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HISTORIA
DÁ
LITTERATURA PORTUGUEZA
THEATRO NACIONAL NO SÉCULO XVI
4..T
V •
HISTORIA
DÁ
LITTERATURA PORTUGUEZA
Tomo i — Introducção á Historia da Litteratura portugueza.
PRIMEffiA ÉPOCA
(1114-1516)
Trovadores e Cancioneiros
Tomo ii — Historia da Poesia provençal portugueza.
Tomo ih — Historia da Formação do Amadis de Gaula.
Tomo iv — Historia da Poesia portugueza no século xv.
SEGUNDA ÉPOCA
(1516-1578)
Os Quinhentistas
Tomo v — Historia do Theatro portuguez no século xvi.
Tomo vi — Vida de Sá de Miranda e sua Eschoja.
Tomo vii — Vida de Camões e sua Eschola.
TERCEIRA ÉPOCA
(1578-1820)
Academias Litterarias
Tomo viu — Historia do theatro portuguez nos séculos xvii e xvi
Tomo ix — Historia dos Seiscentistas.
Tomo x — Historia da Arcádia portugueza.
QUARTA ÉPOCA
(1833-1864)
Romantismo
Tomo xi — Historia do Theatro moderno.
Tomo xii — Historia da Arte em Portugal.
Tomo xiii — Historia, da Lingua portugueza.
HISTORIA
DO THEATRO
PORTUGUEZ
POB
THEOPHILO BRAGA
VIDA DE GIL VICENTE e SUA ESCHOLA
SÉCULO XVI
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PORTO
IMPRENSA POHTUGUEZÁ — EDITORA
1870
THE NEW YORK
PUBLIC LIBRARY
487 n ~S
T4.0CH F0UK0*no*f.
* teto L
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T
NO SÉCULO XVI
PAG. *
)VERTKNCIA VII
Período hieratico-popular
lpitulo i — Origens do Theatro português
(1193-1481) 4
lPITULO ii — Vida intima de Gil Vicente
(1470-1536).. 26
.pitulo III — Do scenario e caracterisações
de Gil Vicente 60
— Quadro synoptico da representa-
ção dos Autos de Gil Vicente, e
prospecto chronologico para a re-
composição da sua vida (1502-
- 1536) 163
pitulo iv — Typos e costumes portuguezes
dos Autos de Gil Vicente. . . . 168
iPiTULO v — Gil Vicente conhecido fora de
Portugal (1514-32, 1604-60^) \Sft
VI
INDEX
lurvTRO n
Eschola de Gil Vicente
Capitulo i —
Capitulo ii -
Capitulo rn -
Capitulo iv -
Capitulo v
Capitulo vi ■
*
Capitulo vn •
Capitulo viu •
Capitulo ix -
Capitulo x -
Capitulo xi -
Capitulo xii •
Capitulo xiii •
O Infante Dom Luiz (1506-
1556)
Affonso Alvares (1522)
António Ribeiro Chiado (1542-
1591)
Jeronymo Ribeiro (1544)...
Luiz de Camões (1539-1555).
António Prestes (1530)
Jorge Pinto (1516-1522).. . .
Anrique Lopes (1539-1587). .
Manoel Machado de Azevedo
(1536)
Balthazar Dias (1578) ......
Simão. Machado
Os Poetas anonymos
Os Pateos das Comedias (1588-
1595)
A contar do século xvi, com o predomínio da so-
ciedade burgueza, as creações artísticas receberam uma
alteração profunda na sua ordem de concepção; o des-
dobramento natural: epopêa, lyrismo e drama, inver-
te-se de ora em diante por influencia da renovação so-
cial. A poesia dramática, que até aqui tinha sido uma
forma accidental da arte, torua-se a principal manifes-
tação do génio popular; a Iuglaterra, a Hespanha e a
Itália levantam o admirável e riquíssimo theatro euro-
peu. A poesia épica, que fora a principio a obra em
que trabalhava uma nação inteira, perdeu o seu cara-
cter de generalidade anonyma, desnaturou-se, ficou
privativa das Academias. A poesia lyfica, com os sen-
timentos e paixões de uma sociedade nova, tornou-se
mais ampla e individual. É por isso que entrando no
período da historia da Litteratura portugueza no sécu-
lo xvi, começamos pelo theatro nacional, que bem po-
deramos intitular Vida de Gil Vicente, c sua EscJxola*
VIII
Apoz este volume seguir-se-ha o estudo da poesia lyri-
ca, tomando como centro da nova elaboração poéti-
ca Sá de Miranda; n'esse livro trataremos particular-
mente do theatro clássico, não só como um resultado
da influencia italiana, mas porque sendo um trabalho
de erudição académica e sem condições scenicas, em
nada revela a vida nacional.
W
L
HISTORIA
DO THEATRO
PORTUGUEZ
xjirv^io i
PERÍODO BIERATICO-POPDLAR
As creações dramáticas são a expressão do caracter
de um povo e da sua liberdade; ellas têm por critério a
natureza e a simplicidade, e tornam -se por isso ? como
disse Shakspeare, theform and presmre of the times, A
verdadeira originalidade está no génio da raça, que se
mostra, apezar de todas as influencias da civilisação.
O theatro hespanhol e o inglez apresentam na sua ri-
queza genial a integridade de duas raças, não confun-
didas nem amalgamadas nas commoções politicas; as
suas creações são as legendas e os sentimentos nacio-
naés, em toda a simples e natural efflorescencia. De-
pois de reunidos os factos que constituem a historia do
I
2 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
theatro portuguez, tornou-se por si evidente uma bem
triste conclusão: que a arte dramática entre nós nada
tem de nacional, porque circu instancias invencíveis não
deixaram que o povo portuguez conhecesse o theatro.
O povo portuguez é formado por esta grande e fecun-
da raça mosarabe, atrophiada na crença religiosa pelo
catholicismo, na autonomia jurídica pelo civilismo dos
romanistas, na independência politica pelo cesarismo
monarchico, e nas creações poéticas pela imitação da
lingua e dos modellos clássicos.
Barraram -lhe todos os meios de manifestação in-
tellectual: com a reforma dos Foraes, no tempo de
Dom Manoel, ficou o povo reduzido até hoje á condi-
ção de colono; com a inquisição, do governo de Dora
João iii, perdeu a alegria e ficou um povo soturno,
acostumado a espectáculos de morte. N*este lamentá-
vel estado, como teria o povo portuguez esse riso ex-
pansivo da burguezia do século xvi, que inventou poi
toda a parte o theatro ?
O elemento aristocrático ou leonez, que predomina
na raça portugueza, vivia na ociosidade da corte, dila-
pidando o que o mowrabe arrancava do solo com tra-
balho; para esse a Arte nada tinha de vital, era um pas-
satempo dado por occasião das festas reaes, e uma
moda seguida nas cortes da Europa, que os nossos mo-
narchas imitaram também. Pela sua parte o povo, ve-
xado pelo fisco, pela emphyteose manoelina, pelos dí-
zimos, pelos exércitos permaneutes, pelas ordeus men-
dicantes, pela desigualdade das cVassçs, \>elo fanatisnie
NO SÉCULO XVI 3
religioso, cahiu em um tal eretinismo, que é Portugal
o paiz único aonde não existem festas nacionaes. Sem
tradições não ha theatro ; as tradições da historia por-
tugueza estão nas paginas das chronicas monásticas,
que o povo não conhece. mosarabe ficou triste e des-
confiado, incapaz de se apaixonar: a revolução de 1640
foi feita pela aristocracia, e a revolução de 1832 nas-
ceu da classe media, producto hybrido de colonos e ne-
gociantes estrangeiros com a aristocracia. Anullado
insensivelmente o elemento orgânico d'esta raça, a
nossa nacionalidade é uma ficção pura. O povo portu-
guez conheceu o theatro hierático da edade media, a
que ainda hoje pelas aldeias se chama Auto, mas esse
mesmo fraco rudimento, que o seu génio poético po-
deria desenvolver, foi-lhe prohibido com excommu-
nhões nas Constituições dos Bispados. Alguns poetas,
como Gil Vicente, tentaram a fundação do theatro na-
cional; deu-se este phenomeno no século xvi, justa-
mente quando se consolidava o cesarismo, e o elemen-
to mosarabe caía no ultimo gráo de atrophia. Por isso
foram baldados todos os esforços; a obra de Gil Vicen-
te morreu com elle. A historia do nosso theatro é a
narração d'este esforço sublime, mas infelizmente ar-
, thicial e não continuado.
HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
OA^ITTJXiO I
Origens do Theatro portuguez
Da tradição dramática na edade media'da Europa. — Os Nataes,
como dramas litúrgicos. — Vestígios do drama religioso, ci-
tados e prollibidos nas Constituições dos Bispados. — Os Mo-
mos, Entremezes e Autos conhecidos na corte de Affonso v e
Dom JoSo n. — Festas pelo casamento da Infante Dona
Leonor. — O Entremez do Anjo, pelo Conde de Vimioso. —
Festas pelo casamento do Príncipe Dom Affonso. '■ — Gil Vi-
cente frequenta a corte de Dom João n, aoude recebe as
suas primeiras ideias dramáticas. — Deve admittir-se a in-
fluencia he-spanhola das éclogas de Juan de la Encina sobre
o gcnio de Gil Vicente ? Preferencia que se deve dar á in-
fluencia franceza.
O theatro nunca desappareceu totalmente da Eu-
ropa; já em 452, o Concilio de Aries excommungava
os que se entregassem aos jogos scenicos; o Concilio
de Africa notava-os de infâmia. Também o Concilio de
Chalons em 813, o segundo Concilio de Reims, e o
terceiro de Tours, condemnaram os jocos dos histriões,
prohibindo aos bispos o assistirem a elles. (1) Do
mesmo século da fundação do reino de Portugal, en-
contramos um documento, que nos descobre o fio da
tradição dramática; é a palavra Arremedilho^ que o ,-
erudito Santa Rosa de Viterbo interpreta como uma
(1) Não tem conta as authoridades que comprovam esta
verdade ; podem vêr-se nas : Mem. de 1'Academie des Inscri-
ptions et Belles-Lettres, t. xxvn, p. 219 a 225 : — Memoires sur
les jeux sceniques des romains et sur ceux qui ont precede en
Jtyance la naissance dupoemt círamatiquc, par Duelos.
NO SÉCULO XVI 5
espécie de farça mímica. Notável coincidência! Come-
çaria o theatro portuguez pelas pantomimas rudes, e
não conheceria nunca o nosso povo outra forma, por
isso que a única designação dramática inventada por
elle foi a palavra bonifrate? (1) Eis o que diz Viterbo
acerca da palavra Arremedilho: «No anno de 1193,
El-rei Dom Sancho I, com sua mulher e filhos, fizeram
doação de um Casal dos quatro, que a coroa tinha em
Canellas de Povares do Douro, ao farsante ou bobo,
chamado Bonamis, e a seu irmão Ácompaniado, para
elles e seus descendentes. E por confirmação ou re-
bora, se diz: Nos mi mi supranominati debemus Domi-
no nostvo Regi pro roboratione unum arremedillum.» (2)
Assim como a influencia da língua d'Oil vulgarisou
em Portugal* as tradições épicas da edade media, por
a mesma via nos vieram as ideias dramáticas ; o nome
de Bon Amis, a quem Dom Sancho fez a doação, assim
leva a crer; foi pela exigência de um serviço feudal
grotesco que appareceu em Portugal a primeira ideia
do theatro. Também pelo symbolismo jurídico dos
nossos foraes, o espirito communal francez nos fez
imitar os grandes dramas ou cerimonias da penalida-
de? (3) Ainda que o génio provençal não conhecesse a
forma dramática, foi egualmento pela influencia da
língua d'Oc na aristocracia portugueza, que nos pri-
(1) Nome puramente portuguez dos espectáculos & que os
heapanhoes chamam títeres, e os f rancezes marionettes.
(2) Doe. da Torre do Tombo, apud. Elucidário > ^.° çft.
(3) Historia do Direito portuguez^ p. 56.
6 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
moiros século* da monarchia se conheceram as Cartes
de Amo?; que tem vagas analogias com os espectácu-
los scenicos. No Cancioneiro da Ajuda vem estes ver-
sos, que nos fazem presentir a existência cPessas Cor-
tes, em que se debatia entre damas e cavalleiros uma
intrincada casuística sentimental:
E vej'a muitos aqui razoar:
Que a mais grave coita de sofrer
Veela orne, e ren non He dizer, etc.
O povo, que desconhecia esta poesia subtil, can-
tava as suas prosas e hymnos farsis na liturgia christã,
até que a pressão do catholicismo lhe impoz silencio.
As Constituições dos Bispados de 1534 a 1589, reve-
lam-nos na sua prohi bicão uma poesia dramática bas-
tante arreigada nos costumes populares: ellas não per-
mittem que se façam representações y ainda que sejam da
Paixão de nosso senhor J. C. ou da sua ressurreição ou
nascença. D (1)
Se advertirmos, que o povo não admitte de repente
costumes novos, nem os abandona com facilidade, te-
mos por esta prohibioão canónica determinada a exi-
stência de um theatro hierático em Portugal nos três
últimos séculos da edade media. Á adversativa ainda
que, mostra que não eram somente espectáculos reli-
giosos os que se usavam. O espirito aristocrático do
Concilio de Trento procurava banir o costume simples
(1) Const. de Évora, const. x, tit. 15, armo de 1534.
NO SÉCULO XVI 7
e natural do povo; muitos Autos de Gil Vicente ainda
foram representados nas Egrejas. As formas litúrgicas
do christianismo eram eminentemente dramáticas e o
povo tomava parte nas cerimonias do culto; quando
Gil Vicente escreveu, a sua primeira forma foi a das
Vigílias do Natal.
A medida que o poder real se consolidava, a vida
da nação ía-se concentrando na corte; è por isso que
antes de terminar a edade media, vemos obliterarem-
se os signaes da vida d' este povo. O theatro tornou-se
apanágio das festas do paço. Aonde reinava o despo-
tismo, ai se extinguia a espontaheidade da expressão :
a forma mais usada nos divertimentos scenicós da cor-
te de D. Affonso v e Dom João n era a mímica. No ca-
samento da Infanta Dona Leonor, irmã de el-rei Dom
Affonso v, com o Imperador Frederico ni da Allema-
nha, representaram-se vários Momos, a que um poeta
do Cancioneiro geral, também chama Autos:
Eram vossos tempos Autos,
Nas festas da Imperatriz,
Mas agora calar chyz,
Nem é tempo de crisautos. (1)
Estes versos são de Duarte de Brito, a João Go-
mes da Ilha; em Buy de Pina achamos referido este
mesmo facto, narrando, que representaram nos Momos
el-rei D. Affonso v e os infantes seus tios, talvez o in-
(1) Canc. ger. fl. 47, v., col. 2.
S HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
fante D. Henrique. (1) Aragão Morato, na sua bella
Memoria sobre o Theatro portuguez, diz, que: «Os Momos
não passavam ordinariamente de representações mími-
cas, acompanhadas de dança, que precediam quasi sem-
pre as justas e torneios, e lhes serviam de desafio.» (2)
E em outro logar accrescenta : «E verdade, que estes
momos e entremezes nem sempre eram mudos; muitos
d'elles diziam palavras apropriadas ao caracter das
pessoas, que representavam», etc. Dom Affonso v visi-
tou a corte franceza, aonde eram muito usados os di-
vertimentos dramáticos, e comprehendeu a primeira
Renascença da Itália, mandando ali estudar os artistas
portugnezes. Foi peia influencia da Itália no século XV,
que entrou em Portugal e em França a designação de
uma forma dramática Entremez. Em uns versos de Ál-
varo de Brito, éncontramol-o com essa origem :
Por Framengos, Genovezes
Frorentyns e Castelhanos
mal nos vindo
com seus novos entremezes,
dam-nos trinta mil avanos,
vam-se rindo. (3)
E também estes versos de Duarte de Resende:
Nom ha hy mais antremexes
no mundo unyvereal,
do que ha em Portugal
nos Portuguezes. (4)
(1) Chron.de D. Affonso V, cnp. 131.
(2) Mem. cit., pag. 45 e 46.
(3) Canc. geral, foi. 25, col. 2.
(4) Id. foi. 135, col. 1, etc.
NO SÉCULO XVI 9
Dom João li também seguiu a norma de seu pae;
mandava os artistas portuguezes aperfeiçoarem-se á
Itália, e elle próprio teve relações directas com Angelo
Poli zi ano, que foi um dos primeiros que no século xv
começou na Itália a imitação de theatro clássico ; o seu
OrféOj foi também escripto para uma festa palaciana.
Nada mais natural do que terem, ainda no século xv,
chegado a Portugal as noticias d'estes primeiros si-
gnaes de vida do theatro na Itália. Resta-nos apresen-
tar um exemplo d'esses Momos, e Entremezes.
Nos divertimentos dos serões da corte de Dom
João li, encontramos uma representação scenica, in-
ventada pelo Conde de Vimioso: « Momo que fez desa-
vyndOy no quall levatoa por antremes huum anjo e iim
diabo j e ho anjo deu esta cantigua a sua dama:
«Muyto alta e eyçelente e poderosa senhora!
«Por nVapartar da fée em que vivo, muytas ve-
zes fuy tentando d'este diabo, e de todas mynha fyrme-
za pode mays que sua sabedoria, porque tam verda-
deiro amor de tam falssas tantações nam podya ser
vencido. E conhecendo em seus esperimentos a gran-
deza de mynha fee, me tentou na esperança, pon-
do diante mym a perda de mynha vida e de minha li-
berdade, avendo por empossyvelr' e remedyo de mais
males. E com todas estas cousas não me vencera, se
mays nam poderam os desenguanos alheos que o seu
enguano, com as quaes desesperey e fuy posto em seu
poder. Mas este anjo que me guarda, vendo que my-
nha desesperança nam hera por myugoa â& í^thssx
10 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
mynha pena por mynha culpa, se quys lembrar d^-my
e de quem me fez perder, em me trazer aquy, porque
com sua vista o diabo me soltasse, e elle vendo meus
danos, da parte que n'elles tem se podesse arrepender.
* Cantiga que deu (recitou) o Anjo:
«Senhora, no quiere dios
que seays vos omeçyda.
em ser elh' alma perdida
de quem se perdi ó por vós
Ordeno vuestra crueza»
qu'este triste se matasse
^ en dexar vos, y neguasse
vuesira fee, qu'es su firmeza.
Mas ha permitido dios,
que por my fosse valida
su alma, y que su vyda
se torna perder por vos.» (1)
Eis o que era um momo ou entremez usado no
corte de Dom João n. Muito antes do monologo da
Vaqueiro de Gil Vicente, representado em 1502, ve-
mos nos poetas do século xv allusões a entremezes, e
este do Conde de Vimioso è um excellente modello con-
servado por Garcia de Resende. Podemos chamar-lhe
o Entremez do Anjo; aqui apparecem quatro persona-
gens :
1 A alma. (Representada talvez pelo próprio Con-
de de Vimioso, que recita a allocução em prosa, tendo
a seu lado o Anjo da guarda, que o protege e o Diabo,
que o tenta.)
(1) Cancioneiro geral, fl. 86, col 1.
NO SÉCULO XVI 11
2 O anjo (Que recita a cantiga em hespanhol, di-
rigindo-se á dama desavinda de amores.)
3 O diabo (Personagem mudo, e que occupa o se-
gundo plano.)
4 A dama (Também personagem muda, occupan-
do o primeiro plano, por isso que para ella se dirigem
as falas dos dois primeiros actores.
Entre as poesias do Conde de Vimioso existem
algumas com allusões a factos de 1471, e por aqui se
pode fazer ideia da antiguidade dos ensaios dramáti-
cos em Portugal.
Em vista de todos estes factos que allegamos, de-
ve-se passar um traço sobre essa asserção que por aí
corre : «E só do principio do século xvi que data entre
nós a introducção das representações dramáticas com
os primeiros ensaios de Gil Vicente. Debalde remon-
taremos nós até aos mais remotos tempos da monarchia
em procura de alguma cousa, que nos dê uma ideia do
conhecimento d'esta arte entre nós antes d'aquella
época.» (1) Pela occasião do casamento do Príncipe
Dom Affonso, filho de Dom João II, os artistas que
voltaram de Itália, acharam occasião de inventarem
curiosos machinismòs para os divertimentos dramáti-
cos. Nos Momos, representados em Évora por esta oc-
casião, Dom João li entfou também em scena; (2) na
porta de Avis, na mesma cidade, se representou o pa-
(1) Obras de Gil Vicente, edição de Hamburgo, no Prolo-
go, calcado sobre a Memoria de Aragão Morato.
(2) Vida de D. João II, por Garcia ào "ReafcTitai , çwç . Ylk.
12 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
raiso. (1) Na sala da cêa, entrou uma representação
do Rei de Guiné, acompanhado de três gigantes de
mais de quarenta palmos, e de uma mourisca em que
iam duzentos homens, extremados balarinos ; (2) n'esta
mesma sala se representou o entremez, em que os acto-
res vinham metidos em uma fortaleza.
Já em 1481 encontrámos na corte, de Dom João II
estas festas scenicas, descriptas em Ruy de Pina: «E
á terça feira logo seguinte, houve na salla de madeira
excellentes e ricos momos, antre os quaes El-Rei, pêra
desafiar a justa que havia de manteer, veio primeiro
momo. envencionado cavalleiro do cirne ( Cavalleiro do
Cyme) com muita riqueza, graça e gentileza, porque
entrou pelas portas da salla com hua grande frota de
grandes naaos, mettidas em pannos pintados de bra-
vas e naturaes ondas do mar, com grande estrondo
d^artilherias que jogavam, e trombetas e atabales e mi-
nistrées que tangiam, com desvairados gritos e alvo-
roços d'apitos, de fingidos Mestres, Pilotos e Marcan-
tes vestidos de brocados e sedas, e verdadeiros e ricos
trajos Allemães.» (3) Ayres Telles de Menezes, des-
crevendo as festas que se fizeram pelo casamento do
príncipe Dom Affonso, filho de Dom João II, diz :
(1) Idem, ib. cap. 122.
(2) Id. cap. 123.
(3) Inéditos da Historia portugucza, Chron. de D. João
II, de Ruy de Pina, pag. 126.
NO SÉCULO XVI 13
Depois ledos langedores,
A a vinda da princeza,
Fizeram fortes rumores,
Espanto da natureza;
Barcas e hás fizeram,
E outras representações.
Que a todos gram fazer deram,
Conforme suas tenções.
Gil Vicente não tinha que implantar; eram da eti-
queta da corte estas representações a que alludem os
versos de Ayres Telles, muito antes de se representa-
rem as Cortes de Júpiter, na partida da Infanta Dona
Beatriz para Saboya. Um outro erro que vulgarmen-
te corre, é julgar-se que Gil Vicente deveu a ideia dos
Autos pastoris ao castelhano Juan de La Encina. (1)
Seis das Éclogas de Encina, são diálogos represen-
tados pelas festas do Natal, da Paschoa, e do Carnaval,
(t) Diz J. V. Barreto Feio, no prologo da edição das Obras
de Gil Vicente : «é necessário convir em que o castelhano Juan
de la Encina, e não os Francezes, foi o modelo sobre que Gil
Vicente compôz as suas primeiras producções dramáticas. Em-
bora se diga que as composições de Encina não passam de sim-
ples éclogas;* o assumpto, a disposição, o estyllo, emfim scenas
inteiras imitadas, mostram que estas éclogas são a mesma cou-
sa que os Autos pastoris de Gil Vicente com diverso nome.»
Ha aqui manifesto erro ; as scenas de que fazem paradigma
(pag. xxxvm-ix) não encerram plagiário ; tanto pertencem
a Encina, como aosNataes francezes. Emfim, as litteraturas do
Meio Dia da Europa, na edade media, formam um todo simi-
lhante, proveniente mais da unidade das raças e civilisação la-
tina, do quo da imitação particular. Ticknor também appre-
senta Juan de la Encina, como fundador do theatro portuguez.
(Cap. xiv, pag. 296 da Historia de la Literatura hespanola.)
E um erro que não custa a propagar, mas que se tira difficil*
mente da tradipâo.
14 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
na Capella do Duque d' Alba. Eram os mesmos usos da
Egreja e do povo hespanhol; Gil Vicente seguiu os
costumes de Portugal, como Encina obedecia aos da
sua pátria, aonde as Constituições dos Bispados prohi-
biram também esses divertimentos.
Gil Vicente frequentou a corte de Dom João li,
como mostraremos adiante citando uns versos seus á
rainha Dona Leonor, mulher do Príncipe perfeito, e
que se acham no Cancioneiro de Resende. Em uma
nota do Auto Pastoril Castelhano, feito a pedido da
rainha, viuva de Dom João li, diz a propósito do ver-
so: «Conociste a Juan Domado» — t Juan Domado di-
zia por El-Eei Dom João n.» auctor do prologo
da edição de Hamburgo não tendo algum documento
para affirmar a presença de Gil Vicente na corte de
Dom João li, teve logicamente de acceitar a influen-
cia de Juan de la Encina, sobre a manifestação de seu
génio dramático. Os versos muito citados de Garcia
de Resende, em que diz de Gil Vicente:
Foi elle que inventou
Isto cá, e o usou
Com mais graça e mais doutrina.
Postoque Juan dei Encina
O Pastoril começou.
não tem auctoridade histórica; Resende era um poeta
satyrico, contra quem todos os poetas palacianos seus
contemporâneos atiravam engraçados motejos, a que
elle respondia com muito chiste. Pela sua obesidade
NO SÉCULO XVI 15
Gil Vicente lhe chamava peixe tamboril; Resende vin-
gou-se, negando-lhe a originalidade dos seus Autos.
O que faria suppôr que Gil Vicente devera a in-
spiração dramática a Juan de la Encina seria a noticia
que deixou o chronista Mendez da Silva: «Aôo de
1492 commençaron en Castilla las companias á repre-
sentar publicamente comedias por Juan dei Enzina. » (1)
termo comedias, que emprega Mendez da Silva é im-
próprio; e o representar publicamente, refere- se confor-
me entende Ticknor, simplesmente ás casas particu-
lares para onde era chamado, ou que o protegiam. Gil
Vicente só o poderia conhecer pela leitura das suas
obras publicadas em 1496, que principiam por para-
phrases das m éclogas de Virgílio; e por conseguinte
tinha formas menos vagas e mais determinadas que
imitar. Na Écloga v, Juan de la Encina refere-se á
morte do príncipe Dom Affonso em 1491; é natural
que esta fosse conhecida na corte de Dom Manoel em
1496, por isso que essa catastrophe inspirou bastantes
elegias aos poetas contemporâneos.
Aragão Morato é de opinião, na sua erudita Mémo-
l iia sobre o tlieatro portuguez, que Gil Vicente não
^ imitara o theatro hespanhol : «Mais possível é que os
Francezes dessem a Gil Vicente a primeira ideia de
composições dramáticas, segundo o ponto de vista em
p
(1) Rodrigo Mendes da Silva, Catalogo da geneologia Real
deHeqpanha, foi. 200 verso ; em Ticknor, t. i, pag. 291 da
Rist. da LU. Hesp.
16 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
que elle as tomou: pois è certo que depois de passada
a primeira metade do século xv tinha adquirido em \
França grande celebridade a representação da Historia
da vida de Christo, por João Michel, e a da Farça do \
Advogado Pathelin. Gil Vicente podia ter seguido os
authores d'estes dramas, ou encontrar-se casualmente,
com elles na escolha dos assumptos, e no caracter quéS
deu ás suas composições: quem preferir a primeira'
opinião, poderá talvez achar alguma similhança entre i
a vida de Jesu Christo representada pelo author fran-
cez e o Breve Summario da Historia de Deos desde o
principio do mundo até d Ressurreição de Christo, repre-
sentado pelo portuguez ; e reflectir que as trovas e en-
seladas de França, cantadas no fim d' algumas peças de
Gil Vicente, mostram o conhecimento que este tinha
da poesia franceza, e o apreço que fazia d^lla.» (1)
Em 1331 já os jograes, e menestréis formavam um
bairro á parte; pouco faltava para constituírem uma
gerarchia social parodiando as existentes; tinham o
nome de Prince des saults ou des Sots, d'onde veiu a
designação ás suas narrativas dialogadas de Soties ou
Sotises. Em 1339, no tempo de Carlos vi, alguns bur-
guezes empréhenderam um theatrp no bairro de Sám
Mauro, a fim de representarem por figuras os myste-
rios da Paixão de Christo. Era um meio de não incor-
rer no anathema permanente dos Concílios. Carlos vi
(1) Idem, Mem. cit. p. 48 da Historia e Mem. d'Acad.,
t. v, p. II.
&0 SÉCULO XVI 17
permittiu que o theatro se mudasse para Paris, e por
cartas patentes de 4 de Dezembro de 1402 deu-lhe o
privilegio exclusivo d'essas representações, e o titulo
de Confrades da Paixão.- Os jograes e os escreventes
judiciaes não se tiveram que não inventassem um gé-
nero novo de representação, para illudir o privilégio de
Carlos vi. A edade media estava farta de chorar os
soflVimentos dé Christo. Tinha vindo a reacção do ri-
so; o povo conhecera que era do riso que nascia a
sua salvação. Os histriões e escreventes judiciaes,
que formavam a classe da Bazocke, tratavam de perto
o povo para conhecerem bem os seus instinctos. Os
Enfans sans souci, súbditos do Prince des Sots, eleva-
ram os seus diálogos informes a uma maior perfeição.
A Soliè a principio devota, tornou-se em breve mor-
dente, condemnando todos os preconceitos do tempo,
e todos os abusos do poder. Os Bazockianos não po-
diam invadir o privilegio da Confraria da Paixão;
costumados a verem continuamente as farças jurídicas
que se representavam no foro, observando continua-
mente os sy mbolos da penalidade grotesca que então ti-
nham um valor legal, sabendo profundamente da vida
do povo, porque elle a manifestava nas peças judi-
ciaes, de que os Bazockianos extrahiam copia authen-
tica, era-lhes fácil inventar uma nova forma dramáti-
ca. Começaram por allegorias moraes e devotas, como
apresentação para serem acceitos pelo seu tempo; fá-
cil lhes foi dominar e dirigir o gosto. O publico não
sentiu a passagem natural que elles ftxexvttu &ȋ M.q-
18 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
validades vagas e sem realidade para a farça jurídica
da vida do povo, em que misturavam o divino jcom
o profano, satyrisando tudo, tornando as gerarchias
sociaes eguaes perante a gargalhada. Póde-se dizer,
que foram os Clercs de la Bazoche que inventaram a
moderna comedia de caracter. Assim a Confraria da <
Paixão, vendo cerceados os seus interesses, alargou o
seu repertório, e fez Mysterios de tudo. Os mysterios
da Paixão já pouco deixavam; tornaram-se insensivel-
mente profanos. O publico impunha estas exigências.
A moderna comedia foi tirada dos symbolos jurídicos;
crearam-na os Bazochianos. A celebre farça do Advo-
gado Pathelin é o monumento do género ; Pierre Blan-
chet, o seu auctor, era Bazochiano. Entre nós Gil Vi-
cente não imita os Mysterios; pelo menos não se encon-
tra entre as suas obras nenhum Auto da" Paixão; os
Autos do Natal são villancicos, que já existiam nos
usos da poesia do povo. O que mais apparece nas
suas obras são Moralidades bazochianas. Elle mesmo o
era. As noticias da sua vida nos dizem que estudara
direito na Universidade. O que é a farça do Juiz da
Beira senão uma reminiscência de alguma anedocta
jurídica? António Prestes, seu imitador, é também
um bazochiano; foi enqueredor do eivei ern Santarém,
e o Auto do Procurador é composto das anedoctas do
officio. António Ribeiro Chiado era frade francisca-
no; deixando a cugula monástica pela palheta de far-
çante, mostra os Mysterios da Paixão a converterem-se
NO SÉCULO XVI ia
nas SotieSj que o génio cómico da burguezia da edade
media estava pedindo.
Os personagens que figuravam nas representações
dramáticas, eram ociosos de bom gosto, levando uma
rida airada, as mais das vezes comprommettida em amo-
les aventurosos, defendendo-se com chistes, pondo sém-
>re do seu lado o povo com o gracejo repentino e alln-
ivo. Eram da classe judicial, advogados de causas per-
lidasj sonbz Confie, como diz a velha phrase symbolica
!e Pathelin. A renascença do Direito romano, o mix-
iforio do direito canónico, os costumes locaés, e os ca-
os julgados segundo a Biblia, tinham tornado um la-
yrintho a justiça. Crescia de dia para dia o numero
os procuradores; já não podiam por si dar aviamen-
o a tantos processos ; começaram a ter serventuários
ue soubessem lêr e escrever, ou os deres, e escholares.
A grande tendência da divisão das classes na eda-
ie media, fez dos deres uma corporação distincta, — a
Sazoche, a íjue Philippe o Bello concedeu privilégios de
ima jurisdição particular em 1303. A bazoche tornou-
e uma espécie de parodia do estado social, constituin-
lo-se em reino, com uma corte formada dos príncipes
\a bazoche. Eram rapazes, com a veia cómica acerada,
idicularisando tudo, os preconceitos do seu tempo e
i venalidade dos magistrados; simulavam causas que
publicamente defendiam; assim ia nascendo uma figu-
ação dramática, tomando um acto da vida, que apre-
entava todos os incidentes de uma acção, pelo seu lado
jomico. Foram elles, segundo o abbade d'Aubignac, os
20 HISTORIA DÒ TÍÍEATRÓ f ORTUGUEZ
primeiros comediantes. No século iv, já ò réitio da
Bazoche era uma confraria dramática, que a facul-
dade de theologia de Paris censurava, pelas insolên-
cias das suas Moralidades. Os bons doutores encom-
módávam-se com as allusões que lhes passavam pela j
porta. A Bazoche, no meio das suas representações,
nunca perdeu o caracter de tribunal judicial; era, como
diz Victor Fournelj um tribunal cómico diante do qual
cottipafeciam, em certos tempos, os altos tribunaes en-
carregados da sancçâo das leis. Na linguagem verná*
cuia de Jorge Ferreira encontramos a palavra bajou-
guice, que lembra esta designação franceza.
Os Jbazochianos caracter isavam -se de modo que lhes
conhecessem na expressão a physionomia das suas vi-
ctimas. Em 1511, representaram no dia de entrudo o
Papa Júlio li, feito Prince de Sots, instigando os se-
nhores a atraiçoarem o rei, os sacerdotes a abandona-
rem a egreja, e a correrem todos á pilhagem.
E este mesmo génio de censura mordente que ap-
parece sempre nos Autos de Gil Vicente:
/
Pastores das almas, Papas adoraiidos
Feirae o carão que trazeis dourado.
No seu Auto da Feira, principalmente, Roma vem
comprar paz, e se não achar o que busca promette dê
vir a falar mourisco. Depois o Diabo offerece-lhe tudo
o que vende;
NO SÉCULO XVI 81
Mentiras pêra senhores,
Mentiras pêra senhoras,
Mentiras, que a todas horas
Vos nasçam òVellas favores. (1)
Roma porém conta que levará o que quizer a trocp
de indulgências, que é o tfiesouro concedido, para urap,
remissão qualquer. A cada verso transpiram as ideias
profundas da Keforma, que os altos espíritos entre nos
tinham comprehendido, como Sá de Miranda, António
Pereira Marramaque, Gil Vicente e Damião de Góes.
Como bazochiano, Gil Vicente era actor e auctor. A
bajouguice entre nós era composta principalmente fios
estudantes da Universidade, que Gil Vicente também
cursara; eram elles que representavam, Na dedicató-
ria da Comedia de Bristo, diz o Dr. António Ferreira,
qne tornava a sua obra como milagre: «Porque serçir
do a primeira cousa de homem tão mancebo, fçjtp por
só seu desenfadamento em certos dias de ferias, e ain-
da esses furtados ao estudo, quem crerá, qne como cou-
sa para isso de dias ordenada, e de Author grave com-
posta, fosse por seu serviço nesta Universidade recebi-
da, e publicada onde pouco antes se viram outras, que a
todas as dos antigos ou levam, ou não dam vantagem.*
Muitas das obras de Gil Vicente resentem-se da for-
ma judicial, como é por exemplo a Romagens de Ag-
gravados, em que entra Frçi Paço, o typo da clerezia
tonsurada quesemettera no animo de D. João ni; q a
(1) Obras, t I, p. 163.
22 . HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Farça do Juiz da Beira, em que apresenta um juiz c
província, boçal, estúpido, obsecado, mas com algur
senso. Gil Vicente conhecia a Farça do Advogado Pc
thelin, a obra prima da Basoche; as suas farças vão-s
tornando de caracter, e tomam fundamento ás veze
sobre uma anedocta judicial. Sobretudo o Testamen
to de Maria Parda, (1) condem nado pelo Index Ex
purgatório de 1624, nos confirma n'esta opinião, i
farça de PatJielin terminava pelo Testamento do advo
gado, imitação do celebre Testamento do bazochian
François Villon. Era uma espécie de gracejo, com
diz Génin, que dava no goto d'aquelles bons mairt
da edade media. O Testamento de Maria Parda é um
imitação dos Testamentos de Blanchet, se é que se pód
attribuir esta composição ao auctor do Pathelin. Ma
ria Parda morreu de sede, por não encontrar vinh
nas tavernas de Lisboa :
E a sede que me matou
Venha pela cleresia.
No Testamento de Pathelin, diz elle :
Se je mouroye tout inaintenant,
Je mourroye de la mort Rolant.
A morte de Roland nas velhas epopêas era de sêd(
que para a estancar, bebia o sangue de suas feridas. (2
Tl) Obras, t. ui, p. 373.
(2) Bibliophile Jacob, Maisire Pierre Pathelin, p. 189.
NO SÉCULO XVI 23
;ja nossa linguagem popular encontra-se a palavra
jt \J ar P or embriagar-se, tal, como se usa no velho fran-
cez do citado Testamento: tJe vous pry que j'aye à
pyer,» do grego piein. (1) O companheiro da bazoche
Jean Bouchet, no epitaphio que compôz para o seu
amigo Pierre Blanchet, diz que no seu Testamento dei-
xou tresentas missas, sem dinheiro para ellas:
Après sa mort, des messes bien trois cens,
Et les paier de nostre bourse
No Testamento de Maria Parda deixa ella o mesmo
numero de missas :
Ti
Item dirão per dó meu
Quatro ou cinco, ou dez trintairos.
Cantados per taes vigairos,
Que não bebão menos qu'eu.
Os dez trintairos são as trezentas missas ditas, ou
cantadas por dó d'ella; ha também a circumstancia de
não dar dinheiro:
Venha todo o sacerdote
A este meu enterramento,
Me venbam cá sem dinheiro
Até cento e vinte sete.
(1) Opinião do Bibliophile Jacob, loc. cit., ediç. de 1859.
24 HISTORIA PO THEATRO PORTUGUEZ
As disposições testamentárias de Marte Parda ^pro-
ximara-se d&s de Pathelin :
Item mando vestir logo
O frade aliem ão vermelho
D'aquelle meu manto velho
Que tem buracos de fogo.
E Pathelin deixa:
Et, à 1'Hostel Dieu de Rouen
LaÍ8se et donne, de franc vouloir,
Ma robe grise que jeu ouen (naguère)
Et mon meschant chaperon noir.
Gil Vicente representa entre nós o theatro da eda-
de media, no estado a que o ele voa a dtresia da ba-
zoche; elle é um resultado dos costumes da burguezia,
e por isso .acompanha, ainda, que um pouco extem-
poraneamente, a vereda do theatro francez, italiano,
U\glez e hespanhol.
O Papa Lção x abrira a sua corte a todos os artis-
tas; cerca va-se de festas esplendidas coin todo o orgu-
lho de um Medíeis. Juan de la Encina foi ali acolhi-
do; Bartholomeu Torres de Naharro, nascido na fron-
teira de Portugal, cativo em Argel, veiu também para
Roma e lançou-se a compor comedias: «Viendo assi
mismo todo el mundo en fiestas de comedias y destas
cosas.» El-rei Dom Manuel queria imitar em grande-
9$ e elegância a corte de Roma; tornaram-se celebres
os serões de Portugal; discreieova-se em verso, repe-
fl[Q SÉCULO XVI 25
i
tiam-se os ditos jocosos, os chistes. Era rima eschola
de primor e bom gosto. Gil Vicente ficou o poeta dra-
mático da corte; vinha sempre com a sua comitiva de
anjos.e diabos e deoses da mythologia, e allegorias mo-
raes fazer o elogio dos jovens que eram firmados cavai-
leiros, ou das princezas que tinham de partir para lon-
ges terras com seus soberanos esposos, que se davam
por ditosos em levarem uma infanta portugueza. En-
tão eram Autos apparatosos, tinha elle com quê y e via-
w estimado. Na tragicomedia Exhortação de Guerra,
procura Gil Vicente exaltar os ânimos dos nobres don-
zeis que partiam para Azamor; foi representada dian-
te de Dom Manuel na despedida do Duque de Bragan-
ça e de Guimarães. Era o dramaturgo eesarêo; ne-
nhum dos seus Autos era para o povo; seriam vistos
por elle talvez quando se representavam qo convento
de Knxobregas ou de Thomar nas festas religiosas.
As grandezas do seoulo de Dom Manuel tornaram
a sua corte a mais celebrada da Europa. Bartholomeu
Torres de Naharro representava a comedia Trofea em
honra d'el-rei Dom Manuel pela descoberta da índia,
aa corte de Roma, diante do Embaixador portuguez
Tristão da Cunha.
Visitemos a corte d'este monarcha faustoso, que
esquecia no meio das suas venturas a existência do
povo portuguez, e falemos primeiro que tudo de Gil
Vicente, do único homem que teve coragem para lhe
dizer que o povo ainda vivia, e sofiria.
26 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Vida intima de Gil Vicente
A corte de Dom João n frequentada por Gil Vicente. — Ca
fataes que impediram ali o desenvolvimento do seu g
dramático. — theatro portuguez ligado á historia de Pc
gal. — Protecção da rainha Dona Leonor, viuva de D. *
II, a Gil Vicente. — Vida intima de Gil Vicente e docui
tos sobre seus filhos. — Suas luctas com o partido cleric
com os cultistas italianos. — Hypothese sobre o motivo
suas desgraças. — Determinação da época da sua mort
Caracter humanitário de Gil Vicente. — Sua protecção {
judeus. — Gil Vicente íoi o primeiro qne annunciou a
forma em Portugal.
No meio das grandes tristezas, desastres e ft
tismo religioso, que enlutaram Portugal, só um hon
soube comprehender que o remédio para este lang
immenso era a risada franca, já aconselhada no 1
tagruel de Rabelais. Gil Vicente é a alma da nacioc
dado portugueza, violentamente abafada por um exí
rado respeito pelo classicismo e pela censura repre
va do catholicismo; luctou para nos restituir a aleg
mas foi afinal vencido pela força da inércia; triump
o partido clerical, e ficámos uma nação esterelisai
sombria, vacillante entre a realidade das cousas
pezadello da outra vida.
., Pouco ou nada se sabe de Gil Vicente, se nãc
colhermos todos os fracos vestígios que deixou da
personalidade nos Autos que representou na cort
dois reis prepotentes, fanaticamente selvagens. Nai
i!
w
£
NO SÉCULO XVI 27
Sil Vicente em Lisboa; (1) era de illustre linhagem,
por isso que o vemos em 1493 frequentar a corte de
Dom João li, achando-se em Almada ao tempo em
que nos serões do paço corria o processo amoroso de
Yasoo Ábul; Gil Vicente também tomou parte no fei-
to, como poeta-jurista, appresentando o seu parecer á
rainha Dona Leonor.
Por este tempo contaria vinte e três annos de
edade, por isso que por deducções se tem concluído ser
o anno de 1470 o do seu nascimento ; Gil Vicente cur-
sou a Universidade de Lisboa, seguindo a faculdade
de leis; conta-se por tradição, e confirma-se pelo: Pa-
recer de Gfil Vyçente iCeste processo de Vasco Abul á
rraynha dona Lianor. (2) A rainha conhecendo-o já
como engraçado, quiz ouvir os arrasoados de Gil Vi-
cente; elle começa:
Voss 1 alteza me perdoe,
eu acho muyto danado
este feyto processado
em que manda que rrazôe.
Quem mete Bartolo aquy,
nem os doutores legistas
nem os quatro avangelistas,
mas os namorados ssy.
mande, mande voss'alteza
este processo a Arrelhano ;
(1) Na tragicomedia Triumpho do Inverno, feita nas festas
dadas pela cidade de Lisboa ao parto da rainha D, Catharina,
diz: dA nossa Júlia modesta.»
(2) Cone, Geral, fl. 210, col. 5.
98 HISTORIA DO THE^TUO PORTUGUEZ
vereys com quanta, graueza
busca leys de gentyleza
do lyndo estyllo Rroraano.
Em uma rubrica do Cancioneiro chama-se-lhe j
ire Gil, cironmstancia que leva a crer, que já a
tempo estaria graduado na Universidade. (1)
A estima da rainha Dona Leonor, mulher de
João li, manifestou-^se em touitas outras occasiões,
mando-o principalmente na composição dos seus Ai
tos, e fazendo-o lembrado de seu irmão el-rei Dom Ib
noel, quando o poeta andava por algum tempo esqueci
eido da corte. Por estes versos de Gil Vicente, acha*»
dos dentro do Cancioneiro geral de Garcia de Resende,
se vê que frequentara os serões poéticos do tempo de
Dom João li, e que a referencia a, Juan Domado no;
Auto Pastoril Castelhano allude a este monaroha, A ra«
são porque os seus talentos dramáticos só appareceram I
no reinado de Dom Manoel torna-se agora evidente
pela sua naturalidade; nas festas do casamento do
Príncipe Dom Affonso «m Évora, tinha Gil Vicente
apenas vinte annos; no anno seguinte, em 1491, foi o
desastre em que o príncipe, único herdeiro, morreu,
caindo de um cavallo abaixo em Santarém. Os poe-
tas da corte celebrarajn a grande catastrophe, e a emo-
ção produzida no povo foi tal, que ainda hoje se en-
(1) Canc. geral. fl. 209, col. 6.
SÈCtJLÒ iVt 2Í
contraiu romances, como o da Má Jfovàj e Casamento
múllogfddO) em qtie sé conta esse trágico succêsso. (1)
De facto à princeza Dona Isabel voltoti para Oas 1 -
tellá. Gt*ande foi a impressão que esta catastf ophe dó
príncipe causou, que ainda depois de quatro séculos o
povo o lamenta nos seus cantos ! Os serões poéticos na
corte de Dom João n, redobraram, e todos os fidalgos
trabalhavam com os seus chistes e motes para distra-
hirem a afflicta rainha Dona Leonor. É natural que
pôr este tempo o génio cómico e folgasão de Gil Vicen-
te o tornasse indispensável para os serões do paço, e
que a essas graças devesse a constante amisade da
rainha.
(1) Aqui reproduzimos a ultima versão, recolhida na ilha
de Sam Jorge, que não pôde entrar nos Cantos populares do
Ârckipelago :
CASAMENTO MALLOGRADO
Casada de oito dias
A j anel la foi chegar.
Vira vir um cavalleiro
Com um lencinho a abanar.
— Novas vos trago, senhora,
Mui custosas de vos dar ;
Vosso marido é morto
Na praia do areial.
Cahiu do seu cavallo
Andando a passear ;
Rebentou-lhe o fel no corpo,
Está em risco de escapar.
So vós o quereis vêr, senhora,
Tratae já de caminhar.
30 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
Usavam limito os trovadores palacianos tecer
processos amorosos, e por certo Gil Vicente rnaugu:
ria os festejos theatraes, se a corte não estivesse tão <
tristecida, e não sobreviesse pouco depois a morte
el-rei Dom João n, em 1495. Da corte de D. João
*
data também o conhecimento com Garcia de I
sende, que colligiu os poucos versos seus que and
no processo de Vasco Abul ; no seu Ajito das Cortes
Júpiter, cita-o alludindo ás muitas prendas com c
se fazia valer diante de Dom João n, como poeta, co
Vestiu vestido preto,
Por maia vagar lhe nâo dar.
Três criados atraí d'ella
Sem a poder alcançar.
O pranto que ella fazia
Pedras faziam chorar.
Chegou á praia do areal
Seu marido vira estar :
— «Calae, condessa, calae- vos,
Não me dobreis o meu mal,
Que o ver vosso desamparo
A minha alma faz penar.
Ide-vos para Castella,
Onde tendes padre e madre ;
Que sondes menina nova
Que vos tornem a casar.
«Esse conselho, marido
Èu nfto no quero tomar,
Heide-me ir p'ra minha casa,
Hei-me sentar a resar,
Morte que levaes o conde
Condessa vinde buscar.
SÉCULO XVI 31
tusico, como desenhador, chronista, architecto, e pela
rotundidade da gordura, que os outros poetas chasquea-
vam:
£ Garcia de Resende
Feito peixe tamboril ;
E inda que tudo entende
Ira dizendo por endc :
Quem me dera um arrabil. (1)
Garcia de Resende pagou-lhe o remoque, ferindo-o
também na originalidade dos seus Autos, na Miscella-
\. nea, aonde descreve os successos do tempo:
E vimos singularmente
Fazer representações,
D^estyllo mui eloquente,
De mui novas invenções
E feitas por Qil Vicente.
EUe foi que inventou
Isto cá, e o usou
Com mais graça e mais doutrina,
Posto que Juan dei Enzina
pastoril começou.
Na Écloga v de Juan de la Enzina se allude á
morte do príncipe Dom Affonso, o que leva a crer que
fosse conhecida em Portugal, porém nada havia aí que
imitar. A allusão de Garcia de Resende é malévola.
Vimos as condições precárias em que o génio dra-
mático de Gil Vicente se achou no reinado de Dom
João li; entremos agora no século de Dom Manoel.
(1) Obras, t. li, pag. 406,
32 HISTORIA DO THEATÉO PORTUGUEZ
A origem do theatro portuguez está ligada á hií
toriade Portugal de modo, que se quizermos indagar
seu principio, temos de lembrar os primeiros epii
do reinado de D. Manoel. Pela morte desastrosa do prii
cipe D. Afíbnso único filho e herdeiro de D. João
veiu a coroa a ser cedida pelo Príncipe Perfeito a
primo Dom Manoel, tendo-o principalmente movido ai
esta resolução sua mulher a rainha Dona Leonor, ir-j
má do futuro monarcha venturoso; com um grane
sentimento de justiça, e para restabelecer as esperan-
ças primitivas, Dom Manoel casou com a viuva do
príncipe Dom Affonso, a princeza D. Isabel; d'este con-
sorcio nasceu o príncipe D. Miguel, chamado o da Paz,
morrendo a máe de parto, e suecumbido em seguida o
filho passado mezes. N'este tempo alliava-se a felici-
dade de Portugal e do povo aos destinos da corte! Foi
um lueto geral. Para consolar el-rei Dom Manoel da
immensa perda que acabava de soffrer, os conselheiros
lembraram-lhe que pedisse a Fernando e Isabel monar-
chas catholicos de Hespanha uma segunda filha e sua
cunhada. De facto D. Maria, irmã da fallecida rainha,
entrou em Portugal pelos fins do anno de 1500. O po-
vo depositava n'ella as suas esperanças para a sueces-
são do reino. A 6 de Junho, de 1502, em uma segunda
feira, duas horas depois da meia noite, deu á luz o
príncipe que veiu a ser el-rei Dom João iii. Assim
como Damião de Góes, diz que D. Manoel admittia
na sua corte os chocarreiros castelhanos, e Jorge Fer-
reira se queixava de se não cau tarem trovas senão em
NO SÉCULO XVI 4 33
istelhano, é fácil de explicar como das quarenta e duas
eças que escreveu Gií Vicente, trinta e cinco foram
m, parte ou totalmente escriptas n'essa língua. O mo-
archa queria comprazer com sua mulher, dando-lhe
s folguedos da sua terra; abrandava-lhe as saudades
azendo-a ouvir a sua lingua natal nas cantigas, nos
omances e nos Autos.* Tal foi também a origem do
heatfo em Portugal, como veremos pela representação
lo Monologo do Vaqueiro, que Gil Vicente representou
i'este parto da Rainha. Quando se soube que a rainha
«tava com as dores de parto, o povo, com o clero e
i fidalguia, foram de noite em procissão ao mosteiro
le Sam Domingos, pedir misericórdia á capella de
fesus; era uma commoção geral; logo ás duas horas
lepois da meia noite se soube do nascimento do princi-
>e Dom João, e «a cidade, como diz Frei Luiz de Sousa,
o reino todo trocou a tristeza em alvoroço e conten-
amento; os receyos em festas, que se affirma foram as
naiores e mais custosas, que em muito tempo se não
inham visto em nascimento de príncipe, competindo
ntre si todos os estados de gente, a quem daria maio-
essignaes de que cada um estimava aquelíe bem.» (1)
foi n'esta conjunctura, que el-rei Dom Manoel con-
sentiu o divertirem a rainha com um passatempo usa-
io na corte de seu pae; Gil Vicente já conhecido nos
saráos da. corte de D. João n como poeta cómico, veiu
(1) Frei Luiz de Sousa, Annaes de í). João n, p. 2,
3
34 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
aos Paços do Castello aonde nascera o príncipe, v
a rainha, e n'essa noite 8 de Junho em uma q
feira, representou o Monologo do Vaqueiro com
aprazi mento da rainha velJia, Dona Leonor, viu
D. João li, e de Dona Beatriz, duqueza de Brag
màe d'el-rei. O Monologo é escripto em hespan
que revela mais a intenção do folguedo.
Assim ficaram lançados os fundamentos do
theatro nos paços do Castello, em a noite de uma c
feira 8 de Junho de 1502. (1)
Como vimos, Gil Vicente, frequentou a co
D. João li, e n'ella se deu a conhecer como poe
coso. Temos a prova d'isso no Cancioneiro de Re*
aonde o encontramos tomando parte nos certame
ticos que então se armavam nos serões do passo.
(1) No Ensaio sobre a Vida e escriptos de Gil Vicei
lando Barreto Feio da origem do theatro portuguez, diz: •
nha Dona Beatriz, mulher de Dom Manoel, lendo fica<
agradada do Monologo que Gil Vicente, no caracter de
foi recitar na sua camera, onde ainda se achava de cama,
to do príncipe D. João, depois D. João ih...» período est
de erros históricos: D. Manoel não foi casado com nenhu
Beatriz; casou com Dona Izabel, viuva do príncipe D. A
que devera herdar o throno de D. João n ; por morte d'e
sou com a cunhada, Dona Maria, também filha dos cai
Fernando e Izabel, e por morte d'esta, com Dona Leono
de Philippe i de Castella. Em 1502, quando Gil Vicent
corte representar o Monologo do Vaqueiro, estava Dom 1
casado com Dona Maria, n'esse tempo doente de parto
vam presentes a mãe do monarcha Dona Beatriz, e a filha
irmã de Dom Manoel, a Rainha Dona Leonor, viuva d
João ii. Foi a rainha velha Dona Leonor, que pediu a (
cente que continuasse n'aquella senda, e a seu pedido fez <
em seguida o Auto pastoril, e o Auto dos Reis Magos,
c
NO SÉCULO XVI 36
f*
«
tarai que a primeira ideia das representações dramáti-
cas lhe fosse suscitada por esses processos amorosos e
& engraçados, em que as damas da corte davam sentença.
i Correu de um* vez esta anedocta, que Vasco Abul ven-
i do bailar uma mocetona em Alemquer, lhe dera brih-
eando uma cadeia de ouro, que ella não quiz depois
restituir. Anrryque da Motta, poeta satyrico, não dei-
xou escapar a occasião e fez logo do feito uma espécie
de processo, como anteriormente se fizera com o Cuidar
e suspirar. Mestre Gil, como diz a rubrica, entrou na
polemica, e escreveu oito estrophes bastante cómicas,
que Garcia de Resende recolheu sobre a rubrica : pa-
recer de Gil Vyçente neste processo de Vasco Abul a rray-
nha dona Lianor. (1) Â rainha aqui citada era a mu-
lher de Dom João li, porque só em 1517 è que Dom
Manoel viuvou da rainha Dona Maria, e o Cancioneiro
foi publicado em 1516. Quando em 1502, Gil Vicente
appareceu com o seu Monologo do Vaqueiro na corte de
Dom Manoel, também assistiu a viuva de D» João II,
bem como sua mãe Dona Beatriz, mãe d'el-Rei Dom
Manoel, e foi ella que lhe pediu que tornasse a repre-
sentar aqnelle Auto nas matinas do Natal: «E por ser
cousa nova em Portugal, gostou tanto a rainha vellva
d'esta representação, que pediu ao auctor que isto mes-
mo se representasse ás matinas do Natal, etc.» (2)
Dona Leonor, mulher de D. João n, foi, podemos as-
* (1) Foi 2ip, col. 5.
(2) Obras, t. i, pag. 5.
1
36 HISTORIA PO THEATRO POliTUGUEZ
sèveral-o, a primeira pessoa que reconheceu o mi
de Gil Vicente e que o animou nos seus ensaios
m áticos ; ella o conhecia do tempo do processo gra<
de Vasco Abul, e animando-o, queria matar saud
do passado com os jocos poéticos usados na cort
seu marido. (1) Gil Vicente escrevendo o Auto
toAl Castelhano a pedido de Dona Leonor, não p
deixar com a sua sensibilidade de poeta de allu<
Dom João li, com gratidão e respeito. Diz o Pi
Gil:
Conociste á Juan Domado,
Que era pastor de pastores ?
Yo lo vi entre estas flores
Con gran hato de ganado,
Con su cajado real.
Repastando en la frescura,
Con favor de la ventura :
Di zagal,
Que se hizo en su curral ?
Estes versos, seriam para a velha rainha como
Marcelluseris, de Virgílio; lembravarn-lhe a morte d<
filho único, o príncipe Dom Affonso, por cuja fatal
de se extinguira a realeza do marido. Como lhe ps
Dona Leonor esta delicadíssima lisonja? Pedindc
logo o Auto dos Reis Magos, representado em 15C
fazendo-o valer na corte contra todas as intrigas
seus inimigos.
Formado em Direito, Gil Vicente seguia c g
(1) Esta poça de Gil Vicente não foi recolhida pelos
tocos de Hamburgo.
NO SÉCULO XVI 37
la Renascença, formulado n'aquelle verso de Ferreira :
iNáo fazem damno ás musas os doutores.» Em algu-
oas de suas comedias ridicularisa a profissão judicial,
©mo na farça do Juiz da Beira, e na Floresta de En-
\ano8 appresenta o Doutor Justiça Maior seduzido por
■na moça. Elle continuava a tradição do velho thea-
ro francez, em que os Clercs de la Bazoche firmavam*
is suas comedias na vida judiciaria. Em Portugal a
composição das comedias era um ensaio na Universi-
bde e Collegios, e durante as feria3 do estudo jurídico
Bscreveu Jorge Ferreira de Vasconcellos a sua Eufro-
lina, António Ferreira a comedia de Bristo, Camões o
Auto dos Amphytriões. Sá de Miranda era legista, ô'
António Prestes enqueredor do cível em Santarém: Pou-
vezes teve Gil Vicente liberdade na composição dás
peças, porque quasi todas lhe eram pedidas para*
beumstancias determinadas. Como podia ter origina-
de quem se via forçado pela decima vez a fazer um
uto de Natal, ou a celebrar o nascimento de um prin-
ipe ou o casamento de uma infanta? Em alguns Au-
ge vê que Gil Vicente conhecia a existência do
toando moral, e que estava no caminho de ser um Mo-
fóre; mas os themas obrigados faziam-lhepôr de parte
) estado das paixões humanas, e servir-se das allego-
ias frias e vãs, para comprazer com a corte que pre-
ludia cousa adequada á natureza da solemnidade.
í'este meio impossível, Gil Vicente vinga-se com a
Mordacidade crua e aberta que salga os elogios counçu-
ionaes, e mais ainda,, mostra-se um inimitável çoefca.Yj-
38 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
rico, até hoje ainda não excedido. N'este tempo ainda
a arte dramática não descera a uma profissão infaman-
te; os padres representavam nas cerimonias do culto,
e um sacerdote, Bartholomeu Torres de Naharro, abri-
lhantava com os seus Autos a corte do Papa Leão x.
Posteriormente, os cómicos ambulantes e belfurinheiroi
tornaram a comedia desprezível, e d'esta circunstan-
cia se formou a tradição de que Gil Vicente não era no-
bre, que era filho de uma parteira e neto de um tam-
borileiro, fundada nos versos, em que dá um persona-
gem das suas farças como natural da Pederneira.
Em 1840, o snr. Joaquim Heliodoro da Cunha Ei-
vara, cuidou desfazer as duvidas acerca da naturalida-
de de Gil Vicente, que se atribuía a Lisboa, a Barcellos
e a Guimarães segundo Barbosa, applicando ao poeto
os versos que poz na bocca do Licenciado que serve de
Argumèntador no Auto da Lusitânia: (1)
Gil Vicente o Autor
Me fez seu embaixador,
Mas eu tenho na memoria
Que para tão alta historia
Naceo mui baixo doutor.
Creio que he da Pederneira
Neto de um tamborileiro;
Sua mãe era parteira,
E seu pae era albardeiro.
E per rasão
Elle já foi tecellâo
ETestas mantas do Alemtejo;
E sempre o vi e vejo
Sem ter arte nem feição.
(1) Obras, t. m p. 274.
