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Full text of "Historia do fado"

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HISTORIA DO FADO 



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1 * »• J • 



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Pinto de Carvalho (Tinop) 



• i 



HISTORIA DO FADO 



(COM i3 ILLUSTRACÕES) 



LISBOA 
Empresa da Historia de Portugal 

Sêdtdmd* tdifra 
LIVRARIA MODERNA I TYPOGRAPH1A 
*• AngntU çs I 4& t &• JvfMS, 47 
1905 



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PRÉSfttVATIO» 
COPYA0OEO 



• • • • • •• 

r • • • • • • • 



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As cauções nacíonaes.— As canções revolucionarias francesas. 
— As canções regionaes hesnanholas. — Ab canções e as 
dansas portuguezas no século xvm — As modinhas. — A 
guitarra e o piano. — Uma rainha guitarrista. — Correcção 
histórico litteraria — Um guitarrista dos salões e um pia- 
nista das ruas. —Pedro Anselmo Marchai.— Os mestres de 
dansa lisboetas. — Feitiços da guitarra. 



È pelas canções populares que um paiz traduz mais 
lidimamente o seu caracter nacional e os seus costu- 
mes. A musica, a necessidade do cantar, de dizer alto 
a sua alegria aos homens e ás coisas, é uma questão 
de latitude, uma questão de sol. Quanto mais para o 
sul, mais se ouve cantar. 

As canções da França— onde a canção é a philoso- 
phia dos sentimentos correntes — exprimem a alegria 
jovial da raça gauleza ; as dos higtanders são enne- 
voadas de tristura ; as lyrolezas parecem compostas 
com as notas desferidas pelos pinheiros alvares alpinos, 
os sopros flebeis do Adige e os guinchos sibilantes das 
tibias pastoris; as allemãssão espessas como a neblina 
condensada em pui verisação húmida sobre a veia argi- 
losa doRheno ; as italianas evocam a limpidez dormente 

760955 



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2 Empreza da Historia de Portugal 

dos lagos em que os barquinhos se movem como in- 
sectos sobre # um «spelho, as collinas ondulantes como 
'•hAdnces Wujéoáes.ros céus azul turqueza, as jóias de 
rendas gue saVas*egrejas itálicas e os palácios da Ve- 

%:nfz^Àtu\ : déi sâb^X^scintillantes lagunas. 

'•* -# *As* meldpêa*s'dá 'brumosa e pluviosa Scandinavia 
gemem e sonham mais do que cantam; as árias ingle 
zas -a Rule Bntannia, por exemplo— são rebarbativas 
como um monitor couraçado e pesadas como uma car- 
raspana de cerveja ; as americanas - como a Yankee- 
doo ih e a Huil- Colômbia— retratam a alma inquieta de 
um povo sem pátria, de uma nacionalidade que é, sim- 
plesmente, uma razão sorial : os estribilhos das Antilhas 
traduzem uniformemente a alegria de viver, lembram as 
hobaneias da Cármen— % radiosa flor do Guadalquivir 
a gentil princeza das cadencias—, cujo rythmo languido 
evoca, por seu turno, o das bellas indolentes d'aquelle 
archipelago adormecido no esplendor do clima. 

A canção revolucionaria encontrou sempre na França 
o seu terreno propicio, e foi, muitas vezes, a, única 
opposição aos governos d'esse paiz, do qual se di?se 
que era uma monarchia absoluta temperada por can- 
ções. Desde as canções fronieuses contra Mazarin, que 
o levavam a dizer: «Cmtem, que o pagarão!» até Ange 
Pitou, o satirista do Directório, o brilhante Tyrteu 
do realismo, tlesde Aubert e Cadot, os cantantes de- 
molidores do Primeiro Império, até Pierre Dupont, o 
viril cançonelista de I8i8, desde a revoltosa canço- 
neteira Thereza até ao auctor da canção de Boulanger, 
que esplendida lista de canções revolucionarias!. . . 

As canções e as dansas da Hespanha —a mitinheira 
gallega, o zorlzico vasconço, a jota aragoneza, a pele- 
nera andaluza, a seguidilha manchega, asardana catalã 
e a charrada salamanquina — exemplificam, á justa, a 
theoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da 
mimica como expressão dos affectos e movimentos phy- 



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Historia do Fado 3 

sicos, diz que a alegria é centrífuga, emquanto que a 
dor é centrípeta. E a jota é, de todas as dansas caste- 
lhanas, a mais alegre, por isso mesmo que é a mais cen- 
trífuga. Não tem essas eurytbmiaschoreographicas, esses 
requebros ondulantes como os de quem se convulsiona 
n'uma crise bysterica, esses saracotes de garupa que 
evocam movimentos de sanrios, esses meneios serpen- 
tinos que, se fosse necessário represental-os mediante 
curvas, teriam a sua figuração geométrica n'uma hélice. 
A jota, sem tanta graciosidade, é mais expansiva, 
imprime ao corpo um movimento de translação, que 
pôde fignrar-se n'uma curva mais simples e mais franca 
—o semi-circulo. E' parte integrante de todas as sere- 
nadas dos Àlmavivas ás Rosinas de vasquinha e leque 
dpudête, é final obrigatório de toda a zarzuela, quando 
é o musico e não o scenographo que se encarrega da 
apolheose. E, depois, que bello não é ver uma hespanholi- 
ta bailando— com elegantes pernas que traçam poemas 
fugitivos e um breba atrevido ao canto da bocca de 
cereja — , emquanto as castanholas nacionaes vibram 
nas extreurdades dos seus braços en corbeille como 
borboletas negras ao redor de dois ramos de camélias, 
e o tocador— cujos lábios escarlates são avivados pela 
ponta do cigarro em braza — zangarrca na viola, can- 
tando, ao mesmo passo, n'essa voz fremente e velada 
que convém á expressão musical da sua arte, muito 
ponlilbosa em gymnasticas de glolte, em vocalisações 
sobre as gammas chromalicas e diatónicas : 

Las cuerdas de mi vihuela 
Yo te diré cuantas son : 
Prima, segunda, tercera, 
Cuarta, quinta y el borden. 

Em Portugal; as condições climatéricas, as influencias 
mesologicas, levam-nos á expansão sensualiza, volup- 
tuaria. D'ahi vem o caracter, por assim dizer, aphro- 



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4 Empreza da Historia de Portugal 

disiaco das nossas canções e das nossas dansas popu- 
lares. Mas, na dansa de sala imitávamos o estrangei- 
ro. Ainda depois do terramoto de 1755, as casquilhas 
espevitadas, que trajavam as francezias de Madame 
Chnrles, e os casquilhos alfenicados, que seandainavam 
á franceza e us )vam espadins do Estevão do Valverde— 
conforme impunha o código das elegâncias— dansavam 
o Passapié das pastorinhas e dos Céladons à laWatteau 
do Trianon. Mas, ao findar o século xvm, já o Passapié 
era ridicularisado, como se prova pela seguinte quin- 
tilha de Tolentino : 



Não são os gostos eternos, 
Teve o Passapié amigos, 
Ainda não ha quinze invernos; 
Foi a gloria dos antigos, % 
Hoje é mofa dos modernos. 



O mesmo aconteceu com o minuete. Se a dansa é 
a harmonia das linhas em movimento como a estatuária 
é a harmonia das linhas em repouso, dansa alguma 
pode reproduzir melhor essa harmonia do que o mi- 
nuete. Quantas coisas longiquas n'essa velha musica deli- 
quescente: ruídos abafados de sedas, cabelleiras que 
se sacodem sobre sophàs de ramagens, talões ver- 
melhos batendo no pavimento do Trianon, hálitos vo- 
lúveis de leques, contumelias rythmadas como sonetos, 
diureses de versos em ponto de rebuçado, glorias in- 
flammadas dos fogos artificiaes de Versailles, liberti- 
nagens singulares de frigoríficos Lauzuns, espumas 
desmaiadas ao calor de lábios febris, perfumes esvaídos 
ao sopro dos suspiros, cinzas arrefecidas sob um sor- 
riso, folhas mortas sob um beijo ! . . . 

As dansas populares do século xvm resentiam-se 
do seu caracter extremamente sensual e desenvolto, 
desfalleciam em languores extenuativos, debatiam-se 



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Hiètoria do Fado 5 

em morbidozas hystericas, derramavam no sangue o 
mais devorador dos philtros. Taes eram : a fofa, o 
oitavad», o fandango, as cfoganças ás três pancadas, 
o cumbé, o batuque, a arrepia, a comporia e o lundum, 
que se dansavam acompanhadas da guitarra ou do ban- 
dolim. 

As chpganças foram prohibidas, conforme se depre- 
hende dos seguintes versos, correntes no tempo de 
el-rei D. José: 

Já se não cantam cheganças, 
Que não quer o nosso rei, 
Porque lhe diz Frei Gaspar 
Que é coisa contra a lei. 

Estribilho : 

Meninas bonitas, 
Moças com fitas, 
Casquilhos e abbades, 
Chorae, chorae, chorae, 
Acabou-se, já lá vae! * 

O lundum ou lundu era uma dansa obscena dos 
pretos congolezes, importada no Brasil e em Portugal, 
dansa em que os dansarinos se boleavam n'um reque- 
brar de quadris de uma nervosidade sensual, em movi- 
mentos cynicos de rins, em brejeiros arabescos cor- 
póreos. 

Ultimamente, o lundum reviveu na dansa do ven- 
tre das cascadeuses parisienses, que — similhantes a 
' ídolos radiantes sob a chamma dos cc liares de strass 
e o oiro falso dos cabellos oxygenados — a executam 
11'um phrei^esi de mímica, com contorsões abdominaes, 
com certa gymnastica lasciva. 

lundum rescendia um aroma de voluptuosidade 

1 Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos Pombalinos , 
codic* n.° 131, fl 95 



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6 Empreza da Historia de Portugal 

mais vivaz que a nepènthes fabulosa. lundum cho- 
rado atliugia o cumulo da indecencia, o sublime do 
canalhismo, o que jamais impediu que o bailassem nas 
salas de primor. Tolentiao, satirista impenitente, mo- 
tejava assim uma bailante de lundum : 



' Se Jtf areia se bamboleia, 
N'este innocente exercício, 
Se os quadris saracoteia. 
Quem sabe se traz cilicio 
E por virtude os meneia. 

Entre os lunduns citaremos os seguintes, que exis- 
tem manuscriptos na Bibliotheca Nacional de Lisboa : 
o do dia de entrudo, o do Monroy e o lundun para 
piano. 

• As modinhas campavam nas salas lisboetas no cre- 
púsculo do século xvm e ao pintar da aurora do sé- 
culo xix. Umas — as que tanto seduziram o inglez 
Beckford —eram de procedência brasileira, e, na sua 
execução, brilharam os mulatos Joaquim Manuel e Do- 
mingos Caldas Barbosa, o Lereno, antagonista de Bo- 
cage; outras eram comesinhas parodias das árias de 
Passiello, Mozart, Beethoven e Cimaroso, affectada- 
mente pejadas de vocalisaçoes difficeis. 

Algumas modinhas produziram furor. Tolentino cila 
a de saudades morrerei; na Bibliotheca Nacional de Lis- 
boa existem algumas modinhas mânuscriptas como são 
A lua saudade (de 1759) e outras. E a Gazeta annun- 
ciava algumas modinhasmmío apreciáveis: a do Zabumba 
Ga Se te commovem meus ais, de António LeaJ Moreira, a 
Almira, de José Palomino, As azeitonas novas, com va- 
riações, de Pedro Anselmo Marchai, a Italiana, de An- 
tónio Puzzi, a Perdoar com condições e a Doce União de 
amor, de Marcos António, a Duvidiu a minha Ulina, 
de José de Mesquita, a Quanto Enalia me è perjura^ 



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Historia do Fado 7 

de José Maurício, mestre de capella em Coimbra, a 
Adorada Maroia, de António Galassi, as modinhas com 
acompanhamento de guitarra de António da Silva Leite, 
de António José do Rego, de António José da Silva, 
de José Caetano Cabral de Mendonça, de Francisco Xa- 
vier Baptista e de João de Sousa Carvalho, mestre 
de Suas Mageslades e Altezas '. O Jornal das Modi- 
nhas 2 sahia quinzenalmente com modas novas, e, a 
troco de seis pintos annuaes, alimentava o gosto dos 
assignantes pela musica displicente. 

As modinhas falavam bem á alma myope e á sen- 
sibilidade finamente dolorosa das mulheres, que, ao 
esculal-as, se sentiam arrebatadas para regiões tão lon- 
gínquas quanto elhereas. . . O assumpto predominante 
na? modinhas era o amor, porque, n'essa decrepidez do 
século xvim, amava-se com todas as faculdades de emo- 
ção e dos sentidos. E a verdade é que parece haver na 
vida dos séculos, da mesma maneira que na dos ho- 
mens, edades climatéricas, em que a necessidade de 
amar rebenta com maior violência. E os amures da se- 
nectude são, para uns como para outros, os mais ty- 
rannicos. 

Antes da inlroducção do piano no nosso paiz, a gui- 
tarra era o instrumento querido das salas; e mesmo 
depois continuou a desenrolar os seus rythmos lango- 
rosos, par a par do piano, que traquinava os scherzos, 
chorava os andantes e fazia brotar flores da sentimen- 
talidade das romanzas. As damas estudavam iVa com 
tao.o amor como aprendiam a tocar o cravo, instru- 
mento que foi a gloria do grande Sebastião Bach, que, 



1 Gazeta de Lisboa de 1792 a 17^4. 

2 Jornal de modinhas com acompanhamento de cravo poios me- 
lhores authores, dedicado a Sua Alteza Real Princeza do fírazil 
por P. A. Marchai Milcent. Lieboa. 



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8 Emprezd dá Historia de Portugal 

arrancando notas ao teclado, fazia esquecer a ceia em 
casa do duque de Weimar. 

Assim como a guitarra foi o instrumento favorito, 
tanto das senhoras do creme et gratin como dos me- 
nestréis vagabundos, no reinado de Luiz XV, assim 
também se ouviam gemer as cordas metallicas das gui- 
tarras desde os salões doirados do Marquez de Marial- 
va até ás alfurjas sombrias do Bairro-Alto e de Alfa- 
ma no ultimo quartel do século xvm. Neste século, pu- 
blicaram-se MethoJos ou Artes para tocar guitarra e 
viola, como foram: a Arte de viola, de Manuel da Pai- 
xão Ribeiro, impressa em Coimbra em 1789, a Arte 
de tocar viola e outros instrumentos e o Compendio de 
musica thporica e pratica do padre Domiugos de S. 
José *. Em 1786, veiuá luz um outro methodo intitulado: 
Estudo de guitarra em que se expõe o meio fácil para 
aprender a tocar este instrumento, por António da Sil- 
va Leite, mestre de capella, natural da cidade do Por- 
to. No prologo diz que se propõe escrever sobre o sua- 
ve e harmonioso iustrumento da guitarra, tão applau- 
dido n'este tempo por todos os que sabiam deleitar se 
com a doçura da harmonia. 

Accrescenta que as melhores guitarras inglezas eram 
as de Mr. Simpson, mas que as do portuense Luiz 
Cardoso Soares Sevilhano quasi rivalisavam com aquel- 
las. Inseria depois algumas dansas e peças musicaes da 
época : os minuetes de Boccherini, da inviada, da sau- 
dade, o inglez, o segundo minuete inglez, o da corte 
e do príncipe, a marcha ingleza e a do primeiro regi- 
mento do Porto, a fanfarra, o allegro, a gavota, a re- 
tirada militar, a contradansa dos saltões, a pastorella, 
o andantino de Malbruch, os cotilhões e as tocatas de 
Francisco Gerardo. 



1 Joaquim de Vasconcellos. Os músicos portuguezes, vol. II, 
pag. 148. .>•..-. 



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Historia do Fado 9 

No armazém de musica de Marchai e Milcent, no 
largo de Jesus, vendiam se sonatas para bandolim; na 
loja do Reycend, ao Calbariz, vendiam se sonatas para 
guitarra com acompanhamento de trompas e violino, 
offerecidas a D. Carlota Joaquina, princeza do Brasil; 
e na loja de João Baptista Waltmann, a S. Paulo, ven- 
diam-se collecções de musica nova para guitarra. 1 . 

Houve mais dois instrumentos de corda que tiveram 
acceitação nas salas: a harpa e a viola franceza. 

A harpa conquistou um alto logar nos salões da Res- 
tauração, mas pouquíssimo figurou nos portuguezes. 
Não assim a viola, que servia para acompanhar a gui- 
tarra, e que se dedilhou muito nas nossas salas até 1830. 

A guitarra tem um alto papel na vida do homem do 
sul e no romance, 

Caverel refere que os portuguezes deixaram dez mil 
guitarras em Alcácer Kibir, o que, naturalmente, é bla- 
gue; e tanto no romance brasileiro de José de Alen- 
car como na opera Guarany d'élle extrahida, figura 
Cecília, filha de D. António de Mariz, cantando uma 
xacara, acompanhada por aqnelle instrumento. 

M»ria Luiza, mulher de Cai los IV de Hespanha, to- 
cava guitarra na perfeição, e tivera por mestre a Frei 
Miguel Garcia, appellidado o Padre Basílio, organista 
de um convento cisterciense madrileno. Coata Camillo 
Castello-Branco, que esta rainha adultera, ainda sim- 
ples princeza de Parma, se apaixonara de Manuel 
Godoy por causa da maestria com que elle tocava gui- 
tarra e cantava. Carlos I!f mandou-o sahir de Madrid, 
logo que dea tento dos effeitos cupidineos dos bordões 
e da prima na pessoa da nora 3 . Mas, com a morte do so- 



1 Gazeta de Lisboa de 1792, 1793 e 18C0. 

2 Camillo Castello-Branco. Feitiços da guitarra m Bum. 3 
das Noites de insorrmia. 



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10 Empreza da Historia de Portugal 

berano, o guitarrista voltou á capital hespanhola, onde 
foi reintegrado no sen posto de alcovista amável da 
rainha, agraciado com o Ululo de Príncipe da Paz e 
alcatruzado a primeiro ministro, cargo de que só ha- 
via de ser deposto pela revolução de Aranjuez em 
1808. preparada pelo príncipe das Astúrias, que assu- 
miu a regência sob o nome de Fernando VII. 

Antes da deposição de Godoy ', ferviam os pasquins, 
esses predecessores do jornalismo politico, e a genta- 
lha de Madrid, enthnsiasta do príncipe das Astúrias, 
bailava então a cachuchi e cantava : 

Viva Fernandito, carita de rosa, 
Y muera su madre por escandalosa. 



1 Em Portugal, como em Hespanha, os pasquins faziam as 
vezes do jornalismo politico moderno 

Citaremos dois d'aquella época, que nunca foram publica- 
dos. Um foi achado na Porta Férrea, em Coimbra, na manhã de 
30 de julho de 171» 7, de onde foi arrancado pelo meirinho e en- 
tregue ao Prelado. Dizia assim : 

Gritos da mocidade offendida e revoltosa 

Rasgue-se em dois estúpido Gonzaga, 
Velhaco, vil Seabra, aos pés calquemos ; 
De vós, monstros, tremam, trema o Trono, 
Que, hum dia, Trono, tudo arrazaremos. 

O outro foi encontrado em 18 de Outubro de 1804 na esqui - 
na das casas do Rubim, ao Chiado, de onde foi tirado pelo com- 
mandante da 5.* ompanhia da Policia. 

Era concebido n'estes termos : 

Se querem vêr o povo contente e com dinheiro 
Ponham Mello no Senado e no Terreiro ; 
O incansável Rodrigo torne outra vez ao Erário, 
E da Marinha saia o partido contrario. 

(Torre do Tombo. Policia. Collecçâo vinda do Ministério do 
Reino. Maços 454 e 455). 



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Historia do Fado 11 

No entretanto, tinha voga a Marcha do Príncipe da 
Paz, obrigada a piano- for le e a guitarra, original de 
Joaquim Assiain '. 

Cumpre-nos, todavia, estampar aqui uma nótula á 
margem da asseveração camilliana. 

Um erudito escriptor hespanhol, D. Ildefonso Berme- 
jo, affirma ser lenda tudo o que os estrangeiros dizem 
a respeito de Godoy ter conseguido, mercê da guitar- 
ra, apaixonar a rainha Maria Luiza, quando elle nunca 
cantou nem tocou aquelle instrumento, porque pão ti- 
nha ouvido, e quando deveu a sua preponderância po- 
litica apenas aos seus dotes naturaes e ao seu desem- 
baraço 2 . 

E o prefaciador da mesma obra, Júlio Burell, corro- 
bora o asserto do auctor, dizendo :— «Sobre o Prínci- 
pe da Paz pesou, e Deus sabe por quanto tempo pesará 
ainda, a lenda que forjaram os ódios e desprezos po- 
pulares, lenda que nada destros. . . D. Manuel Godoy, 
homem distincto, fidalgo extremenho, bastante illustra- 



seguinte pasquim, de época anterior á citada, visa os go 
vernantes do tempo : 

Pinto é gato, 
Marquez mentecapto, 
Seabra estudante, 
Martinho é cbibante ; 
Sobre este andor 
Vae o Príncipe N. Senhor, 
Frei Mathias vae atraz, 
Leva o sceptro do Rapaz, 
D. Filippe espera o repique. 

(Bibl. Nac. de Lisboa. Manuscriptos. N.° 7:008). 

1 Bibl. Nac. de Lisboa. Bellas- Artes. Manuscriptos. F. 12-3 
* D. Ildefonso António Bermejo. Historia anecdotica y st' 

treta de la corte de Carlos IV. Tomo I, p*g. 45. 



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12 Ernpreza da Historia âo Portugal 

do para a sua época, continuará sendo el choriçera que 
enamora com as castanholas e a guitarra, por uma 
aberração repugnante, o coração de uma rainha lasci- 
va. Nâol O seu tempo não foi superior a Godoy» '. 

Em 1791, veiu a Lisboa um violista celebre, Angelo 
Talassi, que deu sessões n'uma casa da travessa das 
Chagas 2 . E, no primeiro quartel do século xix, houve 
um guitarrista mui querido da sociedade lisboeta — 
Francisco Vidal Negreiros, o Vidigal. Este instrumen- 
tista era bem acolhido pela melhor roda, a cujas salas 
ia tocar os lunduns ou as suas modinhas — entre ellas 
a Cruel Saudade -na guitarra ou na viola. A Cruel 
Saudade, assim como o minuete afawiangado e a po- 
pular cantiga Periquito bailar não sei, eram bimbalha- 
das nos sinos das egrejas. 

Um viajante inglez informa que, houve tempo, em 
que o Vidigal poderia ter arranjado um pecúlio consi- 
derável, tão grande era o seu talento e tão procurado 
era pela sociedade de fina raça; mas que a sua insen- 
satez e a sua má educação lhe .fecharam as portas das 
casas que frequentava, e o obrigaram a viver, por fim, 
do producto de alguns concertos que dava 3 . 

Nos começos do século xix, quando a guitarra esta- 
va em plena voga, surgiu lhe um rival na musica sa- 
lonniére — o piano. 

Em Paris, nos primeiros alvores doeste século, havia 



1 Prefacio da obra citada, pag. 17. 

2 Gaze' a de Lisboa de 19 de Fevereiro de 1791. 

Angelo Talassi improvisava versos sobre árias ou modinhas 
e cantava ao desafio com a celebre improvisadora Corilla na Ar- 
cádia Romana. 

5 JSketches of Portvguese life. Manners, costume and chame- 
ter. By A. P. D. G. London.,1826. 



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Historia do Fado 13 

músicos ambulantes que tocavam espineta e piano nas 
ruas. 

Conta se que, em certa noite de verão, quando os 
músicos errantes vagueavam pelos Campos-Elysios, 
um virtuose do antigo regimen e venerável resto da 
musica colorista de Rameau viera collocar a desafina- 
da espineta á beira do passeio, executando a Camar- 
go e a Chaconne de Berton. N'esle momento porém, 
passavam três artistas celebres: Mr. e Madame Rllé- 
viou e Mr. Pradher. A nobre figura do cravista vete- 
rano inspirou-lbes interesse, porque elle confessou 
ser um velho organista empobrecido pela Revolução. 
N'um prompto, Elléviou cantou uma ária popularíssi- 
ma de Méhul, emquanto Pradher o acompanhava á es- 
pineta e Madame Elléviou pedia esmola para o musi- 
co invalido. êxito monetário foi de tal ordem, que 
produziu grande ruido em Paris, e fez com que, oito 
dias depois, subisse á scena no theatro da rua de Char- 
tre um vaudeville intitulado O concerto nos Campos- 
Elysios, que alcançou tanto suecesso como a improvi- 
sação dos virtuoses. 

Um pianista que conquistou notoriedade em Lisboa, 
nos fins do século xvm, foi o francez Pedro Ansel- 
mo Marchai. De sociedade com Francisco Domingos 
Milcent, estabeleceu uma fabrica de impressão de mu- 
sica na travessa das Parreiras, ao largo de Jesus, de 
onde se mudou para' o Chiado em 1793. Teve as hon- 
ras de musico da Real Camará e de professor de Suas 
Altezas. O seu armazém vendia todas as qualidades 
de musica para canto e dansa. Todavia, o pianista Mar- 
chai não escapou ás picuinhas dos satiricos. Em Ju- 
nho de 1801, um anonymofez-lhe estes versos: 

Tocando no seu piano, _ » 

Como toca o Marchai, 



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14 Enspreza da Historia de Portugal 

Se toctr sempre piano, 
Que será de Portugal! 

Depois do adagio 
Segue-se a fuga, 
A testa enruga • 
O mestre Leal. 

Ás «ar dinhas portuguezas 
Nunca me soaram mal; 
SSe agora desafinam 
É na musica do Marchai. 

Depois do adagio, etc. 

Este Marchai enxertado 
Tem na cabeça o seu mal; 
Venha um mestre d'offício, 
Que seja o mestre Leal. 

Depois do adagio, etc. 1 

pianista Marchai, apezar de muito acarinhado, re- 
tirou- se em 179!) para Hespanha, de onde ainda es- 
creveu uma carta ao marquez de Pombal, datada de 
Aranjuez, em que lhe recommendava a joven rabequis- 
ta Gerbini, que também cantava « e possuía a arte de 
se acompanhar ao cravo como um mestre consumma- 
do«.» 



1 Bibl. Nac de Lisboa. Manusoriptos da sençâo XIII, N. # 
516. Neste manuscripto ha uma satyra dirigida, segundo suppo- 
mos, ao duque de Lafões, o general octogenário que comman- 
dou o exercito portuguez na campanha de 1801: 

Cezar veiu, viu e venceu. 
Duque veiu, não viu e fugiu. 

* Bibl. Nac. de Litboa. Manuscriptos Pombalinos. Códices 
N.° 614, fls. ft 425. 



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Historia do Fado 15 

Um instrumento de cordas, que, concomitantemente 
com a guitarra, logrou certa voga nos meiados do sé- 
culo xix, foi o cavaquinho. Dois mestres de dansa 
muito conhecidos, o Meyrelles e o. preto Herculano 
Mercês, faziam se sempre acompanhar do cavaquinho, 
quando iam dar lições a casa dos discípulos. Outros 
professores de. dança de 1848 a 1852, o francez Mon- 
net, o hespanhol Caneda e o Azimont - que foi profes- 
sor da rainha D. Maria II— faziam se acompanhar por 
um rabequista chamado Braz; mas o italiano Henrique 
Zenoglio — mestre de dansa do Gollegio Militar -r- to- 
cava elle mesmo a rabeca de acompanhamento. 

O Justino Soares começou a leccionar acompanhan- 
do-se de flauta. Todos elles obedeciam a uma velha 
praxe, porque já em 1808 existia um piofessor em 
Madrid, chamado o Palas de orillo, que ia leccionar 
dansa a casa (los discípulos, levando a sua rabeca de- 
baixo da capa. 

E como estamos com as mãos na massa, referire- 
mos, succintamente, quaes foram os principaes profes- 
sores de dansa lisbonenses, anteriores aos que vimos 
de citar. O siciliano Francisco Fago- irmão de Vicen- 
te Fago, rival de Junot nos amores com a bailarina 
Júlia Petit, de S. Carlos, e mestre de dansa dos 
reis da Sicília — ensinava a bailar na rua Nova dos 
Marlyres, n.° 40, 2.° andar, em 1810; eMadama Orti 
na rua do Thesouro- Velho, n.° 27, em 1812. José Ze- 
noglio dava lições em 1816 « segundo os princípios 
modernos adoptados na escola franceza», e em 1817 
abria aula, em que ensinava contradansas francezas 
« e mais dansas das assembleias » na rua Nova do Al- 
mada. Em 1816 havia mais Mrs. Falcóz e Girard, pri- 
meiros bailarinos de S. Carlos, que estabeleceram es- 
cola de dansa na rua da Emenda; e, em 1817, Mr. 
Falcóz, então primeiro bailarino do lheatro do Salitre, 



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16 Ewpreza da Historia de Portugal 

dava lições em sua casa no Arco do Bandeira. Mr. 
Lacombe também leccionava dansa e baile hespanhol 
«para se dansar em casas particulares». 

Em 1823 apparece a hespanhola Antónia Rodrigues 
ensinando ás senhoras o bolero, o fandango, o solo 
inglez, a cacbucha e o minuete afandangado. 

Em 1824, Luiz Astolfl, ex-primeiro bailarino de S< 
Carlos, offerecia « os seus limitados talentos de pro- 
fessor de dansa» na rua de S. Francisco da Cidade, e 
Gaspar Fineli dava academia de dansa no Poço do Bor- 
ratem, 11, 1.°. E em 1840 veiu o hespanhol D. José 
Carrero, que leccionava quadrilhas, valsas, solo inglez 
solo cossaco, gavota, minuete escocez, bolero, fandan- 
go hespanhol, manchega e jota aragoneza. 

Méry aflirmou que a guitarra morrera com a galan- 
teria e o amor, o que é inexacto. O amor não morreu 
com o positivismo triumphante. embora continue a 
ser uma coisa tão subtil, que escapa a toda a doutrina , 
a todo o raciocínio, a todo o conceito antecipado, a 
toda a deducção lógica. E o gosto pela guitarra sub- 
siste como no bon vieux temps das modinhas, dos ma- 
drigaes, das xacaras e dos solaus, porque é o instru- 
mento do amor 4 . 

A musica desfiada na guitarra é mais commovenle 
do que os bellos dramas desfolhados nos pianos ingra- 
tos e nos realejos sentimentaes. Os accordes da gui- 
tarra penetram com uma doçura victoriosa na víscera 
que move o sangue, são nos*a!gicos como as inflexões 

1 Esta mesma idéa foi expressa pelo sr. Fernandes Costa na 
seguinte quadra: 

Guitarra que não aqueces, 
Embora cantes com brio! 
Quando não fala de amor, 
Toda a guitarra tem frio! . 



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Historia do Fado 17 

das vozes queridas, que morreram, mas que o phono- 
grapho reproduz, despertam em nós o mais triste, 
mais pungente e mais suave de todos os pensamentos 
—o do passado. Eis o motivo determinante de R»>us- 
sado folhelinisar assim em 1868: —«Os ciúmes tem- 
pestuosos, que se multiplicam no Bairro-Alto nâo iriam, 
as mais das vezes, até ao epilogo da policia correccio- 
nal ou da costa de Africa, se a m^lancholia da gui- 
tarra nacional não entrasse pelo peito do amante, fa- 
lando lhe da ingratidão de uma mulher e das felicida- 
des de um rival ditoso.» 

E eis também a razão, por que um poeta illustre do 
nosso tempOj o sr. Fernandes Costa, aiuda pôde di- 
zer: 

Em ouvindo uma guitarra, 
Paro, tirando o chapéo; 
Nâo me importa de morrer, 
Se houver guitarras no céo. 



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11 



Caracter das canções populares po/tuguezas.— O fado. — Themas 
do fado. — O fado sob o ponto de vista musical e sob o ponto 
de vista litterario. — Origem do fado. — Os marítimos e as 
suas cantigas.— A pparecimento do fado. — Papel da guitarra 
nos bródios lisboetas. — As hortas e as esperas de toiros. — 
As cantadoras àefado nas esperas de toiros. 



Às canções populares luzitanas apresentam um ca- 
racter lamentoso e amoroso, o que já fòi notado por 
Link, um allemão illustre que viajou entre nós nos fins 
do século xviii. A este respeito, escreveu elle: — «0 
habitante dos campos da Alleraanha excede muito (no 
respeitante ao canto) o de Inglaterra, muito mais ainda 
o de França, e infinitamente o de Hespanha e o de 
Portugal. canto monótono, gritador e arrastado dos 
homens começa já na Gasconha; é desagradável na 
Hespanha e em Portugal. 

fAccrescentae a isto uma guitarra tão má, que ape- 
nas se ouve o ruido da madeira, e podeis formar uma 
idéa das serenadas que os namorados dão, á noite, ás 
soas bellas.. . As canções do povo portuguez são la- 
mentosas ; falam quasi sempre da dôr do amor, são ra- 



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20 Empreza da Historia de Portugal 

rameote lascivas e pouco saty ricas *.• N'esfe tempo, po- 
rém, ainda o fado era desconhecido em terra. 

Só quarenta e tantos annos depois, havia de occupar 
o logar primacial entre as canções populares de Lisboa. 

O fado, a navalha e a guitarra constituem uma trin- 
dade adorada pelo lisboeta — adoração ethnicamente 
explicável 3 . O fado— j atum —canta as contingências 
da sorte voltaria, a negregada sina dos infelizes, as 
ironias do destino, as dores lancinantes do amor, as 
crises dolorosts da ausência ou do affaslaraento, os so- 
luços profundos da desesperança, a tristeza dolente da 
saudade, os caprichos do CQração, os momentos ineffa- 
veis em que as almas dos amantes descem sobre seus 
lábios, e, antes de remontarem ao céo, deteem o vôo 
n'um beijo dulcíssimo. Nenhuma das canções popula- 
res portuguezas retrata, melhor do que o fado, o tem- 
peramento aventureiro e sonhador da nossa raça essen- 
cialmente meridional e latina ; nenhuma reproduz tão 
bem como elle— com o seu vago charmeur e poético— 
os accentos doloridos da paixão, do ciúme e do pezar sau- 
doso 8 . A melancholia é o fundo do fado como a som- 
bra é o fundo do firmamento estreitado. 

E a musica (Testa canção parece estampar a fatali- 



1 M. Link. Voyage en Portugal de 1797 à 1709, pag. 44 c45. 

2 »0 único portuguez pa a quem a faca é arma predilecta é 
o extremenho, e principalmente o lisboeta. E' uma influencia do 
meio em que vive e da educação que recebe». (As Farpas de 
Abril de 1872, pag. 69). 

3 «A parte viva e inimitável da nossa musica éo sentimento 
que caracterisa o povo portuguez e que predomina no nosso fa - 
do, animando a monotonia do rytbmo e dando lhe esse cunho 
dolente e apaixonado, que tanto impressiona os estrangeiros, 
que, por acaso, o ouvem». (Apostilla ao programma da «soir ée» 
musical realisada em casa da condessa de Proença -a- Velha em 24 
de Janeiro de 190$.) 



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Historia do Fado 21 

dade antiga, essa mesma fatalidade a que Bocage alia- 
dia o'uma quadra : 



Que eu fosse emfim desgraçado. 
Escreveu do Fado a mào ; 
Lei do Fado não se muda, 
Triste do meu coração ! 



fado tem, por conseguinte, a sua philosophia. E aos 
que lh'a negam, póde-se-lhes responder, parodiando o 
que um enthusiasta de Rossini dizia do auclor do Gui- 
lherme Tell, da Cemreniola e do Barbeiro de Sevilha : 
«Pobre fado! Mo vêem a tua profundeza, porque tu a 
cobres de rosas » 

Sob o ponto de vista musical, o modelo primitivo do 
fado é, segundo diz o sr. Ernesto Vieira á , um perío- 
do de oito compassos de 2/4, dividido em dois mem- 
bros eguaes e symetricos de dois desenhos cada um; 
preferencia do modo menor, embora muitas vezes pas- 
se para o maior com a mesma melodia ou com outra; 
acompanhamento de arpejo em semi colcheias, feito 
unicamente com os accordes da tónica e da dominante, 
alternados de dois em dois compassos. O fado è cara- 
cteri>ado ainda pelo acompanhamento da guitarra por- 
tugueza, que, para esse flm, tem uma afinação espe- 
cial. Quando os guitarristas locam o fado, sem ser para 
acompanhar os cantos, phantasiam muitas variações 
sobre a mesma melodia, e quando tocam simplesmente 
o acompanhamento chamam- lhe fado coríido. Fado ri- 
goroso é o que não admitte variações, 

A gemedora musica do/ado lembra, vagamente, cer- 
tos andante da musica tchèque. 
«O motivo principal do allegrttio da 7.» symphonia 

1 Ernesto Vieira. Diccionario musical, vol. I, pag. 184. 



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22 Empreza da Historia de Portugal 

de Beethoven, confiado primeiro aos altos e violoncel- 
los e aos violinos depois, di uma idéa approximativa 
do fado, não só na divisão rytbmica, mas ainda na 
forma da melodia», diz um critico 1 . 

Sob o ponto de vista litterario, «o fado— diz o sr. 
Theophilo Braga -como a xacara moderna, era que a 
acção se não tira da vida heróica, é urna narração de- 
talhada e plangente dos successos vulgares, que entre- 
tecem o existir das classes mais baixas da sociedade. . . 
Tem o fado a continuidade do descante, seguindo 
fielmente uma longa narrativa eníremeiada de concei- 
tos grosseiros e preceitos de moralidade com uma for- 
ma dolorosa, observação profunda na descripção dos 
feitos, graça despretencios», com uma monotonia de 
metro e de canto que infunde pezar, principalmente 
na^mudez ou no ruido da noite, quando os sons sahem 
confusos do fundo das espeluncas ou misturados com 
os risos dos lupanares. 

O rythmo do canto é notado com o bater do pé e 
com desenvoltos requebros ; a dansa e a poesia auxi- 
liam-se no que se chama baler o fado*.» O mesmo 
escriptor assegura que o fado é —na lettra — a ulti- 
ma transformação 0os romances, das ara vias ou nar- 
rativas heróicas da Edade-Media, adaptadas aos no- 
vos costumes sociaes; e é — na musica —um deri- 
vado das melopêas árabes. E accrescenta que o faliste 
ou fadista, era o vagabundo nocturno, que andava mo- 
dulando aquellas cantigas 3 . 

A sr. a D. Carolina Michaellis de Vasconcellos, lou- 



i M. A. Lambertini. Chansons et Instruments, pag. 2o, nota. 

2 Theophilo Braga. Historia da poesia popular por tu gueza, 
pag. 87. 

3 Theophilo Braga. Historia da poesia popular portugueza e 
O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. 



S 



Historia do Fado 23 

vando-se nos trabalhos do sr. Theophilo Braga, diz — 
na sua obra sobre a liUeratura portugueza — que o 
fado antigo era uma verdadeira poesia de dor, uma 
lamentação, em que uma freira, um .frade, um mari- 
nheiro, um soldado, um lavrador, se queixava das ini- 
quidades da sua classe, da sua sorte ; e que, pela for- 
ma estrophica, se liga a uma espécie ecclesiastica (lat. 
sequencia), como se pôde exemplificar com o fado do 
marujo e a xacara açoriana da vida da freira. 

Ajunta que hoje se* dá o nome de fado oú fadinho* 
poesias vulgares de egual conteúdo, mas em quadras 
como o fado da Severa, decimas e quintilhas, que são 
cantadas à banza pelos fadistas (bohêmiens) de Lisboa. 

A nouso ver, o fado não promana das lenga-Iengas 
arábicas, e isto pelos motivos que passamos a expor : 
primeiro, porque, n'esse caso, o fado, pela sua diutur- 
na existência, ter se hia espalhado por todo o paiz, ao 
passo que só modernissimamente chegou ao Porto e 
se canta nas duas Beiras ; # segundo, porque devia exis- 
tir no Algarve— que foi b ultimo reducto dos Árabes 
em Portugal — , o que não acontece ; terceiro, porque 
o fado devia existir egualmente no sul da Hespanha — 
visto que ahi persistiram os Árabes até fins do século 
xv — , o que tapabem não acontece ; quarto, porque 
se deviam encontrar citações a respeito do fado nos 
documentos impressos ou manuscriptos até ao começo 
do século xix, e não nos consta que alguém as topas- 
se até hoje. 

Citam-se os tonos do século xvn, citam se as modi- 
nhas e as cantigas do século xvm e princípios do sé- 
culo xrx, Nicolau Tolentino satyrisa * umas e outras 



1 Aproveitamos o ensejo para dizer que conhecemos uma 
poesia inédita de Tolentino, escripta pelo próprio punho do sa- 
tvrista : 



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24 Empreza da Historia de Portugal 

mas ninguém no? dá noticia da existência do fado. 

Para nós> o fado tem uma origem marítima, origem 
que se lhe vislumbra no seu ryihmo onduloso como os 
movimentos cadenciados da vaga, balanceante como o 
jogar de bombordo a estibordo nos navios sobre a toa- 
lha liquida florida de phosphorescencias fugitivas ou 
como o vae-vem das ondas batendo no coslado, offe- 
guento como o arfar do Grande Azul desfazendo a sua 
túnica franjada de rendas espumosas, triste como as 
lamentações fluclivogas do Atlântico que se convulsa 
glauco com babas de prata, saudoso como a indefiní- 
vel nostalgia da pátria ausente. 

Das suas notas mestas e lentas, de uma gravidade de 
legenda, de uma suavidade tépida, parece emanar uma 
estranha emoção, impregnada, a um tempo, de melan- 
cholia e de amor, de bum to soffrimento e de moribundo 
sorriso. O fado nasceu a bordo, aos rythmos infinitos 



Depois que plano caminho 
Já meu pé trilhando vae, 
Pobre alfayate visinho, 
De um capote cUj meu pae 
Me engenhou um capotinho. 

Trabalhando a obra maldiz 
A empreza que lhe incumbiram, 
Fez nigrom anciãs com giz ; 
Sete vezes lhe cahiràin 
Os óculos do nariz. 

Sua obra se consagre 
No Portal das Barraquinhas, 
Com grossas lettras de almagre; 
Tapou geiras, passou linhas, 
Fez um capote e um milagre. 

Bibl. Nac. d* Lisboa. Manuscriptos. Fundo antigo. 



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Historia do Fado 25 

do mar, nas convulsões cPessa alma do mundo, na 
embriaguez murmurante d'essa eternidade da agua. 

Oliveira Martins não vae muito longe do que dizemos, 
quando escreve : 

«As toadas plangentes, que, ao som da guitarra, se 
ouvem por toda a costa do occidente, essas cantigas 
monótonas como o ruido do mar, tristes como a vida 
dos nautas, desferidas á noite sobre o Mondego, sobre 
o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças incons- 
cientes de alguma antiga raça, que, demorando se na 
nossa costa, pozesse em nós as vagas esperanças de 
um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a 
conquistar?» 4 

Luiz Augusto Palmeirim singra na mesma esteira, 
quando escreve: 

«Num paiz de seguidas tradições marítimas como o 
nosso, a poesia popular não podia deixar de se inspirar 
das scenas tocantes de que o mar é, não poucas vezes, 
testemunha. O fadista, trovador ambulante da plebe, 
compraz-se em procurar os seus símiles na agitação 
constante das vagas, no agreste sibilar dos ventos, na 
inconstância do elemento que, com a maior fidelidade, 
lhe retrata a instabilidade dos próprios sentimentos 2 .» 

O homem do mar é eminentemente imaginativo e 
contemplativo. A sua vida precária, toda repassada de 
ideologismo e de saudade, torna-o idealista, inocula- 
lhe o virus rábico da poesia. O seu espirito perde se 
nos êxtases do Sonho e ra embriaguez do Além. Todo 
o marinheiro verseja ; e alguns dos nossos poetas ca- 
pitães embarcaram ou usaram a farda de botão de an- 
cora: Camões e Belchior, Bressane e Garção, Bocage 
e D. Gastão. 



1 Oliyeira Martins. Historia de Portugal^ vol. I. pag 36. 

2 L. A. Palmeirim. Galeria de figuras portuguezas, pag. 114. 



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26 Empreza da Historia de Portugal 

A facilidade de improvisação dos marítimos faz com 
que as canções abundem a bordo, desde a cantiga ao 
desafio : 

Larga ancora, arria a amarra, 
Volta, abita, socca o nó, 
Mette-lhe o leme de 16, 
A ficar de proa á barra, 
Portaló com portaló, 
Quando não o ferro garra, 

e desde a característica cantiga das fainas: 



Quando elle arranca o ferro 
Vira então de leva arriba, 

Ai lé, lé, lé, 

Ribamar e S. José, 



até ao doce fado, cujo rythmo lisongeia os vagos ins- 
tinctos elegíacos do embarcadiço, cujos sons cálidos 
e molles osculam como um grande beijo sonoro e cujos 
versos amorosos e quentes parecem lançar no sangue 
os venenos que dão a alegria do sonho e a loucura dos 
paraizos artificiaes-o ópio, a morphina, o haschich. 

E' indubitável que o fado só posteriormente a 1840 
appareceu nas ruas de Lisboa. Até então, o único fado 
que existia, o fado do marinheiro, cantava-seà proa das 
embarcações, onde andava de mistura com ascaDtigas 
de levantar ferro, a canção do degredado e outras can- 
tilenas undivagas. Fa<lo do marinheiro i foi o que 
serviu de modelo aos primeiros fados que se tocaram 
e cantaram em terra. 

Não temos, porém, elementos seguros para deter- 
minar a génese evolutiva d'essa melodia até ao mo- 
mento em que, transportada do mar para terra, se 



1 Ha um fado moderno, O marinheiro, com poesia de F. 
Gomes de Amorim, editado pela casa Neuparth & C. a 



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Historia do Fado 27 

populárisou, primeiro, e se aristocratisou, depois, su- 
bindo das viellas e das tabernas ás salas alcatifadas. 

Os lisboetas de Í792 — principalmente a caixei- 
rada de mercadores e capellistas — acompanhados de 
rascôas, batiam de sege para os festins bem pagodea- 
dos na casa de' pasto de Bellas e para as bambochatas 
nos retiros de Sete Rios e das Larangeiras, onde se 
batoteava forte, principalmente com os «officiaes de 
gaveta» conforme os arrieiros alcunhavam os caixeiros 
que sizavam os patrões f . 

Mas a guitarra não tinha logar n'essas pandegas 
descabelladas. ,Os lisboetas de 1807 continuaram a 
tradição das patuscadas em Bellas ; e os de 1820 li- 
mitavam as suas diversões campestres ás batidas de 
tipóia para esta localidade —que frequentavam em com- 
panhia das michelas de jozésinho de baetão verde, 
vestido de chita riscada e lenço branco na cabeça e 
ás burricadas na Oulra-Banda ou para Loures e Lu- 
miar, onde iam ver a quinta do marquez de Angeja, 
(hoje propriedade dos duques de Palmella) *. A gui- 
tarra, porém, continuava a brilhar pela ausência. * 

Nas frescatas 3 nas hortas dos arredores da Lisboa 
de 1833, guitarreavam-se modinhas. 

Assim acontecia na Gertrudes da Perna de Pau> no 



1 Archivo da Torre do Tombo. Policia. Coll. vinda do Mi- 
nistério do Reino. N.° 453. Conta de 50 de Aposto de 1792 ao 
Intendente de Policia Diogo ignacio de Pina Manique. 

2 No Vaudeville de Paris, em 1832, representou se uma 
peça intitulada O guitarr ista, na qual figurava uma personagem 
que se suppunha ser D. Miguel. (T. Braga. Historia do ro- 
mantismo em Portugal, pag. 244). 

3 No tempo de D. Miguel havia reuniões, a que se chama- 
vam frescatas, termo favorito de um também engraçado, franco 
e generoso conviva, e que d a pois tomou por apellido Frescata, 
João Maria Frescata, cavalheiro de fino trato, que bem mere- 
cia ter um fim mais feliz do que teve (F. J. de Almeida. 
Apontamentos da vida de um homem obscuro, pag. 137). 



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28 Empreza da Historia de Portugal 

Manuel Jorge, ás portas de Socavem, no Zé Gordo, na 
calçada de S. Sebastião da Pedreira, no Quintalinho. á 
Cruz do Taboado — onde se vendiam iscas de viteíla 
espetadas em palitos — e no Calazans, á Cruz dos 
Qualro Caminhos. 

Nas suas succedaneas de 1846, já se guitarreava o 
fado, como succedia na Horta das Tripas, no Escovei- 
ro (à Cova da Piedade), no Ezequiel <.o Dafundo, no 
Miséria da estrada de Palhavã, na Viteileira da travessa 
dos Carros, na Rabicha, no Campo Pequen ), no Arco 
do Cego, na Madre de Deus e no Beato António. E 
esta tradição do fado mantevese nas hortas das epo- 
chás posteriores: Jo*é da Bateira, António das Noras, em 
Arroyos, Quintalinho da travessa do Pintor, Theotonio 
da calçada de Carriche ou Nova Cintra (onde se ia em 
burricadas), a Joanna do Collele~encarnido, no lado 
oriental do Campo Grande (que passou depois para a 
azinhaga da Torre, no Lumiar) *, Cá e lá, José Galli- 
nheiro, Joaquim dos Melões, na Outra-Banda, Arieiro, 
José dos Pacatos, retiro do Pardal, nas terras da Casa 
da Pólvora, Salgado do Arco do Cego, Videira do Cam- 
po-Grande, a tendinha do Campo, José dos Passari- 
nhos, em Alcântara, as Varandas, ao Caminho de Fer- 
ro, José dos Caracoes, no Campo Grande, Luiz Gas- 
par, na estrada das Mouras, Esparteiro do Alto do Pi- 
na, Pacatos Velhos, o Rouxinol, nos Terramotos, Quinta 
do Ferro de engommar; e, mais recentemente, Pedro 
da Porcalhota, Cazimjro do Poço dos Mouros, Bazali- 
sa, Quinta do Papagaio, Quinta das Águias, as leitei- 
ras, José Azeiteiro, o Quebra-Bilhas, no Campo Grande, 
e José Roque, de Palhavã. 

Outro sitio onde se fadejava com facúndia era no 
Campo Pequeno, nas noitadas das esperas dos toiros. 

