Skip to main content

Full text of "Historia da universidade de Coimbra nas suas relações com a instucçâo publica portugueza"

See other formats


Google 


This  is  a  digitai  copy  of  a  book  that  was  prcscrvod  for  gcncrations  on  library  shclvcs  bcforc  it  was  carcfully  scannod  by  Google  as  pari  of  a  project 

to  make  the  world's  books  discoverablc  online. 

It  has  survived  long  enough  for  the  copyright  to  expire  and  the  book  to  enter  the  public  domain.  A  public  domain  book  is  one  that  was  never  subjcct 

to  copyright  or  whose  legai  copyright  terni  has  expired.  Whether  a  book  is  in  the  public  domain  may  vary  country  to  country.  Public  domain  books 

are  our  gateways  to  the  past,  representing  a  wealth  of  history,  culture  and  knowledge  that's  often  difficult  to  discover. 

Marks,  notations  and  other  maiginalia  present  in  the  originai  volume  will  appear  in  this  file  -  a  reminder  of  this  book's  long  journcy  from  the 

publisher  to  a  library  and  finally  to  you. 

Usage  guidelines 

Google  is  proud  to  partner  with  librarìes  to  digitize  public  domain  materials  and  make  them  widely  accessible.  Public  domain  books  belong  to  the 
public  and  we  are  merely  their  custodians.  Nevertheless,  this  work  is  expensive,  so  in  order  to  keep  providing  this  resource,  we  have  taken  steps  to 
prcvcnt  abuse  by  commercial  parties,  including  placing  lechnical  restrictions  on  automated  querying. 
We  also  ask  that  you: 

+  Make  non-C ommercial  use  ofthefiles  We  designed  Google  Book  Search  for  use  by  individuals,  and  we  request  that  you  use  these  files  for 
personal,  non-commerci  al  purposes. 

+  Refrain  fivm  automated  querying  Do  noi  send  aulomated  queries  of  any  sort  to  Google's  system:  If  you  are  conducting  research  on  machine 
translation,  optical  character  recognition  or  other  areas  where  access  to  a  laige  amount  of  text  is  helpful,  please  contact  us.  We  encouragc  the 
use  of  public  domain  materials  for  these  purposes  and  may  be  able  to  help. 

+  Maintain  attributionTht  GoogX'S  "watermark"  you  see  on  each  file  is essential  for  informingpcoplcabout  this  project  and  helping  them  lind 
additional  materials  through  Google  Book  Search.  Please  do  not  remove  it. 

+  Keep  it  legai  Whatever  your  use,  remember  that  you  are  lesponsible  for  ensuring  that  what  you  are  doing  is  legai.  Do  not  assume  that  just 
because  we  believe  a  book  is  in  the  public  domain  for  users  in  the  United  States,  that  the  work  is  also  in  the  public  domain  for  users  in  other 
countiies.  Whether  a  book  is  stili  in  copyright  varies  from  country  to  country,  and  we  cani  offer  guidance  on  whether  any  specific  use  of 
any  specific  book  is  allowed.  Please  do  not  assume  that  a  book's  appearance  in  Google  Book  Search  means  it  can  be  used  in  any  manner 
anywhere  in  the  world.  Copyright  infringement  liabili^  can  be  quite  severe. 

About  Google  Book  Search 

Google's  mission  is  to  organize  the  world's  information  and  to  make  it  universally  accessible  and  useful.   Google  Book  Search  helps  rcaders 
discover  the  world's  books  while  helping  authors  and  publishers  reach  new  audiences.  You  can  search  through  the  full  icxi  of  this  book  on  the  web 

at|http: //books.  google  .com/l 


C-. 


\ 


»     ^ 


,* 


\- 


.v^1 


»vA 


•/' 


•   t 


1 


X 


•^^     \ 


\ 


>  .u 


^^  r-j 


-fW 


.^ 


\ 


:^ 


\ 


x^ 


^:w  «7  ■ 


«, 


--*    I 


>- 


5d^^  ;^ 


\ 


■( 


;> 


y  /"-^t! 


\ 


A 


^ 


r\ 


v^ 


>- 


\ 


-^    V 


r 


.-( 


y 


<r. 


-  >  r*f 


'X'- 


M> 


V^ 


V 


> 


\ 


V  .^. 


^ 


,> 


^^ 


> 


^ 

^ 


4 


_    » 


»f 


X.  /• 


fi\^  ^  .r^ 

1        •<  ^ . 


^-1! 


] 


'•  ^  x>>^ 


>/ 


^ìà,"  ^  - 


r     (' 


/•^ 


/ 


\ 


A  >• 


^■..H 


(    •-  ^r 


'Cf^\  ti 


■^ 


X 


^ 


''-'.\ 


L-^ 


i    t 


N^ 


■\^ 


,-'. 


i 


Li 


•Ai 


/ 


y:. 


xj 


^ 


.'>^. 


n: 


■i^i. 


^^-^^!•^: 


>.y^- 


>,. 


\ 


/ 


KSi^ 


\ 


1^5 


■■:^> 


,>' 


.tn 


^■■rr'^C 


(^ 


\ 


f 


<T  )^^ 


JTJ 


^yi^^My  N'.x 


V"•^ 


;;     I 


•V 


> 


^^' 


■^ 


e  / 


V 


l' 


< 


\ 


> 


— \ 


K 


n, 


v^  r. 


">- 


-V   i^ 


l^ 


IK      • 


x^ 


*:  -f 


tL, 


'^  A-  A>is 


»&-tTf^:v 


f  \ 


\ 


7  t^yy\À/tf 


HISTOEIA 


DA 


UfflVERSlDADE  DE  GOIMBRA 


HISTORIA 


DA 


UNIVERSIDADE  DE  GOMBRA 


WAS  SUAS  RELAgOES 


CO»  A 


INSTRUCgÀO  PUBLICA  PORTUGUEZA 


POR 


THEOPHILO  BKAGA 


Socio  effeelìTo  «la  Acadoiuft  nal  dac  Scioicias 


1289  a  1666 


LISBOA 

fOI  OIDEI  B  NA  TÌPOfiUPOIi  DA  ACADEIU  MAL  DAS  SCRNCUS 

1892 


HISTORIA 


DA 


UmYERSMDE  DE  GOIMBRA 


MAS  SUAS  RELACOES 


COM  A 


INSTRUCgÀO  PUBLICA  PORTUGUEZA 


POR 


THEOPHILO  BRAGA 


Socio  effectivu  da  Ac«d«tDÌ«  raal  du  Sciencias 


1289  a  1556 


LISBOA 

fOI  OIDFJ  E  RA  TÌPOfiMPBIi  DA  ACADEIU  MAL  DAS  SCIENCUS 

1892 


IP 


EM  COMMEMOEACiO 


DO 


WI    CENTENARIO 


DA   FUNDAQÀO 


DÀ 


UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 


ATTENTION  PATRON: 

This  volume  ìs  too  fragile  (òr  any  future  repair. 
Please  handle  with  great  care. 


f 


H  ^ 


O  estudo  da  CiyilÌ8a9lo  portugueza,  para  que  se  comprehenda  a 
importancia  que  està  pequena  nacionalidade  exeroeu  na  coltura  da 
Europa,  deve  ser  feito  em  rela9Ìlo  is  transforma^Ses  que  caracterisam 
a  Historia  moderna,  isto  é,  desde  o  firn  da  Edade  mèdia  até  à  explo- 
sSo  temporal  da  ReyoluQSo  franceza.  Os  grandes  problemas  da  de- 
compo8Ì9So  do8  dois  Poderes  e  sua  recomposÌ9fto  empìrica  e  incom- 
pleta, acham-se  implicitos  nos  factos  do  desenvolvimento  intellectual 
e  scientifico  em  quanto  à  parte  espirituàl,  e  nos  factos  do  estabeleci- 
mento  da  ordem  politica  e  economica,  em  quanto  à  parte  temporal. 

Seguindo  o  desdobramento  d'estes  problemas  simultaneamente  com 
a  marcha  historica  da  nacionalidade  portugueza,  que  é  esclarecida  por 
elles,  é  que  tomàmos  a  transforma9So  ou  crise  mentcH  comò  base  syste- 
matica  da  Historia  da  Universidade  de  Coimbra;  mais  tarde  comple- 
taremos  o  quadro  da  cÌYÌlisa9So  moderna  com  a  HUtoria  da  Naciona- 
lidade portugueza,  em  que  prevalece  a  crise  socied  tendendo  i  synthese 
politica. 

Na  evolug^  da  Europa  moderna,  apesar  de  nSo  ter  exercido  uma 
acfSo  directa  o  sentimento,  ainda  assim  os  impulsos  affectivos  offerece- 
ram  is  novas  capacidades  estheticas  elementos  de  idealisafSo,  que  se 
tomaram  aa  bellas  e  surprehendentes  creagSes  das  Litteraturas  moder- 


via  PREL1MINÀR 

nas.  Assim,  estudada  a  parte  inteUedwd  e  poliHea  da  Civilisa^So  por- 
tugueza,  ficari  o  nosao  estudo  verdadeiramente  completo  com  a  HiS" 
taria  da  Litterahira  portugaeza  nas  suas  relafSes  oom  as  Litteraturas 
romanicaB  ou  occidentaes. 

TemoB  deade  1871  annanciada  em  nm  prospecto  a  Mstoria  da 
Umverndade  de  Caimbra  corno  formando  parte  de  um  plano  mais  vasto^ 
e  quasi  totalmente  realisado,  sobre  a  Historia  litteraria  de  Portugal. 
As  rela95e8  entro  as  crea98eB  da  Historia  litteraria  e  as  transforma^Ses 
da  Pedagogia  eram  entfto  por  nós  mais  presentidas  do  que  comprehen- 
didas.  O  estudo  comparativo  das  Litteraturas  romanicas  revelando-nos 
o  antagonismo  entro  o  espirito  da  Edade  mèdia  e  o  da  Antiguidade 
classica,  levx>u-no8  a  comprehender  essa  dupla  covrente  intellectual, 
observando  corno  as  Universidades  luctaram  oontra  os  Humanistas  da 
Senascen9a|  que  souberam  determinar  os  tres  grios  da  In0truc9lo  pub- 
blica fora  do6  tjpos  immovds  das  quatro  faouldades. 

Achavamo*no8)  ao  come9ar  as  nossas  investìgafSes,  em  um  estado* 
montai  metapbysioo,  que  nos  fasia  concentrar  todos  os  nossos  interes- 
ees  moraes  no  periodo  revolucionario^  corno  uma  anarchia  fecunda, 
embora  transitoria.  A  fonna^^  das  UniTersidades  resultando  da  dis- 
solu$fto  do  regjmen  calholieo^udal,  e  eridìenoiando  o  conflicto  entro 
a  auctoridade  reàl  e  a  pontificai,  era-nos  por  isso  mesmo  sympathica. 
Quando  procuràmos  naturalmente  oi^gaoisar  em  systema  as  nossas  as- 
pira95es  revolucionariaa,  fomos  encontrar  essa  synthese  doutrinarìa  j& 
realisada  poc  Augusto  Comte  no  Curao  de  PhUoeophia  positiva.  À  me* 
dida  que  entrava  n'esse  rei^oùien  definitivo  do  espirito>  ia  abaadonando 
a  orientasse  metaphysica  da  cultura  universitaria;  e  so  quando  a  phi- 
losophia  positiva  me  revelou  as  phases  da  grande  Revolu^SD  oecidental 
•que  comesa  no  seculo  xm  e  se  espande  na  crise  violenta  do  firn  do 
eeculo  xvm,  é  que  eomprehendi  a  misalo  das  Universidades  n'este 
^orfo  da  Civilisaoto  europea  para  re<Mìstituir  um  novo  Poder  espi- 


PREUIONAR  m 

litaal  baseado  sobre  a  veraddade  das  concép^Ses  seientifici^Sy  e  corno 
nSo  correspondendo  à  urgenoia  d'està  necesaidade  social  cairam  na  es- 
tabilidade  e  no  pedantismo  doutvinario.  Essa  missSo  foi  melhor  com» 
prehendida  pelas  Academiasy  soscitadas  pelas  syntheses  baconiana  e 
•cartesiana,  vindo  os  seos  resoltados  analyticos  a  constituir  sob  a  Con*- 
TenfXo  a  fórma  nova  d^  ensino  dais  Polytechnioas.  Nto  foi  porém  ainda 
4ittingido  o  fini,  por  falta  de  ama  systematisafSo  goral. 

A  Philosophia  positiva  està  destinada  a  exercer  ama  inflaenda 
ci^pital  na  reorganisagAo  do  ensino.  Em  primeiro  legar  é  ella  qae  es- 
tabelece  a  harmonia  entre  as  nogSes  obfectivas  e  as  concep98es  ntbje-^ 
<tò^oa»,  fazendo  consistir  a  verdade  n'esta  intima  rela^Bo.  Emqoanto 
na  mentalidade  humana  preponderaram  as  no^Ses  sabjectivas,  crea- 
ram-se  as  religiSes,  e  as  fiumldades  intellectaaes,  som  a  dependencia 
dos  elementos  objectivos  do  conhecimento,  foram  levadas  k  hallacina- 
-980.  No  ensino  publico  e  domestico,  todos  os  pedagogistas  partiram  dà 
necessidade  inicial  da  edaca9So  religiosa,  caindo  no  erro  fatalissimo  de 
deflenyohrerem  prematuramente  nos  cerebros  das  crian9as  ama  activi- 
^dade  doentia;  a  «eeti^artsa^flo  do  ensino,  qae  ainda  nSo  foi  unanime- 
mente adoptada,  é  0  conhecimento  d'este  mal  radioado  na  instracgSo 
pablica;  por  outro  lodo,  a  reacfSo  do  espirito  crìtico,  limitando  ani- 
<»imente  0  ^sino  aes  dados  concretos  da  óbjecHmdade,  origina  am  mal 
<M>m  eonseqaencias  deprimentes,  taes  comò  0  desenvolvimento  excla- 
siTO  da  capaoidade  analitica,  om  acanhamento  de  vistas,  pela  absten- 
(io  dos  processos  dedactivos  e  de  synthese.  A  Philosophia  poritìva 
organisando  os  elementos  objectivos  na  hierarchia  theorica  das  Scien- 
cias,  é  que  ratifica  as  no98es  subjectivas  derivando-as  d'esses  elemen- 
tos, e  pertanto  nSo  receia  de  continaar  a  actividade  montai  no  seu  pieno 
-ezercicio  conduzindo-a  ao  normal  destino  snbjeetivo.  Assim  a  Philo- 
sophia positiva  é  a  anica  doutrina  qae  condnz  a  ama  Pedagogia  com« 
pietà,  porqae  ella  di-nos  um  conhecimento  da  eleva^So  geral  da  espeoie 


X  PREUMINAR 

humana  pelo  criterio  historico;  dà-noB  urna  Psychologìa  individuai  e 
collectiva;  dà-no8  urna  Methodologia  logica  deduzida  dos  processos  es- 
peciaes  de  cada  scienda;  e  pelo  conhecimento  biologico  do  dobbo  sér 
organico  eBtabelece  as  fórmaB  e  os  gr&OB  do  ensino  de  cada  edade  e 
do  conjuncto  daa  nossas  capacidades  activaB^  affectivas  e  especulativas^ 
snbordinadas  exclusivamente  a  um  firn  humano. 

Separando  as  Sciencias  geraes  das  especiaes,  irracionalmente  con- 
fundidaB  no  ensino  publico,  determinou  està  philosophia  a  prìmeira 
condi{2[o  pedagogica  para  o  estabelecimento  de  urna  instmcf&o  theorìca 
verdadeiramente  superior  e  independente  daB  reBtricfScB  necessariaB  em 
todas  as  disciplinas  concretas  ou  de  applica9ào.  0  criterio  historìpo, 
ou  propriamente  de  relatividade,  no  estudo  de  cada  sciencia  geral^ 
Berve  para  acompanhar  a  evola9So  progressiva  dos  methodos  mais  ou 
menos  mas  sempre  ligados  ao  desenvolvimento  das  doutrìnas  das  scien- 
cias.  É  ainda  esse  caracter  de  relatividade,  que  localisando  cada  sis- 
tema pedagogico  na  sua  època  e  corrente  historica,  corno  as  UhiverH- 
dades  do  firn  da  Edade  mèdia  até  i  Benascenya,  as  Academias  nos 
seculoB  XVII  e  xvm  e  as  Polytecknicas  no  secalo  actual,  estabelece  a 
harmonia  de  cada  institaÌ92o  com  as  concep93es  dominantes,  fazendo 
sentir  as  suas  deficienciasy  o  estreito  espirìto  de  especialidade,  e  a 
necessidade  de  completar  o  ensino,  tomando-o  a  expressSo  do  saber 
moderno,  em  que  se  tenda  à  forma9So  de  urna  concep98o  geral  ou  Syn- 
these  que  dirìja  a  sociedade  bumana,  corno  o  estado  sentimental  da 
fé  religiosa  actuou  na  concordia  dos  espirìtos.  Taes  comò  se  conservam 
no  seu  automatismo  tradicional,  as  UniversidadeB,  as  Academias  e  as 
PoIytechnicaSy  nSo  podem  realisar  està  necessidade  da  consciencia  hu- 
mana,  porque  as  sciencias  fragmentadas,  especialisadas,  visando  i  ex- 
plora9Zo  da  pratica,  e  a  erudÌ9So  de  particularìdades  desconnexas,  nZo 
se  elevam  sob  a  compreesBo  dos  programmas  officiaes  a  uma  correla* 
9I0  de  doutrinas  aptas  para  fortìficarem  as  mais  sinceras  consciencias. 


PRELIHINAR  X] 

Achada  essa  correlafSo  theorìca  pela  philosophia  positiva,  fica  resol- 
vido  o  diffidi  e  até  hoje  insoluvel  problema  dos  gràos  do  ensino,  dis- 
crixniiiando-OB  nSo  pelas  disciplinas,  Bcientificamente  as  mesmas  em  to- 
doB  OB  griosy  maB  pela  Bua  maior  ou  menor  intensidade,  conforme  aB 
edades  e  o  CBtado  mental  e  Bodal  doB  que  aprendem.  E  aBsim  possi- 
vel  hoje  organisar  urna  inatrucgào  popular  mperior. 

Um  outro  problema  pedagogico  ainda  nSo  resolvido  cabalmente 
é  o  da  restanra^So  scientifica  das  disciplinas  humanistas;  decairam  no> 
secolo  XYi  do  seu  grào  superior  de  Facaldade  de  Artes,  e  constituiram 
0  ensino  mèdio,  dementar  ou  lyceal,  onde  conservam  o  acanhado  for- 
malismo da  tradisse  scholastica  da  Edade  mèdia.  Diante  da  vulgarisa- 
$So  daa  sciendas  cosmologicas,  experimentaes  e  praticas,  que  se  des* 
envolireram  activamente  desde  o  seculo  xvii,  as  Universidades  abri- 
ram-se  a  esses  novos  estudos  agrupados  sob  a  designas&o  de  Philoso- 
phia fuxturalj  e  no  ensino  secundarìo  foram  caracterisados  pela  sua 
objeetiyidade  concreta  corno  Realismo,  restringindo  o  campo  consagrado 
é  cultura  das  humanidades.  No  emtanto  conserya-se  na  instrucs^o  su- 
perior essa  fiolba,  ao  passo  que  a  moderna  erudisSo  renovou  o  estudo 
dos  linguaB  classicas  pelo  criterio  comparativo,  transformou  a  gram- 
matica goral  na  glottologia,  relacionou  as  litteraturas  com  os  seus  ger- 
mena  tradicionaes,  com  as  luctas  sociaes,  e  com  as  fórmas  estheticas 
universaes  determìnadas  pela  expressSo  do  bello;  e  emquanto  à  antiga 
psycliologìa  introspectiva,  alargou-se,  depois  de  subordinada  à  physio- 
logia,  até  à  manifestasse  da  alma  coUectiva  das  rafas,  das  nacionali- 
dades,  e  do  saber  popular.  A  critica  recebeu  tambem  um  espirita 
sdentifico,  crìando  a  historia  das  Litteraturas,  e  transformando  o  mate- 
rial da  archeologia  classica  em  uma  reconstrucsZo  integrai  da  historia. 
"^^co,  Wolf,  Niebuhr,  Winckelman,  Otfried  Muller,  Creuzer,  Welcker, 
raBgam  estcB  novos  horìsontes  do  saber  humano  dando-lhes  o  titula 
generico  de  Philologia,  presentindo  que  estes  documentos  vivos,  que 


j 


lai  PRELIMINAR 

revelam  a  cessencia  intellectual  das  nacionaliclades»  preoisavam  ser 
fecuudados  pela  philoBophia.  Tal  era  o  problema  proposto  por  Vico^ 
reclamando  a  allian9a  da  Philosophia  e  da  Philologia;  era  està  a  via  por 
onde  OS  estudos  humanistas  retomariam  a  sua  superior  8Ìtaa9lo  scien- 
tifica. Sómente  a  Philosophia  que  relacionadBe  os  phenomenos  cosmo- 
logicos  e  biologicos  oom  os  phenomenos  sooiaes,  sabmettendo-os  àa 
mesmas  leis  pela  observafSo,  e  sómente  depois  de  fdndada  a  Sociologia 
pelo  conhecimento  da  continuidade  historica,  é  que  todos  esses  conhe- 
cimentos  de  erudigSo  se  coordenariam  systematieamente  em  urna  com- 
pleta Facìddade  sociologiea,  comprehendendo  as  crea93es  historicas  e 
ACtuaes  produzidas  pela  sociedade.  E  ama  vez  estabeledda  pela  conti- 
nuidade historica  a  solidariedade  da  Ciyilisa9&o  Occidental,  com  os  sena 
varios  centros  hegemonicos  na  orla  do  Mediterraneo,  e  sua  expansSo 
para  a  Europa  centrai,  que  hoje  a  continua  em  capitaes  ou  fócos  in- 
tensos  de  progresso,  immediatamente  se  comprehende  a  necessidade 
de  nSo  esquecer  os  monumentos  da  civilÌ8a9So  greco-romana,  de  que 
sdmos  herdeiros;  a  Philosophia  positiva  libertando-nos  do  fetichismo 
da  auctoridade  classica  restitue-Ihes  o  seu  legar  na  pedagogia. 

Os  trabalhos  de  compila^fto  de  documentos  para  a  historia  de  uma 
corpora9Ao  scientifica  com  seis  seculos  de  ezistencia  embara$am  fan- 
damentalmente  a  critica,  se  ella  n&o  fòr  dirigida  por  uma  vista  synthe- 
tica  da  historia  moderna;  iste  fez  com  que  todas  as  tentativas  sobre  a 
historia  da  Universidade  de  Coimbra  até  hoje  ficassem  fragmentarias. 
Os  nossos  materiaes  accumularam-se  indigestamente  antes  da  posae 
d'essa  synthese,  cuja  verdade  verìficàmos  pela  applicasse. 

E  à.  medida  que  procuravamos  o  encadeamento  chronologico  doa 
factoB,  a  corrente  das  idéas  na  Europea  é  que  Ihes  accentuava  todo  o 
seu  relévo,  e  quasi  que  espontaneamente  se  dispunham  comò  ulterior 
comprovaySo,  constituindo  os  cortes  naturaes  das  épocas  historica  a, 
que  assim  deixavam  de  ser  uma  divisfto  arbitraria. 


PREUMINAR  Xlil 

A  irevolufSo  moderna,  que  se  inicia  ao  terminar  da  Edade  mèdia, 
ouracterìsa-se  pela  dissohiy&o  do  Poder  espiritoal  da  syathese  theolo- 
gica  tendendo  a  ser  substitaida  por  urna  outra  fórma,  ora  crìtica  e 
scientifica,  e  pela  qneda  do  regimen  feadal  oa  militar  substituido  pela 
entnida  do  Proletariado  na  vida  civil,  intervenySo  empirica  da  dictadnra 
monarchica,  e  preponderancia  da  actividade  industriai.  Essa  revola9Zo^ 
que  ainda  nSa  està  terminada,  caracterisa-se  principalmente  corno  tn- 
tdledual  e  social;  e  per  certo  nma  das  caueas  que  até  faoje  tem  em- 
bara^ado  o  seu  advento  A  edade  normal  pode  attrìbnir-se  ao  aban- 
dono  ou  subai temidade  em  que  junto  a  esses  factores  especulativo  e 
activo  ficou  0  elemento  effectivo,  cnja  presidencia  fizera  da  Edade  mèdia 
urna  època  fecunda  de  reorganisa^Bo. 

Para  cemprehender  o  aspecto  intéUeetual  da  RerolufSo  occidental 
iìteios  determinar  o  seu  influito  nos  faotos  concretos  e  sua  simples  coor» 
denafSo  da  Historia  da  Uhiversidade  de  Coimbra  nas  svlob  relagSes  eam 
a  Ifutruo^  publica  porhigueza, 

NSo  è  sem  assembro  que  vémos  a  intelligencia  portugueza  coope^ 
rando  na  actividade  dos  espiritos  no  firn  da  Edade  mèdia,  por  uma 
fórma  universal,  corno  em  Fedro  Hispano,  que  prepondera  estimulanda 
a  disaolu^So  dialectica  com  as  suas  Summulas  logicai  até  ao  meada 
do  acculo  xvi.  E  se  a  ac9So  de  Portugal  na  ciyffi8a9So  europèa  è  co- 
nfaecida  especialmente  pela  actividade  com  que  explora  o  Atiantico^ 
dretanda  a  Africa  e  abre  o  caminho  da  Asia,  dando  a  volta  do  globo^ 
corno  nSo  è  digno  de  assembro  esse  grande  seculo  em  que  a  par  dea 
fortea  navegadores  e  oecupadores  dos  vastos  continenteS|  dominavamoa 
intellectualmente  na  Europa,  brìlhando  naa  Universidadea  da  Italia, 
da  iVan^  e  da  Belgica  com  os  principaes  humanistaa  da  Bena8cen9a» 
No  decurso  da  dissoluySo  critica,  a  intelligencia  porti^eza  levou  mala 
longe  o  estandarte  da  negaySo  que  preparou  a  syntheae  de  Bacon  e 
Pescartes,  no  libello  celebre  de  Francisco  Sanches;  e  emquanto  àa 


XIY  PREUMINAR 

doutrìnas  aociaes  da  soberania  nacional,  Valasco  de  Gouvéa  formala 
a  eztincsSo  da  auctorìdade  temporal  absoluta  explicando  o  poder  corno  • 
um  mandato  revogavel.  Sem  o  conhecimento  das  lactas  dos  Jesuitas 
contra  os  sabios  do  Port  Royal,  que  fecandavam  o  ensino  pela  syn- 
these  cartesiana,  nZo  se  avalia  a  acffto  da  Con^ega^o  do  Oratorio 
no  ensino^  e  a  origem  das  reformas  iniciadas  pelo  Marquez  de  Pombal. 
Vista  a  està  laz^  a  historia  de  urna  corpora9So  docente,  em  que  pre- 
ponderam  os  actos  de  ama  regaIamenta9Zo  esteri!,  toma-se  um  corno 
que  interessantissimo  drama  intellectual,  obedecendo  a  um  argumento 
•em  que  cada  paiz  collabora  sem  comtudo  conhecel-o. 

0  aspecto  social  da  grande  cjrìse  europèa  é  o  que  nos  g^a  na  Hia- 
torta  de  Portugal,  em  que  uma  pequena  nacionalidade  retoma  a  impor- 
tancia  capital  nos  destinos  da  humanidade,  comò  impulserà  da  sua  mar- 
«ha  definitiva  e  pacifica,  quando  na  Europa  acabaram  as  guerras  pri- 
vadas.  Coincidindo  a  crea9to  da  Nacionalidade  portugueza  com  a  època 
•em  que  cometa  a  dissolusSo  do  regimen  cathoiico-feudal,  a  marcha 
historica  d'este  novo  organismo  obedece  ao  impulso  d'està  dupla  revo- 
lu9to  montai  e  social.  O  apparecimento  de  uma  popula9So  livre,  os 
Mosarabes,  apeaar  de  todas  as  anacbronicas  restaura93e8  do  Codigo 
visigotico,  e  a  unificajSo  das  cidades  livres  ou  Behetrias,  pelo  pacto 
das  cartas  de  forai,  em  uma  Patria  portugueza,  correspondem  ao  ad- 
vento  do  proletarìado  comò  um  novo  factor  das  sociedades  modemas. 
Sobre  esse  elemento  se  apoia  a  dictadura  temporal,  em  que  a  Realeza 
aubmette  o  dero*  e  a  nobreza  militar  à  sua  auctorìdade  soberana  fun- 
damentada  nos  codigos  romanos  explicados  no  ensino  secular  das  Uni- 
versidades.  E  se  està  crìse  montai,  que  fortalece  o  poder  real,  coadjuva 
a,  independencia  da  sociedade  civil  pela  ac^So  dos  Jurìsconsultos,  essa 
mesma  crìse  em  uma  outra  phase  mais  intensa  provoca  as  duas  reac- 
93es  da  Inquisisse  e  dos  Jesuitas,  que  vieram  pertu^ebar  a  evolu9&o 
nacional  e  dar  à  Casa  de  Austria  a  supremacia  tempond,  levando-a  a^ 


PREUMINAR  XV 

incorporar  Portagal  na  nnìdade  hespanhola.  A  loz  d'estes  phenomenos 
capitaes  da  Ustoria  moderna  da  Europa,  explicam-se  claramente  as 
conBeqaencias  da  politica  de  Henrique  iv  e  Richelieu  na  restaara92Lo 
de  Portugaly  e  as  consequencias  da  Revoluto  franceza  na  queda  do 
absolutismo  e  estabelecimento  do  regimen  das  cartas  outorgadas.  E  um 
principio  vital,  que  conduz  a  urna  segura  coordenasSo  os  factos  mais 
complicadoB  da  cathegoria  montai,  affectiva  e  social. 

Por  seu  tomo  o  elemento  affectì/oo,  qne  provocava  a  elabora^So 
dos  tbemas  tradicionaes  das  Litteraturas  modemas,  supplantado  pelo 
pnirido  da  imita9&o  classica  da  idealisa^So  poljtheica,  fica  estudado 
nos  materiaes  ji  publicados  a  que  cham&mos  Higtoria  da  Litteratura 
fortugueza,  onde  o  nosso  criterio  se  vae  modificando  segundo  a  melhor 
comprehensSo  d'esse  elemento  sentimental. 

Quando  no  seculo  xiu  se  estabelecem  as  novas  nacionalidades, 
dando  em  resoltado  o  desenvolvimento  progressivo  das  Linguas,  e  o 
tomarem-se  aptas  para  a  ExpressSo  artistica,  é  quando,  pela  dissolu- 
9^0  do  regimen  catholico-feudal,  que  se  opera  espontaneamente,  de- 
caem  tambem  os  Thomas  da  idealisa93o  social.  As  novas  Litteratu- 
ras coopéram,  ora  na  transforma9to  espiritual,  pelas  composi^Ses  sa- 
tyricas,  ora  centra  o  poder  temperai  pelas  gestas  heroicas  dos  grandes 
vassalos;  e  no  meio  da  desorientafSo  do  sentimento,  os  escriptores  se- 
param-se  do  povo,  e  lan9am-se  à  imita9&o  banal  das  crea93es  littera- 
rìas  do  mundo  greco-romano  na  Renascen9a,  ou  &  renova9So  da  Edade 
mèdia  no  Romantismo.  SSo  tambem  estes  os  caracteres  communs  a 
tódas  as  Litteraturas  occidentaes,  comprovados  pelo  criterio  historico- 
comparativo. 

Eis  o  plano  completo  em  que  se  exercem  os  nossos  estudos  sobre 
a  Civìlisa9So  portugueza;  e  se  alguma  cousa  nos  incita  ao  trabalho,  é 
o  qoe  ordinariamente  se  despreza, — é  o  espirito  de  sjstema,  que  Vol- 
taire exige  corno  convergencia  de  toda  a  actividade. 


r 


HISTORIA 


UNIVERSIDADE  DE  COIMBR 


INTEODUC<JAO 

A  FUNDACÀO  DAS  UNIVERSIDADES 
E  A  DISSOLUQÀO  DO  REGIMEN  CATHOLICO-FEUDA 


Cai»ct«t  da  Civilisti^  occìdenUl. — 0  que  foi  a  Edade  mèdia:  Conatitui 
Poderes  em  que  useota  o  Regimen  Catholico-feudal. — 0  que  caraci 
Edade  moderna;  I>ÌBHola;3o  d'esae  regimen.— 0  Foder  eapiritual  e 
tfaese  theologica  decae:  a  descoberta  da  Logica  de  ArìatoteleB. — A 
berta  das  Pandeetai  e  o  estabelecimento  da  Dictadura  temperai. — 
do  seciilo  sm:  aepecto  da  primeira  BenaBceoQa. — A  EeroltifSo  oci 
DO  sen  aapecto  intellectoal  toma  o  caiacter  metaph^aico  doa  Outolog 
A  creafSo  da<  UnivereìdadeB  corresponde  a  eeta  crise  inteltectual  ; 
Da  Europa  comò  centro  de  especulBfào  metaphjatca,  embarafando  a 
tnifio  do  DOTO  Poder  espìrìtual  da  Sciencìa  e  o  predominio  da  Syntb 
aiti  va. 

Uha  èra  que  termma  e  ama  edade  nova  que  se  micia  apret 
o  caracter  complexo  e  até  certo  ponto  indeterminado  de  urna  e 
posifSo  e  recompoBÌ(So  aimultaneaB  da  velha  synthese,  ou  con 
das  opioiSes  em  que  se  baseava  a  ordem  do  passado;  e  das  aspi 
vagas  que  tendem  a  systematisar-se  no  progresso  do  fìituro.  A 
fSo  das  Umversidades  no  seculo  xn  foi  um  resultado  do  phen 
capital  da  transibrma^o  do  regimen  cathotico-fendal,  que  dirigir 
o^amBa9So  da  sociedade  europea  da  E^de  mèdia;  e  eseas  co 
93es  docentes  appareceram  comò  tim  esbogo  do  novo  regimen  i 
clual  qne  orientava  os  espìritos  que  se  iam  desligando  da  sy 
theologica.  0  ferver  com  que  se  estabeleceram  Universidade»  i 
dos  OS  Estados  da  Europa  occìdental  aSa  proveiu  simplesmente  i 


2  HISTORIA  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

imita9So  ou  rivalidade,  m^  da  tendencia  caracterìstica  da  grande  crìse, 
essencialmente  intellectual,  que  se  prolonga  em  ama  fórma  revolucio- 
naria  desde  o  seculo  xu  até  ao  secido  xix,  que^  apesar  dos  seus  enor- 
mes  progressos  scientificos  e  ìndustriaes,  ainda  nSo  attingiu  o  estado 
nomai  da  synthese  positiva. 

Seguir  a  eyoIu9So  historìca  das  Universidades  na  Europa  é  acom- 
panhar  a  larga  elabora92Lo  mental  e  social,  que  comeya  no  conflicto  en- 
tro 0  Poder  espiritual  da  Egi*eja  e  o  Poder  tempora!  da  Realeza,  con- 
flicto em  que  cooperaram  os  metaphysicos.OntoIogistas  armados  com 
a  Logica  de  Aristoteles,  e  os  Legistas  interpretando  o  texto  das  Pan- 
dectas.  Todas  as  phases  d'està  lucta,  quer  nas  tentativas  de  reac9SU> 
dos  Dominicanos  e  Franciscanos,  nos  seculos  xiv  e  xv,  quer  do  Pro- 
testantismo e  Jesuitismo,  nos  seculos  xxi  e  xvn,  quer  do  Deismo  pbi- 
losophico  e  Atheismo  encyclopedista,  no  seculo  xvm,  até  à  crise  final 
conhecida  pelo  nome  de  RevolujIU)  franceza,  essas  phases  de  decom- 
posigào  ora  espontanea  ora  systematica,  constituem  a  trama  da  historia 
moderna,  &  qual  està  ligada  a  acgfto  das  Universidades  comò  fócos  de 
dissolufSo  metaphysica.  As  denomina9Ses  de  Estudo  geral.e  Universi- 
dade  encerram  implicito  oste  dualismo  historico  com  que  se  abre  a  èra 
moderna. 

Para  comprehender  a  historia  de  uma  qualquer  Universidade^  em- 
bora  secundaria  ou  sem  ac9fto  fora  do  seu  meio  nacional,  é  imprescìn- 
divel  este  criterio  sobre  a  solidariedade  morali  intellectual  e  politica 
da  Europa  durante  a  Edade  mèdia,  solidariedade  que  se  toma  uma 
clara  expressSo  da  Civilisa9So  occidentale  que,  atravès  de  todas  as  ca- 
tastrophes  que  tém  atrazado  este  continente,  irrompe  sempre  com  as 
mais  limiinosas  Renascengas.  Antes,  porèm,  de  caracterisarmos  a  so- 
lidariedade moral  da  Edade  mèdia,  è  preciso  conhecer  o  aspecto  da 
CivilisajSo  Occidental,  esse  phenomeno  singular  e  prodigioso,  que  deu 
aos  povos  da  Europa  a  hegemonia  humana  e  o  dominio  sobre  o  pia- 
neta. Come9ou  na  bacia  do  Mediterraneo,  no  isolamento  do  Egypto, 
que  elaborou  serenamente  todas  as  idéas  moraes  e  attingiu  a  estabili- 
dade  social  ;  foi  propagada  pelos  Phenicios,  que  pelas  expedÌ95es  com- 
mereiaes  crearam  as  rela$3es  pacificas  de  cosmopolitismo;  a  Grecia 
continuou-a  na  liberdade  de  sentimento  das  crea^Ses  artisticas,  e  nas 
mais  arrojadas  especula98es  philosophicas;  Roma  applicou  esses  pro- 
gressos a  um  destino  social,  determinando  a  lei  civil,  e  incorporando 
n'esta  coopera9fto  as  ra9a8  barbaras  da  Europa,  Gaulezes,  Iberos,  Bre- 
trScs  "é  Germanos.  Finalmente,  dos  esfor90s  conjugados  d'esses  velhos 
elementos  elabora-se  na  Escola  de  Alexandria  a  doutrina  universalista 


INTRODUCglO  3 

do  Christianismo;  e  ainda,  da  inva&fto  dos  Arabes  na  Europa  restdta 
urna  prìmeira  Renascen^a  dos  elementos  d'essa  CivilisasSo,  que  elles 
conheceram  rapidamente  através  da  Grecia,  e  que  esteve  latente  sob 
a  corrente  das  invasSes  dos  barbaros  germanicos,  fixadas  pela  acQSo 
defensiva  de  Carlos  Magno.  0  caracter  intimo  da  Civilisa9So  Occiden- 
tal é  a  sua  transmissibilidade  e  desenvolvimento  camolativo,  sendo 
contìnuada  de  nafSo  para  nafSo,  e  sempre  provocando  a  manifestagSo 
das  energias  individuaes,  activas,  affectivas  ou  especnlativas.  A  sua 
longa  contìnuidade  tomou-a  tS,o  organica  j&  entro  os  povos  da  Europa, 
que  mesmo  através  dos  cataclysmos  sociaes,  a  CivilisajSo  ocddental  nSo 
se .  estingue,  e  facilmente  revive,  comò  se  observa  na  Renascenga  do 
seculo  xm,  em  que  as  Universidades  se  propagam  ampiamente,'  e  na 
do  seculo  XVI,  em  que  as  Universidades  ciem  sob  a  influencia  huma- 
nista,  dos  Jesuitas,  que  as  embarajam  de  continuarem  as  descobertas 
scientificas  que  se  accentuaram  depois  da  mathematica  e  da  astronomia 
gregas.  A  oste  temperamento  de  civilisa9to,  j&  constitutivo  do  orga- 
nismo europeu,  deu  Augusto  Comte  o  nome  significativo  de  occidenta- 
lidade;  e  esse  temperamento  apparece  nas  civilisa93es  modemas  que 
a  Europa  transmittiu  às  Americas  e  India.  ' 


1  £m  um  estudo  de  Leo  Joubert,  sobre  A  Italia,  o  Papado  e  a  Edade  mèdia, 
acham-se  estas  luddas  observa^oes  crìticaa:  «A  dvìlìsa^ào  occidentale  o  conjim- 
ciò  das  idéas  intellectuaes,  sociaes,  religiosas,  politicas,  no  melo  das  quaes  e  pe- 
las  qnaea  o  nesso  Occidente  se  desenvolveu,  nilo  é  um  facto  geral,  necessario,  com- 
munì  a  todas  as  ra9as  humanas  ;  é  um  facto  particular,  contingente,  que  faltou  à 
nudorìa  do  genero  humano,  e  que  poderia  ter  faltado  4  minoria  cuja  grandeza  creou. 
NSo  é  um  facto  fatalmente  lìgado  a  certos  climaa  :  acha-se  nas  mais  differentes 
latitudes;  nem  a  certas  ra^as  :  alguns  milhares  de  inglezes,  que  na  India,  pela  sua 
superiorìdade  moral,  mais  ainda  do  que  pela  for^a  physica,  sào  da  mesma  ra^a 
que  as  mjriadas  de  subditos  curvados  sob  o  seu  ascendente.  A  enorme  differen9a 
entre  o  Europeu  e  o  Asiatico  provém  da  immensa  superiorìdade  da  civilisa^So  do 
Occidente  sobre  a  civilisa^So  do  Oriente.  Està  ciyilisa^So,  que  constituiu,  em  pro- 
veito  da  Europa,  a  arìstocracia  do  genero  humano,  é  urna  crea^  dos  Gregos,  for- 
tificada  e  completada  pelos  Bomanos,  um  facto  especial,  nSo  necessario,  que,  bem 
considerando  as  coisas  humanas,  podia  nSo  ter-se  produzido,  e  urna  vez  produzido 
podia  ter  sido  destruido.  Quando  a  Grecia  succumbiu  sob  as  armas  de  Roma, 
quando  Roma  por  seu  turno  foi  entregue  aos  golpes  dos  Barbaros,  a  civilisaQSo, 
que  o  christianismo  nSo  tinha  ainda  penetrado,  depurado  e  transformado,  teve 
mister  de  um  concurso  particular  de  circumstancias  para  nSo  perecer  arrastando 
na  sua  queda  o  futuro  do  genero  bumano.  Supprimi  a  civilisa^So  greco-romana, 
lectificada  e  acabada  pelo  christianismo,  e  verémos  que  nada  impede  que  os  po- 
vos da  Europa  càiam  para  sempre  em  um  estado  social  incompleto  e  enervante, 
corno  o  da  India  ou  o  da  China.»  (Esaais  de  Critique  et  éPHiaimre,  pag.  307.) 

1* 


^  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

A  coii8titaÌ9to  da  Edade  mèdia  da  Europa^  que  se  determina  no 
laborioso  estabelecimento  do  Poder  espiritoal  da  Egreja,  representado 
no  Papa,  e  no  estabelecimento  do  Poder  temperai,  disperso  no  feuda- 
lismo germanico,  e  concentrando-se  no  Imperador,  nSo  se  comprehende 
som  se  estabelecer  a  reIa9ào  dos  elementos  moraes  da  profìinda  Civi- 
lisa^So  Occidental  que  persistiram  depois  da  queda  de  Roma  com  a 
traiismìsBSo  da  sède  politica  para  Byzancio.  Sem  esses  elementos  mo- 
raes, conbecidos  e  persistentes,  a  Edade  mèdia  apparece  aos  historìa- 
dores  firagmentarios  comò  uma  edade  de  trevas  e  de  retrocesso;  obser- 
vando  a  tenaz  sobrevivencia  da  CivilisaQSo  Occidental,  a  Edade  mèdia 
é  uma  època  fecunda,  onde  se  elaboram  todas  as  factores  da  civili- 
sa^So  moderna,  comò  t2o  bem  o  perceberam  Comte,  Mackintosh  e  Phi- 
larète  Chasles.  Foi  a  quebra  da  solidarìedade  historìca  greco-romana 
pelo  Catholicismo,  que  determinou  essa  parte  de  retrocesso  em  alg^ns 
seculos  da  Edade  mèdia;  da  mesma  fórma  que  a  negasse  da  Edade 
mèdia  na  època  da  Renascenga  e  ainda  sob  e  encyclopedismo  rovo- 
lucionarìo,  embaragou  os  mais  lucidos  espìrìtos  de  poderem  conceber 
as  bases  difinitivas  da  Scienda  social.  A  acsSo  que  a  Fran9a  exerce 
em  teda  a  Europa,  desde  as  cruzadas  e  influxo  do  lyrismo  proven9al, 
atè  à  propaganda  democratica  do  fim  do  secolo  xvm  nSo  è*  mais  do 
que  ainda  o  desenvolvimento  da  CivilisaQSo  occidental  sob  uma  nova 
presidenda,  em  que  a  begemonia  da  Roma  foi  por  seu  turno  substi- 
tnida  pela  Franya  que  recebera  a  sua  cultura. 

Pelas  invasSes  germanicas  a  Italia  foi  devastada,  e  Roma  aban- 
donada,  tornando-se  Byzancio  a  capital  do  Imperio.  Por  mais  simula* 
eros  de  grandeza  de  que  se  cercasse  Constantino  para  ostentar  a  sobe- 
rania,  fallava-lbe  em  volta  de  si  esse  perstigio  tradicional  que  imprìmira 
aos  logares  uma  luz  moral.  Roma  n2o  tinha  em  si  o  throno  do  Impe- 
rador  legislando  tirbi  et  orbi,  e  na  parte  administrativa  MilSo  e  Ra- 
vena  è  que  exerciam  a  auctorìdade;  mas  apesar  de  isso  Roma  ezercia 
uma  fa8CÌna9So  profìmda,  influindo  no  seu  Bispo  um  poder  que  a  popu- 
la^So  se  acostumara  a  respeitar  e  que  prodamara  corno  sua  defeza  diante 
das  bordas  de  Alarico  e  de  Genserico.  Foi  assim  que  nasceu  esse  Poder 
espiritual,  que  se  mostrava  desinteressado,  e  que  foi  civilisador  emquanto 
exerceu  a  func^&o  sublime  de  reprimir  os  fortes  e  defender  os  firacos. 
Nas  invasSes  dos  Ostrogodos  e  dos  Lombardos,  os  reis  germanicos,  comò 
Odoacro  e  Theodorioo  pretendiam,  dominando  a  Italia,  tomarem-se  os 
oontinuadores  do  Imperio  romano,  que  elles  so  comprehendiam  pelo 
deslumbramento  exterior.  Como  os  Papas  nSo  podiam  luctar  para 
con<^ntrarem  em  si  a  realeza  monarchica,  luctaram  a  &vor  da  liber- 


INTRODUCglO  5 

dade  mnnicipaly  e  d'està  rivalidade  resnltaram  o  Poder  espiritual,  fa- 
vorecendo  as  autonomias  provinciaes  e  o  federalismo,  e  o  Poder  temr 
porci  dos  Lnperadores  germanicoB,  desenvolvendo  o  feudalismo  unita- 
rista. É  sob  Carlos  Magno  que  os  Papas  acham  o  modo  de  fixar  o  sea 
Poder  espiritual  sobre  urna  base  temperai;  e  pelo  celebre  pacto  de 
LieAo  e  Carlos  Magno,  o  Sacerdocio  e  o  Imperio  harmonisam-se,  fi- 
cando  o  Imperador  o  herdeirp  da  supremacia  cesàrea  de  Byzancio,  e 
Gom  a  chefatura  de  todas  as  na98es  do  Occidente;  pelo  seu  lado  o 
Papa,  confirmado  pelo  Imperador,  a  quem  competia  a  obrigafSo  de 
protegel-o,  recebia  os  dominios  do  ezarchato  de  Ravena,  sobre  que 
assenta  as  suas  ambi^Ses  temporaes.  Era  o  germen  das  luctas  entro  ob 
dois  prìndpios;  emquanto  o  Sacerdocio  e  o  Imperio  se  entenderam,  a 
Egreja  pela  sua  vasta  propaganda,  alargou  pela  unanimidade  dos  cre- 
dulos  o  poder  sobre  as  consciencias,  apoiando-se  entto  a  sociedade  oo- 
cidental  sobre  a  synthese  theologica,  essencialmente  affectiva.  No  se- 
culo  xn  cometa  a  dissolu^Eo  d'este  regimen  da  Edade  mèdia,  que 
Angusto  Comte  denomina  ,catholico-feudal,  derivando  d'esse  facto  os 
problemas  da  Edade  moderna:  e  A  Edade  mèdia  legava  ao  Occidente 
dois  grandés  problemas,  egualmente  irrecusaveis — a  digna  incorpo- 
ra^So  do  proletariado  à  ciyilÌ8a9So  industriai,  e  sub8tituÌ9&o  da  fé  mono- 
theica  por  uma  synthese  demonstravel.»^  A  tradÌ9So  das  municipali- 
dades  romanas,  que  ezistia  nas  cidades  conquistadas  pelos  Germanoe, 
reviveu  no  seculo  xn,  quando  as  tres  dasses  sociaes  dos  capUanei,  on 
grande  nobreza  feudal,  vcdvaesores  ou  pequena  nobreza,  e  os  popatares 
ou  plebe,  se  ligam  constituindo  as  CommuTioB,  com  poder  soberano,  e 
govemando-sé  por  estatuto  proprio,  comò  se  ve  em  Portugal  com  os 
Foraes  e  nas  Behetriasde  Hespuiha.  A  descoberta  do  manuscripto  das 
Pcmdectas  em  Amalfi  em  1135,  &  parte  a  lenda  sobre  o  seu  achado 
pelos  Pisanos,  veiu  actuar  sobre  o  estudo  do  Direito  romano,  por  meio 
do  qual  o  Poder  real  achou  a  fórma  de  definir  a  soberania  absoluta, 
e  apoiado  pelos  legistas,  caminhou  para  essa  concentra9to  da  dieta- 
dura  temporal  que  dirigiu  a  Europa  no  seculo  xv.  0  renascimento  do 
Direito  romano  obedecia  tambem  &  tendencia  universalista,  sobre  que 
se  propagara  o  Catholicismo  :  «Desde  Carlos  Magno,  diz  Lerminìer, 
accentuara-se  o  costume  de  considerar  uma  grande  parte  dos  povos  e 
dos  estados  da  Europa  comò  estreitamente  unidos,  e  a  reconhecer  no 
meio  das  diversidades  nacionaes  alguma  cousa  de  commum.i'  Estes 


1  Comte,  Sytùme  de  PóUtigue  positive,  t  ni,  p.  512. 

*  LUroductian  generale  à  VHiatoire  du  Droit,  p.  148.  Ed.  BmxeUes,  1886. 


6  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

caracteres  communs  eram  a  occidentalidade,  que  come9aYa  a  revelar-se 
desde  que  o  oonliecunento  da  jnrisprudencia  romana  era  coltivado  nas 
cidades  livrea  por  individuos  insolados;  a  quem  a  sociedade  cercava 
das  masimas  considera^Ses,  e  para  quem  os  nomea  de  Mestrea  e  Dau- 
torea  antecederam  toda  a  diaciplina  de  um  profeaaorado. 

Na  tranais^o  do  regimen  catholico-feudal  aa  Cidadea  livrea  ele- 
geram  oa  aeua  preaidentea,  ligaram-ae  em  pactoa  federativoa,  maa  na 
aua  aapira^So  de  independencia  deamembraram-ae  em  corporaySea, 
irmandadea  e  germaniaa,  em  um  individualiamo  de  claaae,  e  egoiamo, 
que  aa  fez  cahir  ji  aob  a  t}rrannia  doa  proprioa  chefea^  comò  aa  tyran- 
nìaa  gregaa  e  italianaa^*  ji  aob  a  dictadura  monarchica.  Aaaim  o  pro- 
blema do  proletariado  foi  afaatado  da  aua  8olu9to  naturali  pelo  empi- 
riamo  de  urna  concentraySo  monarchica  no  acculo  xv,  e  a  tranaforma- 
gSo  do  regimen  catholico-feudal^  na  revolu9So  do  Occidente  apreaentou 
um  aapecto  accentuadamente  montai.  É  por  iaao  a  hiatoria  daa  Uni- 
veraidadea  uma  obaervajSo  d'eate  aapecto  eapecial  da  ciiae  que  vem 
deade  o  acculo  xn.  A  deacoberta  da  Logica  de  Ariatotelea  exerceu  na 
ordem  eapiiìtual  uma  ac9So  emancipadora,  comò  a  daa  Pandectas  na 
reorganiaa9&o  do  Poder  tempora!.  Oa  varioa  tratadoa  que  conatituem 
a  Logica  ariatotelica  com  o  nome  de  Organum  vulgariaaram-ae  no  ac- 
culo XI,  dando  logar  &  actiyidade  metaphyaica  doa  Ontologiataa,  que 
aobre  uma  phraae  do  commentario  de  Porphjrio,  eatabeleceram  a  fer- 
voroaa  querella  do  Nominaliamo  e  Realismo,  que  no  fundo  ae  reduz 
ao  problema  paychologico  do  criterio  objectivo  e  aubjectivo  relacionadoa 
por  ELant  aobre  oa  trabalhoa  da  eachola  eacoaaeza.  A  obra  do  Ariatotelea 
oontrapoz-ae  em  auctoridade  i  Biblia,  e  a  Egreja  receiou  diminuir-ae 
o  aeu  poder  chegando  a  prohibir  o  aeu  eatudo.  A  corrente  doutrinaria 
do  ariatoteliamo  era  forte,  e  irrompeu  por  todaa  aa  eacolaa;  a  obra  do 
philoaopho  era  commentada  por  Alberto  Magno  ;  e  S.  Thomaz  de  Aquino 
explicava  aa  partea  maia  difficeia.  Durante  toda  a  lucta  inteliectual  de 
diaaolufSo  da  ayntheae  theologica,  aempre  o  ariatoteliamo  foi  o  ponto 
de  apoio  da  razBo,  aervindo  tambem  oa  que  combatiam  pela  fé,  corno 
ae  ve  no  enaino  exduaivo  da  philoaophia  peripatetica  pelea  Jeauitaa, 
e  na  livre  critica  doa  Proteatantea. 

No  eatudo  de  Barthelemy  Saint  Hilaire  aobre  Ariatotelea,  attri- 
bue-ae  a  aua  profunda  influencia  na  Europa  ao  caracter  encydopedico 
daa  Buaa  obraa.^  NSo  era  aó  pela  diveraidade  doa  tratadoa  aobre  oa 
phenomenoa  aatronomicoa,  phyaicoa,  organicoa,  paychologiooa,  politicoa 


1  DieUamdrt  d$$  SdeMCi  phUoiophigueif  vb.*  Arìatote. 


INTRODUCgiO  7 

e  moraes,  que  a  ac{So  de  Aristoteles  sobre  a  intelligencia  europea  se 
exercia  de  nm  modo  emancipador  ;  era  principalmente  pela  nova  synthese 
que  trazia  à  consciencia  humana.  A  synthese  theologìca  baseava-se 
Bobre  a  Chraga,  a  grande  theoria  e  doutrina  sustentada  por  S.  Paulo, 
com  que  a  Egreja  se  separou  dos  philosophos  gregos  e  alexandrinos, 
e  a  essencia  de  todos  os  dogmas  do  catholicismo;  a  synthese  aristo- 
telica baseava-se  sobre  a  Natwreza,  immutavel  nas  leis  que  regem  a 
materia,  e  da  qual  os  corpos  e  as  suas  propriedades  s8o  manifesta98es 
contingentes.  Era  entro  estas  duas  syutheses  antagonicas,  a  do  arbitrio 
divino  e  a  da  immutabilidade  do  fatum,  ou  das  leis  naturaes,  que  se 
dava  o  conflicto,  em  que  o  Poder  espiritual  tendia  a  dissolver-se  em- 
quanto  à  cren9a  e  a  reconstituir-se  embora  pelo  processo  egualmente 
subjectivo  mas  critico  da  metaphysica.  A  synthese  de  Aristoteles  tinha 
side  o  resultado  capital  da  civilisa9So  hellenica  no  seu  periodo  mais 
elevado,  da  època  atheniense  do  seculo  v;  comò  conviria  uma  crea9&o 
d'està  ordem  a  uma  època  rudimentar  comò  o  seculo  xn  do  fim  da 
Edade  mèdia?  Ampère,  filbo,  explica  lucidamente  este  problema  da 
historia  ao  notar  a  tendencia  encyclopedica  da  sciencia  chineza:  aAs 
obras  encyclopedicas  pertencem  a  dois  periodos  da  vida  dos  povos,  às 
èpocas  primitivas  e  às  èpocas  muito  adiantadas.  Quando  se  sabe  pouco 
sente-se  anecessidade  de  tudo  abranger;  quando  se  sabe  muito  sente-se 
a  necessidade  de  tudo  resumir.  Os  primeiros  livros  dos  povos  contém 
a  massa  inteira  dos  seus  conhecimentos,  sob  um  envolucro  poetico  ou 
religioso,  em  uma  vasta  e  confusa  unidade.  Come9a*se  sempre  por  uma 
vista  de  conjuncto;  depois,  vae-se  do  universal  para  o  particular;  por 
ultimo,  depois  de  ter  estudado  em  detalhe  cada  parte  do  todo  recon- 
strue-se  esse  todo  que  se  tinha  decomposto;  e  assim  acaba-se  por  onde 
se  tinha  come9ado,  pelas  encyclopedias.i^  Para  confirmar  este  facto 
basta  notar  comò  o  espirito  das  Encydopedias  da  Edade  mèdia,  The- 
9OUT0S  e  Imagena  do  Mundo,  reapparece  no  seculo  xvm,  critico  e  ne- 
gativista,  na  Encyclopedia  de  d'Alembert  e  Diderot. 

No  primeiro  momento  da  crise  de  dissolufSo  do  poder  espiritual. 


1  Ampère  justifica  o  seu  peneamento  :  «Aonde  a  sociedade  é  ao  mesmo  tempo 
nova  e  envelhecida,  ponce  avan9ada  e  muito  atrazada,  ignorante  de  muitas  cousas, 
erudita  em  algmnas,  eziste  o  duplo  motivo  para  que  as  Encydopedias  se  produzam. 
Iato  acontece  na  Edade  mèdia.  A  Edade  mèdia  è  uma  crìan^a  que  nasceu  velha  : 
a  caducidade  da  sociedade  antiga  està  impressa  na  ingenuidade  da  sociedade  nova, 
0  seu  bei^o  è  nm  sepulchro.  A  Edade  mèdia  è  sabia  nas  suas  faizas,  e  ainda  no 
seio  da  sua  ama  morta,  balbucia  confusamente  as  cousas  passadas.  D*esta  sciencia 
precoce  e  incompleta  ezistem  varias  collec9oes  verdadeiramente  enoyclopedica8> 


8  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

• 

a  Egreja  nSo  receiou  que  a  sua  auctorìdade,  que  {undamentava  na  Vvl- 
gaia,  ou  a  Biblia  traduzida  por  S.  Jeronymo^  soffresse  com  a  influeu- 
cia  d'essa  nova  Vulgata  das  Pandectas  florentinas,  cujas  varìantes  col- 
lacionadas  pelos  jurisconsultos  de  Bolonha  se  fixaram  no  texto  defini- 
tivo que  mereceu  esse  nome  com  que  é-conhecido  na  historia.  Do  se- 
culo  xn  em  diante  cometa  a  condemna9So  ecclesiastica  do  Direito  ro- 
mano, e  S.  Bernardo  deplorava  que  lùesmo  no  palacio  pontificai  pre- 
valecesse  urna  Vvlgata  sobre  a  outra,  as  Leis  de  Justiniano  sobre  as 
Leis  de  Deus.  Os  Concilios  condemnam  o  Direito  romano,  e  prohibem 
0  seu  estudoy  corno  o  de  Reims  em  1131;  o  papa  Honorio  prohibe  em 
1220  esse  estudo  a  todos  os  padres,  chegando  até  a  pdlo  em  interdi- 
9S0  na  Universidade  de  Paris.  Filhas  d'este  movimento  de  emancipa- 
9^0  intellectualy  as  mais  antigas  Universidades  appresentaram  na  sua 
constituif&o  oste  dualismo  :  a  Universidade  de  Paris  distinguia*se  pela 
superioridade  do  ensino  da  Theologia  e  da  Philosophia,  emquanto 
a  Universidade  de  Bolonha  prevalecia  entro  todos  os  povos  pelas 
suas  escholas  de  Direito.  As  duas  Universidades  tomaram-se  os  typos 
fundamentaes  sobre  que  se  crearam  as  novas  Universidades  do  se- 
culo  xm;  na  italiana,  predominava  0  caracter  democratico,  em  que  os 
escholares  formavam  uma  classe  autonomica,  elegendo  0  seu  reitor  e 
chefes,  e  principalmente  os  professores  que  tinham  de  os  ensinar;  na 
parisiense,  o  corpo  escholar  formava  comò  que  um  pequeno  estado,  em 
que  OS  escholares  eram  os  subditos  de  um  reitor  com  auctorìdade  quasi 
soberana  sobre  eUes.  A  razlo  d'estes  dois  typos,  ligada  ao  movimento 
social,  que  coesiste,  embora  menos  accentuadamente,  na  dissoluQSo  do 
regimen  catholico-feudal,  està  implicita  na  indole  d'esses  dois  fócos  da 
Civilisa^So  Occidental  no  seculo  xm;  na  revolufSo  do  Poder  espiritual, 
os  Papas  nfto  conseguiram  fundar  uma  Realeza  unitaria  na  Italia,  e  as 
Ligas  federativas  e  cidades  burguezas  ou  municipaes  prevaleceram  so- 
bre a  organÌ8a9&o  feudal.  £m  Franga  a  realeza  franka  tomada  bere- 
di  tana,  caminhou  para  0  unitarismo  submettendo  a  si  os  grandes  vas- 
saloB,  e  creando  uma  concentragfto  absoluta  do  poder  tempora!  que  se 
tomou  complèta  sob  Luiz  XI.  O  grupo  septemtrional  das  nagSes  da  Eu- 
ropa, que  no  seculo  xvi  se  destacou  do  catholicismo,  ji  se  tornava  no 


pelo  menos  na  inteu^So  dos  seus  auctores,  chamadas  Thezouros,  Imagens  do 
mando,  qae  continham  sob  uma  fórma  j&  allegorica,  jà  puramente  didactica  a 
Bumma  dos  conhecimentos  de  nossos  paes.  Como  se  cria  em  Aristoteles,  na  Biblia 
e  algons  antigos  possuir  todo  0  saber,  n2o  se  recuaya  dlante  de  nenhoma  obracom- 
pleta  dt  omni  re  ecibiU,  e  comò  effectivamente  o  saber  era  Umitadissimo  era  fiicil 
bastante  o  contel-o  ahi  completamente.»  La  Science  et  le»  LeUres  en  Orient,  p.  66« 


INTRODUCglO  9 

secalo  xm  differente  das  nagSes  occidentaes  pela  preferencia  que  Ihe 
mereceu  o  typo  da  Universidade  de  Paris,  sobre  que  se  modelaram  as 
Universidades  da  Inglaterra  e  da  Allemanha.  0  grupo  occidental.pre- 
feria  0  typo  democratico  da  Universidade  de  Bolonha,  modelo  das  Uni- 
versidades do  meio-dia  da  Franga,  da  propria  Italia,  da  Hespanha  e 
de  Portagal. 

A  lucta  entro  o  Sacerdocio  e  o  Imperio,  emqaanto  &  parte  tem- 
poral,  e  da  Theologia  com  a  Philosophìa  emqaanto  à  parte  espirìtaal, 
simultanea  em  todos  os  estados  da  Europa,  reflecte-se  em  ama  in- 
tensa actividade  'scientifica,  artistica  e  philosophica  primeiramente  na 
Italia,  na  chamada  Renascenga  do  secalo  xm,  e  depois  na  Franga  nos 
secoloB  xrv  e  xv,  imprimindo  a  toda  a  Europa  urna  similaridade  de 
esforgos  para  a  descoberta  das  condigSes  da  sjnthese  moderna.  Pre- 
valecem  os  dialectos  vulgares  sobre  o  latim  ecclesiastico,  e  embora  se 
admirem  os  exemplares  da  antiguidade,  apparece  urna  nova  idealisa- 
f2o  dos  dogmas  sobre  o  ponto  de  vista  humano  na  Divina  Comedia 
de  Dante;  Boccacio,  no  Decameron,  creando  a  prosa  italiana,  consa- 
gra  a  vida  burgueza  comò  thema  da  arte  nas  situagSes  pittorescas  das 
suas  novellas;  e  Petrarcha,  fixando  as  fórmas  capitaes  do  Lyrismo  mo- 
derno extrahidas  dos  rudimentos  dos  trovadores  provengaes,  que  ti- 
nham  creado  a  egualdade  perante  o  amor,  dA  a  esse  amor  a  expressSo 
philosophica,  universal  e  humana,  comò  o  presentimento  da  presiden- 
cia  da  affectividade  sobre  a  intelligencia  e  sobre  a  acg^.  A  Italia  tor- 
nou-se  o  fòco  da  enidigSo,  da  philosophia  e  das  artes,  Florenga  uma 
nova  Athenas,  e  esse  paiz  era  visitado  pela  nobreza  europèa  e  pelos 
principes,  comò  a  G-recia  o  fóra  pelos  patricios  de  Roma.  A  Franga, 
que  na  crise  mais  laboriosa  da  transigSo  da  Edade  mèdia,  espalhara 
por  toda  a  Europa  as  esplendidas  consàrucgSes  architectonicas  da  Ars 
francigena  ou  gothico;  que  distrahira  a  imaginagSo  humana  com  as 
grandes  Epopéas  da  lucta  dos  fortes  vassalos  centra  a  realeza  carlin- 
giana,  e  com  os  poemas  de  aventuras  da  Tavola  Redonda  e  do  Santo 
Graal  imitados  em  todas  as^linguas  modemas;  que  apaixonara  todas 
as  cortes  com  as  graciosas  cangSes  dos  trovadores  occitanicos,  e  com 
as  fargas  e  soties  dos  seus  bazochianos,  a  Franga  entregue  à  lucta  da 
supremacia  do  poder  tempora!,  acceitou  até  ao  seculo  xvi  a  hegemo- 
nia  da  Italia  emquanto  à  parte  intellectual.'  Depois  de  quebrada  a  au- 


1  Eicbom,  na  Historia  da  CimUtagào  e  da  LiUeratura  aj^presenta  o  segointe 
quadro  da  influenda  da  Franga  no  mondo  moderno  : 

•A  Franga  da  Edade  mèdia  serviu  de  esemplo,  primeiro  do  que  ntnguem. 


iO  HISTORIA  DA  UMIVERSIOADE  DE  GOIMBRA 

ctorìdade  espiritnal  da  Egrejay  a  Antigaidade  qae  renascia  tomava-se 
um  ponto  de  apoio  das  consciencias;  e  conliecida  a  Antigaidade  nas 
suas  idéas  moraes  através  dos  Adagios  de  Erasmo,  obteve  esse  livro 
ama  universalidade  corno  a  da  Biblia.  Foi  em  consequencia  d'este  per- 
stigio  que  se  formoa  o  preconceito  de  qae  a  Edade  mèdia  fóra  am  longo 
retrocesso  da  civilisajSo;  os  espiritos  philosophicos,  descontando  o 
abaio  prodozido  pela  incorpora(&o  dos  povos  germanicos  na  Civilisa- 
9S0  Occidental,  restabeleceram  facilmente  essa  pretendida  S0IU9S0  de 
continoidade  com  0  passado,  comò  se  ve  em  Mackintosh,  am  dos  re- 
presentantes  da  eschola  escosseza.    .  ^     ^  ^ 

A  idèa  de  Mackintosh  acha-se  no  primeiro  Ensaio  das  Consvàe- 
ra^es  sabre  a  Hùtoria  da  Philosophia,  pablicado  na  Bevista  de  Edim- 
barge  em  1816,  malto  antes  de  Angusto  Comte  come^ar  a  elabora9So 
do  Curso  de  PhUosophia  positiva;  transcrevemos  as  palavras  do  illus- 
tre philoBopho  escossez  :  cEm  geral,  fala-se  da  Edade  mèdia  com  maito 
desprezo.  A  inactivìdade  do  espirito  hamano  nSo  foi  aniforme  em  to- 
das  as  partes  d'este  longo  periodo.  Durante  os  secalos  de  trevas  que 
decorreram  desde  a  queda  do  Imperio  do  Occidente  até  ao  secolo  xm, 
08  algarismos  arabes  foram  introduzidos,  0  papel  come90U  afabricar-se, 
a  polvora  e  a  bussola  foram  descobertas.  Antes  do  fim  d'està  època, 
a  pintura  a  eleo,  a  gravura  e  a  imprensa  vieram  terminar  està  serie 
de  inyen98es,  que  nenhuma  outra  egualou  quer  em  belleza,  quer  em 
utilidade  desde  as  primeiras  invensSes  que  acompanharam  o  nasci- 
mento da  civilisafSo  e  que  por  consequencia  precederam  a  historia. 
Estas  descobertas  nos  provam  que  entSo  existia  tambem  alguma  acti- 
vidade  intellectual  e  alguma  emula^So,  e  è  duvidoso  que  nos  seculos 
seguintes  0  espirito  humano  prestasse  mais  servifos  à  sciencia,  do  que 
quando  preparou  0  sólo  que  era  preciso  cultivar  fomecendo-lhe  novos 
melos  de  inye8tiga9So.  NSo  se  pode  duvidar  egualmente,  que  nos  se- 
calos xn  e  xm,  as  faculdades  intellectuaes  do  homepi  tomaram,  em 


aoB  poyos  modemos.  Do  Mediterraneo  ao  Mar  Baltico,  imiton-se  a  sua  cavallaria 
e  08  seus  torneios.  Sobre  urna  metade  do  globo  £alla-Be  a  Bua  lingua,  n2o  sómente 
na  Europa  christS,  mas  até  em  Constantinopla.  Na  Moréa,  na  Syria,  na  Palestina 
e  na  Uba  do  Cbypre,  os  menestreis  percorrendo  de  um  para  outro  paiz,  vnlgarisa- 
vam  OS  seus  romances,  fabliauz  e  cantoB  ;  elles  cantaram  nas  cortes,  nos  daustros, 
nas  cidades,  nas  cabanas. — Por  toda  a  parte  as  suas  poesias  foram  toraduzidas  e 
serviram  de  modelos;  a  Italia  e  a  Héspanba  imitaram  os  poetas  francezes  do  sul; 
a  Àllemanha  e  os  poyos  do  Norte,  imitaram  os  poetas  das  provinciafl  septemtrio- 
naes  :  finalmente  a  propria  Inglaterra,  durante  muitos  seculos,  e  a  Italia,  durante 
alguns  tempos,  rimaram  no  idioma  do  norte  da  Franca.» 


INTRODUCgÀO  1 1 

loda  a  Europa,  ama  nova  dir6C98o.  N'esta  època  vèmos  renascer  o 
eatudo  do  Direito  romano,  abrirem-se  escholas  philosophicas,  a  poesia 
coliivada  nas  lìngaas  modemas  na  Sicilia,  na  Toscana,  na  Provenfa, 
na  Catalmiha,  na  Normandia,  na  Iglaterra,  na  Escossia  e  na  Soabia. 
Da  di^tancia  em  que  nós  as  contemplamos  hoje,  estas  sciencias  pare- 
cem  elevar-se  repentinamente  em  paizes  muito  afastados  una  dos  ou- 
troB,  e  em  ama  època  em  que  as  na93es  estavam  prìvadas  de  com- 
munica$8es  entre  si.  As  inyestiga93es  relativas  à  origem  das  differen- 
$88  que  existem  entre  instituijSes  e  o  caracter  das  na$8es,  differenQas 
que  sSo  tambem  sensiveis  na  Europa,  tém  levado  os  sabios  a  estudar 
com  interesse  as  fórmas  de  governo,  as  leis  e  os  costumes  da  Edade 
mèdia.»  ^  Quando  Mackintosh  escrevia  estas  conBÌdera93es,  vulgarisa- 
va-se  na  Europa  a  eschola  romantica,  que  se  inspirava  das  tradifSes 
cu  da  renascen9a  artistica  da  Edade  mèdia,  que  o  philosopho  tambem 
caracterisou  comò  um  meio  de  fazer  prevalecer  nas  litteraturas  o  ca- 
racter nacional.  So  mais  tarde  è  que  come^ou  o  estudo  philologico, 
crìtico  e  historìco  d'essa  grande  època  de  transforma9So  organica, 
com  Raynouard,  Diez,  Beker,  Paris,  Didron,  Grimm,  e  tantos  investi- 
gadores  de  primeira  ordem.  NSo  houve  uma  rigorosa  soIufSo  de  con- 
tinuidade  com  a  civilisa^SLo  greco-romana:  a  politica  unitaria  de  Roma 
foi  procurada  no  ideal  do  Imperio,  que  os  reis  germanicos  queriam  fa- 
zer reviver;  os  codigos  romanos  conservaram-se  em  vigor,  comò  o  de- 
monstrou  o  illustre  Savigny  e  foram  imitados  nos  codigos  barbaros; 
mantiveram-se  os  munìcipios  e  os  bispos  apoderaram-se  do  systema 
adminiatrativo  romano,  fizeram-se  defensor  civitatia;  mesmo  na  reli- 
gìlU>,  corno  o  provou  Beugnot,  o  polytheismo  greco-romano  persistìu 
na  parte  cultual  do  cbristianismo,  e  a  lingua  latina  usou-se  sempre  nos 
cantos  populares  corno  se  ve  pelas  collec93es  organisadas  por  Du  Mé- 
ril,  e  nos  mais  antigos  hymnos  da  Egreja.  Semente  houve  S0IU9S0  de 
continuidade  na  ^labora^So  scientifica  iniciada  pela  Grecia,  que  so  re- 
comefou  na  Benascenfa;  0  espirito  moderno  desviado  para  a  contem- 
plafSo  mystica,  ficou  na  apathia  montai  de  que  so  conseguiu  sair  de- 
pois da  invasSo  dos  Arabes,  que  trouxeram  todas  as  acquisÌ93es  scien- 
tificas  da  Grecia  e  as  puzeram  em  circula9So.  Desde  a  entrada  dos 
Arabes  na  Europa  come9pu  0  conflicto  entre  0  catholicismo  e  a  scien- 
da  accular,  recome9ando  a  actividade  mental  e  0  criterio  da  observa- 
9I0  e  da  ezperiencia  no  seculo  xvi. 


1  Mdangta  pkUaeophiquea,  p.  41.  (Tirad.  L.  Simon.) 


12  HISTORIÀ  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Nas  luctas  do  romantismo  em  Fran9a,  Philarète  Chasles  escrevia 
Bobre  a  importancia  historica  da  Edade  mèdia,  em  1829:  a  E  um  pe- 
rìodo de  convulsSo  e  de  regenera$So,  que  sob  o  nome  de  Edade  mé- 
dia;  tem  sido  alvo  de  accusagSes  bem  frivolas.  Borrasca  fertil,  tem- 
pestade  necessaria,  que  revolveu  todos  os  elementos  sociaes,  para  dis- 
pol-os  e  animal-os  com  uma  vida  nova.  Dirìeis  a  fbrnalha  ardente  onde 
tudo  se  acha  em  fusSo.  E  alli  que  se  elabora  a  sociedade  moderna. 
Todas  as  descobertas  às  quaes  devemos  a  nossa  superìorìdade  incon- 
testavel  datam  d'estes  dez  seculos,  taxados  de  barbarie  e  de  ignoran- 
eia.  Os  nossos  antepassados  nSo  egualaram  nas  artes  de  imagina9So  os 
povos  felizes  que  os  precederam.  Comtudo,  sob  està  relajSo  tém  ti- 
tulos  que  os  impSem.  Quem  passou  debaixo  das  abobadas  da  cathe- 
dra! de  Colonia,  sob  as  arcadas  de  Westminster,  em  Londres,  que  nSo 
ficasse  penetrado  de  admira(So  pelo  genio  que  talhou  estes  blocos  e 
dispoz  essas  florestas  de  pedra?»  Sob  o  ponto  de  vista  architecto- 
nico,  Daniel  Bamée,  exaitando  o  valor  historico  da  Edade  mèdia  pela 
importancia  das  suas  crea95e8  artisticas,  concine:  «Estava  reservado 
aos  estudos  historicos  do  seculo  xix,  que  tomaram  t2o  felizmente  uma 
direc9&o  eminentemente  nacional,  o  fazer-nos  conhecer  a  vida  activa 
e  cheia  de  intelligencia  das  na95es  europèas  da  Edade  mèdia.»*  Os 
eruditos  especialistas  chegaram  a  descobertas  evidentes  sobre  as  ma- 
nifestagSes  parciaes  da  cultura  d'este  periodo  erradamente  denominado 
trevas  sem  nome;  faltava  ligar  està  edade  progressiva  à  continuidade 
historica  da  marcha  da  CivilisaySo  humana,  comò  uma  transigalo  entro 
0  mundo  antigo  e  o  mundo  moderno.  Para  iste  nSo  bastavam  as  in- 
vestigagSes  historicas;  era  preciso  mais,  uma  philosophia,  que  baseada 
sobre  factos  verificaveis,  estabelecesse  a  continuidade  entro  elles,  es- 
colhendo  os  que  foram  pelo  seu  caracter  positivo  impulso  para  o  fu- 
turo advento  dcestado  normal  da  Humanidade.  Està  concepySo  de  Comte 
foi  ^  base  segura  para  a  constituig&o  de  uma  Sociologia,  sciencia  nSo 
presentida,  pela  descoordenajSo  de  idèas  dos  historiadores  eruditos 
mas  especialistas,  nem  pelo  espirito  anarchico  dos  ideologos  politicos. 

A  disciplina  cultual  e  os  dogmas  theologicos  do  Catholicismo, 
comò  sjnthese  absoluta,  tinham  actuado  na  funda$So  da  sociedade  mo- 
derna que,  depois  da  queda  do  Imperio  romano,  e  do  advento  das  ragas 
barbaras,  recebera  da  theocracia  um  systema  completo  de  moral,  e  por- 
tanto  as  bases  de  uma  nova  ordem.  E  a  grande  època  do  regimen 


l  Man.  de  VHìbì.  generale  de  rArcMtecture,  t.  n,  p.  6,  (1843). 


INTRODUCgÀO  1 3 

catholico,  que  attingiu  a  decadencia,  no  momento  em  qae  realieada  a 
ordem,  essa  synthese  absolata  se  achon  impotente  para  promover  o 
progresso  e  harmonisar-se  com  elle.  A  preponderancia  do  regimen  catho- 
lico estava  implicita  na  nega(So  de  toda  a  antiguidade  greco-romana, 
porque  a  Egreja  derivava  as  soas  doutrinas  de  ama  revelayHo  acima 
de  todos  OS  antecedentes  historicos;  d'essa  negaffto  resultara  para  a 
marcha  da  Europa  uma  interrup9So  do  espirito  especulativO;  scienti- 
fico e  philosophicoi  iniciado  pela  Grecia,  e  ama  apathia  mental  diante 
da  immutabilidade  dos  dogmas  theologicos,  que  condemnava  a  liber- 
dade  de  pensamento  comò  uma  heresia.  Desde  que  pela  actividade 
gaerreira,  na  lucta  dos  dois  monotheismos  catholico  e  islamico,  os  povos 
se  approximassem,  e  se  restabelecesse  a  solidariedade  com  o  passado, 
corno  se  via  com  a  Renascenfa  arabe,  a  dissolu9So  do  regimen  catho- 
lico era  inevitavel,  porque  à  Synthese  absoli^ta  da  theologia  centra- 
punha  o  espirito  relativo,  cujas  observa98es  se  convertiam  em  scien- 
cia,  e  cujas  applicaySes  em  praticas  industriaes  da  actividade  pacifica. 
E  certo  que  o  espirito  relativo,  embora  se  impuzesse  opportunamente 
apoz  o  esgotamento  theologico,  nSo  podia  logo  supprir  a  ac(&o  disciplina- 
dora  da  Synthese  absoluta;  e  se  està  era  incompativel  com  o  progresso, 
aquelle  era  impotente  para  fundar  a  ordem.  Uma  tal  incongruencia, 
em  que  dia  a  dia  o  theologismo  perde  o  seu  destino  social,  e  em  que 
0  espirito  relativo  se  especialisa  nas  Sciencias  sem  chegar  &  Synthese 
philosophica  que  subordine  as  intelligencias,  um  tal  desaccordo  consti- 
tue  urna  crise  na  Civilisa^So  Occidental  verdadeiramente  revoluciona- 
ria,  qae  se  prolonga  ha  jà  ciuco  seculos.  Pela  comprehensSo  d'està 
crise  e  das  suas  differentes  épocas  é  que  se  alcanna  o  nexo  racional 
da  hiatoria  moderna  da  Europa.  Augusto  Comte,  que  definiu  admira- 
velmente  a  marcha  da  dissolujffto  do  regimen  catholico-feudal,  que  é  a 
essencia  dos  factos  resultantes  da  grande  revolugSo  occidental,  accen- 
tua-lhe  o  caracter  exclusivamente  intellectual:  «Para  julgar  sSmente 
uma  tal  revolu(&o,  importa  concebel-a  sempre  comò  mais  intdlectual 
do  que  social,  nBo  obstante  o  concurso  necessario  d'estes  dois  caracte- 
res  em  um  movimento  que  deve  terminar  na  regenerafSo  total  da  hu- 
manidade.  As  duas  ultimas  tranBÌ93es  (romana  e  medieval)  tinham  effe- 
ctivamente  preparado  a  sociabilidade,  ao  passo  que  a  cultura  da  intel- 
ligencìa  ficira  essencialmente  suspendida  desde  a  elabora^&o  grega. — 
Deve-se  pertanto  considerar  a  revolu(So  comegada  no  seculo  xrv  em 
todo  o  Occidente  comò  consistindo  principalmente  em  renovar  o  en- 
tendimento  humano  pela  irrevogavel  substituijSo  do  relativo  ao  abso- 
luto.  Sendo  a  revoluySo  mais  mental  do  que  social,  a  anarchia  theorica 


i4  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE   DE  COIMBRA 

ultrapassava  a  desordem  pratica.  AsBim  via-se  levada  até  a  negar  toda 
a  auctoridade  espiritual  substituida  pelo  individualismo  absoluto,  corno 
a  desconhecer  toda  a  subordina9So  encjclopedicai  proclamando  a  es- 
pecialidade  theorica.»^ 

A  creagSo  das  Universidades  no  seculo  xm  resultou  d'està  crise 
mental,  em  que  a  inBtruc9So  religiosa  das  Escolas  das  Collegiadas  se 
alarga  com  um  firn  relativista  e  humano  nos  Estudos  geraes.  À  histo- 
ria  das  Universidades  da  Europa  està  intimamente  ligada  às  manifes- 
ta9($es  fundamentaes  da  grande  revolu9&o  occidental;  e  cada  època 
caracteristica  da  sua  existencia  nSo  se  explica  bem  pelas  manife8ta98e8 
da  sua  vida  interna,  ou  mesmo  da  politica  do  estado  a  que  pertencCi 
mas  sim  pelos  successos  capitaes  que  accentuam  a  marcha  revolucio- 
naria  da  Europa  desde  o  seculo  xiv  até  à  grande  crise  franceza. 

Tambem  pelo  estudo  das  Litteraturas  da  Edade  mèdia  da  Europa 
vìemoB  a  comprehender  pelas  suas  similaridades  e  mutuas  influencias 
essa  unidade  da  Civilisa9So  occidental,  tSo  desconhecida  pelos  politicos 
ideologos  e  pelos  historiadores  eruditos.  Essa  unidade,  ou  espirito  de 
occidentalidade,  é  que  nos  fez  comprehender  no  seu  conjuncto  a  His- 
toria  da  Litteratura  portugueza,  libertando-nos  dos  preconceitos  de  uma 
orìginalidade  ficticia  procurada  na  idealisajSo  dos  escriptores,  e  deter- 
minando em  vez  de  uma  imita9So  banal  as  correntes  dominantes  no 
gesto  de  cada  època. 

Sobre  oste  aspecto  da  critica,  escreve  Littrè,  sustentando  a  dou- 
trina  historica  de  Comte:  cSegue-se  mal  uma  evolujSo  isolada  quajido 
se  nSo  sabe  que  todas  estas  evolu^Ses  s3o  solidarias.  Jà  se  proclamou 
isto  para  a  historia  das  sciencias,  em  que  a  dependencia  è  fìrisante;  pò- 
rem  nas  lettras,  por  ser  mais  occulta,  nSo  è  ella  menos  real.  Na  base 
da  litteratura  occidental  acha-se  o  conjuncto  das  grandes  composigSes 
francezas;  recebidas  pela  Europa,  ellas  formam  o  elemento  que  exer- 
ceu  a  sua  ac9So  no  desenvolvimento  de  cada  litteratura.  NSo  é  preciso 
apontar  comò  successivamente  a  Italia,  a  Hespanha,  a  Inglaterra,  a 
Allemanha,  a  Franca  actuaram  umas  sobre  as  outras  ;  basta  evidenciar 
ao  espirito  a  unidade  essencial  d'estas  bellas  Litteraturas  do  Occidente. 

«Se  è  isto  verdadeiro  na  ordem  litteraria,  nSo  o  è  menos  emquanto 
&  ordem  politica;  *e,  se  nSo  è  possivel  de  ora  em  diante  escrever  uma 
boa  historia  das  lettras  em  um  paiz  sem  ter  presente  ao  espirito  està 
unidade,  nSo  è  possivel  tambem  de  ora  àvante  escrever  uma  boa  histo- 


1  Syathme  de  Politique  positive,  t.  ni,  p.  503  e  sg. 


INTRODUCgÀO  15 

ria  politica  de  uiq  paiz  sem  ter  presente  ao  espirito  a  unidade  moral 
e  material  qae  constitue  a  confedera9So  europèa. — Toda  a  historia  qae 
nSo  for  composta  com  està  grande  vista  pècca  essencialmente,  pois  qae 
nio  poderi  apreciar  corno  em  cada  època  ama  politica  è  boa^  grande, 
prudente  cu  ma,  baixa  ou  insensata. — Assim  urna  mesma  nogSo  sape- 
rìor  dirige  a  historia  politica  e  a  historia  litteraria  das  najSes  occiden- 
taes,  e  nSo  è  oste  um  dos  menores  fructos  do  estudo  da  Edade  mèdia, 
ao  achar  n'ella  a  sua  origem  e  os  primeiros  fundamentos.»^ 

A  Europa  da  Edade  mèdia  apresenta  na  sua  evolugSo  historica, 
tanto  moral  corno  intellectual,  politica  comò  economica,  urna  surpre- 
hendente  unidade,  que  deriva  dos  elementos  persistentes  da  Civilisa- 
{So  Occidental  communicados  is  nacionalidades  modemas  pela  cultura 
greco-romana.  Existe  urna  doutrina  moral  com  um  caracter  de  univer- 
salismo ou  catholicidade,  mantido  pela  Egreja;  existe  um  sjstema  de 
educa$flo  commum  iniciado  pelas  Collegiadas  e  pelas  Universidades; 
existe  ama  mesma  lucta  em  todos  os  estados  das  fórmas  aristocraticas 
ou  feudaes  centra  as  fórmas  communaes  ou  democraticas;  emfim,  em 
cada  paiz  a  vida  locai  do  pagus  alarga-se  em  urna  unificajSo  nacional, 
convertendo  o  trabalho  da  servidSo  na  livre  industria,  que  veiu  a  pre- 
ponderar e  a  caracterisar  a  civilisa9So  moderna.  0  estudo  da  Pedago- 
gia em  qualquer  dos  paizes  da  civilisagSo  europèa  apresenta  as  mes- 
mas  épocas  fundamentaes,  as  mesmas  phases  de  tranBforma9So,  eguaes 
Inctas  entro  o  clericalismo  e  o  humanismo.  Seguir  estes  diversos  pe- 
riodos,  è  esbojar  a  historia  intellectual  da  Europa,  quer  nos  seus  gran- 
des  fócos  de  acjSo,  comò  a  Italia  ou  a  Franya,  quer  em  seus  remo- 
tos  reflexos,  comò  em  Portugal.  A  historia  da  Pedagogia  compre- 
hende  a  exposÌ9So  progressiva  das  doutrìnas  que  se  substituem,  e  ao 
mesmo  tempo  dos  methodos  que  se  aperfeigoam  modificando  o  crite- 
rio. As  doutrinas  preponderantes  acham-se  intimamente  ligadas  &  cor- 
rente dos  acontecimentos  que  deram  &  Europa  a  sua  e^tavel  organisar 
920  social;  OS  methodos  foram-se  aperfeÌ9oando  conforme  as  necessida- 
des  da  investigasse  scientifica  que  veiu  a  prevalecer  na  actividade 
mental.  Uma  historia  sobre  assumptos  tfto  complexos  nSo  pode  ser 
darà  se  nSo  for  dirigida  por  um  ponto  de  vista  synthetico  ;  nem  a  sua 
importancia  sera  verdadeira  se  se  nSo  dirigir  a  um  destino  pratico,  vi- 
sando  &  disciplina  e  organisasSo  systematica  da  InstrucsSo  publica  em 
qualquer  dos  paizes  cooperadores  da  civilisa^So  occidentah 


1  Little,  Étude»  sur  Ics  Barbares,  p.  452. 


i6  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIMBRA 

A  historìa  dos  progressos  da  intelligencia  na  Europa  faz-noa  reco- 
nhecer  uma  evolaySo  naturai  na  successSo  das  seguintes  phases:  pri- 
meiramente  operou-se  uma  cultura  esthetica,  seguìu-se-lhe  antes  de 
tempo  uma  especula^So  philasophica,  vìndo  por  ultimo  a  preponderar  o 
exclusivo  trabalho  scientifico. 

A  Fran9a,  na  longa  transi^fto  da  Edade  mèdia,  exerceu  uma  mis- 
8&0  dirigente  comò  fòco  da  cÌYÌlÌ8a9So  occidental.  Ella  estimulon  os  es- 
piritos  com  a  seducjffto  artistica;  da  Franca  irradiaram  as  can98es  ly* 
ricas  da  Proyen9a  para  todas  as  cortes  da  Europa;  da  Fran9a  se  dif- 
fundiram  as  epopéas  feudaes  ou  Gestas  cyclicas  propagadas  desde  a 
Scandinavia  até  à  Grecia  moderna;  da  Franca  salram  as  corpora93es 
de  obreiros  que  levaram  os  typos  da  Architectura,  conhecida  pelo  nome 
de  Ara  frandgenay  a  todos  os  paizes.  Emfim  Paris  tomou-se  a  Athe- 
nas  do  Occidente,  indo  às  suas  Escholas  e  Universidades  buscar  as 
novas  doutrinas  os  espiritos  superiores  de  todos  os  paizes,  e  trazendo 
para  as  suas  nacionalidades  o  modelo  da  organisa9fto  das  Universida- 
des que  se  propaga  da  Allemanha  até  Portugal.  A  tran8Ì9So  naturai 
dà  cultura  eathetìca  para  a  e8pecuIa9lU)  philosophica  observa-se  nos 
principaes  pensadores  do  seculo  xn  e  xm,  poetas  eminentes  é  simul- 
taneamente metaphysicos,  comò  S.  Bernardo,  S.  Boaventura,  Abailard, 
Dante,  Petrarcha,  Affonso.o  Sabio;  a  actividade  pAiZosopAica  subordi- 
nada  &  theologia,  por  falta  de  elementos  objectivos,  cafu  no  vago  da 
Metaphjsìca  ontologista,  afastando-se  a  intelligencia  de  uma  necessaria 
inve8tiga9So  scientifica.  Este  indispensavel  impulso  estava  dado  pela 
entrada  dos  Arabes  na  Europa  occidental,  que  Ihe  communicaram  as 
doutrinas  scientificas  recebidas  da  civilisa9So  da  Grecia  propagada  ao 
Oriente.  Havia  entSo  o  conflicto  das  dtias  verdades,  a  theologica  e  a 
scientifica,  comò  existia  o  conflicto  das  dtuis  espadas,  o  poder  espiri- 
tual em  antagonismo  com  o  tempora!,  e  a  antinomia  das  diias  cidadea, 
a  de  Deus  ou  a  Egreja,  e  a  terrestre  ou  a  sociedade  politica  dos  filhos 
de  Caim.  Apesar  d'està  perturba98o,  que  produziu  a  persistencia  da 
inanidade  metaphysica,  o  regimen  scientifico  transpareceu  na  actividade 
de  Alberto  Magno,  de  Rogerio  Bacon  e  de  Thomaz  de  Aquino. 

Està  tendencia  scientifica  desenvolve-se  progressivamente  pelo 
contacto  com  a  cultura  islamica,  e  dentro  do  proprio  ensino  ecclesias- 
tico as  disciplinas  litterarias  do  Trivium  (Grammatica^  Rhetorica  e  Dia- 
lectica)  tomam-se  ìnsufficientes,  e  até  certo  ponto  desacreditadas,  comò 
se  ve  pelo  sentido  das  palavras  trivicd  e  trimalidade;  o  Q^adriviuìn  è 
desenvolvido  no  seu  caracter  scientifico  (Ariihmetica,  Geometria,  Mu- 
sica e  Astronomia)  nSo  so  pela  preponderancia  da  actividade  indù- 


INTRODUCgAO  1 7 

strial,  corno  pelas  proprias  neoessidades  cultuaes  da  Egreja,  qae  pre- 
cisava das  nogQes  astronomicas  da  Grecia  para  coordenar  os  actos  li- 
turgicoB  dinmos  e  annuaes  na  sua  parte  pnblica  ou  social.  E  n'esta 
8Ìtua$2o  provocada  pelo  desenvolvimento  politico  da  Europa,  que  o  en- 
sino  snbordinado  &  educa9So  religiosa  das  Collegiadas,  iste  é,  para 
aqnelles  que  se  dirigiam  exclusivamente  para  a  vida  ecclesiastica,  se 
alarga  tornando  um  caracter  humanisia,  com  um  destino  secular  nas 
Universidades.  O  systema  hierarchico  das  Sete  Artes,  tal  corno  o  con- 
cebera  Felix  Memor,  alarga-se  pela  necessidade  que  a  Egreja  tinha  de 
intervìr  nos  costumes  publicos,  e  amplia-se  com  a  Moral  e  com  as  Leis, 
bem  corno  com  a  Medicina. 

N'esta  transi;So  reconhece-se  que  os  espiritos  superiores,  corno 
S.  Boaventura  e  Raymundo  Lullo,  sentiram  a  necessidade  de  uma  clas- 
sificagSo  bierarcbica  dos  Conhecimentos  humanos  para  regularisarem 
este  enorme  desenvolvimento  do  ensino,  corno  na  època  experimental 
0  sentiu  Bacon,  e  na  època  critica  ou  endyclopedista  d'Alembert,  e 
ainda  no  seculo  actual  Ampère,  Comte  e  Spencer.  Tentarain,  porèm, 
essa  claBBÌfica$So  sobre  uma  base  subjectiva,  segundo  o  funccionalismo 
psychologico. 

A  medida  que  se  especialisarem  de  um  modo  crescente  as  scien- 
cias  concretas,  comò  se  operou  no  fim  do  seculo  xviii,  nascerà  a. ne- 
cessidade de  uma  classifica^So  bierarcbica  dos  Conbecimentos  humanos 
sobre  uma  base  objectiva,  ou  dogmatica,  estabelecendo-se  a  dependencia 
das  doutrinas  de  uma  sciencia  para  outra  sciencia.  Està  terceira  phase 
do  ensino  europeu  ficou  determinada  pela  funda9So  do  Instituto  de  Scien- 
das  e  Artes,  pela  Conven98o  em  1795;  falta  ainda  completalo  pela 
sua  sjstematÌ8a9So  dogmatica,  tal  comò  foi  formulàda  pela  Philosophia 
positiva. 


BIBT.  UN. 


2 


18  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

SCHEMA  TTPICO  DOS  ESTDDOS  HA  EUROPA 

I 

Edade  mèdia 

I.  SoHOLAs  naa  Collegia-(*^  E^cholas  tviscopaes  (SeminarioB)  e  abbacÌMB  (Feda- 
daa  l  gogias.) 

rTrMumì  1  ^"^  E9choUujuridiea8  (Corsos  daa  Artee)  Dialectica,  Rhe- 

(  ±  T%v%vmj  I  torica,  Jurisprudencia. 

IL  Faculdades  (a)  Estudo  geral  (com  preponderancia  pontificia.) 

(QuadrivùimJ  (b)  Univerndade  (desenTolvendo-se  sob  o  poder  real.) 

Sa)  Academias  litterariaa  (noB  pa^os  e  entre  a  nobreza) 
— ^Tertulias. 
b)  Academiaa  scientifioas  (com  caracter  pardcular.) 

II 

Rena8cen9a 

I.  CoUegios  de  Artes  (Reac^So  jesuitica  confundindo  o  ansino  Becular  com  o  cle- 

rical.^  Colle«OB  jnnto  das  Universidades. 
II.  Universidadea  (Persistencia  da  inanidade  dialectica — dÌ8sola9ao  metaphjsica.) 


— Collegio  de  FRANgA,  piimeira  reac^o  moderna. 

f — Desenvolvem  a  espc 
regimen  poLTTsoHinco. — Museus  e  BibliotnecaB. 


III.  Academicu particulares — Desenvolvem  a  eBpecula9do  scientifica:  Orìgem  do 


III 

Depois  da  ReTolu9ào  (1795) 

A)— Beglmen  da  eipeeialidade  e  de  sjrBtenuitlMflo  empirica 
,   T  •  .     (a)  Kinder-^rden. 

1.  iKBTBUCgAO  FRIMABIA.  .  j^^j  g^j^^  ^^^^ 

^a)  Conservando  o  kumamsmo  da  Benaaoenfa: 
— LyceuB  [Franca,  etcì 
— G-ynmasioB  [Allemanna) 
— Common  Scnools  (America) 

TI  !«»—,,««-«  -„.«,«..»,.  ]^)  Prevalecendo  o  caracter  scientifico: 

n.  iHBTEDcgAO  BECUHDABiA^  _EnBÌno  secundario  especlal  (Franca) 

— Beai  scholen  (Allemanha) 
— ^English  high  School  (America) 
— EscnolaB  induBtriaes  (Portugal) 
^c)  Mittelschuien  (Allemanha) 

Ia)  Com  o  caracter  medieval  e  espedalmenU  mdaphysioo: 
— ^UniversidadcB. 
b)  Com  caracter  pratico  e  de  applicagào  : 
— Polyteclmicas. 
— CursoB  especiaes. 

IFicaram  de  fora  do  quadro  do  Ensino,  apesar  de  segui- 
rema  mesrna  bifurcagào  : 
a)  litterarias. 
E  conservaram  o  caracter  partimdar: 
— ^Assoda^oeB  especiaes. 

B)— Begimea  da  generalidade  e  de  lyitemaMiaylo  philoaophioa  ? 


""1 
1 


INTRODUCglO  19 

Na  dÌBSola9Zo  do  regimen  catholico-feudal,  que  caracterìsa  a  His- 
toria  modema,  a  8ub8titaÌ9fto  da  Synthese  absoluta  pelo  espirito  rela* 
tiYo  do  regimen  scientifico,  e  a  incorpora9Zo  do  Proletarìado  na  socie- 
dade,  inieiam-se  pelas  Univeraidades  e  pelos  Parìamentos,  Embora  mais 
intellectoal  do  que  social,  a  grande  reyola9So  do  Occidente;  que  vae 
do  secolo  XIV  ao  xyniy  observa-se  nas  modifica98es  que  receberam  as 
Universidades,  e  na  eyolujSo  das  fórmas  pedagogicas  da  InstrucgSo 
pablica  da  Europa,  em  que  o  ensino  popular  deriva  da  Dictadura  mo- 
narchica e  0  ensino  poljteclinico  é  fundado  pela  Dictadura  revoludo- 
naria  da  Conven9So.  Determinam-se  phases  communs  na  historia  das 
Universidades,  por  isso  que  a  dissolufSo  da  Synthese  absoluta  do  theo- 
logismo  é  a  mesma  em  todos  os  paizes  catholicos,  e  imia  transforma- 
fSo  do  ensino  das  Poljtechnicas,  pelo  espirito  dispersivo  das  espeda- 
lidades  scientificas  preconisado  sob  a  anarchia  theorìca  simultanea  com 
a  grande  crise  revolucionaria.  A  necessidade  de  urna  remodela^fto  do 
ensino  pela  funda9So  da  hierarchia  theorìca  resultante  da  Synthese  po- 
sitiva j&  foi  determinada  na  segunda  metade  do  seculo  xix.  O  que  se 
pretende  na  Historìa  da  Universidade  de  Coimbra  é  chegar  à  determi- 
nagSo  do  moderno  typo  pedagogico  em  que  se  defina  a  synthese  posi- 
tiva sobre  que  assentarà  o  estado  normal  da  humanidade. 

SSo  estes  os  contornos  da  marcha  da  Pedagogia  na  Europa;  por 
eUes  BC  esdarece  a  complexidade  de  factos  anómalos,  corno  a  in&isten- 
cia  do  retrocesso  huinanista  dos  Jesuitas,  e  a  incapacidade  dos  refor- 
madores  pedagogicos  e  parlamentares  na  organisa^So  definitiva  de  um 
systema  de  Instruc^So  publica.  Diz  Littré,  proclamando  a  necessidade 
philosophica  do  criterio  historico:  cNada  existe  nas  cousas  sociaes  que 
nio  tenha  a  sua  historia,  e  uma  historia  bastante  importante  para  se 
oonhecer,  se  se  quizer  sair  do  puro  empirismo  e  elevar-se  pela  intuisSo 
do  passado  à  intelligencia  do  presente,  &  conducta  que  elle  reclama  e 
i  previsSo  que  o  futuro  comporta.»  ^ 

A  Historia  da  Universidade  de  Coimbra,  pela  variedade  dos  seus 
desenvolvimentos  progressivos  ou  regressivos,  apresenta  épocas  chro- 
nologicas,  que  importa  dividir  para  melhor  comprehensSo  da  sua  mar- 
cha e  acgSo  na  intelligencia  portogueza.  Porém,  essa  divisSo  nSo  pode 
sor  caraoterisada  unicamente  pela  vida  intema  ou  transformajSo  do  es- 
tabelecimento  litterario,  porque  a  Universidade,  comò  fórma  de  ensino 
e  instituigSo  pedagogica  do  firn  da  Edade  mèdia,  està  ligada  a  teda  a 


Fragmenté  de  PhUosophie  positive,  p.  185. 

2« 


20  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

marcba  da  historia  moderna  da  Europa.  Caracterìsando  a  trazuforma- 
9S0  que  separa  0  regìmen  medieval  do  da  Edade  moderna,  cada  um 
d'esses  aspectos,  que  vem  desde  0  come$o  da  dissolu^So  catholioo-feu- 
dal  até  &  Kevolu^fto,  reflecte-ae  na  vida  intema  d'estas  instìtaipSes  pe- 
dagogicaa,  que  tanto  actoaram  no  ideologismo  politico  do  systema  par- 
lamentar.  Assim  a  fnnda^So  da  Universidade  de  Coimbra  sorge  do  mo- 
vimento de  emancipagSo  intellectual,  que  come9a  no  seculo  xni: 

Pnmeira  època.  (Seculo  xm  a  xv)  :  Quando  as  Escholas  das  Col- 
legiadas  se  centralisam  em  Eschola  geral,  e  0  Poder  pontificai  é  sup- 
plantado  pelo  Poder  real  nas  Uhiversidadea. 

Segunda  època.  (Seculo  xvi  e  xvii):  Quando,  na  crise  religiosa 
e  Crìtica  do  seculo  xvi,  0  Protestantismo  provocando  comò  reac9Zo  o 
estabelecimento  da  Companhia  de  Jesus,  a  Universidade  fica  sem  des- 
tino, e  cae  sob  a  influencia  dos  Jesuitas,  que  a  esterilisam  pelo  seu 
dogmatismo  dialectico  exclusivo. 

Terceira  època.  (Seculo  xvm)  :  Prolongando-se  a  phase  revolu- 
donaria  no  seculo  xvm  sob  a  fórma  do  negativismo  philosophico,  jà 
sob  o  Deismo  e  Atheismo  sjstematico,  em  que  a  BevoIu$So  é  momen- 
taneamente tentada  comò  ac9&o  de  cima  para  baixo  (poder  ministerial), 
'  a  Universidade  é  reformada  sob  o  influxo  de  Pombal,  mas  sem  a  com- 
prehénsSo  philosophica  que  dominava,  d^onde  resultaram  em  seguida 
as  persegnisSes  aos  seus  principaes  sabios. 

Quarta  època.  (Seculo  xix):  Depois  da  modifica^Bo  dos  estudos 
na  Europa  sob  o  influxo  da  ConvenySo,  e  ji  sob  o  regimen  das  Car- 
tas  outoi^adas,  a  Universidade  perde  0  caracter  de  corpora^So  auto- 
noma (em  quanto  à  parte  administrativa),  e  em  quanto  &  parte  pedago- 
gica modifica-se  SQgundo  0  typo  polytechnico.  Desde  entSo,  conser- 
vando 0  velho  espirito  dialectico,  toma-se  0  fòco  da  pedantocracia  que 
serve  o  parlamentarismo;  e  por  um  espirito  metaphysioo  e  rogimen  de 
especialidade  dispersiva,  embaraya  a  realisa9Zo  da  Syntbese  positiva. 

A  falta  de  um  criterio  historico  da  parte  dos  legisladores  e  refor- 
madores  da  instruc^fto  nacional,  tem  feito  com  que  se  copiem  as 
organisasSes  escholares  estrangeiras  correspondentes  ao  estado  de  ci- 
vilisasSo  de  outros  povos,  de  modo  que  implantadas  entre  nós  per- 
maneoem  improficuas;  ou,  o  que  é  peior  ainda,  entregam-se  na  sua 
actividade  regulamentadora  a  falsas  miragens  de  uma  atrazada  psycho- 
logia,  attentando  centra  a  evolu9So  da  natureza.  Um  dos  principaes 
erros  d'esses  legisladores  é  partirem  da  analogia  entre  0  systema  de 


INTRODUCgXO  21 

I 

m8tniC9SOy  ou  hierarchìa  das  disciplinas  pedagogicas,  e  um  edificio  com 
8608  alioerceSy  andares  nobres  e  cùpulas;  asaim  imaginam  qne  a  in- 
stnic^  primaria  é  a  base  essencial  do  ensino  mèdio,  e  é  sobre  este 
alicerce  qae  procaram  coordenar  as  disciplim»  sùperioreB.  Poro  ab- 
sm^o;  porque,  se  as  verdades  elementares  so  resaltam  do  desenvol- 
vimento  graduai  das  doutrinas  e  theorias  dogmaticas,  é  logico  qne  es- 
sas  verdades  so  podem  tomar-se  objecto  de  ensino  depois  de  comple- 
tamente comprovadas.  E  isto  que  racionalmente  se  comprehende,  acha- 
se  justificado  pela  historia  do  desenvolvimento  da  Pedagogia:  o  pri- 
meiro  ensino  pnblico  na  Europa  foi  exclusivamente  superior,  nas  es- 
cholas  das  Collegiadas  e  nas  Universidades,  e  d'elle  é  que  foram  gra- 
dualmente sendo  derivadas  as  escholas  populares,  seguindo  o  caracter 
da  sua  proveniencia.  Este  importante  facto  historico,  de  um  grande 
alcance  pratico,  aoha-se  na  propria  evolu9So  da  Pedagogia  em  Portu- 
gal,  e  por  elle  nos  devemos  dirigir  actuando  nas  reformas  da  instmc- 
^  popular  e  elementar  em  virtude  das  reformas  effectuadas  na  in- 
stmc^So  scientifica  ou  superior.  Pode  dizer-se  que  este  é  o  primeiro 
principio  da  Pedagogia. 

£  ainda  o  criterio  historico  que  nos  mostra  comò  do  ensino  reli- 
gioso das  CoUegiadcu  se  passou  para  o  ensino  das  Universidades,  corno 
primeiro  esbofo  de  urna  instrucfSo  secular.  Foi  a  reyolu9llo  pro- 
funda  da  Pedagogia;  porque  o  ensino  subordinado  ao  espirito  religioso 
era  prejudicado  pela  auctoridade  dos  dogmas,  Immobilisava-se,  e  a  in- 
telligencia  do  discipulo  sempre  em  perigo  de  ser  desvairada  pelo  livre 
exame  e  pela  heresia  entregava-se  passivamente  &  imposijSo  pedante 
dos  mestres  formtdada  no  celebre  aphorismo  Ipse  dixit.  As  Universi- 
dades  correspondem  na  Pedagogia  moderna  da  Europa  &  preponderan- 
cia  da  auctoridade  temperai  na  politica  dos  Estados;  ellas  foram  urna 
creaySo  da  realeza,  e  ellas  desenvolveram  o  direito  romano  comò  ga- 
rantia  dos  dìreitos  reaes.  Esse  espirito  secular,  que  nasce  nas  Univer- 
sidades,  acompanba  a  marcha  historica  da  Europa,  e  manifesta-se  no 
estado  humanùticOf  que  com  a  primeira  Renascen9a  do  seculo  xm  se 
propaga,  vindo  na  segunda  Renascenya  do  seculo  xvi  a  predominar 
no  proprio  ensino  ecclesiastico  e  a  ser  abrafado  pelos  Jesuitas,  que 
com  elle  procuraram  atalhar  o  ensino  scientifico  iniciado  depois  das 
descobertas  de  Galileo  e  pela  livre  crìtica  das  na98es  protestantes. 
N'eata  segunda  phase  pedagogica,  a  irrecusavel  evidencia  do  facto 
scientifico  sobrepoz-se  i  auctoridade  do  mostre,  e  o  Autodidactismo 
comefou  a  estabelecer-se  comò  doutrina  pedagogica,  conduzindo  para 
o  conhecimento  das  condÌ98es  psjchologicas. 


22  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

À  antiga  auctorìdade  do  mastre  competia  ama  exagerada  severir 
dade  no  enaino  exercida  a  pretexto  da  disciplina,  e  corno  estìmulo  de 
urna  faculdade  passira  a  memoria.  A  coltura  exclusiva  da  intelligenda 
e  abandono  desdenhoso  do  sentimento;  deu  às  altas  individoalidades 
da  Edade  moderna  um  carecter  austero,  duro,  implacavel,  comò  o  dos 
jurisconsùltos  que  serviram  a  realeza,  corno  o  dos  humanistas  que  se 
envolveram  nas  polemicas  do  protestantismo,  e  comò  o  dos  litteratos 
que  proclamando  a  egualdade  cairam  sob  o  terror  da  Beroluglo.  So- 
mente  as  mulheres,  pela  sua  inabalavel  sympathia  pela  Edade  mèdia 
oonservaram  està  necessaria  preponderancia  do  sentimento,  tio  esque- 
cido  na  elabora9&o  theorica  e  no  conflicto  industriai;  e  foi  tambem 
pelo  reconbedmento  d'està  parte  affectira  do  nesso  sér,  que  dirigira  a 
edade  medieval,  que  a  Pedagogia  moderna  se  transformou  pela  critica 
de  Montaigne  e  Huarte,  pelos  esforgos  dos  Padres  de  Port  Boyal,  pelas 
intuÌ93e8  psychologicas  de  Rousseau,  e  pela  bondade  insondavel  de 
Pestalozzi  e  Froebel.  Michelet  comprehendeu  a  importancia  do  senti- 
mento na  renovafXo  dos  methodos  pedagogicos,  no  seu  livro  Nos  FUb; 
e  sem  a  restituisse  d'està  for^  malbaratada  durante  a  revolusSo  mo- 
derna, explorada  sem  philosophia  nos  themas  phantasistas  dos  litte- 
ratos que  a  desacreditaram,  a  revolu^So  que  ainda  se  prolonga  afastar- 
nos-ha  da  Edade  normal,  em  que  a  CivilisasZo  humana  assentari  sobre 
esses  tres  elementos,  que  isoladamente  produziram,  o  especulativo  a 
civilisagZo  hellenica,  o  activo  a  civilisasSo  romana,  e  o  a£fectivo  a  ci- 
vilisasSo  da  Edade  mèdia.  O  criterio  historico  é  fimdamental  n'esta 
ordem  de  questSes,  devendo  ser  considerado  comò  o  preliminar  de 
todas  as  considerasSes  phUosophica»  para  a  creagSo  definitiva  da  Pe- 
dagogìa. 

Terminada  a  exposi^So  das  f  órmas  communs,  que  apresenta  o  en- 
sino  na  Europa,  compete-nos  appensar-lhe  a  causa  da  esterilidade  daa 
refbrmas  pedagogicas,  que  por  mais  especialisadas  e  pomposas  se 
acfaam  privadas  de  um  ponto  de  vista  synthetico,  e  sem  ac9&o  sobre 
o  espirito  publico.  Comte  poz  em  relèvo  està  invencivel  esterilidade 
dos  govemos,  por  isso  mesmo  que  ainda  se  nfto  acha  instituido  o  novo 
poder  espiritual  que  imprima  direcsSo  i  conscienda  moderna:  cCon- 
siderada  em  quanto  &  sua  base,  a  educa^So  constitue  sempre,  pela  sua 
natureza,  a  principal  applicasse  de  todo  o  sjstema  goral  destinado  ao 
governo  espiritual  da  Humanidade.  Nenbum  systema  tal  nSo  domi- 
nando realmente  ainda,  segue-se  a  impossibilidade  de  teda  a  educagSo 
regular,  emquanto  durar  oste  fatai  interregno.  Até  esse  tempo,  a  edu- 
casse religiosa  ainda  que  excessivamente  atrazada,  permanecerà  oomo 


INTRODUC0O  23 

a  unica  coherente^  apeaar  da  Bua  deploravel  influencia  montai  e  a  nol- 
lidade  da  sua  ac9fto  moral,  rematando  para  de  logo  em  urna  activa  des- 
moraliBa^So  praticai  ao  passo  que  o  inevitavel  contacto  do  mundo  abaloa 
08  frageis  fundamentos  de  ama  fé  jà  considerada  corno  ficticia.  O  que 
se  chama  educa^So  secular  nSo  é  senSo  urna  especie  de  bezuntadela 
metaphysico-Iitterariai  matizada  de  vez  em  quando  por  um  froixo  yemiz 
scientifico,  applicado  sobre  este  velho  fundo  theologico,  do  qual  mo- 
difica um  pouco  o  caracter  intellectual  mas  &  custa  da  sua  tendencia 
moral.  NSo  se  tratar&  a  sèrio  da  questSo  de  regenerar  a  educa9Zo,  pu- 
blica  ou  prìvada,  emquanto  uma  nova  philosophia  nSo  tiver  sufficiente- 
mente estabeleddo  uma  verdadeira  syBtematisa9llo  duravel  das  conce* 
p^Ses  humanas.»  ^.  Existe  derrogada  a  synthese  theologica  pelo  espirito 
da  relatividade  scientifica  sobre  que  assenta  a  civilisaffto  moderna; 
nSo  existe  constituida  a  synthese  positiva  formada  pela  somma  das 
verdades  verificaveis  e  demonstradas  accumuladas  até  hoje,  para  darem 
um  novo  governo  espiritual  &  Humanidade.  E  na  historìa  do  ensino  e 
das  corpora98es  docentes  que  melhor  se  observa  està  insufficiencia 
mental,  e  é  por  essa  mesma  historìa  que  se  podem  deduzir  o  pensa- 
mento e  0  intuito  para  as  reformas  pedagogicas.  Comte  poz  em  evidencia 
a  importancia  do  ponto  de  vista  historìco,  quando  na  citada  carta  esta- 
beleceu  o  principio:  a  Se  considerardes  a  Educa9llo  emquanto  à  sua 
marcha  geral,  toda  a  sua  theorìa  positiva  assenta  naturalmente  sobre  este 
principio  fiindamental:  a  educa98o  do  individuo;  quer  espontanea;  quer 
mais  ou  lìienos  systematica,  reproduz  necessariamentei  nas  suas  grandes 
phases  successivas,  a  educa9&o  da  especie,  tanto  em  rela9So  ao  sen- 
timento comò  em  rela92o  às  ideias.  Ora,  segundo  està  regra  incontes- 
tavel|  nenhum  plano  de  educa9Zo  completa  pode  ser  sabiamente  con- 
cebido;  emquanto  a  evoluffto  goral  da  Humanidade  nSo  tiver  sido  suf- 
ficientemente reduzida  a  uma  verdadeira  theoria  historica.»'  Se  a  dis- 
solufSo  do  regimen  catholico-feudal  nos  revelou  os  caracteros  da  ovo- 
lu^So  pedagogica  desde  as  Escholas  das  CoUogiadas  até  às  disciplinas 


1  Testament,  XXÌX  Lettre,  p.  283. 

^  Testament,  p.  284.  A  totalidade  dos  planos  de  referma  de  Inatruc^i&o  pu- 
blìca  em  Portugal  resente-se  da  £alta  de  urna  systematisa^io  philosophica;  e  os 
trabaDios  especiaes  nio  se  elevam  acima  da  critica  do  presente,  prevalecendo 
sempre  o  ponto  de  vbta  negativo.  Comte  julga  com  justeza  toda  està  cathegorìa 
de  trabalhos,  que  se  mtdtìplicam  som  nada  conseguir  :  «Ora  està  crìtica,  emquanto 
desprovida  de  inten9oe8  organicas,  ou  ligada  a  muito  vagos  pensamentos  de  rege- 
nera^o,  o  que  equivale  quasi  ao  meamo,  acha-se  jà  realisada,  no  que  tem  de  es- 
sencial  pelos  nossos  percursores  voltairìanos.» 


24  fflSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

especiaes  das  Polytechnicas,  os  elementos  da  synthese  positiva  por  ella 
elaborados,  nos  revelarSo  as  formas  pedagogicas  necessaìrias  a  nm  es- 
tado  normal  ou  sociocratico. 

A  gera^fto  quo  se  achou  envolvida  na  grande  crise  do  firn  do  se- 
colo xviu,  encontrou  diante  de  si  o  problema  fundamental  da  huma- 
nidade — a  renovagJLo  dos  dois  Poderes  temperai  e  espirìtual,  que  se  ti- 
nham  esgotado  sob  a  fórma  do  regimen  catholico-feudal,  e  esse  outro 
problema  urgente,  por  longo  tempo  addiado  pela  compressSo  da  dieta- 
dura  monarchica, — a  incorporaySo  do  proletariado  na  sociedade  mo- 
denia.  O  trabalho  d'essa  gera9lo  teve  de  ser  fatalmente  negativo,  apres- 
sando a  decomposÌ9So  do  esgotado  regimen  pelo  processo  da  realeza 
do  direito  divino,  e  pela  abolÌ9So  do  culto  catholico.  Sem  està  simpU- 
fica9lo  prèvia  era-lhe  impossivel  reconstruir  a  sociedade  humana  em  ba- 
ses  que  nSo  fossem  fic93e9  theologicas  e privilegios  pessoaes.Assim  ficou 
proposto  0  problema  para  a  gera9So  subsequente,  herdeira  de  um  tSo 
assombroso  destino.  Como  o  cumpriu  ella?  Nem  mesmo  comprehendeu 
a  sua  enorme  responsabilidade  perante  a  conscieiicia  e»a  histpria.  Os 
elementos  preponderantes  do  proletariado,  que  fizeram  a  Revolu^So, 
enriqueceram  pelo  reconhecimento  do  direito  civil  da  propriedade,  que 
a  nobreza  e  o  clero  tinham  immobilisado;  tomaram-se  ricos  burguezes, 
imitaram  as  pompas  heraldicas,  e  illudidos  pelos  ideologos  que  concilia- 
vam  a  monarchia  e  a  religiSo,  o  throno  e  o  aitar,  acceitaram  satisfei- 
toB  as  Cartas  outorgadas  pelos  reis,  que  salvaguardavam  aS  suas  dynas- 
tias  e  a  religiSo  do  estado. 

É  oste  o  papel  historico  da  classe  mèdia  nos  tempos  modemos; 
occupada  em  manter-se  no  equilibrio  politico  do  jyste  milieu,  nfto  que- 
rendo  ser  perturbada  no  seu  bem  estar  burguoz  continuando  na  obra 
da  reorganisa9So  social,  e  temendo  recuar  ao  pasjsado  da  servidSo  fon- 
dai, contentou-se  em  revestir  de  perstigio  as  fórmulas  do  regimen  re- 
presentativo,  e  esgotou-se  na  esterilidade  palavspsa  das  fic$3es  do  par- 
lamentarismo. É  da  classe  mèdia  que  tem  saldo  n'este  seculo,  apoz  a 
RevolusBo,  todos  os  talentos  metaphysicos  das  escholas  superiores,  do 
jomalismo  militante,  dos  parlamentos,  dos  ministerios,  e  depois  de  te- 
rem  exercido  a  auctoridade  discricionariamente,  acabam  por  se  senti- 
rem  sem  ac^So  no  meio  social,  sem  poder  moral,  e  verdadeiramente 
gastos. 

Appresentado  assim  o  problema  historico  da  Europa  moderna,  com- 
prehende-se  a  situagfto  dos  espiritos;  uns  lisongearam  o  conservantismo 
burguez  na  arte,  na  litteratura,  no  jomalismo,  em  todas  as  manifesta- 
{3es  mentaes  ;  ontros  presentiram  a  missSo  revolucionaria,  e  serviram 


INTRODOCgiO  25 

esse  ideal  com  mais  ou  menos  clareza,  com  maior  ou  menor  persis- 
tencia,  mas  comò  se  fosse  urna  SOÌU9S0  definitiva. 

O  movimento  socialista  revelava  a  intuÌ98o  da  verdadeira  missSo 
revolacionaria;  mas  facilmente  foi  explorado  para  excitar  a  resistencia 
de  todos  OS  elementos  coni^ervadqres,  que  para  tado  esterilisarem  tam- 
bem  simnlaram  am  socialismo  do  estado.  0  problema  da  reorganisa- 
9S0  social  nSo  se  resolve  com  o  appello  às  paixSes,  mas  às  intelligen- 
ciasy  para  determinarem  as  condÌ98e8  scientificas  da  sua  realisa^fto. 

Emquanto  se'  desconheceu  a  r6la9lo  da  dependencia  dos  pheno- 
menos  sociaes*  para  com  os  phenomenos  de  ordem  biologica  e  cosmo- 
logica,  nSU)  era  possivel  constituir  em  sciencia  a  completissima  varie- 
dade  de  factos  que  sSo  0  modo  de  existencia  das  sociedades  humanas. 
Estabeleceram-se  essas  rela93e8  de*  dependencia,  que  vieram  destruir 
a  S0IU9S0  de  continuidade  entre  0  mundo  physico  e  0  mundo  moral,  e 
a  sciencia  da  Sociologia  avan90u  para  a  sua  piena  constituÌ9Ìo.  NSo 
ha  pertanto  nada  de  commnm  entre  os  trabalhos  dos  utopistas,  comò 
Rousseau  ou  E»urier,  que  formavam  systemas  sociaes  sobre  concepfSes 
subjectivas  e  gratuitas,  com  0  moderno  processo  positivo  que  substitue 
a  imaffinagào  pela  observagào  na  descoberta  de  uma  lei  naturai  que  su- 
bordina a  variedade  dos  facto»  sociaes.  A  renova9So  da  Historia,  no 
seculo  XIX,  veiu  tambem  facilitar  a  forma98o  da  Sociologia,  porque  pela 
historia  é  que  se  determina  a  continuidade  humana,  comò  pela  con- 
8Ìdera9&o  das  differentes  épocas  se  descobre  a  natureza  especial  dos 
phenomenos  sociaes  que  so  podem  ser  bem  comprehendidos  sob  o 
ponto  de  vista  de  conjuncto.  Emquanto  os  phenomenos  sociaes  foram 
observados  isoladamente,  fora  da  importancia  do  seu  conjuncto,  crea- 
ram-se  sciencias  sociaes  concretas  e  particulares,  comò  0  Direito,  comò 
a  Moral,  a  Litteratura,  a  Philologia,  a  G-eographia,  a  Archeologia,  a 
Chronologia,  a  Estatistica,  a  Economia  Politica,  a  Etimologia  e  tantds 
outros  capitulos  fragn^ntados  e  sem  destino,  em  que  se  dispendeu  uma 
actividade  por  falta  de  convergencia  para  a  creaySo  de  uma  sciencia 
geral  e  abstracta,  a  Sociologia.  Bastava  0  quadro  d'essa  deploravel 
actividade  dispersiva,  para  se  conhecer  a  opportunidade  de  uma  disci- 
plina de  unifica9So  philosophica  de  conjuncto;  a  Sociologia  corrige  essa 
erudisco  sem  destino,  aproveitando-se  de  todos  esses  elementos  positi- 
vos  para  constituir-se  em  sciencia.  Quem  diz  sciencia  diz  preuisào;  so 
adquire  valor  e  importancia  scientifica  aquelle  phenomeno  naturai  ou 
moral  capaz  de  conduzir  a  previsSés.  A  Sociologia  conduzir-nos-ha  a 
previsdes  sociaes?  Estamos  convencidos  que  sim;  e  j&  hoje  se  poderSo 
apontar  grupos.  de  previsffea  nas  fórmas  da  actividade,  affectividade  e 


26  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

intellectoalidade  sodai.  Tal  é  o  intuito  da  nova  Bciencia.  E  corno  a  toda 
a  premsSo  saccede  urna  afplica^f  isto  é,  a  urna  qualquer  Sciencia  oa 
theoria  urna  Arte  oa  pratica  correlativa,  tambem  a  Sociologia  actuari 
de  um  mòdo  proficuo  na  arte  qae  deriva  d'ella,  a  Politica,  dando-lhe 
o  destino  quo  até  hoje  està  arte  empirica  nSo  soube  achar  para  a  sua 
intervenySo  governativa,  e  na  Pedagogia,  dando-lhe  um  systema  de 
concep^Ses  duraveis,  que  desde  a  Edade  mèdia  &lta  no  ensino  indi- 
viduai e  publico. 


PEIMEIRA  ÈPOCA 

(SECULO  xin  A  xv) 


FDNDAgiO  DA  UNIVERSIDADE  EM  LISBOA. 
E  SEUS  ANTECEDENTES  PEDAGOGICOS 


CAPITULO  I 


0  EnslBO  das  Gollegiadas 


A  tradi^JU)  religiosa  das  Escholas  episcopaes  e  abbaciaes  :  CóUegia  compUalitia  e 
CoHegia  sodcUiiia. —  0  Cabiscol,  Chantre,  Mestre-Escola  e  Mózinhos. — A  Es- 
cbola  episcopal  de  Coimbra  (1086)  ;  o  Collegio  dos  Santos  Paulo,  Eloj  e  Cle- 
mente (1266);  a  Escbola  abbacìal  de  Alcoba^a  (1269);  Conezia  magistral  da 
CoUegiada  de  Guimar^es.-^  O  que  se  ensinava  nas  Escholas  das  Collegiadas. 
—  Os  Clerici,  e  os  BacheUur  (bas  cheyalier).^0  ensino  orai  e  o  Lente. — 
Desprezo  pelas  Artes  liberaes  e  seu  restabelecimento  pelos  Pontifices. —  O 
Trìvium  e  Quadrivium. — As  Escholas  de  Rhetorica,  Dialectica  e  Philoso- 
phia  corno  prìmeiro  mdimento  das  Universidades. — A  licenciatura  e  a  facul- 
dade  ubiqut  docendi.-^  Bibliothecas  dos  Bispos  e  Cabidos  do  seculo  zin  e  ziv 
em  Portngal. 

Ka  Europa  moderna  o  prìmeiro  ansino  popular  fez-se  nas  CoUe^ 
giadas»  E  preciso  lembrar  que  tanto  a  Egreja  de  Roma,  corno  as  egrejas 
nacionaesi  se  fundaram  entre  essas  corporajSes  operarìas  chamadas 
CaUegia  compitalitia,  e  CóUegia  sodalitia,  cuja  hierarchia  do  seu  pes- 
aoal  ae  reproduziu  na  ordem  ecclesiastica.  A  imitajfto  d'estes  CoUegios 
da  antiga  organisagSo  municipal  é  que  os  fez  radicar  nas  provincias 
do  ImperìOi  da  mesma  fórma  que  as  rela98es  da  Egreja  oom  elles  é 
que  fez  com  que  durante  a  Edade  mèdia  aa  egrejas  fossem  o  centro  da 
▼ida  civil  do  povo,  e  os  bispos  tivessem  attrìbuiySes  municipaes.  A 
Egreja  conservou  os  titulos  prìmitivos  usados  n'esses  CoUegios  com- 
pitalicios;  assim  o  nome  de  Irmios  (fratres)  ficou  usado  entre  os  no- 


28  HISTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

V08  crentes,  e  os  chefes  da  associagSo  tomavam  o  nome  de  Mestrea  e 
de  Paee  (Padre -Mestre,  é  o  titulo  de  respeito  entre  os  personagens  ec- 
clesiasticos)  ;  as  egrejas  procoravam  os  seus  protectores  ou  patronos 
nSo  so  entre  a  aristocracia,  (padroeiros)  corno  entre  os  santos,  corno  os 
primitivos  CoUegbs  romanos.  O  logar  das  reuniSes  dos  associados  col- 
legiaes  era  chamado  a  Schola,  onde  estava  a  capella,  e  onde  se  toma- 
vam as  delibera93eB  coUectivas.  Algumas  d'estas  associa9Ses,  corno  o 
Collegio  dos  Mimos  e  AthletaB  gregos,  chamavam-se  o  Santo  Synodo, 
que  se  conserva  na  Egreja  do  Oriente  e  nos  concUios  tn/nodaes  do  Oc- 
cidente. Os  associados  vestiam-se  de  branco  nos  dias  de  festa  (a  alva 
dos  padres)  e  o£fereciam  aos  deused  vinho  e  incenso,  (ainda  usado  na 
missa  e  nas  festas  de  egreja.)  Fora  da  Schola  sahiam  em  procissSo 
com  as  suas  bandeiras  (os  guiòes  das  ceremonias  catholicas);  emfim  a 
Egreja  herdou  a  éncommenda9So  das  almas  dos  finados  e  o  dar  sepol- 
tnras  aos  seus  fieis  irmSos,  corno  as  Columbaria  romanas;  os  banquetes 
usados  nas  encommendafSes  d'estes  CoUegios  ficaram  tambem  no  cos- 
tume dos  Bodos  aos  pobres  e  nas  oblatas  de  comestiveis  nos  enterros, 
e  ainda  nas  estréas  no  primeiro  dia  do  anno. 

A  Egreja  formada  por  ecdesiolas,  qne  imitavam  a  organisafXo  dos 
Collegios  e  das  Columbaria,  adoptou  a  caixa  das  esmolas  para  os  de- 
votos;  e  differenciando-se  d'essas  corpora93es  pela  sua  propaganda  doa- 
trinaria,  a  Schola  tomou  o  sentido  que  hoje  tem,  de  um  logar  onde  se 
ensina.  Tertuliano  contrapondo  a  Egreja  a  essas  a880cia98e8y  insiste 
no  seu  intuito  docente:  cAs  nossas  quotisafSes  servem  para  dar  pio 
aos  pobres  e  a  sepultal-os,  e  edticar  os  orfàos  dos  dois  sexos,  e  a  soc- 
correr OS  nossos  velhos.»  Tal  é  a  origem  da  Eschola  das  Collegiadas, 
que  se  perdeu  quando  a  Egreja  se  tomou  aristocratica,  ficando  apenas 
com  0  titulo  honorifico  do  Mestre-Eschola^  ou  de  Cabiscol  (Caput  Scho- 
Ise)  dos  documentos  medievaes. 

Viterbo,  no  Elucidario,  explicando  o  vocabulo  medieval  Cabiscol, 
allude  a  um  documento  de  venda  de  19  de  Janeiro  de  1139,  em  que 
figura  comò  testemunha  Mito  Cabiscol j  e  produz  um  texto  das  Partidas 
de  Affonso  o  Sabio:  cE  algunas  Eglesias  Cathedrales  son,  en  que  y 
a  CabescóUs,  que  han  oste  mesmo  officio  que  los  Chantres.  E  Cabiscol 
tanto  quiere  dizir  corno  Cabdillo  de  el  coro,  para  levantar  los  cantos.» 
{Partida  i,  tit.  6,  liv.  5.)  Em  Portugal  estas  fundagSes  apparecem 
junto  das  Collegiadas,  tendo  sido  estabelecidas  pelos  bispos  e  abbades 
para  educajSo  dos  Mózinhos,  ou  crian9aB  destinadas  &  vida  clerica!,  e 
muitas  vezes  com  um  caracter  de  beneficencia. 

Os  Mózinhos  pertencem  a  essa  classe  de  criangas  offerecidas  aos 


0  ENSINO  DAS  G0LLE6IADAS  29 

conventoB  corno  oblatas  religiosas,  costume  quo  teve  inicio  com  os  mos- 
teiros  benedictinoB;  da  necessidade  da  sua  educafSo  nasceram  as  es- 
cholas  abbaciaes  e  mesmo  as  parochiaes  e  episcopaes.  Em  um  manu- 
acrìpto  do  secalo  passado  sobre  a  Familia  dos  Fejjós,  da  Galliza,  ao 
falar-se  de  D.  Fernando  Giraldez  Feijó,  de  1390,  se  lè:  cEn  aquel 
tiempo  se  osaba  que  los  caballeroB  daban  à  criar  j  ensefiar  jbub  hijos 
&  los  monjes  de  los  monasterios,  e  de  ellos  eran  defensores.»  ^ 

O  bispo  Dom  Paterno  fonda  em  Coimbra,  em  1086,  junto  à  sé  ou 
egreja  de  Santa  Maria,  um  Collegio  ou  Seminario  de  Mo$08,  onde  se 
educavam  rapazes  «para  receberem  o  grào  do^presbyterio^  e  quiz  que 
vivessem  com  communidade  segando  a  regra  de  Santo  Agostinho.»  '  Evi- 
dentemente a  primeira  organisa98o  do  ensino  visava  exclusivamente  & 
disciplina  ecclesiastica,  postoque  se  ampliasse  depois  aos  que  o  dese- 
jaBsem'aproveitar.  O  abbade  de  Alcoba$a  D.  Frei  Estevam  Martins, 
ftmda  em  1269  no  mosteiro  de  Santa  Maria  oò  estudos  de  Grammatica 
de  Logica  e  Theologia  fiad  communam  utilitatem  monachorum  nostro- 
rum,^  àccrescentando  que  ficam  accessiveis  a  quaesquer  outras  pes- 
soas.  0  caracter  caritativo  das  primitivas  Scholoe  acha-se  no  Hospital 
de  Sam  Paulo,  que  por  1266  se  converte  no  Collegio  dos  Santos  Paulo, 
Eloy  e  Clemente,  onde  o  bispo  de  Evora  e  Lisboa,  D.  Domingos  Jardo 
institue  0  ensino  para  dez  capellZes,  vinte  mercieiros  e  seis  escolares 
de  latim-,  grego,  tfieologia  e  canones;  e  tambem  no  Collegio  dos  Meninos 
arfaos  fundado  por  D.  Beatrìz,  mulher  de  D.  Affonso  ili. 

Da  Eschola  da  CoUegiada  de  GhiimarSes  falla  o  auctor  das  Me- 
morias  resusUadas,  corno  estabelecida  no  tempo  de  D.  Sancho  ii:  cFoi 
mais  estabelecido  que  se  apresentasso  na  CoUegiada  um  mostre  que 
desse  ligio  de  Grammatica^  e  que  se  pedisse  a  Sua  Santidade  a  pri- 
meira prebenda  que  vagasse,  e  que  emquanto  nSo  vagasse  se  tirasse 
de  todas  as  mais  uma  porgSo  para  o  leitor  da  dita  Granunatica;  que 
resultou  haver  para  a  conezia  magistrale  e  por  se  nXo  querer  occupar 
Bea  successor  a  Vèr  Maral,  dà  uma  pensSo  aos  religiosos  de  S.  Domingos 
para  elegerem  um  padre  que  a  venba  dar  nb  capella  de  S.  Paulo,  si- 
tonda  no  clauBtro  da  real  CoUegiada.  Està  eschola  se  ordenou  em  tempo 
de  D.  Sancho  u.» 

A  infloencia  franceza,  que  se  propagou  a  teda  a  Europa  pela  fim- 
da$So  das  Universidades,  foi  anteriormente  communicada  pelos  bispos 
francezes  que  em  Portugal  govemaram  as  sés  do  novo  estado.  Na  in- 


1  ELogio  del  P.  Feijó,  p.  47;  apud  Bibliot.  gallega,  t.  zn. 

2  Brand2o,  Manarèh.  IfiHt,^  P.  m,  liv.  vni,  cap.  5.  App.  Escrìpt.  m. 


30  HISTORIÀ  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIBfBRA 

Bufficiencia  dos  estudos  das  CoUegiadas,  alguns  alonmos  iam  a  Paris , 
corno  se  sabe  pela  lenda  de  Frei  G-il  de  Santarem;  ama  carta  de  doa- 
9S0  de  Dom  Sancho  i  de  1192,  concede  ao  mosteiro  de  Santa  Cruz 
de  Coimbra  a  preBta98o  de  400  morabitinos  «para  snstentay&o  dos  co- 
negos  do  dito  mosteiro  que  estudam  em  cu  partes  de  Ffwn/ga. . .  »^  Nas 
can98es  satTrìcas  do  Cancioneiro  da  Vaticana,  allude-se  ao  trajo  ao  oso 
de  Mompilher,  que  figurava  em  Portugal,  muitas  veses  sem  se  ter  saido 
da  patria.  0  nome  de  dericus,  que  em  toda  a  Edade  mèdia  se  ampliou 
ao  homem  que  sabia  lér  ou  recebera  um  qualquer  rudimento  de  in- 
8truc$&0y  tambem  teve  nos  antigos  documentos  portuguezes  o  mosmo 
sentìdo,  restringindo-se  depois  ao  que  entraya  nas  ordens  ecdesiasticas. 
Elucidando  a  palavra  Clerigo,  diz  Viterbo  : 

cDeu-se  oste  nome  aos  sacristSes  das  egrejas,  que  andavam  na 
casa  do  Parocko  aprendendo  cu  primeiras  letras  e  0  ajudavam  &  missa. . . 
Estes  pequenos  derigos,  no  Concilio  de  Mérìda,  cap.  xvm,  se  cha- 
mam  Clerici  parochianum,  E  porque  os  Parochos  os  deviam  ensinar 
as  primeiras  letras  e  bons  costumes,  se  disseram  tambem  Clerici  scho- 
lares»  Eni  os  nossoa  antigos  documentos  se  intitularam  Mózinhos  ou 
Monginkos  pelo  particular  vestido  ou  sotana  e  pela  modestia  e  gravi- 
dade  com  que  se  portavam  na  execugfto  do  seu  ministerio.»  (Elttcid. 
vb.^  Olebigo,  vi).  Aqui  temos  0  clerigo  com  o  sentìdo  em  que  nos 
apparece  em  todos  os  documentos  da  Europa  da  Edade  mèdia;  0  ha- 
bito  clericali  que  era  a  toga  dos  pbilosophos  antigos  adoptada  pela 
egpreja,  conservou-se  nos  estudos  da  Universidade  de  Coimbra  comò 
imita9&o  das  outras  universidades.  Antonio  Diniz  da  Cruz  e  Silva,  no 
poema  heroi-comico  O  Hyssope,  allude  ao  habito  de  estudante  : 

OUia  0  que  succedeu  ha  pouco  tempo 

Ao  charlatfto  do  Medico  Peqneno 

Que  a  habito  perpetuo  de  eHudante 

Foi  de  Esculapio  em  junta  condemuado. . . 

(CaHT.  TX.) 

As  Universidades  nunca  perderam  a  sua  primordial  feiglo  de  de- 
ricatura.  Em  urna  nota  comtemporanea  do  poema  se  18:  cUsou  sem- 
pre do  antigo  vestido  de  capa  e  volta,  que  jà  entSo  estava  em  desuso, 
vestindo-se  geralmente  os  medicos  comò  os  outros  seculares.  A  iste  se 


1  Doc  ap.  D.  Nicol&o  de  S.  Maria,  Chr.  dos  Con.  Regr.^  P.  n,  p*  58. 


0  ENSINO  DAS  GOLLEOADAS  31 

refere  o  poeta  quando  falla  no  habito  escholastico.»  (Ed.  Hyssope,  pag. 
450).  Diz  o  proverbio  popolar  apodando  o  trajo  clerica!: 

Medico  de  Valencia, 
Muitas  fraldas 
E  pouca  sdencia. 

O  nome  de  dericus,  contraposto  com  todo  o  orgnlho  escholar  ao 
de  Udcus,  era  na  Edade  mèdia  a  designagfto  de  urna  classe  constitoida, 
que  monopolisara  em  si  toda  a  doutrina  theologica  e  philosophica  que 
se  enainava  sob  a  direc^So  da  Egreja.  Desde  que  come^aram  os  esta- 
doB  da  Jurisprudencia  romana,  que  motivaram  a  crea$So  das  Univer- 
sidades  sob  a  protec^So  secular  dos  reis,  a  dialectica  nSo  ficou  um  se- 
gredo  e  a  for9a  dos  clerici,  tomou-sQ  tambem  um  caracteristico  dos 
glossiatas,  e  o  nome  de  docto  ou  dautor  contrapoz-se  ao  de  derigo  ^^  si- 
gnificando um  novo  dominio  do  saber  humano,  constituindo  ambos  unaa 
nova  aristocracia  litterarìa,  comò  o  dA  a  entender  o  sentido  intimo  do 
titnlo  de  Bachard  (baechdear,  bas-chevallier).^  O  antagonismo  no  campo 
dotttrìnario  conservou-se  nas  duas  fórmas  pedagogicas  do  Estudo  geral 
e  da  Uhiversidade,  em  que  predominava  na  primeira  a  auctoridade  pon- 
tifical|  e  na  segunda  a  auctoridade  real,  vindo  a  identificar-se  os  dous 
t^poB  quando  às  Universidades  foi  ooncedida  pelos  papas  a  faculdade 
vbique  decendi,  tomada  universa!,  e  n'ellas  incorporada  a  theologia  das 
escholas  pontificias. 

A  està  parte  da  educaglo  da  Schola  das  CoUegiadas  pertence  o 
canto,  dSU)  so  oonservado  na  tradÌ9So  medieval  das  Sete  Artes  liberaes, 
mas  tambam  applicado  às  praticas  do  culto  nas  prosas,  sequencias  e 
hymnos  da  Egreja.  0  nome  de  Chantre^  conservado  hoje  sem  sentido, 
corresponde  a  este  periodo  da  Pedagogia  moderna.  A  Egreja  seguia 
a  corrente  da  civilisa9So  hellenica,  onde  o  ensino  comodava  pela  mu- 
sica. Na  linguagem  architectonica,  o  limiar  da  egreja  chamava-sejxxr- 
fjis,  do  nome  com  que  se  designavam  as  crian9as  que  frequentavam 
aquelle  legar  comò  eschola';  o  nome  de  derigo  (derc)  ficou  durante  a 
Edade  mèdia  com  o  sentido  de  instruido,  que  sabe  ler  e  escrever.  A 
missSo  dos  Bispos  consistia,  além  da  inspec$So  da  doutrina  religiosa, 


1  Giudice,  Storia  della  Ldteraiura  italiana,  1. 1,  p.  52. 

^  Qoicherat,  na  Eidoria  do  Cóàegio  de  Santa  Barbara,  transcrevendo  a  pa- 
lavra  Bacheulerie,  diz  que  ainda  se  n2o  tinha  formado  a  que  a  substituiu,  Bacca- 
leaurtai,  da  fictida  etTmoIogia  da  baga  de  louio. 

^  Thery;  André,  ^00  MaUree,  hier,  p.  78. 


32  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

no  essino  ;  comò  os  Bispos  se  foram  entregando  às  ambifSea  secolarcfl 
em  conflicto  com  os  barSes  feudaes,  delegaram  o  Bea  mister  docente 
em  um  ecdesiastico,  que  recebeu  differentes  nomee,  corno  o  de  Capis- 
chele  on  Cahiscól,  Mestre^Eschola^^  Chantre^  e  Cancellano  ou  Chancdler. 

No  Concilio  de  LatrSo,  de  1179,  sob  Alexandre  iii,  estabeleceu-se 
que  cada  cathedral  teria  um  Mestre-Esckóla,  encarregado  de  ensinar 
OS  rapazes  pobres  ;  e  que  o  bispo  no  seu  capitulo  trataria  de  provér  ao 
ensino  da  grammatica  e  da  theologia. 

NoB  antigos  documentos  portuguezeS|  citados  por  Viterbo,  appa- 
rece-nos  o  nome  de  Cabùcol;  na  reorganÌ8a9So  da  Universidade  por 
D.  JoSo  ni,  (1537)  o  nome  de  Cancdlario  conserva  o  seu  caracter 
medieval  nos  Priores  de  Santa  Cruz  de  Coimbra.  Ainda  no  seculo  xv, 
comò  descreve  o  rei  D.  Duarte,  o  Chantre  era  essencialmeqte  peda- 
gogo, e  0  proprio  monarcha  apresenta  no  Leal  Consdheiro  um  esbofo 
regulamentar  d'essas  escholas,  a  que  em  Franja  se  dava  o  nome  de 
Chantrerie  ou  Cantorcdes.  Na  secularisa(So  do  ensino,  as  dignidades 
ecclesiasticas  de  Mestre-Eschola  e  Chantre  ficaram  de  simples  apparato 
parasitario,  e  ainda  subsistem  com  oste  destino. 

0  ensino  das  CoUegiadas  e  o  das  Universidade»  correspondem  a 
duas  phases  doutrinarias  antinomicas  entro  si,  e  por  isso  incompletas; 
emquanto  a  Egreja  dirigiu  os  espiritos,  separou-os  de  toda  a  commu- 
nicayfto  com  as  idéas  da  civilisasSo  greco-romàna,  renegando  esse  pas- 
sado  esplendido  da  humanidade,  e  interrompendo  a  continuasse  da 
actividade  scientifica  da  Grecia.  Na  primeira  organisasfto  doutrinaria 
da  Egreja,  S.  Paulo,  na  Epistola  aos  Corynthios,  proclama:  cPorque 
està  escripto:  destruirei  a  sabedoria  dos  sabios  e  aniquilarei  a  intelli- 
gencia  dos  instruidos.  (Cap.  i,  %  19.) — Mas  Deus  escolheu  o  louco 
d'este  mundo  para  confundir  aos  sabios.»  (Id.  f.  27.)  Celso  notou  està 
ignorancia  systematica  explorada  pelos  primeiros  evangeli  sadores;  e 
Tertuliano,  no  ferver  da  sua  prégaySo  exclama:  cEu  nBo  ine  dirìjo 
aos  que  s8o  formados  nas  escholas,  exercitados  nas  bibliothecas,  que 
vem  despejar  diante  de  nós  os  restos  mal  digeridos  de  uma  sciencia 
adquirida  nos  porticos  e  academias  da  Grecia.»  Em  todos  os  padres 


1  Tambem  se  dava  o  nome  de  Primicerio  ao  chefe  da  Eschola,  tal  corno  ee 
acha  empregado  na  escfaola  episcopal  de  Beims  no  seculo  xi,  e  em  uma  carta  de 
Saint  Remi.  Os  Bispos  francezes  que  vieram  a  Portugal  depois  da  independencia 

d'este  Condado,  aqui  introdoziram  essa  deslgna^flo  com  a  primeira  organisa^ao 
do  ensino  que  inieiaram.  A  influencia  franceza  toma  a  reapparecer  na  primeira 

niCtade  do  seculo  xvi,  estimùlando  a  grande  gera^ So  dos  Quinhentbtas. 


0  ENSINO  DAS  COLLEGIADÀS  33 

da  Egreja  abundam  as  provas  do  desprezo  que  a  nova  religiSLo,  qne 
dirìgìu  08  espirìtos  no  Occidente,  nutria  pela  civilisaffio  da  Grecia;  o 
pontifice  S.  Gregorio  Magno  reprehendia  o  bispo  de  Vienna,  Didier, 
por  ensinar  grammatica:  «Chegou  ao  nosso  conhecimento  iste,  que 
nSo  podemoB  recordar  sem  pejo,  que  Vessa  Fratemidade  esplicava 
Grammatica  a  algumas  pessoas.  Recebemos  desagradavelmente  està 
nova,  de  tal  modo,  e  sOmos  mais  vehementemente  chocados,  que  o  que 
primeiro  f5ra  repetido  com  gemidos  se  converteu  em  tristeza.  Porque 
ae  nAo  tomarSo  os  louvores  de  Christo  com  os  louvores  de  Jupiter  em 
urna  mesma  bocca.  Considerae  quanto  para  um  sacerdote  é  horrivel  e 
criminoso  esplicar  em  publico  livros  dos  quaes  a  um  secular  piedoso 
nSo  deveria  permittir-se  a  leitura.  NSo  vos  appliqueis  mais  aos  pas- 
satempos  e  às  letras  do  seculo.D^  Em  uma  carta  d'este  mesmo  ponti- 
fice, que  na  sua  Vida  traz  JoSLo  Diacono,  alardèa  que  na  linguagem 
nSo  evita  nem  os  metadsmos^  nem  os  barbarismos,  nem  attende  aos 
caaosj  porque  acha  indigno  que  as  palavras  celestes  estejam  sujeitas 
Ad  regras  de  Donato,  ^  Està  80IU9&0  de  continuidade  com  a  cìviIÌ8a9SLo 
greco-romana  produziu,  a  par  da  invasSo  dos  barbaros  Germanos,  um 
edipse  da  rasSo  humana  na  Edade  mèdia;  por  isso  quando  se  resta- 
beleceu  esse  conhecimento  elle  foi  propriamente  denominado  um  Re- 
nBflcimento.  A  Egreja  teve  de  luctar  centra  0  espirito  secular  que  acor- 
dara  ao  estimulo  das  primeiras  descobertas  da  civilisa98o  da  Grecia; 
essa  communica98o  fòra  feita  pelos  Arabes,  e  por  isso  0  humanismo 
apparecia  com  um  caracter  heterodoxo,  vindo  mais  tarde  a  ser  ado- 
piade  pela  propria  Egreja,  comò  se  viu  em  Eugenio  11,  e  depois  em 
Bembo  e  LeSo  x,  e  nos  elementos  pedagogicos  dos  Jesuitas. 

Uma  das  principaes  revoluySes  do  ensino  europeu  surgiu  do  acci- 
dente de  uma  descoberta  industriai,  a  Typographia.^  Antes  da  vulga- 
risa^So  dos  livros,  0  ensino  orai  suppria  a  deficiencia  de  um  texto,  e 
a  palavra  do  mostre  adquiria  uma  auctoridade  moral  enorme,  de  que 
a  Egreja  se  aproveitou  para  a  prèdica  e  para  a  universalidade  da  dis- 
ciplina religiosa.  Com  a  abundancia  dos  livros,"  deu-se  0  facto  con- 


1  Ap.  Rayuouard,  Elemente  de  la  Grammaire  de  la  Langue  romane,  p.  14. 

2  8.  Jeronymo  falla  com  desprezo  dòs  instruidos  nas  letras  antigas,  chaman- 
do-lhes  desdenhosamente  eiceronianoe. 

3  Draper  inclina-se  &  opiniSo  que  a  Lnprensa,  a  Stampa,  jà  citada  pelos 
Venezianos  em  um  decreto  de  1441  corno  cousa  usuai,  è  anterìor  no  Occidente  & 
descoberta  de  Coster  cu  de  Gutenberg.  Hùt  du  developpemené  irUeUectud  en  Eu^ 
rape,  t.  in,  p.  140. 

HIST,   UH.  ^ 


34  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

trarìo;  generalisaram-se  ob  textos  dogmaticos  em  compendios,  e  os  mes- 
tres  diante  da  redac^So  categorica  e  lac()nica  das  obras  elementares, 
tomaram-se  mudos,  sem  ac^So  moral  sobre  a  intelligencia  do  alomno, 
impondo-se  apenas  pela  severìdade  disciplinar,  e  esdgindo  violencias 
da  faculdade  passiva  da  memòria.  O  ensino  na  època  das  OoUegiadas 
era  na  maior  parte  orai;  na  època  da  crea9So  das  Uniyersidadesi  as 
glosas,  as  apostillas,  os  escholios,  sSo  a  collaborasBo  escripta  do  alumno, 
que  collige  todos  os  elementos  doutrinarios  da  palavra  do  mestre.  De- 
pois da  descoberta  da  Imprensa  os  primeiros  que  substituiram  o  mestre 
pelo  livro,  foram  os  Jesuitas,  e  os  que  mais  abusaram  da  memoria. 
Com  o  ensino  scientifico,  a  necessidade  do  methodo  experimental  es- 
tabeleceu  outra  vez  a  communica9So  orai  com  os  discipulos;  porém 
assim  que  essas  disciplinas  se  foram  tornando  dogmaticas  ou  elemen- 
tareS|  retrogradou-se  ao  ensino  pelo  texto  escripto  comò  objecto  ex- 
elusivo  das  li^Ses.  Draper  descreve  a  influencia  do  ensino  orai  n'esta 
pnmeira  època  da  Pedagogia  europèa,  por  occasiSLo  da  descoberta  da 
Imprensa:  clima  profunda  mudan$a  produziu-se  tambem  no  mundo 
da  instruc$&o,  mudanya  que  se  fez  sentir  immediatamente  no  mundo 
ecclesiastico,  e  mais  tarde  no  mundo  politico.  O  systema  religioso  na 
sua  totalidade  suppunlia  um  publico  que  nSo  Ha,  e  d'aqui  a  leitura  das 
oragSes  e  o  sermSo.  No  seculo  xni  a  instruc9So  orai  predominava;  no 
seculo  XDC,  ella  desempenha  uma  parte  secundaria.  A  inven98o  da  Im- 
prensa veiu  dar  imia  temivel  rivai  ao  pulpito.  NSo  devemos  comtudo 
desconhecer  o  poder  que  exercia  outr'ora  um  ensino  orai  e  scenico  so- 
bre um  auditorio  composto  de  individuos  privados  de  leitura;  etc.»' 
Augusto  Oomte  entrevendo  uma  phase  normal  na  Pedagogia  em 
que  o  ensino  scdentifico  seja  dirigido  por  um  espirito  de  conjuncto,  ou 
philosophico,  restabelece  o  ensino  orai  na  sua  importancia  primitiva: 
cNo  estado  normal,  os  tratados  didacticos  devem  unicamente  dirigir-se 
aos  mestres,  através  dos  quaes  deve  sempre  passar  a  instrucySo  final- 
mente destinada  aos  discipulos.  As  leituras  theoricas  nSo  Ihes  convém 
Benito  quando  a  sua  educa9So  estiver  terminada;  até  entSo,  o  seu  des- 
envolvimento  scientìfico  resulta  de  uma  elaborafSo  pessoal,  esponta- 
neamente subordinada  às  lÌ93es  oraes,  unicas  conformes  com  a  dignì- 
dade  dos  professores. — E  preciso  essencialmente  attribuir  &  anarchia 
moderna  o  habito  de  destinar  livros  aos  discipulos,  assim  dispostos  a 
desdenbar  ou  criticar  os  mestres  segundo  o  conflicto  de  dois  metho- 


1  Draper,  op.  cU.,  t  m,  p.  145. 


0  ENSINO  DAS  COLLEGIADAS  35 

dos  de  exposi^Bo  naturalmente  incompativeis.»*  Estes  dois  methodos 
acham-se  implicitos  nas  duas  designa93eB  pedagogicas  jpro/sMor  e  lente; 
a  BubordinasSo  a  um  texto  esoripto,  escraviaou  o  espirito  docente  &  ez- 
plica9So  analytioa  de  formolas  dogmaticas  destinadas  &  memoriai  corno 
86  obserya  ainda  hoje  na  Universidade  de  Coimbra,  immobilisada  na 
regaIamenta9So  pombalina.  D'està  falsa  idèa  pedagogica  resulta  a  ez- 
plora^So  dos  compendios  offioiaes  e  a  monomania  chineza  dos  exames. 

A  sabstitoifSo  do  systema  escripto  ao  orai  nfio  se  fez  sem  lucta 
da  parte  da  Egreja;  e  essa  lucta  reflectiu-se  por  muito  tempo  na  anti- 
pathia  que  a  nobreza  tinba  pela  letra  redonda,  e  pelo  orgulhoso  alarde 
que  fÌEtzia  do  seu  analphabetismo.  A  nobreza  apreciava-se  pela  antigui- 
dade^  e  so  era  nobre  o  que  pertencia  a  urna  època  em  que  se  dispen- 
sava muito  bem  o  saber  lér  e  escrever.  Diz  JoZo  Fedro  Bibeiro.  no- 
tando  o  analphabetismo  do  clero  portuguez  no  seculo  x^v:  cEncontro 
por  esse  tempo  constituÌ93es  que  obrigam  os  Parochos  a  entenderem 
ao  menos  Latim  ao  pé  da  lettra;  mas  yg<)-os  frequentemente  dispen- 
sados  em  Braga  e  Porto,  comtanto  que  mostrassem  ter  estudado  bem 
aignm  Larraga  d'aquellas  éras.  De  sete  conegos  (n2lo  conversos)  de 
Hosteiro  de  Villa  Boa,  so  o  Prior  sabia  escrever.»'  Vejamos  a  mesma 
tradisse  na  nobreza. 

Spencer,  na  IntroducqSo  d  Sdencia  social,  descreve  o  estado  da 
educa98o  na  Europa,  tal  comò  o  vémos  repetir-se  em  Portugal:  cBe- 
montando  bastante  longe,  achamos  os  nobres  absolutamente  analpha- 
betos,  e,  o  que  é  mais  ainda,  cheios  de  desprezo  pela  arte  de  lér  e  de 
escrever.  9  Sa  de  Miranda,  nas  Cartas,  allude  a  este  estado  da  aristo- 
cracia  para  com:  €Aj8  Utras — com  que  d'ardes  tmham  ffuerra^: 

DÌ2ein  dos  nesso*  passados 
Que  08  mais  nào  saJbiam  tir; 
Eram  bons,  eràm  oosados, 
En  n2o  louvo  o  nSo  saber, 
Como  algons  às  g^^as  dados; 
Louvo  muito  08  seus  costumes, 
D6e-me  se  hoje  nSo  sam  tais, 
Mas,  das  letras  cu  perfumes 
Donde  veu  o  dano  mais?' 

Contine  Spencer:  cNo  periodo  seguinte  a  auctoridade  anima  froi- 


1  Synthese  subftctiva,  p.  vm. 

^  Carta  ao  Arcebispo  Cenaculo.  (Ap.  Boletim  de  Bibliographia  portog.,  p.  12.) 

>  Caria  n,  st.  4.  Ed.  MichaSlis,  p.  206. 

3* 


36  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIBIBRA 

xamente  08  estudos  que  dizem  respeito  &  theologia^  mas  toda  e  qnal- 
qaer  outra  sciencia  é  altamente  reprovada  (Hallanii  Middle  Ages,  e.  ix^ 
P.  2.);  estlo  persuadidos,  de  resto,  que  o  apprender  so  interessa  aos 
padres.»  É  n'este  periodo  que  se  desenvolvem  as  escholas  das  Colle- 
giadas,  ficando  por  bastantes  secnlos  os  estndos  sob  a  direcsSo  dos  bis- 
pos,  e  snjeitos  &  interven^So  clerica!.  Prosegue  Spencer:  cMais  tarde 
ainda,  asaltas  dasses  soletram  mal  entSo,  e  pensava-se  em  que  ficava 
mal  a  uma  mulher  o  saber  lér.  Shakespeare  pintou  um  sentimento  do 
meamo  genero,  quando  faDa  d'aquelles  que  consideram  comò  uma  bai- 
xeza — o  possuir  uma  boa  letra. — Até  uma  època  multo  recente,  mui- 
toB  grandes  proprietarios  e  gente  rica  d'està  classe,  nSo  sabia  Idr  nem 
escrever.  Depois  de  ter  progredido  durante  uma  longa  serie  de  secu- 
loB  tSo  lentamente  a  instruc^So,  em  um  so  deu  relativamente  um  passo 
gigantesco.»  ^  A  instituiy&o  dos  mórgados,  em  Portugal,  prolongou  oste 
analphabetismo  dos  grandes  proprietarios.  '  A  causa  do  enorme  pro- 
gresso da  instruc^Ao  publica  no  seculo  xix  nSo  é  apontada  por  Spen- 
cer, mas  0  facto  coincide  com  a  concorrencia  do  ensino  polytechnico 
ou  scientifico  substituindo  o  esteril  ensino  humanistico,  prolongado  além 
do  seu  tempo  pelos  jesuitas. 

Antes  da  funda{So  das  Universidades,  comò  o  ensino  estava  con- 
centrado  nas  CoUegiadas  e  Abbadias,  era  por  tanto  entro  a  classe  sa- 
oerdotal  que  existiam  os  homens  mais  illustrados.  A  aristocracia  con- 
tinuava a  tradÌ9Zo  medieval  da  ignorancia,  comò  distinctivo  heraldico; 
na  comedia  Atdegraphia,  (fl.  43  y)  ainda  Jorge  Ferreira  de  Vascon- 
cellos  allude  a  essa  situagSo  tomada  proverbiai:  €MaÌ8  fidalgo  é  nSo 
saber  ler.9  CamSes,  nos  Lusiadas,  tambem  verbera  duramente  este 
atrazo  da  fidalguia  portugueza.  ^  No  seculo  xm  e  xiv,  alguns  portu- 


1  Op.  dt,  p.  82. 

'  Falcio  de  Bezende,  em  ama  Satjra  do  meado  do  secolo  xti,  descreve  està 
8Ìtaa92o: 

Mio  fallo  jà  no  nudi  d«  redondeE», 
Cà  «m  HOMO  Portag»!  principalmente 
Sangue  e  eaber,  por  yil  metal  m  piéta. 

(Obkas,  p.  978.) 

Inhabil  na  ohriiU  Pbiloaophla, 

Porqne  o  pae,  cego,  e  tendo  por  afiVonta 

Dia  qne  qnalqner  firadinho  iito  labla. 

(la.,  p.  295.) 

>  CamÒes  nfto  é  menos  severo  com  este  analphabetismo  ariatocratico: 

Emilmi  aio  boaye  finte  Oapitio 
.  Qne  nio  ftww  tamhem  donto  e  •dente, 


0  ENSmO  DAS  C0LLE6IADAS  37 

gaezes  frequentayam  as  Escholas  de  Paris  e  Montpellier,  corno  se  sabe 
pria  tradigSo  de  Gii  Rodrìgaes,  o  typo  lendario  do  Fatisto  portugaez. 
No  Candoneiro  da  Vaticana,  vem  urna  allosSo  aos  trajos  doatoraes  de 
Montpellier,  com  que  alguns  individuos  se  appresentayam  em  Portogal 
na  cdrte  de  D.  Diniz: 

Mais  yejo-lhl  capello  dTFltramar, 
e  traj*  al  uso  bem  de  MompUher. 

(CAHg.  n.»  1116.) 

A  Eschola  de  Montpellier  fòra  oonvertida  em  Universidade  em 
1289,  e  por  ventura  a  sua  importancia  incitou  os  prelados  portoguezes 
a  pedirem  tambem  a  concessilo  de  um  Estudo  goral  a  KicoUo  rv. 

NSo  admira  que  ao  fìindar-se  a  Universidade  portugueza  (de  Lis- 
boa, e  depois  de  Coimbra)  o  prìor  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  e  o 
bispo  D.  Domingos  Jardo  patrocinassem  a  nova  instiCuÌ9So,  conser- 
vando centra  o  seu  espirìto  secularìsador  a  feÌ9So  elencai  que  nunca 
perdeu  até  hoje.  '  0  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  corno  de- 
scsreve  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  tinha  as  suas  escholas  de  tal  modo 


D*  Lada,  (}reg*  ou  barbara  na^lo, 
Senio  doi  Portugaoseiy  tanutómente  ! 
Sem  Tergonba  o  nSo  digo 

(Los.,  0.  T,  UT.  96.) 

Ma»  o  peor  que  tado  ó  qae  a  ▼entara 
Tlo  asperos  os  fèz  e  tSo  anateros, 
Tio  mdet  e  de  engenbo  tÌo  remlaso, 
Qae  a  nmitoe  Ibe  dà  poaeo  oa  nada  d*lfao. 

(Ibidbm,  97.) 

1  No  Bkòoqo  hietoricO'liUerario  da  Fooddade  de  Theologia,  o  Dr.  Motta  Veiga 
fallando  das  rendas  da  Uniyersidade  e  da  offerta  de  varìoB  reitores  e  abbades  para 
a  sua  dota9So,  concine  :  «D*ahi  vem  tambem,  crémos  nós,  a  fsigào  eoolesiaatioa 
que  a  Univenidade  teve  desdt  o  aeu  principio,  e  que  por.  secidoa  tem  comervado, — 
/èigào  que  nera  mesmo  os  EstcUtUos  de  1772  poderam  ou  quizeram  tirar^lhe;  e  que 
apegar  das  repetidas  reformas  desde  1886  por  diante,  ainda  hqje  transpareee  em  mui» 
tas  e  muitcts  eousas.»  A  ansencia  do  criterio  historìco  no  auctor  do  Esbo^o  fel-o 
confimdir  todos  os  caracteres  das  differentes  épocas;  a  coopera^  das  ordens  re- 
figiosas  corresponde  a  esse  perìodo  em  que  a  Egreja  acompanhou  a  nova  crise  da 
emancipa^  intellectoal;  no  secalo  xyi  jà  os  Jesuitas  se  apoderavam  das  Univer- 
ndades  para  contaminarem  a  corrente  critica  da  Renascen^a.  Porém  no  secnlo  xym 
as  idéas  encydopedistas  penetraram  na  Universidade,  e  a  Ibeuldcule  de  PhUoso- 
pkia  foi  a  introdnc^So  do  espirìto  scientifico  moderno  na  Universidade. 


38  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COUIBRA 

oi^nisadaB,  qne  toda  a  fidalgnia  portugaeza  mandava  para  alli  ob 
filhoB  para  serem  educados;  os  prìncipaes  mestres  do  mosteiro  iam 
aperfeiyoar-se  a  Paris.  Quando  a  Univeifiidade  foi  tranfiferida  para 
Coimbra,  em  1537,  ficou  sob  a  dependencia  do  mosteiro  de  &mta 
Graz,  cujos  prìores  tinham  a  dignìdade  de  CancellarìoB  da  UniverBi- 
dade,  cabendo  essa  dìgnidade  pela  primeira  vez  a  D.  Bento  de  Ca- 
mSes,  tìo  do  nesso  grande  épieo  naeional.  N'esta  segunda  època  da 
Universidade  predomina  no  ensino  a  tradi(So  firanceza,  da  qual  ob 
Gouvéas  e  Diego  de  Teive  foram  os  eminentes  representantes;  d'està 
època  proYÌeram  os  espiritos  superiores  do  nesso  secalo  qoinhentistai 
corno  CamSeSy  os  Silveiras;  Antonio  Ferreira  e  outros. 

Foi  so  em  1555  que  a  Universidade  de  Coimbra  e  as  Escholas 
menores  cahiram  sob  o  dominio  dos  Jesnitas;  d'està  data  em  diante 
come9a  a  decadencia  da  int^lligencia  e  do  sentimento  naeional  em  Por- 
tugal,  cnjos  effeitos  se  viram  em  menos  de  trinta  annos,  na  memora- 
vel  data  de  1580,  em  que  Philippe  ii  se  apoderou  de  Portugal. 

O  ensino  das  Collegiadas  tinha  side  fìindado  exclusivamenle  para 
aquelles  individuos  que  se  dirigiam  às  ordens  ecdesiasticas;  n'cBte  in- 
tuito a  Egreja,  pela  becca  dos  seus  homens  mais  eminentes,  condem- 
néra  a  communica9So  com  os  monumentos  litterarios  da  antiguidade 
greco-romana.  Deu-se  porèm  na  Europa  um  facto  capital,  a  propaga- 
sse da  sciencia  e  da  philosophia  da  Qrecia  pelos  Arabes.  O  contraste 
entro  a  educa;8o  elencai  e  a  sciencia  profana  poz  em  evidencia  a  ne- 
cessidade  de  alargar  a  àrea  dos  estudos.  Tal  foi  a  causa  por  que  ob 
bispos  ampliaram  o  ensino  a  todos  aquelles  que  tivessem  vontade  de 
aprender;  e  està  revolu98o  semi-secular  no  ensino,  ainda  assim  foi  de- 
terminada  pelo  poder  temperai.  Cabe  a  Carlos  Magno  a  gloria  de  ter 
comprehendido  està  aspiraySo  da  sociedade  europèa,  aproveitando-se 
do  contacto  com  a  civilisa^So  arabe  no  Occidente;  no  anno  de  787 
dirigiu  Carlos  Magno  uma  circular  aoB  bispos  para  que  fundassem  ea- 
cbolas,  dizendo-lhes:  cNós  temos  considerado  que  os  bispados  e  ob 
mosteiroB.  • .  alèm  da  ordem  de  uma  vida  regular  e  da  pratica  da  santa 
relìgilo,  devem  tambem  applicar  seus  cuidados  a  eminar  os  ótjectos  das 
lettras  dgwUes  que  pela  graga  de  Deus  podem  aprender,  segundo  a  ca- 
paddade  de  cada  um;  etc.»  Carlos  Magno  allude  n'este  documento  & 
ignoranda  profunda  que  existia  nos  mosteiros,  e  condue  corno  arga- 
mento:  cAqui  està  porque  nós  vos  exhortamos  nSLo  semente  para  nSo 
desprezardes  o  estudo  das  lettras,  mas  tambem,  em  uma  inten^So  cheia 
de  utilidade  e  agradavel  a  Deos,  a  rivalisar  em  zelo  n'este  estudo,  afim. 
que  poBsaeB  penetrar  mais  facilmente  e  mais  directamente  os  myste* 


0  ENSINO  DÀS  COLLEGIADAS  39' 

rio8  da  Santa  Escrìptura;. . .  Qae  se  escolliam  para  està  obra  homens 
qne  tenbam  a  vontade  e  a  possibilidade  de  aprender,  e  o  desejo  de 
*  ìnstruir  os  outros^  e  que-  isto  seja  feito  sómente  na  piedosa  intengSo 
com  a  qaal  nós  o  ordenamos.»  Era  a  corrente  sectdar  que  arrastava  a 
Egreja^  e  a  forgava  a  aproveitar-se  da  sua  disciplina  espiritual  para 
imiversalisar  a  instrucgSo. 

Carlos  Magno  proseguiu  constantemente  no  pensamento  civilisa- 
sador,  ordenando  pela  sua  Capitular  de  789;  que  junto  dos  mostei- 
ros  e  em  cada  episcopado  se  estabelecessem  escholas  de  Grammatica^ 
de  Calculo  e  Musica;  ^  e  à  imita9ào  dos  kalìfas  de  Cordova^  o  grande 
imperador  fondava  uma  eschola  no  seu  palacio^  corno  se  infere  de  urna 
alInsSo  de  Alenino.  Multiplicaram-se  as  escholas  por  toda  a  Fran9a  sob 
a  direcgSo  episcopale  mas  o  espirito  secular  desenvol via-se,  a  ponto  de 
mdividuos  fora  da  Egreja  acharem-se  investidos  com  a  auctoridade  ma- 
gistral,  e  cooperarem  inconscientemente  para  o  apparecimento  d'esse 
grande  periodo  de  actividade  mental  que  comefou  com  a  Universidade 
de  Paris,  a  qual  serviu  de  typo  em  toda  a  Europa  para  està  nova  or- 
ganisasSLo  pedagogica. 

Este  periodo  de  transigSo  do  ensino  clerical  para  o  secular  coin- 
cide com  a  proto-Renascenya,  determinada  pelo  contacto  com  a  ci- 
vilisag&o  dos  Arabes  no  seculo  viu,  e  pela  iniciativa  genial  de  Car- 
los Magno.  Apparecem  entSo  os  Manegaud,  os  cavalleiros  errantes 
da  Bciencia  que  visitam  as  differentes  escholas  da  Europa,  sondo  con- 
vidados  para  se  fixarem  nas  terras,  e  recebendo  episcopados  em  re- 
conhecimento  da  sua  superioridade.  Alguns  d'esses  cavalleiros,  comò 
Gerberto,  frequentam  directamente  as  escholas  arabes,  d'onde  trazem 
om  mais  adiantado  conhecimento  da  mathematica,  e  o  abaco.  E  entSLo 
que  o  Trivium,  que  comprehendia  a  Grammatica,  a  Rhetorica  e  a  Dia- 
lectica^  se  alarga  com  as  Quadrilogias,  ou  sciencias  positivas  da  Arith- 
metica.  Geometrìa,  Musica  e  Astronomia.  A  cultura  da  Medicina,  em 
Montpellier,  renova-se  com  a  tendencia  empirica  dos  arabes,  sondo  cul- 
tivada  por  alguns  papas,|  comò  Silvestre  ii  e  JoSo  xxij.  A  velha  di- 
vismo das  sciencias,  de  Felix  Memor,  dò  T\ivium  e  Q^adrimum,  '  é 


1  J.  J.  Ampère,  Hietoire  littéraire  de  la  France  80U8  Charles  Magne,  p.  26 
Ed.  Didier. 

*  Ozanan,  Dante  et  la  Philoeophie  oatholique  au  zni  siede,  p.  71,  ere  està  di- 
vìb2o  de  orìgem  pythagorica;  acba-a  j&  conhecida  por  Philon  et  Tzetzès,  sendo 
vulgarìsada  pelos  escrìptos  de  CaBsiodoro  e  Marciano  Capella. 

No  romance  do  Dolopaikos,  escripto  entro  1222  a  1225,  ao  descrever-se 


40  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

alargada  por  Gerberto,  corno  o  presentimento  de  urna  organisagSo  do 
ensino  universalista.  Para  Gerberto  a  sciéncia  é  um  todo  unitario,  a 
que  elle  dà  o  nome  de  Philoaophia,  dividida  em  dois  ramos  ou  espe- 
cies,  pratica  e  theorica:  a  philosophia  pratica  divide-se  em  dispensa- 
tiva,  distributiva  e  civU,  e  a  theorica  em  Physica  ou  sdencia  da  na- 
tureza,  em  Mathematica  ou  sciéncia  do  intelligivei,  e  em  Theclogia 
ou  sciéncia  do  intellectual.  Sobre  està  divisSo  escreve  Ampère  filh^  : 
«Era  preciso  uma  grande  audacia  e  uma  grande  liberdade  de  espirito 


a  cduca9lU>  do  principe  Lucimien,  vem  apontado  o  sjstema  pedagogico  das  Sete 
Artes:  ' 


Quant  li  mestres  aperoén 

Son  ligier  sena  e  conéa 

Plus  Ten  ainme  et  plus  Ten  tient  chier, 

Dont  vet  tos  les  livrea  oherchier 

Tornie  lee  fueillet  et  retome  ; 

Les  .TU.  ara  liberana  atome 

Bn  .1.  volarne  ai  petit 

Qne,  al  oom  Teitoire  me  dlt, 

n  le  polat  bien  tot  de  plain 

Endorre  et  tenlr  en  aa  maio  ; 

Qui  cet  petit  lloret  aoroit 

Lea  .TU.  ara  llberax  sanrolt. 

Premier  li  enaelgne  Gramain 
Que  mere  .est,  et  prevoate,  et  maire 
De  toatea  lea  arte  Ilberaz, 
Et  il  fa  cortola  et  loiaz  ; 


A  IKotecfifiM  Ta  mia, 
Oli  ai  bien  a*en  est  entremla 
Que  par  volr  la  men^onge  pmeve 
Et  par  force  le  volr  deapraeve. 

Pala  li  enaelgne  tioeUriqu»; 
Par  cel  art  fa-il  coalorez 
Et  chiers  tenuz  et  honores  ; 
Là  apriat  il  entierement 
Blau  parler  et  eortoiaement  ; 
En  cea  .ni.  ara  al  ce  prova 
O^onkea  aon  pareli  n'en  trova  ; 
Qaant  cea  .m.  ara  aot  fermement 
Lea  aatrea  aot  legierement 
Qae  QvMÌrta>e  apelent  cXÌ.  meatre 
Qae  par  Tan  art  font  Taatre  maiatre 

la  premereine 

Ce  flr  li  ars  d*£xlr«iuwMe,  eto. 


N£o  transcrevemoB  o  resto  da  descrip^ào  das  disciplinas  quadriviae»  sobre 
que  0  poeta  fonda  muitas  aventuras  do  seu  heroe  ;  bastam-nos  esses  versos  para 
mostrarem  quanto  era  predominante  o  syatema  das  Sete  Artes.  (Li  Romana  de 
Dolopathos,  p.  50  e  51.  Ed.  1856.  Chez  P.  Jannet. 


0  ENSmO  DAS  COLLEGIADAS  41 

para  collocar  sobre  a  mesma  linha  a  pliysica^  a  mathematica  e  a  theo- 
Ipgia,  e  fÌEizer  d'esses  tres  conhecimentos  tros.s^bdivisSes  da  philoso- 
phia».^  £  n'este  facto  quo  se  nota  o  espìrito  de  Becalarisa9Soy  que  en- 
trava no  ensino  da  Egreja  e  que  condazia  por  toda  a  parte  à  funda- 
9S0  das  Uniyersidades. 

O  que  se  ensinava  nas  Escholas  da  Edade  mèdia?  Lia-se  a  Gfram- 
matica  pelos  tratados  de  Donato  e  Priscìano,  que  foram  no  sectQo  xv 
snbfititaidos  pela  grammatica  de  Alexandre  Villa  Dei,  que  ainda  n'esse 
seculo  foi  supplantada  pela  Arte  nova;  lia-se  a  Rhetorica,  pelos  trata- 
dos de  Cicero  ou  de  Boccio,  carregados  com  todo  o  pezo  dos  commen- 
tarios  ou  interpreta93es  de  cada  lente;  lia-se  a  Astronomia  pelo  Alma- 
gesto de  Ptolemeo,  e  a  Philosophia,  pelas  duas  parte  entEo  conhecidas 
do  Organum  de  Aristoteles,  as  CaJthegorÌ4i8  e  a  Hermeneiia,  com  a  Isa- 
goge de  Prophyrio.  Do  conbecimento  incompleto  da  obra  de  Aristote- 
les,  e  da  mistura  das  suas  doutrinas  objectìvistas  com  o  conbecimento 
do  TSmeo  de  Plat&o,  resultou  um  desvairamento  intellectual  do  criterio, 
aggravado  pela  phrase  de  Prophyrio — se  existe  correspodencia  entro  os 
séres  invisiveis  que  a  Metapbysica  suppde  e  as  no^Ses  que  a  Logica 
deduz?  D'està  desorientafSo  nasceu  a  grande  querella  philosophica  dos 
liealistas  e  Nominalistas,  A  dependencia  do  texto  escripto,  e  o  traba- 
Ibo  esclusivamente  hermeneutìco  ou  interpretativo  das  apostillas,  glo- 
sas,  commentos,  apparatos,  tudo  moldado  na  inalteravel  fórma  syllo- 
gistìca,  creou  esse  caracter  formalista  e  pedante  chamado  a  Scholas- 
tìca,  que  dominou  tanto  na  Theologia,  comò  na  Philosophia  e  Juris- 
prudencia.  Este  ensino,  tendendo  para  a  dialectìca  individualista  e  anar- 
chica, tomou  mais  violenta  a  crise  revolucionaria  da  Europa  moderna. 
Diz  Comte:  «Tendo  prevalecido  desde  0  seculo  xiu  (a  metapbysica) 
na  educagSo  entSo  instìtuida  pelo  sacerdocio,  ella  aspirou  directamente 
ao  governo  absoluto  da  bumaninade,  segundo  uma  combina9&o  naturai 
da  pedantocracia  grega  com  as  usurpaySes  papaes.»  ' 

A  complexidade  das  leis  romanas  obrigava  os  Municipios  das  cida- 
des  provinciaes  a  subsidiarem  escholas  de  Diretto^  em  que  se  ensinava 
o  conbecimento  das  fórmulas.  N'este  estudo  entrava  comò  elemento 
correlativo  0,  ensino  da  Rhetorica  e  da  Dialectìca,  e  0  da  Philosophia 
(nas  suas  tres  divisSes  antigas  moral,  dispensativa  e  civil).  Na  transigSo 
da  sociedade  antiga  a  organisa9So  curial  romana  substituida  pelo  re- 
gimen  municipal  ecclesiastico,  0  Bispo  toma-se  0  Defensor  dvitaiìs;  e 


1  HUtoire  littéraire  de  la  Franoe  saus  Charles  Magne,  p.  290. 
'  Systhne  de  PóUtiqut  positive,  t.  ui,  p.  511. 


42  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

assim  corno  a  fóro  civil  cae  na  d^pendencia  do  fóro  clerica!,  tambezn 
estas  OBcholas  se  tomam  episcopaes,  e  das  CoUegiadas,  deinorando  o 
advento  das  Universidades  e  Escholas  geraes.  Moitas  d'essas  escholas 
episcopaes  tiveram  urna  admiravel  efflorescencia  nos  fins  do  secalo  x  e 
xi|  e  algomas  corno  a  de  Paris  e  de  Oxford,  sSo  apontadas  corno  ger- 
mens  das  Universidades.  As  Universidades  nasciam  sob  o  impulso  do 
espirito  secular  e  individualista,  e  sondo  aproveitadas  pelos  reis,  os  pa- 
pas  embara^avam  a  sua  constituigSo,  restringindo  a  pretexto  do  ensino 
da  Theologia  a  faculdade  ulng[ue  docendi,  oa  coadjuvando-as  pela  con- 
cessSo  dos  privilegios  pertubadores  do  fóro  ecclesiastico  aos  lentes  e 
escholares.  Sem  este  ponto  intermediario  às  Escholas  curiaes,  de  ori- 
gem  romana,  e  aos  Estudos  geraes^  n&o  se  comprebendem  bem  os  va- 
riados  aspectos  com  que  apparecem  fundadas  as  Universidades  no  se- 
dilo XII  e  xni.  * 


1  ApontaremoB  algumas  das  Escholas  episcopaes  e  abbadaes,  que  sao  bases 
de  transi^io  para  o  estabelecimento  das  Universidades. 

No  seculo  XI  floresda  na  Italia  a  Escola  de  Pavia,  onde  além  de  afamados 
professores,  figura  em  1032,  Lanfranc,  explicando  publicamenteoCodigojustinia* 
neo,  e  redigindo  as  snas  Sententiae,  em  que  funda  a  parte  theorica  do  Direito. 

É  tambem  notayel  a  Escola  de  Angers,  onde  em  1010,  Bernardo,  discipnlo 
de  Filiberto  de  Chartres,  e  JoSo,  em  1040,  Marbode  em  1067  a  1081,  e  o  gramma- 
tico Beginaldo,  Guilherme,  Boberto  de  ArbrissoUes,  Geoffiroj  Babion,  Anglius  e 
Ulger,  prolongam  os  seus  creditos  pedagogicos. 

A  Escola  de  Poitiers,  estava  tambem  no  seculo  zi  sob  a  proteo^  do  bispo 
Isambert,  e  om  dos  seus  mais  notaveis  alumnos  Guilherme,  recebeu  o  titulo  de  Poi- 
tiers,  porque  segundo  a  phrase  de  Oderic  Vital,  «n'esta  ddade  hébeu  largamente 
nos  mananciaes  pkUosophicos», 

Tambem  no  seculo  xi  a  Escola  de  Chartres,  brilhava  pelo  saber  dos  dois  pro- 
fessores  Fulbert  e  Ivo.  Ainda  depois  de  eleito  bispo  em  1007,  Fulbert  contìnua  a 
leccionar  até  1029.  Ali  se  ensina  a  GranmuUica,  BeUas  LeUras^  Musica,  DiolecHoa 
e  Thsologia.  Succede-lhe  Fedro  de  Chartres,  Sigon  em  1040,  Bernardo,  e  Ivo  eldto 
bispo  em  1091. 

A  Escola  de  Paris,  aproveitando-se  da  fixagSo  da  capital  pelos  primeiros  reis 
da  terceira  ra^  attrae  os  prindpaes  prolessores,  e  jà  no  seculo  xi  n'ella  resplen- 
decem  Lambert,  disdpulo  de  Fulbert  de  Chartres,  Dragon  de  Paris,  ViUaran,  dis- 
dpulo  de  Lafrane,  e  Guilherme  de  Champeaux. 

A  Escóla  de  Seims,  tambem  celebre,  produz  Frodoard,  e  Grerbet,  (Silvestre 
n,  ddto  papa  em  999)  Gervin,  Boscelin  de  Compiégne,  os  dois  Anselmos  e  Raul 
de  Laon.  Bruno,  o  fundador  da  Cartuxa,  professa  n'essa  Escola,  sucoedendo-lhe  em 
1079  Godefroi,  que  fica  o  Chancder  da  Escola. 

A  Escola  episcopal  de  Toul,  é  dirigida  na  època  do  seu  esplendor  pelo  bispo 
Berthold  no  comedo  do  seculo  xi,  professando-se  com  a  Grrammatiea,  a  Bketarica 


0  ENSINO  DAS  COLLEGIADAS  43 

As  Eacholas  episoopaes  foram  instituidas  para  o  ensino  das  Arte» 
liberaes  por  dispoBijSo  do  Concilio  romano  de  1078;  a  Egreja  pro- 
curava no  ensino  a  anctoridade  qae  Ihe  era  dispatada  pelo  poder  tem- 
perai com  a  qaerella  das  Investiduras.  Os  tres  grandes  mestres  Lan- 
firanci  Anselmo  e  Fedro  Lombardo  representam  a  actìvidade  montai  da 
dissoIngZo  metaphysica  dos  Ontologistas,  qae  no  seculo  xm  trocaram 
a  Theologia  pela  Dialectica. 

Dorante  um  rapido  momento  de  fervor,  os  dois  Poderes,  espiritaal 
e  temperai,  acharam-se  de  accordo  para  favorecerem  a  renoYa9&o  dos 
Mtadosy  embora  a  Egreja  preferisse  a  cultura  da  theologia  e  da  philo- 
sophìa,  comò  se  yè  pela  bidla  de  Innocencio  iv  de  1254,  e  a  Bealeza 
lìgasse  a  maxima  importancia  &  fìinda9So  das  escholas  de  Junspruden- 
eia.  E  n'este  momento  transitorio  de  um  accordo  que  ia  quebrar-se 
pela  antinomia  entro  o  dogma  e  a  rasSo,  que  apparecem  os  sabios  pon- 
tìfices,  comò  Urbano  iv,  dando  em  Eoma  uma  cadeira  a  S.  Thomas 
de  Aquino  para  ensinar  moral  e  physica,  Clemente  iv  protegendo  o 
genio  innovador  de  Rogerio  Bacon,  Innocencio  v  elevando-se  ao  pa- 
pado  pelos  seus  talentos  de  orador,  canonista  e  metaphysico,  e  JoSo  xxi 
(o  nesso  Fedro  Juli&o,  mais  conbecido  pelo  nome  de  Fedro  Hispano) 
que  dota  as  escholas  da  Europa  com  as  Summas  logicales,  o  primeiro 
compendio  que  prevaleceu  com  auctorìdade  até  ao  fim  da  Edade  mèdia. 

Do  caracter  de  disciplina  permittida  para  objecto  de  ensino  é  que 
derivou  o  nome  de  Faculdade;  em  épocas  em  que  se  acreditava  nas 
Mds  Artes,  (a  Ars  Magna  ou  Artimanha,  e  a  Grammaire  ou  Grimoire) 


a  Dialectica^  a  Jwrùprudmeia^  Um  dos  seus  professores,  Adalberon,  foi  Bispo  de 
Metz,  Branon,  bispo  de  Tool  e  papa  sob  o  nome  de  LeSo  IX. 

A  Eecola  de  Toumai,  eleva- se  pelo  magia terìo  de  Odon  de  Orleans,  chamado 
de  Toni  pelo  Cabido  de  Tournai  em  1085,  yindo  para  ouvil-o  estudantes  da  Bor- 
gonha,.  da  Italia,  e  de  Saxe,  e  estabelecendorse  uma  feconda  rivalidade  das  sùas 
doutrinas  realistas  contra  a  Escola  de  Lille. 

£m  Liège,  a  Escola  episeopal  desenvolve-se  em  855  pelo  bispo  Francon,  que 
dirìge  directamente  as  escolas  da  Cathedral  :  em  915,  Etienne  continua  activamente 
està  cultura,  Herade  de  959  a  971,  e  Notger  de  971  a  1007.  D*esta  escola  saem 
Eekebert,  os  Lambert,  o  abb.  Rodolpho;  os  seus  dois  principaes  directores  sfto 
Yozon  e  Aldehnann. 

A  Escola  de  Utreek,  deve  o  seu  esplendor  aos  bispos  Batbed  (-1-  917)  e  Adel- 
bod  (f  1027). 

A  Escola  de  Mayence^  é  desenvolvida  pelo  talento  de  Babau  Mauro  e  Aribón. 

A  Escola  de  Oxford,  (1037-1039)  adquire  o  seu  mùor  desenvolvimento  sob 
Edoardo  HI,  (10i2)  e  lucta  com  a  Eccola  de  Cambrigde  prot^da  pelo  filho  de 
GuilheTme  o  Conquistador. 


44  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRÀ 

a  condijSo  do  ensino  estava  subordinada  à  permisBfto.  Um  monge  de 
Froidmont,  aponta  urna  didciplina  nfto  permtttida:  cUrbes  et  orbem 
circuire  solent  scholastici,  ut  ex  multis  litteris  insani . .  •  ecce  quaerunt 
clerici  Parìsii  artea  liberales,  Aureliani,  auctores,  Bononiae  codices,  Sa- 
lerno pyxides,  Toleti  daemones^  et  nusquam  mores.»  ^  A  renovagSo  das 
Bciendas  pelos  ArabcB  de  Hespanha  era  o  movel  d'està  suspeigSo  cen- 
tra 0  ensinOy  corno  se  v6  pela  tradigSo  do  Scholar  das  nuvens,  pela  lenda 
de  Gii  de  Santarem,  e  magia  de  Toledo  e  Covas  de  Salamanca.  No 
Cancioneiro  da  Vaticana^  (canj.  n.^  1132)  falla-se  em  Payo  de  M€uu 
Artes.  A  permissSo  do  ensino  era  propriamente  a  licendatura,  a  qual 
conforme  a  importancia  ou  o  privilegio  das  Universidades  dava  aos 
graduados  a  prerogativa  ubique  docendi,  sem  que  tivessem  de  submet- 
ter-se  a  novo  exame. 

Depois  do  terrivel  exterminio  dos  Albigenses,  e  comò  para  resis- 
tir  &  corrente  da  heterodoxia,  estabeleceu-se  pelo  tratado  de  Paris  de 
1229,  que  em  Tolosa,  &  custa  do  Conde  RaTmond,  lèssem  por  dez 
annos  quatro  mestres  de  Theologia,  dois  em  Decretoa,  seis  em  Artes 
liberaes,  e  dois  em  OrammcUica.  0  celebre  Trovador  Folquet  de  Mar- 
selba,  que  chegou  a  bispo  de  Tolosa,  foi  o  mais  exaltado  impulsor 
d'està  Eschola,  que  com  o  legado  do  Papa  e  com  o  auxilio  da  Ordem 
de  Cistér  se  converteu  em  Universidade.  Nos  programmas  pomposos 
com  que  procurava  attrahir  os  estudantes  de  todos  os  paizes,  dedara-se 
que  nSo  ha  ali  a  turbulencia  que  agita  a  Universidade  de  Paris,  e  que 
ha  maior  Uberdade,  por  que  se  ensina  ali  a  Physiea  de  Aristoteles, 
que  se  achava  prohibida  na  Universidade  de  Paris.  A  peregrìna^Slo  a 
N.  S.  de  Bocamador,  incitava  a  firequencia  de  estudantes  meridionaes 
&  Universidade  de  Tolosa;  nos  Cancioneiros  provengaes  portuguezes 
falla-se  n'esta  peregrina9So  e  nas  cintas  de  Rocamador. 

A  Egreja  sentia  que  a  rasSo  humana  se  libertava,  e  tratou  de  v€r 
se  se  apoderava  outra  vez  da  disciplina  dos  espirìtos  ;  no  Concilio  de 
Roma  de  1074  estabelece  entSo  a  obrìgafSo  de  Ihe  pedirem  licengas 
para  exercerem  a  profissSo  do  ensino,  e  d'està  disposigSo  que  se  toma 
effectiva  no  seculo  xn  é  que  deriva  o  grào  aoademico  ou  universi- 
tario de  Idcendado.  As  Universidades  ficaram  em  grande  parte  este- 
rilisadas  por  està  interven9So  ecclesiastica,  da  mesma  fórma  que  na 
Renascen^a  scientifica  do  seculo  xvi  os  Jesuitas  desviaram  o  espirito 


1  Ap.  Th.  Camini,  La  eoUura  hclogenèt  dei  secoli  zìi  e  xm.  (GKomale  storico 
della  Letteratura  italiana,  i,  p.  6.) 


0  ENSINO  DAS  GOLLEGIADAS  45 

critico  para  a  exclosiva  disciplina  humanistica  das  suas  escholas.  Na 
funda(So  da  Universidade  de  Lisboa^  o  papa  Nicolaa  iv  expede  urna 
bulla  de  confirma9So  dos  Estudos  geraes  em  1290,  submettendo  a  nova 
ìnstituiffto  &  jurisdicfSo  ecclesiastica:  «Ordenamos  que  nenhuns  Mes- 
tres  e  escholares,  nem  os  que  os  servem^  se  (o  que  tal  nSo  succeda) 
acontecer  que  sejam  presos  por  qualquer  delicto,  possam  ser  jidgados 
por  algum  secidar,  nem  castigados^  a  nZo  ser  que  por  juizo  da  Egreja 
OS  condemnados  sejam  entregues  ao  tribunal  secular.  Item,  que  os  Es- 
cholares  nas  Artes  e  no  Direito  canonico  e  civil  e  na  Medicina,  ps  quaes 
seus  mestres  julgarem  idoneos,  possam  ser  licenciadoa  na  sobredicta 
Bciencia  pelo  Bispo  de  Lisboa,  que  n'esse  tempo  for,  e  quando  estiver 
sède  vacante,  por  meio  do  Vigano  capitular.  E  todo  o  mostre  que  na 
mesma  cidade  fòr  exàminado  e  approvado  em  qualquer  faciddade,  ex- 
cepto  a  theologia,  prescindindo  de  outro  exame  poderà  exercer  liyre-« 
mente  em  toda  a  parte  essa  faculdade.»  E  assim  que  no  momento  em 
que  o  espirito  secular,  apoiado  pelas  novas  idéas  scientificas  e  philo- 
sopjiicas  da  Renascenja  provocada  pelos  Àrabes,  se  concentrava  na 
nova  instituigZo  pedagogica  das  Universidades,  que  a  Universidade  de 
Lisboa  se  acha  à  nasconda  subordinada  aos  «abbades  da  Ordem  de 
Cister,  aos  priores  das  Ordens  de  Santo  Àgostinho  e  de  S.  Bento,  e 
reitores  de  certas  egrejas  seculares  do  reino  de  Portugal,»  comò  o  de- 
termina a  bulla  de  Nioolau  rv. 

No  ensino  universitario  conservou-se  a  fei^So  elencai  com  a  tra- 
digSo  das  Sete  Artes;  o  ensino  da  Musica  manteve-se  por  causa  do  seu 
destino  ecclesiastico;^  a  philosophia  critica,  em  vez  de  se  fecundar 
com  a  sciencia,  corno  o  entendia  Gerberto,  ficou  a  ondila  theologicB, 
degenerando  n'essa  6ca  dialectica  dos  Q^odlibetoa,  das  theses  theologi- 
cas,  em  que  se  tratavam  improvisadas  questSes,  generalisando-se  oste 
titulo,  usado  por  Henri  de  Gand,  por  todas  as  Universidades  no  fim 
do  secttlo  xm. 

Ao  passo  que  se  desenvolviam  os  estudos  humanistas  da  Univer- 
sidade, 0  clero  afundava-se  em  uma  completa  ignorancia.  JoSo  Fedro 
Kibeiro  cita  factos  estupendos  que  o  comprovam;  em  um  prazo  do 
Mosteiro  de  Villa  Boa  do  Bispo,  o  pri'or  assigna,  dedarando  que  to- 
dos  OS  conegos  nSo  sabem  escrever,  Isto  no  seculo  xiv!  Um  rayoeiro 
da  Collegiada  de  S.  Christovam,  no  mesmo  seculo  xrv,  assigna  de  cruz. 


1  Amador  de  los  Bios,  na  HUtoria  critica  de  la  LitUraJkura  eapahola,  1 1,  p. 
360,  attribne  o  ensino  da  Musica  na  Universidade  hespanhola  &  inflaencia  da  obra 
de  Santo  Izidoro  (Etymolo^as,  cap.  n  De  Mugica.) 


46  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

Transcreveremos  as  proprìas  palavras  do  illustre  antiquario:  cEm  16 
de  Maio  do  anno  de  1426  foi  confirmado  na  egreja  de  Santo  AntSo 
de  Padim,  do  arcebispado  de  Braga,  Affonso  Martina,  jurando.nas 
m3os  do  Collador,  aprenderia  bem  a  ter  e  contar y  antes  do  anno  oca* 
bado.  Determinando-se  nas  ConstituigSes  synodaes  das  dioceses  de 
Braga  e  Porto,  que  nenhum  fosse  coUado  em  egreja  parochial,  sem 
que  ao  menos,  ao  pé  da  lettra,  soubesse  entender  o  que  lia  e  contava; 
comtudo  achei  um  grande  numero  de  dispensas  d'està  ConstituigSo, 
dando  por  motivo,  que  sondo  examinado  àcerca  de  sacramentos  e  ca- 
sos  de  consciencia,  tinha  side  achado  sufficiente.» 

cO  bispo  do  Porto  D.  Pedro  Affonso  afirma  do  seu  predecessor 
D.  JoSo  Gomes,  do  reinado  do  sr.  D.  Diniz,  o  segninte:  erat  bomu 
homo,  et  eine  aliqim  malida,  sed  jura  aliqua  non  audiverat,  immo  nec 
et  grammaticalia,  quod  est  plus.»^  Estes  tàctos  indicam  a  decadencia 
completa  do  ensino  das  CoUegiadas,  e  em  que  circumstancias  o  ensino 
humanista  comegou  a  ser  desenvolvido  pela  auctoridade  real. 

0  desenvolvimento  das  Escholas  episcopaes,  depois  da  celebre 
bulla  de  Eugenio  n,  fez  com  que  os  bèneficios  ecclesiasticos  fossem  re- 
servados  especialmente  para  aquelles  que  tinham  frequentado  os  estu- 
dos.  D'està  preferencia,  que  era  um  rasoavel  estimulo  para  levantar  o 
nivel  intellectual  do  clero,  resultou  o  effeito  contrario:  correram  para  as 
ordens  sacras  todos  os  ambiciosos  sem  voca^Sa,  de  que  tanto  se  queixa 
S.  Bernardo.  NSo  se  tratava  de  adquirir  conbecimentos,  mas  simples- 
jnente  de  simular  as  condigSes  para  ser  coUado  em  egrejas  rendosas. 
A  paixSo  pelo  estudo  da  Jurisprudencia  veiu  supprir  essa  Ssdta  de  cul- 
tura, e  jà  mais  tarde  tambem  Lmocencio  iv  se  queizava  de  se  reser- 
varem  os  bèneficios  ecclesiasticos  nSo  para  os  derigos  mas  para  os  le- 
trados.  No  Caneioneiro  da  Vaticana  encontramos  algumas  Sirventes 
de  Estevam  da  Guarda,  prìvado  de  D.  Affonso  in,  chasqueando  da 
avidez  com  que  eram  procurados  os  bèneficios  ecclesiasticos  à  sombra 
de  uma  leve  aprendizagem  litteraria.  Transcrevemol-as  pela  sua  im* 
portancia  historica: 

Ja  Martim  Vaasques  da  estrelogia 
perdea  ben^om  polo  grand'engano 
das  pranetas,  per  que  veo  a  dapno 
en  que  tan  muyto  ante  s'atrevia; 
cà  o  fezerom  sem  prol  ordinliar 
por  egrqja  que  Uie  nom  querem  dar, 
e  per  que  Ui'é  defeza  jagraria. 


1  R^fiexdea  Matoriocu^  de  J.  P.  Bibeiro,  1. 1,  p.  45. 


0  ENSINO  DAS  GOLLEGIADAS  47 

£  per  esto  porque  ant'el  yivia 
Ih'é  defeeo  dea  que  foy  ordinhado, 
oy  mab  se  ten  el  por  dasaspenido 
da  prol  do'meflter  et  da  crerezia; 
e  aa  pranetaa  o  tomarom  fol, 
Ben  egreja,  nem  eapela  de  prol, 
et  sen  o  mester  per  que  goarecia. 

E  jà  de  grado  el  renun^aria 
saa  ordiifl  per  quant'eu  ey  apreso; 
por  Ihe  nom  seer  aeu  mester  defeso 
nem  er  ficar  en  tanta  peiorìa, 
corno  ficar  por  devaneador 
coroado,  et  do  que  he  peor, 
perder  a  prol  do  mester  qae  avia. 

E  na  corda  que  tapar  queria 
leixa  crecer  acima  o  cabelo, 
et  a  vezes  a  cobre  com  capelo 
0  que  a  mal  muy  daninhos  farla, 
mays  d*el  quant*el  a8peran9a  perdeu 
das  planetas  desi  loga*entendea 
que  per  corda  prol  non  tirarla. 

En  0  sen  livro,  per  que  aprenden 
astrologia,  logu*  i  prometen 
que  nunca  por  el  mays  estudaria. 

EsUu  cantigcu  de  dina  foranfeUcu  a  huiijograr  que  ee  preMva  d^esbrólogo  e 
d  non  savia  nada  e  ffoy-ise  cereear,  dizendo  que  averta  effrqfa,  efivser  eoroa,  e  a 
huma  ficou  cerceado  e  non  ouve  egrefa  e  fezeronUhe  estae  oanHga»  porem,  ^ 

Ora  é  j&  liartim  Yaasqnes  certo 
das  planetas  que  tragia  erradas, 
Mars  e  Saturno  mal  aventuradaa 
cigo  poder  trax  en  si  encuberto  ; 
ea  per  Mars  foy  mal  chegad'em  pelcja, 
et  per  Saturno  cobron  tal  egreja 
sem  prol  nenhuma  em  legar  deserto. 

Ontras  planetas  de  boa  ventura 
acbon  per  vezes  en  seu  calandayro, 
mays  das  outras  que  Ih'andam  en  oontrayro, 
•  ciqo  poder  ainda  sobr'el  dura, 
per  b(ia  d*elas  foy  muy  mal  chagado, 
et  pela  outra  cobron  priorado 
hu  ten  lazeira  en  legar  de  cura. 


-  CancUmdro  da  Vaticana,  Can^oes  n.»  928  e  929. 


48  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADG  DE  GOIMBRA 

£1  rapou  barva  e  fez  gran  corda, 
et  cerceou  seu  topete  epartido, 
et  o8  cabeloB  cabo  do  oydo, 
cujdando  aver  per  hy  egreja  boa; 
maya  Saturno  Ih'a  guisou  de  tal  renda 
hu  non  ha  pam  nem  yìnlio  d'oferenda 
nem  de  herdade  milho  para  borda. 

£  pojs  el  he  prior  de  tal  prebenda, 
conven  qae  leix^a  cura  e  a  renda 
a  capela  ygual  da  Ba  pessoa.  ^ 

Na  prìmeira  Renascenga,  que  coincide  com  o  desenvolvimento  ea- 
cnpto  das  lingoas  valgares  das  novas  nacionalidades,  e  em  que  as  Es- 
cholas  livrea  ae  concentram  em  Universidades,  introduziu-se  alguma 
cousa  do  espirito  scientifico  das  escholas  arabes;  assim,  Rogerio  Ba- 
con proclamava  o  grande  principio  positivo  da  hierarchia  scientifica: 
«A  Mathematica  é  a  prìmeira  de  todas  as  sciencias;  precede  todas  as 
ontras  e  prepara  para  ellas.»  0  desenvolvimento  do  poder  real,  neces- 
sitando da  renovafSo  do  direito  romano,  collabora  na  actividade  do  es- 
pirito secular.  O  pensamento  liberta-se  pelas  polemicas  philosophicas, 
que  suscitaram  incidentemente  o  livre  exame  nas  heresias. 

As  palavras  sSo  ama  verdadeira  paleontologia  social,  e  por  ellas 
se  ve  indicada  està  segunda  phase  pedagogica  da  Europa:  depois  do 
sentido  tradicional  da  Schola,  que  trazia  implicito  um  destino  eccle- 
siastico, seguiu-se  no  uso  commum  a  palavra  Aula,  que  accentua  essa 
outra  tradÌ9So  em  que  o  ensino  se  cidtiva  no  palacio  do  rei,  d'onde  se 
considerou  que  safram  as  Escholas  Geraes  ou  as  Universidades.  A  lin- 
guagem  latina  foi  substituida  pelos  dialectos  vulgares  ou  linguas  na- 
cionaes,  e  d'aqui  veiu  essa  designatilo  de  romance  paladino,  ou  lingua- 
gem  usada  no  palacio,  em  contraposijSo  &  da  Egreja  (ladinìia  ckristenga). 
O  mestre,  que  era  anteriormente  ouvido  comò  um  prégador,  comegou 
a  cingir-se  a  um  texto  escripto,  e  por  isso  o  ensino  tomou  um  outro 
caracter  em  que  aquelle  que  ensinava  era  o  Lente;  finalmente  o  ensino 
restrìcto  das  CoUegiadas  é  destinado  a  todos  nos  Geraes,  e  nSo  sómente 
para  a  disciplina  moral,  mas  para  a  cultura  de  todas  as  sciencias  per- 
mittidas  ou  Facuidades,  Vejamos  agora  o  que  se  Ita. 

BrandSo,  na  Monarchia  lusitana,  allude  às  cliVrarias  publicas  nas 
Sés  Cathedraes  e  Egrejas  parochiaes,  para  estudarem  os  que  se  occu- 
pavdm  nas  lettras,  do  que  ha  muitos  ezemplos  nas  historias  d'este 


1  Brid.^  can^So  931. 


0  ENSINO  DAS  C0LLE6IÀDAS  49 

BeynOi  e  fora  d'elle.»  ^  Para  conlieceriDos  a  indole  d'essas  Bìbliothe- 
cas,  transcrevereinoB  em  seguida  algnns  catalogos  de  Livrarias  do  se- 
dilo X  a  xiY,  por  onde  se  caracterisa  o  saber  e  a  actividade  menta!  da 
grande  època  da  Pliilosophia  Scholastica.  Diz  Barthélemy  Saint-Hilaire, 
sobre  essa  actividade:  fEsta  muItidSo  de  escrìptos  de  todas  as  especies 
e  Bobre  todas  as  questSes^  prova  que  em  nenhum  tempo  a  intelligencia 
teve  urna  egnal  necessidade  de  raciocinar^  nem  encontrou  menos  em- 
barajOB  para  satisfazer-se.»' 

O  modo  corno  eram  trazidos  para  Portngal  os  livros  mais  impor- 
tantes  que  circulavam  nos  dois  grandes  fócos  de  actividade  litteraria 
do  firn  da  Edade  mèdia,  Franca  e  Italia,  e  o  especial  valor  que  desde 
lego  se  ligou  à  riqueza  bibliographica,  revelam-nos  que  entràmos  di- 
gnamente  na  corrente  da  primeira  Renascenga  e  a  soubemos  sustentar 
oom  fervor. 

cOs  nosBOB  Bispos,  que  sempre  andaram  no  caminho  de  Roma, 
traziam  de  Fran(a  e  da  Italia  as  Compila9(!leB,  principalmente  de  Gra- 
ciano  (que  comò  era  dós  Concilios  de  Hespanha,  teve  logo  entro  nós 
muita  auctoridade),  as  Obras  de  Durant  chamado  o  Speeulator,  de  Al- 
berico de  Rosate,  de  Guido  Papa,  que  todos  escreveram  por  1280  até 
1300,  e  de  outros.  Isto  adquiria-se  com  custo,  por  nSo  haver  ainda  a 
estampa;  e  com  muito  mais  se  adquiria  a  sciencia;  estimavam-se  comò 
bona  thezouros;  e  d'isso  vem  os  privilegios  dos  livros,  de  que  se  ficou 
dispondo  separadamente  da  heran(a  sem  entrarem  no  cumulo  dos  bens, 
para  a  Egreja,  ou  para  a  coUafllo  entro  os  filhos,  segundo  os  testado- 
res  eram  ecclesiasticos  ou  seculares.»  ^  Inventariemos  essas  riquezas 
bibliographicas,  pelas  quaes  se  infere  o  caracter  das  doutrinas  domi- 
Bantes. 


Testamento  de  D.  Mmnadona  (de  959)  ao  Mosteiro  de  6uimar9es: 

Viginti  Libros  ecclesiasticos. 
Antiphonarios  m. 
Organum, 
Comitum* 


1  Op.  dtf  P.  V,  Liv.  XVII,  cap.  82. 
'  Dice,  dea  Scieneea  jphUatophiquea,  vb.<*  Scholabtique. 
'  Villa-Nova  Portngal,  Època  fixa  da  introducg&o  do  DireUo  romano  em  Por' 
A^MiZ,  Mem.  da  Acad.,  t.  y,  p.  895 

BIBT.  UH.  4 


50  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Mantiale  Ordinum. 

Pscdterios  duos. 

Passionum  et  Precum, 

Biblioteca, 

Marcdium. 

Regidas  IJ. 

Canonem, 

Vitas  Pcetrum,  cum  Oerenticon»  ' 

Apocalipsin. 

Etimologiarum, 

Istoria  ecdesiastes. 

Dedeca  Psalmorum  virorom  illustrorum,  et  sub  una  cortex  Regula 
beati  Pacomii. 

Passioìiarii  Anibrosii, 

Benedicti;  Isidori  et  Fructuosi,  e  Regula  pudlarum,  et  allium  Li- 
bellum  quod  oontinet  it  est  Regidas  Benedicti,  Isidori,  et  Fructuosi, 

Liber  Dialogorum, 

Institutionem  Beati  Effren, 

Libdla  quod  continet  Vita  beati  Martini  episcopi^  et  VerginitaJte 
beate  Marie  Virginis.  (Ap.  Portug.  Mon.  hist.,  Diplomatae  et  Chartae, 
voi.  I,  fase.  I,  p.  64). 


Primeira  Livrarìa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra: 

0  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  recebeu  o  seguinte  pre- 
sente de  livros  do  Mosteiro  de  Sam  Rufo  : 

«E  enviarom-nos 

Santo  Agostinho,  sobre  Jóham  evangelista,  e  sobre  o  Qenesy,  que 
se  chama  Adliteron. 

Questom  sobre  Sam  Mateus  e  Sam  Lucas. 

0  Exam^eron  de  Santo  Ambrosio. 

O  Pastoral  de  Santo  Ambrosio. 

Beda^  sobre  Sam  Lucas, 
pelas  quaes  cousas  somos  muitos  obrigados  ao  convento  de  Sam  Rufo, 
ca  nos  ajudou  sempre  muito  bem^  etc.»  {Vida  de  D,  TeUOf  versilo  de 
1455.  Ap.  Mon.  Hist,,  Scriptores). 


0  EKSINO  DAS  COLUIGIADAS 


LÌTraria  do  Bispo  do  Porto,  0.  Vasco  (1331): 

Na  Doa^So  do  Bispo  D.  Vasco  &  sé  do  Porto  e  Cabido,  e  a 

e^ejas,  sa  èra  de  1331,  rem  enumerados  os  segaintes  Httos: 

■Item  quinque  Tolumìna  Sermonum,  quator  (qaorant?)  p 

rolnmen  ÌDcipit  Reverende  in  Xp.^  Pater  etc.  et  vadit  per  U 

qnmternos  et  sexternos,  et  continet  io  se  viginti  et  noTOm. . .  ■ 

AO  CABIDO  DO  FOBTO  : 

Umiin  Tolamem  Dictaminia  abi  consiatiuit  qaator  Sume. 

Stana  Confessorum. 

Liber  PtmtiJicalU. 

Compendiìtm  thedogie  cam  Sermon^m  Fr.  Johannis  Ordii 
ttomm. 

Quasdam  Conclusiones  secundutn  Thomam  super  Qaestioml 
lÌB  super  toto  Libro  Sententiarum. 

k  EGBEJA  DE  SBVILHA  1 


Reportorìum  D.  Tusculaui,  Buper  toto  Jure  Cawmixo. 
Unum  Librum  Sententiarum,  et  quandam  Lecturam  super 
Sententiaruin. 

L  EQBBJA  DB  LISBOA: 

Unum  Volomen,  in  quo  erant  quidam  Sextus  L3>«r  cnm  A 
Uba»  ArcLidiaconi  et  Johannis  Àndree,  et 

Domine  Don  Regulis  Jwrìs,  et 

Unos  MandagotUB,  Buiper  ElecHmie,  et 

Clementine  com  Apparata  Johanois  Andrea,  et  Apparaium 
tua  Monachi,  ad  partem  cum  quandam  Sumam  Feudorum  posita 
ipnos  Apparati. 


52  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 


A  EGBEJA  DE  BOU^AS,  DIOGESE  DO  POETO: 

Dao  Digesta  vetera  cuxn  Olosa  Accursii^  et 
XTnam  Infordatum  cum  Glosa  Accursii. 
Unum  Offredum  super  Infardato,  et 
Digesto  novo,  et 
Super  trìbus  Libris  Codicia. 

k   EGEEJA  DE  S.  FEDRO  DE  TORRES  NOVAS: 

Unum  parvum  Volumen. 

Alium  volumen  Decretalium  Gregori  noni  cum  Glossa  Bernardi. 

i  EGREJA  DE  S.  FEDRO  DE  TORRES  VEDRAS: 

■ 

Unum  Codicem,  cum  Glossa  Accursii. 
Unum  Innocentium  cum  Repertorio,  et 
ComposteUanum. 

i  EGREJA  DE  S.  THIAGO  DB  BEJA: 

Unum  Digestum  novum  cum  Glossa  Accursii. 

Unum  Rosarium  super  Decreto,^  (Ant.  Roselli). 

CitadoB  no  Censual,  fi.  120  a  127.  (Ap.  J.  P.  Ribeiro,  i>»«.  chron.j 
t.  Yy  p.  88  e  89.)  Attendendo  ao  pre^o  dos  Livros  no  seculo  xiv,  o 
bispo  cDedara  àcerca  dos  legados  d'estas  Egrejas,  quo  os  respectivos 
diocezanos  yendam  os  Codices  que  Ihe  destina,  e  comprem  para  as 
Egrejas  calices  ou  Cruzes  de  curo  ou  prata,  ou  outros  omamentos.» 


Bìbliotheca  do  Cabido  do  Porto  (1331) 

Ko  CaUdogo  dos  Bispos  do  Porto  allude-se  a  està  Bibliotheca: 
cNo  anno  de  Christo  de  1331,  em  dois  de  Maio,. . .  fez  o  Bispo  D. 
Vasco  doario  à  Sé  do  Porto,  de  certos  livros,  que  se  guardassem  na 
sua  liTiariai  e  que  se  nSo  pudessem  nunca  vender  ou  empenbar;  mas 
se  algum  Capitular  os  quizesse  lér  em  sua  casa,  deixasse  um  penbori 
para  que  se  lembrasse  de  os  restituir  brevemente:  os  nomes  dos  livros 


0  ENSINO  DAS  COLLEGIABÀS  53 

sSo  escriptoB  na  meBma  doagfto^  e  de  algons  d'elles  temos  agora  bem 
pouca  noticia.»  (Cat.,  p.  94,  Part.  u). 

No  livro  do  Cartolario  da  Sé  do  Porto  intìtulado  o  CeiMual,  de 
qae  J.  P.  Ribeiro  apresentou  om  perfeito  resnmo,  {Diss.  chron.,  t.  v,) 
yem  minudencìada  està  doagSo,  qae  acima  extractimos,  e  que  nos  re- 
vela  as  rìquezas  bibliographicas  do  Bispo  D.  Vasco. 

* 

Livraria  do  Bispo  D.  Vicente  (1334Ì  : 

0  testamento  do  Bispo  do  Porto,  D.  Vicente,  da  èra  de  1334, 
traz  a  segointe  enumeragSo  de  livros  : 

Decretalea  nostras. 

Digestum  meum  vetus. 

Santal  et  Domingcd. 

Forciatum  et  Uguicium,  sive  Guichom.  (Ugoccionei  8uma  de  Der 
cretos), 

Librom  de  Vita  Sanctorum. 

Bihliam  manualem. 

Librom  de  CwUate  Dei. 

Codicemj  Cancordanticia. 

Do  Censtiol  do  Porto,  fl.  109,  %  (Ap.  J.  P.  Bibeiro,  Diaa.  chran., 
t.  V,  p.  83). 

Livraria  do  Bispo  D.  Sancho  (1334)  : 

No  testamento  do  Bispo  D.  Sancho,  escrìpto  na  èra  de  1336,  dis- 
p8e  de: 

hoas  Decretaes  com  os  seos  Casas . . . 

o  sen  Decreto^ 

e  seu  Digesto.  (Diz  qoe  estodara  em  Vaihadolid); 

«0  seo  Innocencio 

e  soa  Instituta,  a  seo  irmSo  Estevam  Perez  • .  • 

bum  Breviario.^  Censual,  fl.  112,  f.  (Ap.  J.  P.  Ribeiro,  Diss. 
fhron.f  t,  V,  p.  85). 

Livraria  de  Vasco  de  Scusa  (1359): 

No  Formai  de  partilhas  oo  Inventario  de  Vasco  de  Scusa,  com- 
merciante e  cidadSo  do  Porto,  vem  descrìptos  os  seguintes  codioes  que 
possuia: 


54  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

cvinas  Degretaes  em  lìngaagem; 

nm  Rabi  Abd; 

um.  8eÌ8to  em  pargaminho; 

mn  Sestìmo  em  papel;  e 

tres  cademoB  em  pargaminho  de  Terceiro-^. 

JoSo  Fedro  Ribeiro,  nas  ReflexZes  higtoricas,  (ì,  9)  diz:  cNSo  é 
pertanto  novo,  até  na  cìdade  do  Porto  agermanar-se  a  Litteratara  com 
o  Commercio;  aonde  nos  nossos  dias  temos  visto  tantos  capitalistas  e 
negociantes  condecorados  com  os  gr&os  academicoB.» 


A  Livraria  mannscripta  do  Mosteiro  de  Alcobaga: 

É  indisputavelmente  uma  das  mais  opulentas  collec$8es  manu- 
-scriptas  da  Edade  mèdia  da  Europa,  hoje  desmembrada  entro  a  Biblio- 
theca  nacional  e  o  Archivo  da  Torre  do  Tombe.  0  visconde  de  San- 
tarem  que  yisitou  està  Livraria  quando  ainda  ostava  em  Àlcobagay  ahi 
ezaminou  um  codice  do  seculo  xi,  (traducjSo  da  Eegra  de  Sarti  Sento) 
e  dez  codices  do  seculo  xu  «entre  os  quaes  se  achava  uma  Bibita 
doada  por  D.  Affonso  i|  rei  de  Portugal.»  '  Do  seculo  xin  possuia  se- 
fenta  e  deus  manuscrìptos;  notando  especialmente  dois  Dicdonarioa 
geographicos  latinos  do  monge  Bartholomeu,  um  Vocaòulario  latino  por 
Fr.  Affonso  de  Louri$al,  e  um  exemplar  das  ConfasZes  de  Santo  Agos^ 
tinho  copiado  por  Fr.  Theotonio  de  Condeixa.  Do  seculo  xrv  apontou 
o  erudito  visconde  de  Santarem  setenta  volumes,  e  vinte  e  tres  do  se- 
colo XV  ;  e  comparando  estas  immensas  riquezas  com  as  da  Biblio- 
theca  de  Louis  de  Bruges  senhor  de  Gruthuxys,  cnjos  106  volumes 
estSo  hoje  incorporados  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris,  concine  : 

ci.®  Que  nenhum  manuscripto  da  CoUec^So  de  Louis  de  Bruges 
remonta  élem  do  seculo  xni,  ao  passo  que  a  CoUec^So  de  Alcoba^a 
possuia  10  do  seculo  anterior. 

2.*  Que  a  de  Louis  de  Bruges  possuia  sómente  quatro  manuscrì- 
ptos do  seculo  xui,  em  quanto  que  a  Collec9So  da  Batalha  possuia  72 
d'esse  seculo. 

3.®  Que  a  refenda  coUec^So  depositada  na  Bibliotheca  de  Paris 
possuia  dezoito  manuscrìptos  do  seculo  xiv,  e  a  de  Alcoba^a  70. 

4.^  Que  do  seculo  xv  a  collec(So  de  Louis  de  Bruges  apresenta 


1  Notu  addiHoMUes  à  la  Lettre  au  baron  MieUe,  p.  15. 


0  EMSINO  DAS  COLLEGIADAS  55 

oitenta  e  dois  manuscriptosi  em  quanto  que  a  de  Àlcobaga  tem  ape- 
nas  23.»  « 

Exiate  nm  Catalogo  dos  Codices  da  Livraria  de  Àlcobaga  attri- 
bnido  a  Fr.  Francisco  de  Sa,  publicado  em  1775,  que  deu  logar  a 
aceradas  polemicae,  e  a  revela^Ses  curiosas  sobre  falsifica^Ses  de  ma- 
nuflcrìptoB  pelos  frades  de  Alcoba;a.  Fr.  Joaquim  de  Santo  Agostinhoi 
na  Memoria  sobre  os  Codices  mss,  e  Cartorio  do  Beai  Mosteiro  de  Al- 
coba^j  '  mostra  corno  se  cercon  a  Biblia  do  seculo  xiv  da  lenda  ficti- 
cia  de  ter  side  tomada  ao  rei  de  Castella  na  batalba  de  Àljubarrotai 
e  corno  é  ficticio  esse  pretendido  chronista  Laimundo,  capelISo  do  Bei 
Rodrigo  o  yencido  de  Guadelete.  Entro  os  eruditos  de  Alcoba^a  pene- 
troa  esse  espirito,  notado  por  Mabillon,  o  qual  por  inteiesse  clerical  vi- 
ciava  OS  documentos  juridicos  ;  e  a  eschola  dos  falsos  ChronicSes,  come- 
9ada  no  seculo  xv  por  Annio  de  Viterbo,  achou  em  Alcoba^a  um  emi- 
nente discipulo  no  joven  e  phantasioso  Fr.  Bernardo  de  Brito.  Os  Codi- 
ces escriptos  em  portuguez  silo  da  maxima  importancia  litteraria;  nSLo 
sera  facil  justificar  a  sua  attribuiflo  aos  auctores  assignados  no  Cata- 
logo de  Fr.  Francisco  de  Sa,  mas  nem  por  isso  deixam  de  ser  rigoro- 
samente authenticos  e  yerdadeiras  origens  da  Litteratura  portugueza. 


PAKTB  LITTERAKIA  DOS  MSS.  DE  ALCOBAgA 

Pergaminbo  do  seculo  xv,  em  gothico,  por  Frei  Zacbarias  de  Payo 
Pelley  Historia  do  Cavalleiro  Tunguli  ou  Tundal,  (Cod.  ccxLiv.)  N'este 
codice  yem  tambem  um  Catbecismo  de  Doutrina  cbristS  em  vulgar. 

Frei  Roque  de  Thomar,  traduz  do  castelhano  em  1399  uma  obra 
asBÌxn  inscripta:  ^Come^-se  opobre  Livro  das  Confissdes,  dito  assi,  por- 
que  he  feito  e  compellido  para  os  Clerigos  minguados  de  sciencia,  epor- 
que  he  assi  corno  mindigado  e  apanhado  dos  Liwos  de  DireUo  e  da  Sa- 
grada  Theologia.3  (Cod.  CCLn). 

Vitam  8.  Brandani  Abbatis  magni,  et  admirabilis  ex  Regali  Hi- 
bemorum  stirpe.  (Cod.  cclvi). 

TraducjSo  De  InstittUione  Coenobiorum  et  CoUatìones  Patr.  Jean. 
Cassiani,  por  Frei  Lopo  de  Santarem  e  Frei  Baptista  de  Alemquer. 
(Cod.  ccux). 

Os  Psalmos  penitenciaes  de  Francisco  Petrarcha.  (Cod.  CCLXI). 


1  Id.  ibid.,  p.  20. 

>  Mem.  de  Litt,  t.  y,  p.  297  a  362. 


56  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

O  Codice  CCLXVI,  m-4.^  magno,  em  pergaminhoi  do  firn  do  se- 
fieculo  XIV,  traz  em  portaguez: 

Vida  angelica  do  infante  Josaphat,  JUho  de  Avenir^  rei  indiano.  ^ 

Vida  de  S.  Euphrorina,  JUha  de  Panucio. 

Vida  de  S,  Maria  Egypdaca. 

Vida  de  S.  Tharsis. 

Vida  de  Santo  Aleùeo  Confessor. 

Vida  de  certo  Monge, 

Exposi^  do  Decalogo  segundo  a  Doutrina  da  Egreja, 

Narragao  da  Morte  de  8.  Jeronymo. 

Medita^es  sobre  as  Horas  Canonicas. 

Historia  de  um  Mouro  que  desejou  ir  ver  o  Paraiso. 

Historia  do  Cavalleiro  Tubuli.  (Tundal). 

Symbolo  da  Fé. 

Cod.  CGLXX:  traduc^So  portugueza  De  contemptu  Mundi. 

Cpd.  CCLXXiii,  iii-4.°:  Orto  do  Esposo,  de  varios  logares  da  Es* 
criptura,  dos  Prophetas  e  Santos  Padres,  dimdido  em  diversos  capUuIoB 
com  muitos  Exemplos,  por  Frei  Hermenegildo  de  Tancos. 

Cod.  CCLXXIV  :  Oatra  tradac9So  do  Orto  do  Esposo,  e  dos  Livros 
de  S.  Cassiano  De  Institutione  Ccsnobiorum. 

Cod.  CCLXXVi  :  Livro  ascetico  intitulado  Castello  perigoso,  do  se- 
culo  XIV. 

Cod.  CCXCi:  Vida  de  S.  Bernardo,  tradazida  por  Frei  Francisoo 
de  Melgafo  (secalo  xiv). 

Espdho  de  Monges,  composto  por  Frei  Francisco  de  Melga90. 

Tradac9fto  do  tratado  De  Anima,  de  S.  Bernardo. 

Cod.  ccc:  Regra  de  S.  Bento,  tradazida  por  Frei  Martinho  de 
Aljabarrota. 

Cod.  CCCii:  Vitam  Caroli  Magni  et  Rotondi,  quae  a  Tarpino  scri- 
pta fingitar. 

Cod.  cccxxiv:  Dos  Partidas  de  Castella,  fol.  do  secalo  xiv. 

Cod.  CCCXLix:  Traduca  do  Vdho  Testamento. 


I  Barlam  e  Josaphat;  é  o  titolo  arabe  Baralàm  e  Jèuàaef,  traduc^fto  da  lenda 
budhica  proveniente  do  Lolita  Vistava,  Renan  identifica  o  nome  de  Josaphat  com 
0  de  Budha:  «Josaphat  é  uma  altera^So  de  Joasaf,  fórma  empregada  pelos  chris- 
tSos  orientaes,  que  tambem  ó  ama  altera^So  de  Budasf  {=  BodhisaUva)  em  oonse- 
qnencia  dos  erros  que  produz  no  arabe  a  omisslo  das  pontos  diacrìticos.»  (Nou^ 
velUa  Étvdes  éThist.  rdigieuse,  p.  133).  O  monge  Jo2o  de  Damasco  eztrabiu  a  lenda 
budhica  de  uma  redac^o  sjrìaca.  (Jomal  asiatico,  vn  serie,  t.  zrin,  p.  159,  onde 
Be  citam  os  principaes  estudos  criticos). 


0  ENSINO  DAS  COLLEGIADAS  57 

Quaedam  excerpta  ex  Laertio,  De  vita  et  Tnoribm  Philosophorum. 

(Cod.  CCLXV). 

Cod.  cccLXXvn,  iii-4.°  gothico  : 

Arìstotelis  8  Libros  Topicorum  \ 

daos  Elenchorum  \  conformeB  à  ed.  de  Paris  de  1538. 

JDialecHcam  ) 

Cod.  GCCLXXViii:  Roberto;  ExpoBÌ9So  dos  7  livro^  doa  Topicos. 

Cod.  379  a  382:  Mss.  in-4.^  fol.  com  Logica,  Metaphysica  e  oa- 
tro3  tratados  segando  as  idéas  peripateticas. 

Cod.  383:  Thomaz  de  Aquino^  De  Potentiis  Animae,  De  Natura 
McUeriae. 

Cod.  385:  Obras  de  Raymundo  Lullo,  Compendio  da  Arte  demon- 
strativUj  Arte  inventiva  da  verdade, 

Fedro  Lombardo,  Libros  SenterUiarum,  Cod.  ccxx  (seculo  xii  vel 
XIII.)  Cairo  (ocxxiy)  Commentarios  de  S.  Thomaz  de  Aquino.  (Cod. 
ccxv).    . 

S.  Thomaz  de  AquìnO|  jSumma  Theologica,  Cod.  ccxxmi,  e  ix. 


Livraria  da  cOrte  do  rei  D.  Diniz: 

Pode-se  formar  um  elenco  approximado  da  Livraria  d'este  grande 
monarcha,  pelas  referencias  dos  manunscriptos  coévoa;  citaremos  as 
seguintes  obras,  que  synthetisam  o  gesto  palaciano  em  uma  córte  da 
Edade  mèdia: 

Estoria  geral  de  Hespanka.  . 
Traduc9&o  das  Partidas  de  AfFonso  o  Sabio. 
Tradac9So  da  Chronica  d'Altnansor,  do  medico  arabe  Rhazea,  por 
Gli  Pires. 

lÀvro  Vdho  da8  Linhagens. 

Nobiliario  do  Conde  D.  Fedro, 

Poemas  de  TristSto  e  Yseult. 

Flores  e  Brancajlor, 

Novella  de  Amadis  de  Oaula. 

Merlim. 

Roman  de  Brut. 

Roman  des  Douze  Paires. 

Livro  das  Trovas  do  Rei  D.  Diniz. 

Livro  das  Cantigas  do  Conde  de  Barcellos. 


58  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

$ 

«• 

As  Cantigas  de  Affonso  o  Sabio. 
Aristotdes. 
Historia  de  Traya, 

De  concordantìas  ibilinarum  Carmen  cura  Prophetarum  oraculis,  de 
GastSo  de  FoX|  traduzida  por  D.  Fedro  GalvSo,  arcebispo  de  Braga. 

Ab  obras  guardadas  nas  Bibliothecas  clauatraes,  episcopaes  e  reaes 
da  Edade  mèdia  encerravazn  os  germens  litterarios  sobre  que  havìam 
de  trabalhar  os  creadores  das  Litteraturas  modemasy  e  sobre  que  ti-  ; 
nham  de  exercer-se  as  liDgaas  nacionaes.  A  VisSo  de  Tundal  contém 
0  grande  thema  sobre  o  qaal  Dante  elaborou  a  Divina  Comedia;  a 
Chnmica  de  Turpin  fecunda  as  imagina93es  creadoras  das  Gestas  Car- 
lingianasy  taes  corno  o  Roman  dea  Douze  Pairea  e  a  Chanson  de  Ro" 
land.  A  historia  de  Barlam  e  Josaphat,  que  suscita  a  invenfSo  len- 
daria  dos  Agiographos,  revela  a  uniSo  da  cadeia  tradicional  entre  o 
Oriente  e  o  Occidente;  refor9ando  a  continuidade  mantida  pelos  vesti- 
gios  do  saber  grecoromano.  Emfim;  a  Epistola  do  Preste  Jocto  ao  Im* 
perador  de  Roma  yem  desde  o  seculo  xii  entre  as  relafSes  apocryphas, 
junto  com  as  rela9Ses  de  8,  Brendan  e  prophecias  de  Merlim^  acor- 
dando o  espirito  de  aventura,  que  levou  os  portuguezes  a  iniciarem  as 
expedigSes  maritimas  preoccupados  em  descobrirem  esse  reino  myste- 
rioso  do  Preste  JoSo  das  Indias.  Quer  pelo  lado  scientifico,  philosophico 
ou  poetico,  este  balango  intellectual  de  urna  època  que  vae  transfer- 
mar-se  encerra  o  mais  dramatico  interesse. 


CAPITULO  n 


0  Estndo  Cerai  em  Lisboa,  e  a  facnldade  Ubiqne  docendi 

(1288-13S0) 


Emancipa^ao  do  thieologismo  no  seculo  ziiz  e  o  grande  intereese  pelos  estudos  hu- 
manistas. — Bela^ào  intima  entre  a  Pedagogia  e  a  Politica:  As  Universidades 
seculares  e  o  advento  do  Terceiro  estado. —  Influencia  das  traduc^oes  arabes 
Bobre  a  propaga9So  dos  estudos  homanistas. —  A  Cathedra  germen  de  urna 
Uniyersidade  medieval;  a  Schóla,  do  typo  juridico  e  rhetorico  de  Roma  e 
Constantinopla,  reapparece  pelo  desenvolvimento  da  Cathedra  em  um  Estvdo 
girai, —  Feryor  pelo  eetudo  das  Leis,  e  o  ensino  das  Faculdades  permittidas. 
—  Primeira  accep^ào  da  palavra  Universidade,  dada  à  coUectividade  dos 
Mestres  e  Estudantes. —  Fórma  da  incorporagào  da  classe  escholar  d  ma- 
neira  da  Guild  ou  das  Irmandades  peninsulares,  d*onde  a  func98lo  do  Recior 
e  do  Condliario* —  A  investidura  do  grào  comò  de  pequeno  Cavalleiro  (Bas- 
chelor)  e  a  Birreta  sjmbolo  romano  da  manumissSo. —  Os  papas  coadjuvam 
contra-yontade  a  fondaco  das  Universidades. — Nicolào  IV  e  as  tres  uni- 
Tersidades  de  Montpellier,  Macerata  e  Lisboa  sob  o  seu  pontificado. — D- 
Diniz  conhece  a  necessidade  de  fundar  um  Eatudo  geral  em  Lisboa. —  A 
lucta  com  o  clero  superior  por  causa  das  Jarisdic^oes  demora-onarealisa^ao 
do  seu  pensamento. —  Representa^Io  de  yarios  Priores  e  Abbades  offerecendo 
para  o  Estudo  geral  parte  dos  seus  rendimentos. — D.  Diniz  acceita-os,  e  funda 
antes  de  1288  a  Uniyersidade  em  Lisboa. —  Eepresenta^So  dos  Priores  e 
Abbades  a  Nicolào  lY  pedindo  a  concessSo  para  a  cedencia  de  parte  dos 
seus  rendimentos. —  Bulla  de  confinna9£o. —  A  concessAo  do  fóro  ecclesiastico 
aos  escholares,  e  lucta  d^estes  com  os  burguezes. —  Influencia  de  Afifonso  o 
Sabio  em  seu  neto  D.  Diniz,  e  influzo  da  Uniyersidade  de  Salamanca  na 
crea^So  da  de  Lisboa. —  O  ensino  da  Theologia  particularisado  &s  ordens  dos 
DominicanoB  e  Franciscanos,  repreientantes  dos  Nomjnalistas  e  Bealistas. — 
Traslada^io  da  Uniyersidade  para  Coimbra  em  1307;  reposta  em  Lisboa, 
em  1338;  outra  yez  transferida  para  Coimbra  em  1354;  fixa-se  em  Lisboa 
depois  de  1377. —  A  Uniyersidade  obtem  a  faculdade  Ubique  docendi  em 
1380. —  Centralisa^  dos  Estudos. 

É  no  Boculo  xiu  que  a  razSo  humana  cometa  a  emancipar-se  do 
theologismOi  bem  longe  de  poBsoir  ob  elementos  para  se  elevar  à  sjn- 
these  poBitiya;  é  no  secalo  xiii  que  as  classes  servas  attingem  a  di- 


60  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

gnidade  civil,  sem  comtudo  poderem  ainda  affirmar-se  corno  um  poder 
«ociàl.  O  aeculo  xiii  foi,  corno  diz  Comte  «sob  todos  ob  aspectos  o 
precursor  directo  da  revolugSo  occidental.»  À  necessidade  de  recon- 
atitair  um  novo  Poder  espiritual  manifesta-se  mesmo  dentro  da  Egreja^ 
vendo-se  os  Papas  e  os  altos  dignatarios  do  sacerdocio  cooperando  para 
a  crea9So  das  Universidades  ou  Estados  geraes.  Refetrindo-se  a  este 
estado  de  espirito  que  desprezara  o  theologismo  para  cultivar  as  scien- 
cias  humanas,  escreve  Comte:  «A  incredulidade  desenvolveu-se  sobrd- 
tudo  no  sacerdocio  regular,  e  entro  os  grandes  dignatarios  do  clero 
secular/  mais  bem  coUocados  para  apreciar  o  conjuncto  das  tendendaa 
modemas.»'  Està  iniciativa  sacerdotal  apparece  na  supplica  dos  Ab- 
>  bades  e  Priores  ao  rei  D.  Diniz  e  ao  papa  Nicolào  iv,  para  o  estabe- 
^lecimento  de  um  Estudo  geral  cm  Lisboa.  A  necessidade  de  reconsti» 
tuir  0  Poder  temperai,  tfto  difficil  corno  o  problema  anterior,  achou  nos 
JurisconsultoSy  que  fizeram  renascer  o  Direito  romano,  a  cooperarlo 
necessaria  para  se  definirem  os  direitos  reaes  magestaticos,  para  ac- 
centuar a  impersonalidade  da  lei  sob  a  instituiyfto  do  Ministerio  publico, 
e  para  realisar-se  desde  o  seculo  XV  a  dictadura  tempora!  das  monar- 
chias  absolutas,  base  de  ordem  empirica  na  grande  e  prolongada  revo* 
IxKjSio  Occidental.  Comte  caractarisa  admiravelmente  a  influencia  d'estea 
dois  factores  moraes,  que  imprìmiram  direc9Ao  à  historia  moderna  da 
Europa: 

«Os  metaphysicos  e  os  legistas  tomaram-se  os  orgftos  respectivos^ 
mais  apparentes  do  que  reaes,  da  influencia  espiritual  e  da  auctoridade 
tempora!  propria  &  revolu9fto  occidentale  que,  segundo  a  divisSo  dos 
dois  poderes,  se  conformou  portante  &  separaySo  irrevogavelmente  ea- 
boyada  na  Edade  mèdia. 

«Apesar  da  intima  communidade  de  origem,  de  educaySo,  e  mesmo 
de  costumes,  os  Jurisconsultos  devem  ser  sempre  distinctos  dos  Onto- 
logistas,  acima  dos  quaes  a  vida  activa  os  coUocou  immediatamente.  Pro- 
duzidos  pelo  feudalismo,  comò  aquelles  entro  o  clero,  elles  mereceram 
por  multo  tempo  a  confianra  que  o  antigo  poder  tempora!  e  o  novo 
elemento  pratico  cpncordaram  em  attrìbuir-lhes,  conforme  a  genera- 
lidade  das  suas  vistas  polìticas.  OrgSos  passageiros  de  uma  funereo 
equivoca,  que  confunde  a  appreciarSo  espiritual  e  a  repressSo  temperai, 
elles  foram  por  isso  mesmo,  incapazes  de  mandar,  e  acharam-se  mais 
dispostos  a  fomecerem  uteis  instrumentos  &s  forfas  susceptiveis  de 
prevalecer. 


1  Comte,  Syethne  de  Politique  ponHvt,  t.  lu,  p.  509. 


O  ESTUDO  6ERAL  EM  LISBOA  6 1 

cQuanto  aos  metaph^sicos,  que,  apezar  das  suas  formas  pedantescas 
oraxD  sempre,  corno  ainda  hoje,  mais  litterarìos  que  philosophicos,  a 
sua  inflaencia  permaneceu,  durante  toda  a  transiga  moderna,  mais  no- 
civa do  qne  util,  tanto  ao  espirito  corno  ao  cora9So.  Productos  para- 
ritas  de  um  ardor  theorico  que  precedia  fatalmente  o  seu  verdadeiro 
destino,  estes  discursadores,  dignos  successores  dos  sophistas  gregos, 
nXo  comportaram  outra  efficacidade  a  nSo  ser  a  de  propagar  por  toda 
a  parte  a  emancipa9fto  completa.»^ 

No  seu  fiindamental  Diacurso  sabre  o  estado  das  Lettras  no  secula 
XIV,  Victor  Ledere  considera  a  institui^So  das  Universrdades  corno 
simultanea  com  os  Parlamentos  «annunciando  pelos  seus  progresso» 
ama  das  transformaQSes  da  antiga  sociedade,  o  advento  do  terceiro  es- 
tado.» *  Na  historia  da  pedagogia  importa  conhecer  sempre  as  rela98es 
que  existem  entro  as  doutrinas  que  constituem  a  instrucfILo  individuai 
e  aa  fórmas  por  onde  se  aperfei($a  a  organisa^So  social.  A  ausencia 
d'este  criterio  tem  tornado  improficuas  as  observa98es  d'aquelles  que 
analysam  as  inBtituÌ98e8  escholares,  reduzindo  todas  as  suas  suggestSes 
e  planos  de  reforma  à  mais  deploravel  inefficacia.  No  periodo  historico 
em  que  os  Jesuitas  dominaram  a  instruc9So  publica  da  Europa,  elles 
separaram  estes.  dois  problemas,  impondo  disciplinas  e  methodos  de 
ensino  exclusivamente  litterararios  em  contradic92Lo  com  a  tendencia 
experimental  e  de  livre  critica  com  que  come9ou  a  renascen9a  scien- 
tifica do  seculo  XVI.  Augusto  Comte  relacionou  sob  o  ponto  de  vista  de 
urna  applica9So  social  estes  dois  principios,  a  conformidade  da  educa92L0 
individuai  com  a  direc9So  tempora!  da  sociedade,  ambas  derivadas  das 
mesnaas  no9SeB  scientificas.  Assim  Pedagogia  e  Politica  sSo  os  meios 
praticos  por  onde  uma  doutrina  philosophica  pode  harmonisar  o  des- 
envolvimento  individuai  com  o  progresso  da  sociedade.  Na  marcha  bis- 
torica  da  Europa,  nem  sempre  as  capacidades  dirigentes  tiveram  conhe- 
dmento  da  intima  rela9So  entro  a  Politica  e  a  Pedagogia;  e  em  rigor 
póde-se  affirmar,  que  a  sua  dependencia  imperscindivel  de  uma  dou- 
trina pbilosophica  està  ainda  longé  de  ser  comprehendida.  As  grandes 
msea  do  ensino  europeu  caracterisam-se  pela  simultaneidade  com  os 
profandos  abalos  politicos  :  o  ensino  secuLar  das  Universidades  estabe- 
lece-se  conjunctamente  com  os  Parlamentos  e  concorrencia  do  Ter- 
oeiro  estado,  assim  corno  o  ensino  scientifico  das  Poljtechnicas,  orga- 


^  Comte,  Systhne  de  PoUHgut  pontive^  t.  m,  p.  527. 
'  Op.  dt.,  1. 1,  p.  262. 


62  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADB  DE  COIMBRA 

nisado  pela  Coiiyeii9Ao  franceza,  é  ama  resultante  do  phenomeno  da 
dÌBsolu9So  do  regimen  catholico-feudal  no  firn  do  secalo  xvni. 
.  Investigaemos  està  primeira  crise. 
A  Egreja  renegàra  a  tradifSo  da  caltara  greco-romana,  e  foi  pela 
inflaencia  dos  Arabes  que  se  despertoa  o  interesse  pelos  estudos  scien- 
tificoB  e  philosophicos,  que  determinaram  a  renascen$a  intellectual  da 
Europa.  Como  se  reatou  està  continuidade?  Depois  que  a  religiSo 
christS  se  tomou  politica,  sob  Constantino,  ella  dirigiu  o  poder  tem- 
perai para  a  destruÌ92o  do  hellcnismo  ;  em  529  o  imperador  Justiniano 
publicou  um  edito  mandando  fechar  todas  as  escbolas  philosophicas,  e 
segando  o  historiador  byzantino  Agathias,  os  eruditos  e  philosopbos 
Damascio,  Simplicio,  Eulamios,  Prisciano,  Isidoro  de  Gaza,  Hermias 
e  Diogenes  de  Phenicia  foram  procurar  asylo  na  cSrte  dos  Sassànides, 
na  Persia,  onde  reinava  o  celebre  Chosroes  Nushirwan.  Tal  foi  o  facto 
que  originou  a  communica93o  dos  Arabes  com  a  civilÌ8a9&o  hellenica, 
e  foi  na  occupaffto  do  Occidente  que  elles  pelo  esplendor  das  suas  es- 
cbolas deslumbraram  Carlos  Magno,  o  grande  organisador  da  Europa. 
As  obras  de  Aristoteles  formavam  ama  vastissima  encydopedia  consti- 
tuida  por  sciencias  experìmentaes,  em  que  se  reconhecia  a  superiori- 
dade  do  criterio  objectivo;  as  explica93es,  os  commentarios  dos  que 
as  estudavam  fomeciam  ao  espirito  urna  activìdade  critica  e  a  prepon- 
derancia  do  ponto  de  vista  humano.  As  traduc93es  arabes  das  obras 
mathematicas  de  Euclides,  do  Almagesto  de  Ptolemeu,  das  obras  me- 
dicas  de  Hippocrates,  do  Organum  de  Aristoteles,  do  Phedon,  Ora- 
tt/lo  e  LeÌ8  de  Platfto,  revelaram  novos  horìzontes  &  intelligencia,  que 
estava  atropbiada  pelos  escholasticos,  que  reduziam  a  in8truc92o  ao 
fim  exclusivamente  sacerdotal.  Està  nova  corrente  hellenica  conserva- 
ra-se  entro  os  christSos  nestorianos,  e  mesmo  no  sul  da  Fran(a  a  exis- 
tencia  de  um  mosteiro  onde  se  conservava  o  rito  das  egrejas  de  Smyma 
e  de  Constantinopla,  explica-nos  com  que  facilidade  se  acceitava  o  con- 
tacto  com  as  escbolas  dos  Arabes.  Aquelle  que  trazia  a  inicia9fto  scien- 
tifica d'essas  escbolas,  e  que  possuia  o  segredo  da  interpreta9So  das 
doutrinas  da  Grecia,  afastado  das  CoUegiadas,  abria  o  seu  estudo  em 
um  legar  isolado,  e  a  fama  da  sua  capacidade  attrahia  de  todas  as 
partes  da  Europa  as  intelligencias  àvidas  de  saber,  que  vinham  acer- 
car-se  com  ferver  da  sua  Cathedra.  Os  discipulos  vestiam-se  com  a  toga 
dos  philosopbos  antigos,  e  d'aqui  veiu  o  costume  das  vestes  talares 
nas  Universidades;  o  estudo  fazia-se  debaixo  dos  arvoredos  ou  nos  lo- 
gares  elevados,  d'onde  veiu  o  chamar-se  ao  Monte  de  Santa  Geno- 
veva,  onde  se  fundou  a  Universidade  de  Paris,  a  coUina  dos  Doutores. 


0  ESTUDO  6ERAL  EM  USBOA  63 

Urna  Cathedra  era  o  minimum  de  urna  Uaiversidade;  assim  abrem- 
se  em  Salerno  e  Montpellier  Esckólas  especiaes  para  a  Medicina  e  para 
o  Direito,  desenvolvendo-se  em  determinados  cursos  com  mais  cathe  - 
dras  e  cathedrilhas  Bupplementares.  Quando  se  alargou  o  quadro  das 
disciplinas  em  um  Eatudo  geral,  é  entfto  que  apparece  o  lypo  pedagogico 
da  Universidade  comò  as  de  Paris,  Oxford,  Bolonba,  Padaa,  Salaman- 
ca, Napoles,  Upsal,  Lisboa  e  Roma.  Em  Roma,  no  tempo  de  Ulpiano, 
existiu  eschola  especial  de  Direito;  em  CoUstantinopla,  estabelece-se 
em  425  uma  Eschola  publica  com  vinte  cito  professores  de  Litteratura 
grega  e  romana,  um  de  Philosophia  e  dois  de  Direito,^  estipendiados 
pelo  estado.  Este  caracter  humaniata,  com  que  se  funda  a  Eschola  de 
Constantinopla,  reapparece  nas  Universidades  medievaes,  em  que  a 
Grammatica,  a  Dlalectica  e  a'Rhetorica  constituem  q  curso  das  Artes 
incorporado  com  as  outras  Faculdades,  sendo  do  grupo  dos  seus  gra- 
daados  escolhidos  os  Reitores,  comò  notou  Victor  Ledere  na  Univer- 
sidade  de  Paris,  onde  os  estudantes  de  Artes  tinham  a  maioria  nas 
eleÌ95es  escholares.  E  d'este  caracter  humanista,  em  que  o  Direito  se 
ensinava  nas  escholas  de  Rhetorica  e  de  Dialectica  para  os  que  se  diri- 
giam  à  adyocacia,  que  se  conservaram  mais  tarde  incorporados  no  Es- 
tttdo  geral  os  Collegios  de  Artes,  e  se  conferia  o  grào  de  Doutor  em  leU 
tras.  Alcuino,  na  descrip9So  da  Eschola  de  York,  apresenta  comò  con- 
stituindo  0  seu  quadro  pedagogico  a  Ghrammatica,  a  Rhetorica  e  a  Jwris- 
prudenda.  '  Nas  Acta  Sanctorum  indica-se  naVida  de  S.  Bonitus  d'Au- 
yergne  os  seus  conhecimentos  de  grammatica,  dos  decretos  de  Theo- 
dosio,  e  dos  recursos  da  dialectica.  Nas  escholas  de  Pavia,  comò  se  ve 
na  Vida  de  Lanfranc,  ensinava-se  segundo  o  costume  as  Bellas  Lettras, 
a  Jurisprudencia  e  o  exercicio  da  Oratoria.  Chamavam-se  Sententiae 
08  principioB  ou  regras  geraes  de  Direito  que  se  invocavam  nos  dis- 
cursos  do  exercicio  rhetorico.  No  poema  de  Wipo,  Panegirico  de  flen- 
rique  III,  pede-se  ao  rei  que  organile  os  estudos  na  Allemanha,  em 
que  se  cultivem  as  Lettras  e  as  Leis,  concluindo  : 

Moribus  bis  dudum  vivebat  Roma  decenter, 
Bis  stadiis  tantos  potuit  vincere  tjrannoB, 
Hoc  servant  Itali  post  prima  crepundia  cnncti.  ' 


1  Savigny,  Historia  do  Direito  romano  na  Edade  mèdia,  cap.  v. 

*  Id.,  ibid.,  cap.  vi,  p.  860. 

^  Canisio,  t.  iv,  p.  167.  Ap.  Savigny,  op.  cit 


64  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Estes  eetudos  conservaram-se  dorante  toda  a  Edade  mèdia;  pò* 
rem,  0  fervor  que  mereceram  os  estndos  das  Leis,  pela  &ca9So  do 
poder  realy  é  que  determinou  o  desenyolvjmento  das  cadeiras  especiaes, 
formando  o  typo  da  Universidade.  0  Concilio  de  Rheims;  de  1131,  pro- 
hibia  espressamente  aos  monges  e  conegos  regularea  o  estudo  das  Loia 
civis  e  da  Medicinai  e  o  uso  da  advocacia  com  espirito  de  cobi(a.  *  O 
papa  Innocencio  iv,  na  bulla  de  1254,  lamenta  o  facto  do  abandono 
da  Pbilosophia  e  da  Theologia,  pelo  estudo  das  Leis  civis,  que  condu- 
zia  às  dignidades  ecdesiasticas  e  aos  beneficios.  E  termina  a  bulla: 
<  Consequentemente  decidimos  pelas  presentes,  que  de  ora  em  diante 
nenhum  professor  de  Jurisprudencia,  nenhum  advogado,  seja  qual  for 
0  logar  ou  a  reputa9lo  de  que  gose  na  faculdade  de  DireitO;  nSo  pò- 
derà  pretender  às  prebendas,  honras  e  dignidades  ecclesiasticas,  nem 
mesmo  aos  beneficios  inferiores,  se  elle  nSo  der  as  provas  de  capaci- 
dado  exigidas  nas  faculdades  das  Artes. .  .»^  Eram  éssas  as  Facvldc^ 
ilea  permittidas,  que  se  ensinavam  sem  dependencia  da  auctoridade  pon- 
tificai; assim  no  Estudo  geral  nSo  entrava  a  Theologia,  concessilo  pela 
qual  OS  Papas  ficaram  com  ingerencia  nas  Universidades.  A  obscuri- 
dade  que  reina  sobre  a  origem  das  mais  antigas  Universidades  da  Eu- 
ropa resulta  da  falta  de  conbecimento  da  continuidade  bistorica  que 
existiu  entre  as  Escholas  humanistas  do  trivium  e  quadrivium  com  os 
Estudos  geraes,  ^  Àinda  no  seculo  xvi  escrevia  o  illustre  poeta  Anto- 
nio Ferreira,  que  frequentara  os  estudos  litterarios  no  Collegio  real  de 
Coimbra,  ao  principal  Diego  de  Teive: 

NSo  fazem  damno  as  Musas  aos  Doutores, 
Antes  ajuda  a  suas  Lettras  d2o. . . 

A  tradÌ9Ao  pedagogica  das  antigas  escholas  de  Direito  de  Con- 
stantinopla  e  Beryto  reappareceu  nas  Universidades,  nos  cursos  de  ciuco 
annos.  Os  alumnos  de  cada  anno  tinham  nomes  ou  alcunhas  peculia- 
res:  os  que  frequentavam  o  primeiro  anno  eram  os  Dupondii  (do  mi» 
nerval  que  pagavam^  o  dupondium,  que  valia  dez  ossea);  os  do  segundo 


1  Histoire  liUércdrt  de  la  France,  t.  vn,  p.  151  e  152,**Tailliar,  Précis  de 
rmst  des  Inat^  p.  114. 

*  Ap.  Ozanan,  Dante  et  la  PhUosophie  catìiolique,  p.  431-433. 

'  Depois  da  reoascen^a  do  Direito  civO,  a  importancia  dos  estudos  medicos 
pela  vulgarìsa^So  das  obras  dos  Arabes  tambem  contribuiu  para  o  desenvolvimento 
do  Estudo  geral. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  65 

anno  eram  denomìnados  Edictales,  porque  estudavam  o  Edicto  com- 
mentado  por  Ulpiano;  ob  do  terceiro  anno,  embora  continuassem  o  es- 
tado  do  EdictOi  eram  denominàdos  Pajnnianùtas,  porque  estadavam 
as  Responsa  Papiniani;  os  quartanìstas  eram  os  Lytde,  palavra  grega 
referente  à  B0IU980  -dos  enigmas  das  leìs  que  propunham  em  disputas 
entro  si;  os  qointanistas  eram  chamados  os  Prolytae,  por  contìnuarem 
as  dispntas  applicadas  às  Consti taÌ93es  imperiaes.  Sob  as  reformas  do 
ìmperador  Justinianoi  embora  se  modificassem  as  doutrìnas  do  ensino 
de  cada  anno,  conservaram-se  os  tìtulos  escholasticos,  com  excepfSo 
do8  que  frequentavam  0  primeiro  anno,  que  trocaram  0  nome  offensivo 
de  Dtipondn  por  Jìxstinianistaa.  ' 

O  nome  de  Uhiveraidade  empregou-se,  na  primitiva  accepgSLOy 
corno  designando  a  coUectividade  dos  mestres  e  estudantes,  Universi' 
tas  magistrum  et  scholarium,  E  do  caracter  social  que  tomou  està  cor- 
pora$So  pedagogica,  moldada  segundo  as  irmandades  ou  guilds,  com  um 
fòro  civil  privilegiado,  é  que  0  nome  de  Universidade  veiu  a  prevale»- 
cer  sobre  a  designagào  de  Estudo  gerody  que  significava  mais  a  reuniSo 
das  disciplinas  pedagogicas.  0  espirito  associativo  é  0  que  transparece 
nas  designa93e8  communs  do  fim  da  Edade  mèdia,  Universitas  studii, 
e  Universitatia  coUegium,  que  algumas  ordens  monasticas  pretenderam 
conservar  imprimindo-lbes  o  individualismo  do  seu  instituto.'  0  cara- 
cter associativo  da  classe  escholar,  tomado  das  guilds  germanicas  ou 
das  jurandas  e  irmandades,  apresenta  nos  seus  cargos  as  mesmas  ca- 
thegorias  de  chefes:  0  Rector  scholarum,  eleito  pelos  estudantes,  é  em 
tado  similhante  ao  Rector  societatum;  e  comò  a  associa9So  escholar  era 
formada  pela  federa9lllo  dos  estudantes  estrangeiros,  competia-lhe  a  in- 
terven9So  de  um  Consiliarius  (o  Cancellano),  que  regulava  as  rela98es 
dos  grupos  nacionaes,  ^  comò  0  ConsUtariiis  da  guild. 


1  Charles  Giraud,  Hiat  du  Droit  romain,  p.  433.  Este  costume,  que  passou 
para  as  UniverBidadeB  da  Edade  mèdia,  (Cagadorea  e  Bacchanl^s)  conserva-se  na 
Universidade  de  Coimbra,  onde  os  alumuoó  do  primeiro  anno  tcm  0  nome  de  ^0- 
valoé  e  urna  certa  posi^So  de  inferioridade  perante  os  Semiputoè  ou  secundanis- 
tas  ;  OS  do  terceiro  anno  sSo  os  Pie  de  banco,  os  do  quarto  anno  Candieirés, 

'  «Os  padres  dominicos  chamam  universidade  aos  seus  estudos  de  Lisboa, 
Batalba  e  Coimbra,  onde  tiveram  e  tem  agora  seu  collegio,  e  nunca  Ihe  duvida- 
ram  d'isso,  assignando-se  assim  nas  patentes.»  (Nota  do  Dr.  Manuel  de  Sonsa  às 
NoUciaa  chronologicas  da  Universidade,  nota  56,  ao  §  754.) 

'  Na  Universidade  de  Verceil  (1220)  a  corpora9ao  escholar  compunha-se  da 
1.*  Na^ào:  Fran9a,  Normandia  e  Inglaterra;  2.«  Na^ào:  a  Italiana;  3."  Na^ào: 
Teutonica:  a  4.*  Nagào:  Proven^aes,  Hespanhoes  e  CatalSes. 

BIST.  UH.  5 


€6  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Os  Papas  concederam  a  està  nova  classe  social,  que  se  amoldava 
ao  tjpo  das  associa93es  democraticas,  o  fòro  ecdesioàtico,  gdkT9Ji\mào 
assiin  essas  novas  instituifSes  de  Universidades,  e  exercendo  sobre 
ellas  um  poder  jurisdicional  pela  Licentia  docendi  ou  a  Licenciatura;  a 
Bealeza  sobre  o  foro  ecclesiastico  concedea-lbe  a  proteo^  soberana, 
cbamando-se  por  està  circumstancia  a  Universidade  de  Paris  a  primo- 
genita dos  reis.  Para  a  realeza  o  escholar  ou  deriois  '  adqairia  pelos 
estudos  um  grào  de  cavalleria,  imitando-se  pela  imposÌ9So  da  birreia 
o  symbolo  da  manumissSo  romana,  pelo  grào  de  bachard  a  qualidade 
de  pequeno  cavalleiro  (bas-dievcdier,  haadideur)^  e  conforme  entrava  nos 
conselhos  da  corte  o  titulo  senhorial  de  Conde  palatino.  Este  conflicto 
entre  o  poder  real  e  o  pontificai  é  notado  pelos  historiadores  das  Uni- 
versidades,  na  auctoridade  dos  gr&os  e  simultaneidade  de  dois  Reitores. 
Se  0  catholicismo  estabelecera  a  confratemidade  pela  crenfa,  o  fer- 
ver dos  estudos  humanistas  creava  a  confratemidade  pela  sciencia,  e 
do  encontro  dos  discipulos  que  vinham  de  differentes  paizes  da  Europa 
receber  a  mesma  disciplina  nasceu  essa  designasse  de   Universidade 

.  (  Universitas  stìjtdii)^  antes  das  diversas  cathedras  serem  encorporadas 
em  um  systema  unitario  de  instrucsSo  civil  pela  auctoridade  tempe- 
rai. Os  papas,  que  anteriormente  condemnavam  a  cultura  greco-roma- 
na, comò  vimos  pela  reprehensSo  de  S.  Gregorio  Magno  ao  bispo  Di- 
dier, repellindo  Donato,  agora  obedeciam  a  essa  corrente,  que  desde  o 
seculo  XIII  generalisou  a  instituisSo  das  Universidades  pela  Europa; 
Innocencio  iii,  em  1212,  appresenta  pelo  seu  legado  o  regulamento  da 
Universidade  de  Paris,  e  Honorio  ni  (1216  a  1227)  ordena  que  os  Ca- 
bidos  mandem  alguns  jovens  frequentar  as  Universidades  publicas, 
chegando  a  dep6r  um  Bispo  porque  nào  lera  Donato,  comò  o  refere 
Tiraboschi.  Pelo  seu  lado  Qregorio  ix,  coadjuvando  o  restabelecimento 
da  Universidade  de  Paris  em  1229,  e  honrando  com  prìvilegios  a  Uni- 
versidade de  Bolonha)  sente  que  o  desenvolvimento  do  Direito  civil 
romano  pela  realeza  é  um  perigo  para  a  auctoridade  pontificai,  e  or- 

.ganisa  o  corpo  do  Direito  canonico.  0  papa  Innocencio  iv  pela  sua 
bulla  de  1254  condemna  o  desenvolvimento  do  Direito  civil,  que  se 
ensinava  juntamente  com  a  Dialectica  e  com  a  Rhetorica;  era  urna  pri- 
meira  reacsSo  elencai  centra  o  humanismo  :  cUm  deploravel  rumor  se 


1  Nas  Notas  de  Figueiróa  ìb  NoOdas  chronologicaa  da  UniverMade  de  Caim- 
bra^  le -se:  «o  titolo  de  derigo  de  d-rei  nio  denotava  legar  de  pessoa  ecclesiastiea 
absolutamente,  senSo  que  queria  significar  homem  lelrado,  admittido  ao  consellio 
dos  reis  para  com  elles  despachar.»  Ap.  Instituio  de  Coimbra,  t.  xiv,  p  191. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  *  6  7 

espalha',  e  repetido  de  bocca  em  bocca,  veiu  ^affligir  os  nossos  ouvidos. 
Diz-se  que  a  multidSo  dos  que  aspiram  ao  sacerdocio,  abandonandoi 
repudiando  mesmo  os  estudos  philosophicos,  e  por  conseqaencia  tam- 
bem  OS  ensinos  da  Theologia,  corre  compacta  às  escholas  onde  se  ex- 
plicam  as  Leis  ciris.  Accrescenta-se — que  em  um  grande  numero  de 
paizes  OS  bispos  reservam  as  prebendas,  as  honras  e  as  dignidadea 
ecclesiasticas  para  aquelles  que  occupam  cathedras  de  jurisprudenciai 
ou  que  se  prevalecem  do  titulo  de  advogado,  eto  Apesar  do  pro- 
testo, Innocencio  iv  fonda  a  Universidadc  de  Placencia,  e  concede  pri- 
Tilegios  &8  Universidades  de  Tolosa,  e  de  Valencia,  na  Hespanha.  Ale- 
xandre IV  (1261)  mandou  os  seus  sobrinhos  firequentarem  a  Universi- 
dado  de  Paris;  e  Nicolio  iv  (1288  a  1292),  convertendo  em  Univer- 
sidade  a  escbola  de  Montpellier  e  fundando  tambem  a  Universidade  de 
Macerata,  segundo  affirmam  alguns  escrìptores,  concede  os  prìvilegios 
de  f5ro  ecclesiastico  à  nova  Universidade  de  Lisboa,  fundada  pelo  rei 
D.  Diniz.  Està  crea9fto  do  monarcha  foi  apoiada  pelo  pedido  de  di- 
versòs  prelados  portugnezes,  que,  centra  a  bulla  de  Innocencio  iv  de 
1254,  pretendiam  dotar  com  prebendas  das  egrejas  do  padroado  real 
os  lentes  chamados  para  ensinarem  as  disciplinas  humanas;  a  bulla  de 
confirma92lo  de  Nicoiào  iv  é  urna  permissSo  d'este  donativo. 

Kos  conflictos  do  Poder  real  com  o  pontificai,  &  medida  qne  se 
estabelecia  a  independencia  soberana  sobre  a  prepotencia  feudal,  e  se 
esbo^ava  a  dictadura  monarchica,  os  Reis  precisavam  de  fortificar-se 
no9  seus  conselhos  com  a  opiniSo  dos  Jurisconsultos,  convidados  do  es- 
trangeiro,  ou  tendo  frequentado  as  Universidades  da  Italia,  até  que  o 
proprio  interesse  Ihes  suggeriu  a  necessldade  de  fundar  tambem  um 
Estado  geral  ou  Universidade.  Junto  de  D.  Affonso  Henriques  ve- 
mos  figurar  D.  Jofto  Peculiar,  Letrado  em  ambos  os  Direitos,  e  Mestre 
Alberto,  que  assigna  o  forai  de  Leiria  de  1142,  apesar  de  estrangeiro. 
Sobre  o  valor  da  palavra  Mestre  escreve  José  Anastacio]de  Figueiredo*: 
«nSo  me  atrevendo  so  a  decidir  de  certo,  se  a  palavra  Mestre  (à  qual 
se  substituira  Doutor  depois  da  instituÌ9S,o  dos  gràos  academicos)  com 
que  nos  nossos  antigos  tempos  se  acham  designados  e  prenomeados 
alguns  homens  e  jurisconsultos  em  differenja  de  outros  que  se  chama 
Falanos  das  Leis,  denota  que  elles,  além  da  sciencia  que  possuiam,  e 
Ihes  fazia  dar  o  dito  prenome,  tambem  estavam  ensinando,  ainda  que 


1  Època  da  irUroduo^ào  do  Diretto  Jtistinianeo  em  Portugal.  Mem.  de  Litt,  da 
Academia,  1. 1,  p.  272. 

5* 


68  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

partìcolannente,  por  ser  a  tradacjXo  da  palavra  Praeceptor,  de  que 
sempre  (depoiei  de  conhecida  a  dita  palavra  Doutor)  para  o  dito  firn  se 
ttsou.»  D.  Sancho  i  (1185)  procedeu  corno  eeu  pae,  mandando  vir  de 
MilSo  0  jorisconsulto  Leonardo,  que  jà  sob  D.  Àffonso  ii  servìa  em 
Boma  corno  seu  procuradori  e  Mestre  Yicente,  que  o  serve  corno  le- 
gista na  concordia  com  suas  irmSs.  Os  nomes  de  Magister  Dominicus, 
arcediago  de  Santarem,  Magister  Petrus,  Magister  Pelagius,  cbantre  do 
PortO|  figuram  comò  compondo  o  conselho  de  D.  Affosso  ii.  Anasta- 
cio  de  Figueiredo  attribue  ao  tempo  de  D.  Sancho  n  e  D.  Afifonso  ui 
a  redacfSo  de  um  Compendio  de  Direito  feito  em  portuguez  por  Mes- 
tre Jacohe  das  Leis  a  pedido  de  Affonso  FernandeS|  para  que  ^Ihe  es- 
cdUiesse  algumas  Jlores  de  Direito  brevemente j  para  que  podesse  ter  al^ 
guma  carreira  ordenada  para  entender,  e  para  delinear  os  preitos  se- 
gundo  as  Leis  dos  sabedores.it  ^  Mais  tarde  os  titulos  de  Mestre  e  Do^ 
ctor  apparecem  empregados  para  distinguirem  os  graduados  em  Tbeo- 
logia;  e  OS  graduados  em  Direito  canonico  ou  civil  (in  tUroque)»  O  ti- 
tulo  de  Mestre,  primeiramente  usado  nas  Eschòlas  das  Collegiadas,  con- 
servou  o  primitivo  uso,  designando  os  que  ensinavam  Artes  e  n'ellas 
eram  graduados  nas  Universidades,  e  os  Doutores  in  sacra  Pagina  ou 
Tbeologia. 

Algumas  das  Can$3es  satyricas  de  Estevam  da  Guarda,  privado 
de  D.  Affonso  iii,  referem-se  a  huU  meestre  de  leys  que  era  manco  d'uà 
pema  e  copegava  d'eia  muito,  e  outra  a  hdjuiz  que  non  ouvia  ben.  Eis 
a  sirvente,  em  que  o  equivoco  entre  o  defeito  physico  e  o  defeito  da 
Bciencia  juridica  fere  indirectamente  a  justi^a  real,  que  ia  submettendo 
a  independencia  do  foro  senhorial: 


En  preyto  que  d^m  Joam  ha 
con  hon  maestre  .ha  gram  questom, 
e  0  meestre  presupom 
o  de  que  o  derejt'eBtà 
tan  contrairo  per  quant*ea  vi, 
que  se  lh*outrem  nom  acorr'i 
0  meestre  decaerd. 


1  J.  A.  de  Figueiredo  dìz  que  este  Compendio  se  acha  no  Forai  da  Guarda, 
na  Torre  do  Tombo,  Casa  da  Corda,  Armario  17,  Ma^  6,  N.  4,  de  fol.  18  até  foL 
40,  e  considera-o  corno  «todo  ordenado  sobre  o  Digesto  e  Institai^Ses  de  Jnsti- 
nìano,  com  que  se  conforma  nas  senten^as  e  dispo8Ì9oes  ou  regras  que  compre- 
bende.»  (Mem.  dt.,  ibid.) 


0  ESTUDO  GERAL  Eli  LISBOA  69 

Mais  se  decae,  qnem  seri 
qne  j&  dereito,  nem  razon 

for  demandar,  nen  defenson  ^ 

en  tal  maestre  qne  non  dà  * 

en  sen  feit'ajuda  assi, 
mais  levari  per  qnanfoj 
qnem  Ih'o  direito  sosterrà. 

Ca  o  meestre  entende  jà 
se  decaer,  qne  lh*é  cajom, 
antr*os  qne  letrados  som 
onde  yergonha  prendrà, 
d*errar  sen  dereito  assi 
e  qnem  esto  vir  des  ali 
por  mal  andante  o  terrà,  i 

A  sirvénte  segointe  foi  escrìpta  ainda  na  menorìdade  de  D.  Dinìz, 
8ob  a  regencia  de  saa  mSe^  contra  um  juiz  sardo: 

Men.  dano  fiz  por  tal  jniz  pedir 
qnando  a  rainha  madre  d*el  rei  dea 
ha  cavsleiro  oficiài  sen 
pois  me  non  vai  d*ante  tal  jniz  ir; 
ca  se  von  e  leVo  men  vogado 
sempre  me  dis  qne  està  embaigado, 
de  tal  guisa  qne  me  non  pod'oir. 

Por  tal  juiz  nnnca  jamais  ha 
desembargad'este  preyto  qne  ej,  ' 

nem  a  rainha,  nem  sen  filh'el-rei 
pero  lh*o  mandem  nnnca  m*oirà; 
cÀ  ja  me  disse  qne  me  non  compria 
d*ir  per  d'ant*el,  pois  m*oir  non  podia 
mentr*embargado  estever  oom*est&. 

Mais  a  rainha  pois  qne  certa  for 
de  qnal  juiz  en  sa  casa  ten, 
torà  per  razon,  esto  sei  en  ben 
de  poer  hi  ontro  juiz  melhor, 
e  assi  poss'eu  aver  men  dereito 
pois  qne  d'i  for  este  juiz  tolheito 
e  mcjieren  qnalqner  outr*oidor.* 

A  importancia  dos  jarìsconsoltos  cresda  com  a  aaotoridade  mo- 


1  Oxnàùnmo  da  Vaticana,  n.®  906» 
»  Undm,  n.*  910. 


70  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIUBRA 

narchica,  e  em  1271,  em  urna  questuo  com  o  Mestre  de  S.  Thiago, 
D.  Affonso  m  tem  por  arbitro  entre  ontros  o  D<mtor  em  Leis  D.  Go- 
mes,  conego  de  ^^iDora.  Em  1282,  em  nma  lei  de  D.  Diniz  se  cita 
huma  Ley  do  Degesto  velho,  que  se  cometa,  etc.,  por  onde  se  infere  que 
j&  era  grande  a  influencia  da  Escbola  de  Bolonha  em  Portugal,  porque 
o  nome  de  Digesto  velho  provém  da  divisSo  feita  pelos  Gloasadores  ao 
Digesto  em  tres  partes:  o  Digestum  vetus  (que  acaba  no  tit.  n,  do  liv. 
JLXiVy  de  divortiis)^  o  Infortiatum  (no  portugaez  antigo  o  Esforfodo, 
que  vae  do  tit.  iii|  até  ao  ultimo  tit.  do  liv.  xxxvm)  e  o  Digestum  no* 
vum  (que  oomprehende  todo  o  resto  das  Pandectas).  Por  oste  facto  se 
comprova  que  o  Direito  romano  se  vulgarìsara  em  Portugal  pelos  textos 
revistos  e  generalisados  pelos  glossadores  de  Bolonha,  littera  Bononiensia 
cadoptados  por  todos  e  desde  entSo  seguidos^  pelos  copistas  e  pelos  es- 
tudantes.»  ^  Antes  porém  de  existir  uma  Escbola  publica  em  Portugal 
para  Legistas  e  Decretistas,  jà  os  jurisconsultos,  que  occupavam  03 
conselbos  da  cor6a  e  as  dignidadss  ecclesiasticas  constituiam  direito 
pelas  Buas  opiniSes  e  decisSes.  ^  Era  preciso  conciliar  as  leis  canoni- 
caSy  as  leis  feudaes,  foraes  e  os  costumes  da  córte  com  um  principio 
de  justi^a,  que  transparecia  no  Dureito  romano;  e  d'abi  os  casos,  as 
cautelas,  aa  glosas,  e  interpretajSes  dos  doutores,  emfim  esse  imperio 
da  OpiniSo,  com  que  a  Escbola  de  Bartbolo  dominou  até  &  renova9SLo 
Idstorica  de  Cujacio. 

A  necessidade  da  fundaySlo  de  um  Estudo  geral  fazia  sentir- se  tanto 
aos  que  afirontavam  as  difficuldades  de  ir  frequentar  as  Universida- 
des  de  Hespanba,  Franca  e  Italia,  comò  &  realeza,  que  precisava  noB 
seus  conflictOB  com  os  Papas  e  Bispos,  assentar  a  espbera  dos  direitos 
reaes.  E  por  isso  que  a  fundaQSo  de  um  Estudo  geral  em  Lisboa,  nos 
apparece  simultaneamente  devida  à  representagSo  dos  Abbades  e  Prio- 
res  de  varias  egrejas,  que  se  o£fereceram  ao  rei  D.  Diniz  para  contribuì- 
rem  para  as  despezas  com  parte  das  rendas  dos  seus  beneficios,  ^  comò 


1  Ch.  Giraud,  Histoire  du  DroU  romam,  p.  459. 

2  J.  Anastado  de  Ugueiredo  cita  as  phrases  ^qnentes  no  Livro  de  Leis  e 
Posturas  antigas  :  •he  dereitoper  Cantorem  Elborensem . . .  llem,  he  costume  per  Ma^ 
gistrum  Julkmum  e  per  Magistrum  Petrum. . .  etc,  Mem.  litt,  i,  p.  282.  Estè  Con* 
torem  Elboreneem  cu  Chantre  de  Evora  seria  o  celebre  D.  Domingos  Jardo,.qae  se 
doutoràra  em  Paris,  no  tempo  de  D.  Affonso  ni. 

3  Este  documento  da  RepresentaQSo  dos  Priores  e  Abbades  a  D.  Diniz,  antes 
de  1288  nSo  eziste;  tambem  falta  o  docomento  da  acquiescencia  do  monarcha,de 
que  resulton  os  Abbades  fazerem  a  Peti^io  a  Nicolào  zy,  em  1288,  para  anctorisar 
a  oedenda  de  parte  da  renda  das  snas  egrejas  para oEstudogeral^  e  eonoeder-lhe 
o  IKlro  ecclesiastico.  «A  attriboiQSo  d'està  gloria  da  fonda^So  das  Esebolasipnbli* 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  7t 

Bobretudo  i  iniciativa  do  proprio  monarcba^  estimulado  pelo  espJendor 
das  Universidades  de  Sevilba^  e  de  Salamanca,  e  auxìliado  pelo  bens 
doB  Templarios,  com  que  veiu  mais  tarde  a  constituir  os  salarios  doa 
Lentesy  quando  pela  mndan^  da  Universidade,  os  Abbades  e  Priores 
86  recusaram  a  contribuir  com  a  quota  parte  dos  seus  beneficios. 

Dos  estudos  de  Paris,  frequentados  pelos  ecclesiasticos  portugue-- 
zea,  fida  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  citando  a  carta  de  doaQSo  de 
D.  Sancho  i,  de  14  de  aetembro  de  1192:  cdou  e  concedo  ao  Mosteiro 
de  Santa  Cruz  quatrocentos  morabitinos  de  minba  fazenda,  para  su- 
8tenta9So  dos  Conegos  do  dito  Mosteiro,  que  estudam  em  os  partes  de 
FrctnQa. . .  >  ^  A  reputajffto  das  Escholas  de  Paris  era  immensa,  e  gene- 
ralisara-se  a  idèa  que  era  indispensavel  frequental-as  para  ser  bom 
mastre;  Hauréau,  no  seu  estudo  sobre  a  Philosophia  Scholaatìca  de- 
acreve  as  enormes  difficuldades  que  era  preciso  vencer  para  frequentar 
essas-  Escholas:  «Para  ter  o  direi to  de  ensinar  os  outros  era  preciso 
ter  feito  alguma  permanencia  nas  escbolas  de  Paris  ;  quem  nSLo  tivesse 
ido  ali  ouvir  os  illustres  regentes  da  grande  Escbola,  passava  por  igno- 
rar OS  principios  elementares  da  sciencia.  Quando  nos  ultimos  confins 
da  Bretanha  insular,  nos  extremos  longiquos  da  Calabria,  da  Hespa- 
nha,  da  Germania,  da  Polonia  um  joven  clerigo-  manifestava  alguma 
inclina$So  para  os  altos  estudos  e  parecia  aos  seus  superiores  que  viria 
A  ser  um  logico,  era  immediatamente  enviado  para  Paris.  Partia  sósinho, 
ft  pé,  atravessando  os  rios,  as  montanhas,  os  mares,  sob  a  protec$^  dos 
homena  de  guerra,  ou  dos  salteadores  que  elle  encontrava  no  seu  ca- 
minbo.  Era  uma  vida  de  aventuras  e  de  perìgos  que  o  disciplinava  de 
ante-mSo  para  as  agita9Ses  e  rudes  provas  da  escbola.  Cada  noite 
achava  asylo  no  mais  proximo  mosteiro;  se  a  noite  o  surprehendia 


eas  DÌO  é  de  admirar  que  cada  chronista  ou  escriptor  diga  dever-se  aos  prelados 
da  sua  reHgi&o  por  estes  tempos,  por  quanto  nao  era  menos  controvertida  entre  os 
papas  e  os  reis  ;  aquelles  com  o  intuito  e  piedade  do  firn  ultimo  pretendiam  per- 
tencer-lhes  a  erec^ào  das  Universidades,  e  estes  pelo  direito  da  soberania  tinham 
para  si  ser  inseparavel  a  funda^So  das  Escholas  da  sua  regalia  dentro  do  territo- 
rio tempora!  de  cada  princepe.  D*aqui  veiu  a  questuo:  Àn  Aoademiae  Univeraiia' 
tea  et  CoUegia  nnt  eccUnastica,  vel  aecularia.  Da  qual  tratam  ex  professo  Affonso 
de  Escobar,  Dt  pontificia  et  regia  Juriédictione  in  Siudiia,  cap.  i. — Bento  Pereira 
na  Academia  sive  JRetpublica  litteraria,  n.«'  15,  2d,  48, 54, 56  e  59;  Mendo,  De  Jure 
aeademieo,  liv.  i,  9.  8,  n.^*  221,  238,  240,  243,  246,  249, 610;  Cortiada,  t.  ni,  Decis.^ 
135,  n.^  10,  22,  24  e  36.»  Das  Notas  de  Figueiroa  &8  Notidas  chronologioas  da  Uni' 
verndade  de  Coimbraf  nota  3.*  ao  g  60.  Instiiuto  de  Coimbra,  voi.  xzv,  p  187. 

1  <^t  in  partibu9  Galliae  studiorum  oauea  eommoraniur, . .  »  Ap.  Chr.  dos 
Con.  regr.,  Parte  u,  liv.  vu,  cap.  zv. 


lì  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

longe  do  povoado,  ia  bater  à  porta  de  qualqaer  casa  isolada;  e  par» 
alcanyar  o  agasalho  o  mais  cordial  bastava-lhe  declarar  o  sea  titolo  de 
escholar:  aqui  a  hospitalidade  era-lhe  liberalmente  concedida;  além^ 
era-lhe  devida^  e  a  lei  municipal  punia  corno  um  delieto  teda  a  infrac- 
9S0  a  este  artigo  consuetudinarìo:  Aos  escholares  compete  por  teda  a 
parte  0  direi to  de  asylo.»  ^ 

No  pedido  dos  Abbades  ao  Papa  Nicolio  iv,  em  12  de  novembre 
de  1288,  para  confirmar  em  Lisboa  um  Estudo  gercd  de  Lettras^  allu- 
de-se a  està  difficoldade  das  jornadas  dos  estudantes  para  as  Univer- 
sidades  estrangeiras:  «por  Termos  qae  à  falta  d'elle,  muitos  desejosos 
de  estttdar  e  entrar  no  estado  clerical  atalhados  com  a  faita  de  despe- 
^  zas,  e  descommodos  dos  caminhos  largos,  e  ainda  dos  perigos  da  yida, 

nSo  ouzSo,  e  temem  ir  estadar  a  outras  partes  remotas,  receiando  es* 
tas  icommodidades;  de  que  resulta  appartar-se  do  seu  bom  proposito, 
e  ficar  no  estado  secular  centra  vontade.»  * 

Em  urna  can9So  do  trovador  portaguez  Pero  Mendez  da  Fonseca, 
allude-se  a  estas  viagens  aos  estudos  no  estrangeiro,  e  ao  prestigio  com 
que  cercavam  os  que  regressavam  &  patria: 

Chegou  Pajo  de  maas  artes 
con  seu  cerarne  de  Chartes, 
e  non  Um  el  ruu  parte» 
que  chegcuse  a  huu  ma; 
e  do  lunes  ao  martes 
foy  comendador  d^Ocrés. 

Semelha-me  busoardo 
yiind*en  ceramen  pardo, 
e  ha  non  ouvesee  resgnardo 
en  nenhum  dos  dez  a  sex; 
log*ouye  manto  tabardo 

e  foy  commendador  d^Ocrés. 

E  chegoa  per  bua  grada 
descal^o  gram  madrugada, 
bu  se  non  catavam  nada 
d*bum  bom'a  tam  raffez  ; 
cobrou  manto  oom  espada 

e  foy  commendador  d^Ocrés.  ' 


1  Hauréau,  De  la  Philoaophie  Scholastique,  t.  x,  p.  28. 
*  Trad.  na  Manarek.  Umt,^  Parte  y,  Escrìpt.  xyi. 

'  Cancioneiro  da  VaHeana,  n.*  1132. — 0  estrìbilbo  refere -se  à  Ordem  dos 
Spatharios,  cigo  convento  prìncipal  era  em  Udés. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  73 

N'esta  can9So  acha-se  urna  referencia  ao  estudo  das  Partea,  nome 
com  que  se  designaya  a  Summa  da  Theologta  de  S.  Thomaz  de  Aquino, 
que  durante  dncb  seculos  dominou  nas  escholas.  Eram  tres  as  Par- 
tea:  a  que  tratava  dos  séres  em  geral  e  dos  entes  de  razSo  ;  a  que  ana- 
lysaya  as  faculdades  e  os  seus  motivos  sob  o  ponto  de  vista  theologico; 
a  ultima  era  urna  Christologia  ou  o  plano  da  redemp9Slo.  O  ensino  das 
Partes  (1.^  e  2.^)  foi  permittido  fora  das  escholas.  A  referencia  às  Maxis 
Artes  corresponde  ao  estudo  de  faculdade  nSo  permittida,  sem  seguran9a 
de  orthodoxia.  Por  està  satyra  yè-se  a  importancia  repentina  que  os  es- 
tudos  dayam  na  sociedade  ciyil,  elevando  às  dignidades  das  ordens  os 
que  iam  cursal-os  ou  simular  que  os  cursayam  no  estrangeiro. 

Uma  outra  sirvente  de  Affonso  Eanes  de  Cotom  pinta-nos  com  c8* 
res  carregadas  a  cultura  pedantesca  da  physica  ou  medicina  de  Mes- 
tre NicolàOy  que  finge  ter  frequentado  a  Eschola  de  Montpellier,  usando 
as  vestes  doutoraes,  as  largas  fraldas,  a  que  allude  o  anexim  popular 
hespanhol  e  portuguez: 

Meestre  Inool&s  a  meu  cujdar 
é  muy  boo  fisico  por  non  saber 
el  as  suas  gentea  guarecer, 
mais  yejo-lhi  capelo  d'ultra-mar  ; 
e  traj*al  uso  bem  de  Monpiller, 
e  latyn  corno  qual  cleiigo  qner 
entende,  mais  non  o  sabe  tornar. 

£  sabe  seus  livros  sìgo  trazer, 
corno  meestre  sabe-os  catar, 
e  sab^os  cademos  ben  cantar, 
qual  cor  non  sabe  pef  elles  leer  ; 
mais  bem  yos  dirà  *qm  quanto  cnstou 
todo  per  conta  ca  elle  x'os  comprou, 
ora  vede  se  a  gram  saber. 

E  en  boo  ponto  el  tan  myto  leeu, 
ca  per  o  prezam  condes  e  reyx, 
e  sabe  contar  qnatro  e  cinqu*  et  seiz, 
per  'strolomya  que  aprendeu  ; 
e  mais  yos  quer*  end*  ora  dizer, 
en  mays  yam  a  el  qnen  a  meester 
an  d*el  des  antanho  que  o  outro  morreu. 

E  ontras  artes  saV  el  muy  melhor 
qUe  estas  todas  de  que  yos  faley, 
diz  das  luas  corno  yos  direi, 
que  x*as  fezo  todas  nostro  senhor, 


74  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

e  do8  estormentos  diz  tal  razom 
que  muy  bem  pod'en  elles  fazer  som 
todo  homem  que  en  seja  sabedòr,^ 

Em  urna  outra  can9So  é  apodado  o  doutor  por  Montpellier: 

Sabedes  vós  Maestre  NicolÀo 
o  que  antano  mi  no  gnareceu, 
aqnel  que  dizedes  meestre  m&o, 
yedes  que  fez  per  ervas  que  colheu. 