NO SÉCULO XVI 39
E quer-86 o demo metter,
O tecell&o das aranhas,
A trovar e escrever
As portuguezas façanhas
Que só Deus sabe entender.
snr Eivara tomou á letra estes versos, e diz: cA
porém parece-nos que elle próprio tira todas as du-
ã. . . • (1) A interpretação d'estes versos, está n'elles
mos ; o Licenciado diz Creio que he $ e em outros ver-
que se seguem, acrescenta:
D'outro cabo,
Dizem que achou o diabo
Em figura de donzella,
E elle namorou -se d'ella, etc.
cluindo que era o diabo que o levava a uma caver-
Dnde durante sete annos aprendera o que sabia. O
o da Luzitania foi representado em 1532, depois de
irem declarado abertamente os seus inimigos, que o
rreavam; por tanto o dito do Licenciado é todo ironi-
Por o poeta ser de illustre extracção é que se faz íi-
de um albardeiro, que figuradamente significa tra-
io, arreliador, e toma por officio o de tecelão, como o
tece mantas para envolver ridiculamente ' os seus
'actores. Temos urna prova positiva da sua natura-
de, quando elle no Triumpho do Inverno, para os
ejos da cidade de Lisboa, a Felicitas Júlia, ali lhe
ma a nossa Júlia.
(1) Pauorama, t. ív, p. 275.
4jp, HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Quando não estava na corte, Gil Vicente resid
em Santarém, como vemos pela queixa contra os Alm
creves, e pela Carta escripta em 1531 de Santarém pa
el-rei Dom Ioão 111, que estava em Palmella.
Gil Vicente não proseguiu na carreira jurídica; p<
chronologia da sua vida, que se recompõe pelas dal
no principio de cada Auto, se vê que desde 1502 í
ao anno de 1536 andou occupado em divertir as di
cortes de Dom Manoel e Dom João m. Deve portai
julgar-se este o seu modo de vida. Em uns versos
André de Resende, contemporâneo de Gil Vicente,
vê, que elle era também actor, (1) como no prolo
de alguns Autos em que fala em seu próprio nome, coj
no Tinumpho de Inverno, e Templo de Âpollo. Gil 1
cente acompanhava a corte de Lisboa para Almeiri
para Abrantes, Almada, Évora, Thomar, Coimbra
Alvito; qaandp rebentava alguma grande peste, <
elle que distrahia os ânimos com a jovialidade fac
das suas farças, como couta Boccacio que se usava
Jardim de Pampinea na grande peste de Florença. 1
casamentos de el-rei. Dom Manoel e Dom João
ao nascimento dos príncipes, á partida das infant
apcudiu sempre com um Auto para abrilhantar os í
tejjos. Durante os trinta e quatro annos que represen
nas duas cortes, não deu espectáculo ou ficou esquec
dos, reis nos annos de 1507, 1509, 1511, 1515, 15
(1) Cunctorum hinc acta est comoedia plausu,
Quam lusitana Gillo auctor et actor in aula
Egerat ante, dicax atqneiwtet^ftTafacetus: etc
NO SEGULO XVI 41
1520, 1522, 1524, 1528, e 1535; procurada a causa
do silencio; é sempre algum grande desastre das armas
portnguezas na índia, ou na Africa, alguma fome ge-
ral, carnificina provocada pelos dominicanos contra os
jndeu8, morte de algum príncipe, ou doença do próprio
poeta, como elle conta na Tragi-comedia do Templo de
Apolb que escreveu e representou estando doente de
graçdes febres. Sustentava-se Gil Vicente com os ho-
norários que recebia dos reis portuguezes; porém em
vez de medrar n'este mister que pareceria rendoso,
n'elle gastou alguma fortuna que herdara de seus pães.
No Auto Pastoril Português, representado em Évora
diante de Dom João ni, declara que não tem ceitil
apezar de fazer Autos para el-rei, e que os Autos que
escreve não são já como os que inventava quando tinha
com quê. Uns almocreves castelhanos, tendo privilegio
dado pela rainha Dona Catherina de não fazerem car-
retos por taxa, levaram de aluguer na volta de Coimbra
para Santarém ao pobre poeta tudo quanto trazia, tal-
Vj8z o dinheiro que recebera pelo Auto que representara
em 1526 n'essa cidade; em outro logar queixa-se ao
Conde de Vimioso, que se o medrar estivera em traba-
lhar, bem teria que comer, e que dare que deixar. (1)
Gil Vicente era casado com Dona Branca Becerra,
como se vê pelo epitaphio que se acha no Mosteiro de
Sam Francisco de Évora com estes versos, talvez escri-
(1) Obras. t. m, p. 182.
42 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
ptos por seu marido, que também escreveu outro egual
para si:
Aqui jaz a mui prudente
Senhora Branca Becerra,
Mulher de Gil Vicente
Feita terra. (1)
Na sepultura de Gil Vicente está como epitaphio
outra estropbe perfeitamente egual, que vem accrescen-
tada com mais oito versos no livro das Obras meadas,
publicado por seu filho Luiz Vicente; esta circumstan-
cia prova que fora elle o auctor do epitaphio de sua
mulher. Teve do seu casamento três filhos ; um chamado
também Gil Vicente, outro Luiz "Vicente, e Paula Vi-
cente. Do primeiro, diz Barreto Feio, no Ensaio sobre a
vida de Gil Vicente: «O certo porém, é, que a existência
deste pretendido filho não é attestada por documento
algum. . .» (2) Nos Commentarios de Afonso de Albu-
querque, (3) cita-se como por uma espécie de antono-
másia o filho de Gil Vicente, talvez para não estar a di-
zer filho de outro, sendo esse outro o mais illustre. No
próprio Gil Vicente se acha uma referencia a seu filho
Gil, que o ajudava a representar os Autos, n'estes ver-
sos do Templo de Apollo :
Ora sus, alto Gilete»
Tu serás aqui portero ;
No dejes entrar romero
Aunque te quite el barete
Ni te dê niucho dinero...»
(1) J. H. da Cunha Rivata, Epitaph. ant, Pan. t. iv, p. 275.
(2) Obras, t. i, p. xvi, not, S.
(3) Comm. Parte li, cap. 52.
NO SÉCULO XVI . 43
Na ennumeração das figuras que entram na Tragi-
comedia não se fala n'este nome de Gilete, mas sim-
plesmente no Porteiro do Tempfo, e o mesmo em todo o
decurso da peça, o que leva a crer que o poeta se refe-
ria aqui a Gil moço, seu filho. Portanto já em 1526
existia este filho, que tomava parte nos Autos de Gil
Vicente; na tragi-comedia do Templo de Apollo } as
falas que cabem ao Porteiro são muito breves e como
que adequadas para serem ditas por uma criança. Fa-
ria e Sousa, que no século xvn vulgarisou nos seus
Commentarips dos Lusíadas bastantes anedoctas litte-
rarias colhidas da tradição oral, conta que este Gil
Vicente o moço despertara tal inveja em seu pae, por
causa dos seus talento* poéticos, e principalmente por
uma comedia intitulada os Cativos, que o velho dra-
maturgo o desterrara para a índia, onde achou em bre-
ve a morte no campo da batalha. A alma profunda-
mente humana de Gil Vicente, que livrou os judeus de
Santarém de uma mortandade suscitada pelos frades,
que luctou sempre contra a prepotência clerical, não
podia sentir este ódio pelo talento do filho, quando ve-
mos que já velho se ajudava na composição do génio
cómico da sua Paula. Gil Vicente bateu-se durante a
vida contra o poder monachal, que invadira a cor-
te de Dom João ni; foi elle o único homem em Portu-
gal que trabalhou para a secularisação do povo portu-
guez. Os frades não se vingaram só nas obras do poe-
ta, negando-lhe a originalidade da invenção, deram o
golpe do que ha de mais do Jo roso, noa aeix\iv\s\fòTi\,o^ fo>
44 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
pae, no caracter, servindo-se da arma mais terrível,
e contra a qual não ha escudo, nem defeza — a lenda.
Propagaram a lenda da atrocidade paternal, que ainda
vogava no século xvn até ser recolhida por Faria e
Sonsa, repetida por Diogo Barbosa Machado, e João
Baptista de Castro. No Index Eapurgatorio de 1624, o
Auto dos Cativos vem attribuido ao Infante Dom Luiz,
discípulo e amigo de Gil Vicente. Isto ajuda a provar
a falsidade da lenda monachal. (1)
Do segundo filho de Gil Vicente temos documen-
tos mais positivos; em 1562 foi Luiz Vicente o editor
das obras de seu pae, e escreveu a dedicatória a el-rei
Dom Sebastião, enderançando-lhe a Epistola dedica-
tória de Gil Vicente a Dom João III, que não chegara
a ser offerecida. Luiz Vicente escreveu esse prologo
em tempo em que a eschola italiana dominava na poe-
sia portugueza e banira o theatro nacional, e é por isso
que elle diz: «E ainda que as obras de meu pay não te-
nham tamanho merecimento como tiveram as d'outros
poetas antigos e modernos, tão celebrados em todo o
mundo; todavia, ainda que as d'este livro fiquem mui-
to abaixo d'estas; por serem cousas algumas d'ellas fei-
tas por serviço de Deos e todas em serviço de vossos avós,
e de que elles muito gostaram, era rasão que se impri-
missem.» Luiz Vicente não se cegava pela admiração
de seu pae, talvez porque se não atrevia a ir d'encon-
(1) Vid. adiante o livro : Eschola de Gil Vicente,
SÉCULO XVI 45
tro á eschola clássica que prevalecia, e contra quem
Gil Vicente lactara.
terceiro filho do poeta è Paula Vicente, figura
sympathica, aureolada de amor puro e do disvello com
que trabalhava e ajudava seu pae na invenção dos seus
Autos. Prova-se a sua existência pelo Privilegio passa-
do pela rainha Dona Catherina na menoridade de Dom
Sebastião, no qual também se vê que fôra moça da
Camará da Infante Dona Maria : « Paula Vicente, mo-
ça da Camará da muito minha amada e prezada tia,
me disse que ella queria fazer emprimir hum livro e
cancioneiro de todas as obras de Gil Vicente seu
pay. . . » Bem se vê que ella assistira ao trabalho de
seu pae, e o amava como parte da sua alma ; primeiro
•do que ninguém lhe conheceu o valor, e a necessidade
de salvar pela imprensa esses gritos de um coração se-
quioso de justiça. Muito diíFerente é o juizo que ella
fazia, comparado com o de seu irmão Luiz Vicente. Era
Paula Vicente versada em linguas, chegando a es-
crever uma grammatica ingleza, o que nos leva á
conjectura de que talvez não desconhecesse os ve-
lhos My8terios inglezes, que no tempo de Dom João I
seriam trazidos para Portugal. No livro das Moradias
da Casa da Bainha Dona Catherina, Paula Vicente
tem assentamento com o titulo de tangedora, talvez
mestra das donzellas (1), e como tal pertencendo á
Academia de mulheres da Infanta Dona Maria, que
(1) Obras de Camões (Edição Juromenha^ 1. 1,^.1*1.
46 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
estudara latim para melhor perceber os Evangelhos,
tendo em volta de si outras senhoras instruídas, como
Lúiza e Angela Sigêa, Joanna Vaz, e Dona Leonor
de Noronha. Paula Vicente tagnbem tmltivára a poesia
cómica, da qual se perdeu, na opinião de Barbosa, o
volume que escreveu; este facto bastava para sobre
isso formar-se a lenda de eila col laborar com seu pae,
quando os desgostos e a edade lhe apoucaram a ima-
ginação. O P. e António dos Beis, no Enthusiasmus poe-
ticus, n. as 66 e 67, conservou esta mimosa e sentida tra-
dição, que em parte consola e fortalece a alma contra
a negra sombra lançada pelos que imputavam a Gil Vi-
cente a emulação por seu filho.
Grandes foram as intrigas que Gil Vicente atra-
vessou na corte de Dom Manoel, que poderiam ter
causado a sua completa ruina.
O príncipe Dom João amava a infanta Dona Leo-
nor, irmã do imperador Carlos v, e pedira licença a
seu pae para tratar-se o casamento.
Havia poucos mezes que el-rei D. Manoel viuvara
da rainha D. Maria; Álvaro da Costa parte logo para
Hespanha com o pretexto de cumprimentar o Impera-
dor, e de em segredo lhe pedir a mão de sua irmã Dona
Leonor para o rei. Diz Frei Luiz de Sousa: «e foram os
poderes que lhe deu tão largos e sem limites, que pri-
meiro se soube em Portugal estar concluído que co-
meçado.» (1) Quando o príncipe Dom João soube que
(1) Annaes de D. João III, p. 16.
NO SÉCULO XVI 47
seu pae, já bastante velho e de cabellos brancos, casara
com aquella que pretendia para sua esposa, moderou os
Ímpetos da sua fúria, consolado pela censura de todo
o reino para este procedimento de el-rei Dom Ma-
noel. Seu pae, não contente com raptar-lhe a noiva,
afastou do pé do príncipe aquelles que mais lhe aggra-
vavam o pezar, chegando a desterrar um certo Luiz
da Silveira. Dom João IH foi inflexível para os fidal-
gos que seguiram ou approvavam o procedimento do
pae. N'este tempo Gil Vicente representou diante da
rainha Dona Leonor, terceira mulher de Dom Manoel,
o Auto da índia, em Almada, em 1519. Poderemos
accrescentar esta circumstancia como uma das causas
qne contribuíram para a sua desgraça no reinado de
Dom João iii, depois que morreu a sua protectora a
velha rainha Dona Leonor, viuva de Dom João 11, em
1525. i
Antes da morte de Dom Manoel, achava-se Gil Vi-
cente em Évora, aonde em 1521, representou a farça
dos Ciganos, á entrada do Príncipe Dom João iii.
NWe tempo florescia em Évora um poeta dramático,
criado do Bispo Dom Affonso de Portugal, e que era
estimado pelas suas boas letras, fazendo-se notar pelos
Autos que escrevia com aprazi mento da classe mona-
chal; era este poeta Affonso Alvares, auctor do Auto
de Santa Barbara, ainda hoje popular no Minho, dis-
cipnlo da eschola nacional fundada por Gil Vicente.
Escrevendo quasi sempre os seus Autos a pedido dos
frades, dando-lhe elles mesmos o thema, e úvd\ç^\v<k>-
48 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
lhe a Legenda Áurea de Voragine como thesouro ic
gotavel para a sua imaginação forragear á vonti
tudo leva a crer que os frades preparavam em Affc
Alvares um rival para desthfpnar Gil Vicente.
Autos de Gil Vicente representados em Évora,
como a' Comedia de Rubéna, o Auto Pastoril portitg
a Fragoa de Amor, a Romagem de Aggravados, as '.
gicomedias de Dom Duardos e de Amadiz de Ga
Auto da Mofina Mendes, e a Floresta de Enganos,
nhece-8e que o velho mestre luctava contra algu
pelo primor de lyrismo, da versificação, pela variec
das peripécias, e principalmente pela parte especta
losa e arranjo de scena. Com a morte do Bispo I
AíFonso de Portugal, o poeta Affonso Alvares veiu
ra Lisboa, aonde andou também em lucta com o Chi:
mas Gil Vicente ficou sempre amando Évora, não
los seus dolorosos triumphos, mas porque aí perde
sua prudente mulher e companheira da vida Bn
Biecerra, que lhe ficou sepultada no convento de í
Francisco.
No principio de reinado de D. João nr deu-
caso extraordinário da queixa do velho Conde de .
rialva, contra o Marquez de Torres Novas, pedind
rei que lhe desse campo, segundo o Foro velho de •
tella, para ter um duello de morte com o marquez
declarara o casamento clandestino com sua filha E
Guiomar, promettida no testamento d'el-rei Dom
noel ao Infante Dom Fernando. Por este suce
NO SEOULO XVI 49
Sá de Miranda a corte, e foi viver para sua
nda das Duas Egrejas.
Vicente atravessou a crise difficil, e a falta de
presentação em 1522 deve attribuir-se a esse
escândalo. Depois o monarcha, para distrahir
ou para seguir o velho costume portuguez do
nandou-lhe representar em Dezembro de 1523
Pastoril portuguez^ onde o poeta diz os celebres
que mostram o estado da sua muita pobreza:
E hum Gil . . . ura Gil . . . ura Gil . . .
(Que má retentiva hei !V
Ura Gil. . . já não direi ;
Um que não tem nem ceitil,
Que faz os aitos a el-rei,
Ai to cuido que dezia.
Aito assi cuido que he ;
Mas já n&o aito, bofe,
Gomo os aitos que fazia
Quando elle tinha com que ?
ueixa de Gil Vicente encontra-se por outra fór-
Sá de Miranda, que lamenta a mudança dos
, e se lembra com saudade dos serões de Portu-
afamados e tão decahidos pela influencia e tris-
nachal que se apossara do rei. Com a morte de
, os grandes do reino e o povo pediram instan-
) a Dom João m que casasse com sua madras-
extando as grandes sommas que levaria comsi-
ínha Dona Leonor, que lhe pertenciam por con-
lotal, e as novas despezas que sobrecarregariam
com a dotação da nova rainha. Com uxfcfc. rv^vr
4:
50 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
dez faaatica, Dom João Hl resistiu á seducção dos seus
primeiros amores, avivando-lhe este pedido da nação s
ferida funda e o ódio que conservava contra os conse-
lheiros de seu pae. Gil Vidente atravessou esta novs
borrasca, e em todas as suas obras não se acham vestí-
gios nem a mínima allusão a assumptos tão perigosos.
Contra o poeta levantava-se uma nova onda; era a in-
troducção do gosto italiano, que se retemperara na
imitação dos exemplares da antiguidade. Nada era bel-
lo se não fosse moldado nas obras primas dos clássi-
cos gregos ou romanos; Gil Vicente, filho da edade
media, completamente desligado da tradição da arte
antiga, original e atrevido na composição, seguindo as
regras que descobria a sua audácia inventiva, devia
ser rudemente atacado por aquelles que seguiam a es-
chola classica-italiana. Poeta dramático, todas as ten-
tativas de imitação de Plauto ou Terêncio eram um es-
forço para derrubal-o do seu pedestal. A primeira co-
media ao gosto antigo, moldada sobre o theatro ro-
mano, escripta em prosa, foi a Eufrosina de Jorge Fer-
reira de Vasconcellos, composta segundo seguras induc-
ções em 1527. Na Tragicomedia das Cortes de Júpiter ',
Gil Vicente allude a Jorge Ferreira de Vasconcellos,
nos versos:
Jorge Vasco Goncellos
Num esquife de cortiça,
Irá alienando os cabellos,
Por divisa dous novellos,
A letra dirá : Ou iça !
NO SÉCULO XVI ' 51
O9 partidários da escfaola italiana, chamavam aos
que não abandonavam o verso de redondilha nacional,
poetas da eschola velha. A lucta foi renhida, como se vé
pelos versos de Sá de Miranda, Bernardes e Ferreira,
que alludem a grandes diíRcnldades que a nova escho-
la encontrara na sua introducção. (1) Gil Vicente de-
via de ter contra si todos os sequazes do cultismo ita-
liano. Na Epistola dedicatória endereçada a D. Joãom,
diz Gil Vicente, defendendo-se contra os imitadores
i'l do estylk) clássico : «pêra passar seguro da pena..»
^1 me fora fermosa guarida não dizer senão o que elles
rt H disseram, ainda que eu fosse como ecco nos valles, que
,as l falia o que dizem, sem saber o que diz.» Na mesma
vw l Epistola conta Gil Vicente que para evitar batalhas
e H tencionava deixar inéditas todas as suas obras. Coad-
en *l juvado pelos poetas e cnltistas da eschola italiana, o
1 ^"l partido monachal, ligado pelo respeito auctoritario das
°°" I tradições latinas, começou também a arremetter con-
tra Gil Vicente; d'esta vez não era uma lenda de bar-
baridade paternal, era nada menos do que negar- lhe a
paternidade das suas obras. Fora em 1523; certos Ao-
men8 de bom saber, diziam que Gil Vicente fartava de
outros auctores as suas obras. Estas palavras textuaes,
como não feriam a sua alma de artista! Pobre, e ne-
gando-lhe também a sua riqueza intellectnal, a única
que as desgraças do tempo lhe não podiam levar! O
(1) Cancioneiro e Romanceiro geral por tuguez,t. v, p. xx ;
e Introducção á Historia da Litteratura Portugueza, p. 319.
ro-
^er-
nc-
(os
5Í * HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
poeta pediu que lhe dessem thema sobre que phanta-
siasse uma farça de folgar. Era como um duello, a que
Dom João iu assistiu em uma sala do convento de Tho-
mat.
Âpezar do thema ser obrigado, sobre o anexim po-
pular : Mais quero asno que me leve, do que cavallo que me
derrube* Gil Vicente sentiu-se livre da imposta alie-
goria das festas palacianas, e fez uma comedia de ca-
racter, ainda hoje perfeita, intitulada a farça de Imz
Pereira. (1) Gil Vicente calou completamente os seus
inimigos e detractores. Quanto esta farça foi estimada,
e qual a impressão que causara no animo de Dom
João III, pode-se inferir da circumstancia de vermos
logo em seguida representada em Almeirim uma con-
tinuação, intitulada o Juiz da Beira. Era o triumpho
da comedia nacional. rei quiz dar-lhe nova occasiào
pára utn Auto, com as festas do seu casamento com
Dona Oatherina em 1525; na Fragoa de Amor, repre-
sentada n'este atino em Évora, dá Gil Vicente um
golpe profundo na classe sacerdotal. Porém, n*este
ndesmo anuo morre a sua disvellada protectora, a que
animou a nascença do theatro portuguez, a velha rainha
Dona Leonor, a pedido de quem compuzera uma boa
parte dos seus Autos. triumpho com a farça de Inez
Pereira, e Juiz da Beira, foi continuado com a engra-
çadissitna farça do Clérigo da Beira, no anno seguinte.
(í) Sobre a composição (Testa farça, ver o meu drama em
troe actos Um Auto por desafronta, woa Torrentes^ pag. 147.
(SÉCULO XVI 53
Outra circumstancia fortuita veiu fazer copi qw os
seus Autos se tornassem precisos na corte — a peste
de 1527. Velho e pobre, o poeta n'este anno terrível,
ainda convallescente das febres, de que a custo se le-
vantara para fazer o Auto da partida da Infanta Dona
Isabel que casou com Carlos v, acompanhou a corte
que fugira de Lisboa para Almeirim, de Almeirim para
Coimbra, representando durante esto anno de immensa
fadiga três Autos, duas Tragicomedias, uma Comedia e
uma Farça, ao todo seis peças originaes. A este gran-
de esforço seguiram-se três annos de silencio ; o poeta
não era chamado para os serões do paço ; o partido
clerical, cujos planos para estabelecer em Portugal o
Santo Officio elle conhecia* tratava de o afastar con-
stantemente da corte. Só o nascimento de um príncipe
5 que podia fazer com que fosse chamado para algum
serão; assim aconteceu com o nascimento da infanta
Dona Isabel, em 1530. Durante a peste de 1527, Gil
Vicente voltara para Santarém, como se vê pelos ver-
m a Dom João Hl contra o roubo que lhe fizeram os
tlmocreves; (1) o monarcha remetteu o poeta, para
\ae lhe desse o devido despacho, ao Conde de Vi-
nioso; o Conde, ou por descuidado ou por inimigo do
poeta, nada fez, até que Gil Vicente lhe escreveu por
seu turno outra petição em verso, em cuja rubrica se
lê: a Foi isto em tempo de peste, e o primeiro rebate
(1) Obras, t. m, pag. 383.
64 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
(Fella deu por sua casa; etc.» (1) E nos versos diz o
poeta :
Vejo minha morte em casa,
E minha casa em perigo.
Se sua mulher não tivesse sido enterrada em Évora,
julgar-se-hia que fora victima da peste em Santarém;
seus filhos Luiz e Paula Vicente sobreviveram pelo
menos até 1561, e por tanto podemos conjecturar que
foi o próprio Gil Vicente o atacado da peste, como se
vê nos versos citados, e no seguinte :
Minha vida está em balança, etc.
As trovas a Affonso Lopes Çapaio também foram
escriptas em Santarém, e todas estas cir cu instancias
fazem crer, que Gil Vicente ali residia, como abaixo
comprovaremos. Fora do bulicio da corte, na sua mo-
rada em Santarém ia escrevendo o poeta os Autos quo
se lhe encommendavam; n'estes mesmos versos ao Con-
de de Vimioso, diz :
Agora trago antre os dedos
Uma f arca mui fermosa ;
Chamo-a : A Caga dos Segredos,
De que ficareis mui ledos
E minha dita ouciosa.
Que o medrar,
Se estivera em trabalhar,
E valera o merecer,
Eu tivera que comer,
E que dar e que deixar.
(1) Obra», t. iii, p. 381.
NO SÉCULO XVI 55
A causa da pobreza do poeta explica-se também
lo verso:
Para mim fui sempre mudo.
Em 1531 continuava Gil Vicente em Santarém,
nando a 25 de Janeiro succedeu um grande terramo-
>; a corte achava-se em Palmella. Foi então que Gil
icente se mostrou profundamente humanitário, e de
ma coragem inaudita salvando os judeus e christâos
ovos de Santarém das prédicas fanáticas, que annun-
iavam outro terremoto provocado pela pertinácia dos
npios contra a ira de Deos. Gil Vicente estava bem
íinbrado do effeito da pregação dos dois frades de Sam
)omingos, que dera causa á cruenta e medonha mor-
andade dos judeus e christâos novos de Lisboa em
506. A nuvem negra do fanatismo popular formava-
e, o cheiro do sangue provocava á fúria contra os
nerines judeus e christâos novos, quando Gil Vicente,
evado pela audácia do senso commum que reage con-
ra a bestialidade, ajuntou os Frades no claustro do
jon vento de Sam Francisco de Santarém, e lhes fez um
ongo sermão, mostrando-lhes por textos bíblicos que
ílles mentiam ao povo, dando-se por prophetas, e e&-
)licou-lhes por causas naturaes o terremoto.
Assim ficou parte da população livre de ser assassi-
nada pela outra ametade. Dando conta d'este successo
& el-rei Dom João iii, diz Gil Vicente: «E porém sa-
berá V, A. que este auto foi de tanto seu serviço, que
nunca cuidei que se offereoesse caso em que t&o h&t&
66 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
empregasse o desejo que tenho de o servir, assi visinho ■
da morte como estou: porque á primeira pregação, ot
christãos novos desappareceram e andavam morrendo
de temor da gente, e eu fiz esta diligencia e logo ao
sabbado seguinte Beguiram todolos os pregadores esta
minha tenção. > (1) A este tempo contava ò poeta ses-
senta e um annos, mas o achar-se visinho da morte
deve attribuir-se á doença das febres e da peste que
sofrreu em 1526 e 1527. Assim alquebrado pelos annos,
pela pobreza, pelas doenças e desastres domestico!,
Gil Vicente acompanhou a corte para Évora em 1588,
representando ai cinco das suas mais bellas composi-
ções; entre ellas distingue-se a farça intitulada Fkim*
ta de Enganos, representada em 1536, diante del-rei;
nk rubrica com que termina se lêem estas palavras e»-
criptas por seu filho Luiz Vicente : «he a derradeira que
fez Gil Vicente em seus dias.» Circumstancía notável!
N'este anno do silencio ou talvez da morte de Gil Vi-
cente, estabeleceu-se em Portugal a Inquisição, na ci-
dade de Évora, sendo o primeiro inquisidor Dom Dio-
go da Silva, confessor de Dom João Hl e Bispo de
Ceuta, Se não foi este o anno da morte de Gil Vice»-
1», pouco poderia sobreviver ao triumpho completo do * :
obscurantismo, e ao terrivel flagello que enluctou pa» i
sempre a alma portugueza. Gil Vicente por vezes faz
referencias á sua edade; na Carta a Dom João hi para \
Pahnella, e nos versos ao conde Vimioso, cita «lie a
(1) Obras, tom. m, p. 385.
NO SÉCULO XVI 67
ua avançada edade, e o seu cansaço e esgotamento.
fistes factos fazem-nos crer, que Gil Vicente se refe-
rira a si próprio, quando na sua ultima força põe na
bocoa do Doutor Justiça Maior c
Ya hice sessenta y seis,
Ya mi tiempo es passado.
A este propósito diz Barreto Feio: «Pôde berç ser
ue fosse o mesmo Gil Vicente que desempenhasse este
apel e que realmente aqui designasse a sua edade.
lendo assim teria elle nascido em 1470.» (1) Estahy-
otbese tornasse bastante verdadeira, depois de ter-
jos encontrado a prova de que Gil Vicente frequen-
ta na sua mocidade a corte de Dom João n. Gil Ví-
ente morreu em Évora, onde estava sepultada sua mu-
ber, e ahi foi também sepultado, com o epitaphio que
►ara si escreveu:
O grão juízo esperando,
Jazo aqui a'esta morada,
Desta vida tfio cansada
Descançando. (2)
(1) Obras de Gil Vicente, t. i, p. xxi.
(2)
Recolhido em uma sepultura de Évora pelo sor. Rtva-
■a;esté epitaphio vem mais completo nas obras õ"o poeta, Obras,
t. ni, pag. 339. No Panorama de 1840 (t. iv, pag. 275,) escre-
ve o snr. Rivara : «Perdeu-se a uoticia do logar da sua sepultu-
ra; mas vamos fazer todas as diligencias pela descobrir.» re-
bitado da investigação do erudito bibliothecario de Évora ain-
da é desconhecido.
58 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Uma prova temos para concluir ter sido o anno de
1536 o do seu f allecimento ; por mandado de Dom
João iii, estava colleccionando todas as suas obras para
as dar á estampa, quando lhe sobreveiu a morte. Sa-
be-se isto pelo que diz Luiz Vicente: «escreveu por
sua mão e ajuntou em um livro muito grande parte
d'ellas (obras) e ajuntara todas se a morte o não con-
summira. » Dom João iii morreu a 6 de Junho de 1556,
e como o prologo ou Epistola Dedicatória de Gil Vi»-
cente não houve efeito, como diz seu filho, por causa da
morte de seu pae, concluiu Barbosa Machado com gran-
de verdade, que morrera antes de 1556. Porém a mui-
ta distancia entre 1536 e 1556 demonstra-se pela per-
da e extravio de alguns Autos, como o A Caça dos
Segredos, e a maior parte das obras meudas. Quando
Luiz Vicente em 1562 deu as obras de seu pae á es-
tampa, escreveu : «Fim do quinto livro, o qual vae tão
carecido d'estas obras meudas, porque as mais que o
Autor fez desta calidade se perderam.» D'aqui se con-
cluo que o poeta morreu antes de ter realisado o pedi-
do de Dom João iii, que não queria que as suas obras
se perdessem. (1) Uma vez morto, nunca mais teve o
poeta quem o lembrasse ao monarcha fanático, e só de-
pois que seu filho Luiz Vicente chegou a comprehen-
der o valor dos trabalhos de seu pae, em 1561, é que o
seu livro foi impresso, e dedicado a Dom Sebastião,
(1) Epistola Dedicatória, t. n, pag. 390.
NO SÉCULO XVI 59
que ainda em tenra edade gostava muito d'esses velhos
Autos. (1)
Eis tudo o que hoje se pode saber do homem verda-
deiramente grande e humanitário, o que mais compre-
hendeu a alma portugueza, o que mais trabalhou para
a secularisação da nossa sociedade no século xvi, o que
presentiu as ideias da Reforma, o maior escriptor dra-
mático portuguez, apesar de terem passado trez sécu-
los e uma mais vasta civilisação sobre a sua obra gi-
gante. Hoje ninguém estuda Gil Vicente; mas toda a
gente, sem saber porque, sente ao pronunciar o seu
nome uma tristeza indizível.
(1) Obras, no Prologo, t. i, pag. xzxvn.
60
HISTORIA DO TBBATBO PORTUGUEZ
Do scanario e caracterizações de Gil Vicente
O theatro do Gil Vicente é hierático, aristocrático e popular.
Necessidade de seguir a ordem chronologica para observar i
desenvolvimento progressivo do seu theatro. — AsEgrejasi
os Paços dos reis, logar das representações de Gil Vi<
te. — Seriam alguns de seus Autos representados diante
povo ? — A Farça de Quem tem farellost — • Como era a <
racterisaçâo do Diabo, e de outras figuras ou entidades TOfrJ
raes, como a Egreja, a Alma, o Inverno. — Annaes do thc
tro desde 1602 a 1536. — A historia politica de Portugal
século xvi é o melhor commentario para a intelligencia
trabalho de Gil Vicente. — Quadro synoptico das represento»
ções de Gil Vicente, e prospecto chronologico para a h
posição da sua vida.
Acerca dos recursos scenicos de que podiam dispor 1
os nossos primeiros poetas dramáticos, nada se sabe,
nenhuma memoria do tempo alludiu a elles; temos por-
tanto de ir pelas exigências dos seus Autos e comedias,
deduzindo o grau de perfeição de arte a que tinham
chegado. As vezes uma simples rubrica revela-nos um
complicado machinismo, o qual, tendo também sido
aproveitado já nas velhas comedias francezas, nos leva
por um paradigma fácil a vêr o estado da arte decora-
tiva e scenographica em Portugal, com relação ao thea-
tro europeu. As Obras de Gil Vicente, classificadas
pelo próprio auctor em uma certa disposição por gé-
neros, estão divididas segundo o gosto da edade media,
em hieráticas (Obras de devoção,) em aristocráticas, (Tra-
NO SUOULO XVI 61
ji-corrtediaê 9 ) e em populares (Farçae). A classificação
lo velho dramaturgo é excellente, e mostra a sua scien-
cia do assombroso tfaeatro medieval; foi também a que
modernamente hsou Magnin nas suas Origens do T/tea-
tro moderno, ou Historia do génio dramático, desde o
século I até ao século xvi. K'esta classificação inter-
pollou Gil Vicente a ordem cbronologica da represen-
tação dos Autos, e è essa a que interessa principal-
mente o historiador, não só para descobrir o desenvol-
vimento progressivo do seu génio, como para deduzir
o grau de importância que a sua obra merecia em uma
corte exageradamente catholica.
Por uma feliz casualidade, Gil Vicente, ou talvez
seu filho, ajuntou á collecção dos Autos do venerando
poeta uma rubrica inicial, declarando o tempo em que
se representou a peça, diante de que príncipes, e. ás ve-
zes o motivo por que foi o espectáculo. Estas rubricas
simples e prosaicas, extractadas pela ordem chronolo-
gica, formam os mais perfeitos e incontestáveis annaes
dos primeiros trinta e quatro annos do theatro portu-
gaez; ellas encerram uma historia completa. Abando-
nemos a classificação litteraria, e uma luz immensa nos
abrirá o caminho.
1. Reinado de Dom Manoel
A primeira peça dramática representada em Por-
ngal, ou melhor, na corte de Dom Manoel, foi em
ima quarta feira, 8 de julho de 1502; o logar da soe-
62 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
na foi nos paços do Castello, na camera aonde a rai*
nha Dona Maria dera á luz o príncipe Dom João, qt
veiu a ser o terceiro de nome. Estavam juntos na dii
sala el-rei Dom Manoel, sua mãe D. Beatriz, duqi
za de Bragança, e a viuva de Dom João n, a ex-rai«
nha Dona Leonor. Estas datas e factos tão precios
estão inclusos na seguinte rubrica : «Porquanto a
de devação seguinte procedeu de hua visitação, quê o aur
tor fez ao parto da muito esclarecida Rainha Dona Ma'
ria i e nascimento do mui alto e excellente Príncipe Dm
João, o terceiro em Portugal d' este nome; se põe aqui pri-
meiramente a dita Visitação, por ser a primeira coisa,
que o autor fez , e que em Portugal se representou, estcmr\
do o mui poderoso Rei Dom Manoel, e a Rainha Don&\
Beatriz sua mãe, e a Senhora Duqueza de Bragança, si
filha, na segunda noite do nascimento do dito Senhor. ÉÁ
estando esta companhia assiti junta, entrou hum VaquáA
ro, etc.» Este primeiro Auto é conhecido pelo titulo <fa
Monologo do Vaqueiro, ou a Visitação; vera collocado,
entre as obras devotas, por que foi escripto com esse
espirito religioso com que o povo antes do parto da
rainha fora com preces ardentes á egreja de Sam Do- 1
mingos orar pelo successo feliz. facto de Gil Vicen-
te entrar na camará da rainha, revela também o seu
alto nascimento; entrou vestido de Vaqueiro, talvez
imitando os trajos da Serra da Estrella, como usou no
Triumpho do Inverno; começou o monologo em hespa-
nhol, na linguagem da filha de Fernando e Isabel, para
quem era a distracção festiva. A forma e ideia do mo-
SÉCULO XVI 63
lologo è a das loas e vilfianeicos de presépio, ensoados
10 divino. Isto prova que Gil Vicente tirou dos costu-
nes nacionaes da edade media portugueza a sua pri-
neira ideia dramática. Gil Vicente finge que se encon-
;ra casualmente na camará da rainha, e pasma de tudo,
;udo-lhe parece um paraiso terreal; em seguida louva
i rainha doente por ter realisado as esperanças de Por-
tugal e Hespanha, e remata, dizendo :
Quedarão -me alli dctraz
Unos trinta compafíeros.
as quaes trazem vários presentes para offertarem ao
recem-nascido. Esta é também a feição das loas do
presépio, cujo caracter não escapou á attenção da ex-
rainha Dona Leonor, que logo pediu a Gil Vicente,
que na véspera do Natal d'esse anno de 1502, lhe reci-
tasse o mesmo monologo áo nascimento do Redemptor.
Tudo nos contam as rubricas : « E por ser cousa nova
em Portugal, gostou tanto a rainha velha doesta repre-
sentação, que pediu ao autor isto mesmo lhe representas-
se ás matinas do natal, endereçando ao nascimento do Re-
demptor. » Por este mesmo monologo se vê, que entra-
ram muitas outras figuras, não em numero de trinta,
como diz nos versos, não com leite, ovos, queijo e mel,
mas com presentes para offertarem ao príncipe recem-
nascido. É de suppôr que estas figuras fossem os fi-
ialgos da corte, os engraçados poetas do Cancioneiro,
64 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
qué tanto se illustrarfcm nos momos e serões do paçoy
de que fala com saudade Sá de Miranda.
A novidade do monologo do Vaqueiro produziu gran-
de sensação na corte; a viuva de Dora João n pédkt»
Gil Vicente que o repetisse nas matinas do Natal, po*
rém uma vez despertado o génio dramático do poety
não se Contentou com recitar novamente a peça da V\
sitação, aporque a substancia era mui desviada,* e aprovei
tou-se do convite para fazer o Auto Pastoril Castelfar
no. Durante o anno de 1502 teve a corte portuguezi
duas vezes a distracção dramática, então em moda nas
cortes principaes da Europa. O Auto Pastoril Casto
lhano, é ainda da mesma natureza doa Autos nas vigi
lias. dos santos, dos nossos costumes nacionaès, prohibi
dos pelas Constituições dos Bispados; na rubrica d'es
Auto não declara Gil Vicente o logar onde foi rep
sentado; é possível que a rainha D. Maria permaneces-
se depois do primeiro parto mais cinco mezes nos Pa-
ços do Castello, e por tanto íbi representado aí, nasaUf
do presépio, que segundo os usos portuguezes se arma
na vigília do Natal. Na corte portugueza já era costar
me antigo a consoada, a qual o rei tomava em uma
mesa sobre um estrado com dois degraus, estando or
outros fidalgos a pé. (1) E provável que depois de
uma oeremonia d'estas, se seguisse o Auto Pastoril; &
peça é composta de seis figuras, foi Gil Vicente o pri«
meiro que entrou em scena, com o nome de um pastor
(1) Frei Luiz de Sousa, Annaes de D. João III, pag. 14.
NO SÉCULO XVI 65
il, inclinado á vida contemplativa. Bem se recordava
poeta, de que este Auto lhe fora pedido pela rainha
tíuva de Dom João n, e ali lhe lembra que n'aquella
ala o vira a elle, pastor de pastores, com seu cajado
eal. Gil Vicente convivera na corte de Dom João n,
por ventura assistira a algama (1'essas consoadas do
ratai, que Frei Luiz de Sousa, já considerava antigas
a corte portugueza. Os pastores cantam em scena,
mas vezes musicas directamente populares, outras
>mpostas por Gil Vicente, como elle confessa em min-
is rubricas. Apparece n'este Auto um Anjo, que vem
bordar os pastores, dizendo-lhes que nasceu o Redem-
bor, o que já denota um certo arranjo de caracterisa-
io ; acordados os pastores, partem-se para o presépio
miando, è sem abandonarem a scena, chegam ao pre-
yrio, signal de que ali fora armado, ou que a repre-
sntação era na sala destinada a essa devoção. Ante
presépio trazem os pastores as suas offerendas, e com
ingeris e bailes offerecem, e á despedida cantam uma
tnçoneta, colligida por Gil Vicente da tradição po-
ular. Terminado o Auto, saem as figuras cantando,
orno se usava em todas as comedias da meia edade,
ue em geral terminavam por um Te Deum ou rondei,
secutado em um órgão portátil, e entremeadas de
anções acompanhadas de sistros e doçainas. (1) Isto
jnda a; comprehender a múe en scene dos primitivos
uto* portnguezes.
(1) Victor Fournel, Curiosilês thealrales, pag. $.
5
66 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
O Auto pastoril, falando das maravilhas do nasci*
mento do Redemptor, termina com o verso :
Que en esso despues se hablará,
como uma espécie de annuncio de que o Mysterio ha<
ser continuado. Cabe toda a gloria da fundação
theatro portnguez á rainha Dona Leonor, viuva
Dom João ii, acostumada na corte de seu marido d
estes passatempos poéticos ; foi ella -que francamente
manifestou o seu agrado pelo monologo do Vaqueiro,
foi ella que pediu a Gil Vicente um Auto para a vigi»
lia do Natal, e a pedido de quem o poeta escreveu •
Auto Pastoril: «A dita Senhora Rainha, satisfeita d'^
ta pobre cousa, pediu ao auctor, que para dia de ítói
logo seguinte lhe fizesse outra obra», como conta o poe*
ta nas riquíssimas rubricas que acompanham os sem
Autos. Em doze dias escreveu o Auto dos Reis Mago»)
composto de quatro figuras, e n'este tempo o decora-
ram para ser representado na mesma sala dos Paços do
Castello, onde estava armado o presépio. Gil Vicente
não declara o logar da scena, o que tudo induz a crer,
que desde o Monologo, os dois Autos que se lhe segui"
ram tiveram o mesmo palco. O pensamento . do Auto
dos Reis Magos ê simples mas dramático; é um pasta
Gregório, que indo para Belém se perdeu no caminhe
e ali vem dar desgarrado ; encontra-o um outro pasta
Valério, que o leva a um Ermitão, para que lhes digi
a)gutnsí nova do nascimento do Redemptor. E a pri-
2 I NO SÉCULO XVI 67
ao «tojfg vez q Ue q.jj yi cen te traz á scena os hábitos de
!e, e já bastante ridicularisados na parte que lhes
tetribue ; apparece depois um Cavalleiro, que vera en-
^Dar o caminho dos Reis Magos, os quaes apparece m
fim do Auto cantando a trez vozes um vilancete :
cantando assi todos juntamente, offerecem os Reis seus
isentes; e assi mui alegremente cantando se vão.)) No
im d'esta rubrica, Gil Vicente não se esquece de se
fosculpar com a circumstancia de ter escriptp e feito
>rar o Auto em doze dias: <iE acaba em breve, por-
'ifve não houve espaço para mais. d Auto, com os innu-
tkieros tregeitos que acompanham a linguagem dos pas-
>res, levaria uma hora a representar; Gil Vicente en-
curtou a parte dos personagens, que tinham pouco
>mpo para decorar, deixando o papel de Valério e o
de Ermitão, mais extensos, sendo d'estes com certeza
Hm desempenhado por si, e outro por algum actor que
fxmteçara a fazer d'isso profissão por gosto.
Desde Janeiro até Dezembro de 1503 não tornou
Gil Vicente a representar mais nenhum outro Auto
na corte; durante este anno grassara uma grande pes-
te em Portugal. Quando tornou outra vez a pizar o
tablado, aonde encontrara as glorias e os mais vivos
prazeres da sua vida, foi ainda a rainha Dona Leonor
•que lhe pedira um Mysterio, um Auto para celebrar
ts Matinas do Natal. Em uma nota que acompanha a
rubrica histórica d'este Auto, se diz: «rainha Dona Bea-
triz», o que nos parece equivoco, por que a phrase Rai-
nha velha, que vem no fim do Monologo do Vaqueiro^
66 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
se refere á rainha viuva de Dom João n, a cnjo pedi-; _
do fizera o- poeta o Auto Pastoril, onde vem a deli<
alluáão a Dom João n. O Auto da SybiUa Cassai
foi representado na noite de 24 de Dezembro de 150SJ
é curiosíssimo não só pelo logar da acção, senão pel
personagens, que exigiriam oerta riqueza de vestidi
ras que só um rei ou uma egreja poderiam foi
cer. O Auto foi representado no Mosteiro de Enxobi
gas; durante o século xv eram usuaes na Europa
representações da Paixão, da Fugida para o Egy]
e ào Nascimento do Salvador, nas egrejas; (1) Gil Vi
cente, segundo o costume geral, mistura aqui o sagrai
com o profano, as Sybillas com os prophetas, como nd
velho Auto das Virgens loucas. Este Auto da
Cassandra, representado m> Mosteiro de Enxobregaf
feia por assim dizer parte do officio, como acontecia
segundo Magnin, .aos dramas litúrgicos da edadentt"
dia; o officio divino, conforme o costume era celebrado
antes da representação do Milagre ou do Mysterio; aqui
o logar dia scena, tendo de assistir a corte portugueza,
parece que devia de ser o coro, ao pé do altar-mór. A
vestimenta das trez Sybillas era em trajos de pastoras,
como se vê na rubrica: «Entra Cassandra em figura de
pastora, » — Entra Erutea, Pérsica e Citneria em cha-
cola, ellàs á maneira de lavradoras.. .» Segundo o costu-
me da edade media, os papeis de mulher eram feitos por
bomeôs, até para a representação da Virgem Ma-
(1) MartouQ, Piété au moyen age, p. 92.
NO SÉCULO XVI (9
ia; (1) os patriarchas, vinham vestidos de dalmatica e
le vestes ecclesiasticas ; Isaías, Moysés e Abrahão, que
lançam no Auto em chacota € cantando todos quatro de
blia a cantiga seguinte* são pastores vestidos de sur-
*$o. Não começando o Auto com symphonia, e abriu»
*> com um monologo, a attenção dos expectadores ti*
tha de ser chamada e apasiguado o ruido com uma vin-
nfóra de todos os actores; em geral, os actores esta-
am sempre visíveis, voltando depois de dizerem a sua
arte para o posto onde, de convenção, se julgavam desr
pparecidos. logar da scena não tinha panno corri-
o, mas lê-se no fim do Auto da Sybilla Cassandra:
Âbrem-se as cortinas onde está todo o appavato do
Nascimento, e cantam quatro anjos.'» Apenas no My«-
erio da Creação, é que se usava correr a cortina, con-
trarie os dias que se iam revelando. Depois de terem
antado os quatro anjos, qs outros actores : « Vão cari-
ando em chacota e chegando ao presépio...» e acabada
, adoração, cantam uma cantiga feita e ensoada por
jKI Vicente, também auctor da musicados seus Autos.
)* auto termina com um c bailado de terreiro de trez
wr trez e por despedida um vilancete.v
A chacota e bailado de terreiro, as figuras de past-
ores, são circunstancias que provam a origem legiti*
lamente popular do nosso theatro ; era do povo que
Hl Vicente tirava a linguagem, as pragas, os anexins,
s cantigas e os romances. (2)
(1) Victor Fournel, Curiosités théalrales % p. $.
(2) Canciotmro e Romanceiro geral por tuguest, t. \ *n .
70 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Durante o armo de 1503, grassara uma grande
te em Portugal ; os divertimentos scenicos, postoqui
revestidos de um caracter religioso, não poderam
mar desenvolvimento; só passado um anno, estando
corte em Almeirim, talvez ali refugiada da peste, éqi
Gil Vicente representou a 24 de Dezembro de 1504,
seu Auto da Fé, composto de quatro figuras, dianl
de el-rei Dom Manoel; a rubrica histórica não
clara o anno da representação, mas é fácil de deduzir,
que tendo o poeta representado um Natal em E
bregas em 1503, representando outro Natal em Almtt
rim, só poderia ser era 1504. Por esta rubrica se vil
que o Auto fora escripto a pedido de el-rei Dom 5ta-
noel; o pensamento é engraçado e verdadeiramente poé-
tico ; dois pastores Braz e Benito entrando na ca
onde se celebravam as matinas do Natal, ficam mara-
vilhados com as ricas alfaias e ceremonias, e então ap-
parece a Fé, que lhes dá a significação de todas aquel-
las cousas. Aqui ha verdadeira invenção e originalida-
de. O logar da scena, como se deduz da rubrica, foi na
Capella real de Almeirim, naturalmente depois dos of-
ficios divinos; apparece uma figura allegorica, a Fé, a
qual se faria conhecer por algum distico latino, como
acontecia nos dramas da ed$de media; a innocencia e
a candura representa va-se com trajos alvejantes. Nos
costumes da edade media, pelo tempo de Natal, o povo
fazia nas egrejas um jogo chamado da Pilota, acompa-
nhado de dansas ; (1) as danças com que Gil Vicente
(1) Marfcone, Piétê, p. 74.
NO SÉCULO XVI 71
remata estes Autos de Natal, onde representa sempre a
ingenuidade popular, levam a crer qu# o povo portuguez
conheceu esta instituição da Libertas Decembrica; a
rudeza dos pastores entrando na capella, os versos acom-
panhados de farsiture, ou entremeados do latim dos
hymnos ecclesiasticos, usados desde o século x, mos-
tram nos Autos de Gil Vicente uma tradição dramática,
que começou a receber forma artística no principio
do século xvi. Jí'este Auto da Fé, os pastores falam
hespanhol, a Fé dá as suas explicações em portuguez,
o que comummente explicam pela preferencia que Gil
Vicente dava á lingua hespanhola para os personagens
cómicos, e á lingua portuguesa para a expressão séria.
Tal é pelo menos a opinião de Rapp, que considera o
hespanhol como a lingua rústica das figuras mais gro-
tescas de Gil Vicente. Quasi no fim do Auto, a Fé con-
vida os pastores para cantarem algum dos seus estri-
bilhos:
Vós outros também cantae
Por vosso uso costumado,
Gomo lácantaes co'o gado...
Já no fim apparece Sylvestre, e juntos com a Fé :
i Cantam a quatro vozes hua enselada que veiu de
França...* A noticia que encerra esta rubrica é im-
K>rtantissima ; Aragão Morato, na sua excellente Me-
Yioria sobre o Theatro portuguez, é de opinião que Gil
(Ticente imitara o theatro francez e não o hespanhol :
c as trovas e enseladas cantadas no fim de algumas
cl
72 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
peças de Gil Vicente, mostram o Gonbeciuíento qqij
este tinha da poesia franceza, e o apreço que fsukm
d'ella«» Na Rubcna, cita Gil Vicente a canção de Qt\
rabi Calbi 9 que encontrámos em uma coUecção fran<#-j
za servindo de estribilho ao Compire Guilleri :
II était un pétit homrae '
Qui s^appUait Guilleri,
II s'en fut à la chasse
A la chasae aux predrix,
Carábi,
Titi, carabi, etc. (1)
Em muitos outros Autos cita Gil Vicente cançfóft
franceza s. No Auto da Mofina Mendes, dá a conhecer
que tinha noticia da designação franceza de Mysteris:
A qual obra é chamada
Os Myster%08 da Virgem. (2)
Esta circumstancia explica o final das peças dra-
máticas, quasi sempre terminadas por musica. A imi-
tação franceza é evidente na ideia do Auto de Sam
Martinho, representado na Igreja das Caldas, diante da
Bainha Dona Leonor, viuva de Dom João li, na pro-
cissão de Corpus Christi. Em França chamavam-se
Martinales os feitos e jogos em louvor de Sam Marti-
(1) Saint Maio, Chansons à" Autrefois , p. 376. — CUf du
Caveau, p. Q 661.
(2) Obras, l. i, p. 103.
NO SÉCULO XVÍ 73
p. (1) O Auto de Gil Vicente feito sobre a caridade
Sam Martinho, que partiu a sua capa para dar me-
ie ao pobre, representado a 11 de Junho de 1504,
ria ao recolher da procissão dç Corpus; a mais po-
dar de todas as procissões, onde concorriam os miss-
iraes copa as insígnias dos seus officios, foi abrilhan-
tei $ com um Auto dos que o poeta fazia para a corte,
a rubrica final, diz : «Não foi mais porque foi pédi-
o muito tarde.» Aqui a palavra pedido, dá a entender
ue os habitantes das Caldas quizeram engrandecer a
ua festa com uma composição de Mestre Gil Vicente,
que esta foi a primeira expressamente eacripta para
povo, não obstante ter assistido á representação a
ainha Dona Leonor, que sempre tinha animado o
oeta. A parte mais extensa n'este Auto é a do Pobre,
qual caberia a Gil Vicente para desempenhar ; Sam
íartinho entra vestido de cavalleiro, com trez pagens,
: dEmquanto Sam Martinho com sua espada parte a
apa, cantam mui devotamente uma prosa.» A pala-
ra prosa, acha-se tomada no sentido de hymn# eccle-
iastico: (2)
Tu anima em gloria será recebida
Com dulces cantares diciendo assi...
Aqui, provavelmente, ao recolher da procissão, ter-
linado o Auto como cerimonia final, o clero entoava
Igum dos hymnos da liturgia, a que se dava o nome
*
(1) Martone, Op. cit., p. 75.
{2) Historia da Poesia popular portuguesa,, \k Tí> .
74 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
de prosa. Este Auto de Sam Martinho é também no-
tável pelo metro popular de romance em endechas,
nunca usado pelos poetas cultos, visível imitação fran-
ceza. Auto está incompleto, por ter sido pedido
muito tarde, senão o poeta continuaria o milagre, até
chegar á grande situação dramática em que o Pobre
apparecia no resplendor divino de Jesus, o que servia
admiravelmente o pensamento devoto da procissão de
Corptis Ckristi. Segundo uma tradição, e pelo titulo
de Mestre, que se lhe dá no Cancioneiro geral, Gil
Vicente era ourives de profissão, o que o faria tomar
parte na festa do Corpo de Deos. Porém, o conheci-
mento de que o primeiro poeta dramático de Hespa-
nha, Lope de Rueda, foi ourives em Sevilha, talvez
desse origem a esta lenda infundada sobre o fundador
do nosso theatro.
Em 1505, vemos a primeira comedia de Gil Vicen-
te, que sáe fora do quadro dos Mysterios e Moralida m
des ; é uma farça que versa sobre os amores de um
escudeiro de fraca moradia, que andava sempre apai-
xonado. É no género das peças dramáticas da Com-
pagnie de la Mère folle y que se aproveitava dos ridí-
culos e escândalos locaes; a este género chamaram
os francezes soties, representadas ordinariamente nas
ruas, pelos filhos de família. Na rubrica da farça de
Gil Vicente, declara-se que ella foi conhecida do vul-
go, e tanta predilecção gosava, que o vulgo lhe deu o
nome por onde é conhecida : « Este nome da farça se-
#umte; — Qvem TEM FABrai^LOB? — \>oz-ltío o vulgo.*
05
NO SÉCULO XVI 75
Sendo esta farça desempenhada em Lisboa, diante de
el-rei Dom Manoel, nos paços da Ribeira, o povo nào
podia assistir á representação : a natureza do scenario
e logar da acção, que é uma rua, aonde um namorado
espera hora propicia para falar aos seus amores, davam
a esta farça a possibilidade de ser representada em
qualquer parte, ao ar livre. Por isso se tornou da pre-
dilecção do vulgo, como Gil Vicente dá a entender.
Começa pelo dialogo de Apariço e Ordonho, moços de
esporas, que se encontram andando a buscar farello :
*Anda Ayres Rosado só passeando pola casa lendo no seu
cancioneiro » de trovas que fizera á sua dama. N'esta
e^ farça apparecem pragas e cantigas populares, que ex-
v plicam o porque o vulgo a estimava. Aqui se encon-
tram já os á partes , de bastante effeito cómico ; e tal-
vez se desse uma mutação de scena, por que Ayres
Rosado c Tange e canta na rua á porta de sua dama
Itabel, e em começando a cantar :
Si dormis, doncella,
ladram os cães.* Não obstante o latido, Ayres conti-
nua o descante : « Aqui lhe fala a moça da janella tão
passo que ninguém a ouve, e pelas palavras que elle res-
ponde se pôde conjecturar o que lhe ella diz.* Esta ru-
brica denuncia já um grande progresso no scenario,
principalmente lembrando-nos de que foi representada
nas salas dos paços da Ribeira. Os cães continuam a
ladrar, até que o creado os corre ta ^AxsÀ%& * *&&?&.
75 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
ganindo: depois começam a miar os gatos.de Isabel
quando Ayres estava enthusiasmado contando as sua
muitas riquezas, começam a cantarolar os galos. ÈPisfc
apparece de repente a Velha, mãe de Isabel, ralhi
com Ayres, que se vae, e regougando com a filha s<
recolhem t e fenece esta primeira farça » , a primem
que Gil Vicente compoz, como o confessa. A farça df
Quem tem farellos f deve-se considerar como o primei-
ro passo para a secularisação do theatro, e como a
primeira que o nosso povo conheceu. Dom Franciscc
Manoel de Mello, escrevendo o Fidalgo Aprendiz, imita
a scena da serenada escripta por Gil Vicente, o que
denota que conhecia a velha farça, ou que alguma vez
a vira representar. N'esta peça não declara Gil Vi-
cente o motivo da representação, mas bem se descobri
que fora para passatempo de um serão do paço, para
substituir os momos da corte de Dom João li. A farça
de Quem tem farellos? agradou bastante na corte, prin-
cipalmente á rainha Dona Leonor, viuva de D. João i:
e irmã de Dom Manoel, por isso que, mezes depois
em 24 de Dezembro d'este mesmo anno de 1505, re
presentou Gil Vicente um mysterio ou Auto intitulai
dos Quatro Tempos : tfoi representado ao mui nobre
prospero rei D. Manoel na cidade de Lisboa, nos paço
de Alcaceva, na capella de Sam Miguel, por mandado d
sobredita Senhora sua irmã, nas Matinas do Natal.
ÍPesta rubrica não vem a data, porém a palavra so
bredita, prende este Auto aos outros do Natal ante
ríormente encoromendados çoTT>otifc\^cHv«t\ *\q Aut
NO SÉCULO XVI 77
dos Quatro Tempos segue Gil- Vicente a rigor os pre-
ceitos de um Mysterio, introduzindo nove figuras; en-
tra primeiro no tablado da capella de Sara Miguel um
. Seraphim, falando com um Archanjo e dois Anjos que
Tem ooin elle; nas antigas peças eram os Anjos repre-
sentados com azas e os Apóstolos com tochas accezas
na mão; aqui vão todas estas quatro figuras celestiaes
avançando até chegarem ao presépio, diante do qual
param, cantando a quatro vozes um vilancete farsu
*E -depois da adoração dos Seraphins, vem os quatro
Tempos, e primeiramente vem um pastor, que significa o
Inverno , e vem cantando. » Gil Vicente indica-nos o
modo de caracterisar a allegoria do Inverno, não des-
crevo o Verão, què começa cantando, até que : «Entra
o Estio, huma figura muito longa e muito enferma, muito
magra com huma capella de palha.* Estio e Outono
vem sem cantares. Aqui apparece Júpiter, com David
enr figura de pastor ; vão juntos ao presépio inda can-
tando uma cantiga franceza, que explica a origem dos
ensaios dramatices de Gil Vicente : « Até chegarem ao
presépio vão cantando uma cantiga franceza, que diz :
Ay de la noble
Villa de Paris,)) etc.
Desde o tempo de D. João i que se cantava em Por-
tuga) a velha canção de Du Guesclin ; é porém mais
natural que esta aqui indicada fosse encontrada em al-
gum velho mysterio írancez conhecido pelo poeta. Diz
Victor Fournel, na« Origens do theatro moderno ; ^ ks>
IT!
XKC
F*
aro
ri?
o
78 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
■ *
representações começavam por uma symphonia e aca-
bavam quasi sempre por um Te Deum.» (1) A rubrica
do Auto dos Quatro Tempos segue este costume francez :
c E todos assi juntamente com Te Deum laudamus se \
despediram e deram fim a esta representação.* Repre-
sentado o Auto na capella de Sara Miguel, seria, como
muitos outros Autos, acabado com acompanhamento de
canto de órgão. Até aqui temos só visto o génio me-
diévico, que se revelava no drama litúrgico, nos trez
mysterios do anuo, o Natal, a Adoração dos Reis Ma-
gos e Endoenças, desenvolvido por Gil Vicente no
principio e fim do anno. As grandes pestes que asso-
lavam a Europa, entraram em Portugal, e durante
trez annos esteve Gil Vicente calddo por causa da
tristeza geral. Comtudo não esteve longe da corte,
onde era então bem acolhido, porque em 1506, o ve-
mos acompanhar a corte para Abrantes, para onde se
refugiara por causa da peste, e af, em um serão real,
pregou o Sermão em verso, pelo nascimento do Infante
Dom Luiz, que mais tarde veiu a ser seu amigo, e
imitador, como se julga, pela comedia que lhe è attri-
buida de Los Turcos. Postoque este Sermão de Gil
Vicente não pertença ao género dramático, andava
comtudo ligado aos Mvsterios da edade media: ui* 1
Milagre francez, no qual nossa Senhora livrou uir» a
Abbadessa que estava gravida do seu confessor, com^"
ça por um sermão, que se intitulava colação. «Os Se*"
(1) Victor Fournel, Curiosités theatrales.
