  em  semelhante  disposi- 
ção, da  qual  podiam,  aliás,  resultar  graves 
perturbações  entre  as  duas  coroas.  Esforça- 
vam-se,  finalmente,  eth  atenuar  o  terrível  ar- 
gumento dos  cardeaes  De  Cesis  e  Campeggio 
e  dos  theologos  seus  adjunctos  nas  primeiras 
conferencias,  deduzido  dos  actos  de  D.  Ma- 
nuel e  do  próprio  D.  João  iii,  actos  pelos  quaes 
tinham  assegurado  aos  christãos-novos  a  im- 
punidade, não  só  quanto  ao  passado,  a  que 
exclusivamente  dizia  respeito  a  bulia  de  7  de 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  89 

abril,  mas  também  quanto  ao  futuro,  e  futuro 
assas  dilatado.  A  réplica  era  nesta  parte  de- 
plorável. Ousavam  allegar  que  não  cabia  na 
auctoridade  temporal  dar  aquelle  perdão,  se- 
não pelo  que  tocava  aos  effeitos  civis,  e  que 
o  rei  não  podia  obstar  a  que  os  tribunaes  ec- 
clesiasticos  perseguissem  aos  que  delinquis- 
sem  em  matérias  de  fé.  Entendiam  que  os 
inquéritos,  contra  os  quaes  nos  diplomas  de 
D.  Manuel  e  de  seu  filho  se  assegurava  a  im- 
munidade  aos  christãos-novos,  vinham  a  ser 
os  das  justiças  seculares,  inquéritos  que  effe- 
ctivamente,  diziam  elles,  não  eram  applica- 
veis  ás  questões  de  heresia.  Esses  privilégios, 
porém,  não  se  oppunham  a  que  os  prelados 
diocesanos  procedessem  canonicamente  con- 
tra os  suspeitos,  e  se  os  bispos  não  o  tinham 
feito,  a  culpa  não  era  do  monarcha  (1).  As- 
sim, declarava-se  em  nome  de  D.  João  iii  que 
os  privilégios  dos  hebreus,  na  apparencia  tão 
amplos  e  precisos,  não  eram,  em  virtude  da 
restricção   mental   do   soberano,  senão   uma 


(1)  Resposta  que  deram  os  Letrados  sobre  o  ne- 
gocio da  Inquisição,  etc.  Doe.  sem  data,  mas  que  evi- 
dentemente é  a  resposta  ás  allegações  (que  se  acham 
na  Symmicta,  vol.  31,  f.  395  e  segg.  N.°  16  e  17)  fei- 
tas na  cúria:  G.  13,  M.  8,  N.°  5,  no  Arch.  Nac. 


90  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

perfeita  buíra.  Que  diíTerença  essencial  havia 
em  serem  os  conversos  perseguidos,  presos, 
e  castigados  em  nome  das  leis  temporaes  ou 
das  leis  ecclesiasticas  ?  A  doutrina  que  se  in- 
vocava agora  era  em  geral  exacta,  mas  havia 
ahi  outra  questão.  O  sentido  obvio,  indubitá- 
vel daquelles  privilégios,  consistia  na  garan- 
tia contra  a  oppressão  material.  Qualquer  in- 
terpretação diversa  seria  uma  deslealdade,  um 
sophisma  indigno.  A  esta  oppressão  podia  o 
rei  obstar  em  todas  as  hypotheses.  Bem  pou- 
co importava  aos  pseudo-conversos  que  os 
bispos  os  julgassem  judeus  ou  herejes,  e  que 
os  condenassem  ás  penas  espirituaes.  O  que 
elles  não  queriam  era  ser  mettidos  em  cala- 
bouços, atormentados  no  potro,  lançados  nas 
chammas,  entaipados  em  cárceres  perpétuos, 
espoliados  e  reduzidos  á  miséria,  elles  e  seus 
filhos.  Taes  violências  e  atrocidades,  por  uma 
ridicula  ficção  jurídica,  por  uma  subtileza  in- 
significante de  formulas,  ficavam  a  cargo  do 
poder  temporal;  eram  o  resultado  do  auxilio 
do  braço  secular,  pelo  qual  a  auctoridade  pu- 
blica se  convertia  em  executora  de  alta  justi- 
ça das  sanguinárias  decisões  tomadas  no  tri- 
bunal da  fé.  O  que  não  tinha  duvida  era  que 
ou  se  recorrera  a  um  atroz  engano  para  ador- 
mecer as  victimas  á  borda  do  abvsmo,  ou  a 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  91 

interpretação  que  se  dava  agora  aos  privilé- 
gios da  gente  hebréa  equivalia  a  uma  negação 
atraiçoada  da  palavra  real,  a  uma  vergonhosa 
desculpa  dos  esforços  que  subrepticiamente 
se  haviam  empregado,  três  annos  antes,  para 
estabelecer  a  Inquisição  em  Portugal. 

A  impugnação  ás  allegações  feitas  na  cúria 
a  favor  das  providencias  tomadas  por  Cle- 
mente VII  era  acompanhada  das  bases  em  que 
eirei  entendia  dever  assentar  o  perdão,  se  o 
papa  insistisse  em  concedê-lo.  Estas  bases, 
que,  em  harmonia  com  as  considerações  of- 
ferecidas  pelos  theologos  e  canonistas  portu- 
gueses, excluiam  a  intervenção  do  núncio, 
presuppunham  o  restabelecimento  da  Inqui- 
sição, e  que  seria  applicada  pelos  inquisido- 
res a  indulgência  que  se  pretendia  ter  com 
os  conversos.  Sustentava-se  nessas  bases  a 
doutrina  de  que  o  perdão  não  devia  ser  dado 
por  confissão  auricular,  mas  por  via  de  re- 
conciliação solemne.  Cedia-se  no  ponto  de  se 
applicar  o  beneficio  da  bulia  de  7  de  abril 
aos  accusados  e  presos,  mas  com  a  limita- 
ção de  se  exceptuarem  aqueiles  cujos  delictos 
houvessem  já  sido  provados  e  sentenciados. 
Propunha-se  que  fossem  os  inquisidores 
quem  designasse  o  praso  que  se  havia  de 
dar  aos  ausentes  para  virem  gosar  daquelle 


92  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

beneficio.  Excluiam-se  deste  todos  os  que  de- 
linquissem  posteriormente  á  concessão.  Accei- 
tava-se  a  modificação  feita  no  breve  de  2  de 
abril  de  1534,  de  que  os  simplesmente  infa- 
mados ou  suspeitos  fossem  obrigados  a  jus- 
tificar-se  judicialmente  (embora  o  não  fossem 
a  abjurar  e  reconciliar-se,  como  elrei  ante- 
riormente queria)  e  não  por  duas  ou  três  tes- 
temunhas extrajudiciaes,  como  se  estatuía  na 
bulia.  A'cerca  dos  bens  dos  christãos-novos, 
buscava-se  evitar  a  odiosa  suspeita  que  havia 
em  Roma  de  quanto  zelo  da  fé  não  passava 
em  Portugal,  do  mesmo  modo  que  se  dizia 
succeder  em  Castella,  de  um  baixo  intuito  de 
espoliação,  convindo  elrei  em  que  não  hou- 
vesse confisco  para  os  culpados,  incluídos  os 
próprios  relapsos,  e  isto  durante  o  espaço  de 
sete  annos.  Exceptuavam-se  os  que  morres- 
sem impenitentes,  os  ausentes,  que  por  con- 
tumácia não  viessem  defender- se  pessoal- 
mente, e  os  que  delinquissem  depois  de  pu- 
blicada a  nova  bulia.  Com  estas  modificações, 
e  concedendo-se  tudo  o  mais  que  D.  Henrique 
de  Meneses  levava  apontado,  D.  João  iii  não  só 
admittia  o  perdão,  mas  ainda  o  soUicitava  (1). 


(1)  Apontamentos  para  se  apresentarem  ao  papa: 
G.  2,  M.  2,  N.»  24,  no  Arch.  Nac 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  93 

Numa  instrucção  secreta  auctorisavam-se 
os  embaixadores  para  transigirem  com  a  cú- 
ria romana,  quando  não  fossem  plenamente 
acceitas  as  condições  que  D.  Henrique  levara 
com  as  modificações  que  se  enviavam  agora. 
A  transigência  era  na  questão  dos  relapsos 
que  o  fossem  na  conjunctura  de  se  decidir  a 
contenda.  Concedia-se-lhes,  em  geral,  o  bene- 
ficio da  segunda  reconciliação,  evitando  elles 
assim  a  pena  de  morte  e  as  demais  conse- 
quências de  um  crime  reputado  sempre  ca- 
pital, mas  impondo-se-lhes,  a  arbitrio  dos  in- 
quisidores, uma  penitencia  mais  dura  do  que 
a  dos  semel-relapsos,  isto  é,  dos  que  só  uma 
vez  tinham  sido  accusados  e  processados.  As 
excepções,  porém,  eram  taes,  que  a  bem  di- 
zer, apenas  aquelles  cuja  reincidência  estava 
occulta  poderiam  tirar  desta  concessão,  na 
apparencia  tão  generosa,  alguma  vantagem 
real   (1).   Afora   essa   instrucção,  D.  João  iir 


(1)  Papel  de  uns  apontamentos,  etc.  Ibid.  N.*»  28. 
Este  documento  é  um  consectario  do  anterior.  Ne- 
nhum delles  tem  data ;  mas,  pelo  seu  conteúdo,  não 
podem  pertencer  senão  á  epocha  em  que  os  col- 
locámos.  O  documento  sem  data  na  G.  2,  M.  5, 
N."  44  parece  conter  os  apontamentos  definitivos 
que  nessa  conjunctura  se  mudaram  acerca  dos  re- 
lapsos. 


94  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

enviava  aos  embaixadores  cartas  de  crença 
especiaes  para  exigirem  ofíicialmente  do  papa 
a  remoção  de  Marco  delia  Ruvere,  cujas  hos- 
tilidades patentes  tinham,  como  já  vimos,  che- 
gado ao  ultimo  auge  (1). 

Habilitados  assim  os  agentes  de  Portugal 
em  Roma  para  obterem  melhores  condições, 
remetteram-se-lhes  junctamente  cartas  para  o 
papa,  em  que  elrei,  abstendo-se  de  discutir  a 
matéria,  pedia  se  determinasse  tudo  conforme 
as  bases  que  anteriormente  proposera  e  agora 
modificava,  e  isto  pura  e  simplesmente,  como 
graça  especial  do  pontifice.  Evidentemente 
queria-se  evitar  assim  a  situação  humilhante 
de  pleitearem  os  representantes  da  coroa  por- 
tuguesa com  os  procuradores  dos  christãos- 
-novos  perante  delegados  apostólicos,  o  que 
tinha  convertido  uma  negociação  diplomática 
em  questão  quasi  judicial.  Em  harmonia  com 
esta  idéa,  escrevia-se  a  D.  Henrique  uma 
carta  cuja  matéria  os  embaixadores  communi- 
cariam  ao  papa,  e  outras  secretas,  mas  idên- 
ticas, dirigidas  a  cada  um  delles,  em  que  se 
lhes  advertia  que  o  papel  redigido  pelos  ca- 
nonistas  e  theologos  portugueses  não  o  de- 

(1)  A  minuto  das  cartas  especiaes  de  crença  esta 
appensa  aos  apoalumenlos,  na  G.  2,  M  2,  N "  2i- 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  95 

viam  mostrar  absolutamente  a  ninguém,  mas 
estudá-lo  elles,  propondo  essas  razões  nas 
conferencias  como  cousa  própria,  á  medida 
que  o  julgassem  opportuno,  e  sem  que  nunca 
dessem  a  entender  que  lhes  haviam  sido  sug- 
geridas  de  Portugal.  Esperava  elrei  que  Roma 
cedesse,  vistas  as  concessões  mutuas  que  já 
se  haviam  feito ;  mas  ordenava-lhes  que,  no 
caso  de  não  chegarem  a  accordo,  lhe  dessem 
disso  prompto  conhecimento,  para  receberem 
novas  instrucções,  e  que,  se  Álvaro  Mendes 
de  Vasconcellos  os  avisasse  de  que  Carlos  v 
recommendava  de  novo  o  negocio  ao  seu  em- 
baixador em  Roma,  tractassem  com  este  a 
questão,  acceitando  quaesquer  serviços  que  lhes 
fizesse,  bons  ou  maus,  e  conservando-se  em 
perfeita  harmonia  com  elle.  Estas  cartas  eram 
acompanhadas  de  outras  dirigidas  a  diversos 
cardeaes,  ou  que  tinham  favorecido  as  preten- 
sões d'elrei,  ou  que  se  esperava  attrahir  por 
esse  meio  a  protegê-las  nos  futuros  debates  (1). 
Nestes,  a  vantagem  era  igual  para  a  causa 
dos  christãos-novos  e  para  as  pretensões 
d'elrei.   Os  mútuos  accordos  entre  Duarte  da 


(1)  Minuta  da  carta  a  D.  H.  de  Meneses  (semdataj, 
na  G.  2,  M.  2,  N.°  36.  O  seu  contexto  mostra  referir- 
se  aos  apontamentos  e  instrucção  de  N.°'  24  e  28. 


96  HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO 

Paz  e  o  arcebispo  do  Funchal  podiam  actuar 
secretamente  na  decisão  final  do  papa  ;  mas 
na  commissão  havia  duas  influencias  igual- 
mente fortes  que  se  contrapunham.  Santi- 
quatro,  que  geralmente  se  dizia  estar  a  soldo 
de  D.  João  iii,  e  a  quem  muitos  dos  seus  co- 
legas no  sacro  coUegio  não  duvidavam  de 
lançar  em  rosto  esta  suspeita  (1),  fazia  todos 
os  esforços  para  que  triumphassem  os  dese- 
jos do  seu  protegido,  e  a  sua  situação  de 
cardeal  e  penitenciario-maior  dava-lhe  uma 
preponderância  tal,  que  era  considerado  na 
commissão  mais  como  juiz  do  que  como  pro- 
curador (2).  Ghinucci,  porém,  patrocinava 
abertamente  a  causa  dos  christãos-novos. 
Tinha  escripto  um  livro  a  favor  delles  e  feito 
imprimir  a  sua  obra  (3).  Este  favor  não  era 


(1)  «até  lhe  dizerem  outros  cardeaes  que  bem 
peitadodevia  de  estar  de  V.  A.».  C.  de  D.  H.  de  Me- 
neses de  17  de  março  de  1535,  1.  cit. 

(2)  «Papa  Paolo. . .  messe  la  flnale  deliberatione 
nelli  duoi  commissarii  suoi...  ed  in  me»:  C.  de 
Santiquatro  de  14  de  março  de  1535,  I.  cit. 

(3)  «Auditor  Camerae  est  suspectissimus  in  ista 
causa ;  tum  quia  fuit  advocatus  prsedictis  conver- 
sis;  tum  quia  scripsit  pro  eis  et  consilium  fecit 
stampare» :  Papel  dado  em  Roma  aos  embaixadores, 
etc.  em  Sousa,  Annaes  de  D.  João  iii,  pag.  459  e  seg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  97 

provavelmente  gratuito ;  mas  é  certo  que  se 
dava  em  Ghinucci  uma  circumstancia  que 
legitimava  a  sua  má  vontade  ás  cousas  da 
Inquisição.  Contavam-se  com  horror  as  atro- 
cidades daquelle  tribunal  em  Hespanha,  atro- 
cidades que  já  em  outro  tempo  haviam  obri- 
gado Leão  X  a  tomar,  ou  a  fingir  que  tomava, 
severas  providencias  contra  elle.  O  nome  de 
Lucero  tinha-se  tornado  proverbial  em  Roma 
como  compendio  de  crueldades,  e  Ghinucci 
estivera  embaixador  em  Castella,  d'onde  trou- 
xera uma  espécie  de  memorando  dos  abusos 
que  a  Inquisição  ahi  practicava  (1).  Como  fiel 
da  balança,  restava  o  auditor  Simonetta, 
acerca  de  cuja  probidade  e  intelligencia  ha 
testemunhos  insuspeitos  (2).  Foram  em  varias 
conferencias  ouvidos  os  embaixadores,  e  das 


(1)  «As  tiranias  que  aqui  estão  cridas  da  Inqui- 
sição de  Casteila...  que  não  ha  lá  (em  Portugal) 
Luzeiros» :  Carta  de  D.  H.  de  Meneses,  cit.  —  «A  In- 
quisição de  Castella,  de  que  falia  todo  o  mundo»: 
Carta  de  D.  Martinho  de  14  de  março  de  1535,  1.  cit. 
— Llorente,  Hist.  de  Tlnquis.,  T.  i,  c.ii.art.  5.  —  Carta 
de  Santiquatro  de  14  de  março,  cit. 

(2)  Além  do  que  a  favor  de  Simonetta  se  pôde  de- 
duzir do  Memorial  dos  christãos-novos,  no  vol.  31 
da  Symmicta,  e  da  qualificação  de  bom  homem  e 
letrado,  com  que  o  caracterisa  D.  Henrique  de  Me- 

TO.MO  II  7 


98  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

suas  allegações  mandava  a  commissão  dar 
sempre  vista  a  D.  Duarte  da  Paz,  que  conti- 
nuava a  sustentar  com  perfeição  o  seu  papel. 
O  conde  de  Cifuentes  empregava  toda  a  in- 
fluencia, como  enviado  de  Carlos  v,  a  favor 
de  D.  João  iii  (1),  e  a  preponderância  do  mi- 
nistro de  Castella  inquietava  seriamente  os 
agentes  dos  christãos-novos,  a  ponto  que 
Duarte  da  Paz  lhe  dirigira  uma  exposição  dos 
factos,  e  procurara  movê-lo,  senão  a  tomar  o 
partido  dos  opprimidos,  ao  menos  a  mostrar- 
-se-lhes  menos  adverso  (2).  Além  disso,  no 
meio  das  vivas  discussões,  que  não  podia 
deixar  de  suscitar  o  complexo  da  negociação, 
o  destro  hebreu,  em  vez  de  allegar  vagamente, 
como  até  ahi  fizera,  os  privilégios  dos  con- 
versos concedidos  por  D.  Manuel  e  revalida- 
dos por  seu  filho,  apresentou,  emfim,  aos 
commissarios  apostólicos  traslados  authenti- 
cos  dos  respectivos  diplomas  e,  além  disso. 


neses  na  carta  de  17  de  março  de  35,  ha  o  vermos 
os  elogios  que  se  lhe  fazem  na  correspondência  de 
um  embaixador  ainda  mais  hábil,  D.  Pedro  Masca- 
renhas. 

(1)  Carta  de  D.   H.  de  Meneses  de  5  de  novem- 
bro de  34;  Corpo  Chronol.,  P.  i,  M.  54,  N.»  5. 

(2)  Carta  do  dicto  de  6  de  março  do  mesmo  mez: 
Ibid.  N.0  8. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  99 

certidões  dos  testemunhos  dados  a  favor  dos 
mesmos  conversos  pelo  bispo  de  Silves  D. 
Fernando  Coutinho,  quando  fora  obrigado  a 
manifestar  o  seu  voto  acerca  dos  crimes  do 
judaismo  (1).  Foi  decisivo  o  golpe.  Mezes  an- 
tes, sabendo  que  existiam  estes  documentos 
em  Roma,  D.  Henrique  de  Meneses  tinha 
obtido  copia  delles  (talvez  havida  pelo  arce- 
bispo da  mão  de  Duarte  da  Paz)  e  enviado 
essa  copia  para  Portugal.  Duvidava  da  sua 
genuinidade,  porque  elrei  nunca  lhe  falara 
sobre  tal  assumpto.  Apesar,  porém,  de  pedir 
instrucções  a  semelhante  respeito,  não  rece- 
bera resposta  (2).  Assim,  Ghinucci  e  Simo- 
netta  impunham  silencio,  tanto  aos  embaixa- 
dores como  a  Santiquatro,  dizendo  que,  se 
mostrassem  serem  falsos  os  privilégios,  es- 
tariam por  tudo  quanto  elrei  desejava ;  mas 
que,  se  não  o  eram,  a  corte  de  Roma  não  de- 
via tomar  sobre  si  o  odioso  de  invalidar  os 
effeitos  da  clemência  dos  príncipes  portugue- 
ses,  senão   quando   se  convencesse  de  que 


(1)  Carta  de  D.  Martinho  de  14  de  março,  1.  cit. 
Sobre  as  opiniões  do  bispo  de  Silves  que  Duarte  da 
Paz  invocava  veja-se  o  vol.  i,  pag.  262  e  segg. 

(2)  Carta  de  D.  H.  de  Meneses,  cit. —  Carta  de  D. 
Martinho,  cit. 


100  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

d'ahi  resultavam  vantagens  para  a  religião.  Era 
visivel  a  ironia  do  dilemma.  A  principio,  os 
commissarios  pontifícios  accediam  de  mo- 
dificar alguns  pontos  á  bulia  de  perdão,  mas 
recusavam  formalmente  convir  em  que  se 
revalidasse  o  estabelecimento  do  tribunal  da 
fé.  Depois  de  muitos  debates  cederam  a  final. 
Acerca  do  perdão,  a  modificação  principal 
que  adoptaram  foi  estabelecer  uma  distincção 
entre  os  hebreus  que  haviam  sido  converti- 
dos á  força  por  D.  Manuel  e  os  que  não  po- 
diam allegar  violência.  Os  primeiros  não  de- 
viam ser  considerados  como  relapsos  se, 
depois  de  perdoados,  reincidissem :  os  segun- 
dos sê-lo-hiam.  Convieram  em  que  da  enume- 
ração que  se  fazia  na  bulia  de  7  de  abril  dos 
indivíduos  a  quem  se  estendiam  os  seus  be- 
nefícios, se  ex pungisse  a  designação  de  bis- 
pos, cónegos,  etc,  aos  quaes  alli  se  fazia  a 
affronta  de  suppor  capazes  de  judaisarem, 
substituindo- se  aquella  enumeração  por  ter- 
mos genéricos.  Quanto  á  execução  da  nova 
bulia  consentiam  em  que  fosse  encarregada  a 
um  individuo  designado  por  elrei,  uma  vez 
que  não  estivesse  publicada  a  de  7  de  abril, 
porque,  nessa  hypothesse,  deveria  vigorar  esta, 
e  ser  executor  delia  o  núncio.  Quanto  á  In- 
quisição, convinham  em  que  se  mantivesse; 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  101 

mas  insistiam  sobre  tudo  em  dous  pontos 
capitães  :  em  não  haver  cárceres  incommuni- 
caveis,  por  espaço  de  oito  annos,  e  em  fica- 
rem, durante  doze,  os  bens  dos  sentenciados 
aos  seus  legítimos  herdeiros  christãos.  Des- 
tas e  de  outras  condições  menos  importantes 
não  houve  demover  Simonetta  e  Ghinucci  (1). 
Levada  a  decisão  dos  commissarios  ao  co- 
nhecimento do  papa,  os  agentes  de  D.  João  in 
tentaram  todos  os  meios  de  melhorar  a  sua 
causa.  Recorreram  ao  embaixador  de  Carlos 
V,  e  D.  Henrique  de  Meneses,  que  esperava 
protecção  dos  cardeaes  Travi  e  Cesarino,  teve 
de  submetter-se  com  bem  pouco  resultado  a 
frequentes  humilhações  da  parte  delles.  Nos 
debates  perante  Paulo  iii,  Simonetta,  cujos 
austeros  principies  eram  conhecidos,  chegou 
a  manifestar  duramente  a  sua  indignação, 
ouvindo  os  agentes  portugueses  insistirem 
na  idéa  de  que  fossem  excluídos  os  prelados 
diocesanos  de  intervirem  nos  processos 
da  Inquisição,  ainda  quando  pretendessem 
usar  desse  inauferivel  direito.  A'  força  de  ne- 
gociações  e  de  insistência,  o  mais  que  obti- 


(1)  O  transumpto  das  resoluções  flnaes  dos  com- 
missarios Simonetta  e  Ghinucci  acha-se  na  G.  2, 
M.  1,  N.°  35. 


102  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

veram  foi  que  o  papa,  tendo  convindo  no 
restabelecimento  do  tribunal  da  fé,  reduzisse 
os  dous  períodos  de  oito  annos  para  serem 
os  cárceres  accessiveis  e  de  doze  para  não 
haver  confiscos  a  sete  e  a  dez.  Quanto  a  esta 
ultima  clausula,  a  corte  de  Roma  reservava 
para  si,  passado  aquelle  praso,  appreciar  a 
legitimidade  ou  conveniência  de  taes  confis- 
cos, restricção  proposta  pelos  commissarios, 
e  acerca  da  qual  Paulo  iii  se  mostrou  iníle- 
xivel  apesar  dos  esforços  dos  embaixadores 
e  do  cardeal  Santiquatro  (1). 

Ao  passo  que  se  redigiam  as  minutas  das 
novas  bulias,  que  se  deviam  expedir  depois 
de  acceitas  por  D.  João  iii,  e  de  que  por  isso 
se  mandaram  copias  para  Portugal,  Duarte 
da  Paz  e  os  protectores  dos  christãos-novos 
redobravam  de  actividade  para  obstarem  ás 
consequências  que  anteviam.  Tinha-se  decla- 
I  ado  oíficialmente  que,  em  referencia  á  bulia 
de  7  de  abril,  se  entenderia  dar-se  nella  a  cir- 
cumstancia  de  já  publicada,  se  o  núncio  a 
houvesse  communicado  aos  bispos,  ou  lh'a 
tivesse  notifica' lo  por  algum  modo,  hypothese 
na  qual  as  recentes  modificações  ficariam  de 


(1)  Carta  de  D.  H.  de  Meneses,  cit— Carta  de  D. 

Mai'linlio,  cit. 


HISTORIA  Da  inquisição  103 

nenhum  eííeito  (1).  Anteriormente  viu  o  leitor 
que  esse  facto  se  verificara.  Assim,  a  redacção 
daquella  minuta  podia  considerar-se  antes 
como  uma  espécie  de  satisfação  ao  rei  do  que 
como  cousa  positiva.  O  que  se  tornava  mais 
grave  era  o  restabelecimento  do  tribunal  da 
fé,  embora  com  restricções  importantes,  mas 
que  estavam  longe  de  poderem  cohibir  todas 
as  tyrannias  dos  inquisidores.  Se  acreditar- 
mos o   testemunho   dos  christãos-novos,  as 


(1)  Ibid. — A  copia  da  minuta  da  nova  bulia  de  per- 
dão enviada  a  D.  João  iii  existe  na  G.  2,  M.  2,  N.®  6,  no 
Arch.  Nac,  tendo  por  fora  duas  notas,  uma  em  la- 
tim, outra  em  vulgar  rubricada  pelo  arcebispo  do 
Funchal  e  por  D.  Henrique  de  Meneses,  na  qual  se 
lê  em  substancia  o  mesmo  que  nas  cartas  dos  dous 
ministros,  de  14  e  17  de  março.  A  nota  em  vulgar  é 
curiosa,  porque  mostra  a  cautela  que  era  necessário 
empregar  com  a  cúria  romana :  «Isto  entendem  es- 
tes auditores:  se  lá  este  perdão  não  fie  ja  publicado. 
E  avisamos  que  entendem  por  publicação  o  ser  no- 
tificada aos  prelados :  e  nisto  de  publicada  ou  noti- 
ficada, ou  nota  a  todos,  não  fazem  diíferença.  Se  a 
V.  A.  acepta,  decrare  isto  ao  núncio,  porque  se  cá 
não  apeguem  a  isto,  e  venha  com  a  mão  do  núncio 
assinado  tudo  o  que  he  feito,  para  que  seja  craro. 
Em  nosso  poder  fica  o  próprio  polo  não  negarem.— 
D.  Henrique  M.—  D.  M.  de  Portugal  Primas  Arceb. 
do  Funchal.» 


104  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

suas  diligencias  para  minorarem  o  perigo  que 
os  ameaçava  não  foram  inteiramente  infru- 
ctuosas.  Paulo  iii  prometteu  dar-lhes  ainda 
outras  garantias  na  bulia  da  Inquisição.  Taes 
seriam  a  de  haver  sempre  recurso  para  Ro- 
ma, e  a  de  se  prohibir  os  inquisidores  que 
fizessem  aos  réus,  durante  os  tractos,  pergun- 
tas acerca  dos  crimes  de  outros  individuos, 
meio  atroz  de  que  elles  frequentemente  se  va- 
liam para  multiplicarem  o  numero  das  suas 
victimas  (1). 

Desde  o  começo  das  negociações,  D.  Hen- 
rique de  Meneses  previra,  apesar  dos  esforços 
do  cardeal  Pucci  e  da  protecção  do  conde  de 
Cifuentes,  que  o  resultado  não  havia  de  cor- 
responder inteiramente  ao  que  se  pretendia. 
Aconselhava  por  isso  que  de  parte  a  parte  se 
fizessem  concessões.  Para  dar  em  Roma  uma 
demonstração  publica  de  desagrado  contra 
Duarte  da  Paz,  e  em  harmonia  com  os  con- 


(1)  Memoriaie,  Symm.,  vol.  31,  1'.  37.  Na  corres- 
pondência dos  embaixadores  não  se  acham  mencio- 
nadas estas  duas  restricções.  Todavia  no  Memorial, 
os  christãos-novos,  depois  de  se  referirem  a  ellas, 
como  concedidas  com  audiência  dos  agentes  d'elrei, 
invocam  a  este  respeito  o  testemunho  do  próprio 
papa :  «Prout  de  dieta  S.  S.  voluntate,  eadem  S.  S. 
fidem  indubiam  facere  potes  l.» 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  105 

selhos  que  elle  próprio  lhe  dera  offerecendo- 
se  para  espia,  D.  João  iii  ordenara  ao  arce- 
bispo do  Funchal  que  o  exauctorasse  do  ha- 
bito de  Christo ;  mas  D.  Martinho  nada  fize- 
ra, ignoramos  com  que  pretexto.  D.  Henrique 
recebeu  então  novas  instrucções  a  este  res- 
peito. Quiz  cumpri-las ;  mas  como  para  isso 
era  necessário  attrahir  á  embaixada  Duarte 
da  Paz,  e  o  agente  dos  hebreus  estava  preve- 
nido, soube  este  evitar  os  laços  que  o  embai- 
xador lhe  armara  com  semelhante  intuito.  No 
meio  das  resistências  que  encontrava  por  toda 
a  parte,  o  embaixador  extraordinário  reprimia 
a  custo  os  Ímpetos  da  sua  cólera  acerba  con- 
tra Duarte  da  Paz,  e  na  impossilidade  de  se 
vingar  delle,  escrevia  para  Portugal,  aconse- 
lhando que  se  perseguissem  e  atemorisassem 
com  a  perspectiva  das  fogueiras  da  Inquisição 
os  chefes  dos  conversos  que  subministravam 
dinheiro  aos  agentes  em  Roma  (1).  Não  sabe- 
mos até  que  ponto  foram  taes  conselhos  se- 
guidos ;  mas  vemos  que  nem  por  isso  os  re- 
sultados foram  excessivamente  vantajosos. 


(1)  Carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  4  de  outubro  de 
34;  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  53,  N.<>  120.  — Carta  do 
dicto  de  6  de  novembro :  Ibid.  M.  54,  N.»  6.  —  Carta 
do  dicto  de  26  de  novembro:  Ibid.  N.^»  18. 


106  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Remettendo  as  resoluções  definitivas  do 
pontifice,  tanto  os  embaixadores  como  Santi- 
quatro  escreveram  a  elrei.  Inquietava-os  o 
descontentamento  que  receberia  com  o  resul- 
tado daquella  missão ;  mas  era  preciso  fazer- 
Ihe  comprehender  bem  o  estado  das  cousas,  e 
mostrar-lhe  que  elles,  no  desempenho  das 
suas  funcções,  não  tinham  omittido  diligencia 
alguma  para  as  levar  a  bom  termo.  O  cardeal 
protector,  historiando  rapidamente  as  phases 
por  que  passara  o  negocio,  accusava  o  des- 
leixo com  que  o  governo  português  tractara 
este  a  principio,  attribuindo  exclusivamente  a 
insistência  no  perdão  geral  e  as  restricções 
que  se  punham  aos  futuros  inquisidores  á  im- 
pressão que  haviam  produzido  na  cúria  os 
privilégios  concedidos  aos  conversos  por  D. 
Manuel  e  por  elle  rei  actual.  Ponderava-lhe, 
além  disso,  a  necessidade  da  indulgência  para 
com  homens  violentados  a  receber  o  baptis- 
mo, e  consolava-o  das  restricções  impostas  á 
Inquisição,  sobretudo  no  que  tocava  ao  praso 
da  suspensão  dos  confiscos,  lembrando-lhe 
quão  rápidos  tugiam  os  annos  (1).  A  carta  do 
arcebispo  do  Funchal  era  noutro  estylo  e  re- 


(1)  Carta  de  Santiquatro  de  14  de  março  de  1535, 
1.  cit. 


HISTORIA  DA  INOLISIÇÃO  107 

digida  com  arte.  Mostra va-se  profundamente 
irritado  com  a  conclusão  do  negocio ;  mas  ao 
mesmo  tempo  assegurava  que  seria  impossi- 
vel  obter  novas  concessões.  Para  convencer 
disto  o  rei,  pintava-lhe  Paulo  iii  como  homem 
de  caracter  indomável  e  tenaz  nas  suas  con- 
vicções. Do  mesmo  modo  que  Santiquatro, 
attribuia  principalmente  o  mau  resultado  do 
empenho  aos  privilégios  de  D.  Manuel ;  mas 
dava  junctamente  a  entender  que  as  allega- 
çôes  mal  pensadas  remettidas  de  Portugal,  e 
a  proposta  para  não  haver  confiscos  só  por 
sete  annos,  que  parecia  inspirada  pela  anciã 
de  espoliar  os  christãos-novos,  muito  haviam 
contribuido,  também,  para  a  resolução  menos 
favorável.  Lançava  suspeitas  sobre  o  embai- 
xador hespanhol  por  admittir  em  sua  casa 
Duarte  da  Paz  e  ouvi-lo  publicamente,  elle  que 
tinha  todos  os  dias  conferencias  secretas  com 
o  procurador  dos  conversos.  Dilatava-se  acerca 
das  humilhações  que  lhe  faziam  tragar  e  a  D. 
Henrique,  não  só  os  curiaes,  mas  até  o  agente 
de  Carlos  v,  e  tornava  a  insistir  na  idéa  de 
que  fora  grande  erro  não  se  lhe  haver  entre- 
gado este  negocio  só  a  elle  sem  se  communi- 
car  a  mais  ninguém.  Confessava,  todavia,  os 
numerosos  serviços  que  D.  Henrique  de  Me- 
neses fizera,  elogiando  a  sua  incansável  acti- 


108  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

vidade,  acaso  porque  essa  carta  devia  ser  vista 
pelo  seu  collega.  Lembrava  a  elrei  três  expe- 
dientes que  havia  a  adoptar.  Era  o  primeiro 
abandonar  a  empreza,  e  deixar  esquecer  tudo 
quanto  se  tinha  passado,  para  o  que  julgava 
seriam  necessários  muitos  annos.  O  segundo, 
que  revelava  a  astúcia  e  a  immoralidade  do 
arcebispo,  era  curiosissimo.  Consistia  em  mos- 
trar elrei  que  mudara  de  opinião ;  escrever 
para  Roma  sollicitando  um  perdão  incondi- 
cional para  todos  e  para  tudo,  redigido  em 
meia  dúzia  de  linhas,  ficando  depois  livre  aos 
prelados  inquirirem,  se  quizessem  e  como  qui- 
zessem,  conforme  o  direito  commum,  dos  de- 
lidos contra  a  fé ;  pedir  conjunctamente  ao 
papa  que  admoestasse  os  bispos  para  que  en- 
sinassem as  suas  ovelhas  e  fossem  vigilantes 
contra  as  heresias ;  e  declarar  depois  disto 
que  não  queria  Inquisição.  A  consequência 
seria  fazerem  os  prelados  o  que  até  alli  ti- 
nham feito,  que  era  faltar  ao  seu  dever ;  e 
tanto  mais  que,  sendo  irmãos  do  próprio  mo- 
narcha  ou  creaturas  suas,  não  se  atreveriam 
a  desobedecer-lhe  (1).  Passados  dous  annos. 


(1)  «os  ordinários  farão  como  atéqui  fizerão,  que 
foi  não  fazerem  o  que  devião ;  e  mais  todos  são  ou 
vossos  irmãos  ou  vossas  feituras ;  não  passarão  o 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  109 

accusá-los-hia  daquillo  mesmo  que  lhes  man^ 
dará  praticar,  e  pediria  então  a  Inquisição, 
que  lhe  concediriam  com  as  condições  que 
elle  quizesse.  O  terceiro  arbitrio  era  imitar 
Henrique  viii  de  Inglaterra  e  negar  a  obediên- 
cia ao  papa,  com  a  differença  de  que  o  prín- 
cipe inglês  o  fizera  só  por  impulso  das  pró- 
prias paixões,  e  o  de  Portugal  fa-lo-hia  por 
motivos  justos.  Pelo  que  tocava  aos  confiscos, 
talvez  por  compromissos  com  Duarte  da  Paz, 
ou  talvez  porque  elle  próprio  interessava  na 
doutrina  da  inviolabilidade  da  palavra  real,  o 
arcebispo  ia  mais  longe  do  que  se  devia  es- 
perar da  sua  dissimulação.  Era  de  voto  que 
elrei  desistisse  absolutamente  de  haver  os 
bens  dos  condemnados,  vistas  as  solemnes 
promessas  de  seu  pae,  revalidadas  por  elle ; 
porque  em  Roma  todos  se  assombravam  de 
que  pretendesse  trahi-las.  Affirmava  que  não 
se  intromettia  a  avaliar  semelhante  procedi- 
mento por  serem  cousas  de  príncipes; — «mas 
nós  outros  —  accrescentava  elle  —  quando  ahi 
promettemos  alguma  cousa,  fazem-no-la  cum- 
prir nos  tribunaes  de  vossa  alteza.  Se  a  fé 
publica  e  real  se  não  guardar,  que  haverá 


que  V.  A.  lhes  ordenar» :  Carta  de  D.  Martinho  de 
14  de  março  de  1535,  1.  cit. 


110  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

neste  mundo  que  tenha  firmeza?  Assim,  po- 
der-se-hão  annullar  os  privilégios,  tenças  e 
doações».  —  Contava  D.  Martinho  com  que 
essas  phrases  fossem  lidas  pelos  validos  e 
ministros,  locupletados  e  engrandecidos  por 
mercês  regias?  O  modo  como  terminava  a 
carta  não  era  menos  notável.  Tinha-o  avisado 
seu  irmão,  o  conde  de  Vimioso,  de  que  em 
Portugal  se  conheciam  já  as  suas  occultas 
machinaçoes  e  das  inferências  que  d'ahi  se 
deduziam  (1).  Estava,  portanto,  na  borda  de 
um  abysmo,  de  que  só  a  audácia  podia  sal- 
vá-lo. Escrevera  logo  ao  conde,  vindicando  a 
sua  innocencia.  Simulara  nessa  carta  uma  in- 
dignação que  subia  a  ponto  de  insultar  a  pes- 
soa do  soberano.  —  «Não  acho  infâmia  maior 
—  dizia  elle  —  que  um  príncipe  possa  practi- 
car,  do  que  saber  que  se  dizem  cousas  taes 
de  um  ministro  seu,  e  não  o  punir  ou  áquel- 
les  que  as  inventam».  —  Dadas  estas  explica- 
ções, se  não  recebesse  condigna  satisfação, 
«estava  resolvido  —  accrescentava  —  a  proce- 
der de  modo  que  constasse  ao  mundo  como 


(1)  Estes  avisos  consta  terem  sido  dados  ao  ar- 
cebispo pelo  conde  de  Vimioso  da  Carta  de  D.  H.  de 
Meneses  de  1  de  novembro  de  1535:  na  G.  20,  M.  7, 
N.o  23,  no  Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  111 

sabia  cumprir  com  o  que  devia  a  si  pró- 
prio».— Para  arcebispo,  D.  Martinho  esquecera 
de  mais  em  Roma  os  preceitos  do  evangelho. — 
((Dissimular  injurias  e  deshonras  —  observava 
o  altivo  prelado  —  é  cousa  que  não  fazem  se- 
não aquelles  que  as  merecem».  —  Attribuia  a 
D.  Henrique  de  Meneses  as  accusações  que 
lhe  faziam  em  Portugal.  —  ((O  meu  coUega  — 
concluía  D.  Martinho  —  é  excessivamente  des- 
confiado. Não  falo,  por  isso,  ao  papa  nem  a 
ninguém,  sem  elle  estar  presente.  Ha  nisso 
vergonhas  que,  concluido  este  negocio,  eu  não 
soffreria,  nem  ser  pontifice.  Um  de  nós  ha-de 
deixar  o  cargo  (1)».  —  Com  a  mesma  audácia 
escrevia  agora  a  D.  João  iii,  repellindo  as  sus- 
peitas de  deslealdade.  Queixava-se  dos  enre- 
dos da  corte  e  do  mau  despacho  que  tinham 
os  seus  negócios  particulares,  consolando-se 
com  a  esperança  de  que  um  dia  elrei  lhe  faria 
justiça,  conhecendo  a  sua  innocencia,  e  alludia 
aos  documentos  que  anteriormente  dera  da 
sua  lealdade.  Mostrava-se  insolente,  para  fin- 
gir que  era  victima  dos  seus  inimigos.  —  ((Não 
me  pesara  —  dizia  —  que  vossa  alteza  man- 


(1)  Fragmento  da  C.  de  D.  Martinho  ao  conde  de 
Vimioso  de  15  de  fevereiro  de  1535,  no  Corpo  Chro- 
nol.,  P.  1,  M.  54,  N.077. 


112  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

dasse  queimar  vivo  a  mim  ou  a  qualquer  ou- 
tro embaixador  que  faltasse  ao  seu  dever, 
mas  que  o  mesmo  se  fizesse  aos  accusadores 
quando  não  provassem  seu  dicto.  Rogia-se  em 
Lisboa  que  eu  recebia  dinheiro  dos  judeus 
que  tinha  de  sentenciar  (1) :  o  mesmo  se  disse 
já  de  vossa  alteza.  Culpam-me  de  novo  agora : 
também  culpam  a  vossa  alteza  de  que  não 
tem  em  mira  senão  arrebatar-lhes  os  bens.  E 
deve  crer-se  tal  falsidade»?  —  Esta  linguagem 
insolente  derrama  luz  sobre  os  successos  an- 
teriores. Vê-se  que  a  voz  publica  tinha  estam- 
pado na  fronte  do  monarcha  o  ferrete  da  cor- 
rupção. Provavelmente  era  calumnia ;  porque 
reputamos  D.  João  iii  um  fanático  sincero,  e 
portanto,  incapaz  de  se  deixar  corromper  em 
detrimento  das  suas  idéas  exaggeradas.  En- 
tretanto, não  se  podendo  explicar  plausivel- 
mente  o  abandono  em  que  estiveram  os  ne- 
gócios da  Inquisição  na  mais  difficil  conjun- 
ctura,  senão  pela  poderosa  influencia  do  ouro 
dos  christãos-novos,  cremos  que  essas  vozes 
populares  não  seriam  absolutamente  infunda- 
das, e  é  possível  que  se  houvesse  attribuido 
ao  rei  a  corrupção  dos  seus  ministros.  Mas 


(1)  Alludia  provavelmente  ao  tempo  em  que  era 
legado  à  latere.  Veja-se  o  vol.  i,  p.  252  e  segg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  113 

as  outras  suspeitas  tinham  melhor  fundamen- 
to. Que,  actuado  pelo  ódio  contra  uma  parte 
dos  seus  súbditos,  D.  João  iii  se  lembrasse 
também  ás  vezes  dos  proventos  que  o  fisco 
tiraria  de  elles  serem  exterminados ;  e  que  ao 
fanatismo  se  associasse  no  seu  espirito  uma 
cubica  que  não  o  excluia,  é  facto  altamente 
provável. 

A  carta  de  D.  Henrique  de  Meneses,  em 
que  dava  particularmente  conta  ao  rei  do  me- 
nos feliz  resultado  da  sua  missão,  tinha  ca- 
racter diverso  da  do  seu  collega.  Ahi  a  ma- 
gna e  o  despeito  são  evidentemente  sinceros. 
Revela- se  no  estylo  delia  certa  rudeza  de  pen- 
samento e  de  phrase  própria  de  uma  Índole 
irritável  e  impetuosa,  mas  franca  e  leal.  Des- 
crevia os  invencíveis  obstáculos  que  encon- 
trara, e  expunha  resumidamente  as  conces- 
sões que  se  tinham  podido  obter.  Queixava-se 
amargamente  de  não  lhe  haverem  dado  ins- 
trucções  acerca  dos  privilégios  dos  christãos 
novos.  Insistia  no  que  já  por  mais  de  uma 
vez  pedira;  em  que  o  mandassem  sair  de 
Roma,  porque  estava  saciado  de  desprezos  e 
humilhações. —  «Empregue- me  vossa  alteza 
noutras  partes  e  em  outros  negócios  para  que 
eu  possa  prestar.  Os  meus  desejos  são  ser- 
vir-vos  de  alma  e  vida  ;  mas  não  me  retenha 

TOMO  II  8 


Íil4  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

aqui  vossa  alteza  um  único  dia,  que  o  toma- 
rei por  agravo,  e  morrerei  de  paixão».  —  En- 
furecia-se  com  a  importância  que  davam  na 
cúria  romana  a  Duarte  da  Paz,  e,  no  seu  or- 
gulho de  nobre,  via  uma  offensa  mortal  em 
lh'o  terem  dado  por  competidor,  consentindo- 
Ihe  que  interviesse  numa  questão  entre  prín- 
cipes. —  Mas  estes  —  accrescentava  D.  Henri- 
que, alludindo  aos  cardeais  —  não  são  prínci- 
pes, nem  são  nada.  São  mercadores  e  bofari- 
nheiros,  que  não  valem  três  pretos  (i) ; 
homens  sem  educação,  a  quem  só  movem  ou 
o  medo  ou  o  interesse  temporal,  porque  o  es- 
piritual cousa  é  de  que  não  curam.»  —  Em 
harmonia  com  a  idéa  que  concebera  acerca 
da  corte  pontifícia,  também  indicava  os  expe- 
dientes que  D.  João  iii  tinha  a  adoptar,  con- 
cordando em  parte  com  o  arcebispo,  mas  sem 
aconselhar  o  systema  de  perfídia  que  o  seu 
collega  propunha.  Na  sua  opinião,  tinha  elrei 
a  escolher  entre  dous  arbítrios  :  negar  de  todo 
a  obediência  ao  papa  como  Inglaterra  (2),  ou 


(1)  Reaes  pretos:  moeda  de  cobre  minda,  que  en- 
tão corria. 

(2)  «Desobedecer  muy  inteiramente  ao  papa,  como 
Inglaterra» :  Carta  de  D.  Henrique  de  Meneses  de 
17  de  março  de  1535, 1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  115 

acceitar  a  Inquisição  do  modo  que  lh'a  con- 
cediam, havendo-se  depois  com  justiça  e  mo- 
deração o  novo  tribunal ;  porque,  logo  que  se 
visse  que  em  Portugal  não  havia  Luceros,  e 
que  os  inquisidores  procediam  honestamente, 
dentro  em  pouco  se  obteria  tudo.  Terminava 
reiterando  as  supplicas  para  que  se  lhe  per- 
mittisse  voltar  quanto  antes  a  Portugal  (1). 

Remettidas  a  D.  João  iii  as  minutas  das  ul- 
timas resoluções  acompanhadas  destas  car- 
tas, Paulo  III  dirigiu-lhe  também  um  breve,  no 
qual,  por  intervenção  do  núncio,  lhe  commu- 
nicava  offlcialmente  copia  das  mesmas  reso- 
luções. Neste  breve,  redigido  por  Santiquatro 
e  approvado  depois  pelo  papa  (2),  alludia-se 
em  summa  aos  anteriores  debates,  e  observa- 
va-se  que,  por  maiores  que  fossem  os  dese- 
jos do  pontífice  de  dar  satisfação  a  elrei,  to- 
davia, tractando-se  dos  bens  e  da  vida  de  tan- 
tos individues,  a  vontade  de  Deus  era  que 
elle  se  inclinasse  antes  á  misericórdia  do  que 
ao  rigor ;  que,  não  obstante  poderem  as  con- 


(1)  Ibid. 

(2)  Na  copia  do  breve  Inter  ccetera,  inserta  na 
Symmicta  (vol.  31,  f.  452  v.  e  seg.)  vem  appensoum 
bilhete  do  cardeal  ao  referendário  Blosio,  (i*onde  isto 
consta. 


116  HISTORIA  DA  INOUISIÇÃO 

venções  e  pactos  celebrados  entre  os  conver- 
sos e  D.  Manuel  considerar-se  em  alguns 
pontos  como  contrários  ás  leis  canónicas,  im- 
portando a  revogação  delles  uma  quebra  da 
palavra  real,  cousa  que  sobre  todas  devia  ser 
estável,  a  sancta  sé  preferira  respeitá-la  e 
mantê-la  a  condescender  absolutamente  com 
os  desejos  delle  rei,  a  quem  admoestava  para 
que  se  contentasse  com  as  modificações  pro- 
postas, únicas  compatíveis  com  a  dignidade 
da  coroa  portuguesa  e  com  a  honra  da  mesma 
sé  apostólica  (1). 

Como  dissemos,  não  se  ignorava  em  Roma 
que  a  bulia  de  7  de  abril  havia  sido  notificada 
aos  prelados  e,  portanto,  sabía-se  bem  o  va- 
lor que  tinham  as  alterações  feitas  na  minuta 
da  que  devia  substitui-la  se  não  estivesse  pu- 
blicada. Era  occasião  opportuna  para  um  acto 
de  dobrez,  e  a  cúria  romana  aproveitou-a. 
Pelo  mesmo  correio,  e  porventura  juncto 
com  a  copia  daquella  minuta  enviada  ao  nún- 
cio, escreveu-se  a  este,  avisando-o  de  que  o 
papa,  tendo-se  accingido  ao  parecer  dos  com- 
missarios  que  haviam  examinado  a  qdestão. 


(1)  Breve  Inter  ccetera  de  17  de  março  de  1535: 
M.  25  de  Bulias  N."  30,  e  G.  2,  M.  2,  n.«  13,  no  Arch. 
Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  117 

indeferira  as  pretensões  dos  agentes  de  Por- 
tugal, e  que  por  isso  lhe  ordenava  desse  in- 
teira execução  á  bulia  de  7  de  abril,  conside- 
rando como  annullado  o  breve  pelo  qual  ti- 
nham sido  suspensos  os  seus  effeitos  (1). 
Conforme,  porém,  acabamos  de  ver,  os  com- 
missarios,  e  ainda  mais  o  papa,  haviam  accei- 
tado  modificações  importantes  áquelia  bulia 
e,  posto  que  os  effeitos  dessas  modificações 
tivessem  de  ser  nenhuns,  o  resultado  que  se 
attribuia  á  negociação,  e  em  que  se  estriba- 
vam as  provisões  do  breve  ao  núncio,  era 
supposto  (2).  As  narrativas  dos  christãos-no- 
vos  explicam-nos  esta  alteração  dos  factos  e 
a  mutua  negação  dos  dous  diplomas  que  se 
expediam,  ambos  com  a  data  de  17  de  mar- 


(1)  Breve  Dudum  postquam  de  17  de  março  de 
1535:  copia  authentica  no  M.  14  de  Bulias,  N.»  3. 

(2)  «Cum.. .  viri  prsedicti..  .  litteras  absolutionis 
hujusmodi,  per  dictum  prsedecessorem,  ut  prseíèr- 
tur,  concessas,  executioni  debitoe  esse  demandandas 
nobis  retulerini,  nos  execuUonem  hujusmodi  ojn- 
nino  fieri  volentes,  fraternilati  tuee  per  praesentem 
commitiimus  et  mandamus  quatenus  ad  executio- 
nem  dictarum  absolutionis  Jilterarum/«íí?í(7,  ?'//arMm 
tenorem  in  omnibos  et  per  omnia  procedas,  perindè 
ac  si  earum  executionem  per  dietas  litteras  non 
suspendissemus«.  Ibid. 


118  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ço.  Redigidas  e  entregues  aos  embaixadores 
as  minutas,  chegaram  a  Roma  informações 
que  auctorisavam  o  pontifice  para  revogar  to- 
das as  concessões  feitas  aos  agentes  de  Por- 
tugal. A  impaciência  do  fanatismo  subminis- 
trara  novos  fundamentos  para  a  cúria  romana 
favorecer  os  conversos  e  resistir  ás  preten- 
sões de  D.  João  iii.  O  bispo  de  Sinigaglia  re- 
mettia  instrumentos  authenticos  de  como  no- 
tificara aos  prelados  a  bulia  de  perdão,  e 
conjunctamente  fazia  o  relatório  do  que  se 
passara  em  Portugal  desde  as  primeiras  pro- 
videncias tomadas  por  Paulo  iii  na  sua  acces- 
são  ao  pontificado.  Além  de  se  haver  opposto 
á  publicação  da  bulia  de  7  de  abril,  o  governo 
português,  longe  de  obedecer  ao  breve  de  26 
de  novembro,  mandando  pôr  em  liberdade  os 
individues  presos  nos  cárceres  da  Inquisição, 
procedera  ultimamente  a  novas  capturas  (1). 
Irritado  com  a  desobediência,  o  papa  enviou 
desde  logo  novas  instrucções  ao  núncio.  De- 
via este  exigir  d'elrei  uma  declaração  categó- 
rica sobre  a  acceitação  ou  não  acceitação  das 
condições  impreteriveis  com  que  nas  minutas 
dadas  aos  embaixadores  eile  declarava  con- 


(1)  Memoriale,  Symm.,  vol.  31,  f.  38  v. 


HlSrORIA  DA  INQUISIÇÃO  119 

ceder  a  Inquisição.  Informado  igualmente 
acerca  da  injustiça  e  nullidade  jurídica  da  lei 
de  14  de  junho  de  1532,  pela  qual  haviam  sido 
inhibidos  os  christãos-novos  de  saírem  do  rei- 
no, ordenava  ao  bispo  de  Sinigaglia  que  insis- 
tisse na  revogação  dessa  lei  ou,  pelo  menos, 
em  que  se  não  renovasse,  findo  o  praso  du- 
rante o  qual  se  mandara  vigorar.  Com  estas 
instrucções  ao  núncio  expediram- se  dous  bre- 
ves, um  dirigido  a  elrei,  outro  ao  cardeal  in- 
fante D.  Affonso,  em  que  o  papa  lhes  significava 
o  seu  vivo  desgosto  pelos  actos  practicados 
em  contravenção  das  determinações  da  saneia 
sé  (1).  Assim  os  christãos-novos  obtinham 
neutralisar,  até  certo  ponto,  o  eífeito  moral 
dessas  poucas  concessões  que  a  tanto  custo 
haviam  obtido  os  agentes  de  Portugal. 

De  feito,  se  o  desfecho  da  negociação  devia 
causar  vivo  dissabor  a  D.  João  iii,  esses  quei- 
xumes do  papa  e  o  breve  em  que  se  orde- 
nava a  inteira  e  immediata  execução  da  bulia 
de  7  de  abril,  ao  passo  que  na  mesma  data 
se  lhe  propunham  modificações  a  ella,  haviam 
forçosamente  de  levar  o  seu  despeito  ao  ul- 
timo  auge.   Dado  o  caracter  imperioso  de 


(1)  Ibid.  f.  39. 


120  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Paulo  III,  quaesquer  manifestações  de  irrita- 
ção da  parte  da  corte  portuguesa  trariam 
maiores  embaraços  ás  ulteriores  pretensões, 
e,  retardada  assim  a  epocha  de  um  accordo 
definitivo,  ganhariam  tempo  os  conversos  para 
se  melhorarem  na  lucta.  Não  se  descuidavam 
elles.  Provavelmente  por  insinuações  de  Duarte 
da  Paz,  tão  conhecedor  dos  hábitos  e  idéas 
da  cúria  romana,  os  chefes  da  raça  hebréa  em 
Portugal  redigiram  nos  fins  de  abril,  de  ac- 
cordo com  o  núncio  Sinigaglia  (1),  um  singu- 
lar documento.  Era  uma  obrigação  em  que  se 
compromettiam  a  dar  ao  papa  trinta  mil  du- 
cados, se  elle  conviesse  em  acceder  ás  pro- 
postas que  annexavam  ao  contracto.  Esta 
somma,  porém,  diminuiria,  dadas  diversas  hy- 
potheses  (2).  Eram  as  principaes  condições, 
que  fosse  absolutamente  supprimido  o  tribu- 
nal da  fé  como  instituição  independente,  fi- 


(1)  Conlessa-o  o  próprio  núncio  na  carta  de  um 
de  março  de  1536  que  se  acha  na  Symmicta,  vol.  2, 
f.  2.32,  e  que  adiante  havemos  de  citar,  «fariano 
quanto  se  erano  per  scritto  meço  oblir/ati.y> 

(2)  Os  capitules  e  a  obrigação  assignada  pelos 
dous  chefes  da  gente  hebréa,  Tliomé  Serrão  e  Ma- 
nuel Mendes,  acham-se  transcriptos  do  códice  do 
Vaticano  N.»  966  na  Symmicta,  vol.  29,  f.  67,  e  vol. 
46,  i'.  449. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  121 

cando  o  conhecimento  das  culpas  de  judaísmo 
pertencendo  aos  bispos ;  que  se  decretasse 
para  taes  culpas  o  processo  ordinário  dos 
delidos  civis  ;  que  se  não  acceitasse  a  que- 
rela passados  vinte  dias  depois  de  perpetrado 
o  crime ;  que  não  houvesse  confiscos ;  que 
podessem  os  réus  dar  os  juizes  por  suspei- 
tos ;  que  lhes  fosse  licito  escolher  por  advo- 
gados ou  procuradores  quem  quizessem ;  que 
se  lhes  communicasse  a  matéria  da  accusa- 
ção ;  que  não  se  instruíssem  previamente  as 
testemunhas  sobre  os  actos  que  podiam  ser 
taxados  de  heréticos  ou  não,  mas  pura  e  sim- 
plesmente se  lhes  exigisse  a  declaração  exacta 
do  que  haviam  presenciado  ou  ouvido ;  que 
não  se  admittisse  o  testemunho  de  escravos 
e  gente  vil,  nem  o  dos  co-réus,  nem  de  indi- 
víduos culpados  ou  já  sentenciados  pelo  mes- 
mo crime ;  que  se  publicassem  os  nomes  dos 
delatores  ;  que  houvesse  appelação  para  Ro- 
ma das  sentenças  definitivas  ou  que  tivessem 
força  de  definitivas ;  que  não  se  intentassem 
processos  contra  pessoas  fallecidas;  que  se 
estabelecesse  como  doutrina  de  direito  com- 
mum  a  liberdade  para  os  conversos  de  saírem 
do  reino  com  todos  os  seus  bens.  Na  hypo- 
these  de  não  querer  o  papa  denegar  inteira- 
mente a  Inquisição,  mas  adiando  a  questão 


122  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

do  seu  estabelecimento  para  ser  ventilada  no 
futuro  concilio  (de  cuja  convocação  se  tractava 
naquella  conjunctura)  ou  no  tribunal  da  Rota, 
lhe  dariam  desde  logo  dez  mil  escudos  e  os 
outros  vinte  mil  depois,  no  caso  de  uma  re- 
solução conciliar  conforme  com  as  condições 
propostas.  Suppondo,  porém,  que  no  concilio 
se  resolvesse  o  contrario,  dariam  outros  dez 
mil  escudos,  mandando  o  pontífice  expedir  a 
bulia  com  as  limitações  que  propunham.  Fi- 
nalmente, se  Paulo  III  quizesse  por  si  conce- 
der a  Inquisição  com  as  condições  relativas  á 
forma  do  processo,  e  ficando  os  culpados 
exemplos  por  doze  annos  dos  confiscos,  e, 
depois  disso,  dependendo  estes  da  approva- 
ção  pontifícia,  uma  dadiva  de  quinze  mil  es- 
cudos seria  a  prova  da  gratidão  dos  conver- 
sos (1). 

Emquanto  se  faziam  estes  vergonhosos  con- 
tractos, as  ultimas  communicações  vindas  de 
Roma  produziam  em  Portugal  os  effeitos  que 
eram  de  esperar.  Se  por  uma  parte  o  núncio, 
em  virtude  do  breve  de  3  de  novembro  de 
1534,  intimara,  como  vimos,  os  prelados  dio- 
cesanos   para    que    suspendessem   qualquer 


fl)Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  123 

procedimento  relativo  á  bulia  de  7  de  abril, 
por  outra  parte,  quando  fizera  a  intimação  já 
havia  dado  toda  a  possivel  publicidade  áquelle 
diploma  para  ser  executado  conforme  os  de- 
sejos do  moribundo  Clemente  vii.  Accrescia 
agora  a  intelligencia  lata  que  se  attribuia  á 
condição  de  estar  publicado  o  perdão,  facto 
que  no  sentir  da  cúria  se  devia  reputar  exis- 
tente, se  daquella  bulia  se  houvesse  dado 
conhecimento  aos  ordinários.  Supposto  o  an- 
tagonismo que  se  estabelecera  entre  elrei  e  o 
bispo  de  Sinigaglia,  estas  circumstancias,  até 
certo  ponto  contradictorias,  prestavam-se  a 
mil  subtilezas  diplomáticas  com  que  o  go- 
verno podia  sustentar  por  algum  tempo  a 
oppressão  contra  a  raça  hebréa,  adiando  de 
dia  para  dia  o  cumprimento  da  bulia  de  per- 
dão. De  feito,  o  governo  português  parece  ter 
obstado  ás  diligencias  do  núncio  para  cum- 
prir as  ultimas  instrucções  que  recebera,  es- 
tribando-se  principalmente  nas  intimações  fei- 
tas aos  prelados  diocesanos  em  consequência 
do  breve  de  3  de  novembro  (1) 


(1)  Que  foi  sobre  estas  intimações,  que  se  estribou 
a  opposição  do  governo  conliece-se  da  carta  de  D. 
Martinlio  de  13  de  setembro  de  1535,  ibid  •  «A  copia 
do  alvará  do  núncio  (é  o  que  se  ar^hR  no  Cjotoo 


124  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

No  meio  das  dilações  que  forçosamente 
nasciam  das  contendas  com  o  bispo  de  Sini- 
gaglia,  D,  João  iii  fazia  examinar  attentaraente 
as  propostas  definitivas  da  corte  de  Roma. 
A's  pessoas  escolhidas  para  esta  grave  com- 
missão  propunham-se  diversas  hypotheses : 
se  conviria  acceitar  a  Inquisição  com  as  mo- 
dificações novamente  impostas,  ou  se  porven- 
tura seria  preferivel  deixar  provisoriamente  a 
cargo  dos  ordinários  o  perseguir  os  delictos 
contra  a  religião,  procedendo-se  entretanto 
nas  negociações  com  o  papa  de  um  modo 
mais  enérgico,  e  até  que  ponto  seria  conve- 
niente levar  a  severidade :  se,  no  caso  de  não 
se  acceitarem  as  propostas  da  cúria,  ou  de 
se  mostrar  frouxa  a  auctoridaHe  episcopal,  o 
poder  civil  tinha  o  dever  ou  o  direito  de  a 
substituir  nessa  parte :  se,  finalmente,  dada  a 
rejeição  de  todos  aquelles  arbitrios,  conviria 
expulsar  do  reino  os  christàos-novos,  ou  uni- 


Chronol.,  P.  1 ,  M.  54,  N."  2)  por  que  notificou  aos 
prelados  que  não  pobricassem  a  bulia  do  perdam 
não  veo  cá:  ha  mister  que  venha;  e  assinado  pelo 
núncio,  senão  não  lhe  darão  cá  fee,  e  elle,  segundo 
he,  negá-lo-ha.»  E'  o  que  lambem  resulta  do  docu- 
mento da  G.  2,  M.  1,  N"  29,  do  Arch.  Nac,  que 
adiante  havemos  de  aproveitar. 