1 A Joanna do Collete encarnado morreu e deixou um filho 
chamado José. 



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Historia lo Fado 29 

Já no tempo do conde de Vimioso— ahi por 1847 ou 
1848 — a Severa lá cantarolava o seu reportório deco- 
tado com um impudor feliz e batia o fado ao som da 
banza do Sjusa do Casacão, desde o escurecer até que, 
ás duas horas da noite, o gado pegava de sjhir para a 
praça do campo de SanfAnna 1 . Depois vieram os tem- 
pos famosos do conde da Anadia, em que se ouviam 
os descantes do José Borrego e do José da Burra e os 
tempos não menos famosos do Marquez de Castello-Me- 
Ihor; quando alli, á luz fria e espectral do luar, se es- 
cutavam os cantos lugpntes e as guitarras commovedo- 
ras do Hermenegildo Ratado e do Calcinhas. 

N'essas esperas dos toiros havia sempre a desordem 
épica da tresmalhaçao, provocada pelas rapazias do 
marquez de CastelloMelhor, do Marquez de Bellas, do 



1 N'e8se tempo, apreciavam se muito as batidas de sege. Dois 
batedores de nomeada eram o Fomenica, que trazia sempre umas 
éguas beirôas, e o José Maria Cabelleireiro, que trazia uma pa- 
relha de cavaíloe malhados. Certa occasiâo, um grande amador 
de batidas de sege, o Luiz Confeiteiro, da rua do Oiro, apostou 
com o Frescata que iria a Cintra em determinado espaço de 
tempo. O Frescata metteu-se na tipóia do José Maria Cabéllei- 
retro, e o Luiz na caranguejola do Fomenica. 

Foram e vieram nas horas de estai ir, mas, á volta, na rua 
de S. José, o Fomenica derrubou uma pobre v lha, que escapou 
entre as rodas da sege. Pois o José Maria Cabelleireiro, que lhe 
vinha no encalço, conduziu a sua com um tão excepcional 8a- 
voir-faire da arte de bolear, que a mulher tornou a quedar se 
no espaço comprehendido entre as duas rodas, e apenas soffreu 
o pizar dos cavallos. 

A esta nleiade de batedores parlapatões suecedeu outra, a 
que pertenceram o João do André, o Hoque Mulato, o Joaquim 
Preto, etc.; a esta suecedeu outra de que fizeram parte o Mora- 
da» e, o António Moraes Gradil, que morreu em 1900 emEx- 
tretnoz;^ a esta, ainda outra de fresca data, em que figuram o 
BitacxdaSy o Júlio Ferrador, o Arreda, o Faço de Arco8 % o La- 
garto y ete. 



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30 Empreza da Historia de Portugal 

conde da Vidigueira, do Dr. Frederico Arouca e de 
outros amadores do divertimento. 

Soava, então, o momento psychologico de intervirem 
as varas dos conductores, alguns dos quaes foram no- 
táveis n'este servido arriscado: o Francisco Leal Bate- 
Folha — a primeira vara de campino — , o Seabra e o 
Domingos Carvalho, de Alhandra. Era nos tempos fa- 
mosos das toiradas em que toireavam o Sedovem, o 
Mesquita, os Robertos, o José Peixinho, os Carmonas, 
o Cadete, o Caixinhas, o Pontes e o velho Calabaça ; 
em que pegavam d unha os mais valentes moços de 
forcado: o António — creado do marqunz de Niza— ,o 
Miguel Carola, o grande rabejador António Caneca, o 
primeiro pegador de cernelha António Mm ladrão, o 
Russinho — pegador de mão cheia—, o Machica de Sal- 
vaterra, o Raphael Torto, o Augusto Engeitado, o Cy- 
rineu, o José Chucha, o Ezequiel de Vallada, o José 
Mathias, o José da Annica, o Valentim, os Carraças, 
os Constantinos da Gollegã — creados do visconde de 
Asseca,— o Bernardo de Santarém, o Júlio da Rafôa, o 
José das Travessas e o João Põe a neta. 

Depois da tresmalhação adorada, e já dentro da pra- 
ça de toiros, um grupo de rapazes do trinque deixa- 
va-se ficar em continuas guitarradas até manhã, nas 
quaes se faziam ouvir as modulações pueris das vozes 
das mundanas mais salientes por suas graças vicio- 
riosas na cantoria do fado: a Rosa dos Camarões, a 
Beatriz, a Maria José Loira, a Maria Pia, a Borboleta^ a 
Anna do Porto e outras que morreram de amor como 
aquella siciliana, cujos desgostos pagãos soluçam nas 
eglogas de Theocrito. 



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\\ WZi-\ WM'r\\W'L\m'M I >:'.'. MII|„ M1 ;■,■■, rj .. . ,■!■,,■ , , ■ , , ,ir„. m;,.; . 

g— s-jp-^— -ar 



III 



O fadista. — Suas manhas — Sua arte. — Sen fim. — O fadista 
do Porto e o capoeira do Rio de Janeiro. — Locaes frequen- 
tados pelos fadistas. — A toilette do fadista de 1848. — Os 
inimigos dos fadistas. — A toilette do fadista de 1860. — Ci- 
tam -se alguns fadistas de renome. — O fadista nâo morreu. 



A appa rição do fado engendra um novo factor do 
viver lisboeta —o fadista, o qual vem representar o papel 
que actualmente desempenha ovoyou parisiense e o roug h 
americano, e dar ura novo cliché cinematographico da 
vida de Lisboa. fadista — minado de taras, avariado 
pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o 
estômago dyspeptico, o sangue descraseado e os ossos 
esponjados pelo mercúrio — é um producto heteromor- 
pho de todos os vícios, atlinge a perfeição ideal do 
ignóbil Tem sempre um raciocínio imperioso, um ar- 
gumento pouco friável, uma dialéctica aggressiva e re- 
soluta, que não presta flanco ao assalto das objecções 
— a navalha. Como os maitres en fait (Tarme$ do se- 
cul o xvn falavam de papo em esgrimiduras de espada, 
também elle fala de cadeira no tocante á esgrima da 
navalha, que mavja com virtuosidade, pinchando bai- 



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32 Empreza da Historia de Portugal 

lheiro, pulando com gymnasticas felinas de tigre, fa- 
*endo escovinhas, riscando a preceito l . Os seus amo- 
res são sempre seleccionados entre as rameiras que 
vigem e viçam na atmosphera microbiana dos bairros 
infectos, entre essas mulheres que, na virulenta ex 
•pressão de Balzac, vcnt enjourntela nait. Lovelace de en- 
cruzilhada, D, Juando podredoirojdoloecarrascodaspro- 
flssionaesda galanteria pelintra, o fadista perpetra tão ex- 
peditamente o ruflanismo ignominioso como pratica o 
othellismo trágico. Ê um Vaimont de espelunca, um 
Saint- Preux do enxurro, para quem a mulher é, sim- 
plesmente, a mercenária das trevas, quasi um semo- 
vente. E elie não a comprehende. nem a ama, senão 
no circulo vicioso dos coqupttismos perturbadores e 
ligeiramente exóticos do canalhismo. 

Ordinariamente, o fadista sabe cantar — com uma 
entonação febril e húmida de soluços, olhos quebrados 
e a inamovível ponta de cigarro soldada ao lábio infe- 
rior — os fadinhos docemente articulados sobre um ry- 
thmo em que brincam phantasias de espasmos, as por- 

1 Também os voyoua parisienses teem uma arte de defesa — 
a savate. Foi em 1 £30 que os casquettes àtroisponts inventaram 
esta moda de combate para derrimir seus pleitos, liquidar suas 
contendas O primeiro professor d'este jogo foi Michel Pieseux, 
o Sórdido* que o ensinava «'uma casa íôbrega de La Court Jle, 
muitas vezes descripta pelos escriptores contemporâneos, en-, 
tre elles Alexandre Dumas e B lzac. Fisseux cantou no nume- 
ro dos seus disci pulos dois luminares dà alta elegância : o du- 
que de Qrleans e Lord Seymour, o chefe da bacchanal parisien- 
se. Na savate do tempo, a guarda era sempre muito baixa, as 
pernas ficavam afastadas e as mãos estendidas para a frente. 
Um golpe capital, It coup de musette, consistia em levantar o 
nariz do adversário com a palma da mão aberta. 

O jogo do box the art of self- defense, como lhe chamam os in- 
glezes — , tem uma origem mais antiga. Basta dizer que o pri- 
meiro código regulador d'este sport foi estabelecido por Jack 
Broughton no século xvin. 



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CONDE DE % YIMlIOSO 
(Notável amador de fado) 



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Historia do Fado 35 

nographias egualitarias das lascas onde o álcool flam- 
meja e a embriaguez estrebucha, os versos de uma 
morai Uo moderada quanto opportuuista, as obsceni 
dades levadas até a mcoogrueneia fétida, as indecen- 
cias envoltas em palavras doces como suspiros abafa- 
dos—todas as chulices do reportório scatologico. A 
taberna, o café de lépes e o baixo alcouce, são a arena 
dos seus combates e o Capitólio dos seus triumpbos. 
E resvalar d'este Capitólio á Rocha Tarpeia do cárcere 
ou do estarim, por ter anavalhado uma fêmea tréda, 
uma amante pérfida, é o dernier cri da bohemia rufia- 
naz, o ultimo espasmo da fadistice. 

Por via de regra, o fadista expira na gehena, na en- 
fermaria ou. . . na ponta de uma faca. 

Eça de Queiroz, criticando o fado, os bairros pifios 
de Lisboa e ofadistismo, escreveu:— «Athenas produ- 
ziu a esculptura, Roma fez o direito, Paris inventou a 
revolução, a Allemanha achou o mysticismo. Lisboa 
que creou? O Fado. . . . Fattim era um Deus noOlym- 
po; n 'estes bairros é uma comedia. Tem uma orches- 
tra de guitarras e uma illuminação de cigarros. Está 
mobilada com uma enxerga. A scena final é no hospi- 
tal e na enxovia. O pannode fundo é uma mortalha *.» 

•Nem sò o rebotalho do populacho soffre a acção 
morbifica do bacillo fadista); nem só a gentalha da ra- 
lé se fadistocratisa. A fadistagem também se recruta 
na burguezia, e até na aristocracia, como se viu com 
o D. Miguel e o D. Rodrigo Soutto de El-Rei 2 . 

O figurino fadislal lisbonense teve imitadores no 



1 Lisboa, folhetim de Eça de Queiroz na Gazeia de Portu- 
gal de 13 de Outubro de 1867. 

2 Eram dois fadistões, que perpetraram um a^asfeinio no 
Alto do Pina. 



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36 Empreza da Historia de Portugal 

Porto. Camillo Castello-Branco, referindo-se ao fado 
e aos locaes em que elle se tocava n'aquella cidade, 
escreveu :—«... o botequim do Pepino em Cima do 
Muro, onde o fado balido deitava á madrugada, com 
entre actos de facadas e muito banzé '.» E, alludindo 
aos fadistas portuenses de 1850, disse : 

— o Ainda os não havia fora das tabernas da Porta 
de Carros e das alfurjas da Porta Nobre, ramificaçõas 
do Pepino de Cima do Muro. O faia começava então a 
surdir na capital das cavallariças dos fidalgos pela 
cohesão do filho segundo com o lacaio. No Porto era 
desconhecido ainda o fidalgo toureiro, espancador e 
bêbedo 2 .» 

Os fadistas do Rio de Janeiro são os capoeiras. 
Tem havido alguns notabilissimos pelas proezas. O 
Manduca da Praia— um homem pardo temi vel — , 
que tinha loja de peixe no mercado, pendenciou 
com o impávido SanfAnna e Yasconcellos n'um bote- 
quim fluminense, mas o nosso compatriota reguingou- 
lhe com valentia. SanfAnna e Vasconcellos e o Man- 
duca da Praia sahiram, uma vez, de braço dado de 
um theatro, a cuja porta eram esperados por uma a!- 
c.téa de capoeiras, com o fim de os aggredirem. Mas 
os maraus não se atreveram a tocar-lhes e limitaram- 
se a abrir alas á sua passagem. Foi elle que veiu pro- 
positadamente a Lisboa para tosar SanfAnna e Vas- 
concellos, que o desfeiteara no Rio. 

Mas virou-se o feitiço contra o feiticeiro, porque 
SanfAnna redarguiulhe, jogando-lhe um 8Ôcco, que o 
fez baquear redondo no chão do Marrare do Chiado. 
Um frequentador do café, o Altavilla, melteu-se de per- 
meio e separou os contendores. 

1 Camillo Castello Branco, Euzebio Macário, pag. 47. 

2 Idem, pag. 135. 



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Historia do Fado 37 

No Rio de Janeiro havia também o Bocca queimada, 
um negro que trajava sobrecasaca preta e chapéo alto, e 
exercitava o duplo emprego de chefe de malta ou qua- 
drilha de capoeiras e de capanga de eleições ou galopim 
eleitoral, fen passe et des meilleurs. . . 

Entre o antigo faia lisbonense e o actual, existem 
apenas as differenciações de toilelte e de poiso. Ontr'ora, 
infestava a Madragôa, o Bairro Alto, Alfama, a Bica de 
Duarte Bello e os estamineis borgnes da Ribeira Nova ; 
hoje infesta Campo de Ourique, Terramotos, os bote- 
quins da rua dos Canos, os cafés decadentes da 'deca- 
dente Mouraria— -limbos de uma alegria morta — e os 
botequins do Miguel Chegadinho, o Brilhante e o da 
Isabel, em Alcântara, onde vae ganhar alentos com o 
puxavante dos licores inflammatorios,como a cambrai- 
nha, o cacharolêle, a amêndoa, as indianas e as mula- 
linhas, lídimos succedaneos das chinitas, da cachaça, 
da ardoza ou ardozia, das francisquinhas e dos caba- 
zes. 

Psychologicamente, o fadista continua a ser a crys- 
talisaçãodos peccados capitães— exceptuando a avareza 
— , é um hexaedro abjecto. A sua vida continua a ser 
um constante melodrama com coups cte théatre impre- 
vistos. Bohemio errante nos confins de uma sociedade 
regular, as suas taras atávicas conservam-se irreducti- 
veis á prophylaxia da policia judiciaria e á acção coer- 
civa dos tribunaes. 

O fadista de 1848, o leão de bordel safado, o en- 
gonce de calleja suspeita, o reles whoremaster lupana- 
rio, como que possuía o sentimento ingenito da linha 
fadistense, a idéainnala da elegância bohemia, todas as 
supremacias da distincção vagamundeaníe. Usava bonét 
de oleado com tampo largo e palia de polimento, ou bo- 
nét direito, do feitio dos dos guardas municipaes, com 



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38 Empreza da Hitforia de Portugal 

fita preta formando laço ao lado e palia de polimento ; 
jaqueta de ganga ou jaqueta com alamares, e,em 1850, 
umas jaquetas sobre o comprido, com uns enfeites de 
botões nas mangas, a que chamavam jalecas d tolka\ l 
calças de ganga azul ou de ganga amarella com bocca 
de sino ou largas por egual, tendo botões de madre- 
pérola nos alçapões ou nas portinholas, e> algumas» na 
costura exterior da bocca de sino ; a indispensável cinta 
e um lenço á marinheira ou um lenço de bandeiras 
estampadas — que os marujos traziam de Ioglaterra — 
ao pçscoço e outro lenço de bandeiras na algibeira, da 
qual pendiam as pontas ; sapatos de cordovão, de en- 
trada abaixo, com laço de fita preta -como usavam os 



1 A Polka foi dansada pela primeira vez em Lisboa, n'am 
almoço dansan te que o duque de Palmella offereceu a Fuad- 
Effendi,minÍ8tro da Turquia, e ao seu secretario Kamil Bey, em 
24 de Novembro de 1844, no palácio do Paço do Lumiar. A festa 
principiou ás duas horas da tarde de 24 e acabou ás duas horas 
da manhã de 25. Em publico, foi dansada, pela primeira vez, na 
noite de 18 de Maio de 1845, em S. Carlos, pelos bailarinos Au- 
gusta Mabille e Charles Mabille. Este ultimo fundou, com seu 
irmão, o famigerado Baile Mobílie, em Paris, na Allée des Vcu- 
ves, 87, de onde dirigiu um aviso aos seus pretensos credores 
lisbonenses, inserto no Jornal de Utilidade Publica de 3 de Se- 
tembro de 1845. 

A Polka deu o nome a muitos objectos. Os janotas de 1845, 
usavam chapéos á Polka. Foram moda as bengailinhas á Polka, 
que consistiam n'um junco d% índia com um grande nó redondo 
formando castão e que custavam um vintém. Os soldados de 
infanteria tinham enorme predilecção pelas taes chibatinhas. 
E noGymuasio representou- se, em 1851, a Polka mazurka pelo 
Taborda. 

No Brazil fizeram-se quadras populares á Polka : 

Quem quizer que danse a «porca» 
Com seus quartos arrufados; 
Os amantes gostam d'isto, 
Ficam todos derrotados. 



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Historia do Fado 39 

marinheiros de guerra— ou sapatos de polimento, que 
era a moda das modas para os que tinham mais maço 
ou mais massa, como diriam hoje, e rachuoho (annel) 
de latão ou de oiro no indicador ou.no annular. Le 
chie iype!. . 

O seu penteado - que não era certamente devido á 
arte capillar do Baron, do Godefroy ou do Filisbert — 
consistia em trazer o cabello cortado de meia cabeça 
para traz, mas comprido para diante, de maneira que 
formasse melenas ou bellexas empastadas sobre a testa. 
Desnecessário será dizer, que os toutiços assim prepa- 
rados nâo faziam lembrar as cabeças doutrinarias de 
Guizot e de Royer-Collard, nem as cabeças catitas de 
António da Cunha ou do Villar Perdizes. . . 

O fadista usava, frequentemente, tatuagens ou dese- 
nhos impressos na epiderme, que elle ou algnm artista 
anlhropographo traçava nas mãos, entre o indicador e 
o pollegar, nos braços e no peito, illumínuras a car- 
mim que representavam ancoras, navios, guitarras, flo- 
res, animaes, inscripções diversas, corações traspassa- 
dos, corações unidos, a cruz, as Cinco Chagas, o signo 
saimão, e outros emblemas amorosos, religiosos, me- 
taphoricos e phantasistas. * 

1 A operação da tatuagem pratica -se por meio 'de três agu- 
lhas fixas a um cabo de madeira ou simplesmente unidi.s por 
um fio, f previamente embebi ias n'um liquido corante, que pôde 
ser tinta da China, tinta de escrever, carvão triturado, pólvora 
moída ou azul das engoii. madeiras. Applicam-se por meio de pi- 
cadas dirigidas obliqua ou perpendicularmente, e, para estas se- 
rem inapagaveis, devem attingir os ganglios lymphaticos. Entre 
nós, os tatuadores existem, em geral, nas cadeias, nos quartéis 
e nas populações maritimas. Nem só as clasues baixas se tatuam. 
No numero dos tatuados contam se alguns membros da família 
imperial russa, a priuceza Valdemar da Dinamarca, o príncipe 
Henrique da Prússia, Lord Chesterfield, Lady Randolpn Chur- 
ch 11, etc. Em Londres, ha virtuoses da tatuagem japonezes e 
dois operadores afamados no género: Âlfred South e Macdo- 
nald. 



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40 Empreza tia Historia de Portugal 

Muitos (Telles traziam um bengalão de canna da ín- 
dia on um cacete bamboleando- se entalado entre o de- 
do médio e o indicador da mão direita, emquanto elles, 
todos gingões, pareciam ir dizendo com uns certos ares 
de bravura corominatoria, com uns modos assim á 
laia de osga: Tomem viso! Aqui vae um homem testo, 
um gajo com ralé. Se cliso d palma algum moco, endra* 
go lhe as batas ou noco lhe a noz que o estafo. K como 
canta! * Dentro da algibeira ou do golpe, dormia lhes, 
ordinariamente, a navalha, a que chamavam sarda ou 
pico, como depois chamaram naifa. 

E como a antithese não é um simples processo lilte- 
rario, mas uma realidade constante na existência, va- 
mos encontrar, ao mesmo tempo, os fadistas e os seus 
inimigos natos — os barras de mâo — cheia. 

Um fadistophobo intransigente era o Raphael, que 
andara na aprendizagem de typograpbo junto com o 
actor Taborda. Certa occasião, entrou no botequim do 
Pedro (no largo das Duas Egrejas, pegado ao Loreto), 
e, tendo encontrado lá dois faias a tomar café, incre- 
pou violentamente o creado por consentir taes clientes 
na loja e ameaçou-o de que lhe pregaria uma sova real, 
se os deixasse novamente cruzar os portaes. Os fadis- 
tas ouviram o raspanço, passaram palavra uns aos ou- 
tros, e, na noite seguinte, vieram, á formiga, e junta- 
ram se alli mais de vinte a tomar a escura bebida. José 
Romão, ensaiador do Gymnasio, e Manuel Machado, 
emprezario do mesmo lheatro, prevendo grossa panca- 
daria, sahiram á procura do Raphael, no intento de o 
afastarem do botequim; Bisparam n'o na rua do Loreto 
e pediram-lho que os fosse acompanhar a comer uma 



1 Tomem cuidado ! Aqui vae um homem valente, um homem 
de coragem. Se apanho a qeito algum pedaço de amo, deito lhe 
as mãos ou parto lhe a cabeça, que dou cabo oVelle. Podem acre- 
ditai o! 



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Historia do Fado 41 

caldeirada de lulas, obra de estalo. Rapbael aquies- 
ceu ao pedido, mas impoz a condição de ir vêr, pri- 
meiro, quem estava no botequim do Pedro. 

Efectivamente, entrou ahi, e, passados momentos, 
ouvia-se um tumulto formidável, emquanto se viam sa- 
hir os jaiantes a correr, e de cabeça esmechada, ao 
mesmo passo que ò Rapbael, lá dentro, fazia entrar a 
bengala na linha dos argumentos sérios e punha toda 
a fadistagem no olho da rua. 

Em 1860, já a farpella do fadista experimentara mo- 
dificações. O ultimo Petronio do fadistismo trajava ja- 
queta de alamares, calças de quadradinhos brancos e 
pretos estranguladas nos joelho» ou calças brancas (no 
verSo), camisa branca ou de chita, gravata carmesim 
de passadeira com as pontas cabidas, cinta carmesim 
ou preta, ou de seda carmesim (para os fadistas li rós) 
e sapatos amarellos ou sapatos de laço. Alguns traziam 
a jaqueta ao hombro esquerdo, a fim de terem livre o 
braço direito e poderem defender se e aparar os golpes 
com ella. O bonét de oleado quasi cahira em desuso. 
A moda era o chapéo redondo ou o barrete. Uns esty- 
lavam o cabeilo cortado até ao meio da cabeça e cres- 
cido adiante para fazer bellezas; outros estylavam-n'o 
apartado á banda, rapado no pescoço e com bellezas na 
testa. 

N'esta época, houve alguns fadislões de renome. Ci- 
taremos o bonito mulato José Luiz, o Pau Real ', o 



1 O Pau Real era filho da preta Henriqueta, vendedora de 
mexelhSo e dama da corte picaresca da rainha do Congo. Fadis- 
tava de accordo com os mais i igorosos cânones fadistas. O Jor- 
nal do Commercio de 23 de Agosto de 18» 2 noticiava: «Hoje, 
ás seis horas da tarde, o fadista por alcunha o Pau Real, muito 
conhecido por diversas tropelias mais ou menos grave?, deu, na 
travessa dos Fieis de Deus, duas facadas em uma mulher de má 
vida, chamada Maria Balbina.» 



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42 Emprcza da Historia de Portugal 

Chico macaco — ca traeiro valentíssimo— , o Calcinhas 
do Cães do Sodré, o Joaquim Enguia, o temivel Júlio 
Arbèllo, do Bairro-Alto, os três Côcôs, o Caohucho— 
fabricante de palitos para phosphoros— , um seu irmão, 
Manoel Katão-um grande puxador de pau, —o cochei- 
ro António Carapinha e o cocheiro Bitaculas, um ba- 
tedor e um valente, pae dos actuaes cocheiros Bitacu- 
las. 

O primeiro entre os seus pares era o Pau Real — 
quasi um professor de fadistographia. 

Foi morto á falsa fé pelo Chico Galleguinho na ta- 
berna da Balbina— uma quarentona muito frescal — 
sita na rua da Atalaya, á esquina da travessa dos Fieis 
de Deus, onde se realisavam grandes descantes de fa- 
do. O crime proveio de um desaguisado que ambos ti- 
veram na casa de pasto do Mosqueira, na rua das Gá- 
veas, depois de uma espera de toiros. O assassino foi 
degredado, mas escapuliu se do degredo e ainda vol- 
tou a Lisboa n'um navio de guerra americano. 

Entre os mais tezos jogadores de pau n'aquelle tem- 
po, podemos citar o José da Burra, o velho cocheiro 
Malaquias e o José Carlos, de Évora. 

Repetimos que, entre o fadista de 1818. o de 1860 
e o de hoje. ha apenas differenças superficiaes, porque 
a sua fadisliie aguda, o seu nervosismo feroz, toem 
resistido obstinadamente ás investidas tenazes da civi- 
,lisação. E se o faiante de 1848 cantava todo ancho: 



O fadista que é fadista, 
A geito o ferro manobra, 
«Mettendo mão aos arames*. 
Dá facada como cobra, 



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Hiêtoria do Fado 43 

o da actualidade ainda dos vem dizer com .uma inson- 
dável expressão de guapice: 

Tenho sina de morrer ♦ 

Na ponta d'uma navalha, 
Toda a vida ouvi dizer : 
— Morra o homem na batalha ! 



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IV 



Severa da lenda e a Severa da realidade. — À Mouraria no 
tempo da Severa. — A horta das Atafonas, i quinta do Bran- 
dão e a rua Nova da Palma. — A Severa na Mouraria. — 
Casas onde morou a Severa. — Pimponices da Severa. — As 
companheiras da Seveia e as fadistonas da Mouraria em 
1848. Toilette d'estas mulheres. — Citam se os principaes 
fadistas da Mouraria do tempo da Severa.— Fadistas de épo- 
cas posteriores. — A Mouraria e os sítios mal- afamados no 
século XVIII. — A Mouraria até 1833. — Os amores da Se- 
vera e o conde de Vimioso. — A taberna da Rosaria dos Ócu- 
los. — Eclipses da Severa. — Na quinta da Foz e no palácio 
do Campo Grande. — Morte da Severa. — A Scarnichia. — 
Mundanas lirós. — O conde de Vimioso, toureiro. — Um caso 
bicudo. — O conde de Vimioso, caçador. — Propensões atá- 
vicas do conde de Vimioso. — Citam -se o conde do Prado e 
um sobrinho do conde de Lippe. 



Antes de nos oceuparmos dos fados, temos de pala- 
vrear um poucochito acerca de uma mulher popuíari- 
sada pelo canto do fado e inspiradora de um dos mais 
antigos fados, mas cuja biographia tem sido muito de- 
turpada. Referimo nos á Severa. Nós mesmos confiámos 
demasiadamente na ienda chula, que se adensou em 
volta do nome d'esta tronga de viella, lenda elaborada 
pela phantasia popular e pela cumplicidade dos liltera- 



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46 Empreza da Historia de Portugal 

tos. Aproveitamos o ensejo para fazer amende honora- 
ble. Após investigações algo trabalhosas e demorada*, 
conseguimos, alfim» tinir s Impo a vida accidentada 
(Testa meto-soprano dos conservatórios do vicio. As 
Bubas que se seguem são, conseguintemente, destinadas 
a correcções e retoques biographicos. 

Maria Severa — assim se chamava ella — não era ci- 
gana como propalou a lenda, mas nascera na Madragôa. 
Sua mãe, a Barbuda, tinha uma das três tabernas que 
então havia n'aquella rua, 4 e alcunhavam n'a assim, 
porque possuía tanta barba, que a obrigava a cortal-a 
frequentemente e a encobril-a com um lenço. Alh, en 
plein cabaret, a Severa batia o fado com o Manosinho, 
o mais antigo fadista do sitio, e com o Mesquita, um 
fadistão que andara embarcado. Uma vez, chegou a 
bater o fado com o Manoel Botas, depois inteUigente 
das toiradas, mas que, n'aquelle tempo, era um rapa- 
zote, quasi um fedelho. 

Durante um curtíssimo parenthesis, a Severa habitou 
n'uma betésga do Bairro Alto, onde Luiz Augusto Pal- 
meirim a topou. 2 Pessoa digna de credito aflirma- 
nos que ella morou na travessa do Poço da Cidade, 
n'uma porta de rua. Isto passou-se antes da Maria da 
Fonte, abi por 1844 ou 1845. A Severa e a sua inse- 
parável mãe mudaram se d'alli para a rua do Capellão 
(vulgarmente chamada rua Suja), então frequentadissi- 
ma pela marujada ingleza e portugueza. 

Antes de proseguirmos, diremos qual era o aspecto 
topographico da Mouraria do tempo da Severa, algo 



1 A rua da Madragôa passou a denominar-se rua de Vi- 
cente Borga, em 1863. 

2 L. A. Palmeirim. Os excêntricos do meu tempo. 



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Historia do Fado 47 

differente do dos nossos dias. Poucas lojas existiam 
n'esta rua, porque a maior parte d'ellas destinava-se 
a casas de habitação. Notavam-se principalmente a loja 
do Bernardino confeiteiro, fronteira á ermida da Saú- 
de, a do funileiro Cidade, ao lado da botica em n os 35 
e 37 — onde. muitos annos depois, esteve empregado 
o sr. Marianno de Carvalho — , a loja de bolos da Pre- 
ta Branca, que ainda existe em n.°* 47 e 49, a loja do 
barbeiro Longuinho na escada n.° 30 -onde se fazia» 
barba encostando-se a cabeça á parede— e ume» efflíro 
sapateiro. Ao cahir da noite, muitas peixeiras se da- 
vam rendez-vous n'este local, entra a* ruas da Guia e 
dos Cavalleiros, sentando-se no» degraus das portas e 
fazendo alli praça de peixe, que vendiam á gente po- 
bre e aos operários que recolhiam a suas casas. O fundo 
da Mouraria era tapado. Havia um recanto, um forno 
e um pateo, onde se guardavam carroças, e, nas tra< 
zeiras, um prédio queimado, que a Camará Mun^ipal 
demoia para abrir a calçada da Mouraria. Anterior- 
mente á demolição, realisava-se um arrayal annual (com 
suas boliuheiras, queijadeiras e boUchèiras) no espaço 
comprehendido entre o prédio e a rua dos Cavalleiros 1 . 
A' esquerda, ficava a Carreirinha do Soccorro, u'esta 
um chafariz e defronte d'elle a casa em que se estabe- 
leceu, muitos annos depois, a popularíssima tasca do 
João do Grão, na qual se manipulava o appettitoso 
prato de desfeita*. Estebaiuqueiro fora soldado da mu- 
nicipal, mas, havendo emprestado o fardamento para 
uma mulher se mascarar no entrudo,, expulsaram-n o 

1 Vendiam-se então muito as bolachinhas de erva doce, em 
grande parte fabricadas na Mouraria e visinhanças. 

2 Citaremos mais duns tabernas, em que se cosinhava o suc- 
rulento prato de desfeita: a do José do Borralho, ao Campo de 
SanfAnna, na esquina da rua do Moinho de Vento, e a da Ma- 
rianna do grão, muito antiga, defronte do chafariz da Espe- 
rança. 



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48 Empreza da Historia de Portugal 

da guarda, foi eslabelecer-se com a tabernoria e mor- 
reu em 1883 ou 1884, deixando fortuna. 

A rua Nova da Palma terminava na rua de S. Vi- 
cente, á Guia, onde formava um largosinho. Junto a 
esta ultima rua ficava a ermida da Guia, com a frente 
virada ao Sul, tendo a um lado uma fabrica de vellas 
de cebo e ao outro lado uma logita de chapéus. De- 
fronte, fazendo esquina para o largo do Jogo da Pélla 
ou de S. Vicente, á Guia, e para o largo dos Canos, 
era a taberna do Carreira, e defronte da rua das Ata- 
fonas estava a taberna do José Avelino, onde ia apa- 
nhar a sua raoafa o Angelo Cardona, dentista e bar- 
beiro sangrador no sitio *. Por detraz da ermida fica- 
va a horta das Atafonas, que se prolongava até á egreja 
do Soccorro. A horta pertencia a um velho chamado o 
Tio Francisco ou o Francisco da horta, possuia urp 
tanque de lavadeiras, um poço com sua nora e jogos 
de malha e de bola. Era frequentadissima pela gente 
do sitio. Ahi se empinavam os copazios do tinto e se 
guitarreava para matar tristezas, e ahi se fazia annnal- 
mente um arrayal. Pegado á ermida da Guia, e jà na 
rua de S. Vicente, á Gaia, estava uma fontesinha com 



1 Angelo Cardona^ folhetins de Gomes de Amorim no Diá- 
rio de Noticias de 9, 10, 11 e 13 de Setembro de 1872. 

Gomes de Amorim diz que a taberna do José Avelino foi a 
primeira onde se vendeu vinho a quatro vinténs a canada no 
tempo da Maria da, Fonte. Sabemos de outra onde então se che- 
gou a vender vinho a 60 réis a canada. Foi na taberna do Fe- 
lippe do Outeiro na rua dos Cavalleiros, 106 e 108. Este homem 
era almocreve e conseguira prender na estrada um correio que 
sahira de Lisboa para o Porto com a noticia da partida do du- 
que da Terceira. Em paga (Veste serviço, o Costa Cabral deu- 
lhe um passe para entrar diariamente pelas barreiras de Lisboa 
com três machos carregados de odres de vinho, isento de direi- 
tos. Mas elle illudia o fisco, entrando por diversas portas da ci- 
dade no mesmo dia. 



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D. JOSÉ DE ALMADA E LENCASTRE 
(Distincto amador de fado) 



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• . c • • 



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Historia do Fado 51 

seu tanque em forma de concha. Na Carreirinha do 
Soccorro— que ligava a Mouraria á rua de S. Lazaro 
— havia um portão de ferro, que dava accesso á quinta 
do Brandão (1.° barão da Folgosa) 4 , a qual se esten- 
dia atè ao Desterro, sendo a parte da actual rua da 
Palma occupada por um pomar de laranjeiras. Defronte 
da egreja do Soccorro encontrava-se o pateo do Porci- 
les, tendo uma bomba para tirar agua ao centro. E da 
travessa do Desterro até ao largo do Tntendente exis- 
tiam uns quintalejos ou pateos e barracas, pertencen- 
tes a D. M. Guimarães e á Casa Pia (senhora do do- 
mínio directo), cuja expropriação serealisouem 1859 2 . 
Parte dos terrenos estavaarrendada ao Lamego da fa- 
brica de louça. Na mesma data se expropriaram dois 
prédios no começo da rua Nova da Palma— á esquina 
da rua Nova do Amparo e defronte de S. Domingos 
— ,adquirindo a rua muito maior largura. 

Quando se abriu a rua Nova da Palma, a imagem* 
da Senhora da Guia, que estava na ermida d'esta in- 
vocação, mudou-se para a ermida da Mouraria, que, 
desde então, tomou o nome de ermida da Guia. 

Tal era a disposição lopographica da Mouraria e suas 
visinhanças no momento em que a dfecantada Severa 
assentou arrayaes n'aquelle bairro portuguez velho e 
relho. 

A Barbuda, mãe da Severa, era mulher de faca na 
liga, cabellinho na venta e lingua de prata, uma fadis- 



1 O 1.° barão da Folgosa, Jeronymo de Almeida Brandão e 
Souea, morava do pateo do Porciles, fronteiro á egreja do Soc- 
corro. Fora capellista no respectivo arruamento. Seu pae tam- 
bém fora capellista, e morreu victima do seu amor á liberdade, 
na cadeia do Limoeiro. 

2 A primeira proposta camarária para a abertura da rua No- 
va da Falma fez se em 1852. £ a proposta para a abertura do 
lanço do Desterro ao Intendente é de 1854. 



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52 Empreza da Historia de Portugal 

tona que podia pedir meças ás mais decididas, trigueira 
e mal encarada -um estafermo. As barbaças davam-lhe 
uns ares suspeitosos, porque lá diz o velho adagio : 
a picaro descalço, a homem callado e a mulher barba- 
da, não dês pousada. Mas sua filha— e aqui temos de 
corrigir novamente a lenda — era um typo agradável, 
insinuante, uma rapariga alta, bonita, clara, graciosa,bem 
feita e bem posta, com olhos peninsulares que eram 
dois abysmos negros cheios das vertigens do infinito. 
Cantava e batia o fado como um fadista. Também fu- 
mava, embora, então, as mulheres da sua laia pouco 
fumassem em publico e á porta, onde ainda se não 
usavam as meias portinh-as da actualidade. 

A Barbuda tinha por amante um homem que per- 
tencia ao batalhão da guarda-nacional chamado do João- 
sinho. A's vezes, vestia o fardamento do amante e vi- 
nha pass2iar para a rua Suja, conforme nos contou um 
contemporâneo, que ainda vive na rua do João do Ou- 
teiro e que foi visinho da Severa. 

Maria Severa habitou duas ca^as n'aquelle sitio: a loja 
da rua do Gapellão n.° 36, moderno, á esquina do becco 
do Forno, e um primeiro andar da rua da Amendoeira, 
n'um prédio que pertencia ao conde de Vimioso, e de 
que ella nunca pagou renda. Este prédio arruinou-se, 
cahiu e foi substituído por outro, cuja poria de escada 
tem o n.° 6, moderno, e, sobre ella, ainda se conservam 
os primilivos azulejos.tendo uma imagem com a legenda: 
Toda sois formosa, Maria. 1777. N'esta ultima casa, 
junto com a Severa, habitou a tarasca da Barbuda, que 
lá continuou a residir, quando a filha se mudou para 
a esquina da rua do Capellão e do becco do Forno, e 
que também nunca pagou renda ao senhorio. No mes- 
mo prédio morava a Gaga, amante de um grande ga- 
tuno, o Grão de milho. E, pormenor curioso, a Severa 
costumava jogar a peira com um rapazola que andava 
à matroca, o Saquinho, o qual apanhava sempre para 



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Historia do Fado 63 

o seu tabaco. Saquinho morreu tysico antes de fal- 
lecer a sua parceira. l 

Mas nem só na jogo da pedra se notabilisou esta 
valentona de alma de fogo e sangue vulcânico. Quando 
se estabeleceram as visitas da policia sanitária, a Se- 
vera tentou oppor-se á innovaçâo, e, armando se de 
uma acha de lenha, amotinou as suas companheiras e 
espancou os encarregados da hygienica tarefa, obrigan- 
do o medico, um marreco, a dar ás de Villa-Diogo. 

Se é certo que Maria Severa se evidenciava pela 
fanfarronia com seu travo de impudor, é, não menos 
certo, que outras collegas suas lhe seguiram o exemplo 
e deixaram nome nos annaes da pimponice da Mou- 
raria. A Maria Romana, a Piedade, a Felicidade, a Joan- 
ninha e a Umbelina cega, contemporâneas da Severa, 
foram as principaes fadislonas bairristas ; mas a ter- 
ceira era a mais bonita de todas, uma mocetona de 
boa pinta, coisa muito papa-fina. As três primeiras 
moravam nas lojas á entrada da rua do Capellão, que 
se conserva tal qual estava n'aquella época. A pri- 
meira d'e)las acabou feita contrabandista no sitio, e a 
segunda amancebou-se com o Ritto, empregado na ad- 
ministração do bairro, que legou uns poucos de prédios 
ao filho. A Umbelina cega, a mais antiga, uma desor- 
deira maior de marca, já ai li estava no tempo dos 
Francezes, quando a rua do Capellão e as betôsgas 
circumvisinhas eram outros tantos covis de ladroes, 
onde entravam os moleiros com os seus burros, des- 
apparecendo uns e outros sem haver mais nova nem 
mandado (Telles. 



1 A garotada, mais ou menos taluda, da fieguezia do Soc- 
corro tinha por vezo reunir-se em bandos no 'argo da Guia e 
no alto da calçada do Jogo da Pélla, ccmbatendo-sc mutuamen 
te á pedrada. 



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54 Empreza da Hutoria de Portugal 

A estas Damas das Camélias * baixamente cotadas 
na Bolsa dos amores fáceis seguiam-se outras raccro- 
cheuses notáveis por se esmaltarem de todas as taras 
da meretrização, por viverem na miséria pouco odorí- 
fera dos amores fadistas, e cujos nomes fulguram na 
chronica dissoluta local. Vinha em primeiro logar a 
Gertrudes preta, habitante da rua do Capelíão, a quem 
faltava um olho, que um velho lhe tirou com uma so- 
vella por ella o ter insultado. Esta preta— uma relíquia 
da velha Mouraria — passou a usar uma palia sobre o 
olho, motivo por que lhe chamavam a preta da palia, 
e morreu de edade avançada. Depois d'ella, vinham a 
Maria Justina, a Maria Madeira, a Bayonna e a Maria 
da Silva, que degolou outra por causa de upa soldado 
da guarda municipal. A ferida ainda conseguiu ir, es- 
correndo sangue, até á casa do regedor, merceeiro 
na esquina do largo do Terreirinho e da rua da 
Oliveira (hoje rua do Terreirinho). A aggressora foi 
desterrada para Castro-Marim. Eram aquellas as estrei- 
tas de primeira grandeza, que gravitavam em torno 
d'esse sol da bohemia errabunda -a Severa. A Rosa 
Capacheira (ou Felishella) e sua irmã, a Cochicha, fo- 
ram posteriores a 1850, assim como posteriores as 
três manas Can-cans, ornamentos pifios do Baile Nacio- 



1 A Dama das Camélias não é uma simples ficção litteriria 
Félicien Mallefille, que foi cônsul de França em Lisboa de 1848 
a lMy e amigo intimo de Bernardino Martins, contava que co- 
nhecera pessoalmente Maria Dupicseis — a romântica Margarida 
Gautier — e que assistira á ceia, em que, depois de um baile de 
mascaras, Armand Duval fora apiesentado á celebre sovpeuse, 
mais tarde sublimada pela sua resppitabilidade tardia de aman- 
te legendaria. E ahi iniciou então o seu roman de coeur a alta 
mundana, soberbamente rutilante como aquella Aspasia, que 
espalhava o oiro do seu sorriso sobre a pbilosophia platónica. 

O Lima da Cardiera, que foi um pandego ultra-perdulano, 
também conheceu a Dama das Camélias em Paris. 



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Historia do Fado 65 

nal, á Gaia ', flores que desbotoavam á ourela das ester- 
queiras da prostituição. 

E porque estas lorettes de bas-étage teem seu logar 
na chronica lisboeta de hontem, parece-nos não ser fo- 
ra de propósito descrever-lhes a toilette. As fadistola- 
tras usavam umas saias de grande roda, sobre o curto, 
muito engommadas e fazendo extraordinário rnge-ruge, 
saias que se pegavam a um roupão (conforme ellas o 
denominavam) abotoado adiante 2 . Para as saias, pre- 
feriam a chita côr de rosa. Usavam tamancos do Por- 
to, sapatos de entrada abaixo ou sapatos do salto 
baixo e com fitas cruzadas nas pernas. O penteado era 
em bandós, com as tranças enroladas, sobre as quaes 
espetavam um alto pente de tartaruga ordinária. Às 
mais puxadas á substancia, as mais tafulas, traziam 
capote azul e lenço de cambraia. Na quaresma, porém, 
todas indislinctamente usavam capote. Às que o não 
tinham, alugavam n'o por um caiado ou um pinto 3 . 



1 O Baile Nacional, na rua de S.* Vicente á Guia, n.° 9, 
inaugurou-se no domingo, 3 de Novembro de 1850 Os bailes 
começavam ás 9 e terminavam ás 2 horas da noite O dono do 
botequim era o Lobo Caterraite, que tinha uma filha lindissi- 
ma e uma loja de penhores e cautellas no primeiro quarteirão 
da rua do Oiro, loja chamada a Califórnia 

O Baile Nacional foi o primeiro baile lisboeta, em que se 
dansou o ccni-can. E um rapaz francez, chamado Pinaud, foi 
o mais notável dos seus cancanistas. 

* De 1837 a lfc39, as senhoras do tom usaram uns vestidos 
de passeio a que chamavam roupões. Tanto estes como os casei- 
ros (robes de chambre) confeccionavam -Be de gorgorão da Chi- 
na, de cassa de lã com desenhos árabes, de cazemira franceza 
lavrada sobre fundo azul, de seda estampada da índia, de Pa- 
pyrus-lilaz, de cassa com desenhos chinezes côr de café, áegros 
de Tours, de cachemiriana estampada, etc.A condessa de Farro- 
bo foi a primeira dama, que usou roupões caseiros de setim 
preto. 

3 No calão antigo, u*n pinto (4r0 re.) chamava -se um caia- 
do, uma moeda de doze vinténs uma cravélla de doze, uma moe- 



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ô6 Empreza da Historia de Portugal 

Indicaremos agora os principaes fadistas da rua do 
Capellão do tempo da Severa, isto é, os que repartiam 
a vida entre o fadário das baiucas, a intimidade tépi- 
da das mancebias com as marafonas e a residência tem- 
porária na cadeia ou no chelindrò. O Epiphanio Mulato 
era um rapaz de altura regular e reforçado, têzo como 
poucos - um verdasca. Mas estava se nas tintas que as 
patrulhas lhe deitassem as unhas. .. Isso é que nen- 
tes!. . . Pirava-se o um abrir e fechar de olhos. O Epi- 
phanio Mulato fabricava marcas para calças, isto é, ex- 
ercia o officio de torneiro de botões. Mais tarde, mu- 
dou se para Alfama, e ahi morreu feito descarregador 
de navios. O Justiniano, torneiro de metal, era um 
homem grosso, muito atrevido, um espirra-canivetes, e 
andava sempre de cacete em punho. Caceteava que era 
uma belleza e repontava como um refilâo. O Manuel 
Saragoça, que esteve em Africa, era um faquista de 
primeira plana. Morreu em 1847 ou 1848 com qua- 
renta e cinco annos de edade. O José Nabo, serralhei- 
ro, era um latagão, um fadista de navalha e cacete, 
um roncador com farofla. O Raphael Serralhàro e o 
Joaquim Nunes eram más rezes, dois patiloes de se 
lhes tirar o chapéo. O Grillo, criado do fuuileiro Cida- 
de, formava hombro a hombro dos mais possantes. O 
Perico, hespanhol do tempo da Severa, foi morto ás 
Portas de Santo Antão n'um domingo, em que. montado 
n'um burro, voltava da feira do Campo- Grande 1 . 



da de seis vinténs uma cravélla de seis, uma moeda de cinco 
tostões uma carinha cu uma coroa, um pataco um maluco ou um 
malaco ou um bronze, um vintém uma cheia, dez réis lépes, cin- 
co réis guines. 

1 No Bairro- Alto notavam se o fadista Pau de Ferro, citado 
por Teixeira de Vasconcellos nos Papeis Velhos^ e o João Ar- 
raya, serralheiro e filho de um sapateiro da rua do Norte, á es- 
quina da travessa do Poço. Frequentava uma tabernoria, onde 
se reuniam fadistas e bandurrilhas. Um tenente da municipal, 



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Historia do Fado 57 

No fempo da Severa, havia emulação entre os fadis- 
tas da Mouraria a os do Bairro-Alto. Varias vezes, 
amaltados, se bateram á valentona, com unhas e den- 
tes, mas os primeiros chimpavam sempre nos segun- 
dos, applicavam-lhes tundas de metter os tampos dentro! 

Posteriormente á Severa, appareceram dois fa- 
distas de alto lá com elles: o Duarte Perico, 
mariola muito turbulento, que morreu degredado por 
ser desertor de artilheria, e o Tamanqueiro, gatuno 
que jogava a encarnadinha. Um valente dos quatro 
costados era o Preto da Tia Leocadia, filho da preta 
Leocadia, e irmão da Gertrudes, assadora de cistanhas 
á porta da taberna em que hoje está o Anadia, na rua 
de S. Lazaro. Por cima d'esta taberna morava, n'esse 
tempo, o conde de Vimioso em concubinato com a ci- 
gana Joanna, irmã do cavalíeiro Bettencourt. O Preto 
da Tia Leocadia exercia a profissão de magarefe e com-' 
mandava as troupes de matulões e garotos apedrejado- 
res, que se reuniam nas terras do Monte. E, entre 1860 
e 1875, evidenciaram-se cinco fadistas na Mouraria: o 
João das gallinhas, o Piolho, o Manuel Hespanho), o Jo- 
sé do Fogo e o Chico de S. Christovão. 

Eram aquelles bandarras picões e outros quejandos, 
que dominavam discricionariamenle nas ruellas som- 
brias do bairro e que dictavam a lei n'essas sentinas 
do vicio, onde, ao contiario do que dizia Moliére, não 
podia haver de V amour sans scandale el du plaisir 
sans peur. 



que andava de ronda, entrou alli uma noite e coireu todos a 
chicote. O Arraya^ que pertencia ao numero, foi < speral-o para 
o largo de $. Roque e, arrancando a muleta a um coxo, que ahi 
estacionava habitualmente, rachou a cabeça ao guita desman- 
cha-prazeree. 



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58 Ewprezxi da Historia de Portugal 

A Mouraria já era um ponto marcado nas cartas da 
geographia amorosa em 1755, e já gozava de uma re- 
putação horripilante em epochas muito anteriores á dá 
Severa> 

No século xvm, indicavam-se os seguintes locaes 
como coiós das amoureuses pelintras: a Bilesga, Sete 
Cotovellos, Romulares, Boa Vista, rua dos Mastros, Ma- 
dragôa, beccos de Alfama, rua dos Cavalleiros o Poço 
do Borratem. 4 Depois, afamaram-se pelo mesmo moti- 
vo: O Bairro- Alto, a Cotovia e as Fontainhas 2 . 

No tempo dos Francezes, o Intendente de Policia 
Lagarde mandou sahir as meretrizes das ruas Suja, da. 
Amendoeira, da Mouraria e do Arco do Soccorro. Em 
1811, o agente de policia secreta J F. F. participava 
que na rua da Mouraria, n. 08 72 e 73, havia o café do 
António Archeiro, que tinha batota no primeiro andar 
por cima da loja, onde se jogavam jogos de parada for- 
tes, e qua lá iam entre outros, um malsim chamado 
António CMcolateiro, o cadete Martins que fera do 10, 



1 A conta que o Intendente PinaManique expediu aos Juizes 
dos Bairros em 27 de Abril de 1781, ordenava que fossem pre- 
sas as meretrizes que passeassem com escândalo publico, epro- 
hibia lhes que frequentassem as lojas de bebidas e as tabernas. 