NO SÉCULO XVI 79
s, como diz Martone, andavam juntos aos exerci-
das Confrarias litterarias e dramáticas, do século
ao século xvi. Um pregador vinha, antes da re-
bentação dos grandes Mysterios, exaltar o zelo dos
jctadores por uma piedosa allocução relativa á so-
nidade do dia.» (J.) Sermão de Gil Vicente è um
umento precioso, onde o poeta pela primeira vez
3la o grande ódio e os tramas que lhe urdia o par-
> clerical; de facto n'este anno aconteceu em Lisboa
lortandade dos judeus por causa das instigações fa-
icas de dois frades dominicanos; sobretudo é n'este
mão, que por modo inexplicável apparecem as pri-
ras ideias da Reforma, muito antes de ser pregada
Luthero e de as trazer para Portugal o infeliz Da-
to de Góes. Diz no titulo, Gil Vicente : « Sermão
o d christianissima Rainha D. Leonor, e pregado
Abrantes ao muito nobre Rei Dom Manoel, primei-
do nome, na noite do nascimento do Ulustrissimo
%nte Dom Luiz. Era do Senhor de 1506. — E por
alguns foram em contrario parecer que se não pré-
w sermão de homem leigo, começou primeiro dizen-
antes de entrar no sermão :
Ante? de aqueste muy breve sermon,
Placiendo á la sacra sei en cia divina,
Muy receloso de gente malina,
A mis detractores demando perdon,
Los qual es diran con justa rason :
Pusose el pprro en bragas de acero ;
Daran mil razones, diciendo que es yerro
Pasar los limites de mi jurdicion.
(1) Martone , Pieté au Moyen-age, p. Çfo.
80 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
A guerra entre Gil Vicente e o partido cleriealy
que procurava introduzir em Portugal o Quemadero
de Hespanha, estava declarada; o poeta tem de ora em
diante de se vêr de frente com a calnmnia, com as in-
trigas monásticas, com delatações infames que procu-
ram constantemente IJ&zel-o cahir do favor real. Soem
1523 é que o veremos de frente com os seus inimigos,
no Convento de Thomar, eon fundi ndo-os com a cele-
bre farça de Inez Pereira. O partido sacerdotal oppôz-
se a que pregasse sermão homem leigo ; o poeta queria
celebrar o nascimento do Infante Dom Luiz com um
joco da sua musa, como fizera, havia quatro annos,
pelo nascimento de el-rei Dom João m, e por certo não
poderia vencer os escrúpulos e difficuldades, se não en-
contrássemos a Bainha Dona Leonor, que se deleitava
com esses passatempos poéticos, accudindo ao guerrea-
do Gil Vicente. O themado Sermão foram estas pala-
vras latinas : Non volo, volo, et deficior, escriptas a car-
vão em uma parede de uma sala do paço em Abrantes.
Quieren aquestas palavras decir,
No quiero, quieroy es pordemas.
Está o Sermão dividido em três partes; na primei-
ra, onde trata do Não quero, expõe um grande nume-
ro de questões da theologia da edade media, roçando
pelas ideias que deram origem á Reforma :
NO SÉCULO XVI 81
No quicro disputas cn predicaciones,
No quiero deciros las opiniones
No alegar texto antigo ó moderno,
Si el Papa si puede dar tontos perdones.
Ni el precito que está condenado
Nel saber divino, si tiene alvedrio;
No quiero estas dudas. porque es escusado
Sabellas ninguno ai predicatorio ;
Ni disputar si el Romano Papado
Tiene Poderio en el Purgatório*
Eis aqui francamente revelada a origem de Refor-
antes de ella ser pregada na Allemanha ! Como o
o coinmum do pobre poeta cómico pôde tocar esta
e! O Sermão é engenhosíssimo e do ama ingenui-
) que encanta; as ai lu soes aos costumes do século
pullulam ; é elle o primeiro que fala contra a intol-
acia que se usava com os Judeus, obrigando-os a
rerterem-se á força. Na terceira parte do Sermão
oor der nas, diz:
Es por demas pedir ai judio
Que sea christiano en su corazon,
Tambien está llano
Que es por demas ai que es mal Cristiano
Doctrina de Cliristo por fuerza ni ruego ;
Demoramo-nos falando d'este único trabalho de
Vicente em 1506, porque d'aqui data a lueta com
rtido clerical que procurava banir do nosso Co-
civil a justa tolerância que até ao reinado de D.
► u se teve em Portugal para com oa mo\vco%<ò^\\r
6
82 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
deus. D'aqui em diante uma satyra penetrante e vivi
anima os Autos de Gil Vicente, pobre e morrendo m
indigência, mas sempre amigo e martyr da liberdade.
Darante o auno de 1507 não apparece Auto algum,
não que faltasse occasião, como no nascimento do In-
fante Dom Fernando, mas porque a carnificina de Lis-
boa contra os judeus deixara uma tristeza comrmime
um terror de incerteza.
O Auto da Alma, foi o primeiro Mysterio da Pai-
xão, escripto por Gil Vicente; com elle rompeu o si-
lencio de dois annos em que ficara; mais uma vez a
Bainha Dona Leonor, a verdadeiramente protectora
do theatro portuguez nascente, mandou que Gil Vi-
cente compuzesse um Auto para a noite de Sexta feira
de Endoenças. Nos Paços da Ribeira, em a noite da
soledade de 1508, representou Gil Vicente diantí
de el-rei Dom Manoel, por mandado de sua irmã,
o Auto da Alma, o primeiro completamente escripft
em portuguez. Os personagens do Auto são de umí
caracterisação difficil; apparecem a Alma e o Anj(
Custodio, a Egreja, Santo Agostinho, Santo Ambró-
sio, Sam Jeronymo e Sam Thomaz, e pela primein
vez entram em scena dois Diabos. No velho draras
anterior aos Mysterios, o Ludus Paschalis, represen
tado no século xn, a Egreja apparecia em trajos d
mulher de uma figura imponente; (1) é natural qu
(1) Bernard Pez, Thesaurus Anecdotorum, t. II. P. II
p. 187, traz esta peça achada ua abadia de Tangaruese.
NO SÉCULO XVI 83
Hl Vicente seguisse a tradição litúrgica. Elle mesmo
íos dá a entender que a representou com hábitos de
mulher: aAssi como foi cousa muito necessária haver nos
caminhos estalagens, para repouso e refeição dos cansados
caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta cami-
nhante vida houvesse uma estalajadeira, pêra refecção e
descanço das almas que vão caminhantes pêra a eternal
morada de Deos. Esta estalajadeira das almas he a Ma-
dre Sancta Igreja. . .» Como no Ludus Paschalis, dá-se
aqui o triumpho da Egreja, não contra a Synagoga,
porque Gil Vicente procurava evitar o tornar mais vio-
lento o fanatismo dos nossos reis contra essa raça at-
tribulada, mas contra os Diabos da Theologia. Os Dou-
torés qne entram deviam apparecer de capa de asper-
ges, como se representavam os patriarchas. O logar
da scena foi mais uma vez na sala dos Pa^os da Ri-
beira em Lisboa, apparecendo um altar, que servia de
meza da estalagem, e sobre elle duas urnas contendo
os cravos, e a coroa de espinhos, que serviam de igua-
rias: €a mesa he o altar, os manjares as insígnias dapai-
xão.* «Está posta uma meza com hua cadeira. Vem a
Madre Santa Igreja com os seus quatro doctores* » Pouco
depois entra o Anjo Custodio com a Alma, á qual o
Diabo vem tentar. Coino introduziria Gil Vicente o
Diabo em scena?
Rabelais, no livro iv, cap. 13 do Pantagruel, des-
reve a caractérisação dos Diabos em um Mvsterió da
'aixão feito em Poictou por Francisco Villon: «Ses
iables estoit touts carapassonnés de peaulx de loups,
84 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
de veaux et de beliers, passementées de testes de mo^
ton, de corne-s de boeufs et de grands havets de euií
ne; ceinets de grosses courrois, esquelles pendou
grosses cymbales de v aches, et sonnetes de mulets
bruit horri fique. Tenoient en main aulcuns basto?
noirs pleins de fusées; aultres portoient longs tií
allumés, suslesquels è chascun car refour jectoient pl(
nes poignées de parasine en poudre, dont sortoit feujs
fnmée terrible.» A parte que os Diabos faziam nos Mj
terios era chamada diablerie; é natural que Gil Vicent
conhecendo o theatro francez do século XV, adoptass
esta caracterisação do Diabo inventada por Villon.
Diabos do Mysterio, antes da representação, corriam
cidade. Os documentos d'este uso, encontram-se enti
nós em varias locuções da lingua portugueza. Temos:]
t Viu-se o Diabo de botas, correu a cidade toda.» Temos]
o: Fazer diabruras, e Fazer Diabos a quatro, que se de-
rivam dos velhos Mysterios; em Rabelais se lê: la gran-
de diablerie a quatre personages, (1) porque de ordiná-
rio as peças eram tanto mais dispendiosas e gostadas
do publico, conforme o numero de diabos introdu-
zidos em scena. O Diabo nos Mvsterios da edade media
foi o percursor de Pathelin, da Celestina, de ArUquvno }
de Sganarello e de Figaro; Gil Vicente comprehendeu
os grandes recursos cómicos que podia tirar d'este per-
sonagem. Na lingua portugueza* a locução: Anda o
Diabo ás soltas, faz lembrar o privilegio que em Chau-
(1) Pantagruel, cap. iv, p. 52.
NO SÉCULO XVI 85
it se dava aos que representavam de Diabo, poden-
dver á discripçào durante oito dias; (1) temos ou-
adagios em que o Diabo entra sempre comicamen-
como: *0nâe quer, o Diabo dispara uma tranca.»
Auto da Alma, o Diabo vem tentar a Alma, que en-
para a estalagem com o Anjo Custodio, appresenta-
um faial e ajuda-lh'o a vestir, calça-lhe uns chapins
Valença, por que a Alma está em trajos de mulher;
lhe depois um colar esmaltado de ouro, dez anéis,
espelho, e dois pendentes para cada orelha.
Esta tentação é feita durante a caminhada para a
ilagem da Egreja, o que dá ideia de um acto. Logo
5 a Alma entrou còm o Anjo para a estalagem o
ibo fica fora fazendo grandes tropelias : « Em quanto
is cousas passam, Satanaz passeia, fazendo grandes
cas, e vem outro Diabo.» « Estas cousas, estando a
nu assentada á mesa, e o Anjo junto com ella em pé,
i os Doutores com quatro bacias de cosinha cobertas,
tando Vexilla regis prodeunt», e ás põe na mesa^ a
il benze Santo Agostinho. A Egreja lava as mãos
impa-se a uma toalha: ((Esta toalha de que aqui se
} a, he a Verónica, a qual Santo Agostinho tira oV an-
os bacios, e amostra á Alma; e a Madre Igreja, com
Doutores, lixe fazem adoração de joelhos cantando;
!ve, sancta Fácies.» A Egreja logo apresentou as
(1) Charles Luandre, Hist. du Dioble, Rev. des Deux
ndes, 1842, 15 de Agosto.
{
\
86 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ (
t
iguarias da sua meza; mostra a primeira: <tEsta igua-
ria em que aqui se falia, são os Açoutes; e em este pas*
so se tiram os bacios e os presentam a alma e todos <k
joelhos adoram, cantando : Ave flagellum.» «Esta se-,
gunda iguaria de que aqui se falia, he a Corda de es*
pinhos; e em este passo a tiram dos bacios e de joelho*
os Santos Doutores cantam: Ave Corona spinarnm.vj
A terceira iguaria é apresentada por Santo Agostinho:
aE a este passo tira Santo Agostinho os Cravos , e to-
dos de joelhos os adoram, cantando: Dulce liguum,
dulcis clavus.» Depois de uma fala do Anjo : «Despe
a Alma o vestido e jóias que lho inimigo deu.* E en-
tão que Sam Jeronymo appresenta a quarta iguaria:,]
«Apresenta Sam Jeronymo á Alma hum Crucifixo, que
tira d'antre os pratos; e os Doutores, o adoram, can-
tando: Domine Jesu Christe.» aE todos juntos, can-
tando Te Deum laudamus, foram adorar o moimento.*
Este Auto e de uma crença poética profunda.
A parte exterior da decoração é de uma riqueza que
só se poderia encontrar no palácio dos reis. Em guerra
com o clero, era impossível para Gil Vicente o. obter
as dalmaticas para os doutores e as insígnias da pai-
xão, se o não protegesse o grande gosto que por estas
representações tinha a Rainha Dona Leonor, por quem
fora mandado compor. Dom Manoel estimava mais as
farças de folgar, como vimos na de Quem tem farellosf
O Auto da Alma è um grande progresso na scena por-
tugueza, no curto espaço de seis annos. A frequência
das representações não é tal, que possamos induzir
NO SÉCULO XVI . 87
existência cie uma companhia de actores de que se
*rvisse Gil Vicente ; comtudo os divertimentos escho-
isticos, sempre em forma dramática nas Universidades
i Collegios, levam a crer que Gil Vicente, também es-
.udante nos seus princípios, se servisse de escholares,
}ue a pretexto de gosarem uma noite no passo, se da-
riam ao trabalho de estudar um papel. No anuo de 1509
Gil Vicente uão representou; a Rainha Dona Maria
dera á luz o Infante Dom Affonso; n'esse mesmo anno
o venerando Dom Fraucisco de Almeida, Vice- Rei da
índia, fora morto ás mãos dos Cafres no Cabo da Boa
Esperança! Não era propicia a occasião para uma festa
dramática. Em 1510 representou Gil Vicente duas ve-
zes o Auto da Fama, a primeira diante da rainha Dona
Leonor, que sempre tomara a peito defender estas
composições do poeta, a segunda diante de el-rei Dom
Manoel, na cidade de Lisboa, em Santos o Velho. N'es-
te Auto se conhece a illustração não vulgar de Gil Vi-
cente, fazendo falar aos seus personagens francez, ita-
liano e hespauhol, como nos velhos descorts da edade
media. No fim do Auto apparecia em scena um carro
triumpha), em que a Fama portugueza é coroada pelas
virtudes. Esta peça è propriamente uma farça, a que
se deu o nome já vulgar de Auto, signal de que foi
muito conhecida; isto se vê pelo titulo Farça chamada
Auto da Fama. O intento do poeta é mostrar como
Portugal se engrandeceu sobre todas as nações com a
descoberta do Oriente e com as grandes navegações.
No argumento nos explica a dispoaicjão <Jco «oftcrarêr.
88 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZA
*E porque antigamente a faina (Testa nossa provinda erá
em preço de pequena estima, significando isto, será a pn(r
meira figura hurna mocinha chamada Portugueza Faina,
guardando patas, a qual será requerida por França, por
Itália, por Castella, e de todas se escusará, porque cada
hum a quererá levar; e provará por evidentes rasões quê
este reino a merece mais de que outro nenhum. Pelo qual
será posta no fim do Auto em carro triumphal per duas
virtudes, s. Fé e Fortaleza.* — « Entra logo a Fama,
com um Parvo per nome Joane comsigo, careando suaè
patas .» *Deita-se Joane a dormir e entra o Francez.* B
n'esta parte que Gil Vicente dirige os requebros á Fa-
ma segundo o génio de cada povo ; a Fama excusa-KJfl
alludindo ao estado politico de cada um, mostrando ■
a superioridade das conquistas portuguezas; baldados
todos os esforços do Francez, Italiano e Castelhano,
«a Fé e a Foi'taleza vem laurear a Fama com uma cfír,
rôa de louro . . . e a põe em seu carro triumphal com mur
sica, e assy a levam e se acaba esta susodita farça.» Este
recurso scenico introduzido pela primeira vez por Gil
Vicente, era já empregado nas festas da corte de Dom
João li. Por esta farça se vê, que foi Gil Vicente o
poeta popular que primeiro sentiu a grandeza dos fei-
tos portuguezes no Oriente, e não custa a acreditar
que Luiz de Camões recebesse os primeiros estímulos
para a composição dos Lusíadas d'esta farça muito co-
nhecida, muito antes de se inspirar da leitura das Dé-
cadas de João de Barros. O motivo da composição do
NO SÉCULO XVI 89
• da Fama y aoha-se nos successos militares portu-
;es de 1510 aí citados:
E chegareis
A Goa e perguntareis
Se he ainda subjugada
Por peita, rogo ou espada ?
Veremos se pasmareis.
'este anno de 1510, Affonsode Albuquerque, Vice
da índia, para se desafrontar da derrota de Gale-
no anno antecedente, foi contra a ilha e cidade de
, emquanto os natnraes andavam distrahidos com
rra contra o rei de Morsinga ; entron sem grande
ttencia, abrindo-lhe depois as portas. Lançados fó-
s portuguezes pelo Hidalcão, Affonso de Albuquer-
arremeteu de novo com nma grande armada, e to-
a outra vez a cidade, foi tamanha a carnificina e a
Idade, que os habitantes vencidos entregaram -se
rados pedindo-lhe piedade. A outro successo das
Gts portuguezes n'este anno, se referem estes versos:
Sabei em Africa, a maior
Flor dos mouros em batalha,
Se se tornaram de palha
Quando foi na de Azamor.
E, sem combate
A trinta léguas dão resgate,
Comprando cada mez a vida ;
E a atrevida Almedina
E Ceita se tornou parte.
90 HISTORIA DO THEATRO PORTDGUEZ
Refere-se aqui o poeta á liga que os Mouros de Aza-
mor e de Almedina fizeram para reconquistar Safi,
d'onde era governador Fernando de Athayde; era
grande o exercito dos mouros aliados, mas a disciplina
dos soldados portuguezes os poz em fugida. Tristes glo-
rias estas da devastação expoliadora, mas taes eram
os sentimentos nacionaes no século XVI, e não ha povo
que se não exaltasse com feitos que são hoje de ver-
gonha. O Auto de Gil Vicente seria talvez escripto
para alguma festa que celebrava estes triumphos; a
ideia é engraçada e original, e nenhum talento poderia
tirar mais resultado de frias allegorias no theatro,'a
não ser da crença arrebatada dos mysterios religiosos.
A primeira representação diante da rainha Dona Leo-
nor, seria por ventura por uma delicada lisonja allnsiva
aos esforços de seu defuncto marido para a descoberta
da índia, que elle não chegou a ver realisada. Por to-
das estas conjecturas se recompõe a vida moral do poe-
ta e da sociedade portugueza, mostrando que condições
de existência davam para o desenvolvimento do theatro.
No anno de 1511 não houve representação dramá-
tica na corte; como em 1509, a posse de Gôa causara
sérios desastres. O Hidalcão per tendera reconquistal-a:
morreu o governador da cidade no meio do assalto ; nã(
faltavam traições de Rosaleau, e conspiração dos nego
ciantes ricos de Malaca para nos tirarem essa rica prezi
do Oriente. Todos estes successos explicam a ausenci:
dos divertimentos scenicos na corte durante este anno
Em 1512, as armas portuguesas alcançaram grande
NO SÉCULO XVI 91
triumphos na índia e na África; n'este mesmo anno a
rainha Dona Maria dera á luz o Infante Dom Henri-
que, que veiu a ser o Cardeal rei. Eram tudo cir-
curastancias que pediam um Auto do engraçado poeta.
N'este anno representou Gil Vicente a farça do Velho
da Horta, em que apparece o typo de uma alòoviteira
perfeitamente caracterisada, que por vezes faz lembrar
o velho typo da Celestina, de Rojas, cujo nome anda
nu tradição oral portugueza na allusão á Madre Celes-
tina encantadora. Esta farça do Velho da Horta, cha-
mado Fernandianes, é do gene.ro das farças dos deres
de la Bazoche, que deram mais amplitude aos Mysterios
da Confraria da Paixão, creando as Moralidades, per-
sonificação allegorica e satyrica dos vicios, com refe-
rencias a personalidades. As Moralidades exigiam um
scenario pouco complicado, por que a acção era tirada da
vida burgueza ; os personagens não passavam de dez.
Os deres de la Bazoche eram aprendizes de Direito e
officiaes de justiça; n'esta mesma farça Gil Vicente não
se esquece de citar a pena infamante da carocha, e dos
açoutes dados na Alcoviteira. Estas circumstancias
mostram que a farça fora representada em Lisboa, ape-
zar do se não declarar na rubrica histórica. Como em
uma farça, bazochiana, Gil Vicente allude na ladainha
de Branca Gil aos fidalgos da corte de Dom Manoel e
ás Damas, que provavelmente assistiam á representa-
ção; ahi dirige uma strophe a João Fogaça, poeta da
corte (1), a Tristão da Cunha, e Simão de Sousa, poetas
(1) Cancioneiro geral, foi. 88, v. col. 3.
92 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
do Caficioneiro (1), a Martira Affonso de Mello, (2) a
D. João de Menezes afamado nos serões do passo pelos
seus versos, (3) a Dom Anrrique (4) e ao Barão de
Alvito também trovadores palacianos (5), a Garcia Mo-
niz, a Gonçallo da Silva e Còmmendador Morde Avis,
cujas aventuras amorosas e chistes engraçados se en-
contram nos versos do Cancioneiro Geral de Garcia dé
Resende. Gil Vicente allude a todas essas intrigas na-
moradas com as damas da corte, o que prova que todos
elles assistiram á representação da farça do Velho da
Horta; na ladainha de Branca Gil, cita os amores das
damas dà corte que alli estavam também presentes.
Dona Maria Anriques, D. Joanna Mendonça (6), D.
Joanna Manoel, Dona Catherina de Figueiredo namo-
rada de Simão Sousa que tantas poesias lhe dedicava;
nomeia Dona Maria de Calataud, e Dona Beatriz de
Sá a quem os poetas do Cancioneiro tanto exaltaram
cantando a sua esquivança. (7)
D. Beatriz da Silva, D. Margarida de Sousa, D.
Violante de Lima, D. Isabel de Abreu, D. Maria de
Athaide, ornavam o serão do paço n'essa noite do Auto;
Gil Vicente distribnia as graças e as allusões aos amo-
res escondidos e aos versos que elles motivavam; devia
(1) Canc. geral, foi. 193, v. col. 1, e folha 111, col. 1.
(2) Ibid. foi. 106, v. col. 1.
(3) Ibid. foi. 15, col. 2
(4) Ibid. foi. 180, v. col. 3.
(5) Ibid. foi. 166, col. 3.
(6) Ibid. foi. 150, col. 1.
(7) Ibid. fòl. 152, col. 1,
NO SÉCULO XVI 93
e ser um divertimento intimo, como nenhuma corte
a Europa então gosava. Tinha rasão Sá de Miranda,
L uando no reinado de Dom João ni, se queixava da
lecadencia dos celebrados serdes de Portugal.
O logar da scena era em uma sala do paço; fingia
uma horta com flores, dentro da qual passeava um
velho casado, que se apaixonou por uma rapariga que
alli veiu; uma alcoviteira vem offerecer-se para sedu-
zil-a, e assim tira de uma vez ao velho trinta cruzados
para um brial e uns toucados, de outra mais cem cru-
zados para uma vasquinha, três onças de retroz e um
firmai com rubis, e mais dez cruzados pela sua agen-
cia. Não admira que este assumpto não chocasse as da-
mas da corte, porque nas trovas do Cancioneiro se
encontram scenas decameronicas que se versejavam en-
tre os pannos de raz ao serão, com uma frescura de
palavras egual á dos contos do jardim de Pampinêa.
Por effeito das muitas pestes que desvastaram Portu-
gal no século xvi, não admira que na corte se adoptas-
se a receita que Boccacio diz se usara na grande pes-
te de Florença de 1348. O melhor, que tudo, è que
jril Vicente, insensivelmente, no pensamento da farça,
[ue se resume n'estes versos :
Se os jovens namoradores
Os mais tem fins desastradas
Que farão as caos lançadas
Na corte dos amadores?
azia uma satvra futura contra El- Rei Dowv M&-
oel,já velho, que tornou a casar çeV». tetravô ^^
94 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
com a Infanta Dona Leonor, namorada de seu filho
Dom João iii. Pelo menos o tempo tornou o Velho da
Horta uma verdade da nossa historia. O gosto geral
que produziu na corte esta moralidade de Gil Vicen-
te, descobre-se porque o vemos apparecer successiva-
mente nos dois annos seguintes ; os seus Autos torna-
vam-se uma necessidade para o fausto aristocrático.
D'esta vez Gil Vicente adopta uma nova designa-
ção para as suas composições theatraes; a sua primei-
ra Trafficomedia, foi representada em Lisboa em 1513,
diante de El-Rei Dom Manoel, na partida de Dom
Jaime, Duque de Bragança e de Guimarães, que, em
castigo ou recompensa de ter assassinado ba baramen-
te sua mulher por suspeitas de aleivosia com o seu pa-
gem nobre António Alcoforado, foi mandado tomar
Azamor, commandando uma frota de dezeseis mil in-
fantes e dois mil cavallos. A Tragicomedia iutitula-se
Exortação de guerra ; aí apparecem os heroes dos poe-
mas novellescos do Cyclo greco-roniauo da edade me-
dia, Achilles, Anibal, Heitor, Scipião, Policena e Pan-
tasilêa, misturados com dois Diabos e um Clérigo, uove
figuras, tornadas talvez já convencionaes como as da
commedia sostenuta italiana. O Clérigo é dado á Ni-
gromancia, e faz as suas práticas em . scena para es-
conjurar dois Diabos, que apparecem de repente; aqui
o poeta allude ao Infante Dom Luiz, que a este tempo
tinha sete annos de edade, e por certo gostaria mais do
que ninguém d'estes serões dr.naticos; allude também
ao príncipe Dom João:
NO SÉCULO XVI 95
E vóh Príncipe excollente,
Dae-me alviçaras liberaes
Que vossas mostras são tues
Que todo o mundo é contente.
D'estas mostras, diz Frei Luiz de Sousa: «crecia o
'rincipe e descobria umito entendimento, e para tudo
labilidade e engenho.» (1)
A este tempo escrevia João de Barros a sua novel-
i cavalheiresca de Clarimundo, e o príncipe ia lendo
)8 cadernos como saíam da nião do venerando histo-
riador. Esperauças de Nero, que o rei-inquizidor fez
tão cedo mentirem. N'esta Tragicomedia cita Gil Vi-
cente a Iufanta Dona Isabel, que casou com Carlos v :
Por vós mui formosa flor
Infanta Dona Isabel,
Foram juntos em tropel,
Por mandado do Senhor
O céo e sua companha,
E julgou Júpiter Juiz
Que fosseis imperatriz
De Castolla e Allemanha.
casamento foi em 1526, celebrado também pelo
poeta na Tragicomedia do Templo de Apollo. Na Ex-
ortação de Guerra cita o Infante Dom Fernando; mas
a prophecia da tranquilidade e prosperidade saiu ao
contrario. A sua desgraça explicará a écloga Aleixo,
(1) Annaev de D. João III , p. 7.
96 HISTORIA DO THEATRO PORTQGCJEZ
de Sá de Miranda; (1) também cita Gil Vicente a In-
fanta D. Beatriz, que cason com o Duque de Saboya,
apesar da prophecia:
Que haveis de ser casada
Nas partes de flor de lis.
Aqui se dirige Gil Vicente aos Fidalgos da corte,
que, por influencia da architectura italiana, começada
a introduzir em Portugal no tempo de Affonso v, edi-
ficavam grandes e sumptuosos palácios:
Oh dcixae de edificar
Tantas camarr.s dobradas,
Mui pintadas e douradas
Que he gastar sem prestar.
Não queiraes ser genovezes,
Seuao muito portugueses,
E morar em casas pardas.
Depois se dirige ás damas, para que dêem os seus
adereços para ajudar esta guerra santa ; e não se es-
quece de atirar ao alto clero, que frequentava a corte,
esta estocada de frente:
E vos priores honrados,
Reparti os Priorados
A Suíços e soldados,
Et centum pro uno habetis.
A renda que apanhaes
O melhor que vós j mieis,
■
(1) Tratado na História dos QuinlientòfttoÁ At&&V&.
NO 8ECUM) XVI 97
Nas igrejas náo gastaes,
Aos felizes pouco daes,
E não sei que lhe fazeis.
Dae a terça do que houverdes
Para Africa conquistar
D'esta Tragicomedia se deduz, que assistiram á re-
presentação alguns dos soldados expedicionários, como
vê n'esta allocução :
B a gente popular
Avante ! não refusar,
Ponde a vida e a fazenda,
Por que para tal contenda
Ninguém deve rcceiar.
O poeta em uma rubrica, descreve o modo como
terminou o Auto : « Todas estas figuras se ordenaram
em caracol e a vozes cantaram e representaram ...»
Cantando uma soiça, talvez um rufo com a boca imi-
tando tambores, sahiram da sçena. que aqui não ap-
parece de novidade scenogçaphica, vemol-o na audácia
cora qu$ o poeta verbera alguns vícios da corte. Cresce
o partido contra elle; por emquanto protege-o com a
admiração pelas suas obras a velha rainha Dona Leo-
nor. Ai d'elle quando se lhe acabar este valimento,
que a historia não conta, mas que se encontra nas con-
tinuas instancias para que o poeta compozesse Autos
engraçados para as festas e serões da corte. A Tragico-
media Extortação de Guerra, seria representada a 14
de Agosto de 1513, porque a 15 d^&te tw* ^to\I\n\. <a
7
98 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Duque para a expedição de Azaraor, como se vê pelí
trovas de Luiz Anrriques :
A quinze d* Agosto de treze e quinhentos
O duque eyçelente, nosso guyador*
dom James, da casa d'antigua Bragança,
de jente levando rauy grande pujança
gerall capitam par tio vencedor. (1)
Como se deduz, Luiz Anrriques também foi na ex-
pedição; e por certo estes e outros poetas da corte to-
mariam parte como actores e comparsas na tragicome-
dia de Gil Vicente.
Eram quatrocentas as velas d'armad&
sobre çinquoenta, sem hum a faltar. . .
A descripção de Luiz Anrriques é minuciosa e im-
portante para a historia; tiramos apenas o bastante |
para mostrar quanto influiria para a pompa da festa
celebrada por Gil Vicente.
No anno seguinte, de 1514, representa Gil Vicen-
te a comedia do Viuvo; na rubrica histórica não de-
clara diante de quem e em que logar a representara,
circumstancia que levaria a acreditar ser talvez esta
a primeira comedia que se representou fóra do paço,
diante do povo. Não é assim; em uma scena em que
o poeta se dirige a Dom João iii, iiinda príncipe, qne
(!) Canc. geral, foi. 13^ co\. \.
NO SÉCULO XVI 99
estava no serão, se vê que foi representada a farça do
Viuvo diante de Dom Manoel.
A scena passa-se em Burgos; é um viuvo que tem
duas filhas, e o príncipe Dom Rosvel para namoral-as
finge-se criado broma: «Segue-se como D. Rosvel,
príncipe de Huxonia, se namorou d' estas filhas do Viu-
vo; e porque não tinha entrada, nem maneira pêra lhes
falar, se fez como trabalhador ignorante, e fingiu que
o arrepelaram na rua e entrou acolhendo-se em, sua
casa.» E bello ver como Gil Vicente adivinhou este
typo de Almaviva, que se apaixona pelas duas inno-
centes Rosinas. Dom Rosvel, conhecido com o nome
de Juan de las Brozas, anda acarretando e cantando;
o amor pelas duas irmãs encantadoras* alegra-lhe a vi-
da. N'isto Dom Rosvel despe as roupas de trabalha-
dor, e mostra-se um verdadeiro príncipe.
Qual das namoradas escolherá? Aqui o génio in-
veutivo de Gil Vicente descobre uma situação origi-
nal; assistia ao serão o príncipe Dom João iii, então
de edade de doze annos, no período em que a imagina-
ção não deixava perder neuhuma d'aquellas graças da
scena portugueza. As duas noivas da comedia dirigi-
ram se para o príncipe real, pedindo que sentenceasse
qual d'ellas deveria casar coin D. Rosvel; com grande
aprasimento da corte, Dom João 111 decidiu pela irmã
mais velha. Eram estes os symptomas de entendimen-
to que dava, de que fala Frei Luiz de Sousa. D'esta
scena se conclue, que o theatro estava á mesma plana,
dos espectadores, que os actores representavam não em
4S'U^\\
100 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tablado levantado, mas sobre o sobrado, e que os o
vintes estavam assentados em volta da sala onde se oc
locava o estrado real.
Eis como Gil Vicente indica a disposição da scem
<tTirou D. Rosvel o chapeirão, e ficou vestido con
quem era; e foram-se as moças a el-Rei Dom João I
sendo príncipe, (que no serão estava) e lhe pergunt
ram, dizendo :
Príncipe, que Dios prospere
Em grandeza principal,
Juzgad vos :
La una Dios cazar quiere,
Dicid ora, sefior Real
Cual de nos.
Julgou o dito Senhor que a mais velha casasse pi
meiro ...» «Andando D. Gilberto, irmão de D. Re
vel, correndo o mundo em busca de seu irmão, por i
cuícas veiu ter com elle . . . Tomou D. Rosvel a Pau
pela mão, e D. Gilberto a Melicia. E ri este passo ve
o pae d'ellas, e cuidando que era d' outra maneira,
queixa...» N'isto o Viuvo conhece a gerarchia e inte
ção dos namorados. « Vao-se as moças vestir de fest
e vem quatro cantores, que preenchem a scena até qi
vem as moças vestidas de gala, e entra o Clérigo com
Viuvo, e casa-os, terminando a comedia com a moral
dade do crescite et multiplicaminor. A estruetura da c
media de Viuvo é perfeita; Gil Vicente comprehend
bem cedo como se podia transportar para a scena a ^
da da sociedade burgueza do século xvi ; como artis
NO SÉCULO XVI 101
ramatico sabe crear o caracter e seguil-o na sua lo-
;ica inflexível. Para bem definir esta composição, pa-
ece um veaudeville de Scribe, representado em um
;heatro moderno.
motivo da representação d'esta comedia coin-
cidirá, pelo facto de ser no anuo de 1514, com as fes-
tas que precederam a grande embaixada que mandou
el-rei Dom Manoel ao papa Leão x »'este anno. Ia
na embaixada Tristão da Cunha, que assistira dois an-
nos antes á representação do Velho da Horta. N'esta
embaixada, em que o monarcba de Portugal mandava
para Roma as páreas do Oriente, foi uma panthera e
um grandioso elephante, que assombrava o povo pas-
seando pelas ruas da cidade eterna. A contar d'este
tempo os discípulos da eschola de Raphael introduzi-
ram a forma grotesca do elephante nos seus ornatos
e arabescos.
génio democrático de Gil Vicente não aceitava
estas bajulações a Roma; assim a comedia, em vez de
ser uma insípida atlegoria á homenagem de Dom Ma-
noel, foi uma engraçada e bem urdida peça de costu-
mes em que o poeta se elevou ao conhecimento do thea-
fro moderno ; não acontecia assim quando a festa era
legitimamente nacional, então as allegorias & personi-
ficações tornavam-se realidades eloquentes. A Leão x,
orgulhoso de appresentar na sua corte as comedias de
Bartholomeu Torres de Naharro, contaria Tristão da
C!unha os bons serões de Portugal, como se passavam
mire os chistes e coplas dos trovadores guerreiros e os
102 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Autos maliciosos de Gil Vicente. A contar cPeste tem
po é que a sua grande fama de auctor dramático se ei
palhou pela Europa, chegando a representar- se-1
mais tarde o Auto da Lusitânia era Bruxellas, e a
conhecido por Erasmo na Hollanda, asylo único da 1
berdade da consciência e da intelligencia no século x
No anno de 1515, não representou Gil Vicente A
to algum ou comedia na corte ; este anno viu a mo
de AíSmiso de Albuquerque, deposto do logar de Vi
Rei da índia por intrigas politicas e suspeitas de trai
ção; os desastres da expedição de Africa, e os triunH
phos dos reis de Fez e Maquines não permitiam a fesi»
de um Auto, que era por assim dizer publica.
Bem vontade teria Gil Vicente de celebrar o nas-
cimento do Infante Dom Duarte.
Grande tristeza reinaria na corte de Dom Manoel,
e principalmente no reino em 1516, por isso que este
anno não teve Gil Vicente occasião de representar al-
gum Auto. Foram tamanhas as desgraças dos nossos
guerreiros na Africa, tão grande a mortandade e a per-
da das conquistas, que Dom Manoel esteve a ponto de
abandonar aquellas emprezas; a revolta tios Mouros de
Vleidambran, commandados por Rah-Beuxamut, que
queria rehaver a sua formosa mulher Hoté, que lhe fôra
roubada, deu causa a um dos destroços mais atrozes
da nossa historia. O lucto e descontentamento geral
era profundo. Como poderia Gil Vicente continuar na
senda engraçada da farça de Quem tem farellos? do Fe-
lAo da Horta, do Viuvol
NO SÉCULO XVI 103
O Auto das Fadas não traz data na rubrica histo-
. que o dá como representado; por uma situação
ali appresenta, em que uma Fada vae offerecer
es ao Bei, á Bainha, ao Príncipe, i Infanta Dona
3el e á Infanta Dona Beatriz, se deduz que foi re-
bentada esta farça no reinado de Dom Manoel, es-
lo ainda viva a rainha Dona Maria, e portanto an-
de 1517; de facto no anno de 1515 e 1516 não ap-
3cem Autos de Gil Vicente apontados como tendo
► representados na corte, e em um ou outro d'estes
os é provável que fosse representada, accrescentan-
jue, durante o tempo que Gil Vicente representou
lòrte de Dom Manoel, nunca se passaram dois an-
consecutivos que não produzisse algum Auto.
A corte portugueza era fanática, estimava mais as
resentações devotas, os assumptos da liturgia. As-
vemos Gil Vicente retrogradar á sua primeira ma-
•a e representar um Mysterio em 1517.
No Auto da Barca do Inferno, continuado em
8 e 1519 no restante da assombrosa trilogia dan-
&, vemos impresso o caracter marítimo d'este po-
Auto da Barca do Inferno é uma allegoria
paganismo tornada mais uma vez christã pela au-
la de Gil Vicente. Ali a Dansa dos Mortos, que foi
lo um mal de San Guy das imaginações da edade
lia, ali apparece no alvoroto de uma viagem. Sobre
3 para o conhecimento dos recursos dramáticos de
Gil Vicente dispunha, é que se torna importantis-
o este Auto. A scena representa um çfÀ^ta* <svx
104 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
braço de mar oom duas barcas; já nas festas feii
por Dom João li em 1481, appareceram na sala mi
ta& naus, que Gil Vicente, que frequentou a oôi
d'aquelle monarcha, talvez visse ou ouvisse falar d'<
las. Ruy de Pina descreve esse momo, em que Do
João ii í centrou pelas portas da sala com hua gran
frota de grandes navios, mettidos em pannos pintad
de bravas e naturaes ondas do mar, com grande e
trondod^ artilheriàs que jogavam, e trombetas e at
bales e ministrees que tangiam, com desvairados gi
tos e alvoroços d'apitos, de fingidos Mestres, Pillot
e Mareantes vestidos de brocados e sedas, e verdade
ros e ricos trajos alemães»» (1) Em uma nação qi
possuia o dominio dos mares, todos os folguedos re
sentem~se da preoccupação que a animava. N'es
Auto representado em 1517, Gil Vicente aproveitai
se talvez do que restava da frota da festa de 1481
em um Auto representado em 1527, a Nau de Amore
apparece outra vez em acena um navio do tamanho (
um batel. Gil Vicente em uma rubrica descreve
scenario da Barca do Inferno : « E por tratar d'es
matéria p&e o Autor por figura que no dito momen
(da morte) ellas (as almas) chegado a hum profmu
braço de mar, onde estão dois bateis : um d'elles pas
pêra a Gloria, outro pêra o Purgatório** Gomo
fingiria o mar na scena portugueza em 1517, já o -s
mos pela descripçâo de Ruy de Pina. Gil Vicente dií
(1) Chron. de D. João li, p. 126, — nos Inéditos da A
demta.
NO SÉCULO XVI 106
nome de scena, ao que nós hoje chamamos acto* Fa-
lando d'eata trilogia ou perfiguração diz : t He repar-
tida em trez partes, s. de cada embarcação huma sce-
na.* Também na rubrica da Comedia de Rubena, dizi
si cá seguinte comedia ê repartida em trez scenas.» Es-
iil tas acenas são partes ou continuações, que ás vezes se
«| representavam com inter vallo de annos. Quando o
theatro portuguez inaugurado por Gil Vicente, se en-
tregou á imitação da comedia hespanhola, fundaram*
se estas denominações ; as comedias começaram a ser
divididas em jornadas» «E também os poetas, nas suas
comedias, que são mais próprias para recreação e pas-
satempo, dividiram a obra em actos, a que agora se
chamam jornadas, e essas repartiram em scenas; e por
divertida gravidade e decoro das pessoas introduzidas
inventaram os cómicos modernos Entremezes e bay*
toí«» (1) O Auto da Barca do Inferno , pela natureza
da composição era destinado para ser representado na
oapella do palácio ; como a segunda mulher de Dom
Manoel, a rainha Dona Maria, estava doente, foi re*
ptesentado na ca mera, para distraíl-a : t/oí represen-
kda de camará, pêra consolação da muito catholica e
Wncta rainha J9* Maria, estando enferma do mal de
tpte falhceu, na era do Senhor, de 1517.» Para uma
criatura fanática e doente, este Auto seria um peza-
dello para os últimos momentos da vida ; a rainha
tnorreu de trinta e cinco annos de edade, a 7 de
(1) Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, p. 232.
106 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
Março; portanto o Auto foi representado ainda e
Fevereiro de 1517. Nos Mysterios francezes, core
no da Resurreição, o Inferno era fechado, ao contrari
do Purgatório e Paraíso ; abria-se em forma de um
grande bocca de dragão que lançava fogo pelos olh(
e narinas. (1) Na scena de Gil Vicente, um Anjo esl
dentro de uma barca, servindo de arraes do céo, e nii
guem entra para a sua barca; na do diabo, entrai
fidalgos, onzeneiros, um frade, uma alcoviteira, ui
judeu, um corregedor, um procurador, um enforcad
e quatro cavalleiros, ao todo dezesete personagens ;
fidalgo entra acompanhado do moço que lhe traz um
«cadeira ; o sapateiro entra carregado de formas, signí
allusivo, com que Gil Vicente dava a conhecer o ofí
cio ; o frade traz uma moça pela mão, e joga a espad
com o Diabo. frade, pelo que se deduz, era de Sai
Domingos, dos que introduziram em Portugal a Ie
quisição, contra os planos dos quaes tanto trabalho
Gil Vicente. A scena da esgrima é completa; o fra<J
dá um golpe contra sus, um fendente, espada rasgadt
anteparada, talho largo, um revés, corte na seguno
guarda, uma guia, um revês da primeira, a quinta o
primeira guarda, etc. Todos estes recursos ainda si
empregados na scena moderna. As diversas fígur:
entravam para a barca por uma prancha; o judeu tn
um bode ás costas; o corregedor annuncia a sua g
rarchia chamando o da barca. Com o mesmo gen
(1) Foumelj op. cit.,p. 6.
I
f
NO SÉCULO XVI 107
sarcástico de iiabelais, Gil Vicente apoda os juriscon-
sultos cesaristas, que firmaram o poder real. Sobre
tudo, o génio inventivo do poeta revela-se no sublime
final da Barca do Inferno ; quando ella já está cheia,
prestes a largar : « Vem quatro cavalleiros da ordem de
t Qtristo, que morreram nas partes de Africa e vem
[. cantando a quatro vozes uma letra... » São os únicos
quê entram para a Barca da Gloria. Esta scena devia
produzir na corte uma emoção profunda, porque no
l anno antecedente, 1516, fora o grande desastre da
Africa, morrendo n'essa gigante catastrophe, preludio
de Alcacer-Kibir, a flor da cavalleria portugueza. Os
anjos chamam os cavalleiros :
Oh cavalleiros de Deos
A vós estou esperando ;
Que morrestes pelejando
l'or Chrísto, senhor dos ceos,
Sois livres de todo o mal,
Sanctos por certo, sem falha ;
Que quem morre em tal batalha
Merece paz eternal.
Eslas palavras do popular Gil Vicente ainda hoje
lidas, conhecida a situação em que foram declamadas,
depois de se vêr a grandeza da mortandade de 1516,
arrancam lagrimas e fazem estremecer. Por isto o
poeta era amado da corte, porque sabia tirar vibra-
ções immensas da alma portugueza. O melhor com-
mentario das peças d'este homem de génio é a histo-*
ria de Portugal no século xvi.
A Barca do Purgatório é do numero <ta& To^re**^
108 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tacões de capella; foi representada nas matinas do Na-
tal de 1518, no Hospital de Todos os Santos em Lis-
boa, que teve o privilegio dos pateos das comedias, desde 1
1588 até 1743. Os personagens são lavradores; a este
tempo já D. Manoel estava casado com a stia terceira
mulher D. Leonor; o auto principia com uma sympho-
nia ou barcarola-romance, cantada a trez vozes pelos
anjos que entram em scena remando ; o lavrador vem
com seu arado ás costas, com um largo chapeirão. A
representação do Auto foi á noite, para o effeito da luz
ajudar a illusão da scena:
Este serão glorioso
Não he de justiça não,
Mas todo mui piedoso...
N'este Auto introduz Gil Vicente pela primeira
vez uma criança; logo que os diabos puderam arrepa-
nhar um taful, saem cantando uma cantiga muito de-
safinada; os Anjos cantando levam o menino.
O Auto da Barca da Gloria foi representado em Al-
mada, diante de el-rei Dom Manoel em 1519; a de-
mora da representação das trez partes da trilogia de-
pendia da espera das trez épocas do anno em que se
Costumava representar Mysterios, o Natal, os Reis, e
a Paschoa. Pela natureza d' esta ultima parte das Bar-
cas, è pelo apparecimento de Jesus no fim do Auto,
se vê que seria representado em sabbado da allelnia
ou domingo da ressurreição. Os personagens daJBarea
da Gloria demandam uma c%T*^T\«aqj(to riquíssima;
NO SÉCULO XVI 109
Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Imperador, Rei,
Duque, Conde, appareoem vestidos segando as suas
gerarchias. N'este cortejo a Morte é o personagem
principal, que anda na vertigem da sua ronda arreba-*
tando estas vidas. O que todos os outros povos fizeram
pela Pintura e em poemas populares, Portugal deu-lhe
a forma dramática, imprimiu-lhe o sentimento maríti-
mo de que estava possuido. Nos velhos Mysterios, os
mortos que os Diabos arrebatavam, eram levados para
fora da scena em carretas e padiolas. Como represen-
taria Gil Vicente o typo tremendo da edade media — >
a Morte! A scena representa ainda o mesmo braço de
mar: * Primeiramente entram cinco Anjos cantando, e
trazem cinco remos, com as cinco chagas, e entram no
seu batel.» O Auto, á maneira dos Mysterios, abre com
a costumada symphonia ou rondei; entra em scena o
Diabo, sempre cómico, depois a Morte, e altercam entre
si; a Morte vem trazendo para a scena o Conde, o
Duque, o Itei e todos os outros altos dignatarios; tudo
isto leva a crer que Gil Vicente conhecia os assombro-
sos poemas da Dansa da Morte, da velha poesia fran-
ceza, que se imitaram em todas as línguas da Europa;
no seu Auto segue a mesma cathegoria dos personagens,
como se seguia em todos os poemas em geral. A Barca
da Gloria completa o quadro da edade media portu-
gueza, ligando a nossa litteratura ás tradições poéti-
cas dos povos latinos; no thoatro assombrava mais as
imaginações, do que na simples leitura de truncados
poemas de folha volante. Logo que & M»QTte tawx&&\&-
110 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
dos os personagens, «Nota que neste passo os Anjos des-
ferem a vela em que está o crucifixo pintado, e todos
assentados de joelhos, lhe dizem cada um sua oração.»
Os Anjos começam fazendo a manobra sem atten-
derem ás differentes supplicas: nNão fazendo os Anjos
menção d* estas preces, começaram a botar o batel ás 1
varas, e as Almas fizeram em roda hua musica a modo
de pranto, com grandes admirações de dor; e veiu Chris- \
to da ressurreição, e repartiu por ellas os remos das t
chagas, e as levou comsigo.» Esta rubrica confirma que '
o Auto fora representado no sabbaclo da Álleluia ; o
appareci mento de Christo revela grande progresso no
machinismo scenico. No Mysterio da Assumpção, do |
velho theatro francez, também Jesus Christo apparece
em scena ao som de canto de órgão e de flammas bri-
lhantes, para levar sua mãe; nos Mysterios não era
a parte de Christo das mais fáceis, que o que a repre-
sentasse não fosse obrigado por um juramento; porque
tendo de elevar-se para o ar, ou de desapparecer de re-
pente, a imperfeição do machinismo scenico muitas
vezes compremetteu a vida do pobre actor que piedo-
samente violava as leis naturaes.
A Trilogia das Trez Barcas, é a Divina Comedia
popular portugueza; Dante reduziria o seu poema a j
esta forma quando o representou diante do povo sobre
o Arno.
Nos Exemplos da edade media portugueza já se
encontra a allusão ás barcas, como a representação da
passagem da vida.
NO SÉCULO XVI 111
Vem no Leal Conselheiro, de El-Rei Dom Duarte:
«tam grande sandyce he con atrevimento da boa voon-
tade de Deus desprezar o estado das virtudes, e esco-
lher o estado dos pecados, como seria se algun quizesse
passar algun ryo perigoso e tormentoso e achasse duas
barcas, hna forte e segura e muy bem aparelhada, e
em que raramente algun se perde, e por a mayor par-
te todos em ella se salvam, e a outra, velha, fraca, po-
dre, rota, em que todos se perdem, ou alguns poucos
se salvam. A barca firme, e segura, e forte, e bem
aparelhada o estado das virtudes hé, e de boo e sancto
viver, honesto e sem querei la de Deos e do próximo,
em que muy poucos parecem, e a maior parte se salva
em tal estado, assy era a barca segura, (1) podem na-
vegar seguramente, e passar sem perigo por as ondas
da tormenta d'este mundo a porto seguro e de prazer
que he a gloria. A barca fraca, pobre, rota, o estado
dos pecados he, e da maa, corrupta e dessoluta vyda
em tal estado assy como em barca podre nom pode com
segurança e sem perygo os tormentos da presente vida
passar, nem a porto de folgança e desejado aportar, e
que alguns se salvem esto he de veentuira, ou por al-
gmi segredo juyzo de Deos, acerca d'algua singullar
pessoa. . . » (2) pensamento da trilogia de Gil Vi-
cente estava no gosto da sociedade portuguesa; o ca-
pitulo do Exemplo de Dom Duarte, mostra-nos que
(1) Gil Vicente : A barca, á barca segura !
Guardar da barca perdida
(2) EdicAo de Purie, p. 447.
112 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
muitas vezes seria esta comparação lançada do pulpi
para um povo crente o entristecido por constantes pro
vocações ao fanatismo.
Uma vez entrado na comedia burgueza, dos deres
de la Bazoche, Gil Vicente não estava á sua vontade
nos Mysterios, que escrevia mais para comprazer com o
humor sombrio da corte portugueza. A contar do anão
de 1513, o poeta raras vezes tornou a representar um
mysterio ou moralidade; a sua musa queria seonlari"
sar-se, em vez de allegorias devotas queria intrigas e
peripécias das paixões da vida usual. Que immenso
campo lhe não offerociam os novos costumes, os novo* '
interesses e situações do commercio, navegação e guerra
da índia. Sá de Miranda, dizia que tinha mais medo
a essas perfumarias, do que de todos os planos ambi-
ciosos de Castella ; e na perturbação dos costumes po-
pulares, vira correr o dinheiro indiano chamado p<w-
daus, por Cabeceiras de Basto ! Symptomas em que o
génio cómico profundo do Gil Vicente acharia largo
assumpto para jocosas moralidades. Satisfeito o empe-
nho da corte portugueza com o mysterio das tre»
Barcas, Gil Vicente lançou-se para explorar o cam- l
po que a vida social lhe estava indicando.
A Farça dos Physicos não traz data nem logar da
representação; pela leitura d'ella se deduzem factos tal-
vez sufficientes para lhe determinar a época. O Phy-
sico Torres começa assim um discurso :
Bissexto é o armo agora,
Em Piseis estava 3 \t\atet ,**&&.
NO 6ECUL0 XVÍ 113
eno fitn •dá farça 'diz o Clérigo:
Vay me á Ia huerta de amores
Y traere uma ensaiada
Por Gil Vicente guisada,
E diz que otra de suas flores
Tara Páscoa tien sembrada.
Percorrendo os annos que foram bissextos desde
o principio do século xvi, somente no anno de 1508,
terceiro bissexto, é que Gil Vicente representou nas
Endoenças o Auto da Alma, nos Paços da Ribeira, por
nandado de D. Manoel, diante da rainha D. Leonor,
roa irmã. N'este mesmo anno de 1508 foi a tentativa
la tomada de Malaca, e na farça se diz:
E elle fallou-me em Malaca.
Todas estas círcumstancias fariam crer que à Farça
'os Physicos fora representada antes do Auto dd Alma,
o anno de 1508. Um outro facto nos faz attri-
air esta farça ao anno de 1519, se é que ná fala do
hysico Torres se refere a celebre anedocta da arte de
iste e Oeste:
Topei alli com Mestre Gil
E com Luiz Mendes, assi
Que praticamos alli
O Leste e o Oeste e o Brazil,
E lá lhe dei rasao de mi.
8
114
HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Era amas trovas a Felippe Quilhem, conta Gil Vi
conte uma anedocta que parece explicar estes versos
«O anno de 1519, veiu a esta corte de Portugália
Felipe Guilbeui, Castelhano, que se dizia que fora
ticario nel Porto de Santa Maria; o qual era gran
lógico, e muito eloquente de muito boa pratica, que ai
tre muitos sabedores o folgavam de ouvir: tinha ai
ma cousa de mathematico; disse a El-Rei que lhequ
ria dar a arte de Leste a Oeste, que tinha achada. Pa
demostra d'esta arte fez muitos instrumentos, antre
quaes foi um astrolábio de tomar o sol a toda hora. . •
Chamaram -se os sábios do reino, principalmente Fra
cisco de Mello, que sabia sciencia avondo, e pela excel
lente informação que deram, deu o monarcha ao bel
rinheiro uma grande tença; vindo á corte um math
matico do Algarve, conheceu logo o embuste e ante»
que o revelasse, Felipe Guilhem fugiu, sendo por de
nuncias prezo em Aldeia Gallega. Este facto concorda
com o verso da Farça dos Physicos; a promessa do
Auto para a Paschoa seria realisada no Auto da Bar*
ca da Gloria; porém para valer a hypothese é neces-
sário que o verso :
Bissexto é o anno agora
se entenda como futuro : bissexto vae ser agora, porque
o anno de 1520 o foi. Aqui ficam indicadas as duaa
conjecturas, sendo esta ultima a mais provável; no anno
de 1519, representou ttez Avxtoa e uma Tragicomèdia,
NO SÉCULO XVI 115
todo cinco peças, se attribuirmos a este anno a Far-
dos Physicos, o que ainda assim não chega á fecun-
lade do poeta no anno de 1527.
No anno de 1519, encontramol-o em Almada re-
esentando o Auto da Índia, farça assim chamada
ílgarmente: *A farça seguinte chamam Auto da In*
ín.» O que denota não ser o poeta quem a intitulou,
as aquellas pessoas que se deliciaram com ella.
O enredo é uma formosa anedocta, tirada dos no-
te costumes portuguezes: *Foi fundada sobre que
ia mulher j estando já embarcado para a índia seu
árido , lhe vieram dizer que estava desviado, e que já
io ia; e ella de yezar está chorando.» Camões tam-
)m escreveu uns versos a favor de uma rapariga pre-
i no Limoeiro, por não ter sabido guardar fidelidade
seu marido que estava na índia. (1)
Gil Vicente pressentia largo assumpto para risa-
is; a comedia foi representada diante da Bainha
'ona Leonor, não d 'esta vez já a viuva de Dom
Dão li. Aqui se abre um precipício para Gil Vicente ;
íina na corte uma formidável intriga entre el-rei Dom
[anoel e seu filho, o herdeiro da coroa, Dom João.
ito explicará talvez em parte as desgraças futuras do
Deta.
(1) Petiçom feita ao Regedor, de hna nobre moça, presa
> Limoeiro da Cidade de Lisboa, por se dizer que fizera
lulterio a seu marido que era na índia. Obras de Camões,
irt. ii, p. 47, ediç. de Franco Barreto, de 1669.
116 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
A 7 de Março de 1517 morrer» a rainha Doo*»'
Maria do laborioso parto do Infante Dom António;
nesse mesmo anno, em Septerabro, mandou Álvaro
Costa propor secretamente a Carlos v o casar com s
irmã Dona Leonor. A este propósito conta Frei Laiife
de Sousa: «Espantou-se o reino, sentiu-se o Principeijc
Extranhava o povo vêr um Rei por muito prudenl
reputado, sem dar mais tempo ao nojo e memoria
uma Bainha de tanto merecimento, como era a à
functa, (cousa que até entre gente popular causa ea*|te
candalo) pôr em obra casar-se: e em idade creci
com a casa cheia de herdeiros: e sobretudo com
bas brancas, buscar mulher muito moça e com famtj
de formosa para madastra do oito filhos ; obrigar se *| J
si e aos seus a gastos supérfluos e desnecessários. * (1}|<:
O desgosto do príncipe herdeiro, Dom João iii, era?
«tomar-se-lhe a dama que já em espirito era sua, e|^
querer seu pae para si era segredo, e como a furto a
mesma molher, que para elle tinha muitas vezes pu-
blicamente pedido. * (2)
Em Novembro de 1518 entrou a rainha Dou»
Leonor em Castello de Vide, recebendo-se Dom Manoel
no Crato; neste mesmo anno, nas Matinas do Natal,
representou Gil Vicente diante da nova soberana o
Auto da Baixa do Purgatório, na capei la do Hospital
de Todos os Santos. Dom João iii, veria por certo em
(1) Armões de D, João III, cap. 4, p. 16.
(2) Ibid. p. 17.
NO SÉCULO XVI 117
rií Ticente um partidário de seu pae ; pelo menos 1 os
frades que elle combatia não se esqueceriam de fazer
notar qualquer dito do poeta, qualquer vontade cum-
prida. O Auto da índia foi escripto, e representado
diante da Bainha Dona Leonor, em 4 Almada; a este
tempo andava na corte uma mania geral de falar hes-
panhol, de cantar trovas hespanholas e de vestir ao
gosto da corte visinha; o príncipe Dom João III fa-,
zia-se distinguir pela sua constância em trajar sempre
i portugueza. No Auto da índia, representado a pe-
lido de Dom Manoel, diante da nova rainba, Gil Vi-
cente tratou de lisongear a parcialidade do príncipe
38cre vendo a farça em portuguez.
A acção da farça passa-se em Maio, quando partia
iNau de Viagem, da carreira da índia; ali cita a nau
Grarça, tão celebre na Historia dos Naufrágios.
As festas que se fizeram pelo casamento da Infanta
Dona Beatriz com o Duque de Saboya, contrastaram
«n grandeza e apparato com a miséria e fome public*
le Portugal em 1521. Os ricos festejos da partida
charn-se descriptos pelo chronista Garcia de Resen-
e, no opúsculo da Hida da Infanta. As grandes fes-
18 que se fizeram a 8 de Agosto de 1521 realçaram*
nmenso com a Tragi-comedia de Gil Vicente intitu-
tda as Cortes de Júpiter, na qual vinha a Providen-
a mandada por Deos para que Júpiter celebrasse
>rtes a fim dasdivindades se mostrarem propicias du-
tntfe a viagem da Infanta. A este facto está ligada a
ícantadora* tradição dos amores de Bernardim Ri-
a
lia HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
beiro, e á tragi-comedia de Gil Vicente está unida %*:
historia da restauração do theatro portuguez porfi
Garrett.
Foi a tragi-comedia das Cortes de Júpiter a ulti-
ma a que assistiu Dom Manoel, que morreu em Dei
zembro d'este mesmo anno.