E  direy-vos  eu  d*outra  maestrìa 
que  aprendeu  ogan*  em  Mompiler, 
non  yen  a  el  home  com  maloutya 
de  que  non  leve  o  mais  que  poder, 
et  diz  amigo  esto  t*ó  mester. .  .* 


Attribae-se  ao  papa  Nicolào  iv,  eleito  em  1288,  a  transformafSo 
da  Eschola  de  Montpellier  em  Universidade;  por  ventura  oste  BUccesEO 
estimulou  alguns  clerigos  e  secularea  a  pedirem  ao  mesmo  pontifico  a 
permisaSo  para  dotarem  com  parte  dos  sens  rendimentos  um  Estado 
goral  em  Lisboa,  depois  de  terem  a  acquiescencia  do  Poder  real. 

A  indivìdualidade  historica  do  rei  D.  Diniz  preoccupando-se  com 
a  funda$So  de  um  Estudo  geral,  elle  mesmo  apaixonado  trovador,  tendo 
em  volta  de  si  cavalleiros  que  conheciam  todos  os  segredos  da  poetica 
proYonfalesca,  e  se  entretinham,  acabadas  as  guerras  maurescasy  com 
as  novellas  amorosa»  da  Tavola  Redonda,  uma  tal  individualidade  so 
se  avalia  tendo  presente  que  os  chefes  temporaes  da  sua  època  appre- 
sentam  os  mais  elevados  caracteres  de  superioridade;  taes  s2o:  Fre- 
dorico  II,  trovador  e  philosopho,  que  na  sua  bibliotheca  renne  manu- 
scriptos  gregos  e  arabes,  e  pretende  dotar  a  Europa  com  uma  traduc- 
9S0  das  obras  de  Aristoteles;  Roberto  de  Napoles,  que  protege  os  sa- 
bios;  Affonso  x  de  Castella,  av6  do  rei  D.  Diniz,  tambem  trovador  e 
philosopho,  conhecido  pela  variedade  dos  seus  escriptos;  Sam  Luiz, 
que  tinha  por  seu  leitor  Vicente  de  Beauvais,  e  assentava  &  mesa 
S.  Thomaz  de  Aquino;  e  Philippe  o  Ousado,  que  tomara  para  prece- 
ptor  de  seu  filho  Egydio  De  Colonna,  o  auctor  da  obra  apreciada  em 
todas  as  cortes,  De  regimine  principum.  O  poder  temperai  favoreda 
o  desenvolvimento  da  intelligencia  pelo  instincto  da  sua  propria  inde- 


1  Candoneiro  da  VcUioana,  n.*  1116. 
'  Cane.  CoUoei'BranaUi^  n,^  441. 


0  ESTUDO  GERàL  EM  USBOA  75 

pendencia;  era  a  coltura  do  Direito  romano  que  mais  Ihe  interes- 
sava para  fundamentar  o  imperio  da  Realeza.  0  papa  Innocencio  IV| 
na  sna  lacta  centra  o  poder  temperai,  sentiu  esse  lado  perigoso  dos 
novos  estadoSy  e  na  bulla  para  o  restabelecimento  dos  estudos  philoso- 
phicos,  de  1254y  decahidos  ante  a  preferencia  pelos  estudos  juridicoS|, 
ìnterpSe  a  sua  condemna^So^  prohibindo  o  proyimento  dos  cultores  das 
leis  civis  em  prebendas  e  beneficios  ecclesiasticos.  No  reinado  de  D. 
IMniz  0  regimen  feudal  é  atacado  pela  lei  sobre  Coutos  e  Honras;  a  ju- 
riadicffto  civil  é  separada  da  auctoridade  militar  dos  Alcaides,  e  regu- 
lada  a  acquisisse  dos  bens  immoveis  pelos  mosteiros;^  e  o  privilegio 
de  conferir  nobreza  reservado  unicamente  ao  Rei,  que  organisa  Livrea 
de  Linhagens  e  Nobiliarios,  comò  o  cadastro  dos  fidalgos  existentes, 
para  que  ninguem  mais  possa  sel-o  sem  pertencer  ao  seu  fòro  real. 
Egfaal  transformasSo  se  operava  na  realeza  em  Castella. 

Assim  comò  os  habitos  poeticos  de  Affonso  o  Sabio,  de  Castella, 
influiram  na  cultura  da  Poesia  provensal  na  cdrte  e  prendas  pessoaes 
de  D.  DiniZ|  seu  neto,  tambem  nfio  foi  sem  influencia  a  acgSo  exercida 
noe  estudos  classicos  pela  creas^o  do  grande  monarcba  fundando  a 
Universidade  de  Sevilha.  0  caracter  do  Estudo  geral  acha-se  precisa- 
mente definido  nas  Leyes  de  Partidas  comò  urna  das  manifestagSes  da 
prerogativa  real  (Partid.  n,  L.  v,  tit.  31):  «Dieen  Estudio  General,  en 
qua  ha  maestros  de  las  artes,  assi  comò  de  grammatica  e  de  logica  et 
de  arismetica,  et  de  geometria,  et  de  musica  e  de  astronomia,  et  outrosi 
en  que  ha  maestros  et  seiiores  de  leyes;  et  este  estudio  debe  ser  estabe- 
hddo  por  mandado  de  papa,  ò  de  emperador,  ò  de  rey.i^  Por  aqui  se  ve 
oomo  0  antigo  nucleo  do  Trivium  e  Quadrivium  se  desenvolveu  com  a 
coltura  das  Leis,  que  fòra  primitivamente  litteraria  e  rhetorica,  em  luu 
novo  typo  pedagogico,  comò  manifestasse  do  poder  pontificai  e  real, 
cu  verdadeiramente  comò  resultante  do  conflicto  intenso  entro  os  po- 
d^ea  espiritual  e  temperai.  A  faculdade  ubique  docendi,  que  o  poder 
espiritaal  concedia  às  immunidades  do  foro  privilegiado  contrapunham 
OS  reis,  ou  o  poder  temperai,  o  seu  Protectorado.  No  privilegio  de 
Affionso  0  Sabio  dado  à  Universidade  de  Sevilha,  em  8  de  dezembro 
de  1254,  estatue  regalias  que  se  repetem  na  instituisSo  de  D.  Diniz: 
cMando  que  Ics  maestros  et  los  escolares  que  yinieren  hy  al  Estudio, 
que  vengan  salvos  et  seguros  por  todas  las  partes  de  mis  regnos  et 


1  Villa  Nova  Portugal,  Introd,  do  DireUo  romano  em  Portvgal,  Mem.  Litt. 
t  T,  p.  890. 


76  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

por  todo  mio  seSorio;  con  todas  sas  cosas^  et  que  non  den  portadgo 
ningano  de  sub  libros  nin  de  sas  cosas  que  troxieren  para  si  et  que 
estudien  et  vivan  seguramente  et  en  paz  en  la  cibdat  de  Sevilha.» 

Urna  bulla  de  Alexandre  iv^  de  29  de  abril  de  1255,  menciona  a 
Universidade  de  Salamanca  com  um  Estudo  gercd,  categoria  que  so 
pertencera  às  Universidades  de  Paris,  Oxford  e  Bolonha:  unum  de  qua- 
tuor  Orbis  Generalibus  Studiis. 

As  Universidades  de  Palencia  e  de  Valladolid  decahiram  porque 
Salamanca  tomou-se  o  fòco  mais  activo  dos  estudos  na  Peninsula  ;  con- 
tra  està  forte  corrente  teve  de  lactar  a  Universidade  de  Coimbra,  cir- 
camstancia  que  influiu  na  exigaidade  e  fraco  esplendor  das  suas  ori- 
gens. 

Na  dota9So  dos  professores  de  Leis  e  Canones,  D.  Diniz  segaiu 
as  disposigSes  de  Affonso  o  Sabio  na  fondafSo  da  Universidade  de  Sa- 
lamanca. No  primeiro  regimento  das  cathedras  de  Salamanca  estatae 
Affonso  X,  em  1254: 

cDe  lo8  Maestros, — Mando  é  tengo  por  bien  que  haya  nn  maes- 
tro em  Leyes,  é  yo  que  le  de  quinientos  maravedis  de  salario  per  el 
alio:  é  que  haya  un  bachiller  legista, 

«Otrosi,  mando  que  haya  un  maestro  en  decretos,  é  yo  le  de  tres- 
cientos  maravedis  cada  afio. 

cOtrosi,  mando  que  hayan  dos  maestros  en  decretatesi  é  yo  que 
les  de  quinientos  maravedis  cada  allo. 

cOtrosi,  tengo  per  bi^n  que  haya  dos  maestros  de  fisica,  è  yo 
que  les  de  doscientos  maravedis  cada  afio. 

cOtrosi,  que  haya  dos  maestros  en  logica,  é  yo  que  les  de  dos- 
cientos maravedis  cada  a&o. 

«Otrosi|  mando  que  haya  dos  maestros  em  gramatóca,  é  yo  que 
les  de  doscientos  maravedis  cada  alio. 

cOtrosi,  mando,  é  tengo  per  bien  que  haya  un  estacionario,  é  yo 
que  le  de  cien  maravedis  cada  a&o  :  é  el  tenga  todos  los  ejemplares 
buenos  é  correctos. 

cOtrosi,  mando  é  tengo  per  bien  que  haya  un  maestro  de  organo, 
é  yo  que  le  de  doscientos  maravedis  cada  aBo.  etc.»  ' 

Conhecendo-se  comò  os  estudantes  portuguezes  frequentavam  as 
Universidades  de  Bolonha,  Montpellier  e  Paris,  no  seculo  xm,  e  corno 


1  Cit.  na  Hutoria  de  la  Univenidade  d$  Salamanoa,  de  P.  Chacon.  Ap.  Sem- 
pere,  Historia  dd  Derecho  espahol,  p.  276. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  77 

38  Umversidades  peninsulares,  sobretudo  as  de  Salamanca  e  Sevilha, 
8ob  o  vigoroso  impulso  de  Afifonso  o  Sabio,  faziam  Portugal  intelle- 
ctualmente  feudatario  da  Hespanha^  a  necessidade  da  independencia 
monarchica  obrigava  D.  Diniz  a  estabelecer  tambem  na  sua  cdrte  um 
Estudo  geral.  Ab  terras  ou  cidades  tinham  fortes  rivalidades  entre  si 
por  causa  das  suas  Universidades:  Bolonha  temiase  de  Montpellier  por 
causa  dos  estudos  medicos,  e  de  Regio  por  causa  dos  estudos  j  aridi- 
co8|  chegando  a  contractar  os  lentes  por  clausula  declarada  de  nSo 
abandoharem  por  outra  a  sua  Universidade,  e  obrigando  os  estudantes 
oom  juramento  de  nSlo  deixarem  de  seguir  os  estudos  de  Bolonha.  Ho- 
norio  m  prohibiu  aos  estudantes  da  Campania  e  da  Toscana  o  obede- 
cerem  a  este  juramento.  N'esta  lucta  das  Universidades^  que  raptavam 
entro  si  os  melhores  lentes^  aconteceu  por  vezes  os  lentes  emigrarem 
com  OS  estudantes^  corno  Roffredo  saindo  de  Bolonha  para  Arezzo, 
e  nascerem  novas  Universidades,  comò  a  de  Padua  com  elementos 
saidos  de  Bolonha.  N'uma  d'estas  migra95es  era  lente  em  Bolonha  o 
celebre  Fedro  Hùpano,  o  nosso  portuguez  Fedro  Julifto,  *  corno  se  sabe 
por  urna  carta  de  Guilherme  GascSo,  convidando-o  a  ir  para  Padua, 
para  onde  Frederico  ni  transferira  a  Universidade.  As  Universidades 
tomavam-se  uma  centralisa^So  das  Escholas  seculares  sob  o  poder 
real;  Frederico  n,  fondando  a  Universidade  de  Napoles  em  1224,  pro- 
hibiu aos  seus  subditos  o  sairem  a  frequentar  estudos  estrangeiros,  e 
mandou  recolherem-se  à  patria  os  que  andavam  forai  Tambem  fora  de 
Portugal  figuravam  muitos  escholares,  circumstancia  que  influiria  por 
certo  no  animo  de  D.  Diniz  para  a  crea92Lo  de  um  Estudo  geral,  £m 
Bolonha,  no  fim  do  seculo  xm  (1265  a  1294),  frequentavam  os  estu- 
dos doze  mil  alumnos,  e  na  matricula  publicada  por  Sarti  figuram  jpor- 
tuguezes  entre  os  francezes,  flamengos,  tedescos,  hespanhoes,  inglezes 
e  escossezes.  *  Bolonha  era  um  fòco  de  cultura  da  poesia  trobadores«a, 
a  qual  se  propagara  tambem  muito  cedo  a  Portugal  por  via  de  Italia; 
ali  abundavam  os  estudantes  da  Proven$a,  do  Poitou  e  de  Limoges,  e 
o  proprio  trovador  Ugo  de  Mataplana  frequentou  esses  estudos,  sondo 
tambem  bolonhez  o  trovador  Rambertino  de  Buvalelli.  Quando  ve- 
mos  conhecidas  em  Portugal  as  can^oes  dos  trovadores  Sordello,  de 
Mantua,  e  Bonifazio  Calvo,  de  Genova,  nSo  podemos  deixar  de  consi- 
derar comò  uma  das  fontes  da  sua  communica9llo  o  conhecimento  dos 


1  TiraboBchi,  Storia  della  Letteratura  italiana,  t  iv,  p.  47. 
'  Id.,  ibid.,  t.  IV,  p.  50. 


78  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

estudantes  portugaezes  quo  regressavam  de  Bolonha.  Na  lingaagem 
dos  trovadores  portnguezes  do  firn  do  secalo  xiii  abundam  as  pala- . 
vras  italianas  e  mesmo  fórmas  poeticas  das  BaUatas,  corno  as  que  eram 
populares  em  Boionlia.^  Depois  de  terminada  a  guerra  dos  Albigen- 
sesy  em  1229,  urna  das  clausulas  do  tratado  de  Paris  foi  a  funda^So 
da  Universidade  de  Tolosa  à  casta  do  Conde  Kaymando,  com  qoatjro 
mestres  de  Theologia,  dois  de  Decretos,  seist  para  Artes  libcraes,  e 
dois  de  Grammatica.  O  trovador  Folqaet,  de  Marselha,  depois  de  orna 
existencia  desvairada  fez-se  monge,  e  nomeado  bispo  foi  am  dos  mais 
ardentes  promotores  da  Universidade  de  Tolosa,  corno  redacto  contra 
a  hcresia  albigense.  Para  essa  Universidade  tambem  se  precisoa  attra- 
hir  estudantes;  representando-lhes  a  benignidade  do  dima^  a  tarbalen- 
cia  da  Universidade  de  Paris,  o  ensino  da  Physka  de  AristoteleSi 
qae  f5ra  prohibido  na  Universidade  parisiense,  e  a  peregrinasse  cele- 
bre de  Rocamador,  '  A  persegai^So  contra  os  Albigenses  fez  a  disper- 
sSo  de  maitos  trovadores  nas  cortes  peninsalares  ;  no  Cancioneiro  da 
Vaticana  ha  preciosas  referencias  à  romagem  de  Rocamador.  D.  Di- 
niz  pensava  em  fondar  am  Estudo  gercd  à  imita$So  d'esses  que  se  es- 
tabeleciam  na  Peninsula.  A  balla  do  Papa  Nicol&o  iv,  que  approva 
essa  instituigSo,  parece  alladir  &  heresia  meridional,  e  necessidade  de 
Ibe  opp6r  am  embaraQo:  «Do  estado  do  Reino  de  Portagal,  tanto  mais 
vigilante  caidado  temos,  qaanto  maior  é  em  nós  o  desejo,  de  qae  no 
mesmo  Reino,  apartados  algans  impedimentos,  eobre  vigor  a  ohserwxn- 
eia  do  evito  divino,  se  attenda  às  obras  da  salva^So,  e  que  a  pureea 
da  fé  catholica  se  esforee ...» 

D.  Diniz'  come9oa  a  reinar  em  1279,  e  entro  as  difficaldades  sog- 
geridas  pelas  ambi93es  de  sea  irmSo  o  infante  D.  Afibnso,  e  pelas  oom- 
plicagSes  da  politica  castelhana,  comesoa  desde  lego  o  conflioto  com  o 
alto  clero,  qae  daroa  até  1289.  Esse  conflicto  debatea-se  em  Roma, 
diante  dos  papas  Martinho  rv,  Honorio  rv  e  Nicolào  iV;  darante  eate 
tempo  0  rei  nSLo  podia  fandar  o  Estudo  geral,  porqae  ce  Bispos  prò- 
testavam  contra  a  cedencia  dos  rendimentos  das  Egrejas  de  que  o  rei 
era  padroeiro.  £  emqaanto  o  arcebispo  de  Braga,  D.  Tello,  o  bispo 
de  Silves,  D.  Bartholomea,  o  bispo  de  Coimbra,  D.  Americo  (Ayme- 
rie  d'Ebrard)  e  o  bispo  de  Lamego,  D.  JoSo,  debatiam  contra  o  poder 


1  Até  1300,  Bolonha  era  frequentada  por  estadantes  peninsiilaiesY  dbtinguin- 
do-se  Mateo  (1204),  Fedro  Decretalista,  Garda,  Bernardo  Compostellano,  canoDista, 
JoSo  de  Deus  e  Rajmundo  de  Peftafort. 

2  Histoirt  litUrairt  de  la  Franot^  t.  xxii,  p.  87  a  89. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  79 

real  junto  do  papa,  D.  Diniz  encontron  no  clero  xnenor  um  singular 
apoio  para  a  realÌ8a9So  do  sea  plano  de  um  Estudo  gercd.  No  meio  da 
prolongada  pendencia  do  alto  clero  portuguez  contra  o  monarcha,  o 
papa  Nicoiào  iv  foi  sorprehendido  por  urna  repre8enta9&o  collectiva  de 
Tarìos  preladoB  reunidos  em  Monte-Mór-o-Novo  em  12  de  novembre  de 
1288,  pedindo-Ihe  consentimento  para  dos  rendimentos  das  suas  egre- 
jas  poderem  pagar  os  Balarìos  dos  mestres  e  doutores  de  um  Estudp 
geral  em  Lisboa.  Por  està  via  D.  Diniz  apresentava  diante  do  papa 
uma  refata9fto  eloquente  contra  o  quadro  de  violencias  que  os  Bispos 
Ihe  assacavam  em  Roma.  Vé-se  portante  que  a  reuniSo  dos  Prelados, 
Abbades  e  Reitores  em  Monte-Mór-o-Novo  obedeceu  a  um  plano,  por- 
que  essa  reuniSo  fez-se  «em  companhia  de  pessoas  religiosas,  prelados 
e  outras,  assi  clerigos  corno  secularea  dos  Reinos  de  Portugal  e  Algarve, 
avida  plenaria  deliberasse  no  caso ...»  Estes  seculares,  que  nunca  fo- 
ram  nomeados,  eram  fidalgos  padroeiros  de  egrejas,  templarios  e  ou- 
tros  cavalleiros  de  ordem.  A  reuniSo  de  Monte-Mór  fora  precedida  de 
outra  anterior  a  1288,  em  que  deliberarain  apresentar  uma  PetÌ9fto 
«ao  Exoellentissimo  D.  Diniz  nesso  rey  e  senhor,  rogando-lhe  encare- 
cidamente  se  dignasse  de  fazer  e  ordenar  bum  Estudo  geral  na  sua 
nobilissima  Cidade  de  Lisboa.»  D'este  acto  inicial  nfto  esiste  documénto 
directo  actualmente.  Muito  antes  tambem  de  1288,  o  rei  D.  Diniz 
attendeu  a  peti^So  aoceitando  os  rendimentos  necessarios  para  dotar  o 
Estudo  geral:  cOuvida  por  este  Rej  e  admittida  a  nossa  petis^o  be- 
nignamente, com  consentimento  d'elle,  que  é  o  verdadeiro  padroeiro 
dos  mosteiros  e  egrqas  sobreditas,  se  assentou  entro  nós,  que  os  sa- 
larioB  dos  Mestres  e  Doutores  se  pagassem  das  rendas  dos  mesmos 
mosteiros  e  egrejas,  taxando  logo  o  que  cada  uma  havia  de  contribuir, 
reservando  a  congrua  sustentayfto.» 

As  escholas  episcopaes  e  abbaciaes  jà  nSo  podiam  satisfazer 
as  necessidades  do  eapirito,  que  pendia  de  preferencia  para  os  es- 
tados  bumanistas,  do  que  se  queixava  amargamente  o  Papa  Inno- 
cencio  IV  na  bulla  de  1254,  por  que  via  menos  interèsse  pela  tbeologia, 
e  as  dignidades  ecclesiasticas  conferidas  a  jurisconstiltos.  Obedecendo 
a  esse  ferver  humanista,  e  procurando  apoio  na  auctoridade  real,  é 
que  alguns  abbades  e  priores  se  dirigiram  a  D.  Diniz,  erogando  enca- 
recidamente  se  dignasse  fazer  e  ordenar  um  Estudo  gerci  na  sua  nobi- 
lissima cidade  de  Lisboa.»  O  rei  Diniz,  verdadeiramente  homem  de 
lettras,  e  o  principal  trovador  portuguez,  come  neto  de  Affonso  o  Sabio, 
a  quem  imitava  na  elevada  cultura  intellectual,  e  come  conhecedor  da 
fama  da  Universidade  de  Paris,  comprebendeu  logo  as  vantagens  que 


80  HISTORIA  DA  UNIYEHSIDADE  DE  COIMBRA 

adviriam  ao  seu  estado  pela  fonda^So  de  xxm  Estudo  geral,  onde  o 
Direito  romano  se  tornasse  conhecido  e  base  authentica  dos  direitos 
reaes.  Os  abbades  e  priores  pediam  aactorÌ8a9So  a  D.  DiniZ|  oomo  pa- 
droeiro  dos  seus  mosteiros  e  egrejas,  para  consentir  que  destacassem 
das  suas  rendas^  salva  a  reserva  da  congrua  de  sustenta92o^  as  quantias 
necessarias  para  os  salarios  dos  mestres  e  doutores;  e  antes  mesmo  que 
08  abbades  e  priores  se  dirigissem  ao  papa  a  pedir-lhe  a  Confìrma^So  da 
Uniyersidade  emquanto  às  faculdades  permittidas^  salarios  dos  lentes^ 
foro  privilegiado  e  concessSo  de.ensino  aos  graduados,  D.  Diniz  deu 
logo  cumprimento  à  fundaySo  do  Estudo  geral  em  Lisboa,  do  qual  fala 
Nicolào  IV  por  Ihe  ter  chegado  aos  ouvidos  essa  noticia.  Sómente  em 
12  de  novembre  de  1288  (2  dos  idus  de  novembre  de  1326)  é  que  as- 
signaram  em  Monte-Mór-o-Novo  o  requerimento  ao  Papa  para  a  con- 
firma92o  da  Universidade  :  o  Abbade  de  Alcobaga;  os  Priores  de  Santa 
Cruz;  de  S.  Vicentè,  de  Lisboa;  de  Santa  Maria,  de  GuimarSies;  de 
Santa  Maria  d'AIca90va,  de  Santarem;  de  S.  Leonardo,  de  Atbouguia; 
de  S.  JuliSo,  de  S.  Nicoiào,  S.  Irene,  Santo  Estevam,  de  Santarem; 
de  S.  Clemente,  de  Loulé;  de  S.  Maria  de  Farom  (Faro);  de  S.  Mi- 
guel e  S.  Maria,  da  Cintra;  de  S.  Estevam,  de  Alemquer;  de  S.  Maria, 
S.   Pedro  e  S.  Miguel,  de  Torres  Yedras;  S.  Maria,  de  Gaia;  de  S. 
Maria,  da  LauriSa  (LourinbSl);  das  egrejas  de  Villa  yi90sa,  Azambnja, 
Estremoz,  Beja,  Mafora  (Mafra)  e  do  MogdAouro.  ^  0  papa  Nicolào  iv, 
em  9  de  agosto  de  1290  (5  dos  idus  de  agosto)  no  terceiro  anno  de 
seu  pontificado,  confirma  a  instituÌ9So  e  privilegio  de  D.  Diniz  ao  Es- 
tudo geral  de  Lisboa;  mas  reservando  a  livre  ac9So  no  dominio  espi- 
ritual, concede  o  grào  de  licenciatura  aos  escholares  em  Artes,  Diretto 
Canonico  e  Civil,  e  em  Medicina,  excepto  em  Theologia.  Està  clausula 
negativa,  n£o  deixou  de  causar  reparos  ao  chronista  Frei  Francisco 
BrandSo,  e  ao  Reitor  Francisco  Cameiro  de  Figueirda,  porém  a  ver- 
dadeira  explica9So  so  pode  encontrar-se  na  observa9So  dos  caracteres 
typicos  das  Universidades  medievaes. 

Quando  os  prelados  se  dirigiram  ao  papa  Nicolào  rv  em  12  de 
novembre  de  1288,  jà  o  Estudo  geral  estava  organisado,  dotado  e  func- 
cionando  activamente  em  Lisboa;  o  que  pediam  ao  papa  recem-eleito 
era  apenas  a  confirma9&o  canonica  da  applica9So  das  rendas  ecclesias- 
ticas.  Na  bulla  de  Confìrma9So  dada  pelo  papa  ao'fim  de  dois  annos, 
em  9  de  agosto  de  1290,  elle  justifica-se  da  demora  alludida  a  estarem 


1  No  Livro  Verdcj  fl.  4,  em  publica  fórma. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  81 

Ji  apartados  alffuns  impedimentos,  do  grande  litìgio  dos  bispos  com  o 
rei  Bobre  as  jurisdic98eB,  e  acceita  o  facto  consummado  do  estabele- 
eimento  e  exercicio  da  Universidade:  «Declaramos  e  havemos  por  va- 
lioso  e  agradavel  a  nós  tudo  o  que  Eobre  està  materia  està  feito ...» 
0  papa  Nicolào  iv  apesar  de  deferir  à  coiifinna9So  pedida  pelos  pre- 
lados^  reconhece  comò  pertencendo  ao  rei  D.  Diniz  a  iniciativa  da 
fimda92o  da  Universidade:  cEm  verdade  à  nossa  noticia  chegou^  que 
procnraiìdo-o  o  carissimo  em  Christo  filho  nosso  Diniz,  illustre  Rey  de 
Portugal,  nSo  sem  muita  e  louvavel  providencia,  estSo  de  novo  pian- 
tadoB  na  Cidade  de  Lisboa  Estudos  de  cada  urna  das  licìtas  facul- 
dades..  .i  E  depois  da  iniciativa  real  communicada  por  D.  Diniz 
ao  Papa  directamente,  que  Nicolào  iv  allude  à  cedencia  das  rendas 
das  egrejas:  ce  aos  Mestres  d'ellas,  para  que  mais  desembara9ada- 
mente  se  occupem  no  estudo,  dizem  estar  taxado  e  promettido  certo 
salario  por  alguns  prelados^  Abbades  de  Cister,  e  Priores  de  S.  Agos- 
tinfao  e  de  S.  Bento,  e  Reitores  de  algumas  egrejas  seculares  dos  reinos 
de  Portugal  e  Algarves.^  Jà  BrandSo,  na  Monarchia  Lubiana,  repa- 
rara  em  que  na  bulla  de  1290,  allude-se  especialmente  aos  Priores  de 
Santo  Agostinho  e  de  S.  Bento  comò  offerecendo  rendas  para  os  sala- 
rios  do  Estudo  geral,  quando  elles  se  nSo  acbam  enumerados  na  lista 
dos  Abbades  que  fizeram  a  peti;3o  em  1288.  ^  Besultou  isto  de  um 
pedido  ulterior,  que  viera  informar  o  pontifico  do  accordo  em  que  o  rei 
estava  com  o  clero,  mào  grado  as  cores  negras  com  que  ob  bispos  pu- 
gnavam  pelas  suas  jurisdicgSes.  Usando  da  sua  auctoridade  soberana, 
D.  Diniz  exerceu  a  iniciativa  da  fundafSo  espropriando  o  Cabido  da 
Sé  de  Lisboa  do  Campo  da  Pedreira,  no  bairro  de  Alfama,  (junto  i 
Porta  da  Cruz  aberta  em  tempo  do  rei  D.  Fernando,)  onde  mandou 
construir  Casas  para  o  Estudo  geral.  Depois  do  accordo  com  os  bispos 
o  rei  teve  de  indemnisar  o  Cabido,  entregando-lbe  o  valor  correspon- 
dente,  '  ao  que  parece  com  litigio,  por  que  sómente  o  veiu  a  fazer  pas- 
sadoB  mais  de  dez  annos.  O  papa  Nicolào  iv  concedia  aos  escholares 


1  Monarch.  Lub,^  P.  v,  Liv.  xn,  cap.  67. 

2  «D.  Dimz,  por  gra^a  de  Deus  rei  de  Portugal  e  do  Algarve,  a  vós  Domingos 
Doraens,  Almoxarìfe,  e  fiscrìvaens  de  Lisboa  saude  :  Mando-vos,  que  filhedes 
buina  das  mìnhas  casas,  ou  hnma  das  miuhas  tendas  d^essa  Villa,  que  vaiha  cada 
anno  trinta  e  cince  livras  de  alquier,  e  entregadea  ao  Cabido  de  Lisboa,  ou  a  quem 
T08  elle  mandar,  pelo  Campo  da  Pedreira,  que  Ihes  mandei  filhar,  em  que  mandei 
fazer  as  Casas  para  o  Estudo.  Dada  em  Lisboa,  4  dias  de  Setembro.  Era  1338  (|ie 

Cbristo,  IdOO.)»  Ap.  D.  Rodrigo  da  Cunha,  HiaL  eed.  de  Lisboa,  P.  n,  cap.  74,  n.^  2. 

BIST.  UH.  6 


82  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

0  fdro  ecclesiastico,  invadindo  assiin  a  esphera  civil  d'aquelle  monarcha 
que  submettia  a  propria  nobreza  ao  seu  fòro  real,  nos  Livros  das  Li* 
nhagens.  A  exemplo  da  Universidade  de  Bolonha,  em  que  o  Bispo  é 
que  conferia  os  gràos,  Nicolào  iv  submette  tambem  a  Universidade  de 
Lisboa  a  essa  dependencia,  destacando  o  ensino  da  Theologia  para  os 
Dominicanos  e  Franciscanos.  Como  o  ensino  das  Escholas  menorea 
estava  a  cargo  das  CoUegiadas,  desde  lego  nasceu  o  conflicto  entre  o 
Mestre  Eschola  da  Sé  e  o  Bispo  àcerca  da  superintendencia  da  Uni- 
versidade. 

Estabelecidas  as  Escholas  no  Campo  da  Pedreira,  foram  locali- 
sados  OS  Estudantesy  corno  urna  classe  privilegiada,  no  bairro  da  Porta 
do  Sol  e  Santo  André  em  diante  por  teda  a  freguezia  de  Alfama. 

Em  urna  sociedade  formada  por  classes  com  as  garantias  juridicas 
de  differentes  Iegisla93e8  pessQaes  e  territoriaes,  era  preciso  que  a  nova 
corpora92Lo  dos  escholares  se  fortalecesse  sob  a  protecf^o  de  um  deter- 
mìdado  fòro.  No  fim  da  Edade  mèdia  estavam  em  conflicto  os  diffe- 
rentes fóros:  OS  estatutos  territoriaes  ou  cartas  de  communa,  cartas 
pueblas  ou  Foraes;  o  fóro  da  Casa  do  Rei,  que  se  amplia  na  codifica-  * 
9S0  geral;  o  fóro  da  nobreza  feudal,  que  se  regula  pelas  fafanhaa  e 
pelo  privilegio  pessoal  do  J^oro  vdho  de  Castdla;  por  ultimo  a  Egreja 
systematisou  as  suas  immunidades,  agrupando  differentes  bullas  pon- 
tificias  ho  Decreto  de  G-raciano  e  constituindo  depois  o  corpo  do  Direito 
Canonico,  quando  pela  sua  parte  os  Reis  pela  revigora9So  do  Direito 
romano  se  elevaram  à  creayfto  do  Ministerio  publico,  verdadeira  ini- 
ciagàodofóro  civil  moderno.  No  meio  d'està  complexidade  de  elementos 
Bociaesy  a  corpora9&o  recente  dos  estudantes  organisa-se  corno  as  ger- 
manias  ou  guilds,  e  recebe  pela  grande  sympathia  que  achava  entre 
OS  dois  poderesy  dos  Papas  0  fòro  ecclesiastico  com  0  habito  da  cleri- 
catura,  e  dos  Reis  0  fóro  da  nobreza  com  um  corno  que  gr&o  de  caval- 
leria com  a  imposiflo  do  barrete  de  bacbarel.  Na  lettra  da  bulla  de 
Nicolào  rVy  De  statti  regni  PortugaUiae  concede*se  ao  novo  Estudo  ge- 
ral o  fóro  ecclesiastico  com  todos  os  seus  privilegios,  estendendo-se 
até  aos  creados  dos  lentes  e  estudantes  :  cMandamos  mais^  que  nenhum 
dos  Mestres^  Estudantes  ou  creados  seus,  dado  0  caso,  0  que  Deus  nio 
permitta,  que  os  comprehendam  em  algnm  maleficio,  sejam  julgados 
ou  eastigados  por  algum  leigo,  se  nSo  fór,  que  condemnados  no  jtdzo 
ecdesiastìco,  os  remettam  ao  secular.»  Sob  a  fórma  de  favor  &  classe 
escholar,  Nicolào  rv  servindo  o  rei  D.  Diniz,  obrigava-o  a  reconhecer 
as  jurisdicjSes  e  immunidades,  centra  as  quaes  luctara  durante  dez  an- 
nos.  É  por  tanto  absurdo  querer  inferir  da  concessSo  do  fòro  ecclesias* 


0  ESTUDO  6ERAL  EM  LISBOA  83 

lieo  ao  Estado  geral|  que  a  Universidade  de  Lisboa  proviesse  da  ini- 
dativa  clericaly  e  mantivesse  am  oaracter  pontificai. 

Ob  prìvilegioB  exorbitanteB  da  classe  escholar  nSo  podiam  deizar 
de  produzir  constantes  oonflictos  com  a  popula9So  burgaeza.  Na  balla 
de  Nicolào  iy,  pede-se  a  D.  Diniz:  cqae  obrìgae  com  o  sea  poder  ob 
habitantes  de  Lisboa  a  arrendarem  as  casas  qae  estSo  devolutas  para 
n'ellas  habitarem  os  alamnos,  pagando  o  competente  aluguer  quo  fòr 
tazado  por  dois  derigos  e  dola  secolares,  homens  catholicos  e  circum- 
spectosy  eleitos  sob  jnramento  em  commam  por  vós  e  pelos  mesmos  ci- 
dadSoSy  e  que  além  disse  o  mesmo  monarcha  por  meio  dos  seas  baliOB^ 
officiaes  e  ministros  da  mesma  cidade,  prestando  o  jnramento  devìdo, 
haja  de  garantir  pessoas  e  fazenda  dos  alamnos  e  tambem  a  seas  servosy 
a  segaranQa  e  immanidadé.»  Eis  os  germens  dos  oonflictos  dos  està- 
dantes  com  a  popala9So  de  Lisboa^  scannala  et  dissentionea,  qae  deter- 
minaram  o  rei  D.  Dlniz  a  madar  a  Universidade  de  Lisboa  para  Coim- 
bra  em  1307.  ^  Os  escholares  principalmente  decretalistas  on  canonistas, 
eram  os  prìmeiros  qae  reclamavam  as  isempgSes  do  sea  fóro  ecclesias- 
tico, conforme  prosegaiam  no  estado  d'esse  direito  spario;  e  oatros,  de- 
pois de  formados  oa  mesmo  sem  freqaentarem  os  estados,  asavam  o 
trajo  de  estadante  para  se  acobertarem  com  os  privilegios  dos  eschola- 
res. Pela  provis&o  dada  por  D.  Fedro  i,  à  Universidade  de  Coimbra,  em 
13  de  abril  de  1361|  vè-se  os  qae  estadantes  se  qneizaram  do  sea  Con- 
servador  resolver  os  pleitos  entro  elles  e  oatras  pessoas  pelas  Leis  das 
Partìdaa  e  nSo  pelo  direito  qae  aprendiam  nas  aalas,  qae  era  o  cano- 
nico. Tambem- nas  cdrtes  de  Elvas  d'este  mesmo  anno,  os  Prelados  e 
ecdesiasticoB  qaeixavam-se  de  qae  as  Justigas  muUas  vezes  nSo  queriam 
guardar  o  direito  canonico,  preferindo  as  Sete  Partìdaa  feitas  por  Et» 
Rei  de  CasteUay  ao  qwoìL  o  reino  de  Portugal  nSo  era  sugeito.i^  *  O  f&ro 
academico,  comò  concessSo  ecclesiastica,  era  essencialmente  pertarba- 
dor  provocando  a  corpora92o  à  impadencia  escandalosa. 

Os  estadantes  secalares  das  Universidades  asavam  espada,  para 
se  distingairem  da  clericatara;  vivendo  por  tanto  fora  da  daasara  e  da 
communidade  dos  OoUegios,  entregaram-se  à  vida  airada,  &  tuna,  nome 
talvez  derivado  dos  noctumi  grassatorea,  qae  andavam  provocando  ri- 
zas  oom  os  burgaezes,  fiados  na  impanidade  de  am  fòro  privilegiado . 
Essas  lactas;  celebres  na  Universidade  de  Paris,  manifestaram-se  tam- 
bem em  Lisboa,  por  fórma  a  preoccapar  a  aactoridade  real.  No  Can- 


1  Balla  de  Clemente  ▼,  de  26  de  fevereiro  de  1307,  na  qaal  concede  a  Ucen9a. 
*  Man.  de  LiU.  da  Acad.,  1 1,  p.  285. 

6* 


84  HISTORU  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

cioneiro  da  Vaticana  vem  urna  Pergunta  gue  fez  Alvaro  Affonso,  cantor 
do  senhor  infante  a  Afiu  esehoUar,  em  que  allude  &8  aventaras  dos  gras- 

^aiorea: 

Luiz  Vaaaques,  depois  que  parti 
d*e88a  cidade  tam  boa,  Lisboa, 
achej  tal  encontro,  que  digo  por  mi' 
quo  son  jà  descreto  e  fìi90  a  orda  : 
a  terra  de  Cintr'a  par  d*esta  serra 
yy  bOua  serrana  que  bradaya  guerra, 
TÓB  tenentes  comigo  dé9é-vos  a  terra 
pois  là  tang'assi,  et  qua  ora  ftòa.  ^ 

Os  estudantes  tambem  contribuiam  com  certas  quotas  para  os  sa- 
larioB  do  Estudoi  e  d'ahi  o  direito  de  elegerem  o  seu  Reitor  e  q  pessoal 
administrativo  da  Universidade.  !E^ra  a  tradi(fto  effectiva  dos  Dupondii 
das  esche las  ìmperiaes.  Dos  estudantes  de  Bolonha  era  corrente  dizer-se: 
Scholares  non  sunt  boni  jpagatores. 

Na  poesia  popular  portugueza  existem  reminiscencias  nfto  so  da 
predilec  9S0  da  realeza  pelos  estudos  seculares  ou  Escholas  palatinas,  mas 
do  typo  turbulento  da  classe  privilegiada  dos  estudantes^Lè-se  no  ro- 
mance de  Dom  Carlos  Montealvar: 

Pagem  corno  ignorante 
A  Elrey  o  foi  contar, 
A  Ccua  dos  EatudatUea 
Onde  estava  a  estudar,  ' 

£   noB  Canto8  populares  agorianos:  (n.^  82) 

J&  OS  canarinhos 
Pelas  faias  cantam, 
J&  OS  meus  Tizinhos 
Por  aqui  se  alevantam; 
Jà  08  EsiudatUet 
Vào  para  o  Estudo, 
Com  meicu  de  seda, 
Calfào  de  vdudo, 
FiveUat  de  prata, 
Que  deabanoam  iudo>^ 


1  Cane,  da  VaXieana^  n.*  410. 

*  Rom.  gerol^  n.«  31. 

'  O  papa  Urbano  t,  para  deitruir  a  differenza  que  se  estabelecia  entre  es- 
tudantes rìcos  e  pobres,  impoz  a  uniformidade  das  yestes  eseholares.  Victor  Ledere, 
ÉUU  dee  LeUrte  au  XIV  e&cUy  1. 1,  p.  295. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  85 

Nas  maximas  populares  ha  muitas  referencias  aoB  costomeB  doa 
estadantes,  corno  a  clasBO  indÌTÌdualista  e  j&  tendendo  para  substitair 
a  clericatora  pelo  typo  militarista  do  espadachim  : 

Estudante 

Berga^te, 

Chapéo  de  alguidar, 

Com  0  sentido  naa  mo9a8 

NSo  p<Sde  estudar. 

Na  Nova  Floresta^  de  Bemardes,  encontra-se  este  outro  annezim, 
commnm  &  tradÌ9So  hespanhola:  (t.  ii^  p.  86.) 

Até  quatro  donne  o  Santo, 
Cinco,  0  quo  nSo  é  tanto  ; 
Sàs  ou  sete,  o  Estudante, 
Outo  ou  nove  o  passeante, 
Dezy  o  porco, 
Ab  maifl  o  morto.  ^ 

AlgonB  d'estes  costomeB  eram  commons  &  Universidade  de  Sala- 
mancai  d'onde  ^  regressavam  muitos  estadantcB  portugaezesi  e  a  qoal 
nSo  foi  Bem  rela98o  com  a  Universidade  de  Coimbra^  onde  o  titulo  de 
Cancellario,  dado  ao  Prìor  de  Santa  Cruz,  parece  ter  o  sentido  que  em 
Salamanca  Ihe  ligaram  comò  «ynonimo  de  Mestre-eschola  da  Sé.  A 
mndan$a  da  Universidade  para  Coimbra  em  1307,  seria  tambem  para 
^  libertar  da  ingerencia  do  bispo  de  Lisboa,  e  para  aproveitar  o  nucleo 
das  escholas  menores  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz. 

A  Carta  de  15  de  fevereiro  de  1309,  em  que  D.  Diniz  regnlamenta 
o  Estudo  geral  transferido  para  Coimbra,  revela-nos  algnmas  circum- 
stancias  da  sua  organisa^lo  intema;  conservou-se  o  mesmo  quadro  dos 
estudoB  de  Lisboa,  que  segundo  a  bulla  de  confirma9So  de  Nicolào  rv 
de  1290,  constava  das  cadeiras  de: 

Direito  canonico, 

Direito  civil, 

Medicina, 

Artes  (Grammatica,  Dialectica  e  Rhetorica) 


1  Ab  horas  de  deBcan^  do  estadante  no  rifilo  popolar,  oondiBem  com  o  que 
estabelece  o  rei  D.  Manuel  no  sen  Estatato  da,  Universidade  de  Lisboa:  «Orde- 
namOB  que  o  Capellfto  do  Estudo  se  apparelhe  de  maneirs,  que  em  sahindo  o  $ol, 
eoméflse  a  missa,  e  em  firn  d'ella  come9ar2o  ob  Lentes  de  Prima  a  lér . . .  » 


86  HISTOBIA  DA  VNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

A  Sacra  Pagina  (Theologia  e  Escrìptora)  era  lìda  em  cursos  es- 
pecìaes  nos  Conventos  dominicanoB  e  frandscanos.  Este  mesmo  quadro 
apparece-nos  reproduzido  na  escriptura  de  18  de  Janeiro  de  1323,  em 
quo  se  estabelece  a  dotarlo  d'essas  diversas  cathedras,  com  a  dif- 
ferenza de  alli  mencionar-Be  pela  primeira  vez  a  cathedra  de  Muzica, 
Tambem  na  bulla  de  Clemente  vi  de  1350,  em  que,  ostando  jà  outra 
Toz  a  Universidade  em  Lisboa,  se  concedem  benefidos  ecclesiasticos 
sem  obriga(So  de  residencia  aos  lentes  e  estudantes,  enumeram-se  as 
mesmas  disciplinas.  Da  simples  organisazSo  do  ensino  se  tira  a  com- 
prehensXo  de  um  certo  numero  de  factos  pecuUares  à  Universidade; 
08  titulos  honqrificoB  de  Mestres  e  Dodores  correspondiam  aos  gr&oa 
em  Canones  dados  pela  auctoridade  do  Papa,  e  aos  grios  em  Leis,  dados 
pela  auctoridade  do  Bei.  ^  (Magiater  in  Decretalihu8j  DoctorinDecretis). 
Està  duplicidade  da  corporazSo  escholar  persistiu  na  eIeÌ9&o  dos  Bei- 
tores,  que  eram  simultaneamente  dois,  representando  um  o  interesse 
dos  canonistas,  e  o  outro  o  dos  legistas.  O  Conservador  era  o  Juiz  es- 
pedal  do  fOro  priyilegiado  dos  escholares,  concedido  pelo  papa  aoa 
que  frequentavam  o  Estudo  geral;  o  rei  teve  a  necessidade  dedarar-se 
Protector  da  Universidade,  para  prevalecer  sobre  a  auctoridade  papal, 
e  pelo  desenvolvimento  do  Protectorado  real  a  Universidade  e  o  ensino 
superior  ficaram  mais  tarde  sob  a  obediencia  da  dictadura  monarchica, 
perdendo  a  corpora^So  a  faculdade  de  fazer  estatutos  para  seu  governo,. 
e  a  classe  escholar  o  privilegio  de  eleger  reitores  e  conservadores. 

A  carta  de  privilegios  concedidos  &  Universidade  pelo  rei  D.  Di- 
niz  em  data  de  15  de  fevereiro  de  1309,  estabelece  que  o  ensino  da 
Theologia  ficari  exdusivamente  a  cargo  dos  Dominicanos  e  dos  Fran- 
ciscanos  (vclens  ut  ibidem  apud  Rdigiosos  eonventus  fratrum  Predica- 
torum,  et  Minomm  in  Sacra  Pagina  docent. . .)  As  duas  ordens  monas- 
ticas  dos  Pregadores  e  Menores  eram  entSo  em  teda  a  Europa  os  re- 
presentantes  mais  fervorosos  das  doutrìnas  aristotelicas,  e  rivaes  incon- 
ciliaveis^  diante  dos  problemas  da  Scholastica.  Os  Dominicanos  susten- 
tavam  as  doutrìnas  de  S.  Thomaz,  que  soubera  conciliar  os  dogmas  da 
theologia  com  os  habitos  crìticos  do  Nominalismo;  os  Franciscanos,  de- 
fendendo as  opiniSes  de  Alexandre  de  Halés,  seguiam  sob  o  impulso 
de  S.  Boaventura  as  ezalta98es  mysticas  que  se  coadunavam  com  o 
eubjectivÌEmo  dos  Bealistas,  e  que  o  genio  peninsular  levou  ao  mais  alto 


1  Està  differenza  dos  titulos  conserTou-se  nas  Conmaa  magiiiraet  e  Ccnma» 
douiorae$i  que  mais  tarde  fortm  ereadas. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  87 

grio  de  ezageraySo  em  Raymundo  LuUo^  o  prototjpo  do  D.  Quixote 
nas  e8pecula98e8  philosophicas.  As  luctas  das  duas  escholas  centrali- 
sam-se  entre  as  duas'Ordens  monacaes;  Hauréau  caracterìsa  essa  lu- 
cia: e  A  paixSo  do  seculo  xin  é  a  philosophia;  os  chefes  dos  partidos 
belligerantes  sSo  commentadores  de  Aristoteles;  os  problemas  cuja  so- 
larlo agita  as  consciencias,  perteBcem  ao  dominio  das  cousas  abstra- 
ctas:  mas  que  esfor90Sy  que  combates  para  fazer  prevalecer  um  sys- 
tema,  urna  simples  formala^  e  às  vezes,  menos  ainda,  ama  mera  pala- 
vra!  As  duas  escholas  rivaes  sSo  dois  a||b]^  d'onde  se  véem  inces- 
santemente sahirem  novas  phalanges.»  ^o  maior  ferver  da  lucta  entre 
OS  Dominicanos  e  Franciscanos,  o  syno&o  diocesano  de  Paris  em  1 277 
foi  impotente:  f  os  Franciscanos,  continuaram  a  commentar  no  espirito 
de  Averrhoes  todos  os  sentimentos  do  seu  primeiro  doutor  Alexandre 
de  Hales,  e  pelq  seu  lado  os  Dominicanos  impuzeram-se  comò  um  do- 
ver sagrado  a  obriga9So  de  sustentar  todos  os  articulados  do  peripa- 
tetismo  thomista.»  '  Estas  duas  correntes  dominicana  e  fìranciscana  fo- 
ram  superiormente  representadas  por  portuguezes  fora  de  Portugal; 
a  thomista  pelo  afamado  Fedro  Hispano,  e  a  mystica  pelo  nZo  menos 
immortalisado  S.  Antonio  de  Lisboa,  que  professou  em  Montpellier, 
em  Padua  e  Tolosa.  Entre  os  grandes  doutores  da  Edade  mèdia,  o 
portnguez  Pedro  Hispano  teve  a  gloria  singular  de  ser  memorado  por 
Dante,  na  sublime  epopèa  da  Divina  Comedia: . 

Ugo  da  San  Vittore,  è  qui  con  elli 
£  Pietro  Mangiator,  e  Pibtbo  Hispano 
Le  qua]  già  luce  in  dodici  liÒdlL  ' 

Dante  referia-se  às  Summulae  logicalea,  celebres  em  todas  as  es- 
cholas, as  quaes  se  dividiam  em  doze  tratados:  1.®  Da  enuncia9ao  (das 
Perihermeneias  de  Aristoteles);  2.°  Dos  cince  nniversaes  (dos  Predi- 
anseis  de  Porphyrìo);  3.®  Dos  Predicamentos  (Predicamenta  de  Aris- 
toteles); 4.^  Do  Syllogismo  simpliciter  (Liber  Priorum  de  Aristoteles); 
5.^  e  6.^  Sobre  Fallacias  {EUncoa  de  Aristoteles).  A  estes  seis  tratados 
8eguiam«se-lhe  os  outros  seis  conhecidos  pelo  titulo  goral  De  parvis  lo- 
ffiealtlms,  divididos  arbitrariamente  nas  escholas;  7.^  Da  SupposigSo; 
8/  Da  Rela$ao;  9.^  Da  AmpliajSo;  10.^  Da  AppellasSo;  11. •  Da  Res- 


^  De  la  PhUohophie  SeoUnUgue^  1 1,  p.  214. 

s  Ihid,  p.  217. 

3  Paraieoj  Canto  zn. 


88  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

tric92o;  12.*^  Da  Dìstribui^&o.  Assim  se  prefazem  os  dodeci  lihdi,  a  que 
allade  Dante.  ^ 

Entre  as  Can9Se8  de  Affonso  o  Sabio,  qae  vèm  no  Cancioneiro 
Colocci-Brancuti,  encontra-se  ama  que  parece  referir- se  a  Fedro  Bis- 
pano  e  a  um  celebre  Garda,  que  floresceu  pelo  seculo  xiu  na  Uni- 
versidade  de  Bolonha;  eia  a  can9So: 

Pero  quo  ej  ora  mengna  de  companha, 
Nem  Pep»  Gkiicia,  nem  Pero  d^Eapanha 

Neia  Pero  gal^o 

Non  Iran  comego. 

£  barn  vol-o  juro  por  Santa  Maria, 
Que  Pero  d'Espanha^  nem  Pero  G-arcia, 

Nem  Pero  galego, 

Non  iran  comego. 

Nunca  cinj'a  espada  com  boa  bainha, 
Se  Pero  d'Eipanha^  nem  Pero  G-arda, 

Nem  Pero  galego 

For  ora  comego. 

Q-alego,  galego 

Outro  irà  comego.  * 

NoB  nossoB  primeiros  estudos,  consideràmos  qae  as  CanfSes  de 
Affonso  o  Sabio  eram  extranhas  aos  Cancioneiros  proyen^aleBCOB  por- 
tugaezes.  Combatendo  este  modo  de  vèr,  o  Marquez  de  Valmar  na 
Introdac$fto  às  Cantigas  de  Affonso  o  Sabio j  escreve:  e  Apesar  das  da- 
vidas  qae  podiam  sascitar-se^  j&  em  1859,  o  insigne  philologo  Fer- 
nando Wolf,  jalgoa  sem  hesitar,  que  ao  regio  trovador  Affonso  x  per- 
tenciam  as  19  cantigas  profanas  que  no  grande  Cancioneiro  galaico- 
portuguez  do  Vaticano  (ms.  4803)  estfto  rubrioadas  com  està  epigra- 
phe:  El  Bey  Dom  Affonso  de  Castella  e  de  Leon.  De  identica  opiniSo 
foi  o  sabio  Frederico  DIez.  Tambem  nunca  vacilou  n'este  ponto  o  il- 
lustre romanista  hespanhol  D.  Manuel  Mila  j  Fontanals.  Assim  o'  ma- 
nifesta no  seu  livro  Los  trobadores  en  Espaha^  ao  designar  os  poetas 


1  Hauréau,  na  op.  cit.,  diz  que  Pedro  Hispano  estudara  em  Paris  e  alli  enn- 
nara  a  Philosophia,  e  concine  que  o  seu  resumé  do  Organum  é  e  f cito  com  gosto  e 
intelligencia,  e  que  mereceutomar*se  o  manual  dos  professores  e  dee  estndantes.» 
Indica  a  Hktoirt  liUerairt  de  la  Drance,  t.  zx,  onde  yem  a  lista  das  suas  obras- 

<  Cancioneiro  Coloed-Braneutif  can^.  n.*  365. 


0  ESTUDO  6ERAL  EM  USBOA  89 

eastelhano^  e  andala;se8  que  se  acham  entre  as  147  d'aqaelle  Gancio- 
neiro.»  (p.  13.) 

e  A  nósy  sempre  noe  dominou,  corno  mais  verosimìl  a  idèa  de  que 
o  auctor  das  Cantigas  profanas  do  Cancioneiro  vaticano ,  designado 
com  0  nome  de  Affonao  Rey  de  Castdla  e  de  Leon,  n&o  podia  ser  senSo 
o  Rei  Sabio;  n&o  so  porque  foi  o  primeiro  Affonso^  que  com  exactidSo 
historica  pode  chamar-s'e  Rei  de  Castella  e  de  LeSLo,  senSo  por  que  sfto 
do  seu  tempo,  da  sua  intimidade  litterarìa  e  até  elevados  funccionarios 
do  Estado  varios  dos  trovadores  portuguezes  que  resplandeciam  em 
sua  c6rte  e  cuja  connexSo  com  o  rei  se  adverte  nas  mesmas  trovas. 
Nas  ditas  Cantigas  profanas  se  ve  claramente,  que  a  poesia  d'estes  can- 
tares  em  idioma  gallego-portuguez  e  em  fórma  provenfal,  satjricos, 
amorososy  livres  às  vezes  até  à  desenvoltura,  constituia  um  lago  de 
fratemidade  intellectual  que,  assim  comò  acontecia  na  Provenga  e  na 
Catalunha,  collocava  principes  e  plebeus  em  uma  esphera  commum  de 
cultura,  de  engenho  e  de  aleggia.»  (p.  14). 

A  prova  evidente  da  existencia  das  CangSes  profanas  de  Affonso 
o  Sabio  foi  encontrada  no  Cancioneiro  Colocci-Brancutij  publicado  em 
1880.  Diz  0  Marquez  de  Valmar:  fN'esta  coUecgSo  complementar  ha 
varias  cantigas  com  està  epigraphe:  El-rei  D.  Affonso  de  Castella  et 
de  Leom.  Este  grupo  fórma  segundo  todas  as  apparencias,  com  o  que 
no  Cancioneiro  vaticano  tem  egual  epigraphe,  um  conjuncto  de  cantares 
que  pertencem  a  um  so  poeta  regio.  E  quem  é  este  Affonso,  trovador? 
Com  surpreza  verdadeiramente  agradavel,  advertimos,  ao  examinar  o 
Cancioneiro  Colocci-Bràncuti,  que  à  fronte  d'aquelles  cantares  (quem  o 
imaginaria,*ante  aquelle  montSo  de  poesias  superficiaes,  satyricas,  ga- 
lantes  e  mesmo  obscenas)  se  acha  uma  das  piedosas  Cantigas  consa- 
gradas  por  Affonso  x  &  santa  virgem  Maria.»  (p.  16)  0  Marquez  de 
Valmar  encontrou  effectivamente  a  cantiga  n.®  467,  que  cometa: 

Deus  te  salve  grorìosa 
Reyna  Maria  ^ 


1  J&  em  1862,  Amador  de  Ics  Rios  {HiH,  critica  de  la  LiU,  Espah.,  ii,  448) 
tinha  dado  noticia  d'està  Cangio  de  Affonso  o  Sabio  : 

Deas  te  Mire,  gloriosa 

Luna  de  loi  Mutoi  fremoM» 
Et  doi  9eoB  via  etc. 

£ztrahira-a  do  Codice  toledanò  das  Cantigas  de  Laorea  de  la  Virgen^  can9. 


90  HISTORIÀ  DÀ  UNIVERSIDADE  DECOIMBRÀ 

induBa  no  Codice  escurialense  (j.  b.  2)  com  o  n.^  XL,  e  no  Codice* de 
Toledo  com  o  n.^  xxx.  Um  trabalho  especial  do  romanista  Cesare  de 
Lollis,  Cantigas  de  Amor  e  de  Maldizer  di  Affonso  el  Sabio,  Re  di  Cas- 
figlia,  tende  à  prova  d'està  mesma  doutrina,  apoiado  na  observa^lo  de 
Angelo  Colocci,  dando-o  corno  auctor  das  30  can93e8  dos  dois  Cancio- 
neiroB.  * 

Notàmos  as  relaySes  de  Affonso  o  Sabio  com  a  cdrte  portugueza 
de  seu  neto^  para  mais  accentuar  a  inflnencia  que  Ihe  attribuimos  na 
creafILo  da  Universidade  de  Lisboa;  corno  tambem  a  sua  idealisa9So 
trobadoresca  da  Virgem,  que  propagando-se  pelas  Univérsidades  me- 
ridionaes  em  certo  modo  coadjuva  a  influencia  philosophica  dos  Fran- 
ciscanos.  Depois  que  o  portuguez  Fedro  Juli&o  {clericus  univeraalisj 
por  ser  graduado  em  todas  as  faculdades)  foi  eleito  papa  em  Viterbo^ 
em  15  de  septembro  de  1276  com  o  nome  de  JoSo  xxi,  '  um  dos  pri- 
meiros  empenfaos  do  seu  rapido  pontificado  foi  o  estabelecer  a  concordia 
entro  Philippe  rei  de  Franca  e  Affonso  o  Sabio;  a  can9So  d'este  mo- 
narcha-trovador  a  Fedro  de  Hespanha  adquire  um  sentido  historico. 

Dante  referiu-se  aos  livros  vulgarisados  em  todas  as  escholas  da 
Edade  mèdia,  nos  quaes  Fedro  Hispano  espalhou  as  doutrinas  de  Aris- 
toteles  e  a  medicina  averrhoista,  Summulas  LogicaSj  os  PróblemoB,  os 
Canones  Medidnaes  e  o  Thesavrus  Pauperum.  Fedro  Hispano  era  naturai 
de  Lisboa,  freguezia  de  S.  JuliSo,  arcediago  de  Vermoim,  D.  Frior  de 
GuimarSes,  sendo  nomeado  cardeal  de  Frascati  pelo  papa  Gregorio  x  no 


.  Eata  indica^So,  na  impossibilidade  de  poder  consultar  o  monumento  mana- 
scrìpto,  bastava  para  nos  guiar  na  inferencia  de  que  nos  Cancioneiros  proT6n9ae8 
portuguezes  devia  ezistir  alguma  composi^io  de  Affonso  o  Sabio,  por  isso  que  ha 
no  Cancioneiro  da  Ajuda  allusSes  ao  seu  caracter. 

1  O  Marquec  de  Valmar  termina  com  um  grande  espirìto  de  ju8tÌ9a:  «Assim 
fica  retificada  a  aventurada  affirma^o  de  Th.  Braga,  de  que  nSo  apparece  trova 
alguma  de  Affonso  z  nos  Cancioneiros  portuguezes.  Ha  que  ter  em  conta,  que  o 
illustre  professor  portuguez  publicava  em  1878  a  sua  formosa  Introduc^io  &  editto 
crìtica  do  Cancioneiro  da  Vaticana,  e  que  so  dois  annos  depois  foi  dado  4  estampa 
0  Cancioneiro  Colocci-Brancuti,  quo  veiu  espalhar  nova  luz  sobre  este  ponto  de 
historia  litterarìa  e  abrìr  campo  a  romanistas  emditos,  que,  estudando  a  fundo  o 
caracter  e  circumstancias  de  cada  uma  d'estas  cantigas,  querem  desvanecer  toda 
a  duvida,  e  converter,  se  é  possivel,  em  evidencia  o  que  até  agora  eó  podia  admit- 
tir-se  comò  mera,  embora  plausivel,  oonjectunu»  (p.  16.) 

*  É  frequente  o  equivoco  de  dar  o  nome  de  JoSo  zzi  ao  suocessor  de  Cle- 
mente V,  Jacques  d'Euse  (  JoSo  zzu)  conforme  se  indica  ou  n2o  na  lista  dos  Papas 
o  successor  de  JoSo  zrv,  um  Joio  zv,  eleito  sem  ordena^So  canonica  e  faUeddo 
985. 


0  ESTUDO  GERAL  £M  USBOÀ  91 

concilio  geral  de  Le&o  em  1274^  e  successor  de  Adriano  v  em  1276  coni 
o  tìtolo  de  JoSo  XXI.  D'este  pontifice  portugaez,  cujo  nome  figura  corno 
bispo  de  Braga  confirmando  os  docnmentos  do  reinado  de  D.  Affonso  iii, 
diz  Martìnho  de  Fulda:  ^Fuit  magnua  medicus^  et  scripsit  lihrum  de  Me- 
dicina, qui  Thesaurus  pauperum  vocatur,^  Porém  a  8ua  grande  in- 
fluencia  nas  escholas  medie vae8  foi  com  a  Logica,  as  SunmiMias,  às  quaes 
aìnda  alludia  Kant,  quando  para  dizer  de  um  individuo  que  nSo  tìnha 
jiiizo,  empregava  a  periphrase  :  Falta-lhe  a  segunda  de  Fedro.  As  Sum- 
mulas  lofficales  foram  attribuidas  a  Miguel  Psello,  escriptor  do  seculo  Xl, 
pertencendo  a  Fedro  JuliSo  apenas  a  traduc9Sk)  do  grego;  '  porém  està 
aB8er9So  nSo  assenta  em  fundamento  algum^  ao  passo  que  Dante,  e 
Bicobaldi  de  Ferrara,  do  seculo  xiii  affirmam  que  Fedro  Hispano  fizera 
tratados  de  logica,-*  sondo  alguns  d'elles  traduzidos  em  grego  trinta 
annoB  depois  da  sua  morte.  '  A  grande  reputafSo  europèa  de  Fedro 
Hispano  nSo  deixaria  de  actuar  na  determinaj&o  do  rei  D.  Diniz  para 
fixar  em  Fortugal  os  talentos  que  andavam  elevando  as  Univeraidades 
estrangeiras.  Durante  teda  a  Edade  mèdia  as  doutrinas  de  Fedro  His- 
pano, vulgarisador  da  logica  aristotelica,  influiram  constantemente  na 
direcfZo  do  ensino  européu,  especialmente  dialectìco. 

A  eschola  dos  Franciscanos,  em  que  prevalece  o  caracter  mystìoo, 
foi  representada  no  fim  do  seculo  xui  pelo  portuguez  Antonio  de  Fa- 
dua,  santificado  nas  poeticas  lendas  populares;  a  sua  actividade  exer- 
ceu-se  na  prèdica,  e  pela  austeridade  ascetica  finou-se  prematuramente 
aoB  trinta  e  sete  annos.  Santo  Antonio  foi  mandado  pelo  celebre  instì- 
tuidor  dos  Menores  frequentar  as  escholas  de  Artes  e  Theologia,  que 
estavam  no  maior  esplendor  no  mosteiro  de  Santo  André  em  Vercelli, 
onde  ensinava  Thomaz  Gaulez,  o  mais  afamado  theologo  do  tempo;  teve 
por  companheiro  de  estudo  o  inglez  AdSo  de  Marisio,  ^  vindb  depois  o 
fiimoso  portuguez  ensinar  theologia  em  Bolonha  ao  lado  de  Rolando 
Bandinelli,  (papa,  sob  o  nome  de  Alexandre  m)  e  por  ventura  de  S- 
Thomaz  de  Aquino.  ^  A  aurèola  da  santifica^&o  popular  offuscou-lhe  a 


1  Bartholomea  Keckermman,  t.  z  Qp.  Proecog.,  Log.^  p.  105  e  107. 

*  Eocardi,  Corpus  hist,  medii  asvi^  1. 1,  col.  1219. 

>  Nessel,  Catal9gu8,  sive  recensio  specialis  omnium  Cod.  Mb.  grecorom  Bi- 
bliothece  CaesaresB  Vindebon.  Pait.  5.  Cod.  128,  onde  se  acha  assim  desoripto  : 
mEoDoerpta  misodlanea  ex  diversis  eie,..  Ex  Dialeotiem  Mag.  Peiri Hispani,  irUer- 
preU  Qeorgio  Sekdario.* 

4  Tlraboschi,  Storia  ddla  LeUer,  ital.^  t.  nr,  p.  315. 

5  Ibidem,  p.  112. 


i 


92  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

importancta  da  individualidade  philosophica.  Comprehende-se  corno  o  ce- 
lebre  Cantico  de  le  creature,  que  se  attribae  a  S.  FranciBco  de  Assis^  re- 
cebeu  a  sua  prìmeira  fórma  metrica  em  portuguez^  nas  fórmas  strophicas 
da  poesia  trabadoresca  bem  conhecida  entre  a  arisiocracia  portagueza^ 
e  d'essa  lingua  passoa  para  italiano,  rimado  por  Frei  Pacifico.  ^  Em 
philosophia  os  Franciscanos  exerceram  ama  ac9So  profunda  por  via  das 
doutrinas  de  Raymundo  Lullo,  e  é  talvez  d'està  influencia  raymonista^ 
que  tanto  dominou  nas  Universidades  meridionaes,  que  resultoa  o  firn- 
darem-se  cadeiras  de  hebraico  e  de  arabe  na  Univei^sidade  de  Lisboa. 
No  come9o  do  seculo  xiv,  foi  preso  em  Lisboa,  um  aristotelico -aver- 
rhoista  chamado  Thomaz  Scott,  da  ordem  franciscana,  por  ter  aflb- 
mado  a  doutrìna  atheista  dos  Trez  Impostores,  '  (trea  fuisae  in  mundo 
deceptores.)  Por  este  facto  infere-se  que  a  lucta  doutrinaria  entre  as 
duas  Ordens  tambem  chegara  a  Portugal,  e  que  para  evitar  que  o  en- 
sino  da  Theologia  se  envolvesse  com  as  theses  audaciosas  do  peripa- 
tetismo,  comò  os  foeda  dieta  de  Thomaz  Scot  ou  de  Andrès  Scot,  é> 
que  elle  ficou  confinado  nos  mosteiros  das  ditas  ordens  dominantes, 
ut  8Ìt  fdes  cathoUca  circumdata  muro  inexpagnabUi  bellatorum,  comò 
diz  a  Carta  de  D.  Diniz  de  15  de  fevereiro  de  1309. 

0  papa  Nicolào  iv,  que  fora  eleito  em  15  de  fevereiro  de  1288, 
figura  comò  o  primeiro  franciscano  que  subiu  ao  throno  pontificio;  a 
grande  protecf&o  que  sempre  deu  à  Ordem  dos  Menores,  influiu  por 
certo  no  privilegio  do  ensino  da  theologia  nos  seus  claustros,  e  em  que 
predominava  o  caracter  mystico,  compartilhado  com  os  dominicanos, 
mais  argumentadores  e  casuistas. 

Fatando  do  antagonismo  dos  Franciscanos  com  os  Dominicanos, 
emquanto  às  doutrinas  philosophicas,  essa  lucta  manifestou-se  tambem 
emquanto  &  cren9a,  e  sob  este  aspecto  penetrou  nas  Universidades  no 
seculo  XIV.  Od  Fransciscanos  fizeram-se  os  paladinos  da  cavallaria 
mystica,  proclamando  a  Imaculada  CanceigSo  de  Maria^  que  come9oa 
a  ser  jurada  nas  Universidades  occidentaes;  os  Dominicanos  sustenta- 
vam  que  Maria  idra  concebida  comò  os  outros  filhos  de  AdSo.  Duas 


1  Renan,  no  seu  estado  sobre  S.  Francisco  de  Assis  escreve  àcerca  do  Oom- 
iico  daa  creatura»:  «A  authenticidade  d'este  texto  parece  certa;  mas  é  preciso  no- 
tar qne  falta  o  ori^nal  italiano.  0  teocto  italiano  que  ae  posiue  é  urna  traduegào  de 
urna  versào  portugueza^  que  tambem  fóra  traduzido  do  hespanhol.  O  texto  originai 
fora  rimado  por  Fr.  Pacifico.»  Nouvelles  Eludei  d'Histaire  rdigieuae,  p.  881. 

2  Victor  Ledere,  Histoire  litteraire  de  la  France  au  zvi"*  néele^  t.  ii,  p.  46; 
tira  este  facto,  da  obra  de  Alvaro  Pelagio,  Colfyriuvn  fidei  centra  haereeee. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  93 

Yezea  tinha  o  partido  franciscano  soffirido  a  condemna9So  do  novo  dogma 
em  1304  e  1333;  em  1384  o  reitor  da  Universidade  de  Paris  convoca 
o  corpo  academico  para  deliberarem  sobre  este  assumpto^  e  o  partido 
dominicano  ficou  vencido.  ^  Assim  corno  as  Universidades  roBultavam 
da  emancipatilo  daB  intelligencias  na  dÌBsolu9So  do  Poder  espiritual  no 
secolo  xin,  tambem  o  novo  dogma,  elaborado  pela  sympathia  e  idea- 
lÌ6a$2o  popular  da  Virgem  M&e  e  symbolisado  por  fórmas  mais  con- 
cretaB  do  que  a  do  monotheismo  abstracto,  que  davam  logar  à  crea92o 
de  urna  nova  Arte,  esse  novo  dogma  achou  nas  Universidades  a  con- 
Bagra9So  de  um  juramento  por  assim  dizerde  defeza  pelas  armas  da 
Dialectica.  Notando  as  modifica93es  da  expressSo  humana  da  idèa  mo- 
notheista,  Comte  comprehendeu  superiormente  o  novo  ideal  que  fecundou 
a  poesia  moderna:  cDesde  o  seculo  xii,  que  a  Virgem  obtem,  siobre- 
tudo  em  Hespanha  e  na  Italia,  um  ascendente  progressivo,  centra  o 
qual  0  sacerdocio  muitas  vezes  reclamou  em  v2o,  e  que  elle  por  vezes 
foi  for9ado  a  sanccionar  para  manter  a  sua  propria  popularidade.  Ora, 
està  Buave  crea9ào  esthetica  nSo  pode  attrair  uma  adora9So  directa  e  # 
privilegiada  sem  alterar  radicalmente  o  culto  em  que  ella  surgiu.  Ella 
é  propria  para  servir  de  intermediaria  entro  o  regimen  moral  dos  nossos 
antepassados  e  o  dos  nossos  descendentes,  transformando-se  pouco^ 
pouco  em  personifica9So  da  Humanidade.»  ^  Affonso  o  Sabio,  o  funda- 
dor  da  Universidade  de  Salamanca,  exerceu  o  seu  elevado  talento  poe- 
tico n'esta  sublime  idealisa9So  nas  composÌ98es  dos  Liòros  de  los  Can^ 
tares  et  de  los  loores  de  Santa  Maria;  e  ao  proprio  D.  Diniz,  fuuda- 
dor  da  Universidade  de  Lisboa  e  Coimbra,  foi  attribuido  um  Cancio- 
ndro  de  Nassa  Senhora,  hoje  totalmente  perdido.  Entro  as  composÌ93e8 
do  audacioso  philosopho  Raymundo  Lullo,  figuram  excellentes  can95es 
em  dialecto  malhorquino  em  louvor  da  Virgem;  e  o  predominio  das 
doutrinas  raymonistas  nas  Universidades  meridionaes,  onde  os  cursos 
duravam  ataa  Santa  Maria  de  Agosto^  propagava  tambem  o  prestigio 
do  novo  ideal  entre  os  escholares,  que  faziam  puys  on  concursos  de 
cantoB  reacB  em  honra  da  Imaculada  ConceÌ9So,  ^  costume  que  re- 


1  Victor  Le  Clero,  Dùeurse  sur  VÉtai  des  LeUres  au  XIV^  sùcle,  1. 1,  p.  378. 

2  Systhme  de  Politique  positive,  1. 1,  p.  355,  e  t.  ni,  p.  485. 

5  Benan,  no  eBtudo  Bobre  :  Esiodo  das  BéUas  Artes  em  Franca  no  seetdo  XIV, 
allude  4  importancia  do  novo  ideal  na  Arte  moderna  :  «A  devo^  da  Virgem  in- 
spira n'este  secnlo  mais  obraB  de  arte  do  que  em  nenhum  dos  outros  que  o  prece- 
deram.  Ob  livros  de  horaB,  os  psalteiios,  as  vidra^as,  estào  cheios  da  Virgem  Ma- 
zìa,  das  BiuLB  dores,  dos  seuB  gOBOB,  das  proyas  da  sua  inflaencia,  dos  milagres  ope- 


94  HISTORIA  DÀ  UmVERSIDADE  DB  GOIMBRA 

appareceu  nas  Academias  poeticas  ou  AroadiaB  do  seculo  xvn  e  xvra. 
Quando,  n'este  longo  processo  da  diBsolugJo  do  regimen  catholico-feu- 
dal,  se  estabeleceu  dentro  da  Egreja  um  esforpo  e  systema  de  reac9So 
contra  o  Protestantismo,  pela  organisagSo  da  Companhia  de  Jesus,  ob 
Bustentaculos  da  theocracia,  para  Ihe  reconsquitarem  o  poder  espiritual, 
apoderaram-se  por  toda  a  parte  do  ensino  das  Universidades,  e  obede- 
cendo  a  urna  intuÌ9ao  de  contìnuidade  revivificaram  o  culto  e  o  jora- 
mento  da  Conceif&o.  ^ 

À  importancia  que  tiveram  os  Franciscanos  e  Dominicanos  na  or- 
ganisagfio  das  Universidades  ligava-se  &  8Ìtua9Ìo  angustiosa  em  que  se 
encontrava  o  Poder  espiritual  da  Egreja  diante  de  um  novo  regimen 
mental  em  que  a  rasSo  preponderava  sobre  a  cren9a;  Comte  define  ni- 
tidamente a  misslo  das  duas  ordens  monachaes:  •  A  imminente  desor- 
ganÌ8a9So  espontanea  do  catholicismo  estava  mesmo  indicada,  desde  o 
come90  do  seculo  xiv,  segundo  graves  symptomas  precursores,  quer 
pelo  afroixamento  quasi  geral  do  verdadeiro  espirìto  sacerdotal,  quer 
,  pela  intensidade  crescente  das  tendencias  hereticas.  Este  duplo  comedo 
de  decomposifSo  intima  foi  entSo,  sem  duvida  efficazmente  combatìdo 
pela  memoravel  instituifSo  dos  Franciscanos  e  dos  Dominicanos,  tSo 
sabiamente  adaptada,  um  seculo  antes,  a  um  tal  destino,  e  que  é  pre- 
ciso considerar,  com  effeito,  comò  o  mais  poderoso  meio  de  reforma  e 
de  conservajào  que  pudesse  ser  verdadeiramente  compativel  com  a  na- 
l^ureza  de  um  tal  systema;  mas  a  sua  influencia  preservadora  devia  fi* 
car  rapidamente  esgotada,  e  a  sua  necessidade  unanimemente  reconhe- 
cida  n&o  podia  finalmente  se  nSo  fazer  melhor  sobresair  a  proxima  de- 
cadencia  inevitavel  de  um  regimen  que  tinha  recebido  debalde  uma  tal 


rados  pela  sua  intercesBlo. — Ab  Madonas  francezas  quasi  que  egualam  em  gra^ 
as  que  a  Italia  creava  na  mesma  época«  É  no  secolo  xin  que  as  representa^s 
da  Virgem  attingem  em  Franca  uma  gra9a  ideal  e  quasi  raphaélica.  Està  especie 
de  embria^ez  da  belleza  feminina,  que,  inspirando-se  sobretudo  do  Cantico  doa 
Canticos,  transparece  nos  hymnos  do  tempo,  ezprìmia-se  tambem  pela  pintura  e 
esculptura.  Ha  estatuas  da  Virgem,  que  seriam  dignas  de  Nicolào  de  Pisa  pelo 
encanto,  pela  harmonia  e  suavid  ide.  O  èmpenho  que  se  ligava  &  belleza  da  Virgem 
era  um  aeto  de  devo^io  ;  fazel-a  bella  era  comò  que  um  servi^  que  ella  se  encar- 
regava  de  recompensar.»  (Op  cit,  p.  247). 

1  Ck>mte  reconheceu  està  ultima  rela^ào  entro  o  seculo  xnx  e  a  institui^io  da 
Companhia  de  Jesus:  «0  nobre  enthuziasta  que  a  fimdou,  annunciando-se  shnnl- 
taneamente  corno  defensor  do  catholicismo  e  adorador  da  Virgem,  merece  ser  eii- 
gido  sociologicamente  comò  digno  continuador  da  reforma  do  seculo  xni,  cujo  abor- 
tamento  pretendia  reparar.»  (PoUtigue  posU,,  t  m,  p.  663). 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  95 

repara92o.  Ao  mesmo  tempO;  os  meio9  violentos  introduzidos  entSo, 
em  grande  esoala^  para  a  extirpaj&o  das  heresìas;  oonstituiam  neces- 
sariamente um  dos  signaes  menos  equivocos  d'està  invencivel  fatali- 
dade;  por  que  nenhum  dominio  espirìtual  nfto  podendo  evidentemente 
assentar,  em  ultima  analyse^  senSo  no  assentimento  voluntario  das  intel^ 
ligencias,  todo  o  notavel  recurso  espontaneo  à  forja  material  deve  ser 
considerado^  em  rela9So  a  elle,  corno  o  mais  irrecusavel  indicio  de  ama 
decadencia  imminente  e  jà  sentida.»  * 

Antes  de  entrarmos  no  periodo  da  primeira  transferencia  da  Uni- 
▼ersidade  de  Lisboa  para  Coimbra  em  1307,  importa  esbo$ar  o  quadro 
geral  das  ideias  dominantes  d'onde  dimanou  o  novo  ensino  humanista. 
A  protO'Renascen^a  provocada  pelos  Arabes,  seguiu-se  uma  maior  ap- 
proxima9&o  do  hellenismo,  a  que  Ampère  chama  a  segunda  Renas- 
oen$a,  do  seculo  xin;  é  d'està  approximaySo  que  provém  o  generali- 
sar-se  as  divisSes  pedagogicas  do  trivium  e  quadrimum,  que  se  suppSe 
de  origem  pythagorica,  e  que  se  acham  no  livro  de  Philon,  De  Cùn- 
gressu,  e  em  Tzetzes.  O  hellenismo  alexandrino  era  o  unico  conhecido^ 
6  por  isso  a  actividade  do  espirito  seguia  essa  direc9S0;  dispendendo-se 
no  estuda  da  grammatica,  da  rhetorica,  na  argucia  dialectica  e  no  theur* 
gìsmo  mystico.  Antes  mesmb  de  irromper  a  querella  philosophica  dos 
NominaUstas  e  Realistas,  jà  a  influencia  dos  ultimos  neo-platonicos  da 
Eschola  de  Alexandria  apparecia  no  Occidente,  no  meado  do  seculo  ix, 
e  Jo2Lo  Scott  proclamava  a  doutrina.  dos  Universaes,  antes  de  ser  co- 
nhecido  o  problema  proposto  por  Porphyrio,  sobre  o  qual  se  exerceu 
teda  a  actividade  da  Scholastica.  Plat&o  era  mal  conhecido  através  das 
hallucinafSes  de  Plotino,  e  o  Realismo,  que  foi  mais  tarde  desenvolvido 
pelo  conhecimento  do  Timeo,  teve  verdadeiramente  a  sua  origem  na 
these  dos  Uiùversaeay  aa  essencia  que  contém  toda  a  creatura,  da  qual 
participa  todo  o  ser,  e  que,  dividindo-se,  desce  através  dos  generos  e 
das  espedes  a  està  especie  mais  particular  a  que  os  gregos  chamam  o 
atomo,  isto  é,  o  ifìdividìio.3  0  eontacto  com  as  especula93es  philosophi- 
cas  dos  arabes  Avicebron,  Avicena  e  Averroe?  favorece  este  exaggerado 
subjectivismo,  que  veiu  a  systematisar-se  nas  grandes  luctas  especula- 
tivas  do  seculo  xui,  csob  todos  os  aspectos  o  precursor  directo  da  re- 
volujgSo  Occidental.»'  A  tradigSo  scientifica  da  Grecia,  que  se  elevàra 
a  urna  concep9So  positiva  na  mathematica,  na  astronomia,  e  nas  ob- 


1  Ccurs  de  PhUoaophie  pùntive^  t  v,  p.  368. 
'  Sydème  de  PolUique  pontive,  t  in,  p.  509. 


96  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

serva98e8  geraes  da  pfaysica,  estava  corrompida  pelos  deavarìos  da  ca- 
bala, da  astrologia  judiciaria  e  pela  alchimia;  e  o  eapiiito  de  observa- 
(fto  condenmado  pela  Egreja,  corno  86  ve  em  relag&o  a  Rogerìo  Bacon, 
nSo  podia  dar  urna  disciplina  concreta  a  essas  vagas  ab8trac95e8  em 
quo  a  philosophia  se  tornava  instrumento  subalterno  da  theologia.  Como 
as  affinna9Ses  nSo  dependiam  da  comprovay&o  dos  factos,  mas  da  ha- 
bilidade  da  argumenta9&o,  entenderam  que  a  verdade  resultava  da  de- 
monstra9So  logica,  e  desenvolveu-se  està  arte  até  ao  ponto  de  absor- 
ver  toda  a  actividade  mental  das  escholas  do  firn  da  Edade  mèdia; 
d'aqui  o  nome  de  Schokutica. 

A  Philosophia  scholastica  caracterisa-se  pelo  esclusivo  trabalho 
hermeneutico  ou  interpretativo;  philosophar  é  commentar,  glosar,  apo- 
stillar, explicar,  comò  observa  Saint-Hilaire.  A  dialectica  exerce-se 
n'uma  esgrima  de  syllogismos  sobre  palavras  que  se  convertem  em 
entidades  ontologicas,  taes  comò  Generos,  Especies,  se  sSo  Realidades, 
Concepgdes,  Accidente»  t)u  Universaes?  Procura-se  conciliar  as  conclu- 
s3es  com  os  dogmas  da  Theologia,  ou  dà-se  livre  expansSLo  ao  racioci- 
nio,  ro9ando  pela  heterodoxia;  prevalece  n'uns  a  tendencia  concreta  do 
empirismo,  n'outros  a  abstrac9&o  de  um  espiritualismo  que  sé  esvae  na 
inanidade.  Os  pensadores  do  Occidente  achavam-sejàpredispostos  para 
està  anarchia  do  Ontologismo  escholastico,  quando  tiveram  conheci- 
mento  das  phrases  de  Porphyrio  na  Introduc9So  às  CaUgorias  de  Aris- 
toteles.  Eis  o  problema  de  Porphyrio,  que  tinha  de  suscitar,  tantas  pu- 
gnas  especulativas:  e  NSo  investigarci  se  os  generos  e  as  especies  exis- 
tem  por  si  mesmos  ou  se  sSo  puras  concep9Ses  abstractas;  nem  no  caso 
de  serem  realidades,  se  s&o  corpóreas  ou  n&o;  nem  se  existem  separa- 
das  das  cousas  sensiveis  ou  confìindidas  com  ellas.;»  As  differentes  fór- 
mas  comò  a  Edade  mèdia  respondeu  a  este  problema  complexo,  e  pelo 
qual  tanto  se  apaixonou,  constituem  as  phases  historicas  por  que  pas- 
80U  a  Philosophia  scholastica.  Quando  surgiu  o  problema,  Aristoteles 
era  apenas  conhecido  nas  suas  doutrinas  pelas  Categorias  e  Hermeneia, 
e  PlatSo  era  conhecido  pelb  Timeo,  uma  psychologia  idealista  que  fa- 
cilmente era  admittida  pela  Egreja,  porque  falava  da  origem  divina 
da  alma,  da  sua  immortalidade,  e  de  uma  decadencia  ao  ligar-se  ao 
corpo.  Està  confusSo  das  doutrinas  aristotèlicas  e  platonicas  nos  mes- 
mos cerebros  produziu  o  desvairamento  theorico,  prevalecendo  na  pri- 
meira  phase  da  Scholastica  o  Realismo^  sustentado  por  Santo  Anselmo. 
Porém,  &  medida  que  a  obra  de  Aristoteles  come90u  a  ser  melhor  co- 
nhecida,  foi  prevalecendo  o  criterio  da  objectividade,  e  Roscelin  inicia 
a  phase  Nominalista,  negando  valor  objectivo  às  idéas  geraes  e  censi- 


0  ESTUDO'  GERAL  EM  USBOA  97 

derando-as  corno  um  mero  producto  da  liDguagem  ou  simples  nomee. 
Ab  doas  doutrmas  combatem-se  em  um  absolutismo  inconciliavel,  e  d'essa 
intransigencia  doutrinaria  resulta  urna  terceira  phase,  do  ConceptuaHa- 
mo,  em  que  Abailard  estabelece  as  Concep9Se8  comò  factos  psycholo- 
gicos  verdadeirosy  transformando  assim  a  fórma  palavrosa  dos  Univer- 
saes.  O  grande,  genio  philosophico  nZo  podìa  agradar  a  nenhum  dos 
grupos  em  conflìcto  doutrmarìo,  vendo-se  injustamente  perseguido.  E 
assim  comò  um  melhor  conhecimento  dos  livros  de  Aristoteles  deu  uma 
enorme  seguran9a  aos  KominalistaS|  tambem  a  leitura  dos  Dialogos 
de  Piatilo  veiu  produzir  na  Philosophia  scholastica  uma  quarta  phase, 
dos  MysticoSf  que  affirmaram  que  a  Sciencia  era  constituida  pela  in- 
toi^SO;  e  està  pela  concentrafSo  mjstica  da  alma.  Sustentaram  està 
doutrina  do  emocionismo  religioso  Godofroy,  Hugo  e  Ricardo  de  Sam 
Victor.  Conhecidas  estas  differentes  oorrentes  da  Scholastica,  as  duas 
Ordens  monasticas  dos  Dominicanos  e  Franciscanos  apoderaram-se  d'es- 
saa  questSes,  prevalecendo  entre  os  primeiros  um  eccletismo  essencial- 
mente  nominalista,  de  Alberto  Magno  e  S.  Thomaz  de  Aquino,  e  en- 
tre 08  segundos  o  sentimento  mystico,  sustentado  em  parte  por  Bacon 
e  principalmente  por  S.  Boaventura.  Em  todas  estas  variedades  da  es- 
pecula9So  pliilosophica,  Aristoteles  foi  sempre  o  orientador  montai: 
cQuer  sejam  Nominalùtas,  Conceptudliatas,  Realisias  ou  mesmo  Mys- 
ticos,  todos  ou  quasi  todos  os  mestres  da  Edade  mèdia  proclamaram- 
se  discipulos  fieis  de  Aristoteles,  e  o  seu  principal  empenho  è  justificar 
està  preten9So.»*  As  rivalidades  das  duas  Ordens  monasticas  refle- 
ctiu-se  nas  polemicas  dos  scottistas  ou  franciscanos,  com  os  thomistas 
oa  dominicanos,  e  d'essas  luctas  resultaram  os  novos  problemas  da  Li- 
berdade,  da  Gra9a  e  da  Predestina^SLo,  que  reapparecem  com  o  indi- 
vidualismo dos  Protestantes  e  no  conflicto  dos  Jansenistas  com  os  Je- 
suitas  do  seculo  xvii.  Quando  a  Philosophia  scholastica  parecia  esgo- 
tar-se,  ainda  a  revigoraram  pelos  seus  exaggeros  dialecticos  o  halluci- 
nado  e  genial  Raymundo  Lullo,  e  o  audacioso  Ockam,  que,  comò  um 
precursor  do  positivismo,  nega  todas  essas  entidades  ontologicas  que 
por  tantOB  seculos  povoaram  as  escholas  e  os  claustros. 

As  escholas  eram  um  torneio  permanente  de  argumentaySo,  em 
que  se  abusava  até  ao  desvario  das  categorias  do  raciocinio,  admiravel- 
mente  definidas  por  Aristoteles.  0  grande  philosopho  nSo  tinha  culpa 


1  Barthélemy  S&int-Hilaire,  Yb.<^  Scholàbtiqub,  no  Dict.  des  Sciences  philoBO- 


HIBT.  UH. 


i 


98  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE.COIMBRA 

da  errada  comprehensSo  da  sua  obra  inexcedivel;  no  firn  do  acculo  xvi 
um  outró  portuguez,  Francisco  Sanches,  no  seu  livro  Quod  nOiU  sdn 
tur,  ataca  està  errada  actividade  mentala  restabelecendo  a  pr^onde- 
rancia  do  criterio  da  obserya9So  e  da  experiencia  corno  meio  de  che- 
gar  à  yerdado;  assentando  assim  as  bases  do  ensino  scientifico  moder- 
no. A  falta  de  elementos  concretos  de  observaySo  e  de  experiencia, 
fez  com  que  nas  escbolas  se  esgotassem  em  vagas  ab8trac98e3y  sendo 
a  philosophia  o  centro  para  onde  convergiam  todos  os  esforfos  men- 
taes  que  se  dispersavam  sem  destino.  As  luctas  entro  Nomincdistas  e 
Realistas  foram  a  resultante  d'està  incoherencia  doutrinaria;  a  tenden- 
eia  para  a  organisa9&o  de  Encydopedias  era  o  effeito  d'este  pedantismo 
inconscientC;  que  se  conservou  sempre  nas  disciplinas  humaniatas;  e 
a  forma9So  prematura  de  Classifica^es  hierarchicas  dos  ConhecimerUas 
humanos,  quando  ainda  se  nSo  suspeitava  da  existencia  da  physicay  da 
chimica,  da  biologia^  nem  da  sociologia,  era  um  esfor$o  centra  a  dis- 
persSo  de  elementos  sem  nexo  dogmatico,  que  nSo  conduziam  a  ne- 
nhuma  conclusSo  fundamental.  A  falta  de  seriedade  na  sciencia  refle- 
ctia-se  no  entono  auctoritario  dos  mestres,  e  na  vaidade  balofa  dos  gràos 
honorificos,  que  se  ligaram  desde  multo  cedo  ao  ensino  humanista  das 
Universidades.  0  titulo  de  Grammaticae  Doctor,  acha-se  desde  o  ae- 
culo  IX  empregado  por  Alenino;  o  titulo  de  Baccalariuis,  era  jà  usado 
em  1045,  comò  se  comprova  pela  Chronica  de  Radulpho  GHaber;  o 
titulo  de  Doctor  Scholasticus,  era  applicado  a  Abailard,  Fedro  Lom- 
bardo, Porretanus  e  outros,  comò  se  ve  em  G-alterus  de  S.  Victor,  quo 
escrevia  por  1180;  os  grios  academicos  insti tuiram-se  regularmente  por 
1151,  secundum  pompam  litterarum  saeculariurrij  corno  relata  Fedro, 
bispo  de  Orvieto,  estendendo-se  tambem  para  os  que  frequentavam  a 
theologia,  recebendo  em  1198  o  grào  de  doutor  em  theologia  em  Pa- 
ris 0  que  teve  o  titulo  de  Innocencio  iii.  De  par  com  os  doutores  das 
leis  ou  dos  decretos,  e  doutores  em  artes,  os  theologos  eram  tambem 
OS  Doctores  sacrae  paginae.  * 

A  actividade  do  seculo  xii  e  xm  foi  gasta  n'esse  jogo  de  pala- 
vras,  chamado  a  Philosophia  scholastica;  a  tradiySo  das  eschoiaa  es- 
peculativas  da  G-recia  renasceu  nas  Universidades,  mas  viciada  pela 
theologia  catholica.  A  verdadeira  comprehensSo  da  Philosophia  scho- 


1  Ed.  Dumérìl,  Poéeiea  poptdairtt  UUinea  du  Moytn-ùgtj  p.  4&2,  ooL  2.  O  IL 
Fedro  da  Cruz,  que  em  1429  era  lente  de  theologia  em  Lisb3a,  intitnla-se  MagU- 
ter  in  sacra  pagina. 


0  ESTUDO  6ERAL  EM  LISBOA  99 

lastica,  e  mesmo  a  sua  alta  importancia;  so  podem  ser  conhecidas,  re- 
lacionando-a  com  os  antecedentes  hellenicos;  e  com  a  eyola9So  sub- 
seqnente  das  crises  philosophicas  da  Europa.  Na  Philosophia  da  Gre- 
cia existiram  duas  escholas  fandamentaes  caracterisadas  pelas  suaa 
<x>ncep9SeS;  a  esckola  jonica,  que  especulava  sobre  os  elementos  obje- 
ctivos  do  conhecimento,  e  a  eschola  decUica,  que  dednzia  o  conheci- 
mento  do  universo  dos  dados  subjectivos  do  espirito  pela  sjnthese 
aprioristica.  Estas  duas  fórmas  do  conhecimento  estSo  representadas 
pelos  dois  eminentes  pensadores  Arìstoteles  e  Plat2o;  a  acfSo  de  Aris- 
toteleS)  que  se  acha  rehabilitado  pela  sciencia  moderna^  foi  especiaii- 
sada  partìcularmente  nos  processos  casuisticos  da  Logica^  e  o  influxo 
de  Piatilo  actuou  sobre  os  devaneios  mysticos  da  theologia  christS  e  em 
grande  parte  na  ìdealisagSo  sentimental  dos  creadores  do  lyrismo  mo- 
derno. Ab  luctas  que  se  travaram  desde  o  seculo  xvi  centra  o  aristo- 
telismo sSo  apenas  urna  reac9SLo  centra  o  abuso  da  dialectica  escholar| 
porque  a  superioridade  scientifica  de  Arìstoteles  so  podia  Ber  definiti- 
vamente teconhecida  quando  a  civilisajSo  europèa  continuasse  a  crea- 
rlo das  sciencias  cosmologicas,  interrompidas  durante  o  longo  periodo 
da  Edade  mèdia,  proseguindo  depois  da  Mathematica  e  da  Astronomia 
a  moderna  Physica,  a  Chimica,  e  as  sciencias  biologicas. 

Falando  do  regimen  encyclopedico,  diz  Comte:'<Tendeu  a  modi- 
ficar 0  system^  goral  da  razSo  humana,  desenvolvendo  melhor  do  que 
na  Edade  mèdia,  o  ascendente  do  nominalismo  sobre  o  realismo.  Um 
tal  trìumpho  constituiu  o  passo  mais  decisivo  para  o  advento  directo  da 
sft  philosophia  até  &  impulsSo  de  Hume  e  à  elaboragSo  de  Kant.  Além 
de  annunciar  a  preponderancia  final  da  lei  sobre  a  causa,  elle  indicava^ 
no  meio  da  preparaySo  objectiva,  o  presentimento  de  uma  syiithese 
subjectiva,  segundo  a  importancia  concedida  à  logica  artificial  comò' 
nexo  prò  visorio  de  todos  os  nossos  pensamentos.  Ainda  que  os  orgSos 
pessoaes  d'està  reacffio  philosophica  fo'ssem  as  mais  das  vezes  frades 
em  legar  de  medicos,  nem  por  isso  deve  deixar  de  relacionar-se  es- 
sencialmente  com  a  constituigSo  enciclopedica  propria  d'estes.  Està 
aprecia9So  dogmatica  acha-se  confirmada  pela  nota  historica  sobre  a 
tendenda  dos  frades  para  os  estudos  medicos,  que  muitas  buUas  papaes 


» 


i 


Ihes  prohibiram  especialmente. 

A  influencia  de  Aristoteles  foi  enorme  na  Edade  mèdia,  embora 
nSo  comprehendido  no  assombroso  conjuncto  das  suas  doutrinas  con- 


1  Syat.  Politique  positive,  t.  in,  p.  541. 

7* 


100  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

cretas.  Aristoteles  concebia  claramente  os  dois  elementOB  essenciaes  do 
conheciinento,  o  individuai,  ou  o  subjectivo,  cuja  realidade  estava  na 
propria  consciencia)  e  o  objectivo,  ou  os  dados  do  mundo  exterior,  co-- 
nhecidoe  segundo  as  impreasSes  variadas,  que  chamava  nomea.  À  in- 
vestigagSo  d'este  elemento  objectivo  constituia  a  actividade  scientifica, 
corno  o  exercicio  da  fÌEU^iildade  subjectiva  constituia  a  disciplina  philo* 
sophica.  A  Edade  mèdia,  nSlo  comprehendendo  està  intima  dependen- 
eia,  exaggerou  a  parte  subjectiva,  reduzindo  a  acf&o  de  Aristoteles 
simplesmente  à  sua  Logica,  e  sem  o  apoio  dos  facto»  experimentaea, 
considerou  que  fora  do  espirito  humano  existiam  idéas  geraes  que  di- 
rigiam  os  phenomenos,  deixando-se  enlevar  nos  sonhos  idealistas  de 
PlatSo. 

Sob  està  dupla  corréhte,  as  dnas  éscholas  jonica  e  eleatìca  renas- 
ceram  com  outros  nomes;  os  que  ligavam  a  maior  importancia  à.obje- 
clividade,  e  que  davam  toda  a  preponderancia  ao  criterio  sensualista, 
foram  designados  Nominalistas;  aquelles  que  subordinavam  o  conhe- 
cimento  à  pura  subjectividade,  consideravam-se  comò  espiritualistas,  e 
com  o  nome  de  Bealistas  fortificavam-se  com  a  theologia  catholica,  ou 
attrahidos  pela  idealisa9llo  pantheistà  de  Plat&o,  chamavam-se  os  Uni- 
versaes.  Quem  poderà  rir-se  d'estas  tremendas  luctas  escholasticas  en- 
tre  Nomincdistds  e  Recdistas,  se  era  esse  effectivamente  o  grande  pro- 
blema da  intelligencia  humana?  ^  Ainda  no  seculo  xyii  Locke  e  Ber- 
keley separam  estes  elementos  do  conhecimento;  a  realidade  para  Locke 
é  objectiva,  e  para  Berkeley  subjectiva;  toda  a  renovagào  do  genio  phi- 
losophico  de  Elant  consistiu  no  exame  da  importancia  d'estes  dois  ele- 
mentos do  conhecimento,  concluindo  no  Criticismo  pela  necessidade 
final  do  seu  accordo;  e  a  origem  historico-dogmatica  do  Positivismo 
proveiu  do  desenvolvimento  successivo  das  sciencias  chjectivas,  desde 
o  seculo  XVI  a  xix,  e  da  necessidade  de  coordenal-as  em  um  todo  sys- 
tematico,  come$ando  pela  subordinasse  do  criterio  svbfectivo  aos  dados 
verificaveis  das  sciencias,  e  acabando  pela  synthese  nova  em  que  a  rea- 
lidade e  a  subjectividade  se  conformam  comò  unica  manifestasse  da 
verdade. 

As  doutrinas  philosophicas,  que  penetraram  nas  Universidades  da 
Edade  mèdia,  principalmente  nos  paizes  meridionaes,  estavam  repr&- 


1  Diz  Emile  Chasles  :  «NSo  silo  duas  éscholas  que  se  combatem,  aio  dnas 
grandea  tendenciaa  do  eapirìto  humano  que  se  acham  em  conflicto.»  (DicU  da 
JSàenees  pàtio  $ophique$f  vb.<»  NoifuuuBifs.) 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  iOi 

«entadas  pelas  alias  individoalidadeS;  Sam  Thomaz  de  Aquino,  Dans 
Scott  e  Raymnndo  Lullo,  dando  logar  às  escholas  intituladas  dos  Tho- 
mùtas,  dos  ScotHstas  e  dos  Raymonùtas,  quo  muitas  .vezes  deturpa- 
vam  as  doutrinas  dos  mestres.  A  influencia  d'este  ultimo,  conhecido 
pela  antonomasia  de  Doutor  lUuminado,  exerceu-se  nas  Universidades 
meridionaes,  havendo  urna  cadeira  especial  para  explical-o  nas  Uni- 
yersidàdes  de  Hespanha.  Além  da  sua  doutrìna,  que  se  distinguia  por 
om  contaoto  mais  directo  com  a  philosophia  dos  Arabes,  e  pela  aspi- 
ra^So  a  conciliar  a  razSo  com  a  fé,  elle  exerceu  uma  ac9&o  notavel  nas 
Uniyersidades,  proclamando  a  necessidade  do  estudo  das  linguas  orien- 
taeS;  realisado  no  Collegio  Trilingue  de  Erasmo,  e  sobretudo  no  Col- 
legio de  Franga  sob  Francisco  i.  O  papa  attendeu-o,  permittindo  que 
as  linguas  orientaes  fossem  ensinadas  em  Roma  e  nas  grandes  Unì- 
Tersidades  de  Bolonba,  Paris,  Oxford  e  Salamanca.  Na  Universidade 
de  Lisboa  nSo  existiram  desde  a  sua  funda93o  cadeiras  de  arabe  e  de 
hebraico;  mas  fizeram-se  traduc93es  do^Velho  Testamento,  e  na  Córte 
Imperiai,  manuscrìpto  da  Bibliotheca  de  D.  Duarte,  figurasse  um  com- 
bate  dialectico  com  os  doutores  arabes  sobre  os  dogmas  christ^s,  tal 
corno  OS  fazia  Eaymundò  Lullo. 

Falando  d'este  grande  visionario,  que  queria,  além  da  conciliagSo 
da  fé  com  a  razSo,  a  unificafSLo  da  humanidade  pelo  chrìstianismo.  Guar- 
dia retrata  o  com  mestria:  «Este  homem,  de  ra9a  cataUL,  nSo  se  pa- 
rece  com  nenhum  dos  seus  contemporaneos  do  Occidente.  Elle  nSo  é 
nem  scholastico,  nem  classico;  o  seu  caracter  permanece  independente, 
e  0  seu  espirito  indisciplinado.  E  Arabe  pelas  idéas,  pelo  methodo  e 
pela  linguagem.  Ao  contacto  do  Oriente,  e  grajas  à  sua  vida  errante, 
elle  sacudiu  o  jugo  pesado  da  theologia  das  escholas;  ama  o  raciocinio 
mais  do  que  a  razSo;  mas  reconhéce  os  direitos  da  razSo  e  a  necessi- 
dade da  sua  interven92o  em  materias  da  fé.»  E  termina  com  este  bello 
tra90  positivo:  «Tinha  um  genio  singular,  e  nSo  é  para  elle  uma  pe- 
quena  gloria  o  ter  entrevisto,  desde  o  seu  tempo,  umà  cousa  que  nós 
entrevemos  hoje  com  nova  intuifSo,  a  unidade  da  sciencia  pela  coor- 
dena$So  empirica  e  racional  dos  conhecimontos  humanos,  e  uma  cousa 
que  de  longe  apenas  entrevemos,  a  unidade  da  vida  social,  isto  é,  o 
estabelecimento  e  a  con8olida9So  da  ordem  na  humanidade.»^ 

A  Universidade  atrazara-se  conservando  confundido  o  ensino  das 
Escholas  menores,  ou  secundario,  com  o  das  Escholas  maiores,  ou  su- 


1  Àp.  Bevue  gennantquey  U  zix,  p.  223  e  224. 


1 02  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

perior;  a  claseìficasSo  das  disciplinas  estava  ainda  estabelecida  pela 
regimen  do  Trivium  e  Quadrivium,  ou  das  Sete  Artes,  f  om  o  systema 
de  coordeoa^So  scientifica  de  Baymundo  Lullo.  0  rei  D.  Duarte  co- 
nhecia  as  doatrioas  philosophicas  dos  Raymonistas  ouLullistas;  naBi- 
bliotheca  de  Alcoba^a  (cod.  383)  guardavam-se  as  Obras  de  Baymundo 
Lullo,  Compendio  da  Arte  demonstrativà  e  Arte  inventiva  da  Verdade.  * 
NSo  admira  pois  que  a  coordenaySo  das  disciplinas  da  Universidade  se 
conformasse  com  a  Classifica^So  das  Sciencias  por  Lullo;  para  este  phi- 
losophoy  era  a  Tkeologia  a  base  dos  conhecimentos,  porque  x)  seu  obje- 
cto  é  Densy  e  em  seguida  a  Philosophia,^  que  nos  revela  o  conhecimenta 
das  causas  e  dos  effeitos  nas  seguintes  categorias: 

Meiajphynea, 

ÌFhystca Medicina. 

a)  Natubal l  [  Astronomia, 

]  Mathematica .  |  Musica, 

(Arithmetica. 

tMonastióa,  ou  governo  de  si  mesmo. 
Economica,  ou 'governo  de  um  para  muitos. 
Politica^  ou  governo  de  muitos  por  muitos  (Leis.) 

(  Grammatica^ 

o)  SxBMociovÀL. ÌLoffioa^ 

[Bheiorica.' 

Grande  somma  dos  elementos  d'està  classifica9So  jà  apparece  sys- 
tematisada  quasi  pela  mesma  fórma  por  S.  Boaventura,  que  tambem 


1  Os  Raymonistas  pretendiam  esplicar  os  mysterios  da  fé  pela  razSo  ;  eram 
xms  racionalistas  prematnros,  combatidos  pela  Sorbona. 

*  Quicherat,  na  Historia  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  1. 1,  p.  36,  define  està 
ordem  de  estndos  :  «Nas  idéas  da  Edade  mèdia  nao  havia  senSo  a  Philosopfaia, 
que  fosse  capaz  de  dar  yalidez  aos  espiritos  e  preparal-os  para  o  estudo  das  ou- 
tras  sciencias.  Era  a  unica  faculdade,  sobre  a  qual  se  exercia  o  ensino  das  clas- 
ses  Buperìores.  Tudo  0  mais  pouco  valla.»  E  accrescenta:  «Fensava-sc  geralmente 
que  a  instruc^So  litteraria  era  sufficiente,  quando  coadjuvava  a  leitura  dos  livros 
de  Philosopliia.  Ora  estes  livros  eram  imperfeitas  traduc^Òes  de  Aristoteles,  ou 
Commentarios  sobre  o  mesmo  auctor,  escriptos  em  o  latim  o  mais  àrido,  o  mais  des- 
pido  de  omatos.  A  for^a  de  se  querer  sacrificar  a  fórma  &  essencia,  chegara-se  a 
banir  da  composi^Io  toda  a  figura,  toda  a  imsgem,  tudo  o  que  nào  era  rigorosa- 
mente demonstrativo.  0  discurso,  articulado  corno  um  esqueleto,  nao  admittia  se* 
nSo  proposi^oes,  eondvsòes,  coroUarios  maiorea^  menores  ou  conseguenciag;  o  pen- 
samento era  for^ado  sómente  a  distinguiry  a  definir^  a  resolver.  Tal  era  o  genero 
JScholaMtico^  genero  monotono  e  esterìl,  cuja  cultura  ezdusiva  teve  o  deploravei 
«ffeito  de  dessorar  muitas  intelligencias  grandes.» 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  103 

dera  à  Theologia  a  preeminencia,  separando  as  Artes  meohaDicaB  ou 
praticas  das  doutrinas  theoricas.  A  Classificagào  geral  dos  Conheci- 
mentos  humanos,  proposta  por  S.  Boaventura,  é  de  maxima  importali- 
cìAi  porque  se  baséa  sobre  as  tres  manifestagSes  do  nosso  sér,  activa, 
eapecolativa  e  affectiva: 

Tecelagem, 
Carpinteria, 
iMetHllnrgia, 
L — AxTBB  MBCHAmcAS        |Cantooena, 

Agricultura, 
(Operaqòea  artifidaes)     jCa^a, 

iNavega^So, 
Theatrica, 
Medicina  (Pharmacia  e  Cirorgia.) 


n. — 1.  CoNHECiM£NT08  ADQuiRiDOS  PELOB  Sentidos  (FórmcLs  naturata  da  Mattrta) — 
Iflto  é,  grupoB  de  phenomenos,  segando  os  criterìos  indactivos  da  06- 
servagàoj  ÈxperìeTicia^  Comparagao  e  FUiagào, 


(Grammatica, 

BaetoncU  (no  Discurso) |  Logica, 

(Rhetorìca. 

— 2.  Philosophia  I  iPhjsica, 

I  Naturai  (nas  Cousas). |  Mathematica, 

fAg  verdades  intelligiveis)  1  (Metaph^sica. 

Ì  Monastica, 
Economica, 
Politica. 

ÌSentido  allegorico  (A  Fé) — Doutores:  Santo  Agosti- 
nho,  Ansehno. 
Sentido  moral  (A  Virtude)— Prégadores:  S.  Gregorio, 
Sentfd^a^l^  (Beatitade)-ContemplativoB:  S.  Di- 
niz,  Bicardo. 

Só  depois  de  bem  conhecer  estas  Classifica^Ses  do  saber  medieval, 
é  que  se  comprehende  a  tendencia  do  ensino  das  Universidades  em  tor- 
xiar-se  prematuramente  philoaophico  em  vez  de  scientifico.  A  sciencia 
oontradictaya  os  dogmas  da  Egreja,  e  a  Theologia  entendia-se  bem  com 
as  vagas  abstrac93e8  de  ama  Metaphysica  tradicional,  tomando-a  a  sua 
tmeilla.  Quando  se  deu  a  grande  crise  da  renoya9So  das  Sciencias  no 
seculo  XVI,  as  Universidades  reconheceram  que  entravam  n'um  periodo 
critico,  tendo  de  aband6nar  o  seu  humanismo;  a  lucta  foi  grande,  sob. 
o  nome  de  aristotelismo ,  designaQSo  imperfeita  para  denominar  a  velhar. 
dialectica  universitaria,  e  teve  seus  martyres,  comò  Fedro  de  la  Ra- 
mée;  mas  as  Universidades  nSo  acompanharam  o  novo  espirito  critico, 
porque  bs  Jesuitas,  comò  activa  milicia  papal,  apoderaram-se  d'ellas,^ 


104  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

recrudescendo  no  exclusivismo  pedagogico  das  humanidades  (gramma- 
tica, logica  ou  dialectica  e  rhetorica.) 

Comte  descreve  admiravelmente  a  genealogia  montai  do  espirìto 
metaphysico,  que  sob  a  fórma  de  Philosophia  scholastica  cooperou  no 
firn  da  Edade  mèdia  para  a  dissola9So  do  regimen  theologico  e  do  po- 
der  espiritual:  cDesde  està  divisfto  verdadeiramente  fundamental  da 
philosophia  grega  em  philosophia  motal  e  philosophia  naturai,  que  do- 
minou  sempre  até  aqui  o  conjuncto  do  movimento  menta!  da  elite  da 
humanidade^  o  espirito  metaphysico  appresentou  concorrentemente  doas 
fórmas  extremamente  differentes  e  gradualmente  antagonistas,  em  har- 
monia  com  uma  tal  distinc9So  :  a  primeira,  de  que  PlatlU)  é  considerado 
comò  0  principal  orgSo^  muito  mais  proximo  do  estado  theologico,  e 
tendendo  mais  a  modificai -o  do  que  a  destruil-o;  a  segunda,  tendo  por 
typo  AristoteleSy  bem  mais  visinho,  pelo  contrario,  do  estado  positivo, 
e  tendendo  realmente  a  desprender  o  entendimento  humano  de  toda  a 
tutella  theologica  propriamente  dita.  Uma,  nSo  foi,  pela  sua  natureza 
essencialmente  critica,  senSo  o  inverso  do  polytheismo,  do  qual  ella 
proseguiu  activamente  a  sua  universa!  decadencia;  ella  presidia  sobre- 
tudo,  comò  jà  o  mostrei,  à  organisafSo  gradua!  do  monotheismo,  que, 
uma  vez  constituido,  determinou  espontaneamente  a  fus3o  fina!  d'esté 
primeiro  espirito  metaphysico  no  espirito  puramente  theologico  propria 
d'està  ultima  phase  essencial  da  philosopliia  religiosa.  Ao  contrario,  o 
outro,  desde  logo  principalmente  entregue  ao  estudo  goral  do  mundo 
exterior,  teve  de  ser,  na  sua  applica9&o,  longo  tempo  accessorio,  &a 
concepfSes  sociaes,  necessariamente  e  constantemente  crìticas,  conforme 
a  combina9&o  intima  e  permanente  da  sua  tendencia  antitheologica  com 
a  sua  impotencia  radicai,  a  produzir  uma  verdadeira  organisafSo.  Era 
a  oste  ultimo  espirito  metaphj-sioo  que  devia  naturalmente  pertencer  a 
direcfHo  menta!  do  grande  movimento  revolucionario,  que  apreciamos. 
Espontaneamente  afastado  pela  preponderancia  platonica,  emquanto  a 
organisa92o  do  systema  catholico  devia  principalmente  occupar  as  al- 
tas  intelligencias,  oste  espirito  aristotelico,  que  nunca  deixara  de  cul- 
tivar e  engrandecer  em  silencio  o  seu  dominio  organico,  tendeu  a  apo- 
derar-se,  por  seu  turno,  do  principal  ascendente  philosophico,  amplian- 
do-se tambem  ao  mundo  mora!  e  mesmo  social,  logo  que  està  immensa 
opera^So  politica,  emfim  sufficientemente  consummada,  deixou  natural- 
mente predominar  d'ahi  em  diante  a  necessidade  da  expansAo  pura- 
mente racional.  E  assim  que,  desde  o  seculo  xn,  sob  a  mais  eminente 
supremacia  social  do  regimen  monotheico,  o  triumpho  crescente  da 
Seholastica,  veiu  realmente  constituir  o  primeiro  agente  geral  àa  des- 


0  ESTUDO  6ERAL  EM  USBOA  1 05 

organis&fSo  radicai  da  potencia  e  da  philosophia  theologicas,  ainda  que 
parefa  paradoxal  està  proprìedade  de  eiDancipa9So  attribuida  a  urna 
doutrina  hoje  tfto  cegamente  desprezada.  A  prìncipal  consistencia  po- 
litica d'està  nova  for9a  espiritaal,  de  mais  em  mais  distincta,  e  desde 
logo  rivai  do  poder  catholico,  postoque  d'elle  fosse  emanada^  resaltava 
da  sTia  aptidSo  naturai  a  apoderar-se  gradualmente  da  alta  instruc9So 
publica,  nas  Universidades^  que,  entAo  quasi  exclusivamente  destina- 
das  &  educatilo  ecclesiastica;  deviam  necessariamente  abranger  depois 
todas  as  ordens  essenciaes  da  cultura  intellectual.  Àppreciando,  a  este 
ponto  de  vista  historìco,  a  obra  de  S.  Thomaz  de  Aquino,  e  mesmo  o 
poema  de  Dante,  reconhece-se  facilmente  que  este  novo  espirito  me- 
taphjsico  tinha  entSo  essencialmente  invadido  todo  o  estudo  intelle- 
ctual e  moral  do  homem,  e  come9ava  tambem  a  estender-se  directa- 
mente  às  e8pecula986s  sociaes,  de  maneira  a  testemunhar  jà  a  sua  ten- 
dencia  inevitavel  a  libertar  definitivamente  a  rasSlo  humana  da  tutella 
puramente  theologica. — Mas  as  grandes  luctas  decisivas  dos  seculos  xiv 
e  XV,  centra  a  potencia  europea  dos  papas  e  contra  a  supremacia  eccle- 
siastica do  solio  pontificai,  vieram  por  fim  apresentar  espontaneamente 
ama  larga  e  duravel  applica9So  social  a  este  novo  espirito  philosophico, 
que,  tendo  jà  attingido  a  sua  piena  maturìdade  especulativa  de  que  era 
BUBceptivel,  desde  entSo  tendeu  sobretudo  a  tomar  nos  debates  politi- 
cos  urna  participa9So  crescente,  que,  pela  sua  natureza  negativa  para 
com  a  antiga  organÌ8a9So  espirìtual,  e  mesmo  por  uiba  consequencia 
involuntaria,  ulteriormente  dissolvente  para  o  poder  tempora!  corre- 
spondente,  do  qual  ella  tinha  desde  entSo  secundado  o  systema  de  ab- 
8orp9So  universal.  Tal  é  a  incontestavel  filìa9So  historìca,  que,  até  ao 
seculo  passado,  naturalmente  collocon,  em  todo  o  nesso  Occidente,  a 
potencia  metaphysica  nas  Universidades  à  fronte  do  movimento  de  de- 
composÌ9lLo,  nSo  sómente  emquanto  elle  permaneceu  espontaneo,  mas 
depois  quando  se  tornou  systematico.»  ^ 

Tentar  a  historìa  do  ensino  sem  conhecer  a  genealogia  das  idéas 
enainadas,  ou  pelo  menos  a  sua  influencia  nos  methodos  pedagogicos; 
é  entrar  com  os  olhos  fechados  em  um  campo  de  manife8ta9Ses  t%o 
complexas  comò  este  que  se  relaciona  com  teda  a  civilisa9&o  europèa. 

Depois  das  idéas  dominantes  no  ensino  humanista,  temos  notado 
as  tentativas  dos  principaes  espiritos  da  Edade  mèdia  para  o  e^tabe- 
lecimento  de  uma  Classifica9So  dos  Conhecimentos.  Nas  disciplinas  das 


1  Cours  de  PhUosophie  positive,  t.  ▼,  p.  888  a  391. 


106  HISTORIA  DA  UT^IVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Universidadesy  corno  a  de  Vercelli^  em  1228^  encontramos  a  Theologia, 
as  Leu,  as  Decretata,  a  Medicina,  a  Dialectica  e  a  Grammatica;  ^  na 
Universidade  de  Coimbra  ensinavam-se  as  Leis,  os  Canones,  a  Medicina, 
a  Dialectica,  a  Grammatica  e  a  Musica.  Exìstia  um  pensamento  com- 
muin  a  todas  as  Unìversidades;  e  esse  pensamento  so  póde  ser  expli- 
cado  comò  urna  applica9So  das  theorias  taxonomicas  das  sciencias  se- 
gando a  època. 

A  madaù^a  da  Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra  em  1307, 
conservou  a  Theologia  separada  do  novo  estabelecimento,  sendo  ensi- 
nada  nos  mosteiros  dominicanos  e  franciscanps,  e  as  Artes  e  Sciencias 
em  casas  de  aluguer  e  depois  no  sitio  onde  mais  tarde  veiu  a  fundar-se 
0  Collegio  de  S.  Paulo.  Nos  primeiros  Estatutos  dados  por  D.  Diniz  à 
Universidade  em  1309,  estabelece-se  o  quadro  pedagogico:  cFundamos 
na  noBsa  Universidade  de  Coimbra,  &  qual  n'este  ponto  damos  a  pre- 
ferencia,  e  inauguramos  radicalmente  o  Estudo  geral,  querendo  que 
sejam  mestres  in  Sacra  Pagina  os  religiosos  das  Ordens  dominicana 
e  franciscana. . .  Tambem  um  Doutor  em  Decreto,  e  um  Mestre  em  De- 
cretaes. . .  Além  d'isso  para  que  o  reino  possa  ser  melhor  govemado, 
queremos  que  haja  um  professor  em  Leis,  para  que  os  govemantes  e 
Joizes  do  nesso  reino  possam  com  o  conselho  dos  peritos  decidir  as 
questSes  subtis  e  arduas.  Tambem  ordenamos  que  no  sobredito  Estudo, 
haja  um  Mestre  em  Medicina  para  que  agora  e  no  futuro  os  corpos  de 
nossos  subditos  sejam  dirìgidos  sob  o  devido  regimen  da  sanidade.  Item, 
queremos  que  ahi  mesmo  hajam  Doutores  e  Mestres  de  Dialectica  e 
Grammatica  para  que  recebam  com  o  fondamento  de  quererem  ser  mi- 
nistros  e  juizes  e  nos  que  acharem  mais  agudeza  de  intelligencia  aquel- 
les  que  desejarem  chegar  a  maiores  sciencias.» 'Nas  Memorias  politi- 
eoa  de  Joaquim  José  Rodrìgues  de  Brito,  vem  uma  reducgSo  dos  orde- 
nados  dos  lentes  da  Universidade  n'esta  prlmeira  època:  cSegundo  a 
Memoria  tirada  das  Notìcias  chronologicaa  da  Universidade  de  Coimbra, 
impressa  por  Francisco  Leitào  Ferreira  em  1729,  o  Lente  de  Prima  de 
Leis,  tinha  de  renda  21j5600,  ou  600  livras;  o  de  Carumes,  18f5000  réis; 
e  o  de  Musica,  2^9^340.  Conhecemos  jà  que  as  livras  d'aquelle  tempo  eram 
de  36  rèis  cada  uma,  e  que  600  valiam  21^600,  que  multiplicados  por  19 
Bommam  410i$400  réis;  e  por  4,  em  1:641}$600,  ou  mais  de  4:000. cru^ 
zados.  Os  ISiJOOO  réis  do  lente  de  Prima  de  Canones  em  1:368^000 


1  Tiraboschi,  op.  ctV.,  t.  ir,  p.  55. 

2  Ltvro  Verde,  fl.  12  y. — Tambem  na  Monarck.  Ltmlana,  P.  ▼,  Àpp.  Escr. 
iLxv  \  e  nas  Provaa  da  JSistaria  geneal.,  t.  z,  p.  75. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  107 

reis;  e  os  2}91340  do  Professor  de  Musica  em  177^840  réis  de  hoje. 
NSo  nos  deyemos  de  admirar  pois  de  que  se  leia  em  todos  os  historìa- 
dores  que  o  sr.  D.  Diniz  convidara  com  grandes  ordenados  aos  lentes 
das  Universidades  da  Europa,  quando  vémos  que  Ihes  assignou  uns 
d'està  qu^idade;  nós  devemos  notar  que  elles  deviam  ser  lun  bom 
attractivo  n'uns  tempos  em  que  o  luxo  privado  era  limitadissimo.»  ^ 
A  leitnra  da  Carta  de  Con8tituÌ98es  do  Estudo  de  Coimbra,  pelo  rei 
D.  Diniz  em  data  de  27  de  Janeiro  de  1307'  so  nos  confirma  os 
enormes  privilegios  concedidos  à  classe  escholar^  com  um  foro  inde- 
pendente  para  os  que  praticassem  algum  crime;  com  a  faculdade  de 
elegerem  reitor;  conselheiros,  bedel  e  outros  officiaes  da  Universidade; 
com  taxa  marcada  para  os  alugueres  de  casa,  e  podendo  viajar  pelo 
paiz  sem  pagar  portagem,  além  de  muitas  outras  garantias  para  nSo 
serem  perturbados  no  seu  estudo.  A  sciencia  tendia  a  converterse  em 
nm  poder  social,  e  effèctivamente  os  Jurisconsultos  estabeleceram  re- 
grsA  de  direito,  jà  rècebidas  da  jurisprudencia  romana  que  renasda 
nafi  Universidades,  jà  coordenando  os  costumes  ou  praxes  conforme  a 
rasSo.  Para  que  se  fundasse  uma  imifica9^  da  esphera  civil,  quando 
ella  n&o  era  reconhecida,  e  existiam  o  fdro  da  nobreza,  o  fóro  eccle- 
siastico, ò  fóro  real,  e  os  foros  territoriaes,  em  conflicto  permanente,  era 
preciso  que  a  classe  especulativa  dos  escholares  gozasse  tambem  o  fa- 
vor das  immunidades,  para  que  ella  produzisse  esses  espiritos  auste- 
ZOB  que  reduziram  as  fórmas  pessoaes  da  auctoridade  à  acf&o  abstracta 
do  Ministerio  publico.  ' 

A  Cadeira  de  Musica  nSo  apparece  apontada  nos  Estatutos  ou 
ProTisSo  de  15  de  feyereiro  de  1309;  no  emtanto  vem  computado  o 
seu  salario  na  Resolu^^lo  de  18  de  Janeiro  de  1323,  em  que  D.  Diniz 
irata  com  o  Mestre  de  Christo,  que  se  obriga  a  pagar  os  salarios  aos 


1  Op.  city  t.  II,  p.  78.  (1803.)  Os  salarios  eram  pagos  por  duas  yezes,  em  dia 
de  S.  Lucas,  e  no  de  £.  Joio  Baptista"  Estcs  salarios  acbam-se  estabelecidos  na 
Beaolu^So  de  18  de  Janeiro  de  1323,  no  accordo  de  D.  Diniz  com  oe  Freires  de 
Christo.  Livro  Verde,  fl.  2  y  a  4. 

^  J.  P.  Ribeiro,  Diaa.  chron ,  t  ii,  p.  234.  Por  està  Carta  de  D.  Diniz  appro- 
dando a  ConstituìfSo  da  Universidade  de  Coimbra,  yè-se  que  o  novo  Estudo  ti- 
nha  o  privilegio  de  formular  o  seu  proprio  Estatato  :  «A  quantos  està  Carta  vi- 
lem  fa^o  saber,  que  a  Universidade  do  meu  Estudo  de  Coimbra  me  enviarom  pi- 
dir  por  mer^ee,  que  eu  Ihes  confirmasse  as  Coiistituigoeens,  que  enire  ayfezerom, 
entendendo  que  erom  a  servilo  de  Deus,  e  meu,  e  a  proveito  dessa  Universidade  : 
daa  qnaes  Constitui^oes  o  theor  do  verbo  a  verbo  tali  he:  etc.» 

Alli  se  consigna  a  eleÌ9ào  dos  Beitores  pelos  Escolares  ;  os  Estatutos  tinham 
aido  appresentados  e  approvados  em  congresso  do  Beitor,  Officiaes  e  Escholares. 


108  HISTtìRU  nx  CMVERSIDADC  DE  COIBIBRA 

lentes  om  tro«*  à<^  frwtos  e  rendis  das  Egrejas  de  Scure  e  Pombal. 

A  wn^N-^rJi  <NVT*«e  r:^ak*l  que  se  manifesta  em  Portugal  é  a 
ii«»''  '^,  .«•  •  ' .  yVinj,''  ^  ^T.5fs^  5."^  Testamento  de  D.  Marna  Dona,  onde  vem 
^s:|,^^i^v  ^..  ;\<ss-.»»-^'  .t»V^ri\  Santo  Ambrosio  introduziu  na  Egreja 
^v  ,vvsv"  N»  V  «"^  x*^^  V  XT^x  eliminando  o  genero  chromatioo  e  o  enhar- 
>KV'  s\\  x"  «i'Vi^t-È/  f  4^^r^MM  diatonico.  A  segunda  corrente  musical 
V  %  .^••'  x*^*  *  '"^  .■♦'►•/v*--t/^*«/>  vm  do  canto  feito,  desenvolvida  pelos  trovado- 
'N^x  •v.-.^;^*^  ..•>.  ^»ix?  apj^lìcavam  esse  estylo  às  can95e8  proven9alesca8 
<i«  *  -i^**'*  ^^-iji^w'v  «^.imìttindo  urna  revoluySo  na  Masica^  que  era  co- 
•à.Kx^v.%  'v^o  ^K^ij^  kÌ^  Drscante  e  pouco  sympathica  à  disciplina  litur- 
^.v»*  .i-  x':^*vj^  ifcv>  secalo  XIV.  *  E  justamente  quando  urna  bulla  ponti- 
iv.v«  :v^iK!Ottuu*Y^  o  Descante,  em  1322,  que  em  seguida  se  acha  men- 
s*v^ii.<lii  A  cwleira  de  Musica  na  Universidade. 

\:4  ^^m^*&o  ou  Gesta  de  Toaldizer,  de  Affonso  Lopes  Baiam,  en- 
svaa^i^ii^  a  celebre  neuma  Aoi,  com  que  terminam  as  cantilenas  da 
L%i'ii^oit  de  Rola/nd.  Està  neuma  n3o  era  peculiar  da  epopèa  franka; 
bVoiiois^ue  Michel,  no  Ms.  Harleiano,  n.^  9908,  achou  antiphonas  ter- 
ittinacfcdo  por  Euouae.  Se  ella  apparece  na  Can9&o  portugueza  do  se- 
culo  xiii,  é  porque  reproduzia  um  costume  musical  da  època,  em  que 
a  pbrase  saeculorum  amen,  pelas  suas  vogaes  Euouae  servia  para  indi- 
car 0  tom  em  que  se  cantava  o  psalmo.  Fernando  Wolf,  no  estado 
sobre  OS  Lais  jà  tinha  observado  oste  facto,  e  Felix  Clément,  na  His' 
toria  geral  da  Musica  religiosa  confirma- o  dizendo  :  eque  as  antiphonas 
sfto  sempre  seguidas  de  um  Psalmo,  que  o  tom  sobre  o  qual  se  canta 
este  psalmo  é  indicado  pela  termina^ào,  que  està  termina9So  é  desi- 
guada  pelas  palavras  saeculorum  amen,  cujas  vogaes  sómente  sSo  no- 
tadas  sobre  cinco,  seis,  sete  ou  oito  notas,  segundo  as  regras  da  psal- 
modia;  e  que  nSo  ha  um  unico  antiphonario,  desde  S.  Gregorio  até  ao 
ultimo  vesperal.  mpresso  em  1860,  gue  n&o  apresente  quatrocentas  ou 
quinhentas  vezes  este  euooae  indispensavel  ao  cantor  para  entoar  o 
psalmo.»  (Op.  cit.,  p.  165.) 

A  neuma  da  can93o  satyrica  portugueza  nZo  provém  de  uma  pa- 
rodia da  fórma  epica,  mas  sim  de  ser  destinada  para  o  canto,  seguindo 
o  estylo  dos  antiphonarios. 

A  musica  era  uma  das  Sete  Artes  de  que  se  compunha  o  trivium 


1  Lé-se  na  HUtoirt  liUeraire  de  la  France^  t.  zxxi,  p.  183:  «A  musica  dos 
hjmnos  da  Egreja  foi  durante  multo  tempo  a  musica  que  serviu  para  as  can^ftes 
profanas,  mesmo  na  lingua  vulgar.» 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  i09 

e  quadrivium.  No  Leal  Consdheiro  encontram-se  circumstancias  nota- 
veis  para  a  sua  historia.  Os  monarchas  da  Europa  entretinham  em  suas 
Capellas  um  bando  de  menestreìs  e  cantores;  e  este  facto  bastante  con- 
triboiu  para  a  crea9So  da  musica  moderna. 

Pelo  seculo  xiv  come9a  uma  reyoIu92k>  profunda  na  musica  an- 
tiga;  o  canto  grave  e  unisono,  a  que  a  Egreja  deu  o  titulo  de  canto  gre- 
goriano, foi  mobilisado  com  a  reuniSo  de  outras  vozes  produzindo  um 
accordo  d'onde  saiu  a  musica  moderna.  Em  1322  uma  bulla  pontificai 
condemnava  o  descante,  e  estabelecia  a  supremacia  do  ca7i,to  gregoriano; 
o  descante  era  uma  novidade  perigosa.  Jean  des  Murs,  define:  cDes- 
canta,  aquelle  que  ou  juntamente  com  um,  ou  com  muitos  docemente 
canta,  de  modo  que  de  sons  distinctos  faz-se  um  so  som,  nào  pela  uni- 
dade  da  simplicidade,  mas  pela  uniSo  da  dece  concordancia  da  varie- 
dade.»  *  El-rei  D.  Duarte,  no  capitulo:  Do  regimento  que  se  deve  de  ter 
na  capella  para  seer  bem  regida,  diz:  «Prymeiramente  se  proveja  bem 
ante  que  o  Senhor  venha  aa  Capella  o  que  ham  de  dizer,  scendo  avy- 
sados  todos  em  geeral,  e  cada  huù  em  special,  do  que  soo  ou  com  ou- 
irò  ouver  de  dizer,  assy  no  leer  comò  em  cantar.»  (P.  449.) 

eque  se  nom  consenta  nenhun  desacordativo  aa  estante,  porque  bua 
corda  destemperada  he  abastante  para  destemperar  um  estromento. 

citem,  que  se  conhe9am  as  vozes  dos  CapellaHes,  qual  he  pera 
cantar  alto,  e  qual  pera  contra,  e  qual  pera  tenor,  e  assy  cantem  con- 
tynuadamente  pera  cada  huu  seer  mais  certo  no  que  cantar. 

«Item,  que  se  cónhe9a  quaaes  antresy  nas  vozes  sam  melhor  acor- 
dados,  e  aquelles  cantem  alguas  cousas  que  se  ajam  estremadamente 
cantar,  porque  ha  hi  alguas  vozes,  que  ainda  que  sejam  boas,  antro  sy 
no  se  acordam  bem,  e  outras  que  ambas  junctas  fazem  grande  avan- 
tagem. 

«Item,  que  se  guardo  onde  ha  destar  a  estante,  e  a  casa  quejanda 
he  pera  soarem  melhor  as  fallas  (vozes)  porque  se  està  a  par  dalgua 
janella,  o  vento  vae  por  ella  fora,  e  faz  menos  soar  as  fallas;  e  esso 
mesmo  faz  em  coro  alto,  ou  muyto  alongado,  porem  se  deve  resguar- 
dar  o  lugar  pera  mylhor  soarem,  specialmente  se  he  tal  tempo  em  que 
se  queira  resguardar,  ou  mostrar  seus  Capellalles.»  (Pag.  450.) 

Por  estas  observajSes  de  D.  Duarte,  se  vera  que  em  Portugal  jà 
estava  admittido  o  descante,  substituindo  o  canto  gregoriano.  0  accordo 
das  vozes,  d'onde  saiu  a  hannonia,  procurava-se  na  melhor  consonan- 
cia  das  vozes  que  melhor  se  reuniam;  assim  comeyaram  a  serem  clas» 


1  Apud  Victor  Le  Clerc,  HisL  Litt,,  1. 1,  p.  530. 


110  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

sificadas  de  alto,  cantra-atto,  tenor.  As  condÌ93es  acnsticas  para  melhor 
se  prodazirem  as  vozes  tambem  come9ayam  a  ser  notadas.  Assim  a 
musica,  considerada  entlo  corno  mn  ramo  da  mathematica,  ia  tornando 
mna  fórma  scientifica. 

D.  Duarte  tambem  apresenta  alguns  preceitos  para  se  ensinar  a 
musica  aos  meninos,  indicando  os  meios  de  Ihes  fazer  perder  aquelle 
pudor  naturai  que  se  tem  antes  de  desprender  a  toz:  eque  tanto  qua 
ouverem  conhecimento  de  cantar  que  os  fa9am  cantar  aa  estante,  e  qtie 
Ihe  fa^am  ensinar  alUas  cantìgas  a  alguu  que  saiba  bem  cantar,  e  esto 
pera  aas  vezes  cantarem  ante  o  Senhor,  ca  esto  Ihe  faz  perder  o  empa- 
cho  de  cantar,  e  esfor9ar  a  voz,  e  gaanfar  melhor  geito  e  mais  gracioso 
de  cantar.»  (P.  451.)  Estas  cantigas  proCanas  usavam-se  em  todos  os 
officios,  e  so  depois  do  Concilio  de  Trento  é  que  foram  banidas  da  li- 
turgia; nas  ConstituigSes  dos  Bispados  portuguezes  ha  uma  severa  e 
constante  prohibÌ9So  d'essas  arias  e  motetes,  signal.do  seu  frequenta 
e  tenacissimo  uso.  D.  Duarte  tambem  provìdencfa  emquanto  &  ezpres- 
sSo  que  se  deve  dar  à  musica: 

citem,  se  deve  guardar  que  o  cantar  seja  segundo  as  cerimonias 
da  Igreja,  ou  triste  ou  ledo,  e  segundo  os  tempos  em  que  esteverem.» 
(P.  451.) 

cItem,  devem  seer  avysados  que  em  qualquer  cousa  que  ouverem 
de  cantar,  ora  seja  canto  feito  ou  descante^  declarem  a  letera  d'aquello 
que  cantarem,  salvo  se  ella  for  deshonesta  pera  se  dizer.»  (P.  453.) 

Da  necessidade  de  accordar  as  vozes,  veiu  a  fixagSo  das  claves, 
a  principio  marcadas  por  letras.  Diz  D.  Duarte:  cem  qualquer  cousa 
que  cantarem  devem  declarar  a  letera  vogai  segundo  he  scripta,  e  esto 
porque  alguus  teem  de  costume  pronunciar  mais  huua  letera  que  en- 
tra em  aquello  que  cantam.»  (P.  454.) 

Aqui  se  véem  acceites  ambas  as  fórmas,  o  canto  feito  ou  grego- 
riano, e  o  de  muitas  vozes.  Comparando-se  està  despreoccupa9So  com 
as  queixas  dos  partidarios  do  canto  antigo,  vè-se  que  a  lucta  tinha  aca- 
bado.  Como  Jean  des  Murs  se  queixava  amargàmente:  «Oh!  se  os  an- 
tigos  mestres  da  arte  ouvìssem  o  descante  d'estes  doutòres,  o  que  di- 
riam?  0  que  fariam?  Elles  interromperiam  o  discipulo  d'està  musica 
nova,  para  Ihe  dizerem: — NSo  foi  de  mim  que  aprendeste  estas  disso- 
nancias,  e  o  teu  canto  nSo  està  de  accordo  com  o  meu.  Pelo  contrario, 
tu  me  contradizes  e  me  escandalisas.  Cala-te,  antes;  mas  tu  antes  que- 
res  delirar  e  deseantar.w  *  As  Universidades  coadjuvaram  està  revolu^So. 


1  Apnd  Victor  Le  Clero,  HUt,  LiU.,  t  x,  p.  580. 


0  ESTUDO  6EBAL  EM  LISBOA  Ili 

Além  da  influencia  dos  estudos  humanisticos  na  eiiiancipa9So  da 
consciencia  individuai,  as  Universidades  exercerani  ama  profunda  acgSo 
social  cooperando  pelos  seus  doutores  legistas  para  a  liberta9So  e  pre- 
ponderancia  da  esphera  ciyil.  Està  obra  interessava  directamente  os 
reis;  e  se  a  fnnda^So  da  Universidade  pelo  rei  D.  Diniz  é  simaltanea 
com  a  restrìc92o  do  direito  de  conferir  nobreza  e  limitagUo  da  classe 
que  gosava  d'esse  fòro  estabelecidas  nos  NobUiarios,  tambem  esse  outro 
rei  que  onificou  os  fóros  locaes,  convertendo  as  garantias  dos  Foraes 
no  direito  commum  das  OrdenaySes  do  Reino,  o  rei  D.  Manuel,  reor- 
ganisa  a  Universidade  dando-lhe  novos  Estatutos;  em  1537  D.  Jo2Lo  m 
chama  a  si  a  faculdade  de  Ihe  nomear  os  Reitores.  Todas  as  leis  e  de- 
cretos  que  .se  acham  no  Archivo  nacional  relativos  &  Universidade  de 
Coimbra,  e  summariados  no  Indice  da  legisla92U)  por  JoSo  Fedro  Ri- 
beiro,  encerram  quasi  que  exclusivamente  privilegios  e  doa93es  de  ren- 
dimentos.  Quando  a  Universidade  passou  para  Coimbra,  accentuou-ee 
mais  o  seu  caracter  real  ou  secular,  sendo  Mestre  Fedro,  pbysico  do 
rei,  e  Martim  Louren90,  seu  clerigo,  os  procuradores  na  c6rte  dos  ne- 
gocios  da  Universidade. 

N'esta  època,  em  que  a  Theologia  absorvia  teda  a  cultura  dos  es- 
piritos,  a  Medicina  era  olhada  corno  um  tanto  heterodoxa,  por  causa 
das  escholas  arabes;  o  facto  da  preferencia  lisada  pelo  rei  ao  seu  phy- 
sico  condiz  com  a  guerra  de  intriga»  domesticas  em  que  o  envolveram 
08  franciscanoB,  jà  com  a  chamada  Rainha  Santa,  jà  com  o  proprio  fi- 
Iho.  Uma  provisSo  de  1  de  dezembro  de  1312  permitte  que  os  Escho- 
lares  e  os  Lentes  possam  comprar  casas  em  Coimbra  e  deixal-as  por 
sua  morte  a  pessoas  leigas;  era  evidentemente  um  intuito  de  definir  o 
caracter  secular  de  uma  classe  cujo  instituto  era  dotado  com  bens  ec- 
clesiasticos. 

Dizia  0  antigo  ditado:  e  Onde  està  o  rei,  està  a  córte;»  e  conse- 
gointemente  a  Universidade,  comò  {unda9So  real,  devia  estar  proxima 
da  sua  auctoridade  immediata.  For  Carta  de  16  de  Agosto  de  1338 
de  D.  Affonso  iv,  transferindo  a  Universidade  de  Coimbra  para  Lisboa, 
dà-se  comò  fundamento  e  a  asaùtencia  que  nesta  ddade  fazia  Eirei  a 
maior  parte  do  anno.^  ^ 

A  transferencia  da  Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra,  em 
1307,  foi  pedida  por  D.  Diniz  ao  papa  Clemente  v;  o  papa  allude 
aos  scandalla  et  diasentiones  que  se  deram  entro  os  escbolares  e  ob 


1  Liv.  rr  da  Ghane,  fl.  30,  y.  Ap.  J.  P.  Bibeiro,  Ind.  ckr. 


i  1 2  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

cidadSoB,  por  causa  dos  prìvilegios  que  gosavam,  taes  corno  o  doB  ala- 
gueres  das  casas  taxadas  para  os  estadantes  e  o  fòro  criminal  eccloBias- 
tico.  Ao  mesmo  tempo  que  o  papa  Clemente  v  expedia  de  Poitiers  em 
26  de  fevereiro  de  1308  urna  bulla  para  o  rei,  confirmando  ob  prìvi- 
legios concedidos  por  Nicolio  iv,  remettia  na  mesma  data  urna  outra 
ao  arcebispo  de  Braga  e  ao  bispo  de  Coimbra,  para  effectuarem  a 
transferencia  do  Estudo  geral.  NSo  era  propriamente  a  mudanga  da& 
Faculdades  o  objecto  d'està  commissSo,  porque  pela  Carta  de  Ctmati- 
tui^  do  Esiudo  geral  em  Coimbra  de  27  de  Janeiro  de  1307,  jd  a  Uni- 
versidade  ostava  funccionando  n'aquella  sua  nova  sède;  o  trabaiho  dos 
dois  bispos  consistia  em  substituir  as  rendas  que  a  Universidade  per- 
derà na  mudanga  de  Lisboa.  Os  Abbadea  e  Prìores,  que  haviam  do- 
tado  a  Universidade  quotisando-se  nos  rendimentos  das  suas  egrejas, 
com  auctorisagSo  de  Nicolào  iv,  retiraram  os  seus  subsidios  por  nSo 
acquiescerem  à  vontade  de  D.  Diniz,  na  transferencia  do  Estudo  geral 
para  Coimbra;  a  bulla,  de  Clemente  v  permittia  a  annexagSo  de  seis 
egrejas  parochiaes  do  padroado  real  para  mantimentos  dos  Mestres  do 
Estudo  de  Coimbra,  e  ob  dois  prelados  escolheram  aa  egrejas  de  Scure 
e  Pombaly  que  tinham  pertencido  à  Ordem  dos  Templarìos  recente- 
mente extincta,  e  que  o  rei  incorporara  na  nova  Ordem  de  Cavalleria 
dos  Freires  de  Chrìsto.  O  Mestre  e  Conventuaes  da  nova  Ordem  repre- 
sentaram  ao  monarcha  para  que  llies  permitisse  ficarem  com  as  egre- 
jasy  pagando  a  Ordem  de  Chrìsto  os  salarìos  dos  mestres  do  Estudo. 
A  resoluySo  do  monarcha  nSo  foi  prompta;  sómente  em  1323  em  escrì- 
ptura  de  18  de  Janeiro,  datada  de  Santarem,  é  que  permittiu  a  compen- 
sa^SLo,  sabendo-se  por  este  documento  ^  a  importancia  dos  salarìos:  ao 
Me^re  das  Leu,  600  livras;  ao  de  Decretos,  500;  ao  da  Fisica^  200; 
ao  de  Grammatica,  200;  ao  de  Logica,  100;  ao  de  Musica,  75;  a  douB 
Conservadores^  40  a  cada  imi.  Os  pagamentos  eram  por  S.  Lucas  (18 
de  outubro)  e  pelo  S.  Jofto.  Por  este  documento  se  ve,  que  as  cathe- 
dras  tinham  ainda  um  so  professor;  que  a  hierarchia  pedagogica  es- 
tava confundida,  n3o  se  destacando  as  Artes  das  cadeiras  maiores;  e 
que  as  épocas  escholares  eram  apenas  duas,  comò  ainda  hoje  se  observa 
nos  cursos  das  Uniyersidades  aUemSls.  É  d'este  tempo  que  os  medioos 
foram  chamados  Fisicos,  porque  se  denominava  comò  Fisica  a  cathedra 
de  Medicina.  '  Muitas  foram  as  providencias  de  D.  Diniz  no  estabeleci- 


^Livro  Ferde,fl.  2y  a4. 

>  Por  orna  Carta  de  D.  Afionso  xv,  de  1328,  vé-Be  que  a  Ordem  de  Christo  ii2o 
compria  sempre  o  seu  compromisso  para  com  a  Umversidade,  por  que  o  rei  em  15 


0  ESTUDO  GERAL  EM  USBOA  113 

mento  da  Universidiide  em  Coimbra  ;  em  Carta  de  27  do  novembro  de^ 
1308,  datada  de  Leiria,  manda  aos  alcaides,  alvazis  e  concelho  de 
Coimbra,  e  ao  sea  almoxarife  e  seu  escrivfto  de  Cóimbra,  para  que  os 
escholares  tenham  a^ougues,  camìceiros,  yinhateiros,  padeiros  e  met* 
tam  seaB  almotacés;  ^  em  Carta  de  15  de  fevereiro  de  1309  datada  de 
Lisboa,  estàbelece  a  protecyfto  aos  escholares,  os  quaes  nSo  serSo  pre- 
808  bem  comò  os  eeus  homens  depois  da  noite,  a  quaesquer  horas,  se 
andarem  com  lantemas,  candela  ou  outro  lume.  Ficavam  assim  inde* 
pendentes  da  snbordina^So  ao  ^930  eorrìdo,  vivendo  em  nm  bairro  es- 
pecial da  porta  de  Almedìna  para  cima.  0  costume  do  «tno  corridoy. 
em  Portugal,  córrespondia^ao  eouvrefeu  das  outras  cidades  eoropéas. 
Na  Carta  de  25  de  maio  de  1312,  fala-se  dos  furtos  e  desagnisadoa 
noctnmos  «e  esto  porque  non  tangiam  sino  na  See  as  horas  que  de- 
viam  qne  é  acostumado  por  meu  senhorio  de  se  tanger. . .  que  tanjam 
3  vezes  ao  dia  0  sino  grande  da  see.  • .  quem  andar  depois  se  filhe  e 
leve  ao  castello . . .  e  se  for  escolar  ou  seu  homem  e  levar  armas  defe- 
sas  Ib'as  filhem  e  os  levem  ao  castello,  e  no  outro  dia  se  entreguem 
ao  juiz  d'elles,  levando  o  alcaide  a  carceragem.»  {Livro  Verde,  fl.  14). 
Ainda  hoje  existe  o  costume  d'este  sino  tangido,  chamado  no  calSo  aca* 
demico  a  cabra.  Pela  Carta  de  25  de  maio  de  1312,  ao  alcaide  e  alva- 
2Ì8,  sabe-se:  tgue  kavia  poucas  casas  na  almedina^  muitos  pardieiros  e 
casas  derribadas. . .  »  '  O  monarcha  impoz  que  fossem  reedificadas,  para 
serem  alugadas  aos  estudantes.  N'esta  mesma  carta  determina-se  «ao 
alcaide  e  alvazis, . .  para  que  aluguem  aos  escolares  as  casas  da  porta 
d'almedina  para  ctma.»  Por  Carta  de  D.  Fedro  i,  de  1361  descreve-se 
0  bairro  dos  escholares  :  tbairro  limitado  dea  a  porta  d'aimedina  para 
dentro. . .  que  era  muito  estreito. . .  per  razam  das  casas  que  na  moti- 
yidade  (terremoto)  se  perderam ...  e  muitos  pousam  no  dito  bairro,  e 
qne  o  dito  bairro  seja  contado.»  ^  Ainda  em  1365,  toma  0  rei  a  diri- 
gìr-se  às  mesmas  auctoridades  sobre  o  bairro  apartado.  Os  conflictos 
dos  estudantes  com  a  populajSo  burgueza  é  que  impunham  està  separa- 
sse, que  parecia  um  privilegio;  em  Carta  de  6  de  novembre  de  1370, 
D.  Fernando  escreve  ao  Conservador  da  Universidade  «sobre  os  privi- 
legioB  dados  aos  moradores  da  almedina  da  cidade  de  Coimbra,  manda 


de  julho  d'este  anno  esoreve  ao  Conservador  para  «que  os  Mestres  tenham  pela 
Ccmmenda  de  Pombal  1.500  libras,  e  pela  de  Soure  1.200  para  os  salarìos;  e  qu» 
procedam  contra  os  devedores.»  {Livro  Verde^  fl.  23  y  e  24). 

1  Livro  Verde,  fl.  12. 

2  Ilndem,  fl.  14  y. 

3  Ibidem,  fl.  23. 

BIST.  UN.  & 


114  .HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

que  08  guardem,  especialmente  sobre  prisSes  dos  escholares  e  officiaes.»' 
Porém,  por  Carta  de  14  de  outabro,  d'este^mesmo  anno/vé-se  que  se 
ia  alargando  o  bairro  apartado  para  fora  da  Almedina,  escrevendo  o 
rei:  «Sobre  os  escolares  terem  escolaa  e  lerem  no  arrabalde  da  ci- 
dade. . .  que  Ihes  dessem  eacolas  convinhaveis  e  pousadas.  • .  e  que 
das  casas  que  houver  no  an*abalde  ù/gam  escolàB  e  pousadas  em  que 
morem  corno  se  Ihes  davam  antes  quando  liam  dentro  em  essa  alme-- 
dina.^^  O  ensino  da  Theologìa  fora  da  Universidade,  obrigava  urna 
parte  dos  escolares  a  sahirem  do  seu  bairro  apartado  para  cursarem 
essa  disciplina  nos  conventos  dos  Dominicanos  e  dos  Franciscanos.  Era 
urna  das  causas  dos  conflictos  com  a  popula9So  burgueza. 

A  prohibÌ9fto  do  ensino  da  Theologia  na  Universidade  de  Lisboa, 
encerra  urna  grande  luz  nfto  so  para  se  comprehender  a  organisa^^ 
das  Universidades  da  Europa,  no  seculo  xiii,  emquanto  ao  quadro  das 
disciplinas  pedagogicas  e  subsequente  centralismo  dos  estudos  theolo- 
gicos,  corno  para  definir  as  phases  historicas  de  Universidade  e  Esùudo 
geral,  porque  passou  a  institui^So  do  rei  D.  Diniz. 

Pela  bulla  de  1290,  o  Estudo  geral  de  Lisboa  conferia  nos  sena 
gràos  o  direito  de  ubique  regendi;  em  virtude  d'està  prerogativa  uni- 
versitaria OS  lentes  eram  contractados  e  attrahidos  de  nmas  para  ou- 
tras  universidades,  segundo  a  sua  reputa9fto;  e  os  estudantes  podiam 
tambem  preferir  as  universidades  mais  afamadas  em  certo  numero  de 
disciplinas.  A  falta  da  Faculdade  theologica  no  Estudo  goral  de  Lis- 
boa, causava  por  ventura  uma  diminuta  frequencia  de  escholares,  indo 
OS  que  seguiam  as  ordens  graduar-se  em  Paris.  NSo  tinhamos  bem  uma 
Universidade,  mas  uma  Faculdade  permittida. 

Conhecedor  dos  estudos  theologicos  no  mosteiro  de  Santa  Cruz  de 
Coimbra,  seria  talvez  oste  um  dos  principaes  motivos  que  levaram  o  rei 
D.  Diniz  a  transferir  a  Universidade  para  Coimbra  em  1307  ;  '  està 
transferencia  é  denominada  pelo  proprio  monarcha  uma  funda9&o  :  tinau- 
guramos  radicalmente  o  Estudo  geral.^  0  estudo  da  Theologia,  peculiar 
dos  Dominicanos  e  Franciscanos,  que  reagiam  centra  a  Renascenya  do 
seculo  XIII  corno  os  Jesuitas  reagiram  centra  a  Renascenya  do  seculo 
XVI,  nfto  é  incorporado  no  plano  universitario,  nSo  tendo  por  isso  a  ca- 
deira  dota$So  real;  so  apparece  salariada  em  1400.  Apesar  de  haver 


1  Limv  Verde,  fi.  32. 
s  Ibidem,  fi.  32  y  e  83. 

'  J4  em  Janeiro  da  èra  de  1345  (amie  de  1307)  se  achava  a  Universidade 
funodonando  em  Coimbra.  (J.  P.  Ribeiro,  Diss.  Chron,,  t  tv,  p.  234.) 


0  ESTUDO  6BRAL  EM  LISBOA  115 

n'esta  transformagSo  meatres  da»  sagradas  letrasj  nem  por  isso  a  Uni- 
versidade  de  Ooimbra  gosou  a  prerogativa  de  Estado  geral  ou  da  /a- 
-cìdtas  vbigue  doeendi;  e  nSo  tendo  outra  importancia  mais  do  qne  am 
Estado  realy  era  por  isso  que  acompanhava  a  cdrte,  voltando  ontra  vez 
para  Lisboa,  onde  jà  se  acha  estabelecida  em  1338,  porqne  o  rei  ahi 
reside  à  maior  parte  dò  anno.  Como,  porém,  favorecer  a  nova  institoi- 
^SiOy  se  Ihe  falta  a  facaldade  ubique  docendif  Dispondo  do  poder  tem- 
pora!, o  rei  D.  Fedro  i  centralisa  os  estudos,  prphibindo  que  se  en- 
sine  fora  das  Escholas.  Pela  madan9a  da  Universidade  de  Lisboa  para 
Coimbra,  os  Priores  e  Abbades,  que  tSo  geherosos  se  mostraram  na  do- 
ta9So  do  Estudo  geral,  contribuindo  com  parte  das  soas  rendas,  nega- 
ram-se,  sob  o  pretexto  da  mudan9a,  a  continaarem  esse  encargo.  ^  As- 
8im  desde  1307  a  Universidade  fioou  inteiramente  real.  D.  Diniz,  que 
tinha  com  os  bens  dos  extinctos  Templarìos  constituido  a  Ordem  dos 
Cavalleiros  de  Christo,  obteve  em  1323,  do  Mestre  d'està  Ordem/  que 
das  rendas  das  egrejas  de  Soure  e  Pombal,  que  Ihes  entregara,  tirasse 
OS  salarìos  para  pagar  aois  lentes  e  officiaes  da  Universidade  estabele- 
cida em  Coimbra.^  Quando  foi  novamente  transferida  para  Lisboa,  em 
16  de  agosto  de  1338,  a  Ordem  de  Christo  recusou-se  a  entregar  os 
rendimentos  das  egrejas  de  Pombal  e  Soure,  pretextando  o  facto  de 
aer  tirado  o  Estudo  geral  a  Coimbra.  Outra  vez  se  encontrou  a  Uni- 
versidade sob  a  ègide  do  poder  real,  annezando-lhe  os  rendimentos  das 
egrejas  do  seu  padroado,  em  Sacavem,  Azambuja,  Torres  Vedras, 
duas  em  Obidos,  e  as  da  diocese  de  Lisboa.  Para  està  annexa9lo  foi 
preciso  obter  a  bulla  de  Clemente  vi,  de  7  de  Janeiro  de  1348,  que 
concedia  apenas  que  se  applicasse  à  Universidade  até  à  quantia  de 
ires  mil  libras  (de  36  réis);  no  cumprimento  d'està  bulla  o  poder  real 
so  ao  fim  de  quatro  annos  conseguiu  vencer  as  resistencias  dos  prio- 
res das  varias  egrejas  annexadas,  prolongando-se  a  resistencia  do  prìor 
de  Sacavem  até  final  senten9a  a  favor  da  Universidade,  em  1386.  A 
historia  economica  da  Universidade  de  Coimbra,  tSo  interessante  comò 
a  litteraria,  mostra  claramente  que  bem  pouco  deveu  està  instituigSo 
i  iniciativa  e  impulso  ecclesiastico.^ 


1  Diz  J.  Maria  de  Abreu  :  «pretesto  com  que  os  prelados  de  diversos  mostei- 
roB  se  ezcusaram  ao  pagamento  das  collectas,  que  haviam  offerecido  para  a  susten- 
ta^io  da  Universidade,  quando  se  fondant  prìmeiro  em  Lisboa.»  (ImUttUo^  t  n, 
p.  28. 

>  Obrìgadop^la  Escriptora  de  18  de  Janeiro  de  1323,  porque  a  Ordem  de 
Christo  Ilio  querìa  cnmprir  o  encargo  que  Ihe  ezigira  o  rei. 

>  0  Dr.  Motta  Veiga,  no  Eèbo^  hklarioo-UUerario  da  JFyteiddade  de  Theolo- 

8* 


116  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIBfBRA 

£m  1354  é  trasladada  outrA  vez  a  Universidade  para  Coimbra;* 
poréiDy  nBo  Ihe  aproveitaram  os  estudos  theologicos  de  Santa  Croz, 
porque  os  estudos  de  Paris  attingiram  o  mais  alto  esplendor,  centrali» 
sados  ali-  pela  influencia  dos  papas  de  AvinhSo.  Na  obra  de  Fr.  H. 
Denifle,  A»  Unwersidadea  da  Edade  mèdia  até  ao  seculo  XIV,  apre* 
sentam-se  algons  aspectos  d'està  falta  da  fiEu^uldade  theologica  em  al- 
gumas  UmversidadeSy  por  onde  os  Papas,  firmados  no  poder  espiri* 
tnal,  luctavam  com  os  Reis.  Assim  o  papa  restringia  o  poder  tJnque 
idocendij  e  o  rei  apenas  podia  centralisar  os  estudos  no  seu  estabele* 
cimento.  Diz  Denifle:  e  Até  1400,  houve  46  Universidades,  mas  de 
umas  28  de  entre  estas,  iste  é,  de  quasi  dois  ter90s,  foi  excluido  na 
època  da  sua  funda9So  o  estudo  da  Theologia.  Para  esplicar  este  facto, 
que  até  agora  se  nSo  julgava  tSo  goral,  e  que  nfio  pode  deixar  de  cau- 
aar-nos  admiragSo,  tem-se  dito  que  a  Theologia  era  entSo  ensinada  nas 
escholas  dos  conventos,  especialmente  dos  dominicanos  e  franciscanos. 
Mas  està  explicafSo  nSo  satisfaz.  O  motivo  porque  se  erigiram  ou  per- 
mittiram  cadeiras  de  Theologia  so  n'um  numero  relativamente  pequeno 
de  Universidades,  deduz-se  das  consideraySes  seguintes.  A  principio 
fundaram-se  algumas  universidades  onde  so  se  estudava  o  Direito,  ou- 
tras  onde  se  estudava  so  a  Medicina,  e  nSo  era  por  entSo  necessario 
fieuEcr  entrar  a  Theologia  no  quadro  dos  estudos  de  taes  Universida- 
des, que  nos  apparecem  na  Italia,  na  Fran9a  e  na  Hespanha.  Por  oa- 
tro  lado,  Paris  era  ji,  em  parte,  desde  o  secnlo  xii,  havida  corno  a 
patria,  corno  a  terra  classica  da  Theologia.  Honorio  iii  disse-o  expres- 
samente  em  1219,  e  as  suas  palavras  continuaram  a  ser  verdadeiras 
por  algnns  seculos.  Todavia,  nos  documentos  pontificios  do  seculo  xm, 
relativos  à  fundajSo  e  privilegios  das  Universidades,  ainda  nSo  era  for* 
malmente  prohibido  o  estudo  da  Theologia  nas  Universidades,  ou  n'al- 
gumas  d'ellas.  Apenas  NicoUo  iv  prohibiu  que  em  Montpellier  e  Lis- 
boa se  conferissem  gràos  em  Theologia.  Mas  no  seculo  xiv,  precisa- 


^rta,  for^ou  as  conclueoes  :  «que  a  UniverBÌdade  foi  fundada  por  influencia  e  a  pe- 
£do  do  clero  portuguez;  que  foi  o  clero  portnguez,  que  principalmente  concoireu 
para  a  sustenta^So  e  conB€rva9So  da  mesma  Universidade,  logo  desde  o  seu  prin- 
apio.»  (Pag.  26  seg.)  A  comprehensSo  dos  documentos  mostra-nos  o  contrario.  J. 
Silvestre  Bibeiro  chega  a  caracterìsar  a  Universidade  corno  pontificia. 

1  O  locai  em  que  se  estabdeceram  as  Escholas  e  o  bairro  dos  estndantes,  em 
Coimbra,  desde  1907,  foi  da  Porta  da  Almedina  para  dentro^  da  Foria  da  Alme* 
dina  para  cuna,  corno  se  sabe  pela  referencia  dos  documentos  de  1861  e  1377,  e 
pela  tradi^io,  que  eollocara  a  Univereidade  no  sitio.onde  foi  mais  tarde  fbndado 
o  Collegio  de  S.  Paulo. 


0  ESTUDO  GERAL  Eli  USBOA  ii7 

mente  no  tempo  em  que  os  Papas  residiam  em  AvinhSo,  e  a  Universi- 
dacie  de  Paris  era  designada  corno  romanae  sedis  studium,  apparece 
freqaentes  vezeS;  nos  documentos  pontificios  relativos  i  erecgSo  de 
Estados  geraesy  a  seguii^te  fòrmula:  sSo permittidos  os  esiudos  em  qwd- 
quer  Facvidade,  menos  em  Theologia,  Os  Papas  de  AvinUU)  ligavam 
urna  ìmportancia  especial,  que  é  facii  de  comprehender^  ao  principai 
estabelecimento  litterario  da  Franca,  que  era  ao  mesmo  tempo  o  pri- 
meiro  da  christandade,  e  interessavam-se  mais  do  que  qualquer  dos 
sens  antecessores  em  que  elle  fosse  frequentado  por  individuos  vìndos 
de  todas  as  partes  da  Europa.  Este  firn  podiam  elles  attingil-o  so  por 
meio  de  privilegios  concedidos  precisamente  &  Faculdade  a  que  a  Uni- 
versidade  de  Paris  devia  a  sua  gloria.»  ^  Comprehende-se  i  vista  da 
generalidade  d'este  facto^  que  no  seu  primeiro  periodo  historico  a  TJni- 
versidade  de  Coimbra  fosse  apenas  uma  Faculdade  permittida  sem  a 
prerogativa  de  ubique  docendi. 

A  instituÌ9&o  universitaria,  pela  sua  tendencia  secular  ou  civile 
reagia  por  uma  forte  centralisa9So  do  ensino;  assim,  por  Carta  de 
22  de  outubro  de  1357  o  rei  D.  Pedro  manda  que  os  Reitores  e  Con- 
servadores  nSo  consintam  que  alguem  ensine  fora  das  Escholas  e  de 
ligSOy  salvo  de  Partes  ou  de  Regras  ou  de  Gaton  ou  de  Carttda,  ou  dos 
Livros  meores;  e  os  que  quizerem  lér  os  Livros  maìores  os  venham 
lér  nas  Escholas.  ^  Este  mesmo  intuito  centralisador  é  manifesto  na 
penalidade  imposta  em  1384  por  D.  JoSo  i,  condemnando  os  que  lèrem 
fora  das  Escolas  em  10  libras  pela  prìmeira  vez,  em  20  pela  segunda, 
tendo  &  terceira  expulsSo.  Pela  prohibÌ9llo  de  1357  se  infere  que  j4 
se  ia  destacando  um  ensaio  dementar  de  prìmeiros  rudimentos,  que 
constava  da  carta  do  A  B  C  e  da  leitura  do  Proverbios  de  CaiSo.  No 
Leal  Conselheiro  do  rei  D.  Duarte  ha  uma  referencia  ao  ensino  das 
crianQas:  «E  filhayo  por  hufl  A  B  C  de  lealdade,  ca  he  feito  principal- 
mente para  senhores  e  gente  de  suas  casas,  que  na  theorìa  de  taes 
feitos  em  respeito  dos  sabedores  por  mo90s  deveemos  seer  contados^ 
pera  os  quaes  A  B  C  he  sua  propria  en8Ìnan9a.»  '  Na  sua  obra  o  rei 
D.  Duarte  cita  por  vezes  os  Proverbios  de  CatSoj  e  ainda  no  primeiro 
quartel  do  seculo  xv  invocava  a  sua  auctoridade:  e  Do  que  pertence 
aos  senhores,  mais  non  screvo,  por  me  non  louvar  ou  doestar  por  que 


1  Die  UmverniOten  des  MiUdaUeré  bir  1400, 1 1,  p.  703  a  705.  Ap.  J.  il.  Bo- 
drigaes,  A  Faculdade  de  Theologia,  p.  28.  Coimbra,  1886. 
s  lAvro  verde,  fl.  19,  f.  J.  P.  Ribeiro,  Indice  ékronòlog. 
»  Op.  cit.,  p.  5. 


118  HISTORI A  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

o  Gatom  q  defende . . .  >  ^  Aà  Begras,  a  qne  se  refere  a  prohibÌ9fto  de 
1357y  silo  a  desìgna^So  corrente  do  Quicumgue  vult^  ou  o  Symbolo  de 
Santo  Athanasio,  que  se  repetia  de  cor,  *  e  sobre  que  se  exerceram  mak 
cedo  as  linguas  vnlgares.  Sob  o  titulo  de  Partes,  corno  jà  observimoSy 
designava^se  a  Stimma  Theologica  de  S.  Thomaz,  e  no  ensino  da  Theo- 
logia,  na  cadeira  de  vespera,  davam-se  As  Partes  de  S.  Thomaz, 
corno  no  quarto  anno  do  carso  das  Artes,  no  secalo  xvi,  se  conservavam 
a  i.*  e  a  2.*  de  S.  Th&maz. 

A  necessidade  de  am  centralismo  pedagogico  resultava  do  cahos 


r 

1  Leal  Conselheiro,  p.  38.  Acerca  d^eete  Iìtto  escreve  Leroux  de  Lincy  no  seu 
Le  Livre  det  Proverbes  frangaia:  «De  todos  estes  livros  de  moral  empregados 
doraote  a  Edade  mèdia  para  a  instmc^So  da  mocidade  o  mais  celebre  é  o  que  tem 
o  Dome  de  DyoniBius  Cato.  £  urna  collee^do  de  preceitos  dividida  em  quatro  partes, 
na  qual  a  sabedoria  antiga  do  paganismo  està  mistorada  com  os  preceitos  dos 
primeiroB  cbristSos.  É  bastante  difficil  dizer  quem  seja  o  auctor  d^esta  coUec^^P)  e 
apesar  das  eruditas  disserta^oes  feitas  no  seculo  xyii,  nada  se  conduiu  sobre  este 
ponto.  Durante  muitos  seculos  attzibuiu-se  està  obra  a  CatSo  o  Antigo,  que  a  com- 
puzera,  dizia-se,  para  instruc^So  do  seu  fiJho  ;  mas  é  facil  certificar  que  nem  Gatio 
o  antigo,  nem  Catio  de  litica  podiam  ter  escripto  este  livro,  pelo  menos  tal  corno 
chegou  até  nós,  pois  que  Virgilio^  Qvidio  e  Lucano  sSo  nomeados  entre  os  poetas 
cuja  leitura  era  recommendada.  0  erudito  Fabrìcio  fixa  plausivelmente  a  data  dos 
Disiicos  no  seculo  ii  da  nossa  èra  e  no  reinado  do  imperador  Valentiniano.  Està 
collec^Io  gosou  de  urna  grande  auctorìdade,  principalmente  nas  escholas,  onde  era 
considerada  comò,  segundo  Aulo-Gellio  (lib.  zìi,  cap,  2),  escripta  pelo  censor  romano 
para  uso  de  seu  filho.  Desde  o  seculo  ii  a  xn  numerosos  testemunhos  provam  a 
importancia  dos  Disticha  Catonis;  Isidoro  cita-os  nas  suas  Glosas,  Alcuino,  Fedro 
Abèlard,  Hincmar,  arcfaebispo  de  Reims,  e  muitos  outros  os  invocam  comò  teste- 
munho,  e  JoSo  de  Salisbuiy  elogia-os  corno  excellentes  para  a  educa^ào  das  crian^as 
e  adaptadissimo  para  Ihe  inspirar  os  melhores  principios  de  virtude.  A  reputa^ 
dos  DUttcos  estava  bem  firmada  nas  differentes  Universidades  da  Europa,  na 
època  em  que  come^aram a ser  traduzidos  em  francez.»  (Op.cU,,  t  i,p.  xlii.)  Le- 
roux de  Lincy  enumera  traduc^oes  da  primeira  metade  do  seculo  xu,  do  seculo  xin, 
e  comò  foi  urna  das  primeiras  obras  censagradas  pela  impressSo  antes  de  1445, 
prolongando-se  a  sua  popularidade  durante  todo  o  seculo  xn  e  xvu,  reunidas  is 
differentes  Pa^avras  de  Duro  dos  moralistas  litterarios.  E  concine:  «Como  se  ve, 
està  obra,  quem  quer  que  seja  o  auctor,  gosou  durante  mil  e  duzentos  annos  de  urna 
popularidade  immensa.  Composta  para  instruc^So  da  mocidade,  foi  elaborada  por 
differentes  troveiros  da  Edade  mèdia,  que  a  tomaram  o  texto  de  um  poema  moral 
e  de  uma  collec^So  de  proverbios.  A  imitalo  d'estes  yelbos  poetas,  os  nossos  ri- 
madores  do  seculo  xv  e  xti  apoderaram-se  dos  Didicoè  para  os  reunir  As  suas 
elocubra^fies.  Finalmente,  yolvendo  este  liyro  ao  que  fora  na  sua  orìgem,  è  uma 
oollec^io  de  quadras  ao  ueo  da  infancia.  Hoje  està  completamente  esquecido.» 
{Ibid.^  p.  xLTn). 

2  Fr.  Fortunato  de  8.  Boaventnra  traz  nos  InedUoa  de  Aleobaga^  1. 1,  p.  166, 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  119 

doutrÌBarìo  centra  o  qual  se  pretendia  reagir  por  am  severo  dogma- 
tismo. Rémusat  caracterisa  oste  cahos  doutrinario  no  typo  eminente  de 
Abelardo  que  em  Theologia  era  trinitario,  em  Metaphysica  platonico^  em 
Logica  aristotelico,  e  em  Rhetorica  cicerontaTio.  0  mesmo  cahos  se  dava 
HA  Jurìsprudencia  entro  civilistas  ou  bartholistasy  e  os  canonistas  ou  de- 
eretalistas,  Um  tal  cahos  so  podia  desapparecer  gradualmente^  se  o 
ensino  se  fosse  restringindo  às  bases  positivas  e  unanimes  da  sciencia 
objectiva  e  experimental,  qne  assignala  a  Rena8cen9a:  0  individua- 
lismo critico  prolongou  a  anarchia  intellectual,  dando  legar  à  compres- 
sSo  temperai  da  dictadura  monarchica. 

Referindo-se  &  centra]Ì8a9So  dos  estudos  na  Universidade,  està- 
belecida  pela  carta  de  D.  Fedro  i,  em  22  de  outubrp  de  1357,  inferiu 
J.  Maria  de  Abreu  que  està  incorpora^SLo  do  ensino  particular  era  a 
fórma  primitiva  dos  privata  docentes,  censervada  ainda  nas  Universi- 
dades  da  Allemanha.  '  Peles.estatutes  de  1384  permittiram-se  leituras 
sobre  qualquer  disciplina  nas  aulas  da  Universidade,  a  bachareis  e  es- 
cholares  examinados  e  aprevades  por  um  deutor  ou  mostre  da  facul- 
dade.  ^ 

Em  1377  foi  transferida  por  D.  Fernando  a  Universidade  para 


urna  antiquiBsima  traduc^So  portugueza  :  Este  he  o  Qaicumqae  vult  per  linguajem, 
No  ms.  266  da  livraria  de  Alcoba^a  achàmos  um  resumo  escripto  nas  guardas  do 
volume  : 

•Qualquer,  què  quiser  salvo  eeer,  sobretudò  Ihe  ha  mister  de  teer  a  fee  ca- 
tfaoHca; 

•Ca  a  qual  se  a  cada  hum  no  tever,  inteira  e  nom  corrompida,  pera  sen^pre 
sua  alma  seri  perdida. 

«Ca  fee  cathollca  aquesta  he  que  honremos  huum  Deus  em  Trindade,  e 
Trindade  em  unidade. 

«Està  he  a  fee  catholica,  a  qual  se  cada  huG  fielmente  firmemente  nom  creer^ 
per  nenhuma  guisa  salvo  pode  ser.  » 

1  «N*e6ta  epoca  havia  nas  Uóiversidades  lì^òes  ordinarias  e  eztraordinarins. 
Eram  estas  quasi  sempre  professadas  pelos  bachareis,  que  aspiravam  ao  grào  de 
doutor  ;  6  versavam  sobre  certo  numero  de  textos.  Os  escholares  pagavam  a  estes 
leitores.  Os  privata  docentes^  das  Universidades  de  Allemanha  sSo  um  simile  d'està 
antiga  institui^ào,  que  foi  decahindo,  depois  que  se  augmentara  o  numero  dos  pro- 
fessores  ordinarios  em  cada  faculdade,  com  rendas  proprias  para  pagamento  dos 
seus  salarios.»  M.  J.  de  Abreu,  Mem.  hi$L  da  Univeraidade,  No  InMuto,  t.  n,  p.  29. 

*J,  M.  de  Abreu  refor^a  a  sua  compara^&o:  «Era  o  systema  das  antigas 
Universidades  da  Allemanha,  que  ainda  hoje  vlgora  em  muitas  d'ellas.  Està  con- 
correncia  entre  os  professores  ordinarios  e  os  leitores  extraordinarios,  authorisados 
pela  Universidade,  revela  n*aquella  època  um  grào  de  adiantamento  mui  superior 
ao  qne  rasoavelmente  podia  esperar-se  na  nossa  situarlo.»  Ibid.,  p.  90. 


120  HISTOFUA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

Lisboa;  ^  conservou-se  ella  em  Coimbra  até  porto  do  firn  d'esse  anno, 
corno  se  infere  da  Carta  de  D.  Fernando  de  3  de  junho  de  1377,  e 
de  outra  do  1.^  de  julho  d'esse  mesmo  anno^  dirigida  a  Affonso  Martins 
Alvemaz.  N'este  primeiro  documento  declara  o  rei:  cE  vendo  e  con- 
siderando, qae  se  o  nesso  Studo  que  ora  estaa  na  eidade  de  Coimbra, 
fosse  mudado  na  de  Lisboa,  qae  na  nossa  terra  poderia  aver  mais  le- 
tradoB;  que  avena,  se  o  dito  Studo  na  dita  eidade  de  Coimbra  este- 
vesse,  por  alguns  lentes  que  de  outros  regnos  mandamos  vir  nSo  que- 
riam  leer  se  nom  na  eidade  de  Lisboa. . .  mandamos  que  o  dito  Studo, 
que  ora  estaa  na  dita  eidade  de  Coimbra,  scia  em  a  dita  eidade  de  Lis- 
boa pela  guiza,  que  ante  soya  estar.»  *  Na  carta  a  Alvemaz,  vem  a  re- 
ferencia  aos  Reitores  simultaneos;  ^  n'està  carta  pedia  D.  Fernando 
que  Ihe  enviassem  um  homem  da  escolha  da  Universidade  para  com 
elle  combinar  as  cousas  necessarias  ao  funccionamento  das  essholas  e 
moradas  dos  estudantes.  NSLo  se  sabe  se  os  lentes  mandados  vir  de 
outros  reinos  chegaram  a  ensinar;  é  certo  porém,  que  no  principio 
d'este  anno  escholar,  1.°  de  outubro  de  1377  cnfto  havia  no  Estudo  de 
Lisboa  ledores  de  Leis,  Decretaes,  Logica  e  PhUosophia,  por  cujo  mo- 
tivo a  Universidade  pedira  ao  rei  que  Ih'os  assignasse.»  ^ 

D.  Fernando  preoccupava-se  com  a  mudanfa  da  Universidade  de 
Coimbra  para  Lisboa,  e  este  pensamento  realisado  em  1377,  fòra  ap- 
presentado  ao  papa  Gregorio  xi,  quando  o  rei  Ihe  solicitou  a  concessfto 
das  insignias  caracteristicas  dos  gràos  de  Doutores,  Mestres,  Licenciados 
e  Bachareis.  Ao  conceder  essas  insignias,  pela  bulla  de  1376,  o  papa 


1  Depois  que  a  Universidade  foi  trasladada  para  Lisboa  por  D.  Feraando 
em  1377,  tomou  a  ser  estabelecida  nas  mesmas  casas  do  Campo  da  Pedrdni,  onde 
sempre  estiverà  ;  porém  nos  docnmentos  encontra-se  esse  locai  designado  com  daas 
novas  indica^oes,  Junto  à  Porta  da  Cruz,  por  que  ent&o  Lisboa  fòra  cercada  por 
urna  muralha  ordenada  por  D.  Fernando,  onde  se  abrira  essa  porta,  e  na  Moeda 
VtLha^  porque  alli  se  estabelecera  a  Casa  da  Moeda,  depois  qae  a  Universidade 
foi  mudada  para  Coimbra,  passando  desde  1377  para  os  pa^os  chamados  do  Li- 
moeiro.  As  casas  das  Escholas  ficaram  com  a  denominaQlU)  popalar  da  Moeda  Ve- 
Iha^  Sem  comtudo  deixarem  de  ser  as  mesmas  a  que  alludem  os  docnmentos  do  rei- 
nado  de  D.  Diniz. — Leit2o  Ferreira,  Noticiat  chronolopeas  da  Universidade^  p.  73. 
(Mem.  da  Ac.  de  Hist.  de  1729). 

<  Carta  de  3  de  junho  de  1377.  Livro  VerdSy  fi.  34. 

'  Sabede  que  os  rectorts  e  universidade  do  Studo  que  ora  estaa  na  eidade  de 
Coimbra, . .  Carta  de  1  de  julho  de  1377.  Liwro  Verde,  fl  40. 

^  J.  Maria  de  Abreu,  citando  a  Carta  de  1  de  Janeiro  de  1378.  Ap.  InsUtuto^ 
t  II,  p.  56.  Livro  Verde^  fl.  36  y  a  38  /. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  121 

Oregorìo  xi  dirige-a  ao  Estudo  de  Lisboa,  quando  so  no  firn  do  anno 
segQinte  é  que  a  madanfa  foi  effectaada.  NSLo  attriboimos  ÌBto  a  um 
equivoco,  mas  i  Bappo8Ì9llo  de  que  o  rei  de  Portugal  iena  jà  levado 
-à  pratica  o  seu  annunciado  intento,  que  estava  ligado  a  um  plano  geral 
de  reformas  emprehendidas  no  seu  reinado  e  que  vieram  a  fructificar  no 
tempo  de  D.  JoSo  i. 

Pela  Carta  de  1  de  julho  de  1377,  em  que  D.  Fernando  confirma 
OS  prìvilegios  da  Universidade  em  accordo  com  o  delegado  dos  esche- 
lares,  conhece>se  que  o  numero  dos  lentes  augmentara,  por  isso  que 
ahi  se  trata  dos  lentes  da  manhft;  este  costume  reapparece  em  todo  o 
seu  vigor  no  seculo  xvi.  Tambem  se  faz  referencia  n'esta  mesma  carta 
410S  actos  ou  exames  dos  escholares:  cOatrosi  nos  podio  que  fosse  nossa 
mercé  que  os  lentes  da  manhS  em  direito  fizessem  ao  menos  dois  auios 
no  anno  pera  os  escholares  averem  modo  de  arguir.  A  esto  respon- 
demos:  Mandamos  que  nos  prazia  e  praz  de  se  fazer  e  guardar  pela 
guiza,  que  por  elle  (Lopo  Esteves)  foi  pedido.»  ' 

A  mudan9a  da  Universidade  para  Lisboa,  à  parte  as  rasSes  que 
Ji  vimos  indicadas  pelo  rei  D.  Fernando  na  Carta  de  3  de  junho  de 
1377,  era  tambem  um  meio  habil  para  revisar  a  titulo  de  confirmasSo 
todos  08  privilegios  academicos,  modificando-os  em  harmonia  com  a 
auctoridade  real,  que  ia  gradualmente  avansando  para  o  exercicio  da 
dictadura  do  seculo  xv.  Na  mudanya  da  Universidade,  os  escholares 
pediram  por  via  do  seu  delegado  Lopo  Esteves,  que  o  rei  Ihes  confir- 
masse todos  OS  privilegios  que  gosavam;  o  rei  confirmou-lh'os,  mas 
submetteua  jurisdic9fto  do  Conservador  ao  direito  commum,  admittindo 
apella9So  das  sentengas  civeis  e  criminaes  d'estes  juizes  privilegiados, 
e  que  nos  autos  civeis  dessem  aggravo.  Regulamentou  tambem  a  fórma 
das  citagSes  a  requerimento  dos  escholares,  exigindo-lhes  prèviamente 
jnramento  de  nSo  procederem  de  ma  fé  e  seguirem  o  estudo  com  o 
intuito  de  aprender  e  n2o  de  se  aproveitar  do  fóro  escholar.  Pediam 
mais  OS  estudantes  licenga  regia  para  advogarem  emquanto  frequen- 
tassem  os  cursos,  porque  està  permissSo  attrahia  maior  numero  de 
alumnos.  O  rei  interpoz  a  sua  auctoridade,  estabelecendo  pela  Carta 
de  3  de  junho  de  1377, 'que  so  advogassem  pela  competencia  do  seu 
grio  OS  Doutores,  Mestres  e  Bachareis:  «Mandamos,  que  possam  esto 
fazer  os  que  forem  doutores,  e  msstres  e  bachareesy  e  outros  nom  ;  por- 


1  J.  M.  de  Abreu,  nas  Mem.  hUtorieoè  da  UniverMade  è  qua  fizou  este  facto, 
observando  que  Figueiroa  affirmava  que  até  aos  Elstatutas  de  1431  n2o  achara  no- 
tìcia  de  se  fazerem  ados  na  Universidade.  InsUttdo,  t.  ii,  p.  57. 


122  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

que  aos  escholares  nom  pArtence,  nem  é  proveitoso  de  o  fazerem,  por 
nom  averem  azo  de  leìxar  o  Estudo  e  de  aprender,  porqae  cbeguem 
e  ajam  gr&o  na  sciencia.»  D.  Fernando  fez  todas  as  concessSeB  que  ob 
escholares  pediram,  excepto  aquellas  que  cerceavam  a  auctoridade  e  a 
j  astica  real;  nSo  Ihes  dea  Ì8emp9llo  do  encargo  de  terem  cavallo,  que 
era  exigido  a  todos  os  que  tinham  um  detenninado  rendimento  (duas 
mil  livras,  pela  lei  de  21  de  agosto  de  1357).  E  comprehende-se  iato 
tanto  melhor,  quando  se  sabe  que  foi  sob  o  reinado  de  D.  Fernando 
que  se  estabeleceu  a  prìmeira  organisafSo  da  for9a  militar  em  Por- 
tugal.  Resalvando  a  independencia  das  justi^as  do  rei,  tambem  D. 
Fernando  nSo  consentiu  que  os  Conservadores  da  Universidade  podes- 
sem  processar  os  juizes  e  officiaes  das  differentes  terras  por  nSo  terem 
dado  cumprimento  aos  seus  mandados  e  sentenyas,  seni  que  primeira- 
mente  se  provasse  essa  negligencia  e  se  apresentassem  os  motivos  para 
em  vibta  d'elles  se  Ihe  dar  remedio. 

0  convite  de  mestres  estrangeiros  fez  com  que  a  Universidade,  por 
exigencia  d'estes,  fosse  transferida  pela  terceira  vez  para  Lisboa,  em 
1377. 0  rei  D.  Fernando  trabalhou  para  obter  para  a  Universidade  urna 
concessSo  do  papa  Qregorio  xi,  dos  gràos  de  bacharel  e  doutor  em 
qualquer  licita  faculdade;  o  papa  concedeu  os  gràos  e  insignias  pela 
bulla  de  7  de  outubro  de  1376;  porém  o  rei  queria  mais,  o  privile- 
gio vhique  docendi,  sem  o  que  nSo  tinha  um  Estudo  geral,  cujos  gràos 
valessem  em  teda  a  parte.  E  assim  que  se  podem  comprehender  as 
palavras  de  uma  nova  impetra9So  ao  papa  Clemente  vn,  em  que  o  rei 
D.  Fernando  diz:  ^quod  in  Regno  Portugalliae  Generale  Studiu¥> 
quod  in  illis  partibus  sufnme  foret  expediens,  non  habetur, . .  »  Desco- 
nhecida  a  corrente  historica,  està  confissSo  da  falta  de  um  Estudo  ge- 
ral em  1376  niLo  se  comprehende;  e  multo  menos  se  comprehende  a 
conces^So  do  papa  Clemente  vn,  que,  em  documento  de  7  de  junho 
de  1380,  satisfaz  o  pedido  de  D.  Fernando,  para  que  se  fimde  em 
Lisboa  um  Estudo  geral,  com  todos  os  privilegios  concedidos  aos  ou- 
tros  Estudos  geraes,  e  tendo  os  graduados  o  privilegio  ubigue  docendi. 
Este  mesmo  documento  foi  communicado  ao  bispo  de  Lisboa  e  ao  de&o 
de  Coimbra.  ^ 

Denifle,  na  obra  sobre  Ab  Universidadea  na  Edade  mèdia,  consi- 
dera este  facto  comò  constituindo  um  segundo  periodo  na  historia  da 


1  Estes  docomentOB  foram  pela  prìmeira  ve£  publicados  por  Denifle,  op.  cU.'t 
1. 1,  p.  580-582.  Ap.  J.  M.  RodrìgaeB,  opuBC.  cit,  p.  82. 


0  ESTUDO  GERAL  EM  LISBOA  123 

XJniversidade  portugaeza;  adqnirira  o  direito  ubigue  docendi,  elevan* 
do-se  acima  de  factddade  pennittida.  Este  progresso  foi  commum  à 
erolugSo  goral  das  Universidades;  diz  Donifle:  ^Afacultas  vbique  do- 
cendi  continha-se  jà  em  germen  no  conceito  do  Estudo  goral.  Faltava 
apenas  enuncial-a  formalmente^  e  Gregorio  xi  foi  o  primeiro  que  o  fez 
a  respeito  da  Universidade  de  Tolosa,  que  por  isso  ficon  fixando  època 
na  historia  das  Universidades.  A  excepgSo  a  respeito  das  Universida- 
des  de  Paris^  Bolonha,  e  em  parte  tambem  da  de  Oxford  e  posterior- 
mente da  de  Orleans,  que  por  muito  tempo  so  reconheceram  os  gràos 
por  ellas  conferidos  nas  Faculdades  que  formavam  a  sua  especialidade 
e  Bujeitayam  a  novo  exame  os  graduados  n'outras  Universidades,  fun- 
dava-se  apenas  na  eYolu9So  propria  d'estas  Universidades  e  nos  seus 
Estatutos  especiaes,  e  con'firma  a  regra  de  que  o  privilegio  da  factU- 
tas  ubique  docendi  era  uma  propriedade  caracteristica  dos  Estudos  ge- 
raes.»^  Parece  que,  sob  D.  Fernando,  a  Universidade  nSo  se  achava 
definitivamente  fixada  em  Lisboa,*  comò  se  infere  da  bulla  de  7  de  ju- 


1  Op.  eitf  p.  21-22.  Bodrigues,  ibidem,  p.  29. 

2  As  nnmeroBas  mudan^as  que  a  Universidade  sofireu  de  Lisboa  para  Coim- 
bra  e  de  Coimbra  para  Lisboa,  desde  D.  Dioiz  até  D.  Fernando,  sSo  considera- 
das  corno  a  principal  causa  do  desappare cimento  dos  documentos  primitivos  da  sua 
actividade  pedagogica.  Jgnora-se  quaes  foram  os  seus  primeiros  lentes  e  reitoresy 
podendo  vagamente  reconstruir-ee  esse  quadro  pelas  referencias  dos  documentos 
legaes.  Os  Bedeis  formavam  a  Tabula  Legentium  coma  lista  dos  nomes  dos  lentes 
das  diversas  cathedras  no  comedo  do  anno,  conforme  liam  &  bora  de  prima  (de 
manbà)  ou  de  vespera  (à  tarde)  ;  era  um  trabalbo  imperfeito,  come  ainda  se  ve  pe- 
las listas  ou  pautas  formadas  no  tempo  de  D.  Manuel.  Pelas  referencias  tiradas 

dos  alvarés  sobre  negocios  da  Universidade,  e  algumas  indica^des  dos  dois  cbro- 
nistas  Fr.  Antonio  da  Purifica^ào  e  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  formamos  a  se- 
guinte: 

Tabula  Legentium  d08  seoulos  Xin  e  XIV 

Mestre  MartinhOf  naturai  de  LeSo  de  Fran9a;  li  a  Canones  (1290.) 

Mestre  André  Urainus^  naturai  de  Viterbo;  interprete  dos  Santos  Padres 
(1290.) 

Mestre  Gerardo,  italiano;  leu  Theologia. 

Mestre  Alvaro  de  Veiros;  leu  Escriptura. 

Mestre  Agostivho  Bello;  foi  o  primeiro  que  leu  Artes,  e  passou  depois  a  ler 
TITieologìa. 

P.  Mestre  Domingos  Martins,  regrantc  ;  leu  Tbeologia  (1307.) 

Mestre  Gii  das  Leis^  que  fez  as  Constitui(5e8  da  Universidade  (1817.) 

P.  8im&o  da  Cnnn;  leu  Theologia  (1330.) 


124  mSTORU  DA  UNIVERSIDADB  DE  GOIMBRA 

nho  de  1380,  dirìgida  simultaneamente  ao  bispo  de  Lisboa  e  ao  delo 
de  Coimbra,  pelo  papa  Clemente  vu;  a  sna  fixa9fto  'para  sempre^  em 
Lisboa,  por  D.  JoSo  i,  em  1384,  actuou  profondamente  no  seu  desen- 
volvimento,  principalmente  no  que  respeita  &  Jarìsprudencia  e  i  Oos- 
mographia,  periodo  que  termina  em  1537,  e  que  cooperou  para  entrar- 
mos  dignamente  na  Renascen9a. 


Mestre  Pero  daa  Leu  (1339.) 

Mestre  Gongolo  das  Decretaes  (1357.) 

Mestre  Affonso  das  Lete  (1358.) 

D.  Joào  Affonao^  Doctor  in  utroque  jore  (1368.) 

Joào  SoMhes^  Doctor  em  Degredos  (1368.) 

Gimgalo  Miguena^  Bacharel  em  DegredoB  (1368.) 

Fedro  Domingues,  Mestre  de  Grammatica  (1368.) 

Mestre  Lucas,  lente  de  Theologia  (?) 

Mestre  Thadeo,  lente  de  Rhetorica  e  depois  de  Philosophia  (?) 

Johanes^  Doctor  Legom  (1385.) 

Steve  Jne»,  Bacharel  em  Degredos,  bedel  (1386.) 

Mestre  Menda;  leu  Physica  (1387.) 

Famào  Martina^  lente  (1388.) 

Lourengo  iinnet,  Doctor  em  LeiS|  Bacharel  em  Degredos  (1890.) 


CAPITULO  ni 


1  llDlTersiMe  sol)  a  Dlctadui  duuucUcì  (13M  i  I6H 


Ha  deaorìentafio  metaphydca  a  diBcipIina  bocUI  coocentra-ie  oa  Dìct 
uarchica  no  secnlo  xy. — ÀcfSo  dos  JurÌBConaultoB,  prevaleceiid( 
Ontologistas.— D.  Jolo  i,  definindo  a  dictadura  mODarchica,  fiza 
aidade  em  Liaboa,  em  1884,  e  invade  a  sua  autonomia  com  a  noi 
om  Frovedor. — Foctos  analogoa  aob  D.  Affonso  t  e  D.  Jo3o  u. — 
angustia  economica  da  UniverBidade,  pela  Teaiatencia  do  clero  em 
confbnne  ordeuava  a  bolla  de  1411.-0  Infante  D.  Henrique  ton 
tector  da  Universidade,  por  1418,  talvez  pelas  aatigas  dependencii 
Tcraidade  com  o  Mestrado  de  Chriato,  e  pela  resùtencia  contra  a 
do  Poder  real. — O  Eetndo  da  Hatbematica  e  da  Astrosomia,  on  a 
(So  do  piimelro  par  encyclopedico  dos  gregos.- — A  doa^So  do  In&nt 
riqne,  cm  1431,  de  nmas  caaaa  para  aa  anlaa  da  Uaiveraidade. — 0 
Theologia  apparece  salariado  deade  14D0;  dotado  com  doze  marco 
aimnaes  das  rendae  dog  dizimos  do  Hestrado  de  Cbrìsto  na  ilba  di 
— PesBoal  docente  em  1430. — Os  lid^oi  com  oa  vìgarìos  das  egri 
xadasàUuiTergidadeprolongam- Beate  1461> — Eatado  de  ignorane 
portnguez,  attestado  na  bulla  de  20  de  dezembro  de  1474. — Orige 
neaiae  magistiaee  e  dontoraes. —  Ob  EstadantcB  pobrcB,  Bob  D.  J 
Dnarte. — O  Infante  D.  Pedro  reconbece  a  neccBBÌdade  da  fundafS 
legioa  janto  da  Universidade  &  maneira  de  Oionia  e  Paris. — Nato 
tea  CoUegiOB. — 0  Infonte  D.  Fedro  projecta  em  1446  a  funda^ 
bra  de  nma  tlniverBidade  de  Leis,  Canones,  Theologia  e  Art«a,  ( 
las  rendas  da  egr^a  de  S.  Tbiago  de  Almalaguee. — O.  Affonao  r, 
sSo  de  1450,  pretcnden  tonar  efiectìva  a  creactio  da  nova  Umvei 
Coimbra. — 0  coUeetum  (colbeita)  ou  talha  nae  EecholaB  medlevaes 
tndantes  pobrea  de  8.  Nicolào,  Cofadore»,  Marlinelt,  Sopìtta»  e  < 
do*. — InatituifSo  do  Collegio  do  Dr.  Uangancha  para  Escholares  [ 
114S. — ConcluBÒes  defendìda«  pelo  Or.  HBi)gancha,emFÌ8a,diautc 
Srlvins,  em  1437.— Estatntos  feitOB  pela  UniveradadB  em  1431.— 
EO  T,  por  Alvari  de  1471,  eatabelece  om  novo  B^imento  ou  Estati 
Univeraidade. — A  coexistencia  dos  doìa  Reìtores. — 0  pedìdo  dos  '. 
efirtes  de  Vianna  sobre  os  estndos  da  Nobresa. — 0  desenvolvimenU 
doa  humanistas  no  Beculo  zv  e  a  Arie  w>va. — Os  trea  oapectoa  do 


126  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

V 

mo:  Ualiano  (Angelo  Policiano  e  Cataldo  Siculo);  germanico  (Clenardo);  e 
franeez  (o8  Grouvéas.) — Os  Legistas  tornam-se  impotentes  para  resolverem 
o  problema  da  reorganisa^So  do  Poder  temperai. — Os  Ontologbtas  oa  lie- 
taphysieos  absorvem-se  na  enidi^So  clasBica,  e  reapparecem  dirigindo  corno 
humanistas  o  secnlo  xyi. 


Os  seculos  XIV  e  xv,  em  que  se  opera  do  modo  mais  intenso  a 
dis8oIu9fto  do  regimen  catholico-feudal,  em  que  a  Sjnthese  absoluta  do 
theologismo  decae  nos  espiritos  pela  desorìenta9fto  metaphysica,  e  em 
qae  a  disciplina  temperai,  tomando  a  direc9fto  da  sociedade,  se  con* 
centra  em  uma  fo;te  dictadura,  estes  dois  seculos  em  que  come9a  ver- 
dadeiramente  a  edade  moderna,  tém  sido  geralmente  e  erradamente  con- 
siderados  corno  constituindo  o  firn  da  Edade  mèdia.  A  raslU)  d'este  erro 
ou  illusfto  é  evidente:  os  factos  caracteristicos  dos  seculos  xrv  e  xv 
estavam  jà  implicitos  na  term{na9So  da  època  medieval,  e  a  sua  espon- 
taneidade  e  similaridade  entro  todas  as  na^es  da  Europa  so  se  tor- 
nava apreciavel  comò  decomposiySo  latente  de  um  regimen.  A  scisSo 
protestante  no  seculo  xvi  è  que  se  impunha  com  toda  a  evidencia  aos 
espiritos  corno  a  crise  revolucionaria  e  de  individualismo  critico,  e  por 
isso  è  que  ahi  se  demarcou  a  Edade  moderna.  Porèm  esse  seculo,  corno 
OS  dois  seguintes,  sSo  o  phenomeno  da  dissolufSo  sistematica  do  re- 
gimen  catholico-feudal,  de  que  os  seculos  xiv  e  xv  foram  a  pliase  ini- 
cial.  '  Comte  caracterisou  a  transformagSo  historica  d'estes  dois  secu- 
los: <Ao  seculo  XIV  pertence  principalmente  a  dissolti^  espiritual,  ao 
passo  que  a  concentragfto  tempora!  caracterisa  principalmente  o  seculo 
seguinte.i*  J&  comprov&mos  uma  parte  d'està  affirma9So  historica,  se- 
^guindo  a  marcha  da  dissolujSo  espirìtual  atravès  do  conflicto  doutrina- 
rio  dos  Ontologistas;  agora  vamos  indirectamente  esboyar  a  manifes- 
ta9So  da  dictadura  temperai,  que  se  apodera  da  Universidade,  tira-lhe 
o  seu  individualismo  de  corporagSo  pedagogica  e  incorpora-a  na  uni- 
ficafio  das  funcfSes  do  estado.  Os  Jurisconsultos  foram  os  organisado- 
res  theorìcos  d'està  dictadura  monarchica;  a  transforma98o  do  regimen 
feudal  sob  D.  JoSo  i  operasse  pela  preponderancia  do  chanceller  JoSo 
das  Regras,  legista  da  eschola  de  Bolonha.  D.  Jole  i  fòra  levado  ao 
ihrono  por  uma  revolug&o  popular  e  pelo  sentimento  de  uma  na9So  que 
proclamava  e  defendia  a  sua  autonomia.  Aproveitando  a  decadencia 


1  Comte,  PcHiUqut  pùtiUvef  t.  m,  p.  531. 
*  Idem,  Ib.,  t  m,  p.  584. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  127 

das  LeÌ8  de  Cavalleria  pelas  perturba93eB  do  reinado  de  D.  Fernando, 
prohibiu  à  Nobreza  que  se  apoderasse  dos  beneficios  eccleBÌasticos 
qaando  fallecessem  os  prelados,  qae  tivesse  bairro  apartado,  e  que  ex- 
terquisse  mantimentos  aos  proprietarios.  Mandando  fazer  correigSes  ou 
inspec95e8  pelas  provincias^  teve-se  de  separar  a  jorisdicj^o  cìvil  da 
militar,  para  evitar  o  conflicto  unire  os  Corregedores  e  os  Governado- 
res;  e  està  separasse  levou  o  rei  a  reformar  o  systema  militar,  tirando 
aos  fidalgoB  o  direito  de  terem  homens  de  armas  ao  seu  servÌ9o  (o  pen- 
dSo  e  caldeira),  e  de  estipendiar  o  serviso  de  guerra  (a  coniia,  identica 
ao  soldo).  A  necessidade  de  pagar  por  conta  do  Estado  estes  novos  en- 
cargos  sociaes,  que  transformavam  o  regimen  fondai,  levon  a  novas 
despezas,  qae  for9aram  os  legistas  a  organisarem  nm  systema  tributa- 
rio, tal  corno  as  Sizas,  e  a  revogabilidade  e  reversiLo  das  Doa95es  ré- 
gias,  e  outras  dÌ8posÌ98es  provocadas  segando  as  urgencias  do  fisco. 
A  obriga9So  commum  educava  o  sentimento  de  sociabilidade.  Estabele- 
cido  0  novo  re^men  militar  e  economico,  decairam  por  si  os  velhos  eie* 
mentos  da  organisa9&o  fondai,  corno  a  Avoenga,  mobilisando  a  proprie- 
dade,  dando  garantias  aos  contractos,  e  facilitando  as  vendas  dos  gè- 
neros  pela  simples  Dizima  em  urna  so  terra.  A  reversSo  dos  bens  da 
corda  provocou  corno  consequencia  a  lei  das  Sesmarias.  N'este  traba- 
Iho,  em  que  o  poder  monarchico  concentra  todos  os  poderes,  o  juris- 
consulto  Ruy  Femandes  codifica  as  Regalias  ou  esphera  dos  Direitos 
*  reaes  na  Ordena9llo  de  D.  Duarte.  ^ 

«Por  urna  analyse  profunda,  toma-se  facil  reconhecer  historìca- 
mente,  entro  as  differentes  for9a8  sociaes  que  presidiram  à  transÌ98o 
revolucionaria  dos  ciuco  ultimos  seculos,  uma  divisSo  naturai  em  duas 
classes  verdadeiramente  distinctas,  apesar  da  sua  intima  affinidade,  a 
dos  metaphysicos  e  a  dos  legistas,  da  qual  a  primeira  constitue,  na 
realidade,  o  elemento  espiritual,  e  a  segunda  o  elemento  temperai  d'està 
especie  de  regimen  mixto  e  equivoco^que  devia  corresponder  a  està 
8Ìtua93o  de  mais  em  mais  contradictoria  e  excepcional.  As  duas  das- 
868  deviam  em  tempo  conveniente  emanar  espontaneamente  dos  ele- 
mentos  respectivos  da  antigo  systema,  um  do  poder  catholico,  o  outro 
da  auctoridade  feudal,  e  constituir  depois  para  comsigo  luna  rivalidade 
gradualmente  hostil,  ainda  que  longo  tempo  secundaria. — E  sobretudo 
em  Fran9a  que  um  tal  desenvolvimento  me  parece,  ao  menos  entSo, 
dever  sor  principalmente  estudado,  corno  sondo  ali  mais  nitido  e  com- 


1  Villa-Nora  Portngal,  Mem.  da  Acad,,  U  v,  p.  891. 


128  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIfifBRA 

pleto  do  que  em  qualquer  outra  parte^  à  vista  da  influencia  bem  dia- 
tincta  e  comtudo  solidaria  que  ali  adqairìram  simultaneamente  as  Uni- 
versidades  e  os  Parlamentos,  principaes  orgSos  pennanentes,  quer  da 
ac9llo  metaphysica,  quer  do  poder  dos  legistas.  Devo  ainda,  para  maia 
clareza,  notar  que  cada  urna  d'estas  duas  classes  se  subdìvide,  por  sua 
natureza,  em  duas  corporagSes  muito  differentes,  urna  essencial  e  pri- 
mitiva, a  outra  accessoria  e  secundarìa:  isto  é,  os  metaphysieos  em 
doutores,  propriamente  ditos,  e  em  sìmples  Utteratos,  e  os  legistas  em 
juizes  e  em  advogados,  abstraindo  dos  togados  mais  subaltemos.»* 

cConsiderando  agora  o  elemento  temperai  correspondente,  toma-se- 
facil  oonceber  historicamente  a  intima  correlajSo  naturai  ao  mesmo^ 
tempo  em  quanto  à  doutrina  e  quanto  às  pessoas,  entro  a  classe  dos 
metaphysicos  scholasticos  e  a  dos  legistas  contemporaneos.  Por  que^ 
em  primeiro  legar,  é,  evidentemente,  pelo  estudo  do  direito,  e  desde 
lego  do  direito  ecclesiastico,' que  o  novo  espirito  pbilosophico  proprio 
ao  fim  da  edade  mèdia  deveu  penetrar  gradualmente  no  dominio  das 
questSes  sociaes;  e,  em  segundo  legar,  o  ensino  do  direito  devia  desde 
lego  constituir  urna  parte  capital  das  attribuÌ98es  universatarias,  além 
de  que  os  canonistas  propriamente  ditos,  deriva9So  immediata,  nSo 
menos  do  que  os  mais  puros  scholasticos,  do  systema  catholico,  tinham 
formado  espontaneamente,  na  Italia  sobretudo,  a  primeira  ordem  de 
legistas  sujeita  a  uma  organisag&o  distincta  e  regular.  A  affinidade 
mutua  d'estas  duas  forsas  sociaes  é  de  tal  fórma  pronunciada,  que  se 
poderia,  por  uma  apreciaj&o  exagerada  sor  tentado  a  considerar  os 
legistas  comò  uma  especie  de  metaphysicos  passados  do  estado  espe- 
culativo ao  estado  activo,  o  que  levava  viciosamente  a  desconhecer  a 
sua  origem  directa.  Um  exame  mais  completo,  para  de  lego  mostra  a 
sua  verdadeira  origem  historica  na  potencia  feudal,  da  qual  foram  por 
teda  a  parte  destinados  primitivamente  a  facilitar  as  func98es  judicia- 
rias,  por  uma  intervenySo  cada  vez  mais  indìspensavel,  embora  longo 
tempo  subalterna.  Além  da  influencia  goral  da  sua  educa98o  essencial- 
mente  metaphysica,  elles  deviam  por  si  proprios,  quasi  desde  a  origem, 
manifestar  especialmente  uma  tendencia  mais  ou  menos  hostil  para  com 
o  poder  catholico,  conforme  a  oppo8Ì9fto  crescente  que  devia  natural- 
mente surgir  entre  as  diversas  justÌ9as  civis,  quer  senhoriaes,  quer 
sobretudo  reaes,  centra  os  tribunaes  ecclesiasticos,  anteriormente  na 
posse  reconhecida  da  maior  parte  das  jurisdic$8es  importantes. — £ 


1  C<mr9  de  PhUosophie  panHvej  t  v,  p.  386. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  129 

comtudo  certO;  que  o  poder  social  dos  legìstas,  corno  o  dos  metaphy- 
8ÌC08,  nunca  teria  deixado  de  ser  essencialmeote  subalterno,  se  as 
grandes  luctas  intestinas  do  decimo  quarto  e  decimo  quinto  secalo  nSo 
tivessem  vindo  depois  necessariamente  qfferecer  à  sua  commum  acti- 
TÌdade  dissolvente  o  campo  o  mais  vasto  e  o  exercicio  o  mais  conve- 
niente. Foi  aste,  tanto  para  uns  comò  para  os  outros,  o  tempo  real  do 
seu  triumpho;  senSo  o  mais  exteni^o,  pelo  mcnos  o  mais  satisfatorio  e 
o  mais  adaptadoàsua  verdadeira  natureza,  porqueasua  ambÌ9So  poli- 
tica estava  entSo  em  harmonia  necessaria  com  a  sua  util  infiuencia 
sobre  a  marcha  correspondente  da  evoIu(3io  humana:  é,  n^estas  duas 
classesy  a  edade  principal  dàs  altas  intelligencias  e  dos  nobres  cara- 
eterea.»  ^ 


1  Coure  de  Philosophie  pogitive,  t.  v,  p.  392  a  394.  Fazemos  aqui  eatas  traDS- 
crìp^òes  um  pouco  mais  exteDsas,  por  que  temos  a  certeza  de  que  a  obra  de  Comte 
nunca  foi  lida  mesmo  por  aquelles  que  mais  a  discutem  ou  a  refutam,  e  por  que 
b2o  as  Buae  vistas  sobre  a  marcha  geral  da  historia  moderna  verdadeiras  e  surpre- 
hendentes  revela^òes.  Michelet,  genio  intuitivo,  chrga  por  outros  proceescs  ao 
mesmo  resultado  na  aprccia^So  da  influeucia  dos  Jurisconsultos,  na  larga  demo- 
li^fto  da  Edade  mèdia  : 

«Emquanto  os  monges  arrastavam  o  povo  no  scu  mysticismo  vagabundo,  os 
Juristas,  immoveis  nos  seus  assentos  n2o  impelliam  m^nos  ao  movimento.  Estrs 
almas  damnadas  dos  reis,  fundadores  do  despotismo  monarchico,  nfto  pareciam 
entao  poderem  ser  contados  entre  cs  libertadores  do  pensamento.  Cobertos  do  seu 
anninho,  nio  fallavam  senào  em  nome  da  auctoridade;  resuscitam  os  processos  do 
Imperio,  a  tortura,  o  segrcdo  dos  julgamentos.  Intimam  o  eepirito  humano  a  se- 
guir o  caminho  recto  pelo  itinerario  do  Direito  romano.  Mostram-lhe  nas  Pande- 
ctas  o  caminho  necessario.  Nada  de  mais,  nada  de  menos.  E  a  Basào  escrtpta.  Se  a 
humanidade  se  aventura  a  pedìr  outra  cousa,  elles  nao  ouvem,  nào  comprehendem» 
e  abanam  a  cabe^a  :  ^ihil  hoc  ad  edicium  praetorù.  Està  ra9a  atravessou  a  Edade 
mèdia  sem  dar  por  isso.  Desde  Triboniano  que  nào  usam  datas.  Sào  os  sete  dor- 
mentes,  que  se  deitaram  sob  Ju8tiniano,  e  despertaram  no  seculo  xi.  Quando  o 
mundo  pontificai  e  feudal  invoca  o  tempo  comò  auctoridade,  os  jurisconsultos  sor- 
riem,  e  perguntam-lhe  a  sua  edade;  està  joven  antiguidade  de  alguns seculos faz- 
Ibes  compaizSo.  A  sua  religiSo  è  tambem  a  da  Roma,  mas  a  Eoma  do  Direito; 
està  torna- OS  atrevidos  contra  a  outra;  um  dos  da  sua  classe  vae  friamenteprcudcr 
em  fagranie  o  successor  dos  Apostolos.  Està  lucta  come^ou  por  uma  bofetada,  e 
continuaram-na  cortezmente  durante  quinhentos  annos  em  nome  das  liberdades 
da  egreja  gaUicana  (nacional.)  Fazem  vagarosamente  o  feudalismo  em  peda^os  com 
a  successao  romana,  que  desmembra  os  feudos.  Re  construem  a  monarchia  de  Jus- 
tìniano.  Elles  provam  doutamente  aos  reis;  nivellam  tudo  sob  um  governante. — 
Na  demoli^ào  do  mundo  pontificai  e  feudal,  os  legistas  procedem  com  methodo. 
Primeiramente  defendem  o  Imperador  contra  o  Papa,  depois  impellem  o  rei  de 
Franca  contra  o  papa  e  o  imperador.»  (Discours  d'ouverturt  à  laFacuUédea  iMtru^ 
1834.) 


aiST.  UH. 


1 30  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Depois  que  o  Mestre  de  Aviz  se  viu  levado  ao  throno  de  Portagal 
pela  reyola93o  de  LisBòa,  quiz  honrar  a  cidade  decretando  a  perma- 
nencia  perpetua  da  universidade  n'ella.  Ha  o  quer  que  de  reconheci- 
mento  na  Carta  do  Mestre  de  Aviz  de  3  de  outubro  de  1384:  «Fa- 
zemos  saber  que  por  honra  e  exal9amento  da  mui  nobre  cidade  de 
Lisboa  e  Universidade  e  Estudo  d'ella,  confirmamos  e  approvamos  os 
mandados  sobreditos,  e  outorgamos  ser  perpetuado,  e  que  stee  perpe- 
tuamento  o  dito  Estudo  em  a  Cidade  de  Lisboa,  e  non  se  mude  d'ella. .. 
d'este  dia  para  todo  o  sempre,  etc.»  ^  No  preambulo  dos  Estatutos  (sem 
data)  dados  por  D.  Manuel  à  Universidade  de  Lisboa,  em  uma  refe* 
rencia  &  historia  do  Estudo  geral  renova  a  lembran9a  d'este  intuito 
honorifico  e  categorico  de  D.  JoSo  i:  «E  EIRei  Dom  JoSo  i  de  escla- 
recida  memoria,  meu  bisavo,  por  seu  mandado  e  carta  patente  fez  que 
o  dito  Estudo  e  Universidade  fosse  reduzido  e  para  sempre  coUocado 
em  a  multo  nobre  e  sempre  leal  cidade  de  Lisboa,  logar  insigne  e  tSo 
notavel  d'onde  o  Infante  Dom  Henrique,  de  boa  memoria,  meu  thio, 
fez  doa$So  ao  dito  Estudo  de  casas  em  que  lessem,  o  salariou  honra- 
damente  a  Cathedra  de  Prima  de  Theologia  por  doze  marcos  de  prata, 
etc.»  Falam  estes  dois  documentos  do  assento  da  Universidade  em 
Lisboa;  D.  JoSo  i  doara4he  uma  casa  no  sitio  da  Moeda-Velha^  comò 
se  sabe  pela  Carta  de  2  de  maio  de  1389  ao  seu  almoxarife  JoSo 
Yasques,  ^  o  que  leva  a  inferir  que  as  casas  tambem  sitas  na  Moeda 
Velha  em  que  D.  Fernando  estabelecera  a  Universidade  em  1377  eram 
entSo  insufficientes.  ^  N'estas  casas  se  conservou  a  Universidade  até 
1431,  em  que  o  infante  D.  Henrique  Ihe  doou  uma  casa  mais  ampia 
no  bairro  escholar  de  S.  Thiago,  onde  permaneceu  até  1503.  Em  um 
documento  de  1418,  de  Lourengo  Martina,  recebedor  das  rendas  do 
Estudo,  lé-se:  «a  porta  de  Santo  Andre,  da  cidade  de  Lisboa,  da  parte 
de  fora,  contra  o  arravalde  dos  mouros.w  Iste  parece  justificar  as  pa- 
lavras  da  doaySo  do  Infante:  «Non  tinha  casas  proprias  em  que  lessem 
e  fizessem  seus  autos,  antes  andava  sempre  por  casas  alheyas  e  de 
aluguer,  comò  cousa  desabrigada  e  deealojada.» 


'  Livro  Verde,  fl.  44,  y  e  45. 

«  Ibid.,  fl.  64  y. 

>  Està  primeira  casa  doada  por  D.  Fernando  &  Universidade  foi  dead  a  por 
D.  Joào  I,  ao  Mestre  de  6.  Thiago,  Mem  Bodrigues  de  Yasconcellos  em  1993,  di- 
zendo-se  em  rela^ào  aos  confrontos:  à  Porta  da  Cruz  em  que  àoem  estar  cu  Eseo' 
las;  a  Universidade  reclamou-a  comò  sua,  e  o  rei  annullou  a  doa9&o  por  Carta  de 
31  de  outubro  de  1393.  (Livro  Verde,  fl.  65.) 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA  MONARCHICA  131 

No  comedo  da  diotadara  monarchica  do  secalo  xv,  ainda  a  Uni- 
versidade  luctava  com  a  fatta  de  recarsos;  corno  se  ve  pela  Carta  de 
4  de  fevereiro  de  1392,  D.  JoSo  i  determina,  qae  os  estadantes  ricos 
pagaem  40  livras  aos  lentes  de  Leu  e  Decretos;  os  medianos  qae  pa-  * 
gnem  20  livras;  e  os  mais  pobres  10  livras;  isto  é,  o  dobro  do  quo 
estabelecera  o  Estatato  feito  pelos  Reitores^  A  paga  do  CoUectum,  dava 
direito  &  eleÌ98o  dos  cargos  da  Universidade,  sob  este  aspecto  ama  es-  . 
pecie  de  gaild  escholar.  O  Bedel,  (peddlus,  por  qae  acompanhava  o 
corpo  docente  a  pé)  qae  formava  no  comego  dos  carsos  a  Tabula  L^ 
gentium,  foi  elevado  &  cathegoria  de  tabelliSo  da  Universidade  e  escri- 
vlo  das  saas  rendas,  ficando  a  receber  dos  estadantes  com  beneficio 
20  reaes  de  tres  livras  e  meia;  dos  mais  somenos  15;  dos  nSo  bene- 
fioiados  10;  e  dos  Escholarea  pobres  de  S.  Nicol&o  10  reis;  dos  nobres, 
segundo  saa  pessoa.  ^  Adiante  mostraremos  a  inflaencia  do  estudante 
pobre  na  creajSo  dos  Collegios  janto  da  Universidade. 

D.  JoSo  I,  corno  j&  observAmos,  foi  o  qae  inicioa  a  dictadara 
monarchica,  come9ando  pela  vaidade  de  bastardo  coroado  por  cimen^ 
tar  0  sea  throno  e  dynastia  por  ama  vergonhosa  allian9a  com  a  Ingla- 
terra,  depois  das  reIa9Ses  independentes  e  dignas  com  a  na9So  ingleza 
noB  reinados  de  D.  Affonso  iv  e  de  D.  Fernando,  em  qae  am  rejeitava 
ft  proposta  de  casamento  do  principe  de  Q-alles  com  saa  filha  D.  Leo- 
nor,  e  em  qae  o  oiitro  obrigava  por  am  tratado  o  rei  de  Inglaterra  a 
prestar-lhe  soccorro  de  archeiros  e  homens  de  armas  centra  as  aggres- 
s8es  castelhanas.  De  repente  estas  rela98eB  invertem-se;  o  Mestre  de 
Aviz,  bastardo  ambicioso  qae  deseja  a  todo  o  casto  ser  rei,  para  ga- 
rantia  do  sea  throno  ^enfeada  a  naffto  &  Inglaterra.  Escreve  o  conde 
de  Villa  Franca,  no  sea  livro  D.  Jocto  Tea  Allianga  ingleza:  «De  todo 
o  ponto  notavel  é  tambem  a  conv6n9So  qae  em  Londres  formaram  (9  de 
maio  de  1386)  os  embaixadores  de  Portagal  obrigando  o  reino  a  servir 
em  gaerra  com  armas  e  galés  e  &  saa  casta,  comò  effectivamente  ser- 


1  Beg.  do  Conselho  da  Universidade,  de  7  de  dezembro  de  1415.  Em  um  do- 
comento  de  28  de  novembre  de  1390,  apparece  Affonso  Giraldea  nomeado  bedel  e 
escrivio  da  Universidade  de  Lisboa.  £  em  um  Conselho  eacolar  celebrado  no 
refeitorio  de  Santo  Agostinho  pelos  «discretos  varoes  LanQarote  Esteves,  reitor 
do  estudo,  Lonren^o  Anes  doutor  em  leis  e  Bacharel  em  Degredos,  Pero  Domin- 
gues  Mestre  de  G^rammatica...  Affondo  OircUdes  bedel  e  tabelliào...  >  (Livro  Verde^ 
fl.  61  /  e  62).  Pela  data  d'estes  docnmentos,  vé-se  que  Affonso  Giraldes  é  o  poeta 
qae  rìmon  a  chronica  da  BcUalha  do  Salado,  de  que  so  restam  alguns  fragmentos  ; 
o  caracter  d'esse  poema  condiz  com  a  sitaa9So  do  aactor,  verdadeiramente  narra  - 
dor  sem  inven^ao. 

9* 


1 32  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

yìvLy  a  Inglaterra.  Està  conven(Bo  qne  os  nossos  historìadores  nem  se 
quer  mencionam,  por  qne  em  goral  se  limitaram  a  copiar  FemZo  Lo- 
pesy  conyeD9So  que  por  certo  o  arteiro  chronista  omittira  adrede,  para 
occultar  que  Portugal  fosse  servir  luglaterra,  marca  essa  mesma  època 
assignalada  em  nossas  relajSes  com  a  GrS-Bretanha.  N'aquelle  proprio 
dia  foi  que  mediante  solemn^  tratado  os  nossos  embaizadores  formaram 
com  aquella  potencia  a  denominada  allian9a  mutuai  inda  hoje  exis- 
tento.  1  ^  O  chronista  FemSo  LopeS;  sempre  preconisado  corno  inge- 
nuo e  primitivo;  collaborava  conscientemente  na  lenda  popular  do  bas- 
tardo, quer  aproveitando-so  das  noticias  da  Chronica  do  chanceller  Pero 
Lopes  do  Ajala,  quer  occultando  &  nsi^^o  o  affrontoso  tratado  de  9  de 
maio  de  1386. 

A  nova  cdrte  precisava  de  todos  os  apparatos  tradicionaes  da  rea- 
leza;  D.  JoSo  i  tratou  de  p6r  em  ac(So  as  phantasticas  pompas  do 
mundo  novellesco  da  Tavola  Bedonda,  anaehronicamento,  comparan- 
do-se por  vezos  ao  bom  Rei  Arthur.  As  leituras  favcfritas  dos  serSes 
do  pafo  foram  as  novollas  da  Demanda  do  Santo  Chraall,  do  Baladro 
de  Merlim,  de  Galaaz;  os  cavalleiros  imitavam  os  heroes  d^essas  no- 
vollas, comò  Percival,  D.  Quea  ou  Lanfarote,  e  as  damas  adoptavam 
por  nome  do  baptismo  os  nomes  das  heroinas  leeult  ou  Iséa,  Viviana, 
Briolanja;  organisavam-se  Passos  de  armas  para  os  Cavalleiros  da  Ala 
dos  Namorados,  e  aventuras  combinadas  comò  a  dos  Doze  de  Inglaterra, 
Tudo  isto  era  falso  e  exterior;  debaixo  d'està  apparencia  de  generosi- 
dade*e  enthusiasmo,  trabalhava  a  logica  burgueza  e  inflexivel  dos  ju- 
rìsconsultos  cimentando  a  dictadura  monarchica,  e  osta  duplicidade  do 
reinado  està  vivamente  representada  nas  duas  figuras,  a  do  Condesta- 
vel,  o  guerreiro  que  imita  a  virgindade  de  Galaaz,  e  JoSo  das  Regras 
(Doctor  Legum),  que  formula  a  Lei  mental,  e  que  allia  ao  cargo  de 
chanceller  do  rei  ò  cargo  do  Estudo,  ou  de  reitor  da  Universidade. 

D.  JoZo  I,  quando  ainda  regonte  do  reino,  confirma  os  privile- 
gios  concedidos  por  D.  Fernando  à  Universidade;  mas  por  Carta  de  15 
de  outubro  do  1384  continua  a  subordinar  o  fóro  excepcional  dos  es- 
cholares  ao  direito  commum  representado  pela  justÌ9a  do  Bei;  assim 


1  A  pag.  263  e  seguintes  traz  o  sr.  conde  de  Villa  Franca  o  texto  e  traducalo 
d'esse  desconhecido  tratado,  eztrahido  da  Foedera  de  Rjmer)  t.  vu,  p.  521. — 0  es- 
pirito d'essa  allian^a  maDifestoa-se  sempre,  na  entrega  de  Tanger  e  Bombaim, 
tratadoB  de  Methwen,  e  de  1810,  occupa9fio  militar  de  Beresford,  bill  de  1839,  in- 
demnisa^So  de  1850,  tratados  de  Groa-LoureD^o  Marques-Zaire,  e  Ultimatum  de  11 
de  Janeiro  de  1890. 


A  UNIYERSIDÀDE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  133 

as  clta93e8  requeridas  pelos  escholares  ao  Conservador,  seajuiz  pri- 
vativo, tinham  de  ser  prìmeìramente  revistas  por  elle  conjunctamente 
com  dois  lentes  legistas,  prestado  o  juramento  de  que  nSo  havìa  ma- 
licia,  e  de  que  frequentara  durante  dois  annos  o  Estudo  o  escholar  liti- 
gante, que  tambem  nlU)  poderia  citar  por  motivo  de  doa9^  inter  vi- 
vos.  ^  A  Universidade,  pelo  seu  caracter  de  corpora9So  autonoma  re- 
conhecido  nos  privilegios  outorgados  por  D.  Diniz,  tinha  o  poder  de 
nomear  os  seus  empregados;  D.  JoSo  i  atacou  abruptamente  està  ga- 
rantìa  escholar,  nomeando  por  Carta  de  26  de  Janeiro  de  1414  Lou- 
ren^o  Martins  provedor  e  recebedor  das  rendas  da  Universidade;^  o 
corpo  docente  julgou-se  aggravado,  o  rei  resolveu  que  fosse  ouvida  a 
Universidade,  e  por  firn  chegou-se  à  concluslo  mèdia*,  de  que  o  officio 
de  Provedor  ficasse  de  nomeagSo  da  Universidade  sob  a  dependencia 
da  confirma9fto  do  cargo  pelo  rei.  ^  Sob  o  governo  de  D.  Affonso  v, 
foram  nomeados  alguns  lentes  pelo  rei,  centra  o  que  reagiram  os  es- 
cholares, ^  e  a  Universidade,  em  Carta  de  12  de  julho  de  1476  é  cen- 
sorada  por  se  metter  a  intrepretar  os  seus  estatutos  em  vez  de  os  cum- 
prir  comò  estavam  estabelecidos.  Submettida  ao  poder  real,  a  Univer- 
sidade foi  minuciosamente  regulamentada  em  quanto  &s  faltas  dos  len- 
tes, iursL^ào  dos  cursos  (ataa  Santa  Maria  d'agosto),  repetigSes  dos 
teztos,  fórmas  das  substituigSes  e  annos  de  frequencia.  Diante  d'està 
ab8orp9&o,  em  que  a  Universidade  perdia  o  seu  caracter  autonomo,  e 
de  federa$fio  de  estudos  (universitas  studii),  jà  nSo  havia  rasSo  para 
86  conservar  a  ii;idependencia  mutua  entro  Legistas  e  Canonistas,  e 
por  isso  a  propria  Universidade  requereu  ao  rei  para  acabar  com  o 
costume  da  eleiySo  dos  dois  Reitores  simultaneos.  Sob  D.  JoSo  n,  a 
Universidade  perde  o  direito  de  asylo;  por  Carta  regia  de  7  de  setem- 
bro  de  1494,  o  rei  adverte  a  Universidade  que  nSo  consinta  que  os 
malfeitores  se  accolham  ao  bairro  dos  Escholares  centra  a  justiga  or- 
dinaria, apesar  de  ser  coutado,  por  que  de  outra  fórma  proverìa  n'isso 
segnndo  Ihe  conviesse.  Por  ultimo,  a  reforma  da  Universidade  por  D. 
Manuel,  declarando-se  Protector,  fazendo  Estatutos,  alterando  as  fiinc- 
{8es  do  Reitor,  e  nomeando  os  lentes,  assignala  ama  època  nova  na 
existencia  d'aquella  institui^So  pedagogica  da  Edade  mèdia. 

A  historia  economica  tla  Universidade  no  seculo  xv  è  tambem  de 


1  Livro  Verde,  fl.  47. 

«  Ibid.,  fl.  88. 

»  Ibid.,  fl.  89. 

4  Carta  de  13  de  abrìl  de  1469. 


134  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

um  certo  interesse  dramatico;  D.  Fernando  augmentara  as  congruas 
aos  vigarios  das  egrejas  annexadas  ao  Estudo  geral  de  Lisboa,  e  pri- 
Tada  assim  de  parte  dos  seos  rendimentos,  a  Universidade  teve  de  re- 
correr &8  talhas  ou  minervaes^  pagas  pelos  estudantes  aos  lente»  e  be- 
del.  D.  Jo&o  I,  por  Carta  de  3  de  outubro  de  1384,  restabeleceu  oa 
antigos  salarios;  ^  mas  corno  as  difficuldades  economicas  subsistianii  pe- 
dia  ao  papa  para  que  concedesse  a  annexa$&o  &  Universidade  de  urna 
egreja  em  cada  urna  das  dioceses  de  Portugal.  O  papa  JoSo  xxiii  ex- 
pediu  em  1411  a  bulla  da  concessSo,  sendo  eleito  para  Ihe  dar  com- 
primento  Gonzalo  Martins,  thesoureiro-mór  de  Silves,  que  em  17  de 
dezembro  annexou  &  Universidade  a  egreja  de  S.  Fedro  de  Eiras  na 
diocese  da  Guarda,  Santa  Maria  de  Caria  na  diocese  de  Lamego,  a  de 
Semache  na  diocese  de  Coimbra,  Santo  André  de  Lever  no  bispado 
do  Porto,  Santa  Maria  de  Idaens  no  arcebispado  de  Braga,  S.  Salva- 
dor de  Yianna  do  bispado  de  Tuy,  S.  Thiago  de  Montemór-o-novo  no 
arcebispado  de  Evora;  Silves  e  Badajoz  ficaram  fora  d'està  annexa(Zo, 
porque  as'  suas  egrejas  pertenciam  aos  bispos,  cabidos  e  ordens  mili- 
tares.  Os  rendimentos  provenientes  d'estas  egrejas  pouco  mais  monta- 
▼am  de  quinhentas  libras,  e  di£Sceis  de  receber,  durando  pouco  tempo 
essa  dota9So  pelas  innumeras  demandas  do  clero  centra  a  Universidade. 
O  quadro  das  discìplinas  da  Universidade,  em  Lisboa,  achase  in- 
dicado  na  Carta  de  25  de  outubro  de  1400,  tendo  o  encarrego  do  dito 
Estudo  0  Doutor  JoSo  das  Regras  ;  ^  ahi  se  ve  o  numero  de  cathedraB, 
pelos  lentes  que  eram  isemptos  de  pagarem  pedidos: 

Lentes  de  LeÌ8  até •.  3 

Grammatica  ....  4 

Decretaes 3 

Logica 2 

Fisica 1 

Theólogia 1 

Musica 1 

Bedel  e  Conservador. 

Por  està  Carta  se  ve  que  a  cathedra  de  Theólogia,  que  toma  a 
apparecer  dtada  em  1418,  jà  ostava  salariada  e  encorporada  no  Es- 


1  Uwro  Verde,  fl.  43  f. 
*  Ibidem,  fl.  90  y  e  91. 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  135 

ludo  gerfil.  Ifa  Carta  de  1418  apparece  a  Phìlosoptìa,  certamente  sob 
o  sea  novo  aspecto,  a  qne  os  gregOB  cbamaram  maral  em  coDtraposi- 
^io  a  natuTol.  NSo  se  encontram  apontadaa  cadeirae  de  Eebrako  e 
Arabe,  maa  nào  prova  iato  qiie  n&o  exÌBtÌBseiD,  porque  bastava  nSo  se- 
reni ealariadas  oa  regerem-ae  fora  da  Universìdade  para  nSo  TÌrem  in- 
elDÌdas  naa  dispoaÌ96eB  legialativaa. 

Foi  n'este  eatado  angustioBO  qua  o  Infante  D.  Henrìque,  promo- 
ter daa  descobertas  maritimaB,  come90a  a  proteger  a  Uaiversidvde  de 
Lisboa  com  valioBas  doa$3ea,  coUocando-a  em  nm  palacio  que  com- 
prara  na  freguezia  de  S.  Thomé  para  as  Sete  Artes  liberaeg,  e  para  to- 
das  aa  Bcienciaa.  O  titolo  de  ProUctor  da  Universìdade  apparece  pela 
prtmeira  vez  uaado  pelo  Infante  D.  Henrìque  em  urna  Carta  de  20  de 
OQtnbro  de  1418,  dada  em  Cintra  aos  Juizes  e  Justì^aa,  para  ique  poa- 
WUD  procurar,  razoar,  vogar  em  pra9a  ou  em  escondido.t'  Figueiróa, 
nas  Memorìaa  manuscrìptas,  apenas  apontava  a  Carta  de  23  de  agosto 
de  1443,  dirigida  de  Villa  Franca  aos  Reitor  e  Lente»  pelo  Infante  D. 
Heurique,  corno  Protector*  e  Governador  da  Universidade.  CremoB  que 
A8  antigas  dependencias  da  Uiiiversidade  com  o  Mestrado  de  Cbristo,^ 
maia  do  quo  a  organiea^So  scientifica  do  Infante  D.  Heurique,  é  que 
levaram  a  elegel-o  Protector  da  Universidade,  talvez  comò  meÌo  de 
reai&tenina  coatra  a  absorp^So  do  Poder  real.  À  crearlo  e  protecfio 
de  TJniverBÌdades  era  urna  prerogativa  aoberana,  corno  vemos  reconhe- 
oida  por  AffonBO  o  Sabio.  Fra  comò  urna  usurpa^So  d'ease  privilegio 
da  reaieza  que  os  grandes  vassallos  tambem  aepiiavam  a  fundarem  Ea- 
tadoa  geraes. 

A  figura  do  novo  Protector  da  Universidade  de  Lisboa,  o  Infante 
D.  Henrique,  merece  aocentuar-se  no  sea  grande  rel€vo  hiatorìco;  tendo 
fdndado  a  villa  marìtima  de  Sagres  em  1419,  depoie  do  regresso  de 
Conta,  ali  estabelece  a  lendarìa  Eschola  oa  Observatorio  para  dirìgir  os 
deacobrimeiitoa  da  Àfrica,  pelo  enaino  da  Mathematica,  Nautica  e  Qeo- 
graphia,  feito  por  Mestre  Jaime  da  ilba  de  Malhorca  e  outros  sabioe 
convidados  com  bona  salarios.  K'esta  Eschola  de  Sagres,  ei 
Lopee,  as  Cartas  geograpbicas  se  converteram  em  Carta 
phicas  planas,  cujo  uso  durou  seculos:  (M'esta  Eschola  s 
OB  noBBOB  mais  habeis  navegadores;  adquiriram  instruc^fìlo 


■  LivTO  Verde,  fl.  9S. 
'  Ibidem,  fl.  109. 

*  Foi  das  rendas  do  Mestrado  de  Chrieto,  da  dtEima  da  Hlia  da 
o  Iii&nt«  aalarion  a  cadeira  de  prima  de  Theologia. 


136  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

e  cavalleiros  de  sua  casa;  e  se  fez  vulgar  o  uso  da  bussola  e  outros 
instrumentos  nauticos^  os  quaes^  postoque  imperfeitos,  eraiù  ass&s  van- 
tajosos  para  os  navegadores,  que  n'aquelle  tempo  nSo  usavatn  da  aga- 
Dia,  nem  de  outro  instrumento.»  ^  A  applica9So  pratica  da  MatherfiaHca 
e  da  Astronomia  &  navegajSo  vinha  no  seculo  XV  provocar  o  desenvol- 
vimento  da  serie  scientifica,  que  predominou  na  Renascenga  pela  posse 
(directa  dos  dominios  da  Physica.  Comte  caracterisa  de  um  modo  lumi- 
noso està  entrada  da  rasSLo  humana  na  renova9So  scientifica  que  pre- 
cede a  Benascenfa: 

cRctomando  o  impulso  scientifico  da  Grecia,  deveu  dar-se  a  con- 
centra9So  sobre  o  primeiro  par.  encyclopedico  (Mathematica  e  Astro- 
nomia) até  que  se  tivessem  produzido  os  resultados  decisivos  que  o 
theologismo  impediu  na  antiguidade.  Quando  està  base  theorìca  da  re- 
genera9So  mental  estivesse  sufficientemente  pósta,  um  rapido  esbogo 
da  philosopfaia  naturai  devia  immediatamente  conduzir  a  rasSo  mo- 
derna à  elabora9ào  directa  do  seu  principal  dominio,  conformemente 
às  neccssidades  sociaes.  Este  plano,  que  sómento  hoje  póde  ser  con- 
cebido,  prevaleceu  espontaneamente  desde  o  seculo  xiv,  segundo  aa 
leis  necessarias  da  evolu9lLo  especulativa,  cujo  ascendente,  precedendo 
a  sua  descoberta,  deveu  involuntariamente  regular  uma  marcha  empi- 
rica.d  ^  Como  se  personificou  està  elabora9&o  mental  no  Infante  D. 
Henrique  ? 

Na  Corographia  do  Algarve,  Silva  Lopes  descreve  a  actividade 
da  lendaria  Eschola  de  Sagres:  cD'aqui  mandava  elle  sahir  embarca- 
9Ses  para  fazer  os  descobrimentos  que  havia  emprehendido  ;  em  1431 
sahiu  d'este  porto  em  um  navio  o  commendador  d'Àlmourol  fr.  Gon- 
9alo  Velho  Cabrai  com  instruc9fto  de  navegar  a  O.,  e  voltar  logo  que 
descobrisse  alguma  terra,  o  que  praticou  voltando  em  poucos  dias  do 
Baixo  das  Formigas,  que  avistou  e  ezaminou;  tornando  no  anno  se- 
guinte  descobriu  a  ilha  de  S.  Maria,  cuja  capitania  o  Infante  Ihe  deu. 
Convidados  pela  fama  dos  descobrimentos  que  os  portuguezes  faziam, 
concorreram  a  Sagres  muitos  estrangeiros  notaveis,  curiosos  de  cousaa 
tSo  extraordinarias,  taes  comò  Balthazar,  fidalgo  allemSo,  gentil-homem 
da  camara  do  imperador  Frederico  iii;  o  malfadado  Balart,  fidalgo 
dinamarquez,  que  embarcando  em  o  navio  de  Fem&o  Affonso  em  1447 
foi  morrer  a  Cabo  Verde  em  uma  refrega  de  negros;  o  veneziano  Luis 


1  Corogrc^hia  do  Algarve,  p.  210. 

2  Comte,  Sysihne  de  PolUique  poettive,  t  in,  p.  517. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  137 

CadamostOy  que  nos  deixou  escriptas  as  suas  viagens  n'estes  descobri- 
mentos;  os  fidalgos  flamengos  Jacome  de  Bruges,  a  quem  o  Infante 
fez  donatorìo  da  ilha  Terceira  por  carta  (apocrifa)  de  2  de  marjo  de 
1450  para  a  ir  pò voar;  Gailherme  de  Wanderberg,  cujo  appellido  depois 
madou  para  Silveira,  ao  qual  deu  a  ilha  de  S.  Jorge;  Jorge  d*Utra, 
primeijo  donatario  e  povoador  das  ilhas  do  Fayal  e  do  Pico:  etc.»  * 
Mas  que  differenga  entro  o  vulto  esbogado  pelos  InfantUtaa,  que  re- 
petem  phrases  tradicionaes  sem  prova  historica,  e  as  primeiras  obser- 
va93QS  de  unTa  critica  severa^  que  desponta! 

O  infante  D.  Henrique  occupava-se  nas  descobertas  maritimas 
exclusivamente  para  seu  interesse  pessòal,  estabelecendo  colonias  de 
quem  recebia  as  contribuifdes.  Para  isso  empregava  os  filiados  ou  os 
recados  da  sua  casa.  Depois  de  descoberto  o  archipelago  da  Madeira, 
corno  as  descobertas  na  costa  de  Africa  foram  e^corporadas  na  corda- 
portagueza,  o  infante  queria  descobrir  para  si  e  mandou  navegar  até 
ao  Cabo  Bojador.  A  sua  passagem  do  Tejo  para  Sagres,  no  Algarve, 
logar  solitario  e  sem  agua,  sem  os  recursos  para  as  noticias  das  nave- 
ga95ea  e  para  armar  as  expedigSes,  so  se  explica  pelo  plano  de  se  col- 
locar fora  da  dependencia  da  corSa  nas  terras  do  mestrado  de  Chri^to, 
que  estavam  sob  o  seu  poder.  No  cap.  ii  do  livro  i  da  Decada  i  de  JoSo 
de  Barros  allude-se  a  oste  pensamento,  em  que  o  infante  queria  ser 
mais  do  que  capitilo  da  corda  portugueza  nas  conquistas,  encetando 
por  isso  expedifSes  mais  largas.^  O  caracter  do  infante  D;  Henrique 
decae  diante  do  modo  pouco  leal  corno  procedeu  pondo-se  do  lado  dos 
intrìgantes  centra  seu  irmSo  o  honrado  infante  D.  PedrO;  Duque  de 
Coimbra,  deixando  que  o  assassinassem,  podendo  salval-o  pela  sua  au- 
ctoridade  moral.  O  pensamento  das  descobertas  maritimas  amesqui- 


»  Op.  eit.,  p.  210, 

'  Joào  de  Barros,  «apcsar  de  panegyrìsta  do  Infante,  accentua  o  seguinte 
facto  que  o  colloca  em  antinomia  com  o  poder  real  :  «Por  que  vendo  elle  corno  os 
Houros  do  re3mo  de  Fez  e  Marrocos  ficayam  per  conquista  metidos  na  coroa  destes 
Beynos,  por  o  novo  titulo  que  seu  pay  tomou  de  Senhor  de  Cepta,  e  que  per  està 
posse  real  a  empresa  d' aquella  guerra  era  propria  dos  Reys  d  este  Beyno,  e  elle 
nom  podia  entreyir  nisso  corno  conquitador  mas  corno  capit&o  enyiado,  em  o  processo 
da  qual  guerra  elle  avia  de  seguir  a  vontade  d  el  Bey  e  a  disposi^So  do  Beyno  e 
n2o  a  sua  :  assentou  em  mudar  està  conquista  pera  outras  partes  mais  remotas  de 
Espanba,  do  que  eram  os  reynos  de  Fez  e  Marrocos.  Com  que  a  despeza  d'este  caso 
fosse  propria  d'elle  e  nSo  tazada  per  outrem  ;  e  os  meritos  de  seu  traballio  ficas- 
sem  metidos  na  Ordem  da  cayallerìa  de  Christo  que  elle  governava,  de  cujo  the- 
zooro  podia  despender.»  (Decada  ly  liv.  i,  cap.  2.) 


1 38  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

nha-se  pelo  movel  do  interesse  mercantil  exclusivo,  que  o  dirigìa,  e  o 
que  ha  de  grandioso  nos  trabalhos  do  Mar  tenebroso,  reverte  para  o 
poYo  portugaez,  esses  valentes  aventureiros,  que  foram  os  primeiros 
donatarios  das  descobertas,  e  de  que  o  infante  se  aproveitou.  Dois 
eximios  patriotas  e  eruditos,  os  drs.  JoSo  Teixeira  Soares  (da  iiha 
de  S.  Jorge)  e  Alvaro  Rodrìgues  de  Azevedo  (da  ilha  da  Madeira) 
sustentaram  estes  novos  elementos  do  criterio  historico  por  onde  tem 
de  ser  apreciado  o  infante  D.  Henrìqne,  na  sua  resistencia  contra  a 
dictadura  monarchica. 

Na  correspondencia  do  eruditissimo  a9oriano  Dr.  JoSo  Teixeira 
SoareS|  fallecido  em  1882,  acham-se  os  elementos  criticos,  em  que  a 
figura  do  Infante  D.  Henrique  nos  apparece  a  està  outra  luz.  Foi  pena 
que  a  morte  Ihe  nSo  deixasse  realisar  oste  processo  historico.  Trans- 
creveremoB  da  sua  correspondencia,  publicada  em  extractos  no  Ar- 
chivo  do8  Aqores,  alguns  tra$os  importantes  d'essa  critica  negativa: 
«0  que  eu  queria  que  me  èxhibissem  era  um  unico  documento,  um 
unico,  anterior  à  morte  de  D.  JoSo  i. . .  em  que  se  provasse  que  o  In* 
fante  D.  Henrique  tinha  tido  a  menor  idèa  de  vìagens  e  de  descobri- 
mentos  maritimos  !  Parece  que  era  jà  tempo  de  fazer  calar  a  lisonja^ 
e  apparecer  a  historia  irrefragavel,  que  nos  diz  :  que  a  actividade  ma- 
ritima  dos  portuguezes,  jà  estava  desenvolvida  e  firmada  antes  d'elle 
pelas  explora9Ses  no  Athlantico  septentrional  e  descoberta  de  seus  Ar- 
chipelagos. 

cEste  principe  nfto  fez  mais  do  que  aproveitar  està  actividade, 
dando-lhes  uma  nova  direcjSó,  mais  positiva,  e  menos  generosa,  que 
elle  soube  monopolisar  e  continuar  em  seu  proveito,  e  da  Ordem,  de 
que  era  Mestre. 

«Foi  um  emprezario  egoista  n'este  theatro  da  nossa  actividade, 
nada  mais.  £  note-se  que  o  foi,  depois  da  morte  do  pae,  de  quem  nada 
obteve,  e  so  do  irmSo,  cujo  filho  adoptou.»  ^  Teixeira  Soares  reunira 
uma  grande  somma  de  trabalhos  para  <um  estndo  sobre  a  Chrcnica 
de  Ouiné,  e  sobre  o  Liv.  i  da  Decada  I  de  JoSo  de  Barros,  em  que 
digo  e  mostro  cousas  terriveis  para  a  memoria  d'este  escriptor,  sobre 
a  do  Infante  D.  Henrique,  e  para  a  ridicula  scita  dos  Infantistas  I  O 
Infante  D.  Henrique  vale  pouco  na  historia  dos  nossos  descobrimentoa, 
£  penoso  o  mister  que  a  critica  tem  de  exercer  sobre  este  mào  prin* 
cepe,  mas  bade  exercel-o  um  dia  e  hade  ser  tanto  mais  inexoravel,. 


1  Carta  de  26  de  oatubro  de  1877,  ao  Dr.  Ernesto  do  Canto. 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  1 39 

qoanto  mais  tardio  vier.»  ^  Em  ama  carta  de  25  de  maio  de  1878  es- 
tabelece  um  ponto  de  partida:  e  Reputo  genuinos  os  portulanos  do  se- 
culo  XIV  com  rela(So  aos  archipelagos  da  Madeira  e  Àgores.  O  attri- 
buir ao  Infante  a  descoberta  primitiva  d'elles,  procedeu  de  lisonja  e 
de  ignorancia.  Azurara,  que  na  parte  bistorica  se  aproveitou  apenas 
do  que  escreveu  Affonso  Cerveira,  foi  mais  babilissimo  cortezSo^  do 
que  bìstoriador  severo  e  imparcial.  Barros,  que  o  seguiu  Guidando  que 
p  unico  esemplar  que  da  Cbronica  d'aquelle  conbeceu  acabaria  nas 
suas  mSoSy  foi  mais  do  que  um  amplificador  rhetorico,  degenerou  n'um 
insigne  falsario.  O  seu  extracto  da  Cbronica  impresso  em  frente  d'està^ 
seria  sem  commentarioS|  a  sua  condemna9&o  irremissivel.  KSo  bouve  em 
Portugal  bomem  perante  quem  a  bistoria  se  tenba  tornado  mais  detur- 
pada  e  falsaria  do  que  o  Infante. 

cNada  teve  com  navega93e8,  descobrimentos  maritimos  e  coloni- 
sa9SLo  da  Madeira,  senSo  depois  da  morte  de  seu  pae,  que  parece  com- 
prebendeu  melbor  do  que  os  irmSos  o  pessimo  caracter  do  filho.  Com- 
tudo;  quanto  arredados  do  que  levo  dito  nSlo  estSo  os  que  tém  feito  a 
bìstorià  d'este  principe  !  Os  doze  annos  de  esforQos  para  passar  o  Cabo 
Bojador,  foram  apenas  um  recurso  rbetorico  da  lisonja,  que  um  des- 
cuido  do  proprio  Azurara  patenteou  !  Pois  o  que  se  tem  dito  da  Villa 
de  Sagres?. . .  A  verdadeira  Sagres  aonde  està?  Quando  e  para  que 
firn  foi  fundada  ?  Aquelle  principe  nSo  foi  mais  que  um  ambicioso  uti- 
litario, sem  a  sciencia  nem  o  alcance  geograpbico  que  Ibe  attribuem. 
Aproveitou  a  sciencia  e  actividade  maritima  dos  portuguezes,  jà  ass&s 
firmada,  para  simples  reconbecimento  da  continuacelo  d'um  boccado 
da  costa  africana,  desviando  assim  o  genio  mari  timo  da  naySLo  para 
um  campo  mais  utilitario,  estabelecendo  a  escravidUo  africana  e  con- 
vertendo tudo  em  monopolio  proprio.  Na  Madeira  so  continuou  a  colo- 
nisacSo  fundada  pelo  pae,  alterando  profundamente  o  systema  benefico 
d'aquelle,  e  convertendo  tudo  em  seu  proveito  creando  os  dizimos,  etc. 
etc.  Na  familia  foi  um  Caim.  A  virilidade  e  nobreza  de  espirito  nào  a 
tinba  por  ser  um  quasi  eunucbo.  A  adopero  do  sobrinbo  por  filho,  que 
infamia  !  pelo  modo  por  que  depois  falseou  esse  acto  !  — A  entrega  que 
fez  do  irmSo  em  Tanger,  depois  de  o  arrastar  alli,  nSo  se  commenta  ! 
O  seu  comportamento  com  o  Infante  D.  Fedro  e  com  os  filhos  é  sem 
igual.9^  No  que  fez  pela  Universidade  ressumbra  a  vaidade  pessoalt 


1  Carta  de  25  de  abril  de  1878. 

2  Arehivo  doa  Agorea,  voi.  iv,  p.  16  a  19. 


140  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

O  Liuro  Verde,  da  Universidade,  d^  noticia  do  estabelecimento 
das  Escholas  geraes  em  uns  passos  e  assentamento  de  casas  com  seoB 
pardieiros  e  chSos  na  freguezia  de  S.  Thomé  compradoB  pelo  Infante 
D.  Henrique  em  1431,  pelo  prejo  de  400  coròas  de  ouro  velhas,  de 
bom  ouro  e  jasto  pezo  do  canho  deirei  de  Franja,  e  doados  apara 
as  sete  artea  liberaes,  grammatica,  logica,  rhetorica,  aresmetica,  musica, 
geometria  e  astrologia. . .  qae  se  lèam  na  casa  pequena.  • .  e  ai  se  pin* 
tem  as  sete  artes  liberaes. . .  a  fora  a  grammatica,  qae  é  de  grande 
arruido  estd  na  casa  de  fora. . .  e  a  logica  na  logia. . .  e  a  medicina 
n'outra  casa  e  ahi  se  pinte  Gaalliano  ; .  .  e  em  cima  se  Ieri  theologia  e 
ahi  se  pinte  a  Trindade. . .  na  de  Decretos  se  pinte  um  papa. . .  na  de 
filosofia  naturai  e  maral  Aristoteles. . .  na  de  Leis  um  imperador. . .  e 
que  a  doa9So  se  abra  numa  pedra  e  que  se  ponha  sobre  a  porta.» ^ 
Por  este  documento  se  infere  qual  a  fórma  do  estudo  da  grammatica» 
em  voz  alta  e  em  chusma,  feito  provavelmente  pelo  texto  do  Doutri- 
nal  de  Alexandre  de  Villa  Dei,  e  tSo  vulgarisado  que  vem  citado  no 
Catalogo  dos  Livros  de  uso  do  rei  D.  Daarte  simplesmente  com  o 
nome  Alexandre.  O  Doutrinal  renovava  os  velhos  tratados  grammati- 
caes  de  Servio,  VarrSo  e  Prisciano,  dominando  de  um  modo  absoluto 
nas  escholas  até  Pastrana;  quando  entrou  em  Portugal  a  influencia 
de  Nebrixa,  distingaiu-se  o  methodo,  chamado  Arte  nova,  corno  se  in- 
fere do  documento  de  1494  em  que  se  mencionam  mestres  de  gromma- 
tica  de  arte  vdha  e  da  nova.  Quando  o  infante  D.  Henrique  deu  casa 
à  Universidade,  eram  reitor  do  Estudo  Vasco  Gii,  e  o  licenciado  Diego 
Affonso  de  Mangancha,  Mestre  Martinho,  JoSo  Affonso  de  Leirea,  Luiz 
Martins,  JoSLo  d'Elvas  e  Gomes  Paes,  lentes;  d'entre  estes  nomes  des- 
taca-se  o  do  Dr.  Mangancha,  que  no  seu  testamento  de  9  dezembro 
de  1447  instituiu  um  Collegio  para  dez  estudantea  pobres  nas  suas  casas 
a  S.  Jorge,  onde  possuia  tambem  uma  notavel  livraria.  ^ 


1  Op.  cit,  fl.  101.  Escriptara  de  12  de  de  ontubro  de  1431. 

2  No  pequeno  catalogo  dos  livros  do  Dr.  Mangancha  cita-se  um  Chino,  iato 
éy  0  Commentario  volumoso  dos  nove  primeiros  livros  do  Codigo,  publicado  pelo 
celebre  professor  da  Unìversidade  de  Bolonha  Cina  da  Pistoia,  mostre  de  Bar- 
tholo.  O  seu  Commentario  data  de  1314,  e  tem  a  importancia  de  ser  a  base  em  que 
OS  jurisconsultos  civiUstae  se  apoiaram  contra  os  decretalistaB,  Diz  Gingaené,  na 
HtMtoria  litteraria  da  Italia:  «Os  canonistas  e  os  legistas  forma vam  corno  que 
doas  seitas  inimigas;  e  nfto  sómente  na  sua  qualidade  de  legista,  mas  corno  ar- 
dente gibelino,  Cino  tinba  um  grande  desdem  pelas  decretaes,  pelos  canones  e  por 
tudo  o  que  compunha  a  jurisprudencia  papal.o  (Ob.  cit.,  t.  ii,  p.  296.)  As  daasin- 
fluencias  pontificai  e  real  nas  Universidades  caracterisam-se  com  evidencia  n'este 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  141* 

Importa  accentuar  aqui  a  personalidade  historica  d'este  afamado 
decretalista^  que  se  achon  no  Concilio  de  Basilea  em  relagSo  com  Eneas 
Sylvius  (Pio  n)  na  grande  lucta  de  dissoIugSo  do  poder  pontificai,  e 
que  deslumbrou  os  hnmanistas  italianos  pela  sua  forte  dialectica  em 
amaa  theses  ou  Auto  de  Ostentagào.  ^ 


antagonismo  entre  canonistas  e  legistas.  Joao  dae  Regras  trouxe  para  Portugal  as 
opinioes  bartholistas,  que  vieram  a  prevalecer  na  Universidade  e  na  grande  pleiada 
doB  rdnicolaa.  0  Infante  D.  Fedro,  na  carta  ao  rei  D.  Duarte,  seu  irmào,  em  que 
Ihe  apresenta  o  plano  da  reforma  da  Universidade,  tambem  propende  para  as  dou- 
trìsas  de  Bartfaolo  :  «e  parece-me,  Senhor,  que  para  abreviamento  dos  feitos  apro- 
veitara  multo  seguir-'se  a  maneira,  que  o  Senbor  Rey  ordenou  sobre  o  Bartolo  : 

Gom  tanto  que  o  Livro  seja  bem  ordenado  e  corrido  por Doctores,  e 

afora  aquelle  que  o  tresladou  etc.»  (Ap.  J.  P.  Ribeiro,  Disa.  chron,,  1. 1,  p.  407,  ed. 
18eO). 

1  £m  uma  Noticia  da  Embaizada  do  Conde  de  Ourem,  em  1435,  que  se  guar* 
dava  manuscripta  na  Bibliotheca  do  Conde  de  Yimieiro,  descreve-se  tambem  o 
Auto  de  Ostenfa^ào^  que  o  dr.  Mangancba  sustentou  em  Bolonha,  quando  acompa- 
nhava  essa  embaizada.  Foi  consultado  por  LeitSo  Ferreira.  {Noticias  chrtMologicca 
da  Universidade,  p.  351.)  Transcrevemol-o  do  Ms.  publieado  por  D.  Antonio  Gae- 
tano de  Sousa; 

«Sabei,  que  aos  treze  dias  do  mes  de  Setembro,  fez  o  muj  nòbre,  e  discreto 
Doutor  Diogo  Affonso,  que  vinba  em  companbia  do  muy  nobre  Senbor  Conde  Dourem 
com  embaixada  do  muy  no])re  Senbor  Bey  de  Portugal  bum  auto  multo  sòlepne  de 
Concm^oens,  as  quaes  forom  em  Lex,  e  em  Decretaes,  e  em  outras  artes  liberaes, 
e  sabei  que  em  aquelle  dia  a  tarde  foi  posto  em  huma  muy  alta  e  nobre  cadeira, 
e  Bcu  livro  ante  si,  segundo  be  custume  dos  escollares  e  Lentes,  e  estavam  acerca 
da  cadeira  muitos  bancos  cubertos  de  muy  nobres  bancaes  pera  averem  de  sentar 
Arcebispos,  e  Bispos  e  outros  Prellados,  e  pessoas  a  elica  iguais,  e  sabede,  que 
forom  abi  muitos,  e  mui  nobres,  e  )i}em  entendidos  escollares,  e  Doutores  aa  ma- 
ravilba,  segundo  se  dizia  pela  Corte  do  Papa,  sabede  que  estando  elle  na  cadeira 
vierom  estes  Bispos,  que  se  ao  diante  seguem,  que  eram  os  mais  letrados,  que  o 
Papa  trazia  segundo,  que  se  dizia  pela  Certe  do  Papa,  que  per  nome  eram  cba- 
mados  Ambianeses,  e  outro  Espelanteses,  e  acerca  destes  bum  Embaixador  de 
Franca,  e  disse  o  Bispo  de  Viseu,  e  outros  muitos  Doutores,  e  Prellados  ao  uso 
dito,  que  fallasse  bum  pouco  mais  alto,  e  come^arom  todos  a  oulbar,  que  era  o  que 
aiguya  o  sobredito,  e  o  Doutor  des  que  os  vio  todos* estar  assentados,  come^ou 
per  seu  latim  de  parlar,  que  ainda  que  fosse  bum  Anjo  Angelical,  que  dos  Ceos 
as  gentes  o  latim  viesse  decrarar,  nom  poderia  parecer  milbor,  e  des  que  o  Doutor 
acabon  de  prepoer  seus  argoimentos  o  Bispo  d  aquelles,  que  mais  cerca  d  elles  seya, 
que  era  o  mais  entendido,  e  de  muyto  mayor  nobreza,  e  come^ou  de  dizer  sub  reve- 
rencia  muy  nobre  Doutor,  eu  quero  desfazer  os  vossos  argumentos,  e  pollos  em 
ponco  valor,  e  logo  comef  ou  darguir  muy  fortemente,  que  a  todos  parecia,  que 
debelar  o  Doutor,  e  desbaratar,  e  em  cima  todas  razoens  ouve-se  de  callar,  e  o 
Doutor  come^ou  contra  o  Bispo  darguir  em  tanto,  que  fez  suas  razoens  boas,  e 
conclnsoens  muy  verdadeiras,  e  quando  o  Bispo  esto  vio,  come^ou  de  embruscar,  e 


142  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Emquanto  D.  Daarte  trabalhava  na  sua  encyclopedia  moral  in- 
titulada  o  Leal  Consdheiro  (1428  a  1437),  o  Doutor  Diogo  AffonBO 
de  Mangancha  conversava  com  o  monarcha  Bobre  differentes  questSes 
phìloBophicas,  e  offerecia-Ihe  apontamentos,  que  o  rei  intercalava  no 
seu  texto  comò  homenagem  ao  seu  saber.  Tal  é  o  capitulo  Lvm:  Score 
a  prudencia,  feito  per  o  Doutor  Diegaffonso,  D.  Duarte  poz-lhe  o  se- 
guititi preambulo,  que  nos  revela  a  sua  convivencia  intellectual  :  «Por- 
que  mynlia  teen9om  he  nom  me  ajudar  em  este  trautado  de  alhea  let- 
tura por  mynha,  saluo  em  allegafSoes  ou  parte  dalguus  capitullos  ti- 
radoB  doutros  liuros,  porém  este  a  juso  scripto  que  me  o  Doutor  Diego 
Affonso  do  meu  desembargo  deu,  sabendo  que  desta  virtude  da  pm- 
dencia  algua  cousa  screvja,  por  me  parecer  de  proveitosa  ensynanga, 
em  seu  nome  o  mandei  aqui  screver  com  alguils  mais  adjtamentos,  e 
corregymento  pera  seguyr  mjnha  teen9om  necessarios.v  Ab  paginas 
que  se  seguem  a  este  preambulo  resentem-se  das  divisSes  e  formalismo 
do  estylo  escholastico,  e  sSo  um  modelo  do  genero.  O  Dr.  Mangancha 


nom  Ihe  Boube  mais  responder,  e  ficou  alli  vencido  em  aquelle  legar,  e  quando 
veyo  0  outro  ho  outro  Bispo,  que  estava  acerca  d  aquelle  iste  vio  come^ou  per  seu 
latim  muy  alto  de  arguir,  que  as  gentés  se  maravilhavam  mais  d  aquelle  que  do 
outro,  e  des  que  come^ou  seus  argumentos  a  fazer  o  ouue  muy  bem  descuitar,  ate 
que  ouve  de  acabar  suas  razoens  *,  des  que  acal^ou  o  Doutor  come^ou  de  muy  pas* 
samentc  o  seu  fallar,  que  as  razoens  do  Bispo  ficarom  em  muy  pouco  sobre  o  que 
forom  postas,  e  sabede  que  depois  d  estes  Bispos  veyo  bum  Embaixador  de  £1  Bey 
de  Fran9a,  e  come^ou  de  arguir  por  seu  latim,  que  parecia,  que  era  Rousinol  que 
no  Mayo  bem  canta,  e  esteve  por  espa^o  de  buma  bora  com  bo  Doutor  em  argu- 
mentos, e  isto  fazia  elle  pollo  abater,  e  por  cuidar,  que  nom  soubesse  elle  resumir 
todo  0  que  elle  alli  Ibe  ouvesse  de  recontar,  e  sabede  que  tanto  que  ouve  darguir, 
atas  que  ouve  de  callar,  e  que  cansavam  jà,  e  quando  o  Doutor  vio,  que  mais  nom 
podia  arguir,  disse  o  Doutor  muy  umildosamente,  prazavos  Senbores  de  me  averdes 
descuitar.  Sabede,  que  este  muy  e  discreto  Barom  muy  mal  trouxe  seus  arguimentoa 
a  condusSo,  e  alli  trouxe,  e  come^ou  darguir,  que  nom  avia  bomem  no  mando  que 
tornasse  prazer  do  seu  razoar,  e  sabede,  que  aquelle  Embaixador  assi  ficou  ven- 
cido em  aquelle  lugar,  e  sabei  que  outros  muitos  Doutores,  e  bons  Bachareis,  que 
logo  come9arom  darguir,  e  desputar  com  o  Doutor,  e  elle  a  todos  responder,  e 
ouve  de  darem  cabo  com  todos  vencidos,  e  ouveram  a  ficar  as  condusoens  do 
Doutor  multo  Ibes  conveyo  abonar,  e  disseram,  que  bento  fosse  o  dia,  em  que  ao 
estudo  se  fora  assentar,  que  tantas  boas  cousas  corno  elle  sabia  em  a  sua  cabe^a 
forom  assentar,  e  todos  disserom,  que  nom  pensavam,  que  tal  bomem  t&o  letrado 
avia  em  Portugal,  c^odos  quantos  bi  estavam,  todos  Ihe  este  louvor  derom,  o  qual 
foi  de  feito  scgundo  o  que  disserom,  e  grande  louvamento  ao  Beino  de  Portugal, 
e  assi  foi  acabado  este  acto,  que  suso  dito  fez.»  {Diario  da  Jornada  que  fez  o  Conde 
de  Ourem  ao  Concaio  de  Basilea.  Ap.  Hist  Geneal.,  Provas,  t  v,  p.  696.) 


A  UNIYEnfiSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  143 

recitou  a  orajSo  nas  exequias  do  mallogrado  monarcha  sea  amigo^  e 
fez  a  Ora9So  da  Proposi^So  (Discurso  do  Throno,  segando  o  visconde 
de  Santarem)  nas  cortes  de  Lisboa,  de  10  de  dezembro  de  1439. 

O  Dr.  Mangancha  realisava  o  pensamento  do  Infante  D.  Fedro; 
em  ama  carta  de  JoSo  Fedro  Ribeiro  ao  arcebispo  Cenaculo,  cita-se 
um  papel  sobre  o  provimento  dos  bispadoS;  do  secalo  xv,  janto  com 
ama  Carta  do  Infante  D.  Fedro,  escripta  durante  a  sua  viagem  ao  rei 
D.  Duarte  sea  irmSo,  na  qual  se  lamenta  por  ordenarem  os  qae  ignqr 
Tarn  latim,  busca  o  remedio  na  reforma  da  Universidade,  propSe  o  es- 
tabelecimento  n'ella  de  Collegio»  a  exemplo  dos  de  Oxonia  e  Paris:  e  qae 
nom  dem  Ordens  a  nenhama  pessoa  qae  nom  saiba  falar  latim*;  porqae 
segando  vi  e  cavi  dizer  a  oatros  fora,  nas  terras  de  Spanha  he  avido 

por  grande  mingoa e  para  se  os  Frellados  nSo  escuzarem, 

que  per  mingoa  de  latinados  nSo  poderSo  ter  està  ordenanja,  a  mim  me 
parece  que  a  Universidade  de  vessa  terra  devia  ser  emendada,  e  a  ma- 
neira  vos  escreverei,  segando  cavi  dizer  a  oatro  qae  nisto  mais  enten- 
dia  qae  ea. 

«Frimeiramente,  qae  na  dita  Universidade  ouvesse  doas  oa  mais 
Collegios,  em  os  qaaes  fossem  mantheados  escolares  pobres,  e  oatros 
ricos  vivessem  dentro  com  elles  aas  saas  proprias  despezas,  e  todos 

morassem  do  Collegio  a  dentro,  e  fossem  regidos  por  o qae  de 

tal  Collegio  tivesse  carrego:  a  ordenan9a  desto  he  tal.  Em  a  Cidade 
de  Lisboa,  e  em  sea  Termo  ha  da  Universidade  sinco  oa  seis  Igrejas, 
e  em  aqaestas  se  podiam  bem  fazer  oatros  tantos  Collegios,  e  a  cada 
hum  qae  tivesse  ham  Vigairo,  qae  desse  os  Sacramentos,  e  dessem  a 

este  mantimento  pertencente  da  Igreja  e  o  mais  fosse qae  para 

aqaelle  Collegio  fossem  depatados,  e  estes  dormissem  em  ham  Pa90, 
que  tivesse  cellas^  e  comessem  jantamente  em  ham  lagar  e  fossem  ^ar* 
rados  de  so  hama  clausura.  Aquestes,  Senhor,  despois  que  ouvessem 
doas  ìannos  em  a  Universidade  fossem  gradaados,  e  lessem  per  jura- 
mento,  e  havendo  elles  tal  cria9So  com  ajudorio  da  Grafa  de  Deus  se- 
riSo  bem  acostumados  Ecdesiasticos,  e  ainda  os  Bispos  com  seus  Ca- 
bidos  poderiHo  fazer  cada  hum  Collegios  para  seus  naturais  ;  e  os  Mon- 
ges  pretos  outro  si  para  si,  e  os  Conegos  Regrantes  outro,  e  os  Mon- 
ges  brancos  outro,  e  ordenassem  estes  Collegios  por  maneira  dos  de 
Uxonia  e  de  Farìz,  e  assi  crescendo  os  Letrados  e  as  Sciencias,  e  os 
Senhores  achariSo  donde  tomassem  CapelUles  honestos  e  entendidos, 
e  quando  tais  promovessem  n3o.  seriSo  desditos,  e  até  d'isto  se  segui- 
ria  que  vos  achareis  Letrados  para  Officiaes  da  JustÌ9a,  e  quando  al- 
guus  vos  desprouvessem,  terieis  donde  tomar  outros,  e  elles  temendo  se 


144  HISTORIA  DA  IWIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

do  que  poderìa  acontecer,  serviriSo  melhor  e  com  mais  dilìgencia:  e 
destes  viram  bons  Beneficiados^  que  seriSo  bona  eleitores,  e  deshi  bons 
PreladoSy  Bispos,  e  outros:  aquesto  havìa  mester  bons  hordenadores 
em  0  comejo;  e  parece-me,  Senhor^  que* se  a  Vossa  Mercé  isto  qui- 
zesse  mandar^  averia  grande  honra  a  tcrra^  e  proveito  por  azo  da  Sa- 
bedoria,  que  deve  ser  muito  prezada,  que  a  muitos  tirou  e  tira  de  mal 
fazer;  mas  deviSo  ser  taes  ordenadores^  que  jà  estiveram  em  as  dita» 
Universidades,  bons  homens,  e  avizados  dos  costumes,  ou  mandardes 
a  alguem  que  vos  escrevesse  o  Begimento  dos  dittos  Collegios.»  ^  £  pro- 
vavel  que  a  funda^So  do  Collegio  do  Dr.  Mangancha,  para  Estudantea 
pobres  nascesse  d'està  sugestSo  do  Infante  D.  Fedro;  so  em  Coimbra 
e  jà  na  reforma  de  D.  JoSo  ni  é  que  differentes  ordens  monachaes  fun- 
daram  Collegios  junto  da  Universidade. 

O  Infante  D.  Fedro,  Duque  de  Coimbra,  que  tanto  se  interessava 
pela  Universidade  de  Lisboa  suscitando  a  idèa  da  crea9lio  de  Collegios 
junto  d'ella,  sentiu  a  falta  que  a  Coimbra  fazia  o  ter  side  despojada 
do  seu  Estudo  goral  em  1377,  e  sem  esperanfa  de  tomal-o  a  possuir, 
porque  pela  Carta  de  D.  JoSlo  i  de  1384  fixara-se  para  sempre  em  Lis- 
boa. Lembrou-se  pois  o  Infante  D.  Fedro  de  fundar  em  Coimbra  urna 
nova  Universidade,  e  comò  Regente  do  reino  em  nome  de  D.  Affonso  v 
estabeleceu  o  Estudo  goral  por  carta  do  ultimo  de  outubro  de  1443;* 


^  Està  Carta  vem  publlcada  na  integra  por  J.  P.  Ribeiro,  nas  Diss.  diron,^ 
1. 1,  Doc.  u.^  civili,  p.  399,  ed.  1860. 

^  Dom  Affonsso  etc.  a  qnantos  està  carta  virem  fìizemos  saber  que  os  Rex 
da  piedosa  lembran^a  de  que  noe  des^eindemcs,  consjrando  corno  todallas  obras 
de  deos  procedem  da  sua  maravilhosa  sabedorìa.  £  que  outro  lbj  nehuu  rregno 
nem  principado  nom  pode  ser  firme  se  nom  for  rregido  com  muyta  praden^ia  polla 
quali  rrazom  corno  tiranos  destruydores  das  cousas  pruyycas  avorrecem  ob  sabe- 
dores.  assy  ob  boos  prin^ipes  os  devem  muyto  amar  e  pre^r  por  tanto  hordena- 
rom  na  muyto  antyga  nobre  abastada  ^idade  de  coymbra  huii  Geral  eetudo  de  to- 
dallas (iencias  por  tali  que  os  bem  despostos  acbassem  meestres  de  que  podessem 
aprender  virtudes  sabedorias  que  he  huu  grazioso  dom  do  spirito  sancto  outorgado 
aoB  homees  assy  corno  a  buu  rrayo  e  buua  participa^om  da  divinali  natureza  na 
quali  Bse  salva  a  rrazom  da  ymagem  de  deos  a  cuja  Bemelham9a  forom  creados. 

£  desy  que  o  emtemdimento  armado  de  taaes  armas  quejandas  pertemce  se- 
gumdo  diz  0  apostollo  pella  nossa  spiritual  cavallaria  poBsamos  pelejar  e  vQmcer 
virtuosamente  as  agudas  paizoeSs  a  que  formos  incrinados.  £  comtinuando  assy  o 
dyto  estudo  por  tempos,  o  muyto  virtuoso  e  nunca  ven^ido  primcipe  el  Rey  dom 
Joham  meu  avoo  que  deos  aja  e  dee  gloria  por  alguGas  justas  e  proveytosas  rra- 
zoes  mudou  o  dito  estudo  aa  muyto  nobre  e  sempre  leali  ^idade  de  lizboa  de  cuja 
oontinuada  preseveran^a  sayrom  letrados  em  desvayradas  s^iem^ias  que  Ihe  feze- 


A,raiVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  145 

para  obter  os  meios  para  salariar  aB  cadeiras  de  Leis  e  CaiKmeB,  Theo- 
logia  e  Artes  entrou  em  accordo  com  as  dignidades  e  cabido  da  sé  de 
Coimbra^  e  com  o  prior,  chantre  e  beneficiados  de  S.  Fedro  de  Alme- 
dina,  e  com  0  bispo  de  Coimbra  D.  Luiz  Coutinho^  que  a  24  de  maio 
de  1446  fizeram  urna  escriptura  de  doa9So  das  rendas  da  egreja  de  S. 
Thiago  de  Almelaguez,  com  a  condÌ9fto  de  caducar  a  doafSo  se  o  Es- 


rom  grandes  servi^os  per  seu  claro  saber  allumerarom  os  escuros  entendimentos 
de  muTtos  e  trouverom  verdadeyra  honrra  e  proveTto  a  sua  terra.  E  por  que  a  noe 
perten^e  manteer  e  acre9entar  o  qae  os  sobreditos  Bex  por  comaerya^om  destes 
iregnos  e  acre^emtamento  da  sagrada  religioni  xpSa  bem  hordenarom  coube^ead* 
que  o  estudo  de  lizboa  nom  abasta  pera  todos  porque  mnytos  moram  em  lugazv» 
t2  alomgados  que  leizam  daprender  por  nom  yirem  tam  longe  de  suas  casas.  Ou- 
tros  por  aazo  das  pe8tillen9ia8  que  aas  vezes  na  dita  9idade  aconte9e  sse  partem 
do  eatudo  e  por  nom  acharem  no  rregno  outras  escoUas  bomde  possam  estudar 
affidando  assy  on^iosos  Ihes  avem  que  esquoQem  quanto  aprenderom. 

E  aimda  alguus  por  bomezios  e  arruydos  ssom  estorvados.  outros  pella  muyta 
comversa^om  dos  amygos  e  parentes  nom  podem  com  rrepousado  spirito  estudar. 
E  asay  Ihes  be  ne9eBBario  que  yaào  com  gramdes  despesas  e  trabalbos  buscar  es- 
tndo  fora  da  terra  domde  muytos  nunca  mays  tomam.  E  porem  pera  nos  escusar- 
mos  estes  inconvenientes  por  espertarmos  os  nossos  subditos  que  sse  desponham 
aoB  estudos  das  boas  artes  e  virtuosas  e  ensinan9a8  em  guisa  que  as  nossas  9ida- 
des  8ej5  compridas  de  bomeSs  letrados  que  per  seu  boom  exemplo  melborem  em 
muytos  e  per  sua  insinan9a  prestem  a  todos. 

Ffiindamos  e  bordenamos  estabellecemos  outro  geerall  estudo  na  sobredita 
Dobre  9idade  de  coymbra  que  be  comarquaS  assy  aos  naturaaes  de  nossos  rregnos 
corno  aos  estramgeyros,  saadia  e  avondosa  de  todallas  coutas  que  pera  a  vida  dos 
bomeens  sam  ne9efisarias.  E  por  ser  o  dito  estudo  milbor  rregido  queremos  e  man- 
damos  que  seia  delle  protector  ho  alto  e  poderoso  prim9ipe  o  y&nte  dom  pedro 
mett  mnyto  amado  e  pre9ado  iyo  e  padre  nosso  tutor  e  curador,  rregedor  e  com  a 
ajuda  de  deos  defensor  por  nos  de  nossos  rregnos  e  senborio  duque  da  dita  9Ìdade 
de  coymbra  e  senhor  de  monte  moor.  E  desy  todos  aquelles  que  delle  lidemamente 
des^emderem  que  forem  duques  de  coymbra.  E  esso  meesmo  bo  bomrrado  em  Jhu 
zpo  padre  dom  fernamdo  ar9ebispo  de  bragua  nosso  bem  amado  primo  e  seos  sob- 
cessores  na  dinidade.  E  queremos  e  bordenamos  que  no  dito  estudo  sse  leom  con- 
tinnadamente  todallas  9ien9ias  aprovadas  per  a  sancta  ygreja  de  rroma  comò  sse 
leem  nos  outros  estudos  geeraes.  E  porque  os  mestres  doutores  e  escollares  pos- 
sam na  dita  universidade  estudar  com  rrepouso  a  viver  em  framqueza  e  querendo- 
Ihes  fazer  gTa9a  e  mercee  de  nossa  9erta  9ien9ia  proprio  ibovimento  e  poder  ab- 
soUuto  damos  e  ontorgamos  aa  dita  universidade  de  coymbra  e  a  todallas  pessoas 
que  nella  pella  sobredita  maneyra  estudarem  e  a  cada  baila  dellas  e  a  seus  be« 
dees  e  rrecebedores  livreyros  e  escrivaàes  e  familiares  a  fora  os  privillegios  que 
Ihes  per  diretto  comuG  ssom  outorgados  Os  quaaes  Ihe  confumamos  queremdoos 
aqoi  aver  por  ezpressamente  nomeados.  Outorgamos  Ibe  comò  dito  be  todollos  pri- 
vilegios  e  franquezas  e  liberdades  e  execu90oes  que  aa  universidade  de  lizboa 

HIST.  UH.  1^ 


146  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRÀ    * 

tudo  geral  fosse  mudado  de  Coìmbra.  ^  0  desastre  inesperado  de  Al- 
farrobeira  em  1449^.  onde  o  Infante  D.  Fedro  foi  assassinado  por  intri- 
gas  do  conde  de  Barcellos,  obstou  com  certeza  à  realisaf&o  do  generoso 
pensamento.  Coimbra  perdeu  a  occasiSo  de  ufanar-se  com  um  novo  Es- 
tudo  geral. 


pollos  Rez  passadoB  issom  outorgados.  E  eacomendamos  ao  dito  jffante  dom  pedro 
e  ao  dito  ar^ebispo  protectores  do  dito  estudo  qua  ìhe  fanoni  gaardar  e  manteer 
06  ditos  privilegioB  £  nom  conaentam  a  nenbaua  pessoa  edesi  astica  nem  segrall 
por  poderosa  qua  seja  qua  Ihea  vaa  centra  alias  em  parta  nem  em  todo  fazendo 
enzecutar  rraalmente  e  com  affecto  as  pennas  em  qua  cayram  aquellas  qua  Ihes 
contra  os  ditos  privillagios  forem.  E  mandamos  a  encomendamos  am  espellali  aos 
Juizes,  vareadoras  ^idadaàos  e  homais  bo5s  da  dita  QÌdada  em  gaerall  a  todollos 
de  noBSOS  rregnos  qua  trautam  benjna  a  graziosamente  os  meestres  doutores  es- 
coUares  e  passoas  da  dita  universidada  a  os  homrraài  por  nosso  amor  mantando- 
Ihes  OS  ditos  privillagios  a  liberdadas  qua  Ibas  assy  oatorgamos.  E  am  tastemunho 
dello  Ihes  mandamos  dar  està  nossa  carta  seellada  do  nosso  saello  do  cbambo* 
dada  em  a  nossa  villa  de  lajraa  postumeyro  dia  de  outubro  par  autoridade  do  dito 
yffante  rragante  etc.  Martim  Gill  a  fez  anno  do  senbor  Jhu  Xpo  de  mill  e  iiij  «  riij 
annos.»  (Livro  decimo  da  Extremcutura,  fl.  Ixviij.  No  Archi vo  nacional.) 

1  Està  facto  apparace  pela  primeira  vez  apontado  por  Migael  Ribeiro  da  Vas* 
concellos,  Ituiituto,  t  ni,  p.  302,  seguido  da  Doa^ào,  ib.,  p.  318: 

Carta  de  doag&o  à.  Universldade 

In  nomina  Domini,  amen. — A  quantos  està  carta  de  perpetua  doa^om  e  oq- 
torgamanto  virem.  N6s  dignidades  e  Cabido  da  Sea  de  Coimbra  chamados  singa- 
larmente  para  o  acto  segainta  a  Cabido,  a  Cabido  fazendo  segundo  nosso  costume, 
e  nós  Prior  e  Chantra  e  beneficiados  da  Igraja  da  sam  Padro  d^Almadina,  fazemos 
saber,  que  consirando  nos  quanto  a  storia  das  latras  he  necessaria  a  proveitosa 
cousa  a  todos  e  singularmenta  aas  pessoas  edasiasticas  que  hlo  de  rregar  e  en- 
caminhar  si  x^esmos  a  outros  a  saber  guardar  os  mandamentos  de  Deos  e  usar  de 
virtudas,  sendo  nós  certos  da  grande  vontada  qua  ha  o  mui  illustre  a  mui  virtuoso 
Principe  o  sr.  Infante  D.  Pedro  d'està  meesma  cidada,  tutor  a  curador  d*Bl-Rei 
nosso  sr.  a  curador  a  rregedor  por  eli  destes  rregnos  de  a  ennobrecer,  decorar  e 
accrascentar  e  malhorar  mandando  aas  suas  proprias  despezas  fazer  estramadas 
e  selantas  scolas  a  estudo  geeral  de  todas  as  artes  scienciaaes  para  soportamento 
e  govemanza  das  quaaes  som  necessarias  rrendas  certas  subficientes  para  salariar 
OS  doutores  e  mais  Lentes  e  os  outros  officiaes  a  para  soportar  os  carregos  do 
studo  a  universidada  dos  studantes  para  a  qual  cousa  o  dito  sr.  rragente  lògo  pri- 
meiro  que  outrem  come^ou  de  o  dotar  assignando^lhe  para  sempre  huma  boa  e 
grande  cantidade  de  renda  das  suas  proprias  terras  mandando-nos  afincadamente 
e  graciosa  rrogar  e  rraquerer  qua  nos  outrosi  qua  do  dito  studo  e  fructo  das  scien- 
cias  aviamos  sear  quinhoeiros  quizessamos  fazar  para  esto  alguma  ajuda  da  rrenda 
perpetua,  e  dapois  dos  rrazoamentos  que  sobrello  ouvemos  todos  acordadamente 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA  MONARCHICA  147 

D.  Affonso  V  bem  cedo  reconheceu  qae  fòra  instrumento  de  um 
ambicioso  traidor,  e  procaroa^  talvez  sob  a  delicada  inflaencia  de  sua 
mulher,  D.  Isabel^  filha  do  Infante  D.  Pedro^  reparar  o  attentado  em 
qae  se  achou  envolvido.  Por  Provis&o  de  22  de  setembro  de  1450  dea 


8em  contradi^om  sentimos  e  onvemos  por  bem  de  outorgar  a  apropriar  e  dar  ao 
dito  stado  quanto  de  direito  podemos  o  padroado  da  Igreja  de  Santiago  d^almala- 
gaes.  O  qual  padroado  e  dereito  de  apresentar  pertence  a  nós  e  ao  prior  chantre 
e  col^o  da  Igreja  de  sam  pedro  de  almedina  de  concensu  e  de  permeo  e  assim 
estamoa  de  posse  pacifica  sea  quasi  de  apresentar.  £  de  feito  por  aquesta  prezente 
DOS  todos  apreciamos  e  damos  ao  dito  studo  o  nosso  direito  do  dito  padroado  e  o 
tiramos  e  demetimos  de  nós,  de  tal  maneira  que  quando  quer  que  acontecer  de  a 
<lita  Igreja  vagar  por  morte  ou  rrenuncia^om  d'ai  varo  paaez  que  ora  d  ella  he  prior 
ao  qual  nom  entendemos  por  aquesta  doa^om  e  outorgamento  fazer  algum  prejuizo 
que  as  rrendas  todas  della  que  ora  ao  prior  pertencem  ficarao  e  pertencerSo  ao 
dito  studo  e  Ihe  serSo  anexas  por  virtude  desse  nosso  outorgamento  o  qual  faze- 
moe  afora  a  ter^a  que  hj  ha  o  cabidoo  a  qual  o  dito  cabidoo  sempre  hy  bade  aver 
em  salvo  sem  algumas  custas  nem  censos  salvo  em  apanbar  ou  arrenda  sua  rrenda. 
£  afora  esto  meesmo  tres  moios  pela  velba  de  pào  meado  convem  saber  melo  trìgo 
e  meio  ndlbo  ou  segunda  que  a  dita  egreja  de  S.  Pedro  d'almedina  ba  daver  em 
cada  bum  anno  do  rreitor  da  dita  Igreja  de  Santiago  segundo  que  sempre  ouve  e 
agora  ba  de  alvaro  paaez  prior  e  segundo  se  contem  em  compromisso  e  escriptura 
desto  que  antre  as  ditas  Igrejas  ba  e  t2o  bem  a  dita  Igreja  de  S.  Pedro  ba  de  dar 
aa  dita  Igreja  de  Santiago  em  cada  bum  anno  tres  meos  d  azeite  por  a  velba  praa 
Uunpeda  segando  se  contem  em  o  dito  compromisso,  e  aquesto  outorgamento  e  doa- 
9om  fazemos  com  as  condi^Ses  seguintes,  convem  a  saber  que  das  rrendas  desta 
Igreja  susoditas  que  ao  prior  agora  pertencem  seja  reservada  e  assignada  ou  ta- 
xada  tal  parte  por  o  bispo  para  sustentamento  do  vigairo  e  vigairos  perpetnoe 
poedóiros  em  ella  per  tempus  porque  bonestamente  possSo  viver  e  soportar  os  car- 
regos  da  dita  Igreja  que  agora  ao  dito  prior  pertencem  a  aprezenta^io  do  qnal  ou 
dos  quaes  vigairos  para  sempre  poedóiros  seja  ou  perten^a  para  sempre  a  nos  e 
ao  prior  e  beneficiados  susoditos  de  S.  Pedro  de  concensu  e  de  permeo  assim  corno 
nos  agora  pertence  a  apresenta^om  dos  Priores.  Item,  se  porventura  acontecesse 
as  ditas  escolas  e  studo  nom  virem  a  aperfei^slo  para  que  se  fazem  convem  a  sa- 
ber de  se  lerem  em  elle  e  aprenderem  sciencias  artes  geralmente  segundo  se  es- 
pera, e  segundo  se  costuma  de  se  lerem  em  os  estudos  geeraes  ou  depois  cessasse 
por  tempo  ou  tempos  ou  se  mudasse  para  outra  comarca,  ou  lugar  fora  desta  ci- 
dade  que  em  tal  caso  todas  e  quaaesquer  que  o  dito  studo  ouvesse  daquesta  Igreja 
dalmalaguez  e  Ibe  fossi  corno  dito  be  unidas,  e  apricadas  que  logo  ficassem  ou  fi- 
quem  esse  facto  apricados  por  aquella  meesma  guisa  aa  dita  see  e  a  sam  pedro 
d  almedina  para  as  &bricas  e  obras  dellas  segando  que  a  cada  pertence  o  direito 
do  padroado  e  que  as  ditas  see  e  Igreja  de  sam  pedro  da  almedina  sem  outra  au- 
toridade  Judicial  possa  aver  e  filbar  por  si  as  ditas  rrendas  comò  cousas  devola- 
tas  a  elles  que  Ibes  pertencem  tanto  que  for  certo  ou  notorio  que  o  dito  studo  cessa 
de  se  leer  em  eli  direito  canonico  e  civil  ou  se  mudar  comò  dito  be  e  que  qualquap 
que  por  for^a  ou  centra  razom  e  Justi^a  estas  rendas  Ibe  torvar  ou  embargarpor 

10« 


148  HISTORIA  DA  UNIVERSIDABE  DE  COIMBRA 

ordem  para  se  estabelecer  em  Coimbra  a  nova  Universìdadei  e  que 
cse  levantassem  oatros  Estados  nas  mesmas  casas  das  Escholas  anti- 
gas, junto  aos  seas  pasos,  que  s^  os  do  Collegio  real,  e  que  està  Uni- 
yersidade  tìvesse  os  mesmos  privilegioB  que  a  de  Lisboa,  dedarando 


si  cu  por  ontrém  seja  maldito  e  escomangado  e  sacrilego  e  pedimos  de  mercee  so 
BOSSO  prelado  e  sr.  D.  Laiz  Coutinho  bispo  d'està  cidade  que  com  estas  condi^Ses 
e  daosolas  tenba  pur  bem  de  fazer  a  dita  anexa^om  em  forma  suso  dita  e  aoosta- 
mada  e  esto  meesmo  pedimos  de  mercee  ao  bem  aventnrado  papa  Eugenio  dosso 
sr.  que  està  doa^om  e  outorgamento  e  aneza^om  que  se  della  farà  do  complimento 
do  seu  poderio  queira  aprovar  rratificar  e  confirmar  a  peti^om  de  nos  todos  seus 
homildosos  servidores  deam  e  cabidoo  da  see  de  Coimbra  e  prior  e  benefidados 
da  Igrcja  de  sam  pedro  dessa  cidade  em  testemunho  das  quaaes  cousas  mandamos 
todoB  ser  feita  està  carta  seelada  dos  Boelos  da  dita  Igreja  cathedral  e  da  Igrcrja 
de  sam  pedro,  feita  em  a  dita  cidade  a  24  dias  do  mez  de  mayo.  Era  do  nascimento 
de  nosso  Sr.  Jheau  zpo  de  1446  a.*^* 

^pprovagio  e  confirmagSo  do  blspo  de  Ooimbra 

D.  Luis  Coutinho  por  mercee  de  Deos  e  da  Santa  Igreja  de  rroma  bispo  de 
Coimbra  consirando  as  couzas  e  razooes  contheudas  em  a  buso  dita  doa^m  se- 
rem  verdadeiras  e  legitimas  Inclinado  aos  justos  reqrymentos  do  suso  nomeado 
muy  yllustre  principe  e  Sr.  Infante  dom  pedro,  e  dos  padroeiros  fazemos  a  doa^om 
e  outorgamento  com  dezejo  esso  meesmo  que  ej  do  thezouro  Incomparavel  da  sden- 
da  ser  acrescentado  em  està  ddade  e  rregnos  rratìficamos  aprovamos  e  avemoa 
por  boa  a  dita  doa^om  e  de  consentimento  e  benepladto  de  nosso  Cabido  e  quanto 
com  direito  podemos  anexamos  unimos  e  ajuntamos  as  rrendas  da  dita  Igr^a  de 
Santiago  d  ahnalaguez  que  ao  prior  ou  priores  pertenciSo  e  agora  ainda  pertencem 
aa  Universidade  do  dito  studo  com  as  condi^oes  e  clausulas  contheudas  e  ezpressas 
em  a  auso  dita  carta  de  doa^m  e  outorgamento  e  per  outra  guisa  nom  reserranda 
mais  e  tazando  para  convinhavel  e  onesto  soportamento  do  Vigairo  ou  yigidros 
que  por  tempo  siam  em  a  dita  Igreja  de  Santiago  perpetuos  e  para  elles  teremde 
que  paguem  as  procura^Ses  e  confirma9oe8  e  suporte  todolos  encarregos  da  dita 
egreja  de  Santiago  a  que  o  prior  ou  priores  de  direito  eram  theudos.  £  esso  mesmo 
a  pagar  aquelle  p2o  meado  da  Igreja  de  sam  pedro  segundo  o  prior  ora  paga  a 
ter^a  parte  de  todo  o  que  rrender  a  dita  Igreja  ou  renderla  ao  prior  se  hj  ouvesse 
eomo  ha  e  mais  todo  pee  do  aitar.  E  as  outras  duas  partes  da  renda  fazendo  tres 
partes  daquello  que  ao  prior  pertence  fiquem  e  s^2o  unidas  e  aprìeadas  ao  studo 
o  qual  as  aja  ysentas  e  livres  e  as  possa  mandar  arrendar  ou  apanhar  comò  sua 
propria  Renda.  Em  testemunho  das  quaaes  cousas  mandamos  ser  feita  està  Carta 
seelada  do  nosso  seello  pendente  dada  en  na  ddade  de  Coimbra  a  vinte  e  quatro 
dias  do  mez  die  maio  era  do  nascimento  de  nosso  Sur.  Jesu  zp.*  de  mil  quatro  cen* 
tOB  quarenta  e  seis  annos. 

