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Full text of "História da prostituição, em todos os povos do mundo desde a mais remota antiguidade até aos nossos dias ... por Pedro Dufour, notavelmente ampliada e enriquecida com valiosos estudos por D. Amancio Peratoner e outros escriptores, e seguida de um importante trabalho sobre a Historia da prostituição em Portugal, desde os tempos mais obscuros da Lusitania até nossos dias"

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HISTORIA 


DA 


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A  seducção 


HISTORIA 


DA 


PROSTITUIÇÃO 

EM  TODOS  OS  POVOS  DO  MUNDO 

DESDE   A    MAIS    REMOTA    ANTIGUIDADE    ATÉ    AOS    NOSSOS    DIAS 


AOS  MORALISTAS, 
DTIL  AOS  HOMENS  DB  SCIliElA  B  LBTTRAS  E  IMERESSANfB  PARA  TODAS  AS  CLASSES 

PPR 

:eKIiRO  DUFOXJH 

MEMBRO  DE  DIVERSAS  ACADEMUS  E  SOCIEDADES  SCIENTIFICAS 


[EN 

E  OUTROS  ESCRIPTORES.  E  SEGUIDA  DE  UM  IMPORTANH  TRABALHO 

SOBRE  A  HISTORIA 


PROSTITUIÇÃO  EM  PORTU&ÂL 

i 

DESDE  03  TEMPOS  MAIS  OBSCUROS  DA  LUSITÂNIA 
ATÉ  NOSSOS  DIAS 

ILLUSTRADA    COM    Pf^IMOROSAS    ORAVtJRAS 


JTDMO  SEGUNUOC 


LXSBOA 

EMPREZÂ  LITTERÂRIA  LUSQ-BRAZILEIRÂ- EDITORA 

ESCRIPTDRIO   E   OFFICINA   TVPOGRAPHICA 
6  —  I^A-TEO    E)0    A.L.J-UBE.    J^    SÉ  —  5 

1S8S 


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1968 


LISBOA 
TYP.  DA  EMPREZA  LITTERARIA  LDSO-BRAZILEIRA 

5  —  PATEO  no  ALJfllE  —  5 
1885 


HISTORIA  DA  PROSTITUIÇÃO 


SKaiffNDÀ  paete; 


A.  PROSTIXXJIÇ^VO  E»I  FRAT^ÇA 


CAPITULO  I 


SUMMARIO 


Os  gaulczes  e  os  klmiis  aotes  Oa  conriuista  de  Júlio  César. —  A  prostituição  entre  estes  não  podia  ter  uma 
í^iistencia  regular  e  permanente.— De  que  modo  trata%-am  os  germanos  as  mulheres  cpie  se  prostituíam.— O  matri- 
monio entre  os  cellas.— Senado  feminino.— Superioridade  concedida  pelos  gaulezes  ao  sexo  feniinino — Piova  da 
paternidade  duvidosa.— O  Hlieno,  juiz  e  vinírador  do  nialriínonio.— Vida  particular  das  gaulezas.— Princípios  regu- 
ladores do  seu  proi-eiler.— A  virtuosa  Cliiomara.— Tribunal  de  mulheres  encarregailas  de  julgar  as  causas  de  hom^ao 
de  pronunciar-se  sohre  os  delictos  de  injuria.— Horror  dos  ganiezes  e  germanos  para  com  as  prostitutas. —Hospitali- 
dade entre  os  gaulezes. — Druidismo,  sacerdotes  e  sacerdotizas  druidas. — As  divindades  secutidarias  dos  ganiezes. — 
Theogonia  gallica.— ,A  deusa  Ononava.— O  ovo  da  serpente.— O  deus  (iourm.— A  deusa  do  amor  pliysico.- O  deus  Ma- 
rum.— Costumes  dos  deuses  da  Galha. —Os  Gaurios.— Os  Sylphos.- Os  Thusos  e  os  Drusios  — Victoria  da  formosa  Cara- 
ma.— Abnegai,-ão  de  Eponina  para  com  seu  marido  Sabino.— Costumes  dissolutos  dos  gaulezes.— Couipnsta  da  Uailia 
por  JuIio  César. — O  paganismo  nas  Gallias. — A  prostituição  entre  os  gallos-ronianos.— Corrupção  social  das  i'aças  cél- 
ticas.—A  coitezã  Crispa.— Invasão  dos  francos.— Pureza  dos  costumes  do  povo  franco.— .\  lei  salica. 


/ 


nuAsi  impo.ssivel  por  iniliicyões  históricas  estabelecer  o  cara- 
cter niíiral  dos  gaulezes  c  ilos  kimris  que  povoaram  a  Gallia, 
quinze  ou  dezascis  séculos  antes  da  era  christã;  nem  mesmo 
sabemos  d'unia  maneira  positiva  a  origem  d'esfes  povos  selva- 
gens, que  os  mais  doutos  investigadores  suppõem  mais  oriundos 
do  norte,  do  que  do  Oriente.  Não  podendo  retroceder  até  á  sua 
origem  para  descobrir-llies  os  instinctos  e  hábitos  sob  o  ponto  de  vista  social, 
mister  é  recorrer  a  hypotheses  mais  ou  menos  valiosas  para  encontrar  em  tão 
remotas  épocas  alguns  vestígios  indecisos  da  prostituição  na  vida  particular 
dos  gaulezes,  anteriormente  á  conquista  de  Júlio  César. 

Estudado  o  pequeno  numero  d'auctoridadcs  gregas  c  latinas,  conservailo- 
ras  das  tradivões  dos  primeiros  habitantes  da  (lallia,  não  se  pode  deixar  de  af- 
firmar  que  entre  ellcs  não  existiu  a  prostituição  sob  um  estado  legal,  mas  sup- 


6  HISTORIA 

pomos  ter  encontrado  na  religião  druldica  vesfigios  evidentes  da  prostituição 
sagrada;  em  (juanto  á  pr(istiliii(,'ão  iiospitaiar,  parece  não  ter-se  misturado  com 
as  ideias  generosas  e  nidjres  com  que  aquelles  esforçados  povos  compreiíendiam 
a  hospitalidade.  Comtudo  os  costumes  dos  gaulezes  estão  mui  longe  de  serem 
austeros  e  irrepreliensiveis. 

A  ])roslituição  propriamente  dita  poderia  ter  uma  existência  permanente 
cm  uma  nação,  que  tinha  feito  da  mulher  um  ser  privilegiado,  uma  espécie  de 
divindade  terrestre,  um  laço  entre  o  terra  e  o  ceu  ?  N'esta  condição  excepcio- 
nal, a  mulher  não  tinha  o  direito  de  dar-se  ou  vender-se,  soh  pena  de  perder 
a  sua  aureola  divina,  e  o  homem  que  fora  cúmplice  d'esla  espécie  de  attentado 
á  dignidade  feminina  seria  tido  como  um  sacrílego.  A  prostituição  era  então  ape- 
nas um  facto  isolado,  mui  raro  e  sempre  rodeado  d'uin  mysterio,  que  a  segu- 
rança dos  cúmplices  tornava  impenetrável. 

Sem  duvida,  entre  os  gaulezes  e  os  kimris  houve  mulheres  viciosas  por 
temperamento  e  houve  tamhem  homens  ardentes  e  libertinos,  para  os  quaes  não 
eram  sulfieientes  o  género  de  compensações  sensuaes  que  os  velhos  e  os  novos 
sem  rubor  gosavam,  deshonrando-se  uns  aos  outros  para  respeitarem  o  sexo  fe- 
minino ;  mas  os  actos  de  prostituição  consumavam-se,  dentro  da  espessura  dos 
bosques,  acobertados  pelas  sombras.  Nunca  houve  prostitutas  de  profissão  que 
publicamente  exercessem  tão  vergonhoso  mister,  ou  que  mostrassem  exer- 
cel-o,  porque  com  ignominia  seria  expulsa  e  tratada  a  mulher  infamada  a  que 
assim^se  despojasse  do  seu  caracter  divino,  abandonando-se  voluntariamente 
ao  despreso  publico. 

Os  germanos,  irmãos  dos  gaulezes,  apesar  dos  seus  ódios  e  guerras,  de  ou- 
tro modo  não  procediam  para  com  as  mulheres  surprehendidas  em  flagrante  de- 
licto  de  prostituição,  ou  convictas  de  a  isso  não  serem  estranhas:  obrigavam-as 
a  sahir  da  localidade  que  manchavam  com  a  sua  presença  e  toda  a  tribu  as 
apedrejava.  Ordinariamente  deivavam  fugir  essas  miseráveis,  que  não  ousavam 
mais  tornar  a  apparccer  c  que  iam  nas  profundezas  das  matlas  virgens  esconder 
a  sua  vergonha  ;  mas  ás  vezes  a  infeliz,  feiúila  por  uma  pedra  no  momento  de 
ser  perseguida,  cabia,  e  era  alli,  entre  gritos  de  ódio  e  de  escarneo,  assassi- 
nada. Segundo  os  germanos,  este  castigo  era  igual  ao  delicto ;  de  modo  que  a 
corlezã,  que  tinha  vivido  das  dadivas  de  todos,  morria  esmagada  pela  ira  de 
todos,  animados  pelos  gritos  das  mulheres  ([ue  liie  não  perdoavam  o  ter  es- 
quecido os  seus  deveres.  Os  celtas  tinham  |)elas  mulheres  um  respeito  que 
excluia  toda  a  ideia  de  prostituição.  Na  maior  parte  das  suas  tribus  as  donzel- 
las  escoliiiam  livremente  os  seus  maridos.  N'um  festim  dado  aos  mancebos 
em  idade  de  casar,  os  pães  da  nubente  apresentavam-a  para  que  fizesse  a  sua 
escolha  entre  os  pretendentes,  que  contavam  as  suas  façanhas  guerreiras,  as 
suas  virtudes  domesticas  e  cantavam  velhas  canções  nacionaes,  bebendo  cidra 
e  hydromcl.  Concluído  o  banquete,  a  nubente  declarava  o  cs])oso  que  escolhera 
como  mais  bello  e  mais  bravo,  aeereando-se  do  escolhido  com  agua  de  lavar, 
para  em|)regar  a  expressão  que  acavallaria  usou  para  designar  esta  usança.  Pro- 
vável c  (|ue  esta  ablução  manual,  na  linguagem  íigui-ada  dos  celtas,  significasse 
o  esquecimento  do  passado  e  a  jtureza  da  vida  conjugal. 

A  muliicr  casada  exercia  uma  espécie  de  sacerdócio  na  Irihu,  o  (jue  não 
deve  surprehender,  pois  que  ao  sexo  feminino  se  altribuiam  dons  pruphetieos, 
esperando-se  sempre  encontrar  na  mais  vulgar  mulher  uma  deusa  ;  a  opinião 
da  mulher  prevalecia  nas  assembleias  (pie  tratavam  da  guerra  ou  da  paz ;  in- 
terpunlia-se  citmo  medianeira  |)ara  acalmar  a  irrilação  de  ânimos  e  inimizades, 
despci-ladas  no  calor  da  (irgia.  MCsle  povo  até  chegou  a  haver  um  senado  de 
mulheres,  composto  de  sessenta,  reprcscniando  as  sessenta  tribus  das  (lallias  e 
este  senado,  (|ue  s(í  julga  remontar  ao  duodécimo  século  antes  de  Jesus  Christo, 
governava  soberanamente  as  confederações  gaulezas. 


I)A    PROSTITUIÇÃO  7 

Esfa  superioriflade  concodida  ao  sexo  feminino  c\clue  a  hypothese  de  uma 
prostituição  organisada,  tolerada,  ou  confessada  o  reconhecida.  As  mullieres  as- 
sim respeitadas  não  podiam  ser  consideradas  como  instrumentos  de  prazeres  ve- 
néreos, nem  destinadas  ás  necessidades  da  liljertinagem. 

Comtudo  o  marido  tinlia  sobre  a  mulher  e  os  filhos  direito  de  vida  e  de 
morte,  e  deve  suppòr-se  que  cm  determinadas  circumstancias  delicadas  fez  cruel 
applicação  d'cste  supremo  direito.  Assim,  quando  concebia  duvidas  acerca  da 
sua  paternidade,  agarrava  no  rccemnascido  e  collocando-o  sobre  um  escudo  aban- 
donava-o  à  corrente  do  rio  próximo.  Se  a  corrente  levava  o  escudo  com  a  creança 
á  margem,  em  que  a  mãe  lhe  estendia  os  hraços,  esta  nada  tinha  a  receiar,  por- 
que o  génio  do  rio  provava  assim  a  legitimidade  do  filho  e  a  innocencia  da  mãe  ; 
mas  se,  ao  contrario,  o  filho  se  submergia,  como  se  o  rio  não  quizesse  levar 
o  fructo  do  adultério,  a  mãe  devia  também  morrer,  convicta  de  ter  faltado  á  fc 
conjugal,  e  com  efleito  o  marido  ultrajado  matava-a  com  as  suas  próprias  mãos, 
ou  submergia-a  no  seio  das  aguas,  que  tinham  afogado  o  filho. 

Esta  terrível  prova  da  paternidade  duvidosa  faz  crer  que  as  gaulezas  Ucão 
eram  isemptas  dos  erros  do  coração,  nem  dos  arrebatamentos,  inconscientes  e 
apaixonados  dos  sentidos.  De  todos  os  rios  foi  o  Rheno  o  mais  famoso,  pela  sua 
aversão  á  bastardia;  por  isso  marido  algum  ousaria  duvidar  de  sua  mulher,  de- 
pois da  sentença  absolutória  dada  por  este  rio  sagrado,  salvando  uma  creança. 

O  imperador  .luiiano,  n'uma  das  suas  cartas,  narra  esta  velha  superstição 
ligada  ao  Rheno,  rio  que  os  celtas  tinham  divinisado. 

«O  Rheno,  diz  a  Antologia,  esse  .no  de  impetuosa  corrente  provava  entre 
os  gaulezes  a  pureza  do  thalamo.  Apenas  nascia  a  creança,  o  marido  apode- 
rava-se  d'ella,  deitava-a  sobre  um  escudo  e  confiava-a  ao  capricho  das  aguas, 
porque  não  sentiria  no  seu  peito  pulsar  o  coração  de  pae,  cmquanto  que  o  rio, 
juiz  e  vingador  do  matrimonio,  não  tivesse  preferido  a  sua  fatal  sentença.» 

Os  adultérios  deviam  ter  sido  raros  entre  os  gaulezes  e  germânicos :  Se- 
vera illic  matrimonia,  diz  Tácito;  e  o  marido  não  tinha  necessidade  de  recla- 
mar justiça  perante  os  tribunacs,  pois  que  elle  era  ao  mesmo  tempo  o  juiz  e  o 
algoz. 

Geralmente  os  gaulezes  só  tinham  uma  mulher;  todavia,  os  chefes  e  os 
notáveis  das  tribus  tinham  muitas  mulheres,  não  por  libertinagem,  mas  por 
ostentação,  como  signal  de  grandeza  {non  Ubidine,  sed  nohilitate,  diz  Tácito.) 
Com  etleito  o  clima  da  Gallia,  coberta  então  de  bosques  e  pântanos,  era  hú- 
mido e  frio,  e  naturalmente  o  temperamento  dos  seus  habitantes  resentia-se 
d'aquella  athmosphera  ennevoada  e  só  se  aquecia  com  a  intemperança  das  co- 
midas. As  mulheres,  além  d'isso,  viviam  retiradas  e  oecultas,  longe  da  vista 
dos  homens;  excepto  nas  cerenionias  publicas,  religiosas  ou  guerreiras,  por 
que  então  deixavam  os  seus  retiros  de  mães  de  família. 

Estas  mulheres,  preoceupadas  com  os  seus  deveres  caseiros,  não  entreviam 
horisontes  mais  extensos  do  que  a  sua  familia,  e  assim  permaneciam  fielmente 
agrilhoadas  á  obediência  dos  severos  esposos.  Aec  ulla  cogilatio  ultra,  diz  Tá- 
cito, nec  longior  cupiditas.  Tinham  principalmente  uma  alma  independente  e 
nobre  e  teriam  preferido  a  morte  á  vergonha.  Comprehender-se-ha  que  foram 
boas  depositarias,  umas  da  sua  virgindade,  outras  da  honra  conjugal,  recor- 
dando esle  principio  que  servia  de  base  á  sua  moralidade:  «A  mulher  que  se 
entrega  a  um  hnniem  não  pôde  passar  aos  braços  d'outro.»  Em  virtude  d'este 
principio  regulador  do  seu  proceder,  nem  mesmo  se  julgavam  auctorisadas  a 
contrabir  segundas  núpcias.  Todavia,  a  lei  não  lh'o  prohibia,  especialmente 
em  certas  tribus,  em  que  o  uso  estava  auctorisado  por  este  provérbio :  «.A  mu- 
lher que  conheceu  dois  homens  é  criminosa,-  se  os  dois  estão  vivos.» 

A  virtuosa  Chiomara,  citada  por  Plutarcho  no  seu  Tratado  de  mulheres 
illustres,  preferiu  faltar  ás  disposições  sagradas  do  direito  das  gentes,  a  deixar 


HISTORIA 


viver  o  auctor  e  testemunha  da  sua  doslr>nra.  Cliiomara  era  esposa  de  Ortia- 
gonfe,  chefe  dos  gaulezos  asiáticos,  derrotados  e  suíjmcttidos  pelos  romanos  no 
anno  oGii.  Plutarcho,  sem  nos  dizer  se  Chiomara  era  formosa,  diz-nos  apenas 
que  ella  tinha  sido  violada  pelo  centurião  romano,  que  a  aprisionara.  Ella  teve 
de  apparentar  resignar-se  com  a  atfronta,  e  quando  os  emhaixadores  de  seu 
marido  vieram  resgatal-a,  Chiomara  disse-lhes  em  lingua  gauleza  que  tam- 
hem  ella  tinha  um  resgate  a  exigir.  Com  este  propósito  teve  a  liabilidade  de 
attrahir  a  um  ponto  retirado  da  cidade  ao  centurião  que  a  ultrajara,  e  alli  lhe 
fez  cortar  a  cabeia  pelos  seus  súbditos,  que  a  conduziram  a  Ortiagonte.  Este, 
a  quem  Chiomara  apresentou  a  cai)eça  ensanguentada  do  centurião,  indignou-se 
com  o  assassinio  commettido  em  despreso  da  fé  jurada. 

— «Sou,  é  verdade,  perjura,  exclamou  Chiomara,  mas  não  queria  que  so- 
bre a  terra  existisse  vivo  um  outro  homem  que  jactar  se  podesse  de  me  ter 
possuído.» 

Se  o  adultério  era  quasi  desconhecido  entre  os  gaulezes,  pôde  crér-se  que 
a  prostituição  ainda  mais  rara  era;  porque  o  adultério  sii  ultrajara  o  marido, 
emquanto  que  a  prostituição  estendia  a  sua  infâmia  a  todas  as  mulheres,  que 
se  sentiam  oITendidas  igualmente  com  o  mau  proceder  d'uma  d'ellas. 

A  lei  dos  druidas  dava  ás  mulheres  o  direito  de  julgar  as  injurias.  Du- 
elos que  refere  este  facto  n'uma  memoria  sobre  os  druidas,  accrescenta  que  era 
um  tratado  concluído  entre  os  gaulezes  e  os  carthaginezes  do  tempo  d'Annibal  se 
estabelecia,  que  se  um  gaulez  se  queixasse  de  ser  injuriado  por  um  carthaginez 
a  causa  fosse  derimida  ante  um  magistrado  de  Carthago,  mas  que  sendo  o  con- 
trario os  juizes  do  processo  seriam  as  mulheres  gaulezas.  Existia,  portanto,  um 
tribunal  de  mulheres,  encarregado  dejulgar  as  causas  de  honra  e  de  pronunciar-se 
sobre  delictos  de  injuria.  Os  povos  bárbaros  não  eram  menos  meticulosos  sobre 
este  ponto,  do  que  o  eram  os  gregos  e  os  romanos  e  de  todas  as  injurias  que 
se  poderiam  dirigir  a  uma  mulher,  a  mais  grave  era  chamar-lhe  prostituta. 
Mais  tarde  vemos  que  Rotaris,  rei  dos  lombardos,  puniu  esta  injuria  com  forte 
multa,  tanto  maior  quanto  mais  calumniosa. 

As  gaulezas  foram  pois  naturalmente  os  juizes  de  tudo  o  que  tinha  um 
caracter  injurioso  para  as  pessoas,  e  tiveram  portanto  de  conhecer  também  dos 
factos  de  prostituição.  Por  exemplo,  quando  um  gaulez,  nobre  ou  plebeu,  se 
casava  consciente  ou  inconscientemente  com  uma  mulher  de  má  vida,  as  mu- 
lheres reuniam-se  para  tomar  informações  sobre  o  procedimento  da  esposa. 
Tácito  observara  entre  os  germanos  estes  escrúpulos,  escrúpulos  também  tidos 
pelos  gaulezes.  (Mon  solam  senalorihus,  diz  elle,  sed  et  phbeis  hominibus  me- 
retrices  uxores  dacendi  jus  deneijabalur  cum  cirgines  soluin  diici  posse.)  Sem 
duvida,  as  mulheres  reunidas  eram  ás  vezes  chamadas  a  julgar  sobre  questões 
de  galanteria  e  de  sentimento,  tribunaes  que  reappareceram  na  edadc  média 
sob  o  nome  de  Cortes  d'amor. 

A  hospitalidade,  como  atraz  o  dissemos,  estava  entre  os  gaulezes  melhor 
definida,  que  entre  os  demais  povos,  pois  que  tinham  como  um  crime  digno 
dos  raios  celestes  o  fechar  a  porta  a  um  estrangeiro,  ou  fazer-lhe  mal  depois 
de  ter  recebido.  O  hospede  era  considerado  como  um  irmão,  como  um  amigo, 
como  um  deposito  sagrado;  mas  o  seu  primeiro  dever  era  respeitar  o  thalamo 
do  que  o  recebia  de  boa  vontade.  O  gaulez  era  em  demasia  zeloso  da  sua  honra 
conjugal,  para  jamais  se  prestar  ás  indignas  concessões  da  pi'ostiluiçào  hospi- 
talar. 

.\  jiroslituição  sagrada  não  tinha  certamente  logar  na  religião  dos  druidas, 
religião  com|)letatnente  metaphysica,  que  mantinha  o.s  dogmas  mais  elevados  das 
religiões  do  Egypto  e  da  índia,  ci>lto  mvsterioso  que  se  rodeava  de  trevas  e  de 
terror,  sem  oíTerccer  seducrões  materiaes  aos  seus  sacerdotes,  nem  aos  fieis. 
Os  druidas  eram  pliilosophos,  a  maior  parle  desilludidos  pela  idade,  e  retira- 


DA    PROSTITUlÇAíO  9 

dos  cm  coinmunidadcs  para  o  fundo  de  solidões  impenetráveis;  não  communica- 
vam  com  os  profanos,  senão  cm  mui  raras  circumstancias,  na  época  das  festas 
solemnes,  que  nada  tinham  de  attrahentes  nem  de  voluptuosas,  e  que  frequen- 
temente terminavam  com  sacrifícios  humanos. 

Além  d'isso,  os  druidas  não  eram  unicamente  os  mwiistros  do  culto;  a 
clles  só  pertencia  a  legislaí'ão,  o  governo,  a  educação  publica;  ensinavam  as 
sciencias  exactas  e  as  sciencias  sagradas  ou  philosophicas.  A  sua  vida,  assim  como 
a  sua  doutrina,  não  podiam  deixar  de  ser  austera,  e  tinham  o  máximo  cuidado  em 
não  desmerecer  da  veneração  de  que  eram  objecto,  misturando  a  libertinagem 
ou  i)razer  com  o  culto  religioso.  Tinham  também  nos  seus  collegios  de  prophe- 
tizas,  virgens,  que  quiçá  não  se  limitavam  a  unicamente  servir  nas  ceremonias 
religiosas. 

Estas  sacerdotisas,  que  por  aqui  e  ali  se  vêem  passar  atravez  da  historia 
gauleza,  como  sombrios  phantasmas,  occultavam-se  nas  grutas  e  nos  troncos 
escavados  de  arvores  seculares ;  fugiam  do  convívio  e  da  vista  dos  homens,  e 
apenas  davam  os  seus  oráculos  de  noite,  á  luz  dos  relâmpagos,  acompanhados 
pelos  roncos  cavos  do  trovão  e  pelo  fragor  sinistro  da  tempestade. 

Apesar  do  prestigio  de  que  tinham  rodeado  a  bella  Valeda,  pndc  afTir- 
mar-se  que  estas  racies  eram  ordinariamente  velhas  e  feias,  á  similiiança  das 
syhillas  do  paganismo  romano.  Segundo  parece,  tinham  esquecido  o  seu  sexo  e 
todos  os  sentimentos  de  pudor,  pois  que  em  certas  ceremonias  druidicas  se 
apresentavam  completamente  nuas,  untadas  com  azeite  e  pintadas  de  preto  para 
imitar  a  côr  da  pelie  etliiopica  (Tofa  corpore  oblitce,  diz  Plínio  no  livro  xii  da  . 
historia  natural,  quibusdam  in  sacris  et  nudm  incedunt  elhiopum  colorem  imi- 
tantes.)  Quando  os  romanos,  depois  da  revolta  dos  icenios  na  Bretanha,  quize- 
ram  apoderar-se  da  ilha  de  Mona  (Anglesey)  um  dos  focos  do  druidismo,  as 
mulheres  da  ilha,  negras  como  fúrias,  precipitaram-se  nuas  e  de  fachos  incen- 
diados na  mão  entre  os  combatentes.  Os  romanos  espantaram-se  mais  com  esta 
apparição,  do  que  com  os  gritos  e  desesperada  resistência  dos  inimigos. 

Se  a  prostituição  não  tinha  razão  de  ser  no  culto  superior  dos  druidas, 
culto  elevado,  manifestando-se  nas  lições  philosíjphicas  e  metaphysicas,  ou  pa- 
tcnteando-sc  nos  augúrios  arrancados  das  entranhas  palpitantes  das  victimas, 
P'5de  suppôr-se  com  muitas  probabilidades  que  de  facto  existia  no  culto  inferior, 
isto  é  em  volta  dos  altares  rústicos  de  certas  divindade*  secundarias,  que  tinham 
sido  creadas  pelo  superstição  do  povo,  e  que  os  druidas  não  julgavam  hostis  á 
sua  religião  transcendente. 

Posto  que  mais  raros  e  menos  cynicos  do  que  em  qualquer  outro  povo, 
sem  duvrda  entre  os  gaulezes  havia  também  espíritos  depravados,  naturezas 
histéricas,  instinctos  sensuaes.  Os  que  por  excepção  sentiam  estes  apettites,  este 
vago  desejo  de  libertinagem,  inventaram  deuses  a  quem  o  sacrifício  da  virgin- 
dade era  uma  ofíerenda  agradável,  e  animavam  os  hábitos  luxuriosos  creando 
santuários  e  auctorisando-os  a  titulo  de  consagração  divina.  E'  permittido  sup- 
pòr  que  entre  as  vacies,  que  a  tradição  popular  celebra  sob  o  nome  de  fadas, 
havia  algumas  que,  ao  serem  consultadas  no  fundo  dos  seus  antros,  exigiam  uma 
prova  de  complacência,  prova  terrível  altendendo  á  sua  velhice,  fealdade  e  ter- 
rível caracter.  Todas  as  lendas  da  idade  média  attesfam  estes  singulares  con- 
ti-atos,  que  as  sacerdotizas  druidas  celebravam  com  ©s  seus  arrojados  visila- 
dores. 

O  que  aquellas  velhas  e  feias  sybillas  gaulezas  faziam,  certos  sacerdotes, 
certas  sacerdotizas  e  certos  membros  degenerados  dos  collegios  druidicos  fa- 
ziam-no  em  proveito  próprio,  c  por  deliberação  unicamente  sua  se  tornavam  deu- 
.ses  protectores  de  rios,  de  fontes,  de  bosques,  de  montanhas  e  de  pedras.  Es- 
tabeleciam residência  nos  mesmos  togares  em  que  tinham  estabelecido  o  seu 
culto  e  impunham  um  tributo  obsceno  a  todos  os  imprud'entes,  homens  ou  mu- 

UuTOHiA  DA  PaesTiTuiçio  Tomo  ii— Folha  2. 


1  o  .  HISTORIA 

llicrcs,  que  atravessavam  os  seus  domínios,  ou  (l'elles  se  approximavam.  Guia- 
vam os  viajantes  perdidos  nas  planieies  desertas,  por  entre  os  laliyrintos  das 
montanlias,  pelos  desliladciros  perigosos;  tinham  l)areos  nos  lagos  mais  som- 
brios o  guardavam  as  pontes  lançadas  por  de  cima  dos  precipícios  terríveis. 
Desgraçada  da  donzella,  cuja  má  estrclla  a  guiava  para  junto  d'aquellcs  seres. 
As  nossas  historias  de  fadas  ainda  hoje  nos  dão  ideia  das  violências  commetli- 
das  pelos  gnomos  e  pelas  ondinas  e  mais  génios  das  solidões  célticas. 

Todavia  nada  ha  authentico  n'estas  antigas  e  singulares  lendas  da  pros- 
tituição sagrada,  que  se  teem  conservado  na  memoria  de  todos  depois  de  tantas 
gerações  extinctas.  Ha  um  vasto  campo  aberto  ás  hypotheses  e  conjecturas  so- 
bre as  fadas  c  gnomos,  que  certamente  foram  n'cssas  remotissimas  épocas  os 
actores  ou  intermediários  da  prostituição  sagrada. 

Sobre  a  Iheogonia  gauleza  ha  unicamente  noções  incertas  e  por  tanto  dif- 
ficil  é  averiguar  as  attribuiçôes  eróticas  das  divindades,  que  apenas  conhecemos 
pelo  nome.  Todavia  por  alguns  monumentos  descobertos  se  píuie  presumir  que 
estas  divindades  não  eram  mais  decentes  nas  suas  imagens  e  altributos,  do  que 
o  eram  as  da  Itália  e  (Irccia.  Assim,  a  deusa  Ononava,  que  os  archcologos  do 
século  xvii  confundiram  com  a  Mithra  dos  persas,  era  representada  por  uma 
cabeça  de  mulher  com  duas  grandes  azas  abertas,  com  duas  largas  escamas  no 
sitio  das  orelhas  e  com  duas  serpentes,  que  a  coroavam  com  as  suas  enormes 
roscas.  Esta  imagem  representava  allegoricamcnte  a  voluptuosidade  (|ue  revolu- 
tea  por  aqui  c  alli,  tendo  sempre  os  olhos  abertos  c  cerrados  os  ouvidos,  c  que 
por  toda  a  parte  serpéa  a  iim  de  devorar  as  suas  presas. 

A's  vezes  também  a  voluptuosidade  era  representada  por  uma  cabeça  de 
mulher,  sahindo  de  uma  pedra  bruta,  sobre  a  qual  se  erguia  uma  cobra.  A  ser- 
pente emblemática  tinha  além  d'isso  uma  significação  muito  importante  na  re- 
ligião dos  druidas,  e  era  também  de  bom  agouro  o  achar-se  um  certo  fóssil 
oval,  de  còr  escura  ou  branca,  que  se  chamava  oro  de  serpente.  Este  ovo  tinha 
a  virtude  supersliciosa  de  dar  aos  que  o  traziam  um  grande  poder  prolitico. 

O  deus  Gourm  era  representado  nú,  hermaphrodita  e  com  cabeça  de  cão. 
A  deusa  do  amor  pbysico,  cujo  nome  gaulez  os  romanos  transformaram  em 
Murcia,  quando  confundiram  d  seu  culto  cum  o  de  Vénus,  era  apenas  represen- 
tada por  |)edras  de  granito  talhadas  em  cuniia  c  collocadas  nos  caminhos. 

O  deus  Marunus,  que  os  romanos  também  transformaram  em  Mercúrio, 
presidia  ás  viagens  pelas  montanhas,  principalmente  nos  Alpes:  tinha  a  tigura 
de  um  gaulez,  com  uma  grosseii'a  capa  com  uma  espécie  de  capuz  c  sem  man- 
gas. Era  um  idolo  domestico,  com  os  chamados  mairs  ou  }wmes,  que  tinham 
por  missão  proteger  o  nascimento  das  crcanças  e  fadal-as  no  berço. 

Emquanto  aos  costumes  dos  deuses  gaulezes,  não  .são  bastante  conheci- 
dos para  se  apreciar  se  estavam,  ou  não,  impregnados  de  prostituição.  Unica- 
mente se  sabe  que  os  gnurics,  monstruosos  gigantes,  que  de  noite  se  encon- 
travam, principalmente  na  Bretanha,  praticavam  entre  si  execráveis  deprava- 
ções. Sabe-se  que  os  sylphos  {sidri  ou  suliiJii)  eram  génios  imberbes,  de  voz 
doce  e  jicrsuasiva,  que  de  noite  espreitavam  os  viajantes,  para  d'ellcs  ])cla  força 
ou  pelo  medo  obter  caricias  vergonhosas.  Sabe-se  emlim  que  os  dusios  {dusH} 
vinham  durante  o  somno  visitar  c  roubar  a  virgindade  das  donzellas,  ou  offe- 
reecr  a  qualquer  mancebo  ardente  as  tentações  de  um  sonho  amoroso  c  tam- 
bém em|)rcgnr  o  seu  corruptor  podei-  em  vis  animaes. 

«E'  opinião  geral,  diz  Santo  Agostinho,  na  sua  Cidade  de  Deus,  (|ue  cer- 
tos demónios  pelos  gaulezes  chamados  dusios  praticam  attentados  com  pessoas 
adormecidas  (hanc  assidue  immundiam  et  tentare  et  ejjicere.)» 

Santo  Agostinho  acerescenta  que  tantas  feslemunhns  certificavam  a  exis- 
leneia  (fesles  demónios  libertinos,  ((ue  não  havia  dir("ilo  a  pòl-a  em  duvida. 
Com  clfeito  a  Egri'ja  admilliu  no  nuMicro  das  obras  do  diabo  as  surprozas  no- 


DA    PROSTITUIÇÃO  1  I 

cturnas  dos  incubos  c  succubus,  ((uc  tinham  uma  origem  inteiramente  gallica. 
Provável  é,  que  apesar  da  rigida  virtude  das  gaulezas,  os  demónios  da  lu- 
xuria lhes  armassem  tentações,  a  que  não  escaparam  aqueiias  virtuosas  ma- 
tronas. Assim  Estrabão  (livro  iv)  nos  falia  na  sua  paixão  pelas  jóias,  paixão  a 
que  também  não  foram  indiílerentes  os  homens,  pois  uns  e  outros  se  enfeita- 
vam com  cadeias,  collares,  braceletes,  anncis  e  cintos  de  ouro.  Os  de  mais 
elevadas  dignidades  e  de  mais  illustre  estirpe  usavam  também  diademas,  co- 
roas c  mitras  de  ouro  cravejadas  de  pedrarias.  Pôde  dizer-se  que  em  todos  os 
tempos,  como  em  todos  paizes  é  o  luxo  uma  das  mais  poderosas  armas  da  pros- 
tituição. 

Pelo  exemplo  de  Chiomara,  se  viu  já  que  a  fidelidade  conjugal  era  uma 
das  virtudes  ordinárias  das  gaulezas.  Plutarcho  conta  também  a  historia  de 
uma  outra  gauleza,  cliamada  Cumma,  uma  das  mais  formosas  mulheres  da  sua 
tribu.  O  gaulcz  Sinoris  enamoruu-se  d'ella,  e  sabendo  que  nem  por  vontade 
nem  por  força  a  faria  render-sc  ao  seu  amor,  emquanto  o  marido  vivo  fosse, 
matou  o  marido  que  era  romano,  e  se  chamava  Sinato.  Cumma  rcfugiou-se  no 
templo  de  Diana,  onde  foi  perseguida  ainda  pelo  amor  de  Sinoris,  que  elia  re- 
peliiu  com  horror.  Todavia  violenlando-se  tingiu  consentir  em  casar  com  o  as- 
sassino de  Sinato ;  mas  no  dia  do  matrimonio  apresentou  ao  noivo  a  taça  nu- 
pcial cheia  de  um  liquido  envenenado  e  bebeu  de  um  trago  o  que  elle  deixara 
na  taça. 