A Providencia entrou vestida de. Princeza com»
esphera e sceptro na mão; Júpiter entrou vestido d» ic
Rei, como se deduz do primeiro verso que lhe dirige i 1
Providencia; os ventos Norte, Sul, Leste, e Oeste en-
tram em figura de trombeteiros ; tocam os Ventos sua$
trombetas e vem o Mar muito furioso; vem o Sol e ff,
Lua bailando ao som das trombetas, e juntos com Ve»
nus* cantam ura vilancete. « Cantaram todas estas figu-
ras em chacota a cantiga de:
Llevadme por el rio
e os Ventos foram chamar o Planeta Mars,o qualveiu
com seus sinos, Câncer, Leo e Capricórnio.» Os Plane-
tas e figuras cantam um romance a quatro vozes «per»
com as palavras dJelle e musica desencantarem a Mou-
ra Taes de seu encantamento a qual entra com o ter-
çado e annel e didal de condão, que Mars disse que elh
tinha em seu poder.» A moura Taós vem metter no
dedo da Infanta o annel de condão, que lhe dirá todos
os segredos que ella lhe perguntar. D'este annel e
d'estes segredos tirou Garrett o bello pensamento do
drama moderno o Auto de Gil Vicente. A Tragi-come-
NO SÉCULO XVI 119
•
dia termina com a chacota ou musica e dança de to-
das as figuras, do romance Llevadme por el rio. As
nossas relações marítimas e commerciaes com o Orien-
te, no principio do século xvi, não pouco influiriam
para o apparecimento do theatro em Portugal, não
do theatro hierático, filho directo dos costumes nacio-
naes e dos mysterios francezes, mas do theatro aristo-
crático ou dos elogios dramáticos, como Gil Vicente
usou na Tragi-comedia das Corte* de Júpiter. No
Oriente os elogios dramáticos eram muitos frequentes ;
Fernão Mendes Pinto descreve-nos um que vira, re-
presentado om 1549 na cidade de Timplão, próxima
ao reino do Pegu :
«Acabado isto houve uma Comedia, representada
por doze mulheres muito bem vestidas e muito formo-
sas, na qual veiu huma filha de hum Rei atrevessada
na bocca de hum peixe, que depois ali em publico pe-
rante todos foi engolida do mesmo peixe; o que vendo
as doze, se foram com muita pressa, e muitas lagrimas
fugindo para huma Ermida, que estava ao pé de huma
Serra, d' onde tornaram com um Ermitão comsigo; o
qual fazendo ao seu modo grandes orações ao Guiay
Paturen, Deos do mar, que mandasse lançar aquelle
peixe na praia, para se dar sepultura áquella donzella
conforme aos altos quilates da sua geração, lhe foi res-
pondido pelo mesmo Guiay Paturen, que convertessem
àquellas doze donzellas seu pranto em musica suave,
e agradável a seus ouvidos, e que elle mandaria ao
tnar que lançasse logo o peixe fora, e lho entregaria
morto em suas mãos. E vindo então seis meninos com
1>2Q HISTORIA Ç0. THJE ATRO EORTUGUEZ
corôa,s <le ouro na, cabeça e azas. &> mesmo, <fa m&W&-
rq* qu$ Qntr y e nçs se pintam os. Anjos, porem nais, sm&
cou#a ajgnjna sobre si, se puzçram, de joelhos diaata
das, do^e, e lhes. deram três harpas, e trçs violas eojfc
Potros, alguns instrumentos, músicos, em que entravasL
duas (Joçainhas, e lhes disseram que o Gruiay Paturenu
lhes tnandava do céo, da Lua aquelles Caulanges, par*
com qII^s adormentarem os, peixes do mar, e serem
cilas pela suavidade da sua musica satisfeitas em seu»
desejp. — As doce tomaram com grande cerimonia (te
cor,tezia os instrumentos das mãos dos seua meninos,
q tocaram e, cantaram, a eltes com huma harmonia títo
triste, e com tantas lagrimas, que alguns senhores, dos,
quQ estavam na, casa aa derramaram também, e conti-
nuando em, sua musica por espaço de qaasi meio quai*
to, de hora, viram sabir de baixo do mar o peixe qn£
comera a filha do, Rei, e.assipa. como arvoado pouco a
pouco, veiu moçtp dar, em. secco na praia, aonde afii
doze da musica estavam; e, tudo isto, tão próprio, e
tanto, ap, natural, que ninguém, o julgou, por cousa
contrafeito, senão, por verdadeira, e afora isto^ era feito-
cotn.grandissimp fausto, aparato de muita riqueza epec-
feição. Huma das doze, arrancando então. huma ada^
ga de, pedraria, que tinha na cinta, escalou com ellau o
peixe, por,, bua ilharga, e lhe tirou de dentro a filha. do
B^ey ; a qual< ao som d'aquella mesma musica fpy beijar
a rnãp ao, Calaminhã, (1) que com. grande honra *
(t) O Calominhâr era o tev d\&ttted& quem se estava repre-
sfPJt&0fí t dfiQQÍa dfcrefteflç&p Aeiow ^m>sC\^w.
i <
NO SÉCULO XVí m
jae^toa conaaigo* E esta moça se dizia que era sobri-
ha filha de hum irmão ; e todas as outras, eram filhas
e Príncipes e grandes Senhores, cujos pães e irmãos
stavauí ali presentes. Houve também outras ires ou
[uatro comedias ao modo d'esta, representadas por
oulheres moças muito nobres, com tanto apparato,
írimor, riqueza, e com tanta perfeição em tudo, que
& olhos não desejavam ver mais.» Só no tempo de
Bom Manoel é que poderia sentir-se em. Portugal a
nfluencia d' estas narrativas contadas pelos fidalgos e
iavalleiros que vinham da índia; a pompa das festas
«m certa grandeza oriental, eein, muitas peças de Gil
Vicente se encontram caracteres que lhe não podiam
dr do velho theatro europeu. Uma revolução se ia
lar na Auto, popular pelo renascimento da comedia la-
ioa; ta^rde chegou a Portugal essa influencia, que pro-
jozíu uma reacção contra Gil Vicente*
2. Reinado de Ç. João m.
Vejamos agora como o poeta alegra o reinado sor
umbatico.de Dom João iii, como continua a repro-
entar- o espirito secular na sociedade porfcugueza, e
ouiofoi o primeiro que descobriu os tramas fradescoa.
No anno.de 1521 representou Gil Vicente umai
arca no reinado de Dom João ih, em Évora; aN'este
empp, diz Freii Luiz de Sousa, deixou ol Rey a mora-
la dos Paços da Ribeira, ou por se aliviar do nojo a
y e á Raynh& com, Min%ença do. sitio \ ovv^t^ofc^
122 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
deviam começar a sentir na cidade as mortes apressadas
e princípios de peste, que pouco depois se declararam
demasiadamente.» (1)
El-Eei morou primeiro em Enxobreg$s, nas casas
de D. Francisco d'Eça, depois em Santos o Velho, e
em seguida achamol-o em Évora, distrahindo-se do
terror com a Comedia dos Ciganos , ali representada por
Gil Vicente, que acompanhara a corte. A Comedia doê
Ciganos, pela disposição e numero das suas figuras, pa-
rece ter sido representada na entrada de Dom João in
em Évora.
N'este mesmo anno de 1521 foi representada a Co-
media de Rubena diante de Dom João iii, sendo princi*
pe, isto é antes de 19 de Dezembro d'este anno, em que
foi a acclamaçãd, como se vê pelo romance popular com
que Gil Vicente a celebrou ; por tanto é de suppôr que
a Rubena fosse representada ainda em Évora, apesar
da rubrica não o declarar. A Rubena é dividida em três
scenas ou actos, que pelos finaes se conhecem terem si-
do representados successivamente e não no intervallo
de annos, como os Autos das Barcas. A comedia co-
meça com um prologo, em que um Licenciado vem ex-
por o enredo da peça; Gil Vicente mostra já mais lar-
gueza de composição, conhece a comedia clássica, mas
detesta a linguagem da prosa. Ali apparece uma Feiti-
ceira, que por esconjurações faz surgir "quatro Dia-
bos para arrebatarem Rubena, que tem de dar á luz
(1) Annaes de Dom João III, cwp. ^ p. *7.
'
NO SÉCULO XVI 123
ma criança, sem que o saibam em casa; levam-na
ara fora da scena em um andor; e torna outra vez
ára o Licenciado do prologo, a fazer um epilogo, di-
endo o que vae succeder a Rvbena, e assim prepara
s expectadores para o segundo acto. Este Licenciado,
epresenta aqui a acção do coro antigo, que nas come-
ias da edade media, estava substituído, segundo os ir-
iãos Parfaict, pelo meneur dujeu, actor que tinha por
fficio comprimentar o publico, annunciar e recapitu-
ir a peça, e explicar o machinismo scenico, que pre-
isava de explicação. (1) No segundo acto, os Espiri-
ta trazem um berço para embalar a criança, entra
m coro de Fadas cantando, até que torna outra vez
appareccr a Figura do Licenciado a explicar a mu-
ação da scena em que se vê um prado com Cisme-
ia guardando cabritos:
Hagamos agora mencion y querena,
En esta segunda cena en que estamos,
De como enviaban los villanos amos
Guardar el ganado la nifia Cismena, etc.
A scena denunciada è toda entre crianças que vi-
giam gado, o que seria difficil de representar pelo gran-
de numero de versos; no acto terceiro apparecem umas
lavrandeiras cantando, um criado parvo entra com um
cesto de maçãs, e *com o prazer da f meta cantam as
fovrandeiras.*
(1) Fournel, Origines du theatre mod&m&, ^. YL
1241 IJISTORIA DO' THEATRO PORTUGUEZ
Hm novo effeito dramático inventou Gil Vicem
na scena que se passa em nm deserto, em que a Felieií
queixando-se, lhe respondia um ecco. Este género d
poesia era conhecido dos gregos e romanos, como «
vê por um epigramma de Marcial e pela Anthologia;*
natural que Gil Vicente conhecesse esta forma, empre
gada pela primeira vez na edade media por Giles de
Vimiers, poetado século xtn, em uma canção. (l)Eu
Rabelais, quando Panurgio consulta Pantagruel para
saber se deve casar-se, as respostas fazem sempre eccc
com a ultima palavra do consulente. Todas estas pe-
quenas circumstancias provam que Gil Vicente co-
nheceu o theatro e a litteratura franceza, e a elles de-
veu o seu progresso. A scena do Ecco, em Gil Vicen-
te, é de um lyrismo inimitável; a sua extensão não dei
xa aqui reproduzil-a. A Comedia da Rubena foi repre-
sentada em Évora; n'este tempo ali vivia um fâmul(
do Bispo Dom AfFonso de Portugal, chamado Affonsc
Alvares, também poeta, e auctor de Autos. A sua mui
ta parcialidade pelos frades ao mando de quem escre-
via os seus Autos, fazem suppôr que os mesmos frade
satyrisados por Gil Vicente, quizessem crear em Affon
só* Alvares um rival para derrocar o poeta chistoso d
corte de Dom Manoel.
De 1 1521 ao Sm do anno de 1523 não represento
Gil Vioente Auto algum na corte; desgraças e gran
des intrigas palacianas occupavam o animo do monar
(1) Lfllànnes, Guriotité* Littwaire*^. 33.
NO BBCULO XVI 125
oha recentemente «cclamado. No principio do reinado
de Dom João m, é que so deu a extranha anedoota da
queixa do Conde de Marialva, Dom Francisco Couti-
nho, contra o Marquez de Torres Novas que dizia ter
easadò clandestinamente com Dona Guiomar, filha do
Conde, a qual estava promettida ao Infante Dom Fer-
nando, no testamento de el-rei Dom Manoel. O arrui-
do (Festa polemica foi immenso. A e£te tempo também
frequentava a corte o poeta philosopho Sá de Miran-
da, e parece que na sua écloga Aleixo, se encerram
allu8ões profundas a esta catastròphe, allusões que vie-
ram a produzir o seu ostracismo voluntário. (1)
D'aqui se infere que Gil Vicente conviveu também
na corte com Sá de Miranda, e adiante veremos que as
soas relações litterarias não foram amigáveis. Come-
çava-se a introduzir o espirito italiano, ou da renas-
cença, que se ria dos velhos raysterios do nosso poeta,
e que condemnava a comedia em verso. Negando a in-
venção dos Autos a Gil Vicente, não lhe tiraram a ori-
ginalidade da contextura, mas reconheciam a priori-
dade do theatro francez. Emfim, começava então a
grande lucta da eschola italiana, contra a chamada es-
chola velha ou hespanhola.
Já em 1523 encontramos Gil Vicente a braços com
a miséria, e atacado pelas mais injuriosas calumnias
foi n'este anno de 1523, que elle escreveu a celebre
(1) Desenvolvemos esta investigação na Vida de Sá de
Miranda.
126 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
farça de Inez Pereira, representada no Convento d
Thomar, diante del-rei' Dom João iii. «O seu argu
mento he que, porquanto duvidavam certos homens à
bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou
se as furtava de outros autores, lhe deram este ihemn
sobre que fizesse : s. hum exemplo commum, que dizem:
Mais quero asno que me leve, que cavallo que me der-
rube. E sobre este motivo se fez esta farça. »
Que eloquência n'esta simples rubrica, aqui traça-
da pelo poeta ; é uma delatação á posteridade, um raio
de luz para dentro de uma alma, que ria, mas que san-
grava e suava no seu horto, como Molière ! Depois da
morte de Dom Manoel, o partido clerical tomou um
grande ascendente no animo de Dom João iii ; tantas
vezes satyrisado por Gil Vicente, calumniava-o para
se vingar. A farça de Inez Pereira foi o repto, nobre-
mente levantado pelo infamado dramaturgo; è umaco
media de caracter, moderna na perfeição da contextu-
ra, antiga pela natural simplicidade. O rifão dado poi
thema pelos homens de bom saber, parece um motejo
fórmula pratica da vida, o poeta soube pôr-lhe em re
levo toda a sua realidade.
Este rifào sobre o qual Gil Vicente escreveu a fai
ça de Inez Pereira era popular, e ainda o encontra
mos repetido por Francisco Rodrigues Lobo na Côri
na Aldeia: «A mim me parece em rasão d'aquelleprc
verbio : Antes asno que me leve, que cavallo, que m
derribe.» (1)
(1) P. 82, da ediç. 1722.
NO SÉCULO XVI 127
"Na rubrica da farça de Gil Vicente, a phrase cer-
tos homem de bom saber refere-se especialmente aos
adeptos da litteratura culta da renascença, que conde-
innando em Gil Vicente o espirito original e atrevido
" da edade media, queria fazer valer em Portugal o gos-
| to italiano e o classicismo. Se abrirmos as Cartas de
Sá de Miranda, companheiro de Gil Vicente nos se-
rões do paço e nas palestras poéticas do Cancioneiro
geral , percebe-se o sentido da seguinte quintilha :
Que troca vêr lá Pasquinos
Desta terra cento a cento,
Quem o vê sem sentimento
Tratar os livros divinos
Com tal desacatamento.'
que se nfio deve ousar
Até, se em giolhos não,
(Que graças para chorar)
Torcem fazendo falar
Ao som da sua paixão. (1)
Todas as grandes obras, foram inspiradas nos tran-
ces d'este martyrio. Sophocles cria a tragedia sublime
de Philoctetesj quando se vê forçado a provar que
ttào está doudo, e se appresenta para lel-a aos juizes
athenienses. O que è o Prometheu de Eschylo, con-
catenado aos rochedos caucasicos, devorado pela águia,
que lhe vae dilacerando as entranhas? É o vulto do
grande trágico, depois de haver revelado sobre a scena
°8 raysterios recônditos do antropomorphismo grego,
(1) Carta a António Pereira, est. 33 etc, p&g.%& ^ AWV
r
128 HISTORIA DO THEATRO FORTUGUEZ
ameaçado pelos sacerdotes e hierophantes, arrastado
pela plebe turbulenta ante o Areópago ! Eschylo defeca !£
de-se; o seu triumpho é só completo .sobre o palco,
sua arma é o terror, com que amedronta e faz gelar dç
espanto. Elle apresenta as Eumenides desgrenhadas M
grande coro do bárathro, e as mulheres abortam,
crianças morrem enfiadas de susto inaudito. Exemplo*
d'estes encontram-se nas origens de quast todas «8
grandes obras cVarte, que fazem lembrar aquella luta Ir
sublime do nosso velho Plauto, Gil Vicente, ludibria- ^
do na corte de D. João iii, pela clerezia infrenne, cu-
jos tramas inquisitórios e nefandos o poeta ia desmas-
carando nas allusões dos seus Autos. A vingança foi
atroz; voltaram-se contra elle dizendo que as comedias
não eram da sua invenção, negaram-lhe o talento, e
mais que tudo os sentimentos de pae. poeta genero-
so quiz desaggravar-se, e do thema ridículo que lhe '
deram, tirou armas contra a calumnia, apresentando
a primeira comedia de caracter, a farça de Inez Pe-
reira. N'este drama sente-se mais do que em nenhum
outro o auctor; o excesso de rigor, com que ver-
bera a calumnia^ è porque elle é a primeira victima, e
transfigura-se, esconde-se nos typos que phantasia,
como Eschylo na audácia do Promethau; mas essas
criações, que elle traz ao festim do proscénio, soffrem
com o sen espirito, é a grande ceia em que dá a comer
a sua carne e a beber o sen sangue, como disseram já
de Shakespeare. Deixal-o suar no seu horto 3e agonia,
porque as bagas, que agora Uve escorrem da fronte, são
NO SECDLO XVI 129
do futuro as pérolas do seu diadema. Deixal-o experi-
mentar as dores do passamento, tporque a cada morte
vem um novo canto do cysne. Elle prosegue impellido
pela fatalidade irresistível do génio creador, Mazeppa,
qite se precipita á voz que Jhe brada — Away! e ba-
leia em terra para se levantar um dia rei, cuja so-
berania é reconhecida quando está já no tumulo da
sua dynastia, a quem se alevantam cipos, estatuas,
muitas vezes depois de o deixarem morrer de fome. E
porque o génio precisa ser visto a distancia, como um
foco de muita luz; o homeni, que anda entre nós, que
nos aperta a mão nas ruas, que se ri também comnos-
co e se doe das nossas dores não é digno da apotheose.
A desgraça do poeta, apesar do seu completo trium-
pho, por isso que achamos a Farça de Inez Pereira
continuada em Almeirim com o titulo de Juiz da Bei-
ra, com o intervallo de um anno, a desgraça, no reina-
da dos frades e da hypocrizia, era inevitável. A 24 de
Dezembro d 'este mesmo anno de 1523, acompanhou a
corte para Évora, representando ali na capella o Auto
Pastoril portuguez. Gil Vicente entrou em scena ves-
tido com trajos de lavrador, expõe qual ha de ser o en-
rexo da peça, enumera as figuras, e diz :
E hum Gil... hum Gil... hum Gil
(Que má retentiva hei !)
Hum Gil... já não direi :
Um que nílo tem nem ceitil, etc.
Palavras desoladoras e de morte, no anno em que
9
130
HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
triumphou dos seus inimigos e detractores com a fa
ça de Inez Pereira. O pedido de um Auto pastoril pj
a noite do Natal, seria talvez mais para aperrear o
ta, que tinha já bastante esgotado o assumpto. O poe-j
ta bem conhece que não é a admiração pelo seu talei
to, e queixa-se n*esses versos do prologo. O scenai
representa um bosque; uma pastora entra em scei
com o seu gado; no meio dos vários diálogos de pas
res vem Margarida, pastora, que achou nua imagem
Nossa Senhora, e tral-a escondida ri um feixe de
nka. . .» N'isto entram quatro Clérigos, e resam á ima-J
gem o hy mno O gloriosa Domina, reduzido a farsit
re por Gil Vicente, e os pastores saem cantando eml
chacota uma deliciosa cantiga.
O triumpho da Farça de Inez Pereira não esqne*]
cera; durante o anno de 1524 esteve Gil Vicente afai
tado da corte. Desenfadando-se dos trabalhos da ad-
ministração publica em Almeirim, no sitio onde Dora
João iii na mais tenra edade levantara um convento
para os frades de Sam Domingos, ali quiz o monarch*
distr;iir-se com mais uma farça de Gil Vicente. Foi
em 1525, que o poeta representou a continuação da
farça de Inez Pereira; intitula-se o Juiz da Beira, 6
representa uma audiência de um juiz imbecil, que não
percebe os factos e direitos que se allegam. Aqui ap-
parece o espirito sarcástico de Rabelais quando accu-
sava de falta de philosophia os jurisconsultos antigos.
Seria talvez a farça de Juiz da Beira uma satyra con-
ta? h ali lívido de proçes^s $ \w#TteiA <ta feitos, que
NO SÉCULO XVI 131
iiltaram da reforma dos Foraes, por Dom Manoel?
Vicente quer a secularisação da sociedade, mas
da não comprehende a democracia.
Os Autos de Gil Vicente, segundo a velha usança,
iavam-se parte integrante das festas nacionaes e do
osijo publico. Frei Luiz de Sousa descreve o gosto
1 que a fidalguia portugueza se preparava para o
amento de Dom João iti ; descobrindo a grande sen-
lidade do monarcha, diz como fora aconselhado por
os os poderes para que escolhesse esposa; Dom
o iii dilatava a realisação do pedido allegando que
pae lhe impuzera, primeiro que tudo, casar a In-
ta Dona Isabel; desposou- a o imperador Carlos v, e
•mã d'este, a infanta Dona Catherina, casou com
m João iii. A escriptura do casamento, conservada
Dom António Caetano de Sousa, mostra quanto a
aeza nacional era delapidada pelo fausto real expio-
o pelas outras côrte6. A infanta Dona Catherina,
itava dezoito annos de edade; a 14 de Fevereiro de
Í5 partiu para Portugal, Dom João m espera va-a
Crato, indo passados dias juntos para Almeirim,
íste anno, e em Almeirim representou Gil Vicente
arca do Juiz da Beira, mas nenhuma allusão ahi dá
ntender que fosse já diante da nova rainha ; pelo
itrario encontramol-o tomando parte nos festejos
í se fizeram em Évora pelo desposorio de Dom
io iii. Na rubrica da Fràgoa de Amor, dá a enten-
que não representara esta tragicomedia diante do
oarcha: a representada na festa do d€$ço*an& A,c\
132 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
muito poderoso e catholieo Rei de gloriosa memoria,
Dom João o terceiro doeste nome, com a Sereníssima,
Rainha D. Catherina, nossa senhora, em sua ausência,
na cidade de Évora, na era de Christo nosso Senhor de
1525.» Nos festejos pelo desposorio do rei, Évora quiz
ter um Auto de Gil Vicente; era então uma das maio*
res pompas; costumada a estes divertimentos scenicos,
se é que o seu poeta Affonso Alvares ahi representara
os Autos que escreveu, quiz honrar-se com uma com-
posição do velho poeta palaciano, que deliciara já duas
cortes. A Fragôa de Amor, foi escripta para estes fes-
tejos, e representada na ausência do monarcha; é por
tanto esta a primeira tragicomedia representada dian-
te do publico. A pobreza em que Gil Vicente estava,
como vimos na sua queixa em Évora em 1 523, levaria
aquella cidade a convidal-o para a composição da tra-
gicomedia. A Fragoa de Amor abre com a entrada de
um Peregrino, que procura um Castello afamado: «1?
o Castello que aqui se falia he por metaphora, por que
se toma Castello por Catherina.» Passadas algumas!
scenas, apparece este quadro bastante espectaculoso,
que Gil Vicente indica em uma rubrica: « Em este pas-
so foi posto um muito formoso Castello, e abriu-se tf
porta d'elle e sahiram de dentro quatro Galantes em r
trajo de caldeireiros, com, cada hum, sua serrana mui-
to louçan pela mão, e elles mui ricamente ataviados,
cubertos de estreitas , porque figuram quatro Planetas*
e ellas os Gosos do Amor; e cada hum delles traz ttíJtft,
martello muito façanhoso, e todos dourados e pratea
NO SÉCULO XVI 133
?s, e huma muito grande e formosa fragoa (bigorna)
o Deos Cupido por Capitão d' tiles: e estas Serranas
razem cada hua sua tenaz do teor dos martellos, para
ervirem quando lavrar a Fragoa d' Amor. E assi sahi-
*am do dito Castello com sua musica } e acabando fa-
'*em- o razoamento seguinte para declaração do signifi-
cado das ditas figuras, e cada. Planeta fala com sua
Serrana. » A figura de um Negro que viera de Torde-
tillas, onde se assignaram as escripturas do casamento
lo Rei : Entra ...na Fragoa, e andam os martellos to-
tós quatro em seu compasso, e cantam as Serranas qua-
Wo vezes ao compasso' dos martellos esta cantinga...
^eitapelo Autor ao propósito.* Era Gil Vicente, como
bastantes vezes o dá a entender, o que ensoava, ou pu-
aha em musica as chacotas dos seus Autos. Esta tra-
gicomedia é uma espécie de magica; o Negro na Fra-
goa, tornou-se lépido: ^Sae o Negro da Fragoa mui
gentil homem branco, porém a fala de negro não se pô-
de tirar na Fragoa... c Aqui faz Gil Vicente uma sa-
tyra profunda á justiça do reino ; t Vem a Justiça em
figura de hua velha corcovada, torta, muito mal feita,
tom sua vara quebrada. » Vem pedir que a endireitem,
e que lhe façam as mãos menores para não acceitar as
dadivas d'esses Senhores que a entortam. « Andam os
martellos forjando a Justiça com a dita musica* ... e
c Tornam os Planetas a dar outra calda, e a Serrana
Primeiro-goso-de Amôr } tira da fragoa com umas tena-
zes hum par de gallinhas. » * Andam segunda vez os
nartellos/ e a Serrana Segundo- goso-de, amor, tvra àa
134 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
fragoa um par de pássaros.» — a Tornam outra w2*F fi;
dar outra calda e tiram as Serranas Terceiro e Quaf-
to-goso-de-amôr , duas grandes bolsas de dinheiro tbl
fragoa.» *Sae a justiça da fragoa mui foi mosa e <K"|
reita. » Aqui vem uma satyra pungente contra os fra-
des. Indo-se a Justiça, vem um Frade pedir para
refundido e desfradar-se :
Sômós mais frades que a terra
Sem conto na Christandade,
Sem servirmos nunca em guerra,
E haviam mister refundidos
Ao menos três partes (Telles,
Em leigos, e arnezes n'elles,
E mui bem apercebidos,
E então a Mouros com elles.
Indo-se o Frade, passadas duas acenas, entra no*
vãmente com uni saco de carvão, para ser refundido,
com a licença do seu Superior, para elle e mais sete
mil. Gil Vicente termina a tragicomedia com um*
ária final, e dá a entender, que será continuada. À
Fragoa de Amor, é importantíssima para o conheci-
mento dos recursos da scena de que o poeta dispunha;
ali nos descobre como caracterisava os Planeias, que
tantas vezes entram nos seus Autos. EPella se revela
o génio que o fez sempre triste; em um festejo de
consorcio real, a veia sarcástica diffunde-se á larga;
toca o assumpto apenas por allegoria.
Depois da chegada da rainha Dona Catherina ao
Crato, Dom João iii partiu com ella para Almeirim,
NO SÉCULO XVI 135
to Iogar da sua predilecção ; ali foi representar Gil Vi-
f Gente a farça do Clérigo da Beira em 1526, provável-
Doente, na véspera do Natal, como da mesma farça se
deprehende; e portanto foi ali primeiramente repre-
sentada a tragicomedia do Templo de Apollo, na par-
*tida da Infanta D. Isabel, irmã de Dom João iii, que
casou com Carlos v. O casamento da Infanta ceie-
trara-se a 17 de Outubro de 1525; um grande sarau
xeal, como conta Frei Luiz de Sousa commemorou o
dia do desposorio ; estava prestes tudo para a jornada
da nova imperatriz na sua ida para Castella ; « mas
sendo visto o Breve por pessoas curiaes e doutas, as-
sentaram que convinha passar-se em mais ampla for-
ma, vistos os muytos vínculos de parentesco que entre
os contrahentes avia.» (1) A impetração e vinda de
outro Breve dilatou-se ao anno de 1526 ; n'este meio
tempo soffreu Gil Vicente um duro golpe, nada menos
do que a morte da sua única e disvelada protectora, a
rainha Dona Leonor, viuva de Dom João ii, e tia de
el-rei Dom João iii. D'aqui em diante veremos ago-
nisarem todas as esperanças do poeta. Quando no
principio do anno de 1526 foi a partida para Castella,
a corte estava de luto ; não se fizeram as festas com a
pompa que se projectava. Apenas o desgraçado Gil
Vicente, que estava doente de febres malignas, foi con-
vidado para compor uma tragicomedia para ser repre-
sentada na partida da imperatriz Dona Isabel, filha de
(1) Frei Luiz de Sousa, Armões de D. João III, p. 137.
136 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
el-rei Dom Manoel; as febres de que esteve doente
eram de calenturas ou sezões. A tragicomedia intitu-
lada Templo de Apollo, abre com um prologo em que
Gil Vicente fala e se desculpa da imperfeição da obra:
«Entra primeiramente o Autor. E por quanto os dica
em que esta obra fabricou esteve enfermo de grandes fa
br es, vem desculpando-se da imperfeição da obra para
tão altafesta } e diz :
Autor
Temendo fiebre continua
Aquestos dias passados,
La niuerte posta a mis lados
Diciendo-me — atna, aina
Que tus dias son llegados !
Y tomado ansi entre puertos,
Me pareció que morria...
Dice todo em Castellano,
El sprito mio ausente ;
Y pues la obra es doliente,
Valgame el deseo sano
Que estuvo siempre presente.
Admittida a deducção do anno em que nasceu Gil
Vicente, em 1470, n'esta doença contava já cincoenta
e seis de sua edade ; cada vez se lhe toldava mais o
horisonte e se lhe tornava mais difficil a lncta. Não
se podendo fazer devidamente as festas na partida de
Dona Isabel pelo luto da corte com a morte da rainha
Dona Leonor, convidaram o poeta para uma tragico-
media com que entreter o serão ; já havia passado o
enthusiasmo por estes divertimentos dramáticos. No
argumento da peça, diz Gil Vicente :
NO BECULO XVI 137
Este palácio ensalzado
Para este Auto es tornado
Muy fermosissimo templo
De Apollo, dios adorado
Y aquelle es su altar, etc.
Por estes versos se descobre a decoração da sala e
disposição do scenario. O poeta, no seu argumento,
scusa-se de explicar o entrecho da peça, fiando-se na
lustração dos cavalleiros que o escutam :
Y pnes la presente obra
Hade ser representada
En esta corte sagrada,
Donde sé que el saber sobra,
No declaro d'ella nada...
N'esta tragicomedia, representou um filho de Gil
r icente o papel de Porteiro do Templo, como se deduz
os versos de Apollo :
Ora sus, alto, Gilete, etc.
E esta parte, no meio das allegorias de Vencimen-
7, Cetro Omnipotente , Tempo glorioso. Flor da Genti-
tza, Fama, Gravidade, Sabedoria, è que espalha o sal
omico, que tornaria a festa do paço jovial. Foi a 10
e- Março de 1526, que o Imperador Carlos vea in-
inta Dona Isabel receberam em Sevilha a benção nu-
ciai dada pelo arcebispo de Toledo. Cesta alliança
as doas cortes, resultou para Portugal uma paz se-
ara, que durou até 1534. (1) N'este mesmo anno um
(1) Schcefer, Hist. de Port. } p. 596.
138 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
grande terremoto deixou em ruínas as cercanias
Lisboa ; a corte fugiu para Coimbra ; Gil Vicente
acompanhou a corte, e ali a distraiu com a sua Farp
dos Almocreves, representada em 1526. « O fundamos
to 6l esta f arca Ke, que hum fidalgo de muito pouca renià
usava muito estado, e tinha capellão seu e ourives seu, t
outros ojfidaes, aos quaes nunca pagava.* Com esta farça
indicaria Gil Vicente uma lei sumptuária? D'aqaiem
diante è que começaram a ser decretadas. O typo do
Fidalgo caloteiro, perseguido pelo Capellão, pelo Ou-
rives, pelos Almocreves e outro fidalgo, e respondendo
sempre com boas palavras, pagando com grandes pro-
messas, é o primeiro esboço da creação do Mercadet de
Balzac. Gil Vicente comprehendeu que o problema da
arte dramática é o caracter. Falta-lhe a liberdade para
compor livremente ; se alguma cousa avança é prote-
gido pela facécia e pela condição infamante da vida
de actor, que a este pretexto se tornaria então como
irresponsável. N'este anno de 1526 procurava entrar
a Inquisição em Portugal ! No mez de Dezembro
d'este anno já a corte se encontrava outra vez em Al-
meirim ; o papa Clemente vn enviava a Dom João m
o presente com que a cúria romana brindava os Beis
beneméritos da egreja, a Rosa sagrada, com jubileu
para o monarcha e indulgências para mais de cem
pessoas que nomeasse. As festas com que foi recebido
este mensageiro do Papa, que trazia a Rosa, talvez
dessem origem ao Auto que* Gil Vicente representou
em 1526 em Almeirim. A farqa do Clérigo da Beira,
NO SÉCULO XVI 139
é uma satyra aos clérigos que viviam em mancebia, e
que se entregavam ao prazer da caça, esquecendo os
officios divinos. Em scena, o Clérigo resa o Breviário,
gritando ao mesmo tempo aos cães, que buscam os
coelhos; as orações de um Preto ladrão parodiadas
em giria mostram a audácia do poeta, estando já em
vigor a Inquisição. Aqui cita os nomes dos vários per-
sonagens, que estavam presentes á representação da
Farça, o Embaixador de Carlos v, Monsieur de la
Xaus, Carlos Popet, que recebera por procuração a
Infanta Dona Isabel ; cita também o velho Conde de
Marialva, cavalleiro da corte de Affonso v, de Dom
João li e Dom Manoel; o poeta allude á sua avançada
edade :
Com todas suas feridas,
E muito enferma canseira,
Contratou-se de maneira,
Que Deos lhe deve trez vidas,
E esta he inda a primeira.
A farça do Clérigo da Beira è a primeira que ter-
mina sem a chacota do estylo. De repente interrom-
peu Gil Vicente a direcção secular que levava a sua
musa dramática, e volta outra vez aos Autos religio-
sos da edade media. Eram as exigências de uma corte
catholica e fanática que o obrigavam a esta decadên-
cia. Em 1527, estando ainda a corte em Almeirim,
ali representou diante de Dom João in e da rainha
Dona Catherina sua mulher, o Auto intitulado Breve
Summario^da Historia de Deos, peça im^Ttos&ò^wfe.
140 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
se conhecer os recursos de scenographia de que jA po-
dia dispor Gil Vicente, e que descobre a origem fran-
ceza d 9 onde o poeta tirou a primeira ideia dos seus
Autos. Aragão Morató, na Memoria sobre o theatro
portuffuez, foi o primeiro que aventou esta opinião hoje
somente comprovada. Aragão Morato reconhece que
a Historia da Vida de Christo, de Jean Michel, tem
suas analogias com o Auto da Historia de Deos, de
Gil Vicente.
A este propósito cumpre transcrever aqui as pala-
vras de Barreto Feio, no prologo da edição de Ham-
burgo, em completa contradicção com a sua hypothese
sobre a origem hespanhola dos Autos de Gil Vicente:
«É possível que Gil Vicente, uma vez empenhado
na carreira dramática, por suas próprias diligencias ou
por intervenção da corte, viesse a deparar com as com-
posições francezas. Com effeito, quem comparar qual-
quer d'estas peças, particularmente a Historia de Deos,
com os Mysterios representados em França, poderá
achar algum fundamento para esta conjectura. Assim
estes títulos e dignidades de que o poeta reveste os dif-
ferentes Diabos que põe em scena, mais parecem for-
mar uma espécie de systema adoptado por todos aquel-
les que trataram similhante assumpto, do que casual
invenção do poeta portuguez. Se nos Mysterios fran-
cezes Lúcifer è sempre o Príncipe dos Demónios, em
Gil Vicente é o Maioral do Infernos na peça portu-
gueza Belial é chamado o Meirinho da Corte infernal,
nos Mysterios o vemos deaígn&do çor Procurewr des
NO SÉCULO XVI Hl
Znfers, e eui ambas as partes mostra um caracter
gualmente violento, em opposição á astúcia de Sata-
naz, que, assim no Auto portuguez como nos Myste"
rios francezes é encarregado por Lúcifer de tentar tan-
to os homens como a Christo. É também digno de se
notar de que na peça de que estamos falando, deixa
Gil Vicente a versificação nacional e se aproxima da
franceza.» (1) De facto o Auto da Historia de Deos é
quasi todo escripto em endeixas, ou verso alexandrino.
Pela leitura do Auto se deprehende que a scena não po-
dia ter a disposição ordinária de um tablado único,
mudando-se os logares da acção com a mudança da de-
coração; á maneira dos Mysterios francezes, em que
havia tantos palcos sobrepostos quantos os incidentes
da acção, sendo geralmente dividido em três andares,
o de cima para as scenas do céo, o do meio para a ter-
ra, e o debaixo para o inferno, na Historia de Deos
encontra-se este mesmo arranjo. Um Anjo vem fora
fazer o prologo da peça, pedindo que os ouvintes se não
enfadem; naturalmente o Anjo fez a sua allocução no
tablado superior; Lúcifer, o maioral do inferno, Be-
lial, meirinho da sua corte,, e Satanaz, fidalgo dó seu
conselho, entram em scena para o tablado inferior; Lú-
cifer senta-se, e queixa-se de Deos ter dado a Adão e
Eva as prerogativas que lhe tirara; manda Satanaz ao
Paraíso para tentar Eva, por meio de astúcia; Belial
(1) Obras de Gil Vicente, edição de Hamburgo de 1834^
1. 1, p. XXIV.
142 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
fica-se queixando por não ter sido enviado, porque os
havia de fazer peccar á força. Passado pouco tempo
entra Satanaz com a sua obra consummada. Pouco de-
pois entra um Anjo comum Relógio na mão, apozelie
vem o Mundo vestido como Rei, e o Tempo adiante,
como seu Veador; em seguida entram Eva e Adão ba-
nidos do Paraiso. A Morte também apparece em scen*
e com ella saem do Auto Adão e Eva; seu filho Abel
entra cantando um mimosíssimo vilancete, porém o
Tempo pouco depois o manda sair da scena, por ter os
seus dias acabados: «Entra Abel na escuridade do lim-
bo e diz:
Depois de viver vida trabalhada
Depois de passada tão mísera morte,
Este é o abrigo, esta he a pousada.))
Como se vê por esta rubrica, Abel saiu de um ta-
blado, o do mundo, e entrou n'outro escurecido, que
representava o limbo. Por seu turno, Adão e Eva, que
se tinham apartado do Auto, saem por mandado do
Tempo, e «Entrando na casa de sua prisão, e achando
Abel, seu filho, preso naquella infernal estancia, fize-
ram todos um pranto, cantando a três vozes, etc.» De-
pois que acabaram de cantar e chorar, entra no tabla-
do da terra Job, onde é tentado por Satanaz, que o
toca e fica coberto de lepra.
Esta rubrica revela algum recurso artificioso,
como se usava nos mysterios francezes: por exemplo,
do Mysterio dos Apóstolos, \\u\\* wrcvfc sfòT^ente enro-
NO SÉCULO XVI 143
ar-se a um carvalho, e ali se desfazia em sangue. Á
iforte, chama Job para fora da scena; nos mysterios
>s que morriam eram levados para fora da scena em
arroças ou ás cavalleiras ; saindo da terra, torna a ap-
arecer no limbo, que lhe fica inferior. Entram os
grandes patriarchas Abrahão, Moyses, David, e pro-
betisam a vinda do Messias; provavelmente vinham
estidos de dalmaticas, segundo os velhos mysterios.
*or seu turno descem para o limbo. Aqui principia a
Bgunda parte do Auto, em que trata da Lei da graça;
o sitio em que o Precursor representa, via-se o limbo :
Leva-me morte ; quero-me ir cTaqui,
Que já mostrei Christo a todolos vivos ;
Irei dar a nova áquelles captivos
Cnjo cativeiro terá cedo fim.
((Entrando Sam João rtaquella pmão, com admira-
:ãode grande alegria cantaram os presos o romance* . .
yue o faz o mesmo auctor ao mesmo propósito. 1 »
Depois de Lúcifer estar com receio d^quelles que
tem á sua guarda > «Entra a figura do nosso Redemptor;
e o Mundo j o Tempo e a Morte assentam-se de joelhos,
etc.T> Lúcifer dá a Satanaz um habito de Monge para
ir tentar a Christo; em uma rubrica em que Christo se
dirige ao povo, da Gil Vicente a entender, que o Auto
ião foi representado só diante da corte. Christo sáe
>ara ir soffrer os tormentos da paixão. Consummado o
acrificio t Em este passo vem os cantores, e trazem hua
wnba onde vem hw, devota imagem de Christo morto ; »
144 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEZ
em quanto dura a procissão, os Diabos queixam-se dl
perda do seu poderio. «Aqui tocam as trombetas e cha-
ramellas, e apparece hua figura de Christo na ressurrei-
ção, e entra no Limbo ê soltará aquelles presos bem
aventurados. E assi acaba o presente Auto.* Todas es-
tas representações simultâneas não podiam ser feitas
em um mesmo tablado. Aqui a figura de Christo ni
resurreição eleva-se para entrar no Limbo; também no
velho Mysterio da Creação, Lúcifer e os seus anjos
eram elevados por meio de uma roda impellida debai-
xo para cima, corno indigita a rubrica.
O Dialogo da Ressurreição, não indica ter sido re-
presentado, nem a época da sua composição; parece
uma continuação do Auto da Historia de Deus, e como
tal seria talvez representado em Almeirim, em 1527.
N'este mesmo anno de 1527 fugiu a corte para
Coimbra com medo da peste; estava a este tempo n'es-
ta cidade Sá de Miranda, já da sua volta de Itália; foi
elle que fez o discurso em nome da Cidade a D. João iil
Em uma satyra verbera os fidalgos da corte que sus-
piravam por Almeirim; para supprir a falta de diver-
timentos, foi encarregado Gil Vicente de compor urna
comedia; n'este anno ali representou a Comedia Sobre
a Divisa da Cidade de Coimbra: *Na qual se trata o
que deve significar aquella Princeza, Leão e Serpente e
Cálix ou fonte , que tem por divisa; e assi este nome de
Coimbra donde procede, e assi o nome do rio } e outras an-
tiguidades de que não he sabido verdadeiramente sua ori-
ff f em. Tudo composto em louvor e lumra da sobredita ci-
NO SÉCULO XVI 145
dade.» O Selvagem Mondrigon vinha zmuito desfigu-
rado cuberto de càbello e com hua braga de ferro*. Fora
da scena toca-se uma musica em surdina *hua doce
musica de longe» . t O selvagem Mondrigon com as suas
armas arremette a Celiponcio. Toca Celiponcio pela
sua bosina,pela qual a Serpe e o Leão conhecia sua ne-
cessidade; os auaes acodem mui apressadamente, e ma-
tam o selvage Mondrigon: e logo se vão ao seu castello
e tiram a princeza Celimena e suas donzellas e irmãos. »
Saem todos da scena, e em quanto não voltam, um Pe-
regrino, que fez o argumento da peça, vem explicar os
successos, e encaminhar as attenções do auditório, até
que— * Entra Celimena e suas Damas com seus irmãos,
com grande apparato de musica e a Serpe e o Leão
acompanhando a dita princeza.» Nos Mysterios france-
zes a entrada dos monstros em scena, como Leões ou
Tigres, chamava-se apparicoes; esta apparição era vul-
gar no nosso povo, acostumado a acompanhar na pro-
cissão de Corpus a Serpe e o Drago. No fim do Auto
faz Gil Vicente honrosas allusões á nobreza dos arre-
dores de Coimbra, aos Silvas e Silveiras, aos Sousas,
aos Pereiras, Mellos, e Menezes.
Em uma terça feira, 15 de Outubro de 1527, deu á
luz a rainha Dona Catharina, mulher de Dom João iii
a infanta Dona Maria; ao feliz snccesso d'este parto
foi chamado Gil Vicente para tomar parte nos feste-
jos da corte; diante do monarcha representou a tragi-
comedia pastoril da Serra da Estrella, a qual terminou
com uma chacota cantada de canto dá órgão, ao gosto
146 HISTORIA DO THEATRO PORT.UGUEZ
dos Mysterios francezes. ÍPeste mesmo anno de 1527
voltou a corte para Lisboa, depois de aplacada a peste;
a Tragicomedia Nau de Amores foi representada dian-
te de Dom João in, á entrada da rainha Dona Catha-
rína ; a peça é bastante espectaculosa : « Entra a Cidade
de Lisboa, vestida de Princeza com grande apparato
de musica, falando com suas altezas.» Em outra ru-
brica diz Gil Vicente: « Foi posta no serão onde esta
obra se representou hua náu de grandesa de hum 6o-
tel, aparelhada de todo o necessário para navegar, e os
fidalgos do Príncipe tiraram suas capas e gibões, e fi-
caram em calçdes e gibões de brocado , como carafates;
os quaes começaram a carafetar a nau com* escopares e
maçanetas douradas, que para isso levavam ao stm
d' esta cantiga.» Na corte de Dom João n, nas cele-
bradas festas pelo casamento do príncipe Dom Affonso,
vira Gil Vicente entrar nos momos do serão uma nau
mui bem equipada; aqui repetiu o mesmo apparelho,
talvez bastante apreciado pela corte portuguezá oc-
cupada de expedições marítimas, O Auto acaba com
uma d'aquellas sentidíssimas cantigas dos mareantes
portuguezes : t Começam a cantar a prosa, que com-
mummente cantam nas náos a salve, que diz:
Bom Jesu Nosso Senhor
tem por bem de nos salvar, etc.
O velho cantava como velho, o negro apoz elle como
negro, e respondiaim-lhe os passageiros a quatro vo-
NO SÉCULO XVI 147
is de canto de órgão ; e com isto se vão com a nau, e
mece esta tragicomedia.» Barreto Feio disse, que dos
Lutos de Gil Vicente pouco se tirava para a historia
o theatro portuguez ; as rubricas disseminadas por
uas obras, encerram factos authenticos por onde ella
nteiramente se recompõe.
N'este mesmo anno de 1527, tornou pela sexta vez
a scena com um Auto religioso, representado em Lis-
boa nas matinas do Natal, o heróico poeta Gil Vicen-
te. Não sendo por vezes chamado senão com o inter-
vallo de annos, parece que Dom João iii quiz desmen-
tir a sua animosidade contra Gil Vicente, encommen-
dando-lhe em um mesmo anno seis Autos, representa-
dos ora em Almeirim, ora em Coimbra e Lisboa.
poeta resente-se d'esta violência, e*a sua musa torna-
36 cada vez mais sarcástica; o Auto da. Feira, repre-
lentado nas matinas do Natal de 1527, é inteiramente
>m portuguez, e de tal forma independente e repassa-
lo de ironias contra o partido clerical, que bem se
>óde considerar Gil Vicente como um dos propugna-
es da Reforma em Portugal. Mercúrio, em véspera
o Natal vem abrir uma feira:
E por quanto nunca vi
Na corte de Portugal
Feira em dia de Natal
Ordeno uma feira aqui
Para todos em geral.
Acabado o prologo «Entra o Tempo, e arma huma
nda com muitas cousas. . . » Como já vimos em outro
148 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
logar, os Astros eram sempre caracterisados com rou-
pas pretas semeadas de estrellas ; o Tempo como allego-
rico, trazia os symbolos da ampulheta e da foice, ain-
da que no prologo já estava prevenido o espectador:
Faço Mercador mór
Ao Tempo que aqui vem.
O auto devera chamar-se, segundo a intenção do
Autor, a Feira das graças; nunca Rabelais assentou
golpes mais bem dados e fundos na gente clerical, do
que Gil Vicente n'este Auto. O Seraphim que vem
mandado por Deos á feira, verbera os pastores altos e
os Papas adormidos. Como ninguém faz caso das suas
mercadorias «Entra hum Diabo com huma tendinha
diante de si, como bufarinheiro.» Logo que Roma vem
á feira, diz o Diabo:
Quero-me eu concertar,
Porque lhe sei a maneira
Do seu vender e comprar.
O poeta refere-se aqui á venda das Indulgências e
da independência da egreja franceza.
É inacreditável, como na corte de Dom João in,
no reinado da Inquisição, tivesse Gril Vicente tamanha
audácia. E sublime a linguagem do senso commum,
quando Mercúrio diz a Roma:
Oh Roma, sempre vi lá
Que matas peccados cá,
E leixar vivet os tew*.
NO SÉCULO XVI 149
Por tudo isto, e talvez por grandes resentirnentos
da classe sacerdotal, não representou Gil Vicente nos
annos 1528 e 1529 Auto algum nos serões do Paço.
A influencia da Inquisição espalhara nos ânimos uma
tristeza geral; o desenvolvimento do fanatismo no gé-
nio bondoso do povo, o ódio contra a raça judaica, ti-
raram a alegria franca e puramente nacional. Na Tra-
gicomedia Triumpho do Inverno, queixa-se Gil Vicente.
No prologo d'esta tragicomedia, em que Gil Vi-
cente fala em seu próprio nome, descreve a alteração
profunda que se dera no caracter portuguez desde o
reinado de Dora Manoel ; esta exprobação geral é como
9
um resultado da sua mudez de dois annos.
Depois do Natal de 1527, só em Fevereiro de 1530
é que tornou a ser convidado para representar na cor-
te, pela occasião do nascimento da infanta Dona Bri-
tes, filha de Dom João iii e de sua mulher Dona Ca-
therina. Nasceu a infanta em Lisboa em uma terça
feira 15 de Fevereiro, e fora o seu nascimento como
que uma consolação para a rainha para compensal-a
dâ perda da infanta Dona Isabel em |1529; foi por
esta rasão que Gil Vicente intitulou esta farça Trium-
pho de Inverno. Falando dos antigos tempos de ale-
gria, talvez os da corte de Dom João li, diz :
Se neste tempo de gloria
Nascera a Infanta sagrada
Como fora festejada,
Somente pela vitoria
' Da Rainha alumiada.
Já tudo Ieixam passar,
160 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUBZ
Tudo leixara por fazer,
Sem pessoa perguntar,
A este mesmo pesar
Que foi cTaquelle prazer.
A sorte do theatro, a que Gil Vicente dera origem,
não poderá medrar n'esta esterilidade da corte. Por
este tempo também Sá de Miranda perguntava pelos
bons tempos dos serões de Portugal, quando figurava
Dom João de Menezes com as suas engraçadas coplas.
A poesia fora banida da corte pela severidade monás-
tica; o Auto de Gil Vicente ao nascimento da infanta,
appareceu como para festejo dado pela cidade de Lis-
boa:
Porem co'a ajuda dos céos
Imaginei uma festa
A nossa Júlia modesta etc.
Quando vi de tal feição
Tão frio o tempo moderno ,
Fiz um triumpho de Inverno !
Depois será o do Verão.
N'este mesmo argumento nos explica o poeta a ra-
zão porque tantas vezes fez falar aos seus personagens
em língua hespanhola :
E porque melhor se sinta
O Inverno vem selvagem,
Castellano en su decir;
Porque quem quizer fingir,
Na Castelhana linguagem
Achará quanto pedir.
NO SÉCULO XVI 151
Já no Clérigo da Beira, referindo-se ao Embaixa-
^r de Carlos v, Monsieur de Xaus, diz:
. . . tão sábio e humano
De condição tara graciosa,
Que não tem em nada grosa
Senão em ser Castelhano.
Como Jorge Ferreira, Gil Vicente não quereria
.ue o ouvido portuguez andasse aforado a trovas cas-
elhanas, mas tendo de representar diante de rainhas e
mbaixadores de Castella, a força das circumstancias
brigava-o a abandonar a sua lingua. Na tragicomedia
Friumpho do Inverno, aparece no segundo acto uma
empestade em scena e um navio para naufragar.
nverno, que faz o argumento, diz :
Verna un piloto bozal
Y un marinero aosados
Buen maestro especial:
Y três grumetes bobazos,
Todos cinco navegando,
El piloto ifiorando,
El marinero carpazos
Oireis que le va dando.
Logo que começa a tempestade ouve-se um apito
ue assobia, para acudirem á manobra. Só transcreven-
o esta scena inteira é que se pode fazer uma ideia de
randeza do espectáculo apresentado por Gil Vicente;
eram-se fuziladas vermelhas, e trovoada ao longe fin-
ando uma noite escuríssima; ouve-se o mw \stóKt \*a.
152 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
costa, com a força de vento vê-se a nau soçobrar; os
marinheiros sobem pelos mastros a colher a mezena, a
amainar o papa-figo, em quanto outros invocam o céo;
rasgam-se as velas, quebra a tranca do garupez. Os
Marinheiros fazem promessas á Senhora do Loreto, a
Sam Pedro Gonçalves ; outros começam a dar á bomba,
e alijar o que sáe no convez, e a deitar as arcas ao mar.
No meio do temporal estala um mastro, e os marinhei-
ros gritam contra o Piloto que os. não sabe dirigir.
E bastante longa esta scena, e devera ser surpre-
hendente! Só na corte de um rei opulento, como era
então o de Portugal, se poderiam fazer representações
tão dispendiosas. N'este acto da tempestade de mar,
Gil Vicente inspirou-se das medonhas relações do nau-
frágio dos galeões da índia, que andavam então em
folha volante de mão em mão; aqui faz elle uma satyra
e accusação pungente, como indicando ao monarcha
portuguez que a grande perda dos galeões da índia ê
devida aos pilotos ignorantes :
Esta é huma errada
Que mil erros traz comsigo,
Officio de tanto p'rigo
Dar-se a quem não sabe nada.
Depois d'esta grande tempestade, apparecem três
Sereias á tona de agua, cantando toda3 três um vilan-
cete. Gil Vicente, fazia de Inverno, n'este Auto, e quasi
no fim d'elle se dirige a Dom João iii, dizendo:
NO SÉCULO XVI 153
Y por que vá enflaqueciendo
Mi fuerza dei ante vos,
Para decir lo que entiendo
Sefiora, diga le Dios,
Que yo ya voy pereciendo.
N'isto manda as três Sereias cantarem diante de
'om João iii um Romance que é como uma recapitu-
ição da historia de Portugal. A segunda parte d'esta
•agicomedia trata do Triumpho de Verão como o poe-
\ promettera no prologo ; a parte principal e verdadei-
amente admirável para o tempo é apresentar em scena
im jardim encantado, representando symbolicamente
is virtudes do Monarcha.
«O Verão vae apresentar o Jardim a El- Rei*; e pa-
rece que Dom João iii entrou na folia com que remata o
Auto, como se vê pela rubrica : « Os Cintrãos em folia
com o Príncipe se vão cantando». No argumento do
Auto, Gil Vicente diz: ^representada ao excellente
Príncipe El-Rei Dom João III», o que dá a entender
que a rubrica final se referia ao Rei.
Também nas festas do casamento do príncipe Dom
Affonso, El-Rei Dom João n tomou parte nos festejos,
vestido de Cavalleiro do Cysne; por certo Dom João
Hl não era de caracter mais severo e taciturno. No
anno de 1531 ach&va-se Gil Vicente em Santarém,
fóra da corte, como se vê pela Carta que escreveu a
Dom João iii acerca do terremoto de 26 de Janeiro
creste anno. Esta Carta mostra a grandeza de cora-
ção do poeta,, que pela energia do aeu e&arosXftR ^ ^~
154 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
vou de uma horrível carnificina os christãos novos de
Santarém. Por esta Carta se vê também o grau de in-
timidade que o poeta tinha com o monarcha. Assim
como no Triumpho de Inverno do anuo antecedente,
fala agora de estar muito visinho da morte; contaria
por certo sessenta e um annos, como por deduções se
descobriu. Estão acabados os bons serões de Portugal;
só o nascimento de algum Infante, prestará extraordi-
nariamente occasião para Gil Vicente compor algum
Auto. Em uma quarta feira, 1 de Novembro de 1531,
nasceu o Príncipe Dom Manoel, em Alvito; em 1532
representou Gil Vicente, para festejar o nascimento, a
farça intitulada Auto da Luzitania:
Para que corrpridamente
Aito novo inventemos,
Vejamos um excellente
Que presenta Gil Vicente
E por hi nos regeremos.
Elle o faz em louvor
Do Princepe nosso senhor,
Porque náo pôde em Alvito,
Logo virá o relator,
Veremos com que primor
Argumenta bem seu dito.
Por estes versos se vê onde foi o logar da repre-
sentação; e principalmente dá a entender que os seus
Autos começavam a ser imitados. Referir-se-hia por
ventura aos Autos de Affon§o Alvares, protegido pelos
honrados cónegos de SamNicentoô^ 15^ argumento, o
NO SÉCULO XVI 155
Licenciado fala de Gil Vicente, de um modo que se cre-
ria serem dados biographicos se não fosse repassado
le ironia o que ali se descreve. D'esta vez o relator da
peça termina o argumento em prosa.
A 25 de Maio, de 1532, em uma terça feira, foi o
nascimento do príncipe Dom Philippe; para festejar
este successo, representou o poeta diante de D. João in
a tragicomedia intitulada Romagem de Aggravados,
em Évora, onde fora o parto da rainha Dona Cathe-
rina.
A indole da tragicomedia está caracterisada por
Gil Vicente n'estas palavras da rubrica histórica:
*Esta tragicomedia seguinte lie satyra». O retrato de
Frei Paço, que «entra com seu habito ê capello, e gorra
de veludo, e luvas e espada dourada, fazendo meneios de
mito doce cortezão*, é completo e inimitável; em si
resume toda essa espécie neutra ou hybrida que enchia
a corte de Dom João iii. E sublime a coragem com
que Gil Vicente escalpeliza a sua hediondez moral;
Frei Passo faz o prologo do Auto, e fica sentado em
8cena para ouvir os aggravos dos que entram. A rai-
nha Dona Catherina também assistira á representação,
como se vê pelos versos finaes. N'este mesmo anno, es-
tando a corte ainda em Évora, representou diante de
Dom João iii a tragicomedia cavalheiresca Amadis de
Gaula. Depois da morte da rainha Dona Leonor, viu-
va de Dom João n, Gil Vicente só encontraria protec-
jão contra o partido monachal no Infante Dom Luiz,
rmão de Dom João iii, apaixonado pela arte drama-
156 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tica, e imitador dos Autos que vira na corte; não è
por se lhe attribuir a comedia de Los Turcos, que leví
a esta inducção, mas o julgar-se que é de lavra sua aj
Tragicomedia de Dom Duardos. Na escolha do assum*]
pto, mostra Gil Vicente o querer lisongear o gosto de
monarcha, que na sua infância recolhia das mãos dè]
João de Barros os cadernos do Clarimundo para ir se*]
guindo a aventura cavalheiresca; na escolha do AmaA
dis de Gaula, seguo o gosto do theatro francez, que]
também punha em scena a historia dos Quatro filhoí\
de Aymon. Quasi todas as obras mais perfeitas de G3
Vicente foram representadas em Évora, o que dá a en-
tender, que ali a eschola dramática começada por Af-
fonso Alvares precisava de ser convencida da superio-
dade do mestre. No Amadis, a parte espectaculosa è
brilhante, apparece a corte do Bei Lisuarfce com suas
damas ; Oriana e Mabilia sentam-se na borda de um
tanque, e a scena representa um pomar no qual se pas-
sam as aventuras do mais leal amor. Pela primeira vez
apparece em scena um Anão ; ali Amadis veste os há-
bitos de Ermitão para fazer penitencia. Pelos nomes
dos personagens se vê que Gil Vicente não conhecia o
poema francez de Amadas y Ydoine; a versão hespa-
nhola de Amadis de Garci Ordonhes de Montalvo fôra
feita entre 1492 e 1504; nos versos dos poetas da cor-
te de Dom João n muitas vezes se allude a Amadis, e
á continuação de Montalvo intitulada Las Sergas de
Splandian; tendo frequentado essa corte, é natural que
Gil Vicente seguisse para a comçoa\^>d*tragicome-
NO SÉCULO XVI 157
dia a versão hespanhola, bastante conhecida e vulgari-
sada em 1519 e em menos de um século traduzida em
italiano, francez, inglez e allemão. arruido causado
então por essa novella, e o gosto do monarcha, faria
por certo com que o poeta a escolhesse, como um as-
sumpto de occasião. Â linguagem toda castelhana em
que está escripta a tragicomedia, mostra a sua deriva-
ção. A versão original portugueza, como manuscripta,
não se podia vulgar isar tanto, e talvez que andasse já
perdida, por isso que só em 1589 é que o filho de An-
tónio Ferreira fala da existência do Manuscripto na
casa de Aveiro, já como uma preciosidade única.
Na tragicoraedia de Amadis de Gaula, seguiu Gil
Vicente pela primeira vez o processo de extrahir as si-
tuações dramáticas de uma composição novellesca. Se-
1 guia instinctiva mente o mesmo progresso que levou os
trágicos gregos a tirarem as suas composições da Ilía-
da. Barbosa Machado e Manoel de Faria e Sousa attri-
buem ao Infante Dom Luiz a tragicomedia intitulada
Dom Duardos; o auctor da Vida do Infante seguiu esta
asserção. As obras de Gil Vicente foram por elle clas-
sificadas para a impressão, e apezar de se dar a este tra-
balho já cansado da velhice, não podia incluir como
sua uma obra extranha n'essa collecção. Dom Duardos
foi representado diante de Dom João ni, como se vê
pela rubrica; porém não se declara aí o logar nem o
anno. Depois do apparecimento do Amadis, a grande
influencia litteraria que produzira deu origem a outras
novellas do mesmo género, e d'ahi data o cyclo dos
158 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Palmeirins. E natural que Gil Vicente representasse
o Dom Duardos ainda em Évora ; n'este mesmo anno'
de 1533, se imprimiram as aventuras de Primaleão, se-
guidas das de Platir, neto de Palmeirim. As novellas
de cavalleria estavam agora em moda na corte porta-'
gueza, e a este tempo já o livro das Saudades de Ber-
nardim Ribeiro andava por mãos que o tornaram em
parte apocrypho. Representando em uma corte opu-
lenta, para distracção de monarcha faustoso, Gil Vi-
cente dava a estas coniposições cavalheirescas um es-
pectáculo esplendido, a Entra primeiro a corte de Pai-
meirim com estas figuras, s. Imperador, Imperatriz,
Flerida, Artada, Artrandria, Primalião, Dom Ro m .
busto; e depois á" estes assentados entra Dom Duardos
a pedir campo ao Imperador com Primalião, seu filho,
sobre o aggravo de Gridonia.» Dá-se o combate em
scena; separados os cavalleiros por Flerida, entra Mai-
monda «a mais feia creatura que nunca se viu*; isto nos
indica o emprego da caracterisação usada no velho thea- |
tro português. Na scena abre-se uma porta que dá
para um jardim onde Dom Duardos entra vestido de
hortelão; na fonte do jardim enche-se uma copa encan-
tada para Flerida beber, as damas tocam seus*tirrabi-
les e cantam; conhecido o príncipe Dom Duardos, Fle-
rida segue-o, ao som de um romance que se tornou po-
pular no seoulo xvi, chegando a entrar no celebre Can-
cionero de Romances de Anvers. E impossível fazer sen-
tir as bellezas litterarias d'estas composições em ura
capitulo destinado a mostrar o& t^cvvtsos materiaes de
milha o Theatro poitugvk^L.