(Aeham*se  estes  documentos  no  Archivo  da  Cathedral  de  Coimbra,  gav.  1, 
B.  1,  m.  8,  n^  29.)  InMuto,  voi.  m,  p.  317  a  819. 


A  UNIYER^IDADE  SOB  A  DIGTADURA  UOKARCHIGA  149 

que  nSo  convinha  haver  n'este  Beyao  urna  so  Universidade.i'  D.  Af- 
fonso  y  chegou  a  noinpar  o  Reitor  para  a  nova  Universidadey  Mestre 
Alvaro  da  Motta.  No  come90  da  versSo  portugueza  da  Vida  de  D.  IWo 
e  noticia  da  fundagSo  do  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimhra  citsi-se  o 
nome  do  Mestre  Alvaro  da  Mota,  corno  o  do  maior  letrado  dos  Domi* 
nicanoB  no  meado  do  secalo  xv:  cE  està  obra  està  em  latim  no  lioro 
dos  erdamentos  de  santa  cruz,  e  foi  -torhada  em  lingoagem,  porqae  o 
entendesem  mait0S|  a  requerimento  de  pedre  annes  prior  de  podentes, 
irmaSo  de  afonse  anes  conigo  de  Santa  craz. — ^E  està  trelada^m  fez 
de  latim  em  lingoagem  mestre  aluaro  da  mota  da  ordem  dos  prégado* 
rea,  o  mtdor  letrado  da  ordem,  estando  em  santa  cruz  com  o  prior  dom 
^mes  no  anno  de  LV  no  mes  de  nouembro.»'  Fez-se  um  silencio  abso- 
luto  sobre  o  cumprimento  da  ProvisSo  de  22  de  setembro  de  1450;  nSo 
>chegou  a  organisar-se.a  Universidade  projectada  pelo  Infante  D.  Fe- 
dro em  1446,  decretada  por  D.  Affonso  v  depoìs  da  sua  morte,  e  corno 
que  em  sua  homenagem.  A  inflaencia  benigna  da  rainba  D.  Isabel  ces- 
sou  pela  morte  d'ella,  envenenada,  segando  a  phrase  incisiva  de  Ray 
de  Fina,  qae  esteve  sempre  ao  lado  do  espirito  vingador  de  D.  JoSo  n. 
A  fdndag&o  de  Collegios  janto  das  Universidades  é  am  facto  ca- 
racteristico  desde  o  principio  do  secalo  xiv,  sobretado  em  Faris,  comò  se 
Té  invocado  pelo  testemanho  do  Infante  D.  Fedro.  O  Dr.  Mangancha 
comprehendeu  o  espirito  do  sea  tempo,  attendendo  aos  estudantes  po^ 
bresj  a  qaem  jà  acadira  D.  JoSo  i  fazendo-os  contribuir  com  a  quarta 
parte  do  qae  os  outros  pagavam  para  o  salario  dos  lentes.  O  Collegio 
de  Arras,  (1302-1332)  fora  fandado  exdnsivamente  para  os  estadantes 
pobres  d'aquella  localidade  que  iam  frequentar  a  Universidade.  de  Pa- 
ris; 0  Collegio  do  pateo  Chardonnet,  ji  dispunha  de  cem  bolsas  para 
dota(Ao  de  alumnos;  o  Collegio  de  Navarra  é  dotado  pela  rainha  ma- 
Iber  de  Philippe  o  Bello,  com  vinte  bolsas  para  o  estudo  da  G-ram- 
matica,  trinta  para  a  Dialectica  e  vinte  para  a  frequencia  da  Theologia. 
Estes  Collegios  constituem-se  pelo  seu  desenvolvimento  crescente  em 
centros  de  ensino  dementar,  comò  o  typo  primario  dos  Gjmnasios  al- 
lemAes  oa  dos  Ljceus  portoguezes.  Victor  Le  Clerc  enumera  a  longa 
lista  dos  Collegios  fandados  jonto  da  Universidade  de  Paris,  destacan- 


1  BrandSo,  Monarch.  Lus.^  P.  t,  Liv.  xvi,  cap.  73.  Na  carta  de  22  de  setem- 
bro, dada  em  Cintra  em  1450,  ordena  qae  para  os  salarios  dos  lentes  sejam  pagos 
pelo  almozarifado  de  Coimbra  treze  mil  reaes  brancos  aos  qaartds,  desde  o  pri- 
mdio  de  outubro  do  aimo  segointe. 

*  Portvgaliae  Monvmenta  historioa,  Scrìptores,  voi.  i,  p.  75. 


150  HISTORIA  DA  UNrVERSIDADE  DE  COIMBRA 

do-se  das  escholas  episcopaes^  das  ordens  monachaes  e  das  na^Ses 
estraDgeiraSy  de  que  se  acha  vestigios  em  1392.  As  ordem  mendicantes 
assaltavam  estes  CoUegios  pelo  seu  parasitismo  evasgelico;  e  porisBO 
destinavam-Be  elleB  especìalmente  aos  pobres  seculares,  taeB  corno  os 
'  escholares  pobres  da  Sorbona,  ob  mogos  pobres  de  S.  Thomaz  e  do 
Louvre,  e  em  Lisboa  ob  Estudantes  pobres  de  S.  Nicoldo;  Le  Clero  cita 
0  coBtuine  da  eleÌ9So  do  Reitor,  em  dia  de  S.  Jvliào  o  póbre.  ' 

Dava-BO  nas  Escholas  medievaes  o  nome  de  Collectum  &  contrì- 
boifSo  ou  honorario  do  alnmno  ao  lente  ou  mostre  de  quem  recebia  as 
ligSes;  este  uso^  conservado  nas  Universidades^  explica  a  sua  origem, 
por  que  as  Universidades  surgiram  por  iniciativa  particular;  e  sob  o 
poder  realy  era  por  causa  do  Collectum  que  se  coptractava  para  o  ma- 
gisterio  OS  homens  de  mais  saber  e  nomeada,  agrupando-se  em  volta 
da  Bua  cathedra  os  estudantes  de  todas  as  n&^^Sy  augmentando  pelo 
seu  numero  este  subsidio.  Por  urna  Carta  de  6  de  fevereiro  de  1392 
de  D.  JoSo  I  ao  Reitor  da  Universidade,  sabe-se  que  «havia  todos  os 
annoB  diecordiàs  entro  os  lentes  de  Leis  e  Decretaes  e  os  escholares 
por  cauBa  das  talhas,  que  estes  pagavam.»^  O  rei  ordenou  ent2k>^ 
que  OS  mais  ricos  pagassem  40  libras,  e  os  outros  meoros  20  libras,  e 
08  mais  pobres,  10  libras.  Estas  questSes  repetiam-se  com  frequencia^ 
a  ponto  de  em  7  de  dezembro  de  1415  se  fazer  um  instrumento  csobre 
a  contenda  entro  bedel  e  escolares  por  causa  da  colheita. . .  que  em 
cada  anno  se  Ihe  pagava. . .  prefos  certos. . .  a  fora  alguns  nobres  que 
pagassem  Bogimdo  suas  pessoas.i  '  Este  instrumento  foi  cfeito  na  es- 
chela  das  leis^  presentes  os  dìscretos  sages  varSes  Rodrigo  Anes,  Prior 
de  S.  Pedro  de  Alèmquer,  e  JoSo  Alpoem  reitores^  e  Jofto  Loiiren^o 
licencìado  em  leis  lente  ncestudo;  FemSo  AIvarcB  lente  de  canones, 
FemSo  Martim  licenciado  lente  de  fisica,  Qon{alo  Anes  meBtre  de  lo- 
gica, 6on9alo  Domingues  mostre  em  grammatica,  Christovam  Lopes 
e  Jo8o  Gonfalves  conselheiros  na  Eschola  das  Leis,  e  mais  deus  con- 
selheiros  por  cada  escola  (fisica  e  canones,  logica  e  granmiatica).t 
N2o  obstante  estas  re8olu98eB  repetiram-se  as  questSes  centre  o  mos- 
tre de  grammatica  e  os  escolares  pela  collectait  a  qual  variava  segundo 
eram  tescolares  de  partes  e  escolares  de  regras;^  a  obriga98o  de  pa- 
garem  coUedum  aos  mestres  estendia^se  tambem  aos  cmo90s  familiares 
doB  escolares  que  os  servem,  quando  tambem  ouviam  de  regras  e  de 


»  Éiat  de»  Letires  au  XIV  nleie,  t.  x,  p.  270. 
*  lÀvro  verde  fl.  68. 
3  Ibidem,  fl.  70,  f. 


A  DNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  151 

autores  mendos,  salvo  se  forem  as  escolas  publicas.»  ^  Em  uina  Carta 
pafisada  em  1412,  estabelece-se  «para  que  os  escolares  de  logica,  por 
ser  pequeno  o  salario  do  mostre,  paguem  per  annua  coUecta,  20  reaes.»  ' 
Os  escolares  de  partes,  a  Secunda  secundae  ou  a  Summa  de  Sam  Thomaz, 
e  OS  de  Regras,  e  de  CatSoy  Donato  e  Prisciano,  formavam  duas  classes 
rìvaes  entro  si,  corno  o  confessa  FemSo  de  Oliveira  alludindo  às  zom- 
barias  entro  os  Summulistas  e  os  Rhetoricos  ^.  Na  fixa9llo  do  collectum, 
era  attendida  a  circmnstancia  da  pobreza  do  escolar,  em  todas  as  Uni- 
Yorsidades  europèas. 

O  estudante  póbre  formava  uma  classe  na  Edade  mèdia;  elle  pedia 
esmola  para  acudir  às  necessidades  da  vida  e  despezas  escolares.  Tho- 
maz  Platter  (1499-1582)  descreve  assim  a  sua  situajSo  de  estudante: 
«tendo  adiantado  o  nosso  caminho  até  Strasburgo,  nós  encontràmos 
n'aquella  cidade  um  grande  numero  de  estudantes  pobfes  e  uma  muito 
mi  eschola.  Isto  nos  fez  resolver  a  partir  para  Schlestadt.  No  caminho 
nm  sujeito  nos  desanimou,  dizendo  que  em  Schlestadt  havia  uma  grande 
quantidade  de  estudantes  pobres  e  poucos  ricos.  0  meu  companheiro 
poz-se  a  chorar  e  perguntou-me  o  que  deviamos  fazer.  Vamos  para 
Schlestadt,  disse-lhé  eu,  porque  li  temos .  urna  boa  eschola,  e  se  um 
estudante  pode  ali  viver,  eu  te  prometto  de  nos  sustentarmos  a  nós 
dois,  por  que  ninguem  conhece  melhor  do  que  eu  o  officio  de  mendigo. 
Achàmos  quartel  em  casa  de  um  cego,  e  depois  fomos  ter  com  o  ma- 
gister,  o  celebre  JoSo  Sapidus.»  No  seculo  xiv  tinhamos  tambem  os  es- 
tudantes pobres,  e  ainda  no  seculo  XVi  os  estudantes  honrados  pobres. 

Quicherat,  na  Historia  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  descreve 
està  classe  dos  estudantes  pobres  ou  Martinets:  e  Formavam  os  Mar- 
tinets  està  populagSo  de  escholares  sem  mealha,  muitas  vezes  sem  pou- 
sada,  que  perpetuavam  a  imagem  da  barbarie  no  scio  de  uma  socie- 
dade  policiada.  Contavam  entro  si  individuos  dignos  de  consideraySo, 
mesmo  de  admira9So;  rapazes  que  tinham  podido  apaixonar-se  pelo 
estudo  no  meio  da  abjec9&o  em  que  tinham  nascido.  Vinham  adquirir 
a  Bciencia  à  custa  de  todos  os  transes  da  miseria,  vivendo  de  esmolas 
ou  do  modico  salario  que  elles  ganhavam  entregando-se  aos  mais  vis 
servifos.  Porém,  em  volta  d'elles  agitavam-se  os  turbulentos,  incapazes 
de  teda  a  assiduidade,  inìmigos  de  toda  a  disciplina,  frequentadores  de 


*  «  Livro  Verde^  fl.  73. 
»  Ibid.,  fl.  9. 

'  No  processo  de  Sanches  (Brocense)  pela  Inquisi^io  em  1584,  ainda  se  i»- 
Biste  n'este  caracter  :  «mordaz  corno  lo  son  todolos  gramattcos, .  •  > 


152  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

collegios  e  tambem  de  tabemas,  que  se  encontravam  inevìtayelmente 
noB  motinsy  e  muitas  vezes  em  bandos  entregaes  is  maig  calpaveis 
industrias.  A  Universidade  vexaya-se  de  ter  de  reclamar  em  conse- 
quencia  das  capturas  que  fazia  a  policia;  ella  estatoia  que  n§o  admit- 
tiria  aos  gràos  os  alamnos  que  nSlo  fossem  munidos  de  um  certificado 
que  attestasse  que  tinham  passado  o  tempo  dos  seus  estudos  em  um 
CoUegiOi  em  uma  pedagogia  ou  em  casa  de  algum  honrado  burgues 
da  cidade;  prohibÌ9So  aos  professores  de  receberem  martinets  nas  suaa 
classes,  e  aos  bedeis  da  faculdade  de  os  levar  a  exaiùe.»  ^  A  impor- 
tancia  que  os  Collegios  receberam  do  meado  do  seculo  xv  em  diante 
pode  attribuir- se  aos  regulamentos  a  que  foram  submettidos  os  Marti- 
nets, OS  Goliardos  da  tradi(fto  medieval. 

Na  Peninsula  os  Estudantes  pobres  seguiam  às  vezes  a  vida  men- 
dicante, cantando  de  terra  em  terra,  comò  se  ve  pelas  coplas  escriptas 
pelo  Arcipreste  de  Hita.* 


1  But.  du  CoUege  de  Sainte  Barbe,  t  i,  p.  22.  0  nome  de  MarUnet  vem  do 
culto  grotesco  que  prestavam  a  3*  Martinho,  celebrado  nos  cantos  latinos  dos  es- 
cbolares,  corno  se  ve  nas  coIlec95e8  de  Du  Méril. 

2  0  Arcipreste  de  Hita,  cujas  poesias  foram  traduzidas  em  portoguez  e  se 
guardaram  na  Livraria  do  rei  D.  Duarte,  refere  os  differentes  cantares  que  com« 
poz  para  os  estudantes  noctumi  grasèoiorea  e  pedintes  : 

CantMres  fts  «Iganoi  de  lot  que  dUen  lot  ciegoi. 
Et  p»r»  tieolam  que  and»n  nocherniegos, 
là  para  muebot  ontroe  por  puertas  andariegoa. 

(y.  1488  e  Mg.> 

Urna  amostra  d^estes  cantares,  traz  a  rubrìca  :  De  uomo  loe  Ewolares  deman-' 

danpor  Dioa: 

Sefiorei,  dat  al  BMOlar, 
Qve  Toi  bton  demandar, 
Dat  limoma,  ó  raclon, 
Fare  por  roe  oraelon, 
Qae  Dloe  toa  de  lalTaoion, 
Qoered  por  Dios  à  mi  dar. 

£1  bien  quo  por  Dloe  fealerdei, 
La  limoina  qne  por  el  dierdet, 
Qaando  deste  mondo  eallerdes 
Etto  yof  habra  de  ayndar. 
Quando  a  Dlos  dierdee  enenta 
De  lot  algoe,  et  de  la  renta, 
BMoianroe  ha  de  afmenta 
La  Umoina  por  él  far. 

Por  una  raoion  que  dedes, 
Voe  eiento  de  Dioe  tomedei, 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  153 

Eram  estes  clerigos  ou  escholares  vagabundos^  a  quem  o  povo 
hespanhol  chamava  os  SopiaUu,  e  em  Franga  Martineta;  o  costume  das 
vacagSes  mendicantes  conservou-se  na  Hespanha  até  ao  primeiro  quar- 
tel  d'este  seculo,  em  que  algons  Ttmos  chegavam  até  Portugal  trazendo 
oosidos  no  chapéo  om  garfo  e  ama  colh'ér  corno  insignias  da  classe.  Kas 
Poesias  de  Alvaro  de  Brito^  da  coUeog^o  de  Garcia  de  Resende,  allu- 
de-se tambem  a  està  classe  : 

Eatudantea  prégadores 
metem  santas  eecripturas 

em  sermoes, 
derìvados  em  amores, 
fazem  de  falsas  figaras 

tenta^oes. 

Quando  virem  tal  caminho 
da  ma  préga^ào  se  afastem, 

OS  qaa  onvem  ; 
dem-lhe  todos  de  fodnho, 
taaes  metaforas  contrastem 

e  deslouvem.  ^ 


Et  eu  paraiio  entredea, 
Ansi  Io  qaiara  él  mandar  ; 
Oatad  qae  el  bien  famr 
Nunoa  ae  hade  perder, 
Podervoe  ha  eatorccr 
Dol  Inflemo  mal  Ingar. 


SI  Seftor  de  paraiao 
Ohriatna  que  tanto  noa  qnlao, 
^  Que  por  noi  mnerte  priao, 

Hat&ronlo  Jodlóa. 
Mario  naeatro  Sefior,    « 
Por  aer  nneatro  Salvador 
Dadnoi  por  él  au  amor. 
Si  él  aalye  i  todoa  noa. 

AoordatToa  de  an  eatorla, 
Dar  por  Dloe  en  an  memoria, 
Si  él  Toa  de  la  aa  gloria, 
Dad  limoana  por  Dloa. 
Agora  enqnanto  rivierdea 
Por  an  amor  aiempre  dedea 
Et  con  eato  eacaparedea 
Del  inflemo  é  de  au  toa. 

{CoUeodon  d^  Poeaias  castdlanas,  de  Sanchez  (ed.  Ochoa),  p.  516.) 
1  Cane,  de  Beaende,  1. 1,  p.  189. 


154  *H1ST0RIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Sobre  estes  estudantes  prégadores,  a  que  allude  o  poeta  palaciano, 
acham-se  preciosas  referencias  nas  constituijSes  e  synodoB  episcopaes 
desde  o  secalo  xiii,  por  onde  se  ve  que  estavam  constituidos  em  mna 
classe  mendicante,  qué  frequentava  as  tavemas  e  parodiava  os  ritos  e 
prédicas  ecclesiasticas.  No  Sexto,  ou  as  novas  Decretaes  de  Bonifa- 
cio vm,  condeninam-se  os  joadatoresj  goliardi  seu  bufones;  o  concilio 
de  Colonia  de  1301  prohibiu-lhes  prégarem  nas  pra9as  publicas,  onde 
atacavam  a  simonia  de  Roma  parodiando  o  Evangelho  secundum  Mar- 
cas  argenti,  e  vendendo  indulgencias  pelas  portas,  ou  cantando  canyOes 
latinas  dissolutas  no  gesto  das  pastorellas  populares,  durante  a  missa. 
Um  dos  estatutos  do  concilio  de  Treves  de  1227  prohibia  aos  escho- 
lares  vagabundos  e  aos  goliardos  cantarem  versos  na  missa  depois  do 
Sanctus  e  do  Agnus.  ^  Nas  Ordena95es  Affonsinas  ha  um  ataque  centra 
està  Familia  Goliae,  formada  entro  estudantes  de  todas  as  Universi- 
dades:  cTodo  o  clerìguo  jo^rraZ^  que  tem  por  officio  tanger,  e  per  elle 
Boporta  a  major  parte  da  sua  vida,  ou  publicamente  tanger  por  prefo 
que  Ibe  dem  em  algumas  festas,  que  nSo  sam  principalmente  ecclesias- 
ticas e  servijo  de  Deos;  e  o  tregeitador^  e  qualquer  outro,  que  por  di- 
nheiro  por  sy  faz  ajuntamento  do  povo  ;  e  o  Goliardo,  que  ha  em  cos- 
tume almo9ar,  jantar,  merendar  ou  beber  na  taverna;  e  bem  assy  o 
bufam,  que  por  as  pragas  da  villa  ou  legar  traz  almareo  ou  arqueta 
ao  collo  com  tenda  de  margaria  pera  vender;  taes  comò  estes,  e  cada 
huu  delleS;  usando  os  ditos  officios  ou  costumes  dos  ordenados,  corno 
dito  he,  per  hu  anno  acabado,  ou  sondo  amoestado  por  seus  prelados, 
vigarios  e  reitores  de  suas  freguezias  por  tres  amoeBta9oes,  e  n2Lo  lei- 
xando  os  ditos  officios  e  maos  costumes,  passado  o  termo  das  tres 
amoesta98es,  ainda  que  seja  mais  pequeno  tempo  que  o  dito  anno,  por 
esse  mesmo  effeito  perderà  de  todo  o  privilegio  dericcd,  assi  nas  pessoas 
comò  nas  cousas,  e  sito  feitos  em  todo  o  caso  da  jurìsdic9So  secular.»' 
Os  cantos  dos  goliardos  constitùiram  um  genero  litterario  intermedio 
ao  povo  e  aos  eruditos;  ^  alguns  dos  themas  poeticos,  que  affectavam  a 


1  Hiatùirt  liUeraire  de  la  France^  t  xxn,  p.  154. 

'  Ord.  Aff<m»,f  liv.  ni,  tit  15,  §  18.  Adiante  fallaremos  de  urna  comedia  de 
Golias,  representada  em  Coimbra  no  meado  do  seculo  xvi. 

'  TranficreyemoB  algumas  estrophes  do  genero,  de  um  mss.  do  secalo  xt  : 

Mmun  «t  propotltimi  in  toberaa  mori, 
et  Ttanin  appotltom  aiUenti  ori, 
ut  dieant  cam  yenerint  angelornm  chori  : 
Dona  alt  propltloa  iati  potatori. 


A  UNIYERSIDÀDE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  1 55 

fónna  scholastica  do  prò  et  cantra,  chegaram  até  nós  elaborados  nas 
tradi98ea  populares^  tal  comò  o  Dialogus  inter  Aquam  et  Vinum^  do 
goliardo  Gantier  Map.  '  A  este  genero  de  cantares^  a  que  na  velha 
poetica  proveii9al  e  franceza  se  dava  o  nome  de  tenson  e  dispotoison, 
lìgavam-se  outros  ihemas^  comò  a  disputa  entrò  a  Alma  e  o  Corpo^ 
entro  o  Bei  e  o  Papa,  entro  o  CorajSo  e  os  Olhos,  em  que  a  paìxSo 
da  dialectica  servia  a  ezpansSo  do  genio  satirico.  A  ora$So  do  Qui- 
cumque  vult,  usada  em  todas  as  escholas  da  Edade  mèdia  cahiu  tambem 
na  parodia  dos  goliardos  applicada  às  virtudes  do  vinho.  ' 

Na  Edade  mèdia  ji  se  distinguià  as  duas  fórmas  de  educa9lLo — 
a  que  se  dava  aos  clerigos,  e  a  que  constava  de  exercicios  corporaes 
peculiar  dos  jovens  fidalgos.  ^  Em  Portugal  satisfez-se  estas  duas  ne- 
cessidades  por  meio  dos  CoIIegios  para  os  entudantea  pohres,  corno  o 
do  dr.  Mangancha,  e  mandando  frequentar  as  escolas  de  Italia  aos  fi- 
Ihos  da  nobreza,  comò  vemos  pelas  cartas  de  Angelo  Policiano  dando 
conta  dos  estudos  dos  filhos  do  chanceller  JoSo  Teixeira. 


Fertar  in  onnTlYiam  ylniii,  Tina,  vlnum  ; 
mascollnam  dliplicet,  at  qae  femeninum, 
•ed  in  neutro  genere  Tìnum  e>t  diylnum, 
loqni  faicit  aoeios  optimum  latlnnm. 

(Ap.  DvL  Méril,  Foéjnes  populaires  IcUines  du  Moyen-Age,  p.  206.) 

1  Leite  de  Yasconcellos,  no  Annuario  das  Tradiqòta  populares  portugueaaa, 

p.  44,  traz  nm  peqneno  estudo  comparativo  de  Un  débat  chanté  entre  o  Vinho  e  a 

Agua,  popnlar  em  Yorey  e  em  Marlhes-en-Forez,  e  lunas  cantigas  de  cego,  de  urna 

foiba  volante  do  Porto,  por  onde  se  ve  a  persistencia  d^èete  tbema  vulgarìsado  pe- 

los  goliardoB  desde  o  secnlo  zni. 

'  Transcrevemoe  das  Poésies  jpoptdaires  IcUinea  du  Moyen^Agt^  p.  202,  o  se- 
guìnte  canto: 

Qoiqnmque  vnlt  eaae  frater 
bibat  blf,  ter  et  qnaterl 
Bibat  temei  et  secnndo, 
doneo  nihll  alt  in  fnndol 
Bibat  hera,  bibat  hemf , 
ad  bibendam  nemo  serual 
Bibat  Ute^  bibat  illa, 
bibat  tarroM  eum  anelila  I 
£t  prò  Beiro  et  prò  Papa: 
bibe  Tinom  line  aqnal 
Et  prò  Papa  et  prò  Bege 
bibe  Tlnam  tine  lego. 
Haec  una  est  lez  baccble*, 
bibe&tinm  ipet  nnica. 

3  H.  André,  No8  MaUre»  kier,  p.  100. 


156  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIBIBRA 

Para  que  se  coiihe9a  perfeitamente  a  organisay&o  de  um  Collegio 
de  estudantes  pohrea,  transcrevemos  em  seguida  as  principaes  dispo- 
sijSes  do  testamento  do  dr.  Mangancha,  datado  de  1447  :  cdedaro  que 
Brranqaa  Annes  em  seu  testamento  me  leixou  seus  beens,  com  condì- 
9om  que  eu  ffezesse*  ho  que  ella  comigo  ffalara  :  ho  qae  ella  commigo, 
eu  com  ella  ffalamos  e  acordamos  asy  he,  que  todos  nossos  beens  ffoa- 
sem  estatuidos  e  hordenados  pera  hum  Colegio,  ffeito  nas  nossas  Como» 
de  morada  da  beira  de  Ssam  Jorge^  em  nas  quaea  se  recebessem  desi  Es* 
colare»  provea  de  todo,  e  quatro  servidores,  sem  numqoa  ter  azemellai 
nem  besta,  avendo  pela  renda  dos  ditos  beens  duas  tavolas  ao  dia,  sem 
outra  consooada,  nem  cama,  nem  ali,  que  nom  ffor  veguilia,  e  quando 
a  ffor,  huma  tavola,  e  a  nojte  consooada;  e  que  os  mena  liuros  sepase^ 
sem  em  huma  Livraria  per  cadeas,  dentro  das  ditas  cassas:  e  que  todos 
08  dias  que  nom  lerem  diga  hum  Capellam  dos  dez  Missa  na  dieta  Ca- 
pella,  e  todolos  outros  Escolares  estem  a  ella  e  a  officiem  se  ssonhe- 
rem  e  horem  por  nossas  almas. . .  Porem  eu  asj  ho  mando,  convem  a 
saber,  que  nas  dictas  cassas  se  hordenem  dez  cameras,  e  em  ellas  se 
armem  dez  leitos  de  madeira,  e  dez  estudos,  affora  a  salla  e  cozinha 
e  despensa  e  adega,  e  celeifo  pera  pam  e  azeite,  e  a  cassa  pera  dor- 
mirem  os  servidores:  a  estrebaria  se  alugue:  E  hy  sejam  rejebidos  a 
primeira  vez  dez  Escolares  jaa  Grammaticos,  e  passantes  dez  e  seis 
annos;  pero  se  forem  Sa9ardotes,  aìnda  que  nom  sejam  Grammaticos, 
e  aprendam  Grammatica,  recebam>nos  por  enli^om,  sem  ffingìto  d'Oni- 
versidade  e  de  Maria  Dias,  sem  Rey  nem  Arcebispo,  nem  outro  pode- 
roso: e  d'esses  dez  seja  hum  Reitor  do  Collegio,  e  receba  teda  a  renda 
per  ho  mordomo,  e  per  ho  escrivfto,  que  seja  houtro  dos  dez,  e  lego 
ho  fa9am  ssaber  aos  oyto,  que  escrepvam  tambem:  a  primeira  vaca- 
9om  de  cada  mez  de  conta  a  todos,  e  nas  outras  vezes  ho  Collegio 
enleja  hum,  e  a  Oniversidade  outro,  sempre  alternando,  e  sem  ffrugi- 
tos,  e  rogos,  os  quaes  se  se  provarem  a  enlÌ9om  nom  vaiha:  e  quando 
algum  ouver  de  ser  rcQebido  primeiro  traga  a  cama  sua,  em  que  oti- 
ver  de  dormir,  e  a  leve  quando  se  ffor;  pero  leize  a  melhor  pe9a  que 
tever  pera  ho  Colegio:  e  se  hj  morrer,  ho  Collegio  Ihe  ffa9a  a  des- 
pessa da  doensa  e  do  enterramento,  e  aja  pera  si  quanto  hy  tever  seu: 
e  ainda  ante  que  seja  recebido  jure  cumprir  sempre  ordena95es  e  boons 
costumes  do  Collegio,  e  sempre  Ihe  seer  ffavoravel,  e  proveitoso,  a 
qualquer  estado  que  venha,  e  que  per  sua  morte  leixe  alguma  coussa 
ao  Collegio  :  E  cada  Escollar  come9ante  Gramatica,  e  per  conseguinte 
nas  outras  Ciencias,  possa  estar  dez  ajinos  e  ho  que  ja  ffor  gramatico 
sete,  e  ho  que  leixa  a  Logica  cinque,  e  mais  nom  :  e  se  algum  se  lan- 


A  UNIVBRSIDADE  SOB  A  DIGT ADURA  MONARCHICA  i  57 

(ar  a  ffolgar,  sem  continuar  o  estudo^  à  vista  da  Oniversidade  e  Cole- 
gio,  seja  Ian9ado  fora  delle,  sem  nnmqua  jamais  tornar:  e  ho  qae  ffor 
Doutor  ou  Mestre;  ainda  que  sen  tempo  nom  seja  acabado,  vase  dy  a 
cinque  messees.  Nesse  Colegio  nunqua  possam  seer  re9ebidos  ricus, 
barrigueiroB;  taffuys,  bevedos,  Tolteirus,  guagos,  nem  doutros  maus  cos- 
tumes;  peitudos  e  de  narizea  tortos,  bochechudos,  que  teem  rossmani- 
nhos  nos  rostos,  ainda  que  sejam  boons.  Ho  mantimento  seja  per  està 
guiza:  no  alqueire  de  pam  se  ffagam  vinte  ra93es  de  poo  de  teda  ffari- 
nha,  e  nunqua  mais,  e  i  messa  se  popha  a  cada  bum,  quer  seja  mo90; 
quer  homem,  huma  ra^om,  e  nunqua  mais,  e  ho  que  ssobegar  a  hums 
possam  corner  os  outros,  a  quem  minguar,  nem  guarde  algum  ho  que 
Ihe  ssobegar:  mas  ho  mordomo  apanhe  o  derradeiro  todo,  e  leve  à  dis» 
pensa,  e  semelhante  sse  ffa9a  do  vinho,  que  a  cada  bum  ponham  em 
Bua  pinta,  ffeìta  per  està  medida,  mea  Canada  de  vinho  meado  de  agua: 
da  pytan9a,  asy  carne,  corno  pescado,  a  despessa  se  ffa9a  per  tal  guissa, 
que  nunqua  passe  vinte  reis  cada  dia,  e  se  reparta  per  higual  a  grande, 
e  a  pequeno.  Escolar  e  servidor.  Ho  assentamento  da  messa  seja  corno 
cada  bum  vier,  ssalvo  que  o  Reitor  tenha  sempre  a  cabe9eira,  e  diguase 
ora9om*hordenada  à  entrada,  e  ssayda,  com  commemora9am  de  nossas 
aUmas:  e  ho  Colegio  proveeraa  de  messas,  banquos,  cadeiras,  mantees, 
pratees,  escudellas,  ssalvynhas,  talhas,  e  panellas,  espetos,  grrelhas, 
cuitelos  de  cozinha,  e  todos  outros  atavios  communs.  Os  servidores 
Bsom  estes,  bum  que  seja  Moordomo,  e  tenha  as  chaves  dadega,  e  pam, 
e  vinho,  e  carne,  e  lenha,  e  de  todas  as  outras  coussas,  as  quaaes  prò- 
veera  per  mandado  do  Reitor  aos  do  Colegio,  e  albur  nunqua,  re9e- 
bendo-as,  e  destribuindo-as  per  escrìpto;  outro  servidor  seja  o  Com- 
prador  e  Cozinheiro  ;  outro  levador,  acarregador  da  agua,  e  varredor, 
e  levador  das  9uguidades  à  ribeira  comuys,  e  particulares  :  e  estes  to- 
mem  per  ssoldada,  pero  se  alguns  quigerem  bem  servir  per  trez  annos, 
Bsem  ssoldada,  possam  di  endiante  ser  espeitantes  na  primeira  vagua 
de  Sscollar,  se  nelles  cabee,  comò  m'sso  dicto  he.  E  outros  espeitantes 
nunqua  possam  seer  ffeifcos  per  Papas,  nem  Rey,  nem  Oniversidade, 
nem  Colegio,  nem  per  outra  qualquer  guisa  que  seja.  Quando  conten- 
derem  os  de  meu  divido,  ou  os  de  Brranqua  Annes,  ou  os  de  Maria 
Diaz,  minha  segunda  molher,  com  outros,  estes  precedam,  e  antro  sy 
estem  a  emlÌ9on,  sse  nelles  cabe,  comò  dicto  he.  Pero  Rui  de  Valldeesi 
meu  filho  naturai,  possa  ser  no  dicto  Collegio,  com  seu  Ayoo,  aambos 
em  huma  Camara,  sete  annos,  re9ebendo  ambos  ra9om  do  dicto  Colle- 
gio, e  camaa,  e  candeas,  e  de  suas  moradeas,  e  beens,  se  vestam  e 
cal9em  eie.,  e  o  al  se  Ihe  ponha  em  deposyto,  e  com  esses  dous  nom 


158  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADG  DE  GOIMBRA 

pasem  dez  Escolares.  E  todo  o  que  ssobegar  cada  anna  das  rendas  deste 
Colegio  86  ponha  em  deposyto  per  scrìpto,  per  rrepartimento  das  cassasi 
e  guarnimento  dellas,  e  das  posissoees  e  cassas  dellas,  e  se  tanto  ere- 
96r  0  deposito  do  Collegio,  pera  comprar  posyssoes,  e  acre^entar  Ea- 
coUares.  Os  Beitores  da  Oniversidade  possam  tornar  a  conta  ao  Cole- 
gioy  e  constrangeer  o  Reitor  delle,  que  comprem  bem,  e  fulmine  as 
posissoSes,  e  acre9ente  nos  Escolares,  corno  susso  dicto  he.»  etc.  ' 

Às  Faculdades  das  Artes,  corno  o  affirma  Hamilton,  o  celebre  pro- 
fessor de  Logica  da  Universidade  de  Edimburg,  foram  a  base  primeira 
das  antigas  Universidades  da  Europa;'  desde  porém,  que  as  Universi- 
dades  subsistiram  por  urna  vida  propria,^  as  Faculdades  das  Artes  ou  se 
destacaram  constituindo  o  ensino  dementar,  ou  se  tomaram  subalter- 
nas  das  Universidades  sob  o  nome  de  Collegios.  Halmiton  descreve 
està  instituigSLo  pedagogica,  de  modo  que  nos  ajuda  a  comprehender  o 
caQO  do  Collegio  do  Dr.  Mangancha:  cO  estabelecimento  dos  CoUegios 
foi  determinado,  nas  mais  antigas  Universidades,  pela  agglomera9So 
excessiva  de  estudantes  que  ahi  affluiam  de  todas  as  partes  da  Europa. 
Està  affluencia  era  grande'  sobretudo  em  Paris,  «m  Bolonha,  em  Pa- 
lermo durante  os  seculos  xii  e  xin.  Ella  occasionou  n'esta  cidade  a 
raridade  das  habitajSes,  e  consequentemente  o  augmento  dos  alugue- 
res.  Os  estudantes  pobresy  e  d'estes  era  o  grande  numero,  achavam-se 
na  mais  triste  situa9So.  Pessoas  caridosas  querendo  p8r  cobro  a  este 
grande  inconveniente,  nSo  acharam  outro  meio  senSlo  arranjar  casas 
para  agasalhar  um  certo  numero  de  estudantes  durante  o  tempo  dos 
seus  estudos,  e  preserval-os  assim  tambem  do  contacto  dos  costumes 
corruptos  do  tempo  dando-lhes  inspectores.  Estes  primeiros  estabele- 
cimentos  foram  imitados  dos  hospicios  (HospUia)  que  as  ordens  reli- 


1  Ap.  Diss,  chronolofficoB  de  J.  Pedro  Bibeiro,  t.  n,  p.  252.  Dee.  n.<^  xvi,  com 
data  de  4  de  Janeiro  de  14i8.  Thomaz  Platter  (1499-1582)  descreve  este  caracter 
dos  estudos  do  seu  tempo:  cNesta  epoca  as  escbolas  eram  poucas  e  m&s.  N&oha- 
via  livros  impressos,  e  era  preciso  escrever  sob  o  dictado  do  mestre  o  que  se  pre- 
tendia  saber  dos  auctoree.»  Como  se  ve,  o  mostre  era,  ainda  depois  da  descoberta 
da  Imprensa  um  lenttn  Nas  escbolas  da  Edade  mèdia  os  estudantes  mais  novps 
eram  cbamados  Cagadores  e  esta^am  sob  a  protec^&o  dos  mais  velbos,  que  eram 
denominados  BacchanUs;  estes  ensinavam-Ihes  os  primeiros  rudimentos,  e  os  Ca^a- 
dores  tiravam  esmolik  para  prover  ao  sostento  dos  Bacchantes.  Na  Universidade 
de  Coimbra  ainda  ba  a  tradi^So  do  Veterano,  o  estudante  que  protege  o  NovcUo, 
e  a  pbrase  Andar  à  lébre  é  um  vestigio  do  antigo  costume  de  procurar  sustento 
à  custa  de  alguem. 

*  Fragments  de  Philotophie^  trad.  de  Peisse,  p.  274. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA   MONARGHIGA  159 

giosas  conservavam  nas  cidades  de  Universidade,  para  os  seus  mem- 
bro8  qae  ali  residiam  comò  mestres  ou  corno  escholares.  Juntou-se  de- 
pois à  moradia  o  sustento.  Com  a  in3pec9So  moral,  havìa  tambem  urna 
disciplina  litteraria,  mas  sempre  sabordinada  aos  estudos  publicos.  Os 
membros  d'estas  pobres  communidades  ali  achavam  livros^  qua  nSo  po- 
diam  entSo  ser  adqairidos  a  nSo  ser  pelos  ricos. 

cFoi  d'estes  primeiros  estabelecimentos  que  sahiram  os  CoIIegios 
annexos  às  diversas  Universidades  da  Earopa.  Em  Paris  adquiriram 
depressa  urna  alta  importancia.  Os  seas  regentes  eram  algumas  vezes 
nomeadosy  sempre  subordinados  e  dirigidos,  e  exclusivamente  destitui- 
dos  pela  Facaldade  a  que  pertenciam.  As  liySes  dos  CoIIegios  foram 
muitas  vezes  assemelhadas  às  que  se  davam  nas  escholas  publicas  da 
Universidade^;  formavam  tambem  outras  tautas  pequenas  Universida- 
des ou  fragmentos  de  Universidade.  Foi  no  curso  do  seculo  XY  que  se 
operou  em  Paris  està  uniSo  intima  dos  CoIIegios  e  da  Universidade. 
As  grandes  Faculdades  de  Theologia  e  das  Artes  tomaram-se  exclu- 
sivamente coUegiaes,  e  a  Faculdade  de  Theologia  de  Paris  acabou  por 
se  absorver  inteiramente  na  Sorbo  nna.»  ' 

Nos  estudos  portuguezes  o  Collegio  fundado  pelo  dr.  Manganella 
corresponde  ao  phenomeno  da  protecgSo  dada  por  particulares  aos  estu- 
danfes  pobres;  porém  o  caracter  dos  Hospitia  das  ordens  monachaes 
é  que  vem  a  prevalecer  no  nosso  systema  pedagogico^  comò  se  ve  pe- 
las  Escholas  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra.  N'este  mosteiro, 
OS  CoIIegios  eram  tres;  dois  d'elles  eram  verdadeiramente  fragmentos 
de  Universidade,  e  o  outro  consistia  em  uma  simples  Faculdade  de 
Artes.  O  primeiro  Collegio  de  Santa  Cruz  tinha  cadeiras  de  Theologia 
especulafiva,  de  Morale  de  Escriptura  sagrada  e  de  Canones;  o  segundo 
Collegio  conhecido  pelo  titulo  de  S.  JoSo  Baptista,  ensinava  as  Leis, 
a  Medicina  e  a  Mathematica;  o  terceiro  Collegio  de  titulo  de  Todos  os 
Santos,  ou  dos  esiudarUes  honrados  pobres,  tinha  as  cadeiras  de  Artes, 
Eketorica,  Grammatica  grega  e  hebraica.  '  Com  o  tempo  estes  CoIIegios 
foram  incorporados  na  Universidade  de  Coimbra;  depois  que  a  Uni- 
versidade se  fixon  definitivamente  em  Coimbra  depois  de  1537,  todas 
as  ordens  religiosas  estabeleceram  CoIIegios  n'aquella  cidade. 

Os  CoIIegios  tomavam-se  uma  necessìdade  nSo  s6  para  os  estu- 
dantes  pobres,  comò  para  concentral-os  em  corpora95es  que  os  disci- 


1  Halmiton,  op.  eU.f  p.  277. 
'^  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  Chr.  dos  Conegos  Begr.^  t.  ii,  300. 


160  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIMBRA 

plinassem  na  sua  turbolencia.  Em  Portugal  os  ColIegioB  ficaram  inteira- 
mente  absorvidos  pelas  ordens  monasticas,  sendo  para  alli  qae  a  aria- 
tocraoia  portogueza  mandava  ob  seus  filhos,  pela  eonfus&o  que  ainda 
hoje  persiste  entre  a  educa^So  e  a  instraC9fto.  Os  Collegios  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra^  onde  o  de  Todos  os  Santos  era  para  os  esiudanteg 
honrados  pobres,  é  que  primeiro  se  ligaram  A  vida  da  Universidade 
quando  foi  transferìda  para  Coimbra.  Até  à  extinc^So  das  ordens  mo- 
nachaes  em  Portugal  em  1834^  os  Collegios  ou  a  in8truc9So  secundaria 
fez-se  sempre  nos  mosteiros;  a  educaf&o  de  Alexandre  Herculano  foi 
ainda  no  Collegio  do  Espirito  Santo  dos  padres  das  Necessidades,  ou 
da  Congregasse  do  Oratorio.  O  facto  goral  explica-se  pela  supremacia 
que  a  Theologia  veiu  a  ter  na  Universidade,  onde  ainda  hoje  conserva 
a  precedencia  honorìfica  a  todas  as  outras  Faculdades.  ^ 

A  interven^So  do  Infante  D.  Henrique  nos  negodos  da  Univer- 
sidade  de  Lisboa  deu  em  consequencia  ficar  a  sua  administrasSo  en- 
tregue  ao  Mestrado  de  Christo,  para  o  pagamento  do  salario  do  pro- 
fessor de  Theologia.  O  Mestrado  foi  incorporado  no  rei. 

No  testamento  do  Infante  D.  Henrique,  de  13  de  outubro  de  1460, 
acha-se  confirmada  a  dotaySo  da  cadeira  de  Theologia:  dtem  ordeno 
e  mando  q  o  lente  da  theologia  da  catedra  de  prima,  aja  em  cada  hum 
anno  pera  sempre  doze  marcos  de  prata,  por  a  primeira  renda  dos  di- 
zimos  que  a  ordem  de  christos  ha  na  Uba  da  Madeira,  pelle  qual  farà 
o  principio  no  estudo,  e  dira  certas  missas  e  pregaySes  segundo  faz  de- 
clara^om  na  carta  minha  que  Ihe  dolo  leixo.  E  osto  em  renenbran$a 
da  doa9om  que  Ihe  fiz  das  casas  em  que  estaa  o  dito  estudo.»^  Està 
pensfto  foi  aoceite  por  bulla  de  Sixto  iv,  em  1472,  entfto  jà  convertida 
em  doze  talentos. 

A  phrase /ard  o  principio  no  estudo,  quer  dizer,  que  encarregava 
0  lente  de  Theologia  de  fazer  o  discurso  inaugurai  ou  Ora/fSo  de  Sor 
piencia,  que  no  seculo  seguinte  é  desempenhada  pelos  Mestres  de  Ar- 
tes.  Na  Carta  de  22  de  setembro  de  1460,  a  que  allude  o  testamento, 


1  Por  bulla  do  Papa  NicoUo  t,  de  26  de  junho  de  14&8,  a  cadeira  de  Theo- 
logia  dos  Franoiscanos,  de  Lisboa,  é  inoorporada  na  UniTersidade,  podendo  n*Qlla 
gaardar-se  os  seus  rùtores  e  mestres.  Na  Universidade  de  Salamanca  as  cathedras 
de  Theologia  sé  foram  institoidas  no  fim  do  seculo  xiy;  concedeu-as  Benedicto  xm, 
para  n'ellas  se  estadarem  as  doutrinas  thomistas  e  scotistas. 

^  EUite  testamento  foi  pela  primeira  ves  publicado  pelo  marques  de  Sousa 
Holstein,  no  seu  estudo  A  Eachola  de  8agre»y  de  p.  81  a  86,  extrahido  de  um  ms. 
da  BibL  nac 


A  UNIVERSipADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  161 

eetabelece  tambem  o  primoiro  Prestito  da  Universidade  em  honra  da 
sua  pesBoa:  cPor  ende  eu  mando,  e  ordenO|  rogo,  e  encomendo  todolos 
Mestrea  e  Govemadores,  que  depois  de  mim  a  està  Ordem  veerem, 
qae  por  a  primeira  renda  dos  dizimos,  que  a  dita  Ordem  ha  na  minha 
liha  da  Madeira  para  sempre  em  cada  hum  anno  por  dia  do  Natal 
mandem  dar,'  e  dem  ao  Lente  da  Theologia  da  Cadeira  de  Prima  no 
eatado  da  Cidade  de  Lisboa  doze  marcos  de  prata,  polos  quaes  os  Len- 
tea  que  a  dita  Cadeira  teverem,  hSo  de  fazer  estas  cousas  a  suso  escrì- 
tas:  Prìmeiramente  farSm  o  principio  do  eatiido.  E  ante  que  a  elle  en- 
trem,  depois  que  esteverem  na  cadeira,  lerà  altamente,  qùe  o  ou9fto  os 
que  arredor  esteverem,  a^carta  que  eu  dei  ao  dito  estudo  da  paga  des- 
tes  doze  marcos  de  prata. — E  tambem  sera  theudo  ir  à  Santa  Maria 
da  Gra9a,  que  é  no  mosteiro  de  Santo  Àgostinho  da  dita  cidade,  por 
dia  de  Santa  Maria  da  Ànnuncia^om,  que  ha  a  vinte  e  cince  dias  de 
marfo,  e  hi  dird  missa  cantada  e  prega9om.  E  em  oste  dia  devem  ir 
sempre  em  cada  hum  anno  com  elle  os  Bectores,  Conselheiros,  Lentes, 
a  todolos  outros  escolares  do  dito  estudo  em  sua  ordenaki$a,  segundo 
costume  ao  dito  mosteiro,  por  encomendar  minha  alma  a  Deos  em  re- 
membranga  da  doa9om  que  Ihe  fiz  das  casas  em  que  està  o  dito  es- 
todo.»  ^  Este  encargo  cumpria-se  Suo  prestito  juramento,  e  d'aqui  veiu 
o  conyerter-se  a  fòrmula  em  designa92Lo  do  acto  praticado  por  toda  a 
Universidade,  quando  ia  em  Prestito  a  Santa  Maria  da  Graya. 

E  para  notar  que  o  Infante  D.  Henrique  se  preoccupo  no  seu  tes- 
tamento das  varias  capellas  que  institue,  com  missas  por  sua  alma  e 
proclamaffto  solemne  dos  beneficios  que  fez  à  Universidade  dando-lhe 
casa,  e  nSo  se  refira  às  emprezas  de  descobertas  maritimas,  com  que 
o  glorificam.  Em  vez  de  dotar  ou  salariar  uma  cadeira  de  Cosmogra- 
phia  ou  Nautica,  subsidia  uma  cadeira  de  Theologia,  jà  esistente,  a 
de  prima,  que  era  salariada.  Muito  antes  de  1460,  tinham  os  Fran- 
cis oanos  obtido  do  papa  Nicolào  v  concessSo  para  incorporarem  na 
Universidade  a  sua  cadeira  de  Theologia,  e  poderem  n'olia  receber  o 
gràiO  de  Mestres;  seria  uma  cadeira  pequena  ou  cathedrilha,  porque 
a  nova  cadeira  instituida  por  D.  Manuel  foi  denominada  de  vespera.^ 

Durante  o  seculo  xv  a  Universidade  de  Lisboa,  dotada  pelos  reditos 


1  Braiid2o,  Monarek.  lusit,  P.  y,  Append.  Escrìpt.  zxvi. 

*  Ab  cathedras  grandes  eram  denominadas  de  Prima^  Veapera,  Terga  e  iVba, 
seg^oindo  a  mesma  divisào  das  horas  canonicas  applicadas  nos  estudos*  Jonto  das 
cadeiras  grandes  fimccionavam  tambem  as  cathedrilhas,  que  eram  temporarìas. 

BIST.  mr.  11 


162  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

de  doze  egrejas  parochiaes,  e  com  a  incorporasse  doa  rendimentoa  de 
casas^  egrejas,  terras,  pinhaes,  e  garantidòs  os  seus  lentes  com  a  apo- 
sentas^o  por  impossibilidade  physìca  com  dois  teryos  de  ordenado,  ar* 
rasta  urna  existencia  obscura,  indo  a  principai  aristocracia  portogaeaa 
frequentar  as  escholas  de  Santa  Cruz  de  Ooimbra  ou  os  philologos  de 
Italia  e  de  Paris. 

O  conflicto  entre  o  poder  papal  e  o  poder  real  no  ensino  publioo 
europea  revela-se,  além  do  interesse  das  dotagSes  e  do  edpirito  da 
doutrina  pedagogica,  na  propria  organisasSo  economica  escolar.  Existe 
urna  distinc$So  radicai  entre  os  titulos  de  Estudo  geral  e  de  Dhiver- 
sidade  empregados  simultaneamente  nos  documentos  historìcos;  a  desi- 
gnafSo  de  Univeraidade  era  mais  sympathica  aos  papas,  e  a  de  Es^ 
ludo  geral  accentua-se  de  preferencia  nos  documentos  officiaes  da  rean 
leza.  Victor  Le  Clerc,  descrerendo  algumas  phases  d'este  conflicto  es- 
creve:  f  Clemente  v  hayia  empregado,  além  da  palavra  Estudo  geral 
a  de  Uuiversidade;  o  rei  (se.  Philippe  o  Bello)  n2o  reconhecia  senio 
0  primeiro  titulo.  Uma  bulla  de  JoSLo  xxii,  tambem  discipulo  da  mesma 
escóla  (de  Paris)  persiste,  em  1320,  a  chamar-lhe  Universidade;  as  Or- 
denan$as  continuam  a  prevalecer  sobre  as  Bullas;  etc.»  *  Nos  primeirOB 
estatutos  do  rei  D.  Diniz,  diz-se  qùe  inaugura  o  Estudo  ge/ral  na  Ohi* 
versidade  que  trasladàra  para  Goimbra;  no  preambolo  da  reforma  d'el- 
rei  D.  Manuel,  lè-se:  que  aos  illustrissimos  reis  de  Portugal  fundaraml 
um  Estudo  geral  n'esta  cidade  de  Lisboa  e  o  dotaram  de  rendas,»  e 
em  seguida  confunde  os  dois  termos  sobre  a  colloca^fto  do  edito  £9- 
tudo  e  Uhiversidadeit  em  Lisboa.  Està  conftisfto  corresponde  effectiva- 
mente  ao  facto  que  se  deu  em  Portugal^  em  que  0  ensino  superior 
ficou  sob  a  influencia  exclusivamente  elencai  emquanto  às  disciplinas 
litterarias,  e  em  que  a  administra9So  pertenceu  indiscutivelmente  ao 
centralismo  monarchico.  A  Egreja  comprehendeu  que  o  desenrolvi- 
mento  extraordinario  das  Universidades  significava  a  manifestaySo  de 
uma  nova  fórma  do  poder  espiritual  que  se  fundava  na  Europa^  e  por 
isso  tratou  de  apoderar-se  d'essas  novas  institui^Ses.  O  poder  real,  pdo 
ensino  do  direito  romano  nas  Universidades,  via  qué  era  esse  o  meio 
de  alargar  o  seu  poder  temperai,  estabelecendo  uma  legisla$fto  superior 
aos  privilegìos  senhoriaes  e  ecclesiasticos,  e  tornando-se  0  centro  de  toda 
a  esphera  civil.  Cada  um  d'esses  dois  poderes  via  0  problema  pelo  seu 
lado  particular,  vindo  a  ficar  as  Universidades  verdadeiramente  atra- 


1  État  des  LeUres  au  XIV*  siede,  1. 1,  p.  278. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  163 

aadas,  debatendo-se  em  qaestSes  inuteìs/ emqaanto  se  ia  creando  um 
estado  scientifico  na  Europa,  depois  da  Rena8cen9a,  e  pela  ac9fto  des- 
protenda  de  certas  individaalidades  iniciadoras.  E  principalmente  no 
secalo  XVI,  que  se  dà.  nas  Universidade  o  conflicto  doatrinario  do  es- 
pirìto  clerical  e  secular;  no  secalo  xv  o  conflicto  entro  o  poder  papal 
e  real  versa  qaasi  sempre  sobre  prerogati vas  e  intervenivo  economica. 
Em  Portugal  o  proprio  monarcha  D.  Affonsov  para  resistir  i  animad- 
▼ersSo  do  clero  centra  a  bulla  de  Sixto  iv,  que  concedia  &  Universi- 
dade ama  conezia  por  cada  diocesse  (1474),  entrega-a  &  administra9fto 
do  bispo  D.  Rodrigo  de  Noronha,  nomeando-o  Protector  e  Oovemador 
do  Estuato  d'està  cidade  de  Lisboa:  ctenho  por  bem  e  me  praz  e  Ihe  dou 
daquy  em  diante  que  elle  tenha  carrego  de  Q-overnador  e  Protector 
por  mjm  do  Estndo  e  Universidade  de  minha  Cidade  de  Lisboa,  com 
poder  de  dar  Officios  e  Cadeiras  e  fazer  todallas  outras  cousas  geraes 
e  spedaes  acerca  dello  asy  comò  eu  mesmo  o  ffaria  se  por  mym  re- 
gesse  e  governasse.  »  ^ 

Depois  do  Infante  D.  Henriqae  succedeu-lhe  comò  Protector  da 
Universidade  o  infante  D.  Fernando,  irmSo  de  D.  Affonso  v;  parece 
que  terminou  n'elle  o  poder  que  a  Universidade  teve  de  escollier  Pro- 
tector, por  que  o  rei  D.  Affonso  v  apparece  com  essa  dignidade,  que 
transmitte  por  nomea^So  a  seu  sobrinho  o  bispo  de  Lamego  D.  Ro- 
drigo de  Noronha,  o  qual  tendo-a  renunciado  passa  o  titulo  de  Prote- 
ctor para  o  cardeal  D.  Jorge,  eleito  pela  Universidade  sob  indica9fto 
do  proprio  monarcha.  Quando  a  dictadura  monarchica  se  achou  no  seu 
periodo  mais  intenso  sob  D.  JoSo  ii,  foi  oste  monarcha  Protector  da 
Universidade,  ficando  este  titulo  em  todos  os  reis  que  se  Ihe  seguiram, 
e  acabando  assim  a  livre  eleÌ9So  dos  Reitores,  e  a  escolha  dos  lentes 
pelo  corpo  escholar.  A  Universidade  ficou  completamente  sob  o  Poder 
rea!;  e  se  em-  principio  foi  iste  um  progresso  em  quanto  à  incorpora9So 
da  Instmc9So  publica  sob  a  direcgSo  do  Estado,  foi  praticamente  urna 
calamidade,  por  que  d'esse  excesso  de  interven9So  do  poder  tempora! 
sobre  as  cousas  do  espirito  resultou  o  ser  entregue  a  Universidade 
sem  resistencia  &  absorpgSo  theocratica  dirigida  pelos  Jesuitas. 

Os  litigios  premo vidos  pelos  vigarios  das  egrejas  annexadas  àUni- 
rersidade  de  Lisboa  prolongaram-se  até  1461,  em  que  Pio  n  interveia 
oom  urna  bulla  impondo  perpetuo  silencio  sobre  taes  demandas;  mas 
08  interesses  materiaes  foram  mais  poderosos,  e  o  clero  contìnuoa  a 


^  Carta  de  23  de  agosto  de  1476.  Ap.  Provas  da  Hist.  gtn$al,^  t.  ii,  p.  13. 


164  HISTOiOA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

resistir  centra  a  Universidadei  que  se  achava  em  urna  deplorare!  bì* 
tua^So  economica.  Em  1453  oa  Franciscanos,  que  ainda  conserrayam 
o  excluBivo  do  ansino  da  Theologia  nos  seus  conventos,  obtireram  ama 
bulla  de  Nicolào  v  para  os  seus  Mestres  serem  inoorporadoa  na  Uni- 
versidade  e  os  seus  alumnos  graduarem-se  niella;  era  propriamente  os 
aalarios  das  cathedraa  de  Theologia  o  que  attrabia  para  a  Unirersidade 
OB  Mendicantes.  Fora  da  Universidade  havia  urna  deoadencia  absoluta 
do  ensinOi  e  o  clero  cahia  no  mais  deploravel  analphabetismo.  D.  Af> 
fonso  Y  pedo  ao  papa  Sixto  iv  a  cedencia  para  os  lentes  da  Univer^ 
ùdade  de  ama  conezia  em  cada  uma  das  sés  do  reino,  e  que  os  bispoa 
qpando  nSo  tivessem  bona  mestres  de  Grammatica  e  Logica  contri- 
boissem  com  as  rendas  equivalentes  a  um  canonicato.  Sixto  rv  oom- 
prebendeu  a  necessidade  do  ensino  e  expediu  a  bulla  aos  20  de  dezembra 
de  1474|  lamentando  o  estado  em  que  se  achava  a  instrucfSo  do  clero 
portuguez  cea  propter  fere  cmnea  rectorea  ecdesiarum  Orammatìeam 
neadebant.i^  ^  Os  bispos  e  cabidos  resistiram  centra  a  bulla  de  Sixto  iv, 
e  capitaneados  pelo  bispo  de  Lisboa,  o  astuto  D.  Jorge  da  Costa,  prò- 
pozeram  ao  papa  uma  substituìgSo,  adoptando  o  processo  da  antìga 
annexaySo  de  uma  egreja  em  cada  dioceaei  que  nunca  cumpriram,  ob- 
tendo  a  revogaf&o  da  buUa  por  outra  de  1475.  N'estas  difficuldades 
D.  Affonso  V  nomèa  Protector  da  Universidade  seu  sobrinho,  bispo  de 
Lamego,  D.  Rodrigo  de  Noronha,  para  tratar  de  uma  tSlo  complicada 
negocia9So,  e  ser  o  executor  da  bulla;  e  para  vencer  a  reluctancia  do 
clero,  indica  &  Universidade  que  eleja  seu  Protector  o  proprio  D.  Jorge 
da  Costa  (cardeal  de  Alpedrinha),  o  que  foi  levado  a  effeito  em  8  de 
mar90  de  1479.  '  Quando  d'ahi  a  pouco  a  dictadura  monarchica  se  exer- 
ceu  pelo  caracter  implacavel  mas  justo  de  D.  JoSo  n,  o  cardeal  de 
Alpedrinha,  comò  um  dos  grandes  potentados  que  reagiam  centra  a 


1  D*aqai  yem  a  origem  das  duaa  prebendaa  nas  Cathedraes,  providaB  em 
Mestres  em  Theologia  (conesia  magistral) eDùuioTeu  em  Canones  onhéBfooneda 
douiond,)  Quanto  &  ìgnorancia  do  clero,  basta  consìgnar  o  facto  da  Provisio  de 
1460  do  Vigano  geral  de  Braga  oonfirmaodo  JoSo  Yasques,  conego  do  mosteiio 
de  Villa  Nova  de  Moinha  em  piior  do  mosteiro  de  S.  Miguel  de  Villarinho  com 
dUpenàa  da  conatituigào  gue  prokibe  dar  o  governo  do  motteiro  a  quem  n&o  ècivker 
ler,  cantar  e  entender  ao  menoe  aopéda  tetra  (latim.)»  (Catalogo  doe  PergcmMòà 
do  Cartario  da  Umvereidade  de  Coimbra^  p.  65.) 

^  D.  Affonso  V  nomèa  protector  da  Universidade  D.  Jorge  da  Costa,  cardeal: 
«Por  ser  creado  na  dita  Universidade  corno  por  seer  sempre  zeloeo  e  amador  da 
aoiencìa,  homem  letrado  e  desejador  do  bem  e  accrescentamento  do  dito  Estado.» 
(Ap.  Cuidadae  UtierarioB,  p.  247.) 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA  HONARCHIGA  165 

«nctoridade  real,  fugiu  de  Portiigal.  Sómente  sob  o  goyemo  de  D.  Ma- 
nuel, e  por  breve  de  Alexandre  vi  de  23  de  jonho  de  1496,  é  que  a 
pendencia  se  resolveu,  adoptando  o  clero  o  systema  da  Egreja  de  Hes- 
panha,  contriboindo  para  a  Universidade.  com  as  conezias  magistraes 
e  conezias  doutoraes,  vindo  a  sua  apresentay&o  a  ser  urna  prerogativa 
da  corda,  desde  a  regencia  de  D.  Catherina. 

O  espirito  de  independencia  contra  o  poder  real  com  que  o  Infante 
D.  Henrique  exerceu  a  dignidade  de  Protector  da  Universidade,  ma- 
nifesta-se  em  urna  singular  coincidencia;  no  mesmo  anno  em  qne  a 
Universidade  de  Lisboa  teve  casa  propria,  estabeleceu  tambem  para  si 
novos  Estatatos,  por  que  se  regeu  ainda  quarenta  annos. 

Os  Estatutos  que  a  Universidade  formulou  para  seu  governo  em 
16  de  julho  de  1431  contém  abreviadamente  as  seguintes  clausulas: 

Constava  o  anno  lectivo  de  citò  mezes. 

Tornava  o  grào  de  bacharel  o  que  frequentava  durante  tres  annos, 
defendendo  conclusSes  publicamente  (exame  geral  e  final.)  Na  Univer- 
sidade de  Paris  este  exame  era  denominado  Tentativa. 

Admittiam-se  aos  gràos  os  estudantes  das  Universidades  estraa- 
g^eiras,  lendo  tres  lifSes  successivas  com  venia  dbs  lentes. 

S6  OS  bachareis  eram  admittidos  ao  acto  de  licenciado,  frequen- 
tando um  quarto  anno,  e  defendendo  concIusSes  que  se  affixavam  du- 
rante ciuco  dias  nas  Escholas,  argumentando  os  doutores  que  quizes- 
sem.  No  caso  de  frequentar  um  quinto  anno,  e  lendo  por  quatro  annos 
na  Universidade,  dispensavam-se  as  concIusSes. 

O  acto  para  licenciado  fazia-se  na  egreja,  tirando  ponto  de  ma- 
nUL  e  sustentando-o  de  tarde  ante  os  lentes,  reitores,  cancellano  e  H- 
cenciados  que  serviam  de  substitutos;  *  o  gr&o  era  conferido  pelo  can- 
cellario,  seguindo-se  urna  refeifSo  aos  lentes,  &  custa  do  graduado,  6 
propinas  a  dinheiró. 

O  que  tornava  o  grào  de  Magisterio,  ou  doutor  em  Theologia,  fa- 
zia  acto  solemne  de  vespera,  sobre  uma  questXo  proposta  pelo  pren- 
dente, sondo  ai^mentado  por  quatro  doutores;  era  o  acto  de  Vespe^ 
riaSf  e  o  defendente  era  chamado  o  Vesperisando.*  0  grào  dava-se  na 
«egreja,  no  dia  seguinte,  vindo  o  doutorando  entro  charamellas  e  varios 


^  Na  Uniyersidade  de  Paris  as  theses  de  Lieenciatara  eram  denominadas 
Menar  ordinaria,  Maior  ordinaria  e  Sorbonica^  a  quo  entro  nós  se  chamava  Au^ 
guitiniana. 

<  Além  do  acto  de  Vaperias,  que  se  fazia  das  8  às  6  da  tarde  em  Paris,  ha- 
via  tambem  a  Aulica  dcpois  de  recebido  o  barrete,  e  a  Reaumpia  para  fruir  oa 
emolumentós  de  doutorado. 


166  HISTOBU  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

doutores  ouvir  a  missa  do  Espirìto  Santo;  pagas  as  propinas  de  bar» 
retes  e  luvas^  o  doatorando  recebia  o  grào  e  pagava  um  jantar  aos  leu- 
tesy  e  no  dia  segointe  os  escholares  faziam  urna  cavalgada  em  que  acom- 
panbavam  o  novo  doutor.  (Era  o  victor,  tambem  usado  em  Salamanca.) 

Estabelece-se  a  fórma  de  joramento  ao  receber  o  grio;  as  prece* 
dencias  entre  mestres^  licenciados  e  bachareis;  ordena  a  fórma  talar 
para  as  vestes  dos  lentes,  sondo  mais  curtas  as  dos  estudantes;  e  de- 
termina que  OS  estudantes  nSo  tenham  mulheres  em  casa  (as  antigas 
focarias),  nem  cavallo  o\jl  cSes  de  ca9a.  Foi  o  ultimo  Estatuto  que  a 
Universidadé  fez  por  sua  iniciativa;  o  de  1471  foi-lhe  dado  pela  aucto- 
ridade  real,  corno  todos  os  mais  que  se  Ihe  seguiram. 

D.  Affonso  V,  por  alvarà  de  12  de  julho  de  1471,  estabeleceu  um 
novo  Eegimento  ou  Estatuto  para  a  Universidadé  de  Lisboa,  em  que 
0  poder  real  exerce  a  sua  interferencia  immediata: 

cNos  ElRey  iazemos  saber  a  vos  Rectores  e  Gonselheiros  do  Es- 
tudo  desta  mtiy  nobre  e  sempre  leal  Cidade  de  Lisboa,  e  a  quaeesquer 
outros,  a  que  osto  pertee9er,  e  oste  Alvara  de  Regimento  for  mostrado, 
que  nos  avemos  por  bem,  e  proveito  do  dito  Estudo,  que  d'aquy  en- 
diante  sse  tenba  neelle  està  maneira  que  sse  segue. 

Item  primeiramente  aserca  da  eUeÌ9am  dos  Reitores  mandamos, 
que  se  tenha  està  maneira:  em  o  come90  do  Estudo  os  Estudantes  ssos 
da  EscoUa  dos  Canones,  per  juramento  dos  avangelhos,  que  Ihes  sera 
dado  per  os  Rreitores  do  anno  pasado,  com  o  Bedeel  escolheram  qua- 
tro  continuus  da  dita  Escolla,  que  Ihes  pareyerem  mais  perteecentea^ 
per  ydade  e  costumes  e  9Ìen9Ìa  e  vallia,  pera  sse  delles  emleger  bum 
Rreitor,  e  per  esto  modo  as  Escolas  das  Lex  escolheram  outros  qua^ 
tro,  e  ellectos  assy  todos  oyto,  os  Rreitores  do  anno  passado  com  o 
Bedeel  daram  juramento  a  cada  huum  Escollar  per  ssy  ssos,  que  en- 
leja  outro,  que  parecerem  mais  aptos  em  costumes,  9Ìen9Ìa  e  hidade^ 
e  vallia,  pera  seerem  aquelle  anno  Rreitores,  e  assy  acabaraa  de  to- 
rnar todas  as  vozes  dos  Escolares,  que  segundo  costume  ssooem  de  dar 
voz  em  elleÌ9am  de  Rreitores,  e  tomadas  asy  as  vozes  dos  Escolares, 
per  este  modo  tomaram  as  vozes  dos  Leentes,  e  Gonselheiros,  e  todo 
assy  acabado,  os  que  mais  vozes  teverem  sejam  electos  por  Rreitores^ 
com  tanto  que  os  electos  sejam  continuuos  em  hirem  aas  lÌ90oeens. 

Item  mandamos,  que  a  elleÌ9om  dos  Consselheiros  sse  £Bi9a  per 
està  guissa:  os  Escollares  ssoos  de  cada  EscoUa  per  juramento,  que 
Ihes  sera  dado  per  bum  Reitor  ji  ellecto,  com  o  Bedel,  elegeram  deus 
Escolares  mais  entendidos,  e  antygos,  e  continuus,  pera  aquelle  anno 
seerem  Gonselheiros. 


A  UNIVERSIDAOE  SOB  A  DICI  ADURA  MONARCUICA  i67 

Item,  aa  mateiìas  que  oa  Leentes  de  cada  Escolla  oaverem  de 
leer  pello  anno,  aeram  eacolheitaa  asoo  per  vozee  doa  EscoIareB. 

Item,  08  Leentes  leeram  segando  o  Eatatuto  ataa  Santa  Maria 
dagOBto,  e  leerom  per  Relogìos  o  tempo  qae  he  ordenado,  e  Bedeel 
comprara  oa  Belogioa  do  dinheiro  da  Universidade,  e  os  ConeelheiroB 
teerom  cujdado  de  teerem  ob  Relogioa  e  de  os  guardar,  e  aae  per  sua 
negligenoia  os  Relogioa  sse  perderem  ou  quebrarem,  etlea  seram  obrì- 
gsdos  de  aa  sua  cnsta  comprarem  ontroa. 

Item,  DB  Leentea  da  Prima  de  Dereito,  aegundo  o  Estatuto,  Earam 
cada  hnnm  anno  dnaa,  duas,  Repeti^ooens,  e  nom  nas  fazendo  em  pena 
Ihe  seja  deacòntado  por  cada  lioma  Repetìgam  ^em,  gem,  rreis  de  sau 
Ballano,  e  pera  os  dictos  Leentes  poderem  estudar  as  dictas  duas  Re- 
petigooes,  possam  leer  dous  mezes  per  sobestituto,  posto  a  contenta- 
mento doB  Escolares,  a  saber,  por  cada  buma  Eepeti^m  hniim  mez, 

Item,  a  Missa  que  ese  diz  na  Capclla  das  Escollaa,  ase  cometari, 
de  dizer  em  nascendo  o  boU,  e  acabada  de  dizer  os  Leentes  da  Prima 
Beram  prestes  pera  come^arem  a  leer  suas  li^ocene. 

Item,  em  comedo  do  estudo,  anteB  de  oa  Rreitores  seerem  electoa, 
o  Bedeel  de  sseu  ofBcio  leera  este  Re^mento  a  todos  os  Leentes  e  Ea- 
cotares. 

Item,  as  fantas,  que  fezerem  os  Leentes,  e  queremos  que  sejam 
pera  corregimento  das  Escollas. 

Item,  mandamoB  que  se  escrepva  este  Regimento,  e  Mandado 
DOSSO,  com  todoUos  outroe  noseos,  e  terminB90oens,  que  sam  feitas  per 
08  Rreitoree,  no  Livro  doa  Estatutos,  e  Frìvilegioa.  E  porem  vos  man- 
damoB  qi;e  may  inteirameote  conpraaea  e  guardees  e  fa9aaes  conprir  e 
guardar  este  Regimento,  comò  ueelle  he  contheudo,  por  que  aesy  o  ba- 
vemoB  por  serrigo  de  Deus,  e  dosso,  e  bem  d'essa  Universidade. 

Ffeito  em  Lisboa  xii  dìas  de  Julho:  Antam  Oon^alves  o  fez,  anno 
de  mil  ccccLxxi. — Rey  ■  )  ■  — Regimento  do  Estudo.»  * 

NoB  documentoa  da  Univeraidade  de  Coìmbra  ha  referencias  a  mais 


'  Apud  J.  P.  Ribeiro,  ZKw.  ehron.,  t.  n,  p.  258,  ed.  1810.  Doc.  n.» 
Licro  dot  Etlatulot  e  PrivUegioi  é  o  qne  se  eliamou  antigameote  Lit 
ter  ama  capa  de  velodo  d'osta  c6i.  £  urna  copia  eem  aatheoticidi 
Vasco  de  Avcllar,  escolsr  em  dìreìto  canonico,  e  teiminada  em  20  de 
Comprehende  docomentoB  de  1288  a  1450;  uà  encodemacio  moderni 
Copia*  dot  EtorvptUTO»  inlerettanitt  à  Universidade  mandadat  tirar  ^ 
l'ornando.  Gabriel  Pereira  fez  un  indice  dos  documeatoa  contìdoB  i 
d'eite  lirro;  vem  do  Boleiim  de  BUiiographia  fortugueia,  p.  226  a  \ 


168  (USTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIHBRA 

do  que  um  Reitor  ao  mesmo  tempo,  e  &  differen9a  entre  o  Beitor  e  o 
Cancellano.  Este  facto  nSo  comprehendido  pelos  investigadores,  corno 
FìgueirSa,  explica-se  pélo  daplo  espirito  secular,  que  elegia  um  doe  Rei- 
tores,  e  derical,  que  se  representava  pelo  Cancellano,  e  pelo  privilegio 
dos  bispos  conferirem  os  gr&os  academicos.  Victor  Le  Clerc  accentua  este 
antagonismo  na  Universidade  de  Paris,  o  tjrpo  fundamental  de  todi» 
as  Universidades  da  Europa:  cOs  reis,  que  a  principio  nfto  Ihe  tinham 
concedido  senSo  um  apoio  duvidoso  e  percario,  desde  que  perceberam 
que  for^a  havia  para  elles  n'esta  associa9Ìlo  nova,  tomaram-se  os  seus 
amigos  declarados,  emquanto  que  os  papas,  seus  primeiros  e  mais  ar- 
dentes  promotores,  nSo  tardaram  a  ter  medo  d'ella,  a  affastarem-se,  a 
combatel-a,  até  q^e,  mesmo  nos  ultimos  momentos  da  sua  existencàa, 
o  Cancellano  da  egi-eja  de  Paris,  encarregado,  comò  representante  da 
auctoridade  pontificia,  de  instituir  os  licenciados  da  grande  Eschola,  e 
da  qual  as  pretenfSes  iam  até  a  reclamar  ali  urna  especie  de  presiden- 
eia  perpetua,  n&o  cessou  de  a  perseguir  comò  inimigo,  jà  que  nSo  a 
podia  guerrear  corno  mostre.»^  Na  Universidade  de  Lisboa  preponde- 
rou  o  espirito  clerìcal,  por  isso  que  elle  invadira  o  poder  temperai; 
mas  ainda  assim  os  principaes  Estatutos,  comò  os  de  D.  Manuel,  e  as 
reformas  de  D.  JoSLo  m  fizeram-se  jà  sem  a  dependencia  do  Papa,  ao 
passo  que  a  Umversidade  de  Paris  so  cbegou  a  ser  reformada  por  ex- 
elusiva  auctoridade  real  depois  de  1600.'  A  coexistencia  de  dois  Rei- 
tores  para  govemarem  a  Universidade,  comò  se  encontra  em  muitos  do- 
cumentos  do  seculo  xiv  e  xv^  é  um  facto  resultante  da  organisa^So  do 
Estudo  goral,  em  que  o  Diretto  civU  e  o  Diretto  canonico  eram  as  dia- 
ciplinas  fìmdamentaes,  cujos  gràos  doutoraes  eram  dados,  o  primeiro 
pela  auctoridade  do  Rei,  e  o  outro  pela  auctoridade  do  Pontifice.  Os 
dois  Reitores  eram  eleitos  separadamente  por  estas  duas  popula$5es  es- 
cholares,  que  obedeciam  a  auctoridades  differentes.  Este  costume  foi 
renovado  por  D.  Affonso  v,  por  Carta  de  13  de  abril  de  1469.  Acha- 
mos  eleitos  simultaneamente  dois  Reitores  em  1397:  Vasco  de  Freitas 
e  Diego  Affonso  rectores;'  em  1415:  Rodrigo  Annes  e  JoSo  Alpoim 
reitores;^  em  1469  a  confirmay&o  d'este  uso  por  D.  Affonso  v;  e  em 
1481  JoSo  Foga^a  e  Gon$alo  Annes,  Reitores.  ^  Por  Carta  de  12  de  ju- 


1  État  des  Lettre»  au  XIV  siede,  t.  z,  p.  262. 

*Ib.,  p  278. 

»  Livro  Verde,  fl.  63  y. 

*  Ib.,  fl.  70  y. 

^  Hist,  do  Munieipio  de  LièboOf  1. 1,  p.  SSè. 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHIGA  169 

Iho  de  1476  sabe-se  que  a  Universidade  representava  a  D.  Affonso  v 
para  qne  houvesse  nm  so  reitor,  para  facilitar  o  expediente  dos  nego- 
GÌo8  eacholares;  foi  encarregado  o  bispo  D.  Rodrigo  de  Noronha  de  re- 
solver conjunctamente  com  a  Universidade,  persistindo  aioda  o  costarne 
em  1481 1  corno  acima  vimosi  signal  de  que  os  Canonistas  reagiram 
contra  a  àbsorpf&o  da  sua  independencia. 

A  dependencia  completa  da  Universidade  à  auctoridade  real  é  um 
fitcto  relacionado  com  a  submissSo  da  nobreza  à  mesma  dictadura  tem- 
perai. A  nòbreza  tomou-se  palaciana  e  serventuarià  da  realeza;  a  Uni- 
▼ersidadci  comò  corporafSo  regulamentada  pela  auctoridade  soberana, 
servia-lhe  de  apparato  e  ostentafSo  nos  actos  publicos.  No  Auto  de  ac- 
clama9So  de  D.  JoSo  u,  em  1  de  setembro  de  1481,  citam-se  comò 
^resentes:  cE  scendo  hy  J.^  Fogasa  e  G.®  Anes  rreitores  da  universi- 
dade do  estudo  desta  9idade,  E  com  elles  acompanhavam  o  le9emc^ado 
1)ertoIameu  gomez,  e  o  doutor  J^  Vaaz  da  porta  nova,  E  o  Ie9em9eado 
femam  rroiz  E  mostre  Joane  leente  de  fissica,  E  outros  mùytos  bacha- 
rees  e  escollares  congregados  em  nome  da  sua  universidade.»^  0  que 
a  principio  poderia  parecer  urna  homenagem,  tomava-se  agora  uma 
obriga9fto  para  a  Universidade:  cAa  porta  da  see,  ou  de  qualquer  Igreja 
a  que  el  Rej  de9er,  quando  entrar  na  9idade>  asy  no  lugar  que  Ihe  pella 
•fidade  sera  ordenado,  estara  todo  o  collegio  da  universidade  ordena- 
damente  per  seus  graaos,  segundo  antro  sy  tem  per  ordenan9a.  E  asy 
a  pessoa  dantre  elles  que  farà  a  arengua  a  ElBey,  segundo  he  cos- 
tarne, p'  Os  Jurisconsultos,  que  demoliram  systematicamente  a  Edade 
mèdia  feudal,  arreiavam-se  com  o  titulo  de  Condes  Pciatinos^  comò  ve- 
mos  em,  Vasco  Femandes  de  Lucena,  chanceller  da  Casa  do  Civel, 
Desembargador  do  Pa90|  que  recebeu  esse  titulo  nas  cortes  estrangei- 
ras  onde  andou  comò  embaixador.  Comte  fala  da  cincapacidade  orga- 
nica que  caracterisa  os  legistas  assim  comò  os  metaphysicos,  egual- 
mente reservados,  em  politica  e  em  philosophia,  a  operarem  simples 
modifica98e8  criticas  sem  nunca  poderem  fundar  cousa  alguma.»'  Os 
aeculoB  XIV  e  xv  apresentam  o  quadro  da  elabora9&o  social  e  mental 
que  dissolve  o  velho  regimen  theologico-militar  sem  comtudo  existir  o 
predominio  de  uma  doutrina  ou  ponto  de  vista  sy stematico.  Os  Legis- 


1  livro  II  de  el-rei  D.  JoSo  ii,  fi.  1.  Ap.  ElemetUos  para  a  HiOaria  do  Mu- 
nicipio de  Lithoa^  t.  i,  p.  339. 

*  Regimento  de  30  de  agosto  de  1502.  Ap.  EUmentospara  a  Hiatoria  do  Mu- 
9deipio  de  Lisboa^  t.  ii,  p.  390. 

'  Court  de  PhiloàopMe  positive^  t.  ▼,  p.  343. 


170  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tas,  oriundos  do  Feudalismo;  transformam-se  so  firn  do  seculo  xv  em 
Jurisconsultos  humanistas,  no  seculo  xvi  em  Chancelleres  e  EscriySes 
da  Puridade;  do  seculo  XYii  em  Diplomatasi  nos  seculos  xvm  e  xix  em, 
MinistroS;  mas  sempre  prìvados  da  darà  concepySo  das  fórmas  definì- 
tivas  do  poder  temporal.  Pelo  sea  lado,  os  Metaphysicos  ou  Ontologis- 
tas  do  seculo  xi  a  xin,  emergindo  do  Catholicismo^  transformam-se  nos 
seculos  XIV  e  xv  nos  Philologos  ou  Humanistas,  nos  seculos  xvi  e  xvn 
em  PhilosophoSy  no  seculo  xvin  em  Litteratos,  e  no  seculo  xix  em  Ideo- 
logos  politicos  e  JdmalistaSy  dispendendo  a  actividade  montai  em  urna 
critica  dispersiva  e  negativa,  impotentes  para  estabelecerem  o  accordo 
das  intelligencias.  Tanto  os  Legistas  comò  os  Metaphysicos  contenta- 
ram-se  em  renegar  a  Edade  mèdia,  uns  imitando  os.codigos  romanos, 
e  08  outros  admirando  os  exemplares  da  litteratura  hellenica  e  ado- 
ptando  0  latini  corno  a  lingua  dos  espiritos  cultos. 

A  Renascen9a  classica,  cujo  maìor  ferver  se  concentrou  na  Italia, 
no  seculo  xv,  reagiu  centra  as  tradÌ98es  da  Edade  mèdia,  desprezan- 
do-as  comò  barbaras  em  compara9&o  das  obras  primas  da  Grecia  e 
Soma.  Esse  desprezo  da  Edade  mèdia  reflectiu-se  em  todas  as  mani- 
festa$5es  do  espirito,  do  sentimento  e  da  actividade;  a  architectura  das 
cathedraes  foì  chamada  gothica,  pelo  desprezo  a  que  era  votada  diante 
das  ordens  gregas;  as  far^as  populares  ficaram  esquecidas  pela  imita- 
9S0  das  tragedias  de  Seneca  e  das  comedias  de  Terencio;  a  historia 
dos  differentes  estados  e  os  livros  philosophicos  eram  especialmente 
redigidos  em  latim  ;  a  poesia  dos  trovadores  e  as  can98es  de  Gesta  ou 
épicas  eram  substituidas  por  imita9oes  das  odes  de  Horacio  e  da  EneOa 
de  Virgilio.  Luiz  Vives,  no  seu  livro  De  Institutione  Foeminae  chri- 
stianae,  condemna  as  principaes  obras  da  litteratura  da  Edade  mèdia, 
0  Amadis  de  Oaula,  Tristan  de  Leonisj  Flores  e  Brancaflar,  Lanzarote 
do  Lago,  as  Cem  NoveUas  de  Boccacio.  O  proprio  Dante,  jà  no  seculo 
xni  estiverà  para  escrever  a  Divina  Comedia  em  latim;  e  Petrarcha 
receiava  pela  sua  immortalidade  nSo  escrevendo  em  latim.  0  lado  vi- 
cioso  do  humanismo  das  duas  Renascengas  foi  o  ter  estabelecido  a  so- 
lu9&o  de  continuidade  entro  a  sociedade  moderna  e  a  Edade  mèdia. 
O  ensino  tomou-se  sem  base  naturai  e  nacional;  converteu-se  0  saber 
em  urna  erudÌ9So  livresca,  e  as  manifesta98e8  artisticas  do  sentimento 
amesquinharam-se  na  imitafSo  servii  do  classicismo.  Na  parte  espe- 
culativa propagavam-se  auctoritariamente  as  doutrinas  de  Aristoteles, 
esterilisando-as  pelo  excesso  de  immobilidade  canonica;  na  vida  civil 
copiavam-se  os  codigos  romanos  da  dÌ8solu9&o  imperiai  centra  os  fóros 
ou  leis  locaes.  Os  mestres  impunham  a  auctoridade  do  passado,  e  os 


A  UNIYERSIDÀDE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  171 

lÙBtoriadores  procurayam  as  orìgens  de  cada  estado  nos  heroes  foragi- 
doa  de  Troya,  ou  nas  gaamÌ98es  romanas  da  època  da  conquista.  As 
lingoas  nacionacB  eram  abandonadas  nas  escolas  para  os  alumnos  fa- 
larem  entro  si  grego  e  latini^  e  representarem  nos  seas  divertimentos 
eacolares  comedias  de  Aristophanes  e  de  Plauto.  0  desprezo  pela  Edade 
mèdia  perturbou  a  marcha  da  intelligencia  europèa,  que  procurava  um 
methodo  no  negativisn^o  do  Sanches,  nos  esfor908  de  Bacon  e  de  Des- 
cartes, sem  conhecer  que  o  mal  provinha  d'està  falta  de  solidariedade 
com  0  passado.  Os  Jesuitas  apropriaram-se  da  tradÌ9So  humanista  e 
propagaram-na  atè  hoje  com  a  mesma  inintellìgencia  com  que  a  rece- 
beram  no  meado  do  seculo  xvi. 

£  curiosa  a  situaySo  das  intelligencias  em  Portugal  no  seculo  xv; 
a  admiraySo  pela  antiguidade  classica  vaese  impondo  à  predilec92lo  das 
obras  da  Edade  mèdia.  A  Bibliotheca  do  rei  D.  Duarte  manifesta  està 
dupla  influencia,  reunindo  a  par  dos  poemas  dos  cyclos  épicos  da  Tavola 
Redonda  e  Q-reco-romano  as  obras  de  Cicero  e  Tito  Livio.  A  lingua 
nacional,  t&o  admiravelmente  empregada  por  Femio  Lopes  nas  suas 
Cbronicas,  è  substituida  pelo  latim,  sondo  chamado  Matheus  Pisano 
para  redigìr  n'essa  lingua  a  historia  da  tomada  de  Ceuta.  No  Cando- 
neiro  de  Resende  comeyam  a  apparecer  as  referencias  aos  nomes  da 
mythologia  greco-romana,  comò  um  novo  effeito  poetico;  os  neologis- 
mos  gregos  e  latinos  introduzem-se  aos  centenares  por  meio  das  tra- 
dac93es  do  infante  D.  Pedro;  o  rei  D.  Duarte  ensina  as  regras  para 
fazer  uma  boa  versSo  latina,  e  o  chronista  Gomes  Eanes  de  Azurara, 
alardeando  uma  abundante  erudÌ9So  de  escriptores  classicos,  imita  as 
redundancias  e  construc98es  figuradas  de  Tito  Livio.  E  n'este  momento 
historico  que  o  ensino  apresenta  pela  primeira  vez  em  Portugal  uma 
bijwca^,  destacando-se  o  que  pertence  aos  clerigos  e  bachareis  do 
que  pertence  ao  aperfeÌ9oamento  secular  da  nobreza.  Para  a  Edade 
mèdia,  a  cultura  litteraria  era  uma  superioridade,  que  approximava  a 
classe  popular  da  nobreza;  este  sentido  social  apparece  implicito  no 
titulo  honorifico  de  Bacharél.  Ainda  nos  anexins  portuguezes  se  equi- 
param  as  duas  classes  sociaes:  cOu  armas  ou  lettras.» 

Nas  Cdrtes  de  Vianna,  sob  D.  JoSo  ii,  os  povos  apresentaram  o 
aegninte  requerimento  ao  rei  para  que  interviesse  na  educaySo  da  No- 
breza: e  Que'  aprendam  GramTruitìca,  e  jogos  de.  espada  de  ambas  as 
mSos,  dannar,  e  balbar,  e  todas  outras  boas  manhas  e  costumes,  que 
tìram  os  mofos  dos  vicios,  e  os  chegam  a  virtudes;  e  criando-se  desta 
maneira  alli  os  ordene  V.  A.  aonde  mais  se  inclinarem.  E  em  quanto 
assim  mogos  forem,  durmam  e  criem-se  em  Yossa  Camera,  aonde  se 


1 72  HISTORIA  DA  VNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

oriaram  aqaelles  de  quem  elles  descendem. . .  e  fa^a  V.  A.  hmn  homem 
Fidalgo^  que  tenha  carrego  doe  Donzees,  que  ob  castigae  e  fa9a  alim- 
par^  e  aprender  as  boas  manhas.» 

Este  pedido  fundava-se  porventara  nos  factos  da  córte  de  D.  Àf- 
fonso  Yf  que,  pela  exigaidade  da  receita  do  eatado  e  pelo  dispendio  em 
ten9a8  a  varias  familias,  tinha  restringido  o  numero  de  mofos  fidalgos 
admittidoB  no*  pa90.  No  orfamento  do  eatado  Bob  D.  Affonso  v,  em 
1477,  gastava-BO  a  quantia  de  202^91540,  importante  para  aquella  època, 
em  BubsidioB  a  mo$06  fidalgos  para  estudos;  '  porém  està  qoantia  era 
deduzida  na  metade,  por  causa  do  deficit  que  j&  entSo  se  dava  na  ad- 
ministragSo  publica. 

A  tradi$Sò  medieval  da  inspecf&o  sobre  os  costumes  dos  escho- 
lares  prevaleceu  até  hoje  na  Universidade  de  Coimbra  no  syBtema  das 
infomiagdes  no  fim  da  formatura.  Entro  a  Universidade  e  os  GollegioB 
deu-se  sempre  urna  alternativa  de  importancia,  ora  tornando-se  colle* 
gial  a  Universidade,  ora  os  Collegios  convertendo-se  em  Faculdades  de 
Artes,  comò  no  tempo  do  predominio  jesuita,  no  Collegio  de  Santo  An* 
tfto  de  Lisboa,  e  no  Collegio  do  Espirito  Santo  de  Evora,  que  se  con- 
verteu  em  Universidade.  N'osta  poderosa  influencia  dos  Collegios  em 
Franfa  figura  gloriosamente  o  nome  portuguez  na  familia  dos  QouvSas, 
que  ali  tanto  se  acreditaram  pelo  seu  genio  pedagogico;  o  grande  Mon- 
taigne fala  com  venerasse  do  seu  mostre  André  de  GK)uvéa.  Em  Ingla- 
terra  tambem  se  deu  o  phenomeno  da  preponderaucia  do  systema  col- 
legial  :  cForam  os  Collegios  que  pouco  a  pouco  se  apoderaram  do  mo- 
nopolio da  instruc9fto  e  do  governo  da  Universidade.»  ' 

Junto  com  o  desenvolvimento  doB  Collegios  di-se  um  phenomeno 
interessante  nas  fórmas  pedagogicaa:  o  Lente  é  substituido  pelo  Pro- 
fessor,  e  o  alumno,  admittido  muito  novo  à  frequencia  coUegial,  pre- 
cisa de  um  patrono  ou  tutor ^  que^o  dirija  nos  seus  actos  e  Ihe  repita 
as  li{3es.  0  tutor  medieval,  que  era  de  ordinario  um  estudante  pobre^ 
(o  fdlow  das  Universidadea  inglezas)  tomou-se  com  o  tempo  em  lec- 
cwniata  e  repetidor. 

Vimos  pela  Carta  de  22  de  outubro  de  1357  que  ae  nSo  po- 
dia  enainar  fora  daa  EscholaB  geraea,  e  que  oa  estudantes  pagavam 
ama  certa  quota  aos  lentea,  aegundo  a  Bua  claaae  de  rìcos  ou  de  po- 
bres.  Està  centralisa^fto  univerBitaria  resultava  de  que  so  podiam  en- 


1  Torre  do  Tombo  :  Oav.  2.  Ma^.  9,  n.»  16,  Papd  da  FoMcnda  dt  D.  Afforco  F. 
>  Hamilton,  op.  eit.,  p.  278. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA  MONARCHICA  173 

Binar  os  que  eram  graduados  regentes,  e  que  recebiam  a  propina  ou 
enxoval  (o  pasttàs  e  eollectum).  Pela  fiinda^So  dos  CoUegioSi  com  intuito 
de  servir  os  Escholares  pobres,  as  Ii98e8  tomaram-se  gratoitas;  e  por 
isso  teve  de  se  ampliar  a  todos  os  graduados  a  faculdade  de  ensinar. 
Sobre  este  ponto  escreve  Hamilton:  cPara  alliviar  um  pouco  os  estu* 
dantes,  e  para  assegurar-se  a  cooperafSo  de  mestres  habeis,  concede- 
ram-se  honorarios  a  certos  graduados  que  davam  IÌ98es  gratuitas.  Em 
muitas  Umversidades  os  candidatos  aos  gr&os  eram  obrìgados  a  segui- 
rem  estes  cursos^  e  a  estes  graduados  salariados  é  que  foi  exclusiva- 
mente  dado  mais  tarde  o  titulo  de  Professor,  A  instituiy&o  dos  Profes- 
Bores  pagoB  fez  necessariamente  decahir  os  cursos  dos  outros'regentes, 
pois  que  08  estudantes  preferiam  naturalmente  as  lÌ98es  gratuitas;  e 
ainda  que  o  graduado  conservasse  o  direito  de  ensinar  publicamente, 
esse  direito  foi  quasi  que  inteiramente  abandonado  a  este  corpo  de  pro- 
fessores  em  todas  as  Universidades  da  Euibpa.»  ^  Ainda  encontramos 
uma  provis&o  de  D.  JoSo  ili,  de  1533^  em  que  concede  licen9a  a  D. 
AfibnsOy  sobrinho  do  rei  do  Congo,  para  ensinar  grammatica  em  Lis- 
boa,  fora  do  bairro  das  Escholas  Geraes.  Todos  estes  factos,  apparen- 
temente anecdoticos,  lìgam-sé  ao  sjstema  e  espirito  do  ensino  europeu, 
e  é  este  criterio  historico  indispensavel  que  falta  aos  que  entro  nós  se 
arvoram  a  escrever  e  a  legislar  sobre  pedagogia. 

0  typo  de  tutor,  que  é  a  origem  do  mostre  particular,  teve  a  sua 
mais  alta  manifestaySo  em  Italia;  o  celebre  Victorino  de  FeltrO;  esco- 
Ihido  para  .mostre  de  quatro  filhos  do  marquez  de  Gbnzaga  em  1424, 
pela  reforma  que  introduziu  nos  habitos  escholares,  attrahiu  discipulos 
de  todas  as  partes  da  Europa  para  a  sua  Maison  Joyeuse.  A  Italia  tor- 
nou-se  nos  fins  do  seculo  xv  o  centro  dos  estudos  classicos,  ou  da  Re- 
nascen9a.  Por  1489  frequentavam  os  estudos  na  Italia  os  filhos  do  chan- 
celler  JoSo  Teixeira,  e  o  celebre  humanista  Angelo  Policiano  escrevia 
aa  rei  D.  JoSo  n  de  Portugal,  dando-lhe  conta  dos  estudos  dos  seus 
pupiBos:  cNa  verdade,  pedi,  nSo  ha  multo,  a  estes  subditos  vossos  que 
estSo  aqui,  mancebos  de  subido  talento  e  elevado  caracter,  os  filhos  de 
JoSo  Teixeira,  vesso  Chanceller-mór,  que  por  sua  intervengSo  me  fos- 
sem  ahi  còpiadas  as  memorias  (se  é  que  existem)  dos  vossos  feitos: 
prometteram  elles  desempenhar-se  cuidadosamente  do  encargo,  em  rea- 
peito  da  obrigaySo  que  devem  ao  seu  preceptor;  etc.»  D.  JoSo  n  es- 
creveu-lhe  em  carta  datada  de  23  de  outubro  de  1491  :  cResta,  Angelo 


1  Hamilton,  op,  eU.,  p.  274. 


■ 


1 74  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

amigo,  que  aoB  filhos  do  nosso  Ohanceller-móry  fidalgos  de  nossa  casa, 
consagreis  os  maiores  desvélos.  Sem  duvida  que  a  Tossa  bondade  nfto 
havìa  mister  de  reoommendaySo  para  assim  o  fazerdes  espontaneamente^ 
comtudo  encarecidamente  vos  rogamos  que  por  nosso  respeito  tenha 
ainda  algnm  augmento  o  vesso  zèlo.  E  na  verdade  a  elles  deveis  toda 
a  gratidSo,  porque  o  pae  e  os  filhos,  aqaelle  com  os  louvores,  estes 
com  OS  testemunhos  provadissimos  do  vesso  saber,  nfto  t^essam  de  vos 
exaltar,  falando-nos  de  vós,  e  de  fazer  chegar  até  estes  confins  da  terra 
a  &ma  do  vesso  nome,  o  que  n&o  faz  pouco  em  prol  da  vessa  gloria 
e  repata9So.  Mas  aos  proprios  mancebos  nós  damos  os  emboras  por 
Ihes  ter  cabido  o  viver  em  tempo  em  que  da  fonte  abmidante  da  vessa 
sciencia  possam  beber  algama  in8tnic9So ...»  Em  ama  carta  de  An- 
gelo Policiano  ao  chanceller  Jofto  Teizeira,  Ihe  diz:  cPara  a  Italia  os 
mandastes,  afim  de  se  Ihes  formarem  os  costomes,  serem  instroidos 
nas  boas  lettras  e  aprenderem  todas  as  Artes  liberaes,  segando  é  pro- 
prio de  qaem  tem  de  occupar  a  mais  elevada  posigSo.»  Depois  de  ter 
falado  da  sua  assiduidade  ds  aulas,  accrescenta:  e  Aquelle  qae  Ihes  des- 
tes  para  aio  e  pedagogo,  coida  n'eiles,  dirige-os  e  educa-os  com  tSo 
levantada  prudencia,  amor  e  desvélo,  que  nada  ha  que  desejar.  Cer- 
tamente, que  vos  nSo  engano,  mas  por  outro  lado,  tambem  me  nAo  en- 
gano  a  mim.»  ^  Està  carta  é  datada  de  Floren9a  em  17  de  agosto  de 


1  Estas  cartas  fippareceram  pela  prìmeira  vez  pablicadas  em  portugaez  nos 
Poetaa  palacianos,  p.  299  a  306;  incorporamol-as  aqui  definitivamente  comò  pre- 
cioBOs  documentos  pedagogicos  : 

Angelo  Policiano  a  D,  Joào  por  gra^  de  Deus  rei  ifwietianmo  de  Portugal  e  dot 
Algarvea^  d'aquem  e  d^cdém  mar  em  Africa  e  senhor  da  Guinif  èoude  ! 

Comquanto  nem  a  minha  condi^So  nem  o  meu  saber  nem  merecimento  al- 
g^om  meu  sejam  taes  que  eu  jolgae  ser-me  licito  escrever-vos,  rei  invicto,  todavìa 
a  vessa  grandeza,  lustre  e  gloria,  os  vossos  louvores,  espalhados  j&  por  toda  a 
terra,  tém-me  assombrado  de  modo  que,  de  si  mesma,  a  propria  penna  arde  em 
desejos  de  presentar-vos  lettras  minhas,  attestar-vos  os  mena  sentimentos,  exprì- 
mir-TOS  a  minha  sympathia  e,  finalmente,  render- vos  gra^as  em  nome  de  todos 
quantos  pertencemos  a  este  seculo,  o  qual  agora,  por  favor  dea  vossos  merttos 
quasi  diyinos,  ousa  j&  denodadamente  competìr  com  os  vetustos  seculos  e  com  toda 
a  antiguidade.  De  feito,  se  a  brevidade  de  uma  carta  ou  a  oonsidera^io  do  tempo 
o  consentirà,  a  mesma  verdade  me  déra  ousadia  para  que  tentasse  mostrar  que 
nem  laureis  nem  dourados  carros  de  nenhum  antigo  heroe  pódem  ser  comparados 
ia  vossas  glorias  e  immortaes  feitos.  Sim  :-^deixando  atraz  os  combates  que,  ainda 
em  tenros  annos,  empenhastes  contra  os  povos  impios  da  insoffirida  Africa,  os  po- 
derosissimos  exerdtos  de  inimigos  apartados  una  dos  outros  que  derrotastes,  as 


A  UNIYERSIDADE  SOB  A  DIGTADURA  MONARCHICA  175 

1489;  estava  entSo  no  seu  mais  alto  esplendor  a  Renascen9a  litteraria, 
artistica  e  philosophica  na  Italia,  e  por  este  tempo  seiniciou  entro  a 
aristocracia  portagueza  o  costume  de  ir  frequentar  as  escholas  dos  pe- 
dagogistas  italianos,  costume  que  durou  ainda  em  todo  o  reinado  de  D. 
Manuel.  Depois  de  Victorino  de  Feltro,  Angelo  Policiano  apparece-nos 
corno  o  tjpo  completo  do  tutor  ou  pedagogo^  primeira  manifestag&o  do 
homem  de  sciencia  fora  do  centralismo  das  Universidades.  Escreve  Qi- 


pra^as  que  rendestes,  as  préas  que  fizestes,  as  leis  que  impuzestes  a  na^oes  bar- 
baras  e  indomitas,  passando  n2o  menos  em  silencio  os  brazoes  pacificos,  que  nao 
cederiam  a  palma  às  glorias  gaerreiras, — que  grandioso  e  vasto  quadro  de  proe- 
zas  apenas  acreditaveis  se  me  nSo  offerecia,  se  eu  fosse  commemorar  as  vagas  do 
tumido  e  soberbo  oceano,  antes  intactas  e  sem  carreira  aberta,  provocadas  e  que- 
brantadas  pelos  vossos  lenhos,  as  balizas  de  Hercules  desprezadas,  o  mundo  que 
havia  sido  mutilado,  restituido  a  si  mesmo,  e  aquella  Barbarla,  d'antes  nem  por 
vagas  noticias  de  nós  assàs  conhedda,  selvagem,  feroz,  vivendo  sem  organisa^io 
regular,  sem  figura  de  lei,  sem  religiSo,  quasi  ao  modo  de  brutos  animaes,  agora 
trazlda  à  policia  humana,  &  brandura  de  trato,  suavidade  de  costumes  e,  até>  aos 
sentimentos  religiosos  !  Que  logar  tao  azado  nSo  teria  eu  entSo  para  recontar  os 
preciosos  beneficios  que  os  habitadores  do  nosso  continente  d'alli  receberam,  os 
abundantes  recursos  que  de  là  vieram  para  nos  melhorar  e  opulentar  a  existencia, 
o  engrandecimento  que  até  &  bistoria  antiga  coube,  a  fé  que  adquiriram  antigas 
narrativas  que  outr'ora  escassamente  se  podiam  acreditar,  e,  por  outro  lado,  a 
quebra  que  tiveram  na  admira^So?  EntSo  haveria  eu  tambem  de  absolver  de  toda 
a  suspeita  de  falsidade  o  grande  Plat&o  e  os  annaes  seculares  do  Egypto,  que, 
sem  prestarem  credito,  fizeram  meuQSo  d^esse  oceano  por  ti  subjugado  com  pode- 
rosos  ezercitos.  De  maneira  que  tambem  confessarla  que  ras2o  teve  Alexandre  de 
Macedonia  em  se  amesquinhar  lamentando  que  ainda  restassem  outros  mundos  às 
suas  victorias.  Na  verdade  que  outra  coisa  nos  fizestes  vós,  preclaro  principe,  se- 
n^ — achar  seria  ezpressio  inadequada — trazer  de  trevas  eternas  e,  quasi  diria, 
do  antigo  cbaos,  para  a  luz  que  nos  illumina,  outras  terras,  outro  mar,  outros  mun- 
dos e,  em  cabo,  outros  astros? — Mas  a  que  firn  vdn  esprtdar-me  agora  n*este  as- 
sumpto?  Foi  para  vos  rogar  em  nome  nSo  so  do  presente  seculo,  sen^  tambem  de 
toda  a  posteridade  e  de  todos  os  povos,  que  nSo  soffiraes  que  de  t&o  sublimas  obras 
fene^  ou  se  perca  a  memoria  que  deve  ser  eternisada,  mas  antes  ordeneis  Ihe  alce 
um  padrao  a  voz  dos  var5es  doutos,  &  qual  nem  o  dente  roedor  do  tempo  no  seu 
curso  silencioso  vale  a  consummir.  E,  se  daes  favor  ao  merecimento,  porque  nSo  o 
baveis  de  dar  à  gloria,  companbeira  do  merecimento?  E  se  ganhaes  por  m2o  a  to- 
dos 08  monarchas  em  generosidade  de  brios  e  gprandeza  de  animo,  està  vida  hu- 
mana  tao  breve,  tSo  instavel,  que  de  tSo  escassas  e  mingoadas  esperan^  depende 
em  telo  angustiados  limites  é  estreitada,  porque  a  nio  baveis  de  prolongar  com  a 
carreira  immortai  de  immarcessivel  gloria?  Porque  nSo  ba-de  a  memoria  de  feitos 
grandiosos  transmittir-se  aos  vossos  successores  mesmos,  para  que  essas  illustres 
fiiii^anhaB  que  jimais  encontrarSo  segundas,  Ibes  aproveitem  servindo-lhes  tam- 
bem de  ensinamento  e  norma?  Porque  nio  baveis  de  deixar  um  corno  tjpo  a  vos- 
sos filbos  e  futures  netos,  para  que  nenbum  degenere  j&mùs  da  perenne  e  abònada 


176  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

raad;  na  svlsl  Historia  do  Direito  romano  (p.  461):  cO  celebre  Angelo 
Policiano  teve  ^  gloria  de  tirar  a  jarisprudencia  da  barbarie  em  qae  a 
tinbam  mergolbado  os  discipulos  de  Bartolo,  e  de  tornar  mais  attra- 
hente  o  estado  d'està  sciencia  pela  sua  uniSo  com  o  estudo  das  bellas- 
lettras  e  da  historia.  Encontrou  adversarios  violentos.  Os  sectarios  da 
Scbolastica  designaram  os  partidarios  das  bellas-Iettras  sob  o  nome  de 
humaniatasy  oa  de  nominaes,  tornando  para  si  o  de  realista»,  para  indi- 


yirtude  dos  seus  malq^eB  e  a  tenham  diante  dos  olhos  corno  traslado  para  se  Ihes 
formar  o  caracter  e  educar  o  cora^ao  segando  a  principes  convém?  Finalmente 
porque  nilo  hfto-de  tambem  os  outros  reis  qae  nascerem  sob  os  desvairados  climas 
do  mondo,  haver  de  vós,  senio  que  imitar,  ao  menos  qae  admirar?  Ora  fazer  ex- 
tremadas  proezas  e  n&o  Ihes  dar  realce  e  luz  com  as  lettras  o  mesmo  vale  que 
procrear  filhos  de  peregrina  gentileza  e  nSo  Ihes  dar  sustenta^o.  Nfto  aconte^a^ 
nao,  rei  excelso,  que  essas  yossas  glorias,  t2o  credoras  da  immortalidade,  fiquem 
escondidas  n'aquelle  vasto  acervo  da  nossa  fragilidade,  em  que  jazem  sepultados 
OS  trabalhoB  de  todos  quantos  nSo  houveram  os  suffragios  dos  varÒes  de  saber 
prestante.  Acordae-vos  de  Alexandre,  acordae-vos  de  Cesar,  os  dois  nomes  prin- 
cipaes  que  a  fastosa  antigoidade  nos  alardeia.  De  um,  assàs  memorada  é  a  excla- 
ma^&o  que  soltou  ao  pé  do  tumulo  de  Achilles,  chamando  afortunado  ao  manoebo 
por  ter  encontrado  em  Homero  o  pregoeiro  das  suas  glorias.  0  segundo,  ainda 
quando  estava  apercebido  para  travar  combate,  e  quasi  que  até  no  meìo  do  es- 
trondo  das  pugnas,  com  tal  esmero  compunha  as  mcmorias  dos  seus  feitos,  que 
nenhuma  obra  a  critica  julga  por  tSo  bem  trabalhada  que  a  purissima  elegancia 
d^aquelle  auctor  Ihe  nào  leve  a  palma.  A  estes,  lego,  vós  devieis,  ao  menos  imitar, 
a  estes  a  quem  nos  outros  respeitos  desmesuradamente  vos  avantajaes.  0  que  vos 
acabo  de  dizer,  comprehendereis  que  é  a  expressào  da  verdade  e  nSo  a  linguagem 
da  adula9ào,  quando  para  vós  mesmo  volverdes  os  olhos  da  vessa  intelligencla 
soberana  e  tiverdes  attentamente  examinado  os  formosos  titulos  da  vessa  gloria, 
magestade  e  poderio,  e  considerado  reflectidamente  a  qne  fastìgio  estaes  subido 
nas  cousas  humanas.  De  feito,  ver-vos-beis  rei  da  Lusitania,  isto  é  (para  resamir 
em  ama  palavra  o  que  entendo),  de  um  povo  de  romanos  de  que  outr'ora  numero* 
sas  colonias,  segundo  a  bistoria  refere,  se  acbavam  disseminadas  n'esta  regiSo 
mids  do  que  em  nenhuma  entra.  Yereis  em  vós  o  libertador  da  Africa,  essa  ter> 
ceira  divisio  do  orbe,  que  desde  jà,  pelos  vossos  esforyos,  solta  dos  ferros  dos  bar- 
baros,  exulta  cada  vez  mais  com  a  esperan9a  de  completa  liberdade.  Yereis  em  vós 
tambem  o  domador  d'aquelle  vasto  e  indignado  oceano,  a  eigos  primeiros  embates 
o  mesmo  Hercules,  o  subjugador  do  mundo,  enfiou.  Reconhecereis  em  vós  o  defen- 
sor da  santa  fé  christS  e  da  verdadeira  religiSo,  e  o  mais  potente  arbitro  da  paz  e 
da  guerra  centra  a  perfidia  de  Mahomet,  alagando  so  com  a  vessa  magestade  aquella 
pestilencial  furia  e  acabando  as  guerras  mais  consideraveis  so  com  o  terror  do 
TOSSO  nome,  so  com  a  maravilha  do  vesso  valor.  £  ao  mesmo  tempo,  senhor  das 
cnaves  de  um  novo  mundo,  come  que  abrangeis  em  um  punhado  os  seus  numero- 
SOS  golfos  e  OS  promontorios  e  as  praias  e  as  ilhas  e  os  portos  e  as  pra^as  e  as  ci- 
dades  à  beira-mar,  e  quasi  tendes  nas  vossas  mSos  na^Òes  innnmeras,  aonde,  oom- 
tndo,  nem  a  propria  fama  com  as  suas  asas  tio  yelozes  havia  até  entio  chegado. 


A  UNIVERSIDADE  SOB    A  DICTA DURA  MONARCHICA  177 

carem  que  elles  se  occupavam  das  con^as^  em  quanto  os  seus  adversa- 
rioB  se  contentavam  ccm  palavras.»  A  Eschola  humani&ta  triumphou 
pela  cozoprehensào  das  origens,  e  o  Dome  do  portuguez  Antonio  de 
Gouvéa  e  0  de  Cnjacio  eSo  os  dos  verdadeiros  precnrsores  da  Eschola 
historica  de  Savigny. 

A  influeneìa  da  Italia  nos  estudos  philologieos  resultou  do  cara- 
eter  complexo'do  criterio,  simultaneamente  artistico  e  scientifico,  11- 


£  quSo  grandioso  nao  é  ver  os  reis  mais  ignotos  arderem  em  descjos  de  vos  visi- 
tar, venerar  as  vossas  pisadas,  e  correrem  a9odado8  a  ajoelhar  aos  vossos  pés  e  a 
receberem  à  porfia  das  vossas  m2o8  tao  poderosas  pela  fé  corno  pelas  armas  as 
agnas  ptrrificadoras  do  baptismo?!  e  ver,  espertados  pelo  amor  de  urna  virtude 
jiimals  onvida  dos  antigos  sccolos,  os  habitantes  dos  mais  apartados  confins  da 
terra  acudirem  apinhados  d  vossa  pre8en9n,  e  jd  todo  o  mcio-dia,  arrancado  do 
fundo  das  suas  moradas,  dar-se  pressa  a  correr  venernbundo  ante  vós,  para  de 
mais  perto  contemplar  esse  sembiante  celestial,  a  aurèola  de  gloria  que  vos  ac'orna 
a  regia  fronte,  essa  magestadc,  Ilei  transumpto  da  divina?!  Com  tacs  gi-andezas 
venba  alguem  pdr  em  parallelo  a  tomada  de  Babylonia,  bem  que  ufana  dos  sens 
muros  de  tijolo,  a  ròta  dos  barbaros  do  oriente,  jd  do  proprio  naturai  tao  fugazes! 
Venha  por  em  parallelo  a  provoca^ào,  nSo  muito  esforQada,  das  iras  do  Scytha  no- 
mada,  vagando  por  dilatadas  campinas,  comtanto  que  nao  lance  tambem  d  conta 
de  louvor  o  assassinato,  om  meio  dos  festine,  dos  mais  caros  amigos,  nem  a  ado- 
p^So  de  estrangeiros  costumes  e  desdourosas  adula^òes!  Ponha  em  parallelo  tam- 
bem 0  vencimento  das  Gallias,  a  custo  subjugadas  ao  cabo  de  dez  annos,  ou  ou- 
tros  feitos  inferiores  a  este,  comtanto  que  nao  tenha  encomios  para  o  sangue  de 
concidadàos  e  parentes  barbaramente  vcrtìdo  por  todo  o  orbe! — Assim  que,  rei 
sem  par,  vós  sobre  todos  (cstoure  embora  a  invcja)  vós  sobre  todos  sois  digno  de 
etemas  honras.  A  vós,  primeiro  do  que  a  ninguem,  devem  de  ser  consagradas  as 
nossas  vigilias,  quero  dizer,  as  de  todos  quantos  somos  sacerdotes  das  Musas.  Por 
tal  razào  (se,  homem  desconhecido,  mas  a  vós  mui  dedicado,  encontro  alguma  fé 
junto  d  vossa  pessoa)  seja  incnmbido,  eu  vos  conjuro,  a  sujeitos  idoneos  o  encargo 
de  por  em  memoria  (sem  duvida  que  interìnamente),  em  qualquer  lingua,  em  qual- 
quer  estylo  o  assumpto  tsto  ubertoso  dos  feitos  pràticados  por  vós  e  pelos  vossos, 
obra  que,  mais  tarde,  tanto  os  outros  em  quem  ferve  o  mesmo  enthusiasmo,  comò 
tambem  nós  mesmos,  envidando  todas  as  for9as,  hajamos  de  polir  e  aperfeÌ9oar.  Na 
verdade,  pedi,  nao  ha  muito,  a  estes  subditos  vossos  que  estSo  aqui,  mancebos  de 
Bubido  talento  e  elevado  caracter,  os  filhos  de  Teizeira,  vosso  Cbanceller-mór,  que 
por  sua  mterven^So  me  fossem  ahi  copiadas  as  memorìas  (se  é  que  existem)  dos 
vossos  feitos  :  prometteram  elles  desempenhar-se  cuidadosamente  no  encargo  eìn 
respeito  da  obrrga^uo  que  devem  ao  seu  preceptor;  todavia  nSo  quiz  eu  faltar  a 
mim  proprio,  mas  assentci  de  vos  endere^ar  eu  mesmo  està  carta,  rei  mui  indul- 
gente e  clemente,  a  quem  jd  posso  dar  tambem  o  nome  de  meu,  quereudo  antes 
poder  ser  arguido  de  arrojado,  se  escrevesse,  do  que  de  apoucado  de  animo,  se  me 
conservasse  silencioso. — No  que  respeita  a  minha  pessoa,  n§o  é,  certo,  ordinaria  a 
minha  condi^ào,  mas,  na  profissao  das  lettras,  tambem  alguns  créem  que  nao  é  de 
todo  inferior  a  minha  reputa9ào.  Quasi  de  menino  foi  eu  criado  (e  porventura  qne 

UlST.  UN.  12 


178  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

gando  à  comprehensSio  da  Arte  antiga  a  historia,  a  politica,  a  lingua 
e  a  grammatica.  O  genio  italiano  realÌBOu  o  impulso  da  RenaBcen9a  Bem 
dependencia  do  accidente  da  tomada  de  Constantinopla.  Escreve  Hil- 
lebrand;  em  um  estudo  sobre  a  bistoria  da  Philologia:  cÀinda  que  o 
estudo  dos  auctores  classicos  nSio  deixasse  de  occupar  os  gprammaticos 
gregos  desde  Aristarco  até  Cbalcondylas,  a  verdadeira  bora  do  nasci- 
mento, a  verdadeira  patria  da  pbilologla,  foram  o  decimo  quarto  seculo 


està  circumatancia  vira  a  proposito)  no  scio  da  honesta  familia  d^aquelle  vario  il- 
lustre,  o  primeiro  personagem  na  sua  tao  fiorente  repnblica,  Louren^o  de  Medicis. 
Nào  cedendo  a  ninguem  em  dedicasse  à  vessa  pessoa,  soube  elle,  fallando-me  de 
vós,  accender  em  mim  enthasiasmo  tlU)  ardente  pelos  vossos  merecimentos,  que, 
dia  e  noite,  en  nào  largo  de  pensar  no  pregSo  dos  vossos  feitos,  e  o  mais  fervoroso 
voto  que  eu  agora  fa^o  é  que  me  seja  outorgada  for^a,  poder  e  finalmente  ensejo, 
para  que  o  vosso  nome  tao  digno  de  divinos  elogios,  os  testemunhos  da  vessa  pìe- 
dade,  integrìdade,  rectidào,  temperanza,  prudencia,  juizo,  os  da  vossa  justi^a,  for- 
taleza,  providencia,  liberalidade  e  grandeza  de  alma,  e  emfim  os  de  tantas  obras, 
tantas  e  tao  eximias  fa^anhas  vossas,  tenham  monumentos  fieis  levantados,  a:nda 
que  seja  por  mim,  na  lingua  latina  ou  grega,  de  modo  que  nào  haja  vicissitude  de 
.  humanos  acontecimentos,  nem  assalto  da  varia  e  inconstante  fortuna,  nem  vetus- 
tade  de  seculos  que  valba  a  extinguil-os.  , 

D.  Joào  por  grciga  de  Deus,  rei  de  Portugal  e  dos  Algarves,  d'aquem  e  d^cUém  mar 
em  Africa,  e  senhor  de  Gttiné,  ao  mai  douto  varào  eprezado  amigOy  Angelo  Po- 
liciano,  saudel 

À  vossa  agradavel  carta,  que  jà  ba  muito  li,  e,  sobretudo,  o  que  amiudadas 
vezes  nos  tem  refendo  o  nesso  querido  Cbanceller-mór  JoSo  Teixebra)  me  deu  ca- 
bal  conbecimenta  de  quanto  vos  interessa  a  nossa  gloria  (se  em  cousas  bumanas 
alguma  esiste)  e  quanto  desejaes  salvar  do  olvido  com  as  vossas  lettras  o  nesso 
nome  e  feitos.  Tal  vontade,  ainda  que  é  urna  prova  assaz  darà  de  entranbado  affé- 
cto  e  summa  deferencia,  todavia  parece-nos  que  nasce  ainda  mais  da  bondade  do 
vosso  cora^So,  da  agudeza  de  ingenbo  e  da  copia  de  saber,  qne  miram  a  alvo  mais 
remontado.  Assim  que  nos  sentimos  gprandemente  penborados  de  vós,  e,  quando  o 
tempo  e  as  circumstancias  o  demandarem,  testemunbaremos  mais  ampiamente  o 
nosso  agradecimento,  esperando  que  nfto  bajaes  de  vos  arrepender  da  afieÌ9ào  que 
nos  dedìcaes.  Bespondendo  em  breves  termos  ao  assumpto  da  vossa  carta,  dir-vos* 
bemos  que  somos  gratos  sobremaneira  ao  offeredmento  que  tSo  frequentemente 
nos  fazeis  dos  vossos  servi^os  e  affectuosa  diligencia  para  nos  alcan^ardes  a  im- 
mortalidade,  e  estimamol-o.  E  para  por  em  efieito  o  intento,  teremos  todo  o  coi'^ 
dado  de  ordenar  que  a  nossa  cbronica,  que,  seguindo  o  uso  do  nosso  reino,  man- 
damos  escrever  em  lingua  vemacula,  seja  composta  no  idioma  toscano,  ou,  pelo 
menOB,  no  latim  commum,  enviando-vol-a  depois,  o  mais  depressa  que  ser  possa, 
para  que  vós,  sem  vos  afastardes  do  caminho  da  verdade,  assegurando  a  nossa  me- 
moria, a  adomeis  com  as  gra^as  e  gravidade  do  vosso  estylo  e  com  a  voBsa  eru- 
dirlo, e  a  aperfei^eeis  de  fórma  que,  ao  menos  com  o  auxilio  da  vossa  eloquenda. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  1 79 

6  a  Italia;  porqae  a  obra  dos  Alexandrinos  eBtava  sepultada  com  08 
proprìos  objectos  daa  auas  inve8tiga9368;  a  obra  dos  Bjzantinos  nSo 
exerda  influencia  alguma  sobre  o  movimento  dos  espiritos  na  Europa, 
e  demais,  faltava-lhe  completamente  a  qoalidade  constitutiva  da  scien- 
cia,  o  espirito  critico.  Tal  foi  o  enthusiasmo  que  inspirou  a  sciencia 
nova  ao  povo  italiano,  tSo  amoroso  do  bello  e  t2o  ardente  nas  suas 
predilec^des,  que  mal  se  pode  indicar  um  poeta,  um  historiador,  um 


se  tome  digna  de  ser  lida.  Com  effeito,  muito  releya  (e  melbor  o  sabeis)  o  estylo 
em  que  é  recontado  cada  feito,  embora  illustre.  PorquantO|  assim  corno  a  expo- 
liencia  mostra  que  as  comidas  melhores  de  natureza,  se  bouve  menos  aceio  em  as 
guisar,  sfto  avisadamente  engeitadas,  assim  a  historia,  se  Ihe  fallecem  as  devidas 
galas  e  donaire  proprio,  havemol-a  por  sem  merito  e  merecedora  de  que  a  engei- 
tem.  Defeitos  d^esta  ordem,  porém,  n&o  ha  que  recèial-os  se  fdrdes  vós,  sujeito  de 
tSo  subidas  partes  e  tao  versado  em  todas  as  boas  lettras,  quem  haja  de  tomar  a 
peito  a  historia  dos  nossos  feitos.  Està  é  pois  a  nossa  inten^ào.  Besta,  Angelo 
amigo,  que  aos  filhos  do  nesso  Chanceller-mór,  fidalgos  da  nossa  casa,  consagreis 
08  maiores  disvelos.  Sem  duvida  que  a  vessa  bondade  nào  havia  mister  recommen* 
da^&o  para  assim  o  fazerdes  espontaneamente,  comtudo,  encarecidamente  vos  ro- 
gamos  que  por  nesso,  respeito  tenha  ainda  algum  augmento  o  vesso  zelo.  E  na  ver* 
dade  a  elles  deveis  loda  a  gratidào,  porque  o  pae  e  os  filhos,  aquelle  oom  os  leu* 
vores,  estes  com  os  testemunhos  provadissimos  do  yosso  saber,  nao  cessam  de  vos 
esaltar,  fallando-nos  de  vós,  e  de  fazer  chegar  até  estes  confins  da  terra  a  fama 
do  vesso  nome,  o  que  nfto  faz  pouco  em  prol  da  vessa  gloria  e  reputa^fto.  Mas  aos 
proprios  mancebos  nós  damos  os  cmboras,  por  Ihes  ter  cabido  o  viver  em  tempo 
em  que  da  fonte  abundante  da  vessa  sciencia  possam  beber  alguma  instruc^SOf 
para  que,  servindo  primeiro  a  Deus  e  depois  a  nóa,  hajam  de  merecer  e  conquis- 
tar tanto  a  bemaventuran^a  celeste,  come  a  terrestre. 
De  Lisboa,  aos  23  dias  do  mez  de  outubro  de  1491. 

Angelo  Policiano  a  Joào  Teixeira,  Chanoeller-mór  realf  aattde  ! 

Muitas  vezes  tentei  escrever-vos  ulgumas  letras  para  vos  fazer  conhecer  os 
meus  sentimentos  e  afiPei^So,  mas  sempre  me  tomou  o  passo  uma  especie  de  timi- 
dez,  nSo  sei  se  diga  nobre,  se  rustica,  por  saber  que  nSo  era  de  vós  ass&s  conhe- 
cido  e  porque,  antes,  come  que  me  fazia  recuar  o  brilho  deslumbrante  das  vossas 
qualidades  e  POSÌ9S0.  Emfim,  porém,  jà  a  considera9Ìo  do  meu  dever,j&o  conceito 
da  vessa  bondade  acabou  eommigo,  que,  tal  corno  fosse,  vos  escrevesse  a  presente 
carta.  Que  assumpto,  pois,  heide  eu  esperar  que  seja  mais  asado  para  mim  e  mids 
bem  acceito  de  vós,  do  que  a  exposi^So  sincera  do  que  sinto  a  respeito  dos  que  sao 
filhos  vossos  e  discipulos  meus?  Para  a  Italia  os  mandastes,  a  fim  de  se  Ihes  for- 
marem  os  oostnmes,  serem  instruidos  nas  boas-lettras  e  apprenderem  todas  as  ar- 
tes  liberaes,  segundo  é  proprio  de  quem  tem  de  occupar  a  mais  elevada  po8Ì92o. 
Mas,  afiigura-se-me,  de  casa  trouxer.tm  comsigo  os  costumes  patemos  ;  assim  que, 
exemplos  ainda  mais  os  d2o,  de  que  os  recebem.  Jdmais  se  descobre  n^elles  acto 
algum  improprio  ou  ruim  ou  descomedido  ou  grosseiro.  N£o  ha  enxerga  r  n^elles 

12« 


180  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

homem  de  estado  d'esse  tempo  que  nSo  fosse  tambem  philologo.  Por 
isso  a  època  inteira  do  despertar  do  espirito  humano  no  firn  da  Edade 
mèdia  recebeu  o  nome  do  facto  particular;  e  a  Benascenga  dos  estu- 
dos  da  antigaidade  tomou-se  identica  com  a  Renascenya  do  bomem. 
A  gloria  de  ter  renovado  a  pbilologia  offuscou  todas  as  outras  gloria» 
da  Italia  de  entSo.  Foi  um  mal.  Porque,  no  firn  de  tudo,  este  traballìo 
nSio  foi  mais  do  que  um  dos  numerosos  elementos  do  movimento  geral 


petulancia  nem  arrogancia  nem  licenciosidade  de  vistas,  nem  soltura  de  linguagem 
nem  desconcerto  de  sembiante,  finalmente  consa  neuhuma,  ou  seja  no  gesto  ou  no 
porte  ou  no  modo  de  estar  ou  no  andar,  que  desagrade,  que  incommode,  que  se 
possa  taxar  de  afiectado  ou  de  insoffirivel.  Todos  os  dias  frequcntam  os  tempio.", 
ouvem  as  li^oes  dos  mestres,  nào  so  com  assiduidado,  senao  tambem  com  vivo 
gosto.  Prendem  os  cora^oes  dos  condiscipulos  mais  adiantados  com  a  polidez  das 
maneiras  e  condescendencia;  esquivam  inteiramente  o  trato  com  aquelies  que  no 
seu  couccito  Ihes  damnariam  os  costumes  ou  a  reputando.  Entre  elles  nao  ha  por- 
fìa,  cujo  objecto  nào  seja  o  eetudo;  mas  n'este  ponto  o  certame  niio  conhece  tre- 
guas.  £m  parte  nenhuma  estào  mais  vezes  ou  de  mais  bom  grado  do  que  na  pre- 
senta dos  mestres  ou  na  companhia  dos  condiscipulos.  Tambem  opportunamente 
dedicam  tempo  ao  cuidado  na  conservammo  da  saude,  e  por  isso  logram-na  excel- 
lente.  £m  talentos  primam  de  modo  que  (nuo  quero  ser  prolìxo)  bem  deuunclam 
que  s&o  V08S08  filhos.  Percebem  com  facilidade  o  que  Ihes  e  eusinado,  pronunciam 
com  elegancia,  retém  com  facilidade,  imitam  com  facilidade.  Da  applicamao  que 
dirci?  Maior  ardor,  mais  afiucada  perseveranza,  à  fé  que  nunca  vi.  D'ahi  tìlo  gran- 
des  progressos  tém  feito  em  ambas  as  linguas,  que  eu,  comquauto  nuo  mui  des- 
affeito  a  ver  e  educar  talentos,  pasmo  de  maravilhado.  Aquelle  que  Ihes  déstes 
para  aio  e  pedagogo,  cuida  n'elles,  dirìge-os  e  educa-os  com  tao  Icvantada  pru- 
dencia,  amor  e  disvelo,  que  nada  ha  que  desejar.  Certamente  que  eu  vos  nSo  en- 
gano,  mas,  por  outro  lado,  tambem  me  nSo  engano  a  mim.  A  propria  inveja  assom- 
brada  coufessaria  que  està  é  a  verdade.  Assim  que  dou  os  emboras  4  vessa  ven- 
tura, mas  nao  felicito  menos  a  vossa  tra^a  e  proposito.  De  feito  nao  é  pequena  a 
gloria  que  para  vós  redunda  de  terdes  tantos  e  tSo  invejaveis  filhos  tao  longe  de 
V0S8O8  olhos,  do  seio  da  familia,  da  patria,  e  por  tao  dilatado  tempo,  nao  para  en- 
grossarem  cabedaes  ou  tratarem  em  commercios,  segando  o  estylo  dos  nossos,  mas 
para  cnriquecerem  o  espirito  de  excellentes  principios  e  grangearem  para  os  au- 
nos  adiantados  um  precioso  deposito  de  saber,  sobre  o  qual  a  mesma  fortuna  nao 
lem  dominio.  0  vosso  proposito  logral-o-heis  nSo  so,  além  das  vossas  esperan^as, 
mas  até  penso,  além  de  tudo  quanto  se  conhece.  Nào  é  menor,  porém,  acreditae- 
n\,e,  a  gloria  que  para  vós  aqui  adquirem,  do  que  a  instruc^ao  que  para  si  obtém. 
£,  jà  por  vós,  j4  por  elles,  voto-lhes  tao  cordeal  aftecto  e  sinto  ser  correspondido 
de  maneira,  que  se  me  affigura  que,  no  affecto  e  no  zelo,  quasi  tomei  o  vosso  lo- 
gar.  Assegurado  n*istOy  ousarei  rogar- vos  que  à  minha  carta,  que  havendo  de  ser 
julgada  do  vesso  rei,  corno  de  um  Apollo,  desde  jà  estremece  e  enfia,  vós  com  o 
vosEO  alto  valimento  Ihe  outorgueis  tanto  favor,  que  antes  prove  a  indulgencia,  do 
que  a  censura  de  tao  subida  magestade. 

Em  Fiorenza,  aos  17  dias  do  mez  de  Agosto  de  1489. 


A  UNIVERSIDÀDE  SOB  A  DIGTADURA  MONARCHICA  I8i 

pelo  qual  o  povo  italiano  abria  a  èra  nova  da  historìa  aniversal,  e  é 
amesquinhar,  ao  que  parece,  a  potencia  do  genio  italiano  o  considerar 
este  grande  movimento  corno  provindo  completamente  de  uma  origem 
estrangeìra,  de  olhar  està  riqaoza  da  Italia  no  decimo  qainto  secalo 
corno  uma  riqueza  emprestada,  devida  a  um  impulso  exterior.  O  que 
seguir  com  atten9So  o  traballio  intellectual  da  Italia  nos  ultimos  se- 
culos  da  Edade  média^  concluirà  com  certeza',  que  mesmo  sem  a  to- 
mada  de  Constantinopla,  e  sem  a  immigra9So  dos  sabios  bjzantinos,  a 
naySo  encerrava  bastantes  elementos  para  regenerar  por  si  so  o  espi- 
rito humano:  e  desde  està  època  os  espiritos  mais  apaixonados  pela 
antiguidade  classica,  corno  Pie  de  la  Mirandola,  protestaram  elles  mes- 
mos  centra  estit  maneira  exclusiva  de  considerar  a  reyola9So  a  mais 
importante  e  completa  que  tem  realisado  a  humanidade.»^ 

De  Italia  tinha  D.  Àffonso  v  mandado  vir  o  dominicano  Justo  Bal- 
dino, celebrado  latinista,  para  verter  para  a  linguagem  ciceroniana  as 
cbronicas  do  reino  por  FernSo  Lopes.  O  rei  nomeou-o  bispo  de  Ceuta 
(1480  ou  1481),  porèm  nunca  saiu  de  Portugal;  em  1487  govemou  a 
diocese  do  Porto,  e  em  1490  benzeu  em  Setubal  o  chSo  da  egreja  de 
Jesus  das  recoletas  franciscanas.  *  Damilo  de  Goes  reproduz  na  Chro- 
nica  de  D.  Manuel  uma  carta  de  JoSo  Rodrigues  de  Sd,  em  que  Ibe 
conta  que  as  Chronicas  do  reino  entregues  ao  bispo  Justo  Baldino  se 
perderam  por  occasiSo  da  sua  morte,  da  peste  de  1493,  na  villa  de  Al- 
mada.^  A  idèa  de  traduzir  para  latim  as  chronicas  do  reino  era  o 
effeito  do  enthusiasmo  humanista  provocado  pela  Renascenga.  Outros 
italianos  vieram  para  Portugal,  corno  Cataldo  Siculo,  para  dirigìr  a 
educafSo  de  D.  Jorge,  bastardo  de  D.  JoSo  n,  e  de  D.  Manuel.  Em 
uma  polemica  do  professor  Raphael  de  Regio,  da  Universidade  de  Pa- 
dua,  e  dedicada  a  Ermolao  Barbaro,  em  1488,  conta  elle  que  no  anno 
de  1482  fora  chamado  a  professar  rhetorica  em  Padua,  com  o  orde- 
nado  de  200  florins,  um  certo  Cataldo  Siciliano,  porèm  que  o  desafiara 
e  0  desapo&sara  da  cadeira  por  consentimento  dos  escbolares/  Segnndo 
Tiraboschi,  este  Cataldo  Parisio  Siciliano  è  aquelle  mesmo  celebrado 
no  epigramma  de  Henrique  Caiado,  comò  seu  primeiro  mostre  : 

Formasti  ingenium  primus,  primus  per  altea 
Daxisti  lacca  antraque  Pierìdum.  ^ 


1  Étude  8ur  Ou'rkd  Muller,  p.  xxxi. 

^  hery  Maria  Jordao,  Hist  ecd.  uUramarina,  1. 1,  p.  38. 

5  CItroniea  de  D,  Manuely  Part.  iv,  cap.  xzxvin. 

^  Tiraboschi,  Storia  della  Letteratura  italiana,  t.  n,  p.  1050. 


182  mSTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

O  nome  de  FUdfo,  celebre  professor  na  Universìdade  de  Veneza^ 
tambem  foi  conhecido  em  Portugal,  e  Marco  Antonio  Sabellico  teve  a 
honra  de  Ihe  sereni  traduzidas  em  portuguez  as  snas  Eneadas.  A  cor- 
rente humanista  entrava  francamente  em  Portugal  sem  a  suspeita  de 
heterodoxia  ;Tno  Cancioneiro  de  Resende  jà  apparecem  traduc9Se8  por- 
toguezas  em  verso  das  Heroides  de  Ovidio.  Està  corrente  nSo  podia  dei- 
xar  de  inflair^nos  estudos;  porém  o  desastre  da  morte  do  principe  D. 
AffonsOy  e  pouco  depois  a  morte  do  rei  D.  Jo£o  u,  seu  pae,  demora- 
ram  essa  consequencia,  que  veiu  a  realisar-se  Bob  o  novo  dynasta  D. 
Manuel.  A  reforma  da  Universìdade  de  Lisboa  no  reinado  de  D.  Ma- 
nuel foi  tardia;  a  Italia  nfto  dominava  jà  exclusivamente  nos  estudos 
humanistas,  Paris  tornava-se  um  poderoso  centro  de  erudi(ào.  Nas 
escbolas  collegiaes  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  falava-se  latim  e  expli- 
4»va-se  Homero  em  grego.  Havia  mais  purismo  e  procurava-se  uma 
melhor  intelligencia  da  antiguidade  greco-romana.  Està  corrente  fez 
com  que  se  distinguisse  no  ensino  da  grammatica  a  Arte  nova,  appa- 
recendo  com  este  titulo  em  1493  professada  por  Jo2o  Garcia.  Uma 
carta  do  rei  D.  Manuel,  de  22  de  Janeiro  de  1500,  prohibia  pagar-se 
moradia  aos  mo^os  fidalgos  se  nSLo  apresentassem  certidfto  de  frequen- 
eia  de  Grammatica:  cMayordomo-mór  amigo,  avemos  por  bem  que  ne- 
nhum  mogo  fidalgo  nem  £eja  apontado  nem  paga  sua  moradia  salvo  per 
certid&o  de  Diegalveres,  Mestre  de  Grammatica;  notificamovolo  asi  e 
mandamovos  que  asi  se  cumpra,  salvo  naquelles  que  nos  especialmente 
VOB  apontamos  e  dedaramos.  Escripta  em  Lisboa  a  22  de  Janeiro  de 
1500.»  *  Um  vilancete  do  conde  de  Vimioso,  dirigido  ao  poeta  palaciano 
Ayres  Telles,  allude  a  este  prurido  dos  estudos  humanistas  em  Portugal 
Q  na  córte: 

Estudaes  e  fugis  de  mim, 

soia  latino  ; 

que  quedas  dd  o  ensino 

do  Latim? 

Trazeis  todo  decorado 

0  Metamorfoseaa; 

ea  trar-vos-hey  assombrado 

de  rir  de  vós. 

Coitado,  triste  de  ti, 

homem  mofino,  ' 

que  foste  nacer  em  sino 

de  Latim.  ^ 


1  Nas  Provaè  da  HUtoria  genealogica,  t  ii,  p.  381. 
'  Cane  geral^  ed.  de  Stattgard,  t.  ii,  p.  121. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADÙRA  MONARCHICA  183 

0  efitudo  da  ^ramma^tca^  recommendadoànobreza  sob  D.  JoSo  ii, 
tomou-ee  obrigatorio  no  pa90,  e  entre  os  1D090S  fidalgos.  Jorge  Fer- 
reira  de  VasconcelIoB,  na  comedia  Eufrosina  (acto  in,  scena  2.*),  allude 
a  este  eetudo,  que  se  fazia  pela  Arte  de  Pastrana:  «Como  se  alguem 
se  rira,  se  vos  ouvisse,  desses  vossos  preceitos  e  Arte  Pastrana  muito 
pouco  contestaes  para  satisfazer  juizos  primos,  quenSLo  sofrem  mais  que 
esento  de  daas  palauras,  e  estas  prenbes.»  Era  està  Arte  de  Pastrana 
ehamada  a  Arte  velha.  A  pedido  da  rainha  Isabel,  Antonio  de  Nebrixà, 
que  estudara  na  Italia,  fez  um  resumé  da  Grammatica  latina  em  ma- 
nifesta* reac9&o  contra  os  velhos  tnethodos  grammaticaes  de  Raban 
Mauro,  Jofto  de  Oarland,  Villa  Dei,  Oautier,  Everard,  dos  quaes  Pas- 
trana era  0  continuador;  chamava-se-lbe  geralmente  a  Arte  nova;  cno 
seculo  xv,  se  ensinava  a  lingua  latina  nas  Escholas  da  Universidade 
de  Lisboa^  pela  Arte  de  JoSo  de  Pastrana,  a  qual  na  mesma  cidade, 
em  volume  de  4.^  e  letra  gothica,  se  acabou  de  imprimir  no  anno  de 
1501,  aos  28  de  Novembre,  explanada  por  Antonio  Martins,  que  na 
dita  Universidade  havia  side  0  primeiro  Mestre  da  refenda  Arte,  comò 
tudo  consta  d'ella.»^ 

Era  conhecida  està  grammatica  na  linguagem  das  escholas  pelo 
titulo  de  Thesaurus  pcniperìim  e  Speadum  puerorum. 

Antonio  Martins  fez-lhe  varios  Additamentos,  resumidos  de  um 
outro  Uvro  intitulado  Bacalo  de  Cegoe^  e  appropriando-lhe  algumas  dou- 
trinas  grammaticaes  de  Antonio  de  Nebrixa,  innovador,  e  a  cuja  Gram- 
matica, que  entSo  penetriava  nas  escholas,  se  dava  0  nome  de  Arte 
nova,^ 

Està  edifSo  de  1501,  corrente  nas  escholas,  era  retocada  pela  di- 
ligencia  do  bacharel  JoSo  Vaz.  O  ensino  da  Grammatica  dava  celebri- 
dade:  cJoào  Garcia,  alguns  annos  antes  d'este  (1505),  leu  Grammatica 
no  bairro  das  Escholas  (1492)  0  que  consta  por  se  trasladar  nos  livros 
dos  ConselhoB  uma  provisfto  escripta  em  Almeirim  a  4  de  Novembro 
d'este  mesmo  anno,  pela  qual  eirei  D.  Manoel,  attendendo  aos  annos 
que  ensinava  grammatica  em  0  dito  bairro,  e  ao  proveito  e  fructo  que 
fizera,  em  que  n&o  podia  continuar  impedido  de  suas  enfermidades,  Ihe 
fiEusia  mercé  gozasse  os  privilegios  da  Universidade,  comò  se  actual- 


1  Notic.  ehron.^  n.«  1171. 

2  Diz  Nicolào  Antonio,  na  sua  Bibltotheca:  «Omnes  enim  Pastranae  Gram- 
maticam  regnasse  in  Scholis  nostras,  anteqaam  ex  Italia  reverans  ex  Bononienai 
Universitate,  ac  S.  Clementis  Hispaniarum  Collegio  suam  Artem  Hispaniae  inve- 
jitset  Antonina  Nebrisaenaia ...» 


18  i  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

mente  lèisa.»*  O  uso  do  latim,  nas  satyras  violeatas  com  que  pjr  toda 
a  Europa  se  atacava  a  Roma  dos  Papas^  tornava  a  linguagem  da  dìs- 
tinc9SLo  entre  os  espiritos  citltos,  comò  uma  asp'ira^So  &  unidado  men- 
tal.  Diz  Victor  Le  Clerc:  «A  christandade  enropèa  formava  n'estes  tem- 
pos  comò  uma  unica  republica,  cuja  dictadura  perpetua  estava  em  Roma; 
e  03  cidadSlos  os  mais  poderosos,  para  nSLo  dizer  os  unicos  cidadftoa 
d'està  immensa  republica,  os  membros  do  clero,  n£o  escreviam  quasi 
senllo  em  uma  mesma  lingua,  na  antiga  lingua  romana,  o  latim.  »  '  Com 
0  estudo  do  latim  pelea  humanistas  da  Renascenga  é  que  a  dictadura 
de  Roma  foi  destruida. 

O  esplendor  da  Renascen9a  decahiu  na  Italia,  principalmente  de- 
pois da  tomada  de  Fiorenja.  Succedeu-lhe  a  Franya  n'esta  obra  reno- 
vadora,  emquanto  n^o  foi  tambem  embaragada  pelas  guerras  de  reli- 
giSo.  A  Fran9a  imprimiu  àPhilologia  um  caracter  proprio;  sobre  este 
aspecto  escreve  Hillebrand:  «Grajas  à  juateza  e  nitidez  do  espirito 
francez  e  à  sua  tendencia  para  a  general isa9So,  gra9as  sobretudo  à  pros- 
perìdade  da  jurisprudencia  nas  Universidades  de  Paris,  Orleans  e  To- 
losa, e  aos  estudos  profundos,  e  ao  mesmo  tempo  exactos  e  philosophi- 
cos,  do  direito  romano,  em  que  se  distinguiram  os  Oujacios,  os  Uott- 
man,  OS  Pithou,  a  pbilologia  tomou  uma  fórma  e  um  alcance  novos. 
As  duas  sciencias  sustentaram-se,  engrandeceram-se  e  completaram-se 
reciprocamente.  Foi,  segundo  as  expressSes  de  Etienne  Pasquier,  o 
€mariage  de  l'eatade  da  droict  avecques  les  l'ettres  Aw/netnes»,  que  assi  - 
gnalou  file  siècle  de  Van  mil  cinq  ceriti j  primeiro  e  fecundo  erforgo  ten- 
tado  para  penetrar  na  vida  publica  dos  antigos,  e  tirar  de  Demosthenes 
e  de  Cicero  as  mais  bellas  fórmaa  oratorias.  De  um  outro  lado,  o  me- 
tbodo  exacto  da  jurisprudencia  introduzido  pelos  sabios  francezes  nos 
estudos  philologicos,  permaneceu  até  hoje  comò  o  processo  universal- 
mente adoptado;  e  embora  outras  direcfSes  sejam  impressas  mais  tarde 
a  estes  estudos  pelos  povos  do  norte,  é  ainda  o  methodo  francez  que 
domina  ali  sem  contesta92lo. — A  justeza  de  metbodo,  o  interesse  pelas 
fórmas  politicas  da  antignidade,  e  vistas  geraes  e  fecundas,  eis  o  sub- 
sidio  da  Fran9a  para  està  obra  accumulada  das  na9oes  e  dos  seculos.»  ^ 
As  guerras  de  religifto  determinaram  a  mina  do  humanismo  francez, 
pervertido  pelo  empirismo  das  escholas  jesuiticas.  O  refugio  centra  a$ 
perseguigSes  religiosas  tomou  a  HoUanda  o  centro  dos  estudos  philo- 


1  Nota  do  Keitor  Figueiròa  às  Notte,  chron.,  Not.  76,  §  933.  Inat.^  l  ziy,  p.  260. 
*  HisL  liUeraire  de  la  Franee,  t  xxii,  p.  166. 
3  Éiude  sur  Olfried  MuUer^  p.  xxxu. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  185 

logicos,  em  que  a  critica  era  um  poderoso  instnimento  para  a  conquista 
da  liberdade  de  consciencia. 

A  inflaencia  franceza  despontava  jà  no  firn  do  reìnado  de  D.  Ma- 
nuel; em  11  de  Janeiro  de  1516  escreve  o  rei  &  Universidade,  dizendo 
que  vae  mandar  vir  de  Franga  o  dr.  Diogo  de  Gouvèa  para  ser  oppo- 
sitor  à  cadeira  de  Vespera;  em  seu  logar  parece  ter  vindo  em  1517 
Mestre  JoSo  Francez.  A  acgSo  da  Renascenga  italiana  em  Portugal 
revelou-se  successivamente  em  outras  fórraas  de  actìvidade:  na  Ouri- 
vesaria,  comò  o  indica  Garcia  de  Besende;  no  Theatro,  coìn  a  fórma 
em  prosa  das  comedias  de  Sa  de  Miranda  e  de  Ferreira;  na  Pintura, 
com  as  doutrinas  de  Francisco  de  Hollanda.  O  ultimo  resto  d'està  in- 
fluencia  na  pedagogia  acha  se  na  instituigUo  de  urna  Academia  littera* 
ria  da  Infanta  D.  Maria.  So  muito  tardo  é  que  as  Academìas  littera- 
rias  se  propagaram  quando  jà  se  tinham  tornado  na  Europa  em  exclu- 
sivamente  scientificas,  conservando  comtudo  o  primitivo  caracter  pa- 
latino. 

Resta-nos  esbogar  o  caracter  que  a  Philologia  toraoii  na  Hollanda, 
e  que  nào  foi  sem  influencia  nos  estudos  da  Peninsula,  onde  os  Eras- 
mistas  eram  considerados  comò  livre-pensadores,  e  que  teve  reprasen- 
tantes  directos  em  Portugal,  comò  o  flamengo  Nicolìlo  Cleynarts,  e  Da- 
milo de  Goes,  o  amigó  de  Erasmo.  Sobre  este  ponto  transcrevemos  o 
juizo  de  Hillebrand:  cN'este  paiz  dominado  pelas  luctas  politicas,  n'osta 
Universidade  de  Leyde,  que  deveu  a  sua  vida  d  resistencia  patriotica 
dos  seus  cidadSLos,  a  philologia  vivificou-se  ao  contacto  da  realidade. 
Elia  tomou-se  pratica,  formou  uma  parte  integrante  da  vida  nacional, 
um  elemento  vital  da  existencia  do  povo,  que,  por  assim  dizer,  viveu 
uma  scgunda  veza  antiguidade.  Aonde  Marsilio  Ficino  nUo  vira  senSo 
a  belleza  harmoniosa  da  linguagem  e  do  pensamento,  aonde  um  Hot- 
tman  nSo  tinha  procurado  senSLo  as  tradigSes  dos  tribunaes  e  a  historia 
do  direito,  os  Dousa,  os  Heinsius,  os  Grrotius  tentaram  descobrir  as 
paixSes  e  os  principios  politicos  da  antiguidade  para  os  assimilarcm  ao 
homem  de  estado,  ou  ao  partidario  latente  sob  o  escriptor.  A  diploma- 
eia,  a  historia^  a  eloquencia  publica,  a  poesia  nacional  mesmo,  adopta- 
ram  a  lingua  de  Cicero.  Refazendo,  por  assim  dizer,  de  uma  maneira 
classica  e  sabia,  as  luctas  do  Pnyx  e  do  Forum,  no  senado  dos  Esta- 
doB-Geraes,  penetrou-se  melhor  na  vida  antiga,  adquiriu-se  uma  com  - 
prehensSo  mais  completa  d'estas  paixSes  e  das  idéas  de  outr'ora  com 
as  quaes  se  identificavam.  O  espirito  sagaz  e  pratico  proprio  dos  hol- 
landezes  veiu  collaborar,  evitando  pela  sua  perspicacia  e  lucidez  o  de- 
feito  tSo  espalhado  hoje  de  se  malb^ratarem  em  hypotheses  sem  fun- 


186  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

damento  e  na  adivinhaySo  sem  base.  O  prìncipal  merito  dos  discipulos 
e  successores  de  José  Scaligero  e  de  Justo  Lipsio  até  Perizonio  foi 
alargar  o  campo  que  a  Franja  tinlia  culti  vado  sem  pensar  em  engranr 
decel-Oy  descobrir  os  diversos  elementos  da  antiguidade  e  suaa  relaQSes 
reciprocas,  explical-os  uns  pelos  outros,  e  ligal-os  corno  partes  de  um 
organismo  vivo . . .  »  ^  Estas  tres  fórmas  do  Humanismo  cooperaram  nas 
grandes  luctas  do  pensamento  nos  tres  seculos  que  se  vSo  seguir;  em- 
bora  nSo  Ihe  fomecessem  um  principio  organico  para  a  reorganisa9So 
social,  determinaram  comtudo  um  ^ovo  typo  pedagogico. 

O  ensino  europeu  recebeu  um  typo  uniforme  com  o  desenvolvi- 
mento  das  Universidades,  todas  constituidas  pelas  quatro  Faculdades^ 
Theoloffia,  Direito,  Medicina  e  Artes.  cEsta  ultima^  diz  Hamilton^  cor- 
responde  às  nossas  duas  Faculdades  de  Sciencias  e  de  Lettras;  com- 
prehende  as  Lettras  propriamente  ditas,  as  Sciencias  pbysicas  e  ma- 
tbematicas.»^  Aqui  temos  o  facto  da  bifurcagào  dos  estudos  humanis- 
tas  em  scientificos  e  classicos,  iniciado  no  seculo  xvi,  distinguindo-se 
em  Portugaly  a  par  de  Ajres  Barbosa,  dos  Resendes  e  Gouvèas,  afama- 
dos  eruditos,  Garcia  de  Orta,  Fedro  Nunes  e  Francisco  de  Mello,  comò 
verdadeiras  summidades  scientificas,  que  sustentam  dignamente  a  acti- 
vidade  de  um  grande  seculo  de  elaboraySo  sistematica. 

A  Renascen^a  da  antiguidade  classica  apresenta  dois  aspectos  in- 
dependentes,  que  actaaram  diversamente  na  disciplina  dos  espiritos:  o 
aspecto  litterario  renegava  a  Edade  mèdia,  quebrando  a  solidariedade 
bistorica  da  civilisagSo  occidentale  fazendo  recuar  a  idealisa(&o  estbe- 
tica  às  concep93e8  de  um  obliterado  e  nSo  comprebendido  polytbeismo; 
o  aspecto  scientifico,  continuando  os  conhecimentos  da  Matbematica  e 
da  Astronomia  dos  Gregos,  entrava  fortalecido  por  essas  leis  geraes 
do  universo  na  comprehensfto  dos  pbenomenos  da  Pbjsica,  e  actuava 
directamente  na  emancipa9&o  das  intelligencias,  restabelecendo  sobre 
o  principio  da  Gra9a,  que  dominou  a  Edade  mèdia,  o  imperio  da  Na- 
tureza.  Este  duplo  aspecto  da  Rena8cen9a,  apparentemente  antinomico, 
estabelece  nas  fórmas  da  actividade  montai  da  Europa  moderna  uma 
accentuada  bifurcagSo,  que  veiu  a  preponderar  no  ensino.  Os  que  cul- 
tivam  as  bumanidades,  ou  litteratura,  exercem-se  de  um  modo  exdu- 
sivo,  desconbecendo  tudo  quanto  pertence  &  investiga9&o  das  leis  da 
natureza.  As  Bellas-Lettras  e  a  Pbilosopbia  moral  sSo  objecto  da  pre- 
occupa9So  dos  poderes  temporaes,  que  restringem  teda  a  Pedagogia  a 


1  Étudt  tur  Otfried  MuUer^  p.  zzxyi. 

2  Frag.  de  Philosophie^  p.  272. 


A  UNIVERSIDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  187 

%BBe  objectivo.  Os  Jesnitas,  apoderando-Be  da  Instnicy&o  pablìca  dos 
EfitadoB,  firmam-8e  noa  estudos  hamaniBtas  para  reagirem  oontra  os 
perigos  daB  novas  concepySes  implicitaB  na  PhiloBophia  naturai  experi- 
mentalÌBta.  A  bifurcagào  estabelecea-se,  ficando  fora  do  quadro  pedago- 
gico as  diBciplinas  naturaeB,  que  so  foram  ìncorporadas  pela  Convenfào. 


1430 


188  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRÀ 


Tabula  Legentium  do  seoolo  XV 

1408  —  Pr.  Joào  Yiegas,  lector  em  Thèologia, 

1414  —  Gon9alo  Joao,  mestre  de  Logica. 
JoSo  Lourcn^o,  licenciado  em  Leie^  lente  no  Estado. 
Femao  Alvares,  lente  de  Canones. 

1415  {  Femio  Martina,  licenciado,  lente  de  Finca» 
(jron^alo  Anes,  mestre  de  Logica» 
Gt>n9alo  Domingues,  mestre  em  Grammatica. 

1416  —  Gon9alo  Joao  (lente  de  Logica  em  1414),  lente  de  Medicina,  depois  bispo 

de  Lamego. 
1429  —  Mestre  Fedro  da  Cruz,  tu  Sacra  Pagina, 

Diogo  Affonso,  lente  de  Dectttaea, 

Mestre  Martinho,  idem. 

Jolo  Affonso  de  Lcirea,  idem. 

Luiz  Martins,  idem. 

Estevào  Affonso,  doutor  em  Canones. 
1431  {  Affonso  Rodrigucs,  doutor  cm  Leis. 

Diego  Affonso  Mangancha,  in  lUroque. 
14-R4.  i  "^^^^  ^®  Elvaa,  lente  de  Vespera  de  Decretos, 

I  Gomes  Paes,  licenciado  em  Canones, 
1437  —  Jo£o  Gallo,  carmelita,  lente  de  Mathematica. 
1442  —  Martim  Albo,  lente  de  Theologia. 

I  Mestre  Alvaro,  lente  de  Fisica  de  prima. 
Gomes  Paes,  mestre  de  Logica, 
Alvaro  Pires,  bacbarel  em  Leis,  lente  de  Vespera, 
1453  —  Fr.  Lonren^o,  lente  de  Theologia, 

1  APJ[\  \  ^^'  ^^^^^  ^^  Santarcm,  lente  de  PhUoaophia, 

\  Mestre  Fedro  da  Gra^,  idem. 
1469  —  Mestre  Joanne  Cavalleiro. 

ÌBertbolameu  Gomes,  licenciado. 
JoSo  Vaz  da  Porta  Nova,  doutor,  que  retocon  a  Arte  de  Pastrana. 
Femam  Ruiz,  licenciado. 
Mestre  Joanne,  lente  de  Fisica» 
1486  —  Mestre  Fr.  Jo2o  de  Magdalena,  lente  de  prima  de  Theologia, 
1492  —  Joao  Gomes,  mestre  de  GhrammaHca. 

1500  —  Fr.  Rodrigo  de  Santa  Cruz,  lente  de  Theologia  e  Philoèophia  moral. 

1501  —  Mestre  Antonio  Martins,  lente  de  Grammatica  de  Patrona  ou  Arte  velha. 

1504  —  Fr.  JoSo  Claro,  Vespera  de  Theologia, 

1505  —  Joao  Garda,  mestre  de  Grammatica,  é  aposentado  com  bonras  e  prìvile- 

gios  de  lente. 


A  UNIVERSÌDADE  SOB  A  DICTADURA  MONARCHICA  189 


Serie  dos  Reitores  da  UnlTersldade  emquanto  foram  de  elelgao  esoholar  ^ 

1288  —  Frei  André  UrsinuB,  lente  de  Santos  Padres? 
1290  —  Mestre  Gerardo,  lente  de  Theologia. 

?    —  Mestre  Agostinho  Bello,  lente  de  Aites,  e  depois  de  Theologia. 
1330  —  Mestre  SimSo  da  Cruz,  lente  de  Theologia. 
I^AR  (  O^onfalo  Miguens,  bacharel  em  Degredos. 
1  ?  Prior  de  S.  Jorge,  bacharel  em  Canones. 
1378  -^  D.  Martinho  Domìngues,  conego  de  Evora. 
1384  —  Lanzarote  Esteves.  '  \     ' 

1387  —  Lopo  Martins,  sacerdote. 

1388  —  Vicente  Affonso. 
1390  —  Lan9arote  Esteves. 

1393  —  Vasco  Esteves,  vigario  de  S.  Thoraé. 
1  ^<W5  I  V*flco  de  Freitas. 

(  Diogo  Affonso. 
*  o      \  Salvador  Rodrigues  (ou  Alvaro  Boiz,  segundo  Figueirda),  deSo  da  Guarda. 

(  Affonso  Diniz,  conego  de  Braga. 
1398  —  Vicente  Affonso. 
1400  —  Doctor  Joao  das  Begras. 
1408  —  Fr.  Joào  Vargas,  lente  de  Theologia. 
I4.lȓ  I  ^^*^6^  Anes,  prior  de  S.  Fedro  de  Alemquer. 

i  Joao  de  Alpoim,  sacerdote. 
1417  —  D.  Fedro  Escacha  (serve  por  elle  : 

—  Fedro  Gon^alves,  prior  de  Santa  Maria  de  Obidos.) 
111 R  \  *^^^^  Affonso,  escolar  de  Leis  (servindo  por  D.  Fedro.) 

(  Gii  Martins. 

I49<ì  S-  ^*®^®  ^^>  escolar  de  Canones. 

i  Ricardo  Faim,  escolar  de  Leis. 
145Ì1   i  ^^^^^  Estevain,  vigario  de  S.  Thomé. 

)  Fero  Lobato  (fàlta  em  Figueiróa.) 
1435  —  Vasco  Gii. 

1440  —  Fedro  Esteves. 

1441  —  Gonzalo  Martins,  escolar  Canonista. 
^^f^  i  ^o™®*  Affonso. 

i  Martim  Albo  (falta  em  Figueiróa.) 
^^^  I  *^^^  ^^  Elvas,  lente  de  prima  de  Canones. 

I  Gonzalo  Garcia  de  Elvas,  lente  de  prima  de  Leis. 

-ìAMK  \  *^^^^  ^^  Elvas,  lente  de  prima  de  Canones. 

i  Bartholomeu  Gomes,  lente  de  prima  «Le  Leis. 
1478  —  Lopo  da  Fonseca,  licenciado. 


1  Nas  Memoriaa  da  Universidade  de  Coimbra^  do  reitor  Figueiróa,  vem  està 
lista  de  reitores  menos  desenvolvida.  Vide  Annuario  da  XJfdvertidade^  de  1876  a 
1877,  p.  214  a  216. 


190  HISTORIA  DA  ÙNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

1481  \  *^^^^  Foga^a  (falta  em  I^eirda.) 

(  Gon9alo  Annes. 
1487  —  FernSo  Lopes. 

1493  —  Alvaro  Martina  (ou  Anes),  capell&o  da  Bainha. 

1494  —  Rodrigo  Caldeira,  lente  de  prima  de  Canones  (em  logar  de  Alvaro  Anes.) 

t  Alvaro  Martìns  (falta  em  Figaeiròa.) 
(  Mestre  Jo2o  de  Maddalena. 
1499  —  O  bispo  de  Fez  (D.  Francisco  Femandes,  mestre  de  D.  BlanueL) 


CAPITULO  IV 


is  Llrrarlas  manoscriptas  do  secnlo  XT  o  a  dascoberta  da  Impressa 


Aa  Livrarias  daa  CoUegiadaa  e  epiecopaes  Bnccedem-se  as  magoificas  Livrarìaa  doe 
reis  e  princìpea. — A  opuleDcìa  daa  copiaa  e  illiuniDuraB  e  exaggera^So  doa 
pre^s  doB  livros  maDuacrìptoa. — Caracter  hìstorico  e  litterario  daa  Liviarìaa 
principeacaa  do  aeculo  it. — As  bibliotfaecaa  piÌDcipeacaa  abandam  em  tra- 
ducfòcs. — Os  livrea  destinados  ao  ubo  pablico,  ou  Eneadtado». — Gino  de  Pia- 
toia  e  Bartbolo. — Livroa  facultadoa  pelo  Unnicipio  de  Liaboa  para  a  con- 
sulta publica. — EiKadtado»  da  Uoiversidade  — 0  Corpo  das  Leii  deiiado 
pelo  Dr.  Fedro  Nunea  ao  Municipio  e  emprestado  aoa  escholarcs.^O  cos- 
tume doa  Eneadeadot  da  Làvraria  doa  monges  do  Fa  (o  do  Sousa. — Os  livros 
prohibidoa  eram  tambem  tiuadeadoé  para  se  nSo  poderem  abrir. — A  deaco- 
berta  da  Impreiua  coadjavao  ferver  doa  Hamaniatas  pela  antiguidadc  clas- 
aica,  e  faz  eaqaecer  ou  dosprezar  aa  obras  pooticaa  e  hiatorìcaB  <*'•  ^  ■'* — 
taraa  da  Edade  mèdia. — Causa  da  ruioa  e  desmembra^ito  das  Liv 
dpeacas. — Beconstrac^o  da  ZAvraria  do  rei  Don  Joào  I,  que  Bt 
loB  sena  filboa.^/jtcraria  do  rei  Dom  Daarte,  coQhecida  pelo  C 
stai  livroi  de  tao. — Deacrip^  dos  principaca  livroa  d'eata  Bibli 
Litiraria  do  Infante  Dom  Fernando;  sea  caracter  myatico.^A 
Condatavd  de  PorUigal,  D.  Fedro,  que  foi  rei  de  Aragio.— 0  aei 
officiai  em  aragonez. — A  Livraria  de  D.  Affamo  V,  reconatraida 
ceociaB  do  chronista  Azurara. —  Compara^io  com  aa  Livrarìaa 
Kainha  Isabel  a  Catholica,  do  Prìncipe  de  Viana  e  do  Duqne  Fili 
— Oiitras  bibliotbecaa  particnlarea  do  seculo  ir,  de  que  ha  noticii 
do  DoiUor  Manganeha,  de  JoSo  Vaequa,  de  D.  Vatoo  Perdigà 
Evora. — Ob  eruditoB  deaprezam  a  Litteratura  da  Edade  mèdia,  pi 
a  eradi^flo  classica  desde  o  firn  do  aecnlo  xv. — A  quebia  da  soli 
coDtinuidade  hiatorica  torna  maia  dìfficil  a  aotn^So  da  crise  da  rei 
do  poder  espirìtual. — A  descoberta  da  Polrora  e  da  Impreusa  to 
malica  a  grande  crìse. 

Na  transigSo  da  civilÌBa9So  polTtheica  para  o  christianisi 
timento  aervìa  de  apoio  ao  novo  regimen  social  em  que  entr 
cidentfl,  disciplinando-se  na  moral  com  qae  o  catholicismo 
prolongado  regimen  da  Ildade  mèdia  atravéa  de  todas  as  peri 


192  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Quando  a  synthese  theologica  se  tomou  impotente  para  manter  a  una- 
nimidade  dos  credulos^  a  emancipatilo  das  consciencias  tomou  um  exclu- 
8Ìyo  caracter  intdlectual,  corno  yimos  pela  livre  critica  doB  Ontologiàtae, 
e  social^  corno  TÌmos  nos  esforgos  dos  Jurisconsultos  para  fundarem  a 
auctoridade  impesEoal  da  lei  civil.  N'e&ta  forte  decomposi^So  do  regi- 
men  medieval  e  recompo8Ì92lo  da  sociabilidade  moderna,  faltou  &  intel- 
ligencia  e  activìdade  a  presidencia  do  sentimento,  circumstancia  que  ag- 
graTOu  a  transi^fio  tomando-a  prolongadamente  revolucìcnaria.  Comte 
poz  em  evidencìa  este  ^specto:  «a  transi^So  moderna  abrangeu  simul- 
taneamente a  intelligencia  e  a  actividade,  mas  deixandò  de  parte  sem- 
pre o  sentimento.  Isto  resumé  os  caracteres  essenciaes  da  reyolu9So 
Occidental.  Destinada  a  desenvolver  os  elementos  theoricos  e  praticos 
da  civilisayào  linai,  dèsprezou  o  regulador  geral  da  existencia  humanav.' 

O  sentimento,  separado  da  emo^So  religiosa,  jé,  tinba  sido  nitida- 
mente expresso  na  idealisa^So  da  vida  domestica  e  publica  nos  poemas 
da  Edade  mèdia;  as  novas  litteraturas,  fixadas  pelas  linguas  vulgares, 
eram  Terdadeiramente  o  orgào  destinado  a  activar  a  cultura  do  senti- 
msnto  e  a  dar-lhe  a  presidencia  definitiva,  conduzindo  do  ideal  de  Pa- 
tria, que  surgia  em  cada  nova  nacionabdade,  para  o  ideal  de  Huma- 
nidade,  que  resultava  da  solidariedade  historica  da  antiguidade  clas- 
sica e  catholico-feudal  para  a  Europa  moderna.  Infelizmente  essa  so- 
lidariedade foi  quebrada,  e  as  novas  Litteraturas  que  brotaram  das 
tradÌ98es  da  Edade  mèdia  cairam  no  desprezo  diante  da  admira9S[o 
dos  exemplares  greco-romanos.  O  exame  das  Livrarias  manuscriptas 
do  seculo  XV  evidenceia  este  conflicto. 

Os  reis,  que  procuravam  concentrar  a  dictadura  tempora!  no  melo 
da  agita9So  que  resultava  da  dissolu98o  do  regimen  cathollco-feudal, 
assim  comò  pretendiam  disciplinar  os  espiritos  submettendo  à  sua  pro- 
tec9lo  as  Universidades,  taibbem  fundaram  as  opulentas  bibliotbecas 
do  seculo  xVy  onde  foram  reunidos  os  mais  esplendidos  livros  manu* 
scriptos  do  saber  medieval  e  da  antiguidade  classica,  de  um  valor  in- 
calculavefl  pelo  esmero  artistico  das  copias,  das  illuminuras,  da'ìs  en- 
caderna9Ses,  e  pela  sua  extrema  raridade.  Possuir  uma  Livraria  era 
a  ostenta9So  de  uma  riqueza,  que  era  titulo  de  soberania  e  apanagio 
de  um  grande  prmcipe;  sSo  conbecidas  as  Livrarias  de  Isabel  a  Ca- 
tholica,  do  rei  D.  Duarte,  de  Filippa  Sforza,  do  Principe  de  Viana, 
de  Condestavel  de  Portugal,  de  Carlos  vi,  e  do  Duque  de  Anjou.  Os 


>  Systhmt  de  Polilique  positive,  t.  iii,  p.  di 4. 


UYR ARUS  MANUSCRIPTAS  DO  SBCULO  XV  1 93 

reiB  preoccnpavam-se  com  a  existencia  de  um  novo  poder  moral,  o  jal- 
gamento  da  opìniSo,  e  chamavam  a  si  os  letrados  para  escreverem  as 
chronicas  dos  seus  feitos;  os  principes  subsidiavam  traductores  dos  li- 
TroB  antigos  para  as  lingaas  vulgares,  tornando  accessiveis  as  idéas 
theoricas  da  moral^  que  vieram  a  servir  de  base  crìtica  centra  Roma  na 
època  da  Reforma,  e  as  doutrìnas  polifticas  sobre  a  fórma  de  governo 
com  que  o  individualismo  protestante  reagia  contra  as  monarchias.  Nos 
dois  seculos  anteriores^  floresciam  as  Livrarias  das  Collegiadas  e  epis- 
copaes,  repletas  de  collec^es  de  leis  canonicas  e  romanas^  de  especu- 
la93eB  scholasticas  e  de  moral  patrologica.  No  secalo  xv  òs  Livrarias 
principescaS)  que  por  assim  dizer  se  dispersam  ou  desbaratam  com  a 
descoberta  da  Imprensa,  que  actuou  sobre  o  criterio  e  o  gostO;  apre- 
aentam  urna  predilec^fto  decidida  nos  espirìtos  pelas  obras  de  historia, 
de  moral  e  politica,  e  pela  poesia  cavalheiresca  das  epopéas  mediévi- 
casy  pelos  cancioneiros  e  relafSes  de  viagens.  Entro  esses  livros  desta- 
cam-se  os  exemplares  dos  escriptores  gregos  e  romanos,  em  um  syn- 
eretismo  espontaneo,  que  se  interrompe  com  a  descoberta  da  Imprensa. 
Quando  se  espaiha  a  nova  fórma  de  reproduc92Lo  dos  livros,  todo  o  em- 
penho  da  sua  applica9So  incidiu  sobre  os  manuscriptos  greco-romanos, 
que  vém  alimentar  a  paix^  exaltada  dos  humanistas;  as  obras  da  Edade 
mèdia  caem  rapidamente  em  um  desprezo  desdenhoso  dos  sabios,  con- 
tinuando apenas  a  merecer  a  predilec92Lo  das  mulheres,  que  compre- 
hendiam  melhor  a  idealisa$%o  dos  sentimentos  cavalheirescos  e  das  alle- 
gorìas  amorosas,  do  que  as  phrases  rhetoricas  de  escriptores  cuja  acti- 
vidade  montai  coincidira  com  a  decadencia  do  reg^en  polytheico. 

O  arrebatado  Carlos  vi  lia,  comò  D.  JoSo  i  e  o  Condestavel  Nuno 
Alvares,  os  Romances  de  Saint  Groud,  de  Lancdot  do  Lago  e  o  Tris- 
tan;  para  elle  traduziu  JoSo  Galeim  o  Regimento  de  Principes  de  Gii 
de  Roma,  bem  comò  a  vida  e  feitos  de  Julio  Cesar.  Isto  em  1397.  Ao 
mesmo  monarcha,  vencedor  de  Roosbeke,  dedicou  Honorè  Bonet  a 
Arvore  das  BcUalha^.  Tanto  este  comò  alguns  dos  livros  mencionados 
figuram  na  livraria  do  rei  D.  Duarte,  que  se  rodeàra  de  todos  os  livros 
que  entSo  constituiam  a  educagSo  de  um  prìncipe.  Na  livraria  de  Luiz, 
duque  de  Anjou,  tio  de  Carlos  vi,  guardava-se  imia  traduc^So  de  Va- 
lerio Maximo,  a  Cidade  de  Deus  de  Santo  Agostinho,  a  Vida  dos  Po- 
d/re»,  a  Politica  de  Arìstoteles,  e  o  Regimento  de  Principes,  Luiz  xn 
trouxe  de  Italia,  entro  outros  volumes  de  Visconti  e  dos  Sforza,  um 
livro  em  que  estavam  reimidos  o  Saint  Graal,  Merlim  e  os  Sete  Sabios. 
Ob  livros  communs  a  estas  bibliothecas  reaes  e  prìncipescas  revelam-nos 
urna  corrente  de  gesto  dominante,  que  ainda  no  seculo  xv  vae  cair  na 

BIST.   UN.  13 


194  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

paixSo  popular,  abandonada  com  desdem  pelo  pruridó  erudito  da  anti- 
goìdade  investigada  pelos  humanistas. 

A  admiragSo  pelas  obras  prìmas  da  antigaidade  classica  e  o  des- 
prezo  pela  Edade  mèdia,  caracterisam  o  estado  montai  dos  eruditosi 
jorisconsultos,  humanistas  e  metaphysicoSy  para  quem  a  coltura  do 
sentimento  estava  completamente  substituida  pelo  rigor  intellectual| 
auctoritario  e  pedante.  Escreve  Comte,  observando  o  caracter  negativo 
da  RevolugSo  occidentale  pelo  abandono  da  synthese  absoluta  ou  theo* 
logica:  «O  Occidente  achou-se  levado  a  desconhecer,  e  mesmo  reprovar 
o  conjuncto  da  Edade  mèdia,  e  sobretudo  a  divisSo  fundamental  dos 
dois  poderes. — E  verdade  que  o  desenvolvimento  continuo  da  intel- 
ligencia  e  da  actividade  determinou  espontaneamente  uma  admira^So 
xmiversal  pela  ciyilisa92Lo  antiga,  viciosamente  julgada  pelo  monotheismo 
defensivo.  Mas  està  regressSo  empirica  era  proveniente  mais  do  odio  & 
Edade  mèdia  do  que  do  amor  da  antiguidade;  assixn  o  confirma  a  pre- 
ferencia  geralmente  concedida  aos  Gregos  sobre  os  Romanos,  segundo 
a  natureza  mais  intellectual  do  que  social  da  revolugSo  moderna.  A 
cadeia  dos  tempos  occidentaes  achou-se  desde  ent2Lo  quebrada  mais 
gravemente  do  que  depois  da  continuidade  devida  ao  catholicismo.»  ' 
As  litteraturas  das  novas  nacionalidades  formadas  na  Edade  mèdia 
idealisavam  situa93es  da  vida  domestica  e  publica  sob  a  sua  fórma 
sentimental  ou  a£fectiva;  emquanto  os  eruditos  desprezavam  essas  crea- 
93es  modemaSy  preferindo  os  exemplares  antigos,  as  mulheres  conti- 
nuaram  a  amar  a  Edade  mèdia,  nas  novellas  de  cavalleriai  na  poesia 
trobadoresca  ou  de  cancioneirO|  e  no  mysticismo.  e  Por  isso,  comò  diz 
Comte,  desde  o  inicio  do  movimento  moderno,  sem  nada  pronunciarono 
sobre  a  antiguidade,  aspiraram  espontaneamente  &  Edade  mèdia.»  ' 


1  Systhme  de  PoUdque  potUive,  t.  ni,  p.  515. 

«^  É  extremamente  carìoBo  o  modo  corno  JoSo  Loiz  Vives,  que  juntamente 
com  Erasmo  e  Badeue  formava  o  triumvirato  do  humanismo  na  Renascen^  con- 
demna  no  seu  livro  De  IfuUtuHone  Foeminae  ehrùUanae  todas  as  obras  das  litte- 
raturas da  Edade  mèdia: 

«Que  uso  è  este,  que  j4  se  nSo  acoeita  comò  can^So  aquella  que  nSo  for  ob* 
scena.  Deviam  tomar  conta  d*Ì8to  as  leis  e  os  fóros,  se  os  govemantes  quiserem 
que  as  consciencias  se  n2o  contaminem.  Deviam  fazer  o  mesmo  d'esses  outros  livros 
vàos,  que  sSo  :  Em  Hespanha,  o  Amadis^  Ilmsandro,  Tirante^  TriMo  de  Leomt, 
Celestina,  a  alcoviteura,  m2e  da  malvadez  ;  em  Franca,  Lan^rote  do  LagOy  Pam 
#  Vianoy  Ponto  y  Sidonia^  Fedro  do  Provenfo^  e  3£agalona^  Melusina;  e  em  Plan- 
dres,  Flaree  e  Brancaflor^  Leonela  e  Cananior^  Curiaa  e  lìoreta,  Pyramo  e  Tube. 
Ha  outros  tradozidos  do  latim  em  vulgar,  corno  sSo  as  infacetisaimas  FacecioB  e 
Gra^aa  desgra^adas  de  Pogio,  e  as  Cem  NoveUaa  (Decameron)  de  Joio  Bocacio, 


i 

1 


LIVRARIAS  MANUSGRIPTAS  DO  SECULO  XV  195 

A  paizSo  pelas  obras  prìmas  da  antìgaidade  greco-romana,  qae 
idealisaram  a  coiicep9So  polytheica  decadente,  mal  se  pode  explicar 
pela  emo9So  esthetica  em  espiritos  edacados  sob  a  onidade  do  mono- 
theismo  occidental.  Essa  paixSo,  qae  se  apoderou  dos  eruditos  e  dos 
politicos,  era  a  resultante  do  caracter  da  revola9So  em  que  se  elabo- 
raram  as  fórmas  da  sociedade  moderna,  revoluySo  tntelleducd,  corno  se 
ve  pelo  individualismo  anarchico  dos  pensadores,  e  social,  comò  se  pa- 
tenteou  nos  movimentos  dos  Paizes  Baixos,  Inglaterra  e  Franca,  que 
iundam  a  liberdade  e  a  egualdade  civil.  Nas  obras  da  litteratura  grega 
foram  os  pensadores  encontrar  as  doutrinas  theoricas  para  a  moral  e 
para  a  especulagSo  critica,  e  nos  escriptores  romanos  o  conhecimento 
de  uma  vida  publica  quasi  sociocratica,  que  se  prestava  comò  exemplo 
para  a  actividade.  Comte  accentuou  muito  superiormente  este  aspecto 
sempre  mal  comprehendido  da  llenascen9a,  e  do  desprezo  pela  Edade 
mèdia. 

O  rei  D.  Duarte  fala  com  enthusiasmo  da  leitura  dos  bons  livros  : 
cE  posto  que  aa  primeira  pareva  nom  sentirem  proveito  de  ò  veer  nem 
ouvir,  saibam  que  o  leer  dos  bons  livros  e  boa  conversa9So  faz  acre- 
centar  o  saber  e  virtudes,  conio  croce  o  corpo,  que  nunca  se  conbecoi 
senom  passado  per  tempo:  de  pequeno  que  era  se  acha  grande,  o  del- 
gada  fomido;  e  assy  com  a  gra^a  do  Senhor  o  boo  studo,  filhado  com 
boa  tenjon  do  simpres  faz  sabedor,  do  que  bem  nom  vive,  temperado 
e  virtuoso.  E  de  tal  leer  avemos  tres  proveitos:  primeiro,  despender 
aquelle  tempo  em  bem  fazer;  segundo,  acrecentar  em  boa  sabedoria; 
terceiro,  por  o  cuidado,  quando  estiver  ocioso,  avendo  lembran$a  do 
que  leeo  nom  se  occupar  em  alguns  nom  boos  pensamentos,  ante  re- 
tornando  ao  que  aprendeu  acrecentar  em  boo  saber  e  virtudes.»  ^  De- 


tivroB  todoB  elles  escriptos  por  homens  ociosos  e  desoccnpados,  sem  letras,  cheios 
de  yìeios  e  sordidez,  nos  qu&es  eu  me  marayilho  corno  se  pode  achar  cousa  que 
de  deleite  a  nSo  ser  que  os  nossos  yicios  nos  tragam  tanto  al  retòrtero  ;  por  que 
doatrma  e  virtude,  corno  a  darìU>  os  que  nunca  a  lobrigaram?  Pois  quando  se  me- 
tem  a  contar  alguma  oonsa,  que  prazer  ou  que  gosto  pode  haver  onde  tSo  aberta, 
tio  tela  e  descaradamente  mentem?. . .  que  agudeza,  ou  que  de  bom  pode  haver 
«m  uns  escriptores  conbeoedores  de  t£o  boa  doutrìna  (a  sensualidade)  que  em  sua 
vida  nunca  leram  um  bom  livro?  eu  por  mim  digo  em  yerdade,  que  nunca  vi,  nem 
•avi  dixer  que  Ihe  agradavam  obras  d'este  genero,  senSo  às  pessoas  que  nunca 
tooaram  nem  viram  um  bom  livro,  e  eu  tambem  fiz  d'essas  leituras  algumas  vezes, 
mas  nunca  achei  vestìgios  alguns  de  bom  engenho.»  (Cap.  y,  ap.  Obrcu  escogidas 
de  FUwophoe^  p.  xxxy.  Coli.  Biyadenejra.») 
^  Leal  Consdheiro^  p.  7. 

13* 


196  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

pois  da  leitiira  o  rei  D.  Duarte  aoonselhava  as  traduc93e8,  e  ensinava 
o  modo  corno  se  deyeriam  fieizer.  Victor  Le  Clero  observou  eate  caracte- 
teristico  das  livrarias  do  secalo  xv:  cAs  bibliothecas  do  clero  pos- 
Buiam  de  ordinario  os  auctores  latinos  no  originai;  os  seculares  em 
traduc^8e8.9  ^  D.  Duarte  mandou  fazer  um  grande  numero  de  traduc- 
98089  e  na  sua  Uvraria  prevaleciam  os  livros  em  linguagem,  por  oastd^ 
làoy  por  portuguez,  par  aragoes.  Na  livraria  do  Condestavel  de  Portugal 
abundavam  os  livros  em  francez,  nSo  so  por  quo  cera  naquelle  tempo 
a  lingua  franceza  estimada  e  corrente  entro  os  principes  por  cortezft  e 
polida,»  comò  refere  Fr.  Luiz  de  Sousa,  mas  porque  era  a  lingua  em 
qae  existiam  mais  traducfSes.  Paris  era  entZo  o  grande  mercado  dos 
livros;  OS  preyos  por  quo  se  vendiam  eram  fabulosos,  '  e  so  accessiveis 
às  bolsas  de  principes^  que  se  nSo  pejavam  de  pedirem  livros  empres- 
tados  ims  aos  outros^  e  de  deixarem  corno  garantia  d'elles  valiosos  pe- 
nhores.  A  riqueza  da  illuminura  influia  no  seu  alto  valor;  havia  em 
Portugal  urna  verdadeira  eschola  de  illuministas.  Do  manuscripto  do 
Lecd  Consdheiro,  de  el-rei  D.  Duarte,  n.^  7007  da  Bibliotheca  de  Paris, 
escripto  em  gotico  sobre  pergaminho,  e  em  duas  columnas,  diz  o  vis- 
conde  de  Santarem:  cAs  letras  capitaes,  ou  iniciaes,  em  principio  de 
cada  capitulo,  sSo  admiravelmente  desenhadas  e  illuminadas  com  pri- 
morosas  cores,  muitas  vezes  recamadas  de  curo,  e  cujos  accessorios 
occupam  pela  maior  parte  toda  a  extensSo  da  columna  em  que  0  capi- 
tulo  principia.»  Em  nota  diz  0  illustre  philologo:  e  A  execufào  caUi- 


1  HisL  liUeraire^  1 1,  p.  355. 

'  ApontamoB  o  pre^o  de  certos  livrea,  que  se  acham  cotados  dob  catalogos 
de  algODs  reifi  e  principes  do  secnlo  zv,  e  que  tambem  se  guardavam  na  liyrarìa 
de  D.  Dnaiie :  Traye  lagrant^  32 livrea  parìsis. — Lancdot  du  Lac^  125  livrea; (em 
1404  cuatara  300  eacadoa  de  euro;  Tito  Livio^  150 livrastomezas,  e  500 um  esem- 
plar illuminado  :  Tito  Livio  eBoedo,  em  1397  cuataram  ao  duque  de  Orleans,  337 
livras  e  10  soldoa  tomezea.  A  traduc^ao  latina  daa  nove  partes  de  Ariatoteles,  em 
1340,  custara  a  un  religioso  de  Saint  Bertin,  21  aoldos.  Noa  livrea  de  Joilo  de 
SuSres  de  1365,  vem  os  seguintea  pre^oa:  Merlim^  15groS,  Troie  la  grant,  12gros» 
A  Rosay  4  florina;  Galaaz^  4  florina;  mn  cademo  de  TVtVan,  1  florim;  e  um  oatro 
TrUtatiy  20  francos  de  euro.  Le  Clero,  Eist  litteraire,  t,  i.  p.  335.— No  Catalogo 
dos  Biapoa  do  Porto,  p.  59,  cita-ae  o  testamento  de  D.  JuJi^o,  de  1298,  em  qae  vem 
o  pre90  de  um  Codigo^  por  50  morabitinoa,  e  de  umaa  Deerttaet^  por  egual  quantia: 
«Item,  mandamua  Velaaco  Facondi  Theaaurarìa  Eccleaiae  Portucalenaia,  quinqoa- 
ginta  morabitinoa  in  quibua  emat  unum  Codtoem  legalem.  Item,  mandamua  PetM 
Femandi  Canonico  nepoti  noatro,  quinquaginta  morabitinoa,  in  quibus  emat  unum 
volumen  Decretalium,» 


LIVRARIAS  BIANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  197 

graphica  d'este  codice  é  mai  superìor  &  do  codice  que  encerra  a  Chro- 
fiica  da  Conquista  de  Guiné  por  Azurara.»  Na  edÌ9So  de  1842,  vem  o 
fac-^imile  da  prìmeira  pagina  do  texto,  em  que  se  ve  um  primoroso 
specimen  da  illuminnra  no  secolo  xv  em  Portugal.  Condue  a  citada 
auctorìdade:  <a  calligraphia  e  a  arte  da  illttmina9fto  dos  pergaminhos 
estava  levada  a  grande  perfeÌ9So  em  Portugal  muitos  tempos  antes  que 
«I-rei  D.  Manuel  subisse  ao  throno,  e  qae  por  sua  ordem  se  execu- 
tassem  os  admiraveis  Codices  dos  BrazSes  que  se  conservam  no  real 
Archivo  da  Torre  do  Tombe,  e  em  poder  do  Armoire  Mór,  bem  corno 
OS  sumptuosos  Livros  chamados  de  Lettura  nova;  mostra  finalmente 
quanto  està  arte  se  achava  entro  nós  aperfeÌ9oada  antes  do  nascimento 
do  celebre  Perugino,  mostre  de  Raphael  e  do  nesso  Gram  Vasco;  pois 
a  nesso  vèr  oste  Codice  foi  escripto  entro  os  annos  de  1428  e  1437^ 
visto  que  tendo  sido  trasladado  a  rogos  da  rainha,  so  iste  poderìa  ter 
legar  depois  do  prìmeiro  anno,  que  foi  o  do  seu  casamento,  e  o  de  38, 
que  foi  o  da  prematura  morte  de  El-Rei.»  ^ 

Garcia  de  Resende,  na  Miscellanea,  que  vem  no  firn  da  Chronica 
de  D.  JoSo  n,  descreve  os  progressos  da  calligraphia  e  da  imprensa, 
e  a  arte  da  illuminura: 

E  yimoB  em  nossos  dias 
A  Utra  de  fórma  achada, 
Com  que  a  cada  passada 
Crescem  tantas  livrarias, 
A  sciencia  é  augmentada. 

e  mais  abaixo: 

PirUorea.  luminadores 
Agora  no  carne  estam 

£  ha  em  Portugal  taes 
TSo  grandes  e  aaturaes 
Que  vem  qiuui  ao  olivel. 

Garcia  de  Resende  atrevia-se  a  comparar  esses  artistas  com  Ra- 
phael e  Albert  Durer.  Na  Chronica  da  Conquista  de  Ghiùié,  de  Gk)mes 
Eanes  de  Azurara,  vem  um  bello  retrato  do  Infante  D.  HenriquCi 
quando  estava  de  luto.  A  carestia  dos  livros  fazia  com  que  se  guar- 
dassem  com  todas  as  cautellas,  prendendo  por  correntes  aquelles  li- 


^  Visconde  de  Santarem,  Introduo^So  ao  Leal  Conèelheiro^  p.  zr. 


198  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

YT08  qne  eram  destinados  &  leitura  publica;  catenaitis,  quer  diaet 
segando  Le  Clero,  o  livro  permittido  ao  uso  commom.  Os  livros  de 
leis,  neces&arioB  para  defenderem  os  interesses  individuaes,  foram  no 
secolo  XV  facaltados  ao  publico  por  melo  de  correntes,  no  monicipio 
de  Lisboa;  Bartholo,  e  as  Leis.romanas  ahi  eram  consultadosi  e  mesmo 
emprestados  aos  escholares. 

A  importancia  das  dontrìnas  de  Bartholo  nos  tribunaes  porta- 
gnezes  apparece  revelada  em  urna  Carta  regìa  de  18  de  abrii,  de  1426| 
em  qne  à  Camara  municipal  de  Lisboa  se  mandam  entregar  dois  livros 
contendo  o  Codigo,  a  Glossa  ou  commento  de  Cino  da  Pistoia,  e  as 
Condusòea  de  Bartholo,  ficando  encadeados  para  uso  commum:  cporqae 
OS  tralados  de  tirar  de  latim  em  lingaajem  nom  som  tam  craros,  q  os 
homes  q  muyto  nom  sabem  os  podessem  bem  entender,  por  esto  nos 
trabalhamos  de  fazer  hua  decraragào  em  cada  bua  ley  e  na  grossa  e 
nò  bartalo;  q  de  sobrello  he  escripto,  polla  q'  mandamos  aos  nossos  de- 
sembargadores,  q  per  aquella  decrara9om  fa^am  livrar  os  feitos,  e  dar 
as  Senten9a8 ...  E  vos  poSem  estes  liuros  na  Camara  desse  Concelho, 
presos  per  hHa  cadea  bem  grande  e  longa.  E  nom  os  leixees  a  ninguem, 
salvo  aaquelles  que  feitos  ouverem  ou  a  seus  procuradores  ou  sse 
temerS  daver  alguns  feitos.  E  esto  seja  presente  o  escripuam  da  dita 
Camara.  Ende  al  nom  fayades.»  ^ 

Depois  do  recurso  dos  livros  encadeados  para  os  cstudantes  pobres, 
encontramoB  os  livros  emprestados  pela  Camara  municipal  de  LisboEi 
por  disposi(fto  testamentaria  do  Dr.  Pero  Nimes,  em  beneficio  dos  es- 
colares  em  leis.  Em  urna  escrìptura  de  28  de  Janeiro  de  1466,  obri- 
gou-se  por  publico  instrumento  o  escolar  em  leis  JoSo  Femandes,  apre- 
sentando comò  fiador  seu  pae  FemSo  de  Cintra,  a  restituir  à  Camara 
municipal  de  Lisboa  os  livros  que  Ihe  foram  emprestados  por  ser  es- 
colar  e  parente  bem  ckegado  do  Dr.  Pero  Nunes:  ccinqao  liuros  que 
som  huu  corpo  de  lex^  convem  a  saber:  hSu  volume  e  hSu  codigo,  e 
hfiu  dgeesto  novoj  e  outro  dgeesto  velho  e  huu  esforgado.9  Estes  livros 
tinham  sido  legados  pelo  Dr  Pero  Nunes:  cpara  por  elles  aprenderem 
OS  escoUares  e  filhos  de  9Ìdad&os  eparentes  seus,  que  aprender  quizes- 
sem  de  direito.»  Pela  escrìptura  refenda  era  o  escolar  obrìgado  a  re- 
stituir OS  volumes  d'esse  Corpus  Jurìs  comò  os  recebera  bons^  limpos 
e  encademados,  ficando  ao  contrario  sujeito  &  pena  de  trinta  mil  reaes 


^  lAvro  dos  Prtgos^  fi.  216  f.  Ap.  Ekmentos  para  a  Historia  do  Munieipiodé 
Idsboa,  1. 1,  p.  312. 


UYRARIAS  MÀNUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  199 

irancos  ora  correntes,  com  todas  custas  e  deepezas,  perdas,  dapnos  que 
por  elio  receberem  e  fezerem.»  ^ 

Na  Carta  ii  do  abbade  Frei  Joham  Alvarez,  aos  monges  do  Pago 
de.  Sousa,  datada  de  Bruxellas  em  1467,  ainda  se  fala  no  costume  dos 
fivros  encadeados:  cPrimcìramente  vos  sabees  bem,  corno  ao  tempo 
que  eu  cheguey  a  esse  Moesteiro,  hy  nom  avia  nenhum  livro  da  Rregra 
de  Sam  Beento  em  nossa  lingoa,  nem  tam  soomente  huum  de  vos  oa- 
troB  Monges  nom  sabia  cousa  nenhnua  da  Regra:  e  eu  vola  tornei  em 
Imgoagem,  e  a  paso  nesso  Moesteiro,  bem  scripta  em  letra  redonda  em 
huum  liuro  de  pergaminho  com  sua  cadea  e  cadeado  posto  na  estante  do 
Cabydo . • . »  * 

No  testamento  do  Doutor  Manganella  de  1447 ,  referindo-se  à  Li- 
braria do  Collegio  que  funda,  repete  està  mesma  clausula:  aE  que  os 
meua  livros  se  ponham  por  cadeas  dentro  das  ditas  casas.» 

Sobre  este  costume  de  conservar  os  livros  prezos  por  correntes 
para  a  leitura  commum,  escreve  o  sabio  Victor  Le  Clero,  na  ESsUdre 
lùteraire  de  Franca  au  XIV^  siede  : 

«As  fortes  fechaduras  e  a  excommunhSo  n^  foram  as  unicas  pre- 
caugòes  centra  os  furtos:  era  uso  quasi  goral  o  encadear  os  livros. 

cEstas  cadeas  foram  algumas  vezes  uma  punigSo  infligida  às  obras 
suspeitas.  Os  franciscanos  do  Oxford,  que  tiveram  modo  dos  livros  do 
seu  confrade  Bogerio  Bacon,  pregaramos  com  cravos  compridos,  que 
nSo  deixavam  folheal-os,  fìcando  livre  o  accesso  à  traga  e  &  poeira.  NSo 
se  perdeu  a  tradigào,  por  que  em  1473  os  livros  dos  Nominalistas,  por 
ordem  de  Luiz  xi  foram  prezos  por  cadeas,  ou  póstos  a  ferros,  corno 
diz  Robert  Gaguin,  para  nào  serem  cdespregados,  e  abertos,  senSo  outo 
annos  depois,  em  nome  do  mesmo  rei  e  do  preboste  de  Paris,  que  de- 
clara  que  de  futuro  cada  qual  estudari  n'elles  o  que  quizer.  Na  Uni- 
versidade  sómente  a  nagào  allemS  recebeu  com  jubilo  està  auctorisagSo 
de  ler  taes  livros;  mas,  por  ventura,  leu-os  menos  do  que  quando  eram 
prohibidos  e  cravados. 

cA  mais  das  vezes,  a  cadèa  que  prendia  o  volume  ao  pulpito  por 
um  annel  passado  na  lombada  da  encademagSo,  nSo  era  senSo  uma 
garantia  de  seguranga,  e  a  fòrmula — Incatenabiiur,  era  antes  detudo 
nma  recommendagSo  que  significava  que  a  leitura  nSo  era  probibida. 


1  Livio  u  Mistico  dos  Reis^  fl.  42;  apud  Elementos  para  a  Historia  do  Mum-- 
*  €Ìpio  de  IMoa,  1. 1,  p.  828. 

*  Ap.  J.  P.  Ribeiro,  DisserL  ehron.,  U  i,  p.  370,  ed.  1860. 


200  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Sobre  os  livros  da  antiga  Sorbonne  que  estavam  à  disposi^So  de  todos 
està  inscrip9^  era.  commum.  0  catalogo  doa  dominicanos  de  Dìjon^ 
em  1307^  revela*nos  que  ob  commentarios  de  Frei  Thomaz  sobre  os 
quatro  fivangelhos  nSo  eram  lidos  entre  elles  senSlo  com  a  condiy&o: 
Habentur  in  catenis,  Em  1318^  o  cardeal  Michel  du  Bec,  no  seu  tes- 
tamento datado  de  Avìgnon^  imp3e  aos  carmelitas  de  Paris^  legatario» 
dos  seus  livrosy  a  obriga9So  de  os  terem  encadeados.  Os  livros  da  Ab- 
badia de  Marmoutiers  ainda  estavam  encadeados  no  secalo  passado. 
A  inten9So  d'està  disposigSo  nSo  soffire  davida  ante  o  legado  de  Phi- 
lippe de  Cabassole,  em  1372^  aos  conegos  de  Cavaillon,  corno  tambem 
no  qae  fez  em  1438,  &  egreja  de  Saint  Omer^  o  prevosto  Quintin  Mi- 
naret  do  grande  diccionario  latino  o  Cathaltcon  transcripto  no  secalo 
precedente:  statxAendo  ipsum  librum  concatenatum  in  choro  munere,  ut 
in  ipso  aliquid  videre'seu  legere  cupientes  faciliorem  fiaberet  vcdeant  ac- 
cessum. 

cTemos  ainda  outras  provas,  de  que  no  recinto  do  còro  nSLo  se 
depositavam  sómente  os  livros  liturgicos  encadeados^  mas  sim  obras 
litterarias  e  philosophicas.  Em  1374,  a  fabrica  da  Egreja  de  Treguier 
pagou  nove  soldos  e  nove  dinheiros — para  encademar  um  livro  cha- 
mado  Filosogium  (Philologium  ou  Sophologium?)  que  mecer  Jean  Gou- 
rion,  no  seu  testamento  deixou  para  ser  preso  ou  eneadeado  no  c6ro 
da  dita  egreja. — 

e  A  Italia,  permaneceu  fiel,  nas  suas  bibliothecas,  a  muitos  usos 
antigos,  taes  comò  os  armarios  à  altura  de  apoio,  comò  no  Vaticano, 
e  OS  livros  encadeados^  comò  os  de  Malateati,  em  Cerena,  e  urna  parte 
dos  da  Laurenciana  de  Floren9a. . . 

cMesmo  em  Franca  o  uso  das  cadeas  para  os  livros,  permaneceu 
por  multo  tempo.  Em  1553,  Josse  Clichthove,  legando  alguns  dos  seus 
livros  à  casa  de  Navarra,  quer  que  elles  estejam  sempre  presos,  td 
Ulic  semper  affixa  maneant  ad  usum  studantium  et  litteratorum,  Em 
1718,  OS  livros  da  Abbadia  de  Saint- Jean  des  Vignes,  em  Soissons, 
continuam  a  estar  presos  por  cadéas.  Muitos  manuscriptos  e  alguns 
livros  impressos  que  se  conservam  nas  grandes  bibliothecas  francezas, 
ainda  tém  as  ferragens  que  os  prenderam  outr'ora  às  estantes.»  ^ 

Ainda  no  fim  do  seculo  xvi  prevalecia  na  Livraria  da  Universi- 
dade  de  Coimbra  o  costume  medieval  dos  livros  presos  por  cadeas; 
costume  consignado  nos  Estatutos  de  1591  e  que  passou  para  os  de 


1  Op.  cit.,  1 1,  p.  359  e  360. 


UYRÀRIAS  MANUSGRIPTAS  DO  SEGULO  XY  201 

1653  sem  reparo:  cAverà  na  Universidade  urna  liyraria  pnblica,  na 
qual  estarSlo  os  livros  de  todas  as  faculdade  em  estantes  ou  almarios, 
presos  por  cadeas,  e  repartidos  e  ordenados  na  melhor  maneira  e  ordem, 
que  puder  ser  para  bom  concerto.  £  a  pessoa  que  tlver  cargo  da  dita 
casa  e  chave  d'ella,  sera  bom  latino,  e  saberi  grego  e  hebraico,  sendo 
possi vel;  e  terà  conhecimento  dos  livros  para  os  saber  ordenar,  e  dar 
razSo  delles.»  ^ 

Depois  da  deecoberta  da  Imprensa,  os  livros  escholares  eram  al- 
lugados  em  folhas  dobradas  em  quatro  partes  {quatemìis^  oademo  e 
Cahier)  estabelecendo-se  ama  taxa  para  este  commercio.  Quando  se  es- 
tabeleceu  a  censura  dos  li^os,  as  obras  que  tinham  de  ser  postas  A 
venda  eram  taxadas  no  seulpre^o  pelo  numero  de  pliegos  ou  folhas  de 
que  constavam,  segnndo  e  antigo  uso  das  Universidades. 

Um  dos  grandes  factores  da  Renascen^a  foi  indubitavelmente  a 
descoberta  e  vulgarisa^Slo  da  Imprensa,  fazendo  prevalecer  o  livro 
sobre  a  palavra  iste  é,  convertendo  a  in8truc9So  por  via  da  aucta- 
Tìdade  em  um  desenvolvimento  autodidaeta  ou  individualista.  Àlém 
d'isso,  generalisando  as  obras  primas  da  antiguidade  greco-romana, 
revelou  que  existiam  tambem  no9(!les  moraes  fora  da  Biblia,  e  pelo 
trabalho  dos  prelos  promoveu-se  a  fórma  escripta  das  linguas  e  lit* 
teraturas  nàcionaes,  que  deram  por  este  facto  um  enorme  relévo  ao 
sentimento  de  patria.  A  descoberta  da  Imprensa  communicou-se  muito 
cedo  a  Portugal  ;  lémos  no  Boletim  da  Sociedade  de  Geographia,  a 
seguinte  communicafSo  de  Buckmann:  «Em  1460,  alguns  negociantes 
d'està  cidade  de  Nuremberg  informaram  o  governo  real  de  Portugal 
da  descoberta  e  utilidade  da  Imprensa  feita  por  Gutemberg  e  Faust 
em  MayenQa.  Um  Cardeal,  ou  o  prior  de  um  grande  convento  de 
Coimbra  (Santa  Cruz?)  mandou  vir  em  1465  os  primeiros  typogra- 
phos  de  Nuremberg  para  Portugal,  onde  elles  imprimiram  de  1465  a 
1473  em  um  Convento  os  auctores  gregos  e  latinos,  e  muitos  livros  ec- 
desiasticos,  comò  por  exemplo  S.  Thomaz  de  Aquino,  etc. — Segundo 
urna  velha  chronica  estes  impressores  que  vieram  a  Portugal  era  Ema- 
nud  Semona  (Simon)  de  Nuremberg,  e  Christophe  Soli  de  Altdorf; 
ensinaram  muitos  discipulos,  e  immediatamente  a  Typographia  espa- 
lhou>se  por  todo  o  reìno  de  Portugal.»^  Estes  factos  concordam  com 
a  celebre  nota  manuscripta  das  Coplas  do  Condestavel  D.  Pedro,  vista 


1  EbUU.,  liv.  n,  tit.  46. 

^  Bólet.  da  Soe,  Geographia^  2.*  serie,  p.  674. 


202  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

pelo  conde  da  Ericeira  na  Livraria  do  conde  de  Vimeiro;  n'essa  Nota 
se  diz:  tEste  livro  se  imprimiu  seis  annos  depois  que  em  Basilea  foy 
achada  a  famosa  Arte  da  impressào.^  ^  A  ìmprensa  foi  introduzida  em 
Bazilea  por  Berthold  Rot,  o  qoal  ainda  eni  1468  trabalhava  em  Mo- 
goncia  ;  Berthold  nSo  datava  nem  assignava  os  seus  impressosi  e  so  a 
come9ar  de  1474  é  que  ali  se  acha  um  outro  impressor  Bernard  Ri- 
chel  rubricando  todos  os  seus  livros.  *  Bernard,  nas  Origens  da  Im- 
jnrensaj  considera  Richel  corno  successor  de  Barthold,  e  por  tanto  a  acti- 
yidade  de  Barthold  circurnscreve-se  em  Baziléa  desde  1468  a  1473. 
Se  &  data  de  1468^  em  que  come9a  a  imprensa  em  Bazilea,  ajuntarmos 
seis  annos,  segundo  a  nota  manuscripta  das  Coplas  vista  pelo  conde 
Ericeira,  conclue-se  que  estas  foram  impressas  em  1474,  na  època  em 
que  trabalhavam  entro  nós  os  dois  impressores  de  Nuremberg. 

Infelizmonte,  apesar  de  todos  os  privilegios  de  nobreza  dados 
aos  impressores,  a  Typographia  pouco  se  desenvolveu  materialmente, 
e  quasi  nada  codjuvou  o  movimento  da  Rena8cen9a  e  a  vulgarisagSo 
da  litteratura  nacional.  ^  Percorramos  agora,  por  urna  paciente  recon- 
strucfSLo  historica,  as  sumptuosas  Livrarias  manuscriptas  de  Portugal 
no  momento  em  que  se  gcneralisava  a  Imprensa,  que,  além  de  outros 
factores,  veiu  tambem  influir  para  a  sua  completa  dispersfto. 


*  Ap.  Collec^ào  do»  Doc  da  Academia  de  Hist,  1724;  n.®  xxin. 

*  Auguste  Beruard.  De  Vcrigine  de  Vlmprimerie^  t.  ii,  p.  120. 

3  Dos  novecentos  volumes  impressos  em  Portugal  em  todo  o  seculo  xvi,  quasi 
duas  ter^as  partcs  foram  de  Theologia. 

No  seu  opusculo  A  Imprensa  portvgueta  durante  o  eeculo  xvi,  escreve  o  sr. 
Tito  de  Noronha:  «Os  generos  em  que  se  dividem  os  900  obras  sahìdas  dos  prelos 
em  Portugal  durante  o  seculo  zyi,  sSo  conforme  a  rapida  aprccìacSo  d'ellas  os  se- 
gttintes:  (p.  13) 

Theologia  e  Mjstica 406 

Litteratura,  poesìa,  etc 160 

Polygraphia ^ 127 

Historia,  viagcns,  e  rela^òes 101 

Direito  e  Legisla^So 60 

Sdencias  Naturaes  e  ezactas 46 

"90Ò 


LIYRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XY  203 


Livrarìa  do  rei  D.  Jodo  I 

Demanda  do  Santo  Ghraal. 

Este  manuscripto  portngaez  das  novellas  da  Tavola  Redonda  do 
periodo  de  mata9So  de  verso  para  prosa,  é  urna  livre  paraphrase  da 
novella  franceza  que  tem  por  titillo  La  tìerce  paréte  de  Lancdot  dù  lac 
avee  la  Queste  du  Saint- Oragli  et  de  la  demière  partie  de  la  Table-Ronde, 
que  foi  muito  apreciada  na  cdrte  de  D.  Jofto  i.  Consta  de  199  folhas 
de  pergaminho  a  duas  columnas,  com  o  titillo  A  Historia  dos  Cavai- 
leiros  da  Mesa  redonda  e  da  demanda  do  santo  Crraal,  EstSlo  publica- 
das  até  ao  presente  70  folhas  pelo  Dr.  Karl  von  Reinhardstoettner  (Ber- 
lini, 1887.)  Na  foiba  21  lé-se:  cMas  esto  nom  ou&ovl  mndaT  ruberie  de 
borem  (Robert  de  Borom)  de  franees  em  latim,  porque  as  puridades  da 
santa  egreja  nom  nas  quis  elle  descobrir;  ca  nom  convem  que  as  saiba 
homS  leigo.  E  doutra  parte  auja  medo  de  descobrir  a  demanda  do 
SANTO  GBAAL,  assi  como  a  verdadeira  storia  o  conta  de  latìm . . .  i»  E 
ainda  na  foiba  129  se  refere  a  um  texto  latino  anterior  à  redacgSo  fal- 
samente attribtdda  a  Roberto  de  Borom:  «ca  o  nom  achei  em  francez, 
nem  Borom  nom  diz,  que  en  mais  achou  na  grande  storia  do  latìm,  de 
quanto  eu  vos  conto.»  E  evidentemente  uma  referencia  ao  Liber  Gra- 
dalis,  em  qae  um  monge  do  seculo  vm  consignara  a  lenda  da  vinda 
de  Joseph  de  Arimathia  à  Bretanha,  cuja  egreja  disputava  por  isso  a 
primazia  à  de  Roma;  através  das  amplificagSes  de  GeoiSroy  de  Mon- 
mouth  é  que  Roberto  de  Borom  conheceu  a.  tradifSLo  bretS,  que  elle 
poz  em  verso  no  poema  de  José  ab  Arimatìiia,  e  que  ampliiicadores 
anonymos,  servindo-se  do  perstigio  do  seu  nome,  desenvolveram  em 
prosa  franceza,  no  seculo  xni,  dando  relSvo  a  alguns  nomes,  como  Uter- 
Pendragon,  Artur  e  Merlim,  tomados  da  Historia  Britonum,  de  Nenius,  * 
O  Ms.  portuguez  pertence  &  Bibliotheca  imperiai  de  Vienna,  sob  o  n.® 
2594.  Estas  novellas  em  prosa  constituiam  o  encanto  de  todas  as  cortes 
no  come90  do  seculo  xv.  Acha-se  um  esemplar  na  Livraria  de  Isabel 
a  Catholica:  Tercera  parte  de  la  Demanda  dd  santo  Grial  en  romance 
(n.*^  143,  do  catalogo  feito  pelo  seu  camareiro  Sancho  de  Paredes.)  Na 
Livraria  do  Principe  de  Viana,  de  1461,  existia  tambem  um  manuscri- 
pto dd  sangreal  en  franees  (n.^  36.)'  Està  novella  existia  tambem  nas 
Livrarias  de  Carlos  vi  e  de  Luiz  xii. 


1  Paulin  Paris,  Les  Bomans  de  la  TabU-Bondt,  Introduction. 

2  Mila  y  Fontanals,  Dt  Iob  Trovadùres  en  Eepana^  p.  520. 


204  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIMBRA 

Regimento  de  Principes, 

Lìvro  escrìpto  por  G-illes  de  Rome  para  dirigir  a  edacaQfto  de  Phi- 
lippe o  Belloy  que  o  nomeou  Bispo  de  Brouges;  foi  o  primeiro  monge 
augastiniano  que  se  doutorou  em  Paris.  ^  D.  JoSo  i  citou  està  obra 
aoB  seus  cavalleiros  na  tomada  de  Conta  eia  1415.  Gii  de  Roma^  no 
De  Regimine  principum  (liv.  n,  P.  in^  e.  20)  diz  que  à  meza  dos  prin- 
cipes e  dos  reis  se  devem  fazer  leituras  em  lingua  vulgar.  Nas  cdrtes 
do  seculo  XV  o  Regimento  de  Principes  era  sómente  lido  em  francez.  * 
Além  do  exemplar  da  livraria  de  D.  JoSo  i,  D.  Duarte  conservou  entre 
OS  seus  livros  de  uso  urna  traduc9So  portugueza  feita  a  seu  pedido  pelo 
Infante  D.  Pedro.  Villemain  descreve  està  obra  que  tanto  se  leu  nas 
cdrtes  da  Europa,  e  que  vulgarìsando  doutrinas  de  Aristoteles  e  S« 
Thomaz  influiu  nas  ideias  da  Bena3cen9a:  «Os  dois  primeiros  livros 
da  sua  obra  De  Regimine  principum  sfto  o  directorio  da  consciencia 
para  uso  dos  reis.  O  terceiro  livro  é  um  tratado  de  direito  politico,  em 
que  o  auctor  examina  as  diversas  fórmas  de  governo  e  as  leis  civis 
que  Ihes  correspondem,  discute  as  opiniSes  de  Aristoteles,  de  PlatSo 
e  mesmo  o  fragmento  de  Hippodamo,  tSo  curioso  e  tSo  pouco  conhe- 
cido.  Gii  de  Roma  é  grande  adversario  da  servidfto  pèssoal,  e  so  reco- 
nhece  a  realeza  quando  està  se  conforma  com  as  leis  etemas  da  ju8tÌ9a. 
É  partidario  da  republica  nos  pequenos  estados.  Este  livro  é  mais  um 
esemplo  do  gr&o  singular  de  cultura  que  se  conservou  sempre  em  al- 
guns  espiritos  da  Edade  media.»  ' 

Na  livraria  de  Isabel  a  Catholica  (n.°  153)  guardava-se  uma  tra- 
duc9ao:  Gobemamiento  de  loa  Principes  ém  romance,  pergamino,  por 
Frai  Juan  Garcia  de  Castrojeriz,  confessor  da  rainha  D.  Maria,  ma- 
Iher  de  Affonso  xi,  em  1340,  para  instrac9fto  de  D.  Pedro,  que  se  de- 
nominou  o  Cruci,  e  feita  a  pedido  do  mostre  do  principe  o  bispo  de 
Osuna  D.  Bemabé.  D.  Jayme,  Conde  de  Urgel,  tambem  mandou  fazer 
uma  traduc9So  em  limosino,  por  Fr.  Amai  Strangola  em  1430. 

A  Historia  geral  de  Hespanha. 

Obra  de  Affonso  o  Sabio,  mandada  traduzir  por  el-rei  D.  Diniz^ 
esiste  em  Paris  na  bibliotheca  nacional;  é  comò  descreve  o  illustre 
philologo  Nunes  de  Carvalho:  cUm  volume  de  pergaminho,  caracter 
meio  gothico,  com  lettras  encamadas  em  partes  e  de  outras  cdres  tam- 


1  Victor  Le  Clerc,  Hm<.  litteraire  de  la  Franee^  t  x,  p.  61,  88,  84. 

2  Id.,  ibid.,  p.  438. 

3  Tàldeau  du  Dix-ìudù'hme  sihcle,  p.  123.  Bruxelles,  1852. 


UVRARIAS  MANUSCRIPTÀS  DO  SEGOLO  XV  20  5 

bem  nos  prìncipios  dos  capìtulos.»  Nunea  de  Carvalho  classificando  a 
lettra  corno  do  secalo  xv,  considera  este  manuscripto  corno  autogra- 
p^o.  Falando  da  primeira  foiba,  diz:  «està  foiba  tem  urna  cercadura 
de  arabescos  illuminados  a  cores  e  tem  as  Armas  reaes  de  Portugal 
aobre  a  Cruz  de  Aviz,  e  com  os  escados  de  modo  que  se  usavam  antes 
da  mudanga  que  n'elles  fez  El-Rei  D.  JoSLo  ii  em  1488.  A  primeira 
letra  do  prologo  é  um  O  grande  de  ouro  e  azul,  metido  dentro  de  um 
quadrado  illuminado  a  cdres,  e  dentro  do  0  està  um  Rey  com  opa  de 
porpora ,  corea  de  ouro  de  bicos  na  cabe9ay  sentado,  com  uma  penna 
na  mSOy  e  diante  de  si  om  livro,  em  que  parece  estar  para  escrever.»  ^ 

A  este  manuscripto  parece  referir-se  o  grammatico  FemSo  de  OU- 
veira  n'este  texto:  «As  digSes  velbas  saS  as  que  foraS  usadas:  mas 
agora  sSo  esquecidas  comò  Egas . . .  Sancbo . . .  Dinis . . .  nomes  prò- 
prios  e  ruSLo  quiz  dizer  gidadSo  segundo  que  eu  julguey  e  bil  livro  an- 
tigo  o  qual  foi  trasladado  em  tempo  do  mui  esforgado  rey  dom  JobSo 
de  boa  memorea  o  premeiro  deste  nome  em  Portugal:  por  seu  man- 
dado  foy  0  livro  que  digo  escrito  e  estd  no  moesteiro  de  Pera  longa  : 
e  cbamma-se  eatorea  geral:  no  qual  achei  estas  e  outras  anteguidades 
de  falar:  etc.»  ' 

Na  Livraria  da  rainha  Isabel  a  Catholica,  n.^  108  do  catalogo 
feito  pelo  camareiro  Sancbo  de  Paredes,  existia:  «Otre  libro  de  pliego 
entero  de  mano,  que  es  la  historia  de  Espaiia  en  lengiuxge  portugués, 
con  tablas  boradas  guamescidas  en  cuero  bianco,  b 

A  Confissào  do  Amante. 

E  um  longo  poema  inglez  de  John  Gower,  formado  de  uma  grande 
selcerò  de  contos  de  origem  firanceza,  e  imitagSes  de  JoSo  de  Meung; 
extrae  assumptos  de  Ovidio,  dos  velbos  poemas  francezes  de  Lance- 
lai,  AmadaSy  Tristan,  Partenopeua  de  Blois,  e  cita  o  Dante.  ^  Foi  tra- 
dozido  em  portogoez  por  um  conego  da  egreja  de  Lisboa,  Roberto 
Payno,  vulgarisando  assim  na  corte  de  D.  Filippa  de  Lencastre  a  obra 
do  contemporaneo  de  Chaucer.*  O  livro  de  JoSo  Q-ower  divide-tfe  em 


1  0  editor  diz  ;  «Està  primeira  pagina  ha  de  lithographar-se.»  Porém  a  edi- 
^  foi  interrompida  a  p.  192,  e  o  dr.  Nunea  de  Carralho  morreu  poucos  axinoa  de- 
poia  de  avan^ada  edade. 

^  Ghrammatiea  de  Lingoagem  portugueza^  cap.  xxzyj. 

3  Confesshn  Amantis  that  is  the  Sage  in  englisshe  the  Confesaion  ofthe  lover 
made  and  compiled  bj  John  Gower,  sq.  (London,  1838,  in  foi.) 

4  D&  noticia  d'està  traducQSo,  que  foi  parar  a  Hespanha,  Amador  de  los  Bios, 
Hùt  de  la  Liti,  espa^ola,  t.  vi,  p.  46 


206  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tres  partes;  cada  urna  escrìpta  em  sua  lingua^  latìm,  francez  e  inglez: 
Speculum  medUantia,  Vox  damarUis  e  Confessto  amantìs.  Està  ultima 
parte  foi  traduzida  em  portuguez.  E  naturai  que  aste  manuscripto  seja 
um  dos  muitoB  que  Filippo  n  mandou  de  Lisboa  para  a  Livraria  do 
Escurìal. 

Livro  de  Ora^es  de  tiso  do  rei  D.  Fernando, 

Entre  as  raridades  bibliograpbicas  da  Bibliotheca  do  Rio  de  Ja- 
neirOy  para  ali  transportadas  por  D.  JoSo  vi,  figura:  cum  Livro  de 
OragSea  de  uso  de  el-rei  Dom  Fernando  de  Portugal,  precioso  tanto 
pela  sua  muita  antignidade  comò  pelas  estampas  e  desenhos  coloridos 
de  que  sSo  omadas  as  suas  margens  e  as  vinhetas  de  seus  capitulos.»^ 

lAvro  dos  horcu  de  Santa  Maria. 

Salmos  certos  para  finados» 

Livro  da  Montaria. 

D'estes  tres  livros  fala  o  rei  D.  Duarte,  corno  escriptos  por  seu 
pae  D.  Jo2o  i:  cE  semelhante  o  muj  excellente  e  virtuoso  Rei,  meu 
Senhor  e  Padre,  cnja  alma  Deos  aja,  fez  bufi  livro  dos  horas  de  Santa 
Maria,  e  salmos  certos  parafinados,  e  outro  da  Montaria.^  Os  Livroa 
de  Horas  da  Virgem,  inspirados  pelo  novo  culto  que  se  propagara  ìb 
Universidades,  eram  um  pretexto  para  as  bellas  illuminuras,  para  as 
composÌ98es  de  hjmnos  e  sequencias  e  para  a  musica  religiosa.  Raj- 
mundo  Lullo,  tambem  sob  o  titulo  de  Horas  de  Nostra  Dona  Santa 
Maria,  escrevera  nma  collecgSo  de  cangonetas  para  serem  cantadas* 
D'està  poesia  diz  Guardia:  té  notavel  pelos  pensamentos  audadosos  e 
pouco  orthodoxos  sobre  o  livre  arbitrio  do  homem,  sobre  a  juBtì9a  e  a 
misericordia  de  Deus.  Ali  o  amor  mystico  occupa  comò  de  ordinario 
um  logar  consideravel.»^  Na  Livraria  de  JoSo  Vasques,  do  meado  do 
seculo  XV,  guardava-se  um  esplendido  livro  das  Horae  BeaJtae  Mariae 
Virginis. 

Na  Bibliotheca  nacional  conserva-se  o  Libro  de  Mont&ria  composto 
por  D.  JoSo  I  ttrasladado  de  um  oinginal  de  mSo  escripto  em  pergami' 
nho,  que  se  achou  na  Libreria  do  CoUegio  da  Companhia  de  Jesus,  de 
Monforte  de  Lemos,pdo  bachard  Manoel  SerrSo  Paz  este  anno  de  1626.9 


1  Panorama,  t.  vni,  p.  230. 

<  Bemte  germanique,  t  zix,  p.  215.  Gkurdia  allude  a  urna  Ode  ao  Sér  sapremo, 
de  Lullo,  achada  na  Bibliotheca  da  Universidade  de  Coimbra  por  Heine,  que  a 
oftereceu  à  Bibliotheca  de  Berlin. 


UVRARIAS  BIANUSCRIPTAS  DO  SECOLO  XV  207 

O  livro  qae  ostava  em  poder  dos  Jesiiitas  era  o  originai  quo  perten- 
cera  &  Livrarìa  do  rei  D.  Doarte,  a  que  este  monarcha  chama  urna 
compilafSo.  Na  Livraria  de  Isabel  a  Catholica  (n.^  171-172)  existia 
um  Libro  de  Monteria,  pergamino  marca  mayor  en  romance.  Otro^  de 
los  montes  e  de  la  monteria  mandado  escrever  por  Àffonso  XI. 

JLivro  da  Cetraria,  que  fai  d'el-Rei  Dom  Joào  L 
Assim  apparece  citado  no  catalogo  dos  Livros  de  uso  do  rei  D. 
Doarte.  Entre  os  livros  da  rainha  Isabel  a  Catholica  (n.°  173)  existia 
o  Libro  de  Cetraria,  em  papel,  Porventura  é  o  livro  da  Cetraria  de  D. 
JoSo  Manuel^  porque  a  compilaffio  que  fez  JoSo  de  Sahagun^  ca9ador 
de  D.  JoSo  II  de  Castella^  com  este  mesmo  titolo,  so  foi  conhecida  mais 
tarde.  De  D.  JoSo  Manuel  guardava-se  o  Conde  de  Lucanor  na  Livra- 
ria de  D.  Duarte,  e  segundo  cremos,  recebido  entre  os  livros  herdados 
de  seu  pae. 

Agricultura,  que  foi  d'd-Rei  Dom  Joào. 

Descripto  d'està  fórma  no  catalogo  dos  Livros  de  uso  de  D.  Duarte. 
Na  Bibliotheca  do  duque  Filippo  Sforza,  segimdo  o  catalogo  de  Facino 
da  Fabiano,  guardava-se  urna  Agricultura  (Varrò,  Cato  ou  Palladio?) 
E  mais  naturai  que  o  livro  possuido  por  D.  JoSo  i  fosse  um  manuscri- 
pto  arabe;  no  principio  d'este  seculo  publicou-se  uma  traduc9So  do  Li- 
bro de  Agricultura,  seu  auctor  el  doctor  excellente  Abu-Zaocaria-Jahia- 
Aben-Mohamed-ben-Ahmed-Ebu-el-Awan,  sevilhano,  porD.  Josef  An- 
tonio Banquerì,  Madrid,  1802.  Na  Bibliotheca  de  D.  Duarte  e  do  In- 
fante Santo  existiam  alguns  livros  arabes  de  philosophia  e  medicina. 
Na  Livraria  de  Carlos  v,  de  Franja,  tambem  se  enoontrava  uma  Agri- 
cultwra. 

0  livro  dà  Primeira  Partida. 

Bartolo. 

Codigo,  com  o  Commento  de  Cino  da  Pistoia. 

Estas  tres  obras,  que  tambem  figuram  entre  os  Livros  de  uso  do 
rei  D.  Duarte,  devem  considerar-se  comò  tendo-lhe  advindo  da  Livra- 
rìa de  seu  pae.  As  Conclv,8Se8  de  Bartholo  foram  entregues  &  Camara 
de  Lisboa  para  serem  fisusultadas  &  consulta  do  publico  em  1426.  As 
Partidas  de  Affonso  o  Sabio  andavam  geralmente  em  codices  separa- 
dos,  corno  vemos  pela  Livraria  da  rainha  Isabel  a  Catholica:  cCod.  88, 
89,  tercera  partida,  cuarta  partìda;  90,  cuarto  libro  de  los  Partidas; 
91,  quinta  partida;  92,  93,  sesta  partìda.^ 


208  HISTORIA  DA  UNIYERSIDÀDE  DE  COIMBRA 

Livro  das  Trcvaa  do  Rei  Dom  Diniz. 

Este  Cancioneiro  do  monarcha  trovador  torna  a  apparecer  na  Li- 
vraria  de  D.  Duarte,  oom  certeza  proveniente  da  heran^a  de  Bea  pae, 
e  corno  deposito  precioso  que  andava  na  casa  real.  De  um  outro  esem- 
plar dà  noticia  Francisco  de  Pina  e  de  Hello,  no  prologo  do  seu  poema 
Triumpho  da  Rdigiao,  corno  tendo-o  visto  em  Hespanha:  «Em  teda  a 
Hespanha^  o  primeiro  que  conheceu  a  Poesia  foi  o  nesso  rei  Dom  Di- 
niz: Hoje  exiate  na  Livraria  do  Escurial  hum  livro  de  versos  seus,  que 
elle  mandou  a  aeu  avd  Dom  Affonao  X  de  Castella,  a  quem  chamaram 
o  Sabio.»  ^  Apesar  de  Fr.  Joaquim  de  Santo  Agostinho  pdr  em  duvida 
que  Filippe  ii  mandasse  transportar  para  a  Livraria  do  Escariai  mai- 
tos  manascriptos  do  mosteiro  de  Alcoba$a,  é  comtudo  plausivel  o  facto 
em  rela9^  a  oatros  monumentos,  comò  jà  notàmos  àcerca  da  traduc- 
9S0  da  Conjissào  do  Amante. 

A  Biblia,  ganhada  aos  Castelhanos. 

Tal  era  0  nome  do  codice  vi  da  Livraria  de  Alcoba^a^  qae  tem 
a  segainte  declaragSo  em  gothico  simalado:  9,Bihlia  ganhada  na  batalha 
de  Aljvharrota  por  elRey  Dom  Joam  0  primeiro  de  gloriosa  memoria, 
a  qaal  era  do  proprio  rei  de  Castella,  e  foi  ganhada  dentro  da  stia  pro- 
pria tenda^  corno  consta  de  huma  memoria  que  està  nojim  d'este  proprio 

« 

livro.ii  Fr.  Joaquim  de  Santo  Agostinho^  na  Memoria  sobre  os  Codi- 
ces  manascriptos  de  AlcobaQa,  demonstrou  cabalmente  que  està  Biblia 
é  urna  parte  da  Biblia  do  coro  do  mosteiro  de  Alcobafa,  tendo  0  mesmo 
formato  e  letra,  mas  introdazida  em  uma  capa  chapeada  de  bronze, 
com  as  armas  de  Castella,  que  servirà  a  um  volume  maior.*  A  Biblia 
illuminada  era  uma  das  principaes  joias  das  bibliotbecas  prìncipescas 
do  seculo  XV. 

Estorta  geral, 

Mandada  traduzir  por  D.  Diniz;  suppSe-se  estar  hoje  na  Biblio- 
theca  do  Escurial;  manuscrìpto  do  seculo  xiv^  em  pergaminho  e  fórma 
grande,  contendo  apenas  a  Parte  i.  Junto  a  està  traduc9lU),  no  mesmo 
codice,  acha-se  tambem  a  traduc^So  de  trinta  e  um  capitulos  de  uma 
versSo  portugueza  do  Genesis.  ^ 


1  Triumpho  da  Bdigiào^  p.  va,  Coimbra,  1756. 
'  Memorìaa  de  UUeratura  portugueaa,  t.  v,  p.  302  a  305. 
3  Ribeiro  dos  Santos,  Memoria  score  algtmas  traducgdes  e  edi^Òes  bibltoas,  p.  19. 
(Jliem.  da  Acad.,  t  ni.) 


LIVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  209 

Estoria  geral,  e  Historia  da  Bibita. 

Na  Bibliotheca  do  Eacurìal  està  am  codice  do  secalo  xv,  com  le- 
tras  .inìciaes  illuminadas,  em  que  vem  a  traduc9So  portugueza  da  Es- 
toria  geral,  e  «os  primeiros  seis  Uvros  da  primeira  parte  da  Historia  da 
Bihlia,  e  os  vinte  primeiros  capitulos  do  livro  Yii,  isto  é^  o  Genesis  até 
a  Historia  da  lucta  de  Jacob  com  o  Anjo.»  * 

Os  Evangelhos,  Actos  dos  Apostolos  e  Epistolas  de  S.  Paulo. 

Sobre  estes  manuscriptos  escreve  o  Dr.  Ribeiro  dos  Santos:  «D. 
JoSo  I,  por  uma  particular  deyo(Slo  de  seu  espirito^  mandou  trasladar 
por  grandes  letrados,  em  lingua  portugueza,  os  Evangdhos,  os  Actos 
dos  Apostolos  e  as  Ejnstolas  de  S.  Paulo. . .  Ignoramos  se  estas  tra- 
ducfSes  existem  ainda  hoje  em  alguma  parte. a' 


Livraria  do  rei  D.  Duarte 


Està  Livraria,  formada  em  parte  com  os  livros  que  pertenceram 
a  seu  pae  D.  JoSlo  i,  foi  constantemente  enriquecida  pelas  encommen- 
das  às  Feitorias  portuguezas  nas  prìncipaes  cidades  da  Europa,  e  pe- 
las traduc95es  que  o  monarcha  pedia  a  seu  irmSLo  e  aos  eruditos  do 
seu  tempo.  D.  Duarte  era  um  perfeito  amador  de  livros;  nllo  teve  a 
ventura  de  admirar  a  descoberta  da  Imprensa,  ^e  tanto  veiu  augmen- 
tar  a  Bibliotheca  de  seu  filho  D.  Affonso  v.  Diz  Jollo  Fedro  Ribeiro: 
cEstas  Feitorias  precederam  à  inven9lLo  da  Typographia  no  secolo  xv; 
pois  tendo  todas  de  remetter  para  a  Livraria  d'El-rei  as  obras  que  se 
fbssem  publìcando,  snccedeu  vìrem  as  primeiras  edigSes  até  triplicadas 
e  quadruplicadas  e  assim  permaneceram  até  nossos  dias.»^  0  Catalogo 
dos  livros  d'este  rei  philosopho  appareceu  nas  Provas  da  Historia  ge- 
nealogica (i,  54)  com  0  titulo  :  Memoria  dos  livros  de  uso  d'El^ei  Dom 
Duarte,  a  guai  està  no  livro  antigo  da  Cartuxa  d^Evora^  d'onde  a  fez 
copiar  0  Conde  da  Ericeira,  Dom  Francisco  Xavier  de  Menezes.  Trans- 
crevemos  esse  Catalogo,  commentando-o  : 


^  Ribeiro  dos  Santos,  Memoria  «oòre  cUgumaa  traduegdes  e  edigdes  ìnUicas,  p.  19. 
(Jfem.  da  Acad,,  t,  vii.) 

2  Memorias  da  Aeademia,  t  vii,  p.  20.  Mais  adiante  cita  tambem  uma  tra- 
dQC92o  do  Apooalf^e,  em  portuguez,  do  mesmo  reinado. 

3  R^eoBoes  phUdogicaBy  n/*  4,  p.  11,  not.  a. 

BIBT.  UH.  14 


210  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

0  Pontificai. 

É  0  livro  da  Vida  dos  Fapas,  conbecido  pelo  titulo  de  Liber  pon- 
tificali», attribnìdo  a  Anastacio  Bibliothecario.  0  luxo  calligraphico  e 
08  retratos  dos  pontifices  tornavam  este  livro  uDia  das  joias  mais  es- 
plendidas  das  biblìothecas  reaes.  A  sua  importancia  historìca  é  grande, 
.  por  isso  que  foi  redigido  sobre  documentos  da  egreja  primitiva,  conhe- 
cendo-se  a  existencia  de  tres  redacgòes  anteriores  à  de  Anastacio:  a 
primeira  attribue-se  ao  come90  do  secalo  vi,  em  grande  parte  &  època 
do  pontifice  portuguez  S.  Damaso;  as  outras  duas  pertencem  aos  mea- 
dos  do  secalo  vili.  Anastacio  Bibliothecario  do  Vaticano,  eleito  cardeal 
em  848,  e  tendo  assistido  ao  oitavo  concilio  goral  em  Constantinopla 
em  869,  floresceu  no  secalo  ix  sob  os  pontificados  de  Nicolào  i,  Adria- 
no II  e  JoSo  VII.  O  Liher  pontificalis  existe  publicado  por  Bianchini  e 
Vignoli  (1718-1755)  e  por  Muratori  na  coIIccqSo  dos  Scriptores  rerum 
italicarum  *. 

Marco  Paulo,  latim  e  linguagem,  em  1  volarne, 

A  existencia  d'oste  livro  na  Bibliotheca  de  D.  Daarte  està  ligada 
ao  facto  da  viagem  do  Infante  D.  Fedro,  que  segando  a  tradÌ9So  cor- 
reli as  qtuUro  partidas  do  mando,  0  Infante  troaxe  de  Veneza  um  exem- 
plar  latino  das  viagens  de  Marco  Polo,  e  este  facto  significa  a  impor- 
tancia progressiva  qae  essa  celeberrima  relagSo  ia  adqairindo,  porque 
até  aos  principios  do  secalo  xv  era  considerada  em  goral  corno  fabu- 
^  Iosa,  e  até  se  conta  qae  os  parentes  de  Marco  Polo  Ihe  pediram  à  bora 
da  morte  qae  se  retratasse,  libertando  a  sua  consciencia  da  responsa- 
bilidade  de  tantas  mentiras.  A  importancia  d'este  livro  sobre  a  cosmo- 
graphia  do  secalo  xv  foi  de  tal  ordem  que  se  Ihe  attribue  uma  inflnen- 
cia  decisiva  sobre  as  descobertas  de  Vasco  da  G-ama  e  de  Chrìstovam 
Colombo.  Marco  Polo  era  conhecido  em  Veneza  pelo  nome  de  messer 
Marco  Milione,  por  causa  das  grandes  riquezas  que  trouxera  da  Asia; 
0  seu  livro  tambem  recebeu  o  nome  de  MilhàOy  e  no  Cancioneiro  de 
Resende  encontramos  està  allusSo  particular,  no  sentido  de  maravilha 
inacreditavel  : 

Tambem  dizem  que  é  bispado 
Elvas  com  menystra^am  ; 
outros  meten  maya  MyUiam 
do  mcsmo  ponteficado.^ 


1  Tiraboschi,  /Storia  della  Letteratura  italianaf  t.  lu,  p.  215. 

2  Cane,  ger,^  t.  ii,  p.  141. 


UVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  211 

Ghomes  Eanes  de  Azurara  jà  se  serviu  d'eate  manuscripto  para  a 
Chranica  da  Conquista  de  Gfuiné,  escripta  antes  de  1453,  ^  corno  sup- 
p5e  0  visconde  de  Santarem,  por  isso  que  a  edÌ9So  das  Viagens  de 
Marco  Polo  é  de  1484.  Foi  sobre  elle  que  se  fez  a  traducjSo  portu- 
gueza  qne  em  1502  imprimiu  Valentim  Femandes  junto  com  a  Viagem 
de  Nicolào  Veneto;  pelo  Catalogo  de  D.  Duarte  vemos  qne  existia  ama' 
tradac9llo  portagueza  pelo  menos  desde  1428,  com  certeza  a  terceira 
das  versSes  d'esse  notavel  livro.  Na  sua  noticia  sobre  Marco  Polo,  e 
da  influencia  na  cartographia  do  seculo  xv,  escreve  Walckenaer:  e  Foi 
assim  que  Marco  Polo  e  os  sabios  que  deram  credito  à  sua  relajSo 
prepararam  as  duas  grandes  descobertas  geographicas  dos  tempos  mo- 
demos:  a  do  Cabo  da  Boa  Esperan9a  e  a  do  Novo  Mundo.»  Na  Bi- 
bliotheca  de  D.  Duarte  nfto  se  acham  outras  relafSes  de  viagens  na 
Asia,  comò  as  de  Rubruk,  Jourdain,  de  Severac,  nem  outras  Mirabi- 
lia taes  corno  as  viagens  do  minorità  Frei  Oderico,  de  Mandeville,  de 
Johan  Hayton,  o  que  nos  leva  a  concluir  que  o  folheto  popular  das 
Quatro  partidas  do  Infante  D.  Pedro  nSo  pertence  ao  seculo  xv.  Pelo 
Livro  de  Marco  Polo  (cap.  74)  é  que  se  espalhou  em.  Portugal  a  no- 
ticia do  Preste  Joào  das  Indias,  cujos  descendentes  reinavam  ainda  no 
aeu  tempo  no  paiz  de  Panduk,  nas  fronteiras  da  China  e  da  Mongo- 
lia, corno  vassallos  de  Khubila-Khan.  G-.  Pauthier  confirmou  a  veraci- 
dade  d^esta  noticia  nos  historiadores  chinezes.  As  outras  fontes  da  lenda 
do  Preste  Joào,  corno  a  Carta  apocrypha  ao  Imperador  de  Roma,  a  Re- 
lagSo  da  Viagem  à  Tartarìa  do  frade  dommico  Rubruquis,  a  Carta  de 
Jofto  de  Monte  Corvino  de  1305,  e  a  Histoire  de  Saint- Louis  de  Join- 
ville,  que  tanto  estimularam  a  imagìna9So  occidental,  foram  tambem  a 
causa  do  ferver  dos  primeiros  exploradores  portuguezes  na  Africa. 

Viatico. 

Livro  de  medicina  arabe,  traduzido  por  Constantino  chamado  o 
Africano,  monge  do  Monte  Cassino,  que  o  attribuiu  a  si.  Foi  publicado 
junto  com  as  obras  de  Isaac,  que  vivia  em  1070,  segundo  Antonio  Gal- 
lus,  as  quaes  appareceram  em  Lyon  em  1515  em  casa  de  Barthélemy 
Trot.  0  terceiro  dos  opusculos  de  Isaac  trata  De  Dietis  universalihus 
cum  commenti  Petei  Hispani,  o  nesso  celebre  portuguez  Pedro  JuliSto, 
auctor  das  Summulas  logicales  e  do  Thezaurus  Pauperum.^  Tambem 


1  Cita-o  a  p.  227.  Ed.  Paris. 

2  Ach.  Chereau,  La  Biblio^hque  d'un  Médecin  au  commencemerU  du  XV  sih- 
de,  p.  16. 

14* 


212  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

se  acha  assim  intitalado  este  livro:  tBreviarium  Constantmif  dictum 
Viaticum.'è  O  compilador  Constantino  era  chamado  o  Africano  por  ser 
naturai  de  Carthago;  as  suas  obras  de  medicina  eram  extractadas  dos 
auctores  gregos  e  arabes;  segando  Deizimeris  passa  por  ser  o  fdnda- 
dor  da  Eschola  de  Salerno.  Era  multo  vulgar  este  livro  nas  antigas 
bibliothecas  senhoriaes^  achando-se  citado  corno  existente  em  urna  col- 
legiada  da  Galliza.^  Segundo  Daremberg,  na  Eistoire  dea  Sciences 
Tnédicales,  os  medicos  salemitanos  apparecem  citados  desde  846,  e 
Constantino  Africano  é  um  compilador  plagiario,  comò  o  provaram  tam- 
bem  o  orientalista  Steinschneider  e  Dugast.'  O  que  se  devia  &  tradi- 
9S0  scientifica  greco-latina  foi  ignorado,  comò  diz  Daremberg:  cOs  ve- 
Ihos  salemitanos  ficam  na  sombra;  comtudo  0  Monge  Constantino  nSo 
Buccumbiu  sob  a  sua  reputagSo;  continuaram  a  copial-o,  esperando  em- 
quanto  nSo  foi  impresso.»  ^  A  predilec9llo  pelo  livro  do  Viatico  em  Por- 
tugal  explica-se  pela  corrente  arabe,  que  tambem  se  deu  nos  estudos 
pbilosophicos,  porque  a  medicina  era  exercida  pelos  Mudjares,  e  os  li- 
YTOs,  embora  redigidos  em  portuguez,  eram  aljamiados,  iste  é,  escrì- 
ptos  com  caracteres  arabes,  comò  jà  temos  observado.  Parece  que  na 
BibUotheca  de  D.  Duarte  existiu  uma  outra  copia  com  o  titulo  de  Bre- 
viario. Entre  os  livros  do  infante  D.  Fernando  mencionados  no  seu  tes- 
tamento vem  citado:  Hum  livro  que  chamam  Izac,  em  linguagem;  julga- 
mos  ser  o  auctor  do  seculo  xi  de  diversos  opusculos  medicos.  Na  Bi- 
bUotheca do  duque  Filippo  Sforza,  organisada  por  Facino  da  Fabriano, 
vem  o  ^Viatìcum  constaftini.» 

As  CoUa^des  que  eacreveu  Joào  Rodriguea» 

É  o  livro  ascetico,  composto  por  S.  JoSo  Cassiano,  que  se  inti- 
tola CoUa^lea  doe  Santos  Padres,  euja  leitura  vem  recommendada  na 
Kegra  de  S.  Bento:  «Legat  unas  CoUationes,  vel  Vitas  Patrum.»  0  rei 
D.  Duarte  guardava  na  sua  livraria  outros  exemplares  d'està  obra: 
CoUagfies  que  foram  do  Arcebispo  de  Som  TTiiago,  Livro  doe  Padrea 
Santoa,  que  foi  de  JoSo  Pereira,  e  as  CoUa^dea  de  letra  pequena,  Na 
Livraria  de  Alcoba$a  tambem  se  guardava  uma  traducfSo  completa  em 
lingua  portngueza  das  obras  de  S.  JoSo  Cassiano.^  O  rei  D.  Duarte 
cita  com  frequencia  no  Leal  ConaelJieiro^este  livro  inmiensamente  lido 


1  Lea  Codicea  de  laa  Igìeaiaa  de  Galieia,  p.  125.  Madrid,  1874. 

*  Hiatoire  dea  Soienoea  médicaUa,  1. 1,  p.  261. 

'  Ibidem,  p.  817. 

^  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura,  Ineditoa,  1 1,  p.  15. 


LIYRÀRIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SEGOLO  XV  213 

no8  claustros  da  Edade  mèdia:  «no  livro  das  CoUagdes  dos  Santos 
Padres  se  demostra  qua  geralmente  sam  qaatro  (as  divisSes  da  von- 
tade).»^  «E  antes  convem  no  tempo  da  paz  viver  comò  nos  conselhou 
Sam  Joham . . .  >  '  cE  o  prìmeiro,  que  pertence  ao  temor,  no  livro  das 
CoUagdes  se  apropria  à  fé. .  .»^  O  sabio  monarcha  nSo  se  contenta  a 
■abonar  a  sua  opinilo  com  a  auctoridade  de  S.  JoSo  Cassiano^  ^  traoa- 
creve  nos  capitulos  xvui  e  Bi  a  traducgSo  do  texto  das  CoUagdes. 

Na  Livraria  do  duque  Filippo  Sforza  tambem  existia  o  L^er  Cas- 
siani  super  CoUationilms  sanctorum  patrum.  Na  Livraria  de  Isabel  a 
Oatholica  guardava-se  uma  Suma  de  Coladones  (n.^  31.) 

Miracula  Sanctorum. 

Porventura  algum  dos  Flos  Sanctorum  manuscriptos  do  secnlo  XV, 
ou  a  Legenda  Sanctorum^  de  Jacques  de  Voragine,  denominada  vul- 
gannente  a  Legenda  aurea. 

Blivia. 

A  Biblia  traduzida  em  vulgar  era  o  livro  mais  sumptuoso  das  Bi- 
bliothecas  principescas,  pela  sua  grandeza,  comò  pelos  trabalhos  de  il- 
luminura,  encadema^So  e  ourivesaria,  que  o  revestiam  de  nm  luxo  in- 
excedivel.  Nas  luctas  centra  o  Protestanttsmo,  foi  prohibido  na  Hea- 
pauha  0  uso  da  Biblia  em  vulgar,  circumstancia  que  influiu  no  des- 
Apparecimento  d'estes  manuscriptos. 

Bremairo. 

TraducfSo  do  Breviarium  Constantinif  (Vid.  Viatico^  p-  211.) 
Sendo  livro  liturgico,  é  naturai  que  fosse  do  rito  mosarabe,  por  isso  que 
o  rito  romano  so  comeQou  a  ser  imposto  no  reinado  de  D.  Affonso  v. 
€K1  Vicente,  falando  de  um  clerigo  que  violenta  uma  rapariga,  pinta-o 


1  Op.  dt,  cap.  m. 

2  Ibidem,  p  30. 

3  Ibidem,  p.  40. 

*  Ibidem,  p.  75,  77,  83  e  109. — N'este  manuscripto  apparece-nos  o  k  com  va- 
lor de  q^arenta;  e  jà  acima  fica  um  documento,  a  pag.  126,  em  que  o  b  tem  o  va- 
lor de  ZL.  A  causa  do  emprego  d^este  signal  no  sjstema  da  numera9So  romana,  qne 
apparece  nos  manuscriptos  do  seculo  xy,  nSo  tem  side  cabalmente  ezplicada.  Bran- 
dlo,  na  Monarchia  lusitana,  Prologo,  escreye  :  «A  letra  x...  quando  valla  quarenta, 
ae  ajuntava  &s  duas  pontas  de  cima  ama  virgula  ou  plica.»  0  x  nunca  valeu  qua- 
Tenta;  a  plica  introduzida  pelos  copistas  era  o  Z  da  dezena  xl,  que  por  abreviatora 
«screveram  x  e  por  imperìcia  transformaram  em  b,  corno  o  explica  Viterbo. 


214  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

promettendo'llie  a  absolvi^So  pelo  Breviairo  de  Braga,  quo  era  pro- 
priamente 0  do  rito  da  egreja  nacional.  Existe  ama  edÌ9&o  de  1521  do 
Breviario  de  Braga,  com  o  titulo:  tArte  de  rezar  as  Horas  cananiccu: 
ordenada  aegundo  as  Regras  e  costume  braccharense:  com  outras  cousas 
muytas  que  geeralmente  som  necessarias  para  o  rezar  das  ditas  horasy  par 
qualquer  costume  que  se  reze.  Dirigida  ao  reyerendissimo  Senhor  o  se- 
nhor  Dom  Dioguo  de  Sonsa^  Arcebispo  e  Siir  da  Cidade  de  Bragua, 
primas  das  spanhas  rS.  novamente  feita  por  Sisto  Figueira,  Bacharel 
en  canones  residente  em  o  studo  de  Salamanca.  E  por  mandado  de 
Sua  Senhoria  impressa.»  Este  esemplar  unico  pertenceu  à  Livraria  de 
Barbosa  Machado,  e  acha-se  hoje  na  Bibliotheca  do  Rio  de  Janeiro.^ 

Collages  qae  foram  do  Argobispo  de  Som  Thiago. 
É  a  obra  de  S.  JoSo  Cassiano. 

Dialectica  de  Aristoteles. 

O  nome  de  Tratado  de  Dialectica  foi  dado  por  Aristoteles  a  uma 
das  partes  dos  Topicos,  que  é  um  dos  seis  tratados  que  compSem  a 
Organumy  ou  a  Logica^  de8Ìgna98e8  ambas  empregadas  pelos  commen- 
tadores  gregos  da  grande  obra  do  philosopho  sobre  a  intelligencia.  Se* 
ria  uma  traduc^So  em  portuguez,  comò  o  di  a  entender  o  titulo. 

Dialectica  de  Avicena, 

E  a  Logica  do  celebre  medico  arabe  do  seculo  xi  Ibn-Sina,  a  qual 
fazia  parte,  junto  com  a  Physica  e  a  Metaphysica,  de  um  resumo  (Al" 
Nadjah)  que  o  proprio  auctor  fez  da  sua  vasta  encyclopedia  philoso* 
phica  AlSchefày  em  que  segue  as  doutrinas  de  Aristoteles.  Qualquer 
livro  de  Avicena  era  julgado  no  seculo  xiV  valde  sumptuosum  et  grave. 
Como  medico  exerceu  uma  influencia  completa  nas  Universidades  de 
Fran9a  e  Italia  perto  de  seis  seculos,  até  que  na  època  da  Renascenja 
a  sciencia  medica  achou  as  fontes  gregas.  Na  Livraria  do  Condestavel 
de  Portugal  tambem  se  guardava  um  Emcenna  (n.®  1.) 

Valerio  Maximo. 

E  ama  d'aquellas  obras  de  compilasse  que  devia  agradar  profìm- 
damente  ao  gesto  da  Edade  mèdia  e  ao  pedantismo  da  erudÌ9lo.  0  li- 
vro De  dictis  et  factis  memorabiltlms  è  uma  coUecsSo  de  anecdotaa  so* 


1  Annaes  da  BUfliotheca  do  Bio  de  Janeiro,  1. 1,  p.  870. 


LIVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  215 

bre  religi20y  costumes  de  Roma,  exemplos  de  virtudes,  de  vicios  e  crì- 
meSy  mas  sem  valor  moral,  e  inintelligentemente  extractados  de  fon- 
tea  ignoradas  hoje.  Na  Bibliotheca  do  duque  Filippo  Sforza  guardava- 
se  um:  Valeritt^  Maximus;  na  do  principe  de  Viana  (n.®  68);  e  na  do 
Condestavel  de  Portugal:  Valerius  Maximtis  en  vulgar  frances  (n.®  17) 
e  lo  Valerio,  en  vulgar  castella  (n.®  79.) 

Epistola^  de  Seneca  com  outros  Tratados. 

S3o  as  cento  e  vinte  quatro  Cartas  dirigidas  a  Lucilio  Junior,  ou 
pequenos  tratados  de  moral  sob  a  fórma  epistolar,  quando  Seneca  ca- 
hira  no  desfavor  de  Nero.  Seneca  foi  immensamente  lido  pelos  Padres 
da  Egreja,  e  o  auctor  mais  admirado  durante  a  Edade  mèdia.  Com  as 
Epistolas  andavam  reunidos  outros  tratados,  formando  um  livro  cha- 
mado  Seneca  christìanus.  Tambem  no  catalogo  da  Livraria  do  principe 
de  Viana  (n.®  28)  vem  epistole  senec  en  frances  e  las  epistolas  de  Se- 
neca (n.°  46.)  Na  Livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.®  18)  Epis- 
tolas  de  Senecha  en  vulgar  frances. 

Regimento  de  Principes  picado  de  ouro  nas  tavoas  e  as  cobertoiras 
vermelhas. 

D.  Duarte  cita  com  frequencia  este  livro:  «o  livro  do  Regimento 
de  Pryncepes,  que  compoz  Frei  Gii  de  Roma.»^  «E  diz  no  Livro  do 
rregimento  de  Pryncypes,  que  j^or  trez  cousas  peiience  aos  Rex  e  Se- 
nhores  seer  prudentes ...»  *  «o  livro  do  regimento  dos  Principes,  em 
que  se  declaram  os  peccados  e  fallicimentos  que  pertencem  a  todos  os 
estados,  officios  e  bydades.»'  Na  Bibliotheca  de  Filippo  Sforza  guar- 
dava-se  um  :  Egidius,  De  regimine  principum;  e  na  do  principe  de 
Viana:  un  libre  en  frances  nomenat  egidi  de  regimine  principum  (n.*^  72.) 
Barbosa  Machado,  na  Bibliotheca  Lusitana^  attribue  ao  Infante  D.  Fe- 
dro urna  traducf^o  portugueza  d'està  obra. 

Pastoral  de  letra  antiga. 

Livro  de  Sam  Gregorio,  que  D.  Duarte  cita  no  Leal  Consdheiro: 
e  corno  diz  Sam  Gregorio  no  seu  livro  pastorale  (p.  207.)  E  cmando 
aquy  tralladar  deus  capituUos  do  dicto  Vlvto  pastorcd,  que  fez  Sam  Gre- 
gorio sobre  a  virtude  da  iiberaleza.»  (p.  240.) 


1  Leal  Conaelheiro^  p.  282. 
^  Ibidem,  p.  288. 
9  Ibidem,  p.  191. 


216  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Declaragam  sobre  as  Epistola^  de  Seneca. 

Commentario  no  sentido  christSo  às  doutrinas  estoicas  formuladas 
pelo  philosopho  nas  suas  Epistolas.  D.  Duarte  cita-o  frequentes  vezes 
no  Ledi  Conselheiro  (p.  49,  242,  251,  258,  313,  etc.) 

Agricoltura  qae  foi  de  Joào  Pereira, 

Talvez  urna  traduc9lLo  da  obra  de  CoUumella  De  re  rustica.  Na- 
turalmente este  Joham  Pereira  é  o  mesmo  doutor  a  quem  o  desembar- 
gador  Mangancha  comprou  o  chino  em  pergaminho  (o  commentario  de 
Cino  da  Pistoia  ao  Codigo.)  Na  Bibliotheca  do  duque  Filippa  Sforza 
havia  uma  Agricultura, 

Livro  da  Quinta  Essentia. 

Obra  de  Alchimia,  attribuida  a  Ray mando  Lullo. 

Hum  livro  pequeno  que  come^:  Si  cupis  esse  memor. 

A  este  livro  allude  D.  Duarte:  cE  per  o  saber  da  arte  memora- 
tiva. . .  »  ^  O  visconde  de  Santarem  julga  ser  a  Ara  magna  de  Raymundo 
Lullo.  Pelo  menos  o  rei  D.  Duarte  era  versado  nas  doutrinas  do  grande 
Doutor  illuminado:  ce  aynda  que  os  Raymonistas  multo  demonstrem.»* 
cca  mestre  Reymon^  em  huii  livro  que  fala  da  entengam  primeira  e  se- 
gunda. .  .»^  Na  Livraria  de  Sforza  havia  uma  Ara  memorativa  supra 
tota  philoaophia. 

OtUro  dito  livro  pequeno,  que  comedi  Domino  meo  illustri  potenti 
domino  comite  Nicolao  de  Petraldo. 

E  uma  dedicatoria,  de  que  nada  se  infere  sobre  o  que  seria  este 
pequeno  livro. 

Oa  Cademoa  da  Conjiaaào  que  eacreveu  Joào  Calado. 
Livro  liturgico. 

'      Livro  doa  Evangdhoa. 

Na  Livraria  do  principe  de  Viana  tambem  se  guardava  lo  testa- 
meni  novel  (n.^  69.)  A  traduc{fto  feita  por  Martim  de  Lucena  por  man- 


1  Leal  Conselheiro,  p.  11. 

2  Ibidem,  p.  205. 

3  Ibidem,  p.  394. 


UVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  217 

dado  de  Inigo  Lopes  de  Mendoza  guardava-se  na  Lìvraria  da  rainha 
Isabel  (n.«*  18  e  19.) 

Actos  do8  Apostolos. 

Pertence  à  collecySo  das  traduc98es  portuguezas  da  Biblia  do  se- 
culo  XIV  e  XV. 

Oenesy. 

Estoria  gercd. 

Na  Livraria  de  D.  JoSo  i  existìa  a  Estoria  geral  de  Hespanha, 
jonta  a  um  fragmento  de  versSo  portugueza  do  Genesis.  Na  Livraria  de 
Isabel  a  Catholica  (n.°  100)  achava-se:  «Otro  libro  de  pliego  entero  de 
marca  major  escrìpto  en  papel^  é  en  romance^  é  de  mano^  que  se  dÌ9e 
de  las  gentes  que  poblaron  à  EspaHa  primero,  que  es  la  estoria  gene^ 
Tal,  con  cobertura  de  papel  forrado  de  cuero  bianco.» 

0  Livro  de  Salomào  coberto  de  hezerro. 

Attendendo  à  època  e  &  repre8enta9So  da  Alchimia  na  Livraria 
de  D.  Duarte,  o  livro  attribuido  a  SalomSo  é  a  Clavicula,  a  que  Cor- 
nelio Agrippa,  no  seculo  xv,  ligava  muita  importancia.  O  Soliman  Na- 
meh  (Livro  de  SalomSo)  de  Firdusi,  baseado  sobre  lendas  maravilho- 
sas,  nSo  podia  ser  entSo  conhecido  em  Portugal. 

Coronica  de  Espanha. 

Na  Livraria  de  Isabel  a  Catholica  (n.°  99)  guardava-se:  aOtro  li- 
bro de  marca  mayor  é  romance  é  de  papel,  que  es  la  crònica  de  Es- 
pafia,  con  unas  cuberturas  de  papel  con  cuero  branco.»  E  sob  o  n.^  108: 
cOtro  libro  de  pliego  entero  de  mano  en  romance,  que  es  la  historia 
de  Espaha  en  lenguage  portugués,  con  unas  tablas  horadas,  guamesci- 
das  de  cuero  bianco.»  Na  livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.^  52) 
cita- se  outro  esemplar  en  vulgar  portuguez. 

Coronica  de  Portugal. 

Complemento  &  Historia  geral  de  Hespanha,  trasladada  em  por- 
tuguez ...  e  continuada  na  parte  que  diz  respeito  a  Portugal,  etc.  A  ul- 
tima continua92o  fez-se  jà  no  reinado  de  D.  Affonso  v,  Guarda-se  na 
Bibliotheca  nacional  de  Paris.  Come9ou  a  ser  impressa  pelo  Dr.  Nu- 
nes  de  Carvalho. 

Livro  dos  Martyres, 

Manuscripto  do  Agiologie  impresso  em  1513  por  Bonhomini,  com 


218  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIfifBRA 

0  titulo  Livro  e  Legenda  de  todolos  santos  Martyrea.  Na  lista  dos  pre- 
sentes  mandados  pelo  rei  D.  Manuel  ao  Preste  Jo&o  figuram:  atrinta 
Livros  da  vida  do8  Martyres,  e  todos  seram  de  lenguage  portagueza.»^ 
E  mais  adiante:  «cem  livros  da  vida  epaixam  dos  Martyres^  encader- 
nados  em  tavoas,  meos  cobertos  de  couro.»^ 

Livro  de  Tristam. 

Porventura  é  a  redac(So  conhecida  pelo  nome  de  Brety  que  per- 
tence  a  Luce  du  Ghast  e  Helie  de  Boron.  Na  Bibliotheca  de  Filippe 
Sforza  guarda va-se  um:  «Librazolo  de  Nuptiis  domini  Triatani.*  E  na 
Livraria  do  Principe  de  Viana  (n.**  38)  tristany  de  leonis.  Era  um  dos 
lìvros  lidos  pelo  arrebatado  Carlos  vi. 

O  Amante. 

Veiu  da  Livraria  de  D.  JoSo  i. 

Blivia. 

Livro  da  Montarla  que  compilou  o  vitorioso  Rei  Dom  Joao  otì  guai 
Deus  de  eternai  gloria. 

Veiu  da  Livraria  de  D.  JoSo  i  para  a  de  D.  Duarte 

Merli, 

E  uma  das  partes  do  cjclo  das  Novellas  da  Tavola  redonda,  que 
se  acha  integralmente  representado  em  Portugal  pela  Demanda  do  Santo 
Graal,  Baladro  de  Merlim^  Summa  da  Tavola  Redonda,  Lanzarote  do 
Lago  e  Galaaz.  No  Catalogo  da  Livraria  de  Isabeì  a  Catholica  figura 
(n.®  142):  «Otre  libro  de  pliego  entero  de  mano  escripto  en  romance, 
que  se  dice  de  Merlin  con  cobertura  de  papel  de  cuero  blancas,  é  ha- 
bla  de  Josef  ab  Arimathia.i»  Em  1498  imprimiu-se  em  Burgos  o  Bala- 
dro del  sahio  Merlin.^  Porventura  o  Baladro  era  uma  recita9So  feita 
pelos  Balatronesf  Na  Bibliotheca  de  Benavente,  da  rainha  Isabel,  de 
1440;  existia  uma  Brima  complida  en  romance  con  un  poco  del  libro  de 
Merlin.  Na  Livraria  do  duque  Filippe  Sforza  tambem  se  guardava  um 
Merlinus,  in  prophetiis. 


1  Boleim  de  Bibliograpìnaf  ii,  21. 
'  Ibidem,  p.  54. 

3  £m  um  documento  italiano  de  1160,  a  palavra  BakUrones  vem  junta  dos 
termos  ^o^ae*  e  histridet.  (Muratori,  Diss,  zxi.) 


LIVRARIAS  MANUSCRIPTÀS  DO  SECULO  XV  219 

« 

Hegimento  de  Principes, 

É  um  outro  exemplar  do  livro  de  Gii  de  Roma,  a  traduc(So  feita 
ou  mandada  fazer  pelo  Infante  D.  Fedro.  ^  Com  este  tìtulo  de  Regi- 
mento  de  Principes  ha  outros  livroB,  comò  o  de  S.  Thomaz  de  Aquino, 
dedicado  a  Hugo  ni,  rei  de  Chypre,  e  o  de  Fr.  Francisco  Jimenez, 
do  firn  do  seculo  xiv,  além  de  urna  compo8Ì9ào  poetica  de  Manrique, 
dedicada  a  Fernando  o  Catholico  antes  de  ser  rei  de  Castella. 

Segredos  de  Aristotiles. 

E  a  obra  intitulada  Secretum  secretùrum,  a  qual,  segundo  War- 
ton:  cÉ  urna  obra  cheia  de  disparates  que  a  Edade  mèdia  attribuiu 
sem  escrupulg  a  Aristoteles.»  Andou  traduzida  em  latim  de  um  sup- 
posto originai  grego,  e  em  arabe,  em  hebreu,  italiano,  francez,  ìnglez, 
fiamengo,  e  tambem  em  portuguez,  corno,  se  infere  pelo  titulo  com  que 
é  inscripto  no  catalogo  do  rei  D.  Duarte.  No  manuscripto  da  Biblio- 
tbeca  nacional  de  Paris,  do  seculo  xiv,  diz-se  que  Aristoteles  compo- 
zera  està  obra  na  sua  velhice,  narra  os  prodigios  que  fìzera,  provando 
que  subirà  ao  céo  em  um  carro  de  fogo.  Na  Bibliotheca  de  Edimburgo 
0  manuscripto  18.  7.  4.  é  a  traduc92o  do  Segredo  dos  Segredos:  cCy 
commence  le  livre  des  meurs  du  gouverment  dea  seigneurs,  appelé  les 
Secreta  des  Secreta  de  Aristote.»^Na  Livraria  do  duque  Filippo  Sforza 
inscreve-se  um  manuscripto:  e  De  conservatione  sanitatis  Magistri  Mar. 
gni:  Secreta  secretorum  Aristo tilis:  flos  medicine.»  No  Leal  Conselheiro, 
o  rei  D.  Duarte  cita-o  duas  vezes  :  acà  tal  rey  louva  muyto  Aristotil- 
les  no  seu  livro  De  Secretis  Secretorum,  e  nom  sem  razom.i  ^  Foi  tam- 
bem traduzido  em  verso  no  seculo  xii,  por  Fedro  de  Vemon. 

0  Livro  de  Qalaaz. 

Era  a  lei  tura  favorita  do  Condestavel  D.  Nuno  Alvares  Fereira, 
que  procurava  imitar  a  virgindade  do  heroe,  comò  se  diz  na  Chronica 
anonyma  ;  faz  parte  do  cyclo  completo  da  Tavola  Kedonda,  multo  sabo-. 
reado  na  córte  de  D.  JoSo  i. 

O  Livro  da  Cetraria  por  CasteUào. 
Fertenceu  à  Livraria  de  D.  JoSo  i. 


1  Panorama^  t.  ir,  p.  7. 

'  Paul  Meyer,  Rapporta  p.  106. 

3  Op.  cU.^  p.  176  e  301. 


220  HISTORIÀ  DÀ  UNIYERSIDÀDE  DE  C0IM6RA 

0  Livro  daa  TVovas  de  El-Rei  Dom  Diniz^ 

E  um  Cancioneiro  d'aqnelle  monarcfaa  trovador,  independente  do 
corpo  dos  Cancioneiros  da  Bibliotheca  do  Vaticano  e  Colocci  Brancuti, 
onde  se  acfaa  incluido.  Naturalmente  era  urna  copia  sumptuosa,  que  se 
guardava  na  corte.  A  referencia  que  o  marquez  de  Santillana  faz  is 
trovas  de  D.  Diniz  jà  é  allusiva  a  urna  vasta  coUecyBo  em  que  a  par 
de  outros  trovadores  se  destacava  o  egregio  monarcha.  Lopes  de  Moura 
publicou  com  o  titulo  de  Cancioneiro  de  D.  Diniz  117'Xìan98e8  extra- 
hidas  da  colIec9So  vaticana  4804;  com  o  achado  do  Cancioneiro  Co- 
locci Brancuti  appareceu  mais  urna  serie  de  trovas  de  D.  Diniz  des- 
conhecidas.  ' 

Livro  da  Corte  Imperiai. 

0  manuscripto  que  actualmente  existe  na  Bibliotheca  do  Porto, 
n.^  803,  em  pergaminho  in-4.®  de  134  folhas,  e  que  pertencera  d  Li- 
vraria  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  termina:  ^Este  livro  he  chartiado 
Corte  enperial  em  que  he  dispiUado  a  ffé  chriatà  com  os  Judeos  e  mou- 
ro8,  aegundo  claramente  se  mostra  nos  capitolos  em  està  tavoada  eacriptos,^ 
Tem  no  resto  a  seguinte  nota:  tEste  livro  he  chamado  corte  enperial 
0  guai  livro  he  dafom  Vasques  de  calvos  morador  na  cidade  do  porto.^ 
£  um  livro  mystico  com  fórma  noveUesca,  uma  comò  degenera^^  da 
cavallerìa  celeste. 

Livro  da  Lepra  encademado  em  purgaminho. 

Livro  de  Logica, 

Qualquer  dos  tratados  mais  importantes  da  Edade  mèdia,  comò  a 
Logica  de  Arìstoteles  ou  a  de  Avicenna. 

Livro  dos  Pregagdes. 

Provavelmente  alguma  Summa  Predicantium,  comò  se  usavam  na 
Edade  mèdia,  e  traduzida  em  vulgar.  Na  Livrarìa  do  Infante  Santo 
guardava-se  um  Livro  daa  Prega^Ses  por  Fr.  Vicente  em  lingoagem. 

Libro  dos  Meditagdes  de  Santa  Agostinho,  e  das  ConfasZea. 

Existia  um  outro  exemplar  na  Livrarìa  de  D.  Duarte:  Um  livro 
das  MedUa^es  de  Santo  Agostinho,  que  trasladou  o  mo^  da  Camara. 
O  Infante  D.  Fernando  tambem  possuia  outra  copia. 

Cademo  das  Commemora/}3e8,  em  letra  grosa. 


LIVRARIAS  MANUSCRIPTÀS  DO  SEGULO  XY  221 

lAwo  das  Oraa  do  Espirito  santo  encademado  em  letra  grosa  co- 
berto  de  coirò  verde. 

Na  Livraria  do  Condestavel  de  Fortugal  (n.^  48)  havia  um  manu- 
scripto  com  o  titolo  :  Gres  de  nostre  dona,  del  Sanct  sperit  e  lo  quicum- 
que  volt. 

Cademos  das  cidades  e  vUlas  de  Portugcd. 

Era  um  cadastro  do  reino,  porventura  mandado  fazer  pelo  proprio 
D.  Duarte;  as  divisòes  territoriaes  prevaleceram  até  ao  anno  de  1527, 
em  que  o  rei  D.  Manuel  mandou  fazer  esse  outro  que  se  intitula:  Li- 
vro  do  numero  que  se  fez  das  cidades  e  vylas  e  loguares  dantre  doyro  e 
mynho  e  moradores  ddlas,  e  assy  com  quem  partem,  *  Este  mesmo  grande 
cadastro  goral  do  paiz  desmembrou-se  ;  J.  Fedro  Ribeiro  ainda  viu  o 
fragmento  supracitado  de  Entro  Douro  e  Minho,  e  urna  copia  do. ca- 
dastro da  Beira;  Rebello  da  Silva  acbou  na  Torre  do  Tombe  o  cadas- 
tro do  Àlemtejo,  nSo  se  encontrando  o  do  Algarve. 

Livro  da  Virtìiosa  Bemfeitoria. 

No  Leal  Consdheiro  fala  o  rei  D.  Duarte  d'este  livro  (p.  169): 
ae  o  infante  Dom  Fedro,  meu  sobre  todos  prezado  e  amado  irmSlO;  de 
cujos  feitos  e  vyda  som  contente,  compoz  o  livro  da  virtuosa  bemfeitO' 
ria,  e  as  horas  da  confissomela  E  falando  da  virtude  da  liberaleza,  toma 
a  alludir  a  este  trabalho:  «daquesta  virtude  no  livro  da  virtuosa  bem- 
feitoria,  que  meu  sobre  todos  presado  e  amado  irmSo  o  Infante  Dom 
Fedro  compoz,  he  bem  e  largamente  trautado.]»  (p.  173.)  E  uma  com- 
pila9lo  doB  sete  tratados  de  Seneca.  O  illustre  Infante  traduziu  tam- 
bem  Vegecio,  De  Re  militari,  e  Cicero,  De  Officiis,  Na  Academia  das 
Sciencias  existe  um  apographo  da  Virtuosa  Bemfeitoria. 

Livro  das  Ordenagdes  dos  Reis, 

Em  uma  certidUo  de  1459  do  Mostreiro  de  S.  JoSo  de  Tarouca, 
dta-se  0  Livro  das  Ordena^Ses  que  onda  na  Chancdlaria^  talvez  o  co- 
digo  mandado  ordenar  por  D.  JoSo  l  ao  seu  jurisconsulto  JoSo  Men- 
des  Cavalleiro.  As  Ordena^es  de  D.  Duarte  acham-se  hoje  publicadas 
na  Portvgaliae  Monvmenta  historica, 

Livro  dos  Officios  da  Casa  de  algum  rei. 

Opuscolo  attribuido  a  S.  Bernardo,  mas  escrìpto  por  Bernardo 


1  Arch.  nacion.,  Gav.  15,  Ma^.  24,  n.»  12;  e  Gav.  5,  Ma^.  1,  n*  47. 


222  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Silvestre  ou  Camotense;  no  secalo  xii;  foi  traduzido  para  castelfaano, 
supp5G-8e  que  por  Hernan  Perez  de  Gusman.  Na  Livraria  de  Isabel  a 
Catholica  (n.°  33)  existia  tambem:  «Otro  librico  chiquito  delgado  en 
pergamino  de  mano  en  latin  que  es  d  regimento  de  la  casa  que  hizo 
Bernaldo  à  Raimundo,  con  unas  cobiertas  de  cuero  Colorado.»  Na  Li- 
vraria do  Condestavel  de  Pertugiai  (n.°  38)  vem  um  Levament  fet  dea 
Officiala  de  casa  del  eenyor  Rey,  mas  nSo  tem  o  caracter  goral  da  obra 
acima  indicada. 

Bartolo  com  tavoas  e  coirò  verde, 

Talvez  a  traduc93o  portugueza  dos  Commentarios  do  celebre  ju- 
risconsulto  italiano,  à  qual  allude  o  Infante  D.  Pedro.  Na  Livraria  da 
rainha  Isabel  (n.°  72):  Bartolo  sobre  el  esforzado. 

Marco  Tullio^  o  qual  tirou  em  linguagem  o  Infante  D.  Pedro. 

E  a  traducf^o  do  livro  De  Officiis.  Na  livraria  de  Isabel  a  Catho- 
lica (n.°*  11^  e  119):  Tulio  de  Officiis,  en  latin;  e  na  do  Principe  de 
Viana  (n.*^  17):  Tullius  de  officiis;  outro  na  Livraria  do  Condestavel  de 
Portugal  (n.^  16.) 

Livro  da  Guerra. 

D.  Duarte  cita-o  no  Leal  Conselheiro.  Vegecio,  lyvro  da  cavallaria 
(p.  290);  sera  este  a  traduc(2Lo  feita  pelo  Infante  D.  Pedro  do  De  re 
militari. 

0  Livro  do  Conde  de  Lucanor. 

Collec$So  de  quarenta  e  nove  contos  ou  exemplos,  por  Don  Juan 
Manuel^  imitados  do  gesto  orientai  e  em  parte  tirados  da  Disciplina 
dericalis  de  Pedro  Affonso.  Na  Livraria  de  Isabel  a  Catho.lica  (n.**  160) 
tambem  se  guardava:  a  Otro  libro  de  pliego  entero  en  papel  de  romance, 
que  son  los  consgos  dd  conde  de  Lucanor  con  unas  tablas  de  cuero  Co- 
lorado viejas.» 

Jtdio  Cesar. 

Este  titulo  pode  designar  os  Commentarios,  que  tambem  se  guar- 
davam  na  Livraria  do  Prìncipe  de  Viana  (n.^  21):  commentariorum  ce- 
saris.  Na  Livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.*  11):  Sustonio,  da 
Vida  de  Julio  Cesar  en  portugués.  Parece  ser  este  o  livro  pertencente 
a  D.  Duarte. 


UVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  223 

Coronica  despanha  em  cademos. 

Bartolo  em  cadernos  encad&nìado  em  purgaminho. 

Conquista  de  Ultramar 

Narrativa  das  guerras  da  Terra  santa,  mais  noyellesca  do  que  his- 
torica;  parte  é  traduzida  de  Gailherme  de  Tyro,  e  outra  imitada  das 
aventuras  do  Chevalier  du  Cygne,  Attribuiram-na  a  Affonso  o  Sabio. 
Na  Livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.®  47)  tambem  se  guardava 
um  exemplar:  Coroniques  e  Conguestes  de  Ultramar,  en  vulgar  castella. 
No  Cancioneiro  geral,  de  Resende,  allade-se  (ili,  531): 

assy  0  diz  entro  tezto 
na  conquista  d'ultramar. 

Livro  da  Cetraria,  que  foi  d'El-rei  Dom  Joào. 

Orto  do  Sposo, 

Guardavam-se  duas  copias  na  Livraria  de  Alcobaja  (n.®  273.)  Na 
Livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.®  58)  tambem  se  descreve: 
Orto  do  Esposo  en  vulgar  portugués.  O  titulo  completo  é  :  Orto  do  Es- 
poso  edijicado  de  muitos  Ex&mplos  para  instrucgào  e  recreagao  das  Ai- 
mas,  por  Frei  Hermenegìldo  de  Tancos.  Guardam-se  hoje  na  Biblio- 
theca  publlca  de  Lisboa.  Alguns  dos  Exemplos  vem  publicados  nos 
Contos  tradicionaes  do  Pow  portuguez. 

Agricultuta,  que  foi  d'el-rei  Dom  Joào. 

Arvore  das  Batalhas. 

0  rei.  D.  Duarte  mostra  que  leu  este  livro,  citando-o  no  Leal  Con- 
selheiro  (p.  86):  cnossa  fé  se  pode  creer  sem  myllagres  com  tantas 
mortes  de  santos,  heresias,  ypocrisias,  cysmas,  symonias,  comò  d'el- 
las  em  somma  se  faz  mengom  no  livro  da  Arvore  das  Batalhas.  »  Tam- 
bem IVIartorell  no  Tirant  U  Blanch  faz  com  que  o  seu  heroe,  adorme- 
cendo  sobre  o  cavallo,  y&  dar  a  uma  ermida  onde  Guilherme,  duque 
de  Warwich,  que  fazia  vida  solitaria,  estava  lendo  a  Arvore  das  Ba- 
talhas, É  este  livro  escripto  por  Honoré  Bonnet,  prior  de  Salons  de 
Gran,  do  tempo  de  Carlos  vi.  Na  Livraria  do  Condestavel  de  Portu- 
gal (n.°  9)  vem:  Uarbre  de  batalles,  enfrances.  Ha  uma  traducQ&o  ma- 
nuscrìpta  de  Diego  de  Valencia,  do  tempo  de  D.  JoSo  li. 

Marco  Tulio, 

É  0  livro  da  Rhetorica  de  Cicero,  traduzido  por  D.  Affonso  de 


224  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

Cartagena,  bispo  de  Burgos,  a  pedido  de  D.  Duarte.  Guarda-se  hoje 
na  Bibliotheca  do  Escurial,  talvez  proveniente  do  saque  de  Filippo  u 
em  Fortogal.  Tem  o  seguiate  titolo: 

Libro  de  Marcho  tullio  gì^ron  q  se  llama  dela  Retorica,  trasladado 
de  latin  en  romance  por  el  muy  reverendo  obpo  de  burgos  a  ynstan- 
cia  del  mny  esclares9Ìdo  Principe  don  eduarte  Bey  de  Portugal. 

«Fablando  con  vos,  princepe  esclarecido,  en  materias  de  sciencia 
en  que  vos  sabedes  fablar,  en  algunos  dias  daquel  tiempo  en  que  en 
la  vuestra  córte^  por  mandado  del  muy  católico  Bey^  mi  se&or,  estaba^ 
vinovos  àf  voluntad  de  haber  la  Arte  de  la  Retorica  en  claro  lenguaje, 
por  conocer  algo  de  las  doctrinas  que  los  antiguos  dieron  para  formoso 
fablar.  Et  mandàstesme^  pues  yo  a  està  sazon  parecia  haber  algunt 
espacio  para  me  ocupar  en  cosas  estudiosas;  que  tornasse  un  pequeno 
trabajoy  et  pasase  de  latin  en  nuestra  lingua  la  retorica  que  Tulio  com* 
puso.  Et  corno  quier  que  en  el  estudio  deUa  fué  yo  tan  poco  ocupado, 
e  despendi  tan  poco  tiempo,  que  no  digo  para  la  trasladar,  mas  àun 
para  entender  algo  della  me  reputaba  et  reputo  insuficiente  ;  pero  aca- 
tando  al  vuestro  estudioso  desco,  comencé  à  poner  en  obra  vuestro  man- 
damiento.  Et  comenzando  ocupar  en  elio  la  péSola,  sobr evino  minha 
partida  et  quedó  à  vós,  segunt  se  suole  facer  en  las  compras,  comò  por 
manera  de  sefial,  una  muy  pequena  parte  del  comienzo;  et  vino  con- 
migo  el  cargo  de  lo  acà  complir. . .  Pero  entre  las  otras  ocupaciones 
tome  algunt  poco  espacio  para  complir  vuestro  mandado,  et  pagar  ya 
està  debda.» 

Livro  das  Trotxxs  d'El-Rei  Dora  Affonso,  encademado  em  couro,  o 
guai  compilou  F.  de  Moniemór  o  novo. 

Collec9So  das  Cantigas  de  Affonso  o  Sabio,  avo  de  D.  Diniz,  em 
numero  de  quatrocentas  e  uma,  em  versos  de  seis  e  doze  syllabas,  imi- 
taySes  da  poesia  provengala  escriptas  em  dialecto  galleziano. 

« 

Vederlo  Maximo  em  aragoez. 

Ouerras  da  Macedonia  ém  papel  de  marca  grande 

E  a  Hiatoria  Alexandri  magni  regia  Macedoniae,  de  Praeliis. 
Schoell,  na  sua  Historia  àbreviada  da  Litteratura  grega  (l,  329),  filia 
nas  tradigSes  beroicas  de  Alexandre,  que  se  propagaram  na  Europa, 
o  desenvolvimento  das  lendas  de  Carlos  Magno  e  de  Arthur;  diz  o. 
critico:  cSimeSo  Seth  tambem  traduziu  do  persa  para  grego  uma  bis- 
toria  fabulosa  de  Alexandre  o  Grande,  que  ao  que  parece  foi  o  origi- 
nai ou  o  modelo  do  primeiro  romance  de  cavallerìa  que  a  Europa  co- 


LIVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SECULO  XV  225 

nheceU;  da  famosa  Histaria  e  Vida  de  Carlos  Magno  e  de  Roland,  com- 
posta antes  do  secalo  xn,  e  attribuida  a  Turpin,  arcebispo  de  Rheims 
no  tempo  de  Carlos  Magno.  NSo  quer  isto  dizer  que  Turpin  conhecesse 
a  traducgSo  de  SimeSo  Seth,  mas  circulava  uma  versSo  latina,  intitu- 
lada  Hiatoria  Alexandri  magni,  regia  Macedonia^,  de  praeliis,  que  desde 
08  primeiros  tempos  da  typographia  foi  muitas  vezes  impressa  e  tra- 
duzida  em  muitas  linguas.  No  romance  attribuido  a  Turpin,  as  fa^a- 
nhafl  que  o  Oriente  fabuloso  conta  de  Alexandre,  sSo  attribuidas  a  Car- 
los Magno,  0  heroe  do  Occidente;  por  seu  turno  este  romance  foi  o 
modelo  da  Chronica  do  rei  Arthur  e  dos  Cavalleiros  da  Tavola  He- 
donda,  composta  por  1138,  por  Godefroi  de  Monmouth,  e  porventura 
da  Historia  de  Amadis  de  Gaula,  que  veiu  a  ser  para  a  Hespanha  o 
que  Carlos  Magno  foi  para  a  Fran9a  e  Arthur  para  a  Inglaterra,  o 
heroe  a  quem  os  novellistas  subsequentes  prenderam  o  fio  das  suas  fa- 
bulas.  A  Historia  de  Alexandre  tambem  provavelmente  motivou  a  idèa 
do  primeiro  poema  francez  de  uma  certa  extensSo,  que  um  normando, 
chamado  Alexandre,  compoz  por  1200;  este  poema,  cujo  titulo  é  Ale- 
xandre, apresenta  numerosas  allegorias  que  se  referem  a  Filippo  Au- 
gusto. Assim,  um  medico  de  Constantinopla,  do  seculo  xi,  empregando 
alguns  momentos  de  ocio  nos  passatempos  da  córte  onde  vivia,  deu 
nascimento  a  um  dos  generos  de  litteratura  o  mais  rico  e  o  mais  agra- 
davel  da  Europa,  b  Na  Livraria  do  Principe  de  Viana  (n.®  48):  Decada 
de  bello  macedonico.  Na  do  Condestavel  (n.®  45):  De  bello  macedonico. 

O  lAvro  de  Romaqueya,  em  papel. 

No  Conde  de  Lucanor,  capitulo  xrv,  ha  um  conto  da  Romaquya, 
mulher  do  rei  Ben-Avit  de  Sevilha.  Seria  alguma  novella  mais  desen- 
volvida  d'esse  cyclo  tradicional? 

Capituloa  gue  El-Rei  Dom  Duartefez  guando  em  boa  horafoi  Rei, 
Livro  de  Monteria,  por  caateUSo. 