—  Grande  deusa!  exclamou  Camma  voltada  para  o  altar  de  Diana;  bem 
sabeis  o  quanto  senti  a  morte  de  Sinato  e  não  ignorais  que  só  o  desejo  de  vin- 
gal-o  me  fez  sobreviver-lhe.  Agora  morro  contente.  E  tu,  covarde,  disse  para 
Sinoris,  não  procures  o  thalamo,  busca  o  tumulo!» 

.4  abnegação  de  Eponina  para  com  o  seu  marido  Sabino,  é  ainda  mais 
sublime,  do  que  o  sacrifício  de  Camma,  pois  se  prolongou  por  espaço  de  dez 
annos. 

E  comtudo  aquelles  gaulezes,  que  inspiravam  a  suas  mulheres  um  tal 
afíecto,  um  amor  tão  incorruptivel,  não  comprehendiam  do  mesmo  modo  a  fi- 
delidade matrimonial. 

O  grande  historiador  Michclel  dcscreve-os,  na  sua  Hi^itoria  de  Franca, 
como  homens  levianos,  e  revolvendo-se  cegamente  em  prazeres  infames. 

Com  effeito,  se  os  gaulezes  respeitavam  as  suas  mulheres,  não  se  respei- 
tavam a  si  próprios,  e  á  similhança  d'alguns  povos  da  Itália  entregavam-se  aos 
mais  iiorriveis  excessos,  especialmente  no  iim  dos  festins,  em  que  haviam  feito 
uso  imoderado  das  bebidas  fermentadas.  Estas  desordens  sensuaes  não  eram, 
como  entre  os  romanos  e  os  gregos,  o  producto  d'uma  civilisação  exagerada  c 
mais  um  vicio  da  imaginação  do  que  dos  sentidos;  correspondiam  á  uma  gros- 
seira necessidade  de  incontinência,  despertada  pela  embriaguez  e  similhante  a 
um  aceesso  de  furiosa  demência.  O  festim,  prolongando-se  por  entre  cânticos 
bachicos  e  obscenos,  terminava  em  confusa  orgia,  em  cuja  treva  reinava  a  igual- 
dade da  prostituição. 

Diodoro  da  Sicilia  aífirma  que  os  gaulezes  associavam  as  suas  concubi- 
nas áquellas  scenas  escandalosas.  E'  esta  a  traducção  latina  do  texto  grego,  que 
demonstra  a  aberração  do  sentido  moral  d'aqueiles  bárbaros. 

«Ueminiv  licet  elcíjantos  habebant,  nlmium  tamen  illuruin  consuetaitine 
a/ficiuntur,  quin  potius  nefariis  niasruloruDi  strupis,  et  humi  feraruin  pelibns- 
incubanles,  ab  utruque  lalere  cum  concubinis  volutantur.  Et  quod  omniuin 
in<U(jnissimum  est,  proprii  decoris  ralione  proslliabita,  corporis  venuslalein 
aliis  lecissime  prostitiint,  nec  in  vilio  illud  pronunt,  sed  potius  unijuis  obla- 
tinii  ah  Ipsis  ijratiam  nan  acceperit,  inhones-lum  sibi  id  esse  dicunt.» 

No  dia  seguinte,  á  luz  do  dia  já  ninguém  se  recordava  do  que  .se  h^ivia 
passado,  e  assim  não  se  envergonhavam  ao  olhar  uus  para  os  outros.  Mas  nem 


12  ■  HISTORIA 

sempre  a  inimunda  bestialidade  se  escondia  á  luz  do  sol,  porque  os  celtas  de 
pura  raça  (ingenui)  amavam  as  suas  oguas  e  as  suas  cadellas  como  compa- 
nheiras idolatradas  da  sua  vida  aventureira  e  guerreira. 

Tal  era  a  situação  moral  da  Gallia,  quando  Júlio  César  a  subníetteu.  Os  gau- 
lezes  de  génio  leviano  e  impressionavel  tão  depressa  se  amoldaram  á  domina- 
ção dos  vencedores,  que  em  breve  vieram  a  ser  romanos,  conservando  os  seus 
vícios  e  virtudes  n'aquella  escravidão,  .lá  elics  eram  pela  visinhança  de  Mar- 
selha alguma  cousa  gregos  ;  mas  a  iniluencia  de  Roma  íez-se  sentir  até  ao  fundo 
da  Gallia  Bélgica,  e  todas  as  principaes  cidades  Lião,  Antum,  Bordeos,  A'ienna, 
Lutecia  em  mui  breve  nada  tiveram  de  gaulez,  mui  especialmente  depois  da 
destruição  do  druidismo  e  dos  druidas.  Todavia,  por  mais  de  dois  séculos  ainda 
se  conservaram  vestígios  das  instituições  druidicas;  ainda  no  fundo  dos  bos- 
ques se  encontravam  prophetisas  ;  os  luinnes  continuaram  a  dançar  á  luz  da  lua; 
mas  a  religião  dos  gregos  e  dos  romanos  tinha  na  Gallia  mais  fcrveroso  culto 
do  que  em  outra  parte  do  grande  império;  a  legislação  seguiu  de  perto  a  reli- 
gião e  todos  os  costumes  gaulezes  se  foram  modelando  pelos  dos  gregos  e  ro- 
manos. 

Não  temos  dado  algum  especial  sobre  o  estado  da  prostituição  gallo-ro- 
mana,  mas  podemos  presumir  que  este  estado  em  nada  diferia  do  que  era  em 
Roma  e  nas  províncias  asiáticas ;  unicamente  as  gaulezas  conservavam  o  res- 
peito por  si  próprias,  essa  nobre  altivez  que  as  caracterisa  na  historia,  e  por 
tanto  poucos  elementos  subministrariam  á  libertinagem  publica. 

Mas  as  estrangeiras  não  faltavam  e  os  governadores,  os  magistrados  e  os 
chefes  militares,  que  Roma  enviava  para  as  Gallias,  traziam  comsigo  todos  os 
requintes  do  luxo  a  que  estavam  acostumados.  Como  se  privariam  dos  seus 
eunuchos,  das  suas  bailarinas,  das  suas  orchestras,  de  todo  o  seu  pessoal  de 
libertinagem?  , Em  seguida,  ajudada  pelo  seu  próprio  gosto  dos  gaulezes,  tanto 
na  Gallia  Toyata,  como  na  Gallia  Comata,  houve  uma  recrudescência  de  luxo  e 
os  festins  de  Júlio  Sabino  em  Langres  nada  tiveram  que  invejar  aos  de  Lueulo 
em  Roma. 

A  metamorphose,  que  a  occupação  romana  produzia  na  Gallia,  foi  sem  du- 
vida menos  sensível  nos  campos  do  que  nas  cidades ;  mas  os  deuses  de  Roma 
em  todas  as  partes  foram  acolhidos  com  o  mesmo  entbusiasmo  religioso.  Al- 
guns d'estes  deuses,  como  mais  sjmpathicos  ao  caracter  dos  habitantes  e  aos 
costumes  do  paiz,  mereceram  preferencias.  Hercules,  Baccho,  Vénus,  Isis,  Pria- 
po,  tinham  templos  e  estatuas  que  atrahiam  numerosas  otlerendas.  O  gaulez 
inclinou-se  para  as  divindades  menos  severas,  e  que  mais  lhe  fatiaram  aos  sen- 
tixlos;  estava  cançado  dos  terríveis  mysterios  de  Teutates  e  só  queria  diver- 
tir-se  em  honra  dos  novos  deuses,  que  Roma  lhe  enviara. 

Para  a  prostituição  legal  foi  esta  época  mui  brilhante  e,  cymo  todos  os 
povos  que  de  repente  se  iniciam  nos  gosos  da  civilisação,  as  raças  célticas  ra- 
pidamente attingiram  os  últimos  graus  de  corrupção  social.  E'  preciso  ler  as 
poesias  d'Ausonio,  venerável  professor  de  Bordéus,  mestre  do  imperador  Gra- 
ciano,  para  conhecer  a  profunda  desmoralisação  que  se  apoderou  da  sociedade 
gaulcza.  Ausonio  de  modo  algum  approva  os  lúbricos  exemplos,  que  otíerecc 
á  consideração  do  leitor,  mas  desereve-os  como  homem  que  entende  bem  do 
assumpto  de  que  se  trata.  Mesmo  a  maneira  como  os  condemna  é  mais  obs- 
cena ainda,  do  que  as  mais  enérgicas  passagens  de  Juvenal  e  Horácio;  alli,  só 
se  encontram  sensualidades  sórdidas  e  monstruosas,  que  ultrajam  a  natureza: 
tudo  o  que  pôde  inventar  a  preversão  dos  sentidos,  tudo  .se  enumera  em  al- 
guns epigrammas  do  poeta  gallo-romano,  que  dirigia  preces  em  verso  a  Chrislo, 
a  verdade  da  verdade,  a  luz  da  luz  (ex  vero  verus,  de  lumine  lúmen.)  Depois 
de  se  lerem  estas  piedosas  orações  chrislãs,  de  admirar  é  que  Ausonio  não  se  te- 
nha enojado,  descrevendo  as  lúbricas  phantasias  da  famosa  cortezã  Cris,pa, 


DA    PROSTITUIÇÃO  13 

Quando  os  sicambros  se  precipitaram  da  Germânia  sobro  a  Gallia  romana, 
quando  os  bárbaros  do  norte  desceram  até  ás  províncias  mais  florescentes  do 
império,  com  os  seus  carros,  conduzindo  os  seus  deuses,  suas  mulberes  e  seus 
filhos,  não  se  contaminaram  com  a  civilisação  que  se  espantava  d'elies,  e  pare- 
cia exaurir-se  á  sua  approximação,  como  um  rio  cujas  nascentes  tivessem  se- 
cado. 

Estas  numerosas  hordas,  renovando-sc  sem  cessar  á  medida  que  se  alas- 
travam pela  Gallia,  ameaçavam  exterminar  a  população  gallo-romana.  A  trihu 
salisca  foi  a  ultima  a  marchar,  mas  quiz  fixar-se  no  solo  já  tão  devastado  por 
continuas  invasões.  Os  saliscos,  aquella  terrível  família  dos  francos,  que  tinha 
feito  uma  paragem  junto  das  boccas  do  Isel,  começaram  a  estabelecer-se  na  Gal- 
lia Bélgica  por  melados  do  século  quinto  e  avançaram  de  cidade  em  cidade  até 
Lutecia.  Os  saliscos  eram  formosos  e  nobres,  de  grande  estatura,  d'olhos  azues 
e  cabellos  loiros  e  de  expressão  suave  e  intelligente.  Comtudo,  devastavam, 
destruíam,  matavam ;  mas  não  violavam.  E  isto  era  mais  despreso  do  que  com- 
paixão pela  raça  vencida. 

Os  costumes  dos  francos  conservaram-se  intactos  por  algum  tempo  sob  a 
salvaguarda  da  sua  religião  e  das  suas  leis,  pois  que  se  envergoniiariam  de  se 
tornarem  germanos  ou  gaulezes,  e  assim  se  perservaiam  da  mancha  da  prosti- 
tuição, que  nunca  havia  penetrado  nem  nos  seus  templos  de  Irmcnsui,  nem  nas 
suas  tendas  hospitaleiras,  nem  nas  suas  praças  foi'liíicadas.  A  lei  salica  não  re- 
conhecia cortezãs  no  povo  franco. 


CAPITULO  II 


SUjMíMARIO 


Os  francos As  mulhures  livros  e  as  escravas.— Condirão  das  ingénuas  ou  mulheres  livres  dos  francos.— 

A  prostituição  legal  não  existe  entre  os  francos.— As  concubinas.— Vida  particular  das  mulberes  livres  —A  pro.sti- 
tuição  sagrada  desconhecida  entre  os  francos.— Licenciosidades  relifiiosas  do  mez  de  fevereiro.— Origem  da  festa  dos 
Loucos.— As  strias  ou  feiticeiras,- A  hospitalidade  franca.— Condição  da  viuva.— Preço  da  virgindade  d'unia  hur- 
gonds  livre.— As  moedas  do  matrimonio.— Lei  protectora  do  pudor  das  mulheres.— O  código  de  Rotharis.— Os  mo- 
chos fi  as  gralhas.— Os  contractos  libertinos  e  as  violências  impudicas.— O  mercado  da  prostituição.— Kigor  da  lei 
dos  ripuarios  contra  os  auctores  das  violências  impuras  nas  mulheres.— Os  dois  graus  de  supplicio  daca.stração.— Leis 
dos  bárbaros  contra  o  adultério. — Lei  do  Slenvig  sobre  o  incesto.- Jurisprudência  dus  bárbaros  sobre  a  prostituição- 
—Decreto  de  Recaredo,  rei  dos  visieodos. 


s  FRANCOS,  cujo  notiic  ciii  linguagom  liHilonica  não  siíínifica  livres, 
mas  sim,  ailivo,  indomável,  como  a  palavra  latina  ferox,  corres- 
pondendo a  frek  ou  frenk,  não  tinham  acccitado  como  os  germa- 
nos e  os  gaulczes,  seus  antepassados,  o  domínio  das  muliíercs, 
nem  concediam  a  este  sexo,  (juc  clles  reputavam  inferior  ao 
seu,  supremacia  alguma. 
A  mulher  entre  aquelles  bárbaros,  ávidos  de  guerra  e  indilTerentcs  á  morte, 
não  era,  pois,  rodeada  pelo  prestigio  ou  respeito  religioso,  que  desde  os  mais 
remotos  tempos  lhe  era  attribuido  ])elos  gaulczes  e  germanos;  a  nuíTiíer  IVanca 
linha  a  consciência  da  sua  fraqueza  e  era  estranha  á  gerência  dos  negócios  pú- 
blicos, sempre  sujeita  ao  poder  do  pae  ou  do  marido. 

Portanto,  a  prostituição  de  qualquer  classe  não  tinha  razão  de  ser  em  uma 
sociedade  regida  por  leis  brutaes  c  cruéis,  cheia  de  hábitos  guerreiros,  ignorante 
das  artes  corruptoras  da  civilisação,  indidcrciitcs  aos  prazeres  da  inacção  e  des- 
denhosa de  toda  a  concupiscência.  I\lais  adiante  veremos  que,  se  a  prostituição 
alguma  vez  existiu,  sempre  se  conservou  occulta,  sem  se  declarar  a  si  mesma, 
por  assim  dizer. 

A  raça  franca  dividia-se  em  duas  cafhegorias  de  individiws:  as  pessoas  li- 
vres, os  infjenuí  dos  latinos,  e  os  escravos  ou  servos,  servi.  Estes  últimos  des- 
cendiam d'uma  população  saxónica  ou  tculonica,  que  os  sicambros  ou  salicos 
tinham  reduzido  á  escravidão  e  se  misturara  depois  de  muitas  gerações  com  os 
vencedores. 

Seja  como  fòr,  a  linha  divisória  entre  mulheres  livres  e  servas  era  muito 
aceentuada.  Estas  pertenciam  aos  senhores,  aquellas  só  aos  aos  pães  ou  aos  ma- 
ridos. Uma  mulher,  donzella,  ca.sada  ou  viuva,  nunca  tinha  o  direito  de  dis- 
por da  sua  pessoa.  Quando  a  mulher  não  tinha  pae  ou  marido,  toda  a  tribu  lho 
podia  pedir  contas  do  seu  proceder. 


1 6  HISTORIA 

Em  tal  estado  de  submissão  permanente,  as  mulheres  livres  nunca  ousa- 
riam prostituir-se,  o  que  as  teria  feito  descer  á  cathegoria  d'escravas  ;  e  estas, 
tendo  cada  uma  seu  senhor,  não  podiam  tão  pouco  prostituir-se  sem  expôr-se 
a  penas  corporacs,  e  sem  fazer  recahir  sobre  os  seus  cúmplices  a  grave  respon- 
sabilidade dos  seus  actos. 

Além  d'isso,  era  todos  os  tempos  e  em  todos  os  paizes,  as  mulheres  não 
são  mais  do  que  os  homens  querem  que  ellas  sejam  ;  e  os  francos,  apesar  da 
sua  altivez,  do  seu  ardor  guerreiro  e  da  sua  vivacidade,  não  eram  mui  propen- 
sos por  temperamento  á  satisfação  dos  sentidos.  Os  francos  tinham  uniões  in- 
dissolúveis, cujo  fim  único  era  a  procreação  dos  filhos  varões.  Comprehen- 
de-se  que  tendo  em  vista  este  fim,  tivessem  além  das  mulheres  legitimas  mui- 
tas concubinas ;  estas  barregãs,  como  diz  o  douto  Bouquct  (Historia  dos  Gau- 
[i'zes,  tit.  ir,  pag.  i22.  Nota)  ordinariamente  eram  escravas,  que  chegavam  a  ser 
honradas  com  o  titulo  de  esposas,  passando  pelas  nobres  funo^'ões  de  mães  de 
familia. 

As  mulheres  francas  viviam  mui  retiradas,  no  interior  das  suas  casas, 
amamentando,  educando  os  seus  numerosos  filhos,  fiando  o  linho  ou  lã,  tecendo 
uu  cosendo  e  fazendo  a  cama  e  as  refeições  de  seus  esposos,  a  quem  não  acom- 
panhavam á  guerra,  nem  á  caça,  nem  ás  assembleias  jurídicas,  nem  aos  jogos 
equestres.  Apenas  se  atreviam  a  entreabrir  as  suas  tendas  e  descortinar  a  dis- 
tancia, atravez  das  palissadas  que  as  defendiam,  p  resultado  dos  combates, 
das  justas,  ou  das  caçadas.  A  iviam  entre  si,  obscrvando-se,  e  guardando-se 
mutuamente,  de  tal  modo,  que  nem  o  pensamento  da  incontinência  lhes  atraves- 
sava o  espirito. 

Cousa  alguma  também  da  religião  dos  francos  favorecia  a  prostituição  sa- 
grada. Esta  religião  era  um  grosseiro  paganismo,  que  dera  horríveis  e  monstruo- 
sas formas  á  representação  dos  elementos  naturaes,  a  agua,  o  fogo,  a  terra,  a 
fi-mpestade,  a  lua,  o  sol.  Não  adoravam  outros  deuses,  e  prestavam-lhes  um 
culto  extravagante,  acompanhado  de  cantos,  danças  e  momices. 

Não  se  sabe  em  que  consistia  este  culto,  que  Gregório  de  Tours  qualifica 
de  insensato  (fannlicis  cultihus)  e  legou  ao  christianismo  varias  superstições.  Por 
exemplo:  n'iim  iTportorio  das  praticas  pagãs,  feito  no  Synodo  de  Leptines  em 
Hainaut,  no  anno  743,  vèem-se  certas  ceremonias  do  mez  de  fevereiro  (De.  spur- 
ralihns  in  februario)  em  que  se  pode  reconhecer  a  origem  do  carnaval.  Lé-se 
lambem  no  mesmo  reportório:  De  pagano  ciirsti  quem  ijrias  nominant.  «Nas 
Iv.dendas  de  janeiro,  diz  o  abbade  Derroches,  nas  memorias  d'Academia  de  Bru- 
xellas,  os  homens  disfarçavam-se  em  mullieres  e  as  mulheres  em  homens,  ou- 
fn)S,  cobrindo-se  com  peiles  e  adornando-se  de  cornos,  disfarçavam-se  em  ani- 
mies;  todos  corriam  pelas  ruas,  saltando,  grilando  e  praticando  mil  loucuras. 
Tal  foi  o  ponto  de  partida  da  famosa  festa  dos  loucos,  que  subsistiu  na  egreja 
cliristã  até  ao  século  decimo  oitavo. 

O  Indiculus  das  superstições,  que  nos  parecem  mais  francas,  do  que  gau- 
ie/.as,  falia  das  mullieres  com  poder  na  lua  e  que  devoravam  o  coração  dos  ho- 
mens. Eram  estas  as  bruxas  ou  feiticeiras,  de  quem  os  francos  tanto  se  arre- 
cciavam  de  pactuar  com  os  génios  do  mal.  Em  breve  provaremos  que  estas 
fiitieeiras,  graças  ao  medo  que  inspiravam,  praticavam  uma  espécie  de  prosti- 
tuição que  ellas  tami)em  se  jactavam  de  fazer  com  os  espíritos  maléficos. 

Os  francos  não  respeitavam  a  fé  jurada  ifnmiliare  esl  ridendo  fidem  fran- 
f/n-e,  diz  Flávio  Yopisco)  e  todavia,  segundo  Salviano,  respeitavam  a  hospitali- 
dade. Comtudo  a  hospitalidade  de  modo  algum  auctorisava  o  commercio  do  hos- 
|ii'de  com  a  esposa  ou  concubina;  estas,  emquanto  o  hospedeiro  e  o  hospede 
b'biam  pelo  mesmo  copo,  trocavam  os  seus  punhaes  e  os  seus  braceletes,  se 
CMlretinham  jogando  jogos  d'azar  e  dormiam  na  mesma  cama,  evitavam  appa- 
rccer. 


DA   PROSTITUIÇÃO  ^^ 

O  viajante,  que  parava  n'uma  cidade  ou  campo  salico,  s6  desejava  dcscan- 
çar,  matar  a  fome  ou  a  sede  e  estar  disposto  a  continuar  o  caminlio  no  dia  se- 
guinte. Este  viajante,  não  tinlia  pois  necessidade  de  encontrar  recreações  sen- 
suaes,  que  lhe  augmentariam  a  fadiga,  e  que  tão  pouco  figuravam  no  programma 
da  hospitalidade  franca.  Só  queria  evitar  lodos  os  motivos  de  encontrar  frente  a 
frente  como  inimigo  aquelle  que  generosamente  o  acolhia  no  seu  lar.  O  franco 
não  teria  applaudido  a  prostituição  de  sua  mulher,  de  sua  filha,  ou  de  sua  es- 
crava em  honra  do  hospede,  a  quem  recehia  como  um  irmão  e  amigo,  pois  que 
procurava  tei-as  afastadas  c  nem  se  quer  permittia,  com  medo  de  lhes  pertur- 
bar o  pudor,  o  avistarem  o  estrangeiro. 

As  leis  dos  bárbaros  provam-nos  que  eram  mui  zelosos  da  virtude  das 
suas  mulheres  c  que  não  teriam  soíTrido  n'estc  ponto  a  menor  oITensa.  O  ma- 
rido, o  pae,  o  senhor  tinham  direito  de  vida  e  de  morte  sobre  a  esposa,  filha 
e  escrava,  e  só  os  excessos  d'esla  auctoridadc  eram  puníveis.  Por  exemplo, 
um  marido  que  matava  a  mulher  para  casar-se  com  outra  incorria  somente 
na  pena  de  não  trazer  armas  (armis  depositis ;)  matar  uma  mulher  adultera  era 
lei  geral  que  não  admiltia  vacillação  ou  tardança;  muitas  vezes  o  marido  não 
esperava  pela  consummação  do  acto,  e  vingava-se  sem,  ao  certo,  adquirir  a  cer- 
teza das  suas  desconfianças.  A  capitular  conlentava-se  em  desarmar  o  franco, 
que  matava  sua  mulher  sem  razão  comprovada  (sine  causa.) 

Não  c  demais  insistir  no  principal  obstáculo  ao  exercício  da  prostituição. 
A  mulher  nunca  era  senhora  de  si,  mesmo  quando  viuva;  seja  não  tinha  os 
pães,  marido  ou  filhos  a  pedir-lhc  responsabilidade,  ficava  de  certo  modo  sub- 
mettida  a  uma  servidão  commum,  sujeita  á  fiscalisação  de  todos,  que  tinham  o 
direito  de  lhe  vigiar  os  actos. 

Quando  uma  viuva  queria  casar-se  cm  segundas  núpcias,  tinha  de  pagar 
uma  espécie  de  resgate  ao  parente  mais  próximo  do  defunto  marido  ou  ao  the- 
souro  do  príncipe,  que  reconhecia  como  senhor.  Esla  quantia  era  de  três  soldos 
de  ouro.  A  lei  dos  burgondos  diz  que  uma  viuva  que  houver  tido  voluntaria- 
mente relações  iilícitas  com  um  homem  (quod  si  mulier  tidaa  cuicumque  se 
non  inmta  sed  libidine  victa  sponte  miscuerit,)  não  poderá  reclamar  índemnísa- 
ção  alguma,  nem  obrigar  o  seu  cúmplice  a  casar  com  ella,  porque  a  prostitui- 
ção a  tornou  indigna  de  marido  c  de  exigir  indemnisação. 

A  mesma  lei  concedia  á  filha  de  um  burgondo  livre,  seduzida  por  um  bár- 
baro ou  por  um  romano,  o  direito  de  reclamar  quinze  soldos  de  ouro  ao  seu 
seductor,  em  pagamento  do  seu  desíloramento,  mas  ficava  infamada  pela  perda 
que  sofTrera,  (illa  rero  facinoris  sui  deshonestala  flagitio  ainissi  pudoris  susti- 
nebrit  infamiam.)  Estes  quinze  soldos  de  ouro,  que  o  cúmplice  era  obrigado  a 
entregar  á  sua  victima,  representavam  o  preço  da  prostituição,  e  a  mulher  que 
ousava  reclamal-os  ficava  equiparada  a  uma  cortezã. 

Todavia  parece  que  a  legislação  dos  bárbaros,  sanccionando  a  escravidão 
do  sexo  feminino,  reconhecia  que  a  mulher,  que  não  tivera  conhecido  homem, 
ficava  interessada  n'uma  pequena  parle,  logo  que  era  entregue  ao  seu  marido, 
pois  que  este,  segundo  os  antigos  usos  da  lei  salica,  não  contrahia  matrimonio, 
senão  depois  de  lhe  ler  dado  a  ella  um  soldo  e  um  dinheiro,  para  pagar-lhc  a 
virgindade,  segundo  a  tarifa  geral. 

Esta  pratica  nupcial  tem-se  conservado  até  aos  nossos  dias,  embora  á 
cerimonia  das  moedas,  que  o  sacerdote  abençoa  nos  anneis  nupciaes,  se  tenha 
dado  uma  interpretação  christã.  Este  soldo  c  o  dinheiro,  que  a  mulher  recebia 
ao  casar-se,  constituíam  o  preço  do  único  bem  (prwmium)  que  podia  reivindi- 
car como  cousa  própria,  e  de  que  podia  dispor,  segundo  a  sua  vontade.  Exce- 
ptuando isto,  não  tinha  nem  terras,  nem  rendas,  nem  direito  de  concessão. 
O  dote  que  o  marido  dava  á  mulher  era  apenas  a  garantia  de  alimental-a,  e 
este  dote  passava  á  familia  da  mulher,  no  caso  da  morte  d'esta. 

HjsToaiA  DA  Prostituição.  Tomo  ii  —  Folha  3. 


1 8  HISTORIA 

Ordinariamente  os  presentes,  que  a  familia  acceitava  do  futuro  marido, 
representavam  uma  espécie  de  venda,  em  que  a  noiva  era  uma  mercadoria  pas- 
siva. O  código  dos  barL)aros  protegia  as  mulheres  em  todos  os  casos,  em  que  o 
pudor  podia  ser  aggravado;  mas  as  muilieres,  para  terem  direito  a  esta  protecção 
permanente,  deviam  nierecei-a  pelo  seu  procedimento  lionrado.  Alguns  motivos 
temos  para  suppòr  que  as  feiticeiras  e  libertinas  não  gosavam  do  beneficio  da 
lei  protectora,  nem  tinham  por  titulo  algum  o  respeito  de  quem  quer  que  fora. 
Esta  investigação  sobre  a  moralidade  das  partes  fazia  com  que  muitas  vezes 
se  não  promovesse  um  processo  de  injuria,  como  medo  da  devassa. 

Aqui  apresentamos  o  texto  da  lei  salica,  em  (|ue  julgamos  ver,  que  o  de- 
lido de  injurias  com  relação  á  mulher,  estava  subordinado  á  sua  condição  e  cos- 
tumes, e  de  modo  que  esta  podésse  sempre  justificar  o  seu  comportamento. 

«Se  alguém  chamar  meretriz  a  uma  mulher  de  raça  nobre,  sem  o  poder 
provar  {Siquis  melieriím  ingemmm  striam  clamavark  aut  meretricem  et  con- 
vincere  non  poterit)  será  condemnado  a  pagar  7:300  dinheiros,  ou  187  soldos 
de  ouro. 

E'  claro,  pelo  theor  dVste  artigo,  que  quem  era  accusado  de  haver  inju- 
riado uma  mulher  podia  dcfender-se,  allegando  que  essa  mulher,  como  feiticeira 
ou  meretriz,  era  indigna  dos  benefícios  da  lei,  pois  que  uma  mulher,  exercendo 
um  mister  deshoncsto  e  criminoso,  nunca  podia  ser  ultrajada.  lia  a  notar-se 
que  as  injurias  mais  graves  que  podiam  fazer-se  a  uma  mulher  livre,  eram  cha- 
mar-lhe  feiticeira  ou  cortezã. 

O  grande  valor  da  multa,  paga  pelo  auctor  do  ultraje  á  mulher  que  o  re- 
cebia, prova  que  os  francos  nada  despresavam,  tanto  como  as  feiticeiras  e  as  li- 
bertinas. 

Emquanto  á  maneira  de  fazer  a  prova,  só  podemos  fundar  as  nossas  hy- 
potheses  nos  usos  jurídicos  da  raça  franca,  que  admittia  o  juramento,  o  com- 
bate singular  c  as  testemunhas,  para  restabelecer  uma  verdade  deante  de  um 
magistrado. 

Ha  muitas  versões  da  lei  salica,  re^ligidas  em  diversas  épocas  e  em  dif- 
ferentes  tribus.  Em  todas  cilas  o  titulo  De  helnirgio  (xxxiii,)  que  contém  dis- 
posições severas  sobre  as  maiores  injurias  (|ue  a  mulher  pódc  soifrer,  tem  va- 
riantes na  quantidade  da  multa,  (|ue  parece  ter  diminuído,  á  maneira  que  a 
qualificação  de  feiticeira  e  cortezã  ia  inspirando  menos  horror.  Assim,  na  lei  sa- 
lica, modificada  por  Carlos  Magno,  a  multa  de  7:o00  dinheiros  é  reduzida  a  800 
e  mesmo  a  (>00  cm  outro  código  d'csla  mesma  lei.  Segundo  antigos  manuscri- 
pliis,  a  injuria  cortezã  dirigida  a  um  homem  ou  a  uma  mulher  livre,  era  pu- 
nida com  uma  multa,  oseillando  entre  ío  e  15  soldos  de  ouro. 

Todavia,  por  causa  das  variações  continuas  do  valor  da  moeda,  renun- 
ciamos a  fazer  uma  apreciação  exacta  da  importância  d'esta  multa.  Tudo  o  que 
podemos  fazer  notar  c  que  uma  niulla  de  7:-)00  dinheiros,  equivalentes  a  187 
escudos  de  ouro,  era  excessi\'a,  pois  que  uma  feiticeira  convencida  de  ler  co- 
mido carne  humana  (.s;'  stria  hominem  comederil)  só  pagava  800  dinheiros,  ou 
20  soldos  de  ouro. 

A  lei  salica  só  reconhecia  para  o  homem  duas  injurias,  que  equivaliam 
ás  injurias  feitas  ás  mulheres;  mas  a  píMia  (Testas  injuiias  não  era  tão  rigo- 
rosa, provavelmente  em  vii-tude  da  frcípiencia  do  delicio:  a  primeira,  cherriíi- 
bnrijm,  ou  strioporlius,  significava  servente  de  feiticeira,  e  era  punida  com  a 
multa  de  230  dinheiros,  ou  fiS  soldos  e  meio ;  a  segunda,  que  só  encontramos 
na  lei  salica  correcta  por  Carlos  Magno,  parece  ser  análoga  ao  nosso  prejiiro, 
pois  que  fnlsnlor  era  a(|uelle  que  jurava  cm  vão.  Tm  artigo  da  lei  salica  carlo- 
vingia  colloca  f|uasi  ao  mesmo  nivel  a  injuria  de  prejuro  e  meretriz,  laxando 
a  multa  da  primeira  em  (iOO  dinheiros,  ou  quinze  soldos  de  ouro  :  5í  quis  al- 
tennn  falsalorem,  et  mulier  alteram  meretricem  clamaverit. 


DA    PROSTITUIÇÃO  19 

O  slrioporíius,  que  desempenhava  um  papel  terrível  nos  mysterios  da  pros- 
tituição magica,  não  era  só  accusado  de  levar  o  caldeirão  ás  reuniões  das  feiti- 
ceiras, illum  qui  inium  dicilur  prosla.fsent  strias  cocinant,  segundo  uni  texto 
da  lei  salica ;  atlribuia-se-lhe  também  o  poder  de  servir  de  besta  áquellas  in- 
fames, transportando-as  ás  suas  assembleias  atravez  dos  espaços.  A  feiticeira 
nem  sempre  cavalgava  sobre  os  liombros  do  seu  servidor;  umas  vezes  ia  a 
ellc  abraçado,  outras  agarrava-se  á  cauda  do  personagem  transloiniado  em  cão 
ou  porco  ;  lambem  se  via  ás  vezes  passar  pelos  ares,  com  a  rapidez  duma  llexa, 
um  enorme  marcego,  levando  em  cima  duas  e  mesmo  três  feiticeiras. 

Estas  diversas  injirrias  eram  tão  atrozes,  que  não  foram  collocadas  na  ca- 
tegoria dos  demais  insultos  e  foram  comprchendidas  á  parte,  sob  o  titulo  de 
hebunjium,  que  queria  dizer  um  verdadeiro  envenenamento. 

Todos  os  legisladores  bárbaros  estavam  de  accordo  sobre  o  caracter  da  inju- 
ria que  se  fazia  a  uma  mulher  livre,  quando  era  infamada  com  o  nome  de  cor- 
tezã  ;  mas  todos  reconheciam  no  ofíensor  o  direito  de  provar  a  verdade  da  ac- 
cusação.  O  texto  da  lei  salica  é  muito  conciso  e  obscuro;  todavia  sobre  este 
ponto,  para  interpretal-o,  dando-llie  o  desenvolvimento  necessário,  temos  nas 
leis  lombardas  de  Rotharis  um  capitulo,  que  com  certeza  contém  toda  a  legis- 
lação (los  francos,  relativa  ao  hebunjium. 

Rolbaris,  que  publicou  o  seu  código  em  643,  compilou-o  das  leis  barba- 
ras e  especialmente  da  lei  salica,  que  frequentemente  nada  mais  fez  do  que 
commenlal-a.  Segumlo  o  código  Rotharis,  se  alguém  chamava  em  alta  voz  a 
uma  donzclla,  ou  mulher  livre,  prostiíuta  (fornicariam  ant  slrigani)  devia  pagar 
uma  multa,  ou  provar  a  alíirinação.  No  primeiro  caso,  deaíite  de  doze  testemu- 
nhas fiadores  do  juramento,  jurava  ter  proferido  tão  horrível  injuria  (nefan- 
dum  crimen)  sob  o  dominio  da  paixão  e  sem  intenção  de  o  sustentar  perante 
a  jusliça,  e  para  punir-se  a  si  próprio  pagava  uma  multa  de  20  soldos  de  ouro, 
prometlendo  nunca  mais  repetir  a  calumnia,  mas,  se  o  auctor  do  ultrage  insis- 
tia na  accusação  offcrecendo  prova,  era  então  admiltido  o  juizo  de  Deus  e  devia 
combater  com  o  campeão,  que  lhe  oppunha  a  mulher  ultrajada. 

Se  o  êxito  do  combate  provava  que  a  desgraçada  era  digna  do  nome  de 
prostituta,  era  ella  que  pagava  a  multa  dos  vinte  soldos  de  ouro.  Se  era  o  cam- 
peão da  ultrajada  o  vencedor,  o  vencido,  para  resgatar  a  vida,  pagava  uma  in- 
demnisação  que  variava,  segundo  o  nascimento  e  condição  da  mulher  calum- 
niada  (V.  Collection  des  lois  des  barbares,  publicada  por  Paulo  Camisani,  tit. 
II,  pag.  79;)  na  lei  salica  esta  injuria  (ineretrix)  dirigida  a  uma  mulher  livre 
chamava-se  em  lingua  rústica  estrabo  que  se  tem  procurado  traduzir  em  sa- 
xão por  entroijas,  mas  que  n'esta  lingua  não  tem  sentido. 

As  demais  injurias,  que  se  podiam  dirigir  a  uma  mulher  honrada  e  que 
não  precisavam  prova,  não  estão  especificadas  na  lei  salica;  a  de  mocho  ou 
coruja,  única  especificada,  corresponde  á  injuria  de  feiticeira,  porque  estas  só 
faziam  de  noite  os  seus  malefícios. 