HISTOKIA  IJA   INQUISIÇÃO  125 

camente  aquelles  que  á  força  de  dinheiro  im- 
pediam o  estabelecimento  da  Inquisição,  tam- 
bém necessária  para  manter  os  christãos- 
velhos  (1).  Estas  consultas  indicam  que  os 
fautores  da  intolerância,  embora  dessem  mos- 
tras externas  de  energia,  trepidavam  diante 
dos  obstáculos  que  lhes  oppunha  a  perseve- 
rança da  raça  hebréa  em  defender  as  vidas, 
fazenda  e  liberdade.  Chegou-se  a  termos  de 
convidar  elrei  os  indivíduos  mais  influentes 
entre  os  conversos  para  lhe  proporem  as  con- 
dições com  que  se  poderia  pedir  a  Inquisição. 
de  modo  que  cessassem  as  resistências  em 
Roma  (2).  A'  vista  da  exposição  que  lhe  fize- 
ram, prometteu-lhes  mandar  ordem  aos  em- 
baixadores para  admittirem  na  bulia  da  In- 
quisição três  das  condições  mais  importantes 
que  em  seus  capítulos  apontavam,  e  que  até 
certo  ponto  condiziam  com  as  que  o  papa 
impunha  na  minuta  remetLida  a  elrei.  Eram 
ellas  que  os  confiscos  ficariam  suspensos  por 
dez  annos;  que  durante  o  mesmo  praso  se 
communicariam  aos  réus  os  nomes  dos  accu- 


(1)  «Parece  que  elles  impeaem  a  Inquisição  com 
o  seu  dinheiro»:  Apontamentos  na  G.  2,  M.  1,N."36, 
no  Arch.  Nac. 

(2j  Ibid. 


126  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

sadores  e  das  testemunhas  adversas,  quando 
esses  réus  não  fossem  pessoas  poderosas ; 
que,  emfim,  pelos  dictos  dez  annos  se  conce- 
deriam aos  processados,  confessando-se  elles 
incursos  em  todos  os  crimes  que  lhe  tivessem 
sido  attribuidos,  o  direito  de  pedirem  recon- 
ciliação, ainda  depois  de  sentenciados,  evi- 
tando assim  o  horrível  supplicio  das  cham- 
mas.  Com  taes  concessões,  não  haveria  razão 
para  os  conversos  abandonarem  Portugal  (1). 
Mas,  se  o  efeito  moral  produzido  pelas  com- 
municações  de  Roma  fizera  pensar  no  primei- 
ro momento  em  recorrer  a  promessas  de  in- 
dulgência para  obstar  a  uma  emigração  fatal 
para  o  paiz,  pouco  tardou  a  reacção  do  arre- 
pendimento. Havia  meio  mais  efficaz  e  mais 
conforme  com  a  politica  intolerante  daquella 
epocha  para  reter  os  hebreus.  Era  a  renova- 
ção por  um  novo  período  de  três  annos  da 
lei  de  14  de  junho  de  1532.  Adoptou-se  o  ar- 
bítrio (2).  Aquella  lei  era  uma  das  tyrannias 
que  mais  impressão  tinham  feito  na  cúria  ro- 
mana e  que  mais  suspeitas  tornavam  as  in- 
tenções d'elrei.  O  rigor  com  que  nella  se  pro- 


(1)  Ibid 

(2)  Lei  de  14  de  junho  de  1535,  em  Leão,  L.  Extr 
(1566),  f.  292.— Figueiredo,  Synopse,  T    I,  pag.  355 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  127 

curava  obstar  á  saída  dos  conversos  e,  sobre- 
tudo, á  dos  seus  bens,  parecia  justificar  as 
accusações  de  desenfreiada  cubica  que  tantos 
criam  descortinar  debaixo  do  excesso  de  zelo 
religioso.  Sendo  a  abrogação  delia  um  dos 
pontos  em  que  com  mais  instancia  a  corte  de 
Roma  insistira,  o  revalidá-la  era  lançar  a  luva 
ao  pontifice.  Marco  delia  Ruvere,  cujas  hosti- 
lidades com  D.  João  III,  posto  que  veladas  de- 
baixo das  formulas  cortezans,  eram  cada  vez 
mais  violentas,  e  que  não  cessava  de  pintar 
para  Roma  com  sombrias  cores  o  que  se 
passava  em  Portugal  (1),  devia  aproveitar  ha- 
bilmente este  facto  offensivo  para  exacerbar 
o  animo  de  Paulo  iii.  Assim,  o  pontifice  não 
tardou  em  responder  alei  de  14  de  junho  com 
um  breve,  cujas  disposições  indirectamente  a 
annuUavam  e  contradiziam  os  seus  fundamen- 
tas. Neste  breve  tractavam-se  as  accusações 
de  judaísmo  feitas  contra  os  conversos  como 
inventos  dos  seus  inimigos  (2),  que,  além  de 


(1)  Memoriale:  Symm.,  vol.  31,  f.  39  e  seg 

(2)  «cúm...  tanquam  christiani.  vtxennt,  tamen 
eorum  emuli  aliquos  ex  eis  tanquam  judaizantes. . . 
accusent,  aut  deferanl,  seu  alias  molestent»:  Breve 
Cúm  sicut  20  jul.  1535,  na  Symm.,  vol.  31,  í  455  v. 
e  vol.  32,  f.  114  e  no  Collectono  das  Bulias  do  San- 
clo-Officio,  f.  37. 


128  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

fazerem  processar  os  accusados,  lhes  perse- 
guiam os  pães,  filhos  e  parentes  e,  até,  os 
seus  advogados,  pondo-lhes  a  nota  de  fauto- 
res de  herejes,  o  que  importava  para  estes, 
conforme  o  direito  canónico,  a  participação 
no  crime  com  identidade  de  penas.  A  este 
abuso  occorria  o  papa  auctorisando  todas  as 
pessoas,  sem  distincção  de  classe  ou  jerar- 
chia,  para  defenderem  e  advogarem  as  causas 
dos  réus  dejudaismo  em  quaesquer  tribunaes 
e  instancias,  não  só  dentro  do  reino,  mas  tam- 
bém na  cúria  romana,  indo  lá  seguir  as  ap- 
pelações,  sem  que  a  ninguém  fosse  licito,  com 
pretexto  algum,  persegui-los  por  cumplicida- 
de ou  obstar  lhes  a  saída  de  Portugal,  sob 
pena  d'excommunhão  (1).  Assim,  suppondo 
que  o  breve  tivesse  execução,  ficaria  fácil  a 
qualquer  converso  exercer  o  officio  de  procu- 
rador ou  de  advogado  de  algum  preso,  saindo 
do  reino  com  esse  fundamento.  Até  que  pon- 
to o  despeito  ou  a  obrigação  assignada  pelos 
chefes  dos  hebreus  portugueses,  Thomé  Ser- 
rão e  Manuel  Mendes,  tinham  influido  na  ex- 
pedição deste  diploma  não  podemos  dizê-lo. 
O  que  é  certo  é  que  a  liberdade  de  nomeia- 
rem  os  réus  quem  quizessem  por  seus  advo- 

(1)  Ibib. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  129 

gados  ou  procuradores,  e  o  direito  de  saírem 
do  reino  quando  lhes  aprouvesse  figuravam, 
como  vimos,  entre  as  principaes  condições  do 
proposto  contracto. 

Em  virtude  das  intrucções  que  recebera,  o 
bispo  de  Sinigaglia,  ao  passo  que  forcejava 
para  fazer  cumprir  as  disposições  da  bulia  de 
7  de  abril  e  publicava  as  providencias  ultima- 
mente tomadas  pelo  pontífice,  exigira  uma  so- 
lução categórica  sobre  a  acceitação  ou  não 
acceitação  das  bases  offerecidas  para  a  nova 
bulia  da  Inquisição.  A's  suas  soUicitações,  tan- 
to antes  como  depois  da  prorogação  da  lei 
de  14  de  junho,  não  se  deu,  porém,  resposta 
alguma  (1).  Tinha-se  adoptado,  emfim,  o  arbí- 
trio de  tentar  ainda  uma  vez  os  esforços  di- 
plomáticos, apesar  do  desengano  dado,  não 
só  por  D.  Martinho,  em  quem  pouco  funda- 
mento se  podia  fazer,  mas  também  por  D. 
Henrique  e  pelo  cardeal  Pucci,  de  que  todas 
as  ulteriores  tentativas  seriam  inúteis.  Escre- 
veu-se  aos  embaixadores,  ordenando-se-lhes 
que  de  novo  exigissem  de  Paulo  iii  a  remo- 
ção de  Marco  delia  Ruvere,  cuja  residência 
em  Portugal  era  inútil  para  a  sé  apostólica  e 
damnosa  ao  paiz  pelas  perturbações  que  sus- 


(1)  Memoriale,  1.  cit. 

TOMO  II 


í30  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

citava,  e  que  se  o  papa  não  despachasse  prom- 
piamente  aquella  justa  supplica,  lhe  apresen- 
tassem os  capítulos  de  queixa  contra  o  seu 
representante  que  se  lhes  remettiam  e  em  que 
se  expunham  os  desconcertos  por  elle  practi- 
cados.  Recommendava- se-lhes  que  por  todos 
os  modos  obtivessem  promptamente  uma  re- 
solução favorável,  enviando  por  expresso  as 
ordens  para  a  saída  do  núncio  (1).  Rejeitando 
as  minutas  das  novas  bulias  de  perdão  e  da 
Inquisição,  o  governo  português  subministra- 
va  aos  seus  agentes  pretextos  especiosos  pa- 
ra se  protrahirem  indefinidamente  os  debates. 
Como  nas  minutas  se  dizia  que  os  hebeus 
portugueses  tinham  sollicitado  perdão,  come- 
çava-se  por  negar  que  elles  o  quizessem  ou 
sollicitassem,  e  que  para  o  obter  tivessem  da- 
do procuração  a  Duarte  da  Paz,  convindo-se 
em  que,  se  alguns  disso  o  tinham  encarrega- 
do, a  esses  se  concedesse  absolvição,  confes- 
sando individualmente  cada  um  delles  os  seus 
erros.  Nesta  parte,  as  instrucções  referiam-se 
evidentemente  aos  chefes  da  gente  hebréa, 
que  corriam  com  as  negociações  em  Roma  e 


(1)  Minuta  da  carta  a  D.  Martinho,  na  G.  2,  M.  2, 
N.o  21.— Os  capítulos  contra  Sinigaglia  acham-se  na 
G.  13,  M.  8,  N.°  12,  no  Arch  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  131 

que  o  próprio  D.  João  iii  reconhecera  como 
órgãos  e  representantes  dos  outros  conversos, 
mandando-os  ouvir  como  taes  na  questão  que 
se  ventilava.  Era  o  cúmulo  da  impudência; 
porém  não  se  parava  ahi.  Não  podendo  já  re- 
cusar a  authenticidade  dos  privilégios  de  D. 
Manuel,  os  fautores  da  intolerância  preten- 
diam que  essas  amplas  garantias,  a  que  cha- 
mavam alguns  favores,  embora  fossem  plau- 
síveis nos  primeiros  tempos  de  conversão,  ti- 
nham caducado  com  o  decurso  dos  annos, 
visto  que  depois  os  conversos  peccavam,  não 
por  ignorância,  mas  por  malicia.  Ponderava- 
se  largamente  que  o  perdão  não  devia  ser  ha- 
vido por  publicado,  nem  commettida  a  execu- 
ção delle  ao  núncio.  Combatia-se  a  substitui- 
ção feita  na  minuta  enviada  pelos  embaixado- 
res, por  ser  ainda  mais  favorável  aos  conver- 
sos do  que  o  era  a  bulia  de  7  de  abril,  con- 
cedendo-se  agora  aos  réus,  sem  exceptuar  os 
condemnados  como  relapsos,  maior  somma 
de  garantias  e  abrindo-se  caminho  á  interven- 
ção mais  ampla  dos  prelados  nas  causas  do 
judaismo.  Observava-se  que,  pelo  que  toca  aos 
suspeitos,  a  minuta  ia  muitíssimo  além  das 
concessões  de  Clemente  vii,  e  que,  quanto 
aos  reconciliados,  substituía  as  penitencias, 
que  se  lhes  deviam  impor,  por  uma  commu- 


132  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tacão  em  obras  pias  secretas.  Finalmente,  en- 
tendia elrei  que,  a  conceder-se  o  perdão  na- 
quella  forma,  seria  melhor  revogar-se  este 
como  proposera  Clemente  vii,  embora  tam- 
bém se  acabasse  com  a  Inquisição,  devolven- 
do-se  o  conhecimento  das  causas  em  matéria 
de  fé  aos  bispos,  conforme  o  direito  commum. 
Preferia-se  a  suppressão  absoluta  do  novo 
tribunal,  não  só  porque  o  perdão  concedido 
do  modo  proposto  quasi  o  inutilisava,  mas 
igualmente  porque,  estabelecendo-se  durante 
sete  annos  para  os  delictos  religiosos  o  pro- 
cesso ordinário  dos  crimes  civis,  com  um 
grande  numero  de  appelações  e  recursos,  e 
ordenando-se  que  se  publicassem  os  nomes 
dos  delatores  e  testemunhas,  se  assegurava 
por  esse  meio  a  impunidade  dos  delinquentes. 
Taes  eram  os  pontos  essenciaes  que  D.  João  iii 
submettia  á  consideração  do  papa  (1).  Remet- 
tendo-se  estas  instrucções  aos  embaixadores, 
ordenava-se  em  especial  a  D.  Martinho  que, 
insistindo  por  todos  os  modos  na  matéria  del- 
ias, certificasse,  todavia,  o  pontifice  da  obe- 
diência d'elrei  no  caso  de  elle  não  ceder,  mas 
que  a  responsabilidade  de  quaesquer  conse- 


(1)  Instrucção  aos  embaixadores  em  Roma,  na  G. 

2,  M.  1 ,  N.°  29 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  133 

quencias  que  dahi  provissem  ficaria  pesando 
sobre  a  cúria  romana.  Recommendava-se-Iiies 
também  que,  no  caso  de  se  obter  alguma  cou- 
sa favorável,  se  expedissem  os  necessários 
despachos  para  Portugal;  mas  que  procuras- 
sem protrahir  as  negociações  por  três  mezes 
mais,  com  dissimulação  tal,  que  não  se  des- 
confiasse disso.  Esta  ordem,  sobre  que  se 
mandava  guardar  rigoroso  segredo,  nem  se- 
quer devia  ser  conhecida  de  Santiquatro,  a 
quem  também  se  escrevia  sobre  o  assumpto. 
A's  instantes  sollicitações  de  D.  Henrique  para 
sair  de  Roma  respondia  elrei  com  a  promes- 
sa de  que  no  fim  de  três  mezes,  tempo  suffi- 
ciente  para  se  obter  do  papa  uma  resolução 
definitiva,  se  lhe  daria  por  acabada  a  missão 
e  ficaria  livre  para  voltar  á  pátria  (1) 

Se  o  rei  de  Portugal,  desejando,  como  vi- 
mos, resistir  por  todos  os  meios  a  que  se 
realisassem  as  esperanças  de  perdão  quanto 
ao  passado  e  de  garantia  quanto  ao  futuro, 
que  os  seus  súbditos  hebreus  haviam  conce- 
bido, fingia  ter  o  firme  propósito  de  obedecer 
a  final  á  vontade  do  pontifice  expressamente 


(1)  Minuta  da  carta  a  D.  Martinho,  na  G.  2,  M.  2. 
N.°  22,  e  minuta  da  carta  a  D.  Henrique,  ibid.. 
N.o  38. 


134  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

manifestada,  a  cúria  romana,  resolvida  tam- 
bém a  satisfazer  até  onde  fosse  possivel  os 
postulados  junctos  ao  contracto  simoniaco 
que  os  conversos  lhe  haviam  offerecido  por 
intervenção  dos  seus  chefes,  nem  por  isso, 
segundo  parece,  deixava  de  proceder  de  modo 
que  parecesse  querer  vir  a  accordo  com  a 
corte  de  Portugal.  Restam  vestigios  de  uma 
carta  de  Paulo  iii,  provavelmente  dirigida 
nesta  epocha  ao  bispo  de  Sinigaglia,  em  que 
o  pontífice  reduzia  a  termos  simples  as  der- 
radeiras condições  que  propunha  para  uma 
transacção  definitiva.  Era  a  primeira  cessarem 
os  confiscos  e  proceder-se  nos  crimes  de 
heresia  como  nos  de  homicídio  e  semelhan- 
tes. Não  se  acceitando  esta,  propunha  conce- 
der a  Inquisição  na  forma  que  eirei  queria, 
mas  dando-se  aos  réus  o  direito  de  appelarem 
para  o  núncio.  Se  estes  dous  arbítrios,  que  o 
papa  communicara  aos  embaixadores  e  que 
haviam  sido  rejeitados  por  elles,  o  fossem 
também  por  elrei,  offerecia-se  uma  terceira 
solução,  a  qual  os  embaixadores  declara- 
vam seria  acceila  pela  sua  corte.  Vinha  a 
ser  conceder-se  um  perdão  geral  e  absoluto  a 
todos  os  conversos,  tanto  soltos  como  presos, 
dando-se-lhes  o  espaço  de  um  anno  para  saí- 
rem do  reino,  e  estabelecendo-se  depois  a  In- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  135 

quisição  com  todas  as  clausulas  que  se  qui- 
zessem.  O  papa  declarava  que  deixaria  a 
elrei  a  opção  entre  qualquer  dos  três  arbí- 
trios, mas  que  cumpria  acceitar  forçosamente 
um  delles  (1). 

Estas  propostas  iam  até  certo  ponto  de 
accordo  com  os  conselhos  de  um  portuguez 
que  vivia  em  Roma,  addicto  á  familia  Far- 
nese,  e  que,  segundo  parece,  conservava  rela- 
ções e  influencia  com  os  ministros  de  D. 
João  III  e  igualmente  com  os  chefes  da  raça 
hebréa.  Acaso  era  aquele  mesmo  Diogo  Ro- 
drigues Pinto  cuja  presença  nos  debates 
acerca  da  Inquisição  repugnara  a  D.  Henri- 
que de  Meneses  nas  primeiras  conferencias 
que  tivera  com  Paulo  iii  (2).  Fosse  quem  fos- 
se, é  certo  que  esse  individuo  aconselhara  o 
papa  a  proceder  assim,  augurando-lhe  feliz 


(1)  Extractos,  para  elrei  ver,  de  cartas  do  papa, 
escriptas  em  agosto,  sem  dizer  de  que  anno,  na  G. 
2,  M.  1,  N.o  25.  Pela  matéria  destes  extractos  pare- 
ce-nos  que  não  se  lhes  pôde  altribuir  senão  a  data 
de  1535. 

(2)  V.  ante  p.  79.  O  documento  que  vamos  citar  é 
evidentemente  redigido  por  um  converso  que  tinha 
em  Roma  filhos  e  mulher,  e  que,  portanto,  não  po- 
dia ser  Duarte  da  Paz,  cuja  famiha  ficara  em  Por- 
tugal, segundo  se  coitie  de  documentos  posteriores. 


136  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

resultado.  Ouvido  sobre  a  matéria,  insinuara 
a  expedição  dos  últimos  breves  enviados  a 
Portugal  para  a  execução  da  bulia  de  7  de 
abril  e  para  que  a  livre  acção  dos  advogados 
e  procuradores  dos  réus  de  judaísmo  fosse 
respeitada  e  protegida.  Na  sua  opinião,  a  ne- 
gativa absoluta  de  conceder  o  tribunal  da  fé 
não  era  possível  sem  quebra  da  lealdade  da 
sé  apostólica,  mas  cumpria  attender  ás  cir- 
cumstancias  que  tornavam  necessário  impe- 
dir que  a  Inquisição  se  convertesse  em  ins- 
trumento da  mais  brutal  tyrannia.  Estas  cir- 
cumstancias  eram,  não  só  a  violência  da  con- 
versão primitiva,  mas  também  as  consequên- 
cias que,  reconhecido  esse  facto,d'ahi  derivavam, 
taes  como  a  de  se  declararem  judeus  forçados 
ao  baptismo  todos  os  conversos  perseguidos, 
visto  que,  segundo  as  doutrinas  canónicas, 
nada  teria  com  elles  neste  caso  a  Inquisição, 
e  o  direito  de  saírem  do  reino  para  irem 
viver  noutra  parte  como  sectários  da  lei  de 
Moysés.  Isto  equivalia  a  obrigá-los  a  fugirem, 
abandonando  para  sempre  a  religião  christan, 
o  que  muitos  já  teriam  feito,  se  não  fossem 
as  rogativas  e  promessas  do  bispo  de  Sini- 
gaglia.  Entendia  que  convinha  também  at- 
tender-se  á  tendência  dos  portugueses  para 
jurarem  falso,   facto   que  se  provava  com  a 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  137 

própria  legislação  do  paiz,  a  ter  Clemente  vii 
revogado  a  Inquisição  depois  de  a  haver  con- 
cedido, ás  recommendações  deixadas  por  elle 
ao  seu  successor  para  que  amparasse  esta 
misera  gente,  ás  dadivas  feitas  pelos  conver- 
sos á  sacta  sé  (1),  e  emfim  ao  estado  deplo- 
rável de  oppressão  em  que  viviam  os  hebreus 
portugueses ;  tudo  razões  para  se  excogita- 
rem  com  prudência  e  actividade  os  meios  de 
conciliar  as  promessas  feitas  a  elrei  com  a 
justiça  devida  ás  victimas.  Entre  esses  meios, 
apontavam-se  como  principaes  o  não  acceita- 
rem  a  proposta  para  inquisidor  geral  do  bispo 
de  Lamego,  em  substituição  de  Fr.  Diogo  da 
Silva,  homem  de  virtude  e  bondoso,  rico  e 
sem  filhos,  caso  em  que  o  bispo  de  nenhum 
modo  estava  (2).  Seguindo-se  na  organisação 
do  tribunal  as  resoluções  tomadas  por  Simo- 
netta  e  Ghinucci  depois  dos  debates  com  os 
embaixadores,  adoptando-se  para  os  delictos 


(1)  «et  attento  il  servizio  che  ha  fatto  alia  sedia 
apostólica-:  Anonymi  Porlugallensis,  Instruzione, 
etc.  Códice  Vatic.  G792,  na  Symmicta,  vol.  2,  f.  278 

(2)  «nostro  signore  non  può  donare  excusatione 
a  Dio  nessuna  cavare  d'inquisitione  un  buono  e 
perfeito  huomo,  monacho  riccho  senza  flgliolo,  per 
mettere  un  pegio  in  ogni  conto» :  Anonymi  Portu- 
gall.  Instruzione,  etc,  1.  cit. 


138  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

contra  a  fé  o  systema  de  processo  usado  nos 
tribunaes  seculares  para  os  crimes  de  morte, 
não  com  limitação  de  tempo,  mas  perpetua- 
mente, e  affiançando-se  aos  christãos- novos  a 
liberdade  de  saírem  do  reino,  comprommetia- 
se  elle  a  fazer  com  que  estes  ficassem  satis- 
feitos, dando  integralmente  a  somma  offere- 
cida  no  contracto  proposto  pelos  seus  chefes 
com  mais  graves  condições  do  que  estas  (1), 
obrigando-se  elle  ao  mesmo  tempo  a  alcan- 
çar que  elrei  acceitasse  ou,  pelo  menos,  não 
opposesse  resistência  á  deliberação  do  ponti- 
fice.  Assegurava,  além  disso,  que,  obtidas 
taes  concessões,  os  hebreus  portugueses  con- 
viriam em  não  passar  á  Turquia,  para  ahi  se- 
guirem a  religião  judaica.  Animando-se  o 
núncio  com  mostras  de  benevolência,  e  mos- 
trando-se  actividade  e  bons  desejos,  o  auctor 
destes  diversos  arbítrios  não  reputava  impos- 
sivel  obter  dos  conversos  uma  dadiva  mais 
avultada  do  que  a  anteriormente  promet- 
tida  (2). 

A'  vista  desta  perspectiva,  não  deve  admi- 
rar que  os  christãos-novos  alcançassem  de- 


(1)  «et   facia  tutto  quello  sercisio,  che  per  ogni 
cosa  che  demandava  volea  fare»:  Ibid. 

(2)  «et  forse  fare  piu  grande  servizioT>:  Ibid. 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  139 

cisivas  vantagens  ;  mas  davam-se,  além  disso, 
outras  circumstancias  que  conspiravam  para 
o  seu  triumpho.  a  não  accei tacão  das  propos- 
tas de  Roma  pela  corte  de  Portugal,  posto 
que  indirecta  era  clara  e  indubitável.  Ao 
passo  que  se  recusava  uma  resposta  official, 
guardando-se  obstinado  silencio  para  com  Si- 
nigaglia,  vemos  que  se  enviavam  aos  embai- 
xadores novas  instrucções  para  renovarem 
uma  contenda  diplomática  já  terminada,  e 
debatida  até  á  saciedade.  Por  outra  parte,  a 
irritação  do  fanatismo  e  da  hypocrisia  mani- 
festava-se  em  rugidos  de  cólera,  que  soavam 
até  do  alto  do  púlpito,  com  approvação  do 
infante  cardeal  D.  Affonso.  Nestas  prédicas 
nem  sequer  era  respeitada  a  sé  apostólica ;  e 
as  communicações  do  núncio,  nas  quaes  por- 
ventura se  exaggeravam  esses  protestos  au- 
dazes da  intolerância,  vinham  exacerbar  o 
despeito  do  papa  contra  o  apparente  despre- 
zo da  corte  portuguesa  para  com  elle,  e  cu- 
brir  com  o  manto  da  dignidade  offendida  as 
corrupções   e    simonias   da  cúria   (1).  Para 


(1"^  «tão  indignado  o  papa  está  delle  e  do  seu  rei- 
no, e  isto  entendo  he  pola  pregação  de  mestre  Af- 
fonso o  n\inc\o,  que  assoprou  sempre  estes  foles 
canto  pôde...  o  cardeal  vosso  irrafin,  qne  também 


140  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cúmulo  de  embaraços,  quando  as  novas  ins- 
trucções  dos  embaixadores  chegaram  a  Roma 
nos  princípios  de  setembro,  o  papa  havia  par- 
tido para  Perugia,  aonde  o  chamavam  negó- 
cios politicos,  e  d'onde  só  devia  voltar  em 
outubro.  Assim,  a  demora  de  três  mezes  em 
vir  a  uma  conclusão  final,  demora  que  se  re- 
commendava  de  Lisboa,  seria  ainda  mais 
longa,  tendo  de  passar  um  mez  antes  de  se 
entabolarem  novos  debates.  Mas  que  intuito 
havia  em  tal  recommendação  ?  Elrei  não  con- 
fiara o  seu  segredo  de  D.  IMartinho.  Prova- 
velmente era  por  que  se  tractava,  conforme 
os  factos  posteriores  o  estão  indicando,  de 
salvar  uma  situação  quasi  desesperada,  fa- 
zendo intervir  nella  de  modo  decisivo  a  ir- 
resistível influencia  de  Carlos  v.  Achava-se 
este  em  Sicilia,  aonde  chegara  depois  da  con- 
quista de  Tunes,  na  qual  se  distinguira  o 
infante  D.  Luiz,  irmão  de  D.  João  iii.  De  Si- 
cilia devia  vir  a  Nápoles,  e  dahi  a  Roma, 
para  resolver  com  Paulo  iii  os  graves  as- 
sumptos religiosos  e  politicos  que  entãc  agi- 


o  mettem  na  culpa  da  pregação  de  mestre  Affbn- 
so»:  C.  de  D.  Henrique  de  Meneses  a  eirei  ae  i 
de  novembro  de  1535,  na  G.  20,  M.  7,  o.»  23,  ao 
Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  1-41 

tavam  a  Europa  (1).  Deram-se  instrucções  a 
Álvaro  Mendes  de  Vasconcellos,  o  qual  acom- 
panhava o  imperador  como  representante  da 
corte  portuguesa  (2).  Os  serviços  que  a  ar- 
mada de  Portugal  fizera  na  empreza  de  Afri- 
ca e  a  estreita  amizade  que  Carlos  v  con- 
trahira  com  o  infante  D.  Luiz  eram,  além  dos 
instantes  rogos  de  D.  João  jii,  motivos  pode- 
rosos para  impellirem  o  imperador  a  entrar 
seriamente  nesta  questão.  Os  factos  tinham 
provado  que,  a  não  ser  a  intervenção  do  mo- 
narcha  hespanhol,  nenhum  expediente  havia 
seguro  para  vencer  na  contenda,  e  quanta 
razão  tinha  D.  Henrique  de  Meneses  quando, 
no  principio  da  sua  embaixada,  inculcava  a 
efficacia  daquelle  meio,  que  o  seu  astucioso 
collega  fingia  considerar  como  inconveniente. 
Mas  emquanto  se  preparava  o  novo  terreno 
para  o  combate,  o  negocio  seguia  cada  vez 
mais  rapidamente  o  pendor  que  havia  tomado. 


(1)  Pallavicino,  Istor.  dei  Concil.  di  Trento,  L.  3, 
c.  19.— Carta  de  D.  Martinho  de  13  de  setembro  de 
1535,  na  G.  2,  M.  2,  N.°  50, 

(â)  £'  o  que  se  deduz  da  carta  de  Álvaro  Mendes 
de  27  de  dezembro  de  1536  (aliás  1535,  porque  o 
aniio  86  começava  então  a  contar  no  dia  de  natal), 
na  G.  2,  M.  5,  N.°  53.  C.  de  D.  Martinho  de  13  de  se- 
tembro de  1535,  1.  cit. 


i42  HISTOHÍA  DA  INQUISIÇÃO 

Foi  nos  princípios  de  setembro  que  o  arce- 
bispo do  Funchal  e  D.  Henrique  de  Meneses 
receberam  as  ultimas  instrucções  de  que  ante- 
riormente falámos.  Era  tarde.  Simonetta,  ele- 
vado ao  cardinalato,  governava  Roma  na  au- 
sência do  papa,  e  este  mostrava-se  tão  per- 
suadido da  justiça  das  suas  ultimas  resoluções 
que  afíirmava  merecer  por  isso  a  apotheose  (1). 
Do  cardeal  Simonetta,  homem  de  princípios 
severos,  e  que  havia  tractado  longamente  o 
negocio  dos  christãos-novos,  nada  havia,  por- 
tanto, que  esperar,  e  ambos  os  embaixadores 
eram  concordes  em  reputar  Paulo  iii  como 
inteiramente  adverso  ás  pretensões  d'elrei.  D. 
Henrique,  especialmente,  pintava  com  som- 
brias cores  a  irritação  do  pontífice  e  a  male- 
volencia  de  Simonetta  e  de  Ghinucci,  também 
feito  agora  cardeal,  contra  tudo  o  que  dizia 
respeito  ao  governo  português  (2).  Entretanto, 
D.  Martinho  mostrava  nesta  conjunctura  a  as- 


({}  Carta  de  D,  Martinlio,  cit.:  «e  crê  (o  pa^s) 
peio  que  tem  feito  nisto  que  merece  canonisarȒar- 
no.» 

(2)  Como  D.  Martinho,  D.  Henrique  escrevew  ass 
13  de  setembro  de  1535  a  eirei.  Esta  carta  não  a  po- 
demos encontrar;  mas  refere-se a ella,  resumindo-^, 
o  mesmo  D.  Henrique  na  de  1  de  novembro  deefe? 
anno,  que  se  acha  na  G.  20,  M.  7,  N.°  23. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  143 

tucia  de  que  era  dotado.  Ou  fosse  que  seu  ir- 
mão o  houvesse  avisado  de  que  na  corte  pre- 
valecia a  idéa  de  recorrer  a  Carlos  v,  ou  fosse 
que  as  suas  conveniências  particulares  o  in- 
duzissem a  obstar  ao  triumpho  completo  da 
causa  dos  hebreu,  é  certo  que,  esquecendo  as 
repugnancias  passadas,  apontava  como  único 
remédio  heróico  para  a  gravidade  do  mal  a 
intervenção  do  imperador,  indicando  o  con- 
juncto  de  circumstancias  politicas  que  torna- 
vam provável  os  bons  effeitos  de  semelhante 
intervenção.  Insistia,  comtudo,  em  que  seria 
judicioso  acceitar  a  Inquisição  com  quaesquer 
modiricações,  esperando-se  com  paciência  as 
concessões  futuras.  Por  fim,  aconselhava  que 
se  removesse  o  mais  duro  contrario  com  que 
havia  a  luctar  em  Roma,  isto  é,  Duarte  da 
Paz.  Pedia  o  prelado  que  ou  elrei  procurasse 
attrani-ío  a  si  por  qualquer  modo,  perdoando- 
Ihe  os  passados  desserviços,  ou  que  o  man- 
dasse assassinar;  porque  tinha  sabido  obter 
o  favor,  não  só  da  cúria,  mas  também  de  to 
dae  as  pessoas  influentes  de  Roma.  Ponde- 
rava que,  na  verdade,  durante  essas  discus- 
sões sobre  a  Inquisição,  em  que  sempre  o 
papa  o  mandava  ouvir,  poderiam  os  agentes 
portugueses  travar- se  de  razões  com  elle  e 
matá-lo;  mas   que  nunca  se  practicaria  tal 


144  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

acto  senão  por  ordem  d'elrei,  em  cujo  damno 
redundaria  o  crime,  além  da  deshonra,  dos 
remorsos  e  dos  riscos  que  d'ahi  tiaviam  de 
resultar.  Na  remoção  de  Duarte  da  Paz,  por 
qualquer  modo  que  fosse,  consistia,  na  opi- 
nião do  metropolita,  o  principal  meio  de  es- 
palhar o  terror  e  o  desalento  nas  fileiras  ini- 
migas (1).  Aconselhando  o  assassinio  de  um 
homem  com  quem  tinha  estreitas,  posto  que 
occultas  relações,  o  arcebispo  cria,  provavel- 
mente, aífastar  de  si  as  suspeitas  de  uma  cri- 
minosa convivência  com  os  christãos-novos,  e 
mostrando-se  convencido  da  necessidade  de 
recorrer  á  poderosa  protecção  do  imperador 
d'Allemanha,  não  só  lisongeiava  as  intenções 
da  corte,  mas  também  inculcava  pelo  estabí"- 
lecimento  definitivo  da  Inquisição  um  zelo 
que  não  tinha.  Por  outro  lado,  havendo  o  pai  >& 
voltado  a  Roma  nos  principios  de  outubro,  o* 


(1)  «ou  V.  A.  o  mande  botar  (Duarte  da  Paa^' 
neste  Tibre,  ou  o  mande  hir  com  algua  cor,  e  pe>- 
doelhe.. .»— «Que  se  ha  de  fazer?  Replicar-lhe? 
Desputaremos:  e  se  dixer  palavra  descortês,  msr 
talo.  Isto  não  fará  ninguém,  se  ho  V.  A.  não  mandar; 
porque  é  vosso  desserviço,  desonra,  conciencia,  e 
risco.  Atalhar  a  tudo  fará  muito  fruto,  e  os  mesmo^ 
cristãos-novos  desesperarão».  C.  de  D.  Martratt 
cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  145 

arcebispo  persuadiu  o  seu  collega  de  que  não 
convinha  usar  por  emquanto  das  ultimas  ins- 
trucções  enviadas  de  Portugal,  nas  quaes,  se- 
gundo depois  affirmava  o  cardeal  Santiqua- 
tro,  havia  concessões  e  propostas  que  torna- 
riam possivel  o  vir  o  pontifice  a  um  accordo 
favorável  (1).  Porventura,  contava  com  que  a 
demora  de  três  mezes,  que  secretamente  se 
lhe  recommendara  posesse  na  conclusão  do 
negocio,  suppondo  que  o  pontifice  accedesse 
ás  novas  supplicas,  lhe  serviria  de  desculpa 
da  demora,  ao  passo  que  na  realidade  desser- 
via  a  causa  em  que  estava  offlcialmente  em- 
penhado. Quanto  mais  Santiquatro  assegu- 
rasse a  prompta  acquiescencia  de  Paulo  iii 
ás  novas  instrucções,  melhor  se  defenderia, 
depois,  de  ter  retardado  a  epocha  de  commu- 
nicar  a  matéria  delias.  Assim,  fingindo  o  ex- 
cesso de  zelo  na  sua  correspondência  com 
elrei,  mostraria,  por  outro  lado,  obediência 
cega  ás  ordens  secretas  que  recebera. 

Este  procedimento  era  tanto  mais  torpe 
quanto  é  certo  que  estava  imminente  uma  im- 
portante peripécia  daquelle  variado  drama.  Ir- 


(1)  Carta  de  Santiquatro  a  D.  João  iii  de  16  de  de- 
zembro de  1535,  na  G.  20.  M.  7,  N.*  1,  no  Arch. 
Nac. 

TOMO  ti  10 


146  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ritado  com  as  tergiversações  e  com  as  resis- 
tências da  corte  portuguesa,  moderadas  nas 
formulas,  mas  ousadas  e  tenazes  na  substan- 
cia, o  pontifice  tomara,  emfim,  uma  resolução 
decisiva  a  favor  dos  christãos-novos,  resolução 
que,  revalidando  em  geral  as  providencias  de 
7  de  abril  de  1533,  equivalia,  ao  mesmo  tem- 
po, á  condem  nação,  mais  ou  menos  explicita, 
dos  actos  do  rei  de  Portugal  em  relação  aos 
seus  súbditos  de  raça  hebréa.  Com  a  data  de 
12  de  outubro  redigiu-se,  de  feito,  uma  bulia  íl), 
onde,  recordando  as  principaes  disposições  da 
de  7  de  abril,  e  compendiando  a  historia  das 
resistências  á  sua  execução  e  da  condescen- 
dência que  mostrara  em  attender  a  todas  as 
objecções  da  corte  portuguesa,  o  pontifice 
punha  em  novo  vigor  as  provisões  de  Cle- 
mente VII,  com  as  modificações  que  o  de- 
curso do  tempo  aconselhava  e  que,  sobretudo, 
a  resolução  que  tomara  de  revocar  o  bispo  de 
Sinigaglia,  nomeiado  executor  da  bulia  de  7 
de  abril,  tornava  indispensáveis.  Assim,  em  lo- 
gar  das  formulas  estabelecidas  anteriormente 


(1)  Bulia  Illius  vices,  na  Symmicta,  vol.  31,  f.  463 
v.,  no  Colleclorio  das  Bulias  do  Sancto-Offlcio,  f  42, 
e  na  Collecção  de  Cherubini,  T.  1,  Bulia  8,  citada  na 
Verdade  Elucid.  Num.  55G  et  alib. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  147 

para  os  christãos-novos  obterem  o  beneficio 
do  perdão,  estatuia-se  agora  um  methodo  di- 
verso. A  simples  confissão  auricular  e  a  ab- 
solvição de  quaesquer  sacerdotes  escolhidos 
pelos  culpados  pô-los-hiam  ao  abrigo  de  ulte- 
riores perseguições,  sem  que  lhes  fosse  ne- 
cessário sujeitarem-se  a  penitencia  alguma 
publica,  entendendo-se  estar  para  esse  eífeito 
em  pleno  vigor  a  bulia  de  7  de  abril,  e  appli- 
cando-se  as  disposições  da  actual  a  todos  os 
réus  ou  suspeitos  a  que  ess'outra  se  referia. 
Deviam  cessar  todos  os  processos  por  crime 
de  heresia,  tanto  no  foro  secular  como  no  ec- 
clesiastico,  soltando-se  os  presos,  revocando- 
se  os  desterrados,  íacultando-se  a  entrada  na 
pátria  aos  foragidos  e  suspendendo-se  os  con- 
fiscos. O  papa  fulminava  os  raios  da  igreja 
contra  os  que  se  opposessem  á  execução  dos 
seus  mandados,  e  derogava  todas  as  disposi- 
ções de  direito  canónico,  constituições  civis  e 
privilégios  apostólicos  contrários  á  nova  bulia. 
Quanto  aos  réus  processados  e  julgados  pela 
Inquisição,  obrigava-os  á  abjuração  perante 
qualquer  ecclesiastico,  escolhido  por  elles,  mas 
eximia-os  da  penitencia  publica,  e  ordenava 
que  fossem  restituidos  á  liberdade  (1). 

(1)  Ibid. 


148  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Apesar  da  firmeza  e  decisão  que  translu- 
ziam nas  provisões  da  bulia  de  12  de  outu- 
bro, o  papa,  segundo  parece,  hesitava  ainda 
em  promulgá-la.  A  acquiescencia  de  D.  Mar- 
tinho veio  aplanar  as  ultimas  difficuldades.  A 
occultas  de  D.  Henrique  e  do  cardeal  Santi- 
quatro,  o  arcebispo  instou  com  o  pontífice 
para  que  mandasse  publicar  o  perdão  em 
Portugal,  porque,  conforme  asseverava,  seria 
isso  o  único  meio  de  terminar  as  tediosas 
contendas  entre  a  corte  e  a  cúria  romana  (1). 
Assim,  as  duvidas  cessaram,  e  a  bulia,  antes 
de  se  expedir  para  Portugal,  foi  solemnemente 
affixada,  a  2  de  novembro  de  1535,  nos  loga- 
res  públicos  de  Roma  por  ordem  de  Paulo  iii, 
habilitado  assim  para  justificar  o  seu  modo 
de  proceder  com  o  voto  do  próprio  arcebispo 
do  Funchal  (2). 

Como,  porém,  se  arriscava  o  astuto  prelado 
a  subministrar  ao  papa  um  meio  de  justifica- 
ção que  serviria  ao  mesmo  tempo  de  prova 
fortíssima,  posto  que  indirecta,  das  occultas 


(1)  Carta  de  Santiquatro  a  D.  João  m  de  16  de  de- 
zembro, 1.  cit. 

(2)  Ibid.  A  acta  da  publicação  da  bulia  a  2  de  ao- 
vembro  em  Roma,  acha-se  juncta  ao  transumpto  da 
mesma  bulia,  no  voi.  31  da  Symmicta. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  149 

relações  delle  com  os  christãos-novos  ?  Era 
que  D.  Martinho  acreditava  ter,  emfim,  locado 
a  meta  dos  seus  ambiciosos  desígnios.  Antes 
da  partida  de  Paulo  iii  para  Perugia,  durante 
a  sua  residência  alli,  e  depois  de  voltar  a  Ro- 
ma, o  arcebispo  trabalhara  activamente  para 
obter  emfim  a  realisação  das  promessas  de 
Clemente  vii,  a  concessão  da  purpura  cardi- 
nalicia,  e  suppunha  ter  conduzido  as  cousas 
a  termos  taes,  que  o  resultado  não  podia  ser 
duvidoso.  D.  Henrique  de  Meneses,  que  lhe 
observava  os  passos,  recebera  frequentes  avi- 
sos, não  só  acerca  dos  seus  meneios  com 
Duarte  da  Paz,  mas  também  sobre  os  esfor- 
ços que  fazia  para  alcançar  o  cardinalato. 
Além  de  advertir  directa  e  indirectamente  elrei 
do  que  se  tramava,  estando  ainda  o  papa  em 
Perugia  escrevera  a  Santiquatro  para  que  vi- 
giasse alli  o  progresso  das  pretensões  do  ar- 
cebispo e  lhe  obstasse,  evitando  o  dissabor 
que  daria  a  elrei  ver  um  súbdito  hombreiar 
em  jerarchia  com  seu  próprio  irmão,  o  infante 
cardeal  D.  Affonso.  Na  volta  de  Paulo  iii  a 
Roma,  D.  Henrique,  nas  primeiras  vistas  que 
teve  com  Santiquatro,  exigiu  delle  uma  decla- 
ração franca  e  precisa  acerca  do  que  se  pas- 
sara sobre  aquella  matéria.  Trazido  a  um 
campo  em  que  não  eram  possíveis  subterfu- 


150  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

gios,  Pucci,  que  parece  não  ia  longe  de  favo- 
recer a  pretensão  de  D.  Martinho,  confessou 
tudo.  O  negocio  estava  muito  adiantado.  Re- 
presentou-Ihe  D.  Henrique  o  desgosto  que  tal 
successo  devia  produzir  no  animo  do  prínci- 
pe, cujo  protector  na  cúria  o  cardeal  era,  e 
convenceu-o  de  que  a  sua  situação  lhe  impu- 
nha o  dever  de  obstar  ás  miras  do  arcebispo. 
Posto  que  achasse  difflcil  o  empenho,  Santi- 
quatro  comprometteu-se  a  trabalhar  contra  as 
pretensões  de  D.  Martinho.  Accordes  neste 
ponto,  ambos  escreveram  a  D.  João  iii,  sendo 
desde  logo  vertida  em  português  por  D.  Hen- 
rique de  Meneses  a  carta  em  que  o  cardeal 
narrava  as  intrigas  do  prelado.  Assim  tradu- 
zida, não  seria  elrei  constrangido  a  confiar  de 
interpretes  o  seu  conteúdo.  D.  Henrique  es- 
creveu também  largamente,  com  a  rudeza  sin- 
cera que  o  caracterisava  (1).  Ambas  as  cartas 
deviam  ser  entregues  a  elrei  pela  própria  mão 
do  embaixador,  o  qual  pedia  que  depois  de 
lidas  fossem  inutilisadas,  e  na  verdade  as  re- 
velações nellas  contidas  eram  perigosas,  so- 
bretudo para  D.  Henrique  de  Meneses,  cujas 
apprehensões  a  este  respeito  se  manifestavam 


(1)  Carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  6  de  outubro  de 
1535,  na  G.  20,  M.  7,  N."  24. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  151 

sem  rebuço.  Significando  as  diligencias  que 
fazia  para  baldar  as  pretensões  do  seu  colle- 
ga,  alludia  assim  aos  perigos  políticos  que 
lhe  podiam  resultar  da  influencia  e  poder  dos 
parentes  e  amigos  do  arcebispo,  como  aos 
pessoaes,  procedidos  da  vingança  deste,  se 
transpirasse  a  noticia  do  que  escrevia,  «por- 
que —  accrescentava  elle  —  com  o  favor  de 
Deus,  em  nada  mais  os  temo,  ao  menos  de 
cara  a  cara.»  Pedia  não  só  segredo  a  elrei, 
mas  também  que  o  mandasse  voltar  a  Lisboa, 
porque  em  Roma  corria  risco  de  ser  envene- 
nado (1).  Apesar  de  crer  que  tinha  suscitado 
lodos  os  possiveis  obstáculos  ás  ambições  do 
seu  collega,  recommendava  a  D.  João  iii  es- 
crevesse directamente  ao  papa  e  a  Santiqua- 
tro  sobre  o  assumpto,  declarando-lhes  cate- 
goricamente a  própria  vontade  naquella  ques- 
tão do  cardinalato. 

Trahindo  os  seus  desígnios  pela  vontade 
cega  de  os  realisar  em  breve,  o  arcebispo  do 
Funchal  favorecia  por  mais  de  um  modo  a 
causa  dos  christãos-novos.  Aquelle  incidente 
absorvera  toda  a  attenção  de  Santiquatro  e  do 
embaixador  extraordinário,   de  maneira  que 


(1)  «porque  estando  eu  qua,.  na  quá  peçoaha»: 

Ibid    . 


152  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

este  somente  soube  com  certeza  da  existência 
da  bulia  de  perdão  na  véspera  do  dia  em  que 
foi  affixada  nos  logares  públicos  de  Roma. 
Os  esforços  combinados  dos  dous  tinham 
mutilisado  os  de  D.  Martinho,  e  o  pontifice 
mostrava-se,  emfim,  firmemente  resolvido  a 
não  o  admitir  no  sacro  coUegio,  mas  a  ques- 
tão principal  estava  perdida.  Além  disso,  a  si- 
tuação de  D.  Henrique  tornava-se  demasiado 
perigosa,  porque  o  seu  coUega  suspeitara  ou 
soubera  o  que  contra  elle  se  tramara  (1).  Es- 
crevendo de  novo  a  elrei  no  principio  de  no- 
vembro, o  embaixador  não  occultava  os  te- 
mores que  o  affiigiam,  nem  o  resultado  fatal 
da  dilatada  lucta  com  os  christãos-novos.  Na 
própria  questão  do  cardinalato  não  suppunha 
impossível  um  revés,  dada  a  corrupção  da 
cúria  e  dos  mais  próximos  parentes  do 
papa  (2).  Tendo  chegado  as  cousas  a  taes  ter- 
mos entre  elle  e  D.  Martinho,  receiava  tam- 


(1)  «Santiqualro  me  disse  anLontem  que  este  ho- 
mem (D.  Martinho)  lhe  começava  a  dizer  mal  de 
mim,  e  que  eu  me  devia  de  mudar  daqui,  ou  guar- 
darme  muito  bem  de  peçonha» :  G.  de  D.  Henrique 
de  Meneses  de  1  de  novembro  de  1535,  na  G.  20, 
M.  7,  N.«  23. 

(2)  «poderia  este  homem  peytar  alguum,  ou  a 
Pedro  Luiz  filho  do  papa». 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  153 

bem  que  este  o  mandasse  assassmar  e  ian- 
çá-lo  no  Tibre,  ou  que  o  envenenasse,  factos 
de  que  sobejavam  em  Roma  mais  estrondosos 
exemplos,  accrescentando  que  se  poriam  de- 
pois as  culpas  aos  christãos-novos  (1).  Em 
consequência  disto,  pedia  a  elrei  que  orde- 
nasse quanto  antes  a  sua  retirada  de  uma 
corte,  onde  não  só  faltava  a  segurança  pes- 
soal, mas  também  se  fazia  tudo  descarada- 
mente por  dinheiro,  sendo  os  menos  esbulha- 
dos os  que  sabiam  conduzir  os  negócios  com 
maior  astúcia  (2).  Rompendo,  emfim,  os  di- 
ques a  um  silencio,  que,  levado  mais  longe, 
seria  criminoso,  D.  Henrique,  instruído  na- 
quelle  mesmo  dia  de  que  a  bulia  de  perdão  a 
favor  dos  conversos  se  passara  e  ia  expedir- 
se  para  Portugal  por  um  mensageiro  de  Duarte 
da  Paz,  a  fim  de  ser  promulgada,  denunciava 
explicitamente  os  meneios  occultos  do  arce- 


(1)  «porque  qua  ha  um  Rio,  a  que  chamão  o 
Tibre,  onde  já  se  lançaram  muitos  homens  melho- 
res qu'eu,  e  ha  também  peçonha  com  que  se  des- 
pacharão outros  mais  honrados;  e  darão  a  enten- 
der que  christãos-novos  m'o  fizeram»:  Ibid 

(2)  «De  maneira  que,  como  em  Tutuão,  ou  co 
xarife,  acabey  este  resgate  por  muito  pouco  di- 
nheiro; porque  assi  se  fazem  os  resgates  com  al- 
faqueques»:  Ibid. 


154  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

bispo  com  o  procurador  dos  hebreus,  cousa 
que,  aliás,  D.  João  iii  parecia  não  dever  igno- 
rar, porque  era  facto  sabido  em  Roma,  Cas- 
telia  e  Portugal.  Na  sua  opinião,  o  negocio 
dos  conversos  estava  irremediavelmente  per- 
dido, não  só  pela  connivencia  do  seu  coUega, 
mas  ainda  mais  pela  decisiva  parcialidade  do 
papa,  que  dava  conta  a  Duarte  da  Paz  de 
quanto  se  passava  com  os  agentes  da  coroa, 
emquanto  nada  transmittia  a  estes  do  que 
com  elle  tractava  (1). 

EíTectivamente,  a  bulia  de  12  de  outubro 
apareceu  em  Portugal.  Os  raios  do  Vaticano 
cabiam  emtim  sobre  a  intolerância,  e  a  causa 
da  humanidade  e  da  justiça  triumphava  ainda 
uma  vez,  embora  por  meios  que  não  ousavam 
apparecer  á  luz  do  sol.  A  vigorosa  resolução 
do  pontífice  produziu  nos  ânimos  uma  im- 
pressão profunda.  Os  tenazes  mantenedores 
da  Inquisição  viam  frustrada  a  sua  incansá- 
vel perseverança,  e  o  desalento  espalhou-se 
nas  fileiras  do  fanatismo  e  da  hypocrisia.  O 
vulgo  exprimia  o  receio  que  lhe  inspirava  o 
papa  com  o  anexim  grosseiro,  em  que  se 
comparava  a  condescendência  de  Clemente  vii 


(1)  Ibicl. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  155 

com  o  caracter  indomável  de  Paulo  iii  (1).  A 
bulia  apparecia  numa  conjunctura  em  que  a 
lucta  entre  o  poder  civil  e  o  núncio  Sinigaglia 
chegara  aos  maiores  extremos.  Um  clérigo, 
encarregado  por  elle  de  fazer  certas  intima- 
ções necessárias  para  o  cumprimento  daquel- 
les  breves  e  instrucções  que  recebera  de  Ro- 
ma, fora  preso,  não  obstante  haver  o  infante 
cardeal  D,  Aífonso  ajustado  com  o  núncio  a 
celebração  de  um  compromisso,  para  se  pro- 
ceder, segundo  parece,  com  menos  rigor  de 
parte  a  parte.  Aquelle  acto  do  poder  civil  a 
respeito  de  um  agente  seu  levara  ao  ultimo 
auge  a  irritação  do  prelado  italiano,  que  ful- 
minou censuras  contra  os  juizes  da  coroa. 
Debalde  elrei,  que  estava  em  Évora,  procurara 
por  cartas  acalmar  o  despeito  do  núncio.  Este 
dera  em  resposta  que  para  servir  o  príncipe 
cederia  em  tudo,  menos  em  castigar  os  de- 
sembargadores, porque,  recuando  neste  pon- 
to, perderia  toda  a  força  moral  (2). 


(1)  Commune  adagium  exivit  inter  ipsos:  aPau- 
lus  non  est  papa  Clemens :  non  licet  Paulo  veluti 
Clementi. . .  ostendere,  cum  sic  mordeat.  Sat  est. 
Crederunt  pontificam  veré  maximum  et  maseulurn 
habere» :  Memoriale,  na  Symm.,  vol.  31,  f.  40  v.  e  41. 

(2)  Carta  do  bispo  de  Sinigaglia  a  elrei  de  23  de 


156  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Nesle  estado  de  cousas,  fácil  é  de  suppor 
se  Marco  delia  Ruvere  se  apressaria  a  fazer 
saber  a  elrei  da  existência  da  bulia  do  perdão. 
D.  João  III  vacillou  ou  fingiu  vacillar.  O  pró- 
prio cardeal  D.  Affonso  mandou  abrir  as  por- 
tas dos  calabouços  a  muitos,  emquanto  o  nún- 
cio ordenava  desde  logo  que  fossem  postos 
em  liberdade  aquelles  acerca  dos  quaes  lhe 
tinham  sido  feitas  de  Roma  recommendações 
particulares.  Procurava,  todavia,  elrei  pôr  ain- 
da diques  á  torrente,  convidando  o  bispo  de 
Sinigaglia  para  se  dirigir  a  Lisboa  e  Évora  a 
conferenciar  com  elle,  e  pedindo-lhe  que  na 
execução  da  bulia  respeitasse  ao  menos  a  di- 
gnidade da  realeza.  Na  resposta  a  esta  carta, 
posto  que  declarasse  acquiescer  aos  desejos 
do  monarcha,  o  núncio  exprimia-se  com  uma 
altivez  que  tocava  as  raias  da  insolência,  e  in- 
dicava as  poucas  vantagens  que  se  podiam 
esperar  da  soUicitada  conterencia  (1).  Os  fau- 
tores da  Inquisição,  o  vulgo  e  o  próprio  D. 
João  III  pareciam  desanimados,  receiando  um 


tíiitubro   de    1535,   no  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  56, 
xN."  60. 

(1)  Carla  do  bispo  de  Sinigaglia  a  eh-ei  de  5  de 
>!ezembro  de  1535,  no  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  56, 
N,°  90. 


HISTORIA  DA  IXQUISIÇÃO  157 

combate  em  que  o  supremo  juiz  delle,  o  dis- 
pensador da  victoria,  se  lhes  affigurava  como 
inteiramente  dedicado  a  dar  o  triumpho  aos 
adversários  (1).  A  bulia  de  12  de  outubro,  con- 
cedendo um  perdão  que  abrangia  iodos  os 
réus  do  judaismo,  dava-lhes  o  espaço  de  um 
arino  para  delle  se  aproveitarem,  e  annuUava 
assim  virtualmente  a  Inquisição.  A  existência 
ou  não  existência  futura  delia,  eis  o  campo 
onde  devia  continuar  a  contenda.  Impedir  que 
o  tribunal  da  fé  adquirisse  novo  vigor  era  em- 
preza  a  que  podiam  abalançar-se  os  conver- 
sos, não  só  pelas  esperanças  que  nasciam  na- 
turalmente de  uma  primeira  victoria,  mas  tam- 
bém porque,  asserenada  a  tempestade  da  per- 
seguição por  muitos  mezes,  tirariam  para  a 
defesa  novos  recursos  de  acção  que  podiam 
empregar  as  victimas  libertadas  dos  ferros 
dos  inquisidores.  O  fanatismo,  porém,  que, 
salteiado  de  repente,  titubeiara  e  recuara,  ou 
que,  pelo  menos,  o  fingira,  não  tardou  em  re- 
cobrar novos  brios  para  a  lucta  de  morte  em 
que  se  empenhara.  No   seguinte  livro  iremos, 


(1)  «Quibus  omnibus  in  dictis  regnis  notificatis 
et  publicatis  acquievit  rex  predictus,  tacuitque  ore 
clauso:  timuit  to  tus  populus  veterum  christiano- 
num»:  Memoriale,  1.  ciU 


158  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

de  feito,  ver  a  renovação  do  combate,  e  assis- 
tir a  novas  peripécias  desse  longo  drama,  que, 
tão  variado,  até  aqui  temos  visto  passar. 


L!VRO  V 


LIVRO  V 


Providencias  da  corte  portuguesa  para  combater  as 
vantagens  obtidas  pelos  christãos-novos.  Revoca- 
ção  do  arcebispo  do  Funchal.  Intervenção  efficaz 
e  directa  de  Carlos  v  no  negocio  da  Inquisição. 
Tentativa  de  assassinio  contra  Duarte  da  Paz. — 
Questões  vergonhosas  entre  os  conversos  e  o 
núncio  na  occasião  da  saída  deste  de  Portugal. 
Effeitos  dessas  questões  em  Roma.  Triumpho  com- 
pleto do  fanatismo.  Rulla  de  23  de  maio  de  1536 
estabelecendo  definitivamente  a  Inquisição.  Pri- 
meiros actos  desta.  Monitorio  do  bispo  de  Ceuta, 
inquisidor-mór.  Procedimento  moderado  do  novo 
tribunal. — Diligencias  dos  agentes  dos  conversos 
em  Roma.  O  papa  começa  a  mostrar-se-lhes  favo- 
rável.—Enviatura  do  núncio  Capodiferro,  e  obje- 
cto da  sua  missão.  Tendências  da  cúria  roma- 
na. Manifestação  dessas  tendências  no  breve  de 
31  de  agosto  de  1537.  Considerações  politicas  que 
as  atenuavam.  —  Procedimento  do  núncio. — En- 
viatura de  D.  Pedro  de  Mascarenhas  á  corte  pon- 
tifícia.—Escriptos  blasphemos  afixados  publica- 
mente em  Lisboa,  e  consequências  desse  facto.  O 
infante  D.  Henrique  substituído  ao  bispo  de  Ceuta 
no  cargo  de  inquisidor-mór.  — Negociações  de  D. 

TOMO  II  11 


16L'  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Pedro  de  Mascarenhas  em  Roma.  Caracter  e  do- 
tes do  novo  embaixador.  Corrupções  na  cúria  ro- 
mana.—  Mudanças  no  tribunal  da  fé.  —  Hostilida- 
des entre  o  infante  e  Capodiferro.  Processo  de 
Ayres- Vaz.  Lucta  com  o  núncio.  — Elrei  exige  a 
revogação  deste.— Discussões  violentas  e  protra- 
hidas  entre  o  embaixador  português  e  o  papa,  tan- 
to acerca  da  Inquisição  como  do  núncio.  Accordos 
vantajosos  e  transtornos  inesperados.  D.  Pedro  não 
podendo  obstar  ás  providencias  favoráveis  aos 
conversos,  obtém,  comtudo,  a  revocação  de  Ca- 
podiferro,— Bulia  declaratória  de  4  de  outubro 
de  1539. 

Ao  passo  que  chegava  a  Portugal  a  bulia 
de  12  de  outubro,  chegavam  também  as  car- 
tas de  Santiquatro  e  de  D.  Henrique  de  Mene- 
ses. D.  João  III  via-se  a  um  tempo  menosca- 
bado pela  corte  de  Roma,  contrariado  na  sua 
paixão  dominante,  a  perseguição  dos  judeus, 
trahido  pelo  arcebispo  do  Funchal,  e  ameaça- 
do no  seu  orgulho  pela  possibilidade  de  ser 
elevado  ao  cardinalato,  e  de  hombreiar  com 
o  irmão  o  próprio  homem  que  o  trahira.  Eram 
motivos  sobejos  para  despertar  toda  a  ener- 
gia do  príncipe,  aliás  instigado,  no  que  toca- 
va á  Inquisição,  pelos  clamores  dos  íanaticos 
e  hypocritas,  que  exerciam  sobre  o  seu  espi- 
rito triste  predomínio.  Na  questão  do  cardi- 
nalato importava  primeij^o  que  tudo  fazer  sair 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  163 

de  Roma  D.  Martintio,  revocando-o  á  corte,  e 
elevando  assim  uma  barreira  insuperável  ás 
suas  ambições.  Pelo  que,  porém,  respeitava 
aos  negócios  da  Inquisição,  era  necessário 
contrapor  ás  sympathias  que  os  conversos 
haviam  conciliado  na  cúria,  ás  poderosas  pro- 
tecções que  tinham  comprado  e  ás  convicções 
do  pontífice  sobre  a  justiça  da  sua  causa  uma 
influencia  que,  sobrepujando  todos  esses  ele- 
mentos de  resistência,  os  vencesse  e  inutili- 
sasse.  A's  intrigas  e  astúcias  diplomáticas  es- 
tava provado  que  podiam  os  christãos-novos 
oppor  outras  intrigas  e  astúcias,  ás  corru- 
pções outras  corrupções  e  á  mascara  do  zelo 
religioso  a  realidade  das  doutrinas  evangéli- 
cas de  tolerância  e  de  humanidade.  O  único 
arbítrio  que  se  offerecia  para  achar  uma  ala- 
vanca poderosa,  capaz  de  alluir  e  derribar  es- 
se conjuncto  de  obstáculos,  era  fazer  intervir 
seriamente  na  questão  a  omnipotente  vontade 
de  Carlos  v.  Como  vimos,  já  se  havia  recor- 
rido a  este  arbítrio,  mas  frouxamente  e  com 
infeliz  successo.  Ou  os  christãos-novos  tinham 
sabido  dobrar  o  animo  do  embaixador  hes- 
panhol  em  Roma,  ou  o  próprio  imperador 
não  servira  nesse  ponto  o  cunhado  com  sin- 
cera vontade.  Todavia,  este  meio  era  aquelle 
em  que   sobretudo   insistia   desde  muito  D. 