Livro  de  papel  velho  encademado  em  purgamnho  que  fola  doa  eoa- 
fumea  doa  homena  e  otUraa  couaaa. 

Na  entrega  dos  Livros  da  Universidade  de  Lisboa,  de  1513,  cita- 
te comò  existindo  ali:  HU  volume  deJUoaofia  aobre  oa  Coatumea  e  vida 
doa  homens.  É  um  livro  de  ethica,  do  seculo  xv. 

O  Arcypreate  de  Fyaa. 

É  a  collec{So  das  poesias  do  celebre  Juan  Roiz,  conhecide  pelo 

BI8T.  UH.  15 


226  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

nome  de  Arcipreste  de  Hita,  do  reinado  de  Affonso  xi.  E  o  poeta  qae 
mostra  a  mais  directa  influencia  franceza  dos  troveiros  na  peninsula. 
Urna  foiba  de  pergaminho  avulsa,  contendo  a  fabula  do  rato  e  da  mon- 
tanha,  foi  trazida  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  para  a  Bibliotheca  do 
Porto  por  Diego  Kopke;  por  ella  se  vd  que  existiu  urna  traduc^So  por- 
tugueza  em  verso  das  obras  do  Arcipreste  de  Hita.  O  nesso  estudo  so- 
bre  està  traduc9&o  do  seculo  xv  vem  nas  Qu.estZes  de  LiUeratura  e  Arte 
portugueza,  O  poema  Ovidio  da  Velhay  de  Richard  de  Foumival;  que 
vem  citado  na  CSrte  Imperiai,  seria  talvez  oonhecido  através  da  para- 
phrase  castelhana  Bodas  de  D.  Mdon  de  la  Huerta^  do  Arcipreste  de 
Hita.  Na  livraria  de  Isabel  a  Catholica  (n.®  131):  «Otre  libro  que  se 
dise  el  Arcipreste  de  Ita,  en  papel  de  mano  de  cuarto  de  pliego  en  ro- 
mance, que  Bon  las  copia»  del  Arcipreste  de  Fita^  con  unas  tablas  de 
papel  forradas  en  cuero  Colorado.» 

Libro  de  Anibal  por  portuguez^ 

Na  Livraria  do  principe  de  Viana  (n.^  24)  vem  uma:  mta  aHexan- 
dri  edile  et  annihalis. 

Livro  de  Monteria^ 

Um  livro  das  Medita^Ses  de  Santo  Agustinho  gue  trdadou  o  mo^ 
da  Camara. 

» 

Estorya  de  Troya  por  aragoez. 

E  o  celebre  livro  ìntitulado  Historia  Trojana,  de  Ghddo  de  Co- 
lumna,  terminado  quando  muito  em  1285,  e  imitado  de  Dares  Phry- 
gio.  O  conde  D.  Fedro  j&  cita  oste  livro  no  seu  Nobiliario:  e  E  per  està 
rrazom  moueromsse  tòdas  as  gentes  das  terras,  e  veerom  sobre  a  Troya 
e  teueromna  yercada  dez  annos.  E  ouue  hi  grandes  fazemdas  e  mortes^ 
gramdes  cauallarias  assy  corno  fatta  na  ssa  estorca,  3  ^  No  retrato  que 
Hernan  Perez  de  Gusman  fez  do  chanceller  Pero  Lopes  de  Ajala,  seu 
tio,  diz  :  «Por  sua  causa  foram  em  Castella  conhecidos  livros  que  d'an- 
tes  o  nSo  eram,  taes  corno  Tito  Livio,  que  é  a  mais  digna  leitura  ro- 
mana, a  Queda  dos  Orandes,  os  Moraes  de  S.  Gregorio,  o  livro  de  Isi- 
doro De  summo  bene,  de  Boecio,  a  Historia  de  TVo^a.i  Na  Bibliotheca 
do  duque  de  Ossuna  guarda-se  uma  traduc^So  da  Historia  de  Troya 
em  gallego.^  Jayme  de  Coresa,  secretano  de  Pedro  rv  de  AragSo^  tra- 


1  Pori.  Man.  Mst.,  voi.  i,  p.  286. 

2  Tubino,  Becherchet  d'Anthrop^  p.  11. 


UTRARIAS  ìfANUSCRIPTÀS  DO  SEGOLO  XV  227 

doziu-a  para  limosino  em  1287.  Possuiu-a  a  rainha  Isabel  na  sua  Livrar 
ria  (n.^*  109  e  110)  e  em  Benavente:  Conquista  de  Ttoya,  qae  romanzò 
Fedro  de  Chenebrilla.  O  principe  de  Viana  (n.^  55)  possuia  urna  hUy- 
ria  tebane  et  troyane.  Na  Livraria  do  Condestavel  de  Portugal  (n.^  85): 
TSroya  en  leti. 

lAvro  de  Sumeliào. 

Livro  de  Estrologia  encademado  e  coberto  de  coirò  preto. 

Livro  de  resar  d'el-Sei  em  qae  està  a  ConJUsSo  geral. 
Talvez  o  livro  das  Horas  de  Santa  Maria,  de  sen  pae,  e  o  livro 
das  Horas  de  ConfissSo  escripto  pelo  infante  D.  Fedro. 

Livro  das  Trovas  de  El-rei. 

Cancioneiro  do  rei  D.  Doarte,  hoje  completamente  perdido;  Babe- 
se  que  era  poeta^  pela  tradttC9So  em  verso  de  redondilha  que  fez  da 
orajSo  do  Jìisto  Jùiz,  escripta  em  latim  do  secalo  x,  que  em  outro  lo- 
gar  publicàmos. 

Livro  dos  Padres  Santos  empapd  de  marca  mayor  quefoi  de  JoSo 
Pereira. 

Livro  da  Primeira  Partida. 

É  um  fragmento  do  Septenario  de  Àffbnso  o  SabiO;  compìlado  das 
Decretaes;  do  Digesto,  Codigo  Jastinianeo  e  Fuero  Jozgo.  Na  Livra- 
ria da  rainha  Isabel  tambem  appareoem  as  Partidas  em  separado. 

Dous  livros  de  Martim  Pires. 

No  Leal  Conselheiro  (p.  352)  lé-se:  cem  bau  lyvro  que  fez  bua 
que  se  chama  Martym  Pires,  he  feìta  boa  declara9om  segando  vos  j& 
demostrei;  e  quem  d'elles  (peccados)  quizer  aver  comprìda  enforma9om 
veja  o  dicto  livro,  porque  Ihe  darà  para  ella  grande  ajuda.»  Frei  For- 
tunato de  S.  Boaventura,  nos  Intditos  de  Alcoòagaj  1. 1,  p.  15,  fala  «das 
obras  theologìcas  do  hespanhol  Martim  Pires,  e  outraa,  que  n2lo  dariam 
mènoB  de  trinta  a  quarenta  volumes ...» 

CoUa/^es  de  letra  pequena. 

Livro  de  cavalgar,  que  el-rei  D.  Duarte  compHou. 

É  0  ultimo  livro  do  catalogo  de  D.  Duarte  ;  estava  jà  escrìpto  an- 

15  # 


228  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tea  do  Leal  Consdheiro  (1428  a  1437),  porque  ahi  apparece  citado: 
cCom  esto  concorda  huu  capitoUo  quo  no  livro  de  cavalgar  avia  acri* 
ptOy  o  qual  aqui  fiz  tralladar.»  (p.  398.)  Pelo  titulo  da  obra  Tè-se  quo 
D.  Daarte  o  compozera  em  aendo  Iffante.  Està  obra,  algana  secolos 
perdida,  foi  achada  em  1820  na  Bibliotheca  nacional  de  Paris,  no  co- 
dice 7007,  sondo  publicada  com  o  Leal  Cansdheiro.  Alladiram  a  ella 
08  dironistas  Daarte  Nones  de  LeSo  e  Frei  Bernardo  de  Brìto,  por 
fórma  vaga,  comò  quem  nSo  vira  a  obra;  o  visoonde  de  Santarem  di£ 
cathegoricamente  que  cnBo  se  encontrou  em  Portugal  até  hoje  nem 
mesmo  um  so  fragmento.» 

Todos  estes  livros  se  dispersaram  com  o  tempo:  cDos  livros  que 
ajmitoa  D.  Daarte,  apenas  sabemos  da  existencia  do  intitalado  Carte 
Imperiai  e  de  um  fìngmento  do  Regimento  de  Principea.  Tudo  o  mais 
quasi  com  certeza  se  poderia  talvez  dizer  que,  ou  o  tempo  consummio, 
ou  jaz  sepultado  por  Bìbliothecas  estrangeiras  comò  succede  &s  obras 
do  mesmo  monarcha.»  '  D.  Duarte  cita  outras  obras,  comò  os  DistichoSj 
de  Dionysio  Cato,  e  a  Viia  Christì,  de  Ludolpho  Cartusiano,  escripta 
em  1330:  «E  naquesto  esso  medes  concorda  bua  parte  daquelle  livro 
da  Vita  Xpò,  que  fez  segundo  dizem,  que  por  el  nom  se  nomèa,  huu 
fireire  da  ordem  dos  Cartuxos ...»  Este  livro,  mandado  traduzir  pela 
duqueza  de  Coimbra,  D.  Isabel,  foi  dado  &  estampa  pela  rainha  D.  Leo- 
nor  em  1495,  e  é  um  dos  primeiros  e  principaes  monumentos  da  Im- 
prensa  em  Portugal. 

Trataiìo  de  Vtrtud. 

«Conmigo  pensando  determiné  trasladar  en  nuestra  comun  lengu» 
castellana  un  gracioso  e  noble  tratado  que  de  virtudes  falle,  el  cual  de 
los  diohos  de  los  Morales  filosofos  compuso  el  de  loable  memoria  D« 
Alfonso  de  Santa  Maria,  obispo  de  Burgos,  al  muy  illustre  e  muy  in- 
clito Sr.  D.  Duarte  rey  de  Portugal,  seyendo  princepe,  al  cual  Menuh 
rial  de  Virtudes  intituló.»  (No  Escurial.) 

livraria  do  Mante  D.  Fernando  o  Santo 

É  principalmente  composta  de  livros  mysticos,  segundo  o  car«- 
cter  de  D.  Fernando;  antes  de  partir  para  a  desgra9ada  expedifZo  a 


*  PcMoramaf  t  ir,  p.  7. 


LIVRARUS  MANUSGRIPTAS  DO  SEGULO  XY  229 

Tanger,  onde  foi  vìctima,  fez  o  infiuite  testamento,  e  n'eUe  enumera  os 
aena  livros  :  ' 

Huma  Brivia  peqwna  por  latìm, 

Jtem,  hum  flo8  sanetorum. 

Item,  hum  Iwro  de  prega^fes  de  Frey  VicerUe  par  lingoagem. 

Item^  hum  Ivoro  que  ehama  Crimaco. 

liem,  hum  Evangdiorum. 

Item,  hum  cademo  de  canta  de  Santa  Maria  daa  Nevea. 

(Enmnera  varìos  cademoB  de  officios  litorgicos.) 

Item,  a  livra  das  CaUagiea  das  Pad/res  e  eetatuta  Mono/charum. 

Item,  as  eermlSes  de  Santa  Agostinha  por  Latim. 

Item,  hum  livra  de  lingaagem  que  chamam  razaL  de  amar.  (Citado 
no  Index  de  1624.) 

Item,  hum  livra  das  medita^ks  de  S.  Bernardo, 

Item,  hum  livra  de  lingaagem  que  chamam  Stimula  amoria. 

Item,  a  Soliloquio  de  Santo  Agostinha,  e  de  auas  meditagli  em  lin- 
goagem, 

Itemy  outra  livra  que  chamam  LmCj  em  lingaagem. 

Item,  hum  livra  de  papd  par  LaJtim  de  muitae  cotuas  misticas  que 
foi  da  Thezoureira  de  Evara. 

(Enumera  Missaes  e  Antiphonarios.) 

Item,  hum  livra  da  vida  de  S.  Jeranymo  em  lingaagem. 

Item,  a  Livra  da  Rainha  Dana  Uizabeth. 

Item,  dous  livros  piquenos  de  Ora^ks  etc.  bem  corno  a  livro  das  ma- 
roiss  de  San  Gregario. 

Item,  leixo  a  Femam  Lopez,  meu  escrivSo  da  puridade^  hum  livro 
de  lingaagem  que  d  me  deu,  que  chamSo  hermo  espiritual. 

DeBcreveremoB  d'eates  livros  aquelles  que  nos  revelem  o  estado 
mental  da  època,  que  precedeu  a  descoberta  da  Imprensa. 

No  testamento  do  Infante  Santo  vem  citado  o  livro  de  hoc.  E  uma 
obra  de  Medicina,  assim  designada  pelo  nome  do  seu  auctor;  d'ella  fala 
Bodriguez  de  Castro:  «Por  los  aSos  de  Cristo  de  1070,  vivia  en  Es- 
paBa  un  celebre  judio  medico,  Uamado  Izchaq,  auctor  de  una  obra  de 
medicina  en  castellano,  que  trata  de  varias  especies  de  calenturas  y  de 


1  0  testamento  està  publicado  por  José  Soares  da  Silva,  MemorioM  de  D. 
Jaào  J,  1. 1,  p.  t50. 


230  mSTORU  DA  UNIVERSIDADE  D£  GOIMBRA 

tercianae  e  cuartanas;  j  he  visto  ms.  en  un  còdice  in-folio  de  la  bi^ 
bliotheca  San  Lorenzo  del  Escurial.»  Segando  Amador  de  los  RioS| 
nos  Estudios  aobre  lo8  Judios  de  EspaSki  (p.  229,  ed.  1848),  o  livio  in- 
tìtula-se  Io8  Libroa  de  Isaaque,  e  é  posterìor  ao  secalo  xi.  Segando  a 
noticia  qae  Amador  de  los  Rios  dà  d'està  obra,  era  ella  dividida  em 
cinco  liyros:  o  primeiro  trata  da  febre  ephemera;  o  segando  das  inso- 
lafSes,  febres  prodozidas  pelo  fino,  pelo  banbo,  pelo  excesso  de  comi- 
da,  pela  fome,  fadiga,  vigilias,  sanha  e  pezar;  o  terceiro  trata  da  fe- 
bre etipsy;  o  quarto  da  febre  causon  e  da  sua  crise,  e  da  aynoea,  pLeur 
risis^  sconon,  periflemonya,  syncopi  e  ictericia;  o  quinto  livro  tratadaa 
pestilencias.  A  obra  é  urna  vulgarisagSo  da  Medicina  grega  no  Occi- 
dente, corno  0  confinna  o  Livro  da  Lepra  (o  Tratado  da  Elephantiase, 
de  Constantino)  da  Livraria  de  D.  Duarte  (p.  220.) 

0  manuscripto  intitulado  0  livro  da  Rainha  Dona  Eizaìbeth  é  urna 
chronica  da  rainha  S.  Isabel,  mulher  de  D.  Diniz,  escripta,  segando 
Frei  Francisco  BraudSo,  depois  de  1374,  e  que  se  guardava  no  con- 
vento de  Santa  Clara  de  Coimbra.  0  chronista  da  Monarchia  luziUma 
«xtrahiu  urna  copia  d'esse  codice,  que  publicou  na  parte  rv  da  sua 
obra. 

O  livro  Hermo  espirithuil,  que  o  chronista  FemSo  Lopes  offerecera 
ao  infante,  escrìpto  em  portuguez,  é  quanto  a  nós  o  livro  impresso  em 
1515,  e  summamente  raro,  que  se  intitola  Bosco  ddeitoso,  em  que  em 
fórma  de  dialogo,  e  com  a  auctorìdade  dos  santos  padres,  se  exalta  a 
vida  eremitica  e  contemplativa.  Os  archaismos  e  construc98es  syntaxi- 
cas  peculiares  do  nesso  seculo  xv  conduzem-nos  a  està  inferencia. 

E,  porém,  para  notar  as  relaySes  litterarias  do  InfEUite  Santo  com 
FemUo  Lopes;  sobre  este  ponto  escreveu  Herculano:  cFemSo  Lopes 
e  Frei  JoSo  Alvares  foram  feitura  sua;  e  provavelmente  nSio  nos  lou- 
variamos  hoje  d'esses  deus  homens^  dos  quaes  um  deu  o  primeiro  im- 
pulso à  nossa  linguagem  historica  e  outro  &  nossa  linguagem  oratoria, 
se  a  boa  sombra  de  D.  Fernando  os  n&o  fizesse  medrar.»' 

Frei  JoSo  Alvares,  secretano  do  infante,  a  quem  acompanhou  no 
captiveiro,  voltou  a  Portugal  depois  da  sua  morte,  indo  em  seguida  a 
Boma  e  &  Belgica.  De  U  mandou  para  o  Mosteiro  do  Pa^o  de  Scusa, 
de  que  era  abbade  commendatario,  uma  traduc9So  d'esse  extraordina- 
rio livro  da  Imitalo  de  Chrisio,  que  se  julga  ser  o  texto  impresso  no 
principio  do  seculo  xvi.  Està  obra  veiu  dar  um  profundo  golpe  nos 


1  Panxmma^  t.  ir,  p.  6. 


LIVRÀRIAS  MANUSCRIPTAS' DO  SECULO  XY  231 

theologos,  emancipando  os  espiritos  crentes  da  dìreo9So  casuìstica  dos 
padres,  corno  notou  Draper.  Era  a  parte  do  sentimento  no  confiicto  da 
dissolnfSo  do  poder  espiritual;  que  tomou  a  apparecer  nos  mystìoos 

hespanhoes  e  francezes  comò  protesto  centra  o  formalismo  frio  dos  je- 

Boitas. 

Epistolas  e  Evangelhos  do  anno. 

Traduc(fto  feita  poi:  D.  Filippa,  filha  do  infante  D.  Fedro  e  neta 
de  D.  JoSo  i:  «consta  que  passàra  à  nossa  lingua  as  Epistolas  e  Evan- 
gelhos do  anno,  posto  .que  tirados  da  lingua  firanceza,  cujo  originai  da 
propria  letra  se  conservava  no  convento  de  Odivellas,  adomado  com 
«atampas  por  sua  m2lo.»  ^ 


Livraria  do  Condestavel  de  Portugal,  fllho  do  Mante  D.  Fedro 


Este  prìncipe,  que  sofireu  todas  as  desgra9as  de  que  foi  victima 
«en  pae,  depois  de  uma  expedÌ9&o  a  Hespanha  em  auxilio  de  Alvaro 
de  Luna,  teve  na  córte  de  Castella  rela93es  litterarìas  com  o  marquez 
de  Santillana,  a  quem  mandou  pedir  as  suas  obras,  achando-se  jà  em 
Portugal.  0  erudito  marquez  mandou-lhe  uma  copia  magnifica  de  to- 
das as  suas  composifSes  poeticas,  em  1449,  e  fel-a  acompanhar  de  uma 
Carta  em  que  exp8e  de  um  modo  rapido  mas  verdadeiro  a  Ustoria  da 
poesia  moderna.  *  0  Condestavel  D.  Fedro  era  tambem  poeta,  e  no  seu 
longo  desterro  de  Fortugal  escreveu  as  Coplas  do  Contempto  do  Mundo 
e  a  Satyra  de  felice  e  infelice  vida,  Frodamado  rei  de  ÀragSo  pelos 
catalSes  (1463),  foi-lhe  diffidi  sustentar  a  lucta  centra  D.  JoSo  il  de 
AragSo,  e  expirou  vencido  e  devorado  pela  consump9fto  (1466.) 

Em  ama  conta  de  pagamento  de  D.  Fedro  ao  bispo  de  Vich,  re- 
fere-se  o  rei  de  Aragfto  aos  ^ilibroa  noetros  tam  de  theologia,  strologia, 
philosophia  et  poesia  quam  de  istoriis  vulgaribus  in  caihalana,  franei- 
gena  ami  periugalenei  vel  latina  aut  alliis  guibumns  linguis  descriptos  et 
eoniinnat08.9 

Està  livrarìa  do  Condestavel  de  Fortugal,  e  rei  de  AragSo,  foi  em 
grande  parte  formada  com  a  que  pertenceu  ao  Prìncipe  de  Viana,  morto 


1  fiibeiro  dos  Santos,  Memoriaa  da  Aeademia,  t.  vii,  p.  21.  Cita  tambem  ou- 
tra  versio  do  seoolo  xv  por  Fr.  Juli2o  dos  Eremitas  de  Santo  Agostinho. 
*  Bablicada  jios  Poeias  paladanoSf  p.  161  e  seg. 


232  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIBIBRÀ 

em  1461,  e  corno  elle  martTr  da  autonomia  catalft.  No  Archi vo  de  Ara- 
gSLo  foi  achado  o  inventario  que  se  fez  &  Livrarìa  e  Monetario  do  des- 
ditoBO  D.  Fedro  de  Portugal.  Em  ama  Memoria  sobre  D.  Peàjto,  El 
Condestable  de  Portugal,  considerado  corno  escritor,  erudito  e  antiquario, 
por  Andrés  Balaguer  j.  Merino,  vem  transcripto  pela  primeira  vez  esse 
inventario,  ainda  assim  pouquissimo  conhecido: 

1.  Evicenna. 

2.  Biblia. 

3.  Missal  roma,  notat  en  alguns  lochs  de  cant  pia. 

4.  Paulus  Virgerius,  en  portuguea,  e  molts  altres  tractats. 

5.  Missal  roma. 

6.  Flora  sanctorum  en  roman9. 

7.  Missal  dominical  e  Santoral  segons  la  consuetut  del  Orde  de 
Prehicadors  en  lo  qoal  ha  moltes  oracions  e  of&cis  e  algunes  istories. 

8.  Ethicorum,  PoUticorum  et  Yconomicorum. 

9.  Uarhre  de  batalles,  en  frances. 

10.  Alexandre,  en  frances. 

11.  SuetoniOy  De  vida  de  Jtdio  Cesar,  en  vnlgar  portugues. 

12.  Crestina,  dels  fets  de  la  Cavalleria,  ea  frances. 

13.  Joannis  Crisostomi. 

14.  Virgiliusi  en  vulgar  toscha  e  part  en  leti. 

15.  Matheas  Palmerii,  De  temporibus. 

16.  TuUius,  De  Officiis. 

17.  Valerias  Maximus,  en  vulgar  frances. 

18.  Epistoles  de  Senecha,  en  vulgar  frances. 

19.  Epistole  beati  leronimi. 

20.  Les  Etiques  de  Aristotile  en  vulgar  castella. 

21.  Vita  Marci  Antonii  et  alliorum  Prindpum. 

22.  Coronigues  dels  Reys  de  France^  en  vulgar  frances. 

23.  Epistole  Leonis  Pape. 

24.  Franciscus  Petrarcha,  en  vulgar  toscha. 

25.  Flors  Sanctorum. 

26.  Super  ludo  Scachorum,  De  moribus  et  offieiis  ìiobilium. 

27.  Liber  de  Viris  Ultistribus. 

28.  Les  Eneheides  de  Virgilio. 

29.  Libre  scrit  en  papel,  ab  test  e  gloses. 

30.  Biblia  (del  prior  de  prehicadors). 

31.  Lo  primer  volum  de  la  Biblia  ab  la  glosa  ordinaria. 

32.  Primer  volum  de  Nicolau  de  Lira  sobre  la  Biblia. 


UYRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SEGULO  XV  233 

33.  Segon  volum  de  Nioolaa  de  Lira  sobre  la  BiUia. 

34.  Titas  Livius  De  secando  hello  punico. 

35.  Los  morcds  de  Seni  Gregori  sobre  Jop. 

36.  Usatges  de  Ccdhalunya, 

37.  Joseph!  De  bello  jvday co, 

38.  Levament  fet  deU  offidals  de  casa  del  senyor  Bey. 

39.  Boecio)  de  consolacion,  en  vulgar  castella. 

40.  Constitutiones  Clementis  Pape. 

41.  Incipit  Prefacio  Rabani  ad  Ludovicum  regem. 

42.  Plinio,  de  la  naturai  Istoria, 

43.  EpistoUs  de  FaUaredis  et  Chratìe  sinia, 

44.  Summa  super  Decretalium, 

45.  De  beUo  macedonico. 

46.  Comelius  Tacitus. 

47.  Coroniques  o  Conquestes  de  uUramar,  en  valgar  castella. 

48.  Ores  de  nostre  dona,  del  Sanet  sperit,  e  lo  quicumque  volt. 

49.  Missalet. 

50.  Commentala  Cesarìs. 

51.  De  vita  et  moribus  odexandri  magni. 

52.  Les  coroniques  de  Spanya,  en  vulgar  portuguea. 

53.  Salasti,  en  romang  castella. 

54.  La  contemplacio  de  la  Beyna,  en  vulgar  catala. 

55.  Speculum  ecclesie  mundi,  vulgar  catala. 

56.  De  laude  Criatoris. 

57.  Isidorus  De  Etymólogia. 

58.  Orto  de  Esposo,  en  vulgar  portuguea. 

59.  Coroniquei  dels  Reyes  darago  e  Comts  de  Barcelona,  en  vul- 
gar catala. 

60.  Libre  en  pergamins,  en  vulgar  castella. 

61.  Liber  Justinus. 

62.  Sidracho  lo  PhUosopho,  en  vulgar  frances. 

63.  Dedamadones  Senece. 

64.  Diversos  Tractats,  en  romans  castella. 

65.  Les  Constitutiones  e  usaJtges  de  Catìudunya. 

66.  Liber  Quartus  beati  Thomae. 

67.  Livro  das  Vìrtudes. 

68.  Breviari  roma. 

69.  Lo  Mestre  de  les  Sentendas, 

70.  Parabole  Salomonìs. 

71.  Libre  en  paper,  en  vulgar  castella. 


234  HISTORIA  DA  UNIVCRSIDADE  DE  COIBIBRA 

72.  Libret  scrit  en  paper,  en  calala. 

73.  Ovìdi  metamorf 08608,  en  vulgar  castella. 

74.  Libre,  comenya:  Ecce  Sex  iuu8  venit. 

75.  Libre,  comenya:  /njpnnctpis  creavit. 

76.  Le8  Concordati^  de  la  Biblia. 

77.  Ubret:  comenga  lo  offici  etc. 

78.  Liber  Ysocretis. 

79.  Lo  Valeri,  en  vulgar  castella. 

80.  De  la  inmortalitat  de  la  anima,  en  vulgar  castella. 

81.  Le8  Cent  Balade8,  en  vulgar  frances. 

82.  Satira  de  contento  del  mundo,  en  vulgar, castella. 

83.  Libre,  comen9a:  Atigu8talÌ8  didtur  atigu8torum. 

84.  BoeciuB  de  Conaolatione,  in  ladino. 

85.  Troya,  en  leti. 

86.  El  Marques  de  Santillana,  es  tot  en  cobles  rimades. 
Rptol  de  pergami  L'Avologia  deb  Rey8  de  Fran^. 

87.  Offider  de  cantpla. 

88.  Antifoner  tot  notat  de  cant  pia. 

89.  Antifoner  ab  responsos. 

90.  Lo  volum  de  Dret. 

91.  Clementines. 

92.  Joan  Bocaci,  en  vulgar  castella  o  portugues, 

93.  0re8  ab  les  armes  de  Portugal. 

94.  Mis8al,  en  pergamins. 

95.  Miasal  roma, 

96.  Catholicon.  *^ 


^  Tranacreyemos  em  seguida  o  Catalogo  da  importantiBsima  Livraria  do  Prìn- 
cipe de  Viana,  que  o  Condestavel  tanto  admiraya,  e  cujo  filho  mandou  educar  com 
disvelo.  D^esta  Livraria  foÀm  adquirìdos  algons  codices  pelo  Condestavel,  e  isto 
basta  para  qae  convenha  formar-se  urna  idèa  do  seu  conjoncto  : 

1.  Primo  de  divino  amare. — 2.  Lactantius. — 3.  ultima  Beati  Thomae. — 4.  se- 
cunda  secunde. — 6.  prima  seconde. — 6.  prima  pars  beati  Thomae  — 7.  dos  oracio- 
netes  — 8.  super  primo  sententiamm. — 9.  orationes  demostbenis. — 10.  gesta  regine 
bianche. — 11.  magtstre  sententiarum. — 12.  exameron  beati  Ambrosii. — 13.  glosa 
salterii  eum  aliis  tractibus  secundom  sanctum  Thomam. — 14  psalterium. — 15.  Be- 
banns,  de  natnris  Terom. — 16.  secunda  psrs  Biblie. — 17.  tullius  de  officiis. — 18. 
finibus  honorum  et  malomm. — 19.  justinus. — 20.  epistole  phallaridis  et  Gratis. — 
21.  commentariomm  cesaris. — 22.  elins  lampridius. — 23.  nonnius  marcellns. — 24. 
vita  aliezandri  scille  et  annibalis. — 25.  comentarionun  rerum  grecarum. — 26.  les 
ethiques  por  lo  princep  trasladades. — 27.  epistole  fiuniliares  tuUi. — 28.  epistole 


UVRARIAS  MANUSCKIPTAS  DO  SECULO  XV  235 


Livrarìa  de  D.  Affonso  V 

Os  chroniatas  Ruy  de  Pina  e  Daarte  Nunes  de  Le2o  asseveram 
que  D.  Àffonso  v  fòra  o  prìmeiro  rei  portuguez  que  ordenara  Uvrcuria 
no  pa9o;  o  que  pode  haver  de  yerdade  n'este  asserto  limita-se  à  fa- 
coldade  de  ser  a  livrarìa  consultada  pelo  publico.  Gomes  Eanes  de 
Azurara  termina  a  sna  Chronica  da  Conquista  da  Guiné,  dizendo  qae 
a  acabou  em  1453  na  livrarìa  do  rei  D.  Affonso  v.  SSo  muitos  os  li- 
vros  antigOB  que  Azurara  cita  nas  suas  obras,  com  um  prurido  de  eru- 
disse que  caracterìsa  os  espiritos  cultos  do  seculo  xv;  se  attendermos 
ao  alto  preyo  que  ob  livros  tinham  antes  da  descoberta  da  Imprensa,  e 
à  rìqueza  das  Livrarìas  manuscriptas  dos  Principes,  conclue-se  que  Azu- 


senec  en  frances. — 29.  alfonseydeB. — 30.  de  bello  gothorum. — 31.  epithome  titi 
livii. — 31.  de  secreto  conflictu  francisci  petrarchae. — 34.  coroidea  regia  frande. 
35.  analogia  navarre  abs  histoire  de  spanya. — 36.  del  aangreal  en  francés. — 37. 
hun  libre  de  greon  en  francés. — 38.  tristany  de  leonis. — 39.  libre  en  frances  de  pe- 
dres  precioses. — 40.  un  libre  de  cavalleria. — 41.  un  libre  de  sermons. — 42.  libre 
de  boeci  en  francés. — 43.  un  altre  intitulat  giron  en  frances. — 44.  los  morale  dels 
pbilosophs  en  frances. — 45.  los  eyan^elis  en  grech. — 46.  las  epistoles  de  seneca. 
— 47.  decade  secunde  bello  punico. — 48.  decade  de  bello  macedonico. — 49.  Come- 
lius  tacitus. — 50.  guido  didonis  super  ethica.— 51.  la  tripartita  Istoria  en  frances- 
— 52.  de  proprietatibus  rerum  en  francés. — 53.  orationes  tullii. — 54.  tragedie  se- 
nece. — 55.  Istorie  tebane  et  troyane. — 56.  Isop  en  frances. —  57.  lo  papaliste  ho 
cronica  sommorum  pontificum. — 58.  prime  secunde.^ 59.  somari  de  leys. — 60.  Jo- 
sephus  de  bello  judaico. — 61.  de  vita  et  moribus  Alezandrì  cum  quinto  curcio. — 
62.  laertius  diogenes. — 63.  de  viris  illustrìbus. — 64.  quintilianus. — 65.  eusebius  de 
temporibus. — 66.  plutarcbus. — 67.  dant — 68.  Yalerìus  mazimus. — 69.  lo  testament 
veU. — 70.  lo  testament  novell. —  71.  los  cine  libres  de  moyses  en  un  yolum  en  fran- 
ces.—  72.  un  libre  en  frances  nomenat  egidi  de  regimine  principum. — 73.  altre  li- 
bre que  trata  de  viois  e  virtuts. — 74.  altre  libre  en  frances  intitulat  lo  libre  du 
trcBor. — 75.  un  libre  que  cometa  lo  romana  de  yemius. — 761  un  altre  libre  inti- 
tulat del  amor  de  Deu. — 77.  un»  lapidari  en  frances. — 78.  la  cent  ballades. —  79. 
los  treballs  de  hercules. — 80.  un  libre...  de  diyerses  materies  de  philosophia. — 81. 
la  cronica  velia. — 82.  un  libre  de  ooples. — 83.  la  coronica  velia. — ^84.  lo  roman  de 
la  rosa. — 85.  leonardi  aretini  de  vita  tiranica. — 86.  un  alfabet  en  grecb. — 87.  un 
libre  de  philosophia  de  aristotil  en  metres. — 88.  libre  frances  ogier  le  danois. — 
89.  un  libre...  de  coblas. — 90.  tres  libres  de  compte  dieg  odrìg. — 91.  un  libre  fran- 
cés que  comen^a  libre  de  daressia  intitulat  ymage  mundi. — 92.  libre  intitulat  tra- 
ctatus  legum. — 93.  mols  coems. — 94.  las  genealogies  en  un  rotol  de  pregami  us- 
que  ad  Rarolum  Begem  nayarre. — 95.  Matheus  palmerii. — ^96.  lo  pressia  major. — 
(Ap.  Mila  y  Fontanalfl,  Dr  Um  Trovadorea  en  Espaha^  p.  520.) 


236  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

rara  dispunha  de  urna  grande  bibliotheca,  e  pelas  suas  cita98e8  pode- 
moB  recompSr  a  Livraria  de  D.  Affonso  v: 

CanticoB  de  Dante. 

Pela  primeira  vez  nos  appareoe  nm  indicio  de  ser  conhecida  em 
Portugal  a  Divina  Comedia;  Azurara  cita-a  na  Chronica  do  Cande  D. 
Fedro  de  Mènezea  (p.  446):  <  aquelle  famoso  poeta  Dante^  na  sua  pri- 
meira cantica,  etc.»  Na  Chronica  da  Conquista  de  Ovini  enumera  suc- 
cessivamente as  seguintes  auctoridades: 

S.  Thomaz  e  S.  Gregorio  (p.  10.) 

Orosio  (p.  11.) 

Marco  Polo  (p.  11,  227  e  360.) 

MetamorphoseoSj  de  Ovidio  (p.  12.) 

Phedra  e  Hypolito,  de  Seneca  (p.  12  e  42.) 

Lucas  de  Tuy,  continuador  da  Chronica  de  Isidoro  de  Sevilha  (p.  22.) 

Cicero  (p.  23  e  41.) 

Sam  Jeronjmo  e  Salustio  (p.  36.) 

Eikica,  de  Aristoteles  (p.  37.) 

Valerio  Maximo  (p.  38)  Summa  da  Historia  de  Roma  (p.  76.) 

Lucano  (p.  39.) 

S.  Chrysostomo  (p.  42.) 

Viagens  de  Sam  Brendam  (p.  45.) 

Santo  Agostinho,  De  cimiate  Dei  (p.  76.) 

DecadoB  de  Tito  Livio  (p.  76  e  149.)  * 

Rodrigo  de  Toledo  (p.  89.) 

Flavio  Josepho,  Das  Antiguidadesjudaicas  (p.  89.) 

Gnalter,  Daa  gera^ka  de  Noè  (p.  94.) 

As  Obras  dos  Romàos  (p.  148.)* 

Vegecio,  De  re  militari  (p.  148  e  412.) 

A  Scripiura  Santa,  Seneca,  Tito  Livio  (p.  149.) 

Paulo  Vergeryo,  Ensinanga  dos  mogos  Jidalgos  (p.  84.) 

Bernardo,  Regimento  da  Casa  de  Ricardo,  senhor  do  castello  Am-^ 
brosio  (p.  224.) 


1  Escreve  Paul  Meyer,  no  Bappart  sur  une  tnission  liUeraire  en  Angltterre, 
p.  S2:  «Urna  obra  que  figurava  em  todas  as  bellaa  livrarias  do  &n  do  secnlo  xrr 
e  XV  era  a  traduc^So  de  Tito  Livio,  que  ezecatou  Fedro  Bercheore  para  o  rei  JoSo; 
o  seu  successo  estendeu-se  além  dos  Pyreimeus,  ao  que  parece,  porque  o  manuscri- 
pto  Harleiano,  4893,  apresenta-nos  urna  traduo^fto  catalS  d'està  traducano  francesa.» 

*  Era  urna  compila^ào  que  na  Edade  mèdia  andava  reunida  ao  Livro  de  Oro» 
no,  e  tratava  ezclusivamente  da  vida  de  Cesar. 


UVRARIAS  HANUSGRIPTAS  DO  SECULO  XV  237 

Fr.  Gii  de  Boma,  Begimento  de  Prindpes  (p.  253.) 
.  AriBtoteles,  Tolomeu^  Plinyo  e  Homero,  Esidro^  Lucano  e  Paullo 
Orosio  (p.  288.) 

Gondofre^  oa  Gundolfo  (p.  291.) 

Mestre  JoSo  o  Inglez,  ou  Dans  Scoto  (p.  295.) 

Pharsalia,  canto  dez  (p.  300.) 

Hermas,  o  Pastor  (p.  350.) 

Mestre  Fedro,  ou  Fedro  Lombardo  (p.  260.) 

Alberto  Magno,  Da  celestial  gerarchia  (p.  458.) 

S.  Thomaz,  De  Potentia  Dei  (p.  460.) 

Evangélho  de  S.  Lucaa  (p.  461.) 

EpiatóUu  de  S.  Faulo  (p.  462.) 

Jélumi  de  Lanaon  (p.  2.) 

O  Amadis  de  Oaula  (na  Chronica  de  D,  Pedro  de  Menezes.) 

Vasco  Femandes  de  Lucena,  que  foi  guarda  d'està  Livraria  sob 
D.  Jo2o  u,  apparece  em  um  alvarà  de  16  de  novembre  de  1496  com 
o  titulo  de  cgovemador  moor  da  nossa  Torre  e  livraria.^ 


Livraria  do  Dr.  Diogo  Affonso  de  Mangancha 

Ko  testamento  d'este  decretalista,  de  1447,  em  que  funda  um  Col- 
legio para  dez  escolares  pobres,  deixa-lhe  tambem  hos  livroa  todos. 
Àpenas  indica  alguns  d'esses  Uvros: 

citem,  requeiram  ao  Bachaler  Diego  Lourengo  a  segunda  parte 
do  Bartolo  ssobre  o  Esfforgado,  e  a  Mendaffonso,  filho  d'Àffonse  Annes 
da  Bua  das  Esteiras,  08  Bartolos  ssobre  o  Digesto  novo,  que  Ibos  em- 
prestey  ;  e  tenho  um  Chino  empurgaminho  apenhado  do  Doutor  Joham 
Pireira  por  mil  e  quinhentos  reis,  mando  que  Iho  dem  sem  pagar  nada, 
porque  come9a  bem  seu  mundo.»f. 

Livraria  do  bispo  D.  Vasco  Perdigdo 

Ainda  nos  apparece  uma  referencia  a  urna  Livraria  do  seculo  xv: 
cDom  Vasco  PerdigSo,  bispo  de  Evora,  installou  em  1462  uma  Livra- 
ria por  cima  da  sala  capitular.»' 


1  Ap.  DiiserL  ekran^  de  J.  P.  BibeirO|  t*  n,  p.  256. 

2  Partugal  PiUameo^  voi.  i,  p.  124. 


238  HISTOBIA  DA  UNIYEKSIDADE  DE  GOIHBRA 

Sobre  a  Livrarìa  da  UniverBidade  de  Lisboa  nada  pademos  des- 
cobrir  anterior  ao  secalo  xvi  ;  é  comtudo  presamivel  que  a  possoisBe. 
NoB  Estatatos  da  Universìdade  de  Salamanca,  de  1422,  dados  por  Mar- 
tinho  V,  vemos  estabelecido  que  se  devem  gastar  mil  florins  na  compra 
de  livros  para  todas  as  faculdades,  e  que  estes  se  coUoquem  em  ordem 
dentro  do  Estndo  geral,  sondo  o  Estacionario  responsavel  pela  sua 
guarda,  com  o  salario  annual  de  vìnte  florins,  e  afianyado.  Os  livroB 
eram  defendidos  com  penas  de  excommonhSo,  costume  que  se  conser- 
vou  em  todas  as  antigas  bibliothecas.  ^ 

A  raridade  dos  manuscrìptos  e  o  seu  alto  pre90  tinham  motivado 
as  prìmeiras  tentativas  da  impress&o  lypographica,  especialmente  para 
OS  livros  destinados  ao  ensino  publico.  A  Orammatica,  de  Donato,  e  o 
Catholicony  de  JoSo  Balbi,  foram  primitivamente  reproduzidos  pela 
fórma  xylographica,  ou  gravura  em  madeira;  desde  que  se  mobilisou 
pela  serra  os  caracteres,  e  que  o  processo  da  gravura  serviu  para  abrir 
OS  pon^oes  com  que  se  fis^ram  as  matrizes  (Frappes),  que,  &  imitafSo 
da  {undÌ9&o  das  medalhas,  serviram  para  a  fabricagào  dos  typos,  es- 
tava creada  a  grande  arte  da  Imprensa.  A  descoberta  foi  compleza, 
dependendo  de  invengSes  anteriores,  comò  o  papel,  e  simultaneas,  comò 
o  prélo,  as  balas,  a  tinta  seccativa,  viscosa,  e  a  maravilhosa  impressSo 
a  c6res.  O  prestigio  do  Livro,  a  que  a  Edade  mèdia  ligara  a  concep9So 
ideal  da  sabedoria  e  da  magia  na  designa9So  de  Specvlum,  ia  desap- 
parecer  pela  reproduc92o  material  e  facil  da  typographia;  mas  vinba 
desencadear  os  quatro  ventos  do  espirito,  trazendo  à  actividade  specur 
lativa  da  Europa  as  doutrinas  politicas  da  Monarchia  Universci,  a  li- 


1  Na  Memoria  de  Bussche  sobre  as  rela9oe6  de  Portngal  com  Flandres  (p.  8) 
cita-se  um  Juan  Vaaques  natifde  Poriugal^maUrt  d^hotd  de  Donna  laabeau  de  Par- 
UÌgaly  duchegse  de  Bourgogne:  «Vasques  possédait  une  bibliothèque  ou  tout  au 
moins  divers  manuscripts  de  yaleor.  M.  le  chanoine  Cartoli,  dans  ses  notes,  ma- 
Ihenreusement  disperséea  aujourd*hui  et  dont  qaelqaee-uneB  sont  devenues  la  pro- 
priété  de  TÉtat,  cite  comme  ayant  paBsés  par  ees  maina  les  ouvrages  suivantSf 
portant  les  armoiries  de  Vasques  et  celles  dea  yan  Ackere  : 

Un  Séììkque  en  2  parties,  imprimé  à  Naples  (apud  Moravum)  en  1475,  in-fl. 

HUtoire  de  Troie  la  Orante  mamuscript  curieux  de  la  maison  de  Henri  eeeond. 
Ms.  in-fl.,  écritore  de  fin  zir*  siècle. 

Un  livre  d'heores  intitulé:  Horae  Btatae  Mariae  Virginie^  in-16,  relié  en 
cuir,  orné  d'une  gamiture  historiée  en  argent,  avee  deux  fermoirs. — Manuscript 
sor  yélin,  exécuté  yers  le  milieu  du  zy«  siècle.  280  feuillets,  douze  miniatures.  Sor 
le  plat,  les  armes  de  Portugal  presque  effacées.  Sur  le  feuiilet  de  garde,  Técu  de 
Vasques  ayec  celui  de  sa  femme,  portant  la  date:  Bragis  iccooo.ucyiuj.» 


UYRARIAS  MANQSCRIPTAS  DO   SECULO  XV  239 

Tre  critica  dos  textos  biblicos  e  a  dis8olu9So  da  hìerarchia  catholica,  o 
oonhecimeiito  da  terra  pelas  Viagens  de  Marco  Polo,  que  suscitavam 
as  audaciosas  expedÌ93e3  maritimas  &  America  e  &  India^  emfim  xun 
maior  cosmopolitismo  e  o  conhecimento  das  fontes  vivas  da  CiyilisagSo 
Occidental.  A  Imprensa  propagava-se  a  todos  os  paizes  comò  um  des- 
tino: na  Allemanha,  de  1454  a  1480,  a  Mayence,  Bamberg,  Stras- 
burg,  Colonia,  Nuremberg,  Baie,  Augeburg,  Mnnster  e  Spira  ;  na  Ita- 
lia, (1465)  a  Roma,  Subiaco,  Veneza,  Lucques,  Foligno,  MilSo,  Bolo- 
nha,  Florenga,  Trevi,  Napoles,  Sicilia;  em  Fransa,  (1471)  a  Paris,  Lyon, 
Bruges,  Alost,  Louvain,  Aivon  e  Utrech;  na  Hespanha,  (1474  a  1477) 
a  Valencia,  Barcelona,  Sarago9a  e  Sevilha;  em  Portugal  entra  em  1478, 
comò  se  infere  da  nota  das  Coplas  do  Menosprecio  do  Mando,  do  Condes- 
tavel  de  Portugal,  e  definitivamente  em  1489  quando  os  judeus  Tzorba 
e  Rabban  Eliezer  imprimiram  o  Commentario  sobre  o  Pentateuco,  e 
em  1491  a  edigUo  hebraica  do  Pentateuco,  de  Lisboa. 

A  forte  reacjSo  do  pedantismo  Scholastico  centra  a  livre  critica 
da  Renascenga  achou  um  apoio  accidental  na  descoberta  da  Imprensa, 
empregada  nos  seus  primeiros  annos  a  dar  publicidade  aos  livros  que 
mais  tinham  dominado  nos  estudos  dì\rante  teda  a  Edade  mèdia,  taes 
corno  0  Catholicony  de  JoSo  de  Genova,  o  Mammotrectua,  de  Marche- 
sini,  0  Bi^dchiólogus,  de  Ebrard  de  Bethune,  o  Grecismus,  de  JoBo  de 
Garlandia,  e  outros  muitos,  que  encontràmos  nas  opulentas  Bibliothe- 
cas  ìnanuscriptas  no  goso  de  um  unanime  respeito.  Michelet  accentuou 
està  influenda  deleteria  da  Imprensa  ao  desabrochar  da  Renascen9a: 
«A  Imprensa,  beneficio  immenso,  que  vae  centuplicar  para  o  homem 
OS  meios  da  liberdade,  serve  entSo,  é  preciso  dizel-o,  para  propagar 
as  obras  que,  desde  trezentos  annos,  tèm  mais  efficazmente  embara- 
9ado  a  Renascenfa.  Ella  multiplica  ao  infinito  os  Scholasticos  e  os  mys- 
ticos.  Se  imprime  Tacito,  tambem  inunda  as  bibliothecas  de  Duns  Scot 
e  de  S.  Thomaz;  ella  publica,  etemisa  os  cem  glosadores  do  Lom- 
bardo, que  era  esquecido  no  pò.  Afogadas  de  livros  barbaros  da  Edade 
mèdia,  que  sBo  desenterrados  ao  mesmo  tempo,  as  escholas  soffrem  uma 
deploravel  recrudescencia  de  absurdos  theologicos.  Pouco  ou  nada  em 
lingua  vulgar.  Os  livros  antigos  publicavam-se  com  uma  extrema  len- 
.tidSo.  So  quarenta  ou  cincoenta  annos  depois  da  descoberta  da  Im- 
prensa è  que  se  lembram  de  dar  à  estampa  Homero,  Tacito,  Aristote- 
les.  Piatalo  ficou  para  o  entro  seculo.  Se  se  publica  a  antiguidade,  pu- 
blica-se  e  republica-se  com  outro  empenho  a  Edade  mèdia,  sobretu&o  ob 
livros  de  classes,  as  Summas,  os  epitomes,  todo  o  ensino  de  tolice,  de 
manuaes  de  confessores  e  de  casos  de  consciencia;  dez  Nyder  centra 


240  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIHBRA 

luna  llliada:  por  um  Virgilio  vinte  Fichet.»*  Como  explicar  este  an- 
tagonismo da  Scholaslica  contra  a  Renascenfa?  E  facil.  O  estudo  doa 
exemplares  das  Litteratoras  greco-romana^  e  dos  sena  philosophosy  pro- 
vocava a  renova9So  da  grammatica  e  da  critica  philologica;  os  doato- 
rea  aterraram-se  diante  dos  novos  methodos  e  formularam  urna  con- 
demna9So  suprema:  o  mdhor  grammatico  sera  sempre  opeor  dialectieo, 
e  um  pessimo  theologo.  ' 

Pela  reac9So  dos  criticos  da  Renascenfa,  quo  luctaram  contra  o 
pedantismo  doutoral,  é  qae  se  aprecia  a  natoressa  da  eradÌ9lo  e  dos 
livroB  que  occaparam  os  prelos  ao  alvorecer  da  Lnprensa,  e  espccial- 
mente  o  antagonismo  entro  as  duas  épocas^  que  tSo  profundamente  se 
contrastavam.  ^  É  notavel  comò  a  mesma  nota  critica  sobre  as  espe- 
culasSes  medievaes  e  os  livros  pedantescos  apparece  accentuada  pelo 
genio  satyrico  de  Gii  Vicente,  e  pelo  renovador  das  doutrinas  pedago- 
gicas^  0  sarcastico  Rabelais.  A  velha  Dialectica  dos  Nominalistas  e  Rea- 
listasy  que  embara9ara  o  desenvolvimento  scientifico  iniciado  por  Ro- 
gerio  Bacon  e  Arnaldo  de  Villa  Nova,  continuava  a  eateril  lucta  no  se- 
culo  xvi^  sob  0  titulo  de  Thomistas  e  ScottìstaSj  difficultando  a  expan- 
bSo  da  Renascen9a. 

E  naturai  que  cada  um  d'estes  grupos  seguisse  a  bandeira  do  seu 
coiypheOy  os  dominicanos  as  doutrinas  de  S.  Thomaz  e  os  franciscanoB 
as  de  Duns  Scott.  Gii  Vicente  ridicularisou  toda  està  velha  erudigSo 


1  La  RenaisBance^  p.  xeni. 

*  Dizxa  Vives  :  «Qnoties  mihi  Johannes  Dullardins  ingessit  :  quanto  eris  me- 
lior  grammaUcuB,  tanto  pejor  dialecticns  et  theologUB.i»  (D$  cautis  corrup.  Artiumj 
lib.  u,  p.  72.) 

'  Escreve  Quieherat,  na  Histoirt  du  CóUkgt  de  8ainU  Barbe,  1 1,  p.  150:  e  A 
Edade  mèdia  teve  coriosidade  e  um  grande  poder  de  reflezio;  faltou-lhe  o  genio 
observador  e  o  Bentimento  critico.  A  Bcienda,  da  qoal  nSo  oomprehendeu  senSo  o 
lado  especulativo,  foi  para  ella  comò  as  coasas  creadas,  de  que  se  serve  sem  pen- 
sar em  fiuer  nada  semelhante.  Cren  firmemente  que  tudo  quanto  se  podia  saber 
ostava  j&  escrìpto  ;  os  livros  da  eschola  continham  todo  o  deposito  ;  o  que  havia  a 
laser  era  tirar-lhe  ss  consequencias  pelo  raciodnio. — A  Benascen^a  apparece-nos 
ao  contrario  corno  a  evoluì  doB  espiritos  reoondnzidoB  por  um  inslincto  intdra- 
mente  pratico  à  vereda  da  ÌDveBtlga92o  e  tornando  o  seu  curso  para  a  conquista 
do  livre  esame.  A  sua  applica^  foi  ver  e  oomprehender  antes  de  racibdnar;  e 
corno  ella  se  entregou  logo  is  obras  litterarias  da  antiguidade,  o  prìmeiro  rcsul- 
tado  foi  dedarar  falsa  a  scienda  que  tivera  a  preten^io  de  posBuir  a  chave  d'ella. 
Os  exerdcioB  sobre  que  se  fundava  a  instmc^So  dementar  eram  futiIidadcB  e  pa- 
lavrorio.  Para  conseguir  a  inteUigenda  doB  auctores  nSo  bastava  ter  disputado 
sobre  a  grammatica:  era  preciso  reconstìtuir  o  mundo  em  que  esses  auctores  ti- 
nham  vivido.» 


UVRARIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SEGULO  XV  24 i 

medievali  que  se  perpetuava  na  Universidade,  quando  a  Italia  iniciava 
o  renaBcimento  das  litteraturas  classicas: 

No  quiero  deciros  especulaciones 
De  Santo  Agostin  Dt  CiviUUe  et  cetra, 
No  qtiiero  de  Scoto  alegar  ni  letra, 
No  quiero  dispntas  en  predicaeianeBA 

No  Auto  da  Mofina  Mendes,  Gii  Vicente  ridiculisa  todo  o  velho 
aristotelismo  representado  pelos  padres  da  Egreja^  e  em  contraposiySo 
com  as  doutrinas  scientificas  de  Sacrobosco  e  Regiomontanus,  que  re- 
atauravam  a  astronomia: 

Vicentina, — Scala  coeli, 
Mag^ster  Sententiamm, 
Demosthenes,  Calistràto, 
Todos  estes  concertaram 
Com  Scoto,  livro  qnatro. 
Dizem  :  N&o  yob  enganeis 
Letrados  de  rio  torto, 
Que  o  porvir  nSo  no  sàbeiS) 
E  quem  nisso  quer  por  péìs, 
Tem.cabe^a  de  minhoto. 

0  bruto  animai  da  terra, 
Ó  terra  filha  do  barro, 
Como  Babes  tu,  bebarro. 
Quando  bade  tremer  a  terra, 
Que  espanta  os  bois  e  o  carro? 
PeloB  quaes  dixit  Anaelmus, 
£  Seneca — Vandaliorum, 
£  Plinius — Ckromcorum, 
Et  tamen  glo9a  ordinaria. 
E  Alexander — de  aliis, 
Arìstoteles — De  Secreta  Mcretorum. 
Albertus  Magnus, 
Tullius  Ciceronifl, 
Bicardus,  Ilarius,  Bemigius, 
Dizem,  oonvem  a  saber: 
Se  tens  prenbe  tua  mulher 
E  per  ti  o  oomposeste, 
Qneria  de  ti  entender 
Em  que  bora  bade  nascer, 
On  que  fei^oes  bade  ter 
Esse  filbo  que  fizeste. 


O&rotf,  t  ui,  p.  337. 

H18T.  Qk  IG 


242  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADB  DE  GOIMBRA 

NSo  no  sabes;  quanto  nuda 
Ck)mmetterde8  falsa  guerra, 
Presumindo  que  alcan^aes 
Os  secretOB  divinaes 
Que  est^  debaizo  da  terra. 
Pelo  que  diz  Qutntus  Curtius, 
Beda — De  religione  chriatioMf 
Thomaz — Super  trinitas  altemcUi, 
AttgustinuB — De  angelorum  ckoris^ 
Hieronimus — alphabetue  hebrcUot, 
BemarduB — De  virgo  aacenUomsj 
Bemìgius — De  dignitate  aacerdotwn; 
Estes  dizem  j  untamente 
Nos  livros  aqui  allegados  : 
Se  filhos  haver  nao  podes 
Nem  filhas  por  teus  peccados, 
Cria  d'esses  engeitados 
Filhos  de  clerigos  pobres. 

Rabelais,  no  Pantagruel,  contando  Como  CrarganJtua  foi  educado 
por  um  sophista  em  lettras  htinas,  enumera  os  deploraveis  livros  que 
doniinaram  no  ensino  ainda  depois  da  descoberta  da  Imprensa,  e  an- 
tes  de  serem  inutilisados  pelas  obras  superiores  dos  grandes  genios  da 
Renascenja:  cDe  facto  ensinou-lhe  um  grande  Doutor  sophista,  cha- 
mado  mestre  Thubal  Holofeme,  a  Carta,  tSo  bem  que  elle  a  dizia  de 
cor  de  traz  para  diante . .  •  Depois  leu-lhe  Donato,  o  Faoet,  o  Theodolet, 
e  Alanus  in  Parabòlis. . .  Depois  leu-lhe  De  modia  significandi  com  os 
commentarios  de  Hurtebise,  de  Fasquin,  de  Tropditeux,  de  Gualebault, 
de  JoSlo  le  Veau,  de  Billonio,  Brelingandus  e  uma  caterva  de  outros  (no- 
mes  com  que  ridìculisa  os  commentadores  da  £dade  mèdia.)  Depois  leu 
0  Compost, . .,  e  em  seguida  teve  um  outro  velho  catarroso,  chamado 
Mestre  Jobelin  Bride,  que  Ihe  leu  Hugutio,  Hebrard,  o  Grecismo,  o 
Douirinal,  as  Partes,  o  Quid  est,  o  Supplementum,  Seneca,  De  quatuor 
virtuiihus  cardinaliòusj  Passavantus  cum  commento,  e  Dormi  secure,  para 
as  festas.  E  alguns  outros  do  mesmo  jaez,  com  a  leitura  dos  quaes  se 
tomou  tSo  sabio  que  ficou  na  mesma.»^  Reiffenberg  mostra  comò  es- 
tes  livros  persistiram  no  ensino  até  à  època  da  Rena8cen9a.  '  A  Carta 
e  as  Partes  2&  vimos  comò  dominaram  em  Portugal  (vide  p.  117);  a 
Grammatica  de  Donato  resistiu  por  muito  tempo  i  de  Prisciano,  e  ao 


^  Pantagrud^i  liv.  i,  cap.  xir. 

2  2*  Memoire  sur  lea  deux  premieri  nèdes  de  VUniversiU  d^.  Louvain^  p.  13. 


UVRÀRIAS  MANUSCRIPTAS  DO  SEGOLO  XV  243 

Doutrincd  de  Alexandre  ViQa  Dei  (1242),  que  foi  desthronado  por  Pas- 
trana.  As  Parabolas  de  Alain  de  Lille  (1160  e  1190)  andavam  juntas 
com  0  F<icetii8j  o  Theodulos,  que  fortificavam  os  Proverbios  de  Diony- 
aio  CatO;  para  o  ensino  moral  da  mocidade;  o  De  Modis  significatidi  6 
de  JoSo  de  Qarlandia;  o  Compost  era  o  Computua  de  Amano,  por  onde 
se  calculava  a  epaota  e  aureo  numero;  Hugutio  é  o  pisano  (1212)  que 
compoz  urna  grammatica;  aproveitando-se  dos  trabalhos  de  Papias;  He- 
brard  é  o  auctor  do  Ghrecismua,  Ebrard  de  Béthune,  cuja  etjmologia 
grega  dominava  nas  eacholas  a  par  da  grammatica  grega  de  Bolzani. 
O  Q^id  est  era  a  grammatica  pelo  systema  de  perguntas  e  respostas; 
o  Supplementum  era  um  resumé  de  historia,  por  Filippe  de  Bargamo, 
com  0  titnlo  Supplementum  Chronicorum;  o  Mamotret,  que  encontramos 
no  Catalogo  da  Livraria  da  Universidade  de  Coimbra  em  1537 ,  é  o  Ma- 
mothreptusj  ou  Mamotractus,  de  JotoMarchesini,  e  impresso  em  1470: 
cO  livro  de  Marchesini  é  destinado,  comò  o  Caiholican,  a  facilitar  a 
intelligencia  das  Santas  Escrìpturas,  dos  hymnos  sagrados  e  das  ho- 
melias,  mas  nSo  é  um  diccionario,  comò  muitos  imaginaram.  Foi  aca- 
bado  em  1466.  Rabelais  nSo  se  eaqueceu  de  cital-o  na  sua  Bibliotheca 
ficticia  de  S.  Victor  sob  o  titulo  Marmotretu^  de  haboinxs  et  singis  cum 
commento  DohbéUis.i^^  O  outro  livro,  da  educa^So  de  Gargantua,  De 
mofibus  in  mensa  servandis,  é  um  poemeto  de  JoSo  Sulpicio  ;  o  De  qua- 
tuor  virtìUibiis  cardinàltbus  é  um  tratado  feito  por  S.  Martinho,  bispo 
braccharense;  Passavantus  é  o  fiorentino  Giacomo  Passavanto,  prosa- 
dor  do  seculo  xiv;  o  Dormi  secure  é  um  livro  de  sermSes  para  todas 
as  festas  do  anno. 

Quando  os  estudantes  de  Louvain,  em  1521,  foram  ao  chamado 
dos  Dominicanos,  para  queimarem  os  escriptos  de  Luthero,  elles  ati- 
raram  às  chammas  os  livros  ran90S0s  dos  Sermanes  discipuli,  o  Tar- 
taretum,  o  Dormi  secure,  o  ParaJbum,  e  outros  cartapacios  d'està  laìa.' 
Observa  Reiffenberg:  «Estas  obras,  que  gosaram  de  uma  longa  e  tei- 
mosa  celebridade,  que  luctaram  muito  tempo  centra  os  manuaes  mais 
correctos  ou  mais  elegantes  dos  restauradores  das  lettras,  estSo  agora 
completamente  desconhecidas,  apesar  de  nSo  ser  inutil  comtudo  for- 
mar uma  idèa  dos  livros  que  serviram  de  guia  &  mocidade  durante 
muitos  seculos,  e  que  Ihe  foram  por  assim  dizer  impostos,  attenta  a  in- 
fluencia  que  deviam  necessariamente  exercer  sobre  os  habitos  snbse- 


1  Reiffenberg,  d*  Memoirty  p.  16. 
*  Idem,  2»  Memoirty  p.  18. 

16* 


244  iflSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

quentes  dos  espìrìtos  assilli  corno  sobre  as  snas  faciddades.  Urna  his- 
torìa  philosophica  dos  livros  classicoB  nas  differentes  edades  litterarias 
seria  um  trabalho  digno  dos  nossos  pensadores  eraditos.»^  Sem  oste 
esame  prèvio  das  Livrarias  do  secalo  xv^  nSo  nos  seria  facil  caracte^ 
risar  a  crise  pedagogica  que  sepassou  nas  Universidades  qae  resistiam 
contra  os  novos  methodos,  refor9ando-8e  com  a  aactoridade  do  passado. 

As  Universidades  tomaram^se  o  ponto  de  apoio  d'està  resisteneia 
contra  o  novo  espirito  da  Renascen^a;  fechadas  no  quadrado  inexpa- 
^gnavel  das  Facoldades^  com  as  suas  disciplinas  catbegorìcamente  for- 
moladas,  e  as  anctoridades  de  glossadores  estabeiecidas  pelo  consenso 
de  tres  secnlos,  oppozeram-se  vivamente  aos  estudos  humanistas^  con- 
{imdindo-os  com  as  tendendas  para  ama  reforma  religiosa.  Mas  a  ìuz 
fez-se  por  teda  a  parte;  o  conbecimento  dos  poetas  latinos  tornea  me- 
Ibor  entendido  o  Corpus  juria;  a^eitora  do  texto  de  Aristoteles  reve- 
loa  qae  a  Edade  mèdia  raciodnara  e  discatira  sobre  phrases  attriboi- 
das  ao  philosopbo  através  da  imaginaylo  dos  commentadores  arabes; 
a  valgarisaylo  da  Biblia  nas  lingaas  nacionaes  acordava  nas  conscien- 
das  om  mais  profondo  sentimento  religioso  e  presagiava  ama  harmo- 
nia  de  toleranda  entro  o  Occidente  e  o  Oriente.  As  Universidades  abra- 
(aram  por  sea  tamo  o  espirito  novo,  deixaram-se  arrastar  momenta- 
neamente na  corrente  da  Renascen^a.  Daroa  isso  poaco  tempo;  por- 
que  OS  Jesuitas,  ao  organisarem-se  comò  corpora^Bo  docente^  retoma- 
ram  o  ensino  na  phase  em  qae  as  Universidades  o  abandonavam^  e  re- 
staararam  systematicamente  o  pedantismo  scholastico,  com  o  azedame 
da  lacta  do  primeiro  qaartel  do  secalo,  tal  comò  cahira  ferido  pelos 
sarcasmos  de  Erasmo  e  de  Ulrico  de  Hatten,  de  Rabelais  e  de  Gii  Vi- 
cente.  E  qaando  a  lacta  era  renovada  pela  Egreja,  para  se  opp6r  à 
dissola^^  da  orenga  caasada  pelos  Homanistas,  os  prìncipaes  genios 
da  reac9So  religiosa,  qaer  do  Protestantismo,  qaer  do  Jesaitismo,  Cal- 
vino e  Lojola,  iam  procarar  nas  Universidades  a  disciplina  da  diale- 
etica,  as  armas  da  aactoridade. 

Antes  da  descoberta  da  Lnprensa,  a  necessidade  de  resamir  os 
livroB  manascriptos  creoa  na  Edade  mèdia  a  predilec9&o  pelas  Ency- 
dopedias,  corno  notoa  Humboldt;  e  jà  no  seciQo  xv,  poacos  annos  an- 
tes da  Lnprensa,  oa  aproveitando-se  do  seu  espantoso  impalso,  fignra- 
ram  as  grandes  Encydopedias,  Imago  mundi,  de  Fedro  d'Ailly  (1410), 
e  a  Margarita  pkUosophica^  de  Reisch  (1486).  E  qaando  Humboldt 


1  Bdffenberg,  ^  Memaire,  p.  11. 


LIYRARIAS  MÀNUSGRIPTAS  DO  SEGULO  XV  245 

prova  corno  Colombo  deveu  &  Imago  mundi  as  indica9Ses  tradicionaes 
quo  0  levaram  ao  pensamento  da  descoberta  da  America,  estabelece  a 
relaglLo  entre  a  encydopedia  de  Fedro  d'Ailly  com  as  outras  encyclo- 
pedias  medievaes;^  aasim,  toma-se  sarprehendente  està  continuidade 
que  liga  as  especulagSes  mentaes  de  nma  edade  com  as  descobertas 
qiie  determinam  a  fórma  de  uma  nova  civilisa^So.  Tambem  a  empreza 
da  descoberta  do  Preste  Joào  das  Iniias,  a  quem  foram  em  embaixada 
em  1487  Pero  da  CovilhSL  e  Affonso  de  Paiva,  por  ordem  de  D.  JoSo  n, 
que  acreditava  n'essa  lenda  da  Edade  mèdia,  fez  com  que  Vasco  da 
Oama  se  aventurasse  com  seguranga  à  descoberta  da  via  maritima  da 
India. 


1  <Tudo  o  que  Colombo  sabia  da  antìguidade  grega  e  latina,  todas  as  passa- 
gens  de  Aristoteles,  de  StrabSo  e  de  Seneca  sobre  a  proximidade  da  Asia  orien- 
tai e  dfts  columnas  de  Hercnles,  que  mais  do  que  nenhuma  outra  consa,  segnndo 
a  relaQJlo  de  D.  Fernando,  deepertaram  em  seu  pae  o  desejo  de  ir  &  procura  das 
Indias  (autoridad  de  los  escritores  para  mover  al  almirante  &  descubrir  las  Indiaa), 
o  almirante  tinha-as  colhido  nos  escriptos  de  d'Ailly.  Traria  comsigo  estes  escri- 
ptos  nas  suas  riagens  ;  etc.  Yerdadeiramente,  ignorava  que  d^AlUj  transcrevera 
palavra  por  palavra  (o  tratado  Dt  quantitate  Terrae  haUntabilU)  um  livxo  anterior 
«m  data,  o  Optts  majus,  de  Rogerio  Bacon.  Singular  tempo  em  que  os  testemnnbos 
tomados  4  tda  de  Aristoteles,  de  Averroes,  de  Esra  e  de  Seneca,  sobre  a  infcrio- 
ridade  da  superficie  do  mar  comparada  à  extensfto  da  massa  Continental,  podiam 
convencer  os  reis  que  cmprezas  dispendiosas  teriam  nm  resultado  segnro.»  (Co»-- 
snoa^  t.  II,  p.  302.) 


SEGUNDA  ÈPOCA 

(SECDLOS  XVI  E  XVU) 


A  UNlVERSroADE  SOB  A  INFLUENCIA  DA  KENASCENgA 
E  DA  REACgiO  CONTEA  0  PROTESTANTISMO 


BBOgAO  1.- 

O  Hnmanismo  firanoez  aotnando  na  Rexiasoenga  em  Portngal 

(1604-1666) 


CAPITULO  I 


A  crise  pedagogica  na  Europa  determinada  pela  Benascen^a 

Fónna  systematica  da  dissola^So  do  regimen  catholico-feadal  noe  tres  secolos  xn, 
ZYii  e  zvni. — A  revolu^ào  religiosa  sob  ob  seus  tres  aspectos  :  Latheraniimo 
(dissolu^So  da  disciplina);  CalvinUmo  (dÌ88ola9So  da  hierarchia);  SodnUmo 
(dissolu^So  do  dogma). — A  revolu^^o  politica  nos  seus  tres  aspectos  de  :  So- 
herania  ncudonal  (Revolu^  dos  Paizes  Baìzos);  Egualdade  (Bevolu^Ho  da 
Inglaterra);  Liberdade  politiea  (Bevolu^So  franceza). — N'esta  grande  crise 
estabelece-se  urna  reac^Ao  da  parte  do  regimen  catholico-feadal  :  Concentra- 
9S0  do  Poder  temperai,  e  a  Theoria  da  Monarchia  oniversal. — ^Tentativa  de 
restaurarlo  do  Poder  espirìtual  e  do  Poder  theocratioo  :  Inquisi^io  e  Com- 
panhia  de  Jesus. — Allian^a  dos  dois  Poderes  para  se  sustentarem  :  Autos  de 
Fé,  Saint  Barthélemy,  Bevoga^o  do  Edito  de  Nantes. — ^Vicusitudes  dos  Es- 
tudos  humanistas  entre  està  corrente  de  dissolu^io  e  de  reac^. — 0  saber 
medieval^  auctorìtario,  livresco  e  interpretativo  persiste  nas  Universidades 
no  primeiro  quartel  do  seculo  xyi.  Descredito  d'esse  saber:  Erasmo  e  o  Mo- 
gio  da  Loucura;  de  Hutten  e  as  EpUtolae  óbècurortan  Virorum;  Babelais  e  a 
satyra  de  GargarUua,  Protestos  de  Yives  centra  a  persistencia  da  Telha  Dia» 
lectica.— 0  saber  4^  Renascen^a,  individuai,  ezperimentalista  e  de  livre 
Exame. — Benova^So  do  estudo  do  Grego,  do  Latim  e  do  Hebraico:  Erasmo 
e  o  esplendor  do  Collegio  Trilingue. — Bude  cria  o  primeiro  nucleo  do  CollegiD 
de  Franca,  novo  typo  pedagogico  da  In^ruegào  wperior  liberto  do  molde 


248  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

quadrìvial  das  Universidades. — Os  Humanistas  entre  a  reac92o  catholica  e 
o  Protestantismo. — Os  Jesultas  desenvolvem  o  typo  da  Instruc^  stcunda- 
ria. — Os  Protestantes  proseguem  na  tradi^So  christS  e  fàndam  a  In8tr%bcqào 
primaria  ou  popolar. — Os  Experimentalistas  iniciam  a  fórma  Polytechnica 
ou  especial  da  InatnuìQào  superior. — Os  grandes  pedagogistas  praticos:  os 
Grouvéas. — As  Universidades  libertam-se  da  tradi^So  medieval,  mas  tomam 
a  cahir  sob  a  inanidade  dialectica  pela  direc^o  dos  Jesuitas. 

A  nova  syiithese  mental,  quo  determinara  na  Europa  a  preponde- 
rancia  da  rasSo  sobre  a  fé;  foi  a  causa  prìncipal  da  fundaffto  das  Uni- 
versidades, e  0  caracterìstico  organico  que  separa  a  Edade  mèdia  dos 
tempos  modemos.  Porém  a  elabora9So  d'essa  synthese,  complicada 
pela  decomposÌ9So  do  regimen  theologico,  emquanto  &  crenya  religiosa, 
e  do  regimen  feudal,  emquanto  à,  liberdade  politica,  nSo  pdde  seguir 
um  desenvolvimento  normal  por  falta  dos  elementos  experimentaes,  que 
BÓ  tarde  se  systematisaram  em  sciencias  positivas,  destinadas  a  darem 
apoio  às  consciencias  dirigidas  por  convic(5es  unanimes  e  universaes. 
E  comò  a  elabora92o  d'està  synthese  era  complicada  com  a  incorpo- 
ra9So  do  proletariado  em  uma  sociedade  guerreira,  que  aos  costumes 
da  conquista  contrapnnba  o  trabalho  livre,  pacifico  e  productìvo,  os 
velhos  poderes  que  decahiam  luctavam  com  violentas  reacgSes  pars 
restaurarem  o  passado,  quer  separando-se,  quer  confundindo-se,  mas 
sempre  produzindo  um  estado  de  tensSo  revolucionaria,  de  que  resul- 
taram,  emquanto  ao  poder  espiritual,  a  quebra  da  unidade  catholica 
pela  Reforma,  e  as  guerras  de  religiSo,  os  retrocessos  da  InquisifSo  e 
dos  Jesuitas,  e  emquanto  ao  poder  temporal,  as  reYolu95es  dos  Paizes 
Baixos,  da  Inglaterra,  e  a  explosSo  definitiva  da  liberdade  politica  na 
Franfa.  N'esta  longa  crise  de  ciuco  seculos,  em  que  se  manifesta  la- 
boriosamente o  espirito  moderno,  o  seculo  xvi  é  o  periodo  da  activì- 
dade  mais  intensa  e  decisiva  para  a  emancipafSo  da  humanidade.  O 
grande  seculo  é  um  ponto  de  partida;  é  um  estadio  suporior  em  que 
se  entra.  Os  materiaes  para  a  construcgSo  da  synthese  mental  sSo-lhe 
fomecidos  por  uma  nova  comprehensSo  do  passado,  comò  se  y@  pelo 
trabalho  dos  philologos  e  traductores  da  Biblia;  o  presente  é  alargado 
pelas  descobertas  maritimas  dos  Portuguezes;  o  criterio  objecti vista  for- 
tifica a  rasSo,  libertando-a  das  ficgSes  theologicas;  a  dignidade  indivi- 
duai affirma-se  pelo  desenvolvimento  da  industria  e  pelas  tentativas  de 
reorganisa9&o  pedagogica,  que  chegam  até  à  creafSo  do  Ensino  popu^ 
lar.  E  comò  os  esfor908  para  o  retrocesso  foram  mais  intensos  nas  guer- 
ras djnasticas,  que  dilaceraram  o  Occidente,  i  busca  de  um  equilibrio 
politica,  ou  mesmo  da  realìsayXo  da  utopia  da  Monarchia  univemal,  o 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCEN^A  249 

processo  de  decomposiffto  do  regimen  catholico-feadal  entrou  tambem 
em  urna  phase  sjstematica.  Comte  caracterisoa  coni  uma  superior  da- 
reza  està  teì^to  fundamental  do  secalo  xvi  na  historìa  moderna:  cesta 
immensa  elabora93o  revolucionaria  dos  cinco  ultimos  seculos  deve  ser 
previamente  dividida  em  duas  partes  successivas,  nitidissimamente  dis- 
tinctas  pela  sua  natureza,  embora  sempre  confandidas  até  ao  presente: 
uma  comprehende  os  seculos  xiv  e  xv,  em  que  omovimento  critico  se 
■conserva  essencialmente  espontaneo  e  involuntario,  sem  a  participa9llo 
regular  e  accentuada  de  uma  qualquer  doutrina  sistematica;  a  outra, 
abrangendo  os  tres  seculos  seguintes,  em  que  a  desorganisa^So,  tor- 
nando-se mais  profiinda  e  decisiva,  se  manifesta  d'ora  em  diante  sob 
a  influencia  crescente  de  uma  pbilosophia  formalmente  negativa,  gra- 
dualmente estendida  a  todas  as  noQ^es  sociaes,  de  alguma  importancia; 
de  modo  a  indicar  desde  entSo,  altamente,  a  tendencia  geral  das  so- 
ciedades  modernas  a  uma  inteira  renova9So,  cujo  verdadeiro  principio 
permanece  comtudo  radicalmente  envolto  de  uma  vaga  indetermina- 
9^0.»  ^  As  negagSes  da  Reforma,  emquanto  &  disciplina,  &  hierarchia  e 
ao  dogma  da  Egreja;  as  nega9Ses  dos  regalistas  para  com  o  poder  es- 
piritual, e  dos  absolutista^  para  com  a  collectividade  nacional;  as  ne- 
ga$Ses  dos  monarchomacos  proclamando  o  individualismo  e  a  theoria 
da  rebelliSo;  finalmente,  as  nega93es  dos  livre-pensadores,  formuladas 
ji  n'um  deismo  abstracto,  ji  em  um  deliberado  atheismo,  todas  estas 
nega93es  se  debatem  n'esses  tres  seculos  de  fecunda  actividade  revo- 
lucionaria nos  dominios  da  intelligencia  e  da  politica,  mas  nSo  chegam 
a  systematisarem-se  em  uma  doutrina  e  em  uma  disciplina  que  substi- 
tuam  geralmente  a  desmoronada  sjnthese  theologico-feudal  e  organi- 
sem  0  regimen  moderno  ou  normal.  E  em  presenya  das  transforma^Ses 
capitaes  do  seculo  rvi'  que  vamos  encoatrar  as  Universidades  presi- 
dindo  comò  corpora^Ses  docentes  i  direc(So  do  regimen  mental  da  Eu- 
ropa. Comprehenderam  ellas  o  seu  destino?  AcompAnbaram  as  necea- 
sidades  do  espirito  moderno,  comò  no  seculo  xin?  Francamente,  nSo. 
Ficaram  atrazadas;  luctaram  centra  o  trabalbo  dos  criticos  bumanis- 


1  Cours  de  Philosopkie  positive,  t.  v,  p.  962. 

*  Charles  de  Rémusat,  na  sua  Politique  libérale^  caracterisa  assim  o  grande 
seculo  :  «Este  secalo  xvi,  qne  nSo  tem  snperìor  noe  fastos  do  espirito  humano,  foi 
ama  èra  de  soffrimentos  e  de  crimes.  Quando  a  laz  do  genio  moderno  dominava 
finalmente  com  o  sea  brilho  as  sombras  incertas  de  um  longo  crepusculo,  nSo  foi 
està  a  menor  miseria  de  ama  sociedade  que  pelas  novas  idéas  acordava  para  no- 
vas  necessidades,  o  sentir-se  mais  desgra^ada  oa  mais  opprìmida  no  momento  em 
que  ella  concebia  melhor  os  seos  direitos  à  felicidade  e  4  ju8tÌ9a.»  Op,  dL,  p.  18. 


250  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADG  DE  GOIBIBRA 

tasy  6;  quando  pareciam  transigir  com  as  dieciplinas  da  Renascenja, 
cahiram  facilmente  em  poder  dos  Jesuitas,  servindo-lhes  de  instnimen* 
tos  là  montados  para  am  retrocesso  systematico. 

E  conveniente  avivar  as  circumstancias  em  que  se  encontraram 
as  Universidades  n'estas  duas  épocas  tSo  radicalmente  differentes.  Du- 
rante a  Edade  mèdia  a  Egreja  exercera  sobre  as  inteUigencias  uma 
absoluta  auotoridad^,  pela  credulidade  imposta  com  os  seus  dogmas; 
aquelle  que  discutia,  ou  fazia  escolha  dos  elementos  doutrìnarìos  mais 
plausiveiS|  era  condemnado  por  heretlco.  Junto  do  poder  civil  comegou 
a  desenvolver-se  a  liberdade  intellectual,  e  deve-se  a  Frederico  u  a 
yu]garisa9So  das  sdencias  professadas  nas  escholas  arabes,  que  acti- 
You  as  eBpecula93es  philosophicas  e  criticas.  NSo  era  so  na  Biblia  que 
existia  a  verdade,  comò  o  proclamava  a  Egreja;  os  poetas  e  escripto- 
res  da  antiguidade  tambem  tinham  entrevisto  as  altas  concep^Ses  mo- 
raes.  No  come9o  do  seculo  xi,  Vilgard^  da  eschola  de  Ravenna,  comò 
o  confessa  Glaber,  ensinava  que  a  verdade  se  achava  nos  poetas  anti- 
gos,  mais  do  que  nos  mysterios  christSos.  *  0  confronto  critico  dos  tres 
monotheismosy  a  religi&o  mosaica,  christS  e  islàmica,  passou  das  dis- 
cussSes  dialecticas  para  a  idealisa^So  da  litteratura  do  fim  da  Edade 
mèdia,  e  facilmente  o  deismo  dos  que  sacudiam  o  jugo  da  theologia 
terminava  em  um  franco  atheismo.  N'esta  lucta  da  intelligencia  critica, 
esse  confronto  das  tres  religiSes  monotheicas  foi  mj^hificado  em  um 
livro  phantastico,  sem  realidade,  a  que  o  seculo  xin  chamou  Os  trea 
Impostores,  attribuindo-o  successivamente  a  todas  as  inteUigencias  que 
haviam  sacudido  o  jugo  theologico;  primeiramente  attribuiram-o  a  Aver- 
roes,  para  stigmatisar  o  influxo  da  philosophia  dos  Arabes,  depois  a 
Frederico  n,  por  isso  que  a  protegia,  e  seguidamente  a  Fedro  della  Vi- 
gna, Arnaldo  de  Villa  Nova,  Poggio,  Boccacio,  Aretino,  Machiavelli, 
Champier,  Pompona9o,  Cardan,  Ockin,  Servet,  Postel,  Campanella,  Mu- 
ret,  Jordano  Bruno,  Spinosa,  Hobbes  e  Vanini,  ^  a  todos  quantos  des- 
envolveram  a  actividade  philosophica.  Mesmo  a  Portugal  chegou  està 
tradÌ9Ìo  do  Livro  dos  tres  Impostores,  trazida  por  um  certo  Thomas 
Scott,  comò  se  sabe  pela  noticia  de  Alvaro  Pelagio:  cEm  uma  obra 
inedita,  CoUyrium  fidei  contra  haereses,  Alvaro  faz  men9So  de  um  certo 
Thomaz  Scott,  ora  minorità,  ora  dominico,  com  o  qual  tinha  argumen- 
tado  muitas  vezes,  e  que  se  achava  entSo  (come90  do  seculo  xiv)  nas 
prìs5es  de  Lisboa,  por  se  ter  atrevido  a  repetir  por  teda  a  parte  que 


1  Renani  Averrots,  p.  227. 
s  Idem,  iUd.,  p.  235. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCEN^^A  251 

tinham  existido  no  mando  tres  impostores  (tres  fuisse  in  mundo  Dece- 
ptore8.)9  Victor  Le  Clerc,  de  qnem  tomamos  este  facto,  observa:  «Como 
està  impìedade  ji  antiga,  e  que  Gabriel  Barlette  no  seu  sermSo  de  Santo 
André  attribue  por  antecipa(&o  a  Prophyrìo,  chegou  a  divnlgar-se  até 
Lisboa?»  ^  Nos  Contos  populares  da  tradi$So  medieval  tambem  andava 
està  idèa  em  fórma  de  Parabola,  no  Gesta  Ramanùrum,  (conto  Lxxxix) 
no  Novellino  antico^  (lxxii)  no  Decameron  de  Boccacio,  (jom.  i,  novell.  3) 
vindo  através  das  versSes  oraes  receber  fórma  litteraria  no  Conto  do 
Tond,  de  Swift,  e  no  drama  Naihan  o  8ahio,  de  Leasing.  '  Assim,  a 
par  da  Verdade  theologica,  reconhecia-se  que  existia  tambem  uma  Ver^ 
dade  philosophica,  doatrina  qae  se  come^ou  a  professar  no  secalo  xm 
na  Universidade  de  Paris,  onde  o  lente  Jofto  de  Brescain,  em  1247,  se 
jostificava  das  censoras  episcopaes,  dizendo  qae  aqaillo  qae  Ihe  impa- 
tavam  comò  heresia  era  ensinado  phUosophicamente  e  nSo  theologica'^ 
mente,^  A  Egreja  formalava  o  principio:  cNada  se  pode  saber  mais, 
porqae  a  theologia  sabe  tado  o  qae  é  possivel  saber-se.»  A  par  d'està 
these  sargia  a  contraria:  cOs  verdadeiros  sabios  d'este  mando  sfto  ani* 
camente  os  philosophos.»^  Uma  vez  destraida  a  aactoridade  dos  do- 
gmas,  a  Egreja,  qae  sempre  condemnara  Aristoteles,  teve  de  admittir 
o  sea  Organum,  para  se  refor9ar  com  a  dialectica.  Os  Philosophos,  que 
so  admittiam  corno  yerdade  as  especala98es  racionaes,  dividiram-se  sob 
a  tradi(So  averroista  de  Aristoteles  e  sob  a  renovaQ&o  do  idealismo  de 
FlatSo;  na  Italia  é  onde  se  observam  claramente  estas  daas  correntes 
mentaes:  «0  renascimento  do  hellenismo,  qae  se  annanciava  em  Pa- 
dua,  em  Veneza  e  no  norte  da  Italia  pelo  regresso  ao  texto  verdadeiro 
de  Aristoteles,  manifestava-se  em  Floren9a  por  am  regresso  a  PlatSo. 
Floren9a  e  Veneza  sSo  os  dois  pólos  da  philosophia,  comò  da  arte,  em 
Italia.  Fiorenza  e  a  Toscana  representam  o  ideal  na  arte  e  o  espiritaa- 
lismo  na  philosophia;  Veneza,  Padaa,  Bolonha,  a  Lombardia,  repre- 
sentam o  realismo,  o  racionalismo,  o  espirito  exacto  e  positivo.  PlatSo 
convinha  so  aos  coUoqaios  de  Careggi  e  dos  jardins  de  Raccellai;  Aris- 
toteles às  institaifSes  reflectidas  de  Veneza.  >'  Para  qae  està  dissiden- 
eia  especalativa  terminasse  era  preciso  vir  &  verifica9So  experimental 
da6  sciencias  indactivas  oa  de  observa9fto;  assim  no  secalo  xvi  a  aa- 


-*■ 


1  État  dei  Lettrea  au  XIV*  tikle,  t.  zr,  p..  46. 

'  Edelestand  Doméril,  Hùtoire  de  la  Poesie  soandinavef  p.  345. 

'  Lange,  Histoire  du  McUérialismsy  t.  n,  p.  202. 

i  Idem;  ibid. 

^  Renan,  Averroes^  p.  309. 


252  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

ctoridade  de  Aristoteles  é  discutida  n'esse  grande  certamen  do  porta- 
gaez  Antonio  de  Qoavéa  com  o  genial  Fedro  Ramus. 

Os  poYos  catholicos  do  Occidente,  ob  que  est^vam  mais  em  con- 
tacto  com  a  Egreja  e  melhor  conheciam  os  seas  vicios,  cahiram  n'easé 
scepticismo  benevolo  da  tolerancia,  e^  tomando  a  ras2o  corno  elemento 
de  um  novo  poder  espiritual,  Ian9aram-se  ao  estudo  e  inyestiga9&o  dos 
phenomenos  da  Natureza.  E  da  Italia  que  sae  oste  impulso,  que  deter- 
mina a  phase  scientifioa  da  Renascenya;  comò  escreve  Draper:  «Era 
nas  Universidades  e  Academias  eruditas  que  fermentava  a  heresia:  a 
Universidade  de  Padua  paasou  desde  longo  tempo  por  um  fòco  de 
atheismo,  e  a  cada  instante  eram  suppridas  Academias  por  causa  de 
heresia,  taes  corno  as  de  Modena  e  Veneza  entro  outras.»^  Diante  da 
severidade  dos  experimentalistas,  os  dados  objectivos  adquirem  um  po- 
der de  convicffto  nos  espiritos,  e  as  concep^Ses  subjectivas  da  theolo- 
gia  procuram  debalde  sustentar-se  pela  habilidade  da  argumenta9&o  dos 
dialecticos.  N'este  ponto  a  Renascen^a,  na  phrase  pittoresca  de  Miche- 
let, foi  uma  rehabilitafAo  da  Natureza,  abandonada  pelos  mysticos  e 
amaldÌ9oada  pelos  theologos.  Tal  foi  o  caracter  da  grande  crise  dos  es- 
piritos da  Europa  no  seculo  xvi,  preponderando  o  criterio  da  objectì- 
vidade  sobre  o  veiho  saber  tradicional,  hypothetico  e  subjectivo  das  es- 
cholas.  Goethe  formulou  com  profunda  intui^So  oste  caracter  de  obje- 
ctividade  na  influencia  intellectual  de  uma  època:  «Em  todo  o  esforgo 
sèrio,  duravel,  scientifico  ha  um  movimento  da  alma  para  o  mundo; 
vós  0  constataes  em  todas  as  épocas  que  tèm  verdadoiramente  avan- 
9ado  pelas  suas  obras:  ellas  estSo  completamente  voltadas  para  o  mundo 
exterior.»'  De  facto  na  Renascen9a  do  seculo  xin  esse  caracter  de  ob- 
jecti vidade  foi  proclamado  em  toda  a  sua  altura  por  Rogerio  Bacon,  no 
Opus  tertium:  cEu  chamo  sciencia  experimental  aquella  que  despreza 
as  argumentagSes,  porque  os  mais  fortes  argumentos  nada  provam  em- 
quanto  as  conclusòes  nSo  forem  verificadas  pela  experiencia.»  Como 
porém  se  pretendia  conciliar  no  seculo  xiii  as  affirma95es  theologicas 
e  metaphjsicas  com  o  titulo  de  Duas  Verdades  (theologica  e  philoso- 
phica)  Bacon  protesta  que  a  verdade  so  pode  provir  da  sciencia,  sem 
que  està  esteja  dependente  de  outras  concep9Ses:  e  A  sciencia  expe- 
rimental n3o  recebe  a  verdade  das  mSos  das  sciencias  superiores;  ella 
è  que  è  a  dominadora,  e  as  outras  sciencias  suas  serventuarias. — A 
sciencia  experimental  è  a  rainha  das  sciencias  e  o  termo  de  toda  a  es- 


1  Hi&Unre  du  Dévdoppemcnt  da  Méta,  t.  ixx,  p.  161. 
'  Converacu  com  Eckermofin. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGEN^A  253 

peculagSo. — Nós  temos  meios  bem  diversos  de  conheoimento,  taes  corno 
a  auctoridade,  o  raciocinio  e  a  experieucia;  porém  a  auctoridade  nSo 
tem  valor  se  Ih'o  n&o  ligarem,  ella  nSo  faz  comprehender  cousa  algu- 
ma^  mas  simplesmente  crèr;  ella  impSe-se  ao  espirito  sem  esclarecel-o. 
Qaanto  ao  raciocinio,  nSo  se  pode  distinguir  o  sophisma  da  demonstra- 
(So  senSo  verificando  a  conclas&o  pela  experiencia  e  pela' pratica.  »  * 
Estes  principios  fundamentaes  da  synthese  positiva,  comprehendidos  no 
seculo  xin,  nSo  tinham  ainda  o  apoio  das  descobertas  astronomicas  e 
physicas  para  se  impdrem  a  todos  os  espiritos;  por  isso  Bacon  foi  per- 
seguido  corno  heretico.  0  trabalho  isolado  dos  experimentalistas  accu- 
mulou  OS  materiaes  para  a  nova  constmcfSo,  e  no  secalo  xy  as  desco- 
bertas do  systema  planetario,  da  America  e  do  Oriente,  da  Imprensa, 
e  da  circamducgSo  do  globo  pelo  portoguez  FemSo  de  Magalhkes,  da 
polvora  applicada  &  artilheria,  e  dos  textos  authentìcos  das  obras  de 
Aristoteles,  condoziram  para  ama  emancipasse  da  intelligencia  e  da 
consciencia,  e  maito  antes  do  chanceller  Bacon  e  de  Descartes,  o  se- 
calo xvi  entrava  em  am  consenaus  montai,  qae  é  a  synthese  oa  o  es- 
pirito da  Renascenja.  Està  profonda  crìse  dos  espiritos  determina  ama 
alterasse  fandamental  do  systema  de  Ensino  na  Earopa;  à  Auctoridade 
da  Egreja  e  i  Dialectica  das  Universidades,  segue-se  a  comprovasse 
experimental,  que  nSo  depende  da  sancQfto  dos  papas  nem  dos  reis.  Eis 
a  terceira  phase  da  Pedagogia,  iniciada  no  secalo  xvi,  mas  viciada  pelo 
ensino  dos  Jesaitas,  qae,  para  afastarem  os  espiritos  da  coriosidade 
experimental  das  sciencias,  esgotaram  as  intelligencias  nos  artificios  da 
Dialectica  para  sabordinarem  a  rasSo  i  Aactoridade.  ^  0  quarto  termo 
d'està  progressSo  sera  aquelle  em  qae  os  dados  obfecHvos  da  experien- 
da  se  systematisem  pela  rasSo  em  synthese  sabjectiva  oa  normal,  e  em 
que  a  aactoridade  seja  a  considerasse  dos  elementos  evolativos  ou  his- 
toricos  por  onde  se  chegoa  ao  conhecimento. 

É  extremamente  notavel  na  historia  a  repetisSo  dos  mesmos  fa- 
etos,  comò  phenomenos  de  am  organismo;  qaando  no  secalo  xiii  Ro- 
gerio  Bacon  inicia  o  criterio  experimental  comò  condazindo  &  verdade, 
abandonando  a  auctoridade  e  a  dialectica,  tambem  ataca  Aristoteles, 


1  Ma.  de  Donai,  di.  por  Viollet  le  DaC|  EfUreOens  tur  VArehitectnre,  p.  460. 

2  Quiclierat,  na  Hùloria  do  Collegio  de  Sonia  Barbara^  1 1,  p.  47,  ref&rindo- 
86  à  mina  da  escliola  dos  Bealisiasj  diz  :  «Depois  da  Renascen^a,  ella  cahiu  em 
completo  esqaedJtnento.  0  seu  nome  nem  pronunciado  seria,  se  os  Jesaitas  nSo  ti- 
vessem  tentado  fortificar^se  n'ella,  nos  tempos  qae  precederam  a  reforma  car- 
teiiana.» 


254  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

dizendo:  tHa  meio  seculo  apenas,  Arìstoteles  era  suspeito  de  impie- 
dade  e  proscrìpto  das  Escholas.  Eil-o  hoje  erigido  em  mostre  sobe- 
rano!  Qual  é  o  seu  titulo?  £  sabio,  diz-se;  seja,  embora^  mas  nfto  soube 
tado.  Fez  o  que  era  possi vel  para  o  seu  tempo,  mas  nfto  attingiu  o  li- 
mite da  sabedoria.  • .  Porém,  diz  a  Eschola,  é  preciso  respeitar  os  an- 
tigos.»  E  contrap5e-lhe:  cos  mais  novos  sfto  na  realidade  os  mais  ve- 
Ihos;  as  gera95e8  modemas  devem  exceder  em  lazes  as  de  ontr'ora, 
porque  sSlo  herdeiras  de  todos  os  trabalhos  do  passado.»  ^  Na  crise  in- 
tellectual  da  Benascenga,  em  que  vem  a  preponderar  o  criterio  expe- 
rimental,  reapparece o julgamento  de  Arìstoteles:  uns  rejeitam-no,  comò 
Ramus;  Goavèa  e  os  Protestantes  querem  que  seja  estudado  comò  o 
mostre  de  toda  a  objectividade  nos  seus  textos  authenticos;  e  a  Com- 
panhia  de  Jesus  vicia  o  problema,  impondo  o  Aristotelismo;  nSo  o  que 
resulta  da  comprehensSo  directa  dos  textos,  mas  do  confronto  fatigante 
das  opini5e8  de  todos  os  commentadores.  Ji  nSo  era  possivel  obstar 
ao  desenvolvimento  do  criterio  experìmental;  as  suas  descobertas  im- 
punham-se  &  rasSo,  obrigando-a  a  reconstruir  a  sua  synthese,  e  fazen- 
do-a  desprezar  o  velho  e  esteril  formulismo  dialectico.  Desde  Bacon 
quo  se  accumulavam  as  verdades  experìmentaes  ou  scientificas  ;  em  1460 
publica-se  a  Imctgo  mundi,  de  AUiaco,  o  livro  sobre  que  meditava  Chris- 
tovam  Colombo,  em  1468  Toscanelli  colloca  o  seu  gnomon  na  cathe- 
dral  de  Floren9a,  em  1482  imprimem-se  as  obras  de  Euclides  com  fi- 
guras  em  cobre;  Leonardo  de  Vinci  (1452-1519)  observa  o  movimento 
annual  da  terra,  a  theoria  das  for9as  applicadas  obliquamente  à  ala- 
vanca,  as  leis  do  attrito,  as  velocidades  virtuaes,  a  camara  obscura,  a 
perspectiva  aèrea,  as  sombras  coloridas,  o  uso  do  iris  e  os  effeitos  da 
impressalo  luminosa,  a  queda  dos  corpos,  os  planos  inclinados  e  arco 
de  curva;  e  além  de  applica^Ses  mechanicas  de  hydraulica  e  fortifica- 
sse, estuda  os  phenomenos  da  respirasse  e  combustSo,  e  o  phenomeno 
geologico  da  elevaQfto  dos  contìnentes.  ^  Està  actividade  montai  passa- 
va-se  em  todos  os  espiritos  superioros;  em  1520  Begiomontano  publica 
0  resumé  do  Almagesto  de  Ptolomeu,  em  1527  Femel,  medico  de  Hen- 
rique  II  de  Fransa,  mede  a  grandeza  da  terra,  aproveitando  os  rosul- 
tados  da  circumducsSo  do  globo  pelo  portoguez  FemSo  de  MagalhSes  ; 
Bheticus  publica  as  tàbuas  astronomicas,  e  Cardan,  Tartaglia,  Scipio 
Ferreo  e  Steffel  aperfeigSam  a  Algebra,  instrumento  de  pasmosas  des- 


1  Cirnipendium  PhUo9ophae^  e.  i  ;  ap.  VioUet  le  Due,  op.  cit,  p.  460. 
'  Draper,  Hutoire  du  Dévdoppement  det  Idéea,  t  in,  p.  243. 


GHISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENQA  255 

cobertaSy  aie  que  Copernico,  em  1536,  attinge  a  concep9So  definitiva 
do  sjstema  planetario. 

Assim  corno  a  organisajZo  daB  Universidades,  no  seculo  xm,  re- 
presenta urna  profunda  crise  no  ensino  europea  provocada  pela  propa- 
gaySo  da  Philosophia  dos  arabes  e  da  Logica  byzantina,  egualmente 
a  Renascen$a  no  seculo  xvi,  embora  resultante  do  enthusiasmo  pelas 
descobertas  da  antiguidade  classica,  yem  imprimir  às  intelligencias  um 
novo  impulso  pela  generalisa9So  do  criterio  experimental  e  abandono 
da  esterilidade  dialectica.  As  consequencias  d'està  nova  direc92o  foram 
da  mais  alta  importancia;  as  Universidades,  corpora93es  officiaes  corno 
as  francezas,  ou  autonomas  corno  as  inglezas,  continuaram  a  transmit- 
tir  no  seu  ensino  as  concepySes  tradicionaes,  e  a  liberdade  do  pensa- 
mento exerce-se  no  isolamento  individuai,  sob  as  perseguÌ95e8  dos  po- 
deres  constituidos,  até  que  esses  investigadores  experimentalistas  se 
agrupam  espontaneamente,  e  sem  intuitos  docentes,  nas  Academias 
scientificas,  que  vieram  a  prevalecer  no  seculo  x\ai. 

Para  avaliar  està  crise  pedagogica,  importa  conhecer  o  phenomeno 
social  da  Renascen9a,  extremamente  complexo  pela  variedade  dos  sue- 
cessos  impulsi^s  que  contém,  e  pela  falsa  no9So  a  que  o  titulo  de  Re- 
nascen9a  conduz.  0  seculo  xvi  nSo  regressa  ao  passado  pelo  facto  de 
communicar  directamente  com  as  obras  dos  philosophos  gregos,  por 
vulgarisar  pela  Imprensa  as  maravilhas  da  Litteratura  hellenica  e  ad- 
mirar  os  prodigios  da  sua  architectura  e  esculptura,  ou  mesmo  por  fun- 
dar  a  sciencia  politica  pelo  estudo  das  obras  de  Thucydides  e  Aristo - 
teles.  No  meio  d'està  paixfto  pelo  passado  havia  um  espirito  de  revolta 
centra  as  concep^Ses  preponderantes  da  Edade  mèdia,  corno  se  ve  em 
Luiz  Yives  e  todos  os  Humanistas,  e  uma  expansSo  de  originalidade, 
de  independencia  mental,  e  de  concep^Ses,  que  na  sua  parte  analytica 
vieram  a  definir-se  em  Kepler  e  Galileo,  e  na  sua  parte  synthetìca  em 
Bacon  a  Descartes. 

As  mudangas  de  concep93es  correspondem  quasi  sempre  a  modì- 
fica93e8  da  organisa9So  social;  e  o  que  vimos  na  relajSo  dos  Parla- 
mentos  simultaneos  com  as  Universidades,  vèmos  agora  no  estabeleci- 
mento  das  Monarchias  absolutas  e  o  individualismo  critico,  scientifico, 
philosophico  e  politico  que  se  impSe  desde  o  seculo  xvi  até  i  crise 
franceza  da  Bevolu9So.  N'esta  8ub8tituÌ9ao  de  concep95es  é  naturai  a 
OBCiUa9So,  em  que  as  yelhas  idéas  parecem  adquirir  mais  vigor,  corno 
se  ve  pela  recrudescencia  do  Humanismo  quando  os  Jesuitas  se  apo- 
deram  habilmente  do  ensino  europeu;  porém  esse  vigor,  embora  se 
prolongue  por  mais  de  um  seculo,  é  ficticio,  revelando  na  severidadc 


256  HISTORIA  DÀ  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

didactica  a  inanidade.  do  espirito  que  o  alenta.  Entre  as  Universidades 
italianas  e  a  de  Paris  é  qae  se  definiu  melhor  o  conflicto  menta!  entre 
0  livre  pensamento  scientifico  e  a  conservagSo  da  submissSo  &  theolo- 
già  medieval.  Comprehende-se  pois  corno  é  que  no  comego  do  secalo 
XVI  Portogal,  sob  o  governo  dos  fanaticos  D.  Manuel  e  D.  Jofio  in, 
povoou  com  alumnos  as  escholas  de  Paris. 

A  Benascen$a,  corno  um  phenomeno  complexissimo  nos  factos  que 
tambem  encerra,  nSo  pode  ser  fixada  de  um  modo  chronologico  cate- 
gorico. Postoque  ella  seja  em  si  urna  consequencia  de  duas  renascen- 
9as  anteriores,  a  da  entrada  dos  Arabes  no  Occidente,  e  a  que  cometa 
com  as  Cruzadas,  os  seus  limites  chronologicos  devem  estabelecer-se 
comò  quer  Lange  «desde  o  meado  do  seculo  xv  até  ao  meado  do  se- 
culo  XVII.  >^  Dentro  d'estes  dois  seculos  de  enorme  actividade,  a  Be- 
nascenfa  da  Europa  apresenta  tres  crises  successivas,  qiie  se  influem 
simultaneamente,  fEtzendo  d'essa  època  dignamente  o  come90  da  civi- 
lisa^So  moderna. 

0  primeiro  periodo  pode  caracterisar-se  comò  philólogico  e  artis- 
tico. (É  preenchido  pela  Benascen$a  italiana.) 

0  segundo  periodo  comò  iheologico  e  critico.  (Comprehende  a  Re- 
forma,  especialmente  na  Allemanba.)  * 

O  terceiro  comò  scientifico  e  phUosophico.  (Determinado  pelas  des- 
cobertas  de  Galileo,  e  esbo90  das  Syntheses  de  Bacon  e  Descartes.) 

As  duas  Universidades  de  Bolonha  e  de  Paris,  urna  fòco  dos  es- 
tudos  juridicos,  e  a  outra  o  centro  activo  das  e8pecula98es  da  Philo- 
sophia  e  da  Theologia  escholastica,  exerceram  sobre  toda  a  Europa 
uma  missSo  civilisadora,  alternando-se  a  sua  influencia  conforme  a  po- 
litica dos  estados  era  accentuadamente  democratica,  ou  mais  franca- 
mente monarchica.  As  rela93es  da  Politica  com  a  Pedagogia  fazem-se 
sentir  n'esta  dupla  influencia.  Quando  a  organisa9So  politica  consiste 
na  decadencia  das  instituigSes  democraticas  pela  preponderancia  das 
regaHias  monarchicas,  assim  a  influencia  de  Bolonha  vae  sondo  substi- 
tuida  pela  da  Universidade  de  Paris.  Cantu  caracterisa  as  differenyas 
organicas  das  duas  Universidades:  «A  Universidade  de  Bolonha  com- 
punha-se  de  estudantes  que  elegiam  os  seus  chefes,  aos  quaes  os  pro- 
prios  professores  estavam  submettidos,  ao  passo  que  a  de  Paris  era 
formada  de  professores  a  quem  os  estudantes  estavam  subordinados. 
Estes  dois  systemas  prendem-se  i  fórma  do  governo  das  duas  cidades 


1  Eist.  du  Maiérialitme,  1 1,  p.  200.  (Trad.  Pommerol.) 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENgA  257 

e  à  natureza  do  ensino.  Bolonha,  corno  republica^  comprazia-Be  a  cul- 
tivar 0  estudo  das  leis;  Paris,  cidade  monarchica^  preferia  o  da  theo- 
logia.  O  sy stema  bolonhez  propagou-se  na  Italia,  no  meio-dia  da  Fran9a 
e  do  outro  lado  dos  PTrenéos;  o  systema  da  Fran9a  foi  imitado  em  In- 
glaterra  e  na  Allemanha.»  ^  Era  no  meio-dia  da  Europa  que  se  conser- 
vavam  as  tradÌ95es  municipaes;  na  època  da  funda9So  da  Universidade 
de  Lisboa  a  realeza  lucrava  com  o  estudo  das  leis  romanas,  e  imitava 
a  organisagSo  da  Universidade  de  Bolonha;  sob  D.  JoSlo  i,  a  liberdade 
popular  que  o  acclamava  garantia-se  com  a  fórma  do  direito  aprendido 
em  Bolonha  por  JoSo  das  Regras;  D.  JoSo  u,  atacando  a  fidalguia, 
pendia  tambem  para  a  cultura  recebida  na  Italia.  As  ordens  religiosas 
preferiam  Paris,  por  causa  do  esplendor  dos  estudos  theologicos;  por- 
tanto  a  sua  preponderancia  na  córte  de  D.  Joào  ili,  e  as  fórmas  da 
monarchia  absoluta  imposta  por  D.  Manuel  no  firn  do  seu  reinado  e 
pelo  fanatico  D.  JoSo  ni,  fizeram  com  que  a  mocidade  procurasse  em 
Fran9a  a  educa9So  litteraria;  na  reforma  da  Universidade,  em  1537, 
e  sua  traslada9ào  para  Coimbra,  acabaram  certos  privilegios,  comò  a 
deigao  dos  reitores,  e  seguiu-se  com  a  chamada  de  mestres  francezes, 
ou  educados  em  Fran9a,  a  organisa9Slo  e  implanta9So  dos  costumes  da 
Universidade  de  Paris. 

«A  Universidade  de  Paris,  sondo  uma  das  derradeiras,  que  su- 
stentava  a  Scholastica  e  todos  os  velhos  dislates,  era  a  eschola  de  pre- 
dilec9So. — Os  espiritos  militantes  tambem  sentiam  por  instincto  que  Pa- 
ris era  o  verdadeiro  campo  de  batalha,  onde  devia  travar-se  até  &  morte 
a  lucta  dos  dois  espiritos.  Da  Universidade  de  AlcaU,  o  Cavalleiro  da 
Virgem,  Ignacio  de  Loyola,  um  capitSo  na  inactividade,  ferido,  com 
trinta  e  sete  annos,  acabava  de  chegar  às  escholas  de  Paris  (fevereiro 
de  1528)  e  ali  permaneceu  sete  annos. — Da  Universidade  de  Bruges, 
de  dicada  às  idéas  novas,  e  protegida  por  Margarida,  um  estudante  de 
dezoito  annos  vinha  muitas  vezes  a  Paris,  o  sombrio  e  violento,  o  sa- 
bio  e  eloquente  Calvino. — Da  Universidade  de  Montpellier  tambem 
veitt,  occasionalmente,  um  mèdico,  um  critico  audaz,  Rabelais,  que  le- 
vou  comsigo  uma  viva  antipathia,  um  desprezo  magnifico  por  uns  e  por 
outros.»* 

Vives,  no  Liher  in  Paeudo-Dicdectìcosj  escripto  em  1519  e  diri- 
gido ao  seu  amigo  Fortis,  referindo-se  ao  atrazo  dos  estudos  em  Paris, 


1  HieL  Univer.f  zi  època,  cap.  24. 
3  AGchelet,  La  Refbrme,  p.  371. 

HiST.  mi.  17 


258  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

traga  um  quadro  das  velhas  doutrinas  scholasticasi  contra  as  quaes  com- 
batia.  Lamenta  que  a  Universidade  de  Paris,  a  quem  competia  a  ini- 
ciatiya  da  renoya9àO;  persista  na  conservagào  dos  methodos  atrazados 
da  barbarie  scholastica,  e  tanto  mais  Ihe  casta  isso  por  serem  profes- 
sores  hespanhoes  os  que  sustentam  o  estandarte  do  iretrocesso.  Refe- 
ria-se com  certeza  a  Gaspar  Las  e  a  JoSo  Celaya.  Deplora  os  dias  pre- 
ciosos  que  gastou  n'estas  disputas  òcas  de  idéas,  em  que  predominava 
o  absurdo,  e  revolta-se  contra  a  linguagem  inintelligivel,  que  parodiando 
a  expressào  ciceroniana  se  converteu  em  um  palavriado  de  giria  que 
nem  o  proprio  Cicero  poderia  entender.  O  seu  odio  contra  Fedro  His- 
pano,  cujas  Summulas  ainda  imperavam  nas  escholas  no  primeiro  quar- 
tei  do  seculo  xvi,  leva-o  a  ponto  de  affirmar  que  elle  é  urna  das  causas 
mais  directas  da  corrup9^o  da  linguagem.  Accusa  os  que  se  estribam 
na  auctoridade  de  Aristoteles,  quando  ignoram  a  propria  doutrina  do 
mestre,  e  dosconhecem  as  suas  obras,  onde  a  dìc9llo  grega  é  pura,  e  o 
bom  senso  està  livre  das  argucias  e  barbarismos  que  se  propagam  em 
nome  do  philosopho.  Combate  a  dialectica  das  escholas,  porque  fazem 
d'essa  arte  um  fim,  quando  niLo  é  mais  do  que  um  meio  para  servir  de 
instrumento  &  propaga9So  de  conhecimentos,  dispendendo  estupidamente 
todo  0  tempo  dos  estudos  n'ella.  E  com  uma  imagem  expressiva,  Vives 
compara  o  Dialectico  ao  pintor  que  levou  a  sua  existencia  a  preparar 
08  pinceis,  sem  nunca  se  preoccupar  com  o  quadro.  Para  comprovar  o 
seu  juizo,  allega  o  facto  dos  seus  dois  antigos  mestres,  Lax  e  DuUard, 
que  cboravam  amargamentc  o  tempo  malbaratado  no  scholasticismo. 

Pela  primeira  vez  se  entrava  em  um  estado  montai  de  positivi- 
dade.  Porém  as  luctas  contra  a  antiga  Scholastica,  contra  a  theologia, 
contra  o  dogmatismo  pedagogico,  além  dos  conflictos  inconciliaveis  en- 
tro 0  poder  temperai  e  a  dissolu9So  da  hierarchia  e  da  disciplina  da 
Egreja,  embara9aram  a  reorganisa9So  de  uma  nova  synthese  intelle- 
ctual.  E  para  chegar  a  essa  sjrnthese  era  preciso  retomar  o  systema  de 
observa9So  tal  corno  o  realisara  a  Grrecia  na  crea9ÌLo  do  primeiro  par 
scientifico,  até  chegar,  através  de  todas  as  catastrophes  sociaes  ou  cri- 
ses  revolucionarias,  a  submetter  os  phenomenos  moraes  e  historicos  ao 
mesmo  espirito,  e  sob  està  identidade  reorganisar  a  synthese  goral  do 
universo.  Tal  é  a  synthese  positiva.  N'esta  complexidade  de  livros,  e 
accumuIa9So  de  factos  concretos,  a  intelligencia  precisa  de  um  regi- 
men;  o  mostre  retoma  a  primitiva  auctoridade,  mas  necessaria  e  inillu- 
divel,  e  é  através  da  sua  exposÌ9ào  que  dirige  o  discipulo  até  ao  ponto 
em  que  elle  por  si  mesmo  possa  racionalmente  governar  as  suas  leituras 
e  corroborar  os  elementos  syntheticos. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENQA  259 

Durante  a  Edade  mèdia  o  enaina  condistia  uà  audÌ9So  da  palavra 
do  mestre;  a  falta  de  livros  era  sapprida  pela  exposigSLo  orai  e  persti- 
^osa  do  lente,  que  esplicava  um  texto  raro  e  inintelligivei;  que  o  mo- 
dificava  segando  o  seu  estado  montai;  e  quasi  sempre  em  um  ponto  de 
vista  syntheticp.  Cahiu-se  assim  gradativamente  em  uma  sciencia  sub- 
jectiva,  que  prevalecia  sobre  os  textos  authenticos^  comò  se  deu  em 
reIa9So  &  obra  de  Arìstoteles. 

Com  a  descoberta  da  Imprensa  facilitou-se  a  posse  e  vulgarisagSLo 
dos  livros,  e  os  livros  foram  considerados  comò  o  deposito  de  toda  a 
sciencia.  O  lente,  menos  livre  do  que  na  Edade  mèdia,  no  secalo  xv 
cìngia-se  ao  texto,  cercando-o  de  glosas,  commentos,  interpretaQSes, 
notas,  sob  um  aspecto  casuistico,  fragmentario  e  pedante.  A  letra  pre- 
valecia sobre  o  espirito:  Montaigne  fala  d'està  sciencia  livresca,  apa- 
nbada  pelos  pedantes  «au  bout  de  leurs  levres,  pour  la  degorger  seu- 
lement  et  mettre  au  vent.» 

Na  època  da  Reforma  e  da  RcnasceuQa,  a  renova9So  dos  estudos 
consistiu  principalmente  em  renovar  os  elementos  do  conhecimento 
scientifico,  iniciando-se  o  processo  da  observa9So  em  legar  da  aucto- 
ridade,  transformando  pela  critica  o  estudo  das  linguas  classicas,  que 
tomaram  melhor  comprefaendidos  os  livros  classicos  da  antigaidade,  das 
litteraturas,  da  religiSo  e  do  direi to. 

«Centra  este  grande  movimento,  uma  opposÌ9llo  viva,  ardente^  foi 
levantada  tambem.  Duas  causas  diversas  tinham  presidido  à  sua  nas- 
cen9a.  A  primeira  achava-se  na  auctoridade  despotica  que  exercem 
sempre  sobre  o  vulgo  as  opiniSes  arreigadas  pelo  tempo  nos  espiritos^ 
por  mais  absurdas  que  sejam.  As  primeiras  tentativas  dos  sabios  da 
Renascen9a  tinham-se  dirigido  centra  a  philosopliia  degenerada  que 
reinava  nas  escholas  e  que  j untava  à  barbarie  da  fórma  a  esterilidade 
mais  triste  ainda  do  fundo  :  a  rasSLo  presa  nas  categorias  de  um  aristo- 
telismo bastardo,  esgotava-se  sobre  fórmulas  e  permanecia  a  maior 
parte  do  tempo  alheia  às  realidades;  as  abstrac93e8  eram  tudo,  os  fa- 
ctos  eram  nada.  Era  necessario  apear  està  barreira,  antes  de  avan9ar  ; 
mas  apenas  se  Ihe  tocou,  lego  a  eschola,  atacada  na  sua  existencia,  se 
levantou  em  peso,  com  um  arder  que  presagiaya  uma  lucta  prolonga- 
da,  e  que  deu  margem  a  bastantes  diatribes  odientas,  hoje  cahidas  no 
esquecimento.  Mas  se  a  ignorancia  e  a  retina  tiveram  uma  larga  parte 
em  tudo  isto,  nSo  se  pode  negar  que  o  zelo  exaggerado,  digamos  mais, 
qiie  0  excesso  em  que  cahiram  muitos  apostolos  do  progresso  nSo  sus- 
citou  centra  os  seus  esfor90B  sempre  resistencias  conscienciosas,  e,  até 
um  certo  ponto,  esclarecidas.  Na  admira9ao  pelas  fórmas  brilhantes  da 

17* 


260  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

litteratura  antiga,  os  renovadores  deixaram-se  levar  até  à  adopjSo  maiB 
ou  menos  completa  do  fondo  de  idéas  que  elles  festabeleciam.»  ^ 

Sabe-se  jà  qual  foi  a  influencia  da  descoberta  da  Imprensa  no  en- 
sino  europea,  substituindo  ao  lente  o  professor,  à  palavra  do  pulpito 
ou  da  cathedra  o  texto  do  livro  accessivel  ao  vulgo.  A  fuga  dos  sabios 
byzantinos  para  as  cidades  da  Italia,  por  occasiSo  da  tomada  de  Con* 
stantinopla  pelos  turcos,  fez  com  que  se  generalisassem  as  obras  litte- 
rarias  da  Grecia,  e  portante  que  o  acanhado  humanismo  latino  se  aper- 
fei$oaB3e  com  essa  corrente  do  hellenismo,  orgSo  de  idéas  universalis- 
tas  que  se  haviam  perdido  na  expansEo  de  Alexandre  para  o  Oriente. 
Sob  Lourenjo  de  Medicis  (1470-1492)  o  Platonismo  puro  recebido  do 
conbecimento  directo  da  obra  do  philosopho,  repelle  esse  platonismo 
desvairado  da  eschola  de  Alexandria,  assim  comò  o  Aristotelismo  aver- 
roista  é  substituido  pelo  Aristotelismo  alexandrista,  em  que,  corno  diz 
Draper:  «as  puras  doutrinas  de  Aristoteles  vém  em  legar  das  baixas 
doutrinas  aristotelicas  das  escbolas.»'  N'esta  reivindica^So  das  doutri- 
nas do  stagjrita,  Portugal  acha-se  dignamente  representado  pelo  trium- 
pho  de  Antonio  de  Gouvéa,  que  impoz  o  respeito  que  se  deve  ter  pelo 
grande  philosopho,  conhecido  directamente  seu  texto,  centra  Fedro  Ra- 
mus,  que  protestara  com  rasSo  contra  o  Aristoteles  deformado  pelas 
apostillas  escholasticas.  O  latim  tambem  foi  mais  profundamente  co- 
nhecido pelos  eruditos  italianos,  comò  Louren90  Valla,  Angelo  Poli- 
ciano,  Pie  de  la  Mirandola,  que  procuravam  restabelecer  corno  fórma 
definitiva  a  elocusSLo  ciceroniana.  A  Italia  era  o  fòco  da  cultura  lati- 
nista, e  Valla  proclamava  nos  seus  desalentos  politicos:  «Perdemos  a 
noBsa  supremacia,  mas  pela  virtude  deslumbrante  da  lingua  latina  nós 
ainda  dominamos  sobre  uma  grande  parte  do  tmiverso.  Nossa  é  a  Ita- 
lia, nossa  a  Hespanha,  a  Allemanha,  a  Pannonia,  a  Dalmatia,  a  Illyria, 
e  tantos  outros  povos.  Porque,  onde  quer  que  reina  o  idioma  romano, 
ahi  se  conserva  o  imperio  de  Roma.»  A  sombra  d'este  conhecimento 
da  lingua  latina  é  que  a  Egreja  dominara  nos  espirìtos,  corno  interprete 
da  Biblia,  e  comò  possuidora  da  linguagem  da  liturgia.  0  conhecimento 
philologico  do  latim,  do  grego  e  do  hebreu  veiu  emancipar  os  espirì- 
tos, revelando  que  nos  escriptores  gregos  existiam  idéas  de  ordem  tSo 
elevada  corno  na  Biblia,  e  conduzindo  pela  analyse  dos  novos  gram- 


1  Naméche,  Sur  lavieetlet  éeriU  de  Vivea.  Memoires  oonronnés  de  PAcadé* 
mie  de  Bruxelles,  t  xv,  p.  8  (1841.) 

'  HitMrt  du  Dévdopptment  dei  Idées,  t.  u,  p.  135. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGENQA  261 

maticos  latinos  &  critica  dos  textos,  e  a  esse  racionalismo  qae  provo- 
con  a  Keforma  religiosa.  Draper  viu  claro  o  alcance  d'està  parte  phi- 
lologica  da  Benascen9a:  «O  renascimento  da  pura  latinidade  e  a  in- 
troduc92[o  do  grego  Ian9aram  os  fundamentos  de  urna  critica  mais  cor- 
recta.  Urna  edade  de  eradÌ9Sko  era  inevitavel,  na  qual  tudo  o  que  nSo 
pudesse  sustentar  um  exame  profundo  seria  implacavelmente  rejeitado.i^ 
Assim,  corno  ainda  observa  Draper,  pelo  desenvolvimento  da  philolo- 
già  em  critica,  a  inteliigencia  europèa  achou-se  naturalniente  na  criae 
religiosa,  a  que  se  chamou  de  um  modo  restricto — a  Keforma;  o  cele- 
bre latinista  Nebrixa,  que  inicia  os  estudos  humanistas  na  Hespanha, 
foi  accusado  &  InquisÌ9So  por  ter  tido  a  audacia  de  apontar  alguns  er- 
ros  de  grammatica  na  versSo  da  Vulgata.  0  poder  moral  de  Erasmo  na 
Europa  resultava  da  sua  livre  critica  philologica,  e  quebrando  os  mol- 
des  quadriviaes  das  Universidades,  inaugurou  o  novo  typo  da  Instrue- 
gSo  superior,  que  veiu  a  ser  realisado  no  Collegio  de  Fran9a  por  Fran- 
cisco I.  Comprehende-se  o  terror  da  Egreja  ao  vèr  fugir-lhe  o  seu  po- 
der espiritual  ;  primeiramente  considerou  comò  heretico  o  acto  de  tra- 
duzir  para  as  linguas  vulgares  a  Biblia,  e  depois  tratou  de  organisar 
um  corpo  de  latinistas,  que,  luctando  com  os  philologos  da  Rena8cen9ay 
se  apoderassem  do  ensino  publico,  obstando  ao  desenvolvimento  das  lin- 
guas vulgares.  Tal  foi  a  causa  do  estabelecimento  dos  Jesuitas,  no  se- 
gundo  quartel  do  seculo  xvi,  para  subordinarem  este  movimento  phi- 
lologieo  à  Egreja:  aOs  jesuitas  blasonavam  de  formarem  o  la90  entre 
a  religiSo  e  a  litteratura.»^  Alguns  philologos  do  seculo  xvi  cahiram 
n'esta  illusUo,  comò  se  ve  pelas  palavras  de  JoSo  Sturm:  aCongra- 
tulo-me  por  vèr  fundar  este  instituto,  por  dois  motivos:  o  primeiro  é 
que,  tomando  parte  na  nossa  obra,  dedicam-se  &  cultura  das  sciencias, 
porque  eu  tenho  visto  que  auctores  elles  explicam  e  que  methodo  se- 
guem,  um  methodo  que  se  afasta  tSo  pouco  do  nesso,  que  se  diria  que 
temol-o  bebido  nas  mesmas  fontes  ;  o  segundo,  é  que  elles  nos  obrigam 
a  redobrar  de  arder  e  de  vigilancia,  se  nós  nSo  quizermos  deixal-os 
desenvolver  mais  zelo  do  que  nós,  e  formar  discipulos  mais  letrados  e 
aabios  do  que  os  nossos.»'  N'esta  concorrencia  activa,  os  Jesuitas,  pelo 
^bsoluto  imperio  do  latim,  nSo  crearam,  nem  deixaram  crear  uma  /n- 
stTuc^  popular,  iniciada  pelos  Protestantes,  mas  definiram  no  ensino 


1  Hiatoirt  du  Dévdoppement  dea  Idées^  i,  m,  p.  150. 
-*  Idem,  ibid.,  p.  172. 
^  Ap.  André,  Noa  Maìtrea — hier,  p.  149. 


262  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

publico  europea  o  typo  da  Instrucgào  secundaria,  exclusivo  dos  seos 
CoUegioSy  0  qual  ainda  prepondera  nos  Gyninasios  e  Lyceus  modemos. 
E  a  comeyar  no  secalo  xv  qae  as  Litterataras  modemas  s&o  es- 
criptas^  nSo  nos  dialectos  valgares  corno  as  tradiySes  da  Edade  mèdia, 
mas  nas  lingaas  nacionaes,  isto  é,  os  dialectos  que  se  tomam  exclusi- 
vos  conjunctamente  com  o  facto  politico  da  unidade  nacional  de  um 
povo.  A  Egreja  perdia  no  sea  poder  espiritual,  porque  o  sentimento 
popular  achava  alimento  nas  crea95es  profanas  das  novas  litteraturas; 
Draper  notou  tambem  este  facto  t  a  A  preponderancia  do  latim  eraacon- 
dÌ9ÌU)  da  sua  forga;  sua  decadeneia,  sua  mina  e  desapparecimento,  o 
signal  da  reduc9So  do  seu  dominio  a  um  pequeno  principado  italiano. 
De  facto,  o  desenvolvimento  das  linguas  europèas  foi  o  instrumento  da 
sua  mina.])  ^  N'esta  lucta  para  salvar  um  poder  que  Ihe  fugia,  a  Egreja 
oomegou  por  considerar  toda  a  actividade  do  pensamento  comò  uma 
heresia,  amaldÌ9oando-a  com  anathemas  e  com  o  canibalismo  das  fo- 
gueiras.  Usando  da  sua  influencia  junto  do  poder  tempora!,  organisou 
a  resistencia  pela  forfa  bmta,  lan9ando  centra  as  novas  idéas  os  Do- 
minicanos  (Domini  canea),  que  se  consideravam,  por  um  terrivel  troca- 
dilho,  OS  CSes  de  Deus,  para  farejarem  a  impiedade,  e  deu-lhes  o  pri- 
vilegio de  julgarem  da  heterodoxia  nos  Autos  de  Fé,  da  Inquisijào.  ^ 
Este  terrivel  tribunal  foi  instituido  em  Portugal  por  bulla  de  23  de 
maio  de  1536,  nas  vesperas  da  reforma  da  Universidade  de  Lisboa^ 
em  1537.  Como,  porém,  a  Europa  da  Benascen(a  jà  nSo  era  a  Europa 


1  Op.  cit.,  t.  ni,  p.  131. 

2  «Os  doutores  de  Louvain,  mesmo  os  mais  oppostos  às  boas  lettras,  tinham, 
ainda  que  inconscientemente,  cooperado  na  revoln^So  que  rebentou  no  secalo  svi 
na  £greja  e  no  mondo  intellectual  em  geral,  quer  diffundindo  as  lozes  por  um  en- 
8Ìno  habil,  quer  afastando  o  gosto  da  barbarie,  d  for^a  de  ridicalo  e  dos  absurdos, 
quer  finalmente  dando  mais  eneigia  à  necessidade  de  innovar,  por  urna  resistencia 
inbabil  ou  brutal.  Luthero  teve,  desde  o  principio,  e  emquanto  pareceu  moderado, 
fervorosos  amigos  em  Louvain,  corno  adiante  veremos,  mas  foi  ali  mesmo  comba- 
tido  com  affinco,  e  por  de8gra9a,  por  ama  maneira  pouco  honrosa  para  os  seus  ad- 
versarios.  Em  um  folheto  de  algumas  paginas,  impresso  em  1521,  e  do  qual  Da- 
niel Francas  tirou  um  resumo,  lé-se  ama  anecdota  curiosa:  Os  Dominicanos  do 
Louvùn  quizeram  fazer  um  auto  de  fé  dos  escrìptos  de  Luthero;  cada  qual  tratoa 
de  vir  assistir  a  este  bello  espectaculo;  muitos  trouxeram  livros  destinados  às 
chammas,  porém  nSo  eram  os  do  doutor  anathematisado.  Os  estudantes  acharam 
mais  engra^ado  substituil-os,  um  pelo  SermaneB  dùcipuli^  outro  pelo  Tartareturoj 
este  pelo  Dormi  «eeure,  aquelle  pelo  Paratum^  e  uma  multidio  de  cartapacios  d'està 
especie.»  (Reifienberg,  2*  Mémoire  sur  Um  deitx  premiere  nkdee  de  rUnivernlé  de 
Ixmvain,  Nouv.  Mém.  de  TAcadémie  Boyal  de  Bruxelles,  t.  vn,  p.  18,  1882.) 


GHISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCEN^A  263 

do  seculo  XIII;  a  Egreja  acceita  o  movimento  intellectual  para  desyial-o 
em  sua  vantagem;  e  aproveita  a  m8tituÌ9So  da  CompanMa  de  Jesus^ 
organisada  em  Paris,  para  se  apoderar  do  ensino  publico  dos  Oollegios 
e  Universidades.  Assim  a  reforma  pedagogica  feìta  pelos  Gouvéas  em 
1547  é  annollada  pela  entrega  da  Universidade  de  Coimbra  aos  Jesuì- 
tas  em  1555.  Pela  singiilar  importancia  que  o  Doutor  Diego  de  Gou- 
vèa  tinha  junto  de  D.  JoHo  ni,  é  que  a  nova  instituiQSLo  da  Companhia 
de  Jesus  foi  admittida  em  1540  em  Portugal,  aconselbando-o  a  que  Ihe 
Gonfiasse  o  ensino  da  no}>reza:  «deu  oste  alvitre  a  el-rei  o  Doutor  Diego 
de  Gouvéa,  portuguez  e  pessoa  de  grande  auctoridade,  que  tinba  sido 
Reytor  do  Collegio  de  Santa  Barbora,  naquellas  celebres  escbolas  de 
Paris,  quando  ali  estudaram  Santo  Ignacio  e  seus  companbeiros.»^  Os 
Jesuitas  pagaram  com  a  costumada  ingratidSo  àquella  illustre  familia 
de  humanistas,  lan9ando  fora  da  Universidade  de  Coimbra  os  profes- 
sores  trazidos  por  André  de  Gouvéa,  quando  em  1547  veiu  de  Bordéos 
reorganisar  os  estudos  superiores;  destruiram  a  sua  obra,  e  com  a  fim- 
da$So  do  Collegio  das  Artes  fizeram  o  assalto  à  Universidade,  de  que 
se  apoderaram  em  1555  por  ordem  de  D.  JoSo  in.  Aqui  temos  em  pre- 
senga  urna  da  outra  a  Ordem  dos  Dominicanos  e  a  Companhia  de  Je- 
sus, uma  antiga,  com  perstigio  e  a  auctoridade,  com  o  privilegio  dos 
Autos  de  Fé,  para  estirpar  pela  fogueira  os  hereticos  e  pensadores;  a 
Companbia  era  recente,  nascida  no  meio  das  dissidencias  doutrinarias 
da  Egreja,' quando  estava  triumphante  a  Beforma  na  AUemanba,  quando 
todo  0  ferver  religioso  era  suspeito,  sondo  por  isso  os  Jesuitas  apu- 
pados  comò  Franchinotes.  Os  Dominicanos  nSo  podiam  vèr  com  bons 
olhos  estes  novos  concorrentes.  Se  era  preciso  manter  a  auctoridade  da 
doutrina  catholica,  elles  bastavam  com  as  suas  fogueiras;  os  seus  Au- 
tos de  Fé  eram  feitos  com  pompa,  comò  uma  festa  publica,  e  desem- 
penbavam-se  com  um  canibalismo  sincero.  O  Jesuita  transigiu  emquanto 
à  doutrina,  mas  teve  so  em  vista  manter  a  auctoridade  temperai  do 
Papa,  tornando-se  o  seu  corpo  diplomatico  em  todas  as  cSrtes  da  Eu- 
ropa comò  confessor  dos  reis  e  da  aristocracia.  Em  Portugal  nSo  foram 
bem  recebidos  os  Jesuitas;  na  córte  dominavam  os  Dominicanos,  que 
haviam  alliciado  para  si  o  infante  D.  Henrique,  Inquisidor-geral  (3  de 
julho  de  1539),  porém  os  Jesuitas  apoderaram-se  do  animo  do  rei,  que 
Ihes  deu  lego  a  direc9lo  exclusiva  do  ensino  dos  mo^os  fidalgos.  So- 
bre  uma  tal  base  é  que  elles  luctaram,  vencendo  todas  as  difficuldades, 


1  P.  Balthazar  Tellee,  Chroniea  da  Companhia,  liv.  i,  e.  r^,  p.  15. 


264  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

captando  os  filhos  das  famìlias  mais  poderosas,  e  obtendo  dota93es 
e  rendas  para  a  fundagào  de  CoIIegios.  Por  firn  o  proprio  Cardeal- 
lufante-Inquisìdor  veia  a  reconciliar-se  com  os  Jesuitas,  i^os  qnaes  o 
papa  Paulo  ni  dava  as  mais  absolutas  isemp9Se8,  corno  à  sua  mili- 
eia  secreta.  Os  Dominicanos  continuaram  a  queimar  hallucinados  de 
demonomania,  mas  este  meio  era  impotente  para  abafar  o  movimento 
inteliectual  da  Benascenga  da  Europa,  que  provocara  a  dissidencia  re  - 
ligiosa  da  Reforma;  os  Jesuitas  foram  com  a  corrente  do  seculo,  fize- 
ram-se  humanistas,  pedagogos,  e  explicaram  nas  suas  escholas,  em  lon- 
gos  exercicios  de  rhetorica,  os  monumentos  da  litteratura  greco-romana, 
prèviamente  recortados  nas  suas  Sdectas.  A  recrudescencia  dos  Domi- 
nicanos e  o  ferver  nascente  dos  Jesuitas  foram  nas  na^Ses  occidentaes 
a.  consequencia  d'esse  outro  movimento  esteril  do  Protestantismo  nos 
povos  do  norte.  No  Occidente  a  actividade  scientifica  pode  exercer-se 
pela  concilia9So  artificiosa  das  Duas  VerdadeSy  accumulando-se  as  ob- 
serva^Ses  e  experiencias  que*  conduziram  &  sjnthese  philosophica  da 
Renasccn^a.  Onde  o  Protestantismo  entrou,  teda  a  actividade  de  espi- 
rito foi  desgra9adamente  dispendida  em  questSes  theologicas,  e  em  um 
puritanismo  de  boa-fé,  que  por  praticas  severas  de  liturgia  imprimiu 
no  cidad&o  o  sello  da  subordina9fto  muda;  a  Allemanha,  é  facto,  que 
iniciou  a  Reforma,  mas  ficou  fora  da  corrente  da  civilisa92o  até  ao  fim 
do  seculo  xvni,  quando  recebeu  o  influxo  dos  incredulos  Encyclope- 
distas  francezes. 

0  phenomeno  revolucionario  do  Protestantismo,  que  se  generalisa 
na  Europa  no  seculo  xvi,  n&o  resultava  de  uma  simples  reac9&o  cen- 
tra OS  costumes  do  clero  ou  dos  abusos  do  Papado;  era  a  consequen- 
cia de  um  espirito  de  critica  inherente  a  todo  o  monotheismo,  que  im- 
p3e  uma  determinada  xmidade  dogmatica  pela  refuta9ao  das  doutrinas 
que  se  nSo  conformam  com  ella.  Esses  processos  polemicos,  comò  uma 
faca  de  dois  gumes,  cortam  pelas  heresias  e  suscitam  heresias.  A  Egreja 
na  sua  con8tituÌ9%o  encontrou  sempre  dissidencias,  que  so  come9aram 
a  ser  importantes  desde  que  surgiu  a  separa9ÌU)  entre  os  dois  poderes 
espirìtual  e  temperai.  A  medida  que  a  Europa  saia  do  regimen  feudal, 
e  se  concentrava  a  soberania,  constituiam-se  os  estados  nacionaes  ;  re- 
sultava que  a  realeza  pela  dictadura  e  apoiada  nos  exercitos  perma- 
nentes  prevalecia  sobre  o  poder  dos  papas,  cuja  ac9So  enfraquecia  pela 
independencia  das  egrejas  nacionaes.  Era  pertanto  no  seculo  xvi  que 
a  crise  religiosa  se  devia  manifestar  de  um  modo  mais  intenso,  aggra- 
vada  pela  transforma9So  politica  das  monarchias,  e  pelo  desenvolvi- 
mento  litterario  das  linguas  nacionaeS|  que  tomavam  desnecessario  o 


GHISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENQA  265 

UBO  do  latim.  O  conhecimento  dos  poetas  e  moralistas  grego-romanos 
tirava  ao  catholicismo  o  imperio  esclusivo  da  verdade  theologica  e  sus- 
citava o  livre  exercicio  de  urna  critica  que  come9ava  com  uni  intuito 
philologico  e  acabava  por  urna  negafSo  de  heterodoxia,  dissolvendo  o 
sjstema  catholico.  A  dissoIugSo  que  comegara  no  seculo  xm  com  o 
ensino  leigo,  era  individuai;  no  seculo  xvi  é  social^  dividindo  a  Eu- 
ropa em  dois  elementos  distinctos,  e  reduzindo  a  Egreja  a  um  partido 
de  combate.  Comte  formula  em  nitidas  palavras  està  evolu9S[o  do  Pro- 
testantismo^ comò  expressSo  negativa  do  livre-exame  individualista:  cOs 
doutores  que  sustentaram  tfto  longo  tempo  centra  os  papas  a  auctori- 
dado  dos  reis,  ou  as  resistencias  correspondentes  das  Egrejas  nacìonaes 
è»  decisdes  romanas,  nSLo  podiam  certamente  evitar  de  se  attribuiremo 
de  uma  maneira  mais  ou  menos  systematica,  um  direito  pessoal  de 
exame,  que,  de  sua  natureza,  nSo  devia,  sem  duvida,  ficar  indefinida- 
mQute  concentrado  entro  taes  intelligencias  nem  sobre  taes  appIica9Ses; 
e  que,  com  effeito,  espontaneamente  ampliado  depois,  por  uma  inven- 
civel  nec^Bsidad^,  simultaneamente  montai  e  social,  a  todos  os  indivi- 
duos  e  a  todas  as  questSes,  gradualmente  conduziu  A  de8truÌ9So  radi- 
cai, primeiramente,  da  disciplina  catholica,  depois  da  hierarckia,  e  por 
firn  até  do  proprio  dogma.i^  * 

E  pela  successSo  d'estas  phases  da  crise  protestante  que  derivava 
da  8Ìtua93o  das  sociedades  modemas,  que  vimos  os  povos  catholicos 
participarem  das  aspira93es  para  uma  reforma  da  disciplina  dentro  da 
egreja,  e  os  reis  ainda  os  mais  piedosos  exercerem  auctoridade  indis- 
cuti vel  sobre  o  clero  dos  seus  estados.  Fernando,  de  Hespanha,  che- 
gava  a  prop6r  ao  concilio  a  aboIÌ93o  do  celibato  clerical,  e  jjonto  com 
o  rei  D.  Mjanuel  combinaram  eque  cada  um  d'elles  per  seus  embaixa- 
dores,  mandasse  amoestar  o  Papa  e  pedir-lhe  comò  obedientes  filhos  da 
Egreja  catholica,  que  quizesse  poer  ordem  e  modo  na  dissoIu9So  da 
Vida,  costumes  e  expedÌ9So  de  breves,  bullas  e  outras  cousas  que  se 
na  corte  de  Roma  tratavam  de  que  teda  a  christandade  recebia  escan- 
dalo.»' Se  encontramos  um  poeta  comò  Gii  Vicente  atacando  no  seu 
Auto  da  Feira  as  simonias  de  Roma,  ^  tambem  se  inspira  no  mesmo 


1  Cours  de  Philosophie  positive^  t.  v,  p.  378. 

2  Dami&o  de  Goes,  Chron,  de  D.  Manuel,  P.  i,  cap.  v. 

3  Algumas  inferencias  se  podem  prodazir,  de  que  Gii  Vicente  conheceu  as 
idéaa  da  Beforma.  Gallardo,  na  Biblioteca  de  Livros  raros  (p.  984),  falando  de 
ama  primeira  redac^So  do  Anto  das  Barcas,  que  tem  o  titalo  de  Tragieomedia  al- 
legorica do  Infiemo  y  Paraiso^  diz  quo  é  uma  imita^So  de  ama  compoBÌ9lo  drama- 


266  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

sentimento  religioso  Frei  Bartholomeu  dos  MartyreB  debatendo  no  Con- 
cilio de  Trento  a  favor  da  extinojSo  do  celibato,  tal  corno  o  realisou 
a  primeira  phase  protestante,  que  chegou  mesmo  em  Roma  a  ter  sin- 
ceroB  partidarios  n'essa  modesta  associajSo  do  Oratorio  do  Amor  di- 
vino, que  se  reunia  em  Transtevere,  e  que  contou  entre  os  seus  mem- 
bros  Sadoleto,  Contaxini,  Giberti  e  Caraffa.  Os  grandes  poetas  lyricos 
do  seculo  XYi,  comò  Sa  de  Miranda,  Miguel  Angelo  e  Victoria  Colonna, 
participaram  d'està  aspira9So  melancholica  de  uma  reforma  possivel 
sem  sahirem  da  obediencia  à  disciplina  da  Egreja. 

0  espirito  severo  e  ao  mesmo  tempo  poetico  de  Sa  de  Miranda, 
pertence  a  uma  cathegoria  de  genios  superiores  que  so  podem  ser  bem 
comprehendidos  pela  parte  que  tomaram  nas  duas  correntes  artistica  e 
intellectual  da  Renascenga  e  da  Reforma.  Miguel  Angelo  e  Victoria  Co- 
lonna, no  seu  delicado  Ijrismo  amoroso,  exprimem  o  sentimento  por 
um  esforgo  do  pensamento;  e  a  emojSo  reflectida  perdendo  em  espon- 
taneidade  ganha  em  profundidade.  Sa  de  Miranda  tem  no  seu  lyrismo 
esE\<e  predominio  do  pensamento,  a  contemplafSo  activa  de  uma  orga- 
msa93o  formada.  Mas  tanto  nos  versos  de  Sa  de  Miranda,  comò  nos 
de  Miguel  Angelo  e  Victoria  Colonna,  ha  uma  tristeza  inexprimivel, 
que  apparece  no  principio  do  seculo  xvi  nas  almas  catholicas,  que  sem 
approvarem  a  dissolu9So  do  papado,  e  sem  se  desligarem  da  egreja  de 
Roma,  acham  na  aspira9SLo  &  simplicidade  evangelica  do  Protestantismo 
um  esfor90  sympathico,  que  abra9ariam  se  isso  nSo  fosse  formulado 
comò'  quebra  da  disciplina  canonica.  Em  Portugal,  comò  nos  outros 
povos  occidentaes,  nSo  lavrou  o  Protestantismo  dissidente,  mas  sentiu- 
se  a  necessidade  de  restaurar  a  Egreja  primitiva;  esses  espiritos,  que 
viam  no  Protestantismo  a  heresia  e  a  repressSo  inquisitorial,  cahiram 
na  tristeza  da  sua  instabilidade  moral.  Sa  de  Miranda  possuiu  uma 


tica  de  Juan  Yaldéa,  Becretario  latino  de  Carlos  v,  o  qual  seguirà  as  idéas  da  Re- 
forma  :  «La  traza  de  està  comedia  menandrìiia  (es  decir,  ejemplar  moral)  se  echa 
bien  de  ver  que  està  tomada  del  Dialogo  de  Mercurio  y  Caron  de  Juan  deVai- 
dés.»  Na  segonda  redac^ao  d'està  trag^comedia,  poe  Gii  Vicente  na  bocca  do  on- 
zeneiro  : 

SadgU  /(Mima  4§  Vaiik  t 
Ci  é  TOMft  Scnhori*? 

(Ofrr.  u,  ttS.) 

Dis  que  alo  liade  ei  Tir 
8em  /(Mbma  é§  Vtitdii. 

(JM.,p.S81.) 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGEN^A  267 

Biblia  em  linguagem  volgar,  o  que  nos  revela  que  provou  o  pdmo  do 
livre  exame;*  mas  a  belleza  austera  dos  seus  versos,  a  trìsteza  hu- 
mana  tSo  parecida  com  a  de  Miguel  Angelo  e  Victoria  Colonna,  sSo 
tambem  a  revelafSo  de  que  subjugou  o  seu  sentimento  à  inflexibilidade 
da  disciplina. 

A  prohibÌ9So  de  lér  a  Biblia  em  traduc95es  nas  linguas  vulgares 
generalisou-se  no  occidente  comò  meio  de  reagir  centra  o  livre  exame 
proclamado  pela  Reforma.  O  bispo  de  Toledo,  D.  Bartholomeu  Carranza, 
nos  seus  Commentarios  sobre  et  Catecismo  crùtiano  (1558),  allude  a  està 
prohìbÌ9So:  <E  questSU)  multo  debatida  ha  mais  de  vinte  annos  a  està 
parte. . .  se  é  conveniente  que  a  Sancta  Escriptura  se  traduza  nas  lin- 
guas vulgares,  de  maneira  que  cada  na9ào  a  tenba  na  sua. — Tratou-se 
està  questSo  no  Concilio  de  Trento^  porém  nSo  se  pdde  determinar, 
para  dar  legar  a  outros  assumptos. — Antes  que  as  heresias  do  ms^lvado 
Luthero  sahissem  do  inferno  a  està  luz  do  mundo,  nSo  sei  que  esti- 
vesso  prohibida  a  Sagrada  Escriptura  nas  linguas  vulgares  entre  ne- 
nhuns  povos.  Em  Hespanba  havia  Bìblias  trasladadas  em  vulgar  por 
mandado  de  Reis  Catbolicos,  em  tempo  que  se  consentiam  viver  entre 
cbristHos  08  mouros  e  judeus  com  suas  leis.  Depois  que  os  judeus  fo- 


1  Sa  de  Miranda  possuia  urna  antiga  traduc9ao  da  Biblia,  apeear  das  prò- 
hibi^oes  canonicas  que  a  Inquisi^ào  fazia  respeitar  pela  fogueira.  Diz  Frei  For- 
tunato de  S.  Boayentura,  no  prologo  que  precede  a  edi^ao  das  Historiaa  d'abre- 
vùido  Testamento  vdho,  da  livraria  de  Alcoba^a  :  aTive  esperan^as  de  confrontar 
este  codice  com  outro  quasi  similhante,  que  ainda  ha  poucos  annos  se  guardava 
na  Livraria  dos  Bispos  de  Lamego,  e  n^esta  idèa  fiz  urna  viagem  no  cora9ào  do 
inverno,  quando  j&  come9ava  de  se  imprìmir  osto  volume  ;  porém  de8gra9adamente 
vim  a  saber,  que  eram  inuteis  os  meus  desejos,  por  se  haver  perdido  ou  extraviado 
o  Codice  que  pertencera  a  Francisco  de  Sa  e  Miranda,»  (CoUecqào  de  Ineditos  por- 
tttguezes,  t.  ii,  p.  yiii.)  Ribeiro  dos  Santos  (Memorias  da  Academia,  t.  vii,  p.  20  sg.) 
diz  que  a  traduc9ao  historiada  do  antigo  Testamento  «existiu  em  poder  de  D.  Mi- 
guel de  Vasconcellos  Pereira,  que  morreu  Bispo  de  Lamego.»  Porventura  perten- 
ceria  a  traduc9ào  da  Biblia  a  Antonio  Pereira  Marramaque,  o  amigo  de  Sa  de  Mi- 
randa, condemnado  pela  InquisÌ9&o  por  traduzir  a  Biblia  em  vulgar.  Na  primeira 
foiba  da  traduc9So  estava  incorporada  a  licenQa  concedida  a  S&  de  Miranda  por 
Frei  Francisco  Foreiro.  Acerca  do  seu  amigo  Marramaque  escreve  ainda  Ribeiro 
dOB  Santos  :  «Muitos  varoes  doutos  jà  em  tempos  antigos  desejaram  vèr  entre  nós 
a  traslada^So  das  santas  Escripturas  em  portuguez;  foi  um  d'elles  Antonio  Pe- 
reira Marramaque,  Senhor  dos  Logares  da  Taipa,  Lamegal  e  Cabeceiraade  Basto, 
e  grande  amigo  de  Francisco  de  Sa  de  Miranda,  que  muito  o  inculcava  e  persua- 
dia  ho  Dialogo  entre  o  Gallo  e  o  outro  animai  sobre  o  v.**  do  Psalmo  :  Lex  Domird 
immaculata,  que  foi  um  dos  motivos  por  que  se  Ihe  negava  licenza  para  a  impresa 
aio.»  (Memorias  da  Academia^  t.  vn,  p.  23,  not.) 


268  HISTORU  DA  UNIVERSIDADB  DB  GOIMBRA 

ram  expulsos  de  Hespanha,  acharam  os  juizes  da  ReligiSo  que  alguns 
dos  que  se  converteram  à  nossa  santa  fé  instruiam  seus  filhos  no  ju- 
daismOy  ensinando-lhes  as  cerìmonias  da  lei  de  Moisés  por  aquellas  Bi- 
blias  vulgares,  as  quaes  depois  imprimiram  em  Italia,  na  cidade  de 
Ferrara.  Por  està  causa  tao  justa  se  prohibiram  as  Biblias  em  Hespa* 
nha;  porém  sempre  se  teve  atten9So  com  os  coUegios  e  mosteiros  e 
com  as  pessoas  nobres  que  estavam  fora  de  suspeita,  e  se  Ihes  dava 
licen9a  que  as  tivessem  e  lèssem.  Depois  das  heresias  da  AUemanhay 
traduziram  a  Sancta  Escriptura  em  tudesco  e  francez,  e  depois  em  ita- 
liano e  inglezy  para  que  o  povo  fosse  juiz,  e  vissem  comò  fundavam 
suas  opiniSes.  Isto  causou  infinito  damno,  porque  entendem  a  Escri- 
ptura corno  a  cada  um  Ihe  parece.  . .  etc.»  Aqui  temos  reconhecido  o 
individualismo  critico,  que  mesmo  sem  romper  com  a  Egreja  se  exer- 
eia,  sobretudo  nos  trabalhos  da  philologia.  E  n'esta  situa9SLo  delicada 
que  nos  apparece  Erasmo,  esercendo  na  Europa  um  verdadeiro  poder 
espiritual,  cortejado  pelos  reis  catholicos  que  o  procuravam  attrahir 
para  os  seus  estados,  comò  Francisco  i  e  D.  JoSo  iii,  bajulado  por 
Luthero,  que  precisa  do  perstigio  do  humanista  para  o  seu  triumpho, 
e  que,  apesar  das  terriveis  satyras  do  Elogio  da  Loucuraj  defende  com 
simplicidade  a  unidade  catbolica.  Apreciando  està  primeira  phase  de 
decomposiySo  da  con6tituÌ9Slo  catbolica,  conclue  Comte:  cnSo  se  pode 
duvidar  que  ps  povos  catholicos  participassem  tìLo  realmente  comò  os 
protestantes  d'està  primeira  transforma9So  revolucionaria,  salvo  a  diffe- 
ren9a  das  fórmas  e  a  diversidade  dos  melos,  que  pouco  importam  ao 
resultado.  N&ò  sómente  em  Fran9a,  mas  na  Hespanha,  na  Austria,  etc., 
OS  reis,  sem  se  arrogarem  tSo  abertamente  uma  va  e  ridicula  supre- 
macia  espirìtual,  eram  jd  com  certeza,  no  tempo  de  Luthero,  para  os 
seus  cleros  respectivos,  senhores  nào  menos  absolutos,  nSo  menos  in- 
dependentes,  em  rigor,  do  poder  papal,  comò  se  tomaram  entSo  os 
principes  protestantes.»^  0  nome  de  libertino,  que  se  tomou,  com  a 
corrup9So  do  sentido  primitivo,  sjnonimo  de  devasso,  significava  no 
seculo  XVI  està  independencia  goral  da  auctoridade  dos  papas,  e  os  pro- 
testos  centra  a  sua  hierarchia,  comò  se  tomaram  effectivos  na  phase 
calvinista.  Os  libertinos  eram  principalmente  litteratos  e  humanistas; 
era  por  elles  que  a  Reforma  penetrava  em  Fran9a,  e  que  na  Suissa  to- 
rnava um  caracter  politico.  Calvino,  na  sua  dissidencia  critica,  rejei* 
tava  a  affirma98o  do  livre-arbitrio  de  Luthero,  e  repellia  tambem  a  effi* 


^  Op.  dt.j  t.  V,  p.  411. 


GHISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENgA  269 

cacidade  das  abras  ;  proclamando  a  justifica93o  pela  Gra^a,  procedia 
pelo  esforgo  de  ama  approximajHo  directa  entre  o  homem  e  a  divin- 
dade,  por  chegar  à  nega9lio  da  kierarchia  catholica  eliminando  todos 
OS  intermediarios^  o  papa,  os  padres  da  egreja  e  os  proprios  santos. 
Era  verdadeiramente  o  fòco  vital  do  protestantismo^  que  persistia  na 
Egreja  na  terrivel  polemica  entre  Jesuitas  e  Jansenistas  sobre  a  Graga 
efficaz  e  o  Livre- Arbitrio.  N'esta  dissolugSo  intensa,  o  clero  submette- 
se  &  realeza  para  resistir  comò  um  partido,  e  realisam-se  as  carnifici- 
nas  desde  a  Saint-Bartbélemy  até  ao  canibalismo  resultante  da  revo- 
gagSo  do  Edito  de  Nantes.  Comte  estabelece  a  rela93o  entre  estas  tres 
pbases  do  protestantismo:  «Luthero  nSo  arruinou  mais  do  que  a  dis- 
ciplina ecclesiastica  para  melhor  a  adaptar,  corno  jà  expliquei^  a  està 
servii  transforma9ao  (a  subserviencia  politica  do  clero).  Tambem  està 
primeira  desorganisa9Sio,  em  que  o  sjstema  catholico  era  o  menos  al- 
terado  possivel,  constitoia  realmente  a  unica  fórma  sob  a  qual  o  pro- 
testantismo poderia  organisar-se  provisoriamente  em  uma  verdadeira 
religiào  de  estado,  ao  menos  nas  grandes  na95e8  independentes.  0  Cal- 
vinismo, primeiramente  esbo9ado  pelo  celebre  cura  de  Zurich,  veiu  de- 
pois ajuntar  a  està  demolÌ9So  inicial  a  do  conjuncto  da  kierarchia  que 
sustentava  a  unidade  social  do  catholicismo,  nSo  continuando  depois  a 
trazer  ao  dogma  christ^  senSo  modifica95es  simplesmente  secundarias, 
ainda  que  mais  extensas  que  as  precedentes.  Està  segunda  phase,  que 
so  convém  ao  estado  de  pura  opposÌ9ào,  som  comportar  nenbuma  appa- 
rencia  organica  duravel,  parece-me  constituir  a  verdadeira  situa9So  nor- 
mal  do  protestantismo,  se  se  pode  assim  qualificar  uma  tal  anomalia 
politica;  porque  o  espirito  protestante  desenvolveu-se  eniSio  da  maneira 
mais  conveniente  à  sua  natureza  eminentemente  critica,  que  repugna 
à  inerte  regularidade  do  lutheranismo  officiai.  Por  ultimo,  a  explosSo 
anti-trinitaria,  ou  o  socinismo,  completou  naturalmente  està  dupla  dis- 
80IU9S0  prèvia  da  disciplina  e  da  hierarchia,  juntando-lbe  finalmente  a 
das  principaes  cren9a8  que  distinguem  0  catholicismo  de  todo  e  qual- 
quer  outro  monotheismo.B  ^  Socino,  que  comò  Calvino  era  um  profundo 
humanista,  que  aprendera  0  grego  e  0  hebreu  para  lér  os  dois  Testa- 
mentos,  rejeita  tudo  0  que  nSo  provém  da  letra  da  Biblia  e  dos  Evan- 
gelhos,  tal  comò  os  dogmas  da  Trindade,  da  consubstancialìdade  do 
Verbo,  da  divindade  de  Jesus,  e  da  expia9So  e  recompensas.  A  dou- 
trìna  vinha  de  Italia,  do  fòco  do  humanismo,  onde  a  metaphysica  em 


1  Ibidem,  t.  v,  p.  465. 


270  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Giordano  Bruno  tentava  urna  audaciosa  sjnthese.  0  socinismo,  corno 
observa  Comte,  era  o  ultimo  grào  do  protestantismo^  que  o  approxi- 
mava  do  Deismo  moderno.  0  rigor  sanguinario  de  Calvino,  que  manda 
queimar  o  medico  Miguel  Servet,  transforma-se  em  Socino  na  toleran- 
cia  humana,  protestando  contra  a  pena  de  morte  infligida  aos  hereges. 
É  n'esta  pbase  mental  que  vamos  encontrar  os  homens  de  sciencia,  es- 
pecialmente  os  mathematicos  e  os  medicos. 

Era  vulgar  no  seculo  xvi  o  aphorismo  italiano,  duoi  medici^  qua- 
tro  athei;  o  empirismo  critico  despertava  està  accusa9%o,  que  Descar- 
tes  converteu  em  louvor,  quando  disse:  e  Se  os  homens  chegarem  a 
vèr  a  luz  é  da  Medicina  que  ella  Ihe  ha  de  vir.»  Comte  explica  està 
transÌ9ào  insensivel  de  um  deismo  metaphjsico  para  o  atheismo:  «A 
maior  parte  das  intelligencias,  sobretudo  as  cultivadas,  nSo  sabem  es- 
perar e  duvidar  preparando,  comò  procederam  os  verdadeiros  philo- 
sophos  da  antiguidade.  Foi  por  isso  que  a  vS  indaga^^o  de  urna  eyn- 
these  objectiva,  mais  absoluta  que  qualquer  theologia,  se  achou  reto- 
mada  no  Occidente  moderno  conforme  as  bases  gregas,  com  um  ardor 
augmentado  pela  esperan9a  de  substituir  toda  a  causalidade  sobrena- 
tural.»*  0  rei  D.  Manuel,  querendo  provér  a  cathedra  de  Astronomia^ 
recorreu  aos  medicos  Mestre  Filippo  e  Thomaz  de  Torres  ;  em  um  dos 
pedidos  dos  povos  nas  cortes  de  Torres  Novas,  em  1535,  allude-se  à 
livre  critica  exercida  nos  estudos  da  Physica,  especialmente  professada 
pelos  christSos-novos:  «pedo  a  V.  A.  que  mando  apprender  de  Physica 
quarenta  ou  cincoenta  christllos-yelhos,  que  para  isso  tenham  habOi- 
dade,  porque  està  aciencia  nao  anda  agora  senao  em  christàos-novos ...» 
Os  grandes  nomes  dos  medicos  AbrahSo  Zacuth  e  de  Amato  Luzitano 
despertavam  este  terror  dos  credulos,  que  receiavam  vèr  perturbada  a 
paz  do  estado  pelas  doutrinas  scientifìcas.  Com  o  negativismo  dos  ho- 
mens de  sciencia  coincidia  tambem  essa  metaphjsica  realmente  nega- 
tiva dos  humanistas,  que,  alheios  ao  protestantismOi  aproveitavam-se 
comtudo  da  faculdade  do  livre-exame.  Referindo-se  a  està  metaphjsica 
negativa  que  se  manifestava  desde  o  seculo  xm,  Comte  caracterisa  a 
parte  dos  homens  de  letras  do  seculo  xvi  n'este  movimento  intelle- 
ctual:  <No  seculo  xvi  ella  deixa  actuar  o  protestantismo,  abstendo-se 
cuidadosamenie  de  contribuir  para  a  sua  elabora9lLo,  e  aproveita  só- 
mente  a  semi-liberdade  que  a  discussSo  philosophica  acabava  assim  de 
adquirir,  necessariamente  para  comesar  a  desenvolver  directamente  a 


1  Systòme  de  Politìque  pontive^  t.  in,  p.  513. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENgA  271 

8ua  propria  influencia  mentala  quer  escripta,  quer  sobretudo  orai;  é  o 
quo  se  deprehende  ent&o  altamente  dos  illustres  exemplos  de  Erasmo  ^ 
de  Cardan,  de  Ramus,  de  Montaigne,  etc;  é  o  que  confirmam,  com 
mais  evidencia  ainda,  as  queixas  ingenaas  de  tantos  verdadeiros  pro- 
testantes  sobre  a  expansSLo  crescente  de  um  espirito  anti-theologico  que 
amea^ava  jà  de  tornar  essencialmente  superflua  a  sua  reforma  nascente, 
fazendo  alfim  sobresahir  immediatamente  a  irrevocavel  caducidade  do 
fijstema  que  era  o  objeetivo  d'ella.»  ' 

E  este  espirito  anti-theologico  o  que  se  exerce  na  critica  dos  grah- 
des  humanistas,  quando  restauram  o  estudo  do  latim,  do  grego  e  do 
hebraico,  e  renovam  os  methodos  pedagogicos,  corno  vémos  em  Erasmo, 
Vives  e  Bude,  e  nos  pensadores  Rabelais,  Montaigne  e  Huarte.  0  es- 
tudo do  latim  levou  à  renovagSLo  do  estudo  da  Jurisprudencia  romana, 
approximada  dos  successos  da  vida  social  revelada  pelos  poetas  Iati- 
nos;  o  estudo  do  grego  facilitou  o  estudo  dos  Evangelhos,  da  Mathe- 
matica e  da  Medicina;  o  conhocimento  do  hebreu,  approximado  genial- 
mente do  arabe  por  Clenardo,  transformava  o  estudo  da  theologia. 
Comprehende-se  comò  por  estes  grandes  resultados  os  trabalhos  dos 
humanistas  despertassem  profundas  tempestades,  encontrassem  o  ran- 
cor  conservantista  das  Universidades,  e  acabassem  por  perderem  o 
apoio  que  os  reis  no  seu  primeiro  enthusiasmo  Ihes  concederam,  aban- 
donando-os  &  absorp93o  esteril  dos  Jesuìtas. 

0  intuito  do  convite  de  D.  JoSo  ni  chamando  Erasmo  para  a 
Universidade  de  Lisboa  revela-se  approximando-o  das  tentativas  que 
fizeram  Francisco  i,  Carlos  v  e  Henrique  vili,  procurando  attrahir  para 
OS  seus  estados  o  entSo  omnipotente  philologo.  Escreve  Nisard,  nos 
seus  Estudos  sobre  a  Eenascenga:  «Tres  jovens  reis,  os  maiores  da  Eu- 
ropa, elevados  ao  throno  quasi  ao  mesmo  tempo,  Francisco  i,  Carlos  v 
e  Henrique  vni,  disputam  entro  si  qual  o  ha  de  ter  corno  subdito  vo- 
luntario.  Os  Papas  escrevem-lhe  para  Ihe  participarem  a  sua  coroa9So 
e  offerecer-lhe  a  hospitalidade  publica  em  Roma.  As  pequenas  monar- 
chias,  a  exemplo  das  grandes,  as  provincias  e  as  cidades  a  par  dos 
reinos,  convidam-no  para  vir  ao  seu  scio  gosar  de  um  ocio  glorioso; 
todos  0  lisonjeiam,  até  o  proprio  Luthero.  Todos  os  prelos  da  Allema- 
nha,  da  Inglaterra  e  da  Italia  reproduzem  os  seus  escriptos;  todos 
aquelles  que  léem,  nSo  lèem  senSo  Erasmo.»^  A  importancia  que  o 


1  Coura  de  Philosophie  positive,  t.  v,  p.  490. 

2  Études  sur  la  Renaiaaanet^  p.  56. 


272  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

philologo  encontrava  na  Hespanha  acha-se  sjnthetisada  em  um  prolo- 
quio  moitas  vezes  apontado  nos  processos  da  InquisigSo: 

Quìen  dice  mal  de  Erasmo, 
ó  es  frayle,  ó  es  asno.  ^ 

Os  hellenistas  eram  considerados  pelos  fanaticos  corno  propugna- 
dores  da  heresia  de  Luthero;  Bude  escreveu  em  1534  um  opusculo 
De  transita  ad  Hellenismum  para  combater  està  imputa^So  de  heresia 
que  vinha  jà  do  tempo  de  Justiniano.  Contra  a  lingua  hebraica,  voci- 
ferava um  prégador  de  Paris:  «todos  os  que  a  aprendem  ficam  imme- 
diatamente judeus.»^  Contra  a  bogalidade  monacai  vibraram  etemas 
satyras  Erasmo  no  Elogio  da  Loucuìra,  Ulrico  von  Hutten  nas  Episto- 
lare obscurorum  Viroruntj  e  Rabelais  no  Pantagrud.  Era  o  exame  cri- 
tico da  velha  sciencia  medieval,  do  pedantismo  dos  doutores  e  theolo- 
gos.  almaginaram  combater  os  adversarios  com  as  proprìas  armas^  e 
penetrar  no  campo  inimigo  com  o  fardamento  do  inimigo.  Tal  foi  a 
origem  das  Epistolae  obscurorum  Virorum, . .  O  judicioso  Buhle  con- 
sidera que  entro  todas  as  satyras,  que  appareceram  n'esta  època,  nào 
ha  outra  em  que  a  superstÌ93o^  o  espirito  de  controversia,  a  sede  de 
dominar,  a  intolerancia,  a  devassidSo,  a  torpeza,  a  ignorancia  e  a  la- 
tinidade  barbara  dos  monges  mendicantes  e  dos  Scholasticos  sejam  ri- 
dicularisados  com  mais  finura  do  que  n'estas  Cartas.  Pode-se  avan9ar 
sem  receio,  segundo  o  juizo  d'este  mesmo  escrìptor,  que  ellas  e  o  Elo- 
gio  da  Loucura  por  Erasmo  fizeram  o  maior  mal  à  auctoridade  papal 
e  monachal.»'  Segundo  Voltaire,  Rabelais  conheceu  estas  Cartas,  às 
quaes  allude  na  caricata  Livraria  de  Sam  Victor,  citando  o  Callibas' 
tratorium  caffardiae  auctore  M.  Jacóbo  Hochstratem  haereticometra.  Po- 
rém,  às  satyras  anti-theologicas,  em  que  urna  critica  intelligente  der- 


1  Effectiyamente  os  frades  nSo  perdoavam  a  Erasmo  o  ter  facilitado  a  lei- 
tora  dos  Evangelhos  pela  cultura  do  grego,  e  de  ter  revelado  a  moral  nniversal 
nos  seas  Adagia.  0  frade  Médard,  pr^ando  em  1530,  diàa  contra  Erasmo  :  «Àcaba 
de  apparecer  um  novo  doutor,  que  se  chama  Erasmo,  a  minha  lìngua  embara^a-se, 
quero  dizer,  um  asno.  Ora,  este  asno  teve  a  audacia  de  corrìgir  o  Magtdfioat.  Foi 
0  precursor  das  perturba^òes  que  affligem  o  mundo  christSo;  de  todas  as  heresias 
novas,  da  recusa  de  se  pagar  os  dizimos,  dos  insultos  com  que  se  ataca  o  sobe- 
rano  pontifice,  e  da  revolta  dos  camponeos  da  AUemanha.»  (Àp.  Bar2o  de  Beiften* 
berg,  4*  Mémoire,  etc,  p.  98.) 

^  Sismondi,  HMtoirt  de  Franfoisj  t.  xvi,  p.  364. 

3  Reiffenberg,  4*  Memoire,  p.  46. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGEN^A  273 

nzia  a  scholastica,  acoutada  nas  UniversidadeS;  seguiu-se  a  preparajSo 
do  caminho  para  a  grande  crìse  pedagogica  do  secalo  em  que  collabora- 
ram,  os  Humanistas  creando  o  typo  verdadeiro  da  Instruc9&o  superior 
(o  Collegio  de  Franga),  os  Jesoitas  destacando  das  Universidades  a  In- 
stracgSo  secundaria  (Collegios  de  Artes)  e  os  Protestantes  estabelecendo 
a  InstmcfSo  primaria  com  o  desenvolvimento  das  Escholas  populares. 
A  synthese  mental  esbo^ada  no  secalo  xni,  qae  procarara  a  sua 
realisasSo  na  crea9So  das  Universidadesy  corno  orgSos  de  um  novo  pò- 
der  espiritual,  veiu  no  secalo  xvi  proclamar  a  necessidade  de  ama  fòr- 
mula definitiva  e  aniversal  corno  disciplina  do  individuo  e  da  sociedade 
moderna,  ooexistindo  independentes,  e  conciliando  a  aactoridade  com 
a  liberdade.  Ab  Universidades  no  secalo  xvi,  paralysadas  no  automa- 
tismo tradicionaly  n£o  comprehenderam  està  insurrei^So  dos  espiritos, 
e,  comò  corpora98eB  consagradas  pélo  perstigio  do  passado,  luctaram 
centra  as  for9as  vìvas  de  um  grande  secalo  de  renova9So;  impuze- 
ram  os  seus  methodos  dialecticos,  as  summas  doutrinarias,  a  intole- 
rancia  dos  lentes,  e  mais  ainda  o  exdusivismo  da  protec9So  real,  para 
embara9arem  a  nova  corrente  das  idéas.  No  seculo  xvi  as  Universi- 
dadesy  incapazes  de  reorganisarem  a  sjnthese  mental,  ou  mesmo  de  a 
comprehenderem,  ficaram  elementos  de  reac9S0y  acabaram  o  seu  des- 
tino, subsistindo  comtudo  corno  corpora95e8  docentes  de  urna  cara- 
cterisada  esterilidade.  É  notavel  oste  phenomeno  de  decadencia  das 
principaes  Universidades,  apesar  das  differen9as  da  sua  organisa9So: 
as  Universidades  inglezas  decàem,  apesar  de  conservarem  tòdos  os 
privilegioB  autonomicos,  os  seus  rendimentos  proprios  e  a  coopera9So 
activa  de  numerosos  Oollegios;  a  Universidade  de  Paris  decàe,  apesar 
de  ter  absorvìdo  em  si  os  CoUe^os,  e  de,  em  compensa9So  da  perda 
dos  seus  privilegios  medievaes,  ter  as  regalias  da  protec9So  do  monar- 
cka.  Qual  a  rasBo  do  mesmo  effeito  em  condÌ93es  t3o  differentes?  Por- 
que  a  fórma  da  sua  actividade  mental  nSo  se  libertava  da  estreiteza 
das  dìsciplinas  quadriviaes,  nem  o  espirito  se  libertava  da  tetra  dos 
textos  viciados  por  preconisados  commentadores.  ^  Porque,  emfim,  es- 
ses  mestres  e  doutores,  envoltos  no  nimbo  da  empbatica  sabedoria,  e 
triumphantes  nos  actos  academicos  de  ostenta9So,  nSo  presentiram  a 
necessidade  da  renova9&o  da  synthese  proposta  pelo  seculo  mais  labo- 
rièso  da  historia  moderna. 


1  As  Universidades  allemSs  attingem  om  grande  desenvolvimento  nos  se- 
culos  xvu  a  zix  porque  se  transformaram  segando  o  tjpo  poljteclmico  sem  se 
preoccaparem  do  destino  pratico  no  ensino. 

UIST.  UN.  18 


274  HISTORIA  DÀ  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

A  crìse  social  do  seculo  xvi  nSo  é  menos  laboriosa  do  que  a  meo* 
tal,  complicando'se  mutuamente,  nas  luctas  doutrinarias  do  Protestan- 
tismo, e  nas  bases  politicas  proclamadas  pelas  revoluyoes  protestantes. 
As  descobertas  maritimas  dos  Portuguezes  tinham  acabado  de  annullar 
a  preponderancia  da  Republica  aristocratica  de  Veneza,  que,  vencida 
por  uma  colliga92lo  monarchica,  lan^ava  a  Europa  na  instabilidade  até 
se  determinar  um  novo  equilibrio  politico.  Coube  essa  preponderancia 
a  Carlos  v,  pela  fusSLo  da  monarchia  da  Hespanha  com  a  Casa  do 
Habsburg,  e  pela  suzerania  dòs  feudos  do  Imperio  na  Italia,  entre  os 
quaes  entrava  o  ducado  de  Milfto.  D'aqui  procederam  as  prolongadas 
guerras  entre  Carlos  v  e  Francisco  i,  que  pretendia  enfiraquecer  a  Casa 
de  Austria  no  equilibrio  europeu;  d'esse  equilibrio  resultou  a  perda  da 
nacionalidade  portugueza  em  1580,  incorporada  na  unidade  castelhana, 
e  a  revolu9So  que  libertou  os  Paizes  Baixos.  Quando  no  seculo  xvn 
a  politica  extema  de  Richelieu  conseguiu  scindir  esse  coUosso,  sepa- 
rando a  monarchia  da  Hespanha  da  Casa  de  Austria,  Portugal  recon- 
quistou  sob  a  influencia  d'esse  plano  a  sua  autonomia.  As  luctas  das 
Casas  reinantes,  por  um  interesse  de  engrandecimento  egoista,  inspi- 
radas  por  uma  politica  rudimentar,  apparecem  movidas  tambem  pelas 
doutrinas  phantasmagoricas  da  Edade  mèdia,  comò  a  da  Monarchia  uni-^ 
versai.  Carlos  v  é  accusado  ao  papa  por  aspirar  à  realisag&o  da  Monar- 
chia universa!,  e  a  mesma  increpagSo  é  atirada  centra  Francisco  i  e  con- 
tra  Henrique  vili  ;  com  o  nome  de  QuirUo  Imperio  a  mesma  theoria  po- 
litica teve  curso  em  Portugal  no  seculo  xvi,  talvez  sob  a  impressSo  das 
grandes  descobertas  na  Africa  e  conquistas  na  India. 

D'onde  provinha  uma  tal  theoria? 

A  idèa  do  Quinto  Imperio  era  uma  tradi(So  corrente  das  escholas 
da  Edade  mèdia,  que  recebeu  um  sentido  mjstico  na  època  do  Protes- 
tantismo, quando  os  estudos  humanistas  da  Renascenja  renovaram  a 
theoria  hellenica  da  Monarchia  universal.  Nos  Breviarios  historicos,  osa- 
dos  nas  escholas  medievaes,  a  Historia  era  dividida  em  Monarchias;  e 
atè  ao  seculo  xm  todo  o  passado  humano,  segoindo  as  próphecias  de 
Daniel  sobre  os  quatro  monstros  politicos,  estava  dogmaticamente  di- 
vidido  nas  quatro  Monarchias  da  Assyria,  Persia,  Grecia  e  Roma.  A 
theoria  prevaleceu  na  Italia  atè  ao  seculo  xm,  e  ainda  no  seculo  xvm 
o  theologo  Jane,  em  Wittemberg,  sustentava  essa  divisSo  historicai 
combatendo  comò  hereticas  as  opiniSes  contrarias.  Depois  das  quatro 
grandes  Monarchias  devia  seguir-se  a  realisajSo  da  utopia  christft,  es- 
bo9ada  por  Paulo  Orosio,  na  Ormoesta,  e  por  Santo  Agostinho,  na  C?- 
dade  de  Deus.  E  por  isso  que  entre  os  povos  catholicos  appareoeu  a 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCENQA  275 

« 

espectativa  do  Quinto  Imperio  do  mundo^  sustentada  por  interpretajSes 
allegoricasy  vindo  encontrar-se  està  corrente  mystica  com  a  theorìa  po- 
litica da  Monarchia  universal,  que  motivava  as  ambifSes  de  Carlos  v, 
Francisco  i,  Henrique  vm,  e  ainda  de  D.  Manuel;  o  partido  dos  Ana- 
baptistas  hollandezes^  quando  banido  de  Munster  e  Amsterdam,  refu- 
giou-se  em  Inglaterra,  recebendo  a  de8Ìgna92Lo  de  Homens  da  Quinta 
Monarchia,  tomada  de  urna  predic9So  do  Apocalypse,  e  pelo  sea  radi- 
calismo politico  foram  um  dos  factores  da  grandiosa  revolu9So  de  1648. 
Urna  mesma  idèa  estimiila  a  dissolu^So  do  poder  temperai  de  modo» 
tSo  diversos,  jà  conduzindo  a  dictadura  monarchica  ao  militarismo  ab- 
soluto,  jà  provocando  as  autonomias  nacionaes  e  o  mais  radicai  egua- 
litarismo. * 

Ao  quadro  da  revolu9So  religiosa  do  Protestantismo  liga-se  orga- 
nicamente a  marcha  das  revolu9Ses  pòliticas  da  Europa  nos  ultimos 
tres  seculosy  pela  affirma9Slò  do  individualismo,  fortifìcado  pelo  exer- 
cicio  do  livre-exame.  Comte  reconhece  que  se  nSo  podem  separar  as 
considera93e8  sobre  estas  opera93es  mentaes  das  que  suscitam  as  di- 
versas  revolu93es  que  derivaram  d'ellas  ou  Ihes  deram  influencia  so- 
cial: «A  primeira  d'estas  revolu93es  preliminares  é  a  que  libertou  a 
Hollanda  do  jugo  hespanhol  ;  ella  ficarà  memoravel,  comò  uma  alta  ma- 
nifesta93o  primitiva  da  energia  propria  à  doutrina  critica,  dirigindo  as- 
sim  a  feliz  insurreÌ93o  de  uma  pequena  na9Ìlo  centra  a  mais  potente 
monarchia  europèa.  E  a  està  lucta  verdadeiramente  heroica  que  é  ne- 
cessario referir  a  primeira  eIabora9So  regular  d'està  doutrina  politica; 
porém  ella  houve  de  se  limitar  sobretudo  a  esbo9ar  especialmente  o 
dogma  da  soherania  popular  e  o  da  independencia  nacional,  que  os  le- 
gistas  coordenaram  logo  na  sua  concep9So  espontanea  do  contraete  so- 
cial, seguindo  as  exigencias  naturaes  de  um  tal  caso,  em  que  a  orga- 
nisa9So  interior  nSo  devia  ser  senSo  accessoriamente  modificada,  e  cuja 
prìncipal  necessidade  revolucionaria  devia  sómente  consistir  em  que- 
brar  um  la90  exterior  tornado  profundamente  oppressivo.  Um  caracter 
mais  goral,  mais  completo  e  mais  decisivo,  uma  tendencia  melhor  pro- 
nunciada  para  a  regenera9So  social  do  conjuncto  da  humanidade,  dis- 
tinguem  em  seguida  nobremente,  apesar  da  sua  falba  necessaria,  a 
grande  revolu9ao  ingleza,  nSa  a  pequena  revolu98o  aristocratica  e  an- 
glicana de  1688,  hoje  tSLo  ridiculamente  preconisada,  e  que  so  satisfa- 


^  Os  Jesuitas,  que  tambem  planearam  urna  restaura9lo  do  Poder  theocra- 
tico,  conheceram  a  theoria  do  Quinto  Imperio,  propagada  pelo  padre  Yieira  no  se- 
colo xvn. 

18  # 


276  mSTORIA  DA  UNITERSIDADE  DE  COIMBRA 

zia  a  una  siinples  necessidade  locai,  mas  a  revola^o  democratica  & 
presbyterlana  dominada  pela  aninente  natureza  do  homem  de  estado 
mais  avanjado  de  que  o  protestantismo  se  pode  honrar  (Cromwell).  O 
e8bo90  primordial  do  conjoncto  da  doutrìna  critica  recebea  entSo  es- 
pecialmente o  seu  principal  complemento  naturai  pela  elabora9fto  di- 
reeta  do  dogma  da  eguaidade,  até  entSo  apenas  manifestado^  e  que  nSo 
tinba  podido  resultar  sufficientemente  das  inclina93es  calvinistas  da  no- 
breza  franceza,  ao  passo  que  se  ve  nitidamente  surgir,  sob  este  me- 
moravel  impulso^  da  concep92o  metaphjsica  sobre  o  estado  de  natureza^. 
antiga  emana9So  da  theoria  theologica  relativa  à  oonstitui$8o  humana 
antes  do  peccado  originai.»^  Antes  da  violenta  crise  franceza,  verda- 
deiramente  europèa  e  humana^  em  consequencia  do  estado  de  adianta- 
mento  da  dissolu93o  do  regimen  catholico-feudal,  em  que  se  affirma  a 
liberdade  politica,  as  duas  revolu$Ses  protestantes  tiveram  a  sua  reper- 
cussSo  na  America^  mas  sem  que  novos  principios  fossem  affirmados 
na  grande  colonia  universal.  O  problema  da  reorganisa98o  montai  e  so- 
cial, para  ser  comprehendido  e  tomar-se  eiFectivo  na  sociedadci  depen- 
dia  sobretudo  do  desenvolvimento  da  rasSo  individuai,  e  do  apoio  de 
novas  sciencias  experimentaes,  quC;  a  par  de  um  inevitavel  trabalho 
de  nega98o,  facilitassem  por  meio  de  verdades  positivas  a  possibilidade 
de  formar  concepgSes  verdadeiramente  syntheticas.  A  BevolufSo  fran- 
ceza  é  no  dominio  social  no  seculo  xviii  o  que  o  seculo  xvi  foi  no  do- 
minio mental;  esbo9ando  uma  completa  renova$So  pedagogica,  quer 
nos  grAos  do  ensino,  quer  nas  theorias  individuaes  dos  pensadores  da 
Benascensa. 

As  Universidadesy  que  no  seculo  xm  foram  o  fòco  de  elaborafZo 
da  primeira  Renascen9a,  deveram  o  seu  grande  esplendor  à  liberdade 
que  exerceram  ao  emancipar-se  da  Egreja,  discutindo  oom  desassom^ 
bro  OS  problemas  geraes,  as  concepgSes  universaes  que  mais  interes- 
sam  0  espirito  humano.  Mas,  estabelecida  assim  a  sua  auctoridade, 
estacionaram  no  destino  imicamente  docente,  e  repelliram  dos  seus  qua- 
droB  pedagogicos  todas  as  disciplinas  que  nSo  visassem  a  um  firn  con- 
creto e  pratico.  Este  espirito  de  especialidade  tomou-as  auctoritariaa 
no  seu  dogmatismo,  pedantes  e  atrazadas,  de  sorte  que  em  frente  dos 
grandes  conflictos  intellectuaes  e  sociaes  do  seculo  xvi  as  Universida- 
des  nSo  ccnnprehenderam  a  Renascenya  litteraria,  nem  a  Reforma  re^ 
ligiosa;  combateram  as  aspiraySes  do  espirito  humano,  refor9ando-Be 


1  Omn  de  PhUosophie  positive,  t  v,  p.  469. 


CRI9E  PEDAGOGICA  NA  RENASGENgA  277 

ua  yelba  dialecticai  e  restanraram  o  aristotelismo  sophismado  dos  ano- 
Bymos  commentadores.  E  comtado  a  actividade  montai  exercera-se  pro- 
fondamente fora  das  Universidades,  e  o  espirìto  humano  no  secalo  xvi 
exigia  urna  cultura  goral,  urna  tendencia  synthetica  coordenada  sohre 
08  elementos  dispersos  da  livre-critica.  Era  verdadeiramente  ama  crìse 
que  determinava  a  transforma9So  do  ensino  superior,  e  da  qaal  depèn^ 
dia  a  missSo  social  das  Universidades  ou  a  sua  irremediavel  decaden- 
eia.  Essa  nova  phase  do  ensino  superior  apparecea  desde  quo  os  esta- 
dos  liamanistaSy  nfto  podendo  romper  os  quadros  quadrìviaes  où  das 
Pacaldadesy  acharam  na  fondagSo  do  Collegio  de  Franca  a  liberdade 
para  serem  professados,  e  o  espirìto  de  generalisa9So,  qae  o  estado  mon- 
tai do  secolo  XYi  reclamava.  Renan  caracterìsa  este  logar  eminente  do 
Collegio  de  Franja  no  meio  da  profonda  crìse  pedagogica:  «A  verda- 
deira  e  grande  Rena8oen9a,  aquella  que  a  Italia  tem  a  glorìa  eterna  de 
liaver  fondado,  prodozio<se  fora  das  Universidades.  Mais  ainda,  ella 
achou  nas  Universidades  os  seos  inimigos  os  mais  encamigados:  ella 
a9olou  OS  doutores  de  todas  as  castas.  A  Renascenya  foi  obra  de  Fio* 
renga  e  nSo  de  Padua,  de  gente  colta  e  nSo  dos  professores.  Nem  Pe- 
trarcha,  nem  Boccacio,  nem  Bacon,  nem  Descartes  foram  figoras  da 
Universidade.  A  Universidade  de  Parìs  em  particolar,  no  secolo  xvi, 
attingio  0  ultimo  grào  de  rìdicolo  e  de  odioso  pela  soa  tqlice,  pela  in- 
tolerancia  e  acinte  em  repellir  todos  os  novos  estodòs.  Foi  preciso  que 
a  realeza,  que  pela  soa  poderosa  totella  emancipara  a  Universidade  da 
Egreja,  tornasse  sob  a  soa  protec$So,  centra  a  Universidade,  o  movi- 
mento scientifico,  e  pelo  Collegio  de  Franga  no  secolo  xvi,  pelas  Aca- 
demias  do  secolo  xvii,  creasse  om  contrapezo  à  estes  habitos  de  pri- 
goiga,  a  este  espirìto  de  negagfto  malevola  de  qoe  os  corpos  puramente 
docentes  difficilmente  se  podem  preservar.»^  Erasmo  tivera  està  fe- 
conda iniciativa  desenvolvendo  o  Collegio  Trilingue^  em  que  applicava 
OS  npvos  methodos  ao  ensino  do  latim,  do  grego  e  do  hebreu.  Foi  so- 
bre  este  nucleo,  e  à  sua  imitagSo,  que  Budeus,  o  amigo  de  Erasmo,  jun- 
tamente  com  o  cardeal  JoSo  du  Bellay,  fundou  entro  1528  e  1530  um 
Collegio  .separado  da  Universidade,  destinado  às  tres  linguas  classicas, 
que  Francisco  i  protegeu  em  um  momento  de  dissidencia  centra  a  Sor- 
bonne. Em  1528  apenas  ahi  se  ensinava  o  grego  e  hebreu;  em  1530  au- 
gmentaram-se  as  disciplinas,  e  regeram  no  Collegio  de  Franga  as  duas 
cadeiras  de  grego  Toussain,  amigo  de  Erasmo,  e  Dainès;  duas  cade!- 


1  Questione  contemporaines,  p.  80. 


^78  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADB  DE  GOIMBRA 

ras  de  bebreu  foram  regìdaB  por  judeus  venezianos^  vindo  Vatable  a 
•ubitituir  um  d'elles.  0  eepirito  encyclopedico  quo  inspirava  a  nova 
funday fto  fez  com  que  se  abrisse  pouco  depois  urna  cadeira  de  Maibe- 
matbioai  desde  1542  urna  de  Medicina  e  de  Philosophia,  e  successiva- 
mente  cadeiras  de  Direito  nacional,  das  lingaas  arabe  e  syriaca.  Era 
n'esta  liberdade  critica  e  de  ensino^  n'esta  facilidade  com  que  se  aggre- 
gavam  novas  disciplinas  sdentificas,  n'esta  despreoccupa^So  do  ensino 
tbeorico  de  teda  a  especialisaySo  pratica  ou  applicada,  que  o  Collegio 
de  Franga  se  converteu  em  urna  ceschola  universal  da  livre-critica  e 
de  renovaglo  do  espirito  homano»,  comò  o  caracterisa  Michelet,  *  e  se 
tomou  tun  organismo  vivo,  mantendo-se  com  vigor  ao  lado  da  Univer- 
sidadO)  immobilisada  na  tradigSo  medieval.  As  luctas  da  Reforma  e  a 
deploravel  intervengXo  da  realeaa  em  favor  da  unidade  catholica  restì- 
tairtun  i  Universidade  o  perstigio  auctorìtario,  e  pelas  perseguigSes  da 
intoloranoia  o  Collegio  de  Franga  decahiu  da  sua  iniciativa  scienti- 
fica,  aabaistindo  comtudo  comò  o  modelo  definitivo  da  instrucgSo  su- 
periora 

Centra  a  emancipagSo  intellectual  da  Renascengai  e  comò  reacgSo 
centra  a  Reforma,  a  Companhia  de  Jesus  surgiu  com  o  pensamento  de 
restaurar  a  supremacia  theocVatica  e  de  premunir  as  intelligencias  cen- 
tra a  livre-critica,  apoderando-se  do  ensino.  Era  um  esforgo  supremo 
centra  a  dissolugXo  do  regimen  catholico-feudal.  Os  Jesuitas  apodera- 
ram«8e  das  Universidades  quebrando  o  regimen  da  Edade  mèdia,  pela 
conversSo  da  Faculdade  de  Artes  em  um  ensino  dementar  ou  secun- 
dario,  iste  é,  dogmatico,  privativo  dos  seus  CoUegios.  Desprezaram 
todas  as  disciplinas,  que  pelo  seu  estado  tbeorico  nSo  podiam  ser  im- 
postas  pela  auctoridade  e  incutidas  passivamente  na  memoria;  e  tra- 
tando  de  captar  a  mocidade  nobre  e  burgueza,  que  viria  a  occupar  as 
altas  (uncgSes  do  estado,  desprezaram  completamente  o  ensino  popu- 
lar.  A  paix&o  pelo  estudo,  que  levava  os  alumnos  a  agruparem-se  em 
volta  da  cathedra  do  mostre,  quer  na  Edade  mèdia,  quer  mesmo  no 


^  Beforme,  p.  380.  0  grande  historiador  falla  a^sim  do  Collegio  de  Franca: 
«Gloriosa  eschola  que  esperà  ainda  o  seu  historiador.  Ella  quebrou  o  ultimo  élo 
que  prendia  o  homem  ao  passado,  quando  Ramus  immolou  o  mais  respeitayel  idolo, 
Aristotelefl,  e  sellou  a  revolu^So  com  o  seu  sangue.  Ella  teve  dnas  glorias  immen- 
sas,  o  ensino  de  duas  cousas  sobretudo,  o  Oriente  e  a  natureza.  Ali  os  rabbinoa 
yieram  apprender  o  hebren  nas  li^Òes  de  Yatabl^.  Ali  os  Parses  yieram  da  India 
pedir  a  Bumouf  a  sua  lingua  esguecida.  Champollion  e  Letronne  ali  ezhumaram  o 
Egypto.  Couyier,  Ampère,  Savart  e  outros  grandes  inventores  renovaram  as  scien- 
cìas  naturaes.» 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGEN9A  279" 

secnlo  XVI;  corno  succeden  no  Collegio  de  Fran;a,  essa  paix2o  foi  sub- 
stìtuida  por  severos  regulamentosy  automaticamente  cumpridos,  que  im- 
primiam  no  estudante  o  habito  passivo  da  frequencia  submissa.  0  sys- 
tema  pedagogico  dos  Jesoitas  nSo  teve  orìginalidade  na  fórma;  é  ama 
reproducQSo  das  pratìcas  de  Trotzendorf  e  de  Sturm,  e  na  parte  dis- 
ciplinar, do  regimen  intemo  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  onde  rece- 
beram  a  primeira  direc9So  sob  os  dois  portnguezes  Diogo  e  André 
de  Gouvéa.  A  orìginalidade  consistiu  no  intuito,  que  veiu  a  ser  cla- 
ramente  formulado  na  Ratio  studiorum,  o  firn  religioso  conseguido  pela 
aimulla9So  da  vontade.  Na  fórma  de  organisa9So,  o  ansino  secundarìo, 
explorado  pelos  Jesuitas,  é  semelhante  ao  dos  pedagogos  protestantes 
do  seculo  XVI  ;  ^  mas  pelas  denuncias,  pelos  castigos  degradantes  ou 
orbilianismo,  subjugavam  as  vontades,  tendo  em  vista  os  favores  em  be- 
neficio dos  eque  poderSto  chegar  às  dignidades,  &  fortuna  ou  ao  pode- 
rio,  de  quem  seja  preciso  obter  o  seu  favor  ou  se  dependa  da  sua  von- 
tade.» A  decadencia  dos  estudos  humanistas,  attribuida  aos  Jesuitas-, 
resultou  da  immobilidade  dos  processos  de  ensino,  que  persistem  ainda 
no  seculo  xix,  e  do  fim  exclusivamente  docente.  0  exercicio  da  liber- 
dade  intellectual,  e  o  desprendimento  do  destino  pratico,  é  que  fez 
com  que,  ao  passo  que  as  Universidades  de  Fransa,  Italia,  Hespanha  e 
Inglaterra  caiam  na  esterilidade,  as  Universidades  allemSs  se  tomas- 
sem  fecundas  e  verdadeiramente  impulsoras  da  civilisa^So  moderna. 

Os  Jesuitas,  preoccupados  com  a  re8taura9So  da  bierarchia  catho- 
lica,  afastavam-se  da  tradÌ9lLo  da  egreja  primitiva,  que  ligara  a  maxima 
importancia  &  instrucgcto  poptdar;  logicamente  os  Protestantes,  regres- 
sando  k  simplicidade  evangelica  (reformando  a  Egreja  deformada,  corno 
dizia  Calvino),  retomaram  na  sua  propaganda  o  problema  da  educa9So 
do  povo,  e  deram  o  prìmeiro  impulso  à  instrucgào  primaria,  E  extra- 
Ordinano  o  criterk)  com  que  os  pedagogos  protestantes  introduzem  no 
ensino  superior  as  idéas  dos  criticos  francezes  da  Renascen9a  e  comò 
se  afastam  da  supremacia  de  Roma  pela  crea9So  de  um  ensino  nacio- 
nal,  come9ando  pela  cultura  da  lingua  patria  e  pela  organisa9&o  da 
6daca93o  domestica.  0  ensino  popular,  desenvolvido  pelas  escholas  ré- 
gias,  so  teve  uma  existencia  regular  no  seculo  xvni.  JoSo  de  Barros, 
na  sua  Orammatica,  publicada  em  1539,  descreve  assim  a  miseravel  e 
rudimentar  fórma  do  ensino  primario  em  Portugal,  na  època  em  que 
mais  brilhavamos  pelos  estudos  humanistas:  cHua  das  cousas  menos 


1  Paroz,  Hiatoire  univeneUe  de  la  Pedagogie,  p.  133. 


280  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

oolhada  que  ha  n'estes  reynos,  é  consentir  em  todalas  nobres  villas  e 
cidades,  qualquer  idiota  e  nam  aprovado  em  costumes  e  b5  viver,  poer 
escola  de  insinar  meninos.  E  hu  gapateiro  que  he  o  mais  baixo  officio 
dos  mechanicos,  nSo  p8e  tenda  sem  ser  examinado.  E  oste  todo  o  mal 
que  fazy  é  danar  a  sua  pelle,  e  n^  o  cabedal  alheio;  e  maos  mestres 
leixam  os  discipulos  danados  pera  toda  a  sua  vida,  nam  sómente  com 
vicios  d'alma  de  que  podéramos  dar  exemplos;  mas  ainda  no  modo  de 
OS  ensinar.  Porque  havendo  de  ser  por  hua  Cartìnha  que  ahy  ha  de 
letra  redonda,  porque  os  mininos  levemente  saberàm  ler,  e  assi  os  pre- 
ceitos  de  nossa  fé,  que  n'ella  estam  escriptos;  convertem-nos  a  estas 
doutrinas  moraes  de  boos  costumes:  Saibam  quantos  està  carta  de  venda. 
E  depois  desto:  Aos  tantoa  de  tal  mez,  E perguntado pdo  costume  disse 
nichil.  De  maneyra,  que  quando  hum  mo90  saj  da  escola  nam  fica  com 
nichil,  mas  pode  fazer  milhor  huma  demanda  que  hum  solicitador  d'el- 
las,  porque  mama  estas  doutrinas  catholicas  no  leite  da  primeira  edade.» 
Jolo  de  Barros  alludia  ao  Catecismo  pequeno,  de  Diego  Ortiz,  bispo 
de  Ceuta;  e  para  substituir  a  leitura  dos  processos  forenses,  que  ainda 
encontràmos  nas' escholas,  compoz  o  pequeno  tratado  da  Viciosa  Ver- 
gonha.  Como  os  espiritos  catholicos,  que  presentiam  a  Reforma  em- 
quanto  à  revigoraySo  da  disciplina,  Jo^o  de  Barros  foi  logicamente  le- 
vado  para  o  problema  instante  da  instruc^  popiUar. 

A  antinomia  entre  o  sjstema  pedagogico  da  Edade  mèdia,  e  o  prò- 
clamado  pelos  Humanistas,  provinha  da  incompatibilidade  das  conce- 
pySes  dominantes:  a  Egreja,  ante  a  degrada(Slo  do  peccado,  educava 
pela  repressSo;  os  Humanistas,  rehabilitando  a  Natureza,  aperfeÌ9oa- 
vam-na  pela  bondade.  Fa9amos  o  confronto  dos  dois  systemas. 

A  revela9&o  da  antiguidade  greco-romana  pelos  Humanistas  veiu 
p8r  em  contraste  estas  duas  concep98eS;  que  serviam  de  base  à  educa- 
9S0.  No  regimen  catholico,  e  segundo  o  dogma  do.  peccado  originai, 
em  que  estava  implicito  0  mysterio  da  redemp9So,  o  homem  nascia 
condemnado,  e  portante  com  urna  imperfeÌ9So  ingenita,  de  que  so  po- 
dia  libertar-se  pela  Gra9a  ou  pela  Penitencia.  A  Gra9a  levava  à  apa- 
thia  physioa  e  moral,  ao  quietismo  mystico,  ao  desprezo  de  todas  as 
sciencias  e  de  todos  os  progressos  humanos,  comò  absurdas  vaidades, 
que  embara9avam  o  caminho  da  8alva9&o;  a  Penitencia,  em  todos  os 
gràos  do  ascetismo,  tratava  de  contradictar  a  Natureza,  macerando-a, 
submettendo-a,  deformando-a,  até  chegar  ao  anniquilamento  ou  &  per- 
feÌ9So  ideal  do  nihilismo.  Era  urna  longa  lucta;  n'este  e8for90  de  sub- 
jugar  a  Natureza  nasceu  0  plano  da  educa9So  comò  uma  pressSo  mo- 
ral, comò  uma  castra9So  physica,  por  meio  da  pancada,  e  pela  imposi- 


GHISE  PEDÌÉ606IGA  NA  RENASGENQA  28  i 

9S0  do  terror.  A  nogSo  do  ensino  é  a  de  um  castigo  (castoiemeni,  da 
Edade  m^dia);  o  mestre  ìmp3e*se  pelo  rigor  do  orhUianismo,  e  a^es- 
chola  toma-se  urna  bolgia  infemal  de  tortora  das  crìan9as.  Rodolpho 
Agricola,  o  grande  iniciador  dos  estudos  classicos  na  AUemanha  (1443- 
1485),  descreve  a  eschola  do  seu  tempo  segando  a  disciplina  domi- 
nante :  «Urna  eschola  assemelha-se  a  urna  prìsSo  :  lia  alli  pancadas,  chó- 
ros  e  gemidos  sem  firn.  Se  ha  cousa  que  para  mim  tenha  am  nome  con- 
tradictoriO;  é  a  eschola.  Os  gregos  chamaram-lhe  Schola,  desenfado, 
recreio;  e  os  latinos  Ludus  litterarius,  divertimento  litterarìo;  mas  nada 
ha  que  seja  mais  afastado  do  recreio  e  do  divertimento.  Aristophanes 
denominou-a  phrcntiserion,  iato  é,  legar  de  apoquenta9&Oy  de  tormento, 
e  é  a  designagSo  que  mais  Ihe  quadra.»  ^  Um  outro  epigone  da  Renas- 
cenga,  Montaigne  (1533-1592),  que  passou  sete  annos  no  Collegio  de 
Guienne,  descreve  nos  Ensaioa  a  tortura  das  escholas:  <Em  legar  de 
attrahir  as  crìan9as  para  as  letras,  nSo  Ihe  apresentam«m  verdadese- 
nSLo  horror  e  crueldade.  Afastae  a  violencia  e  a  forga;  em  meu  cnten- 
der  nada  ha  que  abastarde  e  desvaire  tanto  uma  natureza  bem  nascida... 
Està  policia  da  maior  parte  dos  nossos  collegios  desagradou-me  sem- 
]jr6. .  .^  E  uma  verdadeira  enxovia  da  mocidade  captiva.  Visitae-a  na 
occasi3lo  das  lÌ93es:  nSo  ouvireis  senSo  grìtos  das  crian9as  castigadas, 
e  dos  mestres  desvairados  na  sua  colera.»  Tal  era  a  disciplina  peda- 
gogica do  catholicismO;  motivada  pela  idèa  da  imperfeÌ9So  da  natureza 
humana;  as  escholas  da  Edade  mèdia  obedeceram  a  este  piano,  que  se 
impoz  à  Renascenga  na  reac9&o  do  regimen  religioso.  Homens  jà  bar- 
bados,  comò  Ignacio  de  Lojola,  em  Paris,  submettiam-se  aos  castigos 
corporaes  dos  mestres  auctoritarìos.^  E  por  isso  que  para  os  grandes 
antagonistas  dos  Jesuitas  na  pratica  da  educa92o,  os  Jansenistas,  e  se- 
gando a  phrase  expressiva  de  Saint-Cyran,  e  A  educa9So  chrìst2  è  uma 
tempestade  do  espirito,*^  As  panÌ93es,  os  supplicios  da  eschola  medie- 


i  Àp.  Paroz,  HisUnre  univeraéUe  de  la  Pedagogie^  p.  89. 

*  Quando  Ignacio  frequentava  0  Collegio  de  Santa  Barbara,  foi  accusado  ao 
FrindpcU  0  Dr.  Diogo  de  Gouvéa  de  desvairar  os  condiscipulos  com  praticas  de 
fanatismo.  0  principal  ordenou  que  0  alumno,  que  entlo  contava  quarenta  annos^ 
fosse  receber  0  castigo  da  salla:  «Chamava-se  assim  urna  correc^So  mab  infa- 
mante que  dolorosa,  qne  se  administrava  da  segointe  maneira.  Depois  do  jantar, 
estando  todos  os  alumnos  presentes  no  refeitorio,  os  mestres,  munidos  cada  um  de 
palmatoria,  dispunliam-se  em  duas  filas.  O  delinquente,  despido  até  à  cintura,  de- 
via passar  por  entre  elles,  e  receber  de  cada  um  uma  palmatoada  nas  costas.» 
(Qoicherat,  Hùtoirt  du  CoUtge  de  Sainte-Baròe,  1. 1,  p.  193.) 

3  Ap.  Michelet,  Noa  Fila,  p,  155. 


282  HISTORIA  DA  UNIYERSIDABG  DE  GOIMBRA 

vai,  continuados  no  segando  Pori  Boyal,  e  nas  reformas  do  bondoso 
La  Sallo;  prolongaram-se.até  ao  nosso  tempo,  por  isso  que  a\elha  syn- 
these  iheologica  é  a  que  ainda  predomina  no  ensino  officiai.  ^ 

A  ReDascen9a,  corno  nm  regresso  à  natureza,  e  corno  imia  revo- 
la9&o  em  que  preponderava  o  problema  mental,  encaroa  com  desas- 
sombro  as  doutrinas  da  educafSo  e  a  sua  appIicaySo  ao  systema  de 
Instracg^  publica,  partindo  do  ponto  contrario  ao  dogma  theologico, 
de  que  a  natureza  era  boa.  0  Homem,  a  sua  liberdado,  a  sua  aerilo,  o 
seu  aperfeÌ9oamento  moral  e  physico,  a  sua  confratemidade  ou  provi- 
dencia  propria,  eis  a  sjnthese  espontanea  da  Rena8cen9a.  A  Italia  dea 
0  nome  a  està  aspira9&o  de  um  seculo,  a  Humanidade;  a  Europa  veiu 
ao  appèQo,  cultivando  as  sciencias  humanas,  experimentaes  e  praticas, 
sendo  os  estudiosos  que  reataram  a  corrente  intellectual  da  ciyilÌ8a9So 
grego-romana  denominados  Humanistas.  Quem  mais  do  que  a  Grecia 
comprehendeu  e  realisou  melhor  a  cultura  do  homem?  Quem  melhor 
do  que  Roma  deu  ao  homem  social  mais  o  relèvo  da  ac9&o  e  da  ener- 
gia do  caracter?  A  Ilenascen9a  nSo  podia  deixar  de  tomar  conhed- 
mento  das  suas  doutrinas  pedagogicas,  vulgarisal-as  e  applical-as. 

Merece  notar-se  corno  os  grandes  pedagogistas  da  Renascen9a,  sug- 
geridos  no  seu  pensaménto  de  renova9&o  montai  pela  leitura  dos  escri- 
ptores  grego-romanos,  dividem  os  seus  systemas  pedagogicos  segundo 
as  caracteristicas  determinadas  nas  obras  classicas.  Entro  os  planos  de 
um  Rabelais,  no  quadro  da  educa9^  de  Gargantua,  e  de  um  Montai- 
gne nos  Ensaios,  um  desenvolvendo  todas  as  capacidades  especulati- 
vas  do  homem  pelo  contacto  com  a  natureza  e  pelo  experimentalismo 
scientifico,  o  outro  formando  o  typo  do  bom  senso  pratico,  instruido  e 
nSo  erudito,  mais  sociavel  do  que  individualista,  entro  estes  dois  pla- 
nos systematicos  encontram-se  as  mesmas  differen9as  que  separam  Pla- 
tSo  e  Aristoteles  de  Xenophonte  e  Plutarcho,  quando  esbo9aram  as  suas 
theorias  de  educa93o.  Na  civilisa9So  grega,  o  antagonismo  de  Athenas 
e  Sparta,  que  actua  na  existencia  politica  e  nas  manifesta93es  da  arte, 
reflecte-se  nas  capacidades  individuaes,  jà  na  cultura  da  intelligencia 
e  do  sentimento,  jà  no  desenvolvimento  da  for9a  physica,  da  adestra- 
9&0  athletica  para  a  ac9So  militar.  Em  Athenas,  o  cidadSo  concorre  ao 


1  0  poeta  Bocage,  que  era  um  ezcellente  latinista,  ao  fallar  dos  seus  estados 
com  o  professor  D.  Jo2o  Medina,  diz  que  se  o  frequentasse  por  mais  tempo  ficava 
altyado,  Àinda  outì  na  minha  infancia  os  grìtos  lancinantes  que  sahiam  de  uma 
aula  de  latim  ;  e  na  eschola  primaria  soffri  a  brutalidade  do  padre  Antonio  José 
do  Amarai,  que  espancava  as  crian^as  segundo  atf  crisei  de  um  homor  irasciveL 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGENQA  283 

^igora,  onde  discute  as  questSes  publicas,  tem  a  investidura  do  poder 
pela  6leÌ9So,  o  seu  individualismo  nSo  desapparece  n'uma  subordina- 
9S0  passiva  à  collectividade;  em  Sparta,  0  cidadio  é  0  soldado,  que 
fonda  a  sua  dignidade  na  submissSo  ao  estado.  Dentro  d'estes  dois  meios 
tSo  differentesy  a  maieutica,  ou  gesta9&o  do  homem  moral,  corno  Ihe 
chamou  Socrates,  foi  radicalmente  diversa.  Em  Sparta  0  homem  é  urna 
for9a  que  se  adestrà,  domando  a  sensibilidade  pelo  rigor;  em  Athenas 
é  um  sér  que  evoluciona  em  todo  o  seu  individualismO|  nos  seus  ele- 
mentos  affectivos,  especulativos  e  activos,  equilibrando-os  entro  si  pelo 
firn  social.  O  ideal  da  educa9So  spartana  està  representado  na  Cyrope- 
dia  de  Xenophonte,  onde  exp5e  de  um  modo  pittoresco  0  effeito  de  uma 
disciplina  militar.  Està  severidade  estabelecia  uma  tran8Ì9fto  para  que 
a  educa92LO  catholica  de  repressSo  se  conciliasse  com  as  innovagSes  dos 
humanistas;  e  de  facto  as  doutrinas  de  Montaigne,  preoccupando-se 
exclusivamente  da  ac93o,  esclarecida  por  um  saber  geral,  conservam 
uma  certa  austeridade,  que  0  tomaram  querido  aos  mestres  Jansenis- 
tas,  ao  secco  Locke  e  ao  violento  Rousseau.  -"^ 

Mas  diante  do  deslumbramento  da  RenascenQa  pela  antiguidade 
classica,  e  sob  0  enthusiasmo  da  renova93lo  scientifica  e  da  livre-critica, 
OS  humanistas  abra9aram  de  preferencia  0  systema  de  educa9&o  entre- 
visto  pelos  genios  da  Attica,  formado  no  grande  fòco  da  cultura  do  ho- 
mem, Athenas,  e  defam  curso  aos  pensamentos  generosos,  e  às  vistas 
positivas  de  Piatto  e  de  Aristoteles.  Rabelais,  estabelecendo  0  contraste 
entro  a  educa9£o  medieval  e  formulista  de  Gargantua,  e  a  instruc93o 
moderna  e  realista  de  Eudemon^  poz  duas  civilisa98es  em  confronto, 
e  em  evidencia  immediata  a  superioridade  do  hellenismo.  A  Grecia  ti- 
nha  attingido  a  perfeÌ9So  no  desenvolvimento  d'este  producto  da  natu- 
reza — o  homem;  livre  das  peias  de  uma  classe  sacerdotal  e  da  espe- 
cula9&o  esteril  de  uma  theocracia  deprimente,  tratou  os  seus  mythos 
com  a  inspira9So  da  Arte,  e  em  vez  de  elles  se  immobilisarem  em  do- 
gmas,  foram  themas  suggestivos  para  as  epopèas,  tragedias,  typos  es- 
culpturaes,  e  até  para  esbo9os  de  synthese  physica.  AUi  deram-se  as 
condÌ93es  para  o  desenvolvimento  das  faculdades  humanas  em  uma 
ascensSo  progressiva,  emquanto  ao  individuo  pelas  fórmas  da  activi- 
dade  eaihetica,  scientifica  e  phUosophica,  e  emquanto  à  sociedade  pelas 
fórmas  da  organisa9So  moral,  politica  e  economica.  Nada  mais  assom- 
broso.  Ainda  sob  o  influxo  da  orienta92k>  esthetica,  unica  expressSo  da 
unidade  nacional  da  Grecia,  Platlo,  nas  Leis,  considerava,  a  Educa98o 
comò  a  disciplina  eque  di  ao  corpo  toda  a  belleza,  e  ao  espirito  teda 
a  pBrfeÌ9&o  de  que  sSo  capazes.»  E  d'esse  influxo  esthetico  tira  PlatSo 


284  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

urna  nova  base  para  o  systema  pedagogico,  a  attracsSo  do  agrado: 
ccondazindo  pelo  divertimento  a  alma  da  crian9a  a  gostar  do  que  deve 
tornal-a  perfeita.»  Como  a  Renascenga  comprehendeu  este  principio 
humano  para  reformar  a  cultura  do  homem,  até  entSo  feita  pela  seve' 
ridade  da  compressSo  !  Desde  que  appareceu  o  Platonismo  no  seculo  xv, 
appareceu  logo  a  doutrina  da  bondade  no  ensino  :  acha-se  em  Gerson, 
condemnando  o  temor  do  alumno  ;  em  Yictorìno  de  Feltro,  procurando 
a  harmonia  entro  o  espirito  e  o  corpo;  em  Agricola,  que  transformoa 
a  instituigfto  pedagogica  dos  hieronjmìtas,  condemnando  a  pancada  naa 
escholas;  emfim  em  Eneas  Sjlvius  (Pio  n),  alegrando  os  alunmos  com 
a  communicagSo  das  obras  das  utteraturas  classicas.  Mas,  na  ancie- 
dade  do  saber,  que  convulsiona  a  Bena8cen9a  e  a  leva  a  tentar  as  mais 
audaciosas  syntheses  philosophicas,  era  em  Aristoteles  que  a  intelli- 
gencia  moderna  ia  encontrar  as  bases  de  uma  Pedagogia  integrai  ;  nXo 
que  a  obra  especial  de  Aristoteles  fosse  conhecida,  mas  pelos  meios 
indirectos  da  exploragSo  da  Politica  e  da  Moral  se  reconstituiu  facil- 
mente 0  sjstema,  digno  do  espirito  mais  encydopedico  que  tem  exis- 
tido  na  humanidade.  Aristoteles  estabelecia  a  necessidade  de  uma 
educa9So  publica  e  commum,  e,  em  atten9Sp  ao  fim  social,  que  fosse 
egual  para  todos,  e  sob  a  interyen93o  do  Estado.  E  verdadeiramente 
um  criterio  positivo,  e  comò  tal  precursor  da  Sociologia.  Como  homem 
de  sciencia,  medico,  e  preoccupando-se  detidamente  das  condÌ93es  hj- 
gienicas,  Aristoteles  completa  o  desenvolvimento  do  sér  phjsico,  moral 
e  social,  nas  tres  fórmas  da  AdestragSo,  para  conseguir  o  desenvolvi- 
mento phjsico,  da  Educagao,  para  dirigir  o  instincto  e  a  sensibilidade, 
e  da  Instrucgào,  para  disciplinar  a  intelHgencia  e  a  rasSo.  Nada  mais 
lucido  e  verdadeiro.  Se  na  època  de  Aristoteles  estivesse  j&  constituido 
o  segundo  par  scientifico,  (Physica  e  Chimica)  teria  ido  multo  além  de 
Bacon;  se  o  terceiro  par  (Biologia  e  Sociologia)  estivesse  organisado, 
realisaria  o  plano  integrai  de  Comte.  Nos  grandes  pedagogistas  da  Re- 
nascen9a  nSo  é  so  o  lado  theorico  que  é  impulsionado  pelos  escripto- 
res  gregos;  os  maiores  philologos  exercem  uma  iniciativa  pratica  pro- 
fonda na  tran8forma9So  da  Instruc92o  publica  europèa:  Erasmo  eleva 
ao  mais  alto  esplendor  o  Collegio  Trilingue  e  a  època  gloriosa  da  Uni- 
versidade  de  Louvain;  Vives  faz  a  critica  do  ensino  publico,  e  offe- 
reco  a  D.  JoSo  m,  em  1531,  um  plano  de  reforma  que  actuou  na  Uni- 
versidade  de  Coimbra;  Budeus  organisa  o  Collegio  de  Fran9a;  e  Ra- 
mus,  regenerando  o  ensino  das  linguas  e  da  philosophia,  determino^ 
OS  tra90B  para  a  reforma  da  Universidade  de  Paris.  A  paixSo  do  en- 
sino  tomou-se  a  caracteristica  do  seculo,  comò  se  vd  em  Melanchtoni 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASGENgA  285 

o.  extraordìnarìo  educador  de  toda  a  Allemanha;  em  Sturm,  que  su* 
stenta  na  maior  altura  o  Collegio  de  Strasburg  (1537  a  1589);  e  sobre 
todos  OS  portugaezes  Gouvéas,  Diogo,  e  seus  sobrinhos  André,  Anto- 
nio, Margal  e  Diego  o  01090,  que  constituem  ama  dynastia,  que  tomara 
o  Collegio  de  Santa  Barbara  0  centro  d'onde  sahiram  os  homens  mais 
eztraordinarios  que  actuaram  no  seculo  xvi. 

Fallando  do  Dr.  Diego  de  Gouvéa,  Quicherat  descreve  a  institui- 
(So:  «Fez  urna  vlagem  a  Lisboa,  com  0  fim  de  expSr  ao  rei  D.  JoSo  m, 
successor  de  D.  Manuel,  que,  nfto  tendo  garantia  alguma  para  0  nu- 
mero dos  pensionistas  da  cor6a,  nfto  sabe  sobre  que  base  assentarà  o 
estabeleoimento;  foi-lhe  garantido  que  o  numero  permanente  da  colo- 
nia portugueza  seria  de  cìnquenla  estudantes.  Està  funda9ào  data  de 
1526.  Foi  celebrada  em  Santa  Barbara  com  festejos,  discursos,  nos 
qoaes  se  ligavam  em  elogio  simultaneo  0  rei  D.  JoSo  e  0  Cardeal  In- 
fante D.  Affonso,  seu  irmBo,  principe  a  quem  achavam  sempre  a  ler 
latim  e  grego,  e  que  contribuirà  com  toda  a  sua  influencia  par^  o  es- 
tabeleeimento  das  cinqaenta  bolsas. 

aDiogo  de  Gouvèa  é  representado,  por  aquelles  que  estiveram  às 
soas  ordens,  comò  um  mostre  vigilante  e  apto,  cheio  de  gravidade,  de 
urna  probidade  inquebrantavel,  sabendo  acima  de  tudo  conservar  nos 
mancebos  o  arder  da  emulaySo.  Appareceu  no  momento  propicio; 
quando  tomou  conta  de  Santa  Barbara,  a  grande  gerajSo  que  encheu 
o<  seculo  XYi  com  as  suas  idéas  comejava  os  seus  estudos.  0  desejo 
de  chegar  &  perfeiQSo  em  todos  os  generos  encendia  os  cora93eB,  e  nSo 
ei;a  preciso  rigor  para  com  discipulos  que  so  aspiravam  a  exceder  seua 
mestres.  0  merito  de  Gouvéa  consiste  em  ter  coadjuvado  um  arder, 
que  para  muitos  dos  seus  collegas  era  um  motivo  de  mede.  Por  este 
meio  attrahiu  para  Santa  Barbara  0  que  bavia  de  mais  distincto  tanto 
corno  discipulos  come  em  rela9So  aos  mestres,  e  0  seu  Collegio  foi 
mais  do  que  em  nenhum  outro  tempo  um  viveiro  de  grandes  homens.» 

Uma  phalange  de  nomes  illustres  portuguezes,  que  nos  represen- 
taram  na  Renascenga  na  Europa,  recebeu  no  Collegio  de  Santa  Bar- 
bara a  sua  educa9Zo  humanista.  D'ali  sahiram  os  principaes  humanis- 
tas  do  seculo  xvi,  e  ali  se  disciplinou  a  forte  gerajSo  que  fundou  a  Com- 
panhia  de  Jesus,  adoptando  as  fórmas  do  ensino  empregadas  pelos  Gou- 
tSàs,  para  fazerem  fronte  aos  eruditos  e  apoderarem-se  do  ensino  pu- 
blico  europeu.  •  Quando  D.  Manuel  tentou  reformar  a  Universidade  de 


»  Diz  J.  Quicherat,  na  Historia  do  Collegio  de  Santa  Barbara^  referindo-se 
4  elevada  coltura  humanista  dos  barbistas:  «D'aqui  procede,  que  todos  os  mati- 


286  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Lisboa,  dirigiu-se  ao  Dr.  Diogo  de  G-oay§a;  D.  JoSo  m,  realisando 
o  pensamento  de  seu  pae,  dirigiu-se  a  André  de  Gouvèa,  sobrìnho  e 
successor  do  Dr.  Diogo  de  G-ouvSa  no  principalato  de  Santa  Barba- 
ra,  mas  a  inflaencia  dos  padres  da  nova  Companhia  de  Jesus  prevale- 
ceu  no  espirito  do  monarcha,  aimullando  as  mais  generosas  inidativas. 
De  André  de  Gouvèa  escreveu  Montaigne,  qae  o  conheceu  (1539  a 
a  1546)  quando  elle  regentava  o  Collegio  de  Guienne:  nle  plus  grand 
Principal  de  France.it  Antonio  de  Gouvèa,  que  foi  amigo  de  Rabelais 
e  de  Calvino,  luctou  a  favor  de  Aristoteles  contra  Fedro  Ramus,  e  lan- 
{ou  as  bases  do  estudo  juridico  da  eschola  de  Cujacio. 

Um  outro  aspecto  em  que  as  doutrinas  pedagogicas  da  Gh^ecia 
actuam  na  Renascenya  é  o  da  necessidade  de  tratar  da  edvA^oj^  da 
mtdher,  Os  humanistas,  que  comprehenderam  o  alcance  da  bondade  para 
a  crian9a  que  se  ensina,  acharam  nos  escriptores  classicos  o  modo  de 
dar  à  mulher  essa  nova  capacidade  formativa.  Xenophonte,  na  Eco» 
nomica,  fìindamenta  e  planèa  a  educa9&o  feminina,  e  Plutarcho,  nos 
Preceitoa  do  Casamento^  estabelece  que  so  a  mulher  instruida,  acom- 
panbando  a  educagSo  dos  filhos,  exerce  o  poder  de  crear  os  grandes 
typos,  em  quem  foram  despertadas  e  estimuladas  as  for9as  da  conscien- 
cia  e  a  energia  do  caracter.  Erasmo  e  Vives  deram  curso  a  estas  idéas, 
que  suscitaraYn  em  todas  as  cortes  da  Europa  o  esfor90  para  con- 
verter a  galanteria  em  erudÌ93o.  A  rainha  Isabel  de  Castella  acompa- 
nhou  a  reforma  dos  estudos  humanistas,  estudando  ella  nìesma  o  latim 
com  D.  Beatriz  Galindo,  dama  da  c8rte,  denominada  a  Latina,  ^  e  man- 
dando-o  tambem  ensinar  a  sua  fiJha  D.  Joanna,  mSe  de  Carlos  v.  As 


zes  da  orthodoxia,  corno  da  heresia,  se  encontraram  na  gera^So  que  paasou  por 
Santa  Barbara  entra  1520  e  1530.  Ao  lado  do  ascetbmo  conununicativo  dos  pri- 
meiros  Jesuitas,  achamos  o  mystieismo  hallacinado  de  Postel  ;  ao  lado  do  rigo- 
rismo inqoisitorial  de  Demochares,  a  tolerancia  de  Gelida  e  de  André  de  Gouvda, 
que  nSo  obstou  a  que  estes  homens  virtaosos  fossem  irreprehensiveis  na  sua  fé; 
e  mais  ainda  o  scepticismo  mal  sopeado  de  Buchanan  ou  a  independencia  philo- 
sophica  de  Antonio  de  (Gouvèa,  qae  uma  voz  inimiga  taxou  de  materialismo,  e  que 
fez  associar  o  nome  d^este  homem  distincto  com  os  de  Bonaventore  Desperriers  e 
Rabelais.  Emquanto  ao  espùnto  de  seita,  é  representado  por  essa  lucta  religiosa 
de  que  JoSo  Calvino  foi  a  encama^So.» 

1  Em  rela^fto  à  emdi^  feminina  no  secolo  xn,  em  Hespanha,  lé-se  em  Fray 
Francisco  d'Avila,  La  vida  y  la  muerte  (1508)  : 

En  nnettrot  tlempos  agora 
Fné  latina  la  Galinda  ; 
La  Septilveda  fné  linda 
Doncella  mny  labldora. 


CRISE  PEDAGOGICA  NA  RENASCEN^A  287 

damas  da  mais<  alta  nobreza  segidam  està  corrente  da  moda;  distin- 
gaiam-se  pelo  conliecimento  do  latim  a  marqueza  de  Monteagudo,  D. 
Margarida  Pacheco,  e  as  filhas  do  conde  de  Tendilla,  chégando  D.  Lu- 
cia de  Medrailo  a  dar  ligSes  sobre  classicos  latinos  na  Univer8Ìdade  de 
Salamanca^  segando  informa  Marineo  Siculo  ;  *  D.  Francisca  Lebrija, 
filha  do  reformador  humanista,  professou  sobre  Rhetorìca  e  Poetica  na 
Universidade  de  Alcalà.  Passava-se  iato  no  tempo  em  que  as  cortes  de 
Portugal  e  Castella  estavam  reconciliadas  pelo  casamento  do  principe 
D.  Affonso  com  a  infai}ta  D.  Isabel.  A  rainha  D.  Leonor,  mulher  de 
D.  JoSo  II,  protegeu  a  Imprensa  e  a  funda9£o  do  theatro  nacional  por 
Gii  VicentC;  e  cercava-se  de  damas  instruidas  comò  D.  Leonor  de  Mas- 
carenhas,  conhecida  entSo  corno  rivai  de  Vittoria  Colonna,  pela  eleva- 
9S0  de  espirito,  que  tanto  admiraram  Bemardim  Ribeiro  e  Sa  de  Mi- 
randa. A  infanta  D.  Maria,  ultimo  frueto  do  terceiro  casamento  de  D. 
Manuel,  aprende  latim  sob  as  yistas  de  Fr.  JoSo  Soares,  que  veiu  a 
ser  bispo  de  Coimbra,  e  para  ella  escreveu  JoSo  de  Barros  em  1544 
um  Dialogo  de  Preceptos  moraes,  em  fórma  de  jogo,  para  quando  fi5r 
desoccapada,  de  verdadeira  philosophia  christà,  porque  estnda,  A  in- 
fanta teve  casa  separada  aos  dezeseis  annos,  tendo  por  criadas  senho- 
ras  instruidissimas,  corno  Luiza  Sigea,  Angela  Sigèa,  Joanna  Vaz,  ' 
Fublia  Hortensia  de  Castro,  Isabel  de  Castro,  Paula  Vicente,  a  Zbn- 
gedora,  filha  de  Gii  Vicente,  D.  Leonor  Coutinho  e  D.  Leonor  de  No- 
ronha.  De  uma  d'ellas,  Publia  Hortensia,  correu  a  lenda,  que  frequen- 
tara  os  estudos  da  Universidade  de  Coimbra  sob  as  vestes  escholares, 
em  companhia  de  seus  irmSos,  e  defendendo  theses  de  logica  e  rheto- 
rìca. Em  volta  d'este  centro  distincto  de  saber  e  galanteria,  gravitaram 
OS  principaes  poetas  portuguezes,  CamSes,  D.  Manuel  de  Portugal, 
Jorge  de  Monte  Mór,  Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos,  J9X0  Lopes  Lei- 
tSo,  Caminha,  Sa  de  Menezes,  e  o  apaixonado  Jorge  da  Silva  ;  forma- 


1  Vidal  y  Dias,  Memoria  higtariea  de  la  Univenidad  de  Salamaneay  p.  243. 

2  0  Dr.  JoSo  de  Barros,  no  Eepelho  de  Caeados  (fl.  86),  fallando  da  compe- 
tencia  das  mulheres  para  as  sciencias,  diz  :  «...  som  tam  habiles  e  tam  sabedoras 
corno  08  homens. — Mas  acabo  este  conto  com  que  fora  razam  hir  mais  cedo,  que 
he  Joana  Vox,  naturai  de  Coimbra  crìada  da  Rainha  nossa  senhora  por  suas  vir- 
tades  e  doctrina  mai  a^eita  a  ella  nas  lettras  latinas,  e  oatras  artes  hnmanas  mai 
docta,  de  qaem  vi  algomas  cartas  por  qae  bem  se  pode  provar  està  noticia  que 
doa  della.  Se  as  molheres  nSo  sabem  tanto,  he  porqae  se  occapam  em  oatras  coa- 
sas  mais  proprias  a  ellas,  mas  nam  por  qae  Ihe  falte  habilidade  pera  tado  e  comò 
a  molher  tirou  de  si  a  onestidade,  tado  farà  ao  qae  se  quizer  dispoer;  por  qae 
arte,  engenho,  sotileza  e  discri^am  Ihe  nam  falta.« 


288  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIHBRA 

Yam  corno  que  a  Academia  da  Infanta  D.  Maria^  que  achoa  nas  le- 
tras  a  consola^So  para  as  decepgSea  moraes  a  que  a  expuzeram  as  in- 
trigas  de  Carlos  v,  de  Filippe  n,  e  a  bo9alidade  de  seu  innZo  D.  JoSo  ui, 
que  annullou  todas  estas  coiidÌ98es  .de  progresso  nacional,  entregaudo 
a  ìnstruc^o  publìca  aos  Jesuitas.  O  effeito  da  educajSo  dos  Jesuitas 
viu-se  ao  firn  de  trinta  annos,  em  1580|  com  a  apathia  e  extinc$So  da 
nacionalidade  portugueza.  Os  espirìtos  tinham  retrogradado  ao  forma- 
lismo da  Edade  m^dia,  e  a  na9So  estava  fora  da  hìstoria  em  cuma 
austera,  apagada  e  vii  tristeza.3  ^ 


1  Michelet  synthetida  em  poucas  linhas  o  quadro  das  doutrinas  da  Renas- 
cén^a,  que  eetimularam  a  nossa  vida  hiatorica: 

«Qual  é  0  firn  do4iomem?  Sir  homem,  verdadeira  e  completamente,  deeen- 
volver  em  si  tudo  o  que  està  na  natureza  humana.  Qual  a  via  e  o  meio  para  isso? 
A  Aà^ào, 

«Voltaire  escreveu  està  palavra  em  1727,  imprimiu-a  em  1734.  Sem  o  saber 
renoYOu  o  principio  da  antiguidade,  a  tradirlo  da  Grecia,  a  pfailoBopfaia  da  efiet- 
gia,  da  ac^So. 

«Desde  o  din  em  que  a  acgào  reentrou  no  mnndo,  n2o  sómente  resultou  uma 
prodigiosa  creando  de  sciencias,  de  artes,  de  industrias,  de  potencias,  de  for^s 
mechanicas, — mas  uma  nova  for^a  moral. 

«A  ac^So  é  moralisante.  A  ac^ao  productiva,  a  felicidade  de  crear,  slo  de 
um  encanto  tSo  grande,  que  entre  os  trabalhadores  serios  dominam  facilmente  toda 
a  paizSo  pesBoal. 

«No  plano  encyclopedico  de  edaca9So,  que  nos  dà  o  seenlo  xyi,  o  plano  sabio, 
immenso,  muito  sobrecarregado,  de  Gargantua^  vé-se  pertanto  jà,  com  surpreza,  o 
firn  nitidamente  indicado.  NSo  sómente  o  discipulo  saberà  tudo,  mas  saberà  fazcr 
ttido.  A  acgSo  apparece  comò  o  seu  mais  alto  desenvolvlmento.  Inidam-no  nSo  bó 
em  todos  os  exercicios,  mas  em  todas  as  artes  praticas. 

^  «O  mesmo  pensamento  (froizamente  indicado,  é  certo)  no  livro  mediocre  e 
judidoso  de  Locke.  Mas  brìlha  admiravelmente  no  grande  livro  inglez,  o  Robimon» 
Beproduz-ae  no  Emilio.  0  homem  moderno,  aotua  e  trabaiha;  pode  sel-o,  ó  obreiro.a 
(Noe  FiU^  p.  vu  a  x.) 


CAPITULO  II 


08  EstatDtos  mannellnos  e  a  persistencia  do  Scholasticismo  (1004-1621) 


Às  deecobertas  portuguezas  e  o  aspecto  geral  do  reìnado  de  D.  Manuel. — A  edi- 
fìcHQao  das  Escholas  Geraes. — Organisa^ào  dos  EstatutoB  de  1504. — Porque 
se  nào  desenyolvem  os  estudos  humamstas? — Leis  contra  ob  Judeus  e  extinc- 
5S0  da  Typographia  hebraica. — Decadencia  da  Litteratura  grega. — 0  Dr. 
Diego  de  Gouvéa  cbamado  de  Paris  para  a  reforma  dos  Estudos  em  Lisboa. 
—  Recrudescencia  do  Nominalismo. — Funda^ào  do  Collegio  de  S.  Thomaz, 
em  1517. — Influencia  de  Jo5o  Celaya  em  Paris. — Joao  Bibeiro  substitue  Ce- 
laja  na  defeza  da  Escholastica. — D.  Francisco  de  Mello  e  os  estudos  mathe- 
maticos. — A  abertura  dos  Estudos  em  dia  de  S.  Lucas. — A  Orando  de  Sa- 
pientia  pelos  lentcs  de  Artes. — André  de  Rcsende. — Escbolas  particulares 
de  Grammatica,  no  bairro  das  Escbolas. — A  Arte  nova. — Respo&tas  às  du- 
vidas  dos  Escholares. — OVejamen  ou  Adua  gallicus  na  Universidade  de  Lis- 
boa.—  Sa  de  Miranda  lente  substitato  ;  porque  nào  prosegue  no  magìsterio. 
— Projecto  de  funda^ào  de  uma  Universidade  em  Evora  sob  D.  Manuel 
(1520). — Diego  de  Gouvéa  pretende  adquirir  0  Collegio  de  Santa  Barbara 
para  os  Estudantes  de  El-rei. — Tabula  legentium  do  prìmeiro  quartel  do  se- 
colo XVI. 


A  passagem  do  saber  formulista  da  Edade  mèdia  para  o  criterio 
experimentalista  dos  tempos  modemos  nSo  foi  unicamente  determinada 
pelo  esforQO  mental  dos  hmnanistas  da  RenaBcen9a;  a  necessidade  de 
agrupar  factos  concretoS;  de  corrigìr  as  concepgSes  antigas  perante  a 
objectividade  dos  novos  aspectos  com  que  se  revelava  a  Natureza,  tal 
foi  a  ac92o  que  exerceram  em  todas  as  intelligencias  na  Europa  as  des- 
cobertas  maritimas  dos  Portuguezes.  Os  sabios  vinham  a  Lisboa  infor- 
mar-se  dos  extraordinarios  eventos,  e  se  a  rasSo  humana  achou  novos 
elementos  para  a  emancipagSo  das  consciencias,  a  actividade  social  ia 
exercer-se  em  um  trabaiho  pacifico  de  apropriagSo  do  pianeta,  e  pela 

lUBT.  UH.  19 


290  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 


\ 


crea9£o  da  industria  alcan9ava  um  meio  imprevisto  para  a  incorpora^So 
do  proletariado  na  sociedade  moderna,  esse  tremendo  problema  que 
nos  legara  a  Edade  mèdia.  Todos  os  e8for90S  da  grande  gera92Lo  de  na- 
vegadores  e  exploradores  geographicos  do  secalo  xv  tiyeram  comò  re- 
sultado  as  descobertas  que  tomaram  Portogal  uma  das  prìmeiras  po- 
tencias  da  Europa  no  secalo  xvi,  aquella  que  mais  influiu  na  marcha 
da  civilisa9£o  humana,  e  que  soube  ligar  o  seu  rapido  esplendor  na- 
cional  à  universalidade  de  uma  missào  historica,  que  nunca  poderà  sor 
esquecida.  *  • 

Nem  so  aos  grandes  e  poderosos  imperios  militares  pertence  a 
consagra92lo  da  Historìa,  pela  extensSo  do  seu  dominio»  e  pelo  esfor^o 
de  unifica92o  social  das  rafas  humanas;  aos  pequenos  Estados,  embora 
com  uma  existencia  menos  ruidosa,  compete  uma  missSo,  quasi  sempre 
cumprìda  com  a  consciencia  de  mn  destino^  que  os  liga  na  sua  aggre- 
gayào  transitoria  &  marcha  progressiva  da  Humanidade.  As  pequenas 
Nacionalidades  constituem  os  mais  bellos  capitulos  da  Historia  univer- 
sa! ;  nào  podendo  contribuir  com  uma  actividade  complexa  para  a  obra 
da  civilisa9&o,  os  seus  esforyos  especialisam-se  com  a  perfeÌ92Lo  de  uma 
actividade  exclusiva.  Os  Israelitas;  os  Phenicios  e  os  Qregos  sSo  tres 
pequenos  povos,  em  que  melhor  se  observa  este  caracter  da  acyfto  fé- 
cunda  exercida  pelas  pequenas  nacionalidades  ;  Israel  traz  a  idèa  mo- 


1  Sobre  as  navega^òes  portugnezas  dirìgidas  por  nm  criterio  scientifico,  es- 
creveu  com  indiscutivel  auctorìdade  o  Dr.  Fedro  Nunes,  no  seu  Tratado  em  defen" 
aam  da  Carta  de  marear^  na  dedicatoria  ao  infante  D.  Lniz:  «Ora  manifesto  he 
que  estes  descobrimentos  de  costas,  ylhas  e  terras  firmes,  nam  se  fizeram  indo  a 
acertar  ;  mas  partiam  os  noèaos  mareantee  muy  ennnados  e  providos  de  inatrumento» 
e  rtgras  de  astrologia  e  geometria,  que  sSo  as  cousas  de  que  os  Cosmographos  ham 
d'andar  apercebidos,  segando  diz  Ptolomeo  no  primeiro  livro  de  sua  G-eographia. 
Levavam  cart€u  muy  partùndarmente  rumadas,  e  nam  j&  has  de  que  os  antigos  usa- 
vam,  que  nam  tinham  mais  figurados  que  doze  veatos,  e  navegavam  sem  agu- 
Iha. . .  »  (FI.  1  i,)  Merece  reparo  o  facto  do  Dr.  Fedro  Nunes  nao  alludir  aos  pre- 
tendidos  estudos  mathematicos  do  infante  D.  Henrique  e  sua  influencia  nas  desco- 
bertas maritimas.  N'este  tempo  ainda  JoSo  de  Barros  nao  tinha  plagiado  o  in- 
edito de  Azurara,  com  que  deu  corpo  à  lenda  infantista  da  Eschola  de  Sagres. 
Cam5es  tambem  escapou  à  lenda,  corno  observa  com  espanto  Bibeiro  dos  Santos: 
cO  darò  cantor  dos  Lwàadais,  que  tinha  occasiSo  muito  opportuna  de  fallar  d*elle, 
e  de  fazer  de  seus  descobrimentos  bum  necessario  e  indispensavei  episodio,  mais 
ligado  com  a  ac^Io  do  seu  Foema,  que  o  que  fez  do  desafio  dos  Doze  de  Inglaterra, 
contontou-se  de  o  nomear  simplesmente,  e  de  passagem  em  poucos  versos,  o  que 
bem  podéra  ser  objecto  de  bum  Foema.»  (Memoriae  de  LiUeratura,  da  Àcademia, 
t.  vili,  p.  158.) 


ESTATUTOS  MÀNUEUNOS  291 

notheista,  precursora  do  universalismo  religioso;  a  Phenicia  desenvolve 
0  cosmopolitismo  pelo  commercio  e  generalisa  o  alphabeto;  a  Grecia 
cria  a  Arte,  a  Sciencia  e  a  Philosophia,  que  ainda  hoje  saggerem  sau- 
daveis  impulsos  ao  sentimento,  &  acy^o  e  &  especula^So  modemos,  e 
pelo  seu  espirito  de  independencia  salvoa  o  futuro  da  Europa  da  in- 
vasio  persa.  Sobre  estas  tres  pequenas  nacionalidades  é  que  se  apoia 
principalmente  a  Civilisa9So  mediterranea.  Urna  outra  pequena  nacio- 
nalidade,  Portugal,  pelo  genio  das  expedÌ93es  maritimas  abre  o  perìodo 
das  CivilisafSes  atlanticas,  em  que  todas  as  na93e8  da  Europa  e  da 
America  s&o  cooperadoras,  e,  comò  a  G-recia  outr'ora,  susta  as  inva- 
sSes  dos  Turcoe  na  Europa  pela  descoberta  do  caminho  maritimo  da 
India.  Diz  Tiele,  na  Historia  gercd  das  Religxòes  antigas  (p.  259)  :  «Os 
pequenos  povos  tiram  em  goral  o  seu  valor  de  uma  aptidZo  e  de  urna 
voca9&o  especiaes.  Mas  a  cultura  perseverante  e  assidua  de  um  dom 
particular,  a  concentra9&o  das  suas  preoccupa93es  e  de  suas  forsas  so- 
bre um  so  objectOy  assignam-lhes  &s  vezes  um  legar  eminente  entro  as 
na93es  e  um  papel  de  primeira  ordem  no  desenvolvimento  da  civilisar 
9£0y  sobretudo  no  ponto  de  vista  religioso  e  moral.»  Na  vida  historìca 
de  Portugal,  imposta  pela  situagSo  geograpbica,  da  actividade  marìtima 
é  que  provém  a  sua  independencia  nacional,  a  rìqueza  colonial,  a  fei- 
9&0  esthetica  das  suas  mais  bellas  'manifeBta98es  poeticas  e  architecto- 
nicas,  a  sua  expansSo  fundando  novos  estados,  e  além  de  tudo  isto  uma 
influencia  directa  no  advento  da  edade  moderna  da  Europa,  caracte- 
rìsada  pela  actividade  pacifica.  Como  pequeno  estado,  Portugal  foi 
mais  cedo  livre  do  que  o  resto  da  Hespanha,  e  n2Lo  deixari  de  ser  para 
a  peninsula  o  Estado  typo  para  a  sua  remodela9£o  federativa.  Renan 
dizia  que  a  historia  da  Grecia  deveria  escrever-se  comò  um  hymno; 
esse  hymno,  que  resda  na  alma  de  todos  os  que  admiram  os  factores 
conscientes  da  Civilisa9So  humana,  é  o  que  acompanha  as  pc^inas  da 
Historia  de  Portugal  e  Ihes  dà  vida. 

Emquanto  Portugal,  simples  appendice  da  Hespanha,  firmava  a  sua 
autonomia  com  a  descoberta  da  India  e  do  Brazil,  D.  Manuel  achava- 
se  por  um  accidente  elevado  ao  throno,  &  soberania  com  que  nunca  so- 
nhara,  e  tratou  lego  pelo  seu  casamento  de  unificar  sob  uma  meama 
corda  o  imperio  das  Hespanbas.  As  riquezas  que  os  galeSes  traziam 
das  recentes  descobertas  e  conquistas  desvairaram-no,  levando-o  i  con- 
centra92o  do  maxime  poder  absoluto,  e  à  sumptuosidade  pharaonica 
com  que  assoalhava  esse  poder,  enviando  embaixadas  ruidosas  aos  dif- 
ferentes  monarchas  da  terra.  NSo  tinba  a  loucura  dos  planos  politicos 
de  um  Carlos  v,  de  um  Francisco  i  ou  Henrique  vili;  tinha  a  puerili- 

19* 


292  HISTORIA  DA  UmVERSIDADE  DE  COIMBRA 

dade  dos  effeitos  theatraes  do  rei  que  se  acompanha  pelas  ruas  com  um 
longo  sequito  de  elephantes  e  dromedanos^  qae  vestia  quasi  diaria- 
mente  novos  fatos  rosagantes^  e  que  comia  à  vista  do  seu  povo  ao  som 
de  charamellas.  As  riquezas  affluiam  a  Lisboa,  de  todas  as  ignoradas 
regiSes  do  globo;  e  o  monarcha,  no  enlevo  de  um  sonho  de  grandezas, 
aUieio  a  todas  as  idéas  economicas  e  de  administraySo,  maltratava  os 
homens  que  sustentavam  este  vigor  momentaneo  da  historia  portugueza, 
taes  comò  Affonso  de  Albuquerque,  FemSLo  de  MagalhSes,  Duarte  Pa- 
checo  e  Antonio  GalvSo.  Està  prega  inferior  do  caracter  de  D.  Ma- 
nuel fieou  accentuada  na  epopèa  dos  Lusiadas  na  phrase  rei  iniquo; 
a  historia  chamou-o  Venturoso,  nSo  pela  ac9SLo  directa*que  exerceu  a 
sua  individualidade,  mas  por  ter  gosado  de  um  modo  egoista  todos  os 
elementos  de  ordem  duramente  estabeleeidos  por  D.  JoSo  ii,  e  o  effeito 
das  descobertas  dos  navegadores  e  capitSes,  que  elle  considerava  pouco 
seus  amigos.  Morreu  na  abundancia,  dispondo  inconscientemente  de 
thesouros  que  julgava  inexgotaveis,  fazendo  edifica95eSy  enriquecendo 
OB  filhoB  com  casamentcs,  mitras  e  mestrados,  dotando  loucamente  a 
ultima  esposa;  deixando  em  elabora9SLo  os  germens  que  viriam,  ainda 
no  seculo  xvi,  determinar  a  ruipa  de  Portugal.  NSo  admira  pois  que 
n'este  reinado  de  desvairamento  de  riquezas  a  vida  intellectual  nSo 
apresente  o  relèvo  que  o  nome  portuguez  sustentava  nas  Universida- 
des  de  Hespanha,  Italia  e  Franga. 

Logo  que  D.  Manuel  se  achou  elevado  de  duque  de  Beja  a  rei 
de  PortugaJ,  a  Universidade  de  Lisboa  mandou-lhe  participar  pelo  rei- 
tor  Alvaro  Anes  e  Mestre  JoSo  de  Magdalena  a  sua  eleigSU)  de  Prote- 
ctoTj  bonra  que  o  monarcha  acceitou  por  carta  de  11  de  dezembro  de 
1495.  Foram  os  seus  primeiros  actos  mandar  provèr  as  cadeiras  de 
prima  e  de  vespera  de  Leis  em  oppositores,  e  em  fazer  convites  a  al- 
gnns  doutores  de  Salamanca.  Como  a  concessSo  de  Sixto  iv,  obtida 
por  D.  Affonso  V;  àcerca  das  Conesiaa  magistraes  e  doutoraes,  nSo  pdde 
ser  levada  à  pratica  pela  opposiySo  insistente  do  cardeal  D.  Jorge  da 
Costa  e  de  alguns  Cabidos,  D.  Manuel  conseguiu  de  Alexandre  vi  o 
breve  de  23  de  junho  de  1496,  para  que  em  todas  as  cathedraes  se 
estabelecessem  prebendas  para  os  mestres  theologos  e  doutores  jnrÌBtMf 
da  Universidade.  0  recente  monarcha  gloriava-se  com  as  homenagens 
que  a  Universidade  agradecida  Ibe  prestava  no  seu  pomposo  latim.  No 
livro  das  Epistolas  de  Cataldo  Aquila  Siculo,  eque  tinha  vindo  a  estes 
reinos  ensinar  Rhetorica  na  Universidade  de  Lisboa»,*  vem  a  OraySo 


1  Ribeiro  dos  Santos,  Memorias  da  Academia^  t.  vnz,  p.  97. 


ESTATÙTOS  MANUEUNOS  293 

latina;  que  o  marquez  de  Villa  Real,  D.  Fedro  de  Menezes,  recitoa  na 
Universidade  perante  o  rei  D.  Manuel.  * 

0  rei;  preoccupado  com  as  festas  do  seu  casamento  (1497)  com  a 
princeza  D.  Isabel,  viuva  do  mallogrado  herdeiro  de  D.  JoSo  il;  achou- 
86  com  a  perspectiva  de  vir  a  reunir  Portugal  e  Hespanha  sob  um  mesmQ 
Bceptro.  Para  este  fim,  em  que  se  Ihe  levantavam  no  espirito  as  pai- 
xSes  da  vaidade  e  do  dominio,  que  sempre  o  caracterisaram;  D.  Ma- 
nuel nSo  hesitou  em  acceder  à  condÌ9£o  da  expulsSLo  dos  judeus  de  Por- 
tugal (1496).  Em  resultado  d'este  acto  de  fanatismo,  prohibiu  o  menar- 
cba  em  1497  o  uso  de  livros  hebraicos,  exceptuando  apenas  as  obras 
de  Medicina  e  <3irurgia,  ainda  assim  quando  os  que  as  possuissem  foa- 
sem  physicos  ou  cirurgiSes  antes  de  se  converterem  ao  catholicismo.^ 
O  abandono  completo  em  que  cairam  a  lingua  e  litteratura  hebraica 
reflectiu-se  para  sempre  nos  estudos  tbeologicos  na  Universidade^  ape- 
sar de  D.  Manuel  crear  em  1503  uma  cadeira  de  vespera,  que  proyeu 
em  5  de  Janeiro  de  1504  no  afamado  cistersiense  Frei  JoSo  Claro. 

A  Universidade  occupava  entfto  as  Casas  que  Ihe  tinham  side  doar 
das  em  1431  pelo  infante  D.  Henrique,  situadas  acima  da  egrefa  de  8. 
Thoméf  cantra  o  muro  velho  da  cidade.  E  emquanto  o  novo  monarcha 
se  achava  enleiado  pelos  grandes  successos,  que  iam  transformar  a  exis- 
tencia  da  nafSo  portugueza  e  da  civilisa^Eo  moderna,  corno  o  regresso 
de  Vasco  da  Gama  em  1499  e  a  descoberta  do  Brazil  por  Pedro  Al- 
vares  Cabrai  em  1500,  a  Universidade  retomou  um  pouco  da  sua  au- 
tonomia economica,  tratando  de  alargar  o  edifìcio  para  as  suas  escho- 
las  ;  em  1 502  compra  ao  conde  de  Penela  umas  casas  com  quintal,  por 
80^000  réis,  para  ahi  estabelecer  as  suas  aulas,  e  em  30  de  agosto 
d'esse  mesmo  anno  compra  a  G-abriel  Gonyalves,  por  30^000  réis,  ou- 
tras  casas  quepartem  com  as  Escholas  novas  que  agora  sefazem.  D.  Ma- 
ntlel  interpoz  a  sua  soberania  doando  à  Universidade,  em  18  de  Janeiro 
de  1503,  o  palacio  que  comprara  ao  Condestavel  D.  Affonso,  que  fora 
de  seu  tio  o  Senhor  de  Cascaes,  e  que  pertencera  ao  infante  D.  Hen- 
rique,  ^  construindo  com  estes  differentes  predios  as  Escholas  novas,  no 


1  EdÌ9So  de  Lisboa,  de  1500. 

^  Bibeiro  dos  Santos,  na  Memoria  sobrt  as  orìgens  da  Typographia  em  Por- 
'tugal^  commenta  este  facto  :  «desanimou  inteirameiite  a  Litteratura  hebraica,  tor- 
nou  inuteis  ce  seus  prélos,  e  fez  sahir  de  Portugal  para  extranhas  terras  uma  Ty- 
pographia  tao  atil  e  vantajosa,  que  entSo  nos  bonrou  por  auas  illustres  produc^oes, 
e  que  ainda  boje  nos  podia  muito  ennobrecer  com  suas  obras.»  (Mèmorieu  da  Aca* 
denUa,  t.  vin,  p.  18.) 

3  É  frequente  o  equivoco  de  localisar  a  Universidade  no  palacio  do  infante 


294  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDABE  DE  COIMBRA 

sttiv  quefica  abaixo  de  Santa  Marinka,  conhecidas  pelo  titolo  de  Escho- 
las  Geraes,  eque  ainda  hoje  existem  n'aquelle  mesmo  sitio,  e  que  con* 
servam  este  mesmo  nome.»'  Com  o  novo  edificio  das  Escholas,  o  so- 
berano dea  tambem  &  Universidade  novos  Estatutos,  a  que  elle  chamou 
Ordenan^as,  impondo  luBsihi  a  mais  absoluta  auctoridade.  No  pream- 
bulo dos  Estatutos  manuelinos  ligam-se  estes  dois  factos  comò  simuU 
taneos:  cNós  por  fazermos  o  que  devemos  a  nesso  officio  e  Dignidade 
Real,  e  por  servilo  de  Nesso  Senhor,  proveito  dos  nossos  subditos  e 
nobrecimento  da  dita  Cidade  (de  Lisboa)  Fazemos  merce  e  doa^o  aa  ditta 
Universidade  doutras  Cazas  em  Ingar  que  parece  mais  conveniente, 
edificadas  com  forma  e  disposi^Ho  de  Escfaollas  Geraes  e  acrecentamos 
OS  sallarios  aos  Lentes  e  Officiaes;  e  hordenamos  que  ouvesse  Cathedra 
de  Vespera  de  Theologia,  e  Cathedra  de  Philosophia  Moral.  E  porque 
havia  muitos  Estatutos,  Accordos  e  Ordenan9a8  diversas,  que  segando 
a  yariedade  dos  tempos  agora  xAo  sSo  proyeitosos:  Queremos  e  Orde- 
namos,  que  d'aqui  em  diante  a  Universidade  de  nosso  Estudo  de  Lis- 
boa seja  regida  e  govemada  por  estas  Ordenan;as  seguintes,  etc.»  Es- 
tes Estatutos,  que  come9am  pelo  titulo  Qtie  nào  possa  fazer  Estatutos 
sem  ElRey  ou  Protector,  na  copia  que  existe  no  tomo  primeiro  do  Livro 
das  ProvisSes  da  Universidade,  nfto  apresentam  data;  comtudo  ella  pode 
ser  fixada  pelas  referencias  do  preambulo  à  doaqào  das  Escholas  geraes 
em  18  de  Janeiro  de  1503,  e  ao  provimento  da  Cathedra  de  Vespera  de 
Theologia,  em  5  de  Janeiro  de  1504,  a  qual  fora  creada  nos  mesmos 
Estatutos  com  o  salario  de  vinte  mil  réis.  '  Como  estes  Estatutos  esti- 


I 

D.  Henriqne,  comprado  em  1448,  coDfaDdindO'O  com*  as  casas  doadas  em  1431.  IH- 
gaeirda  eiplica  o  motivo  por  que  se  acbam  no  Cartono  os  titaloB  do  palacio  do 
infante:  «Comprou  mais  o  Infante  D.  Henrìque  a  D.  Alvaro  de  Castro,  senhor  de 
Cascaes,  e  a  sua  mulher  D.  Isabel,  umas  casas  com  seu  quintal  no  bairro  dos  Es- 
colares,  que  partiam  com  outras  snas  por  pre90  de  400  dobras  de  onro,  das  quaes 
OS  vendedores  se  deram  por  entregues  por  44  panos  de  Castella,  qne  receberam, 
feita  eserìptura  no  1.°  de  septembro  de  1443.  N2o  consta  que  o  Infante  desse  es- 
tas casas  à  Universidade,  e  se  meteu  no  Cartono  d'ella  està  escriptura  por  que 
devem  ser  as  mesmas  de  que  depois  El  Bey  D.  Manoel  Ihe  fez  mercé.»  (Vide  An- 
nuario da  Universidade  de  Coimbra^  para  1874,  p.  241.) 

1  LeitSo  Ferreira,  Noticias  chronologieas  da  Universidade,  Add.  ao  n.^  615. 

'  0  visconde  de  Villa  Maìor,  na  Exposi^ào  succinta  da  Organisofào  actual 
da  Universidade  de  Ccimhra,  adopta  a  data  entre  1499  e  1504  com  o  segninte  ar- 
gumento:  «Estabelecem  elles  (Estatutos)  que  para  o  cargo  de  Reitor  seja  eleito 
sempre  «m  fdalgo  ou  pessoa  constituida  em  dignidade;  e  para  o  anno  de  1500  foi 
eleito  0  Bispo  de  Fez,  talvez  j&  em  virtude  das  dt8posÌ9oe8  dos  novos  Estatutos.» 
(Op.  cit,  p.  41.)  0  bispo  de  Fez,  D.  Francisco  Femandes,  fora  pedagogo  de  D.  Ma* 
miei  e  anteriormente  Unba  a  dignidade  de  Mestre  Eschola. 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  295 

veram  em  vigor  até  novembro  de  1 537,  em  que  D.  JoSo  in  dea  &  Uni- 
versidade,  ji  entSo  em  Coimbra,  um  novo  Regimento^  foi  remettido  para 
Coimbra  o  livro  dos  EstatutoB  manuelìnos,  para  os  casos  omissos  e 
praxes  tradicionaeB;  o  testo  authentico  assignado  por  D.  Manael  per- 
deu-se,  conBervando-se  o  apographo  a  que  fialta  a  data.  Em  alvarà  de 
16  de  agosto  de  1537  estabelece  D.  JoSo  iii:  cmando  que  emquanto 
nSo  prover  essa  Universidade  de  novos  Estatutos,  usees  e  yos  rejaes 
peloB  Statutos  que  foram  dos  Studos  de  Lisboa,  de  que  vos  mando  per 
bo  doTitor  Francisco  Mendes  bo  proprio  livro  d'elles  assinado  por  el 
rei  meu  senhor  e  padre  que  santa  gloria  aja.» 

Muitas  das  dÌ8po8Ì9SeB  da  reforma  de  1504:  nSo  foram  cumpridas 
pela  Universidade,  corno  se  infere  de  um  alvarà  de  D.  JoSo  iii,  mas 
essa  instituiyfto  pedagogica  da  Edade  mèdia  acabou  por  annullar-se 
diante  da  monarchia  absoluta,  comò  as  garantias  foraleiras  se  extin- 
guiram  com  a  Ordena9So  ou  codigo  real.  Desde  que  a  Universidade 
perdeu  de  todo  o  seu  caracter  de  corpora9ao  livre,  deixava  de  acom- 
panbar  o  movimento  scientifico  da  Europa,  que  se  operou  pelo  esfor(o 
das  capacidades  individuaes  isoladas.  A  Universidade  foi  melhor  do- 
tada,  teve  mais  opulencia,  mas  acbou-se  sem  destino  na  època  da  Re- 
naBcen9a.  Tambem  com  a  extincgSo  das  garantias  foraleiras  a  nacio- 
nalidade  portugueza  acbou-se  sem  vigor;  Sa  de  Miranda  queixava-se 
de  que  tudo  concorrìa  a  Lisboa,  receiando  que  o  barco  mettesse  a  pròa 
ao  fundo.  Extincta  a  vida  locai,  acabou  todo  o  elemento  de  resistencia 
que  fizera  das  antigas  behetrias  ou  cidades  livres  a  na9So  portugueza, 
nunca  encorporada  até  ao  ultimo  quartel  do  seculo  xvi  na  unidade  cas- 
telhana.  À  reforma  da  Universidade  sob  D.  Manuel  so  pode  ser  bem 
apreciada  buscando  o  pensamento  que  a  determinou  nos  factos  politi- 
cos  que  tomaram  o  poder  monarchico  absoluto  ou  independente.  No 
préambulo  faz  o  rei  a  concessSo  de  novo  edificio  para  as  escholas,  au- 
gmento  de  ordenados  aos  lentes,  e  justifica  os  motivos  por  que  vae  co- 
dificar a  legisla9lo  universitaria  em  umas  Ordena98e8: 

cPrimeiramente  mandamos  que  o  Reitor  da  Universidade  do  Es- 
tudo  de  Lisboa,  Conselheiros,  Lentes  e  todolos  Officiaes  juntos,  nSo 
possam  fazer  Estatuto  sobre  o  regimento  da  dita  Universidade;  e  quando 
occorrer  algum  caso  em  que  pare9a  ser  necessario  novo  Estatuto,  po- 
derSo  requerer  ao  Protector,  e  por  sua  auctoridade  se  farà  o  Estatuto 
que  fòr  necessario. » 

Foi  este  excesso  de  poder  real  sobre  a  Universidade  que  fez  com 
que  ella  mais  tarde  podesse  ser  entregue  aos  Jesuitas,  que  fizeram 
d'ella  0  ponto  de  apoio  para  reagirem  centra  o  espirito  scientifico  da 


296  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Rena8cen9a.  O  exame  da  reforma  manuelina  descobre-nos  factos  im- 
portantesy  nSo  so  sobre  a  organisafSo  administrativa  da  Universìdade, 
corno  sobre  a  situa9So  dos  estudos.  Insistiremos  sobre  està  parte  em 
especial;  e  no  que  respeita  aos  costumes  escholares.  Desde  que  os  Es- 
tatutos  eram  urna  ordeiia9So  real,  tomava-se  necessario  dal-os  a  conhe- 
cer  aos  estudantes:  cMandamos  que  o  reitor  mande  a  todos  os  Estu- 
dantes  sob  pena  prestiti  juramenti,  qiie  em  cada  bum  anno  ySo  ouvir 
OS  Estatutos  e  OrdenagScs  da  dita  Universidade,  os  qaaes  o  Bedel  e  o 
EscrivSo  do  dito  Estudo  lerà  alta  e  intelligivel  vox  no  Geral  das  ditas 
Eschollas  huma  véz  cada  anno,  o  terceiro  dia  das  Outavas  do  Natal, 
depois  de  corner;  e  o  mandado  do  Reitor  seri  publicado  pelo  Bedel  & 
Vespera  de  Natal.» 

Os  cargos  da  Universidade,  Reitor,  seis  Conselheiros,  dez  Depa- 
tadoS;  Conservador,  Sindico,  Bedel,  EscrivSes,  Taixadores,  Sacador  do 
Recebedor,  Enqueredor,  Guarda  das  Escholas  e  SoUicitador  ctodos  es- 
tes  officiaes  serào  eleitos  pela  Unìversidade,  e  confirmados  pelo  Fro- 
tector;  tirando  o  officio  de  Chanceller,  que  Queremos  que  o  tenha  sem- 
pre 0  que  for  Lente  de  Prima  de  Leys.»  Vè-se  que  por  està  reforma 
0  Chanceller,  que  representara  o  poder  pontificai  nas  Universidades, 
adquiria  agora  um  caracter  regalista,  independente  de  eleiyilo,  e  pri- 
vativo de  um  Lente  de  prima  em  Leis.  Mais  tarde,  na  regressSo  ele- 
ncai do  reinado  de  D.  JoSo  ui,  o  cargo  de  Cancellano  toma-se  outra 
vez  autonomico  com  o  de  Reitor,  e  um  privilegio  exclusivo  dos  Prio- 
res  de  Santa  Cruz  de  Coimbra. 

Vejamos  qual  o  quadro  dos  estudos  por  està  reforma  de  1504: 
cOrdenamos  que  na  dita  Universidade  haja  sempre  Cadeira  de  Prima 
de  Thedoffia,  e  outra  de  Vespera,  e  tres  Cadeiras  de  Canones,  a  sa- 
ber:  De  Prima,  Ter9a  e  Vespera.  E  de  Philosophia  Naturai  huma,  e 
outra  de  Philosophia  moral.  Tres  Cadeiras  de  Leys:  Prima,  Terga  e 
Vespera.  De  Medicina  duas:  de  Prima  e  de  Vespera.  Huma  Cadeira 
de  Logica  e  outra  de  Orammatica,'^ 

Os  titulos  da6  cadeiras  eram  derivados  da  divisSo  liturgica  das  ho- 
ras  canonicas;  ^  principiava  o  trabalho  escholar  por  uma  missa  ao  rom- 
per do  sol,  e  em  seguida  comegavam  as  ligSes  dos  lentes  de  prima: 
cem  sahindo  o  Sol  comesse  a  Missa,  e  em  fim  d'ella  comegar^  os  Len* 


^  0  cardeal  de  Arag§o,  D.  Fedro  de  Luna  (papa  com  o  nome  de  Benedicto  ^ 
zni),  na  reforma  que  fez  da  Universidade  de  Salamanca,  depois  de  1381,  fonda 
tres  cadeiras  de  Theologia,  ordenando  que  urna  se  lésse  à  hora  de  Prima^  outra  & 
kora  de  Ter^,  e  outra  &  de  Ve^peraa. 


ESTATUTOS  MANUELINOS  297 

tea  de  Prima  a  ler. . .»  Ainda  hoje  se  chama  lente  de  prima  ao  de- 
cano da  faouldade,  perdida  a  tradigSo  das  horas  canonicas. 

Um  doa  estimulos  da  reforma  da  Universidade  por  D.  Manuel  foi 
o  augmento  dossalarioa  doa  lentea:  cOrdenamos  queaCadeira  de  Prima 
de  Theologia  haja  em  cada  anno  doze  marcoa  de  prata,  aegondo  se  con- 
tém  no  Testamento  do  Infante  Dom  Henriqne,  pelos  quaes  Ihe  man- 
damos  dar  trinta  mil  reis;  e  à  Cadeira  de  Vespera  vinte  mil  reis;  e  às 
Cadeiras  de  Prima  de  Canones  e  Lejs,  trinta  mil  reis  cada  huma^  e 
àa  de  Vespera  de  Canonea  e  Leys,  vinte  mil  reis  cada  huma  ;  e  às  Ca- 
deiraa  de  Ter^a  de  Canones  e  Leja,  dez  mil  reis  cada  huma;  e  &  Ca- 
deira de  Prima  de  Medicina,  vinte  mil  reis;  e  à  Cadeira  de  Vespera, 
quinze  mil  reis;  e  à  Cadeira  de  Philosophia  Naturai,  vinte  mil;  e  à 
Cadeira  de  Metaphysica  vinte  e  trez  mil  reis;  e  à  Cadeira  de  Logica 
dez  mil;  e  à  Cadeira  de  G^rammatica  dez  mil.» 

E  immensamente  curiosa  a  persistencia  da  tradigiLo  pedagogica 
conservada  na  Universidade  ainda  hoje;  na  reforma  de  D.  Manuel  en- 
contram-se  jà  estatuidas  certas  particularidades,  que  se  observam  au- 
tomaticamente: eque  OS  lentes  de  prima  leam  cada  dia  que  for  de  l^r 
quase  ìiora  e  mela,  e  os  outros  lentes  huma  hora;  e  em  firn  de  sua  li- 
gào,  decendo  da  Cadeira  estarcb  hum  pouco  de  tempo  para  responder  a 
OS  dumdas  e  perguntas  dos  Eschollarea  ;  os  quaes  lentes  come9arSo  a 
ier  hum  dia  depois  de  S3,o  Lucas,  e  continuarlo  athé  Santa  Maria 
d'Agosto  inclusive. . .»  *  E  a  tradÌ9So  da  quinta-feira:  e  quando  na  se- 
mana nSbO  houver  festa  de  guarda,  deiacarSo  de  ter  a  juinta-feira  corno 
sempre  se  costumou,^  As  insignias  doutoraes  conservam  ainda  o  mesmo 
aymbolismo:  cos  theologos  boria  branca,  e  os  canonistas  verde,  e  os 
legistas  vermdha,  e  os  medicos  amar  dia,  e  os  artistas  azuloi...i^  À  trans- 
formagSo  da  classe  de  Artes  na  faculdade  de  Philosophia  fez  com  que  està 
c6r  se  conservasse  comò  peculiar  da  nova  disciplina.  As  precedencias 
das  faculdades  sSo  ainda  as  mesmas  determinadas  por  D.  Manuel:  cos 
mestres  e  doutores  terSo  està  ordem  antro  si  :  primeiro  os  mestres  em 
theologia;  segundo  os  doutores  canonistas;  terceiro  os  doutores  legis- 
tas; quarto  os  doutores  medicos;  em  fim  os  mestres  em  artes.  E  os  Re- 
gentes  precederSo  aos  nom  Regentes  em  sua  faculdade  e  guardarlo  em 
cada  sciencia  as  antiguidades  dos  seus  gràos.» 

Em  uma  nota  do  reitor  Figueirda  às  Noticias  chronólogicas  de 


1  Segando  ce  Estatutos  da  Universidade  de  Salamanca,  de  1422,  formulados 
por  Martinho  v,  as  li^oes  prìncipiavam  em  dia  de  8,  Lttcoa,  e  acabavam  em  dia 
da  Virgem  de  Settembre 


298  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  COIBIBRA 

LeitSo  Ferreira  (74  ao  %  924),  observa-se  qne  a  abertura  das  aulas  era 
em  18  de  outubro,  come^ando  o  anno  escholastico  em  dia  de  Sam  La- 
cas,  no  qual  se  recitava  a  Ora^  de  Sapientìa;  oste  costume  dnrou  até 
ao  anno  de  1530^  mudando-se  a  abertura  dos  cursos  para  o  dia  de  S. 
Remigio,  que  era  no  primeiro  de  outubro.'  E  o  que  se  determina  pe- 
los  documentosy  sem  comtudo  existir  uma  ordem  formai  para  està  mo- 
dificafSo.  O  lente  da  cathedra  de  prima  de  Theologìa,  pela  disposÌ9So 
do  infante  D.  Henrique,  é  que  era  obrigado  a  recitar  a  Oraqao  de  Sa- 
pientìa;  apparece  por  vezes  està  prerogativa  exercida  por  lentes  da  fa- 
culdade  de  Artes  especialmente.  Em  18  de  outubro  de  1519^  o  lente 
de  Logica,  Francisco  Valentim,  faz  a  ora9£o  do  come^  do  estudo  ;  em 
1534  fez  mestre  André  de  Bezende,  sem  ser  lente  da  Universidade, 
a  Or€Uio  prò  rostris;  em  1535,  o  lente  de  PkUosophia  naturai,  Duarte 
Gomes^  licenciado  em  Medicina;  em  1536  recitou-a  o  mestre  de  Gram- 
matica, 0  afamado  Jeronymo  Cardoso.'  Attribuimos  este  facto  ao  con- 
servar-se  na  Universidade  a  tradÌ9&o  da  antiga  preeminencia  da  Fa- 
culdade  de  Artes  nas  Universidades,  devida  à  importancia  numerica 
com  que  os  alumnos  artistas  preponderavam  nas  eleijSes  dos  Beitores 
annuaes  e  dos  Lentes.  A  grandeza  dos  cursos  de  Artes  é  que  fez  com 
que  se  desdobrassem  fora  da  Universidade  sob  a  regencia  particular,' 
e  viessem  ainda  no  seculo  xvi  a  constituir  o  ensino  mèdio. 

O  quadro  das  disciplinas  escholares  era  oonstituido  por  grios  de 
Bacharel,  Licenciado  e  Doutor,  aos  quaes  correspondiam  varias  fre- 
quencias  e  exames:  eque  os  eschoUares  que  ouverem  de  recebergrào 
de  bacharel  em  artes  cursem  ao  menos  tiez  cursos  a  saber:  hum  curso 
ouvindo  texto  de  logica  e  deus  de  philoeophia  naturai,  os  quaes  trez 
cursos  se  fari  em  trez  annos  ouvindo  por  a  maior  parte  de  cada  hum 
anno,  e  provando  os  cursos  per  testemunhas  juradas  perante  o  scrivSo 
do  studo  e  o  Rector  ou  mestre  que  ho  bade  graduar.  E  se  ho  mestre 
de  quem  ouvir  jurar  que  he  sufficiente  poderaa  receber  grào  de  bacha- 


1  Vide  IfutitiUo,  t.  zzT,  p.  259. 

<  lUdem,  p.  277. 

'  «Por  estes  tempos  (1505)  e  tambem  depois  eram  permittidas  escholas  par- 
ticulares  nSo  sómente  de  Grammatica,  mas  de  qualquer  scienda,  com  duas  con- 
di^òes  :  a  primei^^  qae  so  eram  permittidas  no  bairro  da$  Enkoloi  gtro/t»^  e  a  se- 
gnnda  que  fossem  graduados  os  mestres,  ou  examinados  e  approvados  pela  Uni- 
versidade, OS  quaes,  'ainda  que  n2o  tinham  salario  algum  n*ella,  nem  entravam 
nos  conselhoB,  gozavam  de  todos  os  privilegios  da  mesma  Universidade  e  Ihe  eram 
sujeitos  e  ella  Ihes  dava  leis,  etc»  (Nota  do  reitor  Figueirda  is  NùtìeioM  ehrùno» 
logica»^  ap.  Inttituto,  t  xnr,  p.  260.) 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  299 

rei  em  artes  posto  que  nom  tenha  acabados  os  cursos  lendo  prlmeiro 
trez  ligoens  disputadas,  apontadas  de  hum  dia  pera  ho  outro.  Ho  que 
ouver  de  receber  grào  de  bacharel  em  theologia  fari  cinco  cursos  do 
mestre  das  senten^  ouvindo  per  a  maior  parte  de  cada  bum  anno,  aos 
quaes  cinquo  annos  se  ouver  cadeira  de  brivia  fari  dous  cursos,  e  nom 
poderi  receber  grio  em  theologia  sem  primeiro  ser  bacharel  em  artes. 
E  ho  canonista  ouvìri  outros  cinque,  e  se  ouver  cadeira  de  decreto  ou- 
virà  dous  cursos  n'estes  cinquo  annos.  E  ho  que  houver  de  ser  bacha- 
rel em  medicina  ouviri  outros  cinquo  annos  em  medicina,  corno  dito 
he,  e  antes  que  tome  grào  em  medicina  sera  bacharel  em  artes. i  Ainda 
hoje  OS  cursos  das  faculdades  constam  de  cinco  annos,  e  o  bacharelato 
em  artes  perdeu  o  titulo  honorifico,  ficando  reduzido  aos  preparatorios 
elementarcB  para  as  disciplinas  superiores. 

0  grào  de  bacharel  era  conferido  com  variadas  cereraonias  sjm- 
bolicas,  das  quaes  subsiste  apenas  o  receber  a  boria  na  cabe9a.  Na  re- 
forma de  D.  Manuel  o  bacharelando  pagava  para  a  arca  do  strido  urna 
dobra  de  ouro  de  banda,  e  outra  para  o  escrivSo  (secretano)  e  bedel: 
ce  hum  harrete  com  hum  par  de  luvas  ao  padrinho  que  ihe  bade  dar 
o  grào,  e  luvas  ao  Rector  e  lentes  que  prezentes  forem  ao  auto;  e  sera 
obrigado  o  Rector  com  a  universidade  e  ho  bedel  diante  com  sua  maya 
hir  pollo  graduando  a  a  sua  pousada  se  for  no  bairro,  e  ho  trarSo  a  as 
schollas  honradamente  onde  lego  em  principio  do  auto  farà  hvla  aren- 
gua  e  depois  lerà  bua  liyfto  e  acabada  a  IÌ9S0  e  disputa  se  fòr  em  ar- 
tes, medicina  ou  theologia  pedirà  o  grào  arengando,  e  despois  d'iste  se 
darSo  as  luvas  aos  sobreditos  e  farà  juramento  em  as  mSos  do  scrivSo 
e  bedel. . .  e  assi  avemos  por  bem  que  qualquer  que  se  graduar  arme 
ho  goral  de  pannos  finos  por  honra  do  auto.»  * 

Os  que  faziam  curso  de  licenciatura  eram  argumentados  pelo  lente 
mais  antigo  da  faculdade,  em  theses  publicaJas  dois  dias  antes.  0  ce- 
remonial  do  acto  de  licenciatura  merece  tomar-se  conhecido:  e  quando 
algum  se  ouver  de  fazer  licenciado,  depois  de  ser  feita  a  repetiySo  e 
asinado  ho  dia  do  exame,  loguo  polla  mànhS  iraa  o  bacharel  com  seus 
amiguos  e  ho  padrinho  e  ho  scrivilo  aa  see  e  ouvirSLo  missa  do  spirito 


1  0  alto  bom  senso  do  grande  renovador  da  pedagogia  na  Renascen^,  Fe- 
dro Bamus,  protestava  con  tra  estes  usos  da  Universidade  de  Paris  :  «Para  que 
servem  estas  assignatnras  e  séllos  do  reitor,  do  procurador,  do  recebedor,  do  prin- 
dpal?  E  que  argumento  sufficiente  tém  as  luvas^  os  barretes,  os  banquetes^  para 
provar  a  diligencia  e  a  sufficiencia  do  discipnlo?»  E  comtudo  estes  symbolos  fo- 
ram  0  segrede  da  importancia  das  Universidades  depois  da  Edade  mèdia. 


300  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

santo,  e  acabada  a  missa  assentar-se-ha  o  Cancellano  e  ho  padrinho, 
e  o  Cancellano  veri  ho  livro  se  estSo  postos  alguns  sinaes  e  ho  padri- 
nho  0  tomaraa  e  abriraa  em  trez  partes,  e  em  urna  d'ellas  escolheri 
0  bacharel  a  IÌ930  que  bade  ler,  e  ho  scrivSo  assentarà  em  seu  livro 
titulo  e  lei  que  0  bacharel  bade  ler,  e  este  esento  enviaraa  ho  scriv&o 
aos  mestres  oa  doutores  que  hSo  d'arguir,  e  entSLo  se  hiraa  0  bacharel 
pera  sua  casa  e  estudaraa  esse  dia  e  outro  seguinte  até  taxde,  e  nes- 
tes  dois  dias  enviaraa  a  cada  mestre  ou  doutorhuma  Canada  de  vinho 
branco,  e  otUra  de  vermelho  bom  e  huma  gallinha,  e  ao  Rector  e  ao  scri- 
vSo  e  bedely  e  levarlo  esto  dobrado  ho  cancelario  e  padrinho.  ^  Oa  pon- 
tos  dos  artistas  serSo  estes,  a  saber:  bua  IÌ9SI0  no  texto  de  logica,  e 
outra  no  texto  de  phUosophia  naturai.  E  ao  medico  assinarSo  huma 
lÌ9ào  no  avicena  e  outra  na  arte.  Ao  legista  huma  IÌ9IL0  de  codiguo  e 
outra  de  digesto  velho.  E  ao  canonista  bua  IÌ9SI0  nas  decretaes  e  outra 
no  decreto;  ho  theologuo  leraa  duas  liyòes  em  dous  lìvros  das  senten- 
^08.  No  dia  seguinte  despois  dos  pontos  aa  tarde,  ir2o  os  mestres  ou 
doutores  da  faculdade  e  assi  toda  a  universidade  a  casa  do  bacharel, 
e  0  bedel  com  sua  ma9a,  e  os  mestres  ou  doutores  em  seu  habito  irS 
todos  ordenadamente  pera  a  see  e  ante  elles  birfto  mo90s  com  tantas 
tochas  quantas  sSo  necessarias,  a  saber:  duas  pera  0  cancellario,  duas 
pera  0  padrinho,  e  ho  Rector  e  mestres  ou  doutores  da  faculdade  se- 


^  Tendo  anterionnente  observado  corno  a  corporaQ^o  nniversitaria  foi  mol- 
dada  pelas  associa^oes  obreiras  (p.  65),  corno  se  ve  pela  identidade  das  dcsigna- 
9068  hierarchicas,  approximamos  agora  as  proptnas  dos  exames,  quo  pagavam  os 
mestres  dos  officios  mechanicos.  Escreve  Lacroix  (Bibliophìle  Jacob)  na  Hiatoirt 
dea  Cordonnitra:  «As  despezas  que  tinba  a  supportar  0  novo  mestre  craux  couside- 
raveis.  Por  um  decreto  do  parlamento  de  1614,  a  cada  um  dos  jurados  do  officio, 
ao  mestre  dos  mestres,  e  aos  seis  bachareis  que  assistiam  à  confec^^  dà  obra  aca- 
bada desdc  0  seu  comedo  até  ao  firn,  elle  devia  pagar  um  escudo  pelos  seus  traba- 
Ihos,  salarios  e  vaca^oes.  Aj unte-se  a  isto  um  tributo  pela  occupa92o  da  camara 
dos  jurados,  e  o  da  obra  acabada,  que  Ihes  ficava  pertencendo.  Em  Fon  tolse  pa- 
gava-se  20  soldos  parisis  ao  rei,  outros  tantos  aos  jurados,  2  escudos  &  confraria, 
e  umjantar  ao»  meatrea  ejuradoa.  Os  estatutos  de  Saumur  taxavam  os  novos  mes- 
tres em  20  soldos  tornezes  para  a  receita  ordinaria  de  Saumur,  20  soldos  para  os 
jurados,  e  10  soldos  para  a  tocha  da  aagragào^  que  era  em  honra  e  reverenda  de 
Nosso  Senhor.  A  recep9llo  custava  em  Amboise  3  escudos  cobrados  para  o  rei,  1 
escudo  aos  tres  jurados  que  tinham  presidido  ao  exame,  e  umjantar  a  eatea  tdH' 
moa,  aaaim  corno  aoa  procuradorea  da  companhia. — Finalmente,  na  Guienne,  quem 
acabava  de  ficar  mestre,  pagava  7  francos  bordelezes,  dos  quaes  metade  se  appli- 
cava 4s  despezas  das  festas  de  Nossa  Senhora  e  de  S.  Chrispim  e  Chrispiniano  ; 
fimia  além  d'iaao  aa  deapezaa  de  um  hanqiiete^  mas  sómente  para  os  quatro  jurados 
que  tinham  dirigido  o  seu  exame  e  approvado  a  sua  obra  acabada.»  (Op.  dt,,  p.  135.) 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  301 

nhas  tochas  e  ao  bedel  outra  e  a  cada  hum  destes  hama  caixa  de  con- 
feitos.  E  faram  de  tal  maneira  que  entrem  em  exame  pouquo  antes  de 
sol  posto,  e  entrarSo  em  luguar  pera  isso  apparelhado  onde  ficarào  so 
08  mestres  ou  doutores  da  faeuldade,  Cancellano,  Rector  e  scrivSo,  e 
terSo  soas  mezas  aparelhadas  pera  isso  com  livros  e  castÌ9aes  com  suas 
yellasy  e  oome^arà  a  ler  o  bacharel  suas  liyoens  as  qtiaes  nom  consen- 
tirlo que  passem  de  duas  horas,  a  saber,  bua  bora  em  cada  IÌ9&0,  por- 
que  tenham  luguar  pera  arguir.  E  acabadas  as  ligoens  ho  bacbarel 
sairaa  fora  da  casa  do  exame  aparelhando-se  aos  argumentos.  E  entSo 
trarlo  consoada  honrada  e  honesta  pera  0  Cancellano  e  os  outros  na 
qual  se  deterSo  pouquo,  e  logo  sera  chamado  0  bacbarel  ho  qual  se 
assentaraa  a  par  do  padrinho,  e  cometari  a  arguir  0  mais  novo  doutor 
ou  mestre  e  assi  per  ordem;  e  acabado  de  arguir  ho  bacharel  se  iraa 
pera  sua  casa  honradamente  com  seus  amiguos,  e  entlo  os  mestres  ou 
doutores  comunicarSo  <^  merecimentos  do  bacharel ...»  Segue-se  a  ce- 
remonia  da  vota9So  comò  se  usa  ainda  hoje  no  exame  privado  da  Uni- 
versidade,  sendo  0  licenciado  obrigado  a  dar  «ao  scrlvSo  e  bedel  bufa 
loba  de  pano  fino  de  seis  covados  ou  dous  mil  reis  pera  ella,  ho  qual 
ficarà  em  elleigSo  do  graduado.  »  O  gr^o  era  confondo  na  sé  pelo  can- 
cellano cpoendo-lhe  0  barrete  na  cabega,  estando  o  licenciado  em  gio- 
Ihos ...  9 

As  ceremonias  sjmbolicas  do  doutoramento  sSo  pittorescamente 
dramaticas,  e  merecem  ser  conhecidas,  para  que  se  avalie  a  estabili- 
dade  da  nossa  tradigSo  universitaria:*  «ho  dia  do  magisterio  ou  dou- 
toramento pella  manhSa  hirSo  os  doutores  ou  mestres  e  os  da  univer- 
sidade  que  ho  quizerem  honrar  a  eaza  do  que  bade  réceber  0  grào,  0 
qual  hirà  vestido  de  hua  roupa  rogagante  co  seu  capello  vestido  e  sem 
barrete  na  cabe9a,  e  se  for  frade  em  seu  habito,  e  leval-o-ha  honrada- 
mente aa  see  onde  ouvirSo  missa  do  spirito  santo,  em  fim  da  qual  su- 
birSlo  OS  mestres  ou  doutores  e  assentar-se-hS  em  seus  luguares  orde- 
nadamente  cada  hu  em  seu  habito,  ho  cancellano  estaraa  assentado  em 
meo,  e  0  Rector  aa  mSo  direita  e  todollos  outros  de  bua  banda  e  ou- 
tra per  ordem,  e  ho  que  bade  receber  o  grào  ficaraa  em  baixo  assen- 
tado em  bua  cadeira  e  diante  bua  mesa  com  seu  banqual,  e  estarSlo 


1  E  curiosa  està  confissSo  do  visconde  de  Yillar  Maior,  reitor  da  Universi- 
dade,  na  sua  Expoai^ào  succinta,  p.  43,  ao  descrever  os  Estatutos  de  D.  Manuel  : 
«  0  ceremontcU  dPutea  actoé  academicoa^  apenai  modificados  fCalguns  pontoa^  ainda 
hoje  Bepratioa. . .  »  (1877.)— Nos  Estatutos  da  Universidade  de  Salamanca,  de  1538, 
tambem  se  descrevem  os  beberetes  que  0  graduando  tem  de  dar  aos  ezaminado- 
res.  {Menu  hi$U  da  UniverHdade  de  iScdamanca,  de  Vidal  7  Dias,  p.  78.) 


302  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

com  elle  doas  bachareis  ou  licenceadoB  e  leraa  huma  breve  IÌ9&0,  e  ar* 
guirà  prìmeiro  centra  elle  0  Kector  brevemente  e  depois  algans  mes- 
tres  ou  doutore^  de  sua  faculdade  e  acabado  esto  daraa  luvas  a  todol- 
los  08  bachareis  e  aos  lecenceados,  e  doutores  barretes  e  luvas,  e  aos  fi- 
dalguos  luvas,  e  assi  aos  officiaes  de  studo  e  ao  Cancellano  e  padrinho 
barretes  e  luvas  dobrado;  e  acabado  esto  bum  homem  honrado  louvaraa 
entSo  letras  e  costumes  do  graduando  e  em  lingìuigem  per  pàlavras  hO' 
nestas  diraa  alguns  defectos  graciosos  pera  folguar  que  nom  sejam  muùo 
de  sentir,  e  n'iste  0  scrivSo  Ihe  darà  juramento  em  forma  antes  que 
suba  a  receber  0  grào;  e  acabado  esto  louvarSo  0  doutorando  diante 
do  padrinho  e  estando  em  pee  no  terceiro  degr&o  em  baixo  do  padri- 
nho pediraa  o  grào  per  sua  breve  arengua  e  0  padrinho  louvando  as 
letras  do  graduando  Ihe  daraa  ho  grào*  com  suas  insignias  estando  em 
giolhos  ante  elle  a  saber  barrete  com  sua  boria  e  anel  e  beijo  na  face, 
0  que  assi  acabado  hirseh&o  a  comer  e  comerào  com  dles  todollos  dou- 
tores e  mestres  e  toda  a  universidade  e  ho  mestre  em  artes  convidaraa 
sómente  a  jantar  os  doutores  e  mestres  da  universidade  e  os  officiaes, 
e  alem  dos  sobreditos  guastos  ho  que  ouver  de  receber  grào  de  doutor 
ou  mestre  daraa  pera  a  arqua  de  studo  cince  dobras  douro  de  banda  e 
ao  scriv2lQ  e  bedel  trez  mil  reis  conformai^do-nos  com  0  statuto  anti- 
guo  que  Ihe  dava  veste  forrada.»  As  offertas  das  luvas  transformaram- 
se  depois  da  reforma  pombalina  em  um  embrulhinho  com  1;$6(X)  réis, 
dado  a  cada  um  dos  doutores  que  assistia  ao  doutoramento,  comò  pro- 
pina do  abraQo;  ainda  no  nosso  tempo  eram  obrigatorios  a  pitan9a  ou 
almoyo  do  exame  privado,  os  pratos  de  dece  de  fructa  offerecidos  ao 
reitor,  aos  arguentes  das  theses  e  oradores  do  capello,  e  0  jantar  que 
se  tomou  facultativo. 

0  costume  de  increpar  0  doutorando  «em  linguagem  per  pàlavras 
honesias  de  alguns  defectos  pera  folguar,  que  nom  syam  muito  de  sentìri^ 
era  ao  que  nas  Universidades  hespanholas  se  chamava  0  Vejamen.  No 
seu  estudo  sobre  Alarcon,  escreve  Guerra  y  Orbe  àcerca  d'este  cos- 
tume, imitado  na  Universidade  do  Mexico:  e  Los  Vejamens  habianse  in- 
troducido  en  EspaSa  à  imitacion  del  gimnasio  de  Paris,  sustituyendo  ó 
parodiando  con  picantes  burlas  j  sazonados  dictos  los  enfadosos  pane- 
gyricoB.  Dabanse  raras  veces  por  un  doctor;  muchas  por  un  licenciado; 
en  no  pocas  se  lucia  con  esa  liberdad  un  estudiante.  Su  objecto  fué 
amansar  la  vangloria  del  trìumfo  academico,  j  solemnisar  mas  alegre- 
mente  la  fiesta.  Lhamase  Ve/amen  el  de  los  medicos  e  juristas,  j  se 
escribia  en  lengua  castellana;  pero  decian  gallo,  actus  gaUicus  (acto 
francés)  corno  alusion  de  su  origen,  al  de  los  teologos  pronunciado  com- 


ESTATUTOS  ÌIANUELINOS  303 

mumente  en  latin.»'  Na  litteratnra  portagueza  esiste  urna  pega  que 
serviu  de  Vgamen  no  firn  do  secalo  xvi,  escrìpta  pelo  licenciado  Fer- 
nEo  Rodrigaes  Lobo  Soropita,  com  o  titulo  Satyra,  na  data  de  umas 
cadeiras  a  um  fidano  de  Figuevredo  que  era  torto  de  um  olho;  e  a  um 
fidano  Correa,  judeu  : 

Ah  que  dei-rei,  que  morren 
O  nesso  Pero  dos  Beis  ! 
Porque  yem  a  ensinar  leis 
Um  tortoles  com  mn  judea  ! 
Acuda-me  o  poyo  men, 
Que  é  necessario  gram  peito 
Para  vèr  que  sem  respeito 
Andam  jogando  as  pancadas 
Um  judeu  com  leis  sagradas, 
Um  torto  com  o  direito. 