A  lei  salica  não  era  tanto  das  injurias  verbaes,  como  dos  factos  ultrajo- 
sos,  que,  no  interesse  do  sexo  feminino,  se  occupava.  Estas  injurias  referem-se 
a  três  cathegorias  principaes,  que  podem  assim  ser  designadas:  o  allentado  ca- 
pilar, contactos  libertinos  e  violências  impudicas.  Sabido  é  que  o  cabello,  tanto 
na  mulher  como  no  homem  da  raça  franca,  tinha  um  caracter  sagrado  e  invio- 
lável. Era  menos  criminoso  aquelle  que  com  um  ponta-pé  ou  murro  matava 
uma  mulher  gravida,  do  que  o  que  a  despenteava.  Com  efleito,  se  uma  mulher 
gravida  morria  em  consequência  d'alguma  violência  corporal  n'ella  exercida,  o 
assassino  era  apenas  condemnado  na  multa  de  22  soldos  de  ouro,  emquanto  que 
se  a  despenteava,  de  forma  que  o  cabello  lhe  cahisse  pelas  costas,  o  reu  de 
tal  delicio  incorria  na  multa  de  trinta  soldos;  mas  se  o  toucado  era  apenas 
lançado  ao  chão,  então  a  multa  era  limitada  apenas  a  15  soldos. 


20  HISTORIA 

Os  contactos  libertinos  eram  punidos  com  pesadas  multas.  O  homem  li- 
vre, que  apertava  (instrinxerit)  a  mão  ou  os  dedos  a  uma  muliicr  livre,  incor- 
ria na  multa  de  GOO  dinheiros  ou  15  soldos;  se  a  agarrava  por  um  braço  (des- 
trin.rerit)  em  1:200  dinheiros  ou  30  soldos;  se  lhe  apertava  o  antc-braço,  em 
1:400  dinheiros  ou  35  soldos;  finalmente,  se  lhe  locava  no  peito  (mamilas 
capulareril)  em  1:800  diniieiros  ou  4o  soldos  de  ouro.  Era  um  capriciío,  que 
custava  duas  vezes  mais  do  que  a  morte  d'uma  mulher  gravida;  e  (juem  não 
tinha  a  somma  exigida,  pela  alternativa  da  lei  perdia  o  nariz,  as  orelhas  ou  ou- 
tra parte  do  seu  corpo. 

Ha  todavia  taes  differenças  nas  multas  indicadas  pelos  textos  da  lei  sa- 
lica,  que  é  forçoso  confessar  a  impossibilidade  de  salisfactoriamente  as  explicar. 
Assim,  n'uma  das  redacções  d'essa  lei,  que  muito  bem  pôde  ser  a  mais  antiga, 
a  moi'te  d'uma  mulher  gravida,  provocaria  por  maus  tratas,  é  punida  Cf)m 
a  multa  de  28:000  dinheiros,  ou  700  soldos  de  ouro,  e  se  era  unicamente  o  feto 
o  que  perdia  a  vida,  a  multa  descia  a  8:000  dinheiros,  ou  200  soldos  de  ouro. 

A  violação  deve  ter-se  dado  mui  raramente  entre  os  povos  tcutonieos, 
mui  pouco  susceptíveis  de  arrebatamentos.  Mas  nem  por  isso  esse  crime  deixa 
de  ser  punido  na  legislação  barbara.  Se  uma  noivA  (druthe,  em  saxão)  indo  em 
procura  do  noivo,  se  encontrava  com  um  homem,  que  a  violava,  o  auctor  do 
attentado  não  podia  fazer  composição  com  a  victima,  a  menos  de  liie  pagar  8:000 
dinheiros  ou  200  soldos.  (Si  quis  puellain  sponsatam  ducenlem  ad  mariliun 
et  eam  in  via  aliquis  adsalierit  et  cuni  ipsa  violenter  ))i(eehalus  fuerit).  Esta 
composição  em  lingua  barbara  ciiamava-se  chaniijehaldo,  que  quer  dizer  preço 
de  prostituição.  Mas,  se  se  reconhecia  que  a  noiva  cedera  ao  homem  pela  sua 
vontade,  perdia  esta  a  sua  condição  de  ingénua,  se  era  da  classe  livre. 

A  multa  não  era  maior,  quando  um  homem,  viajando  em  companhia  de 
uma  mulher  livre,  attentava  contra  o  seu  pudor  (adsalierit  el  vim  ille  inferre 
pnesumserit.)  Desgraçado  do  criminoso,  se  não  era  de  condição  livre,  porque,  se 
era  escravo  ou  liberto,  era  castrado  ou  morto! 

A  lei  dos  Ripuarios  é  ainda  mais  rigorosa  contra  os  auctores  de  violên- 
cias praticadas  em  mulheres,  do  que  a  lei  salica.  O  rapto  d'uma  mulher  livre 
pop  um  escravo  não  admittia  composição  pecuniária.  O  nobre,  (jue  praticasse 
um  rapto  pagava  200  soldos.  Um  escravo,  que  seduzisse  uma  serva  e  lhe  cau- 
sasse a  morte  (a  lei  ripuaria  não  diz  como)  solTria  a  castração,  ou  resgatava  a 
pena  por  6  soldos  de  ouro;  se  a  serva  não  morria  em  consequência  da  seducção, 
ou  o  escravo  recebia  120  açoites,  ou  pagava  os  G  soldos  ao  senhor  da  serva. 

O  supplicio  da  castração,  que  com  tanta  frequência  apparece  nos  códigos 
bárbaros,  fazia-se  de  duas  maneiras  dilTcrentes,  constituindo  duas  penalidades 
distinctas :  ou  eram  apenas  arrancados  os  testiculos,  ou  se  sup|)rimiam  comple- 
tamente os  órgãos  sexuaes.  Esta  cruel  operação,  que  hoje  produziria  morle  certa, 
não  dava  então  logar  a  casos  falaes,  tal  era  a  habilidade  dos  operadores  e  a 
robustez  dos  operados. 

O  adultério  era  entre  os  bárbaros  castigado  com  a  máxima  severidade; 
mas  de  tal  não  se  conclua  que  esses  povos  tinham  uma  ideia  justa  d'este  crime, 
sob  o  ponto  de  vista  moral  e  social.  O  bárbaro,  visigodo,  ripuario  ou  franco, 
não  via  no  adultério  senão  um  roubo  carnal,  c  um  ataque  á  posse  legitima- 
mente adquirida.  O  roubo  de  40  dinheiros,  segundo  a  lei  salica,  era  punido 
com  a  i)ena  de  castração,  ou  com  a  multa  de  O  soldos  de  ouro;  o  roubo  duma 
mulher  a  seu  marido,  na  lei  dos  ripuari(js,  exigia  uma  composição  de  120  sol- 
dos de  ouro.  Se  unia  mulher  durante  a  ausência  de  seu  marido,  (|ue  podésse  sup- 
pòr  morto,  conlraiúa  relações  concubinarias  com  outro,  o  marido  no  seu  re- 
gresso tinha  o  direito,  segundo  o  código  dos  visigodos,  de  dispor  á  sua  vontade 
da  sua  mulher  e  do  successor,  que  esta  lhe  houvesse  dado,  podendo  vcndel-os, 
matal-os,  ou  perdoar-lhes. 


DA    PROSTITUIÇÃO  21 

A  lei  dos  ripuarios,  no  titulo  De  forbattudo,  traça  um  quadro  espantoso 
da  vingança  que  o  marido  podia  exercer  contra  o  seu  rival,  sul)  o  pretexto  de 
legitima  defeza.  Se  surprchendia  a  mulher  cm  llagrante  delicto  de  adultério,  e 
SC  o  cúmplice  pretendia  resistir-llic,  o  esposo  ultrajado  tinha  o  direito  de  matar 
o  homem  que  lhe  roubava  a  honra;  depois  do  que,  chamando  Icslemunhas, 
arrastava  o  cadáver  até  á  esquina  de  uma  rua  ou  praça,  e  ahi  se  quedava  ao 
lado  da  sua  victima  por  espaço  de  quarenta  dias,  relatando  aos  que  passavam 
as  circumstaneias  do  facto  c  proclamando  a  justiça  do  seu  proceder.  No  liin 
dos  quarenta  dias  entregava  o  cadáver  á  familia  e  ia  jurar  perante  o  juiz  que 
matara,  defendendo-se,  a  um  homem,  que  o  assassinaria  a  elle,  e  que  o  insul- 
tara, quando  devia  cahir-lhc  <aos  pés,  implorando  perdão. 

O  pae  tinha  igualmente  o  direito  de  morte  sobre  o  homem,  que  surpre- 
hcndera  deshonrando  a  filha.  Se  não  o  matava  no  acto,  a  lei  salica  chamava 
tlieodlidia  á  posse  de  uma  iilha  ingénua,  sem  o  consentimento  dos  pães.  O  ho- 
mem, que  se  contentasse  em  obter  o  consentimento  da  Iilha,  pagava  aos  pacs 
uma  multa  de  1:800  dinheiros  ou  45  soldos  de  ouro. 

A  lei,  todavia,  não  diz  se,  paga  a  multa,  o  violador  adquirira  o  direito  de 
continuar  as  relações  illegitimas  com  a  Iilha,  ou  se  era  obrigado  a  casar-se  com 
a  victima. 

A  lei  dos  burgondos  parece  esclarecer  esta  omissão  da  lei  salica,  dizendo 
que  uma  mulher,  indo  por  livre  vontade  para  a  casa  de  um  homem  (dd  viri 
cortem,)  e  voluntariamente  cohabitando  com  elle,  não  o  poderá  deter  contra  von- 
tade d'clle  n'csla  espécie  de  adultério  [is  cui  adulterii  dicitur  socielale  pei-mi.v- 
ta),  sendo  o  homem  unicamente  obrigado  a  pagar  aos  pães  da  concubina  o 
imposto  nupcial  (nuptiale  prelium,)  licando  livre  para  casar-se  com  quem  queira, 
sem  nada  ter  a  receiar. 

Na  lei  salica  não  ha  disposição  alguma  especial  relativa  á  prostituição 
propriamente  dita;  mas,  segundo  a  lei  dos  bárbaros,  pôde  alllrmar-se  que  em 
parte  alguma,  n'essas  remotas  épocas  da  historia,  esse  vicio  social  era  tole- 
rado, tendo  que  fugir  ou  esconder-se,  logo  que  um  facto  d'esses  era  conhe- 
cido, n'um  campo  ou  povoação  d'aquelles  povos  austeros  e  selvagens.  No  antigo 
direito  de  Ileswig,  no  qual  parece  ler-se  conservado  o  dos  francos  sicanibrios 
e  salicos,  diz-se  que  o  incesto  não  era  punido  por  lei,  quando  commctlido  com 
uma  mulher  libertina.  A  que  não  era  infame  e  não  havia  vendido  o  seu  corpo 
{qum  prkis  scorlum  non  fecerit,  nec  infamis  fuerit,)  pertencia  á  familia,  e  devia 
guardar  intactos  os  laços  de  parentesco;  ao  contrario,  a  que  a  todos  se  tivesse 
abandonado,  íicava  por  este  facto  fora  da  lei. 

O  antigo  direito  dos  godos,  que  também  se  refere  cá  lei  salica,  dispõe  que 
a  mulher,  convencida  de  ter  praticado. actos  de  prostituta,  fosse  expulsa  da  po- 
voação, como  indigna  de  formar  parle  da  ghilde  e  esta  expulsão  vergonhosa,  (diz 
o  commentador  J.  O.  Sliernimok,  no  seu  livro  De  jure  Sueonum  et  (lathorum 
vetusto,  '167i,  pag.  321)  era  pena  suíliciente  para  que  a  cortezã  expiasse  a  tor- 
peza da  sua  profissão  e  a  infâmia  da  sua  vida. 

A  lei  dos  ripuarios  não  impõe  desterro  á  mulher  ingénua,  que  se  aban- 
done a  muitos  homens,  mas  o  que  com  ella  fosse  surprehendido  (si  quis  cuni 
ingénua  puella  mcechatus  fuerit)  pagava  pelos  outros,  e  não  pagava  menos  de 
50  soldos  de  ouro;  esta  enorme  multa  ia  de  certo  engrossar  o  thesouro  do  chefe 
da  tribu  ou  do  rei. 

A  jurisprudência  dos  bárbaros  em  matéria  de  prostituição  é  rigorosa  na 
lei  dos  visigodos:  um  decreto  do  rei  Reearedo,  que  subiu  ao  throno  em  580, 
prohibe-a  absolutamente,  impondo-lhe  severas  penas. 

Reearedo  era  catholico,  e  sem  duvida  os  seus  decretos  foram  submettidos 
á  apreciação  dos  bispos,  que  ingeriam  a  jurisdição  ecclesiastica  em  todos  os  po- 
deres tenjporaes,  e  que  tinham  sob  sua  lutella  os  soberanos  que  por  elles  eram 


22  HISTORIA 

convertidos;  mas  já  vimos,  pelos  concilios,  (|iic  a  egreja  catliolica  se  conformava 
com  a  legislação  romana  em  muilos  pontos  de  moral,'  e  que  especialmente, 
sobre  a  prostitui(,-ão  publica,  fechava  os  olhos. 

As  leis  dos  bárbaros,  ao  contrario,  não  adniitliam  esta  tolerância  corru- 
ptora e  perseguiam  de  uma  maneira  implacável  as  mulheres  de  má  vida,  que 
deshonravam  a  povoação  onde  residiam  e  onde  faziam  estendal  dos  seus  vergo- 
nhosos hábitos. 

O  decreto  de  Recaredo  é  muito  explicito:  pôde  considerar-se  como  o  có- 
digo geral  da  prostituição  entre  os  bárbaros,  tanto  eiilre  os  francos  da  Bélgica, 
como  entre  os  visigodos  da  península  hispânica.  Se  uma  mulher  de  condição 
livre,  exercendo  publicamente  a  prostituição  na  cidade,  era  reconhecida  como 
jiroslilula  (meretrix  agnoscatur)  e  frequentemente  era  surprehendida  no  crime 
d'a(iuiícrio;  se  esta  desgraçada,  sem  pudor  algum,  mantinha  relações  illicitas 
com  muitos  homens,  devia  ser  presa  por  ordem  do  conselho  da  cidade  e  ex- 
pulsa d'ella,  em  presença  de  todo  o  povo,  depois  de  publicamente  ter  levado 
trezentos  açoites. 

Se  ousava  reapparccer  na  cidade  e  voltar  ao  seu  antigo  modo  de  vida, 
o  conselho  condcmnava-a  á  mesma  pena  e  escravisava-a,  pondo-a  sob  o  domí- 
nio de  qualquer  miserável,  que  com  rigorosa  vigilância  a  impedia  de  percorrer 
a  cidade. 

Quando  a  mulher  se  dava  á  prostituição,  com  assentimento  dos  pães,  es- 
tes pães  infames,  que  viviam  da  deshonra  da  filha  (pro  hac  iniqua  conscientUi) 
recebiam  cem  açoites. 

Toda  a  escrava  de  costumes  dissolutos  recebia  trezentos  açoites,  e  depois 
de,  por  ordem  do  juiz,  lhe  ler  sido  cortado  o  cabello,  eraenlregue  ao  senhor,  que 
era  obrigado  a  reliral-a  da  cidade,  guardando-a  em  logar  seguro,  para  que  alli 
nunca  mais  voltasse.  No  caso,  em  que  o  senhor  não  quizesse  vender  a  escrava 
e  lhe  pcrmillisse  o  regresso  á  cidade,  era  o  senhor  condemnado  a  trezentos  açoi- 
tes; a  escrava  tornava-se  então  propriedade  do  rei,  do  juiz,  ou  do  conde,  (jue 
a  dava  a  qualquer  pobre,  com  a  condição  da  escrava  não  poder  apparecer  no  lo- 
gar d'onde  fora  expulsa. 

Se  acontecia  depois,  que  esta  escrava  se  prostituía  em  proveito  de  seu 
amo,  {adqnirens  per  fornicalionem  pecuiiiam  (loini)io  ano)  o  senhor  participava 
da  vergonhosa  pena  da  escrava,  levando  cUe  lambem  trezentos  açoites. 

Com  o  mesmo  rigor  eram  tratadas  as  mulheres  presas  nas  povoações  de 
menos  importância,  e  rés  de  iguaes  crimes. 

O  juiz,  (|ue  por  negligencia  ou  corrujição  não  applicasse  o  decreto  de  Re- 
caredo, incorria  em  rigorosa  pena:  depois  de  .ser  demiltido,  recebia  por  ordem 
do  conselho  da  cidade  cem  açoites,  c  tinha  de  pagar  ao  seu  successor  30  sol- 
dos. 


CAPITULO  III 


SUMMARIO 


Os  francos  Tencedores  dos  paulezes  não  foram  influenciados  pela  cornipçlo  patlo-romanana. —  Conversio  do 
rei  Clodovcu. —  Formarão  da  sociedade  franceza. —  Estado  da  prostituição  no  reinado  dos  merovintrios. —  Os  pryne- 
ceus. —  A  prostituição  concubinaria.— Retrato  pliysico  e  moral  dos  francos.— Divindade-S  prolificas  dos  francos. — 
Frea  ou  Frigia,  mulher  de  Vovau. —  Liher  e  Libera.—  Estado  moral  dos  francos  depois  da  sua  conversão  ao  cliristia- 
nismo. —  Os  nobres.— Os  plebeus.- Esforços  do  clero  gaulez  para  moralisar  os  francos.- Condição  das  mulheres 
francas. —  Os  matrimónios  salicos. —  O  presente  da  manhã. —  Humilhação  voluntária  das  mulheres  francas  para  com 
seus  ma!"idos. —  A  roca  e  a  espada. —  Multiplicidade  das  relações  concubinarias  no  reinado  da  primeira  raça. — Tole- 
rância forçada  da  egreja  para  com  as  escravas  concubinas. —  Os  differentes  graus  de  associação  conjugal. —  O  serai- 

matrímonio  e  o  matrimonio  da  mão  esquerda. —  Estado  da  familia  na  França. —  Os  bastardos Descripção  d'um  gy- 

neceu  franco. —  Origem  dos  serralhos  do  mahometismo. — Os  gyneceus  dos  romanos  no  império  do  Oriente. — Gy- 
neceus  dos  reis  carlovingios.— Capitulares  de  Carlos  Magno.—  Diflerenles  cjithegorias  de  gyneceus. 


s  FRANCOS,  quo  (Icsile  meiados  do  século  quinto  aA-ançavam  passo 
]  I  a  passo  pelas  Gallias,  não  se  fundiram  logo  com  os  gallo-romanos 
]|que  submettiam  ;  os  francos  conservaram  os  seus  costumes,  a 
sua  religião  e  os  seus  usos,  sem  se  deixarem  corromper  pelo  con- 
tacto da  brilhante  e  voluptuosa  civiiisação,  que  encontravam  nas 
Uj  cidades  conqiiistailas;  despresavam  tudo  que  não  provinlia  dos 
seus  maiores  e  pretendiam  guardar  a  sua  individualidade' entre  as  differentes 
raças,  as  difTerentes  religiões  e  os  diversos  estados  políticos,  que  se  haviam 
agglomerado  no  território  das  Gallias.  Mas,  ao  mesmo  tempo,  procuravam  não 
transformar  o  género  de  vida  e  caracter  dos  primitivos  possuidores  do  solo; 
nem  lhes  impozeram  a  obrigação  de  os  imitar,  nem  mesmo  lhes  faziam  sollrcr 
a  influencia  da  visinhança  e  dos  exemplos.  A  separação  entre  os  gallo-romanos 
c  os  bárbaros  conservou-se  tão  distincta,  em  todos  os  paizes  onde  se  estabele- 
ceu o  dominio  franco,  que  se  puniiaem  vigora  lei  sádica  simultaneamente  com  o 
código  theodosiano,  que  tanto  tempo  vigorou  nas  Gallias,  assim  como  uds  restos 
do  império  romano.  As  duas  legislações,  que  tinham  força  de  lei  sobre  os  ven- 
cedores e  os  vencidos,  formavam  um  código  especial  de  leis  mundanas  {lex 
nnnulana,)  na  qual  cada  um  encontrava  o  seu  direito,  segundo  a  sua  origem. 
Mais  tarde,  o  código  de  Theodosio  foi  substituído  peio  de  Alarico  ir,  rei 
dos  visigodos,  e  este  em  seguida  peio  do  imperador  Justiniano,  para  a  juris- 
prudência romana.  Emquanto  á  jurisprudência  barbara,  só  foram  accrcscenta- 
das  á  lei  salica  as  leis  dos  allemães,  dos  bavaros  e  dos  ripuarios.  Esta  união 
de  duas  jurisprudências  tão  diversas  e  oppostas  suflicientemente  demonstra  que 
os  francos  não  tinham  pretendido  sujeitar  ao  seu  código  nacional  os  povos 
com  que  evitavam  misturar-se,  e  igualmente  evidenceia  que  não  acceitavani 


24  HISTORIA 

para  a  si  auctoridade  das  leis  dos  povos  que  cscravisavam.  Fica,  pois,  demons 
trado  que  a  prostituiçião,  tendo  um  regimen  legal  nas  cidades  gallo-romanas,  con- 
tinuou existindo  nas  mesmas  condições,  depois  da  conquista  dos  francos,  sem 
chegar  a  corromper  a  rude  c  altiva  austeridade  dos  conquistadores. 

Os  principaes  chefes  das  trihus  francas  tinham  sido  chamados  ás  dallias 
pelos  bispos  catholicos,  que  preferiam  conservar  a  sua  auctoridade  soh  o  domi- 
nio  dos  bárbaros  a  luclar  contra  as  perseguições  romanas.  Estes  chefes  fran- 
cos nada  mais  fizeram  do  que  conformar-sc  com  um  tratado  secreto,  ajustado 
com  os  membros  influentes  do  clero  gauiez,  respeitando  as  cgrejas,  os  mosteiros 
e  o  culto  chrislão.  Não  occupavam  com  as  suas  hordas  guerreiras  o  interior 
das  cidades,  que  haviam  tomado  pela  força,  ou  que  lhe  haviam  aberto  as  por- 
tas; acampavam  em  volta  d'ellas,  nas  aldeias,  nas  quintas,  nos  campos  fortifi- 
cados entre  os  seus  carros  carregados  do  producto  do  saque.  Estavam  sempre 
promplus  para  entrar  em  campanha,  c  a  eniprciíendcr  uma  nova  guerra;  viviam 
isolados,  e  evitavam  todas  as  relações  com  os  indígenas  gaulezes  e  com  os  co- 
lonos romanos. 

A  fusão  das  raças  e  dos  costumes  só  foi  determinada  pela  conversão  de 
Clodoveu  c  pela  dos  sicambros  ao  christianismo.  Então  pensaram  os  francos  em 
fivar-se  em  a  iXcustria  e  na  .\ustrasia;  então  a  divisão  das  terras  c  dos  servos 
cm  proveito  dos  chefes  da  nação  franca  creou  uma  sociedade  nova,  que  não 
tardou  em  absorver  completamente  a  sociedade  gailo-romana. 

Fazendo-se  christãos,  os  francos  fizeram-se  também  gallo-romanos,  sem 
por  isto  perderem  a  sua  individualidade  barbara.  Por  espaço  de  mais  de  dois 
séculos,  sob  os  auspícios  das  instituições  merovingias,  se  desenvolveu  aquella 
sociedade  franceza,  composta  de  tantos  e  tão  diversos  elementos  e  contendo  em 
si  os  germens  da  civilisação  christã. 

Desde  Clodoveu  até  Carlos  Magno,  os  bispos  foram  os  verdadeiros  legisla- 
dores, e  o  código  ccclesiastico  dominou  o  código  de  .lustiniano  e  as  leis  teuto- 
nicas.  A  prostituição,  condemnada  pela  egreja,  não  estava  sob  o  império  da  legis- 
lação, e  por  isso  mesmo  a  luxuria  campeava  mais  desaforadamente.  Nas  cida- 
des governadas  pelos  bispos,  não  havia  cortezãs,  prostitutas  que  exercessem  este 
vergonhoso  mister;  mas  em  toda  a  parte,  em  cada  feudo  {feudum)  em  cada 
vivenda  campestre  (mansio)  havia  uma  espécie  de  serralho,  ou  gyneccu,  cm  que 
mulheres  livres  ou  escravas  trabalhavam  de  agulha  ou  fiavam,  e  em  que  o  se- 
nhor encontrava  prazeres  fáceis,  e  sempre  muita  sollicitude  em  dispensar-lhe 
amorosas  caricias.  .4.  prostituição  concubinaria  substituiu  a  outra,  até  que  o  ma- 
trimonio se  pôde  libertar  dos  escândalos  que  o  deshonravam. 

Os  francos,  já  o  dissemos,  desconheciam  a  sensualidade,  quando  invadiram 
as  Ciallias:  unicamente  exerciam  os  seus  dii-eitos  conjugaes  para  procirar;  para 
elles  um  dever  sagrado  era  dar  muitos  combatentes  á  tribu;  pois  que,  segundo 
as  palavras  de  Libanio,  no  seu  discurso  ao  imperador  Constantino  «toda  a  sua- 
felicidade  é  a  guerra,  o  seu  verdadeiro  elemento;  o  repouso  c-lhes  insuppor- 
tavel,  e  nunca  os  seus  vi.'Tinhos  os  poderam  resolver  ou  obrigar  a  viver  soec- 
gados.»  E  assim  não  tinham  tempo  para  pensar  cm  voluptuosas  distracções, 
aquelles,  cujos  costumes,  segundo  diz  Eusébio,  {]'ida  de  Conslnntino,  liv.  i, 
cap.  xxv)  se  assimilhavam  a  animaes  ferozes.  Sidónio  não  os  pinta  com  mais 
risonhas  cores. 

«O  seu  amor  pela  guerra,  diz  este  auctor,  nasce  com  elles.  Se,  esmaga- 
dos pelo  numero  ou  peia  desvantagem  da  posição,  cedem  á  morte,  nunca  cedem 
ao  medo.  Mesmo  na  derrota,  parecem  invenciveis,  e  primeiro  se  lhes  esvac  a 
vida,  (lo  (|ue  lhes  foge  o  valor.» 

Não  tiniiam  pois  propensão  para  os  enervantes  prazeres  do  amor  «nem 
amavam,  nem  procuravam  ser  amados  pelas  esposas»,  diz  Tácito,  faltando  dos 
germanos,  que  em  nada  dilleriam  dos  francos  do  século  quinto ;  só  pensavam 


DA   PROSTITUrÇÃO  25 

cm  ser  tcrrivcis  cm  parecerem  altivos  c  dominadores  aos  seus  inimigos.  Para 
tal  clTcilo  produzirem,  tingiam  o  cabello  louro  de  vermelho,  c  cortavam-o  atraz, 
puchando-o  do  alto  da  cabeça,  cahindo-lhe  na  frente  em  fran(,'as,  ou  faziam  dVllc 
um  penacho,  encimando  o  franco.  (ísla  abundância  de  cabello  era  um  emblema 
da  sua  força  pbysica  e  um  jjrivilcgio  de  raça  ;  intiluiavam-se  fiwrreiros  ca- 
belluãos,  e  unicamente  usavam  bigodes,  que  muitas  vezes  lhes  cabiam  ate  meio 
do  peito. 

O  seu  trajar  ordinário  também  se  não  prestava  a  uma  vida  voluptuosa  c 
dcscançada ;  estreitos  vestuários  de  couro  de  veado  apertavam  os  seus  vigoro- 
sos membros,  prestando-se  a  todos  os  movimentos  e  nexões;  um  amplo  tala- 
barte suspendia  uma  espa<la  curva,  chamada  scramasax  e  uma  acha  de  dois 
cortes  pcndia-lhes  da  cintura.  Nunca  abandonavam  as  suas  armas,  nem  mesmo 
nos  festins  nocturnos;  a  cerveja  transbordava  dos  seus  copos  de  barro  negro 
ou  vermelho  todas  as  vezes  que  repetiam  uma  copla  ou  um  canto  de  guerra.  Clie- 
gavam  sempre  ébrios  aos  leitos  das  suas  esposas  ou  escravas  e,  como  se  tives- 
sem vergonha  de  ver  um  arinian  (heere  inan)  um  homem- de  armas  nos  braços 
de  uma  mulher,  muito  antes  de  amanhecer  levantavam-sc. 

Comtudo,  os  francos  tinham  uma  divindade,  que  presidia  aos  matrimónios, 
ou  antes  cá  geração,  esta  deusa  era  Frca  ou  Frigga,  mulher  de  Wodan,  o  deus 
da  guerra  e  da  matança.  Ella  reparava  os  males  causados  pelo  seu  feroz  es- 
poso ;  dava  a  vida  depois  d'este  ter  dado  a  morte,  distribuía  pelos  bravos  o  re- 
pouso e  a  voluptuosidade  {pacem  nolaplaleincjue  lanjiens  mortalibm-,  diz  Adam 
de  Brema,  na  sua  Historia  eclesiástica.) 

Adam  de  Brema  aecrescenta  que  os  adoradores  d'esta  Vénus  do  Norte  a 
representavam,  dando-lhe  o  attributo  mais  caracteristico  do  deus  Priapo  (ciijm 
eliam  simulacnnn  inijenti  Priapo :)  mas  nenhum  outro  testemunho  pôde  ser 
citado  cm  apoio  d'csta  singular  tigura  da  deusa  Frca  e  vèr-nos-hiamos  muito 
embaraçados,  para  justficar  com  aucloridades  antigas  esta  opini.ão  de  Adam  de 
Brema.  Seja  como  fòr,  esta  deusa  não  era  o  symbolo  da  libertinagem  e  das  pai- 
xões obscenas,  mas  do  acto  divino  da  geração,  representando  a  natureza  crea- 
dora. 

Com  mais  visos  de  verdade  se  devem  attribuir  ao  culto  de  Frca,  do  que 
ao  de  Priapo,  a  maior  parte  das  tradições  gallicas,  que  mui  geralmente  vogavam 
nos  togares  occupados  pelos  francos,  e  por  esta  razão,  nos  idolos,  nos  monu- 
mentos, nos  troncos  de  arvore  esculpido,  se  deve  vèr  antes  a  esta  Vénus  do 
norte  do  que  a  Priapo.  Nas  ruinas  de  muitos  acampamentos  de  francos,  nas 
margens  de  Rbeno,  teem  sido  descobertas  muitas  ollcrendas  de  bronze  c  mar- 
fim, que  deviam  ter  sido  dons  de  mulheres  á  deusa  Frca. 

Nos  fins  do  quarto  século,  quando  a  deusa  Frca,  adorada  pelos  francos  de 
Yessel,  introduzira  talvez  uma  nova  A'enus  no  paganismo  romano,  ergueram-sc 
templos  ás  divindades,  que  acaso  eram  de  origem  franca  e  que  Santo  Agostinho, 
na  sua  Cidade  de  Deus,  nos  apresenta  como  concorrendo  uma  e  outra  para  os 
actos  mais  secretos  da  geração.  Uma  e  outra  occupavam  o  mesmo  templo,  o  ór- 
gão sexual  do  homem  estava  collocado  junto  do  órgão  sexual  feminino,  á  ma- 
neira d'essas  divindidades,  que  se  chamavam  Pae  e  Mãe. 

Santo  Agostinho  cita  uma  passagem  de  Varrão,  a  propósito  das  attribui- 
çõcs  de  Liber  e  Libera,  cm  que  se  não  reconhece  a  Frca  dos  francos. 

«Uberum  á  Liberamcnta  appelatum  volnut,  diz  elle,  quod  mares  in coeu.ndo, 
per  ejus  beneficium,  emisis  seminebus,  liberentur.  lloc  idem  in  feminis  aijere 
Liberam,  quani  etiam  ]'enerem  putant,  qaod  et  ipsas  perhibeant  semina  emit- 
tere,  et  ab  hoc  Libere  eamãem  virilem  corporis  partem  in  templo  poni  femineam 
LibercR.» 

Mas  Clodoveu  baptisado  por  S.  Rcmigio  destruiu  os  idolos  que  elle  pró- 
prio adorara,  e  os  francos  seguindo-lhc  o  exemplo  fizeram-sc  baptisar  e  rcnun- 

Hjsioru  da  Pbmtituiçío  Tomo  ii— Folha  4. 


26  HISTORIA 

ciaram  .los  deuses  dos  seus  maiores.  O  calholicismo  d"estes  barljaros  fui  por 
muilo  tempo  Ião  grosseiro  couio  o  fora  a  sua  idolalria;  nem  eomprehendiam  o 
dogma,  nem  a  moral,  nem  a  religião,  que  iiaviam  abraçado  e  que  para  elles  se 
limitava  a  cerlas  praticas  e  cercmonias.  • 

Os  bispos  empregaram  com  bom  êxito  a  sua  auctoridadc  ecciesiasliea 
para  corrigir  os  costumes  dos  sicami)ros:  estiveram  em  constante  lucta  contra 
estes  bárbaros,  que  unicamente  reconlieciam  como  leis  os  seus  instintos  c  pai- 
xões brutaes:  empregaram  a  cxcommunlião,  c\pondo-sc  a  injurias,  maus  tra- 
ctos.c  mesmo  á  morte,  ao  reprimir  os  seus  neopbytos,  que  se  entregavam  com 
ardor  selvagem  a  todos  os  excessos,  escarnecendo  do  sacramento  do  matrimo- 
nio. >"aquelle  tempo  os  reis  tinham  um  gi-ande  numero  de  concubinas,  succe- 
dendo-se  umas  ás  outras,  e  ás  vezes  sinuillaneamenle.  A  egrcja,  lundando-se 
nas  decisões  unanimes  dos  concílios,  só  permitlia  a  cada  secular  uma  mulher, 
quer  fosse  esposa  legitima,  quer  fosse  concubina,  segundo  o  uso  da  lei  romana 
sobrevivente  ao  polvlhcismo.  O  clero  gosava  dos  mesmos  privilégios  c  era  fre- 
quente ver  um  bispo  com  a  sua  esposa,  e  um  sacerdote  qualquer  com  a  sua 
concubina. 

Mas  os  francos  não  se  contentavam  com  a  tolerância  cbristã,  que  a  cada 
um  ])ermillia  uma  esposa  ou  concubina;  (|uçriam  não  si)  mudar  de  mulheres 
frequentemente,  formando  novas  uniões  legitimas  ou  auctorisadas,  mas  lambem 
ler  junto  da  esposa  legitima  muitas  concubinas,  que  lhe  comparlilhasscm  do 
leito.  Os  francos  tinham  no  ponto  mais  relirado  da  sua  habilarão  um  gyneccu 
de  escravas,  que  lhes  davam  lilhos,  comparliliiando  alIeiMialivamenle  do  leito  do 
senhor.  Era  o  costume  de  todos  os  bárbaros,  que  manifestavam  a  sua  nobreza  c 
riqueza  com  o  numero  das  suas  mulheres,  dos  seus  cavallos  c  dos  seus  cães. 

Na  plebe,  principilmentc  entre  os  pobres,  o  matrimonio  era  monogamo, 
por  falia  de  meios  para  sustentar  muitas  mulheiTs;  mas  a  esposa  ou  concu- 
bina plelieia  renovava-se  frcfiuenlemenle,  cedendo  o  logar  a  outra,  visto  que  o 
divorcio  não  linha  maiores  formalidades  do  que  o  casamento. 

Comprehendc-se  bem  o  grande  trabalho  do  clero  gaulcz  em  combater  os 
costumes  licenciosos  d'aquclles  bárbaros,  (jue  se  revoltavam  contra  toda  a  con- 
trariedade e  (|ue  viam  um  acto  de  escravidão  iiiloleravel  cm  cada  prescrip(;ão  d;i 
lei  divina  e  humana.  Os  francos  não  permil(i;nii  que  o  sacerdolc  julgasse  e  con- 
demnasse  o  (pie  se  occullava  no  seu  lar:  conlribuiam  voluiilariamenle  para  as 
dcspe/.as  do  culto;  dislribuiam  muitas  e  avultadas  csuKdas,  davam  ouro  aos 
punhados  para  a  construc,í.'ão  e  adorno  das  egrejas,  para  os  relicários  e  scpulchros 
dos  santos;  mas  eram  indóceis  c  i-eheldes,  quando  o  seu  proceder  era  objecto 
das  censuras  e  analhemas  dos  bispos. 