164  HISTORIA  DA   íNQUISIÇÃO 

Henrique  de  Meneses,  que  o  próprio  arcebis- 
po do  Funchal,  de  boa  ou  de  má  vontade,  re- 
conhecera como  o  único  efficaz,  e  que,  segun- 
do parece,  já  anteriormente  se  havia  resolvi- 
do adoptar,  A  impotência  de  todos  os  outros 
recursos,  provada  agora  de  um  modo  tão  si- 
gnificativo, aconselhava,  portanto,  o  governo 
português  a  seguir  activamente  aquelle  ca- 
minho. Era  uma  das  condições  indispensáveis 
para  o  facilitar  a  retirada  de  Roma  de  D.  Mar- 
tinho, de  um  agente  desleal,  consideração  que 
reforçava  os  outros  motivos,  se  não  mais  gra- 
ves, mais  urgentes,  que  havia  para  a  sua  exo- 
neração. Com  o  pretexto  de  se  obterem  infor- 
mações precisas  sobre  o  estado  dos  negócios 
da  Inquisição,  expediram-se  ordens  terminan- 
tes para  voltar  pela  posta  a  Lisboa  o  arcebis- 
po, o  qual  eíTectivamente  saiu  de  Roma  no 
meiado  de  dezembro  (1).  Porventura  elle  não 
teria  obedecido,  se  não  visse  transtornados  os 
seus  planos  pelo  cardeal  Pucci,  o  qual,  escre- 
vendo nessa  conjunctura  a  D.  João  iii,  lhe  da- 


(I)  É  o  que  resulta  aas  duas  cartas  de  Santi- 
quatro  a  elrei  de  10  e  de  16  de  dezembro  de  1535, 
na  G.  20,  M.  7,  N.®  1;  e  da  carta  de  Álvaro  Mendes, 
embaixador  juncto  a  Carlos  v,  de  27  de  dezemDro 
de  1535,  na  G.  2,  M.  5,  N.»  3. 


HISTORIA   Da    INQUISIÇÃO  165 

va,  gracejando,  a  certeza  de  que.  na  volta,  D. 
Martinho  lhe  beijaria  a  mão  com  capello  de 
cor  verde  e  não  de  cor  escarlate  (1).  Pucci 
descubrira  que  as  esperanças  do  arcebispo  se 
fundavam  numa  promessa  escripta  de  Cle- 
mente VII,  pela  qual  se  lhe  assegurava  a  pro- 
moção ao  cardinalato,  com  a  obrigação  de 
partir  para  a  Abyssinia  como  legado  pontifí- 
cio, obrigação  a  que  elle  tencionava  esquivar- 
se  com  quaesquer  pretextos  (2).  Acompanha- 
vam a  demissão  de  D.  Martinho  instrucções 
a  D.  Henrique  para  se  dirigir  a  Nápoles  aon- 
de Carlos  V  havia  chegado.  Tinha  D.  Henrique 
de  tractar  ahi  com  o  imperador  os  negócios 
da  Inquisição  portuguesa,  acerca  dos  quaes  o 
príncipe  castelhano  havia  sido  prevenido  e 
instado.  O  embaixador  juncto  á  corte  de  Cas- 
tella,  Álvaro  Mendes  de  Vasconcellos  recebe- 
ra novas  recommendações  para  ajudar  na- 
quelle  empenho  o  seu  collega  de  Roma,  de- 
vendo ambos  junctos  seguir  Carlos  v  de  Ná- 
poles até  áquella  cidade,  aproveitando  todas 
as  conjuncturas  de  adiantar  a  pretensão,  a 
qual,    para   evitar   embaraços,   se  reduzia   a 


(1)  Cartas  de  Santiquatro,  cit. 

(2)  Carta  de   Santiquatro  de  17  de  dezembro  de 
1535,  no  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  56.  N.»  111 


166  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

obter  do  papa  que,  tanto  acerca  do  perdão 
como  da  organisação  definitiva  do  tribunal 
da  fé,  se  estatuisse  o  mesmo  que  se  estabe- 
lecera em  Casteila.  Nisto  estava  de  accordo  o 
imperador,  promettendo  ao  cunhado  fazer  to- 
das as  diligencias  para  se  conseguir  o  fim 
proposto,  o  que  esperava  com  inteira  confian- 
ça depois  da  demissão  de  D.  Martinho,  de  cu- 
ja deslealdade,  bem  como  de  tudo  o  mais  que 
occorrera,  estava  plenamente  instruído  (1).  Ef- 
fectivamente,  em  resultado  de  varias  confe- 
rencias entre  o  secretario  d'estado,  Covos,  e 
os  dous  ministros  portugueses,  ordenou-se  ao 
conde  de  Cifuentes,  embaixador  em  Roma, 
pedisse  preliminarmente  ao  papa  a  revogação 
da  bulia  de  12  de  outubro,  ao  passo  que  Car- 
los V  escrevia  directamente  a  Pier  Ludovico, 
filho  do  papa,  exigindo  delle  influísse  naquel- 
ia  revogação.  A's  representações,  porém,  de 
Cifuentes  replicou  o  pontífice  que,  se  na  ma- 
téria da  Inquisição  estava  prompto  a  fazer  tu- 
do quanto  aprouvesse  aos  dous  príncipes,  não 
o  estava  na  do  perdão.  Além  de  insistir  nas 


(1)  Carta  de  Álvaro  Mendes  de  27  de  dezembro 
de  1535  (1.  cit.),  e  carta  de  D.  Henrique  de  Meneses, 
de  Nápoles,  a  17  de  janeiro  de  1536,  no  G.  Ghro- 
nol.,  P.  1,  M.  56,  N.°  128. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  167 

razões  geraes  que  o  leitor  já  conhece,  mosr 
trava-se  mais  que  tudo  queixoso  da  descon- 
sideração com  que  o  governo  português  tra- 
ctara  as  concessões  e  propostas  da  cúria  ro- 
mana, não  respondendo  opportunamente  cou- 
sa alguma,  ao  passo  que  os  seus  agentes  se 
mostravam  altivos  e  descomedidos.  A  respos- 
ta de  Pier  Ludovico  foi  análoga  á  de  seu  pae; 
mas  dava  esperanças  de  que  finalmente  o  pa- 
pa faria  tudo  quanto  fosse  possivel  para  con- 
tentar os  dous  monarchas.  Antevendo  que 
Carlos  V  pouco  se  demoraria  em  Roma,  Ál- 
varo Mendes  e  D.  Henrique  de  Meneses,  ani- 
mados com  aquellas  esperanças,  souberam 
convencer  o  secretario  Covos  de  quanto  im- 
portava que  de  Nápoles  se  fizessem  todas  as 
diligencias  possiveis  para  mover  o  animo  de 
Paulo  III,  de  modo  que  se  chegasse  a  uma 
conclusão  definitiva  nos  primeiros  dias  da  re- 
sidência do  imperador  na  capital  do  orbe  ca- 
tholico  (1).  Convieram  em  que,  para  obter  se- 
melhante fim,  Carlos  v  falasse  ao  núncio  Pau- 
lo Vergerio  sobre  o  assumpto  com  efficacia 
tal,  que  este  não  podesse  recusar  associar-se 
aos  seus  desígnios.  Assim  se  fez.  Numa  lon- 


(1)  Carta   de  A.  Mendes  de  27  de  dezembro,  1. 
cit. 


168  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ga  conferencia  com  os  ministros  portugueses 
e  o  secretario  Covos,  o  núncio,  depois  de  exa- 
minar o  estado  da  questão  e  os  documentos 
que  lhe  diziam  respeito,  comprometeu-se  a  in- 
tervir nella  para  com  a  sua  corte.  Entretanto, 
o  imperador  dirigia  ao  papa  uma  carta,  que 
devia  ser-lhe  entregue  por  Cifuentes,  a  quem, 
aliás,  se  recommendava  fizesse  a  favor  da- 
quelle  empenho  as  demonstrações  mais  enér- 
gicas. Desse  modo  se  esperava  ficassem  apla- 
nadas as  maiores  difíiculdades  dentro  em  bre- 
ve tempo  (1). 

Emquanto  estas  cousas  se  passavam  em 
Nápoles,  sobrevinha  inopinadamente  em  Roma 
uma  singular  coincidência.  Certo  dia,  em  que 
Duarte  da  Paz  acabava  de  estar  com  o  papa, 
recebeu  por  mão  de  um  aggressor  desconhe- 
cido quatorze  punhaladas,  das  quaes  se  acre- 
ditou ficaria  morto.  O  precavido  converso 
nunca,  porém,  se  esquecera  de  que  vivia  em 
Roma,  e  debaixo  das  vestiduras  trazia  armas 
de  fina  tempera.  O  crime,  como  é  fácil  de 
imaginar,  attribuiu-se  a  influencias  occultas,  e 
o  próprio  Duarte  da  Paz,  accusando  o  rei  de 
Portugal  e  os  seus  ministros  de  um  assassi- 


(1)  Carta  de  D.  H.  de  Meneses  de  17  de  janeiro 
de  153G,  1.  cil. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  169 

aio  premeditado,  pretendia  prová-lo  em  jui- 
LO  (1).  Todavia,  mezes  depois,  respondendo  a 
ama  carta  de  Santiquatro,  em  que  se  alludia 
a  este  attentado  e  á  indignação  do  pontífice, 
por  ter  sido  commettido  quasi  diante  dos 
seus  olhos,  D  João  ai  desculpava-se,  attri- 
buindo  o  delicto  a  uma  vingança  particular. 
Estava  persuadido  de  que.  se  o  crime  fosse 
practicado  por  ordem  sua.  o  houvera  sido  de 
modo  que  a  victima  não  escaparia  (2).  O  fa- 
natismo gloriava-se  de  poder  contar  com  a 
firmeza  do  braço  dos  próprios  sicários,  quando 


ilj  Carta  de  Álvaro  Mendes,  ie  iN^apoies,  a  3  de 
fevereiro,  extractada  nos  apontamentos  de  Fr.  Luiz 
de  Sousa  (Ann.  de  D.  João  iii,  p.  397) 

(2)  «Acerca  das  feridas  que  la  lhe  foram  dadas  (a 
Duarte  da  Paz)  afirmay  também  a  S.  S.  que  nunqua 
em  tal  cuidey,  nem  foy  em  minha  sabedoria,  e  crede 
vós  também  e  o  afirmay  a  S  S.,  que  se  eu  tal  cousa 
cuidara  se  fizera  de  outra  maneira  e  que  >he  ficara 
pouquo  luguar  pêra  suas  malícias,  e  certo  que  eu 
receby  muyto  desprazer  de  lai  lhe  ser  feyto  tanto 
em  presença  do  Sancto  Padre,  como  dizes,  e  que  o 
que  me  foy  dicto  depoys  de  seu  ferimento  foy  dize- 
rem-me  que  um  clérigo  com  que  ele  tinha  debates 
lhe  fizera  ou  mandara  fazer  aquele  ferimento»'  Mi- 
nuta da  carta  d'elrei  a  Santiquatro,  depois  de  junho 
de  1536,  na  G.  2,  M.  1.  N.»  28—0  que  vai  em  ita- 
liano está  riscado 


170  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

julgasse  conveniente  empregar  na  execução 
dos  seus  desígnios  o  ferro  do  assassino. 

O  temor  e  os  remorsos  deviam  dilacerar  o 
coração  de  Duarte  da  Paz,  vendo  que  a  morte 
era  a  recompensa  final  que  lhe  reservavam 
pelas  suas  villanias.  Não  se  achava,  portanto, 
na  situação  mais  própria  de  espirito  para  con- 
servar cordura  e  audácia  durante  a  nova  lucta 
que  se  preparava,  e  na  qual,  aliás,  tinha  de  en- 
trar com  forçada  lealdade,  suppondo  que  as 
provas  de  ódio  mortal  que  recebera  vinham 
d'elrei.  Em  todo  o  caso,  nas  próprias  appre- 
hensões  achava,  digamos  assim,  um  adversá- 
rio que  lhe  apoucava  a  energia.  Por  outro  lado 
o  imperador,  ao  chegar  a  Roma,  embora  alli 
o  levassem  negócios  de  summa  gravidade  e 
houvesse  de  demorar-se  apenas  treze  dias  (1), 
não  se  esqueceu  das  suas  promessas.  Ti- 
nham-no  convencido  de  que  os  fundamentos 
para  haver  Inquisição  tanto  em  Castella  como 
Portugal  eram  idênticos,  t  de  que,  estabele- 
cendo-a  neste  paiz  com  as  mesmas  condições 
da  de  Castella,  se  fana  uma  cousa  conveniente 
e  justa  (2).  Ainda,  porém,  admittindo  a  legiti- 


(1)  De  5  a  18  de  abril;  Paiiavicino.  istona  id 
Cone.  di  Trento,  L.  3,  c   19 

(2)  Memoriale    Symm..  voi   31,  f.  42  e  seg.> 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  171 

midade  da  intolerância,  nem  assim  se  dava 
semelhança  Em  Castella  houvera,  ao  menos, 
lealdade ;  longe  de  se  obrigarem  directamente 
os  judeus  a  receberem  o  baptismo,  tinham-se 
expulsado  os  que  preferiam  o  exilio  ao  nome 
de  renegados,  e  não  se  trahira  a  palavra  real 
asselada  pela  fé  de  diplomas  solemnes.  Vendo 
a  questão  a  uma  luz  falsa,  e  tendo  vendido  a 
sua  influencia  ao  cunhado  a  troco  de  soccor- 
ros  marítimos  de  que  carecia  (1),  Carlos  v 
insistiu  por  tal  maneira  a  favor  das  preten- 
sões da  corte  portuguesa,  que  o  papa,  colocado 
numa  situação  melindrosa,  e  até  certo  ponto 
dependente,  para  com  elle,  viu-se  constrangido 
a  adoptar  uma  politica  diversa  da  que  inspi- 
rara a  resolução  de  12  de  outubro,  cedendo, 
a  despeito  da  própria  consciência,  aos  furores 
da  intolerância  (2). 

Mas  os  peiores  adversários  da  causa  dos 
christãos-novos  eram,  acaso,  naquella  con- 
junctura,  elles  próprios;  eram-no  as  avaras 
propensões  de  uma  raça  envilecida  pela  op- 
pressão  e  pelo  desprezo.  O  leitor  está  por 
certo  lembrado  das  offertas  pecuniárias  feitas 


(1)  Corpo  Chronol.,  P    1,  M.  57,  N.»  31:  — V.  de 
Santarém,  Quadro  Elem.,  T.  2,  p.  75. 

(2)  Memorial,  1.  cit. 


172  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

pelos  chefes  da  gente  hebréa,  em  virtude  das 
quaes  se  obrigavam  ao  pagamento  de  quan- 
tias mais  ou  menos  avultadas,  conforme  o 
grau  de  favor  que  encontrassem  nas  resolu- 
ções pontifícias  acerca  das  matérias  da  In- 
quisição. Ou  fosse  que  se  esperasse  pelos  ef- 
feitos  das  novas  intrigas  que  se  urdiam,  ou 
fosse  pela  impressão  que  produziu  o  ultimo 
perdão,  é  certo  que  as  perseguições  tiveram 
um  termo.  EUes  mesmos  confessavam  os  be- 
néficos resultados  da  bulia  de  12  de  outubro. 
Fendo  de  partir  para  Roma,  aonde  era  cha- 
mado, o  bispo  de  Sinigaglia  exigiu,  portanto, 
o  cumprimento  dos  contractos  occultos  e  si- 
moniacos  em  que  elle  próprio  tinha  inter- 
vindo, e  das  promessas  que  Duarte  da  Paz  fi- 
zera na  cúria,  anteriormente.  Com  a  previsão 
própria  de  um  agente  da  corte  mais  astuta 
da  Europa,  o  núncio  foi  diíTerindo  a  publica- 
ção e  a  intimação  da  nova  bulia  até  concluir 
aquelle  negocio.  Numa  carta  que  delle  nos 
resta,  dirigida  a  pessoa  interessada  nestas 
transacções  ignóbeis  (talvez  o  filho  de 
Paulo  III)  nos  ficaram  vestigios  profun- 
dos de  alguns  dos  factos  que  nas  tre- 
vas acompanhavam  as  peripécias  daquelle 
drama,  e  que,  se  fossem  todos  conheci- 
dos, explicariam   as  que  parecem  inexplica- 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  173 

veis  (1).  Consta  dessa  carta  que  ás  exi- 
gências do  núncio  os  christãos-novos  de  Lis- 
boa responderam  que  estavam  promptos  a 
pagarem  aquillo  que  por  escripto  se  haviam 
obrigado ;  mas  que  recusavam  cumprir  as 
promessas  de  Duarte  da  Paz.  As  instancias, 
as  ameaças,  feitas  de  modo  que  ficassem  as 
apparencias  salvas  (2),  não  poderam  fazer-Ihes 
mudar  de  resolução.  Diziam  que  lhes  faltavam 
os  recursos ;  que  o  seu  agente  procedera  sem 
auctorisação ;  que  quizera  indispô-los  com  o 
papa  (3),  promettendo  cousas  acima  das  pos- 


(1)  Esta  carta,  que  se  acha  no  Códice  do  Vaticano 
6210,  a  p.  21,  foi  transcripta  na  Symmicta  (vol.  2,  f. 
232)  com  a  data  de  1  de  março  de  1550,  quando  do 
próprio  contexto  se  conhece  pertencer  ao  anno  de 
1536,  porque,  entre  outros  indícios,  o  núncio  allude 
não  só  á  ida  de  Carlos  v  a  Roma,  como  cousa  que 
ainda  se  esperava,  mas  também  ao  casamento  do 
infante  D.  Duarte,  que  se  dizia  D.  João  iii  ter  em 
mira  fazer,  e  que  effeclivamente  se  realisou  em  1537. 
Duarte  da  Paz  é  alli  denominado  constantemente  il 
commendatore.  Escripta  com  interrupções,  vê-se 
que  foi  começada  a  redigir  em  janeiro,  e  só  se  fe- 
chou no  1.°  de  março. 

(2)  «ne  con  metterli  timore,  servato  il  decoro» : 
Ibid. 

(3)  ahavea  ció  fatto  per  ruinarla  con  Nostro  Sig- 
nore» :  Ibid. 


174  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

sibilidades  dos  seus  committentes.  Invectiva- 
vam acremente  Duarte  da  Paz,  affirmando 
que  os  tinha  roubado,  do  que  eram  prova 
quatro  mil  ducados  que  mettera  no  banco  em 
Roma,  os  quaes  pediam  a  sua  sanctidade 
mandasse  alevantar,  porque  deli  es  lhe  faziam 
presente.  Replicava  Sinigaglia,  defendendo  o 
procurador  dos  conversos,  e  ponderando-lhes 
que,  se  fosse  verdade  o  que  affirmavam,  seria 
isso  mais  uma  razão  para  se  mostrarem  bi- 
zarros, baldando-lhe  por  tal  modo  as  damna- 
das  tenções.  Lembrava-lhes  que  o  pontifice 
se  julgaria  enganado  (1),  vendo- os  ficar  satis- 
feitos com  a  bulia  e  recusar  o  preço  delia ; 
que,  presupposto  não  se  haver  por  isso  de 
torcer  a  justiça  da  sé  apostólica,  todavia  era 
possivel  virem  elles  a  achar  de  futuro  certa 
frieza  no  papa  e  nas  pessoas  influentes  da 
cúria  (2).  Propunha-lhes  por  fim  que  repre- 
sentassem ao  summo  pontifice  a  insufficien- 
cia  dos  próprios  recursos ;  mas  nem  sequer 
este  partido  acceitaram.  Partindo  para  a  corte, 
que  se  achava  em  Évora,  Sinigaglia  ventilou 


(1)  «che  Nostro  Signore  si  reputeria  ingannato»: 
Ibid. 

(2)  «dubitavo  nel  futuro  ritrovassero  sua  santitá 
é  tutti  gli  altri  fredi»;  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  175 

a  matéria  com  os  christãos-novos  alli  resi- 
dentes ;  mas  achou  da  parte  delles  as  mes- 
mas repulsas.  Vendo  o  espirito  que  predomi- 
nava entre  os  commerciantes  de  origem  hebréa, 
com  quem  especialmente  tractara,  recorreu  a 
três  letrados  que  exerciam  poderosa  influen- 
cia entre  os  conversos,  e  que  por  elles  eram 
consultados  em  tudo  o  que  tocava  á  lucta 
com  a  Inquisição.  A  estes  procurou  atemori- 
sar  o  núncio  com  a  intervenção  de  Carlos  v, 
de  que  já  havia  noticia.  Concordando  em  que 
as  pretensões  de  Marco  delia  Ruvere  eram 
justas,  elles  prometteram  convencer  os  seus 
clientes  da  necessidade  de  vii'  a  um  accordo, 
o  qual  se  tomaria  numa  conferencia  celebrada 
longe  da  corte,  para  o  que  foi  escolhida  San- 
tarém. Mas  todos  estes  planos  se  transtorna- 
ram. Emquanto  o  núncio  tractava  de  obter 
letras  de  cambio  pela  somma  de  cinco  mil 
escudos,  que  os  christãos-novos  estavam  com- 
promettidos  a  pagar,  mestre  Jorge  de  Évora, 
homem  de  proverbial  avareza  (1),  que  tinha 
entrada  com  elrei  e  que  era  um  dos  chefes 
dos  conversos,  ou  revelou  o  que  se  passava, 
ou,  colhido  de  súbito,  confessou  o  que,  talvez, 
elrei  descubrira  por  diversa  maneira.  A  cólera 


(1)  «piú  mísero  che  la  miséria»:  Ibid. 


176  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

de  D.  João  iii  subiu  ao  maior  auge.  Os  três 
jurisconsultos  que  lia  viam  aconselhado  o  ac- 
cordo  com  o  núncio  foram  obrigados  a  per- 
suadir o  contrario  aos  seus  clientes,  tarefa 
mais  fácil,  dadas  as  propensões  destes.  Pro 
curava-se  ao  mesmo  tempo  assustar  os  chris- 
tãos-novos  com  a  perspectiva  de  se  renova- 
rem as  scenas  horríveis  de  1506 ;  e  da  pró- 
pria boca  do  cardeal  infante  D.  Afíbnso  se 
ouviu  o  brutal  gracejo  de  que,  dando  dinheiro 
á  corte  de  Roma,  ficariam  os  conversos  habi- 
litados para  pedir  soccorro  ao  papa  no  pri- 
meiro tumulto  popular  que  contra  elles  hou- 
vesse (1).  Assim  se  empregavam  todos  os 
meios  para  que  o  dinheiro  dispendido  com 
mão  larga  não  servisse,  naquella  conjunctura 
tão  propicia,  de  obstáculo,  talvez  insuperável, 
aos  esforços  de  Carlos  v  a  favor  da  Inquisição 
portuguesa. 

Escrevendo  para  Roma  de  Braga,  onde 
parara  alguns  dias  na  sua  volta  a  Itália,  Mar- 
co delia  Ruvere  expunha  estes  successos,  o 
estado  dos  negócios,  e  o  que  havia  a  fazer. 
Tinha  destinado  ir  por  Flandres,  onde  espe- 


(1)  ali  cardinal. . .  li  disse:  quando  si  fará  un'al- 
tra  unione  contro  di  voi,  anderete  ai  papa,  che  vi 
pro  veda»:  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  177 

raria  a  resposta  dos  chefes  dos  conversos, 
annuindo  elles  ao  pagamento  de  todas  as 
quantias.  Se  não  o  fizessem,  era  que  estavam 
seguros  de  outra  parte  quanto  ao  futuro, 
aliás  seria  preciso  suppô-ios  dementes  (1).  A 
ida  a  Flandres  tinha  por  objecto  falar  com 
Diogo  Mendes,  o  mais  rico  e  respeitado  he- 
breu português,  e  com  a  viuva  de  seu  irmão 
Francisco  Mendes,  a  qual  subministrara  já  a 
maior  quantia  para  a  solução  dos  cinco  mil 
escudos  recebidos.  Convinha,  portanto,  que 
se  esperasse  pela  sua  chegada  a  Roma  sem 
se  tomar  nenhum  arbítrio  novo  ,  porque,  se 
a  obstinação  dos  conversos  continuasse,  de- 
pendendo tudo  directa  ou  indirectamente  do 
papa,  cumpria  provar-lhes  que  eram  uns  lou- 
cos se  á  força  de  dinheiro  haviam  procurado 
assegurar-se  de  quem  não  podia  salvá-los,  em 
vez  de  o  dar  a  quem  podia.  «Então  —  dizia  o 
núncio  — justa  e  sanctamente  se  poderia  tirar 
a  mascara  (2)»   Era  de  opinião  que.  se  o  pon- 


(1)  «che  siano  li  maggiori  asim  dei  mondo»: 
Ibid. 

(2)  «si  potra  trovar  qualcíie  modo,  si  sono  asini, 
di  farli-lo  conoscere,  et  si  per  danari  si  sono  voluti 
assicurar  da  chi  non  può,  il  mede&imo  faccino  con 
chi  può,  che  in  tal  caso  potra  cavar  la  maschera 
giusta  e  santamente»:  Ibid 

TOMO  n  12 


178  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tifice  desse  mostras  de  querer  admittir  a  In- 
quisição com  o  rigor  com  que  se  pedia,  aca- 
bariam todas  as  hesitações  e  repugnancias. 
Desconfiava,  por  outra  parte,  Marco  delia 
Ruvere  que  estivessem  á  espera  dos  resulta- 
dos da  ida  do  imperador  a  Roma,  supposto 
o  que,  não  mudando  a  politica  da  cúria  por 
esse  facto,  pagariam  promptamente.  No  que 
respeitava  a  Duarte  da  Paz,  advertia  que  o  mais 
que  se  podia  esperar  era  que  lhe  arbitrassem 
um  ordenado  fixo,  e  isto  pelas  instancias  del- 
le  núncio,  sem  as  quaes  já  o  teriam  demit- 
lido  de  seu  procurador,  pelos  muitos  escân- 
dalos que  lhes  havia  dado.  Era  necessário  que 
elle  procedesse  honestamente  e  se  abstivesse 
de  excessivas  despesas  ;  porque  já  lhes  tinha 
gasto  dez  mil  escudos.  Lembrava  que  se  o 
agente  era  largo  no  prometter,  os  constituin- 
tes eram  parcos  no  cumprir,  e  que  em  Roma 
não  deviam  nestes  negócios  fiar-se  em  pro- 
messas vocaes,  mas  exigi-las  por  escripto. 
Pelo  que  pertencia  á  execução  da  bulia  de  12 
de  outubro,  accrescentava  que  vários  con- 
versos tinham  sollicitado  do  cardeal  infante 
D.  Affonso  a  sua  notificação  definitiva  aos 
prelados ;  mas  o  infante  a  havia  restituído 
sem  a  fazer  notificar,  por  insinuações  d'elrei 
seu  irmão,   segundo   se   dizia ;  que  então  ti- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  179 

nham  recorrido  a  elle  núncio  para  a  mandar, 
emfim,  publicar  solemnemente ;  que,  vendo  a 
estreiteza  em  que  se  achavam,  aproveitara  o 
ensejo  para  se  obrigar  a  abrirem  as  bolças, 
respondendo-lhes  que  não  lhe  parecia  pru- 
dente dar  esse  passo  decisivo,  accendendo 
com  elle  ainda  mais  a  cólera  d'elrei,  mas 
que,  desempenhando  a  palavra  do  seu  procu- 
rador, e  pagando  tudo,  poderiam  mandar  por 
um  expresso  supplicar  a  sua  sanctidade  or- 
denasse a  prompta  notificação  daquelle  im- 
portante diploma ;  que,  além  deste,  lhes  sug- 
gerira  outro  alvitre,  sempre  supposta  a  base 
do  prévio  pagamento  :  era  enviar  a  cada  bis- 
po transumpto  authentico  do  processo  para  a 
pubhcação  da  bulia,  e  escrever  elle  núncio  ao 
rei,  dizendo-lhe  que,  tendo  sabido  como  prohi- 
bira  ao  cardeal  infante  fazer  aquella  publica- 
ção, do  mesmo  modo  que  já  obstara  a  que  se 
fizesse  pela  nunciatura,  não  podia  deixar  de 
communicar  isso  ao  papa,  a  fim  de  este  dar 
as  providencias.  De  tal  modo,  não  haveria 
motivo  para  elrei  os  accusar.  Os  que  tracta- 
vam  do  assumpto  em  Braga  approvaram  este 
ultimo  conselho,  rogando-lhe  que  não  escre- 
vesse para  Roma  até  o  fim  de  fevereiro,  para 
terem  tempo  de  tractar  com  os  chefes  dos 
conversos,  e  virem  a  um  accordo  sobre  o  ne- 


180  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

gocio  fundamental,  o  do  dinheiro.  Não  se 
cumpriram,  porém,  estas  bellas  promessas,  e 
Marco  delia  Ruvere,  perdidas  já  as  esperan- 
ças, remettia  a  1  de  março  apenas  as  letras 
dos  cinco  mil  escudos,  mesquinho  resultado 
de  trafico  tão  indecente  (1). 

Assim,  o  excessivo  apego  ás  riquezas,  que 
sempre  distinguiu  a  raça  hebréa,  ia  em  auxi- 
lio dos  esforços  que  se  empregavam  para  a 
esmagar.  Álvaro  Mendes  e  Santiquatro  tinham 
chegado  a  ponto  de  prometter  dinheiro  ao 
próprio  papa,  promessas  que  se  não  cumpri- 
ram depois  de  obtida  a  Inquisição,  mas  que 
Pauio  III  teve  o  brio  de  não  recordar  (2).  No 
meio  da  immensa  corrupção  daquelle  tempo, 
só  o  ouro  derramado  com  mãos  largas  po- 
deria contrastar  na  cúria  romana  a  conve- 
niência de  satisfazer  os  desejos  de  Carlos  v, 


(1)  Ibid. 

(2)  Consta  isto  de  uma  carta  de  Santiquatro  para 
elrei  de  23  de  dezembro  de  1538,  no  Corpo  Chronol., 
P.  1,  M.  63,  N.°  83.  Destes  tractos  occultos  nasceria 
o  escrever  D.  Henrique  de  Meneses  cousas  offensi- 
vas  para  o  papa,  que  Jiie  trouxeram  vivos  desgos- 
tos antes  da  sua  partida,  desgostos  a  que  aJIude 
Santiquatro  numa  carta  a  elrei  de  2  de  maio  de 
1535 :  Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  47,  N.«  29,  no  Arch. 
Nac. 


HISTORIA  DA  UNQUISIÇÃO  181 

tão  energicamente  manifestados.  Imagine-se, 
porém,  qual  seria  o  effeito  da  carta  de  Sini- 
gaglia  em  ânimos  pervertidos.  A  primeira 
vantagem  que  obtiveram  os  adversários  dos 
christãos-novos,  a  pedido  do  imperador,  foi  a 
exoneração  do  cardeal  Ghinucci  de  membro 
da  juncta  ou  commissão  a  cujo  cargo  estava 
consultar  sobre  a  longa  e  variada  contenda 
da  Inquisição,  sendo  substituído  por  Santi- 
quatro,  que,  protector  declarado,  e  a  bem  di- 
zer oíBcial,  de  D.  João  ni,  vinha  a  ser  alli  ao 
mesmo  tempo  juiz  e  parte  (1).  Não  tendo  de 
luctar  com  Ghinucci,  que  sempre  se  mostra- 
ra favorável  aos  conversos,  o  hábil  Pucci  sou- 
be em  breve  modificar  as  idéas  de  Simonetta, 
que,  tempos  depois,  confessava  ter-se  deixado 
illudir  nesta  conjunctura  (2).  Ao  mesmo  tem- 
po, Álvaro  Mendes,  que  ficara  em  Roma  de- 
pois da  saída  do  imperador,  continuava  a  in- 
sistir com  elle  por  cartas  para  que  recom- 
mendasse  a  rápida  conclusão  do  negocio  (3). 
Era  impossível  resistir  a  tal  conjunctura  de 


(1)  Memoriale,  1.  cit. 

(2)  Ibid. 

(3)  Carta  de  Álvaro  Mendes,  de  Roma,  a  22  de 
abril  (quatro  dias  depois  da  saída  do  imperador)  eai 
Sousa,  Annaes.  Doe.  pag.  397. 


182  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

incentivos.  A  23  de  maio  expediu-se  uma 
bulia,  pela  qual  se  instituía  definitivamente  a 
Inquisição  em  Portugal,  e  virtualmente  se  an- 
nuUava  nos  seus  effeitos  a  de  12  de  outubro 
do  anno  anterior,  sem  todavia  a  offender  na 
apparencia.  Por  ella  se  nomeiavam  inquisi- 
dores geraes  os  bispos  de  Coimbra,  Lamego 
e  Ceuta,  aos  quaes  seria  adjuncto  outro  bispo, 
frade  ou  clérigo  constituído  em  dignidade 
e  doutor  em  theologia  ou  em  cânones,  esco- 
lhido por  elrei.  Eram  estes  encarregados  de 
proceder  contra  todos  os  que  houvessem  de- 
linquido  em  matérias  de  crença,  depois  do 
ultimo  perdão,  e  contra  quem  quer  que  os 
seguisse,  protegesse  ou  advogrsse  a  sua  cau- 
sa, publica  ou  secretamente,  não  sendo  dos 
que  o  haviam  feito  em  virtude  do  breve  de  20 
de  julho  de  1535,  e  em  harmonia  com  as  suas 
disposições,  Resalvava-se,  até  certo  ponto,  a 
jurisdicção  dos  bispos,  auctorisando-os  a  in- 
tervirem nos  processos  da  Inquisição,  quan- 
do se  tractasse  de  alguma  das  respectivas 
ovelhas,  ainda  que  disso  se  houvesse  abstido 
no  começo  da  causa.  Ordenava-se  que,  du- 
rante os  primeiros  três  annos  depois  da  pu- 
blicação desta  bulia,  se  adoptassem  as  for- 
mulas de  processo  civilmente  usadas  para  os 
crimes  de  furto  e  homicídio,  seguindo-se  tão  só- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  183 

mente  d'ahi  avante  os  estylos  da  Inquisição.  Ex- 
ceptuavam-se,  todavia,  os  delictos  perpretra- 
dos  dentro  dos  mesmos  três  annos,  acerca 
dos  quaes  continuaria  a  subsistir  o  processo 
civil.  A  faculdade  concedida  aos  ordinários  de 
tomarem  conhecimento  dos  actos  dos  inqui- 
sidores era  compensada  com  ficarem  estes 
habilitados  para  fazerem  o  mesmo  nas  causas 
de  heresia  intentadas  pelos  bispos.  Durante 
os  primeiros  dez  annos,  os  bens  dos  condem- 
nados  ao  ultimo  supplicio  deviam  passar 
aos  seus  herdeiros  mais  próximos,  ou  aos 
immediatos,  se  aquelles  fossem  inhabeis  para 
succeder,  e  não  haveria  confiscos.  Os  inqui- 
sidores ficavam  revestidos  do  poder  de  no- 
meiarem  procurador  fiscal,  notários  e  agen- 
tes seculares  ou  ecclesiasticos,  sem  depen- 
dência dos  respectivos  prelados  ;  de  fazerem 
exauctorar  os  criminosos,  sendo  clérigos  de 
ordens  sacras,  por  qualquer  bispo  ajudado 
por  dous  abbades  (1),  ou  por  outros  indivíduos 
revestidos  de  dignidades  ecclesiasticas,  rela- 
xando depois  os  culpados  aos  tribunaes  se- 
culares; de  removerem  todas  as  resistências 
com  os  meios  canónicos ;  de  receberem  a 
abjuração   dos   réus   não   relapsos   e   de  os 


(1)  A   palavra  ahbatibus  falta  na  bulia  impressa. 


184  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

admittirem  ao  grémio  da  igreja  sem  depen- 
dência da  intervenção  dos  ordinários ,  de 
exercerem,  em  summa,  todos  os  actos  per- 
tencentes por  direito  ao  ministério  de  inqui- 
sidores, delegando  os  seus  poderes,  com  as 
devidas  limitações,  em  quaesquer  sacerdotes, 
bacharéis  em  theologia,  em  cânones  ou  em 
direito  e  de  idade  de  trinta  annos,  pelo  me- 
nos, quando  não  fossem  pessoas  revestidas 
de  alguma  dignidade  ecclesiastica,  ficando 
todos  estes  ministros  e  agentes,  sem  exce- 
pção, sujeitos  á  jurisdicção  dos  inquisidores 
pelos  delictos  que  commelessem  no  desem- 
penho do  seu  cargo.  Creava-se  um  conselho 
geral  nomeiado  pelo  inquisidor-mór,  e  regu- 
lava-se  o  systema  das  appelações,  que  deviam 
subir  dos  inquisidores  delegados  para  o  in- 
quisidor-mór e  deste  para  o  conselho.  Simu- 
la va-se,  até  certo  ponto,  o  desejo  de  proteger 
os  christãos-novos,  declarando-se  nullas  e  de 
nenhum  eíTeito  quaesquer  letras  apostólicas 
ou  leis  civis  que  os  mandassem  considerar  a 
todos  como  pessoas  poderosas  para  se  lhes 
não  revelarem,  quando  réus,  os  nomes  dos 
denunciantes  e  das  testemunhas,  devendo-se 
manter  acerca  delles  a  distincção  de  direito 
commum  entre  poderosos  e  não  poderosos, 
revelando-se  a  estes  últimos  os  nomes  dos 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  185 

seus  accusadores  e  dos  que  deposessem  con- 
tra elles,  para  poderem  impugná-los  e  defen- 
der-se.  A  bulia  terminava  abrogando  todos  os 
privilégios  e  resoluções  pontifícias  que  obstas- 
sem á  sua  execução  (1). 

Apesar  de  ser  expedida  a  23  de  maio,  e 
das  instancias  que  faziam  os  agentes  de  D. 
João  ni  e  de  Carlos  v,  a  bulia  da  Inquisição 
só  se  chegou  a  enviar  nos  melados  de  ju- 
lho (2),  provavelmente  pelos  embaraços  que 
os  numerosos  protectores  dos  christãos-novos 
em  Roma  lhe  deviam  suscitar.  A  final,  D. 
Henrique  de  Meneses,  que,  como  vimos,  havia 
muito  que  insistia  na  sua  exoneração,  regres 
sou  a  Portugal,  trazendo  comsigo  o  resultado 
definitivo  de  uma  negociação  que  tantas  fadi- 
gas e  desgostos  lhe  causara.  Terminada  na 
chancellaria  romana  a  expedição  da  bulia, 
Santiquatro  escrevera  a  elrei  nos  princípios 
de  junho,  explicando  algumas  das  provisões 
delia,  e  maniíestando-lhe  o  pensamento  e  in- 


(1)  Bulia  Cúm  ad  nihil  magis  de  23  de  maio  de 
1536:  M.  9  de  Bulias,  N.»  15,  no  Arch.  Nac  — Col- 
lectorio  das  Bulias  da  Inquis.,  f.  1  v.  e  segg.— 
Symm.,  vol.  ^í,  f.  1  v. 

(2)  Carta  de  Santiquatro  de  2U  de  julho  de  1536, 
em  Sousa,  Annaes,  p.  398. 


186  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tenções  do  papa  naquella  concessão.  Na  ver- 
dade, Paulo  III  creava  quatro  inquisidores- 
móres,  mas  com  o  intuito  de  que  só  exer- 
cesse o  cargo  Fr.  Diogo  da  Silva,  bispo  de 
Ceuta,  individuo  que  não  fazia  temer  aos  con- 
versos as  injustiças  e  violências,  que  aliás  es- 
peravam do  bispo  de  Lamego,  o  qual  D. 
João  III  insinuara  no  anno  anterior  para  aquelle 
cargo,  e  cujo  nome  se  incluirá  na  bulia  com 
o  do  bispo  de  Coimbra  por  simples  formali- 
dade e  para  não  o  vexar  com  uma  exclusão 
offensiva  (1).  Álvaro  Mendes  e  D.  Henrique 


(1)  Minuta  de  uma  caria  de  D.  João  iii,  em  res- 
posta a  outra  de  Santiquatro  de  2  de  junho  de  1536, 
que  não  encontrámos:  G.  2,  M.  1,  N.°  28.  Apesar  da 
longa  disputa  entre  Fr.  Pedro  Monteiro  e  Fr.  Ma- 
nuel de  S.  Dâmaso,  exposta  na  Verdade  Elucidada, 
não  é  absolutamente  claro  se  o  Fr.  Diogo  da  Silva, 
frade  menor,  bispo  de  Ceuta,  inquisidor-mór  em 
1536,  e  depois  arcebispo  de  Braga,  era  ou  não  o 
mesmo  Fr.  Diogo  da  Silva,  frade  mínimo,  inquisidor 
em  1532.  Apesar  dos  esforços  de  Fr.  Manuel  de  S. 
Dâmaso,  talento  bem  superior  ao  do  seu  adversário, 
o  que  elle  alcançou  provar  foi  que  em  1532  e  em 
1536  tintia  tiavido  duas  nomeiações  diversas ;  que 
na  1.»  bulia  da  Inquisição  se  fala  de  um  frade  mi- 
nimo  não  bispo,  emquanto  na  2.'  se  fala  de  um  frade 
franciscano  bispo  de  Ceuta,  e  que  Fr.  Pedro  Mon- 
teiro confundira  estes  dous  factos.  Ambos  os  con- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  187 

de  Meneses  tinham-se  compromettido  a  isso 
com  o  papa  em  nome  d'elrei.  O  cardeal  re- 
commendava  a  este  a  moderação,  sobretudo 
acerca  daquelles  que  haviam  sido  violentados 
a  receber  o  baptismo,  e  aconselhava-lhe  que 
se  contentasse  por  emquanto  do  que  se  lhe 


tendores  parece  terem  desconhecido  um  documento 
contemporâneo  em  que  se  affirma  a  identidade  do 
individuo.  E'  o  requerimento  dos  christãos-novos 
feito  em  1539  contra  a  nomeiação  do  infante  D.  Hen- 
rique para  inquisidor-mór  (Symmicta,  vol.  32,  f.  184 
V.)  onde  se  diz'  «Recordabitur  Sanctitas  Sua  quod 
agentes  tunc  pro  rege  etiam  S.  S.  promiserunt  quod 
etiam  inter  illos  três  nominatos,  episcopus  septensis 
prsefactus,  quem  bonae  memoriae  Clemens  vu  Jam 
maiorem  inquisitorem  illic  antea  creaverat  et  cons- 
tituerat,  priús  habebat  uti  dicto  officio  maioris  in- 
quisitoris».  Já  uma  anterior  allegação  de  Duarte  da 
Paz  (Verdade  Elucidada,  Convenção  vi,  §§  1  e  2)  di- 
zia o  mesmo,  apesar  da  interpretação  forçada  que 
lhe  dá  Fr.  Manuel  de  S.  Dâmaso.  As  difficuldades  e 
contradicções  dos  documentos  relativos  a  este  obje- 
cto resoivem-se  facilmente  por  uma  hypothese  que 
se  dava  não  raro  nas  ordens  monásticas.  E'  que  Fr 
Diogo  da  Silva,  antes  de  eleito  bispo  de  Ceuta,  teria 
passado  da  ordem  dos  minimos  para  a  dos  francis- 
canos. Porventura,  havendo  professado  naquella 
ordem  fora  do  reino,  e  voltando  ao  seu  paiz,  onde 
elia  não  existia,  teria  resolvido  passados  alguns  an- 
nos,  filiar-se  na  dos  menores. 


188  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

concedia,  com  a  esperança  de  que  de  futuro 
se  accederia  aos  postulados  que  não  haviam 
sido  satisfeitos.  Intercedia,  finalmente,  a  favor 
da  familia  e  parentes  de  Duarte  da  Paz,  a 
quem  o  papa  ia  expedir  um  breve  para  pode- 
rem sair  do  reino,  breve  que  elle  pedia  fosse 
respeitado.  Respondendo  a  esta  carta,  D. 
João  III  mostrava-se  resignado  a  acceitar  a 
Inquisição  com  as  restricções  impostas  aos 
seus  mais  largos  designios,  a  realisar  as  pro- 
messas dos  embaixadores  sobre  a  nomeiação 
do  bispo  de  Ceuta,  e  a  respeitar  a  vida  e  a  li- 
berdade dos  conjunctos  de  Duarte  da  Paz, 
embora  merecessem,  na  sua  opinião,  bem  di- 
verso tractamento,  pelas  culpas  desse  homem, 
em  cujo  regresso  á  pátria  protestava  que  não 
consentiria  jamais  (1). 

No  meio  do  seu  triumpho,  a  corte  de  Por- 
tugal quiz  guardar  a  principio  as  apparencias 
de  moderada.  A  acceitação  ofíicial  do  cargo 
de  inquisidor- mór  pelo  bispo  de  Ceuta  só  se 
verificou  a  5  de  outubro,  e  só  a  22  se  publi- 
cou solemnemente  em  Évora  a  bulia  que  ins- 
tituia  o  terrivel  tribunal  (2).  O  anno  concedido 


(1)  Minuta  da  Carta  de  D.  João  m  em  resposta  a 
outra  de  Santiquatro  de  2  de  junho,  1.  cit. 

(2)  Collectorio  das  Bulias  rio  Saneto-Officio,  f.  1  a  6. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  189 

aos  conversos  que  houvessem  delinquido  con- 
tra a  fé,  para  se  reconciliarem,  estava  com- 
pleto, e,  nessa  parte,  ficavam  mantidas  as 
provisões  da  bulia  de  12  de  outubro  de  1535. 
Na  realidade,  porém,  isso  pouco  embaraçava 
as  futuras  perseguições.  Com  os  ódios  accu- 
mulados  que  ameaçavam  por  toda  a  parte  os 
christãos-novos,  não  faltariam  delações  e  de- 
poimentos para  se  lhes  provar  a  existência 
dos  delictos  de  judaísmo  commettidos  poste- 
riormente a  essa  data,  e  até  era  natural  que 
elles  existissem,  se  pôde  chamar-se  delicto 
seguir  a  occultas  uma  religião  perseguida. 
Pouco  importava  que  a  bulia  mantivesse  a 
distincção  de  réus  poderosos  e  de  réus  não 
poderosos,  para  aos  segundos  se  revelarem 
os  nomes  dos  seus  accusadores  e  das  teste- 
munhas do  crime.  Como  a  distincção  ficava  a 
arbítrio  dos  inquisidores,  é  evidente  que  essa 
revelação,  muitas  vezes  indispensável  para  a 
defesa,  só  se  daria  quando  elles  não  estives- 
sem resolvidos  a  condemnar  o  réu,  que  nem 
sequer  tinha  a  garantia  da  opinião  publica 
para  oppor  a  quaesquer  irregularidades,  por 
mais  monstruosas  que  fossem,  de  um  pro- 
cesso inteiramente  secreto.  Ao  passo  que  se 
expediam  ordens  aos  magistrados  civis  de 
todo  o  reino  para  protegerem  os  inquisidores 


190  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

e  seus  agentes,  e  mandarem  prender  quaes- 
quer  pessoas  por  elles  designadas  (1),  o  bispo 
de  Ceuta  publicava  um  monitorio  em  que  se 
estabelecia  e  regulava  o  systema  de  delações 
acerca  dos  crimes  contra  a  pureza  da  fé.  Este 
monitorio  era  um  tremendo  roteiro  que  assi- 
gnalava  os  parceis  onde  se  tornaria  fácil  o 
naufrágio.  Os  actos  ahi  especificados,  que  de- 
viam servir  de  indicio  de  heresia,  eram  tantos, 
e  alguns  tão  insignificantes  e  até  ridiculos, 
que  ninguém  se  podia  considerar  seguro  de 
não  ser  accusado  de  erro  em  matérias  de  fé, 
quanto  mais  aquelles  que  a  malevolencia  ge- 
ral trazia  vigiados.  Não  eram  só  a  celebração 
dos  ritos  e  festas  judaicas,  a  circumcisão  e  as 
doutrinas  manifestamente  oppostas  ao  catho- 
licismo,  que  pelo  monitorio  do  inquisidor-mór 
deviam  ser  denunciadas  dentro  de  trinta  dias 
por  quem  quer  que  soubesse  que  alguém  ha- 
via practicado  aquellas  ou  propagado  estas 
depois  do  perdão  de  12  de  outubro;  era,  tam- 
bém, um  sem  numero  de  actos  innocentes  em 
si  e  que,  embora  coincidissem  com  supersti- 
ções judaicas,  os  mais  puros  christãos  po- 
diam practicar  sem  malicia,  como  ainda  hoje 


(1)  Circular  de  20  de  novembro  de  1536,  uo  Colle- 
ctorio,  f.  147. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  191 

subsistem  entre  o  povo  usanças  cuja  origem 
remonta  ás  superstições  do  polytheismo  ro- 
mano, sem  que  por  isso  o  povo  se  haja  de 
reputar  pagão.  O  modo  de  matar  as  rezes  ou 
as  aves,  o  provar  o  fio  das  facas  ou  cutellos 
na  unha  do  dedo  pollegar,  o  não  comer  certas 
variedades  de  carne  ou  de  peixe,  a  altura  das 
mesas  em  que  se  tomavam  as  refeições,  a 
natureza  destas,  o  logar  do  aposento  onde  se 
estava  por  occasião  da  morte  de  qualquer  in- 
dividuo, o  porem  os  pães  as  mãos  sobre  a 
cabeça  ou  no  rosto  dos  filhos,  o  renovar  as 
torcidas  dos  candieiros  ou  limpá-los  á  sexta- 
feira,  e  outros  actos  semelhantes  obrigavam 
em  consciência,  e  sob  pena  de  excommunhão, 
quem  quer  que  os  visse  practicar,  ou  delles 
tivesse  noticia,  a  denunciá-los  â  Inquisição. 
Não  só  se  ficava  obrigado  a  accusar  como 
hereje  todo  aquelle  que  negasse  a  immortali- 
dade  da  alma  e  a  divina  missão  de  Jesu- 
Christo,  mas  também  cumpria  delatar  os  que 
andassem  de  noite,  como  as  bruxas  ou  como 
os  feiticeiros,  em  companhia  do  demónio,  ou 
que  chamassem  por  este  para  o  haverem  de 
interrogar  acerca  dos  successos  futuros  (1). 


(1)  Monitorio  de  18  de  agosto  de  1536,  no  Colle- 
ctorio,  f .  5  6  segg. 


192  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Antes,  porérn,  de  se  abrir  tão  vosto  campo 
ás  delações  e  á  perseguição,  tinha-se  publi- 
cado a  20  de  outubro  um  edital  em  que  se 
marcavam  trinta  dias  para  o  chamado  tempo 
de  graça  (1).  Por  esse  edital  eram  admoesta- 
dos todos  os  que  houvessem  errado  contra  a 
fé  a  irem  confessar  suas  culpas  perante  o  in- 
quisidor-mór,  delatando  ao  mesmo  tempo  os 
delictos  alheios,  sem  exceptuar  os  dos  pró- 
prios progenitores  ou  de  pessoas  fallecidas. 
Não  se  alludindo  ahi  nem  levemente  á  dis- 
tincção  entre  os  actos  anteriores  á  bulia  de 
12  de  outubro  e  os  posteriores  a  ella,  e  exi- 
gindo-se  denuncias  até  contra  os  mortos,  co- 
meçava-se  desde  logo  por  quebrar  as  termi- 
nantes provisões  da  bulia  de  23  de  maio, 
onde  se  quizera  evitar  do  modo  possível  as 
apparencias  de  uma  contradicção  flagrante 
nas  resoluções  pontifícias.  Naquelle  edital  a 
Inquisição  promettia  aos  que  se  reconheces- 


(1)  Este  edital,  que  se  acha  vertido  em  latim  na 
Symmicta  (vol.  32,  foi.  70  e  segg.),  não  foi  publicado 
no  Collectorio,  onde  se  encontram  os  outros  docu- 
mentos análogos.  A  contradicção  em  que  elle  estava 
com  o  espirito  e  letra  na  bulia  de  12  de  outubro,  e 
da  própria  bulia  da  Inquisição,  explica  sufficiente- 
mente  essa  suppressão. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  193 

sem  culpados,  com  animo  puro  e  sincero,  o 
perdão  do  passado  a  troco  de  leves  peniten- 
cias. Deste  modo  essas  expressões  de  cari- 
dade, mansidão  e  doçura  evangélicas,  em  que 
o  edital  abundava,  convertiam-se  numa  cousa 
irrisória,  visto  que,  devendo  ser  os  inquisi- 
dores os  juizes  da  sinceridade  ou  do  fingi- 
mento das  declarações  dos  réus,  a  garantia 
que  se  dava  a  estes  vinha  a  ser  o  mero  ar- 
bitrio  dos  seus  inimigos.  Sacrificadores  e  vi- 
ctimas,  todos  entendiam  de  antemão  que  o 
tempo  de  graça  era  uma  simples  formula.  A 
humanidade  e  a  tolerância  da  Inquisição 
nesta  conjunctura  eram  assas  problemáticas, 
não  havendo  ninguém  tão  insensato  que  fos- 
se fazer  contra  si  próprio  uma  confissão 
inútil. 

A  previsão  mais  natural ;  o  que  parecia 
inevitável,  depois  das  tenazes  resistências 
oppostas  ao  estabelecimento  do  tribunal  da 
fé  e  dos  extremos  esforços  que  ultimamente 
se  haviam  empregado  para  o  crear,  era  que 
desde  logo  começasse  uma  dessas  epochas 
de  terror  e  de  sangue,  um  desses  accessos 
de  phrenetica  intolerância  que  tantas  vezes 
ensombram  duplicadamente  as  paginas  sem- 
pre negras  dos  annaes  da  Inquisição.  Não 
cremos,  porém,  que  succedesse  assim,  e  as 
TOMO  n  13 


194  ;UA  DA  INQUISIÇÃO 

instituições  mais  absurdas,  os  maiores  crimi- 
nosos têem  direito  de  exigir  a  imparcialidade 
da  liistoria.  Faltam-nos  provas  directas  da 
moderação  do  novo  tribunal  nos  primeiros 
tempos  da  sua  existência,  e  a  Índole  e  fins 
delle  impelliam-no  para  a  atrocidade  :  todavia, 
as  maiores  probabilidades  persuadem  que  não 
se  tentou  dar  á  bulia  de  23  de  maio  uma  in- 
terpretação demasiado  desfavorável  aos  con- 
versos, ou  pelo  menos,  que  o  procedimento 
dos  inquisidores  não  ultrapassou,  como  acon- 
teceu depois  tantas  vezes,  a  meta  da  legali- 
dade. Lendo-se  as  allegações  feitas  em  diver- 
sos tempos  pelos  agentes  dos  christãos-no- 
vos  perante  a  cúria  romana,  não  se  encon- 
tram, relativamente  ao  periodo  immediato  á 
nomeiação  do  bispo  de  Ceuta,  senão  accusa- 
ções  vagas,  que  mais  vão  ferir  as  provisões 
da  bulia  de  23  de  maio  do  que  os  seus  exe- 
cutores (1).  Entre  os  membros  do  conselho 
geral,  instituído  immediatamente  por  Fr.  Dio- 
go da  Silva,  achavam-se  caracteres  dignos 
daquelle  odioso  cargo.  Tal  era,  como  adiante 
veremos,   o  de  João  de  Mello,  inquisidor  es- 


(1)    Veja-se   nomeiaciamente  o  Memorial:  Sym- 
micta.  vol.  31.  lbi.  42  e  seeríj. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  195 

pecial  de  Évora.  Mas  havia  outros  que,  sem 
devermos  acreditar  fossem  modelos  de  tole- 
rância, sabiam  moderar  os  Ímpetos  do  fana- 
tismo pelo  sentimento  da  justiça.  Entre  estes 
contava-se  António  da  Motta,  que  dous  annos 
depois  tinha  de  luctar  contra  os  excessos  do 
sucessor  de  Fr.  Diogo,  o  infante  D.  Henri- 
que (1),  Pelo  que,  porém,  respeita  ao  inquisi- 
dor-mór,  existe  o  testemunho  insuspeito  dos 
próprios  conversos,  que,  segundo  já  vimos,  o 


(1)  Doe.  na  Symmicta,  vol.  32,  f.  252  v.  e  segg. 
Deste  documento,  que  adiante  havemos  de  aprovei- 
tar, se  coníiece  que  o  conselho  geral  teve  desde  o 
principio  maior  numero  de  membros  do  que  esses 
que  mencionam  Sousa  e  Monteiro  (Aphorismi  In- 
quisitor.,  p.  13 :  —  Memor.  da  Acad.  d'Hist.,  T,  i,  N.° 
25),  os  quaes  os  reduzem  a  quatro.  Porventura  fo- 
ram desde  logo  os  mesmos  seis,  de  que  sabemos 
era  posteriormente  composto.  O  próprio  António 
da  Motta  nos  diz,  falando  de  si  naquelie  documento: 
ego  in  tempere  episcopi  septensis  semper  fui  de 
consilio.  Et  quia  videbam  (1539)  quod  dominus  in- 
fans  D.  Henricus  non  servabat  in  his  formam  buJ- 
lae,  prout  ego  cum  aliis  ei  multoties  diximus».  Es- 
tes deputados  do  conselho,  que  ousavam  resistir  ás 
illegalidades  do  infante  (ou  dos  inquisidores,  como 
elle  depois  declarou,  provavelmente  por  medo)  de- 
vemos suppor  que  tinham  anteriormente  procedido 
melhor  do  que  os  outros  seus  collegas. 


196  HISrORIA  DA  INQUISIÇÃO 

reputavam  homem  honesto  e  moderado  (1). 
Por  outra  parte,  dada  a  curta  intelligencia  de 
D.  João  III,  o  capricho  offendido  devia  ter 
entrado  por  grande  parte  no  empenho  que 
elrei  mostrara  em  obter  a  Inquisição,  e  a 
vaidade  satisfeita  pelo  triumpho  abrandava- 
Ihe  naturalmente  a  irritação  do  fanatismo. 
Accresciam  as  recommendações  do  papa  e 
de  Santiquatro  sobre  a  necessidade  da  mode- 
ração, e  o  considerar-se  que  um  proceder 
demasiado  violento  daria  força  ás  representa- 
ções dos  agentes  dos  christãos-novos  em 
Roma  contra  uma  instituição  que  não  podiam 
tolerar,  ^que  era  guerreiada  pelos  poderosos 
protectores  dos  mesmos  christãos-novos,  e 
que  o  papa  só  concedera  constrangido  pela 
necessidade  de  condescender  com  as  repeti- 
das instancias  de  Carlos  v. 

Mas,  além  destas  razões,  que  persuadem 
não  terem  sido  os  primeiros  actos  do  novo 


(1)  A  faila  de  processos  nos  cartórios  da  Inquisi- 
ção, relativos  a  estes  primeiros  tempos,  seria  uma 
prova  decisiva  dessa  moderação,  se  uma  grande 
parte  dos  mesmos  processos  não  liouvessem  desap- 
parecido  antes  de  serem  recolhidos  á  Torre  do 
Tombo,  ou  se  acaso  se  podesse  demonstrar  que  el- 
les  se  faziam  e  archivavam  então  com  a  mesma  re- 
gularidade que  depois  de  1540. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  197 

tribunal  assignalados  por  excessos  de  perse- 
guição, havia  outras  que  mais  directamente 
para  isso  deviam  contribuir.  Sem  deixarem 
de  proseguir  nas  diligencias  em  Roma,  os 
hebreus  portugueses  procuravam  minorar  o 
perigo  da  sua  situação,  tentando  modificar  o 
despeito  de  D.  João  ni.  O  edital  do  inquisi- 
dor-mór,  enumerando  os  actos  considerados 
como  indicio  de  judaísmo,  tinha-os  enchido 
de  terror.  Por  intervenção  de  pessoa  addicta 
ao  infante  D.  Luiz,  os  chefes  da  gente  hebréa, 
Jorge  Leão  e  Nuno  Henriques,  proposeram 
uma  transacção  que  o  infante  se  encarregou 
de  communicar  a  elrei,  favorecendo-a  com  o 
seu  voto.  Ponderavam  elles  o  que  é  obvio 
para  o  leitor ;  que  os  actos  apontados  como 
indicio  de  heresia  eram  taes  e  tantos,  que 
seria  impossível  evitar  constantemente  o  pra- 
cticar  algum  desses  actos.  Culpados  e  in- 
nocentes,  todos  corriam  risco.  Elles,  porém, 
sob  pena  das  muletas  que  se  lhes  quizessem 
impor  por  cada  contravenção,  compromet- 
tiam-se  a  fazer  com  que  nenhum  christão- 
-novo  fugisse  do  reino  com  familia  e  cabe- 
daes,  se  elrei  lhes  obtivesse  do  papa  a  proro- 
gação  por  mais  um  anno  do  praso  concedido 
pela  bulia  de  12  de  outubro  de  1535,  dando- 
se-lhes   assim  o   tempo  necessário  para  se 


198  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cohibirem  de  futuro  dos  actos  reputados  sus- 
peitos, ficando  exemptos  de  denuncias,  pelos 
que,  talvez  innocentemente,  houvessem  pra- 
cticado  depois  da  epocha  do  perdão.  Os 
dous  chefes  declaravam  que,  sem  isto, 
poucos  deixariam  de  tentar  a  fuga.  Posto 
que  o  infante  não  cresse  que  Jorge  Leão 
e  Nuno  Henriques  exercessem  tanta  in- 
fluencia como  suppunham,  aconselhava,  to- 
davia, ao  irmão  que  viesse  a  um  accor- 
do,  ponderando-lhe  a  perda  immensa  que 
resultaria  para  o  paiz  da  fuga  de  tantos 
vassallos  ricos  e  industriosos,  e  a  impossibi- 
lidade de  obstar  a  essa  fuga,  por  mais  seve- 
ras que  fossem  as  leis  e  providencias  desti- 
nadas a  impedi-la  (1).  Não  moveram  as  largas 
ponderações  do  infante  o  animo  d'elrei  a  con- 
vir na  proposta ;  mas  os  conselhos  daquelle 
príncipe,  que,  pela  superioridade  da  intelligen- 
cia  e  pela  energia  da  vontade,  sabia  muitas 
vezes  fazer  triumphar  a  sua  opinião  nos  ne- 
gócios   mais    graves   (2),   contribuíram,  por 


(1)  Carta  do  infante  D.  Luiz  a  elrei  (sem  data), 
na  G.  2,  M.  2,  N.«  34. 