2 Em 1795, houve umas mulheres fáceis da calçada do Car- 
mo, as Cadeireiras, que deram que falar de si. (> Pina Manique 
mandou- as prende/ por Pedro Duarte da Silva e recolher na 
Casa Pia, no castello de S. Jorge. (Bibl. Nac de Lisboa Fundo 
antigo). Similhante medida coerciva, levava o poeta lascivo An- 
tónio Lobo de Carvalho (o Lobo da Madragôa) a dizer : 

Mas n&o suecede já como algum dia, 
Qu'o Manique a mais prave a mais rascôa, 
Emquanto se não casa ou s^ apregoa, 
Vae batendo com todas na Obra- Pia. 

Bocage refere-se nas Poesias eróticas e burlescas a algumas 
bonejas do seu tempo : a Coveira, a Santareno; algnacia China 
e a Fclicia de Chaté. 



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Historia do Fado 69 

um Cabral procurador «e outros que falavam contra o 
governo e a policia» *. 

Em consequência de uma rusga em 1823, dizia outro 
agente da secreta:— «Tem-se ouvido algumas conversa- 
ções satisfatórias, relativas a umas prisões que se fize- 
ram pelo_s sítios da Mouraria, rua do Capellão, calçada 
de SanfÃnna, por suspeitos, ladrões» 2 . 

Em 1820, vivia na rua das Tendas uma tal Anna 
Rilta, desordeira insupportavel; e, em 1826, morava na 
rua da Guia uma loureira piranga, a Anna dos Santos, 
que grangeou celebridade pela sua desenvoltura nas 
baralhas. Existia o botequim do Maneta, no largo do 
Soccorro, notado valhacouto de baldeiros perigosissi- 
' mos 3 . 

Em 1820, apezar de já existir uma guarda de Policia 
na Mouraria, repeliam-se as desordens á navalha e a 
cacete — tudo por amor do Amor— entre marujos, sol- 
dados e paisanos. N'uma noite de Janeiro, esfaquearam 
um gallego perto do oratório ou nicho de Santo Antó- 
nio, defrontante á actual ermida da Guia 4 . 

As tabernas de Maria do Nascimento e de José Mon- 
teiro, na rua da Amendoeira, a da Joanna defronte do 

1 Torre do Tombo. Intendência de Policia. Papeis diversos. 
Maço 1. 

2 Idem, Mafo 11. 

3 Torre do Tombo. Intendência de Policia. Avisos e Portarias, 
Maço v 8, e Corresp. dos ministros dos bairros, Castello, Maço 50 . 

4 Encontravam se mais oratórios por aquclles sities e visi- 
nhanças Na rua do João do Outeiro havia o do Senhor Jesus 
do Bomfim, no principio da Costa do Castello o de N. Senhora 
da Piedade, na travessa do Forno, aos Anjos, o da Senhora do 
Resgate, e no becco dos Captivos armava, annualmente, um ora- 
tório a Irmandade da Salvação e Piz. (Intendência, Livro de 
lançar os requerimentos das partes. L. 269-353). Na rua dos Ca- 
v aliei r os havia um nicho com imagem, demolido em 1836, e no 
prédio que torneja da rua do Bemformoso para a rua da Olivei- 
ra (hoje do TerreirinhoJ estava o oratório ou Passo do Bemfor- 
moio. ^ Visconde de Castilho. Lisboa Antiga, vol.lll, pag.54 ) 



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60 Empreza da Hhtoria de Portugal 

Coileginho, a do Mendes Coirtinlunno largo do Terrei- 
rinho, e a do Migueis no largo da Mouraria, eram ou- 
tros tantos centros notórios para reunião de galdenas, 
de sujeitos sem cilicio nem beneficio e de patuscos de 
profissão vaga ou intermittente. E a tasca da Rilla, na 
rua da Amendoeira, era «coito de ladroes e malfeitores», 
assim como a dona «era um vivo demónio», na opinião 
da policia. { Uma cantharidada rua do Capellão, a Rosa 
Maria, linha um amasio, soldado artilheiro, que se es- 
condia n'uma alcova do prostíbulo sórdido d'aquella me- 
gera, para atacar e roubar os pataus, que ousavam 
aventurar se alli. De resto, este processo era muito se- 
guido pelos que viviam á custa da barba longa, pelos 
que parasitavam systematicamente— os souteneurs. Uma 
alcouceira dá rua da Guia, a impudente Garapa, zim- 
brava forle nos mais valentes; incjuiudo o seu mance- 
bo, o Cutrêlhas. 

Rivalisava com a Joanna Meia-Jòslóa e a Bem fica da 
rua da Triste Feia, em Alcântara, local onde abunda- 
va a frandulage 2 . E, nótula frisante, algumas pôlhas 
da Mouraria manifestavam- se constitucionaes. Assim, 
duas do Paço do Bemformoso foram presas por esta- 
rem á janella a trautear o hymno constitucional. 3 

Transcorridos dois annos, em 1832, os banzés e as 
discórdias na rua da Amendoeira subiram de ponto. 
Nio se passava um só dia, que não se servisse aquelle 
prato substancial aos amadores do género. O Corre- 
gedor do bairro do Casteilo, Mello e Vasconcellos, 
ofliciava então ao Intendente nos termos seguintes : — 
« Esta maldita rua da Amendoeira devia ser arrazada 
por ser o theatro de quatro ou cinco mortes só no 



1 Correspondências, etc. Maços 53 e ôã. 

2 Correspondências, etc. Santa Izabel, Maço y3. 

3 Idem, Mouraria^ Maço 106. 



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Historia do Fado 61 

meu tompo, de muitos ferimentos e desordens só nos 
meus dias, por mais severas providencias que eu dê 
para buscar evitai as » No anno immediaio, o Correge- 
dor mandou rondar melhor, pelos rondistas ou cabos 
de vigia, a rua da Amendoeira, mas com resultado 
quasi nu lio 4 . Todavia, as rondas dos chuços devhm 
fazer-se assiduamente, porque appareciam arroladas 
umas oitocentas pessoas destinadas a este serviço no 
bairro da Mouraria. Os diversos commissarios de po- 
licia participavam á Intendência os reconhecimentos 
nocturnos que praticavam, para. o que faziam pa- 
rar as seges e os transeuntes. Certa noite, diziam ha- 
ver reconhecido o conde de Mesquitella, o official do 
gabinete do conde de Basto e o juiz de Ajuda e Mina. 
N'outra noite, reconheceram a condessa de Basto, que 
ia na sua carruagem a quatro, a qual ordenou aos 
seus creados que parassem, e aproveitara o ensejo 
para louvar muito a policia do bairro; mas que, pouco 
depois, um cavalleiro vestido á militar, com sobre- 
casaca, banda e chapéo armado, não quizera parar, 
nem quando se lhe intimou da parle de Sua Magesta- 
de, reconhecendo-se, afinal, que era o major Barrun- 
cho da terceira brigada. N'outra noite ainda, fizeram 
parar a sege do ministro da Justiça, que reconhece- 
ram 2 . 

Amores passageiros, caprichos dos sentidos, syrnpa- 
thias muitas vezes sujeitas a caução, tudo isso derra- 
mava philtros devoradores nas veias, punha os cére- 
bros em ebullição, incendiava a carne dos rufiões do 
tempo, da mesma forma que, rodados annos, havia de 

1 Corre8pondmcía8 t etc. Maço 59. 
1 Correspondências etc. Mouraria. Maço 110* 
Foram as nvdidus policiaes empregadas pelo regedor Braga, 
que, depois de 1850. principiaram o saneamento moral do bair- 
ro da Mouraria. Entre elias, contou -se o estabelecimento de uma 
casa da guarda de cabos de policia no largo do Soccorro. 



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62 Empreza da Historia de Portugal 

perturbar os sonhos bacchicos dos fadistas, sonhos em 
que a imagem da Severa passaria como o phantasma 
do Desejo, irritante e fugaz. E a narrativa anecdotica, 
a historia em migalhas, os detalhes precisos sobre os 
bastidores da vida da Mouraria, podiam fornecer mui- 
tos dramas e muitas tragedias á litteratura theatral, 
podiam dar muitos capítulos á penna voltivola dos ro- 
mancistas, podiam subministrar muitas peripécias ty- 
picas aos myopes da analyse. * 

Mas retomemos á Severa, de que já vamos bastan- 
te affastados. Antes da Severa encetar os lendários 
amores com o conde de Vimioso, tivera outros com 
um rapaz do sitio da Mouraria, o Chico do 10, assim 
alcunhado por ter pertencido ao regimento de infante- 
ria 10. A Severa, porém, cambiou os amores d'este 
barregueiro pelos de outro. Ut unda pérfida! E o Chi- 
co do 10 sentiu atear- se a chamma do ciúme no seu pei- 
to escandecido pela paixão, revoltou-se contra a ban- 
carrota do seu ideal e a decadência do seu sonho, e 
jurou vendetta. A consequência foi ir, certa madrugada, 
esperar o rival á rua do Capellão e assassinai o ás na- 
valhadas, correndo, em seguida, a lavar o instrumento do 
crime na bica do chafariz do Soccorro. E, no seu espi- 
rito allucinado, levantar se hia a figura da Severa, 
como uma estatua dolorosa em face do pallido trium- 
pho da aurora, que derramava ternuras envolventes!... 
O Chico do 10 foi expiar a culpa nas costas de Africa, 
e lá morreu ; e o acto criminoso apagou-se na névoa 
do Passado, e, bem depressa, se reduziu a uma lon- 
giqua recordação na memoria local. 

1 O sr. visconde de Castilho escrevia em 1884 acerca da 
Mouraria: a Briga e canta; risca, atira o punhal e empunha a 
bania truanesca. Brigões e cantadeiros estão alli na sua casa.» 
{Lisboa Antiga, vol. III, pag. 51). Isto já se não podia escrever 
actualmente, porque a Mouraria é hoje, apenas, uma expressão 
geographica. A Mouraria zaragateira passou á historia. 



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Historia do Fado 63 

A Severa conheceu, immediatamente ao crime, o 
conde de Vimioso, que a buscou, attrahido-como um 
iman— pela fama que ella disfructava de tratar por tu 
as musas fáceis, de ter um palavreado de muito pico 
e de cantar, inegualavelmente, ao som namorado da 
soluçante guitarra. Foi o amor pelas guitarradas e pelo 
doce canto -em que se bordam os themas ascendentes 
do Desejo—, que levou o conde de Vimioso a procurar 
a Severa, porque elle não tocava, não cantava e nao 
tinha o minimo gosto para a musica. * A Severa can- 
tava e batia o fado na taberna da Rosaria dos óculos, 
que irava no topo da rua do Capellão, na chamada 
casa de pedra. A Rosaria -uma quarentona frescalhota 
e pandega— usava óculos e tocava banza rasoavelmen- 
te. No largo (a que popularmente chamavam o alto da 
Caganita), defronte do becco dos Três Engenhos, ha- 
via outra bodega de outra Joanna, amistada com o fu- 
nileiro Cidade. 

O conde de Vimioso vinha, muitas vezes, buscar a 
Severa de sege. Frequentemente o acompanhava o Sou- 
za do Casacão — então sargento de sapadores-, que 
tinha uma voz maviosa, improvisava com facilidade, 
tocava eximiamente guitarra e era auctor dos versos 
que aquella concerteuse fadista cantava, assim como 
passa por pae, não sabemos se putativo, do jado da 
Severa. Elles apeavam-se á entrada da rua do Capel- 
lão, e iam procurai a a sua casa ou á taberna da Ro- 



1 O marquez de Valença, pae do conde de Vimioso, era um 
pianista notabilissimo. A duqueza de Abrantes, mulher do ge- 
neral Junot, descreve o asBim : «O marquez de Valença, cujo 
nascimento é tâo illustre como o do conde de Sabugal, era um 
homem agradável por seu espirito e seu encanto, e muito no- 
tável talento de pianista. Eia novo também, mas muito feio.» 
fSouvenirs d'vne ambassade en Espagne et en Portugal, vol II, pag. 
254). 



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64 Empreza da Historia de Portugal 

saria dos ocxdos Aqui, na atmosphera pesada de calor, 
opaca de fumo, vibiante de risos, Maria Severa aparava 
nos rijos fados batidos ou cantava com subtil virtuo- 
sismo, com voz lenta e molle como uma caricia exte- 
nuada, com o perfeitíssimo chie grulha da fadistice, 
emquanto o fado expirava na gloria morrenle dos ac- 
cordes arrastados, os effluvios da embriaguez andavam 
no ar, os corações tremiam n'um sopro de alegria e os 
ouvintes sentiam como que um inceudio a percorrel-os 
dos calcanhares á nuca. Aqui, também a Severa pa- 
gava habitualmente o vinho — bebida que apreciava 
sobremaneira -a todos que quizessem emborcar o seu 
copázio vermelhante com o sangue real da vinha, e 
convivia com os fadistas pela promiscuidade do cigarro 
e do meio quartilho. 

De vez em quando, a Severa levantava vôo e desap- 
parecia da rua do Capellão. E' que o conde de Vimioso 
a obrigara a retirar- se temporariamente da circulação. 
E eslas fugas estavam para as maravilhosas aventuras 
romanescas das Lélias e das Indianas como as rimas 
de Scarron estavam para as rimas de Virgílio. . . 

Durante um dos taes eclipses, o conde de Vimioso 
levou-a para uma casa da rua da Bemposta, casa que 
foi demolida a fim deseacerescentar a Escola do Exerci- 
to, e que pegava com a que hoje tem o numero 21. Mo- 
rava na ultima jantlla, correspondente á actual, do lado 
do Sul. N'este tempo, a Severa apresentava-sede capote 
azul — a grande moda — e vistoso lenço de seda na 
cabeça. No sitio, muitos lhe arrastaram a aza, mas em 
vão, porque se manteve fiel ao conde de Vimioso. 
Quando estava aborrecida do fidalgo, tornava para a 
Mouraria. 

O aristocrata não leve um simples capricho epidér- 
mico por essa franduna salaz, por esse ouropel fanado 



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CONDE DE ANADIA 
(Grande amador de fado) 



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* * % *" " * " 



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Historia do Fado 67 

que se atirava para os bastidores depois do espectá- 
culo. Gostou deveras dos seus beijos, que se desfiavam 
em collar e que eram como que um preludio de gui- 
tarra para os accordes ferozes dos abraços. Afinal de 
contas, o amor tem selecções, que nem o próprio Bour- 
get— o primeiro plumitivo galante que poz um espar- 
tilho de setim no psyehologismo— lograria explicar. . 
O conde de Vimioso levou a Severa á toirada, que 
o marquez de Niza offereceu na sua quinta da Foz, em 
Salvaterra, pelo S. João de 1845. Foram lidadores 
u'essa toirada : o conde de Vimioso, D. João de Mene- 
zes, o Cazuza, Luiz Roquette (depois barão de Salva- 
terra), José Horta, morgado Cabral, Lui'25 Pereira Fpr- 
jaz (famoso pegador e inventor da pega de cernellia)^ 
Francisco Zagallo, o Salles Patuscão e Marciano de 
Azevedo (depois redactor do Asmodeu). O conde de Vi- 
mioso e a Severa metteram-se n'um fosso da quinta e 
abi estiveram toda a noite cantando o fado, o que obri- 
gou muitos convidados a não pregarem olho só para 
os ouvir. N'esta corrida de toiros, o conde de Vimioso 
empregou a velha arma do rojão e quebrou sete ro- 
jões. Certo titular já fallecido, e que concorreu, não 
pouco, com as suas invencionices atabalhoadas para 
adensar a lenda que envolve a Severa, dizia que ella 
presenteara então o conde de Vimioso com. . . uma co- 
roa de alhos. Mas esta anecdota é apocrypha como apo- 
crypho é quasi tudo o que elle contava da Snvera, que 
apenas conhecera por tradição. 

conde de Vimioso chegou a metter a Severa no 
palácio do Campo-Grande, onde cantou o fado, * acom- 

1 Entre as quadras attribuidas ao estro da Severa, havia as 
seguintes: 

A Chicória do Sarmento, 
Que bate o fado tão bem, 
Quando «toureia» o Sedvem, 
Chora de contentamento. 



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68 Empreza da Historia de Portugal 

panhada á banza pelo Roberto Gamello e perante esco- 
lhida concorrência de ouvintes, entre os quaes se en- 
contravam: Augusto Talone, Frederico Ferreira, Antó- 
nio de Serpa Pimentel, João Blanco, Miguel Queriol, 
D. Antónia Galveias, Roberto Payant, o Cazuza e o Fi- 
dié l . Roberto Camello era um procurador, que mora- 
va em Palhavã e que tocava guitarra excelentemente. 

Maria Severa morreu, segundo papagueia a lenda, 
de uma indigestão de borrachos regados de boa pinga. 
Mais uma Tez, porém, somos forçados a rectificar a 
lenda. A Severa adoeceu na sua casa da rua do Capei- 
Ião, á esquina do becco do Forno, e foi conduzida ao 
hospital, onde se finou na enxerga de uma enfermaria 
especialista. 

E essa comborça miserável, que, como os deuses 
e os conquistadores, teve os seus holocaustos, acabou 
no hospital, porque o hospital é a face sombria cTesse 
outro Jano, que se chama - a prostituição ! Ao tempo, 
já o conde de Vimioso pozera termo aos seus amores 
com essa mulher, em que a graça fadista se alliava 
á energia farfante como a sombra se mistura á luz 
n'uma bella paizagem. E averiguámos que, em 1850, 
já Maria Severa mergulhara nos abysmos fuliginosos 
da morte, depois de ter conquistado os loiros enlamea- 

0' D. José cavalleiro, 
Toma sentido na bolla ! 
Pode fazer -te em patola 
Qualquer fino boi matreiro ! 

P'ra mim, o supiemo gozo 
E' bater o fado liró, 
£ vêr combater c'um boi só 
O conde do Vimioso. 

1 Becordaçõe* da mocidade. Artigo do O Popular de 7 do 
Abril de 1901. 



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Historia do Fado 69 

dos das bacchanaes pandilhas e de se ter nimbado com 
a aureola da legenda bordeleira. Se a doirada lyra de 
Lamarline cantou Graziella - uma cigarreira napolitana 
e o primeiro dos seus amores litterarios, se o plectro 
de Musset glorificou Marion— o gracioso Jyrio estiolan- 
dose ao sopro brutal da luxuria, se Baudelaire poeti- 
sou Jeanne Duval — a fementida mulata, sjd a imagina- 
ção de Alexandre Dumas. Filho, romantisòu Margarida 
Gautier— a resplandecente prostituta, se a imaginativa 
de Zola sublimou em Nana o vicio triumpbante de Blan- 
che d'Antigny— a imperial cortezã, a phantasia popu- 
lar teceu uma lenda posthuma da Severa— a zoina la- 
trinaria da Mouraria. E a poesia fadista continua a vo- 
litar, como fogos fátuos, como pliosphorescencias no- 
cturnas, em torno dos amores da Severa e do Vimioso, 
enterrados ba tão dilatado trech ). . . 

Por morte da Severa, sua mãe, a Barbuda- que en- 
tão devia ter uns 56 ou 58 annos - abandonou a casa 
da rua da Amendoeira;, que passou a ser occupada por 
uma amiga da Severa, a Maria Tanoeira, e foi morar 
para o pateo do Carrasco, ao Limoeiro, onde esteve 
alguns annos, vivendo de fazer recados aos presos, até 
que, um bello dia, desappareceu. Os gaiatos do sitio 
apepinavam-n'a como a um typo digno de surriada, um 
petisco, e chamav?m«lhe a Barbuda. 

Uma contemporânea da Severa, celebre no marlyro- 
logio do Bairro-Alto, foi a Scarnichia (vulgarmente Es* 
carniche). D. Carlota Scarnichia pertencia a uma famí- 
lia illuslre e tivera uma educação primorosa ; mas a 
virgo intacta, victima das imaginações do seu coração, 
mundifieou-se e entregou se á brutalidade anonyma dos 
transeuntes. Assentou praça entre as mundanas de rez- 
do-chão, entre as Vénus ambulantes, converteu-se n'um 
objecto que se alugava, por tuta e meia, á hora e á cor- 



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70 Ettpreza da Historia de Portugal 

rida. A família, sciente da desgraça, chegou a bolar um 
annuncio no O Grátis, em que dizia: — «Tendo appa- 
recido em Lisboa uon rapariga com o appellido de 
Searniehia, declara-se quo não pertence a similhanle 
família, nem mesmo o dito appellido é o seu» 4 . A 
Searniehia tocava piano e guitarra, e cantava esplen- 
didamente o fado. Acabou pobríssima no Cunhal das 
Bollas, á porta de rua, ella que 

Nascera n'um berço (Toiro 
E não teve uma mortalha, 

consoante cantarola, a seu respeito, uma personagem de 
um romance de Gamillo Castello Branco. * 

Anteriormente á época da Searniehia e da Severa, 
entre 1830 e 1840, brilharam de tous leurs feux duas 
estreitas da bohernia doirada : a Antónia e a Anna Emí- 
lia Gaioso, filhas, não de um brigadeiro como affirma- 
vam alguns, mas do Gaioso, professor de musica. A 
Antónia morava na rua Nova do Carmo, defronte da 
actual loja do Margotteau, e teve dois renitentes apai- 
xonados: um Pinto, janota muito rico, que tinha cavai- 
los seus, e o José Ramonda, segundo buxo de S. Car- 
los. Morreu desgraçada, a pedir esmo! la por debaixo 
das arcadas das secretarias no Terreiro do Paço. A An- 
na Emitia Gaioso morava na rua Nova do Almada, por 
cima da loja do conteiro Batalha Era uma linda es- 
tampa de mulher, mais formosa ainda que a irmã. Te- 
ve por amant de coeur a José Carlos Guimarães, filho 
de um rico negociante de trigos. 

Na mesma época, brilharam a Chicória e a Joaquina 
dos Cordões— duas proxenetas de meretrícia memoria. 

1 O Grátis de 16 de Outubro de 1847. 

2 EtiMtbto Macário, pag. 51. 



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Historia do Fado . 71 

A Chicória foi citada nos jornaes. Assim, o Chqveco Li- 
beral de íC de Seiembro de 1829 dizia, referindo se 
ao Padre José Agostinho de Macedo:- «Embirrou que 
quer pôr no béque (da nau Duque de Cadaval) a carranca 
da Chicória, em honra do Senhor Infante, e vá lá tirar- 
Ihe isso dõs cascos». A Chicória tinha por amante ó 
Sarmento, sargento de lanceiros que viera com D. Pe- 
dro IV. A Joa juina dos Cordões era uma mulher baixa 
e gorda- uma pantufa. 

Não nos faremos cargo de esmiuçar agora a historia 
picara das filies de marbre. das aranhas do amor mais 
conhecidas n'aquelle tempo e das suas immediatas su- 
bstituías na fama prostibular, porque leríamos de des- 
cer até IMJO, islo é, até ao tem| o da Torre de Mala- 
koff e do Palais Royal (na calçada de S. Francisco), da 
Maria da Conceição, vulgo Conceição Capeílisla (na rua 
do Crucifixo), da Amália Bexigosa (no Arco do Bandei- 
ra), da Belga, da Maria da Penha- uma alcaiota de tom 
— , da Maria José do Galvão — uma fadislila que se vestia 
de homem e ia ás esperas de toiros , e da Traviata — 
uma castelhana bonita e frágil como todos os phantas- 
mas das íllusões romanescas, uma jóia cinzelada pelas 
mãos das Graças, uma crealura luminosamente bella 
que se abarregou com obrazileiro Cavalcanti e morreu 
cocolle em Paris. 

A suecedanea da Severa, como locatária do coração 
do conde de Vimioso, é que foi uma cigana lídima, a 
Joanna, irmã do cavalleiro tauromachico Diogo Henri- 
que Bettencourt *. moradora no primeiro andar da casa 
da rua de S. Lazaro, onde htje está a taberna do Ana- 



1 Na trovpc de companheiro3 de Diogo Henrique Betten- 
court, coiitavam-8*» o Sousa do Casacâo o sapateiro Ramos, 
amante da Conceição CapeUMa, o valentão Silveira da pêra, o 
Marreco do café Freitas e o Frederico de Cavallaria. 



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72 Empreza da Historia de Portugal 

dia. A immediata inquilina da mesma víscera aristocrá- 
tica foi a Maria José Trigueirinlia (que morava á es- 
quina da T: avessa das Salgadeiras, perto do largo do 
Mastro), uma crente nos sortilégios da bruxa Gertru- 
des Guedelha, a pylhoniza que adivinhava os mais 
complexos enigmas da vida. Por seu turno, o compa- 
nheiro de mocidade do Vimioso, o Sonsa do Casacão, 
amistou se com a D. Maria do Sousa, proxeneta co- 
nhecida. A irmã do cavalleiro Bettencourt locava gui- 
tarra soffrivelmente, o que aprendera com sua mãe, 
guitarrista correctíssima. Ainda hoje vive em Évora. 

O conde de Vimioso, não obstante conviver, por na- 
tural inclinação, com gente de baixa estofa, com ciga- 
nos e alquiles, manteve sempre a impeccavel linha do 
gentil-homem, o inquebrantável aprumo do fidalgote 
lha rocha. As chalaça>, as puras larachas portuguezas, 
irrompiam-lhe continuamente dos labins, até mesmo 
quando estava na sua cavallariça do Arco do Bandeira 
conversando com chalantes: o José Christo, o António 
Christo, o Russo Capinha, o Figueiredo das botas, o 
António H 'Spanhol, o José da Levaillant 4 . E a e.»ta fei- 
ção capitalissima do sen espirito devia elle o ser feste- 
jado pelas damas nas salas com a mesma sympalhia 
com que as trincheiras o applaiidiam, ao vêl-o caraco- 
lar impávido na arena cheia de poeira e de sol— essas 
duas coisas de que é feita a gloria. Porque elle immor- 
tatisou se como um cavalleiro emérito, toíreando nas 



1 Conde de Vimioso teve uma cocheira oa cavallariça no ter* 
ceiro quarreirâo do Arco do Bandeira, lado do Norte Entre as 
ca allariças destinadas ao alnguer de ca vai los, contavam se es- 
tas: do José Gallego„no Bairro- Alto, do José Amador, do Luiz 
Velhinho, na Praça, do José Bairto-Alto, do José Snpateiro, ao 
Poço do Borratem, do António Santareno, do António Hespa* 
nhol, ao Atco do Bandeira, do Manuel Hespanhoi e do Mouris • 
ca, pae. 



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Historia do Fado 7à 

loiradas de fidalgos na praça do Campo de SanfAnna, 
ao lado do grande picador Joaquim António Victo Mo- 
reira, de D. João de Menezes e do Cazuza *, loiradas 
em que serviram de netos o Roberto Camello e D. Jo- 
sé Maria de Mendonça, filho natural do primeiro mar- 
quez de Loulé, antigo camarista de D. João VI 2 e of 
íkia! de lanceiros, um doidivanas que casou com uma 
morgadiía de Bragança e morreu alcoólico. 

Vem a pêlo narrar um caso suecedido n'uma loira- 
rada, em que tomou parte o conde de Vimioso, e me- 
diante o qual se prova que a infanla D. Anna de Je- 
sus Maria nem á mão de Deus Padre aturava os Se- 
tembristas. Em 4 de Julho de 1853, deu se uma cor- 
rida de toiros n'um paleo da Porcalhota, a fim de 
commemorar o anniversario do regresso de D. João 
VI a Portugal. Toirearam os condes de Vimioso e da 
Atalaya, o Cazuza e os filhos do conde-barão de Alvi- 
to. Os promotores da corrida convidaram a infanta D. 
Anna para presidir, convite que acceitou, com a cón- 



1 D. José de Almeida Mello e Castro, o Cazuza, era filho na- 
tural do conde das Galveias e nascera no Brasil, de onde lhe 
veio a alcunha. Foi cavai lei ro tau roma<* nico e o mais hábil ban- 
darilheiro- amador do seu tempo. Fizeram -n'o alferes em 1851, 
pela Regeneração, e morreu em Fevereiro de 1855, victima do 
alcoolismo. Posteriormente, houve um cavalleiro notabillis • 
aimo, mas q» e nunca toireou, o Tormenta. Subia a cavai lo, até 
a sua morada. n'um quarto andar do Arco do Bandeira, e va- 
rias vezes galgou, da mesma forma, as escadas do chafariz 
da Alegria. Uma mite, á sahida do tbeatro da Trindade, mon- 
tou a cavallo, pondo o pé direito no estribo, passando a perna 
esquerda por orna da cm beça do bucephaío e ficando com a 
frente voltada para a eaud , e assim trotou para casa. 

2 D. Nuno Jobé Severo de Mendonça (conde de Vai de Reis) 
e D. Joté Maria de Mendonça, foram nomeados camaristas da 
Real Pessoa por D João VI, logo depois do assassínio do mar- 
ques de Loulé, cm Salvaterra, na noite de 28 para 29 de Feve- 
reiro de 1824, e como demonstração do profundo desgosto que 
ao soberano causara tão bárbaro crime. 



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74 Empreza da Historia de Portugal 

dição inquebrantável de não darem bilhete de entrada 
a SanfAnua e Vasconcellos, patulea ferrenho. Mas 
João Berquó (Cantagallo), encarregado da distribuição 
dos bilhetes, esqueceu se da clausula imposta e entre- 
gou um ao Saut'Anna. Na tarde da corrida, a infanta, 
mal \íu este nós palanques, reincidiu na pequice e de- 
clarou categoricamente que se retirava, se elle não fos- 
se obrigado a sahir. D António de Menezes dirigiu-se 
então a SanfAnna e Vasconcellos e pediu lhe amiga- 
velmente para que se retirasse, ao que este anuiria 
por honra da firma. No dia immedialo, porém. Sant' 
Anua e Vasconcellos mandou desafiar o filho primo- 
génito da iufanta, D. Pedro Lou ( é, actual duque de- 
Loulé. Eram testemunhas do primeiro D. Carlos Mas- 
carenhas e Augusto Archer, e <lo segundo D. João de 
Menezes $ Pedro Jacome Correia. Depois de vários in- 
cidentes, que nos é vedado referir, o duello abortou. 

Nem só como toireador se distinguiu o conde de 
Vimioso. Outra feição typica do seu caracter eminen- 
temente sportista fui o amor pela cynegetica. Era uma 
espingarda da mais fina mira de pontaria. O conde de 
Vimioso ia muilo ás caçadas com o Sampaio, filho do 
visconde do Cartaxo, nas propriedades que este pos- 
suía na localidade de onde lhe proveiu o titulo. Con- 
ta se que n'uina caçada aos porcos bravos, que o con- 
de de Vimioso organizou em Otta, e na qual tomou 
parte o conde de Farrobo, succedera o caso de estar 
o conde de Vimioso a unia porta com a sua espingar- 
da de dois canos e bayuneta apontada, quando um 
porco avançou com tal ímpeto, que ficou espetado na 
arma. mas, ct»m a violência do choque, atirou com o 
caçador para uma mouta de espinhos, d<5 onde fui ti- 
rado em estado lastimoso, sendo necessário passar um 
bom bocado de tempo a arrancar-lhe espinhos do 
corpo com um alfinete A's vezes, o Vimioso abalava 



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Historia do Fado 75 

repentinamente de Lisboa para as caçadas no Alem te* 
tejo. Pois a maledicência, qiie é o prologo da calum- 
nia, chegava a propalar que tinha uma quadrilha de 
ladrões, que elle capitaneava em pesfcoa!... 

Endossam se mil partidas á invehtiva do conde de 
Vimioso — como alborcador de gado— ,as qnaes fa- 
riam desopiler la rate ao mais hypocondriaço, mas 
de que apenas referiremos esta, cuja veracidade não 
podemos de maneira alguma afliançar. Conta se que, 
possuindo oPatriarcha quatro mulas já cançadas, de que 
se queria desfazer, mandara chamar o conde de Vi- 
mioso para que este lVas comprasse ou lh'as trocasse. 
O conde viu as mulas e prometteu arranjar outras em 
escambo, para ã que solicitava o prazo de um mez. 
Tratou logo de peitar o cocheiro a fim de não desço 
brir a malhoada, e, um bello dia, apresentou se com 
as mulinhas ao Patriarclia, que, das janellas do Paço 
Patriarchal, as viu trotar atrelladas ao coche, todas 
losquiadinhas e catitas. Satisfeito com a apparenria 
das mulas, combinou preço e fechou o negocio. Mas 
o moço da cavallariça, um gallego finório, desconfiou 
que eram as mesmas e di<se: Baia, que ellas xon as 
mesmas ! Ao que o cocheiro atalhou immediatamrnte 
que não eram tal, como se lhes conhecia pelos dentes. 
Passados dias, o Patriarcha sahiu no coche, mas, qual 
não foi o seu espanto, quando reparou que as mulas 
só a muito custo puchavam o chorrião, como aconte- 
cia com as suas predecessoras. Mandou recolher im- 
mediatamente a carripâna e foi então que se descobriu 
que o conde de Vimioso fizera a toilette das mulas 
para a apresentação a Sua Eminência, mandando as 
tosquiar e fazendo-Ihes serrar os dentes, o que lhes 
dera aapparencia de serem outras. Cuwpre-nos, toda- 
via, declarar, que não damos credito a esta anecdota e 
a outras do mesmo jaez attribuidas ao conde de Vi* 



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76 Empreza da Historia de Portuga l 

mioso, e a que a loquacidade phantasista dos invencio- 
neiros desabusados deu curso. 

O conde de Vimioso não se limitou a ser um pan- 
dego, porque foi também um combatente intrépido e 
audaz» militando no exercito liberal, em 1833, na qua- 
lidade de aspirante de lanceiros. Dispunha de tanta 
força muscular, que, certa vez. durante a lucta com' os 
miguelistas nas linhas de Lisboa e na presença de D. 
Pedro IV, metteu hombros e arrombou um portão 
de ferro, que impedia o passo ás tropas liberaes, pres- 
tes a occupar uma posição estratégica. Conta se mais 
outra façanha sua. Quando, n'uma tarde, o phaeton de 
D. Pedro de Sousa Coutinho (Linhares), puxado por 
duas vigorosas hacanéas hanoverianas, transpunha o 
portão do palácio Galveias, ao Campo-Pequeno, o con- 
de de Vimioso botou a mio direita ao eixo trazeiro do 
carrinho e a esquerda aos varões de ferro do portão, 
e, embora o auiomedonte fustigasse, a bom fustigar, a 
parelha, o carrinho não adeautou um ápice além do 
feitio em que o Vimioso o detivera com o seu braço 
hercúleo l . 

Aquella propensão mórbida, que o conde de Vimioso 
amplamente manifestou pelo mulherio da plebe, não 
constitue um caso esporádico na etiologia amorosa dos 
aristocratas nacionaes. No século xvm, também ap- 
pareceram dois fidalgotes polhástros, que deram lustre 
á chronica da panria e do amor livre com as rien du 
tout : o conde do Prado e um sobrinho do conde de 
Lippe. A este ultimo, dedicaram as quatro decimas se- 
guintes, salyrisando um baile de mocas enxovalhadas, 
que ambos haviam honrado com a sua presença; 



1 O Popular de 7 de Abril de 1901. 



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Historia do Fado 77 



Este do Lippe parente 
Causa-me riso, senhores, 
Não sabe entender de cores, 
Fez eleição tolamente. 
Aquelle lixo da gente, 
Já sabem, as palmilhadeiras, 
D'ehe são hoje as primeiras, 
£ não é só o empenhado, 
Também o conde do Prado 
. Festeja enxovalhadèiras. 

NSo deixa de ser cegueira 
Tão errada opinião, 
Faltam moças de feição 
Para a sua maganeira. 
Pois o conde Vidigueira, 
Que tir t ou de apaixonado, 
Ficou tão enxovalhado, 
Que. cá na minha intenção, 
Perdeu a estimação 
£ só merece açoitado. 

Também os mais convidados, 
Que ao baile não faltaram, 
£ depois se desculparam 
Dizendo foram enganados, 
Ficam, porém, enxovalhados 
Claramente, e não fio 
Do Marquez de Lavradio, 
Que é maganão disfarçado, 
Mas do ser enxovalhado 
Não lhe gabo o desfastio. 

Ora para tudo ha gente, 
A funcção foi celebrada, 
Sobre meza Pêra Parda, 
Mestre-sala o S. Vicente ; 
D. Joaquim muito contente, 
D. Diogo e D. João, 
Nada gabo a feição 
Que tiveram os assistentes, 
Bem hajam os mais prudentes, 
Que não foram a tal funcção. 1 

1 Bibliotheca Nacional de Lu boa. Afanuscriptoê da secção 
XIII, Ns 8:216. 



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78 Emprsza da Historia de Portugal 

A cem anãos de distancia nm do outro, o conde de 
Vimioso e o conde do Prado manifestam idêntico pen- 
dor atávico. E, no nosso tempo ainda encontrámos um 
typo que tem mais de um ponto de contacto com aquel- 
les fidalgos — o marquez de Angeja, um aristocrata 
puro sangue azul, que não desdenhava apresentar- se, 
em plena rua, de barrete, jaleca de pelle, calças debom- 
basina e alforge ás costas. 



N'este manuscripto ha uma decima anonyma dirigida a di 
versas personalidades da epocha. 

Voluntária ao Voluntário 
A Ratinha se apegou, 
Dircea aos esses tornou 
Do seu antigo fadário. 
A Sal ma ao Secretario 
Deixa pelo Picador, 
D. Jzabel, seu amor, 
Muda do Papinha ao Papa, 
D. Ritta os olhos tapa, 
Villano? a faz furor. 



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■-K&' 



As phases do fado. — Terminologia do fado — A guitarra. —A 
voz para cantar o fado. — Os verãos do fado. — Os fados an- 
tigos. — Motes antigos para o fado. 



O fado apresenta duas phases completamente dis- 
tinctas: a primeira, a phase popular e espontânea, em 
que o fado é executado nas baiucas onde os fadistas 
derramam o vinagre das suas vozes, nas viellas onde 
fluctua o perfume lethargico da tragedia, e nas casas 
de hospitalidade fácil onde os viageiros e os fervoro- 
sos das Vénus fraldiqueiras acham, aquelles, um abri- 
go, e, estes, um altar; a segunda, a phase aristocrá- 
tica e lilteraria, em que o fado é executado nas salas 
e nas praias da moda. Podengos fixar o fim da primei- 
ra e o começo da segunda entre 186^ e 1869. E n'esta 
ultima phase, emquanto a guitarra sobe das espelun- 
cas aos salões, vemos o piano descer dos salões aos 
botequins safardanas. No emtanto, que differença en- 
tre um e outro instrumento!. . . Na família dos instru- 
mentos, o piano é a cortezã amimada, que se estadeia 
tolamente nos logares de prazer; a guitarra é a sua 
irmã volitante, sentimental, Jraquinas, com candongui- 



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80 Empreza da Historia de Portugal 

ces inflammatorias de carioca, ama estouvada perdi* 
da pelo seu amor ás serenatas, ás romanzas e mofado* 
Ó ironia e iuclemencia do destino!. . . 

Os cantadores de fado lêem uma terminologia pri- 
vativa da sua arte Chamam canto a atirar ao canto 
ao desafio ou á desgarrada; chamam canto sagrado, 
canto ao Divino, ou canto á Escriptura* quando o can- 
to se refere a assumptos religiosos ou a assumptos da 
Escriptura; e chamam ao cauto do fado em geral — a 
cantadoria. Ter obra significa ter produrções originaes, 
ser author de versos do fado, e também significa ter 
cantigas para cantar; e ter muita livraria é dispor de 
uma grande reserva de cantigas, suas ou de outrem. 

Os methodos de guitarra preceituam no que respei- 
ta á attitude do corpo e á posição que o instrumento 
deve tomar, quando se toca. O corpo deve estar firme 
e airoso; depois, o tocador pega na guitarra, c o! loca- a 
com o brçço para o lado esquerdo, appoiaa sobre a 
perna direita, e inclina a de forma que o caravelhal fi- 
que á altura do sangradouro do braço esquerdo e a 
caixa de resonancia um pouco inclinada para o peito. 
E' isto o que estabelecem os methodos de amestra- 
mento. Mas, para o fadista, estas normas preceptivas 
são vacillantes como uma luz n'uma corrente de ar. 
Vemol-o antes sentado, cruzando uma perna sobre a 
outra e inclinando desleixadamente o tronco sobre o 
braço da guitarra, que descança na coxa, ou então le- 
vantado, com o tronco* cahido negligentemente para 
cima do quadril, a perna encurvada com o pé para fo- 
ra, á facaia, o pescoço retézo como o de um gallo a 
cucuritar, os olhos afogados numa agonia suave, 
emquanto vae beliscando os arames da banza e des- 
fiando os episódios de algum fado % virgulados de ais 
dolorosos e de zfras arrastados -— todo w o zing corrobo- 
rativo de manhas fadistinhas. 



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MARQ r JEZ DE CASTELLO MELHOR 
(lllustrc amador de /a do) 



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Historia do Fado- 83 

A guitarra, dizem os methodos de ensino, admitte 
cinco afinações: a afinação natural, a afinação natural 
com quarta (muito empregada para acompanhamentos), 
a afinação do fado, a afinação transportada (afinação 
mais baixa meio tom) e a afinação do violão. Mas as 
afinações que propriamente lhe competem são a natu- 
ral e a do fado, sendo prt-ferivel a ultima. Os tocado- 
res antigos, os tocadores do lídimo /arfo, execulavamn'o 
em ré menor. E, circumslancia a notar, antigamente 
o cantador não se acompanhava ? si mesmo, mas fa- 
zia se sempre acompanhar de um guitarrista. Os de- 
dos ágeis do tocador corriam rapidamente sobre as 
cardas da guitarra e davam vôo ao pensamento harmo- 
nioso dos auctores dos fados, emquanto as rimas do 
cantador batiam azas. Hoje, quasi sempre o cantador 
se acompanha a si próprio. 

A voz para cantar o fado é uma voz inclassificável, 
$ui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao 
jugo tyrannico dos methodos de canto, uma voz que 
não se subordina aos dictamescathedraticos dos profes- 
sores do Conservatório. E ahi está o motivo porque o Ta 
magno ou a Patti poderiam fazer fiasco cantando o fa- 
do ao pé do Serrano ou da Albertina. E eis ahi a ra- 
zão por que um interprete de uma partitura deliques- 
cente de Puccini ou de uma partitura descripliva de 
Wagner pregaria um estenderete raso, se qnizessc 
cantar o fado da Severa ou o fado do João Black. 

As primeiras trovas do fado, devidas á mechanina 
espiritual do povo, eram em quadras; depois usaram- 
se em quadras glosadas e em decimas ; e ultimamen- 
te, com o fado modernista, empregam se de novo as 
quadras e também as quintilhas. O fado principiou por 
se cantar com versos ingenuamente populares, impro- 
visados à la va cjmme je te pomse, de que damos as 
amostras seguintes : 



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84 Empreza da Historia de Portugal 

Ulysses era brejeiro, 
Era o pae da brejeirada,, 
Era um bom sapateiro, 
Trabalhava n'uma escada. 

Encontrei Frei João 
ft'uma manhã de geada, 
Com um instrumento na mão, 
Vinha a ser uma guitarra. 

Q coelho é manhoso, 
Dorme 6 x o# olhos abertos, 
Eu durmo c'os.meus fechados, 
Porque tenho amores certos. 

Na cabana do Zé do Sacho 
Ha uma cruz de madeira, 
E n'ella um Christo pregado, 
Feito de pau de gingeira. 

Muitos me chamam António, 
E eu António não sou, 
O meu nome não é este, 
Foi alguém que m'o trocou. 



No Cancioneiro Popular do sr. Theophilo Braga vèm 
três quadras fadistas de época indeterminada : 



Se o Padre Santo soubesse 
O gosto que o fado tem, 
Viera de Roma aqui 
Bater o fado também. 

Eu hei de morrer no fado, 
Soffrer os destinos seus, 
O chinfrim será meu brado, 
A banza será meu deus. 

Tudo quanto o fado inspjra 
E 1 o que só me entretém, 
Pois quem do fado se tira 
Não sabe o que é viver bem. 



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Historia do Fado 85 

Antes de se principiar a cantar o fado, havia o canto 
á desgarrada e o canto ao fandango. Foi o canto do 
fado, que desthronou estes dois cantos, assim como 
foi a dansa do fado (difíerente do bater o fado) que 
destbronou a dansa do fandango. Ainda existe um ho- 
m»m que brilhou como cantador á desgarrada e ao 
fandango, e que, df pois, veiu a brilhar cumo distinctis- 
simo cantador de fado— o Bernardo Ferreira Saldanha, 
da Porca lhota. 

O fado mais antigo é o fado do marinheiro. Segue- 
se-lhe o fado conido t que parece ter sido o primeiro 
modelado por aquelle, e que se cifra na execução do 
acompanhamento, sem variações. Quando o fado não é 
tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bor- 
dam sobre elle os arabescos da sua phantasia musical, 
arrancam ao instrumento variações que percorrem to- 
da a gamma chromatira dos êxtases amorosos, das 
idealidade* scismadoras, dos h {Tectos jnbilatorios. A pri- 
meira mulher que tocou o fado corrido na guitarra foi 
a ifanasinha, catraia da Madragòa em i830. Foi ella 
que o ensinou ao cantador Paixão, o prmeiro também 
que tocou o fado corrido na guitarra. Ao fado corrido 
segue-se o fado da Cotovia, cuja lettra desconhecemos. 
Depois, vem o primeiro fado de Pedrouços, original de 
A Branco, composto em 1849, e o fado choradinho, 
anterior a 1850, que serviu de modelo a outros fados. 
Este fado canta-se com os versos seguintes : 

Quem tiver filhas no mundo 
Não fale das desgraçadas, 
Porque as filhas da desgraça 
Também nasceram honradas. 

Nâo sei que quer a desgraça 
Que atraz de mim corre tanto; 
Hei de parar e mostrar-lhe 
Que de vêl-a não me espanto. 



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86 Empreza da Historia de Portugal 



Fui encontrar a desgraça 
Onde os mais acham prazer ; 
Amor, que dá vida a tantos, 
Só a mim me faz morrer. 

Das (ilhas da desventura 
Devemos ter compaixão, 
São mulheres como as mais, 
Filhas de Eva e de Adão. 

Eu quero bem á desgraça, 
- Tu Que sempre mè acompanhou, 

Não pcs«?o amar :i ventura, 
Que bem cedo me deixou. 

Eu fui a mais desgraçada 
Das filhas da minha mãe, 
Todas tem a quem se cheguem, 
Só eu não tenho ninguém. 

Debaixo do fric chão, 
Onde o sol não tem, entrada, 
Abi a se uma sepultura, 
Finde o fado a desgraçada. 

£ Deus que tudo perdoa, 
E a V irgêm Nossa Senhora, 
Hão de ouvir a alma que implora 
Salvação á peccadora. 

' Depois (Testes fadjs, apparere o fadada Severa, que 
remonta acs meíados do século xix, porque foi com- 
posto em tempo da mulher que lhe deu o Ululo, e que» 
como vimos, morreu anleriormente a 1850. Attribuem 
a paternidade d'esle fado ao Sousa do Casacclo. Os col- 
lectores do Cancioneiro de musicas populares conside- 
ram-n'o como o lypo primordial dos fados populares 
lamentosos *. A versão coimbrã do fado da Severa, re- 



1 César das Neves e Gualdino de Campos. Cancioneiro de mu- 
iicas populares, vol. III> pag. 129. 



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Historia do Fado 87 

colhida e publicada pelo sr. Theophilo Braga a paginas 
140 do seu Cancioneiro Popular, é como se segue: 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que ama fadista morreu, 
Hoje mesm» faz um anno 
Que a Severa falleceu. 

Morreu, já faz boje um anno, 
Das fadista*, a rainha, 
Com ella o fado perdeu, 
O gosto que o fado tinha. 

O conde de Vimioso 
Um duro golpe softreu, 
Quando lhe foram dizer: 
Tua Severa morreu! 

Corre á sua sepultura, 
O seu corpo ainda vê : 
Adeus, oh ! minha Severa, 
Bôa sorte Deus te dê ! 

Lá n'esse reino celeste 
Com tua banza na mão, 
Farás dos anjos fadistas, 
Porás tudo em confusão. 

Até o próprio S. Fedro, 
A' porta do céo sentado, 
Ao' vêr entrar a Severa 
Bateu e cantou o fado. 

Ponde nos braços da banza 
Um signal de negro fumo 
Que diga por toda a parte : 
O fado perdeu seu rumo. 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que a Severa se finou, 
O gosto que tinha o fado 9 
Tudo com ella acabou. 

Mas o Cancioneiro de musicas, popular es insere este 



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8S > Em f reza da Historia da, Portugal 

fsdo, teadtf ire» quadrai com as variantes seguin- 
tes: * c, á :>\ ■,:;:■:. ... ,■ . . . - ... '.,/ •...;. ^ . _ 

Corre á sua sepultura, 
O seu corpo ainda vê : 
Severa, linda Severa, 
Boa sorte o céo te dê! 

Levantou-lhe um monumento 
Com doia cy prestes ao lado, r 

£ num di8ti« o ! «Aqui jnz 
Quem foi rainha- do fado». . 

Chorae, fadistas, chorae, ; ^ •- 
Que a Severa falleceu; 
Rapariga como* aquel la 
Nunca o fado conheceu. 

Conhecemos mais seis ijuadras com variantes/ que 
nos vieram pela tradiçap oral ; 

No braço da sua binza 

Um laço de fumo armou, 

Quando lhe vieram dizer: ' "• 

A Severa já expirou t ■ 

No braço da sua banza 
Um laço bem preto apertou, 
Quando lhe vi ram dizer: 
A tua Severa acabou ! 

Zóra lá na mansão celeste 
Com a viola na mâo, ••*...'.? 
Farás dos anjos fadistas, 
Porás tudo m confusão. 

O conde de Vimioso, 
Ai ! quafi qu'eíilouque<*eu, 
Quando lhe foram dizer : 
A Severa já morreu ! 

O conde de Vimioso 
£:-..■ . Um duro golpe sofifiíeu, .* ./ ..\ : 



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Historia do Fado 89 

Quando lhe for Am dizer: 
Maria Severa morreu ! 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que a Severa já morreu, 
Fadista como e lia 
Nunca o fado conheceu ! 