Também  se  não  eonforma\am  como  os  preceitos  do  Evangelho,  que  pro- 
clamavam a  igualdade  da  mulher  ao  homem;  a  mulher,  segundo  os  bárbaros, 
era  antes  a  sua  escrava  do  que  a  sua  companheira,  c  esta  escrava  não  era  eman- 
cipada pelo  matrimonio,  ficava  por  este  facto  sujeita  a  um  jugo  mais  despó- 
tico. 

Todas  as  mulheres  entre  os  francos  haviam  aeceitado  esta  condição  de 
servidão  e  inferioridade,  que  lhes  era  dada  pelo  sexo,  e  nem  sequer  podiam  agra- 
decer a  protecção  do  christianismo,  porque  a  cxcommunlião  que  feria  os  ma- 
ridos ou  senhores  as  alcançava  também  a  ellas,  e\pondo-as  a  ódios  muitas  ve- 
zes sanguinários.  Com  cnVito,  o  franco  que  repudiasse  sua  esposa  preferia  ma- 
tal-a  a  aceeilal-a  novamente,  obedecendo  ás  intimações  dos  bispos  e  curvan- 
do-se  sob  os  analhemas  da  egreja. 

Estes  matrimónios  ou  concubinatos  não  eram  todos  consagrados  pela  ben- 
ção religiosa;  mas  sim  auetorisados  pela  lei  salica,  mediante  o  soldo  e  o  di- 
nheiro, que  a  mulher  recebia,  como  .symbolo  do  contrato  nupcial ;  contraio 
feito  deante  de  testemunhas,  mas  não  escriplo,  nem  a.ssignado,  se  não  no  caso 


DA    PROSTITUIÇÃO  27 

extraordinário,  cm  que  o  es|)oso  no  dia  seguinte  ao  das  núpcias  confirmava  o 
dote  dado  à  esposa,  dcitando-lhc  um  punhado  de  palha  no  seio  e  apertando-lhe 
o  dedo  niinimo  da  mão  esíiucrda.  O  presevie  da  manhã  (merijben  ijabe)  era 
quasi  o  único  hiço  da  união  conjugai,  começado  na  véspera  com  a  entrega  d'um 
soldo  de  ouro  e  um  dinlieiro  de  jirata,  que  o  esposo  depositava  nas  mãos  da  es- 
posa. Estas  moedas  parecem  ter  sido  a  tarifa  (itramiion)  geral  e  uniforme,  que 
uma  mulher,  fosse  qual  fosse  a  sua  classe,  devia  reclamar  como  preço  da  sua 
virgindade. 

Depois  de  ter  acceitado  estas  moedas,  a  mulher  considerava-se  vendida 
á(|U(lle  homem  e  não  se  pertencia,  cmquanto  o  divorcio  ou  a  morte  não  rom- 
pesse as  cadeias  d'essa  escravidão. 

rode  ajuizar-se  da  suhmissão  de  uma  esposa  a  seu  marido  pelos  termos 
que  empregava,  ao  dirigir-líie  a  palavra.  «Senhor  e  meu  esposo,  di/ia,  cu  tua 
humilde  escrava.»  (Doinini  e  iuijalis  mei  eijo  ancilla  tua).  E'  assim  que,  nas 
Formuliis  de  Marcolfi)  (liv.  ii,  cap.  27,)  falia  a  mulher  a  seu  amo  c  senhor. 

S()  havia  uma  circumslancia,  em  (]Lie  uma  mulher  casada  podia  suhtra- 
hir-sc  á  escravidão  c  erguer-sc  do  seu  ahalimento.  Quando  a  filha  de  pacs  li- 
vres associava  a  sua  vida  á  d'um  escravo,  entregando-se-lhe  por  amor  ou  por 
imprudência,  seguia  a  condição  d'csle  espo.so  indigno  d'ella  e  tornava-se  es- 
crava como  elle.  Mas  a  lei  (los  ripu.irios  facultava-lhc  sempre,  em  honra  da 
sua  familia,  os  meios  de  rcc(>n(|MÍ.^Iar  a  liherdade.  A  instancias  de  um  parente 
ou  amigo,  a  esposa  requeria  para  ser  citada  perante  o  rei  ou  conde,  que  inda- 
gavam do  .seu  matrimonio  deshonroso ;  ella  confessava  o  facto  c  entregava-sc 
á  justiça  do  conde  ou  do  rei.  Este  fazia  comparecer  o  marido  c  acareava-o  com 
a  mulher,  a  quem  em  silencio  offerecia  uma  roca  e  uma  espada. 

Sc  a  mulher  oplava  pela  roca,  ficava  para  sempre  escrava  e  á  mercê  do 
homem,  a  quem  amara  o  hastante  para  tudo  lhe  sacrificar;  mas  se  escolhia  a 
espada  (içava  novamente  livre,  matando  o  homem  que  a  escravi.sara.  I)'estc 
modo  lavava  a  vergonha  da  sua  prostituição  com  o  sangue  do  culpado. 

A  conucnla  era  o  emhicma  ou  symholo  da  condição  servil  (|ue  o  matri- 
monio imjiunha  ás  mulheres.  Eslas  não  mais  appai'eciam  em  puhlico;  não  man- 
tinham relações  com  homens;  S(í  sahiam  veladas  c  cohertas  com  amplos  ves- 
tidos, que  nem  sequer  deixavam  ver  as  mãos  e  os  pés,  passavam  a  vida  fiando 
linhos  e  lã,  tingindo  tecidos  c  criando  os  tilhos.  Sempre  que  os  historiadores 
dos  tempos  merovingios  nos  introduzem  nos  aposentos  das  mulheres,  apresen- 
tam-as,  mesmo  rainhas  que  sejam,  occupadas  nos  trahalhos  domésticos,  longe 
dos  olhares  curiosos  e  dos  desejos  pivifanos. 

As  relações  concuhinarias,  que  convinham  aos  costumes  dos  francos,  che- 
garam a  multiplicar-se  tanto  soh  o  reinado  da  primeira  raça,  que  era  preciso 
(jue  um  franco  fosse  muito  pohre  para  não  ter  em  sua  casa  mais  do  que  uma 
mulher  e  duas  escravas.  A  egreja  fechava  os  olhos  a  estas  licenciosidades  em 
quanto  podia  fingir  ignoral-as  e  em  quanto  a  ella  se  não  recorria  para  as  fa- 
zer ces.sar.  Levava  a  sua  c^indcsccncia  e  respeito  pelos  senhores  do  paiz  até 
pcrmittir-lhes  relações  amorosas  com  as  suas  escravas,  sem  formalidade  al- 
guma matrimonial.  Silvano,  que  era  gaulez,  e  escreveu  cm  melado  do  século 
quinto,  diz-nos  que  a  tolerância  ecciesiaslica  para  com  as  concuhinas  fora  tão 
mal  interprctrada,  que  a  maior  parte  dos  que  viviam  em  concubinato  se  julga- 
vam legitimamente  casados,  e  só  tinham  por  esposas  as  escravas  com  quem 
cohahitavam  maritalmente,  (ad  tantum  res  impnidentiam  venit  ut  ancillas  suas 
tDulti  íixores  putent,  atque  utinam  sicut  pxilantur  esse  quasi  cônjuges  ita  sola 
haberenlur  uã-ores.) 

Mr.  Cordemoy,  apoiando-se  na  auctoridadc  de  Cujas,  não  se  lembrou  que 
este  douto  jurisconsulto  estudara  mais  o  direito  romano  que  o  direito  bárbaro. 
O  concubinato  entre  os  francos  c  os  gallo-romanos,  que  não  tardaram  muito  em 


28  HISTORIA 

imilar  os  seus  dominadores,  nem  sempre  tinlia  o  caracter  de  seiui-malrimonio, 
dado  pela  jurisprudência  romana,  separava-sc  d'elle  extraordinariamente,  pois 
qup  sem  cessar  se  renovava  e  mesmo  compreliendia  um  numero  avultado  de 
mulheres,  vivendo  sol)  o  re^-imcn  concuiiinario.  Verdade  é  que  em  certas  cir- 
cumstancias,  um  rei,  um  magnate,  um  nobre  casado  com  uma  mulher  de  baixa 
condirão,  não  lhe  outhorgava  o  titulo  d'esposa,  mas  o  de  concubina  que  não 
implicava  a  celebração  do  matrimonio  chrislào.  Ordinarimente,  a  concubina  era 
uma  escrava,  que  dormia  no  leito  do  senhor  e  que  podia  fazer  pi-evalecer  uma 
espécie  de  legitimidade  nupcial,  emquanto  que  o  senhor  não  escolhesse  nova 
concubina. 

Os  francos,  principalmente  os  chefes,  tomavam  concubinas,  casando  se- 
gundo o  ritual  franco,  dando  o  soldo  e  o  dinheiro  para  não  terem  a  impossibi- 
lidade de  divorciar-se.  A  egreja  nada  tinha  que  ver  com  as  uniões  que  ella  não 
fizera,  e  se  a  seu  pezar  alguma  vez  intrevlnha,  era  quando  um  grande  escân- 
dalo a  obrigava  a  abandonar  a  sua  neutralidade,  mas  fazia  semj>rc  isto  com 
a  maior  prudência  e  tacto. 

Insistimos,  portanto,  era  acreditar  que,  sob  o  reinado  da  primeira  e  ainda 
da  segunda  raça  dos  nossos  reis,  chamava-sc  eiífosa  á  mulher  casatia,  segundo 
o  ceremonial  da  egreja  e  concubina  á  mulher  casada,  segundo  a  lei  salica  :  Se- 
cundam leyem  salicam  et  aniiqiiain  cunsuetuãinem,  dizem  as  Formulas  de  Mar- 
colfo  sobre  o  soldo  e  o  diniiciro,  que  constituíam  o  matrimonio  civil  entre  os 
francos. 

Sendo  os  concubinatos  estranhos  por  sua  natureza  á  sancção  ecclcsias- 
tica,  só  dependia  do  capricho  dos  interessados  fazel-os  e  desfazel-os  sem  som- 
bras de  escrúpulo.  Tal  foi  por  espaço  de  três  séculos,  o  estado  da  familia  em 
França  ;  ao  lado  da  mulher  legitima,  única  reconhecida  pela  egreja,  havia  uma 
ou  duas  concubinas,  a  quem  o  dono  da  casa  dava  maior  ou  menor  considera- 
ção, conforme  o  seu  proceder  o  as  suas  sympathias.  A's  vezes  estas  concubi- 
nas eram  tão  numerosas  sob  o  mesmo  tecto  que  o  homem,  que  as  mantinha,  se 
via  obrigado  a  despedir  algumas,  para  que  todas  não  morressem  de  fome. 

O  matrimonio  salico  só  foi  usado  para  com  as  mulheres  de  prigeni  franca, 
que  concubinariamcnte  casavam  com  liomens  da  sua  raça.  Estas  concubinas, 
em  geral,  reconheciam  a  inferioridade  da  sua  posição  para  com  a  mulher  legi- 
tima, casada  christãmente,  e  esta  satisfeita  com  a  sua  superioridade,  deixava-as 
cumprir  os  seus  deveres  concubinarios  sem  ciúmes  nem  despeitos. 

Os  filhos  nascidos  d'esle  concutjiiiato  não  gosavam  dos  mesmos  direitos 
auferidos  pc  los  havidos  de  matrimónios  legilimos  ;  mas  comtudo  tinham  uma 
semi-legitimidade  e  a  sua  bastardia  não  lhe  imijrimia  nenhuma  nódoa  infa- 
mante, pois  que  com  orgulho  se  intitulavam  bastardos  de  casa.  Viviam,  sim, 
em  estado  de  inferioridade  e  de  respeitosa  submissão  para  com  seus  irmãos, 
filhos  da  esposa  legitima,  os  quaes  exclusivamente  represerilavam  a  linha  here- 
dilaria  e  repartiam  entre  si  os  bens  patrimoniacs. 

Ao  que  parece,  as  concubinas  tinham  unicamente  o  lim  de  supprir  as  in- 
sufliciencias  ou  impedimentos  da  esposa,  quando  esta  se  afastava  do  leito  con- 
jugal por  cau.sa  do  menstruo,  de  enfermidades  ou  da  lactação. 

Havia  muitas  cathegorias  ou  graus  de  concubinas  ;  umas,  de  condição  li- 
vre c  da  raça  franca,  julgavam-se  tão  bem  casadas,  como  se  a  egreja  ti- 
vesse santificado  a  sua  união;  outras,  de  condição  servil  e  de  origem  estran- 
geira, nunca  podiam  ter  a  considei-ação  da  mulher  legitima;  a  serva,  que  dor- 
mira com  o  seu  senhor,  apenas  conservava  uma  certa  auctoridade  nas  suas  coni- 
])anheiras,  que  de  bom  grado  lira  acatavam ;  esta  auctoridade  augmentava  á  me- 
dida (|ue  o  tempo  lha  ia  consagrand(»  e  que  o  senhor  (^(/o//ííkíí.s)  lh'a  t:onlirmava 
com  a  sua  bencvcdcncia. 

Todas  as  mulheres,  aggregadas  a  uma  familia  na  qualidade  de  esposas,  con- 


DA    PROSTITUIÇÃO 


29 


cubinas  e  escravas,  viviam  juntas  no  interior  cia  casa,  onde  homem  nenhum 
podia  entrar  sem  licença  do  senhor.  Este  logar  reservado  para  as  mulheres  era 
chamado  gyneceu  entre  os  francos  e  entre  os  gallo-romanos  {(jineceuin.)  A  pa- 
lavra corrompeu-sc  de  dillerentes  modos,  segundo  o  dialecto  dos  bárbaros  que 
a  adi)plaram,  e  por  isso  se  encontra  escripto  genecium,  (/enicium,  (jenecoeum  e 
(jenizeum,  nos  auclores  escriptores  do  latim  vulgar.  O  gyneceu  era  mais  ou  me- 
nos espaçoso,  conforme  a  capacidade  da  casa;  compunha-se  de  muitos  compar- 
timentos, ou  corpos  de  edifício  e  ordinariamente  continha  muitas  ollicinas,  onde 
as  mulheres  se  entregavam  aos  trabalhos  domésticos. 

A  dona  da  casa,  a  esposa  ou  concubina  predilecta,  tinha  sob  a  sua  di- 
reção os  traballios  do  gyneceu,  que  mais  particularmente  diziam  resjjcilo  á  in- 
dustria dos  tecidos  e  á  confecção  de  roupas.  N'aiiuelle  tempo,  como  em  toda  a 
antiguidade,  os  homens  envergonhar-sc-hiam  de  pòr  mãos  em  trabalhos  feminis 
{muliere  opuíi  ;)  só  se  applicavam  a  trabalhos  de  martello. 

Antigas  chronicas  estão  de  accordo  n'este  ponto:  que  os  trabalhos  cm  lã  per- 
tenciam especialmente  ao  gyneceu  do  norte ;  e  os  trabalhos  em  seda  ao  gyne- 
ceu do  meio  dia.  Papias  diz  que  o  gyneceu  se  chama  lexlinuin  «porque  as  mu- 
lheres, que  n'elle  se  reúnem,  trabalham  em  lã»  {(juolibi  conceiílius  femiaaruin 
ad  opas  lanifici  exercendum  conveníal ;)  e  Pollux  entende  que  ao  gyneceu  se 
poderia  chamar  sedaria,  porque  n'elle  as  mulheres  se  occupam  nos  trabalhos  em 
seda. 

Estes  gyneceus  com  destino  análogo  existiam  entre  os  romanos  do  impé- 
rio do  Oriente,;  em  maior  escala  estavam  generalisados  em  Constantinopla,  e 
não  pôde  duvidar-se,  portanto,  que  delles  se  originaram  os  serralhos  que 
o  mahometismo  tornou  menos  laboriosos,  desíinando-os  unicamente  ao  amor. 

Entre  os  romanos  do  Oriente  havia  gyneceus  para  os  dois  sexos,  que 
n'elles  trabalhavam  separada,  ou  colleclivamcntc,  segundo  a  vontade  do  senhor; 
mas  n'esses  gyneceus  so  eram  admitlidos  os  escravos  para  sotlrereni  castigo 
mais  rigoroso. 

Os  gyneceus  dos  imperadores,  dos  magistrados  e  dos  oíTiciaes  imperiaes 
eram  ollicinas  penitenciarias,  para  onde  se  mandavam  pelo  tempo  |)rehxado  na 
sentença  condemnatoria  os  pobres  e  vagabundos,  que  haviam  comeltido  um  de- 
licio e  não  podiam  pagar  a  multa  imi)osla.  Lé-se  na  Pauão  de  S.  Romão,  que 
ao  santo  foi  vestida  uma  camisa  de  lã  c  encerrado  n'um  gyneceu  em  signal  de 
dcsprcso  {ad  injuriam.)  Lactancio  no  seu  livro ^J5a  morle  dos  perseguidores 
■ — diz  que  as  mães  de  familia  e  as  patrícias,  suspeitadas  de  chrislãs,  eram  ver- 
gonhosamente atiradas  para  os  gyneceus  {in  yyiieceum  rapiehantur.) 

Imitando  os  imperadores  de  Bysancio,  os  reis  merovingios  e  carlovingios 
tiveram  gyneceus  nos  seus  palácios  de  campo,  e  estes  gyneceus  continham  uma 
grande  população  feminina,  na  qual  os  reis  escolhiam  para  cada  noite  aquella 
que  mais  lhe  appetecia.  A  capitular  de  Villis  enumera  as  differentes  obras  exe- 
cutadas n'aqucilas  ollicinas,  onde  trabalhavam  também  escravos  e  eunuchos. 

«Oue  em  nossos  gyneceus,  diz  Carlos  Magno,  haja  tudo  que  é  mister  para 
trabalhar,  isto  é,  linho,  lã,  cocheniliia,  sabão,  azeite,  vasos  e  Iodas  as  coisas 
necessárias  n'estes  togares.» 

Em  outra  capitular  do  anno  813,  acerescenta: 

«Que  as  mulheres  empregadas  em  o  nosso  serviço  (feminie  noslrce  qUiC 
ad  opas  nostrum  servienles  suul)  tirem  dos  nossos  armazéns  a  lã  e  o  linho, 
com  que  façam  capas  e  camisas.» 

Lé-se  no  livro  dos  milagres  de  S.  Bertino  que  as  creanças  eram  manda- 
das para  os  gyneceus,  onde  aprendiam  a  fiar,  tecer,  coser  e  fazer  todos  os  tra- 
balhos feminis  {in  genecio  ipsius,  nendi,  cusandi,  texandi,  oinnique  artificio 
muliebris  operis  edocteses.) 

O  dono  de  um  d'estcs  ealabelecimcnlos  era  em  extremo  solicito  para  com 


30  HISTORIA 

OS  operários  c  a  ninfjuem  pormilfia  a  entrada  no  gyneceii,  que  pela  legislação 
dos  barharos  era  prolegido  eomo  um  sanluai'io. 

«Se  alguém,  di/  a  lei  dos  alleniães,  eoliabilar  eom  uma  jmen  de  um  gy- 
neccu,  que  lhe  não  pertença  e  isto  eonlra  a  vontade  d'ella,  (|iie  pague  seis  sol- 
dos d'ouro  (Si  cum  piiella  de  (jenecio  priore  conciibufrii  aliquis  contra  colunta- 
tem   f//t.v.)» 

O  texto  da  lei  dillerc  nos  dillerentes  nianuseriplos,  mas  o  sentido  é  quasi 
o  mesmo.  (>arlos  Magno,  n'uma  nova  redacção  d'esla  lei,  cneor|)orada  nas  suas 
capitulares,  lei  ciu  (|ue  é  castigada  a  violação  consummada  (s-i  quis  alterius 
puetlaiii  de  (jenecio  violaverit)  faz  desappareeer  a  duvida  sobre  a  espécie  de  vio- 
lência de  que  a  mulher  do  gyiieceu  podia  ser  victima  contra  sua  vontnde. 

Verdade  é  que  nem  todos  os  gyneceus  eram  da  mesma  ordom,  ou  pelo  me- 
nos tinham  diirerentes  eathegorias,  onde  os  trabalhos  mais  duros  ou  desagradá- 
veis estavam  convenientemente  regulados.  Os  trabalhos  mais  pesados  eraiu  fei- 
tos pelíjs  escravos  de  inferior  catlicgoria  ou  nos  gyneceus  penitenciários.  O  que 
Ducange  pretende  demonstrar  no  seu  (llossnrio,  palavra  Gijneceuin,  (|ue  a  maior 
parte  dos  gyneceus  eram  uma  espécie  de  lupanares,  é,  portanto,  uma  falsidade. 
O  próprio  texto  da  lei  dos  lombardos,  em  que  Dueange  assenta  a  sua  alliiMua- 
tiva,  prova  o  contrario. 

«lístabeleeemos  (|ue,  se  uma  mulher  disfarçada  por  (|ual(|uer  modo  fòr 
surprehcndida  em  tlagi-aiite  delicio  de  prostituição  [si  jendna,  qn(C  vsslfnt  ha- 
bel  mulatam,  mcecha  deprehen^a  fnerit)  não  seja  admittida  no  gyneeeu,  como 
até  aqui  era  costume,  pois  que,  depois  do  se  ter  prostituído  com  um  homem, 
não  perderia  a  occasião  de  se  pi'Oslituir  com  muitos.» 

Este  texto  prova  pelo  eonti^ario  que  a  lei  velava  pela  jiureza  dos  costu- 
mes nos  gyneceus;  todavia,  os  gyneceos,  taescomo  os  dos  reis,  fre(|uenlemenle 
mereceram  essa  má  i'eputação  c  ainda  no  decimo  século  o  seu  nome  era  syno- 
nimo  de  libertinagem.  O  proprietário  do  estabelecimento  fazia  um  pacto  con- 
cubinario  com  as  operai-ias  c  estas  disputavam  entre  si  a  honra  de  lhe  perten- 
cer. «Se  alguém,  diz  Ucginor)  (De  Eccks.  disrip.  liv.  ii,  cap.  v)  commcttcr  adul- 
tério em  sua  propi-ia  casa  com  as  suas  serventes  ou  gyneciarias.».  .  .  Ksta  pas- 
sagem parece  indicar  que  r.os  gyneceus,  além  das  serventes,  eram  admitlidas 
pensionarias,  ajustadas  sub  determinadas  condições. 

A  sustentação  de  um  gyneeeu  era,  portanto,  muito  dispendiosa:  o  capitulo 
75  de  um  synodo  de  Meaux,  citatlo  por  Ducange,  falia  de  uns  seculares,  (|ue  pos- 
suíam capellas  e  sob  este  pretexto  cobravam  dizimos  gastos  em  sustentar  cães 
e  occorrer  ás  despezas  dos  seus  gyneceus  [inde  de  canes  et  (jijneciarias  suax 
pascant.) 

Os  gyneceus  foram-se  restringindo  ás  suas  proporções,  á  medida  que  se 
foram  estab(decendo  manufactiuMs,  cíjue  o  eommcrcio,  disti'ibuindo  os  seus  pro- 
(luctos  por  toda  a  |)arte,  tornou  inútil  o  fabiico  em  casa  de  grande  numero  de 
tecidos  e  outros  objectos.  O  viver  das  mulheres  continuou  todavia  a  ser  em 
comnuim,  e  apesar  da  emancipação  oHerecida  pela  cavallaria  cm  certas  circums- 
tancias,  a  vida  das  mulheres  continuou  a  ser  reclusa.  Mas  então  já  não  havia 
concubinas  n'aquelles  santuários  da  família,  onde  a  esposa  legitima,  rodeada 
dos  seus  lilhos  e  servas,  lhes  dava  cxcmpl(»s  de  trabalho,  de  decência  e  de  vir- 
tude. 


CAPITULO  IV 


SUMMARIO 


Liccnsiosidadcs  concubinarias  dos  reis  francos.— Clolario  i.— Iniíumlac  AregimMa.— Incoulinoncia  ailiiHorade 
Caribcrto,  rei  de  Paris.  — Marcovieva  e  MiToIlfda.  — Caribcrto  repudia  sua  mullier  In^niliurga.— Tcudcdiilda.— Os  irmãos 
de  Cariborto.— Goiítran,  rei  dOrlcans  e  r>(irf.'ojiha.— Cliilporico,  rei  doSoisson.— Audovera.— Frudogoiida.— Galovind. 
— Dagdlicrlo  i.— IVpino  c  a  sua  conculiina  Alpais.— Assa.«;sinio  de  S.  Lambei  to  piaticadu  por  Dodon,  irmão  dAlpais. — 
Costumes  dissolutos  de  lierlcbrain,  bi.^^po  de  Bordeos.—lJruncquilda.— Carlos  Ma^'no.— Suas  concubinas  Maltfi:arda, 
(iersuinda  Regina  c  Adalinda.— Suas  lillia.s.— O  carlulario  daldjadia  de  Lor.sch.— lenda  dos  amores  de  Eginhard  c  de 
Imma,  Tdba  de  Carlos  .Magno.— Capitular  de  Carlos  Magno  relativa  aos  cúmplices  da  pro.-lituieão.— Investigações  mf 
Duciosas  ordenadas  por  Carlos  Magno  sobre  a  prostituirão.- Castigo  importante  .is  mulbercs  de  má  vida  a  seus  cúm- 
plices.—Os  judeus  corretores  da  prostituição.- O  pc  do  rei.— Estatura  de  Carlos  Magiuj,— Os  lioiuens  nus.-  Lenda  de 
S.  Lenngesilo.  —O?  successores  de  Carlos  .Magno.- Luiz  o  benigno.— A  prova  da  cruz.— A  prova  do  rongre,';.';o.— A  im- 
peratriz Judith.— Teubergn,  mullicr  de  Lotliario,  rei  da  Lorena,  aceusada  d'incesto.— O  rampeão  de  Teuberga  sabe 
triumpaute  da  prova  da  agua  i|uente.— Jusiilicada  Teubciga,  comparece  aute  um  consistório  presulido  por  Lothario. 
-  O  concilio  de  Melz.— Excommunhão  de  LotUario.— O  seu  sacrilégio.— A  sua  morte. 


s  REIS  da  primeira  raça  o^livcram  tlc  conlimio  cm  lucta  com  a 
('iiiTJa  por  causa  ilas  coiicui)iiias,  <|iie  tomavam  c  ccpclliam  al- 
(crnalivamrnlc  sem  consullaros  bispos,  e  estes,  apesar  das  suas 
ameayas  e  analliemas,  não  eonst^iíuiam  fazer  respeitar  a  iiistitui- 
I '  vão  religiosa  do  matrimonio  |)elos  francos,  rccem-con verlidos,  que 
eonliiiuavam  seiulo  pa<<ãos  c  sollViam  violentados  a  doutrina  do 
Evangellio.  \  historia  d'esscs  reis  é  eiíeia  de  guerras,  de  crimes  e  excessos; 
mas  os  seus  amores  são  principalmente  a  razão  das  suas  grandes  (]uci\as  con- 
tra a  cgreja,  que  lhes  não  deu  paz  nem  tréguas,  com  o  íim  de  lhes  extirpar  os 
maus  exemplos  da  proslitui^-ão. 

.4pesar  de  tudo,  essas  lieenciosidades  continuam  a  esconder-sc  no  fundo 
dos  gyneeeus  c  apenas  o  rumor  publico  revela  algumas  ircllas.  Otiando  o  celio 
(fcsscs  abusos  luxuriosos  chegava  aos  ouvidos  dos  confessores,  estes,  armados 
com  os  raios  da  excommunhão,  afastavam  da  cgreja  o  j)eccador,  att'-  que  purifi- 
cado rompesse  com  as  tentavões  da  carne.  Não  se  chegam  a  comprehender  bem 
os  excessos  concubinarios  dos  reis  francos,  senão  lendo  em  S.  (Iregorio  de 
Tours  a  singela  narrativa  dos  matrimónios  do  rei  Clotario,  ([ue  teve  sete  mulhe- 
i'es  ou  concubinas  publicas. 

«Clotario  linha  por  esposa  Ingunda  e  só  a  ella  amava,  quando  esta  lhe 
fez  esta  supplica:  .Meu  senhor  fez  de  mim  tudo  o  que  quiz,  tcndo-mc  feito  sua 
companheira  no  leito:  agora  para  rematar  os  seus  favores  digne-se  o  meu  se- 
nhor escutar  o  que  esta  sua  serva  lhe  pede.  feço-vos  tenhaes  a  bondade  de 
procurar  para  minlia  irmã,  vossa  escrava,  um  homem  capaz  e  rico  que  me 


32  HISTORIA 

eleve  e  não  me  rebaixe,  c  que  meios  tenha  para  mais  dcdicadamenle  vos  ser- 
vir.» 

A  estas  palavras,  Clotarío  propenso  á  sensualidade,  inflamina-se  de  amor 
por  Aregunda,  vae  ao  campo  onde  ella  residia  e  com  eila  casa.  Logo  que  cila 
se  tornou  sua,  voltou  para  junto  de  Ingunda  e  disse-lhe: 

— Trabalhei  para  te  satisfazer  o  supremo  favor  que  me  pediste  e,  procu- 
rando um  homem  prudente  e  rico,  merecedor  de  unir-se  a  tua  irmã,  nenhum 
outro  melhor  do  que  eu  encontrei.  Fica  sabendo,  pois,  que  a  tomei  por  esposa, 
esperando  que  isso  não  te  seja  desagradável. 

— O  que  bem  parece  aos  olhos  do  meu  senhor,  respondeu  Ingunda,  por 
clle  seja  feito;  mas  que  esta  sua  escrava  viva  sempre  nas  graças  do  rei. 

Este  curioso  quadro  de  costumes  faz-nos  apreciar  como  "se  passavam  as 
cousas  nos  gyneceus  dos  reis. 

Os  íillios  de  Clotario  i  foram  como  seu  pac  polygamos  e  mais  do  que  elle 
dados  á  incontinência  adultera.  O  mais  velho,  Cariberlo,  rei  de  Paris,  era  ca- 
sado com  Ingobcrga,  cuja  estirpe  a  elevava  acima  das  suas  rivacs.  Tinha  a 
seu  serviço  duas  jovens  plcbcas;  uma  Mareovieva,  freira;  outra,  Mcrofleda,  fi- 
zera por  ella  apaixonar  o  rei.  Ciumenta  Ingobcrga,  teve* um  dia  a  infeliz  lem- 
brança de  deprimir  as  duas  rivaes  deanlc  do  rei,  iançando-lhe  em  rosto  a  con- 
dição servil  dos  pães,  que  cardavam  lã  nas  immcdiaçôes  do  palácio;  mas  o 
rei,  irritado  contra  a  esposa  que  o  pretendera  envergonhar,  repudiou-a  e  tomou 
para  esposa  successivamente  a  Meroílcda  e  Mareovieva.  Não  se  contentou  com 
cilas  todavia,  c  pouco  depois  abandonou-as  por  outra  serva,  Teudechilda,  tilha 
de  um  pastor. 

Esta,  posto  que  concubina  de  iiifinia  espécie,  apoderou-se  do  Ihesouro 
de  f.ariberto,  quando,  sem  deixar  herdeiros,  este  príncipe  se  finou  nos  braços 
das  três  plebeias. 

Os  irmãos  de  Cariberto  tinham  também  o  mesmo  vicio  da  inconstância, 
("loutran,  rei  d'Orleans  e  de  Borgonha,  apesar  de  passar  por  devoto,  mudou  de 
mulher  tantas  vezes  como  Cariberto,  e  teve  concubinas  de  infima  classe,  sem 
que  os  bispos,  que  lhe  chamavam  o  biim  (loutran,  {lionu.s)  lhe  perturbassem  os 
amores,  (^bilperico,  rei  de  Soissons,  é  o  polygamo,  a  quem  os  ciironistas  attri- 
buem  maior  numero  de  mulheres,  com  quem  casou,  segundo  a  lei  dos  francos, 
dando  o  annel,  o  soldo  c  o  dinheiro,  lima  d'estas  mulheres,  chamada  Ando- 
wera,  tinha  a  seu  serviço  Fredcgonda,  joven  de  origem  frnnca,  extremamente 
notável  pela  sua  belleza  e  astúcia.  Mal  Clnlperico  a  viu,  por  ella  se  apaixonou; 
mas  Fredcgonda  era  muito  ambiciosa  para  se  contentar  em  ser  uma  concubina 
subalterna. 

Tendo  Andowcra  dado  á  luz  uma  filha  na  ausência  do  esposo,  Fredc- 
gonda, de  accordo  com  um  bispo,  a  (lucm  comprara,  abusou  da  ingenuidade 
da  rainha,  até  persuadil-a  de  que  devia  ser  madrinha  da  própria  filha,  e  isso 
conseguiu. 

(juando  Chilperico  voltou  da  guerra,  todas  as  jovens  do  seu  palácio  sa- 
hiram  a  esperal-o,  cantando  e  arremcçando-lhe  llores.  Fredcgonda  ia  na 
frente. 

—  Com  quem  doimirá  esla  noile  o  meu  senhor?  pergunlou-lhe  descarada- 
mente {('nm  (pia  (lotniuii.s  wpus  rex  dormiel  hac  noclc?)  pois  que  a  rainha, 
minha  senhora,  accrescentou,  c  agora  sua  comadre,  visto  que  é  a  madrinha 
de  sua  filha. 

—  Ainda  bem,  respondeu  o  rei  jovialmente:  se  não  posso  dormir  com 
ella,  dormirei  comligo. 

Andowcra,  eliegcMi  então  c<im  a   tilha  Uds  braços. 

—  Mulher,  lhe  disse  o  rei,  eonimelleslc  um  crime  por  ignoi'ancia;  és  mi- 
nha comailrc,  já  níio  [xldes  ser  minha  esposa. 


DA    PROSTITUIÇÃO  33 

Repiidiou-a,  c  fel-a  professar  n'um  convento.  Fredegoncla  poucos  mezes 
lhe  occiípou  o  logar.  ('hilperico,  pediu  em  casamento  (lalessonida,  filha  do 
rei  (hjs  godos,  e  para  obter  a  mão  d'esla  prineeza,  repudiou  as  esposas  e  des- 
pediu as  amantes,  incluindo  Fredegonda,  a  quem  todavia  não  deixara  de  amar. 
Pouco  depois,  para  se  juntar  com  a  sua  querida  Fredegonda,  mandou  estran- 
gular a  rainha,  çmquanfo  cila  dormia.  Fredegonda,  com  quem  cm  seguida  se 
casou,  envolv(Hi-o  ii'uma  rede  de  voluptuosos  prazeres,  que  o  reduziram  a  com- 
pleta escravidão. 

Tal  é  a  historia  de  quasi  todos  os  reis  merovingios,  que  não  se  arreceia- 
vam  de  commctter  crimes,  oU  de  fazer  guerras,  para  conseguirem  os  seus  pro- 
pósitos amorosos.  Viviam  nos  seus  palácios  reaes,  longe  da  vista  dos  seus  vas- 
sallos,  que  apenas  chegavam  a  ouvir  longínquos  ruidos  das  orgias  reaes,  cm 
que  os  monarchas  alternavam  a  luxuria  com  a  embriaguez. 

A  vida  intima  dos  palácios  reaes  era  apenas  um  lodaçal  de  prostitui(."ão, 
em  que,  mais  c  mais,  se  ia  atolando  a  realeza  fiança.  Dagoberto  i,  que  apesar 
de  tudo,  leve  algumas  qualidades  de  rei,  não  foi  mais  casto  que  os  seus  pre- 
decessores, e  o  seu  ministro.  Santo  Eloy,  parece  fer-se  prcoccupado  pouco 
com  os  costumes  da  vida  privada  do  príncipe,  que  edificava  egrejas,  fundava 
mosteiros  e  cobria  d'ouro  as  reli(iuias  e  sepulciíros  dos  santos;  mas  que  ao 
mesmo  tempo,  á  imita(,'ão  de  Salomão,  tinha  uma  grande  quantidade  de  concu- 
binas (^lii.ruriiV  siipra)ii<)dnm  dedilm,  liabebat  in.siar  Salomoni.s  reginas  et  plu- 
rimas  concubinas,  diz  Fredegonda  na  sua  chronica.)  «Os  bispos,  todavia,  eram 
incansáveis  em  anathematisar  as  liccnciosidades  dos  reis  e  dos  príncipes  ;  vo- 
luntariamente se  expunham  á  cólera  d'estes  grandes  libertinos,  quasi  sempre 
incorrigivcis;  não  se  arreceiavam  do  martyrio  da  morte,  quando  .se  tratava  de 
defender  a  santidade  do  matrimonio  christão,  contra  as  licenças  do  concubinato 
pagão.  Prtrstat,  bispo  de  Ruão,  foi  por  causa  d'isto  assassinado  por  um  emis- 
sário de  Fredegonda:  Didier,  bispo  de  Vienna,  foi  apedrejado  por  ordem  de  Bru- 
neguilda;  S.  Lamberto  foi  assassinado  por  um  tal  Doudou,  que  não  lhe  per- 
doava ter  querido  separar  o  príncipe  Pepino  da  sua  concubina  Alpais. 