(2)  «Apresso  il  re,  nelle  cose  grandi,  possono  as- 
sai Tinfante  D.  Luigi  per  autoritá  che  si  ha  presa 
da  se  quasi  violentamente,  etc.^i :  Tnstruzione  ai  coa- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  199 

certo,  poderosamente  para  a  moderação  com- 
parativa, da  qual  nos  parece  descubrir  vestí- 
gios durante  o  tempo  em  que  o  bispo  de 
Ceuta  exerceu  o  cargo  de  inquisidor  geral. 

Entretanto,  passados  os  primeiros  dias  de 
desalento,  os  agentes  dos  conversos  em  Roma 
preparavam-se  para  recorrer  de  novo  aos 
meios  que  haviam  opposto  aos  esforços  dos 
fautores  da  Inquisição  e  á  influencia  d'elrei, 
que,  aliás,  sem  o  auxilio  de  Carlos  v  não  teria 
obtido  triumpho  tão  decisivo.  As  circumstan- 
cias  tornavam  a  favorecê-los.  Com  a  partida 
do  imperador  e  dos  dous  ministros  portu- 
gueses, a  pressão  immediata  e  violenta  exer- 
cida sobre  o  animo  do  papa  cessava,  ficando 
apenas  Santiquatro  para  proteger  a  causa  da 
Inquisição.  Entre  as  pessoas  que  se  inclina- 
vam a  favor  da  raça  hebréa  tinha-se  distin- 
guido sempre  o  cardeal  Ghinucci,  e  a  affronta 
de  haver  sido  expulso  da  juncta,  a  cujo  cargo 
estava  o  exame  e  solução  daquelle  intrincado 
negocio,  devia  irritá-lo,  tornando-o  mais  affer- 
rado  á  sua  opinião  e  mais  activo  em  fazê-la 
prevalecer.  Apenas  a  bulia  de  23  de  maio  foi 
publicada  em  Portugal,  e  chegou  a  Roma  a 


djutore  di  Bergamo  (Symmicta,  vol.  12,  f.  46  v)  que 
adiante  havemos  de  aproveitar  largamente. 


200  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

noticia  dos  editaes  mandados  affixar  em 
Évora,  os  agentes  dos  hebreus  recorreram  ao 
papa  com  enérgicas  supplicas.  Repetiam  por 
diverso  modo  as  considerações  que  tantas 
vezes  tinham  já  offerecido  contra  o  estabele- 
cimento da  Inquisição,  e  accrescentavam 
outras  novas  contra  o  theor  da  bulia  e  con- 
tra as  illegalidades  e  absurdos  dos  editaes. 
Observavam  que,  expedindo-se  aquella  a  23 
de  maio,  se  havia  falseiado,  ao  menos  inten- 
cionalmente, o  disposto  na  de  12  de  outubro, 
em  que  se  concedia  aos  suspeitos  e  aos  réus 
de  heresia  um  anno  para  obterem  o  perdão ; 
que  o  cardeal  Santiquatro,  sendo  agente  de 
D.  João  iii,  havia  substituído  o  cardeal  Ghi- 
nucci  na  juncta  encarregada  de  resolver  a 
questão,  ficando  assim  ao  mesmo  tempo  juiz 
6  parte ;  que,  contra  direito  divino  e  humano 
se  expedira  definitivamente  e  se  mandara 
executar  a  bulia  da  Inquisição,  sem  estar 
abrogada  a  lei  que  obstava  á  saída  do  rei- 
no das  íamilias  hebréas ;  que  se  deixara  ao 
arbitrio  dos  inquisidores-móres  e  á  influencia 
d'elrei  a  escolha  e  nomeiação  dos  inquisido- 
res subalternos  e  dos  officiaes  e  familiares  do 
tribunal,  que,  aliás,  deviam  ser  approvados 
pelos  ordinários,  e  nomeiados  individualmente 
pelo  pontifice.  Assignalavam,  além  disso,  como 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  201 

viciosas  muitas  provisões  daquelle  diplo- 
ma. Taes  eram  estabelecer  o  processo  ordiná- 
rio só  por  três  annos,  e  supprimir  os  confiscos 
só  por  dez ;  estatuir  como  facultativo  o  dever 
restricto  que  os  bispos  tinham  de  intervirem 
nas  causas  da  heresia  ;  conceder  que  tives- 
sem trinta  annos  os  juizes  da  Inquisição 
quando  o  direito  canónico  lhes  exigia  qua- 
renta ;  não  providenciar  para  que  os  cárce- 
res fossem  accessiveis,  servindo  de  custodia 
e  não  de  castigo,  e  para  que  os  inquisidores 
não  procedessem  ás  capturas  sem  regra  al- 
guma e  a  seu  bel-prazer  :  deixar  de  exigir 
que  fosse  bem  provado  o  caracter  das  tes- 
temunhas, e  de  regular  os  casos  em  que  se 
dariam  tractos,  que,  aliás,  cumpria  fossem 
moderados  e  em  virtude  de  resoluções  con- 
formes do  inquisidor  e  do  ordinário,  exce- 
ptuando-se  delles  os  que  a  lei  civil  exceptuava, 
como  doutores  e  cavalleiros ;  finalmente,  não 
ampliar  e  precisar  bem  o  systema  das  appe- 
lações,  o  que,  na  opinião  dos  conversos,  era 
o  ponto  capital  daquelle  complicado  nego- 
cio (1).  Nalguns  dos  seus  memoriaes  ao  papa 


(1)  Inquisitio  non  debuit  concedi,  etc  (Symmicta, 
vol.  2,  f.  271).  Rationes  quibus  S.  D.  N.  mo  tus  (Ibid. 
vol.  32,  f.  145  e  segg.)  Este  ultimo  arrazoado  é  de 


'202  HISTORIA    DA   ÍNOUISIÇÃO 

OS  conversos  chegavam  a  ser  eloquentes  :  Se 
vossa  « sanctidade  —  diziam  elles  —  despre- 
zando as  preces  e  lagrimas  da  gente  hebréa, 
o  que  não  esperamos,  recusar  prover  ao  mal, 
como  cumpre  ao  vigário  de  Christo,  protesta- 
mos ante  Deus  e  a  vossa  sanctidade,  e  com 
brados  e  gemidos,  que  soarão  longe,  protes- 
taremos á  face  do  universo,  que,  não  achando 
logar  onde  nos  recebam  entre  o  rebanho 
christão,  perseguidos  na  vida,  na  honra,  nos 
filhos,  que  são  nosso  sangue,  e  na  própria 
salvação,  tentaremos  ainda  abster-nos  do  ju- 
daísmo, até  que,  não  cessando  as  tyranniasi 
façamos  aquillo  em  que,  aliás,  nenhum  de 
nós  pensaria,  isto  é,  voltemos  á  religião  de 
Moysés,  renegando  o  christianismo,  que  vio- 
lentamente nos  obrigaram  a  acceitar.  Procla- 
mando solemnemente  a  força  precisa  de  que 
fomos  victimas,  pelo  direito  que  esse  facto 
nos  dá,  direito  reconhecido  por  vossa  sancti- 
dade, pelo  cardeal  protector  e  pelos  próprios 
embaixadores  de  Portugal,  abandonando  a 
pátria  buscaremos  abrigo  entre  povos  menos 


uma  epocha  algum  tanto  posterior;  mas  do  seu  pró- 
prio contexto  se  conhece  que  as  objecções  aqui 
resumidas  foram  desde  Jogo  apresentadas.  Veja-se, 
além  disso,  o  Memoriale,  vol.  cit.,  f.  45  e  segg. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  203 

cruéis,  seguros,  em  qualquer  eventualidade, 
de  que  não  será  a  nós  que  o  Omnipotente 
pedirá  estreitas  contas  do  nosso  procedi- 
mento». Quanto  aos  editaes,  pondera vam-se 
os  absurdos  que  nelles  se  descobrem  á 
simples  leitura,  e  apontavam-se,  além  disso, 
outras  disposições  ahi  contidas  inteiramente 
contrarias  não  só  ao  direito  commum,  mas 
ainda  ao  espirito  e  á  própria  letra  da  bulia  de 
23  de  maio  (1). 

Estas  allegações  eram  fortificadas  por  ou- 
tras diligencias  que  se  faziam,  diligencias  mais 
ou  menos  illegitimas,  mas  que  os  costumes 
devassos  do  tempo  até  certo  ponto  desculpa- 
vam. Tinha  chegado  a  Roma  o  núncio  Marco 
delia  Ruvere,  cujas  idéas  moraes  o  leitor  já 
conhece  e  os  christãos-novos  deviam  por  ex- 
periência própria  conhecer  ainda  melhor.  O 
seu  despeito  contra  elles  por  questões  de  di- 
nheiro estava  modificado,  e  a  razão  disso  fá- 
cil é  de  suppor.  O  que  é  certo  é  que  o  bispo 
de  Sinigaglia  foi  encarregado  de  peitar  Am- 
brósio Ricalcati,  secretario  particular  do  papa, 
e,  segundo  parece,  alguma  outra  pessoa  in- 
fluente, para  inclinarem  o  animo  de  Paulo  iii 


(1)  Rationes  erga  edictum,  etc.  Ibid.  f.  75  e  segg. 
-  Memormle  quoddam,  etc.  Ibid.  f.  90  e  segg. 


204  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

a  proteger  de  novo  a  causa  daquelles  que  pou- 
co antes  entregara  aos  ódios  dos  seus  perse- 
guidores (1).  Não  se  limitava  o  prelado  italia- 
no a  dar  estes  passos  occultos.  Elle  próprio 
expunha  ao  pontifice  com  vivas  cores  (no  que 
não  cremos  lhe  fosse  necessário  exaggerar 
ou  mentir)  o  que  havia  inconveniente,  injusto 
e  anti-christão  nas  ultimas  concessões  feitas 
ao  fanatismo  por  motivos  políticos  (2).  Temia 
o  pontifice  indispor  contra  si  os  dous  princi- 


(1)  Em  carta  do  embaixador  Pedro  de  Sousa  de 
Távora  de  20  de  janeiro  de  1538  (Corpo  Chronol.,  P. 
1,  M.  60,  N.°  76),  escripta  parte  em  cifra,  falando 
da  prisão  de  Micer  Ambrósio,  secretario  do  papa, 
pelo  excesso  da  sua  venalidade,  diz  o  agente  por- 
tuguês: «E  antre  as  outras  (peitas)  ho  bispo  de  Se- 
negalha  lhe  apresentou  logo  quando  vêo  de  Por- 
tugal (segue  em  cifra).  Também  entendi  que  (cifra) 
agora  (cifra)  não  sabendo  (cifra)  ho  mandava  com- 
metter  por  parte  dos  mesmos  (cifra)  cada  ano  (ci- 
fra) cruzados,  ou  mais,  para  que  os  favorecesse  e 
estas  (cifra)  as  mãos  (cifra);  por  onde  não  creo 
que  tenha  muito  contentamento  (cifra)  porque  quem 
aquillo  commette  a  outrem  he  sinal  que  não  du- 
vidará para  sy  também  tomar  o  que  lhe  derem». 

(2)  «Quia  jam  praefatus  dominus  nuntius  erat  in 
cúria,  et  sanctitatem  suam  de  omnibus  supradictis, 
pro  justitia  et  veritate,  ut  creditur,  informaverat». 
Memoriale,  1.  cit  f.  48  v. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  205 

pes,  mas  incommodavam-no  as  instantes  sup- 
plicas  dos  conversos,  e  faziam-no  vacillar  as 
suggestões  dos  que  o  rodeiavam.  Adoptou  um 
arbítrio:  nomeou  os  cardeaes  Ghinucci  e  Ja- 
cobacio  para  examinarem  se  a  bulia  de  23  de 
maio  devia  ser  modificada.  A  nomeiação  de 
Ghinucci  era  symptoma  evidente  de  que  a  po- 
litica da  cúria  romana  tomava  novas  direcções, 
nem  o  era  menos  ser  chamado  ás  conferen- 
cias o  ex-nuncio  em  Portugal.  O  resultado  foi 
entenderem  os  dous  cardeaes  que  a  bulia  ti- 
nha sido  indevidamente  concedida  e  conven- 
cerem disso  Paulo  III,  que  não  duvidou  de 
manifestar  aos  cardeaes  Simonetta  e  Pucci  o 
seu  arrependimento.  Debalde  Santiquatro  for- 
cejava por  desvanecer  os  remorsos  do  pontí- 
fice, e  conservar  Simonetta  nas  ídéas  que  lhe 
inculcara.  Arrastado  pelos  argumentos  de  Ghi- 
nucci e  Jacobacio,  este  confessou,  com  phra- 
ses  grosseiras  mas  sinceras,  haver  sido  illu- 
dido,  e  escusando- se  de  entender  mais  na- 
quelle  negocio,  declarou  que  ao  papa  tocava 
remediar  o  mal  que  se  tinha  causado  (1). 

Nesta  situação  a  corte  pontificia  resolveu 
enviar  novo  núncio  a  Portugal.  Foi  para  isso 


(1)  «So  stato  gabbato:  provede  sua  santità»:  Ibid 
f.  50. 


206  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

escolhido  o  protonotario  Jeronymo  Ricenati 
Capodiferro,  cujo  breve  de  nomeiação  se  ex- 
pediu a  24  de  dezembro  de  1536,  mas  que  só 
veio  a  partir  em  fevereiro  de  1537  (1).  Acha- 
va-se  já  então  encarregado  dos  negócios  de 
Portugal  em  Roma  Pedro  de  Sousa  de  Távo- 
ra; mas,  ou  fosse  porque  esperava  ser  subs- 
tituido  (2),  ou  porque  nos  faltem  correspon- 
dências suas,  ou,  finalmente,  porque-  os  con- 
versos soubessem  torná-lo  propicio  ou  pelo 
menos  indifferente,  não  consta  que  elle  pro- 
curasse contrariar  energicamente  as  novas 
tendências  da  cúria.  Era  o  fim  principal  da 
missão  de  Jeronymo  Ricenati  satisfazer  aos 
clamores  dos  christãos-novos,  embora  a  pre- 
sença de  um  agente  pontifício  na  corte  de  D. 
João  III  fosse  também  necessária  para  outros 
objectos  assas  graves.  Deram-se  ao  núncio 
cartas  de  crença  redigidas  por  Ghinucci  e  Ja- 
cobacio,  em  que  Paulo  iii  recommendava  a  el- 
rei  o  ouvisse  acerca  das  matérias  da  Inquisi- 
ção, e  ao  mesmo  tempo  escreveu-se  aos  in- 
fantes D.  Luiz  e  cardeal  D.  Afonso  para  que, 
sobre  aquelle  particular  objecto,  favorecessem 


(1)  M.  25  de  Bulias  N.»  4  e  52,  no  Arch.— Sym- 
micta,  vol.  32,  f.  68  e  vol.  33,  f.  159  v. 

(2)  Corpo  ChronoL,  P.  i,  M.  58,  N.»  43. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  207 

as  diligencias  do  representante  pontifício  com 
a  sua  influencia  no  animo  do  irmão  (1).  As 
instrucções  recebidas  por  Capodiferro  na  oc- 
casião  da  partida  versavam  sobre  diversos 
pontos  que  tinha  de  tractar,  mas  eram  em 
parte  relativas  ao  assumpto  do  novo  tribunal 
da  fé.  Vinha  incumbido  de  asseverar  a  elrei 
que,  apesar  das  queixas  dos  conversos,  nada 
do  que  estava  feito  se  mudaria,  mas  que,  por 
descargo  de  consciência,  o  papa  ordenava  a 
elle  núncio  que  emquanto  residisse  em  Por- 
tugal, examinasse  todos  os  processos  da  In- 
quisição, para  verificar  se  a  bulia  de  23  de 
março  se  cumpria  á  risca,  e  se  as  promessas 
de  moderação  particularmente  feitas  por  elrei 
se  realisavam.  Suppondo  que  não,  devia  pro- 
ceder conforme  as  circumstancias,  e  sobretu- 
do obstar  a  que  tivessem  a  menor  ingerência 
naquelle  negocio  os  que  haviam  combatido  a 
bulia  de  perdão,  porque  não  se  devia  presu- 
mir que  estes  taes  procedessem  por  zelo  da 
justiça  e  da  religião,  mas  sim  por  o^io  e  vin- 
gança. Entre  os  excluídos  indicavam-se  ex- 
pressamente o  doutor  João   Monteiro  e  um 


(1)  Litteree  Paulí  ni  Joan.  regi,  Cardinali  Portug, 
et  infanti  Alois.,  7  tebruar.  1537,  na  Symm.,  vol.  32, 
f.  65  e  sesK. 


208  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

certo  mestre  Afonso  (1),  cujo  valimento  com 
elrei  o  papa  extranhava,  por  ser  homem  de 
vida  escandalosa  e  turbulento,  do  que  dera 
sobejas  provas  em  Castella  durante  a  revolta 
dos  communeros,  e  que  já  nas  cortes  de  Évo- 
ra de  1535,  segundo  as  imformações  obtidas 
em  Roma,  o  povo  requerera  a  elrei  affastasse 
de  seu  lado.  Era  agora  o  papa  quem  insistia 
nisto,  pedindo-lhe  que  o  mandasse  recolher 
ao  convento  a  fazer  penitencia.  Accrescenta- 
va-se  nas  instrucções  a  Capodiferro  que  se 
esforçasse  em  persuadir  com  bons  termos 
elrei  da  necessidade  de  se  mostrar  cauteloso  e 
severo  na  escolha  dos  juizes  e  officiaes  da 
Inquisição,  para  que,  em  vez  de  se  punirem 
os  maus  e  de  se  deixarem  em  paz  os  bons, 
não  succedesse  vir  aquelle  tribunal  a  servir  só 
para  satisfação  das  malevolencias  e  vingan- 
ças dos  christãos-velhos.  Entretanto,  manda- 
va-se  expressamente  ao  núncio  que  tomasse 
conhecimento  de  qualquer  causa  em  que  se 
practicasse  injustiça,  e  quando  isso  não  bas- 
tasse, a  suspendesse  e  avocasse  a  si,  para  o 


(1)  Era  provavelmente  o  mesmo  que  oífen- 
dera  a  corte  de  Roma  nas  suas  prédicas  a  favor 
da  intolerância  e  do  fanatismo.  Vide  ante  p.  15G 
e  seg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  209 

que  se  lhe  facultavam  os  devidos  poderes  (1). 
Dizia-se-lhe  também  que,  se  achasse  resistência, 
desse  disso  conta  para  Roma,  porque  assim 
haveria  razão  sufficiente  para  abolir  a  Inqui- 
sição. Ultimamente,  parecia  ao  papa  dever-se 
revogar  a  lei  que  prohibia  a  saída  do  reino 
aos  conversos,  lei  suscitada  de  novo  em  1535, 
o  que  os  tornava  de  peior  condição,  talvez, 
que  os  escravos.  Recommendava,  portanto  ao 
seu  núncio  que  a  este  respeito  não  poupasse 
instancias  com  o  rei;  que  lhe  dissesse  franca- 
mente ser  opinião  geral  que  tanto  apego  á 
Inquisição  não  era  da  parte  delle  zelo  da  fé, 
mas  sim  intenção  de  arruinar  aquelles  des- 
graçados; que  lhe  pintasse  tal  procedimento 
como  capaz  de  os  tornar  peiores  que  judeus, 
trazendo- lhes  á  lembrança  o  captiveiro  do 
Egypto,  e  lhe  advertisse  que,  se  procedia  as- 
sim com  o  pretexto  de  obstar  a  que  fossem 
fora  do  paiz  professar  o  judaísmo,  melhor  era 
se  tornassem  judeus  por  maldade  própria  do 
que  por  tyrannia  delle,  a  quem  não  era  licito 


(1)  o  breve  destes  poderes,  datado  de  9  de  ja- 
neiro de  1537,  acha-se  inserto  em  duas  copias  au- 
thenticas  no  processo  de  Ayres  Vaz:  processos  da 
Inquisição  de  Lisboa,  N.^^  13:186  e  17:749,  no  Arcli. 
Nac. 

TOMO  II  14 


210  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

violentar-lhes  as  vontades,  que  Deus  fizera  li- 
vres e  que  mais  facilmente  se  dobrariam  com 
a  brandura  e  caridade  do  que  com  a  violên- 
cia, a  qual  em  nenhum  caso  podia  compade- 
cer-se  com  a  verdadeira  justiça  (1). 

Taes  eram  as  instrucções  dadas  ao  proto- 
notario,  instrucções  evidentemente  redigidas 
com  intuito  hostil  á  Inpuisição,  e  cujo  conteú- 
do os  christãos-novos  de  certo  não  ignora- 
vam. Em  harmonia  com  a  ultima  parte  delias, 
estes  dirigiram  a  elrei  uma  extensa  supplica, 
em  que  ponderavam  tudo  quanto  havia  tyran- 
nico  e  atroz  na  lei  de  14  de  junho  de  1532,  re- 
validada em  1535,  e  pediam  a  liberdade  natural 
de  que  gosavam  os  outros  vasallos  da  coroa, 
não  só  de  saírem  do  reino,  mas  também  de 
venderem  seus  bens  de  raiz  e  de  levarem  com- 
sigo  os  próprios  cabedaes  (2).  Porventura  a 
supplica  era  feita  sem  a  minima  esperança  de 
deferimento;  mas  esse  mesmo  facto  servia 
para  combater  a  Inquisição,  porque  tornava 
mais  monstruosa  a  instituição  e  dava  maior 
plausibilidade  á  crença  de  que  a  mente  d'el- 


(1)  Instruzione  di  S   S.   per  il  signore  núncio  G. 
Capodiferro,  etc.  33,  f.  149. 

(2)  Supplica  tio  regi  íacta,  etc,  Symm.,  vol.  32,  f. 
98  V.  e  sogg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  211 

rei  não  era  manter  a  pureza  e  integridade  da 
fé  nos  próprios  estados,  mas  sim  verter  o  san- 
gue de  uma  parte  dos  seus  súbditos  mais 
opulentos,  para  se  apoderar  das  suas  rique- 
zas. O  estado  da  fazenda  publica  auctorisava 
esta  crença.  Não  era  possivel  occultar  a  mi- 
séria do  erário;  porque  já  por  esse  tempo, 
afora  a  enorme  divida  interna  representada 
pelos  padrões  de  juro,  os  empréstimos  levan- 
tados em  Flandres  eram  tão  avultados,  em 
relação  áquella  epocha  e  aos  recursos  do  paiz, 
que  os  juros  anuaes  desses  empréstimos  su- 
biam a  cento  e  vinte  mil  cruzados.  Vinham 
ensombrar  este  quadro  e  tornar  ainda  mais 
Lemeroso  o  futuro,  não  só  as  despezas  inevi- 
táveis das  guerras  de  Africa,  da  índia  e  da 
colonisação  e  defesa  do  Brazil;  mas  também 
o  génio  desperdiçado  d'elrei,  que,  não  conten- 
te de  augmentar  as  difficuldades  económicas 
com  a  manutenção  de  frades  e  com  obras  dis- 
pendiosas de  conventos  e  mosteiros,  taes  co- 
mo as  de  Thomar  e  Belém,  desbaratava  a  fa- 
zenda do  Estado  com  mercês  de  dinheiro, 
verdadeiramente  pródigas,  feitas  a  cortezãos  e 
aífeiçoados  (1).  Conforme  o  que  era  de  espe- 


(1)  Sousa,   Annaes,   Append.    de   Doe.    p.    401, 
404  e  segg. 


212  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

rar,  a  supplica  não  teve  resultado.  Transmitti- 
da  então  por  copia  para  Roma  e  inserida  num 
memorial  dirigido  a  Paulo  iii,  em  que  os  con- 
versos, queixando-se  da  dureza  com  que  eram 
tractados  pelo  seu  soberano  era  matéria  de 
tão  evidente  justiça,  pediam  protecção  ao  pae 
commum  dos  fiéis,  essa  supplica  indeferida 
abonava  as  diligencias  que  se  faziam  para  an- 
nullar  os  effeitos  da  bulia  de  23  de  maio  (1). 
Recebendo  as  instrucções  que  vimos,  Ca- 
podi ferro  recebera  também  um  breve  com 
poderes  para  proceder  á  suspensão  absoluta 
ou  limitada  dos  inquisidores,  se  elles  recusas- 
sem consentir-lhe  a  inspecção  dos  seus  actos 
e  a  modificação  das  suas  decisões,  em  con- 
formidade com  o  pensamento  que  movera  o 
pontífice  a  enviá-lo  a  Portugal.  O  papa  tinha, 
porém,  encarregado  vocalmente  o  núncio  de 
pedir  a  D.  João  iii,  buscando  para  isso  mover 
também  o  animo  dos  infantes  D.  Luiz  e  D. 
Affonso,  que  sobreestivesse  no  exercício  da 
Inquisição,  debatendo-se  de  novo  na  cúria  a 
conveniência  ou  inconveniência  de  se  conser- 
var aquelle  tribunal,  e  mandando-se  um  em- 
baixador especial  para  tractar  o  assumpto, 
mas  consentindo  ao  mesmo  tempo  que  saís- 


(1)  Supplicatio,  etc.  Symm.,  1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  213 

sem  do  reino  quatro  christãos-novos  para 
advogarem  em  Roma  a  causa  destes.  Se  D. 
João  III  recusasse  formalmente  ou  protrahisse 
a  resolução  definitiva  com  dilações  e  argucias, 
Jeronymo  Ricenati  devia  proceder  vigorosa- 
mente, intromettendo-se  em  todos  os  proces- 
sos, e  reduzindo  á  obediência  pela  compulsão 
canónica  os  ministros  do  Sancto-Officio  que 
se  mostrassem  rebeldes.  Se,  em  consequên- 
cia disso,  elrei  viesse  a  um  accordo,  usaria  de 
moderação  e  procuraria  haver-se  de  modo 
que  o  monarcha  se  desse  por  satisfeito,  e  ao 
mesmo  tempo  os  christãos-novos  não  tives- 
sem queixa  da  sé  apostólica,  falando  sempre 
a  favor  delles,  cada  vez  que  sollicitassem  a 
sua  protecção  (1). 

Tal  era  a  politica  da  corte  de  Roma.  O  lei- 
tor não  pôde  ter  deixado  de  notar  as  phases 
por  que  passou  até  esta  conjunctura  o  nego- 
cio da  Inquisição.  Concedido  a  principio  sem 
grande  resistência  e  só  com  as  restricções 
que  convinham  ao  predomínio  da  cúria,  o  ter- 
rível tribunal  fora  supprimido  á  força  das  di- 
ligencias e  do  ouro  dos  conversos,  e  conce- 
dido de  novo,  não  porque  as  convicções  ou 


(1)  Ordo  lenendus  a  nuntio  iii  Regno  Porlugaliae 
ele  vol.  cil.  f.  08. 


214  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

as  circumstancias  mudassem,  mas  sim  por- 
que o  seu  restabelecimento  se  casava  com  as 
conveniências  politicas,  e  os  christãos-novos 
se  mostravam  remissos  em  cumprir  os  con- 
tractos pecuniários  feitos  com  Sinigaglia.  Em- 
bora o  papa  houvesse  invocado  para  o  suppri- 
mir  as  doutrinas  immutaveis  de  caridade,  to- 
lerância e  justiça  promulgadas  no  evangelho : 
essas  doutrinas  eram  condemnadas  pela  voz 
imperiosa  de  Carlos  v,  e  a  cúria  romana  não 
hesitou  em  condemná-las  também.  Agora  as 
cousas  mudavam.  Os  christãos-novos  enten- 
diam melhor  outra  vez  os  seus  verdadeiros 
interesses,  e  as  doutrinas  evangélicas  readqui- 
riam  preponderância  em  Roma.  Pôr  na  tela 
da  discussão  um  assumpto  já  debatido  até  a 
saciedade,  se  não  trazia  mais  luz  aos  espiri- 
tos,  trazia,  sem  duvida,  novos  e  avultados  pro- 
ventos aos  árbitros  e  aos  mantenedores  do 
combate.  Dir-se-hia  que  Roma,  com  o  dedo 
no  pulso  da  gente  hebréa,  lhe  calculava  os 
alentos  para,  sem  deixar  de  se  alimentar  do 
seu  sangue,  não  a  reduzir  a  inútil  cadáver. 
Nisto  dava  provas  de  maior  prudência  do  que 
D.  João  III,  o  qual  cego  pelo  fanatismo  e  acon- 
selhado pela  falta  de  recursos,  sonhava,  talvez, 
no  avultado  dos  confiscos  que  de  futuro  lhe 
devia  trazer  o  extermínio  daquella  raça  infeliz. 


HISTORIA  DA  INIQUISIÇÃO  215 

sem  attender  a  que,  transigindo  com  ella,  mas 
conservando-lhe  sempre  diante  dos  olhos  o 
phantasma  da  Inquisição,  teria  acliado  um 
systema  de  espoliação  perpetua.  Das  duas  po- 
liticas a  mais  franca  era  a  d'elrei ;  mas  a  de 
Roma  era,  sem  contradicção,  a  mais  sagaz. 

Fosse  porque  D.  João  iii  soubesse  conciliar 
a  benevolência  do  protonotario ;  fosse  porque, 
como  cremos,  á  Índole  do  inquisidor-mór  re- 
pugnassem as  perseguições  violentas,  e  os 
actos  da  Inquisição  não  dessem  sufficiente 
motivo  aos  encarecimentos  dos  christãos-no- 
vos,  é  certo  que,  entrando  em  Portugal,  o 
núncio  não  usou  dos  largos  poderes  que  tra- 
zia. Enérgicas  representações  chegavam,  po- 
rém, a  Roma  poucos  dias  depois  da  partida 
de  Capodiferro,  tanto  contra  o  segundo  edital 
do  bispo  de  Ceuta,  como  acerca  da  nenhuma 
solução  que  tivera  a  supplica  relativa  á  abro- 
gação  das  leis  de  14  de  junho  de  1532  e  de 
1535.  O  papa  dirigiu  então  ao  seu  núncio  no- 
vas e  mais  apertadas  recommendações  para 
que  procedesse  vigorosamente,  recommenda- 
ções cujo  resultado  parece  ter  sido  nenhum  (1). 
Não  desanimavam  todavia  os  conversos.  Na 
falta  de  uma  perseguição  demasiado  violenta, 


f  1 )  Memoriale,  I.  cit.  f.  51  v.  e  seg. 


216  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

com  que  contavam,  e  da  qual  se  não  encon- 
tram vestígios  positivos,  aproveitavam  uma 
circumstancia,  grave  em  si,  mas  que,  dada  a 
comparativa  iuoderação  do  restaurado  tribu- 
nal, perdia  parte  da  sua  importância.  Como 
vimos,  o  papa  tinha  declarado  pelo  breve  de 
20  de  julho  de  1535  que  ser  procurador  de 
qualquer  réu  de  judaísmo  ou  subministrar 
soccorros  aos  encarcerados  por  tal  delicto 
não  significava  cumplicidade,  nem  era  motivo 
de  se  perseguirem  os  que  assim  obrassem, 
nem  finalmente  auctorisava  elrei  a  pôr-lhes 
obstáculo  á  livre  saída  do  reino  (1).  Apesar, 
porém,  das  determinantes  resoluções  do  pon- 
tífice, tinha-se  continuado  a  insistir  na  praxe 
contraria  (2).  Era  sobre  isto  que  os  christãos- 
novos  alevantavam  vivos  clamores.  Entendeu 
a  cúria  romana  que  devia  manifestar  o  espi- 
rito de  hostilidade  que,  ao  menos  na  apparen- 
cia,  a  animava  contra  a  Inquisição,  provendo 
de  novo  acerca  de  um  objecto  em  que,  aliás, 
materialmente  ella  interessava ;  porque  se,  á 
vista  da  praxe  estabelecida  em  Portugal,  se 
prohibisse  a  saída  do  reino  aos  que  iam  tra- 
ctar  em  Roma  das  matérias  que  tocavam  ao 


(1)  Vide  ante  p.  128. 

(2)  Memoriale,  1.  cit, 


HISTORIA  D.    INQUISIÇÃO  217 

tribunal  da  fé,  ou  se  reputassem  fautores  de 
heresia  os  que  para  aili  enviavam  grossas 
sommas,  com  o  intuito  de  sustentar  a  lucta, 
esse  facto  redundaria  em  detrimento  da  mes- 
ma cúria.  Assim,  expediu-se  no  ultimo  de 
agosto  um  breve,  em  que,  repetindo-se  a  dou- 
trina do  de  20  de  julho  de  1535,  se  dava  ás 
disposições  deile  a  interpretação  que  se  devia 
reputar  genuina,  contraria  á  opinião  daquelles 
que  —  dizia  o  papa  —  querendo  ser  mais  ati- 
lados do  que  cumpria,  afflrmavam  que  ess'ou- 
tro  breve  se  referia  unicamente  aos  advoga- 
dos e  procuradores  em  juizo  dos  que  se 
achavam  encarcerados,  e  não  aos  que  de  ou- 
tro qualquer  modo  ou  em  outra  qualquer 
parte,  advogavam  e  protegiam,  sobre  questões 
de  Inquisição,  os  christãos-novos,  tanto  colle- 
ctiva  como  individualmente.  Declarava  por 
isso  o  pontífice  que  o  breve  de  20  de  julho 
era  extensivo  a  todos  os  que  trabalhassem  de 
qualquer  modo  em  vindicar  a  innocencia,  não 
só  dos  réus  presos,  mas  também  dos  simples- 
mente accusados  ou  diífamados,  quer  estes 
residissem  dentro,  quer  fora  do  paiz,  quer 
fossem  seus  parentes  e  amigos,  quer  não ; 
que  era  licito  a  todos  proteger  judicial  ou 
extra-judicialmente  os  conversos,  patrocinan- 
do-os,  aconselhando-os,  fazendo  sollicitações 


218  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

e  dispendendo  dinheiro  a  favor  delles  em  Por- 
tugal, em  Roma  ou  em  outra  parte,  comtanto 
que  o  individuo  que  assim  procedesse  não 
estivesse  accusado  ou  publicamente  diffamado 
do  mesmo  crime.  O  pontifice  fulminava  as 
penas  de  suspensão  e  excommunhão  contra 
aquelles  prelados,  inquisidores  e  magistrados 
que,  pelo  simples  facto  da  protecção  dada  aos 
réus  de  judaismo,  dentro  ou  fora  do  reino, 
perseguissem  alguém  canónica  ou  civilmente, 
c  recommendava  a  elrei  interviesse  com  a  sua 
auctoridade  para  se  cumprirem  á  risca  as 
provisões  deste  breve  (1). 

Apesar  de  todas  estas  manifestações,  o  es- 
tado das  cousas  em  Portugal  relativamente  á 
Inquisição  não  parece  ter  mudado.  Além  de 
nos  faltarem  vestígios  de  que  a  perseguição 
houvesse  tomado  o  incremento  que  os  vagos 
queixumes  dos  christãos-novos  poderiam  fa- 
zer acreditar  aos  espíritos  prevenidos,  as  pro- 
videncias do  papa,  enérgicas  na  apparencia, 


(1)  «patrocinium,  defensionem,  auxilium,  opem, 
consilium  et  íavorem,  tam  m  pai-tibus  illis,  quam  in 
romana  cúria,  et  extra  eam,  ubique  locoriim  praes- 
lare,  ac  pecunias  et  alia  ad  eorum  defensionem  ne- 
cessária subministrare» :  Breve  Dudum  a  nobis  ult. 
aug.  1537,  Symm.,  vol.  32,  f.  120  e  segg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  219 

eram,  talvez,  modificadas  pelas  ordens  secre- 
tas que  se  davam  ao  núncio.  A  politica  habi- 
tual da  corte  pontifícia,  e  a  gravidade  de  ou- 
tros assumptos,  que  então  se  tractavam  entre 
os  dous  governos  e  que  se  prendiam  com  os 
negócios  geraes  da  Europa,  obrigavam  o  papa 
a  contemporisar  com  D.  João  iii,  visto  que  já 
nas  instrucções  dadas  a  Capodiferro  se  havia 
recommendado  a  este  que  attendesse  cons- 
tantemente á  justiça  dos  conversos  e  a  con- 
tentá-los nas  suas  supplicas,  mas  que  não 
attendesse  com  menor  cuidado  a  propiciar  o 
animo  d'elrei  (1).  Desde  os  começos  do  seu 
pontificado,  Paulo  iii  pensara  em  fazer  uma 
liga  com  Carlos  v  e  com  os  venezianos  contra 
a  Turquia,  e  trabalhava  activamente  em  redu- 
zir estes  últimos  a  esse  accordo.  As  guerras 
do  imperador  com  Francisco  i  de  França  tra- 
ziam, porém,  embaraços  insuperáveis  á  reali- 
sação  da  empreza.  Esforçava-se  o  papa  em 
pôr  termo  a  taes  guerras,  e  uma  trégua  cele- 
brada entre  os  dous  príncipes  nos  fins  de 


(1)  «Dirigendo  semper  unum  oculum  ad  gratifi- 
candum  regi,  dexterum  vero  ad  juslitiam,  et  ad  pro- 
curandum  ne  quis  istorum  miseroruni  justam  lia- 
beat  causam  de  sanctitate  sua  et  apostólica  sedo 
conquerendi»:  Ordo  tenendus  etc.  1.  cit. 


220  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

1537  animava-0  a  proseguir  com  redobrada 
efficacia  nas  suas  diligencias.  Não  foram  es- 
tas baldadas.  Assentou-se  em  que  houvesse 
uma  conferencia  dos  dous  soberanos  na  ci- 
dade de  Niza  no  Piemonte,  para  se  tractar  da 
paz,  conferencia  de  que  resultou  a  prorogação 
das  tréguas  por  dez  annos.  Com  a  suspensão 
das  armas  tinha-se  entretanto  celebrado  um 
convénio  entre  o  papa,  o  imperador  e  a  repu- 
blica de  Veneza  para  se  enviar  contra  os  tur- 
cos uma  poderosa  armada,  e  nesta  um  exer- 
cito de  perto  de  sessenta  mil  homens.  Esses 
armamentos  extraordinários  geravam  em  mui- 
tos espíritos,  e  talvez  no  do  próprio  Paulo  iii, 
as  esperanças  de  se  estenderem  de  novo  até 
Constantinopla  os  limites  da  Europa  christan. 
Todas  ellas,  porém,  vieram  depois  a  desvane- 
cer-se  pela  traição  ou  pela  covardia  de  André 
Dória,  almirante  da  frota,  que  fugiu,  depois  de 
haver  recusado  atacar, numa  occasião  altamente 
vantajosa,  o  almirante  turco  Barbaroxa,  deixan- 
do-o  depois  destruir  ou  tomar  varias  galés  e  na- 
vios que  não  tinham  podido  acompanhar  o  al- 
mirante christão  na  sua  inexplicável  fuga  (1). 


(I)  Ranke,  Die  Hoemisclieu  Paepsle,  1.  Band,  3. 
Buch.  —  Pallavicino,  Istoria  dei  C.  dl  Trento,  L.  4, 
cap.  5,  6.—  FJeury,  Hisl.  Eccles.,  L.  138,  §  52  e  segg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  221 

Taes  eram  os  acontecimentos  cujas  phases 
levavam  o  papa  a  recommendar  ao  núncio 
que  procedesse  com  destreza,  para  favorecer 
os  conversos  sem  alienar  absolutamente  o 
animo  de  D.  João  iii.  Dependia  elle,  até  certo 
ponto,  do  rei  de  Portugal  na  realisação  dos 
seus  dous  principaes  desígnios,  o  congraçar 
o  imperador  com  o  rei  de  França  e  o  colligir 
os  recursos  necessários  á  expedição  contra  os 
mussulmanos,  para  a  qual  devia  contribuir 
com  uma  parte  dos  materiaes  de  guerra, 
gente  e  navios.  Com  este  ultimo  intuito,  re- 
solvera impor  duas  decimas  nos  rendimentos 
do  clero  português,  e  esperava  remover  as 
resistências  áquella  contribuição  extraordiná- 
ria (resistências  que,  aliás,  eram  infalliveis) 
cedendo  parte  delia  a  beneficio  do  poder  ci- 
vil. Para  obter,  por  outro  lado,  que  D.  João  iii 
interviesse  na  reconciliação  de  Carlos  v  com 
Francisco  i,  tinha  enviado  credenciaes  e  ins- 
trucções  a  Capodiferro,  ordenando-lhe  propo- 
sesse  o  assumpto  a  elrei,  a  quem,  afora  isso, 
escrevera  (1).  Não  pertencendo,  porém,  á  ma- 
téria deste  livro  essas  negociações,  não  as  se- 


(1)  Carta  de  Pedro  de  Sousa  de  Távora  a  elrei,  de 
Roma,  a  15  de  novembro  de  1537 :  G.  2,  M.  5,  N.»  26» 
no  Arch.  Nac. 


222  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

guiremos  no  seu  progresso  e  resultados,  se- 
não quando  servirem,  como  aqui,  para  illus- 
trar  os  successos  que  pertencem  á  nossa 
narrativa.  Baste  saber-se  quão  urgentes  eram 
os  motivos  que  obrigavam  o  papa  a  contem- 
porisar  com  a  corte  de  Lisboa,  e  quanto  é 
provável  que  as  instrucções  particulares  ao 
núncio  nem  sempre  fossem  accordes  com  as 
demonstrações  externas  favoráveis  aos  con- 
versos. 

Emquanto  estas  cousas  se  passavam,  dis- 
putava-se  na  juncta  creada  em  Roma  sobre  a 
conveniência  de  alterar  ou  não  a  bulia  de 
1536,  pela  qual  se  restabelecera  a  Inquisição. 
O  anno  de  1538  passou- se  nestas  controvér- 
sias e  nas  intrigas  obscuras  que  deviam  acom- 
panhá-las. A  falta  que  se  encontra  por  esta 
epocha  de  documentos  relativos  ao  assumpto 
está  mostrando  que  nem  as  violências  dos  in- 
quisidores se  tornavam  mais  exaggeradas  do 
que  o  haviam  sido  a  principio,  nem  os  hebreus 
portugueses  (o  que  era  consequência  desse 
mesmo  facto)  sollicitavam  com  excessivo  fer- 
vor a  resolução  definitiva  da  juncta.  Havia, 
porém,  afora  este,  outro  motivo  para  aquella 
temporária  bonança;  triste  motivo  do  qual 
haviam  de  resultar  maiores  males.  Era  a  cor- 
rupção do  núncio ;  corrupção  que  as  instruc- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  223 

ções  em  que  se  lhe  ordenava  favorecesse  os 
conversos,  mantendo  para  com  eirei  um  pro- 
cedimento mais  dúplice  do  que  prudente,  de 
certo  modo  facilitavam.  Sem  embaraçar  a 
acção  dos  inquisidores  contra  qualquer  réu, 
Capodiferro,  auctorisado  pelo  ultimo  breve  e 
pelas  instrucções  que  com  elle  recebera  para 
rever  os  processos,  contentava-se  com  absol- 
ver os  que  a  Inquisição  condemnava.  Não 
eram,  porém,  a  tolerância  christan  e  os  impul- 
sos de  humanidade  que  o  moviam :  era  a 
cubica.  Abraçara  as  tradições  do  seu  anteces- 
sor. Marco  delia  Ruvere,  e  entendera  que,  as- 
sim como  o  ouro  assegurava  a  este  a  impu- 
nidade em  Roma,  pelos  mesmos  meios  podia 
elle  sem  perigo  locupletar- se.  Applicando 
aquelle  systema  a  todas  as  dependências  ec- 
clesiasticas,  imagine-se  até  que  ponto  Capo- 
diferro seria  benigno  para  com  os  judaisantes, 
que,  pouco  a  pouco,  animados  pelo  favor  do 
núncio,  iam  perdendo  o  temor  que  a  principio 
lhes  incutira  o  restabelecimento  do  tribunal  da 
fé,  e  se  tornavam  menos  cautelosos  em  dis- 
farçar as  suas  occultas  crenças.  Se  acreditar- 
mos as  queixas  que  o  próprio  D.  João  iii  di- 
rigiu, tempos  depois,  para  Roma,  o  castigo 
dos  crimes  religiosos  e  da  corrupção  do  clero 
tinha-se  tornado  impossível  com  a  residência 


224  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

de  Jeronymo  Ricenati  em  Portugal.  Os  empe- 
nhos e  o  dinheiro  faziam  tudo.  Choviam  os 
breves,  os  perdões,  as  dispensas.  Os  preços 
variavam ;  porque  a  somma  era  graduada, 
talvez,  na  razão  inversa  da  influencia  da  pes- 
soa que  sollicitava  o  despacho.  Gapodiferro 
sabia  ser  serviçal  quando  eram  poderosos  os 
protectores;  mas  a  veniaga  espiritual  devia 
subir  de  quilate  quando  a  valia  do  sollicitador 
era  pequena  (1).  O  núncio  não  fazia,  porém, 
senão  exaggerar  o  espirito  interesseiro  da 
corte  de  Roma.  Lá,  lambem,  a  benevolência 


(1)  «...  da  estada  do  núncio  aquy  creceo  tanto  a 
ousadia  nos  mãos  e  lanla  segurança  de  poder  errar 
sem  castigo  e  tanta  certeza  de  perdões  dos  erros 
por  qualquer  emformação  que  seja  deles,  per  preços 
muy  desonestos  e  inermes  e  outros  muy  baratos,  e 
em  todos  com  craro  fim  e  respeito  do  interesse  pró- 
prio sem  lembrança  nem  da  rezão  da  cousa,  nem  do 
escândalo  dela,  nem  da  diminuição  da  jurdição  dos 
prelados  a  que  totalmente  são  cerradas  as  portas 
per  esta  via  de  poder  castigar  nenhum  máo,  nem 
governar  suas  preladas,  tantas  são  as  dispensaçôes 
e  os  perdões  e  as  bulias  que  por  dinheiro  e  amizade 
se  alcanção  em  casa  do  núncio  indistinclamente  em 
todo  caso,  crime  e  pena,  etc.»  —  Minuta  da  carta  de 
D.  João  in  a  D.  Pedro  de  Mascarenhas  de  4  de  agosto 
de  1539,  na  Correspond.  Orig.  de  D.  Pedro  Mascare- 
nhas, na  Bibliotheca  da  Ajuda. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  225 

das  pessoas  influentes  não  se  obtinha  de  gra- 
ça, e,  no  sentir  de  alguns,  nem  o  próprio 
Paulo  III  era  exemplo  do  vicio  commum  (1). 
Dissimulava  elrei  com  Capodiferro,  porque  a 
complicação  dos  negócios  pendentes  com  a 
cúria  romana  a  isso  obrigava.  Resolvido  a 
substituir  o  seu  embaixador  Pedro  de  Sousa 
de  Távora  por  D.  Pedro  Mascarenhas,  que  de 
passagem  tinha  a  tractar  matérias  de  ponde- 
ração na  corte  de  Gastella  e  na  de  França, 
ordenara  em  dezembro  de  1537  (2)  a  partida 


(1)  Na  carta  de  Pedro  de  Sousa  de  Távora  de  15 
de  novembro  de  1537,  acima  citada,  o  embaixador 
português  aconselha  a  elrei  que  se  mostre  liberal 
não  só  com  Santiquatro,  que  já  pedia  claramente,  e 
até  com  termos  ásperos,  a  recompensa  dos  seus 
serviços,  e  além  deile  com  o  secretario  e  o  cama- 
reiro do  papa  e  outros,  mas  até  com  o  próprio 
Paulo  III.  As  phrases  do  embaixador  são  assas  signi- 
ficativas: «E  do  papa  principalmente  V.  A.  se  deve- 
ria lembrar,  pois  lhe  pode  fazer  muitos  prazeres  e 
também  desgostos;  e  quando  não  ai,  ao  menos  das 
cousas  da  Índia  enviar  algo  que  se  lhe  possa  dar, 
que  elles  tudo  tomão. 

(2)  A  rubrica  da  minuta  das  instrucções  a  D.  Pe- 
dro Mascarenhas  (Correspond,  Orig.  na  Bibliot.  da 
Ajuda)  diz  que  D.  Pedro  partiu  a  29  de  dezembro 
de  1538.  É  que  se  contava  o  novo  anno  do  dia  de  na- 
tal. Assim  29  de  dezembro  de  1537  vinha  por  esse 
calculo  a  cahir  em  1538. 

TOMO  II  15 


226  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

do  novo  agente.  Era  um  dos  principaes  fins 
da  missão  do  D.  Pedro  evitar  a  imposição  das 
duas  decimas  nas  rendas  ecclesiasticas  do 
reino ;  porque,  apesar  do  seu  zelo  pelas  cou- 
sas da  religião,  o  governo  português  comba- 
tia sempre  com  energia  as  extorsões  da  cúria. 
Chegado  a  Roma  depois  dos  meiados  de  1538, 
por  causa  dos  negócios  que  o  haviam  retido 
na  corte  de  França,  a  questão  das  duas  deci- 
mas e  da  escusa  de  irem  ao  concilio  (de  que 
então  se  tractava  com  calor)  senão  todos  os 
prelados  portugueses,  ao  menos  aquelles  que 
elrei  entendesse,  deviam  absorver,  d'envolta 
com  outros  negócios  graves,  as  attenções  do 
embaixador  (1).  Entretanto  não  se  descuidara 
de  examinar  o  estado  da  contenda  e  quaes 


(1)  Temos  a  minuta  (Correspond.  Orig.  de  D.  Pe- 
dro Mascarenhas,  f.  45)  da  resposta  a  uma  carta  de 
D.  Pedro  Mascarenhas,  escripla  de  França  a  elrei  a 
30  de  março  de  1538.  Nesta  resposta,  que  devia  ser 
dos  fins  de  abril  ou  principies  de  maio,  apesar  de 
se  ordenar  ao  embaixador  a  maior  brevidade  na 
sua  partida  para  Itália,  também  se  lhe  manda  trac- 
tar  vários  assumptos  com  Francisco  i.  Assim,  elle 
devia  estar  em  França  ainda  em  junho.  A  1.»  carta 
que  nos  resta  de  D.  Pedro  Mascarenhas,  datada  de 
Roma,  é  uma  de  24  de  dezembro  de  1538  (Corpo 
Chronol.,  P.  1,  M.  63,  N.°  86)  sobre  as  duas  decimas. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  227 

eram  as  vantagens  que  os  christãos-novos  ha- 
viam obtido  na  juncta  encarregada  de  pesar 
os  aggravos  de  que  elles  se  queixavam.  As 
cousas  tinham  chegado  a  maus  termos.  A 
preponderância  dos  adversários  da  Inquisição 
nos  conselhos  do  pontifice,  preponderância 
que  já  se  manifestara  um  anno  antes  nas  pro- 
videncias expedidas  em  1537,  não  havia  dimi- 
nuido.  Ghinucci,  um  dos  cardeaes  a  quem  o 
papa  confiava  o  exame  dos  negócios  mais 
graves,  restituido  á  juncta,  fazia  ahi  uma 
guerra  implacável  ás  pretensões  da  corte  de 
Portugal,  de  accordo  com  Duarte  da  Paz  e 
com  os  outros  agentes  dos  christãos-novos. 
Fora  tal  o  ardor  que  o  cardeal  mostrara  na 
contenda,  que  delle,  por  assim  dizer,  estava 
tudo  pendente.  As  primeiras  diligencias  do 
novo  embaixador  dirigiram-se  todas  a  tirar- 
Ihe  o  negocio  das  mãos,  e  com  tal  arte  ou 
energia  se  houve,  que  alcançou  fazê-lo  substi- 
tuir pelo  cardeal  Simonetta,  aquelle  mesmo 
que,  tendo  sido  favorável  á  expedição  da  bulia 
de  25  de  maio  de  1536,  depois  se  arrependera 
eximindo-se  de  entender  nos  males  delia  pro- 
vindos. Posto  que  gosasse  da  reputação  de 
homem  honesto,  Simonetta  era  pobre,  e  ao 
mesmo  tempo  tão  influente  como  Ghinucci 
nas  matérias  de  maior  monta.  Fazendo-lhe  dar 


228  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

aquelle  encargo,  D.  Pedro  Mascarenhas  espe- 
rava tirar  proveito  dessas  duas  circumstan- 
cias  para  os  fins  que  se  propunha.  Tal  era  o 
estado  das  cousas  nos  princípios  de  1539, 
quando  factos  inopinados  vieram  exacerbar 
de  novo  a  lucta,  por  tanto  tempo  dormente  (1). 
Era  em  fevereiro  desse  anno.  A  corte  acha- 
va-se  em  Lisboa,  e  o  bispo  titular  de  Ceuta 
na  sua  diocese  de  Olivença.  Segundo  parece, 
os  trabalhos  do  tribunal  da  fé,  cuja  actividade 
estava  de  algum  modo  annullada  pela  pres- 
são que  o  núncio  exercia  sobre  elle,  não  eram 
assas  importantes  para  exigirem  a  presença 
do  inquisidor-mór  em  Évora  ou  na  capital. 
Certa  manhan,  porém,  uma  proclamação  sin- 
gular appareceu  affixada  nas  portas  da  cathe- 
dral  e  das  outras  igrejas  de  Lisboa.  Affirma- 
va-se  nella  que  o  christianismo  era  um  em- 
buste, e  annunciava-se  a  vinda  do  verdadeiro 
Messias.  A  linguagem  desse  papel  sedicioso, 
sem  nome  de  auctor  e  sem  assignatura,  reve- 
lava ou  um  excesso  violento  de  fanatismo  ju- 
daico, ou  a  intenção  de  irritar  os  ânimos  con- 
tra os  conversos.  Ao  lerem-se  aquellas  blas- 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  a  elrei,  de 
Roma,  a  27  de  fevereiro  de  1 539,  no  Corpo  Chronol , 
P.  1,  M.  64,  N.»  36. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  229 

phemias,  a  agitação  foi  geral.  Emquanto  as 
justiças  ecclesiasticas  e  civis  e  os  agentes  da 
Inquisição  diligenciavam  por  todos  os  modos 
descubrir  o  réu  ou  réus  daquelle  attentado, 
elrei  mandava  prometter  dez  mil  cruzados  de 
premio  a  quem  os  denunciasse.  Com  estas 
providencias  socegou  o  povo,  entre  o  qual  vo- 
gavam já  as  idéas  sanguinárias,  cuja  explo- 
são produzira,  havia  trinta  e  três  annos,  tão 
horríveis  scenas.  Grande  numero  de  christãos- 
novos  procurava  salvar  vidas  e  fazendas  fu- 
gindo escondidamente  do  reino  para  Africa  (1). 
Ao  mesmo  tempo,  o  bispo  de  Ceuta  recebia 
ordem  para  delegar  os  seus  poderes  no  bispo 
do  Porto,  em  cuja  severidade  elrei,  segundo 
parece,  confiava  mais  do  que  na  de  Fr.  Diogo 
da  Silva.  Sem  que,  porém,  recusasse  obe- 
decer, o  inquisidor-mór  ponderou  ao  monar- 
cha  a  possibilidade  de  ser  aquelle  attentado 
obra  dos  inimigos  dos  conversos,  e  a  pru- 
dência com   que   cumpria   proceder  em  tal 


(1)  Carta  de  Sebastião  de  Vargas  a  elrei,  datada 
de  Mequinez,  em  abril,  em  que  diz  que  passavam 
muiios  christãos-novos  pelos  rios  de  Mamora,  La- 
rache e  Salé  para  as  terras  de  mouros,  deixando 
as  fazendas  a  pessoas  que  depois  lh'as  passavam: 
Corpo  Chronol.,  P.  1,  M.  64,  N.»  86. 


230  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

caso  (1).  Concedendo  os  poderes  que  se  lhe 
pediam,  o  bispo  de  Ceuta  ousou  fazê-Io  com 
as  limitações  que  suppunha  convenientes,  em- 
bora se  lhe  tivesse  pedido  uma  delegação  mais 
ampla.  Conduzidas  com  destreza  as  indagações 
que  se  faziam,  chegou-se  finalmente  a  descubrir 
o  culpado.  Era  um  christão-novo,  que  ninguém 
até  ahi  reputara  como  tal.  Ao  menos  assim 
se  disse.  Levado  aos  cárceres  da  Inquisição, 
confessou  ser  auctor  daquelles  escriptos,  de 
cuja  doutrina  estava  persuadido,  protestando 
constantemente  que  só  elle  commettera  o  cri- 
me. Procuraram  convencêl-o  do  erro ;  mas 
contra  a  sua  pertinácia  todos  os  argumentos 
e  persuações  saíram  baldados.  Julgado  na  ins- 
tancia inferior,  recusou  appelar  para  o  con- 
selho geral  da  Inquisição.  Era  um  fanático  ou 
um  martyr.  Relaxado,  porém,  ás  justiças  se- 
culares, e  posto  a  tormento  (o  que  a  Inquisi- 
ção  não   fizera)  para  se  descubrir  se  tinha 


(1)  ase  deve  muito  olhar  a  emtenção  com  que 
hos  tais  escritos  se  puseram,  se  per  ventura  se 
fez  per  indinar  V.  A.  e  seus  oficiaes  e  os  do  pa- 
dre sanlo  e  os  povos  contra  hos  christãos  novos, 
e  per  pessoas  de  pouca  prudência,  ou  se  lio  feze- 
ram  herejes»:  Carta  do  bispo  de  Ceuta  a  elrei,  de 
21  de  fevereiro:  Cartas  Missivas,  M.  3,  N.°  61  no 
Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  231 

effectivamente  cúmplices,  o  animo  esmoreceu- 
Ihe.  Negando  até  o  ultimo  suspiro  que  alguém 
se  houvesse  associado  com  elle  para  a  perpe- 
tração  do  delicto,  reconheceu  que  o  havia 
hallucinado  uma  van  crença.  Assim  como  es- 
perava o  Messias,  assim  contava  também  com 
a  insensibilidade  no  meio  dos  mais  atrozes 
tractos,  e  a  dor  desenganava-o  da  vaidade  das 
suas  illusões.  A  luz,  porém,  que  lhe  illuminara 
emfim  o  espirito  vinha  tarde  para  o  salvar  da 
vindicta  dos  homens.  Pereceu  no  meio  das 
chammas,  e  os  que  o  acompanharam  no  der- 
radeiro trance  affirmaram  que  morrera  chris- 
tão  e  arrependido  (1). 

As  circumstancias  deste  successo  são  di- 
gnas de  reparo,  porque  vem  confirmar  todos 
os  anteriores  indicios  da  moderação  compa- 
rativa com  que  o  tribunal  da  fé  procedia  nos 
primeiros  tempos  do  seu  restabelecimento,  e 
de  que  essa  moderação  era  devida,  ao  menos 
em  grande  parte,  ao  caracter  do  inquisidor- 
mór.  As  suas  suspeitas  sobre  a  possibilidade 
de  haver  naquellas  manifestações  blasphemas 


(1)  Carta  do  Bispo  de  Ceuta,  cit.  —  Minutada 
Carta  de  D.  João  iii  a  D.  Pedro  de  Mascarenhas 
de  19  de  março  de  1539,  na  Correspond.  Orig.  de 
D.  Pedro  de  Mascarenhas,  na  Biblioth.  da  Ajuda. 


232  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

uma  astúcia  diabólica,  para  excitar  persegui- 
ções contra  a  gente  hebréa,  não  só  provam 
que  Fr.  Diogo  da  Silva  não  era  um  fanático, 
mas  indicam  também  que,  supremo  juiz  do 
tribunal  da  fé,  conhecia  por  experiência  as 
calumnias  e  os  artifícios  que  se  inventavam 
para  fazer  condemnar  os  christãos-nos.  Ve- 
mos, também,  que  o  miserável  judeu,  réu  de 
blasphemias  publicas  contra  o  christianismo 
e  victima  da  própria  cegueira,  só  depois  de 
entregue  á  auctoridade  secular  recebeu  tra- 
ctos para  delatar  suppostos  cúmplices,  signal 
evidente  de  que,  ou  fosse  devido  á  influencia 
do  núncio  ou  á  do  inquisidor-mór,  ou,  o  que 
é  mais  provável,  á  de  ambos,  os  actos  da  In- 
quisição naquella  conjunctura  não  eram  assi- 
gnalados  por  demasiada  crueldade.  Recusan- 
do, emfim,  conceder  ao  bispo  do  Porto  (1) 
tão  amplos  poderes  como  elrei  pretendia,  Fr. 
Diogo  da  Silva  dava  ainda  outro  documento 
da  sua  tolerância,  mostrando  temer-se  desse 
homem,  que  subsequentemente  veremos  figu- 
rar como  um  dos  campeões  mais  ardentes 
dos  rigores  inquisitoriaes. 

Mas  um  inquisidor-mór  tolerante  e  illustra- 
do ;  um  núncio  que,  fosse  por  que  motivos 

(1)  Era  D.  Fr.  Balthasar  Limpo. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  233 

fosse,  posesse  obstáculos  á  conderanação  de- 
finitiva dos  implicados  no  crime  de  judaismo; 
um  tribunal,  emfim,  cujas  abobadas  não  re- 
soassem  de  continuo  com  os  gritos  dos  ator- 
mentados, e  onde  a  polé  e  o  potro  jazessem 
no  pó  e  esquecidos,  eram  cousas  monstruo- 
sas aos  olhos  dos  fanáticos,  sobretudo  depois 
do  ruidoso  acontecimento  que  escandalisara  e 
irritara  o  povo  da  capital.  Duas  providencias 
urgiam ;  obter  do  papa  maior  liberdade  para 
o  arbitrio  dos  inquisidores,  restringindo  a 
acção  do  legado  apostólico,  e  substituir  um 
inquisidor-mór  pouco  enérgico  por  outro,  cujo 
espirito  não  fosse  accessivel  á  piedade,  nem 
demasiado  escrupuloso  no  que  tocava  aos 
preceitos  da  caridade  e  tolerância  evangélicas. 
Para  se  tomar  a  primeira,  recommendava-se 
a  D.  Pedro  Mascarenhas  que  trabalhasse  por 
alcançar  as  necessárias  exempções  (1).  Rea- 
lisar  a  segunda  era  mais  fácil.  Como  a  bulia 
de  23  de  maio  de  1536  auctorisava  elrei  para 
escolher  um  quarto  inquisidor  geral,  além  dos 
três  bispos  de  Ceuta,  Lamego  e  Coimbra,  e 
como  só  o  primeiro  tinha  exercido  esse  car- 


il) Minuta  da  carta  de  19  de  março  cit.— Carta 
de  D  Pedro  Mascarenhas  de  21  e  20  de  junho  de 
1539,  1.  cit.  f.  93  V.  e  95. 