NO SÉCULO XVI 159
Por documentos legaes datados de 1534, se vê que
3Ôrte estava ainda em Évora n'este tempo; ali, ás
itinas do Natal representou Gil Vicente o Auto da
ojina Mendes; descobre-se alguma cousa acerca da
aposição do scenario, nos versos:
Mandaram -me aqui subir
Neste sancto amphitheatro ,
Para aqui introduzir
As figuras que hão de vir
Cora todo seu apparato.
N'este prologo, feito por um Frade, a modo de pre-
tção, dá Gil Vicente a este Auto a denominação fran-
za de Mysterio.
Depois de acabado o prologo: *Em este passo en-
a nossa Senhora, vestida como rainha, com as ditas don-
llas (Pobreza, Humildade, Fé, e Prudência) e dian-
quatro Anjos com musica: e depois de assentados, co-
wçam cada hua a estudar per seu livro. » Prudência tem
a mão as prophecias da Sybilla Cimeria, a Pobreza
í as prophecias da Sibylla Erithrea, a Humildade lê
os vaticínios de Isaias e o Cântico dos Cânticos.
ÍT este passo entra o anjo Gabriel;» vem annunciar á
r irgem que n'ella se realisarão as prophecias que aca-
a de ouvir; feita a saudação, vae-se «o anjo Gabriel, e
' anjos á sua partida tocam seus instrumentos, e cerra-
da cortina.* Esta rubrica nos mostra aqui o meio em-
regado para dividir as jornadas. A scena abre-se no-
aménte com uma pastoral, em que os zagaes se juntam
ara o tempo do nascimento. Aqui introdu7Áv\ <3âl N\-
160 HISTORIA DO THEÀTRO PORTUGUEZ
cente a fabula oriental da bilha de azeite , tão imitada 1
na poesia da edade media. É natural que Gil Vicente'
a conhecesse da tradição oral, ou então do Conde de
Lucanor de Dom João Manoel.
Os pastores deitam-se a dormir, «e logo se segue &
segunda parte, que he hua breve contemplação sobre o Nas**
cimento». Apparece outra vez a Virgem fazendo sua*
oração; «S. José e a Fé vão accénder a candeia, e a Vir-
gem com as Virtudes, de joelhos , a versos resam psalmos*,
A Fé voltou com a vela sem lume, porque nenhum visi-
nho acordou ou a quiz accénder; a scena está algum 1
tanto escurecida, e a Virgem está com as dores do
parto. Nos velhos mysterios francezés não se usava 1 ]
cortina, a não ser em certas passagens escabrosas, como
por exemplo no leito em que Santa Anna dava á luz a
Virgem. Gil Vicente não indica o ter-se servido de
cortina para resguardar o parto de Nossa Senhora:
«JEm este passo chora o Menino, posto em hum berço, as
Virtudes cantando o embalam». O Anjo vae acordar 08
Pastores, os outros Anjos tocam seus instrumentos, as
Virtudes cantam, e os pastores bailam, saindo todos ao
mesmo tempo. N^ste mesmo anno de 1534 represen-
tou Gil Vicente pela primeira vez fora da corte; esta-
va em moda pedirem as corporações religiosas algu-
mas composições dramáticas aos poetas do tempo; os
Cenegos de Sam Vicente pediram a AfFonso Alvares o
Auto do Apostolo Sam Thiago; também a Abbades-
sa de Odivellas pediu a Gil Vicente que escrevesse um í
Auto sobre o Evangelho da Cananea: «Este Auto que
NO SÉCULO XVI 161
ianis se segue fez o Autor por rogo, da fauito virtuosa é
Are Senhora Dona Violante, Dona Abbadessa do mui-
i louvado e Santo convento do mosteiro de Odivellas, a
uai Senhora lhe pediu que por sua devoção lhe fizesse
um Auto sobre o Evangelho da Cananea.i* Em scena
pparece Jesus Christo, e com elle seis Apóstolos; nos
juntos francezes os Apóstolos apparecendo vestidos de
júmaticas, é provável que Gil Vicente se servisse do
lesmo guarda roupa litúrgico; o hymno Clamavat au-
fm 9 mostra que o Auto fora intercalado com as cere-
íonias do culto.
No anno de 1535 não representou Gil Vicente ; uma
prande desgraça acontecera na corte, a morte myste-
iosa do Infante Dom Fernando e de sua mulher Dona
Guiomar, condessa de Marialva. lucto da corte eas
Bfferentes versões d'este caso, a interpretação do so-
lho das três tumbas, tudo fazia com que as attenções
e afastassem de um serão dramático. Também n'este
mno partiu o Infante Dom Luiz, poeta e imitador de
jfil Vicente, para a conquista da Goleta.
Na rubrica final da comedia Floresta de Enganos,
apresentada em Évora a Dom João m, em 1536, se
ê, é «a deri'adeira que fez Gil Vicente em seus dias.*
Vqui vemfis terminada a sua carreira dramática desde
1502, exercida corajosamente durante trinta quatro
irmos. D'aqui em diante o theatro deixou de ser ani-
nado pela corte portngneza,' e só por tradição se diz
[ue o Auto de António Ribeiro Chiado, da Natural
uuenção, fora representado dianto de Dom João m.
li
162 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
N'esta comedia Floresta de Enganos y veirí os vera»
que diz Justiça Mayor:
Ya hice sesenta y seis,
Ya mi tiempo és passado, etc.
d'onde inferiu Barreto Feio, qtie a referir-se esta pi
sagem ao poeta, nascera elle em 1470; o que é platwfc
vel, porque frequentando a corte de Dom João li
1493 e tomando parte nos galanteios poéticos dos
rões do paço, tinha então vinte trez annos. Eis
estão indicados os primeiros annos e os mais briltu
tes da vida dramática do theatro portuguez, verda
deiramente popular nos assumptos, e aristocrático
intenção. Um terrível inimigo se levanta contra elle,(
Theatro clássico; fundado na imitação de Plauto eT(
rencio, por influencia da Itália, são fracas as con<
ções de vitalidade que apresenta. Adiante faremos
historia da tradição dramática ou eschola de Gil Vi*
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168 HISTORU DO TIIE ATRO PORTUGU EZ
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Typos e costumes portuguezes dos Autos de Gil TV
À verdade nas creações dramática». — O génio cómico e o
. timento da justiça. — Os escravos das conquistas de
no século xvi, citados nos romances populares. — ÂCarUi
. Nicolau Clenardo, confirma os retratos *de Gil Vicente.— \
typo do Fidalgo pobre, na f arca dos Almocreves e na de Q\
I tem farellos.—Os amores das escravas. — Miséria dos Ji
deus. — A farça dos Physicoa lembra o .Malade imai
de Molière. — Gil Vicente conheceu a Celestina, nos tyt><
Leonor Vaz e Branca Gil. — Frade palaciano. — Gil
. cente propaga as ideias da Reforma.
 intuição metaphysica da Shakespeare fizera-1
oomprehender as creações dramáticas como o espel
da natureza, the mirror up to naturt, tão bem definida
na scena u do acto terceiro de Hamlet. Gil Vicente ni
teve tradições no theatro portuguez, como teve Shi
kespeare, por isso não pôde attingir a perfeição na
chitectura dos seus Autos ; mas a parte philosophú
a linguagem da natureza e da verdade foi-lhes comi
mura pela ubiquidade do génio. Shakespeare depois
leitura dos Ensaios de Montaigne, é que se immergil
na profundidade das situações dramáticas; Gil Vi<
te pertencia á mesma família de pensadores, dos qi
arvoram o senso comraum e a naturalidade em criterk
supremo. A influencia exterior a que obedeceu SI
kespeare, em Gil Vicente foi ingénita, e a elle poderil
mos com rasão chamat o no**o "^xitàvçfcsu
NO SÉCULO XVI 169
Assim como, durante as luctas da edade media, o
povo se defendeu sempre contra todos os abusos da au-
ctoridade com o espirito da parodia e do grotesco, a
mesma corrente se repete no século xvi, na véspera da
Reforma, não parcialmente, mas em individualidades
distinctas. A Rabelais em França, a Skelton na Ingla-
terra, ao Cavalheiro do Hutten na Allemanha, aos Va-
rões Obscuros da Itália, corresponde em Portugal Gil
Vicente. Bile entra n'este coro da grande gargalhada
homérica, pela força das circumstancias ; como mosa-
rabe é sentimental e apaixonado, lyrico e sonhador;
ama os symboloa religiosos, repete todas as lendas, e é
a elle que lhe cabe o inaugurar a edade da prosa, o fa-
lar a linguagem da burguezia e do senso commum.
Era preciso que se desse em Portugal uma grande
preversão do senso moral, um grande desenfreamento
na hypocrisia monástica, uma degeneração no sangue
% caracter nacional, para que elle rompesse eom fúria,
como Juvenal: nunyuamne reponam, vexatus totiesf
Foi este o sentimento que levou Gil Vicente a sair
da apathia da nobreza, a que pertencia, para retempe-
rar a alma portugueza secularisando-a; os seus Autos
sâo o espelho da sociedade do século xvi, n'elles se vê
o estado dos espíritos, dos costumes, da língua, dalitte-
ratura. e da historia politica. Alguns factos nos bastam
para pôr isto em evidencia.
Escolheremos de preferencia aquelles de tal for-
ma característicos, que foram notados pelos estrangei-
ros que vieram a Portugal. Admita, coxao, texA» ^V
170 HISTORIA DO THEATRO PORTÚGUEZ
vido sempre em contacto com os hábitos e tendên-
cias nacionaes, teve este senso critico para apodar o
lado mau das cousas e impressionar-se dos seus ridícu-
los, que só a um ext ranho se tornam mais repará-
veis. Em 1534 veiu a Portugal um estrangeiro notá-
vel, representante da erudição dos Paizes Baixos; era
o celebre Nicolau Clenardo. Em uma Carta ao seu
amigo Latoinus, descreve os costumes portuguezes;
mas tudo quanto encontra de insólito que o impres-
siona, vem notado já nos Autos de Gil Vicente. N'essa
Carta escripta de Évora, a 26 de Março de 1535, fala
da grande quantidade de escravos, que havia em Évo-
ra e Lisboa : « Os escravos pullulam por todas os lados.
Todo o serviço é feito por negros, e mouros captivos.
Ha em Lisboa uma tal quantidade d'essa fazenda, que
se acreditaria que excede em numero os portuguezes
livres. Encontrareis dificilmente uma casa onde não
haja ao menos uma criada d'esta espécie. É ella que
vae comprar as cousas necessárias, que lava a roupa,
limpa as casas, acarreta a agua (1) e despeja a certas
(1) Nos romances populares da Beira Baixa, ainda se allude
a estes costumes :
Deu sete voltas á cerca
Sem n^lla poder entrar ;
Viu lá entrar uma preta
Que se estava a pentear.
Bom. geral, n.° 17, p. 43.
• NO SÉCULO XVI 171
s immundicies de todo o género ; em uma pala-
scrava, e só se distingue pelo vulto, de uma bes-
rga. Os mais ricos tem escravos de dois sexos,
ividuos que não tiram pequeno lucro da venda
is escravos, que criam como pombos para levar
*ado. Longe de se escandalisarem com as tra-
s dos seus escravos, vel-os-hiam com alegria
m-se animaesde lançamento, porque o fructo
• ventre, etc.» Mais adiaute fala Clenardo da
le Évora, que Gil Vicente visitava com frequen-
mpanhando a corte: emas apenas puz pé em
julguei-me transportado a uma cidade do in-
>or toda a parte via negros, raça que me inspi-
rai aversão, que isso bastaria para me fazer aba-
i farça do Clérigo da Beira, introduz Gil Vi-
n preto, grande ladrão; é de notar, que nosro-
populares da Beira, ainda se allude ao costu-
3r criados pretos. Havia a mania de forçar essa
rava e estúpida a professar á religião catholi-
i de abstrações e sophismas; Gil Vicente co-
• contrasenso, e mette na bocca do preto um
osso e uma salve-rainha, estropiados em uma
Quem me dera aqui meus pretos,
Ou meus velozes cavallos, etc.
Ibid. n.° 25, p. 62.
A um pretinho que tinha
Uma lança lhe ha dado.
Ib. p. 63.
172 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
giria de quem nada percebe: «Pato nosso santo Pacêto,
etc. » E : «Sabe a regina Matho misecoroda nutra d' hum
cego sável até que vamos, etc. »
Esta immensa quantidade de escravos, espalhada \
pelo reino, veiu a produzir nos costumes nma grande
inércia, e como consequência, uma certa indigência
acobertada com pompas exteriores. Gil Vicente foi o
primeiro que notou o typo do Fidalgo pobre na sua
Farça dos Almocreves; mas para comprebender melhor
a grande verdade do typo, vejamos o retrato feito pelo
celebre Nicolau Clenardo: «Se quizesse condescender
com os costumes do paiz, começaria por sustentar uma
mula e quatro laoaios. Mas como seria? jejuando em
casa, em quanto brilhava fóra, e teria o pesar de de*
ver mais do íjue aquillo que poderia pagar. Isto faz-me
lembrar um individuo pelo qual julgarei os outro*
Aquelle de quem quero esboçar o retrato, andava de
rixa com um estrangeiro, creio que francez, que viera
para Portugal no tempo de el-rei Dom Manoel, fazen-
do parte da corte da rainha Leonor. O portuguez le-
vava-lhe a palma pelo fausto exterior, o francez tinha
melhor meza. Conhecendo os hábitos locaes, e impel-
lido pela curiosidade, procurou destramente obter o li-
vro onde o seu antagonista registava as suas despezas
diárias. Deu com os olhos em cousas bastantes cómicas, j
e totalmente portuguezas. Encontrara para cada dia-
«Quatro ceitis para agua,
«Dois reaes para pão,
« Um real e meio de rabanetes*
NO SÉCULO XVI 173
E como durante toda a semana continuavam es-
>umptuosidades, imaginou que 6 domingo seria
nado a algum banquete menos sóbrio; mas n'esse.
> que viu elle? Hoje nada, por não haver rabane-
a praça. Chovem aqui, meu caro Lato mus, esses
\anophagos, e todavia a maior parte conduz pela
apoz si, maior numero de escravos do que gastam
sasas reaes. Ha muitos que não são mais ricos do
eu, e que andam acompanhados de outo creados
sustentam, não direi á custa de um abundante
ento, mas pela fome e outros meios, que sou de-
adamente estúpido para aprender nunca em dias
ninha vida. Afinal, não é custoso recrutar uma
a inútil de servidores, porque esta gente tudo pre-
á fadiga de tomar qualquer profissão. Mas para
serve um tal respeito ? Vou-ine explicar : se os
mtes são de uma formal priguiça, qualquer d'elles
rega-se om alguma cousa: dois caminham adiante,
rceiro traz o chapeo, o quarto o capote, se por
o chove, o quinto pega na rédea da vossa caval-
íra, o sexto apodera-se dos vossos sapatos de seda,
ptimo de uma escova, o oitavo mune-se de um
10 de linho para limpar o suor do cavallo, em-
ito o seu amo ouve missa, ou conversa com um
50. O nono offerecer-vos-ha nrn pente para alisar
abellos, se tendes de cumprimentar alguém de im-
ancia. Nada digo que não tenha visto por meus
)rios olhos. Com shnilhantes costumes pensaes
io, que alguém, gerado, de pães livres, se decida a
Icar-se a qualquer género de iraVaWio^ *
174 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
No argumento da Farça dos Almocreves, diz
Vicente : « O fundamento d? esta farça lie, que hum F\
ffo de muito pouca renda usava muito estado, e tinha
pellão seu, e ourives seu, e outros oflíciaes, aos q
nunca pagava, etc.» Esta farça é de 1526, e a Cari
Clenardo de 1535. Primeiramente vem o Capellão
dir os seus ordenados ao Fidalgo, que o embala (
boas promessas de o arranjar para Capellão do rei
da rainha. Já desilludido, o faminto Capellão diz-1
£ vos fazeis foliadas
E não pagaes ó gaitero ?
leso são balcarriadas,
Se vossas mercês não hão
Cordel para tantos nós,
Vivei vós áquem de vós,
E não compreis gavião
Pois que não tendes pios.
Trazeis seis moças de pé
E accrecentai'1-08 a capa,
Com'o rei, e por mercê
Não tendo as terras do Papa,
Nem os tratos de Guiné,
Antes vossa renda encurta
Como os pannos de Alcobaça.
Responde o Fidalgo :
Todo o fidalgo de raça
Em que a renda seja curta
He por força que isso faça.
Apoz o Capellão vem o Ourives pedir o pagamei
de um saleiro que fez ; chega também um Àlmocre
um Pagem, e todos vão pagos com vento. A farça <
NO SÉCULO XVI 175
Almocreves foi representada em Coimbra, em 1526.
Esta critica aos fidalgos pobres, que apresentavam um
grande estado, não escapou ao douto Sá de Miranda
na sua Epistola a Pêro Carvalho, escripta por este
tempo também em Coimbra. (1) No Fidalgo Apren-
diz, de D. Francisco Manoel de Mello, Gil Cogominho
è ainda o mesmo 1 typo do raphanophago portuguez,
como vimos descripto na Carta de Clenardo. fidalgo
pobre, de Gil Vicente, é aquelle que Sá de Miranda
na citada Epistola descreve vivendo á custa dos habi-
tantes de Coimbra, mas dizendo mal da terra e suspi-
rando sempre pela corte de Almeirim ; este mesmo
typo, no reinado de Dom João rv, quer comprazer
com os usos italianos e francezes da corte, e sobre a
sua grande indigência enfatuada dá-se ao ridículo de
querer aprender a dançar a pavana e a galharda, que
andavam na moda. Em um século os costumes portu-
guezes não variaram ; è por isso que o theatro tam-
bém apresenta certa pobreza de typos. E que ficámos
nós sendo até hoje, no meio das transformações sociaes
da Europa, sem industria e sem aspirações, senão o
mesmo Fidalgo pobre?
Apezar da rigidez do seu catholicismo, a mocidade
portugueza, no século xvi, levava uma vida dissipada.
Na sua Carta, escripta em 1535, dizia Clenardo: «Vé-
nus, em toda a Hespanha, parece-me merecer o nome
de Publica, exactamente como outr'ora em Thebas ; e
(1) Desenvolvido na Vida de Sá de Miranda, cap. li.
176 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
isto é mormente em Portugal, onde é uma raridade
ver um mancebo contraliir uma ligação legitima. Em
vista d'esta revelação do observador estrangeiro, com-
prehende-se o typo do Escudeiro da farça de Quem
tem farellos ? que anda sempre namorando por becos
e esquinas, espécie de Dom João esfaimado. O escu-
deiro apaixonado e cantador de trovas de cancioneiro,
é uma segunda feição do typo do Fidalgo pobre. Abre
a scena, com o dialogo de dois moços de esporas, que
andam a comprar farellos :
Ordonho :
Como te vás, companero ?
Apariço :
S'eu moro c'hum Escudeiro,
Como me pode a mi ir bem ?
Okd. :
Quien es tu nmo ? di, hermnno !
Ap. :
E' o demo que me tome :
Morremos ambos de forno
E de lazeira todo o anno.
Ord.:
Con quien vive ?
Ar. :
Que sei eu ?
Vive nssi pftr hi pellado,
Como podengo escaldado.
Ord. :
De que sirve ?
Ap. :
De sandeu.
Pentear e jejuar,
Todo o dia sem comer,
Cantar e sempre tanger,
Suspirar e bocejar.
Sempre anda falando só,
Faz umas trovas tão frias.
Três ânuos ha que sou seu
E nunca lhe vi cruzado ;
Mas segundo nós gastamos
Um tostão nos dura um mez.
Bastantes vezes se aproveita Gil Vicente das su-
NO SÉCULO XVI 177
es populares, ora recitando em scena os ensal-
i pedindo benevolência para as feiticeiras, que
ram queimadas em Hespanha, ora retratando
la alcoviteira, como na Comedia do Viuvo; esta
le observações foi aprendida por Gil Vicente da
comedia da Celestina, bantante conhecida em
il, citada por João de Barros, por Jorge Fer-
Vasconcellos e por Camões. Gil Vicente em-
o a cite, conheceria a Celestina por qualquer
ões de Salamanca, de 1500, ou de Sevilha, de
durante a vida de Gil Vicente, fizeram -se nove
d'esta protentosa comedia, fonte d'onde se de-
•do o theatro nacional da Península,
'""arca chamada Auto da índia, mostra as peri-
ue se davam na classe baixa; que recursos co-
fio tira da partida dos galeões para o Oriente !
arca resume elle o argumento : « Foi fundada
ne unia mulher, estaudo já embarcado para a
[íu marido, lhe vieram dizer que estava des-
e que já não ia; e ella de pezar está chorando.»
licia no dialogo da ama com a moça :
Ama : Quem se vê moça c formosa
Esperar pola ira má.
Hi se vai elle a pescar
Meia legoa pelo mar,
Isto bem o sabes tu ;
Quanto mais a Calecut !
Quem ha tanto cTesper.nr ?
Partem em Maio cTaqui,
Quando o sangue novo uViçu. . .
42
178 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
No emtanto está a Ama com um rascão, chamado
Lemos, e manda a moça fóra comprar de comer. De
repente acode a moça esbaforida, contando que vira o
marido da Ama, que era chegado da índia ; esta fica
enfurecida e tem logo uma ideia luminosa :
Quebra-mc aquellas tigellas
E trez ou quatro panellas,
Que nflo ache que comer.
Que chegada, e que prazer!
Fecha-me aquellas janellas.
Deita essa carne a esses gatos,
Desfaze toda essa cama.
Entra pouco depois o marido, e ella diz :
E eu oh quanto chorei,
Quando a armada foi de cá!
E quando vi desferir,
Que começaste de partir, ]
Jesu ! eu fiquei finada ;
Três dias não comi nada,
A alma se me queria sair.
N'esta farça, Gil Vicente não incita a jocosidade
com palavras desenvoltas; é um perfeito Molière, com*
preliende profundamente o coração humano, e segue as
mais desencontradas paixões com uma lógica fatal*
Também na farça de Inez Pereira^ um marido ruim
morre a sete léguas de Arzilla, e a mulher, que receia-
va tornar-lhe a cair nas mãos> casa com um tôrpa, so-
bre quem se vinga da vida passada.
A grande quantidade de pretas escravas que fa-
ziam de criadas êm toAwfc i\% e^s^ <k> y^íuo, alérn da
NO SÉCULO XVI 179
ivoltnra notada por Clenardo, também dava causa
a grande perversão nos costumes e decadência da
Antes de Camões celebrar uns amores com a
ira escrava, já conta Gil Vicente na farça do Juiz
nra estes amores de um escudeiro :
Eu andava namorado
De uma moça pretesinha,
Muito galante Mourinha,
Um ferrctinho delgado,
Oh quanta graça que tinha !
Então amores de Moura,
Já sabeis o fogo vivo,
Eli a captiva, eu captivo :
Ora que má morte moura,
Se ha hi mal tíío esquivo.
o prologo do Auto da Luzitania, representado em
, descreve Gil Vicente a vida intima dos Judeus
ortugal ; é um quadro de interior, mas defumado
te. com um certo vasio de morte. N'esse prologo
)-se ao costume das danças judengas, exigidas
Tiideus como serviço feudal. E por occasião do
mento do príncipe Dom Manoel ; os judeus ajun-
te para con venci onnrom os festejos que hãode
Faltemos tu e eu sós.
Que invonçílo faremos nós,
N'um Aito bem acordado,
Que tenha ave e pios?
Que fo lias, já sAo frias,
E impelias, as mais (relias,
E os louros
Mutnnlo imi mnta-nioiroB,
180 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
E a ussa já não se usa,
E a festa não se escusa,
1'ois andamos nos peloiros.
Também na farça de Inez Pereira, & rica e com-
meroiante classe dos judeus, está reduzida a um esta-
do miserável ; aí apparecem dois judeus, Latão e Vi-
dal, que vivem do officio de casamenteiros. No entanto
a Hollanda ia prosperando com as consequências da
estupidez de Dom Manoel.
De propósito, Gil Vicente, quando mette em scena
os Judeus, é sempre sem importância, para não exaltar
mais ódios contra a sua crença e invejas contra os seus
capitães. Pelo contrario, João de Barros, na Ropica
pneuma, descreve o Judeu como um explorador ávido
de todos os impérios, como planta parasita que deve
de ser queimada : a Depois que Tito e Vespasiano to-
talmente destruíram sua cidade, aconteceu-lhes como
aos Troianos, que a causa da sua destruição foy pêra
maior sua gloria e império, porque estando em Troya
eram senhores do seu, e depois foram senhores do
mundo : assy estes derramados per elle, nam como
povo desprezado, mas como planta digna de ser plan-
tada em toda a terra, foram recolhidos em populosas
cidades e os príncipes d'ellas os plantaram na parte
mais segura de perigos, por serem arvores que dam
saborosos fructos de rendimentos. D'onde vem serem
mui guardados e favorecidos de leis e armas, porque
os povos travessos não lhe comam algum pomo de bom
sabor. E posto que de U*W wsywKi •LfcYiAto.dft^ nossnem
NO SÉCULO XVI 181
a grossura da terra, onde vivem, mais folgadamente
que os naturaes; porque nam lavram, nem plantam,
nem edificam, nem pelejam, nem aceptam officio seni
engano. E com esta ociosidade corporal n'elles se ^icha
mando, honra, favor e dinheiro : sem perigo das vidas,
sem quebra de suas honras, sem trabalho de membros,
somente com um andar meudo e apressado, que ganha
os fructos de todolos trabalhos alheos. » (1) Qual ve-
ria o Judeu com mais philosophia, o historiador ou o
poeta ? Zombado de todos, como diz João de Barros,
J8Ó Gil Vicente, que zombou de tudo, não tem alma
para ferir o inerme e perseguido Judeu.
A representação da tragicomedia das Cortes de
Júpiter, na partida da infanta Dona Beatriz para
Saboya, deu á festa do paço um colorido de saudade,
augmentado pelas doces lendas do amor de Bernardim
Ilibei ro. Conhecemos a infanta por estas tradições
poéticas ; os historiadores estrangeiros fazem d'ella
um retrato muito differente, de uma hombridade ta-
citurna que só as pessoas estúpidas sustentam. Trans-
crevemos esse retrato, para que se veja em que meio
e para quem, Gil Vicente despendeu as mais bellas
flores da sua alma. Spon, na Historia de Génova, de-
scrê ve-nos assim a recepção da Duqueza de Saboya, a
infanta Dona Beatriz : « A mocidade da cidade estava
lepidamente vestida de damasco e de tela de prata, ar-
mados cada um de uma lança na mão. O que se achou
(1) Rôpica, ediç. de 1869, p. 181.
ca
r.
!Í
*
182 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
de mais galante foi uma companhia de amazonas, que z
eram mulheres soberbamente vestidas, arregaçadas até
ao joelho, tendo na direita um dardo, e na esquerda
um pequeno escudo prateado. A que as com mandava
era uma hespanhola, mulher de «Francisco de S. Mi-
guel, senhor de Avoully, a qual devia fazer o cunipri-
meuto, era sua língua, á duqueza. A porta-bandeira
era uma grande e bel la mulher, filha de um boticário •-
chamado o Grani Jacques, a qual floreava a bandeira
tão galhardamente como um alferes.
« A entrada íbi da seguinte maneira : A Duqueza
passou áquem da ponte d*Arve sobre um carro de
triumpho, puehado a quatro cavallos cobertos de ouro L
e de pedrarias que deslumbravam os olhos. O r Duque, i
seu marido, seguia, montado em uma mula, com o -
Abbade de Boumonte e um de seus escudeiros, todos i
trez egualmente vestidos, com mantos cinzentos e ca- *
puzes. A duqueza tendo passado a ponte, ^encontroa -
primeiramente as amazonas, cuja capitanea lhe apre-
sentou um soneto em hespanhol com elogios, títulos
soberbos e oíFertas por parte da cidade; a Duqueza
não agradeceu, e nem se dignou mesmo olhar para
as amazonas. Os homens vieram depois recebel-a, e
também não lhes fez melhor acolhimento, com que os
burguezes ficaram muito indignados, dizendo que não
faziam estas honras por dever, como súbditos, mas por
affeição, como amigos. Pelo contrario, a Duqueza que
era Portugueza, mostrava que os não tinha a elles só
j)or subditoSj mas por escravos } á maneira dos portu-
NO SÉCULO XVI 183
wzes. Houve alguns que aconselharam de ir escan-
ilhar os theatros e palanques que se lhe tinha prepa-
dos, como se ella não gostasse d'elles. Fazia-se me-
or, diziam outros, empregar o dinheiro que se des-
nde em honrar o Duque e a sua nova esposa em
rtificar a cidade e a fazel-os ficar da parte de fora, e
o attrabil-os ali, para serem feridos com as suas
oprias armas.
« Apesar de tudo a festa proseguiu, acompanha-
m-08 nas ruas cheias de gente, com concertos e ou-
3s signaes de alegria. Desculpavam a soberba da
uqueza dizendo : Que eram os costumes de Portugal.
lia deu um apparatoso festim ás damas, seguido de
iles, de mascaradas e de comedias; de sorte que des-
) o tempo do duque Phiiibert, não se tinham diver-
lo tanto. Fizeram torneios e os mancebos da cidade
os tr aram -se tão apostos como os palacianos. Emfim,
irante este anno não se tratou mais do que divertir
duque e a duqueza, ministrando-lhes a elles e ao
u séquito viveres e moveis para o necessário e para
recreio, Póde-se mesmo dizer, que eram mais obe-
scidos em Génova por cortezia, de que em Chambery
>r obrigação.» (1) Foi a esta duqueza, e em uma
>rte aonde prevaleciam os costumes que a tornavam
liosa no estrangeiro, que Gil Vicente escreveu, é deu
da ao theatro portugucz.
Para se vêr os typos que Gil Vicente retratou na
(1) Spon, Hist. de Genève, t. I, p. 352.
184 HISTORIA DO THE ATRO PÔRTUGT7EZ
sua farça dos Physicos, basta notar que a Medictí*'
portugueza do século xvi, ainda influenciada pela 68^
chola árabe que já estava banida da Europa, prevale-1
cia em Portugal, não limitada já ao empirismo, mas
ás praticas supersticiosas da astrologia judiciaria. Ha
farça dos Physicos, Gil Vicente antecede Molière: a
verdade dos seus retratos compro va-se com esta de-
scripção do seu contemporâneo João de Barros, na Ro-
pica pneuma : « Somente por causa da Medicina ouvi
alguns livros de Aristóteles com a primeira e segunda
parte do Avicena : e logo me dei áa pratica, tomando
primeiro esta. Se me achava antre médicos de lingua-
gem falava latim, e outre latinos em grego huns ver-
sos de Homero, que trazia decorados : com que nam
ousavam de me responder ; cuidando serem autorida-
des originaes de Galeno ou Diescorides. E com esta
sagacidade, quando nos ajuntávamos vinte e trinta em
conselho de huma effimera d'algum príncipe, todos á
huma voz se hiam com a minha : porque também an-
dava eu para isso autorisado com a minha beca de ve-
ludo, e par de anéis com suas torquezas ás quedas da
mula : e a qualquer propósito alegava com os apho-
rismos de Ipocras e Trezentas de João de Mena. Isto
somente bastava para ser medico de um rei, quanto
mais de huma cidade populosa, onde se acham muitas
vidas pêra fazer experiências e ser bom pratico. » (1)
João de Barros traçara este retrato dos médicos do
(1) Op. cit., p. 87, cdiç. de 1869.
NO SÉCULO XVI 185
ilo xvi fao tempo, da peste em 1531. Gil Vicente,
divertia a corte quando as grandes pestes da Eu-
i invadiam Portugal, teve bastante rasão para ,co-
de ridiculo este typo do Physico, na sua inimita-
farça ; elle não inventava, copiava o natural. Com
empáfia o Physico Torres diz á cabeceira do Cle-
> doente de amores :
Mas hade saber quem curar
Os passos que dá uma estrella,
E hade sangrar por ella
E hade saber julgar
As aguas rTuma panella.
E hade saber proporções
No pulso se é ternário,
Se altera, se he binário,
E saber quantas lições
Deu Plotomeu a el-rei Dário.
E quem isto não souber
Va-se beber d'Í8so mesmo :
E mestre Nicolau quer,
E outros curar a esmo !
Outro Physico, Mestre Fernando, fala assim ao
ite :
Dizem os nòsses doutores
Ouvil-o ? ouvis que vos digo ?
Non est bona purgatio , amigo,
ília qui incipit cum dolores,
Porque traz flema comsigo.
E Ma qui incipit cum tarantran,
Quia tranlarum est.
Ouvil-o ? De physico sou eu mestre,
Mais que de sulurgião, etc.
De todas as formas da arte da litteratura portu-
1
186 HISTORIA DO THBATBO PORTUGUEZ
gueza, è o theatro a única que se inspira do grai
movimento intellectual e moral do século xvi. Home
de génio, Gil Vicente não escrevia somente para
vertir reis fanáticos, quando proclamava em scena
fecundas ideias da Reforma. Assistindo á renovaçà#'-
da sua época, vendo a imprensa, a navegação, a indt
stria e a burguezia tomarem de dia para dia um desei
volvimento que ia transformando a organisação socii
da Europa, elle sente que em Portugal é necessaric
implantar esse espirito da secularisação e do indivi-
dualismo, para que se não extinga de todo a raça cM
Mosarabes. A primeira vez que elle proclamou o verl
da Reforma foi em 1506, onze annos antes do primei-i
ro grito de Luthero. Em 1506 recitou Gil Vicente o)
celebre Sermão em verso, pelo nascimento do Infante l
D. Luiz em Abrantes. Ai diz :
No quiero deciros las opiniones
Ni alegar texto antigo ó moderno
Si el Papa si puede dar tantos perdones ?
Ni el precito que está condemnado
Nel saber divino si tiene alvedrio,
Ni disputar se el Romano Papado
Tiene poderio en el Purgatório.
Gil Vicente deve ser considerado como um precur-
sor da Reforma ; em 1506, entrava Luthero no mais
alto grau do seu fervor religioso, ainda não tinha ido
a Roma vêr como Leão x se gabava de explorar a fa-
buh de Christo. Portanto estas ideias são um ecco das
\
NO SÉCULO XVI 187
crinas de João Hus, e foi Gil Vicente uma das pri-
mas águias que renasceu das suas cinzas. João Hus
jrira ás quarenta e cinco proposições de Wiclef, e
e ellas ha uma sustentada por Gil Vicente, na
icomedia Exortação de guerra, representada ein
í, quatro annos antes de começar a Reforma :
stenta que é contra a Escriptura que os ecclesias-
\ possuam bens como próprios. — Não quer que
frades mendicantes. » Durante o período do
>r trabalho de Gil Vicente, rebentaram na Alie-
na e na Europa inteira as luctas da liberdade de
ciência, e da secularisação da sociedade. Todos os
:>s escriptores contemporâneos maldisseram a Re-
a ; o nosso João de Barros, em 1531, na sua Ro-
pneumaj considerava esse movimento brilhante
o. como o papa Leão x, uma altercação de frades.
xil Vicente comprehendeu o espirito novo, mas
cedo viu a intolerância monástica repellil-o de
ugal com as fogueiras da Inquisição. v
Tui em 1517, que Luthero levantou o primeiro
► da consciência contra a simonia do papa que an-
a negociar com os dominicanos a venda das In-
encias, para acabar com esse dinheiro a sumptuo-
isilica de Sam Pedro. Quando Gil Vicente escre-
o seu Auto da Feira, em 1527, já a Reforma es-
consolidada, já se tinham passado as Dietas de
ms, de Nnremberg e de Shira. No Auto da Feira,
satyra da Simouia, com que fervor religioso diz
jta :
188 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
A feira, á feira, egrejas, mosteiros.
Pastores das almas, Papas adormidos ;
Comprae aqui pannos, mudae os vestidos,
Buscae as çamarras dos outros primeiros
Os antecessores.
Feirae o carão que trazeis dourado ;
Oh Presidentes do crucificado, etc.
O Diabo é que fala n'este auto a linguagem
senso commum :
E se o que quizer bispar
Ha mister hypocrisia,
E com ella quer caçar ;
Tendo eu tanta em porfia
Porque lha heide negar ?
Oh Roma, sempre vi lá
Que matas peccados cá,
E leixas viver os teus.
E não te corras de mi :
Mas com teu poder fecundo
Assolves a todo o mundo,
E não te lembras de ti
Nem vês que te vás ao fundo.
Em 1525, Luthero casou com Catherina Bore,<
este propósito dizia : (( Segundo uns, commeti um ai
que me deve tornar desprezível ; comtudo tenho a i
gurança de ter feito o regosijo dos anjos e o desesp
dos demónios. Pareceu-me conveniente confirmar p
meu exemplo a doutrina que ensinei;» etc. Na tra
comedia Fragoa de Amor, representada n'este mes
anno, Gil Vicente já allude a este facto ; é só conft
tando os successos do tempo, que se comprehendem
NO SÉCULO XVI ' 189
versos do Frade que vem á Fragoa de Amar para
desfradado :
Aborrece -me a coroa,
capello e o cordão,
habito e a feição,
E a véspera e a noa,
E a missa e o sermão.
Parece-me bem jogar,
Parece- me bem dizer :
— Vae chamar minha mulher,
Que me faça de jantar,
Isto, eramá, he viver.
Em 1526, escreveu o Clérigo da Beira, que é um
re que anda á caça e resa matinas com os filhos.
Em 1532 deu-se o triampho completo e formal da
òrma, triumphára o senso commum; em 1533, re-
bentou Gil Vicente a Romagem de Aggravados, em
introduz Frei Paço, a personificação do clero ambi-
,o que dominava o espirito do monarcha, e que im-
iu por todos os meios infames a entrada das novaâ
as. Guerras iinmensas varreram a Europa em con-
vencia das trunsfor mações politicas que a Reforma
rluziu ; só a Península permaneceu estável, hirta
ite das fogueiras do Santo Officio, em Hespanha,
10 traça politica para conservar a paz interna, du-
be a guerra dos Paizes-Baixos ; em Portugal, ape-
como um arrastamento de um fanatismo cego.
190 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
CAPITULO V
Gil Vicente conhecido fora de Portugal
Seria Gil Vicente conhecido em Roma em 1514, no tempo dV]
embaixada de Tristão da Cunha ? — O Auto da Lusitânia re-
presentado em Bruxellas diante do Embaixador D. Pedro de
Mascarenhas, em 1532 : Assistem a elle André de Resende e
Damião do Góes. — Falaria Damião de Góes a Erasmo acerca
de Gil Vicente ? — Ticknor, sustenta que Lope de Vega
imitou o Auto da Barca do Inferno, na sua Viaje dei Alma.
— Cal de ro ti imita Gil Vicente no auto sacramental El Lirio
y la Azuzena.
Logo depois da primeira manifestação do seu gé-
nio dramático, teve Gil Vicente uma terrível concur-
rencia com o renascimento do theatro clássico na Eu-
ropa; 1528, e 1535 são as duas datas em que Jorge
Ferreira e Sá de Miranda tentaram introduzir a co-
media de Terêncio, adoptando a linguagem em prosa.
Gil Vicente tinha dotes eminentemente superiores
que o tornavam invencível : o instincto da observação,
o sentimento lyrico, a inspiração cómica, e mais do
que tudo a alma do seu século, que, no meio do fana-
tismo da sociedade portugueza, fazia com que insen-
sivelmente proclamasse as ideas da Reforma. Quando
D. Manoel mandou a sua embaixada ao Papa Leão x,
com as páreas da índia, na corte de Roma representou
Bartholomeu Torres de Naharro uma comedia allego-
rica, Trofea, em honra do Monarcha portuguez.
Em 1514, tempo da embaixada, tinha Gil Vicente
representado já então treze comedias, autos, e farças.
*
NO SÉCULO XVI 191
ra o bastante para que citassem o seu nome em Ro-
ía, na corte do opulento Le«ão x, que se vangloriava
e ter os espectáculos de Bartholomeu Torres de Nahar-
o. Quatro annos antes da sua morte, isto è em 1532, o
mbaixador Pedro de Mascarenhas, nas festas que deu
m Brnxellas pelo nascimento do Infante D. Manoel,
L ue morreu de tenra edade, mandou representar o
luto da Lusitânia, n'este mesmo anno desempenhado
im Alvito ou Lisboa por Gil Vicente.
Das festas sumptuosíssimas de Bruxellas André de
iesende nos deixou uma longa descripçáo em verso;
De toda a descripçáo a parte mais importante é
que trata da noticia curiosíssima, que ai nos dá de
m Auto de Gil Vicente, representado no fim dos fes-
5Jos :
Cunctorum heinc acta e magno comoedia plausu,
Quam Lusitana Gillo auctor, et actor, in aula
Egerat ante, dicax, atque inter vera facetus.
Gillo, jocis levibus doctus perstringere mores,
Qui si non língua componerel omni vulgi,
Et potius Latia, non Graecia docta Menandrum
Ante suum ferret, nec tam Romana theatra,
Plautinosve saíeis, lepidi vel scripta Terenti
Jactarent, tanto nam Gillo praeiret ntriusque,
Quanto illi reliquis inter qui pulpita rore
Oblita Correio, digitum meruere f aventem.
N'esta passagem, André de Resende, que conhecia
ssoalmente Gil Vicente, nol-o dá como o próprio
•tor das suas comedias; o Auto representado em
ruxellas já havia sido representado em Lisboa, por
o
192 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
isso diz egerat ante. André de Resende elogia o poeti^ r-
como um dos poucos que n'este tempo lhe fazia justí?
ça, mas lamenta o não ter elle abandonado a lingui
portugueza, para escrever em latim e vir a ser um
Terêncio, um Plauto, e pôr para o canto o própria
Menandro ! Até aonde chega a intolerância classi
que queria perverter o génio mais nacional, que te
tido! Resende n'esta descripção, diz-nos a hora ei
que se acabou o espectáculo:
Tertia dcfessis lux absurnenda niinistris
Extulit alma cnpnt, cuncti rcvocantur in aedeisj
At que diem iinpendumt epulis, finemque sub ipsum
Legatus plácido ore dccens, et laetus honore
Ingenti celebrasse diem natalis herilis
Nobilib. fundo grates agit, omnibus acquas. (1)
A estas festas também se achou presente Damião
de Góes:
At Lusitana lcsti de pube miiiistri
Quinquaginta, omnes generoso sanguine creti
Circum aderant, quorum primi Damianus.
Seria talvez por este tempo que Erasmo tomaria
conhecimento do génio de Gil Vicente, elle que estava
como uma atalaya, observando com a sua critica infle-
xível o movimento intellectual da Europa. Por aqui
(1) Genethliacon Principia Luzitaui, ut iu Gallia Bélgica
celebratum est, a viro ciarias. D. Petro Mascaregna. régio lc-
gato, Mense Deceuibri, MDXXX1I. Joaunes Baptista PhaelluB
BononionRfts Bononiae irnpressit An no Incarnationis Domiiii-
cae, MDXXXIU. Meust 3 auuano. ^\A. \â. v M não numerada.
NO SÉCULO XVI 193
remos que Gil Vicente, que conheceu e tratou de per-
to com os dois Resendes, G-arcia e André, também foi
conhecido por Damião de Góes, espirito da tempera de
Erasmo e seu familiar.
A fama do poeta crescia de dia para dia, como se
descobre pela guerra acintosa que lhe faziam o clero e
os poetas da eschola culta italiana. Verdadeiro homem
de génio, não comprehendido, as suas ficções cómi-
cas apezar de serem ideadas para divertirem uma cor-
te decadente, encerravam o sentimento profuudo de
justiça que ateou na Europa a Reforma. Nein, de ou-
tro modo se comprehende á ahedocta contada por Bar-
bosa Machado, na Bibliotheca Luzitana, onde diz que
o celebre critico Erasmo se deliciava com a leitu-
ra de Gil Vicente, e que para melhor o comprehender
apprendera a língua portugueza. Ainda que tomásse-
mos este facto como uma lenda tradicional, encerrava
para nós a homogeneidade cVaquelles dois espíritos
que trabalharam para secularisar a sociedade. Para a
•Ailemanha se estendeu também a fama de Gil Vicente.
conhecimento que Erasmo poderia ter das obras de
Gil Vicente, ser-lhe-hia dado pelos Judeos portugue-
ses que haviam emigrado para a Hollanda, e que para
ali se acolhiam a cada nova perseguição dos imbecis
nonarchas portuguezes,ou melhor, pelas conversas com
Oaraião de Góes, inter pocula.
Os exemplares das obras de Gil Vicente que sairam
e Portugal em 1562, seriam também levados pelos
adeus portuguezes que acharam ii'elle sempre um hu-
43
194 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
mano defensor. A esta circumstancia se deve o ter-se
encontrado na Bibliotheca de Goethingue o traieo
exemplar conhecido da primeira edição, ainda não de-
turpada pelo Sauto Officio. Ticknor, na Historia áfl
Literatura espahola, cita o Auto da Fé, desempe-
nhado por Gil Vicente em 1504, como tendo sido re*
presentado com algumas modificações em Hespanha,
em uma das Procissões de Corpus Christi de Madrid,
no tempo de Calderon. (1)
Tendo escripto na lingua portugueza e hespanhola,
Gil Vicente estava destinado a exercer uma influencia
litteraria no theatro doestes dois povos; aescholade
Gil Vicente em Portugal foi extensa, mas sempre com-
batida, nunca apresentou um génio que o excedesse.
Em Hespanha não aconteceu assim. Lope de Ve-
ga, o maior escriptor dramático dos tempos modernos,
conheceu o theatro de Gil Vicente, e d'elle se aprovei-
tou nas suas primeira* composições. Na novella que
se intitula Peregrino en su Pátria, traz Lope de Vega
um auto sacramental, no primeiro livro, a que deu o
titulo de Viaje dei Alma, que é imitação dos Autos das
Barças do Inferno, do Purgatório e do Paraiso, re-
presentadas por Gil Vicente de 1517 a 1519. Para
tratar com mais independência este assumpto nacio-
nal, preferimos extractar para aqui a opinião de Jorge
Ticknor :
(1) Hi8t. cap. xiy, fine.
NO SÉCULO XVI 195
«Os três Autos das três Barcas, que transportam
r as almas para o Inferno, Purgatório e Paraiso, deram
l evidentemente a Lope de Vega a ideia e os materiaes
de uma das suas primeiras comedias moraes. » (1) Em
nota desenvolve explicitamente esta asserção: a A co-
media moral de Lope de Vega, cuja ideia parece tirada
d'estes Autos, tem por titulo Viaje dei Alma, e se
: acha no primeiro livro do Peregrino en su Pátria. O
começo da comedia de Gil Vicente assemelha-se sin-
gularmente aos preparativos da viagem que faz o De-
i inonio em Lope. Alem d'isso, a ideia geral das duas fa-
bulas é quasi a mesma.» Lope de Vega, como verda-
deiramente fecundo e creador, aproveitou-se simples-
mente da ideia, dando-lhe uma forma original e mais
perfeita; os differentes personagens de Gil Vicente, fo-
ram por Lope de Vega personificados na Alma, e ò
Diabo, que nas Barcas trabalha só, aqui é ajudado pela
Memoria, pelo Apetite, pelos Vicios, etc. estribilho
para dar á vela lembra a forma lyrica usada por Gil Vi-
cente; a decoração é também o que revela que Lope de
Vega conheceu os velhos Autos portuguezes. No Auto
da Barca da Gloria, traz Gil Vicente esta rubrica :
a . . .os anjos defferem a vela, em que está o crucifixo
pintado ...» No finnl do Auto de Lope de Vega o mas-
tro da nave da Penitencia é uma cruz, cujos aparelhos
eram os cravos, a lança, a esponja, a escada e os açou-
tes. Na Barca de Gil Vicente apparece um papa; no
fl) Id. ibiâ.
196 HISTORIA DO THEÀTRO PORTUGUEZ
Auto de Lope de Vega, vae ao timão o Papa que então
regia a egreja.
No Auto portuguez, vem Christo da Ressurreição
e é quem commanda a Barca. No Auto de Lope tam-
bém acontece o mesmo, como se vê por esta rubrica:
« Christo em pessoa, como mestre da Nave, com alguns
anjos como officiaes d'ella.y> (1) Finalmente o senti-
mento geral da Viaje dei Alma, mostra mais do que
a homogeneidade de crença, o conhecimento de um mo-
dello d'onde foi tirada a primeira impressão.
Apezar da vastidão da intelligencia creadora de
Lope de Vega, os três Autos de Gil Vicente levam-
lhe vantagem. Ponhamos de parte a invenção, porque
os symbolos christãos tirados do navio pertencem aos
primeiros séculos da egreja. Também nas miniaturas
da edade media a Cruz serve de mastro ao Navio; era
nm Mosaico de Giotto no Vaticano, a egreja é repre-
sentada na forma de um navio que leva Christo por
Piloto. (2) Lope de Vega não fez mais do que desen-
volver o symbolo por continuadas allegorias. Em Gil
Vicente encontra-se mais do que a tradição popular do
christianismo, transparece o espirito critico da Renas-
cença e da Reforma, que o génio sombrio hespanhol
abafou em Lope de Vega. No sentimento lyrico, o ve-
lho dramaturgo não foi excedido. Tendo recebido de
(1) Peregrino en su Pátria, pag. 97, ed. de Sevilha, 1604.
(2) AJffttd Maury, Esml mr lés legendes pieuses au moytm
a 9 € > P- 103, ii. 1.
NO SÉCULO XVI 197
anha as primeiras inspirações das Éclogas de
de la Encina, se é que, na falta dos factos, se
repetir o que disse Garcia de Resende que Gil
ite ridicularisava, e não da velha comedia fran-
pagámos bem esse primeiro impulso da arte sce-
dando elemento para a formação de Lope de Ve-
) author da Dorothea e das mil e quinhentas cô-
as que ainda hoje são a maravilha do theatro eu-
l, deve considerar-se como o primeiro discípulo
il compensado poeta povtuguez.
icknor também cita o fecundo e catholico Calde-
3omo imitador de Gil Vicente, mas sem precisar
ítos: «por ultimo, o Auto em que a Fé declara e
ia aos pastores a origem e mysterios do Christia-
), poderá mui bem ter servido, ligeiramente alte-
para o Auto composto por Calderon de la Barca
uma procissão de Corpus Christi em Madrid.» (1)
ito a que Ticknor allude, é o que se intitula El
y la Azuzena, escripto para a festa de Corpus no
de 1660, em que tomava corno motivo o tratado
iz e casamento da infanta D. Maria Thereza. (2)
a Loa é aonde Calderon se aproxima bastante da
de Gil Vicente; ali se trata da exposição dos
srios da transubstanciação, mas sem o lyrisiho
ico do nosso poeta; no Auto do Lirio e a Açiice-
ambem apparece em scena uma barca, viendo-se
1) Historia de la Literatura espanola^ t. i, cap. xiv,
5.
I) Autos Sacramentale8, Part. m, p. lio, sdrç. d» VIVI .
198 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
en ella la Grada y el Rey; todas estas circumstancias
dão grandes visos de verdade á hypothese de Ticknor.
Mas por estas duas leves imitações de Gil Vicente
feitas pelos dois génios dramáticos mais férteis de
Hespanha, temos de soffrer dois séculos de esterilidade,
extinguindo-se totalmente o theatro portuguez no sé-
culo xvn, desapparecendo completamente os actores
portuguezes, escripturando-se somente actores hespa-
nhoes para virem animar a especulação caritativa dos
Pateos das Comedias.
Depois de ter exposto como os estrangeiros soube-
ram admirar Gil Vicente, vejamos se os elementos na-
cionaes que introduziu nos seus Autos chegaram a
formar uma eschola dramática. O verso de redondilha,
regeitado pela Eschola clássica que impoz a comedia
em prosa, é um dos caracteres exteriores por onde se
conhece a eschola de Gil Vicente; os typos nacionaes
e a forma hierática são já uma feição mais intima*
São numerosos os poetas que continuaram a tradição,
alguns d'elles, astros de primeira grandeza, como
Luiz de Camões ; mas nenhum até ao século xix foi
mais fecundo, mais engraçado, mais lyrico, nem teve
influencia ou missão mais salutar; nenhum concentrou
em si tanto tanto o génio nacional, a ponto de vermos
nas suas obras o espelho da sociedade portugueza do
século xvi.
t
Xi JL VK O XE
ESCHOLA DE GIL VIGENTE
Homem verdadeiramente de génio, tendo compre-
lendido o seu século, e as necessidades moraes da so-
ciedade portngueza, servindo-se da arte para aposto-
lar a sua ideia, Gil Vicente foi durante a vida comba-
tido por dois princípios auctoritarios e intolerantes, o
catholicismo e a cultura clássica. Á sua obra apesar de
brilhante estava destinada a morrer com elle. Assim
aconteceria se a impressão que deixou não fosse pro-
funda. Nas terras aonde ia, deixava o rasto da sua luz;
ficava o gérmen para florir de futuro. Representou
bastantes vezes em Évora, a cidade da erudição, e de
Évora saem o poeta hierático Affonso Alvares e os
dois irmãos António Ribeiro Chiado e Jeronymo Ri-
beiro; trabalha em Santarém na composição doa «&u&
200 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Autos e aí se revela o talento de António Prestes, que
lá recolhera a tradição do mestre. Acompanhando a
corte para Coimbra, distrahindo-a ali durante o ter-
ror das grandes pestes, é em Coimbra que se exercita
pela primeira vez o talento cómico e profundamente po-
pular de Jorge Ferreira de Vasconcellos, na sua Eu-
frosina, eseripta ao pé dos verdes sinceiraes era 1527.
Seria por ventura em Lisboa, antes de 1536, que Luiz
de Camões recebeu as primeiras impressões dramatioas
do theatro de Gil Vicente, por isso que mais tarde cur-
sando a Universidade nunca trocou a forma nacional
da redondilha, pela forma das comedias clássicas.
O theatro portuguez começava a ter uma tradição,
estava fundada uma eschola. O mesmo systema e or-
dem de observações encetadas por Gil Vicente eram
seguidos pelos novos poetas. Mas os dois princípios
auctoritarios continuavam a exercer-se duramente : o
classicismo com a imitação forçada de Plauto, de Te-
rêncio e de Séneca, e o catholicismo com o seu tre-
mendo Index Expurgatorio . E por isso que todos o§
poetas da eschola dramática nacional não foram tão fe-
cundos, tão originaes, nem tão atrevidos como o ini-
ciador.
NO 8ECULO XVI 201
OAPITULQ I
Infante Dom Luiz
osto dos nossos reis e príncipes pelo theatro nascente. — Gil
Vicente celebra o nascimento do Infante Dom Luiz. — A co-
media de Los Turcos, ou o Auto dos Captivos será do infante
Dom Luiz? — Lenda que a attribuia a Gil Vicente, o moço.
— A Tragicomedia de Dom Duardos, de Gil Vicente, attri-
buida ao Infante Dom Luiz — É lhe também attribuido o
Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes. — Depois
da morte da rainha Dona Leouor, viuva de D. Jofto u, foi o
Infante Dom Luiz o protector de Gil Vicente.
 corte de Dora Manoel excedia na pompa das
estas, e na graça e poesia dos seus serões todas as côr-
«s da Europa, Se o papa Leão x gosava a represen-
ação das Comedias de Bartholoraeu Torres de Nahar-
ro, o monareba portuguez distrahia-se dos cuidados da
guerra, afugentava os terrores da peste, festejava o
nascimento dos Infantes com os engraçados Autos de
Gil Vicente. Este gosto dramático, manifestado pela
rainha D. Leonor, viuva de Dom João II, que tanto
animava Gil Vicente, seguido por Dom Manoel e Pom,
João iii, pelo Cardeal Dom Henrique que mandou re-
presentar as Comedias de Sá de Miranda, pelo prín-
cipe Dom João que acceitava as comedias de Jorge
Ferreira de Vasooncellos, e por el-rei Dom Sebastião
jue se deliciava com os Autos do velho Gil Vicente,
Lppareceu no Infante Dom Luiz com as faculdades in-
dutivas.
202 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Nasceu o Infante Dom Luiz era Abrantes em 1506,
(Tel-rei Dom Manoel e de sua segunda mulher a rai-
nha Dona Maria. A este tempo tinha Gil Vicente re«
presentado na corte um grande numero de Autos hie-
ráticos, ao todo oito peças dramáticas. Desde 1502 que
elle inaugurara o theatro em Portugal. Pelo nascimen-
to do Infante, lembrou-se Gil Vicente de inventar um
festejo original, e em vez de um Auto de muitas figu-
ras, lembrou-se de pregar um Sermão em verso, sobre
umas palavras escriptas a carvão nas paredes de umt
sala do paço de Abrantes: Non volo, volo et deficior.
O Sermão é de uma graça e originalidade surprehen- !
dente. Os frades, que acompanhavam a corte, oppuze-
ram-se a que Gil Vicente o pregasse, apresentando o
escrúpulo de que homem leigo não podia pregar. Nilo
valeram os obstáculos ; Gil Vicente recitou essa admi-
rável poesia, cheia das ideias da Reforma. Assim teve
o Infante Dom Luiz o baptismo poético de Gil Vicente.
Em muitos outros Autos o poeta refere-se a elle, feçmo
quem assistia ao serão, maravilhado pelo espectáculo.
O Infante começou a mostrar gosto pela poesia, e d'el-
le existem alguns sonetos. Até ao anno de 1536, ulti-
mo em que Gil Vicente representou na corte, teve oc-
casião de assistir aos Autos que então completavam as
festas pelo casamento das Infantas suas irmãs, ou pe-
las três grandes festividades religiosas do Natal, Beis
e Paschoa. £ de suppôr que durante os grandes des-
gostos que assombrearam o reinado de Dom João in,
e depois da morte da velha rainha D. Leonor, fosse o
NO SÉCULO XVI 203
afante Dom Luiz, o que motivava nas represetações
"«quentes dos Autos do velho Gil Vicente, e o que
lais o sustentou contra as rivalidades da eschola ita-
ctna e dos ódios monásticos. Não fora o Infante Dom
•uiz auctor dramático, não se poderia inferir esta
onjectura. Por este tempo também a Rainha de Na-
^rra, Margarida de Angoulèine, auctora de Heptame-
cm escrevia comedias, como a da Natividade, a da Ado-
etçao dos Reis, a Comedia dos Innocenies, e a Comedia
!« deserto, e muitas outras farças. À educação litteraria
l« tempo adoptava a composição e representação dra-
aatica como um meio de comprehender a antiguida-
Le. Durante a vida académica é que Sá de Miranda,
íerreira, Vasconcellos e Camões, escreveram ou toma-
ram o conhecimento da scena para escreverem as suas
comedias. À educação litteraria do Infante Dom Luiz
«vava-o naturalmente para esta pratica.
Sobre as comedias do Infante, laboram grandes e
intrincáveis duvidas. Attribue-se-lhe a Tragicomedia
3e Dom Duardos; são d'esta opinião Manoel de Faria
B Sousa, que nos seus Com mentos a Camões espalhou
muitas tradições litterarias, Diogo Barbosa Machado,
o Conde de Vimioso Dom José Miguel João de Por-
tugal, na Vida do Infante Dom Luiz, o P. e Thomaz
de Aquino, e todos aquelles que seguiram estas úni-
cas authoridades. No Index Expurgatorio da Inquisi-
ção de Hespanha, publicado em 1559, prohibe-se o
auto de Dom Duardos, sem declarar o nome do au-
*tor. No Index de 1624, quando trata das obras de Gil
204 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
Vicente que precisam ser expurgadas, vem: «A Tragi
comedia de Dom Duardos, da impressão mais anti
se prohibe, por andar outra já correcta da imprei
de 1586 pêra cá, começa: Famosíssimo senhor, etc.
também se entende ser prohibida a que andou fora
corpo de todas as obras, se for impressa confo
aquellas antiguas, como acima fica geralmente advei
tido. A do anno de 1613 em Lisboa, por Vicente
vares, é das correctas.» D'aqui se conclue, que não
no corpo das obras de Gil Vicente, mas também e
uma folha volante, a Tragicomedia de Dom Duardos ei
attribuida ao fundador do nosso theatro.
As obras de Gil Vicente foram por elle mesmo col
ligidas e offerecidas a Dom João m, e no livro
ceiro das Tragicomedias traz o Dom Duardos, co
tendo sido por elle representado diante d' este mona
cha. Costumando indicar o anno, o logar da repre
tacão, e ás vezes o motivo que a originou, na rubrica àé
Dom Duardos nada d'isto declara.
O estylo do Dom Duardos e o metro differem ai*
gum tanto do Amadis; e, quando não pertencesse com-
pletamente a Gil Vicente, o mais que se poderia ad-
mittir era ter o Infante Dom Luiz collaborado, para o
que também não ha provas.