«S.  Lamberto,  conta-se  nas  cbronicas  de  S.  Diniz,  (em  708)  reprebcndeu 
o  príncipe  Pepino,  por  estar  amancei)ado  com  Alpais,  em  prejuízo  de  Plectonda, 
sua  legitima  esposa.  O  irmão  da  concubina,  por  nome  Doudou,  matou  S.  Lam- 
berto, por  este  ter  censurado  este  peccado  ao  príncipe.» 

Os  bispos  e  sacerdotes,  que  combatiam  a  prostituição,  nem  .sempre  esta- 
vam isentos  das  censuras  que  faziam.  (Ircgorio  de  Tours  descreve-nos  com  as 
cores  mais  hediondas  (liv.  viii  e  ix)  Bcrtchram,  bispo  de  Bordéus,  que  se- 
duzia servas  e  mulheres  casadas,  e  (jue  até  chegou  a  deshonrar  o  thalamo  real. 
Quando  S.  Columbano,  abbade  de  Luxeuil,  foi  á  corte  de  Frederico  ii,  rei  de 
Borgonha,  para  o  reprehcndcr  dos  seus  adultérios  e  aconselhar  a  que  expul- 
sasse as  concubinas,  o  papa  dregorio  i  escrevia  á  rainha  Bruneguilda,  incitan- 
do-a  a  que  castigasse  os  sacerdotes  impudicos  e  preversos  {sacerdotes  impndici 
ac  nequiter  conversantes,)  e  fora  justamente  esta  rainha  que  preverlera,  a  inno- 
cencia  de  .seu  neto  Theodorieo  ii,  rodeando-o  de  amazias,  e  dando  cila  própria 
os  mais  infames  exemplos  de  libertinagem. 

As  duas  rainhas,  Fredegonda  e  Bruneguilda,  rivalisaram  em  crimes  e  ví- 
cios, mesmo  na  idade  eni  que  a  concupiscência  se  extingue;  parecia  que  ao 
desafio  queriam  saber  qual  das  duas  teria  mais  amantes,  qucin  lhe  correspon- 
deria com  mais  ardor,  e  quem  mais  farde  síihiria  das  luctas  amontsas.  Brune- 
guilda foi  a  primeira  a  sahir,  porque  a  morte  a  arrancou  a  esse  lodaçal  de  ví- 
cios; morreu,  atada  k  cauda  d'um  fogoso  cavallo,  arrastada  e  dilacerada  por 
campos  e  fraguedos,  depois  de  sobre  um  camello,  durante  três  dias,  ler  sido  o 
alvo  dos  ultrages  e  chascos  dos  soldados  de  ("Jotario  ii,  filho  de  Fredegonda. 
!Não  acompanharemos  os  reis  e  as  rainhas  da  primeira  c  segunda  dynas- 

liísioHiA  DA  Prostituição.  Tomo  ii— Folha  5. 


34  HISTORIA 

tia,  na  larga  e  monótona  nomenclalura  dos  seus  adultérios  e  escândalos;  mas, 
para  mostrar  qiianlo  os  vicios  do  concubinato  haviam  relaxado  os  vínculos  con- 
jugaes,  recordaremos  (|ue  Carlos  Ma^mo,  o  prudente  e  f^lorioso  monarcha,  sus- 
tentáculo c  honra  da  egreja,  teve  qualro  mulheres  legitimas  c  cinco  ou  seis 
concubinas,  sem  contar  as  iununv^ras  mulheres  que  passageiramente  foram  vi- 
ctimas  da  sua  luxuria.  As  suas  concubinas,  que  Enginhard  nos  faz  conhecer, 
não  eram,  como  as  suas  mulheres  Icgilimas,  nobres  dVjrigem ;  Enginhard  s(5 
enumera  Mallegarda,  Gcrsuinda,  Regina  c  Adalinna,  que  lhe  deram  muitos  fi- 
lhos, educados  sob  a  sua  vigilância,  e  caridosamente  protegidos  pelo  impe- 
rador. 

^A.s  suas  filhas  eram  mui  formosas,  diz  o  citado  auctor,  e  foram  sempre 
muito  estimadas  pelo  pae.  Singular  é  que  não  as  tivesse  querido  casar,  nem 
com  nacionaes,  nem  com  estrangeiros.  Até  morrer,  teve-as  sempre  junto  de  si, 
dizendo  que  d'ellas  não  se  podia  sejtarar.  l'osto  que  fosse  feliz,  solíreu  com  as 
calumnias  assacadas  ás  filhas.  Dissimulou  todavia  os  seus  desgostos,  como  se 
contra  ellas  nunca  tivesse  sido  levantada  suspeiia  alguma  injuriosa.» 

Na  verdade  esta  passagem,  em  que  o  historiador  parece  evidentemente 
cmbara(,'ado,  não  prova  suiricienlemcnte  que  Carlos  !\lagno  tivesse  tido  relações 
incestuosas  com  as  filhas,  mas  abre  caminho  a  suspeitas  nada  favoráveis  á  mo- 
ralidade d'aqucile  principe. 

Todavia,  a  tradição  pretende  que  uma  das  filhas  de  Carlos  Magno,  de 
nome  Ymma,  casara  com  Enginhard,  que  não  teria  deixado  de  se  lisongear  e 
envaidecer,  se  houvera  sido  genro  do  seu  terrível  senhor. 

«Enginhard  amava  Ymma,  (|ue  tinha  sido  promcftida  ao  rei  dos  gregos,  e 
era  por  ella  amado  com  louca  paixão.  Uma  noite,  o  amante  bateu  á  porta  do 
quarto  de  Ymma  e  esta  abriu-Ih'a;  c  os  dois,  com  os  seus  coUoquios  e  trans- 
portes amorosos  esqueccram-se  do  tempo;  (staline  versa  vice  .soliis  cnin  sola 
secrelis  nsus  colloqiiiis  et  datis  ampleribus  cupito  sati.ifecit  amnre.) 

«Mas  o  dia  vem  rompendo:  Enginhard  arranca-sc  dos  braços  da  amante 
e  ia  partir,  quando  viu  todas  as  relinulas  coitadas;  durante  a  noite  havia  ne- 
vado, as  suas  pegadas  s(d)re  a  neve  seriam  uma  suspeita  desfavorável  á  honra 
da  sua  amada. 

«A  joven,  que  o  amor  fizera  tão  audaz  como  ladina,  imaginou  um  ex- 
pedienle,  oITcrecendo-sc  para  levar  ás  costas  o  amante,  até  onde  este  linha  o  seu 
alojamento,  e  em  seguida,  por  sobre  as  mesmas  suas  pegadas,  voltaria  para  o  seu 
quarto. 

«Carlos  Magno,  que  não  dormira  durante  a  noite,  levantou-se  ao  amanhe- 
cer e  olhou  para  o  pateo  do  palácio.  De  repente,  viu  sua  filha,  que  com  difficul-^ 
dade  caminhava,  levando  aos  hombros  o  pesado  fardo,  c  que  em  seguida  volta- 
va já  ligeira  para  o  seu  (|iiarlo.  Carlos  Magno,  sur|)rehciidido  e  ferido  no  seu 
coração,  calou-se  sobre  o  que  linha  visto. 

«Ymma  recusava  dar  a  sua  mão  ao  rei  dos  gregos  e  Enginhard  sollicitava 
do  rei  uma  missão,  que  o  afastasse  da  eòrte.  Carlos  Magno  não  pftde  então 
contcr-se  e  levou-o  perante  o  tribunal  dos  condes  e  barões,  tendo  todavia  ten- 
ção de  lhe  perdoar. 

«Este  meu  servidor,  disse  elle,  não  será  castigado,  pois  (|ue  assim  se 
augmentaria  a  deshonra  de  minha  lilba.  Creio  digno  de  nós  e  mais  conveniente 
á  gloria  do  nosso-iin|)erio  perdoar-lhes  e  unil-os  pelo  legitimo  matrimonio,  fi- 
cando assim  sob  um  veu  de  honestidade  a  vergonha  da  falta  commettida. 

«Enginhard  então  tremendo  foi  levado  á  presença  do  imperador. 

«Já  é  tempo,  disse-lhe  Carlos  Magno,  de  reconhecer  os  vossos  serviços 
passados  e  de  recompensar  a  vossa  abnegação  para  com  a  minha  pessoa,  com  o 
dom  mais  (lc-;liiiiibianle.  Dou-vos  a  mão  de  minha  (ilha,  \ossii  inirtatlora  (res- 
tram  sciiictl,  purlraincem,)  que,  arregaçando  as  saias,  leve  o  prazer  de  vos  ser- 


DA    PROSTITUIÇÃO 


35 


vir  de  cavalgadura  ((jule   ipiandoque  alie  succinla  vesíre  subcectione  satis  se 
moriyeram  exhibuit.)» 

Esta  engraçada  lenda,  que  se  apoia  n'uma  tradição  quasi  contemporânea 
do  facto  (|iie  perpcliia,  parece-nos  ter  alguma  analogia  com  a  capitular,  cm  que 
llarlos  Magno,  desterrando  <los  seus  dominios  as  nuillieres  de  má  vida,  commu- 
nica  ao  imprudente  ou  liherlino  que  lhes  [)rcslasse  auxilio  que  sofireria  a  ver- 
gonha de  as  levar  ás  costas  até  á  praça  do  mercado,  onde  ella  seria  açoitada. 
Quando  Carlos  Magno  dizia  a  Enginhard  que  se  casasse  com  a  sua  portadora, 
parece  relerir-se  á  pena  em  que  incorria  aquelle  que  dava  asylo  a  uma  pros- 
tituta. 

A  aventura  de  Ymma  e  Enginhard,  segundo  a  tradição,  teve  logar  no  ' 
palácio  de  Aix-la-Chapelle,  e  foi  precisamente  n'esta  residência  que  Carlos  Ma- 
gno decretou  no  anno  800  a  capitular,  em  que  impõe  aos  cúmplices  da  pros- 
tituição um  castigo  que  traz  à  lembrança  Vmma,  levando  ás  costas  Enginhard. 
Pião  poderá  suppòr-se  que  Carlos  Magno  fez  esta  capitular,  depois  de  ter  sido 
testemunha  d'esse  singular  espectáculo  da  tempestuosa  noite  de  neve,  em  que  viu 
uma  mulher  levando  ás  costas  um  homem '!  Não  teria  recordiecido  os  auctores  d'este 
episodio  amoroso?  Seria  provável  não  ter  comprehendido  os  desígnios  dos  dois 
personagens  mysteriosos,  que  lentamente  caminliavam  por  sobre  a  neve?  A  nossa 
primeira  conjectura  é  todavia  licita,  em  vista  de  uma  analogia  histórica,  suggc- 
lida  pela  capitular,  dirigida  aos  olliciaes  encarregados  da  guanla  do  palácio,  ca-  . 
pitular  onde  também  se  encontra  a  origem  d'alguns  funccionarios  do  palácio  do 
rei.  Carlos  Magno  ordena  aos  olliciaes  palacianos  (ininialerialis  palatinun)  que 
por  meio  dos  seus  agentes  exercessem  severa  fiscalisação,  para  vèr  se  algum 
homem  desconhecido  ou  mulher  dissoluta  se  occultava  entre  os  commensaes  da 
casa.  >'o  caso  em  que  se  descobrisse  uma  mulher  ou  um  homem  d'esta  classe, 
ser-lhes-hia  impedida  a  fuga,  e  presos,  até  que  o  imperador  fosse  informado.  O 
que  fosse  encontrado  na  companhia  d'este  homem  ou  mulher  seria  expulso  do 
palácio,  para  não  ser  punido  com  pena  mais  affrontosa.  O  imperador  dirige  as 
mesmas  recommendações  aos  officiaes  ao  serviço  de  sua  amada  esposa  e  de 
suas  filhas. 

Esta  capitular,  em  que  se  trata  de  um  desconhecido  e  de  uma  prostituta, 
que  habitam  sem  direito  o  palácio,  deve  ter  sido  occasionada  por  circumstan- 
cias  especiaes,  que  coincidem  com  a  historia  de  Ymma  e  Enginhard.  O  homem 
desconliecido  é  decerto  elle,  e  a  prostituta  ella. 

O  resto  da  capitular  tem  caracter  mais  geral,  posto  que  também  se  refira 
a  escrupulosas  pe.squizas  para  conhecer  o  estado  e  posição  dos  habitantes  do 
palácio  imperial  e  da  cidade  de  Aix-la-Cliapelle.  Radberto,  recebedor  das  rendas 
imperiaes,  é  encarregado  de  fazer  minuciosas  investigações  nas  casas  dos  ser- 
vos do  imperador,  tanto  em  Aix  como  nas  quintas  dependentes  d'esta  residên- 
cia. Pedro  e  (lunzo  são  encarregados  de  fazer  igual  visita  nas  casas  e  ciioças 
dos  escravos;  Ernaldo  visitará  também  as  lojas  dos  negociantes  christãos  e  ju- 
deus, procurando  para  isso  a  occasião  em  que  estes  não  estejam  cm  casa. 

Estas  escrupulosas  pesquizas  no  palácio  d'Aix  e  em  suas  dependências 
tinham  por  fim  descobrir  um  ou  muitos  criminosos,  e  para  tal  conseguir  (Carlos 
Magno  pndiibe  a  todos,  que  tenham  cargo  no  paço,  o  acolher  ou  occultar  qual- 
quer homem,  que  commettera  roubo,  homicídio,  adultério  ou  qualquer  outro 
crime. 

Quem  ousasse  contrariar  a  este  respeito  as  ordens  do  imperador,  devia, 
se  fora  homem  livre,  levar  ás  costas  o  reu  até  à  praça  do  mercado,  logar  onde 
o  paciente  seria  punido;  mas  se  era  um  servo,  este,  como  o  nobre,  levaria  ás 
costas  o  reu  e  seria  açoitado. 

«Igualmente,  no  que  se  refere  aos  libertinos  c  prostitutas,  (de  gadalibus 
et  meretricibxm)  accrcscenta  a  capitular,  queremos  que  estas  sejam  pelos  que 


36  HISTORIA 

llies  tenham  dado  asylo  afé  á  pra^'a  do  mercado  levadas  ás  cosias,  onde  serão 
açoitadas.  Se  o  culpado  se  recusar  a  levar  a  mulher  de  má  vida,  que  lhe  fòr 
encontrada  em  casa,  ordenamos  que,  coiijunctamente  com  ella,  seja  açoitado  no 
mesmo  sitio.» 

Esta  capitular,  estahelecendo  a  policia  no  interior  do  palácio,  demonstra 
a  repugnância  de  Carlos  Magno  pelas  mulheres  de  maus  costumes,  pois  que  não 
só  as  expulsa  da  sua  residência  e  domínios,  mas  até  da  casa  dos  seus  mais 
humildes  servos  e  do  domicilio  dos  judeus,  tidos  como  intermediários  na  pros- 
tituição. 

Como  já  dissemos,  Carlos  Magno  não  era  homem  de  uma  moralidaiie  exem- 
'  piar  c  tinha  necessidades  sensuaes  a  satisfazer.-  Consta  que  este  imperador,  a 
quem  os  Cantos  de  Gesta  representam  como  um  gigante,  não  tinha  com  c(- 
leito  menos  de  sete  pés  d'altura;  a  sua  força  era  proporcionada,  e  pelo  pe  tio 
rei  se  poderá  ajuizar  qual  era  o  comprimento  do  seu,  que  se  converteu  em  me- 
dida linear,  posta  de  parte  pelo  syslema  métrico;  todavia  é-nos  iiiipossivel,  a 
projiosilo  d'esta  medida,  [pedale,  meus  ara  pedis)  entrar  n'uma  delicada  discus- 
são, cujo  fim  seria  encontrar  a  verdadeira  origem  do  pé  do  rei.  Limitar-nos- 
hemos  a  dizer  que  na  idade  média  se  procuravam  as  relações  de  proporção 
entre  as  diversas  partes  do  corpo,  e  que  desde  a  mais  remota  antiguidade  o 
pé  revelava  virilidade  no  homem,  emquanto  que  na  mulher  tiniia  uma  signifi- 
cação ainda  mais  indiscreta.  Neste  sentido,  falia  Horácio  na  sua  primeira  sa- 
tyra  de  um.  grande  pé  feminino :  Depygis,  nasuta,  breri  latera  ac  pede  longo 
est.  Aos  curiosos  do  que  se  disse  da  estatura  de  ('arlos  Magno  e  dos  seus  ae- 
cessorios,  recommendamos  o  livro  de  Marquard  Frecher,  reimpresso  por  Duclies- 
ne,  Bou(|uet  e  Pertz. 

Esta  monstruosa  estatura  justifica  o  que  a  tradição  conta  dos  amores  de 
Carlos  Magno.  Uma  lenda  muito  original  colhida  por  Petrarca  em  Aix-la-Cha- 
pelle,  onde  tudo  está  cheio  de  recordações  do  grande  imperador,  apresenta-nos 
este  monarclia  sujeito  a  tentações  como  Santo  António  e  peccador  pela  malícia 
do  demónio. 

Teii(lo-se  Carlos  Magno  enamorado  loucamente  d'uma  mulher,  cujo  nome 
não  é  citado  por  Petrarca,  esqueceu  junto  delia  os  interesses  do  seu  povo  e  a 
gloria  do  seu  reinado;  o  .seu  único  cuidado  era  viver  para  a  mulher  amada.  A 
amante  morre  repentinamente  e  o  imperador  entrega-se  a  um  desespero  in- 
consolável, que  noite  e  dia  o  tinha  preso  aos  restos  morlaes  da  que  tanto 
aniára,  e  á  qual  não  queria  deixar  dar  sepultura,  posto  que  a  decomposição  cor- 
res.se  adiantada  já  n'aquclle  cadáver,  que  o  imperador  continuava  estreitando 
nos  braços. 

Nem  o  arcebispo  de  Colónia,  venerável  prelado  em  quem  o  imperador  ti- 
nha cega  confiança,  pôde  arrancar  dos  seUs  braços  aquella  adorada  morta,  nem 
ao  menos  mitigar-lhe  a  sua  dòr;  mas  fazendo  uma  oração  revelou  Deus  ao  sa- 
cerdole  a  causa  mysteriosa  de  tão  grande  dòr  de  Carlos.  Na  bocca  d'aquella 
mulher  havia  um  annel,  tendo  encastoada  uma  jiedra  amorosa,  c  este  talisman 
ligava  invencivelmenteo  imperador  ao  corpo  vivo  ou  morto  que  o  possuísse.  Ape- 
nas tiraram  o  annel  da  boccá  do  cadáver,  sentiu  Carlos  Magno  desappare- 
cer-lhe  o  seu  amor,  e  perguntou  por(|ue  por  tanto  tempo  tinham  deixado  sob 
os  seus  olhos  aquclle  cadáver  corrupto. 

.Mas,  de  repente,  sentiu-se  invadido  de  uma  ternura  alguma  coisa  dilTe- 
rente  pelo  prelado  (|ue  tinha  o  talisman;  não  podia  separar-se  d'elle,  nem  con- 
sentia (|ue  o  sacerdote  se  afastasse.  O  arcebispo,  <|ue  conhecia  a  causa,  atirou  o 
talisman  para  um  lago  immediato  a  Aix-la-Clia|)elle;  mas  o  annel,  submergido 
no  fundo  do  lago,  conlinuou  exercendo  o  seu  poder  allractivo,  ins|)iraiulo  a  Car- 
los Magno  a  mesma  jiaixão,  uiiicamcnle  dilíerentc  no  objecto. 

Carlos  enamorou-sc  então  do  lago,  e  não  querendo  mais  separar-se  d'ellc 


DA    PROSTITUIÇÃO 


37 


fi\ou  alli  a  sua  residência  e  a  capital  do  seu  império,  e  em  testamento  ordenou 
(jue  alli  fosse  enterrado,  para  que  no  tumulo  ainda  podésse  ouvir  o  lago  mur- 
murar amor  aos  eccos  do  seu  nome  glorioso. 

Carlos  Magno  estava  em  muito  boas  relações  com  a  egreja  para  receiar 
as  suas  admoestações;  evitava  também  com  grande  prudência  o  dar  escândalo, 
e  tudo  que  se  referia  aos  seus  amores  era  unicamente  passado  nos  seus  gyne- 
ceus.  \ã(»  tolerava  entre  os  seus  vassallos  a  relaxação  dos  costumes,  que  a  au- 
ctoridade  ecciesiaslica  liie  denunciava,  declarando-se  ellc  impotente  i)ara  a  cor- 
rigir. Para  fortalecer  a  auctoridade  eeclesiastica,  em  80o  fez  uma  capitular,  pro- 
hibindo  aos  indivíduos  d'um  e  d'outro  sevo,  sob  pena  de  sacrilégio,  o  commet- 
lerem  adultérios,  sodomias,  incestos  e  outros  peccados  contra  o  matrimonio. 

O  imperador  motivava  as  suas  probibições  na  observação  de  (|ue  os  pai- 
zes,  cuja  população  se  entregava  a  sensualidades  illicitas,  aos  adultérios,  ás  tor- 
pezas de  Sodoma  e  ao  commercio  da  prostituição  (muliai  reijiones,  quo:  jain 
dieta  inlicila  et  adulteria  tel  sodomicam  luxuriam  oel  commi.rlioiífm  meretri- 
cem  sectatiC)  neiíi  tinbam  constância  na  fé,  nem  valor  na  guerra. 

Portanto,  o  reu  d'aquelles  excessos  perderia  a  sua  qualidade  e  direitos, 
sendo  recídbido  á  prisão  até  ao  dia  da  penitencia  publica. 

Sobremaneira  nos  causa  extranbesa  o  não  encontrarmos  nas  capitulares  de 
Carlos  Magno  medida  alguma  de  precaução  ou  de  rigor  contra  os  angariado- 
res de  mulberes,  mister  cbamado  lenonia,  e  ainda  sobrevivente  ás  perseguições 
dos  códigos  de  Tbeodosio  c  Justiniano.  Ha,  todavia,  uma  capitular,  cuja  data 
não  é  conbccida,  que  parece  referir-se  á  Icnunia,  posto  que  este  vergonhoso 
mister  não  seja  especialmente  recommendado  á  attenção  dos  magistrados.  N'esta 
capitular,  em  que  os  sacerdotes,  os  diáconos  e  os  outros  membros  do  clero  são 
probibidos  de  admittir  nos  seus  domicílios  mulberes  extranhas,  em  que  a  clé- 
rigos e  frades  se  probibe  o  entrar,  comer  e  beber  em  estalagens,  nota-se  o  se- 
guinte artigo : 

«/'í  manfjones  et  cociones  et  nudi  honiines,  qui  cum  ferro  vadunt,  non 
sinantur  va(jari  et  decopliones  hominibus  ayere.» 

Não  sabemos  o  que  são  estes  homens  nus  de  espada,  posto  que  nos  in- 
clinemos a  crer  que  ba  alteração  no  texto,  na  palavra  nudi,  que  não  tem  sen- 
tido, e  que  pôde  ser  substituída  por  mnndi. 

Esse  artigo  ficaria  significando  : 

«Oue  os  corretores  e  negociantes  francos,  que  andam  com  armas,  já  não 
podem  por  aqui  e  alli  andar  enganando  gente.» 

Seria  fácil  demonstrar  com  uma  dissertação  philologica  que  a  baixa  lali- 
nidade  empregava  a  palavra  mnntjones  no  sentido  de  corretores  e  não  na  de 
larápios,  ou  ladrões:  maniji  tinha  succedido  a  leiw.  Cociones,  que  devia  tra- 
duzír-se  litteralmente  por  negociantes,  eram  os  corretores  da  mais  intima  es- 
pécie. Um  escriptor  do  decimo  século,  citado  por  Ducange,  diz  que  os  ladrões 
só  foram  designados  por  inangones  por  aquella  época.  Ducange  diz  também  que 
cociones  é  um  svnonymo  de  revendedores,  que  corriam  as  feiras  e  que  unica- 
mente se  occupavam  em  negócios  vergonhosos. 

Os  lenones  certamente  existiam,  mas  occultavam-se  sob  nomes  e  oc- 
cupações  diversas;  pôde  provar-se,  por  exemplo,  que  em  toda  a  idade  média 
os  negociantes  de  cavallos,  mulas  e  burros  negociavam  também  lucrativamente 
com  a  prostituição.  Mas  é  notável  que  as  expressões  lowciniuin  e  lenonia, 
leno  e  lenarius,  lena  e  lennria  raras  vezes  são  usadas  pelos  escriptores  catho- 
licos  da  França  merovingia  e  carlovingia.  Da  ausência  da  palavra  não  se  deve 
deduzir  todavia  a  ausência  do  facto.  Applicando  a  critica  histórica  a  uma  lenda 
do  sétimo  século,  descobre-se  um  leno  no  numero  dos  santos,  sob  o  nome  de 
Lenogesilo.  Parece-nos  inquestionável  que  este  nome  seja  composto  de  leno  e 
Gesilus,  que  seria  o  nome  do  personagem,  e  leno  a  sua  qualidade.  Este  Leno- 


38  HISTORIA 

(jesilo,  que  vivia  iio  tempo  de  Ciclario  ii  (610,)  attraliiu  á  sua  vivenda  uma 
virgem  chamada  Agnelleda,  e  fel-a  professar:  um  e  outro  viviam  juntos  e  mi- 
litavam valorosaujente  no  exercito  do  Senlior  {strenue  Domino  militanl.)  O  diabo 
teve  inveja  da  felicidade  d'este  par,  e  segredou  aos  ouvidos  do  rei  (|ue  um  tal 
Lenogesiio  seduzira  uma  virgem,  vivendo  com  ella  na  im|)iedade  e  libertinagem 
i^inodu  le<jiliina  conjuyia  violanle^,  inter  se  invicent,  nefandis  studiis  comniis- 
centur.) 

Clotario  mandou  chamar  os  pretendidos  cúmplices,  mas  por  um  milagre 
ficou  convencido  da  innocencia  de  Lenogesiio.  Este  santo  varão,  ao  chegar  ao 
palácio  do  rei,  que  estava  ausente,  teve  frio  e  mandou  a  sua  companheira  pe- 
dir algumas  brazas  a  uns  padeiros^,  que  alli  perto  a(|ueciam  o  Ibrno.  Os  tornei- 
ros, vendo  (juc  Agnelleda  não  tinha  onde  levasse  as  brazas,  disseram-lhe  mo- 
fando :  «Leva-as  no  manto.»  O  que  ella  cHeclivamente  fez,  trazendo  as  brazas 
sem  que  o  manto  nem  ao  menos  tivesse  ficado  chamuscado. 

As  testemunhas  d'este  milagre  contaram-n'o  ao  rei,  o  qual  os  encheu  de 
presentes,  deixando-os  ir  em  paz.  I)'este  modo  o  leno  Gesilo  veio  a  ser  S.  Le- 
nogesiio na  lenda  conservada  pelos  BoUandistas.  A  sua  companheira  Agnelleda 
não  leve  a  dita  de  ser  canonisada. 

Os  successores  de  Carlos  Magno,  provavelmente  contra  a  prostituição,  fi- 
zeram muitas  capitulares,  que  nós  não  possuímos;  pois  que  Dulillct,  que  tinha 
ao  seu  dispor  o  Tliesouro  das  lienes  Cartas,  e  que  redigiu  a  (lakria  dos  reis  de 
França,  baseand(j-se  em  doecunientos  originaes,  diz  que  o  primeiro  cuidado  de 
Luiz  o  Benigno,  depois  da  inoite  de  seu  augustíj  jiae  «foi  limpar  e  reformar  a 
corte  d'aquella  iinmundicie,  conhecendo  que  infectava  commummente  o  impé- 
rio ou  reino.» 

Uma  capitular,  que  pbssuimos,  accrescenia  uma  extravagante  penalidade 
á  dos  crimes  de  libertinagem.  Toda  a  mulher,  conhecida  por  ter  vida  escanda- 
losa, era  condeinnada  a  percorrer  os  campos,  nua  da  cintura  acima  e  com  um 
letreiro  na  frente,  declarando  o  crime.  Todos  tinham  o  direito  de  accusar  uma 
mulher  de  prostituta  ou  adultera.  O  juiz  recebia  a  denuncia  e  instruía  o  pro- 
cesso; mas  o  ser  denunciante  tinha  certos  inconvenientes,  que  embaraçavam 
os  mais  preversos  no  uso  d'este  género  de  vingança. 

O  accusador  tinha  de  provar  o  que  denunciara  por  meio  da  prova  judi- 
ciaria, com  a  cruz,  com  a  agua  a  ferver,  ou  com  o  ferro  em  braza,  ou  em  um 
combate.  A  mulher  aceusada  fazia-se  representar  n'eslas  provas  por  um  cam- 
peão, que  i)agava  condicionalmente. 

Este  campeão,  por  mais  certo  (|ue  estivesse  na  justiça  da  sua  cliente,  não 
se  expunha  sem  inquietação  ás  provas,  de  que  devia  sahir  absolvida  ou  con- 
demnada  uma  das  partes. 

De  todas  estas  provas,  a  da  cruz  era  a  menos  perigosa,  e  dependia  me- 
nos do  acaso,  do  que  da  força  physica  dos  pacientes.  Aquelle  dos  adversários, 
que,  encostado  a  uma  cruz,  mais  tempo  estivesse  na  posição  de  Jesus  eruci- 
íicado,  era  o  que  ganhava  o  pleito;  o  outro,  pagava  uma  multa,  e  além  d'isso 
solíria  a  penalidade  do  crime. 

Frequentemente  succedia,  que,  não  encontrando  a  aceusada  quem  qui- 
zcsse  expòr-se  ás  provas,  era  ella  mesma  obrigada  a  sollrel-as,  sem  contem- 
plações para  com  o  seu  sexo,  e  para  com  a  sua  fraqueza.  Na  prova  da  cruz, 
era  a  mulher,  por  mais  fraca  que  fosse,  quem  tinha  a  vantagem.  Por  isso  esta 
prova  era  a  frcíinenteinente  empr<'gada,  (|uando  um  mai'ido,  aceusado  [)ela  es- 
posa de  impotente,  tinha  de  provar  que  sabia  cunqirir  os  seus  deveres  con- 
jugaes. 

A  imperatriz  Judilh,  sendo  aceusada  de  adultério  com  Bernardo,  conde 
de  Barbaeena,  ollereceu  justilicar-se,  por  meio  do  fogo  ou  pelo  combate;  mas 
OS  seus  inimigos,  os  lilhos  de  seu  marido,  Luiz  o  Benigno,  recuaram  deanle 


DA  PROSTITUIÇÃO  39 

de  qualquer  justificação,  e  obrigaram  seu  pae  e  sua  madrasta  a  retirar-se  cada 
um  para  conventos  dilTerentes. 

A  maior  parte  das  vezes,  uma  mulher,  accusada  de  libertina,  embora 
innocente,  preferia  sujeitar-se  á  penalidade  do  crime  imputado,  a  cxpòr-sc  ás 
terríveis  provas  do  duello  judiciário. 

Um  dos  exemplos  mais  notáveis  d'estas  provas  em  matéria  de  prostitui- 
ção teve  logar  por  aquelle  tempo  (8-)S,)  por  occasião  do  divorcio  de  Lothario, 
rei  de  Lorena.  Este  príncipe,  filho  segundo  do  imperador  Lothario,  havia  amado 
a  joven  Valdrada,  creada  no  gyneceu  de  Aix-la-Chapellc,  antes  do  seu  ca- 
samento com  Teulherga,  Iliba  do  conde  Bosou  e  não  podia  acosfumar-se  a  vi- 
ver separado  da  sua  antiga  amada.  V(dtou,  pois,  pura  junto  d'ella,  que  estava  ' 
n'um  dos  seus  domínios  na  AIsacia,  e  quando  Valdrada  lhe  deu  um  filho,  re- 
solveu repudiar  a  legitima  esposa. 

Apresenlaram-se  testemunhas,  que  accusaram  Teutberga  de  ter  tido  re- 
lações incestuosas  com  seu  irmão  Hucberto,  de  ter  ficado  gravida  e  de  ler  as- 
sassinado o  fruclo  d'esscs  amores.  Eslas  testemunhas,  evidentemente  instiga- 
das por  Lothario  e  Valdrada,  aprcsentaram-se  muito  sabedoras  das  particulari- 
dades secretas  do  incesto,  allribuindo  a  Hucberto  as  mais  abomináveis  devas- 
sidões. O  venerável  Hincmar  narra  assim  as  circumstancias  do  incesto  (Opera 
Tit.  I,  pag.  568:) 

«.Fraler  suas  cnm  ea  masculino  concubito  inter  feniora  sicnt  solenl 
masculi  in  tna.scidos  furpiludinem  operari,  scelns  fuerit  operalum  et  inde  ipsa 
conceperit.  (Juapropter,  ut  celarelur  flagilium,  potnm  hansit  et  partam  abor- 
tricit.  » 

Os  annaes  de  S.  Berlino  confirmam  este  mesmo  facto,  sem  explicar  como 
um  acto  conlra-naturam  dera  fruclo:  Fralrem  suam  sodomitico  scelus  sibi 
commi.rtum. 

A  rainha  Teutberga  escolheu  um  defensor,  que  se  submetteu  por  ella  á 
prova  da  agua  a  ferver.  O  defensor  ouviu  missa,  commungou,  mudou  de  ves- 
tuário, envergando  uma  túnica  de  diácono,  bebeu  um  trago  de  agua  benta,  e 
esperou  que  fervesse  a  agua  na  caldeira;  cm  seguida,  atirou  para  dentro  uma 
pedra  e  depois  metteu  o  braço  nu  c  tirou  a  pedra.  O  braço  foi  immediatamcnte 
ineltido  n'um  sacco  sellado  pelo  juiz;  no  fim  de  fres  dias  abriu-se  o  sacco  e 
acbando-se  o  braço  sem  lesão  alguma,  Teulberga  justificada  voltou  ao  tbalamo 
real. 

Mas  Lothario  e  Valdrada  queriam  o  divorcio  de  Tcutbepga,  e  portanio 
pozeram  em  duvida  a  validade  da  prova  e  reclamaram  outra  mais  decisiva.  E  por 
fim,  para  evilar  demoras,  Lothario  convocou  em  janeiro  de  860  um  consistó- 
rio solemne,  composto  de  70  homens  seus  afieiçoados,  e  elle  mesmo  presidiu 
no  seu  palácio  de  Aix-la-Chapelle.  Teutberga  compareceu  ante  esta  assembleia, 
e  confessou  que  seu  irmão  Hucberto  havia  efleetivamenlc  abusado  d'ella,  vio- 
lentando-a  (?io>i  tamen  sua  sponte,  sed  violenter  sibi  iníalum,  dizem  as  actas 
do  concilio  de  Aix.) 

Noutro  consistório,  reunido  no  mez  seguinte,  e  em  que  também  compa- 
receu Teutberga,  confirmou  esla  as  declarações  anteriores : 

«Confesso,  disse,  que  meu  irmão,  o  clérigo  Hucberto  me  corrompeu  na 
mais  tenra  infância  e  eommelteu  em  minha  pessoa  aclos  impudicos  contra  a 
natureza  (l'roflteor  quia  germanas  meus  Hucbertus,  rlericus,  me  adolescentii- 
lam  corrupit,  et  in  meo  corpore,  contra  naturalem  usam  fornicalionem.  e.ver- 
cuit  et  perpertravit.) 

Teulberga  foi  condemnada  a  separar-se  do  marido  e  a  fazer  penitencia 
n'um  mosteiro;  mas  pouco  depois  retratou  as  confissões  feitas  e  dirigiu-se  ao 
papa  Nicolau  i,  protestando  contra  a  sentença  que  injustamente  a  condemnára. 