Vede  qne  boas  li^oes 
Estes  dois  yos  podem  dar  ! 
Um  póde  cabras  goardar, 
Outro,  por  cabras,  cabr5e8. 
Quem  Ihe  tirara  os  cal^òes 
P*ra  sacudir-lhe  o  cotSo  ! 
Pois  nnnca  vos  seryirio 
Nem  de  pouco  nem  de  mnito, 
Urna  figueira  sem  fraito, 
Urna  Correia  de  cSo. 

0  judea  e  o  zardlho 
Ambos  se  deram  de  pé  ; 
Porque  um  manqneja  da  fé, 
Outro  manqneja  de  um  olho. 
Quem  OS  puzera  n^um  mólho, 
Como  o  bom  Sylva  deseja, 
Para  que  n'elles  se  veja 
Cumprìda  a  lettra  perfeita  : 
Tarde  o  torto  se  endireita, 
Cfuardar  do  cào  que  manqueja. 


Certo  é  para  sentir, 
MeuB  senhores  estadantes, 


F 

^  Don  Juan  Buiz  de  Alarcon^  p.  132.  Madrid,  1871. — Ao  contrario  do  Vefa- 
men  existia  o  Victor  na  Uniyersidade  de  Salamanca,  que  era  urna  manifestammo  de 
homenagem  que  se  fazia  à  porta  do  graduado. 


304  HISTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

Ver  lentes  a  dois  bragantes 
Que  muito  s2o  para  rir  ! 
Que  dSo  se  sabem  vestir, 
E  vem  n*e8ta  occasiao 
Por  alta  ordena92o 
A  lér  nas  nossas  Gkraes 
Dois  cerrados  animaes, 
Um  por  burro,  outro  por  cSo.  ^ 

Transcrevemos  apenas  estas  estrophes  para  ee  conhecer  a  indole 
do  Vyamen,  que  com  o  tempo  decaiu  na  troga  dos  grdos  aos  ccdouros. 

Na  vida  de  Ignacìo  de  Loyola,  por  Gonzales,  cita-se  a  cerimonia 
grotesca  a  que  se  expunham  os  escholares  quando  se-preparavam  para 
o  exame  de  bacharel.  Quicherat  allude  a  ella^  sem  comtudo  conhecer 
que  era  commum  às  Universidadee  de  Paris,  Hespanha  e  Portugal. 
Transcrevemos  as  palavras  de  Quicherat:  «Està  prova  era  precedida 
de  uma  cerimonia  que  se  chamava  la  prue  de  la  pierre.  Procuràmos 
debalde  em  que  é  que  consistia.  Era  sem  duvida  alguma  divertimento 
pago  pelo  candidato  aos  seus  condiscipulos.  Era  certo  que,  para  pren- 
dre  la  pierre,  se  pagava  um  escudo  de  oiro,  e  que  Ignacio  hesitou  longo 
tempo  antes  de  se  submetter  a  isso.  Deu  parte  dos  seus  escrupulos  a 
meetre  JoSo  Penna,  que  o  persuadiu  a  conformar-se  com  o  costume. 
Elle  tomou  entào  SLpedra,  e  foi  censurado  por  aquelles  que  espiavam 
continuamente  os  s'eus  actos.  Provavelmente  teria  side  tambem  censu- 
rado se  se  recusasse  a  proceder  comò  os  outros.»^  Evidentemente  a 
prise  de  la  pierre  era  a  parodia  de  um  symbolo  da  antiga  p^ialidade  me- 
dieval, em  que  desappareceu  o  objecto,  ficando  a  men9So  do  acto.  Por- 
ter  la  pierre,  era  o  castigo  que  se  dava  aos  altercadores;  e  nas  prati- 
cas  universitarias  o  bacharel  dava  as  suas  provas  mostrando  que  era 
insigne  em  sustentar  uma  determinada  opiniSo.  Importa  avivar  a  pe- 
nalidade  symbolica  da  prise  de  la  pierre,  porque  pelas  fórmas  da  legis- 
la92o  consuetudinaria  se  comprehenderà  comò  a  pedra  (a  que  allude 
a  nossa  I0CU9S0  popular  pedra  de  escandalo)  se  mudou  noa  Vgamens 
das  Universidades  em  um  camei/ro^  levado  às  costas  pelo  bacharel. 
cSe  duas  mulheres  altercarem  até  se  espancarem,  injuriando-se  ao 
mesmo  tempo,  ellas  levarSo  por  teda  a  cidade  e  pela  rua  principal  duas 


1  PoutCLs  e  ProscUj  p.  95  a  99. 
'  HUioire  du  Collège  de  Sainte  Barbe,  1 1,  p.  197. 

3  No  celtico  Kam,  pedra,  ara  no  cimo  das  montanhas,  onde  sacrificava  o 
Eaimeach  ou  druida.  (Belloguet,  GloMaire  gauLciè,  p.  289.) 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  305 

jpedras  prezas  por  cadèas...»^  «Se  acontecer  que  urna  mulher  sem 
consequencia  diga  a  urna  donzella  palavras  offensivas  da  sua  honra^ 
prender-se-lhe-ha  ao  pescogo  duas  pedras  para  Ì8to  destinadas^  e  os  offi- 
ciaes  de  justiya  a  levarSo  publicamente  pela  cidade,  e  tocarUo  trom- 
beta  adiante  e  atraz  para  a  apuparem  e  chacotearem.»  '  Transcreve- 
mos  as  palavras  da  legÌ8la9So  symbolica  antiga,  para  se  comprehender 
o  valor  da  phrase  «jpn'^e  de  la  pierrei^:  «La  femme  que  dirà  vilonie  à 
autre,  si  comme  de  putage,  payera,  ou  elle  porgerà  lapierre,  toute  nue 
an  chemise^  à  la  procission . . .  »  '  Na  Universidade  de  Paris  conservou- 
ee  a  tradi(So  da  pedra  symbolica;  nas  Universidades  de  Hespanha  o 
ActiM  gallicus,  chamado  assim  em  rasSLo  da  sua  proveniencia,  recebeu 
o  nome  de  Vyartien,  pela  inten$So  moral;  porém  na  Universidade  de 
^Lisboa  invectivava-se  o  graduado  por  defecios  graciosos,  vindo  com  a 
mudanga  para  Coimbra  a  revivescer  a  cerimonia  segundo  o  costume 
de  outras  Universidades,  levando  o  graduado  um  cameiro  às  costas.* 

Pela  reforma  de  D.  Manuel  vè-se  que  nem  todos  os  lentes  eram 
graduados  em  doutores,  e  beneficiava-os  nas  despezas  caso  se  douto- 
rassem.  «E  asi  mandamos  que  os  lentes  de  prima  se  fa^m  doutores 
ou  mestres  dentro  de  hu  anno,  do  tempS  que  ouverem  a  cathedra,  e 
OS  que  agora  sam  de  prima  se  fa9am  dentro  em  bum  anno.)» 

NoB  Estatutos  manuelinos  acham-se  prohibÌ9SeB,  pelas  quaes  se 
caracterisam  os  oostumes  escholares  no  seculo  xvi,  taes  comò  o  dos 
estudantes  espadachins  e  as  focarias:  «Mandamos  que  nenhum  Escol- 
lar entro  nas  Eschollas  com  armas  offencivas  nem  defencivas,  e  o  que 
o  contrario  fezer,  perca  as  armas,  etcì»  E  em  novo  articulado:  «Item. 


1  Jacob  Grimm,  Poeéie  im  Becht^  p.  721;  Jura  Tremonensia;  apud  Miche- 
let, Origine»  du  Droii  fran^ais^  cap.  zìi. 

2  Droit  de  Hambourg,  1497.  Grimm,  op.  cit.,  p.  720. 

'  Documento  de  1247  ;  Ducange,  Gloaa,  Apud  Michelet,  ibid. —  As  vestes  ta- 
lares  dos  doutores  sSo,  em  um  proverbio,  equiparadas  a  saias,  «muitas  fraldas  e 
pouca  sciencia.»  (Vide  p.  31.)  D*aqai  tambem  a  rela^So  da  parodia  com  o  symbolo 
penai. 

4  Quando  a  Universidade  se  mudou  para  Coimbra,  o  costume  do  Vexamt  con- 
servou-se  com  tal  auctoridade  que  até  os  proprìos  Jesuitas  recem-chegados  de  Pa- 
ris se  submettiam  a  elle.  Le- se  na  Chronica  da  Companhia,  do  P.  Balthazar  Tel- 
les,  cap.  zzii  :  «Doutorado  o  P.*  Melchior  Barrato,  ordenou-lhe  o  P.*  SimSo  Rodri- 
gues  que  fosse  levar  às  costas  um  cameiro  erfolado  a  D.  Marcos  Romeo,  cathc- 
dratico  de  Theologia  e  Mestre  do  Infante  D.  Duarte,  sen  padrìnho  no  grào.  0  ca- 
thedratico  ficou  admirado  com  o  caso,  e  o  novo  doutor  disse-Ihe:  «Este  he,senhor 
Doutor,  o  Vexajne  que,  depois  do  meu  doutoramento,  me  d&  a  Companhia  de  Jesu, 
a  fim  de  me  graduar  no  espirito  da  mortifica^am  e  desprezo  do  mundo.» 

mST.  fou  20 


306  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COUfBRA 

Mandamos,  quo  os  Eschollares  nfto  tenham  em  sua  caza  molher  su- 
speita  continuadamente,  sob  pena  de  mil  reis  para  a  arca  do  Estudo,  e 
a  metade  para  quem  o  accuzar,  nem  terS  caens,  nem  aves  de  ca$ar. 
E  andem  honestamente  vestidos  e  calgadoB,  a  saber,  nSo  tragSo  pelo- 
tes,  nem  capuzes,  nem  barretes^  nem  giboens  yermelhos^  nem  ama- 
rellos,  nem  verdegai^  nem  cintos  laurados  d'ouro  sob  pena  de  perde- 
rem  os  ditos  vestidos^  eto  Eram  estes  os  costumes  abusivos  que  mais 
exaltavam  os  escholares  de  Paris. 

0  tjpo  do  estudante  espadacbimi  prevalecendo  sobre  a  antiga 
physionomia  clerica!  do  escholar,  e  que  se  acha  implicito  na  gradua- 
9S0  universitaria  do  Bachdeor  (bas  chevalier),  teve  sob  Luiz  xi  na 
Universidade  de  Paris  o  seu  pieno  desenvolvimento,  quando  este  mo- 
narcha,  insti tuindo  uma  especie  de  guarda  nacional^  quiz  que  0  corpo, 
docente  usasse  tambem  armas.  cFormou-se  no  scio  das  escholas  uma 
classe  de  professores  valentSes  e  espadachins,  que  argumentavam  pu- 
xando  pelos  cópos;  e  ainda  mais,  os  discipulos  das  dasses  superiores 
auctorisavam-se  com  0  esemplo  para  trazerem  debaixo  da  capa  a  es- 
pada curta,\)  bacamarte,  que  Rabelais  nSo  deixou  de  pendurar  ao  lado 
de  Pantagruel;  e  està  abomtnafSo  nunca  a  Universidade  conseguiu  ex- 
tinguil-a,  mesmo  quando  sob  os  reinados  ulteriores  reconquistou  o  seu 
privilegio  de  clericatura.»^  Nas  Universidades  allemSs  prevaleceu  este 
typo  do  estudante  espadachim  e  duellista;  na  peninsula  hispanica  houve 
no  seculo  xvi  a  monomania  da  valentia,  que  dominou  da  nobreza  até 
aos  guapos  e  temerones  populares,  e  em  que  0  estudante  occupava  na- 
turalmente uma  POSÌ9IL0  intermedia. 

Apesar  de  se  crearem  as  Universidades  corno  a  preponderancia 
do  ensino  leigo  centra  a  educa9So  das  CoUegiadas,  esses  centros  de  re- 
novayHo  pedagogica  nunca  perderam  completamente  0  caracter  de  de- 
ricatura;  e  apesar  de,  na  lucta  das  doutrìnas  dos  Jurisconsultos  cen- 
tra 0  arbitrio  dos  barSes  feudaes,  prevalecer  0  aphorismo  :  Cedant  arma 
togae,  os  homens  doutrinarios  nSo  deixaram  de  imitar  na  sua  hierar- 
chia  o  espirito  de  classe  da  aristocracia  militar,  comò  nos  Condes  pa- 
latinos.  Estas  antinomias  eram  resultantes  da  inconsciente  dissolu9So 
do  regimen  catholico-feudal,  que  se  estava  operando. 

A  festa  dos  Reis  Magos  era  um  dos  divertimentos  escholares  mais 
favoritos  do  firn  da  Edade  mèdia;  as  Universidades,  filhas  da  protec- 
9210  real,  nSo  podiam  deixar,  n'essa  fórma  de  divertimento,  de  protes- 


1  Quicherat,  Histaire  du  Collège  de  SatìUe-Barbe,  1. 1,  p.  25. 


ESTATUTOS  MANUELINOS  307 

tar  contra  a  absorpySo  clerica!  do  ensino.  No  latim  das  escholas  cha- 
mava-se  a  està  festa,  regalia.  Escreve  Qaicherat  sobre  este  costume: 
«N'este  dia  as  portas  dos  coliegios  ficavam  abertas,  e  os  escholares, 
livrea  de  teda  a  vigilanoia,  saiain  cobertos  de  andrajos  e  com  o  fato 
do  aveeso,  oa  com  qaalquer  outro  arranjo  rìdiculo.  lam  a  um  legar 
formar  uma  grande  assemblèa,  aonde  se  ajantava  a  elles  toda  a  moci- 
dade  dos  conventos,  das  sacristias  e  das  officinas  da  cidade.  Ali  no- 
meava-se  por  acclama9So  o  roi  dea  sota.i^  *  Até  aqui  o  costume  geral  a 
todas  as  Universidades;  em  Paris,  em  1469,  este  congresso  do  voi  dea 
soia  causou  um  motim  sangrento,  ficando  essa  cerimonia  extincta,  em 
rela^So  &s  arruayas,  mas  transformada  na  sua  fórma:  cOs  costumes  se- 
culares,  continua  Quicherat,  nSo  se  extinguem  de  boje  para  àmanhS. 
Por  uma  tran8ac9Sk>,  para  a  qual  se  fez  vista  grossa,  as  regalia  perpe- 
tuaram-se  no  inteiior  dos  Coliegios.  Cada  um  teve  o  seu  rei,  nSo  jà 
dea  aota,  mas  dafava,  celebrando-se  a  eleÌ9&>  d'este  monarcha  de  um 
dia  com  repre3enta93es  de  far9as,  que  davam  pretexto  a  decentes  ca- 
racterisagSes.»'  Em  uma  carta  règia  de  4  de  julho  de  1541,  em  que 
8e  prohibem  as  Soigaa  dispendiosas  que  os  estudantes  faziam,  vè-se  que 
este  costume  francez  (dea  aota)  era  jà  antigo  na  Universidade. 

Pelos  Estatutos  manuelinos  foi  regularisado  na  Universidade  de 
Lisboa  0  costume  que  tinham  os  lentes  de  se  ausentarem  das  cadeiras, 
confiando  a  regencia  a  um  alumno,  e  recebendo  o  salario  na  ociosidade. 
Este  costume  era  corrente  nas  Universidades,  comò  vèmos  pelas  cen- 
«uras  que  faz  Fedro  Ramus  ao  que  se  passava  na  Universidade  de  Pa- 
ris. A  approximaQSo  dos  factos  esclarece-os.  Eis  o  que  estabelecem  os 
Estatutos  manuelinos:  cE  se  por  ventura  o  Lente  prezente  nSo  poder 
lér  por  doen9a:  Mandamos,  que  elle  possa  pdr  bum  substituto  aa  sua 
Cadeira — ad  vota  audientium, — o  qual  primeiro  sera  apresentado  ao 
Conselbo,  e  o  dito  Lente  neste  cazo  de  doen9a,  contentarda  o  avhatituto, 
e  0  mais  da  renda  ficarà  para  elle;  etc.»  Compayré,  referìndo  o  facto 
consignado  por  Fedro  Ramus  na  Universidade  de  Paris,  mostra  a  ex- 
tensSo  do  abuso:  cNas  faculdades  superiores,  direito,  medicina,  theo- 
logia,  Ramus  accentua  abusos  mais  graves  ainda.  Os  mestres  tinham 
quasi  completamente  supprimido  o  ensino,  nenhumas  lÌ93es  davam,  e 
descan9avam  no  trabalho  particular  dos  discipulos,  ou,  quando  muito, 
de  obscuros  mestres  em  artes,  que,  por  algumas  moedas  de  paga,  en- 


1  Hisioire  du  CoUkge  de  SaitUe-Barbe,  1. 1,  p.  23. 

2  Ibidem, 


20« 


308  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

sinavam  em  logar  d'elles.  Contentavam-se  de  assistir  de  longe  em  longe 
ao8  actoB  publicos,  aos  exames.»  ^  Ramus^  condemnando  està  burla  dos 
doutoree^  resultante  do  formuliamo  immovel  dos  textos  pelos  quaes  se 
ensinava,  chega  &  conclusSo  superior  de  qué  a  melhor  parte  do  ensino 
està  implicita  na  palavra  do  mostre:  e  A  viva  voz  de  um  douto  e  sa- 
bio  professor  iQstrue  e  ensina  muito  mais  commodamente  o  discipulo, 
do  que  a  leitura  muda  de  um  auctor^  por  grande  que  elle  seja.»' 

A  fórma  das  substituifSes  conhecida  pelos  Estatutos  manuelinos 
ad  vota  audientiumj  e  por  indicaySo  do  lente  proprietario,  é  que  nos 
explica  o  encontrar-se  na  vida  de  Sa  de  Miranda,  por  D.  Ghonyalo  Cou- 
tinhoy  a  referencia  a  ter  regido  varias  cadetras  de  Leis  na  Universidade 
de  Lisboa.  E  certo  que  em  1516  jA  apparece  o  seu  nome,  Dr.  Fran- 
cisco de  Sa,  eìtsdo  com  a  honra  do  grdo  academico  no  Cancioneiro  gè- 
Tal,  de  Gharcia  de  Resende;  é  portante  depois  d'està*  data  e  antes  da  sua 
viagem  à  Italia  (1521  a  1527)  que  o  grande  renovador  da  poesia  portu- 
gueza  occupou  uma  cadeira  na  Universidade  €8Ómente  por  subatituigào^  ^ 
comò  referem  alguns  manuscriptos  genealogicos.  '  Porque  nSo  ficarìa 
Sa  de  Miranda  no  magisterio  da  Universidade?  A  sua  grande  cultura 
humanista,  completada  pela  viagem  &  Italia,  separara-o  do  scholasti- 
cismo  que  durante  o  reinado  de  D.  Manuel  prevaleceu  na  Universidade 
de  Lisboa.  O  erudito,  que  lia  Homero  no  testo  originai  e  o  commen- 
tava, que  conferenciara  com  Ruscellai  e  Lactancio  Tolomei,  nSo  podia 
escravisar-se  ao  formulismo  medieval,  que  o  fez  abandonar  a  carreira 
da  Universidade,  da  mesma  fórma  que  nSo  pdde  entender-se  com  a 
reac$So  catholica,  deixando  o  conflicto  da  cdrte,  onde  era  estimado, 
pelo  remanso  contemplativo  da  vida  de  provincia.  Podemos  considerar 
o  nome  de  Sa  de  Miranda,  na  tradiySo  da  Universidade  de  Lisboa, 
corno  um  protesto  do  espirito  da  Renascen^a  centra  a  retina  scholasti- 
ca,  que  veiu  a  ser  combatida  quando  o  proprio  D.  JoSo  'm  convidava 
Erasmo  para  a  sua  projectada  reforma  pedagogica. 

Em  1516,  por  carta  de  11  de  Janeiro,  o  rei  D.  Manuel  participa 


1  Htstoire  eritique  dea  Doctrinea  de  VEducalion  en  Franee,  1. 1,  p.  141. 

'  É  digno  de  coxiBÌderar-se  que  RamtiB,  precedendo  Comte  na  importaiicia 
pedago^ca  das  Mathematicas,  «tsans  leaqueUtB  touit  Vautre  philosophie  est  aveugle» 
tambem  aqui  se  encontra  com  o  principio  formulado  na  SyrUheae  mbjeciiva^  sobre 
a  necfiBsidade  de  urna  elaborando  pessoal  subordinada  às  li^oes  oraea  antes  de  io- 
das  as  leituras  theoricas.  (Op.  cit.,  p.  vu.) 

3  CuTBo  de  HUtoria  da  Litteratura  portugueta^  p.  280.  D.  Carolina  MicbacIiB» 
Poetùu  de  Sa  de  Miranda,  p.  vin. 


ESTATUTOS  HANUELINOS  309 

à  Universidade  que  yae  mandar  vir  de  Fran9a  o  Dr.  Diogo  de  Gouvéa 
para  ser  oppositor  &  cadeira  de  vespera  de  Theolo^a.  Diogo  de  G-ou- 
yéa  apparece  na  hìstoria  com  urna  singular  reputa9Zo  e  importancia, 
formando  parte  da  commiasSo  de  censura  para  o  esame  do  texto  grega 
dos  Evangelhos  impresso  pelo  grande  hellenista  Robert  Etienne.  Pelo 
seu  tino  e  maneiras  distinctas^  era  o  Dr.  Diogo  de  G-ouvéa  um  corno 
encarregado  de  negocios  do  rei  de  Portagal  na  c6rte  de  Franca;  a  sua 
chamada  a  Lisboa  obedecia  a  uma  necessidade  de  reformas  na  instruc- 
fftO;  e  a  yinda  do  sabio  pedagogo  ao  plano  que  concebera  de  concen- 
trar OS  Estudantes  de  El-Rei,  que  frequentavam  os  estudos  de  Paris, 
em  um  collegio  especial.  Diogo  de  Gouvèa,  por  este  motivo,  nSo  accei- 
tou  a  cathedra  de  vespera  de  Theologia^  sendo  previde  n'ella  em  1517 
Mestre  Jofto  Francez,  que  se  doutorou  em  S.  Vicente  em  1521.^  D. 
Manuel,  obedecendo  à  influencia  franceza,  tratou  de  fundar  o  Collegio 
de  Som  Thomaz,  no  mosteiro  de  S.  Domingos,  para  quatorze  coUegiaeii^ 
da  ordem  dominicana  e  seis  da  hieronymitana,  abrindo-se  os  eatudos 
em  28  de  Janeiro  de  1517.  Ainda  no  reinado  de  D.  Manuel,  Diogo  de 
Gouvéa  procurou  comprar  a  propriedade  do  Collegio  de  Santa  Barbara 
a  Robert  Dugast;  Quicherat  allude  a  este  facto:  cMas  comprar  Santa 
Barbara  apresentava  difficuldades  insuperaveis.  Robert  Dugast,  de  pro- 
prietario dos  edificio^  e  terrenos,  que  primeiramente  era,  tomou-se  pro- 
prietario do  estabelecimento,  e  nSo  queria  ceder  a  posse  por  dinheiro 
algum.  Diogo  de  Gouvèa  so  conseguiu  ser  arrendatario,  e  pelos  liti- 
gios  que  surgiram  pouco  depois  é  que  se  conheceu  com  quem  tratava: 
tèndo  entrado  na  posse  em  1520,  foi  citado  e  condemnado  no  Chate- 
let,  em  fevereiro  de  1523,  por  um  atrazo  no  pagamento  de  sua  renda.» 
Este  atrazo  deve  attribuir-se  à  circumstancia  do  fallecimento  de  D.  Ma- 
nuel, em  1521,  e  à  suspensSlo  do  subsidio  ou  bolsas  que  dava  o  rei,  e 
que  o  seu  successor  manteve  em  numero  de  cinquenta  e  duas. 

Entro  OS  planos  de  reforma  de  instruc9&o  publica,  e  talvez  pelo 
influxo  de  Diogo  de  Gouvèa,  pretendia  D.  Manuel  erigir  uma  nova 


1  Escreve  Sempere,  na  Hiètoria  del  DerexAo  eapanol:  «No  anno  de  1508  a 
fama  dos  philosophos  e  theologos  nominalistas  de  Paris  tinha-se  espalhado  tanto 
que  a  Universidade  de  Salamanca,  para  que  Ihe  nSo  faltasse  nada  do  que  as  ou- 
tras  poBsuiam,  mandou  certoB  commissarioB  à  capital  de  Franca  para  qne,  com 
grandes  salarioB,  troiuessem  ob  mais  doutoB  d^essa  eschola,  e  assim  vieram  os 
mais  famoBos,  os  quaes  estabeleceram  a  cathedra  de  Durando^  e  quatfo  de  Logica 
e  PhiloBophia,  dois  dos  nominalùlas  e  dois  dos  cbamados  realisUu,  pelo  modo  e 
fórma  que  se  usava  em  Paris.»  (P.  336.) 


310  mSTORIA  DA  UNIYERSroADE  DE  GOIMBRA 

Universidade  em  Evora,  em  1520:  cnSo  contente  com  a  Universidade 
de  Lisboa,  comprou  na  cidade  de  Evora,  junto  ao  Moinho  de  Vento^ 
nm  ch£o  que  era  do  Coudel-Mór  FranciBCO  da  Silveira  e  de  Bua  ma- 
Iher  D.  Margarida  de  Noronha,  para  n'elle  fazer  o  Estudo  que  orde- 
nava.  Foi  iato  no  anno  do  Senhor  de  1520;  e  pode  ser  que  està  fosse 
a  causa  de  escolher  el-rei  D.  Henrique,  seu  filho,  està  mesma  cidade 
para  assento  da  Universidade,  que  ali  fnndou  com  tanta  grandeza  corno 
hoje  yèmos.9  ^  Pelo  menos,  em  1535  a  cidade  de  Evora  representaya 
a  D.  JoSlo  m  a  conveniencia  de  mudar-se  para  ali  a  Universidade  de 
Lisboa,  que  Coimbra  tambem  ambicionava,  desde  os  projectos  de  D. 
Afifonso  V. 

A  època  em  que  D.  Manuel  fundou  o  CoUegio  de  8..Thomaz  coin- 
cide com  as  bases  consignadas  no  Heptadogma,  de  Robert  Qoulet,  para 
0  estabelecimento  de  qualquer  Collegio  nas  capitaes  europSas.  Em  pri- 
meiro  legar  recommendava  o  typo  francez,  coino  o  dos  CoUegios  de  Na- 
varrà,  Montaigu  ou*  de  Santa  Barbara.  As  relaySes  de  D.  Manuel  com 
0  Dr.  Diego  de  Gouvéa  facilitavam  a  implantaffto  do  systema  francez, 
que  so  veiu  a  realisar-se  em  1547  por  D.  JoSo  in.  Devia  ser  dirigido 
por  um  PrinctpoZ,  de  um  saber  geral,  porém  melhor  grammatico  do 
que  orador  e  logico,  a  cuja  escolha  ficariam  os  regentes,  com  estabili- 
dade  e  pouco  affectos  ao  lucro.  A  mesa  do  collegio  devia  lér-se  a  Bi- 
hlia  e  a  Legenda  Sanctorum,  para  o  espirìto  se  alimentar  juntamente 
com  0  corpo,  e  ali  applicar  os  castigos  corporaes  para  escarmento  de 
todos  OS  alumnos.  NSo  se  admitte  a  leitura  dos  Poetas,  nem  o  proprio 
Catfto  ou  Sulpicia,  sem  que  saibam  bem  o  Donato  e  Dominus  quaepars, 
passando  depois  ao  Dovtrinal  de  Alexandre  Villa  Dei;  para  os  mais 
velhos  deve  adoptar-se  Perrotus,  Augustinus  Datus,  Sulpicio  e  Des- 
pauterio.  As  leituras  devem  restrìngir-se,  em  a  poesia  a  Virgilio,  para 
a  oratoria  a  Cicero.  Da  Grammatica  passava-se  para  a  Dialectica  e 
Rhetorica;  seguia-se  Arìstoteles  na  Logica,  pelas  Summvlas  de  Pedro 
Hispano,  com  os  commentarios  que  Ihe  fez  Jorge  Bruxellense,  ou  os 
de  Lefòvre  d'Étaples,  ou  principalmente  os  que  entXo  professava  o  es- 
cossez  John  Mair  no  collegio  de  Montaigu.  A  Logica  devia  ser  dada 
nas  escholas  menores  até  aos  livros  das  Perìhermeneias;  todos  os  dias 
se  deve  exercer  a  argumentaffto,  em  repeti93es,  sabbatinas  e  conclu- 
sSes.  '  Tal  era  o  typo  francez  de  um  Collegio,  emquanto  à  sua  parte 
doutrinarìa,  antes  de  1518.  Ainda  ali  se  dava  o  Doutrinal  de  Alexan- 


1  Brandio,  Monarchia  lusitana,  P.  v,  liy.  11,  cap.  73. 

>  Apud  Quicherat,  Eiataire  du  Colàge  de  Sainte-Barbe,  t.  x,  p.  825  a  881. 


ESTATUTOS  IIANUELINOS  311 

dre^  quando  jà  os  hamanistas  àllemSles  e  italianos  Ihe  chamavam  com 
desdem  Alexandri  glossa  cacahUis,  e  outros  epithetos  nUo  menos  lim- 
po8.  Em  Logica  imperavam  as  Summidas  de  Fedro  Hispano,  susten- 
taculo  da  tradigSo  da  Edade  mèdia,  contra  todas  as  tentativas  de  re- 
novafSo  philosophica.  Os  CoUegios  preparavam  para  a  Universidade 
de  Paris,  e  nSlo  podiam  adiantar-lhe  o  passo;  so  depois  que  a  nova 
corrente  humanista  penetrou  na  Universidade,  reconciIiando*se  os  len- 
tes  em  1521  com  o  critico  JoSo  Luiz  Vives,  é  que  nos  Collegios  se 
tenl^  modificar  os  methodos  de  ensino  da  Edade  mèdia.  No  Collegio 
de  Navarra  tomou  essa  iniciativa  reformaclora  Lefèvre  d'Étaples;  no 
Collegio  de  Montaigu,  John  Mair  desertava  um  ponce  do  nominalismo 
francez,  professando  as  doutrinas  de  Dons  Scot,  e  tornando-se  pela 
sua  extrema  subtileza  um  quasi  chefe  da  philosophia.  Como  se  ve  pela 
descrip9lo  do  Heptadogma,  eram  d'Étaples  e  Mair  os  commentadores 
recommendados  que  se  deviam  ajuntar  &s  Summidas  de  Fedro  Hispano. 
Mair  caiu  no  descredito  pelas  facecias  de  Rabelais,  que  o  catalogava 
na  Livraria  grotesca  de  Sam  Victor,  Majoris,  De  modo  faciendi  bon- 
dinosj  e  d'Étaples  jà  nSo  quebrava  lan9as  por  Fedro  Hispano,  cujo  re- 
sumé do  Organum  de  Aristoteles  se  aprendia  de  cor  no  comeyo  dos 
cursos  de  Artes.  Foi  entSo  que  entro  os  estudantes  hespanhoes  se  le- 
vantou  um  enthusiasmo  desvairado  para  salvarem  a  honra  do  compa- 
triota Fedro  Hispano,  ezaggerando-se  o  furor  dialectico  e  o  requinte 
das  distinc9Ses  casuisticas.  Tomaram-se  regorgitantes  os  cursos  philo- 
sophicos  de  Joào  Celaya,  cavalleiro  de  Valencia,  especie  de  Quixote 
scholastico,  que  a  si  se  dava  o  epitheto  de  Doctor  resolutissimus,  e  que, 
seguindo  os  vdos  de  John  Mair,  fundia  o  scotismo  com  o  thomismo, 
com  a  mais  audaciosa  improvisa9So,  e  sob  as  suggestSes  de  Ockham. 
Os  Collegios  disputavam  a  regencia  de  JoSo  Celaya,  e  para  satisfazer 
OS  porcionistas  hespanhoes,  o  Collegio  de  Santa  Barbara  conseguiu 
attrahir  o  novo  chefe  de  eschola,  que  ali  regeu  dois  cursos  philosophi- 
cos  durante  sete  annos.  Insistimos  sobre  oste  ponto,  porque  o  Collegio 
de  Santa  Barbara  era  entlo  frequentado  por  estudantes  portuguezes,  e 
Jo£o  Celaya  escolheu  para  fazer  um  desdobramento  do  seu  curso  a 
portuguez  JoSo  Ribeiro.  Os  discipulos  do  valenciano  disting^iam-se  pela 
admira92o  hyperbolica  pelas  doutrinas  a  que  chamaram  o  Cdcdsmo,  e 
defenderam  desesperadamente  o  mostre  contra  as  criticas  acerbas  do 
professor  allemSLo  Waim,  que  o  caracterisava  comò  charlatSo.  Quiche- 
rat,  expondo  oste  episodio  da  doutrina  celaica,  escreve  alg^mas  linhas 
àcerca  de  JoSo  Ribeiro,  que  vamos  encontrar  capellSo  de  el-rei  em  Lis- 
boa, levando  por  opposÌ9So  a  cadeira  de  Logica  na  Universidade  em  20 


312  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

de  fevereiro  de  1527^  e  desistindo  depois  em  1530,  sendo  a  regencia 
d'ella  provida  por  encommenda  no  Dr.  Fedro  Nunes.^  JoSo  Ribeiro,  corno 
todos  OS  estudantes  que  se  gradaavam  em  theologia,  regia,  corno  o  pro- 
prio Celaya,  a  cathedra  de  Philosophia.  Aproveitemos  a  noticia  de 
Qaicherat  àcerca  de  JoSo  Ribeiro:  cEUe  oome90u  por  se  entregar  ao 
commercio.  Arrainado  em  uma  viagem  que  fez  &  Abjssinia,  pensou^ao 
repatriar-se  em  congrassar-se  com  as  letras,  de  que  tinba  uma  incom- 
pleta cultura.  Era  no  tempo  do  rei  D.  Manuel.  Seguiu  as  liySes  em 
Coqueret,  assistindo  às  estreias  brilhantes  de  Celaya  n'este  colico, 
ligando  se  desde  entào  ao  professor  valenciano,  que  foi  para  elle  comò 
um  idolo.  Tendo  repetido  as  suas  IÌ9oes  de  Dialectica  em  Beauvais, 
veiu  metter-se  em  Santa  Barbara,  quando  Celaya  ali  fixou  domicilio, 
para  melhor  se  impregnar  da  sua  doutrina  sobre  a  metaphysica.  As 
suas  mSos  foi  confiado.  o  facho  do  celaismo,  depois  da  retirada  do  mos- 
tre para  o  seu  paiz.  Ribeiro  conservou-o  firme  durante  os  primeiros 
annos  do  principalato  de  Diego  de  Gouvèa,  sendo  auxiliado  n'este  cui- 
dado  piedoso  por  um  professor  champanhez  chamado  Joào  Papillon, 
que  fora  seu  criado,  e  que  morreu  vinte  annos  depois  grUo -mostre  do 
collegio  de  Navarra,  De  JoSo  Ribeiro  resta-nos  uma  carta  curiosa,  que 
elle  escreveu  em  1517  a  seu  irmSo  Gon9alo  Dias,  camarista  do  pa90, 
para  o  converter  à  philosophia,  e  attrahil-o  para  junto  de  si  n'este  col- 
legio, onde  elle  tinha  encontrado  a  felicidade.»' 


1  Notas  de  Fig^eiroa  às  Nótìdcis  chronologicas.  {InstUutOy  t.  xit.) 

>  HUtoire  du  Collie  de  ScùtUe-Barbt,  1. 1,  p.  138.  Trauscrevemos  em  seguida 

a  alludida  carta,  cujo  originai  latino  se  acha  no  firn  da  ezposifSo  de  Celaja  sobre 

a  Physica,  e  reproduzida  por  Quicherat  (ibid.,  p.  336): 

Carta  de  Joào  Ribeiro  a  9eu  irmào  Gongolo  Dias 

«  Joao  BibeirOy  naturai  de  Lisboa,  sauda  a  seu  irm&o  Gonzalo  Dias,  man- 
cebo  de  boa  indole,  e  mo^o  da  camara  do  felicissimo  rei  dolB  Luzitanos. 

«ZenSo,  a  principio  um  simples  negociante,  e  mais  tarde  chefe  da  eachola 
dos  estoicos,  quando  navegava  da  Phenicia,  na^ào  a  mais  commercial,  para  Atbe- 
nas,  afirontou  um  naufragio  tSo  borrivel,  que,  perdidos  todos  os  seus  cabedaes, 
teve  de  refìigiar-se  semi-nù  no  porto  mais  prozimo.  Immediatamente  virado  para 
as  letras,  na  espectativa  de  carìciosa  fortuna,  fez-se  em  Athenas  discipulo  de 
Crates,  philosopho  jà  insigne  n*aqaella  edade;  ahi,  comò  em  breve  saboreasse 
OS  beneficios  da  philosophia,  frequentemente  costumava  declarar  que  elle  nunca 
tinha  navegado  com  tao  prospero  sdpro  dos  ventos  comò  n'aquella  mesma  yiagem, 
pela  qual  tomara  parte,  n&o  no  lucro  de  um  commercio  contingente,  mas  no  com- 
plemento daa  boas  disciplinas. 

«Eu,  carissimo  irm2o,  quando  revolvo  na  mente  os  meus  destinos,  parece*me 
ter-me  succedido  o  mesmo  que  aconteceu  a  ZenSo;  porque,  tentando  em  algum 


ESTATUTOS  MANUELINOS  313 

Quem  fo88e  este  JoSo  Ribeiro,  tSo  apaixonado  pelo  Cdaismo,  o 
altimo  lampejo  da  Philosophia  scholastica  em  Paris,  so  poderemos  co- 
nhecel-o  por  algamas  referencias  dos  livros  de  linhagens;  com  este 
nome  apparece-nos  uin  fidalgo  da  casa  rea!  e  commendador  da  ordem 
de  Christo,  aendo-lhe  concedido  brazSo  em  1530.  Era  seu  pae^  Gon- 
9alo  Bìbeiroy  senlior  de  Aguiar  de  Neiva  e  Conio  de  CarvoeirO;  no  al- 


ftempo  0  caminho  de  urna  vida  vulgar,  levado  pela  esperanQa  insensata  do  lucrOy 
embarquei  prìmeiramente  para  a  Ethiopia.  D^aqni,  enfastiado  da  vida  commer- 
cial, visto  que  a  fortuna  com  pouca  felicidade  me  favorecia,  passei  para  a  Fran9a; 
TÌndo  depois  para  Paris,  para  me  reconciliar  com  as  letras,  das  quaes  me  havia 
divorciado,  coube-me  nm  preceptor  tal,  comò  nem  o  proprio  ZenSo,  nem  ea  mesmo 
nunca  mais  tive.  Pelo  qae,  comò  o  sabio,  posso  na  verdade  affirmar  nunca  ter  na- 
vegado  com  tio  felizes  yentos  comò  n*aquella  viagem  para  a  Ethiopia,  na  qual 
julgando  eu  que  a  fortuna  se  revoltava  centra  mim  com  um  rancor  de  madrasta, 
comecei  a  experimentar-lhe  a  benignidade  de  mae  ;  nem  cousa  algoma  me  podia 
prodnzir  tanto  ouro  ethiopico  quanto  me  adveiu  d*aquelle  precal^o,  por  cujo  mo- 
tivo tudo  se  transformou  para  mim  em  vantagem,  com  o  auzilio,  segundo  creio, 
da  clemenda  celeste.  Portante  eu  costumo  ser  grato  k  minha  fortuna,  tanto  mais 
que  (Avi  que  tu,  retirado  do  convivio  intimo  do  nosso  serenissimo  rei,  a  quem  eras 
dedicado  por  obediencia,  estavas  j&  inclinado  às  nossas  Artes.  A  suprema  provi- 
dencia  quiz  dispór  tudo  de  sorte  que  nós  ambos,  a  quem  lun  mutuo  afFecto  e  um 
ardor  fraterno  ligou  fortemente,  fossemos  levados  com  a  mesma  oppress2o  de  es- 
pirito para  o  mesmo  horoscopo  :  pois  que  tu,  arrancado  do  scio  da  córte  para  o 
meio  das  ondas,  e  eu,  corno  tu,  navegando  pelo  profundo  e  tormentoso  oceano,  an- 
coràmos  no  mesmo  porto  da  tranquillidade. 

«Porém  apenas  nos  devemos  congratnlar  por  uma  tal  fortuna  tua  tanto  quanto 
devemos  lamentar  que  em  melhor  occasiSo  nào  tivesses  vìndo  a  Paris  no  tempo 
conveniente,  de  fórma  que  eu  te  visse  discipulo  do  meu  illustradìssimo  preceptor, 
cujo  merecimento  e  valor  debalde,  segundo  creio,  eu  demonstraria,  quando  jà  em 
teda  a  Europa  n2o  ha  pessoa  alguma,  que  se  dedique  ao  estudo  das  Artes  libe- 
raes,  a  quem  nSp  tenha  chegado  a  fama  do  nome  de  Cdaya.  Houve  multa  gente 
— ò  que  é  importante  para  a  presente  narra^So — que  por  differentes  processos,  no 
intuito  de  ajudar  as  nossas  Artes,  escreveu  multo  e  com  erudÌ9£o,  mas  quem  as 
tenha  illustrado  com  tanto  fulgor  e  lucidez  comò  Cdaya  (seja-me  licito  dizel-o) 
ninguem.  É  jà  bastantemente  sabido  que  nenhuns  escrìptos  sSo  hoje  tSo  vulgari- 
sados  entro  os  estudantes  parìsienses  comò  os  seus;  nenhumas  doutrinas  theori- 
cas  siU)  hoje  reeebidas  com  mùor  applauso  e  com  maior  acolhimento.  Sempre  que 
o  acompanhei  em  publico,  vi  fizados  n*elle  os  olhos  da  multidào  circumfiisa,  apon- 
tando-o  uns  aos  outros,  de  sorte  que  se  julgarìa  ver  n'aquelle  homem  mortai  algo 
de  immortai,  elevado  sobre  o  fastigio  da  humanidade  :  por  estes  successos  da  sua 
gloria  crescente  vé-se  bem  que  em  breve  succederà  que  teda  a  turba  de  Artistas, 
repudiados  os  escrìptos  dos  outros,  imitarà  sómente  a  doutrìna  de  Cdaya,  digna, 
digo  eu  (nio  tomeis  iste  a  mal),  de  ser  preferida  a  todas  as  outras,  e  a  qual  sera 
adoptada  em  todas  as  escholas.  Porque,  além  de  todas  as  partes  da  Dialectica, 


314  HISTORU  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

moxarifado  de  Fonte  de  Lima;  em  um  documento  judiciario  de  1552 
falla-se  em  seu  filho  JoSLo  Ribeiro,  €jmmo  co-irmSo  de  Bemardim  Ri- 
heiro,  Jidalgo  principal,  conheddo  pdos  seus  versos  intìtulados  Menika 
E  M09A.»  Emquanto  0  primo  se  apaixonava  pela  formosa  Aonia|  e  es- 
crevia  a  inimitavel  pastoral  das  Saudades,  ^  JoSo  Ribeiro  empregava 
todos  OS  recursos  da  sua  imagina98o  e  enthnsiasmo  para  attrahir  sen 


qua  elle  tratou  com  admiravel  clareza  em  nove  volumes,  ezistem  mais  os  livros  de 
sciencias  pliysicas  e  outros  volomes  de  philosophia,  pelos  quaes  elle  tAo  sabia 
quanto  felizmente  disBertoa,  de  maneira  qne  nao  so  mereceu  o  lonvor  doB  prìnci- 
paes  escriptores,  mas  nem  deizou  legar  ao  louvor  dos  vindooros.  Quando  come90 
a  analysiar  este  successo,  o  mais  auspicioso  que  se  pode  descrever,  espero  na  ver- 
dade  que  succederà  que  elle  n&o  tenha  chegado  ao  Bm  dos  seus  trabalhos  sem  que 
nos  deize  aplanadas  todas  as  difficuldadea  de  toda  a  Philosophia  moral  e  descober- 
tos  todos  OS  segredos  da  Theologia,  tanto  quanto  alguem  se  tenha  j4  alrevido  a 
esperar  do  mais  eloquente  dos  homens. 

«Mas  ve  tu,  rogo-t'o,  quam  mìsera  é  a  condi^ào  d'aquelles  que  nSo  sabem 
mais  do  que  corromper  os  louvores  alheios  :  homens  mediocres  e  mesquinhos  comò 
se  acham  jazendo  na  obscuridade  nSo  supportam  vèr  os  outros  na  luz  ;  nem  para 
elles  ha  cousa  alguma  mais  obnozia  e  mais  invisivel  do  que  a  propria  virtuie  e  a 
sciencia,  a  qual,  por  isso  que  mais  refulge  em  Celaya,  mais  acremente  é  perse- 
guida  pelo  aguilhSo  da  inveja.  Este  furor  de  despeito  mostra  daramente  o  valor 
de  um  homem  tal,  visto  que  a  inveja  nSo  se  prende  com  os  humildes  e  com  os  in- 
significantes,  mas,  comò  o  fogo,  procura  os  mais  elevados,  os  que  estSo  mais  alto. 

«Todavia,  pelo  que  respeita  aos  teus  estudos,  eu  nunca  pedi  com  tanta  ve- 
hemencia  cousa  alguma  ao  Todo  Poderoso  corno  a  tua  vinda  para  este  celeberrimo 
emporio  de  disciplinas,  onde  em  breve  realisarias  as  tuas  aspira^es.  Na  verdade, 
j&  que  nSo  se  effectuou  o  que  desejavas,  aprende  com  atten^fto  0  que  s6  o  talento 
de  Cdaya  pode  dar-te.  * 

«£u  aconselho-te  a  que  acceites  com  ambas  as  m£o6  està  oocasiSo,  agora  mi- 
raculosamente  offerecida  para  o  teu  desenvolvimento,  necessario  porque  todo  0 
corpo  de  sciencias  physicas,  a  principio  concebido  de  um  modo  rude  e  inculto, 
orna- se  hoje  com  0  incremento  das  mirificas  doutrinas,  que  os  primeiros  creado- 
res  da  Philosophia  nSo  quizeram  indagar  nem  poderam  ezplorar  n'esse  mesmo 
preambulo  da  sciencia  incipiente. 

«Por  todos  OS  modos,  meu  bom  Grondalo,  e  com  os  meus  rogos,  supplico-te,  e, 
em  nome  d*esta  auctoridade  qne  liga  dois  irmSos,  ezorto-te  a  qne  te  desenvolvas 
n*este  determinado  estudo  tanto  quanto  poderes.  Podes  quanto  quizeres,  porque 
ainda  devemos  &  natureza  està  gra^a,  0  nfto  querer  que  cousa  alguma  seja  impos- 
sivel  ao  grande  e8for90.  Adeus.  Paris.»  (Devemos  està  traduc^flo  ao  nosso  disci- 
pulo  o  sr.  Anselmo  Yieira.) 

1  Manuel  da  Silva  liascarenhas,  fidalgo  govemador  da  fbrtalesa  do  Out2o, 
na  edifio  que  fez  da  ifentna  e  Mo^^  di-se  por  «parente  do  Autor,  que  eTa|>rtmo 
co-irm&o  de  meu  av6.»  Isto  confinna  a  referenda  do  processo  judiciario  a  que  allu- 
dimoB. 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  315 

irmSo  Gonjalo  a  frequentar  as  escholas  de  Paris  corno  discipulo  de 
Celaya  e  a  vir  sustentar  a  Philosophia  escholastìca,  que  succumbia  aos 
prìmeiros  golpes  dos  humanistas  da  RenaBcenfa. 

Por  este  mesmo  tempo  frequentava  a  Universidade  de  Paris  en- 
tro portuguezy  o  mathematico  D.  Francisco  de  Hello  (1514-1517),  ^  e 
Francisco  Martins  da  Costa  doutorava-se  em  direito  na  mesma  UniTer- 
sidade.  A  època  nSo  era  boa  para  a  influencia  franceza;  ainda  Pedro 
Bamus  e  JoSo  Luiz  Vives  nfto  tinham  atacado  o  seu  velho  scholasti- 
cismOy  nem  Bude  tentara  a  fundaySo  do  Collegio  de  Fran9a.  £  por 
isso  que  a  Universidade  de  Lisboa^  sob  todo  o  reinado  de  D.  Manuel 
(1499  a  1521)|  permaneceu  esteril,  sem  lentes  celebres,^  nem  acgSo 
sobre  o  paiz,  porque  qs  estudantes  portuguezes  iam  de  preferencia  dou- 
torar-se  a  Salamanca.  As  grandes  reformas  sob  D.  JoSLo  in  foram  mo- 
tivadas  pela  transformajSo  dos  estudos  francezes^  e  até  certo  ponto  pela 
ac9So  directa  deVives,  que  luctara  no  come9o  dos  seus  estudos  pelos 
meihodos  medievaes. 

A  funda9SLo  da  cadeira  de  Astronomia^  por  D.  Manuel,  obedecia 
mais  &  credulidade  do  monarcha  pela  Astrologia  judiciaria  do  que  à  re- 
nova9So  do  espirito  scientifico.  Escreve  Ribeiro  dos  Santos':  <o  mesmo 
rei  foi  dado  a  ella  em  tanto,  que  ao  partir  das  nàos  para  a  India,  ou 
no  tempo  que  se  esperavam,  mandava  tirar  juizo  por  um  afamado  as- 
trologo portuguez,  Diego  Mendes  Visinho ...  e  depois  d'este  fallecer 
por  Thomaz  de  Torres,  seu  Fysico,  homem  mui  acreditado  assim  na 
Astrologia  comò  em  outras  sciencias . . .  TSlo  valida  andava  entSo  a  As- 
trologia por  toda  a  parte  que  chegou  o  seu  estudo  a  ser  galhardia  en- 
tro OS  Letrados;  que  deu  occasiSo  às  galhardias  do  comico  Gii  Vicente, 
que,  qual  outro  Aristophanes  escamecedor,  motejou  dos  astronomos  no 


1  Existe  na  Torre  do  Tombo  urna  ordem  ao  Feitor  de  Flandres  para  pagar 
a  D.  Francisco  de  Mello  o  subsidio  de  tres  annos  que  esteve  nos  estudos  de  Pa- 
ris (7  de  fevereiro  de  1514),  e  ordem  para  Ihe  serem  pagos  SSi^lGO  réis  da  des- 
peza  que  fez  emquanto  frequentou  a  Universidade  de  Paris  (20  de  fevereiro  de 
1617). 

'  Apenas  se  cita  o  nome  do  Dontor  Frei  JoSo  Claro.  Na  Epistola  dedicato- 
ria do  mathematico  Femel  a  D.  JoSo  ni,  ofierecendo-lhe  o  seu  livro  da  CosmO' 
theoria,  cita-Uie  comò  afamados  em  theologia  o  alludido  cisterciense  :  «In  theolo- 
gUun  coronam  eomndem  adminictilis  relati  sunt  Johannes  Clanu,  ordinis  cister- 
densis,  et  Jacobns  de  Govea,  vir  snmma  emditione  snmmaqne  pmdentia  conspi- 
cuufl.»  (4  de  fevereiro  de  1529.) 

'  Memorias  de  lÀUeratura,  da  Academia,  t.  viii,  p.  167. 


316  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Livro  I  das  suas  Ohras  de  Devagam,  posto  quo  confundia  a  Astrono* 
mia  verdadeira  com  a  Astronomia  jadiciarìa: 

E  porque  eatronomia 

Anda  agora  mui  maneira, 

Mal  sabida  e  lisongeira; 

Eu  &  honra  d^este  dia 

MuitOB  presumem  saber 

Ab  Opera^es  dos  Cèca, 

E  que  morte  hSo  de  morrer: 

E  cada  bum  sabe  o  que  monta 

Nas  estrellas  que  olbou, 

E  ao  mo^o  que  mandou 

NSo  Ibe  sabe  tornar  conta 

D'um  vintem  que  Ihe  entr^gon.» 

A  cadeira  de  Astronomia  foi  provlda  em  Mestre  Filippe^  medico 
de  D.  Manuel;  obrigando-se  a  ama  IÌ9S0  por  semana,  designado  0  dia 
e  a  bora  pelo  Reitor.^  Regea  até  1521,  succedendo-lhe  o  castelhano 
Thomaz  de  TorreS|  physico  do  rei,  e  antigo  mestre  de  D.  Jolo  m, 
tomando  posse  em  19  de  outubro  d'esse  anno  e  lendo  até  1537,  quando 
se  fez  a  mudanga  da  Universidade.  Assim  comò  Vires,  no  seu  libello 
In  Psevdo  dicdecttcos,  imputa  aos  castelbanos  a  conserya9So  prolongada 
do  scholasticismo  na  Universidade  de  Paris,  ^  podemos  comproval-o 
emquanto  &  Universidade  de  Lisboa,  e  em  especial  pela  vinda  de  aven- 
tureiros  scientificos  de  Hespanha,  que  concorriam  a  explorar  as  pro- 
digalidades  do  monarcba  portuguez. 

Na  far9a  dos  Physicos,  escripta  depois  de  1519,  introdaz  Gii  Vi- 
cente  0  physico  Thomaz  Torres  em  uma  consulta  medica,  satyrisando 
o  estado  de  atrazo  em  que  se  achava  entSo  a  sciencia: 

Bbazia  :      Aqui  yem  o  Fisico  Torres. 

Torres  :     Ora  bem,  Deos  vos  ajnde, 
E  YOB  de  muita  saude, 


1  Por  alvarà  de  29  de  outubro  de  1513  consta  que  é  lente.  (Ribeiro  dos  San- 
tos,  Memoria»  de  Litteraiura,  t.  vnx,  p.  175, 2.*  ed.) 

*  «D^esta  maneira  elles  prestam  &  Universidade  de  Paris  nm  detestavel  ser- 
vilo, de  a  rìdicularìsar  aos  olhos  da  Europa,  porque  é  j&  proverbiai  que  em  Paris 
instrue-se  a  moeidade  para  nSo  saber  cousa  alguma,  a  nSo  ser  dizer  dislates  com 
inesgotavel  loquacidade.»  (Apud  Quicherat,  BUtoire  du  Collège  de  SaxnU'Bairbe^ 
t.  ly  p.  118. 


ESTATUTOS  MANUEUNOS 

Iato  nSo  BerSo  amores? 
Hontem  quiz  yìr  e  n&o  pude. 
Topei  alli  com  mestre  Gii, 
E  com  Lnìz  Mendes,  assi 
Que  praticàmos  alli 
0  Leste  e  o  Oesie,  e  o  Brazil, 
E  là  Ihe  dei  raz&o  de  mi. 
Este  mal  he  jà  de  dias  ? 

Clebigo  :    H07  bay  diez  que  asi  estó. 

Tobbsb:     a  que  horas  vob  tomo? 

Clebigo:    Alli  à  las  ayemarias. 
Y  de  maflana  comenzó. 

ToBBES  :     Dez  dias  de  manbS  cedo, 

Estava  Saturno  em  AriéB . . . 
Doem-vos  bb  pontas  dos  pés? 

Olebioo  :    Ay  mezquino,  que  no  puedo 
Decir  mi  mal  de  que  es  ! 

Tobbsb:     Biaexto  he  0  anno  agora, 
Em  Pìscìb  estava  Jupiter, 
Saturno  hade  desfazer 
Quanto  natura  melhora  : 
Bem  ha  aqui  que  guarecer. 
.  Tambem  em  Pìbcìs  a  lua, 
IsBO  foi  em  quartafeira; 
Mercurio  &  hori^  primeira  : 
K&o  vejo  cousa  nenbua 
Pera  febre  verdadeira. 

E  tambem  d^cBte  ajuntamento 
Dos  planetas  d*eBta  èra. . . 
NSo  Bei. . .  nSo  sei. . .  mas  per  mera 
Estrologia. . .  nSo  sei,  en  sento 
NSo  sei  que  he,  nem  que  era. 
Mas  bade  saber  quem  curar 
Os  pasBOB  que  dà  bua  estrella, 
E  hade  Bangrar  por  ella, 
E  hade  saber  julgar 
Ab  aguas  n'uma  panella. 

E  hade  saber  proporfòes 
No  pulso  se  he  ternario. 
Se  altera,  se  he  binario. 

Mostrae  c&  ora,  e  veremos 
Este  polso  que  nos  diz. 
Oys?  qu'altera;  ora  chis, 


317 


318  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADB  DE  GOIMBRA 

Que  antes  que  nos  casemoB 
Haverà  outro  jtiiz. 
Iato  procede  do  ba^o, 
Bem  0  moBtram  essas  corea. 
Tendes  tób  nas  costaa  dores? 


NSo  coma  senSo  lentilhas, 
Si,  ou  abobora  cosida, 
Si',  e  assi  Deos  Ihe  dar&  yida. 
Si,  e  dem-lhe  caldo  d*ervilhafl, 
Si,  que  està  febre  he  panda. 

Agua  cosida  Ihe  dareis 
Com  avenca. . .  si,  entSo 
Amenhan  Ihe  tirarlo 
Algum  sangue. . .  si,  entendeis? 
Si. . .  entao. . .  si,  logo  he  sSo. 
Porém,  a  fallar  verdade. 
Segando  seu  pulso  est&, 
£  segando  os  dias  que  ha, 
E  segando  a  viscosidade, 
E  segando  ea  sinto  cà, 
E  segnando  està  o  Zodiaco, 
E  segando  està  retrogrado 
Jupiter,  confessado 
Ha  mister,  qae  està  mai  fraco, 
Si. . .  si. . .  si,  bem  trabalhado.^ 


G-il  Vicente  caracterisa  admiravelmente  o  estado  da  Medicina  as- 
trologica antes  da  renovaySo  dos  estudos  pela  valgarìsajSo  dos  livroB 
de  Hippocrates;  com  urna  gra9a  molieresca  envolve  tambem  na  mesma 
far9a  Mestre  Filippe,  porventura  esse  boticario  de  Sevilha,  que  depois 
de  se  tornar  famigerado  no  jogo  do  xadrez,  veiu  &  córte  de  Lisboa 
apresentar  o  seu  novo  invento  da  observa(!Lo  das  longitudes. 

Por  1519  apresentou-se  em  Lisboa  um  castelhano,  Filippo  Gkd- 
Ihem,  muito  palavroso  e  arrotando  um  saber  excepcional  de  Logica, 


1  Obraa  de  Gii  Yicente,  t.  in,  p.  317.  No  Auto  dos  Fyticoa  dllade  a  nm  outro 
medico  do  rei  D.  Manuel,  mestre  Nicolào,  que  apparece  em  1515  corno  formando 
parte  do  jury  que  examinou  o  boticario  Diogo  Yelho.  (Conde  de  Ficalho,  Oardok 
da  Otta  e  0  seu  tempo,  p.  310)  : 

B  qnam  Uto  n&o  soab«r 
Vàie  beber  dMaao  mesmo. 
B  meitn  Nieoldo  qner 
*  B  outrcM  eorar  a  esmo. 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  319 

combinando  os  conhecimentos  da  Mathematica  com  a  arte  de  trovar, 
com  que  se  &zia  admirar  na  córte;  vinha  oflferecer  a  D.  Manuel  um 
invento  sea,  a  Arte  de  Leste  a  Oeate,  para  a  qual  navega9So  possuia 
um  astrolabio  de  tornar  o  sol  a  qualquer  bora.  0  rei  mandou  que  o  ma- 
thematico  D.  Francisco  de  Mello  desse  parecer  sobre  o  invento,  e  diante 
da  conclusao  favoravel  concedeu  ao  castelhano  urna  ten9a  de  cem  mil 
réis  com  habito  e  a  corretagem  da  Casa  da  India.  É  provavel  que  a 
Arte  de  Leste  a  Oeste  fosse  dìscutida  por  outros  espiritos  mais  praticos, 
comò  aconteceu  com  o  algarvio  SimSo  Femandes,  que  provou  a  falsi- 
dade  do  systema  em  1519;  Filippo  Guilhem  fugiu  de  Lisboa,  sondo 
preso  em  Aldeia  Gallega  por  ordem  do  monarcha.  Gii  Vicente  nSo  se 
esqueceu  de  tirar  o  partido  d'està  comica  situa9So: 

A  muchos  hizo  espantar 
Vuesa  pròspera  fortuna, 
Pues  nunca  vistes  la  mar 
Ni  arroyo  ni  laguna, 
Supistes  muy  bien  pescar. . . 
Ansi  que  por  està  via 
Ea  de  los  sabios  el  cabo, 
Que  sin  ver  astrolomia 
£1  toma  el  sol  por  el  rabo 
£n  qualquiera  bora  del  dia. 
Bespo^^eron  ai  contrario, 
Diciendo:  No  esverdad; 
Porqne  dende  cbica  edad 
No  fue  sino  boticario, 
Hasta  ver  està  ciudad.^ 

Nas  grandes  navega93e8  do  seculo  xvi,  o  phenomeno  recentemente 


1  Obnu,  t.  in,  p.  377.  Na  Historia  geral  do  Brazil,  de  Yamhagen,  1. 1,  p.  459, 
vem  mais  noticias  sobre  Filippe  Guilhem,  por  onde  se  infere  que  ficou  ao  8eryi90 
de  Portugal  :  «Foi  primeiro,  em  1527,  empregado  na  Casa  da  India.  Em  1538  pas- 
sou.^o  Brazil  com  Vasco  Femandes.  £m  1551  partiu  para  a  Bahia;  ahi  perdeu  a 
mulher  e  um  filho  que  tinha,  e  foi  com  os  tres  filhos  que  Ihe  ficaram  exercer  em 
Porto  Seguro  um  emprego  de  fazenda.  Com  as  novas  de  curo  que  ahi  teve  enthu- 
siasmou-se,  e  escreveu  a  Thomé  de  Scusa  inculcando-se  para  a  empreza.  Chegou 
a  ser  para  ella  escolhido,  porém  adoeceu  e  voltou  para  a  Bahia,  onde,  quando  me- 
Ihorou,  foi  encarregado  da  abertura  do  caminho  da  cidade  para  a  Bibeira,  etc. 
Voltou  depois  a  Porto  Seguro  corno  Provedor,  e  àinda  ali  vivia  aos  12  de  mar^o 
de  1561,  com  74  annos  de  edade,  pois  se  conserva  uma  carta  que  entSo  escreveU) 
em  que  de  novo  reconmiendava  a  perseverane  nas  descobertas  das  minas,  etc. 
£m  1551  havia  side  feito  Cavalleiro  de  Christo,  com  a  ten9a  annual  de  50  jOOO  rs.» 


320  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

conliecido  da  yarìa(!Lo  da  agulha  preoocupou  os  pilotoB  e  cosmogra- 
phosy  qne  procuravam  por  ella  determinar  a  longitade  geograpbica. 
Formavam  taboas  de  declinaySo  da  agulha  magnetica  para  deduzirem 
urna  Arte  de  Leste  e  Oeste,  ou  um  principio  scientifico  para  a  nave- 
gajHo;  era  urna  especie  de  monomania.  Ao  fallar  de  FemSo  de  Maga- 
IhSes,  0  chronista  Barros  allude  a  està  vesania  commum  :  tsempre  an- 
dava com  Pilotosy  Cartas  de  marcar,  e  altura  de  Leste,  Oeste^  maU' 
ria  qua  tem  lang^do  a  perder  mais  portuguezes  ignorantes,  do  que  sSo 
ganhados  os  doutos  por  ella,  pois  ainda  nSo  vimos  algum  que  o  po- 
zesse  em  effeito.»^  Este  juizo  de  Barros  mostra-nos  corno  o  problema 
da  determina^So  da  longitude  no  mar,  conhecido  com  o  nome  vulgar 
de  ponto  jixo  e  navegagào  Leste  Oeste,  havia  de  encontrar  na  cdrte  de 
D.  Manuel  um  interesse  tal  que  seduzisse  a  imaginagSo  de  aventurei- 
ros  e  utopistas,  corno  o  castelbano  Filippe  Guilhem. 

Ao  mathematico  D.  Francisco  de  Hello,  recem-chegado  dos  es- 
tudos  de  Paris,  onde  frequentara  a  expensas  de  D.  Manuel,  que  deu 
opiniSo  sobre  a  Arte  de  Leste  a  Oeste,  joga  tambem  Gii  Vicenté  um 
acerado  epigramma: 

£  se  Francisco  de  Mello 
*    Que  sabe  sciencia  avendo, 
Diz  qne  o  Céo  he  redondo, 
E  0  Sol  sobre  amajgello; 
Diz  yerdade,  nSo  lh*o  ascondo. 
Qae  se  o  Céo  fora  qnadrado 
NSo  fora  redondo,  senhor. 
E  se  e  sol  fora  azulado 
D*azul  fdra  sua  cor.* 


1  Decada  t,  livro  8. 

*  Obras  de  Gii  Yicente,  1. 1,  p.  151.  Transcrevemos  da  Memoria  de  Ribeiro 
dos  SantOB  sobre  D.  Francisco  de  Mello,  os  documentos  por  onde  ee  ve  que  fre- 
quentara 08  estudos  de  Paris  entre  1514  e  1519.  Eis  o  attestado  do  bedel  da  Uni- 
verndade  de  Paris  icerea  da  sua  frequencia,  para  pastificar  o  recibo  da  peivBÌU>: 
«Ego  Petrus  meresse  Bedellus  facultatie  Artium  venerande  nationis  francie  pari- 
sias.  Certtfioo  omnibus  et  singulis  quibus  interest,  aut  interesse  potest  honorandum 
et  nobilem  dominum  magistrum  Franciscum  de  Mello  in  artibus  liberalibus  ma- 
gistrum  continuum  fuisse  ac  presenti  esse  in  parìsiensi  hac  Universitate  Scholas- 
ticum.  In  cujus  rei  testimonium  signum  meum,  etc.  Die  2.  Julii  1514. — P.  me- 
resse.» Em  seguida  vem  o  recibo:  «£u  Francisco  de  Mello  I^dalgo  da  Casa  del 
Rei  Nesso  Senhor,  Mestre  em  Artes,  e  Estndante  ao  presente  de  Parìa  Confesso 
haver  recebido  de  Silvestre  Nunes,  Criado  e  Feitor  de  sua  Alteza  em  Frandes  a 
somma  de  38^160  rs.  moeda  de  Portugal,  qne  se  monta  na  minha  moradia  e  ce- 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  321 

Em  Paris,  D.  Francisco  de  Hello  frequentara  mathematica  com 
o  celebre  medico  Pierre  Brissot,  que  em  1514  fòra  admittido  comò 
lente  na  Facnldade  de  Medicina,  onde  luctara  para  introduzir  as  dou- 
trinas  de  Hippocrates  em  sabstituÌ9So  das  doutrinas  dos  Arabes.  Pierre 
Brissot  ensinara  philosophia  nos  dez  annos  anterìores,  sondo  no  ultimo 
anno  da  sua  regencia,  que  D.  Francisco  de  Mollo  se  graduou  Mestre 
em  Artes.  Quando  Brissot  se  achou  em  conflicto  com  a  Universidade 
de  Paris,  por  causa  do  seu  hellenismo,  resolveu  viajar,  para  adquirir 
conhecimentos  em  Botanica,  e  veiu  para  Portugal,  demorando-se  em 
Evora,  onde  teve  outro  conflicto  com  o  medico  do  rei  sobre  a  questuo 
se  a  sangrìa  devia  em  uma  pleuresia  effectuar-se  do  lado  affectado  se 
do  contrario.  0  medico  francez  morreu  em  Evora  em  1529.  ^  D.  Fran- 


vada  do  presente  anno  de  1514  da  qaal  me  tinha  feito  mercè  por  tres  annos  El  Bei 
NoBSO  Senhor  dos  quaes  este  he  o  prìmeiro  que  se  comefou  ho  Janeiro  passado 
derradeiramente  da  dita  èra  corno  no  alvara  da  dita  mercè  se  expressa  a  qaal  me 
he  assignada  na  Feitoria  de  Frandis  e  por  ser  isso  verdade  e  descarrego  do  dito 
Feitor  Ihe  fiz  està  segunda  quitan^a  feita  e  assignada  de  minha  mSo  em  Pariz  o 
tefceiro  de  Julho  de  1514. —  Francisco  de  Mello.»  {Corpo  chron.,  P.  i,  Ma^.  ziv, 
Doc.  66.)  A  gra^a  règia,  foi  prorogada  nos  annqs  de  1517  e  1518;  eis  a  copia  do 
alvarà  que  a  prorogou  pelos  annos  de  1519  e  1520^ 

«Nos  £1  Rei,  etc.  Mandamos  a  vós  Francisco  Pereira  nosso  Feitor  em  Frandes 
que  pagueis  a  Francisco  de  Mallo  fidalgo  da  nossa  Casa,  filho  de  Manuel  de  Mello 
sua  moradia  e  cevada  por  tempo  de  dous  annos  que  se  come^aram  por  este  Janeiro 
que  ora  passou  d  està  èra  presente  de  1519  e  acabardm  por  Dezembro  de  1520  da 
qual  Ihe  fazemos  merece  pera  sua  mantenga  no  estudo  e  monta-se-lhe  por  anno 
quarenta  e  sete  mil  e  trezentos  e  setenta  réis  a  razSo  de  tres  mil  e  quatro  centos 
reis  de  moradia  por  mez,  e  alqueire  e  meio  de  Cevada  por  dia  segundo  yimos  por 
CertidSo  de  Bras  da  Costa  EscrivILo  de  nossa  Cosinha  em  que  dava  sua  fee  que 
ficava  posta  verba  comò  havia  de  haver  o  dito  pagamento,  etc.  Feito  em  Almeirim, 
a  11  de  Fevereiro  de  1519.»  (Corp,  chron.j  P.  i,  Ma9.  24,  doc. 28. —  Mem,  de  Litt., 
t.  VII,  p.  238.) 

1  NouveUe  Biographie  generale,  de  Didot,  t.  ▼n,p.  443.  Os  homens  de  sciencia, 
pela  curìosidade  e  investigasse  eram  no  seculo  xvi  agitados  por  um  certo  cosmo- 
politismo. Uns  velo  &  India  estudar  novas  plantas,  comò  o  nosso  Dr.  Garda  d'Orta, 
outros  percorrem  as  Escholas  da  Europa  à  procura  dos  segredos  profissionaes. 
Paracelso,  na  sua  Ghrande  Cirurgia^  falla  em  Portugal  comò  um  dos  paizes  que 
visitara  :  «Tendo  viajado  pela  Franca,  Allemanha  e  Italia,  e  visitado  as  Univer- 
sidades  para  saber  os  seus  preceitos  e  fimdamentos,  pareceu-me  todavia  que  me 
nSo  era  plausivel  subordinar-me  às  suas  opinioes  por  muitas  causas  :  mas  tendo 
caminhado  mais  alèm,  e  atravessado  a  Hespanha,  Portugal^  Inglaterra,  Dinamarca, 
Polonia,  Lithuania,  Prussia,  Hungria,  Transjlvania,  quasi  todas  as  nafoes  da 
Europa,  eu  diligentemente  procurei  e  interroguei  nao  sómente  os  Medicos,  mas 
tambem  os  Cirurgioes,  mestres  de  Estufas,  mulheres,  magicos,  alchjmistas,  nos 

HIST.  UM.  21 


322  HISTORIA  DA  UNIYERSIDABE  DE  GOIMBRA 

CÌ8C0  de  Mello,  logo  que  chegou  a  Portagal  acboa-se  envolvido  em  ne- 
gocia93es  politicas,  qae  o  embarafaram  de  se  entregar  à  coltura  da 
Mathematica;  corno  bomenagem  de  gratidfto  dedicou  ao  rei  D.  Manuel 
um  Commentario  em  latim  sobre  a  Theoria  da  Optica  e  Pertpectìva, 
attribuida  a  Euclidea,  ^  que  sob  o  titulo  de  Specularia  e  Perspectwa 
(Optica  e  Catoptrica)  apparecera  em  Veneza  em  1508  na  terceira  edlQSo 
do  mathematico  grego,  pela  prìmeira  vez  traduzida  em  latim  por  Bar- 
tholomeu  Zamberto.  D.  Francisco  de  Mello  considerava  os  commen- 
tarios  de  Tbeon  ao  tratado  da  Optica,  que  Zamberto  Ihe  additara,  comò 
multo  incorrectosy  e  considerava  a  ommissSo  do  tratado  nas  edÌ93es 
de  1509  de  Lucas  de  Borgo,  e  de  1516  de  Lefòvre  d'Étaples,  comò 
um  desprezo  dos  sabios  do  seu  tempo  contra  o  qual  reagirà  seu  mostre 
Pierre  Brissot.  Allude  aos  Commentarios  de  Brissot,  que  andavam  em 
copias  nas  mSos  dos  seus  dìscipulos,  e  lamenta  que  apenas  possua  al- 
guns  inintelligiveis  fragmentos,  de  que  mal  se  pode  aproveitar  para  re- 
construir  o  seu  novo  Commentario.  Hoefer,  na  Bistoria  da  Phynca, 
caracterisa  assim  a  obra  attribuida  a  Euclides:  e  A  Optica  nSo  é  mais 
que  uma  reuniSo  de  Tbeoremas  de  perspectiva.  Seg^do  Kepler,  o 
auctor  d'este  tratado,  na  sua  qualida^le  de  pjthagorico,  procurava  de- 
monstrar,  pela  perspectiva. dos  corpos  celestes,  o  verdadeiro  systema 
do  mundo  tal  comò  o  havia  ensinado  Pythagoras  antes  de  Copernici. — 
Na  Catoptrica,  Euclides  ensina  que  o  raio  visual  é  quebrado,  refra- 
ctado  pela  agua  e  pelo  ar. —  Distingue  a  refracg&o  (diaclasis)  da  reflexSo 
(anaclasis)  em  que,  na  prìmeira  os  angulos  dos  raios  refractados  ou 
emergentes  nfto  s2Lo  eguaes  (excepto  para  os  raios  perpendiculares)  aos 
angulos  dos  raios  incidentes.  Explica  pela  refrac^So  que  os  raios  expe- 
rìmentam  no  ar,  o  engrandecimento  do  sol  e  da  lua  no  horìzonte.  Mas 
nSo  diz  positivamente  que  pelo  effeito  da  refrac9So  os  astros  nSo  oc- 
cupam  exactamente  (excepto  no  zenith)  o  legar  em  que  os  vemos.»  * 
D.  Francisco  de  Mello,  comò  discipulo  do  medico  Brissot,  conhecia  o 
apparelho  da  visflo,  seguindo  n'este  ponto  os  mathematicos  gregos 


mosteiros,  nas  cassa  nobres  e  ignobeis,  quaes  eram  os  melhores  e  os  mais  excel* 
lentes  remedios  que  usayam  e  tinham  usado  para  curar  as  doen^as.»  (Ap.  Darem- 
berg,  HUtoirt  dea  Sciences  médicales,  1. 1,  p.  368.) 

1  Pelo  titulo  da  obra  :  In  JEktdidia  Magarensis  Philosophi  cUque  Mathemaiiei 
praestanHssimi  Perspectiva^  Commentario^  conHece-se  que  D.  Francisco  de  Mello 
seguiti  o  erro  do  seculo  zvi,  confondindo  o  mathematico  alezandrino  com  o  fandador 
da  eschola  philosophìca  de  Megara,  que  o  antecedeu  um  seculo.  Este  erro  fora 
propagado  por  Boccio,  desde  o  seculo  v  da  nossa  èra. 

*  Hoefer,  Histoire  de  la  Physique^  p.  170. 


ESTATUTOS  HANUEUNOS  323 

Heliodoro  de  Larìssa  e  Ptolomeu.  «E  na  Optica  de  HelìodorOi  que  se 
acha  pela  primeira  vez  expoato,  que  os  raios  luminosos  que  determi- 
nam  a  visSo  formam  um  cóne  cujo  vertice  se  apoia  na  pupilla  do  olho 
emquanto  a  base  abrange  a  superficie  do  objecto  apercebido.  Tam- 
bem  ahi  se  acha  urna  definÌ9So  exacta  do  angulo  visual,  variavel  de 
graudeza  segundo  vemos  os  objectos  maiores  ou  mais  pequenos.»  ^  O 
tratado  de  Optica  attribuido  a  Ptolomeu^  traduzido  para  latim  de  urna 
versSo  arabe,  traz  pela  primeira  vez  a  exposÌ9fio  minuciosa  dos  prìn- 
cipaes  phenomenos  da  refracfSo,  corno  a  passagem  da  luz  atravez  de 
oorpos  transparentes  de  densidade  differente.  Foi  preciso  o  desenvolvi- 
mento  da  Trignometria,  para  que  Descartes  fixasse  a  lei  d'este  phe- 
nomeno  na  constancia  de  relsL^o  dos  senus  de  incidencia  e  de  refracySo. 
D.  Franoisco  de  Hello  emprehendeu  um  ouiro  commentario  ao 
livro  de  Archimedes,  Dos  corpos  fltictuante$  aóbre  a  agua,  que  entSo 
ainda  estava  inedito.  Archimedes,  que  levara  a  Geometria  ao  seu  ma- 
xime desenvoivimento,  sentiu  a  parte  incompleta  da  Mathematica,  & 
qual  faltava  ainda  uma  Mechanica.  As  rela93es  entro  a  Geometria  e  a 
Mechanica  fìcaram  assentes  pela  sua  Theorìa  dos  centros  de  gravidade 
ou  Isorropica.  Pelo  conjuncto  dos  trabalhos  de  Archimedes,  diz  Comte: 
tSou  levado  a  julgar  por  elles  os  esforgos  de  Archimedes  para  comegar 
a  preencher  a  principal  lacuna  do  systema  mathematico,  fondando  a 
Theoria  abstracta  do  equilibrio.  Mas,  privado  de  teda  a  racionalidade 
positiva  no  que  respeita  o  movimento,  um  tal  trabalho  permanecia 
desprovido  da  sua  origem  philosophica;  de  sorte  que  nSo  comportava 
senfto  successos  inductivos,  nos  quaes  o  incomparavel  geometra  mani- 
festou  sob  um  novo  aspecto  a  sua  plenitude  montai.  O  seu  principio 
da  alavanca  nSlo  podia  satisfazer  senfto  a  casos  parciaes,  e  a  sua  induc- 
9&0  hydrostatica  nUo  consegaia  sen2o  o  suscitar  uma  nova  ordem  de 
questSes  geometricas  em  rela9So  à  situa9&o  de  equilibrio  de  um  corpo 
fluctuante.  Comtudo,  uma  tal  tentativa  bastava  por  si  para  fazer  con- 
tinuamente  avultar  a  lacuna  jà  conhecida  do  systema  maihematico,  de 
modo  a  melhor  assignalar  as  rela93es  directas  d'este  complemento  ne- 
cessario com  0  conjuncto  da  philosophia  naturai.»  '  So  depois  que  Ke- 
pler  deduziu  a  conBtituÌ93o  final  da  geometria  celeste,  é  que  Galileo^ 
completado  por  Huyghens  pode  fundar  a  Mechanica  racional,  e  por 
ultimo  Newton  a  Mechanica  celeste.  '  Como  se  ve,  D.  Francisco  de 


1  Hoefer,  Histoire  de  la  Physique,  p.  170. 
'  SyaÙmt  de  PóUUqut  poaitìvej  t.  ni,  p.  319. 
3  Ibidem,  p.  565. 

21* 


324  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  COIBIBRA 

Mello  tentando  a  explica9[lo  d'estea  dois  tratados  de  Archimedea  (Peri 
qnpedon  isorropica,  e  Peri  ton  udatì  ephistamenon)  pouco  Be  podia 
elevar  acima  dos  casos  inductivos,  mas  revela  pela  importancia  que 
Uiea  ligava  a  necessidade  de  entrar  no  dominio  da  Medianica.  ^  £  pena 
qne  estes  trabalhos  permane^am  ineditos;  publicadoB  com  um  estndo 
critico-historicOy  relacionariam  Portngal  de  um  modo  digno  com  o  mo- 
vimento intellectnal  da  Renascen9a.  D.  Francisco  de  Mello  tomaratam- 
bem  o  gr&o  de  Licenciado  em  Theologia;  nomeado  para  o  conselho  de 
D.  JoSo  Ili  em  1529,  foi  Beitor  da  Universidade  de  Lisboa  de  1531 
a  1533,  e  em  1534  eleito  bispo  de  GSa,  fallecendo  em  Evora,  em  27 
de  abril  de  1536  com  quarenta  e  seis  annos  de  edade.  NSo  chegou  a 
cooperar  na  grande  reforma  dos  estudos  come9ada  em  1537;  assim 
comò  o  oonhecimento  da  lingua  grega  o  approximara  do  estudo  dos 
mathematìcoB  alexandrinos,  outros  espiritos  se  achavam  egualmente 
fortalecidos  para  incitarem  D.  JoSo  ili  a  uma  remodelajSo  de  ensino 
publico. 

O  eonhecimento  da  lingua  grega,  que  tanto  actuou  na  transforma9So 
dos  estudos  na  Renascen9a,  achava-se  no  come90  do  seculo  xvi  forte- 
mente radicado  em  Portugal.  Escreve  o  bibliophilo  Ribeiro  dos  Santos: 
cEntre  outros  muitos  se  esmeraram  JoSo  Rodrigues  de  Sa  e  Menezes, 
que  commentava  Homero  e  Pindaro;  Francisco  de  Sa  de  Miranda,  que 
traduziu  o  mesmo  Homero;  Antonio  Ferreira,  que  lia  e  imitava  a  Ana- 
ereonte,  a  Moacho  e  a  Theocrito;  Ambrozio  Nunes,  que  esdarecia  os 
Aphorismos  de  Hipocrates;  Francisco  Giraldes  e  Jeronymo  Lopes,  que 
liam  pelos  originaes  de  Galeno;  JoSo  Rodrigues  de  Castello  Branco, 


1  Os  tratados  attrìbuidos  a  Euclidea  tem  nos  ms.  de  D.  Frandsco  de  Mello 
08  tituloB  :  Perspectiva  Euclidis,  cum  DrancUci  de  Mdlo  CommentariiSf  e  In  EucU' 
dia  MegareimSy  Speculariam  Commentaria.  0  liyro  de  Archimedea,  tambem  corno 
OS  outroa  doia  tratados,  dedicado  ao  rei  D.  Manuel  (1521)  tem  por  titulo  :  Archi- 
ta edis,  De  inàdentibus  in  humidis  cum  Francisci  de  Metto  Commentariis,  Sobre  a 
pr  ovenieiicia  d^eatea  manuscriptoa,  eacreve  Ribeiro  doa  Santoa  :  «que  eziatem  hoje 
na  real  Bibliotheca  de  Lisboa,  que  foram  da  magnifica  doa^Sò  que  Ihea  fez  o  mnito 
douto  e  pio  Biapo  de  Beja. ..  Arcebiapo  de  Evora,  D.  Fr.  Manuel  do  Cenaculo 
Vili  aaboaa.»  Mem.  de  Liti,  port,  t.  viii,  p.  174  (2.*  ed.)  Em  ontro  legar  accreacenta: 
«  D'eatea  tratadoa  teve  um  exemplar  o  Coamographo-mór  d'eatea  reinoa  Luiz  SerrSo 
Pimentel,  Lente  de  Mathematica,  com  primoroaaa  illumina^oea,  de  que  depoia  fez 
prezente  ao  Marquez  de  Liche,  quando  foi  yiaitar  a  aua  Livraria,  comò  refere  o 
erudito  Abbade  de  Sever.  0  exemplar  que  d*ellea  tem  a  real  Bibliotheca  de  Liaboa 
he  eacripto  em  foi.  em  bom  caracter,  que  parece  aer  mais  moderno  e  doa  fina  do 
seculo  xYi,  principioa  do  xyn,  e  com  figoras  geometricas  naa  Demonslrac^s.» 
Menu  de  lÀU,^  t.  vu,'p.  248. 


ESTATUTOS  MÀNUELINOS  325 

que  illastrava  o  texto  grego  do  Dioscorides;  Jorge  Coelho,  |t  quem 
devemos  a  versSo  latina  da  Densa  Sjria,  de  Luciano;  D.  Fr.  Antonio 
de  Sousa,  que  trasladava  o  philosopho  Epitecto;  Antonio  Luiz,  que 
nas  aulas  explicava  Aristoteles  e  Oaleno,  pelo  texto  grego,  e  traduzia 
A  este  ultimo,  e  os  commentarios  de  S.  CyrUlo  a  Isaias;  etc.»  ^  Tanto 
em  Portugal,  corno  em  Fran9a,  era  d'entro  os  humanistas  que  no  se- 
culo  XVI  se  destacavam  os  mathematicos,  os  astronomos,  e  os  medicos, 
OS  quaes  pelo  conhecimento  do  grego  achayam  as  condijSes  para  rea- 
tarem  a  corrente  scientifica  interrompida  depois  dos  trabalhos  funda- 
mentaes  de  Archimedes,  de  Hipparco  e  de  Hippocrates.  Por  essa  di- 
rec9So  nova  conseguiiam  actuar  nas  Universidades  fazendo-as  transigir 
com  0  espirito  da  Renascen9a.  ' 

Vives,  que  recebeu  as  suas  primeiras  lÌ93es  de  Jeronymo  Amigue- 
tus,  professor  da  Universidade  de  Valencia,  reagirà  desesperadamente 
contra  a  renovaySo  dos  estudos  philologicos  em  Hespanha,  iniciada  por 
Nebrixa  quando  regreseara  da  Italia;  sob  a  influencia  do  seu  antigo 
mostre,  Vives  atacou  vivamente  a  Nebrixa,  vindo  porém  mais  tarde  a 
reconhecer  a  direcySo  e  o  espirito  critico  da  Renascen9a,  e  a  prestar- 
Ibe  urna  piena  tomenagem,  sondo  um  dos  seus  epigones. 

Em  Paris,  quando  foi  completar  os  seus  estudos  na  celebre  Uni- 
versidade, achou  tambem  por  professores  de  philosophia,  e  adscriptos 
ao  velho  methodo  dialectìco,  a  JoSo  Dullard  e  Gaspar  Lax  (1505-1512); 
semente  depois  que  chegou  a  Louvain  e  recebeu  a  direcfSo  inteÙe- 
ctual  de  Erasmo  é  que  se  tomou  um  dos  grandes  corypheus  da  Re- 
na8cen9a.  Quando  Vives  tomou  a  Paris,  em  1521,  depois  da  sua  cri- 
tica acerba  In  Paeudodicdecticos,  os  mestres  francezes  nSo  se  melin- 
draram  com  elle,  e  declararam-lhe  eque  a  direc9So  dos  espiritos  era 
outra  actualmente,  e  nSo  a  do  tempo  em  que  ali  estudara»,  comò  elle 
relata  em  uma  carta  a  Erasmo. 

Tambem  Pedro  Ramus,  o  grande  reformador  da  Instruc9Sk)  supe- 
rior,  na  Renascen9a,  descreve  o  estado  da  Universidade,  que  se  con- 
servava hostil  ao  movimento  pedagogico:  e  Quando  vim  para  Paris  cahi 


1  Mem.  de  LiUeratura^  t.  vin  p.  78,  (2.*  ed.) 

'  Escreve  Qaicherat,  na  HUicirt  du  CoUége  de  Sainte-Barbe^  1. 1,  p.  150:  «A 
Universidade  de  Parìa  resentiu-se  sob  Luiz  xi  dos  primeiros  impulsos  da  Renas- 
'Cen9a;  mas  nSo  os  ezperimentou  directamente  senio  no  meio  do  reinado  de  Fran- 
-dsoo  I.  Foi-lhe  preciso  mais  de  sessenta  annos  para  passar  do  espirìto  da  Edade 
mèdia  para  o  espirìto  moderno,  menos  plastica  n'isto  de  que  as  escholas  da  Alle- 
manhai  que  desde  o  come90  do  seculo  xvi  estavam  j&  convertidas.» 


326  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DB  COIHBRA 

nas  Bubtilezas  dos  sophistas,  e  ensinaram-me  as  artes  liberaes  por  pei^ 
guntas  e  argomentagSes. . .  Depois  que  fui  nomeado  e  gradoado  mos- 
tre em  ArteSy  o  meu  espirilo  nfto  se  achava  satisfeito,  e  no  meu  fóro 
intimo  jalguei  que  estas  disputas  nSo  me  haviam  trazido  mais  do  que 
a  perda  de  tempo.»  *  Nos  Avertissementa  au  Sai  sur  la  reformation  de 
rUhivergité  de  Paris,  RamuSy  condemnando  o  excesso  de  symbolismo 
nas  cerimonias  academicas,  que  pelas  suas  despezas  se  tomavam  urna 
receita  dos  lentes  e  se  antepunham  à  disciplina  scientifica,  caracterisa 
0  estado  deploravel  em  que  se  achava  o  ensino  nas  Faculdades:  o  en- 
sino  da  Philosophia  era  altercatorio  e  questionario;  o  do  Direito  era  mais 
canonico  do  que  civil;  o  da  Medicina,  sem  dissecySes,  mas  com  eter- 
nas  disputas,  so  se  adquiria  fora  das  escholas,  matando  os  doentes: 
(cD'où  se  dicton:  de  nouveau  médecin  cimmetière  boussuii)^  a  Theologia, 
embrulhada  em  objecfSes  e  refuta95es,  nfto  se  exercia  sobre  os  textoft 
hebreus  do  Velbo  Testamento,  nem  sobre  os  gregos  dos  Evangelhos. 
Em  summa,  o  espirito  e  fórma  de  ensino  na  Universidade  de  Paris 
synthetisou-os  Ramus  na  phrase  mordente  de  urna  ^contentieuse  etpe- 
rilleuse  altercatìon  de  precy^tes,9 

André  FalcSo  de  Resende,  em  uma  Satyra  a  iKogo  Beruardes, 
lonvando  a  vida  religiosa,  tra9a  em  alguns  tercetos  o  quadro  da  educa- 
9S0  universitaria  portugueza,  depois  das  grandes  descobertas  maritimas^ 
censurando-a  pelo  seu  destino  exdusivamente  pratico: 

Nasce  o  filho  primeiro  e  0  segundo, 
Nasce  0  terceiro  e  quarto;  nasce  0  quinto: 
A  Deos  nao  dà  nenhum  ;  todos  ao  mundo  ; 

Porque  dos  bens  da  terra  b6  faminto, 
Quanto  mais  d*elles  tem,  mais  se  amofina, 
Pois  nio  gosou  OS  vazos  de  Coryntho. 

E  assim  mandar  ordcna  um  filho  à  China, 
Instructo  e  chatim  jà  na  mercancia, 
Nos  resgatés  das  ilhas,  Guiné  e  Mina; 

Inhabil  na  christà  Philosophia, 
Porque  o  pae  cego  o  tendo  por  affronta, 
Diz  qne  qualquer  fradinho  isto  sabia; 


1  BemofUranee  au  CoMeU  prive.  Apud  Compayré,  Histoire  eriUque  des  Do- 
^Mnes  de  VÉàttoaHon  en  Franee,  1 1,  p.  188. 


ESTATUTOS  MANUELINOS  327 


« 


Mas  contador  ezperto  em  caiza  e  conta, 
Sabe  comprar  barato  e  vender  caro, 
Que  para  sua  cobÌ9a  iato  é  o  que  monta. 

E  jà  se  embarca,  e  é  so  seu  norie  e  pharo 
Sempre  o  negro  interesse,  e  nelle  a  prda, 
Deiza  atraz  patria,  o  pae,  e  o  amìgo  caro. 

JÀ  o  mar  bravo  aos  mìmos  de  Lisboa, 
A  Vida  e  alma  antepondo  a  fazenda 
Dobrando  cabos,  climas,  chega  a  GU>a. 

Tira  seu  fato,  e  faz  taverna  e  venda; 
Trampeia,  engana,  troca,  jura,  mente, 
Como  um  buforinheiro  emfim  p5e  tenda. 

E  em  que  redobre  o  resto,  e  que  accrescente 
Sempre  ao  cabedal,  mais  se  desvela 
Por  navegar  os  mares  de  Oriente. 

Tenta  outra  vez  Neptuno,  dando  k  velia, 
Costeia  rios,  ilhas,  enseadas, 
Faz  viagem  à  China,  até  dar  nella. 

Compra  na  vernala  as  mais  prézadas 
Mercadorias;  e  as  que  traz,  vendendo, 
Nas  embarca^5es  toma  carregadas. 

Mas  co'  dinheiro  o  amor  d*elle  crescendo 
Faz  a  cobÌ9a,  que  inda  em  vSo  fonSéja 
As  medidas  Ihe  encher,  fundo  nfto  tendo. 

Enfastia  avareza  tfio  sobeja; 
A  fortuna  e  o  tempo  conjorada 
Levantam  sobre  as  ondas  m&  peleja. 

Sópra  0  tnflo  com  furia  costumada, 
Ergue  e  mistura  o  mar  com  as  areias. 
De  quanto  achando  vai,  n^  deiza  nada. 

Os  galeòes,  navios  e  n&os  cheias 
D*ouro,  de  prata,  seda,  e  gente  avara, 
Ao  fundo  V&0  do  reino  das  sereias. 

Desce,  e  perde- se  assi  a  fazenda  cara, 
E  o  afbgado  senbor  d'ella  ao  profundo, 
Que  até  o  Cocjto  negro  emfim  nSo  para. 


328  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

A  morte  d*este  avisa  o  irmSo  segando, 
Qae  a  pé  enzuto  siga,  e  nSo  do  Oceano 
Um  caminho  mais  catto  e  mais  jucando  ; 

Um  caminho  direito,  que  Ulpiano 
Scevola^  e  outros  fizeram,  e,  ainda  eseuro, 
Com  outros  o  abriu  mais  Jusiiniano. 

DSo  senten9a  final,  que  é  mais  seguro 
(Ou  seja  emfim  direito,  ou  seja  torto) 
Baldo  e  Jazào  seguir,  que  Palinuro  : 

Que  este,  no  mar,  da  gàvea  caiu  morto; 
Ess*outros  de  cadeira  em  dia  darò 
Levaram  seus  navios  a  bom  porto. 

£  por  isso  a  este  filho  o  pae  avaro 
Quer-  que  em  Leis  se  gradue,  até  ser  nellas 
Das  bulras  e  das  trampas  casa  e  amparo. 

Estuda  mais  que  Cèpola,  Cautelas 
So  de  pane  lucrando  escreve  e  trata, 
Refaz  demandas  mil  sem  refazel-as. 

Intento  sempre  a  juntar  ouro  e  prata, 
Morre  emfim  mal  e  pobre  este  trampista, 
Que  nunca  de  ser  rico  a  sède  mata. 

Ao  irm2o  terceiro  o  pae  faz  Canonista, 
Dos  falsos  ;  e  por  mais  te  honrar,  BCafoma, 
Depois  de  em  contas  ser  fino  algorista, 

A  pràtica  mandal-o  assenta  a  Roma, 
Que  as  Dtcisoe»  da  Rota  e  a  Curia  veja, 
£  fa^a  de  conlnios  grande  somma: 

E  por  manha  ou  dinheiro,  inda  que  seja 
Como  SimSo,  que  a  Gra9a  compra  e  vende, 
Trabalbe  de  acquirir  dos  bens  da  Egreja. 

E  eis  o  coitado  em  Boma,  e  eis  so  que  entende 
Em  Reservas,  Regressos,  Benuficios 
£  nelles  rico  e  visto  ser  pretende. 


A  cobi^a  do  pae,  que,  comò  tinha 
Aos  filbos  na  cabe9a  se  pegava, 
Ao  quarto  e  ao  quinto  ao  mào  firn  encaminha. 


ESTATOTOS  MANUEUNOS  329 

DÌ2  que  segata  a  vida  assim  Ihee  dava, 
Sem  vèr  o  triste,  qne  era  dar-lhes  morte 
E  quSo  mal  da  perpetua  os  guardava. 

E  aos  deus  meuores  dà  por  melhor  sorte, 
Que  a  seu  rei  soldo  e  moradia  ven^am 
Ora  na  córte,  ora  na  armada  cohorte  ; 

Mandaodo-lhe  sob  pena  de  sua  ben^am, 
Que  o  seu  despendam  so  corno  onzejieiros, 
Que  se  uma  moeda  dSo,  dez  descompensam  : 

Deixem  o  primor  d'houra  aos  cavalletros, 
Deizem  armas  e  o  ferro,  tractem  d*ouro 
Que  este  os  farà  fidalgos  verdadeiros . .   ^ 


Saidas  das  revoIu95e8  politicas  da  Edade  mèdia,  as  Universida- 
des  chegaram  a  constituir-se  corno  esboQOS  de  um  Poder  tempora!  e  es- 
piritual,  pela  maneira  corno  intervinham  nas  questSes  da  egreja  com 
a  realeza,  e  corno  resistiam  aos  arbitrios  da  soberania;  e  principalmente 
ainda  pelas  garantias  extraordinarias  com  que  se  acobertava  a  classe 
escholastìca  nas  soas  rela95e3  com  a  vida  civil.  Na  Universidade  de 
Paris  tomavase  o  juramento  ao  Preboste  da  cidade  e  à  sua  guarda  ao 
entrarem  em  func(5es;  os  burguezes  nSLo  podiam  exigir  fiadores  aos 
estudantes  pelos  alugaeres  das  casas,  e  na  sua  resistencia  centra  a  au- 
ctoridade  real,  a  Universidade  suspendia  as  lÌ95es,  vencendo  sempre 
pelo  effeito  poderoso  d'este  interdicto.  Porém  està  fórma  nova  do  Po- 
der tempora!  e  espiritual,  apesar  de  importante,  tinha  o  defeito  da  con-^ 
fascio  doapoderes,  centra  a  qual  luctava  ainda  a  Edade  mèdia;  por  isso, 
com  0  desenvolvimento  da  monarchia  absoluta,  a  Universidade  perdeu 
o  seu  individualismo,  e  ficou  reduzida  a  uma  institui^ào  paga  pelo  rei, 
por  elle  protegida  e  discricionariamente  reformada.  Diz  Cantu  :  «  Quando, 
depoÌB  de  Luiz  xi,  os  reis  se  tomaram  absolutos,  trataram  lego  de  di- 
minuir pouco.a  pouco  o  poder  temporal  que  a  Universidade  adquirira 
pela  auctoridade  da  sciencia.  Ella  mesma  deixou  de  caminhar  na  van- 
guarda  do  progresso  intellectual;  os  conhecimentos  desenvolveram-se 


1  Poesiaa  de  André  Falcio  de  Resende,  p.  294  a  297.  (Està  edi^ao  da  Im- 
prensa  da  Universidade  n2o  chegou  a  ser  terminada,  e  està  fora  do  commercio  ;  fi  - 
cou  interrompida  a  p.  480,  onde  come^avam  os  versos  em  castelhano»  Està  parta 
està  hoje  quasi  inteiramente  publicada  nos  Aulorta  portuguuu  que  escribieran  en 
cagteUano,  do  Dr.  Garcia  Perez,  p.  161  a  205.) 


330  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

fora  das  escholas;  a  Imprensa  propagou-os,  e  està  corporajSo  illustre 
acabou  por  tomar-se  impopniar.»  ^  SubordinadaB  ao  poder  real,  as  Uni- 
versidades  procuraram  o  respeito,  nSo  no  fervor  scientìfico,  mas  no 
perstigio  officiai;  a  sciencia  immobilisou-se,  agarrada  à  auctoridade  dos 
antigos  escriptores,  e  esse  circolo  de  doutrlnas  atrazadas,  sustentado 
pela  dialectica,  que  encobria  com  arte  o  pedantismo  doutoral,  veiu  a 
chamar-se  Schólastìca.  Emquanto  as  Universidades  se  fechavam  n'este 
reducto  da  auctoridade  doutrinaria,  pensadores  isolados  e  fora  da  cor- 
pora9So  foram-se  reunindo,  communicando  as  suas  observa95e8,  e  as- 
sim  nasceu  esse  movimento  scientifico  experimental  que  caracterisa  o 
faeculo  XYI.  Deu-se  n'este  phenomeno  o  mesmo  processo  que  nos  se- 
culos  xì  e  xn  determinara  a  organisa9So  das  Universidades:  em  roda 
de  certas  capacidades  agrupavam-se  espontaneamente  os  alumnos,  e 
por  està  fórma  Constantino  o  Africano  iniciou  a  funda9&o  da  Eschola 
de  Salerno,  e  Imerio  a  Eschola  de  Bolonha.  Fora  das  Universidades, 
pensadores  mais  audazes  comefam  as  suas  invest]ga98es  sobre  os  phe- 
nomenos  cosmicos  e  physicos,  reagem  centra  o  vazio  das  argumenta- 
9808  dialecticas^  e  espontaneamente  fundam  essas  gloriosas  Academias, 
que  determinaram  o  movimento  scientìfico  do  seculo  xvn,  de  Bacon  a 
Descartes,  d'onde  dimana  todo  o  progresso  intellectual  moderno.  E  no 
seculo  XVI  que  a  realeza  define  o  seu  caracter  absoluto  ;  as  Universi- 
dades, tornando-se  tambem  absolutas  no  dogmatismo  e  esclusivismo 
pedagogico,  immobilisaram-se,  findaram  0  seu  destino,  ficando  fora  da 
historia.  Como  corpora9So  vfto  atravessando  outras  épocas,  fortaleci- 
das  pelas  dota98es  do  erario,  pelas  categorias  dos  empregos,  pela  pompa 
das  cerimonias  doutoraes,  mas  0  seu  poder  espiritual  transformou-se 
em  uma  pedantocracia,  de  que  novas  fórmas  politìcas  vieram  um  dia 
a  aproveitar-se. 

Este  estado  mental  sustentado  pelas  Universidades  no  seculo  xvi, 
quando  come9ava  a  grande  renova9&o  do  criterio  humano,  synthetisa- 
se  n'aquelles  versos  do  Fausto^  em  que  Goethe  invectiva  a  inanidade 
do  saber  dialectìco:  cPhilosophia,  Jurisprudencia,  Medicina,  e  tu  tam- 
bem pobre  Theologia,  eu  vos  estudei  bastante,  com  0  suor  do  meu 
roste.  E  agora,  eis-me,  pobre  louco,  tSo  sabio  comò  de  antes  era.  Sim, 
chamam-me  mestre,  e  doutor,  e  jà  li  vSo  dez  annos,  pouco  mais  ou 
menos,  que  levo  os  meus  alumnos  pelo  nariz,  e  eu  vejo  que  nós  nada 
podemos  saber.» 


1  Historia  Universal,  xx  època,  cap.  24, 


ESTATUTOS  MANUEUNOS  33 i 

Tabula  Legentium  i 
1506 

licenciado  Diogo  Lopes,  lenta  de  Ter^a  dos  sagrados  Canonee. 

Bacharel  Gabriel  Gii,  subetitnto  da  Cadeira  de  Vespera,  w»g<u 

Doutor  Jofto  do  Bego,  lente  de  prima  de  Medicina. 

O  Bispo  D.  Martinho,  lente  de  Metaphyaica,  substituido  por  Mestre  Rodrigo,  snc- 
oedendo-lhe  depois  de  161d  : 

Frei  JoSo  Gandavo,  oa  Framengo,  até  1530. 

Mestre  Frei  Luiz  de  Baz,  lente  de  Fhilosophia  naturai,  até  1521,  em  qne  morreo. 

Fedro  Bhombo,  lente  de  Grammatica,  até  1533,  em  que  morreu. 

Doutor  Buy  Lopes,  lente  da  Cadeira  de  prima  de  Canones,  até  1510. 

Doutor  Estevio  Jorge,  lente  da  Cadeira  de  prima  de  Leu. 

Doutor  Gonzalo  Vaz  Finto,  lente  da  Cadeira  de  Vespera,  e  depois  de  prima. 

Licondado  Agostinho  Affonso,  lente  da  Cadeira  de  Ter^a  de  Leis;  provido  na  de 
V'esperà,  desistindo  em  1521,  por  ser  nomeado  Desembargador. 

Mestre  Affonso,  Doutor  por  Montpellier,  p  Doutor  da  Ilka,  lente  de  Yespera  de  Me- 
dicina, até  1517,  em  que  foi  nomeado  Fhysico-Mér. 

1506  a  1507 

Faltam  :  Frei  JoSo  Claro,  de  Yespera  de  Theologia. 

D.  Martìnho,  de  Metaphjsica. 
Mestre  Jofto  de  Magdalena. 

Mestre  Bodrigo,  lente  de  Yespera  e  substitnto  de  Fhilosophia. 
Frei  Francisco,  lente  de  Fhilosophia. 

1507  a  1508 

Mestre  Joio  Claro  (Come^ou  a  lér  em  9  de  junho  de  1508.) 

Mestre  Bodrigo. 

Mestre  Martinho,  Bispo. 

Mestre  Luiz  Yaz,  lente  de  Fhilosophia  naturai  (Come^ou  a  I6r  por  Mestre  JoSo 

Claro  em  21  de  fevereiro.) 
Frei  Francisco,  lente  de  Fhilosophia. 


1  Notai  de  Figueirda  às  Notieias  chronologieas,  not.  74,  ao  $  924.  (Irutiiuto, 
L  ziT,  p.  259.)  «Diz  mais  que  costumavam  os  bedeìs  no  principio  de  cada  um  dos 
annos  escholasticos  escrever  o  nome  de  todos  os  Lentes  d*aquelle  anno,  o  que  in- 
titulavam  Tabula  Legentium^  o  que  tambem  se  obcrervou  depois  que  a  UniTersi- 
dade  se  mudou  para  Coimbra,  mas  por  pouco  tempo,  e  o  que  fariam  oom  tal  con* 
ftis&o  que  com  difficuldade  se  pode  conhecer  o  que  queriam  dlzer,  porquanto  nem 
observavam  ordem  entro  as  faculdades,  nem  entro  as  cadeiras  de  cada  urna  d'el- 
hui,  e  ou  escreviam  semente  o  primeiro  nome  do  lente  ou  o  sobrenome,  e  que  raras 
▼ezea  Ihe  declaravam  a  cadeira  de  que  eram  lentes,  e  algumas  semente  Ih'a  no- 
meavam,  comò  v.  g.  o  Unte  de  logica.» 


332  HISTORIA  DA  UNIYERSIDÀDE  DE  COIMBRA 

1510 

Doutor  Ruy  Lopes,  lente  de  prima  dos  sagrados  Canones. 

Bacharel  Joào  Vaz,  Ter^a  de  Canones. 

Agostinho  Micas,  Philosophia  naturai  em  1510,  em  que  parece  ter  sido  creada. 

Mestre  Martinho,  Bispo,  1510,  lente  de  Metaphysica,  auaonte. 

Agostinho  HenriqueS)  licenciado  ém  Medicina,  léra  a  Cadeira  de  Logica  em  1510. 

JoS.0  MonteirOy  licenciado,  16ra  a  Cadeira  de  prima  de  Canones. 

Buy  Gon^alves  Mareschotte  doutorou-se  em  Canones  e  léa  n^esta  Cadeira  de  prima 
até  1521. 

Francisco  Femandes,  lente  de  Yespera  de  Canones,  passa  a  sua  cadeira  para  Sal- 
vador Femandes,  licenciado  in  utroque  por  ama  Universidade  de 
Fran9a. 

Bacharel  Francisco  Gentil,  Ter^a  de  Canones. 

0  Licenciado  Francisco  Femandes,  Cadeira  de  ter^a  de  Canones,  em  1506  ;  eleito 
para  Yespera  em  1509. 

Bacharel  Gabriel  Gii,  lente  de  ter^u  dos  sagrados  Canones  em  1506,  auaentou-se 
sem  licen9a  em  1507,  deizando-a  vaga. 

Bacharel  Estevào  Dourado,  provido  na  cadeira  de  ter9a,  por  opposi^^o,  em  23  de 
outubro  de  1506. 

Doutor  Gon9alo  Yaz  Finto,  lente  de  prima' de  Leis,  vaga  pelo  fallecimento  do  Dou- 
tor EstevSo  Jorge  ;  acompanhoù  a  Universidade  para  Coimbra. 

Agostinho  AfPonso,  lente  de  ter9a  de  Leis  em  que  se  lia  a  Instituta,  passa  i  de 
Yespera,  sendo  provido  na  antecedente  : 

Gt)n9alo  Louren^o,  em  24  de  novembre  de  1507;  rege  até  1532? 

Doutor  JoSo  do  Rego,  lente  de  prima  de  Medicina,  jubilado  ao  fim  de  20  annos; 
regeu  até  1513,  fallecendo  em  1518. 

Diogo  Freixenal,  bacharel  em  Medicina  em  2  de  dezembro  de  1508,  nomeado  para 
a  cadeira  de  Yespera  de  Medicina,  em  substitui^^o  do  Doutor  da 
lUia. 

;  1513  a  1518 

Doutor  Jofto  Femandes,  lente  da  cadeira  de  Medicina  ou  Phjsica,  provido  em 
1518  pela  morte  de  JoSo  do  Rego,  proprietario. 

Estevio  Cavalleiro,  leu  na  cadeira  de  Logica  em  1513, 1514  e  1515. 

Mestre  Filippe,  doutor  em  Medicina,  provido  na  cadeira  de  Mathematica,  creada 
por  alvarà  de  29  de  outubro  de  1513. 

Frei  Joao  de  Gandavo,  cadeira  de  Metaphysica,  em  15  de  fevereiro  de  1514,  re- 
geu até  1530;  provido  na  de  prima  de  Theolog^a  em  1532. 

Luiz  Afionso,  Yespera  de  Canones,  1516. 

Francisco  Yalentim,  cadeira  de  Logica,  1517. 

Mestre  Gii,  cadeira  de  Yespera  de  Medicina,  1517. 

Francisco  Gentil,  Yespera  de  Canones,  1518.  * 

Doutor  Jorge  Femandes,  Sexta  de  Canones,  1518. 

Jorge  Cabrai,  cadeira  de  Codigo,  1518. 

Agostinho  Micas,  Prima  de  Medicina,  1518. 

D.  Fedro  de  Menezes,  Philosophia  moral,  1517. 


CAPITULO  ni 


OS  Hnmanlstas  e  a  reforma  da  UnlTersidade  (1621-1637) 


0  duplo  trabalho  doB  Humanistas  no  secalo  xvi,  litterario  e  scientifico,  actua 
na  reforma  das  Universidades  Da  RenaBcenQa. — Ob  HumanistaB  promovem 
em  Portugal  as  reformas  pedagogicas  de  D.  Joao  ui. — Contraste  da  dimi- 
nata  instruc^So  do  monarcha  com  os  grandeB  esforQOB  para  a  renova^So  da 
Instruc^So  publica. — A  reputa^^  doB  BabioB  e  philologOB  portugaezeB  nacr 
UniyenddadeB  de  Paris,  SalamaDca,  Padua  e  Louvain. — D.  Joio  ui  decla- 
ra-se  Protector  da  UniverBÌdade,  e  procura  realisar  as  aspira^es  dos  sabios* 
portuguezes  no  estrangeiro. — 0  Doutor  Diogo  de  Grouvéa,  com  o  auzilio  de 
D.  JoSo  m,  obtem  o  Collegio  de  Santa  Barbara  e  cincoenta  bolsas  para  os 
Estudantes  d*£l-rei. — A  peste  de  1525;  a  Universidade  representa  para  ser 
encerrada. — Resolu^So  do  Conselho  de  16  de  dezembro  de  1525  para  que  se 
nao  confundam  os  methodos  da  Arte  de  Pastrana  com  a  de  Nthrixa» — Or- 
deua-se  a  construc^^o  ^^  dois  Collegios,  de  Santo  Agoetinho  e  S.  Joào  Bn^ 
ptista,  junto  ao  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra. — Reformas  emprehen- 
didas  no  Mosteiro  de  Santa  Cruz  por  Frei  Braz  de  Barros,  corno  prelimina- 
res  para  a  reforma  da  Universidade. — Dota^^o  da  Universidade  com  as  ren- 
das  do  Priorado-mór  de  Santa  Cruz. — \)  Doutor  Garcia  d*Orta  entra  no  ma- 
gisterio. — Devàssa  de  1532  Bobre  as  irregularidades  praticadas  no  provi- 
mento  das  cadeiras.— Pensamento  da  mudan^a  da  Universidade  implicito  na 
clausula:  Emquanto  o  Estudó  nào  mudar. — Representa^So  da  Camara  de 
Coimbra,  pedindo  para  ser  sède  da  Universidade;  resposta  de  D.  JoSo  m, 
em  carta  de  9  de  jnnho  de  1538. — Nas  cortes  de  Torres  Novas,  de  1535, 
Evora  reclama  para  si  a  Universidade. — 0  arcebispo  de  Braga  pede  para 
trasladar-se  a  Universidade  para  a  cidade  de  Braga  on  para  o  Porto. — Os 
lentes  da  Universidade,  receando  que  o  Estudo  seja  mudado  de  Lisboa,  re- 
presei^tam  em  14  de  dezembro  para  fundar-se  urna  nova  Universidade. — In- 
fluencia  de  Jo2o  Luiz  Vives  e  do  seu  livro  De  Disciplinia,  dedicado  a  D. 
JoSo  III  em  1531,  sobre  a  reforma  dos  Estudos  em  Portugal. — Rela9oes  de 
Erasmo  com  André  de  Resende  e  DamiSo  de  Gk>es. — D.  JoSo  ui  encarrega 
a  DamiSo  de  Goes,  em  1533,  de  oonvidar  Erasmo  para  a  Universidade  por» 
tugueza. — D.  Damifto  é  encarregado  em  1535  de  contractar  lentes  para  a 
Universidade. — Abundancia  de  mestres  de  Artes  em  Paris. — Carta  de  D.. 
Jo^  m,  de  8  de  novembro  de  1535,  a  Frei  Braz  de  Barros,  sobre  os  mea* 


334  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tres  francezeB. — Por  carta  de  11  de  mar90  é  orgaDfsado  em  Coimbra  o  Carso 
de  Artes. — 0  Doutor  Garda  d*Orta  deiza  a  Universidade  em  1534,  aoom- 
panhando  para  a  India  Martim  Afionso  de  Sousa. — 0  Doutor  Fedro  Nunea. 
— Portnguezes  illudtreB  que  ensinam  em  Salamanca  ou  ali  se  graduaram. — 
A  córte  portngneza  acompanha  o  ferver  homanista. — Ajrea  Barbosa  cha- 
mada  a  Portugal  em  1521  para  dirigir  a  educa^So  dos  infantes  D.  Afionso  e 
D.  Henriqne. — André  de  Resende  chamado  a  Portugal  em  1534  para  a  ednca- 
9ao  do  infante  D.  Duarte. — Nicolào  Clenardo  e  sua  influencia'  na  cdrte« — 
*  Carta  de  Clenardo,  de  26  de  mar90  de  1535,  em  que  descreve  os  costu&es  e 
pratìcas  pedagog^cas  em  Portugal. — A  elei^So  dos  lentes. — 0  Ludìu  ou  a 
Eschola  secundaria. — A  cultura  exclusiva  da  memoria. — A  ArU  de  LaUm 
por  D.  Maximo  de  Sousa,  1535,  prevalece  no  ensino  até  1555. — A  Graomia- 
tica  de  Clenardo,  de  1538. — Mudan^a  da  Universidade  de  Lisboa  para  Coim- 
bra em  mar9o  de  1537. — Sèrie  dos  Reitores  da  Universidade  de  Lisboa  até 
1537. 


As  Universidades,  que  se  mostraram  hostis  &  renoya9So  dos  es- 
tudos  no  principio  do  secolo  xvi,  luctando  pela  conserya9So  do  scho- 
lasticismOy  tìveram  de  tranaigir  com  o  novo  espirito,  emquanto  aos  me- 
thodoB  e  desenvolvimento  de  disciplinas  acientificas.  Ob  humanistas 
apresentavam-Be  sob  dois  aspectos,  jà  corno  phihlogos,  reconstituindo  * 
08  textoB  doB  livros  classicos  deturpados  por  anonjmoB  commentado- 
res,  jà  corno  sabios,  especialmente  mathematicos,  aatronomos  e  medi- 
coBy  a  quem  a  litteratura  grega  interessava  para  continuar  a  marcha 
interrompida  das  sciencias.  No  seu  combate  centra  o  Bcholasticismo 
fortificado  nas  Universidades,  os  humanistas  venceram;  a  transforma- 
980  e  reformas  universitarias  da  seculo  xvi  vieram  de  fóra^  de  indi- 
viduos  extranhos  às  corporafSes  doutoraes.  Na  Universidade  de  Lou- 
vain, onde  preponderava  a  direc9Ao  de  Erasmo^  embora  nSo  perten- 
cesse  a  essa  oorpora9&o,  luctavam  centra  a  velha  Scholastica  os  cele- 
bres  eruditos  Martin  Dorpius,  Alaert  de  Amsterdam,  Jacques  Latomus 
ou  Masson,  JoSo  de  Coster,  Jacques  Oeratinus  ou  Yan  Hom,  Fran- 
cisco Cromeveld  e  JoSo  Paludanus.  Citamos  de  preferencia  està  Uni- 
versidade porque  a  frequentaram  portuguezes  que  directamente  influi- 
ram  nas  reformas  sob  D.  JoSo  m,  corno  André  de  Resende,  DamiSo 
de  Goes,  ambos  amigos  pessoaes  de  Erasmo,  e  0  louvavel  reitor  Frei 
Diego  de  Murya.  ' 

Em  Hespanha  tambem  triumphara  0  Humanismo,  personificado 
na  pessoa  do  erudito  Nebrixa;  Vives  falla  do  tempo  em  que  0  com- 
batera  para  Usongear  os  doutores,  e  come  se  converteu  às  novas  dou- 
trinas.  A  Arte  nova  penetrou  na  Universidade  a  par  da  Grammatica 
de  Pastrana,  ou  Arte  vdha.  Em  um  assento  do  conselho  escholar,  de 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORHA  DA  UNIYERSIDADE  335 

16  de  dezembro  de  1525,  deliberou-se  e  por  evitar  as  diversas  opiniSes 
que  OS  mestres  de  Grammatica  segaiam  em  prejuizo  dos  estadantes, 
que  fossem  notificados  para  que  os  ensinassem  pela  Arte  de  Pastrana 
ou  pela  de  Nebrixa,  sem  mistorarem  ama  com  a  outra.»*  Vé-se  que 
a  inflaencia  humanista^  assim  corno  nos  entrava  por  via  da  Belgica, 
tambem  atacava  a  UniverBidade  de  Lisboa  pelo  kdo  da  Hespanha.  A 
Universidade  de  Paris  rendeu-se  ao  assalto  critico  de  JoSo  Luiz  Vives^ 
no  midoso  pamphleto  In  Pseudos-dialecticoe;  é  certo  que  Vives  dedi- 
cou  a  D.  JoSo  in  o  celebre  livro  De  Tradendis  Disciplinis,  em  1531, 
livro  que  determinoa  o  pensamento  da  reforma  da  Universidade  de 
Lisboa,  annunciado  pelo  monarcha  em  1532.  Porém  a  influencia  dos 
humanistas  francezes  deve  fixar-se  por  1527,  quando  D,  JoSo  ili,  por 
via  do  Doutor  Diogo  de  G-ouvéa,  e  por  via  de  Frei  Braz  de  Barros, 
protege  a  empreza  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  em  Paris,  e  procede 
à  reformaf&o  dos  conegos  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  e  &  funda9So  de 
dois  Collegios  no  opulento  mosteiro. 

Os  mestres  que  D.  JoSo  m,  no  comefo  do  seu  reinado,  chamou 
a  Portugal  para  a  educa9So  de  seus  irmftos,  eram  portuguezes  que  se 
distinguiam  nas  Universidades  da  Europa,  onde  sustentavam  as  novas 
doutrinas  humanistas. 

Ayres  Barbosa,  que  frequentara  o  humanismo  na  Italia  com  An- 
gelo Policiano,  regeu  durante  vinte  annos  as  cadeiras  de  latim  e  grego 
em  Salamanca;  foi  chamado  a  Portugal,  por  1521,  para  vir  ser  mostre 
dos  infantes  D.  Affonso  e  D.  Henrique. 

Pedro  Margalho,  que  se  doutorara  em  Paris,  regendo  depois  uma 
cathedra  de  Philosophia  moral  em  Salamanca,  foi  tambem  chamado  a 
Portugal,  por  ordem  de  D.  JoSo  in,  para  vir  ser  mostre  do  cardeal  D. 
A£Fonso.  O  rei,  segundo  se  le  em  uma  carta  de  Clenardo  a  D.  JoSo  Pe- 
tit, bispo  de  Cabo  Verde,  deu-lhe  uma  conezia  em  Evora,  e  além  de 
tengas  um  legar  no  Desembargo  do  Pago. 

Depois  d'està  deliberagSo,  aproveita  a  vinda  de  DamiSo  de  Goes 
a  Portugal,  em  1533,  para  o  encarregar  de  um  convite  a  Erasmo  para 
vir  reger  uma  cadeira  na  Universidade  de  Lisboa.  Em  1534  chama  An- 
dré' de  Besende  para  dirigir  a  educa$So  do  infante  D.  Duarte,  encar- 
regando-o  ao  mesmo  tempo  de  ir  a  Salamanca  a  convidar  o  erudito  Ni- 
colào  Clenardo  para  o  coadjuvar  na  sua  missXo.  Emfim,  o  Doutor  Pe- 


1  Nota  de  Pigueiróa,  n.*  76,  Ab  NoUdaa  chronologicas,  §  933.  (Ap.  Inatituto, 
t.  XIV,  p.  260.) 


336  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIBIBRA 

dro  Nunea  é  em  1532  encarregado  de  ensinar  mathematica  e  astrono- 
mia ao  infante  D.  Luiz  e  ao  cardeal  D.  Henrìque,  a  cujaB  lÌ93e8  assis- 
tia  tambem  o  futuro  e  glorioso  vice-rei  da  India,  D.  JoSo  de  Castro^ 
A  educagAo  dos  principes,  induzindo  o  rei  a  procurar  os  melhores  pro- 
fessores,  levou-o  a  proteger  officialmente  os  philologos  e  a  admittir  as- 
Buas  doutrinas  na  Universidade.  Quando  a  Companhia  de  Jesus  pene- 
tròu  em  Portugal  teve  de  desviar  o  animo  do  monarcha  d'està  cor- 
rente; D.  Jofto  III  chamou  a  Portugal  DamiSo  de  Goes  em  1545  para 
vir  ser  mestre  do  principe  D.  JoSo,  mas  o  padre  SimSo  Rodrigues  teve 
arte  para  evitar  essa  nomea9&o,  sondo  o  grande  philologo  substituido 
pelo  Doutor  Antonio  Piiiheiro,  que  ensinara  rhetorica  em  Paris  em  nm 
dos  periodos  gloriosos  do  Collegio  de  Santa  Barbara.  Està  instabili- 
dade  de  caracter  de  D.  Jofto  m  resultava  da  sua  mediocridade  men- 
ta!, facilmente  sujeito  a  escrupulos  religiosos. 

A  educa92io  litteraria  de  D.  JoSo  in,  cuja  rudeza  nSo  escapou  aos 
cautelosos  euphuismos  de  Frei  Luiz  de  Scusa,  nSo  farla  suppdr  que 
no  seu  reinado  recebesse  a  inBtruc92o  publica  uma  remodelaySo  capi- 
tal, comò  a  que  se  observa  nas  Escholas  de  Santa  Cruz,  na  transfe- 
rencia  da  Universidade  para  Coimbra,  e  na  fandagSo  do  Collegio  recti. 
Frei  Luiz  de  Scusa  descreve  a  cultura  que  o  monarcha  recebera  :  <pa- 
receo  novidade  mandar  elRey  vir  ao  pa9o,  para  dar  IÌ9SL0  de  escrever 
ao  Princepe,  humpohre  homem,  que  por  bom  escrivSo,  tìnka  eschola  aberta 
na  cidade,  Chamava-se  Martim  Affonso.  Do  que  colUgimos  duas  cou- 
sas  :  primeyra,  que  devia  ser  insigne  na  arte  ;  segunda,  que  nSo  averla. 
entSLo  homem  nobre,  que  0  fosse  n'eUa.  DavSo-se  em  aquelle  tempo  to- 
dos  08  nobres  tanto  às  armas,  e  tSo  pouco  às  letras,  comò  se  fòra  ver- 
dade,  que  a  pena  embotasse  a  lan9a.  Vicio  e  culpa  que  n'este  reyno 
durou  mujtos  annos,  e  cujo  remedio  devemos  so  a  este  Princepe,  polla 
honra  que  despois  que  reynou,  soube  fazer  às  letras  e  a  todas  as  boaa 
artes. . .  Tratou  elRey  de  o  applicar  aos  estudos  de  Grammatica  e  La- 
tinidade,  e  dar-lhe  nelles  pessoas  autorizadas  pera  mestres.  Foram  na 
Grammatica  Diego  Ortiz  de  Vilhegas  famoso  letrado  e  pregador,  cas- 
telhano  de  na9&o. .  •  O  outro  mestre  foy  0  Doutor  Luiz  Teixeira,  filha 
do  Doutor  JoSo  Teixeira,  Chan9arel-mór  que  fora  del  Rey  Dom  JoSo 
segundo.  Era  Luiz  Teixeira  vindo  de  fresco  de  Italia  com  fama  de  ho- 
mem eminente,  tanto  nas  letras  humanas,  em  que  fora  ouvinte  de  An- 
gelo Policiano,  comò  no  Direito  civil,  sobre  que  escrevera  doutamente. 
D'estes  deus  mestres  ouviu  0  Princepe  varios  livros  de  Latinìdade.  Do 
segundo  chegou  a  tomar  principios  da  lingua  Grega,  e  ouvir  parte  da 
InstUuta,  que  he  porta  e  entrada  pera  0  estudo  do  direyto  civil.  •  » 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  337 

Para  tudo  teve  o  Princepe  bom  naturai,  acompanhado  de  grande  me- 
moria, que  he  hama  das  partes  que  mais  se  requerem  nos  qne  estu- 
dam  qualquer  sciencia:  que  se  assi  tevera  a  appIica92lo,  que  Ihe  to- 
Ihiam  OS  passatempos  que  costumam  senhorear  a  idade  juvenil,  ou  os 
mestres  se  atreverSo  a  uzar  com  elle  huma  pouea  mais  de  jurdÌ9St0; 
podera  ficar  com  perfeito  x^onhecimento  da  Latinidade,  e  de  outras  ar- 
tes,  que  elRey  seu  pay  dezejou  que  soubesse:  principalmente  as  Ma- 
ihematìcasj  de  que  Thomaz  de  Torres,  medico  e  bom  Astrologo,  Ihe  leo 
alguns  principios,  assi  dos  movimentos  dos  Planetas,  comò  da  consti- 
tuÌ9lo  do  mundo,  em  terra  e  mares . . .  Porém  de  todo  este  cuidado  se 
Ihe  ncto  pegou  mais  que  huma  boa  incUna^ào  para  as  Letras  e  letra- 
dos, . .»  * 

Herculano,  na  Origem  e  estahdecimento  da  Inquisigào  em  Portugal, 
leva  as  affirma95es  pej orati  vas  muito  mais  longe:  e  Durante  a  vida  de 
seu  pae  muitos  havia  que  o  conceituavam  corno  intellectualmente  im- 
becil,  ou  que  pelo  menos  o  diziam.  O  proprio  D.  Manuel  mostrava  re- 
ceios  do  predominio  que,  em  tenra  edade,  exerciam  no  seu  espirito 
homens  indignos.»  Eram  os  seus  favoritos  Martim  Àffonso  de  Sousa  e 
seu  primo  D.  Antonio  de  Athayde.  Nas  allusoes  mordazes  dos  linha- 
gistas,  nos  nobiliarios  manuscriptos,  explica-se  a  influencia  do  conde 
da  Castanheira,  «porque  Ihe  deixava  tocar  a  mulher,  quando  era  in- 
fante.» Animo  facilmente  suggestivel,  quando  de  todos  os  lados  os  es- 
piritos  se  interessavam  pelo  humanismo  litterario  e  scientifico,  e  a  in- 
telligencia  portugueza  occupava  logares  proeminentes  nas  principaes 
Universidades  da  Europa,  com  o  que  a  naySo  se  ufanava,  D.  JoSo  ili 
acompanhou  a  corrente,  cobrindo  a  sua  mediocridade  com  uma  boa  in- 
clina9llo  para  as  letras.^  Ao  come9ar  a  reac9ào  do  Scholasticismo,  su- 
stentada  pelos  Jesuitas,  verdadeiros  continuadores  dos  Nominalistas,  a 
8ubmiss3o  de  D.  JoSLo  in  serviu-lhes  para  se  apoderarem  do  ensino  e 
lan9arem  de  Portugal  os  mestres  francezes.  D'està  instabiUdade  do 
animo  do  rei  resultam  tres  phases  caracteristicas  nas  reformas  da  In- 
struc9So  publica  portugueza: 

A  primeira  decorre  de  1521  até  1537,  em  que,  depois  da  cha- 


1  Annaes  de  D.  Joào  III,  p.  8. 

2  Escreve  Villar  Maior,  na  Noticia  stiC4nnia  da  Universidade  de  Coimbra,  ape- 
sar do  seu  respeito  officiai  :  «inclina9ào  que  quasi  se  converteu  em  mania,  querendo 
a  todo  o  custo  formar  sabios  e  principalmente  theologos;  pois  basta  vermos  que 
8Ó  em  Paris  sustentava,  segando  affirma  o  auctor  da  Monarchia  lusitana^  setenta 
estudanies  d*aquella  sciencia.»  (P.  52.) 

HI8T.  UH.  22 


338  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

mada  de  mestres  eminentes  para  08  infantes,  o  rei  determina  a  reforma 
dos  Conegos  regrantes  e  a  fiinda^dlo  dos  CoUegios  de  Santa  Cruz  de 
Coimbra,  para  os  quaes  vieram  regentes  portuguezes  de  Franca. 

A  segunda  efifectua-se  entre  1537,  em  que  se  faz  a  tra8lada9fto  da 
Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra,  para  a  qual  sào  chamados  sa- 
bios  estrangeiros,  até  1547,  em  que  chega  a  Portugal  Mestre  André  de 
Gouvéa  com  um  completo  corpo  docente,  de  verdadeiras  capacidades, 
para  regerem  as  disciplinas  do  novo  Collegio  real. 

A  terceira  phase  cometa  pela  perseguiamo  aos  mestres  francezes, 
em  que  figura  o  detestavel  cardeal  D.  Henrique,  até  1555,  em  que  D. 
Joào  III  entrega  o  Collegio  recti  aos  Jesuitas,  que  desde  esse  momento 
se  acharam  dirigindo  a  educa9So  publica  portugueza. 

Depois  do  fallecimento  de  D.  Manuel,  em  1521,  a  Universidade 
nSo  teve  ensejo  de  eleger  o  novo  monarcha  para  seu  Protector;  gras- 
sava  entSo  uma  terrivel  epidemia  em  1522;  a  corte  abandonava  Lis- 
boa, e  OS  lentes  nSo  se  reuniam  para  os  actos  academicos,  comò  o  da 
eleÌ9llo  do  reitor.  *  D.  JoHo  ni  sentiu-se  da  falta  da  homenagem  da  Uni- 
versidade, e  ao  firn  de  dois  annos  lembrou-lhe  a  eleiySlo  do  Protector. 
A  boa  vontade  do  monarcha  manifestou-se  pela  carta  règia  de  1523, 
augmentando  os  salarios  aos  lentes  de  prima  de  Canones  e  Leis;  aos 
de  prima  e  vespera  de  Medicina;  aos  de  Canones  e  Leis  de  ter^a;  aos 
de  Sea^  e  Codigo;  aos  de  Grammatica  e  Logica;  ao  de  Theologia  de 
vespera;  aos  de  Philosophia  naturai,  de  Meta/jhysica,  Philosophia  mo- 
ral  e  Astronomia;  tambem  angmentou  o  salario  do  Conservador  da  Uni- 
versidade. * 

Duas  provisoes  de  D.  JoSo  ui,  de  17  de  novembre  e  de  6  de  de- 
zembro  de  1525,  manifestam  a  interven9S[o  do  poder  real  na  Univer- 
sidade; na  primeira  manda  que  se  fa9a  a  eleiySo  do  reitor^  em  dia  de 
S.  Martinho  (corno  se  usava  em  Salamanca),  sentindo  que  nilo  cum- 
pram  os  estatutos  manuelinos;  na  outra  estabelece  que  os  cargos  es- 


1  D*e8ta  peste  de  1522  falla  Frei^uiz  de  Sousa,  Annaea  de  Z>.  Joào  III,  p. 
44  a  46  e  59.  Meyrelles,  Epidemologia  portugueea^  p.  236. 

'  Cari,  da  Fazenda  da  Univereidade.  Patrim.  ant.  Grav.  3,  M.  5,  n.»  2.  (Calai, 
peryam.  n.<*  51,  p.  23.) 

'  Escreve  Figueirda  :  «està  elei^So  do  Reitor  se  fez  por  ordem  de  S.  Mages- 
tade  em  25  de  novembro  de  1525,  e  que  antes  de  se  votar  se  praticoa  sobre  as 
pesBoas  mais  dignas  para  està  occupa9ào,  e  se  fallou  no  Bispo  Ambrosio,  que  sup- 
pue  era  D.  Ambrosio  Brandào  ou  Pereira,  bispo  de  Bostiona,  e  no  Desembarga* 
dor  Jorge  Co  tao,  que  assim  se  acha  escripto,  e  que  oste  foi  prcf erido.»  (Notas  às 
Noticias  chronologicas,  not.  104;  Instituto,  t.  xiv,  p.  279.) 


OS  HUAiÀNISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  339 

cholares  nSo  podem  darar  mais  do  que  um  anno.  Havia  urna  certa  qne- 
bra  ^6  disciplina  na  Universidade,  mas  deve  isso  attribuir-se  aos  con- 
stantes  rebates  da  peste  que  assaltava  JLisboa.  Em  1525  a  peste  re- 
crudesceu  fortemente,  ^  a  ponto  de  ter  a  Universidade  de  representar 
ao  rei  para  ser  fechada,  pelo  grande  perigo  que  corria  o  pessoal  do- 
cente. 

Em  9  de  maio  de  1525  representou  a  Universidade  a  D.  JoSo  ui: 
cSenhor.  0  Reitor,  Lentes  e  Conselheiros  e  Deputados  do  vesso  Es- 
tudo  e  Universidade  da  vessa  Cidade  de  Lisboa  com  o  acatamento  que 
devemos,  beijamos  as  reaes  mSos  de  Y.  A.  a  que  fazemos  saber  que 
a  dita  Cidade  està  tHo  impedida  corno  V.  A.  sabe;  e  por  que  Senhor, 
OS  dias  passados  faleceo  ho  Doutor  Micas  '  de  peste,  que  foi  urna  grande 
perda  do  dito  Estudo  por  ser  bum  letrado  tSo  famoso  e  de  que  recebia 
tanto  proveito  e  fruito  ;  e  porque  Senhor,  os  bons  letrados  nom  se  fa- 
zem  se  nam  com  multo  trabalho  e  longo  tempo,  e  os  que  bora  lemos 
no  dito  Estudo  desejamos  conservar  nossa  vida  pera  que  mais  annos 
sirvamos  V.  A.  e  fa9amos  servÌ90  no  dito  Estudo  onde  se  criam  e  saem 
OS  letrados  que  governam  Vossa  JustiQa  e  ensinam  salvar  as  almas  e 
curar  os  corpos,  e  por  que  etc.  Assinados:  fflacarote,  Reitor.  Ho  Ba- 
charel  Jorge  Calvo;  Doutor  Luiz  Affonso,  Antonius  Soare"^;  Franciscus 
Valentinus,  Artium  Magisteri  Petrus  Bhombus:  Balthasar  Lupus.»  ^ 

A  peste  de  1525  tornou-se  mais  intensa;  D.  JoSo  in  fugiu  para 
Coimbra  em  1526*  e  ali  se  conservou  ató  fins  de  1527;^  Gii  Vicente, 


1  Livro  dcu  Vereaqòea  de  Coimbra,  de  1525,  fi.  17  e  22.  MeyrelleB,  Epidemo' 
logia  portugueea,  p.  238. 

2  Em  urna  nota  do  reitor  Figaeiróa  ao  §  955  das  Noticiaa  chronologicas,  lé-se 
àcerca  d'este  lente:  «Agostinho  Micas  principiou  a  lér  a  cadeira  de  Philosophia 
moral  n'este  anno  de  1510,  em  que  el-rei  D.  Manuel  parece  que  a  creou  de  novoi 
por  nSo  se  achar  duella  até  aqui  algum  vestigio.»  (Ap.  Instituto,  t.  zit,  p.  262.)  De- 
pois d'està  data  tomou  o  grào  de  doutor  em  Medicina,  e  levou  por  opposi^ào  em 
9  de  mar^o  de  1518  a  cadeira  de  prima  da  mesma  faculdade.  (Ibid.,  p.  277.) 

5  Ap.  Cuidados  litterarioa,  p.  247.  Frequentavam  a  Universidade  D.  Joao  de 
Castro,  Fernao  Vaz  Dourado,  Martinho  de  Figueiredo,  Grarcia  d*Orta  e  Chrysto- 
vam  Africano.  (Ib.)  D'este  Fedro  Rombo  falla  Cenacolo,  corno  discipulo  de  An- 
tonio Martins,  tendo  impresso  em  1500  :  Anionu  Martini  primi  quandam  hujiu  Artis 
FASTBANE  in  alma  Universitate  Ulixbonensipreceptorig:  maUriarum  editio  a  baculo 
eecorum  hreviter  coUecta. 

*  Regimento  de  27  de  setembro  de  1526,  em  que  allude  ao  decrescimento  da 
peste. 

^  Allude  a  ella  Amato  Lusitano,  Curationum  Medieinalium  Centuriae  septem, 
p.  719.  Meyrelles,  Epidemologia  portugueza,  p.  239. 

22* 


340  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

que  acompanhava  a  córte,  escreveu  e  representou  em  Coimbra  a  Far^ 
doB  Almocreves  e  o  Auto  da  Serra  da  Estrella,  em  que  glorifica  as  fa- 
milias  nobres  da  terra.  Foi  durante  està  permauencia  do  rei  em  Coim- 
bra  que  elle  se  persuadiu  da  vantagem  de  fixar  ali  a  Universidade  de 
Lisboa. 

Em  1527  jà  Francisco  de  Sa  de  Miranda  se  achava  em  Coimbra^ 
de  volta  da  Italia,  onde  se  demorara  desde  1521,  na  convivencia  dos 
prìncipaes  litteratos;  d'ali  tinha  trazido  conhecimento  das  obras  de  Pe- 
trarcha  e  de  Sanazarro,  de  Bembo,  de  Aretino  e  Ariosto,  e  ao  vir  en- 
contrar  em  Portugal  os  velhos  metros  octonarios  das  coplas  de  Gancio- 
neiro,  e  urna  ignorancia  completa  dos  metros  endecasyllabos,  jà  usados 
em  Hespanha  por  Bosc2o  e  Garcilasso,  emprehendeu  a  retorma  da  poe- 
sia portugueza,  iniciando  assim  a  esplendida  època  quinhentista.  Noe 
seus  versos  conhecem-se  referencias  à  lucta  de  urna  eschola  nova  cen- 
tra o  perstigio  tradicional  de  urna  poetica  em  parte  palaciana,  da  per- 
sistencia  trobadoresca,  e  em  parte  popular.  Sa  de  Miranda,  no  prologo 
da  sua  comedia  Estrangeiros,  combate  contra  o  uso  dos  dramas  em  verso 
e  com  rima,  e  mais  ainda  contra  a  denominammo  barbara  de  Auto  em 
vez  de  Comedia;  era  comò  que  \xm  ataque  directo  a  Gii  Vicente,  o  in- 
oomparavel  representante  da  tradifSo  medieval.  Gii  Vicente  achava-se 
em  Coimbra  em  1527  ;  jà  em  1523,  na  f arja  de  Inez  Pereira,  re- 
pellira  os  ataques  de  certos  homens  de  bom  saher,  que  negavam  a  ori- 
ginalidade  dos  seus  Àutos.  Esses  homens  de  bom  saber  eram  os  hu- 
manistas,  que  estavam  extasiados  com  a  leitura  das  comedias  de  Plauto 
e  Terencio,  pallidos  reflexos  da  comedia  menandrina,  e  com  as  come- 
dias italianas,  apagado  vislumbre  do  theatro  classico.  Sa  de  Miranda 
foi  secundado  por  novos  talentos,  que  se  lan^aram  &  imitamSo  da  poesia 
italiana;  mas  a  importancia  do  facto  nSo  estava  em  fazer  bem  endeca- 
syllabos e  imitar  os  petrarchistas,  mas  em  introduzir  na  idealieagSLa 
poetica  a  profundidade  philosophica,  dando  universalidade  ao  senti- 
mento. Foi  isso  0  que  destacou  CamSes  dos  outros  quinhentistas.  A  re- 
nova9So  litteraria  achou  no  meio  academico  uma  enthusiastica  adhes20| 
come  vémos  em  Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos  e  em  Antonio  Ferreira, 
emprehendendo  a  composiySo  do  drama  classico;  e  na  preoccupafSo  de 
uma  epopèa  virgiliana  em  varìos  espirìtos,  que  foram  supplantados  por 
CamSes.  Alludimos  aqui  a  està  revoluySo  na  Litteratura,  porque  egual 
transformas&o  se  operou  na  Architectura,  substituindo-se  o  gothico  pe- 
las  ordens  gregas,  e  porque  a  queda  do  Scholasticismo  nas  Universi- 
dadeSy  provocada  pelos  humanistas^  tomou  possivel  a  renovamSo  das 
Bciencìas  e  necessaria  a  forma^So  de  uma  nova  Bjnthese  montai. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIYERSIDADE  341 

Àpesar  da  imita9lo  academica  que  predominou  nas  Litterataras 
uà  època  da  Ilenascen9a  classica,  em  que  os  modelos  eram  tomados 
de  Virgilio  para  a  Epopèa,  de  Horacio  para  o  Lyrismo  e  de  Terencio 
para  o  Drama,  ainda  assim  o  genio  nacional  achou  expressSo  nos  gran- 
des  escriptores,  corno  em  CamSes,  Lope  de  Yega  e  Cervantes,  Molière 
e  Shakespeare.  Mas  o  que  modificava  profundamente  o  caracter  das 
Litterataras  nSo  era  a  imita9So  mais  ou  menos  calta,  era  a  separa9Ìo 
«ffectuada  entre  os  escriptores  e  o  povo.  Emqaanto  este  continaava  a 
repetir  aatomaticamente  as  suas  tradiySes,  cada  vez  oom  menps  com- 
prehensSo  do  sea  sentido  intimo,  os  escriptores  entregavam-se  à  col- 
tura da  expressSo  litteraria  sem  preoccupaQllo  de  um  destino  social. 
Perdiam-se  assim  a  disciplina  do  sentimento  *e  o  uso  d'està  immensa 
forfa  modificadora  das  vontades.  £  o  que  foram  os  Scholasticos  do  firn 
da  Edade  mèdia,  desenvolvendo  a  Dialectica  nos  claustros  e  nas  aulas, 
sem  terem  em  vista  actuar  sobre  as  opini(!les  do  vulgo,  o  mesmo  foram 
na  B.enascen9a  os  Humanistas,  enriquecendo  as  Litteraturas  nacionaes 
com  imita93es  dos  livros  da  antiguidade  e  separando-se  completamente 
do  povo. 

Emquanto  D.  JoEo  iii  se  achava  em  Coimbra,  emprehendeu  a  re- 
forma  do  mosteiro  de  Santa  Cruz,  em  cujas  rendas  estava  encorporado 
o  Priorado-mór,  que  era  de  padroado  real.  Como  o  rei  gastava  com  as 
obras  do  mosteiro  uma  grande  parte  das  avultadissimas  rendas  do 
Priorado-mór,  entendeu  intervir  na  reorganisa9So  dos  conegos,  para  o 
que  obteve  os  còmpetentes  breves  apostolicos.  Encarregou  da  realisa- 
9S0  d'este  plano  0  provincial  da  ordem  hieronymita,  Frei  Antonio  de 
Lisboa,  e  Frei  Braz  de  Barros,  parente  do  futuro  auctor  das  Decade», 
come9ando  na  empreza  em  13  de  outubro  de  1527  ;  eram  extranhos  & 
Congrega92o  dos  conegos  regrantea,  e  por  isso  n&o  foram  bem  consi- 
derados  os  seus  trabalhos  de  reforma9fto.  ^  Frei  Braz  de  Barros  è  que 
apparece  mais  em  evidencia,  exercendo  0  governo  do  mosteiro,  e  co- 
operando em  todos  os  actos  relacionados  com  a  reforma  das  Escholas 
de  Santa  Cruz  e  com  a  trasiada9So  da  Universidade  para  Coimbra.  Os 
conegos  de  Santa  Cruz  nSo  tinham  obriga9SLo  claustral;  pela  reforma 
de  Frei  Braz  de  Barros  foram  for9ados  a  adoptarem  a  clausura,  esta- 
belecendo-se  assim  uma  separa9So  entre  os  que  se  nSo  submetteram  e 


1  Sobre  0  caracter  da  reforma  doe  Conegos  regrantes,  por  Frei  Braz  de  Bar- 
ros, falla  com  amargura  D.  Nicol&o  de  Santa  Maria,  dizendo  :  «cuja  reformaQSo 
parca  em  tirar  as  rendas  aos  nossos  Conegos  de  Santa  Cruz  para  a  Univeraidad  e 
de  Coimbra. . .  »  (Chr,  doa  B^antes,  liv.  vi,  p.  354.) 


342  fflSTOIUA  DA  imiVERSIDADE  DE  COIMBRA 

OS  que  adheriram^  qae  ficaram  Bujeitos  ao  governo  de  um  Prior  claus- 
treiro,  eleito  entro  elles.  Entro  os  eonegos  qne  acceitaram  o  regimen 
claustral  figura  D.  Bento  de  CamSos,  quo  veiu  a  ser  eleito  Prior  claus- 
treiro  no  anno  em  que  a  Universidade  foi  mudada  para  Coimbra,  e  que 
por  està  circumstancia  recebeu  a  dignidade  de  primeiro  Cancellano  da 
Universidade^  inherente  aos  Priores  de  Santa  Cruz.  Desde  1527  come- 
Saram  a  adquirir  grandes  creditos  o  Collegio  de  8.  Miguel,  dentro  do 
mosteiro,  porque  o  seu  edificio  ostava  em  construcfSo^  irequentado  pela 
nobreza,  e  o  Collegio  de  Todos  os  Santos;  e  pela  superioridade  do  ensino 
que  ali  professavam  alguns  eonegos  que  haviam  estudado  em  Franfa,  es- 
tabeleceu-se  uma  corrente  na  arìstocracia  portugueza,  que  para  ali  man- 
dava OS  seus  filhoB  para  serem  educados.  0  desenvolvimento  extraordi- 
nano  d'estes  dois  CoUegios  e  a  grande  concorrencia  de  alumnos  da  fi- 
dalguia  foram  uma  das  causas  que  levaram  D.  JoSo  in  a  determinar-se 
pela  escolha  de  Coimbra  para  assento  da  Universidade,  e  à  funda(So  de 
mais  dois  Collegios,  de  Santo  Agostinho  e  de  S,  Joào  Baptista,  junìo 
do  mosteiroy  e  à  custa  das  rendas  do  Priorado-mór. 

0  cardeal  infante  D.  Affonso,  irmSo  de  D.  JoSo  ili,  renunciou  o 
Priorado-mór  de  Santa  Cruz  em  seu  irmSo  o  infante  D.  Henrique, 
sendo-lhè  concedida  essa  faculdade  por  Clemente  vii,  em  bulla  de  se- 
tembro  de  1527.  Como  tutor  do  infante,  e  comò  padroeiro  do  Priora- 
do-mór,  entendeu  D.  JoSo  m  applicar  uma  parte  das  suas  avultadis- 
simas  rendas  para  a  su8tenta98o  dos  eonegos  claustraes,  para  a  fun- 
da^fto  dos  dois  bispados  de  Leiria  e  Portalegre,  e  para  a  dotaySo  da 
Universidade.  Por  carta  de  19  de  Janeiro  de  1530*  D.  JoSo  iii,  com 
o  consentimento  do  seu  tutelado,  que  era  administrador  perpetuo  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra,  e  consentimento  dos  eonegos  e  convento,  cfea 
a  separasse  das  rendas  d'elle,  (;^ixando  aos  ditos  eonegos  para  seu 
mantimento,  vestiaria  e  cal9ado,  corno  para  todo  outro  provimento  da 


1  No  livro  doB  Breveg  da  uniào  cUu  rendas  de  Santa  CrvM*  e  Conesias,  fi.  62, 
vem  a  provisSo  de  19  de  Janeiro  de  1530,  sobre  a  reforma  ordenada  por  D.  Joio  m: 
«D.  Joio  etc.  fa^o  saber,  que  vendo  eu,  corno  o  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coim- 
bra era  do  B.  S.  Agostinho,  e  ob  ReligioBOS  d*elle  Conegos  Regrantes;  que  eram 
obrigadoB  a  guardar  a  dita  Ordem  e  Regra,  e  viver  nas  ObBervancias  regnlares 
d*ella,. . .  e  querendo  provér,  corno  a  dita  Ordem  e  Regra  fosse  inteiramente  gnar- 
dada,  e  ob  Conegos  e  Religiosos  vivaBsem  n*eUa,  assim  religioBamente,  corno  de- 
vilo e  cumpria;  por  servilo  de  Nobbo  Senhor  e  descaigo  de  conBcienda  do  Infante 
D.  Henzique,  meu  muito  amado  e  prezado  irmio,  Administrador  perpetuo  do  dito 
MoBteiro,  o  mandei  reformar,  e  asfiim  os  Religiosos  d'elle,  na  dita  Ordem  e  Re- 
gra.. .»  (Ap.  Dr.  Silva  Leal,  Mem.  da  Acad.  de  Hitt.  em  ITSS,  P.  i,  p.  120.) 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  343 

vida  em  communi,  as  rendas  de  Quiaios,  dos  Redondos,  das  Alhadas 
e  Maiorca,  de  Cadima,  de  Vemde,  de  Murtede  de  Orvieira,  de  Anta- 
nhol  dos  Frades,  de  Condeixa  a  Velha,  de  Bordallo,  de  AnciSo,  dos 
SebSes  e  Rio  de  Gallinhas,  e  assim  mais  de  todo  o  azeite,  e  vinho  das 
pensòes  do  dicto  mosteiro  e  todos  os  cameiros,  aves,  e  ovos  dos  fóros, 
e  penscHes  de  todos  outros  quaesquer  logares,  que  até  este  tempo  fo- 
ram  da  Meza  do  Priorado-mór;  e  outrosim  que  para  a  vestiaria,  e  en- 
fermarla  dos  dictos  conegos  e  frades,  e  anniversarios  e  missas,  tives- 
sem  tambem  todas  as  rendas,  que  até  aqui  tinham  da  sua  Meza  con- 
ventual,  e  que  tudo  possuissem,  govemassem  e  administrassem  e  re- 
colhessem  corno  Ihes  bem  viesse,  por  si  ou  por  seus  officiaes,  sem 
n'isto  o  dicto  infante,  nem  seus  officiaes  se  intrometterem . . .  que  os 
dictos  conegos  escolherSo  e  nomearlo  &  sua  vontade  as  mencionadas 
rendas,  as  quaes  valiam  e  rendiam  em  cada  anno  por  ayaIia9lo  e  es- 
tima certa,  que  d'ellas  se  havia  feito  um  conto  e  mU  e  duzentos  e  trinta 
quatro  reta;  que  bem  Ihes  poderiam  bastar  para  seu  mantimento,  e 
para  outro  provimento  d'aquella  real  casa,  de  que  todos  foram  mui 
contentes;  e  que  haveriam  as  dictas  rendas  de  Janeiro  de  1528  em 
diante.  ..»*  0  infante  D.  Henrique  acceitou  està  separa9So  por  ou- 
torga  de  28  de  Janeiro  do  anno  de  1530,  e  os  conegos  de  Santa  Cruz 
a  22  de  abril,  sob  a  clausula  da  confirma9llo  do  papa.  ^  Estas  resolufSes 
foram  convertidas  em  instrumento  publico  em  23  de  agosto  de  1535.  Em 
consequencia  d'està  separagSo  das  rendas  do  Priorado-mór,  D.  JoSLo  in 
encarregou  Frei  Braz  de  Barros  em  1536  de  mandar  edificar  os  dois 
CoUegios  de  Santo  Agostinho  e  de  S,  JoSo  Baptùta,  de  estudos  meno- 
res,  de  Artes  e  Humanidades,  e  para  onde  se  destinaram  depois  algu- 
mas  dieci plinas  da  Universidade  na  trasladaQSo  de  1537. 

As  reformas  que  D.  JoSlo  ili  mandou  fazer  no  mosteiro  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra,  e  fundagSo  de  CoUegios  junto  d'elle,  ligavam-se  ao 
projecto  da  mudàn9a  da  Universidade  de  Lisboa:  cdispoz  prudente- 
mente de  longe  os  meios  de  effectuar  està  mudan9a,  determinando  que 
no  real  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  se  desse  principio  a  Es- 
tudos publicos,  pelos  annos  de  1528.»^  Em  outubro  d'este  anno  come- 
yaram  a  reger-se  os  cursos  regulares  com  alguns  Mestres  vindos  de 
Paris,  em  fórma  de  Universidade;  a  fama  d'estes  estudos  fez  no  anno 


1  Notas  de  Pigueiróa,  n.«  111.  Ap.  Instituto,  t.  xiv,  p.  282. 

2  Bulla  de  Paulo  ni,  de  vii  kal.  mail  de  1536,  confirmando  a  separa^ào. 

3  Dr.  Silva  Leal,  Collec^am  de  Documenios  e  Memorias  da  ^cademia  de  Eie- 
taria,  1733,  P.  i,  p.  402. 


344  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

de  1529  convergir  a  Santa  Cruz  um  grande  numero  de  jovens  fidai- 
gos,  yendo-se  por  està  circumstancia  forfado  o  reformador  Frei  Braz 
de  Barros  a  proceder  em  1530  à  construcgSo  de  dois  Collegios^  para 
receber  os  alumnos.  Defronte  do  mosteiro^  na  rua  da  Sophia,  e  à  custa 
das  rendas  da  ordem^  edificou-se  o  Collegio  de  Todos  os  Santos,  para 
Theologos  e  Philosophos,  e  o  de  Sam  Migud,  para  Canonistas  e  Theo- 
logos.  Os  primeiroB  gastos,  em  que  se  dispenderam  pouco  mais  de 
mil  cruzados,  foram  cobrados  de  um  deposito  que  se  achava  na  Uni* 
versidade  de  Lisboa;  as  restantes  despezas  foram  &  custa  das  rendas 
do  Priorado-mór  e  do  proprio  mosteiro  de  Santa  Cruz.  Nos  Estatutos 
d'estes  dois  CoUegios  se  Ha:  oOrdenaroos,  que  as  Collegiaturas  dos  nos- 
sos  CoUegios  sejam  dezoito,  nove  em  o  Collegio  de  Todoa  os  Santos, 
e  nove  em  o  Collegio  de  S,  Miguel,  Em  cada  um  Collegio  haja  trez 
Familiares  para  servÌ90  do  Collegio.  O  primeiro  Collegio  seja  de  Theo- 
logos  e  Artistas,  e  o  segundo  de  Canonistas,  ou  mixto  de  Theologos.»^ 

0  Collegio  de  Todos  os  Santos  era  mais  pequeno  e  ficou  lego 
prompto,  nio  chegando  os  seus  alumnos  a  viverem  no  mosteiro.  Eram 
conhecidos  pjelo  nome  de  Pardos,  da  c6r  do  seu  habito;  os  do  Collegio 
de  S,  Miguel  tinham  a  denominagSo  de  Roxos.^ 

0  Collegio  de  S.  Miguel  teve  maiores  propor53es,  levando  por 
isso  multo  tempo  na  sua  construc9ào;  por  este  motivo^  e  para  se  admit- 
tirem  coUegiaes  ao  mesmo  tempo,  emquanto  as  obras  proseguiam,  es- 
tabeleceu-se  dentro  do  mosteiro,*  na  casa  grande  chamada  do  Ghdeào, 
junto  à  torre  dos  sinos  e  casa  dos  Priores-móres,  onde  foram  rocolhi- 
dos  provisoriamente  coUegiaes  e  porcionistas  fidalgos.  Os  alumnos  nSo 
chegaram  a  sair  do  mosteiro  para  o  seu  Collegio,  porque  quando  se 
acharam  concluidas  as  obras  D.  JoSo  lu  apoderou-se  d'elle  por  em- 
prestimo,  em  1547,  para  ahi  estabelecer  o  Collegio  real,  sob  o  princi- 
palado  de  Mestre  André  de  Gouvèa. 

Junto  do  mosteiro  de  Santa  Cruz  tambem  fundara  Frei  Braz  de 
Barros  os  outros  dois  CoUegios,  de  S.  Jodo  Baptista  e  de  Santo  Agosti- 
fiho,  que  subsistiram  até  ao  anno  de  1537,  lendo-se  ainda  ali  por  algum 
tempo  latim  por  cima  da  parochial  de  S.  Jo9o,  e  a  aula  dos  Quodlibe- 
tos  e  Augustiniana  entre  a  egreja  e  a  portaria,  ao  lado  direito. 


1  Conservavam-se  estes  Estatatos  no  Cartorio  de  Santa  Cruz,  armario  14. 
Silva  Leal,  op,  cit.^  p.  404. 

*  «O  habito  dos  coUegiaes  de  Todos  os  Santos  sera  huma  loba  de  panna 
pardo,  que  quasi  cubra  os  pés,  e  capello  singello  do  mesmo  panno  ;  e  o  habito  dos 
oollegiaes  de  S.  Miguel  he  lobas  roxas  sem  collar,  e  do  dito  comprìmentoi  e  huma 
baca  com  rosea  do  mesmo  panno.»  (Estat.,  const.  4;  ap.  Silva  Leal,  op.  dt,,  p.  405.) 


OS  HUHANISTÀS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  345 

Na  Descripgam  e  debuxo  do  moesteyro  de  Sancta  Cruz  de  Coimbra 
ha  urna  apreciavel  referencia  &  tjpographia  em  qae  trabalhavam  os 
conegos  regrantes  depois  da  vinda  de  Paris  dos  mestres  Fedro  Hen- 
rìques;  Goii9alo  Alvares,  e  o  hellenista  Vicente  Fabrìcio:  «Em  estas 
casas  (de  stipar)  sem  nhua  pessoa  secalar  aiudar  aos  relìgiosos^  vereis 
corno  se  exercitIL  em  o  officio  de  cZpoedorea,  dùtribuidorea,  outros  em 
0  de  correytores,  outros  em  hatidores,  outros  em  tiradoresj  e  todos  em 
silencìo  observantissimos  guardadores.»^ 

A  influencia  do  humanismo  francez  apparece-nos  de  um  modo  mais 
directo  no  Doutor  Diego  de  Gouvèa,  que  occupava  em  Franga  uma  mis- 
s2Lo  qualquer  sob  D.  Manuel;  em  uma  carta  de  9  de  margo  de  1513,  de 
Jacome  Monteiro  ao  rei,  noticia-lhe:  «comò  o  Dr.  Diego  de  Gouvéa  par- 
tira  para  Ruào,  munido  das  provisSes  necessarias  para  tratar  da  cobranga 
do  euro  que  havia  side  toinado  pelos  francezes,  o  qual,  segundo  aca- 
bava  de  Ihe  escrever,  havia  jà  pela  mór  parte  em  seu  poder. .  .  »*  No 
principio  de  1522  foi  mandado  regressar  a  Portugal  o  embaixador  que 
fora  a  Francisco  l  reclamar  contra  as  piratarìas  que  os  francezes  fa- 
ziam  à  marinha  portugueza,  «ficando  em  Paris  Pedro  Oomes  Teixeira 
para  proseguir  conjunctamente  com  Mestre  Diogo  de  Gouvea  no  re- 
querìmento  de  algumas  cousas  de  sua  fazenda,  e  assistir  aos  portugue- 
zes  em  suas  reclamagSes.»^  Em  outra  carta  de  23  de  abril  de  1522  dà 
0  embaixador  em  Franga  conta  a  D.  JoSo  iii  da  entrega  do  galeSo  e 
caravella  aprezados  pelos  francezes,  e  de  que  o  Doutor  Diogo  de  Goa- 
vèa  partirà  para  RuSo,  d'onde  o  devia  informar  àcerca  dos  projectos 
de  um  aventureiro  que  pretendia  ir  descobrir  o  Catayo.  *  Como  vimos, 
D.  Manuel  chamara  a  Portugal  em  1516  o  Doutor  Diogo  de  Gouvèa 
para  o  magisterio  da  Universidade,  mas  o  activo  doutor  pediu  excusa, 
expondo  ao  rei  o  seu  plano  de  concentrar  em  um  Collegio  em  Paris 
todos  08  Estvdantes  d'el-rei.  Emprehendera  comprar  o  antigo  Collegio 
de  Santa  Barbara,  onde  imprimisse  uma  certa  uniformidade  de  ensino 
e  de  disciplina,  para  assim  tornar  mais  proficuos  os  esforgos  dos  seus 


1  Dr.  Scusa  Viterbo,  Mantiel  Correa  Monte  Negro,  p.  13. 

Ainda  hoje  se  chama  ao  apparelho  em  que  se  vSo  reunindo  as  letras  com- 
ponedor,  e  compoiitor  ao  que  as  reune  ;  batedor  é  o  que  dà  tinta,  embora  jà  se  n2o 
usem  as  balas  com  que  se  batia  na  fórma  tjpographica,  communicando-lhe  a  tinta; 
ainda  se  diz  tirar  e  retirar  ao  imprimir  por  uma  e  outra  banda,  mas  impresaor  ao 
que  faz  este  trabalho. 

^  Yisconde  de  Santarem,  Quadro  Elementare  t.  ni,  p.  178. 

3  Idem,  ibid.,  p.  199. 

*  Idem,  ibid.,  p.  206. 


346  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

patrìcios  e  os  Intuitos  do  monarcha.  Diogo  de  Gouvèa  apenas  conse- 
guiu  do  proprietario  do  Collegio  o  arrendamento  em  1520;  porrentura 
a  morte  de  D.  Manuel  causou-lhe  algum  transtomo,  porque  em  feve- 
reiro  de  1523  apparece-nos  condemnado  no  tribunal  por  atrazo  de  ala- 
gueres.  De  D.  JoSo  in  obteve  entSo  cinquenta  bolsas  ou  subsidios  para 
estiidantes,  collegiaturas  que  foram  tambem  coadjuvadas  pelo  cardeal 
infante  D.  Affonso.  Este  auxilio  garantiu  a  existencia  do  Collegio  de 
Santa  Barbara,  que  desde  1526  entrou  em  urna  actividade  normal,  e 
onde  Diogo  de  Gouvèa  mostrou  as  mais  extraordinarias  aptidSes  pe- 
dagogicas.  Ahi  entraram  logo  com  o  grào  de  me&tres  Mar9al  de  Gou- 
vèa, André  de  Gouvèa,  Diogo  de  Gouvèa,  o  novo,  e  Antonio  de  Gou- 
vèa, sobrinhos  do  famoso  Principal,  que  teve  por  alumnos  os  mais  as- 
Bombrosos  espiritos  da  Rena8cen9a.  Na  giria  escholar  era  conhecido 
pela  alcunha  de  Smapivonis  (Engole-moatàrda),  termo  conservado  por 
Francisco  Rabelais,  e  applicado  tambem  a  André  de  Gouvèa;  està  al- 
cunha referia-se  à  mansuetude  e  benignidade  com  que  supportavam  as 
fadigas  do  magisterio,  vencendo  as  coleras  violcntas  em  que  de  ordi- 
nario càem  OS  que  aturam  alumnos  indisciplinados.  ^  Além  d'està  re- 
forma do  methodo  pedagogico,  Diogo  de  Gouvèa  n2o  se  aterrava  com 
a  liberdade  mental  dos  seus  collegiaes,  e  diante  da  crise  diffidi  do  Scho- 
lasticismo,  que  decaia  luctando,  e  do  experimentalismo  da  Renascen9a, 
que  penetrava  na  Universidade  de  Paris,  elle  deixou  invadir  o  Collegio 
de  Santa  Barbara  pela  corrente  das  doutrinas  humanistas,  comò  vèmos 
nas  homenagens  de  veneratilo  que  Ihe  consagraram  os  regentes  dos  mais 
ruidcsos  cursos,  o  philosopho  JoSo  Gelida  e  o  mathematico  Femel.  Para 
obter  as  cinquenta  bolsas  ou  collegiaturas,  o  Doutor  Diogo  de  Gouvèa 
veiu  a  Portugal  para  apresentar  o  seu  pedido  a  D.  JoSo  iii;  em  prin- 
cipio de  1526  ainda  se  achava  em  Lisboa.  No  Collegio  de  Santa  Bar- 
bara, 0  talentoso  JoSo  Fernel,  que  para  ali  entrara  comò  alumno  em 
1523,  regia  um  curso  de  Philosophia,  explicando  com  a  maior  lucidez 
0  texto  de  Aristoteles  desannuviado  dos  commentadores,  e  juntamente 
com  està  disciplina  encetara  um  curso  de  Mathematica,  para  o  qual 
compoz  uma  obra  a  pedido  do  Principal  Diogo  de  Gouvèa.  Foi  em 
1527  que  Fernel  publicou  o  seu  Monalosphaerium,  dedicando-o  a  Diogo 
de  Gouvèa;  fóra  consagrado  ao  primeiro  anno  do  seu  curso,'  frequen- 


1  A  loca9So  :  Chegar  a  mostarda  ao  nari*^  significa  a  explosSo  da  colera  nSo 
reprimida.  Revela-nos  o  seiìtido  da  alcunha  rabelaisiana. 

<  TranscrevemoB  em  seguida  a  importante  Carta  de  Fernet  a  Diogo  de  Gouvèa: 
•Ao  varào  perfeitisaimo  e  sem  èenào,  e  cdé>errimo  douior  em  Sagrada  TheolO' 


OS  HUMANISTAS  E  A  KEFORMA  DA  IJNIVERSIDADE  347 

« 

tado  por  muitos  alumnos  portugaezes,  hoje  totalmente  desconhecidos, 
corno  JoSo  Baptista^  JoSo  Ximenes^  Manuel  de  Teyve. 

0  curso  do  segando  anno  foì  intitulado  Cosmotheoria,  e  professado 
em  1528.  Fernel  dedicou  a  obra  a  D.  Jofto  in,  em  reconhecimento  dos 
altos  beneficfes  que  o  Collegio  de  Santa  Barbara  Ihe  devia;  e  apresen- 
tando 0  9ea  trabaiho  mostra  esperanQa  de  qùe  os  seus  novos  methodos 


già,  Diogo  de  Gouvèa^  Joào  Fernet,  naturai  de  Amiena,  apresenta  o$  eeus  respeito» 
809  cumprimentoa. 

Quando  andavas  a  dispdr  as  cpusas,  6  varSo  integcmmo,  para  urna  partida 
longinqua  e  exposta  a  vaiios  perigos,  para  o  serenissimo  rei  dos  portugnezes,  mais 
do  que  urna  vez  me  rogaste  que,  na  tua  ausencia,  imaginasse  eu  alguma  cousa  por 
meio  da  qual  os  espiritos  festivos  e  brincalfaoes  dos  mancebos  (mórmente  d'aquel- 
les  que  tinhas  acreditado  deverem  ser  por  mim  educados)  podessem  colher  as  flo- 
rinhas  e  as  abastauQas  suavissimas  das  disciplinas  mathematicas,  e  comò  por  um 
accrescentamento  de  joias  estrangeiras  tomassem  as  outras  artes,  com  as  quaes 
se  misturassem,  mais  ìllustres  e  mais  apreciaveis. 

Pois  s&o  com  effeito  de  tal  natureza  que  acarretam  brilho  e  esplendor  4s 
cousas  yulgares,  e  conseryam  durante  toda  a  rida  o  espirito  no  corpo  corno  que 
banhado  por  um  certo  e  incrivel  deleite:  o  que  a  nobreza  parece  conseguir  n'aquillo 
a  que  se  applica. 

Porém,  emquanto  ao  que  me  diz  respeito,  com  o  firn  de  fazer  alguma  cousa 
digna  do  teu  pedido,  ordenei  immediatamente  ao  meu  animo  aqnillo  que  eu  co- 
nheci — que  tu  beijavas  e  abra^avas  piedosamente  este  genero  de  afagos.  A  estas 
cousas  accresceu  tambem  um  frequente  e  quasi  diario  pedido  da  mocidade  estu- 
diosa, a  qual  eu  conhecera  d^isso  ter  ainda  mais  desejos.  Pertanto,  apresentados 
estes  preambulos  nSo  yulgares,  para  um  tal  fim,  à  obra  do  uso  de  urna  s6  Esphera, 
ha  jà  multo  tempo  come^ado,  Ihe  puz  jd  a  ultima  demSo,  com  a  qual  obra  se  abrisse 
um  caminho  mais  ezpedito  a  todos  para  os  segredos  das  mathematicas.  Isto  s6  na 
verdade  para  a  habita^ao  de  cada  um,  e  àquem  e  além  do  equador  basta  que 
accommodes  as  utilidades  sem  nenhum  trabaiho,  de  modo  que,  regulando-te  pelos 
prìncipios  astrologicos,  nada  pareva  teres  omittido. 

Porém,  se  alguem,  apesar  d'isto,  entregando-se  a  impertinentes  censuras,  as- 
severar que  aquelle  mesmo  instrumento,  ao  qual  dèmos  o  nome  de  Monaloephae- 
ritmif  apresenta  semelhan^s  eom  o  Astrolabio,  com  certeza  n£o  o  negaremos  — tem 
parecen^as  com  o  Astrolabio  :  porém  com  mais  presteza,  e  na  realidade  mais  em 
geral,  abaia  e  esparse  por  baizo  a  agua. 

£  por  isto  todos  hào  de  julgar  que  o  mesmo  deve  ser  preferido  ao  Astrola- 
bio, por  isso  que  sSo  mais  nobres  as  artes  quanto  menos  trabaiho  dSo.  Como  se 
alguma  arte,  visto  o  céo,  ensinasse  a  abarcar  todas  estas  utilidades,  julgaremos 
todavia  està  mais  digna  do  que  aquella,  carecendo  de  urna  ezplica^o  enorme,  nSo 
so  dos  volumes,  mas  tambem  dos  orgSos. 

Porém  este  trabalhinho,  seja  là  apreciado  comò  for,  comò  se  estivesse  pre- 
parando para  a  edi^So,  por  qualquer  parte  que  (bem  comò  ave  come^ando  a  co- 
brir-se  de  pennugem,  a  qual  pela  prìmeira  vez  sae  do  ninho  momo),  olhou  em  volta 


•350  HISTORIA  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

A  par  de  Fernel  figura  no  professorado  de  Santa  Barbara  o  va- 
lenciano  JoSo  Gelida,  patricio  de  Celaya,  mas  antagonista  implacavel 
do  Schoiasticismo.  Gelida  tinha  sido  discipulo  de  Joilo  Bibeiro^  o  en- 
thusiasmado  celaysta,  porém  o  estudo  do  grego,  auxiliado  pelo  seu  do- 
mestico  Postel,  fel-o  comprehender  que  Aristoteles  era  multo  differente 
do  que  propagavam  os  commentadores  medievaes  (idèa  que  sustentou 


em  que  faz  finca-pé,.com  as  quaes  a  triste  ignorancia  é  afugentada,  e  as  mentes 
se  patenteiam  mais  divinas. 

Por  todas  as  partes  estes  teus  immortaes  feitos  proclamam  que  o  teu  animo 
é  propenso  a  beneficiar  os  estudiosos,  e  de  ti  fallam  corno  se  fosses  nm  verdadeiro 
asylo. 

£ls  porque  tenho  eaperan^as  que  a  nossa  CosMOTHKOBLà  ha  de  chegar  com 
mais  8eguran9a  às  tuas  màos  regias,  e  ha  de  ser  ataviada  com  mais  esplendor. 

E  pofltas  de  parte  estas  cousas,  narrare  nSo  so  as  grandezas  dos  elementos, 
mas  tambem  as  grandezas  dos  globos  celestes,  os  sitios,  a  composiQSo  das  partes, 
mas  tambem  esplicare,  em  geral  e  com  lucidez  os  movimentos  dos  astros. 

Cada  urna  das  quaes  cousas  se  por  acaso  alguem  jolgar  talvez  fìngidas,  e 
(comò  dizem)  feitas  diante  de  urna  tela  ou  panno  de  armar,  por  parecer  arduo  e 
temerario  definir  aquellas  cousas  que  s&o  com  effeito  dlfficeis  para  serem  defini* 
das,  esse  sem  duvida  tem  a  consciencia  de  ser  um  nesdo. 

Pois  as  agglomera^oes  dos  astros,  as  opposi^òes,  os  eclipses,  vémoNos  occor- 
rerem  exactamente  nos  proprios  momentos  em  que  os  astronomos  mais  eruditos 
com  antecedencia  declararam  que  ha  viri  m  de  apparecer. 

£  por  acaso  este  indicio  nào  convence  mais  do  que  cabalmente  de  que  exis- 
tem  razòes  dos  movimentos  celestes  nsU)  ignoradas?  Oxalà  que  aquelles  logares 
das  terras  de  que  a  cada  passo  os  nauticos  nos  estSo  fallando  os  marcassem  tam* 
bem  com  suas  latitudes  e  longìtudes  !  £is  porque  se  alguem  disputar  àcerca  das 
grandezas  dos  orbes,  esse,  trocaudo  o  gr&o  para  as  demonstra95es  de  Ptolomeo, 
cederà  immediatamente  do  seu  campo  victorioso  :  pois  a  ninguem  foi  dado  destruir 
estas,  e  nem  sequer  vel-as,  tamanha  é  a  for^a  d'ellas,  e  tanta  a  ezcellencia  da  sua 
evidencia. 

Eis  porque  determinai  seguir  n'este  trabalho  corno  anctoridades  de  primeira 
ordem  a  este  auctor,  com  Affonso,  rei  de  Castella,  e  a  Alphragano  (Alfergani) 
com  o  fim  de  que  se  alguma  cousa  parecer  ardua  ou  digna  de  admira^So  u£o  seja 
eu  so  tido  comò  auctor  de  tal  asser^ào,  mas  tambem  elles.  Pois  d^estes  tambem 
colhemos  documentos,  os  quaes  para  com  elles  sendo  tidos  corno  invenciveis  de* 
moustra^oes,  os  submettemos  ao  nosso  trabalho,  comò  uns  certos  principios  e  fun- 
damentos  da  arte  astronomica  ;  n'estes  finalmente  tudo  quanto  resta  da  obra  se 
baseia  completamente  e  teve  o  seu  incremento  mais  solido.  Mas  para  que  houvesse 
de  ser  de  mais  utilidade,  terminamos  a  Cosmothisobu.  com  o  Planethodio:  instru- 
mento o  qual  à  primeira  vista,  sem  incommodo  algom  de  calculo,  apresenta  os  lo» 
gares  dos  astros  e  suas  phases  em  cada  um  dos  dias,  patenteando  ao  mesmo  tempo 
um  comò  registro  das  opera^oes. 

S&o  estas,  pois,  ó  magnifico  rei,  as  cousas  que  eu  tinha  para  consagrar  à  tua 
serenidade,  com  o  fim  de  que  a  ellas  teu  nome  desse  esplendor,  corno  astro  matu- 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  351 

tambem  Antonio  de  Gouvèa  na  celebre  pugna  com  Fedro  Ramus),  e 
tratou  de  remodelar  a  educa9So  da  saa  intelligencia,  vindo  a  merecer 
do  eradito  Vìves  o  epitheto  de  cAristoteles  do  seu  tempo».  Gelida  de- 
dicou  ao  Doutor  Diego  de  Gouvéa  a  sua  obra  De  quinque  UniversalUms, 
onde  compara  o  Collegio  de  Santa  Barbara^  na  demoIiySo  do  regimen 
intellectual  da  Edade  mèdia,  com  o  cavallo  de  Troja,  d'onde  saiam  os 


tino,  e  o  movimento  das  estrellas  se  tornasse  mais  esplendido  com  o  accrescenta- 
mento  de  nm  novo  astro. 

Ncm  julgnei  eu  na  verdade  que  taes  cousas  houvessem  de  ser  dissonantes 
ao  teu  festivo  engenho,  sendo,  corno  na  realidade  é,  tHo  admiravelmente  organi- 
sado  para  os  segredos  da  natureza,  e  patenteando  um  arder  tlo  vivido  para  as 
emprezas  difficeis. 

Abra^ando  tu  pertanto  està  contemplammo  celeste,  tens  patente  a  contempla- 
mmo de  todo  0  mondo. 

Visto,  pois,  estar  j&  sob  a  inspecmSo  dos  tens  olhos  a  grandeza  do  orbe,  de 
maneira  que  d'elle  nada  te  seja  occulto,  e  os  mais  remotos  confins  do  globo  te  se- 
rem  patentes  pela  industria  dos  reis  teus  antepassados,  e  com  um  tal  nome  nSo  so  o 
povo  christào,  mas  tambem  toda  a  corda  dos  cosmographos  do  nosso  seculo,  urna 
aurèola  de  gloria  cinge  o  nome  luzitano,  nSo  menor  &  que  cingiu  o  nome  dò  alexan- 
drino  Ptolomeo.  Aquella  na  verdade,  porque  jà  totalmente  foi  destruido  por  varìoa 
o  commercio  com  os  turcos  de  ter  aromas  para  vender  :  estes,  porèm,  porque  as  ez- 
tremidades  do  austro  e  do  oriente,  até  agora  desconhecidos  pelos  nossos  homens, 
abriram  caminho  para  o  nosso  seculo.  Nem  eu  j&mais  tinha  ezaltado  com  os  seus 
devidos  louvores  aquelle  Henrique,  illustre  prole  de  JoSo  primeiro  d'este  nome,  o 
qual,  0  primeiro  de  todos,  se  entranhou  pelas  praias  africanas  e  ethiopicas  com  o  fim 
de  visitar  taes  logares,  e  além  dHsso  abriu  caminho  para  o  promontorio  da  Etbiopia, 
com  incremento  nào  vulgar  de  todo  o  relno.  Depois  do  qual,  Bartholomeu  Dias  e 
Fedro  Cao,  grandemente  conhecedores  da  arte  de  navegar,  desde  o  promontorio  da 
Etbiopia  até  k  ilha  de  S.  Thomé,  d'aqui  passando  além  d^aquelle  cabo  antartico  da 
Boa  Esperan^a,  foram  os  primeiros  que  (pelo  menos  por  este  caminho)  alli  chega- 
ram.  Os  quaes,  no  reinado  de  D,  JoSo  u,  com  o  cognome  de  bom  agouro — de  Boa 
EsperanQa, — em  Sophala,  regiSo  da  Arabia  (a  qual  julgamos  que  fora  chamada 
Ophir  e  Sophir,  no  segundo  livro  do  Paralipomenos)^  hastearam  a  cada  passo  as 
bandeiras  da  Lusitania,  indicando  bastantemente  o  arder  de  que  estavam  devo- 
rados  de  augmentarem  e  territorio  de  Portugal. 

Porém,  come  a  estes  de  nenhum  mode  fosse  licito  avan^r  mais  além,  pas- 
sados  alguns  annos  maior  desejo  dominou  a  D.  Manuel,  rei  illustrissimo,  e  Vasco 
da  Gama  e  Paulo  da  Gama,  irmlos,  se  fizeram  ao  mar,  os  quaes  nlo  semente  se 
apossaram  de  Sophala,  mas  tambem  de  Callicut,  e  se  apoderaram  tambem  das  re- 
giòes  ulteriores  e  opulentissimas  da  India. 

Na  maior  parte  dos  logares  foram  levantadas  4  for^a  fortifica^Ses,  defendi- 
das  por  machinas  bellicas,  e  dispostos  présidios  em  varios  pentos,  para  que  sem 
grandes  difficuldades  fossem  repellidos  os  ataques  dos  infieis  enraivecidos.  E  to- 
das  estas  cousas  tu  agora  conservas  com  cmdado  e  augmentas  4  custa  de  despe- 
zas,  ampliando  e  teu  imperio  cuidadosamente.  Um  novo  mundo  se  ergue,  sendo  tu 


352  UISTORIÀ  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  COIMBRA 

priBcipaes  talentos  da  Renascenja.  *  0  Doutor  Diogo  de  Gouvéa  achou- 
se  envolvido  nas  questue»  religiosas  do  secalo  xvi,  mas  o  seu  espirita 
toleraate,  no  meio  das  mais  exaltadas  pugnas  theologicas,  fez  com  que 
OS  adversarios,  corno  Robert  Etienne  e  De  Thou,  apenas  Ihe  jogassem 
urna  ou  outra  phrase  sarcastica,  mais  mordente  para  a  Sorbonne  do 
que  para  o  venerando  pedagogo. 


mesmo  d'elle  o  fundador,  o  qual  nem  Alexandre  macedooioo,  nem  Ptolomeo  ale- 
xandrino,  jàmais  dirSo  sereni  d'elle  fundadores,  ou  que  o  houvessem  conhecido. 
Aquelle  ourO|  o  qual  antigamente  o  Sophir  mandava  com  frequencia  a  Salerno, 
esse  BÓ  a  ti  hoje  é  concedido.  Finalmente  aquellas  madeiras  de  cedro,  aromas  e 
pedras  que  recebeu  da  Persia,  para  ti  s&o  remettidas,  corno  se  emquanto  4  or- 
dem  tu  houvesses  succedido  a  SalomSo.  Aquelles  que  para  elle  corriam  de  toda 
a  parte,  com  o  fim  de  haurircm  d'elle  a  sabedoria,  procuram-te  com  mais  ardentes 
desejos,  com  o  fim  de  tu  os  confirmares  na  fé  de  Christo.  Indicam-n'o  esses  que 
nao  so  agora  junto  de  ti  s^  emissrios  do  reino  ethiopico  de  Manicongo,  mas  tam- 
bem  do  amplissimo  potcntado  do  Preste  Joào  daa  Indias.  E  eis  que  a  quarta  parte 
do  mundo,  à  qual  os  nossos  pozeram  o  nome  de  America,  n'uma  grande  parte  em 
tua  honra  abaixa  os  feixes  e  os  estandartes  :  onde,  a  36  gr4os,  para  a  latitude  bo- 
real,  um  immenso  e  riquissimo  rio  se  apresentou  no  anno  passado  k  vista  dos  teus, 
do  qual  (cousa  inaudita)  a  barra  se  alarga  por  vinte  e  oito  milhas,  e  até  mesmo 
dizem  que  a  agua  potavel  corre  para  o  mar  por  e8pa90  de  vinte  milhas.  Porém 
nós  realmente  nao  nos  encarregamos  de  narrar  prodigios  taes  senSo  para  que  el- 
les  sejam  apregoados  comò  cousas  dignas  de  serem  sabidas  por  toda  a  parte.  Pois 
jÀ  alcan^aram  tanta  extensào,  que  passam  jà  comò  em  adagio. 

Recebe,  pois,  ó  serenissimo  rei,  por  tua  augusta  benevolencia  e  vulto  riso- 
nho,  nossas  lucubra^oes  àcerca  da  contempla9So  do  mundo  :  para  que  nSo  so  todos 
confessem  que  a  Lusitania  produzira  isto  comò  uma  novidade,  e  aguce  os  dentéÌB 
Theoninos  firmado  no  favor  da  tua  magestade,  e  assim  ligaràs  com  maior  aperto 
na  verdade  a  Femel  em  alguma  cousa  que  Ihe  fór  dedicada.  Adeus,  6  indTto  rei, 
8upplico-te  que  descobertas  as  partes  das  terras  para  a  luz,  Christo  as  acceite  nos 
céos.  Paris,  um  dia  antes  das  nonas  de  fevereiro,  anno  1528.» 

(Da  dedicatoria  da  Cosmoiheoria,  libros  duos  complexa;  reprodnzida  por  Qui- 
cherat,  op,  cit.,  1. 1,  p.  352.  Devemos  a  traduc^&o  ao  professor  Manuel  Bemardes 
Branco  ) 

1  Archivamos  aqui  a  tradnc92o  da  Carta  de  Odida  a  Diogo  de  Grouvèa: 

tjoào  Gelida  apretenta  seus  mui  respdtosos  cumprimentos  a  Diogo  de  Gouvèa, 
gravissimo  professor  das  sagradas  lelras. 

N'estes  ultimos  dias  amplific4moB,  6  varSo  eruditissimo,  a  razSo  de  discor^ 
rermos  àcerca  das  ciuco  vozes,  e  passadas  algumas  horas  de  molestissimo  traba- 
Iho,  pareceu  conveniente  entregal-o  ao  teu  nome  para  Ihe  dares  luz:  nSo  porque 
julgue  eu  que  este  t2o  insignificante  opusculo  sega  proprio  para  se  apresentar 
a  um  vario  tSo  illustre,  mas  sim  porque  eu  fa^o  aquillo  que  é  do  meu  dever  :  ou 
para  melhor  dizer,  que  nem  sequer  cnmpro  em  harmonia  oom  o  men  dever  aquillo 
que  a  humanidade  e  a  religiosa  integridade  dos  costumes  exigem  em  multo  maior 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  353 

A  publicafSo  quo  Robert  Etienne  fez  dos  Evangelhos  pela  pri- 
meira  vez  sobre  manuscriptos  gregos,  collacionando-Ihes  as  yariantes, 
produziu  um  immenso  roido  na  Universidade  de  Paris.  Os  doutores  re- 
clamaram  dos  poderes  publicos  urna  anctorisa9So  para  nada  ser  publi- 
cado;  attenta  a  necessidade  de  manter  a  orthodoxia,  sem  o  seu  exame 
prèvio.  Robert  Etienne  ficou  envolvido  na  réde  da  argumenta9So  ca- 


escala.  E  sendo  tu  pois  para  com  o  rei  de  Portugal  um  varslo  de  tamanha  aucto- 
rìdade  e  lealdade,  que  d*elle  recebes  alumnos  para  por  ti  Berem  edueados,  todos 
hSo  de  julgar  pienamente  racional  que  està  primeira  prodac9So  do  meu  engenho 
te  haja  de  ser  consagrada,  dadìva  qne  em  harmonia  com  a  condi^ào  do  meu  animo 
e  Yontade,  espero  que  tu  sem  grande  custo  has  de  acceitar.  Pois  é  proprio  de  um 
homem  liberal  (e  todos  dizem  que  o  és)  o  mostrar  magnanimidade,  e  nSo  o  receber 
dadivas.  Porém,  se  na  occasiào  presente  eu  me  esfor^asse  em  narrar  os  teus  lou- 
vores,  e  os  da  nossa  casa  de  Santa  Barbara,  de  que  és  Principal  diligentissimo,  na 
oecasiào  presente  eu  me  esfor^arìa  para  continuar,  e  emprehenderìa  percorrer  um 
vasto  mar,  no  qual  teria  eu  de  me  arreceiar  antes  do  naufragio,  do  que  da  salva- 
9S0.  Quem  ignora,  pois,  ó  deuses  immortaes,  que  do  collegio  de  Santa  Barbara,  corno 
de  um  cavallo  de  Troya,  tém  saido  varoes  fortissimos,  os  quaes  tém  combatido  e 
combatem  sempre  com  ardor  nos  arraiaes  dos  medicos  e  dos  theologos.  Entre  os 
quaes  poderemos  mencionar  JoSo  Major,  varSo  na  realidade  nunca  assaz  louvado. 
Porém,  se  voltarmos  as  atten^oes  para  os  acampamentos  Justinianeos,  veremos 
que  a  maioria  é  do  Senado  parìsiense,  produzida  pela  nossa  fecundissima  Bar- 
bara, da  qual  manam  fontes  de  todo  0  genero  de  doutrìna,  nio  sendo  fora  de  pro- 
posito o  affirmar  que  ella  é  um  comò  centro  em  volta  do  qual  giram  nossas  aca- 
demias,  estando  aquella  sempre  presente  às  nossas  vistas.  Eìs  porque  te  devo  dar 
08  parabens,  6  varSo  peritissimo,  por  seres  tu  a  causa  de  florescer  t2o  notavel- 
mente  Barbara,  e  por  melo  de  seus  servi^os  ainda  tenha  de  floreseer  mais  e  mais. 
Apresento-te,  pois,  este  opusculo  dedicado  ao  teu  nome,  e  pe^o-te  que  o  acceites 
para  que  elle  possa  com  mais  valentia  resistir  às  calumnias,  e  arrostar  com  mais 
denodo  os  ataques  dos  invejosos.  Pois  com  efieito  eu  auguro  que  nào  tém  de  fal- 
tar  calunmiadores,  os  quaes  talvez  pretendam  attentar  contra  o  nosso  proposito. 
Mas  julguei  que  d*elles  nenhum  caso  deverìamos  fazer,  mórmente  corno  ninguem 
se  tenha  julgado  de  urna  classe  t2o  abjecta,  que  n2o  haja  lucrado  alguma  cousa 
com  taes  estudos. 

E  eis  porque,  se  por  conselho  de  Aristoteles  (corno  refere  Quintiliano)  seja 
vergonhoBO  0  ficar  calado,  e,  comò  Isocrates  diz,  o  softrer,  nSo  fica  0  nosso  traba- 
Iho  esposto  a  labéo,  com  a  manifestammo  de  taes  cousas,  as  quaes  dizem  respeito 
à  intclligencia  das  ciuco  vozes,  e  por  outros  foram  passadas  em  claro,  e  annuindo 
a  quotidianos  pedidos  eu  n'ellas  trabalhei.  Adeus,  pois,  6  sectarìo  da  doutrina  de 
Paulo  e  acerrimo  refutador  dos  lutheranos,  e  continua  a  favorecer  com  a  tua  cos- 
tumada  benevolencia  ao  teu  Gelida.  Do  Collegio  de  Santa  Barbara,  a  seis  das  ka- 
lendas  de  outubro  do  anno  1527.» 

(Publicada  à  frente  da  obra  De  quinque  Univeraalibua,  e  reproduzida  em  la- 
tim  por  Quicherat,  op.  ciL,  1. 1,  p.  850.  Devemos  a  traduc^So  ao  professor  Manuel 
Bomardes  Branco.) 

HIST.  UN.  23 


354  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Buistica  doB  doutores,  que  nSo  Babiam  grego  ;  quando  se  via  for9ado  a 
sair  de  Eran9a,  contou.os  sena  trabalhoB  n'am  opuscido:  Ab  cemuraa 
do8  Theologos  de  Paris,  pdas  quaea  tìnham  falsamente  candemnado  as 
Bibliqs  impressas  por  Robert  Etienne.  N'este  escrìpto  figura  entre  os 
censores  o  nosso  Doutor  Diogo  de  Gouvèa,  o  velho:  cEu  voltei  ao  tri- 
bunal; pe90  que.  elles  presentes  digam  o  que  tém  contra  mim  e  que 
produzam  o  resto  dos  seus  articulados.  Assiin  for^adosy  vieram  dez,  se 
bem  me  lembr0|  entre  ob  quaes  estava  Odoacro,  seu  orador,  Picard,  e 
Govea  0  antigo^  Entraram  no  couBelho  apertado,  que  estava  reunido 
em  multo  maior  numero  que  de  costume;  porque  todos  ob  oardeaes  e 
bispoB  seguiam  o  tribunal  e  ali  estaram  ;  o  oondestaveli  segundo  depois 
do  rei|  e  o  chanceller.— Estes  dez,  em  nome  de  todos,  me  davam  o  com- 
bate  a  mim  so.  Depois  deuse-lhes  ordem  para  que  apresentassem  os 
artigos  ou  erro8|  se  assim  Ihe  quizerem  chamar.  Tendo  debatido  mui- 
tas  couBaS)  com  grandea  risadaB  de  toda  a  assemblèa,  por  causa  daa 
Buas  birras  tumultuosas,  porque  elles  discordavam  entre  si,  enraireci- 
dos  um  contra  o  outro,  deblaterando  ambos,  foi-mé  ordenado  de  re- 
sponder  immediatamente  e  fallar  por  mim.  Croio  que  na  minha  defeza 
a  objurgajSo  de  que  usci  pareceu  muito  dura  aos  dez  embaixadores; 
comtodo,  a  yerdade  da  cousa  obrigou  a  alguna  d'elles  a  testemunhar 
que  as  minhas  annotaySes  eram  muito  uteis.»  No  mesmo  folheto  de- 
screve  o  esame  ao  exemplar  dos  Evangelhos,  feito  pelos  theologos  da 
Universidade  :  e  Finalmente,  eu  Ihe  apresento  no  seu  conclave  nos  Ma- 
thurins  o  Novo  Testamento  por  mim  impresso;  e  entSo  presidiam  Gh- 
vea  e  Le  Bouz,  que  me  tinham  grande  inimisade,  homenB  muito  igno- 
rantes,  mas  bastante  cautelosos  fabricadorea  de  ratoeiras  contra  inno- 
centes.  Elles  vSem  que  é  grego  o  que  esti  impresso.  Pedem  que  Ihes 
tragam  um  velho  exemplar.  Pensaes  que  era  para  lèr  n'elle!. . .  Por 
fim  concordaram  que  o  encargo  de  lér  està  obra  sera  confiado  a  dois 
de  entre  elles  que  sabam  grego.»'  Nfto  admira  que  o  Doutor  Diogo  de 
G-ouvda  n&o  fosse  um  hellenista;  era  o  estudo  do  grego  alheio  à  sua 
època  escholar,  comò  observa  Quicherat,  que  nota  a  fraqueza  dos  ata- 
ques  dos  adversarios  theologicos  contra  tSlo  eminente  individualidade. 
Na  adminiatra9&o  e  governo  litterario  do  Collegio  de  Santa  Barbara, 
era  o  Principal  auxiliado  por  seu  sobrinho  André  de  Gk>uvèay  le  plus 
grand  principal  de  France,  corno  Ihe  chamava  Montaigne,  e  que  vere- 


1  Ghwnde  parte  d*68te  folheto  foi  publicado  por  Firmin  Didot,  na  Biographia 
de  Boberi  Etienne* 


OS  HUMANISTAS  E  A  BEFORIIA  DA  UNIYERSIDADE  355 

BIOS  mais  tarde  convidado  por  D.  JoSo  m  para  fondar  o  Collegio  retd 
em  Coimbra.  Quando  Mestre  André  de  Qouvda  come9oa  a  govemar 
Samta  Barbara,  segaiu  a  doutrina  da  Renascen^ai  em  rivalidade  com  o 
Ci^egio  de  Montaigay  qae  se  mantinha  nos  velho3  methodoB  aolioUuk 
ticos.  André  de  G-ouvèa  ohamou  para  o  Collegio  o  celebre  LatomnSy 
amigo  de  Erasmo  e  um  renovador  da  Dialeotica  pelo  seu  criticismo. 
LatomuB,  propagando  em  Franca  o  livro  revolacionarìo  de  Bodolpho 
Agricola,  De  inventione  Diaìectica,  poz  em  alarme  todo  o  corpo  theo- 
logico,  que  achava  isso  um  desacato  a  Arìstoteles.  Beconhecido  &  prò- 
tec9So  de  André  de  Goavéa^  Latomos  dedicou-lhe  o  resumé  da  obra 
de  Agrìcola.  *  Bastam  estes  simples  faotos  para  nos  revelar  comò  a  in- 


1  Transcreyemos  em  segaida  a  Carta  de  Bartholomeu  Latofnm  a  Mestre  An" 
dré  de  Chuvèa: 

«Ck>mo  de  todo  o  genero  de  artes  seja  grande  a  utilidade,  ó  André  de  €K>q* 
yds,  varSo  hUmanissimo,  mas  mai  principalmente  d*aqaella  parte  &  qual  dfto  o 
nome  de — Arte  de  discorrer — ,  parte  da  qual  nSo  so  colhemos  fructos,  mas  tam- 
bem  adquirimos  uma  certa  rasfio  para  formarmos  joizos,  e  para  adquirirmos  todos 
06  conhecimentos  das  bellas  artes.  Pois  nem  a  natnreza,  postoque  a  possoamos 
optima,  basta  por  si  s6,  se  nSo  fdr  resguardada  oom  um  tal  presidio;  nem  em  ge- 
nero algom  de  artes  ou  de  letras  alguem  é  felismente  versadp,  a  nio  ser  que  bfja 
side  imbuido  n*iun  tal  modo  de  discorrer,  o  qual  n2o  so  concorre  com  aquillo  que 
oom  mais  certeza  encaminba  a  mente  d*aquelles  que  se  entregaram  és  letras,  mas 
tambem  deslinda  questoes  que  nSo  pertencem  à  Letteratura.  E  penetrando  no  àmago 
das  (jaestSes,  expliea-nos  as  difficuldades  e  os  embara^os  difficeis,eazTeda-no8  os 
trope^os.  Eis  porque,  e  com  rasSo,  os  homens,  mesmo  os  mais  doutos,  julgaram 
sempre  que  deyia  ser  procurada  edm  o  maxime  empenho.  £,  com  effeito,  nSo  sd- 
mente  elles  mesmos  a  abra9aram  com  grande  ardor  e  desyelo,  mas  tambem  nol*a 
apresentaram  enriquecida  com  a  diligencia  e  estudo  d'elles  :  e  ainda  tambem  nol-a 
atayiaram  com  o  seu  engenho  e  industria  amplissimamente,  destinando-a  para  fru- 
cto  da  sclencia  e  dos  conhecimentos. 

Mas  corno  duas  scgam  as  partes  em  que  ella  se  divide, — a  4e  enslnar  e  ade 
follar,  a  urna  das  quaes  chamam  Dialeotica,  e  dando  A  entra  o  nome  de  Ehetoxicat 
— ^muitas  cousas  por  ellas,  tanto  n*um  corno  n'outro  genero,  nos  foram  transmitti- 
das  com  grande  utilidade.  Mas,  segundo  o  meu  modo  de  pensar,  na  segunda  parte 
trabalbou  com  grandissimo  fructo  Bodolpho  Agricola.  Pois  escreveu  este  yarSo 
&cerca  da  inven^So  dialeotica  um  trabalho  exacto  e  grandemente  desenyolyìdo,  no 
qual,  além  da  doutrina  e  modo  de  tratar  as  cousas,  o  qual  com  a  maxima  oonye* 
nieneia  apresentoa  urna  tal  el^gancia  no  discurso,  que  pareee  ter  n*este  genero 
supplantado  a  todos,  no  conceito  de  todos  os  homens  eruditos.  E,  oom  effeite,  corno 
estes  liyvos  ha  multo  tempo  andam  naa  mSos  de  todos,  e  por  causa  da  sua  utili- 
dade sejam  lidos  nas  escholas,  hayendo  sido  escriptos  com  maior  desenyolfim^tOi 
de  modo  que  nSo  podem  ser  lidos  dentro  de  um  curto  praso,  tratei  de  os  résumir, 

28* 


356  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

fluencia  da  Renascen9a  actnava  no  espirito  de  D.  Jo&o  in,  e  qaal  o- 
caracter  da  projectada  reforma  da  Universidade  de  Lisboa. 

O  elemento  scholastico  come9oa  a  ser  expungido  systematicamente 
da  Universidade  ;  D.  JoSo  m  mandou  por  1529  que  mestre  Frei  JoSo 
de  Gandavo,  ou  Framengo,  dominico,  mestre  em  Artes  e  Theologia 
pela  Universidade  de  Paris,  renunciasse  a  cadeira  de  Metaphyrica,  que 
alcangara  por  oppo8Ì9So  em  15  de  fevereiro  de  1514;  no  conselho  de 
15  de  Janeiro  de  1530  mestre  Frei  JoSo  de  Gandavo  apresentoa  a  sua 
renuncia  de  lente  de  Metaphysica,  pelo  que  o  rei,  em  compensajSo,  e 
tocado  da  sua  obediencia,  o  jubilou  com  13^000  réis  de  ordenado,  por 
provisfto  de  22  de  abril  de  1530.  Vé-se  claramente  que  era  um  golpe 
no  scholasticismo,  porque  Frei  Jo3o  de  Gandavo,  estando  vagas  as  ca- 
deiras  de  prima  e  vespera  de  Theologia,  concorreu  a  ellas,  e,  nllo  appa- 
recendo  outro  oppositor,  foi  previde  em  15  de  fevereiro  de  1532  na 
de  prima.  ^  A  faculdade  de  Theologia  fechava-se  A  corrente  humanista, 
e  comò  protesto  abriu  o  seu  seio  ao  sustentaculo  do  scholasticismo. 
Tambem  por  mandado  de  D.  JoSo  m,  Frei  Luìz,  da  ordem  de  S.  Fran- 
cisco dos  Claustraes,  renuncia  a  cadeira  de  Physica  em  9  de  abril  de 
1530,  pelo  que  Ihe  mandou  dar  urna  ten9a  de  llf$000  réis,  das  rendas 
da  Universidade.  '  As  cadeiras  de  Philosophia  eram  especialmente  prò- 
vidas  em  medicos,  prevalecendo  sobre  a  especula9So  subjectiva  o  cri- 
terio^ da  observaySo  e  da  experiencia,  que  desde  Hippocrates  e  Galeno 
caracterisou  està  categoria  de  sabios.  Era  um  symptoma  auspicioso  da 
Renascenya;  a  Physica  (De  Natura),  a  Metaphjsica  (Prima  phUoso- 
pMa)  e  a  Logica  (Censura  veri)  iibertavam-se  do  imperio  das  entida- 
des  mentaes.  Assim  vamos  encontrar  Pedro  Nunes,  ainda  bacharel  em 
Medicina,  cbamado  &  regencia  de  uma  cadeira  de  Philosophia  maral;  e 


no  anno  passado,  e  agora  finalmente,  pondo  o  maior  empenho  em  que  resumidos 
foimassem  um  compendio,  e  depob,lendo-08  outra  ves,  tratei  de  oe  dar  4  lue  para 
utilidade  dos  estadìoecs.  E  està  ultima  edi^io,  6  André  de  Gouvéa,  julgaei  que 
t'a  devia  dedicar  n*iim  tempo  em  que  és  o  Principal  n'om  amplissimo  Collegio. 
£  eis  porque  t*a  dedico,  comò  é  de  justi^a,  prestando-te  este  preito  da  minha  he- 
menagem. 

Adeus.  15  das  kalendas  de  outubro  (17  de  setembro)  anno  1588.» 

(Vem  pnblicada  &  finente  do  Epitome  eommentariorum  dtalecHeaednveaUoms 
Bodolpki  Agrioolae;  reprodnzida  por  Qoicherat,  op.  dt,,  1. 1,  p.  860.  Traduca  do 
professor  Manuel  Bernardes  Branco.) 

1  NaUu  de  FigueirÓa,  n.»  85,  ao  g  960  das  ^o^tocM  ehronoloffieae.  Àp.  Iiuth- 
Udo,  t  zzY,  p.  268. 

*  Ibidem^  nota  98. 


OS  HUBIANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  357 

Garcia  d'Orta,  que  em  1525  regresaara  de  Salamanca  graduado  em 
medicina;  chamado  A  regencia  de  um  curso  de  PhilosapJua  naturai  e 
4e  Swnmvlas,  Estes  dois  eminentes  homens  de  sciencia;  e  as  maìorea 
^lorias  da  Universidade,  figuram  ao  mesmo  tempo^  quando  a  corpo- 
ra9So  jà  estava  ameayada  de  sair  de  Lisboa;  ambos  se  acham  relacio- 
nados  com  a  grande  figura  historica  de  Martim  A£Fon80  de  Scusa.  Var 
,gando  a  cadeira  de  PhUoaophia  morale  que  regia  Frei  Affonso  de  Me- 
dina,  e  se  ausentou  d'ella,  por  chamado  de  D.  JoSo  ili,  em  1529,  foi 
provido  em  8ubstituÌ9lo,  em  4  de  dezembro,  Fedro  Nunes,  entSo  ba- 
charel  em  medicina,  com  a  obriga9So  de  ièr  duas  li$8es,  uma  theorica 
e  outra  pratica.  Em  15  de  Janeiro  de  1530  renunciou  a  cadeira  de  Lo- 
.gica  JoSo  Bibeiro,  e  o  conselho  escholar  a  encommendou  ao  Doutor  Fe- 
dro Nunes,  lendo  mais  està  cadeira,  tendo  de  salario  20f$000  réis.  Ea* 
creve  Figueirda:  a  attendendo  a  que  fazia  pouco  fructo  na  de  Logica, 
por  falta  de  onvintes,  Ihe  encommendou  a  de  Metaphysica,  a  qual  leu 
por  um  anno.»  A  cadeira  de  Metaphysica  ficara  vaga  pela  renuncia 
de  Frei  Jofto  de  Gandavo,  em  15  de  Janeiro  de  1530.  Fedro  Nunes  dei- 
.xou  a  Universidade,  figurando  ainda  no  exame  privado  de  Luiz  Nunes 
de  Santarem,  em  16  de  novembre  de  1535,  e  no  exame  privado  de  Ma- 
.nuel  de  Loronha,  em  21  de  Janeiro  de  1537  ;  cporém  depois  devia  de 
ir  para  Salamanca,  pois  de  là  veiu  para  lér  a  cadeira  de  Mathematica 
-na  Universidade  de  Coimbra,  de  que  se  Ihe  passou  previsto  em  16  de 
outubro  de  1544,  na  qual  cadeira  jubilou  por  provisSo  de  4  de  feve- 
reiro  de  1562,  tendo  sómente  treze  annos  de  leitura,  e  se  Ihe  levaram 
em  conta  tres  annos  que  leu  Fhilosophia  em  Lisboa,  e  quatro  que  por 
ordem  d'el-rei  assistiu  na  cdrte  entendendo  nas  Cartas  de  marcar  e 
exame  de  pilotos,  para  completar  os  vinte  que  se  requerem  para  a  ju- 
bila9So.»^ 

Fedro  Nunes  foi  mostre  do  infante  D.  Luiz,  ensinando-lhe  cFhi- 
losophia,  Arithmetica,  Geometria,  Acustica  e  Astronomia;  tambem  en- 
sinou  ao  Cardeal  D.  Henrique,  além  da  Arithmetica  e  Geometria,  o 
tratado  da  Esphera,  as  theoricas  dos  Flanetas,  parte  da  grande  com- 
posigSo  dos  astros  de  Ftolomeo,  a  Mechanica  de  Aristoteles,  e  teda  a 
Cosmographia.»'  Exercia  este  cargo  por  1532,  comò  se  infere  da  de- 
dicatoria do  tratado  De  Crepuscìdis  a  D.  Jo&o  ili.  A  sua  reputa$2o 


^  Figaeirda,  net.  108,  às  NoUeioa  ehronologicas;  IrutiMOf  t.  xiy,  p.  281. 
*  Bibeiro  dos  Santos,  Da  Vida  e  EacriptoB  de  Fedro  Nttnea.  (Mem.  de  Liiie» 
raturOf  t.  vn,  p.  251.) 


358  mSTORIA  DA  tTNIVERSIDAOE  DE  GOIHBRA 

corno  nmthematieo  fez  com  que  em  1533,  ao  chegaar  Martini  A£Foii80 
de  Sousa  a  LÌ8boa,  da  expedi^fto  a  que  fòra  mandado  com  una  ar* 
mada  a  esplorar  as  costas  austraes  do  Brazil  e  a  reconhecer  o  Kio  da 
Pirata  (1530),  Ihe  apresentou  nota  de  algons  phenomenos  aatronomicot, 
de  que  Ihe  pediu  a  explica^So  scientifica.  Fedro  Nnnes  compoz,  para 
satiafazer  a  Martini  Àffonso  de  Scasa,  o  Tratado  sabre  certaa  duvida» 
da  Navega^.  Eis  as  duvidas  que  Ihe  formxdara  o  valente  capitSo  :  cera 
a  primeira,  que  estando  ho  sol  na  linha  em  todos  os  logares  em  que 
se  achou  Ihe  nacia  em  leste,  e  se  Ihe  punha  no  mesmo  dia  em  oéste: 
iste  egualmente  sem  nenhila  defereren^  ora  se  achase  da  banda  do  norte 
ora  da  banda  do  sul.  • .  À  segunda  cousa  era  que  elle  se  achara  em 
XXXV  gréos  da  outra  banda  da  linha,  no  tempo  em  que  o  sol  ostava 
no  tropico  do  capricomio  e  Ihe  nacia  ao  sueste  e  quarta  de  leste,  e  se 
Ihe  punha  no  mesmo  dia  ao  sudoéste  quarta  de  loéste,  comò  aos  que 
▼ivem  na  mesma  altura  desta  parte  do  norte:  e  que  nam  via  corno  pò- 
dia  iste  ser:  porque  per  rasam:  assi  avia  de  nacer  aos  que  vivem  da 
outra  banda  do  sul  quSdo  ho  sol  anda  per  os  signos  da  mesma  parte: 
comò  nace  a  nós  quando  anda  desta  uosa  banda.»  A  observa(fto  do 
nascimento  e  pùmento  do  sol  era  um  dos  processos  de  determinar  a 
altura  do  polo,  e  Fedro  Nunes  explicou  geometricamente  as  causas  dos 
phenomenos  que  Martim  A£Fonso  de  Scusa  observara  nos  mares  do  sul. 
£  com  rela^o  i  segunda  duvida  concine:  cE  tudi)  isto  se  demostra  ser 
assi  porque  a  propor^So  que  tS'o  sino  do  comprimente  da  altura  em 
^alquer  régiSo:  cS  o  sino  universal  do  circulo:  essa  mesma  ha  do  sino 
da  declina9So  ^  tem  o  sol  em  qualquer  dia:  ao  sino  do  rumo  em  que 
nace:  o  quo  craramente  se  prova  per  Tolomeo,  no  segundo  do  Altnor 
gesto.  Do  qual  se  segue  quam  facil  cousa  seja:  resguardando  polla  me* 
nhft  0  sol  no  seu  nacimento:  com  a  agulha  bem  verificada:  ou  com  li- 
nha meridiana:  se  for  na  terra:  saber  per  conta  sem  mais  instrumento 
a  altura  do  polo  em  que  nos  achamos:  o  que  eu  em  todo  tempo  sem 
saber  a  bora  Q  he  nem  ter  linha  meridiana:  c8  instrumentos  fa$o.» 
Como  n'este  trabalho  Fedro  Nunes  contradictava  opiniSes  auctoritarìas 
de  Jeronymo  Cardan,  de  Jole  de  Monteregio,  de  Riccio,  de  Zeigler,  de 
Copernico  e  de  outros,  soffireu  algumas  censuras  dos  homens  praticos, 
por  nunoa  ter  enJiarcado;^  refutando  essas  criticas,  escreveu  o  Tra- 


1  VarnhagenY  na  HiHoria  geral  do  Bmsil,  1 1,  p.  467  (not  83),  julga  que  o 
Dr.  Fedro  Nnnea,  que  em  1519  foi  4  India  corno  védor  da  fasenda,  e  do  qual  eas* 
lem  na  Torre  do  Tombe  cartas  de  1521, 1522  e  1523,  é  o  mesmo  Dr.  Fedro  Nimes 
illustre  mathematico  e  astronomo;  para  està  identifica^io  funda-se  na  quasi  simi» 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMÀ  DA  UNIYBRSIDADE  359 

iado  em  defensam  da  Carta  de  marear,  onde  iniciou  o  estudo  da  Lo- 
xodromia,  ou  propriedade  das  lìnhas  oarvas.  Hoefer  escreve  sobre  este 
facto:  «A  loxodromia  ou  Hnha  loxodromica,  sendo  a  linha  percorrida 
por  am  navio  sempre  dirigido  sobre  e  mesmo  rumo  de  vento,  é  urna 
curva  de  dupla  curvatura,  tra9ada  sobre  o  spheroide  terrestre;  ella  é^ 
corno  0  reconheceu  Halley^  a  profecgSo  atereographica  da  spirai  loga- 
rithmica.  Wright,  Stevin  e  Suellius  estudaram  depois  de  Nunes  as  pro- 
priedades  da  loxodromia.»  ^  No  seu  livro  De  CrepuscuHs,  publicado  em 
1542,  Fedro  Nunes  apresentou  a  S0IU9&0  do  problema: — Achar  0  dia 
do  anno  em  que  o  crepusculo  é  mais  breve, — problema  qua  J.  Ber- 
noulli  procurara  longo  tempo  debalde ;{n 'este  livro  se  diz  «existirem  ele- 
mentos  da  theoria  de  Newton  sobre  as  c8res.»  No  seu  trabalho  De  Er- 
ratis  Orontii  Finei,  combate  os  paralogismos  algebricos  do  mathema- 
tico  francez,  que  pretendia  ter  resolvido  o  problema  da  quadratura  do 
circulo.  0  facto  principal  em  que  assenta  a  reputasse  de  Fedro  Nunes 
è  a  descoberta  de  um  instrumento  de  precis&o,  para  supprir  as  peque- 
nas  divisSes  nos  apparelhos  astronomicos;  é  0  Nonio,  Tycho  Brahe  e 
o  Dr.  Hallej  fizeram  um  grande  uso  d'està  divisSo,  que  tomou  0  nome 
do  seu  auctor,  e  se  conservou  até  hoje  entro  os  nauticos  e  os  astrono* 
mos.  '  O  quadrante  mathematico  proposto  por  Fierre  Vemier  em  1631 


Ihan^a  das  assignatnras  manuscriptas  :  ha  doctar  jp.°  nunie.  0  facto  do  provedor- 
mór  da  Fazenda  na  India  se  intitular  doctor,  é  que  torna  improcedente  a  concia- 
bSo  tirada  da  paridade  das  aesignaluras  ;  porqne  em  1529  Fedro  Nunes  era  ainda 
baeharel  em  Medicina,  corno  se  ve  na  sua  provisSo  de  substituto  da  cadeira  de  Phi- 
losophia  naturai.  Que  elle  n2o  fez  viagem  algama  infere -se  de  uma  passagem  da 
Defata  da  Carta  de  marear,  em  que  allude  &  m&  vontade  com  que  os  pilotos  rece- 
bem  as  ezplica^òes  nauticas  dadas  por  aquelles  que  nunca  embarcaram  :  «Bem  sey 
quam  mal  sofrem  os  pilotos  que  fale  na  India  quem  nunca  foy  nella;  e  pratique 
no  mar  quem  nelle  nSo  entrou  :  mas  justificam-se  mal  :  poys  nós  sofremos  a  elles, 
que  com  sua  maa  linguagem  e  tam  barbaros  nomes  ialem  no  sol  e  na  lua  e  nas 
estrellaS)  nos  seus  cìrcnlos,  movìmentos  e  dedina^oes,  etc.»  Fedro  Nunes  era  tam* 
bem  combatido  por  tbeorìcos  auctoritarios,  comò  Diego  de  Sa,  que  em  Paris  pn- 
blicou  a  obra  De  NavigatUme,  libri  tre».  Ribeiro  dos  Santos,  na  memoria  sobre  Fe- 
dro Nunes»  deu  aviso  àcerca  da  possibilidade  d'està  confusSo  :  «por  aquelles  tem- 
pOB  bouve  outro  do  mesmo  nome,  com  quem  se  n2o  deve  confdndir  o  nosso  Nu- 
nes, 0  qual  se  intitula  o  Dputor  Pedro  Nunes,  Veder  da  Fazenda  da  India  em  1520» 
talvez  0  mesmo  que  se  diz  Cbanceller  da  Casa  da  Supplica^  por  1584  e  Juiz  dos 
FeitoB  d*Alfandega  de  Lisboa  no  mesmo  anno  (Mtmoriae  da  Aeademia,  t.  vxr, 
p.  255.)  O  erro  de  Vamhagen  jà  apparece  em  eircula^fto  na  Eutoire  dee  Màthé^ 
mathiqueaf  de  Hoefer,  p.  849. 

1  HiHoire  dea  MàthémaUqueBy  p.  849. 

*  NcuveUe  BieginipMe  generale,  de  Didot 


360  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

• 

é  urna  imita9fto  do  instrumento  inventado  cem  annos  antes  em  Porta- 
gai.  Ribeiro  dos  Santos,  na  apreciavel  biographia  de  Fedro  Nunes,  toca 
0  verdadeiro  ponto  de  vista  critico  por  onde  o  seu  genio  mathematico 
deve  ser  considerado  :  «Em  verdade^  que  se  conhece  bem  o  seu  alto  me- 
recimento  olhando  para  os  annos  em  que  a  escreveu  (a  Algebra);  isto 
é,  desde  1532  ou  1533,  tempos  em  que  nSo  apparecia  em  scena  escri* 
pto  algum  de  gregos  e  romanos,  e  nem  talvez  existia  outro,  senSo  o 
das  Questdes  arithmeticaa  do  aloxandrino  Diophante,  que  lanQOU  n'ellas 
algumas  sementes  da  Ànaljse,  obra  que  ainda  entào  se  nSo  tinha  di^ 
vulgado;  tempos  em  que  apenas  corria  o  livro  de  Qebre  d'entre  os  ara- 
beS)  e  OS  tratados  mais  modemos  dos  italianos,  Fr.  Lucas  de  Borgo, 
Cardan  e  Tartaglia,  escriptores  contemporaneos  do  mesmo  Nunes;  tem- 
pos alfim,  em  que  ainda  se  nào  tinha  dado  à  EquajSo  huma  nova  fórma, 
mais  commoda  para  as  opera95es,  nem  raiado  ainda  o  luminoso  astro 
de  Descartes,  que  as  fez  mudar  de  aspecto,  e  os  de  Leibnitz,  de  Ber- 
nouilli  e  de  Newton,  que  estendeu  os  seus  confins.  »  ^  Fedro  Nunes  foi 
chamado  do  8ervi90  da  Universidade  para  vir  ensinar  Mathematica  ao 
rei  D.  SebastiSo,  fixando  a  sua  residencia  em  Lisboa,  em  1572,  por 
convito  do  monarcha.  '  0  ultimo  anno  conhecido  da  sua  existencia  é  o 
de  1574,  porque  em  o  alvarà  de  12  de  agosto  d'esse  anno  se  Ihe  faz 
a  mercé  de  passarem  padrSes  de  30^000  réis  ao  filho  ou  filha  que  o 
Doator  Fedro  Nunes  nomear  no  seu  testamento.  ' 


1  Vida  e  Eserìptos  de  Fedro  Nune$,  nas  Memoriaa  da  Academia,  t.  yn,  p.  250 
a  283. 

2  Antonio  de  Marìz,  na  Dedicatoria  da  edi^o  de  Coimbra  de  1573  do  tra- 
tado  De  Arie  cUque  rcUiane  naviffotianis, 

'  Fedro  Nunes  recebeu  mnitas  tenQas,  cnjas  cartas  Ribeiro  dos  Santos  dta 
na  sua  biographia.  Transcrevemos  mais  està,  que  &lta  n*aquclle  estudo,  e  que  e«- 
palha  urna  certa  luz  moral  :  «Mt.^  ylustre  sor. — £u  fai  a  S.  M.  sabado  ho  qual  me 
remeteo  a  V.  S.  co  que  heu  mt.®  folguei  que  pois  meu  requirimento  estÀ  em  mSo 
de  y.*  senhoria  nS  se  ade  perder  minha  justi^a;  o  que  pedi  a  el  Rey  noso  sfior  foy 
OS  cem  mil  reis  de  meu  hordenado  que  m*os  de  sua  A.  para  roeus  filhos  e  que  ho 
hoficio  dalfandegua  que  me  tem  dado  para  minha  f.'  que  me  dd  satisfa^io  dele  em 
algna  cooza  boa  e  honrada  para  a  hindia  para  ajuda  de  a  Sncaminhar,  e  os  meus 
trinta  mil  Rs.  de  ten^a  que  eu  coprei  por  me  dr.^  para  mynha  mulher  histo  para 
o  que  mere^  é  mt®  pouquo,  e  pore  fazSndo  està  merce  a  meus  filhos  fiquarey  co- 
solado  que  comò  disse  a  Y.  S.  estft  todas  por  Squaminhar  e  pois  me  en  esqueci 
de  'mynha  mulher  e  delles  por  servir  sua  A.  bem  seri  que  me  fa^  merces  para 
elles  por  descarreguo  de  sua  oonsdencia  que  para  my  hir  me  ey  fazer  hermita  para 
icomSdar  a  da^.  a  S.  A.  e  a  Y.  S. — aqui  m2do  parte  de  meus  servi^os  a  Y.  senho* 
ria  certefiquo  Ihe  que  v2o  mt.*  menos  esciitos  que  gA  parte  dos  que  eu  fiz  pc^o  a 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIYERSIDADE  361 

« 

Vimos  a  inflaencia  que  as  viagens  do  destemido  Martim  Affonao 
de  Sousa  exerceram  sobre  as  estudos  mathematicos  do  Doutor  Fedro 
Nunes;  vejamos  agora  corno  iK^ompanhando  este  capitSo-mór  do  mar 
para  a  India  o  Doutor  Qarcia  d'Orta  se  liberta  das  queatSes  estereis 
dos  medicos  hellenistas  e  arabistas,  indo  à  explora9&o  directa  da  Na- 
tareza,  corno  um  heroe  da  Bciencia  positiva.  Martim  A£Fon8o  de  Sousa 
tinha  chegado  a  Lisboa^  da  exploragSo  das  costas  austraes  do  Brazil^ 
em  1533,  e  logo  em  1534  era  despachado  para  a  India  com  um  cargo 
difficil  e  laborioso,  mas  subalterno  do  vice-rei;  largava  o  Tejo  em  12 
de  maryo  com  ciuco  nàos:  a  Rainha,  em  que  ia  por  capitSo,  acompa* 
nbado  de  muitos  jovens  fidalgos,  que  nunca  o  deixaram  nos  lances  ar- 
riscados;  a  Santa  Cruz,  a  Santo  Antonio,  a  Oraga  e  a  Sam  Miguel. 
Attentas  as  antigas  rela95e8  de  amisade  do  Doutor  G-arcia  d'Orta  com 
Martim  Affonso  de  Sousa,  a  quem  na  velhice  dedicou  o  seu  livro  dos 
Colloquios  dos  Simplices,  é  muito  provavel  que  o  doutor  fosse  compa- 
nheiro  de  viagem  da  nào  Rainha,  e  conversasse  sobre  o  tempo  da  vida 
escholar  em  Salamanca,  onde  tambem  se  achara  o  capitSo-mór  do  mar. 
Martim  Affonso  de  Sousa  era  um  d'aquelles  mancebos  favoritos  de  D. 
Jo2o  III,  quando  principe,  comò  o  foram  D.  Luiz  da  Silveira  e  mesmo 
Sa  de  Miranda.  Quando  D.  Manuel  emprehendeu  o  seu  terceiro  casa- 
mento com  D.  Leonor,  irmS  de  Carlos  v,  que  o  principe  D.  JoSo  pre- 
tendia  para  si,  o  rei  afastou  da  córte  todos  os  que  nSo  approvaram 
esse  tresloucado  consorcio,  e  em  especial  os  amigos  do  principe.  Em 
1521  Sa  de  Miranda  foi  viajar  pela  Italia,  e  Martinf  Affonso  de  Sousa, 
viajando  pela  Hespanha,  visitou  Salamanca,  onde  se  demorou,  namo- 
rando-se  e  casando  ali  com  a  gentilissima  D.  Anna  Pimentel,  filha  do 
regedor  de  Salamanca  e  Talavera,  D.  Aryas  Maldonado.  Depois  do  fai- 


y.  S.  por  que  é  que  veja  tudo  mt.^  bem  corno  de  seu  servidor  e  com  histo  beijo 

suas  m2o8  a  quS  noso  sfior  acrecente  vi(da)  e  estado  por  mt.^  anos.^- servidor  de 

V.  S. 

ho  dolor 
p.^  nunit. 

(Pablicada  pela  primeira  vez  por  Yarnhagen,  na  HUtoria  geral  do  Brcuil^ 
t  I,  p.  468.) 

^  N'esta  carta  refere-se  Fedro  Nunes  ao  alvarà  de  lembran^a  de  21  de  outa- 
bro  de  1557,  da  mercé  de  um  officio  no  reino  cu  na  India,  para  a  pessoa  que  boa- 
vesse  de  casar  com  urna  de  suas  filbas,  e  correspondente  &  categoria  da  pessoa; 
ficou  sem  effeito,  porque  se  trocou  pelo  officio  de  contador  da  camara,  comò  se  ve 
da  nota  marginai  do  escrìv&o  da  Torre  do  Tombe,  de  22  de  abril  de  1562.  (Kibeiro 
dos  Santos,  Und,,  p.  254.) 


362  flISTOBU  DA  UKIYERSIDADB  DB  OOiMBRA 

lecimento  de  D.  Manuel;  em  1521 ,  Martim  Affomo  de  Soosa  oontinuou 
em  Salamanca  &  esperà  que  o  novo  rei  e  seu  antigo  «migo  o  chamasse; 
0  rei  demorou-se  a  fazel-o,  com  oertesii  inflaenciada  pelo  peraimo  ca- 
racter  do  valido  D.  Antonio  de  Athayde,  aquelle  que  maie  soube  captar 
o  monarcha.  D.  Luiz  da  Silveira  retiroa-se  para  a  sua  casa  da  Sorte- 
Iha;  Si  de  Miranda  foi  fruir  a  commenda  das  Duas  Egrejas  para  o  Mi* 
nho;  e  Martim  A£Fon80  de  Scusa  parece  ter  side  afastado  syatematica- 
mente  da  córte  pelas  expedijSes  maritimas  de  1530  e  1534.  Estes  fa- 
ctos  nos  explicam  as  relafSes  de  constante  amisade  do  Doutor  Garcia 
d'Orta  com  Martim  Affonso  de  Scusa.  0  novo  medico  chegara  a  Por- 
tugal  em  1526,  estabelecendo-se  em  Castello  de  Vide;^  a  sua  vinda 
para  a  c6rte  seria  talvez  por  influxo  de  Martim  Affonso.  E  certo  pò* 
rem  que  elle  se  dirigiu  ao  magisterio  da  Universidade  de  Lisboa,  accei- 
tando  a  regencia  da  cadeira  de  Philoaopkia  naturai  em  1530,  por  en- 
eommenda  do  Conselho  escholar  em  5  de  novembre.^  A  encommenda 
era  uma  especie  de  sub8tìtuÌ9So,  que  so  se  tornava  effectìva  quando  a 
cadeira  era  declarada  vaga  e  se  abria  concurso  cu  opposigSo  ;  mesmo 
o  candidato  votado  em  concurso  exercia  o  magisterio  por  encommenda 
até  receber  o  provimento  ou  despacho  regio.  Em  27  de  Janeiro  de  1532 


1  Transcreyemos  aqui  a  carta  regìa  que  o  aactorìsava  a  curar  em  Portngal  : 
«D.  Joham  etc.  a  quantos  està  mÌDha  carta  virem  fa^o  saber  comfiando  eu 
nas  letras  e  ciemcia  do  ieterado  guarda  d  orta  morador  em  castello  de  vide  e  no 
eiame  que  fez  o  meu  fisyquo  moor  cm  o  quali  ho  achou  auto  e  Bofidemte  e  jdonjo 
e  Boficiemte  asy  na  teorica  comò  na  pratica  queremdolhe  fazer  gra^a  e  merce 
oomffiamdo  nele  que  sempre  o  farà  asy  bem  e  comò  compre  a  servjQO  de  deus  e 
meu  e  saude  do  meu  povo  tenho  por  bem  e  Ihe  don  lugar  e  licem^a  que  eie  posa 
curar  de  fìsyca  por  todos  meus  Begnos  e  senhorjos.  £  mamdo  as  mynhas  justi^as 
oficiaes  e  pesoas  a  que  o  conhecymento  pertemcer  que  livremente  o  leyxen  usar 
de  sua  cyemcia  e  aver  ob  proes  e  percalle  omrras  e  liberdades  de  que  por  seu 
grao  ezame  e  eyemcia  Ibe  dereytamente  pertence  aver.  £  eie  jurara  em  a  mynha 
cham^leria  aos  samtos  avamgelhos  que  asy  bem  e  corno  deve  e  com  sua  demcia 
e  asy  comò  compre  a  servy^o  de  deus  e  meu  e  booa  saude  do  povo.  £  mando  que 
se  algum  fisyco  em  meus  Regnos  e  senhoryos  sem  amostrar  mynha  carta  pasada 
pelo  meu  fisiquo  moor  posto  que  graduado  seja  emcorra  em  pena  de  trimta  dobras 
oomteudas  em  meu  Regimento  e  sondo  Beqnerìdo  pello  lecemoeado  grada  d  orta 
as  mynhas  justi^as  o  constrangeram  que  paguen  a  dita  pena.  Dada  em  almeyrym 
ao  X  dia  do  mes  dabrìll.  £lBei  o  maodou  polo  doutor  diogo  lopes  cavaleyro  da 
ordcfm  de  ohrìsto  e  fisyco  moor  em  seos  Begnos  e  senhorìos  Amtonio  de  farla  a 
fez  anno  do  nacyrnento  de  noso  senhor  Jesnu  cbHsto  de  jb'xzvj.»  (Cktmo^,  de  D, 
Joào  III,  liv.  36,  fl.  97  ;  publieada  pela  prìmefara  vez  na  QoMtm  de  Pharmaeia,  de 
1867,  p.  45.) 

*  Notai  de  iìgueirda  às  Natìoioi  ehronólogica»;  ap.  LuUMo^  t  jov,  p.  281. 


OS  HUMANISTAS  E  A  RfiFORMA  DA  UNIVERSIDADE  363 

foi  declarada  Taga,  além  de  oatras  cadeira^,  a  de  Sumimulas,  ficando 
o  concorso  aborto  por  vinte  dìas,  e  sendo  a  8al>8titnÌ9So  por  tres  an- 
nos;  mas  n'osse  mesmo  conselho  se  concordou  eque  a  cadeira  de  su- 
mas  a  lese  gracia  dorta  até  Sam  Lacas,  e  isto  por  eTnccmmenda, . .  »^ 
As  SummulaB  eram  o  celebre  resuino  de  Fedro  Hispano^  quo  se  dava 
ainda  nas  Escholas  de  Paris  e  em  Salamanca.  Na  Tahdla  Legentium  da 
segunda  terja  do  anno  lectivo  de  1534^  figura  L,^  orta,  e  a  nota:  caos 
desaseys  dias  do  mes  de  mar^o  come90u  a  ler  ayres  de  luna  a  cadeyra 
d'artes  q  foj  do  L.^^  orta.»  Na  nota  de  Figueirda:'  deu  até  um  de 
mar90  de  1534  por  estar  de  partida  para  a  India.» 

0  Doutor  Garcia  d'Orta  tinha  partido  no  dia  12  de  mar9o;  nos 
CoUoquioè  (fl.  177  ^)  descreve  o  come90  da  viagem:  «Eu  vim  de  Por^ 
tugal  um  anno  antes,  e  trouxe  pouca  fazenda  (corno  se  acontece  a  mni- 
tos),  entro  a  qual  trouce  ciuco  quintaes  de  pào  chamado  guaia^^,  o 
qual  ao  tempo  de  agasalhar,  nSo  foi  bem  alojadó,  e  tomaram-me  d'elle 
0  que  quizeram  as  pessoas  que  o  queriam  tomar;  e  chegando  a  està 
terra,  achei  que  pereciam  muitas  pessoas  de  talpariaa,  e  de  outras  cha- 
gas  de  soma  castdhana,  e  a  muitas  d'ellas  nSo  aproveitava  o  remedio 
das  unturas.  E  chegando  a  està  terra,  eu  fui  muito  festejado  por  tra- 
zer  oste  pio,  porque  jà  se  haviam  curado  com  elle  algumas  pessoas, 
is  quaes  havia  succedido  bem,  e  assi  esperavam  por  elle  de  Portugal, 
e  eu  vendi  o  que  trouxe  por  mil  cruzados  ;  etc.  »  0  Doutor  Garcia  d'Orta 
ia  estudar  na  India  as  plantas  medicamentosas,  que  na  Europa  eram 
mal  conhecidas  pelas  incompletas  descrip93es  dos  Arabes.  No  seculo  xvi 


1  No  importante  livro  do  conde  de  Ficalbo,  Garcia  da  Orta  toaeu  tempo, 
vém  estes  docamentos  transcrìptos  do  t.  u,  fl.  90  e  y  das  ProvUoes  de  Lisboa,  que 
estio  no  Archivo  da  Universidade: 

«ÀOB  vimte  sete  dias  do  mea  de  Janeiro  de  mil  e  quinbentos  e  trimta  e  dous 
annos  no  estndo  de  Lix.'  na  capela  do  dito  eitudo  pelo  Sor  Beitor  Lemtes  conse- 
Iheiros  depatadoB  foi  acordado  ^  m  cadeiras  de  canones  e.  de  prima  e  vespera  e 
'  sezta  foaem  postas  por  yagas  e  asi  de  prima  de  fisica  e  a  de  sumulas.  Q  em  dem- 
tro  de  tres  dias  se  venha  qnem  quìzer  opoer  a  ellas  e  porq  asi  foi  acordado  Man- 
daram  os  ditos  Soros  asi  asemtar  pera  o  asinarem.  Vagas  som.'*  a  sustituiram.* 

Depois  das  assignatoras  segue  : 

<£  a  cadeira  de  iumulas  se  opoerà  por  vimte  dias  demtro  dos  quaes  se  opoe> 
ram,  e  està  anstitai^am  be  de  tres  annos.» 

E  no  y  da  foiba:  Fas  par  gracia  doria»» 

«E  loguo  no  dito  dia  atraz  esprito  foy  acordado  no  dito  cSselbo  c[  a  cadeira 
de  sunuu  a  lese  gracia  dorta  até  Sam  Lucas  e  isto  per  encomenda,  por  emtam  se 
farà  elei^am  da  dita  catedra  por  tres  annos.» 

s  Ma,  dos  Consdhos,  t  n,  fl.  80  f,  Conde  de  Ficaiho,  op.  eit,^  p.  46. 


364  HISTORU  DA  UNIYERSIDADB  DE  GOIHBRA 

a  Medicina,  que  se  renovava  pelo  estado  do  methodo  de  Hippocrates, 
suggerida  por  novas  mveBtigafSea  anatomicas  e  por  tentativas  de  ex- 
plica9lo  phjsiologica,  achou-se  embara9ada  pelo  alto  interesse  que  a 
Materia  medica  e  a  Pharmacologia  adquiriram,  por  effeito  da  desco- 
berta  da  America  e  da  India.  Muitos  medicos  distinctos  tomaram-se 
botanicoSy  comò  Manardi,  Buellio,  e  o  nosso  Doutor  Oarcia  d'Orta.  A 
•descoberta  das  novas  Floras  da  America  e  India  coincidia  com  o  es- 
plendor dos  estudos  classicos,  e  os  principaes  botanicos  da  antiguidade, 
comò  Theophrasto,  Dioscorides  e  Plinio,  achavam  eruditos  cómmenta- 
dores  em  Theodoro  de  Gaza,  Hermolio  Barbaro,  em  Nicolào  Leoni- 
cenus  e  André  Mathioli;^  os  proprios  grammaticos  faziam  dicciona- 
rios  de  plantas  e  medicamentos,  corno  Nebrixa  e  outros.  D'està  rela- 
9^0  dos  estudos  botanicos  com  o  do  testo  dos  escriptores  classicos  nas- 
ceu  um  certo  desdem  pelos  medicos  arabes  e  um  enthusiasmo  fervente 
pelos  gregos. 

0  Doutor  Garcia  d'Orta  refere-se  muitas  vezes  a  este  antago- 
nismo de  eschola,  e  faz  justÌ9a  aos  Arabes,  comprovando  os  factos  con- 
«ignados  nos  seus  escriptos  com  os  dados  positivos  da  sua  observa- 
92o  directa.  Mesmo  a  fórma  do  Dialogo,  adoptada  nos  CoUoquioB,  pa- 
rece  intencional,  comò  notoa  o  conde  de  Ficalho;  Raano  é  o  espirito 
submisso  à  auctoridade  dos  livros  e  à  tradÌ9&o  da  eschola,  Orta  é  o  li- 
vre  investigador,  que  corta  a  direito  centra  arabes,  ou  gregos,  quando 
08  factos  se  Ihe  apresentam  com  outro  aspecto.  Comprehende-se  assim 
0  espirito  da  obra,  implicito  em  trechos  comò  estes:  cNfto  me  ponhaes 
mede  com  IHoscorides  nem  Oalsno,  porque  eu  nZo  ey  de  dizer  senSo 
a  verdade,  e  o  que  sej. . .»  Ao  que  Ruano  replica  atemorisado:  <Pa- 
rece-me  que  destruis  a  todos  os  escriptores  antigos  e  modemos,  por 
isso  oulhai  o  que  fazeis. . .»  E  alludìndo  k  auctoridade  das  escholas: 
e  Fez  isso  porque  avia  mede  de  dizer  cousa  centra  os  Gregos,  e  nSo 
vos  maravilhcis  d'isto,  porque  eu  estando  em  Espanha  nào  ousaria  de 
dizer  couaa  àlgìla  contra  Galeno  e  cantra  oa  Gregos, t^  Era  està  liber- 
dade  mental  que  o  Doutor  Garcia  d'Orta  nSo  podia  encontrar  na  Uni- 
versidade  de  Lisboa,  e  ella  dà  ao  seu  livro  a  suprema  importancia. 
Emquanto  os  seus  contemporaneos  chatinavam  para  enriquecer-se,  Gar- 
cia d'Orta  envelheceu  estudando  e  fazendo  bem.  CamSes,  escrevendo 
a  celebre  Ode  ao  conde  de  Redondo,  em  encomio  do  sabio,  aente-se 
commovido  perante  aquelle  vulto: 


^  Hoefer,  Histairt  de  la  BoUudqut^  p.  98. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REPORMA  DA  UNIVERSIDADE  36S 

£  vede,  carregado 

D*aimoB,  letras  e  longa  experìencia, 

Um  velho,  que  ensinado 

Das  gangeticas  Musas  na  sciencia 

Podalirìa  sutil  e  arte  silvestre 

Vence  o  velho  Chiron,  de  Àchilles  meatre. 

Vede  que  em  vosso  tempo  se  mostrou 
0  fructo  d'aquella  horta,  onde  florecem 
Prantas  novas,  què  os  doutos  nSo  conhecem. 

Era  està  immensa  curiosidade  de  espirito  qae  levava  para  a  In- 
dia, na  armada  de  Martim  Affonso  de  Sousa,  o  grande  professor  da 
Universidade  de  Lisboa  Garcia  d'Orta,  em  1534,  onde  tivera  urna  ca- 
deira  de  Fhilosophia  naturai,  quando  veiu  dos  estudos  de  Salamanca  e 
Alcalà.  A  Europa  deve-Ihe  a  primeira  descrip9&o  do  Cholera  asiatico,  *- 
exposta  nos  seus  Cólloquioa  dos  Simplices  e  drogas,  publicados  em  Goa 
em  1563,  e  generalisados  ,na  Europa  na  traducySo  latina  de  Carolus 
Clusius,  em  1567,  tirando-Ihes  a  fórma  dialogistica.  Na  Dedicatoria  do 
Liceneiado  Dimas  Bosque,  ao  leitor,  vém  alguns  tra90s  biographicos  : 
chomem  que  do  principio  da  sua  edade  até  auctorisada  velhice,  nas  le- 
tras  e  faculdade  de  medicina  gastou  seu  tempo,  com  tanto  traballio  e 
diligencia,  que  duvido  achar  na  Europa  quem  em  seu  estndo  Ibe  fi- 


1  Tambem  descreveu  pela  primeira  vez  a  palmeira  artea  e  o  arbusto  que 
produz  a  noz  vomica  (Strychna  nux  vomica). — Lé-se  no  Discurso  do  professor 
Stokvis,  da  Faculdade  de  Medicina  de  Amsterdam,  na  inaugura^&o  do  Congresso 
intemacional  dos  Medicos  das  Colonias,  em  6  de  setembro  de  1883  :  «Bendamos  a. 
Cesar  o  que  Ihe  é  devido  !  Saudemos  com  reconhecimento  a  Hespanha  e  Portugal, 
corno  OS  colonisadores  mab  antigos,  e  rendamos  sobretudo  homenagem  a  esse  no- 
bre  portuguez  Garcia  d'Orta,  medico  do  vice-rei  da  India,  que  n*um  livro  afamadò 
com  rasSo  fez  conhecer  primeiro  que  ninguem,  no  meado  do  seculo  xvi,  em  1563, 
um  grande  numero  de  plantas  medicas  das  Indias  orientaes,  desconheddas  até  en- 
tSo  na  Europa.  Mas  convém  advertir  que  esse  livro,  uma  das  grandes  glorias  da. 
sciencia  portugueza,  esse  livro,  no  qual  o  anctor,  primeiro  que  todos  os  medicos 
europeus,  nos  dà  uma  descrip9So  tSo  viva  comò  exacta  do  cholera,  nSo  teria  j&- 
mais  despertado  a  admira^ao  da  Europa  inteira  se  nsLo  fosse  traduzido  do  portu- 
guez em  latim.  Foi  a  Carolus  Clusius,  um  dos  prìmeiros  e  dos  mais  sabios  profes- 
sores  de  botanica  em  Leyde,  que  coube  a  bonra  de  ter  feito  conhecer  este  traba- 
llio notavel  ao  mundo  scientifico.  Mudou-lhe  a  fórma,  deizando-lhe  intacto  o  fundo; 
ajuntou-lhe  as  suas  proprias  investiga^oes,  as  suas  descrip^òes  de  plantas  e  de 
raizes  mtertropicaes  trazidas  à  Europa  por  Francisco  Drake  e  outros,  e  foi  assim» 
que  o  mundo  póde  aproveitar  as  descobertas  do  celebre  portuguez.»  (Diario  de 
Notidaa,  n.«  6:344, 1883.) 


366  HISTORIA  DA  UNIYERSIOADE  DE  GOIMBRA  . 

zesse  vantagem;  saindo  ensinado  nos  prìncipioa  da  eoa  faculdade  das 
insignes  Umversidades  de  Àlcalà  e  Salamanca;^  trabalhando  de  com- 
municar  o  bem  da  sciencia;  que  nas  terras  alheias  tinha  alcanjado  com 
sua  propria  patria^  lendo  nos  Estados  de  Lisboa  por  alguns  annoa,  com 
muita  diligencia,  e  exercitando-se  na  cura  dos  doentes  até  yir  a  està 
parte  da  Asia^  onde  por  espa90  de  trìnta  annos,  curando  muita  diver- 
sidade  de  gentes,  nSo  sómente  na  companhia  dos  viso-reis  e  govema- 
dores  d'està  orientai  Indiai  mas  em  algumas  cSrtes  de  reis  mouros  e 
gentios,  communicando  com  medicos  e  pessoas  curiosas^  trabalhoa  de 
saber  e  descobrir  a  verdade  das  medicinas  simples,  que  n'esta  terra 
nascem,  das  qoaes  tantos  enganos  e  fabulas  nBo  sómente  os  antigos 
mas  muitos  dos  modemos  escreveram,  e  o  que  elle  por  tantos  aimoB  e 
por  tXo  diversas  partes  alcan90Uy  quis  que  o  curioso  leitor  n'este  breve 
tratado  visse  e  entendesse;  o  qual  teve  comesado  em  lingua  latina^  e 
por  ser  mais  familiar  a  materia  de  que  escreviai  por  ser  importunado 
dos  sens  amigos  e  fSEOniliares,  para  que  o  proveito  fosse  mais  commu- 
nicado,  detemùnou  escrevel-o  na  lingua  portugueaa  a  modo  de  dialogo; 
e  isto  causa  algumas  vezes  apartar-se  da  materia  medicinal  e  tratar  de 
algumas  oousas,  que  està  terra  tem  dignas  de  serem  sabidas.»  D'està 
dedicatoria,  datada  de  Goa  em  2  de  abrìi  de  1563|  inferem-se  precio- 
SOS  dados  para  a  vida  scientifica  de  Garoia  d'Orta^;  e  poderemos  con- 
cluir  qual  a  influencia  da  Universidade  de  Salamanca,  em  rela$So  aos 
estudos  da  Medicina  e  da  li^thematica,  em  Portugal. 

A  importancia  dos  estudos  na  Universidade  de  Salamanca,  no  se- 
culo  xviy  resultou  da  facilidade  com  que  aquella  corporagSo  adheriu  ao 
novo  espirito  da  Renascen9a,  e  &  tenas  opposiflo  que  apresentou  con* 
tra  o  estabelecimento  da  influencia  jesuitica.  A  mocidade  portngueia 
frequentava  de  preferencia  a  Universidade  de  Salamanca,  onde  ficavam 
no  magisterio  os  nossos  principaes  talentos;  naa  varias  reformas  da 
Universidade  portugueza  por  D.  Jolo  ui  era  aos  doutores  de  Sala- 
manca, ordinariamente,  que  o  monarcha  recorria,  convidando-os  oom 
bons  salarios.  0  esplendor  da  Universidade  de  Salamanca  synthetisa-se 
em  alguns  nomes  celebres  na  època  da  Renascenja;  transcrevemos  de 
Vidal  7  Dias:  «entro  os  infinitos  escriptores  que  a  Universidade  pro- 


1  Gkireìa  d*Orta,  referindo-se  a  Frei  Domingof  de  Baltaoas,  dis  :  «En  oo- 
nheci  esse  frade  em  Sakananea.  • .  >  (Coli.,  £L  168.) — coonhed  em  Akalà  a  on^ir 
Medieina  um,  que  se  chamava  Tordelagnna»  o  qnal  havia  sido  botioarìo  e  sabia 
algom  poaco  de  araUo. . .»  (Ib.> fl:  224)  Estas  refarenctas  ooofinnam a notida  dos 
seos  estudos  dada  pelo  licendado  Dimas  Bosqne. 


OS  IfUMANISTAS  E  A  REFORÌIA  DA  UNIVERSIDADE  367 

duziu  destacam-se  os  celebres  Arias  Montano^  qua  dirìgiu  a  segonda 
Biblia  polyglota,  o  reetaarador  da  Theologia  dogmatica  Victoria^  o  da 
JarìspraHencia  civil  e  canonica  Antonio  Aguetin,  o  descobridor  das  fon*- 
tes  d'onde  emanam  as  verdades  etemas  Melchior  CanO;  Fedro  Ponce 
que  consegaiu  fazer  fallar  ob  surdoB-madoSy  Fedro  Monzon  que  im-' 
plantou  em  Hespanha  o  methodo  de  ensinar  ob  elementos  da  Arithme'* 
tica  e  da  Geometria  anteB  da  FhiloBophia,  segaindo  o  conBcIho  de  Pia* 
tSOy  Fernando  Nufiesi  profeBsor  da  eschola  destinada  a  tradazir  Plinio^ 
escrevendo  icerca  d'elle  doutaB  obBerya98eBy  o  afamado  cego  Francisco 
Salinas,  que  foi  ensinar  Musica  &  Italia  e  que  adquirìu  um  nome  ea* 
ropeu  com  Bete  livroB  que  escreveu  sobre  està  arte  divina^  o  immartal 
Frei  Luiz  de  LeBo,  tfto  persegoido  em  sua  vida,  corno  hoje  é  vene* 
rado,  Francisco  Sanchez  de  Brozas,  que  em  sua  Minerva  fez  germinar 
OS  principioB  philosophicos  da  Grammatica  goral,  e  FemSo  Perez  de 
Olivai  Pedro  CJhaocm,  Zurita,  Oovarruvias,  Salgado,  Lagono,  Medina, 
0  astronomo  JoSo  d' Aguilera,  o  doutor  parisiense  e  cathedratico  de  Phi» 
losophia  em  Salamanca  Afibnso  de  Cordova,  e  o  grande  jurisconsulto 
Bartholomeu  de  laa  Casas^  e  o  commentador  biblico  Aleixo  Gomez  de 
Aldearrubia,  o  orador  sagrado  Affonso  de  Orozco,  e  San  Thomaz  de 
Villa-Nova,  que  antes  de  ser  firade  augustiniano  foi  cathedratico  de 
Philosophia  moral,  e  o  medico  de  Carlos  v ,  Francisco  Lopez  de  Villa* 
loboB,  e  tantoB  outròs,  emfim,  que  honraram  a  Salamanca  n'este  seculo 
tSo  fecundo  em  glorias  hespanholas. . .  »  ^ 


^  Memoria  hUtortea  de  la  Uninenidad  de  Salamanea,  p.  244.  Publieamos  em 
segnida  a  sèrie  dea: 

Fortiigiiezes  ilIucitreB  que  ensinaraTii  em  Salamanca 

cu  que  ali  se  graduaram 

Ayrea  Barbosa^  ensinou  Bhetorìca  n*aqnella  Universidade.  Imprimia  em  Sa* 
lamanea  differeates  ofaras  littenrias  (sem  data). 

Gaapar  Alvaree  da  Vtiffa,  natozal  de  Freizo  de  Espada  &  Cinta;  ensinou 
Orammàtica. 

Amato  Lusntano  (  JoSo  Bodrigaes  de  Castello  Branco)»  foi  Doutor  em  Medi- 
dna  por  flaìamanca. 

Frasuisco  Caldaa  Pereira  de  Castro,  naturai  de  Braga  ;  estudou  Diretto,  vindo 
depois  para  a  Universidade  de  Coìmbra. 

Eduardo  Caldàroj  segaiu  a  Facnldade  de  Direito,  sendo  disoipulo  do  cele- 
bre Diego  Covarruvias  e  de  Manuel  da  Costa. 

Bodrigo  de  Contro,  doutorou-se  em  Philosot^hiaeUedioina,  e  estabeleoeu-se 
cm  Hamburgo. 


368  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

A  influencia  sdentijica  da  Universidade  de  Salamanca,  e  em  geral 
de  outras  Universidades  heapanholas,  deve-se  attribuir  &  vantagem  que 
nos  novos  estudos  da  Kena8ce]i9a  offerecia  o  conhecimento  da  lìngua 
arabe;  em  que  estavam  traduzidas  as  principaes  obras  dos  mathemar 
ticos  e  medicos  gregos.  Porém  a  influencia  phUólogica  cu  propriamente 
humanista  reflecte-se  em  Portugal  por  via  das  Escholas  de  Paris  e  de 
Louvain,  e  por  uma  acySo  mais  ou  menos  immediata  de  Erasmo,  de 
JoSo  Luiz  Vives  e  de  Budeus,  o  grande  triumvirato  dos  humanistas  da 
Renascenfa.  Erasmo  n&o  acceitou  o  convite  de  D.  JoSo  m  para  vir 
occupar  uma  cathedra  nos  novos  estudos  que  ordenava  em  Coimbra; 
Vives  apresentou-lhe  um  valiosissimo  plano  de  refbrmas  pedagogioas; 
e  a  crea9So  de  Budeus,  o  Collegio  d»  Fran^,  serviu  de  typo  para  a 


Manuel  da  Costa,  seguiti  Direito,  sendo  lente  em  Coimbra  e  depois  em  Sa- 
lamanca. 

Sébasiiào  Gomea  de  Figueiredo,  ensinon  PhiloBophia  na  Universidade.  Im- 
primia  varioB  livros  asceticos. 

Henrique  Jorge  Hcnriqttes,  naturai  da  Guarda;  ensinou  Artes  em  Salamanca, 
e  passou  a  reger  a  cadeira  de  Àvicena  em  Coimbra.  Era  medico  do  duque  d'Alba. 

Henrique  Femandes,  Doutor  em  Artes  e  Medicina;  cathedratico  de  prima 
de  PhiloBophia  naturai. 

Luiz  de  Lemos,  naturai  de  Fronteira;  philosopho  e  Doutor  em  Medicina;  en- 
sinou Philosophia  em  Salamanca,  na  sua  mocidade,  indo  exercer  o  mister  da  Me- 
dicina para  Llerena. 

Garda  Lopea,  cursou  Medicina,  e  escreveu  De  varia  rei  Medicete  lectione,  An- 
tuerpia,  1564. 

Frei  Antonio  Ludovico,  franciscano  e  professor  de  Direito  dvil  e  canonico; 
aos  cinquenta  annos  tomou-se  celebre  pelos  estudos  que  fez  do  hebraico. 

Fedro  Margotto,  tendo  estudado  Artes  e  Theolo^  em  Paris,  obteve  a  ca- 
thedra de  Philosophia  moral  em  Salamanca,  e  fez  opposi^io  &  cathedra  de  prima 
de  Theolo^a  eom  Mestre  Frei  Francisco  de  Victoria.  Yeiu  depois  para  Portugal, 
chamado  por  D.  JoSo  m.  Imprimiu  em  Salamanca,  em  1520,  um  Fkgsices  Coni' 
pendùtm» 

Frandèco  Martins,  naturai  da  Beira;  durante  vinte  e  dois  annos  desempe- 
nhon  em  Salamanca  a  cathedra  de  Grammatica.  Deixou  varìos  escrìptos. 

Manuel  Mendee  de  Castro,  naturai  de  Lisboa;  foi  lente  de  prima  de  Leis  em 
Salamanca,  e  depois  de  Direito  dyìl  em  Coimbra. 

Affonso  de  Miranda,  cursou  a  Faculdade  de  Medicina  em  Salamanca,  e  foi 
medico  da  camara  de  D.  Sebastiio. 

D.  Jeronymo  Oeorio,  aos  treze  annos  eursou  em  Salamanca  Letras  latinas  e 
gregas,  e,  depois  de  ter  ali  segnido  a  Faculdade  de  Direito,  foi  continuar  os  seus 
estudos  em  Paris. 

Fedro  de  Feramato,  Doutor  em  Medicina,  e  primeiro  medico  do  duque  do 
Medina  Sidonia;  escreveu  Opera  medioinalia,  1576. 


'     OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  369 

fanda9So  do  novo  Collegio  recti,  Como  o  mathematico  Fernel,  tambem 
JoSo  Luiz  Vives  falla  com  eloquencia  do  facto  da  descoberta  do  ca- 
minho  maritimo  da  India,  na  dedicatoria  a  D.  JoSo  ni  do  livro  De 
Disciplinis,  As  idéas  de  Vives  Bobre  questSes  de  pedagogia  foram  pu- 
blicadas  em  1531,  em  urna  serie  de  tratados  com  os  titulos  De  comiptis 
Artihus,  De  tradendis  Disciplinis  e  De  Artibus;  estes  tratados  foram  a 
fonte  de  consulta  de  todos  os  reformadores,  precedendo  gloriosamente 
OS  escriptos  de  Bacon,  empenhado  tambem  na  reforma  dos  methodos 
scientificos.  D.  JoSo  ni  acceitou  a  offerta  do  eminente  philologo,  e  gra- 
tificou-o  generosamente,  comò  elle  proprio  confessa  em  uma  carta  a  Da- 
miSo  de  Goes,  de  17  de  junho  de  1533.  * 

Depois  de  ter  considerado  ^  caasa  da  decadencia  dos  estados  no 


Frei  ffeitor  Finto,  cursou  Direito  em  Salamanca,  antes  de  professar  na  or- 
dem  de  S.  Jeronjmo. 

André  de  Eesende,  discipulo  de  Nebriza  em  Alcalà  ;  em  Salamanca  estudou 
Theologia  com  Barbosa,  passando  a  completar  os  seus  estados  em  Paris  e  Louvain* 

Thomaz  Bodrìgues  da  Veiga,  Doutor  em  Medicina  por  Salamanca,  onde  ob- 
teve  uma  cathedra  por  oppo8Ì9ao,  sendo  ainda  muito  mo90.  Commentou  Graleno 
(1564)  e  Hippocrates  (1586). 

Manuel  Soares  de  Bibeira,  discipulo  de  Antonio  Oomes  na  Faculdade  de  Leis 
em  Salamanca,  onde  foi  cathedratico  de  vespera  de  Direito  canonico. 

Fedro  Vaz,  medico  pela  Uuiversidade  de  Salamanca  ;  escreveu  obras  de  Me- 
dicina,  1566. 

Ayrea  Finhel,  lente  de  Direito  da  Uuiversidade  de  Coimbra,  e  cathedratico 
de  y.espera  na  de  Salamanca. 

Doutor  Garda  d'Orta,  depois  de  ter  frequentado  os  estudos  medicos  em  Sa- 
lamanca, frequentou  tambem  a  Uuiversidade  de  Alcalà. 

Doutor  Fedro  Nunea^  depois  de  ter  regido  uma  cadeira  de  Artes  na  Uuiver- 
sidade de  Lisboa,  vae  a  Salamanca  frequentar  Mathematica. 

Luiz  Nunes  de  Santarem,  foi  frequentar  Salamanca  depois  de  graduado  em 
Lisboa.  Na  reforma  da  Uuiversidade  e  mudan9a  para  Coimbra,  foi  convidado  para 
roger  a  cadeira  de  Mathematica,  de  que  se  Ihe  passou  provisSo  em  16  de  outubro 
de  1544. 

1  Ad  Damianum  Goesium:  «Desejo-vos  uma  feliz  viagem;  prodUrae,  por  fa- 
vor, achar  melo  de  ofPerecer  a  um  rei,  que  tambem  é  ò  meu  assim  corno  vosso,  por 
seus  beneficios,  as  minhas  humilissimas  sauda^oes,  e  a  homenagem  da  minha  de- 
dicarlo; agradecei-lhe  da  minha  parte  o  magnìfico  testemunho  da  sua  magnificen- 
eia  que  eu  recebi  o  anno  passado.  Està  offerta  é  para  mim  tanto  mais  preciosa, 
que  ella  veiu  encontrar-me  em  um  momento  tal,  que  n&o  poderia  vir  mais  a  pro- 
posito.» (Ap.  Namèche,  Sur  la  vie  et  ha  écrita  de  Jean  Louia  Vives,  p.  32.)  Foi 
n'este  regresso  de  Damilo  de  Goes  a  Portugal,  em  1533,  que  D.  JoSo  m  o  encar- 
regou  do  convite  a  Erasmo. 

HIST.   UH.  24 


370  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

tratado  De  causia  corruptarum  Artium,  Vives,  na  obra  dedicada  a  D. 
JoSlo  m,  De  tradendia  Disciplinis,  propSe  as  reformas  pedagogica^  quo 
entende  necessarias  à  cultura  do  acculo  xvi.  E  dividido  o  tratado  em 
cinco  livros,  que  summariaremos  para  se  formar  urna  idèa  do  Bea  in- 
tuito. No  priuieiro  livro^  attentas  as  circumstancias  que  na  època  da 
Renascenya  punham  em  desconfianga  os  estudos  philologicos^  procura 
conciliar  a  rasSLo  com  a  fé.  Despreza  as  vSs  curiosidades  de  espirito, 
corno  a  Magia,  e  estende  esse  desprezo  até  às  obras  de  pura  imagina- 
$&o,  corno  as  Faiulas  milesianas.  A  sua  inteiligencia  lucida  compre- 
bende  a  necessidade  de  urna  classificafSo  dos  conbecimentos  bumanos 
para  dirigir  por  ella  a  instruc93o^  e  propSe  a  seguinte  bierarcbia  sub- 

j  ceti  va: 

^..   ^       ...       (Accessiveb  immediatamente  aos  sentidos. 

(AcceBsiveiB  so  a  mtelligencia  cu  a  sua  essencia. 
Svbeianeiae  invinveia^  cu  espirituaes. 

Assim  passa  logicamente  a  determinar  a  materia  e  limites  do  en- 
sino  no  segundo  livro;  apresenta  observa^Ses  apreciaveis  sobre  o  logar 
em  que  se  deve  ministrar  o  ensino,  escolba  dos  methodos  e  condÌ93eB 
especiaes  dos  mestres.  Para  Vives  é  indispensavel  que  um  estabeleci- 
mento  de  instruc9So  seja  situado  em  uma  localidade  saudavel,  cbegando 
a  preferir  o  campo  à  cidade,  e  mesmo  que  a  vida  nfto  seja  dispendiosa, 
nem  as  causas  de  dissipa9So  se  apresentem  com  frequencia.  D.  JoSo  ni, 
no  empenho  de  mudar  a  Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra,  (de 
Coryniho  para  Aihenas,  comò  dizem  os  documentos  da  època)  encon- 
trava  na  auctoridade  de  Vives  a  juBtifica9So  do  seu  plano. 

Emquanto  aos  mestres,  o  grande  humanista  n&o  se  contentava  que 
elles  possuissem  exclusivamente  a  sciencia,  queria  uma  qualidade,  a 
que  ainda  boje  tao  pouco  se  attende,  a  aptid&o  para  communical-a.  É 
està  aptid&o  que  faz  com  que  a  influencia  do  mestre  seja  sempre  maior 
que  a  do  livro,  aptidSo  que  se  perde  quando  se  interrompe  o  habito 
profissionai,  comò  o  notara  Comte.  Merece  cònsignar-se  essa  outra  ob- 
Berva9ào  de  Vives,  condemnando  a  avidez  de  dinheiro  da  parte  dos 
professores,  avidez  que  ainda  boje  se  manifesta  na  explora9&o  dos  com- 
pendios  escholares.  Fara  um  tal  inconveniente  quer  que  o%profes8ores 
sejam  pagos  pelo  estado,  evitando  que  recebam  salario  ou  minervaes 
dos  alumnoB,  o  que  é  incompativel  com  a  sua  independencia.  Està  idèa 
foi  realisada  no  desenvolvimento  da  Instruc9So  publica  na  Europa;  as 
Universidades  perderam  o  caracter  de  corpora93e8  autonomas,  e  a  iìinc^ 
9S0  do  ensino  tomou-se  uma  attribuÌ9ào  do  estado,  com  vantagem  du- 
rante o  interregno  montai  de  verdadeiras  concep95eB  positivas.  Tam* 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSmADE  371 

bem  condemnava  o  phìlologo,  com  oin  naturai  bom  senso  e  experien- 
cia,  OS  frequentes  exercicios  publicos  ou  (ictos  de  ostenta^j  propondo 
ao  mesmo  tempo  que  se  abolissem  os  gràos,  ou  quando  multo  se  con- 
ferissem  excepcionalmente.  E  apesar  de  terem  decorrido  tres  seculos, 
a  preoccupagSo  do  exame  tomou-se  o  objectivo  do  ensino,  falsificando 
a  Bciencia  e  abrindo  as  portas  às  me^iocridades.  A  vaidade  do  gr&o, 
que  tanto  ensoberbece  as  Universidades,  é  appetecida  pelas  Polytechni- 
cas  e  Escholas  especiaes,  chegando  a  vesania  individuai  a  pavonear-se 
com  o  diploma  de  doctor  in  absentia.  N'estes  pontos^  Vives  foi  multo 
além  do  seculo  corrente.  Desejava  um  pouco  a  vida  em  commum  en- 
tro OS  profesfiores;  era  talvez  o  modo  de  crear  urna  corporagSo,  forti- 
ficando-se pelo  poder  espiritaal  ;  queria  que  a  nomea9&o  dos  lentes  nSo 
fosse  feita  pelos  estudantes^  porque  eram  incompetentes  para  conhecer 
o  merito  professerai  e  obedeciam  muitas  vezes  a  motìvos  viciosos.  A 
eleifSLo  dos  lentes  pelos  estudantes  era  a  naturai  consequencia  do  sala- 
rio que  estes  pagavam^  constituindo  as  Universidades  comò  verdadei- 
ras  cooperati vas  de  enslno;  desde  que  as  Universidades  ficaram  sob  a 
dictadura  monarchica,  a  nomea9ào  dos  lentes  e  seus  salarios  tomaram- 
se  um  attributo  da  realeza. 

Vives  determina  o  fim  categorico  do  enslno — o  aperfeigoamento 
do  alumno.  Alnda  hoje  oste  fim  moral  nSo  se  acha  bem  comprehendido. 
Lembra  tambem  a  necessidade  de  formarem  conferencias  entro  os  pro- 
fessores  para  julgarem  sobre  as  capacidades  mentaes  dos  alumnos.  Està 
deficiencla  faz  com  que  ainda  hoje  os  alumnos  passem  durante  um  longo 
curso  Inteiramente  desconbecidos  aos  seus  mestres.  Discutindo  as  fór- 
mas  do  enslno  domestico  ou  publico,  Vives  dà  toda  a  preferencla  ao 
enslno  publico,  pela  ac(So  que  os  condiscipulos  se  exercem  mutuamente. 
Entra  depois  em  consideragSes  psychologicas  àcerca  da  variedade  das 
aptidoes  dos  alumnos,  e  n'isto  deixa  evidente  a  sua  alta  capacidade  pe- 
dagogica^  affirmando  esse  outro  principio  fundamental,  de  que  a  sym- 
pathìa  entro  o  mostre  e  os  discipulos  fecunda  o  enslno.  A  falta  de  com- 
prehensfto  d'este  principio  tSo  saudavel  faz  com  que  ainda  hoje  um 
grande  numero  de  professores  procurem  systematicamente  tornar- se  an- 
tipathicos,  Impondo-se  pela  severidade  brutal  centra  o  ridlculo  das  al- 
ounhas  afiErontosas  por  que  sSo  conhecidos.  Vives  re  velava  o  genio  da 
Renascenfa  em  todos  os  seus  aspectos;  elle  recommenda  os  bons  mo- 
delos  da  antlguidade  classica  (Demosthenes^  Cicero,  Homero,  Virgilio), 
mas  proclama  com  mais  inslstencla  que  se  nSo  deve  abandonar  a  im- 
pressilo directa  da  Natureza — «a  fonte  de  todas  as  artes,  o  prlmeiro 
de  todos  OS  modelos.» 

24* 


372  HISTOBU  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIBfBRA 

0  terceiro  livro  do  De  tradendis  Disciplinù  nfto  é  menos  precioso; 
consagra-o  ao  ensino  das  lingaas.  Comefa  desde  ob  primeiros  sona  9X* 
ticulados  da  infancia.  Para  elle  o  Latim  impSe-se  pela  belleza  e  gravi* 
dade,  corno  a  lingua  oniversal  da  sciencia,  protegendo  a  eradi$&o  dos 
assaltos  da  ignorancia;  e  por  ser  de  mais  a  mais  a  lingua  màe  dos  prin- 
cipaes  idiomas  europeus.  De  facto,  aie  ao  firn  do  seculo  xvm  o  latim 
foi  a  linguagem  preferida  pelos  sabios  para  os  seus  livros,  circurnstan^ 
eia  que  retardou  algum  tanto  o  desenvolvimento  do  espirito  publico. 
Quanto  &  lingua  grega  entende  que  é  necessaria  para  melhor  com* 
prehender  o  latim.  Era  urna  intuÌ9So  do  methodo  comparativo  que 
fundou  a  nova  sciencia  da  glottologia.  Verbera  o  pedantismo  dos  gram- 
maticos,  e  explica  comò  os  exemplos  sSo  para  d'elles  se  deduzirem  a» 
regras,  devendo  por  isso  serem  tirados  de  bons  auctores.  Para  a  com- 
prehensSo  dos  auctores  entende  que  devem  as  suas  obras  ser  interpre^ 
tadas  pela  sua  vida,  descrevende  os  logares,  os  climas,  os  animaes,  aa 
plantas  a  que  alludem.  No  trato  dos  discipulos  ha  de  o  mestre  incutir- 
Iheó  o  habito  de  redigir  em  vulgar,  de  traduzir  para  latim,  quer  na 
fórma  de  cartas,  quer  explanandv  pensamentos,  e  procedendo  as  cor* 
rec95es  de  modo  que  nSLo  provoquem  o  desanimo.  Assim  é  naturalmente 
levado  à  imposÌ9SLo  que  superiormente  caracterisa  o  genio  da  Renas- 
cen9a:  que  no  mestre  a  bondade  prevale^  aobre  a  severidade.  Mereoem 
notar-se  os  livros  que  Vives  aponta  para  o  ensino;  para  os  elementos 
grammaticaes  Erasmo  e  Despauterio;  lamenta  a  falta  de  bons  diccio- 
narios.  Liga  uma  grande  importancia  às  no98eB  de  historia  e  de  geogra- 
phia,  recommendando  para  està  Pomponio  Mela.  Emquanto  aos  està- 
dos  hellenicoB,  divide-os  em  dois  gràos,  recommendando  para  o  primeiro 
Esopo,  Luciano,  Isocrates  e  S.  JoSo  Chrysostomo  ;  para  o  segundo,  De- 
mosthenes,  PlatSo,  Aristoteles,  Aristophanes,  Euripides,  e  sobretuda 
Homero. 

Depois  do  estudo  das  linguas,  Vives  passa  no  quarto  livro  a  tra- 
tar  das  sciencias,  das  quaes  as  linguas  sào  um  instrumento  e  comò  que 
o  vestibulo.  Reoommenda  pois  que  se  passe  naturalmente  das  Linguas 
para  a  Logica;  condemna  as  disputas  ou  argumenta9Se8,  preferindo  o 
methodo  socratico.  PropSe  para  estudo  a  Dialectica  de  Aristoteles,  o 
philosopho  de  todas  as  edades,  mas  observa  a  necessidade  de  regres- 
sar-se  à  natureza,  de  examinar  a  realidade,  corrigindo  o  excesso  daa 
especi  alidades,  tendo  sempre  em  vista  o  uso  da  vida  ordinaria.  N'este 
ponto  Vives  é  um  precursor  do  positivismo.  Sómente  depois  de  ter 
chegado  à  Metaphysica  (Prima  Philosophia),  para  o  estudo  da  qual 
recommenda  a  solid&o  e  passeios  campestres,  trata  da  Dialectica  (Ar^ 


OS  HUÌIANISTAS  E  A  REFORHA  DA  UNIYERSmADE  373 

^mentorum  inventio),  estabelecendo  entre  ella  e  a  Logica  (Censura 
veri)  ama  cabai  dÌ8tmc9ào.  Para  o  estudo  da  Rhetorica  recommenda 
exercicio3  gradaados  pelos  tratados  de  Aristoteles^  Cicero  e  Quintiliano. 
£  depois  d'estas  disciplinaEkque  passa  à  Mathematica^  recommen- 
dando  cautella  com  os  excessos  intellectuaes,  e  dando  por  terminada  a 
coltura  theorica  aos  vinte  e  cince  annos  de  edade.  D'aqui  em  diante 
come9a  a  vida  pratica^  que^  segundo  Vives,  é  dividida  emquanto  às  re- 
lafSes  moraes  (De  rebus  spiritualthus)  e  emquanto  à  conserva9SLo  dos 
corpos  (Ars  medica). 

.  O  quinto  livro  trata  de  urna  parte  d'este  schema  da  vida  pratica, 
cultivando  a  saude  da  alma  'pelo  juizo  e  pela  experiencia.  A  leitura  dos 
bons  auctores  aperfei$da  o  juizo  ;  e  para  este  fim  recommenda  a  leitura 
de  PlatSOy  Aristoteles,  Cicero,  Seneca,  Quintiliano,  Plutarcho,  Orige- 
nes,  S.  Jo3o  Chrysostomo,  Santo  Ambrosio  e  Lactancio.  Quanto  à  ex- 
periencia  reconhece  que  é  grande  mostra  a  Historia,  supprindo  nós  por 
ella  a  que  pessoalmente  nos  falta.  Aquelle  luminoso  espirito  compre- 
hende  que  o  estudo  da  Historia  deve  ser  feito  por  bons  resumos,  con- 
tendo OS  factos  capitaes,  de  modo  que  se  alcance  uma  vista  de  conjun- 
cto.  E  depois  de  ter  assentado  este  principio,  a  que  ainda  nSo  chega- 
ram  os  nossos  fabricantes  de  compendios,  manifesta  a  seguranga  ver- 
dadeiramente  admiravel  do  seu  criterio,  recommendando  a  leitura  de 
Froissard,  de  Monstrelet  e  de  Commines,  tdignos  de  serem  conhecidos 
corno  muitos  historiadores  gregos  e  rovMmos.n  Vives,  que  comò  erudito 
da  Renascen9a  reprovara  com  desdem  os  poemas  da  Edade  mèdia,  res- 
gata-se,  mostrando  uma  alta  comprehensUo  das  fórmas  modernas  da 
Historia,  nas  linguas  vulgares  creadas  n'essa  mesma  Edade  mèdia. 
Trata  da  Philosophia  moral,  pondo  a  par  dos  livros  sagrados  as  obras 
de  PlatSo,  Aristoteles,  Cicero  q  Seneca,  e  recommenda  S.  Thomaz  (seri- 
ptor  de  Schola  omnium  sanissimuSj  oc  minime  ineptus)  j  untamente  com 
Boccio  e  Petrarcha.  Em  seguida  apresenta  nofSes  sobre  conhecimentos 
economicos  e  politicos,  esbojando  depois  a  sciencia  legislativa.  Reser- 
va-se  para  n'um  futuro  estudo  expdr  os  lineamentos  da  Theosophia  e 
da  Theologia.  Vé-se,  pela  època  em  que  escreveu  o  tratado  De  traden- 
dis  Disciplinisj  que  Vives  nSo  podia  apresentar  um  elenco  theorico  das 
sciencias,  porque  apenas  se  restaurara  o  primeiro  par  encjclopedico 
(Mathematica  e  Astrtmomia)  ;  o  segundo  par  (Physica  e  Chimica)  tinha 
de  absorver  a  actividade  intellectual  dos  seculos  xvii  e  xvm;  o  terceiro 
par  (Biologia  e  Sociologia)  è  a  corSa  do  seculo  presente.  Vives  nSo 
podia  antecipar-se  à  marcha  da  civilisa9So.  0  seu  tratado  termina  com 
as  regras  que  devem  dirìgir  o  erudito,  para  que  desconfie  de  si  prò- 


374  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

prio,  àcerca  da  sua  modestia,  rela9Ses  affectìvas,  uso  legitimo  da  cri» 
tica,  consciencia  na  revisSo,  e  cumprimento  absoluto  da  maxima  recom- 
mendada  pelo  papa  Adriano  vi:  nunca  interpretar  à  mi  parte  as  pa- 
lavras  de  outro  escriptor.  ' 

D.  JoSo  III  Boube  agradecer  a  Vives  a  homenagem  do  seu  tratado^ 
corno  este  o  confessa  na  carta  a  DamiSo  de  Goes;  é  naturai  que  essaa 
doutrìnas  pedagogicas  actuassem  nas  reformas  projectadas  pelo  monar- 
cha;  pelo  menos  revelaram-lhe  a  sua  urgencia  e  activaram-as.  0  pro- 
prio Dami&o  de  Goes,  que  viveu  na  intimidade  dos  principaes  espiri- 
tos  da  Bena8cen9a;  corno  Erasmo,  Bembo,  Sadoleto,  Melanchton,  Vives 
e  outros  muitos,  tambem  coadjuvara  o  monarcha  para  aproveitar  o  in- 
fluxo  da  grande  corrente  humanista.  Pelos  documentos  ulteriores  da 
reac9So  jesuitica  é  que  se  recompSe  està  phase  mal  conhecida  da  re- 
novay&o  pedagogica  em  Portugal. 

Na  traducfSo  do  livro  de  Cicero  chamado  CatSo  Maiar,  ou  Da  Ve-- 
IMce,  feita  por  DamiSo  de  Goes,  e  publicada  em  1538  em  Veneza,  vèm 
alguns  dados  curiosos  da  sua  yida.  Beferindo-se  à  difficuldade  da  tra- 
duc9So,  allude  à  sua  amisade  com  Erasmo  e  aos  annos  que  andou  au- 
sente  de  Portugal:  cNS  deixarei  de  recitar  o  que  d'aquelle  prudentis- 
simo  e  gravissimo  Erasmo  Boterodamo  n'este  nesso  aureo  e  doctissimo 
seculo  principe  de  teda  doctrina,  e  eloquencia,  sobr'este  negocio  alguas 
vezes,  j  untamente  com  outras  muytas  sanctissimas  confiftbulagSes  (per 
spafo  de  cinque  mezes  que  com  elle  em  Friburgo  de  Brisgoia  pousei) 
entro  noos  ouvi.  Affirmava  nS  ter  achada  no  estudo  cousa  mais  ardua 
que  tralladar,  nem  digna  de  moor  louvor  fiazendo-se  ben,  nem  pela 
contrario  de  moor  reprehSsam.»  E  justificando  a  falta  de  vemaculidade 
da  traducfSo,  accrescenta:  cO  que  ousei  cometer  confiando  levarSme 
em  conta  sua  doctrina  e  modera9am,  todo  erro  que  na  policia  e  oma- 
meto  de  nossa  lingoagem  portuguesa  n'elle  cometer.  Visto  que  em 
dezaseis  annos  (da  for9a  e  frol  de  minha  edade)  quatro  meses  soomen- 
tes  quis  minha  sorte  estar  nestes  Reihos  e  corte,  lugar  da  minha  honra^ 
e  cria9am,  o  que  m'envejando  a  fortuna  lego  dahi  me  rechafou.  A  qual 
longueza  de  tempo  (principalmente  misturada  com  tantas  e  tam  varios 
generoB  de  linguas  e  costumes)  he  assaz  suficiente,  nS  tam  soomentes 
a  homem  ser  barbaro  em  sua  lingua,  mas  ainda,  a  de  todo  a  esquecer.» 

As  rela95es  litterarias  de  DamiSo  de  Goes  evidenciam-se  peloa 


1  0  exame  das  obras  de  Vives  merece  lér-se  no  estudo  de  Namòche,  Mémci^ 
rt»  eourotméè  de  VAcadémie  de  Bdffiqke^  t.  xv,  1840-1842. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  375 

nomes  dos  sabios  que  estavam  com  elle  em  correepondencia;  taes  sSo: 
Panlo  SperatuB,  Vives,  Bonifacio  Amerbachio,  Conrado  Gloclenio,  Fe- 
dro Bembo,  Jacobo  Sadoleto,  Nicoiào  Clenardo,  Lazaro  Bonamico, 
Christophoro  Madruchlo,  Sigismundo  Gelenio,  Glareano,  Tideman  6i- 
81118^  Jorge  Coelho,  JoSo  Rodrìgues  de  Sa,  Adam  Carolas,  Joanes  Ma- 
gnus,  Beato  Rhenano,  Jacob  Frugger,  Guilherme  Zenosaras  Agrìppa, 
Paulo  in,  Fedro  Nannio,  André  de  Resende,  Bernardino  Sandrio,  Cor- 
nelio Grapheo,  Guilhelmo  Bemato,  Jeronjmo  Cardoso,  infante  D.  Luiz 
e  cardeal  D.  Henriqne.  ^  NSo  citàmos  o  nome  de  Erasmo,  para  desta- 
car  mais  a  importancia  das  suas  Cartas  dirigidas  a  DamiSo  de  Goes: 

11  de  Janeiro  de  1534;  dà-lhe  noticia  da  sympathia  qne  desper- 
tara  em  Bembo,  a  quem  o  recommendara  por  carta,  à  qua!  Bembo  re- 
spondera  em  11  de  novembre  de  1533. 

5  de  mar9o  de  1534.  (Conservou-se  inedita,  mas  està  publicada 
pelo  conego  Ram.) 

11  de  abril  de  1534;  offerecendo  a  DamiSo  de  Goes  a  hospitali- 
dade  da  maneira  mais  cordial. 

3  de  julho  de  1534;  desculpando-se  da  doenga,  causa  de  o  nSo 
ter  recebido,  oa  esquecido  depois  da  visita  em  Friburgo. 

25  de  agosto  de  1534;  offerecendo-lhe  a  sua  hospitalidade. 

21  de  maio  de  1535;  dizendo-lhe  que  a  amisade  de  Damiào  de 
Goes  é  um  allivìo  &  sua  doen9a. 

18  de  agosto  de  1535;  falla-lhe  dos  seus'trabalhos  litterarios  e 
das  luctas  religiosas  na  Inglaterra. 

15  de  dezembro  de  1535;  sobre  o  assumpto  anterior. 
«  ?  Janeiro  de  1536;  preoccupa-se  com  o  seu  firn  proximo  por  causa 
da  doen9a.  A  està  carta  respondeu  Goes,  de  Fadua,  em  26  de  Janeiro 
de  1536,  communicando-lhe  o  pezar  pelos  seus  soffrimentos,  partindo 
em  seguida  para  Basilea,  para  onde  Erasmo  se  transportara  de  Fri- . 
burgo,  a  firn  de  acompanhal-o  na  angustiosa  doen^a.  Existe  uma  carta 
attrìbuida  a  DamiSo  de  Goes,  descrevendo  os  ultimos  momentos  de 
Erasmo.  ' 

Lé-se  no  Frocesso  de  DaroiHo  de  Goes,  no  Santo  Officio:  «Depois 
que  vim  a  Fortugal,  no  anno  de  1533,  chamado  para  o  officio  de  the- 
zoureiro  da  Casa  da  India,  El  Rei  que  santa  gloria  haja,  e  os  Infantea 
seuB  irmSLos,  e  outros  senhores  do  reino,  me  perguntaram  com  muito 


1  0  sr.  J.  de  Vasconcellos  tem  preparada  uma  edi^ào  de  todas  as  Cartas  la- 
tinas  dirigidas  a  Daxniào  de  Goes,  de  que  traz  o  elenco  na  Gouiana,  p.  21  a  24. 

2  BuUetin  de  VAcadémie  de  Bruxelles,  t.  ix,  p.  462. 


376  HISTORU  DA  UMVERSIDADE  DE  COIMBRÀ 

gostp;  e  mui  particolarmente  pelo  diBcorso  de  minhas  peregrinagSes, 
fallando-me  em  Luthero,  e  nas  coasas  de  Allemanha;  Beis,  e  principes 
d'ella^  e  por  ElBei  que  santa  gloria  haja  saber  que  vira  eu  jà  Erasmo 
Rotherodamo  e  que  eramos  amigos,  me  perguntoa  por  alguas  vezes 
se  0  poderia  eu  fazer  vir  a  oste  Regno  pera  se  d'elle  servir  em  Goimbra, 
onde  jà  tinha  ordenado  de  fazer  os  estudos  que  fez^  ao  que  Ihe  re- 
spondi  0  que  me  d'isso  parecia:  etc.» 

As  reIa98eB  pessoaes  de  DamiUo  de  Goes  com  Erasmo  datavam 
de  1532,  quando  depois  de  deixar  a  Feitoria  de  Flandres,  fora  estudar 
para  a  Universidade  de  Louvain  ;  depois  de  estar  alli  oito  a  nove  mezes 
adoeceu  dos  olhos,  e  por  conselho  dos  medicos  partiu  para  Friburgo: 
conde  estava  Erasmo  de  assento,  e  Ihe  deu  uma  carta  do  seu  hospede 
de  Louvaina  que  se  chamava  Rupeiros  Reecius,  e  o  dito  Erasmo  o 
convidou  pera  jantar,  comò  de  feito  elle  confessante  foi  jantar  com  elle 
e  praticaram  cousas  de  humanidade ...»  Damilo  de  Goes  voltara  para 
Louvain  «a  estudar,  e  estudou  latinidade,  e  nào  ouviu  nenhuma  outra 
faculdacle.»  D.  Jo2k)  lu  chamara-o  d'alli  a  Lisboa,  para  o  despachar 
thezoureiro  da  Casa  da  India:  ce  para  isso  o  mandara  chamar  a  Lo- 
vaina:  e  elle  se  escusou  disse  o  melhor  que  pode,  e  por  S.  A.  o  nSo 
haver  por  escuso  foi  se  espedir  delle,  e  Ihe  podio  licen9a  para  ir  a 
SSLo  Thiago  :  e  elle  Ih'a  deu  e  de  là  escreveu  uma  carta,  que  se  ia  es- 
tudar, e  se  foi  ter  onde  estava  Erasmo  que  foi  no  anno  de  trinta  e 
quatro:  e  ali  esteve  e  pousou  com  elle  por  espa90  de  quatro  mezes 
pouco  mais  ou  menos,  e  depois  foi  a  Frandes  a  negociar  suas  cousas, 
e  vse  tornou  a  casa  do  dito  Erasmo  onde  pousou  o  tempo  que  tem  dito  : 
etc. —  e  se  partio  de  casa  de  Erasmo  para  a  Italia  acabar  seu  estu^o 
onde  residiu  seis  annos...»  Em  1533,  quando  DamiSo  de  Goes  se 
dirigiu  para  Padua  para  frequentar  os  estudos,  Erasmo  recommendou-o 
calorosamente  a  Pietro  Bembo,  secretarlo  de  LeSlo  x,  a  quem  Paulo  ili 
fizera  cardeal. 

Em  carta  de  11  de  novembre  de  1533,  Bembo  respondeu  a  Erasmo 
fazendo  o  mais  rasgado  elogio  de  Dami^  de  Goes.  Em  carta  de  11 
de  Janeiro  de  1534  Erasmo  deu  conta  a  Damilo  de  Goes  da  sympathia 
que  elle  soubera  inspirar  a  Bembo.  Na  coUec^So  das  cartas  de  Erasmo 
existem  outo  dirigidas  por  elle  a  DamiSo  de  Goes;  e  uma  d'este  para 
o  eximio  phìlologo.  No  Processo  citam-se  outras  relagSes:  cDedarei 
que  estando  em  *Padua  estudando  nos  annos  de  mil  quinhentos  e  trinta 
e  quatro,  até  ao  anno  de  mil  quinhentos  e  trinta  e  oito,  me  escre- 
veu 0  Cardeal  Jacob  de  Sadoleto,  Bispo  de  Carpentras,  uma  carta, 
mandando-me  outra  pera  Phelippe  Melanchthon,  à  ten9So  que  pode- 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIYERSIDADE  377 

rìamoB  trazer  este  homem  ao  suave  jugo  da  Igreja  romana:  a  qual 
carta  com  outra  minha  Ih^  eu  mandei  por  via  de  mercadores  allemSes, 
residentes  em  Veneza.»  «estando  em  Padua^  o  Cardeal  Jacobo  Sado- 
loto  escreveu  a  elle  confessante  urna  carta  em  que  Ihe  rogava  que 
mandasse  outra  que  com  ella  Ihe  mandoa  a  Filippe  Malanchthon:  e 
iste  por  cousa  de  Ihe  dizer  imi  gentilhomem  bohemio  que  se  chamava 
Petrus  Behimos  que  foi  seu  companheiro  no  estudo  que  elle  confes- 
sante andara  por  teda  a  AUemanha,  e  que  estiverà  em  Witemberg  onde 
fallara  com  Martin  Luthero  e  Filippe  Malanchthon:  e  por  isso  Ihe  man- 
dava està  carta  que  Ihe  mandasse  comò  de  feito  Ih'a  mandou  por  o 
dito  cardeal  Ihe  escrever  que  a  dita  carta  era  para  o  trazer  à  fé.  E 
tSobem  elle  confessante  Ihe  escreveo  ao  dito  Felipe  Malanchthon  uma 
carta  com  a  do  dito  Cardeal  em  que  Ihe  rogava  que  quisesse  seguir  o 
conseiho  do  dito  Cardeal,  da  qual  nUo  houve  resposta.» 