234  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

go,  nada  mais  havia  do  que  pôr  á  frente  da 
Inquisição,  em  logar  delle,  um  individuo  de 
maior  confiança  e  de  mais  solta  consciência. 
Foi  o  que  se  fez.  Allegando  a  sua  provecta 
idade  e  pouca  saúde,  e  a  necessidade  de  admi- 
nistrar a  pequena  diocese  de  Olivença,  Fr. 
Diogo  da  Silva  pediu  ser  substituído  por  pes- 
soa mais  habilitada  do  que  elle  para  exercer 
o  mister  de  inquisidor  geral.  Esta  supplica  era 
evidentemente  resultado  de  uma  insinuação 
regia  (1) ;  porque  o  bispo  de  Ceuta  não  tar- 
dou a  ser  eleito  arcebispo  de  Braga,  dignidade 
mais  laboriosa  que  essa  de  que  se  exonerava. 
Tinha- a  então  o  infante  D.  Henrique,  irmão 
d'elrei,  mancebo  de  vinte  e  sete  annos,  que  na 
idade  de  quatorze  fora  promovido  a  prior  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra,  e  na  de  vinte  e  dous 
a  metropolita  bracharense ;  tão  bem  sabia  a 
hypocrisia  daquelle  tempo  conciliar  as  de- 
monstrações do  zelo  religioso  com  a  quebra 


(1)  O  próprio  bispo  de  Ceuta  o  dá  a  entender  na 
carta  a  elrei,  de  10  de  junho  (Collectorio  das  Bui- 
las  da  Inquisição,  f.  9),  dizendo  que  pede  a  exone- 
ração «por  minha  idade...  e  fraca  disposição...  e 
por  outros  justos  motivos;  como  também  por  me 
parecer  que'^si.rvo  V.  A.  em  lhe  lembrar  isto.y> 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  235 

de  todas  as  leis  da  decência  e  da  disciplina 
ecclesiastica.  Foi  escolhido  o  infante  para 
substituir  o  bispo  de  Ceuta  e  reanimar  a  In- 
quisição de  um  lethargo,  que  não  condizia 
nem  com  a  sua  indole  nem  com  os  fins  para 
que  fora  creada  (1).  Não  podendo  exercer  elle 
próprio  o  officio  de  supremo  inquisidor,  D. 
João  III  mostrava,  ao  menos,  bons  desejos, 
nomeiando  para  o  cargo  um  membro  da  sua 
familia  (2). 

O  despeito  d'elrei  pelas  blasphemias  afiBxa- 
das  nas  portas  das  igrejas  de  Lisboa  tinha 
sido  legitimo,  e  justa  a  punição  do  culpado, 
posto  que  repugnem  á  humanidade  os  tor- 
mentos e  o  atroz  supplicio  que  lhe  foram  ap- 
plicados.  Mas  o  substituir  a  um  ancião  res- 
peitável um  mancebo,  ainda  na  idade  das 
paixões  violentas,  no  tremendo  cargo  de  in- 


(1)  Carta  regia  de  22  de  junho  de  1539,  no  Col- 
lectorio  f.  9  V.  e  seg.  —  Sousa,  Historia  Genealog., 
T.  3,  p.  265  e  seg. 

(2)  Isto  que  aJguem  supporia  invectiva  nossa, 
di-lo  o  próprio  D.  João  m.  «Se  este  carego  (o  de 
inquisidor-mór)  fora  de  príncipe  secular  com  muy 
grande  gosto  me  empregara  nele»:  Minuta  da  carta 
a  D.  Pedro  Mascarenhas,  na  G.  13,  M.  8,  N.°  6, 
no  Arch.  Nac 


236  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

quisidor-mór  era  condemnavel  manifestação 
de  fanatismo.  A  escolha  de  D.  Henrique  oífen- 
dia  a  máxima  do  direito  canónico  que  reque- 
ria para  o  exercicio  de  funcção  de  tal  ordem 
a  idade  de  quarenta  annos,  e  sophismava  as 
intenções  do  pontiíice,  que,  nomeiando  inqui- 
sidores geraes,  na  bulia  de  23  de  maio,  três 
prelados  dos  mais  notáveis  de  Portugal,  e  dei- 
xando a  elrei  a  designação  do  quarto,  não 
quizera  por  certo  que,  sendo  inquisidor-mór 
só  um  delles,  tivesse  a  preferencia  sobre  to- 
dos três  o  de  nomeiação  regia,  facto  tanto  mais 
escandaloso,  quanto  era  sabido  que  se  desi- 
gnara em  primeiro  logar  o  bispo  de  Ceuta 
para  dar  garantias  de  imparcialidade  aos  chris- 
tãos-novos,  e  que  o  quasi  imberbe  arcebispo 
de  Braga  era  contado  entre  as  pessoas  mais 
adversas  a  elles  (1). 

Nomeiado  inquisidor-mór  o  infante,  expedi- 
ram-se  ordens  a  D.  Pedro  Mascarenhas  para 
que  assim  o  communicasse  ao  pontifice,  dando 
as  razões,  ou  antes  os  pretextos,  que  para 
isso  houvera.  Longe  de  deverem  os  christãos- 


(1)  «ut  cJarius  loquamur,  cúm  ipsis  novis  chris- 
tianis  suspectissimus  sit» :  Informatio  quod  iuf.  D- 
Henricus,  etc. :  Symm.,  vol.  32,  f.  i85. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  237 

novos  receiar  uma  recrudescência  de  perse- 
guição, no  entender  da  corte  de  Lisboa,  o 
moço  arcebispo,  ao  mesmo  tempo  que  ia  res- 
tabelecer a  conveniente  severidade  para  com 
os  maus,  era  para  os  bons,  pelas  suas  virtu- 
des e  elevada  jerarchia,  fiador  de  paz  e  segu- 
rança. Por  esta  nomeiação,  porém,  tornava-se 
mais  urgente  a  necessidade  de  soltar  os  bra- 
ços á  Inquisição  e,  sobretudo,  de  tirar  os  po- 
deres de  revisão  final  concedidos  ao  núncio, 
visto  que  seria  absurdo  haver  em  Portugal 
quem  podesse  alterar  as  decisões  de  um  in- 
quisidor-mór  irmão  do  próprio  monarcha  e 
que  se  considerava  como  primaz  das  Hespa- 
nhas.  Para  fundamentar  melhor  as  suas  pre- 
tensões, elrei  transmittia  ao  embaixador  a  re- 
lação circumstanciada  dos  attentados  contra 
a  fé  que  os  christãos-novos  estavam  practi- 
cando  para  que  a  apresentasse  ao  papa.  Mas, 
ou  porque  esses  factos  fossem  de  pura  in- 
venção, ou  porque,  como  elrei  affirmava,  os 
conversos  tivessem  sido  trahidos  e  denuncia- 
dos por  alguns  de  seus  próprios  irmãos,  cujas 
traições  não  convinha  se  houvessem  de  sus- 
peitar ou  descubrir,  é  certo  que  se  recom 
mendava  a  D.  Pedro  Mascarenhas  pedisse  ao 
pontífice  inviolável  segredo  acerca  daquelias 
revelações,  e  ordenava-se-lhe  que  rasgasse  as 


238  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

respectivas  notas,  logo  que  lh'as  tivesse  com- 
municado  (1). 

As  difficuldades  com  que  o  agente  portu- 
guês em  Roma  tinha  de  luctar  eram  grandes, 
assim  porque  a  cúria  mostrava  claras  tendên- 
cias para  favorecer  os  christãos-novos,  como 
por  outras  circumstancias.  Irritavam  o  papa 
as  resistências  e  os  artifícios  que  empregava 
a  corte  de  Portugal  para  evitar  a  extorsão 
das  duas  decimas  nas  rendas  ecclesiasticas, 
ou  para,  ao  menos,  ter  quinhão  na  presa  (2). 
Por  outro  lado,  nomeiando-se  o  infante  inqui- 
sidor-mór,  tinha-se  previsto  e  calculado  uma 
collisão  com  o  núncio,  que  desse  fundamento 
plausível  a  expulsar  este  (3),  e  Gapodiferro 


(Ij  Minuta  da  carta  a  D.  Pedro  Mascarenhas,  na 
G.  13,  M.  8,  N.°  6. 

(2J  Esta  negociação  complicada,  de  que  ainda  te- 
remos de  falar,  entreteve  quasi  exclusivamente  no 
1.°  semestre  de  1539  o  embaixador  Mascarenhas, 
cujos  hábeis  esforços  foram  em  parte  frustrados 
pela  imperícia  dos  ministros  de  D.  João  u.  Consul- 
te-se  a  sua  curiosa  correspondência,  de  que  existe 
grande  parte  na  Bibliotheca  da  Ajuda  e  algumas 
cartas  na  Torre  uo  Tombo. 

(3)  «esta  emleição. . .  do  infante. . .  senão  pêra  com 
elle  poder  myliior  deytar  desse  Reyno  o  nuncyo»: 
Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  21  de  setembro 
de  1539,  na  sua  Correspond.  Original,  f.  132  v.  e  133. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  239 

não  podia  ignorá-lo  nem  deixar  de  augmentar 
a  irritação  da  sua  corte  prevenindo-a  contra 
D.  Henrique.  Entretanto,  posto  que  homem  de 
poucas  letras,  D.  Pedro  Mascarenhas  era  uma 
intelligencia  superior,  que  sabia  appreciar  as 
cousas  e  os  homens,  e  sair  com  vantagem 
das  luctas  em  que  se  empenhava.  De  indole, 
segundo  parece,  recta  e  desinteressada,  tinha 
a  qualidade  de  alguns  estadistas,  que,  collo- 
cados  em  logares  eminentes,  no  meio  de  uma 
sociedade  e  de  uma  epocha  pervertidas,  se 
aproveitam  da  corrupção  para  realisarem  os 
seus  intuitos,  sem  se  corromperem  a  si  pró- 
prios; estadistas,  cuja  triste  e  suprema  crença 
deve  ser  um  profundo  desprezo  do  género 
humano.  Residira  já  em  Roma  tempo  suffi- 
ciente  para  avaliar  bem  a  cúria  pontifícia,  e  a 
idéa  que  fazia  delia  era  extremamente  desfa- 
vorável. Na  sua  opinião,  para  bem  negociar 
com  Paulo  iii  não  havia  outro  meio  senão  fa- 
zer-lhe  crer  que  ganhava  no  negocio  (1),  e 
por  isso  tinha  aconselhado  a  elrei,  na  questão 
das  decimas,   que  não  posesse  obstáculo  a 


(1)  «tudo  o  que  V.  A.  quiser  negocear  bem  com 

este  papa  ade  ser  pondolhe  seu  enteresse  diante»: 
Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  21  de  junho,  na 
.Correspond.  Orig.,  f,  93. 


240  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

uma  extorsão  que  só  recahia  sobre  o  clero, 
comtanto  que  parte  da  presa  revertesse  em 
beneficio  do  fisco,  arbítrio  que  fora  acceito, 
embora  a  transacção  não  chegasse  a  con- 
cluir-se,  como  depois  veremos,  com  todas  as 
condições  que  o  embaixador  desejava  (1).  As- 
sim entendera  também  desde  logo  que  seria 
impossivel  tirar-se  ao  núncio  o  direito  de  re- 
vista nos  processos  da  Inquisição,  por  ser 
prerogativa  grandemente  rendosa,  e  de  que  o 
papa  se  não  despojaria,  senão  por  mais  avul- 
tados lucros  (2).  A  sua  regra  para  prognosti- 
car a  solução  dos  negócios  em  Roma  era  sa- 
ber quem  dava  mais.  Dotado  do  talento  de 
physionomista,  tantas  vezes  útil  na  vida  aos 
que  o  possuem,  lia  no  rosto  do  papa  qualida- 
des de  espirito  que  lhe  repugnavam  proíunda- 


(1)  aludo  se  fará  como  lhe  nom  tocarem  no  seu 
emteresse.  E  V.  A.  deste  pam  de  seu  compadre 
deixe  ao  afilhado  levar  a  parte  que  quiser,  comtanto 
que  a  de  V.  A.  non  seja  mays  pequena,  e  nom 
queira  ser  mais  piadoso  da  fazenda  ecresiastica  do 
que  he  seu  próprio  dono  e  vigairo  uny versai»:  Ibid. 

(2)  «tirando  o  núncio  nom  aver  dem tender  nella 
(na  Inquisição):  ha  quall  se  nom  fará  emquanto  ahi 
ouver  nuçio  nesse  Reino  em  vida  deste  papa,  por- 
que lhe  vay  nisso  seu  emteresse,  o  que  elle  nom 
allarga  senão  por  outro  tall  ou  maior»:  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  241 

mente;  mas  nessa  mesma  repugnância  tinha 
incentivo  para  sempre  estar  prevenido  em 
tudo  quanto  com  elle  tractava  (1).  Convencido 
de  que  onde  reina  a  venalidade  só  a  corru- 
pção pôde  dar  o  triumpho,  obtinha  da  sua 
corte  os  meios  de  corromper,  e  empregava 
esses  meios  como  quaesquer  outros.  Tentava 
tudo  e  a  todos.  Nem  a  própria  reputação  de 
Simonetta,  cuja  probidade  severa  parecia  ex- 
cluir quaesquer  esperanças,  o  fez  recuar. 
Acaso  não  cria  nella.  A  influencia  deste  pre- 
lado e  a  de  Ghinucci  eram  as  que  mais  temia. 
Importava-lhe  comprá-los.  Recebidas  de  Lis- 
boa as  sommas  necessárias,  tentou  Simonetta 
por  intervenção  de  Santiquatro.  Repellida  a 
offerta  pelo  pobre  velho,  esperou  confiado 
que  alguma  precisão  instante  lhe  trouxesse  o 


(1)  «guardará  (o  papa)  o  primeyro  que  tem  feyto 
pela  composyçam  que  tem  recebida,  senom  ouver 
outro  lanço  mayor  sobre  mÍTm>:  Id  Ibid.  f.  101  v. 
— «Com  esta  mando  a  V.  A.  huma  medalha  em  que 
o  papa  está  tirado  pelo  natural  bem  ao  próprio  para 
que  veija  a  filosomia  deste  pryncepe  com  quem  ne- 
gocêa,  a  esperança  que  de  sy  promete,  e  quanta  re- 
são  tenho  de  deseyar  que  V.  A.  m'acupe  em  qual- 
quer outro  serviço  por  mais  trabalhoso  que  seya,  e 
me  tire  daqueste,  em  que  o  não  posso  servir  sem 
doença  da  alma  e  do  corpo»:  Ibid. 

TOMO  n  IC 


242  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

arrependimento  da  honestidade.  Não  tardou 
este.  Num  apuro  pecuniário,  Simonetta  lamen- 
tou-se  de  ter  perdido  a  offerta  espontânea  do 
embaixador;  mas  a  offerta  não  tardou  a  ser 
renovada  por  diverso  canal,  e  foi  acceita.  Ha 
o  que  quer  que  seja  infernal  nas  irónicas  des- 
culpas com  que  D.  Pedro  Mascarenhas  narra 
ao  seu  príncipe  a  prostituição  daquellas  cans. 
«Entre  os  cardeaes  —  diz  elle  —  Simonetta  era 
tido  pelo  mais  severo  na  distribuição  da  jus- 
tiça. Como  tal  o  collocou  o  papa  no  logar  que 
occupa :  como  tal  o  consulta  e  a  Ghinucci  em 
todos  os  negócios  mais  ou  menos  graves.  Es- 
tes foram  os  trances  que  passei  com  elle.  O 
que  fez  não  se  toma  em  Roma  por  maldade, 
nem  se  extranha,  porque  é  o  costume  da  ter- 
ra. Não  me  espanta,  por  isso,  o  valimento  que 
teve  aqui  Duarte  da  Paz,  tendo-lhes  dado  a 
comer  tantos  cruzados  e  portugueses  (1)». 
Depois  de  referir  a  triste  victoria  que  obtive- 
ra, annunciava  outras  mais  ou  menos  fáceis. 
«Trabalho  —  proseguia  elle  —  por  amansar 
Ghinucci,  não  para  me  servir,  mas  para  não 
me  empecer.  Está  mais  pacifico,  e  promessas 
não  faltam.  Se  lhe  podesse  fazer  devorar  al- 


(1)0  português  era  uma  moeda  de  ouro  daquelle 
tempo. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  243 

guns  cruzados,  faria  bom  serviço  a  vossa  al- 
teza. Não  desespero  disso,  porque  sei  os  usos 
de  Roma.  Comecei  a  encetar  os  dous  mil  cru- 
zados que  vossa  alteza  me  mandou  dar  para 
taes  obras,  e  não  creio  que  me  fundisse  mal 
a  despesa,  nem  que  damne  no  porvir.  Fie-se 
vossa  alteza  da  minha  má  consciência,  crendo 
que  sou  menos  escaco  da  própria  fazenda  do 
que  da  fazenda  real  (1)».  Com  um  agente  des- 
tes, o  negocio  da  Inquisição  teria  naquella 
conjunctura  ganhado  muito,  se,  como  disse- 
mos, a  questão  das  duas  decimas  não  absor- 
vesse quasi  inteiramente  as  attenções  de  D. 
Pedro  Mascarenhas,  e  não  lhe  repugnasse, 
conforme  se  deprehende  da  sua  correspon- 
dência, tractar  de  um  assumpto  enredado  de 
intermináveis  debates  jurídicos,  que  a  sua  alta 
intelligencia  devia  condemnar,  embora  não 
ousasse  manifestá-lo. 
O  principal,  ou,  pelo  menos,  um  dos  prin- 


(1)  Carta  de  D,  Pedro  Mascarenhas  de  20  de  ju- 
nho de  1539,  na  Correspond.  Orig.,  f.  104  e  v.  Numa 
carta  posterior  (2  de  dezembro  de  1539)  falando  da 
morte  de  Simonetta,  o  embaixador  mostra  a  sua 
magoa,  accrescentando  uma  ponderação  singular: 
«E  o  pior  foy  perder  V.  A.  aquelle  servidor  que  já 
lhe  estava  comprado»:  Ibid.  f.  199  v. 


244  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cipaes  fins  com  que  o  infante  se  collocara  á 
frente  do  tribunal  da  fé  tinha  sido,  conforme 
vimos,  dar  aso  a  coUisões  que  tornassem  ne- 
cessária a  remoção  de  Capodiferro.  Apenas 
revestido  da  dignidade  de  inquisidor-mór,  D. 
Henrique  nomeiou  novos  membros  para  o 
conselho  da  Inquisição.  Foram  estes  Ruy  Go- 
mes Pinheiro,  depois  bispo  de  Angra,  e  o  au- 
gustiniano  Fr.  João  Soares,  também  poste- 
riormente elevado  á  cadeira  episcopal  de 
Coimbra  (1).  A  escolha  de  Fr.  João  Soares 
era  a  luva  que  desde  logo  o  infante  arremes- 
sava ao  núncio,  ou,  para  melhor  dizer,  á  corte 
de  Roma,  onde  aquelle  frade  era  assas  mal 
visto.  Nas  instrucções  dadas  por  ordem  de 
Paulo  III  a  um  dos  successores  de  Jeronymo 
Recinati,  a  Índole,  as  opiniões  e  os  costumes 
do  novo  membro  do  conselho  geral  são  des- 
criptos  de  modo  não  demasiadamente  lison- 
geiro.  «O  confessor  delrei,  Fr.  João  Soares 
—  diz-se  ahi  —  é  um  frade  de  poucas  letras, 
mas  de  grande  audácia  e  em  extremo  ambi- 


(1)  Sousa,  de  Orig.  Inquisit.,  p.  13.  Ruy  Gomes  e 
Fr.  João  Soares  intitulavam-se  effecti vãmente  do 
conselho  e  deputados  da  saneia  Inquisição  a  22  de 
agosto  de  1539 ;  Processo  de  Ayres  Vaz,  Process 
da  Inquis.  de  Lisboa,  N.»  17:749,  no  Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  245 

cioso.  As  suas  opiniões  são  péssimas,  e  elle 
publico  inimigo  da  sé  apostólica,  do  que  não 
duvida  gabar-se,  como  refinado  hereje  que  é 
Todos  o  conhecem  por  tal,  menos  o  rei,  por 
cujo  temor,  e  porque,  com  pretexto  da  confis- 
são, obtém  delle  a  solução  de  muitos  negó- 
cios, todos  o  acatam.  E'  homem  perigoso  e 
de  vida  dissoluta.  O  paço  serve-lhe  de  con- 
vento (1)».  O  doutor  João  de  Mello,  um  dos 
primeiros  membros  do  conselho  nomeiados 
pelo  bispo  de  Ceuta,  e  que  mais  uma  vez  su- 
bstituirá o  inquisidor  geral  nos  seus  impedi- 
mentos, achava-se  então  delegado  da  Inquisi- 
ção em  Lisboa.  Creada  desde  logo  pelo  in- 
fante uma  Inquisição  permanente  na  capital, 
João  de  Mello,  que  se  distinguia  pelo  seu 
espirito  intolerante,  e  que  delle  continuou  a 
dar  provas,  foi  collocado  á  frente  do  novo 
tribunal.  Esta  nomeiação  feria  mais  parti- 
cularmente Capodiferro,  porque  naquel^a  con- 
junctura  um  successo,  talvez  de  antemão 
preparado  com  esse  intuito,  tinha  feito  rom- 
per as  hostilidades  entre  o  inquisidor  e  o  nún- 
cio. 


(1)  Instruzzione  data  ai  Coadjutore  de  Bergamo: 
Symm.,  T.  12,  p.  42  e  seg. 


246  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Ayres  Vaz  era  um  medico  do  Paço,  chris- 
tão-novo  (1),  cujo  irmão  Salvador  Vaz  entrara 
como  pagem  no  serviço  de  Jeronymo  Rice- 
nati  logo  depois  da  chegada  deste  a  Lisboa. 
Ganhara  o  núncio  extrema  affeição  ao  pagem, 
e  tanto  o  pae  como  o  irmão  do  moço  Salva- 
dor se  haviam  tornado  Íntimos  e  commensaes 
de  Capodiíerro.  Não  limitava  Ayres  Vaz  os 
seus  estudos  á  medicina :  tinha-se  dedicado 
também  á  astronomia,  sciencia  cujos  cultores 
naquella  epocha  facilmente  cabiam  nos  des- 
varios da  astrologia  judiciaria,  e  Ayres  Vaz 
deixou-se  embuir  da  mania  de  propheta.  Em 
geral,  na  Europa  a  astrologia  suppunha-se 
uma  cousa  seria.  Em  Roma  dominava  mais 
que  em  parte  nenhuma  esta  superstição,  e, 
segundo  a  phrase  expressiva  de  um  escriptor 
contemporâneo,  raro  era  o  cardeal  que  para 
comprar  uma  carga  de  lenha  não  consultava 
astrólogos  e  feiticeiros.  O  próprio  papa  tinha 
fé  implícita   na  influencia  dos  astros  e  nas 


(1)  Nem  do  processo  de  Ayres  Vaz,  nem  dos  do- 
cumentos diplomáticos  relativos  a  esta  questão 
consta  que  elle  fosse  christão-novo.  Consta,  porém, 
que  o  era  de  uma  carta  de  D.  Christovam  de  Castro, 
a  f.  28(J  da  Correspond.  Orig.  de  D.  Pedro  Mascare- 
nhas. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  247 

predicções  astrológicas  (1).  Ayres  Vaz  come- 
çara por  fazer  predicções  á  rainha  D.  Catha- 
rina  :  depois,  subindo  mais  alto,  fizera  pre- 
dicções politicas  a  elrei.  Entre  outras  cousas, 
por  occasião  de  um  eclipse  prophetisara  a 
morte  de  um  príncipe,  e  a  prophecia  tinha-se 
realisado  no  mais  velho  dos  dois  filhos  que 
restavam  a  D.  João  iii  de  todos  os  que  até 
ahi  tivera  (2).  Offerecendo  ao  monarcha  no- 
vos vaticínios,  Ayres  Vaz,  provavelmente  mal 
visto  já  pela  triste  predicção  da  morte  do 
príncipe,  annunciava  prósperos  successos, 
mas  confessava  que  as  illações  tiradas  do  as- 
pecto dos  astros  não  tinham  absoluta  cer- 
teza ;  porque  Deus,  os  arcanos  de  cuja  mente 
não  é  dado  ao  homem  perscrutar,  muitas  ve- 
zes annullava  as  influencias  sideraes.  Com 
este  correctivo  os  vaticínios  astrológicos  po- 
diam ser  e  eram  loucura,  porém  não  impie- 
dade. Entretanto,  uma  copia  do  papel,  dirigido 
pelo  pobre  medico  a  elrei  sobre  taes  assum- 
ptos, foi  cahir  nas  mãos  do  inquisidor  João 


(1)  Ranke,  Die  Roemischen  Paepste,  I  Band,  3  B 
(Paulo  III)  Mendoza,  Ibi. 

(2)  O  priflcipe  D.  Philippe,  fallecido  a  29  de  abril 
de  1539,  com  seis  annos  de  idade. 


248  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

de  Mello.  Chamado  por  este  ao  seu  tribunal, 
Ayres  Vaz  confessou  ser  auctor  daquelle  es- 
cripto,  posto  que  ahi  houvessem  introduzido 
alguns  períodos  que  não  eram  seus.  Assignou- 
Ihe  o  inquisidor  um  dia  para  vir  defender-se 
do  crime  de  heresia  que  commettera.  Na  con- 
junctura  aprasada  apresentou-se  Ayres  Vaz 
no  tribunal,  rodeiado  de  livros,  prompto  a 
mostrar  os  fundamentos  scientificos  dos  seus 
vaticínios  e  a  orthodoxia  das  suas  opiniões. 
Era  diíficil  o  primeiro  empenho,  mas  fácil  o 
o  segundo,  visto  que  elle  submettera  tudo  aos 
decretos  inescrutáveis  da  Providencia,  e  para 
se  defender  podia  invocar  o  exemqlo  do  chefe 
supremo  da  igreja.  Subitamente,  porém,  um 
notário  apostólico  entrou  no  aposento  e,  in- 
terrompendo a  solemnidade  do  acto,  entregou 
ao  inquisidor  um  papel.  Era  uma  intimação 
pela  qual  o  núncio  avocava  a  si  o  julgamento 
daquella  causa  e  ordenava  que  o  inquisidor 
fosse  assistir  a  elle,  levando  comsigo  os  theo- 
logos  que  deviam  disputar  com  Ayres  Vaz, 
entre  os  quaes  figurava  Fr.  João  Soares.  Ti- 
nha o  astrólogo  preparado  este  desfecho,  mas 
o  notário  antecipara  a  hora.  O  physico  pre- 
tendia primeiramente  dar  uma  severa  licção 
aos  theologos.  Teve,  porém,  de  retirar-se,  por- 
que o  inquisidor,  cujas  esperanças  eram  ou- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  249 

tras,  fingiu  obedecer  sem  resistência  aos  pre- 
ceitos do  legado  apostólico  (1). 

Passavam-se  estas  cousas  nos  melados  de 
junho,  quando  a  nomeiação  do  infante  para 
substituir  o  bispo  de  Ceuta  estava  já  resol- 
vida. Contava,  por  isso,  João  Mello  com  o  des- 
forço. Foi  o  primeiro  passo  para  elle  coUoca- 
rem-no  á  frente  da  Inquisição  de  Lisboa ;  mas 
o  seu  orgulho  exigia-o  mais  completo.  Aos 
autos  do  interrompido  processo  ajunctaram-se 
os  votos  dos  theologos  mestre  Olmedo,  Fr. 
João  Soares,  Fr.  Jeronymo  de  Padilha,  Fr. 
Luiz  de  Montoia  e  Fr.  Francisco  de  Villa- 
franca.  Eram  frades  mais  ou  menos  influen- 
tes na  corte.  O  escripto  fora  unanimemente 
julgado  por  elles  herético.  Revestido  o  infante 
da  nova  magistratura,  um  dos  seus  primeiros 
actos  foi,  portanto,  ordenar  a  prisão  de  Ayres 
Vaz,  que  os  officiaes  do  cardeal  D.  Affonso, 
arcebispo  de  Lisboa,  arrastaram  aos  cárceres 
do  Aljube.  A  lucta  estava  encetada.  O  núncio, 
que  debalde  tentara  obstar  á  prisão,  mandou 
intimar  o  infante  D.  Henrique  para  que  lhe 
entregasse  o  processo,  e  o  cardeal  D.  Aífonso 


(1)  Todas  estas  particularidades  são  extrahidas 
do  Processo  original  de  Ayres  Vaz,  N.^^  13:186  e 
17:749  dos  Processos  da  Inquisição  de  Lisboa,  1.  cit. 


250  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

para  que  soltasse  o  preso ;  mas  o  promotor 
da  Inquisição  deu  por  suspeito  o  núncio,  que 
recusou  a  suspeição.  Posto  que  esse  tractasse 
o  infante  de  pseudo-inquisidor,  o  infante  ap- 
pelou  para  a  sancta  sé,  appelação  que  Capo- 
diterro  igualmente  rejeitou.  Os  textos  de  di- 
reito canónico  e  dos  praxistas  voavam  de 
parte  a  parte  (1).  Era  um  drama  em  que  o 
excesso  do  ridiculo  só  se  temperava  pela  ter- 
rível perspectiva  de  uma  fogueira  para  o  po- 
bre astrólogo,  se,  na  refrega  entre  o  agente 
do  papa  e  os  infantes,  estes,  que  tinham  a 
força  material,  não  cedessem  ás  ameaças  dos 
interdictos,  cousa  pouco  provável,  visto  que  o 
intuito  da  nomeiação  de  D.  Henrique  fora 
causar  um  escândalo  que  desse  em  resultado 
a  saída  de  Ricenati. 

E  o  escândalo  aproveitou-se.  Elrei,  que  o 
fanatismo  tornava  instrumento  cego  destas 
vergonhosas  contendas,  escreveu  uma  carta 
ao  seu  ministro  em  Roma  para  que  exigisse 
do  papa  o  desaggravo  que  consistia  na  revo- 
cação  do  núncio.  A  narrativa  do  successo, 
como  se  pôde  suppor,  foi  exaggerada  naquella 
carta,  e  os  factos  carregados  com  sombrias 
cores.  Queixava-se  D.  João  iii,  sobretudo,  de 


(1)  Processo  de  Ayres  Vaz,  1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  251 

haver  Capodiferro  procedido  naquelle  caso 
sem  o  prevenir  e  de  ter  inhibido  officialmente 
o  infante  de  usar  do  seu  officio,  negando  a 
legitimidade  de  uma  nomeiação  feita  por  elle 
rei.  Ordenava  a  D.  Pedro  que  dissesse  ao 
papa,  como  advertência  própria,  que,  se  não 
retirasse  o  núncio,  este  seria  expulso,  até  para 
evitar  alguma  commoção  popular ;  e  rom- 
pendo, emfim,  um  silencio  que  D.  João  iii 
dizia  ter  guardado  por  excesso  de  delicadeza 
para  com  o  pontifice,  accusava  o  delegado 
apostólico  de  todo  o  género  de  corrupções  e 
de  ser  pelo  seu  procedimento  immoral  em 
Lisboa  o  opprí.  brio  da  corte  de  Roma  (1). 

Tal  era  o  estado  a  que  as  cousas  tinham 
chegado  ;  taes  as  tristes  consequências  dos 
erros  commettidos  por  um  principe  ignorante 
e  fanático,  dominado  por  frades  e  por  hypo- 
critas,  e  que  tomara  por  principal  mister  de 
rei  perseguir  a  porção  mais  rica  e  mais  in- 
dustriosa dos  próprios  súbditos,  embora  tra- 
gando affrontas,  arruinando  o  paiz,  abrindo 
o  campo  a  todo  o  género  de  immoralidades, 
calumniando  o  christianismo  e  desobedecendo 
aos    preceitos   da   tolerância  e  da  caridade 


(1)  Minuta  de  carta  a  D.  Pedro  Mascai-enhas,  sem 
data :  Correspond.  Orig.,  f.  t>7  v.  e  sogg. 


252  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

evangélicas.  Se  Capodiíerro,  movido  por  pai- 
xões cegas,  desacatara  dous  prelados  e  prin- 
cipes,  não  tinha  elle,  por  paixões  igualmente 
ignóbeis,  envilecido  de  antemão  o  episcopado 
soUicitando  a  Inquisição,  tribunal  que,  sendo 
uma  verdadeira  delegação  pontifícia,  cerceava 
numa  das  suas  funcções  mais  importantes  a 
auctoridade  dos  bispos?  A  fonte  d'onde  di- 
manava o  poder  do  inquisidor  geral  era  a 
mesma  d'onde  derivava  a  do  núncio.  Se  a 
bulia  de  23  de  maio  de  1536  attribuia  ao  pri- 
meiro a  magistratura  superior  no  julgamento 
dos  que  deslisavam  da  fé,  o  breve  de  9  de 
janeiro  de  1537  e  as  instrucções  officiaes  que 
se  lhe  haviam  dado  por  occasião  da  sua  vinda 
a  Portugal  auctorisavam  o  segundo  para  pro- 
ceder como  procedera,  e  ainda  para  ir  mais 
longe.  Podia  ter  sido  violento  e  descortez' 
mas  não  exorbitara  do  seu  direito ;  e,  se  a 
dignidade  real  fora  indirectamente  humilhada 
naquelle  conflicto,  D.  João  iii  só  tinha  a  quei- 
xar-se  de  si,  que  preparara  os  elementos  de 
tantos  desconcertos. 

Se,  porém,  elrei  deferia  á  cúria  romana  a 
resolução  da  contenda,  o  núncio  não  se  es- 
quecia de  ordenar  com  vantagem  a  própria 
defesa.  O  mensageiro  por  quem  enviou  os 
documentos   que  o  favoreciam  chegou  com 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  253 

seis  dias  de  antecipação  ao  correio  mandado 
pela  corte  de  Lisboa.  Assim,  os  dous  prote- 
ctores de  Capodiferro,  o  cardeal  Farnese  e  o 
seu  mentor,  o  secretario  de  Paulo  iii,  Marcelo 
Cervino,  bispo  de  Neocastro  (elevado  depois 
ao  pontificado  com  o  nome  de  Marcello  n) 
poderam  inteirar-se  de  tudo  e  prevenir-se 
para  a  lucta  antes  de  D.  Pedro  Mascarenhas 
receber  a  noticia  do  successo  e  as  instrucções 
que  se  lhe  remettiam.  Estavam  Marcello  o 
Farnese  vendidos  a  Capodiferro,  que  repartia 
com  elles  das  suas  rapinas  (1),  e  por  isso 
exposeram  o  negocio  perante  o  papa  a  uma 
luz  desfavorável  a  elrei  e  seus  irmãos.  Tinham, 
porém,  que  contender  com  duro  adversário. 
D.  Pedro,  recebendo  de  Paulo  iii  communica- 
ção  official  do  successo,  obteve  por  Ghinucci 
(que,  para  nos  servirmos  da  sua  expressiva 
phrase,  parece  já  tinha  amansado)  copia  dos 
documentos  enviados  por  Jeronymo  Ricenati, 
e  com  elles  se  preparou  para  o  combate.  Não 
tardaram,  porém,  a  chegar  os  que  elrei  lhe 
remettia,  e  que,  concordando  em  geral  com 


(1)  «por  Farnês  e  por  Marcello,  que  elle  (Capo- 
diferro) tem  comprados  com  seus  presentes» :  Carta 
de  D.  Pedro  Mascarenhas  a  elrei  de  10  de  setem- 
bro de  1539.  —  Correspond.  Orig.,  f.  243  e  segg. 


254  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

OS  do  núncio,  eram,  todavia,  mais  comple- 
tos. Tendo  consultado  hábeis  jurisconsultos,  o 
embaixador  pediu  uma  audiência  ao  papa. 
Contava  com  a  opposição,  e  ia  precavido  para 
lhe  contrapor  a  astúcia.  D.  Pedro  não  falava 
italiano,  e  o  papa  tirava  disso  vantagem  nas 
discussões  diplomáticas.  Quando  lhe  convi- 
nha, entendia  o  português ;  quando  lhe  não 
convinha,  succedia  o  contrario.  Vice-versa, 
embora  o  embaixador  invocasse  em  qualquer 
occasião  as  suas  anteriores  palavras,  se  tinha 
mudado  de  parecer  argumentava  com  a  igno- 
rância de  D.  Pedro,  para  afflrmar  que  o  per- 
cebera mal  e  que  tal  cousa  não  dissera.  Con- 
tra esta  má  fé,  adoptara  o  ministro  o  arbítrio 
de  lhe  apresentar  escriptas  em  italiano  as 
matérias  mais  árduas,  com  o  pretexto  de  não 
o  constranger  a  decifrar  o  português.  Reme- 
diava assim,  em  parte,  o  mal.  Da  carta  d'elrei 
levou  vertidos  os  períodos  que  deviam  ser 
communicados  ao  pontífice.  Ao  chegar  pe- 
rante este,  achou  ali  Farnese  e  Marcello,  cir- 
cunstancia nova  em  taes  audiências.  Apres- 
sou-se  o  papa  a  explicar-Ih'a.  Eram  elles  que 
tinham  de  tractar  do  assumpto,  e  podiam  as- 
sim ficar  desde  logo  inteirados  da  matéria. 
Persuadido  de  que  intentavam  confundi-lo,  o 
ministro  português  dissimulou,  agradecendo 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  255 

ao  pontífice  os  seus  desejos  de  abreviar  o 
negocio  e  pedindo-lhe  que  -fizesse  juiz  da  con- 
tenda o  próprio  Farnese,  que,  como  prelado  e 
príncipe,  não  podia  deixar  de  entender  com 
que  respeito  cumpria  fossem  tractados  taes 
príncipes  e  prelados  como  os  infantes  de  Por- 
tugal. Apresentando  então  o  original  e  a  ver- 
são da  carta  delrei,  e  lida  esta  ultima  por 
Marcello,  observou  o  papa  que  toda  a  ques- 
tão se  resumia  em  dous  pontos  :  em  se  pedir 
que  o  núncio  fosse  revocado  e  em  se  enume- 
rarem os  seus  erros  ;  que,  pelo  que  respeitava 
ao  primeiro,  a  solução  era  fácil,  porque  elle 
tinha  como  regra  não  conservar  em  qualquer 
corte  um  agente  que  não  agradasse  ao  res- 
pectivo soberano ;  mas,  pelo  que  tocava  ao 
segundo,  era  necessário  appreciar  o  procedi- 
mento de  Gapodiferro,  porque  a  forma  da  re- 
vocação  dependia  desse  facto,  honrando-o  se 
estivesse  innocente,  punindo-o  se  estivesse 
culpado.  A  isto  accrescentou  que  as  pessoas 
a  quem  mandara  examinar  a  questão  e  os 
documentos  enviados  pelo  núncio  achavam 
que  elle  tivera  fundamento  para  se  offender 
da  desobediência  dos  infantes,  visto  que,  como 
ecclesiasticos,  tinham  mais  restricto  dever  de 
respeitarem  o  pontífice  do  que  o  soberano ; 
que  em  não  reconhecer  D.  Henrique  por  in- 


256  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

quisidor-mór  estava  a  razão  da  parte  do  nun 
cio,  supposto  o  defeito  de  idade ;  que,  ainda 
quando  o  não  houvera,  nem  eile  papa,  nem 
elrei  deviam  consentir  em  que  o  infante  exer- 
cesse tal  cargo  ;  elrei,  porque,  sendo  o  impe- 
trante da  Inquisição,  não  era  decente  nomeiar 
seu  próprio  irmão  juiz  de  causas  em  que  in- 
teressava ;  elle  papa,  porque  tinha  que  dar 
contas  a  Deus  e  ao  mundo  da  concessão  da- 
quelle  tribunal.  Concluiu  o  pontífice  por  de- 
clarar que,  se  ao  embaixador  restavam  ou- 
tros cargos  contra  Jeronymo  Ricenati,  os 
desse  por  escripto,  para  se  verificar  a  sua 
exacção  e  punir- se  o  núncio  no  caso  de  estar 
culpado  (1). 

As  ponderações  de  Paulo  iii  eram  ao  mes- 
mo tempo  razoáveis  e  astutas.  Mostrava- se 
prompto  a  revocar  Capodiferro;  mas,  desde 
que  este  era  accusado,  cumpria  averiguar  a 
verdade  das  accusações.  Sem  isto,  tornava- se 
árduo  escolher  o  modo  da  revocação.  A 
prompta  acquiescencia  do  pontífice  aos  de- 
sejos da  corte  de  Portugal  ficava  assim  em 
vans  palavras  emquanto  se  não  dirimisse  a 
questão  da  culpabilidade.  Accusando  official- 
mente  o  núncio,  o  próprio  D.  João  iii  se  en- 

(1)  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  257 

volvera  num  dédalo  de  discussões  interminá- 
veis. 

Apesar,  porém,  do  terreno  vantajoso  em 
que  o  papa  se  coUocara,  o  embaixador  com- 
bateu com  destreza  as  suas  objecções.  Re- 
cordou-lhe  que  a  nomeiação  do  infante  fora 
já  virtualmente  approvada  por  elle  papa. 
quando,  pouco  havia,  se  lhe  communicara 
esse  facto ;  porque,  pedindo  ao  mesmo  tempo 
elle  embaixador  que  se  tirasse  ao  núncio  o 
dii'eito  da  revisão,  para  não  ficar  superior  ao 
infante,  e  se  esclarecessem  alguns  pontos 
obscuros  da  bulia  de  23  de  maio,  sua  sancti- 
dade  se  limitara  a  dizer-lhe  que  transmittisse 
a  Ghinucci,  Simoneta  e  Santiquatro,  dos  quaes 
se  compunha  a  commissão  encarregada  deste 
negocio,  os  apontamentos  sobre  as  reformas 
pedidas,  declarando-lhe  que,  sendo  seu  repre- 
sentante o  núncio,  nenhum  desar  havia  para 
o  infante  em  lhe  reconhecer  superioridade,  o 
que  era  necessário  por  emquanto  para  os 
christãos-novos  se  persuadirem  de  que  ti- 
nham recurso  contra  os  inquisidores;  que, 
usando  de  tal  linguagem,  sua  sanctidade  ap- 
provara  virtualmente  a  nomeiação.  Em  seu  en- 
tender, os  infantes  tinham  mostrado  todo  o 
respeito  á  sé  apostólica  dissimulando  a  inso- 
lência de  Capodiferro,   que,  por  excesso  de 

TOMO  II  17 


258  HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO 

paixão,  se  mostrara  indigno  do  cargo  que 
exercia,  e  sustentou  que  a  revocação  se  podia 
verificar  independente  do  processo.  Fazendo 
allusões  pungentes  á  corrupção  dos  ministros 
pontifícios,  desmascarou  Marcello  e  Farnese, 
provando  pelas  declarações  contradictorias 
dos  dous  que  nem  os  próprios  documentos 
remettidos  pelo  núncio  tinham  sido  apresen- 
tados senão  em  extracto  aos  jurisconsultos  a 
quem  Paulo  iii  incumbira  o  exame  jurídico 
da  matéria,  e  ajunctando  ás  exprobações  a 
ironia,  perguntou  a  Marcello  se  o  extracto 
fora  feito  e  traduzido  pelo  procurador  dos 
christãos-novos,  por  cuja  intervenção  a  corte 
de  Roma  recebera  os  papeis  enviados  pelo 
seu  representante  em  Lisboa.  Substituindo 
assim  a  aggressão  á  defesa,  obrigou  o  papa 
a  mostrar-se  agastado  contra  Marcello  e  Far- 
nese, ordenando-lhes  que  entregassem  o  exa- 
me da  matéria  aos  cardeaes  Ghinucci  e  Del 
Monte,  traduzindo-se  os  documentos  vindos 
de  Portugal  por  quem  o  embaixador  enten- 
desse. Entretanto,  na  questão  de  ser  o  infante 
mquisidor-mór,  negou  que  as  suas  palavras 
tivessem  significado  a  approvação  de  um 
facto  que  elle  reputava  odioso,  embora  D.  Pe- 
dro Mascarenhas  sustentasse  a  validade  da 
nomeiação  e   previsse   fataes  consequências 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  250 

da  cólera  d'elrei.  Pelo  que  tocava  á  revocação 
do  núncio,  declarava  que,  se  D.  João  iii  insis- 
tisse nella,  dando-se  tempo  para  se  lhe  esco- 
lher successor,  o  faria  retirar,  mas  sem  de- 
monstrações de  desagrado,  no  qual  só  poderia 
incorrer  Capodiferro  se  lhe  fosse  provada 
culpa.  O  pontifice,  que  a  principio  titubeiara 
diante  da  aggressão  do  embaixador,  accen- 
dendo-se  gradualmente,  concluiu  também  por 
fazer  graves  recriminações.  O  que  elrei  não 
queria,  quanto  a  elle,  era  que  houvesse  nún- 
cio em  Portugal;  que  não  descansara  sem 
expulsar  Sinigaglia,  e  que  procurara  pôr  obs- 
táculos á  enviatura  de  Capodiferro.  Declarava, 
porém,  que,  se  era  esse  o  alvo  a  que  se  ten- 
dia agora,  o  mais  conveniente  seria  falar  cla- 
ro ;  mas  que  se  lembrassem  de  que,  se  a 
sancta  sé  enviava  delegados  aos  paizes  catho- 
licos,  era  para  o  melhor  serviço  da  igreja,  e 
para  poupar  aos  povos  o  incommodo  e  a  des- 
peza  de  irem  soUicitar  em  Roma  os  despachos 
e  graças  apostólicas  de  que  tantas  vezes  ca- 
reciam (1). 

Esta  explosão  iracunda  do  papa  subminis- 
trava  a  D.  Pedro  Mascarenhas  ensejo  para  lhe 


(1)  Ibid. 


260  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

dizer  duras  verdades.  Não  era  homem  que  o 
desaproveitasse.  Ou  porque  de  feito  se  doesse 
da  linguagem  severa  do  supremo  pastor 
acerca  das  intenções  do  seu  soberano,  ou 
porque  lhe  conviesse  fingi-lo,  o  embaixador 
repelliu  com  mostras  de  indignação  a  idéa  de 
haver  em  elrei  pensamento  reservado  acerca 
dos  núncios,  ou  sequer  malevolencia  pessoal 
contra  Jeronymo  Ricenati.  Quando,  porém  — 
observava  elle  —  a  corte  de  Portugal  repug- 
asse  a  uma  nunciatura  permanente  no  paiz, 
não  era  isso  extranhavel,  porque  havia  duas 
razões  para  semelhante  repugnância.  Era  a 
primeira  ser  a  nunciatura  cousa  nova  e  insó- 
lita :  era  a  segunda  o  mau  procedimento  dos 
representantes  da  sancta  sé.  D'antes,  os  papas 
enviavam  só  legados  extraordinários  em  ca- 
sos urgentes.  Clemente  vii  fora  quem  estabe- 
lecera um  núncio  residente,  D.  Martinho  de 
Portugal ;  mas  este,  ao  menos,  era  português. 
Depois  viera  Sinigaglia,  antes  como  coUeitor 
das  meias  annatas,  que  se  deviam  das  igre- 
jas, do  que  como  núncio.  Protrahindo  a  sua 
residência  até  a  morte  de  Clemente  vii,  Marco 
delia  Ruvere  só  se  retirara  quando  fora  subs- 
tituído por  Capodiferro.  A  historia  da  nuncia- 
tura em  Portugal  era  asquerosa,  no  entender 
do  embaixador.  Sinigaglia,  abusando  dos  po- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  26  í 

deres  de  que  estava  revestido,  tinlia  sido  um 
verdadeiro  tyranno,  e  o  papa  fallecido  tê-lo-hia, 
por  certo,  punido,  se  vivera,  ou  o  paiz  o  re- 
pelliria  do  seu  seio.  Capodiferro  seguira  o 
exemplo  do  antecessor;  mas,  achando  o  ca- 
minho aberto,  progredira  com  mais  rapidez, 
até  chegar  ao  extremo  de  insultar  a  familia 
real  (1).  Na  sua  opinião,  os  núncios  eram  o 
flagello  do  reino;  porque  offendiam  a  justiça, 
damnificavam  as  fortunas  e  corrompiam  a  re- 
ligião, bastando  attender  a  que  três  quartas 
parles  dos  indivíduos  de  vulto  em  Portugal  se 
podiam  considerar  membros  do  corpo  eccle- 
siastico,  uns  como  sacei  dotes,  outros  como 
minoristas,  outros  como  commendadores  das 
ordens  militares.  A  bem  dizer,  estendia-se  a 
todos  e  a  tudo  a  jurisdicção  do  núncio,  «em 
quem  —  observava  o  ministro  português  — 
com  pouco  trabalho  e  dinheiro  achamos  re- 


(1)  «nos  quays  (dous  annos)  se  portara  de  ma 
neira  em  seu  oficio  tyrynisando  este  remo  com  seus 
poderes  que  se  o  papa  vivera  mais,  nom  sementes 
lio  revogara  mas  lio  castigara  como  suas  culpas 
mereciam,  ou  a  mesma  terra  o  nom  poderá  lá  se 
frer,  e  que  este  que  S.  S.  agora  la  tinha  segira  as 
pisadas  do  seu  antecessor,  senam  quanto  por  achar 
o  caminho  aberto  ho  andara  mais  depressa»:  Ibid. 


262  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

curso  para  nossas  culpas,  fiados  no  que,  e  na 
fácil  exempção  do  castigo,  os  malfeitores  se 
abalançam  a  perpetrar  os  maiores  delictos». 
Se  o  pontifice  continuasse  a  mandar  esses 
delegados  permanentes,  aconselhava-o  como 
christão  (porque  o  que  dizia  era  nessa  quali- 
dade e  não  na  de  embaixador)  a  que  fosse 
severissimo  na  escolha,  de  modo  que  os  seus 
representantes  cuidassem  mais  no  serviço  da 
igreja  do  que  em  se  enriquecerem,  como  até 
então  haviam  feito.  Ainda  assim,  afflrmava 
que,  se  qualquer  núncio  se  conservasse  du- 
rante seis  mezes  em  Portugal,  por  mais  vir- 
tuoso que  fosse,  tornar-se-hia  tão  mau  como 
os  passados,  sobretudo  se  tivesse  o  direito 
de  revisão  nos  processos  do  tribunal  da  fé. 
Os  lucros  que  d'ahi  provinham  á  nunciatura 
eram  taes,  e  a  liberdade  dos  christãos-novos 
tamanha,  que  não  só  homens,  mas  até  pedras, 
por  assim  dizer,  se  corromperiam.  «A  prova 
disso  —  accrescentava  maliciosamente  o  em- 
baixador —  tinha-a  sua  sanctidade  no  vali- 
mento de  que  gosava  em  Roma  o  procurador 
dos  conversos,  d'onde  se  podia  conjecturar 
qual  seria  a  influencia  que  os  mesmos  con- 
versos exerceriam  sobre  o  núncio  em  Portu- 
gal, onde  estavam  tão  perto  deste,  e  elle  tão 
longe  do  papa,  sobre  quem  recahia  a  infâmia 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  263 

de  todos  esses  abusos,  ao  passo  que  o  pro- 
veito era  dos  seus  delegados  (1).» 

O  desassombro  com  que  D.  Pedro  falara 
produzira  o  effeito  que  desejava.  Paulo  iii  col- 
locou-se  na  defensiva.  Deplorou  que  taes  fac- 
tos se  practicassem,  promettendo  providen- 
cias, e  admirando-se  de  que,  no  meio  de  tan- 
tos desconcertos,  não  tivesse  havido  quem  se 
queixasse  para  Roma.  A  resposta,  porém,  do 
embaixador  foi  peremptória.  Ninguém  se  quei- 
xava, porque  a  persuação  geral  era  que  todas 
as  representações  dirigidas  á  cúria  romana 
neste  sentido  seriam  inúteis.  Assim,  as  cou- 
sas teriam  continuado  indefinidamente  no 
mesmo  estado,  se  o  núncio  não  houvera  com- 
mettido  a  imprudência  de  entrar  em  lucta 
com  os  infantes,  suscitando  com  tal  procedi- 
mento a  animadversão  d'elrei  (2).  Era  uma 
triste  confissão  a  que  D.  Pedro  Mascarenhas 
fazia.  A  corte  de  Portugal  tolerara  as  dema- 
sias e  prevaricações  de  Gapodiferro,  e  conti- 
nuaria a  tolerá-las,  se  uma  questão  de  orgu- 
lho não  a  tivesse  revocado  ao  sentimento  do 
próprio  dever  e  ao  zelo,  um  pouco  tardio,  da 
moralidade  e  da  justiça. 


(1)  ibid. 

(2)  ibid. 


264  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

Depois  desta  tempestuosa  audiência,  Pau- 
lo III  partiu  para  Tivoli  e  Frascati,  d'onde  só 
voltou  a  Roma  a  5  de  setembro,  saindo  de 
novo  para  Loreto  passados  quatro  dias.  De- 
batia-se  entretanto  a  questão  do  núncio  e  dos 
infantes  entre  os  cardeaes  Ghinucci  e  Del 
Monte  e  os  advogados  escolhidos  pelo  embai- 
xador para  sustentarem  a  causa  dos  prínci- 
pes. Se  os  factos  que  Capodiferro  allegava 
nas  suas  informações  eram  exactos,  elle  nem 
os  injuriara,  usando  de  um  direito  que  ao 
mesmo  tempo  era  um  dever  seu,  nem  deixara 
de  guardar  respeito  ao  soberano  e  a  seus  ir- 
mãos, mandando  rogar  antecipadamente  a 
D.  João  III  por  um  dos  seus  próprios  validos, 
cujo  testemunho  invocava,  que  não  o  compel- 
lissem  a  usar  dos  poderes  que  lhe  haviam  sido 
commettidos.  Por  estas  e  outras  circumstan- 
cias  a  discussão  protrahia-se,  e  o  embaixador 
não  poderá,  durante  os  quatro  dias  que  o 
papa  se  demorou  em  Roma,  alcançar  nova 
audiência.  Com  a  audácia,  porém,  que  o  cara- 
cterisava,  D.  Pedro  Mascarenhas  penetrou, 
emfim,  alta  noite  e  quasi  á  força  no  sacro  pa- 
lácio, poucas  horas  antes  da  partida  do  papa 
para  Loreto.  Estava  convencido  de  que  a  re- 
pugnância do  pontífice  a  ouvi-lo  procedia  de 
querer  evitar  emquanto  podesse  a  revocação 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  ii65 

do  núncio,  e  queixou-se  amargamente  da  des- 
consideração com  que  eram  pospostos  os  ne- 
gócios mais  urgentes  d  eirei  seu  amo  O  des- 
peito de  Paulo  iii  pela  intrusão  do  embaixador 
converteu-se  em  explicações  e  desculpas.  Quiz 
depois  convencê-lo  da  conveniência  de  ficar 
em  Roma  para  convalescer  de  uma  doença 
que  padecia ;  Mas  D.  Pedro  Mascarenhas  re- 
cordou-se  naquelle  momento  de  uma  pro- 
messa de  romagem  ao  sanctuario  do  Loreto, 
promessa  para  cujo  cumprimento  achava  a 
conjunctura  propicia.  Posera  o  papa  a  mas- 
cara da  benevolência  ;  elle  punha  a  da  devo- 
ção. Vieram,  emfim,  a  um  accordo.  D.  Pedro 
ficaria  em  Roma  ainda  um  dia  para  ver  cer- 
tas notas  que  Ghinucci  e  Del  Monte  deviam 
transmittir-lhe  sobre  a  reforma  da  Inquisição.. 
e  depois  iria  encontrar-se  com  o  papa  em 
Viterbo,  onde  também  estaria  Santiquatro,  e 
d'onde  se  expediria  para  Portugal  um  correio 
com  as  resoluções  ahi  tomadas  (1) 

Supposta  a  astúcia  da  corte  de  Roma,  seria 
iicito  suspeitar  que  as  annunciadas  commu- 
nicações  de  Ghinucci  e  Del  Monte  eram  um 
meio  a  que  se  recorria  para  suscitar  embara- 
ços ao  embaixador,  distrahindo-lhe  a  attenção 

(1)  ibid 


266  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

com  um  negocio  não  menos  importante  que 
o  da  revocação  do  núncio,  e,  além  disso,  com- 
plexo e  difficil.  Entretanto,  o  mais  provável  é 
que  os  protectores  dos  conversos  instassem 
pelas  modificações  da  bulia  de  23  de  maio, 
que  os  mesmos  conversos  pediam,  antes  que 
Gapodiferro  saísse  de  Portugal  e  elles  ficas- 
sem entregues  sem  protecção  ás  perseguições 
de  que  era  annuncio  nada  equivoco  a  mu- 
dança de  inquisidor-mór.  Fosse  o  que  fosse, 
é  certo  que  os  dous  cardeaes  effectivamente 
apresentaram  a  D.  Pedro  Mascarenhas  os 
pontos  sobre  que  o  papa  resolvera  deferir  fa- 
voravelmente ás  supplicas  dos  christãos-novos. 
Debatida  a  matéria,  depois  de  examinada  pe- 
los advogados  da  coroa  escolhidos  pelo  em- 
baixador, a  questão  veio  a  cifrar-se  em  duas 
resoluções  importantes,  acerca  das  quaes  os 
cardeaes  declararam  positivamente  que  o  papa 
não  cederia.  Era  a  primeira,  que  nos  proces- 
sos por  heresia  se  communicassem  aos  réus, 
não  sendo  estes  pessoas  poderosas,  os  nomes 
das  testemunhas  de  accusação  :  era  a  segun- 
da, que  do  conselho  geral  da  Inquisição  hou- 
vesse recurso  sempre  para  a  sancta  sé.  Conhe- 
cendo que  todas  as  diligencias  para  mover 
Ghinucci  e  Del  Monte  eram  baldadas,  porque 
se  limitavam  a  dizer  que  não  eram  senão  in- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  267 

terpretes  da  decisiva  vontade  do  pontifica,  o 
embaixador  pediu  que,  ao  menos,  se  lhe  desse 
espaço  para  communicar  á  sua  corte  aqueíla 
resolução,  e  receber  instrucções.  Nem  isso, 
porém,  pôde  obter.  Os  cardeaes  respondiam  a 
todas  as  ponderações  de  D.  Pedro  que  não 
estavam  auctorisados  para  conceder  seme- 
lhante mora,  e  que  o  conhecimento  que  lhe 
haviam  dado  daquelle  assumpto  fora  pura 
formalidade,  visto  serem  as  deliberações  to- 
madas negocio  de  consciência  para  o  pontí- 
fice, e  não  assumpto  de  controvérsia  diplo- 
mática (1). 

Duas  causas  urgentes  chamavam,  portanto, 
D.  Pedro  Mascarenhas  á  conferencia  promet- 
tida  para  Viterbo,  onde  effectivamente  foi  al- 
cançar o  papa  e  onde  encontrou  já  Santiqua- 
tro.  Alli,  em  Montefiascone  e  em  Orvieto,  per- 
seguindo com  instancias  incessantes  o  ponti- 
fice.  pôde  obter  que  a  minuta  da  nova  bulia 
acerca  da  Inquisição  fosse  revista  pelos  car- 
deaes Santiquatro  e  Jacobacio  de  accordo  com 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  a  elrei  de  19 
de  setembro  de  1539  (Correspond.  Orig.,  f.  252).  Esta 
carta  comida  da  tinta  e  ditflcil  de  ler  (bem  como  a 
de  10  do  mesmo  mez)  acha-se  em  extracto  assas  ni- 
lido  a  f.  150  do  códice 


268  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Del  Monte;  e  posto  que  não  viessem  a  modi- 
ficar-se  nas  conferencias  as  resoluções  ado- 
ptadas, o  embaixador  chegou  com  a  própria 
insistência  e  com  o  favor  de  Santiquatro  a 
alcançar  que  a  expedição  definitiva  da  bulia 
declaratória  se  não  verificasse  antes  de  se  en- 
viar copia  delia  a  D.  João  iii  (1).  Entretanto, 
esta  concessão  não  foi  feita  sem  condições 
assas  restrictas.  A  primeira  era  entender-se 
que  os  ires  annos  concedidos  aos  christãos- 
novos,  para  serem  julgados  nos  casos  de  he- 
resia segundo  as  formulas  estabelecidas  para 
os  processos  crimes  ordinários,  ficavam  in 
petto  (mentalmente)  prorogados  desde  logo, 
visto  estar  a  expirar  esse  praso  marcado  na 
bulia  de  23  de  maio  de  1536:  a  segunda  era 
que  a  resposta  d'elrei  deveria  chegar  imprete- 
rivelmente até  15  de  novembro,  alliás  expe- 
dir-se-hia  a  bulia  declaratória:  a  terceira  con- 
sistia em  intimar  elrei  os  inquisidores,  logo 
que  chegassem  as  cartas  do  embaixador,  pa- 
ra não  innovarem  a  forma  do  processo  até 
ulterior  resolução:  a  quarta  e  ultima  vinha  a 
ser  que,  dada  a  hypothese  de  não  chegarem 
essas  cartas  senão  depois  de  haver  expirado 
o  praso  dos  três  annos,  se  porventura  se  ti- 

(1)  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  269 

viesse  já  prendido  algum  christão-novo  e  co- 
meçado a  processar  com  as  formulas  ordina 
rias  da  Inquisição,  ficaria  o  processo  suspen- 
so até  final  resolução  sobre  a  matéria.  Por 
outra  parte,  os  três  pontos  em  que  o  papa 
declarava  estar  firmemente  resolvido  a  não 
ceder  eram  que  o  infante  fosse  demittido  do 
cargo  de  inquisidor-mór;  que  se  estabelecesse 
de  modo  positivo  o  recurso  para  Roma,  que, 
finalmente,  se  posesse  como  regra  commu- 
nicarem-se  os  nomes  das  testemunhas  de  ac- 
cusação  aos  réus,  não  sendo  estes  pessoas 
poderosas,  reservando  para  si  o  pontifice  de- 
signar quaes  deviam  ser  incluídos  nessa  ca- 
tegoria. O  embaixador  obrigou-se  ao  cumpri- 
mento das  quatro  condições,  sob  a  pena  que 
o  papa  lhe  quizesse  impor.  A  mais  certa  ga- 
rantia, porém,  destas  convenções,  no  sentir 
de  Paulo  iii,  era  o  direito  que  tinha  de  acabar 
com  a  Inquisição,  se  ellas  não  fossem  cum- 
pridas (1).  Entretanto,  para  que  a  primeira 
condição  podesse  effectivamente  realisar-se, 
expediu-se  de  prevenção  um  breve  ao  núncio, 
estatuindo  que,  apenas  expirasse  o  praso  dos 
três  annos  relativo  á  ordem  do  processo  dos 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  21  de  se~ 
lembro,  na  Correspond.  Orig.,  f.  181. 


270  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

réus  de  heresia,  continuasse  a  seguir-se  o 
mesmo  systema,  emquanto  se  não  chegava  a 
accordo  definitivo  sobre  aquelle  assumpto  (1). 
Gommunicando  a  elrei  estas  resoluções,  D. 
Pedro  Mascarenhas  expunha  com  franqueza 
a  sua  opinião  e  o  estado  verdadeiro  das  cou- 
sas. Tinha  feito  quanto  humanamente  era  pos- 
sivel  para  combater  as  intentadas  declarações. 
A  discussão  plácida,  as  scenas  violentas,  em 
que  de  parte  a  parte  se  descera  até  as  inju- 
rias grosseiras  (2),  tudo  fora  inútil  para  com 
o  papa  e  Del  Monte.  Não  esperava,  portanto, 
que  as  ponderações  enviadas  de  Portugal  ti- 
vessem mais  força  que  as  suas  e  as  do  car- 
deal protector.  Se  quizessem  allegar,  para  se 
não  revelarem  os  nomes  das  testemunhas,  as 
vinganças  dos  christãos-novos  contra  ellas, 
cumpria  provar  o  perigo  com  factos  e  não 
com  vagas  declamações;  porque  os  christãos- 
novos  provavam  com  documentos  indubitá- 
veis as  perseguições  que  lhes  faziam  e  as  de- 


(1)  Breve  ao  núncio  de  22  de  setembro,  na  Symni., 
vol.  31,  f.  418  v. 