O  papa  encarregou  dois  bispos  de  impedir  que  o  rei  apodrecesse  na  im- 


40  HISTORIA 

imindicic  c  luxuria  (in  luxuria  .ilfrcorea  putrifiere,  diz  a  carta  de  Nicolau  i)  e 
que  dirigiriam  os  trabalhos  d'um  concilio,  que  se  reuniu  em  Metz  para  julgar 
do  recurso  em  ultima  instancia. 

O  concilio  confirmou  a  sentença  do  primeiro  juiz,  e  o  papa  fulminou  um 
anathema  contra  o  rei  Lotliario. 

«Se  se  pode,  todavia,  diz,  chamar  rei  a  quem,  longe  de  domar  os  seus 
apetiltes  por  um  regimen  saudável,  cede  aos  movimentos  illicitos  de  uma  lu- 
bricidade que  o  enerva.» 

O  rei  despresou  a  decisão  do  concilio  de  Metz,  dizendo  que  era  menos 
um  concilio  que  um  logar  de  proslituição,  pois  n'elle  se  tinha  protegido  o  adul- 
tério, {tmnquam  adultério  facenlein  prostibulum  appellari  deceniimus.)  Des- 
presando  também  o  anathema  do  papa,  continuou  vivendo  com  Valdrada;  mas- 
0  |)apa  recorreu  a  todos  os  soberanos  e  bispos  para  combater  Lothario  com  as 
armas  tcmporaes  e  espirituaes. 

«O  senhor,  que  simultaneamente  possue  uma  esposa  e  uma  concubina  está 
cxcommungado,  escreviam  Nicolau  e  os  seus  partidários  cm  circulares  que  com- 
moviam  a  chrislandadc.  Não  é  licito  repudiar  a  mulher  legitima,  para  tomar 
outra  ou  substituil-a  por  uma  concubina.  Só  é  licito  repudiar  a  esposa  por 
crime  de  fornicarão.» 

A  estas  formulas  de  direito  canónico,  respondia  Loihario  (|ue  sua  mulher  se 
liavia  prostituído  antes  do  matrimonio.  Adon,  arcebispo  de  Mcnna,  e\|)licava: 
«Um  marido  não  pôde  pedir  o  divorcio,  quando,  depois  de  havcr-se  casado  com 
uma  mulher  desflorada,  viveu  com  ella  por  muito  tempo,  sem  fazer  a  menor 
reclamação.» 

Lothario  persistia  no  seu  propósito,  vivendo  com  Aablrada;  mas  viu-se 
ameat>ado  pelas  armas  dos  seu  visinhos,  e  aquelle  Hucberto,  a  quem  se  tinham 
atlribuido  tantas  e  Ião  grandes  infâmias,  sahiu  da  sua  abbadia  de  S.  Maurício 
e  S.  Martinho,  para  pedir  contas  das  atrozes  calumnias  arremessadas  contra  sua 
irmã  e  contra  elle.  Hucberto  foi  niorlo,  no  momento  em  que  a  vicloria  se  in- 
clinava a  seu  favor,  e  um  enviado  do  papa  veio  intimar  Loihario  a  que  se  re- 
conciliasse com  a  esposa  e  expulsasse  a  concubina. 

Lothario  cedeu:  mas,  mal  tinha  sido  recebida  Tcufberga,  teve  esta  de  fu- 
gir para  junto  de  Carlos  o  ("alvo,  para  pòr  a  sua  vida  em  segurança.  Nicolau 
excommungou  então  solemnemente  Lothario,  que  fez  o  seu  ultimo  esforço  de 
resislencia,  accusando  sua  mulher  de  adultério,  olFerecendo  provar  a  accusação 
por  meio  de  duello.  I)'esla  ullima  prova  não  sahiu  vencedor  Loihario  e  teve 
de  fazer  entrar  na  abbadia  de  Remiremont  a  sua  querida  Valdrada.  Nicolau 
chamára-o  a  Roma,  para  lhe  levantara  exeommunhãi»;  Lothario  obedeceu,  mas 
soube  no  caminho  (|ue  Nicolau  morrera,  tendo-lhe  succedido  Adriano  ii. 

Este  novo  papa  não  foi  menos  inflexivel  do  que  o  antecessor:  esperou  o 
rei  Loihario  no  convento  do  Monte  Casino,  e  antes  de  o  admiltir  á  mesa  da 
communhão,  fcl-o  jurar  que  não  tinha  tido  commercio  algum  carnal,  nem  ne- 
nhum outro  género  de  relações  com  a  excommungada  Valdrada.  Lothario, 
posto  que  tivesse  trcs  filhos  d'essa  concubina,  jurou  descaradamente  tudo  quanto 
o  papa  quiz,  e  este,  apresentando  ao  perjuro  o  pão  c  o  vinho,  accrescentou: 

«Se  te  reconheces  inniic<'nte  do  crime  de  adultério,  se  tens  a  firme  reso- 
lução de  não  mais  cobabitar  com  a  concubina  Valdrada,  vem  conliadamenie 
receber,  em  remissão  dos  teus  peccados,  a  tua  salvação  eterna;  mas,  se  ainda 
tencionas  voltar  ao  lodaçal  da  prostituição  (íit  ad  mecha:  wluntabrum  rodeas, 
dizem  os  annaes  de  Metz)  não  recebas  este  sacramento,  pois  esta  consolação 
da  tua  alma  seria  a  lua  condemnação  eterna. 

Loibariíi  consummou  o  .sacrilégio,  e  apressou-se  cm  voltar  aos  braços  da 
adorada  Valdrada. 

Mas  não  mais  põdc  vèl-a,  pois  foi  surprchendido  por  morte  repentina  no 


DA    PROSTITUIÇÃO  4'l 

caminlio,  o  que  o  impediu  de  recomeçar  as  licenciosidades  da  sua  vida  passada 
(G  de  agosto  de  869.) 

O  concubinato,  auctorisado  pela  lei  salica  e  pelos  mais  códigos  bárbaros, 
havia  resistido  por  mais  de  trcs  séculos  á  disciplina  da  cgrcja  catholica,  e  a 
igualdade  da  mulher  para  com  o  homem,  proclamada  pelo  Evangelho,  estava 
finalmente  estabelecida  na  instituição  do  matrimonio  chrislão. 

Estavam  lançadas  as  bases  duradoiras  para  a  organisaçtão  da  familia  e 
para  a  constituição  d'uma  nova  sociedade.  Embora,  por  muito  tempo,  os  hábitos 
viciosos  da  velha  sociedade  barbara  tivessem  de  rellectir-sc  nos  costumes  da 
nova,  embora,  por  vezes,  as  liberdades  licenciosas  do  paganismo  grosseiro  obs- 
curecessem as  sãs  virtudes  do  cbristianismo,  a  mulher  reconquistara  n'estc  pe- 
ríodo, direitos  que  a  civilisação  de  continuo  iria  ampliando  nas  suas  manifesta- 
ções mais  nobres. 

A  Egreja  Catholica,  pelas  suas  cathcchescs  e  com  os  seus  rigores,  arran- 
cara á  selvageria  dos  bárbaros  a  nobilitação  da  mulher.  Desde  então  a  esposa 
deixou  de  ser  a  escrava  que  apenas  produzia  filhos  para  a  tribu,  para  ser  a 
companheira  extremosa  do  marido  c  a  mãe  carinhosa  dos  seus  filhos. 


Historia,  da  PaosiiTOiçÃo.  Tomo  ii  —  Folda  0. 


CAPITULO  V 


SUALMARIO 


Carta  do  S.  Hoiiific!o  ao  Papa  Zar liarias,  sobro  o  pslado  moral  dr.s  conventos,  nos  tempos  merovinírios.— Re- 
?ra  lio  S-  Columliaiio.— Os  bispos  leiriiniiios.— Causa  priiii'ipal  dos  excessos  ria  viila  monástica.— Inlliuncia  cios  cos- 
lumos  clericaes  nos  costumes  i!os  seoulaos.- O  clero  secular.- Os  filhos  de  lloli,'illi.—Teslanii  Oto  ile  Tiir|iiii,  liispo 
dl!  Limo^íes.—  Os  monges  de  Moyen-Moiilier  e  do  Sen:  nes.— O  eininilio  Nicelu:}.—  M.ssrâ  ilelicaila  ilo  aljliade  Muni- 
lio.to.— A  alma  de  liolmin,  íúspo  de  Chalon?.— Eslbiços  do  Papa  !Jri'gono  vii,  pa^a  dÍ5ei|}lmar  os  co.slumes  da  e;;iuji 
franceza.— .\  sua  caria  aos  bi.^pos.— As  torpezas  da  vida  cleriral  são  o  llieraa  lavoíilo  de  todos  os  aitislase  litteralos 
d'aipiella  epi  ca.— l'epravaeão  geral.— O  anuo  lOCO.— Opinião  unaidiiie  dos  eseriptores  de  então  sobre  a  ilepravação 
piiiliinda  do  estado  social.— ,\  sodoaiia  era  o  vicio  mais  commuin  em  todas  as  classi'S.— O  anaelioieta  alli^mão.— O 
n-  Io  de  Roberto  do  l)i;d)o.  — Os  uoiniandos. — luDuencia  dos  seus  costumes  nos  povos,  (pie  compnstavani.— (.orno 
Kninia,  mulher  ile  Giiilliernic,  duipie  de  Aquilauiae  conde  de  Puiliers,  se  vingou  da  sua  rival,  a  viscondessa  de  Thuars. 
—  De  que  nujdo  Kbles,  lierileiro  do  conde  d.;  Coniborn  se  vingou  de  seu  tio  e  tutor  liei  nardo. —Factos  concernentes 
aos  actos  matiiuioiíiaes.— Factos  relativos  ao  incesto,  ao  iulanlicidio  c  aos  abortos.- Peccados  ci.ntra  a  natureza.- 
Piocesso  criminal.— Censuras  do  poeta  AbLon,  A  França,  pelos  seus  vicios.— C.  nsuras  ilo  aljbade  Celles  a  Paris  pela 
sua  conupção. 


PRECISO  ciicí^ar  ao  reinado  tlc  Luiz  viii,  para  cnconlrar  uma 
oídonayão  real,  rt^Ialiva  à  prosliliiição;  ma.s  nfio  deve  deduzir-sc 
da  íalía  de  regiiianicnlos  cspeciacs,  sohro  a  matéria,  por  espaço 
de  Ires  seeulos,  que  o  eslado  dos  ensliimes  lui'i>íiva  imileis  cs- 
(cs  reguianieiiíos  e  qiic  a  proslitnieão  pii!)liea  desappareeera  da 
Franea  sob  o  influxo  moralisador  da  cgreja.  A'  falia  de  monu- 
mentos da  aiili;^'a  jurisprudeneia,  que  talvez  liajain  existido,  mas  (pie  não  Scão 
encontrados  nas  collecçõcs  dos  documentos  reaes,  podemos  provar  com  o  tes- 
iemunli!)  dos  contemporâneos,  que  nunca  os  costumes  estiveram  mais  corrom- 
pidos,  nem  precisaram  mais  tie  reforma,  de  reprehensão  e  ememla. 

Durante  aqtiellc  periodtí  de  guerra,  de  invasties  e  revolução  social,  os  tra- 
bailios  tie  legislação  são  tnui  raros  e  distinguem-se  peio  caracter  transitoi'io, 
que  os  impede  de  sobreviver  ás  circumslaucias,  que  os  i)riginaram :  não  b a  có- 
digo que  revele  a  vontade  de  se  organisar  sociedade  estável,  como  as  capitula- 
res de  f.arlos  Magno  e  os  Estatutos  de  S.  Luiz.  Os  reis  succedem-se  muito  ra- 
pidamente e  sentem-se  em  extremo  mal  senladiís  no  tlirono,  para  pensarem  na 
grande  íd)ra  de  oigani.sar  c  moralisar  os  seus  Estados:  nem  Icem  tempo,  nem 
cuidam  de  molillcar  as  instituições  dos  seus  antecessores.  1'iJdo  dizer-sc  cmn 
certeza  que,  desde  Carlos  Magno  até  S.  Luiz,  a  policia  da  prostituição  pepina- 
neceu  estacionaria,  sem  solTrer  metamorjiliose  alguma,  em(|iianlo  fjiK.'  a  prosti- 
tuição, alentada  pela  indilíerciíça  dds  magislradds,  não  cessou  de  esíendcr-sc 
c  arreigar-sc  no  |)0V(). 


44  HISTORIA 

Não  Icntarcmos  clomonslrar  a  não  cxisfcncia  de  precauções  Icgaes,  de  me- 
didas cocrcilivas  e  de  proliibiçõcs  regulares  em  interesse  dos  costumes  públi- 
cos; mas  ser-nos-hia  diiricil  provar  que  os  costumes  não  eram  detestáveis, 
n'aquella  época  de  barbaria,  de  ignorância  e  de  embrutecimento. 

A  mais  vcrgonliosa  corrupção  penetrara  nos  conventos  dos  tempos  nie- 
rovingios.  Em  742,  S.  Bonifácio,  bispo  de  Mayenna,  escrevia  ao  papa  Zacba- 
rias :  «Os  bispados  são  quasi  sempre  providos  ení  leigos  ávidos  de  riquezas, 
ou  em  clérigos  prevaricadores,  que  os  gosam  mundanamente.  Tenho  encon- 
trado nos  que  se  iniiiuiam  diáconos  homens  desde  a  infância  habituados  ao  adul- 
tério e  aos  vicios  mais  infames;  de  noite,  dormem  com  quatro,  cinco  concubinas 
e  ás  vezes  mais  (Inveni  inter  ilíosdiaconos  qiios  nominant,  quia  pueritia 
sua  semperin  stupris,  semper  in  adulleriis  et  in  omnihis  semper  spurutiis  viam 
ducentes  sub  íali  testimonis  venerunt  ad  diaconaiuin ;  et  modo  in  diaconato 
concubinas  quatuor,  cel  quinque,  vel  plures  nocte  in  ledo  habentes.») 

Os  reformadores  das  ordens  religiosas  alalbaram  apenas'  o  mal,  sem  o 
destruírem  na  origem.  S.  C(jlumbano,  que  por  este  tempo  promulgou  a  sua  re- 
gra, introduziu  n'clla  esta  severa  clausula: 

«O  que  familiarmente  e  em  sitio  isolado  fallc  com  uma  mulher  estará 
dois  dias  a  pão  e  agua,  ou  levará  duzentos  açoites.» 

As  regras  mais  rigorosas  relaxavam-se  immcilialamente  nas  communida- 
des,  onde  constantemente  se  mantinha  o  fogo  das  paixões  scnsuaes.  O  escân- 
dalo na  vida  monástica  começava  sempre  pela  incontinência.  Nem  os  concílios 
podiam  reprimir  as  paixões  dos  frades,  paixões  tanto  mais  irresistíveis  quanto 
mais  refreadas  estavam  :  sabiam,  como  energicamente  o  diz  S.  Jeronymo,  que 
o  poder  do  diabo  se  occultava  nos  rins  (diabolo  ririus  in  lambo;)  esforçavam-se 
por  tirar  a  nuilher  da  vista  e  do  pensamento  do  homem:  comprehendiam  que 
as  mulheres  legitimas  dos  bispos  e  sacerdotes  acceites  pela  egreja  primitiva 
eram  apenas  occasiões  de  peccado. 

«P(jde  supportar-sc,  exclamava  Verano,  bispo  de  Lyão  em  uma  assem- 
bleia (em  585),  póle  soiTrer-se  que  o  servidor  do  aliar,  o  homem  chamado  á  honra 
de  accrcar-se  do  Santo  dos  Santos  se  macule  com  as  indignas  delicias  da  car- 
ne, e  que  um  clérigo,  allegando  direitos  ao  matrimonio,  preencha  simultanea- 
mente os  deveres  de  sacerdote  e  de  esposo?» 

Os  bispos  femininos  (episcopce)  foram  pouco  a  pouco  desapparecendo ;  o 
celibato  veio  a  ser  condição  indispensável  para  os  ccclcsiaslicos  e  a  entrada 
nos  conventos  de  homens  foi  proliibida  ás  mulheres,  assim  como  nos  conven- 
tos d'estas  foram  prohibidas  as  dos  homens. 

Mas  isto  não  passava  de  lettra  morta;  a  auctoriJade  da  egreja  tinha  po- 
der para  legislar,  mas  faltava-Ihe  força  para  se  fazer  obedecer.  Os  conventos, 
por  consequência  natural  das  paixões  humanas,  na  sua  maioria  eram  receptá- 
culos de  impurezas  e  era  preciso  duas  ou  Irez  vezes  em  cada  século  introdu- 
zir n'clles  uma  ref()rma  jiarcial,  se  não  eomplela.  Tal  é  a  hisluria  de  quasi  to- 
dos os  mosteiros,  em  que  o  escândalo  muitas  \'ezes  se  escondia,  embora  a  com- 
nuinidade  fosse  libertina.  Ordinariamente  apenas  por  vagos  rumores  se  sabia 
do  que  lá  deniro  nos  mosteiros  se  passava.  Quando  o  bispo  julgava  aproposi- 
tado  inquirir  do  mal,  as  pcsquizas  descobriam  tacs  horrores,  que  o  pudor  chris- 
tão  das  auetoridades  da  egreja  julgava  melhor  cobrir  misericordiosamente  tão 
graves  escanclalos. 

A  eau.sa  principal  dos  excessos  da  vida  monástica  era  a  visinhança  e  o 
frequentarem  os  dois  sexos  uns  e  outros  mosteiros;  aqui  o  abbade  ou  prior  di- 
rijia  as  religiosas;  acolá,  pelo  contrario,  era  a  abbadessa  ou  prioreza  que  exer-. 
eia  soberania  sobre  os  frades.  Eslas  continuas  relações  dos  dois  sexos  no  re- 
cinto das  abbadias  originavam  muitos  abusos,  que  a  aucloridade  do  bispo  não 
podia  re()r'mir. 


DA    PROSTITUIÇÃO  45 

Os  costumes  do  claustro  tinham  deplorável  influencia  cá  fora  no  povo, 
que  não  pretendia  ser  mais  virtuoso  que  os  seus  confessores,  c  o  clero  secular 
não  dava  melhores  exemplos  aos  seus  freguezes.  Martiniano,  monge  de  Rahais, 
no  decimo  século,  dizia  aos  sacerdotes  do  seu  tempo: 

«E'  direito  vosso  ter  mulher  ou  ter  relações  com  mulheres?  Polluis  o 
vosso  corpo  com  diversos  géneros  de  luxuria,  esse  corpo  creado  para  receber 
o  alimento  dos  anjos  !» 

Este  Martiniano,  no  seu  tratado  maliciosamente  intitulado  De  laude  rno- 
nachorum,  censura  aos  seus  coliegas  o  «viverem  como  dissolutos  em  vez  de 
se  armarem  com  a  espada  incorruptível  da  castidade,  e  de  santificarem  as  suas 
mãos  com  boas  obras.» 

O  padre  Berlhollet,  na  sua  grande  historia  do  Luxemburgo,  apesar  de 
ser  jesuita,  é  obrigado  a  confessar  que  o  clero  do  século  decimo  havia  esque- 
cido a  santidade  da  profissão,  e  já  se  não  recordava  de  que  a  continência  fi- 
zera a  gloria  da  egreja.  Vivendo  com  os  povos,  julgavam  não  haver  distineção 
alguma  entre  elles,  e  facilmente  se  persuadiram  que  deviam  ter  mulheres. 

Estes  clérigos  depravados  eram  os  chamados  tilhos  de  (loliath,  {rleri  ribaldi, 
qui  vulíjo  dicuntur  de  fainilia  Golicv,  nas  Constituições  de  Gauthier  de  Lens, 
em  923.) 

A  parle  sã  do  clero  magoava-se,  vendo  os  progressos  d'aquella  gangrena 
moral,  que  nada  podia  conter.  O  piedoso  bispo  de  Limoges,  Turpio,  morlo  em 
944,  fazia  com  amargura  no  seu  testamento  esta  confissão; 

^<E  nós  mesmos,  que  devemos  dar  o  exemplo,  somos  instrumentos  da 
perda  do  próximo,  c  em  vez  de  sermos  pastores  dos  povos,  parecemos  lobos  de- 
voradores.» 

Não  é  este  o  logar  de  evidenciar  os  grosseiros  vicios  da  gente  da  egreja, 
que  julgava  tudo  lhe  ser  permittido,  por  terem  nas  suas  mãos  o  direito  de  per- 
doar peccados;  não  ousaremos  peneirar  nos  archivos  dos  conventos  c  tomar 
nofa  dos  que  foram  reformados,  excommungados  e  supprimidos,  por  causa  das 
monstruosas  licenciosidades  dos  que  os  habitavam;  basta  dizer  que  não  se  en- 
contrará uma  abbadia  celebre,  em  que  os  costumes  claustraes  muitas  vezes 
não  tenham  soífrido  o  contagio  da  impudieieia.  Tara  citar  alguns  exemplos,  em 
mil  do  mesmo  género,  basta  lembrar  que  os  monges  de  Moycn-Moutier  e  de  Se- 
nones  em  Lorena  viviam  vida  Ião  escandalosa  que  foram  expulsos  por  ordem 
do  imperador  da  Allemanha;  mas  os  successores  ainda  os  excederam  em  liber- 
tinagem. 

Na  chronica  manuscripta  de  João  de  Bayon,  possuída  por  Mr.  Nocl,  na 
sua  bibliotheca  em  Nancy,  vé-se  que  os  monges  de  Moyen-Moulier  se  assus- 
taram com  as  theorias  de  um  eunucho  grego,  por  nome  Nicetas,  que  em  Cons- 
tantinopla aconselhava  a  castração  de  todos  os  noviços,  destinados  á  vida  mo- 
nástica. Estes  monges  corrompidos  e  corruptores,  que  mantinham  relações  in- 
fames ciim  as  raparigas  das  visinhanças  e  de  noite  as  allrahiam  ás  suas  cellas, 
imaginaram  que  a  Iheoria  de  Nicetas  teria  como  resultado  o  arrancar-se-lhes  a 
fonte  dos  seus  prazeres.  O  seu  suslo  fel-os  encarregar  o  seu  superior  Hum- 
berto de  ir  a  Constantinopla  combater  a  heresia  de  iNicetas,  e  o  abbade  cum- 
priu a  delicada  commissão  com  satisfação  de  todos  elles,  pois  salvou  a  virili- 
dade dos  monges,  derrolando  o  beresiarcha  com  o  peso  dos  seus  argumentos, 
n'um  dialogo,  em  que  o  convenceu  de  querer  transformar  os  servidores  de 
Deus  em  sacerdotes  de  Cybele. 

A'  volta,  soube  que  a  sua  abbadia  dera  mais  um  passo  no  caminho  da 
perdição,  e  julgou  poder  intimidar  aquelles  espíritos,  ameaçando-os  com  as 
penas  do  inferno : 

«Quando  atravessava  os  Alpes,  contou-lhes  elle,  encontrei  uma  legião  de 
demónios   montados   em   cavalíos  de  fogo.  Levavam  a  alma  de  Gobnin,  bispo 


Í6  HISTORIA 

ilc  Chalons,  que  acabava  cie  ser  surprehcnilulo  pela  morte  no  próprio  momento 
de  commetter  o  peceado  contra  o  sexto  mandamento,  com  uma  religiosa.  Per- 
guntei ao  chefe  d'aque!lc  exercito  infernal,  se  possível  seria  resgatar  aquelia 
alma  com  orações;  mas  o  espirito  maligno  respondeu-me  com  uma  gargalhada 
voliando-mc  as  cosias,  e  todos  os  demónios  as  voltaram  também,  fa7.endo  ges- 
tos indecentes.» 

Os  monges  a  quem  isto  era  contado  imitaram  o  descortez  procedimento 
da  legião  infernal,  mas  agradeceram  todavia  ao  prior  o  triumpho  alcançado 
sobre  iSicetas,  dizendo: 

«Agora  resta-nos  provar  que  um  bom  monge  \Mnc  dispensar-se  de  ser 
um  bom  eunucho,  e  que  um  bom  eunucho  não  poderia  dar  um  bom  monge.» 

Não  queremos  passear  o  leitor  de  convento  em  convento,  iniciando-o  na 
vida  escandalosa  que  lá  se  passava  dentro;  basta  dizcr-lbe  que  todos  os  claus- 
tros eram  antros  de  prostituição  (scorlationes  fornices,  diz  um  escriptor  mo- 
nástico do  século  undécimo.)  Gregório  vir,  que  se  esforçava  em  disciplinar  os 
costumes  da  egreja  franceza,  escrevia  em  1074  a  todos  os  bispos: 

«Entre  vós,  toda  a  justiça  é  calcada.  Tendes  o  costume  de  commetter  im- 
punemente as  acções  mais  vergonhosas,  mais  immundas,  mais  intoleráveis,  que, 
á  força  de  licença,  se  converteram  em  hábitos.») 

Explica-se  a  indignação  d'este  papa  legislador,  vendo  um  Mauger,  arce- 
bispo de  Ruão,  commetter  crimes,  que  exhalavam  em  volta,  no  dizer  enérgico 
de  (luilherme  de  Foiliers,  um  repugnante  cheiro  de  vergonha;  um  Engucrrand, 
bispo  de  Laon,  metter  a  ridículo  a  temperança  c  a  pureza  «com  expressões, 
diz  Guibert  de  Nogent,  dignas  d'uma  prostituta;»  um  Manasses,  arcebispo  de 
Reims,  que  foi,  segundo  conta  um  contemporâneo  «uma  besta  immunda,  um 
monstro,  cujos  vicios  não  eram  attenuados  por  qua!c(uer  virtude;»  um  Hugo, 
bispo  de  Langres,  maculado  de  adultérios  e  sodomias  (sodomico  elinm  [laijitio  • 
pollutam  esse,  lé-sc  nas  actas  do  Synodo  de  Reims,  perante  o  qual  foi  levado 
cm  julgamento.) 

Todos  estes  indignos  prelados  foram  severamente  castigados;  mas  estes 
exemplos  fataes  não  eram  menos  seguidos,  por  grande  numero  de  clérigos,  que 
se  indignavam  das  severas  decretaes  de  Gregório  vu.  Tanto  se  linha  apossado 
a  libertinagem  do  clero,  que  a  moralidade  soílVia  d'ellea  mais  teimosa  opposição. 

«E'  um  herege  e  um  insensato,  exclamavam  os  da  diocese  de  Mayença 
(Chronica  de  Lamberto  Schaífin.)  Ouer-obrigar  os  homens  a  viver  como  se- 
rias celestiaes,  contrariando  a  natureza,  dando  redCa  solta  á  crápula?  .\ntes  que- 
remos renunciar  ao  sacerdócio  do  que  ao  matrimonio.» 

Qiuisi  todos  eram  casados  ou  tinham  concubinas.  Ives  de  Gharlres,  nas 
suas  carias,  (Epist.  33),  cila  um  prelado,  que  publicamente  cohabilava  com 
duas  mulheres  c  que  se  preparava  para  adquirir  uma  terceira  (qui  publice  sibi 
duo  scorta  copnlarit  et  teríiam  pellkem  jam  .sibi  prceparacit.) 

Apesai'  dos  decretos  pontifícios,  o  chíro  insistiu  por  muito  tempo  nas  suas 
relações  concubinarias,  resit-tindo  tenazmente  á  renuncia  dos  piwzeres  (se  pnl- 
licibue  aã  hoc  nolunt.  absiinere,  nec  pudicicice  inhcersre,)  diz  Oderico  Ailal.  O 
mesmo  historiador  conta  que,  tendo  o  arcebispo  de  Ruão  cxcommungado  os 
que  viviam  na  incontinência,  foi  por  elles  apedrejado. 

Os  bastardos  dos  sacerdotes  e  dos  frades,  muHiplicavam-se  iniinilamenie, 
e  seus  pães  não  se  envergonhavam  de  dolal-ns,  casal-os  e  enriquccel-os,  á  custa 
da  egreja.  iSão  havia  um  cabido,  cujos  cónegos  não  estivessem  abra:ados  no  fogo 
da  luxuria,  {(lall.  Christ.  til.  i,  appeud.  pag.  (>,)  não  havia  diocese  em  que 
se  contas.scni  dez  sacerdotes  .sábios,  castos,  amigos  da  paz  c  da  caridade,  isen- 
tos de  todo  o  crime,  de  toda  a  infâmia,  de  (|iialiiiier  macula,  {l-'iilp.  Larnat. 
Episl.  17;)  não  havia  convento  onde  a  regra  (ia  (iidcm  fosse  escrupulosamenli- 
observatia,  onde  os  homens  vestidos  de  frades,  lussem  verdadeiros  frades,  {() 


DA     1'UOSTITUIÇÃO  i7 

>iiiseri I  Jizia   o   monge   Marliniano,   nós  mo naciúali  hábil u  indiili,  mdemur; 
monachi  et  non  sumus  I) 

O  (lopravaclo  proceder  dos  sacerdotes  c  frades  era  escandalosamente  imi- 
tado pelas  poi)ula(,'ões.  O  clero  nem  au  menos  pi'ocurava  apparentar  honestidade 
c  era  elle  mesmo  quem  dava  o  assumpto  dos  seus  vicios  aos  poetas,  que  o  es- 
carneciam nos  seus  versos  satyricos,  aos  pintores  que  faziam  quadros  c  minia- 
turas, allusivas  aos  seus  prazeres  aphrodisiacos,  aos  estatuários  que  celejjra- 
vam  estas  orj^ias  em  obras  de  pedra,  de  madeira  e  marfim.  Era  este  o  (liema 
favorito  da  lilteralura  e  da  arte;  a  intemperan(,'a  dos  frades,  as  suas  sensuali- 
dades, o  seu  eynismo.  Em  parle  alguma  se  Ic  que  os  ccciesiastieos  se  olíen- 
dessem  com  a  repruduc\'rio  pela  arte,  das  suas  torpezas  e  infâmias.  Elies  próprios 
se  divertiam  com  a  descripção  dos  seus  vergonhosos  feitos,  fazer.do  reproduzir 
a  epopeia  escandalosa  da  sua  vida,  nas  illuminuras  dos  missaes,  nas  esculptu- 
ras  das  egrejas,  nos  ornatos  dos  seus  moveis. 

O  talento  dos  csculptorcs,  sem  ccs.sar  se  applicava  á  perpetuação  d'essas 
orgias  e  liceneiosidades,  e  por  isso,  existem  tantas  allegorias  grosseiras,  tan- 
tas caricaturas  indecentes,  tantos  caprichos  sórdidos,  gravados  nos  capiteis, 
nos  frisos,  nos  arabescos  da  arehilectura  religiosa;  ac|ui  descobreni-se  frades 
transformados  em  porcos,  alli  cães  vestidos  coni  o  habito;  n'un!a  parte  o  órgão 
gerador  a|)pareec  |)or  baixo  do  habito  d'um  monge,  n'outra  freiras  e  diabos  se 
entregavam  a  scenas  pouco  edificantes;  e  ainda  n'oulra,  mulheres  nuas,  são 
perseguidas  por  macacos,  que  lhes  mordiscam  as  nádegas.  O  emblema  da  impu- 
reza é  cop.imummente  uma  cabeça  de  Cliimcra,  cobrindo  os  órgãos  scxuacs  mas- 
culinos ou  femininos.  Em  todos  estes  grupos  obscenos,  o  habito  do  frade  ou  da 
freira  caracterisa  a  maligna  intenção  do  a^ielor,  que  se  diverte  cm  immortali- 
sar  os  vicios  vergonhosos. 

Eram  estes  os  primeiros  que  se  riam  d'aquella  celebridade,  e  tanto  assim 
era  que  deixaram  subsistir  tão  escandalosas  obras  de  arte,  que  na  sua  maior 
parte  foram  destruídas  nos  tempos  modernos  pelos  exaggerados  escrúpulos  dos 
ccciesiastieos,  a  quem  em  vão  pediram  graça  a  originalidade  de  laes  monumen- 
tos. E'  essa  a  razão  porque  os  mais  extraordinários  d'esscs  capiteis,  os  que 
eram  ornados  com  toda  a  sorte  de  obscenidades  nos  são  conhecidos  apenas  pelo 
testemunho  dos  archeologos  e  dos  sábios,  que  recolheram  essas  tradições.  E 
por  isso  lambem  julgamos  que  não  se  haja  conservado  o  desenho  d'uma  escul- 
plura  licenciosa,  que  se  via  cm  Saint-Uermain-des-Prés,  e  que  representava 
uma  religio.sa,  prostituindo-se  ao  mesmo  tempo  com  um  frade  e  um  animal, 
que  parecia  lobo.  Também  cm  Saint-Georgcs-de-Roche-ville,  na  Normandia, 
havia  uma  parte  de  columna,  em  que  estava  gravada  uma  horrível  confusão 
de  homens  e  macacos,  competindo  em  incontinência  e  dcsavergonhamento. 

Em  presença  d'estes  modelos  de  luxuria  clerical,  o  povo  não  linha  a  pre- 
tensão de  ser  puro  e  virtuoso,  chegaiido  mesmo  a  ter  uma  espécie  de  emula- 
ção libidinosa,  uma  rivalidade  libertina  com  os  sacerdotes  e  frades.  Os  histo- 
riadores coevos,  representam-os  sob  a  forma  de  escorpiões  e  serpentes,  com 
face  humana  {Ili.it.  des  comtes  de  Poitou,  por  .1.  i5es!y,  pag.  26i.) 

Assim  comprehende-se  bem  c|uc  tal  existência  lizesse  crer  no  fim  do 
mundo  e  no  reinado  do  Aníe-Chrisío.  Esta  supersticiosa  crença,  fixada  jielos 
prognósticos  para  o  anno  1000,  não  era  também  de  molde  a  melhorar  os  cos- 
tumes. Apezar  dos  terrores  que  o  íim  do  mundo  inspirava,  todos  se  entrega- 
vam aos  gosos,  embriagando-se  com  os  prazeres  da  carne  (cnrnale  ilkcebroe.) 
O  mundo  era  cada  vez  pcioi',  e  por  todos  cim  esperado  o  baptism  )  d'um  novo 
diluvio:  (i-idebaíur  sane  mundus  decliiiare  ad  vespsraiii,  diz  (iuilherme  de  Ty- 
ro,  liv.  I  da  sua  Historia.) 

Os  jioetas  estavam  de  accordo  com  os  pregadores,  para  annunciar  que  a, 
espécie  humana  tinha  feito  espantosos  progressos  na  iniijuidade,  c  que  a  (Jeca=> 


48  HISTORIA 

dencia  moral  era  cada  vez  maior.  Um  trovador  do  século  decimo,  citado  por 
Raynouard  (PocsiM  orirj.  des  Trouv.  tit.  ii  pag.  16)  dizia  n'um  curto  poema: 

Enfans  en  dies  foren  orne  fallo. 
Mal  home  foren,  aora  siuit  poior. 

Todos  os  escripforcs  d'aquelle  tempo  são  conformes  sobre  a  profunda  de- 
gradação do  estado  social,  e  todos  dizem  ser  a  causa  principal  o  peccado  da  in- 
continência, que  tomara  proporções  gigantescas.  Alguns,  fazendo  doação  dos 
seus  bens  ás  egrcjas  e  aos  mosteiros  por  temor  do  ,4nte-(]liristo,  juslilica- 
vam-as  com  a  crescente  iniquidade  dos  homens  ('niquilas  quotidiana  malicie 
incrementa  siuiiii,)  lè-se  n'uina  doação,  feita  á  cgreja  d'Anbely.  Os  doadores 
sentiam-se  tão  sobrecarregados  de  impureza,  que  se  arruinavam  para  comprar 
a  absolvição,  que  quasi  sempre  lhes  era  dada  por  um  sacerdote,  mais  impuro 
e  peccador  do  que  clles. 

«Então  viu-se,  diz  Raul  Glaber  na  sua  Chronica  (liv.  iv  pag.  9.)  reinar 
por  toda  a  parle  o  menosprezo  da  justiça  e  das  leis.  Os  homens  deixavani-se 
arrastar  pelas  suas  desenfreadas  paixões.  .  .  Justamente  á  nossa  nação  podem 
ser  applicadas  estas  palavras  do  Apostolo:  praticaes  taes  impurezas,  que  nunca 
se  ouviu  dizer  que  iguaes  as  commettessem  os  pagãos.» 