Em  outro  legar  da  sua  allegag&o,  Damilo  de  Groes  toma  a  referir 
as  suas  peregrinafSes:  «Depois  de  eu  vir  a  este  Regno  no  anno  de 
mil  quinhentos  e  trinta  e  tres,  ^  comò  jà  tenho  dito,  por  El  Rei  que 


1  Foi  na  occasi&o  d'està  viagem  a  Portugal  que  Erasmo  Ibe  escreveu  a  se- 
guinte  carta  : 

nAo  darissimo  varào  Damiào  de  Goee^  Lusitano^  Thezoureiro  da  Fazenda  real, 
no  ràno  da  Ludtania. 

S.  P. — Estimo  que  te  chegasse  às  mSos  a  minha  Carta,  preclarissimo  DamiSo, 
e  pela  tua  e  a  d'aqueiroutro  que  por  teu  mandado  me  escreveu,  estimo  que  tivesses 
encargos  palacianos  a  que  pretendia  responder  mas  de  que  até  aqui  nao  me  chega- 
ram  novas  ;  e  no  entretanto  a  gota  de  tal  sorte  me  prendeu  a  deztra,  que  nem  se- 
quer  um  jota  eu  posso  tramar.  E  a  tua  carta  era  do  genero  d'aquellas  a  que  nio  se 
responde  ^cilmente.  Nào  julguei,  porém,  dover  apressar-me  em  escrever,  receando 
que  a  minha  carta  te  podesse  melindrar.  Alias  escreverei  brevemente,  assim  que 
a  dextra  m'o  permittir.  Muito  desejo  saber  onde  para  e  o  que  faz  o  nosso  Besende, 
o  homem  mais  candido  que  tenbo  conbecido,  da  parte  do  qual  eu  nada  mere^Of 
nem  me  parece  que  j&mais  possa  merecer.  Li  a  poesia,  que  descreve  as  pomposa  s 
festas  que  se  fizeram  em  Bruxellas  pelo  nascimento  do  filbo  do  rei,  na  qual  elle 
pinta  de  tal  sorte  e  poe  tudo  diante  dos  olbos,  que  muito  mais  vejo  pelo  poema, 
do  que  se  estivesse  presente.  Beli  a  carta  que  elle  escreveu  de  Batisbona,  à  qual 
nSo  respondi  entào  porque  farla  uma  fabula  motoria.  Se  souber  onde  elle  para» 
6screver-lbe-ei  copiosamente.  * 

Grapbeu  ainda  ìse  queixa  de  ma  saude  e  para  o  consolar  mandei-lbe  cinquenta 
fiorins  do  meu  bolsinbo.  £  vario  digno  de  melhor  fortuna  e  melbor  saude. 

Esteve  hoje  commigo  Bonifacio  Amerbachio,  mas  jà  muito  atrambolbado  ^ 

•  Ha  ama  carta  de  Braimo  a  André  de  Reaende,  datada  de  i7  de  Jnlho  de  1581.  (Opera 
BroMmi,  t.  m,  p.  1406.) 


378  HISTORU  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIHBBÀ 

santa  gloria  haja  nSo  me  querer  escusar  do  oi&cio  de  Thesoureiro  da 
Casa  da  India,  de  que  a  Rainha  nossa  senhpra  e  o  Cardeal  sSo  boas 
testemunhas,  eu  me  fai  desta  cidade  de  Lisboa  em  romana  a  Santiago 
de  Galliza^  donde  escrevi  urna  carta  ao  dito  senhor,  que  sua  Alteza 
tomou  bem,  e  com  ferventissimo  desejo  dos  estudos  me  fui  caminho 
de  Allemanha,  onde  fui  hospedado  de  Erasmo  Rotherodamo  quatro  ou 
cince  mezes,  o  qual  entam  morava  na  Universidade  de  Friburgo  de 
brisgosa,  universidade  e  cidade  catholica  do  senhorio  da  casa  d'Aus- 
tria: e  dahi  me  fui  aos  estudos  de  Padua,  do  senhorio  de  Veneza,  onde 
residi  quatro  ou  cince  annos:  e  dahi  me  tornei  a  Frandes,  ^  onde  com 
licenfa  d'EIRei  que  santa  gloria  haja,  me  casei  no  condado  de  Hol- 
landa:  o  qual  senhor,  no  anno  de  mil  quinhentos  e  quarenta  e  cince, 
e  assi  a  rainha  Nossa  senhora,  me  mandaram  chamar  per  suas  cartas, 
escrevendo  me  viesse  lego  a  oste  regno  com  minha  mulher,  casa  e  fi- 
Ihos,  por  que  era  pera  de  mim  se  servirem:  o  que  lego  fiz  com  muita 
diligencia,  vindo  eu  pela  pósta,  e  minha  mulher  por  jornadas,  e  minha 
casa  e  filhos  per  mar,  no  que  despendi  mais  de  mil  e  quinhentos  cru- 
zados:  etc.» 


Pediu-me  que  te  saadasse  em  seu  nome  com  a  maior  sympathia  e  amizade.  £  tam- 
bem  tea  em  espirito  Henrìque  Glareano,  que  nSo  sei  se  te  escreverà,  porque  està 
occupadissimo  com  as  Musas. 

Passa  bem.  Friburgo  Brisg.  5  de  mar9o  de  1534. 

A  respeito  das  pylepias,  que  desejavas,  faltou-me  um  typographo;  a  nio 
ser  iste  porém  ^z  o  que  pude.  Tratei  de  traduzir  a  cai-ta  ao  bispo  em  allemio,  e  ac- 
crescentei-a  ao  opuscalo  traduzido  em  aliemfto  que  relatava  a  obediencia  do  rei  dos 
Ethyopes  prestada  ao  pontifico. 

Tomou-me  a  apparecer  a  gota,  de  sorte  que  so  a  custo  posso  assignar. 

Erasm.  Bot.  mea  numu,» 

(Està  t^arta  inedita  de  Erasmo,  foi  pela  primeira  vez  publicada  pelo  conego 
Ram,  em  um  estudo  Sur  Uà  rapporta  d'Eraame  avec  Damien  de  Goe»^  nos  Bulletìns 
de  l'Académie  de  Bruxelles,  t.  iz,  P.  2  (1842)  p.  431  e  436. 

^  «Em  1542  quando  Longueval  e  Van  Bossem,  o  primeiro  general  francez,  e  o 
segnndo,  chefe  do  esercito  do  duque  de  Gueldre,  se  apresontaram  diante  de  Lou- 
vain para  pdr-lhe  cérco,  os  professores  foram  adjuntos  ao  magistrado  para  tra- 
tarem  da  defeza  da  cidade,  e  chamaram-se  os  estudanti^s  para  pegarem  em  armas 
dando-lhes  por  chefe  academica  auctarUate,  um  mancebo  oavcdleiro  portuguez  cha- 
mado  Dami2o  Gocs,  permittindo-lhe  escolher  um  ajudante  que  foi  o  frisfto  Severin 
Feiten.  Està  pequena  guerra  foi  celebrada  em  verso  por  Livinus  Torientius,  que 
veiu  a  ser  bispo  d^Angers.»  (Reiffenberg,  Sur  Uà  deux  prémiera  SihcUa  de  VUniver- 
aiU  de  LouvcUn,  Mem.  de  TAcadem.  de  Bruz.,  t  vii,  p.  21).  «0  proprio  Damiio  de 
Goes  escreveu  nma  descrìp^So  d^este  cérco,  Urbis  Lovamm&U  óbMio,  que  foi 
publicada  em  Lisboa  em  1546.» 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  379 

O  servilo  para  o  qaal  Damilo  de  Goes  fora  instantemente  cha- 
mado  por  D.  Jofto  iii  (1543  a  1545)  era  para  Ihe  confiar  a  educagSo  do 
principe  D.  Jo2o,  crianfa  intelligentissima,  tao  prematuramente  morta. 
0  jesuita  padre  Simfto  Bodrigues,  que  implantara  a  Companhia  de  Je- 
sus em  Portugal,  tratou  de  contrariar  oste  empenho  do  rei,  apresen- 
tando-se a  5  de  setembro  de  1545,  na  casa  do  despacho  da  InquÌ8Ì$&o 
de  Evora,  a  accusar  DamiSo  de  Goes  corno  herege,  por  isso  que  o  co- 
nhecera  em  Padua  pelo  anno  de  1536.  A  aocusa9Sk)  produziu  o  seu 
ejBTeito;  Damilo  de  Goes  escapou  entSlo  às  garras  dos  inquisidores,  por 
ter  sido  chamado  expressamente  a  Portugal  pelo  rei,  para  uma  m issilo 
de  seu  seryÌ9ò,  mas  n^  Ihe  foi  confiada  a  educaySo  do  principe  D. 
Joào,  corno  o  machinara  o  padre  SimSo  Rodrigues,  que  aspirava  a  esse 
encargo.  Damiào  de  Goes,  victima  jà  na  velhice  de  uma  accusafào  se- 
creta, pendente  sobre  a  sua  cabefa  durante  vinte  e  sete  annos,  conhe- 
ceu  com  teda  a  lucidez  d'onde  Ihe  provinha  o  malvado  e  perfido  ata- 
que:  «o  dito  Mestre  SimSLo,  chegando  eu  à  cidade  de  Evora  meado  do 
mez  de  Agosto  do  anno  de  mil  quinhentos  e  quarenta  e  ciuco,  lego  no 
de  Setembro  do  mesmo  anno  testemunhou,  a  qual  pressa  corno  se  cla- 
ramente  ve  foi  para  me  estorvar  t)  bem  para  que  eu  fora  chamado  por 
cartas  de  El  Rei,  que  santa  gloria  haja,  e  da  Rainha  Nossa  Seuhora, 
para  ser  mostre  e  guarda  roupa  do  Principe  D.  Jo2Lo,  que  santa  gloria 
haja  (-f- 1554)  pai  del  Rei  Nesso  Senhor  (D.  SebasstiSo),  comò  foi  pu- 
blica  voz  e  fama,  do  qual  senhor  Principe  elle  era  mestre  de  doutrina 
e  pretendia,  segundo  se  pode  suspeitar,  o  ficar  tambem  por  seu  mos- 
tre das  lettras,  o  que  n^  alcan90u,  e  o  que  se  me  estorvou  a  mim  se 
deu  a  Antonio  Pinheiro,  Bispo  que  agora  é  de  Miranda,  pelo  que  a 
seu  testemunho  se  nSo  deve  dar  fé.» 

Entro  OS  mais  distinctos  alumnos  do  afamado  Collegio  de  Santa 
Barbara  figura  Antonio  Pinheiro,  portuense,  de  uma  familia  humilde, 
admittido  por  influencia  do  Doutor  Diogo  de  Gouvéa  na  lista  dos  Ea- 
tudantes  de  EUrd.  Depois  de  graduado  mestre  em  Artes,  entrou  lego 
no  ensino  das  Humanidades  no  mesmo  Collegio  de  Santa  Barbara,  pu- 
blicando  em  1538,  no  fim  do  seu  curso,  uma  interpretammo  completa 
do  terceiro  livro  das  Inatittdgdes  oratorias  de  Quintiliano,  a  primeira 
que  entao  appareceu  na  Europa,  corno  observa  Quicherat.  *  A  regen- 
cia  de  Antonio  Pinheiro  fora  sob  o  principalado  de  Diogo  de  Gouvèa, 


1  Hietoire  du  CoUhge  de  SairUe-Barbe,  t.  i,  p.  138.  Este  auctor  chama-lhe 
Fin,  da  fórma  latina  Pinus;  e  eqoivoca-se,  dizendo  que  veiu  ser  mastre  de  D.  Se- 
basti^o. 


380  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

0  mago:  cO  ensino  de  Antonio  Plnheiro  é  d'este  tempo.  Ob  nomea  de 
Laberìus  e  de  Turnébo  fonnam  com  o  d'este  portuguez  ama  trìndade 
que  bastarà  para  a  gloria  da  administraySo  sob  a  qual  regentaram.»^ 
Antonio  Pinheiro  abàndonou  o  magisterio  para  seguir  o  corso  de  Theo- 
logia;  succedea-Ihe  na  cadeira  de  Rhetorica  o  immortai  erudito  Tur- 
nébo, que  attrahiu  as  atten93es  dos  criticos  para  os  textos  dos  escri- 
ptores  classicos;  Fedro  Ramus,  combatendo-o  sob  o  pseudonymo  de 
Omer  Talon,  nSo  se  esquece  de  amesquinhal-o,  pondo-o  em  confronto 
com  0  Yulto  de  Antonio  Pinheiro:  «Lembra-te  qual  foi  o  teu  ensino  em 
Santa  Barbara,  quando  eu  encetava  a  classe  de  primeira  em  Dormans. 
Tu  succedias  a  mestres  consummados  na  arte  de  instruir  a'mocidade, 
a  um  Jacob  Strebeu,  a  um  Antonio  Pinheiro.»' É  naturai  que  o  curso 
de  Theologia  frequentado  por  Antonio  Pinheiro  fosse  terminado  por 
1543;  a  sua  grande  reputa9So  nas  escholas  de  Paris  é  que  influìu  para 
ser  chamado  para  mestre  do  principe  D.  JoSo.  Porventura  o  proprio 
SimSo  Rodrigues,  que  fora  condiscipulo  de  Antonio  Pinheiro  em  Santa 
Barbara,  sob  o  principalado  do  Doutor  Diego  de  Gouvèa,  o  velho,  comò 
n2Lo  podia  obter  para  si  o  cargo  de  pedagogo,  apresentou-o  em  substi- 
tuÌ93o  de  DamiSo  de  Goes,  oppondo  a  orthodoxia  das  escholas  de  Pa- 
ris ao  racionalismo  das  da  AUemanha  e  mesmo  da  Italia. 

Emquanto  Damifto  de  Goes  era  desconsiderado  em  Portugal  pela 
influencia  da  reac92Lo  jesuitica,  publicava-se  em  Louvain,  em  1544, 
urna  obra  inedita  de  Erasmo,  o  Compendio  de  Rhetorica,  escripto  e  de- 
dic:ido  a  Damilo  de  Goes.  ^  A  necessidade  de  definir  a  corrente  hu- 
manista  da  Renascen9a,  que  actuou  nas  reformas  pedagogicas  de  D* 
JoSo  III,  fez-nos  antecipar  o  quadro  tenebroso  da  reao9So  do  scholas- 
ticismo,  de  que  os  Jesuitas  se  tomaram  os  restauradores.  Esse  quadro 
é  de  si  vasto,  e  tanto  melhor  sera  comprehendido,  quanto  mais  pro- 
fundamente  se  conhecer  a  influencia  das  doutrinas  e  dos  methodos  da 
Renascen9a  em  Portugal. 

As  grandes  reformas  emprehendidas  nas  Escholas  do  mosteiro  de 
Santa  Oruz  de  Coimbra,  pelo  Prior  goral  Frei  Braz  de  Barros,  em 
1528,  e  a  enorme  concorrencia  da  mocidade  aristocratica  para  esses 
estudos  brilhantemente  regidos  por  professores  recem-chegados  de  Paris, 


1  Qaicherat,  HiaUnrt  du  Collège  de  Sainte-Barbe^  t,  i,  p.  243. 

'  Idem,  i&id.,  p.  246  ;  traduzido  do  texto  da  Admoniito  TcUaei,  de  Fedro  Ramus. 

'  Dea.  Eras.  Roterod.  Compendium  Rhetorice»,  ad  Damianum  a  Gk>e8,  equi- 
tem  Lusitanum.  Lovanii,  15i4.  Tambem  em  1535  Gklenias  dedicara  a  Damifto  de 
Goes  iV8  Buas  CastigcUiones  Plinii.  ^ 


OS  HUUANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  38  i 

seriam  porventura  o  movel  immediato  do  regresso  da  Universidade 
para  Coimbra,  ao  firn  de  dois  seculos.  Pelos  menos,  o  rei  seguiu  com 
interesse  esse  fòco  de  cattura  que  se  abria  em  Santa  Cruz  de  Coimbra, 
e  coadjuvou-o  opulentamente,  mandando  construir  junto  ao  mosteiro 
mais  dois  Collegios.  Ao  passo  que  os  estudos  progrediam  em  Coim- 
bra,  na  Universidade  de  Lisboa  davam-se  terriveis  quebras  de  disci- 
plina, comò  se  ve  pela  devassa  de  1532  sobre  as  irregularidades  pra- 
ticadas  no  provimento  das  cadeiras.  0  estudo  do  grego  floresceu  em 
Coimbra,  nas  Escholas  do  mosteiro  de  Santa  Cruz,  antes  da  mudan9a 
da  Universidade.  Escreve  Ribeiro  dos  Santos;  cOs  dois  portuguezes 
Fedro  Henri ques  e  Gon9alo  Alvares,  que  em  1528  vieram  de  Paris 
para  ensinar  o  grego,  e  Vicente  Fabricio . . .  tanto  progresso  se  havia 
feito  n'estes  estudos,  que  jà  quando  Clenardo  ali  chegou  se  espantou 
do  seu  adiantamento,  parecendo-Ihe  aquella  cidade  outra  Athenas.»  E 
alludindo  ao  desenvolvimento  da  typographia  grega,  accrescenta:  «jà 
em  1534  se  achava  com  assento  e  domicilio  no  real  mosteiro  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra,  entSo  luzida  eschola  de  litteratura  portugueza;  e  foì 
està  a  primeira  de  caracteres  gregos  quanto  parece,  que  se  estabeleceu 
em  Portugal.  Contribuiu  muito  para  ella  o  doutìssimo  Vicente  Fabricio, 
que  ali  primeiro  ensinou  o  grego  ; . . .  Em  verdade  tEo  adiantada  a 
achou  Clenardo,  que  escrevia  e  aconselhava  a  seu  amigo  Vasco,  que 
se  queria  ter  provimento  de  Livros  gregos,  se  houvesse  com  Vicente 
Fabricio,  que  d'aquella  Officina  Ihes  poderia  mandar  commodamente, 
e  com  isso  se  animariam  os  Conegos  Regulares  a  imprimir  niella  muitas 
obras.  D'està  oficina  sahiu  entro  outras,  em  1534  a  edÌ92o  de  Boecio 
De  Divisionibus  et  DefinitionibuSj  em  4.®  em  que  jà  vem  alguns  lo- 
gares  de  caracteres  gregos  perfeitamente  trabalhados,  que  mostram 
bem,  quanto  floreciam  aquelles  prélos.»  *  Foi  tambem  no  Mosteiro  de 
Santa  Cruz  que  se  imprimiu  a  primeira  Orammatica  latina,  pelo  cruzio 
D.  Maximo  de  Scusa.  D'elle  escreve  o  chronista  dos  Regrantes:  «Foi 
0  melhor  Grammatico  do  seu  tempo,  foi  grande  Filosofo  e  mui  consum- 
mado  Theologo.  Por  occasiSo  de  ensinar  grammatica  a  alguns  prin- 
cipe» e  senhores  d'este  reino,  que  se  criavam  com  o  nesso  habito  no 
mosteiro  de  Santa  Cruz,  compoz  a  primeira  Arte  de  Latim,  e  Gram- 
matica, que  se  imprimiu  n'este  reino  por  ordem  deirei  Dom  JoSo  no 
mesmo  mosteiro  no  anno  4e  1535,  e  por  ella  se  ensinou  Latim  e  Gram- 
matica nas  escholas  menores  de  Coimbra  muitos  annos;  e  ainda  depois 


1  Memorici  de  Litteratura  portugueza^  t.  vm,  p.  79. 


382  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DB  C0IBI6RA 

que  se  deram  estas  Escholas  menores  aos  Padres  da  Companhia,  peloB 
annos  de  1555,  ensinavam  Grammatica  pela  Arte  do  P.  D.  Maximo, 
até  que  o  P.  Manuel  Alves  compoz  a  Arte  por  onde  agora  ensinam.»  ' 
O  pensamento  da  mudanga  da  Universidade  para  Coimbra  impunha-se 
comò  urna  necessidade,  e  desde  1532  que  apparece  jà  nos  documentos 
officiaes,  ou  nos  despachos  de  lentes,  a  clausula:  emquanto  o  Estudo 
nào  mudar.  Ab  inten93e8  que  està  clausula  revela  nSo  passaram  desa- 
percebidas  para  a  Universidade  de  Lisboa,  e  o  plano  de  urna  trasla- 
da9SLo  dos  estudos  teve  seu  ecco  nos  principaes  centros  pedagogicos  do 
paiz;  a  Camara  de  Coimbra,  comò  veremos,  enviou  urna  petÌ9So,  em 
1533,  para  que  a  Universidade  se  estabelecesse  alli,  ao  que  foi  respon- 
dido  que  o  rei  ainda  n&o  tinha  resoIu9So  definitiva.  Tambem  no  pro- 
cesso que  a  Inquisl9&o  de  Lisboa  promoveu  contra  o  grai^de  chronista 
DamiSLo  de  Goes,  se  le,  que  D.  JoSo  m,  chamando-o  a  Portugal  em 
1533,  Ihe  perguntara  se  poderia  attrahir  Erasmo  para  Coimbra  conche 
jd  tinha  ordenado  de  fazer  oa  Estudos  qtie  fez.3 

Sabendo  a  verea9ào  de  Coimbra,  que  D.  JoSo  m  pensava  em  re- 
mover a  Universidade  de  Lisboa,  representou-lhe  para  que  vindo  essa 
mudan9a  a  effectuar-se  fosse  preferida  Coimbra,  onde  por  mais  de 
urna  vez  tivera  sède.  E  crivel,  mesmo  que  D.  JoSo  m  provocasse  està 
representa93o,  para  assim  se  libertar  das  exigenciasde  Evora,  que  aspi- 
rava a  ter  um  Estudo  Geral.  Em  carta  de  9  de  junho  de  1533,  D. 
Joào  III  mandou  participar  à  Camara  de  Coimbra,  que  tornava  em 
lembran9a  o  que  Ihe  era  pedido.  Este  documento,  exarado  quatro  annos 
antes  de  se  effeituar  a  traslada9llo  da  Universidade  para  Coimbra,  vem 
completar  os  elementos  do  plano  da  grande  reforma  pedagogica  de 
1537.'  Coimbra  vendo  applicar  os  rendimentos  do  Priorado  mór  de 
Santa  Cruz  para  as  despezas  da  Universidade,  alentava  a  esperan9a 


1  D.  Nioolào  de  Santa  Maria,  Chronica  dos  Begrantes,  Liv.  z,  p.  326. 

*  £Ì8  a  Carta  regia  de  9  de  junho  de  1533  em  reaposta  ao  pedido  da  Camara 
de  Coimbra:  «Juiz,  vereadores,  procuradorea  dea  povos  da  minila  cidade  de  Coim- 
bra. £u  el  rei  vos  envio  muito  saudar.  Vi  a  carta  que  me  escrevestes,  em  qiie  me 
daes  conta,  que  os  primeiros  reis  que  foram  d^eate  reino,  que  por  muitoa  aervi^oa 
que  da  dita  Cidade  receberam,  entre  oa  muitoa  prìvilegioa  e  homraa  que  a  dotaram, 
houveram  por  bem,  que  o  Tomba  do  Beino  e  Estudos  Oerass  eativeaaem  em  ella, 
e  que  peloa  reia  passadoa  meus  anteceaaorea  forai&  mudadoa  para  minha  cidade  de 
Lisboa  ;  e  que  ora  por  terdea  informa^&o,  que  oa  mandava  mudar  para  outra  parte, 
me  pedisy  que  nào  ha  vendo  de  eatar  em  Lisboa,  e  fazendo  d*ellea  alguma  mudan^a, 
fosse  para  essa  cidade,  onde  primeiro  estiveram.  £u  vi  bem  voaaa  carta,  e  aa  ra- 
zoes  que  para  iaao  daea,  e  voa  agradefo  a  lembran^a  que  me  d^iaao  fazeis;  eporém 


OS  HUfilANISTAS  E  A  REFORHA  DA  UNIVERSIDADE  383 

de  que  esse  facto  era  am  indicio,  além  da  reforma  das  Escholas  de 
Santa  Cruz,  de  que  tornaria  a  receber  o  seu  antigo  Estudo  Geral.  Por 
seu  turno  a  Universidade'  em  1534  fez  tambem  urna  calorosa  repre- 
senta9ao  centra  tal  plano.  Nas  Cortes  de  Evora,  de  1535^  foi  lembrado 
que  a  Universidade  deveria  ser  trasladada  para  Evora.  ^  A  mudan^a 
veiu  a  effectuar^se  por  fins  de  mar90  de  1537. 

Nos  seuB  ultimos  annos,  a  Universidade  de  Lisboa  tinha  perdido 
lentes  eminentissimos,  '  corno  Frei  Balthazar  Limpo^  que  regeu  a  cadeira 
de  prima  de  Theologia  até  1530,  e  o  Dr.  Garcia  d'Orta  que  em  1534 
embarcara  para  a  India,  na  companhia  de  Martim  Àffonso  de  Scusa, 
attrahido  pela  novidade  dos  phenomenos  das  regiSes  orientaes. 

A  actividade  de  Frei  Braz  de  Barros,  doutor  pela  Universidade 
de  Louvain,  corre^pondia  ao  empenho  de  D.  JoSo  m  na  reforma  dos 
Estudos;  08  Collegios  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  tomaram-se  o  nucleo 
para  as  refonnas  fundamentaes,  preparando  assim  o  plano  da  traslada- 
(ào  da  Universidade.  Em  urna  carta  de  8  de  novembre  de  1535,  es- 
crevia  D.  JolU)  in  perguntando  a  Frei  Braz  de  Barros  o  estado  da  re- 
forma da  Faculdade  de  Artes,  e  dos  lentes  francezes  chamados  para  os 
Collegios  de  Santa  Cruz.  Transcrevemos  o  trecho  principal  d'essa  carta: 

aE  quftto  ao  trabalho  que  dizes  que  levastes  em  asetar  co  doutor 
Prado  em  a  regra  das  Artes  e  os  francezes  que  vierS  de  paris  eu  creo, 
que  seria  asy  e  folgarej  que  me  screvaees  quantos  lentes  sam,  e  de 
que  faculdades.  E  asj  qùStos  escolares  e  estudantes  j&  ouvem  em  cada 
ciancia  ou  arte.»  ^ 


até  ao  presente  eu  ii2o  tenho  n*Ì880  assentado  couBa  alguma;  e  havendo-ee  algama 
coasa  de  fazer,  eu  terei  lembran^a  do  que  me  enviaes  dizer. 

«£  quanto  ao  que  dizeis  que  essa  cidade  recebe  pena,  por  os  juizes  de  fora 
0  mais  do  tempo  n£o  estarem  em  ella,  por  serem  maito  occupados  em  diligencias, 
que  por  mea  mandado  vSo  fazer  fora  duella,  e  me  pedis  os  nSo  occupe  nas  ditas 
diligencias,  d'isso  se  terà  tambem  lembran9a,  e  o  mais  que  se  puder  eecusar  se 
farà;  e  ahi  està  agora  o  corregedor,  que,  quando  o  dito  joiz  fór  fora,  vos  farà jus- 
ti9a.  Escripta  em  Evora  a  9  de  junho — Fernando  da  Costa  a  fez,  de  1533.  Rei.» 
(Ap.  Martins  de  Carvalho,  no  tomo  iz,  p.  32,  da  Hiat  das  Estabdecimentoa  sden- 
tificoSf  de  Silvestre  lUbeiro.) 

^  Partugal  pittoresco,  t  i,  p.  125. 

^  Yillar  liaior,  Notida  succinta  da  Universidade  de  CoiwJbra^  p.  48. 

'  Ap.  Ayres  de  Campos,  ìnstUuto  de  Coimbra,  mar^o  de  1889 — n.*  9,  p.  584. 
Estes  documentos  foram  extrahidos  de  um  volume  manuscripto,  de  225  folhas,  que 
pertenceu  ao  Mosteiro  de  Santa  Cruz,  cnjo  titulo  era  :  Cartas  de  reis  e  infantes  sabre 
varios  aasumptos  tocantes  ao  mosteiro  de  Santa  Cria,  à  Universidade,  e  a  cUguns 
Collegios,  desde  1518  a  151 L* 


384  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADB  DE  COIMBRA 

Em  outra  carta  datada  de  Evora  de  11  de  mar90  de  1536,  es- 
creve  D.  JoSo  in  a  Frei  Braz  de  fiarros  activando  a  reorganÌBa9So  da 
Faculdade  de  Artes  nos  Collegios  de  Santa  Gruz^  para  proceder  à  ex- 
tincfSo  d'essa  Facaldade  em  Lisboa,  e  chamar  os  bolseiros  (Estudantes 
de  el-rei)  que  estSo  em  Paris.  O  contendo  d'essa  carta  é  de  nm  grande 
interesse  historico: 

«Padre  frei  Bras  eu  ElRei  vos  envio  muito  saudar.  Vos  avieis 
de  poer  no  ffim  de  Setembro  deste  ano  bum  mestre  que  lea  as  sumìda» 
por  entam  ffazer  bum  ano  que  agora  le  o  curso  de  logica,  e  dabi  a  bum 
ano  outro  mestre  que  lea  jUosoffia  que  sam  os  tres  cursos  das  artes. 
E  posto  que  atee  bo  dito  tempo  nam  seja  necesario  ordenar  os  ditos 
mestres  por  atee  entam  os  conigos  nam  terem  necesidade  deles,  folgaria 
ordenardes  de  os  poer  logo  e  mandardelos  buscar  que  sejam  pessoas 
pera  isso  sofficientes.  asy  comò  fizestes  aos  que  agora  temdes.  por  que 
queria  que  as«  artes  se  nam  leam  mais  em  Lixboa  e  mandar  que  os 
meus  bolseiros  de  Paris  se  venbam  os  que  ainda  ouvem  as  ditas  artes 
e  nam  pasarS  baa  tbeologia  o  que  nS  seria  rezam  mandalos  revogar 
nam  tendo  asi  os  estudantes  que  as  ouvem  em  Lixboa  comò  os  de 
Paris  outro  estudo  bonde  as  possam  ouvir  nestes  reinos  e  perderiam  bo 
trabalbo  que  tem  nisso  levado  pollo  qual  vos  agrade^eroj  fazerdelo 
logo.  E  comò  0  teverdes  feito  escrevedemo  pera  logo  mandar  revogar 
08  de  Lisboa  e  mandar  vyr  os  de  Paris.  E  isto  de  revogar  de  Lixboa  fol- 
garey  que  tenbaès  em  segredo  porque  nS  queria  que  se  soubesse  ante 
de  OS  eu  mandar  revogar,  encommendovos  muito  que  o  fagaes  asy. 
Anrique  da  Mota  a  fez  em  Evora,  aos  xj  dias  de  mar90  de  1536,  Rey. 
Pera  frei  Bras  de  Braga.» 

A  preoccupa9So  da  mudan9a  dos  Estudos  de  Lisboa  cbegava  até 
a  interessar  as  localidades,  que  se  offereciam  para  sède  da  Universi- 
dade,  comò  Evora  e  o  Porto:  cnas  cortes  que  fez  D.JoSo  ni  em  Tor- 
res Novas  em  1525,  nas  de  Evora  do  anno  de  1535,  que  se  publicaram 
com  as  respostas  que  a  ellas  deu,  e  nas  que  fez,  em  29  de  novembro 
de  1538,  no  cap.  159  requeriam  os  procuradores  d'ellas  que  mandasse 
acabar  os  Estudos  d'Evora  que  sHo  comegados,  e  que  ahi  se  ordenem 
lentes  e  que  as  duas  prebendas  da  Sé  que  scio  ordenadas  para  um  Theo- 
logo  e  para  um  Canonista,  que  rendem  dozentos  mil  réis  cada  urna,  e  as 
obras  da  Sé  que  nào  sSo  appropriadas  para  cousa  alguma  senàopara  as 
ditas  obras  e  rendem  novecentos  mil  réis  cada  anno  se  apriquem  aos  ditos 
Estudos,  e  sera  azo  que  hajam  mais  letrados  em  seu  reino  e  que  nSo  se 
leve  0  dinheiro  para  fora  do  reino  que  os  estudantes  la  gastam:  a  que 
ElBei  respondeu:  Agradego-vos  a  lembranga.» 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  385 

«Porem  ao  capitalo  172,  que  contém  o  segainte:  Item:  pedem  a 
V.  A.  que  mande  aprender  de  Physica  quarenta  ou  cincoenta  christSos 
yelhos  que  para  isso  tenham  habilidade,  porque  està  sciencia  nSo  anda 
agora  senSo  em  cliristSos  novos,  dando  V.  A.  esperan9a  na  dita  orde- 
na9So  de  os  honrar  e  Ihes  fazer  mercè,  porquanto  d'isto  se  seguirSo 
muitos  proveitos  e  muito  repouso  a  seus  Reinos  e  senhorios.  Deu  ei- 
rei efita  resposta:  Eu  ordeno  em  Coimbra  une  Estvdos  em  que  se  lerd 
Medicina,  e  poderSo  ajprender  os  que  quizerem,'»  * 

Por  1535,  cursando  Theologia  na  Universidade  de  Paris,  o  conego 
cruzio  D.  DamiSo  foi  encarregado  por  D.  Jo2o  m  de  contractar  alguns 
lentes  para  a  Universidade  que  ia  mudar  para  Coimbra;  em  carta  de 
3  de  outubro  d'esse  anno  escrevia  D.  DamiSo  ao  seu  Prior  geral:  «por 
quanto  tenho  esento  largamente  a  ElRej  nesso  senhor  e  a  vessa  Pa- 
temidade,  poUos  Regentes  que  d'està  Universidade  de  Pariz  vSo  pera 
ler  n'essa  nova  de  Coimbra,  pela  ordem  que  tive  del  Rey  nesso  Senhor 
pera  os  mandar.  Jà  agora  là  serSo,  e  comegarà  a  florecer  essa  Univer- 
sidade, que  espero  seja  resplandor  do  Reyno  e  lume  da  religiào  cfaristS. 
NSo  se  agaste  vessa  Patemidade  se  dei  grande  Partido  aos  Mestres, 
porque  d'outra  maneira  n2Lo  foi  possivel  movellos  a  irem;  mas  comò  a 
Universidade  for  povoad^  se  acharSo  outros  muitos^  e  por  menos  esti- 
pendio; que  quanto  Mestres  de  Artes  se  forem  necessarios,  lego  os  man- 
darci e  contentarci  por  ametade  de  quinhentos  cruzados,  que  dei  aos 
que  là  vSo;  porque  Mestres  em  Artes  achào-se  cà  às  duzias,  e  todos 
pela  major  parte  doutos  e  idoneos  pera  ensinarem.  Avize-me  Vessa  Pa- 
temidade se  se  contenta  d'esses  Mestres  e  de  suas  leti'as,  e  diligencia 
em  ensinar  e  bons  costumes.  etc.»  Por  està  carta  tambem  se  sabe  que 
D.  Jo&o  in  nomeara  o  conego  D.  DamiSo  para  a  regencia  de  urna  ca- 
deira  de  Theologia:  <0s  duzentos  cruzados  que  Vessa  Patemidade  me 
mandou  pera  livros  Ihe  tenho  muito  em  caridade  e  assi  a  Cadeira  de 
Theologia  que  me  tem  alcanfado  del  rey  nesso  Senhor  pera  eu  iSr  n'essa 
Universidade  ;  porque  tanto  que  tiver  embarca9So  logo  me  heide  par- 
tir a  tomar  posse  d'ella.»' 

0  cardeal  infante  tambem  se  lisongeava  que  a  Universidade  fosse 
transferida  para  o  seu  arcebispado  de  Braga  ou  pelo  menos  para  o  Porto; 
elle  tambem  fundara  um  Collegio  em  Braga,  ao  qual  dava  a  dota(So  e 
0  desenvolvimento  de  um  Estudo  geral.  Escreve  Cenaculo:  «0  Arce- 


1  Ap.  Instituto,  de  Coimbra,  t.  xiv,  p.  278.— (1871.) 

2  Ap.  D.  Nicoiào  de  Santa  Maria,  Chron,  dos  Begrantes,  liv.  vn,  p.  61. 

BIST.  UN.  25 


386  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

bispo  de  Braga  inclinava  (a  mudanga  da  Universidade)  para  a  sua  Au- 
gusta ou  para  a  Cidade  do  Porto.  Os  Lentes  de  Lisboa  interpozeram 
recurso,  mas  inutil,  dizendo  a  Eirei  D.  JoSo  ili:  Que  muito  provetto 
sera  a  seus  Reinos  o  haver  hi  duas  Univeraidades  pois  em  oidros  Rei* 
nos  ha  mmtas  mais.  Foi  escripta  a  carta  a  14  de  dezembro  de  1536 
assignada  entre  outros  pelos  Doutores  Fedro  Nunes  e  Gon9alo  Vaz ...»  * 
O  infante  D.  Henrique,  arcebispo  de  Braga,  fundou  ali  um  Collegio, 
que  era  regido  por  JoSo  Vasèo,  naturai  de  Bruges,  tendo  vindo  de  Sa- 
lamanca;^ ]b)icolào  Clenardo,  que  escreveu  para  esse  Collegio  umas 
InstitiUiones  Orammaticae  latinae  (Braga,  1538),  dà  noticia  d'està  es- 
chola,  escrevendo  para  Louvain,  a  Francisco  Hoverio,  em  data  de  27 
de  fevereiro  de  1538,  e  a  Jacomus  Latomus,  de  Granada,  em  12  de 
julho  de  1539.  Foi  n'este  anno  que  o  arcebispo  infante  uniu  ao  Col- 
legio as  rendas  das  egrejas  de  Santa  Maria  de  Negrellos,  S.  JuliSo  de 
Val-Pa§ós  e  Santa  Maria  do  Vimieiro,  augmentando  o  edificio,  para 
n'elle  haver  estudos  gratuitos.  Em  provisSo  d'este  mesmo  anno  manda 
unir  aos  rendimentos  do  Collegio  seiscentos  ducados  das  egrejas  que 
fossem  vagando,  e  prové-o  de  Mestres  de  Grammatica,  Poetica,  Rhe- 
torica,  Philosophia,  Canones  e  Theologia.  O  arcebispo  infante,  nSo  po- 
dendo  alcangar  a  tra8lada9So  da  Universida(^e  para  o  Porto,  tratou  de 
approximar  o  seu  Collegio  do  typo  de  um  Estudo  geral.  ^ 

Nas  biographias  das  principaes  individualìdades  portuguezas  re- 
sume-se  em  breves  tra90s,  muitas  vezes,  o  quadro  do  ensino  em  urna 
època,  ou  a  fórma  corno  os  conhecimentos  se  adquiriam.  Exeinplifique- 
mos:  D.  Alvaro  Paes,  o  auctor  do  livro  De  pianeta  Ecclesiae,  apre- 


1  Ouidadoa  Litterarioe,  p.  243. — -Este  Doutor  Fedro  Nunes  nSo  deve  ser  con- 
fundido  com  o  mathematico  ;  era  o  desembargador  e  chanceller  do  rei,  o  ultimo 
Beitor  da  Universidade  até  à  sua  traslada^fio  para  Coimbra. 

2  Differentes  cartas  de  Clenardo  a  Joào  Vaséo  trazem  importantes  noticias 
sobre  as  reformas  que  precederam  a  trasladaQSo  da  Universidade  ;  em  urna  carta 
falla-lhe  de  Mestre  Fabricio,  allemSo,  que  ensinava  grego  nas  Escholas  de  Santa 
Cruz,  e  allude  a  urna  carta  que  este  Ihe  escreveu  lego  que  soubera  da  sua  cheg^da 
a  Fortugal;  em  outra  carta,  de  1537,  diz  que  fora  visitar  a  Universidade  a  Coim- 
bra, mas,  comò  eram  ferias,  nSo  póde  vèr  funccionar  as  Escholas  ;  apenas  viu  ali 
comò  ensinava  grego  Mestre  Vicente  Fabricio  ;  em  outra  carta  refere- se  à  typo* 
grapbia  do  mosteiro  de  Santa  Cruz,  recommendando-lhe  que,  se  quizesse  livros 
gregos,  OS  pedisse  a  Vicente  Fabricio,  porque  no  mosteiro  se  imprimiam  admira- 
velmente. 

'  Joao  Vaséo  tambem  imprimin  em  Braga,  em  1538,  a  sua  CoUeetanea  Rht' 
iorices,  dedicada  ao  cardeal  infante. 


OS  HUMÀNISTÀS  E  A  REFORBfA  DA  UNTVERSIDADE  387 

senta  nos  seus  e8tado3;  no  secalo  xiVy  a  situagSo  das  duas  Universi- 
dades  que  dirigiram  a  pedagogia  europèa:  cElIe;  posto  que  portagaez, 
passou  na  sua  mocidade  a  estudar  Direito  na  Universidade  de  Bolonka; 
tomou  0  habito  seraphico  e  professou  em  Assis;  e^  ainda  que  voltando 
a  Lisboa,  residiu  algum  tempo  no  seu  convento  da  mesma  cidade,  ainda 
voltou  a  frequentar  cts  atdas  de  Theólogia  em  PariSs^  ^ 

.  O  filho  do  chronista  Ray  de  Pina,  o  celebre  FernSo  de  Pina,  que 
fez  a  reforma  dos  Foraes,  por  meio  da  qual  se  extinguiu  a  autonomia 
locai  dos  concelhos,  substituindo-se  às  garantias  populares  a  vontade 
do  rei  na  Ordena^  Manudina^  completou  a  sua  educa9So  fora  de  Por- 
tngal^  no  firn  do  seculo  xv.  JoSlo  Pedro  Ribeiro  falla  da  sua  cultura  hu- 
manista:  dnstruido  fora  do  reino  nas  linguas  latina  e  grega,  tendo 
mesmo  no  reinado  de  D.  JoSo  il  viajado  a  Inglaterra  corno  secretano 
de  urna  embaixada,  nSo  Ihe  podiam  ser  extranhas  as  obras  de  Plutar- 
cho,  nem  mesmo  as  Epistolas  de  Cicero,  j&  vulgares  pelo  prelo.»  * 

A  reforma  da  Uaiversidade  de  Lisboa,  por  D.  Manuel,  decretada 
nos  Estatutos  ou  Ordenan^as  de  1504,  veiu  a  realisar-se  por  uma  influen- 
eia  nSo  officiai  e  externa  a  esse  corpo  docente,  pelo  desenvolvimento  dos 
estudos  humanistas  em  Portugal  ;  porque  nas  principaes  Universidades 
da  Europa  floresciam,  corno  professores  e  alumnos,  portuguezes  que. 
honravam  a  sua  patria,  corno  Ayres  Barbosa,  que  estudara  na  Italia  e 
ensinara  vinte  annos  em  Salamanca,  regendo  as  cadeiras  de  grego  e 
latim;  Henrique  Caiado,  discipulo  de  Cataldo  Siculo  e  de  Angelo  Po- 
liciano;  Antonio  Pinheiro,  que  estudara  no  Collegio  de  Santa  Barbara, 
onde  era  principal  André  de  Gouvèa,  o  mostre  insigne  de  Montaigne; 
Pedro  Margalho,  que  se  doutorara  em  Paris  e  ensinara  em  Salamanca; 
DamiSo  de  Goes,  que  se  formou  em  Padua;  André  de  Resende,  que 
estudou  na  Universidadc  de  Louvain;  Jorge  Coelho,  Alvaro  Gomes, 
Antonio  Luiz,  Jeronymo  Cardoso,  e  tantos  outros  portuguezes  que  co- 
operaram  no  ferver  philologico  e  critico  da  Rena8cen9a.  ^  Os  humanis- 


1  J.  Pedro  Ribeiro,  Refl.  hUtoriccu. 

*  Ibidem,  U  i,  p.  50. 

3  TranBcrevemoB  do  Anno  historieo,  do  padre  Francisco  de  Santa  Maria, 
t.  in,  p.  120  a  122,  a  lista  dos  professores  portuguezes  que  ensinaram  nas  Uni- 
versidades  estrangeiras  :  «Mas  porque  se  nSx)  diga  que  a  na^lU)  portugueza  deve 
às  estrangeiras  em  grande  parte  a  cultura  das  sciencias,  e  que  Ihes  està  n'essa  di- 
vida, mostraremos  aqui  o  excesao  com  que  Ihes  correspondeu,  e  daremos  uma  abre- 
viada  lista  dos  grandes  Mestres,  que  de  Portugal  sairam  para  Lentes  das  mais  fa- 
mosas  Universidades  da  Europa,  advertindo  qae,  sem  duvida,  deizamos  de  referir 

25* 


388  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tas  eram  as  potencias  da  època,  e  os  reis  nSo  sómente  os  attrahiam 
para  as  fiuas  cfìrtes,  corno  Ihes  entregavam  a  educaySo  dos  prìncipes. 
Ayres  Barbosa  foì  chamado  de  Salamanca,  em  1521,  para  vir  dirìgir 
a  educa9&o  dos  principes  D.  Affonso  e  D.  Henriqae,  irmSos  de  D. 
JoSo  m  ;  André  de  Besende  foi  chamado  tambem  a  Portogal  para  mos- 
tre do  infante  D.  Bnarte,  em  1534,  indo  n'esse  mesmo  anno  a  Sala- 
manca contractar  a  vinda  de  Nicolào  Clenardo  para  o  Estudo  goral  de 
Lisboa  e  para  o  ensino  do  infante  D.  Henrique.  Fallaya*se  latim  nas 


mtiitos,  por  falta  de  noticias  ;  e  porque  a  Universidade  de  Salamanca  nos  fica  mais 
perto,  come^aremos  por  ella: 

Salauanca 

Frei  Diogo  Femandes,  franciscano,  lente  de  prima  de  Theologia, 

Alvaro  Gomes,  lente  de  Theologia  (e  tambem  na  Universidade  de  Lutecia.) 

FemUo  Ayres  de  Meza,  lente  de  vespera  e  de  prima  de  Canone,  idem. 

Fedro  Margalho,  id. 

Miguel  da  Costa,  id. 

D.  JoSo  Altamirano,  id. 

Vasco  Rodrìgues,  id. 

Belchior  Comejo,  id. 

Fr.  Luiz  de  S.  Francisco  (antes  de  entrar  Beligioso),id. 

Manuel  da  Costa,  lente  de  prima  de  Leia, 

AjreB  Pinhel,  id. 

Heitor  Bodrigues,  id. 

Ascenso  Gromes,  lente  de  vespera. 

Nuno  da  Costa,  id. 

D.  Francisco  de  Fuga,  id. 

Ayres  Barbosa,  lente  de  Leis. 

Francisco  Caldeira  Phebo,  id. 

Antonio  Gromes,  id. 

Amador  Bodrigues,  id. 

Jeronymo  de  MiltU)  Fragoso,  lente  de  InstUuUi, 

Duarte  Femandes,  lente  de  prima  de  Medicina. 

Ambrosio  Nunes,  lente  de  vespera  de  Medicina. 

Agostinho  Nunes,  id. 

Francisco  Femandes,  lente  de  Philosophia  e  3lédtctfia. 

Thomé  Bodrigues  da  Veiga,  id. 

Luiz  de  Lemos,  id. 

Jo2o  Soarea  de  Brito.  lente  de  PhUciophia. 

SebastiSo  Gomes  de  Figneiredo,  id. 

B^pbaci  Nogueira,  lente  de  McUhemaiica, 

Qabrìel  Gomes,  lente  de  ÀMirclcgia, 

Francisco  Homem  de  Abreo,  lente  de  Shetoriea. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  389 

«scholas  do  palacio  e  nas  aulas  da  Universidade;  André  de  Resende 
4escreye  este  oso^  na  Vida  do  Infante  D*  Duarte:  cEstando  Elrey  quo 
Deus  guardo,  em  Evora,  quando  eu  vìm  de  Franca  e  Fiandes,  no  anno 
de  1534,  fiz-lh'e  men92o  da  erudÌ9So  e  virtudes  do  licenciado  Niool&o 
Clenardoy  flamengOy  que  eu  de  Lovaina  conhecia,  e  com  quem  me  exer- 
citaya  na  lingua  hebraica  bum  pouco  de  tempO;  e  contratara  entro  elle 
e  D.  Fernando  Colon,  sevilhano,  quomo  se  viesse  a  Hespanha;  e  log^ 
€om  promessa  que  se  Elrey  nesso  senhor  se  quizesse  servir  d'elle,  vi- 


JoSo  Femandes,  lente  de  prima  de  Bhetorica  {(ò  a  leu  na  Universidade  de 
Alcali.) 

Francisco  Martina,  lente  de  prima  de  HumanidadeM. 

Manuel  de  Azevedo,  id. 

Gaspar  Alves  da  Vóga,  id. 

Manuel  de  Oliveira,  id. 

Ayres  Barbosa,  primeiro  lente  de  Grtgo  em  Salamanca  e  em  toda  Hespanba. 

Henrìque  Jorge  Henrìques,  da  Guarda,  regente  de  Aiies. 

Pabis 

D.  JoSo  Froes,  conego  de  Santa  Cruz  de  Goimbra,  e  depois  cardeal,  lente 
de  Theologia. 

D.  Fedro  Sardinba,  id. 

Freì  Gaspar  dos  Beis,  dominico,  id. 

Frei  Jorge  de  Santiago,  id. 

Frei  Jo2o  da  Cruz,  agostinho,  id. 

Frei  Duarte,  id.,  ibid. 

D.  Frei  Diogo  Soares  de  Santa  Maria,  franciscano,  lente  de  Theologia  e  Con^ 
travenia  (e  tambem  na  Universidade  de  Lovajna.) 

Diogo  de  Gouvéa,  o  velho,  lente  de  prima  de  Theologi€u 

André  de  Gouvéa,  seu  sobrinho,  successor  na  mesma  cadeira. 

Diogo  de  Gouvéa,  sobrinho  do  vclho,  lente  de  Arte». 

Marcai  de  Gouvéa,  tambem  sobrinho  do  velho,  lente  de  Artea  e  Humamdade». 

Diogo  da  Silva,  lente  de  Medicina, 

D.  Antonio  Pinheiro,  depois  Bispo  de  Miranda,  lente  de  Humanidaiei. 

Sapibhcia  Romaìza. 

Frd  Gregorio  Nunes,  agostinho,  lente  de  Theologiau 

Francuco  da  Costa,  jesuita,  id. 

Diogo  Seco,  id. 

Jorge  Calhandro,  lente  de  Canone». 

Paulo  Calhandro,  seu  filho,  lente  de  InMuda^ 

Gabriel  FalcSo,  id. 

Manuel  Constantino,  lente  de  Bhetarioa  e  PhUoaopMa. 

JoSo  Vaz  da  Motta,  lente  de  Bhet&riea  e  Logica. 


390  HISTORIA  DÀ  imiVERSIDADE  DE  COIMBRA 

ria  pera  este  remo.  Ora,  ao  tezopo  qae  ea  vim,  elle  estava  em  Sala- 
manca jà  fora  D.  Fernando,  e  lia  em  aquella  Universidade  com  multa 
honra  e  irequencia;  dei  conta  a  Elrey  que  me  parecia  multo  pera  mos- 
tre do  Infante  D.  Henrique,  que  segula  o  estado  eccleBiastico.  Qua- 
drou  Isto  a  El-rey,  e  mandou-me  a  Salamanca  pera  o  persuadir  que 
Tiesse,  e  em  nome  de  sua  Alteza,  assentasse  com  elle  o  partido  que 
me  parecesse  rasoado  e  honesto.  Eu  o  fiz  assim  e  o  trouxe  commigo, 
e  depois  de  beijarmos  a  mSo  a  Elrej,  o  levei  ao  Infante  D.  Henrìque 


Thomaz  Correa,  lente  de  Humanidadea  (e  tambem  na  UDÌversidade  de  Bo- 
lonha.) 

Achilles  Estate,  lente  de  Humanidcuies. 

Frei  Francisco  de  Santo  Agostinho  Macedo,  franciscano,  lente  de  Contro^ 
versias  e  Hùioria  Eedesiasiica  (e,  na  Universidade  de  Padua,  de  FMlosophia  Na- 
turai.) 

LOYATKA 

Frei  Antonio  de  Sena,  dominico,  lente  de  Thedogia, 

Frei  Luiz  de  Sottomayor,  dominico,  id.  (e  tambem  na  Universidade  de  Alcalà.) 

Frei  Agostinho  da  Gra^a,  eremita  agostinho,  lente  de  ITieologia. 

D.  Frei  Diogo  Soares  de  Sanità  Maria,  franciscano,  lente  de  Controversia. 

Filippo  MontaJto,  lente  de  Medicina, 

Pisa 

Bénto  Pinhel,  lente  de  Leis. 

Diogo  Lopes  de  Ulhoa,  id. 

Filippe  Eliano  Montalto^  lente  de  PhUosophia, 

Gabriel  da  Fonseca,  id. 

Martina  de  Mesquita,  id. 

Jorge  de  Moraes,  lente  de  Medicina, 

Rodrigo  da  Fonseca,  id.  (e  tambem  em  Padua.) 

£stev&o  Bodrignes  de  Castro,  lente  de  prima  de  Medicina, 

BOLOHHA 

D.  Frei  Alvaro  Paes,  franciscano,  lente  de  Canone». 
Manuel  Bodrignes  Navarro,  id. 
Frei  Luiz  de  Bcrja,  agostinho,  lente  de  Eécriptura. 
Thomaz  Correa,  lente  de  Bhetoriea  (e  tambem  em  Roma.) 

FSBRABA 

Luiz  Teixeira,  lente  de  Leia, 

Amato  Luzitano  (alias  Jo2o  Rodrigues  de  Castello  Branco) ,  lente  de  Medicina. 

Padua 
£stev2o  das  NeVes  Cardeira,  lente  de  Leis. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  391 

pera  o  mesmo.  Fez-lhe  Clenardo  urna  breve  falla,  e  o  Infante  Ihe  disse 
que  Ihe  respondesse  e  dixesse  quanto  com  saa  vinda  folgava.  Eu  por 
lego  come9ar  a  desenovelar  o  Infante  Ihe  respondi  : — Senhor,  boca  tem 
Y.  À.  elle  per  sim  Iho  diga,  e  pois  ha  de  ser  seu  mestre^  nom  se  aco- 
varde  a  Ihe  falar  em  latim.  0  Infante  o  fez,  que  comejou  e  ajudei-o 
eu.  E  pareceu-lhe  tSlo  bem  o  que  eu  fiz  em  o  constranger  a  fallar  la- 
tim, que  logo  assentou  que  d'ahi  em  diante  quomo  o  mostre  vìesse  e 
estivessem  &  IÌ9S0,  todos  os  presentes  fallassem  latim.  Muitos  houve 


Duarte  Madeira,  lente  de  prima  de  Medicina, 
Rodrigo  da  Fonseca,  id. 

Frei  Francisco  de  Santo  Agostinho  Macedo,  franciscano,  lente  de  PhUoeO' 
phia  moral. 

TUBIM 

Fedro  de  Barros,  lente  de  Medicina, 

Tolosa 

Antonio  de  Gouvéa,  lente  de  Leis  (e  tambem  em  AvinhSo.) 
Fedro  Vaz  Castello,  lente  de  Medicina. 
Francisco  Sanches,  id. 

MOMFILHEB 

FemSo  Meudes,  lente  de  Medicina, 
Lazaro  Ribeiro,  id. 

André  Louren^o  Ferreira,  id.  (Foi  Cancellano  da  mesma  Universidade,  do 
Conselho  de  Henrique  iv  de  Franca,  e  seu  Physico-mór.) 

AviNHAO 

Antonio  de  Gouyéa,  lente  de  Leis  (e  tambem  em  Tolosa.) 

Bordeaux 

D.  Frei  Francisco  Soares  de  Vilhegas,  carmelita,  lente  de  Fhilosophia  e 
Theologia. 

Babceloha 
Frei  Tbomaz  Tostado,  carmelita,  lente  de  prima  de  Theologia, 

Lébida 
Frei  Agostinho  Osorio,  eremita  agostinho,  lente  de  Theologia. 

Sbtilha 
Dionisio  Velho,  lente  de  Anatomia, 

OssuxA 
Frei  Fedro  de  Abrea,  fìranciscano,  lente  de  Theologia. 


392  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

que  tinham  opini&o  ab  letrados,  quo  per  nSo  descobrirem  o  fio  de  quam 
mal  sabiam  fallar  latim,  escolheram  antes  n&o  ir  &  lì^Suo  nem  entrar 
emquanto  o  mestre  la  estivesse,  e  nom  he  necessario  nomeal-os.  O  In- 
fante Dom  Duarte  corno  principe  discreto,  e  que  em  publico  nom  que« 
ria  que  se  Ihe  enxergasse  qualquer  falta,  me  chamoa  a  seu  aposento, 
e  dixe-me  :  Bem  vistes  quomo  o  Infante  meu  senhor,  poz  ley,  que  to- 
dos  fallassem  latim  ;  as  lÌ95es  se  come9arào  d'aqui  a  tres  dias,  folgaria 
que  se  nom  enxergasse  tanto  em  mim  oste  defeito;  qualquer  afronta 


Frei  Alberto  de  Farla,  carmeiita,  lente  de  Eacriptura. 
Aifonso  Nunes  de  Castro,  lente  de  Medicina. 

^▲BAGO^A  DE  AjIAoIo 

Frei  Fedro  de  Alverca,  trino,  lente  de  prima  de  Theologia. 

Gandia 
Padre  Manuel  de  S4,  jesuita,  lente  de  Theologia, 

Santiago 
Frei  Placido  de  lima,  benedictino,  lente  de  Thiologia» 

Aucxlì 

Frei  Thimotheo  de  Seabra,  carmeltta,  lente  de  Philosophia  e  Theoloffia. 
Paulo  Correa,  lente  de  vespera  de  Theologia. 
Frei  Jofio  de  Santo  Thomas,  domini  co,  lente  de  prima  de  Theologia. 
Thomaz  de  Aguiar,  lente  de  Medicina. 

Valhadolid 

Frei  G-aspar  de  Hello,  agostinho,  lente  de  prima  de  Escriptura. 
Frei  Nicol&o  Coelho  do  Amarai,  trinitario,  lente  de  Theologia. 
Frei  Seraphim  de  Freitaa,  mercenario,  lente  de  prima  de  Canones. 

OZONIA 

Frei  Antonio  de  Lisboa,  Sanciscano,  lente  de  Theologia. 

Athkm 
Frei  Jo2o  Sobrìnho,  carmeiita,  lente  de  prima  de  Theologia. 

Pbboaxo 
Frei  Quilherme  de  Portagal,  franciscano,  lente  de  Uieologia. 

Cantabbxoia 
Frei  Thomé  de  Portugal,  franciscano,  lente  de  Theologia. 

Ji  DnuiroA 

Padre  Manuel  dk  Veiga,  jesuita,  lente  de  prima  de  Theologia. 


OS  HUMANISTÀS  E  A  REFORMÀ  DA  UNIVERSIDADE  393 

que  por  isso  houver  de  receber  seja  antes  aqui  com vosco  so.  Alegrei- 
me  em  extremo,  e  louvei-lhe  muito  isto,  e  comecei  logo  a  fallar-lhe  em 
latim^  e  fazello  fallar  e  desempenar  a  lingua;  foi  a  coisa  em  tres  dias, 
de  maneira  que  perdido  o  prìmeiro  medo  se  desenvolveu  tanto  que, 
quando  veyo  à  primeira  IÌ9&0  fez  espanto  aos  que  tal  nom  esperavam 
vèr,  quam  facil  e  nom  laboriosamente  fallava.»  (Cap.  10.)^ 

A  influencia  da  Universidade  de  Louvain,  que  f5ra  um  dos  centros 
onde  mais  cedo  fioresceram  os  estudos  da  Renascen^a,  tambem  se  re- 
flectiu  em  Portugal,  de  thu  modo  directo,  pela  vinda  a  este  paiz  do 
flamengo  Kleinarts  (nottie  que  elle  latinisou  em  Clenardó)  em  1534. 
Nicolào  Clenardó  contava  entSo  trinta  e  nove  annos,  e  jà  era  conhecido 
pela  sua  eruditilo  latina  e  grega,  patenteada  em  valiosos  livros  ele- 
mentares,  *  e  por  um  profundo  conhecimento  do  hebreu  ^  que  elle  por 
urna  alta  intuiQSo  philologica  approximara  nos  seus  estudos  da  lingua 
arabe.  Clenardó,  tendo  alcan9ado  o  Psalterio  de  Nebio,  aprendera  com- 
sigo  0  alphabeto  arabe,  e  applicando  as  analoglas  com  0  hebreu  chegara 
a  poder  traduzir  0  Koran.  Este  resultado  enthuziasmou-o,  e  com  esse 
espirito  aventuroso  dos  grandes  humanistas  da  Renascen9a,  que  levava 
OS  sabios  a  explorarem  0  Oriente,  0  philologo  projectava  uma  viagem 
à  Hespanha,  para  aperfeifoar-se  no  arabe,  visitando  sobre  tudo  as 
ruinas  do  extincto  reino  de  Granada.  Urna  circumstancia  casual  faci- 
litou  a  Clenardó  a  realisa9fto  d'este  projecto;  chegara  a  Louvain  0  filha 
do  almirante  que  descobrira  as  Indias  occidentaes,  Fernando  Colombo, 
com  0  fim  de  comprar  livros  para  a  bibliotheca  de  Sevilha;  combinou 
trazel-o  em  sua  companhia  para  Hespanha,  partindo  em  1532  com 
elle.  Vieram  por  Paris  Clenardó  e  Fernando  Colombo,  onde  se  demo- 
raram  dois  mezes;  passaram  a  Aquitania,  a  Touraine,  e  atravessando 
a  Cantabria  entraram  em  Hespanha.  Em  Salamanca  teve  Clenardó  uma 
proposta  para  tratar  da  educa9ÌLo  do  vice-rei  de  Napoles,  em  conse- 
quencia  do  que  teve  de  partir  para  Madrid,  e  frequentar  a  cdrte  de 
Carlos  v,  onde  se  demorou  um  anno,  cercado  de  admira9Ses.  A  vida 


1  Na  Oratio  prò  roetris,  recitada  em  1534,  por  André  de  Besende,  na  aber- 
tara  da  Universidade  de  Lisboa,  allade-se  a  este  ezimio  humanista  :  a  Vidi  ego  in 
celebri  Parrliisioram  academia  sub  hoc  Nicolao  Clenardó,  qui  eradiendo  Henrico 
principi,  regia  liberalitate  in  Lozitania  est  adcitus,  senes  qainquaginta  annis  ma- 
jores,  prima  graecarum  litterarum  fondamenta  jecisse,  et  gnaviter  nec  sine  laude 
fnisse  progrsssos.» 

*  InatUtUianea  Unguae  graecae,  Louvain,  1530.  MedUcUionea  graecanieae  in  ar* 
Um  grammaticam,  Louvain,  1531. 

3  Tàbìdam  in  grammaticam  Hebraeam.  Louvain,  1525,  in-8.® 


I 
394  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

litteraria  que  entrevira  em  Salamanca  seduzia-O;  e  regressou  para  Sa- 
lamanca, onde  Ihe  fizeram  toda  as  vantagens  para  o  fixar  no  magÌB- 
terio.  Foi  no  ruido  das  escholas  que  Ihe  apresentoa  André  de  Resende 
a  proposta  para  vir  para  Portugal  por  convite  de  D.  JoSo  in,  para 
encarregar*se  da  educarlo  do  infante  D.  Henrique.  Seduziu-o  a  per- 
spectiva  de  uma  vida  tranquilla,  e  acceitou  o  convite  do  monarcha.  As 
cartas  latinas  escrìptas  de  Portugal  aos  seus  professores  da  Universi- 
dade  de  Louvain,  Latomus  e  Hoverius,  pintam  de  um  modo  pittoresco 
0  novo  viver  social  e  o  nesso  estado  mentak 

cEntrando-se  nas  cidades  d'este  pequeno  reino  julga-se  entrar 
nas  habita^òes  dos  diabos;  todos  os  creados,  (que  ahi  se  acham  em 
abundancia),  sSo  negros,  tanto  homens  comò  mulheres.  A  terra  nSo  me 
agradou  là  muito,  e  a  n^  ser  o  meu  amigo  JoSo  Petit,  doutor  pari- 
siense,  hoje  rico  conego  nas  margens  do  Tejo,  de  pobre  mestre  que  ou- 
tr'ora  fora  nas  do  Sena,  teria  abandonado  depressa  as  terras  luzitanas. 
Comtudo,  este  é  o  paiz  do  euro,  e  os  Francezes  sabem-no  bem;  pelo 
que,  se  encontra  um  grande  numero  d'elles  em  Portugal,  e  muito  con- 
tentes.  £  certo  que  tudo  aqui  é  de  uma  carestia  horrivel.  Mas  o  que 
é  mais  desagradavel,  talvez,  é  a  immundicie  das  casas!  Ah!  que  nSo 
se  parece  com  a  minha  patria;  nSo  ha  a  atten9So,  os  cuidados,  o  es- 
mero das  nossas  boas  donas  de  casa  flamengas;  comtudo  pela  anciedade 
estrema  de  ver  e  apprender,  eu  me  affalo  aos  costumes  portuguezes; 
dou-me  com  alguns  homens  instruidos,  e  tenho  a  felicidade  de  encontrar 
Francezes  que  vieram  aqui  estabelecer-se  no  tempo  do  rei  D.  Manuel. 
Oh,  que  sSo  os  cidadSos  do  mundo  !  com  elles  nunca  se  julga  estar 
fora  da  sua  patria.»  etc. 

As  suas  primeiras  impressSes  e  a  situaySo  de  mestre  junto  do  in- 
fluite acham-se  assim  descriptas  por  Clenardo:  cEis-me  feito  um  se- 
nhor,  de  mesquinho  estudante  de  Louvain,  que  eu  era.  Dependia  de 
mim  0  figurar  comò  os  outros,  frequentar  os  bailes,  os  tomeos,  entre- 
gar-me  a  aventuras  amorosas  (o  que  aqui  se  toma  por  uma  virtude) 
andar  à  ca9a,  matar  o  tempo  e  saborear  todos  os  prazeres  usuaes  da 
corte  dos  reis  aborecedendo-me  d'elles.  Fui  bastante  lorpa,  em  nSo  se- 
guir estes  divertimentos  tfto  apetecidos,  e  afastar  d'elles  meu  irmSo, 
que  gesta  muito  d'isso.  Eu  acordo  no  meio  das  grandezas,  e  vem-me 
saudades  dos  bons  mestres  de  Salamanca.  Julgae  os  meus  sentimentos 
por  essas  vossas  doutas  reuniSes,  oh  meus  caros  compatriotas  de  Lou- 
vain! por  essas  conversas  instructivas  que  nós  tinhamos  diante  da 
loja  de  Jaspar,  pelos  nossos  deliciosos  passeios,  e  pela  felicidade  que 
gosavamos  em  estar  jontos.  Se  eu  nSo  estivesse  longe  da  minha  patria, 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIYERSIDADE  395 

6U  seria  o  mais  feliz  dos  homens.  O  meu  estado  é  tranquillo,  e  bri- 
Ihante  ;  o  real  infante  que  eu  educo  estima-me  muitO;  e  eu  me  apartarei 
com  pezar  d'elle;  é  o  sangue  dos  heroes,  e  o  precioso  ren6vo  d'esses 
grandes  reis,  que,  senhores  de  um  pequeno  Estado,  alcangaram  tanta 
gloria;  é  da  mesma  terra  d'esses  homens,  que,  altivos  rivaes  dos  Hes- 
panhoes,  se  atreveram  sob  o  magnanimo  Àlbuquerque  a  affrontar  os 
fogos  da  aurora,  a  penetrar  na  Ethiopia,  a  dobrar  o  chinai  de  Mo9am- 
bique,  e  que  subjugaram  tantos  povos,  t^o  numerosos  e  tSo  potentes 
confinadoff  no  extremo  do  globo.  Mas;  ai.  Por  isso  mesmo  que  este 
principe  està  rodéado  de  tanta  gloria,  mais  dif&cil  Ihe  sera  o  sentir 
paixSLo  por  ella;  està  jà,  desde  cedo  habituado  a  isso.  Desde  o  ber90 
tel-ohSo  imprudentemente  familiarisado  com  o  que  Ihe  deveriam  ter 
deixado  desejar.  TerSo  antecipado  o  momento  do  enthuziasmo,  esse 
momento  critico  da  vida  dos  reis;  e  a  sua  alma  capaz  de  apossar-se 
fortemente  de  uma  grande  ideia  permanecerà  por  ventura  fria,  por 
isso  que  nSo  terà  novidade  para  si.  Que  filho  de  um  rei  perfeito  pode 
jà  Bubstituil-o  aos  subditos  pezarosos?  Àntes  de  mim,  o  meu  augusto 
dÌBcipulo  nSo  conheceu  ainda  a  desgra9a,  multo  melhor  mostre  do  que 
eu.  Eu  tomo  conta  d'elle  sob  a  purpura,  e  entregam-no  nos  braQos 
da  moleza.  Voltando  a  cabefa,  elle  observa  a  baixeza,  que  se  roja 
diante  da  sua  pessoa;  ouve  a  lisonja  mentirosa  repetir  os  seus  elogios; 
a  mole  indulgencia  suspira;  o  interesse  pessoal  sob  a  mascara  de  de- 
dica9So  se  entemece;  fazei,  diante  d'isto,  ouvir  os  viris  accentos  da 
verdade,  a  voz  severa  da  virtude,  os  grandes  principioà  da  moral;  se- 
meae  a  erudÌ9&o  em  um  campo  tSo  abandonado,  tlUo  estragado,  e  tal- 
vez  jà  tSlo  desnaturado. — Eis  aqui  o  meu  encargo.» 

Clenardo  retratava  magistralmente  o  infante  D.  Henrique,  essa 
natureza  fria  e  incapaz  de  um  enthuziasmo  moral;  e  apesar  de  todas 
as  vantagens  que  o  rei  Ihe  apresentava,  absorvia-o  a  ideia  de  ir  a 
Granada,  a  Fez,  a  Ceuta,  para  se  aperfeÌ9oar  no  estudo  do  Àrabe,  cuja 
importancia  Ihe  parecia  cada  vez  maior  para  os  estudos  philologicos. 

Nicolào  Clenardo  falla  da  sua  vinda  a  Portugal  em  outra  carta  da- 
tada  de  Evora  em  26  de  mar90  de  1535,  e  d'ella  se  tiram  importantes 
revela98es  para  o  estado  do  ensino  n'essa  època  que  precedeu  a  re- 
forma  da  Universidade.  *  Come9a  por  explicar  o  motivo  por  que  deixou 
a  Universidade  de  Salamanca  para  vir  ser  mostre  do  pa90  em  Por- 


1  Foi  publicada  pelo  barSo  de  Reiffenberg,  traduzida  em  frances  e  incluida 
na  memoria  sobre  as  Eda^òea  antigas  da  Belgica  e  de  Portugal*  (Mem.  da  Aca- 
demia  daa  Sciencias  de  Bmxellas,  t.  xiv,  1841.) 


396  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

tugal;  Clenardo  detestava  o  ruido  dos  Geraes,  odiava  o  systema  da 
eleijSLo  dos  lentes  pelos  estudantes,  e  nSo  se  conformava  com  o  uso  de 
ser  interrogado  o  lente  &  porta  da  aula  para  satisfazer  ou  esclareeer 
as  duvidas  da  IÌ930.  Estes  mesmos  usos  existiam  na  Universidade  de 
Lisboa,  e  ainda  hoje  em  Coimbra  0  lente  espera  &  porta  da  aula  a 
sahida  dos  estudantes,  nSLo  para  dar  explicagòes,  mas  para  receber  as 
cortezias.  Clenardo  nSLo  professou  n'esta  Universidade  nem  em  Coimbra 
em  1537,  comò  pretendem  Mariz  e  Barbosa  Machado.  Escreve  o  no- 
tavel  humanista:  e  Croio  meu  querido  mostre,  que  j&  tereis  ouvido 
dizer  com  que  condÌ93es  deixei  Salamanca  para  vir  a  Portugal,  con- 
vidado  pelo  rei.  Confesso  que  me  agradou  essa  Universidade  tSo  fa- 
mosa, onde  havia  encontrado  amigos  i&o  dedicados  e  de  um  tSo  vasto 
saber,  que  de  bom  grado,  se  podessem,  me  converteriam  em  barra, 
com  0  proposito  de  conservar,  pelo  etemo  attractivo  do  curo,  um  es- 
trangeiro  que  poderia  escapar-lhes.  E  croio  que  0  teriam  conseguido 
se  me  deixasse  ficar  entre  elles  mais  tempo,  porque  0  vosso  discipulo, 
apesar  da  sua  mediocridade,  havia  adquirido  uma  goral  estima,  elle, 
que  sempre  se  torna  mais  acanhado  quando  Ihe  cumpre  lisonjear  al- 
guem  ou  tomar-se  amavel.  E  todavia  as  propostas  de  um  rei  desataram 
de  repente  os  meus  la90B.  NSo  é  contar  aqui  com  um  rendimento  su- 
perior  ao  que  recebia  na  Universidade,  que  além  d'isso  para  ao  diante 
promettia  ser  mais  avultado;  mas  comò  sou  inimigo  do  tumulto  e  su- 
spiro  pela  solidSo,  a  vida  que  tenho  agora  deixa-me  mais  senhor  de 
miin. — Eu  previa  entretanto  que  me  tornarla  a  victima  do  publico  de 
um  modo  que  nào  convinha  nem  à  minha  indole  nem  aos  meus  estudos. 
Por  isso  acceitei  0  que  Portugal  espontaneamente  me  offerecia,  sem  que 
o  podesse  adivinhar;  e  dou  gra9a8  a  Deus  de  ter  fortalecido  a  minha 
coragcm  no  meio  do  assembro  de  Salamanca  inteira.  Recuperei  com 
effetto  a  tranquilidade  e  0  repouso,  aos  quaes  jà  niLo  me  era  permit- 
tido  aspirar.  Vou  a  casa  do  principe,  irmfto  do  rei,  às  duas  ou  tres 
horas  depois  do  meio  dia.  Acabado  0  meu  trabalho,  volto  para  casa, 
e  nada  mais  tenho  a  fazer  na  cdrte.  0  trabalho  que  me  sustenta  é 
muito  menos  consideravel  do  que  aquelle  por  que  recebia  cem  philip- 
pus,  e  em  vez  de  phiHppus  é  0  dobro  em  bons  ducados,  e  algumas 
vezes  mais,  com  que  Portugal  me  gratifica.  Todavia,  n2o  me  cumpre 
encarecer  estes  lucros  pecuniarios  em  que  nada  ha  de  excessivo;  por- 
que eu  tambem  nfto  desejo  outra  cousa  senSo  satisfazer  as  minhas  ne- 
cessidades  presentes  e  nSo  me  v8r  exposto  de  novo  às  difficuldades 
que  me  atormentavam  na  patria.  Como  assim,  direis  vós,  contaes  por 
pouco  500  thalers  do  RhenO|  porque  està  quantia  equivale  a  lOOjiOOO 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  397 

réis  em  Portugal?»  ^  Clenardo  nSo  se  conformava  com  o  costume  da 
Universidade  de  Salamanca,  em  que  os  lentes  ficavam  depois  da  IÌ9S0 
à  porta  da  aula  para  responderem  às  duvidas  dos  estudantes.  Este  cos- 
tume existia  na  Universidade  de  Lisboa,  corno  vimos  j&  pela  disposi- 
9II0  dos  estatutos  de  D.  Manuel.  Clenardo  protesta  centra  isso:  «De- 
mais a  mais  é  uso  d'este  paiz,  que  reina  egualmente  na  Italia,  que  de- 
pois da  IÌ9IL0  OS  professores  se  deixem  consultar  por  teda  a  gente  corno 
verdadeiros  oraculos;  qualquer  necedade  que  accommette  o  espirito, 
ou  que  anda  nos  labios  do  estudante  menos  atilado,  se  0  professor  se 
nega  a  escutal-a  com  benevolencia,  e  a  responder  comò  se  fosse  uma 
cousa  seria,  parece  haver  commettido  um  crime  de  lesa-magestade.» 
Clenardo  liga  a  subserviencia  dos  lentes,  em  attender  os  alumnos,  & 
depcndencia  dos  votos  com  que  os  alumnos  elegiam  os  seus  mestres: 
<0  caso  nSo  fica  aqui:  e  se  mais  tarde  vaga  qualquer  cadeìra,  0  pe- 
queno  malvado,  o  unico  de  quem  se  nSo  devia  receiar,  vinga-se,  es- 
condido  no  scio  da  multidSo:  tira-vos  a  maior  parte  dos  votos,  e  de 
nada  vos  serve  possuir  vastos  conhecimentos.  Nunca  vistes  em  Lou- 
vain, diante  da  loja  do  livreiro  Jaspar,  esses  circulos  que  se  denomi- 
nam  a  chanceUaria  dos  ineptoaì  Mui  bem.  Em  Salamanca  sSo  tantos 
OS  professores  comò  os  grupos  de  estudantes  no  meio  dos  quaes  os  des- 
venturados  experimentam  maior  tormento  do  que  emquanto  dura  a  bora 


1  Està  carta  foi  traduzida  da  versSo  de  Reifienberg,  e  publicada  por  Lopes 
de  Mendon^a,  AnnaeB  daa  Seienciaa  e  Lettras,  1. 1,  p.  Idi  a  146.  «O  barao  de  Reiffen- 
berg  promettia,  n*uina  das  Notas  da  sua  memoria,  a  traduc9ao  das  Cartas  deOiey* 
narts,  com  observa^oes  criticaB  sobre  a  historia  litterarìa  do  tempo;  mas  0  distia- 
cto  academico  nSo  teve  ensejo,  jalgamos  oós,  para  cumprir  a  sua  promessa,  e  uma 
morte  recente  roubou-o  &  sciencia  e  is  letras ...»  (Ibid,,  p.  131.)  O  er.  Joaquim 
de  VasconcelloB  tem  desde  1878  impressa  (nSo  publicada)  uma  nova  edi^So  das 
Cartas  latinas  de  Clenardo,  in-^^*  pequeno,  de  285  paginas,  feita  sobre  as  edi^oes 
de  1551,  1566  e  1606,  contendo  ao  todo  cinquenta  e  tres  Cartas;  traz  sete  Cartas 
a  mais  do  que  nas  edi^Ses  mais  completas.  Emquanto  Clenardo  esteve  em  Evora 
esTsreveu  a  Martino  a  Yorda,  a  Joào  Vaséo,  a  Jacobo  Latomus,  Rescio,  Francisco 
Hoverio,  Polites  e  Jorge  Coelho,  ao  todo  vinte  Cartas;  quando  esteve  em  Braga 
escreveu  novamente  a  Latomus,  Vaséo,  Hoverio  e  ao  Archidiacono  del  Alcor,  iato 
è,  cinco  Cartas.  Quando  0  grande  humanista,  que  presentirà  a  unidade  das  linguas 
semiticas,  se  achou  em  Fez,  escreveu  a  D.  Joao  Petit,  bispo  de  Cabo  Verde,  refOi* 
rindo-se  multo  louvavelmente  a  Fedro  Margalho.  Nas  Cartas  a  JoSo  Vaséo  allude 
às  reformas  pedagogicas,  e  &  imprensa  no  mosteiro  de  Santa  Cruz.  0  estudo  das 
Cartas  dirigidas  pelos  sabios  da  Renascen^a  a  DamiSo  de  Groes,  e  0  estudo  das 
Cartas  de  Clenardo,  sSo  0  elemento  fundamental  para  um  livro  precioso,  que  bem 
merece  ser  eecripto,  sobre  a  Historia  do  Humanismo  em  Portuffol. 


398  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

da  IÌ9S0.  Mas  o  maior  numero  applaude-se  da  sua  miseria;  porque  tira 
d'ahi  iim  agouro  favoravel  para  os  successos  das  luctas  academicas; 
por  esse  modo  pode-se  proximamente  apreciar  0  numero  d'aquelles  que 
Ihe  hHo  de  conceder  os  seus  votos.  E  ainda  que  alguns  se  encontram 
que  nada  tém  a  esperar,  e  jà  gosam  as  cadeiras  mais  lucrativas,  to- 
davia  este  uso  prevaleceu  de  tal  maneira,  que  todos  se  sujeitam  a  elle. 
Além  de  que  ha  um  regulamento  qne  estatue  que  qualquer  cathedra" 
tico  (é  a  expressilo  consagrada)  ha  de  ficar  &  porta  da  sua  aula  para 
responder  is  duvidas  dos  seus  ouvintes.  Eu  resignava-me  a  arrastar 
està  cadeia,  mas  deixava  perceber  que  estes  interrogatorios  me  nSo 
eram  agradaveis,  e  que  nSLo  estava  acostumado  a  semelhantes  praticas.  » 
A  pratica  da  eleÌ9£o  do  lente  pelos  votos  dos  estudantes,  que  vèmos 
em  Salamanca,  foi  tambem  deeretada  por  D.  Jo3o  ili;  por  disposÌ9So 
datada  de  Evora  em  29  de  junho  de  1534.  A  eleÌ9So  dos  lentes  veiu 
a  ser  substituida  pela  nomea9ào  règia,  mas  a  tradÌ9&o  pedagogica  per- 
sistiu  nas  Universidades  allemSs,  modificada  na  fórma  dos  Privat-Do- 
centen,  verdadeiros  impulsores  de  renoya9llo  do  ensinO;  apoiando  na 
frequencia  dos  ouvintes  0  direito  para  entrarem  no  quadro  do  magis- 
terio  officiai. 

Na  supracitada  dÌ8posÌ9So  de  1534  D.  JoSo  ili  estabelece  a  re- 
gra  para  a  eleÌ9SLo  dos  lentes:  cEu  El-rei  fa90  saber  a  vós  Rector,  len- 
tes e  conselheiros  da  Universidade  do  studo  da  minha  cidade  de  Lix- 
boa,  que  por  alguas  justas  causas  que  me  a  isso  movem,  me  praz  que 
d'aqui  em  diante  nas  vacaturas  das  cadeiras  do  dito  studo  que  seja  de 
propriedade  ou  de  substituÌ9ao  nom  votem  soomente  vós  dito  Rector  c8 
08  conselheiros  e  ouvintes  que  segundo  seus  statutos  devem  votar,  e 
graduados  na  faculdade  de  que  for  a  tal  cadeira  a  saber:  em  theolo- 
gia  votarlo  soomente  com  0  dito  Rector  os  graduados,  conselheiros  e 
ouvintes  que  teverem  cursos  pera  votar  da  faculdade  de  theologia;  e 
nas  de  direito  e  em  huas  e  em  outras  polla  conformidade  das  faculda- 
des  votarlo  com  o  dito  Rector  legistas  e  canonistas  que  segundo  os 
statutos  devem  votar.  E  nas  de  medicina  soomente  os  medicos  com  0 
dito  Rector.  E  nas  de  artes  votarSo  theologos,  medicos  e  artistas  gra- 
duados ou  ouvintes  que  teverem  cursos  conforme  àos  statutos  pera  po- 
derem  votar  com  0  dicto  Rector,  por  serem  faculdades  subordinadas. 
E  por  tanto  vos  mando  que  assi  0  cumpraes,  e  guardees  d'aqui  em 
diante  e  fa9aes  comprir  e  guardar  sem  embargo  de  qualquer  statuto,  etc.» 

A  subordina9So  das  faculdades  era  apenas  uma  vaga  intuÌ9?lo  da 
necessidade  de  uma  hierarchia  theorica,  para  dirigir  0  ensino,  neces- 
sidade  realisada  sobre  uma  base  subjectiva  por  Bacon.  Aqui  vèmos  o 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  399 

endino  secundario  do  antigo  trivium  medieval  ainda  ìncorporado  na 
Universidade.  Fernao  de  Oliveira,  na  sua  Grammatica  portugueza,  al- 
lude às  luctas  de  competencia  entre  os  varios  gradaados  em  Artes: 
«Mas  OS  Qrammaticos  zombam  dos  Logicos,  e  os  Summulistas  apupam 
08  Rheitoricos.t  (Ghramm.,  cap.  38.)  * 

A  reforma  da  Universidade  de  Lisboa  e  sua  trasIada9ao  para  Coim- 
bra,  em  1537^  foi  precedida  de  um  primeiro  desenvolvimento  do  en- 
sino  secundario,  que  os  Jesuitas  mais  tarde  continuaram  de  um  modo 
esclusivo.  Acompanhavam  os  principes  nos  seus  estudos  elementares 
OS  mo9os  fìdalgos;  as  casas  nobres,  a  exemplo  do  pa90,  tambem  con- 
tractavam  pedagogos,  e  os  bispos  nas  suas  dioceses  sustentavam  escho- 
las  de  latim.  FernSo  de  Oliveira,  que  redigiu  a  primeira  Grammatica 
da  lingua  portugueza,  publicada  em  1536;  fora  mostre  em  casa  de  D. 
Antào  de  Almada,  eapitSo  goral  de  Portugal:  «cria  com  muito  cuidado 
Dom  AntSo  seu  filho  a  quem  Deus  guardo  e  prospere;  para  cuja  dou- 
trina  com  mujta  despeza  me  trouxe  a  sua  casa  e  graciosa'e  compri* 
damente  me  conserva  n'ella.»  A  educa9SLo  das  classes  pobres  fazia-se 
accidentalmente  nos  mosteiros;  diz  FernSo  de  Oliveira,  explicando  cer- 
tas  fórmas  dialectaes  do  portuguez:  «sendo  eu  mogo  pequeno,  fui  creado 
em  Sam  Domingos  de  Evora,  onde  faziam  zombaria  de  my  os  da  terra, 
por  que  eu  assi  pronunciava,  segundo  o  que  aprendera  na  Beira.»  (Ib,^ 
cap.  47.)  Femfio  de  Oliveira  confessa  que  a  sua  Grammatica  foi  a  pri- 
meira tentativa  que  em  Portugal  se  fez  da  lingua  nacional:  ae  corno 
escrevi  sem  ter  outro  exemplo  antes  de  mi,  e  iste  muito  mais  escusadl 
0  defeito  da  ordem  que  tive  em  meu  proceder  se  foi  errada.»  (Cap.  50.) 
A  tentativa,  embora  continuada  por  JoSlo  de  Barros,  em  uma  Gram- 
matica composta  para  uso  do  principe  D.  Filippo,  a  quem  ensinava  o 
prégador  Frei  JoSo  Soares,  nSo  fructificou,  porque  todo  o  empenho  con- 
vergia  para  o  estudo  exclusivo  do  latim.  O  proprio  FernSo  de  Oliveira 
estava  sob  a  auctoridade  dos  velhos  grammaticos  e  rhetoricos  da  deca- 
dencia  romana  e  da  Edade  mèdia,  cujas  doutrinas  resurgiram  na  Re- 
nascen9a;  estudava  os  phenomenos  da  lingua  nacional,  abonando-se 
com  Marciano  Capella,  Quintiliano,  Marco  VarrSo,  Probo  Grammatico, 
e,  dos  modemos,  com  Nebrixa. 


1  Era  corrente  na  Universidade  de  Paris,  no  seculo  xy,  o  aphorismo  :  «iBon 
gramìnairien,  mauvais  logieien.»  (Quicherat,  Hiatoire  du  CoUhge  de  Sainte-Barbe, 
1. 1,  p.  36.) — Montaigne,  nos  seus  Enaaios,  conta  a  anecdota  do  desdem  com  que 
um  regente  de  logica  dizia,  referindo-se  ao  conde  de  La  Rochefoucault  :  «NSo  é 
nm  gentilhomem,  é  um  grammatico,  emquanto  eu  son  um  logico.» 


400  HISTORIÀ  DA  UNrVERSIDADE  DE  COIBIBRA 

Em  1537  jà  florescìa  em  Coimbra  a  eachola  de  Grammatica  de 
Lopo  Gallego;  Gabriel  Pereira,  erudito  eborense,  que  inventariou  os 
documentOB  do  archivo  da  Universidade,  escreve:  cDa  escóla  de  Gram- 
matica de  mestre  Lopo  Galego^  ha  urna  relagSo  de  1537  com  o  titalo 
Caidogus  schólasticorum  grammatices  artis  sub  lupo  galateo  preceptore 
anno  MDXXXVII  conimbricensis  universitatis,  que  menciona  43  alum- 
nos.  Parece  que  a  esche  la  soffirera  decadencia  em  1540.  >  '  Em  um  al- 
vara  de  D.  JoSo  m,  de  4  de  julho  de  1541,  dirìgido  ao  Bispo  Reitor, 
disp3e-se  sobre  o  ensino  da  Grammatica:  ce  quanto  ao  que  dizees  da 
falta  que  hi  ha  da  prìmeira  regra  de  Grammatica  por  ChristovSo  de 
AbreU;  mestre  della,  ter  muitos  scholares,  eu  tenho  ora  previde  de  ou- 
tros  deus  mestres,  que  hftde  comesar  a  ler  o  prìmeiro  dia  de  outubro 
deste  presente  anno  nas  casas  que  o  Cancellarlo  jà  pera  isso  tem  or- 
denadas.»  Em  outro  al  vara  de  5  de  julho  de  1541  diz  o  rei:  «que  eu 
ei  por  bem  e  me  praz  por  alguas  rezoens  que  a  elio  me  movem,  que 
OS  scholares  da  grammatica  da  prìmeira  e  segunda  regra  e  assi  os  da 
schola  de  Lopo  Qaleguo  nS  paguem  os  cruzados  que  per  outra  provi- 
sSo  minha  tinha  mandado  que  paguasse  pera  ajuda  da  pagua  dos  mes- 
tres, e  per  este  mando  que  se  nSo  use  mais  da  dita  provisfto  por  quanto 
eu  ei  por  revoguada  e  mando  a  Dioguo  d'Azevedo,  bedel,  a  quem  ti- 


1  Boletim  da  Sociedade  de  Geographia,  2/  sene,  n.°  2,  p.  119  (1880). —  Apre- 
sentamos  a  lista  das  Grammaticas  latioas  por  onde  se  ensinava  em  Portugal  an- 
tes  do  predominio  da  Grammatica  do  jesuìta  padre  Manuel  Alvares  : 

1501 —  Thesaurus  Paupemm,  sive  Speculum  puerorum,  em  A.*^  goth.  Com  o 
Baeulo  dea  Cegas,  de  Antonio  Martins,  e  feito  indo  emendado  e  correcto  por  JoSo 
Yaz,  bacharel.  Lisboa. 

1513 — ArU  da  Grammatica,  de  Mestre  Jofio  Pastrana.  (Depois  d'està  data 
é  desthronada  està  Grammatica  pelos  partidarios  de  Nebrixa.) 

1516 —  Ars  Virginis  Mariae,  nova  Grammatica,  impressa  em  Lisboa,  por  Va- 
lentim  Femandes  ;  é  dividida  em  cinco  livros. 

1522— ilr<e  de  Pastrana.  Lisboa. 
?    — Arte  de  Estevam  Cavalleiro  (Stephanus  EguesJ 

1535 — Arte  de  Grammatica  latina,  de  D.  Maximo  de  Sousa,  conego  regrante 
de  Santa  Cruz  de  Coimbra. 

1538 — Institutiones  Grammatice  Latinae,  de  Nicol&o  Clenardo.  Braga. 

1540 —  Tratado  de  Verborum  Conjugatione,  de  M.  André  de  Resende,  1  voi.  4." 

1553 — Budùnenia  Grammatieae. 

1555 —  Crrammatica  DespauterU,  (Becommendada  por  Yiyes.) 

1557 — Compendio  de  GrammaHoOf  de  Diogo  Soares. 

1565— Perifraze  ao  Livro  i?  De  Construetione,  de  Nebrìxa,  por  Cadaval  Gra- 
zio (Antonio  de  Cadaval  Yalladores  e  Souto  Major.) 

1572— G'ramma^ico  de  Fernando  Soares  Homem.  Evora. 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORHA  DA  UNIYERSIDADE  401 

nha  dado  carguo  de  arrecadar  os  ditos  cruzados,  que  nft  falle  mais 
n'isso ...»  A  necessidade  imperioso,  de  fallar  em  latim  dentro  das  au- 
las  da  Universidade  fazia  com  que  o  estudo  da  grammatica  se  tornasse 
da  maxima  urgencia.  Quando  o  infante  D.  Henrique,  discipulo  de  Cle- 
nardo,  foi  nomeado  arcebispo  de  Braga,  chamon  para  a  sua  diocese  o 
celebre  bumanista,  que  regeu  n'aquella  cidade  urna  cadeira  de  latim, 
comò  se  sabe  por  uma  carta  dirigida  por  Clenardo  a  Francisco  Hove- 
riuB,  datada  de  Braga  em  27  de  fevereiro  de  1538;  elle  descreve  o  pru- 
rido  que  dominava  entfto  no  estudo  do  latim:  «Se  alguma  ycz  Braga 
possuiu  realmente  o  nome  de  Augusta,  deveria  ella  ser  denominada  au- 
gustissima, durante  a  minha  permanencia  alli;  porque  a  propria  Soma 
difficilmente  viu  tantos  Bispos,  Cardiaes,  Patriarckas  e  outros  digna- 
tarios  comò  eu  criei  n'esta  cidade  n'um  abrir  e  fechar  de  olhos.  Accres- 
centae  a  isto  senadores,  consules  e  outros  magistrados,  que  pela  rua 
caminhavam,  nSo  desdenbando  algumas  vezes  de  comprarem  alfaces 
na  feira.  • .»  Estas  palavras  alludem  ao  costume  das  antigas  escbolas, 
em  que  os  alumnos  tomavam  titulos  sagrados  e  greco-romanos,  para 
se  distinguirem  nas  classes.  Estes  costumes  duraram  no  ensino  publico 
europeu  até  à  reforma  fundamental  realisada  sob  a  Conven^SLo  fran- 
ceza;  Lacroix,  nos  seus  Essate  sur  VEnseignement  en  general,  descre- 
vendo  essas  reformas  assombrosas  da  pedagogia  pelo  espirito  revolu- 
cionario  servido  por  Lagrange,  Laplace  e  Garat,  aponta  esses  usos 
escbolares  conservados  até  ao  firn  do  seculo  xviii:  «As  fórmas  roma- 
nas,  que  se  tinha  introduzido.  comò  meio  de  emula9ào  nas  classes,  nUo 
merecem  importancia  diante  de  espiritos  sérios.  Estes  Imperadores, 
Consules,  e  Cadeiras,  ligados  a  grandes  recorda98es,  quer  em  reIa9So 
aos  homens,  quer  em  rela9So  às  cousas,  depois  de  degradados  pelas 
applica95es  infantis,  nàó  faziam  senSLo  servir  de  alimento  ao  pedan- 
tismo  do  mostre,  que  se  empavonava  no  governo  dos  seus  marmanjos, 
comò  um  dictador  n'aquelle  da  na^^o  que  tivesse  conquistado  o  impe- 
rio do  mundo.»  (Op.  cit.,  p.  113.) 

Clenardo  empregava  este  velho  systema  de  emula93o,  que  ainda 
encontràmos  na  nossa  infancia  em  uma  escbola  primaria  dividida  em 
duas  classes,  Grecia  e  Troia,  com  as  suas  bandeiras,  erg^das  ou  aba- 
tidas,  segundo  o  merito  das  sabbatinas.  Continua  Clenardo,  descrevendo 
a  sua  escbola  de  latim:  cHavia  em  Braga  umas  trìnta  pessoas  que  se 
occupavam  de  bellas Jettras  ;  eu  nILo  me  preoccupeì  com  ellas,  resol- 
vido  comò  estava  a  estabelecer  uma  escbola  sobre  bases  sérias.  Que- 
rendo  fazer  um  ensaio  da  intelligenda  das  crian9as,  tentei  ensinar  pu- 
blicamente  alguns  pequenos  por  tal  modo  ignorantes  da  lingua  latina, 

HI8T.  UR.  26 


402  HISTOfìlA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

que  nem  mesmo  tivessem  ouvido  pronunciar  d'ella  urna  syllaba.  Ape- 
nas  constou  està  noticia,  a  novida^e  do  projccto  atrahiu  em  torno  de 
mìm  urna  mnltidSo  tal,  que  o  locai  a  nào  podìa  center.  Nenhuma  edade 
&ltava:  vinham  individuos  de  teda  a  parte.  Com  crian9a8  de  cince  an- 
no8,  concorriam  padres,  escravos  mouros,  una  e  outros  jà  entrados  em 
edade.  Ainda  mais,  até  paes  vinham  com  os  filhos,  prestando  ao  mes- 
tre  tanta  deferencia  corno  os  mais  obedientes  discipulos.  Sósinho  no 
meio  de  tSLo  diversos  espiritos,  nSlo  proferindo  urna  palavra  que  nSo 
fosse  latina,  e  iste  diante  de  pessoas  que  nada  sabiam  d'està  lingua, 
tive  a  satisfa9So  de  vèr,  em  poucos  mezes,  que,  grafas  a  esse  uso  quo- 
tidiano, entendiam-se  quasi  correntemente,  e  que  os  mais  pequenos 
mesmo  papagueavam  em  latim,  quando  nem  comegado  haviam  ainda 
a  aprender  o  alphabeto.  De  resto  eu  fiigia  cuidadosamente  de  apresen- 
tar aos  meus  discipulos  qualquer  cousa  que  os  podesse  desgostar,  e  nSo 
era  por  antiphrase  que  a  minha  eschola  se  denominava  Ludu$j  visto 
que  eu  brincava  niella  a  valer.»  E  aqui  que  vèmos  definir-se  a  fórma 
methodologica  do  ensino  por  seducgao  em  vez  do  emprego  dsipancada. 
O  Lvdus  de  Clenardo  derivava  da  tradÌ9Jlo  escholar  da  Maison  Joyeuse, 
fundada  no  seculo  xv  pelo  celebre  pedagogo  Victorino  de  Feltro,  mos- 
tre dos  filhos  do  marqnez  de  Gonzaga;  o  sy stema  da  pancada,  susten- 
tado  pelo  latinista  Sterck,  mais  conhecido  pelo  nome  de  Fortius,  pre- 
valeceu  em  Portugal  até  à  primeira  metade  do  seculo  xix,  comò  adiante 
veremos.  Eis  corno  Clenardo  descreve  um  dos  seus  divertiraentos  escho- 
lares:  «Possuia  tres  escravos...  Estavam  longe  de  serera  profundos 
grammaticos  ;  aconteceu  porém  haverem  contrahido  o  habito  de  me  per- 
ceberem  quando  eu  fallava  latim,  e  de  me  responderem  n'esse  idioma^ 
embora  peccassem  contra  as  regras  de  Prisciano.  Levava-os  para  a 
aula,  fazia-os  travar  dialogos  diante  dos  meus  discipulos,  e  conversava 
com  elles  àcerca  de  um  sem  numero  de  assumptos,  e  o  meu  auditorio 
nao  perdia  palavra,  olhando  comò  um  prodìgio  que  um  africano  fallasse 
latim. — ^Vamos,  Dente-Comprido,  dizia  eu,  vira-te!  E  elle  dava  duas 
cabriolas,  e  os  espectadores  riam. — Tu,  Negrinko,  anda  de  gatasl  E 
quando  o  escravo  punha  as  màos  no  chSo,  as  gargalhadas  iflU)  tinham 
fim.  Carvào,  tendo  recebido  ordem  para  correr,  cumpria-a  no  mesmo 
instante.  D'este  modo  eu  ensinava  mil  cousas  menos  com  a  voz  do  que 
com  0  gesto,  e  os  termos  &  sembra  d'estes  brinquedos,  ficavam  grava- 
dos  na  memoria  das  criangas . . .  »  Os  Jesuitas,  quando  tomaram  conta 
do  ensino  publico,  adoptaram  estes  divertimentos  escholares  nos  seus 
Liuti  prioria  e  Ludi  solemnes,  porém  com  o  tempo  tomaram-se  violen- 
t08,  cahindo  no  regimen  da  pancada,  de  que  os  accusa  Verney.  Cle- 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  403 

nardo  publicou  em  Braga,  em  1538,  as  snas  Institutianes  Orammaticae 
Latinae;  elle  nSo  quiz  tornar  parte  na  reforma  da  Uaiversidade  por 
D.  Jo2to  m,  saiado  de  Portugal  em  1540.  No  emtanto,  por  uma  carta 
dirigida  a  JoiLo  Vasèo,  Clenardo  allade  a  uma  visita  aos  estados  de 
Coimbra  em  1537,  por  ventura  na  sua  passagem  de  Evora  para  Braga, 
em  occasiSo  de  férias;  n'essa  carta  falla  do  ensino  da  lingua  grega  pelo 
allemSo  Vicente  Fabricio,  nas  Escholas  de  Santa  Cruz,  que  entfto  era 
o  fòco  mais  activo  dos  estudos  elementares,  onde  convergia  teda  a  mo- 
cidade  da  aristocracia.  O  uso  «de  fallar  latim  nas  aulas  da  Universidade 
foi  novamente  decretado  por  D.  Jolo  ili,  no  Redimento  dos  Lentes  e 
Estiidantes,  assignado  em  9  de  novembre  de  1537,  em  que  se  contém 
a  reforma  da  Universidade;  alli  se  diz:  aPrimeiramente  bei  por  bem 
que  08  lentes  leiam  em  latim,  e  o  Bector  mandaraa  que  se  cumpra  assi. 
E  acabada  a  lÌ9am  farà  circulo  aa  porta  dos  geeraes  honde  lerem,  e  re- 
sponderào  aas  perguntas  qm  os  scholares  Ihejlzerem,  e  nSo  o  cumprindo 
0  Bector  os  mandaraa  apontar,  e  assi  mandaraa,  que  os  scholares  dos 
portas  das  scholas  pera  dentro  falem  latim,  segundo  fórma  da  provisi 
que  eu  jà  sobre  isso  passei,  a  qual  o  Bector  veraa  e  mandaraa  com- 
prir.»  * 

Depois  de  ter  descripto  a  sua  viagem  a  San  Thiago  de  Compos- 
tella,  tendo  passado  por  Coimbra  e  Braga,  e  fallando  do  empenho  que 
tem  em  achar  um  captivo  mouro  que  saiba  bem  o  arabe,  diz  em  uma 
carta  a  Latomus:  aBir-vos-heis  de  mim;  e,  podendo  agora  viver  feliz 
e  tranquillo,  eu  vos  pare9o  um  insensato,  a  correr  assim  o  mundo  e  a 
atormentar-me  para  me  instruir.  Que  dirieis  vós,  meu  amigo,  se  me 
tivesseis  visto  n'esta  paixSo  que  me  absorve  subir  a  algumas  montanhas 
e  a  arriscar-me  em  precipicios,  a  ladrSes  e  &  morte?  Porém,  aquelles 
que  correm  atraz  do  barrete  vermelho  nSlo  se  dSo  a  maiores  trabalhos; 
chimera  por  chimera,  deixae-me  a  minha,  que  me  diverte.»  E  insis- 
tindo  sobre  o  estndo  do  Arabe  e  sua  importancia:  a  Torno  outra  vez 
ao  meu  grande  projecto;  nenhum  christSo,  que  eu  saiba,  ensinou  ainda 
o  arabe.  O  Fsalterio  do  bispo  de  Nebio,  até  hoje,  nSo  produziu  ne- 
nhum discipulo.  Os  livros  classicos  d'estes  infieis  nSo  nos  sSo  bastante 
conhecidos,  para  que  possàmos  afSrmar  cousa  alguma  comò  certa  àcerca 
dos  seus  principios;  e  seguramente  nSLo  ha  na  Europa  um  homem  in- 
struido  em  arabe,  comò  temos  milhares  em  grego.  E  jà  que  Deus  me 


«Lé-se  em  um  velho  regulamento  de  Oxford,  que  os  esoholares  d'està  Uni- 
versidade nao  tinham  permissào  de  conversarem  entre  si  senSo  em  latim  ou  fran- 
cez.»  (Villemain,  Tableau  du  Moyen-Age,  p.  666.) 

26  # 


404  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

poz  em  estado  e  capaz  de  ser  o  primeiro  a  profìindar  està  lingua,  quero 
aproveitar-me. 

cEis  aqui  a  minha  resoInslLo.  Se  me  nSo  faltarem  ob  livrea,  vou 
tradozir  em  latim  todas  as  obras  religiosas  dos  Arabes;  come9arei  pelo 
AlcorSo,  e  juntar-lhe-hei  scholios  e  notas. — ^Vós  confessareis,  Lato- 
mus,  que  este  projecto  é  mais  proprio  de  um  theologo,  que  ea  vos  tra- 
dazisse  alguma  obra  profana  da  antiga  Grecia.  Eu  abrirei  urna  nova 
carreira  aos  conbecimentos  bumanos  e  à  eloquencia,  mesmo  em  Lou- 
vain, onde  vós  nSo  fazeis  mais  que  repetir-vos.  Eu  revelarei  os  fruetos 
desconbecidos  da  imagina9ào  dos  Arabes,  e  eu  vos  farei  conheoer  a 
picante  delirio  do  Suna. 

«Estou  ainda  em  Granada,  entro  o  desejo  de  penetrar  na  Africa^ 
da  qual  estou  porto,  e  o  de  percorrer  a  Italia  e  a  Aliemanha.  Emquanto 
me  nSo  decido,  vou  fazer  uma  viagem  a  Portugal,  para  vèr  o  rei  e  o 
meu  principe.  Pedi  ao  céo  que  me  illumine  n'estas  andadas.  Adeus. 
Quando  vos  poderei  tornar  a  vèr,  e  a  todos  os  meus  amigos?  escre- 
vei-me,  dae-me  conselbos;  eu  receberei  as  vossas  cartas  se  as  entre- 
gardes  promptamente  aVosterman,  impressor  de  Anvers.  Dirìgi-as  para 
Granada,  para  casa  do  senbor  marquez  vice-rei.» 

Em  uma  carta  a  Joaquim  Polites  explica  Clenardo  o  pensamento 
superior  que  o  attrae  para  o  estudo  do  Arabe,  comò  meio  de  desco- 
brir  por  um  processo  indirecto  a  intelligencia  das  obras  primas  da  Gre- 
cia: cLeopoldo  de  Austria,  tio  do  imperador,  e  reitor  actual  da  Uni- 
versidade  de  Salamanca,  acaba  de  me  offerecer  uma  cadeira  de  Arabe; 
todos  OS  sabios  d'aquelle  paiz  ajuntam  os  seus  pedidos  a  este  convite 
glorioso.  Para  me  seduzirem,  lisonjeando  a  minha  vaidade,  proclamam 
que  eu  sou  o  primeiro  sabio  da  Europa;  a  sua  amisade  encanta-me 
mais  do  que  as  suas  lisonjas;  porém  nSo  posso  fixar-me  em  Salamanca. 

e  Ha  aqui  alguns  medicos  que  entendem  muito  bem  Avicenna; 
mas  quanto  à  Grammatica  ella  é  t&o  extranba  aos  Hespanhoes  comò 
aos  nosBOs  marinbeiros  de  Zelandia  ou  aos  nossos  carroceiros  de  Bra- 
bant.  Ultimamente,  um  estudante  de  medicina,  grande  partidario  de 
Galeno,  veiu  ter  commigo  a  Coimbra,  e  pedìu-me  algumas  no^Ses  gram- 
maticaes  sobre  o  arabe;  temei  o  primeiro  capitulo  do  livro  de  Avi- 
cenna sobre  0  cerehro  e  expliquei-lb'o.  Passados  alguns  dias,  que  le* 
vara  a  seguir  o  meu  processo,  disse-me  que  tinba  feito  mais  progres- 
8  OS  em  tSo  pouco  tempo  sobre  o  ambe,  do  que  fizera  em  seis  annos 
sobre  os  auctores  gregos  que  Ihe  tinham  explicado  em  Salamanca. 

cMen  amigo,  eu  tenho  notado  uma  cousa,  que  poderia  ser  muito 
util  à  alta  lìtteratura.  Nós  temos  perdido  muitos  auctores  e  obras  gre- 


OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  405 

gas;  e  os  Arabes;  unica  na9SLo  na  Europa  actualmente,  cujos  antepas- 
sados  communicaram  com  os  Gregos,  conbecem  perfeitamente  as  suas 
artes  e  as  suas  descobertas.  EUes  traduziram  na  sua  lingua  todas  as 
produc93e8  da  Grecia,  as  mais  sérias  e  as  mais  sublimes,  corno  as  mais 
simples  e  as  mais  ligeiras.  Por  meio  d'estas  traducQSes,  nós  poderiamos 
recuperar  tudo  o  que  nos  falta  do  povo  mais  instruido  e  mais  amavel 
da  antiguidade.  Estimulado  por  està  idèa,  eu  a  tenbo  realisado  em  parte, 
e  com  a  maior  satisfa92o,  comparando  os  auctores  gregos  aos  auctores 
arabes.  Eu  proseguia  no  meu  trabalho  com  este  encanto  incomprehen- 
sivel,  que  se  sente  ao  fazer  urna  grande  descoberta,  quando  as  minu- 
cias  da  córte  vieram  interrompel-o;  eu  o  reatarei  quando  voltar  ao  unico 
legar  da  terra  (Louvain)  que  hoje  serri  aos  meus  olhos.:» 

Em  uma  outra  carta  de  Clenardo,  escripta  a  Francisco  Hoverius, 
depois  da  sua  chegada  a  Lisboa,  falla-lbe  da  viagem  e  do  seu  discipulo: 
cNada  me  pode  mais  levar  a  emprehender  viagens;  morre-se  a  cada 
instante  com  saudades  de  ter  deixado  o  ijue  se  ama.  Dia  e  noite  penso 
na  minha  patria;  imagino  estar  em  Malines,  em  Louvain;  julgo  con- 
versar comvosco,  com  Latomus.  E  preciso  absolutamente  que  na  prò- 
xima  primavera  realise  este  sonho. — Comtudo,  meu  amigo,  eu  encon- 
trei  aqui  um  principe  tal  que  nada  ha  egual,  e  que  me  sera  querido 
até  ao  ultimo  alento.  Mas,  vede  a  minha  ingratidSo,  ou  antes,  quanto 
as  paixSes  fortes  nos  tyrannisam;  aquella  que  sinto  pelo  estudo  vin- 
culava-me  a  Salamanca,  a  ponto  de  as  suas  cartas  mais  affectuosas  nio 
poderem  arrancar-me  d'ali.  Que  grosserias  causa  està  paixSb,  condem- 
navel  sem  duvida,  porque  ella  é  desenfreada,  porque  se  antepSe  aos 
deveres  da  sociedade,  e  até  cobre  os  sentimentos  do  coragSo;  que  gros- 
serias me  nSo  tem  feito  commetter  para  coni  està  boa  nobreza  hespa- 
nhola  e  tantos  senhores  cuja  grandeza  em  nada  é  obstàculo  à  littera- 
tura,  e  que  tèm  a  longanimidade  de  me  estimarem  comò  eu  vos  es- 
timo? Ah,  se  me  desse  na  cabesa  ser  cortezSo,  seria  aqui,  ao  pé  do 
meu  principe,  que  eu  fixaria  a  minha  residencia;  e  estaria  bem  certo 
de  me  nSLo  endurecer  na  molicie  e  no  orgulho;  elles  proprios,  pelo  seu 
esemplo,  m'o  impediriam;  mas,  oh  minha  patria!  oh  sentimento  irre- 
sistivel  e  docel  é-me  impossivel  viver  longe  de  Louvain;  os  meus  ca- 
bellos  brancos  m'o  reclamam  mais  do  que  nunca;  tenho  necessidade 
de  viver,  em  fim  de  contas,  para  mim;  rico  ou  pobre,  que  me  dà  d'isso? 
NSo  é  pelo  cora9&o,  e  sómente  pelo  cora9&o,  que  se  vive?  Oh  Louvain, 
tu  me  attraes;  o  principe  Emmanuel  irà  commigo. — NSo  sois  vós  de 
opiniSo,  Hoverius,  que  este  principe  estude  primeiramente  a  IHals' 
lecticaf  Elle  gosta  da  Theologia,  é  preciso  portante  que  antes  de  tudo 


406  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Beja  um  dialectico.  Tomarà  08  seus  gréòs  entre  nós  ;  bacharel  ou  licen- 
ciado;  regreesarà  a  Lisboa  de  ama  maneira  mais  honrosa  para  elle^ 
para  o  rei,  para  os  seus  compatriotas,  para  nós  tambem  e  para  a  nossa 
Universidade. —  O  ponto  essencial  é  quo  elle  sinta  o  valor  do  tempo,  e 
que  elle  dispenda  d'està  vida  t&o  corta  nenhuma  parte,  para  a  ociosi- 
dade  ou  para  o  remorso. — Come9ando  pela  Dialectica  elle  poderà  sor 
mestre  em  Artes  em  tres  annos;  nas  suas  classes,  fallando  latim,  ad- 
quirirà  o  habito  d'està  lingua  e  aperfeÌ9oarBe-ha.  Sem  ser  um  grsnde 
orador,  poderà  facilmente  tomar-se  um  bom  theologo  scbolastico.  Além 
d'isso,  é  multo  estudioso,  e  estou  certo  de  ^ue  nas  suas  horas  vagas 
applicar-se-ha  de  motu  proprio  à  litteratura  latina.» 

Em  -um  momento,  a  Egreja  transigiu  coni  a  educa(So  humanista. 
A  maneira  do  arcebispo  de  Braga,  tambem  o  bispo  de  Ceuta,  Frei 
Diego  da  Silva,  por  provisSo.de  22  de  Janeiro  de  1539,  instituiu  em 
0Iiven9a  eque  do  monte  maior  do  celleiro  da  mesma  villa  se  dessem 
todos  08  annos  pela  festa  da  Assumpyào  sete  moios  de  trigo  a  um  mes- 
tre, que  alli  ensinasse  Grammatica  e  Poetica  latina  aos  estudantes  do 
bispado,  e  que  deva  ser  eleito  de  dois  em  dois  ^nnos  pelos  proprioa 
discipulos.»  ^  Acompanhando  a  Renascenga  do  seculo  xvi  na  sua  phase 
philologica,  a  reforma  da  Universidade  nasccu  d'està  corrente  huma- 
nista,  da  qual  os  Jesuitas  se  serviram  para  reagirem  centra  as  nova» 
doutrinas  theologico-criticas  e  scientifico-philosophicas. 

Além  do  abuso  do  exaggerado  humanismo,  o  ensino  estava  viciado 
pelo  emprego  exdusivo  da  memoria,  que  conduzia  a  sciencia  &  confu- 
sSo  com  o  pedantismo  doutoral.  Do  abuso  da  memoria  podemos  tornar 
um  facto  da  Vida  do  Infante  D.  Duarte,  contado  pelo  seu  mestre  An- 
dré de  Resende,  e  que  é  ao  mesmo  tempo  um  esbofo  dos  objectos  do 
estudo  dementar:  cposso  dar  testemunho  do  exceliente  engenbo  e  pas- 
mesa  memoria  de  que  nesso  Senhor  o  dotou.  Liamos  ha  tempo  em  Lis- 
boa a  Dialectica,  e  depois  de  Ihe  ter  lido  os  principios  por  a  arte  de 
Jeanne  Cetario,  tomamo-nos  a  Artes;  foi  o  Infante  D.  Henrique  visi- 
tal- o  huma  sèsta  estando  nós  em  IÌ9S0,  levantei-me  eu  e  dava-Ihe  es- 
payo  pera  pratica  e  conversa9&o.  Nom,  nom,  dixe  0  Infante  D.  Hen-  ' 
riqae;  eu  nom  quero  interromper  a  IÌ9ÌL0,  sentai-vos  e  prosegui.  Yirei- 
me  ao  Infante  D.  Duarte  e  disse-lhe:  Pois,  Senhor,  o  Infante  vesso 
irmSo  quer  estar  à  IÌ9S0,  bem  sera  que  saiba  quanto  V.  A.  tem  apro- 
veitado  c3  Iho  ouvir  de  sua  bocca.  Cerrou  0  Infante  0  livro,  e  em  la- 


1  Levy  Maria  Jordio,  Hisioria  teóUtiastiea  ultramarina,  1 1,  p.  i6. 


1  _ 

OS  HUMANISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  407 

tim  competente  resumiu  o  tratado  de  Porphirio  De  PredicaiUibus,  *  e 
as  Categorias  de  Artes  e  Perihermeneas,  tSlo  solta  e  deserapachadamente^ 
que  o  Infante  seu  irmlo  ficou  attonito.  Nom  é  iste  tanto  quanto  o  que 
agora  direi:  liamos  tambem  o  livro  De  Officiis,  e  lèramos  este  dia  o 
capitulo  De  Justìtia.  Repitiu  de  coor  assi  quomo  jaz,  e  des  que  aca- 
bou  Ihe  disse  agora:  Esto  Iho  quero  dizer  às  versas.  E  come90u  da 
derradeira  palavra  proseguindo  até  à,  primeira  sem  titubar  nem  fazer 
intervallo.  O  que  eu  hei  por  cousa  digna  de  admiragEo,  porque  dizer 
de  coor  urna  pagina  ou  capitulo  per  sua  recta  ordem,  o  entendimento 
vai  ajudando  a  memoria  e  minìstrando-lhe  as  palavras,  que  a  sentenya 
requere;  mas  ao  revez  em  que  a  8enten9a  se  desturba  e  totalmente 
desbarata,  póde  cada  hum  em  si  experimentar  quam  difficil  e  laboriosa 
cousa  he,  e  reter  ordem  de  palavras  em  tanta  desordem  de  sentenja.i^ 
André  de  Resende  admirava  està  violencia  da  memoria  diante  dos  exem- 
ploa  da  antiguidade:  «Ora  louvem  os  escriptores  quanto  quizerem  a 
memoria  de  Marco  Cato,  ou  de  Cyro,  ou  de  Cyneas  embaixador  de 
Pirro;  eu  està  do  Infante  haveria  por  digna  de  maior  admirajào.» 
(Gap.  10.)  Rabelais,  no  quadro  da  educarlo  de  Gargantua,  allude  ao 
habito  pedagogico  das  repetigSes  de  cor  de  traz  para  diante.  Està  des- 
grayada  cultura  da  memoria,  que  na  expressSlo  popular  se  identifica 
com  a  intelligencia,  continuou  a  ser  considerada  comò  o  objecto  do  en- 
sino.  Bendo  urna  tal  direcgSo  deploravelmente  continuada  e  exaggerada 
^ob  a  direc9So  dos  Jesuitas. 

Em  uma  carta  a  Polites,  descreve  Clenardo  a  impressSo  que  Ihe 
causou  a  noticia  da  morte  de  Erasmo,  e  corno  se  achou  espontanea- 
mente  compondo  uma  elegia  latina  a  esse  successo,  elegia  que  o  reve- 
lou  poeta,  e  que  elle  communicou  a  André  de  Resende:  <Ao  saber  da 
morte  de  Erasmo,  deixei  cahir  tudo  quanto  tinha  nas  mSos;  puz-me  a 
chorar;  julgava  estar  vendo  Erasmo.  A  dòr  leva  ao  delirio.  Comecei 
entSo  uma  elegia,  que  eu  dediquei  a  Resende;  eis  aqui  o  prìmeiro  di- 
stico : 

Spirantem  vulgus  qnod  non  tolerabat  Erasmum, 

Defunctum  sero  queret  h abere  aenem.  ' 

«Depois  d'està  bella  elegia,  com  a  cabe^a  sempre  cheia  de  minha 


1  Vé-se  que  pre^alecia  na  educa^So  philosophica  em  Portugal  a  eschola  No- 
minalista, porventnra  ji  entSo  reflexo  das  doutrinas  do  Collegio  de  Santa  Barbara, 
d^'onde  regressavam  estadantes  portagnezes. 

2  Eroquanto  vivo  a  Erasmo  o  vulgo  nSo  adora, 
Depois  de  morto,  eia  tarde  e  com  saudade  o  ebora. 


408  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

d6r  e  do  meu  enthuziasmo^  ea  fiz  urna  Ode  tao  bella  corno  a  de  Ho- 
racio  a  Virgilio  sobre  a  morte  de  Quintilio,  e  foi  tambem  ao  desven- 
turado  Resende  que  eu  dediquei  està  segunda  obra  prima.  (Transcrer 
ve-a.)  Pois  bem,  meu  caro  Polites,  direis  vós  agora  que  eu  nSio  sou  tSo 
bom  poeta  corno  grande  orador? — Eu  mostrei  todas  estas  producQÒes 
ao  meu  principe,  que  as  acbou  bellas;  os  outros  dilectos  das  musas, 
roendo  as  unbas  e  batendo  nas  suas  desgra9adas  escrevaninbas,  farSo 
melhor  do  que  eu  no  vosso  entender?  O  ponto  essencial  é  que  eu  es- 
tou  contente  commigo,  e>  t2k>  satisfeito  que  eu  deixo  fazer  a  critica  dos 
meus  versos  aos  meus  rivaes  e  mesmo  os  apódos  aos  meus  amigos;  po- 
dem  fazer  comò  quizerem,  n^o  arrancarlo  os  louros  immortaes  que  me 
cingem  a  fronte.  Eu  sou  mais  fecundo  do  que  vós  todos;  e  urna  vez 
que  comecei  jà  nào  posso  acabar.  Fiz  uma  composÌ9ào  sapfaica  mais 
longa  do  que  todas  as  de  Horacio,  e  pareyo-me  com  Cicero,  cujas  obras 
mais  extensas  eSio  sempre  as  melhores.  Mas  Resende  é  um  casmurro; 
entreguei-lbe  uma  noite  todas  as  minbas  Odes,  com  rjrthmos  novos,  e 
no  dia  seguinte  veiu  ter  commigo  todo  pesaroso: — Fizestes-me  passar 
a  noite  em  claro,  disse-me  elle;  onde  fostes  vós  descobrir  estas  maldi- 
tas  medÌ95es?  Folheei  Terencio  de  cabo  a  rabo,  e  nada  achei  ahi  que 
se  Ihe  parecesse? — Terencio?  retruqui-lhe  eu;  pois  tendes  o  atrevi- 
mento  de  me  comparar  a  esse  mesquinho  escravo  da  Africa?  Ficae  sa- 
bendo,  meu  amigo,  que  eu  dSìo  imito  ninguem,  e  que  eu  posso  ser  ori- 
ginai, comò  qualquer  outro! — Meu  caro  Polites,  eu  prevéjo  que  à  for9^ 
de  querer-se  imitar  os  antigos  nós  nos  tornaremos  servis.  Quem  pode 
deixar  de  se  rir  à  custa  do  sabio  Dolet  e  dos  outros  ciceronianos,  seus 
similhantes,  que  nSo  se  atrevem  a  empregar  versiculare,  versificar,  por* 
que  està  palavra  nSo  se  acha  em  Cicero?  Estes  litteratos  delicados  nSo 
fazem  caso  algum  de  Tito  Livio,  dos  dois  Plinios,  dos  outros  grandes 
escriptores  de  Roma?  Demais,  uma  grande  parte  dos  escriptos  de  Ci- 
cero està  perdida;  sabem  elles  se  estas  palavras  e  tantas  outras  que 
reprovam  n^  foram  empregadas  pelo  proprio  Cicero?  Elles  ignoram 
que  as  expressSes  nào  s&o  senSk)  fórmas,  e  que  cada  gerafSo  as  produz 
novas.  O  tempo,  deixando  de  parte  os  artistas,  faz  tambem  revolu98e8 
nas  artes,  e  em  tudo  cada  paiz  tem  as  suas  modas.» 

Em  uma  especie  de  Post-scriptum  d'està  carta  a  Hoverius,  falla 
Clenardo  de  uma  senhora  erudita  entre  os  humanistas,  a  celebre  Joanna 
Vaz:  cAdeus,  meu  amigo,  eu  vou-me  lan9ar  com  delicias  nos  brayos 
das  Musas.  A  Litteratura  tomou-se  o  gesto  dominante  e  uma  exigen- 
eia  necessaria  na  Europa;  obedefo-lhe.  A  belleza  tambem  se  associa 
a  nós;  Joanna  Vaz,  donzella  encantadora  e  amiga  dos  nossos  traba- 


OS  HUMANISTAS  E  A  R£F0R1IA  DA  UNIVERSIDADE  409 

Ihos,  egoala-BOB  em  eradÌ9llo  tanto  quanto  o  seu  sexo  nos  vence  em 
délicadeza  e  gra9a8.  Vós  terìeis  querido  fazer  obras  corno  as  que  acabo 
de  vèr  d'ella. — Ea  ensino  Utteratura  aos  meus  escravos  negros  ;  um  dia 
OS  resgatarei,  e  terei  o  meu  Diphilus  corno  Crasso,  e  o  meu  Tiron  corno 
Cicero.  Escrevem  jà  muito  bem,  e  come9am  a  perceber  o  latim;  o  mais 
esperto  faz-me  a  leitura  à  mesa.  Emqiianto  comò,  ensino-os,  e  cada  dia 
vejo  0  fructo  do  trabaiho,  corno  o  jardineiro. — Quando  estou  can9ado 
de  estudar  distraio-me  com  elles.  VSo  commigo  ao  passeio,  divertem- 
me,  fazem-me  rir,  e  até  crian$a;  creio  que  foram  elles  que  me  fize- 
ram  poeta  à  forga  de  Ihes  ouvir  dizer  Musa,  Musae. — Nào  ha  receios 
em  Portugal  de  guerra,  mas  sim  de  peste  ou  fome.  Cada  paiz,  meu 
amigo,  tem  o  seu  flagello;  a  desgra^a  é  o  nosso  ambiente  necessario; 
«por  mim,  trato  de  romper  oste  ambiente  e  safar-me;  eu  engano  o  in- 
fortunio, e  é  porventura  so  n'isto  que  se  é  feliz.  Abrafa  Hoverius  e 
Sphiter.  » 

Em  uma  ultima  carta  a  Polites  sobre  a  sua  situa9lU):  cAcho-me 
em  Evora;  n'este  momento  acabo  de  receber  a  vessa  carta^  e  àmanbS 
levarSLo  a  minha  resposta  para  Lisboa;  nSo  tenho  pertanto  senfto  o 
tempo  bastante  para  vos  dizer  qual  é  a  minha  situa92Lo  actual. — 0  meu 
principe  està  em  Braga  ha  jà  tres  mezes;  àmanhSL  regressa  a  Evora; 
voltaremos  para  Lisboa  no  primeiro  de  Janeiro,  e  o  vesso  amigo  fica 
obrigado  n'este  grande  dia  a  ir  expSr-se  ao  ridiculo,  apresentando-se 
perante  o  rei,  com  a  nobreza  e  os  cortezios. — Falle!  ao  meu  principe 
no  desejo  de  regressar  à  minha  patria  no  proximo  ver&o,  se  o  céo  e  a 
fortuna  me  derem  vida  até  esse  tempo.  Elle  bem  queria  conservar-me 
para  sempre  em  Portugal,  o  que  apressaria  a  minha  morte.  NSo  me 
atrevi  a  dizer-lhe  que  todas  as  minhas  aspira93es  se  localisam  em  Lou- 
vain; contentei-me  a  representar-lhe  que  elle  estava  sempre  ausente, 
no  exercito,  nas  revistas,  nas  fronteiras,  para  onde  nSo  podia  acompa- 
nhal-o,  e  onde  Ihe  era  por  conseguinte  inutil;  elle  molesto u-se  com  a 
minha  resoluglo.  E  eu,  outro  tanto  comò  elle;  mas  que  fazer?  eu  nSo 
tenho  mais  do  que  uma  vida,  da  qual  percorri  jà  uns  dois  teryos  sem 
me  poder  entregar  ao  estudo.  A  ausencia  refor(a  as  grandes  paixSes; 
todas  as  minhas  paixSes  concentram-se  em  Louvain;  ahi  pretendo  en- 
velhecer  no  meio  das  letras.» 

Clenardo  salu  de  Evora,  passou  por  Coimbra  e  demorou-se  algum 
tempo  em  Braga,  dirigindo-se  depois  para  Hespanha,  sempre  preoccu- 
pado  do  seu  pensamento  do  estudo  do  Arabe;  demora-se  em  Granada, 
onde  emprehende  a  viagem  a  Fez  e  a  Ceuta.  Escreve  a  Latomus:  «Es- 
tou jà  feito  um  arabe,  e  participo-vos  que  vou  partir  para  Fez.  Vós 


410  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

sabeis  que  està  cidade  é  para  a  Africa  corno  Paris  é  para  a  Fraii9a. 
E  a  mais  sabedora  eschola  do  mahometismO;  e  a  mais  rica  em  gran- 
des  mestres.  Eu  nSo  gosto  do  repouso,  e  estou  ardendo  para  ir  &  fonte 
da  religiSo  do  propheta.  Na  minha  volta  qiiantas  cousas  terei  a  contar- 
Yos!  Vou  embarcar,  e  acho-me  aqui  em  Gibraltar  ha  tres  semanas. 
Neptuno  furioso  prende-nos  no  porto  todo  este  tempo,  quando  o  tra- 
jecto  é  de  quatro  horas.  Vamos  a  Ceuta,  onde  os  portuguezes  tèm  urna 
forte  giiarnÌ9lLo.  EUes  estSo  em  paz  com  o  rei  de  Fez  ba  onze  annos. 
Conto  nada  ter  a  receiar  penetrando  n'este  reino  infici.  Fez  estd  a  dis- 
tancia  de  Ceuta  umas  trinta  leguas.  Durante  està  viagem  nSo  escre- 
vereis  uma  pobre  cartinha  ao  vesso  amigo  exilado  na  Africa?»  Em  ou- 
tras  cartas  descreve  Clenardo  a  impressSo  da  passagem  do  estreito,  o 
aspecto  de  Fez,  a  vida  ehtre  os  arabes,  as  suas  inve8tiga95e8;  voltoa 
depois  a  Granada,  e  quando  a  sua  reputa9Slo  s^  tornava  europèa,  e  es- 
tava destinado  a  exercer  a  maxima  infiuencia  nos  estudos  da  Renas- 
cen9a,  morre  cm  1542,  com  quarenta  e  seis  annos  de  edade,  sem  ter 
tornado  a  Louvain!  * 

Yèmos  até  aqui  que  a  corrente  scientifica  estava  bem  reprentada 
em  Portugal,  mas  todos  estes  elementos  foram  improficuos,  porque  D. 
JoSo  in  deu  aos  Dominicanos  o  poder  de  terrorisarem  as  consciencias 
com  OS  Autos  de  Fé,  e  aos  Jesuitas  o  privilegio  de  imbecilisarem  as 
intelligencias.  Estes  dois  irmSos  do  monarcha  protegiam  devotadamente 
as  duas  càfilas,  o  Cardeal-Inquisidor  os  Dominicanos,  e  o  Infante  D.  Luic 
08  Jesuitas.  E  facii  de  prevèr  que  em  uma  tal  sociedade  deveriam  dar- 
se  permanentes  conflictos  entro  a  religiHo  e  a  sciencia;  o  clero  apro- 
veitava  a  impressSo  ^os  pbenomenos  naturaes  para  conservar  o  povo 
sob  o  jugo  do  maravilboso,  e  os  homens  de  sciencia  tinham  de  reves- 
tir-se  de  uma  sublime  coragem  para  explicarem  esses  pbenomenos  por 
leis  physicas.  Gii  Vicente,  em  uma  Carta  que.  mandou  de  Santarem  a 
D.  Joào  III,  conta  comò  os  frades  subiram  ao  pulpito  por  occasiSo  do 
tremor  de  terra  de  26  de  Janeiro  de  1531,  hallucinando  o  povo  crèdulo 
para  fazer  a  matan9a  dos  chrìstSos-novos  ;  o  velho  poeta,  servindo-se 
das  doutrinas  physicas,  convocou  os  frades  no  claustro,  e  explicou-lhes 
que  OS  terramotos  enun  effeitos  de  causas  naturaes,  que  elles  nSo  pò- 
diam  prevèr:  co  tremor  de  terra  ninguem  sabe  comò  he,  quanto  mais 


^  Consalt&moB  para  este  trabaiho  sobre  Clenardo  o  bello  estado  do  medie- 
vista  Achille  Jnbinal  :  Études  critique*:  Voyagt  en  Espagne  et  en  PortugcU  cm  XVI.* 
9Ìèele,  Vem  na  Mevue  upagnoU,  poriugaise,  brcuUierme  et  hitpanO'americame,  U  it^ 
p.  236  a  253  e  p.  374  a  397.  (1857.) 


OS  HUHANISTAS  E  A  REFORHA  DA  UNIVERSIDADE 


4il 


quando  sera  e  quammanho  sera.  Se  dizem  que  por  estrologia,  que  he 
Bciencia^  o  sabem:  nSo  digo  eu  os  d'agora^  que  a  nSo  sabem  soletrar^ 
mas  he  em  si  tSo  profandìssima,  que  nem  os  da  Grecia^  nem  Moyséa, 
nem  Joannea  de  Mont&regio  alcangaram  da  verdadeira  judicatura  peso 
de  urna  OU930;  etc.»  ^  Este  Joannes  de  Monteregio  é  0  celebrado  Re- 
giomontanuB  (1436-1476)  que  traduziu  as  principaes  obras  dos  astro- 
nomos  gregos,  e  resumiu  em  epitome  0  Almagesto.  So  em  1531,  època 
em  que  Gii  Vicente  escreve  a  carta  a  D.  JoSo  iii,  é  que  foram  dados 
à  publicidade  os  resultados  das  observagSes  de  Regiomontano  do  no- 
tavel  cometa  de  1472.  Em  um  paiz  sujeito  a  constantes  terramotos,  e 
a  grandes  pestes,  comò  observou  Buckle,  com  certeza  0  perstigio  do 
Bobrenatural  havia  de  encontrar  no  povo  urna  adhesSlo  absoluta,  e  um 
certo  desprezo  pelas  idéas  deduzidas  das  observa95e8  scientifìcas.  O  rei 
e  a  sua  familia  eram  epilepticos,  e  victimas  d'essa  organisa9ào  deram 
todo  0  seu  poder  às  duas  hordas  de  obscurantistas,  que  atacaram  o  vi- 
gor e  a  existencia  da  nacionalidade  portugueza  no  seculo  xvi.  Portu- 
gal  foi  sequestrado  ao  movimento  scientifico  da  Renascenga;  as  tres 
reformas  da  Universidade,  em  1537,  1547  e  1555,  foram  tres  deca- 
dencias.  A  tra8lada9&o  da  Universidade  para  Coimbra  foi  um  erro  de- 
ploravel,  sob  pretexto  de  tirar  esse  Estudo  do  bulicio  de  uma  cidade 
maritima  e  mercantil;'  0  seu  isolamento  afastou-a  da  realidade  da  vida, 
perpetuando  a  inanidade  medieval  em  todas  as  suas  dìsciplinas  peda- 
gogicas.  Sob  a  influencia  dos  Gouvéas,  floresceram  de  um  nv)do  exclu- 
sivo  08  estudos  hamanistas,  porém  jà  deslocados,  mas  facilitando  0  as- 
salto da  Universidade  aos  Jesuitas  em  1555,  d'onde  dominaram  a  in- 
8truc9So  publica  portugueza  até  à  reforma  de  Pombal.  Historìemos 
cada  uma  d'estas  tres  phases  do  ensino  portuguez  na  Renascen9a,  sem 
0  que  nào  se  expUca  corno  é  que  as  Academias,  que  na  Europa  foram 
corpora95es  essencialmente  scientificas,  em  Portugal  ficaram  banalmente 
litterarias,  fócos  de  um  imbecil  culteranismo. 

Em  uma  das  cartas  de  Erasmo  a  André  de  Resende,  datada  de 
Friburgo  em  18  de  junho  de  1531,  agradecendo-lhe  uns  versos  que 
Ihe  mandara,  avisa-o  da  preponderancia  da  corrente  fradesca,  que  lu- 
ctava  centra  as  novas  doutrinas  philologicas;  dizia-lhe  que,  depois  das 


1  Ohrasy  t.  ni,  p.  385. 

'  0  breve  de  1537,  que  concede  a  uniSo  de  varias  egrejas  para  o  rendimento 
da  Universidade,  compara  Lisboa  a  CoryrUho  e  Coimbra  a  Aihenas.  Està  compa- 
ra^fto  rhetorica  conservou-se  na  tradÌ9So  escholar,  repetindo-se  nas  prosas  acade- 
mieas  a  periphrase  2jusa  Athenas  para  designar  Coimbra. 


412  HISTORIÀ  DÀ  UmVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

quatro  grandes  Monarchias  dos  Assyrios,  Qregos,  Medas  e  Romanos, 
estavamos  ameafados  do  Quinto  imperio  dos  Frades  e  dos  Imbecis  (re- 
gnum  monaehorum  ac  sUdtorum.)  Depois  de  1536,  Portagal  caia  sob  o 
pezado  obscurantismo  da  InquisÌ9à0y  e  em  1542  entrava  n'esta  vigo- 
rosa  nacionalidade  o  virus  jesaiticO;  que,  com  a  lenda  do  sebastianismoi 
tomou  verdadeiro  o  epigramma  do  Quinto  imperio  dos  tolos. 

O  encontro  d'estas  duas  correntes  doutrinarias  synthetisa-se  em 
poucas  palavras.  Os  humanistas  conciliam  o  saber  antigo  com  a  tradi- 
9S0  evangelica;  creando  esse  estado  moral  àe  philantropia  ou  caridade, 
qae  se  chamon  a  Philosophia  christS,  (expressSo  laminosa  de  Erasmo) 
emquanto  a  Egreja  ou  0  clero,  constituindo-se  em  partido  politico,  le- 
vavam  a  Realeza  às  grandes  perseguÌ93es  religiosas  da  InqaisÌ9S0y 
Saint-Barthélemy  e  Dragonadas. 


OS  HUMÀNISTAS  E  A  REFORMA  DA  UNIVERSIDADE  413 


TabtQa  Legentlnm 

1521 

Mestre  Jo3o  Francez,  toma  o  grào  de  doutor  em  22  de  fevereiro. 

Doutor  Jorge  Femandes,  lente  de  vespera  de  Leia,  em  15  de  novembre  (rege  ainda. 

em  1532.) 
Frei  Loiz,  fìranciscano  claustral,  leva  por  opposi^Ho  a  cadeira  de  Philosophia  Na^ 

turala  em  29  de  abril. 
Toma  poBse  da  cadeira  de  Mathematica  o  lieenciado  Thomaz  de  Torres^  em  19  de 

outubro,  por  mercé  do  rei,  (da  cadeira  de  Astrologia,  que  el-rei  nosso  senhor 

novamente  fez  com  outo  mil  reis  de  salario.) 
Lniz  Afionso,  lieenciado,  provido  em  31  de  outubro  na  cadeira  de  prima  de  Cono* 

nes,  (Conservou-a  até  à  mudan9a  da  Universidade.) 

1522 

Lieenciado  Diniz  Gon^alves,  provido  na  cadeira  de  ter^a  de  Canones  em  21  de 

Janeiro. 
AntSo  Soares,  provido  na  cadeira  de  sesta  de  Canonea  em  22  de  fevereiro.  (Foi  o 

ultimo  proprietario  duella  em  Lisboa.) 
Lieenciado  Joào  Alves  Fafes,  provido  na  cadeira  de  ter^a  de  Leis,  em  que  se  lia 

Instituta,  em  8  de  fevereiro.  (Conservou-a  até  à  mudan^a.) 

1524 

Doutor  Diogo  Franco,  provido  na  substituÌ9So  da  cadeira  de  vespera  de  Medicina 

em  5  de  outubro. 
Doutor  Martim  de  Figueiredo,  provido  na  substituÌ9So  da  cadeira  de  Philosophia 

moral,  para  lèv  de  Oratoria,  em  3  de  dezembro. 

1525 

Frei  Afionso  de  Medina,  provido  na  cadeira  de  PhUosophia  maral,  por  encommen- 

da^io,  em  13  de  junho.  (Era  proprietario  D.  Fedro  de  Menezes.) 
Jorge  Calvo. 
Doutor  Luiz  ÀfiEonso. 
Antonio  Soares. 

Frandsco  Valentinus,  mestre  de  Arte», 
Fedro  Rhombo,  mestre  de  Gframmatioa  da  Arte  de  Paatrana, 
Balthazar  Lopea. 

1526 

Mestre  Gii,  leva  a  cadeira  de  prima  de  Medicina,  por  opposiySo,  em  31  de  Janeiro,. 

conservando-a  até  ìl  mudan^a  da  Universidade. 
Doutor  Diogo  Franco,  provido  na  propriedade  da  cadeira  de  vespera  de  Medicina, 

em  5  de  mar^o. 
Frei  Affonso  de  Medina,  provido  na  propriedade  da  cadeira  de  PhUosophia  morcU, 

por  carta  de  D.  JoSo  in,  de  3  de  junho. 


414  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

1527 

JoSo  Ribeiro,  capellao  de  el-rei,  leva  por  opposi^So  a  cadeira  de  Logica,  em  20  de 
fevereiro. 

1528 

Diogo  de  Aguiar,  provido  na  flubstitui^ào  da  cadeira  de  sexta  de  Canones. 

P*^^^  m"*^^*^  )^^*™  Gramwio^wa  dentro  do  Bairro  das  Escho- 

Fero     a   ma  f     i^g .  ^^1  conselho  de  13  de  agosto  se  assen- 

e  erigo  ^    .   .  ,      ,        .  f     tou  que  os  doie  ultimos  nfto  léssem  flem  a 

D.  Affonso  Preto  (sobnnho  do  rei i     tt  .        «j  j 

,    ^        ^  ^  I     Univeraidade  os  approvar. 

do  Congo)  1  .  Mrr  ^ 

1529 

Fedro  Nunes  (ainda  bacharel  em  Medicina)  provido  em  4  de  dezembro  na  cadeira 
de  Philo8ophia  maral j  com  a  obriga^Ho  de  duas  li^oes,  urna  theorica  e  otUm 
pratica» 

1530 

Fedro  Nunes,  rege  por  encommenda  a  cadeira  de  Logica, 

Garcia  d'Orta,  licenciado  em  Medicina^  provido  por  encommenda^o  na  cadeira  de 

Phtlosophia  naturai,  pelo  conselho,  em  5  de  novembro.  (Leu  até  1  de  mar^o 

de  1534,  por  estar  de  partida  para  a  India.) 
Luiz  Nunes  de  Santarem,  provido  na  cadeira  de  Summtdas,  por  oppoBÌ9ào,  em  31  de 

outubro.  (Leu  até  1533.) 
Fedro  Margalho,  provido  na  cadeira  de  prima  de  Theologia,  por  provisUo  de  D. 

JoS.0  III,  de  2  de  maio,  e  con  vite  do  conselho  em  2  de  abril. 

1531 

Fedro  Nunes,  deixa  a  cadeira  de  Logica,  e  rege  por  encommenda  a  de  Metaphy- 
sica,  vaga  pela  renuncia  de  Fr.  Joào  Framengo.  * 

1532 

D.  Gonzalo  Bodrigues  Santa  Cruz,  castelhano,  provido  na  cadeira  de  vespera  de 

Leia,  por  oppo8Ì9ào,  em  6  de  outubro. 
Francisco  Godines,  levou  por  opposi^^  a  cadeira  de  SimimuUu  em  12  de  outa- 

bro.  (Doutorou-se  em  Medicina.) 
Faulo  Antonio,  lente  de  Grammaiica  no  bairro  das  Escholas;  regea  uma  cadeira 

de  Chrammaiica  na  Sé. 

1533 

Gonzalo  Bodrigues  de  Santa  Cruz,  provisUo  de  16  de  setembro,  de  D.  Jo2o  ni, 
para  que  lésse  a  cadeira  de  vespera  de  Leia  emquanto  o  Eatudo  se  nào  mu- 
dasse de  Lisboa. 

Luiz  Nunes  de  Santarem,  provisio  de  16  de  outubro  para  lér  Summulas  por  mids 
tres  annos. 

Frei  Fedro  de  Aveiro,  licenciado  em  Theologia,  provido  na  cadeira  de  prima  de 
Theologia  em  10  de  novembro  de  1533,  com  a  clausula: — Mostrando  aa  le- 
tras  do  mestre  da  ordem  de  come  he  graduado,  tome  o  grio  de  Doutor. 


OS  HUMÀNISTÀS  E  A  REFORHA  DA  UNTVERSIDADE  415 

Ayres  de  Luna,  provieSo  de  9  de  mar^o  para  lér  a  cadeira  de  Philosophia  natu- 

ralf  até  ao  concurso. 
Duarte  Gk>me8,  licenciado  em  Medicina^  provido  por  opposi^Io  na  cadeira  de  Phi- . 

loaophia  naturai  em  9  de  novembre  ;  leu  até  à  mudan^a  para  Coimbra. 

1584 

Ajres  de  Luna:  «aos  desasejs  dias  do  mes  de  mar^o  come^ou  aler  ayres  de  luna 
a  cadeira  dartes  q  foi  do  h.^  orta.»  (T.  ii,  fl.  80,  d^aProvi^ea,  e  Tcibula 
Legentium  de  1534.) 

1535 

Thomaz  de  Torres,  Physico-mór,  reintegrado  na  cadeira  de  Mathematica  por  al- 
vara  de  D.  JoSo  lu,  de  6  de  fevereiro;  proveu-se  a  substitui^ào  em  15  de 
dezembro. 

Doutor  Francisco  de  Mon^on,  lente  de  prima  de  Jlieologiaf  por  mercé  de  D.  JoSo  ni, 
por  tres  annos,  pela  provisao  de  3  de  setembro.  Leu  até  1537. 

Francisco  Godines,  teve  permissio  para  lér  SummiiUu  por  mais  tres  annos,  por  pro- 
visao de  25  de  maio,  datada  de  Evora. 

1536 

Bacharel  Agostinho  Femandes  Trava^s,.  lia  a  cadeira  de  Codigo, 
Licenciado  JoSo  Alvares  Fafes,  lente  da  cadeira  de  ter9a  de  Zieis,  encommendado 
na  substitui^So  da  cadeira  de  prima  ;  e  porque  nio  seguiu  a  Universidade 
para  Coimbra,  ficou  privado  da  sua  cadeira,  recebendò  uma  ten9a  de  7;|iOOO, 
por  previsto  de  30  de  julho  de  1537. 
Bacharel  Baltbazar  de  Paiva,  substitue  na  cadeira  de  Leie  o  licenciado  Alvares 
Fafes  ;  e  corno  nSo  seguiu  a  Universidade  para  Coimbra,  recebeu  em  com- 
pen8a9So  ten^a  de  7j|S000  réis,  por  previsto  de  30  de  julho  de  1537. — Sub- 
stitue em  30  de  mar9o  na  cadeira  de  Codigo  o  bacharel  Agostinho  Femandes 
Trava^os. 


416  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  G0IM6RA 


Rettore s  da  Universidade  de  Lisboa,  no  primeiro  tergo  do  seonlo  XVI 

1506-1511 

Braz  Affonso  Correa,  do  Desembargo.  (Foi  vice-reitor  JoSo  Gii,  chantre  da  Sé  de 

Lisboa.) 

1511-1512 

Diogo  da  Gama  (servia  por  elle  Ruy  G^usalves  Manichete,  do  Desembargo.) 

1512-1513 
Dr.  Jo3o  Alvares  de  Elvas,  da  Casa  de  £l-rey  e  seu  Desembargo. 

1513-1518 

D.  JoSo,  Bispo  de  Saphim. 

I51&-1519 

Buy  Gronsalves  Maruchote,  do  Desembargo  de  El-rey. 

1524-1525 

Maracote  (ut  supra). 

1525-1526 

Dr.  Jorge  Cota,  do  Desembargo  do  Bey,  e  seu  Corregedor. 

1526-1627 
Dr.  Cbristovam  da  Costa,  do  Desembargo  d'El-rey. 

1527-1528 
Dr.  Fernando  Àlvarcs  de  Almeida,  do  Desembargo. 

152&-1529 
0  Bispo  de  Lamego  (servindo  por  elle  o  Dr.  Fernando  Alvares  de  Almeida.) 

1529-1531 

Francisco  de  Mollo,  do  Conselhp  do  Bey.  (Seryin  por  elle  em  1530  Fedro  Marga- 
Iho,  lente  de  prima  de  Theologia,)  * 

1531-1532 
Gonzalo  Pires  (serviu  por  elle  Francisco  de  Mollo.) 

1532-1533 
Francisco  de  Mello  (serviu  por  elle  Alvaro  Esteves.) 

1533-1534 
Alvaro  Esteves,  do  Desembargo  del  Bey. 

1534-1535 
0  mesmo,  e  por  sua  recusa  foi  eleito  o  P.*  Agostinbo,  Bbpo  Eleito  das  Ilhas. 

1535-1536 
0  Dr.  Jorgc  Femandes,  do  Desembargo  del  rey. 

1536-1537 

O  Dr.  Fedro  Nunes,  do  Desembargo  del  rey,  e  Chanceller,  que  serviu  até  a  Uni- 
versidade ser  transferida  para  Coimbra. 

(Fìgueiróa,  Ms.^  Annuario  da  Univerndade,  de  1876  para  1877,  p.  216.) 


CAPITULO  IV 


i  Liinuria  da  Oni?ersldade  no  secolo  XYI  (1618-iHi) 


0  espirito  do  Scholasticismo  conserrado  nas  obras  que  compòem  a  Bibliotheca  da 
Universidade. — O  legado  do  Doutor  Diogo  Lopes,  de  1513,  compoe-ae  de 
cinqnenta  e  nove  volomes,  deixados  à  Universidade. — Exame  d'esses  Livros. 
— Inventario  dos  Livros  da  Bibliotheca  da  Universidade  de  Lisboa,  segundo 
nm  Catalogo  de  IbM, — Livros  de  Direito  canonico,  de  Theologia  e  Medicina 
enviados  para  Coimbra. — Exame  bibliographico  d^essas  obras. — 0  novo  es- 
pirito da  Renascen^a  em  urna  Livraria  scientifica  fora  da  Universidade. — A 
Livraria  do  Doutor  Garcia  d^Orta  (1534  a  1564). — A  reac^o  catholica  co- 
meta pela  censura  dos  Livros,  em  Portugal. — Cartas  do  Cardeal  Infante  a 
DamiSo  de  Croes  sobre  a  censura  dos  Livros. — Indice  ezpurgatorio  organi- 
sado  por  Alvaro  Gomes. — Outros  Indices  ezpurgatorios  do  seculo  xyi. 


O  quadro  das  faculdades^  fechado  emquanto  is  disciplinas  scìen- 
tìficas  transinittìdas  pela  tradijSo  pedagogica  da  Edade  mèdia,  era 
urna  das  cansas  por  -que  as  Universi&ades  estacionavam,  extranhas  ou 
hoBtis  ao  desenvolvimento  das  sciencias  experimentaes  do  seculo  xvi. 
O  exclusivo  destino  docente  fazia  com  que  as  Universidades  despre- 
aassem  as  novas  doutrinas,  porque  nSo  serviam  para  habilitar  os  es- 
cholares  praticamente  aos  misteres  de  theologos,  canonistas,  legistas  e 
medicos.  Essas  curiosidades  de  espirito,  além  de  perturbarem  a  har- 
monia  quadrìvial,  tinham  um  perigo,  porque  abalavam  a  auctoridade 
doutoral  e  a  orthodoxia  religiosa.  É  por  isso  que  fora  das  Universida- 
des cometa  essa  poderosa  elaboratilo  mental,  que  é  a  gloria  e  a  suprema 
miBBfto  das  Academias  do  seculo  xvn.  A  fiitua9So  mental  universitaria 
reflecte-se  com  todo  o  rigor  nas  Livrariaa  do  Studo,  corno  as  acbamos 
descriptas  nos  inventarìos  do  seculo  xvi.  Emquanto  a  Imprensa  uni- 
versalisava  os  monumentos  ignorados  da  sciencia  e  Philosophia  da 
Grecia,  e  as  novas  concep^Ses  crìticas  e  syntheticas  da  Benascenya 

HisT.  mi.  27 


418  m  STORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

trìumphante,  o  poder  clerica!  reagia  centra  està  actividade  das  Intel- 
ligencìas  pela  censura  dos  livros  e  Indices  exporgatorios  das  obras  prò- 
hibidas.  As  Universidades,  que  apoiaram  està  reac9lL0y  so  admittiam 
nas  suas  Livrarias  as  obras  approvadas,  e  especialmente  aqaellas  que 
serviam  para  o  fini  pratico  e  compendiario  do  estudo.  Como  jà  tivemos 
occasifto  de  notar,  nSo  se  conhece  documento  algum  por  onde  se  infira 
que  até  ao  principio  do  seculo  xvi  a  Universidade  de  Lisboa  possuisse 
Liyraria  propria.  Na  Breve  notìda  da  Livraria  da  Universidade  de 
Coimhra,  escripta  pelo  lente  Bernardo  de  Serpa  Pimentel,  ^  affirma-se 
nSo  ter  apparecido  documento  anterior  a  1573,  por  onde  se  conhega 
providencia  ou  diligencia  tendente  a  reparar  a  falta  de  Livraria  na 
Universidade:  «No  longo  periodo  que  decorre  desde  a  fundagSo  da 
Universidade  em  Lisboa  (cérca  de  1290)  até  à  sua  terceira  e  ultima 
transferencia  para  Coimbra,  em  1537,  e  ainda  por  mais  de  quarenta 
annos  àquem  d'està  època,  nSo  possuia  a  Universidade  por  certo  casa 
especial  de  bibliotheca,  nem  livraria  propria,  que  fossem  proporciona- 
das  à  importancia  d'este  instituto  scientifico. 

cNào  conlie9o  documento  algum  d'essa  època,  em  que  se  falle  da 
Livraria  da  Universidade,  nem  escriptor  que  d'ella  de  noticia. — NSo 
sei  de  providencia  ou  diligencia  alguma  dirigida  a  reparar  està  falta, 
que  fosse  anterior  a  1573.»  Os  documentos  nSo  se  apresentam  a  quem 
nfto  se  entrega  a  estudos  historicos.  Por  um  recibo  de  17  de  fevereiro 
de  1513,  sabe-se  que  junto  à  Livraria  do  Studo  estava  reunido  o  le- 
gado  de  cinquenta  e  outo  volumes  encadernados,  que  o  Licenciado  Diego 
Lopes,  lente  de  terja  de  Canones,  provido  em  1505,  deixara  por  sua 
morte,  em  1508,  à  Universidade.  Estes  livros  eram  de  theologia,  ca- 
nones, leis  e  artes;  por  isso  o  s^  conbecimentc  so  nos  interessa  na 
parte  que  nos  revela  o  quadro  das  disciplinas  ensinadas.  0  Recebedor 
do  Estudo  era  a  cargo  de  quem  estava  a  administra^Io  da  Livraria, 
comò  vémos  por  oste  documento  de  1513,  e  ainda  por  outro  de  4  de 
julho  de  1541.  0  erudito  Gabriel  Pereira,  quando  inventariava  o  Ar^ 
chivo  da  Universidade  em  1881,  encontrou  no  L.  1.®  dos  L.®'  da  Univ.^ 
de  Lix.^,  de  1506  a  1526,  um  curiosissimo  Inventario  da  Livraria  do 
Studo,  a  que  se  procedeu  por  occasifto  de  um  conflicto  com  o  Recebe- 
dor, que  se  rècusara  a  mandar  reparar  um  cane  na  livraria:  cE  o  re- 
ctor  Ihe  disse  e  se  vos  mandar  penhorar  nom  o  fares  e  per  elle  foj  dicto 


1  Vem  na  Exposigào  tueointa  da  ùrgdnitOQào  actual  da  Ufnvtrndadt,  pelo 
visconde  de  Villar  Maior,  p.  470. 


A  LIYRARIA  DO  STUDO  419 

que  se  o  mandassem  penhorar  que  darìa  ha  penhor  e  que  se  o  man- 
^dassem  a  cadea  qne  eie  se  yrìa  la  e  que  em  nenhama  maneìra  nom 
avìa  de  fazer  o  dicto  cano  nem  oatra  obra  algua. . .  i  Sm  conseqaencìa 
d'està  recusa  formai  foi  ordenada  ao  Recebedor  a  entrega  da  chave  da 
Idvrarìa  ao  bedel:  •com  todolos  Idvros  gue  netta  stamper  efnventario,^ 
A  entrega  dos  livros  fez-se  em  presenta  do  bacbarel  Fernilo  Gbnjal- 
TeSy  nomeado  para  assistir  a  esse  acto,  passando-se  recìbo  ao  bedel  na 
seguinte  fórma^  em  17  de  fevereiro  de  1513:  cO  dicto  Recebedor  nos 
entregou  cyncoenta  e  oyto  volomes  de  livros  de  tbeologia^  canones,  lex 
e  artes  que  leixou  o  L.^  Diego  Lopes  per  sa  morte  ao  dicto  Stado 
lodos  encademados  e  bem  asi  entregou  setenta  livros  de  teda  stientia 
que  estavam  na  dita  Livraria  nas  Scholas  velhas  os  livros  asi  todolos 
entregues  Ihe  dey  ea  bedel  ha  conhicimento  per  mi  fecto  e  asinado 
per  ambos ...»  ^  0  bedel  que  assigna  o  inventario  é  Nicolio  Lopes.  O 
Inoentairo  da  Livraria  do  Studo  acha-se  deslocado  em  outro  mana- 
scripto,  na  2.*  parte  do  T.  2.^  dos  L^^  da  Unfi''  de  Lix.^  de  1526  té 
1537  a  fl.  62  e  63.^  Vamos  transcrever  este  inventario  dos  livros  da 
Bibliotheca  da  Universidade^  que  em  8  de  junho  de  1536  estavam  para 
ser  remettidos  para  Coimbra,  sondo  o  portador  d'elles  Nicolào  LeitSo^ 
corno  veremos  pela  carta  de  4  de  julho  de  1541.  Muitos  dos  titulos  dos 
livros  slo  descriptos  segando  a  fórma  por  que  eram  designados  na  lin- 
guagem  habitual  das  escholas  ;  pelas  indicafScs  bibliographicas  se  no- 
tarfto  claramente  as  correntes  doutrinarias  dominantes  no  ensino  da 
Universidade.  Vé-se  que  antes  da  reforma  de  1537  o  espirito  da  Re- 
nascenya  nSo  penetrara  n'aquelle  baluarte  do  scholasticismo: 


1  «Està  nota  é  extractada  do  Liv,  i.»  dos  Z<.<"  da  Univerddadt  de  Lisboa  de 
1506  a  1626.*  Gabriel  Pereira,  Boletim  de  BiUiographia  portugueM,  voi.  n,p.  IdS. 

*  0  recibo  d'este  inventario  é  de  1536;  comtudo  Grabrìel  Pereira  observa: 
«tletra  identica  à  do  inventano  se  encontra  n'este  volume,  fonnado  de  cademos 
mai  diversoB,  sobre  differentes  assnmptos,  com  diversas  pagina^òes.  ••» 

27* 


420  HISTORU  DA  UNIVERSmADE  DE  GOUIBRA 


iTemtayro  da  Lirraria  do  Stndo 

prìmeiramente  na  entrada  da  liyraria  da  m2o  esquerda  haohainos 
huaa  decretaea  de  toitea  ^ 
ha  decreto  de  marqa  grande' 
outro  decreto  mannal  solto 


1  Cremos  ser  Tartes  o  nome  de  um  impressor  ;  vimos  algumas  edi^òes  da  Im- 
prensa  de  David  Tartas,  oom  a  èra  jadaica  de  5449. 

O  titillo  de  Decretaes  era  dado  à  legÌ8la9So  canonica  formulada  pelOB  papas^ 
especialmente  desde  Alexandre  m,  qne  organiaou  aprìmeira  collec^;  s^gaiu-se 
una  segunda  por  Alexandre  iy;  urna  terceìra  e  quarta  por  Luiocencio  ui;  a  quinta 
eoUec^So  pertence  a  Honorìo  ni;  a  sexta  e  ultima  a  Gregorio  ix.  A  imitalo  do 
Direito  romano,  systematisava-se  gradualmente  o  Corpus  juris  eancniei,  conforme 
o  papado  procurava  fortificar-se  ou  invadir  a  esphera  do  Direito  civil.  Boni&cìo 
vili  (1291)  completa  o  Sexto  corpo  d'està  Ipgìsla^Io  com  as  conatitui^òes  dadas  por 
Innocencio  iv,  Gregorio  x,  e  por  elle  proprio  ;  e  Clemente  v  reune  as  suas  consti- 
tui^oes  Ab  do  concilio  de  Vienna  sob  o  nome  de  Clementinas.  A  està  parte  segui- 
ram-se  as  Extravagantts  communes,  em  ciuco  livros,  de  Joao  xx  e  de  outros  ponti- 
fiees.  Lerminier  accentua  os  elementos  organicos  das  Decretaes  e  a  sua  sjstemati- 
sa^ So  imitada  do  Direito  romano  :  «A  Escriptura,  as  tradi^oes,  os  concilios,  as  de* 
cretaes,  constitui^oes  e  bullas  dos  papas,  e  até  as  leis  publicadas  pelas  auctori* 
dades  temporaes,  concorreram  para  formar  o  Direito  canonico,  yu^eotiontcum. — Nao 
representa  tanto  o  espirito  da  Egreja,  comò  as  transac^oes  e  rela^oes  a  que  se 
prestava  diante  do  que  nSo  era  ella.  Assim  o  Corpus  jvris  canonici  cncerra  frag- 
mentoB  do  Codigo  Theodosiano,  compila^oes  justinianas,  Capitulares  dos  reis  fran- 
Ic^B  e  leis  dos  imperadores  allemSes. — N'esta  codificarlo  successiva  os  papas  qui- 
zeram  rivalisar  com  o  Direito  romano.  Deram  a  fórma  de  Pandectas  ao  DecrHo 
de  Gradano,  do  Ck)digo  às  Decretaes;  o  Sexto,  as  Clementinas  e  as  Extravagantes 
foram  redigidas  segundo  o  plano  das  Novellas  de  Justiniano.»  (PhUos.  du  Droity 
cap.  ui,  p.  243.  Bruxelles^  1836.)  No  exame  das  Bibliothecas  portuguezas  do  se- 
culo  xnr  se  vera  a  quantidade  de  livros  de  direito  canonico  que  se  guardavam  com 
eaniero,  corno  o  Sexto,  as  Clementinas,  (p.  51)  Decretaes  de  Gregorio  ix  e  de  Inno- 
cencio,  (p.  52)  um  Sesiimo,  (a  collec^So  formada  por  Bonifacio  vin)  e  o  TercetrOf 
o  corpo  de  direito  canonico  formado  por  Honorìo  iv  (p.  54.) 

2  Dava-se  o  nome  de  Decreto  à  colicelo  dos  elementos  dispersos  de  lej^s- 
la^So  ecclesiastica,  complicada  e  tumultuaria,  organisada  no  seculo  xii  pelo  cele- 
bre canonista  italiano,  creador  d'està  nova  jurisprudencia,  Gradano.  Elle  procurou 
um  principio  de  ordem  para  as  collec^ues  d'antes  come^das,  dando-lhes  unidade, 
rcalisando  assim  o  titulo  de  Discordaniia  concordantia  Canonum,  0  titulo  de  Z^- 
creta  foi  'dado  a  està  coUec^So  do  nome  especial  sob  que  eram  resumidas  em  fórma 
aphorìstica  ou  imperativa,  em  frente  de  cada  texto,  as  doutrinas  contidas  n'elle. 
Està  fórma  de  plural  acha-se  na  antiga  designarlo  portugueza  Degredos,  A  obra 
nflo  teve  auctorìdade  legai,  mas  pela  sua  fórma  systematìca  tomou*se  um  perfeito 
compendio  da  jurisprudencia  canonica,  recebendo  urna  Verdadeira  auctorìdade 


A,  UYRARIA  DO  STUDO  4Stft^ 

hxk  sexto  de  tortes  de  marqa  grande  ^ 
ha  segunda  parte  de  domitiico  sobre  o  M0to  en  ha  Telarne' 
zabarMa  sobre  as  crementinas  en  ha  belarne' 
arcediagao  ^  vm. 

e  iato  na  primeira  ostante. 

na  seganda  stante  sete  velomes  iaibades.  '  vn. 

na  3/  stante  hu  velame  de  conodhos  dabade. 
mais  cmUmio  tv/raete  (carsete) 
mais  hfoas  deoiretoRi  de  tortes  mavqa  grande 
ha  sexto  com  eremvniina»  todo  de  pena 


scientifica  na  Universidade  de  Bolonha.  0  liyro  de  Gradano,  assim  espedalisado 
noB  cursoB  de  direito  canonico,  ficou  a  cbamar-se  o  Deoretum.  Os  seos  elementos 
doutrìnarìoB  derìvam-se  de  excerptos  patrologicos,  de  Santo  Agostinho  principal- 
mente, da  Ordo  romanua,  do  Pontificalisy  do  Libér  diumuB,  firagmentos  de  direito 
romano,  e  de  trechos  historìcos,  corno  de  Raffino  e  Caasiodoro.  O  Decrtto  de  Gra- 
ziano é  diyidido  em  tres  partes:  De  Miniaterits,  conhecida  depois  pela  designasse 
oommum  de  DisHnctianea;  De  Negotiis,  a  que  nas  escholas  se  dea  a  deùgnag&o  de 
Cauaae;  e  De  SacramentUf  ou  maisVaigarmente  De  ConèeorcUione,  De  om  dos  prìn- 
cipaes  discipalos  e  oommentadores  da  obra  de  Graciano,  Hogacdo  (GhdchumJ, 
cpjos  trabalhoB  de  interpretammo  ficaram  ineditos,  ezistia  em  Portugal  um  ooomien- 
tarìo,  na  Livraria  do  bispo  D.  Vicente  (p.  53).  Nas  Livrarìas  portagaezas  do  secalo 
xxY  fignram  mnitos  exemplares  do  Decreto  de  Gradano  (p.  52  e  53). 

1  £  o  Liber  aextua,  de  Bonifacio  viu  (1298),  assim  cbamado  por  servir  de 
supplemento  aoB  dnco  livroB  das  Decretàes. 

*  £  este  canonista  o  celebre  Dominici  de  Dominids,  anctor  da  Rejbrmatiimi 
romanae  Curiae,  1495  ;  e  do  Liber  de  Dignitari  episcopali, 

'  As  OleiAentinai  s^o  as  Constitai^des  de  Clemente  ▼,  cuja  primeira  odi^  é 
*de  1460;  foram  promolgadas  em  21  de  mar^o  de  1813.  Foram  tambem  oonbeddas 
pelo  titulo  de  Seaiimo,  por  se  segairem  ao  Scado;  foram  auciorisadas  com  o  nomo 
de  ClcmenUmoB  por  Jo2o  zzn. 

ZcibanUa  é  o  auctor  do  Commcntarii  in  DéorcUxlcB  et  dcmcntinae,  do  deao* 
minado  Cardeal  de  Fiorenza,  Francisco  Zabarella  (n.  1389;  m.  1417).  Tendo  ter- 
minado  os  estndos  em  Bokmba,  professoa  em  Fiorenza,  em  Padaa,  e  o  papa  JoSo 
xxuz  o  nomeou  cardeal.  No  Concilio  de  Constan^a,  de  1414,  Zabarella  é  qae  diri* 
gin  OS  trabalbos,  preparando  a  depod^fto  do  papa,  e  expiraado  por  efidto  da  exal* 
ta^fto  das  polemicas. 

^  É  o  A{)parato  sobre  o  Sexto,  de  Tancfedo  da  Coraeto,  mais  eonkeddo  pelo 
nome  de  Arehidiaeonuc. 

^  £  a  fórma  abreviada  de  designar  os  Commmtaria  Abbatis  PanormitaiiL 
Pdos  antigos  Estatatos  da  Universidade  (Liv.  ni,  tit  44)  para  ser  admittido  ao 
acto  de  bacbarel  era  preciso  jostificar  por  certidfto  possoir,  sondo  Legista,  Bàa* 
THoiiOB,  e,  sendo  Canonista,  Abbades,  além  dot  Textoa. 


422  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

hu  volume  de  dominico  em  duaB  partes  juntas  no  mesmo  ▼olome 
zavairela  sobre  as  crementinat  en  hu  volume.  vi. 


Quarta  itanto 

quatro  volumes  de  Johan  andre^ 

huas  duaB  partes  s.  primeira  e  segunda  damirigw  hoym.  vi. 

Quinta  stante 

quatro  volumes  do  eapeculador  e  deus  deles  com  reportoiros' 

ha  primeira  parte  de  haldo  sobre  as  dkoretaea^ 

ha  primeira  parte  de  Iwnocencio  sobre  as  decretaés.  ^  vi. 

Sesta  stanta 

cinque  volumes  dabades  antiguos  ' 

ha  3/  parte  de  Johanes  andre  en  hu  volume  de  pena.  vi.. 

Setima  stante 

tres  volumes  de  Bartoquino  s.  primeira,  segunda,  terceira  partes 

en  elles* 
hu  volume  que  se  chama  margarita  baldi'' 


1  £  a  nova  compila^fto  de  Gloaa»  d*  Decretae§  de  Gregorio  ix  fata  por  Jo* 
liamies  Andreae  (1270-1848),  que  ìntitaloa  Novella.  Era  a  mais  preferìda  das  £s-  ' 
cholas. 

*  Nome  eseholar  do  anctor  do  Speeuhm,  Guilherme  Durand,  com  as  amplia- 
^Ses  de  Johsn  André,  feitas  em  1846.  £m  um  entro  inventario  chama-se-lhe  Qui» 
ìkdmo  e9picidador, 

'  Obra  do  jnrìseonsnlto  italiano  Fedro  Baldo,  rivai  de  Bartholo,  conbedda 
pelo  titolo  MargarUa  Baìdu 

^  É  o  papa  Innocendo  iv,  auctor  do  ApparaHu  super  Decntalei,  muitas  ve- 
les  reimpresso. 

&  Està  designa^  indica  a  obra:  Per  illustriwn  Dodiorum  in  Librit  Deere- 
(aUum  Commentariif  videlicet  Abbatis  Ahtiqui  cum  additionibns  8eb.  Medicis,  Ber- 
nardi Compostellani,  Guidonis  Papae,  etc. 

*  É  o  celebre  canonista  Johannes  Bertachini,  auctor  do  Tradatus  de  E/pie* 
oppili;  ha  una  edi^  de  Leio,  de  1589. 

^  Vide  n.»  8. 


A  UYRARIA  DO  STUDO  423 

riuas  partes  de  dominico  sobre  o  sexto 

ha  volume  de  pena  sem  nenha  titoUo.  'vn. 

RVL 

OytaTa  itante 

tres  partes  de  JUlino 

ha  repertorio  de  nicolas  de  rmlis 

douB  livros  de  pena  multo  antiguos — n  livros —  vi. 

Nona  stanto 

hua  statuta  de  tortes 

hua  parte  de  baldo  de  pena 

hua  repetÌ9am  de  pcdacio  rubyo  * 

hua  parte  de  alexandre'^ 

ha  velame  de  azenmdus  sobre  o  codeguo^ 

ha  reportorìo  com  seus  conselhos  de  ludovico  baioni.  ^ 

Decima  stante 

sete  volumes  de  bartolo  antigo.  v  de  pena  e  dous  de  forma.^  xiii. 


1  É  o  celebre  canonista  Joào  Lopes  de  Palacios  Ruvios;  estudou  em  Sala- 
manca em  1484,  comò  collegìal  de  S.  Bartholomeu,  e  foi  encarregado  por  Fernando 
•  Catholico  para  ooordenar  as  Leis  do  Toro;  a  obra  inventarìada  é  a  B^i>etiiU 
rubrieae  et  eap.  Per  veètrtu,  de  Donaticnibus  irUer  virum  et  uxorem,  Pmdae,  1503; 
Salmanticae,  1525. 

A  Repeti^am  era  tambem  mna  das  fórmas  dotitrinaes  das  escholas  canonis- 
taSy  onde  se  usavam  as  Repetionea^  Segulae,  Casoé,  DispuUUùmea,  Questianeé,  e 
conforme  os  dias  da  semana  eram  denominados  estes  exercicios  Sabòcitinas,  Da- 
mùncales,  Venereales,  Mercuriale^. 

*  Porventnra  ama  das  tres  partes  do  DodrincUe  puerorum  de  Alexandre 
Villa  Dei. 

'  Sera  Azo  de  Ramenghis,  genro  de  Joham  André,  auctor  de  RepetUmes  so- 
lare o  texto  do  Decreto? 

^  É  a  edi^So  dos  CorniUa  de  Ludovico  Bolognini,  feita  em  Bolonha  em  1499» 
Este  jurìsconsulto  professou  na  Universidade  de  Bolonha,  sua  patria,  e  na  de  Fer- 
rara. Ezerceu  altos  cargos  janto  de  Innocendo  vm,  Carlos  vin  de  Franca  e  do  du- 
que  d^  M ilio.  S2o  nnmerosas  as  suas  obras  Interpretatìones,  Emandaiùmes,  de  di- 
leito  romano  e  canonico. 

^  0  celebre  jurìsconsulto  que  ensinou  Diretto  em  Pisa  e  depois  em  Perusa 
(1313-1356).  Du  Moulin  cbama-lhe  o  corypheu  dos  interpretes. 


424  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 


Undecima  gtanta 

hu8  dous  volumes  de  reportorios  de  Fedro  brigiensù  ^ 

hu  velume  de  Jacobum  alvarogpan  com  seu  repertorio  no  cabo  ^ 

ha  velame  sobre  o  codegru)  de  Johanes  de  colonia 

hu  velume  de  pena  2.*  parte  de  bartolo  sobre  o  digesto  novo 

amgdus,  de  maleficiis.  '  vii. 

Duodecima  itante 

ha  primeira  parte  de  dominico  sobre  o  sexto 
hu  volume  de  francisco  maxencius  de  poesia  e  reitorìca 
hu  livro  multo  velho  de  purgaminho  em  lingoagem  que  falla  dos 
casamentos  e  desposoiros.  ^ 

XXX  aqui  estam  vynte  e  nobe. 

Na  primeira  stante  da  mSo  direita 

hua  bribia 

bua  segunda  parte  de  gS  thoma»  de  aquino 

hua  segunda  parte  do  mes.  tomas  de  aquino  sobre  as  questSes 

hua  primeira  parte  de  s&o  tomas 

hu  voqabtdairo  de  cosaanotredo  ' 


1  É  0  jnrisconBolto  FetruB  Brixienais,  auctor  do  Repertornim  utriuique  ;t»rjf> 
impresso  em  Bolonha  em  ]ì.oooclxx.  Bernard^  na  obra  De  Varigine  et  de$  debuU  de 
l'Jniprimerie^  t.  u,  p.  235,  dias  que  «o  unico  esemplar  oonhecìdo  fiàs  parte  da  Bi- 
Uiotheca  do  Cardeal  de  Bei^;amo.» 

'  Sera  Jacob  de  Albenga,  glosador  da  OempHatìo  qidtUa,  cu  Deeretaes  de  Ho- 
nono  ni.  (1216-1227.) 

'  Ai^elo  de  AngeUs,  professor  da  Universidade  de  Padoa,  no  seculo  xv;  era 
filho  de  outro  celebre  jurisconsulto,  Paulo  de  Castro.  Como  advogado  consistorìal 
distinguiu-se  no  direito  canonico.  Escreven  Jwria  PùaUfiaii  quaettiones  teUetae. 

^  £  a  traduc^&o  do  livro  De  re  uxoria,  do  italiano  Francesco  Barbaro  (1398- 
1454);  tambem  foi  tradusido  em  frances  por  Claude  Joly,  VÉlat  du  Mariane. 

^  Nas  Bihliothecas  da  Edade  mèdia  assim  se  chamava  a  um  diccionario  da 
BibUa  de  Giovani  Marchesini,  intitolado  MAiofBTBixmjs.  Rabelais,  no  Cfarganfua 
(ci^p.  xxv),  e  PcuUagrud  (ci^.  vn),  chama^lhe  Marmoirei.  Na  Livraria  Viscontir 
Sforaa,  do  seculo  xv,  vem  descripto  um  exemplar  com  o  titulo  Liber  MàrmoireU^ 
(Vid.  Oiomale  itorioo  della  LeUeraknra  italiana,  voi.  i,  fase.  1,  p.  44.)  Marchesini 
era  frade  minorità;  para  soccorrer  a  igaoranda  monadial,  emprehendea  este  afa* 


A  UVRARIA  DO  STUDO  425 

bn  volume  de  teologia  super  potentiam  dwinam 

ha  volume  s.  sumairo  dos  casos  de  tìteólogia 

hu  volume  de  theologia  de  s&o  thomas  sobre  aa  castìks.  vili. 

2.*  gtanta 

bua  parte  de  sSo  tamas,  em  letra  de  pena,  velbo  sobre  as  eticas 

bu  volume  .s.  archidicicanus 

bu  quaderno  de  pena  em  papel,  multo  velbo  sem  titolo 

bu  volume  de  filosopbia  sobre  os  Costwmes  e  vida  das  hwnens 

bu  hrebiayro  romfto 

bu  volume  .s.  radonal  de  tìieologia 

ba  ultima  parte  da  vita  cristi^ 

bua  arte  que  se  ebama  tisu  ditaminis  ^ 


mado  VoixiJbuUirio  de  todas  as  palavras  empregadas  na  Bibita,  e  terminalo  em 
1466.  Deu-lhe  o  nome  de  Mammothreptus  (chupa  na  teta),.que  se  corrompeu  na 
^inà,  das  escholas  em  Mamotret,  Momotrtdo.  No  romance  picaresco  bespanhol  La 
LoMona  andaluea,  os  capitulos  sSo  denominados  Mamotrecos;  na  lingaagem  Tulgar 
portngueza  ainda  se  designa  o  peda90  de  pao  com  a  palavra  motreco.  A  primeira 
edi^o  da  obra  de  Marchesini  é  de  l^yence^  1470. 

1  A  obra  de  Ludolfo  Cartnsiano,  multo  lida  em  Portugul  no  seculo  xv. 

*  Era  propriamente  o  que  modernamente  se  chama  om  Secretano,  com  nor- 
mas  de  correspondencia  e  modelos  epistolares.  Um  dos  mais  notaveis  livros  d*este 
genero  é  a  At9  dickuninia,  do  poeta  inglez  Qaufridi,  composto  para  as  escholas  ; 
e  em  espedal  a  obra  de  Boncompagno,  mestre  de  Grammatica  na  Universidade 
de  Bolonha,  An  dictaminis,  em  seis  livros,  em  que  trata  das  fórmas  das  eartas 
entro  estudantes,  para  a  curia  romana,  para  os  papas  ;  para  o  imperador  e  rei,  e 
d'estes  para  os  inferiores;  de  prelados  e  dos  sujeitos  &  jurisdic^So  ecclesiastica, 
e  por  fim  das  eartas  dos  nobres,  das  cidades  e  dos  privados,  com  um  appendice 
sobre  os  artìficios  da  phrase,  advertencias  aos  escholares  sem  educaQ^o,  e  lon- 
vores  da  seienda.  Na  Higtaria  liUeraria  de  Ihranfa  dta-se  (t.  xxu,  p.  27)  um  Ms. 
de  Maitre  QuiUaome,  intitulado  Ar»  dictatoria  on  An  dictammis;  è  uma  arte  de 
eaorever  eartas,  em  que  esige  seis  predicados:  a  Sauda^ào,  a  Captagào,  o  Pro- 
verbio^ a  Narragào,  a  PeUgào  e  a  Cond/usào:  «A  Sauda^to  ensina  em  que  termos 
se  deve  dirigir  a  cada  pessoa,  segundo  a  categoria  que  occupa.  Mestre  Guillaume 
n&o  se  esquece  mesmo  do  caso  em  que  se  tenha  de  escrever  a  um  judeu  ou  pagfto. 
A  Capta9£o  tem  por  fìm  ganhar  a  confian^a.  Por  Proverbios  entende  o  auetor  as 
nmilhancas  que  devem  ser  aproprìadas  ao  assumpto:  assim,  o  marinheiro  que 
procura  um  porto  centra  a  tempestade,  é  uma  boa  figura  para  o  caso  de  um  filho 
que,  batido  pela  miseria,  procura  um  refìigio  sob  o  tecto  patemal.  A  Peti^So  é  o 
qoe  se  pretende.  Finalmente,  a  Condosào  indica  as  fórmas  diversa  pelas  quaes 
as  carta»  derem  terminar.» 

A  Arte  dietaiofia  conservou-se  no  uso  aind-i  muito  depois  da  Edade  mèdi  a 


426  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

hu  volume  qne  se  chama  dimeta  maito  velho  de  purgaminho  * 
hu  volume  de  pena  mnito  velho  sem  titoUo.  vii. 

3.*  stanta 
sete  volumes  pequenos  multo  velhos  sem  sumarìos  soltos.      vn. 

Quarta  stante 

huas  duas  partes  em  dous  volumes  de  gentili  medicina  mareiliua^ 

hu  volume  de  medicina,  de  pena 

bua  parte  de  gravieU  petri 

hu  volume  de  pena  velho.  vi. 

As  B.  stantes 

volume  de  nicoldo  de  lira^  sobre  a  bribria  e  com  ella  seis  volumes 
muito  velhos  de  pena.  vn. 


em  Portugal,  oomo  se  ve  pela  C6rU  na  Aidea,  de  Francisco  Rodrigues  Lobo,  qne 
ahi  discute  as  fórmas  e  estylos  das  cartas. 

1  0  codigo  da  parte  sul  do  paiz  de  Gkdles,  mandado  organisar  por  920  por 
Howel  0  Bom  ao  doutor  em  leis  Blegywìrd,  em  tres  livros,  era  denominado,  se- 
gando a  terra  em  qne  vigorava,  DsmcTiAy  ou  a  Cralles  meridional.  (TaOliar,  Pré' 
eia  de  VHietoirt  dee  InatUuHons  dea  Peuplea  de  VEurope  occidentale  au  Moyen-Affe, 
p.  47.) 

*  É  a  obra  do  medico  italiano  Gentile  Gentili  {-\- 1348)  que  vivia  na  prìmeira 
metade  do  secnlo  ziy,  e  ffira  discipnlo  de  Thaden  de  Fiorenza.  As  suas  explica- 
9Òes  das  obras  de  Avicena  é  qne  Ihe  deram  a  reputa^fto,  posto  que  n^esses  com- 
mentarìos  nào  apparerà  a  verdadeira  no^Io  da  Physiologia  nem  da  Therapeutioa. 
Sio  numerosas  as  suas  obras  medicas,  porém  a  obra  de  que  se  trata,  attendendo 
a  que  constituia  duoi  partee,  pareoe-nos  ser  a  EaspoeiHo  cum  eommentio  Atffidinuh 
naehi  benedieHom,  Ubri  Ds  judiciis  vRULABUif ,  et  libri  Dx  pin^siBUS.  Daremberg,  na 
HisUma  das  Sdendo»  Medieae  (t.  z,  p.  296),  falla  dos  Conailia  de  G^tilis  e  da 
sua  importancia  scientifica;  «Entre  os  eruditos  e  os  rìcos  enoontram-se  tambemos 
Coneelhos  e  os  Commentarios  de  Gentilis  de  Foligno.»  (Ib.,  p.  315.) 

Mabsilius  designa  aqui  o  celebre  cirurgiSo  de  seculo  zv,  Marcellus  Cuma- 
nus,  auctor  de  ObeervafÒes,  em  que  ha  referendas  evidentes  &  syphilis.  (Assim  se 
esplica  as  duas  partes,  e  ao  mesmo  tempo  dois  volumes,  da  descrìp^So.) 

3  Ezimio  esegeta  do  seculo  xnr,  e  professor  de  Theologia  na  Universidade 
de  Paris  (1270  a  1840).  Pelo  conhecimento  do  grego  e  do  hebreu,  e  tendo  fie- 
quentado  as  escholas  dos  rabbinos,  tomou-se  de  urna  assombrosa  critica  interpre- 
tativa do  Velho  Testamento,  no  que  se  referia  4  parte  ethnographiea.  A  obra  de 


A  UVRARll  DO  SLUDO  427 


Ab  ft6Ì8  gtantag 


ha  volume  de  conselhas  de  Fedro  amearrano,  e  com  elle  sinquo 
volumes  de  livroB  de  porgamìnho  moito  velhos.  ^  yi« 


Setlma  stante 

ha  seasto  de  pena 

ha  volume  de  pena  chamado  spectdum  judidale 

oatro  volume  de  pena.  m. 

livros  B  e  vn  em  està  lauda 

•   Oytava  itante 

hua  mima  sabre  as  decretaes  de  purgaminho 

hu  volume  chamado  vitalem  de  Campania^ 

outro  livTo  de  pena  quo  nom  serve  de  nada  semente  hfis  items 

antigoB 
ha  sesto  de  pena 

huas  qestoes  de  pena  sàbre  as  decretaes 
hu  quarto  livro  de  huas  ordena^es  antigas.  vi. 


Nona  stante 


hu  digesto  novo  de  pena 


que  aqui  se  trata  é  a  PoMiUa  perpetuae,  sive  breria  Commentaria  in  universa  Bi- 
bita. Boma,  1471-1472,  em  5  voi.  Os  outros  livros  de  penna,  ou  manuscriptos,  sob 
0  nome  de  Lyra,  ser&o:  MoralitaUs  in  ir  Evangelia;  Commentaria  in  tv  libros 
SenUntiarum;  Quodlibeta  iheologica;  Traetatus  de  Animae  CIombìto;  Concordouiiia 
Evamgdicruim;  Sermones,  DièttncUonea  et  Gloesae,  qne  ficaram  inedìtos.  Do  poder 
critico  de  NicolÀo  de  Lira  dizia-se  nas  escholas  do  seculo  ziv: 

Si  Lyra  non  llraiiet, 
Totnf  mimdai  deliraat«t. 

1  Petrus  de  Ancharano  é  auctor  dos  Commentaria  in  ▼  libros  Deoretalium  et 
super  CUmentÙMU,  eum  schaliis,  5  voi.  E  tambem  do  In  Deeretales  Bepertorium. 
Morren  em  1415. 

*  Parece-nos  a  ani2o  dos  dois  nomes  Vital  de  Thebas  e  JosU>  de  Chapnis, 
que  colligiram  as  Extrauagantes  depois  das  CUmenttMu. 


42S  HISTORIA  DA  UNIVERfiDADG  DE  GOIMBRA 

hu  tratado  pequeno  de  castoea  ^ 

ho  prìmeiro  das  decretaes  Innocencio  sobre  elle  em  ha  volarne 

ha  aparato  de  gesalino  de  pena 

haa  parte  de  Joham  amdre  de  pena 

ha  tratado  de  pena  chamado  harhariamo 

ha  cademo  de  pena  sem  nenham  titoUo  qae  irata  qestoès 

ha  velame  chamado  herhyairo  estravagante»^  yni% 

Decima  stante 

haa  statata  de  pargaminho 

ha  qaademo  de  pena 

ha  codeguo  de  pena 

ha  velame  de  pena  d&  items 

oatro  qademo  de  pargaminho  de  pena.  B» 

Undecima  stanto 
seis  velames  em  està  stante  sem  samas  nem  titollos  nil  valent. 

VI. 


Dnodecima  stante 


Azam  em  ha  velame' 
haa  parte  de  nicolao 
ha  velame  de  pena 


1  Porventora  as  QuaeitianeB  sabbatinae,  de  Azo,  qua  cfrcalayain  manuscri* 
ptas,  e  que  se  repetiam  aos  sabbados  nas  escholas  de  direito  ;  ha  outras  referen« 
tes  aos  domingos,  eie.  Era  d'ette  afamado  jurìsoonsulto  qae  conia  o  proverbio: 

Ohi  non  ha  Ano 
no  TftdA  a  palaDco. 

>  É  0  Breuiarium  de  Bernardo  (1190). 

«Pouco  tempo  depois  de  Gradano,  o  direito  ecclesiastico  enriqaecea«se  con 
decretos  noyos  dos  concilios  oecumenicos,  e  em  consequenda  da  aaetoridade  po- 
tente de  que  gosava  a  Santa  Sé,  decretaes  e  rescriptos  se  espalharam  em  todas  as 
direc^oes.  Como  estas  pe9as  circulavam  iboladamente  fora  da  coUec^So  usoal,  cha- 
maya^se-lhes  EzTBATAOAirrBS.»  (Walter,  Mamtd  du  DroU  eoelesùutiqve,  p.  135.) 

3  É  a  obra  do  celebre  jurisconsnlto  Perdo  Azzo,  da  Universidade  de  Bolo* 
nha,  fallecido  em  1200.  0  resumo  das  suas  li^es,  feito  por  um  dos  seas  disila* 
los,  intitolava-se  :  Azonis,  Ad  singuku  l.  zn  Ubr.  Cod.  iuH  eommentarium  et  magntu 
apparaius. 


A  LIYRARIA  DO  STUDO  429 

ha  quarta  parte  dabade 
bua  segonda  parte  dàbade. 

B. 

aqui  estam  xxx  livroB  em  està  laada  xxx. 
acrecentaraose  mais  neste  emventairo  seis  volumes  de  livros  per  resti- 
taijaS  que  se  furtaraB  segundo  se  disse  .s.  1.^  parte  de  hoficis  e  tres 
partes  dabade  e  bua  vita  ocpi  e  ha  vocabtdarium  juris  e  por  que  de  to- 
dos  me  dou  por  entregue  eu  nicólau  lopez  o  escrepvi  asinei  aqui  oje 
Yin  junho  de  1  b^^xxxvi  anos 

nicolao 
lopes  bedel.» 

Gabriel  Pereira  encontrou  a  fl.  60  do  mesmo  manuscripto  um  ou- 
tro  inventario  mais  antigo,  que  julgamos  ser  o  fìmdo  da  livraria  da 
Universidade  de  Lisboa^  antes  de  enriquecida  com  o  legado  do  Licen- 
ciado  Diego  Lopes: 


tlnTentairo  dos  livros  da  livraria  deste  estudo  e  universidade  feito  per  os  pa- 
dres  luis  cardoso  e  joaò  landeiro  conselheiros  do  dito  estudo  e  per  mim 
bedel. 


primeiramente  achamos  na  dita  livraria  todos  os  ter90B  de  cano- 
nes  .s.  duas  decretaes  de  tortis  de  marca  grande  e  dous  de- 
cretos  de  tortis  hu  de  marca  grande  e  outro  porteli 

dois  seoctoB  hu  de  tortis  e  outro  de  pena 

hu  dtminico  a  segunda  parte  delle  sobre  o  sesto 

hu  graduai  sabre  as  dementinas 

archediaguo  sabre  o  decreto 

todos  OS  volumes  dabade  e  com  seis  conselhos  e  repertorio  diguo 
seu  repertorio 

hu  repertorio  de  antonio  cursete 

outra  parte  de  dominico  .s.  a  primeira 

hu  ftJ^  de  zcAareUis  sobre  as  decretaes 

quatro  volumes  de  joanes  andreas  nas  decretaes 

dois  volumes  de  anrigue  hoym 

tres  volumes  de  guUhdmo  espicìdador  com  seu  repertorio 

hu  volume  de  baldo  sobre  o  primeiro  das  decretaes 

fl.  60  V. —  cinque  partes  dabade  antiguo  e  na  primeira  parte  bua 


430  HISTORIA  DA  UNIYERSIDÀDE  DE  G0IM6RA 

obra  de  antonio  de  biUrio  .8.  o  titolo  da  translcttùme  epor. 

(episooporum)  usque  ad  titulom  de  offici  *^ 
bua  novella  de  Johanea  andreàs  sobre  a  terceira  parte  das  cZ^cre- 

taea  em  purgaminho  de  pena 
tres  partes  de  bartochinos  .s.  repertorios 
outra  lettura  de  baldo  sobre  as  decretaes  ìacìpiUmargarida 
dona  volumes  de  dominico  sobre  o  eexto.'h  ^ 

Por  estes  inventarios  se  fórma  uìna  idèa  do  estado  da  nossa  litte- 
ratura  jnridica  na  primeira  metade  do  secolo  xvi;  havia  urna  grande 
pobreza  de  livros  impressos,  e  a  typograpbia  achava-se  profondamente 
atrazada,  comò  o  confessa  André  de  Resende  na  Oratio  prò  rostrisy  de 
1534^  e  em  oma  carta  de  16  de  mar9o  de  1547  a  D.  JoSo  de  Castrò» 

Em  carta  de  4  de  jolho  de  1541  mandoo  escrever  o  rei  icerca 
da  Livraria  da  Universidade:  «E  qoanto  aa  Livraria  qoe  mandei  pera 
essa  Universidade  e  dizees  que  até  bora  se  nH  pos  nas  scholas  avendo 
disse  moita  necessidade^  vós  vos  informai  de  NicoUo  LeitSo,  qoe  le- 
voo  OS  ditOB  livros,  e  vede  as  casas  dos  pa90s  e  escolhee  a  qoe  milhor 
e  mais  aota  vos  parecer  pera  estar  a  dita  Livraria,  e  eo  escrevo  a 
Vasco  Ribeiro  qoe  voi  de,  e"  mando  provisSo  pera  o  Rd.®'  da  Univer- 
sidade fazer  as  estantes  pera  os  ditos  livros  estarem  pela  ordenan9a 
que  vos  bem  parecer.  d  Por  oste  docomento  se  ve  qoe  a  Livraria  ainda 
estava  a  cargo  do  Recebedor  da  Universidade,  comò  fòra  de  costome 
em  Lisboa. 

A  Livraria  do  Stodo  constava  principalmente  de  obras  de  Direito 
canonico  e  dos  seos  complicativos  commentadores,  e  das  collec98es  do 
Direito  romano,  e  dos  principaes  civilistas  da  Eschola  de  Bolonha,  corno 
Bartholo,  Baldo  e  Azze.  O  Direito  feodal  estava  decahido  em  completo 
esqoecimento,  em  consequencia  das  transforma^Ses  sociaes  do  reinado 
de  D.  JoSo  II,  e  da  nova  codificaySo  segondo  o  espirito  das  leis  romsi- 
nas  na  OrdenoQSo  Mcmuelina.  NSo  havia  portante  a  necessidade  de  con- 
formar estes  dois  systemas  de  legislagSo  ;  mas  o  habito  dos  antigos  jo- 
rìsconsoltos,  que  exerceram  esse  processo  de  concilia9So,  prevaleceu 
na  jorisprodencia,  entregando-se  os  dootores  ao  trabalho  de  um  eccle- 
tismo  banal,  ora  confrontando  leis  romanas  com  leis  romanas,  ora  ex- 
plicando  as  contradÌ98e8  dos  tratadistas,  e  conciliando  as  suas  opiniSes^ 


1  E  o  anctor  da  obra  Monarckae  super  v  lUn'OB  Deerttalium  CommeniariL 
>  Ap.  Boletim  de  bibUographia  por(Mguasa,  t  ii,  p.  193  a  19a  (Coimbra,  188 


A  LIVRARIA  DO  STUDO  431 

para  as  converterem  em  prìncipios  imperativos.  Està  època  da  jurìa- 
prudencia  era,  corno  Ihe  chama  Villa  Nova  Portugal,  o  reinado  da  Opi- 
niSo.  Os  commentadores  eram  tanto  oa  mais  importantes  do  quo  a  lei 
qae  glossavam:  cOs  auctores  qae  pertencem  ao  reinado  de  D.  JoSo  m, 
corno  Jeronymo  Osorio,  Navarro,  sen  discipolo  Pinello,  Costa,  Gouvèa, 
mostram  este  gosto  da  Jarìspnidencia — conciliar  as  Leis  romanas  en-  * 
tre  si,  e  conciliar  as  OpiniSes:  Bartholo,  Baldo,  Alberico,  Anchar  e 
Decio  sSlo  citados  corno  chefes;  etc.»  ^  Em  ama  carta  de  D.  JoSo  in, 
de  31  de  Janeiro  de  1539,  estabelece-se  comò  se  deve  evitar  no  ensino 
o  alarde  de  opinSks^  dizendo  a  que  se  reprova  oa  approva,  e  allegando 
dois  oa  tres  doutores.  No  emtanto  urna  grande  revola9ào  se  ia  operar 
no  estado  da  jurispradencia,  na  Europa;  cabia  a  gloria  d'essa  iniciativa 
ao  portugnez  Antonio  de  Gouvèa,  o  rivai  de  Cajacio,  e  seu  companheiro 
na  Universidade  de  Tolosa.  Debalde  tentoa  D.  JoSo  in  attfahil-o  para 
as  novas  reformas  que  projectava;  G-oavea,  costamado  à  liberdade  de 
espirito,  nlo  podia  viver  intellectualmente  fora  da  atmosphera  da  Franga. 
As  doatrinas  reformadoras  de  Antonio  de  Goavéa,  emquanto  à  Juris- 
pradenda,  era  desbravar  o  texto  das  leis  romanas  da  vegetagfto  para- 
sitaria  e  obscurecente  dos  interpretes,  abandonando  as  suas  opinSks  e 
descobrindo-lhe  por  um  processo  historìco  o  seu  verdadeiro  sentido  pri- 
mitivo. Para  elle  a  Philosophìa  e  a  Historia  eram  o  poderoso  criterio 
para  comprehender  ama  civilisagSLo,  explicando  por  ella  as  saas  leis 
civis.  O  mesmo  espirito  revelou  na  lacta  a  favor  de  Aristoteles  centra 
Fedro  Ramus:  vindicar  a  racionalidade  do  grande  philosopho,  restau- 
arando  philosophica  e  historìcamente  o  sea  texto  paro  das  sabtilezas  dos 
seas  commentadores,  qae  imperavam  nas  escholas.  Na  reforma  dos  es- 
tudos  jaridicos,  Antonio  de  Goavèa  atacoa  o  Bartholismo  ;  sobre  este 
methodo  escreve  Caillemer,  professor  de  direito  em  Grenoble  :  cO  qae 
distingaia  o  ensino  de  Gouvèa  era  a  originalidade  do  seu  methodo,  que, 
ao  regimen  intolerante  das  auctoridades  de  uma  outra  edade,  substi- 
tuia  o  principio  do  livre  exame,  e  sustentava  a  causa  da  independen- 
eia  doutrinal.  Afogadas  por  glossas  que  geragSes  inteiras  tinham  amon- 
toado  sobre  as  leis  de  Justiniano,  ellas  quasi  que  estavam  obliteradas. 
O  jurisconsulto,  na  sua  n^ligencia  pela  obra  primitiva,  cujos  motivos 
Ihe  escapavam,  hesitante,  no  meio  de  um  dedalo  de  opiniSes  contra- 
dictorias,  sobre  o  caminho  que  devia  seguir,  abdicava  a  maior  parte 
das  vezes  diante  da  forga  do  numero  ;  e  fossem  quaes  fossem  as  resis- 


1  Memorias  de  LiUeratura,  da  Àcademia  das  Sciencias,  t.  v,  p.  iOL 


432  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  COIMBRA 

tencias  do  &eu  espirito,  corno  os  juizes  do  seculo  de  Valentimano  iii  e 
de  Theodosio  n,  elle  Bubmettia  o  sèu  pensamento  a  urna  aviltante  es- 
crayidSo. — Nfto  eram  os  Bomanos  mais  segoros  gnias  do  qae  os  glos- 
sadores?  Sustentar  qne  a  leitura  das  soas  obras  immortaes  n&o  podkt 
por  si  so  esdarecer  a  sna  legisla$Xo,  nSo  era  confessar  a  fraqueaa  e 
impotencia  do  seu  espirito?  0  Direito  romano  tinha  por  muito  tempo 
subsistido  sem  interpretes,  e  Jostìniano,  comò  todos  os  legisladores, 
pensava  qae  os  commentarios  prejadicavam  mais  do  que  aproveitavam 
à  sua  obra.  Regressemos  entfto,  dizia  Antonio  de  Gouvéa,  ao  estudo 
paciente  dos  jarisconsultos  de  Roma;  tentemos  dissipar  as  trevas  que 
pairam  sobre  suas  obras;  evitemos  estas  sabtilezas  qae  falséam  o  juizo, 
e  que  os  émulos  de  Accursio  encastellaram  por  fórma  que  nem  tres 
edades  de  Nestor  chegariam  para  conseguir  dissipal-as;  entSo  o  Di* 
reito  romano  brilharà  com  um  novo  esplendor  e  em  toda  a  sua  luz.»* 
Està  tendencia  dos  jurisconsultos  eminentes  da  Renascenga  para  o  li- 
vre  exame  dos  textos  romanos  tomava-se  suspeitosa,  e  os  sectarios  de 
Bartholo  e  do  imperio  das  cpinides  deixavam  correr  o  adagio:  bonus 
jureconsuUus,  ergo  malus  chrùtianus.  Por  està  explorafSo  do  fanatismo 
religioso  era  combatida  a  renoya9So  da  jurisprudenda  no  seculo  xvi. 
Isto  nos  explica  o  atrazo  scientifico  revelado  pela  Livrarìa  do  Studo 
da  Universidade. 

A  sciencia  medica  acha-se  ali  inferiormente  representada;  com- 
tudo,  recompondo-se  a  Libraria  de  medicina,  que  possuia  o  antigo  lente 
da  Universidade  o  Doutor  Garcia  d'Orta,  colligindo  as  numerosas  ci- 
tagSes  dos  seus  CoUoquios  dos  Simplices,  fórma-se  uma  idèa  da  elabo- 
rasse scientifica  da  prìmeira  metade  do  seculo  xvi.  Como  na  reforma 
dos  estudos  da  Jurìsprudencia,  tambem*  na  Medicina  se  dea  o  impor- 
tante traballio  de  libertar  o  x^rìterìo  da  auctorìdade  dos  commentadores 
que  pretendiam  conciliar  as  opiniSes  de  Galeno  com  a  dos  Arabes; 
tambem  os  humanistas,  pretendendo  restaurar  o  texto  de  Hippocrates, 
antepondo-o  aos  interpretes  arabes,  exaggeravam  a  erudisco  &  custa 
das  investiga^Ses  experimentaes  (da  anatomia,  physiologia  e  clinica.) 

O  Doutor  Garcia  d'Orta,  comò  medico  e  escrìptor  scientifico,  appa- 
rec&*no8  entro  estas  duas  correntes,  a  dos  concUiadores,  ou  partidarìos 
dos  Arabes,  e  a  dos  eruditos  gredstas,  conservando  a  sua  independen- 
cia  montai  pela  preponderancia  qne  ligou  aos  estudos  da  Botanica,  oomo 
meio  de  desenvolver  a  materia  medica  e  ampliar  os  recursos  da  thera- 


1  Caillemer,  Étuék  sur  Antoine  de  Govèa  (1M)5-1566),  p.  27. 


A  LIYRARIÀ  DO  STUDO  433 

peutica.  CoUigindo  pois  os  nomea  dos  auctores  citados  nos  ColloquioB, 
systematìBam-Be  facilmente  em  tres  grapos,  segnndo  a  marcha  da  sden- 
cia  no  meado  do.seculo  xvi: 

Ob  Gbegos,  OS  Arabes  e  os  Modernos. 

1.^ — Keonimos  com  os  escriptores  gregos  os  romanos,  juntando 
aos  seuB  nomea  os  titulos  das  obras,  segando  as  edi^Ses  correntes  na 
època  do  Doutor  Qarcia  d'Oria; 

Bippocrates^ 
Theophrasto^ 
Paulo  Egineta^ 
Dioacorides  * 
Aetius^ 
Galeno  * 
Celso  ^ 


1  Cita  o  aphorismo  6.^  do  livro  i.  Servimo-nos  do  trabalho  bìbliograpMco 
do  sr.  conde  de  Ficalho,  Garda  d'Oria  e  oseu  tempo,  p.  285:  Hipp.  Coi  Opera  per 
Fabium  Calvum,  etc.  Basileae,  1526.  E  Hipp.  apkorismi  cum  Galehi  commeniariis, 
interprete  Nicolao  Leoniceno,  ParÌBiis,  1532. 

2  Tbeophrastì,  De  Historia  et  De  cavata  plantarum,  libroB  ut  latinos  legere- 
muB,  Theodoras  de  Gaza,  etc.  Trevieii,  1483. 0  conde  de  FiCalho  suppoe  que  Orta 
oonheceria  Tbeophrasto  pelas  referenciàs  dos  commentadoreB  Laguna,  Brasavola 
e  outroB  naturalistas. 

'  É  o  auctor  do  resumo  das  obras  de  Oribase.  P.  Aeoiretji,  de  re  medica  li' 
bri  aeptem,  Parigiis,  1532;  e  P.  Axq,  pliarmaca  aimplieia,  Othone  Brunfelsio  inter- 
prete, Argentorati,  1510. 

*  A  sua  unica  obra  existente,  sobre  Materia  medica,  foi  impressa  em  Veneza 
por  Aldo  Manudo,  em  1499  ;  ha  outra  edi^So  de  1518. 

^  Medico  da  córte  de  Byzancio,  compilador  do  que  hayia  de  mais  importante 
na  medicina  dos  aniàgos:  Teirabibloa,  Basilea,  1533  e  1535. — AxTn  AjinocHsin 
(se  Amideni)  medici  de  eognoacendia  et  eurandia  morbia  Sermonea  aexjam  primum 
in  lucem,  Basileae,  1513,  in-foL  Boerhave  considerava  a  obra  de  Accio  tSo  neces- 
saria ao  medico  comò  as  Pandectas  de  Justiniano  ao  jurisconsulto. 

*  Foram  as  obras  de  Galeno  publicadas  pela  primeira  vez  em  latim,  em  dois 
Yolumes,  Veneza,  1490.  Outra  edi^  em  folio,  de  1541.  Orta  estudaya  de  prefe- 
rencia  os  tratados  que  se  referiam  &  materia  medica  e  pharmada;  cita  o  De  aim* 
plicibua  Medicamtntia,  dedicado  ad  Patemiamim,  com  a  fórma  abreviada:  «ad  Pat. 
cap.  5.» 

"^  A  primeira  edi^So  do  tratado  De  Medicina  de  Celso  é  de  Fiorenza,  fol.  de 
1478,  por  Barth.  Fontius.  Depois  d'està  seguiram-se-lhe  na  Europa  mais  de  trinta 
edi^oes. 

HXST.  mi.  28 


434  HISTORIA  DA  UNIYERSIDÀDE  DE  GOIBIBRA 

Serapio^ 
Aciuarius  ' 
Plinio.^ 

2.^ — Os  livros  arabea  de  Medicina  eram  muito  conhecidos  em  Hes- 
panha,  corno  notou  Clenardo,  e  iste  nos  ezplica  a  causa  da  saperìoii- 
dade  dos  estados  medicos  em  Salamanca  e  na  Univerùdade  de  Àlcali, 
fireqnentados  por  Qarcia  d'Orta.  Nfto  se  infere  da  leitora  dos  CoUq- 
quio8  que  o  sabio  lente  conhecesse  a  lingua  arabe  ;  comtudo  obedeceu 
a  essa  corrente  doutrinarìa,  corrigindo-a  ou  fortificando-a  com  as  suas 
observa93e8  directas  na  India.  Eis  os  principaes  auctores  arabes  que 
abonam  as  suas  descripsSes  de  materia  medica: 

Averroes  ' 
Avicena  ® 


1  Um  dos  melhores  representantes  da  Medicina  dos  romanos;  Daremberg 
tem  melhorado  alguns  dos  seos  Tratados  e  achado  outros  que  estavam  ignorados. 
(Histoire  dea  Soiences  médicalea,  1. 1,  p.  190.) 

^  Medico  empirista  da  eschola  de  Alexandria,  julgado  por  Celso  e  Galeno. 
Orta  cita  nm  outro  medico  Serapio  (Serabi)  da  eschola  dos  Arabes. 

'  Medico  do  Baixo  Imperio;  o  nome  de  ActuariuB  era  o  titulo  dado  aos  me- 
dicos da  córte  de  Constantinòpla.  Na  obra  MtthoduB  Medmdi^  libri  sex,  impressa 
em  Veneza  em  1554,  falla-se  na  agua  distillada,  corno  a  de  rosas,  e  do  uso  do  senev 
da  coassia  e  do  manna.  De  MedieamerUorum  eompositione,  Parisiis,  1539. 

*  C.  PlinìuB  Secundos,  Historia  naturalis,  Veneza,  1469  ;  està  obra,  que  Lit- 
tré  compara  com  o  Cosmos  de  Humboldt,  em  rela^So  &  syntbese  scientifica  de  urna 
ciyilisa^o,  era  ama  das  que  o  Doutor  Garda  d'Orta  citava  com  mais  frequencia 
(trinta  e  tres  yezes)  e  a  que  ligava  grande  auctoridade. 

O  Doutor  Garda  d'Orta  cita  tambem  no  seu  livro  auctores  dassicos,  philo- 
sopbos,  poetas  e  historiadores,  o  que  nos  evidencda  a  sua  superior  cultura  buma- 
nista:  Ariatoteles,  Platào,  Herodoto,  Strab&o,  OmdiOf  Terenoio,  Santo  Agaitinho. 

^  Garda  d'Orta  cita  das  obras  do  grande  medico  arabe  a  Kitab-el'KuUiygat 
(o  Livro  de  tudo),  conheddo  nas  escholas  pelo  nome  de  ColligeL  Constava  a  obra 
de  sete  partes:  l.«  Anatomia;  2.*  Saude;  3."  Doen^as;  4.*  Signaes  da  Saude  e  das 
Doen^as;  5.*  Alimentos  e  Medicamentos;  6.*  Regimen  da  Saude,  7.*  Tratamento 
das  Doen^as.  A  traduc^fto  latina:  Incipit  liber  De  Medicina  averoyè,  qui  dicitur 
coliget,  Yenetiae,  1482. 

^  A  prindpal  obra  de  Avicena  é  Kitab-el-kanuni  fi-t-tibbi  (Livro  do  Canon 
da  Medicina),  conhecido  pela  traduc^ao  latina,  feita  por  Gerardo  de  Cremona,  com 
o  titulo  Canon  Medicinae,  sem  data,  nem  logar  de  impressSo.  Segundo  Cboulant, 
fizeram-se  qnatorze  tradnc^oes  do  Canon  antes  do  firn  do  «eculo  xv  e  treze  no  se- 


A  LIVRÀRIÀ  DO  STUDO  435 


Avenzoar^ 
Alcanzi^ 
Alhatari  ' 
Mhazar^ 
Isac^ 

HàUrodoam^ 

Serapiào.  • 


eulo  xvi.  0  Doutor  Oria  cita  com  frequencia  ob  commentadores  do  Canon,  taes 
comò  Jacob  De  Partìbos  (CcUoquioB,  £i.  8),  Matheus  de  Gradis  (erradamente  Gra- 
dibas)  e  Andrea  Alpago  Bellonense  (ib.,  fi.  20,  45,  53,  etc.),  Geraldo  Cremonense 
•  ^b.,  fl.  48  y),  provavelmente  a  traduc^ào  supracitada  com  a  revisSo  de  André 
Alpago. 

1  A  obra  de  Abenzoar,  citada  por  Orta  (fl.  12  e  50  y),  é  yersfto  latina  do  Ki-- 
taìln^d'TeÌ8Ìr-fi'Mad(maUina-teéUnri  (Livro  da  AsBistencia  no  Tratamento  e  Regi- 
gimen).  £  mùs  conhecido  pelo  nome  de  Teisir  (a  A8aÌ8tencia).De  uma  tradao^o 
^ebraica  servia-se  Pathavinus  para  a  sua  traduc^io  latina,  com  o  titalo  Aé^yrnen- 
tum  de  medda  et  regtmene,  impressa  em  Veneza  em  1490.  Janto  com  o  Teisir  tam- 
•bem  se  Imprimin  moitas  vezes  o  AnHdotario,  attriboido  a  Abenzoar. 

*  É  o  celebre  Alkindi,  auctor  De  medecinarum  eompoaitarum  gradibus  invea- 
Ugandia  ItbeUus,  qne  pretendia  preparar  os  remedios  conforme  as  regras  da  Arith- 
^metica  e  da  Musica.  Cardan  considerava-o  um  dos  espìritos  subtis  do  mundo. 

3  Elminthar?  qne  escreveu  sobre  bygìene. 

^  Porventura  Ali  AbboM. 

^  A  obra  do  medico  judeu  Isac  j&  se  encontrava  na  Livraria  do  Infante  Santo 
(p.  280).  Ha  uma  edi^  latina:  Omnia  opera  Ysaak  in  hoc  volumine  coniinerUa,  etc. 
Lugduni,  1515.  É  um  dos  grandes  auctores  de  Encydopedias  medicaB,  comò  Mesue, 
Bhases  e  Serapion,  os  mais  vulgarisados  na  Europa  por  todo  o  seculo  xt. 

^  Masoniab,  conbecido  pelo  nome  de  JoSo,  em  contraposÌ9So  a  seu  irmSo  Mi- 
guel ;  mnitos  dos  seus  numerosos  tratados  foram  traduzidos  e  publicados  separa- 
damente  no  seculo  xy  :  De  ConsolaUone  medecinarum  aoltUitxirum,  etc.  MilSo,  1473; 
Qrabctdin,  quod  est  aggregoHo  et  antidoiarium  eleetuariorum,  sem  legar  nem  anno. 
Ha  uma  traduc^fto  das  obras  completas  de  Mesue,  de  Veneza,  em  1471,  cm  3  voi. 
foL  Imperava  na  medidna  europèa.  Cita  Mesue  o  antigo.  (Mansarunge,  fl.  69  e 
184  y.) 

^  Um  dos  commentadores  de  Galeno,  cujos  trabalhos  vém  na  collec^io  cha- 
mada  Articella;  escreve-se  Haly  Rodoam. 

*  Mohamed,  conhecido  pelo  nome  de  Razes,  da  sua  terra  natal;  a  sua  obra 
de  Medicina  intitula-se  El  Manéoun,  por  ser  dedicada  a  um  kalifa  de  Bagdad,  Al- 
manzor.  Libri  ad  Almansorem,  liber  di-visionum,  dejuncturia  de  morbi»  infanium,  etc. 
MilSo,  1481.  Garda  d*Orta  dta  o  ad  Almansorem,  e  dà-lhe  o  nome  Ibn-Zacaria,  a 
qne  chamam  Benzacaria.  (CoUoquios,  fl.  5  e  7.) 

9  Medico  judeu,  Serabi,  de  que  fizeram  Serapio  e  Serapion.  E  auctor  do  tra- 

28* 


436  HISTOBIA  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIBfBRA 

3.^ — Entro  os  escrìptores  modemos,  o  Doutor  Garcia  d'Orta  cita 
08  que  commentaram  as  obrasde  materia  medica  dos  gregos  e  dos  ara- 
bea;  mesmo  na  India  ostava  ao  corrente  de  todas  as  obraa  da  sua  os- 
pocialidade  quo  se  publioaram  na  Europa  desde  1534  a  1560  : 

MaOieua  Platearius^ 
Simào  de  Cordo  ^ 
Maiheus  Sylvaticus^ 
Chrktophorus  de  Honestìa^ 
Hermoldo  Barbarus^ 
Theodoro  de  Oaza^ 
Antonius  Quainerus'^ 


tado  de  materia  medica  Liber  Serapionis  aggregatus  in  medieinia  simplicibue  trana- 
laHo  SinumU  Jcumentu  interprete  Abraham  Judaeo.  Mil2o,  1473. — Junto  com  està 
obra  tém-se  impresso  as  obras  de  Jo&o  Serapio  (Jahiah  ben  Serabi),  coxihecido 
pelo  nome  de — senior.  E  nm  dos  escrìptores  de  materia  medica  mais  citados  por 
Orta^pelo  menos  qoarenta  e  cinoo  yeses. 

1  Medico  salernitano,  auctor  de  um  catalogo  alphabetico  de  drogas,  conhe. 
cido  pelo  nome  vulgar  de  Circa  insicms:  Mathei  Platearii  liber  de  Hmplici  medi- 
dna  9.  Circa  insana,  Lugdnni,  1512. 

'  Auctor  da  Clavia  aancUionis,  catalogo  de  drogas  em  ordem  alphabetiea,  im- 
presso em  Yeneza  em  1514.  Orta  chama-lhe  SimSo  Genuense  (fl.  219). 

3  Ghurcia  d*Orta  cita  a  obra  d^este  escriptor  com  o  tìtolo  de  Pandeeta  (fl«  37  f) 
e  Pandetairio  (fl.  73  y,  81  y,  83,  99  y  e  122  y  dos  CoUoquioa).  Nas  edi^oes  do  se- 
colo XT  era  o  titolo  da  obra:  Liher  pandeetarum  medicinae  e  Opua pandectarum 
Mathsei  Sylyatìci,  cum  Simone  Janoenais,  ete.  1498.  Ha  edi^oes  de  1507, 1526,  etc 

*  Commentador  da  obra  de  Mesoe  ;  a  sua  obra  anda  jonta  à  do  medico  arabe 
impressa  em  1480  e  1490. 

*  Um  dos  grandes  bumanistas  da  renascen^  italiana,  e  celebre  pelos  seni 
oommentarios  critìcos:  CaatigaUonei  Plinianae  Hermolai  Barbari,  Aqoilensis  pon- 
tificis,  Bomae,  1492.  Caatigaiionea  aeetmdae,  etc.  Garcia  d^Orta  cita  a  obra  de  Te- 
mistìo  (fl.  50  y)  tambem  emendada  por  Hermol&o  Barbaro:  TusiosTn  peripateUei 
ìuaidiaaimi  Paraphraaia  in  Ariatatelia  poateriora  et  Phyaioa;  in  Ubroa  item  de  Anima, 
memoria  oc  reminiacencia,  aomno  et  vigilia,  inaomniia  et  divinatione,  Yeneza,  1480. 
DxosoouDxB  AxAZÀXBi  de  medicinali  materia  libri  y  iatinitate  primom  donati  ex  yer- 
sione  Hermolai  Barbari,  etc  Yeneza,  1516. 

*  Pbilologo  bjzantino  refugiado  na  Italia  no  secolo  xy;  entro  as  soas  nome» 
zosas  tradoo^des  do  grego,  exercen  oma  grande  infloenda  na  Benascen^a  sdentì- 
flca  a  soa  tradoc^io  de  Theophrasto:  Hiataria  planiarum,  libri  x,  e  De  oauaiaplan' 
tonim,  libri  yi.  Treyise,  1488. 

"^  Medico  pratico  do  meado  do  secolo  xy,  aoctor  do  Opuepraeelarvm  adpraa^ 
Logdoni,  1584.  Daremberg,  na  Hiataria  daa  Scieneiaa  medicaa,  1. 1,  p.  845,  trai  um 
remedio  de  Goaineros  oontra  a  picadella  yenenosa,  eonsistindo  em  oollocal-a  no 


▲  LIVRARIA  DO  STUDO  437 


Sympharien  Champier^ 
Michael  Savonarda^ 
Nicolaua  Leonieenus^ 
Johannes  Màfuirdua^ 
Johannes  BueUiua^ 
Amato  Lusitano^ 
Valeriua  Cordua'^ 


aniuB  de  uzn  frango,  previamente  depennado  n'esse  legar,  e  apertando-lhe  o  bico, 
para  elle,  tendo  de  respirar,  sugar  o  yeneno  pelo  anns. 

1  Celebre  medico  francez  (1422-1533),  mais  vaidoso  do  que  eabio»  e  aactor 
de  obras  eztravagantes.  Ghurcia  d'Orta  cita-o  a  proposito  do  lignum  alata,  porveo- 
tara  referido  no  Myroer  dea  apoìhiquairea,  pina  Lea  Luneotea  dea  cyrurgiena,  Lyon, 
in-8.«  goth.  (sem  data);  Paris,  1539. 

^  Jo3o  Migael  Savonarola,  medico  da  Universidade  de  Ferrara,  tio  do  cele- 
bre dominicano  Savonarola.  Além  de  outras  obras,  escreveu  Praelica  de  aegriiU' 
dinibua,  a  capite  uaque  od  pedea.  Colli,  1479. — De  balmia  amrdbua  ItaHae  aieque  U^ 
tàua  orina.  Ferrara,  1485. — Pratica  canonica  de  febtibua,  de  pulaibua,  de  urinia,  Ye- 
neza,  1498. — De  compoaitione  mediafiarmn.  Strasburgo  1533,  in-4.<^  Tem  o  de£aito 
das  idéas  supersticiosas  da  sua  època,  e  das  subtilezas  scholastìcas. 

'  Um  dos  grandes  commentadores  da  Bena8Cen9a,  medico  e  philologo,  e  por 
isso  explicando  superiormente  os  dassicos  gregos  e  latinos.  De  PlinU  et  aliorum 
medicoTum  in  tnecitctna  errorihua,  Ferrara,  1492,  in-4.<* —  OpuaeuUi  medica.  Basi- 
lea, 1531. 

4  Celebre  botanico  italiano  (1462-1536),  que  nas  suas  Epiatoku  medicinaUa 
primeiro  combateu  os  Arabes  comò  plagiarios  inintelligentes  doe  Gregos. — Spia- 
tolarum  medidnalium  Libri  zx,  etc.  cum  ^tudem  in  Meaue  aimplida  et  compoaita 
aamotationea  et  cenawrae.  Basileae,  1540. 

&  Jean  Buel  (1479-1537),  decano  da  faculdade  de  medicina  de  Paris,  medico 
de  Francisco  i,  auctor  da  importante  obra  De  natura  aiirpium  libri  m.  Paris,  1536. 
-Garcia  d*Orta  cita-o  quinze  vezes,  e  refere-se  a  està  obra  Da  natureta  daaplantaa 
e  a  ama  tradnc92o  de  Dioscorìdes. 

*  Tambem  conbecido  pelo  nome  de  JoSo  Bodrìgues  de  Castello  Branco,  de 
origem  judaica;  teve  grandes  polemicas  com  o  celebre  Mathioli,  sendo  por  isso 
denandado  &  Inquisisse.  Escreveu,  além  de  outras  obras,  o  conunentario  a  Dios- 
eorides  In  Dioacoridia  de  materia  medica  libroa  v,  enumeraUonea.  Veneza,  1553.  Orta 
cita-o  urna  vez  so  (fi.  61  i\ 

"^  Um  dos  melbores  botanicos  do  principio  do  seculo  zvi,  discipulo  de  Me- 
lanobton  nas  li^oes  sobre  os  Alexipharmaea  de  Nicandro.  Emprehendeu  a  reforma 
da  Pharmacia,  fazendo  ezplora^òes  directas  pela  Europa  meridional.  A  sua  morte 
prematura  foi  urna  perda  enorme  para  a  scienda.  Os  seas  papeis  foram  coUigidos 
por  C.  Gesner  em  um  volume,  contendo,  além  de  ontros  tratados  :  AwnotaHonea  in 
Dioacoridia  de  materia  medica  libroa  v,  em  Strasburgo  em  1561.  Garcia  d'Orta,  re- 
ferindo-se  a  està  edi^So  de  1561,  diz  de  Valerio  Cedro  «diligente  escriptory  que 
afferà  eaoreveu  sobre  Dioscorìdes  omas  addi^des.»  N2o  sabia  que  o  escrìptor  qua 


J 


438  msTORU  da  universidadb  db  goimbra 

Pietro  Andrea  Mattioli 
André  Laguna^ 
Leonardus  FuchsiuB^ 
Antonio  Musa  Brasavola^ 
Ferdinandua  de  Septdveda^ 
Vescdius  ^ 

Ulrich  von  Hutten^ 
Antonio  de  Lebrija^ 
Pie  de  la  Mirandola^ 


admirava  fallecera  em  1544,  sendo  a  sua  obra  posthuma.  Comtudo  vé-se  qne  em 
Goa  segiua  o  movimento  scientifico  europea. 

1  Commentador  do  Dioscoridefi  cum  ampliisimi  diécorsi  e  commenti,  Yeneza^ 
1544.  Milito  criticado  pelos  eruditosi  mas  notayel  pelas  informa^oes  sobreas  plaa- 
tas  da  Asia  Menor,  que  Ihe  communicou  o  medico  Quakelbeen,  embaixador  do  im* 
perador  da  Allemanha  em  Confitantinopla.  (Hoefer,  Histoiredela  Botaniqut,  p.  106.) 
Orta  chama-lbe  Senes,  e  Senense,  da  terra  da  sua  naturalidade. 

2  Estudou  medicina  em  Paris  e  Toledo;  fez-se  oonhecido  pelos  seus  commen» 
tarios  a  Dioscorides :  AnnotcUtones  in  Dioscaridem,  etc.,  Lugduni,  1554;  e  pelati*^ 
duc^io  castelhana.  Lutrodnziu  o  systema  das  gravuras  das  plantas  em  cobre. 

3  Medico  notavel  pelo  tratamento  da  suette,  ou  epidemia  miliar,  que  invadia 
a  Inglaterra  em  1529  ;  tomou-se  celebre  nos  estudos  botanlcos  pela  De  hittoria 
etirpium  commentarti  inaignis,  Basileae,  1542.  Orta  escreve-lhe  o  nome  Fuchno 
(fl.  219  y  e  224)  e  Fucio  (fi.  191  y). 

*  Discipulo  de  Manardi,  receben  de  Francisco  i  o  titulo  de  Mttaa,  por  oaosa 
de  umas  theses  que  sustentou  em  Paris.  Escreveu  Eoxanen  omnium  timpUcium  me- 
dicamentorum,  Bomae,  1536;  e  De  sirupis,  Lugduni,  1540.  Orta  cita-o  com  o  nome 
de  Antonio  Musa  umas  vinte  e  tres  vezes. 

^  Escreveu  o  Manipultu  medicinarum,  in  quo  continentur  omnes  medicinaef  tam 
iintpliees  quam  eompositae,  secundum  quod  in  utu  apud  dootore»  hahenL%ur:  utiU$mè* 
dieis,  neonon  aromatariit,  nuper  ediius  Salmanticae,  1528. 

*  Citado  a  fl.  178  f  dos  CoUoquios,  referindo-se  &  Epistola  rationem  modmn 
que  propinandi  radieig  Chinae  deeocti,  quo  nuper  invietisiimus  Carlo$  V  impenUor 
USU8  est  Venetiis,  1546. 

^  Nos  Colloquioi  apenas  allude  a  Ulrich  von  Hutten  nas  palavras  «bum  £• 
dalgo  alemà  escreve  bum  livro  de  seus  louvores  (o  guaeam,  contra  a  sypbilia)  em 
multo  copioso  estilo  e  mui  puro  Latin ...»  (Fl.  178  f.)  É  o  tratado  De  Ouaiaei  me- 
dieina  et  morbo  gàllico  liber  unus,  Moguntiae,  1519. 

*  Humanista  hespanhol,  que,  comò  os  italianos  da  Renaseen^a,  ooadjuvoa  a 
lestaura^So  dos  teztos  dassioos  das  obras  sdentifieas.  Escreveu  o  Lexicon  artie 
fnedieamentariae.  Compiuti,  1518.  Orta,  a  fl.  16  y,  cita  o  Dioetofiartttin  loHno-hUpa^ 
maum,  de  1492. 

^  Qarcia  d'Orta  cita  a  obra  Apologia  J.  Pici  Mircmdulani,  Coneordiae  oomir 
09, 1489.  Chama-lhe  Pioo  Mirandulano  (fl.  216). 


A  UVRARIA  DO  STUDO  430 

Francisco  Tamara^ 
Frei  Domingos  de  Battana^ 
Ghnzalo  Hemcmdes  de  Oviedo^ 
Ludovico  Varihema^ 
Oaepar  Barreiros.  ' 

Comparada  a  Livraria  da  Universidade  com  a  do  Doutor  Garcia 
d'Orta,  vè-se  que  urna  se  mantinha  na  estabìlìdade  e  conservantismo 
doB  anctores  Bcholasticos^  e  a  outra,  com  as  instantes  coriosidades  do 
espirito  indivìdaalista,  era  constantemente  posta  ao  corrente  do  mo- 
vimento scientifico  da  sua  època.  N'esta  crise  mental  do  seculo  xvi, 
as  collectivìdades;  theologicas  ou  nniversitarias,  propendem  para  a 
manatenySo  das  concepgSes  antigas,  e  facilmente  acceitam  o  regimen 
da  censura  estabelecido  pelo  ezame  e  prohibÌ9So  dos  livros  pela  au- 
ctoridade  ecclesiastica;  as  individualidades  pensadoras  exercem-se  iso- 
ladamQntCy  da  fórma  a  mais  audaciosa,  comò  vémos  em  Francisco  San- 
òhes  ou  Giordano-  Bruno,  até  que  os  livres  espiritos  vSo  constituir 
no  seculo  xvii  as  Academias,  fócos  ìntensos  de  renoya9Bo  scientifica. 
Sigamos  a  parte  regressiva  d'està  crise.  As  ITniversidades  come9aram 
•  no  meado  do  grande  seculo  a  publicar  Indices  de  livros  prohibidos; 


1  Auctor  da  obra  Dt  las  cosiunibrea  de  todas  laa  gentea,  Antuerpiae,  1556.  Orta 
cita-o  com  desdem  (fi.  64  e  168). 

'  Auctor  do  Compendio  de  eenteneùu  moralea,  y  de  cUguruu  eogtu  notablee  de 
Eepaha;  y  la  conquista  del  Beino  de  Granada.  Hispali,  1555.  Orta  cita-o  a  fl.  168 
dos  CoUoquios, 

'  Auctor  da  importante  Historia  general  y  naturai  de  las  Infiias  ooddentales» 
Toledo,  1526.  Ali  se  ac^am  preciosas  noticias  das  plantas  da  America,  comò  a 
mandioca,  o  goiaveiro,  o  gujac,  a  cabala,  a  batata.  Orta  interessava-se  na  leitura 
d*e8ta  obra. 

*  Garcia  d'Orta  cita  este  celebre  viajante  (fl.  29  y),  a  quem  chama  Ludovico 
Vortomano,  auctor  de  um  livro  de  Tiagens  traduzido  em  latim  com  o  titolo  :  Lvd^ 
Varihomani  Novum  itinerarium  Aethiopiae,  Aegypti,  tUriusque  Aralnae,  PereiaCf  Sy- 
riae,  et  Indiai  intra  et  extra  Gangem,  Mil&o,  1508.  Barthema  era  um  simples  fmi- 
didor,  e  n2o  sabia  observar  os  phenomenos  naturaes  ;  mas  pela  variedade  das  suas 
viagens  eonsignou  factos  curiosos  e  eztraordinarios.  Ferdinand  Denis  recommenda 
o  confronto  d'estas  viagens  de  Barthema  com  o  Esmeraldo  do  Mar^  de  Duarte 
Faeheco. 

^  Orta  cita  a  Corographia,  impressa  em  Coimbra  em  1561.  Vé-se  que  se 
mantinha  ao  corrente  das  publica^Ses  feitas  em  Portugal,  comò  aoompanhava  o 
progresso  das  sciencias  na  Europa,  segundo  observàmos  na  cita^So  de  Valerio 
Cordo. 


440  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

a  Univeroidade  de  Louvain  publfca  o  seu  primeiro  Index  em  1540,  e 
por  ordem  de  Carlos  y  os  seas  doutores  formaram  am  novo  Indice, 
publicado  em  1546,  succedendo-se  outros  em  1550  e  1552.  ^  Sabe-se 
a  influencia  que  exercia  Carlos  v  na  politica  portugueza,  pela  revela- 
9S0  de  Capodiferro  icerca  do  estabelecimento  da  InquÌ8Ì9^,  para  aqui 
fechar  0  asylo  aos  judeus  emigrados  de  Hespanha;  a  censura  dos  li- 
vros,  pela  època  em  que  cometa  a  ser  exercida,  coincide  com  a  ordem 
de  Carlos  v  à  Universidade  de  Louvain.  No  processo  de  DamiSo  de 
Goes  na  InquisÌ9fto  de  Lisboa  acham-se  duas  cartas  dirigidas  pelo  car- 
deal  D.  Henrique  ao  sabio  humanista,  explicando  os  motivos  porque 
prohibira  em  Portugal  a  leitura  do  seu  livro  intitulado  Fides,  Rdigio, 
moresque  Aetiopum,  impresso  em  Paris  em  1541,  e  dedicado  a  Paulo  ni. 
0  texto  d'essas  cartas  interessa-nos,  para  se  observar  comò  se  operou 
0  ecclipse  total  da  intelligencia  portugueza  antes  da  perda  da  naciona* 
lidade  : 

cDamiSo  de  GFoes. — Por  ser  qua  ordenado  que  os  livros  nóvos 
que  vierem  de  fora  primeiro  que  se  vendam  sejam  vistos  por  bum  offi- 
ciai da  santa  inquisiyfto,  comò  a  vessa  obra  que  veyo  foy  ter  à  sua 
mio,  0  qual  achou  nella  muitas  cousas  muito  boas,  semente  alguma 
cousa  0  offendeo  as  razSes  que  0  embaxador  de  preste  nella  daa  sobre 
as  cousas  da  fé  centra  o  bispo  adaaym  e  mostre  margalho  hirem  mui 
fbrtes  (e  as  que  elles  dam  centra  o  embaixador  serem  mais  fracas)  e 
dando-me  elle  conta  disto  sem  embargo  de  eu  saber  vós  serdes  tal  pes- 
soa  e  de  tSo  boa  consciencia  comtudo  assim  pollo  cargo  que  tenho  corno 
polla  obriga92o  em  que  vos  som  por  nam  se  dar  occasiam  a  ninguem 
dizer  mal  asentey  que  sobreestivesse  na  venda  dos  ditos  livros  por  me 
parecer  que  vós  asi  0  averieis  por  bem  pollo  que  dito  tenho.  E  vos 
rogo  pois  sabeys  que  gente  he  a  portugueza  e  quanto  folga  de  repre- 
hender  que  d'aqui  em  diante  emprehendais  antes  obra  d'outra  quali- 
dade  que  eu  sey  que  bem  vós  sabereys  fazer.  E  vos  agradecerei  muyto 
me  escreverdes  novas  de  Allemanha  e  da  dieta  e  particularidades  della 
porque  folgarey  de  0  saber  por  carta  vessa.  Esenta  em  Evora  vinte 
e  cito  de  Julho.  Jorge  Coelho  secretarlo  o  fez  de  mil  quinhentos  qua- 
renta  e  hum.  Infante  Dom  Anrique.» 

cDamiSo  de  Goes. — Os  dias  passados  recyby  duas  cartas  vossas 
huma  em  resposta  do  que  vos  escrevy,  é  a  outra  mais  comprida  em  que 


^  Reiffenberg,  Sur  Us  deuao  premiers  ntclea  de  VUmvenUé  de  Louvain,  (Me- 
moires  de  l'Académie  de  Bruxelles,  t  tu,  p.  15.) 


A  UYRARIÀ  DO  STUDO  441 

vos  aggravaes  de  mim  por  ter  mandado  que  a  vessa  obra  se  nSo  venda, 
e  alegaes  muitas  razSes  pera  se  nSo  dever  tal  cousa  mandar  e  do  que 
recebj  maito  desgosto  por  vèr  quSo  mal  informado  estaveis  da  ver- 
dade  e  quanta  culpa  e  reprehenslo  merece  o  que  vos  fez  tornar  tal 
paizam  e  deu  entendimento  tam  desviado  do  que  ouvera  de  dar  ao  que 
eu  mandey:  eu  comò  em  outra  vos  escrevi  vos  tive  sempre  e  tenho 
naquella  boa  conta  que  he  rasSo  e  fuy  e  som  mui  satisfeito  de  vós  e 
vos  mostre!  muito  amor  o  que  eu  croio  que  vós  deveis  saber  e  ter  co- 
nhecido  de  mim:  pollo  que  m'espanto  crerdes  que  vos  tenha  em  outra 
conta,  e  que  por  ter  alguma  m&  sospeita  de  vessa  consciencia  mandey 
que  OS  livreiros  sobrestivessem  na  venda  da  vessa  obra.  E  porque  eu 
vos  tenho  agora  na  mesma  conta  de  tHo  bom  homem  e  t2o  bom  christZo 
comò  sempre  vos  tive  bey  por  escusado  responder  às  rasSes  que  me 
daes  porque  eu  o  creo  asy  corno  dìzeys.  E  quanto  à  obra  vejo  bem  que 
a  primeira  parte  della  é  muito  boa  e  està  nam  mandey  eu  que  se  nom 
vendesse  nem  deyxasse  de  leer  semente  na  segunda  em  que  se  trata 
das  cousas  da  fee  e  super8tÌ9So  que  tem  os  etiopios  por  serem  no  vesso 
livro  aprovadas  polo  embayxador  do  preste  com  raz5es  trazidas  por 
elle  e  auctoridades  da  sagrada  escritura  mal  entendidas  e  aver  neste 
reino  tantos  cristSos  novos  e  muytos  delles  culpados  de  herezia  pare- 
ceo  a  mim  e  aos  inquisidores  que  em  tempo  que  nestes  reynos  se  co- 
meta de  novo  a  santa. inquisi$am  se  nom  devia  ler  tal  obra,  porque 
aquelles  que  mal  sentissem  da  fé  nom  favorecessem  seu  erro  com  a  mi 
opiniam  dos  etiopios  mayormente  que  segundo  som  informado  o  em- 
bayxador do  preste  que  fez  iste  apresenta  muitas  cousas  de  sua  cabega 
que  nio  ha  em  etiopia  e  huma  cousa  he  relatar  simpresmente  os  rìtos 
de  huma  nayam  e  outra  querellos  corroborar  com  ras5es  falsas  comò 
fez  oste  embajrxador  sem  aver  lego  confuta^am  dellas  porque  oste  é  o 
costume  dos  hereges  e  se  segue  disso  muitas  vezes  muito  escandalo  e 
dano.  E  assy  comò  eu  som  certo  que  nom  tendes  nenhuma  culpa  nem 
mereceis  reprehensam,  o  que  sabem  todos  e  semente  nesta  parte  fos- 
tes  fiel  interprete  assy  confio  se  estivereis  cà  e  visseis  a  cousa  comò 
anda  que  vós  mesmo  houvereis  por  bem  e  me  aconselharieis  que  se 
nam  lera  està  parte  do  vesso  livro  ao  menos  em  Portugal  (e  alem  disto 
offendeo  cà  gabardes  e  dardes  tanta  auc^ridade  a  este  embaixador  por 
onde  0  que  diz  parece  que  he  mais  firme  e  autorisado)  mas  bem  vejo 
que  escrevestes  ysso  por  nom  serdes  bem  informado  de  quam  mào  ho- 
mem elle  era  e  quam  desonestamente  vivia  e  come  na  sua  propria  terra 
era  avido  por  erege,  e  se  iste  bem  soubereis  certo  que  nSo  dereis  tanto 
credito  a  suas  palavras  e  sondo  fora  desta  terra  os  louvores  que  Ihe 


442  HISTORIA  DA  UNIYER5IDABE  IS  COIMBRA 

daes  0  08  queununes  que  elle  nft  soa  narrajam  fius  de  o  tratarem  ci 
mal:  nSo  sey  que  honra  nisso  ganhari  este  Beynoy  e  assy  que  por  es- 
tas  causas  e  nSo  por  outra  nenhuma  mi  nem  suspeita  ó  que  possa  ter 
de  tam  bo8  homem  comò  vós  soes,  mandey  que  por  agora  se  nom  ven- 
desse aquella  parte  semente  que  disse  da  vessa  obra  na  qual  couiia  se 
nam  prejudica  nada  a  vessa  honra,  as  quais  rasSes  eu  confio  que  vos 
avereis  por  boas,  e  vos  agradecerey  muyto  o  crerdes  assy  e  que  vos 
tenho  agora  naquella  conta  que  sempre  vos  tìve,  e  nZo  dareis  credito 
a  outra  nenhuma  informasAo,  e  que  heyde  folgar  muito  de  fazer  por 
vós  e  vossas  cousas  quanto  em  mim  fór,  e  vos  agrade^o  muito  as  no- 
vas  que  me  mandastes  d'Alemanha,  e  vos  encommendo  que  assy  o  fin- 
9aÌB  sempre  e  tambem  m'as  manday  de  vós  :  esenta  em  Lisboa  treze 
de  dezembro.  Jorge  Coelho  secretano  a  fiz  de  mil  quinhentos  e  qua- 
renta  e  um.  Iffante  Dom  Anrique.»^ 

A  prohibifSo  casual  de  um  ou  outro  livro  converteu-se  em  sys- 
tema,  e,  com  os  Indices  expurgatorios  a  que  foram  submettidas  as  obras 
ji  consagradas  pelo  passado,  crearam-se  tribunaes  para  licenciarem  con- 
venientemente e  morosamente  os  lìvros  novos.  As  foculdades  de  Theo- 
logia  formavam  as  listas  prohibitivas  :  cN'este  reino  promoveu  Alvaro 
Comes  que  o  Cardeal  Infante  D.  Affonso^  bispo  de  Lisboa,  declarasse 
as  doutrinas  erradas,  e  vedasse  os  prejuizos  d'ellas  formando  um  Ca- 
talogo das  que  havia  reprovado  a  Faculdade  de  Theologia  de  Paris. 
Outros  erros  compendiou  o  Doutor  Paio  Kodrìgues  do  Yillarinho,  de 
Beja,  e  escreveu  a  Consulta  que  no  fim  do  seculo  xvi  fez  a  Faculdade 
de  Theologia  de  Coimbra  para  o  exame  e  censura  dos  erros.  O  espi- 
rito de  OS  acautelar,  que  assistia  e  guiava  a  estes  sabios  varSes,  mo- 
veu  0  Cardeal  Infante  D.  Henrique  a  publicar  em  4  de  Julho  de  1551 
hum  Boi  de  Livroapor  elle  defesos,  repetindo-se  a  edijZo  em  1561.  Elle 
mesmo  fez  sua  depois  a  publica^JLo  do  Indice  romano  impresso  em  Lis- 
boa em  1564  com  a  PrefasSo  de  Frei  Francisco  Foreiro  ao  mesmo  In« 
dice,  e  accrescentou  o  mesmo  Cardeal  a  prohibi$So  de  outros  mais  li- 
vros.  Davam  auctoridade  competente  a  estes  Catalogos  para  se  acre- 
ditarem  no  publico  as  assignaturas  de  Fr.  Jeronymo  da  Azambuja,  Fr. 
Francisco  Foreiro  e  Fr.  Manuel  da  Yeiga. — Por  aquelle  mesmo  tempo 
publicou  em  Coimbra  o  Catalpgo  dos  prohibidos  o  Bispo  D.  Fr.  JóSo 
Soares. .  .»^ 


1  Armae»  da$  Sdeneiaa  e  Leitnu,  L  u,  p.  830  a  888. 

>  Cuidado9  litUrario9  do  Biepo  de  B^a,  Frei  Manuel  do  Cenacolo,  p.  529. 


A  liYRARIA  DO  STtJBO  443 

Em  ama  carta  do  philologo  portugaez  Vicente  Nogueira^  escripta 
de  Boma  em  1646,  ezplica-se  o  processo  da  prohibi^Bo  dos  lìvros: 
cE  para  qae  este  tSo  curioso  senhor  fique  bem  pratico,  e  possa  ler  de 
cadeira  na  materia  da  probibigfto  dos  livros,  darei  aqtii  bua  noticia  qae 
pode  ser  folgae  de  vfir. . .  A  probibÌ9So  dos  livros  ou  he  feita  pollo 
Papa  na  inqttisÌ9fto  de  Boma,  e  està  vai  em  todo  o  mando;  e  assi  quem 
qaer  que  os  ler,  alem  do  peccado  mortai,  incorre  em  excommunhfto; 
e  destes  taes  livros,  so  o  Papa  pode  dar  licenza:  ou  he  feita  pellas  in- 
quÌBÌ93es  particulares  de  Castella  ou  de  Portugal,  e  està  so  obriga  no 
distrìcto  das  dictas  inquisÌ93es,  fora  da  qual  cada  hom  pode  lellos  sem 
peccado  nem  censura;  e  d'este  podem  os  mesmos  inquisidores  dar  li- 
cenya,  etc.»  ^  A  censura  dos  livros  actuou  profundamente  na  decaden- 
cia  da  lìtteratura  portugueza,  consummindo-se  a  actividade  montai  quasi 
que  de  um  modo  exclusivo  na  producjfto  de  obras  de  Theologia  scho- 
lastica  durante  a  segunda  metade  do  secalo  xvi.  Precisamos  conhecer 
o  quadro  dos  livros  theologicos  d'este  periodo  historico;  pela  Livraria 
do  Studo  conhecem-se  os  auctores  dominantes  nas  doutrìnas  do  direito 
canonico  e  civil;  pelas  cita93es  do  Doutor  Garcia  d'Orta  conhecem-se 
OS  conflictos  doutrinarios  dos  hellenistas,  arabistas  e  conciliadores  em- 
quanto  aos  estudos  medicos,  e  os  empiristas  que  se  disciplinaram  pe- 
las inve8tiga93es  da  Botanica  e  enriqueceram  a  Therapeutica;  o  quadro 
das  obras  de  Theologia  scholastica  acha-se  no  Boi  da  Livraria  de  S.. 
Fvn8,  mosteiro  incorporado  por  Paulo  in  no  Collegio  dos  Jesuitas  de 
Coimbra  em  1546.  Esse  catalogo  nos  mostra  corno  a  Theologia,  afas- 
tada  do  conhecimento  das  fontes  biblicas  por  effeito  do  abandono  do 
estudo  do  hebraico  e  do  grego,  se  tomou  a  expressSo  de  concep98es 
subjectivas  e  individuaes,  comò  a  Gra9ft  efficaz  de  Molina  e  o  conr 
gruismo  de  Soares.  O  abandono  do  criterio  historico  foi  causa  de  todas 
essas  aberra98es,  que  mantiveram  a  Theologia  sob  o  individualismo 
Bcholastico.  ^ 


1  BoUHm  de  Bibliographia  partugueta,  voi.  ii,  p.  25. 

'  EeuBB,  na  Histoire  de  la  Theologie  chréiierme,  1. 1,  p.  9,  define  este  aspecto: 
e  A  Theologia  da  eschola,  cu,  para  nos  servinnos  de  um  termo  j&  consagrado,  a 
Theologia  eeJudasHca,  é  a  theologia  ensinada  por  cada  qual  corno  a  expressSo  das 
snas  convic^Òes  particulares,  qaer  ellas  Ihe  perten^am  corno  proprias,  quer  as  com- 
partilhe  com  urna  numerosa  communidade.  Este  nome  de  scholastica  nÌo  deve  ame- 
drontar  nin^em.  N2o  exprìme  censura,  nfto  allude  de  preferencia  aos  theologos 
do  secolo  XII,  mas  simplesmente  &  presenta  do  elemento  racional  ou  snbjecdvo  no 
trabalho  scientifico  que  preceden  o  ensino.  Nós,  porém,  distinguimos  da  theologia 
scholastica  orna  outra  sdeneia,  nSo  menos  importante,  se  o  nfto  é  mais,  tendo  etti 


444  HISTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

O  mosteiro  de  S.  Fina  das  FrìestaS;  de  cujas  riqaezas  os  JeeuitaB 
8e  apoderarani;  a  pretexto  de  ter  so  tres  firades,  que  viviam  deshones- 
tamente  e  dissolutamente  com  as  snas  egrejaS;  com  cara  e  sem  cara, 
corno  se  allega  na  bolla  de  Paulo  in,  de  1548,  unindo-o  perpetuamente 
ao  Collegio  de  Jesus  de  Coimbra,  possuia  tambem  uma  grande  Livra- 
ria.  Consta  isto  do  Rol  que  se  fez  quando  o  mosteiro  foi  visitado  pelo 
padre  provincia!  Antonio  Mascarenhas,  em  1605;  ^  a  descrip^fto  dos  li- 
vros  é  feita  com  abreviaturas  incomprebensiveis,  e  so  à  for9a  de  in- 
vestigagSes  bibliographicas  se  pode  avaliar  o  seu  caracter  e  ìmportancia: 

Rol  da  LiTraria  de  S.  Fins 


Glossa  in  script,  de  retortis 
Bihlia  inseg 
Bib  tomis  divisa^ 
Catena  aur.  D.  Th.' 
S.  Qreg.  moralia.  t.  2* 
S.  Greg,  opera  oia  (omnia) 
Hugo  in  Euang.  ^ 


Catena  in  ps.^ 
Barrad.  tres  tom.  ^ 
Maldon.  in  Euang,  ^ 
Viegas  in  ApoccHyp,  • 
Rih  in  Apocalyp.  *^ 
Tetel.  in  Job  *« 
Idem  in  Ecdes. 


parte  a  mesma  base  que  a  primeira,  mas  differindo  d*ella  relativamente  ao  seu 
firn,  ao  san  conteùdo,  aos  seus  meios  e  ao  sen  methodo  :  é  a  thtologia  Mtlica.  A 
theologia  biblica  é  por  conseguinte  uma  scienda  csBencialmente  historìca.  N2o 
demoDStra,  conta.» 

1  No  Inventario  de  S,  Fins,  fi.  81  a  85.  Pnblicado  diplomaticamente  por  Ga- 
briel Pereira,  no  Boletim  de  Bibliograpkia  portuguasa,  p.  199. 

2  Grlosaa  in  Scripturam,  ed.  de  Tortis;  Biblia  in  sequencia,  bis  tomis  divisa. 
'  Catena  aurea  in  quatuor  Evangelia,  Divi  Thomae.  Parisiis,  1540,  in-fl. 

4  Ck)mmentario  sobre  o  livro  de  Job,  conhecido  pelo  titolo  de  Moraes. — Opera 
omnia,  Àntuerpiae,  1572,  in-fl. 

^  Cardeal  Hugo  a  S.  Charo,  Opera  omnia  in  vniversum  Vetus  et  Novum  Tee* 
tamentum. 

*  Catena  aurea  in  gtdnquaginta  Ptaìmos  davidicos,  interprete  Daniele  Bar* 
baro.  Venetiis,  1569,  in-fl. 

"^  Barradas  (Sebast.)  Commentarla  in  Cancordiam  et  hiitoriam  quatuor  Evan- 
gdiatarum,  Antuerpiae,  1613,  4  t.  in-fl. 

*  Maldonado  (Joio)  Comm/sntaria  in  guatuor  Evangelistas,  Mogontiae,  1602,  fl. 
'  Viegas  (Blasii)  Commentarti  exegeiiei  in  Apoealypnn,  Eborae,  1601,  in-fl. 

10  iUbera  (Frane.)  In  Apooaìypwn  Beati  Johannis,  quHnu  adjunU  mmt  libri  de 
templi  et  de  hi»,  quae  ad  temphan  pertineni.  Salmanticae,  1591,  in-8.* 

11  Titelmani  (Frane.)  Elueidatio  paraphraatiea  in  librwn  Job,  Parisiis,  1547  e 
1550,  in-8.® —  Commeatarii  in  Eoeleaiaeten  eum  annotationibitè  ex  hebraito,  et  edUione 
graeca.  Parisiis,  1552,  in-16. 


A  LIVRARIA  DO  STDDO 


445 


Magai,  in  cani,  mosis^ 
Flores  doctorum,  tom.  2. 
LuiS;  conciones 
Royardi  sum.^ 
S.  Vincentìi  aermones^ 
Joanes  Ecci.  serm.  et  humil,  ^ 
Thesaurus  novus 
Raulim.  ' 

Pandecta  in  Evang, 
SimUitud.  et  coU.^ 
Suma.  Viri,  duos  tom.  ^ 
Sylva,  conc.  Osorii* 
Osorii  tom.  quadrag. 
Yalderrama  quadrag.  ^ 


Et  de  sanctis  ^^ 

Broych.  opuscala^^ 

Gema  predicantium 

Thomas,  in  Math.  " 

Aureum  opus 

Platu  desta,  religiosi  lat.  et  hisp.  ^^ 

Homii»  Royardi 

Cass.  duo** 

Fr.«>  Soares  1.  2.  4  tom.  in  3  p.**^ 

idem  de  legtbus 

idem  de  relig.^  tom.  2. 

Molina  de  just^  tom.  3.  *• 

Idem  de  concordia  ejasdem 

Henriq.  tom.  2.*^ 


1  Magaliani  (Cosine)  Commentarla  in  Moisis  cantica^  et  òenedictione  patriar* 
eharum.  Lugduni,  1619,  in-^ 

2  Hoyardi  (Joannes)  HomUiae.  Parìsiis,  1558,  in-8.<^,  7  voi. 

'  Vincentìi  (S.)  Ferrer  Sermonea  aeativales  cum  adìwiationes  Damiani  Dias. 
Antuerpiae,  1570,  in-8.* — Sermonea  hyemalta.  Lugduni,  1530,  in-8  ^  goth. 

^  Eckins  (Joannes)  Sermonea  et  Homiliae. — Deprimatu  Petri  adveravs  Ludde- 
rum.  Parisiis,  1521,  in-fl. 

^  Baulin  (Joannes)  Opua  aermonum  quadrageaimalium,  auper  Epiatolaa  et  Evan' 
geiia.  Lngduni,  1518,  2  voi.  in-4.<*  goth. 

^  Similitudinea  et  CoUationea. 

"^  Summa  Virtutum, 

^  Osorii  (Johannes)  Concionea.  Salmanticae,  1591,  in*4.<>,  5  voi. 

'  Yalderrama  y  Haro,  Esctemporaneam  Releetionem  ad  cap,  finalen  de  Prae^ 
aoriptùmibua.  Salmanticae. 

10  Petrus  (Natalis)  De  Sanetù. 

11  Braehyologua,  opuaculajuridioa. 

^  Thomae  (Divi)  Commentaria  in  Matheum  evangeliakm,  etc.  Lngdunì,  1531, 
ÌD-8.^  goth. 

-  —  Catena  aurea  (vid.  n.  3.) 

1'  Piati  (Hyeronimi)  De  bono  atatita  rdigioaL  Lngdnni,  1592,  in-8.« 

1^  Cassiani  (Joannes)  De  coenobiorvm  inatitutia,  et  de  vUiia  eapitalUma,  nec  non 
de  CoUationibua  Patrum.  Coloniae,  1540,  in-fl. 

1^  Snares  (Frane.)  De  legibua  ae  Deo  legialatore.  Conìmbrìcae,  1612,  u>-fl. — 
Opera  omnia,  etc. 

1*  Molina  (Luiz)  De  Juatitia  et  Jure,  Antuerpiae,  1615,  4  voi.  inr-fl. 

—  Concordia  liberi  arbitrii  cum  gratiae  donia,  divina  praeadentia,  provideaar 
Ha,  praedeaiinatione  et  reprobatione.  Olyssipone,  1588,  in-4.<^ 

1''  Henrici  (Cardinalis)  Mediiationea  et  HomUiae  in  aliqua  myateria  aalvaUonia 
et  in  nonnulla  Evangeliia  loca.  Olyssipone,  1576,  in-12. 


446 


HISTORIA  DA  UNTVERSIDADE  DE  COIMBRA 


retortis 


Sanch.  tom.  3.  ^ 

Conciones  Costa  et  Merìlho 

Babelo  de  joatic. 

Concordaniiae,  doas,  noY^  nna.' 

Partes  D.  Thomae  » 

Inatruct.  luis  lopes. 

Ju8  civile 

Jus  canonicum 

Bartholi  opera 

Panormit.  opera^ 

OrdincU. regni  sjitiqìiA  et  nova  toin.2 

Francus  in  6,  decretai, 

Jason  de  actìoniius 

Imola  8uper  clementinas  ' 

Dedgianes  G-amae^ 

Cabedii  opusculum^ 

Aluar  Vallea  de  Bhvphy,  ^ 


Caldas  de  Empky.  ' 
Nayarr.  manualia  àliquoU  ^^ 
Stima  emanuelis  roiz 
Ejosdem  cptis  in  huUam  crac. 
Eiud.  additUmes 
Suma  Jacob,  de  Oratiis 
CaUpinue  antiquis^^ 
Ara  Emanuelis.  ^' 
Vocab.  Cardosi*^ 
Petr.  Navarr.  de  retiti 
Med.  instr,  confèse.^^ 
Ciceronis  epUt.  fam.  cum  com. 
Cunha.  eacpl.  bull.  eapedUa  et  eoi* 

lidtantes  in  comp,  ^^  . 
Calendarium    recitatorum    Bapt.^ 

Minoritae 
Cruci  irag,^^ 


1  SancheB  (Thomaz)  De  Matrimomok  Antaerpiae,  1617,  in-fl.,  8  yoL 

2  Concordaniiae  Bibliorum  tUriueque  TeatamenH.  Basileae,  1506. 

'  Prima  tecundae,  et  Seconda  secundae  Summae  Theologiae.  Antaeipiae,  1569, 
in-4.",  2  voi. 

^  Panormitani  (Abb.)  Consilia,  juriaque  responaa,  ae  quaeationea.  Logdani, 
1586,  in-fl. 

^  Immola  (Abb.)  Joamies,  Cammentarìa  in  quinque  Decretalium  libroB.  Ve- 
iietiis,  1575,  3  voi.  in-fl. 

^  Gama  (Antonii)  Deeisiones  aupremi  Senatua  Luaitaniae.  Ulyssipone,  1578^ 
in-fl. 

"^  Jorge  Cftbedo,  De  Patronalibua  Eedeaiarwn,  OlyBsipo^e,  1602,  in-4.® 

^  Alvaro  Vallasco,  Praacis  partitionem  et  coUaiionem  inter  haeredoa.  Conim- 
bricae,  1603,  in-fl. 

9  Francisco  Caldas  Pereira  e  Castro. 

^^  Navarro  (Martinus)  Enchirìdion  siw  Manuale  confeaaariorum  et  poeniien- 
tium,  Romae,  1573,  in-4.' 

11  Calepinus  (  Ambrosius)  Dictionarium  in  odo  linguartmi.  Ed.  de  Reggio,  1502. 

^  Arte  de  Grammatica  do  padre  Manuel  Alvares,  pablicada  com  o  tìtulo  De 
JnatUutione  grammatica,  libri  tres.  -Lisboa,  1572,  in-^j^ 

13  Jeronymo  Cardoso,  Dictionarium  Latino-lutitanum,  Conimbrìcae,  1569. 

1^  Medina  (Joao)  Commentariue  in  Otultim  de  Poeniteniia,  1549,  in-fl. 

15  D.  Bodrìgo  da  Cunha,  De  Confiaaariis  aolicUantibua.  Benaventi,  1611. 

1^  Padre  Luiz  da  Cruz,  Tragediaa,  Lyon,  1605.  CoIlec^So  de  sete  tragediai 
latinas  para  serem  representadas  pelos  estadantes  do  Collegio  das  Artes  de  Coim- 
bra. 


A  UVRARIA  DO  STUDO 


447 


Fr.  Luis  de  Orai.  ' 

MMiita^  do  P.  Ponte  tom.  2.  ' 

Tractatua  legum  capi,  ^ 

Virg.  2 

Ovid.  1  . 

£Bh.  ecd.  Easebii  iat.  et  hisp. 

Àdriaiiì  quodlib.^ 

Vitaè  Patrum  latine  de  tortis. 

Kavarri  de  redibibm  apolog.  ' 

Orai,  Perpiniani^ 

BÌBt.  pontìf.  Ulutt.  tom.  2 

Smn.  Carit.  tom.  2 

Nayar.  in  cap^  levU.  ^ 

Jardim  spual  em  italiano 

Gomes  in  ps.  miserere 

Petrus  a  Natal  de  «.'"  « 

Cartaa  do  Japào  de  varìos  annos 


Lucena  vita  p.  Fr.  ^ 

LivrinhoB  d'exerdeias,  censi,  e  re- 

grò»,  e  outros  livrinhos  de  pouoo 

porte 
8wna  Toleti.  tom.  3.  ^ 
8vma  Syly.  tom.  3 
P.  Natalia  cwn  iconibiAS  applicatua  ^^ 
Aphariamos  de  Saa^' 
Mediia^Sea  do  rosario 
Speeidum  perfectUmis 
ConeU.  Brac. 
Conca.  Trident. 
Cottedanea  mer.  Granatensis  ^^ 
Leones  pontificom  '^ 
Vita  p.  Ignota.  2.  ** 
Bened.  pr.'  in  Joanem  ^^ 
Assor.  tom.  3.*^ 


1  Padre  Laix  de  Castro  P§checo,  OrcUio  habita  cui  Sebcutianam  regem.  Co- 
nimbricae,  1570. 

^  LudoyicuB  de  Ponte,  Bkapontio  morali$  in  Caniicum  eantieorum.  Parìsiis, 
1622,  in-fl.,  2  tomos. 

3  TrcictcUuB  legum  Capitularitmn, 

*  Adrianus  CarthuBianas,  QuodliÒeta. 

^  Navarri  (Emman.)  Traetatua  de  virtiUibua  theologieis.  Salmanticae,  1617,  in-fl. 
6  Perpiniani  (Patri)  Oratianee  duodeviginti.  Bomae,  1587,  in-B.^» 
"^  Martim  Navarro. 

*  Pier  de*  Natali,  agiographo  veneziano  do  firn  do  secnlo  zzv,  escreven  Vita 
de'  Santi,  precedendo  a  Voragine.  Vid.  liraboschi,  Hiataria  della  Letteratura  ita- 
liana, t.  V,  p.  180. 

9  Padre  JoSo  de  Lucena,  Vida  do  P.  M,  Frandaco  de  Xavier^  e  do  qua  fise- 
ram  na  India  oa  Bdigioaos  da  Companhia.  Lisboa,  1600,  ia-fl. 

^^  Toleti  (Frane.)  Summa  caauum  Conacientiae.  Veneliis,  1613. 

"  Vid.  not.  8. 

^  S&  (Emmanaelia)  Aphoriami  eonfeaaariorum,  Coloniae,  1603;  Matriti,'  1601; 
in.l2. 

13  Granatensis  (Lndovicas). 

1*  Leonia  (Magn.)  Opera  omnia. 

1'  lUbadenejra  (Petrus)  Vita  Ignatii  de  Loiolae,  Nespoli,  1572.— No  Cartorio 
da  Universidade  de  Coimbra  enste  ms.  em  um  grande  rolo  de  pergaminbo  :  •In-' 
quiri^dea  aobre  a  Vida,  milagrea  ete,  do  beato  Ignacio  de  Loyola,  para  a  aua  cano- 
niaagào. ..» 

1^  Benedictus  Pereira,  Opera  theologioa  quotquot  extani  omnia. 

^"^  Azorii  (  Joan.)  Inatitutionea  moralea.  Lugduni,  1610,  iur-fl.,  3  voi. 


448  HISTORIA  DA  UMIVERSIDADE  DE  COIMBRA 


D.  August.  opuscula  aliquot 

Delrius* 

Ha  algons  livrinhos  de  pouco  porte 


e  alguns  prohibidos  que  podem 
ir  a  Coimbra  e  ci  estSo  recoUii- 
doB.» 


Pelo  exame  d'este  catalogo  yS-se  que  a  Liyraria  do  MoBteiro  de 
S.  Fina  das  Friestas  era  especialmente  de  escriptores  jesuìtaB.  Esti 
ali  0  typo  inmioyel  de  toda  a  litteratora  theologica  e  juridica^  que  em- 
bara90u  a  enirada  em  Portugal  da  luz  da  syntbese  cartesiana  e  do  me* 
thodo  baconiano.  Difficilmente  poderìa  florescer  a  Universidade  na  sua 
reforma  e  mudan^a  para  Coimbra,  desde  que  a  atrazada  erudÌ9&o  me- 
dieval fosse  restaurada  e  continuada  pelos  Jesuitas.  No  Boi  da  Livraria 
de  S'.  Fins  sSo  dignas  de  reparo  as  indica93es  para  a  expurga9So  de 
certos  Yolumes:  toLguns  prohibidos  que  podem  ir  a  CoinJ>ra.3  O  afa- 
mado  poeta  e  humanista  Doutor  Antonio  Ferreira,  que  viu  o  esplendor 
da  Universidade  sob  a  influencia  dos  mestres  francezes,  lamenta  em 
urna  carta  a  Vasco  da  Silyeyra  a  desgrafada  situa9&o  em  que  se  en- 
contrava  a  intelligencia  em  Portugal  sob  o  regimen  da  censura  eccle- 
siastica: 

Olha  0  medo,  senhor,  olha  oj>erigo 
Em  qne  bum  aprite  raro  e  bom  se  crìa, 
Que  nem  louvor  Ihe  dSo,  nem  acba  abrìgo. 

Escuro  e  triste  foy  aquelle  dia 
Que  ao  saher  e  ingenho  hujuisfoy  dado, 
Que  iwnca  ao  cloro  sol  olhos  abria,^ 


1  Ifartinus  Delrìo,  Disguitionea  magicae,  e  as  outras  obras  d^este  demono- 
logista. 

'  Poemcu  iugitanos,  Carta  zn. 


CAPITULO  V 


IndaBfa  da  Unlversldade  para  Coimbra- (1637-1548) 


A  organisa^fio  da  Universidade  em  Coimbra  em  1537  sena  urna  simples  madan^a 
oa  urna  nova  funda^So? — Condi^oes  em  que  é  feita  a  reforma  da  Univerei- 
dade. — Eatado  moral  da  córte  de  D.  Joào  iii  revelado  nas  Instruc^oes  da- 
das  ao  nuncio  Capodiferro. — Parte  das  aalaa  da  Universidade  (Theologia, 
Linguas  latina  e  grega,  Artes  e  Medicina)  ficam  até  1544  nos  Collegios  de 
Santa  Cruz  ;  outra  parte  (Direito  civil  e  canonico,  Mathematica,  Rhetorica 
e  Musica)  nas  casas  de  D.  Garcia  de  Almeida,  k  Porta  de  Belcouce. — Pas-* 
Barn  08  estudoB  para  os  pa^os  reaes,  na  cidade  alta,  que  ficam  denominados 
Pago8  das  Escholas. — Os  Prìores  de  Santa  Cruz  recebem  a  dignidade  de 
CancellarioB  da  Universidade. — Corpo  docente  convidado  por  D.  JoSo  iii 
para  a  Universidade  de  Coimbra. — 0  governo  de  D.  Agostinho  Ribeiro,rei* 
ter  durante  cinco  annos. — Periodo  brilbante  da  reitoria  de  Frei  Diogo  de 
Mur9a,  de  1543  a  1554. — Reflexo  dos  estudos  de  Louvain  em  Coimbra. — 
Ac92o  de  Frei  Braz  de  Barros,  doutor  por  Louvain,  na  reorganisa^io  da 
Universidade  de  Coimbra. —  Florescencia  dos  estudos  secundarios  nos  Col- 
legios de  Santa  Cruz.—  Os  Mouiinhos,  ou  creados  do  Prior  geral  de  Santa 
Cruz. — Necessidade  de  promover  o  ensino  de  Grammatica  da  primeira  re- 
gra. —  Mudan^a  do  anno  escbolar  do  dia  de  8am  Luca»  (15  de  outubro)  para 
o  de  8am  Remigio  (1.°  de  outubro). — Numero  total  dos  alumnos  que  fre- 
quentavam  a  Universidade  em  1540. — Garantias  para  os  que  se  v2o  graduar 
a  Coimbra. — 0  Doutor  Aspilcueta  Navarro. — Disposi^òes  legislativas  sobre 
OS  methodos  de  ensino  das  Leis  e  Canones. — Li^oes  apontadas  segundo  o 
que  se  costumava  em  Salamanca. —  Quadro  das  cadeiras  das  differentes  fa- 
culdades,  e  distribuiamo  do  servilo  pelas  cadeiras  grandes  e  catbedrilhas. — 
Rendimento  da  Universidade  elevado  a  6:500)^000  réis. — Apropria9ao  das 
rendaa  do  Prìorado-mór. — Costumes  escbolares:  Musicas,  invectivas,  car- 
tas,  trovas  de  mal  dizer,  soi^as. — Os  Estudanies  pobres  e  as  Ra^vtè  cubtrtaa. 
— Ab  céas  dos  ezames  piivados,  e  confronto  com  ob  estjlos  de  Salamanca. 
— Entrada  dos  Jesuitas  em  Coimbra,  sua  allicia^So  dos  estudantes,  e  ballu- 

àlBT.  UH.  29 


450  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

cina^So  que  provocam  na  cidade. — Carta  do  padre  Hermes  Poen,  de  31  de 
julho  de  1545. — Funda^So  do  Collegio  daa  Artes,  e  aerilo  preponderante  do 
padre  SimSo  Rodrigues. — Os  Jesuitas  proeuram  apoderar-se  do  ensino. 


À  Uniyersidade  de  Lisboa^  depois  de  todas  as  reformas  prepara- 
torias^  era  finalmente  transferida  para  Coimbra,  corno  se  confirma  pela 
passagem  dos  lentes  que  segairam  o  novo  estabelecimentO;  pela  con- 
8erva9&o  dos  Estatutos  manuelinos  revigorados  por  D.  Jofto  ni;  e  pela 
entrega  do  archivo  e  liyraria.  NSo  existia  soIa9ào  de  continuidàde;  o 
Estudo  geral,  que  tivera  sède  em  Lisboa^  fòra  por  auctoridade  real 
mudado  para  Coimbra^  nào  devendo  portante  perder  nenhum  dos  seus 
privilegios.  Nfto  o  entenderam  assim  os  casuistas  do  tempo;  para  elles, 
D.  JoSo  in  fundara  uma  nova  Universidade  em  Coimbra,  sem  rela9So 
com  0  Estudo  geral  extincto  em  Lisboa,  e  para  funccionar  devida- 
mente  carecia  de  obter  a  sancgUo  pontificia  para  ahi  se  darem  os  gràos 
de  Theologia  e  Canones.  Vèmos  que,  apesar  de  tudo,  prevaleceu  està 
apprehensàOy  porque,  por  alvarà  de  28  de  novembre  do  1537,  deter- 
mina-se  que  o  reitor  D.  Agostinho  Ribeiro  servisse  de  Cancellario,  dando 
por  sua  auctoridade  os  gràos  de  Licenciado  e  Doutor  em  Leis  e  Medi- 
cina, ficando  suspensos  os  gràos  em  Canones  e  Theologia,  até  que  de 
Roma  fosse  concedida  a  auctorÌ8a9So  papaL  Passado  mais  de  um  anno, 
Paulo  m  concedeu  esse  poder  por  bulla  de  12  de  fevereiro  de  1539. 
So  entZo  ficou  a  Universidade  de  Coimbra  pienamente  constituida,  ^ 
realisando-se  o  pensamento  dos  que  suggeriam  a  D.  JoSo  in  o  incita- 
mento para  a  funda^^o  de  uma  nova  Universidade.' 

A  data  da  reforma  emprehendida  por  D.  JoSo  ni  parece  à  pri- 
meira  vista  relacionar  este  facto  com  o  movimento  critico  e  scientifico 


1  A  idèa  de  qne  a  Uniyersidade  de  Coimbra  era  uma  nova  funda^So,  cujos 
principioB  datavam  de  1537,  parece  predominar  na  portarla  de  30  de  maio  de  1 H60 
que  commissionou  o  Doutor  Antonio  José  Teizeira,  lente  de  mathematica,  para 
colligìr  OS  documentos  do  archivo  e  coordenal<os  para  escrever  a  Historia  littera- 
ria  da  Universidade  de  Coimbra,  desde  1631  até  ao  presente, 

*  Frei  Francisco  de  Ossuna,  em  uma  dedicatoria  a  D.  JoSo  in:  «meo  decreto 
consultius  ageret  si  apad  regnam  suum  crearet  aliquam  insignem  Universitatem» 
quam  procul  dabio  eisdem  solis  expensis  manuteret*  Qae  sustentaria  a  nova  fua- 
da^io  com  os  subsidios  que  dispendia  com  os  estudantes  que  tinha  em  Paris.  (Vid. 
Cenaculo,  Mem.  hist.  do  ministerio  do  pulpito,  p.  124.)  Fallando  da  frequencia  dog 
estudantes  portuguezes  em  Paris,  accrescenta  o  padre  Balthazar  Telles  :  «aonde 
acudiam  os  Portuguezes  por  até  entào  nSo  termos  ck  Universidade,  que  introdu- 
ziu  0  senhor  rei  Dom  Jo&o  in.»  (Chron.  da  Companhia,  liv.  i,  cap.  v.) 


MUDAN^A  DA  UNIVERSIDADE  451 

da  Benascenja;  porém  a  desIoca9So  da  Universidade  de  Lisboa  para 
Coimbra  obedecea  ao  plano  de  reacfSo  religiosa,  coine9ando  o  rei  por 
afastal-a  da  corrente  das  idéas  novas  que  mais  facilmente  se  introdn- 
ziam  na  capital.  D.  JoSo  m  seguia  o  pensamento  de  Carlos  Y,  que  as- 
sim  jostificava  a  per8egaÌ9So  aos  latheranos  :  cNSo  póde  haver  repouso, 
nem  prosperidade  aonde  nSo  houver  conformidade  de  doatrina,  assim 
comò  aprendi  por  experiencia  na  Allemanha  e  em  Flandres.»  À  con- 
cordia dos  espiritos,  resaltante  da  unanimidade  das  opiniSes  e  da  mu- 
toalidade  dos  interesses,  era  considerada  comò  am  prodacto  da  auctori- 
dadcy  que  impunha  pela  violencia  sanguinaria  a  abdica9So  da  conscien- 
eia  diante  da  cren9a  catholica.  Nas  Instn^i^es  dadas  (W  Nuncio  de  8. 
S.  que  passava  a  Portugal  no  reinado  de  D.  JoSo  III,  Mg/  Q-irolamo 
Capodiferro,  em  1537,  acham-se  alIusSes  secretas  a  factos  que  nos 
pintam  com  c8res  de  um  realismo  crù  a  c6rte  de  D.  JoSo  m.  Tran- 
screvemos  algans  trechos  para  que  se  conheya  o  meio  palaciano,  hy- 
pocrita  e  intrigante,  onde  era  impossivel  ser  avaliado  o  genio  da  Re- 
nascenga  e  o  espirito  das  reformas  pedagogicas.  Di^em  as  Instrucqdes: 

«0  Rey,  e  ao  seu  esemplo  toda  a  Nobreza  que  o  cerca,  dà  gran- 
dissimo credito  aos  Frades;  ou  seja  pela  sua  diligencia  e  ambÌ9&o  im- 
mensa, oa  pela  negligencia  dos  Prelados,  ou  descaido*8eu,  tem-se  con- 
vertido  erri  tyranuos  d'aquelle  Rey,  jà  por  via  da  confissSo,  e  jd  por 
via  da  prèdica.^ 

«Frei  JoSk)  Soares,  Confessor  de  El-Rei:  é  frade  de  poucas  lettras, 
mas  de  grande  audacia,  ambiciosissimo,  de  opiniSes  pessimas  e  dara- 
mente  inimìgo  da  Sede  Apostolica,  de  que  faz  profissSo,  (e  para  dizer 
n'uma  palavra)  muito  heretico. . .  Todos  o  conhecem  por  tal,  excepto 
EI-Rei;  por  cujo  motivo,  e  porque  o  frade  faz  negocios  de  toda  a  es- 
pecie debaixo  do  pretexto  da  confìssalo,  todos  o  respeitam.»  Adiante 
explica  està  submisslo  do  rei  ao  confessor:  «Na  ordem  de  S.  Jero- 
nymo  ha  um  frade  valenciano  que  se  chama  Fr.  Miguel,  reputado  ho- 
mem  de  vida  optima  e  independentissimo,  e  que  falla  com  liberdade  a 
quem  confessa,  que  é  cousa  rara  entre  frades;  tanto  que,  por  nSlo  querer 
absolver  El-Rei  urna  vez,  nSo  foi  chamado  mais  para  o  confessar;  e 
por  isso  entrou  em  seu  logar  o  sobredito  Frei  JoSo  Soares,  de  Santo 
Agostinho.  0  infante  Dom  Luiz  pode  muito  para  com  El-Rey,  por  au- 
ctoridade  que  elle  mesmo  tem  tomado  quasi  violentamente;  e  o  Conde 
da  Castanheira,  pelo  grande  amor  que  o  rei  Ihe  tem.  0  Conde  é  ho- 
mem  malignissimo  ;  mas  faz  profissào  de  consciencia  e  santidade,  para 


^  Ed.  de  Londres,  de  1824,  p.  14. 

29  « 


452  HISTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

86  introdozir  por  oste  meio  com  os  Frades  que  £Allam  a  El-Rei  conti- 
nnamente.  O  pai  do  Conde  foi  traidor  e  expulso^  e  o  irmSo  mais  ve- 
Iho.pelo  mesmo  crime  foi  publicamente  esquartejado*»^ 

cDizem  qae  a  Rainba  de  boa  vontade  toma  parte  nos  negocios,  e 
quer  fazer  muitas  cousas,  e  parecer  que  as  faz:  he  senhora  religiosa; 
conyem  mostrar-lhe  e  recommendar-lhe  sempre  os  negocios  de  S.  S. 
e  da  Egreja,  comò  huma  pessoa  (alem  de  ser  Rainba)  santa  e  temente 
a  Deus,  e  sobretudoi  fallando  com  ella,  repetir  todas  as  cousas  o  mais 
que  for  possivel...  fazendo  sempre  men$%o  da  consciencia,  do  outro 
mondo,  e  perigo  da  berezia  presente,  e  censuras  da  Egreja,  e  em  summa 
tado  o  quo  costuma  causar  modo  às  senhoras  religiosas,  sendo  dito  à 
Rainba^ari  bastante  fructo,  o  que  parece  a  melbor  via  e  o  modo,  que 
mais  convem  aos  ministros  do  Papa  em  todo  o  tempo,  legar  e  negocio.^ 

«Portugal  està  presentemente  reduzido  a  taes  termos,  que  tem 
pouquissimas  forgas,  e  o  Rey  (alem  de  ser  pobrìssimo)  tem  grandes  di- 
▼idas  dentro  e  fora  do  Reino,  e  grandes  interesses  a  pagar:  geralmente 
be  mal  visto  do  povo,  e  muito  mais  na  nobreza,  nSo  por  m&  indole  sua 
(que  se  elle  obrasse  seguindo  os  ditames  d'ella  n2Lo  seria  assim)  mas 
pela  conducta  pessima  e  pessimos  conselbos  d'aquelles  que  o  cercam; 
e  as  cousas  de  Portugal  com  Franca,  pelas  differen9as  das  navega93e8, 
e  da  irmS,  (filba  da  Rainba  de  FranQa),  que  os  francezes  pedem,  e 
com  0  Imperador  por  outras  paizSes  secretas,  estSo  reduzidas  a  tal  es- 
tado,  que  se  teme  talvez  a  sua  totalissima  ruina. .  .^ 

E  curioso  0  motivo  do  espirito  de  atrocidade  que  dirigia  a  Inqui- 
sisco em  Portugal;  Carlos  v  exigia  o  maximo  rigor,  para  que  se  nào 
refugiassem  em  Portugal  os  judeus  fìigidos  de  Hespanba,  e  para  que, 
OS  que  abandonassem  Portugal  se  refugiassem  nos  seus  estados  de  Flan- 
dres,  recebendo  ali  dinbeiro  d'elles  pela  tolerancia  que  Ibes  concedia. 
Iste  affirmam  as  Instruc^es:  <E  bom  que  o  Nuncio  saiba  ainda,  que 
se  diz  que  o  Infante  D.  Luiz  està  muito  enraivecido  a  respeito  d'està 
Inquisisse  por  Ibe  ser  assim  ordenado  pelo  Imperador,  o  qual  deseja 
que  se  fasa  o  mais  rigorosa  possivel  em  Portugal,  por  muitas  causas, 
entro  as  quaes  sSo  as  principaes, — que  teme  que  o  exemplo  de  Por- 
tugal sirva  para  reduzir  um  dia  a  sua  Inquisi^So  aos  mesmos  termos 
comò  esteve  para  o  ser  no  tempo  de  LeSo. . .  A  outra  causa  que  move 
a  isso  o  Imperador,  é  que  a  LiquìsisSo  de  Portugal  tira  aos  Castelba- 


^  Instrucgdes,  Ed.  de  Londres,  de  1824,  p.  16. 
«  Ibid.,  p.  46. 

3   TUIA      «    AT 


3  Ibid.,p.  47. 


MUDAN(A  DA  UNIVfiRSIDADE  453^ 

noB  aquelle  refogio  qua  tinham  quando  em  Castella  erammaltratados,. 
e  juntamente  aquelles  que  fogem  de  Portugal,  todoB  ou  por  urna  vìa^ 
ou  por  outra  ficam  em  poder  do  Imperador.  Na  Fiandre»  ha  um  numero - 
grande,  e  todos,  quando  o  Imperador  precisa,  dSo  dinbeiro:  etc.»^  A 
InqaÌ8Ì9So  recebeu  para  este  firn  teda  a  8anc9&o  da  auctoridade  tem^ 
perai,  chegando  em  Portngal  o  proprio  rei  a  escreyer  urna  carta  a 
D.  Fedro  de  Mascarenhas,  confessando-Ihe  que  bem  desejaya  ser  in- 
quisidor.  A  bulla  que  instituiu  em  Portugal  a  Inquisif&o  foi  expedida 
em  23  de  maio  de  1536,  sondo  recebida  lego  em  julho;  o  infante  D. 
Henrique,  irmSo  do  rei,  foi  nomeado  inquisidor  em  1539,  e  os  Autos 
de  Fé  come9aram  em  1540,  em  20  de  setembro,  sondo  queimadas  vinte 
e  tres  pessoas. 

Reformar  a  Universidade  sob  o  impulso  d'està  allucina9So  fanatica 
era  separal-a  da  influencia  do  humairfsmo  da  Renascenga.  0  huma- 
nismo,  pelo  conhecimento  das  linguas  classicas  e  das  obras-primas  da 
antiguidade,  favorecia  o  desenvolvimento  da  critica  comparativa  appli- 
cada  à  Biblia  e  aos  Padres  da  Egreja.  Convinha  pois  reagir  centra  o 
humanismo;  as  consequencias  yiram*se  immediatamente.  Na  resposta 
em  carta  de  26  de  julho  de  1541  à  consulta  do  Reitor,  escre via-se  : 
cE  quanto  ao  que  dizees  da  folta  que  ha  neasa  Universidade  nos  prin- 
dpios  da  laJtinidade,  e  que  cu  devia  mandar  vir  a  mi  ho  mostre  JoSo 
Femandes  eouvil-o  sobre  iste,  vós.o  praticae  com  o  dito  JoSo  Fer- 
nandes,  e  escrevermees  ho  que  Ihe  parece  que  se  nisto  deve  fazer.»  Foi 
*esta  decadencia  que  provocou  entfto  em  1547  a  introducgSo  da  nova 
corrente  humanista  franceza,  sob  a  influencia  pedagogica  dos  GouvSas. 
O  fanatismo,  porém,  receava  que  està  admiragSo  da  antiguidade  eman* 
cipasse  OS  espiritos  da  subordinagAo  catholica;  a  Egreja  acceitou  a  im- 
POSÌ9&0  dos  estudos  humanistas,  mas  apropriou-se  d'elles  pela  institui- 
ffto  da  Companhia  de  Jesus,  destinada  exclusivamente  ao  ensino  mèdio, 
tornando-se  os  seus  socios  os  mais  disciplinados  pedagogos,  e  assaltando 
deliberadamente  o  governo  das  Universidades,  O  estudo  das  huma- 
nidades  em  Coimbra,  reorganisado  pelos  G-ouvéas,  em  bem  ponce  tempo 
cahiu  sob  0  dominio  dos  Jesuitas,  por  està  corrente  historica  que  era  go- 
ral a  teda  a  Europa.  Para  comprehender  as  pretendidas  reformas  uni- 
versitarias  de  D.  JoSo  in,  importa  ter  presente  os  dois  factos  capitaes 
dentro  dos  quaes  estSo  circumscriptas — o  estabelecimento  da  Inquisì* 
9S0  e  o  predominio  absorvente  da  Companhia  de  Jesus. 

Na  trasladagSo  da  Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra,  D.  JoSo  m 


1  Littruegdu,  p.  33. 


454  UISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIHBRA 

mandou  que  contìnuassem  a  vigorar  08  Estatutos  dados  por  D.  Manuel: 
«mando  que  emquanto  nam  prover  essa  XTniversidade  de  novos  Està- 
tutOBy  useeS|  e  vos  rejaes  pelos  Statutos  que  foram  doB  Studos  de  Lis- 
boa, de  que  tob  mando  per  ho  doutor  Francisco  MendeB  ho  propria 
livro  dellcB  asBinado  por  el  rei  meu  senhor  e  padre  que  santa  gloria 
aja.i^  Este  alvari,  com  data  de  16  de  juiho  de  1537,  indica-nos  o  mo- 
mento mais  activo  da  reforma  da  Universidade;  porém  em  9  de  no- 
vembre d'esse  mesmo  anno  foi  decretado  o  Begimento  de  Lentea  e  Es- 
tudant€8j  que  se  póde  bem  considerar  comò  um  additamento  aos  Esta- 
tutos. As  novas  dÌ8posÌ9Se8  àcerca  de  frequencias,  exames  e  gràos  su- 
scitaram  duvidas  na  pratica,  e  em  resposta  à  consulta  do  Jleitor  foram 
decretados  Vinte  cinco  Capihdos  e  Respostaa  de  8,  A.  do  modo  que  se 
tem  no  dar  do8  gràos  e  outras  cousas,  com  data  de  20  de  setembro  de 
1538.« 

NSo  havia  um  pensamento  na  trasIada^So  da  Universidade  ;  todas 
as  necessidades  da  nova  instalIa(2o  foram  decretadas  em  breves  prò* 
viBSes  e  alvards,  conforme  os  Reitores  reclamavam  no  meio  de  con- 
stantes  hesitafCes.  0  que  o  rei,  ou  quem  usava  a  sua  auctoridade,  mais 
insistia  era,  que  se  fallasse  latim  na  Universidade  de  Coimbra,  orde- 
nando  no  alvarà  de  16  de  julho  :  «E  para  que  os  Scholares  se  costu- 
mem  a,  fallar  latim  e  entendello,  ei  por  bem  e  mando  que  os  lentes 


1  Ob  Estatutos  authenticos  dados  por  D.  Manuel  &  Universidade  e  revigora- 
dos  por  D.  Joio  ni,  perderam-se,  corno  o  revelam  os  Auctores  do  Compendio  his" 
iorico:  «Tambem  estes  seguudos  Estatutos  ou  compilalo  do  senhorrei D.Manuel 
cahiram  porénì  no  mumo  somidouro  do$  aniecedenteé,  attestando-o  assim  o  mesmo 
Francisco  LeitSo  Ferreira.»  Os  Estatutos  dados  por  D.  Jolo  nz,  tambem  se  per- 
deram,  corno  confessa  Figueiróa  :  «Nem  estes  Estatutos  (refere-se  aos  de  1592) 
nem  alguns  que  se  Jkeram  anies  doa  tmpressoe  em  1698  e  dos  actuaes  porque  se  go- 
Tema  a  Universidade,  estào  n'este  Cartono,  e  a  causa  deve  ser  porque  para  se  fo- 
zerem  os  novos,  se  levaram  todos  os  antigos  para  Lisboa  e  n2o  se  tomaram  a  re- 
stituir, e  se  poderio  achar  no  Cartono  do  Tribunal  da  Mesa  da  Consclencia.»  Nós 
tìvemos  a  fortuna  de  encontrar  em  um  alfarrabista  um  grosso  volume  manuscripto 
com  lettra  do  firn  do  seculo  zyiii,  em  que  se  acbam  nao  so  os  Estatutos  de  D.  Ma- 
nuel, corno  OS  de  D.  Jo3o  ni,  compri  hendendo  os  principaes  documentoa  da  tzas- 
lada^&o  da  Universidade  para  Coimbra  até  a  introducano  dos  Jesuitas.  Em  uma 
das  guardas  do  Ms.  lé-se  :  Do  Principal  Ccutro.  E  por  tanto  multo  naturai  que 
aquelle  erudito  se  apoderasse  do  manuscripto  esquecido  no  Tribunal  da  Mesa  da 
Consciencia.  Sobre  estes  documentos  totalmente  desconhecidos  é  que  baseamos  a 
noBsa  historìa  pedagogica  na  primeira  metade  do  seculo  iti. 