(2)  «nunca  passou  nenhum  dia  em  que  Santiqua- 
tro  e  eu  nom  combatêssemos  com  lio  Papa  e  com 
Monte  a  tu  por  tu,  sofrendo  alguas  vezes  más  pa- 
lavras e  disendo  outras  semelhantes»:  Carta  de  D 
Pedro  Mascarenhas  de  21  de  setembro,  1.  cu. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  271 

monstrações  de  malevolencia  que  lhes  davam; 
e  não  se  contentando  de  apresentar  esses  do- 
cumentos na  Rota  ou  ao  papa,  tornavam-nos 
públicos  pela  imprensa.  Espraiando-se  em  elo- 
gios ao  infante  D.  Henrique  e  á  sancta  inten- 
ção com  que  eirei  o  posera  á  frente  do  tribu- 
nal da  fé,  aconselhava,  todavia,  que  elle  pró- 
prio resignasse  o  cargo.  Estava  persuadido 
de  que  o  pontífice  não  cederia  nesse  ponto,  e 
de  que  isso  devia  custar  tanto  menos,  quanto 
era  certo  que  se  tinha  obtido  a  revocação  do 
núncio,  principal  fim  da  nomeiação  do  infan- 
te. Quanto  ás  appelações  para  Roma,  sup- 
punha  que  ainda  se  poderia  vencer  não  se 
tractar  desta  matéria  na  bulia  declaratória,  con- 
servando-se  a  questão  irresoluta,  como  se  dei- 
xara na  de  23  de  maio  de  1536,  sem  se  affir- 
mar  nem  negar  a  existência  do  direito  de  ap- 
pelação,  maiormente  attendendo  a  que  ainda 
faltavam  sete  annos  para  acabar  o  praso  em 
que  os  confiscos  eram  prohibidos,  questão 
talvez  a  mais  grave  para  os  conversos,  e  na 
qual,  sobretudo,  lhes  importaria  depois  pode- 
rem appelar  para  Roma.  No  que,  porém,  to- 
cava á  revelação  dos  nomes  das  testemunhas» 
o  embaixador  promettia  a  elrei  suscitar  taes 
embaraços  com  as  objecções,  quando  se  tra- 
ctasse  de  definir  quaes  eram  os  réus  podero- 


272  HISTORIA   DA   INQUISIÇÃO 

SOS,  que,  por  fim,  de  excepções  em  excepções, 
viriam  a  conceder  lanto  ou  mais  do  que  se 
desejava,  ficando  quasi  todos  os  chirislãos-no- 
vos  directa  ou  indirectamente  mcluidos  nellas 
e,  por  consequência,  annulladas  as  vantagens 
que  os  mesmos  esperavam  tirar  por  esse  lado 
da  bulia  declaratória  (1). 

No  meio  destas  questões  sobre  o  futuro 
modo  de  proceder  da  Inquisição,  tinham  acaso 
esquecido  as  discórdias  do  núncio  com  os  in- 
fantes, ventiladas  a  principio  com  tanto  fervor? 
Desde  que  o  papa  accedia  á  revocação  de  Je- 
ronymo  Ricenati,  a  contenda  tomava  um  ca- 
racter benigno,  e  a  necessidade  de  estampar 
na  fronte  do  delegado  apostólico  o  ferrete  das 
suas  corrupções  tornava-se  menos  urgente. 
Ao  mesmo  tempo  o  papa,  que  resolvera  man- 
dar julgar  a  causa  de  Ayres  Vaz  pelo  cardeal 
D.  Aífonso  conjunctamente  com  o  núncio, 
advertido  de  que  seria  impossivel  fazer  con- 
correr os  dois  adversários  a  esse  acto,  irrita- 
dos como  estavam  um  contra  o  outro,  bus- 
cara a  solução  da  diííiculdade  em  ordenar 
que  o  réu,  solto  sob  fiança,  viesse  justificar- 
se  na  cúria  romana.  Sem  deixar  de  transmit- 
tir  á  sua  corte  este  expediente,  o  ministro  poj- 

(1)  Ibid. 


HISTORIA    DA    (VQUíSIÇÃO  273 

#íuíi»>  ponderava,  todavia,  a  inconveniência 
ae  consentir  num  facto  que  abriria  exemplo 
para  os  christãos-novos  evitarem  o  castigo, 
faeilitando-se-lhes  saírem  de  Portugal  para 
Homa.  Usando  de  uma  metaphora  vulgar,  mas 
enérgica,  D.  Pedro  Mascarenhas  fazia  sentir 
as  consecjuencias  de  um  arbítrio  que  o  papa 
considerava  ou  fingia  considerar  como  natu- 
ral e  simples  (1). 

Entretanto,  um  incidente  inesperado  esteve 
a  ponto  de  annuUar  ou,  pelo  menos,  de  retar- 
dar nos  seus  effeitos  os  esforços  do  embaixa- 
dor. A  larga  negociação  sobre  as  duas  deci- 
mas que  elle  tinha  conduzido  a  termos  vanta- 
josos fora  transtornada  em  Portugal  pelo 
clero,  que,  com  approvação  do  poder  civil, 
viera  a  um  accordo  com  o  núncio.  Não  nos 
dilataremos  com  um  assumpto  que  não  per- 
tence ao  objecto  deste  livro.  Baste  saber-se 
que  esse  facto  foi  communicado  ao  ministro 
português  quando  concluíra  com  Paulo  iii  um 
contracto  em  que,  a  troco  de  composição  ou 
resgate  comparativamente  moderado,  se  re- 
mia aquella  extorsão,  ou,  para  melhor  dizer, 
em  que  o  papa  cedia  ao  rei  o  direito  de  a 
converter  em  proveito  próprio.  Mas  a  desvan- 


(1)  apara  que  o  iisso  nom  salte  da  armada»:  Ibid. 

TOMO  II  18 


274  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tagem  politica  da  inopinada  transacç?^  «í^^ia 
era  maior  que  a  económica.  D.  Pedro,  e,s^.ri- 
bado  nas  terminantes  instrucções  que  rece- 
bera de  Lisboa,  tinha  certificado  o  papa  de 
que  elrei  cortara  todas  as  relações  diplomáti- 
cas com  o  núncio  depois  da  affronta  feita  a 
seus  irmãos,  e  resolvera  não  tornar  a  reno- 
vá-las por  caso  algum.  O  pacto  feito  em  Lis- 
boa sobre  as  decimas,  cujo  conteúdo  Capodi- 
ferro  transmittira  para  Roma,  desmentia,  po- 
rém, solemnemente  essa  affirmativa.  Por  ou- 
tro lado,  o  embaixador  tinha  já  alcançado 
mandar-se  expedir  o  breve  de  revocação.  m- 
dependente  de  ulteriores  exames  sobre  o  pro- 
cedimento do  delegado  apostólico ;  mas,  á 
vista  da  boa  harmonia  que  esse  facto  indicava 
existir  agora  entre  o  governo  português  e  o 
núncio,  repugnava  ao  papa  enviar  o  breve,  tanto 
mais  que  se  tornava  necessário  dar  tempo  a 
Ricenati  para  realisar  os  ajustes  que  fizera. 
Tal  era  a  situação  difficil  em  que  os  erros  da 
corte  de  Portugal  collocavam  o  seu  minis- 
tro, cujo  despeito  se  manifesta  de  modo  nada 
equivoco  na  respectiva  correspondência  (1). 


(1)  Veja-se  a  longa  carta  de  D.  Pedro  Mascare- 
nhas datada  de  Perugia,  com  a  mesma  data  da  an- 
lecedente,  na  Correspond.  Orig.,  f.  173  e  segg. 


JíiSTORIA  DA  INQUISIÇÃO  2/0 

rk  Ã>i\ia,  todavia,  de  perseverança,  ajudada 
oe4v\  activa  cooperação  de  Sanliquatro,  e  tendo 
lido  a  arte  de  persuadir  Paulo  iii  de  que  a 
transacção,  feita  em  Lisboa,  nem  era  segura, 
como  aliás  o  era  a  celebrada  com  elle,  nem 
daria  provavelmente  os  resultados  vantajo- 
sos que  se  esperavam,  D.  Pedro  Mascarenhas 
chegou  a  obter  a  acceitacão  de  um  termo  mé- 
dio entre  os  dous  contractos,  obrigando-se 
a  pagar  em  Roma,  dentro  de  breve  praso,  a 
somma  convencionada,  e  fazendo  com  que  fi- 
nalmente se  expedisse  o  breve  de  revocação 
ao  núncio,  designando- se-lhe  o  termo  para 
sair  de  Portugal  até  1  de  novembro,  visto  ha- 
verem desapparecido,  com  os  ajustes  definiti- 
vos sobre  o  resgate  das  decimas,  todos  os 
pretextos  plausiveis  para  ulteriores  demo- 
ras (1). 

Mas  o  papa,  se,  por  um  lado,  fazia  conces- 
sões importantes,  temperava,  por  outro,  o  con- 
tentamento do  embaixador  com  uma  resolução 
que  não  menos  lhe  contrariava  as  pretensões. 
Posto  que  houvesse  convindo  em  retardar  a 
expedição  da  bulia  declaratória  relativa  á  In- 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  4  de  outu- 
bro, na  Correspond.  Orig.,  f.  193.  — Carla  de  Sanli- 
quatro de  1  de  outubro,  ibid.  f.  239. 


276  HISTORIA  DA   INQUISIÇé 

quisição,  tinha-0  feito  no  presupposto  "^"^  of'^. 
se  dilataria  a  saída  do  núncio  até  r-se  appro- 
ciar  devidamente  de  que  lado  estava  a  rajjifío 
na  sua  contenda  com  os  infantes,  e  até  se  íiie 
poder  enviar  successor.  Agora,  porém,  que  as 
circumstancias  mudavam,  entendia  que  não 
lhe  era  permittido  abandonar  os  conversos, 
visto  que,  além  de  ser  chegada  a  epocha  em 
que  cessavam  para  elles  as  garantias  do  pro- 
cesso civil  ordinário  nos  julgamentos  da  In- 
quisição, ia  sair  de  Lisboa  o  único  homem 
que,  pela  auctoridade  de  que  estava  revestido, 
podia  ampará-los  efíicazmente  contra  os  ódios 
e  perseguições  injustas  dos  seus  figadaes  ini- 
migos. Nesta  parte,  Paulo  iii  mostrava-se  fir- 
me, e  a  perseverança  e  insistência  do  embai- 
xador e  de  Santiquatro  luctaram  em  vão  com 
a  sua  inabalável  vontade.  Ou  consentirem  na 
conservação  do  núncio  ou  na  expedição  da 
bulia  declaratória.  Deixava  ao  arbítrio  delles 
a  escolha  entre  estas  duas  soluções  (1). 

D.  Pedro  Mascarenhas  teve,  portanto,  de 
ceder.  Ao  passo  que  se  redigia  o  diploma 
pontifício,  pelo  qual  se  aclaravam  as  disposi- 
ções da  bulia  de  23  de  maio,  e  se  determina- 


(1)  ibid. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  277 

vam  melhor  os  limites  da  acção  dos  inquisi- 
dores em  relação  aos  conversos,  o  ministro 
português  recebia  o  maço  fechado  da  corres- 
pondência do  pontifice  para  Capodiferro,  onde 
se  continha  o  breve  de  revocação.  Remetten- 
do-o  para  Portugal,  D.  Pedro  Mascarenhas 
demittia  de  si  qualquer  responsabilidade  acerca 
do  modo  por  que  esse  breve  fora  redigido, 
visto  que  se  lhe  dera  fechado  (1).  Desconfiava 
de  tudo  quanto  partia  da  corte  de  Roma,  e 
por  isso  avisava  o  seu  governo  de  que,  fos- 
sem quaes  fossem  as  palavras  do  breve,  a 
declaração  feita  pelo  papa,  de  que  os  poderes 
de  Ricenati  como  delegado  apostólico  cessa- 
riam desde  o  momento  em  que  o  recebesse, 
e  de  que  a  sua  demora  em  Lisboa  não  pas- 
saria além  de  1  de  novembro,  tinha  sido  ca- 
tegórica, e  Santiquatro  tomara  delia  por  es- 
cripto  uma  nota  que  enviava.  Não  deviam, 
portanto,  em  caso  algum  consentir-lhe  o  me- 
nor acto  de  jurisdicção,  nem  admittir  que  se 
conservasse  no  reino  mais  um  dia  além  do 
praso  marcado.  Pelo  que,  porém,  dizia  res- 
peito á  bulia  declaratória,  consolava  elrei,  não 


(1)  «porque  eu,  senhor,  não  vy  o  l)revo  nem  sey 
o  que  se  nele  mais  confemi):  Ihi<l 


278  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

SÓ  com  as  vantagens  obtidas  a  troco  do  ce- 
der neste  ponto,  e  com  a  consideração  de  que 
mais  tarde  ou  mais  cedo  ella  viria  a  conce- 
der-se,  ainda  que  se  lhe  obstasse  agora,  mas 
também  com  a  esperança  de  se  poder  annul- 
lar  de  futuro.  Na  sua  opinião,  cumpria  enviar 
a  Roma  para  tractar  deste  assumpto,  como 
varias  vezes  tinha  aconselhado,  um  juriscon- 
sulto hábil,  a  quem  se  pagasse  bem,  para  se 
não  tentar  a  receber  dos  agentes  dos  chris- 
tãos-novos  alguma  compensação  da  parcimo- 
nia  com  que  fosse  retribuído  pelo  governo. 
Ponderava  que,  sendo  a  bulia  declaratória  re- 
sultado das  grossas  peitas,  que  obrigavam  a 
cúria  romana  a  tanta  soUicitude,  recebido  o 
dinheiro  o  negocio  se  tornaria  mais  fácil,  e  os 
argumentos  contra  essas  providencias  acha- 
riam mais  desembaraçados  os  ouvidos  da- 
quelles  mesmos  que  as  reputavam  indispen- 
sáveis emquanto  não  tinham  bem  seguro  o 
preço  das  suas  venalidades  (1). 
Como  acabamos  de  ver,  os  resultados  das 


(1)  «E  também  lenho  poi-  sem  duvyda  que  esta 
gente  dá  boa  composiçam  por  esta  decraratorya, 
e  que  ysto  he  o  que  faz  dar  tanta  pressa.  E  lam- 
bem creo  que  depois  de  recebida  se  ouvyrão  my- 
Ihor  as  rezões  por  parle  de  V    A.»:  Ibid 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  279 

negociações  com  o  embaixador  português, 
resumidos  na  sua  expressão  mais  simples, 
eram,  quanto  á  saída  do  núncio,  que  se  lhe 
assignalasse  o  curto  praso  de  um  mez  incom- 
pleto para  a  verificar,  e  quanto  á  nova  bulia 
relativa  á  Inquisição,  que  se  estatuisse  a  com- 
municação  dos  nomes  das  testemunhas  de 
accusação  aos  réus  de  heresia,  e  que  se  esta- 
belecesse positivamente  o  direito  de  appela- 
ção.  Eram  os  dous  pontos  em  que  o  papa  não 
cedera,  bem  como  em  não  reconhecer  a  ido- 
neidade do  infante  arcebispo  para  exercer  o- 
cargo  de  inquisidor  geral,  objecto  que  não  de- 
via ser  considerado  na  bulia  e  que,  por  assim 
dizer,  ficava  pendente.  Mas,  se  o  enviado  de 
D.  João  III  podia  vir  a  estes  accordos  com  o 
papa,  a  chancellaria  apostólica  podia  falsificar 
tudo,  como  o  embaixador  parece  que  previa. 
Foi  o  que  ella  fez.  Esse  breve  que  se  lhe  en- 
tregara fechado,  a  fim  de  o  transmittir  ao 
núncio  por  intervenção  do  seu  governo,  dan- 
do-se  assim  a  certeza  a  este  de  que  fora  ex- 
pedido, encerrava  na  verdade  a  revocação  de 
Ricenati,  mas  advertindo-se-lhe  que  a  partida 
fosse  quando  commodamente  o  podesse  fazer, 
e  asseverando-se-lhe  que  a  sua  vinda  seria 
summamente  grata  ao  pontifice,  que  se  que- 
ria aproveitar  das  suas  virtudes  de  prudência 


280  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

e  de  lealdade  (1).  Quaes  estas  fossem  sabe-o 
o  leitor.  A  bulia  declaratória,  longe  de  abran- 
ger os  dous  únicos  pontos  concordados,  era 
amplíssima,  e  dirigida  exclusivamente  a  pro- 
teger os  christij  os -novos.  Se,  como  o  embai- 
xador português  affirmava,  esse  diploma  cus- 
tara caro,  é  preciso  confessar  que  a  merca- 
doria justificava  a  elevação  do  preço.  Expedida 
immediatamente  depois  do  breve,  a  bulia  es- 
tatuía que  em  qualquer  causa  crime  sobre 
matérias  de  fé,  sendo  o  réu  de  origem  judai- 
ca, se  procedesse  conforme  as  condições  e 
regras  que  se  estabeleciam  agora.  Eram  ellas : 
que  o  inquisidor-mór  não  podesse  delegar  a 
sua  auctoridade  senão  por  impedimento  abso- 
luto e  em  individuo  que  tivesse  todos  os  re- 
quisitos canónicos ;  que  os  inquisidores  or- 
dinários não  fossem  vitalícios,  nem  recebes- 
sem salários  ou  emolumentos  pagos  pelos 
bens  dos  réus,  prestando  juramento  no  acto 
da  posse  de  bem  servirem,  sendo  punidos,  e 
resarcindo  as  partes  lesadas  pelas  injustiças 
e  abusos  que  practicassem ;  que  os  accusa- 


(1)  aUsum  virliitis  prudentise  et  fidei  tuoe... 
quando  primum  cum  tuo  commodo  poferis  ad  nos 
redire  matures,  venturas  nobis  admodúm  gratus»: 
Breve  de  3  de  outubro  de  1539,  copia  juncta  á  Cor- 
respond.  Org.  de  D  Pedro  Mascarenhas,  1".  102. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  281 

dores  e  testemunhas,  sendo  achados  em  fal- 
sidade, fossem  também  punidos  e  reparassem 
o  damno ;  que  não  se  lhes  indicasse  previa- 
mente o  que  e  por  que  modo  deviam  depor ; 
que  ninguém  fosse  preso  sem  sufficientes  in- 
dícios, e  que  os  cárceres  servissem  para  re- 
tenção e  não  para  castigo ;  que  não  se  des- 
sem tractos  sem  fortes  motivos,  ouvidos  pri- 
meiramente os  réus,  e  que  esses  tractos  não 
excedessem  os  que  se  davam  nos  outros  cri- 
mes ;  que  não  se  procedesse  contra  os  chris- 
tãos-novos  só  por  delação  dos  encarcerados, 
feita  no  meio  dos  tormentos  ou.  ainda,  fora 
delles ;  que  os  nomes  dos  accusadores  e  tes- 
temunhas de  accusação  fossem  communica- 
dos  aos  réus,  não  se  reputando  estes  por  po- 
derosos só  por  serem  christãos-novos,  tanto 
mais  que  se  devia  attender  a  quanto  a  Inqui- 
sição era  protegida  por  elrei ;  que  no  caso, 
porém,  de  se  dar  a  hypothese  de  um  réu  po- 
deroso assim  o  declarassem  por  escripto  e 
de  commum  accordo  o  inquisidor-mór  e  o 
respectivo  prelado  diocesano,  dando-se  ao  réu 
vista  da  declaração  para  a  contrariar ;  que  se 
podessem  pôr  suspeições  aos  inquisidores, 
promotor,  notário  e  mais  officiaes  da  Inquisi- 
ção ;  que  em  caso  nenhum  houvesse  distinc- 
ções  odiosas,  nas  prisões,  na  ordem  do  pro- 


282  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cesso  e  nos  castigos,  entre  os  christãos-velhos 
e  christãos-novos  ;  que  as  commutações  das 
penas  em  dinheiro  se  não  consentissem  sem 
acquiescencia  dos  sentenciados ;  que  em  to- 
dos os  casos  se  admittisse  a  reconciliação  dos 
réus,  não  sendo  relapsos,  ainda  depois  de  jul- 
gados ;  dos  sacerdotes  até  serem  degradados 
das  ordens,  e  dos  seculares  até  o  momento 
do  supplicio,  embora  se  allegasse  que  os  mo- 
via não  o  arrependimento  mas  o  medo ;  que 
a  sentença,  em  virtude  da  qual  alguém  fosse 
relaxado  ao  braço  secular,  se  publicasse  an- 
tes de  cumprida,  logo  que  se  requeresse  a 
sua  publicação ;  que,  interposta  appelação 
para  a  santa  sé  das  sentenças  interlocutórias 
injustas  ou  de  algum  outro  aggravo,  quer 
fosse  do  inquisidor- mór,  quer  dos  menores, 
quer  do  conselho  geral,  o  negocio  ficasse  pa- 
rado até  haver  resolução  pontifícia  ;  que  não 
se  pregassem  sermões  escandalosos  incitando 
os  povos  contra  os  conversos,  devendo  sobre- 
tudo evitar  semelhantes  abusos  os  pregadores 
e  os  parochos.  Emfim,  ordenava-se  expressa- 
mente que  em  todas  as  duvidas  que  recres- 
cessem, tanto  acerca  da  intelligencia  desta 
bulia,  como  de  tudo  o  mais  que  dizia  respeito 
ás  attribuições  da  Inquisição,  se  recorresse  á 
sé  apostólica.  As  cautelas  de  direito  para  que 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  283 

as  precedentes  providencias  não  fossem  bur- 
ladas, e  a  imposição  das  penas  canónicas 
contra  os  que  as  menoscabassem  punham  o 
remate  a  tão  importante  documento  (1). 

Esta  bulia  era  uma  nova  victoria  que  a  to- 
lerância alcançava,  embora  para  a  obter  se 
houvesse  derramado  profusamente  o  ouro. 
Ás  concessões  nella  contidas  a  benevolência 
da  cúria  romana  acrescentou  pouco  depois 
outra  não  menos  importante,  posto  que  a  oc- 
casião  de  a  aproveitar  ainda  estivesse  remota. 
Faltavam  sete  annos  para  terminar  o  praso 
em  que  a  condemnação  dos  réus  de  heresia 
não  podia  ser  aggravada  pelo  perdimento  dos 
bens.  Apesar  disso,  passou-se  uma  bulia  se- 
creta aos  christãos-novos,  pela  qual  os  con- 
fiscos nos  crimes  religiosos  ficavam  perpe- 
tuamente abolidos.  Era  uma  prevenção  a  que 
podiam  soccorrer-se  terminados  os  sete  an- 
nos, se  nessa  conjunctura  as  circumstancias 
lhes  fossem  menos  propicias  (2). 


(1)  Bulia  Pastoris  aeterni,  4  id.  octobr.  1536,  na 
Symm,,  vol.  39,  f.  123  v.  e  segg. 

(2)  Memoriale,  na  Simm.,  vol.  38,  f.  56  v.  —  Esta 
bulia,  de  que  não  se  encontra  oulro  vestígio  senão 
a  menção  que  delia  faz  o  Memoriale,  devia  ser  pouco 
posterior  á  de  12  de  outubro;  talvez  dos  fins  de 
1539,  ou  princípios  de  1540. 


284  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Tal  era  o  estado  da  contenda  nos  fins  de 
1539.  No  proseguimento  da  narrativa  vere- 
mos como  essa  victoria  dos  perseguidos  não 
passava  de  um  clarão  fugitivo,  de  uma  van 
esperança,  e  como  a  indomável  pertinácia  dos 
seus  adversários,  a  traição  dos  seus  próprios 
irmãos  e  a  má  fé  da  cúria  romana  e  dos  de- 
legados pontifícios  vinham  dentro  de  pouco 
tempo  tornar  inúteis  tantos  esforços  e  sacri- 
fícios. 


LIVRO  Vi 


LIVEO  VI 


Agencia  dos  christãos-novos  em  Roma.  Substituição 
de  Duarte  da  Paz.  Últimos  actos  deste.  —  Inutili- 
sa-se  a  expedição  da  bulia  de  12  de  outubro,  dei- 
xando de  publicar-se  em  Portugal  Causas  deste 
facto.  Situação  desvantajosa  dos  conversos.  —  Pro- 
segue-se  na  contenda  acerca  da  nomeiação  do  in- 
fante D  Henrique  para  mquisidor-mór— Carta 
notável  d'elrei  ao  embaixador  em  Roma,  e  allega- 
^ão  dos  inquisidores  contra  a  bulia  de  12  de  outu- 
oro.  Negociações  directas  entre  Pedro  Mascare- 
nhas e  Paulo  m.  Discussões  e  scenas  dramáticas 
entre  o  embaixador  e  o  papa.  —Parecer  da juncta 
dos  cardeais  encarregada  de  examinar  as  réplicas 
do  governo  português.  Destreza  do  embaixador, 
e  vantagens  que  obtém.  Sua  partida  para  Portu- 
gal. —  Situação  critica  dos  christãos-novos.  A  In- 
quisição começa  a  desenvolver  maior  violência. 
Cessação  temporária  das  negociações  em  Roma. 
—  Discórdias  d'elrei  com  o  bispo  de  Viseu  D.  Mi- 
guel da  Silva.  Causas  e  progressos  dessas  discór- 
dias. Fuga  do  bispo  para  Itália.  Enganos  mútuos, 
e  tentativas  de  assassínio.  Diligencias  em  Roma 
contra  o  foragido  prelado,  eleito  já  occultamente 
cardeal.  —  A  questão  da  nunciatura  em  Portugal 


288  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

renova-se  entretanto.  Negociações  de  Cliristovam 
de  Sousa,  successor  de  D.  Pedro  Mascarenhas. 
Violentas  discussões  com  o  papa.  Esforços  dos 
agentes  dos  conversos. —  Viagem  de  Paulo  iii,  e 
proseguimento  das  negociações.  —  Accordo  para 
se  addiar  a  resolução  definitiva  acerca  da  nuncia- 
tura.  —  D.  Miguel  é  proclamado  publicamente 
cardeal.  Carta  regia  fulminada  contra  elle. — 
Rompimento  entre  as  duas  cortes.  Retirada  de 
Christovam  de  Sousa.  —  Manifesto  do  cardeal  da 
Silva,  que  se  liga  com  os  conversos  em  ódio 
d'elrei.  —  Epilogo  deste  livro. 

Conforme  acabamos  de  ver,  as  vantagens 
obtidas  pelos  christãos-novos  deviam-se  tanto 
ii  necessidade  que  D.  Pedro  Mascarenhas  ti- 
vera de  fazer  concessões,  como  ao  ouro  que 
o  agente  delles  espalhara  com  mão  larga. 
Este  agente  já  não  era  o  mesmo  que  ence- 
tara aquelle  longo  pleito,  em  que  os  hebreus 
portugueses  defendiam  dos  seus  inimigos 
vida,  fortuna  e  liberdade.  Duarte  da  Paz  fora 
substituido  por  um  certo  doutor  Diogo  Antó- 
nio, ao  qual,  aliás,  ajudavam  outros  agentes 
que  residiam  em  Pioma  ou  que  lá  eram  en- 
viados de  tempo  a  tempo  pelos  chefes  dos 
conversos.  Se  não  se  podem  saber  com  cer- 
teza as  causas  que  produziram  a  exclusão  de 
Duarte  da  Paz,  podem  pelo  menos  conjectu- 
rar-se  com  grandíssima  probabilidade.  O  lei- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  289 

tor  recorda-se  por  certo  da  historia  deste  ho- 
mem, que,  apenas  chegado  a  Roma,  se  offe- 
recia  impudentemente  a  elrei  para  trahir  os 
seus  committentes,  e  de  cujas  vergonhosas 
relações  com  o  arcebispo  do  Funchal  restam 
tantos  vestígios.  Desauctorado  por  elrei,  ven- 
do-se  depois  a  ponto  de  perecer  debaixo  do 
punhal  de  um  assassino,  aquella  alma  de  lodo 
continuou  a  arrastar-se  nos  caminhos  tene- 
brosos das  deslealdades  e  vilanias.  Para  elle 
era  tudo  o  ouro,  e  todo  o  ouro  era  pouco.  O 
luxo  e  a  cubica  afogavam-lhe  os  remorsos,  e 
da  correspondência  de  Sinigaglia  vemos  que 
já  em  1535  os  christãos-novos  estavam  alta- 
mente irritados  contra  o  abuso  que  fazia  da 
commissão  que  acceitara.  Se,  antes  de  subs- 
tituído, continuou  sempre  a  desservir  occul- 
tamente  a  causa  de  seus  irmãos  não  é  fácil 
dizê-lo ;  mas  sabemos  que  nos  meiados  de 
1539  fazia  denuncias  secretas  a  D.  João  iii 
por  intervenção  de  D.  Pedro  Mascarenhas  (1). 


(1)  Na  minuta  dos  apontamentos  para  se  respon- 
der ás  cartas  de  D.  Pedro  Mascarenhas  e  do  car- 
deal Santiquatro,  dos  fins  de  setembro  e  princípios 
de  outubro  (Corresp.  Orig.  de  D.  Pedro  Mascare- 
nhas, f.  160  e  seg.)  lê-se  o  seguinte:  «Item,  a  D.  Pe- 
dro que  fale  com  Duarte  da  Paz  e  lhe  escrevera  se 

TOMO  II  19 


290  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Versavam  essas  denuncias  sobre  os  conver- 
sos que  fugiam  a  occultas  de  Portugal  para 
a  Itália,  fuga  em  que  principalmente  os  pro- 
tegia Capodiferro,  quando  eram  assas  abas- 
tados para  obter  protecção  (1).  Desde  que  dei- 
xara de  ser  procurador  dos  christãos-novos 
tinha-se  trasladado  a  Veneza  (aonde  com- 
mummente  se  acolhiam  os  judeus  portugue- 
ses), para  melhor  exercitar  o  cargo  de  espia. 
Fingia-se  ahi  para  com  elles  sectário  occulto 
da  lei  de  Moysés,  guardando  as  exterioridades 
de  christão,  e  obtendo  assim  ao  mesmo  tempo 
a  confiança  das  suas  victimas  e  dos  outros 
espias  d'elrei  (2).  O  seu  ódio  contra  os  que  o 


ahi  não  estiver,  e  saiba  dele  tudo  o  que  lhe  parecer 
necessário  e  de  que  escreveo  que  o  queria  avisar». 

(1)  InstrucQões  de  21  de  setembro  ao  conde  da 
Castanheira,  em  Sousa,  Annaes,  p.  403  e  404. 

(2)  É  o  que  se  deduz  da  seguinte  passagem :  — 
«Pêro  Carollo  me  mandou  de  Veneza  o  traslado  dum 
escripto  que  lhe  Duarte  da  Paz  dera  pêra  mim,  o 
qual  nom  quis  dar  de  sua  letra  por  ser  aviso  de 
chryslãos  novos  de  Lisboa;  e  que  elle  ha  que  faz 
grande  serviço  a  Deus  e  a  "V.  A.  em  m'avisar ;  e 
quer  nisto  tamto  segredo  como  V.  A.  verá  no  pró- 
prio escripto  que  lhe  com  esta  mando:  Fero  Ca- 
rollo me  escreve  que  elle  vio  agora  em  Veneza  os 
chryslãos  novos  que  estoutro  diz  no  escripto,  os 
quais  está  certo  virem  aly  a  fazer  franquia  sua  pa- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  291 

haviam  substituído  e,  talvez,  alguma  impru- 
dência que  o  trahisse,  obrigaram-no  a  des- 
mascarar-se  e  romper,  emfim,  com  os  seus 
antigos  clientes.  Dirigiu  pela  imprensa  uma 
carta  ao  papa,  na  qual  ressumbra  todo  o  fel 
do  despeito,  através  da  linguagem  meliflua 
de  um  hypocrita.  Nessa  carta  buscava  de- 
monstrar que  se  devia  impor  a  pena  de  con- 
fisco aos  sentenciados  pela  Inquisição,  ainda 
suppondo  que  não  fosse  este  o  direito  com- 
mum ;  porque,  na  opinião  delle,  os  hebreus, 
que  não  deixariam  de  judaisar  por  temor  da 
morte,  deixariam  de  o  fazer  por  amor  das  ri- 
quezas. «Um  judeu  —  dizia  elle  —  tem  em  mais 
estimação  algumas  alfaias  do  que  a  vida  e  a 
honra».  Lembrava,  como  prova  da  conveniên- 
cia de  os  reduzir  á  miséria,  a  promptidão  com 
que  recorriam  á  corrupção  dos  ministros  pú- 
blicos, não  só  contra  os  extranhos,  mas  tam- 
bém contra  os  da  própria  raça  e,  até,  contra 
os  seus  parentes  mais  próximos.  «Para  elles 

—  proseguia  o  antigo  agente  dos  conversos 

—  não  ha  perigo  ou  trabalho,  vileza  ou  crime 
que  não  lhes  pareça  leve  quando  se  tracta  de 


sajem  e  a  dos  outros  que  se  esperam» :  Carta  de 
D  Pedro  Mascarenhas  de  2  de  dezembro  de  1539 
Corresp.  Ong.,  f.  199. 


292  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

adquirir»  Citava  a  este  propósito  a  horrível 
historia  de  um  hebreu,  Henrique  de  Sousa, 
que,  por  motivos  dessa  ordem,  mandara  as- 
sassinar seu  próprio  filho,  e  escapando  este, 
apesar  das  feridas  mortaes  que  recebera,  re- 
cusara pagar  o  preço  do  crime  pelo  incom- 
pleto do  resultado,  vindo  por  isso  a  morrer 
debaixo  do  punhal  dos  sicários,  burlados  nas 
suas  esperanças  de  recompensa.  Aconselhava 
que  a  terça  dos  bens  dos  sentenciados  se  dei- 
xasse aos  filhos,  attentas  as  conversões  for- 
çadas que  se  haviam  feito ,  o  resto,  porém, 
que  se  applicasse  a  obras  pias.  O  outro  pon- 
to, que  Duarte  da  Paz  reputava  capitalissimo, 
era  a  questão  dos  cárceres.  Quanto  a  elle, 
deviam  ser  secretíssimos  e  as  prisões  cellu- 
lares,  para  que  não  se  esforçassem  uns  aos 
outros  na  obstinação  do  erro.  No  que  tocava  a 
communicarem-se  aos  réus  os  nomes  dos  ac- 
cusadores  e  testemunhas  é  claro  que  havia  de 
sentir  o  contrario  daquillo  que  os  seus  anti- 
gos clientes  pediam  e  que  a  razão  indicava. 
Como  conhecedor  do  viver  intimo  dos  chris- 
tãos- novos,  tractava  de  demonstrar  que  elles 
se  deviam  reputar  poderosos  pelos  laços  de 
religião  e  de  parentesco  que  ligavam  entre  si 
as  famílias  opulentas,  e  pela  dependência  em 
que  estavam  os  pobres  dos  abastados,  em 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  293 

quem  só  podiam  encontrar  amparo  no  meio 
da  malevolencia  geral.  Era  desta  união  que 
resultava  a  força  dos  conversos,  acerca  da 
qual  fazia  peso  a  auctoridade  de  um  homem 
que  por  tanto  tempo  dirigira  em  Roma  os  ne- 
gócios communs  da  gente  hebréa.  Depois  das 
considerações  geraes  que  apresentava,  Duarte 
da  Paz  offerecia-se  a  fazer  revelações  impor- 
tantes a  este  respeito,  se  quizessem  ouvi-lo, 
do  que  resultariam  grandes  vantagens  para  o 
exalçamento  da  fé  e  progresso  do  christia- 
nismo.  Bradaya-lhe  a  consciência  que  esse 
papel  dirigido  ao  pontífice  contra  seus  irmãos 
era  da  mais  hedionda  torpeza,  e  por  isso  ter- 
minava com  uma  peroração,  em  que  se  asso- 
ciavam monstruosamente  o  remorso,  a  raiva, 
o  descaramento  e  os  esforços  impotentes  do 
hypocrita  para  esconder  debaixo  do  manto  da 
religiosidade  a  negrura  dos  fins  que  se  pro- 
punha. «Se  disserem  —  concluía  elle  —  que 
me  não  move  o  zelo  da  fé,  mas  o  despeito 
por  me  não  pagarem  as  dividas  que  contrahi 
e  por,  ainda  em  cima,  me  perseguirem,  appélo 
para  Deus  que  vê  as  minhas  intenções,  e 
ainda  para  a  gente  que  me  conhece.  É  certo, 
porém,  que  deste  ultimo  facto  tirei  eu  argu- 
mento para  inteiramente  me  convencer  do  que 
já  sabia.  Repito  que  por  dinheiro  padecerão  a 


294  HISTORIA   DA   INQULSIÇÃO 

morte,  e  para  não  o  perder  serão  os  melho- 
res christãos  do  mundo.  Foi  por  misericórdia 
divina  que  assim  procederam  comigo ;  por- 
que os  tiomens  de  bem  tornam-se  maus  com 
a  ingratidão  e  com  as  injurias  dos  seus  su- 
periores; e  eu,  por  esse  motivo,  se  era  mau, 
espero  tornar-me  bom  com  a  graça  de  Jesu- 
Christo.  Mas  bom  ou  mau,  direi  sempre  nesta 
matéria  cousas  honestas  e  verdadeiras,  em 
honra  do  Salvador,  a  quem  rogo  me  defenda 
das  traições,  falsidades  e  dolos  próprios  de 
taes  herejes»  (1). 

Para  não  voltarmos  a  falar  deste  miserável, 
mencionaremos  aqui  os  poucos  vestígios  que 
se  encontram  do  resto  da  sua  tenebrosa  exis- 
tência. Não  contente  com  aquella  espécie  de 
manifesto  dirigido  ao  papa,  Duarte  da  Paz  pu- 
blicou um  libello  famoso  contra  o  individuo 
que  o  substituirá  e  contra  Affonso  Vaz,  chris- 
tão-novo  residente  em  Ptoma,  e  provavelmente 


(1)  Copia  do  impresso  dirigido  a  Paulo  iii  por 
Duarte  da  Paz,  na  Corresp.  Orig.  de  D.  Pedro  Mas- 
carenhas, f.  273  —  «E  asy  lhe  mando  agora  outro 
(tresladoí  de  hua  carta  estampada  que  Duarte  da 
Paz  escreveu  de  Veneza  ao  papa  sobre  esta  mate- 
rya  da  Inquysiçam  que  também  serve  ao  ponto  em 
que  agora  estamos»:  Carta  de  D.  Pedro  Mascare- 
nhas de  4  de  outubro  de  1539:  Ibid.  f.  194  v. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  295 

assessor  de  Diogo  António.  Accusado  judi- 
cialmente pelo  fiscal  da  fazenda  e  da  camará 
apostólica  (talvez  porque  as  infâmias  lançadas 
sobre  os  dous  agentes  dos  conversos  refle- 
ctiam sobre  os  ministros  e  officiaes  da  cúria 
romana)  o  insolente  hebreu  foi  processado  á 
revelia  e  condemnado  á  forca  (1).  Depois  disto 
apenas  consta  que  estivera  algum  tempo  pre- 
so em  Ferrara,  onde  parece  que  vivia  e  onde 
practicara  alguma  das  suas  usuaes  vilanias  (2). 
Já  então,  ou  pouco  depois,  tinha-se  declarado 
de  novo  sectário  da  lei  de  Moysés.  Para,  em- 
íim,  coroar  a  serie  das  suas  façanhas,  passou 
em  seguida  á  Turquia,  onde  abraçou  o  isla- 
mismo. Alli,  segundo  parece,  acabou  obscu- 
ramente a  carreira  desse  desgraçado,  maldicto 
de  Deus,  infamado  na  pátria  e  fora  delia,  e 


(1)  Copia  da  sentença  acha-se  a  f.  133  da  Corresp. 
Orig.  de  D.  Pedro  Mascarenhas.  O  folheto  impresso 
que  deu  motivo  a  ella,  e  que  não  podemos  encon- 
trar, talvez  ainda  exista  nalguma  bibliotheca  de 
Itália. 

(2)  «De  Duarte  da  Paz  nom  veo  mays  avyso ;  e  o 
derradeiro  que  tyve  foy  estar  preso  em  Ferrara 
por  mandado  do  duque  sobre  trampas  que  entre 
elle  e  seus  parentes  nunca  faltam»:  Carta  de  D.  Pe- 
dro Mascarenhas  de  10  de  março  de  1540,  na  Cor- 
respond.  Orig.,  f.  219. 


296  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

exemplo  singular  da  abjecção  extrema  a  que 
o  desenfreia  mento  das  paixões  pôde  conduzir 
o  homem  (1). 

Obtida  a  expedição  da  bulia  de  12  de  ou- 
tubro, os  agentes  dos  christãos-novos  remet- 
teram-na  para  Portugal  por  um  expresso.  Se- 
gundo parece,  o  procedimento  de  Duarte  da 
Paz  tinha  achado  imitadores  entre  os  da  sua 
raça.  Havia  em  Lisboa  varias  familias  hebréas 
que,  talvez  a  troco  da  impunidade,  talvez  por- 
que sinceramente  seguiam  a  religião  domi- 
nante, estavam  ligadas  com  o  partido  da  in- 
tolerância. Succedeu  ser  o  mensageiro  parente 
de  uma  dessas  familias  e  da  mesma  parciali- 
dade. O  ensejo  para  fazer  um  bom  serviço  á 


(1)  Consta  da  bulia  Çircumspecta  de  28  de  outu- 
bro de  1542  em  que  é  revogada  outra  concedida  a 
Duarte  da  Paz  para  não  serem  elJe  e  os  seus  pa- 
rentes por  consanguinidade  ou  affinidade  persegui- 
dos ou  presos  pela  Inquisição.  Ahi  diz  o  papa: 
«prsefatus  Eduardus  postmodum  christianam  fidem 
abnegaverit,  et  non  solum  ad  hebraicam  perfidiam 
redierit,  verum  etiam  Turcarum  sectam  publicé 
profiteatur  et  damnabiliter  sequatur»:  Original  no 
Cartório  da  Inquisição  no  Arch.  Nac.  Numa  carta 
de  Pedro  Domenico  de  27  de  abril  de  1542  (G.  2,  M. 
2,  N.o  53)  allude-se  a  este  facto  de  Duarte  da  Paz 
abraçar  o  islamismo. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  297 

causa  que  occultámente  servia  era  favorá- 
vel. Aproveitou-o.  Protrahiu  o  mais  que  pôde  a 
viagem,  e  quando,  emfim,  chegou  a  Lisboa 
ainda  se  conservou  escondido  alguns  dias 
sem  entregar  a  bulia  e  as  cartas  que  a  acom- 
panhavam. Era,  pelo  menos,  assim  que  depois 
em  Roma  o  agente  principal  dos  conversos 
explicava  a  tardança  que  houvera  na  entrega 
daquelle  importante  documento,  o  que  con- 
cordava até  certo  ponto  com  as  declarações 
feitas  a  este  respeito  por  Capodiferro  depois 
de  voltar  a  Itália,  embora  D.  Pedro  Masca- 
renhas, cujas  tendências  não  eram  para  a  ex- 
cessiva credulidade,  suspeitasse  de  pouco 
exacta  semelhante  narrativa,  e  ainda  menos 
acreditasse  as  explicações  do  núncio  (1). 
Fosse  como  fosse,  o  diploma  pontifício,  cuja 
concessão  custara  tantos  e  tão  dilatados  es- 
forços, além  de  avultadas  peitas,  ficou  intei- 
ramente inutilisado.  Na  verdade,  o  breve  que 
exonerava  Jeronymo  Ricenati,  longe  de  lhe 
fixar  o  praso  para  sair  do  reino  do  modo 
promettido  em  Roma,  deixava,  como  dis- 
semos, a  seu  arbítrio  a  epocha  da  partida;  e 
tanto,  que,  intimado,  segundo  parece,  pelo  go- 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  9  de  mar- 
ço de  1540,  na  Corresp.  Orig.,  f.  211. 


298  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

vêrno  para  sair,  respondeu  com  a  copia  da- 
quelle  breve  (1).  Entretanto,  eífectivamente 
exonerado  e  contando  com  a  resistência  d'el- 
rei  a  todos  os  seus  actos,  achava-se  numa  si- 
tuação difficil  de  conservar  por  muito  tempo. 
Assim,  resolveu-se  a  partir  nos  fins  de  no- 
vembro (2),  sem  publicar  a  bulia  declaratória, 
nem  a  intimar  aos  inquisidores,  deixando  os 
christãos-novos  de  peior  condição  do  que  es- 
tavam, visto  que  iam  acabar  as  garantias  es- 
peciaes  concedidas  na  bulia  de  23  de  maio, 
ao  passo  que  lhes  faltava  um  representante 
do  pontifice,  para  quem  appelassem  dos  ex- 
cessos dos  inquisidores. 

Qual  foi  a  causa  deste  singular  procedi- 
mento de  um  homem  que  até  então  protegera 
resolutamente  os  conversos  e  que  tantas  van- 
tagens pecuniárias  tirara  dessa  protecção  ?  Se 


(1)  E  o  que  se  deduz  de  um  dos  apontamentos 
para  a  resposta  ás  cartas  de  D.  Pedro  e  de  Santi- 
quatro  dos  fins  de  setembro  e  princípios  de  ou- 
tubro (Corresp.  Orig.,  f.  160):  «Carta  a  D.  Pedro 
sobre  a  yda  do  núncio  em  que  se  diga  o  que  se  pas- 
sou qua  com  ele  sobre  sua  ida  e  o  breve  que  mos- 
trou que  se  lhe  de  la  mandou,  e  o  que  respondeu,  e 
que  se  aproveyte  deste  queixume,  etc.» 

(2)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  9  de  mar- 
ço, na  Corresp.  Orig.,  f.  209. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  299 

acreditássemos  as  primeiras  explicações  da- 
quelle  extranho  acto,  que  elle  deu  depois  de 
voltar  a  Roma,  a  bulia  de  12  de  outubro  che- 
gara tão  tarde  a  Lisboa,  que,  estando  de  par- 
tida, o  tempo  ter-lhe-hia  faltado  para  a  íazer 
executar,  se  o  houvera  tentado.  Mal  acceita 
esta  desculpa,  porque  o  breve  de  revocação 
lhe  deixara  a  faculdade  de  se  demorar  mais 
ou  menos,  dizia  depois  que  se  achava  já  em 
Gastella  quando  recebera  o  diploma  pontifício, 
e  não  se  julgara  habilitado  para  volver  de 
novo  a  Lisboa,  afim  de  o  fazer  cumprir  (1). 
No  extenso  memorial  dirigido  pelos  christãos- 
-novos  a  Paulo  iii  em  1544  o  procedimento 
de  Capodiferro  nesta  conjunctura  é  descul- 
pado pelos  mesmos  que  delle  haviam  sido 
victimas.  Affirma-se  ahi  que  a  bulia  continha 
alguns  pontos  obscuros,  acerca  dos  quaes 
elles  próprios  haviam  encarregado  Capodi- 
íerro  de  obter  do  pontífice  os  necessários  es- 
clarecimentos (2).  Uma  circumstancia,  porém, 
tira  o  valor  a  este  favorável  testemunho  dos 
conversos.  Capodiferro,  apesar  de  todas  as 
queixas  de  corrupção  que  contra  elle  havia, 
longe  de  cahir  no  desagrado  da  cúria  romana. 


(1)  Ibid.  f.  211. 

(2)  Memoriale,  na  Symm.,  vol.  31,  f.  59. 


300  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

adquiriu  bastante  influencia  para  ser  chama- 
do com  Smigaglia,  como  depois  veremos,  aos 
conselhos  do  papa  quando  se  tractava  de 
questões  relativas  á  Inquisição  de  Portugal 
ou  aos  conversos  portugueses.  Não  convinha, 
pois,  a  estes  irritá-lo  com  accu sacões  acerca 
do  passado.  A  correspondência,  porém,  de  D. 
Pedro  Mascarenhas  lança  luz  no  meio  de  tan- 
tas trevas.  Delia  consta  affirmarem  nessa 
epocha  os  christãos-novos  que  o  motivo  de 
se  não  publicar  a  bulia  de  12  de  outubro  fora 
uma  questão  de  dinheiro.  Tendo  na  sua  mão 
aquelle  diploma,  o  núncio  quizera  que  de  novo 
se  pagasse  em  Lisboa  por  alto  preço  o  que 
por  alto  preço  já  se  havia  comprado  em  Roma. 
Ou  que  os  chefes  da  raça  hebréa  não  tives- 
sem as  sommas  exaggeradas  que  Capodifer- 
ro  exigia,  ou  que  o  seu  natural  aferro  ao 
ouro  os  fizesse  hesitar,  é  certo  que  resistiriam 
á  extorsão.  Vingou-se  elle  deixando  de  cum- 
prir com  o  próprio  dever  e  abandonando  os 
christãos-novos  ao  seu  triste  destino  (1).  Tal 


(1)  «. . .  a  Dulla  decraratorya  da  inquisyçam,  que 
tio  seu  nuncyo  lhes  nam  quizera  pubryciír  em  Por- 
tugal, e  que  os  daquella  naçam  diziam  que  lio  fizera 
por  lhe  loguo  nam  poderem  dar  tamto  dinheiro  de 
composyçam  como  elle  querya  e  que  por  esta  causa 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  301 

foi,  segundo  parece,  o  verdadeiro  motivo  da- 
quelle  imprevisto  successo. 

Assim,  as  nuvens  que  toldavam  os  hori- 
sontes  da  Inquisição,  desvanecendo- se,  deixa- 
vam-na  em  situação  mais  vantajosa  do  que 
d'antes  :  porque  o  resultado  de  todos  os  en- 
redos que  temos  visto  tecerem-se,  de  todo  o 
ouro  derramado  pelos  contendores  durante  a 
activa  iucta  travada  na  cúria  romana,  vinha  a  ser 
ficarem  os  christãos- novos  sem  a  protecção  de 
um  delegado  apostólico,  sem  essas  poucas  ga- 
rantias que  por  três  annos  lhes  concedera  a  bulia 
de  23  de  maio,  e  inteiramente  á  mercê  dos  in- 
quisidores, cuja  força  moral  augmentara  des- 
de que  fora  substituído  pelo  infante  D.  Hen- 
rique o  bispo  de  Ceuta.  Entretanto,  era  pre- 
ciso uão  adormecer  depois  de  passado  o 
primeiro  perigo.  Se  Capodiferro  não  executara 
a  bulia,  outro  podia  executá-la,  e  a  resistên- 
cia do  poiítifice  a  approvar  a  nomeiação  de 
D.  Henrique  havia  de  produzir  ainda  sérios 
embaraços.  Remover  essa  opposição  do  papa 
e  impedir  a  vinda  de  novo  núncio  que  poses- 
se  em  vigor  os  mandados  apostólicos  eram  o 


se  vyera  sem  na  pubrycar» ;  Carta  de  D.  Pedro 
Mascarenhas  de  9  de  março  de  1540,  na  Corresp. 
Orig.,  f.  209. 


SOà  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

alvo  a  que  deviam  tender  agora  todos  os  es- 
forços dos  parciaes  da  Inquisição. 

Vimos  como  D.  Pedro  Mascarenhas,  pon- 
derando os  obstáculos  que  se  oppunham  a 
que  o  infante  exercesse  a  suprema  magistra- 
tura do  tribunal  da  fé,  aconselhava  a  D.  João 
III  que  cedesse  nesta  parte.  Não  foi  acceito  o 
conselho.  Longe  disso,  a  10  de  dezembro  de 
1539  (1)  elrei  escreveu  uma  carta  dirigida  ao 
embaixador,  mas  cujo  verdadeiro  destino  era 
ser  lida  perante  o  papa,  carta  onde  as  amea- 
ças indirectas  se  misturavam  com  as  expres- 
sões mais  submissas  de  obediência  filial  e 
com  os  queixumes  mais  sentidos  da  falta  de 
aífeição  e  confiança  da  parte  do  summo  pas- 
tor. D.  João  III  attribuia  a  resistência  deste  a 
ter  dado  mais  credito  ás  falsas  informações 
dos  conversos  do  que  á  sincera  verdade  da 
palavra  real,  e  procurava  principalmente  mos- 
trar quanto  era  absurdo  imaginar  que  elle  rei 
procedesse  como  procedia  por  outro  motivo 
que  não  fosse  o  zelo  da  religião.  E'  extrema  a 


(1)  A  minuta  dessa  carta  acha-se  a  f.  37  da  Cor- 
resp.  Orig.  sem  data ;  mas  a  f.  265  está  copia  da 
versão  deila  feita  por  Santiquatro  para  ser  lida  ao 
papa.  Nesta  copia  encontra-se  a  data  de  10  de  de- 
zembro. 


ifróTORlA  DA   INQUISIÇÃO  303 

importância  daquella  carta  neste  ponto ;  por- 
que involve  a  confissão  explicita  das  tristes 
consequências  económicas  que  tivera  para  o 
paiz  o  cego  fanatismo  do  monarcha.  Segundo 
ahi  se  affirmava,  os  christãos-novos  consti- 
tuíam uma  grande  parte  da  nação,  e  parte 
mais  útil  que  todo  o  resto  do  povo.  Por  elles, 
pelos  seus  cabedaes,  o  commercio,  a  indus- 
tria e  as  rendas  publicas  cresciam  de  dia 
para  dia,  quando  a  perseguição  veio  mirrar  a 
seiva  da  prosperidade  geral,  sendo  notória  a 
saída  de  sommas  enormes  de  Portugal  para 
Flandres,  desde  que  a  Inquisição  se  estabe- 
lecera. Razões  de  ódio  contra  os  conversos 
não  as  tinha ;  porque  sempre  fora  por  elles 
leal  e  zelosamente  servido,  e  a  muitos  fizera 
por  isso  assignaladas  mercês.  Cubica  de  lhes 
tomar  as  riquezas  não  se  lhe  devia  attribuir, 
visto  que  cedera  do  direito  de  confisco  pelo 
espaço  de  dez  annos,  durante  os  quais  os 
maus  seriam  exterminados,  e  aos  bons  não 
haveria  que  confiscar.  A  este  propósito,  de- 
clarava que,  se  o  papa  quizesse  dar  á  Inqui- 
sição todos  os  poderes  e  independência  que 
para  ella  se  pediam,  de  bom  grado  cederia 
para  sempre  daquelle  direito.  Depois  desta 
provc:  de  liberalidade,  não  podia  deixar  de 
deplorar  que  sacrificando  elle  interesses  legi- 


304  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

timos  ao  incremento  do  catholicismo,  Roma 
sacrificasse  o  catholicismo  a  interesses  ignó- 
beis e  mesquinhos.  «Por  cada  cruzado  que  lá 
se  possa  ganhar  com  os  conversos  —  dizia  D. 
João  III— tem- se  em  Portugal  perdido  cem,  e, 
todavia,  sou  vilmente  calumniado  de  querer  o 
sangue  das  minhas  ovelhas  <)  (1).  Todas  as  di- 
ligencias dos  christãos-novos  tinham  unica- 
mente por  alvo  retardarem  o  estabelecimento 
definitivo  da  Inquisição  pelo  tempo  que  lhes 
fosse  necessário  para  porem  a  salvo  corpos  e 
fazendas.  Dava  então  a  entender  que,  se  a 
corte  de  Roma,  com  tão  extranho  procedi- 
mento, desservia  a  causa  de  Deus,  eile  pode- 
ria, se  não  tractasse  de  reprimir  o  próprio  des- 
peito, fazer  justiça  por  si,  como  bem  lhe 
parecesse  ;  resolução  extrema,  a  que  esperava 
não  chegaria  nunca  pela  consideração  em  que 
tinha  a  pessoa  de  Paulo  iii.  Vindo  á  questão 
de  ser  ou  não  mquisidor-mór  o  infante,  mos- 
trava-se  altamente  resentido  da  opinião  que 
havia  na  cúria,  de  que  tanto  mais  suspeito 
devia  ser  o  juiz  supremo  do  tribunal  da  fé 
quanto  mais  seu  parente  próximo  fosse.  Era 


(1)  «e  ysto  tudo  he  como  huum  tão  desavergo- 
nhado fengimento  que  eu  queria  degolar  as  minhas 
oveihaso :  Ibid.  f.  39. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  305 

preciso  ter  alma  superior  a  todas  as  injurias 
para  se  não  vingar  desta ;  mas  em  nome  de 
Deus  exigia  do  papa  que  llie  pedisse  a  elle 
perdão  de  tamanha  affronta,  para  evitar  o 
castigo  que  a  Providencia  costuma  reservar 
aos  pães  que  desprezam  e  maltractam  os 
bons  filhos.  Se  fizera  seu  irmão  inquisidor 
com  abatimento  da  regia  estirpe,  conforme  as 
opiniões  humanas,  fora,  justamente,  por  dar. 
na  imparcialidade  de  tal  príncipe,  uma  garan- 
tia aos  christãos-novos,  que  elles  deveriam 
comprar  a  peso  de  ouro,  se  não  tivessem  me- 
lhor recurso  nas  intrigas  que  manejavam  em 
Roma,  Asseverava  finalmente  que,  se  descia 
a  queixar-se  e  a  fazer  estas  ponderações,  era 
porque,  pospondo  os  estimulos  da  honra 
oífendida,  só  curava  de  obedecer  á  voz  da 
própria  consciência  (2). 

Segundo  vimos  no  livro  antecedente,  a  mi- 
nuta da  bulia  de  12  de  outubro  ou,  por  me- 
lhor dizer,  os  apontamentos  para  ella,  redigi- 
dos por  Del  Monte,  haviam  sido  enviados  a 
Lisboa,  afim  de  se  dar  delles  conhecimento  a 
elrei  e  á  Inquisição,  antes  de  definitivamente 
se  expedir  aquelle  diploma.  As  circumstancias 


(2)  Ibid. 

TOMO  11  80 


âÒ6  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

occorridas  logo  depois  tinham  apressado  a 
feitura  da  bulia ;  mas  o  procedimento  de  Ca- 
podiferro,  inutilisando  essa  providencia,  repo- 
sera  tudo  no  anterior  estado.  Com  a  carta  de 
abril,  ou  em  data  pouco  diversa,  remetteu-se, 
portanto,  a  D.  Pedro  Mascarenhas  a  impu- 
gnação dos  inquisidores  aos  fundamentos  em 
que  a  bulia  se  estribava.  Aquelle  arrazoado, 
no  qual  se  ponderavam  os  inconvenientes  das 
providencias  adoptadas,  é  sobretudo  impor- 
tante como  termo  de  comparação  para  se 
avaliar  bem  a  legitimidade  das  queixas  dos 
conversos  e  até  que  ponto  elles  tinham  razão, 
não  sendo  natural  que  esta  estivesse  em  tudo 
da  sua  parte.  A  primeira  cousa  que  se  impu- 
gnava na  bulia  era  estabelecer  ella  como  ha- 
bilitações impreteriveis  para  o  cargo  de  inqui- 
sidor ordinário  a  idade  canónica  dos  quarenta 
annos  e  os  graus  académicos  de  doutor  ou 
licenciado.  Fundavam-se  principalmente  na 
falta  de  individuos  em  que  se  reunissem  esses 
predicados,  evasiva  fútil,  visto  ser  tão  restri- 
cto  o  numero  de  taes  individuos.  Mas,  como 
se  poderia  acceitar  semelhante  condição  quan- 
do o  inquisidor-mór  nem  sequer  tinha  os 
trinta  annos  até  então  exigidos,  nem  habilita- 
ções literárias  ?  A  acceitação  dessa  regra  im- 
portava, por  maioria  de  razão,  o  mesmo  que 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  307 

admittir  a  inhabilidade  do  juiz  supremo  do 
tribunal  da  fé.  O  principio  de  serem  temporá- 
rios os  inquisidores  e  sujeitos  a  uma  syndi- 
cancia  depois  de  exonerados  era  igualmente 
repellido,  com  pretextos  cuja  frivolidade  não 
é  necessário  ponderar.  Oppunham-se  também 
á  intervenção  dos  bispos  nos  processos  da 
Inquisição ;  isto  é,  oppunham-se  á  restaura- 
ção possível  da  legitima  disciplina  da  igreja. 
Na  questão  da  ordem  do  processo,  recusavam 
em  primeiro  logar  a  validade  da  doutrina  de 
só  se  acceitarem  por  testemunhas  da  accusa- 
ção  aquellas  pessoas  que  podiam  depor  nos 
crimes  civis  de  furto  e  homicídio.  Juridica- 
mente os  inquisidores  tinham  razão.  O  direito 
canónico  admittia  nos  delictos  contra  a  fé  os 
depoimentos  dos  servos,  dos  perjuros,  dos 
co-réus,  dos  filhos  contra  os  pães,  dos  irmãos 
contra  os  irmãos.  A'  luz,  porém  da  philosophia 
e  da  moral  tinha  razão  o  papa.  O  fundamento 
principal  dos  inquisidores  era  o  receio  de  lhes 
faltarem  provas  bastantes  para  condemnarem 
as  suas  victimas  (1).  Prohíbindo-se,  como  se 


(1)  «Derogar  nesta  parte  o  direito  he  tirar  todo  o 
efeito  6  proveito  que  da  inquisição  se  pode  seguir ; 
porque  as  heresias  se  nom  provam  senom  por  os 
participes  dos  crimes  e  pelos  familiares  e  domesti- 


308  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

pretendia  prohibir  agora,  que  se  publicassem 
edictos  com  penas  severas  para  que  todos 
viessem  denunciar  os  crimes  religiosos  de 
que  tivessem  conhecimento,  explicando-se  nes 
ses  edictos  em  que  consistiam  taes  crimes,  os 
inquisidores  viam  igualmente  em  semelhante 
prohibição  um  impedimento  quasi  invencivel 
á  perseguição  contra  os  judeus  occultos ; 
porque,  não  trazendo  a  heresia  prejuízo  de 
terceiro,  era  preciso  incitamento  aos  delato- 
res (1).  Não  achavam  menor  inconveniente  em 
se  prohibir  que  o  réu,  depois  de  receber  uma 
vez  tractos  para  confessar  o  crime,  os  tor- 
nasse a  receber  sem  apparecerem  contra  elle 
novos  indícios  de  culpabilidade.  Queriam  que 
lhes  Ibsse  licito  repetir  a  seu  bel-prazer  os 
trances  de  agonia  dos  que  lhes  cabiam  nas 
mãos,  embora  lhes  faltassem  para  isso  novos 
pretextos.    Um   dos  pontos   mais  ventilados 


cos  e  per  os  parentes  e  pessoas  com  quem  os  here- 
jes  tem  conversação  e  familiaridade»;  Resposta  aos 
Capítulos,  etc.  G.  2,  M.  2,  N.°  49,  no  Arch.  Nac- 
Os  capítulos  redigidos  por  Del  Monte  a  que  se  refere 
esta  resposta  acham-se  na  G.  2,  M.  2,  N.°  46. 

(2)  «he  tirar  a  Inquisição  de  todo,  e  fazer  que 
seja  som  efecto,  e  dar  causa  que  os  errores  dos  he- 
rejes  non  se  possam  saber  nem  sejam  descubertos» : 
Ibid. 