Conhecemos mais uma quadra com variantes, publi- 
cada peloi&r. Visconde de Caslilho na Lisboa. Antiga h 

Ponde no braço da banza 
Um Ihço de negro fumo, 
£ este signal diga a todos : 
Que o fado perdeu o rumo! 

A Severa-cuja memoria fulge atravez dos annos com 
o tremor luminoso de um astro — excitou a veia poé- 
tica popular. Ha ainda mais as dez quadras seguintes, 
allusivas á Severa, sendo as duas primeiras puMicadas 
pelo sr. visconde de Castilho na Lisboa Antiga e as oito 
ultimas recolhidas da tradição oral : 

Assim como as flores vivem 
Minha Severa viveu, 
Assim como as flores morrem 
Minha Severa morreu. 

Levantae lhe um mausoléu 
Co'um negro cypreste ao lado, 
£ o epir aphio que dica : 
«Aqui jaz quem soube o fado» 

Quando a Severa falleceu, 
i O Vimioso adorado 

i Disse, vertendo lagrimas : 

Morreu o mimo do fado ! 

Severa, linda Severa, 
Foste a princeza àofado, 

1 Visconde de Castilho. Lisboa Ânliga, vol I^pag, 295. 



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90 Empreza da Histoina de Portugal 



A rainha das fadistas, 
O 8ol do teu bem -amado! 

A Severa sepuitou-se 
Em um mausoléu doirado, 
Com o dístico : «Aqui jaz 
A mais bel la flor do fado.* 

Quando a Severa morreu 

Deu seu corpo á sepultura ; 

Logo no mar se formou * 

Um palácio de grande altura. 

O fadinho da Severa 
Vae direito ao coração ; 
Cantae o fado da musa 
Da rua do Capei Ião! 

A Severa morreu joven, 
Triste foi o seu condão ; 
Chorae, fadistas, a deusa 
Da rua do Cape II ao ! 

Chorem, chorem os fadistas, 
E chore toda a nação ! 
Morreu a Severa, A flor 
Da rua do Capei lào ! 

Quando a Severa falleceu, 
As guitarras soluçaram, 
Toda a Mouraria gemeu, 
E os fadistas choraram. 

Ultimamente (em 1ÍH2) appareceram unsjados (tro- 
vas) novíssimos da Severa, de que damos os três mo- 
tes seguintes : 

A Severa, reza a historia, 
Tinha um bello coração ; 
Foi por isso que o Vimioso 
A amou sempre e com paixão. 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que a Severa já morreu í • - 



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Historia do Fado 91 



Foi o que Vimioso ouviu , 

'ma manha quando 8'erguwu 

Eu vou cantar a Severa 
N'esta bella occasi&o ; 
-O seu fado é d'encantar 
Vae direito ao coração. 

fado da Severa tem outro que o completa, o fado 
do Vimioso*. Este pertence, evidentemente, a época 
posterior, mas inserim< l-o aqui por ser o complemento 
d aquelle. E' formado de dezoito quadras: 

Quem lhe Tê a face morena, 
Quem vê seus olhos tyrannos, 
Nada vê que mais captive, 
.., Ainda que viva mil annos. 

Quem lhe vê os negros cabellos 
Fluctuaudo sobre a testa, 
Outra nympha a vêr não torna 
Salerosa como esta. 

Quem lhe vê os lábios sorrir 
Como a luz da estrella d'alva, 
Se tocal-os não alcança 
Tem de fé que n$o se salva. 

Quem uma vez lhe ouviu 
Sua voz enternecida, 
Ainda depois da morte 
Aos seus ais recobra a vida. 

Quem lhe vê o pé travesso 
£ os requebros seductores, 
Fica logo mais rendido 
Que entre ferros oppressores. 

Quem lhe vê o collo alteroso, 
Que tem tão viva attracç&o, 

* O fado do Vimioso (trovas) canta se com o fado da Severa 
(musica) 



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92 Empreza da Historia de Portugal 

Só por obra de milagre 
Resiste a uma tentação. 

Quem a vê dansar o fado 
Com vigor desconhecido, 
Ao vêl-a batendo forte 
Fica um doido perdido. 

Oh Severa, dá-me om beijo, 
Dá- me um beijo de queimar ! 
Ah ! deixM-me arder em chammas 
E em teus braços expirar ! 

Mas que digo ! oh desgraçado ! 
Que deli rio é este meu ? ! 
Como vir ao chamamento 
A Severa que já morreu ? ! 

Oh sorte cruel e dura, 
Que me deixas no mundo só ! 
Rasga me o peito e reduz 
Meus ossos a cinza e pó ! 

Assim Moieivo 1 carpia, 
No auge da desventura, 
£ ao outro dia, já cadáver, 
Foi levado á sepultura. 

Quem viu já tanto amor, 
Amar tanto e bem querer, 
*Em peitos que n$o são dados 
A por amor padecer? 

E* que tu, oh cego amor, 
Em teus caprichos ferinos, 
Ligas risos com tristezas, 
Cinges grandes e pequeninos ! 

E d*est'arte o mundo viu 
Senhor séeio e muito alto, 
A' fria campa baixar 
Sem pompa e espalhafato. 

i Afoitivo, anagramma de Vimioso, appareee também n'ou- 
tros versos antigos. 



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Historia do Fado 93 



Era dextro cavalleiro, 
Era seu corcel á grande, 
Levava ninhas e brida, 
Tudo, tudo de vencida. 

Chorae, fadistas, chorae, 
Ah ! chorae a mais nâo ser, 
Que d 'outro t&o fino amante 
Nâo torna o fado a dizer. 

Aqui ponho agora ponto 
Na lenda que finda está, 
Foram casos d 'outra era, 
Sâo voltas que o mundo dá. 

E com esta, oh meus amigos, 
Nâo vale o aborrecer ! 
Digo- lhe adeus, haja gáudio, 
Haja gáudio ! É até mais vêr ! 

Cancioneiro de musicas populares regista o fado 
amphiguri, que se cantava em Lisboa ha mais de cio- 
coeuta annos (1849). Temos o 2 o fado dt Pedrouççs, 
composto em 1864, por occasião da guerra da Ameri- 
ca, a qual motivou um coníliçto diplomático entre o 
nosso paiz e os Estados Unidos, em consequência da 
Torre de Belém ter disparado sobre a fragata Niagara, 
que pretendia sabir do Tejo na caça do monitor Stone- 
walL mote d'este fado de Pedrouços é assim : 

Portugal está obrigado 
A pagar perdas e damnos, 
Que a Torre de Belém causou 
Aos barcos americanos. 

fado dos Cegos e o fado da Persiganga sSo dos 
meiados do século xix. Apparecem. depois, o fado do 
José Maria dos Camllinhos (inédito) em 1860, o fado 
do Anadia (original do José Maria dos Cavallinhos) em 
1862,o fado do Paixão (original do Paixão) em 1862, o 



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94 Emprezada Historia de Portugal 

fado da Custodia (original da Custodia Maria) em 1864, 
o fado de Tancos em Í866, o fado das salas ou o fado 
Elegante (original de João Maria dos Anjos) em 1868, 
o fad) Campestre em 1870, o fado Mayyolli (original 
de Magyolli) em 1870, o fado Lisbonense em 1870, o 
fado Cadete (original do António dos Phospkoros), o 
fado da Cesaria (original de Ambrósio Fernandes Maia) 
em 1870, o fado Carmona (dedicado ao matador de 
espada António Carmona, El Gordito) em 1872, o fado 
sentimento maior e sentimento menor (de Ambrósio 
Fernandes Maia) que se conserva inédito, o fado d) 
Lessa } o fado Brilhante, o fado de Cascaes e o fado de 
Cintra. Modernamente, teem-se publicado muitos fados, 
de que, in fine, apresentamos uma lista. 

Seria quasi impossível determinar os auctores da 
musica e da lettra de todos os fndos antigos por se en- 
cobrirem sob o véo do anonymato. Alguns não tinham 
lettra própria. A um d'elles, o fado do Lessa, applica- 
ram-lhe lettra moderna do sr. J. Nunes da Ponte, que 
é a seguinte: 

Amor è sonho que mata, 
Perfume que se esvaece, 
Madeixa que se decata, 
Sorriso que desfallece. 

Aragem, corre de manso, 

Borboleta, mais de leve, 

Rouxinol, soa mais breve, 

Não turves o meu descanço. 

Miragem que nâo alcanço, 

£ que minh'alma retrata, 

Foge nas azas de prata 

Do sonho que me enamora, ',, 

Suspira, guitarra, chora, 

Amor é sonho que mata. 

O sol desampara a vaga, 
A vagn foge do mar, 



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Historia do Fado 95 

Fogem as bramas Ao ar, 
-15 a branca espuma da plaga ; 
Foge a brisa que me affaga, 
A luz do tol que me aquece ; 
Foge dos lábios a prece, 
fcó tu, imagem, persistes, 
O amor é sonho dos tristes, 
Perfume que se esvaece. 

O lyrio ama a campina, 
A campina a luz do sol, 
Ama a noite o rouxinol, 
E a aurora a flor purpurina. 
Ama a briza matutina 
O manso lago de prata, 
Eu, a miragem ingrata 
Da mulher que me adora, 
O amor é flor que descora, 
Madeixa que se desata. 

Minh'alma voga na altura, 
Geme, guitarra, com anciã, 
Exhala, flor, mais fragrância, 
Dá me, aragem, mais fi escura. 
E* varia e doce a ventura, 
O prazer que nos fenece ; 
Tu, miragem, desaparece, 
Meu penar, deixa-me, corre. 
O amor é sonho que morre, 
Sorriso que desfallece. 

Os seguintes fados antigos são inéditos: 

O A teve uma baralha 
Na travessa do Rosário 
Acudiram ao barulho. 
As lettras do abecedario. 

O B por muito pimpão 
Nâo se receia va de nada, 
Lo»o á primeira paulada * 
Cahiu de ventas ao chão; 
O C que vò seu irmão 
Andar c'os outros á sAlha, 



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&6 Empreza da Historia de Portugal 

Mette a mfto, puxa navalha, 
Cresce para cima do D ? 
E, para defender oG, 
O A teve uma baralha. 

O H, que viu o U, 
Dá um sopapo ámâo canha, 
Pearam os dói* acastanha ' 
£ anitos cahiram de c. . .; 
O P, que estava em jejum, 
Pediu ao N usurário 
Que lhe abonasse salário 
Para descontar na feria, 
Que o J est»va á espera 
Na travessa do Rosário. 

O R, coxo de um pé, : . . 
Estando d'alli desviado, 
M apanha- o descuidado^ ' 
Atirou-lhe á falsa f é ; 
O O. que ouviu o banzé, 
Quando checou nada viu, 
Ao mesmo tempo tentiu 
Grandes suspiros e ais. 
Foram as lettras vogxes 
Quem ao barulho acudiu. 

O F e mais o Q, 

OX o LeoH, 

Todos i pancada ao K, 

Por ter batido no Z ; 

OULeoT, 

Qual delles o mais vario, 

Foram pedir ao contrario 

Para no Y bater, 

Que o fcl queria prender 

As lettras do abecedario. 



Eu não quèrò amor toureiro^ 
Só «e mudar dè sentido. 
Pôde vir um boi matreiro. 
Ficar mulher tem marido. 



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MARIA SEVERA 
(Desenho feito sobre indicações ministradas por contemporâneos da Severa) 

7 



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Hiêtoria do Fado 99 



AUegando ser d'um capinha 
Que na praça se apresenta, 
Qualquer rapariga tenta, 
£ elle nâo adivinha ; 
O boi para eile caminha, 
E maltrata-o no terreno, 
Chora o amor verdadeiro 
Que p'ra elle esta disposto, 
P'ra me livrar do desgosto 
Eu nâo quero amor toureiro. 

Se para um artista olhar 
E* só para o estar a vêr, 
E' para eu me entreter, 
Para meu tempo passar ; 
Se amores me quizer tomar, 
Que não seja amor fingido, 
Farei com elie um partido 
De só a elle me ligar, 
Com o protesto de casar. . . 
Só se mudar de sentido. 



Todos gostam de vêr os toiros 
Lidados na bella praça, 
Claros e de boa raça, 
Faz -se a funcçâo sem agoiros; 
Espectac'lo sem desdoiros, 
Só de vêr um bom toureiro 
Bem empregado dinheiro! 
Palmas a todos os preparos! 
Mas entre tantos bois claros. . . 
Pode vir um boi matreiro. 

Tristeza é para a casada, 
O vêr estar seu marido 
AUi na praça estendido, 
Co' um a costella quebrada; 
Toda em lagrimas banhada, 
Seu coração opprimido, 
Porque pôde o boi ter f* rido 
Co'uma pancada tão forte, 
E ser ferimento de morte, 
Ficar mulher sem marido. 



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100 Empreza da HUtoria de Portugal 



Passarinho que eantaes 
Nesse raminho deflores, 
Cantae vás, chorarei eu, 
Que assim faz quem (em amores. 

Doce habitador do vento, 
Vós sois, no volátil coro, 
Nâo só musico sonoro, 
Mas também lindo instrumento; 
Suspendei o doce accento 
Com que a todos alegraes, 
Se attenderdes a meus ais, 
Que nascem de anciãs cruéis, 
Prometto-vos que chorareis, 
Passarinho que cantaes. 

Vós n*esse enfeite de Flora, 
Onde louvaes cantando 
O sol, que parece infante 
Nos braços da bel la Aurora; 
Contrários somos agora, 
Tu contente e eu com dores, 
Aqui, no centro de horrores, 
Estou, sem cessar, penando, 
Vós brandamente cantando 
N'esse raminho de flores. 

Vós sois o mimo do Fado, 
Eu da Fortuna o desprezo, 
Vós em liberdade, eu prezo, 
Vós feliz, eu desgraçado; 
Oh! que dHlerente estado 
O Fado a cada um nos deu! 
A mim, passarinho meu, 
Com affecto differente, 
Eu em penas, vós contente. . • 
Cantae vós, chorarei eu. 

Sem duvida, d'outra ave. 
Namorado estás. Que amante! 
A festejar cada instante 
Com melodia suave; 
Pobre de quem n*este grave 
Tormentos sente, rigores, 
Cantae d'amor os fervores, 



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Historia do Fado 101 

V 

Que eu chorarei meus azares, 
Que assim faz quem tem pezares, 
Que asbim faz quem tem amores. 

Se eu podesse em noite escura 
Sfírpor ti agasalhado, 
Dormia mesmo enroscado 
No açafate de costura. 

Filha do Guadalquivir, 
Oh, hermosa scviUana, 
Descerra a tua ventana 
Vem minhas trovas ouvir; 
E não te deixes dormir, 
Que o manolo te procura, 
De la madre buena e pura, 
Pepita, tanto te quiero, 
Que te roubava cl salero 
Se eu podesse em noite escura. 

Argua, que te vigia, 

Por Dios! caramba! o condemno, 

Maldito sea el sereno 

Que ronda a ealle sombria ; 

E quando mal principia 

A dizer: o sol e nado, 

Corro, fujo assustado, 

ror essas viellas fora, 

Podendo n'aquell* hora 

Ser por ti agasalhado 

Bella como tu, por Cid ! 

N*Ao ha nas terras de Hespanha, 

Das margens que o Tormes banha 

Té á corte de Madrid ; 

Mi alma tu alma pide f 

Salerosa, a Dios sagrado, 

Se eu me visse encostado 

No teu collo todo alvura, 

Na tua mantilha escura 

Dormia mesmo enroscado. 

Desde Sevilha a Granada 
Ninguém te vê que não peque, 



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102 Empreza da Historia de Portugal 

Fere ainda mais o tea leque, 
Que o game da fina espada; 
E se me desses -pousada 
No leito da alcova escura, 
Verias com que candura 
Ahi dormia mansinho 
Mais meigo que um gatinho - 
No açafate de costura 



Elmano, sublime Elmano ! 
Príncipe da litteratura, 
Não sei que cantiga cante 
PVa não fazer má figura. 

Se eu tivesse o teu talento, 
tyal que rompesse a aurora, 
A meiga deusa Flora 
Cantava com aprazimento; 
Comtigo no pensamento 
Desferia ò luzo piano, 
E quando Apollo sob ? rano 
Envergasse o manto d'oiro, 
(Troava -te de verde loiro 
Elmano, sublime Elmano ! 

Da Grécia ao luso torrão 
Viria em doce romagem, 
Cará prestar homenagem 
A tua culta instrucção ; 
Pela minha própria mão 
Queimava-te essência pura, 
E quando os Zoilos, por censura; 
Tacoramettessem d 'as sal to, 
Proclamava te bem alto 
Principe da litteratura. 

O fadinho nacional 
Na minha lyra tangia, 
E a teus pés me curvaria. 
Luzo poeta immortal ! 
O teu estro colossal 
E' p'ra mim tão fascinante, 
Que á vista do povo amante, 
Com a minha rude oratória, 



í? 



Historia do Fado 103 



Para te cobrir de gloria 
Não sei que cantiga cante. 

N*eete brilhante cenáculo 
Poucos me d%o attençao, 
Porque não tenho o condão 
Do teu estylo vernáculo ; 
Tu és o divino oráculo 
Da harmonia e doçura, 
£ como a critica procura 
Deturpar minha riroagem, 
Dá-me forças e coragem 
P'ra não fazer má figura. 



A melodia de Horácio 
Queria ter na poesia , 
P'ra faztr a apofheose 
Dos mestres da cantoria. 

Lindas grinaldas de flores 
Queria collocar na lyra, 
Pára a luz da luza pyra 
Eu saudar os trovadores; 
Queria aos virgíneos amores 
Glosar no campo herbáceo, 
Queria o brilhante prefacio 
Ser de poemas diversos, 
Se tivesse nos meus versos 
A melodia de Horácio. 

Com os professores do fado 
Não temia a discussão. 
Se tivesse a inspiração 
D'esse vate laureado; 
Entre as alfombras do prado 
Lindas odes comporia, 
E, p'ra que a meiga Thalia 
Se curvasse extasiada, 
Locução esmerilhada 
Queria ter na poesia. 

Do Parnaso a fina meta 
Não receiava transpor, 
Se tivesse ao meu dispor 



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104 Empreza da Historia de Portugal 

O estro d'esse poeta; 
Da poesia incorrecta 
Fazia a metamorphose, 
Tomava a modesta pose 
Do sábio cultor da penna, 
£ . . . entrava na arena 
Para fazer a apotheose. 

Se os modernos prosadores 
Não me tolhessem o passo, 
Invocava Torquato Tasso 
E seguia o canto ás flores; 
Rosas de diversas cores 
Sobre o solo espalharia, 
£ com toda a cortesia 
Saudava o auditório 
Para ouvir o reportório 
Dos mestres da cantoria. 

lia o mole - K não poude dizer tó, que foi mui lo 
glosado no fado antigo. Conhecemos esta glosa : 

E' pena que o meu José, 
Sendo um esperto rapaz, 
Não saiba dizer Thomaz, 
Nem possa dizer Thomé; 
Dizer nunca poude o T, 
Quando vem junto com O, 
O outro dia disse só 
Todo obaba por si, 
Mas chegou ao ta-te-ti, 
£ não poude dizer tó. 

Os motes do fado seguintes são quasi todos antigos: 

Em nome de Deus começo, 
Padre, Pilho, Espirito Santo; 
E' esta a primeira cantiga, 
Que n'este auditório canto. 

Já o ferro é suspendido, 
Largo as velas ao vento, 
Levo te em meu pensamento, 
Nunca me sahes do sentido. 



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Historia do Fado 10o 



Perdeu se o Feliz Destino 
Na barra do Desengano, 
Foi se o Pensamento a pique, 
Sal vou- se o Amor nadando. 

Os pombinhos innocentes 
Namoram se c dão beijinhos, 
Faremos, amor, faremos 
Como fazem os pombinhos. 

Eu puz-me a chorar saudades 

Ao pé d'uma sepultura, 

E uma voz ouvi dizer 

O mal d'amores não tem cura. 

Nasci nas praias do mar, 
Nas areias me criei, 
Dormi á bulha das ondas, 
Sobre as vagas m 'embalei. 

Irei viver entre os montes, 
Vendo o precioso trigo, 
Lá no céo ou cá na terra 
Só quero viver comtigo. 

Já que me pedem qu'eu eante 
Vou -lhes fazer a vontade, 
Eu não sei que gosto tem 
Ouvir cantar quem não sabe. 

No forte dos cantadores 
Ra dois bonitos estandartes, 
Para quem os quizer ganhar 
Com acções e com combates. 

Põe-se a lua e nasce o sol, 
Reverdecem as flores, 
Eu só vim a eete mundo 
P f ra dar honra aos cantadores. 

Já não tenho pae nem mãe, 
Nem n'esta terra parentes, 
Sou filho das tristes bervas, 
Neto das aguas correntes. 



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106 Empreza da Historia de Portugal 

Fui- me deitar entre as nuvens, 
Das estrella8 fiz encosto, 
Ia beijando uma d'el!as 
Cuidando que era o teu rosto. 

Ai de mim, que já não posso 
Cantar uma cantiguinha, 
Pui beber agua d 'amores, 
Ficou-me a fala brandinha. 

No ventre da Virgem bel ia 
Encarnou Verbo por graça, 
Entrou e sahiu por cila 
Como o sol pela vidraça. 

A'lerta, ó cantadores ! 
Coiram a Almada e vâo vêr, 
Que as pegas lirós do fado 
Uma toirada vão fazer! 

Rapazes, quando eu morrer, 
Gravem-me na sepultura: 
«Aqui jaz mimo do fado, 
Que morreu sem ter ventura!» 

Sempre, sempre meditando, 
Até fatigo a memoria, 
Quando a musa não mMnspira 
P'ra cantar a luza historia. 

Maria, minha Maria, 
Meu açafate de limões, 
Tu olha p'ra mim direita, 
Respeita os meus matacões. 

Esta noite nasceu o sol 
Do ventre d'uma donzella, 
Ella é mãe e filha d'el!e, 
Elle é pae e filho delia. 

As grades do Limoeiro 
São sete, qu'eu as contei: 
Três de ferro, três de bronze, 
Uma d'oiio, qu'é d'el-rei. 



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Historia do Fado 107 



Em o ventre de Maria 
Encarnou Cbriato-Jesus; 
A vinte e cinco, em Dezembro, 
Deu-o á meia-noíte á hw. 

Fuz um pé na sepultura, 
Uma voz me respondeu: 
Ergue o pé que estás pisando 
Um amor que já foi teu. 

Homem, que vaes passando, 
Volta atraz e vem-me vêr, 
Eu já fui o que tu és, 
O que eu sou tu has de ser. 

Cantando, cantei, cantava, 
Cantava, cantei, cantando, 
Chorando, chorei, chorava, 
Chorava, chorei, chorando. 

Estando eu dentro da cama^ 
Intentei ir viajar, 
Fui n'uma sege a Cacilhas, 
Foi n'um bote ao Lumiar. 

A'lerta, eantor do fado f 
Qu'este rapaz alerta está! 
Atira, deita por terra, 
E não perguntes: Quem vem lá? 

Acabaste de cantar, 
Agora respondo eu, 
Começa o meu coração 
A dar combates ao teu. 

Os dois irmãos Eobertos, 
Dois toureiros entre nós, 
Foram picar bois em pontas 
A 1 praça de Badajoz. 

A penna com que te escrevo 
Não é de nenhum pavão, 
A tinta sahe-mé dos olhos, 
A penna do coração. 



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108 Empreza da Historia de Portugal 

Sou amante da orgia, 
A' tristeza tenho horror, 
Dob salões do lupanar 
Faço meu ninho d'amor. 

Pelo eanto das sereias 
Se perdem os navegantes, 
Perdem-seos homens na terra 
Pelo canto das amantes. 

Tem o fadinho o poder 
Dos corações attrabir, 
Tem magia, tem encantos, 
Faz-nos chorar, faz-nos rir. 

Os meus beijos são gelados 
E o meu coração é frio, 
Nos lábios tenho a mentira, 
O pudor de mim fugiu. 

No infame lupanar 
ludo é nojento lameiro, 
Sorrir quando os olhos choram, 
Vender amor a dinheiro. 

Quando tu choras, vaidosa, 
As tuas lagrimas quentes 
Cahem do céo para a terra 
Em mil estreitas cadentes. 

Anda cá, mulher perdida, 
Eu te quero abraçar, 
Na flor da tua vida 
A honra te fui roubar. 

Infeliz creança bel la, 
Perdida p f lo seductor, 
Porque assim a desgraçaste 
Com tão rude desamor? 

Por ti, a quem tanto amei, 
Fui desprezada, esquecida, 
Hoje vivo lamentando 
A minha honra perdida. 



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Historia do Fado 109 



Desde Alcanfra até Alfama 
E d'Alfàma á Mouraria, 
Toda a guitarra suspira 
O fado do Anadia. 

Bella cerca de Jesus, 
Onde os mestres vâo cantar, 
Nas noites deliciosas 
De beber, rir e folgar. 

Uma camélia vaidosa, 
Movida pelo ciúme, 
Acercou se d uma rosa 
P'ra lhe roubar o perfume. 

O primeiro beijo puro 
Como cadeia de flores, 
E' laço que prende a vida, 
E' grilhão que enlaça amores. 

N'eôte mundo, só d'enganos, 
Desgostoso vou vivendo; 
Por mais que discorra e pense, 
Eu tal mundo não entendo. 

Adeus Lisboa e cidade, 
Adeus oh pátria querida, 
Qu'eu d 'es ta vou degredado, 
Vou dar fins á minha vida! 

Tudo que é triste no mundo 
Quizera que fora meu, 
íáó pVa vêr se tudo junto 
Era mais triste do que eu. 

N'e8te campo solitário, 
Onde a desgraça me tem, 
Chamo, ninguém me responde, 
Olho, não vejo ninguém. 

Nas ondas^foi que nasci, 
No mar a infância passei, 
E' o mar que me sustenta, 
Minha campa Meterei. 



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110 Empreza da Historia de Portugal 



Eu de nada me admiro, 
Ai la-ri-ló-lé Guimarãee, 
Eu já vi um padre prenho 
Parir vinte e cinco cães. 

Hei de escrever a Cupido 
Mandando- ibe perguntar, 
Se um coração oftendido 
Tem obrigação de amar. 

Cupido, deus dos amantes, 
Aprendeu a gravador, 
Engastou dois diamantes 
Nos peitos do meu amor. 

Três cantadoras do fado, 
De cuia estupenda e alta, 
A cantarem no Casino, 
Eu vi á luz da ribalta. 

A guitarra sem a prima, 
A prima sem o bordão, 
Parece filho sem pae, 
Corrido do seu irmão. 

O que existe além da morte, 
Ninguém disse nem dirá, 
De todos que tem morrido 
Ainda nenhum voltou cá. 

Ainda agora aqui cheguei, 
Peza me não vir mais cedo, 
Cada qual vem quando pôde, 
E eu venho quando cá chego. 

O meu coração e o teu 
Certo não sei que lá tem, 
Que tudo que o vosso sente, 
Meu peito sente também. 

Dizia o roeu padre- cura 
Homem de grande juizo, 
Quem sabe cantar o fado 
Vae direito ao Paraizo. 



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Histeria do Fado 111 



Da virgem faz- se a perdida, 
Tudo soffre transição ; 
Do amor puro vem gloria, 
Do impuro a perdição. 

Quem tem filhos pequeninos 
Ha de por força cantar, 
Quantas veies a mãe canta 
Com vontade de chorar. 

Vender linhos, vender chitas, 
Pannos pretos e de cor, 
Dá bom ganho, qu 'enriquece 
Hoje em dia o mercador, 

A a ondas do teu cabello 
Atirei-me eu a afíbgar, 
Fará que o mundo soubesse 
Que não ha só ondas no mar. 

Quem creou o nosso fado 
Foi Adão no Paraizo; 
Era um poeta d 'escacha, 
Um fadista com juízo. 

Oh tristes e alegres flores, 
Filhas da sabia natura! 
Emblemas da humana sorte, 
Mesmo alem da sepultura. 

As aguas que vem do monte 
Correm direitas ao mar, 
Petiza, se te não casas, 
Não sei onde irás parar. 

A guitarra é uma lyra, 
As cordas suas vibrando, 
Enlevos ternos inspira 
A quem a estiver escutando. 

Eu fui o que disse ao sol 
Que nãj tornasse a nascer, 
A' vista dVsses teus olhos, 
Que vinha o sol cá fazer. 



Wgiti2 



112 Emprepa da Historia de Portugal 

O fado é a alegria, 
O fado é o prazer, 
Porque o fado nos dá vida, 
No fado quero morrer. 

Já lá vae pelo mar fora 
Quem me tirava o ehapéo, 
Deu» o leve, Deus o traga, 
Como as estrellas no eco. 

Lá mesmo na sepultara, 
Onde eu sepultado for, 
Uma letfcra a cada canto '. 
A. M. O. B. — Amor. 

Meu coração, não te assustes * 
Por ouvir mais cantadores, 
Entra tu, pede licença 
A todos estes senhores. 

Ai! quem me dera cantar 
Como canta a cigarrinha, 
Para cantar- te á janella 
Entre as hervas á noitinha. 

Mais firme que esta guitarfa 
Eu serei, por ti, meu bem, 
Porque ella nâo tem raízes 
E este amor raizes tem! 

Quem ama não considera, 
O que lhe pode acontecer, 
Cuida que tudo são rosas 
Que ao jardim se vão colher. 

Quem ama não considera, 
Quem considera não ama, 
Eu amei e não considerei ,[ 
Choro agora na cama. 

Mais uma vez, q'rida lyra, 
Tuas cordas vou vibrar, 
Todas cheias de amargura, 
Tristes sons tu vaes tocar. 



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MANOEL GONÇALVES TORMENTA 
(Insigne vavalleiro e aasignalado amador de fado) 



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Historia do Fado 115 



Minha mãe não quer que eu use 
Calças de bocca de Bino, 
Eu ando só com janotas 
De casaca e chapéo fino. 

Amar e saber amar 
São dois pontos delicados, 
Os que amam são sem conto, 
Os que sabem são contados. 

Nasci nas praias do mar 
Ao impulso d'ondas mi), 
Tendo por berço uma lancha, r 
Por coberta um céo d'anil. 

Adeus, rapazes amigos, 
A quem eu acompanhava, 
Adeus, oh Lisboa q'rida, 
Ai! terra que tanto amava! 

Guitarra, minha guitarra, 
Que estás hoje ao pé de mim, 
Trina tu que eu cantarei, 
Té chegar o nosso fim. 

Para as torradas manteiga, 
Por cima café e vinho, 
Estão ingleses em terra, 
Vão portuguezes p'ró pinho. 

Serão três os mandamentos 
Do fadista, disse a sorte: 
Navalha, banza efado 
Seguil o -hão té á morte! 

A viola sem a prima 
E' como a filha sem pae, 
Cada corda seu suspiro, 
Cada suspiro seu ai! 

Eu hei amar o meu bem, 
Diga o mundo o que quizer, 
Quem ama não quer conselhos, 
Quer só tudo o que o amor quer. 



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116 Empreza da Historia de Portugal 

Trahindo os teus juramentos 
Foste perjuro, infiel, 
Trocaste os gozos damor 
Pela ingratidão cruel . 

Dou a minha despedida, 
Sem offender a ninguém, 
O muito cantar enfada, 
O pouco parece bem. 

Quem pintou o amor cego 
Não o soube bem pintar, 
O amor nasce da vista, 
Quem não; vê não pode amar. 

O amor nasce da vista, 
E mora no coração, 
Vive da correspondência, 
E morre da ingratidão. 

Entre a penna e a espada 
Ha de haver grandes questões, 
Eu defenderei a penna, 
A arma que empunhou Camões. 

Agora respondo eu 
A' flor que aqui cantou, 
Estava pra me ir embora, 
Agora já me não vou. 

Adeus, oh pátria tão q 'rida, 
Que eu d'esta vou degredado, 
Vou dar fins á minha vida, 
Bem nascido e malfadado. 

Minha mãe afflicta chora 
Pelo seu querido filhinho, 
Elle choroso também vae 
N'este espinhoso caminho. 

O' cantador, afamado, 
Que sabes mais que ninguém, 
Diz p'ra que nasceu Cbristo 
No presépio de Belém? 



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Ilutoria do Fado 117 



Cá na terra de Lisboa 
Quem é rico passa bem, 
Assim é na minha terra, 
E n 'outra qualquer também. 

Para a noite, lua e estrellas, 
Para os campos malmequeres, 
Agua fria para a sede, 
Para os homens as mulheres. 

Ainda agora aqui cheguei, 
Oh jovjen constante e pura, 
Boa noite, meus senhores, 
Puz um pé na sepultura 1 

Puz-me a chorar junto ao rio 
Lagrimas de sentimento, 
E uma voz ouvi dizer: 
Nada cura como o tempo. 

Este mundo 6 um jardim, 
Cada flor é um christào, 
Vem a morte, furta as flores, 
Que Deus poz por sua mão. 

Eu canto quando te vejo, 
Mesmo com a noite a cerrar, 
Não ha tordo que não cante, 
Quando lhe bate o luar. 

Insensata humanidade, 
Que á soberba daes entrada! 
Cedo ou tarde ficareis 
Em terra, pó, cinza e. . . nada! 

A* face do lindo céo 
Jurei e tenho jurado, 
Só a ti e a mais ninguém, 
Eu amei e tenho amado. 

Quem diz qu'amor é enfado 
E' certo que nunca amou, 
Eu amei e fui amado, 
Nunca o amor me enfadou. 



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118 Empreza da Historia de Portugal 

O beijo que tu me deste 
Sem a tua mãe saber, 
Toma-o lá, já o não quero, 
Porque lh\> foram dizer. 

O' lyra, quem poderá, 
Do Fado fugir ás leia? 
Se ao Fado sujeito está 
O mundo, plebeus e reis ! 

Esta noite sonhei eu 
Um sonho bem divertido, 
Que tinha na minha cama 
A forma do teu vestido. 

A mulher é qual a rosa, 
Cândida e pura em botão 
Ao desabrochar, formosa, 
Depois desfolha-se então. 

Cantigas são pataratas, 
Palavras leva as o vento, 
Quem se fiar em cantigas 
E' leve de pensamento. 

Todo este monte não tem 
Como eu um outro pastor, 
Que te tenha tanto amor, 
Que te saiba amar tão bem. 

Guitarra, lyra divina 
Onde canta a sorte varia, 
Em que chorou a Severa, 
E lagrimeja a Cesaria ! 

O 7 morte vem terminar 
Os meus dias de amargura, 
Que o meu continuo penar 
Findará na sepultura! 

Não sei o que tem meu peito, 
Se é aíflicção ou se é dor, 
Se não é amor que sinto. 
Não sei o que seja amor. 



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Historia do Fado 119 



Alegria não a tenho, 
Tristeza com migo mora, 
Se consigo o que desejo 
Logo a tristeza vae fora. 

Escrevi na branca areia 
Doce nome do meu bem, 
Escrevi e risquei logo 
Com medo que visse alguém. 

Vae com Deus ! já foste minha, 
Que eu também com Deus me vou ! 
Deus te pague se me amaste 
Deus perdoe a quem te amou ! 

Tenho um sacco de cantigas 
E ainda mais um guardanapo, 
Se isto vae ao desafio, 
Vou-me a desatar o sacco. 

Quando meus olhos te viram, 
Meu coração te adorou, 
Na cadeia de teus braços 
Minh'alma presa ficou. 

Se tens empenho em saber 
Qual é o canto adorado, 
Vae ao cote da Severa 
Pergunta pelo seu fado. 

De que me serve desfructar 
Os bens que a fortuna dá, 
Sem ter nada vive um pobre. 
Mas sem ti quem viverá ? 

N 'estes ditosos logares, 
Onde me fica o coração, 
A meus ternos ais responde, 
Que merecem a compaixão. 

Já fui teu, mas não o nego, 
O mundo pôde saber, 
Que hoje em ser teu só tenho 
A gloria de o não ser. 



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120 Empreza da Historia de Portugal 



Oh mulher, que me mataste, 
Dá- me agora a sepultura ! 
Já que a morte me causaste, 
O meu mal já não tem cura ! 

Oh mulher, que me deixaste, 
Do que eu bem certo estou, 
Nem ao menos te lembraste 
Do que entre nós se passou ! 

Muito vence quem se calia, 
Mais vence quem não diz tudo, 
Porque em certas occasiões 
Yale mais o fazer- se mudo. 

Meu amor, quem calla vence, 
Mais vence quem não diz nada, 
Porque em certas occasiões 
Yale mais a bocca callada. 

Tu te queixas, eu me queixo, 
Qual de nós terá razão ? 
Tu te queixas dos meus zelos, 
Eu da tua ingratidão. 

Quando Christo resuscitou, 
Estalaram as pedras duras, 
Cobriu se o mundo de trevas, 
E abriram -se as sepulturas. 

Oh homem, se és cantador, 
Ha s de me explicar, 
Como Deus formou o mundo, 
Sósinho e sem se cançar ? 

Coração tem duas pennas, 
Qual d'ellas a mais pungente, 
Que uma diz o que escreve, 
E outra escreve o que sente. 

Quiz pezar nossa amizade, 
Sem usar de manha ou arte, 
Ergue a mão, deixa -a balança. . 
Pende mais p'rá minha parte. 



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Historia do Fado 121 



Tuas cantigas modernas 
Quasi que todas sâo mochas, 
E de nascença vem coxas, 
As minhas tem duas pernas. ' 

Meu coração é relógio, 
MinValma dá badalladas, 
No dia em que te não vejo, 
Trago as horas contadas. 

Indo um dia passeiar, 
De capote amantilhado, 
Entrei, sem saber que entrava. 
N'uma casa de bom fado. 

Tem falta de patriotismo 
Quem do fado disser mal, 
Porque este canto é 
Pura invenção nacional. 

De certo ninguém resiste 
A largar uma piada, 
Se apparecer o pianinho 
Em tarde de patuscada, 

Para cantar, a Custodia 
Ou a Malocas do Galvão, 
P'ra bater o fado não ha 
Como a Amélia do Paixão. 

Praguentos, arreda lá, 
Bojado não digaes mal, 
Honra aos bel los cantadores, 
Honra ao fado nacional ! 

Oh seu cantador lampeiro, 
Veja lá no que se estriba, 
Ainda ha de vir o primeiro, 
Que me ha de ficar de riba ! 

Senhores, que m -ouvindo estão 
Em este recinto honrado, 
Não julguem de mim fadista 
Só por eu cantar o fado. 



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122 Empreza da Histotia de Portugal 



Oh vida da minha vida. 
Oh vida do meu viver! 
Para que quero eu a vida 
Se eu nasci para morrer ! 

Oh vida da minha vida, 
Da minha vida não sei ! 
Sei o que tenho passado, 
O que hei de passar não sei. 

Chora, chora desgraçado, 
Que o teu mal já tem raiz ! 
Não digas que eu fui culpado 
Da tua sorte infeliz. 

Dá-me a flor emmurchecida 
Dos teus seios ao calor, 
Dama pallida, sem vida, 
Dá-m'a sem brilho, sem cor. 

O canto mais popular, 
Mais terno mais sentidinho, 
E' decerto, e sem questão, 
O sympathico fadinho. 

Eu canto ao som da guitarra 
O fadinho nacional, 
Quando ao som da banza canto 
Dou alivios ao meu mal. 

Não sei qual pena é maior, 
Qual é mais de lastimar, 
Se vêr um homem morrer, 
Be vêr um homem chorar. 

Amar não é crime, 
Não é crime não, 
Quem despreza au.or 
Não tem coração. 

Se eu fosse de Portugal 
Rei ao menos por um dia, 
De nobre, os foros daria, 
Ao fado nacional. 



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Historia do Fado 123 



N'uma noite d'aventura 
Tive um sonho bem feliz ! 
Sonhei que estava dormindo 
Nos braços de quem eu quiz ! 

Uma beijo dado no rosto, 
Sendo bem repenicado, 
Equivale a ouvir no fado 
Uma cantiga de gosto. 

Ha beijos de varias sortes, 
Como as boccas que os praticam, 
Ha beijos que mortificam, 
E ha beijos que causam mortes. 

Torradinhas com manteiga, 
Por cima café limão, 
Toda a facada tem cura 
Não chegando ao coração. 

Para as torradas manteiga, 
Por cima café limão, 
Canta lá o que quizcres. 
Que a mim não m 'enganas não. 

Quando Cbristo Senhor Nosso 
Descalço pelo mundo andou, 
Aquinta-leira morreu, 
Ao sabbado resuscitou. 

Já tive, agora não tenho, 
Por muitos fui estimado, 
Acabou- se o meu dinheiro, 
Já vou sendo desprezado. 

Os cegos que nascem cegos 
Passam a vida a cantar, 
Mas eu que nasci e ceguei, 
Passo a vida a chorar. 

Aqui, frui eu mil gozos, 
Aqui, gozei a ventura, 
Aqui, só tenho saudades, 
Aqui, minha sepultura. 



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124 Empreza ãa Historia de Portugal 



Oh tocador de viola, 
Repenica me esses dedos ! 
Se te faltarem as cordas, 
Aqui tens os meus cabelioa. 

O fado veio ao mundo 
N'um dia de primavera, 
Teve por berço a guitarra 
E por madrinha a Severa. 

Não ha dor que tanto custe 
Como a dor do coração, 
Todos os males tem cura, 
Só este mal é que não. 

Quem tem o amor careca 
Tem a morte á cabeceira, 
Quando vae para se erguer 
Dá co 'o s os olho: na caveira. 

Se ouvires dizer que eu morro, 
Não tenhas pena, meu bem, 
Que a sorte d'um desgraçado 
Não causa pena a ninguém. 

Fadistas são como os cucos , 
Sempre andam a dois e dois, 
Ainda Deus lhe ha de dar 
Aquillo que deu aos bois. 

Cupido apanhou um bico 
Lá na taberna de Baccho, 
Fez zangar a mãe maluca, 
Partiu a Mercúrio o caco. 

O meu coração, menina, 
Não é caixa nem bahú, 
Está fechado para todos, 
Aberto só para um. 

Quem disser que a vida acaba, 
Digo lhe eu que nunca amou, 
Quem deixou ficar saudades 
Nunca a vida abandonou. 



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Historia do Fado 125 



Quem canta o fado a atirar 
Está sujeito a mi) questões ; 
Quem tem amores tem zelos, 
Quem tem zelos tem paixões. 

Tu cantas bem não cantas mal, 
Garganta de pura neve, 
E's o copo crystalino, 
Onde o sol divino bebe ! 

Tu cantas bem não cantas mal , 
Oh garganta de marfim, 
Eu dava dez réis ás almas. 
Se cantara como a ti ! 

Eu hei de te amar aos mczes, 
Por na o andar ás semanas, 
Havemos de dormir ambos 
Porjnâo fazer duas camas 

Rapazes, quando eu morrer 
Vão-me entenar no Quintão, 
Deitado sob um tonel, 
Sendo a fronha um cangirão. 

Amar, morrer, padecer, 
Não pode ser tudo junto, 
Quem morreu acaba a vida, 
Quem ama padece muito. 

Quanto se sente na morte 
Quanto na ausência se sente, 
A morte é ausência eterna, 
A ausência é morte apparente. 

A guitarra para o fado, 
A viola para a canção, 
E para carinhos só tu, 
Amor do meu coração ! 

Já lá vae, já se acabou, 
O meu rir, o meu zombar ! 
Coração que livre estavas, 
Quem te mandou captivar ? 



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126 Empreza da Historia de Portugal 



O frade pediu á freira : 
Oiça-me de confissão ; 
£ a freira lhe respondeu : 
Me t ta me o livro na mão. 

Guitarra, minha guitarra, 
Solta gemidos e ais, 
Que os dias passam voando, 
E 03 prazeres não voltam mais ! 

O shah da Pérsia é sob'rano, 
Ah ! tem tudo quanto quer ! 
Muita somma de brilhantes, 
Muita somma de mulher. 

Ter amor é muito bom, 
Quando ha correspondência, 
Mas amar sem ser amado, 
Faz perder a paciência. 

Para as torradas manteiga, 
NSo de Cintra que tem ranço, 
Mesmo comendo torradas, 
Eu componho, canto e danso* 

Para as torradas manteiga, 
Eu canto, mas você toque, 
Haja um que nos governe, 
E nada de rei nem roque. 

Todos são de opinião 
Que a coisa não pega cá, 
Pois se pega a todo o passo 
O caminho Larmanjat. 

Podia o céo dar batatas, 
Na terra estreitas haver 
Mas eu deixar de te amar, 
Isso não podia ser. 

Eu hei de morrer cantando, 
Já que chorando nasci, 
Já que os gostos d'esta vida 
Se acabaram para mim. 



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Historia do Fado J27 



Eu quizera um só instante 
Apertar- te ao peito meu, 
Abrir meu peito 0~dizer-te : 
E'b minha, pois eu sou teu ! 

Já te esqueceste de mim, 
Oh ! morte devastadora ! 
Eu errei quando julguei 
Que eras minha protectora 

Folgar louco é illusão 
Torna o homen desgraçado, 
Perde dos pães o carinho, 
E' de amigos desprezado. 

Eu hei de amar uma pedra, 
Deixar o teu coração, 
Uma pedra não me deixa, 
Tu deixas- me sem razão. 

Oh morte, tyranna morte ! 
Eu de ti tenho mil queixas, 
Quem has de levar não levas, 
Quem has de deixar não deixas. 

O loureiro é temível, 

Eu não me temo de nada, 

Temo me da tua bocca, 

Que me dizem que é damnada. 

Joven linda abandonada, 
Só tu tiveste a dita, 
De entrar em meu coração, 
Uma sala tão bonita. 

Abre ta, pena constante, 
Serás minha sepultura ! 
Se meus ais te não abrandam 
Digo- te, pena, qu* és dura ! 

Hespanhol p'rá malaguenha, 
Portuguez p 'ró É l indo fado, 
Não ha, nem pode haver 
Canto a este comparado. 



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128 Empreza da Historia de Portugal 



Para o mar salta o banheiro, 
Dá-lhe a mão linda donzella ; 
As tranças boiando n'açua, 
Fazem- n'a ainda mais baila. 

Se te não amo falleço, 
£ se te amo ha quem me mate, 
De toda a maneira morro, 
Quero morrer a adorar- te. 

Não ha flor como o suspi o, 
Cá na minha opinião, 
Todas as flores se vendem, 
Só os suspiros se dão. 

Deus creou a borboleta 
Para nos campos voar, 
£ a ti, oh rosa branca. 
Para em meu peito viçar ! 

Oh castelio, não te rendas, 
Iça a bandeira se queres, 
Na batalha dos amores 
Vencem sempre as mulheres. 

Agora respondo eu 
A' flor que aqui cantou, 
Em que vaso é que nasceu, 
Em que jardim se creou ? 

Meninas que sois donzellas, 
Vede bem por onde andaes, 
Que a honra é como o vidro, 
Quebrando não solda mais I 

Quantas vezes, oh ingrato, 
Falsas promessas te ouvi, 
Os teus falsos juramentos 
Só agora os conheci. 

Tenho dentro do meu peito 
Duas penas a bulir, 
Uma diz que quer amores, 
Outra d'elles quer tugir. 



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AMBRÓSIO FERNANDES HAIA 
(Decano dos guitarristas Hsbonenses) 



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Historia do Fado 131 



Tu chamaste- me tua vida, 
Mas tua alma eu quero ser, 
Que a vida morre com o corpo, 
E a alma eterna ha de ser. 

A caveira de meu pae 
Sem ter língua me falou : 
Olha, filho, o triste estado, 
Em que a morte me tornou. 

Branco phanttsma se ergueu 
Por força de amor ardente, 
Foi celebrado o mysterio 
N'um sepulchro, tao somente. 

Adeus, caveira dos ossos 
Adeus, dos ossos caveira ! 
Estes meus e esses vossos 
Todos da mesma maneira. 

Primeiro homem foi Adão, 
E Eva a primeira mulher ; 
E ambos foram tentados 
Pelo poder de Lúcifer. s 

Altos céos que me roubaste 
Minha doce companhia ! 
Uma mãe que eu gozava ! 
Que tanto bem me queria ! 

O frade pediu á freira 
Um beijinho pela grade, 
A freira lhe respondeu : 
Vá 'p'rá missa senhor frade 

Primeiro homem foi Adão, 
E Eva da terra neta, 
O Moysés o rio passou, 
Discorre lá s'és poeta ! 

E'bo rei da estupidez, 
Da ignorância imperador, 
As tuas horrendas phrases 
Causam grandíssimo pavor. 



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132 Empreza da Historia de Portugal 



Canta tu, cantarei eu, 
Que o cantar é alegria, 
Também os anjos cantaram 
Louvores á Virgem Maria. 

Portugal, não esmoreças, 
Tem fé nas tuas bandeiras ! 
Ainda te has de ver feliz 
Entre as nações estrangeiras. 

Pias, mocho, a noite inteira, 
Lá na cruz do cemitério. 
P'ra que deixas tu o dia 
Pelas somb:as do mysterio ? 

Oh morte, cruel tyranna, t 
Oh parca dura, insoffrida!' 
De negros crepes te adornas, 
Só te alimentas da vida ! 

Eu sou Mar e tu és Terra, 
Qual terá maior va'or ? 
Eu tenho a belleza das aguas, 
Tu tens o aroma da flor. 

Brilha a lua com tristeza 
Nas lages das sepulturas, 
Os cyprestes rumorejam, 
Eis o fim das creaturas ! 

Eu sou Terra e tu és Mar, 
Qual terá maior riqueza ? 
Se tu tens bellos coraes, 
Eu encerro mais belleza. 

Anjo cahido uma vez 
E' banido entre os mortaes 
Porque as leis soci&es 
O entreolham de revéz. 

Que mais feliz não seria, 
Se eu fosse o mar rovoltose, 
Pois o teu olhar maldoso 
De mim jamais zombaria. 



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Historia do Fado 138 

Por tua immensa loucura, 
Tão devassa te tornaste ! 
Pae e mãe tudo deixaste 
Com pranto e com amargura. 

O malmequer é singello, 
Mas ostenta-se garrido, 
Em muito jardim florido, 
A tornar o campo bel lo. 

Na praia, mulher e filho 
Não se cançam d 'acenar 
Para o navio que balança 
Por sobre ao aguas do mar. 

P'ra desenhar a mulher 
Que é dócil, meiga e gentil, 
Não ha no mundo pincel, 
Não ha na terra buril. 