Oderico  Vital,  na  sua  Historia  Ecclesiastica,  (liv.  vui,  anno  1000,)  accusa 
a  geração  contemporânea  de  deliciar-se  com  o  que  os  mais  honrados  persona- 
gens dos  tempos  passados  chamavam  infame  e  vergonhoso.  Ha  a  accrescentar 
que,  não  tendo  apparecido  o  Anfe-Cliristo  no  anno  1000,  os  que  sobreviveram 
áquella  época  fatal,  julgaram-se  auct  )"isados  a  não  receiar  nenhuma  vingança 
celeste,  c  mais  se  afundaram  no  tremedal  dos  seus  vicios. 

Ha  disseminadas  algumas  descripções  d'estes  vicios,  ordinariamente  dis- 
farçadas com  vagas  generalidades,  e  que,  pelas  lamentações  que  produzem  na 
pouca  gente  séria  daquelles  séculos,  não  dillerem  doutras  obras  do  demónio. 

«Agora,  exclama  um  poeta  anonymo,  n'um  poema  de  versos,  sobre  a 
desventura  do  seu  tempo,  (7/í'.s^  des  Gaulês,  tit.  xi,  pag.  44o,)  agora  os  ho- 
mens que  levam  vida  escandalosa,  libertinos  e  sodomitas,  roubam,  injuriam  e 
despresam  os  homens  honestos.» 

A  asquerosa  sodomia  {moechi  sodomit<e)  era  o  vicio  mais  commum  cm  to- 
das as  classes,  tanto  entre  condes  e  barões,  como  entre  humildes  servos,  tanto 
nas  sombras  da  clausura,  como  nos  salões  luxuosos  do  abbade  e  do  bispo.  O 
diácono  Pedro,  cm  nome  do  Papa  Leão  ix,  pronunciou  no  concilio  de  lleims 
(1049)  um  discurso,  em  que  os  sacerdotes  e  seculai-es  eram  scvcramenle  re- 
prebendidos  pelos  seus  vergonhosos  costumes.  Estes  haijitos  haviam-sc  de  tal 
sorte  inveterado  em  França,  que  o  abbade  Clairvaux,  Henrique,  escrevia  ao 
papa  Alexandre  iii,  em  1177.  A  antiga  sodomia  renasce  das  próprias  cinzas. 
[Hist.  de  Paris,  por  Dulaire,  edic.  de  1837,  tit.  ii,  pag.  40.) 

Oderico  Vital,  em  muitos  trechos  da  sua  historia,  faz  notar  o  contagio  do 
odioso  vicio,  que  devia  a  sua  recrudescência  ao  estabelecimento  das  raças  nor- 
mandas, nas  provindas  galio-franeas. 

«Então,  diz  no  livro  viii,  os  etfeminados  dominavam  em  todas  as  regiões, 
c  sem  freio  se  entregavam  ás  suas  sórdidas  licenciosidades:  todos  sem  pudor 
abusavam  das  horriveis  invenções  de  Sodoma  {Tiinc  e/feniinati  passim  in  orbe 
diiminanbantur,  indiciídinale  dehacrhabanlur,  sodomilicisque  spnrtiis  [cedi  ca- 
lamiloe,  flamis  urendi  lurpiler  abutebanlur.y>) 

O  mesmo  historiador  conta  que  um  anachorcta  famoso,  consultado  pela 
rainha  Mathilde,  mulher  de  Guilherme  de  Inglaterra,  prophetisara  esta  invasão 
de  Soiloma.  O  anacboiela  |)rcdisse  os  males  que  ameaçavam  a  Normandia,  sob 
o  reinado  de  Roberto,  lillio  de  Guilherme  e  neto  de  Roberto  do  Diabo. 


DA    PROSTITUIÇÃO  49 

«Este  príncipe,  diz,  similliante  a  um  lascivo  bode,  en(regar-se-ha  á  sen- 
sualidade e  ao  roubo,  apoderar-se-ha  dos  bens  ecclesiasticos.  Distribuil-os-ha 
pelos  que  Ibc  prodií^jalisam  os  seus  prazeres  sensuaes,  e  pelos  aduladores  infa- 
mes (spurcisque  lenonibus  alii.sqiie  lecatoribun  di.stribuel.)  A"o  ducado  de  Ro- 
berto, os  catainifas  e  os  elleminados  dominarão,  e,  sob  este  dominio,  a  preversi- 
dade  e  a  miséria  augmentarão  terrivelmente.» 

E',  pois,  incontestável  que  a  sodomia,  que  augmcntou  com  as  crusadas, 
foi  em  França  introduzida  pelos  normandos,  que  a  deixaram  como  vestígios 
em  todas  as  estações  que  fizeram,  quer  fosse  para  invernar,  quer  para  esperar 
as  suas  bordas  devastadoras. 

Abbon,  no  seu  poema  do  cerco  de  Paris  pelos  normandos,  imputa  aos 
francezes  o  vicio  ignominioso  que  queremos  exclusivamente  attribuir  aos  seus 
inimigos.  Aquelles  bomens  do  norte,  como  a  maior  parte  dos  bárbaros,  não  ti- 
nham escrúpulos  nem  vergonba  em  mutuamente  se  prestarem  a  esta  abominá- 
vel prostituição:  faziam  um  uso  moderado  das  mulheres,  que  constantemente 
estavam  gravidas  ou  aleitando  os  filhos,  pois  que  a  tribu,  cuja  força  dependia 
do  numero  de  homens,  lhes  pedia  uma  producção  exhuberante,  que  os  hábitos 
de  relações  voluptuosas  entre  marido  e  mulher  não  favorece.  Tal  foi  de  certo 
a  origem  e  causa  d'aquelles  degradantes  erros  do  sexo  masculino. 

Os  normandos  não  eram  menos  lascivos  para  com  as  mulheres,  nem  as 
violaram  menos  do  que  aos  homens  nas  povoações  por  elles  occupadas,  pela 
força  ou  surpreza;  unicamente  respeitavam  as  creanças,  isto  é,  matavam-as  sem 
piedade.  Os  mancebos,  esses,  eram  distribuídos  e  levados,  depois  de  com  elles  pra- 
ticarem as  maiores  obscenidades,  deante  de  suas  esposas,  que  se  não  olTendiam 
com  isso  nem  ousariam  oppòr-se. 

O  monge  Richer,  narrando  uma  expedição  dos  normandos  que  devasta- 
ram a  Bretanha  no  século  nove,  diz  que  levavam  os  homens,  as  mulheres  e 
as  creanças : 

«Decapitam  os  velhos  dos  dois  sexos,  escravisam  as  creanças  e  violam 
as  mulheres  bonitas  (feminas  cero,  quo'  formosce  cidebantur,  prostlluunt.)» 

Pódc  já  fazcr-se  ideia  do  terror  inspirado  pelo  nome  e  fama  dos  norman- 
dos; despovoaram  províncias  inteiras;  as  cidades,  florescentes  antes  da  sua  ap- 
parição,  ficaram  sem  habitantes;  depois  de  serem  por  elles  abandonadas,  as 
pittorescas  margens  dos  rios,  que  elles  tinham  subido  com  os  seus  t)areos  de 
fundo  chato,  convertiam-se  em  desertos;  na  passagem,  deixaram  impressos  os 
seus  hábitos  infames,  e,  os  vencidos,  por  muito  tempo  conservaram  as  infames 
tradições  que  os  vencedores  lhes  tinham  legado. 

Ao  fixarcm-se  no  solo  da  Inglaterra,  os  normandos  não  trataram  melhor 
a  população  indígena :  não  matavam  os  velhos,  mas  abusavam  dos  mancebos  e 
ultrajavam  as  virgens,  das  quaes  as  mais  nobres  eram  repasto  da  lascívia  da 
immunda  soldadesca  (nobilis  puella  despicabiUnm  ludibiio  armifierorum  pate- 
bant  et  ab  immundis  nebulonibus  oppressoe  dedecus  suum  deplorabant,  diz  Ode- 
rico  Vital.) 

Deve  presumir-se  que  os  costumes  normandos  não  haviam  melhorado 
muito,  depois  de  dois  séculos,  e  que  tão  grandes  libertinos  continuavam  a  pas- 
sar bem  sem  suas  mulheres,  porque  estas,  durante  a  larga  ausência  dos  seus 
maridos,  sentiram-se  abrazadas  de  tal  concupiscência  {soerá  libidinis  face  ure- 
bantwr,  diz  o  latim  mais  energicamente  do  que  o  descreveria  a  nossa  língua)  que 
tiveram  de  mandar  aos  ausentes  mais  d'uma  mensagem  em  1068,  dízendo-ihes 
que  tomariam  outros  maridos,  se  depressa  não  voltassem. 

O  receio  de  ver  do  leito  conjugal  sahírem  bastardos  decidiu  alguns  nor- 
mandos a  voltar  para  junto  das  impacientes  esposas  (/aò-c/ní.v  (fomiua^ntí  sui.<;,) 
mas  o  maior  numero  ficou  em  Inglaterra,  onde  encontravam  com  que  distra- 
hir-se  e  consolar-se.  Se  as  suas  mulheres  não  se  casaram  todas,  nem  por  isso 

HiSTOSU  DA  FSOSTITCICÃO.  ToMO  II— FOLHA  7. 


50  HISTORIA 

deixaram  de  lhes  dar  bastardos.  Um  poeta  d'ac|uella  época  lastimava-se,  vendo 
que  «a  lâmpada  das  virtudes  se  apaj^ára  na  ]\ormandia.» 

As  demais  províncias,  que  então  compunham  a  França  feudal,  soh  o  ponto 
de  vista  dos  costumes,  não  estavam  então  em  mais  satisfatória  situação.  Os 
senhores,  sem  pudor  algum,  faziam  gala  de  todos  os  vícios.  M.  Emílio  de  la 
Bedoilière,  na  sua  erudita  Hisloire  des  tnceiírs  et  de.  la  vle  privce  des  Fravçais, 
descreve  episódios  notáveis  de  selvagem  impudor  que  caracterisa  um  e  (tu- 
tro  sexo,  tanto  nobres  como  servos.  Em  990,  corria  o  boato  dç  que  (luilherme 
IV,  duque  de  Aquitania  e  conde  de  Poitiers,  tinha  tido  relações  adulteras  com  a 
mulher  do  visconde  de  Thouars,  em  cujo  palácio  tinha  recebido  hospitalidade, 
e  Emma,  esposa  de  Guilherme,  espreitava  a  oceasião  de  vingar-se  da  sua  ri- 
val. 

Um  dia  viu-a  passear  a  cavallo,  indo  quasi  sem  companhia,  pelas  visi- 
nhanças  do  eastello  de  Talmout  e  alcançando-a  com  um  grande  séquito  de  es- 
cudeiros, lança  por  terra  a  viscondessa,  enche-a  de  ultrajes  e  entrega-a  aos 
escudeiros.  Estes  apoderam-se  d'ella,  e,  cada  um  por  sua  vez,  durante  uma  noite 
inteira,  a  violaiam,  obedecendo  assim  ás  ordens  de  Emma,  que  os  excita  c con- 
templa {comilantes  se  qnatemis  íihidinose  nocte  qvw  iiiiminebal,  lota  e,  a  ahu- 
terentur,  incitai.) 

No  dia  seguinte  deixaram-na  em  liberdade,  semi-nua  e  succumbindo  de 
cançaço  e  vergonha.  O  visconde  não  pôde  queixar-se  nem  tirar  vingança  c 
acceitou  sua  mulher  deshonrada,  emcjuanto  (luilherme  desterrava  a  sua  para  o 
eastello  de  (Ihinon. 

Em  U)8(),  vemos  outra  violação,  menos  repugnante  nas  suas  circumstan- 
cias,  mas  consummada  também  em  presença  de  testemunhas.  Ebles,  herdeiro 
do  conde  de  Comboru,  na  A(|uitania,  chegando  á  maioridade,  reclamou  do  seu 
lio  e  tutor  Bernardo  o  seu  eastello  e  tei'ras. 

Este  recusava  allender  a  esta  reclamação,  e  Ebles,  reunindo  gente  de 
guerra,  poz  cerco  ao  eastello  que  em  vão  Bernardo  procurava  defendei'.  Ebles, 
triuniphanle,  entrou  na  praça,  acabada  de  abandonar  j)or  seu  tio;  encontra 
Garcilla,  sua  tia,  e  sem  se  desarmar,  em  presença  dos  companheiros  que  o  ap- 
plaudiam,  saciou  n'ella  a  mais  repugnante  e  eynica  lascívia  (pnlnii  morem 
coram  mitllis  Irrdavit. —  Hisl.  des  marnrs  de  la  ine  prime  des  Fran.,  tit.  n, 
pag.  343,  e  tit.  iii,  pag.  83.) 

JNão  se  estranham  estes  factos  monstruosos  e  ainda  se  suspeitam  outros 
mais  espantosos,  se  é  possível,  (|uando  se  percorre  com  o  pensamento  por  en- 
tre os  antigos  Peiiitenciaes:  é  alli  onde  ha  a  procurar  os  feitos  occultos  da 
prostituição  na  idade  média;  é  alli  onde  se  commette  com  toda  a  sua  audácia 
o  peccado  da  carne,  que  não  se  limitava  a  conjuncçõcs  illicitas  entre  os  dois 
sexos,  mas  cpie  se  comprazia  com  os  caprichos  e  extravagâncias  da  mais  e\e- 
cravel  de|)ravação.  Na  verdade,  como  diz  jM.  de  la  Bedoilière,  quizcra  erér, 
para  honra  da  humanidade,  que  os  horrores  descriplos  nos  Fenitenclae.s  são 
puramente  accidenlaes,  e  raras  vezes  achavam  echo  no  tribunal  da  |)enilencia; 
masreapparccem  a  cada  pagina  nos  1'enilenriaes,  que  os  classificam  em  dif- 
ferentes  graus  de  malícia  e  castigo.  E'  certo,  pois,  que  eram  frei|nenles  e  (jue 
inoculavam,  cada  vez  mais,  uma  corrupção  latente  por  todo  o  corpo  social. 

Não  pofienios  deixar  de  registrar  estes  horrores  da  prostituição;  mas  não 
os  despojaremos  do  seu  veu  latino  e  procuraremos  uma  traducção  prmlentementc 
allenii.ida  dos  1'eiiileiiciaes  modernos,  que  tiveram  de  respeitar  a  doutrina  pc- 
nilenciaría  da  egreja.  Temos  (|nc  dislinguír,  n'csle  código  |irimilívo  da  conlissão, 
os  factos  que  i-espeilam  ao  segredo  do  matrimonio,  os  (]ue  se  referem  ao  in- 
cesto, os  relativos  aos  poccados  contra  a  natureza  e  os  que  pertencem  a  crimes 
de  bestialidade. 

Tudo  quanto  a  egreja  linha  feito  para  proteger  a  pureza  do  matrimonio. 


UA    1'KOSTITUIÇÃO  51 

não  ora  mais  que  um  testemiinlio  evidente  de  tudo  (|uanto  se  fazia  no  santuá- 
rio dos  esposos,  contra  o  objecto  moral  d'esta  instituirão.  Eram  apenas  pecca- 
dos  vcniaes  não  consagrar  a  primeira  noite  de  bodas,  a  praticas  de  devoção, 
(eadeni  nocle  pro  revereacin  ipsius  beriediclionis  in  lirginitule  [leniiitnednf,  diz 
IU'.ííinnn,  iiv.  u ;)  não  se  lavar  o  marido  i|ue  tinha  usado  do  matrimonio,  antes 
de  entrar  na  of^reja  {mariliis  qni  cum  u.rore  .sua  dormieril,  lavet  se  nnlequam 
intret  in  ecclesiam,  Penitencial  de  Fieurv  ;)  entrar  a  mulher  na  egreja,  no  pe- 
ríodo da  sua  menstruação  (wulierex  menstruo  tempore  non  inlrent  ecclesiam ;) 
se,  n'esta  mesma  época  os  dois  esposos  se  tinham  reunido  iio  leito  conjugal 
(iíi  tempore  n^enslrui  saníiuinis  (jui  tunc  nupseril,  HO  dies  pwniieal.  Peniten- 
cial, de  Angers;)  se  não  tinham  guardado  uma  continência  absoluta  aos  domin- 
gos, nos  dias  de  grandes  festas,  nos  trez  dias  anteriores  á  communhão  e  du- 
rante as  quatro  semanas  que  precedem  a  Páscoa  e  o  Natal. 

Porém,  o  peccado  era  já  mais  grave  e  a  penitencia  maior,  (juando  os  es- 
posos se  entregavam  a  phantasias  obscenas,  não  desculpadas  pelo  privilegio  da 
união  dos  sexos.  (Si  quis  cum  uxore  sua  retro  nupserit,  40  dies  jiwniteat;  si 
in  tergo  três  annos,  quia  sodomiticum  seclus  est.  Penitencial  de  Angers.) 

As  copulas  carnaes,  no  matrimonio,  não  deviam  ser  senão  uma  obra  casta 
e  santa,  com  o  único  fim  de  procrear  filhos  e  não  com  o  de  satisfazer  os  sen- 
tidiis.  São  estas  as  palavras  de  Jonas,  bispo  de  Orleans,  no  seu  instituto  de 
seculares:  «Oportet  nt  legitima  carnis  c(qnda  causa  sit  prolis,  non  voluplatis, 
et  carnis  commi.rlio  procreandorum  liberorum  sit  gralia,  non  satisfactio  vi- 
tioruin.y> 

O  incesto  multiplicava-se  sob  as  formas  mais  horrorosas;  o  filho  não  res- 
peitava a  mãe,  a  mãe  não  respeitava  a  innocencia  do  filho:  o  irmão  seduzia  a 
irmã:  o  |)ae  corrompia  a  filha.  Havia,  porém,  para  estas  abominações,  peniten- 
cias de  dez  e  quinze  annos,  durante  os  quaes  o  peccador  se  habituava  ao  jejum 
e  á  penitencia : 

nQui  cum  malre  fornicaceril,  /J  annis.,  si  cum  filia  et  sorore,  i2. 

«Si  adolescens  sororem,  5  annos,  et  si  matrem  7 ,  et  quandiu  vixerit, 
nunqiian  sine  pa^nitentia,  rei  continentia. 

<iSi  mater  cum  filio  parindo  fornicationem  imitatur,  si  mater  cum  filio 
suo  fornicnverit,  tribus  annis  pa;niteat.» 

(Penilenciaes  de  Fleury  e  de  Angers.)   . 

Os  infanticídios,  os  abortos  não  eram  menos  numerosos  que  entre  os  pa- 
gãos, que  sempre  os  toleravam  e  ás  vezes  os  approvavam.  Ou  se  afogava  a 
creança  ao  sahir  do  útero  da  mãe,  ou  a  matavam,  envenenando-a  ou  abrindo- 
Ihe  uma  veia. 

Havia  homens  e  mulheres  babeis,  que  vendiam  drogas  abortivas  (/(«■;■- 
barii  viri,  mulieres  inlerfectores  infantum.) 

Outras  drogas  tornavam  as  mulheres  estéreis  e  os  homens  impotentes. 
Para  excitar  o  amor,  ou  antes  o  ardor  sensual  d"um  homem  por  uma  mulher, 
compunham-se  poções  ascjuerosas. 

«Interrogasti  de  illa  femina  quce  menstruam  sangidnem  euum  miscuit 
eivo  vel  potui  et  dedit  viro  suo  ut  comederet?  et  puoe  sémen  viri  sui  in  potn 
bibit  ?  Tali  sententia  feriendos  sunt  sicul  magi.»  (Penitencial  de  Raban  .Mauí-.) 

«Ília  quív  sémen  viri  sui  in  cibo  niiscet,  ut  indi  plus  ejus  amorem  ac- 
cipiat,  annos  três  pceniteat.y»  (Penitencial  de  Fleury.) 

Os  peccados  contra  a  natureza  tinham  iiinumeraveis  variedades  aos  olhos 
do  confessor,  que  lhes  applicava  penitencias  muito  variadas  também. 

A  simples  sodomia  (s-í  quis  fornicarerit  sicut  sodjomitw,  diz  o  Penitencial 
romano,  tem  quatro  annos  de  penitencia ;  porém  a  idade  dos  pcccadores  esta- 
belecia muitas  difierenças.  A  creança,  o  adolescente  e  o  homem,  não  eram  pe- 
nitenciados do  mesmo  modo,  quando  peccavam  d'uma  mesma  maneira.  Os  pec- 


52  HISTORIA 

cados  da  juventude  assimilhavam-se  com  frequência  aos  da  velhice  mais  de- 
pravada: mas  perdoavam-se  mais  facilmente  e  corrigiam-se  com  os  annos. 

"Vueri  sese  inrlrew  manihae  inquinantes,  ilies  iO  pnenileat.  Si  vero  pueri 
sese  inter  femora  sordidant,  dies  centum,  mujores  vero,  trihus  quadragessi- 
mus.» 

{Penitencial  de  Angers.) 

Os  erros  anti-pliysicos  das  mulheres  eram  penitenciados  mais  severamente 
do  que  os  dos  homens,  como  se  a  castidade  fora  mais  necessária  ao  sexo  que  pos- 
sue  o  encanto  irresistivol  de  attraliir  o  outro  sexo.  As  mulheres  religiosas  entre- 
gavam-sc  entre  si  a  libertinagens,  em  que  apparecia  o  fascinum  romano  e  em 
que  a  arfe  de  gosar  nada  esquecia  das  licções  impudicas  da  antiguidade. 

uMulier  ctim  altera  fornicans,  três  annos.  Sanctimonirlis  femina  mim 
sancíimoniali  per  mackinatum  polluta,  annos  septem.» 

(Penitencial  de  Angers). 

«Mulier  qualictimque  molimine  aut  per  ipsam  anl  cum  altera  fornicans.y> 

i<Si  qtiis  sémen  in  osmisenet,  septem  annos  raaiteat.» 

(Penitencial  de  Fleury). 

A's  vezes  o  incesto  misturava-se  com  o  peccado  contra  a  natureza,  e  agra- 
vava a  sua  infâmia  e  penitencia:  a  sodomia  entre  irmãos,  era  um  peccado  que 
não  podia  ser  expiado  com  menos  de  quinze  annos  de  ahstinencia. 

«Qui  cum  fratre  naturali  fornicaverit  per  commi.rtionem  carnis,  ah 
ontni  carne  se  ahstineat  quindecim  annis.y> 

(Penitencial  de  Fleury.) 

Todo  o  género  de  animalidade  (apenas  se  pôde  acreditar)  figura  nos  Pe- 
nitenciaes,  e  apenas  provoca  uma  penitencia  temporária,  embora  a  lei  civil  con- 
demnasse  o  criminoso  a  morrer  com  a  besta,  que  tinha  tido  por  cúmplice.  To- 
das as  bestas  pareciam  idóneas  para  esta  aberração  humana  (cum  jumento,  cum 
quadrúpede,  cum  animalibus,)  diz  o  Penitencial  de  Angers:  (cum  pecorhius, 
diz  a  eollec(.'ão  de  Reginon.) 

Nada  mais  commum  na  idade  media  que  este  crime,  que  se  castigava 
com  a  morte,  quando  era  evidente  e  confirmado  por  sentença  do  tribunal.  Os 
registros  do  parlamento  estão  cheios  de  feitos  d'esta  espécie,  pelos  quaes  os 
desgraçados  culpados  eram  queimados  com  a  sua  cadella,  com  a  sua  cabra, 
com  a  sua  vacca,  com  a  sua  porca,  com  a  sua  pata.  No  emtanto,  só  encon- 
tramos na  carta  de  Uaban  Maur  a  Uegimbold,  arcebispo  de  Mayence,  a  dis- 
cussão canónica  d'cstas  enormidades,  que  então  nada  admiravam. 

«Pertia  quceslio  de  co  fuit,  qui  cani  feminoe  inrationabiliter  se  nuscuit, 
et  quarta  de  illc,  qui  cum  vaceis  sa-pius  fornicatus  est?  Qui  cum  jumento  vel 
pecore  coierit,  morte  moriatur.  Mulier  quae  succulmerit  ctdlibet  jumento  simul 
interfici.rlur  eum  eo.y>  (Cap.  de  Baluze,  til.  Append.  ("oi.  1378.) 

Nas  capitulares  de  Ansegise,  os  bispos  e  sacerdotes  são  convidados  a  com- 
bater esta  de|)ravação,  que  se  considerava  como  um  resto  de  paganismo  e  que 
se  perpetuou  por  mais  tempo  no  campo  que  nas  cidades ;  mas  lodos  os  legis- 
ladores reconhecem  que  simiihantc  crime,  que  rebaixa  o  homem  até  ao  nivel 
da  besta,  mei-ccc  a  morte.  E  com  melhor  vontade  se  perdoaria  á  besta  que  ao 
homem:  mas  niatavam-na  e  lançavam  a  sua  carne  ao  monturo,  temendo  que, 
por  arte  do  demónio,  se  gerasse  um  producto  monslruiiso  do  connuhio  do  ani- 
mal com  o  homem. 

Emlim,  para  dar  uma  ideia  completa  da  persistência  dos  libertinos  nos 
seus  detestáveis  hábitos,  recorilaremos  um  processo-crime,  que  se  refere  a  um 
peccado  cimlra  a  natureza,  (|ue  se  chamava  forniratiu  inter  femora. 

Ducangc  ('•  quem  nos  cita  este  singular  documento,  tirado  d'uma  ordena- 
ção de  Eduardo  i,  rei  dlnglatcrra.  Ksta  ordenação  tem,  provavelmente,  a  data 
dos  jirimeiros  annos  do  decimo  século. 


DA    PROSTITUIÇÃO  53 

Um  homem  chamado  Simão  linha  relações  concubinarias  com  certa  mu- 
lher, de  nome  Malhiide,  com  quem  nunca  tivera  verdadeiras  copulns.  Foi  sur- 
prelicndido  um  dia,  em  llagrante  dclicto  de  iilicito  commereio,  pelos  inimigos 
d'esla  concubina,  que  se  queriam  vingar  d'elle,  obrigando-o  a  casar  com  ella. 

Maliiilde  declarou,  pois,  perante  a  justiça,  que  tinha  vivido  muito  tempo 
conjugalmente  com  Simão,  mas  que  ainda  não  havia  consummado  o  matrimo- 
nio. {Juralores  dicunl  quod  proediclus  Siinon  semper  tennit  diriam  Maiildam 
ut  oxorem  suam,  et  sicunt  quod  nunquam  dictam  Maiildam  dfsjionsaiiit.) 

Simão  teve  que  escolher  entre  estas  três  espécies  de  castigos  ou  repara- 
ção: casar  com  Mathilde,  perder  a  vida,  ou  pagar  a  Matliilde  a  multa  que  um 
marido  paga  a  sua  mulher  {rei  ipsam  Maiildam  reiro  osculare.) 

Simão  cscollieu  o  que  mais  agradável  lhe  era,  casou  com  Mathilde,  mas 
não  quiz  ter  com  ella  outras  relações  que  não  fossem  as  que  tinha  tido  até  alli 
{inter  femora.)  Ducange  extrahiu  esta  curiosa  anecdota  do  Diccionario  de  leis  do 
Inglaterra  (Nouvelex  anqlicanas,  por  Thomaz  Blount.) 

Na  época  de  Eduardo  i  e  de  Carlos,  o  Ingénuo,  seu  genro,  os  costumes 
de  França  e  de  Inglaterra  oITereciam  uma  triste  analogia,  c  algum  poeta  da 
corte  saxónica  de  Eduardo  poderia  dizer  de  Inglaterra  o  que  o  poeta  Abbon  di- 
zia então  de  França,  no  seu  famoso  poema  sobre  o  Cerco  de  Paris. 

«Oh  França!  porque  te  escondes?  Onde  estão  as  luas  antigas  forças,  que 
firmaram  o  teu  triumpho  sobre  os  teus  inimigos  mais  poderosos?  Tu  espias 
três  vicios  principacs:  o  orgulho,  as  vergonhosas  delicias  de  Aenus  e  o  luxo. 
Não  afastas  ainda  do  teu  leito  as  mulheres  ca.sadas,  nem  as  religiosas  consa- 
gradas ao  Senhor.  Pelo  contrario,  tens  mulheres  até  á  saciedade  e  ultrajas  a 
natureza.» 

Dois  séculos  depois,  Pedro,  abbade  de  Celles,  nas  suas  cartas  (Livro  iv, 
epist.  10)  dirigia  á  cidade  de  Paris  as  mesmas  censuras  que  Abbon  tinha  diri- 
gido á  França,  e  accusava-a  de  ter  corrompido  os  costumes  dos  seus  habi- 
tantes : 

«Oh  Paris!  exclamava.  Quão  bella  e  corrompida  és!  Quantos  laços  armam 
os  teus  próprios  vicios  á  juventude  imprudente!  Quantos  crimes  fazes  praticar!» 

A  prostituição  foi  em  todas  as  épocas  a  conselheira  e  instigadora  dos  ou- 
tros vicios,  que  não  vivem  sem  ella  e  que  se  lhe  prendem  como  os  filhos  ás 
glândulas  mamarias  da  mãe. 


CAPITULO  VI 


SUMMARIO 


Situação  das  mulheres  de  mi  vida  antes  do  reinado  de  Luiz  viii.— Vocaljiilano  da  prostituirão  no  decimo  pri- 
meiro século.— O  putagitim.—i'utus  e  Puta.— Os  poços  commuus.— O  pn^-o  do  amor.— A  corte  do  amor  ou  cíirtc  cc- 

este  de  Sjíssjus.— /"iiíiíiajem  e  Pulasscrit'.—  Lciwine.—Maqxiercllagnim,  maquerellus,  e  mwjuercUa.—  On- 
gem  da  [laiavra  m.iqusrcaií.—li irdc,  bardei  e  Ottrdeau.  —As  mulheres  de  bordel.  —As  mulheres. —Garcioe. ij«?-- 

cia.—Ribaldo  e  ribalda.— Rufiões.— Clapiers. 


íf,  a  depravaç.^o  dos  costumes,  n'csta  época  da  idade  media,  ti- 
iiiia  excedido  a  de  épocas  mais  barbaras,  tinha  isso  por  causa 
a  libertinagem  c  o  crime:  a  prostituição  legal,  a  que  se  exerce 
como  industria  e  serve  de  salvaguarda  ás  muliíeres  Iionradas, 
oITerecetido  aos  appetites  senstiaes  unia  satisfação  sempre  lacil, 
esta  prostituição  regular  c  organisada,  não  existia  aind;),  pelo 
menos  ao  alcance  da  vista  e  da  mão  da  policia  feudal.  Nem  cm  principio,  ncni 
como  direito  era  admittida;  não  podia  exerccr-sc  senão  em  segredo  e  por  fraude, 
com  risco  e  perigo  das  mulheres  que  a  miséria  levava  a  tão  vil  mister;  cm 
parte  alguma  encontrava  protecção  ou  apoio,  nem  na  magistratura  das  cida- 
des constituídas  em  municípios,  nem  nas  justiças  senhoriaes.  Não  se  julgava 
necessária  nem  sequer  ulil,  e  considerava-se  como  um  ultraje  publico  á  hones- 
tidade de  todos. 

No  emtanto,  era  necessário  toleral-a  e  fechar  os  olhos  a  um  acto  brutal 
que  se  praticava  constaniemcnte  em  todas  as  partes,  escondendo-se,  ou  antes 
(iisfarçando-sc,  apesar  das  mais  severas  prohibições,  e  da  mais  rigorosa  pena- 
lidade. Estamos  convencidos  que  esta  prostituição  legal  conquistou  o  seu  ver- 
gonhoso posto  na  sociedade,  com  a  perseverança  em  arrostar  com  as  leis  e 
castigos,  com  a  habilidade  e  astúcia  em  tomar  todas  as  mascaras  e  disfarces, 
com  força  e  tenacidade,  e  com  o  seu  caracter  vivaz  e  invasor.  Prtde  compa- 
rar-se  a  situação  das  muUiercs  de  má  vida,  no  meio  d'aquella  sociedade  (]iie 
lhes-  era  hostil  e  que  tijdavia  não  podia  prescindir  delias,  que  as  perseguia  cons- 
tantemente e  que  nunca  chegava  a  extcrminal-as;  pôde  comparar-se,  dizíamos, 
aquella  situação  anormal  à  dos  judeus  que  tinham  contra  si  a  legislação  civil  e 
ccclesiastica,  que  se  viam  quasi  sempre  encarcerados,  despojados,  repellidos  e 
comtudo  voltavam  ás  suas  tendas,  aos  seus  contratos  laboriosos,  e  aos  seus 
lucros  usurários. 

A  prostituição  não  teve,  no  Estado,  uma  existência  reconhecida  ou  au- 
ctorisada,  antes  do  reinado  de  Luiz  vii,  e  talvez  de  l'hili|ipc  Augusto,  porque  o 
rei  dos  ribaklos  (rex  riboldorum)  que  evidentemente  era  o  go\crnadoi:  supremo 


36 


HISTORIA 


dos  agentes  de  prostituição,  foi  creado,  como  logo  veremos,  por  Pliilippe  Au- 
gusto. 

E"  muito  diíTicil  descol)rir  o  caracter  e  hábitos  da  prostituição  mercená- 
ria d'aquelles  tempos  de  corrupção  gerai,  que  não  permittiam,  no  emtanto, 
exercer  livremente  esta  desprezível  industria.  O  abbade,  o  bispo,  o  varão,  o  se- 
niior  feudal,  podiam  ter  em  suas  casas  uma  espécie  de  serralho  ou  lupanar, 
mantido  a  e\|)ensas  de  seus  vassallos:  segundo  um  escriptor  drt  decimo  pri- 
meiro século,  cada  possuidor  de  feudo  mantinha  no  seu  gyneceu  tantas  ribal- 
das  quantos  eram  os  cães  que  tinha  na  sua  matilha;  mas  o  lupanar  publico, 
aberto  a  toda  a  gente,  debaixo  da  direcção  de  um  homem  ou  de  uma  mulher, 
que  exploravam  este  infame  commercio,  existia  só  n'um  pequeno  numero  de 
localidades,  em  que  a  administração  senhorial  e  municipal  se  afastava  dos  an- 
tigos costumes,  e  se  fingia  cega  para  se  mostrar  tolerante. 

Em  Paris  e  n'alguns  outros  grandes  cenlros  de  população,  o  estabeleci- 
mento de  casas  de  libertinagem,  nos  arrabaldes  e  em  certos  bairros  desi- 
gnados, não  sofíria  grandes  obstáculos,  até  ao  dia  em  que  o  escândalo  provo- 
cava o  rigor  da  lei  e  occasionava  a  suppressão,  mais  ou  menos  radicai,  d'a(|ucl- 
Ics  asylos  de  sensualidade  publica.  Havia  também  prostitutas,  que  não  perten- 
ciam á  exploração  de  um  lupanar  c  que  reservavam  para  si  todos  os  lucros  do 
seu  trafico  carnal,  confundindo-se  ordinariamente  com  a  população  honrada,  e 
ainda  que  vivessem  da  sua  prostituição,  tinham  cuidado  em  cohoneslar  o  seu 
procedimento,  em  dissimular  a  sua  má  vida,  sob  pena  de  serem  desprezadas 
pelos  seus  visinhos  e  vérem-se  obrigadas  a  desapparecer,  fazendo  justiça  a  si 
próprias. 

Comprehende-se,  pois,  que  a  vida  intima  dos  lupanares  e  a  vida  parti- 
cular das  muliíeres  publicas  não  tivessem  encontrado  echo  nos  monumentos  es- 
criptos  d'aquellas  épocas  obscuras.  A  prostituição,  desde  o  oitavo  ao  duodécimo 
século,  não  tem  sc(|uer  actos  que  a  caracleriscin  (fum  modo  notável,  embora  de- 
fira absolutamente  da  prostituição  do  Daixo  Im|)erio.  E'  necessário,  para  a  des- 
crever, contentarmo-nos  com  alguns  factos  isolados,  que  prendem  entre  si  e 
que  mostram  a  variedade  dos  usos  locaes.  E,  todavia,  estes  factos  (|ue  nos 
subministram  os  registros  municipaes  e  as  ordenações  da  policia  urbana,  são 
muito  raros  |)ara  se  poder  formar  com  ellcs  um  vasto  quadro  synthelico.  Por 
isso  se  não  podem  descrever  os  costumes  secretos  da  prostituição  na  França 
feudal. 

Mas  a  lingua  popular  do  decimo  primeiro  século,  a  baixa  latinidade,  que 
creou  a  lingua  franceza,  sob  o  império  dos  dialectos  do  Norte  e  do  Meio-dia, 
aquella  lingua,  applicando  novas  palavras  a  cousas  e  ideias  novas,  oITerece-nos, 
na  formação  d'estas  mesmas  palavras,  uma  infinidade  de  dados  preciosos,  nos 
qUacs  encontraremos  muitas  noções  relativas  ao  assumpto  de  que  tratamos. 