HISTORIA   Da  INQUISIÇÃO  309 

nesta  longa  contenda  era  o  de  se  revelarem 
ou  não  aos  réus  os  nomes  dos  denunciantes 
e  testemunhas  de  accusação  e  era  também 
acerca  desse  ponto  que  os  inquisidores  com- 
batiam com  mais  ardor.  Não  só  invocavam 
as  disposições  do  direito  canónico  e  a  praxe 
constante  da  Inquisição  antiga  e  da  moderna 
em  Portugal,  Castella  e  Aragão,  e  até  a  dos 
bispos  quando  procediam  contra  herejes,  mas 
também  ponderavam  o  perigo  de  semelhantes 
revelações,  perigo  de  que  apontavam  exem- 
plos. Vários  denunciantes  haviam  sido  assas- 
sinados pelos  parentes  ou  amigos  dos  réus,  e 
naquella  mesma  conjunctura  fora  acutilada  em 
Lisboa  uma  testemunha  de  accusação.  Davam 
em  prova  de  que  o  assassinio  era  um  meio  a 
que  os  conversos  recorriam  facilmente,  para 
evitarem  os  tormentos  e  o  supplicio,  um  facto 
singular.  Sendo  preso  algum  delles,  notória  e 
claramente  criminoso  de  judaismo,  não  tar- 
dava a  fallecer  na  prisão ;  porque  lhe  propi- 
navam veneno.  A  especificação  dos  indivíduos 
a  quem  isto  succedera  faz  crer  que  os  inqui- 
sidores falavam  verdade.  Supposta  a  existên- 
cia do  tribunal  da  fé,  tinham,  portanto,  funda- 
mento para  usarem  do  mysterio  a  que  se 
queria  obstar  ;  tanto  mais  que  se  impunha  ao 
povo  com  severas  penas  o  dever  d&  delação. 


310  HISTORIA  DA  (NQUISIÇÃO 

Mas,  estabelecendo-se  o  sigillo  como  garantia 
para  os  accusadores  e  testemunhas,  abria-se 
campo  illimitado  aos  odios  e  vinganças  parti- 
culares contra  os  individuos  dessa  raça  mal- 
quista das  turbas  fanáticas  e  invejada  pelas 
suas  riquezas.  Assim,  não  havia  a  escolher 
senão  entre  crimes  e  crimes,  entre  horrores  e 
horrores.  Era  uma  situação  absurda  que  pro- 
cedia da  natureza  monstruosa  da  Inquisição 
Igualmente  absurdas  seríam  as  consequências 
de  qualquer  resolução  que  se  adoptasse  acerca 
dos  recursos  das  sentenças,  tanto  interlocutó- 
rias como  definitivas.  Sustentavam  com  razão 
os  inquisidores  que,  tendo  a  bulia  de  23  de 
maio  de  1536  estabelecido  as  três  instancias, 
do  inquisidor  ordinário,  do  inquisidor-mór  e 
do  conselho  geral,  seria  contra  direito  admit- 
tir  uma  quarta  instancia,  admittindo-se  as 
appelações  para  Roma.  Observavam  que,  por 
um  lado,  estas  appelações  podiam  ser  damno- 
sas  aos  próprios  encarcerados,  retendo-os  nas 
prisões  indefinidamente,  e  que,  por  outro  lado, 
eram  com  certeza,  meio  para  tornar  impossi- 
vel  o  castigo  dos  delinquentes.  Quer  os  pro- 
cessos fossem  avocados  para  a  cúria,  quer 
submettidos  a  juizes  delegados,  não  era  nem 
decente  nem  fácil  ao  promotor  da  Inquisição 
seguir  as  causas  perante  esses  juizes  espe- 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  311 

ciaes  ou  perante  a  cúria,  a  cada  incidente  que 
podesse  dar  pretexto  a  uma  appelação  Cl). 
Tudo  isto  era  exacto.  Mas  em  que  consistiam 
essas  instancias  diversas  de  que  faziam  tanto 
apparato  ?  Em  serem  julgados  os  réus  por 
individues  inteiramente  dependentes  do  inqui- 
sidor-mór,  que  os  nomeiava  e  demittia  a  seu 
bel-prazer,  e  tanto  mais  a  seu  bel- prazer  desde 
que  um  principe  exercia  aquelle  tremendo 
cargo.  Assim,  posto  que  plausiveis,  as  ultimas 
allegações  dos  inquisidores  não  tinham  valor 
algum,  attendendo-se  á  realidade  dos  factos. 
Quando  D.  Pedro  Mascarenhas  recebeu  a 
carta  de  10  de  dezembro  e  os  apontamentos 
redigidos  em  harmonia  com  as  precedentes 
ponderações  dos  inquisidores,  não  se  acha- 
vam ainda  completamente  ultimados  outros 
negócios  a  seu  cargo,  e,  entre  elles  um,  o  das 
decimas,  que  não  fora  menos  dificultoso  de 
resolver  que  o  da  Inquisição.  Entendeu  por 
isso  dever  pospor  este  até  os  concluir,  visto 
que,  não  se  havendo  publicado  a  bulia  de  12 
de  outubro,  e  tendo  Capodiferro,  não  só  saído 
de  Portugal,  mas  também  chegado  a  Roma 
no  principio  de  fevereiro,  a  Inquisição  estava 


(1)  Ibid. 


312  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

inteiramente  livre  para  proceder  como  enten- 
desse. Terminadas,  porém,  vantajosamente  as 
outras  negociações  em  que  se  achava  envol- 
vido, o  hábil  agente  da  corte  de  Portugal,  e 
que  por  mais  de  uma  vez  pedira  a  elrei  o 
exonerasse  daquella  difficil  missão,  dedicou-se 
com  ardor  a  trazer  o  assumpto  do  tribunal 
da  fé  a  termos  taes,  que  podesse  aproveitar-se 
da  permissão  que  já  elrei  lhe  dera  de  voltar  á 
pátria  logo  que  as  cousas  chegassem  a  uma 
situação  em  que  não  houvesse  que  receiar 
acerca  da  existência  da  Inquisição,  nem  acerca 
da  permanência  do  infante  arcebispo  no  cargo 
de  inquisidor-mór  (1). 

Nos  princípios,  pois,  de  março  de  1540,  o 
embaixador  soUicitou  e  obteve  uma  audiência 
do  pontífice  para  exclusivamente  tractar  da- 
quelle  melindroso  assumpto  e  communicar-lhe 
a  carta  d'elrei,  cuja  versão,  feita  por  Santi- 
quatro,  foi  lida  por  este  ao  papa.  Temiam 
ambos  que  essa  carta,  embora  nas  formas 
moderada  e  até  submissa,  mas  violenta  e 
ameaçadora  na  substancia,  irritasse  Paulo  m. 
Não  succedeu  assim.  Elrei  dera  um  passo 
imprudente  declarando  que  estava  resolvido  a 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  9  de  março 
de  1540,  na  Corresp.  Ong.,  f.  207. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  313 

ceder  para  sempre  na  questão  dos  confis- 
cos. Pucci  notara  desde  logo  esta  circumstan- 
cia,  que  o  papa,  ouvida  a  leitura  da  carta,  apro 
veitou  avidamente.  Quanto  a  elle,  elrei  proce- 
dera bem  falando  com  desafogo,  como  cum- 
pria entre  amigos  confiados  mutuamente  um 
no  outro.  Estava  certo  de  que  um  tal  príncipe 
não  fazia  caso  dos  vis  e  desprezíveis  lucros 
que  poderia  tirar  dos  confiscos,  que  para 
sempre  abnegava.  Cria,  porém,  que  a  razão 
do  seu  próprio  procedimento  naquella  longa 
contenda  era  clara.  Desde  que  havia  tão  gra- 
ves queixas  dos  christãos-novos  contra  a  In- 
quisição, elle,  juiz  supremo,  não  podia  deixar 
de  ouvir  ambas  as  partes,  tanto  mais  que, 
não  passando  semelhantes  matérias  pelas 
mãos  d  elrei,  lhe  era  licito  suspeitar  mal  dos 
inquisidores,  do  mesmo  modo  que  D.  João  iii 
suspeitava  dos  offlciaes  e  ministros  da  cúria 
romana.  Supposta,  porém,  a  intenção,  mani- 
festada na  carta  de  10  de  dezembro,  de  uma 
perpetua  e  absoluta  abstenção  dos  confiscos, 
o  estado  da  questão  mudava,  e  elle  reputava 
justas  as  representações  a  favor  da  Inquisição 
logo  que  desapparecia  o  motivo  principal  de 
todas  as  suspeitas.  Entretanto,  sendo  grave 
cousa  alterar  uma  resolução,  tomada  depois 
de  tão  renhida  contenda  e  tão  longos  debates, 


314fe  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

por  deliberação  própria,  pedia  tempo  para 
consultar  pessoas  competentes,  e  para  resol- 
ver com  justiça  sobre  matéria  tão  árdua.  No 
que,  porém,  tocava  ao  infante,  as  difficuldades 
eram  maiores,  não  só  porque,  quando  se  tra- 
ctava  de  vidas  e  fazendas,  e  os  interessados 
davam  o  juiz  por  suspeito,  era  obrigação  sua 
attendê-los;  mas  também  porque,  embora 
houvesse  exaggeração  nas  queixas,  muitas 
delias  se  fundavam  em  motivos  plausiveis. 
Essas  difficuldades,  todavia,  poderiam  resol- 
ver-se  com  o  expediente  da  abstenção  perpe- 
tua dos  confiscos,  e  talvez  os  christãos-novos, 
á  vista  do  desinteressado  procedimento  d'elrei, 
ainda  acceitassem  voluntariamente  por  juiz 
aquelles  mesmo  que  repelliam  agora  (1). 

iLsta  linguagem  moderada  do  papa  era 
igualmente  conciliadora  e  astuta.  Um  inci- 
dente da  carta  d'elrei  convertia-se  em  matéria 
principal,  e  a  base  das  futuras  negociações 
vinha  assim  a  ser  a  questão  dos  confiscos. 
Não  crendo,  provavelmente,  demasiado  na  sin- 
ceridade de  uma  offerta,  que  talvez  não  pas- 
sava de  pura  formalidade  ou  de  amplificação 
rhetorica,  o  papa  não  hesitara  em  dar  espe- 
ranças tão  vagas  quanto  lisongeiras  de  um 

(1)  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  315 

accordo  logo  que  se  realisasse  uma  condição 
que  não  devia  suppor  fácil  de  cumprir,  e  que 
tão  importante  era  para  os  conversos.  Pela 
sua  parte  D.  Pedro  Mascarenhas,  não  ousando 
negar  que  na  carta  se  contivesse  a  afferta  de 
que  Paulo  iii  tirara  vantagem,  quiz  também 
aproveitar-se  das  palavras  delle,  para  que  se 
compromettesse  a  tomar  com  rapidez  uma 
resolução,  definitiva  acerca  das  limitações  da 
Inquisição  e,  sobretudo,  relativamente  á  ques- 
tão de  inquisidor-mór,  embora  admittindo  a 
generosidade  das  intenções  do  seu  soberano 
pelo  que  respeitava  aos  bens  dos  réus  de  he- 
resia. Assim;  declarou  desde  logo  que,  fiado 
no  bom  animo  e  nas  promessas  de  sua  san- 
ctidade,  se  absteria  de  apresentar  a  impugna- 
ção que  a  sua  corte  offerecia  contra  os  fun- 
damentos da  bulia  de  12  de  outubro;  porque 
seria  agora  fácil  achar  de  per  si  o  supremo 
pastor  uma  solução  justa  e  favorável,  evitan- 
do-se  as  delongas  de  novos  e  tediosos  deba- 
tes. Acquiesceu  o  papa,  concordando  com  o 
embaixador  quanto  á  demora  que  semelhanfe 
discussão  traria,  e  dando  a  entender  que  elle 
poderia  assim  achar  com  mais  brevidade  a 
solução  desejada  (1). 

(1)  Ibid. 


316  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Até  este  momento  a  conferencia  indicava 
que  se  chegaria  a  uma  transacção  tão  breve 
como  inesperada.  Mas  era  necessário  sair  dos 
termos  geraes  e  das  demonstrações  de  mutua 
boa  vontade  na  questão  do  infante.  Devia  o 
papa  ceder  desde  logo  neste  ponto,  e  acceitar 
como  conveniente  e  valida  a  nomeiação  de 
D.  Henrique  ?  Não  o  parecia,  e  novos  motivos 
occorriam  para  elle  assim  pensar.  Numa  effu- 
são  de  sinceridade,  verdadeira  ou  simulada, 
Paulo  m  revelou  a  D.  Pedro  Mascarenhas  o 
que  se  passava.  Chegara  a  Roma  naquella 
conjunctura  um  hebreu  português,  trazendo 
novas  supplicas  dos  conversos  contra  o  in- 
fante. Elle  próprio  fora  victima  das  usuaes 
violências.  Salteiado  e  retido  no  caminho  por 
D.  Henrique,  espoliado  dos  papeis  que  trazia 
e  reconduzido  preso  para  Lisboa,  conseguira 
illudir  a  vigilância  dos  seus  guardas  e  passar 
a  Hespanha,  d'onde  viera  implorar  delle, 
summo  pontífice,  justiça  e  desaggravo  para 
si  e  para  seus  opprimidos  irmãos.  Taes  factos, 
no  entender  do  papa,  independentemente  do 
que  por  si  mesmos  significavam,  eram  alta- 
mente oíTensivos  para  a  sancta  sé,  impedin- 
do-se  por  taes  meios  o  recurso  para  ella  em 
cousas  de  que  lhe  pertencia  conhecer.  Elste 
facto  citado  pelo  papa  collocava  o  embaixador 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  317 

numa  situação  difflcilima:  todavia  D.  Pedro 
Mascarenhas,  com  a  presença  de  espirito  que 
o  caracterisava,  soube  evitar  o  escolho.  Longe 
de  recorrer  a  desculpas  submissas,  adoptou 
a  linguagem  da  dignidade  oífendida.  Inter- 
rompendo o  papa,  como  representante  da 
coroa  portuguesa,  exigiu  delle  que  mandasse 
immediatamente  pôr  a  ferros  o  miserável  que 
ousava  com  tão  grosseira  mentira  calumniar 
um  infante  de  Portugal,  attribuindo-lhe  actos 
de  salteiador.  Fora,  na  sua  opinião,  a  Provi- 
dencia quem  trouxera  a  Roma  em  tal  tempo 
aquelle  embusteiro,  para  que  sua  sanctidade 
se  convencesse  de  que  tudo  quanto  os  chris- 
tãos-novos  allegavam  era  uma  serie  de  men- 
tiras e  aleivosias,  e  para  elle  lhe  poder  decla- 
rar francamente  que  o  motivo  que  levava  á 
cúria  romana  aquelle  desgraçado  era  sollici- 
tar  a  execução  da  bulia  de  12  de  outubro. 
Narrou  então  o  procedimento  de  Capodiferro 
antes  de  sair  de  Lisboa,  como  se  Paulo  m  o 
ignorasse,  e  asseverou-lhe  que  esse  homem 
vinha  encarregado  de  pagar  em  Roma  as 
sommas  recusadas  em  Lisboa,  ao  núncio. 
Pelo  menos,  dizia-se  isto,  e  os  indícios  justifi- 
cavam a  voz  publica;  porque,  aliás,  seria 
inexplicável  como  um  diploma  tão  importante 
e  que  sua  sanctidade  mandara  expedir  sem 


318  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

querer  esperar  a  resposta  d'elrei,  reputando-o 
urgentíssimo,  ficara  sem  execução,  não  lhe 
tendo  o  governo  português  opposto  o  menor 
obstáculo.  Ou  os  christãos-novos  ainda  se 
não  haviam  dado  por  satisfeitos,  ou  o  núncio 
tinha  prevaricado.  Não  se  podia  fugir  deste 
dilemma.  As  intenções  do  pontifice,  inutilisa- 
das  pelo  seu  próprio  representante,  e  as  ca- 
lumnias  do  emissário  chegado  a  Roma,  que 
davam  occasião  a  elle  dizer  a  verdade  inteira 
a  sua  sanctidade,  offereciam  uma  coincidên- 
cia singular;  mas  havia  ainda  outra  circum- 
stancia  que  dava  a  esse  conjuncto  de  factos 
um  caracter  mysterioso  e  terrível:  era  terem 
engolido  as  ondas  o  navio  em  que  vinham  os 
thesouros  de  Gapodiferro,  fructo  das  peitas 
dos  conversos,  do  preço  porque  elle  vendera 
o  sangue  de  Jesu-Christo  (1).  Combatia  o  céu 
pela  Inquisição;  poi'que  se  tractava  da  causa 
da  fé,  e  sua  sanctidade  devia  pensar  nisto. 
Pelo  que  tocava  ao  indigno  calumniador, 
D.  Pedro  insistia  em  que  fosse  lançado  em 
um   calabouço,   até  se  averiguar  a  verdade. 


(1)  «E  a  náao  do  seu  nuncyo  que  vynha  carre- 
gada dos  espolyos  do  sangue  de  noso  senhor  Jesu- 
Christo  e  das  peitas  daquele  povo  seu  aversaryo 
nom  sem  causa  fora  so  ver  tida  no  mar» :  Ibid. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  319 

para  depois  ser  punido,  acompanhando  as 
supplicas  com  a  ameaça  de  que,  se  não  se 
fizesse  justiça,  elle  saberia  tirar  desforço  de 
um  vassallo  traidor  a  seu  rei,  não  havendo 
extremo  a  que  não  se  abalançasse  para  vingar 
a  offensa  (1), 

A  audácia  do  embaixador,  como  este  de  an- 
temão calculara,  deslumbrou  o  papa,  a  quem 
já  pesava  ter  aberto  aquella  porta  para  ouvir 
tão  dura  linguagem.  Despedindo  o  ministro 
português,  assegurou-lhe  que  o  accusadõr  do 
infante  seria  preso  até  chegarem  cartas  d'el- 
rej  sobre  este  assumpto,  para  o  réu  ser  puni- 
do como  calumniador;  que  ignorava  ainda  as 
causas  verdadeiras  de  não  ser  publicada  a 
bulia  de  12  de  outubro,  e  que  elle  lhe  fizera 
bom  serviço  em  falar  com  tal  desassombro, 
porque  os  principes  pagavam  muitas  vezes 
com  o  próprio  descrédito  as  culpas  dos  seus 
ministros.  Quanto  á  carta  de  10  de  dezembro, 
encarregava  o  cardeal  Pucci,  alli  presente,  de 
a  ver  com  Ghinucci  e  Del  Monte,  para  elle, 
ouvidos  os  pareceres  dos  três.  poder  tomar 
com  brevidade  uma  resolução  acerca  do  seu 
conteúdo  (2). 


(1)  Ibid. 

(2)  Ibid. 


320  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

Apesar  da  segurança  com  que  falara  ao 
papa,  a  verdade  é  que  D.  Pedro  não  sabia  se 
acertara  com  os  motivos  a  que  attribuira  a 
vinda  do  emissário,  nem  até  que  ponto  era 
inexacta  a  narrativa  da  aventura  pela  qual  es- 
te dizia  ter  passado.  Procedendo  a  ulteriores  in- 
dagações, soube  que  o  recem-chegado  era  um 
irmão  de  Diogo  António,  procurador  dos  con- 
versos. O  assumpto  de  que  principalmente 
vinha  tractar  era  compor  as  duvidas  suscita- 
das ente  Diogo  António  e  os  seus  commit- 
tentes  acerca  das  sommas  que  este  exigia 
como  despendidas  em  Roma,  tanto  em  des- 
pesas licitas  como  em  peitas,  e  que  os  chris- 
tãos-novos  duvidavam  de  pagar.  As  causas  que 
dera  ao  papa  da  missão  do  Heitor  António 
(assim  se  chamava  o  recem-vindo)  eram  ape- 
nas prováveis.  Talvez  tivesse  também  por 
objecto  sollicitar  a  enviatura  de  um  novo  nún- 
cio, no  que  os  conversos  tanto  interessavam. 
Quanto  á  aventura  que  escandalisara  o  pon- 
tifice,  eis  o  que  o  embaixador  pôde  apurar 
por  intervenção  de  vários  portugueses,  a  quem 
o  emissário  a  havia  particularmente  narrado- 
Tendo  este  partido  de  Aldeia-gallega  pela 
posta,  encontrara  nas  immediações  de  Rio- 
frio  o  camareiro-mór  do  infante  e  outro  indi- 
viduo, ambos  montados,  os  quaes,   vendo-o 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  321 

passar,  lhe  foram  no  encalce.  A  pouca  distan- 
cia esperava-o  o  próprio  D.  Henrique  escolta 
do  por  cinco  de  cavallo.  Perguntou-lhe  o  in- 
fante para  onde  ia:  respondeu  que  para  Va- 
ihadolid.  Mas  o  inquisidor-mór  estava  plena- 
mente informado  de  quem  era,  para  onde  ia 
e  com  que  fins.  A  resposta  ás  suas  negativas 
foi  prenderem-no  e  conduzirem-no  para  a  Lan- 
deira, onde  o  despojaram  de  quanto  levava, 
dinheiro,  jóias  e  cartas  (1).  Abriu  estas  o  in- 
fante, leu-as  e  remetteu  tudo  para  Lisboa  com 
o  emissário  preso.  Tendo,  porém,  chegado  á 
capital  alta  noite,  e  aproveitando  a  circums- 
tancia  de  vir  acompanhado  por  um  só  homem, 
no  meio  das  trevas  Heitor  António  alcançou 
evadir-se  pelas  ruas  enredadas  e  tortuosas  da 
velha  cidade.  Nessa  mesma  noite  passou  de 
novo  o  Tejo,  e  atravessando  por  caminhos  es- 
cusos, pôde  transpor  a  fronteira,  e  salvar- 
se  (2).  As  particularidades  da  narrativa  abo- 
navam-na  de  verosímil.  Dando  conta  a  elrei 
daquellas  occorrencias,  o  embaixador  fazia 
sentir  com  arte,  não  só  que  estava  persuadi- 


(1)  «lhe  tomaram  a  malla  com  iodas  as  cartas 
que  trazia  e  huns  cemto  e  tamtos  cruzados  e  certos 
anneys»:  Ibid. 

(2)  Ibid. 

TOMO  n  2í 


322  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

do  do  facto,  mas  também  que  semelhante  pro- 
cedimento seria  um  embaraço  gravíssimo  na 
questão  do  infante.  Dizia  que  não  continuara 
a  exigir  a  prisão  desse  homem  com  receio  de 
que  alguma  cousa  houvesse  na  realidade 
acontecido.  Sobejavam-lhe  motivos  para  crer 
que  tudo  era  mentira,  não  tendo  recebido  d'el- 
rei  aviso  algum  acerca  de  tal  successo,  o  que 
seria  indesculpável  se  a  historia  do  emissário 
fosse  verdadeira.  Mas,  se  o  caso  era  altamen- 
te improvável,  não  era  absolutamente  impos- 
sível, e  em  tão  melindroso  assumpto  cumpria 
ser  circumspecto  (1).  Para  se  não  toruar  sus- 
peito pelas  mostras  de  indiíferença,  ainda  uma 
vez  insistira  com  o  papa  sobre  a  prisão  de 
Heitor  António,  mas  em  conjunctura  tão  pou- 
co opportuna,  que  só  podesse  receber  em 
resposta  vagas  promessas,  cujo  eífeito  esque- 
cesse. Terminava  pedindo  informações  dire- 
ctas d'elrei,  com  a  destreza  de  hábil  cortezão. 
Se  o  facto  existira,  rogava-lhe  que  não  res- 
pondesse a  esta  parte  da  sua  carta.  Tomaria 
o  silencio  por  uma  ordem  para  dissimular  so- 


(1)  aComtudo,  pollos  casos  serem  mais  que  as  leys, 
ouve  por  mais  seguro  contentarme  das  palavras 
que  me  já  o  papa  tinha  dadas,  e  nom  llie  dar  mais 
lurya»:  Ibid. 


HISTORIA  DA  IXQUISIÇÃO  323 

bre  o  assumpto.  No  caso  contrario,  pouco  im- 
portava que  entretanto  o  governo  pontifício 
não  retivesse  preso  o  calumniador  e,  até,  que 
lhe  facilitasse  depois  a  fuga.  Era  mais  um 
motivo  de  queixa  de  que  se  tiraria  de  futuro 
vantagem  para  as  negociações  pendentes.  O 
que,  porém,  em  qualquer  das  hypotheses  lem- 
brava era  a  necessidade  de  obstar,  fosse  co- 
mo fosse,  aos  eífeitos  da  liberdade  com  que 
falavam  em  Roma  os  agentes  dos  christãos- 
novos,  sobre  o  que  guardava,  para  quando 
voltasse  ao  reino,  fazer  a  elrei  revelações  im- 
portantes (1). 

Entretanto,  os  três  cardeaes  incumbidos  de 
examinarem  a  carta  de  10  de  dezembro  ti 
nham  dado  o  seu  voto  acerca  do  conteúdo 
delia.  Cifrava-se  o  parecer  em  se  exigir  de  D. 
João  in  que  declarasse  directa  e  officialmente 
áo  pontífice  a  resolução  que  annunciava  ter 
tomado  de  ceder  para  sempre  na  questão  dos 
confiscos.  Supposta  esta  base,  poder-se-hia 
negociar  tudo,  de  modo  que  elrei  ficasse  in- 
teiramente satisfeito.  Adoptou  o  papa  o  pare- 
cer, propondo-o  ao  embaixador  e  pedindo-lhe 
ao  mesmo  tempo  que  deixasse  em  seu  poder 
o  original  daquella  carta.  Evidentemente  bus- 

(1)  Ibid, 


324  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cava  um  meio  de  se  assegurar  da  lealdade 
das  promessas  feitas.  Não  era,  porém,  D.  Pe- 
dro homem  que  cahisse  facilmente  no  laço.  Se 
o  papa  conhecia  bem  o  rei  de  Portugal,  o  mi- 
nistro deste  conhecia-o  perfeitamente  a  elle. 
Agradeceu  as  benévolas  intenções  do  supre- 
mo pastor,  asseverando-lhe  que  estava  certo 
de  que  não  haveria  quebra  de  tão  solemnes 
promettimentos  e  de  que,  apenas  elle  chegas- 
se a  Lisboa  com  a  nova  proposta,  elrei  diri- 
giria, sem  duvida,  a  sua  sanctidade  a  declaração 
pedida.  A  carta,  essa  não  a  podia  deixar  senão 
por  copia.  Não  só  era  a  sua  defesa  para  al- 
gum caso  fortuito,  mas  também  era  uma  ar- 
ma poderosa  que  levava  comsigo  para  com- 
bater qualquer  reluctancia  que  ainda  houvesse 
no  animo  do  monarcha,  mostrando-lhe  aos 
olhos  o  empenho  em  que  ficara  a  palavra 
real.  Lembrava,  porém,  a  sua  sanctidade  que 
havia  uma  condição  impreterível  para  o  ulte- 
rior accordo.  Consistia  em  suspender-se  a 
bulia  declaratória,  ficando  simples  e  exclusi- 
vamente em  vigor  a  de  23  de  maio  de  1536, 
aliás  quaesquer  negociações  seriam  ao  mes- 
mo tempo  impossíveis  e  inúteis.  Supplicava- 
Ihe,  portanto,  mandasse  expedir  um  breve,  de 
que  elle  seria  portador,  no  qual  se  desse  a 
elrei  a  certeza  da  manutenção  das  cousas  no 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  325 

estado  em  que  se  achavam  antes  da  bulia  de 
12  de  outubro,  até  se  chegar  a  uma  resolução 
definitiva  sobre  aquella  matéria  (1), 

Desde  que  o  papa  declarava  que  as  preten- 
sões da  corte  de  Portugal  lhe  pareciam  admis- 
síveis, supposta  a  cessão  dos  confiscos,  não 
podia  recusar  o  breve  pedido.  Convieram, 
portanto,  em  que  se  expedisse,  ficando  ao 
mesmo  tempo  uma  copia  da  carta  de  10  de 
dezembro,  assignada  pelo  embaixador  na  mão 
de  Santiquatro.  Era  preciso,  porém,  prevenir 
que  os  ministros  da  Inquisição  em  nada  ul- 
trapassassem a  bulia  de  1536,  nem  tornassem 
na  minima  cousa  mais  rigorosos  os  estylos 
do  tribunal.  No  estado  a  que  as  cousas  tinham 
chegado,  e  no  meio  das  difficuldades  que  o 
procedimento  do  próprio  inquisidor-mór 
creara,  o  obter  a  conservação  do  statu-quo  até 
que  elrei  resolvesse  acerca  dos  confiscos,  inu- 
tilisando-se  assim  os  effeitos  da  bulia  de  12 
de  outubro,  era  uma  grande  victoria.  Não  con- 
vinha, portanto,  multiplicar  as  sol  licitações, 
nem  complicar  os  incidentes.  Tinha-se  orde- 
nado, na  verdade,  ao  embaixador  pedisse  pro- 
videncias especiaes  sobre  o  modo  de  proce- 
der quando  algum  delicto  religioso  fosse  pra- 

(1)  Ibid. 


326  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

cticado  por  christãos- velhos,  tanto  é  certo  que 
o  próprio  governo  entendia  serem  a  Inquisi- 
ção e  as  regras,  na  apparencia  genéricas,  por 
que  esta  se  guiava  exclusivamente  destinadas 
a  perseguir  o  judaismo;  mas  D.  Pedro  Mas- 
carenhas entendeu  dever  pospor  para  mais 
tarde  essa  pretensão,  fácil  de  obter  a  todo  o 
tempo,  porque  —  dizia  elle  —  para  a  contrariar 
não  havia  quem  desse  peitas  na  corte  de 
Roma  (1). 

Como  a  precedente,  a  questão  da  legitimi- 
dade com  que  o  infante  D.  Henrique  exercia 
o  cargo  de  inquisidor-mór  podia  também  pos- 
por-se.  Não  assim  a  da  enviatura  de  um  nún- 
cio a  Portugal.  Não  era  matéria  esta  que  se 
devesse  preterir.  Embora  fosse  pelos  ignóbeis 
motivos  que  haviam  influido  no  procedimento 
de  Sinigaglia  e  de  Capodiferro,  a  nunciatura 
offerecia  um  obstáculo  permanente,  e  ás  ve- 
zes insuperável,  ás  violências  dos  inquisido- 
res. Era  o  que  se  não  queria.  Felizmente,  nes- 
ta parte,  o  embaixador,  retirando-se  da  corte 
pontifícia,  deixava  ahi  quem  combatesse  a 
nomeiação  do  novo  núncio  com  maior  ener- 
gia do  que  elle  próprio.  Expediom-se  princi- 


(1)  f>nam  ha  quem  na  contradiga,  nem  tenha  di- 
nheiro posto  em  honquo»:  Ihid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  327 

palmente  as  graças  rendosas  da  sé  apostóli- 
ca pela  Penitenciaria-maior,  e  Santiquatro  era 
o  penitenciário.  Quando  havia  núncio  em  Por- 
tugal, por  este  corriam  quasi  todas  ellas  com 
detrimento  de  Santiquatro.  Que  mais  podero- 
so incentivo  para  avivar  o  zelo  do  cardeal  pro- 
tector {í)f  Consumido  por  vigilias  e  cuidados, 
arruinada  a  própria  fortuna,  e  o  que  mais  era, 
a  saúde,  D.  Pedro  suspirava  havia  muito  pe- 
lo momento  em  que  podesse  aproveitar  a  per- 
missão d'elrei  para  voltar  á  pátria.  Postas  as 
cousas  nos  termos  em  que  se  achavam,  só 
uma  circumstancia  demorava  a  sua  partida. 
Era  a  feitura  do  promettido  breve.  Depois  de 
se  haverem  adoptado  sucessivamente  duas 
ou  três  redacções,  este  foi  afinal  expedido, 
mas  pouco  depois  suspenso.  Tinham-no  redi- 
gido os  cardeaes  Pucci,  Del  Monte  e  Ghinuc- 
ci.  Agora  o  papa  ordenava  que  fosse  revisto 
por  este  ultimo  e  pelos  dous  ex-nuncios  Sini- 
gaglia  e  Gapodiferro.  A  balança  começava  ou- 
tra vez  a  pender  para  o  lado  dos  conversos. 
A  nova  commissão  accrescentou  uma  circums- 
tancia importante,  que  a  primeira  havia  omit- 


(1)  «porque  he  (o  cardeal  Santiquatro)  ainda  mais 
syoso  da  ida  dos  núncios  que  eu,  mesturando  ho 
serviço  de  V.  A.  com  o  seu  imteresse»:  Ibid. 


328  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tido.  Foi  a  determinação  de  um  praso,  o  de 
quatro  mezes,  para  elrei  responder.  Era  uma 
limitação  obviamente  sensata.  Debalde  o  em- 
baixador, a  quem  isto  constara,  forcejou  para, 
ao  menos,  ampliar  esse  periodo.  Tudo  foi  inú- 
til; e  D.  Pedro  Mascarenhas,  cuja  decadência 
physica  lhe  não  consentia  uma  viagem  rápida, 
teve  de  enviar  o  breve  por  um  expresso,  para 
dar  tempo  a  D.  João  iii  de  adoptar  pausada- 
mente um  arbítrio  dentro  do  praso  fatal  (1). 
Apesar  da  modéstia,  talvez  bem  pouco  sin- 
cera, com  que  na  sua  correspondência  D.  Pe- 
dro Mascarenhas  se  declarava  inferior  ás  dif- 
ficuldades  das  negociações  de  que  fora  in- 
cumbido relativas  ao  tribunal  da  fé,  ninguém 
as  teria  por  certo  conduzido  melhor  do  que 
elle  durante  a  sua  larga  residência  em  Roma, 
porque  as  circumstancias  com  que  teve  de 
luctar  foram  tão  complicadas  e  difficeis  como 
o  leitor  viu.  Póde-se  dizer  que,  partindo  de 
Roma,  deixava  os  christãos-novos  numa  si- 
tuação mais  precária  que  nunca;  e  todavia 
estes  tinham  empregado  naquelle  periodo  os 
mais  extraordinários  esforços  para  salvar-se. 
Os  seus  triumphos  haviam  sido  ephemeros,  e 


(1)  Carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  11  de  mar- 
ço de  1540,  na  Corresp.  Orig.,  f.  221  e  seg. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  329 

fora  elle  quem  lh'os  inutilisara.  Effectivamen- 
te,  a  situação  resumia- se  agora  em  proseguir 
a  Inquisição  como  d  antes,  e  não  faltariam 
expedientes  para  alongar  a  epocha,  senão  de 
uma  resposta  qualquer  ao  breve  que  se  expe- 
dia, ao  menos  de  uma  conclusão  definitiva 
sobre  o  assumpto.  O  interesse  da  corte  por- 
tuguesa consistia  em  não  resolver  nem  fazer 
cousa  alguma.  Legitima  ou  illegitimamente,  o 
infante  arcebispo  continuaria  a  ser  inquisidor- 
mór,  e,  tendo-o  por  chefe,  os  inquisidores  de- 
senvolveriam livremente  as  suas  tendências 
ferozes.  A  vinda  de  um  núncio,  que,  peitado 
pelos  conversos,  podesse  protegê-los,  estava 
addiada  até  se  chegar  a  um  accordo  entre  as 
duas  cortes;  além  de  que,  neste  ponto  o  pró- 
prio interesse  tornava  Santiquatro  o  melhor 
dos  procuradores.  O  embaixador  saiu,  portan- 
to, de  Roma  no  meiado  de  março,  deixando 
incumbido  o  italiano  Pêro  Domenico,  agente 
ordinário  d'elrei,  de  vários  negócios  de  menos 
monta,  que  trazia  pendentes  e  que  não  poda- 
ra terminar  (1). 


(1)  Ibid.  e  carta  do  dicto,  datada  de  Modena  a  2 
de  abril :  Ibid.  f.  226  e  seg.  —  Na  G.  10,  M.  11,  N.»  27, 
no  Arch.  Nac.  está  a  lista  de  varies  papeis  deixados 
pelo  embaixador  a  Pêro  Domenico.  Entre  elles  ha 


330  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

O  breve  que  D,  Pedro  Mascarenhas  remet- 
tera  antes  de  partir,  e  para  cuja  redacção  fi- 
nal tinham  sido  ouvidos  os  ex-nuncios  Sini- 
gaglia  e  Capodiferro,  parecia  dever  collocar 
D.  João  III  na  necessidade  de  vir  em  breve  a 
um  accordo  difinitivo.  Além  de  se  marcar  ahi 
o  praso  para  a  resolução  sobre  os  confiscos, 
declarava-se  que  as  duvidas  sobre  a  idonei- 
dade do  infante  D,  Henrique  para  ser  inquisi- 
dor-mór  se  resolveriam  conjunctamente  com 
esfoutro  negocio,  vista  a  mutua  dependência 
de  ambos  (1).  Esse  alvitre,  porém,  a  que  se 
recorria  era  inefficaz;  porque,  desapressados 
do  núncio  os  inquisidores,  e  conservada  a  In 
quisição  no  anterior  estado,  tanto  o  provisó- 
rio da  situação  desta,  como  a  falta  de  confir- 
mação do  infante  podiam  prolongar-se  inde- 
finidamente. Accrescia  que,  faltando  ainda 
seis  annos  para  se  completar  o  periodo  de 
dez,  em  que,  segundo  a  bulia  orgânica  de  1536, 
os  bens  dos  sentenciados  pela  Inquisição  fi- 


alguns  relativos  ao  processo  de  Ayres  Vaz,  que  da 
carta  de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  II  de  março,  aci- 
ma citada,  se  vê  ter  sido  solto,  deixando-o  ir  a  Ro- 
ma seguir  a  sua  appelação  para  o  pontifico. 

(1)  Breve  de  10  de  março  de  1540,  no  M.  7  de 
Bulias  N.°  17,  no  Arch.  Nac. 


HISTORfA  DA  INQUISIÇÃO  331 

cavam  aos  seus  herdeiros,  a  demora  em  dar 
o  caracter  de  perpetuidade  a  esta  jurisprudên- 
cia não  tinha  inconveniente  algum  practico. 
Havendo  o  papa  declarado  que  a  abstenção 
dos  confiscos  legitimava  as  pretensões  d'elrei 
nas  outras  matérias  relativas  á  Inquisição, 
nada  mais  razoável  do  que  manter-se  tudo  na 
situação  em  que  estava,  embora  nada  se  ti- 
vesse concluído  no  fira  dos  quatro  mezes  mar- 
cados para  a  resposta  da  corte  de  Portugal. 
O  único  ponto  que  podia  suscitar  serias  de- 
savenças era  o  da  enviatura  de  um  núncio,  se 
as  diligencias  dos  christãos-novos  vencessem 
a  opposição  de  Santiquatro.  Ahi  estava  o  pe- 
rigo. Parecia  extremamente  plausível  que  um 
delegado  pontificio  podesse  examinar  de  per- 
to o  procedimento  dos  inquisidores,  e  tanto 
mais  plausível  se  tornaria  semelhante  provi- 
dencia quanto  maiores  fossem  os  clamores 
dos  conversos  contra  as  injustas  perseguições 
de  que  eram  victimas.  Foi  de  feito  nesse  cam- 
po que,  como  veremos,  veio  depois  a  renovar- 
se  a  lucta. 

O  anno  de  1540  e  os  primeiros  mezes  de 
1541  parece  terem  passado  sem  que  entre  as 
cortes  de  Lisboa  e  de  Roma  se  alevantassem 
de  novo  as  discussões  tempestuosas  que,  des- 
de 1533,  as  agitavam  por  causa  do  tribunal 


332  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

da  fé.  As  precedentes  considerações  explicam 
aquella  temporária  bonança,  e  não  admira  a 
falta  que  se  observa  de  memorias  e  documen- 
tos relativos  ao  assumpto  durante  esse  perío- 
do. Provavelmente  os  ministros  de  D.  João  iii 
adoptaram  o  systema  das  dilações,  da  hesita- 
ção calculada,  que  em  ta  es  circumstancias  era 
o  mais  conveniente.  Não  cessavam,  nem  po- 
diam cessar,  entretanto,  os  esforços  dos  con- 
versos para  melhorarem  a  própria  situação. 
A  tenebrosa  procella,  que  os  ameaçava  desde 
1536,  não  espalhara  a  principio  tantos  estra- 
gos como  se  presumia:  agora,  porém,  o  tro- 
vão rebentava  com  maior  fragor,  e  as  cente- 
lhas desciam  a  fulminá-los,  cada  vez  com 
mais  frequência.  A  perseguição  crescia  e  or- 
ganisava-se.  Sentia-se,  emfim,  que  a  Inquisi- 
ção portuguesa  ia  adquirir  aquelle  caracter  de 
terribilidade  que  no  resto  da  Península  tor- 
nara tão  temida  essa  instituição  anti-christan. 
Effecti vãmente,  é  desde  1540  que  achamos 
multiplicarem-se  os  processos  por  delictos 
contra  a  fé  com  sigular  rapidez  (1).  Em  logar 


(1)  Examinando-se  os  archivos  da  Inquisição  da 
Torre  do  Tombo,  verifica-se  este  facto.  Os  proces- 
sos de  1533  a  1536  são  raros,  e  os  de  1536  a  1539  são 
ainda  poucos.  È  de  1540  a  t5í7  que  o  seu  numero 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  333 

opportuno  traçaremos  o  quadro  das  atrocida- 
des commettidas  neste  anno  e  nos  immedia- 
tos,  atrocidades  que  proporcionavam  á  cúria 
romana  pretextos  plausíveis  para  seguir  a  po- 
litica vacillante  de  que  tantos  proveitos  aufe- 
ria, interpondo  a  sua  auctoridade  entre  a  In- 
quisição e  os  christãos-novos,  quando  por  es- 
se meio  podia  despertar  a  gratidão  da  raça 
proscripta  ou  o  temor  dos  seus  implacáveis 
perseguidores.  Agora  cumpre  referir  factos, 
que,  alheios  a  principio  ao  objecto  deste  livro, 
vieram  a  influir  no  progresso  da  lucta  entre 
D.  João  III  e  os  seus  súbditos  hebreus,  ser- 
vindo ás  vezes  para  explicar  as  phases  por 
que  essa  lucta  passou  até  a  consolidação  de- 
finitiva do  tribunal  da  fé, 

O  bispo  de  Viseu  D.  Miguel  da  Silva,  irmão 
do  conde  de  Portalegre,  era  naquella  conjun- 
ctura  escrivão  da  puridade,  cargo  de  que  fora 


cresce  rapidamente.  Na  verdade,  quando  se  extin- 
guiu o  Sancto-Officio,  em  1820,  e  posteriormente,  dis- 
traliiram-se  muitos  processos.  E'  natural,  até,  que, 
no  decurso  do  tempo,  dos  próprios  cartórios  do  tri- 
bunal saíssem  outros  muitos.  Entretanto,  essas  per- 
das abrangem  processos  de  todas  as  epoclaas  da 
existência  da  Inquisição,  e  portanto  a  proporção  en- 
tre anno  e  anno  na  successão  clironologica  ficou 
sendo  pouco  mais  ou  menos  a  mesma. 


334  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

revestido  em  1525  e  que,  dadas  as  diíferenças 
do  tempo,  equivalia  ao  de  ministro  do  reino, 
As  circumstancias  da  nomeiação  de  D.  Mi- 
guel ligam-se  intimamente  com  os  successos 
occorridos  quinze  annos  depois.  Tinha  elle  si- 
do educado  em  França  e  em  Itália,  distin- 
guindo-se  na  sua  mocidade  por  subidos  dotes 
litteraiios.  Enviado  a  Roma  como  embaixador 
d'elrei  D.  Manuel  em  tempo  de  Leão  x,  alli 
i'enovara  com  os  homens  superiores  que  or- 
navam a  corte  pontifícia,  foco  de  todo  o  bri- 
lho das  sciencias  e  das  lettras  naquella  epo- 
cha,  as  suas  relações  da  juventude.  Quizera 
o  papa  retê-lo  perpetuamente  alli,  dando-lhe  a 
purpura  cardinalicia;  mas,  ou  fosse  por  um 
movimento  de  gratidão  e  patriotismo,  ou  por- 
que outras  eram  as  suas  ambições,  D.  Miguel 
preferiu  continuar  a  servir  o  seu  soberano  e 
a  pátria.  Subindo  ao  ihrono  pontifício,  Cle- 
mente VII  pensou  em  elevar  o  embaixador 
português  á  dignidade  que  este  já  uma  vez 
recusara  e  que,  segundo  parece,  agora  se  mos- 
trava propenso  a  acceitar.  Soube-o  D.  João  iii, 
cuja  politica  era  não  consentir  houvesse  um 
súbdito  seu  cujas  prerogatives  ecclesiasticas 
o  fizessem  hombreiar  com  os  membros  da 
familia  real.  O  antigo  embaixador  foi  manda- 
íjo  retirar,  sendo  substituído  por  D.  Martinho 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  335 

de  Portugal.  Chegado  o  novo  agente  a  Roma, 
D.  Miguel  da  Silva  quiz  mostrar,  pelo  seu 
procedimento,  que  era  digno  daquella  situa- 
ção a  que  o  queria  elevar  um  principe  extra- 
nho  e  que  lhe  negava  seu  rei  natural,  a  quem 
longamente  servira.  Declarou  ao  papa  que  a 
sua  tenção  era  obedecer  e  sair  immediatamen- 
te  de  Roma  para  Lisboa.  Na  verdade  o  sacri- 
fício não  era  tão  grande  como  pelas  apparen- 
cias  se  poderia  conjecturar.  Nos  vivos  desejos 
que  tinha  de  obstar  ao  engrandecimento  do  seu 
ministro  juncto  da  cúria,  D.  João  iii  não  pou- 
para as  promessas  de  ho  ^  as  e  benefícios, 
promessas  que,  aliás,  mal  se  cumpriram.  Che- 
gando a  Portugal,  D.  Miguel  da  Silva  foi,  na 
verdade,  eleito  bispo  de  Viseu  e  nomeiado 
para  o  eminente  cargo  de  escrivão  da  purida- 
de (1).  Exercia-o  então  D.  António  de  Noro- 


(1)  A  historia  da  primeira  epocha  da  vida  do  ce- 
lebre D,  Miguel  da  Silva  encontra-se,  não  tanto  na 
Lusitânia  Purpurata  de  Macedo,  no  opúsculo  de 
Pereira  Portugueses  nos  Concilias  Geraes,  ou  na 
Memoria  sobre  os  Escrivães  da  Puridade  de  Tri- 
goso,  trabalhos  assas  imperfeitos,  como  nos  breves 
de  7  e  30  de  julho  de  1525  e  de  23  de  março  de  1526, 
no  M.  26  de  Bulias  N.»^  21,  22,  23,  e  nas  cartas  do 
mesmo  D.  Miguel  e  de  D.  Martinho  de  Portugal,  no 
C.  Chronol.,  P    I,  M.  30,  N.o^  55,  59,  61,  62,  63,  66,  e 


336  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

nha,  conde  de  Linhares,  cunhado  do  bispo; 
mas  este,  de  cerlo  modo,  reputava  já  sua 
aquella  dignidade,  por  ter  sido  escrivão  da 
puridade  de  D.  João  iii  quando  príncipe.  Con- 
firmado nella,  na  occasião  em  que  fora  revo- 
cado,  porque  elrei  se  compromettera  a  isso 
com  Clemente  vii,  logo  que  chegou  á  corte 
quiz  exercer  pessoalmente  o  officio.  O  cunha- 
do valido  e  ainda  parente  do  soberano,  dispu- 
tou-lhe  a  posse,  d'onde  procederam  entre  os 
dous  contendas  que  se  protrahiram  por  alguns 
mezes.  A  dignidade  episcopal  não  lhe  custou 
menos  dissabores:  a  apresentação  ao  papa,  a 
impetração  da  bulia  para  dispor  de  vários  be- 
nefícios da  sua  sé,  tudo  lhe  foi  embaraçado 
por  muito  tempo.  Espalhavam-se  acintemente 
rumores  contra  o  seu  procedimento  moral, 
que,  de  feito,  podia  não  ser  dos  mais  severos, 
tendo    vivido   em  verdes   annos  na  corte  de 


M.  32,  N.°s  56  e  60  no  Arch.  Nac,  Lan  -a,  também, 
grande  luz  sobre  essa  primeira  epocha  uma  espécie 
do  manifesto  publicado  por  D.  Miguel  em  resposta 
á  carta  regia  de  23  de  janeiro  de  1542,  pela  qual  foi 
banido  do  reino,  resposta  que  temos  de  aproveitar 
largamente.  A  biographia  do  cardeal  da  Silva  que 
mais  rasleja  a  verdade,  posto  que  ás  vezes  seja  ine- 
xacta, é  a  de  Fr.  Luiz  de  Sousa,  nos  Annaes  de  D. 
João  III,  P.  2,  cap.  9. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  337 

Leão  X.  Faziam- se,  além  disso,  inquéritos  ex- 
tra-officiaes  tendentes  a  desacreditá-lo,  sendo 
o  secretario  António  Carneiro,  que  principal- 
mente o  hostilisava,  adversário  de  temer.  Obri- 
gado a  abandonar  as  suas  esperanças  do  car- 
dinalato,  dando-se-lhe  com  tão  visíveis  signaes 
de  repugnância  as  compensações  que  o  pró- 
prio Clemente  vii  pactuara  para  elle,  todas  es- 
sas demonstrações  de  malevolencia  deviam 
azedar-lhe  o  animo,  e  tornar  perennes  os  sen- 
timentos entre  o  bispo  ministro  e  os  seus  ini- 
migos, que  nunca  mais  o  deixaram  readqui- 
rir a  confiança  do  soberano.  Effectivamente, 
exercendo  D.  Miguel  da  Silva  as  funcções  ex- 
ternas e  oficiaes  de  primeiro  ministro,  Antó- 
nio Carneiro  e,  depois,  seu  filho  Pedro  de  Al- 
cáçova foram  sempre  aquelles  por  cujas  mãos 
passavam  os  negócios  de  maior  vulto,  e  de 
quem  elrei  fiava  os  segredos  mais  importan- 
tes do  estado  (1). 

A  accessão  de  Paulo  iii  ao  sólio  pontifício 
parece  ter  renovado  no  bispo  de  Viseu  os 
desejos  e  as  esperanças  de  revestir  a  purpu- 
ra.  No   tempo   em   que  estivera  em  Roma, 


(1)  Decreto  contra  il  signore  D  Michela  da  Silva 
et  Risposta  ai  detto  Decreto,  etc,  na  Symm.,  vol.  29, 
f.  83  e  segg. 

TOMO  II  22 


338  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

havia  contrahido  com  o  novo  papa,  então  car- 
deal Farnese,  estreita  amizade,  e  as  humilha- 
ções porque  o  faziam  passar  eram  incitamento 
assas  forte  para  se  aproveitar  das  circums- 
tancias  que  o  favoreciam.  Não  é  de  suppor 
que  a  affeição  de  Paulo  iii  fosse  tão  viva,  que 
se  lembrasse  de  um  estrangeiro  e  ausente 
para  o  associar  ao  sacro  collegio :  o  mais  cri- 
vei é  que  o  bispo  ministro  sollicitasse  a  pro- 
moção. Fosse  como  fosse,  é  certo  que  em  de- 
zembro de  1539  o  papa  creou  D.  Miguel  car- 
deal, reservando  a  sua  nomeiação  in  petto, 
isto  é,  deixando  de  a  publicar,  visto  que  D. 
Miguel  estava  ausente  (1).  Em  breve,  um  suc- 
cesso  imprevisto  pareceu  vir  facilitar  ao  bispo 
de  Viseu  a  fruição  da  nova  dignidade.  Já 
dissemos  que  a  principal  causa  por  que  D. 
João  III  oppunha  viva  resistência  á  elevação 
ao  cardinalato  de  qualquer  dos  seus  súbditos 
era  a  invencível  repugnância  que  tinha  a  que 
algum  delles  podesse  hombreiar  com  o  infante 


(1)  OJdoino,  nas  addições  a  Ciacconio  (Vitae  Pon- 
tif.  vol.  3,  col.  676),  affirma  que  dos  monumentos  do 
Vaticano  consta  ter  sido  feita  a  eleição  de  D.  Miguel 
da  Silva  no  consistório  secreto  de  12  de  dezembro 
de  1539,  conservando-se  in  petto  até  2  de  dezembro 
de  1541. 


HISTORIA   DA  INQUISIÇÃO  339 

D.  Aífonso.  A  morte,  porém,  deste,  occorrida 
em  abril  de  1540,  devia  destruir  esse  emba- 
raço. Não  succedeu  assim.  Tomou  D.  Miguel 
por  pretexto  para  se  dirigir  a  Roma  o  cha- 
mamento que  o  papa  fizera  para  o  concilio 
que  se  delineava ;  mas  ao  sollicitar  a  licença 
d'elrei  recebeu  uma  recusa  positiva.  Negando- 
Ihe  a  permissão  pedida,  D.  João  iii  dava-lhe 
de  conselho  que  se  fingisse  doente;  mas, 
como  era  de  prever,  o  animo  do  prelado 
achava-se  naquella  conjunctura  possuído  do 
mais  profundo  horror  a  mentir  a  Deus  e  ao 
seu  vigário  na  terra.  Todavia  elrei,  que,  affei- 
çoado  ás  cousas  ecclesiasticas,  não  era,  ape- 
sar da  sua  pouca  educação  litteraria,  inteira- 
mente hospede  nas  subtilezas  e  distincções 
casuísticas,  observou-lhe  que,  tendo  elle  pade- 
cido uma  longa  doença,  não  seria  precisa- 
mente mentir  dizer  para  Roma  que  ainda  se 
considerava  enfermo  (1).  A  estes  conselhos 
para  practicar  uma  fraude  que  não  convinha 
ao  bispo  oppôs  elle  formal  resistência,  decla- 


(1)  «mi  disse  ch'io  mi  fingessi  ammalalo,  ai  clie 
risposi. . .  che  noa  volero  mentire  a  Dio  né  ai  Papa, 
e  dicendo-mi  ch'io  era  stato  molto  tempo  ammalato, 
e  che  uon  era  mentire,  risposi,  etc.»:  Risposta  di  D. 
Michele  etc,  1.  cit.,  f.  92  v 


340  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

rando  que  nenhuma  consideração  o  obrigaria 
a  ficar  em  Portugal  quando  outro  era  o  seu 
dever.  Para  obviar  ás  intenções  manifestadas 
pelo  prelado  ministro,  espalhou-se.  e  talvez 
sem  calumnia,  que  este  communicara  para 
Roma  o  que  se  passava.  Verdadeira  ou  si- 
mulada, a  cólera  d'elrei  subiu  então  ao  ultimo 
auge.  D  eram- se  ordens  secretas  para  o  bispo 
ser  trazido  de  Viseu,  onde  se  achava,  prepa- 
rando-se  entretanto  uma  torre  para  nella  se 
lhe  dar  pouco  agradável  hospedagem;  mas 
elle,  que  andava  presentido,  desappareceu  certa 
noite  dos  paços  episcopaes  e,  saindo  do  reino, 
dirigiu-se  a  Itália,  aonde  o  chamavam  os  seus 
ambiciosos  desígnios  (1).  Sabida  a  nova,  es- 
creveu-se  logo  a  Santiquatro  e  a  Christovam 
de  Sousa,  que  succedera  a  D.  Pedro  Masca- 
renhas na  embaixada  de  Roma,  para  que  nar- 
rassem ao  papa  aquelle  extranho  successo  e 
lhe  requeressem  que,  se  o  fugitivo  prelado  ahi 
chegasse,  não  lhe  desse  ouvidos  e  nem  se- 
quer o  recebese.  Após  estas  cartas,  foi  en- 
viado   um    agente    extraordinário,  Jorge   de 


(1)  Ibid.  — Instrucções  sem  data  (talvez  a  Baltha- 
sar  de  Faria)  acerca  dos  negócios  do  bispo  de  Viseu 
e  da  Inquisição:  CoUecção  de  Mss,  de  S.  Vicente, 
vol.  3,  f.  134  e  segg.,  no  Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  341 

Bairros,  para  tractar  especialmente  daquelle 
assumpto.  Emquanto  se  tomavam  estas  pro- 
videncias hostis,  ordenava-se  a  partida  de  D. 
Jorge  da  Silva,  filho  do  conde  de  Portalegre 
e  sobrinho  do  fugitivo  prelado,  para  que  tra- 
balhasse em  reduzi-lo  a  voltar  á  pátria.  Le- 
vava cartas  d'elrei  para  D.  Miguel  redigidas 
por  Pedro  de  Alcáçova,  as  quaes  eram  um  mo- 
delo de  dissimulação.  Com  doces  palavras 
tentavam  convencê-lo  de  que  commettera  uma 
imprudência  em  fugir  a  occultas  do  reino,  e 
de  que  devia  voltar,  ao  menos  para  guardar 
as  apparencias  e  como  prova  de  sujeição,  po- 
dendo depois  sair  livremente,  conforme  lhe 
aprouvesse.  Para  aífastar  todos  os  receios 
mandava-se-lhe  uma  carta  de  seguro  solemne 
em  que  se  lhe  affiançava  a  vida  e  a  liberda- 
de. Conhecia,  porém,  o  bispo  a  corte  de  D. 
João  m,  tinha  amigos  poderosos  no  seu  paiz, 
e  d'aqui  recebia  avisos  do  que  se  tramava.  O 
sobrinho  havia-o  encontrado  em  Plasencia,  e 
para  D.  Miguel  retroceder  era-lhe  forçoso 
passar  pelos  estados  de  Carlos  v.  Sabia  que 
o  imperador  fora  prevenido  pelo  cunhado 
acerca  da  sua  fuga,  sendo  o  embaixador  cas- 
telhano quem  mais  trabalhava  contra  elle  em 
Roma.  Sabia  também  que  os  ministros  e 
magistrados  rio  império  não  eram  obrigados 


342  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

a  respeitar  um  salvo-conducto  só  valido  em 
Portugal.  Effectivamente,  as  ordens  para  o 
prenderem  tinham-se  enviado  por  toda  a  par- 
te (1).  A'  astúcia  oppôs  uma  audácia  que  nãQ 
excluia  a  dissimulação.  Escreveu  a  D.  João  iii, 
declarando  que  com  rendida  submissão  vol- 
taria á  pátria,  se  lhe  dessem  carta  de  seguro, 
não  d'elrei,  de  quem  se  não  temia,  mas  dos 
seus  inimigos.  Mais  de  uma  vez  fora  amea- 
çado de  morte,  até  na  presença  do  monarcha, 
por  pessoas  a  quem  não  podia  dar  condigna 
i-esposta  (2).  A  sua  vida  carecia  de  segurança; 
a  sua  honra  de  desaggravo.  Os  apontamentos 
das  providencias  que  requeria  para  regressar 
eram  taes,  que  pareciam  impossíveis  de  con- 
ceder :  o  seguro  real  seria  contra  todos  os 


(1)  Risposta  de  D.  Michele,  1.  ciL.,  f.  ')7. 

(2)  Acaso  eram  os  próprios  infantes ;  «che  uno  di 
quelli  miei  nemici  in  presenza  di  S.  A.  e  senza  re- 
verenza  alcuna,  aveva  detto  contra  di  me  clie  un 
giorno  aveva  a  diventar  donnola  per  iscanare  un 
vescovo,  e  che  non  l'aveva  fatio  insino  aJlora,  non 
per  rispetto  delle,  scommuniclie,  ma  di  S.  M.,  e  che 
ancora  non  sapeva  qual  che  farebbe;  e  che  altro 
disse  a  me,  parlandomi  dei  mio  venire  a  Roma  ai 
conciho,  che  se  io  mi  partivo,  egh  con  sue  proprie 
mani  mi  ammazzarebbe:  e  erano  persone  a  cht  to 
non  potevo  risponderev :  Ibid.  f.  98 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  343 

que  podiam  maltractá-lo  sem  distincção  de 
jerarchia ;  os  infantes  escrever-Ihe-hiam  com 
promessas  de  se  lhe  dar  satisfação  e  com  to- 
das as  demonstrações  de  benevolência  ;  os 
seus  calumniadores  seriam  punidos ;  elrei  não 
faria  indagações  acerca  do  seu  procedimento, 
nem  daria  ouvidos  aos  seus  emulos ;  elle  iria 
residir  na  sua  diocese,  expulsando- se  de  Vi- 
seu os  individuos  que  designava ;  ausente  da 
corte,  continuaria  a  ser  escrivão  da  puridade, 
servindo  em  seu  logar  quem  elle  quizesse  (6). 
Emfim,  exigia  quantas  cousas  podiam  excitar 
o  animo  irritado  d'elrei  a  uma  negativa  com- 
pleta. Succedeu,  porém,  o  contrario.  Não  tar- 
dou a  receber  um  alvará,  em  que  se  lhe  con- 
cedia quanto  mostrava  desejar  Acompanha- 
vam o  diploma  cartas  delrei  e  dos  infantes, 
nas  quaes  não  se  poupavam  as  expressões 
de  benevolência.  Da  mesma  linguagem  se 
usava,  falando  do  bispo,  com  seu  irmão  o 
conde  de  Portalegre.  Tudo,  portanto,  devia 
mover  D.  Miguel  a  regressar  á  pátria ;  e  effe- 
ctivamente,  D.  Jorge  partiu  de  Plasencia  com 
cartas  de  seu  tio  em  que  annunciava  que  volta- 
ria com  a  maior  brevidade.  Nem  a  tenção,  po- 


(1)  Instrucções  sem  data,  na  Collecção  deMss.de 
S.  Vicente,  1.  cit. 


344  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

rém,  d'elrei  era  cumprir  as  amplas  concessões 
que  fizera,  nem  a  do  bispo  vir  metter-se  nas 
mãos  dos  seus  inimigos.  Mentia-se  de  parte  a 
parte.  Após  D,  Jorge  da  Silva,  saíra  de  Portugal 
para  Itália  um  certo  capitão  Correia,  munido 
de  avultadas  sommas  e  acompanhado  de  sol- 
dados e  espias  disfarçados  que  seguiam  D. 
Miguel  por  toda  a  parte.  Esse  homem  fizera 
revelações  imprudentes  acerca  de  quem  o 
enviava,  e  acerca  das  ordens  que  recebera 
para  o  bispo  ser  assassinado  (1).  Se  acredi- 
tarmos o  que  este  depois  dizia,  aquelle  sicário 
fora  assalariado  por  um  dos  infantes  por  or- 
dem d'elrei  (2).  Saindo  de  Plasencia  para  Bo- 
lonha, Correia  seguiu-o,  persuadido  de  que 
elle  ignorava  as  suas  intenções.  O  prelado  ti- 
nha-se,  porém,  prevenido,  e  o  assassino  an- 
dava vigiado.  Na  carta  a  elrei,  enviada  por 
mão  do  sobrinho,  D.  Miguel  alludira  com  arte 
a  esse  facto,  attribuindo  tão  indigno  procedi- 


(1)  Risposta  de  D.  Michele,  1.  cit,  f.  100  v.  e  101. 

(2)  «mas  ainda  alevantou  que  o  Ifante  o  mandava 
matar  por  ordenança  de  S.  A.»:  Instrucrões  sem 
data,  no  Mss.  de  S.  Vicente.  — No  manifesto  de  D. 
Miguel  da  Silva  diz-se  vagamente  que  Correia  fora 
mandado  por  pessoa  que  assistia  aos  consellios  do 
rei. 