Violeta, formosa flor, 
Ninguém como eu te aprecia, 
Tua modéstia me encanta, 
Teu aroma me inebria. 

Houve um homem, um traidor, 
Que de meu corpo abusou, 
Um puro amor me jurou, 
Mas era falso esse amor; . 

O mar namora as estrellas, 
Vem as estrellas ao mar, 
Qual d'ellas mais pressurosa 
Para o amante beijar. 

Nada ha p'ra distrahir 
A travessa hypocondria, 
Como da pesca o recreio, 
Quando abunda a pescaria. 

Deu te a rosa a sua cor, 
Deu- te o céo o azul turqueza 
Deu- te a alvura o jasmim, 
£ a palmeira a gentileza. 



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134 Empreza da Historia de Portugal 

Eu fui aquella que disse, 
Encostada á solidão: 
Maldita seja a mulher 
Que por homens tem paixão. 

Em tudo sou infeliz, 
Até mesmo no cantar, 
Partem-se as cordas á lyra 
Quando a quero acompanhar. 

Fui ao Porto, fui a Braga, 
Também fui ao Limoeiro, 
Não achei melhor amigo 
Que a bolsa do meu diuheiro. 

Eu já quebrei o grilhão 
Com que o amor me prendia, 
Se eu soubesse eras ingrata, 
Nada de ti pretendia. 

Não canto por bem cantar, 
Nem por ter falas de amante, 
Eu canto para dar gosto 
A quem me pede que cante. 

Certa saloia que calça 
Sapatinho de tacão, 
Accendeu n'este meu peito 
Uma cratera, um vulcão. 

Oh tocador da guitarra, 
Dê me a sua linda mão, 
Porque me feriu as toeiras 
Da viola do coração ! 

Quero cantar e não posso, 
Falta me a respiração, 
Falta me a luz dos teus olhos, 
Amor do meu coração ! 

Os meus me abandonaram, 
Foram -se todos os meus, 
Entre os filhos da desgraça 
Só tenho a graça de Deus. 



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Historia do Fado 135 



O meu peito solitário 
£' um ninho de cantigas, 
Alli dormem, alli vivem, 
Esperando as raparigas. 

Vae-te, carta venturosa, 
Que lindos olhos vaes ver, 
Põe- te carta, de joelhos, 
Quando te forem a ler. 

A* ler ta, cantador, alerta ! 
A' lerta cantador, está ! 
Se encontra, deita por terra. 
Não perguntes quem vem lá. 

Tudo é luto, tudo é pranto, 
Ninguém deixa de estar triste, 
E' morta a nossa rainha, 
Estephania já nâo existe ! 

Menina, se sabe ler, 
Também sabe soletrar, 
Diga me lá por cantigas 
Quantos peixes tem o mar? 

Os peixes que tem o mar 
Navegam e vão ao fundo, 
Diga- me lá por cantigas 
Quantas almas ha no mundo ? 

As almas que ha no mundo, 
Cubro- as eu co' meu chapéo, 
Diga-me lá por cantigas 
Quantas estrellas ha no céo ? 

As estrellas que temo céo, 
Nem tu as sabes nem eu, 
Diga-me lá por cantigas 
Quantas ruas tem Vizeu? 

As ruas que tem Vizeu, 
Eu t'as vou explicar : 
São dezoito ao comprido, 
Dezenove a atravessar. 



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136 Empreza da Historia de Portugal 



Não ha arte n'este mundo 
Como a arte de roubar, 
Era de todas a melhor, 
Se a deixassem durar. 

Se te aborrece o querer- te, 
E' forçoso o desprezar- te, 
Ensina-me a aborrecer-te, 
Que eu não sei senão amar* te. 

Anda cá, meu bem, se queres 
Que a minha alma seja tua, 
Se é para castigo, basta, 
Se é de gosto, continua. 

Oh coração de trez azas, 
Dá-me uma, quero voar, 
Quero ir ao céo em vida, 
Em vindo torno-t'a a dar. 

Puz me a jogar cartas d'oiro 
N'uma meza de marfim, 
Cuidando eu que ganhava, 
Perdi c'o o meu Seraphim. 

Eu hei de ir ao céo, hei de ir, 
Heide de ir ao céo, de joelhos, 
Buscar uma roza aberta 
En f re dois cravos vermelhos. 

Lá no céo vae uma nuvem, 
Forrada de cor de rosa, 
Se a inveja fosse tinha, 
Muita gente era tinhosa. 

A viola pela prima, 
A prima pelo bordão, 
O amor pela palavra, 
A menina pela mão. 

A guitarra quer que eu toque, 
As cordas que eu enrouqueça, 
As meninas de Lisboa 
Querem que eu aqui padeça. 



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Historia do Fado 137 



A guitarra pede, pede, 
Eu bem a oiço pedir, 
Um travesseiro de rozas 
Para o tocador dormir. 

Foi-sea graça e formosura, 
Dos festins do lupanar, 
Continua a porta aberta, 
Mas ninguém lá quer entrar. 

Chorae, rapazes, chora e, 
Guitarra toca com dor, 
Morreu a Borboleta 
Queimada em fogo d'amor ! 

Nada ha de que mais goste, 
Nada mais do meu agrado, 
Que ir no domingo ás hortas, 
No sabb'do esperar o gado. 

Eu casei com uma veiha, 
Por causa da filharada, 
Lá ao fim dos nove mezes 
Teve dez d'uma ninhada. 

Quatro e cinco são nove, 
Com mais nove são dezoito, 
E mais seis são vinte e quatro, 
E quatro são vinte e oito. 

Eu hei de casar co'um cozo, 
Que me liei de fartar de rir, 
Fazer lhe a cama bem alta 
Só para o coxo não subir. 

Quando t'eu vi, oh freirinha, 
Encostadinha ao mirante, 
Logo meu coração disse : 
Tu, freirinha, tens amante. 

Foi Deus servido levar 
Da nobreza a fidalguia, 
Já morreu o pae dos pobres, 
O conde da Anadia. 



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138 Empreza da Historia de Portugal 



Vinde vêr, oh sociedade, 
O que é uma prisão, 
Escola dos desgraçados, 
Caminho da perdição! 

O tocador da guitarra 
Na verdade toca bem, 
Mas toca muito apressado, 
Julga que lhe foge alguém. 

Guitarra, minha guitarra, 
Estás aqui, estás no seguro, 
Vou te mandar pôr no prego 
Em dez tostões, fora o juro. 

Toca me n'essa guitarra, 

Que m'a faças retinir, 

Tenho os meus amores bem longe, 

Que m'os faças aqui vir. 

A guitarra tem um 8 
Debaixo do cavalléte, 
O tocador que a toca 
É um faia de barrete. 

Oh guitarra, oh guitarra, 
Quebrada te vira eu, 
Toda a semana na "borga," 
Levas melhor vida qu'eu ! 

Já não canto á guitarra, 
Nem meu coração me ajuda, 
Morreu-me o meu pae ha pouco 
Sou filho d 'uma viuva. 

A guitarra que se toca 
E ' de pau de marmeleiro, 
O tocador que a toca 
Quer se casar qu'é solteiro. 

Bravo, senhor cantador, 
Honra a Vossa Excellencia, 
Metteu n'Africa uma lança, 
Cantou com toda a decência ! 



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Historia do Fado 



139 



Fiz ponto àe interrogação 
Com reticencias e tal. . . 
Já fiz também os' dois pontos, 
Agora... ponto final. 

Vou deixar este recinto 
De tão bella companhia, 
No peito levo a saudade, 
Adeus, até outro dia. 

Na mesma campa nasceram 
Duss roseiras a par, 
Conforme o vento as movia, 
Iam se as rosas beijar. 

Porei teu corpo onduloso 
Cuja graça me seduz, 
N'um altar feito de gozo, 
N'um relicário de luz. 

Já fiz o meu testamento, 
Deixo o corpo a mais de dez, 
Não quero que a terra coma. 
Nem mesmo as unhas dos pés. 

Rapazes, quando eu morrer, 
Levem-me devagarinho, 
Façam cova d'aguaardente, 
Por cima cubram com vinho. 

Tenho somno, vou dormir, 
A' cama me vou deitar, 
Levo* te no pensamento 
Comtigo hei de sonhar. 

Eu pedi a morte a Deus 
Agora já estou doente, 
Faça Deus o que quizer, 
Eu não hei de viver sempre. 

Amo o amor sympathico 
£ os gazes alcoólicos 
O amor machiavelico 
£ os olhos diabólicos. 



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140 Empreza da Historia de Portugal 



Eu já vi um cego- a lêr, 
Um modo a cantar o fado, 
Tocar guitarra um maneta, 
Um cozo o sapateado. 

E' digna de compaixão 
A joven desventurada, 
Que perdeu da honra a flor, 
Sendo depois desprezada. 

Por causa d'uma «gajona» 
Para quem me puz a «adicar» 
Fui parar ao «estarim», 
Sem me poder «esgueirar». 

Porque atirei um «aundéque> 
A um «gajo» «todo liró», 
Fui bailar ao «Verde- li mo*, 
Fui parar ao «chelindró» 

Tenho catarrho nas unhas, 
Dores de tripas no cachaço, 
Sou maneta d 'este olho, 
Nâo vejo nada d'um braço. 

O Collares foi-se casar 
Com a genebra d'Hol!anda, 
O Torres, que a namorava, 
Ficou de queixos á banda. 

Todo o rapaz que se obriga 
Deveras a amar o fado, 
Deve ter no braço marcado 
O nome da sua amiga. 

Quem and& no triste fado 
Nunca pôde ter bom fim, 
Quem bem vive, mal acaba, 
Ponham os olhos em mim. 

Tudo se vende no mundo, 
Do oiro tudo depende, 
Tudo, excepto o coração, 
O coração nâo se vende. 



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Historia do Fado 141 



Olha que é sombra o passado, 
E névoa densa o porvir, 
£' relâmpago o presente, 
A vida é fumo a subir. 

E' sonho o prazer fugaz, 
E' outro sonho a belleza, 
Nada no mundo é durável, 
E só na morte ha certeza. 

A's vezes busco a Fortuna, 
Bato- lhe á porta também, 
Nunca a vejo nem encontro, 
Não me responde ninguém. 

Todo o homem com dinheiro 
Tem amigos com fartura. 
Porém, se chega a ser pobre, 
Ninguém jamais o procura. 

São como a sombra as mulheres, 
Eguai condão as anima, 
Seguem quem d'cllas saffasta, 
Fogem de quem s'approxima. 

Quando eu contemplo no céo 
Duas estreitas unidas, 
Creio que eão duas almas, 
Qu' entrelaçaram as vidas. 

Quanto fazes também faço, 
Em mim teu espelho existe, 
Se te vejo alegre, alegre, 
Em tu estando triste, triste. 

Oh esperança da minha vida, 
Porque me vaes a fugir? 
Indo comtigo as promessas, 
Que não chegaste a cumprir. 

Tudo quanto é verde sécca, 
Chegando o pino do verão, 
Tudo se torna a renovar, 
Só a mocidade não. 



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142 Empreza ãa HUtoria de Portugal 

Tenciono mandar fazer, 
Que não posso fazer tudo, 
Um barco de paciência 
P'ra poder viver no mando. 

Quatro flores em meu peito 
Fizeram sociedade, 
Malmequer, autor-perfeito, 
Um martyrio e uma saudade. 

Já te quiz, já te não quero, 
Já te perdi affeição, 
J á te varri á vdBsoura 
PVa fora do coração. 

Quando me dizem mal de ti 
A' conversa mudo o tom, 
Não posso dizer que és mau, 
Não posso affirmar que és bom. 

Todo o que perde a ventura, 
Sonho breve de um momento, 
Arrasta sempre com sigo 
Na memoria o seu tormento. 

Ausência tem uma filha, 
Que se chama a saudade, 
Eu sustento mãe e filha 
Bem contra minha vontade. 

Os que em terra ficam vendo 
A barca em que os outros vão, 
Dizem, ao vel-a affa6tar-se : 
Quem sabe se voltarão ! 

Debaixo dos verdes ramos , ' 
Dorme agora o meu amado, 
Não cantem mais, passarinhos } 
Não o accordem, cuidado! 

D'entre as cem dificuldades 
Que o amor resume em si, 
Com trabalho e paciência 
NoVenta e nove venci. 



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Historia do Fado 143 



Chamei pela morte e disse : 
E' tempo, vem- me buscar, 
Já estou cançado da vida, 
£' preciso descançar. 

Por te amar perdi a vida, 
Mas não deixei de te querer, 
Quem me dera ter mil vidas, 
Para todas mil eu perder. 

Tenciono mandar fazer 
Um barco de noz qu' é forte, 
Para embarcar saudades, 
Que me teem posto á morte. 

A toda a magua do mundo 
Consolo as lagrimas são, 
Lagrimas sâo para a dor 
A mais súbita expressão. 

Dei-te um beijo, coraste. 
Dei te segundo, sorriste, 
Todos os maiB que levaste, 
Foste tu que m'os pediste. 

Oh guitarra, oh guitarra, 
Guitarra dos meus anhelos, 
Se te partirem as cordas, 
Aqui tens os meus cabellos. 

Por teu respeito, mulher, 
Perdi toda a liberdade, 
Acho me preso em teus braços 
Por minha livre vontade. 

Apalpei o lado esquerdo, 
Não achei o coração. 
De repente me lembrei, 
Que estava na tua mão. 

Duas flores alem estão, 
Qual será a mais formosa ? 
Se é na fragrância — o lyrio, 
Se na formosura — a rosa. 



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144 Empreza da Historia de Portugal 



Quem se viu como eu me vi 
Quem te * ê como eu me vejo, 
Já não tem pena de nada, 
Só da morte tem desejo. 

A' beira d'alvo regato 
Um Jyrio se debruçou, 
A pura agua crystaliina 
Com amor o retratou. 

Já não ha gozo na vida, 
Que me alegre o coração, 
Nem o bom canto, das aves 
Nas bellas manhãs de veião. 

Eu não posso passar sem ti, 
Nem tu, lindo amor, sem mim, 
Anda cá, oh rosa branca, 
Creada no meu jardim. 

Quem me dera amar um dia, 
Ter amor, ter afteição, 
Ser escravo e dar a vida 
Por um terno coração. 

No mundo tudo é engano, 
Em que a vida se entretém, . 
Amisades são mentiras, 
Só ha o amor do mãe. 

Com a morte acaba tudo, • 
Nas campas a paz «habita. 
Lá não ee encontra a saudade, 
Lá não se encontra a desdita. 

O rouxinol na balseira 
Desfere alegres trinados, 
Tu, minha pobre guitarra, 
Só tens sons apaixonados / 



Entre as campas solitárias 
Eu me fui refugiar, 
E d'entre ellas ouvi dizer : 
Deixa os mortos repousar. 



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FADISTAS DO TEMPO DA SEVERA 



10 



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Historia do Fado 147 



O rouxinol canta amores, 
Os amores fazem o coro, 
E surge o sol radiante 
Entre mil scentelhas d'ouro: 

Se fosse melro bem negro, 
D'estes de bico amarei lo, 
Iria fazer meu ninho 
Nas tranças do teu cabello. 

Escondido n'um arbusto, 
Q'um alvo rio banhava, 
O mavioso rouxinol 
À meiga voz desatava. 

As pulgas que á noite saltam 
Nos lençoes em seus folguedos, 
Sabein*sim, mas nâo revelam 
D'aquella cama os eegredos. 

Vamos vibrar os arpejos 
D'uma serenata louca. 
As notas serão meus beijos, 
A guitarra a tua bocca. 

Já nâo posso ser contente, 
Tenho a esperança perdida, 
Ando perdido entre a gente, 
Não morro, nem tenho vida. 

Alveja ao clarão da lua 
Branca aldeiatadormecida, 
No agudo campanário 
Vella a cruz da sua ermida. 

Perguntei á sociedade, 
Da qual amo e preso a vida, 
Se é cobarde ou valente 
O homem que se suicida. 

Porque nâo foges, nâo voas. 
Coração, porque ha^de ser ? 
De pedra no resistir, 
De cera no padecer ! 



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148 Empreza da Historia de Portugal 



Em desprezada caveira 
Que n'um canto asylo encontrou, 
Uma rosa perfumada 
Inconsciente alli brotou. 

A morte te deu a vida, 
Junto da morte nasceste, 
A vida te deu a morte, 
Junto da morte morreste. 

Oh, pallidas madrugadas, 
Já tenho saudades tuas ! 
Do choro d$s guitarradas, 
GemendQ o fado das 'ruas ! 



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VI 



Oa cantadores do fado.— De D. José de Almada á Custodia. — 
Da Custodia ao Calcinhas.— Do Calcinhas á Cesaria. — Da 
Cesaria ao Hylario. — Os cantadores modernos. — Ás canta- 
doras modernas. — Uma cantiga descriptiva. — Os cantado- 
res provincianos. 



Enunciaremos agora os mais notáveis cantadores do 
fado. D. José de Almada e Lencaslre, escriptor e jor- 
nalista, não tocava guitarra, mas cantava o fado de uma 
maneira verdadeiramente commovedora. D. José de Al- 
mada era filho natural do visconde de Soulto de El-Rd 
(que morava ao Campo de SanfAnna) e de uma cigana. 
Em pequeno, como a mãe habitava no largo da Bem- 
postinha, andava por alli feito gaiato, acarretando até 
bilhas de agua do chafariz do Campo de SanfAnna. 
Pozeramlhe a alcunha de Pirralho. Afflrma-se que a 
viscondessa de Soutlo de El-Rei— uma santa e virtuosa 
senhora— sabendo da existência do fillío de seu marido, 
dava, a occultas d'este, dinheiro para o petiz ir á es- 
cola e vestir se. 

D. José de Almada aprendeu as primeiras leltras 
com grande aproveitamento, revelando logo alta intel- 



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150 Empreza da Historia de Portugal 

ligencia. Quando já rapazote, foi para casa do pae, por- 
que a viscondessa dissera a seu marido que considerava 
aquelle rapaz comoíilho d'ella,e que, portanto, o logar 
do pequerrucho era em sua casa. Estudou com distinc- 
ção no Curso Superior de Lettras e escreveu varias 
peças tbeatraes como : a Prophecia ou a Queda de Je- 
rusalém, que deu enchentes successivas ao theatro de 
D. Maria II, e as comedias : Um jantar amargurado, 
Vamos para Carriche—que fez época nas Variedades 
— ,a Licçãn, o desforço, Um author paleado^ por lhe 
terem pateado A meia do saloio, etc. Escreveu também 
o Orador sagrado, collecção de sermões, e vendeu mui- 
tos ao padre Aguilar, que os fazia passar como seus. 
Foi redactor do Século XIX—onáe escreveu brilhantes 
artigos, sendo o mais notável aquelle que intitulou Ave 
Crux! — , da Nação e do Catholico, folhetinisou no Jor- 
nal do Porto sob o pseudonymo de Victor, e concorreu 
a uma cadeira do Curso Superior de Lettras, quando 
este se creou. 

D. José de Almada, homem de caracter exemplaris- 
simo, gostava muito de ouvir cantar o fad», e elle 
mesmo o cantava deliciosamente, mas só na intimidade 
e entre amigos, porque, na guita rn, sõ sabia tirar os 
arpejos para acompanhar o canto. O seu mote dilecto 
era este: 

O pobresinho que pede 
Arrimado ao seu bordão, 
Tanta caramunba faz, 
Que alguma coisa lhe dào. 

Os amigos Íntimos de D. José de Almada eram, alem 
dos redactores d'4 Nação, Luiz de Vasconcellos de 
Azevedo .e Silva, D. António de Lacerda, os velhos 
actores do ihealro de D. Maria II — Epiphanio, Tasso, 
Theodorico, Assis e Rosa, José Maria de Andrade Per- 



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Historia do Fado 151 

reira, por alcunha litteraio dos pés grandes, Baltha- 
zar de Souza Menezes, pae do gazetilheiro e revisteiro 
Argus e grande amador do fado, Luiz de Araújo e o 
Figueiredo do 14 (que parava muito na botica da praça 
da Alegria). O Sousa do Casacão também era muito 
amigo de D. José de Almada, e com elle realisava bellos 
duettos de canto de fado. Todos elles iam, a mudo, 
jantar á faltada Padeira da Praça da Alegria, onde se 
cosinhava o saboroso pato com arroz. * Ahi havia sem- 
pre cantoria até á noite, á hora em que sabiam todos 
para o theatro. 

D.José de Almada morava n'uma hospedaria esta- 
belecida no segundo andar do prédio que faz esquina 
para o Rocio e largo de S. Domingos, em cuja loja 
estava a casa de pasto Estreita. A'quella casa subia, 
muitas vezes, o Luiz de Vasconcellos, redactor da Lei, 
p3ra ouvir D José de Almada cantar ofadinho nacio- 
nal com musica religiosa, conforme a expressão usada 
por aquelle illustrissimo cantador. E este escriptor, que 
viveu sob o regimen fatal do romantismo e que adorou 
o fado como se adora a musa, merece bem uma lagri- 
ma e uma saudade. .. 

Damas e o Bagre foram os dois mais notáveis can- 
tadores antigos. O Damas - cantador fino— cantava ás 
flores, tinha bonito estylo e bonita voz. Realçava o seu 
canto por estes dois predicados essenciaes n'um bom 
cantador. O tocador que, ordinariamente, o acompa- 
nhava era o famoso António Casaca. O Damas refor- 
mou o canto do fado, foi o Calcinhas d'aquelle tempo. 
Era de Alfama, sapateiro e filho do Alcochete, um que 
fizera parte da quadrilha do Diogo Alves e que exer- 
ceu, depois, as funcções de agente da policia secreta. 

1 A Padeira da Praça da Alegria já existia ena 1846. 



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152 Empreza da Historia de Portugal 

O Damas morreu em 1865, pouco mais ou menos, là 
para as bandas do Limoeiro, onde morava. Eis um 
mote d'elle : 

Musa, in8pira-me teu estro, 
Já a doce lyra soa, 
Permitte que eu diga em verso 
O mal que me magoa. 

Bagre tinha voz roufenha e obra muito menos in- 
teressante. Dois motes do Bagre eram estes: 

Tenho* um papagaio amarello, 
Creado nos Olivaes, 
Tenho uma pulga parida 
Com trinta e cinco pardaes. 

Cantar e saber cantar 
Sào dois pontos delicados, 
Os que cantam são sem conto, 
Os que sabem são contados. 

O Pedro Banana, cantador alfamista de linda voz, vi- 
nha muito á Mouraria para cantar os versos dos poe- 
tas pedestres, esses que não sonham em encerrar na 
musica dos rylhmos poéticos a chamma dos pensa- 
mentos generosos e o frémito das caricias de amor, 
como se encerra um vinho precioso n'ura frasco in- 
crustado de geminas. Uma vez, em Alfama, um fadis- 
ta, a quem elle supplantara na cantadoria, mimoseou- 
o com uma facada. 

O Ignacio Torto, charuteiro, cantador de Alfama, 
cantava com o Damas. O Pizão, carpinteiro, hoje asy- 
lado, habitava para os lados de Alcântara, e cantava 
na Mouraria; e o Pizâo sobrinho, cordoeiro, também 
vinha cantar á Mouraria, que era, por assim dizer, o 
sacrum flumen onde se fazia o baptismo dos novos 
adeptos do fado. Um grande cantador de fado, ha trinta 



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Historia do Fado 153 

annos, era o Pedro, cocheiro do marquez de Vianna, 
valente batedor que balia nas esperas de toiros, guian- 
do um carrinho levíssimo, a que tinham posto o no- 
me de giraldinha* 

Outros cantadores da época de 1860 a 1875 eram: 
o Neves da fabrica de phosphoros, o José Maria En- 
guia (de Alfama), o Aquino (da Graça), o Cag... di- 
nheiro (da Mouraria), que cantava menos mal e agora 
governa a vida vendendo bilhetes á porta dos theatros, 
e o cocheiro Marádas, grande batedor, que morreu toi- 
reando a cavallo na Nazareth. 

A esta plêiade pertence o Joaquim Enguia, um guitar- 
rista cego que cantava o fado pas hortas. Pertencem, 
pouco mais ou menos á mesma época, os seguintes 
cantadores: o Rachado, de Sacavém, o Machado, do 
Campo Grande, o Farello, de Azeitão, o José Chapim^ 
dos Terramotos, o José Cecilio, carpinteiro da Azenha, 
o Adelino, de Coimbra, o Chico, o Chato, o José Maria 
Artilheiro, o preto Martinho, creado de umas fidalgas 
aos Anjos, o famigerado Luiz Palhinhas e o Miguel Cal- 
ceteiro. Podemos accrescentar-lhes mais os seguintes 
cantadores e authores: Sebastião da Víctoria, carpin-' 
teiro, do Calhariz de Bemflca, e Carlos Peixinho, tece- 
lão, irmão do velho toureiro Peixinho; e os seguintes 
cantadores não auctores: Joaquim Ferreira, do Calha- 
riz de Bemflca, e o cautelleiro Pontapé na cara. 

De entre 1875 e 1880, citaremos estes cantadores: 
o Sebastião polidor, o Theotonio carpinteiro, o Alfredo 
Bacalhau, carpinteiro, e a Emilia do Bello, cigarreira. 

Nos tempos do conde da Anadia, floresceu uma can- 
tadora de primeira ordem — a Custodia. Formosa, al- 
ta, com os glóbulos sanguíneos carregados da força 
eléctrica da mocidade, dotada de boa figura e de bo- 
nita voz, cantava esplendidamente os /atfo&gsobretn- 



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154 Empreza da Historia de Portugal 

do o do Anadia, era cuja execução era inexeedivel Fa 
cil lhe foi, portanto, conquistar popularidade, apezar 
de pertencer ao tiers élat da galanteria encurralada na 
travessa dos Fieis de Deus. Custodia Maria — assim se 
chamava ella — cantou primeiramente o fado da Per- 
siganga, contemporâneo do fado do Anadia, e depois 
é que cantou este, ensinado pelo Botas toureiro. Muitas 
vezes se fez ouvir, perante numeroso auditório, na es- 
talagem que fica por detraz do theatro de D. Maria II. 
O fado da Custodia era composição d % ella mesma e de 
difflcillima execução. Foi o cantador Paixão quem pri- 
meiro lh'o apanhou de ouvido e tocou na guitarra. 
A voz da Custodia, pura como crystal, vibrante como 
o vermelho de uma granada , e de uma grande facili- 
dade ascendente, escalava, com rara elasticidade, os 
mais escarpados cumes da gamma chromatica. A Cus- 
todia realisava o quadrado da hypothenusa da arte fa- 
distense: boniteza, bella voz, audácia e desenvoltura 

Dois motes que ella glosava frequentemente eram os 
seguintes : 

Ç*te meu cantar é arte, 
E condão que Deus me deu, 
Pois arreia o teu estandarte, 
Que começo a içar o meu. 

Fui ao jardim d'assucenas, 
Onde a Primavera nasce, 
Não achei flor mais linda 
Que comtigo comparasse. 

A Custodia amancebou se com o valente António 
Feital, chalante ou contractador de gado, irmão do 
Ignacio Mastaréu. marujo, e filho de uma mulher que 
Unha a quinta fronteira á casa do conde da Anadia a 
Entre- Muros, para onde ella mudou residência e on^e 



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Historia do Fado 155 

morreu. Com a sua morte, apagou se um dos mais 
flammantes sorrisos da Lisboa fadista . . . 

rara mqitos dos que vão beber na lonte sagrada da 
recordação, a Custodia foi a suprema oantarina de 
faio que tem existido. Estes collocam-n'a acima dj Ce 
sa ria — estreita d j primeira grandeza na plêiade dos 
grandes cantadores. O encanto vencedor da arte espe- 
cialíssima da Custodia, segundo a especialíssima estbe 
Uca musical do fado, não se pôde definir, porque a de- 
finição etherisar-se-hia e desappareceria como o espi 
rito d; nm philtro. Debaixo d'este restricto ponto de 
vista, a Custodia era pourrie de talents tfagtément, co- 
mo diziam os Goncourts na Retiée Mmtperin. Soube 
deixar uma dessas recordações categorisadas entre as 
reminiscências singulares, que fluctuam como cortiça 
na superfície da nossa memoria. Foi um sol radian e 
do fado, foi consagrada nos altares da gloria fadista. 

No Bernardino Ferreira Saldanha e no cordoeiro João 
da Matta, dois bons cantadores, predominava o canto á 
Escriptura. O primeiro é de Queluz e tem casa de ven- 
da na Porcalhola. Bernardino Ferreira Saldanha foi fer- 
reiro e estabeleceu-se depois com casa de venda de vi- 
nho e comida n'aquella localidade. Conta agora 80 an- 
nos, sendo, portanto, o decano dos cantadores. Foi no- 
tável caniador e auctor, talvez o único que cantasse 
versos exclusivamente seus Principiou por cantar á 
de garrada e ao fandango, canto que é feito de impro- 
viso, por ter de se cingir á deixa do adversário, e, 
na resposta a dar-lhe, ter de fazer rima com a palavra 
com que este terminou. Segundo informações que 
recebemos do próprio Bernardino Saldanha, os prin- 
cipaes cantadores á desgarrada e ao fandango— ha ses 
senta annos bem puxados - eram: o Aldeia, o José 
Moleirwho, de Aidea-Gallega e o bufarinheiro Manoel 
Simões. 



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156 Empreza da Histoi-ia de Portugal 

Quando se principiou a cantar o fado, foi posto de 
parte o canto do fandango, e o Bernardino Saldanha 
abandonou este para encetar aquelle, que começou en- 
tão a ser moda popular. Bernardino Saldanha eviden- 
ciou -se como improvisador hors ligne n'esse terno fado, 
na popular cantiga que se diria ter brotado de algum 
sonho oriental, de um d'esses sonhos cheios de phos- 
phorescencias, de brilhos estellantes, de lantejoulamen- 
tos metallicos, de um desses sonhos innarraveis em que 
se vêem catadupas de soes liquefeitos cahindo da Eter- 
nidade no Infinito... 

Segue-se uma cantiga de fado^ original do Bernar- 
dino Saldanha: 

O dinheiro é úm bom metal, 
Grande coisa é podei o ter, 
A uru dá felicidade, 
A outros deita- os a perder. 

Diabólicas invenções 
Esta obra do dinheiro, 
E' dos valentes primeiro, 
E' a força das nações ; 
Ha homens que teem milhões, 
Ontros nào teem um real, 
Quem muito tem, muito vale, 
E' o dictado h espanhol, 
PVa tudo que cobre o sol 
O dinheiro é um bom metal. 

Cá no meu fraco sentido, 
Assim penso, amigos meus, 
O dinheiro é mais que Deus, 
Deus por elle foi vendido ; 
A quem falta oiro luzido 
Não tem força nem tem poder, 
Embora tenha o saber 
Pouca gente lhe dá valor, 
Seja de que sorte elle fôr^ 
Grande coisa é podei o ter. 



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Historia do Fado 157 

O dinheiro tudo encobre, 
Quem o tem, tem estimação, 
Seja assassino ou ladrão 
E' reputado como nobre; 
De que serve honrado e pobre 
E só fallar a verdade ? 
Na roda da sociedade 
Nâo figura porque não tem, 
Mas um homem portar- se bem 
A uns dá felicidade. 

Sem dinheiro nâo se é nada, 
Não se tem força nem valia, 
E* a planta que se cria 
Sem nunca ser cultivada ; 
Gente ao dinheiro agarrada 
E* bem capaz de o morder, 
Quantos tem qu'rido enriquecer 
Pelo meio da ambição! 
A uns vae a coisa a feição, 
E a outros deita os a perder. 

Seguem-se alguns motes originaes de Bernardino 
Saldanha : 

Duhs coisas ha no mundo 
Que eu não posso comprehender : 
Que é o ser padre e peccar, 
Ser cirurgião e morrer. 

Oh senhor padre, eu pequei, 
Eu fiz um grande peccado, 
Por ter dado á sexta-feira 
Um beijo ao meu namorado. 

O pobre do Zé -Povinho 
Por todos é enganado, 
Ainda corre a foguetes, 
E por fim fica pasmado. 

Quando Jesus falleceu 
Quebraram-se as pedras duras, 
Tremeu o céo e a terra 
E abriram-se as sepulturas. 



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Iõ8 Empreza da Historia de Portugal 

Seguem-se três moles de João da Malta* que cantava 
obra dos outros: 

Subi ao teu pensamento, 
Nunca tão alto me vi, 
Descahi da tua graça, 
Outro subiu e eu desci. 

Escrevi ao Deus Cupido 
Uma carta a perguntar : 
Se um amor offendido 
Devia deixar de amar. 

Vive o artista no mundo, 
Noite e dia a trabalhar, 
Por fim, desgraçadamente, 
Seus dias vem a acabar. 

Na casa do Silvestre Tanoeiro, na rua do Arco do 
Bandeira, realisaram-se muitas sessões musicaes de fa- 
do, em que tomou parte o Bernardino Saldanha. 

Falua, grande cantador no canto a atirar ou ao 
desafio, era do Seixal e andava principalmente pelo 
Bairro-AIto. Havia outro cantador notável n'este género, 
o David. E o Augusto Tecelão, cantador de Alfama, 
frequentava muito a Mouraria ha trinta e tantos annos. 

José Luiz Peixoto, conhecido por José Borrego, tor- 
neiro na Calçada de SanfAnna, possuia certa graça fac- 
ceciosa no que cantava e dispunha de uma voz aguda, 
que se ouvia muito longe. O Maia guitarrista acompa- 
nhouo algumas vezes. O José Borrego e outro canta- 
dor que cantava muito bem, o José da Burra, iam 
muito ás esperas de toiros no Campo-Pequeno. O José 
da Barra trabalhou como cocheiro do Silvestre dos 
omnibus e morreu tysico. José Borrego e José da Burra 
foram dois cantadores do género puramente fadista, 
cantando com tonalidades roucas e soluçado langor, 



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Historia do Fado 159 

esmaltando se de todos os quindins fadistaríos, dando a 
ullima formula e o ultimo tic em moda na arte. 

Seguem-se quatro motes de José Borrego : 

Se tens valor de matar-me, 
Tyranna, fere me o peito, 
Que eu também tenho valor 
De morrer por teu respeito ! 

Fui a Bellas p'ra vêr Bellas, 
£ ás bellas Bellas lhes dei, 
Bellas eomo ha em Bellas, 
Bellas bellas nâo encontrei. 

No Paço do Bemformoso 
Encontrei a minha amante, 
Ella riu- se e eu . . . chorei, 
Foi um passo bem galante. 

Puz-me a mijar de joelhos 
P'ra nâo sujar o capote, 
Levantei me e dei . . . dois pulos, 
Glosem me lá este mote. 

O mote predito Uo do José da Burra era este : 

Eu ando como um cãoainho 
Farejando após de ti, 
Tu me foges, eu te sigo, 
Não tens compaixão de mim. 

Por occasiao da morte de José Borrego, houve um 
poeta especialista, o Adrião, que dedicou estes versos 
do fado á sua memoria : (*) 

D'este mundo mais um ente 
 cruel morte roubou : 
Chorem do canto amadores, 
Joié Borrego expirou I 

(*) Versos publicados n'0 Pianinho. 



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160 Empreza da Historia de Portugal 

O parca, potente horrível, 
Com o fero poder »teu, 
Cobriste com negro véu 
Quem p'ra nós era aprazível, 
Teu furor é bem temível, 
Não poupas nenhum vivente ; 
Com tua ira imponente 
Affrontaste a sociedade, 
Levando p'ra eternidade 
D'este mundo mais um ente. 

Era um artista decente, 
Laborioso e honrado, 
Por isso, bem estimado 
Foi sempre de toda a gente ; 
A prova é que ultimamente, 
Quando a doença o cercou, 
Muitos amigos achou 
P'ra conforto do seu mal 
Esse infeliz, que afinal 
A cruel morte roubou ! 

De pequeno se inclinou 
Ao doce canto do fado, 
E seu estylo engraçado 
A fama lhe conquistou. 
Os loiros que elle alcançou 
Não foram meros favores, 
Mas sim merecidos louvores 
Ganhos pelo e&tylo seu ; 
E agora que elle morreu, 
Chorem do canto amadores ! 

Na classe de cantador 
Foi tido por cavalheiro ; 
Em decência era o primeiro. 
Não tinha competidor. 
O lar do nobre amador 
Muitas vezes frequentou, 
Lá sua voz levantou, 
E adquirir gloria soube ; 
Porém, já ninguém o ouve, 
José Borrego expirou ! . . . 



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ANTÓNIO KUZKBIO «O CALAFATE» 
(Celebre cantador de Setúbal) 



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* 



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Historia do Fado 163 

O Paiusquinho levava Ires c quatro noites a cantar 
iubre um mesmo assumpto, e com um só mote cantava 
vinte cantigas e mais. O Patusqmnho, que ainda é vivo, 
predominava no -canto a atirar. Eis alguns motes seus 
neste género, em que elle era insolentíssimo: 

Áh ! ladrão, que m 'atiraste 
Sein eu te atirar a ti ! 
Já me deste uma picada, 
Que eu, sem ver sangue, senti ! 

Eu cá por mim sou de cera, 
Em titâo mostro brandura 
Se canto é p'ra me livrar 
Dalguma descompôs t ura. 

E's d 'uma raça d'animaes, 
Que, quando estão c o accid^ente, 
Ferram com as mãos no chão 
E dão coices para a gente. 

Ao passar p'Ia tua porta, 
Se tu me tornas a ladrar, 
Metto-te um chifre na bocca 
Para te obrigar a calar. 

Charépa, serralheiro de ( fficio e morador em Al- 
cântara, formava na primeira tila dos bons cantadores. 
Um dos seus mofes favoritos era este : 

Teuho corrido mil terras, 
A maior parte da Beira, 
Nunca achei melhor amigo 
Que o dinheiro dét algibeira. 

Charêpa de S. Christovam tinha muito menor co- 
tação. Mas o Minuto, que possuía uma voz agudíssima 
e que se ouvia a grande distancia, era muito ^aprecia- 
do nos círculos da boa cantadoria. Um seu irmão lam- 
bem cantava o fado rasoavelmente. 



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164 Empreza âa Hiitoria de Portugal 

Na Fonte Santa existiu um fadistão (cujo nome igno- 
ramos), que cantava muito bem. O seu mote querido 
era: 



Só o trevo é que se atreve 
Entre o trigo a vegetar, 
Eu sem ser trevo me atrevo 
A entrada no canto dar. 



Campanudo predominava na improvisação sobre a 
Escriptura Sagrada. Exercia o officio de poceiro e da- 
va indicações á policia secreta referentes aos gatunos. 
Larapiava as cantigas ao cantador Paixão, segundo 
este nos contou. Morreu tysico em 4902. Costa Mar- 
reco tomava parte nas sessões nocturnas decantadoria 
do fado nas esperas de toiros no Campo- Pequeno. Vi- 
via lá para as Fontainhas (a Santa Barbara). O Nico- 
lausinho do Calhariz de Bemfica tinha muita óbra t mas 
não era boa firma, principalmente quando o vinho o fa- 
zia titubear das pernas. Cantava e dansava o fandango 
lindamente. 

Máximo dos Terramotos, pedreiro, cultivava o 
canto a atirar, mas, como na notação musical, nem 
sempre mantinha as regras da proporção e harmonia. 
Por outras palavras, desmandava se e no seu canto 
abundavam as pachuchadas plebéas e os destampató- 
rios salobros. José Russo, papeleiro, distinguia-se ha 
improvisação ao fado e no canto ao fandango. Cantou 
muito com o José Um. O José Carlos d' Assumpção, 
typographo, era cantador moral; o José Maria Fadista 
(que já morreu) enfileirava com os bons cantadores, e 
o Frederico, um que fora militar, cantava muito bem, 
especialmente as producções do João Vidraceiro, um 
poeta * tecelão que escrevia versos para os cantadores 
de Alfama. É d'este,o mote seguinte: 



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Historia do Fado 165 



Quem*te viu, oh[ Portugal, 
No teu throno d elegância, 
Brilhavas entre as nações 
Com coragem e com constância! 

O Bagre parodiou este mote assim: 

Quem te viu, oh bacalhau, 
- N'aquella taberna á Es'prança 
Brilhavas entre as batatas 
Com coragem e com constância! 

José do Nascimento ou o José Um, polidor, nascido 
na Mouraria, cantava com uma graça desopilante. Ti- 
nha bella voz e bom pulmão. Era grande frecheiro de 
corridas de toiros. Hoje, velho gaiteiro, ainda canta 
com chiste no género abrejeirado. Seguem-se motes 
originaes de José Um : 

Eu já me senti morrer, 
E achei o morrer tão doce, 
Que por gosto a vida dera, 
Se outra vez a morrer fosse. 

Este fado. veiu ao mundo 
Para allivio da pobreza, 
Quem anda no triste fado 
Não tem paixão nem tristeza. 

Se me vires ser ingrato, 
Não te admires, meu bem, 
Que uma ingrata me ensinou 
A ser ingrato também. 

Cupido quando nasceu, 
Beijinhos á mãe pediu, 
Cupido é mais brejeiro 
Que a mãe que o pariu . 

iVi inha mãe me deu pancada 
Por eu dar o que é meu, 
Minha mãe tudo governa, 
Mas n^sto governo eu. 



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166 Empreza da Historia de Portugal 

Má vida a do burriqueiro, 
Qual d'ellas a mais cansada, 
Levantar para a limpeza 
Sobre a fresca madrugada. 

Coitado de quem padece, 
Mais soffre quem tem o mal, 
É melhor estar na cadeia, 
Que jazer no hospital. . 

Adeus Praça da Figueira, 
Onde costumo ir ás vezes, 
Tive lá uma chicana, 
Que me durou nove mezes. 

Segue-se um mote glosado, original de José Um : 

O amor é uma albarda 
Que se põe em quem quer bem 
A'u, p'ra não ser albardado, 
Não tenho amor a ninguém. 

Consultei certa velhinha, 
D'aventuras superior. 
Só p*ra vôr se ella adivinha 
Que coisa no mundo é amor. 
Eu lhe digo, oh meu senhor, 
Diz-me a velha toda inchada, 
Quem de elle se não guarda 
Vae perjurar a sua fé, 
Eu lhe explico o que é: 
O amor é uma albarda. 

E o albardão mais pesado, 
Que no mundo a gente atura, 
A uns tem arruinado, 
Qutros leva á sepultura; 
É um mal que nào tem cura, 
E que nenhum remédio tem, 
Que náo perdoa a ninguém, 
Que náo saiba conhecel-o, 
Porque é grande pesadello 
Que se põe em quem quer bem. 



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Historia do Fado 167 



Sobre d 'amor os poderes 
Desde que isto ouvi contar, 
Tomei ódio As taes senhoras, 
Que nem para ellas posso olhar; 
S'alguma vez vou pass*iar, 
£ me faço encontrado, 
8'alguma vez, descuidado, 
Alguma chega á janella. 
Nem sequer olho p'ra ella, 
Eu, p'ra nâo ser albardado. 

Dessas doidas tentadoras 
Ando sempre fugitivo, 
Tomei ódio ás taes senhoras, 
Que sem ellas pasto e vivo; 
Eu nâo quero dar motivos 
Para que nValbardem também, 
Porque se no mundo ha alguém 
Que me deseje o meu laço, 
Faça o mesmo que eu faço, 
Nâo tenho amor a ninguém. 

Paixão, cocheiro batedor de fama, cantava admi- 
ravelmente e primava no caAto amoroso. Possuía uma 
voz maviosissima e obra original em barda. Elle mes- 
mo se acompanhava com a guitarra, que te cava bem. 
Em 186á, compoz o fado do Paixão^ que teve immensa 
voga, mas que ainda está inédito. Depois de ler aban- 
donado a profissão de cocheiro, o Paixão estabeleceu 
uma casa de pasto em Corroios, na Outra-Banda, e, 
finalmente, uma loja de ferrador em Almada, alternan- 
do a sua nova profissão com a arte cynegetica, de que 
é amador. A sua antiga amante, a Amélia do Paixão, 
foi uma chibante batedora àefado, pondo aphrodisiacas 
ondulações de bayadeira nos seus meneios. Em segui- 
da publicamos um mole glosado, original do Paixão : 

Se tu, gallo, bem soubesses, 
Quanto custa o bem- querer , 
Nunca tu, gallo, cantavas 
Quando está para amanhecer. 



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861 Empreza da Historia de Portugal 



D'um amante dilatado 
È de noite a alegria. 
Para que, gallo malvado, 
Cantas em signal do dia? 
Menos fora a tyrannia, 
Se tu amor me tiveras, 
E entre lençoes estiveras 
Gozando de um doce bem, 
Olha o gosto que isto tem, 
Gallo, se tu bem souberas ! 

Mas tu, como no poleiro, 
Não se te dá de quem pena, 
Por isso na alva scena 
Sois penoso pregoeiro ; 
Oh gallo, se um dia inteiro 
Estivesses sem um bem vêr, 
Quando vem a amanhecer 
Tu farias mais demoras, 
Se o não fazes é que ignoras 
Quanto custa o hem- querer. 

Mas, quando a horas amenas, 
Por discreto as atrazas, 
Quando lá bates as azas, 
Tu multiplicas as penas ; 
Rompes em vozes serenas 
E no damno não reparas, 
Gallo, se tu bem pensaras 
O que n'esta occasião 
Solfre um triste coração, 
Nunca tu, gallo, cantaras. 

E no damno não reparas 
Com que o dia certificas, 
Para mim me publicas 
O defeito de eu penar; 
Cuida, gallo, em te cal lar, 
Não te dês a aborrecer, 
Que cu não sei se pode haver 
Uma estupHez tão atroz, 
Como a d 'ou vir a tua voz 
Quando está para amanhecer. 



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■ Historia do Fado ' 169 

O Hermenegildo Raiado era guitarrista e cantador 
dotado de muito espirito. Tinha o oflicio de charuteiro, 
mas pouco trabalhava, porque andava sempre na ber- 
ra, conforme a expressão usual contemporânea. Amis- 
tou-se com uma rapariga chamada Marianna, conhecida 
na rua dos Vinagres, mas, antes d'isso, tivera um quar- 
to em casa do marquez de Castello-Melhor, que lhe 
dispensava a sua protecção, e a quem elle acompa,- 
nhava nas esperas de toiros, para tomar parte nos des- 
cantes obrigatórios do Campo Pequeno. O Hermene^ 
gildo Ratado estava sempre no café que existiu defronte 
da egreja do Soccorro. Cantou muito ao desafio com o 
Damas e o Bagre. 

Segue-se um mote do Hermenegildo Ratado : 

Quantos andam para ver 
O fim á íiossa amizade, 
Cada vez ha de ser mais, 
Cada vez com mais vontade 

Caetano Calcinhas foi o reformador do canto áofado, 
o creador de uma nova escola. Enfin Malherbe vim. . . 
Caetano Calcinhas iniciou o canto do género fino. Pro- 
curou assumptos menos triviaes, abandonou as estra- 
das batidas pelos outros cantadores— para cujo fim lia 
e estudava muito— e cantou os homens do mar, as flores, 
ele. O Calcinhas tinha o oflicio de sapateiro de calçado 
de senhora, oflicio que quasi completamente abandonou 
para enveredar pelo trilho da mandriice. Tocava guitar- 
ra, mas era, acima de tudo, um eminente cantador, 
mas um cantador que parecia ter sido educado na es- 
cola das cigarras parnasianas. A sua voz meliflua dava 
todas as doçuras, todas as meias-lintas musicaes, com- 
movia profundamente, achava com facilidade o caminho 
do coração, cujas fibras vibravam, de repente, no 
triumpho das harmonias estimulantes. Tinha essas fe- 



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170 Empreza da Historia de Portugal 

licidades de expressão, a que Rivarol chamava na es- 
cripla— renconlres ti une plume en bonne forlune. 

Nas corridas de loiros por amadores, era da praxe 
convidar se o Calcinhas, que também assistia ao jan- 
tar que se seguia á lide, onde elle tinha occasião de 
improvisar a respeito da toirada, a qual sempre des- 
crevia minuciosamente em verso, á guitarra. Muitas das 
suas versejaturas venderam-se em folhetos anonymos. 
Improvisava com extrema facilidade. Aquiilo era fogo 
viste, linguiça! Estando, certa occasião, no Cazimiro 
do Poço dos Mouros, deram-lhe este mote, que elle glo- 
sou n'um prompto : 

Cazou um bonzo na China 
CVuma mulher feiticeira, 
Nasceram três filhos gémeos : 
Um burro, um frade e uma freira. 1 

E fez e glosou o seguinte mote ás peças então mais 
applaudidas nos theairos de Lisboa : 

Fiz «Uma viagem á China» 
Pelo «Lago de Killarney,» 
£ «Um rapaz pobre» encontrei 
Flanando co'a «Morgadinha». 

Calcinhas andou muito na ganga da moina, na vi- 
da parodica da Mouraria, e, graças aos seus méritos de 
cantador superflno, colheu sympathias entre as gajas 
locaes, entre o femeaço bairrista. 

Suspeitando se de que fora auetor da morte de uma 
mulher fácil da rua do Arco do Marquez de Alegrete, 
chegou a estar preso por este motivo, mas soltaram-n\) 
depois de se reconhecer a sua innocencia. N*este pre- 

1 Quadra de Bocage. 



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Historia do Fado 171 

tenso crime, achavam se implicados o Calcinhas e dois 
outros indivíduos. Quem os defendeu no tribunal foram 
os drs. João da Silva Mattos e Yalle. 

O Calcinhas cantava todos os fados, mas principal- 
mente o fado corrido. Morreu tysico em 1894. A sua arte 
quebrara os moldes Ao fado antigo e preparara o adven- 
to do fado moderníssimo, o fado latest-slyle, o fado 
que se sujeita á pauta dos portadores de lyra e ao com- 
passo dos que conhecem a harmonia, a fuga, o contra- 
ponto e todos os meios de fazer bulha com metaes, 
cordas e pelles de burro. Caetano Calcinhas foi, por- 
tanto, uma individualidade marcante no mundo da arte 
fadista! . 

Os moles seguintes são originaes do Calcinhas : 

Eu rendo culto á penna 
Não rendo culto a espada, 
Quem mata p'ra ter gloria, 
Cá p'ra mim não vale nada. 

O ser bonita no mundo 
Causou a minha ruina, 
£ hoje morro de fome, 
Encostada a uma esquina. 

Defronte d'esta prisão 
Vejo as arvores balouçando, 
Alegres os passarinhos, 
De ramo era ramo saltando. l 

Vou contar minha chronica 
Com palavras bombásticas 
E p'ra o canto rachitico 
Peço paciências elásticas. 