Attribue-se egualmente ao Infante Dom Luiz a co-
media de Los Turcos, ou os Cativos. No Index de 1559,
(a pag. 20, col. 2,) vem prohibidp o € Auto dos Capti-
vos, chamado de Dom Luiz e dos Turcos. * Da ínesnu
sorte e pelas mesmas palavras vem prohibido nolndez
NO SÉCULO XVI 205
324, (p. 9, cias. A.) Por estas duas passagens dos
v Expurgatorios se infere, ser o Auto dos Cativos
do Infante Dom Luiz, a que o vulgo chamou
<. Luiz e dos Turcos; d' esta opinião é também Bar-
Feio no Ensaio sobre a vida de Gil Vicente. (1)
, e Thomaz de Aquino, no quinto tomo da sua edi-
:le Camões, reproduzindo a lenda de Faria e Sou-
iie attribue a Comedia dos Turcos a um filho de
Vicente, (2) diz em uma nota: «Não faltou quem
ndesse que este Auto de Dom Luiz e de los Turcos
obra do mesmo Infante Dom Luiz, e não de Gil
mte o Moço; e que elle o compozera para n'elle
% ir alguns dos successos que lhe haviam acontecido
lemoravel guerra de Africa onde se achou ...»
Sião só pelo titulo do Auto, mas por esta allusão
ictod as guerras de Africa, o Auto dos Captivos foi
ipto depois do anno de 1535, quando foi tomada a
)ta, onde foram livres com a tomada de Tunis,
b dois mil christãos que ali estavam captivos. É de
)ôr que este Auto, hoje perdido, fosse fundado so-
algum episodio da guerra de Tunis e Goleta, como
grande sede dos soldados, da adoração da Cruz,
la revolta dos renegados que entregaram Tunis a
os v. Do Auto restam estes versos, que traz o P.*
'1) Obras, t. i, p. xvi.
^2) Faria e Sousa attribue ao filho G-il, e Baptista de Cas~
i Luiz Vicente,
206 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Thomaz de. Aquino: co tal Auto, conforme li em um*
Memoria, principiava (Testa sorte:
Viver em mingoa, temendo
De morrer, é viver falto : ,
Morrer eu por bem tão alto,
Fico tão vivo morrendo,
Quanto no querer me exalto.
Arrisco-me n'um propósito
Que me sobe a tanto bem,
Que arriscar-me me convém :
Ponha-se a vida em deposito ;
Perca-se. pois causa tem.» (1)
■s.
Nas Memorias e documentos recolhidos por Frei
Luiz de Sousa para os seus Annaes de Dom João ITl,
encontrou uma' Informação de Pêro d' Alcáçova Car-
neiro, mandada ao Cardeal Dom Henrique em 17 de
Março de 1573, do que se deve notar quando se escre-
ver a vida e feitos do Infante Dom Luiz. Aí se diz que
o Imperador Carlos v confessava que a elle devia o bom
successo da tomada da Groleta e de Tunis. (2) Foi tam-
bém este Infante que introduziu em Portugal a Archi-
(1) É de suppôr pelo tempo em que foi escripto o Autodot
Captivos^ tendo já apparecido na corte as comedias de Jorge
Ferreira de Vasconcellos e de Sá de Miranda, imitadores do
thaetro latino, fosse este Auto unia tradução ou imitação dos
Caplivos de Plauto, segundo o gosto que seguiu Camões na sua
imitação dos Amphylriões de Flauto, escripta no tempo em qnc
cursava a Universidade de Coimbra.
Na Vida do Infante Dom Luiz pslo Conde de Vimioso, se
lê a pag. 141 : «Escreveu também o excellente Auto de Dom
Duardos, que se estampou em nome de Gil Vicente, a quem
elle o havia dado para representar.))
(2) Annaes, \)&g. 460,
NO SÉCULO XVI
207
tectura italiana nas fortificações do reino. Pêro de Al-
cáçova Carneiro não fala dos seus méritos litterarios,
nem tam pouco das suas poesias e obras dramáticas,
porque no seu tempo se julgavam inferiores á gloria
de Príncipe, Como aqui todos os poetas dramáticos, o
Infante Dora Luiz também teve o desejo de metter-se
a frade; morreu em 1556.
Ao Infante D. Luiz foi também attribuido o Pal-
meirim de Inglaterra de Francisco de Moraes-; facto in-
sustentável, mas que em todo o caso depõe a favor da
hypotbese que o dá como auctor do Dom Dtiardos de
Gil Vicente; demais a tragicomedia de Dom Dtiardos
náo traz data, circumstancia que revela não ter sido re-
colhida pelo poeta, mas por seu filho Luiz Vicente no
intervallo que medeia entre 1537 e 1561. E natural
que a tragicomedia, representada na corte, se achasse
entre os papeis de Gil Vicente, e que seu filho igno-
rasse a proveniência. A tragicomedia andou em folha
volante, talvez em vida do poeta, e foi condemnada pe-
lo Santo Officio, o que vae também de encontro á hy-
pothese que a dá ao Infante Dom Luiz.
208 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
OA.I»ITXTXjO II
Os Autos de Affonso Alvares
Évora, sede da escbola dramática de Gil Vicente. — Affons
Alvares vive os seus primeiros annos em Évora. — Vem pa
ra Lisboa em 1522. — Hypothese sobre a sua rivalidade cor
Gil Vicente. — Relações intimas com os Cónegos de S. Vi
cente, que lhe encommendaram os seus Autos. — Affons
Alvares não tem originalidade : paradigmas dos seus Anto
com a Legenda Áurea de Voragine. — Affonso Alvares tam
bem soffreu com o Index Expurgatorio.
Pouco se sabe da vida d'este poeta, pelo que di
Barbosa Machado, e Iunocencio Francisco da Silva
Foi creado do Bispo de Évora Dom Affonso de Porta
gal, «filho de D. Affonso Marquez de Valença, qw
nasceu primogénito do primeiro Duque de Bragança
D. Affonso.» (1) Criado dos mais estimados, diz Bar
bosa, attendo aos seus méritos litterarios, que não pou
co contribuiriam para guerrear o infeliz Gil Vicenti
pelos seus detractores. O Bispo D. Affonso de Por
tugal morreu em 1522; em 1521, representou Gil Vi
cente era Évora a Farça dos Ciganos, e ali em 1521
representou também o Auto Pastoril portuguez, ond
tão amargamente se queixa da sua miséria:
E um Gil. . . um Gil. . . um Gil.
(1) Annaes de D. João IIl n v ^
NO SÉCULO XVI J09
Pelo menos o partido clerical mostrava-se mais par-
cial de Aflbnso Alvares, do que de Gil Vicente, cujos
Autos eram apenas pedidos pela viuva de D. João li, a
rainha D. Leonor, e encommendados para alguma fes-
ta da corte; Affonso Alvares compunha Autos tape-
dimento dos muy honrados e virtuosos cónegos de Sam
Vkente», como lhe aconteceu no Auto de Santo Antó-
nio, e talvez no Auto de Sam Vicente Martyr.
E indubitável que Affonso Alvares encontrara Gil
Vicente em Évora, quando em 1521 acompanhou a
corte de Dom João ni; e parece mais, que o velho poe-
ta se picasse diante do seu rival, Compondo por este
tempo a Comedia de Rubena em três grandes scenas ou
actos, com prologo á antiga, com effeitos scenicos de
fiidas e Eccos, e sobretudo pelo complicado enredo e
excellente lyrismo. A Comedia de Rubena foi repre-
sentada em 1521 diante de D. João iii, sendo príncipe)
(Tonde se conclue que antes da volta a Lisboa, bnde foi
acclamado, estivesse ainda em Évora. N'ésta cidade
representou Gil Vicente em 1526 a Fragoa de Amor,
e em 1533 a Romagem de Agradados, e o, Amadis de
Gaula, e em 1536 a Floresta de Enganos. Évora hon-
rou-se com as cceações mais bellas dò génio dramático
de Gil Vicente; a esta sua permanência ali com a
corte se deve attribuir os trabalhos e estudos de Affon-
so Alvares, talvez seu actor em muitos seroes do paço.
Affonso Alvares era então moço, como se deduz do an-
tagonismo que tinha contra o poeta António Ribeiro
Chiado fallecido em 1591. António Ribeiro, poeta sa-
1*
210 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tyrico, fora frade franciscano, e por causa da sua vida
airada desfradara^se; em um dos seus momentos, em
que a veia cómica o impelia, escreveu uma petição em
verso ao Commissario Geral dos Franciscanos, talvez
para largar o habito fradesco; AfFonso Alvares, a este
tempo, residia em Lisboa, exercendo o officio de mes-
tre de lêr e escrever, e compôz uma resposta em verso
á dita petição ao Commissario geral de Sam Francis-
co, (jue andam hoje juntas na reimpressão dos Letrei-
ros sentenciosos do frade disidor. Chiado persegiu-o
com as suas satyras, e em umas quintilhas dá a enten-
der que elle era mulato. Nada mais natural depois do
que sabemos de Évora pela Carta de Clenardo. Affouso
Alvares veiu provavelmente para Lisboa depois da mor-
te do Bispo de Évora em 1522; aqui escreveu por certo
os dois Autos citados, pedidos pelos cónegos de Sam
Vicente, e talvez representados entre elles, como usa-
vam os Jesuítas. Affonso Alvares escreveu mais o Avio
de Sam Thiago Apostolo, e o Auto de Santa Barbara
Virgem e Martyr. No Index Expurgatorio de 1624 por
D, Fernando Martins Mascarenhas, vêm prohibidos,a
pag. 92, os Autos do poeta protegido pelos Cónegos de
Sam Vicente; prohibe o imprimirem-se «não se emen-
dando como se fez no Expurgatorio» . Este Expurga-
torio refere-se ao Index de 15#0, portanto todas as edi-
ções já do século xvii andavam amputados pelo Santo
Officio. Entre os livros de cordel ainda se encontra o
Auto de Santa Barbara; todos os mais desapparece-
1'ãm completamente. A Yasã,o \*QY<\ue só este sobrena-
NO SÉCULO XVI 211
oragem do tempo está no mesmo Index, que
30 o amputou para poder correr. Uma cousa
3rohende! E vêr, em um folheto de cordel, em
a esse Auto, ainda lido nas aldeias do Minho,
aquellas partes mandadas riscar pelo Santo
o Index de 1624: «No Auto de Santa Barba-
se advirta que se não hade representar o bap-
a Santa.» No Auto que anda na edição moder-
a scena disposta para o milagre de apparecer a
onde a virgem se hade baptizar. Diz mais: «e
em as palavras seguintes: Baptisar-se-ha San-
eara e cantarão em louvor de Deos um mote,'*
bre rubrica está também intacta, por onde po-
er a certeza de ler um Auto genuino de Affòn-
res; aí veremos os recursos scenicos de que po-
>or, e ao mesmo tempo como desenvolve uma ac-
matica. A scena abre com uma vista de campo,
tão dois pedreiros fazendo uma torre com duas
; entra Santa Barbara acompanhada de duas
as e pergunta para quem é aquella morada. Os
3s respondem -lhe que seu pae a manda fazer
mcerrar ali. Santa Barbara despede as suas don-
3 faz uma oração a Deos para que lhe faça ap-
ali uma foute para se baptizar:
Pelo teu grande poder
Que faças apparecer
Aqui uma fonte de agua.
212 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Na rubrica se lê: «Aqui apparece uma fonte,» eao
mesmo tempo apparece um Anjo que a baptiza: mBap-
tizar-se-ha Santa Barbara, e cantará em louvor de
Deos um motete ...» Depois d'esta canção ao gosto de
Gil Vicente, em que apenas indica o sitio para o canto,
deixando á liberdade do actor o escolher a toada de al-
gum romance ao divino, ou algum hymno da Egreja,
entra Dioscoro, pae da santa, a tomar conta do tra-
balho dos pedreiros. Dioscoro extranha encontrar sua
filha sósinha, e pergunta-lhe a rasão por que mandara
fazer trez janellas aos pedreiros? Barbara responde
com o symbolismo do mysterio da Trindade. Saindo a
Virgem da scena, eutra um Embaixador do Duque
Theodoro com propostas de casamento, que Dioscoro
acceita, promettendo que hade mandar a resposta ao
Duque. «Aqui se vae o Embaixador, e entram dous
Pastores, um chamado Silvino, e outro Gruilan.» iTisto
segue Affonso Alvares a tradição dramática seguida
por Gil Vicente, servi ndo-se da lingua castelhana para
os personagens rudes. Na Comedia Triumpho de In-
verno, representada em Lisboa em 1530, diz Gil Vi-
cente, descrevendo a figura e modo de falar do interlo-
cutor Inverno :
O Inverno vem selvagem
Castellano en su decir.
A scena dos pastores é verdadeiramente rude, e ,
Bem a graça dos pastores o^ue Gil Vicente introduz nas
NO SÉCULO XVI 213
mas peças hieráticas; n'esta parte Affonso Alvares
5-lhe absolutamente inferior. Os pastores deitam-se ao
pé da fonte, e entra Dioscoro com a filha, propõe- lhe
o casamento com o Duque Theodoro; mas Barbara re-
geita-q, dizendo que é casada com Jesus Christo. « Aqui
arranca Dioscoro a espada, querendo matar a Santa
Barbara e ella metter-se-ha pelo mato, onde estão os
castores.»
Fogem os pastores, «e virá Dioscoro com Santa
Barbara pelos cabellos» e ameaça-a com a espada núa;
acode o Adiantado Marciano, e argumentam am-
bos com a Virgem sobre os mvsterios do christianis-
mo. a Aqui levam Santa Barbara a açoutar, e se can-
tará Domine Jesu Christe, e em quanto cantarem, virá
Santa Barbara em uma vestimenta muito justa a qual
trará debaixo dos vestidos cheia de açoite, vindo dian-
te de Marciano.» Como se vê pela rubrica, a scena fi-
cara deserta; o hvmno da liturgia era cantado em
coro, ou entrando para a scena os cantores, ou estan-
4o no logar destinado no templo. Na presença de Mar-
ciano, o pae de Barbara ameaça de a mandar afronto-
samente degolar, mas a Virgem resiste com uma ener-
gia inaudita : «Aqui levarão Santa Barbara a marty-
^W ; e cantarão um motete que diz : In passione posi-
ta — e sahirá Santa Barbara toda chagada com as te-
% as cortadas. » Esta rubrica e a antecedente nos mos-
cam que se usava camisa de meia para esta figura-
rão, e que a parte de Santa Barbara era representada
^or um rapaz. Pela oração que faz a v\Tgpm^N^,Q^
>2& está núa:
214 . HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Cobri-me, meu Redemptor
Que não seja escarnecida,
D'aquella gente descrida
Que por vos dar gram louvor,
Me fazem trazer despida.
«Aqui vem um Anjo com uma vestidura branca.*
€ Levará o Anjo a Santa Barbara como que vai acu-
rar e meter-se-hão em uma cortina, e cantarão entre-
tanto.* Os intervallos em que a acena fica deserta sup-
pre-os Affonso Alvares com musica ecclesiastica ; aca-
bada a musica volta Santa Barbara mostrando os pei-
tos que lhe foram cortados :
Mandaste-me cortar as tetas
Vel-as aqui todas sans,
As carnes, brancas de pretas,
Tilo formosas e louçãs
Como d'ante8 e mais bel las.
Apesar de todos estes milagres, Marciano, a pedi-
do do pae da virgem, dá a sentença em que a manda !
degolar. A virgem ajoelha fazendo a sua oração; en-
tra um Anjo cantando, que a vem animar para o mar-
tyrio. «Acabada a oração, degolará o Pae a Santa *
Barbara: e mostrando a cabeça ao povo, disparam
grandes trovdes ao pae, e virão os diabos por elle.v Por
esta rubrica se vê que o Auto fora representado dian-
te do povo, e ao mesmo tempo dá a entender que em
scena se passava a degolação, os golpes dos raios, e o
rapto dos diabos, o que revela já bastante machinis-
NO SÉCULO XVI 215
10. O corpo da Santa fica truncado em scena, e vem
im Ancião pedir ao Adiantado para o enterrar. «Aqui
\e vae Marciano, como quem vae ouvir o que passou; e
rirão quatro cantores, e levam a enterrar Santa Bar-
bara cantando. E fenece esta obra em louvor de Deos.*
Auto de Santa Barbara foi o mais popular de
bodos os Autos de Affonso Alvares, por isso que ainda
anda nas mãos do povo e se representa pelas aldeias
3o Minho. Escriptos quasi todos a pedido dos frades,
é provável, que dando o thema do Auto, indicassem a
Affonso Alvares as fontes d'onde podia tirar a acção
dramática. Lendo-se o Auto de Santa Barbara, conhe-
ce-se immediatamente pela sua estructura e peripé-
cias, que o auçtor teve diante dos olhos a Legenda Áu-
rea, de Jacob de Voragine. Extractaremos da lenda
de Santa Barbara todas aquellas partes, de que se
aproveitou Affonso Alvares, que servilmente foi versi-
ficando, introduzindo também um dialogo de pastores
em hespanhol para servir de expressão rústica :
t Havia em Nicomedia, no tempo do imperador
Maximiano, um pagão chamado Dioscoro, de uma fa-
mília distinctissima, que possuía grandes riquezas,
linha Dioscoro uma filha de grande formosura, que
íe chamava Barbara. Seu pae a amava em extremo;
> para que ninguém a pudesse ver, encerrou-a em uma
orre altíssima, que mandou construir. Desde a mais
jnra edade, Barbara, conhecendo o nada das cousas
jrrestres, começou a applicar-se á meditação das cou-
216 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
sas do eéo. . . (1) Ella applicou-se muito á leitura,
e fez, postoque sem mestre, grandes progressos na
sciencia (las cousas divinas. Por causa da sua belleza,
muitos nobres do paiz se apaixonaram por ella, e fala*
vam ao pae para que a resolvesse a acceitar um mari-
do. Seu pae indo ter com ella á torre, procurava de-
cidil-a, dizendo : — Minha filha, poderoso» persona-
gens se têm lembrado de ti, e me têm dito que te re-
ceberiam em casamento; o que tencionas fazer? —
Ella respondeu a seu pae, olhando-o severamente : —
«. Nâo me forces a obrar assim, meu pa£. » pae foi-
se embora e mandou vir um grande numero de obrei-
ros^ e lhes deu ordem para construir uma casa de ba-
nhos, e partiu logo para fóra da terra. Barbara descea
da torre para vêr o quo se tinha feito, e notou que do
norte havia somente duas janellas, e disse aos pedrei-
ros : « Porque fizestes estas duas janellas ? » Respon-
deram-lhe : — Vosso pae assim o ordenou, — Barbara
insistiu: « Fazei -me uma outra janelja. » Replicaram
os pedreiros : — Receiamos que vosso pae se enfureça
contra* nós. — E ella lhes disse: « Fazei o que eu man-
do, que eu farei com que meu pae dê a sua approva-
ção.» A vis.ta d' isto abriram uma outra janella
Quando se acabou a construcção, seu pae regressou da,
viagem, e logo que viu trez janellas, perguntou aos
pedreiros : — Para que fizpstes trez janellas ? — Vossa
(1) Seguem-se as relações de Barbara com Origines, que
mandou explicar-lhe o Mysterio da Trindade ; Affonso Alva-
res não attendeu a esta situação.
NO SÉCULO XVI 217
filha assim 'O mandou. — Disse então o pae : — Foste
tu, que mandaste que se fizessem as três janellas? —
Ella respondeu: Tive fortes rasões para maudar assim;
porque trez janellas allumiam o homem completamen-
te.» Seu pae levou-a comsigo para a sala dos banhos,
e disse: — «Porque é que trez janellas allumiam mais
do que duas? — Barbara respondeu: «Ha trez que al-
lumiam o mundo, e que regem o curso das estrellas: o
Padre, o Filho, e o Espirito Santo, que são um em es-
sência. » Então o pae, cheio de fúria, sacou da espada
para a matar. Mas a santa fez oração a Deos, e as pa-
nedes se reabriram, e foi transportada para uma mon-
tanha onde estavam dois pastores, que apascentavam
os seus rebanhos. O pae começou a procural-a, e per-
guntou aos dois pastores se: tinham visto sua filha. Um
Telles, vendo quanto o pae era encolerisado, calou^
se por que não sabia onde Barbara estava ; o outro
apontoa com o dedo Seu pae, dando com ella
ft espancou, arras tou-a pelos cabellos, e carregou -a de
algemas. Metteu-a em um calabouço, com guardas á
vista, e foi dar parte de tudo ao procônsul Mareia-
&o. (1) procônsul quiz que Barbara fosse trazida 4
Inua presença. Logo que a viu, ficou assombrado da sua
belleza, e disse-lhe: — Se te queres salvar, sacrifica aos
deoses immortaes, ou então morrerás nos maiores tor-
mentos. — Barbara respondeu : «Quero-me offerecer em
sacrifício ao meu Deos Jesus Christo, que fez o céo e
(1) Affonsp Alvares, dá-lhe o titulo de Adiantado.
218 HISTORIA DO THEATRO PORTUQUEZ
a terra e tudo o que n'elle se contem. Quanto, aos
monios que tu adoras, o propheta disse: Elles tem u
bocca e não falam, tem olhos mas não vêem ; os qi
lhes prestam homenagem são corno elles.» Oprocon
furioso, mandou que a despissem, e que a vergalhassei
sem piedade. E logo que o seu corpo ficou todo ensa
guentado, ordenou que a metessem na prisão, até q
decidisse que tormento lhe seria infligido. Por alta noi
te uma 'grande claridade circumdou a martyr, e Jesu
Christo appareceu e lhe disse: «Coragem, rainha filha
haverá grande alegria no céo ena terra na occasião d
teu martyrio ; não temas as ameaças do tyranno ; serei
comtigo para te preservar de todos os males. «Santa
Barbara sentiu uma alegria extrema com as palavras
do Senhor, e de manhã tornou a ir á presença do pro-
cônsul, que ao vêr que não tinha em si o minimo ves-
tígio dos tormentos que recebera na véspera, lhe dis-
se: «Vê quanto os deoses te são favoráveis, e como te
amam, pois que te sararam tuas chagas^-^Barbara re-
plicou: «Teus deoses são como tu, surdos, cegos e mu-
dos; como me poderiam sarar?. O qneme sarou foi Je-
sus Christo, filho de Deos vivo; mas tu não o conhe-
ces, porque o teu coração está endurecido pelo diabo.»
O procônsul estremeceu como um leão irritado, man-
dou que lhe queimassem as costellas com tochas acce-
sas, e que lhe batessem na cabeça com marteladas. A
santa, contemplando o céo, disse : « Vós sabeis, Senhor,
que eu soíTro pelo vosso amor; não me abandoneis.»
ímpio procônsul, mandou c^vxft lha cortassem os pei-
NO SÉCULO XVI 219
m; (1) e ella disse: «Não me lanceis fora da vossa
resença, Senhor, não me tireis o Espirito Santo.»
(andou mais que a levassem núa pelas ruas da cidade,
poutando-a ; e ella disse : « Senhor, vós que sois a mi-
Íol firmeza, e que cobris o céo de nuvens, cobri o meu
prpo, para que não esteja exposta aos olhares dos im-
pôs. » Desceu então do céo um anjo que lhe trouxe uma
única branca. procônsul mandou que lhe cortassem
l.cabeça; porém seu pae lançou mão d^ella, e levou-a
(ara a montanha, e Barbara fez esta oração: «Senhor
fesus a quem todas as cousas obedecem, fazei que aquel-
es que invocarem vosso santo nome lembrando-se do
neu martyrio encontrem o esquecimento de seus pec-
íadosnodia dojuizo.» E ella ouviu uma voz do céo,
me lhe respondia: «Vem, minha amada; repousa na
nansão de meu Pae que está no céo; o que tu pedes
foi concedido. » E a martyr teve a cabeça cortada pelas
nãos de seu próprio pae. E quando desceu da mon-
;anha um raio do céo caiu sobre ellee o consummiu, e
íera ficou signal d'elle.» Eis a lenda de Voragine, Ca-
mélias partes que seguiu Affonso Alvares no seu Au-
*), do qual tirando a originalidade da invenção, restam
tpenas uns versos, sem lyrismo como o que tem Gil Vi-
;ente, e sem profundidade na expressão natural.
Affonso Alvares, depois da morte do Bispo de Evo-
•a, veiu para Lisboa, onde foi mestre de lêr e escrever;
im dos pastores do Auto de Santa Barbara parece alu-
(1) Seguido por Affonso Alvares.
220 HSTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
dir a esta profissão, e, pelo menos, fala como criado <H^
Bispo, que anda ao facto das contas da epacta e am
numero do ka lendário ;
No ay fícsta grande ni chica,
Que yo no sepa p'>r mi fé,
Muy mejor que el que predica,
Yo sé hablar grammatica,
Y f uy muy gran latino etc.
Uma vez achada a origem d'este Auto de Affoní
Alvares, e sendo-lhe indicados os assumptos pelos
negos de Sam Vicente, ou por outras corporações mo^l
nasticas, ó fácil de determinar o entrecho dos dois An-1
tos de Sam Thiago Apostolo, e de Sam Vicente MarA
tyr, hoje completamente perdidos. Àbrindo-se a Le-
genda Áurea, aí encontramos situações que fariam de
uma intelligencia medíocre quasi um Shakespeare ; po-]
rém a muita orthodoxia d'este poeta tirou-lne a liber-
dade inventiva; vejamos o que elle aproveitaria de Vo J
ragine para o seu Auto de Sam Thiago Apostolo : t Pre-
gando Sam Thiago naJudea, um doutor celebre entftf
os phariseus, chamado Hermogenes, mandou-lhe b sen
discípulo Philetus. para convencer Sam Thiago, em
presença dos judeus, de que a sua doutrina era falsa;
porém Sam Thiago tendo disputado com elle diante de
muitos assistentes, e tendo feito numerosos milagres,
Philetus veiu ter com seu mestre Hermogenes, apro-
vando a doutrina de Sam Thiago, e contando os mila-
gres que tinha visto, dava parte da sua resolução de se
fazer discípulo do Apostolo. Hermogenes, encolerisado,
\
\
NO SÉCULO XVI 221
Igou-o por meio do sortilégios, de modo que lhe era
■n possível fazer qualquer movimento; e dizia-lhe: «Ve-
rmos se o teu Sam Thiago é capaz de te desamarrar. »
Philetus mandou um criado avisar o Apostolo do acon-
tecido, e o Apostolo mandou -lhe o seu manto, dizen-
do: «Que pegue n'este manto e que diga: Deos levau-
ísê. aquelles que baquearam, e liberta os que estão ca-
gjtivos.» E logo que Philetus teve o manto, ficou livre
fta prisão em que o retinha a arte magica de Hermo-
j|enes, e deu-se pressa em ir ter cora Sam Thiago. Her-
RDOgenes, cheio de raiva, ajuntou os demónios, para
faue lhe trouxessem Thiago e Philetus presos pelo pes-
ieoço, para se vingar Telles á vontade. Os demónios
Mando pelos ares, vieram ter com Sam Thiago, dizen-
|$d: «Thiago j Apostolo de Deos, tem piedade de nós,
rque nós ardemos antes do nosso tempo ter chegado. »
Thiago perguntou-lhes : «Para que vindes ter commi-
?» «Hermogenes nos mandou para que te levasse-
os com Philetus á sua presença; mas quando vinha-
os ter comtigo, o anjo do Sonhor nos amarrou com
rrentes de ferro, e nos tratou cruelmente. » Disse-
^Ihes Sam Thiago: «Voltae para aquelle que vos deu
gordem de aqui vir, e trazei-m'o pelo gasganête, sem
lhe fazeres mal. Os diabos agarraram em Hermogenes,
ataram -lhe os pés, e as mãos atraz das costas, e trou-
xeram-no a Thiago dizendo : « Para cumprir pontual-
mente as suas ordens, fomos cruelmente maltratados. »
£ disseram a Thiago : Dáe-nos o poder de vingarmos
sobre elle as tuas injurias é as nossas.» Sam Thiago
»-'■•-
. - 1
A-,
222 HISTORIA DO THE AT RO PORTUGUEZ
replicou: «Está nas vossas mãos; por ventnra nlo
podeis punir?» Os diabos responderam : «Nadap
mos ; nem podemos sequer tocar em uma formiga qi
está no teu quarto.» E disse Sam Thiago a Philetua
«Jesus Christo nos deu o preceito de restituir só bei
pelo mal: Hermogenes te agrilhoou, livra-te.» Sol
Hermogenes das suas algemas, ficou confundido; e
Apostolo lhe disse: «Tu és livre; vae para onde quize-
res, porque é contra a nossa doutrina tirarmos qual
quer vingança.» Hermogenes retrucou : «Eu conh
o furor dos , demónios; se me não dás alguma cous*
que te pertença, elles matam-me. » Sam Thiago deu-
lhe o seu bastão. Hermogenes quiz queimar todos os
seus livros de magia, e metter-se a discípulo de Sam
Thiago. Mas o Apostolo, com receio que o cheiro do
incêndio amotinasse aquelles que não estavam preve-
nidos, mandou lançar todos os livros ao mar; Hermo-
genes foi convertido e pregou com grande zelo a pala*|
vra de Deos.
Os judeus, notando a mudança de Hermogenes, fir
ram-se ter com Sam Thiago, reprehendendo-o d'elle
pregar de Jesus Crucificado. Porem elle lhes demons-
trou pelas Escripturas, a paixão e a divindade de Jesus
Cbristo, e muitos abraçaram a fé.»
Esta lenda é bella, e nas mãos de um bom poeta
dramático, tornava-se grandiosa como a creação do |
Fausto. O modo como Affonso Alvares a tratou vê-se
pelo acanhamento do Auto de Santa Barbara; o Atuo
de tíam Thiago Apostolo, como sé vê pelo argumento
_N0 SÉCULO XVI 223
tirado de Voragine é* mais philosophico do que popular.
Foi por isso que se perdeu, não achando na tradição
hierática das aldeãs bastante affeição para o salvar do
-tempo. No Index Expurgatorio de 1624 não vem este
Auto entre os outros condemuados de Affonso Alvares;
a rasão explica-se por ter sido escripto a pedimento dos
muito honrados e virtuosos cónegos de Sam Vicente.
O Auto de Sam Vicente também está perdido; as
citações, que vem no Index de 1624, coincidem perfei-
tamente com a lenda de Voragine: «Vicente, de uma
nobre família, mais nobre pela sua fé e piedade, foi diá-
cono de S. Valério, bispo; e como Vicente se exprimia
com mais facilidade, o bispo confiou-lbe a direcção da
sua diocese, e consagron-se inteiramente á devoção e á
contemplação. Por ordem do governador Daciano, (1)
Vicente e Valério foram arrastados e precipitados em
uma enxovia medonha. E quando o governador imagi-
nou que estariam abatidos pela fome e pelo soffrimen-
to, mandou que lh'os trouxessem á sua presença. Logo
que os viu sãos e alegres, enfureceu-se, começou a per-
der a cabeça, e disse: «Valério, que discursos são esses
\ "que propagas em nome da religião, e como ousas tu
i violar os decretos dos príncipes?» E como o bemaven-
turado Valério era tartamudo, Vicente lhe disse: «Res-
(1) No Auto do. Sam Vicente, diz o Index de 1624: «na li-
nha 8, onde diz Daciano rei, risque Key e pouha-se Presidente
do Imperador Diocleciano.)) Na foi. 7 e nu foi. 9 vem a mesma
emenda; por onde se vê que a censura não deixava ao pobre
Affonso Alvares a liberdade de inverter a historia romana da
lenda de Voragine.
i.
I
.1
224 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
peita vel padre, não filieis assim em vox baixa, comoqaè J u
se o temor vos gelasse a lingua; exprimi-vos bem alto,
Se vós permittis, ÍTei responder ao juiz. » Valério re-
plicou-lhe: «Já, querido filho, te havia encarregado de
cuidado de falar, e agora te encarrego de responder pe 1
la fe, pela qual estamos aqui. d Então Vieeote se vol-
tou para o juiz, e disse a Daciano: «Até ao presente
tens-te revoltado contra a nossa fé; mas sabe que é gran-
de o crime de renegar a doutrina dos christãos, e de
blasphemar contra o Senhor recusando a honra qne
lhe é devida. » Daciano mandou logo que o Bispo fos-
se desterrado, e que Vicente, como rapaz insolente, fos-
se entregue aos algozes, para que o estendessem no ca-
vallete, e que todos os seus membros fossem quebrados
para espantar os outros christãos. d Aqui seguetn-se oe
variadíssimos tormentos, ainda usados na edade me-
dia, e em Portugal restabelecidos pela Iuquisiçâo.
Como no Auto de Santa Barbara, Affonso Alvai
não os executa em scena ; pelo contrario se aproveitaria
da situação em que Vicente é lançado em uma prisão
escura, que apparece subitamente illuminada, em qoe
os anjos deitam o Santo sobre flores cantando harmo-
nias suavíssimas, que os guardas escutavam atravessas
grades. Depois que Vicente morreu, Daciano, raivoso*
por não lhe ter arrancado um gemido no transe, disse:
«Fui vencido por elle em vida, veremos se o posso ao me-
nos vencer depois de morto. E mandou deitar o cada- ]
ver em um campo para ser devorado pelas feras e aves
do céo. Ainda na morte foi Viccute vencedor, porque
NO SÉCULO XVI 225
mi um grande corvo, com as outras aves carnívoras,
dispersou-os, ficando em guarda do corpo do martyr.
Tivesse Affonso Alvares mais liberdade de espirito
a mais génio, que supre toda a scienoia, que isso bas-
iva para restituir á sua verdadeira poesia as grandes
ndas do Christianismo. facto de cornar a Legen-
i Áurea como fonte de invenção dramática, revela-
a uma bella intuição artística, se essa escolha lhe não
vesse sido imposta pelas ordens monásticas, thea-
o de Affonso Alvares está quasi todo perdido, mas o
)uco que existe basta para mostrar que, discipulo de
il Vicente, é-lhe incomparavelmente inferior na in-
snção dramática, no lyrismo da paixão, no espirito
edievico, na graça, na fecundidade, em tudo o que,
íalmente, separa um homem de génio de uma médio-
idade.
No Index Expurgatorio de 1624, cita-se o Auto de
tnto António 3 por Affonso Alvares ; também está per-
ào. Por todas estas cousas se vê que o theatro nacio-
1, começado por Gil Vicente, e continuado por talen-
$ constantemente inferiores a elle, tinha condições pa-
ser original e grande, mas que não podia resistir an-
o prestigio da renascença clássica.
15
226 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
o-AwT»itxjijO in li
António Ribeiro Chiado
Influencia do Gil Vicente em Évora. — António Ribeiro deixi
a clausura para seguir a vida dramática. — Lucta com Affon-
80 Alvares. — Sua vinda para Lisboa. — Encontro e amisade
com Camões. — Representa diante de Dom João m.— Co-'
nhecido por Soropita. i quem coramunica as tradições sobre
Camões. — Data certa da sua morte.
Em Évora representava Gil Vicente os seus mm
bellos Autos, ou a pedido da cidade ou quando para
ali acompanhava a corte. Foi em Évora que primeiro
se fez sentir a sua influencia; vimos como em Évora
se revelou o talento dramático de Affonso Alvares,
criado do Bispo D. Affonso de Portugal. N'esta mes-
ma cidade, cheia de tradições romanas, habitada por
eruditos e archeologos, o génio mediévico de Gil Vi-
cente imprimiu a sua feição. António Ribeiro nasce&j
nos subúrbios de Évora, e a circumstancia de
de pães humildes faz suppôr que entraria muito cedo]
como comparsa nos Autos de Gil Vicente talvez nl
por mera curiosidade de estudante, mas como subsidio
para a sua vida escholar. No século xvi usavam os es-
tudantes da Allemanha cantar pelas portas parasse
sustentarem. E também natural que ainda em Évora
conhecesse o poeta Affonso Alvares, com quem depois
bulhou em Lisboa por causa da sua Petição em verso.
António Ribeiro teve um irmão egualmente distincto
pelo génio cómico, chamado Jeronymo Ribeiro, auctor
do Auto do Physico, que anda junto, desde 1587, com
ri\
:-n
n
a
NO SÉCULO XVI 227
os Autos de António Prestes. (1) Também a residência
de Gil Vicente em Santarém influiria para o appare-
ciraento de António Prestes? O facto de Évora e San-
tarém darem os primeiros poetas cómicos, comparado
com a presença de Gil Vicente n'estas duas cidades,
mostra uma influencia natural e justificada.
Jeronymo Ribeiro não foi tão distincto, como An-
tónio Ribeiro, que além de ter escripto.muitos Autos,
levou uma vida ai rada e aventurosa, que lhe mereceu
as alcunhas de Bargante, Dizidor, e poeta Chiado.
António Ribeiro, com algum talento litterario e filho
de pães pobres, para o seu desenvolvimento, entrou
para a Ordem de Sam Francisco de Évora; os rigores
da regra não o deixavam seguir livremente a espon-
taneidade da sua musa.
António Ribeiro dedicava-se ao theatro, como os
confrades também franciscanos, Frei António de
iboa, Frei Francisco Vaz, Frei Boaventura Macha-
mais conhecido pelo nome de Simão Machado, e
muitos. E provável que as representações hiera-
r ticas e elogios dramáticos, que se usavam nos mostei-
ros» lhej>roporcionassem ensejo para por em actividade
o/pfeilWespertado por Gil Vicente. A monotonia da
rida monachal não lhe agradava; tratou de annullar
os votos, segundo Barbosa Machado, por falta de vali-
dade, isto é, talvez por ter professado antes da edade
canónica; segundo Cunha Eivara, fundado nas obras
(1) De fui. 102 a 112.
228 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
do poeta, diz que é mais certo ter-se desfradado j
causa da sua vida turbulenta em contradicção com
regra seraphica. (1) A passagem das obras de Antoi
Ribeiro, que leva a esta asserção, é a Carta ao seu Ct
missario, escripta da cadeia do aljube, aonde fora pr<
por andar fugido do convento. Em uma antiga notic
vista por Cunha Uivara, o motivo porque fugira
convento de S. Francisco fora para usar da sua o
dição, talvez representar Autos por casas particular
Foi a propósito d'esta Carta ao seu Provincial, q
Affonso Alvares o satyrisou, a que António Ribei
respondeu, entre outras amabilidades, dando a ente
der que elle era mulato. Seria isto talvez por 15í
pois que n'este tempo veiu Affonso Alvares para L
boa; sendo a anullação dos votos por falta de vali(
de a única rasão que o mordaz António Ribei
poderia allegar, era a falta de edade, e por tai
poderia somente ter nascido em qualquer anno dep
de 1504. Uma das formas do talento de António 1
beiro era o fingir as vozes e typos de varias pesso
o que o tornava uma satyra viva, e com um génio ii
tavel incapaz de se não ter que não perturbasse * ]
e respeito dos superiores e da clausura. Os rnJddl
Sam Francisco tiveram-lhe medo,, e o Breve qi»
degradava veiu de Roma sem difficuldade. Pelo m«
vo da sua secularisação se vê que elle também
actor j e que elle próprio poderia representar os s
(1) Panorama, t. iv. p. 406.
NO SÉCULO XVI 229
momos, e Autos. Como antigo estudante de Évora, a
sua eschola é a da bazoche e da mère sette, a sua farça é
tirada da vida burgueza. Depois de ter saído por unia
vez da clausura, António Ribeiro abandonou Évora,
em cujos arrabaldes nascera e veiu para Lisboa. Ai se
e&contraria com o seu rival Affonso Alvares, que exercia
o cargo de mestre de meninos. Em Lisboa tomou co-
nhecimento com o príncipe dos poetas portuguezes
Luiz de Camões; o tempo, em que se travaram estas
relações, seria com certeza na occasião da volta de
Camões dos estudos da Universidade de Coimbra^ em
1542. Camões frequentou a corte de 1542 a 1546 ; se-
ria talvez n'este tempo, que, passados bastantes annos
sobre a morte de Gil Vicente, António Ribeiro, afama-
do já pela sua causticidade cómica, viera alegrar a
jaôrte de Dom João m, representando diante do mo-
a o seu Auto da natural invenção. Barbosa Ma-
io conservou esta tradição litteraria. A este tempo
tonio Ribeiro já era unicamente conhecido pela ai-
a do Chiado, tirada do logar aonde morava; cir-
cufnstancia que nos leva a crer que desde a sua vinda
4fcl«£pra morara sempre na rua do Chiado, e que se
mttA liòtar de todos por andar constantemente vestido
de hábitos talares. No século xvi eram muito frequentes
as alcunhas, e o poeta Chiado também pôz a Camões a
alcunha de Trinca-Fortes talvez em harmonia com o
caracter do grande poeta. Este facto foi pela pri-
meira vez publicado na vida de Camões por Jurome-
nha. Camões respeitava a mordacidade de António
230 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Ribeiro Chiado, e na comedia de El-Rei Seleuco,
cripta entre 1542 e 1546 (1) se lê este importante
riodo: «Aqui me veiu ás mãos, sem pios nem nada
rapaz;) e eu por gracioso o tomei; e mais tem oi
cousa, que huma trova, fal-a tão bem como vós, c<
eu, ou como o Chiado.» O prologo da comedia
El-Rei Seleuco revela-nos a existência de thea
particulares, em pateos, á maneira hespanhola; e
crer que António Ribeiro Chiado aí occu passe as at
ções. Esta referencia de Camões em uma comedia
cripta durante o pouco tempo que frequentara a cc
ajuda a hypothe.se ou tradição de ter o Chiado re]
sentado diante de Dom João iii.
Outra citação não menos importante encontra
do nome de Chiado nas obras de Fernão Rodri|
Lobo Soropita, que o cita como quem o conhecia m
bem. Soropita voltou da Universidade em 1589, r
annos depois da morte de Camões, e a este tempo ;
da vivia em Lisboa o dizidor Chiado, já velho, te
munha da vida desgraçada de Camões, que o viu ]
tir para o Oriente e regressar desilludido, fiado un
mente no manuscripto da sua epopêa. Soropita^
tando de recolher as poesias lyricas de Camões, ti
forçosamente de se dirigir ao poeta Chiado. Tudo
se infere á leitura d'esta passagem: «Outros ha
por serem da carregação não entram na lenda;
(1) Edição popular dos Luziadas, no Prospecto chro
gico da Vida de Camões.
NO SÉCULO XVI 231
basta para elles o Chiado, que lhes soube assentar as
costuras.» (1) A data da morte de António Ribeiro
Chiado é bem conhecida, foi em 1591; por ella somos
levados ás seguintes inducções, que dando Filippe II
no Alvará de 20 de Agosto de 1588 o privilegio exclu-
sivo da representação das comedias ao Hospital de To-
dos os Santos de Lisboa, os Autos de António Ribeiro
Chiado teriam sido representados n'este pateo das co-
medias.
António Ribeiro Chiado escreveu o Auto de Gon-
calo Chambão, reimpresso em 1613, e o Auto da Na-
tural Invenção. Na Bibliotheca Nacional, existem mais
três, impressos em folha volante e sem data, que per-
tenceram a um fidalgo que por uma riquíssima biblio-
theca comprou o titulo de conde. São os seguintes :
Pratica doyto figuras. O Faria e Payva, moços,
Ambrósio da Grama, Lopo da Silveira, Gomes da Ro-
cha, fidalgos. Negro. Capellão, Ayres Galvão, Foi. 9 S
não numerados.
Auto das Regateiras. Pratica de Ireze figuras:
Velha Beatriz, Negra, Comadre, Pêro Vaz, Noyvo,
Mãy, João Duarte, Affonso tome. Fernã dãdrade, Go-
mes Godinho. Foi. 10.
Auto terceiro — Pratica de Compadres, s. Fernão
dorta, Brasia Machado, Isabel, Vasco Lourenço, o
Compadre Silvestre, Moço Namorado, a Comadre, Ca-
valeyro, Estevam. Foi. 10. Todos sem data, nem logar
da impressão, e com privilegio real.
(1) Poaias e Prosas, p. 109.
232 HISTORIA DO THÉATBO PORTUGUEZ
O privilegio real revela-nos um certo desenvolvi-
mento no gosto do publico por esta ordetn de represen-
tações, e ao mesmo tempo faz suppôr que estes três
Autos pertenceriam a algum pateo de comedias que
com elles variava o seu reportório. Estes Autos exis-
tem á traça na Bibliotheca Nacional ; os nossos livrei-
ros nâo tem a sufficiente illustração para conhecerem
que prestavam um grande serviço dando-lhes publici-
dade; o nosso governo manda imprimir relatórios pa-
lavrosos, e também nâo alcança a necessidade de pu-
blicar uma edição de pantheon, dos nossos antigos es-
criptores.
NÒ SÉCULO XVI 233
Jeronymo Ribeiro
único Auto de Jeronymo Ribeiro é o único subsidio para a
recomposição da sua vida. — Auto do Physico, escripto entre
1544 e 1547 — Conheceria Jeronymo Ribeiro os Àmphy-
triôesf — Influenciada Celestina sobre o seu génio. — Typos
do século xi. — Satyra a Lisboa. — Queixas da sua pobreza.
Se pouco sabemos da vida do celebre António Ri-
beiro Chiado, muito menos ficou da memoria de seu
irmão Jeronymo Ribeiro. Felizmente ainda se conser-
va um Auto, que se imprimiu em 1587, junto com os
Autos de António Prestes, de Luiz de Camões, de Jor-
ge Pinto e Anrique Lopes. E natural que n'este tem-
po, em que tantos privilégios sustentavam a proprie-
dade litteraria, Jeronymo Ribeiro já tivesse mor-
rido, pelo facto de imprimir o seu Auto Aflbnso Lo-
pes, que o ajuntou com os de outros poetas também
hortos. Na Primeira parte do raríssimo livro dos Au-
tos e Comedias, publicadas novamente, e pela primeira
^ez emcollecção, na folha 102 a 112 vem o Auto cfax-
^yjido do Physico, feito por Jeronymo Ribeiro, em que
'ntram as figuras seguintes: Huma moça por nome
r gnez e um moço chamado Mamede, e outra moça cha-
lada Grimaneza, um Physico e sua filha e hum namo*
ado da filha. Dois matantes, hum pescador d' Alfama
hum Estudante que vem de Coimbra.» Por esta cir-
imstancia do estudante voltar de Coimbra se vê que
234 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
o Auto não podia ser escripto antes de 1544, por<
em Coimbra começaram os estudos em 1539. Pelol
to de vermos Jeronymo Ribeiro também auctor dra
tico, podemos crer que ou acompanhou seu iri
quando este abandonou Évora, ou veiu ter com el
Lisboa, e, como filhos de pães humildes, iriam
dando-se no officio de actores. No Auto do Phy
achamos uns versos, que confirmam a nossa prira
data histórica:
te ir. brio de ser formosa
meu conde Partinuplès,
bem sei que á trazeis mimosa.
O Conde de Partinuples é uma novella de caví
ria, antiquíssima, citada já no século xn por An
Daniello, que em Hespanha foi traduzida e publi<
no século xv. Quando na corte de Dom João m,
influencia da renascença italiana, começaram a
gostadas as novellas de cavalleria, a leitura d'e
ficções tornara- se moda. Fala d'este uso Jorge '.
reira de Vasconcellos na comedia Ulyssipo e aí ci
Conde Partinuples como leitura favorita: ora a
media Ulyssipo foi escripta em 1547, por tanto foi
este tempo que Jeronymo Ribeiro escreveu o Aut
Physico. O Auto foi escripto em Lisboa, aonde 1
bem se passa a acção: o Escudeiro namorado mon
Lumiar:
Todo o filho de Lisboa
hade moitai cova. fc«a& Nvy&»
NO SÉCULO XVI 235
Mrdico: Póde-me dizer a graça
Para a pouzada, se eu for ?
Escod. He do Lutnear no termo.
No Auto do Physico ha o typo do medico astrologo-
pirico, como o descreve Gil Vicente na farça dos
ysicos, e João de Barros na Ropica pneuma; bem
vê que os poetas procuravam os seus typos na vida
ial. Jeronymo Ribeiro teria por ventura relações
u Luiz de Camões, como as tinha seu irmão; o Auto
' Physicos parece uma imitação burlesca do Auto dos
iphytrioes escripto por Camões durante a sua vida
holar. Jeronymo Ribeiro conhecia essa fabula, e os
ces dramáticos que lhe suscita a situação dos dois
norados, seriam lembrados por ventura pelo Auto
Camões:
Os Enfroiriõe8 passados
são estes dous de uraafragoa,
são galhetas ger manados ;
porém se forem cheirados
este é galheta d'agoa.
O Auto do Physico tem lances perfeitamente co-
ros, e ás vezes uma certa nudeza dos Autos de Gil
sente, sem comtudo lhe egualar o lyrisino. Notare-
s esses lances, expondo a urdidura da peça. Mame-
é o typo do creado de Physico, sempre namorado
. moças da sua igualha, sempre priguiçoso e illudin-
por todos os modos o serviço; Ignez é a creada, ty-
derivado da Celestina, empiscando para M&\x\ad&^
236 HISTORIA DO THEATftO PORTUGUEZ
alcovitando a filha do patrão. Abre a scena còih um ca-
vaco amoroso entre 'estes dois galantes serventuários,
e quando estavam em colloquios apparece um Escu-
deiro, que vem apaixonadíssimo pela filha do Physico,
e lhes pergunta se a menina recebera a carta que lhe
mandara. Mas o Escudeiro quer vêr a menina e a cria-
da Ignez diz que se finja doente, e a pretexto de ir,
consultar o Physico, lhe entra em casa e assim a vê de
perto. — A segunda scena passa-se entre o Physico e
sua filha, aquelle queixando- se da demora do criado
Mamede, a menina defendendo-o, e logo que ò criado
chega com a moça começa uma altercação, que é inter-
rompida pela entrada do Escudeiro namorado que fitf
de doente. — Esta terceira scena é bastante dramática,
é o cavaco entre o doente por amor e o Physico infa-
tuado, ainda citando Avicena:
Phys : Tem febre, mas é pequena,
Senhor, a imaginação
faz causa, não deis a mão,
que isto é texto da Vicena
De morbiB do coração.
A scena é longa e cheia de chiste; pinta os costu-
mes do século xvi; bem merecia ser aqui transcrita.
A quarta scena é o encontro do Escudeiro com Ignez,
em que lhe dá conta do seu estratagema e como lhe
safu ao pintar; Ignez, verdadeira discípula da Celesti-
na, illude o pobre escudeiro, por que a filha do Physico
está pata casar com um estaxd&tita de Salamanca, cha-
NO SÉCULO XVI 237
lo Lucas de Lemos^ e não sabe das cartas nem das
as do Escudeiro, que se chama Lopo de Andrade :
Ign : (Á parte) D 4 tu passadas,
rompe botae escusadas, •
anda de uma a outra parte,
que ella, nem parte nem arte
sabe de tantas meadas.
A quinta scena passa-se entre os criados e dois
antes, talvez o que hoje se chama Fadistas. Ha
l briga de ciúmes entre Ignez e Grimaneza, por
sa dos amores do criado Mamede, que canta aquel-
/ersos já citados de um velho romance popular, por
Vicente:
Sobre mim vi guerra armar. etc.
Depois Mamede é espancado pelos Matantes e re-
a-se em casa. N 'esta scena Mamede, Ignez e a fi-
do Physico, para se entreterem começam o jogo das
tiras, imitado dos costumes populares :
Filha : Ignez, vem-te aqui assentar,
quereis vós outros jogar
ás mentiras ?
Ignez : Senhora sim.
Filha : E' jogo para estas noutes,
para passar o seram,
quem perder apar' a mão.
Moço : Se isso é jogo de açoutes
não jogo.
238 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Filha : D'açoutes nfto.
Quem menos lançar a barra
no mentir, pôr-lhe-hão mascarra,
e dar-lhe-hâo em cada mão
duas palmatoadas.
Ignez : Não,
Aqui vem esta satyra irónica á cidade de- Lisboa:
Filha : Eu digo que esta cidade
cheia de toda a nobreza
tem por timbre e por fineza
de falar sempre verdade.
A moça Ignez vae buscar á cosinha um tição para
fazer as mascárras, e uma palmatória para as mãos dos
que não souberam mentir. Emquanto estavam n'isto,
entra um Pescador de Alfama a consultar o Physico,
que não está em casa, acerca de uma dor de sua mulher;
Mamede veste a loba, põe a gorra, e começa a respon-
der em latim; depois não quer acceitar o pagamento
da consulta em dinheiro de cobre. O Pescador trazia
um bacio com a ourina da mulher; em Gil Vicente
também se usava esta liberdade. Quando Mamede es-
tava fazendo de Physico, entra o verdadeiro dono da
casa, estafado de andar pelo Lumear á -busca da mo-
rada do tal Escudeiro namorado. Esta scena ainda ho-
je seria de effeito. Quando o Physico fala á filha acerca
da demora de seu noivo Lucas de Lemos, entra o Es-
cudeiro, fingindo que vem de Salamanca, e quando
lhe perguntaram se seu tio não viera, responde :
NO SÉCULO XVI 239
Senhor, meu tio ficou
por se oppôr a uma cadeira,
que em Salamanca vagou.
tava n'isto quando apparece o verdadeiro noivo,
de Lemos. A sitação faz lembrar os Amphy-
sarcástico Mamede aggrava a posição falsa
e se acha o Escudeiro Lopo de Andrade; cresce
ndalo, parece que haverão mortes, e eis que fala
osa a intrigante Ignez, desculpando a Menina, e
lo que ella fora causa de todo aquelle engano,
iura que irá fazer vida n'um convento, dão-se as
3 entra Mamede «com os músicos que ficam e vão-
os e assi fenece a obra.» Pela vida do Chiado
que Jeronymo Ribeiro não seria mais feliz; em
cena d'este auto, descobrem-se intimas queixas
>reza, aggravada pela miséria publica:
Pesc : Não se pôde já pescar
dinheiro por nem um modo,
anda tam turvo este mar,
que é impossível tirar
sem lisonjas por engodo;
pesco uma pobre vez
para comer és não es
como anzol d'agorazeira,
vem o anzol da Ribeira,
pesca cifra, leva dez.
Então casa daluguer.
vestir e calçar me dana,
passa a receita o comer.
Moço : Eu que vos heide fazer,
se 6ois pescador de cana.
>i esta pobreza dos escriptores dramáticos que os
•vou entre o povo e lhes fez imprimir ás suas
►sições um cunho verdadeiramente nacional.
240 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEZ
" j
Luiz de Camões
Camões escreve os Ampkytriões na Universidade de Coimbra.
— Seu conhecimento de Gil Vicente. — Origem grega da fa-
bula de Amphytrião. — O Auto de EIRey Seleuco. — pro«
logo em prosa e os theatros particulares. — Hypothese sobre a
origem das desgraças de Camões. — A Celestina, Braz Qua-
drado. — No Filodemo conhece-se a influencia italiana.
Durante -a vida escholastica, que decorre de 1539
a 1542, assistiu Gamões na Universidade de Coimbra
á representação de varias comedias, que, segundo o
costume das Universidades da Europa, os estudantes
compunham e ensaiavam na occasião de ferias; ainda
no tempo do Doutor António Ferreira, quando a co-
media nacional ia cedendo o terreno á comedia clássi-
ca introduzida pela Renascença italiana, fala elle das
excel lentes comedias que antes de si se haviam repre-
sentado, as quaes nada deixavam a desejar ás dos anti-
gos. A allusão de Ferreira deve propriamente enten-
der-se com referencia ás tragedias de Buchanan, e
ás imitações de Plauto e Terêncio. Camões, seguindo
os hábitos escholares, escreveu também o Auto dm
Amphytrides, comedia clássica imitada livremente de
Plauto, mas tornada nacional pela forma poética da re-
dondilha popular, e pela confusão dos costumes mo-
NO SÉCULO XVI 241
nos com os antigos. Pelo assumpto se vê qual a
dencia do theatro nos ensaios académicos, que pen-
m sobre tudo para a admiração dos exemplares da
igu idade. Camões comprehendendo a belleza da Re-
cença, não quiz sacrifica r-lhe completamente agra-
la poesia nacional.
Jorge Ferreira de Vasconcellos e Sá de Miranda
ndonaram a forma poética da comedia, para a tor-
em mais culta, emancipando-a do verso de redon-
ta usado nos Autos populares. Em Camões, o sen-
ento nacional venceu; o assumpto é clássico, a fór-
é genuinamente portugueza. Antes de Camões já
theatro hespanhol fora tratado o mesmo assumpto
Amphytrião, que se presta maravilhosamente para
irça. A historia de Amphytrião foi pela primeira
posta em scena por Epicharmo, que, como todos
poetas dóricos, divertia-se a ridicularisar as divin-
les da mythologia grega. Na farça de Amphytrião,
se a parodia antireligiosa dos amores de Júpiter to-
ndo a forma de Amphytrião, que está na guerra,
•a apparecer diante de sua mulher Alcmena e assim
tseguir por traição o que lhe era impossível á boa
nte. Em outras composições de Epicharmo, Júpiter
Darece na forma de um gordo comilão, Minerva
belfurinheira de realejo, Castor e Pollux em panto-
ueiros obscenos. Plauto apoderou-se da peça de
icharmo e accomodou-a á sociedade romana, onde
caracter de Alcmena se reveste da rigidez de uma
rnelia. Fazendo ressurgir esta obra da antiguid&dfò^
242 HISTORIA DO THBATBO PORTDGUEZ
parece querer-se, pelo riso provocado por ella mesni»|>
acordar a alma da grande fascinação da Renascem
Camões era mais nacional do que clássico, e a não se
em vista o motivo do divertimento escholar, que o 1
vou a fazer esta imitação do Plauto, julgar-se-hia q
escolhera a comedia dos AmphytriÒe8 ? em desaggravo
eschola velha de Gil Vicente, então já bastante ataca
da. A perfeição, com que as scenas estão entre si
cadeadas, é devida ao modello que seguiu; da ed
media, ou principalmente da comedia italiana, con
ce-se a dupla acção em que os creados fazem a parodia
das situações por que passam os amos, d'onde veia de-
pois a formar-se o imbróglio. No Auto de Camões o
caracter de Alcmena é ainda bastante romano. Na ace-
na doscreados Feliseo e Bromia, allude a Lisboa:
Que nfio digam os de Alfama
Que não tenho namorada.
>
N'esta mesma scena Bromia sae cantando os pri-
meiros versos do romance de Flerida, com que Gil Vi-
cente rematou a Tragicomedia de Dom Duardos, ro-
mance que andou na tradição oral do povo, que foi re-
colhido no Cancioneiro de Anvers, e que ainda no secn-
lo xix se cantava não muito abreviado nos Açores. (1)
Voyine á las téerras estrafias
A dó ventura me guia. (2)
(t) Cancioneiro e Romanceiro geral por tuguez, t. iv.
(2) Obras de Camões, t. ui, p. 309. Ed. do Barreto Feiu.
NO SÉCULO XVI 243
Os versos de Gil Vicente, vulgarisados em 1533
11 Évora, poucos annos depois já se afastaram algum
mto d'esta lição originaria :
Voyme á tierras estrangeiras
Pues ventura allá me guia. (1)
Camões conhecia o theatro de Gil Vicente, e seguia
ilgumas regras dramáticas adoptadas pelo velho mes-
re. uso do hespanhol, nos Autos de Gil Vicente em
[ue se fala portuguez, è proveniente da necessidade de
õrmar uma linguagem rude para o typo grosseiro que
•epresenta. Esta observação fel-a primeiramente Rapp,
> se prova por palavras de Gil Vicente, que explicava
> intuito da escolha. Camões adoptou o mesmo syste-
na; quando Mercúrio, que vem ajudar a Júpiter no
ingimento de Amphytrião, fala a sua linguagem, é em
>ortuguez; quando encarna em si a figura do creado
íósea, escolhe o hespanhol como linguagem rude:
Quero-me fingir ladrão,
Ou phantnsma
E com tudo se passar,
A fala quero mudar
Na sua, de tal feição
Que couoes e porfiar
Lhe façam hoje assentar
Que sou Sósea e elle não.
E segue logo na rubrica: «Falia Castelhano»,
hmo Gil Vicente, Camões também espalhou nos seus
(1) Obras <?e Gil Vicente, t. ti, p. 250.
244 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEZ
Autos um grande lyristno, o qual se deve julgar ni
dos principaes característicos da eschola nacional,
analyse da contextura dramática seria indispensável
o Auto não fosse imitação. O Auto dos AmphytriZes ao-I -
dou manuscripto durante a vida do poeta, e só em 1587
sete annos depois da sua morte, é que foi recolhido p
Affonso Lopes, que o publicou junto com os Autos
António Prestes (1) a este tempo provavelmente j:
também falecido. No theatro portuguez do século xviii,
a farça epicharmica de Amphy trião foi posta outra vei
em scena pelo desgraçado poeta António José da Sil-
va; a opera de Amphytrião ou Júpiter e Alcmena, foi
representada no theatro do Bairro Alto, em Maio de.
1736. A forma em prosa, entremeiada de coros, árias
e recitativos conhece-se que é influenciada pela opert
italiana que então apparecera em Portugal; o mixto
do imbróglio com o gongorismo de seiscentos realp
o pico cómico, em que o expectador se ri á falta de in-
tenção e pensamento de toda a peça. O Amphytrião de J
Molière fora representado em 1668; o theatro francez,
principalmente o trágico, foi quasi todo traduzido em
portuguez; é de suppôr que António José não conhe-
cesse este Auto de Camões, e que imitasse a comedia
franceza, ficando-lhe por isso inferior.
O segundo Auto que escreveu Camões foi o de El-
liei Seleuco, também de assumpto clássico, ainda na
(1) Primeira parte dos Autos e Comedias por tuguezas, foi.
86 a 101.