HISTORIA   DA  INQLilSIÇÃO  345 

mento,  não  a  elrei,  mas  aos  seus  implacáveis 
inimigos,  e  pedindo  ao  monarcha  lhe  servisse 
de  escudo  quando  se  achasse  de  volta,  por- 
que quem  tão  longe  o  mandava  assassinar 
não  lhe  pouparia  a  vida  em  Portugal.  Pas- 
sando por  Bolonha  naquella  conjunctura  o. 
bispo  de  S.  Thomé,  frade  dominicano  e  pes- 
soa bemquista  na  corte,  o  foragido  prelado 
encarregou-o  de  contar  em  Lisboa  o  que  vira 
e,  por  assim  dizer,  palpara.  Mais  de  uma  vez 
D.  Miguel  tivera  em  seu  poder  o  assassino,  e 
elle  próprio  lhe  dera  fuga  para  salvar  a  honra 
da  coroa  de  Portugal  (1).  Não  respondeu  elrei 
directamente  ás  cartas  do  bispo,  mas  ordenou 
ao  conde  de  Portalegre  e  ao  arcebispo  de 
Lisboa  que  lhe  escrevessem,  declarando-lhe 
que  elle  achava  justos  os  seus  temores,  e 
que  daria  todas  as  providencias  necessárias 
para  o  defender  de  quaesquer  ciladas.  Longe 
estava  D.  Miguel  da  tentação  de  nellas  cahir ; 
mas  continuou  a  dar  demonstrações  em  con- 
trario, demonstrações  que  deviam  justificá-lo 
depois.  Pediu  um  salvo-conducto  para  passar 
pelos  estados  de  Carlos  v :  negou-lh'o  o  im- 
perador. Contava  com  isso.  Esta  negativa,  que 


(1)  Risposta  de  D.  MicheJe,  i.  cit. 


346  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

tinha  por  fundamento  as  soUicitações  feitas 
pela  corte  de  Portugal,  provava  que  as  pro- 
messas, as  concessões,  a  linguagem  benévola 
desta  não  passavam  de  laços  armados  á  sua 
credulidade.  De  accordo,  provavelmente,  com 
o  papa,  partiu  então  para  Veneza,  onde  devia 
residir  emquanto  não  chegava  a  conjunctura 
opportuna  para  ser  publicamente  proclamado 
cardeal  (1). 

Estas  mutuas  mensagens  e  respostas,  e  as 
intrigas  subterrâneas  de  que  eram  acompa- 
nhadas protrahiram-se  durante  os  últimos 
mezes  de  1540  e  por  grande  parte  do  anno 
seguinte.  Com  os  avisos  de  Portugal,  Santi- 
quatro,  o  embaixador  Christovam  de  Sousa  e 
Jorge  de  Bairros  haviam  feito  todas  as  de- 
monstrações para  obstar  ao  que,  talvez,  sup- 
punham  apenas  uma  pretensão  de  D.  Miguel 
da  Silva  e  que,  na  realidade,  era  um  facto 
consumado,  embora  ainda  não  offlcialmente 
conhecido.  A's  representações  por  parte  de 
D.  João  III,  em  que  se  lhe  narrava  a  fuga  do 
bispo  e  se  lhe  manifestavam  as  benévolas  in- 
tenções do  monarcha  acerca  delle,  o  papa 
respondera  acceitando  também  um  papel  na- 


(1)  Ibid.  —  Instrucç.  sem  data,  1.  cit. 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  347 

quella  comedia  de  mútuos  enganos,  em  que, 
aliás,  ninguém,  provavelmente,  era  enganado. 
Encarecendo  o  seu  profundo  pezar  pelo  pro- 
cedimento do  prelado,  promettera  fazer  os 
últimos  esforços  para  o  persuadir  a  voltar  á 
pátria  (1).  E'  de  crer  que  este  compromisso 
de  Paulo  iii  fosse  o  principal  motivo  de  D. 
Miguel  da  Silva  ir  estabelecer  por  algum 
tempo  a  sua  residência  em  Veneza.  Todavia, 
naquella  lucta  de  dissimulação  e  deslealdade, 
os  ministros  de  D.  João  iii  tinham  irreflexiva- 
mente  dado  armas  ao  seu  adversário,  á  força 
de  pretenderem  illudi-lo  para  o  colherem  ás 
mãos.  Nas  cartas  escriptas  em  nome  d'elrei 
havia-se  reconhecido  a  legitimidade  de  todos 
os  queixumes  do  bispo,  e  dado  um  testemu- 
nho imprudente  dos  seus  dotes  pessoaes  e 
dos  seus  longos  serviços,  ao  passo  que  o 
ódio  do  soberano  se  dissimulava  debaixo  das 
expressões  de  illimitada  aífeição.  Transmit- 
tidas  para  Roma,  estas  cartas,  que  desmen- 
tiam a  linguagem  dos  agentes  de  Portugal, 
tiravam  toda  a  força  ás  suas  supplicas  (2). 
Na  própria  carta  dirigida  ao  papa,  as  queixas 


(1)  Breve  de  11  de  outubro  de  1540,  no  M.  25  de 
Bulias  N."  51,  no  Ar  eh.  Nac. 

(2)  Instrucç.  sem  data,  1.  cit 


348  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

misturavam-se  com  as  promessas  de  honras 
e  benefícios  para  o  foragido.  Qual  era  a  con- 
sequência de  tudo  isso  ?  Era  que  a  purpura 
assentava  bem  nos  hiombros  de  um  homem 
tào  digno  e  que  tanto  se  desejava  tornasse 
para  Portugal.  O  que  principalmente  obstava 
ás  ambições,  já  meias  realisadas,  de  D.  Mi- 
guel, eram  as  insinuações  de  Carlos  v  e  as 
diligencias  do  seu  ministro  em  Roma,  opposi- 
ção  muito  mais  seria  do  que  a  d'elrei,  numa 
corte  que,  sobretudo,  respeitava  as  conve- 
niências politicas  (1). 

Ao  passo  que  se  agitava  esta  questão,  in- 
significante em  si,  mas  que  a  ambição  de  um 
velho  clérigo  e  o  orgulho,  ou  antes  a  vaidade, 
d'elrei  e  dos  seus  irmãos  davam  uma  impor- 
tância que  ella  não  tinha,  tractava-se  na  cúria 
romana  negocio  mais  grave.  Os  prasos  limi- 
tados a  D.  Pedro  Mascarenhas,  para  se  con- 
cluir um  accordo  entre  elrei  e  o  papa  acerca 
da  Inquisição  e  dos  conversos,  tinham  pas- 
sado havia  muito  nos  meiados  de  1541,  sem 
qae  se  chegasse  a  conclusão  alguma.  Ao  me- 
nos, como  já  advertimos,  não  se  encontram 


(1)  Carta  de  Christovam  de  Sousa  a  elrei  de  8  de 
dezembro  de  1541 :  Collecção  de  Mss.  de  S.  Vicente, 
vol    1,  f.  139,  no  Arch.  Nac. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  349 

vestígios  nem  de  negociações  nem  de  actos 
pontifícios  relativos  ao  assumpto  desde  a  par- 
tida de  D.  Pedro  Mascarenhas  de  Roma  na 
primavera  de  1540  até  essa  epocha.  A  intole- 
rância caminhava  em  Portugal  desassom- 
brada. Entretanto,  os  christãos-novos,  ater- 
rados pelo  desenvolvimento  que  tomara  a  per- 
seguição, concentravam  todos  os  seus  esfor- 
ços em  obterem  o  único  meio  de  salvação  ou, 
pelo  menos,  de  allivio,  a  que,  na  sua  situação, 
podiam  aspirar.Não  deixavam,  comtudo,  de  tam- 
bém insistir  na  expedição  da  bulia  declaratória 
que  não  chegara  a  intimar-se,  acrescentando-se- 
-Ihe  novas  e  mais  terminantes  provisões,  e  de 
sollicitar  que  se  abolissem  por  uma  vez  os 
confiscos,  o  que  tudo  lhes  promettera  Paulo  iii 
por  intervenção  de  Capodiferro  (1).  Não  se 
ignoravam  em  Portugal  estas  promessas  e  aque- 
las diligencias,  porque  o  próprio  papa  assim 
o  annunciara  a  Christovam  de  Sousa,  conce- 
dendo-lhe  apenas  dous  mezes  de  espera  para 
que  podesse  communicar  á  sua  corte  a  reso- 
lução em  que  estava  de  attender  ás  supplicas 
dos  perseguidos.  Deram-se,  por  isso,  mais 
apertadas  instrucções  ao  embaixador  para  se 


[1}  Memonale:  Symm :  vol.  31,  f.  59  v. 


350  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

oppor  á  nomeiação  de  novo  núncio,  as  quaes 
chegaram  a  Roma  nos  princípios  de  agosto, 
na  conjunctura  em  que  o  papa  ia  partir  para 
Lucca,  onde  havia  de  encontrar-se  com  o  im- 
perador, para  tractarem  de  vários  assumptos 
politicos  (1).  Era  preciso  aproveitar  o  tempo. 
Numa  audiência  que  obteve,  Christovam  de 
Sousa  leu  ao  pontífice,  vertendo-as  ora  em 
latim  ora  em  italiano,  as  instrucções  que  re- 
cebera do  seu  soberano  acerca  da  enviatura 
do  núncio  (2).  O  papa,  acabada  a  leitura  e 
ouvidas  as  ponderações  do  embaixador,  er- 
gueu-se  visivelmente  agastado  e,  passeiando 
pelo  aposento,  repetia  o  signal  da  cruz.  Na 
sua  opinião,  era  o  demónio  quem  inspirava 


(1)  Pallaviciao,  L.  4,  c.  16.— C.  de  Clirist.  de  Sousa 
de  9  de  dezembro  de  1541 :  Collecção  de  S  Vicente, 
vol.  1,  f.  149  V. 

(2)  E  curioso  o  que  a  este  respeito  se  lê  na  carta 
de  Christovam  de  Sousa  de  9  de  dezembro :  «Jhe 
declarey  ás  vezes  em  latim  ho  que  me  parecia  que 
S.  S.  não  entendia  bem ;  e  a  necessidade  me  forçou 
ha  saber  ha  lingoagem  italiana,  porque  crea  V.  A. 
que  ametade  não  emtendem  do  que  se  lhe  fala  em 
português,  e  quanto  melhor  falado  he  ou  escrito 
muito  menos  o  alcançam ,  e  se  quasi  ha  sustancia 
do  que  se  escreve  tomam,  ao  menos  do  primor  de 
bem  escrever  estam  bem  longe.,, 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  351 

tão  dezarrazoada  insistência  (1).  A  nuncia- 
turam  devia  pedi-la  de  Portugal,  em  vez  de  a 
repellir ;  porque  alli  achavam  prompto  des- 
pacho com  menos  dispêndio  os  que  sollicita- 
vam  graças  da  sé  apostólica.  Pelo  que  dizia 
respeito  á  Inquisição,  afíirmava  que  ninguém 
podia  duvidar  do  direito  e  dever  que  elle  ti- 
nha de  vigiar,  por  um  delegado  seu,  o  proce- 
dimento dos  inquisidores,  contra  os  quaes 
tantos  queixumes  subiam  ao  sólio  pontifício ; 
que  a  appelação  para  o  núncio  era  inevitável, 
e  que  lhe  cumpria  ter  tanta  mais  vigilância 
em  impedir  as  violências  e  injustiças  nasci- 
das do  ódio  dos  christãos-velhos  contra  os 
novos,  quanto  era  certo  que  a  responsabili- 
dade moral  dos  actos  da  Inquisição  recahia 
principalmente  sobre  elle,  que  a  instituirá.  A 
estas  ponderações  accrescentou  um  sem  nu- 
mero de  outras  que  o  faziam  considerar  a 
residência  de  um  núncio  em  Portugal  como 
questão  em  que  lhe  não  era  licito  transigir. 
Seguindo  as  tradições  do  seu  antecessor, 
Christovam  de  Sousa  replicou  audazmente ; 
porque  estava  bem  informado  dos  motivos 
que  induziam  o  papa  a  tanta  obstinação. 
Diogo  António,  que  não  procedera,  segundo 


(1)  «elle  avia  que  isto  era  obra  do  imigo»:  Ibid. 


352  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

parece,  com  mais  limpeza  de  mãos  do  que 
Duarte  da  Paz,  fora  substituído  como  procu- 
rador dos  christãos-novos  por  um  certo  Diogo 
Fernandes  Neto,  individuo  de  maior  confian- 
ça. A  este  subministravam  os  chefes  da  raça 
hebréa  em  Portugal  avultadas  quantias  por 
intervenção  de  Diogo  Mendes,  christão-novo 
riquíssimo,  estabelecido  em  Flandres.  O  car- 
deal Parisio,  que,  sendo  ainda  professor  em 
Bolonha,  escrevera  largamente  a  favor  dos 
hebreus  portugueses,  era  agora  o  protector 
delles,  e  o  leitor,  que  já  conhece  quaes  fossem 
os  costumes  da  cúria  romana,  adivinha  por 
certo  as  causas  que  o  moviam  a  protegê-los. 
Fernandes  tinha-lhe  prometido  avultadas  quan- 
tias no  caso  de  se  obter  o  restabelecimento 
da  nunciatura,  e  o  próprio  Paulo  iii  devia  re- 
ceber por  isso  oito  ou  dez  mil  cruzados,  ao 
passo  que  o  futuro  núncio  desfructaria  uma 
pensão  mensal  de  duzentos  e  cincoenta  cru- 
zados (1).  Taes  eram  os  contractos  repugnan- 


(1)  «tem  ofíerecido  darem-lhe  os  chrislãos- novos 
(ao  nuncioj  duzentos  e  cincoenta  cruzados  cada 
mez,  e  dá  ao  papa  oyto  ou  dez  mil;  não  afirmo 
quantos  dá,  mas  sei  que  dá:  e  asi  a  este  Pariseo.» 
C.  de  Chrislovam  de  Sousa  de  2  de  dezembro  de 
1541 :  Collecção  de  S.  Vicente,  vol.  1,  f.  135  v. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  353 

tes  que  inspiravam  a  renovada  piedade  da 
cúria  romana  pelas  victimas  da  Inquisi- 
ção. 

Esses    actos    de    flagrante   immoralidade, 
occultos  aos  olhos    do  vulgo,    mas    sabidos 
pelo  embaixador  português,  habilitavam  este 
para  responder  com    energia   ás   estudadas 
ponderações    de    Paulo    iii.   Tinha   verdades 
amargas   que  oppor  aos  seus  pretensos  es- 
crúpulos. Lembrou-lhe  que  havia  muitos  indi- 
viduos  na  cúria  que  soUicitavam  o  cargo  de 
núncio  em  Portugal,  e  que  por  isso  era  licito 
suspeitar  que  influia  mais  o  interesse  privado 
do   que  o  da  justiça  no  animo  daquelles  que 
sustentavam  a  conveniência  de  se  manter  em 
Lisboa  um  delegado  apostólico.  Os  pretenden- 
tes não  ignoravam  que  Sinigaglia  levara  para 
Itália  o  melhor  de  trinta  mil  cruzados,  e  que 
outro  tanto   teria   levado   Capodiferro,  se  as 
tempestades   e  os   corsários   turcos  lhe  não 
houvessem  destruido  o  fructo  das  suas  rapi- 
nas. Interrompido  pelo  papa,  que  tentava  de- 
fender a  honra  dos  dous  ex- núncios,  Christo- 
vam  de   Sousa  reduziu-o  ao  silencio,  recor- 
dando-lhe    que    os    actos    de    corrupção   de 
ambos  eram  tão  notórios  que  não  admittiam 
duvida,  e   que  no   próprio   tribunal  da  Rota 
romana    fora    Sinigaglia    inhibido    das   suas 

TOMO  IT  23 


354  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

íuncções  e  excommungado  por  motivos  que, 
de  certo,  não  eram  para  elle  honrosos.  A  au- 
diência ia  tomando  o  caracter  de  altercação 
violenta.  A's  allusões  pungentes  que  saíam  da 
boca  do  embaixador  respondia  o  papa  com  a 
contumácia  que  era  própria  do  seu  caracter 
e  que  neste  caso  parecia  legitimar  as  suspei- 
tas que  sobre  elle  se  lançavam.  As  únicas 
concessões  que  fazia  eram  enviar  o  núncio 
só  temporariamente  e  limitar-lhe  os  poderes. 
Neste  apuro,  Christovam  de  Sousa  procurou 
reduzi-lo  pelo  temor.  Pediu-lhe  licença  para 
expor  em  consistório  publico  os  motivos  por 
que  o  governo  português  se  oppunha  á  en- 
viatura  do  núncio.  Tinha  instrucções  e  avisos 
de  Portugal,  além  dos  que  lhe  patenteiava, 
para  fundamentar  perante  o  sacro  collegio  a 
sua  insistência.  Ao  mesmo  tempo  declarou- 
Ihe  formalmente  que,  sendo  o  principal  pre- 
texto que  se  tomava  para  enviar  a  Lisboa  um 
delegado  apostólico  os  queixumes  contra  a 
Inquisição,  o  seu  soberano  preferia  a  suspen- 
são do  tribunal  a  acceitar  o  agente  de  Roma. 
Mas  esta  suppressão  absoluta,  acabando  a 
contenda  entre  elrei  e  a  raça  hebréa,  seccava 
uma  fonte  caudal  de  proventos  para  a  cúria, 
ao  passo  que  a  publicidade  da  discussão, 
para  que  appelava  Christovam  de  Sousa,  era 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  355 

O  que  mais  temia  o  papa  (1).  Guardando  si- 
lencio por  largo  espaço  e  vacillando  no  meio 
de  encontrados  impulsos,  Paulo  iii  despediu, 
emfim,  o  embaixador,  promettendo-lhe  que 
abandonaria  os  seus  designios,  se  os  cardeaes 
que  estava  resolvido  a  consultar  sobre  o  as- 
sumpto entendessem  que  nesse  acto  de  con- 
descendência não  faltava  aos  seus  deveres  de 
supremo  pastor.  Sabendo  que  os  membros  do 
sacro  coUegio  com  quem  o  papa  consultava 
então  semelhantes  matérias  eram  os  cardeaes 
Carpi,  Teotino  e  Parisio,  Christovam  de  Sousa 
recorreu  a  todos  os  meios  para  os  tornar  fa- 
voráveis, bem  como  o  cardeal  Farnese.  Ao 
mesmo  tempo  escrevia  a  Santiquatro,  que 
então  se  achava  em  Pistola,  pintando-lhe  com 
vivas  cores  o  perigo  da  situação,  perigo  com- 
mum  para  elles,  cujos  interesses,  como  pe- 
nitenciario-mór,  padeceriam  igualmente  com 
o  restabelecimento  da  nunciatura.  Pucci  diri- 


(1)  «e  o  cardeal  Santiquatro  me  disse  que  nenhúa 
cousa  mais  atalhara  ao  papa  que  dizer-lhe  eu  que 
pois  nhuncio  hia  por  caso  da  Inquisição,  que  a  ti- 
rasse e  não  mandasse  niiuncio,  e  também  com  di- 
zer-lhe que  me  desse  licença  falar-lhe  em  consistó- 
rio pruvico  cousa  cpie  elle  mais  areçêa»:  C.  de 
Christovam  de  Sousa  de  9  de  dezembro  de  1541, 
1.  cit. 


356  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

giu  immediatamente  uma  carta  a  Farnese  e 
outra  ao  papa,  a  qual  lhe  devia  ser  entregue 
pelo  embaixador.  Carpi,  Teotino  e  Farnese 
promettiam  a  este  inteiro  favor,  e  o  próprio 
Parisio  lhe  fazia  crer  que  não  se  opporia  for- 
malmente ás  suas  pretensões.  Emfim  o  pon- 
tífice, partindo  de  Roma  nos  últimos  dias  de 
agosto,  assegurava  a  Christovam  de  Sousa 
que  em  Lucca  tomaria  uma  resolução  defini- 
tiva sobre  a  questão  da  nunciatura  (1). 

Entretanto  o  procurador  dos  conversos  não 
estava  ocioso.  Tanto  em  Roma,  como  se- 
guindo Paulo  III  na  sua  viagem,  não  cessava 
de  lhe  representar  publicamente  contra  as  ty- 
rannias  dos  inquisidores,  exaggerando-as.  Se- 
gundo affirmava,  as  fogueiras  ardiam  de  con- 
tinuo, e  as  masmorras  estavam  atulhadas  de 
milhares  de  presos.  Valera-se  o  papa  daquel- 
las  affirmativas  para  tornar  numa  questão  de 
consciência  a  enviatura  do  núncio.  Negava, 
porém,  o  embaixador  o  facto,  e  até  alguns 
conversos,  entre  os  quaes  se  contava  Ayres 
Vaz,  o  astrólogo,  confessavam  haver  exagge- 
ração  nas  queixas  de  Diogo  Fernandes  (2). 


(1)  Ibid. 

(2)  Carta  de  Christovam  de  Sousa  de  2  de  de- 
zembro, 1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  357 

No  meio  das  intrigas  que  resultavam  dessa 
lucto  e  que  a  protrahiam,  o  papa  levava  após 
si  o  embaixador  de  cidade  em  cidade  através 
dos  estados  pontifícios,  sem  resolver  cousa 
alguma  e  sem,  ao  menos,  o  escutar  Era  me- 
lindrosa a  sua  situação.  Pretendia  e  esperava 
obter  para  seu  neto,  o  cardeal  Farnese,  uma 
pensão  sobre  os  redditos  da  abbadia  de  Al- 
cobaça, e  por  isso  importava-lhe  não  romper 
abertamente  com  D.  João  iii.  Por  outro  lado, 
as  offertas  dos  conversos  não  eram  de  des- 
prezar. Convinha,  pois,  conciliar  os  dous  inte- 
resses, e  as  dilações  offereciam  um  meio  se- 
guro de  chegar  a  esse  fim.  Por  diligencias  de 
Santiquatro,  que  se  ajunctara  em  Pistola  á 
comitiva  do  pontífice,  e  tendo  o  embaixador 
recebido  despachos  de  Portugal,  em  que 
era  possível  vir  resolvida  a  pretensão  de 
Farnese,  o  papa  concedeu  uma  audiência 
em  Bolonha  a  Christovam  de  Sousa.  Mas 
os  ministros  de  D.  João  iii  também  eram 
astutos,  e  a  mercê  esperada  por  Farnese 
não  chegara.  Tractou-se  a  questão  da  nun- 
ciatura.  As  mutuas  reconvenções  da  ultima 
audiência  em  Roma  repetiram-se  nesta  ainda_ 
com  mais  violência.  Santiquatro  falou  com 
ardor,  invectivando  Sinigalia  e  Capodi ferro. 
Inspirava-o    sobretudo    o    próprio    interesse 


358  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

íerido  (1).  A  consciência,  porém,  do  papa 
recolirara  novos  brios,  e  os  clamores  dos 
conversos  levavam-no  a  manter  a  resolu- 
ção em  que  dera  mostras  de  afrouxar.  O 
calor  do  debate  e  os  Ímpetos  da  cólera  afu- 
gentavam o  decoro,  e  o  ruído  das  vozes  de- 
sentoadas obrigou  o  camareiro  do  pontifice  a 
fazer  despejar  a  sala  contigua  para  evitar  o 
escândalo  (2).  No  meio  da  discussão,  o  papa 
chegou  a  confessar  que  o  futuro  núncio  rece- 
beria dos  conversos  um  subsidio  mensal,  no 
que  elle,  com  grande  espanto  do  embaixador, 
não  via  inconveniente  algum,  tal  era  a  per- 
versão das  idéas  na  cúria  romana.  Invocava 
Christovam  de  Sousa  certas  phrases  que 
Paulo  III  proferira  perante  o  geral  dos  fran- 
ciscanos sobre  as  intenções  que  tinha  de  con- 
descender com  os  desejos  de  D.  João  iii ;  mas 
elle  negou  que  taes  palavras  importassem  a 


(1)  «o  cardeal  Santiqualro  falou  aqui  mais  do  que 
eu  não  cria  dele,  ainda  que  lhe  a  ele  importa  muito 
não  hir  nhuncio,  porque  não  terá  sua  penitenciaria 
nenua  expedição  deses  reinos» :  Carta  de  Christo- 
vam de  Sousa  de  8  de  dezembro  de  1541, 1.  cit. 

(2)  «e  com  assaz  ou  sobeja  cólera  nestas  prati- 
quas  mui  altas  e  já  quasi  desentoadas,  de  modo  que 
o  camareiro  do  papa  despejou  a  outra  casa  porque 
nos  ouviam  mui  craro»:  Ibid. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  359 

idéa  de  trahir  os  deveres  do  supremo  pastor 
e  pae  commum  dos  fiéis,  se  os  desejos  do 
soberano  estivessem  em  contradicção  com 
esses  deveres.  Numa  nova  audiência  em  Bo- 
lonha, o  embaixador  convenceu-se,  em  fim,  de 
que  Parisio  e  os  demais  protectores  dos  chris- 
tãos-novos,  ou,  para  melhor  dizer,  o  ouro  e  as 
promessas  destes  preponderavam  na  cúria.  O 
despeito  e  o  cansaço  de  tão  aturada  lucta  in- 
citavam-no  a  sair  por  alguns  dias  daquella 
atmosphera  de  intrigas  e  prevaricações.  Pre- 
cisava de  ar  e  de  espaço.  Paulo  iii  tinha-lhe 
promettido  não  tomar  nenhuma  resolução  de- 
finitiva sem  lh'a  communicar :  não  havia,  por- 
tanto, perigo  em  abandonar  por  algum  tempo 
o  séquito  do  pontífice.  Partiu,  pois  para  Ve- 
neza, d'onde  devia  vir  encontrar  a  oomitiva 
papal  em  Rimini,  na  sua  volta  para  Roma  (1). 
Vimos  anteriormente  que  o  bispo  D.  Miguel 
da  Silva  fora  residir  em  Veneza  emquanto 
não  se  dava  a  opportunidade  de  ser  declarado 
solemnemente  cardeal.  Apenas  soube  ter  alli 
chegado  o  embaixador,  buscou- o.  Fugira  Chris- 
tovam  de  Sousa  desse  dédalo  de  astúcias  e 
deslealdades  chamado  a  cúria  romana,  mas 


(1)  Ibid. 


360  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

encontrava  em  Veneza  um  homem  digno  de 
figurar  entre  os  curiaes  pela  dissimulação. 
Duas  horas  durou  a  visita,  e  por  duas  horas 
se  repetiram  os  protestos  do  bispo  acerca 
dos  seus  vivos  desejos  de  voltar  a  Porlugal. 
Estava  profundamente  commovido  pelas  car- 
tas d'elrei  e  penhorado  pelas  demonstrações 
de  benevolência  que  tinha  ultimamente  rece- 
bido do  monarcha  e  de  seus  irmãos.  A  ob- 
servação, um  pouco  irónica,  do  embaixador, 
de  que  lhe  era  fácil  matar  as  saudades  da  pá- 
tria regressando  sem  detença  á  sua  diocese, 
replicou  o  artificioso  prelado  que  só  esperava 
para  o  fazer  a  vinda  de  seu  sobrinho  com  as 
ultimas  ordens  d'elrei  a  semelhante  respeito. 
Consolavam-no  tão  somente  da  tardança  os 
serviços  politicos  que  em  Veneza  tinha  occa- 
sião  de  fazer  á  coroa.  Na  exposição  destes 
serviços  buscava,  porventura,  sondar  o  animo 
de  Christovam  de  Sousa,  ou  obter  delle  algu- 
mas revelações,  mas  os  seus  esforços  foram 
baldados,  porque  o  embaixador  estava  preca- 
vido pelo  mau  conceito  que  formava  de  D. 
Miguel.  Na  sua  opinião,  o  bispo  vivia,  falava 
e  procedia  como  se  fosse  italiano,  dizendo 
sempre  uma  cousa  por  outra ;  porque  em  Itá- 
lia o  sysiema  adoptado  para  tractar  qualquer 
negocio  consistia,   sobretudo,   em  nunca  fa- 


HISTORIA    DA  INQUISIÇÃO  361 

lar  verdade  (1).  Tomando  por  pretexto  as  pou- 
cas horas  que  tinha  para  ver  Veneza,  Chris- 
tovam  de  Sousa  despediu  o  bispo,  evitando 
por  este  modo  alguma  indiscrição  involuntá- 
ria. Poucos  dias  depois,  tendo  voltado  da  sua 
excursão,  seguia  o  papa  de  Rimini  até  Roma, 
mostrando-se  para  com  elle  mais  obsequioso 
do  que  nenhum  outro  cortezão,  e  escondendo 
assim  o  seu  profundo  despeito.  Era  que  tinha 
sabido  aproveitar  as  licções  da  diplomacia 
itahana  (2). 

Paulo  III  regressara  á  sua  capital  nos  últi- 
mos dias  de  outubro.  Os  resentimentos  que 
as  discussões  ardentes  de  Bolonha  podiam 
ter  suscitado  deviam  achar- se  inteiramente 
mitigados  com  as  mostras  de  resignação  da| 
das  pelo  embaixador  português,  e  este  não 
abandonara  de  todo  as  suas  esperanças.  As- 
sim, aos  redobrados  esforços  dos  agentes  dos 
christãos-novos  para  o  prompto  despacho  do 
núncio  oppunha  diariamente  novas  pon- 
derações e  supplicas.  Chegou  a  offerecer 
de     novo,    por    parte    d'elrei,    a    abstenção 


(1)  «fala,  vive  e  obra  como  italiano,  que  sempre 
vos  dizem  húa  cousa  por  outra  e  am  que  he  muyto 
bom  modo  de  negociar»:  Ibid. 

(2)  Ibid. 


362  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

perpetua  dos  confiscos.  Era  uma  offerta  illu- 
soria,  na  opinião  do  papa;  porque  a  Inquisi- 
ção exorbitava  de  tudo  e  quebrava  todos  os 
principios,  tendo,  pouco  havia,  sido  queima- 
dos alguns  conversos,  depois  de  lhes  acceita- 
rem  a  appelação  interposta  para  Roma;  além 
de  que,  suppondo  que  ainda  houvesse  alguma 
cousa  que  se  respeitasse,  não  era  por  em- 
quanto  necessário  tractar  a  questão  dos  con- 
fiscos, visto  faltarem  ainda  dous  annos  para 
terminar  o  período  em  que  delles  estavam 
exemptos  os  réus  de  judaísmo.  Negando  os 
actos  odiosos  de  que  a  Inquisição  era  accu- 
sada,  o  embaixador  suggeriu,  por  intervenção 
de  Santiquatro,  um  arbítrio,  contra  o  qual 
parecia  não  haver  a  oppor  cousa  alguma  ra- 
zoável. Era  mandar-se  a  Portugal,  á  custa 
d'elrei,  um  letrado  hábil  que  syndicasse  do 
procedimento  dos  inquisidores,  decidindo-se 
depois  a  questão  da  enviatura  ou  não  envia- 
tura  do  núncio  conforme  o  resultado  do  in- 
quérito. Agradou  geralmente  o  arbítrio  aos 
cardeaes;  o  papa  acceitou-o  por  fim,  talvez 
cansado  de  importunações,  e  a  idéa  de  des- 
pachar immediatamente  um  delegado  apostó- 
lico esmoreceu  por  algum  tempo.  Entretanto, 
o  embaixador  apressava-se  a  communicar  á 
sua  corte  a  concessão  que  obtivera,  prevê- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  363 

nindo  elrei  a  tempo,  a  fim  de  poder  peitar  o 
syndicante  e  dictar-lhe  as  informações  conve- 
nientes para  se  combater  com  vantagem  o 
restabelecimento  da  nunciatura  (1).  Aconse- 
lhava, além  disso,  que  por  nenhum  modo 
perseguissem  os  procuradores  dos  conversos 
ou  os  que  lhes  subministravam  recursos,  o 
que  produziria  péssimo  eífeito  em  Roma,  bus- 
cando-se  outro  qualquer  meio  para  tornar 
menos  activos  os  primeiros  e  menos  genero- 
sos os  segundos.  Esse  meio  que,  aliás,  o  em- 
baixador não  apontava,  era  obviamente  a  cor- 
rupção (2). 

No  mesmo  dia,  porém,  em  que  Christovam 
de  Sousa  annunciava  para  Portugal  um  ac- 
cordo  que,  se  não  decidia  a  questão,  tornava 
possível,  comtudo,  addiando-a,  uma  solução 
mais  conforme  com  os  desejos  de  D.  João  iii, 
verificava-se  um  facto  que,  necessariamente, 
devia  trazer  o  rompimento  entre  as  duas 
cortes.  D.  Miguel  da  Silva  era  nesse  dia  pro- 
clamado cardeal  e  chamado  a  tomar  assento 


(1)  «e  se  for  es(e  letrado  será  causa  de  não  hir 
nhuncio,  porque  dará  a  emformação  conforme  as 
obras  que  V.  A.  Jizer,  e  mandar  que  dê»:  Carla  de 
Christovam  de  Sousa  de  2  de  dezembro,  1.  cit 

(2)  Ibid. 


364  HISTORIA  DA  IMOUISIÇÃO 

no  sacro  collegio  (1).  Porque  esta  manifesta- 
ção se  demorara  tanto,  ou  porque  apparecera 
em  tal  conjunctura  não  nos  seria  fácil  dizêlo. 
O  mesmo  mensageiro,  por  quem  o  embaixa- 
dor transmittia  a  elrei  o  estado  dos  negócios 
pendentes  e  as  phases  por  'que  estes  ha- 
viam passado  nos  últimos  mezes,  trouxe,  pro- 
vavelmente, a  noticia  daquelle  impensado  suc- 
cesso  (2).  O  papa  e  o  bispo  haviam,  emfim, 
tirado  a  mascara  .  podiam  também  tirá-la  o 
rei  e  os  seus  ministros.  As  blandícias,  as  pro- 
messas, os  convites  para  voltar  á  pátria,  com 
que  tinham  procurado  colher  no  fojo  o  astuto 
velho,  eram  desde  agora  inúteis.  Assim,  a 
manifestação  do  despeito  e  do  ódio,  compri- 
mida por  tanto  tempo,  deixara  de  ser  incon- 
veniente. O  primeiro  acto  do  governo  foi  ex- 
pedir uma  carta  regia  fulminante  contra  o 
novo  cardeal.  Expunha-se  ahi  o  procedimento 
do  prelado  á  luz  mais  odiosa  ;  mas,  como  era 


(1)  Ciacconius,  T.  3,  col.  076. 

(2)  Sendo,  conforme  Ciacconio,  proclamado  D. 
Miguel  a  2  de  dezembro  de  1541,  é  notável  que  em 
nenhuma  das  três  cartas  de  Christovam  de  Sousa, 
escriptas  nesse  mez  com  as  datas  de  2,  8  e  9,  haja  a 
minima  aliusão  a  semelhante  facto.  Deve  ter  existido 
outra  carta  sobre  essa  matéria,  que  não  chegou  até 
nós. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  365 

natural,  occultava-se  a  causa  verdadeira  do 
castigo.  Nesse  notável  documento  D.  Miguel 
era  simplesmente  considerado  como  bispo,  e 
nem  sequer  havia  uma  allusão  á  purpura  que 
revestira,  como  se  ao  poder  civil  fosse  licito  dei- 
xar de  reconhecer  uma  dignidade  que  ao  papa  e 
só  ao  papa  pertencia  conferir.  Os  fundamentos 
daquelle  diploma,  cuja  redacção  trahia  a  cólera 
cega  que  a  inspirara,  eram  que  o  bispo,  cheio 
de  cargos  e  honras,  obrigado  por  seus  jura- 
mentos a  servir  lealmente  elrei,  e  como  vas- 
sallo  a  obedecer-lhe,  saíra  a  occultas  de  Por- 
tugal contra  a  expressa  prohibição  do  sobe- 
rano, levando  comsigo  papeis  que  continham 
segredos  do  estado,  e  que  existiam  em  suas 
mãos  como  escrivão  da  puridade,  a  quem  se 
communicavam  os  mais  importantes  negó- 
cios ;  que,  depois  disto,  revocado  á  pátria  por 
um  excesso  de  benignidade,  e  favorecido  com 
uma  carta  de  seguro  para  voltar  sem  receio 
de  castigo,  se  mantivera  pertinaz  na  desobe- 
diência, actos  que  o  tornavam  indigno  de 
perdão.  Assim  elrei  privava- o  do  cargo  e  de 
todas  as  honras  e  mercês  que  recebera  da 
coroa,  desnaturando- o  da  pátria  e  tirando-lhe 
os  direitos  de  cidadão.  Esta  excomunhão  po- 
litica estendia-se  a  todos  os  que  seguissem  o 
ausente  prelado,  com  elle  tivessem  correspon- 


366  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

dencia,  ou  tractassem  de  negócios  seus.  A 
ninguém  seria  permittido  celebrar  com  elle 
nenhuma  espécie  de  contracto  gratuito  ou 
oneroso,  nem  legar-lhe  em  testamento  cousa 
alguma,  ou  ser  seu  herdeiro.  Deste  modo  o 
orgulho  do  rei  devoto  fulminava  o  réu  de  car- 
dinalato  ainda  além  da  sepultura  (1). 

A  este  acto,  deshonroso  para  a  magestade 
do  throno,  suppostos  os  motivos  que  o  ins- 
piravam, seguiu-se  uma  viva  demonstração 
de  despeito  contra  a  corte  de  Roma,  demons- 
tração que  todas  as  deslealdades  e  torpezas 
de  que  o  próprio  D.  João  iii  por  mais  de  uma 
vez  a  accusara  nunca  tinham  podido  arrancar 
á  corte  de  Portugal.  Expediu-se  um  expresso 
a  Christovam  de  Sousa  para  que,  se  o  papa 
não  desse  nesse  caso  condigna  satisfação, 
elle  e  Jorge  de  Bairros  saíssem  de  Roma  (2). 
É  notável  que,  bem  como  D.  Henrique  de 
Meneses    e    como    D.    Pedro    Mascarenhas, 


(1)  Carta  regia  de  23  de  janeiro  de  1542,  em  An- 
drade, Chron.  de  D.  João  iii,  P.  3,  c.  8iJ.— Sousa, 
Annaes  de  D.  João  ni,  P.  2,  c.  9. — Instrucç.  sem  data, 
na  CoUecção  de  Mss.  de  S.  Vicente,  vol.  3,  f.  134. 

(2)  Carta  de  Christovam  de  Sousa  de  16  de  feve- 
reiro de  1542  (assas  lacerada),  no  C.  Chronol.,  P.  3, 
M.  15,  N.o  70,  no  Arch.  Noc— Sousa,  Annaes  de  D, 
João  III,  1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  367 

Sousa,  respondendo  á  carta  d'elrei,  agrade- 
cesse a  este  a  mercê  de  o  tirar  da  capital  do 
mundo  catholico ;  dessa  Roma  que  compa- 
rava á  prostituída  Babilónia,  e  onde  os  pou- 
cos dias  que  lhe  restavam  de  demora  eram 
para  elle  como  se  jazesse  no  inferno  (1;. 

A  brevidade  com  que  o  embaixador  con- 
tava voltar  a  Portugal  nascia  da  falta  da  exi- 
gida satisfação  ;  posto  que,  na  verdade,  esta 
fosse  difficil  de  dar.  Não  podia  o  pontífice 
demittir  D.  Miguel  da  dignidade  cardinalícia, 
e  feó  esse  acto  insólito  applacaría  o  animo  ir- 
ritado delrei.  Paulo  iii,  porém,  estribava  a  le- 
gitimidade do  seu  procedimento,  não  na  im- 
possibilidade de  retroceder,  mas  sim  nas  car- 
tas dirigidas  officialmente  e  extra-officíal- 
mente  ao  bispo  de  Viseu  para  o  illudir,  e  cujo 
contexto  elle  opposera  sempre  ás  representa- 
ções de  Christovam  de  Sousa  e  de  Jorge  de 
Bairros.  Desenganados  da  inutilidade  de  ulte- 
riores diligencias,  o  embaixador  e  o  seu  co- 
lega abandonaram  a  corte  de  Roma,  tendo 
occultado  ao  próprio  Santiquatro  as  instru- 


(1)  «a  mercê  de  me  mandar  hir  desta  Babilónia 
de  confusões» :  Carta  de  Christovam  de  Sousa,  cit. 
—  «e  estes  dias  que  estou  em  Roma  me  parece  que 
estou  no  inferno» :  Ibib. 


368  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

cções  recebidas,  até  o  dia  em  que  pediram  ao 
papa  a  audiência  de  despendida  (1).  Obriga- 
va-os  a  essa  reserva  o  receio  de  que,  sabido 
o  rompimento  entre  as  duas  cortes,  se  liies 
negasse  a  expedição  de  vários  negócios  já 
resolvidos  ;  e  receiavam-no  porque  coniieciam 
a  Índole  da  cúria  romana  (2). 

Revestida  a  purpura,  D.  Miguel  tirara,  em- 
fim,  a  mascara.  A  explosão  devia  ser  tanto 
maior  quanto  maior  fora  a  necessidade  de 
oppor  durante  mais  de  um  anno  a  dissimula- 
ção á  dissimulação.  A'  carta  regia  que  o  exau- 
ctorava  replicou  com  uma  espécie  de  mani- 
festo, onde,  salvando  até  onde  era  possivel  a 
responsabilidade  pessoal  de  D.  João  iii,  e  lan- 
çando tudo  á  conta  dos  seus  ministros,  reve- 
lava, ao  menos  no  que  lhe  convinha,  a  tor- 


(1)  Instrucyão  sem  data,  na  Collecção  de  S.  Vi- 
cente, l.  cit. — Carta  de  Chrislovam  de  Sousa  de  16 
de  fevereiro  de  1542,  ].  cit.  As  mutilações  deste  ulti- 
mo documento  nos  obrigam  a  omittir  algumas  cir- 
cumstancias  que  ahi  se  referiam  relativas  á  reti- 
rada do  embaixador. 

(2)  «porque  sei  que  esta  gente  de  qua  he  tão  bai- 
xa, que  qualquer  cousa  commetterão,  asentei  não 
faJar  ao  papa  senam  depois  de  telas  bulas  na  mão»: 
Carta  de  Christovam  de  Sousa  de  16  de  fevereiro, 
1.  cit. 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  369 

peza  da  corte  de  Portugal  e  vindicava  o  próprio 
procedimento  das  accusações  formuladas  na- 
quelle  diploma,  pelo  qaal  fora  condemnado 
sem  processo  á  morte  civil,  sendo  elrei  juiz  e 
parte.  Desmentia  formalmente  a  afíirmativa 
de  que,  saindo  da  pátria,  houvesse  levado 
comsigo  papeis  alguns  do  estado,  visto  que 
só  nominalmente  era  escrivão  da  puridade. 
Narrava  os  meios  deshonestos  a  que  se  havia 
recorrido  para  impedir  a  sua  partida  para 
Itália,  aonde  o  chamava  o  papa,  a  quem  neste 
ponto  era,  como  bispo,  obrigado  a  obedecer, 
tractando-se  a  celebração  de  um  concilio.  Lu- 
dibriava a  affectação  com  que  na  carta  da 
desnaturação  o  nomeia vam  sempre  como 
bispo  de  Viseu,  e  as  declarações  feitas  na 
cúria  por  Santiquatro,  de  que  elrei  procedia 
contra  o  bispo  e  não  contra  o  cardeal,  como 
se  a  distincção  fosse  possível,  e  não  houvesse 
a  mesma  quebra  da  justiça  e  das  immunida- 
des  ecclesiasticas,  em  se  proceder  de  tal  modo 
contra  um  prelado  diocesano  ou  contra  um 
membro  do  sacro  collegio.  Compendiava  todas 
as  affrontas  e  desgostos  que  fora  obrigado  a 
tragar  desde  que  voltara  de  Roma  a  Portu- 
gal e,  sem  negar  as  mercês  que  recebera  de 
D.  Jão  III,  recordava-lhe  que  a  necessidade  de 
fazer  taes  mercês  lhe  fora,  a  bem  dizer,  im- 

TOMO  II  24 


370  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

posta  por  Clemenle  vii.  invocava  a  franqueza 
com  que  falara  ao  soberano  sobre  a  sua  saída 
do  reino,  os  alvitres  vergonhosos  que  lhe  ha- 
viam sido  inculcados  para  desobedecer  ao 
pontifice,  a  dignidade  com  que  elle  repellira 
tão  odiosos  expedientes.  Affirmava  que  nessa 
conjunctura  se  lhe  não  posera  prohibição  ex- 
pressa de  sair  de  Portugal,  e  só  sim  quando 
o  quizeram  prender  sobre  pretexto  de  rela- 
ções illicitas  com  a  cúria  romana.  Expunha 
largamente  o  que  se  tinha  posto  por  obra 
para  o  persuadirem  a  voltar  á  pátria,  os  elo- 
gios que  se  lhe  teciam,  as  artes,  em  summa, 
que  se  haviam  empregado  para  o  illaqueiar, 
ao  passo  que  se  procurava  fazô-lo  cahir  de- 
baixo dos  punhaes  dos  assassinos.  Nesta 
parte  o  manifesto  era  fulminante,  porque, 
acerca  de  todas  essas  infâmias,  D.  Miguel  in- 
vocava o  testemunho  do  bispo  de  S.  Thomé, 
o  de  Santiquatro  e  o  do  próprio  Paulo  iii.  Do 
facto  de  lhe  recusar  Carlos  v  uma  carta  de 
seguro  para  passar  pelos  seus  estados,  com 
o  fundamento  de  que  a  isso  obstavam  as  re- 
commendações  que  a  tal  respeito  tinha  do 
cunhado,  deduziu  D.  Miguel  que  seria  preso 
ou  ainda  morto  antes  de  chegar  a  Portugal, 
se  não  tivesse  verificado  por  esse  modo  que 
as  expressões  de  benevolência  que  lhe  diri- 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  371 

giam  de  Lisboa  eram  uma  verdadeira  cilada ; 
tanto  assim,  que,  argumentando  sua  sanctida- 
de  com  Santiquatro  acerca  da  innocencia  e 
dos  merecimentos  delie  D.  Miguel,  e  invo- 
cando o  testemunho  do  próprio  governo  por- 
tuguês, dado  nas  cartas  em  que  D,  João  iii  o 
revocava  á  pátria,  o  cardeal  protector  decla- 
rara de  plano  que  taes  cartas  não  passavam 
de  um  laço  para  o  colherem  ás  mãos,  e  que 
o  resultado  só  provava  que  o  bispo  íora  mais 
astuto  do  que  o  monarcha.  Terminando  pela 
appreciação  das  penas  que  se  fulminavam 
contra  elle,  ridiculisava  o  demittirem-no  de  um 
cargo  que  elle  próprio  resignara  officiahrente, 
e  que,  decerto,  não  havia  de  accumular  com 
o  cardiíialato.  Fazia-o  também  sorrir  o  risca- 
rem-no  do  registo  dos  nobres  e  vassallos,  e 
esbulharem-no  de  todas  as  mercês,  bens  e  ren- 
das havidas  por  elle  da  coroa.  Nada  tinha 
desta,  salvo  o  que  lhe  provinha  dos  benefícios 
ecclesiasticos,  acerca  dos  quaes  só  ao  papa 
tocava  dispor.  Aquelle  vão  apparato  de  espo- 
liação era,  em  seu  entender,  para  illudir  os 
ignorantes  e  fazè  lo  passar  por  ingrato  ao  rei 
depois  de  recebidas  deste  avultadas  mercês. 
Appreciando  a  parte  da  carta  regia  que  o  ba- 
nia e  privava  dos  foros  de  cidadão,  mostrava 
que  o  governo   ultrapassara  nisso  as  suas 


372  HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO 

attribuições  e  ferira  as  regras  mais  triviaes 
do  direito  civil  e  do  canónico.  Concluía  o  novo 
cardeal  o  seu  longo  arrazoado,  affirmando  que 
em  todo  aquelle  notável  documento  não  havia 
senão  uma  cousa  verdadeira,  o  dizer-se  que 
elle  se  chamava  D.  Miguel  da  Silva.  Tudo  o 
mais  era  um  tecido  de  disparates  e  fabulas  (1). 
Depois  de'  tantos  disfarces  e  occultos  me- 
neios, a  guerra  tinha,  emfim,  rompido  impla- 
cável entre  elrei  e  o  cai'deal  da  Silva.  Suppos- 
tos  os  termos  a  que  as  cousas  haviam  che- 
gado, nenhum  delles  devia  esquecer  meio 
algum  de  mutuamente  se  offenderem.  Um  dos 
que  mais  obviamente  se  offereciam  a  D.  Mi- 
guel consistia  em  se  ligar  com  os  christãos- 
novos  e  ser  o  seu  mais  enérgico  protector  na 
cúria.  Hostilisar  a  Inquisição  era  ferir  elrei 
numa  das  suas  mais  caras  affeições,  e  ao 
velho  prelado  não  faltavam  para  isso  recur- 
sos, não  só  como  membro  do  sacro  collegio, 
mas  também  como  amigo  pessoal  do  papa, 
circumstancia  importante  e  que  tinha  dobrada 
força  por  se  dar  igualmente  em  outro  portu- 


(1)  Hisposla  di  D.Michele;  Symm.,  vol.  29,  f.86  e 
segg.— «deJ  quale  (decreto)  non  vcggo  che  sia  parte 
ne  parola  alcuna  de  si  possa  veriíicare,  salvo  es- 
sere  11  nome  mio  D.  Michole»:  Ibid.  f.  111  v. 


llISrOUIA  DA  INQUISIÇÃO  373 

guês  com  quem  D.  Miguel  podia  ir  de  accordo 
na  empresa.  Era  elle  o  medico  Ayres  Vaz,  ao 
qual  a  Inquisição  tivera  o  desaccordo  de  con- 
sentir fosse  justificar-se  em  Roma.  Alli,  Ayres 
Vaz  achara  em  Paulo  iii  um  sectário  da  scien- 
cia  astrológica,  e  o  papa  e  o  hebreu  vieram 
brevemente  a  unir-se  pela  simpathia  que  nasce 
da  identidade  de  estudos  e  opiniões.  O  pontí- 
fice fez  Ayres  Vaz  seu  clérigo,  familiar  e  com- 
mensal,  e  para  mostrar  o  apreço  em  que  o 
tinha,  expediu  uma  bulia  na  qual  exemplava 
da  jurisdicção  dos  inquisidores,  não  só  todos 
os  parentes,  ainda  os  mais  remotos,  do  seu 
collega  em  astrologia,  mas  até  os  advogados 
que  em  Lisboa  o  haviam  defendido  perante  o 
tribunal  da  fé,  bem  como  as  suas  respectivas 
familias  (1).  Com  as  esperanças  que  nasciam 
destas  duas  influencias,  que  parecia  deverem 
ser  efficazes,  e  do  rompimento  entre  elrei  e  o 
papa,  os  agentes  dos  conversos  podiam  em- 
pregar com  probabilidade  de  bom  êxito  novos 
esforços  para  se  melhorarem  nesse  rude  com- 
bate de  vida  ou  morte,  que  com  elles  se  tra- 
vara. Incitava-os  não  só  a  opportunidade  do 


(1)  Bulia  de  ti  do  junho  de  Í54I  incluída  em  oulrp 
de  15  de  março  de  1 54-2,  no  M.  37  de  Bulias  N.°  49, 
no  Ar  eh.  Nac. 


374  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ensejo,  mas  igualmente  o  progresso  da  per- 
seguição, a  qual  ia  tomando  maiores  dimen- 
sões, e  se  tornava  cada  vez  mais  intolerável. 
A  intervenção  de  D.  Miguel  da  Silva  naquelle 
negocio,  e  as  novas  phases  por  que  a  lucta 
passou  até  o  que  se  pôde  considerar  como  o 
seu  definitivo  desfecho,  darão  matéria  ao  resto 
desta  tentativa  histórica.  Desde  esse  desfecho, 
as  resistências  e  os  esforços  dos  hebreus 
portugueses  não  são  mais  do  que  o  estrebu- 
xar  da  presa  moribunda  nas  garras  da  besta- 
-fera.  Fica  tudo:  a  atrocidade  dos  inquisido- 
res, a  dobrez  e  a  cubica  da  cúria  romana,  o 
fanatismo  das  multidões,  a  hypocrisia  de 
muitos,  e  a  corrupção  de  quasi  todos;  mas 
falta  a  esperança,  ao  menos  a  esperança  fun- 
dada e  plausivel,  das  victimas.  No  fim  de 
vinte  annos  de  negruras,  de  traições,  de  cri- 
mes, de  villanias  de  toda  a  espécie,  a  Inquisi- 
ção, assentada  sobre  solidas  bases,  cessa  de 
temer  a  própria  ruina.  Roma  ousa  apenas  dis- 
putar-lhe  a  espaços  algumas  victimas,  e  nem 
sempre  nessas  disputas  Roma  obtém  o  trium- 
pho.  Ao  espectáculo  variado  que  temos  visto 
representar,  e  a  que  ainda  faltam  as  scenas 
de  um  período  de  seis  annos,  succede  o  si- 
lencio, só  interrompido  pelo  crepitar  monó- 
tono das  fogueiras,  pelo  correr  dos  ferrolhos 


HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO  375 

nos  cárceres  que  se  convertem  em  sepulchros, 
e  pelos  gemidos  que  se  alevantam  do  meio 
das  lieca tombas.  E'  a  tragedia  de  Alfieri  depois 
da  de  Shakspeare.  Que  o  leitor  indulgente 
nos  siga  ainda  através  dos  últimos  recessos 
deste  pandemonio  repugnante  onde  o  fizemos 
entrar  e  que  uma  luz  sinistra  alumia.  Aca- 
bará de  convencer  se  de  que  a  sociedade 
desses  tempos,  que  ignorantes  ou  hypocritas 
ousam  propor-nos  como  modelo,  não  só  es- 
tava longe  de  valer  a  actual,  mas  também, 
considerada  de  um  modo  absoluto,  era  pro- 
fundamente depravada.  Não  serão  illações  ou 
conjecturas  nossas  que  pintarão  aquella  epo- 
cha  de  decadência  moral:  serão  as  phrases 
inflexiveis  dos  documentos,  as  palavras  dos 
principaes  actores  de  tão  longo  drama,  que 
nos  subministrarão,  como  até  aqui,  a  contex- 
tura da  restante  narrativa. 


FIM  DO  TOMO  n 


índice 


LíVFiO  IV 

Bulia  tlc  perdão  de  7  de  abril  de  1533. 
Appreciação  delia  —  Procedimento  da 
corte  de  Portugal.  — Negociações  com 
o  papa  em  Marselha.  —  En viatura  de 
D.  Henrique  de  Meneses,  e  instrucções 
dadas  ao  arcebispo  do  Funchal. — Di- 
ligencias baldadas  em  Roma  para  an- 
nullar  o  perdão.  Insistências  dos  em- 
baixadores. Protrahem-se  os  debates. 
O  papa  resolve  definitivamente  man- 
ter a  bulia  de  perdão.  Breve  de  2  de 
abril  de  1534.  —  Tentativas  de  transac- 
ção propostas  por  D.  Henrique  de  Me- 
neses.—  Procedimento  do  arcebispo  do 
Funchal, suas  relações  com  Duarte  da 
Paz,  e  traições  deste.  —  Resistência  em 
Portugal  ao  cumprimento  da  bulia  de 
7  de  abril,  e  perseguições  contra  os 
conversos. — Breve  de  26  de  julho.— 
Morte  de  Clemente  vii  e  eleição  de  Pau- 
lo III.  Caracter  do  novo  papa. — Reno- 
vam-se  as  negociações. — Intervenção 
do  embaixador  hespanhol.  —  O  papa 
manda  suspender  os  effeitos  dos  bre- 


Pag. 


378  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 

ves  de  2  de  abril  e  2íj  de  juliio.— No- 
vos debates  sobre  a  bulia  de  7  de 
abril.  —  Transacção  proposta  pela  cor- 
te de  Portugal  e  bases  offerecidas  pa- 
ra ella.  —  Intrigas  em  Roma.  Progres- 
so da  lucta,  e  resolução  final  sobre  as 
modificações  do  perdão  e  sobro  o  res- 
tabelecimento do  tribunal  da  fé.  —  Con- 
selhos de  D.  Henrique  de  Meneses  e  do 
arcebispo  a  elrei  acerca  desta  matéria. 
—  Dobrez  da  cúria  romana.— Accusa- 
çôes  de  Sinigaglia  contra  o  governo 
português.  — Despeito  mutuo  das  duas 
cortes.  -  Ajustes  vergonhosos  do  nún- 
cio com  os  christãos-novos— Elrei  pen- 
sa em  transigir  com  os  conversos  pa- 
ra que  acceitem  a  Inquisição  modifica- 
da.—  Reacção  do  espirito  de  intolerân- 
cia.—  Revalida-se  por  mais  três  annos 
a  lei  de  14  de  junho  de  1532.  —  Breve  de 
20  de  julho  de  1535  annullando  os  eífei- 
tos  dessa  lei.  — Diligencias  da  corte  de 
Portugal  para  obter  a  revocação  de 
Sinigaglia,  e  instrucções  aos  embaixa- 
dores para  repetirem  as  tentativas  de 
um  accordo. — Idéa  de  fazer  com  que 
Carlos  V  intervenha  energicamente  na 
questão.  —  Novas  intrigas.  —  Desleal- 
dade do  arcebispo.  -Irritação  extrema 
do  papa.  — Bulia  de  12  de  outubro  re- 
validando e  ampliando  a  de  7  de  abril 
de  1532.  — D.  Martinho  de  Portugal  é 
desmascarado.    Mutua   malevolencia 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  379 

Pag. 

entre  elle  e  D.  Henrique  de  Meneses. 
— Influencia  da  bulia  de  12  de  outubro 
em  Portugal . .   8  a  158 

LIVRO  V 

Providencias  da  corte  portuguesa  para 
combater  as  vantagens  obtidas  pelos 
christãos-novos  Revocação  do  arce- 
bispo do  Funchal.  Intervenção  efíicaz 
e  directa  de  Carlos  v  no  negocio  da  In- 
quisição. Tentativa  de  assassínio  con- 
tra Duarte  da  Paz.  — Questões  vergo- 
nhosas entre  os  conversos  e  o  núncio 
na  occasião  da  saída  deste  de  Portu- 
gal. Effeitos  dessas  questões  em  Roma. 
Triumpho  completo  do  fanatismo.  Bul- 
ia de  23  de  maio  de  1 536  estabelecendo 
definitivamente  a  Inquisição.  Primei- 
ros actos  desta.  Monitorio  do  bispo  de 
Ceuta,  inquisidor-mór.  Procedimento 
moderado  do  novo  tribunal.  —  Diligen- 
cias dos  agentes  dos  conversos  em  Ro- 
ma. O  papa  começa  a  mostrar-se-lhes 
favorável.  — Enviatura  do  núncio  Capo- 
diferro,  e  objecto  da  sua  missão.  Ten- 
dências da  cúria  romana.  Manifesta- 
ções dessas  tendências  no  breve  de  31 
de  agosto  de  1537.  Considerações  poli- 
ticas que  as  atenuavam.  — Procedi- 
mento do  núncio.  —  Enviatura  de  D. 
Pedro  Mascarenhas  á  corte  pontifícia. 


^380  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 


i-'ag. 


—  Escriplos  blasfemos  afixados  publi- 
camente em  Lisboa,  e  consequências 
desse  facto.  O  infante  D.  Henrique  subs- 
íituido  ao  bispo  de  Ceuta  no  cargo  de 
inquisidor-mór.— Negociações  de  D. 
Pedro  Mascarenhas  em  Roma.  Cara- 
cter e  dotes  do  novo  embaixador.  Cor- 
rupções na  cúria  romana.—  Mudanças 
no  tribunal  da  fé.  —  Hostilidades  entre 
o  infante  e  Capodiferro.  Processo  de 
Ayres  Vaz.  Lucta  com  o  núncio. — El- 
rei  exige  a  revocação  deste.  Discus- 
sões violentas  e  protrahidas  entre  o 
embaixador  português  e  o  papa,  tanto 
acerca  da  Inquisição  como  do  núncio. 
Accordos  vantajosos  e  transtornos 
mesperados.  D.  Pedro,  não  podendo 
obstar  ás  providencias  favoráveis  aos 
conversos,  obtém,  comtudo,  a  revoca- 
ção de  Capodiferro.  —  Bulia  declarató- 
ria de  4  de  outubro  de  1539 162  a  284 


LIVUO  VI 

Agencia  dos  christãos-novos  em  Roma. 
Substituição  de  Duarte  da  Paz.  —  Últi- 
mos actos  deste.  —  Inutilisa-se  a  expe- 
dição da  bulia  de  12  de  outubro,  dei- 
xando de  publicar-se  em  Portugal. 
Causas  deste  facto.  Situação  desvanta- 
josa dos  conversos.  —  Prosegue-se  na 
contenda  acerca  da  nomeiação  do  in- 


HISTORIA  DA   INQUISIÇÃO  381 

fante  D.  Henrique  para  inquisido-mor. 
—  Carta  notável  d'elrei  ao  embaixador 
em  Roma,  e  allegação  dos  inquisidores 
contra  a  bulia  de  12  de  outubro.  Nego- 
ciações directas  entre  D.  Pedro  Masca- 
renhas e  Paulo  III.  Discussões  e  scenas 
dramáticas  entre  o  embaixador  e  o  pa- 
pa.— Parecer  da  juncta  dos  cardeaes 
encarregada  de  examinar  as  réplicas 
do  governo  português.  Destreza  do 
embaixador,  e  vantagens  que  obtém. 
Sua  partida  para  Portugal.  —  Situação 
critica  dos  chrisiãos-novos.  A  Inquisi- 
ção começa  a  desenvolver  maior  vio- 
lência. Cessação  temporária  das  nego- 
ciações em  Roma.  —  Discórdias  d'elrei 
com  o  bispo  de  Viseu  D.  Miguel  da  Sil- 
va. Causas  e  progresso  dessas  descor- 
dias.  Fuga  do  bispo  para  Itália.  Enga- 
nos mútuos,  e  tentativas  de  assassínio. 
Diligencias  em  Romn  contra  o  foragi- 
do prelado,  eleito  já  occultamente  car- 
deal.— A  questão  da  nunciatura  em 
Portugal  renova-se  entretanto.  Nego- 
ciações de  Christovam  de  Sousa,  suc- 
cessor  de  D.  Pedro  Mascarenhas.  Vio- 
lentas discussões  com  o  papa.  Esfor- 
ços dos  agentes  dos  conversos.  —  Via- 
gem de  Paulo  III,  e  proseguimento  das 
negociações. — Accordo  para  se  addiar 
a  resolução  definitiva  acerca  da  nun- 
ciatu.ra.  —  D.  Miguel  é  proclamado  pu- 
blicamente cardeal.  Carta  regia  fuimi- 


382  HISTORIA  DA  INQUISIÇÃO 


Paá. 


nada  contra  eJle.  —  Rompimento  entre 
as  duas  cortes.  Retirada  de  Christo- 
vam  de  Sousa.  —  Manifesto  do  cardeal 
da  Silva,  que  se  liga  com  os  conversos 
em  ódio  d'elrei.  Epilogo  deste  livro. . .    288  a  375 


OBRAS 

DE 

Alexandre  Herculano 


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Cartas  (Inéditas)  ~  2  vols 20S00 

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mento da  Inquisição  em  Portugal 

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cumentos autênticos  —  8  vols 96S00 

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Livro  I,  A  harpa  do  crente.  —  Li- 
vro II,  Poesias  várias.  — Li- 
vro III,  Versões:  de  Millevoye, 
Béranger,  Délavigne,  Lamarti- 
ne,  etc lOSOO