1 Este mote foi feito quando o Calcinhas esteve preso. 



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172 Empreza da Historia de Portugal 

Não existe a Divindade 
Nas regiões sideraes, 
N'ellas só vê a sciencia 
Matéria e nada mais. 

O meu coração, coitado, 
Nada n'este mundo espera, 
Nem as delicias do fado 
Que canta a nossa Severa. 

O «Calcinhas* immortal 

Vem junto a vós, traz as calças, 

Que o fado nacional 

Já entrou no rol das valsas. 

Açceita a chave do portão, 
Considera- a como tua, 
Porta-te bem, porque senão 
Vaes outra vez p'ró meio da rua. i 

O Calcinhas cantava não só obra sua, mas lambem 
a de outros polidores de rimas, sendo os principies : 
F. A. Correia, typographo e collaborador d'0 Piani- 
wAo, e Anlino Vigas (António Vianna) collaborador d' O 
Pimpão. E, a este propósito, publicamos um fado po- 
litico de Animo Viyas, inserto n'0 Pimpão n.° 149 de 
1879: 

A QUALQUER DOS MINISTROS 

íCfntigas do fadinho) 

Com cantigas se governa 
Muita gente nossa amiga, 
E por isso a mal não leves, 

Pois não deves, 
Que eu te largue esta cantiga. 2 

Do estado o «catraio» amarra, 
Que de «nau» vaidoso alcunhas, 

f l N'este mote e respectiva glosa, contava o Calcinhas como tra- 
vara amores com uma velha rica, que, por fim, o expuleahade casa. 
2 Este quebrado substitue o trólaró. E' uma innovaçâo no 
fado corrido. (Nota do O Pimpão.) 



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Historia do Fado 173 

Salta em terra e se tens unhas, 
Vem p'ra aqui tocar guitarra. 
O jadinho nao mascarra 
Os teus brazòes ; traça a perna, 
£ esta cantiga moderna 
Escuta c'o o teu descanço, 
Já que ha muito o paiz manso 

Molle e .tanço 
Com cantigas se governa. 

Escuta, pois: — p'ra que montes 
Do govemo a burra manca, 
Ralei me a dar co'uma tranca 
Nas duras cestas do Fontes. 
E' justo, pois, que tu contes 
CVa minha inane barriga ; 
Não consintas que eíla diga 
Que — ingrato — não largas nada, 
Conforme já por hi brada 

Escamada 
Muita gente nossa amiga. 

Por ti levei um tabefe 
Que inda parece que estoira, 
Eu rejeitei uma «loira», 
Que me dava um cabo -chefe. 
O voto de um magarefe 
Comprei na loja do Neve?, 
E paguei aos almocreves 
Muito vinho que foi gasto. 
Tenho, pois, direito ao pasto, 

Não me affasto, 
E por isso a malnão leves. 

Com as provas que eu exhibo, 
Mereço, por ser uir. «alho», 
Um logar cujo trabalho 
Seja passar o recibo. 
Eu conheço enorme tiibu 
Que assim vive sem fadiga ; 
E já que por balda antiga] 
Isto é roupa de francezes, 
NSo esperes muitos mezes, 

Que mais vezes, 
Eu te largue esta cantiga. 



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174 Empreza da Riêtoria de Portugal 

Segue-se o fado (trovas) com que António Vianna 
satyrisou o primeiro concerto de guitarras no Casino 
Lisbonense : 

Três cantadoras do fado, 
De cuia estupenda e alta, 
A cantarem no Casino, 
Eu vi, á luz da ribalta. ' 

Eram quatro tocadores 
De banza, nada macanjos, 
E, entre elles, brilhava o Anjos, 
Dedilhando os seus primores ; 
Findaram estes senhores 
Seu concerto sublimado, 
E entram dabi a bocado, 
Com a força de uma bomba, 
Três mocetonas d'arromba, 
Três cantadoras do fado. 

Salva ruidosa e estridente 
De palmas e d'assobios, 
Saudou os primeiros pios 
D'aquclla trindade ingente; 
Depois d'um coro excellente, 
Em que não houve uma falta, 
Veio então a mais peralta 
Ch mparnos uma cantiga, 
Trajava de cor d 'ortiga, 
De cuia estupenda e alta. 

Veio outra logo em seguida 

Largar a sua piada, 

Era gorducha e corada, 

De côr de rosa vestida ; 

Deixava entrever, garrida, 

Bello seio alabastrino, 

O seu porte era tão fino, 

Que alguém que alli 'atava, crera 

'Starem damas d'alta esphera 

A cantarem no Casino. 

De vestido côr de canna 
A terceira veio á frente, 



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Historia do Fado 175 

E cantou optimamente 

Com requebio e voz magana; 

Acabou, e toda ufana 

Não quiz dar bis, fez se á malta, 

O povo p'rá frente salta, 

E os rapazes mais trocistas, 

Querendo papar as artistas, 

Eu vi, á luz da ribalta. l 

Chegamos agora a uma cantadora famosíssima, a 
uma digna continuadora das magnas tradições da Se- 
vera e da Custodia — a Cesaria ou a mulher de Alcân- 
tara. Esta rapariga trabalhava n'uraa fabrica em Al- 
cântara e amancebara-se com um fadislão. Tinha voz 
agradabilíssima e muita livraria, isto ê, na sua me- 
moria conservavam-se armazenadas, como n'um pho- 
nographo, centenas de versos, que depois lhe brotavam 
dos lábios coralinos em expectorações ininterruptas. 
Uma vez, estando a cantar n'uma casa de pasto em 
Alcântara, entrou ahi um grupo de amigos, amadores 
do fado, grupo que era composto do Cesariç> Salle.s 
canteiro 2 , do Moraes Náutico, professor de pilotagem, 
e de João Muzanli, que tinha cocheira na travessa da 
Palha e que, depois, teve omnibus para Belém. 

Ouviram, extasiados, o canto da tiple de taberna, a 
voz bem timbrada da deidade de tasca, e logo convi- 
daram, a ella eao amante, para uma comezaina opípara. 
Passados dias, levaram-n'a de trem para uma patus- 
cada, e, mais quinze dias andados, a rapariga passava 

1 Este fado foi publicado a pag. 8 do O Pianinho, 2.° anno. 

2 José Cesário Salles, canteiro, era irmão de João Cesário 
Salles, ourives e grande valentão, mas a quem também chama- 
vam o Salles canteiro por seu pae, Francisco Salles, e seu irmão 
terem officina de cauteiro na rua dos Algibebes. Foi José Ce- 
sário Salles, então distincto alumno da Academia Real de Bel- 
las- Artes, quem dirigiu toda a obra de cantaria para a reedifi- 
cação da egreja de S. Julião, que ardera em 1817 e que reabriu 
restaurada em 1849. 



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176 Empreza da Historia de Portugal 

o pé ao amante para ir viver com o Cesário Salles, 
viudo-lhe (Testa concubinagem o nome por que foi ge- 
ralmente conhecida — a Gesaria. O fadistão, que todo 
se babava por ella, sentia se vagamente comuto e ju- 
rava aos seus deuses que bavia de dar cabo do canas- 
tro ao rival; mas os amigos d'este convenceram n'o a 
que se deixasse de fanfurrias, porque aquillo não pas- 
sava de um capricho epbemero do Cesário, e persua- 
diram-n'0 a que acceitasse umas dez ou doze libras em 
troca da fêmea. Allons doncl O fadistão, á vista de tão 
convincentes argumentos, botou o lúzio. . . e os gada- 
nhos á chelpa, acalmou as convulsões dos seus desejos 
cupidos, atarrachou um boccal na incandescência da 
sua paixão, esqueceu a Cesaria — que não era uma 
belleza por ahi alem e que ceceiava na pronuncia — e f 
sem chispa de saudade, foi amar outra pécora accom- 
mod alicia. 

Uma cantadora contemporânea da frisaria, Luzia, a 
Cigana, 'teve muitos desafios ao fado com ella na casa 
do José Patrício, um homem que tinha uma salcbicharia 
e tenda em Alcântara, e, defronte (Testas, um quintal, 
onde se faziam amiudadas sessões de fado. Houve um 
descante, em que a Cesaria e a Luzia brilharam á com- 
pita, e que durou dois dias e uma noite. Um desafio 
entre os principaes cantadores do tempo, que se rea- 
lisou na fabrica de chitas em Sacavém, chamou lá mais 
de trinta carruagens cheias de gente. E as duas can- 
tadoras citadas, o Cesário Salles, o guitarrista Carreira, 
o Muzanti e o Moraes Náutico, andavam em tapiocas 
de fado de durarem três e quatro dias, e em que se 
traduzia á leltra o Nunc est bibendum de Horácio. A's 
vezes, o Moraes Náutico ferrava comsigo na quinta da 
Pimenteira, e ahi se deixava ficar oito dias, em janta - 
res dignos de Lucullo e em descantes de fado, nos 
quaes tomavam parle o Calcinhas e£o[Patttsquinho, 



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O RIBEIRIHHO 
(Famoso cantador de fado) 



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Historia do Fado 179 

que ganhavam quatro coroas diárias cada um, além 
do jantar. 

No café da Quitéria, em Arroyos, travaram se desa- 
fios ao fad), em que entrava a Cesaria, e que duravam 
dois e três dias. * O guitarrista que acompanhava a 
Cesaria era o Carreira, um pandego jque fora retrozeiro 
e a quem o Cesário dava iez tostões diários para a 
acompanhar e ensaiar. 

N'um duello que a Cesaria empenhou com a Luzia, 
aquella atirou a esta o seguinte mote, como que tiran- 
do a a campo de zombaria : 

Gri gri £ri, queres mais toucinho ? 
Dizia a Cigana ao Judeu * 
J5 o Judeu por gratidão, 
Todo o toucinho lhe comeu. 

Mas a Luzia aziumou se, poz um crepe no seu sor- 
riso e fanfou lhe com este mole atrevido como um 
golpe de espada : 

O Cesário comprou ha annos 
Uma burra bem segura, 3 
Porém já estava arrombada 
No segredo da fechadura. 

O primeiro mote'e a glosa respectiva eram de Er- 
nesto Marecos. Mas isto necessita de uma explicação. 
O João Muzanti estomagara-se com a Cesaria por causa 
de uma offensa d'esta. O Muzanti quiz pregar-lhe uma 

1 Dois locaes onde, n'esse tempo, se fadejava muito eram 
a locanda dos José dos Passarinhos, defronte da Horta Na via, 
em Alcântara, e o retiro do Rouxinol, nos Terramotos. 

1 Alludia ao Josué dos Santos, distincto guitarrista. 

3 Referia-se ao contracto bilateral, que fez transitar a Ce- 
garia para a posse de Cesário Salies. 



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ISO Emprsza da Historia de Portugal 

peça, e, como sabia todos os motes da Cesaria, pediu 
a António Vianna (Antino Vigas) que lhe compozesse 
cantigas em resposta, e foi entregai as á Luzia. Sempre 
que esta se defrontava com aquella em desafios de fado, 
pespegava-lhe com respostas que vinham mesmo ao 
pintar e eram cortadas numa ironia em ângulos agu- 
dos, o que fazia com que a Cesaria e respectivo Ce- 
sário dessem a cardada ao demo. Esta guerra a pica- 
das de alfinete tornou se memorável nos annaes do 
fado. 

Outra cantadora contemporânea da Cesaria, a Izabel 
do Moraes, pussuia boa voz e cantava muito com aquel- 
la. Quem lhe escrevia as cantigas era o Moraes Náu- 
tico, seu amante, e por signal que eram todas muito 
espirituosas. Os que escreviam versos para a Cesaria 
e para diversos cantadores da época eram: Ernesto 
Mareco?, António Vianna (o Anlino Vigas do O Pim- 
pão), barbeiro no largo do Corpo Santo, F. A. Cor- 
reia, lypographo e author de scenas cómicas (jà falle- 
ciio), José Adrião, Boaventura Henriques de Carvalho, 
Carmo e Sousa, Luiz de Araújo, J. Ignacio de Araújo, 
etc. Os versos cantados pela Cesaria eram mandados 
fazer lout expies pelo seu amante Cesário, que os che- 
gou a pagar a dez libras aos authores. 

Publicamos cinco motes mui queridos da Cesaria: 

Alerta, refertadores! 
O clarim toca a rebate! 
Os echos repetem — guerra ! 
E a guerra diz— combate! 

Portugal sente -se ufano, 
Tem bom dinheiro cunhado, 
Mas quem o tem chama-lhe seu 
Ou herdou ou tem roubado. 



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Historia do Fado 181 



No tempo de barb'ras nações 
Pregavam os ladrões nas cruzes, 
Hoje, do sedo das luzes, 
Pregam as cruzes nos ladiões. 

Que grande carnificina 

Que na França e na Prússia vae, 

Tanta mulher sem marido 

£ tanto filhinho sem par. í 

Defender os pátrios lares, 
Dar a vida pelo rei, 
E' dos luzos valorosos, 
Caracter, costume e lei. 

Como todo o cantador que se preza, a Cesaria teve 
o seu fado, o fado da Cesaria ou o fado de Alcântara, 
que foi composto pelo guitarrista Ambrósio Fernandes 
Maia em 1870. 

A Cesaria não aprendeu musica, é certo. Mas tam- 
bém o rouxinol perla as gammas da sua ternura sem 
se ter previamente snbmettido á ferula professoral; 
mas também a cigarra de La Fontaine se apaixonou 
pelo canto sem que ninguém lhe incutisse a paixão da 
arte. A Cesaria tivera por madrinha uma filha postbu- 
ma de Júpiter e desconhecida no mylhologismo — a 
Musa do fado. No mundo da arte fadistal, a Cesaria 
tornou se uma actualidade — essa flor caprichosa e 
que um nada desbota, como diz Augusto Villemot. 
Conquistou o applauso incondicional de todos os sy- 
nhedrios musicaes especialistas e os supremos suffra- 
gios de todos os exegetas do fado. Foi a Eva musical 
coroada n'um Éden de harmonias... de guitarras. 
Como a Pa (ti encarnou a Rosina sonhada pelo Beau- 
marchais e pelo Rossini, ella corporalisou a cantadora 

1 Alludia á guerra franco-prussiana, em 1870. 



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182 Empreza da Historia de Portugal 

sonhada pelos grandes amadores da luzitauissima can- 
ção popular. , A musica esquisita da sua voz de sereia 
vibrou, por largo tempo, na memoria de todos os que 
amavam e comprebendiam a alma elegíaca d'aquella 
canção, que faz palpitar as fibras mais secretas da sen- 
sibilidade amorosa, d'aquella melodia embaladora como 
as redes balouçadas pelas mãos blandiciosas das mu- 
cambas moquencas nas chácaras brasileiras. E a Gesa- 
ria apparece a nossos olhos como a figura melancho- 
lica e phantastica de uma espécie de Mimi Pinson, com 
os ares tocantes de uma vaporosa Ophelia aupelitpied, 
fluctuando, de flores na mão, pelo veio crystallino do 
rio das recordações ... 

Umas trovas do fado, muito cantadas no tempo da 
Cesaria, foram as seguintes, originaes de Boaventura 
Henriques de Carvalho, então collaborador do O x Pia- 
ninho : 

Não vás do ermo á capella, 
Ninguém de noite lá vá, 
Dois phan* asmas sahem d'ella y 
Dois amantes mortos já. 

Eram de branco vestidos 
Os vultos que descobri, 
Quando de mais perto os vi, 
Quasi perdi os sentidos; 
Soltando agudos gemidos 
Como o vento na" procella, 
Ouvi dizer: «Virgem bella, 
Não me deixes, vem com migo, 
Repousa no meu jazigo, 
Não vás do ermo á capella » 

«A sorte não permittiu 
Que em vivos fôssemos juntos 
Hoje, que somos defuntos, 
O destino nos uniu; 
O nosso amor resurgiu, 



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Historia do Fado 183 



Vem, pois, ninguém dos verá, 
Porque eu creio que não ha 
Quem descubra este mysterio, 
E também que ao cemitério 
Ninguém de noite lá vá.» 

Detiveram -se osdoisamantes 
Unidos por estreito abraço, 
E depois de longo espaço, 
Juraram em ser constantes; 
Passados breves instantes, 
Oqvi dizer: «Minha estrella, 
Deixa a ermida singella, 
Onde alguém nos pode ver, 
Receio.que vão dizer: 
- ' Dois phantasmas sabem d'ella.» 

«Receio que novamente 
Seja o nosso amor vedado, 
Por isso vem, que a meu lado 
Tu serás eternamente. 
Oh! meu doce bem consente 
Que eu te conduza 'té lá, 
Que por nós esperando está 
Esse funéreo logar, 
Onde devem repousar 
— Dois amantes mortos já!» 

Do tempo da Cesaria é, egualmente, o poeta José Ro- 
drigues Adrião, que principiou a poetar em 1852 e que 
ainda hoje verseja para o fado. São sius os seguintes 
motes inéditos : 

Desejava me dissessem 
Esses sábios da sciencia, 
Se estaria em seu juízo 
Quem se tira a existência. 

A'lerta, oh liberaes, 
Não temo ar. os a reacção, 
Batalhemos até morrer 
Contra a falsa religião ! 



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184 Empreza da História de Portugal 



Com a penna e com a espada 
\ Em muitas occasiões, 
Mostrou qual o seu valor 
Luiz Vaz de Camões. 

Tu és cravo e eu sou rosa, 
Qual de nós tem mais valia ? 
Tu és cravo não sei de quê, 
Eu sou rosa d'Alezandria. 

Eu sou cravo e tu és rosa, 
Qual tem mais acceitaçâo ? 
Tu és rosa d'Alexandria, 
Eu sou cravo do Maranhão. 

Já lá vae já se acabou 

O tempo em que eu cantei bem, 

Hoje bó me podem ouvir, 

O que nenhuma graça tem. 

Houve um Saldanha cantor 
Em outro tempo passado, 
Ainda vive, não morreu. 
Mas velho e acabrunhado. 

Descobriram finalmente, 
Da sciencia os professores, 
Dar fim á tuberculose 
Por meio de escarradores. 

Visto que nada escapa 
A' vil falsificação 
Deve ser analysado 
O fabrico da geração. 

Segue-se uma cantiga inédita de José Rodrigues 
Adrião : 

Quanto é delicioso 
Pela fresca madrugada, 
O ouvir os passarinhos 
A fazerem chilreada. 



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Historia do Fado . 185 



Foi o author da natureza, 
A quem nada è impossível 
Com o seu poder invisível 
Quem formou tanta grandeza ; 
Tudo no mundo é belleza, 
Tudo é maravilhoso, 
P'ra tudo ser grandioso 
Ãté creou avesinhas, 
E ouvil-as, coitadinhas, 
Quanto é delicioso ! 

Que lindo, ao romper do sol 
Na manhã bonita e bella, 
Estar sentado á janella 
Á escutar o rouxinol ; 
Vêr lá ao longe o pharol, 
Vêr a montanha serrada, 
Vêr a campina elevada, 
Descobrir o esplendido mar, 
E avesinha8 a voar, 
Pela fresca madrugada. 

E' rudemente magistral 

O débil cântico frouxo 

Do suave pintarroxo, 

E da toutinegra real ; 

Não ha nada mais ideal 

Do que ver sobre os tronquinhos 

Ás avesinhas nos ninhos, 

Para os filhinhos gerarem, 

E, depois de os crearem, 

O ouvir os passarinhos. 

No magnificente jardim 
Ouve se o som delirante, 
Do melro a voz vibrante, 
Escondido no alecrim ; 
E vê- se a rama do jasmim 
De pássaros apinhada, 
E logo, em debandada, 
Voando p'rós regueirinhos, 
A molharem os biquinhos, 
A fazerem chilreada. 



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186 Emprezq da Historia de Portugal 

Na decima seguinte, explica José Rodrigues Adrião 
como principiou a fazer versos para o fado : 

Quinze annos contava então, 
E nada de si suppunha, 
Já o seu verso compunha 
José Rodrigues Adrião; 
Por lhe verem a propensão 
Foi p'las musas captivado, 
O seu estro já falado 
Os amadores procuravam, 
Seus versos utilisavam 
Diversos cantores do fado. 

Oulra cantarina da época da Cesaria, embora de 
menos fino quilate que o d'esta, era a Coxa. Maria das 
Neves, a Coxa, casou com o cantador Augusto Peitu- 
do (discípulo de José Borrego), que foi cocheiro de ti- 
póias de praça até que baixou a moço de segurar ca- 
vallos no largo de Santa Justa, e, por fim, á sepultura 
em 1002. A Coxa empenhou sabbatinas de fado com 
a Cesaria. Um mole do Augusto Pelludo era este: 

Com a minha mão direita 
Fiz uma cova no chão, 
Para enterrar os meus olhos 
Que tão desgraçados são. 

Seguem-se dois fadm cantados pelo Augusto Pel- 
ludo : 

Canta o soldado na guerra. 
Canta o nauta sobre o mar, 
Cantando se passa a vida, 
Esquecem se as dores a cantar. 

Canta o indio indolente 
A' sombra da bananeira, 
Canta o vento na palmeira, 
Quando passa docemente ; 
Canta o proscripto ausente 



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Historia do Faio 187 



Saudades da sua terra, 
Canta o pastor na serra 
O seu amor terno e querido, 
E até da baila ao zumbido 
Canta o soldado na guerra 

Canta o rio murmurando 
Nos freixos da verde margeir, 
E ao sopro da branda aragem 
Ouvem-se os freixos eantando ; 
A mãe o filho embalando 
Junto ao berço vae cantar, 
Canta o artista a lidar, 
Canta o camponez n 'aldeia, 
E em noites de lua cheia 
Canta o nauta sobre o mar. 

Cantam os padres no altar 
Hossanas ao Deus creador, 
E os archanjos do Senhor 
Na gloria estão a cantar ; 
Canta a velhinha no lar 
A lenda tão conhecida, 
A cantar o mal solvida, 
A cantar esquecem tormentos, 
A cantar esquecem lamentos, 
Cantando se passa a vida. 

Ao romper a aurora bella, 
Canta alegre o rouxinol, 
Como triste ao pôr do sol 
Canta a triste philomela ; 
Canta a timida donzella 
O amor que vae captivar, 
E até mesmo no lupanar 
Cantam tristes peccadoras, 
A cantar passam as horas, 
Esquecem -se as dores a cantar. 



Morre um affecto outro nasce, 
Vae- st um desejo outro vem, 
Depois de um sonho outro sonho, 
De tantos que a vida tem. 



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188 Empreza da Historia de Portugal 

Como a flor boje nascida, 
Mimosa, linda e louçã, 
Que o vento sul d'ámanhã 
Deixa na haste pendida, 
Assim é a nossa vida 
Que entre mil prazeres renasce, 
Com leve sopro desfaz se 
' A' beira da campa fria, 
Como nasce e morre o dia 
Morre um affecto outro nasce. 

A vida é um turbilhão 
Cheio de crime e virtude, 
A vida é sonho que illude, 
Mas tem curta duração ; 
Ancioso o coração 
Não se contenta com o bem, 
A ambição nos mostra alem 
Um rival feliz e contente, 
E n'este anceio ardente, 
Vae-se um desejo outro vem. 

Hoje a esp'rança de ventura, 
A 'manhã o lucto e a dor, 
Hoje uma jura cTamor, 
Amanhã esquecida a jura ; 
Infeliz de quem procura 
No mundo porvir risonho, 
Cheio de m aguas, tristonho, 
O porvir lhe surgirá 
Que esta vida bó nos dá 
Depois d'um sonho outro sonho. 

Só uma eterna verdade 
No mundo existe, é a morte, 
Mas dos prazeres no transporte 
Não lembra á humanidade ; 
Ella zomba da saudade, 
Do amor de pae e de mãe, 
Zomba do mal e do bem, 
Tudo quanto vive é mortal, 
E' o desengano final 
De tantos que a vida tem. 



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Historia do Fado 189 

José Maior (o sr. José Joaquim Emygdio Maior) foi, 
e ainda é, um cantador notabílissimo, de voz de bom 
timbre, embebendo-se de emoção a cada passo, dando 
os mais subtis cambiantes do fado com um colorido 
iodo de velaturas. Artista ensamblador de raro mérito, 
discípulo da escola de Leandro Braga, entregou-se, 
nas horas de ócio, ao estudo da guitarra e do canto 
do fado, logrando attingir a perfeição ideal do amador, 
qne consegue dar quinau aos profissionaes. Muitas ve- 
zes tomou parle em grandes descantes de fado no Re- 
tiro dos Pacatos e se defrontou com o Calcinhas, sem 
que este jamais lhe levasse a melhor. Tem muitas pro- 
ducções suas, algumas das quaes insertas no O Piani- 
nho. 

Os motes que se seguem são originaes seus : 

Pegando no livro da vida 
Vae-se lendo e meditando ; 
Vem a morte e diz nos «Fim, 
Que adeante ias passando». 

Pobre foi meu nascimento, 
Pobre fui, pobre hei de ser, 
Pobre será minha dita, 
Pobre serei no morrer. 

Sentado ás portas da morte, 
Triste a morte me encontrou ; 
— Venha cá, morte, não siga, 
P'ra morrer é que aqui 'stou ! 

Orphâo no mundo perdido, 
Quanto é triste meu viver ! 
Onde o ser pobre é desprezo, 
Quem me dera já morrer ! 

Que me importam outras flores 
De perfume rescendente, 
Se as flores da minha vida 
Murcharam rapidamente. 



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190 Empreza da Historia de Portugal 

António de Albuquerque, o António Maluco, cortador, 
cantador de merecimento, ainda hoje sabe atirara sua 
fiada, acompanhando se á guitarra. Teve duellos de 
cantadoria com a Custodia. A esta eminente canta- 
deira fez elle o seguinte mote : 

Canta, Custodia Maria, 
Rainha dos cantadores, 
Eu hei de mandar- te croar 
Com uma c'roa de flores. 

A. J. Ribeiro, o Ribeirinho, um rapaz que viveu entre 
a média bohemia de ha vinte para vinte e cinco annos, 
tinha uma voz agradabilíssima de cantador mellisono 
como um tenorino, e fazia ouvir frequentemente as le- 
gendas rosses e apimentadas dos fadinhos nas esperas 
de toiros, nas rapiocas das hortas e n'outros sitios. O 
Ribeirinho dispunha de uma voz adequada ao canto do 
fado. Ora se molhava de ljgrimas, ora filtrava os ge- 
midos recônditos da saudade, ora soava triste como um 
dobre de íinados,ora se repassava de morbidezas gaiatas. 
As vezes, parecia que um espirito maligno lhe estava 
fazendo cócegas na glolte. . Muitas vezes fez chorar o 
circulo dos seus auditores, emquanto o guitarrista ti- 
rava accordes do instrumento, feria sustenidos pela 
oitava, subia diatonicamente, arrancava sons geme- 
bundos ás toeiras e ás primas, ás segundas e aos bor- 
dões. .. 

O Ribeirinho compoz um fado, que elle cantava, mas 
que ficou inédito. As suas prendas de cantador sedu- 
ziram Francisco Palha, que o escripturou como actor 
do thealro da Trindade, onde representou operettas e 
o Ditoso Fado com a actriz Josepha de Oliveira. 

Falleceu victima da tuberculose. Eis alguns motes 
que elle cantava : 



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Historia do Fado 191 



Oh bella pombinha branca, 
Não te deixes apanhar, 
Depois de tu estares presa 
Ninguém te pôde soltar ! • 

Oh cipreste verde e triste, 
Cópia da minha figura, 
Verde qual minha esp'rança, 
Triste qual minha ventura ! 

Kâo sabes, oh prostituta, 
O fim que foste buscar, 
Teu corpo feito em bocados 
Na valia irá acabar ! 

Para matar a fome, um dia, 
Fui a minha honra vender, 
Hoje peço á sociedade 
A honra que me fes perder. 

Oh meu pae, meu querido pae, 
Não fui eu só a culpada, 
Era nova e não pendei, 
Cahi em falsa cilada. 

Eras qual maga visão, 
Que os sentidos me prendia, 
Eras, mulher, um encanto 
De volúpia e de magia ! 

Os meus beijos não se vendem, 
Nem meu corpo é p'ra leilão, 
Desprezo oiro e brilhantes, 
Que pela honra me dão. 

Oh meu bem, quando eu morrer, 
Vae na sepultura pôr, 
Uma lettra em cada canto : 
A. M. 0. R. — Amor. 

Eu convido os meus amigos 
P'ra uma ceia que vou dar, 
P'ra sobremeza ha pinhões 
E o mais que queiram levar. 



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192 Empreza da Historia de Portugal 



Três dias depois de morto 
Perguntou me o frio chão : 
— Se eu era rapioqueiro ? 
Eu 4he respondi que não. 

Um cantador que desfructou certa notoriedade foi 
António Maria Monteiro, o Digutdão, irmão do cavai- 
leiro tauromachico José Cazemiro Monteiro. 

Marréquinho da Mouraria, um jâ ninguém, um 
pilrête giboso, tinha o ar lúgubre de seguir o seu pró- 
prio enterro. Cantava bera. Chegavam a pegar n'elle 
ao collo para o levar ás tabernas, onde queriam ou- 
vir a sua voz pardacenta como cinza que cahe. 

Segue-se um mote do Marréquinho da Mouraria : 

Agradeço aos senhores 
Todo o bem que estão fazendo, 
Já que não posso pagar-lh'o, 
Paciência, fico devendo. 

Josêsinh) de Alfama, outro bom cantador, tinha o 
officio de pedreiro e foi degredado por ler morto um 
gallego na rua da Prata. Quando esteve preso no Li- 
moeiro, entretinha se a cantar ás grades da prisão, 
emquanto o Minuto lhe respondia cá em baixo, da rua 
da Adiça. 

Antes de botar da barra em fora para o degredo, 
cornpoz a seguinte cantiga de despedida á cidade de 
Lisboa : 

Adeus, oh pátria querida, 
Aonde eu fui baptisado! 
Adeus, parentes, amigos, 
Que eu cá vou degredado ! 

Com penas do coração 
Me despeço d'aqui primeiro, 
Adeus, grades do Limoeiro, 
Adeus, rua do Barão ; 
Adeus, Aljube, prisão 



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r; 



A CESARIA. OU A MULHER DE ALCÂNTARA! 
(Dwtnho ftito por informações dadas por contemporâneos da_Ce«arla) 



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Historia do Fado 195 



Onde estão moças da vida, 
Quero dar a despedida 
N*eeta occasião tão boa, 
Adeus, oh Sé de Lisboa, 
Adeus, oh pátria querida. 

Adeus, Santo António da Sé, 
Adeus, rua da Padaria, 
Peço á Virgem Maria 
Que me dé boa maré ; 
Tenho esperança e fé 
Que por ella sou guiado, 
Meu peito vae encerrado, 
Meu coração se inflamma, 
Adeus, Sa»!o Estevão d'A)fama, 
Aonde eu fui baptisado. 

Adeus, rua dos Sapateiros, 
Manda-me embarcar quem governa, 
Adeus, rua Magdalena, 
Adeus, rua dos Retroseiros ; 
Adeus, rua dos Fanqueiros, 
Adeus, Terreiro dos Trigos, 
Que eu cá vou mettido em p'rigos, 
Que é o que mais mo mata, 
Adeus, oh rua da Prata, 
Adeus, parentes e amigos. 

Se eu em Angola morrer, 
£' isso o que mais me custa, 
Adeus, oh rua Augusta, 
Adeus, oh rua do Ouro ; 
Adeus, Publico Thesouro, 
Adeus, Pelourinho gabado, 
Adeus, Arsenal do estado, 
Adeus, oh Nova Conceição, 
Adeus, egreja de S. Julião 
Que eu cá vou degredado. 

Josésinho de Alfama amancebou-se em Africa com 
a famigerada Maria Petiza, uma tarântula da Mouraria, 
uma chinfrineira que tioha o corpo pintalgado de ta- 
tuagens. Esta celebrada megera perpetrara dois assas- 
sínios por meio de navalha na noite de 1 i de Dezem- 



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196 Empreza da Historia de Portugal 

bro de 1859, na lôbrega alfurja do Capellão. Poucos 
dias antes, partira a cabeça com um tamanco ao Cal- 
cinhas do Cães do Sodré na taberna do Bento Chico, 
defronte da rua dos Canos, junto ao pateo da sachris- 
tia de S. Domingos. Às duas pessoas assassinadas fo- 
ram o Eusébio da flaula e o António da Praça^ moço 
da botica que estava á esquina da rua do Capellão, 
vendedor da praça da Figueira e amante da Maria Pe- 
tiza. Julgada no tribunal da Boa -Hora, onde a defen- 
deu o Dr. Silva Bruschy, e onde cahiu a Mouraria em 
pezo para assistir ao julgamento, foi condemnada em 
quinze annos de degredo para a Africa, attendendo a 
ser menor de 21 annos. 

Maria Petiza, alta e desempenada mocetona — ao 
contrario do que a sua alcunha inculcava — enamorou- 
se do Josésinho de Alfama durante a sua forçada vil- 
legiatura em Africa. Mas estes amores Analisaram em 
tragedia. Ella, certa noite, armou uma ariosca para as- 
sassinar o Josésinho, mas este, dando-lhena trilha, appli- 
cou-lhe uma tareia mestra e pôl-a fora da porta, onde 
o relento da noite lhe provocou uma febre, que lhe 
serviu de passaporte para a outra vida. O Josésinho de 
Alfama regressou a Lisboa, já casado e com certos 
meios de fortuna. Seguem -se motes cantados pelo Jo- 
sésinho de Alfama : 

Puz um pé na sepultura, 
Onde estava o corpo humano, 
E uma voz ouvi dizer ; 
Não me pizes, oh tyranno ! 

Escurecem no céo as estrellas, 
Murcham no jardim as flores ; 
Triste sorte a do Zèzinho, 
Beijinho dos cantadores. 



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Historia do Fado 197 



Sou rapaz, gosto de vêr 
As pernas ás raparigas, 
Se s&o grossas ou delgadas, 
Se sâo curtas ou compridas. 

O tanque das lavadeiras 
E' a escola da maldade, 
Ouve lá muitas asneiras 
Quem espreita por certa grade. 

Senhores, morreu o gallego 
Que tinha posto uma quitanda, 
Foi p*ró Alto de S. João 
Levado por uma gambia. 

No dia vinte d'Agosto 
Foi-me um amigo visitar, 
E eu lhe dei oito vinténs 
Para umas solas me comprar. x 

cantador popular José Augusto foi uma celebrida- 
de das ruas. Como cantador de fado, chegou a ganhar 
um premio n'um concerto realisado no theatro do Prín- 
cipe Real. Mas a sua voz rouquenha predispunham 
mais para Demosthenes de carnaval e pregador do en- 
terro do bacalhau ou da serração da velha, o ultimo 
avatar da tipóia de Thespis. Em seguida publicamos o 
mote da cantiga, que cantou n'aquelle theatro: 

Eu sou medico exótico, 
Pratico e scientifíeo, 
Curo ataques epilépticos 
Com o meu saboroso especifico. 

As duas cantigas seguintes — a que conservamos a 
metrificação e o sentido — são do José Augusto da 
primeira maneira, o José Augusto revolucionário e re- 
publicano, o mesmo que depois havia de evolucionar 
para monarchico e ordeiro: 

1 Esta quadra era dirigida ao Minuto, que o fora visitar á 
cadeia do Limoeiro. 



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198 Empreza da Historia de Portugal 

Deus, diabo, inferno t eéo, 
Baptismos e confissões, 
Sermões t mitsas cantadas, 
Tudo isso são palões. 

O que é o catholicismo? 
E' o titulo mais infame, 
D'uma caterva ou enxame 
De sectários do egoísmo; 
Quem domina o fanatismo 
E' a victima dó athèu, 
E nega firme como eu, 
Nào ser santo seu ministério, 
Conhece, por vitupério, 
Deus, diabo, inferno e céo. 

Não me fio nos conselhos 
Dos padres, chusmas malditas, 
Que se dizem parasitas, 
N'este mundo, meus espelhos; 
Os encontro de joelhos 
Nos templos fazendo orações, 
Com as péssimas intenções 
De n*ellas me fazerem crer, 
Quando só vivem de fazer 
Baptismos e confissões. 

Os ministros da religião 
Essa indecente canal ba, 
Dizem ao povo: trabalha! 
Mas elies mexerem- se, não; 
A sua árdua missão 
E' sim das msis engraçadas, 
Dizem latim ás carradas, 
Papam hóstias, bebem vinho, 
Impingem ao Zé- Povinho 
Sermões e missas cantadas. 

Tem cada um uma ama 
Nova e que seja peixão, 
Que lhe trate da refeição 
E durma com elle na cama; 
A' vida do padre se chama 



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Historia do Fado 199 



Vida de mortificações, 
iDEoneiros e mandriões, 
I)'onde só o mal germina, 
O seu Deus, sua doutrina, 
Tudo isso são palõee. 



Destruir a mcnarchia 
Haver no mundo egualdade. 
São dois pontos sublimes 
Por que pugna a sociedade. 

De que serve á pátria o rei, 
Toda a imbecil nobreza, 
Que p'ia força da riqueza 
E p*la posição são a lei ? 
O poder que ao vil darei 
A' desordem e á anarchia, 
A villeza e a tyrannia, 
Tudo isso deve acabar. 
Cumpre ao povo Bem esperar, 
Destruir a monarchia. 

Destruída, tereis então 
De cumprir sérios preceitos, 
Gozareis de os direitos 
De um povo livre em acção; 
Quem ama a sua nação 
Odeia a~cruel*mage8tade, 
Realeza — nullidade, 
A dizer ha quem se atreve, 
P'ra nossa ventura deve 
Haver no mundo egualdade. 

Beis, príncipes e rainhas, 
Duques," marquezes, barões, 
Medalhas, commendas, brazões 
Doestado regias gracinhas; 
Oh Povo, aue isto tinhas, 
Eras um réo de vis crimes, 
Domaste te como os vimes, 
A tal caterva singular, 
Porque o roubar e o matar 
São dois pontos sublimes. 



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200 Empreza da Historia de Portugal 

O rei vive ocioso, 
Croado de louro e carvalho, 
A 1 sombra só do Trabalho, 
Do pobre laborioso; 
Descei do throno ditoso, 
Oh gérmen da ociosidade! 
O povo é rei, e ha de 
Não cessar com a supplica, 
Dando vivas & republica 
Por que pugna a sociedade. * 

João França, pedreiro, irmão do popular José Au- 
gusto, canta e compõe cantigas para os outros canta- 
dores. E' repentista. E' certo encontral-o, aos sabbados 
á noite e aos domingos, no retiro dos Pacatos ou no re- 
tiro da Montanha, tomando parte nos descantes de fado. 

Segue-se o mote da cantiga, que elle fez á morte do 
bandarilheiro José Peixinho : 

A morte cruel, infame, 
Mais uma vida roubou, 
J,osé Peixinho, toureiro, 
A fria campa baixou. 

Existia, e ainda existe, o Augusto Palhetas, canta- 
dor e tocador que anda principalmente pelos arredores 
de Lisboa, nas festas saloias. Toca guitarra, fazondo-se 
acompanhar de uns guizos que enfia nos dedos. Tem 
apenas meia dúzia de cantigas, sendo a >ua favorita 
aquella que começa : Adeus, oh Serra de Cintra t O Au- 
gusto Palhetas é um melro de bico amarello, um pa- 
tusco de lettra muito miúda, um marau com tretas. 
Ignora o uso do sabão, e só muda de camisa quando 
a lua muda de physionomu. Outro cantador da mesma 
laia e com idênticas baldas é o Saloio da Portella, um 
vaganau com ronha. Eis um mote seu : 

1 No Correio de Cintra de 10 de Dezembro de 1893, existe 
uma cantiga do popular José Augusto intitulada Improviso. 



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Historia do Fado 201 



A* manhã é qu'anda a roda, 
Quem me compra uma cautella! 
Dizia um cautelleiro 
Ao Saloio da Portella. 

Na seguinte cantiga a atirar^ recolhida em Lisboa 
em 1874, citam-se os principaes cantadores da época 
que decorre de 1865 a 1875, a edade áurea do fado: 

Os cantadores deram a mão 
E juraram de me vencer; 
Que venha um por cada vee. 
Minha memoria combater. 

De Angola o «José'sinho», 
De Sacavém o «Rachado», 
Do Campo -Grande o «Machado, 
E da Baixa o «Patusquinho»; 
O «Calafate» setuVlão, 
£ o seu amigo «Leitão*, 
Venha o «Farei lo* d 'Azeitão, 
E o titulo de «Plateia», 
P'ra me darem volta á idéa 
Os cantadores deram a mão. 

Venha a'Al cantara o «Pizão», 
E o seu amigo «David», 
Dos Terramotos o «Chapim», 
«Campanudo» cTAppellação; 
Venha também o «Paixão», 
Porque tem um grande saber, 
Eu estou prompto a responder 
A* bella obra do «Calcinhas», 
Venha de fóia o «Palhinhas», 
Que juraram de me vencer. 

Da Porcalhota o «Zésinho» 
E o bom «João Saldanha», 
«José Cecilio» da Azenha, 
Venha da Graça o «Aquino»* 
De Coimbra o «Adelino» 



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202 Empreza da Historia de Portugal 



Ouvir cá um bom portuguez, 

Venha servir d 'entremez 

Da Mouraria o «Marreco», I 

O «Chico» mais o «Charépo», 

Que venha um por cada vez. 

Venha o «Zé Maria Enguia», 
E também o «Zé Augusto», 
Qu'a mim náo me mettem susto, 
Tragam «Chato» em companhia; 
« Artilheiro» co' a artilheria, 
O «Máximo» fogo a fazer, 
Que venham todos para vêr 
Se me vem metter no fundo, 
Venha o «Damas» d 'outro mundo 
Minha memoria combater. 

Na ala dos cantadores modernos enfileiram-se o ban- 
darilheiro José Petiz (já fallecido), o Taborda cortador 
(um typo baixinho), D. Fernando Pombeiro— uma voz 
muito sentimental — e Rodrigo José Roldão, cantador, 
tocador e author do fado dó Roldão. Seguem-se alguns 
motes do Roldão : 

Nas frias e negras campas, 
Onde tudo é cinza e pó, 
Ouviam se os esqueletos 
Cantando o fado liró. 

Tenho sido nos amores 
Tantas vezes enganado, 
Qu*em vendo ao longe uma saia, 
Deito a fugir assustado. 

Pouco perco em te perder, 
Tu perdes mais em deixar, 
Eu perco quem me não ama, 
Tu perdes quem sabe amar. 

Debaixo das tuas azas, 
Meu anjo, presta-me abrigo ! . . 
Quando ao céo te remontares, 
Quero também ir comtigo. 



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Historia do Fado 203 

Podemos accrescentar aos cantadores acima indica- 
dos os seguintes : lzidoro Paiaquinho, de S. Christo- 
vâo (mas residente em Alfama), que era bom cantador 
e inventor de cantigas para os cantadores à court tfima- 
gination; o caufelleiro Trôlarô (já fallecido) ; o Russo, 
bom cantador alfamista da rua da Galé, fallecido em 
1900; Manoel Moita, azulejador, que canta muito bem 
e foi discípulo do lzidoro Pataquinho; o Rosa, sapa- 
teiro dos sítios da Graça; o cautelleiro Pae António; 
o Jorge Cadeireiro, o Júlio Janota, de Campo de Ouri- 
que, o Espanta, de Santo Amaro, o João Caeiro, de S. 
Sebastião da Pedreira, o Carcanhólas, fabricante de al- 
godões, o Sapateirinho da Adiça e o Batata (dois ri- 
vaes), o Chico torneiro (já fallecido), o João Peixinho, o 
Alberto Machadipho, aprendiz do França pedreiro (ir- 
mão do José Augusto), o China de Campo de Ourique, 
o Barata, cigarreira, o Carocha-, serralheiro, o José AU 
bardeiro, Manoel Jorge, grande fabricador de cantigas, 
e Fernando de Azevedo, corista da Trindade. Podemos 
juntar a estes : o Santos Mello, um bohemio coimbrão, 
Raphael Ferreira Roquelte (Salvaterra), actor da Trin- 
dade, Carlos Harrington, cantador e poeta, e Eduardo 
Fernandes, o espirituoso Esculápio das gazetilhas. 
Accrescentaremos mais estes cantadores modernos: 
António Matheus, pedreiro, da Ajuda (cantador e au- 
thor), Eduardo Calcinhas, canteiro, Joaquim Sapateiro, 
por alcunha o Joaquim Real (cantador e autbor), Joa- 
quim Sapateirinho, da Portella de Carnaxide, o Surríba 
e o Milhinho, cantador no género socialista. 

A seguir publicamos a Ultima Bailada de Santos 
Mello, «que o grande bohemio cantava á guitarra de- 
liciosamente, olhos cerrados e cabeça á banda, aquella 
cabeça doida de cabellos revoltos, que a Morte vergou 
tão cedot: * 

1 Trindade Coelho. In Mo tempore, pag. 318. 



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204 Empreza da Historia de Portugal 

Canta ao largo a viola branda e grata, 
Choram maguas ob doidos bandolins . . • 
— Vibra em coro a divina serenata 
Que a nossa alma atravessa e arrebata, 
Como chuva de lírios e jasmins. . . 

A natureza inteira treme anciosa 
Ao ouvir a suavíssima guitarra. . . 
E morre no horizonte d'oiro e rosa, 
Como queixume d'oração radiosa, 
A extrema voz d'uma canção bizarra. 

Segue se um fado cantado pelo Raphael Roquetta 
(Salvaterra) : 

As tuas (ranças escuras 
São o relicário dos beijos, 
Que te dou a sós comtigo 
P'ra matar os meus desejos. 

Quando me enrosco e enlaço 
Nos teus braços apertados, 
Esqueço os meus negros fados 
No perfume d'esse abraço ; 
Então, fatigado e lasso, 
Vertigens sinto e tonturas, 
Emquanto, querida, procuras 
Enxugar os pratos meus, 
Prantos d'um prazer dos céus, 
As tuas tranças. escuras. 

Em curvas mansas, airosas, 
Da cabeça aos tornozellos, 
Vão descendo os teus cabellos, 
A's ondas largas, graciosas ; 
Tem o perfume das rosas, 
•Da madresilva, e poejos, 
Despedem negros lampejos 
Como os mais negros brilhantes, 
São a gruta dos amantes 
E o relicário dos beijos. 



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Historia do Fado 206 

Fio a fio a vou beijando, 

Quando tu, oh ! minha amada, 

Nos meus braços reclinada, 

Vaes dormindo, em mim sonhando . . . 

Cada beijo vae matando 

As eaudades que te ligo, 

Minha esp'rança, doce abrigo. 

Teu cabello é confidente 

D'esse beijo enorme ardente, 

Que te dou a sós comtigo. 

Branca visão, minha amada, 

Es no mundo a minha estrella, 

Cunstellação a mais bel la 

Da vida na minha estrada; 

£ as tuas tranças de fada, 

Em que deponho os meus beijos 

Cheios de candura e de pejos, ' 

E' o prazer mais profundo, 

Que acho abi por esse mundo, 

PVa matar os meus desejos. 

Segue-se um fado original do actor Álvaro Cabral e 
cantado pelo Raphael Roquette (Salvaterra): 

Malditas casas de prego, 
São a minha perdição, 
Vou deitar jóra as cautellas, 
Que já foi tudo a leilão. 

Minhas venturas são poucas, 
Em tudo sou infeliz, 
A Providencia assim quiz, 
Adeus, baixellas e roupas ! 
Que horas de idéas loucas 
A que ás vezes me entrego, 
Antes queria ser labrego 
Ou então não ter nascido, 
Sou já um homem perdido, 
Malditas casas de prego! 

Perdi todo o meu thesouro, 
Já tive agora nSo tenho, 
Mas, todavia, convenho, 



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206 Empreza da Historia de Portugal 



&3r pobre não é desdouro; 
Garraram as jóias d'ouro 
Com toda a tripulação, 
Fugiram da amarração 
Do porto dos malfeitores, 
Estas casas de penhores 
São a minha pei dição. 

Já não posso pandegar 
Porque não tenho elementos, 
Da vida azedos momentos 
Me fazem desalentar; 
Levo a vida a recordar 
O feito das berzundettas, 
Bemdizendo as horas bellas 
Em que tanto pandeguei, 
Agora, amigos da lei, 
Vou deitar fora as cautellas. 

Adeus, cadeia e brilhantes, 
Inscriptos nesses papeis ! 
Adeus, relógio e anntis 
De pedrinhas ílammejantes ! 
Adeus, folias constantes, 
Echos da minha paixão, 
Adeus, que eu vou ferrar cão 
Desde o pão até ao vinho, 
Não tenho nada no pinho, 
Que já foi tudo a leilão. 

Seguem-se os motes feitos de improviso pelo canta* 
dor Carlos Harrington, que se distingue como impro- 
visador : 

Oh busto feito de pedra, 
Devias ser animado, 
Tornando-se em fios d'oiro 
O teu cabelllo ondeado ! 

A amizade verdadeira 
Nasce sempre da gratidão, 
A ridente flor imita 
N'este mundo de illusão. 



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Historia do Fado 207 

Como em brllo prado, a flor 
No meu infeliz coração, 
Vi brotar alegremente 
A amizade e a gratidão. 

Hylario (Augusto Hylario da Costa Alves) merece 
uma referencia á parte, porque o seu renome trans- 
cendeu as balizas locaes, galgou os muros de Coimbra 
e espalhou-se por todo o paiz. O Hylario era um estu- 
dante coimbrão, matriculado no terceiro anno de me- 
dicina da Universidade. Oriundo de Vizeu, onde viera 
á luz em 7 de janeiro de 1864, cursou mais a bohe- 
mia á Miirger do que a faculdade universitária, e con- 
quistou as glorias evanescentes dè inegualavel canta- 
dor do fado, graças á sua bella voz de barytono, ao 
seu talento de improvisador sujeito à augusta tyrannia 
do rythmo, á sua pbrase pueril e cantante, á sua arte 
do guitarrista, ao seu fado original e ao seu culto pel > 
idealismo à oatrance n'esta época de um materialismo 
afflictivo. Tinha a emoção communicativa, que eleclri- 
sava um auditório e o fazia palpitar sob o encanto da 
sua voz de modulações caridosas, de uma ternura ena- 
morada. Os seus versos molhavam-se de lagrimas como 
as flores se molham de orvalho. A sua guitarra pare- 
cia sangrar sob os seus dedos eloquentes. K as lagri- 
mas, que tile fazia manar, eram bálsamo para muitas 
dores, lycopodio para muitas feridas... O Hylario 
destaca se «com os seus fados-serenatas, de uma con- 
textura nova, verdadeiramente peninsular». 4 Hylario 
morreu em 3 de abril de 1896, ás dez horas da noite, 
na sua terra natal, onde estava em férias. A musa po- 
pular chorou compungitivamente sobre a campa do 
Hylario: 



(*) Preambulo de César ~d ^Nevesjoo U volume do Cancio- 
neiro de musicas populares. 