NO SÉCULO XVI 245
i
forma nacional da redondilha ; não foi conhecido pelo
collector Affonso Lopes, por isso não se encontra na
sua publicação de 1587; imprimiu-se pela primeira vez
na edição de 1645, tendo sido achado nos manuscri-
ptos do Conde de Penaguião, pae de João Rodrigues
de Sá, a quem as Rimas eram dedicadas. Auto deve
julgar-se escripto entre 1542 e 1546, tempo em que
voltou da Universidade e frequentou a corte de Dom
João III, antes de soffrer o desterro de Lisboa por cau-
sa dos amores que trazia no paço com Dona Catheri-
na de Athajde. ÍTeste tempo tinha relações de ami-
sade com a principal nobreza ; e depois do ultimo Au-
to de Gil Vicente em 1536, apenas o fidalgo Jorge
Ferreira de Vasconcellos escrevera as comedias de Eu-
frosina e Ulyssvpo, e o Cardeal Dom Henrique fizera
representar as Comedias de Sá de Miranda. N'este
período passou Camões os annos mais felizes da sua vi-
da; a graça do prologo de El-Rei Seleuco demonstra
Um certo bem estar moral. prologo do Auto é em
prosa; por elle se conhece a existência das representa-
ções particulares, e se descrevem engraçados costumes
do velho theatro portuguez. Como grande parte dos
Autos de Gil Vicente, o Auto de Camões foi escripto
Para ser representado em uma noite de Natal, segun-
do o costume portuguez, conservado nas Loas popula-
1*68, que as Constituições dos Bispados prohibiram: «E
H'isto fenecerá o Auto, com musica de chocalho e bu-
zinas, que Cupido vem dar a uma alfeloeira a quem
<Juer bem; e ír-se-hão vossas mercês cada um para
246 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
suas pousadas, ou consoarão cá comnosco (Fuso que
houver. » Na abertura do Prologo, o mordomo ou d
da casa diz aos espectadores: «Eis, Senhores, o autor,
por me honrar n esta. festival noite, me quiz repr
tar uma farça; e diz, que por não se encontrar com
Iras já feitas, buscou huns novos fundamentos para
quem tiver hum juizo assi arrazoado satisfazer.» Gm|
mOes refere-se aqui com certeza aos Autos de AntoBÍo| K
Ribeiro Chiado, por isso que em outro logar do prol
go o cita como modello da mordacidade; lembrando*
nos do titulo dos Autos do Chiado, o Auto das Bega*
teiras, a Pratica de Compadres, parece comprehender-
se o período: «E diz que quem se d'ella não contentar,
querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos
soalheiros dos Escudeiros da Castanheira, ou de Alhos
Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova eiu casa
do Boticário, e não lhe faltará que conte.» Em umas
coplas, Chiado apoda Camões com a alcunha de Trin-
ca- Fortes; ou por que se temesse d'elle ou pela rivali-
dade dos sectários e inauguradores da comedia italia-
na, diz o Mordomo no Prologo: «Ora quanto á obra,
se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende
d'ella menos que todos os que lh'a puderam emendar.
Todavia isto é para praguentos; etc.» O prologo em
prosa com que Camões antecede o auto de El-Rei Se-
leuco, é uma espécie de theatro por dentro; o Mordo-
mo anda nos preparativos para a representação da noi-
te de consoada; pergunta ao moço se já chegaram as
figuras. Aqui dá-se o meswioí^^^vtâao theatro fran-
NO SÉCULO XVI 247
3z, onde ás vezes a multidão entrava á força: «Ora,
ieram uns embuçadotes e quizeram entrar por força;
il-o arrancamento na mão; deram uma pedrada na
sabeça ao Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermi-
ão; e agora diz o Anjo que não hade entrar, até lhe
Qão darem uma cabeça nova, nem o Ermitão até lhe
Dão porem uma estopada na calça. » Por esta passagem
se conclue que no século xvi haviam representações
dramáticas em família; que os ociosos de bom gosto
procuravam introduzir-se na festa, apesar de não se-
rem convidados: cvae d 9 aqui a casa de Marti m Chin-
chorro e dize-lhe que temos cá Auto com grande fo-
gueira; ír-lhe-has abrir a porta do quintal,
porque mudemos o vinte aos que cuidão de entrar por
força.» X) Mordomo continua a arranjar a sala, e diz
para os expeotadores: «vossas mercês he necessário que
se cheguem uns para os outros, para darem logar aos
outros senhores que hão de vir; que de outra maneira,
&e todo o curro se ha de gastar em palanques, será bom
taandar fazer outro alvalade ; e mais, que me hãode
fazer mercê, que se hãode desembuçar, porque eu não
lei quem me quer bem, nem quem me quer mal: este
ló desgosto tem um Auto, que he como officio de Al-
caide: ou haveis deixar entrar a todos, ou vos hãode
er por villão ruim.» Por esta citação se vê que o lo-
rar da scena para esta representação em familia, era
im corro, ou pateo, tal como se usava no velho thea-
to hespanhol. Auto era representado no Natal; por
iso havia casa juncada para passear, fogueira com cas-
248 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tanhas, mesa posta com alcatifa e cartas, e um ittf»
para desfastio da Noite. Nisto chegou o convidadol?
Martim Chinchoro, que entrou pela porta do quintal^r
e passadas as devidas cortezias, diz: «Ora pois, Se-
nhor, o Auto he tal que he? Porque hum Auto enfa-|i:i
donho traz mais somno comsigo que uma pregação
comprida.» Responde o Mordomo: «Por bom nCoveur
deram, e eu o tomei á cala de sua boa fama. » N'este
tempo o theatro começava a tornar-se um divertimen-
to familiar, e por estas palavras do Mordomo se vê, que
os poetas especulavam com este novo uso. Aqui critica
também Camões os actores : o villão, que arranca a feda
da garganta com mais sem saber que uma pêra pão, uma
donzella, que falia como Apostolo, mais piedosa que uma
lamentação. Passados todos os preparativos entra a pri-
meira figura. Diz o Mordomo: «Moço, mete-te aqui
por baixo d'esta meza, e ouçamos este representador,
que vem mais amarrotado dos encontros que um capaz
roxo de piloto...» Representador começa a decla-
mar em verso alexandrino, e depois interrompe-se, di-
zendo que lhe esqueceu o papel: «mas não sou de cul-
par, por que não ha mxis de trez dias, que m'o deram.»
Escudeiro Ambrósio vê que aquella figura erra w
ditos, e por fim reconhece que foi por galanteria de
novidade: «Mas se assi he, ella lie a melhor invenção
que eu vi; porque já agora representações, todas he da-
rem por praguentos; e são tão certos, que he melhor
erral-as, que acertai -as.» Produzido este abalo nosex-
pectâdores, entram então as verdadeiras figuras do
NO SÉCULO XVI 249
Auto. A ideia é nova, e introduzida por Camões ; so-
bretudo o valor d'este prologo está em elucidar-nos
acerca dos costumes theatraes do século xvi, sobre o
logar da scena, representações em família, compra de
Auto, critica da declamação, tempo em que se decora-
vam as partes, accomodação dos expectadores, e sobre
tudo acerca dos assaltos nocturnos dos rufiões de bec-
cos, que se introduziam por força para assistirem á re-
presentação do Auto, e das rivalidades de eschola.
thema do Auto de El-Rei Seleuco è tirado da
historia antiga; encontra- se em Valério Máximo, em
Justino, Plutarco e em Polybio contado o facto de
Ântiocho Soter apaixonar-se a tal ponto por Stratoni-
ce, sua madrasta, que se sentia morrer da mais pro-
funda nostalgia. Seu pae El-Rei Seleuco, consultou
todos os médicos e um d'elles, notando que o pulso do
príncipe se alterava e batia com mais força quando en-
trava a rainha, descobriu a causa da sua doença e de-
clarou -a ao monarcha. Seleuco, era velho; desfez o seu
cazamento com Stratonice e deu-a ao filho. Este
assumpto é bastante subjectivo para ser tratado no ve-
lho theatro, aonde a paixão não podia tomar realidade
por falta de actores consummados, e sobretudo por fal-
ta da descoberta do mundo moral, que data do tempo
de Shakespeare. Camões é tanto mais assim admirá-
vel, por ter sido levado pela intuição do génio a tocar
uma ordem de factos que estavam por descobrir. A
Comedia de El-Rei Seleuco nunca fora tratada em for-
ma dramática; que circumstancia levaria Camões a es-
150 H8TORIA DO THBATRO POBTUGUBZ
colher este assumpto? Escripta durante o tempo
frequentava a corte de Dom João m, apaixonado peli
sua dama Dona Catherina de Athayde, é natural que
tivesse ouvido a dolorosa lenda dos amores do mo-
narcha, quando príncipe, pela rainha Dona Isabel, mu-
lher de Dom Manoel, seu pae. Tal é a situação, descri-
pta com um grande lyrismo e ao mesmo tempo com
uma realidade viva na comedia de El-Rei Seleuco. Ac-
cresce, que esta comedia, escripta muitos annos antes
da comedia de Philodemo, não foi publicada na collec-
ção de Affonso Lopes em 1587, e se conservou desco-
nhecida, entre os papeis do Conde de Penaguião até
ao anno de 1645, quando já estava perdida a memoria
do facto. Para maior confirmação d'esta hypothese cum-
pre extractar para aqui algumas palavras dos Annae*
de Dom João iii, de Frei Luiz de Sousa: «Sobre estas
rasões, que todas obrigavam ao Príncipe a magoar-se,
pello que tocava ao povo e á reputação de quem o ge-
rara, accudiam a lhe fazer guerra as do interesse pró-
prio : que eram tomar-se-lhe a dama que já em espirito
era sua, ejquerer seu pay para si em segredo e como
que a furto, a mesma mulher que pêra elle tinha muy-
tas vezes publicamente pedido. Ajuntava representar-
tar-lhe o entendimento, e a edade de dezeseis annos
mal soffrida já e ardente para similhantes matérias,
que o mesmo pae confessava culpa no segredo que com
elle usava em tamanha resolução. E todavia devemos-
lhe muito louvor, porque sabendo sentir, nunca por
palavra nem obra, mostrou a a»\x ^*& %\çp&l de senti-
NO SÉCULO XVI 251
o nem desgosto.» — «Entretanto vinha caminhan-
ira Portugal a nova rainha (D. Isabel) desgosta-
\mbem, como he de crer, da troca do esposo. . . Era
ncipe n'este tempo entrado nos dezesete annos,
>ntil presença, alegre e amável semblante, mas
erado de hum certo rigor de virilidade, que cria-
spei to e reverencia em quem o via. — Galante e
so, mas á portugueza, acompanhou seu pae: e
indo á Rainha, se humildou para lhe beijar a mão,
% sinceridade e cortezia de quem a reconhecia por
e senhora; que ella lhe não quiz dar por muyto
Príncipe instou e perfiou no cumprimento.» (1)
is de trez annos de casado com a namorada de
lho, morreu el-rei Dom Manoel, a 5 de Dezèm-
e 1521. O povo de Lisboa requereu a El- Rei Dom
ih, que cazasse com a Rainha Dona Isabel sua
asta, nova; a nobreza, apoiada por Dom Jay-
)uque de Bragança, pedia-lhe instantemente a
ação d'este voto. Diz Frei Luiz de Sousa: «Não
, na terra quem tivesse por desacerto este conse-
?não só a pessoa a quem mais tocava, e melhor es-
que era o mesmo Rey. Não lhe soffria o animo
de chamar esposa a quem dera o nome de mãy ;
de tratar por egual a quem reconhecera por se-
i : e emfim não acabava com sua honestidade aver
itar amores, inda que santos e castos, com a mu-
) Ânnaes, cap. v, pag. 16 e 17; cap. xn, p. 50.
252 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
lher que o fora de seu pay.» No Auto de El-Bd
SeleucOj o príncipe Antiocho, ainda criança, namora-
se de Stratonice, também nova, casada com o velho mo-
narcha ; a allusão ao facto succedido na corte portugue-
za é evidente, e andava na memoria de todos; porém
El- Rei Dom Manoel não foi generoso como Seleuco. A
Comedia de Camões seria representada em festa de fa-
mília entre os annos de 1542 a 1546, em que foi des-
terrado da corte. Qual o motivo d'esse desterro? Todos
os biographos comprazem-se em attribuil-o aos amo-
res com Dona Catherina de Athayde, que se torna-
ram públicos no paço. Este facto não basta para ex-
plicar a completa desgraça do poeta, que data de 1545,
quando vemos os muitos amores que se davam entre os
fidalgos e as damas do paço, que se acham celebrados
nos versos chistosos recolhidos por Garcia de Resende
no Cancioneiro geral, recitados nos serões da severa
corte de Dom João n e na de Dom Manoel. Sem que-
rer formar uma nova lenda da desgraça de Camões,
ousamos comtudo aventar que a Comedia de El-Rei
Seleuco, que só foi impressa depois dos Philippes, se-
ria interpretada pelos inimigos de Camões como allu-
siva aos amores de Dom João m, quando príncipe, pela
Infanta Dona Isabel, irmã de Carlos v, que seu pae,
el-rei Dom Manoel, tomou para sua terceira mulher ás
escondidas do filho. Por causa d'esta intriga amorosa,
estavam nas boas graças do monarcha aquelles, que
Dom Manoel perseguira, por serem do partido do prin-
cipe. Na Comedia de El-Rex Seieuco achar-se-hia uma
NO SÉCULO XVI 253
espécie de censura por Dom João m não ter casado
5om sua madrasta como requeria o povo de Lisboa?
Pista á luz d'este critério, a comedia de El-Rei Seleu-
*o é das mais curiosas do theatro portuguez.
O Auto de Philodemo foi a terceira e ultima come-
iia escripta por Camões; em 1555 celebraram-se em
Soa os festejos pela successão de Francisco Barreto,
juesuccedeua Dom Pedro de Mascarenhas. (1) Camões
*>mou partes nas festas e escreveu o Auto de Filode-
no, que andou manuscripto até 1587, tempo em que
? oi colligido por Affonso Alvares. Como viria o
â.uto para Lisboa ? Seria do numero d'aquelles versos
jue roubaram a Camões, dos quaes nunca teve mais no-
tícia? O Auto de Filodemo resente-se já um pouco
lo imbróglio italiano, da comedia sostenuta, como se vê
pela dupla acção, e mais ainda por um pronunciado
caracter idylico e pastoril. Pelas allusões, se vê como
a. Comedia hespanhola da Celestina era bastante lida
3m Portugal. O moço Vilardo, descrevendo a criada
Solina, que levava os recados de Filodemo a Dyonisa,
eompara-a a esse eterno typo inventado por Fernando ,
Rojas :
Gomo se faz Celestina,
Que por não lhe haver inveja,
Também para si deseja
O que o desejo lhe ensina.
(1) Juromenha, Obras de Camões, t. í, p.70.
254 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
Em outro logar o mesmo Vilardo, falando um Do-
loroso diz : c Já sabeis que esta nossa Solina he tão Ce-
lestina, que não ha quem a traga a nós. » Como ver-
sado na leitura d'esse monumento do Theatro hespa-
nhol, Camões descreve admiravelmente a scena, em que
Solina entrega a sua ama uma carta de Filodemo. E
essa a parte em que apparecem verdadeiros toques que
definem um caracter. Os outros personagens são mais
convencionaes:
Solina : Senhora, a muita affeição
Nas Princeza8 d'alto estado
Nao he muita admiração ;
Que no sangue delicado
Faz amor mais impressão.
Se m'ella quizer peitar,
Prometto de lhe mostrar
Uma cousa muito d'arte.
Que lá dentro fui achar.
Dionysa : Que cousa?
Sol.: Cousa d^esprítu.
Dion.: Algum pouco do lavores ?
Sol.: Inda ella não deu no fito ?
Cartinha sem sobre-escripto,
Que parece ser de amores.
Dion.: Essa é a boa ventura ?
Sol.: Bofe que me pareceu.
Dion.: E essa donde nasceu?
Sol. : No meu cesto de costura ;
Não sei quem m'alli meteu.
O dialogo prosegue vivo e chistoso até que Solina
faz com que a ama queira ella própria ler a carta para
saber de quem é. O Auto é entremeado de prosa e ver-
so; a prosa variada com as mais pittorescas locuções
populares da nossa língua, com um toque profunda*
B
NO SÉCULO XVI 266
ente nacional, o verso salgado na quintilha feliz e
>igrammatica, de vez em quando apimentada com o
mate de um anexim, que parece ter-se feito para
[iiella situação. Camões obedecia a duas influencias,
) theatro nacional, que continuava a tradição do ve-
o Gil Vicente, e ao cultismo italiano, que ás vezes
obrigava a converter as scenas em éclogas e pasto-
es. Em uma allusão engraçada, cita Filodemo um
po popular de uma farça do theatro portuguez, hoje
íonvma, da qual não resta mais do que o titulo: «e
)is o tempo nos não vem á medida do desejo, varao-
)s lá; e se puderdes f a liar, fazei de vos mil manjares,
)rt]ue lhe façaes crer, que sois mais esperdiçado de
nor que um Braz Quadrado.* No primeiro Index
xpurgatorio que se publicou em Hespanha em 1559,
iha-se já lá prohibido tO Auto de Braz Quadrado,
>r Vicente Alvares.» (1) Este Auto é anonymo, e
icente Alvares é o nome do impressor ; quatro annos
pois de Camões o ter citado como popularissimo, por
>o que d' esse typo desperdiçado de amor tira a allu-
o que põe na boca do moço Filodemo, cahia sobre
"az Quadrado o anathema da Inquisição de Hespa-
a. No Index Expurgatorio de 1624 se prohibe tam-
m f Auto de Braz Quadrado, não se emendando
mo se nota no Expurgatorio.» (2) N'este tempo a
ihola italiana inaugurada por Sá de Miranda e con-
(1) Citado Index, pag. 20, col. 2.
(2) Index, pag. 96, a p»g. 268.
256 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tinuada por Ferreira e pelos quinhentistas, faz pender
Camões algum tanto para o bucolismo. No Filodmo
allude também á moda de petrarchismo : «Uns muito
almofaçados, que com dois ceitis fendem a anca pelo
meio, e se prezam de brandos na conversação, e de fa-
larem pouco e sempre comsigo, dizendo que não darão
meia hora de triste pelo thezouro de Veneza; e gabam
mais Garcilasso que Boscão, e ambos lhes saem das
mãos virgens.» «Eu vol-o direi: porque todos vós ou-
tros os que amaes pela passiva, dizeis que o amor fino
como melão, não hade querer mais da sua dama que
amala; e virá logo o vosso Petrarcha, e o vosso Pietro
Bembo, atoado a trezentos Platões, mais safado que
as luvas de ura pagem d'arte, mostrando razões verisi-
meis e apparentes para não quererdes mais de vossa
dama que vel-a ; e mais até fallar com ella. » Por estes
factos descreve Camões e ataca o languor dos costumes
do tempo, propagado pelo bucolismo. Por estas trez
comedias que restam do nosso épico se vê que elle com-
prehendia a creação dramática, que teve sempre para
si como accidental; sentindo a grande belleza do thea-
tro popular, não pôde abandonal-o completamente pelo
cultismo da renascença italiana; assim o seu geaio ly-
rico, a grande riqueza das locuções vulgares, e are-
dondilha chistosa do theatro nacional foram por elle
accommodadas ás fabulas antigas e ás pastoraes do
gosto siciliano.
NO SÉCULO XVI $57
CAPITULO VI
António Prestes
afluência de Gil Vicente sobre o geuio de António Prestes. —
A collecção de Autos, feita por Affonso Lopes. — Porque
não publicou a segunda parte ? — Tempo cm que foi escripto
o Auto da Ave-Maria. — Sua lueta com a eechola italiana.
— O Auto do Procurador. — Prestes pertence á primeira me-
tade do século xvi.
António Prestes era natural de Torres Novas, e
'xerceu em Santarém, aonde casou, o ofticio de enque-
•edor do eivei. São estas as únicas memorias que che-
caram até nós, e pouco mais esperamos adiantar. Na
Jistoria do Theatro portuguez cabe-lhe a mesma parte
me aos Clercs de la bazoche, do velho theatro francez;
1 sua profissão levava-o a dramatisar as aneedotas da
áda judicial. Seria talvez em Santarém, aonde Gil
Vicente residia, que o chistoso enqueredor recolhera
is tradições do mestre; pelo facto de ver ali repre-
lentações particulares dos seus Autos, tud© contri-
)uiria para acordar-lhe o génio cómico. Os Autos de
intonio Prestes que ainda existem, são em numero de
&ete; antes de 1587 foram escriptos, e talvez repre-
jentados somente em theatros de província, por isso
me os seus títulos não apparecem citados nos Index
Expurgatorios de 1580 e 1624. E de suppôr que An-
tónio Prestes tivesse morrido antes de Affonso Lopes
imprimir á sua custa os sete Autos, porque na mesma
ftllecç&o vem Autos de Camões, morto em 1580^ de
Í7
258 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Jorge Pinto, morto em 1523, e de Jeronymo Ribeiro,
talvez já fallecido, porque aí não se incluem os Autos
de seu irmão António Ribeiro Chiado, que ainda vivia,
e só morreu em 1591. Por este tempo já o theatro ti-
nha local fixo em Hespanba, a que se chamava paito
de comedias, e bem cedo entrou este uso em Portugal,
aonde encontrámos logo a mesma designação. Assim
como em Hespanha o producto dos pateos das com-
dias foi applicado para os pobres, em 1588 Philippeil
deu o privilegio exclusivo dos theatros portuguezes ao
Hospital de Todos os Santos, aonde Gil Vicente em
1518 representara.
De Hespanha saíam bandos de comediantes, cor-
rendo todas as terras e representando os mais capri-
chosos Mysterios ; Cervantes e Rojas descrevem-uos
meúdamente esta grande paixão do povo pelo theatro,
tornando-se a vida de comediante o valhacouto de fra-
des renegados, de vadios e soldados desertores. Anto-
nio Ribeiro Chiado, frade franciscano, obedeceu a este
impulso ; sobre estes costumes escreveu Quevedo a
engraçada novella do Grari Tacçtho. A vertigem geral
pela representação das comedias levou o governo hes-
panhol em 158fi a reunir nina junta de theologos, para
decidirem se eram licitas as representações scenicas;
logo no anno seguinte, em 1587, os Autos de Antó-
nio Prestes foram recolhidos, juntos com os de mais
quatro poetas cómicos portuguezes, em um volume
em 4.°, com o titulo : « Primeira parte dos Autos e
Comedias portuguesas feitas por António Prestes e
NO SÉCULO XVI 259
• Luiz de Camões, e outros authores portuguezes, cu-
nomes vão no principio de suas obras. Agora nova-
%te juntas e emendadas n f esta primeira impressão,
" Affonso Lopes, moço da capella de Sua Magestade
', sua custa. Impressas com licença e privilegio real
r André Lobato, impressor de Livros, Anno 1587. »
Affonso Lopes, era moço da Capella de Philippe li,
alvez filho do poeta cómico Anrique Lopes, auctor
Cena Policiana, que elle com amor filial reuniu»
n os Autos de Prestes e de Camões ; talvez pelo
to de ser moço da Capella real tivesse ingerência na
pella do Hospital de Todos os Santos, aonde se da-
n representações a beneficio da caridade, e aí reco-
sse esses Autos dispersos. Affonso Lopes tenciona-
continuar a collecção, como vemos pelo titulo Pri-
\ra parte, e as circumstancias que mais o impedi-
n, talvez fossem ou ainda estarem vivos os auctores
outros Autos que recolhera, ou então a Portaria
Philippe li, de 20 de Agosto de 1588, que prohibia
as as representações que o Hospital de Todos os
ítos não auctorisasse primeiro. A decisão da junta
theologos hespanhoes também poderia influir em
tugal, e no animo do collector. São os seguintes,
Autos que ainda existem de António Prestes : O
to da Ave-Maria (foi. 1 a 26), o Auto do Procura-
do]. 27 a 41), o Auto do Dezembargador (foi. 61
4), o Auto dos dois Irmãos (foi. 75 a 85), o Auto
Ciosa (foi. 112 a 125), o Auto do Mouro encanta-
(foi. 126 a 143), e o Auto dos Cantar iinKofc ^fc>\%
\al79).
260 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
O Auto da Ave-Maria, lembra a primeira manei»
de Gil Vicente, quando ainda não ia mais glétn das
allegorias dos Mysterios ; o seu estylo e modo de con-
ceber uma acção dramática prova a antiguidade do
Auto, escripto pouco depois do triumpho da Reforma
na Europa ; aqui sustenta Prestes, que a fé sem ser
coadjuvada pela rasão é estéril e sem obras. É este o
resultado do grande movimento intellectual do século
xvi, que não poderia ser proclamado vigorando a In-
quisição :
mestre : Sois, Ras&o, mate forçado
a que hemos de vir em fíin.
E já que a gentilidade
tanto se regeu por vós,
mais vem regeruio-nos nós
que em vós pormos a verdade
que ella em si por vós n&o pós ;
e também todo o christão
que escurece
quem sois, que vos não conhece,
ficou christão sem rasão,
fé sem obras me parece.
•
N'este mesmo Auto diz uma rubrica : c Entra o
diabo vestido á Italiana, que vem enganar, etc.» A
devassidão dos papas fizera-os no século xvi ser com-
parados ao Anti-Christo. É esta também a audácia de
Gil Vicente, o que basta para caracterisar o Auto da
Ave-Maria como dos mais antigos da sua eschola.
diabo que entra vestido de Italiano apresenta-se como
architecto, para construir um castello ; cumpre notar
que o Infante Dom \i\áz^ %xá&% <ta 1535 % mandava vir
a
NO SÉCULO XVI 261
rchi tectos de Itália para guarnecerem o reino e as
ossessões de África, de castellos. A vista d'este facto,
s versos que se seguem quasi que determinam a época
m que teria sido escripto o Auto da Ave-Maria :
Yo sé las colunas Dóricas
V Corynthias, y sè mas,
las Jónicas de la paz
de la guerra las theorioas,
sus tafies, bases, compas,
pêro acá su manicordio
sus retóricas, etc.
N'este Auto encontra-se uma allus&o a um Pintor
Architecto italiano, circumstancia que nos fará pre-
isar mais a data da sua composição :
ala suma
rnuy ala suma
la escrevi, a1 no presuma
delia el gran Sebostiano
fui la tinta yo la pluma.
Este gran Sebostiano que aqui se refere é o celebre
Sastiano de Sangallo, nascido em 1481, e morto em
551: foi um grande architecto, e distinguiu-se como
tintor pela sua grande sciencia de perspectiva; falava
&o bem sobre arte que lhe chamavam o Aristotile. A
iua fama chegaria a Portugal, no tempo em que Car-
os v entrou em Florença, aonde Bastiano se fez admi-
ar pelos seus talentos soenographicos. A este facto se
retere António Prestes :
262 HISTORIA DO THEATRO PORTDGUEZ
prueva mi Sebastiano
los theatroa de Marcello
obra altiva,
los labré de pedra biva,
en elles veran mi sello,
8Í el tiempo no me lo priva .
Eis aqui temos determinado o tempo em que foi
escripto o Auto da Ave-Maria, quando Carlos v en-
trou triumphante na Itália em 1529, dominando em
seguida Florença. Mesmo avançando mais alguns ân-
uos sobre esta data, se vê que Prestes poderia ter es-
cripto o seu Auto em vida de Gil Vicente, que morreu
em 1536, e ter tratado com elle em Santarém, aonde
ambos residiam.
A exposição do Auto da Ave-Maria, já foi publi-
cada por Sousa Lobo na Revista litteraria do Porto;
por ella nada se fica sabendo da sciencia dramática de
António Prestes. Èxtractaudo as rubricas, se vê os
grandes recursos de scenario. Auto compôe-se de:
« Hum Diabo, a Sensualidade, a Velhice, a Mocidade,
o Enganado da Vida, Pensamentos vãos todos folian-
do, hum Cavalleyro, a Razão, hum Moço de Cavallei-
roj chamado Contentamento terrestre, o Mestre dat
Obras chamado Bom Propósito, três Pedreyros, hum
Bom Trabalho, outro Bom Serviço, outro Bom Cuyda-
do, dois Philosophos, hum Eraclyto, outro Demócrito,
trez Viços, três Potencias, o Esmoler, o Jejum, hum
Ratinho chamado Ganhar para Royns, três Salteado-
res, trez Anjos, Miguel,, Gabriel, Raphael.* Os perso-
nagens que representam && çav&ôes mais indomáveis
NO SÉCULO XVI 263
mi em sceDa « cantando e baylando e tangendo
átarra, pandeiro e advfe.* A folia depois de
diálogos assenta-se, e fica a Sensualidade fa-
com o Cavalleiro. De ordinário os novos per-
ns vinham sempre cantando. Demócrito entra
uma tocha accesa / » os pedreiros estão picando
também ao som de cantigas, que eram roman-
hos, como os usava Gil Vicente. N'este tempo
n já era conhecida a galharda, a qual dançam
lleiro e a Sensualidade. Prestes procura em tudo
entir a depravação dos costumes italianos, que
aram a Reforma. A figura de Esmoler, para
;r conhecer, entra icom uma bolsa na mão*.
entram os trez Anjos cantando Te Deum lau-
até Sanctus, Sanctus, Dominus Deus salvo, e
ictus se repõe em giolhos, e acabado de cantar
-se todos trez em pê...» Prestes também na ru-
nsina o modo como devia terminar o Auto :
se recolhem dando uma volta pelo theatro can-
Laudate Dominum omnes gentes, etc.» en~
►r de Santarém, ainda estava embuido das cren-
edade media ; no Auto cita a lenda de Virgílio,
ou pendurado em um cesto por perfídia da sua
Lanuce : (1)
delicto tão nefando
tão molesto,
abominável doesto,
que pode estar affronlando
mais a Vergilio ri 'um cesto
Estudos da Edade Media» na parte em que trata das
de Virgílio.
264 HISTORIA DO THEATBO PORTUGUEZ
Contemporâneo de Gil Vicente, o pobre enqueredor
do cível não foi mais feliz do què o poeta da corte;
nlle também soffreu a petulância erudita e o sobrece-
nho de superioridade da escbola italiana, que propria-
mente começara em 1527 :
Adomou-se com o uzo
fala já por tanta algalia,
beso menos,
que ha cá Italianos
sem cheyrarem nunca Itália,
sem Castella, castelhanos.
De modo que nam abastados '
de o falarem, mas perdidos
por Italianos vestidos
e Veneza nos toucados
dulce françanos ouvidos
fim de rasôes anda tal
de tal carneyro
este Portuguez"tinteyro
que estranho no natural
natural no estrangeiro.
Estes versos bastavam por si para determinarem a
composição do Auto da Ave-Maria, pelo facto de se
referirem ás 1 netas da eschola italiana, se não tivés-
semos dados mais positivos. Nos versos que se seguem
queixa-se António Prestes do desprezo da chamada
eschola velha :
Tanto tirou isto a luz
que obras que estrangeiras sfio
ornas de luminação,
põe-nas de tença e capuz :
as PoTfcuguez&fc, no clifto^
NO SÉCULO XVI 265
e he engano ! em toda a parte
ha Athenas
e ha Paríses e Senas
e ha matéria e ha arte,
ma 8 porem faltam Mecenas.
Sena, aqui, é uma cidade de Itália, d'onde era na-
tural o celebre Lactancio Tolomei, com quem Sá de
Miranda conviveu emquanto andou por Veneza e Ro-
tna. Também Gil Vicente se queixou da eschola ita-
liana na Carta dedicatória a Dom João 111.
O Auto do Procurador pertence ás farças dos
vieres de la bazoche. Tem as seguintes figuras : « Um
Procurador, sua Filha, um seu moço chamado Duarte,
e uma sua moça chamada Phelippa, um Escudeiro ca-
sado, chamado Thomaz de Lemos, outro solteiro cha-
mado Braz da Silva de Toar, hum Atafoneyro, e hum
Ratinho, hum Pagem de hum fidalgo, e outro Escudei-
ro chamado Matheus de Sousa, hum vilão, e hum Rati-
nho primos de Ambrósio Pegado, etc. »
Este Auto também parece antigo; ha entre elle e
a Fragoa de Amor de Gil Vicente, um ponto de ana-
logia, por se referirem ambos ao caracter que tomou o
casamento com as doutrinas da Reforma da Allema-
nha. Refere-se proverbialmente ao Conde de Partinu-
ples, citado como novella muito lida pela sociedade
portugueza em Jorge Ferreira, na comedia Ulyssipo.
O Auto do Procurador foi escripto ainda no reinado
de Dom João ih, como se deduz dos versos :
266 HISTORIA DO THE ATRO 'PORTUGUEZ
Sentay-vos, senhor "doutor,
náo sabeis que servidor
tendes em mi, pois sabey,
que sabe u Rainha c el Rey,
que soys meu pay, meu senhor.
Auto do Procurador * não foi representado em
Lisboa ; pelo contrario, o poeta não sympathisa com
a vida da corte :
E nos ymos a Lixboa,
e de Lixboa se soa
que todos la são o n nados,
que de pessoa a pessoa
se falam desbarretados.
No Auto dos Dous Irmãos, António Prestes resu-
me o pensamento da peça no seguinte argumento:
t Dois irmãos, hum Cioso, outro Confiado, suas Mu-
lheres, o Pae d'elles, um Moço, um Compadre do pay,
Cantores, no cabo do qual Auto se trata como estes
dous filhos se casaram a furto do pay e o pay não os
querendo ver, houve quem os metesse d'amisade, de ma-
neira que o pay lhe deu tudo o que tinha, depois que
Ih' o deu o não quizeram mais ver nem agasalhar, até
que o pay se fez que queria morrer, e encheu um cofre
de areia, e meteu dentro um rifam que diz : Quem se
desherda antes da morte, e com isto fenece o Auto, etc.»
tempo em que foi escripto este Auto também se pode
deduzir de uma cir cu instancia que aí se repete bastan-
tes vezes. Prestes cita o Palmeirim, cuja primeira edi-
ç&o de Luiz Hurtado, é de 1546 • Nos versos diz :
NO SÉCULO XVI 267
Lêr-lhei Palmeirim, etc.
Nao, é Palmeirim de França
que nada se lhe joeira.
He trigo f rancez, peneira
será Palmeirim pilhança, etc.
Não venham livros d'estorias
livrar-vos pêra mamados,
com Palmeirins furtarias, etc.
comparação com a novella de Palmeirim teria
i graça de uma allusão conhecidíssima de todos,
rande interesse que despertara logo na appa-
Estes versos parecem referir-se á edição fran-
auonynia feita durante a estada de Francisco
raes em França entre 1540 e 1548; os versos
os a Palmeirim de França, e Palmeirim pilhança,
m o roubo de Luiz Hurtado.
tonio Prestes, muito inferior a Gil Vicente na
e no lyrismo, é o mais distincto poeta da es-
clramatica nacional. As suas obras são hoje ra-
ts; por felicidade existe um exemplar na Bi-
ca Naeional, sob o n.° 1309, de que extrahimos
trabalhamos para apresentar uma nova edição
e Autos, e por esta circumstancia não analysa-
;ora os quatro restantes. (1)
Aqui agradecemos ao nosso joven e estudioso amigo
.rrilho Videira, 4i sollicitude com que nos facilitou o
cópia dos Autos de António Prestea.
268 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
CAJPITTOXiO VIX
Jorge Pinto
J0T
Dados históricos acerca de Jorge Pinto. — Factos que provam Í „
ser o Auto de Rodrigo e Mendo escripto Antes de 1523.— P^
Romances castelhanos no seu Auto. — A influencia carte- 1
lhan a. — Typo nacional Jo Fidalgo pobre.
Jorgo Pinto é o auctor do Auto de Rodrigo e Jfoi-
t/o, publicado em 1587 na collecção de Affonso Lopes;
nada se sabe da sua vida, nem a Bibliotheca Luzitam,
nem o Diccionario bibliographico fazem d'elle mençio
especial. Temos apenas o seu nome e o Auto pira
nos dirigirem nas investigações históricas, fios ténues
e quasi imperceptíveis, mas ainda assim aproveitáveis.
Pelo seu nome, podemos suppôr, que este auctor seria
o capitão, que em 1523 foi mandado, junto com Lyo-
nej de Lima para atacar o porto de Tidore, aonde mor-
reu barbaramente em uma cilada imprevista. Lê-se
nos Annaes de Dom João III: c Hia Jorge Pinto a
voga arrancada traz a carracoca, e já com a proa so-
bre ella, quando se sente encalhar sobre o recife, e fi-
car em secco : foy laço mortal para elle e para seis
portuguezes e outros quarenta remeiros, que todos fo-
ram mortos e as cabeças cortadas. . . » (1) Será este
infeliz Jorge Pinto o auctor do Auto de Rodrigo e Men-
do? É preciso attender que a este tempo, tinha Gil
(1) Op. cit.,p. 107.
NO SÉCULO XVI 269
Vicente abrilhantado com os sens serões dramáticos
a corte de Dom Manoel, e havia vinte e um annos que
o theatro portuguez estava fundado ; muitos fidalgos
portuguezes cultivavam a scena, como vemos, por ex-
emplo, Manoel Machado d' Azevedo, que emquanto fre-
«| quentou a corte aprendeu a apreciar essas distrações.
Poderia Jorge Pinto, antes de partir para a índia,
deixar o seu Auto escripto, como também Camões dei-
xara escriptos em Portugal o seu Auto dos Amphytriões
e de El-Rei, Seleuco. Pela leitura do Auto de Rodrigo
* Mendo, fortalecem-se estas inducções; ai se descobre
um facto, que nos revela ter sido escripto antes de
1523. Cita-se no auto o poema de Ariosto, o Orlando
furioso, cuja primeira edição é de 1516 :
Inez : Sois .nm Orlando furioxô
Mendo : E vós Angélica dama.
Foi em 1523, que se deu a catastrophe de Tidore ;
e, a contar de 1516, havia bastante tempo para que
Jorge Piuto tivesse conhecimento do Orlando furioso,
e o citasse na composição do seu auto. Jorge Pinto
era nobre, e a citação do poema de Ariosto caracte-
riàa o que mais tarde se mostrou á evidencia, a gran-
de predilecção da aristocracia portugueza pela eschola
italiana. O Orlando furioso foi muito cedo conhecido
em Portugal, e achamol-o mais tarde citado nas Car-
tas de Sá de Miranda, nas de Bernardes, e na epopêa
de Camões. No Auto também apparece citada a come-
dia da Celestina, de Rojas, publicada em 1501, repe-
270 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
t indo -se as edições todos os annos. Jorge Pinto intro-
duz aí um personagem castelhano; foi ainda no tempo
de Dom Manoel que os chocarreiros de Castella tive-
ram grande voga em Portugal ; o nosso povo ressen-
tia-se dMsto. É por esta rasão que na comedia appa-
recem estes remoques :
Mestre : . . . .uAo cuideis que é graça,
vou-vo8 aRsi dando a traça
como he, sem faltar jota,
a guerra d' Aljubarrota,
a caldeyra dWlcobaça.
A imitação dos Autos de Gil Vicente, usa Jorge
Pinto citar com frequência os romances populares; foi
antes de 1523 que as trovas castelhanas se haviam
apossado dos ouvidos portugnezes, como se queixa Jor-
ge Ferreira. De facto Jorge Pinto aí emprega como
centão os seguintes versos iniciaes de romances caste-
lhanos : « En el mes era de Abril, etc. — ■ De los mm
lindos que yo vi, etc. — Nunca fuera caballero, etc.
— Las noches siempre acordadas, etc. — Helo, helo por
de viene, etc. — Riberas dei Duero arriba, etc. » Seis
romances alludidos no pequeno espaço de um Acto;
isto denota o grande interesse e a exagerada curiosi-
dade que depois do casamento de D. Manoel com três
infantas de Hespanha, se ligava aos romances caste-
lhanos. Estes factos bastam para provar que Jorge
Pinto é talvez o infeliz capitão trucidado em 1523 no
porto de Tidore, ou pelo menos, que o Auto de Rodri-
go e Mendo foi escripto ainda uo reinado de Dom Ma-
NO SÉCULO XVI 271
il. Na collecção de comedias publicadas por Affonso
pes, vem a palavra novamente, o que dá a entender
í este Auto, bem 'como os outros, talvez tivesse sido
bicado antes de 1 587 ; é de suppôr que os Autos
ligidos pelo moço da Capella de Philippe II, fossem
auctores mortos ; Camões já n'esse tempo não vi-
, e no século xvi, não impetrando privilegio, o di-
to de propriedade litteraria acabava com a vida do
riptor.
O Auto acha-se de folhas 42 a 48 da citada collec-
, com o titulo : « Auto de Rodrigo e Mendo, em que
ram as figuras seguintes : Hum Pay com sua Filha,
i Mestre das obras, dous Moços, hum Rodrigo, outro
ido, hum trabalhador Castelhano; que he namorado
Filha, e dous Escudeiros e huma Moça Inês, e outro
wm e duas molheres, que cantam, e entra logo o Pay
Mestre, e a Filha, etc,r> Pela leitura d'elle se des-
re uma pequena objecção contra o ter sido escripto
.uto antes de 1523, por que cita aí as poesias de
ran, que foram pela primeira vez impressas em
x>a em 1543 :
Hospede : Qual trova lesto, Rodrigo ?
RonuiGO: Cuido, senhor qu'em Buscão.
Hosp. : E em portuguez ha Busca"o, etc.
A isto respondo-se, que as trovas de Boscão, isto
primeira maneira d'este poeta, anterior á influen-
italiana, eram muito conhecidas em Portugal, e já
Cartas de Sá de Miranda, escriptas antes de 1543 ?
272 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
vem os versos de Boscão citados, tendo-lhe sido c
recidos por António Pereira aiuda em manuscri
Também n'este Auto se eita a forma do soneto :
Amo : Fizestes algum soneto
quando os vistes ?
Hosp.: Senhor, não.
e isto aqui em secreto
Sabeis por que os não faço
porque já qualquer madraço
lhe achaes nas mãos um soneto.
A forma do soneto não foi introduzida com a
efaola italiana em 1527 ; já no Caneionero genera
Hernando de Castillo, de 1491, apparecem vários
netos. Portanto, esta referencia não derroga a dat;
1523, que tomamos por ponto de partida, N'este A
se cita frequentes vezes a forma dos vilancetesjha.sti
usada nos autos de Gil Vicente ; apparece repe
aquelle typo do Fidalgo pobre e do creado fatnint<
conhecido na farça de Quem tem farellos ? e na
Almocreves. Tinha rasão Nicolau Clenardo quande
tratou os devoradores de rabanetes. Aqui appare
dois versos repetidos no Auto do Physico de Jeron;
Ribeiro :
Já se sabe, erros d'ainor
sam duros de perdoar,
No Auto do Physico vem :
que os erros por amores
são dignos de perdoar.
NO SÉCULO XVI 273
O entrecho do Auto de Jorge Pinto é mal condu-
zido; tem lances bastante cómicos, mas a acção com-
plica-se com episódios deslocados. Versa principal-
mente de um pae, que para fazer a vontade a sua fi-
lha, chama um pedreiro para abrir uma janella em
sitio agradável á vista; o pedreiro mette um official
castelhano, que se namora da menina ; a acção inter-
rompe-se com varias scenas de criados e de alcaiotas,
até que os amores são descobertos, o pedreiro caste-
lhano dá -se a conhecer como fidalgo, e recebe a mão
da namorada, terminando o espectáculo com canto.
A imperfeição do arranjo dramático revela a antigui-
dade que lhe attribuimos, e esta se confirma na lin-
guagem e costumes pittorescos a que allude.
18
274 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
Anrique Lopes
A sociedade portugueza no Auto de Anrique Lopes. — A tradi-
ção dos Autos de Gil Vicente. — Seria a Cena Policiaria es-
cripta antes de 1538? — Parentesco provável de Anrique
Lopes com o seu collector Affonso Lopes.
É este o auctor da Cena Policiaria, em que entram
as figuras seguintes: Hum Fidalgo por nome Policiaria,
dois moços seus, hum Theodosio, outro Pinar te, hum
Estudante de casa também do Fidalgo, outro pagem
por nome Inofre, hum mulato chamado Solis: um musi-
co por nome Licardo, huma dama Felicena, huma sua
criada Poli f ema, dois Matantes, efe.» Appareceu este
Auto impresso na collecção de Affonso Lopes, em 1587,
de folhas 42 a 43.
A grande analogia que tem no scenario, na serena-
da, e nas aventuras nocturnas, com a farça de Quera
tem farellos? de Gil Vicente, confirma-nos na ideia,
de que esta farça do velho mestre foi representada era
publico, fora dos serões do paço, por isso que exerceu
uma grande influencia, que se conhece também no
Auto de Jorge Pinto. Os costumes que se descobrem
na Cena Policiana, são os mesmos que se acham de-
scriptos na Carta de Nicolau Clenardo; aqui o Fidal-
go sáe acompanhado de criados; apparece uin mulato
musico, e um estudante. Se nos lembrarmos de que a
Carta de Clenardo foi escripta em 1535, a presença do
NO SÉCULO XVI 275
Estudante, vestido de loba, leva-nos a inferir que este
Auto seria escripto antes de 1538, tempo em que a
Universidade se mudou para Coimbra. Demais, a Cena
Policiaria tem um lance, que lembra bem de perto a
tradição de Gil Vicente, no que era liberdade e desen-
voltura. Quando o pobre Estudante se está requebran-
do em colloqnios debaixo de uma janella, «.Chega a
moça com umagamella de agua e molha o estudante ...»
A rubrica explica como se devia fazer a scena, porque
a caldeirada era suja:
Theod : Fizeram-lhe cá um jogo
de gamella.
Inof : De ourina
Theod: D'ourina, e assi bem fina.
Pelo modo como o Estudante é tratado n'este Au-
to, se pode concluir, que Anrique Lopes não perten-
cia á classe escholastica. Elle cita Maneias, mas este
nome já se tornara designação proverbial de apaixo-
nados. Em um verso diz: «Este já leu Celestina*, e
em outro logar: «Esse velhaco hade ser, por tempo ou-
tra Celestina*, o que mostra a fonte d'onde se inspi-
rara. De facto o Auto è levado todo em scenas de al-
covitice, amores de criados, e aventuras nocturnas.
Podemos dizer, que a Comedia da Celestina de Bojas
exerceu uma acção profunda na formação do theatro
portuguez. Em uma passagem da Cena Policiana vem
uns versos com referencia aos mulatos, que, pelo tempo
276 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
em que a suppôraos escripta, talvez se referisse á Affon-
60 Alvares :
Mulatos são sabedores,
de gentis abelidades,
nos pensamentos senhores,
que n ?lo desfeam as cores
quando abonam as calidades.
E provável que já por este tempo andasse a polemi-
ca entre Affonso Alvares e António Ribeiro Chiado.
A hypothese da referencia é admissível, por isso que a
Cena Policiaria foi representada, como se deduz des-
tes versos finaes :
Fid. mil trampas para roedores,
vamo-nos cantando d'aqui
hum a chacota em scena.
Lie. Qual diremos?
Estud. Ponde ahi :
Arrenego de ti Mafoma^ etc.
Um facto curioso nos occorre, tirado de uma mera
analogia de nome, e como tal o apresentamos sem mais
valor do que uma hypothese infundada: Em 1587, pu-
blicou Affonso Lopes uma collecção de Autos de vários
auctores ; será por ventura Anrique Lopes, aí recolhido
entre Camões e António Prestes, pae ou parente do
moço da Capella de Philippe II, cujos autos imprimiu
á sua custa? É insolúvel a questão, que ainda assim sa-
tisfaz o espirito mais do que o silencio da historia.
NO SÉCULO XVI 877
CLAJFITT7X.O I3C
Manoel Machado de Azevedo
Theatro portuguez na província. — Comedia phantastica repre-
sentada ao Infante Dom Luiz no solar de Crasto. — As Co-
medias em prosa. — O theatro no século xvi era o diverti-?
mento principal da aristocracia portugueza.
Na Vida de Manoel Machado de Azevedo, cunhado
de Sá de Miranda, se conta o seguinte, succedido an-
tes da sua vinda para a corte: «En una occasion de la
fiesta que todos los anos se celebra à Santa Margarita,
Patrona de aquel mayorasgo, se ofrecio hazer-se una
Comedia, y el papel de un Rey, un tio dei preso, era
en prosa, como entonces se usava, con que tuvo acà-
sion aquel Bey de mandar a Manuel Machado, con
mucho império, que luego mandasse -sacar de la prision
asu sobriâo. Assilohize, diziendo: Tanto ésel respeto
que a los Reys se deve, que aun a estes no parecerá
mal obedecerlos. ..» (1) Manoel Machado havia man-
dado prender no seu solar a ura mancebo por um de"
li to de amor; e sabendo o tio do rapaz quanto o fidal-
go respeitava a realeza, serviu-se d'este meio galante
para conseguir a liberdade do rapaz. Por esta anedocta
se vô que já existia theatro na província, e em casas
particulares, no reinado de Dom Manoel. Quando de-
pois do seu casamento Manoel Machado de Azevedo
(1) Vida de Machado de Azevedo, p. 18.
278 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
voltou da corte para o sen solar, foi recebido em Ca-
vado e Crastocom: «Fuegos, Toros, Ca fias, Comedias,
Mascaras, Musicas, Suertes, Danças, Folias, y todo o
género de festejo y regocijo, que entre Duero y Mifa
se usa, y se haze con toda perfecion ; que por no alar-
gar el discurso dexamos de referir.» (1) Quando nas-
ceu um filho varão a Manoel Machado de Azevedo, vie-
ram a seu solar de Crasto o Infante Dom Luiz e o Car-
deal Dom Henrique, então Arcebispo de Braga : « Hu-
vo en aquelles três dias que en Crastro se detuvieron
los Infantes, fuegos, canas, toros, comedias y todo Io
demas que en aqella region se tiene por festejo.»
Vivia Manoel Machado de Azevedo triste por não ter
filho varão, e quando lhe nasceu o seu herdeiro Fran-
cisco Machado, o Infante Dom Luiz e o Cardeal Dom
Henrique vieram de Lisboa assistir ao baptisado.
Marquez de Montebello descreve-nos a esplendida co-
media representada á chegada dos Infantes ao solar de
Crasto: «Llegaron. pues, estes ai Rio Cábado, anti-
guamente Celando, y de una fingida gruta que estava
en una pefia, que unas aguas cerca n, salieron en un
barquillo un viejo venerable, que representava el Rio,
con três Ninfas, que traían en las manos três salvas
de plata muy curiosas, e ofreciendo en buenos versos
el Rio el transito de sus aguas, en los mismos fueron
las três Ninfas a cada uno de los Infantes presentando
(!) Obra cit. p. 34. l\nd. ^. *\.
NO SÉCULO XVI 279
is salvas, una la primeira de jacintos, la segunda de
natistas, y de crystales la ultima, piedras que entre
s arenas de aquel Rio y sus margens se cogen.» —
Ipenas avian los Infantes recebido sus salvas, quan-
> de entre los arboles de la otra parte les hizieron una
Iva de mas de dos mil mosquetes, y arcabuzes, y todo s
un tiempo tan conformes, que todos se oyeron jun-
s, y ninguno fne segundo. Assi lo tenia Bernardin
achado prevenido, y de entre los nublados de la pol-
ra, que toldaron el Sol, el Ayre y el Rio, salieron doze
rcos, imitando otras tantas galeras, que divididos
dos partes, fingieron una batalla de Maltezes (oy
dize assi, que entonces eran de Rodas) y Turcos,
tes con sus Turbantes, y essotros con sus Abitos,
que Bernardin Machado que en aquel dia era Gran
lestre, dando a mas de ochenta la misma Cruz que
,ia. Venció San Juan, paro la batalla, aclaró-se el
re, vieronse las bien fingidas galeras, remos, y for-
los y eran estes voluntários Músicos, que para aquel
ínsito tenian estudiado muchos y vários tonos, que
itaron, divididos a coros por los penascos dei Rio,
entras los Infantes y toda la Corte passo à la otra
rte de Entre Homem y Cábado.» — «Estava el des-
ibarcadero entre arboles, y penas, como oy está, y
entre ellos salieron en figura de Sirenas las muge-
» de mejores caras que entre aquel las labradoras se
Uaron, con sus sonajas y otros instrumentos de que
an, cantando coplas, aunque no cultas, significati-
4
280 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEZ
vas de la voluntacl con que los recebian. Bien cantara
las Sirenas, dixo uno de aquelles Principes a Manoel
Machado. Tambien, respondió el, encantan a su modo,
y mas encantáran si no temieran las visitas que por
aqui manda hazer el sefior Cardenal, para examen de
su vida, y emienda de sus delitos.» (1)
Manoel Machado dè Azevedo passara a sua moci-
dade na corte de D. Manoel, e ali assistira por certo á
representação dos Autos de Gil Vicente. O Auto phan-
tastico representado á chegada dos Infantes, tem o ca-
racter d'esses entremezes da corte de Dom João li.
Nos versos que restam d'este fidalgo se conhece que
elle não seguiu a eschola italiana, e é por isso que o
filiamos na eschola nacional de Gil Vicente.
(1) Vida de Manoel Machado de Azevedo, pelo Marquez
de Montebello, cap. vi, p. 5& & £&.
NO SÉCULO XVI 281
Balthazar Dias
1 theatro no tempo de Dom Sebastião. — O infeliz monarcha
mandava representar na sua meninice os Autos de Gil Vi-
cente. — Balthazar Dias allude aos desastres de Alcácer Kibir.
— O Auto de Santo Aleixo, representa o estado de espirito
do povo portuguez depois da perda de Africa. — Segue a
Legenda Áurea de Voragine com mais liberdade do que
Aífonso Alvares. — Os seus Autos acabam com um euterro.
— Influencia hespauhola e pressão do terror religioso. — Bal-
thazar Dias é o poeta portuguez mais popular e o menos
original.
De todos os poetas dramáticos portuguezes, é este
o mais conhecido e amado pelo povo ; tinha o segredo
com que fazia entender-se pela grande e ingénua alma
la multidão, — era cego. Os seus Autos representam-se
x>r quasi todas as aldeias aonde ha um barbeiro dado
. leituras ou uin sapateiro versejador. Era natural da
lha da Madeira; á falta de conhecimento do anno em
oe nasceu, sabe-se que floresceu no tempo de el-rei
)ora Sebastião. Pelo menos este versos do Marquez de
fantua, que ainda anda nas mãos do povo, parecem
Iludir á morte do monarcha em Alcácer Kibir, em
.578:
Quem viu o senhor Infante
Tam pouco ha fazer guerra,
E ser nella tão possante,
E agora em um instante
Ser tornado escura terra.
282 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
El-rei Dom Sebastião também bordara o gosto
das representações de seus avós, el-rei Dom Mauoe
e Dom João in, de seus tios o Infante Dom Luiz i
Cardeal Dom Henrique, e de seu pae o principe Don
João. Na sua meninice comprazia-se a mandar repre
sentar os Autos de Gil Vicente. Em 1562 assim o re-
velava Luiz Vicente, no prologo da edição dos Auto*
de seu pae, a elle dedicada: «E porque sei que ji
agora n'essa edade tenra de V. A. gosta muito d'elle8,
e os lê e folga de ouvir representados, tomei a minhas
costas o trabalho de os apurar e fazer imprimir sem
outro interesse senão servir V. A. com Ih' os dirigir,
e cumprir com esta obrigação de filho.» (1) A este
tempo contava el-rei Dom Sebastião oito annos de
edade, e os Jesuítas não receiavam que os Autos do
velho Gil Vicente o pervertessem.
Index Expurgatorio de 1581, não tendo tempo
para indicar a muita correcção de que precisavam os
Autos de Gil Vicente, mandou que se riscasse in li-
mine o prologo de Luiz Vicente, talvez por declarar
esta predilecção do desejado e infeliz monarcha.
Se Dom Sebastião tivesse vivido, u'elle encontraria
Balthazar Dias um apreciador; os seus Autos são es-
criptos em tempo de geral calamidade; as tradições
nacíonaes estavam offuscadas para se porem em acena.
Balthazar Dias, com o seu génio dramático, fez o que
faz um catholico na occasião de um desastre, virou-se
(1) Obras, t. i, p. xxxvxi.
NO SÉCULO XVI 283
ítos; os seus Autos são como os de Affonso
írtencem inteiramente ao theatro hierático,
ambem o verso da redondilha popular, e a
Lsada sempre no theatro nacional ; não lhe
onhecidos o theatro hespanhol nem os Ro-
d'onde tirou o assumpto da sua tragedia do
e Mantua; tinha a tradição pura da edade
10 se vê pela predilecção com que extrahiu do
hi8toriale de Vicente de Beauvais a lenda
3 Carlos Magno, a que elle chamou a Histo-
oeratriz Porcina e do Imperador Lodonio.
s suas obras desappareceram ; tudo o que
)i estropiado pelo Santo Officio; o que ainda
u-se pelo grande amor que o povo portuguez
"olhas volantes d'este graude confidente dos
liseraveis.
Affonso Alvares, dirigido pelos cónegos de
nte e frades de Sam Francisco, Balthazar
em foi procurar na Legenda Áurea de Vora-
gem dos seus Autos. De todas as peças do
pratico, o Auto fie Santo Aleixo é o mais ce-
thazar Dias ínspirou-se da tristeza do seu
perda de Dom Sebastião, a incerteza do povo
tbia se o seu rei deixara a purpura para ser
e ir fazer penitencia a Jerusalém ou se real-
rrera no plainos da Africa, refletem-se sen-
ente no typo de Aleixo, que deixa sua esposa
lo seu noivado, troca as suas roupas pelos
le um mendigo, vae adorar os logarea «u\-
284 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
tos, voltando desconhecido e vivendo dezassete
debaixo de uma escada em casa de sen pae.
portuguez tinha rasào para estimar este Auto,
encontrava symbolisado o desejado monarcha no
berto esposo. O Auto de Santo Aleixo encontra-se
cripto em francez no século xiv, publicado por Fi
cisque Michel e Monmerqué; porém Balthazar
nada tem de commum com esse original mais anl
Inspirou-se directamente da Legenda Áurea e da
crença fervorosa, que o eleva a um perfeito lyrisi
digno da eschola de Gil Vicente. Para se conheoeH
argumento do Auto, extracta mos aqueilas partes
tadas por Voragine, de que Balthazar Dias se apron
tou, para que depois se veja como soube admirave
mente tirar de meros incidentes grandes lances
maticos: «Aleixo foi filho de Euphemiano, home
acerescentadissimo em dignidade, e o primeiro na
te do imperador.
O filho era instruído em todas as sciencil
liberaes e em todas as artes da philosophia. Logo qi
foi homem, escolheram para elle uma infanta da casa]
real, e deram-lh'a por esposa. E tanto que a noitt]
veiu, deixaram os esposos sósinhos. Então o santo ra-
paz começou a instruir sua mulher no temor de DeosJ
e a recommendar-lhe a virgindade. Den-lhe depohJ
um annel de ouro para guardar, dizendo: — Reofl
bei-o e guardae-o, até quando Deos quizer, e que o Se-
nhor seja entre nós. — Tomando então uma parte da
sua fortuna, foi pata a& YftXkAaa do mar, e embarco» j
NO SÉCULO XVI 285
tndidamente, dirigindo-se para a cidade de Laodi-
y è d'af para Edessa, cidade da Syria, aoade se con-
r ã em ama toalha uma imagem de Jesus
ficava das esmolas que recebia senão com o bas-
ite para aquelle dia, distribuindo o resto pelos ou-
pobres. Seu pae, lamentando o desapparecimento
Aleixo, mandou os seus escravos por todas as par-
do inundo, que o procurassem com muito cuidado ;
[uando os escravos chegaram a Edessa, Aleixo os
mheceu porém elles não o conheceram, e deram-lhe
tola como aos outros pobres Todo o
ivo concebeu por elle uma grande veneração. Porém
íixo, fugindo da vangloria se retirou para Laodicêa,
Ponde embarcou para ir a Tarso, na Sicília ; mas ba-
lo pelos ventos o navio arribou a um porto perto de
>ma. E Aleixo disse então: a Permanecerei desço-
lecido em casa de meu pae.» Os creados da casa fa-
tiam escarneo d'elle, muitas vezes deitavam-lhe sobre
cabeça agua das panellas, dizendo-lhe muitas inju-
i. Soffria tudo com paciência, e permaneceu deze-
>te annos em casa de seu pae. Sendo-lhe revelado
|ue o fim de sua existência era chegado, pediu tinta e
papel e escreveu a narração da sua vida.
«E no domingo, depois da missa, uma voz celeste
fez ouvir: «Procurae o homem de Deus, encon-
|.tral-o-heis em casa de Euphemiano.» Perguntaram a
f» Euphemiano o que aqui Ho era, e nada soube respon-
der; então os imperadores Arcádio e Honório, com o
papa Innocencio foram a casa de Euphemiano; e este
286 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
correndo para Aleixo o encontrou morto. Quiz ti
lhe das mãos o papel e não pôde. Prevenia os imp<
dores e o papa, que lbe disseram: «Vamos, e tome
esse papel para saber o que ai está apontado. » E o p
aproximando-se, pegou no papel, que os dedos do n
to abandonaram logo. O papa o leu em presença
Euphemiano e de todo o povo. E Euphemiano om
do isto, foi tomado pela dor, e caiu em terra sem s
tidos E a mãe de Aleixo, ouvindo isto, rasgot
seus vestidos. . . . E a mulher de Aleixo dizia tamtx
t Ai, viuva fiquei, com toda a esperança e consola
perdidas.»