'  Bibeiro  doB  Santos  aponta  comò  tendo  sido  impressa  por  Gtorm2o  Gkdhardo 
uma  Ordenanga  para  os  Esiudanies  da  Universidade  de  Coimbra,  sobre  eriadcs, 
bestas,  trajos  e  cuiras  cousas.  1589.  (Mem.  de  Litteratura,  t  vin,  p.  118  (2.*  ed.) 


MUDANQA  DA  UNIVERSIDADE  455 

leant  em  latim  snas  Ii98e8;  e  nam  leram  em  linguagemy  e  assi  as  con- 
ferencias  qne  os  schollares  antre  si  fizerem  e  pergantas  aos  lentes  e 
respostas  a  ellas  que  se  costumom  fazer  acabadas  as  ligoens  e  todo  o 
mais  que  fallarem  das  portas  a  dentro  das  scholas  seja  em  latim^  sem 
cousa  aJguma  falarem  em  linguagem  sob  pena  do  que  ho  contrario 
fezer  paguar  por  cada  vez  que  fallar  linguagem  ho  que  ao  Rector  bem 
parecer.»'  O  isolamento  da  Universidade  para  uma  cidade  de  provin- 
cia, comò  para  separal-a  do  grande  movimento  das  idéas  que  agitava 
a  Europa,  e  o  absurdo  da  imposÌ9So  da  lingua  latina  nos  cursos  e  trato 
academico  desenvqlvendo  o  pedantismo  doutoral,  eram  circumstancias 
que  esterilisavam  a  reforma  pedagogica,  obrigando  o  poder  real  a  no- 
vas  e  constantes  remodela93es  legislativas. 

Pelo  alvarà  de  1  de  mar90  de  1537,  dirigido  aos  lenteà,  officiaes 
e  estudantes  da  Universidade  de  Coimbra  timquanto  n&o  for  degido 
Rector  para  reger  esses  .studos  segundo  forma  dos  statutos  delles  ou 
por  minha  provisSo»  foi  nomeado  D.  Garcia  de  Àlmeida.  D'està  data 
em  diante  acabou  o  principio  electivo,  continuando  os  Reitores  a  se- 
rem  nomeados  por  provisSo  regia. 

Para  a  accommoda9So  das  aulas  da  Universidade  em  Coimbra, 
contava-se  com  os  aposentos  dos  Collegios  de  Santa  Cruz;  eram  insuf- 
ficientes,  e  n'esta  angustia,  o  reitor  D.  Garcia  de  Àlmeida,  que  em 
1  de  mar90  f6ra  nomeado  pelo  rei  para  dirigir  a  implanta9So  dos  es- 
tudoB,  viu-se  for9ado  a  dividir  as  Faculdades:  nos  Cdllegios  de  Santa 
Cruz  ficaram  as  cadeiras  de  Theologia,  Linguas  latina  e  grega,  Artes 
e  Medicina;  as  cadeiras  de  Direito  civil  e  canonico,  de  Mathematica, 
Rhetorica  e  Musica  estabeleceram-se  temporariamente  na  residencia 
do  proprio  Eeitor,  nas  casas  sitas  d  Porta  de  Belcouce  junto  ao  Arco 
da  Estrella,  (onde  depois  foi  o  Collegio  dos  PP.  da  Provincia  da  Con- 
ceÌ92lo)  come9ando  a  fìinccionarem  em  2  de  mar90  de  1537.  O  poder 
do  Reitor  nSo  podia  exercer-se  no  mosteiro  de  Santa  Cruz,  onde  go- 
vernava o  reformador  Frei  Braz  de  Barros,  e  d'està  fórma  era  impos- 
sivel  um  regimen  serio  de  disciplina  e  sem  conflictos.  Pelas  instantes 
representa95es  do  reitor,  o  rei  declarou  em  23  de  setembro  d'esse 
mesmo  anno  que  ia  dar  ordens  para  a  construc9&o  de  Escolas  geraes, 
onde  ficassem  reunidas  todas  as  cadeiras,  mandando  que  provisoria- 
mente pàssassem  as  aulas  da  residencia  do  Reitor  para  os  Pa90s  reaes, 


1  Nos  Estatutos  da  Universidade  de  Salamanca,  de  14  de  outubro  de  1588, 
vem  :  Os  leitores  hào  deltrem  UUim,  e  nSo  fallario  em  romance  senio  para  referi- 
lem  alguma  lei  do  rei,  ezcepto  o  de  Grammatica  de  menores,  Archeologia  e  Musica. 


456  HISTORU  DA  imiYERSIDADE  DE  COIMBRA 

eque  ficaram  sendo  desde  entfto  os  Pdgoa  dcu  EbcoIcu,  onde  ainda  hoje 
està  a  sède  principal  da  Universidade.  §  ^  A  incorporayfto  dos  estudos, 
que  estavam  nas  Escolas  de  Santa  Cruz,  na  Universidade,  nfto  se  con* 
seguiu  facilmentei  sendo  preciso  fazer  determinadas  concessSes  ao 
Mosteiro. 

Quando  se  fez  a  mudan9a  da  Universidade  para  Coimbrai  as  Es- 
cholas  permaneceram  desde  1537  até  1544  junto  do  Mosteiro  de  Santa 
CruZ|  passando  depois  para  os  Pa9os  do  rei,  na  cidade  alta.  Da  pri- 
m^ira  sède  da  Universidade  junto  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz,  escreve 
D.  Nicolào  de  Santa  Maria:  «Para  iste  mandou  edificar  junto  ao  Mos* 
teiro  de  Santa  Cruz  deus  polidos  e  concertados  CoUegios  coin  suas 
aulas,  urna  i  mSo  direita  do  Mosteiro  e  outro  k  esquerda,  e  a  razSo 
que  moveo  a  El  rei  em  p8r  a  Universidade  n'aquelle  sitio  tam  junto 
ao  MosteirO;  tSo  observante  e  reformado  corno  o  de  Santa  Cruz,  foi 
para  que  os  estudantes  aprendessem  j  untamente  Letras  e  virtudes. . . 
O  primeiro  d'estes  Collegios  tinha  ciuco  aulas,  ou  geraes  ladrilhados 
e  mui  bem  forrados  de  bdrdo  com  suas  cadeiras  para  os  Mestres  feitas 
por  grande  arte;  e  n'este  Collegio  se  liam  as  Ii93e8  de  Theclogia  es- 
peculativa  e  moral,  e  da  sagrada  Escriptura  e  sagrados  Canone».  O 
segundo  Collegio  se  chamava  de  S.  Joào  Baptista,  e  tinha  outras  tantas 
aulas  e  cadeiras,  em  que  se  liam  as  Leiè^  Medicina  e  Mathematica.  As 
Artes,  Bhetorica  e  Chammatica,  e  Linguas  de  Chrego  e  Hebraico  se 
liam  no  Collegio  de  Todos  os  Santos.»  *  Os  dois  Collegios  das  Escholas 
maiores  denominavam-se  de  8.  Jo9jo  Baptista  e  de  Santo  Agostinho. 
Acerca  da  construc9So  d'estes  Collegios  é  curiosa  a  carta  de  D.  JoSo  in 
ao  Prior  geral  D.  Manuel  de  Araujo,  datada  de  9  de  fevereiro  de  1537  : 

cPrìor  Crasteiro.  Eu  Eirei  vos  envio  multo  saudar.  Vi  a  carta 
que  me  escrevestes  c3  o  debuxo  que  me  enviastes  d'essa  obra  dos 
EstudoSy  com  os  apontamentos  em  que  vem  a  declarafSLo  da  largura  e 
altura  das  paredes,  e  grandura  dos  portaes  das  aulas  e  Geraes  de 
Theclogia,  Canones,  Leis  e  Medicina;  agrade9o-Tos  a  diligencia  c3  que 
estas  obras  se  fizeram,  que  tudo  procede  de  vesso  bom  zelo  e  animo 
virtuoso.  Eu  sempre  fiz  fundamento,  quando  mandei  fazer  esses  Es- 
tudos  de  assentar  ahi  Universidade  e  Escolas  geraes,  pelo  sentir  assi 
Ber  mais  servilo  de  Deus  e  bS  de  mous  vassallos;  e  por  que  os  Lentes 
que  ora  vSo  pera  come9arem  a  ler  Theologia,  Canones,  Leis  e  Medi- 
cina, hfto  de  Ber  nessa  cidade  por  todo  este  mez  de  Fevereiro,  pera 


1  Villar  ÌCaior,  Estpoti^  mooinia,  etc,  p.  54. 

2  D.  NioolAo  de  Santa  Maria,  Ckrmdòa  do»  Begrantes,  Liv.  x,  p.  998. 


MUDANQA  DA  UNIVERSIDADE  457 

come^arem  a  ler  em  1  de  Mar^o  que  ora  yeni;  mandareis  preparar 
esaes  Geraes  com  cadeiras  pera  os  ditos  Lentes,  e  bancos  pera  os  £^- 
tudantes,  e  tudo  o  mais  que  for  necessario.  E  as  Artes  se  lerfto  n'esse 
vesso  Collegio  de  Todos  oa  Santos.  E  por  que  pera  o  Regimento  dessa 
Universidade  he  necessario  haver  Reytor,  corno  em  todas  as  oatras 
Universidades,  o  qual  ao  presente  qSo  pode  ser  por  eleÌ9llo,  eu  encarrego 
ora  d'este  cargo  o  Reitor  D.  G-arcia  de  Almeiday  e  a  Nicolào  LeitSo 
vai  ProvisSo  do  Cardeal  mea  muito  amado  e  prezado  irmSo,  pera  pa- 
gar aos  ditos  lentes  daa  rendas  do  Priorado  mór  d'esse  Mosteiro.  An- 
rique  da  Mota  a  fez  em  E  vera,  aos  9  de  Fevereiro  do  anno  de  1537. 
Rey.»  * 

Na  Descripjfto  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  mandada 
ao  Papa  Paulo  ili  em  1540,  ^  falla-se  da  anima$2Lo  que  reinava  nos 
novos  esludos:  cSobre  este  terreirO|  em  altura  de  quatro  degr&os,  està 
um  tavoleiro  ladrilhado  de  pedras  quadradas,  e  cercado  de  grades  de 
ferroy  sobre  o  qual  estSo  formadas  as  bases  do  soberbo  portai  da  ma- 
gestade  e  Torres  e  Igreja  do  dito  Mosteiro.  Em  este  tavoleiro  ha 
;grande  concurso  de  Estudantes,  que  continuamente  confirem  entro  si, 
huns  em  Grammatica,  outros  em  Rhetoricaj  outros  em  Logica  e  Phi- 
losopkia,  outros  em  Santa  Theologia,  outros  em  a  Medicina  ^  da  vida 
e  saude  humana  reparadora;  e  a  todos  he  oprobrìo  falar  salvo  em  a 
lingua  Latina  ou  Grega.  Estes  estudantes  saem  comò  enxames  de  abe- 
Ihas  de  deus  polidos  e  concertados  Collegios,  que  osti  um  &  dextra, 
outro  &  sestra  d'esse  Mosteiro,  e  nSo  era  pequeno  ornamento  seu. 
D'estes  Collegios  o  primeiro  se  diz  de  3.  Agostinho  pay  dos  Conegos 
regulares,  e  o  segundo  de  S.  Joào  Bautista;  sSk)  as  Aulas  ou  Gcraes, 
em  elles,  dez,  ladrilhados  e  forrados  e  providos  de  cathedras  muy 
artificiosas.»  *  Na  Carta  de  D.  JoSo  in,  de  15  de  dezembro  de  1539, 
em  que  dà  aos  Priores  geraes  de  Santa  Cruz  a  dignidade  de  Cancel- 
larios  da  Universidade,  comò  compensammo  pela  cedencia  dos  Collegios, 
diz:  ce  pela  dita  maneira  bei  por  unidos  e  incorporadoa  os  ditoa  Col- 
legios com  a  dita  Universidade;  e  mando  que  d'aqui  em  diante  todo 
aeja  e  se  chame  htla  Univerjsidade,  e  todos  juntamente  hajam  e  gozem 


1  Ap.  D.  Nicol&o,  Op»  cU.f  Liv.  x,  p.  294. 

2  Sousa  Viterbo.  0  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra^  Annota^es  e  Do- 
eumentoB. 

3  Em  Carta  de  16  de  Janeiro  de  1538  manda  D.  Jo&o  in,  qae  a  Medicina  se 
lésse  nos  Collegios  de  Santa  Cruz,  pela  rela^So  qne  està  sdencia  tem  com  as  Artes, 

*  Chron,  dos  Regr,,  Lit.  vii,  p.  89. 


458  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIBfBRA 

de  huns  mesmos  prìvilegios,  assi  dos  que  aie  aqui  Ihe  sSo  concedidos^ 
corno  de  todos  os  que  ao  diante  se  concederem  i  dita  Universidade.i  ^ 
0  desenvolvimento  do  corpo  escholar  perturbava  o  recolhimento  e  clau- 
sura dos  Regrantes,  e  o  Prior  goral  D.  Diooisio,  entSo  Cancellano  da  Uni- 
yersidade,  escreveu  a  D.  JoSo  m  pedindo*lhe  para  passar  a  Universi* 
dade  dos  estudos  para  a  cidade  alta  para  os  Pa90s  d'£l-rei.  D.  JoSo  m 
attendeu-o  em  carta  de  22  de  outubro  de  1544,  escripta  de  Evora. 
DespoYoou-se  o  Collegio  de  S.  Agostinho;  conservando  apenas  para 
memoria  uma  aula  onde  os  Theologos  faziam  acto  de  Augustiniana  e 


1  Dom  Joào  por  gra^  de  Dece  Rej  de  Portugal  e  dos  Algarves  d*4quem  e 
d'além  mar  em  Africa,  Senhor  de  Guiné  e  da  Conquista,  navega^So  e  commercio 
de  Ethiopia,  Arabia,  Persia  e  da  India.  A  qnantos  està  minha  Carta  virem,  fa90 
saber,  que  considerando  eu  corno  em  o  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimlira  jazem 
OS  corpos  do  Reys  de  gloriosa  memoria,  a  t»aber  :  del-Rey  Dom  Affonso  Henriques 
e  del-Rey  Dom  Sancho  seu  filho,  prìmeiros  Rcys  d'este  Beyno  de  Portugal;  e 
bem  as0Ì  havendo  respeito  ao  dito  Mosteiro  ser  ora  por  minha  ordenan^  tambem 
reformado,  e  estar  em  tanta  obeervancia,  e  se  fazer  em  elle  tanto  servilo  a  Nosso 
Senhor,  e  em  os  Collegìos  que  em  elle  mandei  fazer,  tanto  frncto  e  proveito  de 
meuB  Beynos  e  Senhorios,  em  as  Linguas,  Artes  e  Theologia,  pelas  quaes  coueas 
recebendo  eu  multo  prazer  e  contentamento. 

E  querendo  acrescentar,  honrar  e  fazer  mercé  ao  dito  Mosteiro  de  meu  pn>- 
prio  motu  hei  por  bem  e  me  praz  fazer  mercé,  comò  de  feito  fa^o  ao  Prior  do  dito 
Mosteiro  e  Geral  da  Congrega9ao  que  ora  he,  e  pelle  tempo  for,  do  Officio  de  Can- 
cellarlo da  Universidade  da  dita  Cidade  de  Coimbra,  do  qual  officio  Ihe  fa^o  mercé 
com  todas  as  honras  e  privil^os,  antecedendas,  preferencias  e  prerogativas,  com 
que  o  tiverito  e  d*elle  uzarSo  sempre  os  Cancellarios,  que  foram  em  està  Cidade 
de  Lisboa  até  o  tempo  que  d*ella  mudei  os  estudos  pera  a  dita  Cidade  de  Coimbra. 

£  por  està  mando  ao  Reytor,  Lentes,  Conselheiros,  Deputados  e  Estudantes 
da  dita  Universidade,  que  ora  sÌo,  e  ao  diante  forem,  que  hajam  pelle  sobredito 
modo  o  dito  Prior,  que  bora  he,  e  aos  que  pelo  tempo  forem  por  Cancellarlo  da 
dita  Universidade  ;  e  que  todos  os  gràos  de  Licen^as,  Doctorados,  e  Magisterios 
se  dem  pelo  dito  Cancellarlo  em  o  dito  Mosteiro,  onde  se  farSo  os  ezames;  e  os 
ditos  grioB  se  dar£o  pela  Bulla  e  Privilegio  concedido  &  dita  Universidade  pelo 
Santo  Padre  a  minha  instancia  em  Theologia,  e  Canones  ;  e  em  Leis,  Medicina  e 
Artes  se  derio  sempre  por  minha  auctoridade,  comò  até  ao  presente  se  darlo,  se- 
gundo  a  forma  de  meu  Regimento  e  Estatutos  da  Universidade.  Dos  quaes  grios 
o  dito  Cancellario  passare  Cartas  em  fórma  aos  graduados,  com  declaraySo  da  an- 
toridade  por  que  foram  dados  expressa  nas  ditas  Cartas  feitas  pollo  escrivSo  da 
Universidade  e  assinadas  por  elle  dito  Cancellario. 

£  mando  que  das  portas  a  dentro  do  dito  Mosteiro,  e  da  sua  Capella  de  S. 
Joao,  e  de  todos  os  seos  Collegios,  a  saber  do  Collegio  de  S.  Joào,  e  do  Collegio 
de  Santo  Ago$ttnho,  e  do  Collegio  de  Todoe  oe  Santoe,  o  dito  Padre  Cancellario 
haja  e  tenha  teda  a  jurisdic^o  em  os  Mestres,  estudantes  e  officiaes  que  em  elles 
lerem,  estudarem  e  servirem.  A  qual  jurisdi^io  se  entender&  em  os  Mestres  so. 


MUDANgA  DA  UNIVERSIDADE  459 

de  QuocUibetoSj  e  no  Collegio  de  S.  JoSo  ficou  ama  aula  para  Artes^ 
qua  80  liam  aos  conegos.  ^ 

Por  carta  de  22  de  outabro  de  1544,  ordenou  D.  JoSo  lu,  em 
conformidade  com  o  pedido  da  UniverBidade;  que  os  lentes  dos  Col- 
legios  de  Santa  Cruz  foBsem  ler  aos  pajos  reaes,  nSo  bavendo  differenjaa 
entro  os  estudantes,  ficando  todos  sob  a  auctoridade  do  Reitor. 

VejamoB  corno  se  estabeleceu  o  quadro  docente  das  Faculdades, 
quando  a  Universidade  comeyou  a  funccionar  em  Coimbra*  Para  a  Fa- 
culdade  de  Theologia  vieram  os  seguintes  Lentes: 

Cadeira  de  Prima:  Doutor  Affonao  do  Prado;  veiu  de  Alcaldi 
sondo  mais  tarde  Reitor  da  Universidade. 

Cadeira  de  Vespera:  Doutor  Francisco  de  Monson,  pela  Univer- 
sidade de  Alcal&i  mestre  em  Artes;  lèra  em  Lisboa,  em  cuja  sé  tinha 
o  beneficio  de  uma  conezia  doutoral.  D.  JoSo  m  mandou  que  passasse 


mente  em  o  que  tocar  &8  li^ene,  e  faltas  dos  lentes,  e  em  o  fazer  dos  ezercicios 
6  disputas,  e  em  as  horas  que  hSo  de  lér,  e  em  Ihes  dar  as  licen^as  pera  irem 
fora,  e  pera  lerem  outros  por  elles,  e  em  Ihes  mandar  pagar  seus  salarìos,  e  em  os 
mandar  multar  em  elles,  quando  em  as  sobreditae  cousas  Ihe  forem  deeobcdientes. 
E  em  OS  estudantes  e  CoUegiaes  em  Ihes  dar  licen9aB,  e  em  os  reprebender  e 
emendar,  quando  forem  escandalosos,  mal  eneinados  ou  desbonestoe,  e  em  as 
cousas  que  dfio  torva^So  a  bem  estudar.  Porem  se  algum  commetter  algum  crime 
dentro  em  os  ditos  Collegios,  ou  quizer  demandar  outro  judicialmente,  ou  fazer 
Gousa  por  que  seja  necessario  fazer  d*elle  justi^a,  ao  Conservador  pertencerà  a  tal 
jurìsdicySo,  scudo  Leigos,  e  se  fcrem  RelìgioBos, ou  Clerigos  de  Ordens  sacras,  per-- 
tencerà  a  seus  Prelados  :  e  mando  que  das  portas  a  fora  do  dito  Mosteiro,  Capella 
e  Collegios,  o  dito  Cancellano  nSo  tenba  jurisdi^So  algua  em  os  sobreditos  Mes- 
tres,  estudantes  e  officiaes,  mas  ficarà  toda  ao  Reytor  e  Conservador  da  dita  Uni- 
versidade. 

£  quando  acontecer  o  dito  Conccllarìo  ser  ausente,  ou  ter  outro  impedimento, 
tenba  suas  vezes  em  o  dito  officio  aquelle  Religioso  que  as  tiver  em  a  goveman^a 
do  dito  Mosteiro,  e  pella  dita  maneira  bei  por  unidos  e  incorporados  os  ditos  Col- 
legios com  a  dita  Universidade  ;  e  mando  que  daqui  em  diante  todo  seja  e  se 
cbame  bua  Universidade,  e  todos  juntamente  bajam,  e  gozem  de  buns  mesmos  pri* 
vilegios,  assi  dos  que  até  qui  Ibe  sSo  concedidos,  comò  de  todos  os  que  ao  diante 
se  concederem  à  dita  Universidade.  E  por  està  mando  aos  ditos  Cancellarìos, 
Reytor,  Conservador,  Lentes,  Conselbeiros,  Deputados  e  a  todos  os  outros  offi« 
ciaes  da  dita  Universidade,  que  sem  embargo  algum  que  a  elio  ponbam,  guardem 
todas  as  cousas  sobreditas,  assi,  e  per  aguiza  que  aqui  hecontbeudo,  por  que  assi 
be  minba  mercé,  e  por  certeza  d  elio  mandei  passar  està  minba  carta.  Dada  em  a 
Cidade  de  Lisboa,  aos  15  dias  do  mez  de  Dezembro.  Anrique  da  Mota  a  fez.  Anno 
do  Nascimento  de  N.  Senbor  Jesu  Cbristo,  de  1589  annos.  Hey.»  (Apud  D.  Ni- 
coIAo  de  Santa  Maria,  Chronica  dos  BegrarUea^  Liv.  vix,  cap.  14,  p.  55.) 

1  Ibidem,  p.  89. 


460  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

a  reger  a  Cadeira  de  Escriptura^  transferindo  para  a  de  Vespeca  Frei 
Martinho  de  Ledesma,  frade  dominicano  do  mosteiro  de  Santo  Estevam 
de  Salamanca,  e  ao  qaal  prohibiu  o  ensino  particolar  no  Bea  Collegio 
de  S.  Thomaz.  Ledesma  foi  deputado  do  Santo  Officio  de  Coimbra,  e 
lente  de  prima  na  faculdade  de  Theologia. 

Cadeira  de  Ter9a:  Mestre  Frei  Joào  Pedraza,  dominicano. 

Àlém  d'estes  lentes,  vieram  tambem  Frei  OuUherme  Oomertj  para 
a  cathedra  de  Theologia,  e  Frei  Antonio  de  Affomeca,  doutor  pela  Uni- 
yersidade  de  Paris,  dominicano,  para  urna  cathedra  de  Escrìptura,  ob< 
quaes  regeram  por  poaco  tempo. 

Sob  0  goyerno  do  activo  reitor  Frei  Diego  de  Mur9a,  doutor  por 
Louvain,  mandou  o  rei  vir  de  Paris,  para  lerem  na  Faculdade  de  Theo- 
logia,  08  doutores: 

Marcos  Eomeiro,  para  lér  Escrìptura,  passando  depois  para  a  de 
yespera  de  Theologia. 

Payo  Bodrigues  de  VUlarinhOj  para  lér  Testamento  Novo,  sondo 
mais  tarde  Principal  do  Collegio  Recd  pelo  fallecimento  de  André  de 
Gouvéa. 

Dora  Damiào  veiu  tambem  de  Paris  para  a  Faculdade  de  Theolo- 
gia, onde  leu  até  Ì^4À, 

Para  a  Faculdade  de  Canones: 

Cadeira  de  Prima:  o  Licenciado  Francisco  Codhoj  Desembargador 
de  Aggravos,  voltando  para  Lisboa  lego  que  em  1538  o  Doutor  Mar- 
tinho AspUcueta  Navarro  veiu  de  Salamanca,  onde  Ha  havia  sete  an- 
nos,  para  Coimbra,  por  influencia  de  Carlos  v. 

O  Bacharel  Manuel  Vaz  (de  Andrade). 

Sob  o  governo  do  reitor  D.  Frei  Bernardo  da  Cruz,  para  a: 

Cadeira  de  Vespera:  Joào  Peruchio  de  Mogrovyo,^  que  ensinava 
em  Salamanca,  sendo  licenciado,  e  recebendo  o  gr&o  de  doutor  em 
Coimbra. 

Cathedrilha:  Doutor  Bartholomeu  FUippe,  simples  bacharel,  rece- 
bendo 0  grào  de  doutor  em  Coimbra,  e  passando  para  a  regencia  de 
Decreto. 


1  D.  Jo2o  de  Mogfrovejo  estudoa  em  8alamaaca  Jurìspradencia,  corno  oolle- 
gial  de  S.  Salvador  de  Oviedo,  recebendo  a  beca  em  29  de  setembro  de  1689;  de« 
pois  de  ser  lente  em  Coimbra,  por  convite  de  D.  JoSo  nz,  acceiton  da  Universi- 
dade  de  Salamanca  a  cathedra  de  Prima  de  Leia  e  ama  Coneaia  dontoral,  fidle- 
cendo  em  1566.  (Yidal  j  Dias,  Memoria  historioa  da  Univtmdadt  de  Salamaiwt 
p.  463.) 


MUDAN^A  DA  UNIVERSIDADE  46 1 

Para  a  Faculdade  de  Leis: 

Cadeira  de  Prima:  o  Doutor  Gongolo  Vaz  Finto,  que  regia  na  Uni- 
versidade  de  Lisboa  havia  trinta  annos,  e  era  do  Desembargo  do  Pa90. 

Cadeira  de  Vespera:  o  Doutor  Lopo  da  Costa  (ia  utroque  jure), 
lea  por  poaco  tempo. 

Cadeira  de  Ter^a:  o  bacharel  Antonio  Dias,  que  se  doutorou  de- 
pois. 

Cadeira  de  Codigo:  Manud  da  Costa,  o  Sutil;  veiu  de  Salamanca, 
por  onde  era  bacharel,  e  cà  se  doutorou,  regressando  mais  tarde  para 
a  sua  antiga  Universidade.  ^  , 

Cadeira  de  Sexto  :  o  Licenciado  por  Salamanca  Luiz  de  AlarcSo, 
castelhano,  que  se  doutorou  em  Coimbra. 

Vieram  mais  quatro  bachareis  de  Salamanca  para  quatro  cadeiras 
de  Leis,  sondo  ao  todo  quatro  lentes  de  Canones  e  sete  de  Leis. 

E  sob  0  governo  do  reitor  D.  Agostinho,  vieram  para: 

Vespera  de  Leis:  Antonio  Soares,  licenciado  por  Salamanca;  ci 
tomou  0  grào  de  doutor  e  foi  lente  de  Prima. 

Doutor  Gongolo  Rodrigues  de  Santa  Cruz,  castelbano,  tendo  lido 
na  Universidade  de  Lisboa,  onde  se  graduara. 

Dovior  Ayres  Pinhel,  bacharel  por  Salamanca;  doutorou-se  cà; 
seguiu  as  cadeiras  de  Leis  até  à  de  Vespera,  regressando  para  Sala- 
manca. 

Sob  0  governo  do  reitor  Frei  Diego  de  Murya,  vieram  para  està 
Faculdade: 

Cadeira  de  Prima  :  Fabio  Arcaa  de  Namia  (Amania),  doutor  in 
utroque;  veiu  de  Soma  contractado  pelo  salario  de  360i9KXX)  réis,  e  para 
casas  22i9iOOO  réis. 

Cadeira  de  Vespera:  Ascanio  Escotto,  doutor  in  utroque,  sondo 
por  vezes  vice-Cancellario. 


1  D'aste  Manuel  da  Costa  le- se  na  Memoria  historica  da  Universidade  de 
Salamanca^  por  Vidal  j  Dias,  p.  433  :  «rComeQou  desde  muito  crian9a  o  estudo  do 
Direito  na  Universidade  de  Salamanca,  sob  os  auspicios  da  imperatriz  D.  Isabel, 
mulher  de  Carlos  y,  e  tfob  a  direc^ào  de  Martin  de  Aspilcueta.  Tomou-se  lente 
distincto  de  Direito  na  Universidade  de  Coimbra,  e  tendo  vagado  a  cathedra  de 
Prima  da  dita  faculdade  na  Eschola  de  Salamanca  fez  oppo8Ì9ào  a  ella  com  o  ce- 
lebre Leon  Pinelo,  e  o  Clanstro  d'està  Universidade,  em  vista  do  estraordinario 
merito  de  ambos  os  opposi tores,  concordon,  centra  o  que  entSo  se  praticava,  con- 
servar a  ambos  comò  professores  da  cathedra  de  Prima  de  Direito  civil.»  Todas  as 
suas  pttblìca^òes  foram  incorporadas  em  um  tomo,  impresso  em  Salamanca  em 
1582. 


462  iOSTORIÀ  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Consta  que  eram  dezoito  os  lentes  de  Leis^  caja  lista  se  completa 
com  08  segnintes  nomes: 

Luiz  de  Qastro  Pacheco,  lente  de  Decreto. 

Doutor  Luiz  da  Guarda,  lente  de  Institata. 

Bachard  Rodriguo  Alves,  idem. 

Bachard  Bastiào  Bemaldes,  id. 

Bachard  Antonio  Roiz,  id. 

Licenciado  Alvaro  do  Quintal,  Cathedrilla  de  Decreto. 

Doutor  Manuel  Vaz  (passou  de  C^nones). 

Braz  de  Alvide. 

Para  a  Faculdàde  de  Medicina: 

Cadeira  de  Prima:  o  Doutor  Henrique  de  Oudlar,  portuguez. 

Cadeira  de  Vespera:  o  Doutor  Thomaz  Rodrigues  da  Veiga,  av6 
do  afamado  procurador  da  corda  Thomé  Pinheiro  da  Veiga. 

Doutor  Antonio  Barbosa,  qae  recebeu  o  grào  j&  em  Coimbra. 

Doutor  Luiz  Nunes,  nas  mesmas  circumstancias. 

Sob  0  governo  de  D.  Frei  Diego  de  Murfa^  vieram  para  a  vaga  da: 

Cadeira  de  Prima:  o  Doutor  Diogo  ou  Rodrigo  Reynoso, 

Cadeira  de  Àvicena:  o  Doutor  Francisco  Franco,  valenciano. 

Cadeira  de  Anatfaomia  e  Sargia:  Affonso  Rodrigues  de  Gfuevara, 
licenciado  por  Sigaen9a;  recebendo  em  Coimbra  o  gr&o  de  doutor. 

Cadeira  de  Galeno  e  de  Aristoteles  (em  grego)  Antonio  Luiz  (o 
Doutor  Luiz  Grego). 

Para  a  cadeira  de  Mathematica: 

O  Doutor  Fedro  Nunes,  mostre  do  Infante  D.  Luiz,  doutor  em 
Medicina,  lente  em  Lisboa  (1530)  de  Logica,  e  depois  de  Metaphysica* 

Falta  aqui  o  quadro  docente  da  Faculdàde  de  Àrtes;  essa  direc- 
9&0  ficou  entregue  ao  mosteiro  de  Santa  Cruz,  em  cujos  CoUegios  se 
ensinaram  até  &  organisayllo  do  Collegio  real. 

e . . .  nSo  havia  parte  em  Coimbra,  em  que  podessem  lèr-se  todas 
as  sciencias  juntas^  por  ser  grande  o  numero  de  Mestres  e  ouvintes  em 
todas  ellas.  Liam-se  Canones,  Leis  e  Medicina  nos  Pajos  reaes  da  Ci- 
dade,  depois  de  mudadas  para  ella  estas  faculdades  das  casas  de  D. 
Garcia  de  Almeida;  Theologia,  Artes  e  Humanidades  nos  CoUegios  de 
S.  Joào  e  Santo  Agostinho,  junto  ao  Mosteiro  de  S.  Cruz;  e  no  anno 
1544  por  carta  do  mesmo  Rei  (D.  Jofto  in)  de  22  de  outubro  se  man- 
darlo ler  todas  as  sciencias,  que  se  liam  nos  ditos  Colle^os,  nos  Pa(Os 
da  Universidade,  pela  inquieta98o  que  o  Padre  Reformador  Fr.  Braz 


MUDAN(A  DÀ  UNIVERSIDADE  463 

de  Barros  julgoa  causava  a  visinhan^a  dos  CoUegios  e  leitaras  pabli- 
caa  àquella  observantissima  Casa.»  ^ 

Depois  do  governo  de  D.  Garcia  de  Àlmeida,  mestre  do  infante 
D.  Daarte^  e  veder  do  prìncipe  D.  Jofto,  segaia-se-lhe  ainda  n'esse 
mesmo  anno^  por  nomea^So  règia,  o  prìmeiro  Bispo  de  Àngra,  D.  Agos- 
tinho  Ribeiro,  que  teve  outras  dignidades  ecclesiasticas,  taes  corno  Bispo 
de  Lamego  e  govemador  do  bispado  do  Porto.  Està  mudanya  é  indi- 
cativa da  preoccupafSo  em  que  andava  o  fanatico  monarcha,  pensando 
em  entregar  o  governo  da  Universidade  à  auctoridade  episcopal,  corno 
garantia  da  orthodoxia  das  doutrìnas  alli  professadas.  Amedrontava-o 
a  corrente  humanista.  0  governo  de  D.  Agostinho  Ribeiro  duron  cince 
annos  e  sete  mezes,  periodo  em  que  se  encerram  os  trabalhos  de  in- 
stalla$io  e  oi^anisa$So  da  Universidade  de  Coimbra.  D.  Agostinho  re- 
nanciou  o  bispado  de  Lamego,  recolhendo-se  corno  simples  frade  ao 
convento  de  S.  Bento  de  Enxobregas,  obedecendo  ao  seu  caracter  mais 
ascetico  do  que  pedagogico.  D.  JoSo  ili  nomeou  reitor  em  1543  D . 
Bernardo,  bispo  de  S.  Thomé,  que  n&o  chegoa  a  tomar  posse  do  cargo, 
sendo  substituido  por  Frei  Diego  de  Mar9a,  doutor  em  Theologia  pela 
Universidade  de  Louvain,  e  antigo  mestre  do  infante  D.  Duarte.  Lé-se 
no  alvari  de  5  de  novembre  de  1543:  «por  eu  encarregar  dom  ber- 
nardo  bispo  de  sam  thomé  em  cousas  de  8ervÌ90  de  Deus,  e  meu,  e 
nSLo  poder  ir  servir  de  Rector  d'essa  Universidade  de  que  o  tinha  en- 
carregado,  confiando  eu  das  virtudes  e  prudencia  do  padre  Frei  Diego 
de  Mur9a,  mestre  em  theologia,  que  n'isso  servirà  comò  convem  a  ser- 
VÌ90  de  Deus  e  bem  da  dita  Universidade  pela  experìencia  que  d'elle 
tenho  em  outros  carguos  de  que  foi  encarreguado,  ho  encarreguei  ora 
de  rector  da  dita  Universidade  come  verès  pela  provisSo  minha  que 
vos  sera  mostrada.»  Frei  Diego  de  Mur9a  frequentara  a  Universidade 
de  Louvain  na  grande  època  da  impIanta9SLo  dos.  estudos  humanistas, 
e  dava  pertanto  garantias  de  imprìmir  à  sua  direc9So  uma  superiorì- 
dade  tendente  a  collocar  a  Universidade  de  Coimbra  a  par  das  melho- 
res  Universidades  estrangeiras.  O  governo  de  Frei  Diogo  de  Murga 
durou  doze  annos,  os  quaes  correspondem  à  època  mais  gloriosa  da 
Universidade  de  Coimbra;  era  elle  o  unico  reitor  capaz  de  p8r  em  obra 
0  plano  de  reformas  pedagogicas  de  Frei  Braz  de  Barros,  tambem  gra- 
duado  pela  Universidade  de  Louvain,  porque  ambos  comprehendiam 
as  necessidades  mentaes  da  Renascen9a.  Por  fim,  a  ab6orp9So  dos  Je- 


1  Dr.  Silva  Leal,  CoUeQ.  de  Doc  e  Mem,  da  Acad.  de  Hist,  1733,  p.  476. 


464  HISTORIÀ  DÀ  imiVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Buitas,  que  se  apoderarani  do  animo  de  D.  JoSo  lu,  deBgostara  o  rei- 
ter  Frei  Diogo  de  Mur9a,  que  se  refugiou  das  perfidias  da  Companhia 
no  Bea  mosteìro  de  Refoios  de  Basto.  À  sua  retirada  foi  urna  verda- 
deira  calamidade,  e  um  comego  de  decadencia  da  Universidade  de 
Coimbra. 

Ob  estudoB  menores  ou  secundarios  que  existiam  no  mosteiro  de 
Santa  Cruz  ficaram  ainda  independentes  do  governo  da  Universidade: 
e  por  quanto  no  que  teca  aos  Collegios  de  Santa  Cruz  entenderà  ho  pa- 
dre frei  Braz  de  Bragua  (Barros)  govemador  do  dito  moesteiro.»  A  in- 
corporagSo  d'estes  Collegios  na  Universidade^  pouco  depois,  fez-se  pela 
concessSo  da  dignidade  de  Cancellano  da  Universidade  aos  Friores- 
móres  de  Santa  Cruz  de  Coimbra^  e  do  privilegio  dos  gràos  serem  con- 
feridos  com  todo  o  apparato  no  mesmo  mosteiro.  Na  carta  règia  de  29 
de  dezembro  de  1540,  estatue-se:  «e  por  fazer  mercé  e  honra  ao  moes- 
teiro  de  Santa  Cruz  dessa  cidade,  bei  por  bem  que  o  priol  crasteiro 
delle  que  ora  he,  e  pollo  tempo  for,  seja  Cancellario  dcssa  Universi- 
dade, e  que  todollos  gràos  de  licongas,  doctorados  e  magisterios  que  se 
em  ella  ouverem  de  dar  em  todas  as  sciencias  e  faculdades  se  d£m  no 
dito  moesteiro,  onde  se  faram  os  exames  e  os  ditos  gràos  se  deram ...» 
Depois  de  definir  os  poderes  do  Cancellano,  termina  a  carta:  <E  assi 
me  praz  unir  e  encorporar  os  ditos  Collegios  aa  dita  Universidade  pera 
que  tudo  seja  huu  corpo  e  bua  Universidade  segundo  mais  comprìda- 
mente  na  dita  carta  se  contem. . .  »  A  carta  a  que  se  allude  foi  trazida 
para  Santa  Cruz  por  Frei  Braz  de  Barros:  ce  ho  padre  frei  Braz  que 
ora  là  vai  e  leva  outra  tal  carta,  comò  a  que  envio  à  Universidade ...» 
Em  carta  règia  ao  reitor,  datada  de  25  de  Janeiro  de  1545,  oonbece-se 
que  houve  alguma  difficuldade  n'esta  incorporagSo  :  «vi  a  carta  que  me 
escrevestes,  e  quanto  ao  que  dizeis  que  vistes  là  bua  carta  minha  em 
que  se  contém  as  mercés  e  bonras  que  ora  fiz  aos  Collegios  do  Moes* 
teiro  de  Santa  Cruz,  eu  ho  fiz  tanto  por  fazer  mercS  a  essa  Universi- 
dade corno  aos  ditos  Collegios  e  assi  estaa  manifesto  se  bem  quizer 
olbar,  e  folguarei  que  tanto  que  acabardcB  de  assentar  com  o  padre 
frei  Braz  ho  modo  em  que  essas  cousas  bS  de  ficar  pera  se  escusarem 
paixoens  ao  diante  come  na  dita  carta  dizees,  me  enviees  ho  que  nisso 
ambos  fizerdes  e  assentardes,  por  que  folgarei  de  ho  ver.»  A  florescen- 
cia  doB  èstudos  secundarioB  nas  EscholaB  de  Santa  Cruz  fez  com  que 
a  Universidade  alcaufasse  um  epbemero  vigor  na  sua  transplantagSo 
para  Coimbra;  pelo  alvarà  de  29  de  dezembro  de  1540  os  exames  fei- 
toB  no  moBteiro  valiam  para  os  gràos  da  Universidade:  caos  que  estu- 
dam  e  lem  nos  Collegios  do  dito  Mosteiro  de  Santa  Cruz  que  se  qui- 


MUDANgA  DA  UNIVERSIDADE  465 

zerem  graduar  de  Bacharees,  lecenceados  oa  doutores  e  mestres,  se 
faram  os  exàmes  na  forma  e  modo  que  se  ora  fazem  pelo  Regimento 
qne  nos  ditos  Collegios  tem,  e  assi  ei  por  bem  de  encorporar  os  ditos 
Collegios,  lentes  e  studantes  delles  em  essa  Universìdade  e  que  todo 
seja  hSu  corpo  e  hSa  Universidade,  e  os  lentes  e  studantes  delles  guo- 
zem  dos  mesmos  privilegios  de  que  guozam  os  da  Universidade  e  se- 
jam  regidos  e  guovemados  pollos  statutos  e  Regimentos  da  Universi- 
dade . .  .  »  O  primeiro  Cancellano  da  Universidade  de  Coimbra  foi  o 
prior  goral  de  Santa  Cruz,  D.  Bento  de  CamSes,  eleito  em  5  de  maio 
de  1539;  ei'a  irmSo  de  SimSo  Vaz  de  CamSes,  que  casara  em  Santa- 
rem,  e  cujo  filho,  Luiz  de  CamSes  (hachard  latino),  o  futuro  èpico  da 
nossa  nacionalidade,  frequentava  entSo  os  estudos  da  Universidade. 

Alguns  dos  professores  das  Escholas  de  Santa  Cruz,  corno  Mes- 
tre Fedro  Henriques  e  Mestre  Gon9alo  Alvares,  doutorados  pela  Uni- 
versidade de  Paris,  passaram  a  ensinar  grego  e  hebraico  na  nova  Uni- 
versidade. 

Pela  Chronica  dos  Conegos  regrantes,  de  D.  Nicolào  de  Santa  Ma- 
ria, se  conhece  a  organisa^So  dos  Collegios  de  Santa  Cruz,  desde  o  des- 
envolvimento  que  receberam  em  1527,.  pela  iniciativa  de  Frei  Braz  de 
Barros,  reformador  d'aquella  congrega9&o.  A  nobreza  de  Portugal  man- 
dava OS  filhos  para  o  Collegio  de  Som  Migriel  (dos  Roxos),  dentro  do 
mosteiro,  para  a  parte  do  norte,  junto  das  torres.  Os  creados  do  Prior 
goral  de  Santa  Cruz  continuavam  ainda  a  tradifSo  dos  antigos  Mousi- 
nhos:  «sSo  de  ordinario  doze  em  numero,  dormem  juntos  em  dormitorio 
e  comem  em  seu  refeitorio  apartados  dos  outros  creados,  e  tem  à  meza 
uma  Li(So  cantada,  servem  o  Mosteiro  até  saberem  Latim,  para  o  que 
tem  mostre  que  Ihes  dà  IÌ9S0  -duas  vezes  ao  dia.  Depois  que  sabem 
Latim  OS  vestem  de  baeta  e  Ihes  dBo  casas  fora  do  Mosteiro,  e  raySo 
todos  08  dias  para  estudarem  na  Universidade.»^  Em  consequencia  da 
incorporaySo  dos  Collegios  na  Universidade,  deixaram  os  alumnos  de 
occupar  o  mosteiro  em  1544.  As  outras  ordens  monasticas  tambem  tra- 
taram  de  fundar  em  Coimbra  os  seus  Collegios  junto  da  Universidade, 
systema  que  prevaleceu  até  1834.  Nos  dois  Collegios  junto  do  mosteiro 
de  Santa  Cruz,  que  tinham  side  fuùdados  para  o  ensino  de  Artes  e  Hu- 
manidades,  passou  a  ensinar-se,  no  de  Santo  Agostinho,  Theologia  es- 
peculativa e  moral,  Escriptura  sagrada  e  Canones;  no  de  Sam  JoSo 
Battista,  estabeleceram-se  cince  aulas  para  Leis,  Medicina  e  Mathema- 
tica. No  Collegio  de  Todos  os  Santos  (dos  Pardos)  ensinavam-se  Artes, 


1  D.  Nicolào  de' Santa  Maria,  Chronica  dos  Regrantes,  Liv.  vii,  p.  53. 
HI8T.  UH.  30 


466  HISTORIÀ  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIHBRA 

Bhetorica  e  Grammatica  grega  e  hebraica;  a  Arte  de  Latim,  de  D.  Ma- 
ximo de  Soasa,  e  o  Vocabtdario  de  Orego  e  Hehraico,  de  D.  Heliodoro 
de  Paiva,  adoptados  no  ensino,  eram  impressos  na  typographia  do  pro- 
prio mosteiro  de  Santa  Cmz^  em  1532  e  1535.  Em  carta  de  4  de  jolho 
de  1541,  responde  o  rei  ayarias  perguntas  do  Reitor:  cEm  quanto  ao 
que  dizees  da  falta  que  hi  ha  da  primeira  regra  de  Q-rammatìca  por 
ChristovSbo  d'Abrea  mestre  della  ter  muitos  acholares,  eu  tenho  ora 
previde  doutros  deus  mestres  que  hamde  comeQar  a  ler  o  primeiro  dia 
d'octubro  deste  presente  anno  nas  casas  que  o  Cancellario  jà  pera  isso 
tem  ordenado.» 

À  actividade  escholar  lego  no  primeiro  anno  da  traslada^So  da 
Universidade  para  Coimbra  é  difficil  de  estabelecer,  porque  no  seu  Ar- 
chivo  apenas  existem  fragmentos  de  rela9&o  de  alguns  cursos  que  se 
referem  a  1537.  ELa  porém  noticias  de  1540,  que  nos  interessam  bas- 
tante. Gabriel  Pereira,  que  inventariou  o  archivo  da  Universidade,  in- 
forma-nos:  «Folheando  um  dos  grossos  tomos  dos  Autoa  e  Provas,  de- 
parei  com  um  grupo  completo  de  relaySes  de  matriculados  relativo  à 
segunda  ter9a  (o  anno  lectivo  dividia-se  em  ter9a8)  de  1540,  sob  o  ti- 
tulo  Matricula  hujua  almae  colibriensis  Uhiversitatis  in  natali  Sancii 
Remigii  feticiter  incepit.  ^  Contando  os  nomes  de  taes  rela95es  forme! 
a  seguinte  statìstica: 

Theologia 15 

Canonistas 142 

Legistarum  institutariorum ^ 66 

Codecistas 68 

Legistas 129 

Medicos 10 

Dialecticos, 25 

Philosophos 10 

I  Primeira  regra 30 

Segunda  regra 37 

Terceira  regra 6 

Grammaticos  de  Lopo  Galeguo 8 

RhetoricoB 48 

Medicos  (segundo) 18 

"612  « 

1  O  anno  escholar  comeQava  em  dia  de  S.  Lucob  (15  de  outubro),  e  em  1530 
mudou-se  para  o  dia  de  8.  Remigio  (1  de  outubro). 

>  Boktim  da  Sodedade  de  Geograpfna,  de  Liòboa,  2.»  seri^,  n.»  2,  p.  119  (1880). 


MUDANgA  DA  UNIYERSIDADE  467 

Vejamos  corno  se  desenVolvea  a  freqaencia  dos  escholares  na  Uni- 
Versidade,  em  grande  parte  jà  provocada  pela  conoorrencia  da  moci* 
dade  aristocratica  aos  Collegios  de  Santa  Cruz  de  Coimbra. 

Na  reforma  da  Universidade  houve  em  vista  o  pensamento  da  cen* 
tralÌBa9So  do  ensino^  invalidando  os  gràos  tomados  nas  Universidades 
estrangeiras;  no  alvari  de  18  de  jolho  de  1538  estabelece  D.  JoSo  ni: 
«hei  por  bem  por  o  aver  assi  por  mea  servilo  e  bem  d'essa  Universi- 
dade, que  OS  Schoiares  qae  se  qaizerem  gradoar  de  bachareis,  e  de- 
pois de  terem  feitos  seas  carsos  e  lido  saas  lÌ9oens  nessa  Universidade 
se  forem  graduar  em  outros  Studos,  nam  gozem  em  meus  reinos  e  se- 
nhorios  das  honras  e  liberdades  do  dito  gr&o.  E  assi  bei  por  bem  que 
OS  bacharees  que  se  forem  fazer  lecenceados  em  outros  studos  depois 
de  terem  hi  feitos  seus  cursos  e  repetÌ98e3  nam  gozem  dos  prìvilegios 
e  liberdades  dos  lecenciados  nos  ditos  meus  reinos  e  senhorios,  etc.» 
D.  Jo2o  m  avocava  &  Universidade  de  Coimbra  ps  priviiegios  que  na 
Edade  mèdia  se  arrogaram  as  Universidades  de  Paris  e  Bolonhai  e  de- 
pois Oxford  e  Orleans,  que  so  reconheciam  os  gr&os  por  ellas  conferi- 
dos,  e  exigiam  novo  exame  aos  graduados  n'outras  Universidades.  Era, 
porém,  tarde  quando  D.  JoSo  ni  quiz  impor  este  centralismo  ;  nas  Uni- 
versidades estrangeiras,  em  Hespanha,  Italia  e  Fran9a,  brilhavam  alum- 
nos  e  mestres  portuguezes,  que  por  està  disposÌ9So  n2o  pensariam  mais 
em  regressar  a  Portugal.  Em  outro  alvarà,  de  5  de  novembre  de  1539, 
ha  uma  concessSo  para  que  os  que  cursaram  outras  Universidades  fos- 
sem  graduar-se  em  Ooimbra:  ceu  ei  por  bem  que  os  studantes  cane- 
nistas  que  teverem  comprìdo  seus  cursos  em  Salamanqua  os  nam  obri- 
guem  a  ouvir  Instituta  e  se  fagam  bacharees  posto  que  a  liam  tenham 
ouvida. — E  por  que  sam  enformado  que  algnns  Bacharees  que  vieram 
de  Salamanqua  e  assi  outros  schoiares  estS  nessa  cidade  sem  ir  aas 
schoUas,  e  dizem  que  se  vem  hi  reculher  pera  cumprir  o  tempo  dos 
annos  contheudos  em  meu  Regimento,  ho  que  nUo  bei  por  bem,  vos 
encommendo  e  mando  que  com  estes  se  guardo  o  que  he  decrarado  no 
Statuto  no  titulo  dos  cursos  e  autos,  ho  qual  diz  que  todo  o  studante 
que  estiver  na  Universidade  oufa  lÌ9am  de  prima  da  sciencia  em  que 
for  graduado,  e  nfto  o  comprindo  assi  que  nSo  guoze  do  privilegio  do 
studo,  nem  Ihe  aproveitem  os  cursos  que  fizer,  etc«»  No  alvari  de  13 
de  abril  de  1538  responde-se  à  consulta  do  reitor,  sobre  o  que  se  deve 
fazer  àcerca  dos  estrangeiros  que  entSo  concorreram  a  tornar  grio  em 
Coimbra:  evi  a  carta  que  me  escrevestes  S  que  dizees  que  a  essa  Uni- 
versidade vem  alguns  Bacharees  feitos  em  outros  studos  para  se  gra- 
duarem  &  sufficiencia,  comò  ora  dizees  que  he  vindo  bum,  e  tendes  du- 

30* 


468  HISTORU  DÀ  UNIYERSIDADB  DE  COIMBRA 

Tida  se  noe  taaes  bacharees  que  assi  tS  de  fora  se  bade  guardar  o  ipeu 
Begimento  per  que  mando  que  os  iecenceados  se  fa9am  juntos  e  per 
primeiro  e  segundo  luguar  e  que  se  de  as  taes  licengas  de  dous  eii^ 
dous  annos.  Eu  ei  por  bem  que  ho  dito  Regimento  se  guardo  nos  que 
vierem  doutros  studos  assi  comò  se  bade  guardar  nos  que  cursam  nessa 
Uniyersidadei  por  que  doutra  maneira  seria  perjuizo  dos  que  cursas* 
som  nesses  studos  e  teriam  os  que  vem  de  fora  melbor  condigam  que 
08  filbos  da  Universidade. — E  aos  que  vierem  doutros  studos  pera  se 
graduarem  de  Iecenceados  levarselbe  ba  S  conta  os  cursos  de  lectura 
que  teyerem  feitos  nos  ditos  studos  e  assi  as  repetÌ98es  se  as  em  elles 
jà  feitas  teverem,  etc.»  As  precedencias  que  competem  aos  graduados 
em  Universidades  estrangeiras  foram  estabelecidas  no  alvarà  de  27  de 
setembro  de  1540:  eque  aos  mestres  doutores  e  Iecenceados  doutras 
Universidades  Ibes  seja  dado  luguar  nos  autos  pubrìcos  que  n'essa  Uni- 
versidade se  fizerem  abaixo  dos  da  Universidade  segundo  seus  gr&os 
e  antiguidades.»  Para  a  matrìcula  da  Universidade  admittia-se  a  prova 
testemunbal  da  frequencia  em  Universidades  estrangeiras,  comò  se  ve 
por  està  disposigZo  do  alvarà  de  3  de  novembre  de  1539:  ce  quanto, 
aos  studantes  que  ora  vieram  e  daqui  por  diante  vierem  de  Salaman- 
qua  oa  doutras  Universidades,  que  non  trazerem  certidoens  pubricas 
dos  annos  e  tempos  que  nas  ditas  Universidades  cursaram,  ei  por  bem 
que  dando  elles  provas  per  testemunhas  que  per  direito  abaste  pera 
prova  dos  ditos  cursos,  Ibe  seja  recebida  e  os  cursos  que  provarem 
Ihe  sejam  levados  em  conta  e  sejam  avidos  corno  se  os  em  essa  Uni- 
versidade tiveram  cursado ...» 

Na  reforma  de  1537  foram  chamados  lentes  estrangeiros,  sondo 
equiparados  nos  grios  aos  da  Universidade  de  Lisboa  ou  de  Coimbra 
segundo  suas  antiguidades;  assim  no  alvarà  de  2  de  novembre  de  1537 
estabelece-se:  cei  por  bem  por  algumas  justas  causas  que  a  isso  me 
movem  e  por  julgar  de  fazer  grafa  e  mercé  aos  letrados  que  vierem 
de  outras  Universidades  a  ler  cadeiras  nessa  Universidade,  pera  que 
com  melbor  vontade  venham,  que  os  lentes  que  lerem  na  dita  Univer- 
sidade de  Coimbra  cadeiras  snas  com  salairo  se  guardem  os  privile- 
gios,  preeminencias  e  precedencias  dos  gràos  que  teveram  segundo  as 
sciencias  e  fietculdades  em  que  forem  graduados,  e  suas  antiguidades 
corno  for  direito,  sondo  graduados  em  Universidade  de  Studo  goral,  e 
que  OS  nZo  precedam  os  graduados  na  Universidade  que  foi  de  Lisboa 
ou  de  Coimbra.  • .  »  Na  resposta  a  uma  consulta  do  reitor,  datada  de 
Lisboa  em  16  de  maio  de  1538|  estabelece-se  mais:  ce  quanto  ao  que 
me  escrevees  sobre  os  Ihutore$  feitoè  em  Lerida  e  outras  semelhante» 


MUDANgA  DA  UNIYERSIDADE  469 

Universidades,  eu  hei  por  bem  qae  assi  estes  de  Lerìda  corno  todoUos 
outros  feitos  em  oatras  Universidades  se  precedam  hans  aos  ontros  se- 
gando as  antig^idadeji  de  seus  grios,  tirando  os  qae  forem  feitos  em 
Lisboa  e  nessa  Universidade  de  Coimbra,  por  qae  nestes  se  goardaraa 
o  Statato.» 

D.  JoSo  m  tratoa  de  chamar  professores  estrangeirosy  conceden* 
do-Ihes  excepcionaes  privilegios.  L@-se  no  alvari  de  7  de  dezembro  de 
1538:  cea  provi  ora  da  cadeira  de  Canones  dessa  Universidade  ao  doa- 
tor  Martim  de  Aspilcaeta,  segando  vemos  pelas  provisoens  minhas  qae 
vos  elle  mostraraa,  e  por  qae  ea  qaeria  qae  elle  nessa  Universidade 
recebesse  todo  favor  e  gaasalho;  segando  saa  bondade  e  letras,  e  ho. 
desejo  com  qae  me  vem  servir  merecem  :  vos  encamendo  maito  que  Ihe 
fayaes  todo  favor  e  bom  gaasalhado  qae  poder  ser  e  nam  consintaes 
Ihe  ser  feito  nenhSa  sem  rezam^  nem  coasa  de  qae  elle  deva  receber 
desprazer.  E  porqae  ao  tempo  qae  se  fez  a  provisam  dos  lentes  depa* 
tados  fieoa  ha  laguar  vagao  pera  ea  depois  prover,  ei  por  bem  qae 
elle  seja  ho  dito  lente  previde.  E  assi  vos  encamendo  qae  des  ordem 
corno  0  dito  doator  seja  bem  aponsentado  e  em  bom  lagaar  em  qaanto 
se  consertam  huas  casas  qae  ea  Ihe  mando  dar  pera  sea  apoasenta- 
mento,  encamendovos  que  o  fafaes  assi.  E  agradecervos  ei  multo  ter- 
des  modo  comò  nenhum  lente  dessa  Universidade  tenha  com  elle  d^- 
ferengas  nos  assentos  e  precedencias  e  oras  de  lectara,  pois  elle  per 
direito  precede  aos  outros  lentes  legistas  e  canonistas  que  nessa  Uni- 
versidade leem  nos  ditos  assentos  e  precedencias  de  seus  gràos.»  No 
alvarà  de  7  de  Janeiro  de  1539  allude-se  à  posse  do  Doutor  Aspilcueta 
Navarro:  «vi  a  carta  que  me  escrevestes  em  que  me  dais  coAta  da  che- 
gada  do  doctor  Navarro,  a  essa  cidade  e  de  comò  foi  bem  apousen- 
tado  e  do  gaasalhado  que  o  Bispo  Ihe  fez  eu  ouve  dello  prazer  e  vos 
aguardeyo  multo  ho  que  por  vessa  parte  fizestes  e  assi  folguei  por  es- 
tarem  tam  conformes  elle  e  ho  doctor  G*.®  Vaz;  encomendovos  que  te- 
nhaes  lembran9a  de  fazer  conservar  està  amisade  quanto  em  vos  for.» 
Està  circumstancia  da  boa  amisade  entro  os  dois  lentes  contrasta  com 
0  que  se  le  no  alvarà  de  23  de  setembro  de  1538^  em  que  se  relata 
que  «aas  vezes  acontece  os  lentes  nas  lÌ98es  que  18m  e  nos  autos  pu- 
bricos  que  se  fazem  dizerem  palavras  de  que  os  outros  lentes  ou  le- 
trados  que  nos  ditos  autos  estS  presentes  recebem  escandalo^  e  assi  os 
ditos  lentes  nas  li^oUs  que  li  se  poi  a  contar  historias  fora  da  materia 
da  ligS  S  que  guasta  ho  tempo  sem  provetto  ei  por  bS  que  ho  lente  que 
cada  huua  das  ditas  cousas  fezer  por  cada  vez  perqua  ho  ordenado  da 
lift  daquelle  dia,  e  se  for  em  outro  auto  tftbS  perqua  ho  ordenado  da 


4  70  HISTORIA  DA  UNnERSlDADfi  DE  C0IM6RÀ 

li{S  de  hnfi  dia.  Notificovolo  assi  e  mando  que  mandees  ao  bedel  que 
lite  aponte  as  ditas  perdas  dos  ditos  ordenados. .  •»  Foi  notificado  no 
conselho  dos  lentes  em  10  de  ontubro,  e  justifica  a  minuciosa  regola- 
inenta9So  dcerca  das  disciplinas  de  cada  corso. 

Em  varias  dÌ8po8Ì9Se8  legaes  de  1539  encontramoB  indicados  corno 
lentes  de  Instìtata  o  Dr.  Luiz  da  Guarda  e  os  BachareÌB  Rodrìgno  Al^ 
ues,  Bastilo  Bemaldes  e  Antonio  Roiz;  nas  cadeiras  pequenas  de  De» 
creio  apontam-86  corno  lentes  o  Lieenciado  Alvaro  do  Quintal,  o  Dr. 
Manuel  Vaz;  Dr.  Bertholameu  Philippe  e  Braz  de  Alvide;  o  Dr.  An* 
ionio  Soares  era  lente  da  cadeira  de  yespera  de  LeU, 

SSo  immensamente  curiosas  as  disposigSes  legislativas  de  1539 
sobre  os  cursos  de  Digesto  Yelho  e  Instituta^  e  sobre  o  modo  de  en- 
sinar  ou  lér  os  Canones  e  as  Leis;  come^amos  por  transcrever  a  carta 
de  31  de  Janeiro  de  1539:  cReverendo  Bispo  Rector  amiguo;  eu  el- 
Rei  vos  enyio  mnito  saudar.  Eu  sam  enformado  que  os  lentes  das  ca- 
deiras pequenas  dessa  Uniyersidade  assi  das  Decretaea  comò  Codigo^ 
Dijesto  Velho  e  Institutay  que  devem  ler  a  passar,  comò  decrarar  os 
textos  e  grossas  e  seus  entendimentos  sem  mais  materia,  se  detém  em 
ler  materias  e  em  quererem  mostrar  suas  sufficiencias,  ho  que  é  grande 
perda  dos  ouvintes;  pollo  qual  vos  encomendo  que  pratiquees  isto  em 
Qonseiho  e  provejaes  nisso  e  assinees  a  cada  hSu  dos  ditos  lentes  cor- 
tes livros  ou  titulos  que  ajam  de  passar,  e  ter  passados  ao  cabo  do 
anno,  sob  pena  de  perderem  a  derradeira  ter9a;  e  assi  Ihe  mandae  que 
passem  egualmente  todo  o  anno  e  nSo  se  dètenham  aguora  no  princi- 
pio do  anno  e  depois  queiram  passar  tanto  que  nflo  fa9&  fruito  nem  de- 
crarem  ho  necessario.  E  os  livros  ou  titulos  que  a  cada  hfiu  se  assi- 
narem  seram  aquelles  que  elles  possom  passar  e  gue  se  cosiumam  as- 
sinar  em  Salamanqua  ^  e  em  outras  Universidades  aos  lentes  de  cadei- 
ras pequenas  pera  passarem  em  hi!u  anno,  e  tambem  aos  lentes  das 
cadeiras  grandes  se  assinarà  ho  que  se  sóe  e  costuma  assinar  nas  ditas 
Universidades  para  haverem  de  passar  em  huu  anno  e  nam  passando 
cada  huu  ho  que  Ihe  for  assinado  n&  Ihe  sera  pagua  a  derradeira 
tersa,  salvo  mostrando  a  vos  e  ao  conselho  justa  causa...»  Està  mesma 


1  Tra&screvemoB  sobre  este  ponto  parte  dos  titulos  dos  Eatatntos  da  Uni- 
versidade  de  Salamanca,  approvados  em  Claustro  pieno  de  14  de  ontnbro  de  1&88: 

«Tit  zn.  lo  qne  an  de  leer  los  quatro  catedraticos  de  catedras  menores  de 
Gaiioiixs: 

«£n  el  primer  alio  un  Catedratico  hade  leer  desde  el  titnlo  de  eansUtutiani- 


MUDANCA  DA  UNIVERSIDADE  471 

disposifSo  foi  refor^ada  por  outra  carta  règia  de  31  de  agosto  de  1 540. 
A  intervenfSo  do  poder  real  chegava  i  extrema  regalamenta(8o  dos 
horarioB  das  cadeiras  e  dos  methodos  dos  lentes,  corno  se  y@  pela  carta 
règia  oa  Ordenan9a  de  12  de  setembro  de  1539;  é  um  documento  da 
maxima  importancia,  porqne  nos  retrata  a  vida  escholar  e  pedagogica 
na  Universidade  nos  primeiros  annos  da  sua  traslada^So  :  caveraa  qua- 
tro  lentes  de  Institùta,  e  leraa  cada  hiiu  huu  bora  cada  dia;  dous  le- 
ram  pela  menbaft  e  dous  aa  tarde,  e  estes  quati*o  lentes  passarBo  cada 
anno  os  quatro  livros  da  Instìtuta,  e  bo  Rector  e  Conselbeiros  no  co- 
medo do  anno  Ibe  repartirSo  bo  que  cada  hiiu  ouver  de  ler,  em  modo 
que  todos  acabem  de  ler  os  ditos  quatro  livros  da  Instituta  em  cada  buu 
anno,  e  os  quatro  lentes  que  ei  por  bem  que  este  anno  leftm,  «sam  bo 
Doctor  Luiz  da  Guarda,  que  leraa  pela  menbaS  do  principio  do  studo 
até  a  pascoa  das  nove  boras  aas  dez,  e  da  pascoa  até  fim  do  anno  das 
outo  boras  aas  nove.  E  o  Bacbarel  Rodriguo  Alves  leraa  pela  menbaà 
do  principio  do  studo  até  pascoa  das  dez  aas  onze,  e  da  pascoa  até  fim 
do  anno  das  nove  aas  dez.  E  o  Bacbarel  BastiS  Bemaldes  leraa  aa  tarde 


bue  hasta  el  de  offi,  de  leg.  esclusive  :  el  otre  desde  el  titillo  de  ojffi.  de  leg»  basta 
el  fin  del  primer  libro.  Los  otros  dos  Catedraticos  en  el  diebo  ailo  leeran,  el  uno 
el  segando  libro  desde  el  principio  basta  el  titolo  de  Jld.  inairu,  y  el  otro  desde 
este  basta  el  fin. 

«El  segundo  afio  ban  de  leer  un  Catedratico  el  tercer  libro  basta  el  titolo  de 
tepuL,  y  otro  desde  este  titulo  basta  el  fin;  otro  Catedratico  leera  el  un  coarto  li- 
bro el  titolo  de  trU.  exeomu,  y  de  verb.  fig,  y  de  reg.  jurie,  y  el  otro  desde  el  prin- 
cipio del  libro  qointo  basta  el  titolo  de  sent,  exeo. 

«Tit  XIII.  corno  an  de  leer  los  catedraticos  de  Codigo: 

«Se  leerà  en  tres  afios  de  la  forma  siguìeute:  en  el  primer  afio  on  Catedra- 
tico lèerà  los  libros  primero  y  segundo,  y  otro  tercero  y  noveno  ;  en  el  segundo 
uno  leerà  el  coarto,  y  otro  el  sesto,  y  en  el  tercer  a2o  ono  leerà  el  qointo  y  el  sé- 
ptimo  basta  el  titolo  de  apell,  y  otro  desde  este  titolo  basta  el  fin  del  octavo  libro. 

«lit.  zrv.  de  lo  qoe  an  de  leer  los  catedraticos  de  Instituta  : 

«La  an  de  leer  en  on  afio,  on  Catedratico  el  libro  primero  y  segando,  y  otro 
el  tercero  y  coarto. 

«lit.  ZY.  de  lo  qoe  ade  leer  el  catedratieo  de  Digesto  nsoo  : 

«Se  leera  en  coatro  afios:  £1  primero  de  iustUia  etjure  de  U.  de  offi*  eiua 
todo  el  segondo  de  procur.  de  neg.  gestis  de  eo  quod  metus  eausa,  de  dolo  ex  quibus 
eauèÌ8  matorea,  £1  segando  afio  de  iudi.  in  offi  testa,  de  peti.  her.  ai  pars  Aer.  pet- 
de  rei.  ven.  de  publiei  de  usujr.  de  usu  et  habit.  £1  tercero  las  servidombres  famUie 
her.  comuni  divid,  ad  exhibendum.  el  doodecimo  libro.  El  coarto,  Comodali  pignor, 
aeti,  prò  sofia,  mand.  eonir.  erup.  preser.  ver,  locati,  iure  dot.  donati,  inter  vinim  et 
uxorem. 

flit.  zvi.  de  las  liciones  eztraordinarias  : 


472  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

do  principio  do  studo  atee  pascoa  das  doas  aas  trez,  e  da  pascoa  atee 
firn  do  anno  das  trez  aas  quatro.  E  o  Bacharel  Antonio  Roiz  leraa  a 
tarde  do  principio  do  studo  atee  pascoa  das  quatro  aas  dnquOy  e  da 
pascoa  até  firn  do  anno  das  cinque  aas  seis;  as  quaes  li^oens  lerS  to- 
das  em  huS  casa  que  ho  Rector  pera  isso  Ihes  ordenaraa,  e  ho  man- 
damento que  ham  d'aver  levam  decrarado  per  outras  minhas  provi- 
soens,  e  estes  quatro  lentes  lerSo  a  passar  na  forma  seguinte: 

cItS,  pori  0  caso  por  inteiro  ho  mais  breve  e  craramente  que  pò- 
derem  e  diram  a  duvida  que  se  perguntou  ao  que  fes  a  lei,  e  dirft  huft 
soo  rezS  principal  ou  fundamento  per  que  parecia  ho  contrairo  do  que 
se  determinou,  e  dirS  loguo  corno  se  determinou  o  contrairo  do  que  pa- 
recia e^darJL  a  rez&  principal  e  fundamental  per  que  se  assi  determi- 
noU|  e  iste  tudo  brevemente  sem  allegar  textos  ou  grossas  mais  que  huu 
ou  dou8|  e  se  parecer  necessario  maiormente  pera  os  principiantes^  po- 
nha-se  o  caso  duas  vezes,  e  lego  lerS  e  decrararSo  a  letra  com  os  vo- 
cabulos  que  aas  vezes  sam  escuros,  e  depois  disto  decrarar&o  comò  o 
summarìo  se  tira  do  texto  e  se  em  alguS  das  grossas  se  tocarem  as 


«Los  que  no  siendo  Catedraticos  quieren  leer  leccioncB  estraordinarias  se 
bande  ajustar  à  lo  estabeleddo: 

«Si  Ics  de  Catedrilhas  de  Canones  leyeren  el  libro  primero  j  segundo  de 
DeeretaUa,  Ics  Lectores  estraordinarios  leeran  Ics  otros  tres  libros  ;  y  si  de  Cate- 
dra  se  leyeren  estos,  Ics  estraordinarios  lean  el  prìmero  y  segando,  guard&ndose 
el  mismo  orden  en  las  lecturas  de  Codigo. 

«Los  Canonistas,  bajo  la  pena  de  perder  curso,  no  han  de  oir  en  Ics  dos  prì- 
meros  aiios  mas  que  Decreto  y  Decretalea;  el  tercero  Sexto  j  Clementinas,  y  el  cuarto 
Itietituta;  y  del  mismo  modo  los  Legista»  solo  oir&n  el  primer  aiio  InMtiUUOf  f\  se- 
gundo Codigo,  y  el  tercero  Codigo  y  Digesto», 

«Tit.  zYiii.  de  lo  que  an  de  leer  los  catedraticos  de  Teologia  y  medicina,  y 
filo»ofia  ncUural  y  moraZ  y  corno  han  de  oyr  en  estas  faculdades  : 

«Los  Catedraticos  de  Teologia  de  Prima  e  Vesperas  leeran  los  quatro  libros 
de  las  Sentendo»;  el  de  Biblia  leerà  un  aflo  del  Nuevo  Testamento,  y  otro  del 
viejo,  y  el  de  parte»  de  Santo  Tom&s,  asi  comò  el  do  E»coto  solo  de  dictos  autores. 

«El  Catedratico  de  prima  de  Medicina  leerà  la  parte  de  Avicena  que  la  mayo- 
ria  de  los  oyentes  le  pediere. 

«£1  catedratico  de  Filo»ofia  naturai  leeri  este  tratado  y  el  de  Metafisica  de 
Aristotelesy  y  el  de  MorcU,  la  Etica,  PoUtica  e  Canonica  del  mismo  autor. 

«Dispone  para  la  Catedra  de  SuvMiku  el  testo  de  Fedro  Hispano,  e  para  la 
de  Logica  el  de  Àristoteles.» 

(Yidal  y  Dias,  Memoria  hi»toriea  da  Univer»ìdade  de  Salamanoaf  p.  71.) 


MUDANgA  DA  UNIYERSIDADE  473 

diificuldades  do  entendimento  do  texto  e  do  verdadeiro  sammarìo,  guar- 
darlo a  decrara9fto  do  entendimento  do  texto  pera  quando  a  lerem,  no- 
tarlo ho  texto  nos  princìpaes  notados  pera  que  ho  notem  os  doutores 
cu  pera  que  ao  lente  parecer  sem  se  deterem  nas  materias  dos  nota- 
dos, e  sem  alleguar  mais  que  duas  ou  tres  cotas  t>u  similes,  e  iste  feito 
loguo  lerSo  as  grossas,  e  sé  nas  grossas  se  nSo  tocarem  as  difficulda- 
des  do  entendimento  do  texto,  ho  lente  tirado  o  summario  do  texto 
fiindallo-a  per  deus  outros  fundamentos  ou  motivos  breves  que  colheraa 
do  que  os  doctores  dizem  ou  a  elle  parecer,  e  responderaa  a  deus  ou 
trez  dos  principaes  contrairos  que  ho  dito  entendimento  do  summario 
tever,  e  quando  Ihe  parecer  outro  entendimento  milhor  que  o  do  sum- 
mario dilo  ha  per  o  dito  modo  sem  se  deter  em  poer  mais  contrairos 
nem  mais  fundamentos  de  dous  ou  trez  dos  principios,  e  sem  resar  mais 
de  duas  ou  trez  cotas  pera  cada  cousa,  e  acabado  de  tirar  o  summario 
comò  dito  he,  tirarà  os  notados  do  texto,  na  forma  acima  dita,  e  aca- 
bados  lerft  as  grossas,  e  nS  se  deterS  em  decrarar  todas  as  ditas  gros- 
sas mas  soomente  as  que  forem  de  pezo  e  substancia,  e  as  outras  pas- 
sarlo breve  e  summariamente,  e  nio  curarlo  de  decrarar  todas  as  ma- 
terias que  as  grossas  tocam,  mas  soomente  no  principal  que  notam  ou 
perguntam  ou  opp5e,  nem  curarlo  de  induzir  os  textos  similes  que  as 
grossas  alleguam  pera  provar  as  opinioens  ou  os  de  que  oppoem,  mas 
soomente  induzirlo  hu  ou  dous  dos  principios,  e  approvarlo  ou  repro- 
varlo as  opinioens  das  grossas  dizendo  brevemente  isto  se  reprova  per 
08  doctores,  nomeando  dous  ou  trez  dos  que  aprovam  ou  reprovam, 
dizendo  hu  ou  dous  fundamentos  per  que  se  aprova  ou  reprova,  e  nio 
mais  com  hua  ou  duas  cotas  e  passarlo  loguo  sem  mais  opinioens  de 
doctores  nem  mais  materias- a  outro  texto.»  0  curso  da  Instituta  era 
obrigatorio  para  a  frequencia  do  Direito  canonico  e  civil,  com  excep9lo 
dos  clerigos  de  ordens  sacras,  beneficiados  ou  theologos;  os  eschola- 
res  eram  «obriguados  levar  seus  livros  pera  ouvirem  as  lijoens  com 
OS  seus  livros  diante.» 

E  tambem  importante  o  Regimento  de  13  de  outubro  de  1539, 
estabelecendo  .0  modo  que  se  ade  ter  no  lev  Cananee  e  Lete;  n'elle  se 
repetem  as  mesmas  indica93es  pedagocicas  sobre  a  apre8enta9lo  dos 
casos,  glosas  da  lei  e  opiniSes  dos  doutores.  Transcrevemos  as  passa- 
gens  mais  accentuadamente  historicas:  cOrdeno  que  d'aqui  por  diante 
aja  na  dita  Universidade  as  lÌ9oens  de  Canones  seguintes,  a  saber,  hul 
IÌ9I  de  prima,  a  qual  leraa  0  dottor  Navarro  pela  menhi  aas  horas 
acostumadas,  que  si  no  inverno  das  sete  e  mea  atee  as  nove,  e  no  vera 
das  seis  e  mea  atee  as  cito. 


474  HISTORIÀ  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

altem  averaa  huS  IÌ92  de  vespera  que  se  leraa  no  inverno  daa 
tres  horas  aas  quatro,  e  no  verSo  das  quatro  aas  cinque^  a  qual  leraa 
0  lente  que  eu  pera  isso  ordenar  per  outra  minha  provisSo.  Os  quaes 
lentes  assi  de  prima  corno  de  vespera  leraS  sete  meses  prìmeiros  nas 
Decretaea  e  deus  mezes  logo  seguintes  no  Sexto,  e  o  decimo  mez  nas 
Crementinas  os  titulos  que  pelo  Rector  e  Conselheiros  forem  ordena- 
dos. . .»  Quanto  ao  modo  de  professar,  manda  que  declarem  bem  os 
textos  e*glo8as  d'elles  cem  modo  que  os  textos  com  suas  materias  fi- 
quem  bem  entendidos  e  decrarados,  dizendo  sobre  isso  ho  necessario 
do  que  os  doutores  escreverSo  e  do  que  mais  os  lentes  por  seus  bons 
engenbos  e  trabalhos  poderem  ader. .  •  E  quando  lerem  slgumas  ma- 
terias ou  questSes  em  que  ha  opinioens,  studemnas  em  suas  casas  mui 
bem;  em  modo  que  vam  em  ellas  resolutos  pera  averem  de  ler  e  se 
poderem  resolver  na  parte  que  Ihes  parecer  verdadeira,  e  nS  curarem 
de  guastar  0  tempo  em  referir  muitas  opinioens  dos  doctores.  • .  » 

«E  averaa  huSl  lifft  de  Decreto,  que  se  leraa  pela  menhS  no  in- 
verno das  nove  horas  aas  dez,  e  no  verft  das  dito  aas  nove,  a  qual  le- 
raa ho  lente  que  eu  nomearei  per  outra  minha  provisXo . .  •  Item,  averaa 
quatro  cadeiras  pequenas,  as  quaes  lerSo  os  lentes  seguintes,  a  saber, 
ho  lecenceado  Alvaro  do  Quintal,  do  meu  dezembargo,  leraa  huft  IÌ9S0 
pela  menhB,  das  dez  aas  onze  no  inverno,  e  das  nove  aas  dez  no  ve- 
r&o.  E  0  doctor  Manuel  Vaz  leraa  outra  IÌ9&0  aa  tarde  da  huS  aas  duas 
no  inverno  e  no  verft  das  duas  aas  trez.  E  0  doutor  Bertolameu  Phi" 
lippe  leraa  outra  lÌ9ft  aa  tarde  das  duas  aas  trez  no  inverno,  e  no  verS 
das  trez  aas  quatro  ;  e  Braz  d'Alvide  leraa  outra  liyft  das  quatro  aas 
cinque  no  inverno,  e  das  cinque  aas  seis  no  verS  aa  tarde.  Os  quaes 
quatro  lentes  lerSo  os  sete  mezes  prìmeiros  das  Decretaes  e  os  deus 
seguintes  do  Sexto  e  0  decimo  mez  das  Crementinas  os  titulos  que  0 
Rector  e  os  conselheiros  Ihe  assinarem,  avendo  respeito  que  hS  de  ler 
a  passar.  • .»  Em  carta  règia  de  26  de  julho  de  1541  determinam-se 
OS  titulos  que  se  devem  ler  nas  cadeiras  de  Instìtuta,  Leia  e  Canones, 
concluindo:  aeu  ei  por  be  que  todas  as  cadeiras  d'essa  Universidade 
syS  avidas  por  peguenasy  e  fa^ft  suas  concrusoens,  tirando  as  quatro 
decraradas  que  o  Regimento  manda  que  repitam  e  assi  ei  por  bem  que 
aas  cadeiras  pequenas  se  assine  ho  que  h&  de  ler  corno  aas  outras  grS- 
des  e  que  agora  se  assine  loguo  pera  ho  anno  que  vS  e  di  endiante...» 

Depois  d'estas  disposigSes  legislativas  sobre  0  methodo  do  ensino 
na  Universidade,  importa  conhecer  o  schema  goral  das  disciplinas  pro- 
fessadas  em  cada  Faculdade,  e  ^  sua  distrìbuigSo  correlativa  ou  theo- 
rìca: 


MUDAN^A  DA  UNITERSIDADE  475 


Quadro  das  disciplinas  na  Universidade 

Facnldada  de  Theologia 

Cadeira  de  Prima:  Mtétrt  da»  SenUnqa: 
»         Vespera  :  A»  Parte»  de  Sam  Thomaz. 

•  Ter^a:  Ewrìptwra. 
>  Noa:  EsooTo. 

(Constituiam  ae  chamadas  Cadeiras  maiores  ou  Cathedras.^) 

1 — DURAHDO. 

Cathedrilhas  temporarias  de  3  aimos  {  2 — Eseripiura  (Velho  e  Novo  Testamento). 

3— Sam  Thoxàs. 

Facnldade  de  Canones 

Cadeira  de  Prima  :  Decretae». 
»  Vespera:  Deoretae». 
9  Ter^a:  Decreto. 

•  Noa  :  Sexto  da»  Decretae». 

Cathedrilhas  :  1  —  Decretae». 
»  2  —  Clementina». 


Facnldade  de  Leis 


Cadeira  de  Prima:  Esforgado.^ 
a         Vespera  :  Dige»to  naw>. 
»  Ter^a  :  Digesto  velho. 

»  Noa:  Codigo. 

Catbedrilhas  :  1  —  Codigo. 
9  2  —  In»tituta. 

Facnldade  de  Medicina 

/  Tegne  de  Galeuo  )        » 
l  T^   1    .     ^  ..      [nosSannos. 
De  loci»  afectte    ) 

Cadeira  de  Prima  {  De  morbo  et  Symptomatae,  no  é.^ 

De  differeniii»  Febrium,  no  h.^ 

De  8ifnplicUm»f  no  6.* 


1  D*aqni  o  nóme  de  Cathedratico  ao  lente  efPectivo  ou  proprietario. 
'  Vide,  Bobre  està  disialo  do  Digesto,  p.  70. 


476 


HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 


Aphorwnos  de  Hippogràtsb. 

^  -  .      .    ^  ,0  nono  ad  àlxaksobbic. 

Cadeira  de  Vespera      <  -.       ..         .  ^     j    rr 

'^  •  ^  De  rcUtone  victtu  de  Hippoobatbs. 

Blpidemias  e  Progno$ticoB. 

Cadeira    de    Aticbma. 

>  »  Noa:    Anatomia. 

Cathedrilha  de  Galeno. 


1.*  anno 
(Logica) 

2.^  anno 
(PhiloBophia  naturai) 

d.«  anno 
(Idem) 

4.<>  anno 
(Pliilosophia  moral) 


Facnldade  de  Artes 

Isagoge  ou  Introduogào. 
Predicaveis  de  Pbophtrio. 
Pred%camento9. 
Perihermeneias  de  Abibtoteles. 

Priore»  de  Akibtotblbs. 

Posteriore». 

Topicoa. 

Elenco». 

6  lib.  de  Physioa  de  Abzstoteles. 

2  lib.  de  Phynca  (De  Coelo). 

Metaphysioa. 

Meteoro». 

Parva  naturalia  de  Abibtoteles. 

De  Generatione. 

De  Anima. 

Ethieaa. 

/.*  e  2.*  de  Sam  Thoicae. 


1  anno 


Mathematica 

EUCLIOBB, 

Tratado  da  Esphera. 
Theorica  dos  Pianeta». 


cEm  sea  tempo  lia-se  Euclidea,  o  Tratado  da  Esphera  e  a  Theo- 
rica  dos  Planetas.  O  eatudo  da  Geometria  pareceu  entSo  fundamental 
para  todas  as  sciencias,  que  se  mandou  que  elle  precedesse  ao  da  Lo- 
gica, corno  se  coUige  da  Ora9So  latina  de  Belchior  Belliago,  o  que  muito 
acredita  a  sabedoria  da  reforma  litterarìa  d'aqaelles  tempos.i  (Allude 
à  Ora9So  De  disciplinarum  omnium  Studile,  impressa  em  1548.)  Ape- 
nas  havia  urna  cadeira  para  a  Mathematica,  subsidiando-se  nove  de 
Theologia,  sete  de  Canones,  oito  de  Leis,  seis  de  Medicina,  cince  de 
Linguas  e  quatro  de  Artes.  ^ 


1  Ribeiro  dos  Santos,  Memoria»  de  LiUeratura  da  Aeademia,  t.  vm,  p.  178. 


MUDANQA  DA  UNIVERSIDADE  477 

Os  rendìmentos  da  Universidade  de  Coimbra  foram  augmentados 
generosamente  por  D.  JoSo  m,  que  separou  as  rendas  do  Priorado- 
mór  de  Santa  Cruz,  incorporando-lh'as  na  sua  receìta,  e  obtendo  de 
Paolo  III,  em  1543,  as  letras  da  penitenciaria,  para  a  reduc$ào  do  en- 
cargo  das  misaas  em  favor  da  Universidade.  Para  està  reduc9So  acei- 
tou  Paulo  in  o  fondamento  dos  grandes  salarios  que  se  pagavam  aos 
lentes  estrangeiros  que  o  rei  attrahira  a  Portugal.  Gabriel  Pereira,  no 
exame  que  fez  do  Archivo  da  Universidade  de  Coimbra,  diz  que  che- 
gou  a  ter  cnos  primeiros  annos  da  segunda  metade  do  seculo  xvi  uma 
receita  de  6:500^000  réis,  e  so  SrOOOfJOOO  de  despeza,  quantia  muito 
avultada  para  aquelle  tempo;  estacionando  depois  (no  que  respeita  i 
fazenda)  e  sofirendo  mesmo  no  tempo  do  dominio  hespanbol  uma  ex- 
ploraj^Lo  systematica  na  sua  fazenda,  nos  seus  cofres  e  nos  dos  estabe- 
lecimentos  ou  instituijSes  annexas. .  •  j>^  D.  Jo&o  iil  nSo  olhava  a  des- 
pezas  para  sustentar  o  esplendor  da  Universidade,  a  ponto  de  se  achar 
em  um  documento  de  1542,  citado  por  Frei  Luiz  de  Sousa,  um  pro- 
testo directo:  cConsta  que  os  gastos  da  Universidade  tiraram  dema- 
siadamente  polla  fazenda  real,  e  disse  avia  queùcas,  por  sobejarem  es- 
tudantes  e  faltarem  soldados,^^ 

Cabe  aqui  apontar  alguns  costumes  escholares  que  se  procuraram 
introduzir  na  mudanga  da  Universidade  para  Coimbra.  Pelo  alvarà  de 
26  de  agosto  de  1538  prohibiu-se  aos  estudantes  eque  nSo  tragam  pu- 
nhal  nem  dagua.i  Pelo  alvarà  de  20  de  julho  de  1539  vé-se  eque  al- 
guns studantes  dessa  universidade  nom  esguardando  o  que  cumpre  a 
serviyo  de  Deus  e  meu  e  aa  honestidade  de  suas  pessoas  andam  de 
noite  com  armas  fazendo  musicoa  e  outros  autos  nSo  mui  honestos  por 
essa  cidade  do  que  se  segue  escandalo  aos  cidadaons  e  moradores  e 
pouqua  authoridade  e  honrra  aa  universidade . . .  i  Estes  costumes  ainda 
hoje  persistem  sob  o  nome  de  tro^.  Pelo  alvarà  de  23  de  setembro 


1  Catalogo  doè  Fergaminhos  do  Cartario  da  Univerndade  de  Coimbra,  p.  127. 
— . . .  «pera  a  Universidade  de  Coimbra  appHcou  b6  o  dito  Pontifice  (Paulo  m)  das 
rendas  do  Priorado-Móry  trez  mil  duzentos  e  smooenta  cruzados.»  (D.  Nicolào  de 
Santa  Maria)  Chronioa  doè  JRegranteè^  Liv.  z,  p.  292.  Bolla  de  Paulo  ni,  de  8  de 
jonho  de  1545.)  No  emtanto  o  reitor  Fr.  Diego  de  Mur^a  apoderoa-se  para  a  Uni- 
versidade de  todas  as  rendas  do  Priorado-mór,  havendo  um  prolongado  litigio  en» 
tre  o  Mosteiro  de  Santa  Cruz  e  a  Universidade,  que  dnrou  até  1606,  em  que  Phi- 
lippe m  mandou  ao  Mosteiro  que  desistisse  do  seu  direito,  e  recebesse  annual- 
mente da  Universidade  200jf  000  de  juro  perpetuo,  por  Provisfto  de  80  de  setem- 
bro de  1606.  {Ibidem,  p.  293.) 

2  Apud  Atmaei  de  D.  Joào  JJI,  p.  404. 


478  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  G0IM6RA 

de  1539  vèmos  ern  que  consistia  a  troga  dentro  das  aulas:  calgans 
studantes  nS  esgaardando  ho  qae  compre  a  sea  habito  e  aa  sua  honra 
desses  studos  por  algSas  leves  causas  que  os  a  isso  movem  estando  nas 
scholas  ouvindo  os  lentes,  pateam  com  os  pés  e  batem  com  os  tmt^ros 
(WS  que  vSo  tarde  a  ouvir  e  a  outros.i  Pelo  alvar&  de  25  de  novembro 
de  1539  v§-Be  que  ji  na  Universìdade  figorava  um  grande  edbuia  cha- 
mado  Araujo:  cea  sam  enformado  que  h3  atadante  dessa  aniversidade 
que  se  chama  Araujo  he  homem  que  nam  vive  honestamente  nem  studa^ 
corno  deve  fazer  e  despende  mal  o  que  Ihe  seu  pai  daa,  e  porque  isto 
além  de  ser  perda  pera  elle  he  mao  esemplo  pera  os  outros  encomendo 
que  ho  mandees  chamar  e  amoestai  e  aconselhai  que  se  emende  e  stude 
corno  bom  studante  deve  fazer,  por  que  nam  se  emendando  eu  prove- 
rei nisso  comò  ouver  por  bem  e  mandarci  que  naS  estee  no  studo,  nem 
na  cidade.»  As  trovas  satyrìcas  e  invectivas  insultuosas  nos  gràos  dos 
doutorandos  chegaram  a  prQvocar  uma  prohibijSo  severa  pelo  alvar& 
de  1  de  julho  de  1541  :  «Eu  eirei  fa90  saber  a  vós  lecenceado  EstevaS 
Nogueìra,  conservador  da  universidade  de  Coimbra,  que  eu  hei  por 
.  bem  e  me  praz  que  quando  se  pozerem  algumas  invectivas  ou  cartas 
ou  trovas  de  mal  dizer  aas  portas  das  scholas  que  sejam  defamatorias 
contra  alguas  pessoas,  que  possaes  tirar  devassa  sobre  quem  as  taes 
invectivas^  cartas  ou  trovas  fez  e  assi  sobre  quem  as  pos  nas  ditas 
schollasy  e  achando  alguas  pessoas  culpadas  as  prenderees  e  procede- 
rees  contra  ellas  comò  vos  parecer  ja3tÌ9a. . .  i  As  cantigas  latinas  dos 
goliardos  sSo  o  tjpo  d'este  genero  de  litteratura  das  escholas;  umas  das 
mais  celebres  trovas  que  correram  em  Coimbra  no  seculo  xvi  foram 
as  que  se  intitularam  da  ctUilada,  dirigidas  a  D.  Guiomar  Nunes,  filha 
do  lente  e  cosmographo-mór  Fedro  Nunes.  '  Em  carta  règia  de  4  de 
julho  de  154X  prohibem-se  as  soigas  dos  estudantes  :  cquanto  aa  soiga 
multo  Gustosa  que  alguns  studantes  este  anno  fizerS  de  que  vos  escan* 
dalizastes  por  nSo  ser  cousa  de  studantes,  ei  por  bem  avendo  respeito 
ao  que  dizees  que  se  nam  fa9a  mais  e  vós  Ihe  defendee.i  Pela  època 
da  prohibigfto  se  infere  que  a  soiqa  seria  o  divertimento  por  occasiSo 
do  ponto,  que  ainda  hoje  se  pratica,  e  a  que  se  di  o  nome  de  tocar  as 
kUas,  O  typo  do  Estudante  póbre  ainda  conservou  no  seculo  xvi  o  seu 
antigo  caracter  medieval;  depois  que  a  Universidade  se  mudou  para 
Coimbra,  D.  JoSo  ili  mandou  que  vinte  e  quatro  ragSes  que  distribuia 
0  Mosteiro  de  Santa  Cruz  por  intengSo  do  seu  fundador  S.  Theotonio 


1  Vide  Candaneiro  popìdar,  p.  205. 


MUDANgA  DA  UNIYERSIDADE  479 

foBsem  exolusivamente  applicadas  a  aaxiliar  eatudantes  pobres,  conser- 
vando a  mesma  inten9fto;  oste  coatume  ainda  persistìa  no  seculo  xvii. 
Transcrevemoa  as  palavraa  de  D.  Nicolào  de  Santa  Maria:  eque  se  or- 
denou  qae  eataa  24  ra93ea  ae  deaaem  pela  meama  ten9So  a  24  Estu- 
dantes  pobres  e  de  bona  ,coatames  pera  eatudarem  na  Univeraidade, 
corno  hoje  em  dia  ae  faz,  e  de  maitoa  aabemoa  que  com  eata  ra9So  que 
vem  buscar  &  portarla,  nfio  aó  eatudaram,  maa  tambem  ae  graduaram 
na  dita  Univeraidade,  e  vieram  a  aer  Dezembargadorea  e  Julgadorea 
delrey,  e  Avogadoa  haa  prìncipaea  cidadea.»^  Entro  aa  rendaa  do  moa- 
teiro  de  S.  JoSo  daa  Conegaa,  que  D.  Jo&o  ili  mandou  applicar  para 
a  suatentagào  do  Collegio  de  S.  Paulo,  figurava  A  renda  do  pào  das 
raqZes  cubertas,  aaaai  chamadaa,  diz  D.  Nicolào  de  Santa  Maria^  por- 
que  em  tempo  doa  Prìorea  mórea . . .  ae  punham  duaa  ra98ea  na  meaa 
principal  e  traveaaa  do  Refeitorio,  ambaa  cubertas,  além  da  que  ae  pu- 
nha  para  o  Prior  Mór  corner;  e  pera  eata§  ra986s  ae  ama9avam  todoa 
OS  dias  doua  alqueirea  de  trigo,  de  que  aó  ae  faziSo  14  pSea,  7  pera 
cada  ragào  cuberta,  que  ae  davSo  acabada  a  meaa  a  pobrea  honradoa, 
hua  ra9So  em  nome  delRey,  e  outra  em  noine  do  Prìor  Mór.  E  ainda 
estas  ra^ks  cubertas  ae  pozerSo  na  mesa  do  Refeitorìo  a  El  rei  D.  JoSo  ili, 
quando  veiu  a  Coimbra,  e  pouzou  em  S.  Cruz  no  anno  de  1550,  e  elle 
aa  deacobriu  pera  vèr  oa  paea,  e  tomou  de  bum  dellea  bua  fatia,  e 
mandou  dar  tudo  o  maia  aoa  pobrea.  »  *  Entro  oa  costumes  do  seculo  xvi 
que  ainda  hoje  peraistem  na  Univeraidade  é  o  de  dar  um  beberete  aoa 
lentes  no  exame  prìvado;  D.  JoSo  ili  prohibira  «que  oa  lecenceadoa 
noa  examea  privadoa  na3  deaaem  céas,  e  aomente  deaaem  conaoadaa 
pera  fazerem  menoa  gaatoa  naa  taea  conaoadaa,  ae  Ihe  accrecenta  ora 
mais  deapeza  peliaa  muitaa  fruitas  que  dS,  e  oa  doutorea  que  eatam  aoa 
ditos  examea  ficam  mal  contentes  por  Ihes  nSo  darem  de.  cear,  e  que- 
rendo  a  isso  prover,  ei  por  bem  que  oa  lecenceadoa  de  de  cear  no  cabo 
dos  examea  privadoa  aoa  doutorea  que  a  isao  forem  preaentea,  e  fica- 
ram  desobriguadoa  daa  conaoadaa,  e  porS  nam  daram  maia  iguarìaa  que 
hua  galinha  ou  perdiz  aaaada  a  cada  doutor  e  ate  duaa  fruitaa  hSa  na 
entrada  e  outra  na  aahida,  e  ae  for  dia  de  peacado  darS  bua  aoo  igua- 
na de  peacado  e  duaa  fruitaa  comò  dito  he.»^  Maia  ou  menoa  ainda 


1  D.  Nicol&o  de  Santa  Maria,  Chranioa  dos  Eegrantee,  Liv.  vii,  p.  64. 

*  Ibidem,  Liv.  x,  p.  333. 

3  Nos  EstatutOB  da  Univeraidade  de  Salamanca,  approvados  em  1538,  esta- 
belece-se  aa  propinas  que  o  graduado  tem  de  aatisfazer  aos  examinadores  :  «£1 
que  se  vuelve  de  examinar  sea  obligado  a  dar  a  cada  uno  de  Ics  examinadores 


480  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

soffremos  no  nosso  doutoramento  em  1 868  està  explora9fto  regularisada 
por  D.  JoSLo  ni  por  alvarà  de  2  de  setembro  de  1539.  Foi  eete  espi* 
rito  de  estabilidade  e  conservantismo  qae  ob  Jesuitas  ezploraram  quando, 
para  se  apoderarem  do  movimento  humanista  da  Renascen9a,  se  apoia- 
ram  nas  Universidades. 

NSo  trataremos  n'este  logar  da  forma9So  historica  da  Companhia 
de  JesoS;  que  apparece  no  meado  do  secalo  xvi  sjstematisando  a  re- 
ac^So  contra  a  dis8olu9&o  do  regimen  catholico-feudal.  No  meio  da  acti- 
yidade  dos  novos  estados  em  Coimbra,  surgem  ali  algans  socios  da 
recente  Companhia,  perturbando  o  espirito  popular  com  hallucinadas 
devofSes,  captando  para  o  seu  instituto  os  filhos  da  prìncipal  nobreza, 
e  fundando  um  Collegio,  que  pretendia  rivalisar  com  os  florescentes 
CoUegios  de  S^nta  Cruz.  Està  nota  discordante  nas  reformas  pedago- 
gicas  de  D.  JoSo  in  precisa  ser  relatada  rapidamente,  para  que  se  com- 
prebenda  a  marcha  dos  acontecimentos.  Fiado  na  auctoridade  scienti- 
fica e  moral  do  Doutor  Diogo  de  Gouvéa,  o  celebre  Principal  do  Col- 
legio de  Santa  Barbara,  D.  Jo&o  ni,  pretendendo  educar  a  mocidade 
fidalga  da  sua  cSrte,  convidou  para  isso  algans  membros  da  Compa- 
nhia de  Jesus.  ^  O  pensamento  das  missSes  da  India,  com  que  o  rei 
se  preoccupava,  levara  tambem  o  embaixador  em  Roma,  D.  Fedro  de 


doctores  o  maestres  que  presentes  fueren  de  su  faculdad  dos  doblas  de  cabe^a  o 
castellanoB  j  una  hacha  y  una  caia  de  diacitron  y  una  libra  de  confites  y  tres  pa- 
res  de  gallinas  :  y  por  quel  tiempo  es  largo  del  examen  quel  dicho  licenciado  la 
noche  dei  examen  sea  oblìgado  a  dar  una  cena  con  tanto  que  no  sea  obligado  a 
dar  mas  de  una  perdiz  o  pollo  o  dos  tortolas  y  una  escudilla  de  manjar  bianco  y 
una  fruta  antes  :  y  otra  despues  y  su  vino  y  pan.  La  qual  cena  se  de  en  el  mismo 
logar  del  examen  al  tiempo  que  al  maestre  eeicuela  y  doctores  pareciere:  y  de  mas 
desto  no  se  pue'da  dar  otra  cosa  alguna  de  comer  ni  de  bever  assi  en  el  dicho  lu- 
gar  corno  fuera  del  por  si  ni  por  interposita  persona  ni  por  ninguna  via:  y  si  lo 
contrario  se  hiciere  al  que  lo  diere  no  le  sea  dada  la  carta  por  un  ado  y  de  mas 
pagne  diez  ducados  para  el  hospital  :  y  el  maestre  escnela  y  doctores  y  maestros 
que  lo  redbieren  pierdkn  los  derechos  de  aquel  grado:  en  los  quales  si  el  dicho 
maestre  escuela  no  lo  esecutare  pierda  los  derechos  ;  las  gallinas  y  diacitron  y 
confites  los  embiaran  antes  de  entrar  en  examen,  los  castellanos  despues  de  aca- 
bado  el  examen  antes  de  la  aprovacion,  las  hachas  al  tiempo  que  entraren  en  el 
examen;  . . .  que  se  les  de  a  t$ada  uno  de  los  bedeles  dos  pares  de  gallinas,  etc.» 
(Apud  Yidal  y  Diaz,  Memoria  hittorioa  de  la  Ufdvenidad  de  SàUmanca,  p.  78.) 

1  . . .  «deu  este  alvitre  a  elrey  o  Doutor  Diogo  de  Gk>uvéa,  portugues,  e  pes- 
soa  de  grande  auctoridade,  que  tinha  side  Beytor  no  Collegio  de  Santa  Barboni, 
n^aquellas  celebres  Escholas  de  Paris,  quando  ali  estudaram  Santo  Ignacto  e  seus 
oompanheiros.»  (Padre  Balthasar  Telles,  Ckroniea  da  Companhia,  Idy.  i,  cap.  iv, 
p.  15.) 


MUDANQA  DA  UNIVERSIDADE  481 

Mascarenhas^  a  lembrar  a  D.  JoSo  m  o  convite  aoB  padres  jesuitas. 
Foì  encarregado  o  Doator  Dxogo  de  Gouvéa  de  escrever  a  Ignacio  de 
Loyola,  para  satisfazer  o  empenho  do  monarcha.  Mandado  para  Por- 
tugal  o  padre  SimSo  Rodrigues,  vela  encontral-o  jà  aqm  em  17  de 
abril  de  1540  o  navarro  Francisco  Xavier.  Denominaram-Be  os  apas* 
tóloa  novos,  e,  pelas  praticas  devotas  fora  de  uso,  os  franchinotes.  O 
padre  Francisco  Xavier  encarregou-se  da  missSo  da  India,  e  o  pa- 
dre SimSo  Rodrigues  fundoa  a  Provincia  de  Portagal  em  bases  taes 
que  a  tomaram  o  sustentaculo  da  Companhia.  SimSo  Rodrigues  fora 
companheiro  de  Ignacio  de  Loyola  nas  Escholas  de  Paris,  e  pertenceu 
ao  conloio  secreto  em  que  se  estabelecea  o  novo  instituto.  D'elle  es- 
creve  o  padre  Balthazar  Telles:  «Criou  Catherina  de  Azevedo  com 
todo  0  cnidado  seu  filho;  e  tendo  ji  annos  bastantes,  o  mandoa  estn- 
dar  com  seu  irmSo  SebastiSo  de  Azevedo  a  Universidade  de  Paris,  que 
eraotheatro  aonde  n'aquelle  tempo  mais  campeavam  as  lettras,  e  aonde 
accudiam  os  Portuguezes,  por  até  ontani  nSo  termos  cà  Universidade, 
que  introduziu  o  senhor  rej  D.  JoSo  m.  Eram  ambos  os  irmXos  su- 
jeitos  de  qualidade,  que  se  podiam  chamar  estudantea  ddrey,  por  que 
elrey  os  mandava  estudar  àquella  Universidade  com  outros,  à  custa 
da  sua  real  fazenda.}»  ^  SimSo  Rodrigues  era  um  caracter  exaltado,  mas 
deddido;  comò  instrumento  do  instituto  de  que  fazia  parte,  desempe- 
nhava  firmemente  o  seu  papel  de  homem  morto  para  o  mundo,  porque 
ao  passar  junto  da  villa  de  Bousella,  onde  nascerà,  nSo  quiz  tornar  a 
vèr  OS  logares  da  sua  infancia,  nem  a  irmS  e  parentes  que  ali  viviam. 
O  padre  SimSo  Rodrigues  dirigiu-se  para  Coimbra  a  fundar  o  CoUegio 
de  Jesus,  em  1542.  O  padre  Ignacio  de  Lojola  mandara-lhe  alguns 
Bocios:  Diego  Miram,  valenciano,  mecer  Poncio,  francez,  e  Francisco 
de  Roxas,  castelhano,  que  estudavam  em  Paris;  iste  tambem  em  1542. 
Poucos  mezes  depois  foram  mandados  ao  provincial  o  padre  Cypriano 
Soares  e  Francisco  de  Villa  Nova,  ambos  castelhanos,  Francisco  Gallo, 
francez,  Angelo  de  Paradiso,  Isidoro  Brilino  e  Martino  Parmesano, 
italiano,  e  o  padre  Manuel  Godinho.  ^  O  governo  do  Collegio  fundado 
pelo  padre  SimSo  Rodrigues  foi  dado  ao  padre  Gon9alo  de  Medeiros^ 
em  9  de  junho  de  1542,  tendo  além  dos  ji  citados  os  companheiros 
Antonio  Cardoso,  Manuel  FemandcB  e  Lanzarote  de  Seizas.  SimSo 
Rodrigues  recebeu  ainda  uma  nova  remessa  de  companheiros  estran- 
geiroB:  padre  Martim  de  Santa  Cruz,  castelhano  (foi  o  segundo  reitor 


1  Chronica  da  CompanAta,  Liv.  i,  eap.  t. 

2  llndem,  eap.  XTin. 

mun,  UH.  31 


482  HISTORIÀ  DA  UNIVEaSIDADE  DE  COIMBRA 

do  Collegio),  padre  Antonio  Criminal,  italiano,  padres  NicoUo  Lanci- 
noto  e  Hercules  Bucero,  italiano»,  e  Guilherme  C>>duro,  francez.  (Ib,,  e. 
XX.)  O  provincial  via-se  contrariado  pela  remessa  de  tantos  socios  estran - 
geiros,  para  operar  o  seu  assalto  ao  corpo  escholar  e  à  populafSo  bur- 
gueza  de  Coimbra.  No  emtanto  come90u  a  pdr  em  ac9lio  a  sua  estra- 
tegia. O  corpo  escholar  era  attrahido  por  meios  habeis.  0  padre  Ma- 
nuel Godinbo  apresentava-se  cvestido  em  trajo  de  estudante,  pera  quo 
d'està  maneira  o  admittissem  pelo  habito  alem  de  ser  muj  conhecido 
pela  pessoa.  Vivia  elle  e  tratava  com  os  estudantes,  era  religioso  e  moa- 
trava-se  secular.,.it  (Ib.^c.  XXI.)  Estas  captaySes  tornaram-se  escandalo- 
sas,  e  OS  raptos  de  alguns  mancebos  das  mais  nobres  familias,  corno  um 
da  casa  de  Bragan9a  (D.  Theotonio),  outro  da  familia  dos  Silveiras  (D. 
Gon9alo  da  Silveira,  com  vinte  annos),  e  D.  Rodrigo  de  Menezes,  pro- 
vocaram  um  inquerito  ou  devassa  àcerca  da  nova  Companhia;  proce- 
deu  ao  inquerito  o  reitor  da  Universidade,  Frei  Diego  de  Murfa,  mas 
uada  encontrou  centra  a  orthodoxia,  e  a  Companhia  continuou  a  sua 
obra  de  intrigas  em  piena  impunidade. 

Em  1543  tinham  entrado  para  o  instituto  jesultico  Melchior  Nu- 
nes  Barreto,  naturai  do  Porto,  e  que  se  prestara  à  ceremonia  doutorai 
do  Vexame  pela  humildade  para  com  a  Companhia;  Melchior  Carneiro, 
que  veiu  a  ser  o  primeiro  reitor  do  Collegio  de  E  vera;  Luiz  da  Gram^ 
que  chegou  a  ser  reitor  do  Collegio  de  Coimbra;  Antonio  Correa  e  pa- 
dre Nuno  Ribeiro.  Estava  lan^ada  a  discordia  nos  espiritos. 

A  influencia  exercida  pelos  novos  apostolos  na  populaySLo  de  Coim- 
bra era  devida  a  meios  baixos,  incompativeis  com  o  estado  da  civili- 
sa9So  portugueza  e  com  a  eleva9ÌLo  intellectual  do  seculo  xvi.  Explo- 
ravam  primeiramente  a  curiosìdade  pelas  fórmas  insolitas  de  préga^So, 
depois  a  emoy&o  da  surpreza,  revestindo-se  de  uma  austeridade  thea- 
tral  que  seduzia  os  incautos.  Servia-lhe  està  adhesSlo  da  classe  bur- 
gueza  para  se  ìmporem  aos  poderes  publicos;  e  pela  intriga  diploma- 
tica, comò  por  exemplo  a  reconcilia92o  entre  D.  JoSo  iii  e  Paulo  in, 
conseguiara  todas  as  benevolencias  régias,  para  mais  fundamentalmente 
radicarem  a  sua  influencia.  Nào  é  preciso  reconstruir  o  quadro  dos  ar- 
dis  empregados  para  attrahirem  a  si  a  multidSLo  desprevenida;  fallem 
OS  seus  proprios  documentos. 

Em  uma  carta  datada  de  31  de  julho  de  1545,  dirigida  ao  padre 
Pedro  Fabro,  para  Valiadolid,  descreve  o  padre  Hermes  Poen  o  estado 
de  exaIta9lio  religiosa  que  a  Companhia  de  Jesus  despertara  em  Coim- 
bra: aPara  dar  a  V.  R.  alguma  conta  de  nossas  cousas,  resolvi  escre- 
vcr-lhe  o  que  tem  executado  os  irm3os  da  nossa  Companhia,  os  quaes 


MUDANgA  DA  UNIVERSIDADE  483 

«e  tém  exercitado  na  mortificagSo  da  carne  de  tal  maneira,  qae  tem 
commovido  a  todoa  os  habitantes  de  Coimbra;  deram  occasiSo  aos  pec- 
cadores  de  se  arrependerem  e  grangearam  para  si  o  menosprezo  do 
mando.  0  genero  d'este  exercicio  tem  sido  differente  em  diversos;  por 
qae  uns  no  pino  do  dia  sairam  com  vestes  andrajosas,  e  cantaros  aos 
hombros  acarretando  agaa  por  meio  da  pra9a;  outros  andavam  men^ 
•digando  de  porta  em  porta;  oatros,  no  silencio  da  noite,  ao  som  de 
ama  campainha,  despertavam  os  cidadftos  com  terriveis  vozes;  pelas 
ruas,  qae  moriam  ao  horror  da  morte  e  do  dia  de  jaizo,  e  iste  por  di- 
Tersas  vezes.  O  que  entoavam  era  n'esta  fórma: 

Temed,  ò  pecadores, 
de  las  penas  etemas  los  rìgores  ! 

Repara,  hombre  obstinado, 
que  la  mayor  miseria  es  el  pecado  ! 

Pecador,  alerta,  alerta, 
que  la  muerte  està  à  la  puerta. 

«Com  estas  e  semelhantes  vozes  clamavam  aos  oavidos  dos  pec- 
cadores.  Porém,  nilo  penetraram  seas  peitos  tanto  estes  clamores  corno 
08  SermSes  nocturnos.  Porqae  pregavam  os  nossos  em  descampado^ 
pouco  depois  do  sol  posto,  na  pra^a  baixa,  aonde  entro  as  mulheres 
que  yendiam,  corno  é  costume,  hortelÌ9as,  se  levantou  um  alto  pulpito 
aos  prégadores  da  divina  palavra,  que  occuparam  em  diversas  noites 
alguns  dos  nossos.  Foi  entre  elles  o  principal  orador  o  P.  Francisco 
Estrada,  o  qual,  no  proprio  dia  de  S.  Maria  Magdalena,  estendeu  o 
sermSo  desde  as  outo  até  às  dez  da  noite,  a  que  assistiu  tanta  multi- 
dAo  de  homena,  comò  nunca  vi  maior  nem  mais  repentina.  De  toda  a 
parte  acudiam  magotes  de  cidadSos,  uns  em  cavallos,  outros  em  mu- 
las;  e  comò  o  espectaculo  era  novo  e  nunca  ouvido,  procuravam  tornar 
legar  &  compita.  Uns  subiam  para  cima  de  mesas,  outros  de  cadeiras  ; 
alguns  em  escadas  e  outros  pelas  janellas.  A  Ina  com  sua  claridade 
animava  o  divino  obsequio.»  Depois  de  resumir  o  conteùdo  do  sermSo, 
di  conta  da  ìmpressSo  no  publico:  «Feito  iste,  muitos,  movidos  de  ad- 
mira9ÌLo  pergantavam,  que  significava  este  extraordinario  modo  de  pre- 
gar, de  clamar  e  de  mendigar?  Uns  diziam  que  estavamos  loucos  ou 
nescios;  outros  pensavam  que  nos  opprimia  alguma  necessidade;  ou- 
iros  affirmavam  nSLo  haver  mais  motivo  que  a  nossa  mortifìca9So . . .  >  ^ 


1  Padre  Bartholome  Alcazar,  ChronO'historia  de  la  Compa'hia  de  Jesus  en  la 
Provincia  de  Toledo,  Parte  i,  p.  52. 

81  # 


484  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Com  eates  melos  isferìores  é  que  se  apresentavam  osjesuitas  na  lucia 
da  exDancipa9So  intellectual  do  secnlo  xvi!  A  propaganda  religiosa  era 
urna  transformagSo  das  aventuras  cavalbeirescas,  e  osjesuitas  compre- 
henderam  este  espirito  de  miliciai  que  foi  fortificado  ainda  com  a  im- 
poBsibilidade  de  abandonar  a  Oompanhia.  O  modo  comò  se  intromette» 
ram  nos  estudos  de  Coimbra,  desde  1542  até  1555|  em  que  ficaram  ab- 
solutos  senbores  do  ensino,  resume-se  na  pbrase  com  que  o  jesuita  Mar- 
tim  Gonsalves  da  Camara  justificava  a  expuIsSo  dos  mestres  francezes 
trazidos  a  Portugal  por  André  de  Gouvéa,  dizendo  que  queria  os  estu» 
dantes — mata  caiholicos  e  menos  loHnosA  È  n'esta  concorrencia  dos  Col- 
legios;  em  volta  da  Universidadci  que  se  dà  a  batalba  decisiva,  em  que 
triumpba  o  plano  do  retrocesso  mental  e  com  elle  as  condigSes  para  a 
mina  proxima  da  nacionalidade  portugueza» 


1  O  Doutor  Diogo  de  GouTéa,  que  tanto  influirà  no  animo  de  D.  Joio  in 
para  admittir  os  Jesuitas  em  Portugal,  reconhecendo  o  genio  fanatico  do  rei,  es- 
plora essa  ezalta^io,  pedindo  um  subsidio  para  o  doutoramento  de  um  certo  frade 
em  Paris,  pelo  alto  meredmento  de  atacar  os  hereges,  na  falta  de  argamentos  theo- 
logìcoB,  a  morrò  fechado.  E  interessante  essa  carta  do  respeitado  Principal  do 
CoUegio  de  Santa  Barbara,  pela  tendencia  que  tomam  as  questòes  religiosas  a 
dirimirem-se  pela  yiolencia  bmtal  e  pelas  grandes  camificinas,  comò  a  de  Saint- 
Barthélemy:  «Senhor.  Ja  Vossa  Alteza  sabe,  que  eu  ei  de  trabalhar  por  edificar 
pedras  viyas,  e  sempre  me  prazei  d^este  officio,  e  se  por  usar  disto  me  nom  fise- 
rom  o  que  he  feito  a  outros,  por  edifficarem  pedras  mortas,  com  toda  minha  po- 
breza  me  tenho  por  mais  rico  e  mais  prospero,  que  elles,  com  todas  as  dinidades 
do  mundo,  e  nem  por  isso  nom  ei  de  deizar  de  continuar  meu  officio,  de  que  sem- 
pre me  prazei,  e  prezarei,  em  quanto  viver,  que  he  de  dar  modo  que  nese  Beino 
iga  homens  Letrados,  e  que  ijam  de  fazer  o  officio  que  fez  o  Filho  de  Deus  neste 
mundo.  Vossa  Alteza  fez  merce,  e  esmola  ho  Padre  Frei  Duarte,  de  trinta  cmza- 
dos  cadano  pera  sua  sustenta^am,  emquanto  estivesse  em  Paris;  elle  sta  ja  no 
come^  de  ser  Licenciado  daqui  a  dois  annos,  nos  quaes  compre  que  fa9a  seus  au- 
tos,  a  saber,  soriana  grande,  ordinaria  e  peguena,  e  pera  iste  elle  nom  tem,  se 
Vossa  Alteza  o  nom  ajudaf,  comò  fez  aos  outros.  Elle  por  ser  t2o  bom  Religioso, 
e  trabalhar,  comò  £az  polla  feé,  merece  toda  esmola  e  merce,  porque  he  bum  dos 
pìllares  della  nesta  terra,  e  mais  na  sua  Ordem,  que  sta  mui  gastada,  que  assi 
Deos  me  salve  està  alma,  que  ouvi  dizer  à  mmha  meza  Doutores  da  sua  Ordem, 
que  sam  verdadeiros  Catholicos,  estas  proprias  palavras  :  Deos  nos  trouxe  qua 
este  homem  pera  grande  bem  nesso  :  porque  elle  quando  nom  pode  per  beat  msdes 
e  palavras  converttUotj  te  he  em  Ivgar  onde  o  nom  vem,  nomfoM  oontcUnda  de  kvar 
ho  htrtge  peUo  eabe^am,  e  aervillo  do  punho  seco:  iste  he  certo,  que  o  fez  a  muitos; 
por  isso,  e  por  sua  vida  merece  toda  merce  e  esmola,  que  Ihe  fizer  Vossa  Altesa: 
ha  qual  Nosso  Senhor  queira  conservar  com  acrecentamento  de  seu  estado,  assi 
comò  em  meus  sacrifidos  Ihe  pe^o.  De  Paris,  oje  tres  de  Fevereiro  de  mil  qui» 
nhentos  e  quarenta  e  oito.— Criado  de  Vessa  Alteza-*  Oouvéa  Doctor  Senior.» 
(Archivo  nac,  Corpo  chronologieo,  Part.  i,  Ma^.  80,  n.*  25.  Apud  J.  P.  Bibeiro.) 


CAPITULO  VI 


0  Collejilo  reni  e  a  fondafio  de  novos  CoUegios  Jnnto  di  Universidade 

(1M7-1666) 


Transforma^So  da  Faculdade  de  Artes,  reduzida  a  ensino  secimdario  ott  mèdio. 
— O  Collegio  real,  de  Francisco  x,  ou  Collegio  de  Franga,  toma-se  o  typo  de 
urna  Faculdade  philologica  saperìor. — D.  Jolo  uz  funda  o  Collegio  real  em 
Coimbra^  para  se  lérem  Artes,  Mathematica,  Rhetoriea,  Hamanidades  e  Lm- 
guas. — £  chamado  de  Bordéos  Mestre  André  de  Gk)avéa  com  nm  corpo  do- 
cente para  a  nova  funda92o. — 0  mosteiro  de  Santa  Cruz  empresta  os  dois 
CoUegios  de  S.  Miguel  e  Todos  os  Santos  para  n*elles  se  recolher  o  Colico 
de  Mestre  André,  emquanto  o  rei  nSo  manda  construir  um  edificio  especial 
(Collegio  de  S.  Paulo). — E  inaugurado  o  Collegio  real  em  28  de  junho  de 
1548. — 0  Regimento  do  Collegio  real,  de  16  de  novembro  de  1547,  isenta-o 
da  jurÌ8dic9So  do  reitor  da  Universidade. — Classes  de  porcionistas. — Aneto- 
ridade  excepdonal  concedida  a  Mestre  André  de  Gouyéa,  e  comò  o  rei  con- 
seguiu  que  elle  largasse  o  Collegio  de  Guyenne. — A  grande  reputa^So  de  pe- 
dagogista que  André  de  Gouyéa  gosaya  em  Fran9a. — Qual  era  a  oiganisa^ 
dos  CoUegios  que  elle  dirigia. — Corpo  docente,  ou  Collegio  de  Mestre  André, 
trazido  de  Franca. — Fallecimento  inesperado  de  André  de  Gouyèa;  é  substi- 
tuido  no  Prindpalato  por  seu  sobrinho,  em  10  de  agosto  de  1548. — ^Diogo  de 
Teive,  o  sub-principal  Dr.  Jofto  da  Costa  e  Jorge  Buchanan  sSo  denunciados 
à  Inquisi^fto,  e  prezos,  em  1550. — ^Eztraordinarias  revela^Ses  dos  seus  tres  pro- 
cessos  no  Santo  Officio  de  Lisboa. — Os  dois  bandos:  parisieruea  e  bordelezea. 
— Serie  dos  Principaes  até  à  entrega  do  Collegio  real  aos  Jesuitas. — No  Re- 
gimento dado  ao  Collegio  em  1549  volta  &  auctoridade  do  reitor  da  Univer- 
sidade.—Questoes  resultantes  do  emprestimo  dos  dois  Colle^os  de  Santa 
Cruz. — Humanistas  portuguezes  que  yieram  de  Franca  para  ensinarem  em 
Coimbra. — A  dinastia  pedagogica  dos  Gouvéaa. — ^Visita  de  D.  JoSo  m  a 
Coimbra  em  novembre  de  1550. — Orazio  redtada  por  Ignacio  de  Moraes  no 
recebimento  do  monarcha.— Assiste  ao  gr&o  de  D.  Antonio,  a  cuja  festa  se 
representa  a  tragedia  de  GoUaa. — Outros  diyertimentos  dramaticos  na  Uni- 
yersidade. — Os  Jesuitas  intiigam  centra  os  Mestres  francezes. — Persegui- 
^Òes  centra  Buchanan,  Yinet  e  Grouchj.— A  morte  prematura  do  principe 
D.  Jo&o.— Trata-se  de  entregar  o  Collegio  real  aos  Jesuitas. — PenieguÌ9llo 


486  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

do  corrector  da  Imprensa  da  Univereidade.—  Carta  de  10  de  setembro  de- 
1555,  a  Diogo  de  Teiye,  para  entregar  o  CoUtgio  rea!  ao  padre  Mirio,  pro- 
vincia! do8  Jesuitas:  dispersio  dos  seus  professorea. — Quadro  pedagogico 
do8  JeBuitas. —  Como  elles  fundem  em  um  so  o  Collegio  real  e  o  Collegio  de 
Jesus  no  afamado  Collegio  da»  Arie». — Como  se  apoderam  da  bella  quinta 
de  Villa  Franca. —  Sua  ingratidSo  para  com  o  Collegio  de  Santa  Barbara. — 
Os  clerigoB  por  lettradura. — De8crip9So  dos  CoUegios  que  cercavam  a  Uni- 
▼ersidade  no  Conimbricae  encotnium  de  Tgnacio  de  Moraes  :  Collegio  de  S.  Fe- 
dro (1545),  ou  do8  Borra»,  seguindo  08  C08tume8  dos  Collegios  de  Salamanca. 
— O  Collegio  de  S.  Thomaz,  mudado  para  Coimbra  em  1539. — 0  Collegio  da 
Gra^a,  concluido  em  1548. — O  Collegio  do  Carmo,  ou  do  Bispo  do  Porto. — 
O  Collegio  de  S.  Boavcntura.—  O  reitor  Frei  Diogo  de  Mur^a  funda  os  Col- 
legios de  8.  Jeronymo,  de  S.  Sento  e  de  8.  Paulo,  para  derìgos  pobres. — 
Questito  de  prima zias  entro  ob  Collegios  de  S.  Fedro,  ou  dos  Borra»,  e  o  de 
S.  Faulo,  ou  dos  Mangancha». — As  ra^oes  cubertas. — Quando  cometa  a  fune- 
clonar,  e  os  seus  primeiros  collegiaes. — A  actividade  dos  Collegios  nSo  salva 
a  Univerfiidade  da  irremediavel  decadenda,  comò  aconteceu  tambem  Ab  Uni- 
versidades  de  Franca  e  de  Inglaterra. 


As  profundas  tran8forina9Se6  que  soffreu  o  ensìno  das  Artes,  ou 
dÌ8ciplinas  humasistas^  na  època  da  Reiia8cen(ay  determÌDaram  a  iun- 
dafSo  de  um  grande  numero  de  Collegios  junto  das  Universidades;  es- 
888  Collegios  eram  classifieados  de  maiores  e  menores,  conforme  se  des- 
tinavam  à  cultura  de  estudantes  jà  graduados  que  sómente  faziam 
esame  perante  a  Univeraidadei  ou  a  escbolares  que  se  habilitavam  nas 
dÌBciplinas  preparatorias  para  as  faculdades  superiores.  Estas  cathego- 
rias  correspondem  mais  ou  menos  à  indole  das  disciplinas  pedagogi- 
ca8  e  à  fórma  que  estas  tomaram  no  seculo  xvi,  porque  assim  comò 
as  Faculdados  de  Artes^  eob  a  influencia  dos  Jesuitas,  decaem  de  im- 
portancia,  convertendo-se  em  um  ensino  mèdio,  eecundario  ou  elemen- 
tare tambem  pela  funda9So  do  Collegio  real,  sob  Francisco  i,  e  pela 
iniciativa  de  Fedro  Hamus^  o  ensino  humanista  adquire  uma  elevada 
importancia  scientifica,  sendo  por  via  d'elle  que  entram  na  Instruc^So 
publica  novas  disciplinas  que  nfio  achavam  logar  no  quadro  tradicio- 
nal  das  Faculdades  universitarias.  Estaa  duas  correntes  pedagogicts 
nos  apparecem  junto  da  Universidade  de  Coimbra,  onde  D.  JoSo  m 
funda  em  1547  o  Collegio  real  de  Humanidades,  à  imita9Zo  do  Collège 
Boyal,  ou  de  Fran9a,  e  onde  o  Collegio  de  Jesus,  inaugurado  pelos  Je- 
suitas  em  1542,  imprime  ao  ensino  humanista  o  caracter  dementar  da 
in8truc9So  secundaria.  £Ì8  os  doÌ8  problcmas  do  ensino  publico,  na  8ua 
simplìcidade,  taes  corno  os  propos  o  seculo  xvi;  resolveu-se  pratica- 
mente e  de  uma  maneira  definitiva  a  crea9Ìo  da  InstrucgSo  publica 


0  COLLEGIO  REAL  487 

fcccuridaria^  porém  o  estabelecimento  de  urna  Faculdade  humanista^ 
philologiea  e  pbilosophica  superior  é  que  ainda  oSo'  foi  completamente 
coneeguido.  Em  Portugal  deu-8e  o  conflicto  entre  estas  duas  corren- 
tes,  e  a  abdica^fio  moral  de  D.  Jo2o  ni  diante  dos  seus  directores  je- 
BxiitaB,  dando-lbes  o  dominio  absolufo  sobre  o  Collegio  real,  determinou 
a  effectiva  decadencia  da  Faculdade  de  Artes  e  exclusiva  cultura  do 
ensino  secundario. 

Com  a  vinda  de  mestres  de  Fran9a,  Hespanha  e  Italia,  ainda  sob 
o  reitorado  de  D.  Agostinho  Hibeiro,  e  pelo  grande  numero  de  estu- 
dantes  que  affluiam  a  Coimbra,  as  aulas  ficaram  divididas.  Liam-se^ 
comò  jà  0  deixàmos  relatado,  Canones,  Leis  e  Medicina  noe  Pa908  reaes 
da  cidade,  mudadas  as  aulas  do  palacio  de  D.  Grarcia  de  Almeida; 
Theologia,  Artes  e  Humanidades  liam-se  nos  Collegios  de  ;S^.  Joào  e 
Santo  Agofstinho,  que  pertenciam  ao  mosfteiro  de  Santa  Cruz.  Por  al- 
varà  de  22  de  outubro  de  1 544  foram  mudados  os  estudos  de  Theolo- 
già  e  Artes  d'et-tes  Collf  gips,  por  prejudicarem  a  clausura  do  mosteiro, 
sendo  as  aulas  de  Theologia  distribuidas  pelos  Collegios  de  outras  Or- 
dens  monasticas;  e  as  clnsses  de  Grammatica  foram  collocadas  nas  ca- 
sas  conhecidas  pelo  nome  dos  Estudos  velhos  (onde  estiverà  na  origem 
a  Universidade,  e  depois  se  edi£cou  o  Collegio  de  S.  Paulo).  O  pa^o 
real  era  ins  ufficiente  para  abrigar  todas  as  cathedras;  està  circumstan- 
eia  levou  D.  Joao  iii  a  concentrar  abi  apenas  as  quatro  faculdades  das 
Sciencias  maiores,  Theologia,  Canones,  Leis  e  Medicina,^  e  estabele- 


1  A  ioiciaf  iva  de  D.  JoSo  in  chegava  a  ser  perturbadora.  Em  carta  de  11  de 
maio  de  1545  escrevia  o  reitor  Frei  Diogo  de  Mui-ya  a  D.  Jo2o  lu,  àcerca  dos  des- 
pachoB  de  leDtes  :  «qua  me  disserào  que  alguns  estudautes  sao  hidos  a  V.  A.  a  pe- 
dirlhc  buma  cadeira  de  instituia  qua  hora  vaga  :  pare^eme  que  V.  A.  a  nom  deve 
de  dar  se  nom  por  opposìgao  porque  ha  aqui  muitos  que  a  bem  merecem,  jd  filhos 
da  Uoiversidade,  que  de  noyte  e  de  dia  trabalhsm  com  esperan^a  de  poderem  per 
seus  trabalboa  aver  alguma  cousa  Desta  Universidade  ;  e  se  virem  que  V.  A.  dà 
estas  cadeiras  pequenas  por  aderencia,  muito  Ibes  quairào  animo  de  trabalharem, 
e  birseam  la  a  negociar  aderencia  e  leizarào  o  estudo,  e  vendo  que  sco  seu  traba- 
Ibo  e  justi^a  Ibes  bade  valer,  darseam  de  todo  ao  estudo,  corno  sgora  fazem,  que 
nom  ba  Universidade  no  mundo  cm  que  aja  tanto  ezercicio  comò  nesta:  por  tanto 
convem  muito  a  servilo  de  V.  A.  nom  Ibes  ser  quebrado  este  fio,  mas  antes  per 
t  cdolas  vias  ee  Ibe  deve  dar  ajuda  e  eeperan^a  que  seus  trabalbos  averSo  gallar- 
dào,  e  a  condi^ao  nossa  be  que  mais  estimamos  o  pouquo  ganbado  polla  penta  da 
1  an^a  (corno  dìzem)  que  o  muito  per  entra  via,  porque  a  groria  e  contentamento  se 
estima  mais  que  tudo. 

«Sobre  buma  substitui^^o  (corno  a  V.  A.  screvi)  ouve  agora  lÌ9oes  de  oppo- 
sifio  tam  bcnrradas,  que  nom  ouve  quem  nom  louvàsee:  e  forfto  ellas  tais  que  em 


488  HISTORIA  DA  UNTVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

cendo  ama  separa9So  para  os  estudos  humanisticos,  procurou  fuadar 
om  estabelecimento  proprio  para  se  lerem  Artes,  Mathematica,  Bheto- 
rica,  Humanidades  e  Lingwis,  i  imita9&o  do  Collegio  de  Franca,  fìm* 
dado  por  Francisco  i.  Tal  foi  a  origem  do  CMegio  real,  instituido  por 
D.  JoSo  m^  para  o  qual  mandou  vir  mestres  de  Franca,  sob  a  direo- 
9S0  do  Principal  André  de  GouvSa,  quando  ainda  nSo  tinha  edifido 
apropriado.  A  chegada  do  corpo  docente  f Collegio  de  Mestre  André)  a 
Lisboa^  em  julho  de  1547^  fez  com  que  D.  JoSo  ni,  para  seguir  o 
costume  francez,  dando-lhe  edificio  em  que  lessem  e  assistissem^  e  os 
conservasse  independentes  da  Universidade^  emprehendesse  logo  a  con* 
struc9ào  do  edificio^  mas  mandando-o  abrigar  nos  CoUegios  de  S.  Mi- 
guel e  de  Todos  os  Santos,  que  pediu  por  emprestimo  ao  mosteiro  de 
Santa  Cruz. 

Antes  de  entrarmos  na  expo8Ì9So  dos  trabalhos  para  a  constitui- 
92L0  do  Collegio  real,  è  indispensavel  conhecer  a  grande  figura  historica 
de  André  de  Gouvèa^  o  prìmoiro  pedagogista  da  Renascenga,  e  os  in- 
sistentes  esforyos  empregados  por  D.  JoSo  iii  para  0  attrahir  a  Por- 
tugaly  aproveitando-se  do  seu  vasto  talento  para  a  renovagSo  dos  estu- 
dos em  Coimbra.  André  de  Gouvèa  achava-se  no  firn  de  J533  com  o 
Principalato  de  Santa  Barbara,  em  ama  das  crises  mais  difficeis  d'aquelle 
estabelecimento,  quando  as  doutrinas  da  Reforma  ali  penetravam  por 
influxo  de  Nicolào  Kopp;  André  de  Gouvèa  era  querido  da  mocidade 
escholar,  comò  um  homem  novo  em  todo  0  sentido,  na  edade  e  na  adhe- 
sSo  às  idéas  luminosas  do  seu  seculo,  e  pela  aUian9a  excepcional  do 
talento  com  0  caracter.  ^  Foi  com  estes  recursos  que  venceu  a  terrivel 
crise.  Quìcherat  descreve  assim  a  sua  direc9So  no  principalato:  ctres 
palavras  resumem  a  sua  historia:  tranquillidade,  prosperidade  e  con- 
siderafSo.  Tal  foi  a  continuajSo  da  obra  de  Diego  de  Gouvèa  por  um 
homem  capaz  tambem  de  a  aperfeÌ9oar.  Nunca  a  disciplina  foi  mais 
religiosamente  observadai  nem  o  quadro  do  pessoal  docente  melhor 
provido.  Com  Marciai,  Antonio  e  Diego  de  Gouvèa,  0  mo^,  com  Teive 


teda  parte  do  mando  onde  se  fizerào,  forào  louvadas  e  estimadas  :  e  estas  cousas 
ezcitilo  muito  os  estudantes  e  damlhe  grande  animo  a  trabalharem,  esperando  a 
gloria  qne  se  recebe  de  semelhantes  trìumfos  :  eates  lentes  est&o  muito  agastados 
por  a  paga  desta  ter^a  se  deffirir  tanto;  beyarey  as  m&os  de  V.  A.  mandar  donde 
se  ha  daver  dinheiro  pera  este  pagamento  por  que  com  està  esterelidade  de  p2o 
ereceo  a  necessydade  a  todos  :  a  gra^a  do  sperita  santo  sempre  com  Y .  A.  amen  : 
de  Coimbra  a  xi  de  maio  de  1545.  Frey  Diogo  de  Mur^a.»  (Àxcb.  nac.,  Corpo  chro^ 
nologieo,  Part.  i,  Sia^.  76,  doc.  bl,—Inttituto,  t.  zxzyiii,  p.  626.) 
1  Qoicherat,  Histoirt  du  CoUhge  de  Saintt-Baròt,  1. 1,  p!  221. 


0  COLLEGIO  REAL  489 

e  Belliago,  a  constella^So  portagueza  brilhava  em  todo  o  Bea  esplen- 
dor;  Strébée  contiiiaava  a  formar  rhetoricos;  pelos  cuidados  do  joven 
Principal^  um  dos  corsos  extraordinarios  em  que  todas  as  novidadea 
podiam  aer  apresentadas,  coabe  a  um  mestre  que  andava  nas  tubas 
da  fama,  a  Bartholomeu  Latomus. . .  amigo  de  Erasmo  e  um  repre- 
sentante  da  philosophia  allemS.»  Em  breve  Latomus  foi  raptado  por 
Francisco  i  para  a  sua  recente  crea9So  do  Collegio  de  Franga,  e  An- 
dré de  Gouvèa^  perdendo  tambem  a  coopera9So  de  Strébée,  acceitou 
a  proposta  do  Conselho  municipal  de  Bordéos,  que  Ihe  offerecia  a  di- 
reciso  do  Collegio  de  Ouyenne.  Se  o  prìncipalato  de  André  de  GouvSa 
deixou  no  Collegio  de  Santa  Barbara  um  traf  o  luminoso  e  inolvidavel, 
no  Collegio  de  Quyenne,  cujo  governo  manteve  desde  1534  a  1547, 
revelou-se  por  tal  fórma  o  seu  genio  organisador,  que  MontaignCi  que 
frequentara  aquelle  estabeiecimento,  o  proclamava  nos  seus  Ensaios  ^le 
plus  grand  Principal  de  France.ì^  Està  parte  da  vida  gloriosa  de  An- 
dré de  Gouvèa  acha-se  ampiamente  relatada  na  obra  importante  de 
Ernest  Gaullieur  sobre  a  Hietoria  do  Collegio  de  Ouyenne,  de  que  nos 
aproveitaremoSy  ampliando-a  com  documentos  sobre  os  lentes  perse- 
guidos  pela  InquisÌ9fto  de  Lisboa.^  D.  JoSo  iii  fòra  bem  aconselhado, 
quando  se  dirìgiu  a  André  de  Gouvèa  para  vir  reorganisar  em  Portu- 
gal  03  estudos  humanistas;  o  eminente  pedagogista  n&o  podia  cortar 
repentinamente  a  sua  carreira,  comò  se  deprehende  dos  esfor90s  em- 
pregados  por  D.  JoSo  ili  desde  1543  até  1547  para  resolvel-o  a  vir 
para  Coimbra  temporariamente. 

O  Collegio  de  Ouyenne  (ou  da  provincia  da  Aquitania)  fora  en- 
tregue  em  1532  à  direc9&o  de  JoSo  de  Tartas,  o  celebre  principal  do 
Collegio  de  Lisieux  em  Paris,  que  se  distinguira,  comò  se  sabe  pelos 
cxtraordinarios  louvores  que  Ihe  consagrou  Nicolào  Clenardo,  pelo 
grande  desenvolvimento  que  déra  ao  estudo  das  linguas  orientaes.  O 
Collegio,  dotado  por  bons  rendimentos,  contava  com  accommodagòes 
para  trezentos  e  trinta  e  seis  porcionistas  ou  intemos,  quando  foi  inau- 
gurado  em  24  de  maio  de  1533.  Tartas  soube  reunir  comò  regentes  do 
Collegio  OS  principaes  eruditos  da  Renascenga,  taes  comò  Joachim  Po- 
lites,  Robert  Brìtannus,  mas  faltava-lhe  aquelle  espirito  conciliador  in- 
dispensavel  para  harmonisar  os  caracteres.  Achou-se  ìnopinadamente 
cercado  de  uma  animadversSo  t!lo  goral,  que  a  Jurade  de  Bordéos  viu-se 


1  Histoire  du  CoUkgt  de  Ouyenne,  d*après  un  grand  nombre  de  Documents 
inedita,  par  Ernest  Gaullieur,  archiviste  de  la  Ville  de  Bordeaux.  Paris,  1874, 
voi.  ÌU'Q.^  grande  de  xxz-57B  pp. 


4d0  HISTORIA  DA  UKIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

na  neceesìdade  de  destituil-o  do  cargo  de  Principal  em  abril  de  1534. 
Foi  n'estas  circumBtancias  que  o  Conselho  municipaly  ou  da  Jurade, 
escreveu  em  19  de  abril  para  Paris  convidando  André  de  Gouvèa  a 
occupar  o  legar  de  Principal  do  Collegio  de  Ovytnne.  O  celebre  Prin- 
cipal de  Santa  Barbara  acceitou  o  convite,  pelo  que  o  Conselho^  de- 
pois de  unaa  sessSo  em  28  de  maio  de  1534,  o  chamou  para  tornar 
conta  do  eeu  cargo:  ^que,  attendu  que  Von  vouloit  recepvoir  Principal 
du  Collège  de  Guytrme,  il  foUoit  qu^U  se  remvast  de  Paria pour  vendre 
8on  office  et  mentr  ha  régene  tn  cesie  ville. 3^  André  de  Gouvèa  entrc- 
gou  o  governo  do  Collegio  de  Santa  Barbara  a  seu  tio,  o  doutor  ve- 
Iho  Diego  de  Gouvèa,  e  tornando  conselho  com  o  seu  intimo  amigo 
JoSo  Gèlida,  tratou  de  escolber  os  regentes  que  deviam  acompanhnlo, 
com  06  quaes  partiu  para  Bordéos,  aonde  chegou  n'um  sabbado,  12  de 
julho  de  1584,  sondo  recebido  pelos  membros  da  Jurade  em  casa  do 
presidente  Sauvat  de  Pomiers.  Ko  dia  15,  na  sesbfto  do  palacio  da 
municipalidade,  recebeu  a  nomea9&o  o£5cìal  de  Principal  do  Collegio 
de  Gvyenne,  André  de  Gouvèa,  aproveitando-se  de  um  grande  numero 
de  regentes  escolhidos  por  Tartas,  de  um  merito  reconhecido,  levara 
comsigo  de  Paris  cquatro  profcEsores  do  mais  alto  merito,  os  quaes  so 
por  si  bastavam  para  fazerem  a  reputa^fto  de  um  Collegio:  Diego  de 
Teive,  NicoMo  Grouchy,  Guilherme  Guérente  e  Antonio  de  Gouvèa, 
irmSo  do  Principal.  Todos  os  quatro  tinham  ensinado  em  Santa  Barbara 
sob  a  direc(ào  de  André  de  Gouvèa,  e  conbecendo  a  sua  habilidade 
comò  adniinistrador,  nSo  tinham  hesitado  em  srguil-o.»^  Pelo  seu  lado, 
André  de  Gouvèa  conhecia  a  superior  capacidade  d'estes  regentes, 
para  contar  com  ell^  na  transformafSo  do  Collegio  de  Ovytnne,  e 
para  mais  tarde  os  trazer  a  Portugal  a  pedido  de  D.  JoSo  in,  para  a 
inaugnray&o  do  Collegio  real.  Nào  anteciparemos  aqui  os  tragos  bio- 
graphicos  de  Grouchy,  Guérente,  Vinet,  Fabricio,  Buchanan,  Teive  e 
JoSo  da  Costa,  de  que  elle  soube  cercar-se,  para  nSo  demorarmos  o  seu 
encontro  com  D.  Jofto  iii.  André  de  Gouvèa  era  doutor  em  theologia 
pela  Sorbonne,  corno  se  sabe  além  do  testemunho  de  Theodoro  de 
Béze,  por  um  documento  coevo;  està  circumstancia  era  uma  comò  ga- 
rantia  do  seu  governo,  em  uma  època  perturbada  pela  critica  religiosa, 
e  quando  se  decretavam  severas  prohibÌ93es  centra  a  leitura  de  deter- 
minados  livros,  comò  Bibita»,  Catechismos  e  Escudoa,  espalhados  pelos 
propagandistas  protestantes.  No  CoUegio  de  Guyenne  tinham  pene- 


1  Ap.  Gaullieur,  Eistoire  du  Collège  de  Gtiyfrme,  p^  79. 

2  Idem,  ib.,  p.  86  O  tio  ficou-o  por  iste  odiando  mortabnente* 


0  COLLEGIO  REAl  491 

trado  est^B  livros  por  via  dos  Martinets  ou  estudantes  externos;  de 
sorte  que  no  regreeBO  de  André  de  Gouvéa  em  13  de  novembro  de 
1534,  da  viagem  a  Paris  para  contractar  novos  regentes,  foi  intimado 
pelo  tribunal  por  consentir  no  Collegio  livros  prohibidos  pela  Sorbonne. 
£m  21  de  novembre  d'esse  mesmo  anno  teve  André  de  Oouvèa  de  ir 
outra  vez  a  Paris,  sendo  o  principalato  confiado  temporarìamente  ao 
dominicano  Ooynelli;  em  Janeiro  de  1535  regressou  a  Bordéos  tra- 
zendo  comsigo  cince  regentes,  Mathurin  Cordier,  Claude  Budin,  JoSo 
da  Costa,  Jnnio  Babirius  e  Arnaldo  Fabrlcio,  de  Bazae.  Sobre  este 
novo  pessoal,  diz  Gaullieur:  «Alguns  d'estes  recem-chegados,  mas  tres 
principalmente,  Cordier,  Budin  e  JoSo  da  Costa,  tiveram  urna  influen- 
eia  capital  sobre  os  destinos  do  Collegio  de  Guyenne.»^  Jà  dos  ante- 
cedentes  profesEores  escrevera  o  erudito  archivista:  «Foi  com  estes 
quatorze  profesEores,  todos  elles  homens  de  uma  erudÌ9So  notavel, 
e  alguns  dos  quaes  adquiriram  uma  justa  celebridade,  que  André  de 
Gouvéa  come^ou  a  reforma  do  Collegio  de  Guyenne,  guiado  por  este 
admiravel  espirito  de  organiBa^So  que  fazia  com  que  Britannus  dissesse 
d'elle,  que  parecia  que  a  natureza  o  tinha  creado  para  o  principalato, 
e  que  pela  sua  intelligencia  e  pela  natureza  dos  seus  estudos  estava 
destinado  a  occupar  este  posto. —  Com  um  Principal  dotado  de  tio  pre- 
ciosas  qualidades,  e  uma  tal  reuniSLo  de  homens  eminentes,  o  exito  nSLo 
era  duvidoso;  assim  nào  se  demorou,  e  de  15  de  julho  a  15  de  novem- 
bro, 0  numero  de  alumnos  augmentou  de  uma  maneira  consideravel, 
além  de  teda  a  espectativa.»'  Em  uma  carta  de  Britannus,  de  novem- 
bro de  1534,  a  Pierre  Lagnier,  lé-se:  «Se  desejas  noticias  do  Collegio, 
elle  entra  largamente  e  seriamente  na  via  da  prosperidade,  gragas  ao 
merito  e  a  actividade  de  André  de  Gouvea,  jd  celebre  no  pnncipaUtto, 
Os  professores  sSo  homens  instruidos  e  graves.  0  numero  de  discipu- 
los  é  grande  jà.  Assim  podemos  esperar  dentro  em  pouco  vèr  flores- 
cer  n'esta  institui(So  a  eloquencia  e  o  culto  das  bellas-lettras.»  E  em 
outra  carta  dirigida  directamente  para  Paris,  a  André  de  Gouvea,  na 
ultima  viagem  de  21  de  novembro,  escreveu-lhe  Robert  Britannus  :  «Cau- 
saram-me  um  grande  prazer  as  cartas  que  dirigiste  a  algumas  pessoas 
mais  notaveis  de  Bordéos;  porque,  pelo  que  deprehendi,  sei  que  che- 
gaste  a  Paris  s8o  e  salvo.  Soube-Oicom  extrema  satisfa^So,  porque  nSo 
EÓ  comò  homem  particular  eu  te  devo  o  meu  auxilio  e  concurso,  mas 
sobretudo,  porque  do  teu  exito  depende  o  exito  e  a  dignidade  de  mui- 


1  Gaullieur,  Op.  cit.,  p.  95. 

2  Idem,  ib.,  p.  91. 


492  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

tos  outros.  A  existencia  do  Collegio  de  Guyenne  està  intimamente  li- 
gada  à  tua.  Todos  os  que  amam  as  lettraS|  aquelles  que  passam  a  sua 
Vida  no  estado  das  artes  liberaes,  desejam  com  arder  o  tea  regresso; 
elles  consideram  que  nada  do  que  tSm  emprehendido  poderà  ficar  aca- 
bado  sem  ti.  Rir-te-has,  talvez,  e  pensas  que  eu  procuro  lisonjear-te. 
NSlo,  com  certeza;  nSo  tenho  tanta  complacencia,  e  dir-te-hei  porque 
motivos  te  escrevo  n'este  sentido.  Desde  a  tua  partida  de  Bordéos,  o. 
Collegio  tem  side  administrado  com  um  cuidado  e  um  tino  tal,  que, 
quanto  outr'ora  parecia  cambaleante,  tanto  hoje  parece  solidamente 
estabelecido  e  florescente.  De  sorte  que  teda  a  gente  de  bem  colloca 
em  ti  sua  espectativa.  Os  fiindamentos  do  Collegio  foram  solidamente 
assentes  depois  da  tua  partida,  e  todos  contam  com  o  teu  regresso 
para  o  acabamento  da  obra  e  o  auxilio  material  que  Ihe  é  necessario; 
porque,  se  assim  me  posso  exprimir,  outr'ora  nada  era  completo,  e 
nada  dava  indicio  da  creaySo  de  um  verdadeiro  Collegio.  £  &  tua  ho- 
nestidade,  à  tua  habilidade,  à  tua  prudencia  que  estava  reservado  o 
mister  de  acabar  o  que  estava  comegado;  eu  sei,  além  d'isso,  que  tu 
podes  corresponder  a  està  espectativa,  e  que  nSo  te  queres  eximir  a 
ella.  Àpressa  pois  o  teu  regresso,  para  que  nos  dSs  a  todos  um  grande 
prazer,  e  uma  grande  alegria.»* 

Logo  que  o  Collegio  de  Guyenne  entrou  em  1535  definitivamente 
sob  a  direc9SLo  de  André  de  Gouvèa,  nomeou  sub-principal  a  JoSo  da 
Costa^  dotado  de  um  extraordinario  tino  administrativo.  cEncarregou 
NicoMo  Grouchy  do  curso  de  Dialectica,  que  elle  conservou  durante 
treze  annos,  o  que  é  uma  prova  do  successo  extraordinario  que  teve 
o  ensino  philosophico  do  joven  professor  rouenez.  Um  certo  numero 
de  alunmos,  attrahidos  pela  justa  nomeada  das  suas  ligSes,  deixaram 
a  Universidade  de  Paris  para  virem  ouvir  a  Bordéos  os  sabios  com- 
mentarios  sobre  Aristoteles,  que  Grouchy,  por  innova9So  arrojada,  e 
que  nSo  teve  imitadores,  dictava  na  propria  lingua  do  texto.»' 

Fallando  do  regulamento  interno  do  Collegio,  redigido  por  André 
de  Gouvéa,  dotado  de  qualidades  particularissimas,  de  excellente  erga- 
nisador,  nota  nfto  ter  esquecido  nenhum  detalhe  relativo,  quer  &  marcha 
geral  dos  estudos,  quer  à  disciplina  propriamente  dita.  cMas,  o  que 
ainda  mais  do  que  tudo  isto  veiu  auxilial-o  no  seu  successo,  foi  a  sua 
rectidAo  e  amenidade  perfeitas.  Depois  de  se  ter  cercado  de  professores 
de  um  grande  merito,  viveu  com  elles  fraternalmente,  evitando  teda 


1  Roberti  Brìtanni,  EpUtolcte,  fi.  38. —  Apud  Gaullieur,  Op.  cit,,  p.  93. 
*  Gaullieur,  Op.  eU.,  p.  102. 


0  COLLEGIO  REAL  493 

a  occasiSo  de  os  melindrar,  tratando-os  corno  aeus  pares,  em  um  pé 
de  perfeita  egualdade;  em  urna  palavra,  elle  soube  fazer-se  amar  e 
crear  asBim  preciosos  auxiliares.»^  Contrastava  com  seu  tio  o  Doutor 
velho,  qiie  era  rancoroso^  e  que  o  ficara  odiando  por  ter  deixado  o 
Collegio  de  Santa  Barbara. 

André  de  Goavèa  alargando  as  rela93e8  dos  discipulos  com  os 
mestresy  e  prohibindo  as  pancadas  no  Collegio,  achava  da  parte  dos 
alumnos  um  ardente  enthnziasmo  no  estudo.  Britannus  escrevia  ao  in- 
fluente Jean  Ciret,  relatando-lhe  o  estado  do  Collegio:  cisto  que  es- 
crevo  dà  na  vista;  todos  os  que  véem  o  Collegio  administrado  com 
tanta  equidade  e  tino,  e  que  assistem  aos  nossos  colloquios  e  aos  nossos 
exercicios  publicos,  reconhecem  que  nSo  é  uma  in8tituÌ9So  de  pouca 
importancia  que  nós  possuimos,  mas  uma  illustre  e  gloriosa  academia, 
que  pode  estar  na  mesma  linha  que  as  de  Paris.»  Montaigne  tambem 
considerava  o  Collegio  de  Guyenne  <o  melhor  Collegio  de  Frcmga.^^ 
Efifectivamente  a  sua  prosperidade  crescente  levou  a  Jurade  de  Bor- 
déos  a  elevar  os  honorarios  de  André  de  Gouvéa  de  500  livras  a  700, 
por  proposta  do  advogado  Louis  Girard,  em  21  de  abril  de  1537;  e 
sobre  os  mesmos  progressos  escrevia  Britannus  em  1536  a  Joào  Ciret, 
que  propuzera  a  chamada  de  André  de  Gouvéa  para  Bordéos:  aHoje 
a  gloria  da  Aquitania  resplandece  entre  as  nagSes;  hoje,  està  cidade 
illustra-se  no  estudo  da  lingua,  da  litteratura  e  das  obras  primas  ora- 
torìas  de  todos  os  povos;  Bordéos  tem  comprehendido  que  pela  cultura 
das  letras,  e  gra9aB  &  sua  influencia,  os  costumes  serSo  em  breve  mais 
suaves  e  mais  ordenados.  Ah!  que  digo?  Em  breve?  Agora  mesmo, 
este  resultado  apparece  aqui  de  uma  maneira  notavel.  As  intelligencias 
desenvolvem-se,  os  estudos,  cujo  nivel  se  alevanta,  crescem  e  multipli- 
cam-se.  Estes  excellentes  resultados  s8o  devidos,  nunca  me  cansarei  de 
0  repetir,  ao  merito  particularissìmo  do  Principal  André  de  Gouvéa, 
cujo  saber  eguala  a  sua  modestia  e  gravidade;  o  Collegio  de  Guyenne 
deve  consideravelmente  à  perseveranja  e  à  firmeza  com  que  elle  o  di- 
rige, mas  com  certeza,  tambem  vos  deve  multo.  >^  Quando  André  de 
Gouvéa  acceitara  o  convite  para  dirigir  o  Collegio  de  Guyenne,  entre 
as  clausulas  do  contraete  figurava  a  de  se  Ihe  conceder  carta  de  natu- 
ralisasSo  assignada  por  Francisco  i.  Effectivamente  em  1537,  Pedro 
Eyquem,  pae  do  immortai  Miguel  Montaigne,  entregou  a  André  de 


1  QauUieur,  Op,  eiL,  p.  107. 

2  EuaUj  liv.  I,  cap.  15. 

3  Soberti  Britamii,  Epiitdae,  fl.  49  y.— Apud  Gaullieor,  Op.  eit,  p.  432. 


494  HISTORIA  DÀ  lUNVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Goavéa  a  carta  de  natiiraIisa9So  exigìda.  Està  naturalisafSo  era  am 
meio  de  garantir-se  centra  qualquer  yiolBQcia  a  que  estavam  expostos 
OS  portuguezes,  confandidos  com  oa  castelhanos  nas  gaerras  entre  Fran^ 
cieco  I  e  Carlos  v.  Àssim  pdde  offerecer  azylo  a  Diego  de  Teive.  Como 
cidadSlo  firancez  André  de  Gouvèa  podia  servir  melhor  os  seas  patriciosi 
comò  0  mostrou  por  varìas  vezea,  facilitaado-lhes  a»  transacySes  oom- 
merciaes:  cem  virtude  da  sua  posifSo  e  iofluencia  de  que  gosava  em 
Bordéos^  era  uma  verdadeira  providencia  para  todos  os  seas  compatrio- 
tas  que  tinham  rela98e8  freqaentes  com  està  cidade,  ou  aU  se  achavam 
em  difficuldades.  Algumas  vezes  despachava  por  sua  conta  expedÌ93e3 
commerciaes.»^  A  sua  influencia,  com  a  valiosa  coopera^^o  de  Diego 
de  Teive  e  JoJLo  da  Costa,  fez  com  que  o  Collegio  de  Guyenne  rece- 
besse  um  grande  numero  de  estudantes  de  Portugal.  Além  do  respeito 
que  D.  Joao  in  tinha  pelo  velho  Dr.  Diego  de  Gouvea^  e  de  ter  no- 
meado  André  de  Gouvèa  seu  procurador  na  cdrte  de  Franca,  na  ques-- 
tao  do  dote  da  rainfaa  D.  Leonor,  viuva  do  rei  D.  Manuel,  a  flores- 
cencia  do  Collegio  de  Guyenne  provocava-o  a  chamar  para  Portugal 
0  homem  mais  geralmente  admirado  no  ensino  das  humanidades  na 
Europa.  Parece  que  havia  uma  lucta  de  favores  para  fisar  André  de 
Gouvèa  em  Franga;  o  bispo  de  Bazas  nomeou-o  conego  da  coUegiada 
de  Sào  Jole  de  Bazas,  assignando  comò  conego  theologal  em  1541,  e 
recebendo  depois  a  dignidade  de  ségrestain  da  catfaedral,  cujo  rendi- 
mento importava  em  400  a  500  livras  por  anno  (mais  de  8.400  fran- 
cos  da  moeda  actual).  Estas  conezias  nSo  exigiam  o  estado  de  sacer- 
docio;  bastava  pertencer  ao  ensino  superior  de  theologia  ou  do  direi to 
para  ser  remunerado  com  uma  conezia  magistral  ou  doutoral.  Além 
dos  beneficios  ecclesiasticos  de  que  gosava,  o  bispo  de  Bazas  deu-lhe 
o  priorado  de  le  Sendat,  com  muitos  annexos;  e  em  1543  foram-lhe 
todos  confirmados  pelo  bispo  que  succedeu  na  sède  de  Bazas.  Foi 
n'este  anno  de  1543  que  D.  JoSLo  in  escreveu  a  André  de  Gouvèa 
para  vir  a  Portugal  conferenciar  sobre  a  fanda$So  de  um  Collegio  real 
em  Coimbra.  Escreve  Gaullieur,  sobre  documentos  directos  :  cD.  JoXo  in 
desejando  fundar  em  Coimbra  uma  institui$&o  de  primeira  ordem,  di- 
rigiu-se  pessoalmente  a  Gouvèa.  Mas  as  cousas  nSo  se  fizeram  com 
tanta  facilidade  comò  crèem  os  que  escreveram  sobre  este  assumpto: 
OS  convenios  relativos  à  funda9So  do  Collegio  de  Coimbra  duraram  o 
decurso  de  annos.  Em  1543,  D.  JoSo  in  escreveu  a  Gouvèa  a  aper- 


1  Gaulliear,  Op.  cit.,  p.  166. 


0  COLLEGIO  RE\L  495 

tar  com  elle  para  vir  a  Portugal,  para  se  entender  com  elle  icerca  da 
nova  iastltuifSo;  a  sua  partida  para  Lisboa  seria  pelo  meado  de  ju- 
nho.B^  Em  11  de  jaiiho  de  1543^  André  de  Goavèa  entrega  por  urna 
procara92lo  o  governo  do  Collegio  de  Gayeane  ao  sab-principal  JoSo 
da  Costa  com  o  poder  de  escolher  novos  professores,  caso  n%o  fosse 
obedecido  por  algiim  regente  e  tivesse  de  despedil-o:  ^Commoctre  et 
dapputer,  qiuxnt  mesHer  sera,  regena  ydoines,  suffimns^,  pour  regenter 
(XiidU  colliege^  et  expuher  les  desoheisaane^t  Urna  procurafào  de  14  de 
junho  de  1543 ,  de  um  mercador  de  Bordéos  ,  auctorisa  André  de 
Gouvèa  a  receber  em  Lisboa  a  quantia  de  80  dacados  de  oiro,  que 
estavam  na  mSos  de  Estevam  de  Aragfto.  Depois  d-estes  factos  con- 
due  GauUieur:  «A  partir  de  15  de  junho  de  1543  até  24  de  maio  do 
anno  seguinte,  nSo  se  acha  nenhum  indicio  da  presen9a  de  André  de 
Gouvèa  no  collegio;  todos  os  actos  relati vos  &  direcylo  aSo  passados 
em  nome  do  subprincipal  JoSo  da  Costa,  ao  qual  algumas  vezes  se 
accrescenta  o  epitheto  àe  president  awCoUiege  de  Guyenne.^^  Nào  fala- 
remos  agora  do  governo  admiravel  de  JoSLo  da  Costa  durante  a  ausen- 
eia  do  principal  no  intervallo  de  um  anno»  Sabe-se  que  em  24  de  maio 
de  1544|  André  de  Gouvéa  jà  estava  em  Bordéos,  por  um  recibo  pas- 
sado  por  Thomyon  Faure,  de  ter  recebido  de  «M.  M.®  André  de  Gou- 
vèa  docteur  en  theologie,  Principal  du  Collège  de  Guyenne,  iUoc  pre- 
sentii 100  escudos  de  oiro.'^  Foi  por  este  tempo,  entre  11  de  junho  e 
16  de  novembro  que  o  filho  mais  velho  do  celebre  Scaligero  foi  por- 
clonista  do  Collegio  de  Guy  enne. 

D.  Joào  IH  compromettia-se  a  nfto  desviar  André  de  Gouvea  do 
seu  Collegio  de  Bordéos,  além  de  dois  annos  ;  tal  era  a  base  da  con- 
cessào  da  licenza  ao  famoso  principal.  Em  6  de  Janeiro  de  1545,  tendo 
Joào  Gèlida  chegado  a  Bordéos,  celebraram  ambos  urna  escriptura, 
pela  qual  André  de  Gouvea  Ihe  entregava  o  Principalato  do  Collegio 
de  Guy  enne,  com  o  consentimento  previo  do  Concelho  municipal,  e 
com  0  privilegio  de  poder  tornar  a  occupar  o  seu  legar  tant  que  bo7ì 
luy  semblera.^  O  valor  moral  e  intellectual  de  Gèlida  jà  o  deixamos 
indicado,  quando  nos  referimos  às  luctas  centra  o  scholasticismo.  E 
certo  porém  que  André  de  Gouvea  n2Lo  deixou  o  collegio  immediata- 
mente, nem  Gèlida  se  despediu  do  Collegio  do  Cardeal  Lemoine;  no- 


1  GaulUeur,  Op.  di,,  p.  168. 

2  Idem,  p.  169.  No  Processo  da  laquisi^ao  de  Lisboa,  allude  a  este  titulo. 

3  Ibidem,  p.  177. 

*  Transcrevemoa  algumas  clausulas  d'este  contraete:  «Les  dita  seigneurs 


496  HISTORU  DÀ  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

yo8  beneficioB  ecclesìasticos  choveram  sobre  André  de  Grouvéa,  corno 
se  que  o  quizeseem  reter  com  tantas  liberalidades.  D.  JoSo  ili  instava 
com  frequentes  cartas  para  a  partida  de  André  de  Gouvèa;  em  1546 
fez  0  celebre  Principal  urna  doayZo  a  urna  sua  afilhada  no  caso  de 
fallecer  durante  a  viagenoi  a  Portugal:  tdesirant  aller  et  /aire  voyage 
au  Royaulme  de  Portugal,  considerant  aux  périlz  et  fortunu  que  sou- 
viennent  chaque  jouur. . .»  Està  doa9&o  foi  reyogada  em  21  de  Janeiro 
de  1547,  depois  do  sevi  regresso  a  Bordéos.  André  de  Gouvèa  tratou 
de  contractar  os  regentes  que  o  haviam  de  acompanhar  a  Portugal; 
ninguem  melhor  do  elle  conhecia  os  bons  professores,  e  o  corpo  docente 
que  escolheu  era  de  primeira  ordexn.  Interessa-nos  especie Imente  tra- 
duzir  a  narrativa  da  partida  dos  mestres  firancezes  para  Portugal,  tal 
corno  a  apresenta  Gaullieur:  e  A  partida  de  Gouvèa  e  dos  seus  profes- 
Bores  para  Coimbra  estando  definitivamente  combinada,  o  Principal 
tratou  logo  de  prevenir  d'isso  os  Jurats,  que  nSo  ficaram  surprehen- 
didoB,  porque  as  viagens  d'este  a  Lisboa  deviam  tel-os  esclarecido  a 
tal  respeito.  O  golpe,  ainda  que  previsto,  nSo  era  menos  terrivel  para 
a  instituigfto  de  que  elles  eram  os  fnndadores.  Se  Gouvèa  tivesse  par- 
tido  sósinho,  por  ventura  podel-o-hiam  substituir;  mas  elle  levava  com- 
sigo  a  flèr  do  corpo  docente:  JoSo  da  Costa,  Elie  Vinet,  Diogo  de 
Teive,  Nicol&o  Grouchy,  Guilherme  Guérente,  Amaud  Fabrice,  de 
Bazas,  e  um  joven  portuguez  chamado  Antonio  Mendes,  que  segundo 
Jacques  Susine  (na  Vida  de  Gèlida)  professava  tambem  n'esta  època 
no  Collegio  de  Guyenne.  Assim,  sem  contar  o  Principal  e  o  sub-prin- 
cipal,  isto  é,  OS  dois  homens  sobre  os  quaes  assentava  todo  o  pezo  da 
administra$So,  seis  dos  melbores  professores,  que  pela  celebridade  do 
seu  ensino  attrahiam  alumnos  de  todas  as  partes  da  Franca,  e  mesmo 
do  estrangeiro,  iam  repentinamente  deixar  Bordéos. 

e  Como  compensa9&Oy  é  verdade,  JoSo  da  Costa  deixava  no  Colle- 


subz-maire  et  jurats,  amprès  avoir  traicté  et  oommnniqaé  avecques  les  dits  trente 
conseillers  de  la  dite  ville  de  ce  que  dessiu,  voyant  que  c*est  le  grand  bien  et  utìlité 
d'ieellny  ooUiege  et  de  la  chouse  publiqne  pour  la  notborietéj  souffizance,  grand 
scavoir  desdits  de  Gh>avéa  et  Oélida,  voolans  satisfaire  à  la  resqueste  d'icelluy 
de  €k>avda,  en  faveor  et  contemplation  des  services,  petnes  et  labeurs  qu*il  a  souf- 
fertz  pour  rinstitoitìon  de  la  jeunesse  da  ditcoIIiegeetcontiniiationd'icelleinBti- 
tutioD,  ont  accordé  et  accordent  par  ces  présentes. . .  que  le  dlt  Gouvèa  demeurera 
6B  liberté,  sa  vie  dorant,  tant  que  bon  luy  semblera,  de  penvoir  retoonier  an  dit 
colliège,  7  tenir  et  ezercer  le  dit  estat  de  PHncipal  saos  que  le  dit  de  Gèlida,  ni 
anitre,  luy  puiaee  baìller  empeschement,  ni  se  dire  chef  du  dit  colliege,  sa  vie  da- 
rant.» 


0  COLLEGIO  REAL  497 

gio  de  Gayenne  seu  irm2o  JeronjmOi  que  André  de  Gouvéa  trouxera 
comsigo  de  Lisboa  na  sua  anterìor  viagem  ;  e  quanto  a  oste  ultimo,  ti- 
nba  escripto  a  Beu  irmSo  Antonio  de  Gouv6a,  um  dos  homens  mais 
notaveis  da  primeira  metade  do  seculo  xvi,  de  que  jà  fallAmos  rapida- 
mente,  e  que  acabava  de  chegar  a  Bordéos  para  o  substituir. 

«Ab!  que  viria  de  ora  em  diante  procurar  a  Bordéos  amoeidade 
portugueza,  àvida  de  ensino?  NSo  ia  ella  possuir  agora  em  Coimbra, 
no  centro  do  reino,  estes  mesmos  professores,  dos  quaes  anteriormente 
ia  ao  longe  ouvir  as  Ii98e8?  D'ora  avante  podia  poupar  uma  viagem 
dispendiosa,  sempre  penìvel  e  cbeia  de  perigos. 

cNào  parece  que  André  de  Gouvèa  se  preoccupasse  muito  com  o 
futuro  do  Collegio  de  Guyenne  ;  porque,  se  dermos  credito  a  Jacques 
Busine,  elle  escreveu  a  Gèlida,  designado  entretanto  comò  seu  suc- 
cessor  em  Bordéos,  a  propor-lhe  para  o  acompanhar  para  Portugal. 
Gèlida  recusou-se  catbegoricamente,  apesar  das  propostas  verdadeira- 
mente  regias  que  Ihe  foram  feitas  em  nome  D.  Jo^o  m  (Magnis  regio 
nomine  propositù  stipendiis), 

cGouvéa  foi  mais  feliz  junto  de  Jorge  Buchanan;  o  poeta  acha- 
va-se  entfto  em  Paris,  d'onde  partiu  com  seu  irmSo  Patricio,  com  o 
fim  de  se  reunir  &  colonia  de  professores  que  embarcava  em  Bordéos 
para  levar  a  outras  partes  os  beneficios  do  ensino . . . 

«Parece,  apesar  de  tudo,  que  està  partida  de  Gouvèa  para  Por- 
tugal nSo  dep5e  em  seu  favor;  prova  que,  cheio  de  honras  e  proven- 
tos  durante  a  sua  longa  pennanencia  em  Bordéos,  elle  se  ligara  pouco 
a  este  Collegio  de  Guyenne,  do  qual  fizera  a  reputagSo,  mas  que  tam- 
bem  contribuirà  para  fazer  a  sua  fortuna. 

aUm  motivo,  que  é  preciso  ter  em  vista,  apressou  a  sua  partida: 
a  peste,  ou  pelo  menos  a  molestia  contagiosa  assim  chamada,  que  re- 
bentou  em  Bordéos.  Gouvèa  e  os  seus  professores  tiveram  de  se  em- 
barcar  para  Lisboa  nos  ultimoa  dias  de  mar90  de  1547,  assim  comò  o 
indicam  ciuco  procura98es  pelo  conego  e  pelo  sub-principal  passadas 
a  diversas  pessoas.»  * 

André  de  Gouvèa  passou  as  suas  tres  procura93es  em  21  de  mar90 
de  1547,  para  o  recebimento  das  rendas  dos  seus  beneficios  ecdesias- 
ticoB  e  arrendamentos  de  diversas  prebendaB.  Ficava  com  o  governo 
do  Collegio  seu  irmSo  Antonio  de  Gouvèa:  «ninguem  mais  do  que  elle 
era  capaz,  pelo  brìlho  da  sua  reputa9So,  de  salvar  o  Collegio  de  Bor- 


1  Gaullieur,  Op.  cit.,  p.  204  a  207. 

msT.  UH.  32 


498  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRÀ 

(iéos. — Tratava  de  tornar  o  governo  d*esta  instituigSo^  quando  no  mez 
de  maio,  iato  é,  pouco  mais  ou  menos  cinco  oa  seis  semanas  depois  da 
partida  de  seu  irmSlo,  via  cfaegar  de  Paris  Gèlida,  ao  qual  os  Jorats 
tinham  escripto  propondo-lfae  para  tornar  a  direcgSo  do  Collegio,  e  qae 
acabava  de  acceder  aos  seus  desejos  pelas  instancias  do  cardeal  Du  Bel- 
laj.  »  *  Havia  urna  certa  incompatibilidade  pfailosopfaica  entre  Antonio 
de  Goavèa  e  Gèlida,  e  depois  de  urna  lacta  de  influencias  pessoaes 
Gèlida  foi  nomeado  Principal  em  7  de  novembro  de  1547. 

Em  julho  d'este  mesmo  anno  chegava  a  Lisboa  Mestre  André  de 
Gouvèa  com  o  seu  pessoal  pedagogico;^  o  rei  nSo  tinha  ainda  edificio 
em  Coimbra  para  os  receber,  e  para  isso  teve  de  pedir  por  empres- 
timo,  em  setembro,  ao  mosteiro  de  Santa  Cruz,  os  dois  Collegios  de 
Sam  Miguel  e  de  Todos  os  Santoa,  emquanto  nSo  mandava  construir 
um  edificio  especial.  Desde  1544  estes  dois  collegios  estavam  fora  do 
mosteiro,  na  ma  da  Sophia,  construidos  com  as  rendas  do  Priorado- 
mór;  foi  n'elles  que  se  estabeleceu  prò  visoriamente  o  Collegio  reaL  Eia 
a  carta  do  rei,  pedindo  os  Collegios  por  emprestimo  ao  Prior  geral  de 
Santa  Cruz,  comò  a  extrahiu  do  Archivo  do  mosteiro  D.  Nicolào  de 
Santa  Maria: 

«Padre  Prior  Geral.  Eu  El  rei  vos  envio  muito  saudar.  Eu  mando 
bora  assentar  n'essa  cidade  bum  Collegio,  em  que  se  hSo  de  ler  todas 
as  ArteS|  do  qual  bade  ser  Principal  o  Doutor  Mestre  André  de  Oou- 
vea,  que  para  isso  mandei  vir  de  Franfa  com  alguns  lentes  que  logo 
comsigo  trouxe  para  o  dito  Collegio;  e  por  nSo  haver  n'essa  cidade 
aposentamento  conveniente  para  elle,  em  que  logo  se  possa  recolher, 
comò  be  necessario,  vos  rogo  que  me  queiraes  para  isso  emprestar  e 
largar  as  casas,  e  posentamento  dos  dous  Collegios,  que  esse  mosteiro 
tem  feito  de  novo,  emquanto  se  nSLo  fizerem  as  que  tenho  ordenado  de 
mandar  fazer  para  o  dito  Collegio.  E  vos  encomendo  muito,  que  vós 
e  vesso  Convento  dos  Conegos  sejais  d'isto  muito  contentes,  pois  con* 
vem  a  meu  servijo,  e  bem  d'essa  Universidade;  e  que  mandeis  logo 
entregar  os  ditos  Collegios  e  as  casas  d'elles  a  pessoa  que  o  dito  Mes- 
tre André  de  Gouvea  a  isso  manda.  Os  quaes  Collegios  e  casas  vos  eu 
mandarci  despejar  e  tornar,  tanto  que  forem  feitas  as  casas  que  mando 
fazer  pera  o  dito  Collegio,  que  seri  o  mais  cedo  que  puder  ser.  E  os 


1  G-aullieur,  Op.  oU.,  p.  217. 

2  Em  Conselho  de  19  de  julho  de  1547  resolveu-se  pedir  ao  rei  que  o  CoUe^ 
gio  de  Mestre  André  n^  ficasse  em  Lisboa,  mas  que  o  mandasse  para  a  Univer- 
sidade. 


0  COLLEGIO  REAL  499 

Collegiaes  que  nos  ditos  CoUegios  estSo,  tornareis  a  recolher  nos  sena 
aposentos  e  Collegios  dentro  d'esse  Mosteiro.  E  de  assi  o  fazerdes  logo 
receberei  contentamentOi  e  vol-o  agradecerei  e  terei  em  multo  servilo. 
Baltezar  da  Costa  a  fez  em  Lisboa^  a  9  dias  de  Setembro  de  1547. 
Manuel  da  Costa  a  fez  escrever.  Rei.»* 

0  Prior  goral  D.  Affonso  tratou  de  dar  logo  cumprimento  à  or- 
dem  do  rei;  os  Collegiaes  de  S.  Migud  recusaram-se  a  recolherem  ao 
mosteiro  ce  largaram  as  heccUj  com  que  se  desfez  este  Collegio. i^  Os  es- 
tudantes  pobres  do  Collegio  de  Todos  os  SarUos  despiram  tambem  as 
becas  por  ordem  do  Prior  goral,  que  clhes  deu  a  todos  casas  em  que 
morassem  em  Montarroyo,  junto  do  Mosteiro,  corno  ainda  hoje  (1668) 
i^z  a  certo  numero  de  Esitidantes  pobres  honrados,  aos  quaes  dà  ra9So 
e  casas.»  '  Àssim  se  desfez  tambem  o  Collegio  de  Todos  os  Santos. 

Comprehende-se  que  ficaria  um  germen  de  ma  yontade  contra  o 
novo  Collegio  recH,  e  que  se  estabelecessem  intrigas  contra  os  mostre  s 
francezes  trazidos  pelo  Principal  André  de  Q-ouvèa.  Os  Padres  da  Com- 
panbia  é  que  exploraram  essa  ma  yontade,  apoderando-se  do  Collegio 
real  em  1555,  comò  yeremos.  D.  JoSo  in  mandou  construir  desde  logo 
o  Collegio  de  S.  Paulo ^  para  sède  definitiya  do  Collegio  real,  e  mas  em 
sua  yida  nSo  o  pdde  acabar. . .  »  ^ 


1  Apud  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  Chronica  dot  Regranies,  Liv.  x,  cap.  ▼, 
p.  301. 

^  Ibidem. 

'  Ibidem,  cap.  xy. — O  architecto  Diego  de  Castilho,  restaurador  do  mosteiro 
de  Santa  Cmz,  é  que  fez  as  obras  necessarìas  para  a  adapta^io  do  palacio  real 
para  pa9o  das  Escholas  da  Universidade,  e  construiu  o  CoUegio  real,  ou  das  Artes. 
Transcrevemos  em  segoida  a  summa  dos  docnmentos  relativos  a  Diogo  de  Cas- 
tilho, que  interessam  à  questao  da  Universidade  de  Coimbra  e  Collegio  das  Artes; 
acham-se  indicados  em  um  trabalho  biograpbico  do  Dr.  Sousa  Viterbo: 

1545 — 18  de  abril.  Carta  de  D.  JoSo  ni  aos  vereadores  da  Camara  de  Coimr 
bra  para  que  deixem  ao  Collegio  das  Artes  comprar  as  casas  de  Diogo  de  Casti-' 
Iho  Sem  Ihe  leyarem  Terradego. 

1547 — 18  de  mar^o.  Alyarà  nomeando  Diogo  de  Castilho,  cayalleiro  da  casa 
real,  mestre  das  obras  de  pedraria  e  alvenaria  da  Universidade,  comò  até  ali  o 
fora  das  obras  de  Santa  Cruz. 

1548—11  de  maio.  Recebe  Diogo  de  Castilho  200^000  réis  para  as  obras  do 
Collegio  das  Artes  de  Coimbra,  seguo  do  a  fórma  do  seu  contracto. 

1549 — 7  de  maio.  Alvarà  determinando  a  maneira  comò  se  devem  levar  em 
conta  ao  recebedor  Antào  da  Costa  as  despezas  que  elle  fizer  nas  obras  do  CoUe^ 
gio  das  Artes,  fora  do  contracto  e  obriga^So  de  Diogo  de  Castilho. 

1551 — 10  de  agosto.  Carta  de  D.  JoSo  ni  ao  Doutor  Payo  Rodrigues  Villa- 

32* 


500  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

No8  dormitorìos  dos  dois  CoUegios  foram  albergados  os  meatres 
francezes,  e  entre  amboB  e  nas  officinas  do  Collegio  de  S.  Miguel  fo- 
ram oonstmidas  as  aulas  noa  mezes  de  outubro,  novembro  e  dezembro. 
As  aulas  bó  ficaram  promptas  em  junbo  de  1548;  embora  os  mestres 
francezes  jà  se  achassem  em  Coimbra  no  mez  de  Janeiro  d'esse  anno.' 
0  Collegio  real^  foi  inangurado  em  28  de  janho,  corno  se  prova  por 
ama  Ora^  de  sapienda  de  André  de  Resende,  recitada  no  anniver- 
sario da  installaySo  em  1551.  ^  No  Primeiro  regimento,  que  el-rei  Dom 
Jo9x>  111  diu  ao  Collegio  das  Artes  no  tempo  em  que  n'elle  leram  os  fran" 
eezes,  em  16  de  novembro  de  1547  ^  estabelece-se  o  caracter  pedago- 
gico d'està  institaÌ9S0y  analoga  ao  Collegio  de  Franga,  e  corno  desen- 
Yolvimento  dos  estudos  superiores  independentes  da  Universidade;  lè-se 
no  preambnlo  d'esse  Regimento:  e  vendo  eu  quanto  servi$o  de  Deus  e 
proveito  da  republica  sera  haver  um  Collegio  geral  em  que  bem  pos- 
Barn  ser  doutrinados  e  ensinados  todos,  os  que  a  elle  quizerem  ir  apren- 
òej  Latim,  Crrego,  Hebraico,  Mathematicas,  Logica  e  Philosophia:  de* 
termino  mandar  fazer  o  dicto  Collegio  na  cidade  de  Coimbra,  onde  j& 
està  instituida  a  Universidadci  que  ordenei  que  n'ella  houvesse  para 
todas  as  sciencias.  E  quero  que  a  pessoa,  que  bade  ter  o  cai^o  da  go- 
yeman9a  do  dito  Collegio  se  chame  Principal  d'elle,  e  que  o  Reitor 
da  dieta  Universidade,  nem  outra  alguma  pessoa,  tenha  superioridade 
sobre  o  dicto  Collegio,  e  Principal,  etc.»  ^  A  independencia  do  Colle- 


ri  ubo  Bobre  as  obraa  do  Collegio  da$  Artes;  refere-se  a  Diego  de  Castilho,  que  trar^ 
balhava  no  lan^o  em  que  se  faz  a  aula  das  disptdas  e  autos  puÒUeos. 

1552 — 2  de  maio.  Àlvarà  ordenando  a  ezproprìa92o  de  tres  moradas  de  ca^ 
sas  juntas  ao  Collegio  das  Artes  para  o  mesmo  Collegio,  sendo  omas  de  Diogo  de 
Castilho,  outras  de  SimSo  de  Figueiró  e  outras  de  um  pedreiro. 

1  Livro  dos  Concelhos  de  1548,  fi.  69.  Àp.  Silya  Leal,  Menu  ciL,  p.  478. 

^  «A  semeUian^a  dVste  Collegio  (de  Franca,  ou  CoUhge  Boyal)  deram  os  Pro* 
fesaores  do  das  Artes  de  Coimbra  ao  seu,  em  que  tambem,  por  funda^Io  e  des- 
pesa rea],  lia  um  grande  numero  de  Mestres  as  Sciencias,  e  Lbguas,  o  titolo  de 
Collegio  reaLm  (Silva  Leal,  Mem.  cit,,  p.  485.) 

'  L.  Àndrae  Resendii  Oratio  hahiia  Conimbricae  in  Gymnasio  regis,  aftfttver- 
«Orio  efus  dedicatùnds  die  4  hai.  Jtd,  ann.  kdli. 

*  Este  Regimento  foi  publlcado  pelo  Dr.  Antonio  José  Teixeira,  na  lUvisia 
de  Educalo  e  Ensino,  anno  iv,  p.  104  a  111  (1889).  0  reitor  Figueirda  diz  naa 
Buas  Memorias  da  Universidade  de  Coimbra  àcerca  do  Collegio  real:  «Den  Eirei 
Regimento,  pelo  qua!  este  novo  Collegio  se  havìa  de  governar,  isentando-o  totsl-^ 
mente  da  jurìsdic^So  do  Reitor  e  da  Universidade;  e  sem  dnvida,  que  havia  da 
mandar  ordens  à  mesma  Universidade,  mas  nào  se  acham  no  Cartorio  d*dla.  Consta 
porém,  por  outroa  documentos  que  o  primeiro  Reitor  on  Principal  d*este  Collegio 


0  COLLEGIO  REAL  501 

gio  para  com  a  Uniyersidade  comprehende-se^  desde  que  se  observe  o 
caracter  do  ensino  superior  do  Collegio  real;  depois  dos  mestres  fran* 
cezes,  08  Jeanitas  reduziram  o  ensino  das  Artes  &  fórma  elementar  oa 
secundaria,  querenda^omtado  manter  a  antiga  independencia^  o  que 
era  absurdo. 

Pelo  refendo  Regimento  conhece-se  a  organÌBa9So  interna  do  Col- 
legio: eque  haja  nu  dicto  Collegio  deseseis  regentes^a  saber:  dois  para 
ensinar  a  ler,  escrevery  declinar  e  conjugar;  e  outo  para  lerem  Gram- 
matica; Rhetorica  e  Poesia;  e  tres  para  o  corso  das  Àrtes;  e  os  outros 
tres  para  lerem  Hebraico,  Grego  e  Mathematicas;  os  quaes  regentes 
serSo  aquelles;  que  eu  por  minhas  provisSes  nomear. .  •>  Pretendia-se 
centralisar  o  ensino  n'aquelle  novo  instituto:  cPorque  no  dicto  Colle- 
gio se  bade  ensinar  Grammatica,  Rbetorica,  Poesia,  Logica,  Philoso- 
phia,  Mathematicas,  Grego  e  Hebraico,  comò  dicto  he,  nào  haverd  diaso 
escholas  privadaa  nem  publicas,  na  dieta  cidade  e  seu  termo,  salvo  nas 
Escholas  geraes,  em  que  bei  por  bem  que  haja  uma  IÌ9S0  de  Grego  e 
outra  de  Hebraico,  e  outra  de  Mathematicas,  e  oatra  de  Philosophia 
moral,  e  assim  nos  conventos  dos  religiosos  que  na  dieta  cidade  ha,  nos 
quaes  os  dictos  religiosos  sómente,  e  os  seus  servidores,  e  achegados^ 
que  elles  mantiverem  à  sua  custa,  poder^o  ouvir  e  aprender  as  dictas 
Ii95e8,  outros  alguns  nSo.»'  0  trajo  dos  alumnos  do  Collegio  real  era 
^da  feÌ93lo  e  maneira,  de  que  por  minhas  provisSes  tenho  mandado, 
que  andem  os  estudantes  da  Universidade.»  Àinda  hoje  os  estudantes 
do  Paleo  (Lyceu)  sSk)  obrigados  ao  trajo  dos  que  frequentam  as  aulas 
da  Universidade. 

No  Collegio  real  havia  tres  classea  de  porcionistas:  os  que  paga^ 
yam  por  anno  trinta  e  cince  cruzados,  os  que  pagavam  trinta,  e  os  de 
vinte  e  ciuco,  aos  semestres  adiantados.  No  Regimento  do  Collegio  sa- 
bre as  tres  porgdes  acham-se  indicadas  as  fórmas  de  alimenta9So  que 
competiam  a  cada  urna  d'essas  tres  classes.  Eis  a  por9llo  de  vinte  e  ciuco 
cruzados:  «Dar-se-ba  a  cada  um  porcionista  tres  pSes  alvos  cada  dia^ 
de  peso  de  doze  on9as  cada  um,  a  saber:  um  ao  almo90,  e  outro  ao 


foi  André  de  Gouvéa,  Doutor  em  Theologia,  ao  qual,  jontamentecom  seus  irmSos 
Marcai  e  Antonio  de  Gouvéa,  tinha  £1  rei  mandado  estudar  a  Paris,  e  todos  apro- 
veitaram  bem  o  tempo  na  companhia  de  seu  tio  0  Doator  Diogo  de  Gronvéa,  qne 
sa  dita  Universidade  era  Reitor  cu  Principal  do  Collegio  de  Sonia  Barbara. . .» 
1  £m  uma  Carta  règia  de  D.  Joao.  i,  de  3  de  outubro  de  1384  (Livro  Verdtf 
fl.  46),  jà  se  estabelecia  este  centralismo:  a  Que  os  bachareis  e  escholares  na  Arte 
grammatical  leiam  nas  escholas  publicas  para  evitar  erros  e  inoongntidades.» 


502  HISTORU  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

jantar,  e  outro  &  ceia;  e  nos  dias  de  carne  se  Ihe  darà  um  arratel  e 
meio  de  carne,  a  saber:  tres  quartas  de  vacca  ao  jantar,  com  omaes- 
cudella  de  caldo,  e  outras  trea  quartàs  de  cameiro  à  ceìa.  E  nos  diaa 
de  pescado  se  Ihe  darà  a  valia  da  carne  em  peacado,  e  potagem  de 
grSo  e  hervas.»  Na  porgSo  de  trinta  cruzados,  a  dìfferen9a  consiatia 
em  doiB  arrateis  de  cameiro  cada  dia,  tendo  algom  dia  na  semana  carne 
de  vacca;  e  dois  réis  de  firucta  todoB  os  dias.  Na  por$So  de  trinta  e  cince 
cruzados  havia  mais  urna  quarta  de  cameiro  em  piccado,  carne  i  ceia, 
e  tres  réis  de  fructa.  cAs  quaes  por9Se8  Ihe  mandare  dar  o  Principal 
no  refeitorio  do  Collegio,  onde  todos  os  porcionistas  comerSo  na  ma- 
neira  seguinte,  a  saber:  Vira  a  carne  juncta  para  quatro  em  um  prato 
grande;  e  porém  cada  um  comerà  em  prato  sobre  si,  e  assim  cada  um 
em  sua  escudella  de  caldo  per  si.»  No  Regimento,  artigo  18.®,  estabe- 
lece-se:  cNo  dicto  Collegio  bavera  casa  de  refeitorio,  onde  comer&  o 
Principal,  ou  quem  seu  cargo  tiver,  e  assim  todos  os  porcionistas,  e 
emquanto  asma  comerem  se  lerd  alguma  cousa  da  Sagrada  Escriptura, 
assim  corno  se  costuma  fazer  nos  conventos  dos  religiosos.» 

Ko  fiih  do  Regimento  do  Collegio  real  vem  expressamente  consi- 
gnado:  c£  a  pessoa,  que  bei  por  bem,  que  seja  o  Principal  do  dicto 
Collegio,  é  0  Doutor  Mestre  André'  de  Gouvéa. — E  elle  irà  com  sua 
gente  nas  procissSes  da  Universidade,  onde  forem  cruzes,  diante  dos 
religiosos,  em  ord€nan9a  de  procisslo,  e  nfto  serSo  obrigados  os  do  di- 
cto Collegio  a  ir  nas  outras  procissSes,  que  forem  por  modo  untvemm.» 

O  Collegio  real  habilitava  especialmente  comò  preparatorio  para 
OS  cursos  da  Universidade;  para  ouvir  Leis  ou  Canones  era  preciso 
certid&o  passada  pelo  Principal  comò  frequentara  um  anno  de  Logica  ; 
para  ser  recebido  a  ouvir  Theologia  ou  Medicina  era  obrigatorio  o  ter 
ouvido  0  curso  inteiro  de  Artes.  O  Collegio  era  situado  na  rua  da  So- 
pbia,  na  cidade  baixa;  por  isso  no  alvarà  de  6  de  abrìl  de  1548  vem 
a  rubrica:  e  Que  nenhum  estudante  seja  recebido  a  ouvir  em  ctmasem 
licenja  do  Principal.»  '  Por  um  alvarà  de  16  de  fevereiro  de  1548  man- 


1  «Eu  EU  Rei  fa^o  saber  a  yób  Beitor,  lentes,  deputados  e  conselheiTOB  da 
UniTersidade  de  Coiinbra,  que  hei  por  bem  e  me  praz,  que  pessoa  algama  nio  seja 
d^aqui  em  deante  recebida  a  ouvir  Leis  ou  CanoneSi  sem  Certidfto  do  Principal 
do  Collegio  das  Artes,  de  corno  n'elle  ouyiram  um  anno  de  Logica;  e  assim  n2o 
sera  nenhum  recebido  a  ouvir  Tbeologia  ou  Medicina,  sem  mostrar  certidSo  do 
dito  Principal,  de  comò  no  dicto  Collegio  ouviu  o  curso  inteiro  das  Artes.  Notifico- 
vol-o  assim,  e  mando  que  assim  o  cumpraes  e  fa^aes  cumprir,  posto  que  este  nSo 
B€ja  passado  pela  chancellarìa.  Balthasar  da  Costa  o  fez  em  Lisboa  a  6  de  Abrìl 
de  1548i  Manuel  da  Costa  o  fez  escrever. — KeL» 


0  COLLEGIO  REAL  503 

dava  D.  JoSo  m  ao  Corregedor  da  comarca  de  Coimbra,  juiz  de  fora 
da  cidade  e  Conservador  da  Universidade,  que  fossem  desoccupadaB 
as  caaaB  da  ma  de  Santa  Sophia,  que  o  Doutor  Mestre  André  de  Gou- 
véa  requisitasse  para  aposentar  os  Regentes  do  Collegio  real,  e  que 
elle  cnSo  tenha  ras&o  de  se  d'isso  aggravar;  etc.»  SSo  muitos  os  alva- 
ràs  concedendo  privilegios  ao  Collegio  das  Artes,  em  tudo  similhantes 
aos  da  Universidade;  quando  mais  tarde  o  Collegio  foi  entregue  por 
ordem  do  rei  aos  Jesuitas,  elles  trataram  de  os  confirmar  todos  em  seu 
beneficio  proprio. 

Para  formarmos  urna  idèa  da  organisa^So  do  Collegio  real,  feita 
por  André  de  Gouvèa,  servimo-nos  indirectamente  do  quadro  do  regi- 
men  intemo  do  Collegio  de  Ouyenne,  que  Jules  Quicherat,  servindo-se 
tambem  do  processo  indirecto,  considera  corno  <a  imagem  dos  regula- 
mentos  que  estavam  em  vigor  em  Santa  Barbara^  imagem  aperfei$oa- 
da,  é  verdade,  por  ter  podido  realisar  meihoramentos,  a  que  se  oppu- 
nha  a  for9a  das  tradÌ9Se6  universitarias,  n'aquella  terra  virgem  do  Bor- 
delez.» 

Depois  que  Elie  Vinet  abandonou  Portugal,  em  1549,  e  se  achou 
em  Bordéos,  onde  JoSo  Gèlida  era  o  Principal  do  Collegio  de  Guyenne, 
conversou  com  elle  sobre  a  necessidade  de  redigirem  um  livro,  em  que 
ficassem  consignados  os  principios  pedagogicos  de  Mestre  André  de 
Gouvéa,  que  tendiam  a  perder-se,  em  consequencìa  do  seu  fallecimento. 
JoSo  Gèlida  approvou  a  idèa,  que  nSo  pdde  logo  ser  posta  em  pratica, 
por  ter  fallecido  pouco  tempo  depois.  Vinet  nSo  se  esqueceu  do  seu 
projecto,  e  passados  muitos  annos  coUigiu  todas  as  suas  reminiscencias 
Bobre  OS  methodos  de  ensino  e  organisa^fto  escholar  de  André  de  Gou- 
véa,  publicando  o  livro  intitulado  Schola  Aquitanica,  em  Bordées,  em 
J583.  *  Por  via  d'este  livro  conseguiu  Quicherat  reconstruir  a  organi- 
sa^So  interna  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  que  mais  ou  menos  devia 
reflectir-se  no  Collegio  de  Guyenne;  tendo  Elie  Vinet  regentado  sob  o 
principalato  de  Gouvéa  em  Bordéos,  e  depois  em  Coimbra,  é  logico 
reconstruir  pela  Schola  Aguitanica  a  organisa9So  doutrinaria  do  Colle- 
gio real,  d'onde  elle  proprio  fora  um  dos  gloriosos  professores.  *  Eia 


1  Schola  Aguitanica,  Burdigalae,  apud  S.  Millangium  typographum  regiom, 

2  Eia  as  palavras  com  que  elle  jnatifica  a  publica^ào  da  Schola  Aguitanica: 
«Andreas  Gk)veaDU8,  Lusìtanus,  Scholae  Burdigalensi  praefectus,  homo  ad  juven- 
tutem  recte  ìnstituendam  factus,  Maturino  Corderie,  Claudio  Budino,  alliisque  Gal- 
lis  praeceptoribuB  ejusdem  rei  peritÌBsimis  in  coneilium  adhibitis  ludum  suom  opti- 


504  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIBfBRA 

corno  Jules  Quicherat  resumia  as  dontrinas  contidas  no  rarissimo  livro 
da  Schola  Aquiianica,  onde  se  encerram  os  principaes  topicos  do  re- 
gimen  pedagogico  de  André  de  Gouvéa: 

<Àpplicou-se  André  de  Gouvéa  a  pdr  em  pratica  a  doutrina  dos 
humanistas,  que  queriam  que  os  jovens  espiritos  fossem  familiarisados' 
antes  com  as  fórmas  oratorias  do  pensamento  do  que  exercitados  na 
investigag^  da  sua  natureza.  Reduziu  a  dois  annos  o  Curso  de  Philo- 
sophia,  o  qual  era  de  tres  em  Paris;  baniu  dos  estudos  litterarios  todo 
o  exercicio  preparatorio  sobre  Logica. 

cEmpregou  depois  uma  solicitude,  para  a  qual  todo  o  louvor  é 
pouco,  para  que  os  alumnos  de  cada  classe  tirassem  proveito  dos  cui- 
dados  do  professor.  Com  este  intuito  augmentou  o  numero  das  classes 
ditas  de  Grammatica,  elevando-as  de  dez  a  doze,  e  quiz  que  cm  todas 
as  classes,  particularmente  nas  baixas,  faouvesse  algumas  secfSes,  em 
que  OS  estudantes,  repartidos  segundo  as  capacidades  respectivas,  fos- 
sem submettidos  a  exercicios  graduados.  Fez-se  isto  sem  alargar  o 
tempo  dos  estudos,  havendo  exames  continuos  no  decurso  do  anno  (exa- 
mes  de  freguenciaì)  para  comprovarem  os  progressos  feitos,  e  para  fa- 
zerem  passar  os  alumnos  de  uma  sec9So  ou  de  uma  classe  para  a  sec- 
9ào  ou  classe  superior. 

<As  classes,  comò  em  Paris,  eram  comparaveis  com  as  LegiSes 
romanas,  e  os  que  as  compunham  designados,  assim  comò  antigamente 
OS  Legionarios,  por  seu  adjectivo  ordinai,  desde  os  Primarios,  que  cor- 
respondiam  aos  rhetoricos  actuaes,  até  aos  Decumanos  ou  principian- 
tes.  As  duas  classes  addicionadas  por  Gouvéa  formaram  subdivisSes 
da  septima  e  da  sexta;  os  estudantes,  conforme  elles  aprendiam  n'uma 
ou  na  outra  subdivisào,  ajuntavam  à  sua  denomina9lLo  ordinaria  o  epi- 
theto  majores  ou  minores, 

«Dominava  a  ordem  e  o  asseio  nas  salas  destinadas  às  lL95es.  Os 
meninos  nSo  se  rostilhavam  pelo  chSo  ;  estavam  assentados  em  banqui- 
nhos  rigorosamente  alinhados.  A  nona  e  a  citava  classes,  incompara- 
velmente  mais  frequentadas  do  que  as  outras,  por  se  dar  n'ellas  a  in- 


m&  dÌ8CÌplÌD&  et  ezactà  ratione  docendi  informaverat  Quam  post  discessum  ejus 
in  patriam,  ac  obitam,  quam  paulatim  corrompi  cemerem,  Joanni  Gelidae  Valen- 
tino, qui  in  praefectura  illi  snccesserat,  aactor  fìieram  ut  veteram  illam  et  scitam 
docendi  rationem  in  litteras  referret,  qao  posset  quisque  praeceptomm  ex  libello 
noBse,  quem  anctorem  praelegeret,  ac  quemadmodum  sibi  docendum  foret.  Consi- 
lium  probaverat  Ludimagister  utriusque  linguae  doctisrimus  :  sed  serias  rem  ag- 
gresBam  perficere  fata  non  penniserunt»  (Ap.  Gktalliear,  Op,  dt.,  p.  865.) 


0  COLLEGIO  REAL  505 

strucQSo  elementar  safficiente  para  o  maior  numero^  estavam  dispostas 
em  amphitheatrOi  e  os  banquinhos  separados  em  dez  8609808  sobre  onze 
estrado8  successi vos. 

cTres  vezes  no  dia,  segando  0  antigo  uso,  tocava  a  campainha 
para  os  alumnos  virem  &  presenga  dos  seus  professores:  as  horas  eram 
mudadas.  A  classe  curta  reunia-se  ao  meio  dia,  depois  do  jantar;  as 
duas  classes  de  duas  horas  reuniam-se,  de  manhE,  ds  8  horas,  e  de 
tarde  às  3. 

<À  classe  de  meio  dia  era  para  a  exposÌ9So  dos  principios;  as  da 
manhS  e  da  tarde  para  a  expIica9So  dos  auctores.  Tudó  isto  se  dava  em 
pequena  dose.  A  partir  da  citava,  copiavam  os  alumnos  alguns  trechos 
de  um  auctor,  ou  urna  regra  do  rudimento,  as  quaes  deviam  servir  de 
texto  A  lÌ9ào,  e  o  que  elles  tinham  copiado  eram  obrigados  a  sabel-o 
de  cor.  Um  d'elles  recitava  0  primeiro  membro  da  passagem  transcri- 
pta, um  outro  fazia  a  paraphrase  d'ella  em  latim,  um  terceiro  traduzia 
palavra  por  palavra  para  francez,  e  assim  por  diante.  0  mostre  intro- 
duzia  a  pouco  e  pouco  as  ob8erva93es  que  julgava  convenientes,  e  fi- 
nalisava  por  um  genero  de  interroga95es  0  mais  util  possivel,  alterando 
de  todos  OS  modos  o  pensamento  do  auctor  explicado,  e  perguntando 
o  que  queria  dizer  n'estc  ou  n'aquelle  caso.  Os  meninos  aprendiam 
por  este  meio  a  propriedade  dos  termos,  ao  mesmo  tempo  que  se  fa- 
miliarisavam  com  as  regras  da  grammatica  e  com  os  recursos  da 
syntaxe. 

«Emquanto  ao  rèiho  processo  das  disputas,  jà  se  nSlo  conservava 
isso  senào  comò  exercicio  da  memoria  nas  classes  de  Grammatica, 
sondo  reservada  som  ente  urna  meia  hora  depois  da  classe  da  manhS 
para  que  os  estudarites,  som  deixarem  os  seus  logares,  se  interrogas- 
sem  mutuamente  dcerca  d'aquillò  que  acabavam  de  ouvir.  0  tempo  que 
Ihes  sobrava,  depois  do  cumprimento  dos  deveres  do  cada  dia,  empre- 
gavam-o  em  compdr  themas  ou  versos  latinos  àcerca  de  materias  di- 
ctadas  pelo  mestre,  trazendo-os  para  serem  copiados  publicamente. 

cAs  classes  do  sabbado  eram  empregadas  na  recita9So  goral  de 
tudo  quanto  se  tinha  aprendido  durante  a  semana.  As  disputas  (scAba- 
tinas)  d'oste  dia  erara  mais  prolongadas  e  visando  outro  intuito.  Con- 
sistiam  em  um  verdadeiro  examo,  pelo  qual  seis  estudantes  de  cada 
classe,  cada  um  por  sua  vez,  eram  examinados  por  outros  seis  estu- 
dantes da  classe  superior;  assim  os  Primarii  eram  juizos  dos  Secun- 
darii,  08  secundarios  dos  Tertiarii,  etc.  A  prova  consistia  em  compo- 
8Ì98e8  oscriptas,  cujo  assumpto  era  deixado  à  escolha  de  seus  aucto- 
res. Faziam-se  copias  em  letras  garrafaes,  que  se  affixavam  &  entrada 


506  HISTORIA  DA  UIOVERSIDADE  DE  COIMBRA 

de  cada  classe.  Os  examinadores  liam,  £aziam  em  voz  alta  suas  obser- 
Ta(8e8^  discutiam  as  objec9Se8  de  quem  Ui'as  queria  apresentar,  e  clas- 
sificavam  por  ultimo  pela  ordem  do  xnerecimento  as  seis  copias,  das 
quaes  nSo  declaravam  os  auctores  senfto  depois  da  sentenza  dada. 

e  Està  parte  que  a  mocidade  tornava  no  cosino  so  se  dava  a  par- 
tir da  outava;  nas  daas  classes  inferiores  o  professor  fazia  tudo,  exee- 
ptuando  o  dos  Decumanosy  o  qual  delegava  aos  mais  fortes  dos  seus 
triarios  o  cuidado  de  ensinarem  suas  letras  aos  novos  que  as  nSo  sa- 
biam.  Toda  a  parte  do  programma  relativa  i  instruc^So  dementar  foi 
escripta  sob  o  dictado  do  bom  Cordier,  que  Ihe  infundiu  a  temura  do 
seu  corayZo  para  com  a  edade  infantil.  £ncontram-se  n'ella  minucias 
encantadoras,  comò  por  exemplo  a  tolerancia  recommendada  ao  mestre. 

«Cicero,  Terencio  e  o  rudimento  de  Despauterio  eram  a  base  do 
ensino  do  Latim.  Na  quinta  come9avam  a  compdr  versos,  e  a  explica- 
{fto  de  Ovidio  era  addicionada  à  dos  prosadores.  So  comeyavam  com 
Virgilio  na  segunda  e  com  Horacio  na  primeira.  Os  preceitos  da  Khe- 
torica  eram  expostos  desde  a  terceira,  A  classe  do  meio  dia,  na  se- 
gunda e  na  primeira,  era  consagrada  ao  estudo  da  Historia  em  confor- 
midade  com  Justino  e  Tito  Livio.  Havia  além  d'isto,  para  os  prima- 
riosy  concursos  de  dedamajSo,  que  tinham  logar  aos  domingos,  na  sala 
grande^  diante  de  todas  as  classes  juntas.  Foi  para  estes  exercicios 
que  Bucbanam  escreveu  as  tragedias  de  S.  Joào  Baptista  e  Alcestes, 
sendo  està  ultima  traduzida  de  Euripedes.  Guerente,  e  Muret,  que  se 
estreiou  em  Bordéos  em  1543,  trabalharam  tambem  para  o  mesmo  re- 
pertorio. Aquelles  dos  discipulos  que  melhor  recitavam  eram  escolhi- 
dos  para  desempenharem  a  pe9a  com  o  apparato  scenico,  perante  o 
publico  convidado.  Montaigne  louva  muito  este  divertimento. 

e  Ciuco  classes  superiores,  com  accesso  franco  aos  ouvintes  exter- 
nos,  representavam  ao  mesmo  tempo,  no  Collegio  de  Guyenne,  o  du- 
plo curso  de  Philosophia  e  as  lifSes  extraordinarias  de  Santa  Barbara. 
Eram  primeiramente  os  dois  annos  de  Philosophia,  cujos  discipulos  se 
distinguiam  pelos  nomes  de  Dialectici  e  de  Physici.  Os  exercicios  es- 
tavam  aqui  regulados  comò  nas  classes  de  Grammatica,  salvo  durarem 
OS  argumentos  duas  horas.  Cada  anno  teve  seu  professor,  em  contra- 
rio da  usan9a  de  Paris,  em  que  um  so  regente  era  encarregado  de  toda 
a  instruc9ào  philosophica  de  uma  mesma  promosso  de  estudant^.  Em- 
quanto  Gouvèa  foi  Principal  em  Bordéos,  a  cadeira  de  Dialectica  foi 
occupada  por  Nicolio  Grouchy.  Este  sabio  mandou  imprimir  um  re- 
sumé das  suas  li$8es,  que  Elias  Vinet  considerava  comò  obra  prima 
n'este  genero.  Eram  as  Praectptiones  dialecticae. 


0  COLLEGIO  REAL  507 

cDuas  outras  cadeiras^  urna  para  o  Orego  e  outra  para  as  Mathe- 
xnaticasi  estavam  estabelecidas  em  condifSes  ìnteiramente  differentes. 
Davaxn  todoB  08  dias  ali  urna  IÌ9&0  de  urna  bora,  do  intervallo  que  me- 
diava entre  a  classe  do  meio  dia  e  a  da  tarde.  Todos  os  estudantes  de 
Orammatica,  desde  a  quinta,  eram  obrigados  a  frequentar  0  carso  de 
Orego.  A  assistencia  ao  de  Matbematicas  era  obrigatoria  sómente  para 
08  Secundarii,  Primarii  e  PhUosophos.  Como  0  curso  de  Matbematicas 
dorava  dois  annos,  d'aqni  resultava  a  obriga9l[o  de  que^  quando  cbe- 
gavam  ao  fim  dos  seus  estudos,  0  tinbam  frequentado  duas  vezes . .  • 

cO  quinto  curso  publico,  instituido  no  Collegio  de  Ouyenne,  con- 
sistia  n'uma  UfSc  de  Tbeologia^  que  tinba  legar  no  primeiro  domingo 
de  cada  mez. . . 

cA  ordem  dos  estudos,  comò  se  vé^  assentava  sobre  uma  excel- 
lente  disciplina^  tendo  por  base  a  unidade  do  governo. 

«André  de  Gouvéa  foi  um  verdadeiro  monarcha  no  seu  meio,  e 
um  monarcba  segundo  0  ideal  da  Edade  média^  iste  é;  governava  com 
a  assistencia  dos  seus  pares.  Tinba  corno  taes  todos  os  seus  professo- 
resy  para  quem  nSo  guardava  reservas,  exigindo  d'elles  egual  fran- 
queza.  Todos  tinbam  direito  de  inspec92Lo  e  correcgSo  sobre  todas  as 
partes  do  Collegio,  mantendo  a  egualdade  qualquer  que  fosse  0  obje- 
cto  ou  0  grio  de  ensino  entre  os  proféssores^  a  quem  definia  a  sua  mis- 
sSo  comò  um  sacerdocio.» 

Por  este  quadro  rapido  podemos  vèr  o  caracter  pedagogico  que 
André  de  Gouvéa  imprimiu  ao  Collegio  redi  de  Coimbra,  para  0  qual 
transplantou  a  tradÌ9So  parisiense^  que  elle  n&o  pudera  modificar  em 
Bordéos. 

Na  memoria  de  Frei  Fortunato  de  S.  Boaventura,  Do  come^,  prò- 
gresèos  e  decadencia  da  Litteraiura  grega  em  Portugal,  fallando  do  Col- 
legio real,  tambem  considera  a  Schola  Aquitanica  comò  contendo  os  ele- 
mentos  da  organisa9So  dada  por  André  de  Gouvéa  &  funda9&o  de  D. 
JoZo  lU:  cexporei  sómente  a  ordem  de  estudos  adoptada  por  André 
de  Gouvéa  no  seu  Collegio  de  Bourdeaux,  que  certamente  elle  abra90u 
quando  estabelecia  0  de  Coimbra.  •  •»  Frei  Fortunato  de  S.  Boaven- 
tura recebeu  as  noticias  bistoricas  àcerca  do  Collegio  de  Bordéos^  de 
I.  F.  Adry,  bibliotbecario  da  Congrega9&o  do  Oratorio  em  Fran9a,  * 


1  Auctor  de  um  trabalho  especial  :  NotidcLs  do  Collegio  da  Aquitanta  ou  de 
BourdeauXf  eendo  principcU  André  de  Gouvéa,  em  1584;  nas  Ohra^  de  Bandovil- 
lìers,  voL  i,  p.  229.  Vid.  Hùtoria  e  Memoriae  da  Academia  da^  Sciendas,  t.  vm, 
Fart  I.  (Memorias  do»  Correspondentes,  p.  18.) 


508  HISTORIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIMBRA 

que  Ihe  mandou  um  resumo  do  opuscolo  de  Elie  Vinet:  «Haria  dez 
classes.  A  decima,  chamada  dos  Abecedarios,  era  doB  meninos  de  sett 
ou  menos  annos  de  edade,  que,  sabendo  ler,  escrever  e  declinar,  pas- 
savam  i  nona,  onde  se  aperfeÌ9oavam  as  no93es  bebidas  na  antece*: 
dente,  e  viam-se  os  Diaticos  de  CatSio  em  duas  linguas,  e  observava-se 
0  costume  de  entregar  a  IÌ9S0  escripta  primeiro  que  fosse  recitada.  Na 
oitava  liam-se  algumas  Cartas  escolhidas  de  Cicero,  um  extracto  dos 
CoUoquios  de  Mathurin  Cordier,  e  algumas  scenas  de  Terencio.  Na  se-r 
tima  continuava  a  explica9So  dob  mesmos  auctores,  porém  s^uidos,  o 
que  tambem  se  praticava  na  sexta.  Alguns  livros  por  inteiro  das  Car- 
tas de  Cicero,  urna  comedia  de  Terencio  e  alguns  livros  de  Ovidio  eram 
explicados  na  quinta,  e  chegando  à  quarta  concluia-se  0  estudo  de  Des- 
pauterio,  explanava-se  um  livro  das  Epistolas  de  Cicero,  cujas  Ora-- 
^68  mais  faceis,  bem  comò  as  Tristea  de  Ovidio,  ou  os  seus  livros  De 
Ponto,  e  algumas  comedias  de  Terencio,  pertenciam  a  està  classe.  Na 
terceira,  depois  de  se  explioarem  algans  livros  inteiros  de  Cartas  a.d 
Familiares,  ad  Atticunij  ad  Brutum,  ad  Quintum,  algumas  Ora^ks  do 
mesmo  Cicero,  urna  comedia  de  Terencio,  os  Fastos  ou  Metamorphoses 
de  Ovidio,  estudavam  os  preceitos  de  Rhetorica  tirados  de  alguni  bom. 
auctor.  Na  segunda,  OragSes  e  algumas  das  obras  rhetoricas  de  Cicero, 
alguns  historiadores,  alguma  cousa  de  Virgilio,  as  Metamorphoses  de, 
Ovidio  e  a  Pharsalia  de  Lucano  jà  habilitavam  os  discipulos  para 
maiores  emprezas,  e  d'ahi  veiu  proporem-se  n'esta  classe  assumptos 
de  verso  para  serem  tratados  de  repente,  e  fazerem-se  diversos  ensaios 
de  composÌ9lo  e  dechuna9SLo.  Os  da  primeira  classe  davam-se  princi- 
palmente ao  estudo  mais  profondo  da  Rhetorica,  e  tratavam  de  esqua- 
drinhar  0  fiel  desempenho  das  suas  regras  nos  Historiadores,  Poetas 
e  Oradores.  Tal  era,  pouco  mais  ou  menos,  a  ordem  dos  estudos  das 
Humanidades  em  Coimbra. — De  ordinario,  combinavara  o  Grego  com 
o  Latim  ;  e  era  tanta  a  familiaridade  d'aquelles  sabios  com  a  primeira 
d'estas  linguas,  que  Nicolào  Grouchy  fazia  em  Grego  a  explicaQlLo  das 
obras  de  Aristoteles;  mas  pelo  andar  do  tempo  André  de  Gouvèa  es- 
tabeleceu  uma  cadeira  privativa  da  Lingua  grega,  e  quasi  todos  os  es- 
tudantes  da  quinta  e  mais  classes  superiores  assistiam  &  prelecgSo,  que 
durava  uma  bora,  repartida  entre  a  explicagào  da  Arte  de  Theodoro 
Gaza  e  a  interpreta9SLo  de  Homero  e  Demosthenes,  e  os  Poetas  e  Ora- 
dores que  mais  se  approximassem  d'aquelles  grandes  modelos  da  Poesia 
e  da  Eloquencia.»* 


1  JBdem.  dt.,  p.  18. 


0  COLLEGIO  REAL  509 

Come90u  o  Collegio  real  a  funccionar  em  2  de  fevereiro  de  1548 
com  0  seg^inte  pessoal: 

Artes:  Mestre  Diego  de  Gouvéa,  naturai  de  Santarem;  Luiz  ÀI- 
vares  Cabrai;  Nicoiào  Grouchy^  francez,  e  o  Doutor  Bordalo. 

Latim  e  Grego:  1.^  classei  Mestre  George  Baechanan^  eeeossez; 
2.*,  Doutor  Diogo  de  Teive;  3.%  Mestre  Guillaume  Garìnteus  (Gue- 
reiite)^  fraucez;  4.',  Mestre  Arlando  Patricio^  escossez;  5.%  Mestre  Ar^ 
naud  Pabricio,  francez;  6.*,  Mestre  Elie  Vinet,  francez;  7.%  Mestre 
Antonio  Mendes;  8.^,  Mestre  Fedro  Henriques^  que  lèra  em  Santa  Cruz; 
9.^,  Mestre  Gonyalo  Alvares,  que  tambem  lèra  em  Santa  Cruz;  10.*, 
Mestre  Jacques,  francez;  11.%  Manuel  Thomaz. 

Grego:  o  Doutor  Fabricio. 

Hehraico:  o  Doutor  Rosette. 

Shetorica:  Mestre  JoSo  Femandes  (que  lèra  em  Salamanca  e  Al- 
cali.) 

Principal:  o  Doutor  em  Theologia  Mestre  André  de  Gouvéa. 

Sub'prindpal:  o  Doutor  em  Leis  JoSo  da  Costa. 

Procurador:  o  Licenciado  Agostinho  Pimentel. 

Recebedor:  AntSo  da  Costa. 

Tambem  ensinarnm  no  Collegio  real,  em  substituigòes,  o  Doutor 
Lopo  Gallego,  Ignacio  de  Moraes,  Belchior  Belleago,  André  de  Re- 
Bende  e  Cajado,  eque  foram  eminentes  em  letras  de  humanidades.»  ^ 
O  Collegio  real  era  denominado  tambem  Collegio  das  Artes  e  HuTnani- 
dade,  e  vulgarmente  Collegio  novo  e  Collegio  dos  Fraricezea,  mas  se- 
mente depois  de  ter  passado  para  a  direcfSo  dos  Jesuitas,  em  1555, 
ficou  com  0  nome  de  Collegio  das  Artes,  ccm  que  se  tomou  conhecido. 

O  fallecimento  inesperado  de  Mestre  André  de  Gouvéa,  em  9  de 
junho  de  1548,  veiu  modificar  as  condi(3es  prosperas  do  estabeleci- 
mento  do  Collegio  real.  Succedeu-lhe  temporariamente  no  Principalato 
um  seu  sobrìnho,  Mestre  Diogo  de  Gouvéa,  comò  se  ve  pelo  alvar&  de 
10  de  agosto  de  1548:  cfafo  saber  a  vós,  Mestre  Diogo  de  Gouvéa, 
que  ora  mando  por  Principal  do  Collegio  das  Artes  da  cidade  de  Coim- 
bra. . .  »  E  em  alvarà  de  12  de  novembre:  cE  por  o  dicto  Mestre  An- 
dré de  Gouvéa  ser  faUecido,  bei  por  bem  e  vos  mando,  que  cumpraes 
o  alvari  acima  escrìpto  corno  se  n'elle  contem,  ao  Doutor  Mestre  Diogo 
de  Gouvéa,  meu  capellSo,  que  ora  é  Principal  do  dito  Collegio.»  Suc- 
cedeu  no  governo  do  CoUegio  o  terceiro  Principal,  o  Doutor  Mestre 


1  D.  Nicoiào  de  Santa  Maria,  Chronica  dos  Regrantes,  Liv.  x,  cap.  v. 


510  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

JoSo  da  Costa,  corno  se  ve  pelos  alvaràs  de  12  de  novembro  de  1549, 
21  de  dezembro  do  mesmo  anno,  9  e  20  de  agosto  de  1550.  0  quarto 
Principal,  o  Doutor  Pajo  Rodrigaes  Villarinho,  ^  apparece  com  este 
cargo  no  alvarà  de  2  de  maio  de  1551,  e  figara  ainda  em  1554.  O 
quinto  e  ultimo  Principal,  antes  da  entrega  do  Collegio  aos  jesuitaa, 
foi,  postoque  nSo  use  este  titulo,  o  Doutor  Diego  de  Teive. 

A  morte  do  Doutor  André  de  Gouvéa  veiu  alterar  fimdamental- 
m  ente  a  organisaySo  do  Collegio  real;  escreve  Villar  Maior,  na  Expo^ 
81^0  succinta,  p.  59:  «NSo  se  conservou  tambem  muito  tempo  o  Cd- 
legio  daa  Artea  fora  da  jurÌ8dic9So  do  Reitor  e  Conselho  da  Universi- 
dado,  porque  em  novembro  de  1549  deu  Eirei  novo  regimento  ao  Col- 
legio, pondo-o  debaixo  da  inspec$&o  e  auctorìdade  superior  da  Univer- 
s  idade.»  No  Livro  dos  Concdhos  do  anno  de  1660,  fl.  87  ^,  lèse:  cApre- 
sentou  0  Doutor  Jofto  da  Costa,  que  bora  tem  carrego  do  Collegio  Real, 
huma  carta,  com  bum  Regimento  do  que  Sua  Alteza  mandava  que  se 
guardasse  no  dito  Collegio  ;  e  na  carta  do  dito  Senhor,  que  vinha  para 
a  Universidade,  se  continha:  que  elle  por  justos  respeitos,  que  a  isso 
o  moverSo,  annexava  o  dito  Collegio  d  Universidade,  e  que  Ihe  encom- 


1  Em  um  poemeto  latino,  CorUmbricae  Encomium,  por  Ignacio  de  Moraes,  an- 
tigo  mestre  do  infante  D.  Daarte,  e  publicado  em  1554,  faz-se  a  descrìp^So  do 
Collegio  realf  sob  o  p'rincipalato  do  Doator  Payo  Rodrìgues  Villarinho  : 

Gyinnasia  aspicies,  quae  rex  ingentibus  orsis 

In  coelom  nuper  toUere  caepit  humo. 
Die  novem  musis  sedes  bi  destinat  amplas: 

Nomen  et  authoris  regia  tecta  trahnnt. 


Hic  juvenum  ingenuas  grex  informatur  ad  artes, 
Atque  bonos  mores,  ingeniumque  oolit. 

Certatim  discanta  feriont  damoribos  anras . 
(G-lorìa  dat  stimalos  suppliciique  metus) 

Qaàm  muUos  Progne  diffundit  gutture  cantus 
Vere  novo,  arguto  stumas  et  ore  sonos. 

Tanti  operis  curam,  et  coetus  libi  froena,  Pelagi, 

Oceani  domitor,  Lysiadumque  dcdit. 
Namque  bonae  decorant  te  artca,  atque  indjta  virtus, 

FalladoB  et  sacrae  Laureus  omat  apex. 
Tuque  agmen  reddis  docile,  et  moderarla  habenis, 

Exemploque  vocas  facta  ad  honesta  tuo. 

(Elogio  de  Coimbra,  p.  26.  Ed.  Simoes  de  Castro.  Coimbra,  1887.) 


0  COLLEGIO  REAL  511 

mendava  que  aa  cousas  delle  favorecesBem  e  olhaBsem,  e  se  o  dito  Doa- 
tor  JoSo  da  Costa,  qae  mandava  por  Principal  do  dito  Collegio,  al- 
gama  coùsa  Ihe  requeresse.»  '  Havia  incerteza  de  opiniSes  sobre  a  in- 
dependencia  dos  CoUegios;  assim,  em  carta  de  10  de  abril  de  1537, 
o  rei  ordenara  que  nos  CoUegios  de  Santa  Cruz  se  léssem  Latim, 
Grego  e  Àrtes  liberaes  com  tres  cadeiras  de  Theologia,  independente-- 
mente  da  Uhiversidade;  e  depois  de  sustentar  està  dÌ8posÌ9So  na  carta 
de  12  de  julho  de  1537,  manda  em  1540  que  os  CoUegios  sejam  in- 
corporados  na  Universidade. 

0  emprestimo  dos  CoUegios  de  S,  Miguel  e  de  Todos  os  Santos 
tomou-se  cessSo  definitiva,  e  o  monarcha  teve  de  dar  urna  indemnisa- 
(So  ao  mosteiro  de  Santa  Cruz.'  No  emtanto  a  falta  dos  dois  CoUe- 
gios incorporados  no  CoUegio  real  fez  com  que,  conhecida  a  urgente 
necessidade  dos  escholares,  o  reitor  EVei  Diego  de  MurQa  impetrasse 
de  D.  JoSo  m  a  fundajSo  de  um  novo  Collegio,  que  se  denominou  de 
S.  Pavlo. 

Pelos  processos  de  Diego  de  Teive  e  do  Sub-principal  JoSo  da 
Costa  conhecem-se  os  trabalhos  da  partida  do  corpo  docente  para  Por- 
tugal;  Diego  de  Teive  tinha  ido  a  Paris  buscar  os  lentes  e  comprar  o 
material  typographico  para  a  Imprensa  da  Universidade.  Quando  se 
metteram  a  caminho  era  pela  quaresma,  e  està  circumstancia  veiu  a 
ser  mais  tarde  um  motivo  de  accusagSo,  por  terem  comido  carne  nas 
estalagens  em  que  pemoitavam.  Os  lentes  dividiram-se  em  dois  gru- 
pos,  para  n£o  serem  embara9ado3  por  onde  passassem;  quatro  lentes 
francezes,  Meatres  NicoUo  G-rouchj,  Guilherme  Guerente,  Arnaldo  Fa- 
bricio  e  Jorge  Buchanan,  formavam  um  bando,  uma  comò  companhia 
de  actores  ambulantes,  que  iam  exhibir  a  sua  sciencia  em  uma  terra 
desconhecida.  De  facto,  Buchanan  era  compositor  de  exceUentes  tra- 
gedias  latinas,  e  na  sua  vida  escholar  estava  costumado  a  ensaiar  e  a 
dirigir  as  representafSes  scenicas  das  férias  coUegiaes.  0  outro  grupo 
era  composto  de  tres  lentes  portuguezes  e  um  francez,  os  Doutores 


1  Doutor  Silva  Leal,  ibid.,  p.  480. 

^  « . . .  dou8  iostramentos  se  fizeram  por  auctorìdade  judicial,  quando  os  Pa- 
dres  de  Santa  Cruz  pediram  ao  senlior  rei  D.  Sebastiao  Ihe  pagasse  os  CoUegios 
de  T<>d'>è  os  Santos  e  de  Sam  Migud,  que  seu  avo  Ihe  tomara  para  estabclecer 
n'elie  o  CoUegio  real;  o  primeiro,  feito  perante  o  Doator  Ambrosio  de  Sa,  Conego 
de  Coimbra,  Conservador  Ecclesiastico  do  Mosteiro,  em  Mar^o  de  1560,  e  o  se- 
gando perante  Simio  Rangel  de  Csustello  Branco,  Yereador  e  Juiz  pela  Ordena^io 
da  Cidade  de  Coimbra,  em  Dezembro  de  1565 ...»  (Cartorio  de  Santa  Cruz,  Arm. 
14,  com  o  titulo  de  CanceUario  e  CoUegios;  visto  em  1731,  por  Silva  Leal.) 


512  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIBIBRA 

Diogo  de  Teive,  JoSo  da  Costa,  Antonio  Mendes  e  Elie  Vinet,  que  vi- 
nha  bastante  adoentado.  A  viagem  fez-se  por  terra,  tendo  de  atraves- 
j3ar  a  Hespanha,  albergando-se  em  pousadas  e  hospicios  monachaes,  e 
yindo  ter  a  Salamanca.  As  fadigas  da  jomada  e  o  estado  de  doenja 
em  que  algans  professores  se  achavam,  e  mesmo  a  falta  de  recursos 
nas  hospedarias  hespanholas,  fez  com  que  se  alimentassem  com  carne. 
Isto  bastou  para  entrarem  em  Portugal  comò  suspeitos  de  despreza- 
rem  a  disciplina  da  egreja,  e  foi  a  base  principal  da  intriga  com  que 
OS  Jesuitas  dissolveram  o  florescente  Collegio  reaL  D.  JoSo  ili  estava 
com  a  corte  em  Almeirim  quando  os  lentes  chegaram  a  Lisboa;  An- 
dré de  Gouvéa  foi  apresentar-lh'os.  0  grande  pedagogo  jà  devia  saber 
por  Diogo  de  Teive  o  odio  implacavel  que  Ihe  votava  se^  tio,  o  velho 
Doutor  Diogo  de  Oouvéa;  Teive  levava  procuraySo  para  resignar  no 
velho  doutor  urna  conezia  theologal,  e  elle  repellira  essa  generosa  offerta, 
dizendo  que  nada  acceitaria  de  um  luttierano.  Vista  a  intimidade  e  con- 
fian9a  entre  D.  JoSo  ui  e  o  velho  doutor,  é  naturai  que  este  Ihe  es- 
crevesse  contra  o  sobrinho,  acoimando-o  de  lutherano,  comò  o  fazia  por 
toda  a  parte;  isto  explica  a  frieza  do  monarcha,  e  a  facilidade  com 
que  deu  ouvidos  às  intrigas  urdidas  pelo  partido  dos  parisienaes  e  pelo 
partido  dos  apostolos  ou  franchinotes.  André  de  Oouvéa  metteu-se  re- 
solutamente  ao  trabalho,  secundado  pela  intelligente  actividadc  do  sub- 
principal  Jofto  da  Costa,  e  venceu  todos  os  embarasos,  mas  fallccia 
quatro  mezes  depois  da  installaffSo  do  Collegio  real, 

Como  vimoB,  André  de  Gouvèa  escolhera  para  seu  Sub-principal 
A  Mestre  JoSo  da  Costa,^  naturai  de  Villa  Nova  de  PortimSo;  na  secca 
noticia  àcerca  dos  regentes  vindos  de  Franfa,  um  Collegio  inteiro,  que 
nos  deixou  Fedro  de  Mariz,  nSo  se  suppSe  qual  a  superioridade  e  o 
caracter  extraordinario  d'este  homem.  Segundo  urna  referencia  de  Jac- 
ques Busine,  na  Vita  Gdidae,  JoSo  da  Costa  era  Doutor  em  Theolo- 
gia,  Mestre  em  Artes,  e  fòra  reitor  da  Universidade  de  Bordéos.  Ke- 
gentou  no  Collegio  de  Ouyenne,  quando  André  de  Gouvéa  fi5ra  a  Pa- 
ris buscar  novos  professores  para  aquella  instituijSo;  o  grande  Princi- 
pal teve  entSo  conhecimento  do  seu  forte  espirito  de  disciplina  e  de  ad- 
ministragSo,  e  mais  ainda  quando  teve  de  vir  a  Portugal  ao  chamado 
de  D.  JoSo  m.  Sobre  JoSo  da  Costa  escreve  Gaullieur,  na  Hiatoria 
do  Collegio  de  Ghiyenne:  ca  sua  influencia  no  Collegio  de  Ouyerme, 
corno  administrador,  foi  das  mais  consideraveis  e  das  mais  felizes.»^ 


»  Op.  cit,  p.  100. 


0  COLLEGIO  REAL  513 

Quando  André  de  Gouvéa  accedendo  aos  desejos  de  D.  JoSo  ni  teve  de 
vir  a  Lisboa  em  1543,  entregou  o  principalato  do  Collegio  de  Oujenne 
ji  JoSo  da  Costa,  com  os  maximos  poderes.  ^  Qual  o  governo  exercido 
por  JòSo  da  Costa,  na  ausencia  de  André  de  Gouvéa,  e  que  mostra  a 
sua  alta  capacidade  administrativa,  toma-se  para  isso  indispensavel  tra- 
duzir  as  proprias  palavras  do  historiador  do  Collegio  de  Guyenne: 

cEzn  15  de  junho  de  1543,  JoSo  da  Costa  tomou  a  direc9to  do 
Collegio  de  Gujenne.  Nunca  um  homem  collocou  t2o  bem  a  sua  con- 
fian$a  corno  GouvSa  n'esta  occasiSo.  Deixou  ao  Sub-principal  o  Collegio 
em  um  estado  florescente,  veiu  encontral-o  ainda  mais  florescente.  JoSo 
da  Costa,  exceliente  administrador,  occupava-se  pessoalmente  de  todas 
as  minucias,  velava  de  modo  que  nada  se  perdesse  ou  desperdifasse, 
tirava  partido  das  menores  parcellas,  e  occupava-se  activamente  na  co- 
bran9a  das  dividas,  que  por  bondade  ou  por  falta  de  tempo  André  de 
Oouvea  deixara  em  atrazo. 

cQuanto  aos  fornecimentos,  e  ao  mesmo  tempo  para  uma  multi- 
dZo  de  outros  arranjos  materiaes,  Jo2o  da  Costa  poz-se  em  relaySes 
directas  com  um  rico  mercador  de  Guitres,  encantadora  aldeola  a  al- 
gumas  legoas  de  Bordéos  na  confluente  do  Tlsle  e  do  Larry.  0  mer- 
cador, chamado  Thomyon  Faure,  tinha  um  filho  que  estudava  no  Col- 
legio d'Aquitania;  elle  fomecia  cada  anno  ao  Sub-principal,  lenha,  vi- 
nho  e  trigo  necessarios  aos  gastoa  d'aquella  instituijSo. 

cEra  no  mez  de  maio,  isto  é,  regularmente,  que  JoSo  da  Costa 
costumava  fazer  as  suas  provisSes. — Uma  parte  do  pre$o  da  compra 
era  paga  pelo  Sub-principal  de  contado,  e  outra  ou  o  resto  era  encon- 
trado  com  a  pensSo  de  JoSo  Faure,  filho  do  vendedor. 

cO  pSo  necessario  &  alimenta93o  dos  professores  e  dos  alumnos 
era  cozido  no  Collegio,  onde  a  municipalidade  tinha  mandado  construir 
um  forno  com  grandeza  sufficiente.  Realisavam-se  assim  grandes  eco- 
nomias,  da  mesma  forma  que  na  carne  do  talho,  que  se  nSo  comprava 
fora. — JoSo  da  Costa,  dotado  de  um  excellente  espirito  pratico,  utili- 
sava  todas  as  cousas,  velando  para  que  nada  se  perdesse.»^ 


1  «tSpeciallement  et  espressement,  est-il  ajouté,  pour  et  au  nom  d'icelluy 
oonstitaant,  regir,  gouvemer  et  administrer  au  Colliege  de  Guyenne  ;  prendre  et 
recepvoir  toutes  et  chascanes  les  aommes  à  luy  deues  et  qui  proviendront  tant 
pour  raison  dea  pentionnidres  estantz  en  icelluy,  marfinetz,  que  autres  estudians 
andìt  Colliege;  d'ìcelles  bailber  quictances,  bonnes  et  valables,  les  contraindre 
par  jnstice  et  par  toutes  autres  voyes  deues  et  raisonnables,  etc.»  (Ap.  Gaullìeut, 
4)p,  cit,^  p.  168.) 

2  Ibidem,  p.  171, 175  e  176. 

HI8T.  im.  33 


514  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA, 

Comprehende-se  que  André  de  Goavéa  para  desempenhar-se  do 
seu  comprommisso  com  D.  JoSo  ui,  ao  vir  a  Portugal  em  1547  para  a 
fìindagSo  do  Collegio  recd,  contasse  com  a  capacidade  administrativa 
de  JoSo  da  Costa  para  ter  assegurado  o  exito  da  emprezai  podendo 
regressar  a  Bordéos  ao  firn  de  dois  annos.  O  Sub-principal  do  Collegio 
de  Guyenne  veiu  com  egaal  cargo  no  Collegio  de  Mestre  André.  ^  JoSo 
da  Costa  tinha  em  dezembro  de  1540  side  nomeado  Reitor  da  Univer- 
sidade  de  Bordéos^  e  o  seu  grào  de  Theologia  tornava-se  essencial  para 
o  cargo  de  Sub-prìncip^I  f^pour  faire  les  aermons  et  admonitvms  aux 
écoliers.i^ 

Na  contesta$So  ao  libello  contra  JoSo  da  Costa  pela  InquisigZo  de 
Lisboa,  em  outubro  de  1550,  elle  descreve  os  seus  trabalhos  no  Col- 
legio de  Bordéos,  e  recorda  os  grandes  esfor903  que  empregou  para 
dirigir  as  obras  do  Collegio  ì'eaL  em  Coimbra  depois  da  morte  inespe- 
rada  do  Principal  André  de  Goavéa,  tendo  de  manter  a  disciplina  de 
mil  e  quinhentos  estudantes  fidalgoS;  e  de  provèr  à  Iiabita9ÌLo  e  ali- 
mentaglo  dos  porcionistas  e  professores,  no  meio  das  intrigas  do  Don- 
tor  Diego  de  Gouvèa,  sobrinho,  que  ficara  resentido  por  Ihe  ser  reti- 
rado  0  principalato.  Ao  apresentar  a  defeza  na  simples  narrativa  das 
soas  innumeras  occapa93es,  deixa  ama  rapida  descripsSo  da  vida  in* 
tema  do  Collegio  real,  que  tanto  se  parecia  na  organisagSo  e  disciplina 
com  o  Collegio  de  Guyenne: 

cEntende  provar  que  os  lentes  que  vieram  de  Franya  na  coresma 
erSo  por  todos  oyto,  e  vinhSo  partidos  em  duas  bandas,  quatro  em  cada 
bua,  e  bua  banda  partio  diante  e  erSo  nella  quatro  francezes  .s.  Mes- 
tre NicolàO|  Mestre  Guilherme,  Mestre  Jorge,  Mestre  Fabricio  e  tra- 
ziSo  sua  despeza;  e  a  banda  do  rèo  partio  depois  algus  dias,  e  nella 


1  Sobre  a  actividade  de  Jo2o  da  Costa,  acerescenta  Qaolliear  :  «Ab  mil  pre- 
occupa^òes  que  envolviam  a  direc^io  do  Colico  de  Guyenne,  e  de  que  temos 
dado  ama  ideia,  n2o  impediam  Jo2o  da  Costa  de  prestar  servi^  aos  seus  com- 
patriotas  e  accucQr-Ihes  nas  difficuldades.  Piiatas  normandos  tinham  apresado  o 
navio  portqguez  Santa  Maria  d'Alup,  e  condnziram-no  a  BordéoS|  teimando  qu» 
o  navio  era  hespanhol,  pois  que  haviam  recomeQado  as  guerras  entre  Carlos  t  e 
Francisco  i.  O  capitflo  da  Santa  Mariaf  Antonio  Martins,  naturai  de  Tavira,  no 
reino  de  Portugal,  teve  a  felix  idèa  de  recorrer  ao  seu  compatriota  Jo2o  Feman- 
des  da  Costa,  Sub-prìncipai  do  Colico  de  Guyenne,  a  quem  deu  plenos  poderes 
para  demandar  os  marinheiroa  normandos.  A  causa  foi  apresentada  ao  jais  do  al- 
mirantado;  este,  tendo  achado  provado  que  a  Santa  Maria  era  realmente  urna  ca- 
ravella portugueza,  mandou  entregal-a  ao  seu  Intimo  proprietario^  e  oondemnoa 
OS  normandos  a  pagarem  a  Jo2o  da  Costa  a  somma  de  120  escudos  de  curo,  do 
que  passou  recibo,  e  entregou  a  Antonio  Martins.»  {Op.  ciL,  p.  176.) 


0  COLLEGIO  REAL  515 

yinhSo  tres  portngaezes,  .8.  Diogo  de  Teive,  Mestre  Antonio  Mendes 
e  elle  rèo  e  Mestre  Helias  eoo  frances  o  qaal  era  muito  doente,  e  assjr 
elle  reo  vinha  milito  doente  de  hum  bra(o  que  tem  aleijado,  qae  on- 
vera  de  perder^  qne  Ihe  foy  cauterisado  e  Ihe  tìrarXn  delle  muitos  oe- 
sosy  do  que  tem  mtiitas  dores  e  nos  rins  e  he  muito  suj^ito  a  vomitos 
e  ha  enxaquequa,  que  chamXo  em  Fran9a  migreyna^  e  comtudo  non- 
qua  qùis  corner  carne  por  ser  coresma  nS  nenhii  da  companhia  posto 
que  achassem  carne  em  muitas  vendas  pello  caminho  e  ob  hospedes  o 
i^nyidassem  a  isso  dicendo  que  por  Espanha  todos  os  caminhantes  a 
<K>miKo,  e  éomente  he  lembrado  que  a  comeu  corno  jà  tem  confessado 
em  Salamanqua  e  na  Torre  de  MScorVo  com  multa  necessidade  e  por 
mais  nfio  poder  pelo  que  nÌo  pode  ser  verdade  o  que  diz  a  Justiya. 

cEntende  provar  que  em  Coymbra  sempre  teve  muitos  e  gran- 
dèa  trabalhos  assy  no  regimento  do  Colico  e  dar  ordem  a  se  averem 
matitimentos  pera  hos  collegiaes  e  pessoas  delle  corno  tambem  nas 
obraSy  porqne  nSo  se  fazia  nada  nellas  sem  sen  mandado  e  sem  elle 
intrevir  em  tudo^  e  assy  em  governar  petto  de  mil  e  quinhentos  estu- 
dantes  desvàirados  de  condÌ9So,  gente*  nossa  portugueza  e  muito  fi* 
dalga,  que  Ihe  moySo  os  ossos  e  a  vida,  e  em  ler  tambem  aIgSs  vezes 
por  lentes,  que  er3o  ausentes,  ou  estavSo  doentes;  e  por  rezAo  destes 
immensos  trabalhos  e  sua  ma  disposifSo  do  brayo,  enxaqueqna,  vomi- 
tus  e  ictiritia  que  teve  algumas  vezes,  comeo  carne  em  dias  prohibidos^ 
corno  jà  tem  confessado^  e  seriXo  cinque  ou  seis  vezes  em  todo  o  tempo 
que  esteve  em  Coymbra,  o  que  fez  com  multa  necessidade,  e  tambem 
9eou  em  alguns  dias  de  jejum,  comò  ja  tem  confessado,  o  que  tambem 
fez  com  muita  necessidade,  e  diz  que  os  lentes  do  Collegio  tem  mui- 
tos e  immensos  trabalhos  em  ler  seis  horas  de  IÌ9S0  cada  dia,  e  em 
dat  latins  a  seus  disdpulos  e  Ihos  emendar,  e  em  estudar  suas  Ii$8es 
de  noyte  por  Ihe  nSo  fiquar  tempo  de  dia,  e  que  tem  pera  si  que  al- 
gSfs  que  com  elle  nos  taes  dias  cearXo  0  nZo  fariSo  sem  necessidade, 
pollo  que  nSo  he  de  crer  0  que  diz  a  JustÌ9a.9 

Em  outros  articulados  por  maneira  de  defeza  de  Mestre  JoSo  da 
Costa  acha-se  mmuciosamente  descripta  a  vida  intema  do  Collegio 
realj  em  tudo  similhante  ao  de  Bordéos: 

cEntende  provar  que  no  Collegio  de  Coymbra  todos  os  dias  ou- 
via  missa  com  os  seus  coUegiaes  e  os  amoestava  muitas  vezes  que  fos* 
sem  bona  e  virtuosos  e  amigos  do  servilo  de  Deca  e  que  nXo  fisdtaasem 
nunqua  de  vir  ha  missa,  e  que  faltando-lhe  na  li^o  Ihe  perdoaria  mas 
se  Ihe  faltassem  na  missa  que  Ihe  nXo  aviarie  perdoar,  e  tinha  sena 
apontadores  que  Ihe  apontavam  os  que  nSo  vinhSo,  e  eUe  reo  os  caa- 

88* 


516  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIUBRA 

tigava  e  reprendiai  e  tinha  oh  piquininos  na  missa  junto  comsigo  pera 
OS  ver  rezar  por  que  se  nfto  descnidassem  ou  palrassem  estando  loroge; 
«  OS  £azia  todos  confessar  sete  vezes  no  anno  e  os  amoestava  e  inci- 
tava a  isso,  e  confessav&ose  bespera  da  purificafSo  de  nossa  sSra,  o 
prìmeiro  sabado  da  coresma,  sabado  de  Ramos,  bespera  de  pentecoste, 
bespera  dastinip9So  de  nossa  sSra,  bespera  de  todos  os  santos,  bespera 
de  nat^l,  o  que  tudo  fazia  corno  muyto  bom  catholico  christSo  que  he 
e  estas  obras  e  outras  muitas  que  fez  que  aqui  nSo  p8y  o  manifestào» 

cEntende  provar  que  elle  he  o  prìmeiro  que  nestes  reinos  insti- 
toia  irem  os  coUegiaes  do  Collegio  corner  em  refeitorio  com  muito  si- 
leDcio  e  honestidade  e  que  se  Ihes  lesse  ao  corner  algua  cousa  do  Novo 
Testamento  corno  se  faz  nos  conventos  dos  religiosos,  e  se  fizesse  a 
ben9So  da  mesa  pollo  principal  ou  lente  que  em  seu  lugar  estivesse  e 
dissessem  as  grafas  os  coUegiaes  muito  devotamente,  e  os  mais  peque- 
nos  o  Pater  noster  entoado,  e  outrosy  instituio  que  se  dissesse  todo& 
OS  dias  ha  noyte  hum  hynmo,  que  come9a:  Christe  qui  lux  es,  et  diesj, 
c3  suas  antiphonas  e  ora$8es  e  commemora95es  dos  sanctos,  segundo  a 
tempo,  e  que  se  dissesse  todos  os  sabados  e  besperas  de  nossa  s5ra  a 
Salve  regina  pollo  mesmo  modo,  e  da  pascoa  até  pentecoste  Regina 
codi  laetare,  e  com  muita  devo9So  tudo  cantado  pollo  mestre  de  canto 
e  coUegiaes  com  vellas  e  tochas  accesas  todos  em  giolhos  e  elle  reo 
sempre  com  elles,  e  depois  de  acabado  o  hymno  hos  mandava  reco* 
Iher,  o  que  tudo  elle  reo  constituio  e  fez  pera  servi90  de  nosso  s8r  e 
aumenta9So  da  deva9fto  e  para  que  os  seus  cstudantes  fossem  cres- 
fendo  em  vertude,  as  quaes  obras  todas  sSo  de  muito  bom  e  fiel  chris- 
tSo  que  eUe  he  e  sempre  foy. 

cEntende  provar,  que  em  muitas  festas  do  anno  fez  dizer  missa 
solemne  na  capeUa  do  Collegio^  e  rogava  a  àlguns  clerìgos  de  fora  que 
viessem  .ajudar  a  fazer  o  officio,  e  Ihes  mandava  as  vezes  pagar  seu 
trabalho  ou  dar  de  jantar,  e  assy  nas  precÌ93e8  solenes  que  eUe  fazia^ 
nas  quaes  levava  todo  o  CoUegio  assy  lentes  comò  estudantes  todos 
em  ordem  e  os  piquininos  diante  c8  suas  horas  nas  mSos  razando^ 
mandava  a  todos  os  derigos  que  vem  ouvir  ao  CoUegio  que  viessem 
ha  precÌ9So  com  suas  sobrepeUzes,  e  elle  reo  as  mandava  pidir  em- 
prestadas  para  aa  dar  a  algus  que  as  nSo  tinham. . . 

cEntende  provar  que  no  CoUegio  de  Bordéos  do  qual  foy  muitoa 
annos  presidente  ouvia  todos  os  dias  missa  com  os  seus  coUegiaes  e  oa 
amoestava  que  fossem  bons  e  virtuosos  e  Ihe  dava,  muito  boa  e  catho* 
lica  dotitrìna,  e  tinha  seus  apontadores  que  Ihe  apontavam  os  que  fai* 
tavam  ha  missa,  e  eUe  reo  os  assentava  e  reprendia  muito  asperamente^ 


0  COLLEGIO  RE  AL  517 

«  08  fazia  todos  cSfessar  sete  vezes  no  anno,  que  tudo  sSo  obras  de 
maito  bom  e  fiel  christSo.  E  diz  que  por  rezSo  dos  carregos  qne  tinha 
<asy  do  Collegio  corno  tatnbem  por  ser  Reytor  da  Universidade  todos 
OB  annos  e  mnitas  vezes  ser  ellegido  vìfecSsellarìo^  muitas  pessoas  ti- 
nhSo  negocios  com  elle  reo  e  vinhSo  a  sua  casa,  mas  nSo  conversava 
nunqua  pessoa  de  suspeita^  antes  as  pessoas  que  conversava  eram 
inulto  nobres  e  virtuosas,  nem  he  sua  lembran9a  reprender  friàmente 
pessoas  que  fallassem  mal  da  fee ...» 

A  familia  dos  Gouvèas  era  comò  urna  dynastia  de  humanistas  e 
pedagogos;  D.  Manoel  e  D.  JoSo  m,  pretendendo  os  melhores  mes- 
tres  em  theologia  ou  humanidades,  dirigiram-se  sempre  aos  Goavèaa 
a  quem  consultavam  nas  suas  reformas.  Pela  s'abia  direc(Ao  que  mos- 
travam  no  principalato  dos  Cóllegioa  de  Santa  Barbara,  em  Paris,  e 
-de  Gnyenne  em  BordéoS;  eram  admirados  em  toda  a  Europa.  Quicherat 
«screveù  a  Historia  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  onde  tanta  gloria 
refulge  sobre  o  genio  portuguez;  ^  e  a  Historia  do  Collegio  de  Ouyenne, 
escriptà  por  Ernest  GauUieur,  completa  o  quadro  surprehendente  da 
Renascenja  mostrando  a  ac$So  directa  dos  portuguezes  n'essa  criae 
^suprema  da  intelligencia  europèa.  Resumiremos  ialgumas  noticias  so- 
bre 0  Collegio  onde  André  de  Qouvèa  come90ù  o  seu  principalato;  o 
Collegio  de  Santa  Barbara  fìSra  fundado  em  1460  por  Geeflfroy  Lenor- 
mant,  um  dos  mais  afamados  professores  do  tempo  de  Carlos  vii.  O 
titulo  do  Collegio  era  tomado  da  designagSo  dialectica  de  Barbara  (ra- 
«cìocinio  em  Barbara,  Celarent,  Baroeo,  e  em  Baralipton)  o  argumento 
èlementaf,  o  syllogismo  articulado  pela  maior^  menor  e  consequencia 
sobre  generalidades  positivas;  Barbistas  era  o  nome  dado  aos  alamnos 
^0  Collegio  por  onde  passaram  os  maiores  espiritos'  do  seculo  xvi.  Na 
sèrie  dos  Principaeè  Lenormant,  Lemaistro,  Baret^  De  fV)ntenayy  Pel» 
lier  e  Morel,  destacasi-se  por  um  singular  talento  pedagogico  os  por- 
tuguezes: Doutor  Diego  de  GouvSa^  o  velbo,  em  1520;  André  de 
Gouvéa,  emi  1533;  Diego  de  Gouvéa,  o  mo90)  qtiegovemoa  seis  an- 
nos, e  outra  vez  o  Doutor  Diògo  de  Gouvèa^  que  falleceu  em  1558: 

Aléiii  d^estesi  figura  pelo  saber  e  talento  pedagogico  Marcia!  de 
Gouvèà,  sobriiìho  mais  velho'de  Diego  de  GouvSa  o  antigo;  come* 
•90U  a  carreira  de  professor  ensinando  Ghrammàtica  ne  Collegio  de 
43anta  Bàrbara,  e  Kbetorica  em  Poitiers;  tinha  ji  a  sua  reputarlo  for-- 


1  Jule^  Quicherat,  Histoire  de  SairUe-Barbe,  CoUégtf  etc.  PaHs,  186Q^  3  voL 
>— Ganllieuk',  HiiUnre  du  Coltesi  de  Guyeme^  Paris,  1874, 1  vòL  in-8L* 


518  mSTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIliBRA 

mada  quando  veia  para  o  Collegio  real  de  Coimbra.  Qoicberat  dis  qne 
elle  imprìmira  em  1534  luna  Grammatica  latina  pelo  systema  da  da 
Donato,  oom  o  titolo  Jmtitutiones  in  odo  Orationis  partea.  Foi  disci- 
pulo  no  Collegio  de  Fran^  (entflo  CoUegio  real)  do  prìmeiro  professor 
de  hebraioo,  Paulo  Paradis,  e  oompunha  versos  latinoa  com  Cacilidade 
e  elegancia. 

Antonio  de  GouvSa,  ainda  mais  celebre  que  o  inn2o,  pelos  con- 
flictoB  philoBophicos  com  Fedro  Ramus  sobre  o  Aristotelismo,  nSo  quiz, 
acompanhal-o  para  Portugal,  por  conbecer  a  terrivel  pressSo  do  fana- 
tìsBio  que  atrophiava  a  sua  patria.  Antonio  de  Gouvéa  professou  em 
difTerentes  Universidadea  meridionaes,  renovando  o  estudo  do  direita 
romano  pelas  relafSes  com  a  vida  social  revelada  nos  poetas  latinos,  e 
rebabilitando  a  obra  de  Aristoteles  pelo  conbecimento  directo  do  texto 
grego  separado  dos  absurdos  dos  commentadores,  Calvino,  em  1550,» 
accusava  Antonio  de  Gouvéa  de  livre-pensador,  e  Ronsard,  seu  amigo, 
disia  d'elle,  de  Buchanan  e  de  Tumebo,  que  tinham  do  pedagogo  ape- 
nas  a  loba  e  o  gorre  (illos  homines  nihU  peàagogi  praeierjuam  togam 
fUeam  habuùee).  Era  entSa  costume  serem  os  professores  celibatarios^ 
e  com  um  certo  aspecto  sacerdotal.  VS-se  qual  o  espirito  de  malevo^ 
lencia  que  em  Portogal  viria  intrigar  os  mestres  francezes  no  animo 
de  D,  JoZo  III,  jA  dominado  pelos  Jesuitas, 

Acompanbou  tambem  a  André  de  Gouvéa,  e  a  Marciai,  Diego  da 
Gouvéa,  filho  do  Doutor  Gonfio  de  Gouvéa,  de  Santarem,  cjiamada 
de  Paris  para  lente  de  Theologia  na  XJniversidade  de  Coimbra;  foi  co- 
nego  da  sé  de  Lisboa,  e  importa  nSo  confondil-o  com  Diego  de  Gou- 
véa, o  mo$o,  que  Coi  Principal  em  Sonia  Barbara,  que  pertenda  |K)a 
Gouvéas  do  ramo  dos  Ayalas.  Outros  membros  d'està  ianùlia  nos 
apporecem  florescendo  nos  estudos  de  Paris,  corno  se  sabe  -pelo  termo 
de  jnramento  do  grio  na  faculdade  de  Artes;  Quicherat,  na  Historia 
do  CoUegio  de  Santa  Barbara^  cita  os  nomes  de  Roque  de  Gouvéa  e 
SimSo  de  Gouvéa,  graduados  em  1525;  Damilo,  JoSo  e  Miguel  de 
Chmyéa,  graduados  em  1527;  e  Diego  Rodrìgues  de  Gouvéa,  em  1533» 
Emfim,  pela  Bietaria  da  Univereidade  de  Pari»,  de  Buleus,  e  pela  re- 
finrida  obra  de  Qui^ecat,  figura  um  outro  Antonio  de  Gouvéa,  de 
Evora,  rogando  um  curso  de  Philosophia,  em  1542. 

Entro  oa  i^geiites  portogueses,  que  André  de  Gouvéa  trouxe  par» 
Portugal,  era  um  dos  mais  distinctos  Diogo  de  Teive,  Doutor  em  Leis,, 
que  o  acompanbara  de  Paris,  onde  professava  Humanidades,  para  ^ 
CMegio  de  Chq/ewne,  em  1534.  Desde  os  tempo|i  de  frequencia  do  CoU 

de  Santa  Barbara^  urna  estreita  amisade  o  ligara  a  Antonio  de 


0  COLLEGIO  REAL  519 

OouvSa  e  a  George  Buchanan.^  £m  1528,  seu  primo  Manuel  de  Teive 
era  dìscipulo  em  Mathematicas  do  celebre  JoSo  FemeL  Como  os  Tei- 
yesy  de  Braga,  achamos  um  Antonio  LeitSo,  seu  conterraneo,  occu- 
pando a  cadeira  de  Physica,  desde  1547,  no  Collegio  de  Santa  Bar- 
haruj  e  em  1553  a  cadeira  de  Philoaophia. 

Entre  os  sabios  estrangeiros,  que  André  de  OouvSa  trouxe  para 
o  Collegio  reàl,  era  um  doB  mais  vantajosamente  conbecidos  na  Europa 
George  Buchanan,  eximio  poeta  latino,  A  sua  vida  foi  immensamente 
accidentada  por  desastres  de  familia  e  pela  liberdade  de  um  espirito 
critico.  Da  sua  autobiographia,  escripta  dois  annos  antes  da  morte, 
tiram-se  noticias  que  esclarecem  a  situajSo  dos  bumanistas  em  uma 
època  de  uma  grande  actividado  mental  e  de  uma  terrivel  reac9So  theo- 
logica.  Nascerà  Buchanan  em  1506,  na  Escossia,  ficando  muito  cedo 
orfSn  de  pae,  com  mais  sete  irmSos  reduzidos  &  miseria;  um  tio  o  man- 
don -para  os  estudos  de  Paris,  mas  passados  dois  annos  a  morte  tirou- 
Ibe  està  protec9Sò,  tendo  por  effeiio  de  grave  doenja  de  regressar  & 
Escossia.  Em  1523,  tendo  uma  esquadra  franceza  feito  um  desembarque 
nas  costas  da  Escossia,  Buchanan  correu  &s  armas  com  os  highlanders, 
adoecendo  outra  vez,  em  consequencia  do  rigoroso  inverno.  Na  conva- 
lescenza, relacionou-se  com  o  celebre  professor  Jo2o  Maior,  que  o 
trouxe  para  Paris  em  1534,  onde  se  manifeatou  centra  as  doutrinas 
do  Scholasticismo,  adherìndo  ao  movimento  religioso  iniciado  por  Le- 
fevre  d'EtapIes.  Sob  as  mais  duras  privaySes  Buchanam  completou  ao 
firn  de  dois  annos  os  estudos,  recebendo  o  barrete  de  Mestre  em  Ar- 
tes,  e  pela  sua  crescente  reputazSo  mereceu  entrar  corno  regente  de 
Grammatica  para  o  Collegio  de  Santa  Barbara,  cargo  que  occupou  du- 
rante tres  annos.  Foi  aqui  que  André  de  Gouvéa  conheceu  o  seu  alto 
valor.  Contractado  comò  preceptor  de  um  joven  conde  ^scossez,  vol- 
tou  i  patria,  sendo  escolhido  por  Jacques  v  para  dirìgir  a  educafSo 
de  um  filho  naturai.  A  sua  perfei(Só  na  metrica  latina,  e  uma  tenden- 
cia  especial  para  o  epigramma,  amotinaram  contra  elle  a  raiva  dos  fra- 
des  franciscanos,  por  causa  dos  poemetos  saQrricòs  Somnium  e  Fran- 
€Ìscanu8,  Perseguido  pelo  odio  do  cardeal  Beatone,  fugiu  para  Inglater- 
ra,  d'onde  passoa  segunda  vez  para  Franza;  foi  n'esta  situasse  que 
André  de  Gouvéa  o  encontrou  em  It^aris  e  o  contractou  comò  professor 
para  o  Collegio  de  Guyenne.  Em  Bordéos  contriahiu  amisade  com  os 
celebres  professores  que  levaram  aquella  institui^Zo  £  maior  celebri- 


* 


1  Qanlliear,  Op.  eit,,  p.  89.  ,  j 


520  HISTORIÀ  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  COIMBRA 

dade,  merccendo  a  mais  intima  affeÌ92lo  de  Elie  Viuet^  que  conser* 
vou  até  aos  ultimos  dias  da  vida.  Na  coltura  da  poesia  latina  fug^u- 
Ihe  espontaneamente  a  musa  para  o  epigramma,  levantando  centra  ai 
o  odio  dos  dominicanos  e  dos  frades  de  Santo  ÀntSo.  As  persegui* 
(Ses  religiosas  exerceram-se  em  Bordéos  pelas  fogueiras  inqaisitoriaes, 
e  quando  Buchanan  julgava  ter  encontrado  um  asylo  nas  terras  do  pae 
de  Montaigne^  soube  que  o  cardeal  Beaton  o  denunciara  ao  arcebispo 
de  Bordéosy  senhorio  directo  d'essas  terras.  Foi  por  1541,  no  arder 
mais  selvagem  das  perseguigSes,  que  Buchanan  fugiu  para  Paris,  onde 
em  1542  o  foi  encontrar  Elie  Vinet,  que  deixara  o  Collegio  de  Out/etme 
por  motivo  de  doen9a.  Guerente  tenciooava  tambem  ausentar-se  do 
Collegio,  mas  revogou  esse  intento.  Quando  André  de  Gouvèa  foi  a 
Paris  completar  o  quadro  dos  regentes  para  o  Collegio  real  ahi  encon- 
trou  George  Buchanan,  que  acceitou  o  convite  de  vir  com  elle,^}ara 
Portugal,  bem  comò  seu  irmSLo  Patricio  Buchanan.  No  Collegio  de 
Guyenne  existia  um  regente,  Mestre  JoSo  Talpin,  que  emprestara  a 
André  de  Gouvéa  seis  escudos  de  ouro,  e  quo,  ao  saber  da  viagem  do 
Principal  a  Lisboa,  Ih'os  reclamara  instante  tnente;  a  divida  era  de 
1540,  e  André  de  Gouvéa  afiBrmava  jà  o  ter  embolsado  d'ella.  '  Jo2o 
Talpin  enfureceu-se  e  abandonou  o  Collegio.  Està  circumstancia  nSo 
deve  passar  desapercebida,  porque  JoSo  Talpin,  que  veiu  a  ser  conego 
theologal  de  Périgueux,  foi  um  dos  accusadores  de  Buchanan  &  Inqui- 
sigSo  de  Lisboa,  e  promoter  da  perseguij&o  que  soffreram  oa  meatres 
francezes,  denunciando-os  comò  lutherÌEinos. 

A  pleiada  brilhante  dos  professores  do  Collegio  de  Guyenne  per* 
tencia  tambem  Elie  Vinet,  chamado  em  1539  por  André  de  Gouvéa. 
D'elle  escreve  Gaullieur:  cDe  todos  os  professores  eminentes  que  en- 
sinaram  no  Collegio  d'està  cidade,  neiihum  ficou  mais  popular;  o  que 
se  explica  facilmente,  porque  Vinet  passou,  por  diversas  vezes,  um 
quarto  de  seculo  em  Bordéos,  sondo  um  dos  seus  melhores  historìa* 
dores  e  am  dos  primeiros  archeologos  que  tiveram  a  idèa  de  interro- 
gar OS  restos  do  esplendor  passado,  para  mostrar  i  posteridade  qual 
fòra,  no  tempo  dos  Cesares,  a  importancia  e  a  riqueza  de  Bnrdigala.»* 
Os  tra90s  biographicos  de  Vinet  q2o  sSo  menos  pittorescoa  do  q^ue  os 
do  seu  intimo  amigo  Buchanan;  frequentou  a  Univeraidade  de  Poitiers 
&  custa  do  ensinò  particular,  em  que  se  tornou  distincto,  alcan9àiido 


1  Oaullieor,  Op.  eii.,  p.  169. 
>  IbideIx^  p.  137. 


0  COLLEGIO  REAL  521 

f>or  perseverantes  economias  os  recursos  para  ir  continuar  os  seus  es- 
tados  em  Paris,  onde  apprendeu  o  Grego  e  as  Mathematicas.  Quando 
Teiu  para  o  Collegio  de  Quyenne  jà  tinha  regentado  em  Santa  Barbara, 
segundo  as  memorias  de  Bellet,  o  que  é  plausivel  pela  circnmstancia 
do  convite  de  André  de  Oouvèa.  Em  Paris,  depois  de  ter  deixado  Bor- 
déo8  por  doen9a,  publicou  urna  tradncgSo  do  Tratado  da  Sphera,  de 
Froclusy  que  servia  de  compendio  nos  recentes  estudob  da  Mathematica. 
Apontaremos  mais  algumas  particularìdades  da  sua  vida,  depois  que  as 
perseguÌ98cs  de  Coimbra  o  fizeram  regressar  a  Franfa. 

Kicoldo  de  Grouchj,  que  La  Croix  du  Maine  caracterisou  coma 
^grande  philosopho  e  muito  versado  no  conhecimento  das  sciencias  hu- 
manasp,  era  naturai  de  Rouen,  onde  nascerà  em  1510.  D'elle  escreve 
-Òaullieur:  «Era  effectivamente  um  professor  de  grande  merito.  De- 
pois de  ter  terminado  de  um  modo  distinctò  os  estudos,  e  conquistado 
gloriosamente  os  seus  grios,  foi  para  Paris,  onde  durante  um  anno, 
pouco  mais  ou  mcnos,  professou  no  Collegio  de  Santa  Barbara,  André 
de  Gouvèa,  habil  em  discemir  o  valor  particular  de  cada  um  dos  pro- 
fessores  que  o  rodeavam,  convidou  Grouchy  a  acompanhal-o  para  Bor- 
<[éos,  0  que  elle  acceitou  promptamente.  Foi  um  dos  que  mais  contri- 
buiram  para  estabelecer  a  justa  reputagSo  de  superioridade  que  teve 
«durante  muito  tempo  o  Collegio  de  Guyènne.  Segundo  o  juizo  do  faisto- 
riador  de  Thou,  Nicolào  Grouchjr  era  homem  de  rara  erudito;  foi  o 
primeiro  que  se  servlu  da  lingua  grega  para  explicar  e  commentar 
Aristoteles,  em  uma  època  em  que  em  Franca  ainda  havia  poucos  hel- 
lenistas  notaveis.  Gouvéa  cohfiou-lhe  a  cadeira  de  Dialectica,  que  oo* 
cupou  até  1547,  isto  é,  durante  treze  annos,  com  um  grande  exito. 
Orouchj  resumiu  as  suas  li^Ses  em  um  livro  que  imprimiti  com  o  ti- 
tulo  de  Praeceptiones  dialecticae,  que  Elie  Vinet  considerava  corno  uma 
obra  prima  dò  genero,  p  ^  GauUieur  mostra  a  importancia  dos  seus  cur- 
^os:  cN2o  se  pode  apresentar  uma  melhor  prova  do  successo  extra- 
ordinario que  teve  o  ensinò  philosophico  do  joven  professor  rouennes. 
Um  certo  numero  de  estudantes^  attràfaidos  pela  justa  nomeada  das 
«uas  liySeSi  deixaram  a  Universidade  de  Paris  para  vir  a  Bordéos  oa- 
^r  08  eruditos  commentarios  sobre  Aristotéles,  que  Grouchy,  por  uma 
innovagSo  andaz  que  nSo  teve  imitadores,  dictava  na  lingua  do  proprie 
texto.B^  Grouchy  abra^ara  secretamente  as  doutrinas  religiosas  do  pro- 


t  Op.  di.,  p.  90. 
<  Ibidem,  p.  102. 


522  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

teetantismo.  Montaigne  cita-o  corno  eeu  meetre.  Grouchy  conservou 
urna  profonda  amisade  pelo  sea  patrìcio  Guillaume  de  Guérente,  que 
viera  tambem  para  o  Collegio  real  de  Coimbra;  eecreve  Quicheratr 
cGrouchy  e  Guérente^  quer  corno  alumnos,  quer  corno  profe88orc8|  ti- 
nham  passado  por  Santa  Barbara;  a  ambos,  normandos  e  gentis-homens^ 
unia-OB  urna  amisade  exemplar,  em  que  a  communhSo  do  talento  era. 
o  prìncipal  la9o:  Guérente  humanista,  Grouchy  philosopho  e  antiqua- 
rio. Os  8CU8  nome8  bSo  inseparaveis  em  todo8  08  livroB  em  que  8e  trata 
d'elles.»*  Guérente  exercera  prìmeiramente  a  Medicina,  ante8  de  se 
entregar  ao8  e8tudo8  das  Humanidades;  André  de  Gouvéa,  convidanda 
Grouchy  para  Bordéo8  e  depoÌ8  para  Coimbra,  nSo  podia  deixar  de 
contar  tambem  com  Guérente. 

Um  outro  profeBBor,  Arnold  Fabricio,  naturai  de  Bazas,  que  An- 
dré de  GouYéa  contractara  para  o  Collegio  de  Guyenne,  acompanhou-o* 
tambem  para  Portugal.  Como  diz  Gaullieur:  tFabrlcio  pa88ava  por  um- 
do8  primeiro8  oradore8  do  seu  tempo;  a88im  comò  Britannus  e  o  im- 
pre88or  lyonez  Scba8tiSo  GrypfaiuB,  foi  amigo  do  deagra^ado  e  tZo  in- 
tereB8ante  Etienne  Dolet,  que  tinha  abra9ado  a8  idéas  da  Reforma,  e 
que  foi  uma  daa  victimas  do  fanatÌ8mo  cego  d'està  època,  t'  Arnold 
Fabrìcio  deixou  Portugal  por  falta  de  Bande,  porventura  antevendo  as 
perBeguifSes  que  se  tramavam  centra  ob  profesBorcB  do  Collegio  real.  ^ 
Na  Vida  de  Buchanan  falla-8e  da  amisade  que  unia  CBtcB  profcssorcBr 
lErant  enim  plerique  per  multoB  annoB  summa  benevolentiaconjuncti...» 

Quatro  mezes  depoÌB  da  in8talIa92o  do  Collegio  real  fallecia  em 
Coimbra  McBtre  André  de  Gouvéa,  em  9  de  junho  de  1548.  Qiuche- 
rat  diz  que  elle  exprimira,  antcB  de  morrer,  o  deaejo  que  Diogo  de 
Teive  Ihe  BuccedeBBC  no  principalato  em  Coimbra,  e  JoSo  Gèlida  em 
BordéoB.  Na  abertura  dos  OBiudoB,  no  primeiro  dia  de  outubro  d^cBse 
anno,  Belchior  Belliago  alludiu  na  Ora92o  de  Sapientia  a  eate  deplora- 
vel  acontecimento  :  «hnnc  nobiB  tristia  et  importuna  fata  hac  ultima 
aestate  eripuerunt,  et  illiuB  morte  magnum  litterarum  omamentum  ab» 
tolerunt.  »  ^  André  de  Gouvéa  foi  Bepultado  no  moBteiro  de  Santa  Cruz^ 
a  Bua  obra  ficou  incompleta  e  sujeita  aoB  aBsaltOB  da  intriga  dos  Jesui- 
taB,  que  conspiravam  centra  ob  mestres  francezcB,  fazendo  valer  aa 


1  HiHoirt  de  SainU-Baròe,  t,  i,  p.  229. 
^  Hit(4nre  du  Collège  de  Gyyenwtf  p.  100. 
3  iUciem,  p.  245. 

^  De  diiciplinarum  omuMfm  Mtmtiii  ad  Umveream  Acad.  Conimbr.  (Ap«  Bar- 
iMMa  Ifachado,  BiU.  Lmitana.) 


0  COLLEGIO  REAL  523 

BUBpeitas  de  protestantismo  centra  e^es.  Belchior  Belliago  nSo  podia 
esquecer-Be  dos  epigrammas  de  Buchanan  e  do  rigor  disciplinar  de 
Diogo  de  Teive;  foi  effectivamento  este  o  primeiro  professor  accuaado, 
Bendo  preso  na  InquisigSo  desde  1550  a  1551.  JoSo  Talpin,  e  Ferre- 
riu8|  que  residia  no  mosteiro.  de  Kinlorsi  na  Escossia^  carregaram  com 
as  Buas  dela^Ses  a  accusa^So  centra  Buchanan.  NSo  eram  ob  epigram- 
mas  0  que  se  allegava  centra  o  celebre  professor;  a  questuo  da  Gra$a 
efficiente,  que  os  Jesuitas  tanto  combateram,  aqui  apparece  conio  um 
pdmo  de  discordia,  porque  Buchanan  era.  entSo  accusado  de  abra9ar 
as  opiniSes  de  Santo  Agostinho.  ^  Em  urna  carta  de  Martim  Gonsal* 
VCB  da  Camarai  de  21  de  maio  de  1570,  allude-se  a  estas  prisSes  dos 
mestres  francea^es:  «Os  Padres  da  Companhia  se  encarregaram  do  Coir 
legio  real,  em  tempo  em  que  alguns  do9  principaes  Mestres  d^eUeforam 
presos  na  Inqum^;  e  se  arreceiava  que  tambem  nós  o  viessemos  a 
Ber,  comò  discipulos  que  eramos  seus*»  Elle  e  o  irm2o  foram  uns  mi- 
seraveis  accusadores.  Fazendo  com  que  fossem  presos  por  heterodoxia 
as  tres  grandes  summidades  do  Collegio  real,  Buchanan,  Teive  e  JoSo 
da  Costa,  e  despedidos  Elie  Vinet,  Nicol&o  Grouchy  e  Guillaume  Gué* 
rente,  os  Jesuitas  conseguiram  annullar  lego  em  1550  a  importancia  da 
obra  de  André  de  Gouvéa  e  fundamentar  a  sua  preponderancia.  Se- 
gando Hamilton,  na  Demonstratio  Calvinianae  confusione,  o  proprio 
Cardeal-infante  D.  Henrique  dirigiu  os  interrogatorios  a  que  foi  sub- 
mettìdo  Buchanan,  e  tratou-o  oom  todo  o  furor  do  fanatismo.^ 

Diante  d'està  indigna  per8eguÌ92o,  em  que  jà  se  trabalhava  silen- 
ciosamente  em  1549,  Arnold  Fabrìcio  pretextou  o  CBtado  de  doen9a 
para  despedir-se  do  seu  cargo  no  Collegio  real  e  voltar  aos  àres  pa- 
trios;  Patricio  Buchanan,  informado  dos  rigores  da  InquisigSo,  fugiu 
de  Coimbra  e  foi  para  Paris  esperar  o  seu  amigo  Elie  Vinet,  que  em 
junho  de  1549,  jv^ìo  com  Guérente,  tambem  deixou  Portugal,  talvez 
despedidos  da  euBino  pelo  proprio  monarcha,  aterrrado  pelas  delagSea 
da  sua  heterodoxia.  Grouchy  foi  o  ultimo  a  partir  de  Coimbra,  nSo 


1  Na  defeza  de  Bachantn,  escripta  em  latim,  vè-se  comò  os  Jesuitas  de  Coim- 
bra Gonspiravam  na  sembra  centra  elle:  «De  bis  vero  qui  opot^oZì  vocabantar  non 
id  onmn  reprehendi  quod  pueroB  impabres  solicitarent  contra  morem  aliarum  re- 
Ilgionnm,  sed  alia  qoaedam  qoae  de  eis  jactabantar,  quarum  renim  querelas  ad 
Jaoobum  Gk>veanam  gymnaaiarcha  saepe  detuli  mi  que  in  vulgus  effudi.*  (Pro* 
cmo  do  Santo  Officio,  nJ"  6:469,  Àrclu  Nac). 

2  Por  ordem  do  Cardeal*infante  Inquisidor  geral^  datada  de  Evora  a  18  de 
dezembro  de  1551,  Buchanan  foi  solto  dq>oÌ8  de  ter  feito  abjnraf^  publica  e  es- 
lado  em  penitencia  n*am  mosteiro. 


524  HISTOBIA  DA  UN!V£RSIDADE  DE  COIMBRA 

tanto  pelo  amor  que  revelara  pelo  estado  da  lingua  e  litteratura  por- 
tngueza,  corno  por  se  achar  detido  para  um  processo  que  nSo  foi  por 
diante.  Quicherat  refere-se  &  persegui$2lo  de  Grouchy:  cEmquanto  a 
Grouchy^  tendo  querido  dar  aos  estudantes  de  Coimbra  urna  edi(2o 
latina  de  Aristoteles^  tomou  para  base  da  sua  traducgSo  a  que  o  be- 
nedictino  Joachin  Périon  publicara  em  Paris  annos  antes.  Era  obra  bem 
escripta,  maculada  porém  por  alguns  contrasensos,  que  Grouchj  cor- 
rigiu.  Um  exemplar  da  edigSo  portugueza  caiu  em  mfto  de  Vasconsàn, 
o  qual  propoz  a  Grouchj  que  reimprimisse  &  parte  a  Logica.  O  vo- 
lume appareceu  com  o  titulo  Aristotelù  Logica  eruditUmnis  ab  homini" 
hus  conversa.  Trazia  um  prefacio  de  Guérente,  em  que  se  prestava  ho* 
menagem  ao  talento  de  Périon;  porém,  corno  os  auctores  nSo  estSo 
^ispostos  a  concordarem  qué  se  enganaram,  mesmo  quando  os  louvam 
por  aquillo  em  que  andaram  bem^  Périon  melindrou-se,  berrou  por  toda 
a  parte  que  o  tinham  barbariaado,  e  para  se  vingar  abrìu  contra  Grou- 
chj um  tiroteio  de  folhetos  dififamatorios,  que  produziram  grande  ruido 
em  Portugal,  ruido  que  se  prolongou  ainda  depois  do  seu  regresso  a 
Fran9a.p  Grouchj  regentou  até  1551,  comò  se  infere  de  uma  prova  do 
Carso  de  Artes.  *  Depois  da  perseguigSo  dos  eminentes  professores  do 
Collegio  real  nSo  podemos  deixar  de  os  acompanhar  na  sua  partida, 
para  que  se  veja  que  cUes  continuaram  a  sua  missSo  gloriosa  fora  de 
Fortugal,  que  se  afundava  no  mais  deploravel  obscurantismo. 

Apoz  a  saida  de  Coimbra,  Nicol&o  Grouchj  partiu  para  a  Nor- 
mandia, demorando-se  na  parochia  de  La  Caùchie,  em  1551,  onde  con- 
tinuava a  trabalhar  nas  suas  Praeceptiones  dialecticae,  come^adas  em 
Coimbra  em  1547,  comò  se  infere  por  uma  carta  datada  de  setembro, 
^irigida  a  Guérente  e  a  Buchanan,  ex  domo  patema.  Em  1553  estava 
ainda  em  Normandia,  entreg^e  ìeio  estudo  do  direito  civil;  seu  visinha 
ò  visconde  de  Longueville,  tendo  visto  em  seu  poder  o  primeiro  vo- 
lume da  Historia  do  descobrimento  da  India,  por  Fem2k)'  Lopes  de  Cas- 
tanheda,  publicado  em  Coimbra  em  1551,  pediu-lhe  para  que  o  tradu- 
zisse  em  francez.  Effectivamente  a  traducfào  foi  publicada  em  Paris 
em  1553.  ^  A  actividade  litteraria  de  Grouchj  achou-se  asaim  desper- 


1  No8  LioroM  dos  Autos  e  Gràos,  de  1554,  a  fi.  8  i^,  aclia-se  o  assento  das'pro- 
Yas  do  carso  de  tr^  aÌDDOS,  quo  ouviram  a  Mestre  Nicol&o  Grouchj,  neceasartoa 
para  se  gradoarem  licendados  em  Àrtes,  Prei  Braz  de  CaiValho  e  Frei  Antonia 
Leal,  da  Ordem  do  Canno. 

^  UHiàtoirt  des  Inde»  de  Porlugalf  cofUenani  commenl  l'Inde  a  està  deseou- 
verte  par  le  commandemenl  du  Boy  Éimanuel  et  ta  guerre  qite  tei  càpOainès  Portm* 


0  COLLEGIO  RE  AL  525 

tada,  publicando  em  1554  em  Paris  o  tratado  De  Generatione  meteoro- 
logica, e  em  1555,  em  Veneza,  o  Hvro  De  Comitiis  Romanonim,  tSo 
consultado  por  Groevius  no  seu  l'hesaurus  Antiquitatum.  Depoìs  de 
1557  Grouchy  casou,  e  durante  as  persegui93es  religiosas  il  fui  eiTant,. 
corno  diz  de  Tbou,  perdendo  todos  os  Beus  livros.  Em  1567  deu  lifSos 
em  Paris,  com  grande  applauso,  regrcssando  com  sua  familia  em  1571 
para  a  Normandia.  Fundado  o  Collegio  de  La  Rochdle,  foi  convidado 
para  regcn^tar  urna  cadeira;  obedecendo  aos  pedidos  de  Colignjr^  Joanna 
d'Albert  e  de  seu  filbo  Henriqne  de  Navarra,  partiu  adoentado  para 
a  Rochella,  onde  falleceu  em  1572,  tres  dias  depois  da  sua  chegada.^ 

Durante  os  dois  annos  de  prisSo  que  soffreu  Buchanan  na  Inqui- 
8Ì9ao  de  Lisboa,  occupara-se  na  Paraphrasia  Psalmorum  Davidis  poe- 
tica; recobrada  a  liberdade,  em  1551,  partiu  para  Inglaterra,  onde  as 
perturbaQSes  politicas  o  nSo  deixaram  permanecer,  voltando  para  Pa- 
ris. Ali  se  demorou  até  1560,  voltando  outra  vez  para  a  Escossia,  sem* 
pre  occupado  em  trabalhos  pedagogicos,  jà  corno  preceptor  de  Maria 
Stuart,  jà  comò  reformador  das  Universidades.  Seguiu  a  causa  politica 
de  Jacques  Vi,  seu  antigo  discipulo.  Em  1582  ainda  escrevia  de  Es- 
cossia ao  seu  antigo  collega  Elie  Yinet,  recommendando-lhe  um  pro- 
fessor escossez;  contava  entSo  setenta  e  tres  annos,  e  presentia  a  morte 
proxima:  «Agora  so  penso  em  me  retirar  sem  ruido  e  morrer  socega- 
do,  porque  o  traete  com  os  vivos  n!to  convém  a  um  homem  que  se  con- 
sidera jà  comò  morto.»  Pouco  tempo  depois  Yinet  recebia  a  noticia  do 
fallecimento  de  Buchanan,  em  28  de  sctembro  d'esse  anno,  apoz  uma 
longa  existencia  de  lucta. 

Elie  Vinet  deixou  Coimbra  em  1549,  e  chegara  a  Bordéos  em  2 


galois  ont  menée  pour  la  conqueete  d^icelle.  Paris,  cbez  Michel  Vasconsan,  1553» 
Gaullienr  cita  mna  outra  edi^ao  d'este  mesmo  anno,  de  Anvers,  de  Jehan  Stelico, 
e  mais  duas  edi^es  de  Paris,  d^  1576  e  1581.  Lé-sc  em  frente  da  primeira  edÌ9^: 
«Pierre  Delamarre,  vicomte  du  ducbé  de  Longueville,  au  lecteur,  salut. . .  Ce  qui 
a  esté  cause  que  sachant  que  Monsieur  de  Grouchy,  nostre  voisin  et  singulier 
ami,  avoit  depuis  son  retour  de  Portugal  receu  un  livre  de  VHUtoire  de  Vlnde,. 
deseùuverte  par  les  Portugalois,  je  Taye  fort  affectueusement  prie  de  desrober  quel- 
ques  heures  à  son  estude  de  droit  civil,  qu*il  s'cstoit  pour  lors  remis  à  reyoir,  pour 
nous  mettre  en  fran9oy8  ce  premier  livre  qu'il  avoit  entro  ses  mains,  tant  à  fin 
que  ses  amys  puissent  jouir  du  bien  qu'ilz  ne  pouvoyent  sans  ce  moyen  avoir, 
que  à  fin  qu*il  se  fiet  par  ses  escripts  fran^oys  aussi  bien  cognoistre  comme  il  avoit 
faict  naguerre  par  la  traduction  et  correction  latine  d'Aristote.» 

1  Todos  estes  dados  sSo  resumidos  do  importante  trabalho  de  Gaullienr^ 
Hiitoire  du  Collège  de  Crugeime,  p.  210  a  215. 


526  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  COIMBRA 

de  julho  d'esse  anno,  para  visitar  o  seu  amigo  Gèlida,  entSo  prinoipal 
no  Collegio  de  Guyenne.  No  prefacio  da  obra  La  Manière  de  fabriquer 
les  solaires  et  cadrans  conta  elle:  «Eu  estava  em  Portugal,  no  anno  de 
154^,  quando  a  Gabella  causou  o  levantamento  da  communa  da  nossa 
Guyenne.  Regressei  no  anno  seguinte,  e  cheguei  a  Bordéos  no  segando 
dia  de  julho,  que  eu  achei  muito  triste  e  um  silencio  desacostumado 
na  pobre  cidade.»  Vinet  referia-se  ao  effeito  da  repressSo  produzida 
pelos  dois  exercitos  do  condestavel  de  Montmorency  e  do  dnque  d' An- 
male,  que  tinham  dominado  a  revolta  contra  o  imposto  do  sai,  fazendo 
terriveis  execugSes  e  levantando  pesados  impostos  de  guerra.  Escreve 
Gaullieur  :  cEste  encontro  de  Elie  Vinet  e  de  Gèlida,  corno  os  conso- 
larla a  ambos!  tantas  cousas  tinham  succedido  durante  a  sua  separaffto. 
Vinet  contar-lhe-hia,  ao  seu  antigo  collega,  os  ultimos  momentos  de  An- 
dré de  Gouvea.  Gèlida  fez-lhe  a  narrativa  de  todas  as  suas  trìbula- 
98es,  pedindo-lhe  para  retomar  o  seu  legar  mais  tarde  no  Collegio  de 
Gtiyenne.  Vinet  assim  Ihe  prometteu,  e  partiu  para  Paris...»  Ali  rece* 
beu  uma  carta  de  Gèlida,  de  setemhro  d'osse  anno,  dando-lhe  noticia 
do  apparecimento  da  peste  em  Bordéos  ;  e,  obedecendo  aos  seus  instan- 
tes  pedidos,  Vinet  foi  em  prìncipios  de  Janeiro  de  1550  tomar  conta 
da  classe  de  Mathematicas  no  Collegio  de  Guyenne,  onde  foi  recebido 
com  enthusiasmo.  Elie  Vinet  succedeu  em  fevereiro  de  1555  a  Gèlida 
no  prìncipalato  do  Collegio;  em  carta  de  26  de  marfo  de  1556,  Arnold 
Fabricio  felicitou-o  por  està  nomeagSo,  alludindo  i  probidade,  erudi- 
sse e  facilidade  de  trato  que  o  distinguiam  para  bem  desempenhar  am 
tal  cargo.  O  partido  clerical  conseguiu,  por  uma  ordenanga  real,  que 
puzessem  em  seu  legar  o  fanatico  Mongelos,  que  ahi  se  conservou  até 
1562.  No  meio  das  luctas  religiosas,  Vinet  esteve  refugiado  desde  1559 
em  Saintonge,  onde  se  entregou  aos  estudos  arcbeologicos.  Mongelos 
reconheceu  a  usurpasSo  do  prìncipalato,  %eaào  este  dado  outra  ves  a 
Vinet  em  29  de  julho  de  1562.  Escréve  Gimlliettr,  relatando  as  diffi- 
culdades  dp  governo  do  Collegio  :  e  A  sua  actividade  era  estrema,  e  sem 
fallar  das  sua9  ligSes,  que  eram  previamente  preparadas,  dividia  o 
tempo  entre  o.estodo  das  Mathematicas,  a  annotasSo  crìtica  e  a  oor- 
rec93o  dos  differente»  testo»  de  Ausonio  e  aa  investigasSes  archeolo» 
gicas,  que  se  alliavàm  tSo  bem  ao  Commentario  que  elle  preparava  so* 
bre  0  poeta  bordalez.*  0  governo  de  Elie  Vinet  foi  um  periodo  de  es- 
plendor para  o  Collegio  de  Ouyenne;  os  Jesuitaa  tambem  tentaram 


»  Op.  dt,  p.  277, 


0  COLLEGIO  REAL  527 

^poderar-se  d'elle,  mas  Balvou-o  a  popalaridade  e  respeito  par  Vinct,^ 
que  fòra  eleito  quinze  vezes  reitor  da  Universidade.  Publicou  em  1583 
a  Schda  Aquitanica,  em  que  relatou  o  methodo.  pedagogico  de  André 
•de  GouvSa;  em  1585  a  peste  tornou  a  devastar  Bordéos,  e  ao  reabrir 
o  Collegio  de  Guyenne  Vinet  fai  atacado  repentinamente,  fallecendo  em 
14  de  maio  de  1586.»^ 

A  tempestade  levantada  contra  o  Collegio  real  era-Ihe  tambem 
«oprada  pelos  lentes  que  pertenciam  ao  mosteiro  de  Santa  Cruz,  os 
quaes  tinham  estudado  em  Paris;  vé-se  portante  que  a  entrega  repen- 
tina dos  dois  CoIIegios  de  Sam  Miguel  e  de  Todos  os  Santoa  para  n'el- 
les  se  installar  o  Collegio  real  provocoa  este  antagonismo,  que  em 
Ooimbra  se  conbeceu  nos  dois  bandos  ou  parcialidades  com  os  nomea 
de  parisienses  e  bordàlezes.  Mestre  Pero  Henriques,  quo  lèra  nos  Col- 
legios  de  Santa  Cruz,  era  um  dos  corypheos  na  lucta  contra  os  horda- 
lezea,  corno  o  reconheceu  o  Doutor  Diego  de  Teive  nas  contradictas 
que  apresentou  quando  estava  no  carcere  da  Inquisitilo  em  Lisboa. 
Com  a  coopera9llo  dos  Apostolo»  (os  Jesuitas)  o  bando  dos  parisienses 
ameafava  publicamente  de  langar  fora  do  Collegio  os  lentes  que  tinham 
vindo  de  Bordéos.  Coadjuvou-os  a  intriga  jesuitica,  explorando  a  an- 
tiga  rivalidade  que  existiu  entre  o  Collegio  de  Santa  Barbara,  de  Pa- 
ris, e  o  Collegio  de  Chiyenne,  de  Bordéos.  Quando  André  de  Gouvèa 
acceitou  o  principalato  de  Guyenne,  seu  tio  o  veiho  Doutor  Diego  de 
Gouvéa  enfureceu-se  por  entender  que  isso  enfraquecia  a  sua  institui- 
$3o;  e  nos  impetos  do  seu  caracter  ferrenho  e  intransigente,  comò  se 
sabe  pelo  depoimento  de  Diego  de  Teive,  chegou  a  accusar  o  sobrinho 
de  lutherano.  Os  parisienses,  mantendo  a  rivalidade  contra  os  borda- 
lezes,  obedeciam  &  ImpressSo  incutida  por  Diego  de  Gouvèa,  tmuy  ve- 
hemente  em  suas  paixdes  epertinaz  no  que  hua  vez  encaixou  na  cabegai^y 
comò  o  relata  Diego  de  Teive.  Formavam  o  grupo  dos  parisienses  os 
lentes  do  proprio  Collegio  real,  que  jà  estavam  em  Portugal  quando 
chegou  Mestre  André;  taes  eram  Mestre  Pedro  Henriques,  Belchior 
Belliago,  Mestre  Gongalo,  Manuel  Thomaz,  Mestre  Jo2o  Femandes  e 
Ignacio  de  Moraes.  Comprehende-se  comò  Belliago  se  atiraria  contra 
OS  bordalezes;  quando  frequentava  o  Collegio  de  Santa  Barbara,  em 
Paris,  OS  condiscipulos  chamavam-lhe  o  Judeu,  por  ser  muito  forreta^ 
ou  agarrado  ao  dinhetro. 