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208 Empreza da Historia de Portugal 



O Hylario ja morreu, 
Um rapaz tão resoluto ! 
Já não ha quem cante o fado, 
As guitarras estão de luto. 



Eis alguns motes do Hylario: 



As minhas canções vermelhas 
Rimai- as hei com martyrios, 
Ao rythmo das abelhas* 
Nas folhas roxas dos lyrios. 

Ura canto ao vento fluetua, 
Começa a aurora a cantar ; 
Oh noite, vae-te deitar, - 
Rasga o pandeiro da lua ! 

A minha flácida lyra 
Tem duas cordas variadas : 
Uma que chora e suspira, 
Outra que dá gargalhadas. 

O Mondego vae fugindo 
Com quem me dera agarrar ! 
O amor é como o rio, 
Foge e não torna a voltar. 

Se os anjos são tão lindos, 
E castos como a cecém, 
Com certeza a minha amada 
E' um anjinho também. 

E's a alma do meu canto, 
Gemendo na viração ! 
Estrophes de enlevo tanto 
Só as tem o coração ! 

Cordas da minha guitarra, 
Luzidias, prateadas, 
Foram cabellos roubados 
A's minhas doces amadas. 



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JOÃO MARIA DOS.ANJOS 
(DUtinctltaimo gaitarruta) 



11 



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Historia do Fado 211 



Sou o fado do Hylario, 
Sou o fado dos desejos, 
Tenho um rozario na bocca, 
Que có se reza com beijos. 

Na fina areia da praia 
Tracei : «Paixão infinita». 
Corre a vaga sobre a areia 
E apagou a minha eecripta. 

Foge, lua, envergonhada, 
Retira-te lá do céu, 
Que o olhar da minha amada 
Tem mais brilho do que o teu. 

Os teus olhos são escuros 
Como a noite mais cerrada ; 
Apesar de tanto escuros 
Sem elles não vejo nada. 

Calem- se os sons da guitarra, 
Porque o Hyiario morreu, 
£ foi cantar serenatas 
A's virgens brancas do céu. 



Mas os moderníssimos cantadores de primo cartel lo, 
os que constituem a mais Tui gente constellação no 
systema planetaiio da arte do fado actual, são os se- 
guintes : Manoel Alves Serrano (o mais antigo), que 
canta só o fadfo corrido, mas que o canta admiravel- 
mente ; Júlio Sepúlveda ( empregado na alfandega ) ; 
Reynaldo Varella (guitarrista brilhante); David (em 
pregado na empreza cerâmica, á Estrella); Loforte, 
que canta magnificamente o fado Lamparina ; Romeu 
Amann (filho da celebre emprezaria do Passeio Publico 
em 1879, Madame Josephine Amann ); Marinho ( em- 
pregado na Bolsa de Lisboa ), que canta no estylo da 
Mouraria; e Octávio Vecchi, estudante* 

Seguem-se dois motes do cantador Serrano ; 



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212 Empreza da Historia de Portugal 

Até o próprio dinheiro 
Me fugiu da algibeira ; 
Não me faz falta nenhuma, 
Vivo da mesma maneira. 

Que se divirta por lá, 
Deixal-o girar, coitado, 
Que eu cá por mim t d'elle já 
Estou desacostumado. 

Seguem-se dois motes cantados pelo cantador Se- 
púlveda : 

Eu çméèa ser a briza 
Que te oscula a tez mimosa, 
Quizera ser a camisa 
Do teu corpo cor de rosa. 

A boccã da minha amante 
E' uma flor delicada, 
Após os meus beijos quentes 
Fica pendida e murchada. 

Saguem se dois motes cantados pelo cantador Rey- 
naldo Varella : 

Dizem que o amor que mata, 
Ai, quem me dera morrer ! 
Mais vale morrer d'amores 
Do que sem elles viver ! 

O rosto ás vezes cora, 
A flor se murcha ao tufão, 
Cahe a folha, foge a aurora, 
Só não muda o coração. 

Seguem se dois fados originaes do cantador Romeu 
Amann : 

Quando o sol lhe dá um beijo 
Vae surgindo a madrugada, 
Ouvem se os gallos n'a Ideia 
Dar o toque d'alvórada. 



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Historia do Fado 213 

Às aves a chilrear, 

Saltitando nos cerrados, 

Com seus alegres trinados 

Vem os noivos despertar ; . 

Elle tem qne ir trabalhar, 

Beija- a no ultimo ensejo, 

Faz ainda com que o pejo 

De rósea cor a cubra, 

Té a aurora fica rubra 

Quando o sol lhe dá um beijo. 

Um beijo teu, donzellinha, 
Na terra me dá o céu, 
Dá-me um beijo, nada custa, 
Dou- te em troca um beijo meu. 

Beija o sol a flor mimosa, 
Beijam -se os peixes no mar, 
As avesinhas no ar, 
Beija a planta a mariposa; 
N'es*a boquinha formosa 
Delicias meu peito adivinha, 
t Dá-me, jjois, innocentinba, 
Teus lábios para beijar, 
Que feliz me ha de tornar 
Um beijo teu, donzellinha. 

Motes cantados pelo mesmo cantador: 

Tu não vês, meu amorsinho, 
A lua além a chamar ? 
Du-lhe adeus c'ó teu lencinho, 
Que é mais branco que o luar. 

Uma mantilha bizarra 
Envolva meu coração ; 
Das taboas d'esta guitaria 
Quero feito o meu caixão. 

Oh rio que vaes correndo, 
Passas por quem eu adoro, 
Se te faltarem as aguas, 
Leva lagrimas que eu choro ! 



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214 Empreza da Historia de Portugal 

Alem das chanieuses que temos citado até aqui, o bello 
sexo forneceu mais algumas que cantavam com aquelles 
tons plangitivos de uma sentimentalidade vadia, com 
aquella indolência mórbida pesada de volúpias exhaus- 
tivas com aquella poesia ligeira dos sonhos libertinos, 
com aquella deliciosa lassidão peculiar ao fado. A Coxa, 
uma cantoneira da travessa dos Fieis de Deus (de en- 
tre 1840 e 1845), cantava optimamente o fado do seu 
tempo, pondo no seu canlo pungido todos os reque- 
bros fadistas. A Amélia do D. Quixote, mulher do 
Joaquim D. Quixote, com casa de venda em Bemfica, 
possuía, e continua a possuir, apezar de velha, uma 
voz penetrante como um perfume da briza; e Emilia 
Mendes, a Emilia Middes, que ainda cantarola, tinha o 
quid obscurum da arte musical fadista. 

A Anna do Porto 4 e a Borboleta aecumularam o 
exercício de cantadoras do fado com o de sacerdotizas 
de Vénus — a sensual e etherea deusa. A Borboleta 
(Bebiana Vieira de Castro) foi uma rigdeuse encanta- 
dora e capitosa como um bouquet de voluptnosidades. 
Diziam ser irmã do grande tribuno Vieira de Castro e 
recebera fina educação, mas os baldões da sorte de- 
ram com ella em fadistona. Vestia se de homem —como 
a Mademoiselle de Maupin e a George Sand — , anda- 
va em suciatas nocturnas por cafés e tabernas, bebia 
como um marujo inglez, batia e aparava o fado com 
gracioso despejo, guiava pimponamente as tipóias, ba- 
tendo n'um arranque de ròpia em que ia tudo razo, 
arriscava-se em petulâncias doidas, pendenciava à fa* 
caia, derrancava-se em pandegas quê se prolongavam 
até ao minuto róseo em que a luz do gaz desmaia aos 
beijos da aurora, e, muito azevieira, com clarões ma- 

1 Uma sua homonyma; que surripiava carteiras e bolsas' 
morava n'um becco ao Colleginho, e deu sete fac.idas n'uin fa" 
distão, que lhe forçara a porta de casa. 



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Historia do Fado 2Jõ 

liciosos do olhar, largava a sua piada ao som da ban- 
za. Na sua presença, até os fadistoes se mettiam nas 
encospas. Elles sabiam perfeitamente que, para lá, iam 
de carrinho. . . Ãmancebara-se com um fidalgo de an- 
tiga linhagem, o M. L., e morava na calçada de Sanl' 
Anna. Um dia, em que o amante a fÔra visitar acom- 
panhado de alguns amigos, a Borboleta pediu-lhes que 
esperassem um bocadinho, porque ia tomar banho. 
Momentos depois, abriu a porta do quarto e mandem- 
os entrar. E toparam-n'a na frigida situação de uma mu- 
lher a quem cahiu o vestido e 

La chtmuefit 
La même chose que luu 

A Borboleta cursou a carreira meretrícia, essa car- 
reira de tão pesados encargos e de tão terríveis coef- 
icientes; dispersou a sua mocidade aos quatro ventos 
dos amores sem dia seguinte, em caprichos mais ephe- 
meros que as rosas de Malherbe, até que se foi esmir- 
rando pela tysica e falleceu no Porto, em 1884 ou 
1885. Se já se tem dito que Lamartine foi uma sorte 
de D. Juan sentimental, em que a poesia se fez mu- 
lher e a mulher poesia, também poderemos pai odiar 
a phrase litteraria dizendo que a Borboleta foi uma 
sorte de Manon Lescaut estúrdia, em que o fado se 
fez mulher e a mulher faio. 

Um cantador de fado dedicou esta cantiga á Borbo- 
leta: 

A Borboleta, coitada, 
Tanto á luz se approximou, 
Que morreu asphyxiada 
Pelo brilho que a fascinou. 

. Quando o mau fado persegue 
Dos homens a geração, 
Quer nobre ou cidadão, 
Ninguém fugir- lhe consegue; 



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216 Empreza da Historia de Portugal 

Por mais doutrinas que progue 
Uma pessoa il lustrada, 
Em nascendo malfadada 
Torna se a mais criminosa. 
Como foi a viciosa, 
A Borboleta, coitada. 

S'em seu collo de alabastro 
Nutrisse uma conducta sà*, 
Desmentiria ser irmã 
Do fraco Vieira de Castro ; 
Estava escripto no cadastro 
Á sorte que os malfadou, 
Matou o irmão quem matou, 
Foi irmã a prostituta, 
Que d 'essa senda corrupta 
Tanto á luz se approxinu u. 

Por cego amor seduzida, 
Kecebendo a negra setta, 
Deixando a senda correcta 
Pela mais desenvolvida; 
De tanta mulher perdida, 
Pelo gozo deslumbrada, 
Só ella foi alcunhada 
Do mais inconstante insecto, 
E tanto amou o dilecto 
Que morreu asphyxiada. 

Quiz fazer qual mariposa 
Toda embevecida na luz, 
Seu corpo a cinzas reduz 
N'eaea esphera luminosa ; 
Pousando d d rosa em rosa 
Tantos perfumes desfrutou, 
Que por fim se envenenou 
Com o perfume do rosal, 
Trocando a vida real 
Pelo brilho que a fascinou. 

A Maria José do Galvão -uma que observava os ri- 
tos galantes de Cylhera— temperava a cantadoria do fa- 
do com uma salsa picanlissima. Era uma cachopa toda 
séria, de olhos negros que pareciam conter toda a fe- 



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Historia do Fado 217 

bre dos lupanares, de cabellos d'un noir d'enfer } 
como diria Musset, de bocca carnuda esfumada por uma 
suspeita de buço promettedor, e de dentes de uma bran- 
cura syjnetrica luzindo n um sorriso de esmalte doira- 
do de mocidade. Fazia accordar o gosto da graça, que 
dorme no fundo das nossas almas latinas. A sua vida 
exhauriíi-se em amores que duravam o lapso de uma 
longa insomnia. Quando lhe dava na tinêta, trajava ao 
bizarro, vestindo-se de homem e pimponando nas es- 
peras de toiros. Grudaram- lhe ao nome aquella alcu- 
nha, porque estivera amancebada com o ourives Galvão, 
depois proprietário de casas de jogo. 

O trajo de campino ficava á Maria José do Galvão 
como uma luva. N'uma noite de espera de toiros, de- 
pois do Galvão e um seu amigo regressarem de um 
passeio a Oeiras, resolveram todos ir esperar o gado. 
Tentaram arranjar uma tipóia, mas debalde, porque 
estavam todas alugadas. Não se amofinaram, porém, 
por tão pouco. Alugaram uma sege de enterro, a Maria 
José enfarpellou-se de campino, empunhou o pampilho 
— que ella manejava como um dandy maneja um frágil 
sticky— montou a cavallo, e lá partiram todos, de gangão, 
para a espera dos toiros, emquanto o disco da lua bri- 
lhava como uma salva de prata polida, o luar derramava 
uma claridade doce como um fumo de leite, e as estrel- 
las, esburacando o velludó sombrio do firmamento, pa- 
reciam piscar, trocistamente, os seus olhinhos de dia- 
mante sem jaca ... 

A Maria José do Galvão — que nunca altingiu as es- 
pheras da alta galanteria — sabia estar n'uma sala e tinha 
uma elegância de pizar de rainha, assim como era um 
instrumento de prazer que sabia exprimir as mais finas 
notas perversas e as mais bellas sensações passionaes. 

Pobre sentimental para quem o amor era um bromu- 
reto pacificante, débil joguete nas mãos do Desejo e da 
Fatalidade, sentiu os primeiros rebates do rheumatis- 



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218 Empreza da Historia de Portugal 

mo na cabeça, deducção lógica da sua vida exhaurida 
n'am train denfer. A graça que elia exhalavacomouin 
perfume evaporou se, o brilho dos seus olhos húmidos 
amorteceu, a linha suggestiva dos seus seios quebrou- 
se, a sua linda bocca de coral, a sua linda bocca de 
purpura de Tyro, a sua bocca cinzelada para o beijo 
desmaiou... 

E a responsabilidade de tudo isto podia-se endossar 
ao bambino alado, que usa o pseudònymo fabuloso de 
Cupido. Ahl Ella esquecera-se de que o amor se pôde 
transportar em muitos tons, mas que, no funuo, é sem- 
pre a mesma ária, a mesma canção, o mesmo liedmotiv 
melódico, velho como o mundo, triste e fastidioso como 
elle... 

O indomável coraçãosito da Maria José dó Galvão, 
esse relógio desarranjado, immobilisou-se em 1881. 

Entre os cantadores femininos de ha trinta annos, 
florescia uma bonita rapariga— un morceau de prínce— 
que cantava o fado com essa voz bysterica dos momen- 
tos de delírio amoroso, e que apparecia muito nos re- 
ga- bofes do Dafundo e nas esperas de toiros, acompa- 
nhada pelo fallecido conde de Oeiras— um fadistophilo 
patau e um guitarrista abaixo da craveira commum, 
o que não impediu que tivesse o seu circulo de amigos 
e, talvez, de admiradores, tão verdadeiro é o dito iró- 
nico de Henri Heine: «Ha mais tolos que homens.» 
Aquella rapariga trocou depois as glorias mundanas de 
diva do fado pelos triumphos mais sólidos de divette 
de opéretta, e obteve tantos applausos na scena como 
obtivera na vida alegre. 

Uma filha da Bazalisa, locandeira na estrada de Sa- 
cavém, garganteava primorosamente as plangencias do 
fado, intervalladas de ais! soluçantes. Na locanda da 
Bazalisa, deramse memoráveis sessões de /Wo, que va- 
liam por banhos eléctricos. 



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Historia do Fado 219 

A Rosa dos Camarões, a Maria Pia, a Beatriz e a 
Maria José Loira — Phryneas muito admiradas pelos 
areópagos de entre 1870 e 1875— também sabiam trinar 
na garganta os fados em circulação. Uma brilhante 
cantadora no género fino foi a Emília Adelaide ou Emí- 
lia dos Caniços. Puzeram-Ihe esta alcunha por ter tido 
uma locanda na quinta dos Caniços, ao Arieiro. 

Chegou a representar no tbealro da Trindade. Mor- 
reu na quinta do Rato, onde estabelecera casa de pasto. 
Segue-se um mote original da Emitia dos Caniços: 

Coitadinho de quem morre, 
Que ao Paraíso nâo vae, 
Quem cá fica come e bebe, 
E a paixão logo Be esvae. 

A preta Cartuxa cantava bem. Esta cantatriz tresan- 
dante ao fartum da catinga chamava-se Maria do Carmo, 
nascera e creara se ao laré na rua do Capellão, e era , 
filha da negra Tia Joaquina e de um preto trabalhador 
no'Gaz. Fui mulher endiabrada, excessivamente bu- 
. Ihenta, uzeira e vezeira em chegar a roupa ao corpo 
aos que se faziam finos com ella ou que imaginavam 
que lodo o matto é ouregão. Chibava com tanto des- 
plante impudico entre a biltraria do bairro como bri- 
lhava de intervaUeira nas toiradas do Campo de Sant' 
Arma. Pui a successora de outras interválleiras cele- 
bres: a Maria Chirita, a Mugiganta, a valente Maria 
Rosa de Castello-Branco e a Maria Formiga. Alguns 
pretos se notabilisaram egnalmente n'este trabalho: o 
Benedicto, o Firme, o Bumba no Caneco, o Campos, o 
José Maria, ministro hespanhol da rainha do Congo, o 
Simão, o Pae Paulino velho, o Pae Paulino novo e o 
Domingos, cego de um olho. A par dos nçgros, havia 
os intervalloiros brancos: o José da Avó, o Macanjo, 
o engraçado França, o Galamba e o Torra-ossos. A ir- 
requieta Cartuxa n.oiigerou se, abandonou advida re- 



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220 Empreza da Historia de Portugal 

galooa dos alcouces pelintras e expirou socegadamente 
Da rua do Joio do Outeiro, onde habitava com um tal 
Joaquim Bolacheiro. 

- Das cantadoras de agora citaremos as primaciaes : 
a Albertina— anctora do fado da Albertina ou de Al- 
cântara ou do Manoel Cazemvo—e a Leopoldina, uma 
cantadeira de sangue na guelra, que já morreu. Can- 
tavam o fado á compita e tiveram dnellos que podiam 
metter na sombra o famoso duelloda marqueza de Po- 
lignac com a marqueza de Nesle, duellos que se empe- 
nhavam, não á espada e em honra de qualquer marquez 
de Arlincourt, mas em canto ao desafio e em honra do 
querido fado. Certa occasião, n'uma casa de venda em 
Alcântara, chegaram a a rrem et ter, de garfos e facas em 
punho, uma contra a outra como duas harpias prestes 
a despedaçar- se. Mas, a falar verdade, reconhecemos 
que já não ha uma cantadora como a Custodia ou a 
Cesaria, uma cantadora que leve o sursum corda ao 
sentimento, uma d'essas cantadoras que os idolatras 
do fado seguiam quasi religiosamente como os preux 
seguiam o pennacho de Henrique IV. 

Ha, todavia, no canto do fado da ultima maneira, no 
fado século XX, uma cantadora justamente celebrada 
como a legitima cantatriz modernista, a superfioa can- 
tante nouveau siécle, a pura cantadeira demier soupir, 
a ultima depositaria de todos os segredos do fado. E' 
a Cacilda Romero. A aristocracia do seu canto, ajudado 
pela guitarra locada pela própria Cacilda, é de tal for- 
ma, que os ouvintes sentem-se subjugados por uma 
força magnética envolvente, como n'aquelles indescri- 
ptiveis momentos de espasmo pbysico em que nos sen- 
timos rolar para um mysterioso e delicioso abysmo. . . 

A Cacilda tem um fado original seu, e improvisa 
com tanta facilidade que, quasi todos os dias, tem coisas 



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Historia do Fado 22 í 

novas para cantar. Reproduzimos, em segaida, algumas 
quadras originaes da Cacilda : 

Dae-me a guitarra e o fado, 
E bemdirei minha sorte, 
Quero ouvi lo até na morte, 
Ser com elle amortalhado. 

Se tu fosses como eu sou, 
£ os génios fossem eguaes, 
Darias, como eu te dou, 
A vida e tudo o mais. 

Da Cacilda o canto bello 
Nem todos teem escutado, 
Quem a Cacilda nunca ouviu, 
Nunca ouviu cantar o fado. 

Os lábios de falar calam, 
Quando as palavras se prendem, 
Também as flores não falam, 
£ pelo aroma se entendem. 

A luz da pallida lua, 
Em noite serena e quente, 
Eu jurar- te que sou tua, 
Seres meu eternamente. 

E então, já feita a jura, 

Que descrevo em breves traços, 

Ter a suprema ventura 

D 'assim morrer em teus braços. 

£ a lua tão bondosa, 
Amiga dos namorados, 
Sorria maliciosa 
D'assim nos vêr abraçados. 

Eis aqui a phantasia 
D'este sonho que eu sonhei ; 
Que triste melancholia. . . 
Tudo illusâo. . . e accordei. . . 

Meu Deus, para aue accordar, 
Para que volver a vida I 
Eu, quizera não despertar 
P'ra licar adormecida. 



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222 Empreza da Historia dè Portugal 

Cacilda Homero, que está na edade tão apreciada por 
Balzac, tem uma individualidade própria — coisa diffi- 
cil de se ter, seja no que fôr — ,o que a torna uma das 
pirimeiras tributarias, senão a primeira tributaria, da 
chronica do fado moderníssimo. Aloja a paixão do fa- 
do n'um lóbulo do seu cérebro, como outros alojam a 
paixão do mando, da celebridade, da riqueza, da glo- 
ria. A Cacilda dispõe de um bom talento de imitadora, 
a ponto de reproduzir, com a máxima exacção, as vo- 
zes do Serrano, do Sepúlveda, do Varella, do Vecchi, 
do Marinho, de toda a flor da elite dos cantadores. A sua 
voz emocional, vivaz, dominadora, cheia de elegâncias 
sentimentaes, seduz como um sorriso de pérolas en- 
gastado n'uma bocca de rubis, attrahe como esses ne- 
gros olhos flumiuenses, em que treme a luz da alma 
brasílica. E' uma voz talvez um pouco volumosa, o que 
não obsta a que seja meiga como as blandifluas cari- 
cias das harpas eólias. 

Nos lábios da Cacilda, voam as notas musicaes, co- 
loridas e brilhantes, para depois estalarem em feixes 
eléctricos, para depois luzirem como scentelhas de fogo 
na obscuridade da noite, para depois cahirem n'um 
chuveiro omnicolor e phospboreante de esmeraldas, sa- 
phiras, topázios, amethistas, chrysolitas auri-verdes, 
bèrylos cor de sinopla e granadas côr de sangue arte- 
rial; na sua garganta argentina, ritornella admiravel- 
mente o fado, a portuguezissima cantiga que conhece 
todas as portas secretas do coração humano, a nacio- 
nalissima cantiga que é o grito da alma, o gemido do 
amor e a lagrima do sentimento, a supernal canção em 
que o espirito luzitano parece reencontrar as suas azas 
para se librar no ether diamantino, a magniloquente 
canção em que parecem latejar todos os sonhos penin- 
sulares, essa canção divina que nasceu entre o duplo 
infinito e o duplo azul do ceo e do mar, entre o es- 



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Historia do Fado 223 

malta diaphano da vaga e a porcelana translúcida do 
firmamento, entre a graça opaca da onda e a graça 
fluida do cariz celeste, enire as convulsões azuladas 
do salso-argento e as vibrações cinzentas da atmosphera 
marítima.. . 

Remataremos o capitulo sobre os cantadores, refe- 
rindo nos aos mais famosos cantadores provincianos. O 
primeiro, na ordem hierarchica e na ordem chronolo- 
gica, é António Maria Euzebio, o Euzebio Calafate ou o 
Cantador de Setúbal. O provecto cantador, que jí conta 
oitenta e dois annos de edade, tornou- se famoso pela 
sua admirável facilidade no trovar, e pela originalida- 
de das idéas satyricàs, que, nos descantes, maravilhava 
os ouvintes pela justeza e pelo incisivo do traço, quer 
nos versos que vinham dè memoria, quer nos impro- 
visados alli, conforme explica o sr. Henrique das Ne- 
ves nas linhas biographicas que acompanham o livro 
do Cantador de Setubal, livro em que aquelle illustre 
escriptor colligiu algumas producções poéticas do tro- 
vador octogenário 4 . Como amostra dos seus versos, 
onde, muitas vezes, põe de manifesto a nota satyricà, 
mas onde também, muitas outras, se espelha a bonda- 
de do seu coração, damos a seguinte decima: 

O AUCTOR 
Nunca fui mal procedido, 
Nunca fiz mal a ninguém, 
Se acaso fiz algum bem 
Nâo estou d'isso arrependido. 
Se mau pago tenho tido 
São defeitos pessoaes; 
Todos seremos eguaes 
No reino dá eternidade, 
Na balança da egualdade 
Deus sabe quem pesa mais. 

1 Versos do Cantador de Setubal acompanhados de um prefa- 
cio de Guerra Junqueiro e de «Algumas palavras acerca da vida 
do auctor» pelo Colleccionador, que é o sr. Henrique das Neves. 



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224 Empreza da Historia de Portugal 

O cantador Manuel Alves, o Cavador, trovista da 
Bairrada, um aoalptvbelo a quem alguém colligiu as 
poesias n'ura livro intitulado Versos do Cavador^ mor- 
reu em 1901. À sua feição poelíca é aptitbetica da do 
Euzebio Calafate, porque se este vibra a nota satyrica, 
moidaz, aquelle vibra a nota amorosa, profundamente 
elegíaca. O Alfayale de Mafra canta, toca guitarra e 
improvisa superiormente. O Marcolino do Porto, um 
pobre musico ambulante, improvisava fados (musica), 
mas nunca foi cantador. Ainda é vivo. Pedro Marié, 
do Porto, esse sim, esse é que foi cantador famoso. 
Teve a sua época. Improvisava cantigas do fado, mas, 
tão obscenas, que fariam corar uma papoula. O seu es- 
tro era como que um abcesso maduro, que se abria 
ejaculando pus. listas mesmas cantigas ainda hoje são 
cantadas pelo Carlos Pistôtira, empregado no lhealro 
S. João. 

Em Coimbra existe um cego, que se oceupa em lo- 
car guitarra e cantar o fado. Chama-se José Monteiro 
e faz-se ouvir, habitualmente, num botequim parrana 
da rua Sophia. Tem voz de barytono. Este homem era 
oleiro e cegou aos vinte annos. Possue algumas canti- 
gas originaes suas. Eis dois motes que elle glosa ao 
som do fado do Hylario : 

O cego vive em tristeza, 
O louco vive contente, 
O cego sente e não vê, 
O louco vê e não sente. 

E' bem triste a triste vida 
Em que vive um desgraçado, 
Fico ás vezes sem esmola 
Por ser pobre envergonhado. 



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JOSÉ JOAQUIM EMYGDIO MAIOR 
(Br.lhante cantador de fado) 



15 



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Vil 



Os guitarristas trovadores de Lisboa dos princípios do século 
nx. — Cantigas populares das ruas lisboetas na mesma 
época. — Cantigas politicas no tempo de D. Miguel. — Os 
guitarristas profissionaes e os guitarristas amadores. — Di- 
lettanti do fado. — O conde da Anadia e o marquez de Cas 
tello-Melhor. — Continua ee a ennumeração dos guitarristas 
antigos. — Os guitarristas modernos. — O bater o fado. — A 
dansa do fado e a dansa do fandango. — Bailadores de fan- 
dango e batedores de fado. — O fado aristocratisa se. — João 
Maria dos Anjos faz época. — SSatyra aos cantadores e gui- 
tarristas. — Trovas do fado moderno. — Evolução do fado. 
— Persistência do fado devida ás suas fortes raízes tradi- 
cionaes. 



Depois dos cantadores cabe a vez aos guitarristas, 
cujos instrumentos pa recém espalhar o ideal no ambiente. 
Os guitarristas trovadores, vagueando d la buena de 
Dios pelas ruas de Lisboa, sâo antigos. 4 A' semelhança 
dos aedos e dos rhapsodos gregos, que cantavam os 
primitivos cantos populares — esses trocos miúdos do 
plectro homérico — acompanhando-se da cylhara e do 
phornrinx, lambem aqueiles menestréis se acompanha- 

1 O ultimo d'esses cantadores afamados das ruas lisboetas 
foi o Gaspar da viola, um virtuoue da mendicidade. 



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228 Empreza da Historia de Portugal 

vam da guitarra; e á semelhança dos jograes da Edade- 
Media, que cantavam de terra em terra, também cal- 
cnniavam por esse reino fora, entoando as canções 
d'este paiz da laranja, onde, da mesma maneira que 
na comedia de Beaumarchais, tout finit par des chan- 
sons. 

Nos começos do século xix, os cegos-papelistas acom- 
panhavam se de um moço ou de um cão, apregoavam 
as leis novas, os decretos do Príncipe Regente e os re- 
gulamentos de policia, vendiam livros de orações, alma- 
nachs, canções populares e contos faceciosos para di- 
vertir o vulgacho. á maneira do cego Jacquemin, que, 
então, vendia as canções nas ruas de Paris. No tempo 
da guerra peninsular, annunciavam as proclamações do 
governo, as cartas officiaes dos generaes, os triumphos 
dos alliados e as derrotas do inimigo. E as suas vozes 
sonoras casavam-se, a miúdo, com os accordes da gui- 
tarra, que dedilhavam proficientemente. No Rocio e em 
outras praças, estacionavam cantadores e locadores de 
guitarra indigentes, cegos e com vista, ladeados pelas 
respectivas mulheres, em torno dos quaes se reunia a 
multidão ávida de escutar as tocatas populares e as en- 
deixas acompanhadas pela guitarra carpidora. 

Annos depois— em 1824—, a licenciosidade das can- 
tigas dos guitarristas chegou a ponto tal e tamanho, 
que os agentes policiaes notavam o facto como digno 
de correctivo. Assim, a parte de policia de 31 de Agos* 
lo d'aquelle anno dizia: — «Murmura-se que em uma 
capital policiada como Lisboa, se consintam bandos de 
cegos e vadios com guitarras pelas ruas, entoando can- 
tigas indecentíssimas e obscenas, como as que agora 
andam em moda - do Negro melro— ,a cujo acompa- 
nhamento de guitarra se seguem tregeitos escandalo- 
sos, e não pouco oííensivos á decência e moral publica! 
Com taes lições não admira^que os[[[progre8SOS dos 



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Hútoria do Fado 229 

maus hábitos se espalhem entre as famílias honestas 
e de boa educação, vendo-se até o honrado. chefe de 
família, que presa os bons costumes, na precisão de não 
consentir que seus filhos cheguem ás janellas para não 
beberem em fonte impura tão pestífero veneno. 4 » 

A cantiga do Negro melro ^ eulão corriqueira nas ru- 
as lisbonenses, era do theor seguinte: 

O ladrão do negro melro 
Toda a noite assobiou, 
Lá por essa madrugada 
Bateu as azas, voou. 

O ladrão do negro melro 
Toda la noite cantou, 
Pela fresca madrugada 
Deu ás azas e voon. 

E como ás azas deu, 
Depois que tanto cantou, 
O ladrão do negro melro 
De todo desaforou. 

O ladrão do negro melro 
Aonde elie vae cantar ! 
Vae, nem que fosse solteiro, 
Sem mulher que aturar. 

O ladrão do negro melro 
Onde foi fazer o ninho ! 
Lá p'rós lados de Leiria, 
No mais alto pinheirinho ! 

O ladrão do negro melro 
Toda a noite requiquiu. 
Ao chegar a madrugada, 
Bateu as azas, fugiu. 

O ladrão do negro melro 
Foi-me á quinta ás ameixas, 
Torna cá, oh negro melro. 
Anda buscar as que deixas ! 

* Policia secreta dos últimos tempos do reinado do Sr. D. 
João VI, pag. 242. 



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230 Empreza da Historia de Portugal 

Outra cantiga" trivialissima era a da Maria Cachucha, 
que jà se dansava cora os fandangos e os boleros, no 
tempo em que Manuela Buiz bailava o fandango no Sa- 
litre e Maria Guidetti o bolero em S. Carlos (1802) : 

Maria Cachucha 
Quem te cachuchou ? 
— Foi um frade Loyo, 
Que aqui passou. 

Maria Cachucha 
Nào vás ao Rocio, 
Toma lá dinheiro, 
Sustenta o teu brio. 

Maria Cachucha 
Nao vás ao quintal T 
Em sainha branca 
Que paiece mal. 

Maria Cachucha 
Que vida é a tua ? 
Comer e beber, 
Passciar na rua. 

Maria Cachucha 
Com quem dormes tu ? 

— Eu durmo sósinha, 
Sem medo nenhum. 

Maria Cachucha 
Com quem dormes tu? 

— Durmo com um gato, 
Que me arranha o c. . . 

Maria Cachucha, 
Se fores passeiar, 
Vae pelas beirinhas, 
Podes -te molhar. 

Outra cantiga correntia nas ruas de Lisboa, desde 
os princípios do século xix, era o Pésinho: 



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Historia do Fado 231 

Ponha aqui, 
Ponha aqui, 
O seu pésinho, 
Ponha aqui, 
Ponía aqui, 
Ao pé do meu. 
Se elle é torto, 
Se elle é torto, 
Ou aleijado, 
Foi geito, 
Foi geito, 
Que Deus lhe deu. 

Estou contente do meu par, 
Foi condão de Deus m:0 dar. 

Ponha aqui, 
Ponha aqui, 
O seu pésinho, 
Ponha aqui, 
Ponha aqui, 
Ao pé do meu. 
Ao tirar, 
Ao tirar, 
O seu pésinho, 
Ai, Jesus ! 
Ai, Jesus ! 
Que lá vou eu ! 

Estou contente do meu par, 
Foi condão de Deus m'o dar. 

Outro vulgarismo musical das ruas lisboetas era a 
cantiga da saloia: 

Quero cantar a saloia, 
Já que outra moda não sei, 
Minha mãe era saloia, 
Eu com ella me criei. 

Sou saloia, trago botas, 
Também trago o meu mantéu, 
Também tiro a carapuça 
A quem me tira o chapéu. 



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232 Empreza da Historia de Portugal 

Já fui amada d'um grande, 
Lindos olhos me piscou, 
Também quiz dar- me um abraço, 
£ estas falas me soltou : 

Oh saloia, dá-me um beijo, 
Que eu te darei um vintém, 
Os beijos d' um a saloia 
São caros, mas sabem bem. 

Oh saloia, dá-me um beijo, 
Que eu te darei um pataco, 
Um vintém é pelo beijo, 
outro é p'ró tabaco. 

Finalmente, outra cantiga popular, acompanhada pelo 
zangarrear da viola ou da guitarra, era esta: 

Ai ! Ai ! Ja não ha .quem queira, 
Ai ! Ai 1 Já não ba quem queira, 

Ganhar um vintém, 

Levar a chiquita, 

A's bandas d'álem ! 

Ai! Ai ! Já não ha quem queira, 
Ai ! Ai ! Já não ha quem queira, 

Ganhar um vintém, 

Levar a chiquita, 

Das Naus á Ribeira ! 

Ai ! Ai ! Já não ha quem queira, 
Ai ! Ai ! Já não ha quem queira, 

Ganhar um vintém, 

Levar a chiquita 

Da Ribeira a Belém. 

Entro os versos políticos sediciosos que se cantavam 
anteriormente á vinda de D. Miguel, appareceram uns 
que haviam sido cantados no theatro da Rua dos Con- 
des, e que novamente o foram em 1826 no theatro de 
Villa-Franca da Restauração (Villa Franca de Xira) : 



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Hidovia do Fado 233 



Aquelles que tiram peccadoa 
£ cortam o ar cu 'a mão, 
São bichinhos que não querem 
Liberal Constituição. 

Se conhecesse os Marrecos, 
Com unrchicote na mão, 
Eu faria cantar todos : 
Libera] Constituição. 

Ti em eu toda a fra daria, 
Deu no papa uma sazão, 
Quando soube que tínhamos 
Liberal Constituição. * 

Em 1829, os miguelistas cantavam á guitarra alguns 
versos de caracter politico : 

Oh, ilha da Madeira, 
Deita p'ra cá os malhados, 
Para virem a Lisboa 
Morrer todos enforcados. 2 . 

Ao que os constitucionaes respondiam —trauteando 
em voz baixa e á socapa— com estas quadras de um sa- 
bor não menos afelleado : 

O D. Miguel não é rei, 
Nem filho de D. João, 
E' filho d' um guarda cabras 
Da quinta do Ramalhão. 

D. Miguel não governa, 
Nem é filho de João, 
Apenas é um bastardo 
Do feitor do Ramalhão. 



D. Miguel para ser rei 
Duas coisas foi primeiro, 
A primeira foi campino, 
A segunda foi cocheiro. 



1 Archivo do Ministério da Justiça. Maço 90. 

2 Archivo da Torre do Tombo. Intendência Geral de Policia. 
Correspondências dos ministros dos bairros^ Santa Izabel. Maço 11. 



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234 Empreza da Historia de Portugal 

E' certo e mais que certo, 
Fique em memoria eterna, 
Que indo feito cocheiro, 
D. Miguel quebrou a perna. * 

Anda cá, oh D. Miguel, 
Anda cá, meu toleirao, 
Has de ir para Santa Helena 
Mandado por teu irmão. 

Os malhados já estão certos 
Na sua sorte segura, 
Já se offereceram levar 
D. Miguel á sepultura. 2 

Passaremos agora a enunciar os principaes guitar- 
ristas, quer proflssionaes quer simples amadores. 



1 Allude-se aqui ao facto de D. Miguel ter fracturado uma 
perna, por se ter voltado o carrinho, em que, junto com as in- 
fantas D. lzabel Maria e D. Maria cT Assumpção, passeiava na 
estrada de Caxias no dia i) de Novembro de 1828. O ter que- 
brado só uma perna, quando podia ter quebrado as duas, foi at- 
tribuido a um milagre da Senhora da Rocha. Os liberaes epi- 
grammatisaram muito o caso, e um dos epigrammas foi este : 

A D. Miguel um milagre 
Fez a Senhora da Rocha, 
Quebrando se -lhe o carrinho, 
Quebrou -se- lhe só uma coxa. 
Bem podias, Virgem pura, 
Para ostentar teu poder, 
Na que lhe ficou inteira 
Outro milagre fazer. 

Por seu turno, os miguelistas celebraram o caso cantando : 

D. Miguel é bonito, 
E' bonito e bem feito, > 
Quebrou uma perna, 
Ficou sem defeito. 

2 Correspondências dos ministros dos bairros, Santa Catharina, 
Maço 64. 



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Historia do Fado 235 

O primeiro guitarrista, depois da appariçSo do fado 
nas ruas de Lisboa, é João Pedro Quaresma, que mor- 
reu com oitenta annos de edade e foi mestre do gui; 
tarrista Maia, hoje o decano dos guitarristas lisbonen- 
ses. João Maria de Mello, oCego, é de entre 18i0el850; e 
o José Maria Vidai também é guitarrista antigo. O Jo- 
sé Vinagre era um bom tocador de guitarra, que fa- 
dejava nos botequins da Ribeira-Nova antes da Maria 
da Fonte. A' volta de 1845, vivia um cego, que esta- 
cionava habitualmente na rua do Arsenal e que toca- 
va guitarra de uma maneira surprehendenle. Punha o 
chapéD aos pés, e os transeuntes iam-lh'o enchendo 
de moedas de cobre. * 

Nos botequins da Ribeira-Nova, tocava-se então 
muito o psalterio, instrumento que tinha voga. Ainda 
ha trinta e cinco annos existia um tocador de psalte- 
rio, um homem baixo e de cara rapada como César, 
que andava tocando pelos cafés, principalmente no ca- 
fé Grego, no Gaes do Sodré, e no café da Arcada, no 
Terreiro do Paço. 

João de Deus, o eminente lyrico, dedilhou banza em 
Coimbra, em 1854 (quando frequentava o curso de 
Direito), como é tradicional entre os escolares coim- 
brões, porque, já na noite de 31 de Dezembro de 
1799 para I de Janeiro de 1800 os estudantes da 
Universidade, munidos de borrachas de vinho e de 
guitarras, vieram, antes de soar a meia-noite, para 
as margens do Mondego, a fim de celebrar a entrada 
do século XIX. * 

1 Por esse tempo, e ainda depois, viveu no Porto um mendi- 
go legendário, o José das Desgraças, tocador de guitarra To- 
dos o conheciam, assim como ao seu cão inseparável e ao seu 
enorme chapéo de seda azulada. O Ferreirinha da Régua va- 
rias vezes lhe deu dinheiro para comprar cães. 

2 João de Deus, quando estudante de Coimbra, toeava gui- 



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23S Empreza da Hièioria de Portugal 

José Maria Anchieta, o intrépido explorador africa- 
cano, tornou-se uma celebridade na guitarra, quando 
cursou a Universidade de Coimbra. Em Lisboa, mos- 
trou que não era para graças. O sr. Bulhão Pato con- 
ta que, uma vez, nos antigos casebres do Loreto, uma 
matilha de quatro fadistas arremetteu contra Anchieta. 
Mas este fez-lhes frente, cresceu para elles, poz três 
tora de combate, sendo, porém, esfaqueado pelo quar- 
to. E, ao passar de maca pelo Marrare do Chiado, 
saudou jubilosamente os amigos que estavam á porta, 
como se fosse para uma diversão. 4 

Um tocador excellentissimo, mas este de viola da 
Beira, foi o José Dória, de Coimbra (Dr. José António 
dos Santos Neves Dória, bacharel em medicina.) Toca- 
va o fado de Coimbra de uma maneira quasi phanlas- 
tica. * Em Lisboa, tocou em vários concertos, o ultimo 
dós quaes se realisou no palácio do marquez de Cas- 
tello-Melhor, em que o auditório — onde se viam os 
maestros Sá de Noronha e Cossoul e a cantora Rey-Bal- 
la — se sentiu maravilhado pela arte espantosa com 
que o virtuose communicava a vida e a paixão aos sons 
prisioneiros da matéria, de que o instrumento era con- 
stituído. E a Rey Baila, cuja sensibilidade amoravel e 
mórbida a fazia chorar ouvindo cantar o fado, offere- 
ceulhe o seu retrato com uma dedicatória amabilissi- 
ma. 

tarra, cantava c compunha musica. «Tocava deliciosamente a 
banza dos estudantes, compondo musica para cila.» (Eu e as 
notabilidade s litter árias. Artigo de Cunha Belém na Revista 
Brasil- Portugal n 91). Noite fechada, João de Deus ia com 
outros estudantes, muito embuçados, cantar versos e musica — 
tudo original seu— á porta de certo lente com quem embirrava. 
(Trindade Coelho, In Mo tempore, pag 227J. 

1 Bulhão Pato Memorias^ vol. I, pag. 78. 

2 Joaquim de Vasconcellos. Os músicos portugueses, vol. I, 
pag 82. 



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Historia do Fado 237 

O guitarrista profissional Ambrósio Fernandes Maia, 
hoje septuagenário, antigo barbeiro em Campo de Ou- 
ri jue e natural de Queluz, é o decano dos guitarristas 
lisboetas. Escreveu um methodo para aprender a tocar 
guitarra. Compoz o primeiro fado das salas em 1869, 
e mais os fados seguintes: Artilheiro, da Ribeira- Nova, 
da Cesana, do Porto, efe Vizeu, de Cascaes, de Coim- 
bra, Marialva, Trinado, Bigode, da Meia-Noite, Arte 
Nova e do liôlho. O fado Artilheiro faz parte dos nú- 
meros de musica da comedia dramática Lobos na ma- 
lhada, original do Dr. Guuha e Costa, que subiu á scena 
n'um theatro do Rio de Janeiro em Novembro de 1902. 
O Maia foi mestre do notável guitarrista o Visinho. En- 
trou nos concertos de fado em casa do marquez de 
Castello-Melhor, junto com João Maria dos Anjos e 
outros distinctos concerlistas de guitarra, concertos 
que se recommendavam pela execução nítida, segura, 
cantante, como a poesia que envolve a genuinissima 
canç5o popular. Maia é quem empunha hoje o legal- 
standart dos que tocam o fado na maneira antiga. 

José Maria dos Cavallinhos notabilisou-se como um 
guitarrista de haute-marque. Tinha a alcunha dos Cavai- 
linhos, porque fizera parle de uma companhia de ca- 
vallinhos ambulante. Tocava por musica e mandou 
fabricar uma guitarra de dezoito cordas, em que reali- 
sava o tóur de fot ce de executar todos os fados de 
difliculdades. Compoz o fado do Anadia l e um outro 
fado que tomou o nome do auiiior. O fado do Anadia, 
que fez época, estava em todos os lábios, escapava-se 
dolorosamente de to<las as guitarras. 

conde da Anadia teve celebridade como um pan- 
dego de truz. Não tocava guitarra, nem cantava, mas 

1 Ha quem attribua o fado do Anadia ao guitarrista Cons- 
tantino, o que é inexacto. 



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238 Empreza da Historia de Portugal 

apreciava deveras o cauto do fado, e gostava muito de 
ir ás feiras e a jantares no campo. O grupo dos seus 
companheiros era formado de Luiz Aranha, Simão 
Aranha, José Esteves Costa, o cavalleiro Diogo Hen- 
riques Bettencourt, o Padre Matheus, empregado na 
alfandega, o Manoel Gonçalves Tormenta, o José Carlos, 
de Évora, Domingos Martins Peres, Àvillez, Dr. José 
Avellar, Luiz de Araújo, Campos Valdez, Francisco de 
Almeida Carvalho ou o Carvalho ratado, e Manoel 
Botas, o actual intelligente das toiradas, que levava a 
guitarra para fadejar no momento psychologico. 

O Botas aguardava-os na tendinha do Rocio, e d'ahi 
seguiam para o Col/ete encarnado, no lado oriental do 
Campo-Grande, onde se banqueteavam com o bello 
peixe frito e a salada concomitante. Não iam esperar 
os toiros a Friellas, nas tardes de espera. Nunca passa 
vam além do Campo-Grande, abancando n'aquella casa 
de pasto, que já tinha a meza posta para elles, e alli 
esperavam a passagem do gado para o descanço no 
Campo-Pequeno. O conde da Anadia era o typo do 
gentil-homem campagnard, o modelo da delicadeza e 
fidalguia, e embora se desse com certa roda inferior á 
sua gerarchia, sempre se soube manter no seu logar 
e respeitar-se, tal qual o conde de Vimioso. 

Quando foi da empreza de Campos Valdez* em S. 
Carlos, alguns amigos de Domingos Martins Peres — 
um grande amador do fado—, apenas terminava a re- 
cita do theatro lyrico, partiam immediatamente para 
casa tíelle, na Ameixoeira, onde a meza estava posta 
e se servia logo a ceia. Durante esta, chegavam a 
cantar, ás vezes, um acto inteiro da opera que acaba- 
vam de ouvir em S. Carlos. Encontravamse lá muito 
o conde da Anadia, Luiz Aianha, o marquez de Cas- 
tello-Melhor, Luiz de Araújo e outros. Em certo jantar 
que alli se deu, o marquez de CastelloMelhorj>ediu a 



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Historia do Fado 239 

Luiz de Araújo que mandasse servir o jantar de traz 
para deante, e assim se fez, começando-se pela sobre- 
meza e acabando-se na sopa ! 

Além do conde da Anadia, outro titular popularissi- 
mo amou a guitarra e gostou Ao fado— o marquez de 
Castello Melhor. Não se limitava a um amor platónico/ 
como aconteceu ao conde da Anadia, porque, embora 
não cantasse o faão % sabia tocai o sofrivelmente na 
guitarra. Aprendera-a em Coimbra, quando frequentava 
o segundo anno de Direito, e teve por mestre um ce- 
go que zangarreava aquelle instrumento nas ruas da 
LuzaAthenas. Foi seu companheiro n'essa aprendiza- 
gem o sr. dr. João da Silva Maltos, que, a breve tre- 
cho, abandonou guitarras e guitarradas. O marquez, 
porém, sempre tocou guitarra, sendo, a miúdo, acom- 
panhado á viola pelo sr. D. Luiz Breton y Vedra ou 
por D. Juan Salces, antigo tenor de uma companhia 
de zarzuela, que veio para Lisboa em 1863 e que por 
cá se deixou licar O Marques de CastelloMelhor nun- 
ca fez prodígios de execução na guitarra. Tocava-a re- 
gularmente e nada mais. Comtudo, logrou impressionar 
a princeza Rattazzi, que o ouviu n'uma soirie intima 
em casa do próprio marquez em Paris, «tocando na 
guitarra os fados nacionaes de uma originalidade vi- 
vamente accentuada» '. Mas a princeza Rattazzi perce- 
bia menos de fadinhos e fadunchos do que percebia de 
tinturas capillares, de pastas, loções e cremes para dis- 
simular as rugas da derme coriacea, e da chimica ca- 
pciosa dos mil artifícios de toilette, adrede praparada 
para restaurar a belleza n'uma edade em que ella se 
torna o mais insustentável dos paradoxos. 

Alguns minutos antes de morrer, ainda o marquez 
de Castello-Melhor estivera executando vários trechos 

1 Madame Rattazzi. LélPortugal à vol cfoiseau, pag. 47 



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210 Empreza da Historia de Portugal 

musicaes na guitarra, acompanhado com a viola lies- 
panhola pelo seu amigo sr. D. Luiz Uretou y Vedra, que 
o fora visitar ao seu palácio na rua occidental do Pas- 
seio Publico (hoje propriedade do marquez da Foz). O 
marquez tencionava partir para Madrid, onde se iam 
realisar grandes festas para celebrar o casamento do 
rei Affonso XII com D. Maria das Mercedes, no nume- 
ro das quaes festas se comprehendia uma toirada por 
amadores, em que o marquez contava toirear. O sr. 
Yedra dissuadiu o do intento, e aconselhou-o a que le- 
vasse a sua farda de official-mór da Casa Real para se 
poder apresentar nos bailes e nas funcções no Paço. O 
marquez concordou e disse: «Valeu. Levo a farda!» 
Foram as suas derradeiras palavras. Em seguida, deu 
um grito e. cahiu no chão, acudindo lhe logo o sr. 
Vedra. M is debalde, porque o marquez estava morto. 