São bellas as situações dramáticas que offerece €
lenda agiologica ; nenhuma talvez se prestava a um ir
sentido lyrismo. Balthazar Dias possuía todas as con
çôes para a interpretar admiravelmente: crença fin
ignorância dos modellos clássicos, o a linguagem e d
ção privativamente populares. Auto de Santo Ale*
tem uma barbaridade semigothica, que o torna pittor
co; os personagens com algum tanto da immobilidí
contrafeita das imagens das illuminuras, tem coi
ellas um colorido vivo, e o que mais admira, certa <
pressão moral. Balthazar Dias inspirava-se da pobi
za, como os poetas mendicantes do século xii e XII
pobre e cego, como não sentiria esta estropho :
Riqueza não hei mister,
Porque eu pobre nasci,
E pobre heide morrer ;
NAo quero, Senhor, de ti
Senão poder-me Boífrer,
NO SÉCULO XVI 287
Rogo a tua clemência,
Se pobreza me quer dar,
Que me queira consolar
Com alguma paciência
Pára não desesperar.
No Auto apparece também o Diabo, segundo a tra-
lição conservada do tempo de Gil Vicente ; entra umas
r ezes de pobre, outras, vestido de cortezão para ten-
ar Aleixo. Os intervallos são preenchidos com bym-
108 da egreja, como o Te-Deum laudamus; Anjos, Pa-
uis e Cardeaes entram em scena, como em um coro do
rissagio. Aonde Balthazar Dias se mostrou verdadei-
•amente poeta foi na scena da carta, em que modifica o
«pirito da Legenda Áurea. Euphemiano aproximou-
ie do cadáver de Aleixo e não pode tirar a carta ; os
juatro cardeaes, o papa, e o imperador foram por seu
turno requerer o morto para que lhes deixasse ler a
?arta, e nenhum conseguiu tirar-ih'a da mão; veiu sua
mãe Aglais, e também nada conseguiu. Aproxima- se
ma esposa Sabina, e o defuncto abre a mão e dei-
ta-lhe tirar a relação contida no escripto. A scena é
■hakespireana em quanto á invenção; levado pela ideia
íatholica, Balthaznr Dias não deixa irromper livre o
entimento; aonde elle se mostrou poeta foi na predilec-
ão do morto pelo pedido de Sabina. O Auto acaba com
ina procissão de enterro, em que ós quatro cardeaes e
papa vão cantando entre brandões funéreos o hym-
o In exitu hrael de Aegypto. Medonha impressão
eixa a peça, verdadeiro retrato de um século e de um
288 HISTORIA DO TH E ATRO PORTUGUEZ
povo entristecido pelo mais exagerado catholicismo. Oj
tfaeatro assim, em vez de ser uma alegria da vida, uma
festa, é peior do que um naufrágio, é o verdadeiro pre-
parativo para as procissões do Queimadeiro. De que ou-
tro modo podia ser o theatro de um povo para quem
as únicas festas naoionaes que lhe deixaram, foram a
mascarada do sambenito e carocha, os sermões aterrado-
res e as extorções dos relapsos devorados no poste dai
fogueiras do Rocio? theatro de Balthazar Dias reve-
la o estado da alma portugueza; manifesta um grande
sentimento lyrico, abafado por uma religião desolado-
ra, que se compraz em espectáculos de morte. Auto
de Santo Aleixo ainda hoje se representa pelas aldeias,
o que deixa a nú a triste verdade, que explica a causa
inevitável da nossa decadência, — um profundo obscu-
rantismo religioso que atrophiou as mais bellas quali-
dades rnoraes, e matou a alegria e as faculdades crea-
doras na vigorosa raça mosarabe.
Auto de Santa Catherina, de Balthazar Dias, vae
para trez séculos que abrilhanta o repertório do thea-
tro popular, sem ter ainda decahido da admiração sin-
cera. povo das ilhas dos Açores canta uma oração a
Santa Catherina, (1) em que parece ter formado a sua
lenda sobre o Auto de Balthazar Dias. Mais uma vez,
seguiu o cego dramaturgo a lenda de Jacob de Vora-
gine, verdadeiramente épica, cujo caracter grandioso
não está perfeitamente em harmonia com a forma dra-
(1) Cantos populares do Archipelago açoriano, pag. 155.
NO SÉCULO XVI 289
Inaticâ. No Auto de Santa Catherina também não ha á
mdmirar o génio da invenção; pertence ao espirito me-
«liévico, e não ao poeta portuguez. Á forma é em verso
nacional da redondilha; as falas em decimas dãobellos
èffeitos para a recitação, mas tiram ao dialogo a viva-
cidade, tornam-o uma lição, um discurso. Apparecem
em scena Jesus Christo e a Virgem, cantam-se hv-
mnos da egreja, como a Ave Maria, Laudate Dominum
omnes gentes. A scena em que Santa Catherina argu-
menta com os Doutores, respondendo-lhe as mais re-
contadas subtilezas é pouco theatral, mas grandio-
sa. Ern scena é degollada a Virgem ergotista, e dian-
te da multidão dá-se o milagre de correr leite em lo-
gar de sangue. O Auto termina como todas as peças do
theatro hierático, com um enterro. Era este o grande
lance que se queria trazer presente á memoria do po-
vo; n'éste tempo a multidão divagava pelas ruas depois
da meia noite, resando o terço pelas almas dos finados,
seguida de archotes e campainha, entre lamentos de
embuçados, e tropelias de vagabundos. Taes eram os
costumes da sociedade portugueza no tempo de Dom
Sebastião, como nol-os descreve Dom Francisco Ma-
noel de Mello, na farça do Fidalgo Aprendiz. Auto de
Santa Catherina em tudo revela ser obra composta se-
gundo as exigências de um povo fanatisado; fala-lhe
da heresia e da morte, do nada das cousas da vida, do
castigo irremissível, mas nenhum d'estes sentimentos
é verdadeiramente humano; a sua falsidade manifes-
ta-se na banalidade convencional das» %\\»\KkçJtefe fo^ss^-
19
290 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
ticas. A grande popularidade de Balthazar Dias esta-
va em ser perfeitamente povo, e como elle atribulado
por uma religião desesperadora. Escreveu mais alguns
outros Autos hieráticos, como o Auto do Nascimento
de Christo, o Auto oVEl-rei Salomão e o Auto breve da
Paixão, condemnados e totalmente extinctos pelo San-
to Officio.
Pela traducção que fez Balthazar Dias do romance
do Conde Alarcos, Retrahida está la Infanta, e pela dis-
posição dramática dada aos romances do Marquez de
Mantua, se vê que as suas attenções estavam voltadas
para a rica litteratura popular de Hespanha. Foi um
dos que mais contribuiu, no fim do século xvi, para dar
ao romance anonymo a forma erudita usada por Lope
de Vega, la Cueva, Sepúlveda e outros muitos. Ao ro-
mance do Marquez de Mantua, que ainda hoje anda nas
folhas volantes, (1) chamou tragedia, separando a par-
te descriptiva para as rubricas, e deixando ficar as nar-
rações notadas com o nome do personagem. O Cavalhei-
ro de Oliveira, se é que Garrett se não serviu d'este
nome para falsificar a poesia popular, recolheu uma es-
pécie de introducção ou prologo á tragedia. A versifi-
cação e sobretudo a linguagem pittoresca são genui-
namente populares e admiráveis; porém a invenção fal-
ta-lhe; pertence a Trevino ou aos romancistas anony-
mos, que atrevidamente chasquearam com essa negra
peripécia o brilhante cyclo de Carlos Magno. Lope de
(1) Romanceiro e Cancioneiro geral portuguez, t. v, pag. 62.
I
NO SÉCULO XVI 291
Vega tratou em uma das suas admiráveis comedias o
assumpto do Marquez de Mantua; não seguiu como Bal-
thazar Dias a cantilena dos Romanceiros, recompoz
pelas situações tradicionaes a vida moral, a paixão, e
seguiu a fatalidade dos factos; fez como os trágicos
gregos, que se inspiravam das tradições homéricas, im-
primindo pela intuição profunda da vida, movimento
e paixão no vulto immovel da grandeza épica. Baltha-
zar Dias pressentia que o theatro trágico tinha muito
para crear sobre as grandes lendas medievaes; mas fal-
tava-lhe o conhecimento do mundo moral, conhecia a
%*ida somente pelo acanhado prisma do catholicismo
prepotente, faltava-lhe a faculdade concepcional, não
pxlia libertar-se das situações taes como as recebera
na sua primeira impressão. Balthazar Dias é o primei-
ro poeta popular, mas aquelle em quem se não encontra
originalidade; n'isto mesmo representa o estado da al-
ma d'este pobre povo portuguez. Como vimos, os seus
dois Autos de Santo Aleixo e Santa Catherina, são tira-
dos da Legenda Áurea de Voragine, sem aquella audá-
cia de recomposição que se encontra nos autos hierá-
ticos de Gil Vicente; a sua tragedia do Marquez de
Mantvui) basêa-se sobre os romances da Floresta de
Tortejada, a sua Historia da Imperatriz Porcina é tra-
duzida, -como usava Sepúlveda e os Romancistas cul-
tos, do Speculum historiale de Vicente de Beauvais. Os
seus Autos foram dos que soffreram mais cortes no In-
dex Expurgatorio de 1624; o Santo Officio julgava ain-
da pouco negras as cores de que o poeta catholico sã
292 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
servira. A alma portngueza ainda não despiu o lncto
inquisitorial, e continua, como no tempo das foguei-
ras, a representar ao ar livre, dentro em graneis, ou
debaixo de toldos, os Autos do infeliz cego da Madei-
ra, e alegrar-se-ha com esses milagres sinistros, em
quanto alguma mão providente não trabalhe por ar-
raucal-a do seu pezadello religioso.
NO SÉCULO XVI 293
O-AJPITTTIjO X
Simão Machado
Primeira influencia hespanhola no theatro porluguez. — Deca-
dência da lingua portugueza. — Simão Machado raramente
se serve da lingua nacional. — As suas comedias não são re-
presentáveis pelas ílifficuldades da decoração. — A Comedia
de Diu e a Comedia Alf ta estão incompletas. — Simão Ma-
chado representa o ultimo esforço do theatro do século xvi
entre a invasão hespanhola e a Opera italiana.
E este o ultimo poeta cómico do século xvi. Nas-
ceu Simão Machado na Villa de Torres Novas, do Pa-
triarchado de Lisboa, terra nobilitada por ter sido o
berço do celebre escriptor dramático António Prestes.
Pelas poucas noticias que restam, recolhidas nos archi-
vos monásticos por Diogo Barbosa, sabe-se que foram
seus pães Tristão de Oliveira e Garcia Machada. Nas-
ceu no ultimo quartel do século >xvi, por isso que já
em 1601, andavam impressas as suas comedias por Pe-
dro Craesbeeck. Os grandes desgostos nacionaes, que
decorreram de 1578 a 1640, fizeram -no abandonar o
século, indo professar a regra de S. Francisco de Cas-
tella, em um convento de Barcellona, com o nome de
Boaventura Machado. Sabe-se que ainda vivia em 1631,
pelo facto da segunda impressão das suas comedias em
Lisboa, por António Alvares. Duas são as comedias que
escreveu, e ambas incompletas, a Comedia de Diu, e Os
encantos de^Alfea. Conhece-se n'ellas todas as influen-
cias litterarias que se manifestaram &o\> ^ fofts&H&£^&
294 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
hespanhola. A lingua portugueza estava completar
te abandonada; em um prologo, Manoel de Galh
se queixado considerarem geralmente o portuguez
mo a linguagem somente falada pelo baixo povo. e o
panhol preferido para todos os escriptos; aí louvai
bem Gabriel Pereira de Castro por ter tido a cora
deescrever a Ulyssea em oitavas portuguezas. As <
comedias de Simão Machado, terão quando muito
terça parte escripta em portuguez ; não segue a ti
cão de Gil Vicente, que se servia do hespanhol quí
queria fazer falar os diabos, os villãos, ou as allegí
dos peccados; a linguagem nacional é falada na*
medias de Diu e Alfea secundariamente, só na s
de baixa comedia entre soldados bisonhos, ou entre
gaes e cabreiros. No fim da segunda parte da com
de AJfêa, Simão Machado descnlpa-se d'esta incr
ção:
por naturesa
E constellação do clima,
Esta nação portuerueza
nada estrangeiro estima,
O muito dos seus despreza.
Vendo quam mal acceitaes
As obras dos naturaes,
Fiz esta em língua estrangeira
Por ver se d- esta maneira
Como a elles nos trataes.
Fio-me no castelhano,
Fio-me em dar novidade,
Se n'uma e n'outra me engano,
Vós Portugal, eu o panno,
Cortae á vo3sa vontade. (1)
(1) Comedias portugueza*, p. 144, ed. de 1706.
NO SÉCULO XVI 295
Estes versos explicam o motivo da decadência do
; theatro portuguez no século xvn, e a rasão por que Pe-
. ro Salgado e Jacintho Cordeiro escreviam em hespa-
. nhol. No principio e fim de cada comedia usa Simão
Machado trazer algumas quintilhas, em que expõe um
conto que applica ásua situação; são verdadeiras pero-
; las do nosso decameron; por esses pequenos contos se
j vê que o poeta era guerreado, talvez pelos que despre-
! zavam a arte nacional. Por essas quintilhas poder-se-
hia talvez inferir que as suas comedias foram represen-
i tadas, o que apezar de tudo ficará duvidoso. Diz Si-
mão Machado no principio da Comedia de Diu:
Se com seu favor me amparam,
Minhas forças se preparam
A emprehender cousas tão grandes.
Que distrinsa este murganho,
A linguagem de Castella?
E eu cachopo tamanho
Que não sei trincar por ella
Por mais que a isso me amanho.
Ja qu'estar en Pertigal
Pairar como pertigues,
Que essa linguagem he bosal.
Alfêa, p. 117.
Este trecho mostra a confirmação do que diz Ma-
noel de Galhegos, que no principio do século xvil a
língua portugueza só era falada pelo baixo povo. N'es-
ta scena, Thomé queixa-se de não saber ainda falar
castelhano; o outro diz-lhe já que está em Portugal,
296 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
que fale como portuguez, que a língua castelhana é
boçal.
No fim da primeira parte da Comedia de Diu, vêm
outra vez as quintilhas como epilogo, e entre ellas uma
em que o actor defende o auctor :
Assim de sábios se jactam,
Sendo o de que tem mor mingua,
Que aquillo que não desatam
Co' entendimento, tratam
De o cortarem cora a lingua.
O auctor sentindo em si
De faltas um laço forte,
Lhes manda pedir por mi,
Que haja por elle aqui
Quem desate, e não quem corte. — Foi. 44.
No fim da Comedia de Diu, fazendo a comparação
da generosidade de Alexandre com a pobreza de Bian-
ses, diz:
Digno de tanto louvor
Sois vós. illustre Senado,
Bianses pobre o auctor
De favor necessitado.
Cuja filha é a Comedia
Que com o favor, presada
Deseja ser emparada,
Por tanto, Alexandre vede-a
Pois a vós vem dedicada.
Dae-lhe o favor por amparo
Por consorte e per marido
Louvae sempre os Portuguezes
Pois são vossos naturaes,
Pois os extratihos louvaes
NO SÉCULO XVÍ 297
E ja que vos vem servir
O auctor, Senado nobre,
Dê-se-lhe o que vos vem pedir,
Que elle é Bianses o pobre,
Vós Alexandre em ouvir. — Pag. 102.
No fim da segunda parte da Comedia de Mfea, vem
outras quintilhas, dirigidas aos que ouviram a repre-
sentação, tirando a allegoria dos manjares fingidos do
banquete de Heliogabalo:
Assi, illustre Senado,
Todos os que estaes presentes
Vejam se é bem applicado :
O auctor — Rei que convida,
Os ouvintes — convidados,
As figuras — a comida,
E os manjares pintados
Esta Comedia escolhida.
E por ser bem recebido
Este banquete, lhe peço,
Senado, claro e subido,
Todo o silencio devido
Por premio do que mereço. — Pag. 188.
De todas estas citações se vê, que Simão Machado
se desculpava diante de um certo publiòo que ouvia,
e a quem recommendava como premio mais digno da
obra, o escutal-a em silencio. Ainda assim poderiam ser
estas quintilhas escriptas de antemão para quando as
comedias fossem representadas, o que seria talvez mui-
to provável, attendendo ás grandes decorações e mu-
danças do scenario que exigiam.
Na Comedia de Diu, entram os Mouros e Christãos
pelejando; quando o rei mouro corta a cabeça de Ro-
L
298 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
ne á vista de todos, sua mulher Glaura toma-a nas
mãos e envolve-a n'uma toalha, e para resistir á sedu-
cção do rei, que mandou matar-lhe o marido para a
desposar, « tira de um canivete, finge que se dá muitas
feridas no rosto de modo que fica mui disforme. » De-
pois de entregue Diu, «Tangem charamellas, corremos
cortinas e apparece um arco d' esta maneira: estará
uma figura c'os braços abertos, será de mulher com um
mote ...» — « Na mão direita do arco, entre as dun.s
columnas estará outra figura de mulher com um vaso ole
vinho cheio de agua nas mãos, e com uma letra em ci-
ma da cabeça que diga Vontade ...» — « Na mão esquer-
da entre as outras duas columnas estará outra figura
de mulher com uma vara na mão, como que a offerece,
com letras que digam Vontade. — « Descoberto este arco,
tocam charamellas por espaço que se possam ler os mo-
tes e entram. . . soldados , como que vem ver as ruas da
cidade. » Apparece também auma dança de Mouros qw
vem dançando pelo theatro á mourisca. » Quando come-
ça a sair a guarda, Cojeçofar está com um prato, e com
as chaves ríelle, de joelhos. Entra o governador, to-
cam Charamellas, e por-se-ha sobre o muro o Alferes
com uma bandeira em que estavam as armas de PortVr
gal, e floreando-a, dizem em voz alta: Real, real pelo
poderoso Rey Dom João de Portugal ...» etc. •
A grandeza espectaculosa da comedia e o declara-
do patriotismo com que dramatisa o primeiro cerco de
Diu, eram bastante para fazer com que não fosse re-
presentada em um tempo que a cultura litteraria e a
NO SÉCULO XVL 299
nacionalidade estavam amortecidas. A Comedia de
Diu è tilo complicada de acções secundarias, as muta-
ções de sceua são tão frequentes, que é impossível po-
der extrair-lhe o enredo ; tem de histórico apenas o no-
me de um ou outro personagem das chronicas; o gover-
nador fala em verso heróico, em outava rima, e ás ve-
zes em verso solto; o hespanhol serve de linguagem
mourisca; o portnguez é a expressão dos soldados que
trabalham nas trincheiras e fazem sentinella. Inven-
ção dramática, e o génio que dirige através de todos
os incidentes a acção, não o tem Simão Machado; a
expressão profunda da realidade da vida também lhe
falta no dialogo. As diminutas scenas escriptas teme-
rosamente em portnguez, são as mais engraçadas, e
ainda assim têm um chiste motivado por equívocos e
rudeza dos personagens. Simão Machado era excellente
poeta lyrico, e por esse mesmo facto um mau escriptor
dramático. Vindo mais tarde do que Gil Vicente, e do
que a sua brilhante eschola, tendo já a riqueza do thea-
tro hespanhol e italiano para o ensinarem, pouco fez.
Enganou -se, como sempre, o bom Costa e Silva, quan-
do o colloca superior a Gil Vicente, ainda hoje não ex-
cedido. A Comedia de Diu, está incompleta, como se
vê pelo final da segunda parte. Na ultima fala de Coje
Sofar, diz o auctor:
Aqui se acaba la segunda parto,
Y prometo veays tambien ter cera :
Y hechos tambien vereis dei fiero Marte,
Y casos en historia verdadera ;
Tambien de amor vereis raros efetos
Que a el son los f uertes mas sugetos.
300 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
A Comedia Alfêa, que o autor talvez intitularia
Os encantos de Alfêa, como se vê pelos versos do fim
da primeira parte :
Vamos todos ai aldeã,
Porque fenecida sea
Aqui la primeira parte
De Lo$ encantos de Alfêa. — P. 141.
é uma magica em toda a extensão da palavra , mistu-
rada com o drama tirado da novella pastoril. Amalga-
ma informe, com que a arte dramática nada avançou.
N'esta comedia, Simão Machado mistura hespanhol
com o portuguez e italiano, reservando esta ultima lin-
gua para o sábio Merlim e para o Centauro. Pelas rubri-
cas da Alfêa se verá a impossibilidade de ter sido repre-
sentada. Encontram-se o Pastor e Célia : «Indo para se
abraçarem aparta-os um grande fogo.» — « Querendo-se
meter pelo fogo, sae d'elle um dragão, de cujo temor
foge cada um per sua parte ...» Em outra scena lê-se
a rubrica: a Aqui se rompe um monte e apparece Ce*
lia.» Silvio «arranca de um punhal para matar a Al-
fêa, e se lhe converte em pedra.» «Apparece a fonte de
agua do amor. » «Fala Célia de dentro do louro em que
estava convertida. Vae Alfêa pela serra assentada em um
carro, que o levam duas serpes guiado.» «Apparecem
muitas cabeças de feras.» Vêem-se também uma sphin-
ge a propor enigmas, e um cendal que produz encan-
tamento. Por todas estas rubricas, que não são metade
das transformações indicadas nos versos da Comedia
NO SÉCULO XVI 301
Alfêa, se vê que è uma magica apparatosa, que não po-
dia ser representada com os recursos da arte do sécu-
lo xvii. Ainda aqui Simão Machado continua a cha-
mar- lhe Los encantos de Alfêa, e promette uma tercei-
ra parte, que nunca chegou a ser escripta:
♦
Sigamos el estandarte
Del que a todos senorea,
Porque fenecida sea
Aqui la segunda parte
De los encantos de Alfêa.
Y en la tercera hallareis
Quien es el nuevo zagal
Y en el la origen vereis
Del nombre de Portugal
Que ai presente posseeis. — P. 187.
Dom Francisco Manoel de Mello, que era excellen-
te conhecedor do theatro, considerava Simão Machado
entre os insignes poetas cómicos ; nas situações em
que se serve da lingua portugueza, dialogada entre
pastores e rústicos, è bastante chistoso pelo sem nume-
ro de locuções e anexins usados pelo povo.
Na Comedia de Diu traz Simão Machado a tradi-
ção de um velho que havia em Diu, o qual, quando a
cidade se rendeu, foi ter com o governador Nuno da
Cunha, e pediu-lhe que lhe continuasse a dar por mez
o ducado e meio de ouro que recebia de antes do rei;
tinha este velho, segundo os testemunhos do tempo,
trezentos e trinta e cinco annos de edade, tendo qua-
tro vezes mudado os dentes e renovado os cabellos. (1)
<
(1) Comedia de Diu, part. n, p. 53.
302 HISTORIA DO THE ATRO PORTUGUEZ
O Padre Manoel Fernandes, no seu livro Alma In-
struiãuj traz esta auedocta do Velho de Diu, fundan-
do-se na auetoridade de Simão Machado : « Este mes-
mo caso refere o Autor da Comedia de Diu, (depois
Religioso e varão insigne) que introduz este velho fa-
lando com o Governador Nuno da Cunha.» (1)
Simão Machado era verdadeiramente poeta; as sce-
nas portuguezas, entremeadas nas suas duas comedias
hespanholas, são repassadas de lyrismo, de graça e fa-
cilidade; davam bellas éclogas no gosto do século xvn,
que lhe alcançariam um dos primeiros logares entre os
bucolistas, mas não são estas qualidades sufficientes para
suprirem a faculdade principal do poeta dramático —
a creação. Ao contrario do dizidor Chiado que largou o
habito de S. Francisco, Simão Machado, com a sua
alma peninsular, a exemplo de Espinel, de Lope de
Vega, de Agostinho Pimenta, trocou o soco pela cu-
gula. A sua celebridade ainda hoje lhe vem do nome
que teve no século.
(1) Obr. cit. t. !i, cap. 1, doe. 15, n.° 18.— Jorge Ferreira
ija Euf rotina também cita a auedocta.
NO SÉCULO XVI 303
CAPITULO 3CH
Os poetas anonymos
O theatro nos Conventos franciscanos. — O Auto do Dia de Juí-
zo escripto depois de 1513. — O typo de Villão e a tradição
do velho theatro portuguez. — O Romance do Rei David. —
Autos anonymos condemnados pelo Index Expurgatorio de
1624 — Os Jesuítas desnaturara a tradição dramática de Gil
Vicente. — Fim da Eschola nacional.
Como deveria ser o theatro em um povo que rece-
beu com repiques e luminárias a noticia da tremen-
da matança de S. Bartholomeu, senão sepulchral e
funéreo, apresentando sempre scenas de penitencia e
de martyrios, disputas sobre dogmas religiosos susten-
tadas á força de milagres para deslumbrar os sentidos,
e recorrendo sempre á impressão violenta e brutal, ex-
plorada como ultimo recurso, da lembrança da morte.
É este o theatro de AfFonso Alvares e de Balthazar
Dias, que mataram a comedia de Gil Vicente, no que
ella tinha de nacional e faceto, para a tornarem uma ar-
ma auxiliadora dos obscurantistas religiosos; seguiram,
é verdade, a eschola do velho Piau to, mas simplesmente
na forma exterior, no uso exclusivo do verso deredon-
dilha. Considerada a creação dramática como uma pré-
dica moral em acção, immediatamente se dedicaram os
frades a escrever para o povo ; Frei António de Lisboa
íf
304 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
escreve os Autos de Santo António de Lisboa, e dos
Ladroes de que restam os títulos ; o P. e Francisco Yu
de Guimarães escreve o Auto da Paixão, que aiuda and»
nas mãos da gentalha. Mas aonde se conhece que o thea"
tro portuguez começava a ser verdadeiramente conside-
rado e enriquecido, é no grande numero de comedias
anonymas, hoje perdidas, cujos títulos se conservam no8
Index ExpurgatoAos, a maior parte das quaes andou
impressa sem data no século xvi, reimprimindo-se
muitas em 1512 e 1516, antes do fatídico anno de 1624, Jn
que decretou a sua total ruina. Um dos Autos mais
antigos e anonymos que nos restam é o do Dia do Juí-
zo; já pelo assumpto se vê qual a ordem das situações
que o génio hierático ia procurar para assombro
multidão. O gosto dramático desenvolvido por
Vicente e Affonso Alvares, fez com que em Évora se
reimprimissem quasi todas as comedias do século xvi;
o Auto do Dia de Juízo ali appareceu em 1616. Nãoe
somente a linguagem, a forma da redondilha quebrada,
nem um lyrismo engraçado que mostram a sua antigui-
dade; um Villão que entra em scena para ser julgado
vem cantando:
Oh que novas me virão
Da Cidade de Azamor !
Maldicta seja a mulher
Que matou tal lavrador.
Esta cantiga devia andar na tradição desde 1513,
quando foi a brilhante expedição do Duque Dom Jai-
NO SÉCULO XVI ÍOá
e á conquista de Âzamor; postoque se n& deva
knsiderar esta data para determinar a composição do
uto, cpmtudo pode conclnir-se que foi em tempo em
íe o successo ainda impressionava a imaginação do
)vo, não distraída pelas fomes e desastres do reinado
3 Dom Sebastião. No Auto do Dia de Juizo, a scena
3 Villão, que argumenta com o Diabo, faz lembrar 6
rpo do velho fabliau francez, do Villain qui canquist le
aradis par plait; circumstancia que indica o fio da
radição franceza também seguida por Gil Vicente:
Villão : í)eixa-me que csvaliarei
Oi, oi, oi. •
Satanaz : Já me palraes françoi,
Não o sabeis mastigar
Assim haveis de falar :
Que vol-o direi de moi.
typo do Villão, perfeitamente nacional, está se-
undo o eterno modelo conservado nos fabliaux, rude*
ansato, cortando as mais difficeis situações com um
om ditado ou anexim ; elle comprehende perfeitamen-
3 a origem da sua independência burgueza:
Todos lhe chamam villão,
£ presumem de Senhores,
Se não fossem os lavradores
Elles não comeram pão.
Affonso de Burrião, tal se chama o lavrador, nftô
ner senão entrar para o céo, e trata de mostrar a Sata-
az que sabe rezas, e que pagou tudo quanto lhe exigia
20
306 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
o abbade; o villão era um grande demaudista, e perde-
ra todos os seus haveres com os letrados. E eminente-
mente cómico o seu encontro com o Letrado, que de-
pois de lhe comer tudo lhe assobiou ás botas. O typo
do Letrado è também completo, reflexo do génio de Pa-
thelin, tirado da observação e dos nossos costumes.
jurista que saíra da plebe, e com o pezo do Direito e de
todas as leis romanas matara o feudalismo, restringindo
a ambição senhorial, para fortalecer os reis, atacou tam-
bém a burguezia depois de constituído o poder monaf
chico ; é por isso que nas farças populares o Letrado ê
sacrificado aos logros do villão, como vingança das suas
argucias. No Auto do Dia de Juizo os typos apparecem já
perfeitamente traçados, ha o que se chama caracter; Gil
Vicente nos Autos da Barca do Inferno, do Purgatório e /
do Paraíso, appresenta um onzeneiro, um fidalgo, parvo,
sapateiro, alcoviteira, frade, judeu, corregedor, procu-
rador, lavrador, regateira, taful e pastora, Abel, Da-
vid, /S. João, Jesus Christo, Lúcifer e Satanaz, quasi
todos reproduzidos no Auto anonymo, visivelmente imi-
tado; porém o espirito ecclesiastico não deixa porem
scena o typo do frade, do Papa, dos Cardeaes, o que
nos leva a ver que já não havia a liberdade, que Gil
Vicente gosara ate 1536, e que o Auto do Dia de Juizo
foi escripto depois d'esta data, vigorando já a Inquisi-
ção. Aqui, como no Auto de Gil Vicente, Lúcifer,
ainda è o Maioral do Inferno; a disposição da scena,
representa ao mesmo tempo a gloria e o inferno, como
nos Autos das Barcas, o que se conhece da rubrica-
NO SÉCULO XVI 307
icifer como que vae ao inferno dar tormentos aos que
jazem, ouvindo-se falar os personagens que já ha-
am recebido a sua sentença.
Como Gil Vicente, o poeta anonymo adopta a poe-
a farei, dos velhos mysterios franoezes e cantos popu*
res da edade media. Âpezar de pouco desenvolvido, e
zendo consistir o jnizo final só na condemnaç&o de
nim, de Dalila, de uni villào. de um tabelli&o, de um
arniceiro, de uma regateira, e de um moleiro, tudo .
curas do baixo povo, o Auto do Dia de Juizo, è impo-
inte na sua linguagem convicta. Sam João entra em
ena denunciando temerosamente, como diz a rubrica, o
n do mundo, faz uma como espécie de prologo do
ande cataclysmo.
Entra Christo, e manda ao Seraphim tocar a trom-
ta. Ao primeiro toque vem el-rei David, logo em
guida seu filho Absalão, que o povo bem conhecia pelo
lho romance: Con rabia está el rei David, etc.
Este romance andou na tradição oral portugueza, e
► Index Expurgatorio, de 1624, por Dom Jorge de
ascarenhas, se prohibe o cantal-o. (1) Appareceu no
zncionero de Romances, impresso em Lisboa em 1581,
talvez o gosto que então reinava dos romances tira-
is da letra da Biblia, e a sua grande vulgarisaç&o,
:essem com que o poeta anonymo metesse em scena
bsalão, que principia com o verso :
Que é da minha formusura,
(1) Index, pag. 174.
308 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
o qual se encontra no Planto do Rei David, do ve-
lho romanceiro. A fala que o joven príncipe declama,
lembra pelo seu lyrismo o romance trovado.
Depois de David, é que a outro toque entra Abel com
seu ii t mão Caim; Abel vem cantando um mimosíssimo
villancico, (1) de arte menor, como aquelles com que Gil
Vicente rematava os seus Autos do Natal, circumstan-
cia que prova não estar o auctor longe da tradição dra-
mática do velho mestre, O toque da trombeta do Se-
raphim acompanha a mudança de cada scena, e devia
produzir uma impressão assustadora. São estes recur-
sos já inventados que acanham o génio nas creaçõesdo
theatro hierático. Como os diabos de Gil Vicente, o
Lúcifer do Auto do Dia de Juizo, diz:
Oh que gostoso anexim,
Eu sei vasconso e latim.
A Regateira do Auto allude a Lisboa nos versos:
Olhae d'elle as rasOes,
Também vendo cá cações
Como nós lá na Ribeira.
O Carniceiro também diz, quando vê que tem de
ser sentenciado para o inferno:
Oh pezarde Santarém.
II) Vid. Floresta de Romances.
NO SÉCULO XVI 809
■
Estas fracas indicações ajudam a localisar o Auto
ilvez composto em Santarém ou Lisboa, aonde Gil Vi-
ente residia, e aonde António Prestes, como enquere-
or do eivei, continuou a sua tradição. O Auto ter mi-
a com a sentença de Christo condemnando os precitos,
indo á bôcca da scena dois Anjos, cantando, fazer o epi-
3go moral. O Auto do Dia de Juízo è indubitavelmeri-
e do século xvi; quando em 1609 o imprimiu em Lis-
>oa Pedro Craesbeek, já andaria por muito tempo em
opias manuscriptas, e appareceu não amputado pelo
>anto Orneio na edição de Évora. Hoje ainda anda
Las mãos do povo, mas já restituído á sua integridade.
A grande quantidade de Autos anonymos que ap-
areceram por este tempo, dá a conhecer uma certa vi-
la intellectual e gosto pela creação dramática; até ao
nnodel624 durou esta brilhante efflorescencia, defi-
ihadapelo Santo Officio. O Index de 1624, condemna
> Auto do Braz Quadrado, j á conhecido e vulgarissimo
ío tempo de Camões, como o typo de um desperdiçado
ie amores, citado no Auto do Filodemo, de 1555 ; é
provável que a edição de 1613, fosse reproducção de
ilguma não datada do século xvi.
Também não se sabe quem é auetor do Auto de
D, André, hoje perdido, conhecendo-se apenas a sua exiá-
encia pelo Index. Pertencem ao século xvi, e não múi-
\o posteriores á morte de Gil Vicente, o Auto do Ju-
)Ueu de Amores, o Auto da adherencia do Paço, o Auto
ia vida do Paço, o Auto dos Physicos, Gamaliel, e A
Revelação de S. Paulo, já prohibidos no primeiro In-
310 HISTORIA DO THEATRO PORTDGUEZ
dex Expurgatorio da Inquisição de Hespanha, publi-
cado em 1559.
O Auto dos dois Compadres, o Auto da Farça Penar
da, o Auto dos Captivos, Custodia, farça, Dos Enamo-
rados, comedia ou farça assim intitulada, Jacintha, Jo~
sephina, Auto de como o estudante Christoval de Bivat
livrou a seu pae cativo, A uto do Duque de Florença, Auto
de Dios Padre, Justiça e Misericórdia, Auto do Prínci-
pe Claudiano, Orphea, comedia assi intitulada, Ramnu-
sia, impressa em Veneza em 1550, e Trinutia, que an-
da junta á antecedente, todos estes Autos e comedias
vem prohibidos no Index de 1624; entre elles vem
muitos pertencentes ao século xvi, e é de crer que a
maior parte, sen&o todos, ainda pertencem ao theatro
quinhentista. Desde os ensaios de Jorge Ferreira e de
Sá de Miranda, a comedia italiana começara a ser in-
troduzida em Portugal, e foi também uma das causas,
que mais contribuíram para o acanhamento do theatro
nacional ; n'este mesmo Index vem citadas muitas oo-
medias italianas.
Ao passo que se nos revela a grande riqueza do
nosso repertório do século xvi, cresce a magoa e a in-
dignação ao lembrarmo-nos de que nenhuma d'estas co-
medias hoje se conserva, e que apenas se sabe da sua
existência pela sentença que determinou a sua extra-
cção, Vicente Alvares em Lisboa, Francisco Simões
em Évora, Fructuoso de Basto em Braga, João Bar-
reira eni Coimbra, e muitos outros editores tinham da-
do até 1612 um grande desenvolvimento i nossa litte-
NO SÉCULO XVI 311
ratara de cordel publicando o que andava manuscripto
e reproduzindo o que estava exhausto. Quando com o
terror das ideias da Reforma se estabeleceu a censura
dos livros, extinguiu-se a riqueza do theatro nacional,
o génio acanhou-se e perdeu a faculdade creadora com
a falta de liberdade; a curiosidade popular desvairada
com a pressão castelhana, com as pestes e fomes inter-
nas, com o terror do Queimadeira e dos espectáculos
dos Autos de fé, esqueceu-se do seu theatro, que havia
pouco saíra formado do paço dos reis, onde fora até
Dom Sebastião o primeiro mestre dos nossos prínci-
pes. Foi brilhante o desenvolvimento dado á Eschola
de Gil Vicente até ao meado do século xvr, mas cau-
sas complexíssimas a fizeram definhar, sendo a princi-
pal, a modificação profunda que a Inquisição e o catho-
licismo intolerante exerceram sobre o caracter do nosso
povo.
Quebra-se aqui o fio da tradição da escola nacio-
nal, para estudarmos a influencia do theatro clássico
da renascença italiana, que ainda no século xvi o com-
bateu e como em parte o desnaturou. A Inquisição, mais
implacável, extinguiu o que se valia da rudeza popular,
eo que se firmava na perfeição clássica; fez a hecatombe
das ideias, com a censura dos livros, e da nação com
os suspeitos e relapsos.
Á imitação dos Franciscanos, também os Jesuítas
no ultimo quartel do século xvi se apoderaram do
Theatro. Elles conheciam a grande influencia da fas-
cinação dos olhos sobre o espirito, e não contentes com
m HISTORIA PO THfJATBO PORTUGUEZ
explorarem a catechése com as gravuras e estampas
devotas, apropriaram -se da forma dos Autos livres e
revolucionários de Gil Vicente, para converterem os
indígenas do Brazil. O mesmo fizeram com o PUgrimU
Progress de Bunyan, ideiado por um anabatista, para
apregoarem o baptismo, convertendo a novella inglesa
no Predestinado Peregrino. Em Arte os Jesuítas ti*
nham a mesma consciência que em moral. O Jesuíta
Simão de Vasooncellos conta, que o Padre José An-
chieta escreveu um Auto, intitulado Pregação Universal,
em portuguez misturado com língua indígena, para
ser representado nas egrejas da America durante o of-
ficio divino, por devotos que falavam em seu nome
confessando publicamente os seus peccados. Os Autos
da eschola de Gil Vicente eram entremeados dos ro-
mances populares em voga no século xvi; o Auto da
Pregação Universal foi escripto para banir as cantigas
dos neophytos brazileiros.
Os Jesuítas também representaram em 1575 em
Pernambuco o Auto do Rico Avarento e Lazaro pobre;
conta-se, que foi tal a commoção causada pelo Auto,
que muitos homens abastados se despojaram dos seus
bens. Depois de 1580 a língua castelhana invadia e
tomava a preferencia do portuguez ; os Jesuítas tendo
trabalhado para o captiveiro de Portugal, acceitaram
a língua castelhana para os seus Autos; em 1583 re-
presentaram na Bahia um Dialogo Pastoril, escripto
em verso castelhano, portuguez e dialecto dos indige-
ms. No livro de Fernão Cardim, intitulado Norroti-
NQ 8BCUL0 XVI m
2 epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia
esde 4583 até 4590, vem citado o Auto do Mysterío
as Onze mil Virgens, representado em uma procissão,
a qual era levado um navio com as virgens dentro, e
epois de festejado o martyrio eram arrebatadas entre
qjos para o céo. Os recursos para estes effeitos dra-
laticos não deviam de ser ignorados por uma corpo-
ição que possuía todos os segredos milagreiros. Fer-
ão Cardim também fala de um poeta dramático cha-
lado Álvaro Lobo, a que attribue um Dialogo da Ave
faria, que se representou, tomando o thema de cada
alavra da oração angélica. (1) Até aqui os Jesuítas
ssnaturavam com o seu instincto refalsado a eschola
e Gil Vicente; em breve se voltaram para o tlteatro
asssieo e inventaram as allegorias dramáticas e as ,
-agicomedias usada? nas suas canonis&ções e festas es-
tiolares. Oom a invasão jesuitica acaba tristemente a
radição do theatro nacional fundado por Gil Vicente %
sustentado pela sua eschola.
(1) Fernando Wolf, Le Bresil Litteraire,
1
814 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUBZ
Os Pateos das Comedias (1588-1595)
Influencia heepanhola no theatro depois da invasão dos Phi-
lippes. — As Companhias ambulantes da Mogiganga e Com-
baíeo. — O Alvará de 20 de Agosto de 1588 dá ao Hospital
de Todos os Santos o Privilegio das representações, á ma-
neira de Hespanha. — A censura dramática. — Origem hes-
panhola da designação Pateo das comedias. — O Pateo da»
Fangas da Farinha. — Pateo da Bitesga ou Pateo da Mou-
raria. — Pateo das Arcas ou Pateo da rua da Praça da
Palha. — Conclusão moral da historia do Theatro nacional.
— Repertório geral do Theatro portuguez no século xvi.
•
Reparando para as rubricas iniciaes dos Autos de
Gil Vicente, vê-se que elles foram na maior parte re-
presentados na corte de Dom Manoel e Dom João in,
nos Paços da Ribeira, em Almeirim, Évora, Coimbra
e Thomar ; algumas vezes representou o insigne có-
mico a pedido da Abbadeça de Odivellas, e da Viuva
de Dom João li, ou na procissão de Corpus. Por estas
indicações, não se pode deduzir que o povo aàsistisse
a taes espectáculos; apenas na farça de Quem temfa-
rellos? se diz, que o povo lhe dera este titulo. No Auto
de El-Rei Seleuco, de Camões, vê-se pelo prologo, que
a representação era feita em um Pateo ou corro, para
divertimento de um particular que assim regalava seus
amigos. E de suppôr, que as comedias representadas
diante do povo fossem introduzidas pelas Companhias
ambulantes hespanholas, que percorriam a Península;
na linguagem popular ainda se encontra a palavra Mo-
NO SÉCULO XVI 315
iganga, que descobre este uso. Segando Roja», a Mo-
iffanga era uma Companhia formada de duas mulhe-
es, cinco ou seis comediantes , com um repertório de
eis peças, tendo quatro cavalgaduras, duas para leva-
ôm os caixões do vestuário, e as outras duas para irem
umtados, revezando-se. Na lingua portugueza existe
palavra Cambaleo y que accusa a vinda a Portugal de
Jompanhias hespanholas, formadas de uma mulher
ue canta, e de quatro homens que berram, tendo no
spertorio uma comedia, dois autos, e trez ou quatro
iterinedios. Cambaleo, demorava-se de ordinário
3Ís dias em cada terra. É a contar da influencia e
overno dos Philippes, que a imitação directa do
tieatro hespanhol se manifesta em Portugal; Fran-
isco Rodrigues Lobo, que também cultivou a forma
ramatica, diz que dos hespanhoes nos veiu a desig-
ação de jornadas ; foi também de Hespanfyi que to-
lámos o theatro como um divertimento popular. No
leado do século xvi o theatro recebeu em Hespanha
iina forte perseguição da auctoridade ecclesiastica ;
ra costume lá, fazer-se as representações em pateos,
u pequenos largos, servindo as janellas das casas vi-
inhas de camarotes para os espectadores. Pará ven-
er os escrúpulos da auctoridade ecclesiastica, ou como
íondemnação do divertimento profano, as Companhias
tramaticas foram forçadas a darem parte do rendi-
nento das suas recitas para os hospitaes e instituições
le caridade. Isto se deu egualmente em Portugal, du-
ante o reinado dos Philippes. Deve attribuir-se esta
316 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
transformação á influencia da Itália, aonde o improvi-
sador Sam Philippe Neri organisou Companhias dra-
máticas, para com o producto das suas representações
acudirem aos hospitaes. A ordem religiosa de Sara
Philippe Neri entrou também em Portugal muito
cedo.
Já no principio do século xvi, sabemos de varias
representações de Gil Vicente no Hospital de Todos os
Santos; mas estas representações hieráticas formavam
parte da liturgia, e o povo assistiria a ellas gratuita-
mente. Porém desde 1588 até 1792, vemos o Hospital
de Todos os Santos com o privilegio de não deixar re-
presentar comedias sem sua licença prévia, e com di-
reito de receber parte dos proventos que d'ellas resul-
tassem. (1) Um Alvará de Philippe n, de 20 de Agosto
de 1588, estabelece : « que n'esta cidade de Lisboa, se
não possam representar comedias em geral, nem em
particular, senão nos logares que o dito Provedor e
officiaes do Hospital assignalarem, e isto pòr tempo de
dois annos somente, que começarão a correr da data
d'este alvará em diante, com declaração que não con-
cederão representarem-se as ditas comedias senão mos-
trando-lhes, os que as houverem de fazer, licença e
approvação dos ministros por quem isto correr, para
(1) O snr. J. M. A. Nogueira, enfermeiro do Hospital de
Sam José em Lisboa, no archivo d' esta casa achou grande
parte dos documentos que apresentamos, que foram já publi-
cados no Jornal do Commercio, n.°" 3736, 3737," etc, sob o
titulo Archeologia do Theatro portuguez. Servimo-nos de todos
os factos que apresenta, dando- lhes uma ordem mais histórica.
NO SÉCULO XVI 317
que não sejam indecentes, nem prejudiciaes aos bons
costumes da repubKca ; e o proveito que d'isso resul-
tar se dispenderá em beneficio dos doentes que se cu-
ram no dito Hospital.» Este documento è de alta im-
portância ; era primeiro logar, mostra-nos a reforma
feita por Philippe n no theatro portuguez, impondo-lhe
o mesmo ónus philantropico que em Hespanha havia,
pois no registo do Hospital de Madrid de 11 de Ja-
neiro de 1583 se vê, que lhe pertencia a quota da»
representações dos saltimbancos inglezes; revela-nos
a existência de theatros públicos, e representações
particulares ; dá-nos a conhecer a existência de locaes
fixos para essas representações ; confere ao Hospital
de Todos os Santos o direito de permittir as recitas
e a censura litteraria das comedias ; e, finalmente, por
esta ultima cautella nos faz suppôr que a comedia
vulgar descera a uma grande desenvoltura desde que
se desprendera das funcções litúrgicas. No Alvará de
7 de Outubro de 1595, vê-se renovado este privilegio
ao Hospital de Todos os Santos, por mais dois annos,
que com certeza teriam sido concedidos desde 1588.
Em 1603, Philippe m, por Carta de 9 de Abril, fez
mercê ao dito Hospital, de se representarem Comedias
logo depois da quaresma, em Lisboa; a censura dra-
mática foi delegada a dois Desembargadores do Paço;
por esta mesma lei se vê que até então os actores
representavam com mascara, e que já era permittido
ás mulheres entrarem em scena, como se deduz das
palavras : « qne os homens que n'ellas entrassem, re-
318 HISTORIA DO THEATRO PORTUGUEZ
presentassem a sua própria figura, e as mulheres do
mesmo modo.» Isto é, que não invertessem os sexos,
como quando não era permittido ás mulheres repre-
sentarem. Em 1612, por Alvará de 10 de Novembro,
foi concedido ao Hospital de Todos os Santos este
mesmo privilegio, não por tempo de dois annos, mas
indefinidamente.
Por todas estas disposições legaes tão frequentes,
que se continuaram com relação ao Hospital de Todos
os Santos em 1613, 1638, 1743, 1759 e 1762, se vê
que a vida da arte dramática continuou em Portu-
gal, depois da morte de Gil Vicente, quando já faltava
a protecção real de Dom João iii, do príncipe Dom
João e do joven monarcha Dom Sebastião, Faltando-
lhe o favor da corte, o theatro foi procurar a curiosi-
dade do povo. Não tendo escriptores que lhe escreves-
sem em portuguez, e sobre costumes nacionaes, o povo
começou a acceitar as representações hespanholas ; Lo-
pe de Vega, Calderon, Diamante e muitos outros, fo-
ram cá recebidos com direito quasi exclusivo. Pêro
Salgado, Jacintho Cordeiro, e Dom Francisco Manoel
de Mello também escreviam em hespanhol ; o próprio
monarcha Philippe v, assignava-se nas comedias que
escrevia: um ingenio (Testa corte. A imitação da forma
litteraria accusa a imitação da scenographia. Os pa-
teos hespanhoes foram também adoptados em Portu-
gal; ao theatro exclusivamente popular chamava-se
Patea das comedias. O mais antigo de todos os Pateoe
conhecidos, é o Pateo das Fatiga* da Farinha, no local
NO SÉCULO XVI 319
iqje denominado da Boa Hora, em Lisboa. Este Pa*
l eo já não existia em 1588, por isso que pertencendo
io Hospital de Todos os Santos fiscalisar os vários
iheatros para cobrar a quota parte dos seus rendimen»
os, não apparece nota d'este, que de certo nenhum
notivo tinha para escapar a um privilegio tão exclu-
ivo. Esta è a opinião de J. M. A* Nogueira, a queili
eguimos, postoque se affirma, ter o Pateo das Fatigas
la Farinha existido até 1633. Como o mais antigo,
i 9 este Pateo seriam representadas as comedias de An-
onio Prestes, e dos outros auctores que entraram na
íollecção de 1587, espécie de repertório theatral esti-
nado, de que só appareceu a primeira parte, publica-
la por ÁíFonso Lopes, moço da Capella real de Phi-
ippe li. A antiguidade do Patéo das Fatigas da Fari-
%ha 9 leva-nos a crer, que seria n'este, aonde se repre-
sentaram as verdadeiras comedias nacionaes da eschola
le Gil Vicente, iniquamente condemnadas pelos Index
Expurgatorios do Santo Officio. A sua queda coincide
3om o desapparecimento da autonomia nacional.
Com a invasão dos Philippes, o theatro portuguez
soíFreu uma alteração profunda; ao passo que a Hes-
panha renovava inteiramente a nossa lei civil, procu-
rava assimilar a si o nosso theatro ! Signal de que era
ama conquista sem calculo. A esta phase noVa do
theatro portuguez corresponde o apparecimento de um
novo pateo , chamado Pateo da Bitesga, construído por
Fernão Dias Latorre, como se vê pela escriptura de
contracto feita cora o Hospital de Todos os Santos^ a
320 HISTORIA DO TflEATRO PORTUGUEZ
9 de Maio de 1591. N'essa escriptura se obrigava La*
torre a edificar dois Pateos, dentro de um anuo ; nas
clausulas se descobre a forma e economia interna do
theatro ; impunha-se como obrigação, que os Pateos
fossem cobertos, o que nos dá a entender que os mais
antigos eram ao ar livre, como também se usara em
Hespanha, cobertos apenas por uma lona; que as suas
paredes fossem de alvenaria e pedraria, d' onde se de-
duz, que anteriormente eram feitas com madeiramen-
tos e vigas, como casa provisória; com suas varandas
cobertas de tellia e madeira. As representações nos Par
teos das comedias eram de dia; o que não acontecia com
a maior parte dos Autos de Gil Vicente, representados
nos serões do paço. A solidez que os pateos começa-
vam a exigir revelam esta tendência para mudar a
hora do espectáculo. Na escriptura exigia-se mais o
apresentarem com o edifício as mais achegas necem-
rias, isto é, os bastidores e roupagens, o que também
denota certa variedade na mise en scene.
Sabe-se que o Pateo da Bitesga já ftinccionava a
11 de Julho de 1594, por isso que pelo registo do
Hospital se vê n'esta data o seguinte recibo: «da
caixa de Manoel Rodrigues, das comedias da Bitesga,
2$320.» Como competia ao Hospital de Todos os San-
tos, pela escriptura da fundação do Pateo, as duas
quintas partes do que rendesse, vê-se por este recibo,
que a recita produzira líquidos 5$800 féis ; o que era
um bom resultado, se attenderinos ao valor da moeda
no século XVI. Se a sate çtoducto do mez de Julho de
NO SÉCULO XVI 321
1594, ajuntarmos as duas quintas partes dos luoros
produzidos era Novembro e Dezembro d'este mesmo
anno, e em Janeiro e Fevereiro de 1595, que foram
85$ 130, temos 87&450 reis, vemos que o producto
total foi de 394*9800 reis. Esta simples indicação da
economia do nosso theatro no fim do século xvi, quan-
do a nação estava enlutada e pobre, basta para reve-
lar quanto o Pateo da Bitesga era frequentado, tal-
vez pela novidade dos seus espectáculos, que então se-
riam o ecoo da corte de Madrid, e ao mesmo tempo,
descobre-nos a sua grandeza. A este Pateo também se
julga ter sido dada a denominação de Pateo da Mou-
raria* Qual o segundo pateo, depois do da Bitesga,
contractado por escriptura de 9 de Maio de 1591, não
ó bem averiguado ; julgamos ser o Pateo das Arcas,
por isso que o seu primeiro emprezario foi Fernão
Dias de Latorre ; era situado na rua das Arcas, que
antes do terremoto de 1755 ficava no segundo quar-
teirão da rua Augusta. Os visinhos da rua das Arcas
não gostavam da visinhança do theatro, sobre o qual
davam as suas janellas, e lançaram-lhe fogo por 1697
a 1698. D'aqui se vê a grande existência que teve o
Pateo das Arcas apesar da amalevolencia dos visinhos que
tinham janellas para o Pateo,» A sorte d'este theatro
tinha de ser gloriosa ; e quando estudarmos ò theatro
no século xvn, veremos que elle leva a palma a todos
os demais. O snr. J. M. A. Nogueira, nos seus valio-
sos apontamentos, julga ser este Pateo o mesmo que
também apparece com o nome de Pateo da Rua da
si
322 HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEZ
Praça da Palha, situado na freguezia de Santa Justa,
e de que existem documentos de 1593. Se assim, é,
mais se justifica o ser a sua construcção devida á es-
criptura de Latorre com o Hospital de Todos os San-
tos, em 1591. Do fim do século xvi por diante até
1640, o theatro portuguez passou pelas mesmas vicis-
situdes do theatro hespanhol: prospero no reinado de
Philippe v, e aniquilado no tempo de Carlos li. Até ao
anno de 1836 continuou a abrigar-se o theatro portu-
guez por pateos e barracões do Bairo Alto, Beccò da
Comedia, Pateo do Patriarcha, e Salitre, a contar, do
qual se deu o seu renascimento tentado por Garrett.
A mais nacional de todas as formas da Litteratura
portugueza, o theatro, confirma a grande verdade, que
um povo, a primeira cousa que perde com a indepen-
dência e liberdade é a sua historia. Portugal ainda
não achou quem lhe escrevesse uma historia completa
e philosophica, aonde se mostrasse a consciência da
sua vida politica, porque ninguém até hoje sentiu, que
á pressão do cesarismo monarchico e á intolerância ca-
tholica devemos o longo paroxismo da nossa naciona-
lidade. O Theatro portuguez luctou contra estas duas
forças, foi vencido, mas na queda delatou o crime da
morte de um povo. Ainda ninguém tinha descoberto
no Theatro este heroísmo, por isso ninguém procurou
estudal-o, nem tam pouco foram capazes de pressentir
a sua historia.
NO SÉCULO XVI v 323
Repertório geral do Theatro português
no século XVI
— A Visitação ou Monologo do Vaqueiro, por Gil Vicente.
— Auto Pastoril castelhano, idem.
— Auto dos Reis Magos, idem.
— Auto da Sybilla Cassandra, idem.
— Auto da Fé, idem.
— Auto de Sam Martinho, idem.
• — Farça de Quem tem farellos? idem.
• — Auto dos Quatro Tempos, idem.
1 — Sermão em verso, idem.
í — Auto da Alma, idem.
> — Auto da Fama, idem.
! — O Velho da Horta, idem.
> — Exhortaçfio da Guerra, idem.
► e 15. . — Auto do Dia do Juízo, anonymo.
: — Comedia do Viuvo, por Gil Vicente.
► — Auto das Fadas, idem.
\ a 1523 — Auto de Rodrigo e Mendo, por Jorge Pinto.
' — Auto da Barca do Inferno, por Gil Vicente.
I— Auto da Barca do Purgatório, idem.
> — Farça dos Physicos, idem.
) — Auto da índia, idem.
I — Auto da Barca da Gloria, idem.
. — Farça dos Ciganos, idem.
. — Cortes de Júpiter, idem.
— Comedia de Rubena, idem.
I a 1580 — Auto de Santa Barbara, por Affonso Alvares.
í a 1580 — Auto de Sam Thiago Apostolo, idem.
I a 1580 — Auto de Sam Viceute Martyr, idem.
I a 1580 — Auto de Santo António, idem.
5 — Auto Pastoril português, por Gil Vicente.
324 • HISTORIA DO THBATRO PORTUGUEl
1523 — Farça de Inez Pereira, idem.
1525— Farça do Juiz da Beira, idem.
1525 — Fragoa de Amor, idem.
1526 — Templo de Apollo, idem.
1526 — Farça dos Almocreves, idem.
1526 — O Clérigo da Beira, idem.
1527 — Eufrosina, por Jorge Ferreira de Vasconcellos
1527 — Auto da Historia de Deos, por Gil Vicente.
1527 — Dialogo sobre a Ressurreição, idem.
1527 — Comedia sobre a Divisa de Coimbra, idem.
1527 — Tragicomedia pastoril da Serra da Estrella, id<
1527 — Nau de Amores, idem.
1527 — Auto da Feira, idem,
1529 a 1587 — Auto da Ave Maria, por António Preste
1530 — Triumpho do Inverno, por Gil Vicente,
1532 — Auto da Luzitania, idem.
1533 — Romagem de Aggravados, idem.
153? — Dom Duardos, idem.
1533 — Amadis de Gaula, idem.
1534 — Auto da Mofina Mendes, idem.
1534 — Auto da Cananea, idem.
1535 a 1556 — Auto dos Captivos ou os Turcos, do Inf .
1536 — Floresta de Enganos, por Gil Vicente.
1536 — Vilhalpandos, por Sá de Miranda.
1536 a 1555 — Auto de Braz Quadrado, anonynio.
1536 a 1556 — Auto da Natural Invenção, por A. R. C
1536 a 1591 — Pratica de outo figuras, idem.
1536 a 1591 — Auto de Gonçalo Chambáo, idem.
1536 a 1591 — Auto das Regateiras, idem.
1536 a 1587 — Auto do Desembargador, por António P
1539 — Cena Policiana, por Anrique Lopes.
1542 — Auto dos Amphytriões, por Luiz de Camões.
1543 a 1587 — Auto dos dois Irmãos, por António Prei
1543 a 1587 — Auto do Mouro Encantado, idem.
1543 a 1587 — Auto da Ciosa, idem.
NO SÉCULO XVI 325
1543 a 1587 — Auto dos Cantarinhos, idem.
1544 a 1587 — Auto do Physico, por Jeronymo Ribeiro.
1545 a 1591 — Pratica de Compadres, por A. Ribeiro Chiado.
1545 — Os Estrangeiros, por Sá de Miranda.
1546 — Auto de El-Rei Seleuco, por Luiz do Camões.
1547 — Ulyssipo, por Jorge Ferreira de Vasconcellos.
1554 — Aulegraphia, idem.
1554 a 1597 — Auto da Pregação Universal, pelo P.* Anchieta.
1554 — Comedia de Bristo, pelo Dr. António Ferreira.
1554 a 15. . — Comedia do Cioso, idem.
1555 — Auto do Filodemo, por Luiz de Camões.
1555 — Traducção de Agamemnon, por Ayres Victoria.
1556 a 1587 — Auto do Procurador, por António Prestes.
1558 — Castro, pelo Dr. António Ferreira.
15. . a 1559 — Auto de Dom André, anonymo.
15. . a 1559 — Auto do Jubileu de Amores, idem.
15. . a 1559 — Auto da Adherença do Paço, idem.
15. . a 1559 — Auto da Vida do Paço, idem.
15. . a 1559 — Auto da Farça Penada, idem.
15. . a 1559 — Auto dos Dous Compadres, idem.
1575 — Auto do Rico Avarento e Lazaro pobre, idem.
1578 a 1612 — Auto de Santo Aleixo, por Balthazar Dias.
1578 a 1612 — Auto de Santa Catherina, idem.
1578 a 1612 — Auto do Nascimento de Christo, idem.
1578 a 1612— Auto de El-Rei Salomão, idem.
1578 a 1612 — Auto breve da Paixão, idem.
1578 a 1612 — Tragedia do Marquez de Mantua, idem.
1578 a 1630 — Comedia de Diu, por Simão Machado.
1578 a 1630 — Os Encantos de Alphea, idem.
1581 a 1624 — Auto dos Dois Ladrões, por Fr. António de Lx.»
1581 a 1624 — Auto de Santo António de Lisboa, idem.
1581 a 1624 — Auto da Paixão, do P. e Francisco Vaz de Guim. 6-
1581 a 1624 — Custodia, anonymo.
1581 a 1624 — Dos Enamorados, idem.
1581 a 1624 — Jacintha, idem.
326 HISTORIA DO THBATBO PORTUGDE
1581 a 1624 — Josephina, idem.
1581 a 1624— Auto do Estudante Cristobal de Bivar,
1581 a 1624 — Auto do Duqtie de Florença, idem.
1581 a 1624 — Auto de Deos Padre, Justiça e Misericoí
1581 a 1624 — Auto do Príncipe Claudiano, idem.
1581 a 1624— Orphea, idem.
1581 a 1624 — Ramnusia, idem.
1581 a 1624— Sérgio, idem.
1581 a 1624— Trinutia, idem.
1581 a 1624-Tidea, idem.
1583— Dialogo Pastoril, idem.
1590 — Mysterio das Onze Mil Virgens, idem.
1590 — Dialogo da Ave Maria, por Álvaro Lobo.
ERRATAS
LIN.
EBB08
EMENDAS
4 (nota)
pastar
pastor
2
crente o
crente e
25
calumnias
calumnias.
1
da
de
ult.
da
na
5
século zi
século xvi
5
D. Isabel
D. Leonor
2
D. Isabel
D. Leonor
16
D. Isabel
D. Leonor
24
D. Isabel
D. Leonor
10
1512 e 1516
1612 e 1616,
4*