1  Op.  cU.,  p.  297. 
<  Ibidem,  p.  363. 


528  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

Buchanan  fizera  a  Belliago  om  Epigramma,  que  vem  no  Endecc^ 
syUabum  liher,  sobre  a  sua  alcunha: 

Belleago  cnncfas  tractat  artes  coinmode, 

Has  praeter  iinaB,  quas  docet, 
Nec  foeneratur  alter  ilio  doctior, 

Ncc  caupo  quiaqaam  argutior. 

Belliago  nZo  deìxaria  de  Tingar-se,  lembrando  os  nomes  dos  ini* 
migos  pesBoaes  de  Buchanan,  Joio  Talpin  e  JoSo  Ferrarius,  os  quae» 
opportunamente  apparecem  depondo  por.  escripto  contra  o  grande  hu- 
manista  no  processo  que  Ihe  instaurou  a  Inquisì  9&0  de  Lisboa.  Eni 
Coimbra  continuou  Belliago  a  exercer  o  vicio  da  usura,  e  Diego  de 
Teive,  defendendo-se  contra  as  suas  perfidas  dela98es  ao  Santo  Offi- 
cio, insiste  sobre  a  sua  negligencia  no  curso  que  regia  no  Collegio  real, 
occupando-se  principalmente  em  negocios  da  compra  e  venda  de  ca- 
vallos.  Belliago  foi  compensado  pelo  esforyo  da  sua  intriga,  sendo  no- 
meado  para  reger  uma  cadeira  de  Theologia;  o  torri vel  fanatico  Car- 
deal-infante,  que  era  entSo  Inquisidor  goral,  tanta  seguranga  tinha 
niello  que  0  nomeou  seu  coadjutor  e  bispo  de  Fez.  Foi  uma  das  vieti- 
mas  da  peste  grande  de  1569. 

A  Belchior  Belliago  succedeu  na  regencia  da  cadeira  de  Huma- 
nidades  Ignacio  de  Moraes,  que  foi  cncarregado  de  fazer  o  discurso 
de  recep92o  na  visita  de  D.  JoSo  ili  à  Universidade.  Vé-se  que  es- 
tava nas  gra9a8  do  partido  da  reacySo. 

D.  JoSo  III,  por  carta  passada  em  21  de  Janeiro  de  1541,  convi- 
dara  o  distincto  humanista,  que  ent2o  era  um  dos  afamados  alumnoa 
da  Universidade  de  Paris,  Ignacio  de  Moraes,  para  vir  reger  a  cadeira 
de  (Trammahca  na  Universidade  de  Coimbra;*  regeu-a por  pouco  tempo, 
passando  pouco  depois  para  a  cadeira  de  Poesia  latina,  mais  em  har- 
monia  oom  a  sua  vasta  erudÌ9&o.  Os  dois  documentos  que  existem  no 
Archivo  da  Universidade  icerca  d'està  nomeafSo  tSm  a  importancia 
de  nos  indicarem  as  horas  da  aula  e  0  salario:  cEu  elRei  fago  saber 
a  vós  padre  rector,  lentes,  deputados  e  conselheiros  da  minha  univer- 
aidade  de  Coimbra  que  eu  hei  por  bem  e  me  praa  que  Ignacio  de  Mo- 
raes lea  nessa  universidade  uma  cadeira  do  poesia  por  tempo  de  um 
anno  que  come9arà  do  primeiro  dia  de  outubro  que  vem  d'este  anno 
presente  de  1546  em  diante  a  qual  cadeira  lerà  duas  horas  cada  dia 


1  Barbosa  Macbado,  Bihlioiheca  Luzitana, 


0  COLLEGIO  REAL  529 

urna  pela  manhft  e  outra  i  tarde  em  que  lerà  arte  e  os  auctores  qne 
Ihe  forem  ordenados  pelo  consellio  do  Rector  e  conBelheiroB  e  bavera 
com  ella  sessenta  mil  reis  de  salario  pelo  dito  anno  que  Ihe  vós  man- 
dareis  pagar  no  recebedor  das  rendas  das  escolas  às  ter9a8  segundo 
ordenanya  d'ellaB  e  este  nSo  passarà  pela  cbancelaria.  JoSo  de  Seixas 
o  fez  em  Santarem  a  30  de  setembro  de  1546.  Manoel  da  Costa  o  fez 
escrever  e  Antonio  Martins  escriySo  do  conselho  o  tresladei  do  pro> 
prie.»  Com  està  carta  de  provisSo  foi  mandada  ordem  de  pagamento 
ao  recebedor:  «Eu  ElRei  mando  a  vós  Nicoiau  LeitSo  recebedor  das 
rendas  da  universidade  de  Coimbra  que  deis  e  pagueis  a  Ignacìo  de 
Moraes  vinte  mil  reis  por  tempo  de  um  anno  que  comegarà  do  pri- 
meiro  dia  d'outubro  que  vem  deste  anno  presente  de  1546  em  diante 
OS  quaes  Ihe  dareis  e  pagareis  às  terfas  do  dito  anno  lendo  nessa  uni- 
versidade 0  dito  anno  uma  cadeira  de  poesia  segundo  leva  por  minha 
provìsSo  e  iste  alem  dos  sessenta  mil  reis  do  salario  que  Ihe  com  ella 
ordenei  pelo  dito  anno  e  por  este  com  seu  conhecimento  e  certidSo  do 
rector  de  comò  le  a  dita  cadeira  vos  serSo  os  ditos  20,000  rs  levados 
em  conta.  JoSo  de  Sexas  o  fez  em  Santarem  a  30  de  Setembro  de  1546* 
E  este  nSo  passarà  pela  cbancelaria.  Manoel  da  Costa  o  fez.  Antonio 
Martins  escriv2o  do  Conselho  o  trasladei  do  proprio.»  ^  Moraes  era  ad- 
mirado  pelos  humanistas  do  seu  tempo,  Jeronymo  Cardoso,  André  de 
Resende,  Antonio  Cabedo,  Fedro  Sanches  e  Manuel  da  Costa. 

A  campanha  dos  Jesuitas  centra  o  Collegio  redi  era  surda;  empre- 
gavam  todos  os  melos  para  Ihe  raptarem  os  alumnos,  provocando-lhes 
apprehensSes  de  escrupulos,  que  Bordéos  estava  minada  de  heresias 
lutheranas,  e  que  se  achavam  infectos  todos  os  que  d'ali  vinham.  E  ha* 
bilmente  e  laboriosamente  iam  organisando  os  fios  de  um  complicado 
trama  junto  dos  inimigos  pessoaes  dos  mais  celebres  lentes  do  Collegio 
reai,  aos  quaes  se  pediram  depois  depoimentos  esmagadores,  ditados 
pelo  odium  theologicum;  assim  vieram  a  accumular-se  centra  elles  os 
testemunhos  terriveis  dos  antigos  regentes  expulsos  de  Bordéos,  Mes- 
tres  Jean  Talpin,  Antoine  Langlois,  Antoine  Ledere,  Jean  Ferrarius, 
Mongelos  e  Susaneo.  Em  Fortugal  eram  espiados  os  lentes  sobre  as 
conversas  que  tinham,  os  livros  que  liam,  e  os  manjares  que  comiam; 
assim  vèmos  os  termos  do  testemunho  de  Martim  Oon^alves  da  Camara, 
jurando  que  vira  da  sua  janella  os  tres  lentes  George  Buchanan,  Diego 


1  Pablicados  pela  primeira  vez  pelo  dr.  Simoes  de  Castro,  no  opusculo  El<h 
giù  de  Coimbra  tm  vereoè  latinos  por  Ignaeio  de  Moraes,  p.  7.  Coimbra,  1887. 

XX8T.  UH.  34 


530  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

de  Teive  e  Doutor  Jo2o  da  Costa  cearem  em  urna  qainta  oq  aexta  feira 
de  endoen9a8|  da  primeira  quaresma  que  passaram  em  Coimbra;  e 
seu  irmSo  Raj  Gon^alves  da  Camara  jorava  que  Joào  dii  Costa  dizia 
ser  doente  para  corner  carne  em  dias  defezos,  sendo  sempre  bem  dis- 
posto. Ao  mesmo  tempo  tentava  envolver  Mestre  Guilherme  Gaérente, 
a  quem  imputava  ter  dito  que  tao  peccado  era  furtar  urna  penna  corno 
trinta  ou  quarenta  moedas. 

Para  completar  o  plano  do  assalto  centra  o  Collegio,  prendendo- 
Ihe  08  lentes  mais  afamados  nos  carceres  do  Santo  Officio,  e  disper- 
sando  os  restantes,  aproveitaram  o  despeito  do  Doutor  Diego  de  Gou- 
vSa,  conego  em  Lisboa,  e  sobrinho  querido  do  doutor  velho,  desde  que 
tivera  de  entregar  o  governo  do  Collegio  reci  ao  Doutor  Jofto  da  Costa. 
Persuadiram-n'o  que  està  substituijSo  fóra  provocada  pelos  mestres  firan- 
cezes;  tanto  bastou  para  ir  fazer  uma  denuncia  centra  elles  ao  Car- 
deal-infimte  D.  Henrique,  Inquisidor  geral,  que  ordenou  immediata- 
mente um  inquerito  ao  Licenciado  Braz  de  Alvide,  em  Paris,  em  17  de 
outubro  de  1549,  e  ao  Doutor  Ambrosio  Campello  a  in8taura93o  do 
processo  na  InquisÌ9So  de  Lisboa,  em  18  de  outubro  de  1550,  onde  jA 
estavam  presos  os  tres  lentes  George  Buchanan,  Diego  de  Teive  e  JoSo 
da  Costa.  A  visita  de  D.  JoSo  m  a  Coimbra,  em  8  de  outubro  de  1550, 
e  o  singnlar  favor  com  que  tratou  os  apostoios,  bem  revela  que  o  for- 
9aram  a  està  viagem  officiai,  para  apagar  a  impressfto  da  monstmosa 
bmtalidade  oom  que  foram  presos  aquelles  sabios  lentes,  e  do  descre- 
dito em  que  lan^saram  o  CoUeffio  real, 

Transcrevemos  em  seguida  as  principaes  declara^Ses  que  Diego 
de  Teive  apresentou  em  sua  defetta,  quando  no  oareere  da  Inquisirlo 
de  Lisboa  Ihe  foi  apresentado,  em  18  de  outubro  de  1550,  o  libello  de 
accasarlo.  Essas  declararSes  tSm  por  veaes  a  importancia  de  ama  auto- 
Inographia,  em  que  Diego  de  Teive  desoreve  os  seus  primeiros  cata- 
dos,  OS  trabalhos  do  magtsterio,  as  relaoSes  com  os  sabios  eoropeus,  e 
mesmo  certos  tra^os  do  caracter  de  algumas  individualidades  histori- 
cas.  Transcrevemos  pela  oxcepotonal  importanoia  as  snas  proprias  pa* 
lavraa,  em  que  contraria  o  segointe  libello: 

«Bnteftde  provar,  que  ostando  elle  R.  (Diego  de  Teive)  no  Col- 
legio de  Bordeos,  no  tempo  quo  vier  em- vordade,  em  pratica»  que  teve 
com  pessoasy  zombava  e  esoanteoia  da  ReligiKo  e  das  ConstitaÌ98e8  da 
Igreja;  e  dizia  que  os  homens  ordenarS  a  coresma,  e  o  advento,  c8  n8 
corner  carne,  e  outras  viandas;  e  que  xpS  ordenara  n8  aver  d'aver  dif- 
feren^a  nos  comeres,  e  que  mandara  aos  apostolos  que  comesem  tudo 
0  que  Ihes  fosse  posto  diante;  e  que  ni  ordenara  as  ReligiSes  se  n8  os 


0  COLLEGIO  REAL  521 

homSs;  e  dizia  a  bua  certa  pessoa  de  Religiik),  por  que  se  apartava 
do  estado  commu,  e  com  muitas  rezSes  dissaadia  a  outra  pessoa  que 
hia  pera  entrar  em  ReligiSo,  que  n5  entrasse  nella;  e  dezia  tambem 
que  08  santos  erS  homens,  e  podii  errar,  e  que  a  Igreja  podia  errar, 
allagando  pera  iato  aquella  aatoridado' mt^Zto»  corpora  venerantur. .  •  • 
de  maneira  que  qnem  o  ouvia  se  escandalìzavai  e  non  podia  oatra  coosa 
crer  do  R.  senS  que  era  verdadeiro  lutherano. 

«Entende  provar  que  no  tempo  outrosi  que  elle  R«  esteve  em 
Fran9a,  conversava  com  pessoas  suspeitas  e  avidas  por  lutheranos,  e 
estava  em  sua  companhia;  e  de  suas  palavras  e  maneiras  de  viver,  se 
mostrava  suspeito  nos  errores  lutheranos;  pelle  que  era  tido  por  pes- 
aoa  que  sentia  mal  da  fee;  e  por  elio  se  apartava  da  sua  conversSo 
que  ho  por  tal  tinha;  e  nom  semente  do  sobredito  mais  ainda  era  in- 
famado  da  seita  dos  atheos,  que  tem  a  alma  dos  bomens  juntamente 
se  acabar  com  o  corpo  comò  a  das  alimarìas  irracionaes,  e  que  tem  os 
dileites  por  summo  bem;  e  conversava  elle  R.  com  verdadeiras  suspei- 
tas nesta  secta. 

«Entende  provar,  que  vindo  o  R.  de  Franga  para  este  Reino  quando 
ora  veo  pera  ler  em  Coimbra,  sondo  na  ooresma,  e  vindo  elle  R.  bem 
desposto,  comia  carne  sem  fazer  differenga  algua,  e  depois  de  estar  na 
dita  cidade  averà  ciuco  ou  seis  mezes  (o  tempo  que  vier  em  verdade) 
estando  elle  R.  sSo,  em  bua  sesta  feira  convidou  a  bua  certa  pessoa 
com  pedagos  de  perdiz. . . . 

«Entende  provar,  que  servindo  elle  R*  de  principal  no  Cotttgio 
real  de  Coimbra,  foy  aobade  bui  mogo  por  nome  Martinote  o3  bum  li» 
¥n>  lutherano  e  muito  prcjadieial,  que  se  intitala  ImtUui^  a^àiS  de 
CaÌFÌno  em  linguagem  francez;  e  por  elio  foy  o  mogo  trazido  oom  o 
livro  ao  R»  comò  princtpal;  e  sabendo  elle  R.  ser  o  livro  lutherano,  e 
o  mo^o  infamado  disse,  ho  leizou  ir  e  langou  fora  do  Coilegio.de  noite, 
sem  0  descobrir  nem  accusar,  antes  tomou  o  dito  livro  e  o  goardou  e 
o  teve  sempre,  e  quando  ora  fby  preso  Ihe  fey  achado  o  dito  livro  na 
sua  camara,  risoado  e  notado  em-mnitos  logares  auspeitOi};  e  assi  soube 
e  sentiu  de  outras  pessoas  sevem  lu&eranos  e  apartados  da  fee,. e  non 
oa  aoeosou  nem  detoubriu,  póllo  que  nom  ha.duvida  o  R.  aeri  apartado 
da  fee,  e  sintir  mal  della  e  das  cousaa  da  Igreja,  e  par  tal  dover  ser 
jttlgado*  De  que  he  pubrica  voz  e  fanut. 

CofUrariando: 

tEntende  provar  que  de  mogo  pequeno  ho  mandou  seu  pay  a  Pa> 
ris,  onde'  estudou  em  letras  e  virtudes,  e  foy  sempre  inclinado  a  vir- 

84« 


532  mSTORIA  DA  imrVERSIOADE  DE  COIMBRA 

tuo808  coBtnmeB  desde  sua  mocidade  até  agora  e  multo  axnìgo  de  DeoB, 
e  assi  em  Fraiì9a  corno  na  cidade  de  Coimbra  sempre  foi  avido  e  lido 
por  mnìto  bom  christSo,  ouvindo  sempre  missa  e  confessando-se  e  to- 
rnando 0  santissimo  sacramento  ao  tempo  que  manda  a  s.  m.  Igr.  da 
qoal  nimca  se  apartou,  nem  zombou  das  snas  ConstitoifSes  e  detenni* 
na^SeSi  mas  sempre  fez  autos  de  fiel  verdadeiro  e  catholico  christSo 
comò  he,  e  com  o  seu  bom  viver  e  obras  vertuosas  dea  sempre  bom 
exempro  a  hos  que  ho  viXo  e  conversavXo/ 

«Entende  provar  que  elle  reo  ensinou  muitos  annos  em  Franga  e 
nos  estudos  de  Coimbra  nas  artes  liberaes,  e  serviu  de  principal  e  so- 
principal  do  Collegio  recti,  no  qual  tempo  sempre  ensinou  seus  disci- 
pulos  bons  costumes  e  virtudes^  amoestando-lhes  muitas  vezes  que  se 
confessassem  e  tomassem  o  santissimo  sacramento,  e  assi  amoestou  os 
ouvintes  que  ao  Collegio  v8  ouvir  e  os  que  no  Collegio  moram  que  fe- 
zessem  o  mesmo  e  que  ouvissem  cada  dia  missa  e  que  rezassem  suaa 
horas  e  os  sete  salmos  e  se  encommendassem  a  nesso  senhor  tudo  com 
zollo  de  hos  fazer  vertuosos  e  amìgos  de  Deos,  e  todos  pubricamente 
iste  nelle  viam  e  conheciSo  e  ho  muito  estimavam  asy  por  ser  vertuoso 
e  catholico  christSo,  comò  tambem  por  ser  douto  nas  lettras  e  pollo 
grande  fruito  que  fazia  em  bem  ensinar  e  doutrìnar  seus  discipulos,  e 
por  tanto  nam  he  de  crer  que  disse  o  contendo  do  libello. 

cFrovarà  que  asy  em  Franga  onde  estudou,  leo  e  insinou  comò 
em  Coimbra  e  outras  partes,  sempre  conversou  pessoas  vertuosas,  re- 
ligiosas  e  nobres  e  amigos  de  Deos,  assi  portuguezes  comò  castelha- 
noB  e  francezes  sem  Ihes  saber  algum  erro  na  fee,  e  se  algum  bora 
conversou  algum,  o  que  nSo  he  em  sua  lembranga  mais  do  que  tem 
dito  aas  perguntas  seria  pera  o  reprehender  e  lego  se  apartar  delle,  e 
todos  OS  que  conhecerXo  o  R.  assi  o  dirSo  e  quam  bom  chrìstSo  e  ca- 
tholioo  sempre  fby. 

cEntende  provar  que  elle  teve  sempre  em  grande  estima  as  casaa 
e  ordens  da  ReligiSo,  em  tanto  que  desejou  e  ainda  deseja  servir  a 
Deos  em  religilo,  e  muitas  vezes  neste  reino  pediu  conselho  a  alga- 
mas  pessoas  que  sabiam  de  religiXo  em  que  ordem  se  meteria  pera  que 
milhor  e  mais  quieto  podesse  servir  a  Deos,  e  confessa  que  algamas 
vezes  em  praticas  que  teve  com  homens  seus  amìgos  zombou  de  fra- 
des  comò  foy  de  hu  sobrinho  do  bispo  de  Tangere  que  se  foy  metter 
frade  por  seu  tio  Ihe  nam  dar  um  gibZo  de  seda,  e  assi  doutros*  que 
entraram  em  religiSo  com  outras  taes  entengSes  que  herSo  hypocritas 
e  que  por  qualquer  leve  cousa  se  tomavam  a  tirar  da  religiSo,  e  que 
eram  as  cidades  cheas  destes  frades  e  asy  dos  que  seguiBo  as  cortes 


0  COLLEGIO  REAL  533 

dos  principes.  Disto  murmarava  com  outros  homens  e  nam  da  religiSo 
corno  qoalqner  homem  em  soa  casa  costuma  às  vezes  praguejar,  e  iato 
tudo  com  entenySo  de  verdadeiro  chrìatSo  e  nam  por  sentir  mal  das 
eousas  da  religifto  e  nossa  santa  fee  catholica;  e  qae  esteve  em  Fran9a 
perto  de  vinte  e  cinco  annos  e  sempre  conversoa  grandes  senhores  e 
pesBoas  christianissimas  sem  nonqua  se  presomir  delle  nenhama  falta 
na  nossa  santa  fee,  e  se  tal  fora  de  crer  he  qae  em  tanto  tempo  qae 
andoa  em  fVan$a  fora  accasado^  e  por  tanto  nam  he  de  crer  o  qae  se 
diz  no  libello. 
•  •••••••••••••••••••  ••••••••••••••••• •••••••••••••••••«•• 

cProvara  qae  o  Daqae  de  Bragan^a  Ihe  escreveo  qae  dicesse  a 
sea  irmSo  Dom  Theotonio  qae  estava  na  ordem  dos  Apostólos,  qae  se 
tornasse  pera  donde  saira,  e  elle  R.  Ihe  disse  da  parte  do  Daque  sea 
irmXo  comò  qaalqaer  bom  homem  e  catholico  fizera,  o  qae  Ihe  querem 
attribair  a  mal  sondo  saa  ten9So  boa;  e  confessa  qae  per  algamas  ve- 
ees  aconselhou  a  alg^ns  de  seas  discipalos  fidalgos  e  riqaos  qae  nam 
entrassem  nesta  religiSo  por  ver  a  maneira  qae  tinham  pera  os  levar 
a  dita  religifto  sabendo  qae  eram  riqaos  com  adala98es  e  a(agos,  vendo 
que  as  oatras  religiSes  prepoS  no  comego  trabalhos  e  asperezas,  e  oa- 
vindo  dizer  qae  està  Companhia  por  que  elles  assi  se  chamXo  nam  hera 
ainda  confirmada  pelo  santo  padre^  e  tambem  per  que  eram  mogos  o  que 
parecia  de  sua  idade  que  nam  saberiam  ainda  escolher  o  que  seria 
mais  de  sua  salva9lo,  e  o  que  disse  foj  por  asy  Ihe  parecer,  e  qual- 
quer  homem  bom  catholico  christSo  dissera  asy,  mas  sua  entenfam  nS 
foy  desestimar  a  religiSo. 

«Entende  provar  qae  he  pubrica  voz  e  fama  por  teda  cidade  e 
grande  parte  do  reino  que  està  desaventura  nam  Ihe  veo  senam  por 
mal  e  enveja  dalguns  seus  ìnimigos  os  quaes  se  directamente  o  troa-* 
xeram  a  este  inconveniente  foy  por  vias  obliquas  e  meos  sutis  que  as 
vezes  08  homens  buscam  pera  se  vingar,  e  que  seja  asy  comò  arriba 
disse,  por  que  em  todo  o  tempo  qae  em  Franga  esteve  nunqua  foy  de 
ninguem  accusado  nem  por  tal  repntado  mas  antes  dos  bons  e  catholi- 
cos  christSos  bom  e  catholico  estimado,  e  a  doutrina  que  dea  a  seus 
discipuloB  asy  em  Franga  comò  em  Coimbra  foy  muy  santa  e  verda» 
deira,  e  algumas  obras  que  tem  compostas  asy  em  verso  comò  em  prosa 
podem  dar  bom  testemunho  do  que  sente  e  das  opiniSes  que  tem  que 
«fto  santas  e  catholicas  e  conformes  a  ho  que  goarda  e  manda  a  santa 
madre  igreja,  e  se  al  cuidara  e  a  sua  consciencia  o  condanara,  nuda 
de  trez  mezes  antes  que  fosse  preso  soube  por  cartas  qae  vierl  de  Pa- 
ris que  se  faziam  em  Franga  centra  elles  grandes  dUigenoias^  e  por 


534  mSTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

qne  confando-se  no  senhor  Deos  e  na  sua  innocencia  nam  Ihe  veo  por 
peneamento  bulir  comsigo  nem  Ihe  pareceu  qua  havia  rez2o  pera  isso. 

cEntende  provar  que  vindo  de  Franfa  nam  corneo  carne  maie  do 
qne  ja  tem  confessado  de  (Salamanqua)  e  iste  com  muita  necessidade 
asy  por  Tir  quebrantado  do  grande  trabalho  do  caminho  corno  tamben 
por  sua  mi  dÌBposifSo,  qoe  he  doente  de  collka  e  o  toma  moitas  ve- 
zes  que  o  tem  comò  morto,  e  he  Bugeito  a  Tomitos  e  a  destila^Ses  do 
cerebrOy  que  bSo  doen9as  que  commumente  acodem  mais  a  hos  homena 
estudiosos,  que  a  hos  outros;  por  està  causa  e  tambem  poUos  immen- 
808  trabalhos  que  teve  continuadamente  em  Coìmbra  onde  sempre  leo 
seis  horas  de  Ii(So  cada  dia  e  leo  livros  muito  escuros  e  muito  difficot 
tOBos  Bobre  os  quaes  Ihe  era  necessario  estudar  muitas  horas,  e  asy 
tarabalhou  muito  em  esercitar  seus  diecipulos  na  compo&Ì9Ao  de  v^soa 
e  ora98e8  no  que  fez  muj  grande  fruito  corno  se  vee  craramente,  e  oom 
eates  trabalhos,  canceiras  e  doengas  has  vezes  nam  podia  jejuar,  nent 
ho  fez  por  Ihe  parecer  que  sem  pecado  o  podia  fazer,  por  que  oada 
Tea  que  se  achava  em  dispo8Ì9lo  .pera  isso  jejuava.  • . 

cEntende  proyar,  que  sendo4he  o  mo9o  Martinot  trazido  corno  a 
pessoa  que  a  tal  tempo  sèrvia  de  principal  e  o  livro  contendo  no  libello 
comò  j&  tem  confessado,  elle  reo  lego  com  muita  efficacia  e  diUgencia 
o  mandou  tomar  por  quatro  lentes  e  Ihe  deram  por  sua  mSo  muy  grave 
castigo  e  muitos  infindos  a^outes  e  depois  de  muito  bem  castigado  e 
a9outado,  elle  reo  o  reprendeo  gravemente  por  ter  um  tal  livro,  e  £a* 
zendo  centra  o  dito  mo$o  grandes  ezclamagSes  Ihe  mandou  que  lego 
se  fesse  fora  do  reino  de  Portugal  e  que  mais  nelle  nam  pareoesse,  e 
iato  por  nSo  fazer  unifto  e  por  nam  eeoandalisar  a  companhia  e  huma 
tàL  religiSo,  o  que  tudo  fez  oom  boa  ten98o  comò  bom  catholico  chris- 
tSo  pareoendo-lhe  que  asj  faaendo  nam  errava,  e  asy  tomou  o  livxso 
pera  o  queimar  com  coaselho  dos  que  pera  o  tal  caso  ohamara. 

cEntende  provar  quo  lego  aaqueUe  teno^  quando  o  dito  caso 
aconAecera  foy  tempo  tam  breve  e  os  dias  todos  de  lÌ9to  e  os  tcaba- 
Ihos  e  enidados  tantos  que  eUe  no  tal  tempo  tinha  ta&to  ^por  ler  soaa 
S^Ses  ordinarias  conio  por  servir  de  principal,  que  nam  teve  ten^ 
nem  opportunidade  pera  por  em  ooncmzlo  queimar-se  o  livro  com  con» 
aelho  corno  tinha  determinado,  e  aam  o  deixou  de  fazer  por  nam  ter 
pera  iste  vontade  de  maneira  que  indo  o  sobredito  fez  por  asy  o  es- 
tender e  mais  nam  poder  ao  quo  Ihe  paawoe  que  nam  tem  culpa,  coma 
o  diz  a  justi^a.  E  quanto  as  notas  e  nsoos  elle  taes  nSo  fez  o  que  se 
pedo  facifanente  ver  se  aSo  eonfermes  aos  que  hz  nos  seus  liwofli  e 


0  COLLEGIO  REAL  535 

aua  enten$So  nunqua  £07  sentir  mal  fee,  mas  sempre  £oj  moito  boa  e 
cathoUca,  e  he  sem  culpa  do  que  Ihe  poS^  e  porem  se  em  algoma  cousa 
das  que  ditas  tem  errou  elle  Reo^  se  somete  a  correÌ9So  da  a.  m.  Igr.' 
por  que  nam  he  theologo  e  deve  ser  absolto. 

DiOGO  DE  Teive. 

1.^  Joh2o  Rodrìgues  Pereira  filho  d'Antonio  Pereira,  em  liisboa. 
Diego  Castilho,  em  Coimbra 
Mestre  Antonio  Mendes,  id. 
Lourenyo  Vieira  CarvaUio,  id. 

2.^  D.  Francisco  de  Noronha,  em  Lisboa 
O  Doutor  Payo  Roiz,  em  Coimbra 
AntSo  da  Costa,  id. 
Mestre  Antonio  Mendez,  id. 

3.^  e  4.^  Os  Padres  da  serra  d'Ossa 
0  Prior  de  Santa  Cruz,  em  Coimbra 
Mestre  Jacques  Tapia,  id. 

5.^  D.  Sancho,  em  Coimbra 
D.  Fulgencio,  id. 
Dom  Diogo  de  Almeida,  id. 
Dom  Jorge  de  Tayde,  id. 

6.^  Joh2o  Rodrìgues  Pereira,  em  Lisboa 
AntSo  da  Costa,  em  Coimbra 
Antonio  Mendes,  id. 
Lourenyo  Vieira,  id. 
Fedro  da  Costa,  id. 

7.^  Dois  padres  Elois 
Dois  padres  do  Carme 
André  Maldonado 
Fedro  de  Sousa. 

8.^  Mestre  Jorge  Bucanano 
Mestre  JohSo  da  Costa 
Mestre  Nicolao  GrucU,  em  Coimbra. 

9.^  e  10.^  Mestre  Antonio  Mendes 
Mestre  Nicolào  Gmchi 
Mestre  Jorge  Bucanano 
Mestre  Jaques  Tapia. 


536  HISTORIA  DA  UNIYERSIDÀDE  DE  GOIBfBRA 

cEstas  testemuiihas  que  em  baixo  aqui  nomeio  as  qoaes  ji  em 
rìba  nomeej  por  quanto  sabem  muito  de  minha  vida  pe^o  a  Vossaa 
Mercès  preguntem  em  todos  os  artigos  poUos  quaes  ha  7  coosas  espa- 
Ihadas  de  que  sabem  dar  conta: 

Em  Lisboa:  Jofto  Bodrìgues  Pereira 

Diego  de  Castilho 
Mestre  Antonio  Mendes 
Lourengo  Vieira 
AntSo  da  Costa 
Mestre  Jaques  Tapia 
Pero  da  Costa. 

f  Todos  estes  estSo  no  Collegio  de  Coimbra.  Se  tambem  for  neces- 
sario preguntar  de  minha  vida  e  doutrina  a  hos  meus  discipulos,  a  es- 
tes se  pode  preguntar: 

Dom  Diego  de  Almeida 

D.  Jorge  de  Tajde 

Barrosy  sobrinho  do  Bispo  de  Leirea 

PinheirOy  sobrinho  do  Bispo  d'Angra 

Braz  Bemardes 

Camello  de  Coimbra 

Deus  padres  do  Carmo,  e  mais  se  mais  qoizerem. 

Confessores:  Hum  padre  da  serra  d'Ossa  0  mais  mo^o 

0  padre  Lobato,  lente  no  Collegio 
0  padre  superior  dos  Bemardos. 


DiOGO  DE  Teive. 


RezSes  de  cofUradictas: 


cPosto  que  os  ditos  d'alguas  testemunhas  que  me  mostrou  o  sr. 
Doutor  Ambrosio  Campello  sSo  taes  que  elles  mesmos  se  contrariam 
c8  tudo  nam  deixarei  de  decrarar  alguas  causas  particulares  que  mo- 
veram  as  testemunhas  pera  que  dessem  taes  testemunhos  centra  mim , 
as  quaes  eu  provarci  se  for  necessario;  pollo  que  pe9o  a  V.  V.  mercés 
6  Ihe  requeiro  polla  morte  e  paixXo  de  nesso  sSr  JIìb.  Christo  que  quei- 
rBo  bem  ezaminar  os  ditos  das  testemunhas  que  centra  mim  depuserSo 


0  COLLEGIO  REAL  537 

e  considerar  as  coiitradic98eB  e  falsidades  qae  nelles  ha,  e  achando  que 
nam  he  necessaria  mais  larga  prova,  queirS  tornar  concmsSo  neste 
meu  negocio  e  me  tirar  dna  tam  grande  tribala98o  na  qual  estou  ha 
tantos  meses,  e  tenho  soffrido  o  que  nosso  sSr  sabe. 

cÀ  primeira  testemunha  he  hum^rei  «7o8o  Pinheiro  a  ho  qual  nam 
don  outra  contradita  senft  qae  he  hua  so  testemunha  podendo  elle  al- 
legar outras  que  se  acharSo  ahj  e  sabem  corno  passoa  o  negocio  asi 
qae  nam  he  de  crer  o  que  hSa  so  testemunha  diz  ainda  que  fosse  omni 
exceptione  maior,  quanto  mais  que  a  zombarla  que  ea  delle  fiz  assi 
nas  palavras  que  disse  (que  pois  elle  entrara  na  religiSo  por  que  seu 
tio  Ihe  nSo  dera  hum  gibXo  de  seda  asi  sairia  della  dando-lhe  seu  prior 
hu  de  grS,  querendo  dizer  disciplina)  comò  tambem  por  eu  Ihe  deitar 
hum  ponce  de  caldo  de  carne  nos  ovos  que  comia  Ihe  causarla  algum 
odio,  e  assi  a  historia  das  titellas  de  gallinha,  que  Ihe  contei  zombando 
delle  comò  no  principio  que  aqui  vim  contei  a  v.y.  mcès.  Item,  pode 
ser  que  o  odio  que  elle  tem  a  mestre  Jole  da  Costa  causou  que  tam- 
bem a  mim  me  accusasse  por  que  estamos  juntos  e  nam  podia  boamente 
accusar  hu  sem  o  outro,  e  azedou  o  caso  e  o  fez  grave  sondo  tudo 
zombarla  e  riso  comò  creo  que  sabem  Mestre  Antonio  Mendes,  Miguel 
Jacome  de  Luna  naturai  de  Viana,  e  Francisco  de  Lucena  naturai  de 
Setuvel,  que  n'aquelle  tempo  estavam  no  Collegio  de  Bordeos. 

cA  segunda  testemunha  parece  ser  nosso  mestre  D.^  de  Qouvea,  o 
Doutor  velho,  homem  multo  honrado  e  multo  vertuoso  a  ho  qual  todos 
somos  em  grande  obriga9&o  por  elle  ser  hua  das  causas  principaes  de 
termos  as  boas  letras  neste  reino;  e  porém  he  muj  vehemente  em  suas 
paix8es,  e  pertinaz  no  que  hua  vez  encaixa  na  cabota;  elle  foj  o  que 
diffamou  Mestre  André  seu  sobrinho  de  Luterano  e  nam  allegou  outra 
cousa  centra  elle  senSo  ser  amigo  de  Lopo,  e  que  elle  deitasse  està 
fama  muitas  pessoas  o  sabem  que  o  ouviram  e  poderSo  disto  testemu- 
nhar  corno  D.  Francisco  de  Noronha  e  o  Bispo  de  Tangere  que  forSo 
embaixadores  em  Franga.  E  a  rezSo  que  o  move  a  dizer  que  eu  fa- 
zia  OS  negocios  de  luteranos  he  que  indo  eu  a  Paris  em  servigo  del- 
rey  Nosso  sSr  buscar  os  lente»  e  as  matrices  pera  emprimeria  levei  hfia 
precura$So  de  mestre  André  pera  resìgnar  a  ho  d.  doutor  velho  hua 
conesia  theologal  que  o  dito  m.  André  tinha  em  a  cidade  de  Bazas  e 
outros  beneficios,  e  levei  huma  carta  do  d.  m.  André  pera  o  Bispo  de 
Tangere  que  nisto  trabalhasse  e  acabasse  com  seu  tio  que  tomasse  os 
ditos  beneficios,  no  que  multo  trabalhamos  sem  nunqua  podermos  com 
elle  acabar.  Dava  por  reposta  que  dum  Lutherano  e  tam  mdo  homem 
nam  avia  de  tomar  nada,  e  que  pollo  milhor  bispado  de  Franga  nam 


538  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

perderla  a  occasiSo  que  tinha  de  dizer  mal  de  hi!  tam  mào  ladrfto,  e 
nunqna  cessava  de  dizer  mal  delle  corno  maito  bem  sabem  os  dd.  em- 
baixadores  e  mostre  Diogo  de  Gouvéa  seu  sobrinho. 

cNam  sey  quem  possa  sor  osta  terceira  testemunha.  Da  conver- 
sagSo  de  Sa  Martìnho  j&  tenho  confessado  do  qae  mais  diz^  que  bum 
foSLo  que  fora  lente  em  Bordeos  me  tinha  por  Luterano.  No  quinto  tea- 
temunbo  fallare!  dalguns  lentes  que  me  queriam  mal. 

aEste  ou  0  que  arriba  testemunbou  parece  ser  Manoel  D'araujo, 
que  me  quis  grande  mal  asy  por  bua  espada  e  talabartes  que  me  le- 
Tou  de  casa  a  qual  nunqua  mais  pude  aver^  e  o  reprendi  asperamente 
em  presenfa  de  Mestre  JoSo  da  Costa  e  doutros  que  nSo  estSo  no  reino, 
corno  tambem  porquanto  elle  Manoel  de  Araujo  com  pretesto  de  vir 
ver  mestre  Jorge  e  a  mim  andava  pera  enganar  a  nossa  hospeda  que 
bera  filha  dum  escossez  e  parenta  de  mestre  Jorge,  e  bum  dia  Ibe  dei- 
xou  nas  mSos  bua  bolsa  com  dez  cruzados  e  se  foy  e  ella  se  aqueizoa 
lego  0  marido  que  se  cbama  Robert  gran  Joung  e  a  nós,  de  que  eu 
fui  muy  pesante,  e  o  reprendi  e  Ibe  disse  palavras  asperas  donde  fi- 
camos  multo  inimigos.  Disto  nSo  tenbo  outra  testemunba  no  reino  senK 
Mestre  Jorge,  e  eu  depois  que  n'esta  casa  entrei  sempre  cramei  do 
odio  deste  bomem  e  contei  iste  corno  passou  algumas  vezes  a  Inacio 
Kunes.  Das  virtudes  deste  Arabujo  dirlo  os  criados  de  D.  Francisco 
de  Noronba  e  quantos  o  conbecem. 

a  A  quinta  testemunha,  se  nXo  he  Suscmeo,^  meu  imigo  mortai 
nam  sey  qual  fosse  tam  mdo  bomem  que  tam  falsamente  ousasse  dizer 
taes  cousas  de  mim.  Alguns  inimigos  tive,  e  foram  Mestre  JohSo  Talr 
pim,  Mestre  Antonio  LangUns,  e  Mestre  Antonio  Ledere  e  outros  qua 
nam  nomee  por  nam  me  lembrarem  os  nomes;  estes  foram  regentea 
em  Bordeos,  e  por  sediciosos  e  mios  os  deitaram  fora;  com  elles  pe- 
lejei  muitas  vezes  comò  sabem  Mestre  Jorge,  Antonio  Mendes,  e  An- 
tfto  da  Costa  e  os  mais  que  em  Bordeos  aquelle  tempo  estavam.  Quanto 
mais  que  a  falsidade  do  seu  testemunbo  fSaz  que  se  Ibe  nam  devia  dar 
nenbum  credito.  •  • 

cEste  nono  testemonbo  corno  me  a  mim  parece  nam  pode  ser  dou- 
trem  se  nSo  dum  Manoel  de  Meequita,  capelllo  e  escrivSo  do  Collegio, 
onde  prouvera  a  Ds.  que  elle  nunqua  entrara  porque  foy  causa  de  mui- 
tas differenfas  e  paixSes  que  ouve  entre  os  principaes  e  entro  os  mes- 


1  Habert  8u$sanoeu»,  um  dos  que  ajudou  oom  os  seus  ataques  oontra  Joilo 
Tartas  a  titar^se-lbe  o  prineipalato  do  ColUfio  de  Guyemie.  (Ganllieur,  op.  eiL^ 
p.  65.) 


0  COLLEGIO  REAL  539 

treB  e  dìscipulos  comò  toda  Coimbra  sabe,  por  quo  no  mnndo  nam  ha 
major  mechedor  nem  homem  mais  perigoso;  elle  me  quis  sempre 
grande  mal  por  ser  daquella  mi  condijSo  e  difamador  de  todos  os  bons 
o  qoal  odio  mostron  craramente  quando  o  d.  Mestre  Dioguo  de  Gouvea 
yeo  a  corte,  por  que  fiqaey  ea  por  prìncipal  do  Collegio  por  mandado 
delRej  nesso  sr.  e  sondo  elle  obrigado  a  correr  as  classes  cSmigo  e 
antes  sempre  o  tivesse  feyto  com  os  outros  principaes,  nunqua  o  quiz 
iazer  commìgo^  dizendo  que  ha  tal  homem  comò  ea  nam  avia  de  ser- 
vir e  outras  palavras  descortezes.  Deste  odio  s2o  boas  testemunhas 
Mestre  JobSo,  o  escossez  Antonio  Portano  despenseiro  do  Collegio, 
Mestre  Dioguo  ds  Casfilho,  Pero  da  Costa,  Braz  Enes  e  outros  mil, 
mas  parece  desnecessario  pollas  manifestas  falsidades  que  contém  està 
deposijSo  comò  he  comer  eu  carne  sesta  feira  dendoen9as  em  Coim- 
bra ostando  eu  em  Braga,  comò  se  provara  poUos  que  arriba  nomeei, 
e  por  outros  muitos. 

cEste  he  hum  Pero  LeitSo,  que  teve  commigo  differen9as  por 
quanto  eu  encomendei  a  hum  irmSo  do  capitSo  da  ilha  meu  discipulo 
que  fosse  figura  com  outros  mo$os  fidalgos  nua  tragedia  a  qual  eu  fiz 
representar  em  santa  "f  n'um  auto  selene  que  fazia  o  snSr  Dom  An- 
tonio filho  do  IfFante  dom  Luiz  e  querendo  o  d.  meu  discipulo  fazer  o 
que  Ihe  eu  encommendava  elle  Pero  LeitSo  que  he  seu  ajo  mostran- 
dosse  multo  imperioso  Iho  defendeo  que  em  nenhuma  maneira  o  fizesse 
posto  que  Ihe  eu  chamei  ingrato  e  mal  cortes  e  Ihe  disse  outras  pala- 
vras, e  elle  me  escreveu  huma  carta  muito  injuriosa  e  elle  mesmo  dou 
por  testemunho  disto,  o  qual  nSo  nega  que  teve  commigo  rezSes.  Quanto 
mais  que  sua  deposi^So  he  tam  leve  e  està  tam  mal  provado  o  que  diz, 
que  me  nam  pode  prejudicar. 

cA  meu  parecer  oste  he  Manod  Cerveira  ou  Pero  Anriquea,  ou 
aigus  dos  outros  que  liSo  em  Humanidades  em  Coimbra  antes  que  vies- 
semos,  OS  quaes  forSo  muito  pesantes  da  nossa  vinda  por  se  verem 
dbatidos  e.  a  nós  muito  favorecidos  de  S.  A.  e  assi  nos  verem  em  Coim- 
bra andar  hSrrados  em  mulas  com  mo^os  e  com  mayor  poder  e  autò- 
lidade  no  Collegio.  De  modo  que  faziam  parcialidades  e  bandos  cha- 
mandosse  os  partrienèes  «e  a  nós  os  hordatesea,  e  diziam  que  ainda  nos 
aviam  de  deitar  fora  do  Collegio  corno  de  feito  deitaram  com  estas  suaa 
fidsidades.  E  da  eUes  terem  os  animoe  assi  danados  centra  nós  serSo 
testemunhas  Mestre  Diego  da  Costa,  Mestre  JohSo  Escossez,  Antonio 
Portano,  e  estes  nocneo  por  «vitar  dilaglo  do  tempo  que  se  faria  em 
ir  «  Coimbra,  onde  posso  nomear  muitos.  E  creo  verdadeiramente  que 


540  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIBfBRA 

w.  mercés  ter&o  piedade  de  me  rerem  tanto  tempo  ha  nesta  prisSo  e 
foIgarSo  de  dar  firn  a  este  negocio.  Està  testemunha  diz  que  Ihe  tenho 
ma  vontade,  tambem  ouvera  de  dizer  que  m'a  tem  pior  e  quanto  diz 
no  seu  testemunho  tudo  diz  de  ouvido. 

«Certamente  pareceme  que  este  he  Mestre  Marciai  de  Qouvia  o 
qual  he  meu  grande  imigo,  e  muitas  vezes  veo  o  Collegio  com  espada 
pera  empecer  a  Mestre  JoliSo  da  Costa  e  a  mi.  A  rezfto  principal  do 
odio  que  me  tem  he  por  quanto  elle  residente  em  Braga  Ihe  empres- 
tou  meu  pay  certo  dinheiro,  o  qual  Ihe  deveo  mais  de  quatro  annos, 
nem  ainda  Iho  acabou  de  pagar,  e  querendo  arrecadar  tendolhe  antes 
muitas  cartas  escriptas  sobre  isso  e  nam  aproveitando  nada,  mandon 
expressamente  hum  homem  a  Coimbra  pera  o  citar  e  demandar,  o  que 
pareceo  a  ho  d.  Mestre  Marciai  que  nascia  de  mi,  e  daqui  me  teve 
muy  grande  odio;  e  tambem  por  rezSo  dum  mancebo  que  aqui  anda 
por  nome  Antonto  d'Aveiro,  que  foj  criado  de  Mestre  Dioguo  de  Gou- 
vèa,  que  quiz  mais  estar  c3migo  que  com  elle,  e  teve  pera  si  que  eu 
0  sobomara,  e  por  estas  rezSes  me  teve  grande  odio  e  me  escreveo 
cartas  muy  injuriosas,  as  quaes  ainda  me  parece  que  se  acharXo  entro 
OS  meus  papeis.  Deste  odio  todo  mundo  he  sabedor,  e  aqui  està  Anto- 
nio d'Aveiro  que  pode  contar  o  que  passou;  o  mesmo  creo  que  sabe- 
rSo  lambem  os  que  arriba  nomeej  Mestre  Dioguo  da  Costa,  M.  JohSo 
EscoBses,  Antonio  Portano  etc,  se  virem  ser  necessario  de  mandarse 
iato  em  Coimbra.  Eu  me  queixei  delle  a  ho  oonego  Antonio  de  Q-oa- 
y6a  e  a  ho  protonotario  seu  irmSo  que  sSo  parentes  do  d.  Mestre  Mar* 
cial,  e  disto  tambem  sSo  sabedores  Diego  de  Castilho,  Pero  da  Costa, 
Bras  Anes  que  vinham  muitas  vazes  ó  Collegio  e  sabiam  o  que  nelle 
passava. 

«Pareceme  que  este  he  Mestre  Antonio  Caiado,  e  diz  que  me  vio 
algumas  vezes  cear  em  dias  de  jejum,  o  que  jà  confessei,  e  porem  elle 
deichou  de  dizer  que  algumas  destas  vezes  ceava  cSmigo. 

«Tambem  BeUiago  me  tem  grande  odio  porque  o  tempo  que  eu 
servi  de  principal  o  reprendi  muitas  vezes,  por  que  nam  entrava  na 
classe  pera  ler  senam  multo  tarde  e  depois  de  todos,  o  que  Ihe  eu  ti- 
nha  a  muito  mal,  reprendendo  que  nJl  fazia  bem  seu  officio.  Testemu- 
nhas,  Mestre  Antonio  Mendes,  Mestre  Jorge,  e  elle  mesmo  o  nJl  ne- 
gare. E  por  quanto  seus  discipulos  se  aqueixavSo  que  elle  nXo  està- 
dava  e  que  perdilo  o  tempo,  ho  amoestava  e  o  reprendia  comò  per- 
tencia  a  meu  officio,  dizendolhe  que  deixasse  as  mercadorias  que  tra- 
zia  entro  mios  de  cavallos,  de  panos  de  linho  e  doutras  couaaa,  e  qua 


0  COLLEGIO  REAL  541 

deixasse  de  mandar  emprìmir  livros  alheos  pera  ganar  dinheiro.  Tes- 
temuiihas  sSo  AntSo  da  Costa  que  Ihe  comprou  bum  cavallo^  Mestre 
JoSo  Escossezi  os  frades  de  Sfto  Francisco  seus  discipulos. — Diogo 
DE  Teive.» 

«Sendo  eu  de  idade  de  doze  annos  pouco  mais  ou  menos  me  man- 
dàrSo  a  Paris  a  bus  primos  meus,  que  entfto  la  estavSo,  Baltazar  e  Ma- 
noel  de  Teìve  daquelle  ferro  estive  em  Paris  no  Collegio  de  Santa 
Barbara  sete  annos  ou  mais;  a  minba  conver8a9So  n'aquelle  tempo 
bora  c5  os  mo^os  da  minba  idade,  das  cousas  que  pertenciam  ou  a 
nossos  estados  ou  a  folgar;  d'aquelle  tempo  nam  se  pode  ter  de  mim 
sospeita  nenbua  nem  menos  ba  de  que. 

«Depois  destes  sete  annos  passados  vim  a  Portugal  cbamado  de 
meu  pay  que  antSo  partia  pera  India,  e  mandaraSme  a  Salamanqua, 
onde  estive  estudando  leis  dous  annos  pouco  mais  ou  menos^  e  por 
quanto  nam  me  achava  bem  na  terra  e  avia  nella  muitos  jogOB  e  pas- 
satempos  que  distrabiS  os  estudos  e  tambem  por  nam  aver  bomens  se- 
nam  muy  poucos  que  sabià  latim  e  as  letras  em  que  me  criara,  deter- 
minei  de  tornar  pera  Franja.  Como  vivi  em  Salamanqua  pode  teste- 
munbar  o  Doutor  Antonio  Soares  que  bora  be  dezembargador  de  S.  A. 
Dom  Hieronimo  que  naquelle  tempo  se  meteo  em  religiSo,  o  sSr  Bispo 
de  Sam  Tbome,  que  entfto  estava  em  Salamanqua^  e  sabia  bem  de  mi- 
nba Vida  e  custumes. 

«Fui  direito  a  Tbolosa  sabendo  quft  bSrrada  Universidade  bora 
e  abi  estive  sobre  mim  porto  de  bu  anno,  no  qual  tempo  fuy  muy  en- 
sarrado  e  recolbeito,  tantos  eram  os  meus  desejos  destudar,  que  com 
trez  palavras  nft  tinba  conversa^fto  ;  a  bo  cabo  deste  tempo  faltoume 
a  despeza,  e  acudiome  bua  doen$a  muito  forte  na  qual  me  socorreo  b5 
bomS  douto  que  em  Paris  me  conbecera;  depois  que  cobrei  saude,  pollo 
meo  deste  bomS  fiiy  conbecido  em  casa  de  bu  desembargador  bomem 
fidalgo  e  de  muita  renda,  que  tinba  bu  filbo  ó  qual  ensinava  latim  e 
nam  leicbava  dir  ouvir  minbas  li{8es  ordinarias;  estive  em  casa  deste 
desembargador  por  nome  Mozer  de  Nuptis  mais  de  bum  anno,  aby  me 
dei  a  conbecer  a  muitos  fidalgos  e  bomens  principaes  da  terra,  que 
ainda  podem  testemunbar  da  minba  vida. 

«Neste  tempo  estava  o  emperador  na  Proven9a,  digo  a  par  de 
Marcelba  com  grande  exercito,  e  quantos  estudantes  bespanboes  ou 
navarros  por  la  entftm  avia,  todos  os  mandaram  prender,  e  por  quanto 
eu  tinba  com  alguns  delles  amizade,  arreceava  que  com  elles  junta- 
mente  me  metessem,  porque  sabem  Id  mal  fazer  dififeren^a  entre  por- 
tuguezes  e  castelbanos;  neste  ensejo  me  escreveo  Mestre  André  de 


f 


542  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDÀDE  DE  GOIMBRA 

Gouvéa,  quo  Deus  aja,  bua  carta  quo  me  fosse  pera  elle,  e  que  maj 
Begoramente  me  podia  estar  no  seu  Collegio  de  Bordeos,  qae  ali  heram 
bem  differenciadoB  ob  portuguezes  da  outra  gente  espanhola.  De  ma* 
neira  que  fìii  ter  a  Bordeos,  onde  ensinei  dois  annos  na  primeira  re- 
gra,  que  he  a  may»  alta,  onde  se  ensinft  rhetorica  e  poesia;  n'este  tempo 
houTe  muitos  em  Bordeos  accusados  de  heresia,  entre  os  quaes  houye 
alguem  do  Collegio  e  principalmente  um  Zd}edeu^  que  se  aeolheo  e  bum 
que  cbamavfto  Mestre  Thibau,  este  foj  prezo  e  esteve  tres  dias  na 
prisSo,  e  dabi  o  mandarlo  que  o  nSo  vissem  mais  naquella  terra;  em 
todo  este  tempo  nunqua  bouve  qu8  em  mim  boca  posesse,  nem,  lou- 
vado  npsBO  s8r,  eu  dava  occasifto  pera  isso.  Mestre  André  nestes  na- 
gocios  sempre  bera  chamado  do  Arcebispo,  nem  se  condenava  cu  ab- 
solvia  pessoa  algSa  que  nam  fosse  presente. 

cAcabando  de  ler  estes  dous  annos  determinei  de  hir  a  Paris  pera 
estudar  algua  parte  do  tempo  as  letras  gregas  nas  quaes  era  mal  exer* 
citado  e  a  outra  parte  do  tempo  empregar  em  meus  estudos  de  leis,  o 
que  &s  por  espa90  de  dous  annos.  Naquelle  tempo  conheci  bum  SS 
Martìnho  estudante  em  Medicina  douto  em  grego  e  Mathematicas  com 
o  qual  vim  deepois  em  Gasconha  em  companhia  de  dous  grandes  fidai* 
gos  que  me  conheciS  do  tempo  que  estive  em  Gasconba  doutrinar  aeas 
filhos  alguns  mezes  na  terra,  depois  traasellos  a  Paris.  0  cabo  de  sete 
ou  outo  mezes  SSo  Martinho  se  tomou  com  os  filhos  daquelles  fidalgos* 
E  eu  diamado  de  hSa  cidade  onde  ha  j  Universidade,  que  chamam 
MontalvSo,  fuj  ler  ahj  hvl  anno,  e  isto  por  ahi  estar  h3  portuguea  de 
Viseu,  homem  douto  e  hSrrado  que  cbamSo  Miguel  Vigoso,  o  qual  hoje 
ainda  ahi  està  casado  e  hBrrado  ;  no  fim  deste  anno  me  dert  novas  que 


1  a  André  Zebedeu  era,  segundo  o  diier  de  Britannas,  am  homem  de  ama 
eradi^  a  teda  a  prova,  qae  jantava  a  urna  grande  vivacidade  de  Intelligeneia 
um  gosto  perfeito  e  ama  estrema  delicadesa  nas  obras  de  espirito.»  (Epitt^,  fi.  60  f,) 
Dado  0  devido  desconto,  pois  é  extrema  a  aflPéi^flp  qae  Brìtannus  deixa  irromper 
nas  Buas  cartas  por  Zebedeu,  importa  notar  qae  elle  recebia  de  honòrarios  ses- 
«enta  livras  por  anno,  salarlo  malto  mais  elevado  do  qae  o  da  maior  parte  dos  seos 
oollegas. — «fistes  contrairam  logo  para  eom  elle  ama  grande  amisade,  e  quando 
tentoa  partir  para  Hespanha,  no  anno  de  1&85,  empregaram  todoe  os  melos  para 
detel-o.  Saia  de  Bordéos,  mas  depois  de  ter-lhes  promettido  que  voltarla.— Do» 
pois  da  sua  salda  do  CoUegio  de  Quyenntf  Zebedeu,  que  tìnha  abra^ado  as  idéas 
da  Reforma,  fol  para  a  Sulssa,  onde  eneetou  os  estudos  theologicos.  Poi  nomeado 
pastor  em  Orbe,  aldeóla  dependente  da  Bepublica  de  Berne.  As  suas  rela95es  com 
Calvino,  qae,  à  fialta  de  amisade,  foram  de  estima,  datam  de  1688.»  (Gjiaullieurt 
HieUnre  du  CoUége  de  Ouifemie,  p.  82.) 


0  COLLEGIO  REAL  543 

Slo  Martinho  estava  prezo  por  certos  papeis  que  espalharSo  em  Paris 
c8  outroBi  e  dahi  a  seis  mezes  soube  corno  hera  fora  e  que  se  achara 
nam  ser  elle  cuipado;  depois  o  vi  xnuitas  vezes  em  Paris  e  agora  està 
casado  e  doutor,  se  ontra  consa  Ihe  nSo  aconteceo  depois  da  minha 
partida. 

«Depois  do  anno  de  MontalvSo,  por  que  mais  Ihes  nSo  prometti, 
me  fili  a  Poitiers^  famosa  Unìversidade  de  Leis  onde  m'ensarrei  de  tal 
maneira  com  meos  livros  que  com  ninguem  tive  conversa9So,  e  acon- 
teceosse  passar  portugues  e  estar  ahi  quatro  dias  cumprindolhe  cSmigo 
fallar,  preguntando  por  mim  e  n2Lo  me  poder  descobrir.  Dom  Francisco 
de  Noronha^  que  entam  hera  embaixador  naquelle  tempO;  esteve  mui- 
tos  dias  em  Poitiers  e  eu  sempre  o  visitava;  elle  sabe  multo  de  minha 
fazenda^  e  em  que  reputasse  vivia,  e  quanto  trabalhou  por  me  tra- 
zer  em  sua  companhia,  que  jà  entonces  andava  em  vesperas  de  se 
tornar. 

«Depois  desta  minha  estada  em  Poitiers  vim  ter  a  Bordeos  cha- 
mado  de  Mestre  Andre  por  que  Ihe  era  necessario  vir  a  Portugal,  e 
rogoume  que  juntamente  com  Mestre  JohSo  da  Costa  ficasse  em  Bor- 
deos pera  Ihe  ajudar  a  governar  o  Collegio.  Desta  volta  que  Mestre 
Andre  fez  me  trouze  carta  de  S.  A.  que  o  viesse  servir  a  este  reino 
e  que  ajudasse  Mestre  André  nas  cousas  que  de  mim  tevesse  necessi- 
dade;  desde  aquelle  tempo  me  empreguei  em  8ervÌ9o  de  S.  A.  muitas 
vezes  fìij  a  Paris  ajustar  os  lentes^  outras  vezes  buscar  as  matrices  e 
letras  de  impressSo,  até  que  vim  polla  posta  com  Mestre  André  a  este 
reino,  e  tornei  depois  fiz  coinpanhia  a  hos  lentes  até  hos  pdr  em  Al- 
meirim  onde  entonces  estava  a  cdrte. 

«Em  todo  este  tempo  que  andei  em  IVan9a  foy  conhecido  de  mui- 
tos  homSs  fidalgos  e  homSs  de  letraB,  nunqua  se  teve  de  mim  ma  so- 
speita,  nunqua  fuy  chamado  em  juìzo,  nem  tam  semente  pera  dar  hil 
teartemonho.  Somente  o  Doutor  velho  Mestre  D!t>go  de  Gt)uvèa,  por 
que  me  criara  no  Collegio  e  hera  amigo  de  meu  pay  dizem-mó  que  di- 
zia  que  0  ladram  de  Mestre  André  heretico  maldito  me  avia  de  danar. 
Tinha  està  opinilo  de  Mestre  André,  por  quanto  se  fora  pera  Bordeos 
de  Paris  centra  sua  vontade,  e  dizia  que  suas  conversa98es  hert  com 
velhacos  Intheranos  e  chamavam  luteranos  homens  que  sabiS  grego  e 
philosophia  e  estavam  mal  com  a  sofistaria. 

«Em  Portugal,  depois  de  nossa  vinda  vivi  comò  todos  sabem; 
nem  pubricamente,  nem  em  privado  fiz  cousa  que  meresa  este  castigo, 
nS  negando  que  sam  pecador,  e  fa$o  mil  offensas  centra  o  s8r,  porem 
contra  a  nossa  fé  catholica  e  o  que  manda  a  santa  madre  Igreja  nem 


544  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

em  paiavra  nem  em  obra  me  parece  ter  offendidoi  o  qual  se  fiz  e  m'o 
moBtrarem  nSo  desejo  mais  outra  cousa  quo  ser  ensinado. 

a  A  fonte  donde  este  mal  nasse  sospeito  ser  Mestre  Diogo  de  Gou- 
yèa^  conego  da  see  de  Lisboa,  porqne  tem  pera  si  que  os  firancezes  e 
eu  somos  causa  que  elle  saisse  do  Collegio.  E  com  està  opiniSo  foj  fa- 
zer  queixume  ao  Cardeal  que  heramos  bus  perdidos,  e  sua  Al.  pare- 
cendolhe  que  seria  assi,  pois  bua  tal  pessoa  o  dizia  com  bu  santo  zollo 
que  elle  todas  as  cousas  faz,  mandou  degassar  de  nós,  e  podìalbe  bem 
segundar  nisto  o  velbo  Doutor,  tanto  pollo  odio  que  sempre  teve  a 
Mestre  André  e  as  suas  cousas  comò  pera  vingar  o  sobrinbo.  Isto  se 
nam  foj  feito  direitamente  por  està  maneira  indireitamente  d'aqui  pro- 
cede.'— DiOGUO  DB  Teivb.» 

a  Como  quer  que  eu  fuy  ter  a  Franya  multo  mo$o  e  conversey 
sempre  mais  com  os  firancezes  bomens  Uvres  em  suas  praticas,  e  que 
muitas  vezes  dizem  mais  do  que  cuidSo,  e  o  contrario  sempre  me  apar- 
tei  da  companbia  de  muitos  portuguezes,  e  isto  em  tempo  que  Franga 
andava  multo  danada,  e  tambem  porque  estive  em  Bordeos  em  com- 
panbia de  Mestre  Andre,  o  qual  os  mesmos  portuguezes  per  amor  do 
tio  tinbam  em  ma  reputagSo  que  nunqua  deixava  de  dizer  mil  males 
delle,  por  estas  rezSes  por  que  de  meu  naturai  eu  sd  facil  e  conversa- 
vel  c3  todos  e  principalmente  c8  bomens  de  letras,  tiverSo  poUaventura 
algus  ma  opinifto  de  mim,  digo,  alguus  dos  portuguezes  que  em  Paris 
estavam,  de  cuja  companbia  me  eu  apartava  e  algumas  vezes  me  foy 
dito,  por  que  bora  tanto  firancez  e  fiigia  da  companbia  dos  portugue- 
zes, que  podia  ser  que  em  algum  tempo  me  poderia  disse  arrepender. 
Respondia  que  eram  multo  melancolicos  e  maldizentes,  e  que  estando 
em  Franga  vivida  a  bo  modo  dos  firancezes,  e  quando  em  Portugal 
estevesse  trabalbaria  entam  de  me  accomodar  a  seus  costumes.  Estas 
sSo  as  causas  principalmente  por  que  me  alguns  portuguezes  tinbSo 
por  sospeito  ou  por  muyto  fi*ancez.  As  pessoas  das  quaes  se  podia  ter 
sospeita  com  as  quaes  as  vezes  eu  fallava  e  conversava  em  Bordeos 
forSo  Zebedeo,  Mestre  Thibao,  Corderò,^  Estaphet  medico.  Em  Paris, 


1  0  nome  de  Cordeiro  era  urna  fórma  alatinada  de  Cordier  (corno  se  ve  pela 
poesia  latina,  dedicada  a  Mathurìn  Cordier,  Ad  Corderitan,  por  Voalté).  Evidente- 
mente, Diogo  de  Teive  referìa-se  a  Mathurin  Cordier,  que  em  1535  André  de  Goa- 
Tea  tinha  trazido  para  professor  no  Colico  de  Guyenne.  £  extraordinario  o  me- 
recimento  pedago^co  de  Mathurìn  Cordier  (1479-1564);  toda  a  sua  avan^ada  edade 
foi  despendlda  no  enaino.  Frequentou  a  Universidade  de  Paris,  e  ensinou  noe  ciuco 
Collegios  de  Reims,  Liseuz,  La  Marche,  Navarra  e  Santa  Barbara,  Calvino  con- 


0  COLTJIGIO  REAL  545 

SS  Martinho,  *  Mestre  Pero  Ruffo,  Tartas,  Gcdandis,  ChShroy,  Mestre 
Robert  Butrào,  Brigar,  protonotario  o  s3r  da  Lobeira.^  Estes  princi* 
palmente  sSo  os  homens  com  os  quaes  muitas  vezes  me  achava^  e  corno 
digo  herSo  homens  de  letras,  e  às  vezes,  corno  he  o  costume  dos  fran- 
cezeS;  falavam  alguas  cousas  desatentadamente,  e  porem  corno  Deus 
he  yerdade,  nSo  sSLo  particularmente  alembrado  dos  propositos  que  se 
tinham,  tanto  por  eu  nSo  applicar  a  isso  minha  fantesia  corno  por  tam- 
bem  nam  ter  boa  memoria.  A  conversaglo  que  com  estes  homens  ti- 
nha  deu  occasiSo  a  hos  portuguezes  a  cuidarem  mal  de  mim  e  nam  ha 
7  duvida  comò  confesso  que  alguas  vezes  se  tratavam  disputas  ou  de 
theologia  ou  de  philosophia  come  de  tempore,  de  codo,  de  mundo,  de 
anima,  e  mais  nestes  tempos  que  heram  comò  digo  livreS;  e  todo  mundo 
nisto  &llava.  De  maneira,  se  neste  tempo  ou  em  outrO;  alguma  cousa 


feBBon  publicamente,  nos  sens  Commentarios  ao  Novo  Testamento,  que  se  algum 
merito  havia  nos  seuB  escriptoB  devia-OB  a  seu  mestre  Cordier.  Em  casa  do  cele- 
bre impressor  Robert  Étiemie  é  que  elle  comprehendea  que,  aBsim  corno  os  espi- 
ritoB  se  emancipavam  pela  critica  do  pedantismo  scholaBtico,  tambem  careciam 
fugir  da  8uperBtÌ9ao  derical  para  a  simplicidade  evangelica.  Por  causa  da  reac^io 
contra  as  idéas  da  Reforma,  em  1534,  Mathurin  Cordier  escondeu-se,  vindo  no  anno 
seguinte  para  o  Collegio  de  Guyenne,  que  se  Ihe  tomou  um  refugio,  onde  esteve 
dez  annoB,  aoziliando  André  de  Gouvéa  na  reorganisa^So  d'aqnelle  Collegio.  (Gaul- 
lieur,  Histoirt  du  CoUége  de  Guyenne^  p.  95, 128  e  152  ;  e  Quicherat,  Hiatoire  de 
Sainte-Barbe,  1. 1,  p.  152  e  253.) 

1  Na  defeza  de  Diogo  de  Teive  falla  por  vezes  em  Sam  Martinho;  é  eviden- 
temente a  fórma  descuidada  de  SamartJianum,  traducalo  latina  do  nome  de  Char- 
les de  Sainte-Martbe,  Mestre  em  Artes,  regente  no  Collegio  de  Bordéos.  D'elle 
escreve  Gaullieor:  «Sabe-se  que  este  nome  de  Sainte-Marthe  foi  illustrado  por 
toda  uma  familia  de  escriptores,  de  poetas  e  de  sabios,  originarios  de  Poitou. 
Pode-se  considerar  o  joven  professor,  de  que  aqui  se  trata,  comò  o  cbefe  d'està 
brillante  successào  de  homens  notaveis.  Era  o  segando  dos  doze  filhos  de  Gau- 
cher  de  Saintc>Marthe,  medico  de  Francisco  i,  e  desde  crian^a  revelou  talento. — 
Charles  de  Sainte-Marthe,  cujas  obras  chegaram  até  nós,  foi  um  poeta  de  talento. 
Depois  de  uma  vida  multo  agitada,  depois  de  ter  abertamente  seguido  as  idéas 
da  Reforma,  e  atravessado  as  mais  crucis  prova^oes,  foi  cumulado  de  honras  por 
Margarida  de  Navarra,  irmS  de  Francisco  i.»  (Hiat,  du  Collège  de  Guyenne,  p.  55.) 
Sainte-Marthe  deizou  o  Collegio  de  Bordéos  em  1534,  indo  graduar-se  em  direi to 
em  Poitiers  em  1536.  Aqui  segniu  as  doutrinas  de  Calvino,  sendo  preso  por  lu- 
therano  em  Grenoble,  onde  jazeu  no  carcere  perto  de  tres  annos,  livrando-se  pelo 
ardii  de  se  fingir  louco.  Depois  de  solto  foi  para  Lyon,  em  cujo  Collegio  ensinou 
o  hebraico,  o  grego,  o  latim  e  o  francez.  Mereceu  a  protcc9ào  da  rainha  de  Na- 
varra,  morrendo  multo  novo  do  rompimento  de  um  aneurisma.  (Ibidem,  p.  77.) 

*  Pierre  de  Cruilloche,  senhor  de  la  Lomhikre,  um  dos  fundadores  do  Collegio 
de  Guyenne.  (Gaullieur,  Op.  cit.,  p.  116.) 

HisT.  lur.  35 


546  HISTORU  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

soltei  temerariamente  ou  por  mais  nam  saber,  ou  stttdio  contradicendi 
em  maneira  de  disputa  ou  referindo  algiia  opinilo  de  philosopho  ou 
decrarando  algum  proposito  que  ouvira  pregar  de  qaalqaer  modo  que 
fosse  digo  minha  culpa  e  peyo  a  Deos  misericordia^  e  a  vós  senhores, 
por  que  minha  ten9&o  e  proposito  nunqua  foj  outro  senSo  viver  e  mor- 
rer  na  santa  fee  catholica  comò  manda  a  santa  madre  Igreja,  e  posto 
que  por  muitas  vezes  ouvi  e  li  muitas  opiniSes  falsas  e  erroneas  nun- 
qua Ihes  dei  credito  nem  me  parecerSo  bem,  mas  se  por  ceguidade  em 
algua  cousa  cahi  daqui  digo  a  Deos  minha  culpa,  e  se  tenho  offendido 
meu  creador  gravemente  me  arrependo  de  o  ter  feito  com  proposito  e 
efficas  vontade  de  o  nSo  offender  mais.  £  vos  pe90  sres  poUas  ciuco 
chagas  de  nesso  sSr  Jhs.  christo  vista  està  minha  confissSo,  que  te- 
nham  algum  respeito  a  minha  pessoa,  a  ser  de  S.  A.  a  oste  reino  cha- 
mado,  a  ter  nelle  feito  algum  fructo  a  alguas  letras  com  que  posso 
servir,  a  hum  dom  de  gra9a  que  nam  he  concedido  a  todos  de  que  me 
nosso  s5r  fez  algua  parte  hum  estilo  em  latim  pera  poder  em  algum 
tempo  escrever  as  cousas  deste  reino  e  feitos  excellentes  dos  portu- 
guezes.  Com  està  confiss&o  pe90  a  està  meza  que  nam  deve  querer  a 
morte  do  pecador  mas  a  8alva9So,  que  cubra  minhas  faltas  com  a  capa 
de  sua  misericordia  e  me  restitua  minha  hSrra  e  me  dem  animo  pera 
que  possa  fazer  obras  dinas  de  perpetua  memoria  de  servilo  de  Ds, 
de  h5rra  deste  reino,  e  queirSo  vendo  està  minha  justa  petÌ9So  num  so 
homem  conservar  e  goardar  a  muitos,  a  irmSos  e  irmSs  paj  e  mftj  ca- 
sados  e  honrados,  hua  gera^So  teda  que  fica  deshonrada  se  o  eu  for. 
E  nam  queira  por  amor  de  nosso  s8r  ir  mais  com  iste  adiante  por  que 
nam  houve  cousa  que  mais  danasse  Alemanha  e  depois  a  Fran9a  que 
querem  escoadrinhar  multo  as  cousas  e  dalas  a  entender  ó  povo; 
cubram  iste  caladamente,  e  concedam  &s  letras  tres  homens  que  tanto 
as  honravam  e  alevantavam  n'este  reino.  E  pois  todo  mundo  sabe  comò 
nestes  tres  annos  vivemos  em  Coimbra  quantos  exemplos  de  virtude 
de  nós  demos  e  quam  bons  catholicos  e  verdadeiros  christSos  somos 
cuide  0  mundo  comò  pode  cuidar  que  a  todos  os  homens  vem  traba* 
Ihos  e  que  pintavam  polla  ventura  as  cousas  mais  feas  de  que  herSo  e 
que  0  arripindimento  siguio  a  culpa,  e  ainda  que  pareya  iste  fora  do 
que  se  accustuma,  tenhasse  algum  respeito  a  nossas  pessoas  e  a  nossas 
letras,  por  que  se  uns  querem  e  vai  iste  a  ho  cabo  comò  sSo  cousas 
de  tSo  longos  tempos  e  de  tam  longas  terras,  nunqua  se  acabarSo  e 
nos  deixaremos  de  fazer  multo  serviyo  a  ds.  e  a  ho  reino.  Principal- 
mente sendo  manifesto  a  muitos  que  a  major  parte  dos  portuguezes 
que  em  Paris  estavam  tanto  pollo  Doutor  veiho  corno  por  enveja  que 


0  COLLEGIO  REAL  547 

tinham  a  hos  de  Bordeos  por  quo  vift  que  herS  favorecidos  de  S.  A. 
BOB  queriam  grande  mal.  A  isto  se  ajontoa  ine  Mestre  Diego  do  Col- 
legio, o  que  tem  pera  si  ser  por  nesso  meo,  mas  de  tado  Db.  e  S.  A. 
sabem  a  verdade. — DiOGO  de  Teiye. 

«Quanto  a  minha  conversa^fto  em  Paris,  da  qual  a  primeira  tes- 
temunha  e  as  tres  seguintes  fallam,  eu  conversei  em  Paris  com  os  mais 
hSrradoB  homens  da  Universidade,  .s.  muitos  doutores  em  Theologia 
e  publicos  leitores  de  Leis;  nem  tinha  rezSo  ninguem  de  fogir  de  mi- 
nha conversa9&o.  As  pessoas  que  cSmumente  em  Paris  conversei  sSo 
estas:  o  Doutor  Mestre  Dioguo  de  Gouvèa  que  bora  està  nesta  cidade, 
o  Dr.  Paio  Rodrigues,  o  Dr.  Mestre  Alvaro  da  Fonseca,  o  Dr.  Mestre 
Mongdos,  nesso  Mestre  Jo&e  principal  do  Collegio  Dareoourt,  (d'Har- 
<20urt)  nesso  Mestre  Combert  e  seu  irmSo  religioso,  tambem  doutor  em 
Theologia;  nesso  Mestre  BoutrS,  Monsieur  Tomebus,^  Mons.  Estrase- 
lius,  Galandius  principal  de  BScourt;^  Mestre  Miguel  Garnier  princi- 
pal do  Collegio  de  Plessi,  o  Doutor  Lopo  SerrSo  medico.  Tambem 
conversei  com  algSs  homSs  mancebos  estudiosos  de  letras  gregas,  que 
naquelle  tempo  erS  sospeitas  a  algumas  pessoas  que  tem  cSmumente 
por  sospeitos  todos  os  homSs  bons  latinos  e  gregos.  Quanto  ao  que  diz 
que  negociava  as  cousas  dos  luteranos  o  Doutor  veiho  suscitou  està  sua 
opiniSo  contra  Mestre  André  e  os  que  com  elle  estavam  e  pubricamente 
Ihes  chamava  a  todos  luteranos.  Os  negocios  que  eu  fiz  forSo  vir  a 
Paris  em  servilo  de  elrej  n.  s.  e  ajuntar  os  lentes  que  vierSo  a  Coim- 
bra  e  buscar  as  milhores  matrices  que  se  entZo  poderSo  achar  em  Pa- 
ris, as  quaes  trouxe  e  dellas  se  usa  em  Coimbra.  E  se  eu  tal  fama  te- 
vera  comò  querem  dizer  estas  testemunhas  nS  me  rogara  a  mim  muitas 
vezes  Mestre  Dioguo  de  Gouvéa  o  velho  e  seu  sobrinho  que  nesta  ci- 


1  Adrien  Tamebus,  (1512-1565)  um  dos  maiores  emditos  da  Renascen^a  ; 
ensinou  bellas-letras  na  Universidade  de  ToIoBa,  em  1533,  vindo  substituir  seu 
mestre  Toussain  na  cadeira  de  grego  no  Collegio  de  Franca  ;  todos  os  critìcos  da 
RenascenQa,  Montaigne,  Pasqnier,  THopital  Camerarius,  Scaligero  e  Scioppius,  aio 
eonformes  em  admirar  o  Ben  vasto  saber  e  lucìdez  na  regencia  da  cadeira  e  na  in- 
terpreta^ao  dos  classicos  gregos  e  latinos.  Pendia  para  as  dontrinas  da  Reforma. 
TumebuB  regentou  no  Collegio  de  Santa  Barbara,  em  1538  quando  o  portugaez  An- 
tonio Pinbeiro  largou  a  cadeira  da  Rhetorìca  para  frequentar  o  curso  de  Theolo- 
gia; d*alii  passou  para  o  Collegio  de  Franca  em  1547.  fQuicherat,  Eistoire  de 
Sainte-Barbe,  1. 1,  p.  245  a  249.) 

3  Pierre  Galland,  (1510-1559)  Mestre  em  Artes  em  1537,  foi  pftncipal  do  Col- 
legio de  Boncourt  em  1538,  e  em  1545  profesBor  de  Eloquencia  no  Collegio  de 
Franca. 

35* 


548  HISTORIA  DA  UKIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

dade  està,  que  lesse  na  prìmeira  classe  no  Collegio  de  Santa  Barbara, 
pollo  que  se  mostra  craramente  que  tinham  elles  de  mim  boa  opiniSo. 
Quanto  a  Sàmartìnho  jà  confesse!  que  conversara  com  elle,  e  que  fora 
preso  por  bus  libellos  defamatorios  corno  se  dezia,  e  nam  por  caso  de 
beresia,  dos  quaes  se  livrou,  e  eu  o  yì  depois  em  Paris  doutor  em  Me- 
dicina e  casado  bSrradamente.  Quanto  a  bo  que  diz  a  quarta  testemu- 
nba,  que  passando  certas  pessoas  por  Bordeos  Ibe  escreverSo  bua  ou 
duas  dellas  de  certas  cousas  que  passarlo  com  os  do  Collegio  de  Bor- 
deos, sintindo  d'elles  que  sintiam  mal  da  fee,  estes  que  as  taes  cousaa 
escreverSo  ouverSo  de  ser  perguntados  e  decraradas  e  examinadas  as 
praticas  que  se  tratarSo.  Eu  verdadeiramente  de  tal  disputa  nam  so 
lembrado. 

e  Quanto  a  bo  quinto  testemunbo  escripto  em  latim  nam  pode  dei- 
xar  de  ser  de  algum  meu  imigo  mortai,  visto  as  cousas  tam  graves  e 
tam  abominaveis  que  me  asaca  centra  toda  verdade;  o  qual  segundo 
meu  parecer  be  bu  Susaneo  muito  mào  bomem,  ou  outra  algua  por  elle 
sobornado.  Este  Susaneo  me  quer  muito  grande  mal  corno  jà  disse  a 
vv.  mces,  e  eu  pelejei  com  elle  e  Ibe  dei  muitas  punbadas  e  bofetadas 
em  Paris  junto  das  Escolas  do  Decreto.  Este  testemunbo  quer  seja  de 
Susaneo  quer  de  outro,  tras  cSsigo  a  contradita,  por  que  a  rezSo  que 
da  pera  provar  que  so  daquella  scita,  be  dizer  que  eu  fui  muito  fami- 
liar  de  Dolete.  Considerem  vv.  mces  por  amor  de  nesso  s3r  iste  e  assi 
Ibo  requeiro  da  parte  de  Ds  por  que  està  be  a  mayor  falsidade  que 
nunqua  se  disse.  Vossas  mces  bà  de  saber,  e  assi  Ibo  juro  jper  deum 
trinum  et  unum,  que  eu  nunqua  vi  Doleto,  ^  nem  o  conbeci,  nem  creo 
que  me  cbeguei  junto  donde  elle  residia  cem  legoas,  por  que  ó  tempo 
que  estava  em  Tbolosa  (1532)  estava  eu  em  Salamanqua  e  bora  muito 
mo$o,  e  quando  vim  a  Tbolosa  (1537)  jà  passava  de  tres  annos  que  elle 
bera  fora  e  diziasse  que  estava  em  LiSo,  e  era  livreiro  e  imprimidor, 


1  Diogo  de  Teive  deiende-se  da  accusa^ào  de  ter  tido  rola9oes  com  Etienne 
Dolet,  o  celebre  humanista  francez,  que  por  ter  traduzido  ama  phrase  do  Dialogo 
de  Platùo  Axiochus,  que  a  Faculdade  de  Theologia  de  Paris  julgou  heretica  con- 
forme ao  espìrito  dos  Saduceoe  e  dos  Epicuristas,  foi  condennado  à  morte  e  quei- 
mado  yìvo  na  pra^a  Maubert  em  3  de  agosto  de  1546.Tambem  se  considera  comò 
uma  das  causas  da  sua  condemna^ao  o  ter  impresso  em  1544  a  historia  de  Gar» 
gantua  e  de  Pantagrud.  Os  trabalhos  a  que  se  refere  Diogo  de  Teive  fi  itos  por 
Dolet  em  Lyon,  eao  o  Commentariorum  Linguae  Latinae,  (1536-1538)  em  2  voi. 
in-fol.  O  gran(](e  humanista  dedicara-ae  tambem  a  tjpographia  comò  Henri  Etienne; 
a  sua  morte  é  uma  das  maiores  affroutas  &  humanidade  feita  pela  reac^Io  religiosa 
que  perturbou  a  transforma^ào  intellectuai  do  seculo  xvi. 


0  COLLEGIO  RE  AL  549 

onde  sempre  residio  até  que  o  prenderlo  (1542).  E  eu  nunqua  fui  enL 
LiSo,  e  0  tempo  que  o  prenderlo  eu  estava  em  Bordeos,  no  que  se 
mostra  a  grande  falsidade  e  malicia  desta  testemunha  quem  quer  que 
he;  e  desta  testemunha  parece  que  tomou  Fr.  JohSo  Pinheiro  o  que 
diz  no  testemunho  acerqua  deste  negocio. — Doime  o  cora9lLo  de  falar 
e  cuidar  cousas  tam  feas,  por  amor  de  nosso  s3r  Jhs.  Christo  pe90  a 
vv.  mces  que  queirSo  olhar  minha  vida^  meus  estudos  e  recolhimento, 
o  bom  exemplo  que  de  mim  sempre  dey  e  comò  vivi  em  Coimbra  e 
insinei,  que  sempre  trabalhei  mais  por  ensinar  o  amor  de  ds  que  as 
letras,  e  todas  as  vesperas  de  festas  solenes  trazia  hSa  oraflo  cuidada 
que  dizia  a  hos  meus  discipulos  adhortandos  que  se  confessassem  e 
preposessem  a  todas  as  cousas  o  servÌ90  de  nosso  s3r.  Està  foj  sem- 
pre minha  doutrina,  isto  cata  o  que  fiz  e  o  que  escrevi,  isto  me  deixa- 
rfto  meus  avós  por  heran9a;  isto  aprendi  dum  pay  e  dua  m&j  que  te- 
nho  velhos  os  quaes  ds.  quis  goardar  a  té  agora  pera  receberem  a 
major  dor  que  pode  ser  donde  esperavSo  a  major  consoIafSo.  E  pera 
eu  mais  sentir  meus  trabalhos  e  afflif&o  nosso  sSr  por  sua  santa  mi- 
sericordia me  receba  todos  estes  meus  trabalhos  em  descSto  de  meus 
pecados. 

«Neste  nono  testemunho  se  contem  muitas  cousas  is  quaes  bre- 
vemente responderei;  diz  que  Ihe  dice  hum  moyo  que  eu  com  outros 
Mestres  e  com  dous  mo908  fidalgos  comi  carne  bua  sesta  feira^  que  he 
grande  falsidade;  ouverSono  de  preguntar  a  ho  mo90  e  os  mo908  fidal- 
gos. Diz  mais  que  sesta  feira  dendoen9as  da  derradeira  coresma  ouvira 
dizer  que  comi  carne  com  outros  Mestres  em  Coimbra;  verdadeira- 
mente  nSo  sei  comò  possa  ser,  por  que  o  tal  tempo  eu  estava  em  Braga 
em  casa  de  meu  paj  e  parti  pera  la  o  sabado  de  ramos  e  tornei  pera 
Coimbra  depois  da  Pascoella. . . 

«Quanto  a  ho  que  diz  que  nos  vio  almor9ar  sesta  feira  dendoen9a8 
he  verdade  que  estando  Mestre  Jorge  muito  faminto  por  que  saira  dtta 
doen9a  muito  grande,  depois  do  officio  no  Collegio  acabado,  estando 
nós  em  casa  de  Mestre  JohSo  da  Costa,  onde  aquelle  dia  jantàmo8| 
come90u  de  comer  o  dito  Mestre  Jorge  passeandosse  polla  casa  espe- 
rando pollo  jantar  e  logo  por  seu  respeito  nos  posemos  è,  mesa,  e  bem 
me  parece  que  herS  antes  das  horas.  Isto  segundo  minha  lembranga 
passou  asi.  Quanto  a  ho  romance  j&  o  tenho  confessado  mas  nam  me 
pode  lembrar  que  difinisse  trinta  annos  porque  nem  o  exempro  que 
XenophSte  tras  de  Hercoles  diz  que  veo  àquelles  dous  caminhos  omde 
topou  a  Verdade  e  a  Deleita9So  senam  in  aetaie  pubertatìa  podesse  muy 


j 


550  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  D£  C0IM6RA 

bem  ainda  o  dito  Romance  achar,  e  se  tal  disse  seria  c5  maita  ira^ 
por  que  cada  dia  nos  tiravSo  os  apostoloB  os  estudantes  jidalgos  do  Cd' 
leffio.  A  ho  que  diz  Pero  Arriques  me  contrariou  este  romSce  tal  ver* 
dadeiramente  me  nSo  lembra  nem  elle  tal  creo  dirà.  Do  costume  diz 
que  tevera  cSmigo  aIgSas  rezSes  mas  que  agora  era  meu  amigo;  os 
amigos  ireconciliados  em  Portugal  comumente  sSo  piores  que  inimigos 
porque  com  aquellas  dissimnlafSes  de  falsas  amisades  cobrem  o  odia 
que  tem  escondido  e  assi  estSo  esperando  occasiSo  de  algua  YÌngan9ay 
e  porém  se  elle  bem  olbara  a  doutrina  que  eu  dei  a  hos  seus  e  as 
boas  amisades  que  Ihe  eu  fiz  nam  me  dera  occasiSo  a  Ihe  eu  dizer  que 
hera  ingrato. 

cNeste  tempo  pouco  mais  ou  menos  estive  muito  doente  de  colica, 
e  logo  depois  saltarlo  cSmigo  febres  e  fui  duas  vezes  sangrado  e  pode 
ser  que  convidasse  està  pessoa  a  peda$os  de  perdiz,  e  trabalhei  muito 
cSmigo  por  o  trazer  a  memoria,  e  nunqua  me  pode  lenbrar  nem  ainda 
em  Coimbra.  Nem  a  testemunha  diz  que  eu  de  tal  perdiz  comesse. 
Diz  mais  que  ouvio  dizer  que  eu  andei  dizendo  em  Bordeos  proposi- 
gSes  erroneas  e  nam  dis  quaes  forSo,  e  que  fui  disse  perdoado.  Sres. 
se  tal  cousa  no  mundo  se  achar  eu  quero  sofrer  toda  pena.  Nunqua 
fui  accusado,  nunqua  chamado  em  juizo,  nem  tam  somentes  pera  dar 
hu  testemunhOy  e  se  alguem  de  mim  tem  algua  sospeita  sera  polla  fama 
que  Mestre  Diogo  de  Gouvea,  o  velho,  tem  deitada  de  Mestre  André 
seu  sobrinho^  e  dos  que  com  elle  esteverS;  as  deferenyas  qiie  cSmigo 
teve  forSo  ameasarme  de  me  matar  e  a  Mestre  JohSo  da  Costa  e  vir  a 
ho  Collegio  com  espada  debaixo  da  loba,  e  dar  com  ella,  e  as  causas 
da  defferen9a  sabeas  toda  Coimbra  onde  o  muito  bem  conhecem. 

cJà  tenho  confessado  que  muitas  vezes  ceei  em  dias  de  jejum,  e 
nam  pude  jejuar  por  causa  dos  muitos  trabalhos  que  sempre  tive  no 
Collegio,  (os  meus  trabalhos  eram  muito  grandes,  que  lia  scia  horas 
cada  dia,  n3  me  lembra  almor9ar  seis  vezes  em  todo  o  tempo  que  es- 
tive em  Coimbra.)» 

O  processo  de  Diogo  de  Teive  terminou  em  14  de  setembro  de 
1551  y  mandando-se-lhe  por  sentenya  fazer  acto  publico  de  abjuraySo 
dos  seus  erros,  e  sondo  em  seguida  enviado  para  o  Mosteiro  de  Belem, 
para  fazer  penitencia  e  ser  doutrinado,  ficando  em  clausura  até  quando 
ao  Conselho  do  Santo  Officio  parecesse.  Foi-lhe  porém  dada  em  22  de 
setembro  d'esse  mesmo  anno  por  cumprida  a  doutrina$ao  e  peniten- 
cia, voltando  para  Coimbra,  onde  Ihe  estava  reservada  a  affironta  de 
ser  elle  proprio  que  havia  de  fazer  a  entrega  do  Collegio  real  aos 
Jesuitas. 


0  COLLEGIO  REAL  55  i 

O  processo  de  Mestre  JoSo  da  Costa  nSo  é  menos  importante  do 
que  o  de  Diogo  de  Teìve  ;  jà  d'elle  deixàmos  transcrìptas  algumas  pas- 
sagens  sobre  o  modo  comò  vieram  para  Portagal  os  mestres  francezes, 
e  corno  era  a  vida  interna  do  CoUegio  reaL  Limitamo-nos  por  tanto  a 
extrair  as  passagens  do  libello  e  contrariedade  que  se  referem  aos  li- 
vros  prohibidos  achados  em  poder  do  activo  sub-principal,  e  ao  de- 
poimento  do  velho  Doutor  Diogo  de  Gouvéa,  qae  pelo  seu  fanatismo 
senil  accusava  de  lutheranos  todos  os  amigos  de  seu  sobrinho  André 
de  GouTéa.  O  processo  centra  os  lentes  do  Collegio  real  comecara 
mnito  de  longe  ;  talvez  fdra  essa  a  causa  da  morte  repentina  de  André 
de  Gouvéa  ao  saber  do  odio  de  seu  tio.  De  Lisboa  foi  mandada  com 
data  de  17  de  outubro  de  1549  urna  precatoria  para  Paris,  onde  se 
achava  o  Licenciado  Braz  de  Alvide  em  missSo  diplomatica,  para  in- 
terrogar diversos  doutores  àcerca  de  Joào  da  Costa,  Diogo  de  Teive 
e  Jorge  Buchanan.  Procedeu-se  ao  interrogatorio  em  27  de  novembro 
de  1549,  cujo  conteudo  serviu  para  architectar  o  processo.  Copiamo» 
aqui  o  testemunho  do  velbo  Doutor  Diego  de  Gouvéa,  para  se  vèr 
comò  era  explorado  o  odio  senil  centra  o  sobrinho  jà  fallecido  com 
tanto  que  servisse  de  instrumento  para  lan9ar  os  lentes  fora  do  Colle- 
gio real: 

«O  doutor  Mestre  Diogo  de  Gouvea  4.*  t.*  perguntado  pelo  con- 
theudo  na  dita  provisSo — distse  que  era  verdade  que  elle  conhecia 
Mestre  Jo3o  da  Costa  portuguez  o  qual  fora  escholar  del  Rei  nesso  s3r, 
e  discipulo  de  hum  Kegente  que  fora  do  seu  Collegio  de  Santa  Barbara 
chamado  o  Cops  '  mèdicO|  que  por  outro  mestre  regentara  no  Collegio 
do  Cardeal  Moine,  o  qual  Mestre  André  sobrinho  d'elle  o  metera  no 
seu  Collegio  estando  elle  em  Portugal,  o  qual  Cops  era  grande  luthe- 


1  0  Doutor  Diogo  de  Gouvéa  referia-se  a  Mestre  Nicoiào  Copus,  que  em 
1533  era  mestre  de  Philosophia  no  Collegio  de  Santa  Barbara  ;  sobre  este  regente, 
escreve  Qnicherat,  na  obra  jà  tantas  vezes  citada  :  «Uma  das  cadeiras  de  philo- 
sophia era  entSo  occupada  em  Santa  Barbara  por  Nicolio  Copua  ou  Kopp,  allem2o 
de  origem,  mas  francez  de  nascimento,  porque  era  filho  do  medico  de  Francisco  i, 
Gnilherme  Kopp,  nm  dos  antigos  e  gloriosos  sustentaculos  da  Universidade  de 
Paris.  £8te  Nicolào  Kopp  adherin  a  Calvino,  a  ponto  de,  ao  ser  nomeado  reitor 
para  o  ultimo  trimestre  do  anno  de  1533,  nSo  via  n'esta  honra  senSo  nm  ensejo  de 
servir  as  idéas  de  seu  mestre  e  de  encaminhar  a  Universidade  para  a  Beforma.» 
(Histoire  de  Sainte-Barbt,  1 1,  p.  214.)  Tendo  de  pregar  no  dia  de  Todos  os  San- 
tos,  na  egreja  dos  Mathurìn,  diante  do  corpo  docente,  os  franciscanoa  denunciaram 
as  suas  idéas  heterodozas,  e  quando  iam  para  prendel-o,  largou  os  vestes  douto- 
xaes  e  fugiu,  indo  refugiar-se  em  B&le. 


1 


552  HISTOBIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  COIMBRA 

rano  corno  està  prò  vado  por  justÌ9a  na  corte  do  parlamento  desta  vila, 
e  depoìs  viu  elle  testemunba  conversar  o  dito  Mestre  JoSo  da  Costa 
com  OS  frades  da  terceira  ordem  de  San  Francisco  deste  Regno  os 
quaes  todos  sSlo  avidos  por  grandes  luteranos^  donde  elle  testemunha 
sempre  teve  sospeita  que  pela  dita  conversa9ào  o  dito  Mestre  Jo2Lo  da 
Costa  com  elles  e  depois  se  foy  a  Ouvemia,  onde  teda  a  terra  estava 
gastada  deste  mal  do  Luther^  e  dahi  se  £07  a  Bordeos  estando  em 
companhia  do  dito  Mestre  André  e  de  Mestre  JoSLo  Gelida  e  de  Mes- 
tre Jorge  Escossez,  e  Regnaut  Piloet;  que  segando  0  que  dizem  he 
grande  luterano  segando  Ihe  ja  ouvio  dizer  ao  Doutor  Mestre  Nicoldo 
MongdoB  ^  ao  qual  mesmo  ouvio  dizer  que  todos  os  nomeados  n5  vali! 
nada.  Diz  mais  elle  testemunha,  da  conversa9So  d' elles,  muitos  homens 
de  bem  e  bons  christlos  eram  mal  edificados  quanto  a  està  seita,  se* 
gundo  ouvio  dizer  ao  padre  de  Supersanctis,  commissario  da  observan- 
eia  da  Gascunha  e  Fr.  Clement  Faract  da  mesma  ordem,  e  ao  segando 
presidente  de  Bordeos  chamado  Decalvinos,  0  qual  presidente  Ihe  di- 
xera  que  0  Collegio  de  Bordeos  era  uma  Casa  de  perdÌ9llo  de  toda 
Gascunha. 

cE  quanto  a  Mestre  Diogo  de  Teive  nSo  sabe  elle  testemunha  ou- 
tra  cousa  semente  velo  sempre  conversar  com  os  sobreditos  Mestre 
Andre  e  Gelida  e  estar  sempre  no  Collegio  de  Bordeos  e  negocear  os 
negocios  do  dito  Mestre  Andre. 

«Quanto  a  Mestre  Jorge  Escoces  que  està  no  Collegio  de  Coim- 
bra,  ouvio  elle  testemunha  dizer  que  fugira  de  Escossea  por  hereje  e 
Judeu,  dizendo  que  podia  celebrar  0  agno  paschal  com  os  cinque  que 
com  elle  usSo  d^esta  heresia,  os  quaes  todos  cinque  foram  queimados 
vivos  e  por  o  dito  Mestre  Jorge  ser  Mestre  de  hum  filho  do  rei  da 
Escossia  Ihe  foy  dado  perdio,  bua  casa  donde  fugiu  e  veiu  ter  a  està 
cidade  ha  para  seis  ou  sete  annos  pouquo  mais  ou  menos,  onde  o  Car- 


1  0  Ben  nome  era  Nicolào  Hirigaray,  naturai  da  aidca  de  Mongelos,  na  Bis- 
caya.  D*elle  escreve  Granllieur,  quando  narra  o  modo  corno  se  introduziu  no  go- 
verno do  Collegio  de  Guyenne  por  auctoridade  de  Henrique  11,  contra  a  elei^So 
de  Elie  Vinet:  «Nascerà  na  terra  basca,  no  burgo  de  Mongelos,  de  que  tomara  o 
nome,  mais  fìicil  de  reter  do  que  0  een;  doutor  em  Theologia  pela  Universidade 
de  Paris,  sem  ter  0  merito  de  Elie  Vinet,  nSo  era  destituido  de  erudi^fto,  porque 
tinha  side  professor  de  philosophia  no  Collegio  de  Lisieuz,  illustrado  por  Jo2o  de 
Tartas,  depois  no  Collegio  de  Santa  Barbara,  onde  regera  a  classe  de  Physica  em 
1&S9-1540.  N'esta  epoca  foi  procurador  da  naQào  de  Franca.»  (Histoirt  du  Collège 
de  Guyenne,  p.  247.)  0  seu  exaggerado  fanatismo  approzimara-o  do  Doutor  Diogo 
de  Grouvéa. 


0  COLLEGIO  REAL  553 

deal  da  Escossia  que  estava  aqaì  por  embaixador  o  quisera  fazer  pren- 
der; e  o  dito  EscoBses  se  salvou  e  se  foy  a  Bordeos  donde  foy  para 
Portugal,  o  que  tudo  elle  t.^  ouviu  dizer  ao  doutor  Mestre  Sìnson ...» 

No  libello  contra  Mestre  Johào  da  Costa:  «Entendo  provar,  que 
sendo  em  Coimbra  por  duas  vezes  pubricado  o  Boi  dos  Livros  suspei- 
to8  e  defezos  pollo  Cardeal  Infante  noso  sn5r,  e  fixado  às  portas  da  see 
da  dita  cidade;  e  sabendo  o  R.  e  tendo  o  treslado  delle,  elle  R.  n5 
deu  nem  entregou  os  livros  defezos  que  tinha,  segando  era  obrigado 
fazer,  antes  ao  tempo  qae  foy  preso  Ihe  forS  tomados  e  achados  na  sua 
camara  os  livros  siguintes:  It.  precaiides  christans,  Unio  dissidcintium, 
praxis  divine  scripture,  annotatlones  Sebastiani  Mosteri,  Evangelia  math. 
a  bribia  em  linguagem  frances,  os  quaes  livros  todos  sam  lutheranos 
e  reprovados  pollo  que  outrosi  incorreo  em  excommunhào  que  foy  posta 
a  quem  tivesse  os  ditos  livros  e  os  nao  entregasse  logo,  na  qual  excom- 
munhSo  se  leixou  andar  elle  R.  por  mais  de  hu  anno  por  haver  mais 
de  bu  anno  que  foy  pubricada  na  dita  cidade  a  provisi  de  sua  alteza 
sobre  os  ditos  Livros  c3  pena  de  excommunhSLo  Pollo  que  elle  R.  deve 
ser  avido  por  pessoa  apartado  da  fee  e  que  sinte  mal  della  e  das  in- 
stituiySes  e  determinajSes  da  santa  madre  egreja.»  Defende-se: 

«Entende  provar  que  elle  reo  nSo  soube  dos  livros  defezos  nem 
foy  denunciado,  e  elle  pidio  ao  doutor  Mestre  Payo  corno  t§  confessado 
e  forào  tantas  suas  acupajSes  e  as  deferen9a8  que  teve  e  trabalhos  com 
Mestre  Diogo  de  Gouvea  e  com  vir  tres  vezes  a  està  corte,  que  nun- 
qua  teve  tempo  nem  vagar  para  revolver  seus  livros  e  os  cotejar  com 
ho  rol,  desejandoho  multo,  nem  pidio  o  rol  a  Mestre  Payo  c5  outra 
enteuQào,  e  diz  que  nunqua  Ihe  pareceo  que  tinha  livro  nenhum  de- 
feso,  por  que  logo  ho  queimara  ou  o  entregara,  pollo  que  Ihe  parece 
que  nSo  errou,  e  se  errou  e  incidise  em  excommunhSU)  pede  que  ho 
absolvào ....  9 

Entre  as  testemunhas  de  defeza  que  Mestre  JoSo  da  Costa  apre- 
senta, do  tempo  que  esteve  em  Fran9a,  vem  os  seguintes: 

Mestre  SymSo 
Mestre  Gonyalo  Medeiros 
Doutor  SebastiSo  Ruyz 
Doutor  Antonio  Pinheiro 
Doutor  Dom  Christovan  de  Mello 
Mestre  Antonio  Mendes 
Mestre  Jacques  Tapia 
Antonio  Portano. 


554  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIBIBRA 

< A  primeira  vez  que  ouvy  fallar  em  lutheranos  foy  em  Paris^  no 
tempo  que  ali  preguava  hu  clerigo  da  rainha  de  Navarra  por  nome 
Mestre  Gerardo,  o  qual  ea  nunqua  yì,  nem  oavi;  dizia-se  comnmente 
que  este  era  luterano.  O  prìmeiro  homem  que  ouvi  fallar  mal  foy  hS 
allemào  ja  homem,  que  andaTa  no  curso  das  Artes  onde  eu  andava; 
dÌ86e-me  huma  vez  no  Collegio  de  Santa  Barbara,  que  mais  folgava  de 
ler  bua  foiba  do  Novo  Testamento  que  ouvir  bua  missa,  e  me  ebamou 
algumas  vezes  papista;  eu  era  moyo,  nSo  attentava  nisso,  nSo  o  accusei 
nem  disse  nada  a  ninguem. 

«Lembra-me  que  parti  de  Paris  c3  liceD(a  do  doutor  velbo  Mestre 
Diego  de  Gouvéa  pera  Ouvergne  (Auvergne)  pera  ler  em  Issoyre,  e 
fuy  em  companbia  de  um  Mestre  Antonio  de  Reje  frances,  que  tam- 
bem  bla  pera  ler  na  dita  villa. . . . 

«Logo  me  fui  pera  Orleans,  que  està  d^ali  quinze  legoas,  onde 
estive  dous  annos  ;  abi  veo  ter  um  mancebo  naturai  da  villa  per  nome 
Mestre  J.^  des  Periers,  que  estiverà  em  Allemanba  e  sabia  latim  e 
grego  ;  os  consules  da  villa  o  tomaram  pera  ler  tambem  nas  escollas 
onde  eu  lya,  e  o  avogado  delrey  o  tinba  em  sua  casa  e  Ibe  insinava 
bum  filho.  Este  mancebo  muitas  vezes  vinha  a  minba  casa  e  me  mos- 
trou  bum  livro;  o  titulo  era  Lambertus,  Super  Cantica  canticorum,  e 
algumas  vezes  me  leo  delle  e  me  gabava  muito  outras  obras  de  Lam- 
berto e  me  dizia  que  fora  frade  de  Sam  Francisco  e  escrevera  centra 
OS  da  sua  ordem  que  tinbSo  muita  riqueza. . . . 

cLembra-me  que  vim  d'Orlels  a  Bordeos  cbamado  de  Mestre  An- 
dré, e  sempre  em  Bordeos  vivi  dentro  do  Collegio,  e  sempre  em  essas 
pousadas  comy  e  beby  muitas  vezes  com  Mestre  André  e  converse! 
com  elle  e  nunqua  delle  ouvy  cousa  que  fosse  centra  a  nossa  fé  e  cen- 
tra 0  que  manda  a  santa  madre  Igreja.  Foy  acusado  bua  vez  de  lute- 
rano per  madama  Marta  d'Astrae  princesa  de  Candalla,  e  foy  desta  ma- 
neyra:  Tinba  elle  Mestre  André  em  sua  casa  no  Collegio  dous  filhos 
do  principe  de  Candalla  que  era  fallecido,  bu  se  cbamava  Cbarles  Mo- 
senor  e  outro  CbristovSo  Mosenor,  a  mSy  andava  em  demanda  com  o 
filho  morgado  e  desejava  de  ter  estes  mininos  consiguo  pera  ter  resSo 
de  pidir  suae  legitimas  que  estavSo  em  poder  do  irmSo;  fez  uma  peti- 
9%o  ao  parlamei^to  dizendo  que  seus  filhos  estavam  muito  mal  no  Col- 
legio cbeoB  de  sama  e  nSo  corno  filbos  de  quem  eram,  e  estavam  em 
poder  de  Mestre  André  que  era  bomem  suspeito  na  fee  e  luterano.  Foy 
dada  a  vista  da  pitÌ92o  a  Mestre  André,  respondeu  a  ella  e  tratouse 
grande  demanda,  sayo  sentenga  por  Mestre  André  centra  a  princesa 


0  COLLEGIO  REAL  555 

de  Candalla  muito  aspera,  a  qnal  sentenga  esti  escripta  em  ha  livro 
grande  que  ora  està  em  poder  de  Francisco  Barradas  em  que  Mestre 
André  mandava  assentar  as  cousas  notaveis  do  Collegio  per  mSo  de 
notano  publico.  Nem  jà  lente  do  Collegio  em  quanto  ea  aly  estive  foy 
accusado  semente  ha  mogo  criado  de  ha  estadante  foy  accasado  e  con- 
denado  no  parlamento,  qae  Ihe  dessem  a  salla  no  Collegio,  o  qaal  sendo 
Mestre  André  aosente  me  fuy  trazido  per  ha  conselheiro  e  hu  huchier 
e  ea  ajontei  todos  os  lentes  e  oavintes  e  Ihe  dey  a  salla  em  pablico. 
Depois  disto  forSo  accasados  deus  estadantes  do  dito  Collegio,  e  pre- 
SOS,  mas  lego  os  soltarSo.  Oavy  ea  dizer  qae  no  tempo  antes  qae  ea 
viesse  ao  Collegio,  oave  nelle  ha  lente  qae  se  chamava  Zebedeu  e  ou- 
tro  qae  tinham  ma  fama  e  se  forSo  daly,  e  oste  Zebedea  fiqaara  do 
tempo  de  Tartas,  qae  foy  o  primeiro  prìncipal  do  Collegio. 

<Lembra-me  qae  qaando  nos  ajantavamos  na  Universidade  de 
Bordeos  praticava  maitas  vezes  com  os  doatores  e  argamentavamos 
sagrada  Escriptara  principalmente  ea  e  doas  theologos,  nesso  Mestre 
de  Arrìsio  e  do  Gaardesio.  Tambem  argamentey  em  conclasSes  pabri- 
cas  e  algas  dos  argamentos  me  lembram. 

cLembra-me  que  tive  em  Bordeos  os  Colloquias  d'Erasmo  e  Amo- 
ria  e  comò  soabe  qae  erSo  defesos  qaeimeyos.  Tive  tambem  o  Ecde- 
siattes;  agora  o  nSo  tenho,  nSo  me  lembra  o  qae  fiz  delle;  nSo  sei  se 
he  defeso.  Tive  os  artigos  da  Sorbona  grosados  em  frances  oa  em  la- 
tim  grosseyro  nSo  me  lembra  bem  e  qaeymeios  todos  haa  vez,  mas 
de  nenhna  coasa  910  lembra,  semente  d'am  argamento  sobre  0  Parga- 
torio  e  he  este:  opera  dei  sunt  perfecta,  ergo  si  Deus  toUit  cìdpam  et 
poenam  quae  debetwr  culjxxe.  Tenho  a  Bibita  em  frances  qae  comprey 
pera  mandar  ao  doator  Jorge  Nanes  qae  m'a  encommendoa  qaando 
estava  nos  Jaizos  de  Baiona,  desfizeraose  os  Jaizos  e  elle  veose  nSo 
Iha  mandey  nem  oatro  livro  em  leis  qae  tinha  para  Ihe  mandar  que  me 
elle  tinha  encommendados.  Tenho  am  volume  Dissidentium  nao  sey  se 
he  livro  defeso;  em  Franga  vende-se  pubricamente  outro  livro  de  lu- 
terano, que  nSo  tenho  nem  tive  nunqua. 

«Este  septembro  fari  tres  annos  que  estou  em  Coimbra  e  servi 
sempre  Elrey  nosso  sSr  na  govemanga  e  administras^o  do  seu  Col- 
legio das  Artes  e  muytas  vezes  amoestey  os  ouvintes  e  collegiaes  delle, 
e  OS  fago  confessar  seis  vezes  no  anno.  • . . 

«Disse  a  alguns  meus  collegiaes  que  se  nào  metessem  apostollos, 
que  no  Collegio  aprendiSo  e  serviSo  a  nosso  sSr,  e  que  nSo  tinhSo 
aynda  idade  pera  poderem  escolher  avida  mais  santa;  que  em  outras 
religiSes  se  podiam  tambem  salvar  comò  naquella,  e  mais  que  aquella 


556  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  COIMBRA  i 

ainda  nào  tinha  forma  de  religiSLo,  e  que  la  nSo  chamavSo  senKo  os  ri-  I 

quos  0  nào  os  pobres. 

aOntem,  que  forSLo  XX  dias  deste  mes  dagosto  me  perguntarSo 
vv.  mm.  se  me  lembrava  ter  algu  livro  defeso  alem  dos  que  jà  tinha 
decrarados;  respondi-lhe  que  dalgus  me  lembrava  que  eu  nSo  vy  certo 
serS  defesos,  que  eu  os  poria  em  rol  e  o  daria  a  vv.  mm.,  o  que  fis. 

«Lembra-me  que  estando  eu  em  Coimbra  parejeme  que  foy  de- 
pois do  fallecimento  de  Mestre  Andre  me  fuy  a  casa  do  doutor  Mestre 
Paio  Roiz  e  Ihe  perguntey  se  tinha  elle  o  Cataloguo  dos  livros  que  erSo 
defesos  nestes  reinos  polla  sancta  InquisÌ9Slo;  elle  me  disse  que  si  ti- 
nha, roguey-lbe  que  m'o  mandasse  emprestar,  que  queria  ver  se  avia 
algu  defeso  antro  os  meus  livros;  emprestou-m'o  elle  e  eu  o  fiz  tres- 
ladar  e  lembra-me  ho  tresladou  hum  collegial  per  nome  Hector  Nunes 
de  Goes,  filho  de  Fruitus  de  Goes;  eu  o  ly  todo  e  me  pare9eo  que  nSo 
trazia  nenhu  livro  dos  que  aly  erao  nomeados,  comtudo  determinava 
eu  de  revolver  todos  os  meus  livros  e  Ihes  ver  os  titulos  por  mais  se- 
guridade,  o  que  niLo  fiz  com  os  muitos  e  grandes  trabalhos  que  todo 
aquelle  tempo  que  eu  servi  de  principal  no  Collegio  tive,  coro  fiquarS 
as  cousas  desmanchadas  c3  a  morte  do  principal  e  por  ser  a  erey95o 
e  comejo  do  Collegio  muito  novo  e  ter  necessidade  de  muita  ordem  e 
vigilancia  pera  se  conservar,  e  assy  tambem  m'o  mandou  Elrey  noso 
sSr  que  emquanto  elle  nSo  previa  de  principal  que  tivesse  eu  vigilan- 
cia e  bom  cuydado  da  ordem  e  governan9a  delle  e  outrosy  que  desse 
ordem  que  fossem  as  obras  por  diante.  SocederSto  depois  c3  a  vinda  do 
Mestre  Diego  o  Coneguo,  mil  paixSes  e  deferenjas  que  eu  tive  com 
elle  e  outros  muitos  trabalhos  e  vir  eu  tres  vezes  a  està  corte  e  hua 
vez  ao  Algarve,  de  maneira  que  nunqua  tive  tempo  nem  vagar  pera 
poder  revolver  os  livros  e  ver  os  titulos  e  os  cotejar  com  o  Catalogo, 
nem  tive  tempo  pera  poder  estudar  nelles,  porque  Ihe  juro  em  boa  ver- 
dade  que  tenho  muitos  livros  em  que  nSlo  estudei  ha  quinze  annos,  e 
outros  depois  que  os  tenho  os  nSo  abry,  e  o  mór  estudo  que  fiz  em 
Coimbra  depois  que  pera  aly  vim  foy  ver  hu  argumento  em  Logica  ou 
Fhilosophia  pera  disputar  aos  sabados,  porque  cada  sabado  fa90  fazer 
disputas  geraes  asy  aos  grammaticos  corno  aos  dos  Cursos  e  todos  os 
tres  cursos  se  ajuntfto  e  cada  curso  da  suas  concrusSes  e  disputamos 
na  capella  do  Collegio  tres  horas  antes  de  jantar  e  duas  depois.  Os 
livros  de  que  nSo  estou  certo  se  sSo  defesos  sSo  os  seguintes.  Primei- 
ramente  em  francez  tenho:  le  bcUimls  dea  Receptes;  Clement  Marot; 
ha  quatre  livree  d'Amadia;  les  Economtques  d'Aristote;  nSo  sey  se  te-  , 
nho  mais.  Em  italiano,  tenho  Petrarcha;  el  Dante;  la  Pazzia;  d  Cor' 


0  COLLEGIO  REAL  557 

Usano;  d  Decamerone;  le  egìogue  di  Cenazaro,  n2o  me  lembra  se  te- 
nho  mais.  £m  latim,  tenho  bua  dialectica  ou  Rlietorica  de  Melancton, 
a  qual  nSo  vy,  nem  ly  ha  mais  de  quinze  annos.  Comprey  bus  livri- 
nhoB  em  Bordeos  ha  partida:  .s.  Virgilius,  TerStios,  Lucanos^  Ouvi- 
dios,  e  com  elles  dnas  Precationes,  nào  sey  se  sSo  defessas,  e  os  Testa- 
mentos  novos  d'Erasmo;  em  Franga  se  vendem  as  Precationes  e  os  Tee- 
tamentos  pubricamente,  e  nlto  ho  defendem;  nenbum  livro  destes  que 
nomeey  tenho  por  defeso,  nem  a  Biblia  em  frances,  e  Unto  que  jà  no- 
meey,  por  que  Unio  em  Franga  se  vende  pubricamente,  e  a  Biblia  bem 
sabia  eu  em  Franga  que  era  defesa  mas  em  Portugal  cuydey  que  nSo 
por  que  m'a  mandava  pidir  o  doutor  Jorge  Nunes,  que  me  nSlo  avìa  de 
mandar  pidir  livro  defeso^  e  mais  juro  a  W.  mm.  que  nunqua  ly  por 
ella  des  que  a  comprey;  outro  livro  nenhum  tenho  que  seja  defeso  que 
me  lembre,  nem  me  parece  que  ho  tenho.  Todos  os  meus  livros  estSo 
em  Coimbra.  Vv.  mm.  os  podem  mandar  ver  e  saber  se  ha  a  hy  algus 
mais.  A  dialectica  ou  rhetorica  de  Melancton  me  nSo  lembrou  tella  de- 
pois que  m'a  derSo  e  creo  que  m'a  deu  Antonio  Pinheiro  sondo  nós 
discipulos,  senio  agora,  e  aynda  nSo  estou  bem  seguro  se  a  tenho. 

cEu  trouxe  em  Bordeos  bua  demanda  com  hu  homS  que  me  de- 
via xxxb  cruzados  ;  foy  condenado,  dizia-me  que  nSo  tinha  dinheiro^ 
que  me  daria  bus  pouquos  de  livros  que  elle  herdara  de  hù  avogado 
em  parlamento  que  se  cham'ava  Costagis  no  prego  em  que  Ih'os  derSo; 
eu  fuy  contente,  mandou-m'os  a  casa  em  duas  canastras;  erSo  quasi 
todos  em  leis  e  alguns  vinhào  pequenos  que  eu  nSo  vy  nS  sey  se  ve- 
ria  na  volta  algu  livro  defeso  por  que  muito  pouquos  dias  antes  que 
partissemos  os  ouve  e  nSo  tive  vagar  de  os  vèr.» 

N'esta  lucta  dos  parisienses  centra  os  bordaUzes,  vamos  encontrar 
0  Infante  D.  Luiz  dando  o  seu  apoio  moral  às  escholas  do  Mosteiro  de 
Santa  Cruz,  onde  conservava  comò  intemo  o  seu  filho  naturai  Dom 
Antonio,  desconsiderando  assim  o  Collegio  real.  Em  1548  o  Infante 
visita  0  Mosteiro  por  ventura  chamado  a  Coimbra  pela  facgSo  que  tra- 
tava  de  afastar  os  alumnos  do  Collegio  real;  *  em  uma  carta  ao  Prior 
de  Santa  Cruz,  datada  de  20  de  fevereiro  de  1549,  o  Infante  D.  Luiz, 
dizia,  que  em  relagSo  i  educagSo  de  D.  Antonio  antepunha  a  religiSlo 
ao  estudo:  «O  que  d'elle  quero,  he  que  ame  e  tema  a  Deos,  e  que  seja 
muito  virtuoso  e  se  esmere  em  todas  as  cousas  que  convém  i  religìSo  ; 
depois  disso  que  seja  diligente  em  seu  estudo. . .  »  Quando  em  iìns  de 


1  D.  Nicolào  de  Santa  Maria,  Chronica  dos  Rtgrantts,  p.  313. 


558  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIHBRA 

1549  come9ou  o  processo  contra  os  lestes  do  Collegio  real,  os  oposto- 
lo8,  que  receavam  alguma  perturbarlo  na  Universidade  por  causa  da 
indignissima  perseguiySo  contra  sabios  tSo  respeitaveis,  trataram  de 
desTaìrar  as  attenrSes,  fazendo  com  que  D.  JoSo  m  realisasse  urna 
visita  officiai  e  apparatosa  à  Universidade  de  Coimbra. 

No  comeyo  das  aulas  da  Universidade  em  1550  constou  que  D. 
Jolo  ni  resolvera  visitar  os  estudos  de  Coimbra;  o  corpo  docente  rea- 
niu-se  em  conselho,  para  resolver  àcerca  do  cerimonial  com  que  o  rei 
deveria  ser  recebido  ;  lavrou-se  o  seguinte  assento  do  tmodx>  q  se  tera 
no  Eecibim.*^  del  Rei  nosso  S/3  : 

CÀOS  dous  dias  doctubro  de  1550  anos  na  cidade  de  Coimbra  na 
salla  grande  dos  pa90s  del  Rei  noso  S.^''  sondo  hi  presente  o  S.^**  frei 
D.^  de  murra  Bector  e  os  doctores  lentes,  deputados  e  cSselheiroS;  e 
oficiaes  de  toda  a  universidade  juntos  en  cSselho  pieno  e  cSselho  &- 
zendo  segundo  seu  costume,  logo  elle  Rector  propos  comò  ElRei  nosso 
S.^'  vinha  a  està  cidade  e  q  p.^  tamanha  vinda  era  necessario  prati- 
car-se  corno  a  universidade  o  sairia  a  rereber  se  a  pee  se  acavallo  e 
donde,  e  os  autos  e  exercicios  q  nas  esoollas  se  Ihe  deviS  fazer  e  vindo 
a  ouvir  algum  auto  na  salla  q  maneira  se  tera  no  gasalhado  e  asento 
de  suas  altezas  e  que  mais  mostras  se  Ihe  deviS  de  fazer  p.*  sua  alteza 
ver  quam  bem  empregado  tem  seus  pensam.^^'  nesta  sua  universidade, 
asentouse  da  maneira  seguinte 

praticouse  q  vindo  sua  alteza  as  escoUas  se  seria  milhor  inacio  de  mo- 
raesj  a  quem  he  encomendada  a  oraySo  do  Recebim.^^  fazerlha  logo  em 
chegando  na  salla  ou  ouvir  p'meiro  as  lirSes  dos  doctores  de  p'ima  e 
por  aver  nisso  algua  diferenra  se  asentou  que  ficase  a  vStade  e  ellei- 
9S0  de  sua  alteza. . .  »  * 

A  visita  de  D.  JoSo  in  a  Coimbra  era  um  acto  de  boa  adminis- 
trarSo,  e  tendia  a  dar  aos  estudos  o  ferver  que  na  falta  de  estimulos 
Ihes  faltava.  O  rei  foi  acompanhado  pela  rainha  D.  Catherina,  pelo 
principe  D.  JoSo,  joven  de  talento  e  estremamente  apaixonado  pela 
poesia,  e  pela  infanta  D.  Maria,  altamente  instruida,  a  qual  no  pago 
chegara  a  estabelecer  umas  canferencias  de  estado,  que  se  altemavam 
com  assembléas  mtisicaes.  ^  A  viagem  era  comò  que  uma  excursSo  pe- 
dagogica. Um  Prestito  de  Capellos  foi  esperar  0  rei  à  entrada  da  ponte, 


1  Publicados  pelo  dr.  Simoes  de  Castro,  no  opusculo  Elogio  de  Cotmòro,  p.  8. 

2  J.  Silvestre  Ribeiro,  Luùsa  Sigia,  p.  5. 


0  COLLEGIO  REAL  559 

e  d'ali  o  acompanharam  até  ao  Mosteiro  de  Santa  Croz,  onde  fora  al- 
bergar-se;  em  segaìda  Tisitoa  a  Universidade  no  dia  8  de  novembre, 
onde  Ihe  foi  recitada  a  oraySo  do  recebimento,  corno  consta  do  termo 
lanjado  pelo  escrivSo  do  conselho  :  caos  oito  dias  do  dito  mes  suas  al- 
tezas  vieram  onvir  misa  à  capella  dos  sena  pa^os  e  onvida  se  forSo  a 
sua  salla  grande  donde  estava  teda  a  Universidade  se.  o  Rector  e  do- 
ctores  e  m.^'^  em  sens  logares  q  p.^  elles  sSo  feitos  p.^  estarem  aos 
autos  de  RepetigSes  e  doutoram.^^*  e  outros  da  Vniversidade  e  de(r3te 
da  cadeira  estava  bum  theatro  de  seis  degràos  de  catorze  palmos  em 
largo  e  dezoito  de  través  o  qua!  estava  muy*^  bem  alcatifado  e  éSgeT- 
tado  donde  suas  altezas  se  assentàrSo  em  suas  cadeìras  p.^  ouvir  a 
ora9SLo  do  Recebim.'^  que  Ihe  fez  o  m.***  ynoHo  de  moraes,  que  foi  m.*" 
do  S.^'  d3  duarte  f.^  del  Rei,  a  qual  durou  por  espayo  de  bua  ora  e  foi 
muj^^  louvada  e  de  muj^^  autoridade. . .»  ' 

No  Mosteiro  de  Santa  Cruz  foi  appresentado  ao  rei  o  filho  natu- 
rai do  infante  D.  Luiz,  D.  Antonio,  posteriormente  conhecido  pelo  ti- 
tulo  de  Prìor  do  Orato,  de  repugnante  memoria;  o  rei  agradou-se  da 
sua  humildade,  e  entre  as  festas  escholares  que  Ihe  foram  exhibidas, 
nSo  foi  urna  das  menos  interessantes  a  de  assistir  ao  grào  de  D.  An- 
tonio, por  occasiSo  do  qual  os  estudantes  representaram  na  portaria  do 
mosteiro  a  tragicomedia  latina  de  Golias.  ^  Sobre  os  divertimentos  dra- 
maticos  dos  estudantes  fallaremos  adiante  ;  com  uma  tragedia  latina  ti- 
nha  Diego  de  Teive  de  celebrar  em  bem  pouco  tempo  o  fallecimento 
prematuro  do  principe  D.  JoSo.  Depois  da  visita  a  Coimbra  realisa- 
ram-se  as  festas  pelo  casamento  do  principe,  em  breve  morto  por  ex- 
cesso de  prazeres  ou  antes  pela  terrivel  heran^a  da  epilepsia  que  vi- 


1  Publicado  pelo  Dr.  Simoes  da  Castro,  op.  cit.,  p.  8.  A  Ora^ào  publicou-se 
com  o  titulo  :  Oratio  Panegyrica  ad  invictUsimum  Luaitaniae  Regem  D,  Joannem  m, 
nomint  totiua  Academiae  Conifnbricensis  in  guaderà  scholia  haMta  ipaa  etiam  Regia 
canjuge  augustissima  Diva  Catherina  Lusitaniae  Regina,  et  regni  ìiaerede  Principe 
filio  D,  Joanne  Serenissimo,  efusdem  que  Regis  Sor  ore  Diva  Maria  Serenissima 
praesentibus,  Sem  data;  no  firn  yem  uma  Ode  saphica  a  D.  JoSo  in  de  ejus  urbem 
Conimbricam  adventu.  D'aste  opusculo  diz  o  Dr.  Simoes  de  Castro  :  cnSo  logrdmos 
ainda  ver  esemplar  algam — apesar  das  diligencias  que  para  isso  temos  empre- 
gado.»  Ignacio  de  Moraes  imprìmia  outros  opusculo  s  por  JoSo  Barreira  e  JoSo 
Alvares  empremidores  da  Universidade  (cf.  Tratado  da  Confissào,  de  1547.) 

^  A  narrativa  d'està  yiagem  de  D.  JoSo  in  a  Coimbra  pode  vér-se  emD.  Ni- 
oolào  de  Sahta  Maria,  Chroniea  dos  Regrantes,  Liv.  z,  p.  315  a  319.  No  Processo 
de  Diogo  de  Teive,  allude  elle  a  uma  tragedia  que  fez  representar  em  Santa  Graz 
n'um  odo  solemne  de  Dom  Antonio. 


560  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

ctimou  todos  os  outros  seus  irmSos.  A  morte  do  principe  em  1554  pro- 
daziu  ama  funda  impressSOi  qua  se  estendeu  até  à  India;  onde  CamSes 
a  celebrou  em  urna  sentida  Ecloga.  D.  JoSLo  ili  nSLo  pode  resistir  a  este 
golpe  da  perda  do  seu  ultimo  filho  e  do  herdeiro  do  throno,  fallecendo 
em  1557.  É  naturai  que  n'este  estado  de  depressSo  de  espirito  fosse 
mais  facilmente  fanatisado  pelos  jesuiias;  e  por  està  causa  se  pode 
esplicar  a  absurda  determinafSLo  de  mandar  entregar  o  Collegio  real 
aos  padres  da  Companhia,  cujo  Collegio  visitara  tambem  na  excursSo 
a  Coimbra. 

Nos  Estatutos  da  Universidade  de  Salamanca,  approvados  em  14 
de  outubro  de  1538,  estabelecem-se  os  divertimentos  escholares,  que 
eram  communs  a  quasi  todas  as  Universidades  :  «La  pascua  de  Natal, 
cames  toliendas,  pascua  de  Resureccion  j  Pentecostes  de  un  alio  sal- 
dran  estudiantes  de  cada  uno  de  los  Colegios  a  orar  e  hazer  declama- 
ciones  publicamente.  Item,  de  cada  Colegio  cada  afio  se  representara 
una  comedia  de  Plauto  o  Terencio,  o  tragicomediai  la  primera  el  prì- 
mero  domingo  de  las  octavas  de  Corpus  xpi  j  las  otras  en  los  domin- 
gos  sìguientes:  y  el  regente  que  mejor  hiziere  y  representare  las  di- 
chas  comedias  o  tragedias  se  le  den  seis  ducados  del  arca  del  estudio 
y  sean  juezes  para  dar  este  premio  el  retor  y  maestre  escuela.»  ^  Este 
costume  apparece-nos  na  Universidade  de  Coimbra;  e  pode- se  dizer 
que  a  primeira  tentativa  dramatica  de  CamSes,  que  cursara  a  Facul- 
dade  de  Àrtes,  foi  o  seu  Auto  dos  EnfatriZes,  imitagSo  livre  de  Plauto, 
consagrada  a  estes  divertimentos  escholares,  que  adquiriram  maior  des- 
envolvimento  quando  os  costumes  pedagogicos  fìrancezes  se  implanta- 
ram  em  Coimbra  com  a  vinda  do  chamado  Collegio  de  Mestre  André. 
No  Auto  d'eUrei  Seleuco  allude  CamSes  a  està  pratica:  «Tu  fazes  ji 
melhores  argumentos  que  mo^s  de  estudo  por  dia  de  Sam  Nicoldo.^^ 
O  costume  foi  conservado  pelos  jesuitas  nos  Ludi  dos  seus  Collegios. 


1  Yidal  7  Dias,  Memoria  hisiorica  de  la  Universidad  de  Salamanca,  p.  94. 

2  Adolphe  Fabre,  no  seu  livro  Les  Clercs  du  PcUais,  explica  este  uso  com- 
mumatodas  as  Universidades:  tSam  Nicolào  parece  ter  sidoo patrono  dos  clercs 
(amanaenses)  corno  dos  eatudantes.  A  Bazoche  do  Chatelet  fazia  celebrar,  no  dia 
da  festa  d^este  santo  urna  musa  solemne,  dava  um  jantar  e  arraial  a  que  assìstlam 
OS  magistrados. ,.»  A  lenda  dos  trez  eatudantes  mortos  por  nm  estalujadeiro e re- 
suscitadoB  por  milagre  de  S.  Kicoiào,  era  o  principal  argumento  das  representa- 
^ues  dos  escholares:  «Està  lenda  de  S.  Kicoiào  pósta  em  versos  leoninos,  especie 
de  drama  liturgico,  representava- se  à  maneira  de  Mysterio.  Era  notado  em  can- 
tochào  e  terminava  por  um  Te  Deum,  assim  comò  o  indica  ama  nota  que  vem  no 
fim  do  manuscripto,  etc.»  fOp.  cit,,  p.  112  e  116.) 


0  COLLEGIO  REAL  561 

Os  divertìmentos  dramaticos^  qtie  yemos  em  uso  na  Universidade 
de  Coimbra,  e  que  eram  freqnentes  na  Universidade  de  Salamanca, 
constituiam  urna  corno  parte  pratica  do  estudo  das  Homanidades.  An- 
dré de  Goavéa  déra  a  estes  divertìmentos  scenicos  um  grande  relevo 
no  Collegio  de  Gnyenne,  em  Bordeos;  Montaigne,  o  insigne  moralista, 
conta  nos  seus  Essaia  (liv.  i,  cap.  25)  :  ceu  desempenhei  os  prìnieiros 
personagens  nas  tragedias  latinas  de  Buchanan,  de  Guerente  e  de  Mu- 
ret,  que  se  representaram  no  nesso  Collegio  de  Guyenne  com  digni- 
dade;  n'iste,  Andreas  Ooveanus,  nesso  Principal,  comò  em  todas  as 
outras  partes  do  seu  cargo,  foi  sem  comparasse  o  maior  Principal  de 
Fran9a.»  As  tragedias  latinas  de  Buchanan,  que  se  representaram  nos 
folguedoB  escholares,  eram  Joannes  Baptista,  e  JepJUe;^  as  suas  tra- 
ducsSes  da  Medea  e  Aheste,  de  Euripides,  influiram  no  conhecimento 
da  estructura  da  tragedia  grega,  que  o  Dr.  Antonio  Ferreira  revelou 
na  sua  tragedia  Castro.^  Sobre  estes  usos  no  Collegio  de  Guyenne, 
que  se  reflectiram  em  Portugal,  escreve  GauUieur:  <No  Collegio  de 
Guyenne,  o  theatro  era  em  certa  maneira  uma  parte  da  educas^o. 
Desde  a  sua  fundasSo,  em  1533,  vè-se  Tartas  exigir  aos  professores 


>  JulgamoB  qne  a  tragedia  de  Jepkte  era  conhecida  em  Portugal,  porque  Bu- 
chanan defendendo-se  na  Inquisi^fto  por  o  accuaarem  de  n2o  reeonhecer  os  votos 
rdigiosoB,  allega  essa  composi^So  em  contrario  :  «De  yotis  scrìpto  in  tragaedia  de 
voto  Jephte  meam  aententiam  estendi  cujus  disputationis  hae  somma  est  vota  quae 
licite  fiunt  omnia  servanda  ac  molti  etiam  sciont  Conimbrìcae  me  orationem  Bart. 
Latomi  super  bac  se  contra  Boterom  et  legere  libenter  solitom  et  semper  laudare.» 
(Processo  da  Inquisisse  de  Lisboa,  Areh.  nac) 

2  Pelo  titolo  da  edi^^U)  da  Castro,  de  1587,  vè-se  que  ella  foi  representada 
em  Coimbra,  o  qoe  jostifica  o  conhecimento  que  teye  d'essa  tragedia  o  hnmanista 
francez  Grouchy.  Eia  o  titolo  do  rarissimo  monomento  bibliographico  : 

Tragedia  muy  serUida  e  elegante  de  D.  Ignez  de  Castro,  a  guai  foy  represen- 
tada na  Cidade  de  Coimbra.  Agora  novamente  acre^entada.  Impressa  com  licenza, 
por  Manoel  de  Lyra.  1587,  ìn-8A 

Barbosa  ALichado  (BibL  kiiit.,  l,  273)  allude  a  urna  tradoc^So  d*esta  trage- 
dia feita  para  francei^  por  Nicolào  Grrouchy  e  dedicada  ao  Conde  de  Atbougaia> 
a  cojo  fLlho  o  celebre  homanista  ensinara  latim.  A  tradocsSo  considera-se  perdida, 
mas  nem  por  isso  o  facto  perde  o  seu  yalor  para  a  historia  d'està  època  do  buma- 
nismo.  Sendo  a  edi^iò  da  Ntse  de  Hermodes  de  1576,  a  tradoc^  da  Castro  era 
inquestionaveimente  anterior,  por  que  Grouchy  oeeupava«se  de  traduc^Ses  portu- 
guezas  por  1558. 

Tambem  a  primeira  tentativa  de  imita^So  da  comedia  classica  pelo  Dr.  An- 
tonio Ferreira  teve  por  modelo  os  Addphos  de  Terencio,  sob  a  direc^So  do  cele- 
bre hnmanista  Diogo  de  Teive,  a  qnem  o  poeta  tanto  celebra  nos  seus  Poemas 
bmtanos. 

BIST.  ux.  36 


562  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADB  DE  GOIBIBRA 

que  trouxe  de  Paris,  que  soubessem — camposer  et  prononcer  oràisona, 
harangìieSj  dialogues  et  comedies, — e  effectivamente  constatamos  que  j& 
n'esta  època  se  organisavam  representa^Ses,  que  nem  sempre  eram  le- 
vadas  a  cabo,  corno  o  prova  urna  carta  de  Britanus.  (Lib.  m,  fl.  96  ^) 
Gouvèa  ligava  urna  grande  importancia  às  representa93es  theatraee; 
durante  a  sua  direc9So,  o  Collegio  de  Quyenne  adquirìu,  sob  està  re- 
la9So,  urna  verdadeira  primazia,  e  chegou,  segundo  o  affirma  Montai- 
gne, a  um  gr&o  de  perfeÌ9SLo  notavel. — O  theatro  comprehendido  d'este 
modo,  tinha  por  motivo  principal  familiarisar  os  alumnos  com  a  poesia 
latina;  era  em  certo  modo  um  complemento  dos  estudos  classicos,  e  o 
Collegio  de  Bordeos  nSLo  podìa  contar  com  ter  poetas  latinos  do  valor 
de  Buchanan  e  de  Muret.  A  tragedia  cedeu  o  legar  is  faryas  e  alle- 
gorias,  que  pelas  suas  gaiatices  e  allusSes  satyricas,  correspondiam 
verdadeiramente  ao  espirìto  do  seculo  xvi,  època  de  agitagSo  e  de 
luctas . . .  »  ^ 

Quando  os  Jesuitas  tomaram  conta  do  ensino  publico,  trataram  de 
restaurar  o  uso  escholar,  fazendo  com  que  os  seus  mestres  de  Rheto- 
rica  compuzessem  tragedias  latinas  para  serem  representadas  pelos  es- 
tudantes  de  Artes.  Citaremos  alguns  factos  comò  comprova9So. 

<Oferecendo-se  a  occasiSo  da  peste  no  mesmo  anno,  (1569)  que 
foi  aquella  a  que  chamSo  grande,  pelo  extraordinario  estrago  que  fez 
em  Lisboa,  ElRey  com  a  cdrte  passou  a  morar  em  Evora,  e  se  enten- 
deu  fora  nisto  muyta  parte  o  Cardeal.  Fez  a  Universidade  huma  en- 
trada  a  ElRey  e  ao  Cardeal  tSo  pomposa  e  grandiosa  que  seria  largo  re- 
ferìl-a.  Entro  outras  plausibilidades  se  representou  no  Pateo  da  Univer- 
sidade huma  tragedia  sobre  o  Rico  AvarétUe  e  o  Pobre  Lazaro,  vestida 
de  tantas  perspectivas  e  varìedades  que  nSo  cabia  em  si  o  Cardeal  de 
vèr  cousa  tSo  cheya.  ElRey  Dom  SebastiSo  a  via  com  tanto  gesto,  que 
quasi  sempre  esteve  em  pé,  pela  vèr  melhor,  perguntando  algumas  pa- 
lavras,  ma^  poucas,  ao  Fad^re  Provincia!,  que  e&tava  com  elle  dentro 
na  cortina:  assim  o  acho  escrìpto  nas  memorias.daquelle  anno.»*  Em 
urna  distribuisse  de  premios  em  1573:  «Representou-se  antes  a  histo- 
ria  de  Dionysio  tiranno  de  Sicilia. . .  As  figuras  fizeram  seus  papeis 
com  tanta  acgSo  e  tanto  agrado  de  todos,  que  os  examinadores  julga* 
ram,  se  Ihe  deviam  tamb^m  dar  seus  premios  • .  •  »  ^ 

Quando  D.  JoSo  in  visitou  em  1550  os  estudos  de  Coimbnt|  moa- 


1  Gaollieor,  Op.  eiL,  p.  253  a  265. 

2  Padre  Antonio  FrancOi  Ima^em  da  Virtude  no  Novidado  d'Evortt,  p.  36. 
'  Idem,  ibidem,  p.  57. 


0  COLLEGIO  REAL  563 

troa  o  maior  interesse  pelo  Collegio  nascente  dos  Jesnitas,  qne  era 
«ntSo  frequentado  por  quarenta  alomnos  de  Theologia.  O  astato  padre 
SìmSo  RodrigaeSy  nSo  déixarìa  escapar  a  circnmstancia  de  se  acharem 
«ntSo  presos  por  heterodoxia  tres  dòs  principaesmestres  francezes,  e 
de  incutir  no  animo  do  rei  aqaella  maxima  jà  citada  da  carta  de  Mar- 
tins  Gon9alve8.  da  Càmara:  Mais  catholico»  e  menos  latinos!  Àssim  pre- 
parou  as  cousas  para  ser  entregne  à  Còmpanhia  por  um  modo  abra- 
pto  o  Collegio  real.  Esinreve  Quicherat:  cSimSo  Rodrigues  tendo  to- 
rnado um  imperio  absoluto  sobre  o  espìrito  de  Dom  JoSo  m,  arrancou 
da  sua  fraqueza  essa  medida  para  snbmetter  a  Universidade  de  Coim- 
bra  à  Companbia  de  Jesus.  Sic  vos  non  vobis.  Os  qne  tinbam  vindo  de 
tSo  longe  para  dotarem  Portagal  com  nm  dos  seas  mais  famosos  esta- 
belecimentos  litterarios  tiveram  nma  tal  recompensa  dos  seus  trabalhos, 
e  o  mais  darò  para  elles  foi  qae  deveram  isto  a  nm  seu  cmtigo  condis* 
cqndo.9 

Constaya  em  Coimbra  qne  o  Collegio  real  ia  ser  entregue  aos  Je- 
suitas;  em  Conselho  da  Universidade  de  15  de  junho  de  1555,  foi 
apresentada  ama  peti^Io  do  Licenciado  Antonio  do  Soato,  lente  de 
om  corso  de  Artes  no  Collegio  real  «para  se  graduar  Doator  em  Me- 
dicina, comò  lente,  sem  pagar  propinas,  por  ser  pobre,  e  Ihe  haverem 
de  tirar  em  ootubro  o  carso  para  ser  entregae  o  Collegio  aos  CoUe- 
giaes  de  Jèsa  e  ter  o  dito  Collegio  ProvisSo  por  que  se  igaalam  os  seas 
Lentes  aos  da  Universidade.»  ^  Sómente  em  10  de  setembro  de  1555 
é  qne  foi  passada  a  seguiate  carta  a  Diogo  de  Teive,  entSo  principal 
do  Collegio  real,  para  o  entregar  aos  padres  dò  Collegio  de  Jesus, 
fimdado  no  b&irro  alto  da  cidade  de  Coimbra: 

f  Doator  Diego  de  Teive.  Eu  Elreì  vos  envio  multo  saudar.  Man- 
«do-vos  que  entregaeis  esse  Collegio  das  Artes  e  o  governo  delle  mui 
ijBteiramente  ao  Padre  Diego  MirSo  Pì'ovincial  da  Còmpanhia  de  Jesus, 
o.qual  assim  Ihe  ^xtregareis  no  prìmeiro  do  mez  de  Outubro  que  vem, 
deste  presente  anno  de  1555,  em  diante,  por  que  assi  hei  por  bem  e 
meu  BervÌ90,  comò  ji  vos  tinha  escripto;  e  tsobrareis  està  minha  Carta 
com  seu  coidiecimento  para  vessa  guarda.  E  assim  entregareis  os  or- 
namentoB,  prata  e  movel  da  Capella  do  Collègio,  e  as  létfas  e  matri- 
zes  que  vos  foram  entregaes,  a  FemSò  Lopes  de  Castanh'eda,  Guarda 
dò  Oactorio  da  Universidade,  para  tudo  ter  a  bom  recado  até  Eu  man- 
dar 0  contrario.  E  cobrareis  conhecimento  em  forma  do  dito  FemSo 


1  lAvro  dos  Concelhoè,  de  1556,>fl.  71.  Vid.  SilTa  Deal,  op:  cit,,  p.  481. 

86* 


564  HISTORU  DA  UNIYERSIDADG  D£  GOIMBRA 

Lopes,  feito  pelo  EsciìySo  de  sen  cargo,  e  asBinado  por  ambos,  em 
qua  declare  Ibe  ficam  as  taes  cousas  carregadaa  em  receitay  porqae 
pelo  dito  conhecimento  em  forma  vos  serSo  levadas  em  conta.  E  por 
està  mando  ao  dito  Femio  Lopes  as  receba,  e  vos  passe  dellas  conhe- 
cimento em  forma.  JoSo  de  Seixas  a  fez  em  Lisboai  a  dez  dias  de 
Septembro  de  1555.»  ^  Na  sua  defeza  no  Santo  Officio  Diego  de  Teive 
falla  do8  typos  e  matrizes  que  tronxera  de  Paris. 

Em  1549  fóra  creado  o  officio  de  carreUor  da  ImpressSo  da  Uni* 
versidade,  com  a  responsabilidade  das  doutrinas  dos  livros  ahi  pnblica- 
dos.  Apparece-noB  esercendo  estas  fanc93e8  por  provisSo  règia  de  10 
de  dezembro  de  1554  o  licenciado  FemSo  d'Oliveira,  derigo  de  missa 
com  o  ordenado  annual  de  vinte  mil  réis.  Na  provisSo  é  encarregado 
de  um  mister  difficile  quando  se  achava  tSo  apertada  a  censiura  eccle- 
siastica: eque  vÌ9ej  emendasse  e  provesse  toda  a  escretura  que  se  auvesse 
de  imprimir  ha  dyta  ympressào,  de  maneira  que  se  ymprimise  em  toda 
prefeÌ9So.»  Em  1555  FemSo  d^Oliveira  foi  encarcerado  nalnquisi^^, 
sondo  snbstituido  por  Christovam  Nones  por  nomeaj^  de  6  de  onta- 
brOy  comò  para  compensal-o  da  expolia^So  da  sua  cadeira  no  Collegio 
real:  <Nas  Casas  do  Fafo  del  Bey  nesso  Senhor,  onde  osti  assentada 
a  ImpressSo  da  Universidade,  eu  Diego  de  Azevedo,  por  virtude  de 
uma  provisSo  del  Bey  nesso  Senhor,  e  mandado  do  Cònceiho,  dey  posse 
de  corrector  da  ImpressSo  a  ChristovSo  Nunes,  lente  que  foy  do  Col- 
legio real,  e  elle  a  tomou,  etc.»  '  O  ter  side  do  Collegio  real  prejadi* 
cou-o,  por  que  em  3  de  marfo  de  1557  era  substituido  pelo  allemSo 
SebastiSo  Stockamer,  que  acompanhara  o  lente  Fabio  Arcas.  ' 

A  entrega  do  Collegio  real  aos  Jesuitas,  depois  da  persegui$Bo 
aos  Doutores  JoSo  da  Costa  e  Diego  de  Teive,  acabou  de  esclarecer 
o  criterio  do  reitor  Frei  Diego  de  Mur9a,  que  fizera  e  inquerito  aos 
Jesuitas  no  seu  apparecimento  em  Coimbra.  Agora  estavam  fortes  com 
a  posse  da  vontade  real;  o  intelligente  reitor  viu  terminado  o  seu  glo-' 
rioso  governo,  e  excusou-se  do  cargo  para  refugiar-se  contra  estaa 
tempestades  sangrentas  do  fiuiatìsmo  no  seu  mosteiro  de  Befbios  do 
Lima.  Assim  em  23  de  aetembro  de  1555  succedia-lhe  na  reitorìa  a 
Doutor  Affonso  do  Pxado,  graduado  em  theologia  pela  Universidade 
de  AJcaU,  cuja  disciplina  regera  no  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coim- 
bni.  Està  circumstancia  bem  revela  que  elle  era  do  partido  contraria 


1  Compendio  historioo,  p.  4.  Deduc  Chron.,  P.  i,  Div.  n»  gg  57  a  61. 

2  Livro  dos  Concdhos,  anno  de  1656,  fl.  82  f.  SOva  Leal,  ibidem,  p.  482. 

3  Sooaa  Viterbo,  Mamod  Correa  MotUenegrOf  p»  18. 


0  COLLEGIO  REAL  565 

BOB  mestres  francezes,  dando  apoìo  à  lacta  dos  chamados  apastolos  para 
OS  ezpulsarem  de  Coimbra.  Nomeado  um  reitor  à  feÌ9So  dos  jesuitas, 
foi  mandado  a  Coimbra,  por  provisSo  de  11  de  oatnbro  de  1555,  o 
licenciado  Balthasar  de  Faria,  corno  yìsitador  e  reformador  da  Uni- 
yersidade.  NSo  havia  perda  de  tempo  em  aproveitar  o  trìumpho;  Bal- 
thasar de  Faria  entrou  em  £111109808  em  19  de  fevereiro  de  1556,  e  no 
dauBtro  pieno  de  27  d'oBse  mez  pedia  que  cada  um  doB  membros  da 
Universidade  Ihe  mìniatraBBe  Becretamente  os  boub  apontamentos  para 
a  reforma.  O  claastro  resolveu  que  bo  reuniBsem  isoladamente  aa  Fa- 
culdadoB,  e  que  cada  urna  elegesBO  doiB  membroB  para  se  entender 
com  Balthasar  de  Faria. 

Pela  faculdade  de  Theologia,  Bahiram  eleitoB,  o  Doutor  Martinho 
de  Ledesma,  lente  de  vespera,  e  MarcoB  Romero,  lente  de  terya. 

Catnones:  Doutor  JoSo  de  Mogrovejo,  lente  de  prima,  e  Oaapar 
Gonjalves,  de  vespera. 

LeU:  OB  DoutoreB  Manoel  da  CoBta  e  AyroB  Pinhel. 

Medicina:  o  Doutor  Thomas  BodrigucB  da  Veiga,  lente  de  vespera. 

Maihemaiica:  o  Doutor  Fedro  Nunes. 

Artes:  0  Doutor  Diego  de  Gouvéa,  e  Ignacio  de  Moraes. 

Depois  de  ter  conferenciado  com  estes  delegados  da  Universidade, 
Balthasar  de  Faria  partiu  para  Lisboa  em  setembro  de  1556  ;  é  natu- 
rai que  entro  estes  membros  nSo  predominasse  o  partido  dos  Jesuitas, 
apesar  de  vérmos  os  nomes  de  Gaspar  Gonfalves  e  do  Doutor  Diego 
de  Gouvéa,  0  maior  inimigo  dos  mestres  franceses.  Os  professores  do 
Collegio  real  que  eram  estrangeiros  sahiram  de  Portugal;  a  Diego  de 
Teive  foi  dado  um  canonicato  em  Miranda,  a  JoSo  da  Costa  a  egreja 
de  Sam  Miguel  de  Àveiro,  e  o  erudito  André  de  Resende,  que  em 
1534  fisera  a  Ora^fto  de.  Sapientia  na  Universidade  de  Lisboa,  e  a 
acompanhara  na  reforma  para  Coimbra  em  1537,  onde  em  1551  re- 
cita urna  outra  OraySo  de  Sapientia,  posto  assim  tSo  indignamente  fora 
do  ensino  de  humanidades,  regressou  contristado  para  Evora,  e  ali  se 
dedioou  de  novo  ao  ensino  particular.  Os  Jesuitas,  explorando  o  fana- 
tismo do  rei.cbnvenceram-no  que  nSo  era  proficuo  0  ensino  sem  a'prap»* 
tica  da  deyo9So,  e  que  sómente  elles  é  que  faziam  a  allian^a  da  reli*-' 
giSo  com  0  ensino;  levaram  0  Cardeal  em  1559  a  prohibir  em  Evolra 
todo  0  ensino  que  nSo  fosse  ministrado  pelos  Jesuitas.  André  de  Be- 
sende  vendo  que  so  por  um  favor  especial  se  Ihe  tolerava  aberta  a 
sua  eschola,  abandonou  0  magisterio,  e  entregou-se  no  seu  isolamento 
0  desgosto  aos  estudos  de  archeologia. 

D.  Nicolio  de  Santa  Maria  expende  algumas  das  rasSes  que.  le- 


566  HISTORIA  DA  UNIYEBSIDADE  DE   GOIMBRA 

Y&ram  D.  Jo2o  ni  a  mandar  entregar  o  Collegio  real  aos  Jesnitas,  qa& 
procuravam  monopolisar  a  inatruc^So  publica  em  todos  os  paizes:  cA 
QccasiSo  que  eirei  D.  Jofto  ili  teve  para  tirar  este  Collegio  das  Esco- 
las  menores  aos  Mestres  seculares  e  estrangeiros,  que  tinha  mandado 
vir  de  Paris,  e  o  entregar  à  Companhia,  foi  vèr  o  grande  proveito  qoe 
recebiam  osestudantes  de  Lisboa  debaixo  da  doatrina  e  disciplina  do» 
Padres  da  Companhia  do  Colico  de  S.  AntSo,  e  o  trabalho  que  Ihe 
davam  os  Mestres  estrangeiros  por  serem  màos  de  contentar  em  seos 
sabtriosy  e  pelo  continuo  cuidado  que  o  mesmo  rei  tinha  de  provdr 
aquelle  Collegio  de  Lentes  substitutos,  despacbando  a  huns  e  aposen- 
tando  a  outros,  e  accrescentando  a  todos  por  causa  de  os  traeer  con- 
tentes  e  bem  applicados  a  suas  cadeiras,  e  de  tudo  iste  se  livrara  com 
entregar  as  ditas  Escholas  menores  aos  Padres  da  Companhia.»  ^ 

A  substituigSo  dos  Mestres  francezes  foi  assim  ordenada  e  desem- 
penhada  por  jesuitas: 

PhUosophia:  1.^  Curso,  P.  Mar9al  Vaz;  2.^  Curso,  P.  Jorge  Ser- 
rSo;  3.^  Curso,  P.  Pedro  da  Fonseca,  e  substituto  P.  SebastiSo  de 
Moraes. 

Latìm  e  JRhetorica:  1.*  Classe,  o  P.  Cyprianno  Soares;  2.*  P.  Pero 
PerpinhiLo,  etc,  sendo  substituto  de  todas  as  Classes  o  P.  Manoel  Al- 
vares,  que  compoz  a  celebre  Grammatica,  que  depois  de  1555  substi- 
toiu  em  todas  as  escholas  a  Arte  de  Latim  de  D.  Maximo  de  Scusa. 

^Ficou  Principal  ou  Perfeito  dos  Estudos  o  P.  Miguel  de  Scusa. 

Estavam  os  Jesuitas  occupados  com  a  construcfSlo  do  seu  Colle- 
ge, cuja  primeira  pedra  fora  lan^ada  em  abril  de  1547,  quando  se 
adbaram  repentinamente  de  posse  do  Collegio  real  em  1555.  A  presa 
embara9aya-os.  No  Collegio  de  cima,  €no  alto  da  cidade,  no  fundo  da 
rua  nova  de  eirei,  pouco  distante  do  muro  da  cidadej  nlo  havia  agna 
e  custaya  multo  a  acarretal-a  do  rio;  o  provincial  Miguel  de  Torres 
entendeu  pedir  a  D.  JoSo  m,  que  cedesse  definitivamente  &  Compa- 
nhia o  Collegio  real  situado  na  baixa,  e  que  o  rei  tomara  por  empres» 
timo  ao  Mosteiro  de  Santa  Cruz.  D.  Jofto  in,  em  14  de  setembro  de 
1556  escreveu  ao  Prior  geral  D.  Francisco  de  Mendanha,  para  que 
cedesse  para  sempre  a  propriedade  dos  CoUegios  aos  Jesuitas,  obri- 
gtfido-se  a  indemnisar  o  Mosteiro,  o  que  nio  chegou  a  satisfaseer  por 
tcf  faUecido  em  11  de  junho  de  1557.  Os  Jesuitas  conservaram  o  Col* 


1  Chromca  dos  BegranUs,  liv.  x,  08{>.  tn,  p.  806.  Lopes  Pta^,  Hut.  da  Phi» 
loeophia  em  Portugal^  p.  140. 


0  COLLEGIO  REAL  567 

leglo  de  citDa,  e  là  incorporaram  o  Collegio  real,  cedendo  os  CoUegios 
da  Sophia  ao  cardeal  D.  Henrìque  para  estabelecimento  da  InquÌBÌ9So, 
recebendo  em  troca  a  bella  quinta  de  Villa  Franca  para  sea  recreio. 

A  sombra  da  confusSo  do  Collegio  real  com  o  das  Artes,  propria- 
mente jesuiticoy  a  Companbia  fóra  obtendo  para  si  varios  privilegios, 
corno:  cqae  os  IrmSos  da  Companhia  de  Jesu,  que  bora  tem  carrego 
do  Collegio  reci  das  Artes,  se  podessem  graduar  Bachareis,  Licencia- 
doB  e  Mestres  em  as  ditas  Artes,  sem  pagarem  propinas,  etc.»  ^  Por 
fim  usaram  o  titulo  de  Reitores  do  Collegio  daa  Artes,  quando  j&  nSo 
precisaram  da  distincfSo. 

<Eu  ElRey  vos  envio  muito  sandar.  Por  assim  o  haver  por  multo 
8ervÌ90  de  Nesso  Senhor,  e  por  quietajSo  da  Universidade,  e  partes 
tSo  principaes  d'ella,  corno  sSo  o  Collegio  real,  em  que  se  lem  as  Ar- 
tes liberaes,  e  sSo  tambem  todas  as  outras  faculdades:  Fallej  com  o 
Padre  Mestre  Frei  Martinho  de  Ledesma  sobre  alguns  melos,  que  po- 
dia  hayer,  para  se  concordarem  algumas  duvidas,  que  a  Universidade 
tem  com  o  dito  Collegio,  que  por  nSo  serem  determinadas,  d&o  ao  dito 
Collegio  torva^SLo,  e  inquieta9ào  à Universidade;  e  porque  importa  muito 
cessarem  as  ditas  duvidas,  e  todos  serdes  unidos,  e  muito  conformes, 
e  eu  de  assim  se  ordenar  levarey  muito  contentamento,  vos  encom- 
méndo:  Que  ouvido  o  dito  Padre  Fr.  Martinbo,  procureis  de  vos  re- 
solver no  mais  facil  mejo,  que  poder  ser,  e  me  escrevais  vessa  ultima 
Tesolu9So,  ouvido  o  Principal  do  dito  Collegio  em  nome  dos  Padres 
da  Companhia  de  Jesu,  que  por  meu  mandado  o  tem  a  cargo,  etc.9  ^ 

Quando  D.  JoSlo  in  mandou  entregar  o  Collegio  real  aos  Jesui- 
tas,  em  1555,  a  Companbia  apoderou-se  d'elle  immediatamente,  como- 
dando em  outubro  d'esse  anno  os  cursos  de  Artes  e  Humanidades,  ha- 
bitando  ahi  Mestres,  collegiaes  religiosos  e  porcionistas  seculares.  O 
Collegio  de  Jesus,  que  o  padre  Simào  Hodrigues  fìmdara  na  cidade 
alta  foi  fechado,  por  causa  do  embara9o  que  Ihes  causava  a  adminis- 
tra^So  do  Collegio  real  (de  8.  Miguel  e  de  Todos  os  Santos);  ficaram 
n'eate  até  ao  anno  de  1566.  Como  a  ac9!lo  dos  Jesuitas  se  alargava, 
o  Collegio  real  tomou-se  acanhado,  e  os  padres  voltaram  para  a  cidade 
àha  onde  ampliaràm  o  eeu  Collegio  à  custa  do  Cardeal-rei  e  das  ren- 
das  da  Universidade,  das  quaes  recebiam  1:430<$0(X)  réis  para  salario 
das  cadeiras  pelo  sophisma  da  incorpora9So  do  Collegio  real  no  das 


1  Livro  dos  Coneelhos  (em  1560),  fi.  135  y.  Em  daustro  de  17  de  agosto.  Àp. 
Dr.  Silva  Leal,  Metn.  eU.,  p.  490. 
'  Dr.  Silva  Leal,  ibid.,  p.  489. 


568  HISTORIA  DA  UMVERSIDADE  DE  GOIBIBRA 

Artes.  0  Beitor  do  Collegio  das  Artes^  para  manter  osta  illusSo  inti* 
tulava-se  tambem  e  Principal  do  Collegio  real.  0  edificio  que  perten- 
cera  ao  Collegio  real  foi  eedido  ao  Tribunal  da  InqaÌBÌ980y  pelo  qae  o 
Mosteiro  de  Santa  Cruz  foi  indemnisado.  A  Universidade  nfto  ae  con- 
formava  oom  o  sophisma  jesuitico,  da  sobreyivencia  do  Collegio  real 
dentro  do  Collegio  das  Artes;  e  D.  SebastiSoi  instrumento  passivo  dos 
Jesuitas,  escreveu  em  2  de  dezembro  de  1563  ao  Beitor  da  Universi- 
dade para  que  cessassem  todas  as  dissidencias  a  contento  dos  padres 
da  Companhia.  ^  Urna  vez  entregue  o  Collegio  real  aos  Jesuitas  toda  essa 
rena8cen9a  litteraria  se  apagou.  Os  Jesuitas  conservaram  o  Collegio  real 
da  ma  da  Sophia  até  1568;  e  achando  penoso  o  trabalho  de  dois  Col- 
legiosy  incorporaram-no  no  Collegio  de  Jeeua  do  bairro  alto,  para  o  qual 
attrahiram  os  mius  inauditos  privilegios,  tornando-se  independentes  e 
superiores  &  Universidade. 

A  suppressSo  do  Collegio  real  fez-se  por  meio  de  urna  transacfSo 
interesseira  dos  Jesuitas  com  o  Cardeal  Inquisidor  D.  Henrique.  £m 
1567  installava-se  o  Santo  Officio  em  Coimbra;  estava-lhe  destinado  o 
Pa90  da  Condessa  de  Cantanhede,  ^  porém  o  cardeal  sabendo  do  in- 
tuito da  incorpora9So  dos  dois  CoUegios,  pediu  aos  Jesuitas  para  ce- 
derem  à  InquisÌ9So  o  edificio  da  rua  da  Sophia.  Os  Jesuitas  aprovei- 
taram-se  do  pretesto  do  pedido,  para  fugirem  à  difficuldade  da  regen- 
cia  dos  dois  CoUegios,  mas  corno  habeis  pediram  urna  compensagSo 
pela  cedencia  que  faziam.  Estavam  presos  no  Santo  Officio  uns  espo* 
SOS  que  eram  proprietarios  da  bella  quinta  de  Villa  Franca,  na  mar- 
gem  direita  do  Mondego;  pelo  facto  de  cairem  nas  garras  inquisito- 
riaes  Diego  Rodrigues  e  sua  mulher  D.  Guiomar  da  Costa,  a  quinta 
de  Villa  Franca  foi-lhes  confiscada  para  a  Corda.  Os  Jesuitas  trataram 
de  obter  a  quinta  de  Villa  Franca,  para  recreio  dos  seus  alumnos,  se- 
gundo  0  pensamento  da  Monita  secreta,  que  é  uma  verdadeira  systema- 
tisa9lo  dos  seus  actos:  cintroduzam-nos  com  opportunidade  nos  CoUe- 
gios  e  expliquem-lhes  aquelias  cousas  que  Ihes  forem  mais  agradaveis 
de  qualquer  modo,  comò  sSo  aa  muitas  quintas,  vinhas  e  Qa»a»  de  campo 
aonde  os  nossos  se  recreiam,  para  que  melhor  abracem  a  Companhia; 
eie.»  (Cap.  vm.)  A  pretesto  de  compra,  obtiveram  pela  influencia  do 
j  esulta  Luiz  Oonsalves  junto  de  D.  SebastiSo,  que  a  quinta  de  Villa 


1  Do  Livro  I  daa  ProvUdes  e  Cartas,  fl.  239  :  «Re^rtor  e  Concelho  da  Univer- 
sidade da  CSdade  de  Coimbra.» 

>  Na  ma  das  Solas,  onde  se  acha  o  BecoUvmeato  das  Convertidas  do  Fo^ 
do  Conde,  segando  o  sr.  Martins  de  Carvalho. 


0  COLLEGIO  REAL 


569 


Franca  Ihes  fosse  entregae  em  1571,  e  depois  de  maitas  evasivas  na 
fÓEma  da  acquisÌ9Sa  eonseguiram  que  a  venda  por  parte  da  corda  se 
transformasse  em  esmola,  por  carta  de  9  de  novembre  de  1577. 

Depois  qae  os  Jesnitas  tomaram  posse  do  governo  do  Collegio 
real,  trataram  de  se  tornar  independentes  da  obediencia  ao  reitor  da 
Universidade.  O  proprio  padre  Balthazar  Telles,  na  Chronica  da  Com- 
fonhia,  reconhece  a  necessidade  da  dependencia  hierarchìca  dos  esta- 
dos:  fassim  pedia  a  rasfto,'qae  os  Mestres  das  Escholas  menores  fos- 
sem,  comò  membros  das  maiores,  stijeitos  todos  ao  mesmo  Beitor.  A 
està  duvida  se  respondeu  por  parte  de  ElRei  Dom  Jo2o  ni,  por  urna 
sua  provisfto  passada  no  anno  de  1557: — Que  nSo  obstante  a  repa- 
gnancia  da  Universidade,  Elle  queria  e  mandava  qae  o  nosso  Collegio 
das  Escholas  menores  tivesse  total  Ì8emp9So  das  maiores  e  de  seu  Bei* 
tor  e  mais  officiaes. — »  NSo  contentes  com  este  atropelo  da  organisa- 
9S0  do  ensino,  alcan9aram  os  Jesuitas  ama  boa  parte  dos  rendimentos 
da  propria  Universidade,  e  de  usurpa^So  em  asarpa9Slo  consegairam 
tornar  conta  do  governo  d'ella,  fazerem-lhe  novos  Estatatos  e  sabmet- 
terem-na  &  dependencia  do  seu  Collegio  das  Artes.  NSo  antecipemos 
OS  factos.  No  systema  pedagogico  dos  seas  Collegios  de  Artes,  os  Je* 
auitas  nSo  fizeram  mais  do  qae  reprodazir  os  methodos  asados  no  Col- 
legio de  Santa  Barbara,  iniciados  pelos  Gouvéas,  seus  mestres,  conser- 
vando OS  mesmos  horarios,  e  as  mesmas  predilec98es  hamanistas. 

Os  Jesaitas,  edacados  no  Collegio  de  Santa  Barbara,  trataram  de 
afastar  d'aqaelle  Collegio  a  mocidade  portugueza  qae  ainda  concorria 
aos  estados  de  Paris;  D.  Theotonio,  filho  do  Daqae  de  Braganga,  vae 
para  Paris,  mas  para  o  Collegio  de  Boargogne.  Figuram  ainda  em  Pa- 
ris, Alvaro  da  Fonseca,  Jeronymo  Osorio  e  Antonio  de  Senna.  Sob  a 
influencia  dos  Jesuitas,  D.  JoSo  m  esquecia-se  de  auxiliar  os  estudan* 
tes  portuguezes  em  Paris,  a  ponto  de  um  fidalgo,  D.  Fernando  Ruy  de 
Almada,  notando  que  alguns  d'elles  se  viam  forjados  a  abandonarem  os 
estudos,  patrocinal-Os  galhardamente  fondando  novas  bolsas.  Em  ama 
carta  de  Diego  de  GouvSa  a  D.  Jolo  m,  de  2  de  fevereiro  de  1545, 
pede-lhe  o  auxilio  para  0  doutoramento  de  Frei  Duarte  0  do  punbo 
secco.  As  cartas  do  Dr.  Ayres  Pinhel,  qaeixando-se  do  atrazo  dos 
seas  ordenados  de  lente,  nSo  deizam  equivoco  a  este  respeito. 

No  principalato  do  Collegio  de  Santa  Barbara,  succederà  a  André 
de  Gouvéa  seu  primo  Diego  de  Gouvèa  o  mo90,  governando  por  sete 
annos.  Eoi  sob  a  sua  regencia  que  estudou  entre  os  barbistas  Antonio 
Pinheiro,  0  qual  em  1537  regeu  um  carso  de  Quintiliano,  sondo  de- 
pois chamado  a  Portugal  para  mostre  do  principe  berdeiro  D.  JoSo. 


570  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIÌiBRÀ 

Pinheiro  tinha  sido  discipulo  de  Luiz  Strébée,  e  teve  por  suceessor  o 
eximio  Tumebo.  Na  eIeÌ9So  para  reitor  da  Universidade  de  Paris  em 
16  de  dezembro  de  1538  foi  prodamado  cpor  nnanimidade  e  por  inspi- 
ragSLo  do  Espirilo  Santo,  homem  scientifico  e  cavalheiro  consammado, 
mostre  Diego  de  Gouyéa,  vigilantissimo  Principal  da  casa  de  Santa 
Barbara.»  ^  É  certo  porém  que  Diogo  de  Gouvèa  no  come90  de  1540 
abandonou  a  direc$So  do  Collegio^  attribaindo-se  isso  a  desgostos  por 
indisciplina  escholar.  D.  JoSo  lu,  nomeou-o  para  o  representar  no  Con- 
cilio de  Trento,  onde  elle  foi  encontrar  dirigindo  as  cabalas  papistas 
OS  antigos  alumnos  de  Santa  Barbara  Salmeron  e  Laynez,  '  da  recente 
Companbia  de  Jesus  reconhecida  por  Paulo  in.  Ao  firn  de  dez  annos 
de  ausencia,  Diogo  de  Gouvéa  retomou  o  principalato  de  Santa  Bar^ 
bara,  mas  novos  desgostos  o  assaltaram  por  embarafos  financeiros, 
fixando-se  a  sua  morte  em  1558. 

Portugal  achou-se  assim  fora  do  movimento  da  Renascen^,  ape- 
sar de  ter  dado  à  Europa  os  principaes  philologos  do  seculo  xvi;  o 
fanatismo  do  poder  real  esterilisava  as  mais  generosas  reformas  peda- 
gogicas  e  as  opulentas  dotafSes  dos  estabelecimentos  litterarios.  A  Im- 
prensa  do  seculo  xvi  decabiu  no  seu  desenvolvimento  material,  come 
vemos  pelas  queixas  de  André  de  Resende;  e  a  sua  actividade  foi  dis- 
pendida  em  dar  publicidade  a  livros  de  tbeologia  scholastica. 

O  qué  vémos  pela  estatistica  da  imprensa  no  seculo  xvi,  obser- 
va-se  na  concorrencia  exdusiva  para  os  estudos  humanistas  comò  ha- 
bilitagào  para  as  ordens  ecclesiasticas,  unica  occupaySo  social  em  que 
se  tinha  a  existencia  garantida  sem  trabalbo;  JoSo  Pedro  Ribeìro  falla 
de  uma  nova  classe  de  clerigos  que  se  ordenavam  por  httradura,  para 
serem  providos  em  beneficios  ecdesiasticos:  «Tivemos  no  mesmo  se- 
culo  (o  xvi)  um  titulo  de  Ordena9&o,  o  da  lettradura  ou  litteratura, 
desconhecido  em  direito  commum.  Em  data  dos  Idus  de  Outubro  de 
I568y  concedeu  S.  Pio  v  a  instancias  dos  Bispos  d'este  reino,  que  o 
Infante  D.  Henrique,  entSo  Legado  Apostolico,  podésse  facultar  aos 
Mestres,  Doutores,  Licenciados  e  Bachareis  formados  em  Tbeologia  on 
Canones,  ou  que  tìvessem  estudado  em  qualquer  Universidade  as  mes- 
mas  faculdades  com  aproveitamento,  ordenarem-se  a  titulo  de  suas  let- 
tras,  sendo  os  seus  Ordinarios  obrìgados  a  provel-os  nos  Beneficios 
que  primeiro  vagassem.  Este  Breve  foi  ampliado  por  outro  de  25  de 


1  Quicherat,  Histoire  de  SainU-Barbtj  1. 1,  p.  256. 

2  Vid.  CflorU  de  D.  Frei  Bartliolomeo  dos  Martyres,  e  Banke,  Hiit.  dot  Papoi. 


0  COLLEGIO  B£àL  571 

Agosto  de  1569  a  instancias  do  rei  D.  SebastiSo  em  attenySo  &  neces- 
aidade  de  maior  numero  de  clerigos,  estendendo-o  a  favor  dos  que  ti- 
yeasem  estudado  com  aproveitamento  os  casos  de  consciencìa  em  qoal- 
quer  Universidade  oa  Collegio  por  trez  auios,  sondo  os  Ordinarios 
obrìgados  a  soccorrel-'OB,  para  nSo  serem  sujeitos  a  mendigar  em  quanto 
OS  nSo  provessem  em  Beneficios.»  ^  Assim  se  achou  derrogada  a  bulla 
de  Innocencio  iv^  de  1254,  que  prohibia  que  se  dessem  os  beneficios 
ecclesiasticos  a  quem  se  n2o  dedicasse  especialmente  &  Theologia.  A 
forte  corrente  dos  estudos  humanistas  impunha-se  por  fórma,  que  os 
Jesuitas,  sfto,  dentro  da  Egreja,  o  68for90  desesperado  para  tomar  a 
direc$So  d'essa  nova  disciplina  dos  espiritos.  Toda  a  cultura  litteraria 
reduzia-se  a  esplorar  ociosamente  esses  Beneficios;  foi  a  està  deplora- 
vel  situagSo  social  que  o  povo  applicou  o  aphorismo  sarcastico:  Otu 
lettras,  ou  tretca,  e  porventura  deverà  considerar-se  iste  comò  a  causa 
que  levou  o  systema  pedagogico  dos  Jesuitas  a  consistir  no  desenvol- 
vìmento  exclusivo  da  InstrvtcgSìx)  secundaria  na  evolu9So  da  pedagogia 
europèa.  Assim  se  perverteu  a  bella  corrente  do  Humanismo  da  Be- 
nascenga.  A  Universidade  ficou  assoberbada  pelos  Collegios. 

Dos  differentes  Collegios,  que  estavam  juntos  à  Universidade  de 
Coimbra,  falla  Ignacio  de  Moraes  no  seu  Encomium: 

Multa  alila  hie  doctis  coUegia  eulta  Camoenia  : 

Et  tempia  aspicies,  addita  cuique  suum. 
Caenobium  haud  parvo  cernes  fundamine  coeptum, 

Divi  Bernardi  quod  sacra  turba  eolit. 
HenrìcuB  jussit  condi,  justissirnuB  heros, 

Cui  Banctae  incumbit  religioniB  onus, 
Ezemplum  Henricus  probitatis,  regia  proles, 

Quem  decorat  sacri  cardinìs  ultus  honos: 
Cui  frons  Puniceo  splendet  redimita  galero, 

Et  pariter  tjrìo  palla  colore  rubet: 


Marmoreis  sequitur  délnbmm  insigne  columnis, 

Cui  de  Carmelo  nomen  origo  dedit. 
Balthasar  erexit,  tuus  est  qui,  Bracchara,  praesul, 

Quem  merita  in  tanto  constituere  loco. 
Praeterea  Charitae  dictum  de  nomine  templum 

Eminet,  immensi  grande  laboris  opus. 
Fundavit  monachi  Lodovici  industria,  docto 

Qui  populum  mores  edocet  ore  pios. 


1  B^eùtòeB  historica^,  t  x,.>p.  85. 


r 

■ 
F 


572  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 


I 
I 


1  Ed.  de  1887.  Nas  siglas  marginaes  que  aeompanbam  eates  yenos,  diz^se 
que  0  ColUgio  de  S.  Bernardo  é  fandanie  do  Cardeal  D.  Henrìque,  o  Collegio  do» 
CarmdUas  é  de  Frei  Balthazar  Limpo,  arcebispo  de  Braga,  o  Collegio  da  Ora^a 
de  Frei  Loiz  de  Montoya,  o  Collegio  de  S.  Fedro  de  Rodrigo  Lopes  CarvaUio,  o 
Collegio  de  S.  Domingoe  de  Frei  Martinho  de  Ledesma. 

2  Litro  I  do$  BegiHoè,  fi.  124.  Ap.  Silva  Leal^  Menu  cU.,  p.  677. 


ì 


Namqne  Auguatini  vitame  moresque  profesBus,  ^ 

£  terris  rectam  monstrat  in  aatra  yiam. 
Tu  quoque  musoeon  Petro  Roderice  sacrasti 

Nobile,  divitiis  aedificasque  tuis.  | 

Docte  senex,  tibi  victurum  per  saecoia  nomen 

Dant  sacri  Oanones,  vitaque  labe  carena. 
Templum  etiam  Dominiee  tibi  candore  refulget, 

Atqne  novum  extmitur  non  procni  à  veterì. 
Praefectus  statuit  Martinus  Pallade  doctus 

Codesti,  atque  idem  relligiosus  boroo. 
Omniaqne  haec  opibns  surgunt  adjuta  Joannis, 

Qui  merito  patriae  dicitur  esse  pater. 
At  Fmaeitoanoe  aretant  nunc  hospita  tecta. 

Hnjus,  paupertas,  est  (puto)  causa  mali. 
Sed  domus  bis  etiam  quondam  spadosa  patebit, 

(Sic  sperare  decet)  gymnasiumqne  capax.  ^ 

Antes  d' eates  CoUegios,  Ignacio  de  Moraea  faz  pomposas  referen* 
cias  no  Conimbricae  Encomium,  ao  Collegio  daa  Artea,  dos  Jesuitas^ 
e  ao  Collegio  de  S.  Jeronjmo: 

Agmina  Apostolicos  vise  bine  imitantia  ritus, 

Qnae  muro  urbano  tecta  propinqua  tenent. 
Fnndunt  se  variis  habitacula  multa  meandris, 

Quae  sancta  coetus  simplicitate  colit. 
Contiguas  habitant,  divine  Hieronyme,  sedes, 

Qui  te  sectantur  relligione  ducem. 
Qui  tamen  interea  dum  conditur  altera  sedes 

Latior,  angustos  hic  subiere  lares. 

Descreveremos  cada  um  d'estes  collegios  conforme  a  sua  succes- 
sSo  historica.  I 

O  Collegio  de  8.  Fedro,  para  derìgos  pobres,  foi  fondado  em  1540 
pelo  Dr.  Rodrigo  Lopes  de  Carvalho,  gradnado  em  ambos  os  direitos, 
e  que  veìu  a  ser  bispo  de  Miranda.  Em  1543  come9oa  a  construc9lo, 
e  foi  povoado  em  1545.  Por  alvarà  de  17  de  Janeiro  de  1549,  D.  JoS  m 
incorporou-o  na  Universidade  de  Coimbra.  '  Para  alargamento  do  edi- 
ficioy  cedea  D.  JoZo  lu  um  terreno  perteneente  ao  Mosteiro  de  Santa 


0  COLLEGIO  RBÀL  573 

Cruz,  de  accordo  com  Frei  Bras  de  Barros,  que  ainda  conservava  ob 
poderes  de  reformador  d'aquella  congregaySo.  O  edificio  so  ficou  ter- 
minado  completamente  em  1562.  £m  1549  recebera  a  approvasse  pon- 
tificia. As  rendaa  do  Collegio  sairam  do  Padroado  real,  a  que  perten- 
ciam  as  egrejas  de  Santa  Maria  de  Alijó,  e  as  suas  quatro  annexas, 
e  a  de  S.  Fedro  de  GoSes,  no  arcebispado  de  Braga.  0  Dr.  Rodrigo 
Lopes  de  Carvalho  comproa  bens  nos  arredores  de  Coimbra  para  do- 
tar 0  Collegio,  auctorisado  por  alvarà  de  16  de  Janeiro  de  1549. 

Comesando  a  fnnccionar  o  Collegio  de  S.  Fedro  em  1545,  esteve 
sem  Estatutos  até  1551,  em  que  Rodrigo  Lopes  de  Carvalho,  jà  entSo 
bispo  de  Miranda,  os  formulou  em  oitenta  e  nove  capitulos,  mandando 
seguir  os  costumes  dos  Collegios  de  Salamanca,  e  dos  CoUegios  maio- 
res  de  Santa  Cruz  de  Valhadolid,  e  de  S.  Udefonso,  de  Alcalà,  e  sem 
que  06  seus  succcEsores  os  podessem  alterar.  Fara  conservasse  da  dis- 
ciplina do  Collegio  de  8.  Fedro,  pediu  o  fondador  ao  Prior  geral  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra,  Cancellano  da  Universidade,  em  1558,  que 
fosse  visitador  d'elle;  encargo  que  foi  acceito  em  Cabido  de  27  de  fe- 
vereiro  d'esse  anno.  ^ 

Constava  o  Collegio  de  doze  coUegiaes  Theologos  e  Canonistas, 
com  o  grào  de  hachareis;  era  por  isso  considerado  comò  Collegio  maior. 
Como  0  Collegio  era  em  sitio  insalubre  e  longe  das  escholas,  foi  mndado 
para  junto  da  Universidade  em  1572,  onde  ficou  até  à  sua  extincgSo. 

Teve  a  sua  primeira  coUocasSo  na  rua  da  Sophia,  onde  depois 
estiveram  os  Frandscanos  da  Fenitencia,  e  ahi  se  conservou  até  1572, 


^  0  Dr.  Silva  Lesi,  cita  o  ms.  dos  AuenlOM  e  retdugdei  do  Cotwento  nas  ma- 
tericu  que  m  Ihe  propuMeranif  t,  i,  liv.  n,  fi.  48  :  «  Aos  27  dias  do  mez  de  Feverdro 
de  1&58  annoB,  foram  jmitos  os  Irmios  Capitulares  em  Capitalo,  e  logo  foy  pro- 
posto pelo  padre  Prior,  corno  o  Bispo  de  Miranda  fizera  o  CcUegio  de  S.  Fedro  em 
està  cidade^  e  por  quanto  desejava,  que  o  Prior  d^eiite  Mosteiro  o  TiBitasse,  Iho 
mandiira  pedir,  e  mostrara  os  Estatutos  do  dito  Collegio,  ob  qoaes  elle  padre  Prior 
mandara  vèr  ao  InnSo  D.  JoSa,  de  que  elle  fizera  certos  apontamentos,  do  que  se 
oontinha  em  os  ditos  Estatutos,  que  logo  foram  lidoB  ante  todos;  e  depois  de  com» 
municado,  foy  asBentado  pela  maior  parte  dos  ditos  Capitulares, — que  a  dita  obrì- 
ga^  se  acceitasse,  moderando  o  dito  Bispo  algumas  cousas  que  estavam  nos  di- 
tos apontamentos  :  ^S^  querer  ohrigar  ao  Frior  que  peasocUmenle  vUUe  o  dito  Col- 
legio; e  que  tomejuramento  ao  principio  da  vieitOQào;  e  que  se  appeUe  do  Frior  para 
o  Begtor  da  Univet8Ìdade;9m  quaes  cousas  eram  multo  duras,  e  poueo  eonvenien- 
tes  ao  DOSSO  modo  de  viver;  e  que  conoextaBdo  iato  tndo,  adma  dito,  dando  o  Ca- 
pitulo  geral  consentimento  a  isso,  fo1gari2o  de  a  aceeitar,  pelo  amor  que  tinbam 
ao  dito  Bispo,  e  devo^,  que  Ihe  viSo  de  deizar  cBte  Collegio  debaixo  do  amparo 
d'està  Casa.»  (Mem.  dt,,  p.  118.) 


574  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIlfBRA 

època  em  que  D.  SebastiSo  Ihe  mandou  erìgir  nova  sède  em  urna  parte 
da  Universidade.  Os  doze  logares  eram  distribaidos  por  ecdesiasticoa 
e  secolares  que  cursaBsem  Theologia,  Canones  e  Leis;  os  seus  estatit- 
tos  eram  os  mesmos  que  se  seguiam  nos  CoIIegios  de  Salamanca,  e  os 
seas  visitadores  eram  os  Priores  do  mosteiro  de  Santa  Criu,  cnja  jn- 
rÌ8dic9So  conservaram  até  1660,  em  que  o  Collegio  ficon  sob  a  inspeo* 
fSo  dos  Reitores  da  Universidade.  D.  Nicol&o  de  Santa  Maria  traz  ama 
extensa  lista  de  homens  publicos  do  seculo  xvi  e  xvii  qne  foram  eda« 
cados  no  Collegio  de  S.  Fedro,  e  entro  elles  figura  o  infeliz  Antonio 
Leitào  Homem,  lente  de  vespera  e  de  prima  de  Cànones,  conego  don* 
toral  da  sé  de  Coimbra  e  deputado  do  Santo  Officio.  * 

O  seu  edificio  pertence  hoje  ao  Theatro  academico.  Era  conhecido 
pela  alcunha  vulgar  de  Collegio  dos  Borra». 

0  bispo  fundador  morreu  em  13  de  agosto  de  1559,  passando  a 
adminÌBtra9&o  do  Collegio  para  seu  sobrinho  Christovam  Freire  de  Car- 
Talho.  Este  diminuiu  o  numero  dos  collegiaes,  disfructando  os  rendl- 
mentos  do  Collegio,  centra  o  qual  houve  protestos  e  demandas,  de  que 
resultou  entregar-se  o  edificio  ao  administrador,  e  ser  passado  o  Col* 
legio  da  ma  da  Sophia  por  ordem  de  D.  SebastiSo  em  1572  para  uma 
parte  do  Palacio  real. 

Na  lucta  dos  Collegiaes  de  S.  Fedro  com  Christovam  Freire  de 
Carvalho,  sobrinbo  do  bispo  fundador,  abandonaram-lhe  o  edificio  da 
ma  da  Sophia,  para  onde  elle  foi  morar,  arrendàndo^o  a  estudàntes. 
Como  fidalgo  prodigo,  teve  de  ser  execatado  por  um  seu  maior  ore* 
dor,  Rodrigo  Ajres,  que  ficou  com  o  Collegio  para  pagamento;  arren- 
dando-o  entSo  por  50^9000  réis  por  anno  aos  religiosos  Terceiros  que 
vinham  frequentar  a  Universidade.  ^  Em  1586  fez-lhes  a  dóa98o  dò  edi- 
ficio, com  a  obriga98o  de  um  annual  de  missas  e  dois  officios  perpe- 
tuos,  ficando  elle  padroeiro  do  Collegio  e  seus  euccesBores.  D'està  doa- 
980  resultou  um  violento  processo  de  seu  neto  Louren^o  Ayres  de  Si, 
revindicando^o  por  lesSo  enormissima;  durou  até  14  de  abril  de  1664| 
e  terminou  por  uma  composi^So  com  os  religiosos,  que  se  obrigaram  a 
dar  0  pre90  por  que  Rodrigo  Ayres  0  recebera  de  Òuristovam  Freire, 
ficando  porém  isentos  dos  encargo^  das  n4s«a9, . 


1  (Jhromea  dos  Ckmtgoè  BegranU»,  Liv.  z^  cap*  xs,  p.  860.  > 

^  D'este  facto  resulta  o  «qnivooo  da  considerar  0  CoUegio  de  &  Beèn  corno 

sendo  da  Tereeira  ordem  da  Penitencia  de  &.  Francisco,  corno  se  ve  na  BmìtnoOcia 

do8  CoUegioa,  Ccnventos  e  MosidTo$fwihdado8  no9  diairiatoa  de  Cambroy  AvetroeLd" 

ria,  do  sr.  Dr.  Antonio  José  Teizeira.  (Bevuta  de  Educai^  e  EnnnOf  anno  v,  p.  489.) 


0  COLLEGIO  REAL  575 

O  Collegio  de  8.  Thomaz,  corno  tivemos  occasiKo  de  notar^  fòra 
Aindado  e  dotado  pelo  rei  D.  Manoel,  em  28  de  Janeiro  de  1517,  para 
seis  frades  da  ordem  de  S.  Jeronymo,  e  qaatorze  dominicanos.  Rece- 
bea  este  titillo  por  ter  side  inaagurado  no  dia  da  trasIada9So  de  S.  Tho- 
maz de  Aquino.  Era  a  sua  dota920y  em  dinheiro,  130^000  réis  aoa 
qnarteis  adiantadamente;  em  generos,  vinte  moios  de  trigo  e  vinte  pi- 
pas  de  vinho.  Era  obrìgatorìo  que  o  reitor  fosse  um  dominico;  os  seas 
estatutos  obtiveram  approva9So  apostolica  por  LeSo  x,  em  10  de  juiho 
de  1517.  Em  1522,  por  alvarà  de  27  de  fevereiro,  D.  JoSo  iii  con- 
firmou  a  dota9So  do  Collegio  de  8.  Thomaz,  com  a  dansala  de  jaris- 
dic9So  sobre  os  lentes  e  estadantes,  camprimento  dos  estatatos  e  sua 
reforma.  Depois  de  algumas  doa98e8y  D.  JoSo  in  mudoa  o  Collegio  de 
S.  Thomaz  para  o  Mosteiro  da  Batalha  nos  prìncipios  de  1538,  aucto- 
risado  por  balla  de  Paulo  m,  de  7  de  novembre  de  1539;  em  16  de 
outubro  d'este  mesmo  anno  o  rei  jà  o  tinha  transferido  para  Coimbra 
para  o  sitìo  do  Chda  da  Torre  à  Figueira  velha.  Era  entSo  reitor  do 
Collegio  Frei  Lopo  de  Santarem,  cujo  governo  durou  até  1541;  suc- 
cedeu-lhe  por  elei^fto  Frei  Martinho  de  Ledesma,  castelhano,  lente  de 
Theologia  na  Universidade.  Em  consequencia  das  grandes  cheias  do 
Mondego,  teve  de  se  proceder  à  demolisse  do  convento  onde  estava  o 
Collegio,  e  à  construcfHo  de  novos  edificios  separadamente  para  os  fra- 
des e  para  os  coUegiaes.  0  Collegio  de  S.  Thomaz  teve  o  seu  novo 
come90  em  1546,  e  veiu  a  ficar  concluido  em  1566  ;  por  accasìSo  d'es- 
tas  obras,  separaram-se  os  padres  collegiaes  de  S.  Jeronymo,  conse- 
guindo  tambem  um  Collegio  proprio,  por  alvarà  datado  de  Santarem  a 
16  de  outubro  de  1546.  Em  carta  de  6  de  outubro  de  1539,  D.  JoSo  in 
manda  a  Frei  Braz  de  Barros  que  entregue  ao  vigario  goral  dos  do- 
minicos  um  chSo  para  a  oon9tmc98o  do  convento  e  collegio;  em  outra 
de  31  de  Janeiro  de  1543  insiste  na  urgencia  de  ser  edificado  o  con* 
vento  com  o  Colk^gio;  e  em  carta  de  23  de  agosto  de  1544  dà  ordem 
ao  reformador  que  ceda  um  cbSo  no  valor  de  200f$[000  réis  para  o  Col- 
legio  de  S.  Thomaz,  ^un^o  ds  casa$  queforam  de  Jorge  Vox,  ondejd  o 
Collegio  e$td  comegado,  e  compensando-o  com  outros  terrenos,  e  com 
algupnas  renda*  da  Meiui  do  Frìoirado  m^r.  ^  Era  feitor  e  recebedor 
d'este  Collegio  de  S.  Thomaz  em  1563,  o  celebre  Simlo  Vaz  de 


1  Naiieiat  do  ColUgio  real  de  Santo  ThomoM  da  Ctdade  de  CMmbra,  por  Fr. 
Joio  de  Franca  (na  Historia  todegiaBiiea  de  Coimbra,  t  in),  Ms.  da  Bibliotheca 
nacional.  Dr.  Antonio  José  Teiieira^  Semita  de  Edueagào  e  Enrino,  anno  ▼,  p.  551 
e  seguintes. 


576  HISTORIA  DA  UmVERSIDADE  DE  COIMBRÀ 

CamSes,  primo  do  grande  èpico  portugueas.  O  Collegio  foi  incorpo- 
rado  na  Universidade  por  D.  Sebastilo,  em  alvarà  de  20  de  jonho 
de  1577.* 

O  Collegio  da  Graga,  foi  fundado  por  D.  JoSo  ni^  *  encarregando 
da  dìrec9So  da  obra  o  firade  graciano  hespanhol  Frei  Luiz  de  Mon- 
toya;  principiaram  as  obras  em  13  de  Janeiro  de  1543,  vindo  a  ficar 
conclnidas  em  1548.  Està  actaalmente  occapado  pelo  quartel  militar. 
Foi  incorporado  na  Universidade  por  alvari  de  12  de  outubro  de  1549.^ 

Os  Conegos  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  tiveram  de  ceder  &  pres* 
sSo  de  D.  JoSo  m,  doando  os  terrenos  em  que  se  fundaram  além  d'es- 
tes  dois  CóttegioB,  de  8.  Thomaz  e  da  Qraqa,  ontros  Collegios,  comò 
o  de  3.  Boaventwra,  o  do  Carmo  e  o  do  Espirito  Santo»  ^  O  Collegio  de 
S.  Boaventura  foi  ftindado  pelos  franciscanos  da  provincia  de  Portogal 
no  edificio  onde  D.  Fedro  Malheiro,  bispo  de  Amyclas,  fundara  em 
Coimbra  em  1552  o  Collegio  para  Estudantes  póbres,  sendo  depois  ex- 
tinctOy  e  as  suas  rendas  annexadas  ao  Hospital  Lateranense  de  Roma.  ' 
O  Collegio  de  Nossa  Senhora  do  Carmo,  tambem  conhecido  no  seu  tempo 
pelo  nome  de  CoUegio  do  Bispo  do  Porto,  foi  fundado  por  D.  Fr.  Bal- 
thassar  Limpo  em  1540,  e  incorporado  na  Universidade  por  alvarà  de 
7  de  setembro  de  1571.^ 


1  lAvro  z  doé  B^taa,  fi.  18d. 

2  vProviiào  de  Elrd  para  $e  edificar  o  CoUegio  de  Nosea  Senhora  da  Graga 
na  rua  de  Santa  Sophia  em  Coimbra:  Jqìz,  vereadores  e  procimdores.  £u  ElBei 
TOB  envio  multo  saudar.  £u  desejo  qua  nessa  cidade  se  fa^a  um  Collegio  e  Mo»- 
teiio  de  Nossa  Senhora  da  GraQa,  e  folgarìa  que  se  fisesse  no  ch2o  que  està  adiante 
do  Collegio  do  Bispo  do  Porto;  e  por  que  é  necessario  tomar-se  um  caminho  que 
passa  por  cima  do  dito  chSuo^  em  que  o  dito  Collegio  se  hade  fazer,  vos  Enoom* 
mendo  muito  que  pela  obra  ser  de  tanto  seryi^  de  'Nesso  Senhor,  e  tSo  necessa- 
ria, folgueis  de  dar  o  dito  caminho  e  entro  o  CeUegio  do  Bispo  do  Porto  e  este  de 
Nossa  Senhora  da  Gra^a  ficarà  urna  rua  de  tres  bra^as  de  largo,  pela  qnal  pos^ 
sam  ir  à  rua  de  Santa  Sophia,  os  que  vierem  pelo  dito  caminho;  e  de  o  assim  fn- 
zerdes,  comò  confio  que  o  fareis,  Beccherei  muito  contentamento^  e  vol*o  agrade- 
cerei.  Escripta  em  Lbboa,  a  30  de  Outubro  de  1542. — Bei.»  0  CoUegio  do  Bispo 
do  Porto,  era  o  Collegio  do  Carmo,  fundado  por  D.  Fr.  Balthasar  limpo  para  os 
derigos  do  seu  bispado  em  1642;  foi  ampliado  e  oondiudo  por  Fr.  Amador  Arraes 
para  os  frades  carmelitas  em  1597.  Dr.  A.  J.  Teixeira,  Bevista  de  Eduoagào  e  En^ 
sinOf  anno  ti,  p.  86. 

'  lÀvro  dos  Begistos,  fl.  Ili. 

^  D.  Niool&o  de  Santa  Maria,  Chroniea  dos  BegrasUu,  Liv.  z,  cap.  ▼. 
^  Fr.  Fernando  da  Soledade,  Historia  seraphica,  liv.  m,  cap.  zxii,  n.  660. 
*  Liv,  yn  dos  Privilegios  de  D.  SébasliàOf  fl.  120  f,  Arch.  nac 


0  COLLEGIO  REAL  577 

Os  CoUegioB  de  S.  Jeronymo,^  de  8.  Bento^  e  o  àe  8.  Paulo^ 
foram  fundados  pelo  incansavel  reitor  Fr.  Diego  de  Mar9a.  0  CoUe- 
giù  de  8cmio  Agostinho,  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  transferìdo  para 
o  chamado  Collegio  novo,  tambem  foi  incorporado  na  Universidade.  ^ 
O  Collegio  de  8.  Bernardo  foi  sabmettido  egualmente  ao  regimen  da 
Universidade.  * 

O  facto  da  extincfSo  ou  incorpora9So  doB  antigos  CoUegios  de 
Todos  OS  8anto8  e  de  8.  Miguel,  que  pertenceram  ao  mosteiro  de  Santa 
Cruz,  no  Collegio  real  em  1547^  onde  D.  JoSo  ni  estabeleceu  os  Mes- 
tres  francezes  sob  o  prìneipalado  de  André  de  Gouvéa,  fez  com  que 
o  diligente  reitor  Frei  Diego  de  Murga  reconbecesse  està  importante 
falta  no  regimen  da  Universidade.  Pediu  o  reitor  a  D.  JoSo  in,  para 
que  fundasse  um  novo  Collegio  para  Clerigos  pohres,  k  imita^So  do 
Collegio  de  8.  Fedro;  o  rei  attendeu-o  em  1549,  applicando-lbe  algu- 
mas  verbas  das  rendas  do  Priorado-mór  de  Santa  Cruz,  taes  comò 
quatorze  jpàes  do  Refettorio,  e  raqdes  da  coberta  da  Meza  doa  Priore» 
móres,  e  as  ra95e8  vagas  e  que  fossem  vagando  das  Donas  e  Merciei- 
ras  do  Hospital  de  S.  Jo3o.  Foram  estes  parcos  rendimentos  lan9ado8 
em  deposito  para  se  fazerem  as  despezas  da  construc9So  do  edificio  do 
Collegio,  que  comejou  em  1550.  Quiz  o  rei  que  se  denominasse  o  Col- 
legio de  8.  Paulo,  comò  para  continuar  o  espirito  da  in8tituÌ9So  do 
Collegio  de  8.  Pedro,  embora  este  fosse  Maior,  ou  propriamente  de 
Mestres,  e  aquelle  Menor  ou  de  escholares.  Come90u-se  a  con9truc9So 
do  Collegio  noB  Estudos  Velhos,  demolindo-se  uns  pardieiros  que  tinham 
pertencido  às  Escholas  no  tempo  em  que  a  Universidade  estiverà  em 
Coimbra,  e  aonde  ainda  em  1550  se  ensinava  Ghtunmatica.  Para  alar- 
gar o  terreno  deu  ordem  o  rei  para  que  a  Universidade  tomasse  em 
escambo  à  egreja  de  S.  Pedro  uns  pardieiros  e  um  quinta!,  ficando  o 
Collegio  de  S.  Paulo  obrigado  a  um  fòro.  Em  imi  Assento  do  Livro 
Primeiro  da  Fazenda  da  Universidade,  do  anno  de  1549,  acha-se  a 
fl.  26  %  a  noticia  d'este  escambo.^  Continuava  a  obra  ainda  em  1554^ 


1  Incorporado  na  Universidade  por  alvarà  de  19  de  dezembro  de  1563.  (Li- 
vro I  do8  Registosy  fl.  152  i.) 

2  Ibidem. 

3  N'este  Collegio  estiveram  recolhidos  os  de  S.  Bento  e  de  S.  Jeronyino,  até 
1568  em  qne  foi  directamente  povoado.  Foi  incorporado  4  Universidade  por  alvarà 
de  23  de  ontubro  de  1562. 

^  Por  alvarà  de  17  de  ontobro  de  1559.  Liwo  i  dos  B^fistos,  fl.  280. 

^  Por  alvar&  de  1  de  mar^o  de  1560.  Ibidem,  fl.  517. 

*  0  Dr.  Silva  Leal,  na  citada  memoria  trauscreve-o  :  «Aos  15  de  Abril  de 

HIBT.  UH.  37 


À 


578  HISTOBIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

quando  D.  Jo2o  m  abandonou  a  obra  do  Collegio  doando-o  à  Univer- 
sidade,  que  ficou  com  a  obriga^Slo  de  terminal-o.  Sem  duvida  o  terri- 
vel  desgosto  da  perda  do  seu  herdeiro,  o  principe  D.  JoSo^  influia  n'esta 
delibera9Slo  do  monarcha.  Frei  Diego  de  Mur^a,  tambem  desgostoao, 
ausentara-se  para  o  seu  mosteiro  de  Refoios  de  Basto  de  que  era  Com- 
mendatarioy  interrompendo-se  assim  as  obras  do  Collegio.  Por  carta 
règia  de  2  de  agosto  de  1 558  foi  dada  ordem  ao  Vice-reitor  para  ter- 
minar as  obras  do  Collegio,  e  recolher  n'elle  os  coUegiaes  no  proximo 
outubro.  *  De  1559  a  1561  estabeleceram-se  as  opposÌ98es  para  as  col- 
legiaturasy  mas  pelas  grandes  despezas  da  Universidade  so  pode  abrir-se 
0  Collegio  em  1562,  comò  se  estatuiu  na  carta  règia  de  16  de  Janeiro 
d'esse  anno:  «me  parece  bem,  que  se  espere,  e  dilate  a  poyoa9&o  do 
dito  Collegio,  e  entrada  dos  CoUegiaes,  atè  o  primeiro  dia  do  mez  de 
Outubro  deste  presente  anno  de  1562,  e  que  com  o  rendimento,  que  jà 
corre  por  conta  do  dito  Collegio,  e  com  o  mais,  que  das  rendas  da 
Universidade  se  poder  para  elle  commodamente  applicar,  os  ditos  Col- 
legiaes  tenham  a  sua  sustenta^So,  e  mantenja  certa,  e  firme,  e  n'este 
meio  tempo  se  apurarSo  os  Oppositores,  e  diligencias  das  Collegiatu- 
ras;  e  pareceu-me  muito  bem  fazerem-se  as  nomea93es  por  mim,  vis- 
tas  as  informafoens  e  diligencias  no  despacho  da  Mesa  da  Conscien- 
eia. . .  »  *  Emquanto  o  Collegio  nSo  funccionou,  n'elle  foram  albergados 
08  frades  de  S.  Bento,  emquanto  estavam  edificando  o  seu  Collegio; 
ali  se  guardou  tambem  o  Cartono  da  Universidade  no  anno  de  1557  ; 


1549,  pelo  Rejtor  e  Deputados  foj  celebrado  escambo  com  os  Benefeciados  da 
Igreja  de  S.  Pedro  d'està  Cidade,  e  dea  a  Universidade  à.  dita  Igreja  humas  casas 
e  quintal  defronte  das  casas  do  Biepo  d^esta  Cidade,  que  trazia  em  duas  vidas  a 
mulher  de  Joào  Vaz  Tanoeiro,  de  que  pagava  cada  anno  125  réis,  por  huns  par- 

dieiros,  quintal  e  casas  come^adas  da  dita  Igreja  defronte  d'ella o  torna- 

ram-se  para  o  Collegio  de  S.  Paulo,  que  Sua  Alteza  ahi  manda  fazer  defronte  da 
dita  Igreja,  no  qual  se  estas  propriedades  meteram;  e  assim  fica  o  Collegio  obrì- 
gado  a  pagar  cada  anno  de  foro  125  &  Universidade,  durando  as  vidas  dos  inqui- 
linoB  das  propriedades  que  foram  da  Universidade.» 

1  nD.  Jorge  de  Almeida.  £u  ElBej  vos  envio  muito  saudar.  Hey  por  bem, 
e  mandovos,  que  do  dinheiro  do  rendimento  das  ra9oen6  das  Donas  de  S.  Joào,  e 
pao  da  Coberta,  que  estào  vagas,  que  sào  applicadas  para  a  obra  do  Collegio  de 
S.  Paulo,  fa^ais  logo  lagear  o  pateo  do  dito  Collegio,  e  fazer  as  gradcs  para  a 
Capella,  e  mais  obras  necessarias,  pelo  modo  que  estao  ordenadas  :  para  se  pode- 
rem  recolher  os  CoUegiaes  do  dito  Collegio  de  Outubro  por  di  ante,  conforme  o  que 
vos  escreveu  o  Reitor  D.  Manoel  de  Menezes,  etc.»  Livro  i  daa  Cart€u  originaes, 
fl.  116.  Ap.  Dr.  Silva  Leal,  Mem,  cit,  p.  419. 

*  Livro  I  daa  Cartas  e  Provisdea  originaes,  fl.  120.  Ap.  Silva  Leal,  p.  421, 


0  COLLEGIO  REÀL  579 

^i  tambem  bo  recolheram  os  frades  de  S.  Jeronjmo  emqaanto  faziam 
-o  seu  Collegio,  e  habitoa  por  algam  tempo  em  1563  o  reitor  da  Uni- 
versidade  D.  Jorge  de  Almeida.  ^ 

Depois  que  se  conciaia  a  obra  da  constrac9So  do  Collegio  de  S. 
Paulo,  foram  incorporados  nos  rendimentos  da  Universidade  ob  qua- 
torze  pSes  do  Refeitorio,  e  ragSes  da  coberta  da  Meza  dos  Priores- 
móres  bem  corno  as  das  Donas  e  Mercieiras  do  Hospital  de  S.  JoSo  ; 
desde  entSo  ficea  a  cargo  da  Universidade  o  Collegio,  que  ella  dotou 
com  0  rendimento  approximado  de  309^000  réis,  em  que  entravam  as 
rendas  do  antigo  Collegio  fundado  pelo  Dr.  Diego  Àffonso  de  Man- 
gancha.  No  Assento  feito  em  Concdho-mór  (Claustro  pieno)  da  Uni- 
versidade, em  25  de  fevereiro  de  1561,  se  acha  estabelecida  a  dota9So 
do  Collegio.* 

Na  linguagem  do  tempo,  era  por  isso  o  Collegio  de  S.  Paulo  co- 
nhecido  pelo  nome  vulgar  dos  Manganchas;  nome  que  era  tornado  i 
ma  parte  pelos  collegiaes,  que  nSo  gostavam  da  referencia  d'estes  ren- 
dimentos, que  constava  do  Alvarà  de  D.  SebastiSLo  de  7  de  dezembro 
de  1562:  co  qoal  ha  muitos  annos  o  occultam,  por  fallar  na  applicarlo 
das  rendas  do  Doator  Mangancha;  (corno  se  fosse  huma  grande  inju- 
ria  para  o  Collegio  o  ser  dotado  com  ellas)»  ^  N^estas  quest5es  de  pre- 
cedencias,  os  collegiaes,  por  terem  casa  nos  Estudos  vdhos  imagina- 


1  Livro  I  da$  Cartas  t  ProvUòea  originaeSf  fl.  120.  Ap.  Silva  Leal,  p.  425. 

2  Livro  dos  Concelhos  do  anno  de  1560,  fl.  123  :  «£  logo  o  Senbor  Reitor 
(D.  Jorge  de  Almeida)  propoz  ao  dito  Concelho  a  muita  necessidade,  que  està  Uni- 
versidade Unba  de  acabar  de  eff situar  o  Collegio  de  S.  Paulo,  que  ba  dous  annos 
que  estava  feito. ...  e  pedio  o  Senbor  Reytor  a  todos  os  seus  votos,  e  todos  assen- 
taram  de  ser  muito  necessario  a  està  Universidade,  e  ao  Beyno  haver  o  dito  Col- 
legio ;  e  nem  bavia  duvida,  por  que  estava  claro  ser  muy  necessario,  e  muj  prò* 
veitoso;  e  assentarào,  que  logo  devia  come^ar  o  mais  cedo  que  podesse;  e  para 
isto  0  dito  Senbor  Reytor  appresentou  bi  os  Estatutos  do  dito  Collegio,  e  buma 
ProvisSo  del  Rey  nosso  Senbor  sobre  os  servidores,  e  outras  cousas  pertencentes 
ao  dito  Collegio.  Tratou-se  logo  corno,  e  onde  se  Ibe  darla  de  comer  aos  Collegiaes, 
que  entrassem,  e  todo  o  necessario  ;  assentàrào  que  come^asse  com  a  esmola  das 
Donas,  que  forao  de  S.  JoSo  de  Santa  Cruz,  da  qual  tem  supplicado  ao  Santo  Pa- 
dre, que  conceda  em  dar  estas,  que  sao  vagas,  e  que  inda  vagarem,  a  este  uso  do 

Collegio,  que  tem  por  obra  pia que  com  isto,  e  com  a  Igreja  de  Val  de  Ermijo, 

que  està  assentado  para  o  dito  Collegio,  come^assem  ;  e  bem  assim  com  os  bens, 
que  forSo  do  Doutor  Mangancba,  de  que  a  Universidade  està  de  posse  muito  tempo 
ha,  que  conforme  o  testamento  do  dito  Doutor,  parece  que  insti tuiu  para  Colle- 
giaes ...  e  com  isto  podia  come9ar  o  Collegio,  que  sSo  perto  de  trezentos  mil  reis 
de  renda;  e  n'isto  assentar^o.»  (Ap.  Dr.  Silva  Leal,  Mem.  cit.,  p.  429.) 

3  Dr.  Silva  Leal,  Mera,  cU.,  p.  431. 

37  « 


580  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

vam-se  continoadores  da  Universidade  de  Coimbra,  desde  1308,  por- 
que  ali  tivera  a  sua  sède;  ontros  querìam  provar  a  sua  aristocracia, 
julgando-se  continoadores  do  Collegio  de  S.  Miguel,  extincto  ezn  1547. 

«O  nome  mais  vulgar  com  que  sSo  conhecìdos,  desdc  o  tempo 
antigo,  na  Universidade  os  CoUegi'aes  de  S.  PaalO|  é  o  de  Mangan- 

chasj por  qae  entro  as  coasas,  com  que  a  Universidade  o  doutou, 

quando  Ih'o  doira  o  senhor  rei  D.  JoSLo  in,  foram  algons  bens  do  Col- 
legio antigo,  que  o  Doutor  Diego  Affonso  Mangancha  fundara  na  Uni- 
versidade de  Lisboa;  e  mais  é  certo,  que  aquelle  Collegio  nunca  feas 
proprio,  nem  se  valeu  d'oste  nome,  antes  procurou  sempre  pól-o  em 
esquecimento .  • .  »  ^ 

O  Collegio  de  8.  Paulo,  era  junto  das  Escholas  maiores  da  Uni- 
versidade, cno  proprio  sitio  e  legar  onde  no  tempo  de  eirei  D.  Dùiiz 
foram  as  Escholas  geraes  da  mesma  Universidade.  9  ^  O  edificio  so  ficea 
terminado  em  1563  no  tempo  de  D.  Sebastifto,  sendo  inaugurado  em 
2  de  maio,  d'esse  anno.  Os  seus  primeiros  coUegiaes  foram,  em  Theo* 
logia,  Ignacio  Dias,  D.  Affonso  de  Castel-Branco,  e  Pero  Louren90  de 
Tavora;  em  Canones,  Louren90  MourSo,  Ruy  de  Scusa,  Bxxj  BrandSo 
e  Bodrigo  Ayres;  em  Leis,  Antonio  Salema,  Antonio  de  Castiiho,  guar- 
da-mór  da  Torre  do  Tombe  e  amigo  do  poeta  Dr.  Antonio  Ferreira; 
e  em  Medicina,  Manoel  Cardim. 

Resta-no0  recompfìr  o  estado  dos  trabalhos  intellectuaes  em  Coim- 
bra,  n'este  periodo  de  ferver,  que  estava  prestes  a  extinguir-se;  ser- 
vimo-nos  de  um  meio  indirecto,  percorrendo  a  bibliographia  d'essa 
època. 

Com  a  vinda  dos  mestres  francezes  para  Coimbra,  em  1548,  trou- 
xera  tambem  Diego  de  Teive  uma  typographia  para  a  Universidade; 
o  reitor  Frei  Diego  de  Murja  installou-a  nos  pa908  de  el-rei,  e  centra- 
ctou  08  dois  jà  entto  celebres  impressores  Jo8o  Barreira  e  JoSo  Alva- 
res,  Eendo  confirmado  esse  ajuste  por  provisSo  de  21  de  mar90  de  1548. 
A  actividade  typographica  exercera-se  até  entSo  principalmente  den- 
tro do  mosteiro  de  Santa  Ciuz;  antes,  porém,  da  nomeajSo  dos  dois 
impressores,  jà  elles  trabalhavam  para  a  Universidade;  transcrevere- 
mos  algnns  dos  titulos  dos  livros  que  imprimiram  sobre  assumptos  es- 
cholares: 

1542 — Martini  ab  Aspilcueta  Kavarri  Jurisconstdti  in  tres  depoe- 


1  Dr.  Maaoel  Pereira  da  Silva  Leal,  Àcademia  de  Historia,  CoUecam  de  Do* 
cumerUos  e  Memorias,  1731,  P.  x,  p.  93. 

^  D.  NicoUo  de  Santa  Maria,  Chroniea  doi  Regrante»,  Liy.  z,  cap.  zr,  p.  383- 


0  COLLEGIO  REAL  581 

nitentia  distmctiones  posteriorea  Commentarli:  ex  Officina  Joannis  Ai- 
vari  et  Joannis  Barrerii. 

1544 — Commento  en  Romance  a  manera  de  repeiieion  latina,  y 
echolastica  de  Juristas,  sobre  el  Capitido  Inter  verba  xi.  q.  m.  Com- 
pueato  por  d  Doctor  Martin  de  Aspilcudta  Navaro;  Catfiedratico  de 
prima  en  Cananee  de  la  Universidad  de  Coimbra,  etc.  Ibi. 

1545 — Commentarios  ao  Con,  Scindite  corda  vestra  de  consecrat. 
Dist.  I.  Do  mesmo  Doutor  Navarro.  (Ha  um  outro  commentario  de 
Bartholomeu  Philippe,  ao  mesmo  canon,  impresso  em  Lisboa,  por  Luiz 
Rodrigaes,  em  1539.) 

1546 — De  Arte  atque  ratione  navigandij  de  Fedro  Nanes.  In-4.® 

— De  Erratie  Orontii  Finei  regii  Mathemat.  Lutetiae  professoris, 
do  mesmo.  Fol. 

1547 — Pradectio  in  C.  Accept,  de  Resi,  SpóliaJt.,  do  Doutor 
Navarro. 

— Meditalo  da  innocentissima  morte  e  payocam  de  noseo  s^ior  em 
estilo  metrificado,  novamente  composta.  Goth.  de  138  folh.  inn.  cFoy 
visto  e  aprovado  oste  presente  livro  pelo  doutor  Mestre  Payo  (Rodri^ 
gues  Villarinho):  por  comissam  e  mandado  do  Cardeal  Infante.  Fola 
qual  o  mesmo  doutor  mandou  que  se  imprimisse.  E  foi  impressa  a 
presente  obra  em  a  muy  nobre  e  sempre  leal  cidade  de  Coymbra  por 
Joam  da  Barreira  e  JoSo  Alvares,  empressores  da  Universidade.  A 
custa  do  muyto  illustre  e  reverendo  senhor  Dom  Bras  Bispo  de  Leyria. 
E  acabouse  aos  xxix  dias  do  mes  de  Juiho  de  mdxlvu.»  Este  livro  é 
attribuido  a  IVei  Antonio  de  Fortalegre,  franciscano  da  provincia  da 
Piedade.  Ha  n'este  livro  uma  declara9So  do  livreiro-impressor,  de  um 
grande  interesse  litterario:  e  Ho  reverendissimo  senior  dom  Bras  Bispo 
de  Leyria  mSdou  empremir  està  precedente  meditarlo  a  sua  propria 
custa  pera  a  dar  por  amor  de  d's  a  religiosos  e  religiosas  e  a  outras 
pessoas  devotas.  Forque  Ihe  pareceo  cousa  prò vey tosa  pera  suas  ai- 
mas.  E  depois  de  ser  empremida  mandou  a  mi  Joam  da  barreyra  em- 
pressor  del  Rey  nesso  s£ior  em  està  catholica  Universidade  que  ajun- 
tasse  aa  mesma  medita9am  as  seguintes  trovas,  por  Ihe  parecerem  de- 
votas e  proveitosas  especialmente  pera  muytos  religiosos  e  religiosas 
que  sam  grandes  musicos,  e  por  falta  de  cousas  espirituaes  muytas  ve- 
zes  tangem  e  cantam  cousas  seculares  e  profanas.  Por  isso  os  avisa  e 
Ihes  roga  que  em  legar  das  vaidades  mundanas  cantem  e  tanjam  estas 
spirituaes  e  devotas.  E  por  que  o  romance  que  aqui  vay  acharam  sin- 
gularmente  apontado  por  Badajoz,  musico  da  camera  del  rey  nesso 
sSor;  e  o  vUScete  do  parto  da  seSiora  se  ha  de  cantar  por  o  duo  que 


582  HISTORIA  DA  UNIYERSIDADE  DE  GOIMBRA 

compoz  Torres,  da  letra  inimiga  foy  madre;  e  ho  ào  pronto  da  $^iorai 
caminho  do  monte  calvario  por  a  cSposiyam  do  motete  Fili  mi  AbsaIS,, 
do  qtial  foy  a  letra  tomada.  E  d'està  maneira  sera  deos  louvado  in 
chordis  e  organo,  e  o  spirita  sancto  que  foy  o  primeyro  inventor  & 
mostre  da  arte  da  metrificadura  seri  servido.  Etc.» 

Por  està  passagem  se  ve  que  o  activo  bispo  querìa  reagir  contra 
o  novo  costume  de  se  p8rem  em  musica  os  romances  velhos  da  tradi- 
9S0  peninsular.  0  compositor  Luiz  Milan  dedicara  em  1537  0  seu  Li-- 
Irò  de  Musica  a  D.  JoSo  III;  n'esse  livro  traz  a  letra  dos  romancea 
Telhos  Mis  arreos  son  las  armas  e  Sospiraste  Baldovinos.  Outros  com- 
positores,  comò  Yalderràbano,  Salinas,  Fuenllana,  Pisador  e  Narvaea, 
notavam  em  musica  esses  velhos  romances,  de  que  entSo  se  formavam 
as  bellas  coUecQSes  de  Sevilha  e  Anvers.  A  indica9So  de  Frei  Braz  de 
Barros  corresponde  à  apropria9So  que  comegou  a  dar-se  da  musica  maia 
Yulgarisada  d'esses  romances  ao  divino.  Infelizmente  pouco  durou  està 
elaboragUo  artistica,  porque  os  Indices  expurgatorios  do  cardeal  infante 
prohìbiram  todos  os  romances  ao  divino,  infloindo  directamente  na. 
decadencia  da  tradirlo  popular.  Entro  as  musicas  pro&nas,  corno  vi- 
mos  pelas  referencias  de  Antonio  Prestes,  predominavam  Sisjusjuina»,. 
ou  de  Josquin  dea  Près. 

Além  d'este  livro  da  PaixSo  m^trificada,  Frei  Braz  de  Barros  ti- 
nha  mandado  tambem  imprimir  na  typographia  do  mosteiro  de  Santa 
Cruz  a  sua  traducalo  latina  do  EspeTho  de  Perfeiq34),  de  Frei  Henri- 
que  Harphi,  que  dedicou  a  D.  JoSo  ni.  Tiuha  no  fim:  Imprimia-sepor^ 
os  Conegos  de  Santa  Cruz:  em  0  anno  da  encama^o  de  Nosso  Senhor 
Jesu  Christo  1633  anno  sexto  da  re/orma^  do  dito  mosteiro. 

1547 —  Tractado  da  segunda  parte  do  Sacramento  da  PenUenciaj, 
por  D.  Sancho  de  Noronha.  In-4.^ 

1548 — Amoldi  Falricii  Aguitani,  De  lÀberalium  Artium  StudUs 
Oraiio,  Conimhricae  habita  in  Gymnasio  Regio  pridiè  quam  ludus  ape-- 
riretur  IX.  Cai.  Mariti  1547.  1  voi.  in-4.® 

— Mdchioris  BeUiago  Portuensis,  De  Disdplinarum  omnium  Shi^ 
diis  Oratìo  ad  universam  Academiam  Conimbricensem  habita.  Col.  Octo^ 
Iris  1548. 

— Joannis  Femandis  Oratìones  duae  ad  Joannem  III  PortugaUiae 
et  Algarbiorum  Regem,  De  celebritate  Academiae  Conimhrieensis,  e  Ora- 
Ho  funebris  habita  in  funere  Eduardi  filii  D.  N.  R.  1  voi.  in-8,® 

— Diego  de  Teive,  Comment.  de  rebus  gestis  in  India  ad  Dium^ 
etc.  In-4.®  N'este  livro  escreveu  0  Principal  Jofto  da  Costa  0  poemeto 
iOarmen  ad  LusUaniam. 


0  COLLEGIO  REAL  583 

1548 — Do  mesmo,  OraHo  in  laudem  Nuptiarum  Joannù  et  Joan" 
noe  lUust,  Prineipum,  etc.  In-4.^ 

—  Comment.  in  §  Et  quid  sit  tant.  L,  OaUus,  por  Manuel  da  Costa, 
0  Stibta.  Fol. 

1549 — Aristotelis  de  Reprehensionibus  Sophistarum  liber  unus:  Ni- 
caldo  Chrouchio  Rhotomagensi  interprete.  1  voi.  in-S.^  Este  volume  foi 
impresso  à  custa  de  Belchior  Belliago  para  explora9So  ;  refere-se  a  isto 
Diego  de  Teive  no  processo. 

— Bdckior  Belliago,  De  Diahctica^  um  breve  resumé  de  Logica, 
impresso,  segundo  elle  diz,  a  pedido  dos  seus  discipulos,  e  dedicado 
a  D.  Jofto  Affonso  de  Menezes. 

— Ad  L.  Si  ex  cautione,  etc.,  por  Manuel  da  Costa.  Fol. 

— Indice  dos  Chiliadas  de  Erasmo,  por  Vasco,  mostre  de  Latim,  e 
dedicado  por  Jofto  Barreira  ao  Doutor  Martim  de  Aspilcueta  Navarro. 

— Ad  Invict,  Lus,  Eegem  Joannem  III  Oratio,  ou  poema  latino 
em  louvor  de  D.  JoSo  m,  por  Fedro  Mendes. 

—  Tratado  vnoral  de  Louvores  e  perigos  de  alguns  estados  secula- 
ree,  e  das  obrigaqZea  que  n'eUes  ha,  com  eocortagào  em  cada  estado  de  gue 
se  trata\  composto  por  D.  Sancho  de  Noronha.  Officina  de  Francisco 
Correa,  impressor  do  Collegio  reoL. 

1550 —  Cartiiiha  para  ensinar  a  ler  e  escrever,  do  bispo  D.  Frei 
JoSo  Soares,  com  o  Tratado  dos  Remedios  contra  os  sette peccados.  In-12.^ 

— LiÒellus  de  TerraemotUy  De  vario  amore  Edoga,  De  Disciplina- 
rum  omnium  laudilus  oratio,  por  Jeronymo  Cardoso.  In-8.® 

—  Oratio  in  laudem  CI.  Principis  Joannis  I,  por  SimBo  de  Cas- 
tro. In-4.® 

— Panegyris  Alphonsi  I,  Lusitanorum  Regis,  pelo  Prior  do  Crato, 
D.  Antonio. 

— Rhetorica  breve  de  Joaquim  Rhingelbergio. 

—  Colloquios  de  Erasmo,  dedicados  a  D.  JoBo  lu  e  ao  cardeal  in- 
fante, por  JoSo  Femandes  de  Sevilha,  professor  de  Rhetorica  em 
Coimbra. 

—  Axiomaium  Christianorum  libri  tres,  por  D.  BVei  Gaspar  do 
Casal. 

—  Chronica  geral  de  Marco  Antonio  Coccio  SabeUico,  des  o  comego 
do  mundo  atee  nosso  tempo,  traduzida  em  lingoagem  por  D.  Leonor  de 
Noronha.  Fol.  P.  i. 

-—Antonio  da  Costa,  JE^ngramma  a  Jeronymo  Cardoso. 
1551 — Historia  do  descobrimento  e  conquista  da  India  pelos  Por- 
tuguezes,  de  FemSo  Lopes  de  Castanheda,  bedel  da  Universidade. 


584  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIHBRA 

1551 — SdecL  interpretationum  circa  conditìones,  etc.,  libri  diu), 
por  Manuel  da  Costa.  Fol. 

— Ad  L.  Cum  tede  §.  Si  arbitrata  D.  etc.,  do  mesmo. 

—  Oratio  habita  Conimbricae,  por  André  de  Resende.  In-4.*' 

— Dictionarium  Juventuti  studiosae  admodum  frugiferum.  In-8.® 
(Outra  de  1562.)  Por  Jeronymo  Cardoso. 

— Logica  de  Trapezuncio,  com  as  notas  de  Diogo  de  Contreras. 
N'este  tempo  jà  trabalhava  em  Coimbra  Antonio  Mariz,  que  tambem 
veiu  a  ser  impressor  da  Universidade  :  ConstituiySes  do  Bispado  de 
Coimbra. 

155? — Ad  Serenissimum  Limtaniae  Principem  Joannem  Filium 
D.  N.  Regia  Joannis  III  jam  fdiciter  Regem  designatum  Elementa 
Orammatices  cum  adnotationibus  in  eadem  per  Joannem  Femandum 
Hispcdensem  Rhetorem  Regum  in  indyta  Conimbrice,  In-8.^ 

1552 — Arte  de  Rhetorica,  do  jesuita  Cjpriano  Soares,  valenciano. 

—  Oratio  de  omn,  Philosophia  part.  laadibus,  et  studiis,  por  Hi- 
lario  Moreira.  In-4.° 

— De  sito  et  alieno  posthumo,  por  Manuel  da  Costa.  In-4.® 

—  Carmen  heroico-latino,  do  jurisconsulto  Manuel  da  Costa,  no  ca- 
samento do  infante  D.  Duarte  com  D.  Isabel. 

— Bhtoria  do  Descobrimento  e  conquista  da  Lidia,  de  Castanheda. 
Fol.  Em  1552  (segundo  e  terceiro),  1553  (quarto  e  quinto)  e  1554 
(sexto  e  septimo),  comprehendendo  sete  livros. 

— Segunda  Parte  da  Chronica  geral  de  Marco  Antonio  Coccio  Sa- 
bellico,  traduc92o  de  D.  Leonor  de  Noronha.  Fol. — Tambem  imprimi- 
ram  As  vidas  de  alguns  Santos  da  Ordem  dos  Prégadores,  etc.  Fol. 

1553 — Fr.  Francisco  de  Barcellos,  Scdutiferae  Crucis  Triumphus; 
na  Epistola  dedicatoria  a  D.  JoSo  ui  faz  referencias  à  grande  influen- 
eia  de  Frei  Braz  de  Barros  no  desenvolvimento  dos  estudos  em  Coimbra. 

— Rudimenta  Grammaticae, 

— Ignota  Moralis,  Ciceronis  Proemium  Rhet.  In-4.® 

—  Oratio  ad.  Reg.  Joan.  Ili,  do  mesmo.  In-4.® 

— Epiikalam.  Seren.  Princip.  Joannes  et  Joannae,  do  mesmo. 
In.4.« 

— Panegyris  D.  Antonio  Principia  Ludovici  Filio,  In-4.®  Apud 
Barreira. 

— Edoga  guae  Sylenis  inscribitur,  aliaque  Poemata,  por  Jeronymo 
Cardoso.  In-8.® 

1554 — Historia  de  Eusebio  de  Cesarea,  traduzida  por  Frei  JoSo 
da  Cruz,  da  Ordem  dos  Prégadores  da  Provincia  de  Portogal. 


0  COLLEGIO  REAL  585 

1554 — Monastickon  de  primis  Hispanorum  Regibìis,  por  Frei  Ni- 
colào  Coelho;  e  Chronologia  seu  Ratio  Temporum,  do  mesmo.  1  voi. 

—  Oratio  de  Scient.  disciplinarumque  omn.  lavdxbus  hahita  Co- 
nirribr.,  por  Henrique  de  Brito.  In-8.° 

— Cartinha  para  ensinar  a  ler,  etc,  por  D.  Frei  JoSo  Soares. 
In.l2.« 

— Ignota  Moralis,  in  Interitu  Principis  Joannis^  Elegiae  dtuie; 
item  cum  ejusdem  duobtis  epUaphiis.  Deplorat  Joanna  suavissimum  ma- 
ritum.  Elegia  latina.  Oatra,  tendo  por  argomento:  Joannes  Princ&ps 
recenti  fato  functus  et  Maria  ejua  soror  in  Olimpo  collo juuntur.  Outra: 
Ad  ncucentem  prolem  Sereniseimas  Joannae. 

— Conimhricae  Encomium.  Descrip^Ho  de  Coimbra  dedicada  a  D. 
Antonio,  filho  do  infante  D.  Luias.  Apud  Barreira. 

— Hietoria  do  comedo  de  nossa  Redempgcto,  que  se  fez  para  conso- 
lagSo  dos  que  nào  sabem  Latita^  publicada  por  mandado  de  D.  Leonor 
de  Noronha. 

— Historia  da  vida  e  martirio  de  Santo  Thomaz  de  Cantuaria,  por 
Diego  Affonso,  secretario  do  cardeal  D.  Affonso. 

— André  Rodrigues,  Loci  communes  Sententìarum.  In-4.°  (Outra 
de  1567  e  1569.) 

—  Triumphos  de  Sagramor,  em  que  se  tratam  osfeitos  dos  cavallei- 
ros  da  segunda  Tavola  Bedonda,  por  Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos. 

1555 — Grammatica  Despauterii. 

— Arte  de  Guerra  de  mar,  de  FernSo  de  Oliveira.  In-4.^ 
— Ignota  Moralis,  In  interitum  Principis  Ludovici  Elegia.  Apud 
J.  Alvarem. 

—  Oratio  de  Scientiarum  laude,  de  Antonio  Finto. 

1556  — Hieronymus  Opera.  Fol. —  Constitui^ksdoBispado  de  Vìseu. 

1557 — Ignota  Moralis,  Oratio  funebris  in  interitum  Serenissimi 
Regis  Joannis  ad  Patres  Conscriptos  Conimbricensis  Academiae. 

— Ayres  Pinhel,  Ad  Ruòric.  etc.  L.  II  Cod.  De  rescindendo  Fin- 
dit.  CommenL  Fol. 

— Confessionario  ou  interrogatorio  breve,  por  D.  Frei  JoSo  Soares. 

1558 — De  quaestione  Patrui  et  nepotis,  etc,  por  Manuel  da  Costa, 
In.4.« 

1559 — L.  Annes  Senecae  Cordubensi,  Tragoediae  duae  (Thyestes 
e  Troas),  para  uso  das  Escholas  Jesuiticas.  Em  casa  de  Antonio  Mariz. 

1560 — Senecae,  Hercules  furens  e  Medea. 

— Cartinha  com  o  fazimento  de  Oragas,  do  bispo  Frei  JoSo  Soa- 
res. JoSo  de  Barreira.  Traz  a  Regra  de  Viver  empaz,  de  Drogo  Ferraz. 


586  HISTORIA  DA  UNI  YERSIDADE  DE   GOIMBRA 

1560 — Comedia  dos  Vilhalpandòs,àe  Francisco  de  Si  de  Miranda. 
Officina  de  Antonio  Marìs. 

— Itinerario  de  Antonio  Tenreiro,  Ibi. 

—  Tractado  notavd  de  urna  practica,  que  hum  Laorador  ieve  com 
hum  Rei  da  Persia  gpie  se  ckamava  Arsano,  Jeito  por  hum  Persio  par 
nome  Codro  Rufo,  redvzido  em  Portuguezpor  Fr.  Jeronymo,  Monge  de 
Alcohaga,  estando  em  Paris.  In-4.^  goth.  Em  casa  de  JoSo  de  Barreira. 

—  Comedia  Euphrosina,  de  Jorge  Ferreira.  In-8.** 

— Mstoria  Belli  Hydrwntini,  de  D.  Garcia  de  Meneases. 

—  Vida  e  mUagres  de  8,  Isabel,  rainha  de  Portagci,  por  Diego 
Affonso.  In-4.^ 

—  OragSo  latina  que  disse  D.  Garda  de  Menezes  em  pieno  Consis- 
torio,  etc.  In-4.** 

1561 — Ho  octavo  Livro  da  Historia  de  Castanheda.  Fol.  3  voi. 
Em  casa  de  JoSo  de  Barreira;  saia  posthuma. 

—  Chorographia  de  alguns  lugares,  que  estào  em  caminho  que  fez 
Oaspar  Barreiros.  In-4.®  Officina  de  JoXo  Alvares.  No  mesmo  livro: 

Censuras  sobre  M.  Portio  Catam,  Beroso  Chaldeo,  Manethon  Egy- 
pcio  e  Q.  Fabio  Pictor  Romano,  In-4.^  Ibidem. 

Commefntario  de  Ophyra  Regione. 

OragSo  latina  de  D.  Garcia  de  Menezes,  que  cometa:  8i  ita  ab 
immortali  Deo. 

— De  monetis,  penderib.,  menswris,  etc.,  por  Jeronymo  Cardoso. 
No  fim  :  Genethliac.  Emman.  pueri.  In*8.^ 

1561  —  Commentarii  in  Matìiaeum,  de  Frei  JoSo  Soares,  impressa 
por  JoSo  Barreira  in  aedis  Calcographis  Regis. 

—  SermSo  das  Exequias  délrey  D.  Affonso  Henriques,  por  D.  Frei 
JoSo  Soares. 

1562 —  Oratio  habita  ab  Joanne  Teixeira,  cum  Marchionatus  digni" 
tas  coUata  tributaque  fuit  illustri  magnifico  Domino  Petra  Menesto,  VH- 
lae  Regalis  Marchiani,  Comitique  Uraniae,  anno  1489.  Impresso  por 
JoSo  Alvares.  E  no  mesmo  anno  a  tradacySo  em  portagaez,  feita  por 
Migael  Soares.  1  voi.  in-4.^ 

'^'Dialago  de  Perfei^Bio  e  partes  que  sSo  necessaria^  ao  barn  ife- 
dico.  In-4.** 

—  Comament.  in  Evang,,  por  Frei  JoSo  Soares. 

— IgnaJtii  Maralis,  In  quasdam  Dialecticos,  ac  Ghrammatìcos  prò 
jure  peritìs  Carmen,  et  alia  quaedam  ejusdem  poemata.  Apad  Barreira. 

1563 —  Lnagem  da  vida  christam,  de  Frei  Heitor  Finto.  (Ontra  de 
1565.) 


0  COLLEGIO  REAL  587 

1564 — Deeretos  e  Determifìagdes  do  Concilio  Tridentino,  tirados 
em  linguagem  vulgar.  In-8.®  Officina  de  JoSo  Barreira. 

— Sylvarum  lih.  unus,  por  Jeronymo  Cardoso.  No  firn:  Epithalam. 
Seren.  Joannae^  Cari.  V.  JU. 

— Exposigl8e$  de  Pendo  de  Palado  ao  Evangdho  de  S.  Matheus. 
Fol.  Na  officina  de  JoBo  Barreira. 

— Naufragio  da  Nào  Som  Sento,  por  Perestrello.  In-8.® 

—  Cartas  que  os  PP.  da  Companhia  escreveram  do  Japào.  In-4.** 
1565 — Itinerario  de  Antonio  Tenreiro.  Officina  de  Barreira.  In-8.® 
1567 — Memoricd  da»  Proezas  da  Segunda  Tavola  Bedonda,  de 

Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos.  In-4.^  Na  officina  de  Barreira. 

—  VeritcUia  repertorium  in  Hebreos,  per  Fratem  Franciscum  aSccm- 
fim,  Doctorem  Parisienei.  Apad  Jean.  Barreira.  In-4.^ 

1568 — Avhdaria,  Captivi,  Stichua  et  Trinumus,  Flauti. 

—  Tratado  da  vida  e  martyrio  dos  cinco  Martyresde  Marrocos.  Goth. 
1 569  —  Comedia  dos  Estrangeiros,  de  Francisco  de  S&  de  Miranda. 

Apad  Barreira.  In-4.^ 

— Dictionarium  Latino-Luaitan.,  por  Jeronymo  Cardoso. 

— Summario  dos  Chronicas  dos  Reis  de  Portugal,  de  Christovam 
Rodrigues  Acenheiro. 

1570 — Falla  que  se  fez  a  ElRei  Dom  Sebastiào  na  entrada  de 
Coimbra,  aos  13  de  Outubro.  Officina  de  Jo&o  Alvares.  In-4.®. 

—  OraJtio  habita  ad  Sébast.  Regem,  de  Luiz  de  Castro  Pacheco. 
1571 — Petri  Nonii  Sàlaciensis  De  crepusctdis.  Apud  Mariz. — De 

erratis  Oronti,  liber  unus.  Ibi. 

1573 — Summa  Castana,  de  Frei  Diego  do  Rosario.  In-8.^ 

1577  —  Grammatìces  duo  compendia  eo  modo  in  meihodum  contra- 
da, vi  nHiil  redundet,  avi  desit,  por  Fernando  Soares  Homem,  mestre 
do  Duque  de  Bragansa.  In-4.*^ 

— Historia  dos  vidas  e  feitos  heroicos,  e  obras  insignes  dos  Santos, 
por  Frei  Diego  do  Rosario.  2  t.  Fol. 

1578 — Annot.  d  Mechanica  de  Aristoteies  e  ds  Theoricas  dos  Pia» 
netas  de  Purbackio  com  a  Arte  de  Navegar,  por  Fedro  Nunes.  Fol. 

1579— Frei  Heitor  Finto,  Comm.  in  Daniel.  Fol. 

— Reportorio  dos  Tempos,  por  JoSo  Barreira.  In-4.^  (Ibi,  1582.) 

1582 — Brevis  disceptatio  medica,  et  Oratio  in  laud,  Seren.  Prin- 
dpis,  por  Jeronymo  de  Sa  Souto  Maior.  In-8.^ 

—  Condusianes  Medicae,  do  mesmo.  In-12.^ 

1584  —  Tratado  dd  Consto  y  de  los  Consejeros  de  los  Princepes 
por  Doutor  Bartholomé  Felippe.  1  voi.  In-4.® 


58S  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 

1588 — Sylvae  iUustriorum  AtUhorum;  é  urna  Selecta  dos  Jesuitas 
para  uso  das  aulas  de  grego  e  latim. 

1589  —  0  Primeiro  Cerco  de  Diu,  de  Francisco  de  Àndrade. 

— Relagcb  das  grandes  alteragdes  e  mudangas  que  houve  em  os  rei- 
no8  do  Japào,  pelo  padre  Luiz  Froes.  In-4.®  Officina  de  Antonio  Bar- 
reira. 

—  Dialogos  de  D.  Frei  Amador  Arraes.  In-4.° 

1590 — Repertorio  dos  tempos,  por  André  de  Avellar.  In-4.®  Apud 
J.  Barreira. 

1591 — Martyrólogio  \romano. 

1593 — Liwro  da  Esfera,  de  André  de  Avellar,  Lisbonense.  In-8.® 
E  tambem:  Sphaerae  utriusque  Tabella. 

1594 — Manual  de  Epicteto  Filosofo,  traduzido  do  grego  em  Ufi" 
guagem,  do  bispo  D.  Frei  Antonio  de  Sousa.  Officina  de  Mariz. 

— Diversorum  Juris  argument.  Itb.  tres,  por  Gon9alo  Mendes  de 
Vasconcellos  Cabedo.  In-4.° 

1596 — Romances  de  Francisco  Rodrigues  Lobo.  In-16. 

— Relagào  das  Rdiquias  que  foram  da  Sé  para  Santa  Cruz,  pelo 
padre  Gaspar  dos  Reis.  In-8.° 

Por  estes  pequenos  annaes  da  imprensa  de  Coimbra,  *  onde  nSLo 
incluimos  os  trabalhos  da  typographia  do  mosteiro  de  Santa  Cruz, 
vé-se  que  effectivamente  houve  um  periodo  de  actividade,  que  vae  as- 
censionalmente até  1562;  d'ahi  por  diante,  tirando  alguns  trabalhos 
propriamente  dos  Jesuitas  e  novas  edi^Ses,  parece  que  n'esse  fòco  scien- 
tifico se  apagou  todo  o  esplendor  da  intelligencia. 

Ainda  no  meado  do  seculo  xvi  persistia  no  ensino  o  livro  dos  Dis- 
ticos,  de  CatSo;  nos  processos  centra  os  mestres  francezes  do  Collegio 
redi  allude-se  a  està  pratica:  e  Alvaro  Lobato,  que  foy  frade  de  Sam 
Domingos  e  agora  le  o  Catào  aos  mininos  no  Collegio.  • .»  A  leitura 
era  em  latim,  explicando  em  seguida  cada  um  dos  disticos,  que  ou  se 
versificavam  em  épodos,  ou  se  commentavam  com  explica98es  moraes. 

Por  urna  carta  de  D.  JoSo  lu  a  Frei  Braz  de  Barros,  datada  de 
3  de  julho  de  1536,  recommendando-lhe  um  escholar  pobre,  escudeiro 
da  casa  do  cardeal  infante  D.  Affonso,  vè-se  comò  as  disciplinas  ensi-^ 
nadas  nSo  eram  perfeitamente  compativeis  com  as  edades:  cPadre  irei 
bras  de  bragua.  en  elrej  vos  emvio  muyto  saudar.  manuel  thomaas  que 


1  Està  lÌBta  bibliographica  é  em  grande  parte  tirada  da  Memoria  de  A.  Bi- 
beiro  dos  Santos  Sóbrt  a  hUtoria  da  Typographia  portuguesa  no  seculo  XVI  (Me* 
morias  de  LiUeraturOj  t.  yui),  e  de  Barbosa  Maohado  e  Imiocencio. 


0  COLLEGIO  REAL  589 

vos  està  daraa  com  hu  menino  seu  filho  vam  per  meu  mandado  aprem. 
der  a  esses  estudos.  mujto  vos  Sncomendo  que  do  menyno  fa9aes  ter 
especiall  cuidado  pera  latinidade  e  greguo  ha  daprender  por  q  sondo 
de  tao  pequena  jdade  tem  jaa  aliga  principio  no  latim  corno  là  vereis. 
e  em  tudo  o  q  Ihe  a  elle  e  a  seu  pay  comprir  folgarei  que  recebSLo  de 
vos  todo  0  favor  e  goasalhado  que  fór  rezSo  e  volto  agaardecerej  muyto. 
screpta  S  Evora  a  tres  de  julho.  Manuel  da  Costa  a  fez  de  1536.  Bey* 
Encomenda  ao  padre  frei  bras  de  bragua  sobre  m.^'  tomas  e  seu  f.^»* 
Ha  urna  outra  recommenda9So  de  D.  JoSo  iii,  em  carta  de  30  de  ju- 
nho  de  1544:  «Padre  Frey  bras.  eu  elrey  vos  emvio  muyto  saudar. 
emcomSdovos  muyto  que  queyraaes  receber  por  colegiall  no  colegio 
dese  mosteiro  de  samta  cruz  a  femào  de  pyna  estudante  nos  estudos 
desa  9idade  avendo  allgu  lugar  vaguo  e  se  nSo  no  primeiro  que  vagar 
por  que  receberey  diso  prazer  e  volo  agardeyerey  e  terey  e  servigo. 
Manuel  da  Costa  a  fez  S  evora  a  xxx  dias  de  junho  de  1544.  jF?ey.»' 
Em  outra  carta  de  10  de  junho  de  1547  recommenda  Francisco  Pi- 
nheiro,  estudante  pobre,  de  Pombal,  para  continuar  os  seus  estudos  no 
Collegio  de  Santa  Cruz.  ^  Por  està  insistencia  se  avalia  a  necessidade 
que  tinha  o  rei  em  coadjuvar  a  funda(So  de  numerosos  collegios  junto 
da  Universidade  de  Coimbra;  nSo  corresponderam,  porém,  a  està  boa 
vontade. 

Os  numerosos  Collegios^  que  se  achavam  incorporados  na  Univer- 
sidade, nSo  coadjuvavam  o  desenvolvimento  do  ensino,  comò  era  de  es- 
perar; disputavam  entro  si  precedencias  nos  préstitos  ou  procissSes  da 
Universidade,  e  por  todas  as  fórmas  procuravam  manter  urna  vida  in- 
dependente  d'aquella  sua  alma  mater;  em  provisio  datada  de  28  de 
fevereiro  de  1544,  D.  JoSo  in,  depois  de  ter  ouvido  o  parecer  dos 
Doutores  Morgovejo  e  Bartholomeu  Ulippe,  estabeleceu  as  preceden- 
cias dos  Collegios,  as  quaes  nSo  poderam  ser  levadas  à  pratica.  O  reitor 
Frei  Diogo  de  Mur^a,  escreveu  em  11  de  maio  de  1545  uma  carta  ao 
rei  em  que  se  queixava  da  sua  impotencia:  cSenhor. — 0  anno  passado 
se  tomou  assento  sobre  a  differenga  que  avia  entro  os  religiosos  men- 
dicantes,  que  estSo  nos  Collegios  d'està  Universidade  quando  se  ajun- 
tavam  nas  procissSes  que  a  dita  Universidade  ordena:  que  o  primeiro 
lugar  era  dos  dominicos;  o  2.^  dos  franciscanos;  o  3.^  dos  augostinhos, 
e  0  4.^  dos  carmelitas;  e  por  direito  commum  se  aohou  que  elles  de- 


^  Carta»  dos  ReU  e  dos  Infanteé,  InstUuto,  2.*  sèrie,  voL  zzzti,  p.  655. 

2  Ibidem,  voi  xzztii,  p.  51. 

3  Ibidem,  p.  124. 


590  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

Tiam  goardar  està  ordem  entre  sj  avendo  respeito  as  confirma93e8  das 
ditas  ordens:  os  dominicanos,  franciscanos  e  aagastinhos  foram  entSo 
contentes  de  hir  desta  maneira  nas  ditas  procissSes,  por  dizerem  que 
tambem  està  ordenaii9a  Ihes  convinha  segando  a  fimda9So  de  seus  col- 
legioB  nesta  Universidade;  os  carmelitas,  nSo  quizeram  estar  por  està 
8enten(a,  dizendo  que  devilo  ter  outro  legar  asj  por  sua  ordem  ser 
mais  antiga,  corno  por  seu  college  n'esta  Universidade  vir  primeiro: 
ysto  tudo  screvi  a  V.  A.  e  logo  mandou  que  os  outros  coUegios  fossem 
na  ordenansa  que  acima  disse,  e  que  os  carmelitas  fossem  ouvidos  in- 
teiramente  de  sua  justÌ9a.  Vista  està  resposta  de  V.  A.  assynamos  aos 
ditos  carmelitas  termo  até  o  pintycoste  do  anno  passado  que  viessem 
com  seus  privilegios  e  com  todo  o  que  tinham  per  que  pertendiam  ter 
outro  logar  nas  procissSes;  e  nom  quiseram  vir;  e  neste  inverno  pas- 
sado por  causa  das  muitas  auguoas  ordenamos  huma  procissfto,  e  man- 
dey  chamar  os  ditos  coUegios  que  viessem  a  ella  comò  dantes  tinham 
de  costume;  e  nom  soo  nom  quiserSo  vir  os  carmelitas;  mas  os  fran- 
ciscanos e  augustinhos  tambem  se  deitarSLo  fora  de  vir  e  nom  vierSo. 
Agora  por  causa  da  grande  sequa,  que  nesta  terra  faz  multo  dano  or- 
denamos outra  procissSo  geral,  e  tomej  a  mandar  chamar  os  ditos  col- 
legios  de  sam  francisco,  augustinho,  e  carmos,  tSo  pouquo  quis^rSo 
vir,  e  soo  o  collegio  de  sam  domingos  vem  as  ditas  procissSes  ;  os  con- 
ventos'de  sam  francisco  e  o  de  sam  domingos  a  meu  chamado  vem  de 
multo  boa  vontade  as  ditas  procissSes;  e  de  nom  virem  os  coUegios 
por  causa  da  competencia  que  entre  sy  tem  se  causa  escandalo  na 
Universidade  e  cidade  e  pare9e  muito  mal.  Fa9o  saber  ysto  a  V.  A. 
pera  que  proveja  comò  vir  que  he  milhor:  a  meu  ver  nom  he  serviyo 
de  deus  nem  de  V.  A.  hir  este  negocio  por  està  via,  por  que  ao  diante 
se  syguirSo  alguns  inconvenientes;  e  pois  estes  coUegios  sSo  membros 
da  Universidade  nestas  cousas  pias  e  santas  de  vem  estar  sobjeitos  a 
ella:  elles  se  vSo  pouquo  e  pouquo  isentando,  e  aos  actos  publicos  de 
Theologia  pouquos  e  pouquas  vezes  veem:  se  V.  A.  os  ajunta  aqui 
pera  delles  fazer  letrados  he  necessario  que  sejam  sojeitos  a  Univer- 
sidade e  precedSo  nas  cousas  principaes  segundo  os  estatutos  della:  se 
acha  cada  collegio  fizer  per  sy  huma  so  cabe9a  em  tudo,  sera  grande 
confusào  e  pouquo  proveito  :  he  necessario,  que  V.  A.  agora  logo  nes- 
tes  principios  acuda  a  ysto  antes  que  eUes  tomem  mais  posse  :  e  parere 
que  se  poderiam  concertar  per  està  maneira.  s.  que  V.  A.  mando  cha- 
mar OS  prelados  de  suas  ordens,  e  Ihes  diga  a  ordem  que  ha  por  bem 
que  estes  religiosos  tenham  nas  procissSes  e  nas  mais  cousas  em  que 
se  ajuntarem,  e  que  a  elles  a  mandem  goardar  nos  ditos  coUegios:  e 


0  COLLEGIO  REAL  59 1 

poderseSo  colloqoar  por  està  ordenan9a.  8.  qae  os  dominicos  pois  sSo 
primeiros  tenham  a  mSo  direita  no  coa^e  da  procissSo,  e  os  francisca- 
DOS  a  mSo  esquerda;  os  angastinhos  a  mio  direita  diante  dos  domini- 
cosy  e  OS  carmelitas  a  esquerda  diante  dos  franciscanos  :  e  asy  me  pa- 
re9e  qae  estava  bem;  e  se  nom  seja  de  qualquer  outra  maneira  eom 
tanto  que  venham  e  nom  aja  mais  divissSo  :  e  polla  maneira  que  forem 
nas  procissSes  barn  tambem  dargumentar  nos  actos  guodltbeticoa,  e  por 
ysso  be  necessario  darlbe  regra  pera  todo,  qae  nom  torvem  a  boa  or- 
dem  que  nestas  cousas  publiquas  se  requere  e  muito  reluz;  e  pois  el- 
les  de  y.  A.  recebem  tantas  esmolas  e  Ibe  faz  os  oollegios  e  dà  a  sus- 
tentagfto  bem  he  que  se  sometam  em  toda  ordenan9a  que  for  pera  bem 
da  Universidade  :  e  eu  affirmo  a  V.  A.  que  be  muito  necessario  estar 
tudo  o  que  toqua  a  està  Universidade  debaixo  de  buma  soo  cabe9a  que 
doutra  maneira  sempre  avera  discordia  de  que  se  siguirà  pouquo  pro- 
veito.»  * 

Este  principio  da  dependencia  dos  Coliegios  da  Univerddade  era 
um  dos  problemas  pedagogicos  mais  importantes  do  secolo' x^^i;  resol- 
veu-se  diversamente  em  alguns  paizes  da  Europa^  corno  taeio  de  vi- 
vificar o  ensino  nas  Universidades,  que  tendiam  a  cair  na  estabilidade. 
D.  JoSo  in,  obedecendo  &s  sugestSes  vagabundas  com  que  legislava 
sobre  instrucySo,  depois  de  ter  determinado  a  independencia  db  Colle- 
gio recti  em  1547,  submette-o  em  1549  &  in8pec9So  supertor  da  Uni- 
versidade, tornando  «no^  óbstante  a  repugnancia  da  Universidadei^  a 
conceder-Ihe  completa  independencia  em  1557  j&  sob  o  regimen  dos 
Jesuitas.  A  mesma  instabilidade  se  dà  com  o  Collegio  dos  Artes,  in- 
corporado  na  Universidade  por  carta  de  5  de  setembro  de  1561,  com 
a  acquiescencia  dos  Jesuitas,  e  pela  provisSo  de  1564  outra  vez  isento 
da  jarìsdic9So  do  reitor. 

Como  jà  observàmos,  o  problema  teve  diffèrentes  soluQcSes;  em 
Fran9a  as  Universidades  absorveram  os  Coliegios,  caminhando  para  o 
desideratum  da  unifica^SLo  do  ensino  que  veiu  a  realisar-se  na  Univer- 
sidade franceza,  mas  apesar  d'este  vigor  as  Universidades  estaciona- 
ram  ficando  extranhas  ao  movimento  scientifico  do  seculo  xvii.  Na 
Inglaterra  appareceu  outra  soln9So:  os  Coliegios  conservaram  a  sua 
absoluta  independencia  e  mantiveram  os  seus  bens  livres,  e  regimen 
disciplinar  autonomo  com  uma  tenacidade  tal  que  esse  systema  ainda 


1  Aich.  nac,  Corpo  chronologicoj  P.  i,  ma^o  76,  doc.  51.  Ap.  Instituto,  de  Coim- 
bra,  voi.  xxxvui,  p.  625,  no  estudo  do  Dr.  A.  J.  Teixeira,  Preatitos  e  Procièsoes  da 
Universidade. 


592  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

persiste  actaalmente;  nem  por  isso  as  Universidades  ioglezas  se  trans- 
formaram  tornando  parte  na  renova9So  seientifica  provocada  pelas  syn- 
theses  baconìana  e  cartesiana.  Yé-se  portante  que  ha  urna  causa  mais 
profonda  que  em  tSo  diversas  condi^Ses  produziu  a^mesma  estabili- 
dade.  Como  poderia  a  Universidade  de  Ccnmbra,  quer  mantivesse  uma 
direc92k)  piena  sobre  os  Collegios,  ou  sob  à  preponderancia  dos  Jesui- 
tas,  em  que  ficou  desde  1555,  resistir  a  està  causa  tSo  poderosa  de 
retrocesso,  que  esterilisava  outras  corporaySes  mais  fortes?  Os  Jesui- 
tas  ficaram  com  a  responsabilidade  de  uma  decadencia,  a  que  elles 
mesmos  foram  fatalmente  arrastados.  Verdadeiramente  a  historia  intel- 
lectual  das  Universidades  termina  no  meado  do  seculo  xvi;  d'ahi  em 
diante  sSo  um  corpo  morto  que  fluctua.  A  Universidade  de  Coimbra 
acompanha  as  vicissitudes  politicas  da  nacionalidade,  subsistindo  in- 
tellectualmente  &  sombra  da  sua  tradÌ9So:  stai  rruigni  nominis  umbra. 


FDf  DO  TOMO  I 


INDICE 


PÀO. 

PEELIMINAR VH 

INTBODUCQAO.— A  fandagfio  das  Unlversidades  e  a  disBolxiQEo  do 
reglmen  oatholioo-fendal: 

Caracter  da  Civilisa^do  occidental.— 0  qne  foi  a  Edade  mèdia:  Conatitui^ào 
doB  Poderes  em  que  assenta  o  regimen  catholico-feudal. — O  qne  cara- 
cterìsa  a  Edade  moderna:  Dissoln^So  d'esse  regimen. — 0  Poder  espiri* 
tual  da  Synthese  theologica  decae  :  a  descoberta  da  Logica  de  Aristote- 
les. — A  descoberta  das  Pandectas  e  o  estabelecimento  da  Dictadara  tem- 
poial. — A  crìse  do  seculo  xux:  aspecto  da  primeira  BenaBcen9a. — A  Re- 
vola9So  occidental  no  seu  aspecto  intellectual  toma  o  caracter  metaphy- 
sico  dos  Ontologistas. — ^A  crea^So  das  Universidades  corresponde  a  està 
crìse  intellectual;  ficaram  na  Europa  comò  centro  de  especula^&o  meta- 
physica,  embara^ando  a  constitui^ào  do  novo  Poder  espirìtual  da  Scien- 
cia  e  o  predominio  da  Synthese  positiva 1 

PRIMEIRA  ÈPOCA 

(SECULO  ZIXI  A  XV) 

FUNDAgÀO  DA  UNIVERSIDADE  EM  LISBOA, 
E  SEUS  ANTECEDENTES  PEDAGOGICOS 

CAPITULO  I.— O  Enslno  das  OoUegladas: 

A  tradi^So  religiosa  das  Escholas  episcopaes  e  abbaciaes  :  CoUegia  compita- 
mia  e  CoUegia  sodaliiia. — 0  Cabiscol,  Chantre,  Mestre-Eschola  e  Mózi- 
nhos. — A  Eschola  episcopal  de  Coimbra  (1086);  o  Collegio  dos  Santos 
Paulo,  Eloy  e  Clemente  (1266);  a  Eschola  abbacial  de  Alcoba^a  (1269); 
Conezia  magistral  da  Collegiada  de  GuimarSes. — 0  que  se  ensinava  nas 
Escholas  das  Colle^das. — Os  Clerici^  e  os  Bachdeur  (bas  chevalier). — 
0  cnsino  orai  e  o  Lente. — Desprezo  pelas  Artes  liberaes  e  seu  restabe- 
lecimeuto  pelos  Pontifices. —  0  Trivium  e  Quadrivium. — Ab  Escholas  de 
Rhetorica,  Dialectica  e  Philosophia  comò  prìmeiro  rudimento  das  Uni- 
versidades. — A  licenciatura  e  a  faculdade  ubique  docendù — Bibliothecas 
dos  Bispos  e  Cabidos  do  seculo  xxu  e  ziy  em  PortugaL 27 

BIST.  UK.  38 


594  HISTORU  DA  UNIVERSIDADE  DE  GOIMBRA 

PAG. 

CAPITULO  n.— O  Estndo  Geral  em  Lisboa  e  a  faooldade  Ubiqxie  do* 
oendi  (1288-1880): 

EmancipaQ^o  do  theologismo  no  seculo  xni  e  o  grande  interesse  pelos  estu- 
dos  homanìstas. — Bela^fio  intima  entre  a  Pedagogia  e  a  Politica:  As 
Universidades  seculares  e  o  advento  do  Terceiro  estado. — Influencia  das 
tradnc^oes  arabes  sobre  a  propagando  dos  estudos  hamanistas. — A  Ca- 
thedraj  germen  de  ama  Universidade  medieval  ;  a  Schola,  do  tjpo  juridico 
e  rhetorico  de  Roma  e  Constantinopla,  reapparece  pelo  desenvolvìmento 
da  Cathedra  em  mn  Estudo  geral. — Ferver  pelo  estudo  das  Leis,  e  o  en- 
sino  das  Factddades  permtUidas, — Prìmeira  accep^io  da  palavra  Univer» 
eidade,  dada  à  coUectividade  dos  Mestres  e  Estndantes. — Fórma  da  in- 
corporanSo  da  classe  escholar  à  maneira  da  Gnild  ou  das  Irmandades 
penìnsulares,  d'onde  a  fnnc^ao  do  Eector  e  do  Conciliano, — A  investidara 
do  gr&o  corno  de  peqaeno  Cavalleiro  (Basckdor)  e  a  Birreta  symbolo  ro- 
mano da  manumissio. — Os  papas  coadjuvam  centra  vontade  a  funda^ 
das  Universidades. — Nicol&o  iv  e  as  tres  universidades  de  Montpellier, 
Macerata  e  Lisboa  sob  o  sen  pontificado. — D.  Diniz  conhecc  a  necessi- 
dade  de  fondar  nm  Estudo  geral  em  Lisboa. — A  lucta  com  o  clero  supe- 
rior  por  causa  das  Jurisdic^es  demora-o  na  realisa^o  do  seu  pensa* 
mento. — Representa^fto  de  varios  Prioree  e  Abbades  offerecendo  para  o 
Estudo  geral  parte  dos  seus  rendimentos. — D.  Diniz  acceita-os,  e  fnnda 
antes  de  1288  a  Universidade  em  Lisboa. — Representa^So  dos  Priores  e 
Abbadiss  a  Nicolào  rr  pedindo  a  concessSo  para  a  cedencia  de  parte  dos 
seus  rendimentos. — Bulla  de  confirma^So. — A  concessio  do  fóro  eccle- 
siastico aoB  escholares,  e  lucta  d'estes  com  os  burguezes. — Influenda  de 
Affonso  o  Sabio  em  seu  neto  D.  Diniz,  e  influxo  da  Universidade  de  Sa- 
lamanca na  crealo  da  de  Lisboa. — O  ensino  da  Theologia  particulari- 
sado  &8  ordens  dos  Dominicanos  e  Franciscanos,  representantes  dos  No- 
minalistas  e  Bealistas. — Traslada^io  da  Universidade  para  Coimbra  em 
1307  ;  reposta  em  Lisboa  em  1338  ;  outra  vez  transferida  para  Coimbra 
em  1354;  fìxa-se  em  Lisboa  depois  de  1377. — A  Universidade  obtem  a 
faculdade  Ubique  docendi  em  1380. — Centralisa^  dos  Estudos. 59 

CAPITULO  ni.— A  Universidade  sob  a  Diotadura  monarchica  (1384 
a  1604): 

Na  desorienta^lU)  metaphysica  a  disciplina  social  concentra-se  na  Dictadura 
monarchica  no  seculo  xv. — Ac^So  dos  Jurisconsultos,  prevalecendo  sobre 
08  Ontologbtas. — D.  JoSo  i,  definindo  a  dictadura  monarchica,  fixa  a  Uni- 
versidade em  Lisboa,  em  1384,  e  invade  a  sua  autonomia  com  a  nomea- 
^fto  de  um  Preveder. — Factos  analogos  sob  D.  Afibnso  v  e  D.  Jofto  n. — 
Estado  de  angustia  economica  da  Universidade,  pela  resistencia  do  clero 
em  contribuir  conforme  ordenava  a  bulla  de  1411. — 0  Infante  D.  Henri- 
que  toma-se  Protector  da  Universidade,  por  1418,  talvez  pelas  antigas 
dependencias  da  Universidade  com  o  Mestrado  de  Chrìsto,  e  pela  resis- 
tencia centra  a  absorp^  do  Poder  real.— 0  Estudo  da  Mathematica  e 
da  Astronomia,  ou  a  continua^ào  do  prìmóro  par  encyclopedico  dos  gre- 
gos. — A  doa9ao  do  InfEuitc  D.  Henrique,  em  1431,  de  uma8  casas  para 


INDICE  S95 

PÀO. 

88  aulaa  da  UinverBidade. — O  eimmo  da  Theologia  appareee  aalarìado 
desde  1400;  dotado  com  doze  marcos  de  prata  annnaéB  das  rendas  doe 
duimoB  do  Mestrado  de  Christo  na  ilha  da  Madeira. — PeBsoal  docente 
em  1430. — Ob  litigioB  oom  ob  yìgarioB  daB  egrejaB  annezadaB  à  Uxdv«r* 
BÌdade  proloxigam-Be  até  1461. — Estado  de  ignorancia  do  clero  portugaez, 
attcBtado  na  bulla  de  20  de  dezembro  de  1474. — Origem  daB  Conezias 
magietraeB  e  doatoraes. — Ob  EBtudanteB  pobreB,  Bob  D.  JoSo  i  e  D.  Doarte. 
•—0  Infante  D.  Fedro  reconhece  a  neccBBÌdade  da  funda^  doB  Collegiot 
jonto  da  Univenidade,  à  maneira  de  Oxonia  e  Paris. — Natureza  d'estes 
CollegioB. — 0  Infante  D.  Fedro  projecta  em  1446  a  fonda^ào  em  Coim- 
bra  de  urna  UniverBidade  de  Leis,  CanoneB,  Theologia  e  Artee,  dotada 
pelaB  rendaB  da  egr^a  de  S.  Thiago  de  Almalaguez. — D.  AffonBO  y^por 
proTÌB2o  de  1450,  pretendeu  tornar  efieetiva  a  creando  da  nova  Univer- 
Bidade de  Coimbra. — O  coUeetwn  (colheita)  ou  talha  naB  EscholaB  medie- 
vaeB. — Ob  Estudantes  pobreB  de  S.  Nicolào,  Cofodarea,  MartintU,  So- 
pietas  e  ob  Goliardos. — Institui^io  do  Collegio  do  Doutor  Mangancha  para 
EBcholarcB  pobres,  em  1448 — ConcluBÒeB  defendìdas  pelo  Doutor  ìian- 
gancha,  em  Pisa,  diante  de  EneaB  Sylvius,  em  1437. — Estatutos  feitos  pela 
Univeraidade  em  1431. — D.  Affonso  v,  por  alvarà  de  1471,  estabelece  nm 
novo  Begimento  ou  Estatuto  para  a  Uniyersidade. — A  coeziBtencia  dos 
doÌB  ReitoreB. — 0  pedido  dos  Povos  nas  cortes  de  Vianna  sobre  ob  estn- 
dos  da  Nobreza. — 0  desenvolvimento  dos  estudos  humanistas  no  seculo  zv 
e  a  Arte  nova, — Os  tres  aspectOB  do  Humanismo:  italiano  (Angelo  Foli- 
ciano  e  Cataldo  Sìculo)  ;  germanico  (Clenardo);  efrancez  (os  €k)uyéaB). — 
Ob  Legistas  tomam-se  impotentes  para  resolverem  o  problema  da  reor- 
ganisa^^o  do  Poder  temperai. — Oe  Ontologistas  ou  MetapLysicoB  absor- 
vem-se  na  erudifào  clasBica,  e  reapparecem  dirigindo  comò  humanifltaB  e 
seculo  zvx 125 

CAFITULO  IV. — Ab  Livrarias  mannsoriptais  do  seoalo  XV  e  a  des* 
ooberta  da  Imprensa  : 

Ab  LrvrariaB  das  Collegiadas  e  episcopaes  succedem-se  as  magnificas  Livra* 
rias  dos  reìs  e  principes. — A  opulencia  das  copias  e  illuminuras  e  exag- 
gera^ào  dos  pre906  dos  livros  manuscrìptOB. — Caracter  historico  e  litte* 
rario  das  Livrarias  principescas  do  seculo  zt. — As  bibliothecas  princi- 
pescas  abundam  em  traduc^oes. — Os  livros  destinados  ao  uso  pnblico,  ou 
Eìncadeadoa. — Cine  de  Pistoia  e  Bartholo. — livros  facultados  pelo  Mu« 
nidpio  de  Lisboa  para  a  consulta  publica. — Encadeados  da  Universi- 
dade. — 0  Corpo  das  Leiz  deizado  pelo  Doutor  Fedro  Nunes  ao  Municipio 
e  emprestado  aos  escholares. — O  costume  dos  EncadeadoB  da  Livraria 
dos  mongCB  do  Pa^o  de  Sousa. — Os  livros  probibidos  eram  tambem  enca- 
deados para  se  nSo  poderem  abrir. — A  descoberta  da  Imprensa  coadjuva 
o  ferver  dos  Humanistas  pela  antiguidade  classica,  e  faz  esquecer  ou  des* 
prezar  as  obras  poeticas  e  historìcas  das  Litteraturas  da  Edade  mèdia. — 
Causa  da  ruina  e  desmembra^fto  das  Livrarias  principescas.— Recons trac- 
9S0  da  Livraria  do  rei  Dom  Joao  I,  que  se  divide  pelos  seus  filhos. — Li» 
vraria  do  rei  Dom  Duarte,  conhecida  pelo  Catalogo  dos  seu^-lwroa  de  uso, 

d8# 


596  HISTORIA  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBHA 

PAG. 

— De8crip9ào  dos  prìncipaes  livros  d'està  Bibliotheca. — A  Livraria  do  In- 
fante  Dom  Fernando;  seu  caracter  mjBtico. — A  Livraria  do  Condestavd 
de  Portugal,  D.  Fedro,  que  foi  rei  de  Aragao. — 0  Bea  inventario  officiai 
em  aragonez. — A  Livraria  de  Dom  Affonso  V,  reconstruida  pelaB  referen- 
cias  do  chronista  Azurara. — Comparalo  com  as  Livrarias  celebres  da 
Rainha  Isabel  a  Catholica,  do  Prìncipe  de  Viana  e  do  Duque  Filippe 
Sforza. — Ontras  bibliothecas  particalares  do  secolo  xv,  de  que  ha  noti* 
eia:  Livraria  do  Douior  Mangancha^  de  Joào  Vatques,  de  D.  Vasco  Per» 
digào,  bispo  de  Evora. — Os  eruditos  desprezam  a  Litteratora  da  Edade 
mèdia,  prevalecendo  a  erudi^So  classica  desde  o  firn  do  seculo  tv. — A 
quebra  da  solidariedade  e  continuidade  bistorìca  toma  mais  diffidi  a  so- 
In^io  da  crìse  da  reorganisa^So  do  poder  espirìtual. — A  descoberta  da 
Polvora  e  da  Imprensa  tomam  systematica  a  grande  crìse 191 

SEGUNDA  ÈPOCA 

(SSOULOS  ZVI  E  ZVU) 

A  UNIVERSIDADE  SOB  A  INFLUENCIA  DA  RENASCENgA 
E  DA  REACgÀO  CONTRA  0  PROTESTANTISMO 

sEogÀo  1." 

O  Hnmanismo  firanoez  attuando  na  Renasoenga  em  Portugal 

(1604-1655) 

CAPITULO  I. — A  orlse  peda^gioa  na  Europa  determinada  pela  Re- 
nasoenga: 

Fórma  sistematica  da  dissolutilo  do  regimen  catholico-feudal  nos  tres  seculos 
zYi,  zvii  e  zvui. — A  revolu^So  religiosa  sob  os  sens  tres  aspectos  :  Lvihe- 
raniimo  (dissolu^So  da  disciplina);  Calvinismo  (dissolu^So  da  hierarchia); 
Soeinismo  (dis8ola9ao  do  dogma). — ^A  revolu^So  politica  nos  seus  tres  as- 
pectoB  de:  Soberania  nacional  (BevoiU9So  dos  Paizes  Baixos);  Egualdade 
(Bevolu^So  da  Inglaterra);  Liberdade  pclitioa  (Revolu^&o  franceza).— 
N'esta  grande  crise  estabelece-se  urna  reac9So  da  parte  do  regimen  ca- 
tholico-feudal  :  Concentra92o  do  Poder  temporal,  e  a  Theoria  da  Monar* 
chia  universal. — Tentativa  de  restaurammo  do  Poder  espirìtual  e  do  Po- 
der theocratico:  Inquisi^fto  e  Companhia  de  Jesus. — Allianfa  dos  dois 
Poderes  para  se  sustentarem:  Autos  de  Fé,  Saint-Bartbélemy,  Revoga- 
9&0  do  Edito  de  Nantes. — ^Yicissitndes  dos  Estudos  humamstas  entre  està 
corrente  de  dissolu^So  e  de  reac^o.-— O  saber  medieval,  auctorìtario,  li- 
yresco  e  interpretativo  persiste  nas  Universidades  no  prìmeiro  quartel 
do  seculo  XVI. — Descredito  d'esse  saber  :  Erasmo  e  o  Elogio  da  Louaura; 
de  Hutten  e  as  Epistokte  obscurorum  Virorum;  Rabelais  e  a  satyra  de 
Gargantua.  Protestos  de  Vives  oontra  a  persistencia  da  velha  Dialeetica. 
— O  saber  da  Renascenfa,  individuai,  ezperìmentalista  e  de  Livre  esame, 
-r— Renova^fto  do  estudo  do  Orego,  do  Latim  e  do  Hebraico:  Erasmo  e  o 
esplcndor  do.  Collegio  Trilingue.— Bndé  cria  o  prìmeiro  nucleo  do  Colle- 


INDICE  597 

PAG. 

gio  de  Fran^  novo  tjpo  pedagogico  da  Irutruc^ào  superior  liberta  do 
molde  quadiivial  das  Universidades. — Os  Humanistas  entre  a  reac^ào  ea- 
tholica  e  o  Protestantismo. — Os  Jesaitas  desenyolvem  o  typo  da  Inslrue- 
fào  secundariaé — Os  Protestantes  proseguem  na  tradi^&o  christS  e  fun- 
dam  a  lustrucgào  primaria  ou  popular. — Os  Experimentalistas  iniciam  a 
fórma  Polytechnica  ou  especial  da  Instrucgào  superior. — Os  grandes  pe- 
dagogistas  praticos  :  os  Qouvéas. — As  Universidades  libertam-se  da  tra- 
di^So  medieval,  mas  tomam  a  cahir  sob  a  inanidade  dialectica  pela  di- 
rec9&o  dos  Jesuitas 247 

CAPITULO  U. — Os  Estatutos  mannelinoa  e  a  persistenoia  do  Soho- 
lastioismo  (1504-1521): 

Às  descobertas  portuguezas  e  o  aspecto  geral  do  reinado  de  D.  Manuel. — A 
edifica9ào  das  Escholas  Geraes. — Organìsa9lU>  dos  Estatutos  de  1504.^ — 
Porque  se  nSo  desenvolvem  os  estudos  humanistas? — Leis  contra  os  Ju- 
deus  e  eztinc^ào  da  l^pographia  bebraica. — Decadencia  da  Litteratura 
grega. — O  Doutor  Diogo  de  Gouvéa  chamado  de  Paris  para  a  reforma  dos 
Estudos  em  Lisboa. — ^Recrudescencia  do  Nominalismo. — Funda^o  do  Col- 
legio de  S.  Thomaz,  em  1517. — Influencia  de  Joao  Celaya  em  Paris. — Joào 
Ribeiro  substitue  Celaya  na  defeza  da  Scholastica. —  D.  Francisco  de 
Mello  e  08  estudos  matbematicos. — A  abertura  dos  Estudos  em  dia  de 
S.  Lucas. — ^A  Orando  de  Sapientia  pelos  lentes  de  Artes. — André  de  Re- 
sende. — ^Escholas  particulares  de  Grammatica,  no  bairro  das  Escbolas. — 
A  Arte  nova. — Respostas  às  duvidas  dos  Escholares. — 0  Vejamen  ou 
Actus  gaUicua  na  Llnivcrsidade  de  Lisboa. — Sa  de  Miranda  lente  substi- 
tuto  ;  porque  nào  prosegue  no  magisterio. — Projecto  de  funda^ao  de  urna 
Universidade  em  Evora  sob  D.  Manuel  (1520). — Diogo  de  Gouvéa  pre- 
tende adquirir  o  Collegio  de  Santa  Barbara  para  os  Estudantes  de  Ei- 
rei.— ^Tabula  legentium  do  primeiro  quartel  do  seculo  xvi 289 

CAPITULO  III.— Os  Humanistas  e  a  reforma  da  Uziiversidade  (1521- 
1537): 

0  duplo  trabalho  dos  Humanistas  no  seculo  xvi,  litlerario  e  scientifico,  actua 
na  roforma  das  Universidades  na  Renascen^a. — Os  Humanistas  promo- 
vem  em  Portugal  as  reformas  pedagogicas  de  D.  Jo£o  ni. — Contraste  da 
diminuta  in8truc92o  do  monarcha  com  os  grandes  e8for90s  para  a  renova- 
9^0  da  Instruc^ào  publica. — A  reputaQao  dos  sabios  e  pbilologos  portu- 
guezes  nas  Universidades  de  Paris,  Salamanca,  Padua  e  Louvain. — D. 
Jo&o  ui  declara-se  Protector  da  Universidade,  e  procura  realisar  as  as- 
pira^oes  dos  sabios  portuguezes  no  estrangeiro. — 0  Doutor  Diogo  de  Gou- 
véa, com  o  auxilio  de  D.  Jo&o  iii,  obtem  o  Collegio  de  Santa  Barbara  e 
cincoenta  bolsas  para  os  Estudantes  de  El-rei. — A  peste  de  1525  ;  a  Uni- 
versidade representa  para  ser  encerrada. — Resolu^ào  do  Conselho  de  16 
de  dezembro  de  1525  para  que  se  nào  confundam  os  methodos  da  Arte 
de  Pastrana  com  a  de  Nebrixa, — Ordena-se  a  construc^^  de  dois  Colle- 
gios,  de  Santo  Agostinho  e  S.  Joào  Baptista,  junto  ao  Mosteiro  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra. — Reformas  emprehendidas  no  Mosteiro  de  Santa  Cruz 


598  HISTOtUA  DA  UNnfeR^DADÈ  DE  GOIMBRA 

PAO. 

por  Frei  Bras  de  Banros,  oomo  preliminares  para  a  reforma  da  Univer- 
sidade. — ^Dota^&o  da  Uniyerùdade  com  as  rendas  do  Priorado-mór  de 
Santa  Cruz. — 0  Doutor  Garcia  d'Orta  entra  no  magisterio. — ^Devaasa  de 
1532  Bobre  as  irregularìdades  praticadas  no  proyimento  dae  cadeiras. — 
Pensamento  da  mudan9a  da  Universidade  implicito  na  clausnla:  Emquanto 
0  Eitudo  nào  mudar, — ^Bepresenta^fto  da  Camara  de  Coimbra,  pedindo 
para  ser  sède  da  Universidade;  respoata  de  D.  Joao  m,  em  carta  de  9  de 
jnnho  de  1533. — ^Nas  cortes  de  Torres  Koyas,  de  1535,  Evora  reclama 
para  si  a  Universidade. — 0  arcebispo  de  Braga  pede  para  trasladar-se  a 
Universidade  para  a  cidade  de  Braga  ou  para  o  Porto. — Os  lentes  da 
Universidade,  receando  que  o  Estudo  seja  mndado  de  Lisboa,  represen* 
tam  em  14  de  dezembro  para  fimdar-se  urna  nova  Universidade. — In- 
fluencia  de  Jo&o  Luiz  Vives  e  do  sen  livro  De  Disdplinis,  dedicado  a  D. 
Jo&o  III  em  1531,  sobre  a  reforma  dos  Estudos  em  Portngal. — ^Bela^òes 
de  Erasmo  com  André  de  Besende  e  Damiio  de  Goes. — D.  Joio  m  en- 
carrega  a  Dami&o  de  Gk)es,  em  1533,  de  convidar  Erasmo  para  a  Univer* 
sidade  portugueza. — D.  Damiio  é  encarregado  em  1535  de  oontractar  len- 
tes para  a  Universidade. — Abundancia  de  mestres  de  Artes  em  Paiis.-^ 
Carta  de  D.  JoSo  ni,  de  8  de  novembro  de  1535,  a  Frei  Braz  de  Barros, 
sobre  os  mestres  francezes. — Por  carta  de  11  de  mar90  é  organisado  em 
Coimbra  o  Corso  de  Artes. — ^0  Doutor  Garcia  d'Orta  deixa  a  Universi- 
dade  em  1534,  aoompanhando  para  a  India  Martim  Affonso  de  Soosa. — 
0  Doutor  Pedro  Kunes. — ^Portuguezes  illustres  que  ensinam  em  Sala* 
manca  oa  ali  se  graduaram. — A  córte  portugueza  acompanha  o  ferver  ho* 
manista. — Ajres  Barbosa  chamado  a  Portngal  em  1521  para  dirigir  a 
educasse  dos  infantes  D.  Afionso  e  D.  Henrique. — André  de  Besende  cha- 
mado a  Portngal  em  1534  para  a  educa^  do  infante  D.  Duarte. — Nico- 
Ido  Clenardo  e  sua  influencia  na  córte. — Carta  de  Clenaido,  de  26  de 
mar^  de  1535,  em  que  descreve  os  costumes  e  praticas  pedagogicas  em 
Portngal. — A  eleÌ9ao  dos  lentes. — O  Ludua  ou  a  Eschola  seeundaria. — 
A  cultura  exdusiva  da  memoria. — ^A  Arte  de  LaUm  por  D.  Maximo  de 
Scusa,  1535,  prevalece  no  ensino  até  1555. — A  Grammatica  de  Clenardo, 
de  1538. — Mudan^a  da  Universidade  de  Lisboa  para  Coimbra  em  mar^ 
de  1537.-- Sèrie  dos  Reitores  da  Universidade  de  Liisboa  até  1537 383 

CAPITULO  IV.--A  Livraria  da  Universidade  no  aeoolo  XVI  (1612- 
1541): 

0  espirìto  do  Scholasticìsmo  conservado  nas  obras  que  compòem  a  Bibliotheca 
da  Universidade. — 0  legado  do  Doutor  Diego  Lopes,  de  1513,  compoe-se 
de  cinquenta  e  nove  volumes,  deizados  à  Universidade. — Ezame  d'esses 
Livros. — Liventario  dos  Livros  da  Bibliotheca  da  Universidade  de  Lis- 
boa, segnndo  um  Catalogo  de  1534. — Livros  de  Direito  canonico,  de  Theo- 
logia  e  Medicina  enviados  para  Coimbra. — Exame  bibiiographico  d'essaa 
obras. — 0  novo  espirito  da  Renascen^a  em  uma  Livraria  scientifica  fÓra 
da  Universidade. — A  Livraria  do  Doutor  Garcia  d'Orta  (1534  a  1564). — 
A  reac9So  catholica  cometa  pela  censura  dos  Livros,  em  Portngal. — Car- 
tas  do  cardeal  infiante  a  Damifto  de  Goes  sobre  a  censura  dos  Livros. — 


INDICE  599 

PAO. 

Indice  espurgatorio  organisado  por  Alvaro  Gomes.— OutroB  Indicea  ex- 
purgatorìoB  do  sedilo  xvi ^^  • 

CAPITULO  V.— Mndaaga  da  Universidade  para  CtoimTira  (1637-1548): 
A  organisa^Jo  da  Universidade  em  Coimbra  em  1537  seria  urna  simples  mu- 
dan9a  ou  urna  nova  funda^So? — Condi^Ses  em  que  é  feita  a  reforma  da 
Universidade.— Estado  moral  da  córte  de  D.  JoSo  m  reveiado  nas  Instmc- 
j5e8  dadas  ao  nuncio  Capodiferro.— Parte  das  aulas  da  Universidade  (Theo- 
logia,  Linguas  latina  e  grega,  Artes  e  Medicina)  ficam  até  1544  nos  Col- 
legios  de  Santa  Cruz;  outra  parte  (Direito  civil  e  canonico,  Mathematica, 
Bhetorìca  e  Musica)  nas  casas  de  D.  Garda  de  Almeida,  à  Porta  de  Bel- 
conce. — ^Passam  os  estudos  para  os  pa^os  reaes,  na  cidade  alta,  que  ficara 
denominados  Pa^os  das  Eacholos.—Oa  Priores  de  Santa  Cruz  recebem  a 
dignidade  de  Cancellarìos  da  Universidade.— Corpo  docente  convidado 
por  D.  JoSo  in  para  a  Universidade  de  Coimbra.— 0  governo  de  D.  Agos- 
tinho  Ribeiro,  reitor  durante  ciuco  annos. — Periodo  brilhante  da  reitoria 
de  Frei  Diogo  de  Mur^a,  de  1543  a  1654.— Reflexo  dos  estudos  de  Lou- 
vain em  Coimbra. — Ac^So  de  Frei  Braz  de  Barros,  doutor  por  Louvain, 
na  reorganisa^So  da  Universidade  de  Coimbra. — Florescencia  dos  estu- 
dos secundarios  nos  Collegios  de  Santa  Cruz. — Os  Mousinhos,  ou  creados 
do  Prior  geral  de  Santa  Cruz. — Necessidade  de  promover  o  ensino  de 
Grammatica  da  primeira  regra. — ^Mudan^  do  anno  escholar  do  dia  de 
8am  Lncas  (15  de  outubro)  para  o  de  Som  Remigio  (1  »  de  outubro). — • 
Numero  total  dos  alumnos  que  frequentavam  a  Universidade  em  1540.— 
Garantias  para  os  que  se  vào  ^aduar  a  Coimbra. — 0  Doutor  Aspilcueta 
Navarro. — Disposi^oes  legislativas  sobre  os  methodos  de  ensino  das  Leis 
e  Canones. — Li^oes  apontadas  segundo  o  que  se  costumava  em  Sala* 
manca. — Quadro  das  cadeiras  das  differentes  faculdades,  e  distribuii 
do  servilo  pelas  cadeiras  grandes  e  cathedrilhas. — ^Rendimento  da  Uni» 
versidade  elevado  a  6:50011000  réis.— Apropria^So  das  rendas  do  Prio- 
rado-mór. — Costumes  escholares  :  Musicas,  invectivas,  cartas,  trovas  de 
mal  dizer,  soi^as. — Os  Estudantes  pohrea  e  as  Bagoes  cuhertas. — As  céas 
dos  ezames  privados,  e  confronto  com  os  estylos  de  Salamanca. — ^Entrada 
dos  Jesuitas  em  Coimbra,  sua  allicia^So  dos  estndantes,  e  hallucina^So 
que  provocam  na  cidade. — Carta  do  padre  Hermes  Poen,  de  31  de  julho 
de  1545. — Funda9ao  do  Collegio  das  Artes,  e  ac^So  preponderante  do  pa- 
dre SimSo  Rodrigues. — Os  Jesuitas  procuram  apoderar-se  do  ensino. . . ,  449 

CAPITULO  VI.— O  Collegio  real  e  a  fondagSo  de  novos  Collegiofl 
Junto  da  Universidade  (1647-1655) 

Transforma^Ao  da  Faculdade  de  Artes,  reduzida  a  ensino  secundario  ou  me- 
dio.— 0  Collegio  real,  de  Francisco  i,  ou  Collegio  de  Franga,  toma-se  o 
tjpo  de  urna  Faculdade  philologica  superior. — D.  JoSo  m  funda  o  Cotte* 
già  real  em  Coimbra,  para  se  lérem  Artes,  Mathematica,  Rhetorica,  Hu- 
manidades  e  Linguas. — £  chamado  de  Bordéos  Mestre  André  de  G^uvéa 
com  um  corpo  docente  para  a  nova  fiinda^ao. — O  mosteiro  de  Santa  Cruz 
empresta  os  dois  Collegios  de  S.  Miguel  e  Todos  os  Santos  para  n'elle^