O marquez de Castello Melhor nunca foi um arbitro 
das elegâncias, um d'esses pharoes moveis do janotismo 
e da distincção. A dislincçao, no sentido de elegância, 
tornou-se um neo logismo dos paizes democráticos, e a 
gloria de um grãosenhor consiste em não ser conheci- 
do e approximado senão dos seus pares. Ora o marquez 
de Castello-Melhor convivia, um pouco familiarmente, 
com todas as classes. Encarnou, porém, de maneira 
superior, o chie à cheval, foi um ginetario de primeira 
ordem, um dos mais authenticos sustentáculos das no- 
bres tradições da gineta, da antiga escola portugueza 
de cavallaria, conforme a professava o marquez de 
Marialva. 

O marquez de Castello-Melhor tinha boas partidas. 
El-rei D. Luiz dispensava-lhe uma profunda amizade. 
Uma vez, no Paço da Ajuda, quando este monarcha 
principiava a atacar certo trecho de Rossini no piano 
— e D. Luiz era um medíocre pianista—, o marquez 



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A ALBERTINA 
(Moderna cant idora de fado) 



16 



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Historia do Fado 243 

exclamou com a sua habitual franqueza: -«Vossa Ma- 
gestade vae locar Rossini!. .. Ora é melhor que vamos 
conversar». 4 

Outra vez, durante um intervallo em S. Carlos, foi* 
ao camarote real cumprimentar Suas Magestades. Quan- 
do se avisinhou o moxento de subir o panno, as visi- 
tas e as personagens de serviço começaram a sahirda 
saleta. A cada uma que se retirava, el rei fazia-lhe um 
epigramma. O marquez dirigiu-se para a porta, mas, 
ao chegar li, parou, como quem aguarda alguma coisa. 
«Porque espera?* perguutou o soberano. 

— «Gomo lenho visto Vossa Mageslade, respondeu 
elle, fazer epigrammas a todos que sahem, espero lam- 
bem pelo meu. . . » 

D. Luiz riu com a graça e poupou o marquez. 

marquez de Castello-Melhor conservava religiosa- 
mente n'uma caixinha um lenço de pescoço, que lhe 
offertara uma senhora por quem estivera loucamente 
apaixouado. Só o punha nos dias solemnes. 

Por occasião do fallecimento do marquez de Castel- 
lo Melhor, Júlio César Machado traçou-lhe o perfil em 
poucas linhas : - «O marquez, apesar de toda a sua 
semeerimonia, era um dos poucos fidalgos a valer que 
deveras se distanciassem e impozessem ; e tinha o con- 
dão, aquelle moço que loireava, tocava guitarra, gos- 
tava de cavallos, de folias e de rapaziadas, de ter uns 

1 Rossini era amicíssimo de el-rei D. Luiz. Quando este foi 
a Paris em 1865, o author do Barbeiro de Sevilha offereceu-lhe 
um concerto em sua casa, onde o soberano cantou a romanza 
de barytono do Trovador, o EH tu do Baile de mascaras e a 
cavatina do Trovador, acompanhando, como coristas, Rossini, 
Verdi, Caetano Braga, Perruzzi, Lucantoni e o visconde de Pai- 
va, esse grande elegante que acabou no suicídio como o Mon- 
pavon do Nabab. 



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244 Empreza da Historia de Portugal 

ares de gentilhoraem que atiravam para longe a pie- 
guice de fidalgotes e fidalgueiros, ao ponto de ninguém 
os vêr em elle apparecendo, em tanta maneira, na fi- 
gura, no porte, no garbo, respirava a elegância nobre 
e viril d'esse esbelto homem. t 4 

Este perfil tem a nitidez pholographica dos retratos 
de Nadar ou de Reutlinger. Sim ! O marquez de Cas- 
tello-Melhor amou o toureio, a guitarra e o fado, a 
canção tão caracteristicamente nacional, a canção que 
parece composta com as pulsações oceânicas, as bri- 
zas salinas, as pyrilampisações da ardentia, feita de 
pingentes de prata boiantes, os rumores côncavos de 
bordo, as espumas referventes que coroam as volutas 
glaucas das ondas, as musselinas tenuíssimas da bru- 
ma, a alegria loira da bonança e as vozes fluidas das 
nereidas que habitam nas grutas de crystal sob o so- 
mno apparente das vagas. . . 

O fado seguinte foi improvisado pelo amador De 
Vecchi n'uma corrida de toiros em Salvaterra, na qual 
tomou parte o marquez de Castello-Melhor. 

Ergue a campa, oh Vimioso, 
Ainda ha toiradas reaes ! 
Corre, vôa a Salvaterra, 
Pois lá brilham os teus rivaes ! 

Estalam foguetes no ar, 
Rompe a musica estrondosa, 
Vae Salvaterra, a formosa, 
Uma toirada gozar; 
Anda lá tudo no ar, 
Cada qual anda ancioso, 
Corre o povo pressuroso, 
A' festa ninguém se salva, 
Baixa á terra, oh Marialva! 
Ergue a campa, oh Vimioso! 

1 O Marquez de Castello Melhor, folhetim do Diário de A'o 
ticiaê de 25 de Janeiro de 1878. 



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Historia do Fado 246 



Bravo, ao marquez cavalleiro, 
Que toirea com deppique! 
Croft e António Manique 
Teein brilho verdadeiro; 
Raphael, gentil toireiro. 
Tem denodo até não mais, 
Sào dos artistas rivaes 
Esses moços tão valentes, 
Todos gritam de contentes: 
Ainda ha toiradas reaes! 

Grupo ou ea do e destemido, 
Que aos bois, de cara faz frente, 
E' cabo o Ponte valente, 
Segue o Caldeira atrevido; 
De cara, Rebello querido 
Pega um boi como uma serra, 
Tinoco nnda o aterra, 
D'Antas, Castello e Ribeiro, 
Para os vêr, o mundo inteiro 
Corre, vôa a Salvaterra. 

Bravo, oh valente abegao, 
Que a cavai lo ou de cernelha, 
Parece, da guarda velha, 
Ser o valente campeão! 
Roquette, o amphylriao, 
Dá corpulentos animaes, 
Nao ha quem possa exigir maip, 
Até na campa os finados 
Gritam em bem altos brados: 
Pois lá brilham os teus rivaes! 



António dos rhosphoros, um guitarrista de pri- 
meiríssima, locava guitarra eximiamente, e tocava-a 
com todos os dedos da mâo direita. Na?cera na Mou- 
raria, e er* bexigoso, feio como um satyro dos tem- 
pos mythologiços. Andava mal vestido, um pouco á 
faia, de barrete, e sempre cqdi a guitarra, instrumento 
de que poderia dizer como o poeta: sócio meu emeu 
tyranno. Anlonio dos Phosphoros estivera preso na 
grilheta e pertencera ao numero dos que calçaram o 



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246 Empreza da Historia de Portugal 

Rocio, que foi empedrado em 1848. Cpmpoz o fado 
Cadete. 

Os dois Casacas ganharam reputação solida. An- 
tónio Casaca possuia toda a lechnica da arte e guitar- 
reava de uma forma maravilhosa n'um botequim do 
Campo das Cebollas; o José Casaca tocava n'um bo- 
tequim á Ribeira-Nova. O Constantino e o José Pai- 
mella, dois tocadores de mãocheia, arpejavam banza 
nos cafés da Ribeira- Velha. 

O Magiolly conquistou alta celebridade de guitarris- 
ta. Era piloto de navios mercantes. Durante o tempo 
que esteve de cama por ter quebrado uma perna na 
calçada do Salitre, escreveu o fado do Magiolly, que 
é muito bonito, e que eile dedicou ao marquez de 
Castelto Melhor, o qual lh'o retribuiu com dez libras 
esterlinas. Sustentou muitos desafios á guitarra com o 
Constantino marceneiro —um bom guitarrista -, des- 
afios que se travavam n'uma taberna ao Campo de 
SanfAnna, e de que o Magiolly sahiu sempre victorio- 
so. O Magiolly amancebou-se com uma cantadora famo- 
sa, a Anna do Porto. Entre os seus percalços, cita- se 
o de ter grammado uma facada do D. Miguel Soutto 
de El Rei, mas aquelle, depois, partiu a cabeça a es- 
te com um cacete á porta do Marrare do Arco do Ban- 
deira. O Magiolly embarcou, mais tarde, para o Chili, 
em cujo exercito assentou praça, e onde attingiu o 
posto de capitão, sendo morto n'uma d'aquellas revo- 
luções que coustiluem o flato dei dia das republkjuè- 
tas que bordam o golpho do México, o mar das Anti- 
lhas e o Grande Oceano Pacifico. 

Em seguida aos guitarristas que indicámos vinham: 
o José Gualdino (discípulo do António dos Phosphoros 
e morador a S. Sebastião da Pedreira), o irmão do 



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Historia do Fado 247 

Pau Real — rasoavel tocador, e o Freitas da Piedade, 
óptimo executante, que morava na Cova da Piedade, 
onde estabelecera loja de bebidas. A estes seguiam-se 
o João Alturas (óptimo tocador e cantador), o João da 
Preta (assim chama lo por ter sido creado por uma 
prela da Mouraria), o José das três rocas, o bandari- 
Iheiro José Petiz, o carpinteiro Luiz Patrone, o Pataco 
(regular tocador), o Peixoto (tocador notabilissimo), o 
Coxo da Trafaria (antigo marujo), o Thomaz dos San- 
tos Bairro-Allo, o Wenceslau, marujo, o Maxarico, 
marujo, João Maria dos Anjos, o Braz e o Pedro Nico- 
lau de Oliveira, todos já fallecidos. 

Embora se não possa integrar na phalange dos gui- 
tarristas da grande tradição, apontaremos o Luiz Ve- 
lhinho, guitarrista inferior, que se tornou mais conhe- 
cido pela sua casa de burros de aluguel no Poço do 
Borratem e pela sua habilidade insuêta em applicar ô 
methodo sedativo das sangrias de navalha aos adver- 
sários renitentes em se chegar ao rego, do que se po- 
pularisou pela arte de arranhar na banza. 

Dos citados acima, especialisaremos três. Pedro Ni- 
colau de Oliveira ou Pedro Calcinhas era compositor 
da Imprensa Nacional, polia boas rimas para o fado e 
tocava guitarra na perfeição. O Peixoto, filho de um 
adello da calçada do Caldas, já em pequeno tocava 
magnificamente psalterio na loja do pae. Se vivesse, 
seria um guitarrista -que havia de dar agua pela barba 
aos mais acepilhados profissionaes, havia de arear o 
juizo aos melhores tocadores de guitarra. 

João Maria dos Anjos, guitarrista de repicaponlo, 
fora sapateiro em Alfama e era filho de outro sapatei- 
ro e óptimo guitarrista. O Anjos principiou por tocar 
n'um café da Ribeira Velha, emquanto o António dos 



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248 Empreza da Historia de Portugal 

Phosphoros tocava n'outro café, perto d'aquelle. Foi 
João Maria dos Anjos quem descobriu todos os segre- 
dos da guitarra, e, rompendo difficuldades, provou que 
se podiam executar n'ella não só os fados e as can- 
ções populares, mas as partituras de opera, que elle 
transportava do piano para aquelle instrumento. E as- 
sim fez taboa-raza sobre os velhos processos de locar 
guitarra, 

O Anjos tivera esmerada educação musical, tocava 
musica á primeira vista e em todos os instrumentos. 
Numa comedia de Aristides Abranches, escripta de 
propósito para o Anjos, elle ia pedindo, suecessiva- 
mente, os instrumentos aos instrumentistas da orches- 
tra e executando diversos trechos musicaes. O Anjos 
deu os primeiros concertos de guitarra no Casino Lis 
bonense (durante a empreza Gruder) e organisou depois 
um quintelto, e, ainda depois, um sextetto. Esteve para 
ir com o quintelto ao Brazil, contractado por Ernesto 
Desforges, mas arreceiou se da febre-amarella e o quin- 
telto dissolveu-se. O sextetto era constituído por qua- 
tro guitarras e duas violas: O Anjos, o Pelrolino, o 
João da Prttà, o Augusto Pinto de Araújo, o violi:ta 
Zaraquitana e o violista e bcllo guitarrista António 
Eloy Cardozo, agora empregado no caminho de ferro 
de Salamanca- Com este sextetto percorreu o Anjos as 
províncias. Também deu concertos em Madrid com o 
guitarrista Visinho e o Zaraquitana. 

João Maria dos Anjos foi professor de guitarra de 
el-rei D. Carlos (então príncipe real), que o soccorreu 
liberrimamenle na doença de que soffreu durante qua- 
tro mezes, e que, afinal, o viclimou — a tysica pulmo- 
nar. O sr. D. Carlos pagou todos os medicamentos, 
mandou o Dr. Ravara paia o tratar e satisfez as des. 
pezas do enterro. João Maria dos Anjos falleceu na r 



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Historia do Fado 249 

direita de Arroyos,,n.° 106, em 25 de Julho de IS89, 
dois dias depois de morrer o graode actor António 
Pedro. Deixou vários fados, entre elles o que tomou o 
seu nome, o fado das salas, o fado Casino Lisbonense 
(em 1873) e o Meu segredo ou Canção de Cascaes. 

Com João Maria dos Anjos desappareceu o primeiro 
guitarrista portuguez de todos os tempos. Elle vivera 
em perpetuo sonho — o sonho, que é uma segunda vi- 
da, como escreveu Gérard de Nerval — na nossa épo- 
ca de Trio positivismo, em que tudo reclama uma 
equação ou uma densidade. . . 

Outros guitarristas que ainda vivem, sendo alguns d'el- 
les contemporâneos dos que vimos de indicar, são: Antó- 
nio Cândido de Miranda, o Visinho, auetor de um fado 
das salas y guitarrista que tocava com gosto, sentimen- 
to e agilidade, e que executava o fado corrido de uma 
maneira sensibilisadora ; o José í/m, tocador e canta- 
dor gracioso; o Josué dos Santos, antigo barraqueiro 
das feiras e actual camaroteiro do theatro da Rua dos 
Condes; João da Silva ou o João de Vai de Pereiro, mar- 
ceneiro; o Ignacio Palhinhas, discípulo do Maia; Jo.^é 
Fernandes Viegas, tocador e cantador, discípulo do 
Maia; o José da Rosalina (da Outra Banda), grande 
executante de guitarra; Augusto Pinto de Araújo, o 
Camões, chapelleiro; o Nine, antigo sargento, hoje em 
Elvas; José Maria Urceira, o Zaraquitana, correcto vio- 
lista que tocava no café Bom da rua da Bitesga; e 
Luiz Carlos da Silva Petrolino, discípulo de João Ma- 
ria dos Anjos e auetor do fado Luiz Petrolino , um dos 
poucos que ainda toca no género antigo. 

Entre os guitarristas e violistas em pleno exercício 
figuram : Thomaz Ribeiro, con:ertista que recebeu edu- 
ção musical no Conservatório e conhece a fundo a 
guitarra; J. R. Robles, anligo sargento que tomou 



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250 Empreza da Historia de Portugal 

parte na revolta de 31 de Janeiro do Porto; André Car- 
mo Dias, notabillissimo executante de guitarra, Alberto 
Carlos Lima, Alexandre de Oliveira, Alfredo Mantua 
(regente da tuna da Escola Polytechnica), Augusto Ma- 
chado, Alfredo Raposo, António da Silva, Joio Alves 
Castello (bandolinista e regente do quintetto Gíllet), 
Diamantino Mourão (director do sextetto Bertini), Car- 
los Augusto Sampaio, Eduardo Silva (auctor de diver- 
sos fados), Júlio Silva (auctor do Triste Fado), o Lan- 
deiro, Francisco Soares Nogueira, Jo3o Nunes da Silva, 
Ivo dos Santos Josué, Jorge Silva, José Augusto da 
Silva, Júlio Camará, Eduardo Duque, etc. 

Na elite dos guitarristas modernos brilha Reynaldo 
Varella, auctor do fado das 3 horas, do fado Bohemio, 
do fado do Estoril, do fado Novo ele. O fado das 3 ho- 
ras foi escripto em 18b7 e é acompanhado de versos 
do dr. Brauíio Caldas, natural das Caldas de Vizella, 
que os improvisou dentro de um barco vogando no rio 
Vizella n'uma noite de serenata. 

O fado Bohemio ou Ultimo fado (2.° fado de Varella) 
foi composto em 1896 e é acompanhado de quatro qua- 
dras de um poeta de Villa do Conde, as quaes o author 
da musica adaptou ao seu fado. O fado Estoril (3.° 
fado de Varella) foi composto em Setembro de 1901. 
A'lem d'estes fados, tem innumeras variações sobre o 
fado. Os versos do fado das 3 horas são estes: 

Murmura, rio, murmura, 
E 1 doce o teu murmurar ; 
Que tristeza, que ternura, 
Tu tens no teu soluçar ! 

Pela calada da noite, 
Emquanto não surge a aurora, 
Qu'esta minha alma se affoite, 
Suspira, guitarra, ohora ! 



CH?K 



Historia do Fado 251 



Voga, barco, mansamente, 
Pelas aguas prateadas, , 

Leva este canto dolente 
Aos peitos das namoradas. 

Cada nota tão sentida 
Que a minha guitarra envia, 
E' uma canção dolorida 
D a mor e melancholia. 

£ estas canções eu trago- as 
Prezas nas azas da briza, 
Para espalhar sobre as aguas, 
Emquanto o barco desliza ! . . . 

Os versos do fado Bohemio são estes : 

Guitarra, minha guitaria, 
Vamos correr esse mundo, 
Será vendo-te a meu lado 
Meu pezar menos profundo. 

Quando eu gemer, tu suspiras, 
Sorrirás quando eu sorrir, 
Havemos assim, guitarra, 
Prazer e dor compartir. 

Quando a saudade de amante 
Vier meus olhos turbar, 
Tu cantarás e cantando 
Minha* dor has de acalmar. 

Entre as folhas orvalhadas 
Dormem as rosas e os lyrios, 
Nilo dorme quem tem amores, 
Porque amores eão martyrios. 

Temos agora o grupo dos guitarristas amadores. Ahi 
por 1887 ou 1888, havia um grande tocador de viola, 
o Gypriano da Administração, qne é já fallecido. José 
Horta, tocador e cantador, o Domingos Martins, da Amei- 
xoeira, António Galache, tocador e cantador, o Sorome- 
nho, o Leonardo, empregado publico, guitarrista, e o João 



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252 Empreza da Historia de Portugal 

Caetano, empregado na Camará Municipal, podiam for- 
mar hombro a hombro dos profissionaes. O explorador 
africano Roberto Ivens foi — quando aspirante de mari- 
nha -discípulo do guitarrista Maia e notável guitarrista 
amador. O major João José de Figueiredo, ha pouco 
failecido, tocava e cantava proficientemente; e o Al- 
meida das Petas tocou guitarra e viola no género fino. 
O José de Queiroz, pintor amador, brilhou egualmente 
como dilettante de guitarra, o dr. Jayme de Abreu, 
quando cursava a Universidade, celebrisou se como um 
guitarrista superfino, talvez o primeiro que tem havi- 
do entre os estudantes de Coimbra. 



O fado tem duas espécies de dansa: bater o fado e 
a dansa do fado propriamente dita. Bater o fado é uma 
dansa ou meneio particular, em que entram duas pes- 
soas ou Ires: uma que apara (ou duas, ás vezes) e que 
deve estar quieta e o mais firme possivel, e outra que 
bate, dando regularmente as pancadas com a parle in- 
ferior das coxas nas coxas das pernas do que apara, e 
meneando se com requebros obscenos. O conde de Vi- 
mioso batia o fado como um catita e José Chrysosto- 
rno Velloso Horta, amador lauromachico de primeira 
plana, tocava . guitarra, cantava e batia o fada divina- 
mente. Em época posterior, quem bateu o record dos 
batedores de fado foi o Mercadét. Depois d*elle, vinham 
o pidre Moiheus, empregado na alfandega, o guitar- 
rista Josué dos Santos, o Augusto da Emília dos Cani- 
ços, e o José da Bolacheira, que tocava alguma coisa 
guitarra e representou como actor no theatro de D. Ma- 
ria II. 

O grande batedor de fado Mercadét esteve empre- 
gado no Arsenal de Marinha e pertenceu á bohemia à 
outrance, á bohemia alegre como um bando de masoa- 



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Historia do Fado 253 

ras tunantes no carnaval. Tinha pilhas de graça, assim 
como o Guedes do Thesouro, seu amigo e companheiro 
do seu noctambulismo impenitente. Estabeleceram um 
cote nos antigos casebres do Loreto, cuja porta, viuva 
de fecho, se conservava sempre encostada. A mobilia 
compunha se de duas enxergas, e de cadeiras e cana- 
pés... piutados na parede pelo Guedes, homem de 
grande habilidade artística. Com o dobar dos annos, 
o Mercadét imraobilisou-se no quietismo da vida paci- 
fica, converteu se n'um sedentário e morreu feito mes- 
tre de meninos com collegio á Cruz do Taboado. 

Houve batedoras de fado excitantes como as figuri- 
tas das caixas de phosphoros, que, pela petulância de 
suas altitudes, symbolisam maravilhosamente o produ- 
cto iuflammavel de que sâo o ornamento. As que apa- 
ravam com mais gajé nos tezos fados batidos eram: a 
Borboleta, a Anna do Porto, a Anna de Setúbal, a Emí- 
lia Midões, a Amélia do Paixão, e a Lucinda do 
Bairro-Alto 9 convivas alegres d'esse eterno banquete 
do amor venal, onde as blandícias das gulodices fun- 
dentes alternam com as especiarias vigorosamente api- 
mentadas e os acepipes impertinentemente cantharida- 
dos. 

A' volta de 18ò0, existiam bailarins de fado e de 
fandango notabilissimos. Estava n'esse caso o Salvador 
Mexerio, antigo artilheiro do regimento do Cães dos 
Soldados, que bailava com uma rapidez telegraphica e 
uma desenvoltura estapafúrdia, la aos botequins da Ri- 
beira Nova— principalmente ao botequim dos Macacos, 
e ao botequim do Caraças—, 1 onde vinha gente de 
longe para o vêr dansar o fado e o fandango entre do- 



1 Botequim á esquina da Ribeira-Nova e da travessa de S. 
Paulo. Pertencia a um irmão do fundador do botequim dos Ma- 
cacos. 



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234 Empreza da Historia de Portugal 

ze ovos postos no chão, por meio dos quaes passava sem 
quebrar um só. No mesmo caso se achava o Theodo- 
sío, os dois irmãos Castanholas, o fadista Manoel Ra- 
tão, grande jogador de pau do Campo de SanfAnna, e 
o MexelhãOy canteiro, que fora soldado de sapadores. 
Todos elles, mas principalmente o Salvador Mexerico, 
davam sota e az ao maior bailâo Dansavam o fado se- 
guindo nota a nota, nas suas evoluções trepidantes, 
a BHMica o&dttLosa como a vida ondulosa das vagas; 
bailavam o fandango com o wteôsi&mo sudorífico de 
um marujo britannico sapateando o solo rrrgta» Além 
do fado e do fandango, havia também o banzé, uma 
dansa de pretos, que elles executavam sempre nos bai- 
les da rainha do Congo na Floresta Egypcia. Do nome 
d'esta dansa proveio o termo banzé, empregado no ca- 
lão lisboeta depois de 1840. 



Dissemos anteriormente que o fado apresentava duas 
phases completamente dislinctas: a popular e espontâ- 
nea e a aristocrática e litteraria. Quando aquella termi- 
nou, em 4868 ou 1869, já o canto do fado experimen- 
tara modificações com o Damas Foi elle que princi- 
piou a imprimir uma feição mais delicada e um tudo 
nada mais artística ao fado. Nos começos da segunda 
phase apparece João Maria dos Anjos, que, por assim 
dizer, aristocratisa a guitarra. Então, vêmol a entrar 
triumphante nas salas onde se cortejam todas as vai- 
dades da vaidade, ouvimol-a sobre a areia das praias, 
na serenidade embaladora das noites estivas, emquanto 
os corações batem no vôo das preces e as estrellas pis- 
cam coquettemente os olhos celestiaes Secundando in- 
conscientemente a tarefa reformadora de João Maria 
dos Anjos, apparece o Calcinhas, o verdadeir o inicia- 
dor do moderno canto fino do fado. 



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Historia do Fado 265 

O fado aristocratisa se, afldalga-se, conquista direi- 
tos de cidade na arte musical, recebe as suas cartas 
de credito na musica sallonnière. Vive se em plena fa- 
docracia. Lavra uma febre de amor ao fado, que faz 
lembrar a febre do enthusiasmo pelas obras de Alexan- 
dre Dumas, que lavrou em Londres e a que os inglezes 
chamaram a febre Dumas - the Dumas fever. As senho- 
ras do tom não desdenham aprender a guitarra, <jue 
readquire o posto que tivera nos antigos tempos. E a 
guitarra do povo, o alaúde popular, o dulcisono ins- 
trumento que o comprehende nas suas dores, lhe es- 
cuta as suas maguas, lhe traduz os seus queixumes e 
lhe sua visa o fatum—o inetactavel destino—, conver- 
te se na guitarra senhoril, no instrumento que vae re- 
pousar sobre os tamboretes dos toucadores elegantes, 
sobre as ollomanas dos salões alcatifados e sobre os 
veladores das alcovas catitas, que passa a ser belisca- 
do por dedos avezados a dobrarcm-se apenas ás tortu- 
ras do piano, a darem voo aos pensamentos harmonio- 
sos de Thalberg e a iuterpretarem a graça etherea das 
paginas de Ghopin. E os arames prateados das banzas 
soam aos ouvidos das damas como se fossem as cor- 
das de oiro do heptacordio de Eros. . . O fado parece 
vir dar uma voz ás tristezas, aos sonhos e aos amores 
d'aquelle tempo, como Verdi prestou uma voz ás tris- 
tezas, aos sonhos e aos amores de uma geração, nas 
dores do Rigoletto, nas lamentações do Tiovador e nos 
soluços da Traviata. Os critiqueiros populares margi- 
nai logo a nova moda com duas annotações rimadas: 

Se ifcto assim continua, 
Onde irá parar não sei; 
Veremos andar pl*a rua 
De guitarra o próprio rei. 

Oh fado, que foste fado } 
Oh ffldo % que já não és, 



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256 Empreza da Historia de Portugal 

O fadinha invade tudo 
Da cabeça até aos pés. 

Par a par, a musa falante engendra eslas duas qua- 
dras denigrativas de cantadores e guitarristas popula- 
res: 

Nem a campa do Campanudo, 
Nem a palha do Palhinhas, 
Nem as calças do Calcinhas, 
Nem a musa do Pelludo. 

Vi as campas ao Campanudo, 
Vi as calça9 ao Calcinhas, 
Na mangedoura d 'um burro 
Vi as palhas ao Palhinhas. 

Então, o lheatro da Trindade dá-nos (em 1869) o 
Ditoso Fado, onde Rosa Damasceno nos vem dizer: 

Quando pego na guitarra, 
Sinto logo o quer que é, 
Que me fala ao coração 
E me faz pular o pé. 

Ao que o Taborda lhe replica: 

Eu p'[ofado sou lamecha, 
Não está mais na minha mão, 
Quizera ouvil-o cantar 
A toda a luza nação. i 

Então, o marquez de Castello-Melhor celebra sessões 
de fado no seu palácio da rua occidental do Passeio 
Publico, em que tomam parte João Maria dos Anjos e 
outros guitarristas de nomeada; algumas damas de alta 
extracção enthusiasmam se pelo fadinho, entre ellas a 

1 O Ditoso Fado representou -se novamente na Trindade pelo 
Ribeirinho e Josepha de Oliveira, e n'uma excursão artística ás 
províncias, em 1873, por Beatriz e Taborda. 



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Historia do Fado 257 

fallecida condessa de Ficalho, que gostava muitíssimo 
de o ouvir tocar; e encetam-se os concertos públicos de 
guitarras, o primeiro dos quaes se realisou no Casino 
Lisbonense na noite de 3 de Maio de 1873. N'este con- 
certo entraram o Visinho, o Josué dos Santos, o Casa- 
ca, João Maria dos Anjos, José Gualdino, o Thomaz 
Bairro- Alto, o Wenceslau, João da Silva, etc. O Anjos, 
o Maia e o Visinho tiveram uma ovação estrepitosa. Prin- 
cipalmente o ultimo, no fado irinadó' com trechos das 
operas Trovador, Martha e Norma. Passados oito dias, 
realisaram novo concerto no theatro do Gymnasio. De- 
pois, o Anjos, o Visinho e o Josué, deram concertos de 
guitarra no palácio de crystal do Porto 1 sob a empreza 
Gomes Cardim, e no café Chinez, na Povoa de Var- 
zim. 

A propósito d'aquelle primeiro concerlo de guitarras 
discorria então um folhetinista:- «Pois se ha coisa que 
nos dê no gotto é a guitarra aventureira, espécie de 
Bonaparte musico, elevado até aos salões principescos 
e que pôde dizer aos pianos de Erard e de Pleyel : 
«Quando eu estava na Porcalhota. ..» da mesma for- 
ma que o homem de Campo-Formio dizia aos portado- 
res de diademas: «Quando eu era de arlilheria . . . » 
Napoleão esmagava o direito divino dos reis, a guitarra 
destróe a hierarchia dos instrumentos. E' o eterno ceei 
tuera cela, principiando no livro que mata o edifício e 
acabando na corda de aço que faz estalar de inveja o 
opulento bordão de seda. . . Na guitarra é que se de- 
via tocar o hymno de 1640. Aí! Quem a não tinha ou- 
vido a ella, por uma d'essas noites em que as estreitas 
chovem claridades tremulas, quem a não tinha ouvido 
gemer e soluçar como uma meiga creatura a quem 
magoas opprimem? Vinha dos recessos das escuridões 
dolorosas, e acordava os echos com as suas querelas 
enternecidas. Tocava uns compassos dolentes, uma 



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2Õ8 Empreza da Historia de Portugal 

triste solfa em que se piesentiam lagrimas. E quando 
no meio cTaquelles requebros se erguia uma voz desen- 
toada e rouca, a gente sabia bem que havia alli um 
condão, fatwn, a entoar a saturnal da impudência acom- 
panhada por um rumor de amarguras <» 

À trajectória evolutiva do fado não parou. O fado 
tornou- se mais litterario, mais artístico, e, conseguin- 
temente, perdeu o seu caracter popular. Os versos que 
até aqui haviam estado entregues á mecha nica espiri- 
tual dos vates populares, começaram a ser fundidos 
pelo estro dos poetas mais Íntimos das Musas. A mu- 
sica, que até aqui brotava da inspiração dos guitarris- 
tas e dos cantadores, passa a ser composta por mães- 
tros diplomados pelo Conservatório. E, facto curioso, a 
transformação do fado é parallelamente acompanhada 
da decadência gradual do fadistismo. 

fadista de agora mantém- se mollecularmente 
idêntico ao antigo, mas o seu campo de acção é que 
se tem restringido pouco a pouco, e as suas proezas 
de navalha— que eram como que um brevet de chie— 
representam apenas um echo débil das do passado, um 
postscriptum de contrafacção. Decididamente as tradi- 
ções vjío-se ! 

Como amostra das trovas dos fados dernier-style 
apresentamos três cantigas: a primeira é inédita de 
José Ignacio de Araújo e glosada sobre um mote do 
eminente poeta Bulhão Pato: 

Queres tu que mau ainda 
Meu coração possa amarf 
Deus próprio responderia: 
Não tenho mais para dar. 

1 Folhetim de E. A. Vidal no O Diário Popular de 11 de 
Maio de 1873. 



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Historia do Fado 269 

Eu amo-te com excesso, 
Meu amor toca os limites, 
Que cTelle te capacites, 
E* tudo quanto te peço; 
Sei que o teu amor mereço, 
Encantadora Lucinda, 
Mas, oh minha pienda linda, 
De minha alma doce encanto, 
Dedicando-te amor tanto, 
Queres tu que mais ainda. . 

Falo franco, franco sou, 
Mais amor não posso d ar -te, 
Dou da vida a melhor parte 
N'este affecto que te dou ; 
Dentro d 'ai ma se arraigou, 
Não ha de o tempo apagar 
E não, não podes julgar, 
Oh Lelleza peregrina! 
Que com mais força divina 
Meu coração possa amar. 

Se velo, em meu coração 
Sempre encontras terno abrigo, 
Se durmo, sonho comtigo 
E não tenho outra visão; 
Mais amor? Onde é que então 
Tal amor se encontraria? 
Em vão tua voz rogaria 
N'uina prece ao Creador; 
Não ha no mundo mais amor, 
Deus próprio responderia. 

Acceita, pois, este amor, 
Sem que outra idéa te occorra, 
Pede a Deus que eu não morra. 
Mas não o peças maior. 
Dei-te d 'esta alma o vigor, 
Dei-te todo o meu pensar, 
Dei-te o singelo trovar 
D 'uma guitarra singela, 
Dei-te a vida e os gozos d'ella, 
Não tenho mais para dar. 



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2 60 Empreza da Historia de Portugal 

A segunda é origiual do sr. Boaventura Henriques 
do Carvalho e glosada sobre um mote de José Ignacio 
ilo Araújo: 

A's vezes diurna suspeita, 
Pod». surgir um martyrio; 
Quando Í nódoa que se deita 
Sobre a brancura d' um lirio. 

Consagro -te immenso amor, 
Mulher de raro talento,. 
N'este puro sentimento, 
Ha também acerba dor: 
Porque o vulgo, com rigor 
A maldade não engeita! 
Estando a ella sujeita 
A cbamma d'amor infindo, 
E' estrada que vae seguindo, 
A's vezee, d'uma suspeita. 

Só então occultamente, 
Serás por mim muito amada, 
P'ra não seres calumniada, 
Sendo eu p*ra ti indifrente, 
Este amor, puro, innocente, 
Meu coração admire o, 
Mas nimca lhe faca chio, 
Não lhe dê publicidade, 
Porque também da verdade 
Pôde surgir um martyrio. 

Hei de guardar em meu peito, 
Tanto amor que o fascinou, 
Na certeza que elle entrou, 
Em um sacrário, perfeito. 
Despreza amor preconceito, 
Que o contrafaz e despeita, 
E o vulgo mau, se deleita 
Empregando phrase forte, 
Quando é mais feia que a morte. 
Quando é nódoa que se deita. 

Para evitar que a maldade 
Erga o seu altar um dia, 
Supponho ser phantasia, 
O que em mim é realidade, 



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Historia do Fado 261 



Que possa tanta bondade, 
Que te desce lá do empyreo, 
Fazer que nunca em delírio 
Eu diga quanto te amava — . . 
— Era mancha que ficava 
^Sobre a brancura d'um lirio. — 

A terceira é o fado que fazia parte das canções do 
Orpheon Académico de Coimbra em 4900, e foi com- 
posto pelo joven poeta Affonso Lopes Vieira : 

Olhos que a mim me perdeis, 

Que me encheis 
Todo de luz e de graça ; 
Tende piedade de mim, 

Sendo assim 
Engraçados daes desgraça. 

Olhos verdes, verdes olhos, 

*Vejo-os, olho-os, 
De os olhar ando já cego; 
Verdes como as minhas maguas, 

Como as aguas, 
Que leva o rio Mondego. 

Cantae as minhas cantigas, 

Raparigas, 
Que a cantar mais lindas sois; 
Dizei-as aos namorados, 

E- casados. . . 
As vossas filhas, depois. 

Segue-se um fado de novíssimo género,. o fado so- 
cialista 4 ; 

Um de maio, alerta! alerta! 
Soldados da liberdade! 
Eia avante, é destruir 
Fronteiras e propriedade. 

1 Actualmente, existe uma enorme quantidade de fados so- 
cialistas. 



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262 Empreza da Historia de Portugal 



Sentineilas avançadas 
Kedobrae vossa attenção, 
E, ao grito da rev'lução, 
Estejam a postos c'l locadas; 
Haja união, camaradas, 
E a victoria será certa, 
Eis o alvo que nos desperta 
P'ra missa • civiliaada, 
ET dia, resurge a aurora, 
Um de Maio, alerta! alerta! 

Luctemos pelo ideal 
D'onde o nosso bem dimana, 
Sigamos José Fontana 
E Anthero do Quental; 
Abaixo o vil capital 
Jnimigo da egualdade, 
Haja solidariedade, 
Sigamos um trilho novo, 
A' vante, filhos do povo, 
Soldados da liberdade! 

Mostrae aos vis argentario3 
Que é falso o seu predomínio, 
Que á força do latrocínio 
Se fizeram proprietários; 
Erguei vos» oh proletários! 
Que a gloria ha de surgir, 
E para termos no porvir, 
Paz, amor, civilisaçào, 
Os muros da oppressão 
Eia, avante, é destruir! 

Abaixo o militarismo, 
Que também é retrocesso, 
Trabalhadores do progresso, 
Defensores do socialismo! 
Um bello positivismo 
Mostrae á vil sociedade, 
Que a terra é da humanidade. 
Que é de todos quan o encerra, 
Que nao pode haver na terra 
Fronteiras e propriedade! 



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Historia do Fado 263 

Modernamente, as nossas canções populares cham*? 
rama attenção de alguns músicos distinctos, Victor 
Hussla, professor em Lisboa, compoz rapsódias de mu* 
sicas populares portuguezas, em que intercallou/àdo»* 
Outros o imitaram. Mas o primeiro glosador das nos- 
sas canções populares, incluindo o fado, foi o violinista 
portuense Marques Pinto, que compoz uma grande^ 
phantasia popular. Alguns músicos de Categoria não 
se teem dedignado de compor fados Haja vista o que 
succede com Rey Collaço. Já Theophilo Gautier — esse 
Brummel litterario— -dizia que, em lilteratura, não ha 
géneros inferiores, mas sim escriptores inhabeis. Ou* 
iro tanto podemos dizer da arte musical e dos que a 
cultivam. A essência do mundo, o fundo do ser e do 
pensamento, a alma my&teriosa do Universo, o que ha 
de mais intimo e de mais profundo em nós, e nas mi- 
ragens d'este espheroide rotante, esse não sei quê que 
se chama— a inspiração, tanto pôde illuminar os gran- 
des quadros como as pequeninas telas musicaes, tanto 
pôde luzir n'uma partitura intrincada como no fado 
comesinho. E se, nas obras primas dos grandes maes- 
tros, a alma mysteriosa do Universo nos fala a sua lin- 
guagem mystica, a essência do mundo se manifesta a 
nossos olhos, e as regiões longiquas das causas pri- 
meiras e das idéas eternas apparecem accessiveis e 
próximas, no fado— a mais suggestiva canção luzitjna 
— revela-se a alma nacional palpitante de emoção. 

Porque a musica do fado se tem adulterado ou des- 
popularísado até se transformar em serenata, em bai- 
lada ou n^jma espécie de passa çalle lento, porque as 
trovas do fado se poliram como jóias em que se espe- 
lham todos os reflexos das almas poéticas, porque os : 
versos do fado se facetaram como diamantes em que 
brilha a gamma inquieta dos tons do arco iris treme* 
luzindo nas aguas puras dos crystaes, pretendem al- 



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264 Empreza da Historia de Portugal 

guns que o fado tende a desapparecer de entre as nos- 
sas canções nacionaes. Não o acreditamos. O fado— 
que, á maneira do oiro, se vae ennobrecendo sob a pa- 
tina dos aonos— não pôde, como tantas outras coisas, 
desapparecer na promiscuidade das novas usanças cos- 
mopolitas e aa banalisação caprichosa das modas. Pa- 
rece que ellepossue como que uma sorte de resisten 
cia psychica, que obsta ao seu desperecimento. Ape- 
zar de tudo, o fado conserva um caracter estreme de 
individualidade local, è o povo vae recolhendo, heredi- 
tariamente, a memoria e o gosto o rythmo e o sentido 
dessa canção amada, e conserva- a, religiosamente, co- 
mo um piedoso legado dos seus ancestraes. 

De qualquer maneira, o fado subsistirá» porque elle 
corresponde maravilhosamente á nossa índole contem- 
plativa, elegíaca e sonhadora, porque elle reflecte a nossa 
alma ondeante e diversa como o homem de Montaigne, 
porque elle nasceu no mar, no mar onde fomos grandes, 
no mar onde conquistámos as glorias que fizeram da 
pátria portugueza um elemento funccional no mundo 
moderno, e a fizeram subir triumphantemente os de- 
graus da Historia. A cançonetista parisiense Thereza 
dizia que a canção era, por vezes, a pátria. Tam 
bem podemos dizer que o fado é, por vezes, este rin • 
cão da bola sublunar. E' a immensa e profunda tris- 
teza do nosso littoral, é a frescura verde dos nossos 
campos em que se fundem aromas, é o borbotão fér- 
vido do nosso Tejo, que desce, de terras de Hespanha, 
sem uma ta^a, é o reflexo do nosso cèo em todos os 
seus aspectos : de um anil immaculado no estio, plúm- 
beo no outono, gridefé no inverno, azulsaphira na 
primavera, quando Maio pulverisa de oiro a natureza, 
põe topes de prata no arvoredo e diz, alegremente, 
que todos os lustres estão accesos. 



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Hiêtoria do Fado 266 

Para nós, é ponto de fé, que os nossos succedaneos 
poderão repetir o que, no alvorecer do século xx, es- 
creveu um juvenil poeta de Coimbra: l 

Guitarra, chorando o fado, 
Lembraes-me, vós, muita vez, 
Advida, o sonho passado, 
Deste povo portuguez ! 

Porque a alma portugueza 
Suspira a dentro de vós, 
Guitarras, onde se resa, 
O fado dos meus avós! 



1 Celestino David. O livro de um portuguez. 1901. 



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Elenco dos Fados 



Fado Açoreano. 
» Africano. 
•> Ai Joaquina. 
» Albertina, de Alcântara 

ou do Manoel Cazemiro, 

original da Albertina. 
» Alegre. 
» Alfredo Mantua (de) (1.° 

e 2 * Fado>. 
» Algarve (do). 
» Alijó (de). 
» A1H á Fretando). 
» Amora (da) (1903). 
» Amphigury (1849). 
» Anadia (do), original de 

José Maria dos Cavai- 

linhos (1862). 
» Antonino. 
» Fado Ao Hylario. 
» Arte Nova (inédito). 
» Artilheiro. 
» A's Estrellas. 
» Até Chora ! 
» Atriador. 
» Augusto Machado (de) 

(1.° e2.° Fado). 
» Aurora (da). 
» Bailada, original de Mi- 

litão. 



FadoBallada,originaldeEduar- 
do Silva. 

» Bailada, original de M. 
Faria Salgado. 

» Beira (da). 

» Bigode. 

» Bobemio ou Ultimo Fa- 
do, original de Reynaldo 
Varella. 

» Branco e Negro (do). 

» Braziieiro. 

» Brígida (da) (1903). 

» Brilhante. 

» Brilhante, original de M. 
Faria Salgado (1903). 

» . Briza. 

» Briza (da), original de M. 
Faria Salarado (1903). 

» Brizas do Mondego. 

» Cabo da C carola (do). 

d Cacilda (da) (inédito). 

» Cadete, original de Antó- 
nio dos Phosphoros. 

» Campestre (1870). 

» Canção das Morenas. 

» CançSU) do marítimo. 

» Cantadores (dos). 

» Canto do Povo (dedicado 
a Santo António). 



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Empreza da Historia de Portugal 



Fado Cascaes ^de), original de 
Ambrósio Fernan. Maia 

» Cascos de Rolha (de). 

» Casino Lisbonense, origi- 
nal de João Maria dos 
Anjos (1873). 

» Carlos Harrington (de) 
(inédito). 

» Carmona, dedicado ao in - 
signe matador de espa- 
da António Carmona, el 
Gordito (1872). 

» Carriche (de). 

• Cega (da). 

» Cegos (dos) .ou Canto do 
Suicida. 

» Celta (do). 

» Cesaria (da), ou de Al- 
cântara, original de Am- 
brósio F. Maia (1870). 

» Chanson d'Amour. 

» Choradinho. 

» Chor. dinho, original de 
Key Coliaço (1903). 

» Choramigas. 

» Cigarreiras (das). 

» Cinira Polónio. 

» Cintra (de). 

» Coimbra (de). 

» Corrido. 

» Corrido primitivo, origi- 
nal de Militâo. 

» Corrido com vinte varia- 
ções em maior e menor, 
original de Reynaldo 
Varella. 

• Cotovia (da). 

» Custodia (da), original de 
Custodia Maria (1864). 

» Das três horas, original 
de Reynaldo Varella. 

» Dias de Sousa. 

» Domingos de Campos. 

» DramaB do Limoeiro (dos) 
(1903). 



Fado Eduardo Silva (de) (1.°, 

2.< e 3.° Fados). 
» Elegante. 
» Elite (da). 
» Esmeralda. 
» Estudanta. 
» Estudante (do). 
» Estudantes (dos). 
» Estudantes (dos) (1103). 
» Estudantes açoreanos 

(dos) (1871). 
» Estoril. 
» Fa maior (em), original 

de M. Faria Salgado 

(1903). 

• Figueira da Foz (da). 
» Forget me not (1903). 

» Francisco de Mendonça 

(de) (inédito). 
» Furnas (das). 
» Garoto. 

» Gato (do) ou do Taborda. 
» General Boum (do). 
» Graça, dedicado ao Snr. 

Silva Graça, director do 

O Século. 
» Guilhermino. 
» Hijas dei Gudalquivir. 
» Hylaria (da). 
» Hylario (do). 
» Hylario (posthumo do). 
» Hylario(ao) (ultimo fado). 
» Ignez Garcia. 
» João Black. 
» João de Deus. 
» João (de) e Helena. 
» João Maria dos Anjos 

(1868). 
» José Maria dos Cavalli- 

nhos (inédito, 1860). 
» Jorge da Silva. 
» Lamparina. 

• Laura Gentil (de) (1903) . 
» Lazarista (do) (1858). 

» Leandro. 



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Historia do Fado 



269 



Fado Leixões (de). 
» Lessa (do) (1872). 
» Limoeiro (do). 
» Linda- a Velha (de). 
Fadinho Liró. 
Fado Lisbonense (1870). 
» Luiz Petrolino (inédito). 
» Machado Correia. 
» Mhdrugada (da). 
» Madrugada (da), original 

de Almeida Cruz. 
9 Madrugada (da), original 

de M! Faria Salgado, 

(1903). 
» Magiolly (1870), 
» Maria Cachucha (da). 
» Marialva. 
» Marinheiro (do). 
» Marinho (do) (inédito). 
» Marítimo. 
» Meia Noite (da), original 

de Almeida Cruz. 
- Mertola (de) (li 03). 
» Monchique (de). 
» Mondego (1905). 
» Morenas (das). 
» Mouraria (da). 
» Mousão. 
» Mulher ingrata. 
» Muller Fils. 
» Nacional, original de A. 

Costa. 
• Não chores que também 

vaes. 
» Nazareth (da). 
» Nocturno (1903). 
» Notas Falsas (das). 
» Novo, original de Rey- 

naldo Varella (1903). 
» O Engeitado 
» Oliveira (do) (inédito). 
' » ( > Marinheiro. 
» O meu enlevo. 
» O que é amor. 
» Ora toma Mariquinhas. 



Fado Paixão (do) (ined., 1862) 
» Palmyra Bastos ( 190* ). 
» Parodia (da). 
» Pedro Rolla. 
» Pedrouços (de), original. 

de A. Branco (1849). 
» Pedrouços (de), 2.° Fado 

(1864). 
» Persiganga (da) ( nedito. 

.860). 
» Pina (do). 
» Piolho (do) inédito). 
» Pitada (do). 
» PizOes (dos). 
» Plagiário. 
9 Pobres (dos). 
» Porto (do). 
» Popular. 
» Popular (2.° Fado). 
» Praia (da) (1903). 

• Primavera ou A briza e 
a rosa. 

• Rabicha (da). 
» Rey Collaço (de) (8 Fa- 
dos). 

» Reynaldo Varella (inédi- 
tos de) (3 Fados). 

» Ribeira -Nova (da). (A 
nau Affonso). 

» Ribeira -Nova (da), origi- 
nal de Ambrósio Fer- 
nandes Maia. 

» Ribeirinho (do) (inédito). 

9 Robles. 

» Roldão (do) ou fado José 
João. 

» Romeu Amann (de) (3 
fados inéditos). 

» Rosas (das), original de 
Roldão (1Ó03). 

» Rosas (das), original de 
M. Faria Salgado (1903). 

» Poquette, original de Ra- 
pbael Ferreira Roquet- 
te (inédito. 



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Empreza da Historia de Portugal 



<Fado Ruas (das). 

» Salas (das), original de 
Ambrósio Fernandes 
Maia (1869) 

» Salas (das), original de 

João Maria dos Anjos. 
~» Salas (das), original de 
António Cândido de Mi- 
randa, o Vuinko. 

» Salas, original de Vargas 
Júnior. 

» Santa Helena. 

» Saudade, original de Rol- 
dão. 

» Saudades (das). 

» Sebenta (da) (do Auto da 
Sebenta). 

» Sebenta (da), original de 
Viterbo. 

» Sebenta (da), original de 
D. Laura Éserich. 

» Sem nome. 

» Sentimental. 

» Sentimental, original de 
Almeida Cruz. 

» Sentimento maior e sen- 
timento menor, original 
de Ambrósio Fern mdes 
Maia (inédito). 

•» Sepúlveda. 



Fado Sepúlveda (inédito, (2.° 
Fado). 

» Serena t a , original de Fer- 

» reira Tavares. 

» Serenata , original de Rol 
dão (1903). 

» Serenata á morena. 

» Serenata Hylario Alves, 

» Serenata Sinhá (1903). 

» Serenata Olinda. 

» Severa (da) (1850). 
Fadinbo Sinhá s (das). 
Fado Sofrimento (do). 

» Syndicateiros (dos). 

» Tancos (de) (1866). 

» Theodohnda. 

» Torrinha (da) ou Fado de 
Pedrouços. (3.° Fado de 
Pedrouços). 

» Triste Fado. 

» Trovadores (dos). 

» Um Fado, original de M. 
Faria Salgado (1903). 

» Vilia Franca (1903). 

» Vimioso (do). 

» Vinte e oito (do) (do 2b). 

» Visconti ou Faoe-Cbe* 
. gou-Gnegou. 

» Vizeu (de). 

» Zé-Povinho. 



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