A  partir  do  nono  século,  o  vocabulário  da  prostituição,  muda  de  caracter, 
restringe-se  notavelmente,  mas  compõe-sc  de  locuções  completamente  novas, 
que  parecem  antes  sahir  da  bocca  do  povo,  que  da  penna  do  escriptor:  estas 
locuções  que  lécm  caractciislicas  gallo-francas  e  do  idioma  tudesco,  são  forma- 
das para  ex|)rimir  o  que  ciiamaremos  o  material  da  |)rosti(uição.  Claro  está  que 
as  palavras  latinas  não  tinham  sentido,  applicadas  a  certas  circunistancias  e  par- 
ticularidades, que  não  existiam  no  momento  era  que  foram  creadas;  o  povo 
não  ([uiz,  na  sua  linguagem,  acceilar  estas  palavras,  que  sempre  se  empregavam 
na  linguagem  lillei-aria,  mas  (]ue  nada  representavam  nos  hábitos  da  vida;  o 
povo,  i'om  o  íí(Miio  (jiie  lhe  é  próprio,  creou  as  expressões  ([ue  lhe  faziam  falta, 
imprimindo-lhcs  a  significação  especial  (jiie  <le\iani  ter. 

Assim,  pois,  vemos  ap|)arecer  no  lalim  vulgar  a  maior  parte  das  pala- 
vras, que  mais  tarde  sollrerarn  uma  transformação  franceza  e  que  depois  se 
íócni  conservado  na  lingua  do  povo,  porque  a  jjroslituição  não  pode  aspirar  a 


DA  pAstituição         *  '57 

ser  admiltida  na  lingua  nobre,  a  que  as  formulas  grosseiras  e  impudentes  do 
seu  idioma  se  introduzam  na  linguagem  lilteraria. 

Notemos  de  uma  vez  para  sempre  que  os  escriptores  sérios,  os  poetas  e 
historiadores  continuam  servindo-se  dos  termos  geraes,  que  o  latim  clássico 
lliei?  offerccia  para  "designar  os  actos  e  os  indivíduos  dedicados  á  proslKuição; 
mas  nos  documentos  sabidos  de  uma  pcnna  não  litlcrata,  ou  destinados  ao  co- 
nhecimento do  povo,  só  se  empregavam  termos  precisos  e  tcchnicos,  (|ue  esta- 
vam ao  alcance  de  todos,  e  que  não  exigiam  para  sua  intelligencia  a  menor  no- 
ção da  antiguidade  clássica. 

Esta  lingua  da  prostituição  é  sem  duvida  sórdida  c  digna  das  cousas  que 
qualifica;  mas  não  deve  esqucccr-se  que  na  idade  média  todas  as  palavras  da 
lingua  usual  tinbam  direito  a  igual  estimação  e  se  empregavam  sem  reserva, 
tanto  nos  cscriptos,  como  nos  discursos.  No  cmtanlo,  não  se  julgavam  infames 
certas  expressões,  que  se  referem  a  objectos  infames,  nem  se  dava  importân- 
cia á  modéstia  da  linguagem  faltada  ou  escripta. 

E'  por  isto  que  o  francez  antigo  é  tão  rico  em  palavras  engenhosas  ou 
picantes,  que  formam  o  vocabulário  da  prostituição,  e  que  desde  o  século  de 
Luiz  XIV  foram  tiradas  da  linguagem  das  pessoas  de  bem,  como  se  dizia  n'outro 
tempo. 

A  prostituição,  a  que  as  pessoas  illustradas  chamavam  serapçe  meretricium, 
de  que  os  innovadorcs  tinham  feito  mereiricatio  e  merelricatus,  chamava-se, 
pois,  entre  o  povo  e  na  linguagem  vulgar  putagium  e  outras  vezes  puteum  e 
'pularia.  Esta  palavra  parcce-nos  de  origem  mo(Jerr)a,  e  apesar  da  aucloridade 
do  douto  Scaliger,  em  uma  das  suas  notas  a  Virgílio  (Çalaíecta)  não  cremos 
que  puíafiium  se  deva  derivar  da  palavra  latina  putas,  que  se  encontra  nos 
auclores  da  alta  latinidade,  no  sentido  de  pequeno.  Entre  os  antigos,  no  emtanfo, 
putus  sobre  tudo,  era  empregado  como  nome  de  carinho,  como  qualificação  ca- 
rinhosa dirigida  a  um  joven:  o  amo  não  chamava  de  outra  maneira  ao  seu 
creado  favorito.  Quando  em  egual  sentido  se  faltava  de  uma  joven,  dizia-se  pula. 

Os  diminuitivos  putillus  e  putilla  formaram-se  naturalmente,  e  Plauto 
na  sua  Asinaria  (Act.  iii,  scen.  3)  usa  meu  pequeno,  puliílus,  na  significação 
de  meu  pombo,  meu  pombinho,  e  outras  expressões  carinhosas  na  linguagens 
amorosa.  No  cmtanto,  também  se  usavam,  como  o  faz  Horácio  (Sat.  i,  liv.  ii, 
3)  pusus  e  pusa,  com  os  seus  diminuitivos  pusillus  e  pusilla. 

Comtudo,  nós  derivaremos  pulagium  de  pulem,  poço,  porque  esta  ety- 
mologia  abrange  e  justifica  igualmente  o  sentido  restricto  e  o  figurado.  Se,  por 
um  lado,  a  prostituição  publica  pckle  comparar-se  a  um  poço  commum,  onde 
cada  qual  é  livre  de  ir  tirar  agua,  por  outro,  em  cada  cidade,  bairro  ou  dis- 
tricto,  o  poço  commum  ou  senhorial  era  o  ponto  de  reunião  de  todas  as  mu- 
lheres, que  procuravam  aventuras.  Havia  sempre  um  poço  nos  logares  ^frequen- 
tados  pelas  prostitutas,  nas  Cortes  dos  milagres,  em  que  ellas  viviam  nas  en- 
cruzilhadas, que  lhes  serviam  de  campo  de  operações  ou  de  feira.  Devem  estar 
lembrados  que  Jesus-Cbristo  encontrou  a  MagdaLena  junto  d'um  poço. 

Estes  poços,  cujo  uso  pertencia  a  todos  os  habitantes  da  localidade,  reu- 
niam todas  as  tardes  á  sua  beira  numeroso  concurso  de  mulheres,  que  fatiavam 
dos  seus  amores,  e  que  alli  se  demoravam,  sob  o  pretexto  de  se  proverem 
de  agua.  Já  se  sabia  o  que  era  ir  ao  poço;  era  juntar-se  com  os  amantes  sob 
um  pretexto  irreprehensivel.  Ohl  aquelles  poços  eram  testemunhas  de  muitas 
lagrimas  e  suspiros! 

Piganiol,  faltando  do  Poro  do  amor,  que  deu  o  nome  a  uma  rua  de  Pa- 
ris, situada  perto  da  rua  da  Truanderie,  em  que  a  prostituição  tinha  a  sua  sede 
principal,  diz  que  este  famoso  poço  devia  o  seu  nome  a  uma  razão  commum  a 
todos  os  poços  que  havia  nas  povoações,  e  que  serviam  de  reunião  a  todos  os 
criados  e  criadas  que,  com  o  pretexto  de  irem  á  agua,   iam  namorar-se  alli. 

Historia  da  Pbostituição  Tomo  ii— Folha  8. 


58  "  HiSTq^A 

Esíe  poço,  que  c\isliu  aíé  ao  fim  do  decimo  sétimo  século,  em  que  sec- 
cou,  tinha  visto  dcscnrolar-se  mais  de  um  drama  amoroso;  e  a  tradição  con- 
tava de  diversas  formas  a  iiisloria  de  uma  nobre  menina  da  famiiia  Hallebic, 
que  se  afogou  alli,  no  tompi)  de  riiiiippe  Augusto.  Citavam-se  ainda  muitos 
amantes  que  se  tinliam  atirado  ao  mesmo  poço,  por  despeito  ou  ciúmes,  sen»  te- 
rem encontrado  n'clle  a  morte  que  desejavam.  Outros  amantes  reconiiecidos 
attribuiram  ao  i*ofo  do  Amor  parte  da  sua  felicidade:  e  assim,  um  renovava 
os  cântaros,  outro  a  corda,  outro  pagava  uma  grade  de  ferro  e  outro  punha- 
ilie  um  boca!  novo,  no  qual  se  lia  em  leftras  golliicas: 

,l//íOii/'  m'a  refait  en  .72J  iGut-à-fait. 

(O  amor  me  renovou  em  52o  completamente.) 

Podiam  fazcr-se  curiosas  investigações  sobre  todos  os  poços,  que  figuram 
na  historia  da  prostituição  c  encontrar-se-hia  um  em  cada  cida(le  para  de- 
monstrar que  o  palagium,  na  idade  media,  era  quasi  inseparável  dos  poços  com- 
nuins,  que  na  maior  parte  já  desappareceram.  Sem  diíliculdade  se  provaria  que 
esta  classe  de  poços  existiram  cm  Paris  nas  ruas,  ou  perto  d'aquellas  cm  que 
viviam  as  mulheres  de  má  vida. 

Lunitar-nos- hemos  a  referir  que  as  ribalâas  de  Soissons,  que  tiveram 
fama  proverbial  no  decimo  segundo  século  (Dictons  populaires,  publicadas 
por  Crapelet,  pag.  6i)  tinham  as  suas  reuniões  em  roda  de  um  poço,  que  so- 
breviveu á  ribiílderia  de  Soissons. 

«O  Pateo  de  Amor  ou  Pateo  Celeste  de  Soissons,  dizem  M.M.  P.  Lacroiv 
e  Henrique  Martin  na  sua  Historia  de  Soissons,  está  situado  á  entrada  da 
rua  da  Ponte  (Pont):  é  um  pateo  estreito,  cercado  de  edificios  pouco  elevados, 
para  onde  se  sobe  por  uma  escada  de  pedra  exterior.  Este  pateo,  em  que  se  pe- 
netra por  um  corredor  escuro,  descia  cm  outro  tempo  até  ao  rio;  no  meio  ha  um 
poço  de  uma  construcção  singular,  cuja  bocca  quadrada  protege  o  orificio  redondo 
e  estreito,  encimado  por  uma  abobada  cónica.» 

Não  procuraremos  outros  argumentos  para  demonstrar  que  putngiuw,, 
puíeum  e  pularia  implicavam  a  acção  de  ir  pela  tarde  ao  Poço  do  Amor.  Pu- 
laria usava-se  com  pi-cfcrcncia  nas  provincias  meridionaes. 

Lé-se  nos  Estatutos  da  cidade  de  Asti  (Collac.  1.3  cap.  7).  Si  ii.ror  ali- 
cujus  civis  Aslensis  olim  aiifujjil  pro  pularia  cum  aliquo.  Puteum  mais  usado 
em  linguagem  poética,  tomando  a  causa  pelo  efTeito,  fazia  de  puteum  synonymo 
de  putagium. 

Emquanto  a  esta  palavra,  que  deve  ser  a  primeira  cm  antiguidade,  ti- 
nha-se  consagrado,  introduzindo-a  na  lingua  legal.  Por  isso  se  encontra  com 
frequência  empregada  pelos  jurisconsultos  e  figura  cm  mais  ile  uma  ordenação 
dos  nossos  reis  da  terceira  dynastia.  fkista  citar  uma  das  ordenações,  cm  que 
se  diz  que  o  putagium  da  mãe,  não  tira  ao  filho  os  seus  direitos  de  herdeiro, 
attendendo  a  que  o  filho,  nascido  no  estado  de  matrimonio,  é  sempre  legitimo. 

«Quod  generaliter  dici  solet,  rjuod  putagium  hariditatem  uon  adimiti,  in- 
telligitur  de  pulagio  malris.» 

X  palavra  putagium  só  dizia  respeito  á  prostituição  de  uma  mulher. 

Assim,  a  lingua  franccza  teve  de  mudaralgumas  palavras,  quando  transfor- 
mou putagium  em  putage,  pula  em  pule  c  patena  em  putain.  Estas  duas  ul- 
timas palavras  são  coulemporaneas,  pois  a  Chronica  de  Oderico  Vital  faz  men- 
ção no  livro  MI,  da  fuiida(;ão  de  uma  cidade,  que  foi  chamada  Mataputcna  {id 
est  devincens  meretricen)  com  irrisão  da  condessa  Hedwige. 

Putage  encontra-se  frequentemente  no  sentido  de  putagium  na  lingua 
franccza,  sobretudo  nos  romances  e  cantares  dos  trovadores. 

O  lenoriniuu),  o  fiel  e  inseparável  companheiro  do  merelricium,  teve 
mais  diíliculdade  cm  mudar  de  nome;  como  era  ordinariamente  exercido  por 
mulheres,  transfoi'mou-se  logo  cm  lenonia,  que  passou  á  linguagem  do  século 


DA    PROSTITUIÇÃO  59 

decimo  segundo,  afrancezando-se  em  lenoine.  Mas  o  povo  que,  como  soberano, 
reina  na  estructura  da  lingua,  inventou  iinniediatamente  outra  palavra,  que 
tirou  dos  próprios  iiabitos  dos  corretores  da  prostituição.  Esta  palavra  foi 
maquerellaf/ium,  de  que  o  francez  antigo  fez  iiiaquerellage,  que  subsiste  na 
linguagem  das  praças  publicas  e  que  tem  além  d'isso  logar  no  Diccionario  da 
Academia. 

Antes  de  maquerellagiiimha\ieL-se  creado  maqiierellus  e  maquerella,  ma- 
quereau  e  maquerelle. 

Os  mais  doutos  etymologistas  tcem  tentado  em  vão  o  encontrar  a  origem 
d'estas  palavras,  que  não  tinham  do  latim  mais  que  a  terminação.  NicoteMenage, 
procurando  as  analogias  que  podiam  aprcsenlar-se  entre  o  pgixe  chamado  maque- 
reau  (congro)  e  o  homem  ou  mulher  que  especulam  com  a  prostituição,  sou- 
beram que  maquereau  tinha  sido  formado  de /«acií/fp,  porque  o  peixe  é  mosíiueado 
com  manchas  transversaes  escuras  e  azues,  e  entre  os  antigos  o  vestuário  d'cs- 
ses  corretores  era  também  de  mui  variadas  cores. 

Tripaut,  recordando-se  que  o  aquariolus,  ou  aguadeiro  romano,  tinha  em 
Roma  o  privilegio  do  corretor  da  prostituição,  pensou  que  a  simples  addição 
d'uma  lettra  inicial,  formada  pela  pronuncia  guttural  dos  francezes  tinham  pro- 
duzido maquariolus,  que  se  approximava  bastante  de  maquerellus. 

Outros,  emfim,  com  mais  simplicidade,  propozeram-lhe  o  verbo  hebreu 
machar,  que  significava  vender  e  que  não  deixa  de  convir  ao  oificio  de  vende- 
dor de  carne  humana.  Estes  últimos  etymologistas,  em  apoio  do  seu  systema, 
deveriam  ter  feito  valer  esta  indução  que  lhes  fornecia  certos  documentos  da 
idade  média,  e  nos  quaes  se  attribue  aos  judeus  a  corretagem  dos  cavallos  e 
das  mulheres. 

Causa-nos  admiração  que  se  tenham  occupado  com  a  etymologia  da  pa- 
lavra applicada  ao  homem,  antes  de  ter  encontrado  a  que  convém  ao  peixe  ; 
porque  é  muito  natural  que  o  peixe  se  chamasse  no  principio  maquerellus 
e  que  o  homem  por  qualquer  similhança  se  tenha  visto  qualificado  com  o  nome 
do  peixe.  Qual  é  a  primeira  etymologia  que  se  nos  ofierece  sem  esforço  de  ima- 
ginação nem  de  linguistica?  A  pesca  do  maquereau  era  mais  abundante  n'ou- 
tro  tempo  nas  costas  do  Oceano  do  que  o  é  actualmente  :  este  congro  chegava 
em  perseguição  dos  arenques  e  soffria  a  mesma  sorte,  depois  de  ter  vivido  a 
expensas  d"elles. 

O  seu  nome  dinamarquez  ou  normando,  que  se  tem  conservado  na  lin- 
gua hollandcza,  faz-nos  remontar  á  época  em  que  foi  alatinado :  maekereel  é  com 
certeza  muito  anterior  a  maquerellus  e  a  makarellus.  Os  sábios  pouco  satisfei- 
tos com  a  consonância  barbara  d'esta  palavra,  tiveram  de  corrompel-a  para 
a  tornar  menos  áspera  ao  ouvido :  não  se  explica  d'outra  maneira  a  forma- 
ção de  magarellus  que  apparece  em  muitas  ordenações  dos  reis  de  Inglaterra. 
Nas  costas  do  Norte  dizia-se  inakevus,  ou  antes  makerus,  a  não  suppòr  um 
erro  em  Ducange. 

Emquanto  a  dar  o  nome  do  peixe  á  espccie  humana  que  imitava  os  seus 
costumes,  foi  a  principio  um  jogo  de  palavras,  um  epigramma  que  entrou  pro- 
fundamente no  espirito  da  lingua  popular  e  que  pouco  a  pouco  perdeu  o  sen- 
tido figurado. 

E'  fácil,  no  emtanto,  perceber  que  o  corretor  andando  em  volta  das  mu- 
lheres, para  d'ellas  tirar  lucro,  e  lançal-as  nos  braços  do  seductor,  desempe- 
nha um  mister  análogo  ao  do  maquereau,  que  acompanha  os  arenques  e  d'elles 
se  nutrç. 

Seja  como  fôr,  esta  expressão  figurada,  designando  os  alcoviteiros  de  um 
e  outro  sexo,  era  admittida  em  todos  os  estylos  e  encontrava-se  nas  ordenações 
dos  reis  de  França.  Adquiriu  logo  um  estigma  deshonroso,  mas  chegou  a  in- 
velerar-se  na  lingua  enérgica  do  povo.  E',   no  emtanto,  o  nome  d'um  peixe 


60  HISTORIA 

que  se  serve  em  todas  as  mczas,  e  que  em  oufro  fempo  pagava  qualro  dinhei- 
ros por  mil  ao  bispo  ou  ao  conde,  conforme  a  zona  em  que  era  pescado. 

Se  este  peixe  não  tivesse  receiíido  o  seu  nome  dos  povos  do  Norte,  não 
resistiriamos  muilo  a  acceilar  uma  elymoiogia  mais  engeniiosa  que  plausivel: 
de  moechari  moecharellus,  para  qualificar  o  instigador  da  libertinagem  {moechi 
conciliator.) 

Assim  como  o  lenoeiniuin  e  o  mcretririum,  o  lupanar  não  tinha  sido  na- 
turalisado,  a  não  ser  na  lingua  dos  escriptores:  a  lingua  vulgar  repcUia-o,  como 
uma  tradição  gallo-romana,  que  não  tinha  razão  de  ser.  Nada  se  assimilhava 
menos  aos  lupanares  de  Roma  que  os  albergues  da  prostituição  nas  cidades  de 
França.  Estes  infaroes  asylos  tomaram  sem  distincção  os  nomes  de  borda  e 
bordfllum,  de  que  se  derivaram  bordel,  borde  e  bordeau,  no  novo  dialecto  fran- 
cez  do  duodecimii  século. 

A  palavra  latina  não  é  mais  que  a  voz  saxónica  bord  alatinada,  e  a  voz 
saxónica  tanto  dizia  como  a  franceza  que  é  completamente  idêntica.  E'  imagi- 
nar uma  etymologia  sem  fundamento  ver  em  bordel  as  palavras  bord  e  el,  por- 
que* os  togares  de  libertinagem,  diz-se,  estavam  então  situados  nas  margens  da 
agua.  A  posição  d'estes  togares  não  era  necessariamente  immediata  ao  rio,  o 
que  nada  teria  de  moral  nem  de  sanitário,  nem  se  explicaria  de  modo  satisfacto- 
rio,  ainda  que  em  muitas  circumstancias  a  prostituição  se  estabelecia  ás  mar- 
gens da  agua,  especialmente  quando  a  navegação  do  rio  trazia  grande  numero 
de  commerciantes,  passageiros  e  navegantes  que  conslituiam  a  clientela  das 
mulheres  de  b(jrdel  [bordellières,  bordellariw.) 

Chamava-se  mais  especialmenie  burda  a  uma  cabana,  collocada  á  beira 
d'um  caniinho  ou  fora  da  povoação,  n'um  subúrbio,  ou  em  campo  largo.  A 
borda  {borde)  era  distincta  da  casa,  como  se  vé  n'esle  verso  de  Auberg: 

«Ne  trouvissiez  ni  borde  ni  maison.» 

e  n'este  do  romance  de  Garin : 

«JVt  à  maison  ne  borde  ne  me.oiií.» 

Geralmente,  esta  borda  eneontrava-se  junto  a  um  pequeno  recinto  ou 
campo,  pois  que  n'um  contrato  do  anuo  I  29á,  que  Ducange  cita  no  Glosario, 
diz-se  que  a  %bbadia  c  o  convento  eram  obrigados  a  conceder  nos  seus  domínios 
um  pedaço  de  terra  a  qualquer  habitante  da  cidade  que  n'elle  quiaesse  cons- 
truir uma  borda  (ad  faciendam  ibi  bordam.) 

A  prostituição,  expulsa  das  cidades,  refugiou-se  n'eslas  bordas,  que  esta- 
vam longe  de  vista  da  policia  urbana  e  d'onde  o  escândalo  não  transpirava. 
Estas  residências  ruracs  S(')  eram  habitadas  |)or  seus  proprietários  ou  colonos 
em  certas  estações  e  certos  dias;  mas  a  prostituição  tinha  sempre  n'ellas  um 
asylo  seguro :  e  por  isso  as  mulheres  publicas  arrendavam  as  bordas  em  que 
residiam  ou  onde  iam  ao  anoitecer  passar  algumas  horas. 

Os  libertinos  que  iam  a  estes  togares  de  prazer,  sabiam  da  cidade  com 
o  pretexto  (rum  passeio  e  chegavam  ao  encontro  vergoniioso  por  caminhos 
pOuco  IV('i|nciitados. 

A  burda  transformou-se  d'csta  forma  em  bordel  {bordel)  seu  diminuitivo, 
que  insensivelmente  se  tornou  o  nome  genérico  de  todos  os  asylos  da  pros- 
tituição, quer  estivessem  no  cam|)o,  (|uer  no  interior  das  cidades.  Devem  attri- 
buir-se  a  variações  de  dialecto  as  dillVrentt^s  formas  |)or(|ue  passou  este  nome, 
proiiunciamlo-se  bordel  e  que  degenerou  em  burdiau  e  bordeau,  bordelel  e  bor- 
deliau. 

Emquanto  que  os  bordeis  estiveram  fora  das  cidades,  a  prostituição  er- 


DA     PROSTITUIÇÃO  61 

rante  contou  no  seu  exercito  secreto  uma  multidão  de  pobres  recrutas,  que 
nem  sequer  podiam  arrendar  uma  borda  e  que,  á  imitação  das  lobas  da  cidade 
de  Roma,  detiniiam  os  transeuntes  no  meio  dos  caminiios,  das  viniias  e  dos 
trigos,  por  cuja  raztão  se  lhes  eliamava  mulheres  dos  arredores,  mulheres  dos 
caminhos,  mulheres  do  campo  (V.  Charpenlier  no  supplemcnto  a  Ducaiigc,  nas 
palavras  BORDA  CHEMINUS.) 

As  que  não  sabiam  dos  albergues,  armando  as  suas  ciladas  das  janellas, 
chamavaNise  claustrieres  claustrariít  (V.  Charpenlier  na  palavra  CLAUSU- 
R.E.) 

Os  seus  claustros,  claustra,  foram  sem  duvida  os  berdeiros  dos  lustra 
da  antiguidade,  tanto  mais  que  aquelles  clàuslra  montium  só  se  estabeleceram 
em  logarcs  afastados,  no  futulo  dos  bosques  e  nas  gargantas  das  montanhas. 

As  mulheres  perdidas  que  habitavam  nas  bordas  ou  burdeles  foram  desi- 
gnadas com  o  nome  de  bordaleiras  (bordeliéres  ou  bourdeiiéres.)  Mas  não  foi 
esta  a  sua  única  denominação;  vimos  mais  acima  que  se  lhes  chamava  pules 
ou  putains,  em  signal  de  despreso;  os  nomes  injuriosos  não  se  regateavam, 
mas  não  se  distinguiam  como  na  antiguidade  por  qualificações  que  revelavam 
os  seus  hábitos  impudicos,  o  seu  género  de  vida,  ou  a  sua  origem  e  vestuário. 
Desde  o  fim  do  duodécimo  século  applicava-se-lhes  em  mau  sVntido  o  nome 
genérico  de  garzia  ou  gartia,  em  francez  garoe  ou  garse  (garza)  que  se  con- 
servou até  aos  nossos  dias  no  vocabulário  da  gente  do  campo  para  designar 
qualquer  virgem. 

Nas  provas  da  Hisloria  de  Brescia,  por  Guichenon,  pag.  203,  lé-se  o  se- 
guinte: Si  leno  cel  meretrix,  si  garlio  velgarli  alicuia  burgensii  concitium  di- 
xerit;  e  no  titulo  dos  privilégios  da  cidade  de  Seissel  em  1825:  Si  garlia  di- 
cat  aliquid  probo  homini  et  muliei-i.  Esla  expressão  que  reapparece  em  cada 
pagina  da  prosa  e  do  verso  dos  séculos  xiii  ao  xvii,  não  se  afasta,  senão  por 
excepção,  do  seu  sentido  primitivo,  nem  é  injuriosa  a  não  ser  no  caso  de  ser 
acompanhada  de  um  epitheto  malsoante. 

Além  d'isso,  segundo  o  extracto  de  Guichenon,  citado  anteriormente, 
vé-se  que  a  qualificação  de  garce  (gartia)  ainda  que  empregada  em  mau  sen- 
tido, dilferia  da  de  prostituta  (meretrix,)  pois  que  melhor  era  applicada  a  uma 
mulher  vagabunda,  ou  uma  serva. 

E.  Guichard  que  pretendia  provar  que  todas  as  linguas  se  derivam  do 
hebreu,  imaginou  approximar  a  palavra  garza  do  verbo  hebraico  de  consonân- 
cia análoga  e  significando  prostituir-se ;  sem  duvida  não  se  lembrou  que  as  pa- 
lavras garce  e  garcia  são  muito  mais  antigas  que  a  significação  obscena  que 
se  lhes  chegou  a  dar.  Assim,  no  processo  verbal  da  vida  e  milagres  de  S.  Ives 
no  século  xiii,  emprega-se  garcia  no  sentido  de  serva,  ancila  (V.  os  Bolían- 
distas,  Sanei,  maii,  tit.  iv,  553.)  Mas  simples  é  dizer  que  garce  é  o  feminino 
de  gars,  que,  apesar  das  melhores  elymologias,  parece  ser  uma  palavra  galai- 
ca,  vnars,  e  ter  significado  ao  principio  um  joven  guerreiro,  um  varão  nuhil. 
De  gars  se  fez  em  latim  bárbaro  garsio  e  garzio,  que  se  applicaram  aos  ser- 
vos, aos  ladrões,  aos  libertinos,  e  a  toda  a  classe  de  homens  de  mau  viver. 

Não  pode  demonstrar-se  melhor,  como  uma  palavra  originariamente  ho- 
nesta e  decente  se  perverteu  gradualmente  até  tomar  na  lingua  uma  significa- 
ção vergonhosa,  do  que  lembrando  uma  pbrase  em  que  Montaigne  a  emprega 
na  sua  accepção  primitiva:  «Ha  uma  nação  em  que  se  prostituíam  as  garces 
às  portas  dos  templos  para  saciar  a  concuspicencia.» 

Não  era  esla  a  única  expressão  injuriosa  que  esteve  em  uso  na  idade  mé- 
dia para  designar  as  prostitutas ;  também  se  lhes  chamava  fornicaria;  e  forni- 
catrices,  prostibulariw,  proslanies,  gyneciarice,  lupanarice  e  genearice  em  baixa 
latinidade.  Estes  três  últimos  termos  eram  svnonimos  e  indicavam  os  logares 
em  que  habitavam  as  mulheres  de  má  vida ;  ganea,  lupanar,  gynecium.  As 

t 


62  HISTORIA 

prostantes  vendiam-se  (iJo  verbo  prostave,)  as  prostihulariíp  prostituiam-se,  as 
fornicaria'  cxeculavain  a  acção  d'este  verbo,  e  as  fornicalerices  faziain-a  execu- 
tar. 

Estes  diflerentes  termos  não  passaram  á  lingua  franceza,  mas  entraram 
n'ella  os  que  tinham  uma  forma  menos  latina  :  taes  como  rihaude,  mescbine, 
fenune  folie,  fenime  do  rie.  La  femme  de  cie  (femina  ril(v)  não  parece,  apesar 
do  seu  disfarce  latino,  ter  como  raiz  uma  obscenidade  galaica.  A  femme  folie 
ou  folieuse  (mulier  follis  ou  falua)  devia  o  seu  nome  áqueila  espiencHda  besta 
dos  Loucos,  que  descreveremos  n'outro  bjgar,  como  o  ultimo  relievo  dos  mys- 
terios  da  prostitui(,-ão  antiga.  A  meschine  era  ao  principio  uma  servente,  uma 
serva ;  a  rihaude  uma  companheira  do  exercito,  uma  filha  de  soldado,  uma 
mulher  mundana  (ribalda.) 

N'oulro  capitulo  diremos  o  que  eram  os.ribaads  de  Philippc  Augusto,  es- 
tabelecendo a  verdadeira  origem  do  seu  rei.  iNão  citaremos  as  numerosas  ety- 
mologias  que  se  accumularam  doutamente  para  encontrar  a  raiz  da  palavra  ri- 
baud. 

Estamos  muito  dispostos  a  encontrar  essa  raiz  na  palavra  galaica  baux 
ou  baud,  que  significava  jovial,  e  que  deixou  na  nossa  antiga  lingua,  que  Bo- 
rcl  chamava  gííllica,  o  substantivo  baude,  alegria  e  o  verbo  ebaudir,  regosijar-se. 
O  nome  de  baux  ou  joviaes,  que  a  tradição  languedociana  fazia  remontar  ao  sé- 
culo sexto,  daria  uma  idade  muito  respeitável  á  céltica  baux  ovi  baud.  Esta  pa- 
lavra mudou  de  significação  sem  mudar  de  forma,  passando  á  lingua  ingleza, 
onde  baud  é  synonimo  de  alcoviteiro. 

A  palavra  baldo  em  italiano  não  foi  tão  alterada,  por  ser  derivada  de 
baux  e  tomar-se  por  audaz  ou  imprudente.  Kebaldus  foi  a  tradição  latina,  com- 
posta da  preposição  emphatica  re  e  da  palavra  radical  baux,  baud  ou  bauld. 
Ribaud  e  ribaldos  alatinaram-se  e  afrancezaram-se  ao  mesmo  tempo. 

Estas  palavras  empregavam-se  em  bom  sentido  antes  do  reinado  de  Plii- 
l|ippe  Augusto,  em  que  cahiram  em  despreso,  em  consequência  dos  exces.sos  de 
certa  gente  que  quiz  ser  os  ribaldos  por  evceilencia.  Anteriormente  áqueila 
época  significava  a  força  physica  e  a  constituição  robusta  do  homem  bem  dis- 
posto e  constituído.  Depois  era  a  designação  especial  dos  herejes  e  dos  liberti- 
nos. 

Todas  as  linguas  adoptaram  por  sua  vez  a  designação  especial  dos  ribaux 
e  de  seus  compostos.  Ribaudie  em  francez  veio  a  ser  synonimo  de  prostituição,  o 
mesmo  que  ribaldaijUa  cjue  Villani  emprega  n'este  sentido  (Cliron.  liv.  iv,  cap. 
91.)  Uibaud  produziu  então  ribaude,  ribalda,  que  nunca  teve  significação  ho- 
nesta. Segundo  a  Coulunte  de  Hcrgcrac,  era  grande  insulto,  quando  se  dirigia 
a  pessoa  de  nascimento  ou  condirão  nobre  ;  mas  não  tinha  tanta  importância, 
quando  se  applicava  a  uma  mulher  de  classe  humilde,  não  acompanhando  esta 
expressão  com  outra  injuria  de  facto.  Esta  singular  passagen)  do  foulume  de 
Bergerac,  inserida  alli  pelos  benedictino.s  continuadores  de  Ducange.  Ribaud, 
de  que  naturalmente  se  tiram  ribuudaille  e  ribauderie,  continua  qualificando 
com  energia  toda  a  mulher  de  costumes  desregrados  ou  perversos. 

A  palavra  meschine,  que  usualmente  se  applicou  ás  mulheres  vaidosas  de 
seu  corpo  (folies  de  leur  corps)  tinha  ordinariamente  uni  caracter  mais  bené- 
volo que  injurioso  :  meschine  não  esteve  em  uso,  senão  depois  de  mexchin.  Esta 
palavra,  essencialmente  galaica  ou  franca,  que  a  nos.sa  lingua  conserva  ainda 
em  mesquin,  cujo  .sentido  não  se  afastou  muito  da  raiz,  queria  dizer  ao  princi- 
pio joven  servidor  ou  escravo.  Meschinus  e  mischinus  encontram-se  desde  o 
decimo  século  nos  cartórios  monásticos,  como  Ducange  dá  disso  muitas  pro- 
vas ;  significam  servos  jovens  e  no  sentido  lato  serventes.  Este  ultimo  sentido  é 
o  que  a  palavra  mesrhin  aííecta  mais  particularmente  na  lingua  do  duodécimo 
século  ;  mas  então  não  se  tomava  em  mau  sentido  e  equivalia  a  jovensinho  ou 

f 


DA   PROSTITUIÇÃO 


63 


mocinho.  No  romance  de  Garin  cncontra-se  eom  muita  frequeneia  e  sempre 
honestamente,  como  n'cste  verso  : 

(íVous  estes  jones  jovenciaux  et  mesohins.» 

O  feminino  meschine,  me:(iHÍna,  não  teve  a  principio  sentido  dcshonesto, 
como  n'csse  exemplo,  do  mesmo  romance  de  Garin  : 

«Ait  tnatin  lievent  meschines  et  jntcelles.^ 

Mas,  no  decimo  terceiro  século,  as  meschines  tinham  dccahido  muito  da 
sua  boa  fama,  porque  Guilherme  Guiart,  na  sua  Branche  de  royaux  lignages 
apresenta-as  d'um  modo  pouco  lisonjeiro. 

Desde  então,  meschine,  tanto  na  linguagem  usual,  como  na  poesia,  designa 
apenas  uma  servente.  Ducange  cita  um  antigo  poeta,  em  face  de  um  manus- 
cripto  da  bibliotlieca  de  ('oislin,  para  provar  que  se  contrapunha,  sem  dillicul- 
dade,  dame  a  meschine  :  este  mesmo  poeta,  n'outro  logar,  descreve  assim  o 
oflicio  da  meschine : 

«En  la  chambre  ot  une  meschine 
Qui  moult  est  de  gentille  ofí/ie.» 

N'uma  ordenação,  relativa  ao  abhade  de  Bonnc-Esperance,  concede-se  a 
este  abbade  uma  somma  de  vinte  libras  para  seu  governo,  para  uma  servente 
e  uma  meschine.  A  palavra  meschine  emprega-se,  simullancamenie,  em  duas  ac- 
cepções  muito  dislinctas  :  umas  vezes  c  uma  simples  servente,  exercendo  os  de- 
veres do  seu  cargo,  e  como  diz  Luiz  xi  nas  suas  Cent  nouvelles  nouvelles  «era 
meschine,  fazendo  os  arranjos  da  casa,  como  os  leitos,  o  pão  e  outros  servi- 
ços ;»  outras,  uma  mulher  libertina,  que  se  põe  ao  serviço  do  primeiro  que  ve- 
nha e  .se  vende  ao  desbarato. 

Comprchende-se  que  o  meschinage  seja  synonimo  do  sei'viço,  que  suc- 
cessivamente  fosse  adoptado  para  especificar  um  trabalho  deshonesto. 

Além  d'isto,  o  meschinage  das  tavernas  e  dos  bordeis  tinha-sc  como  in- 
fame tanto  nos  Estatutos  do  rei  S.  Luiz,  como  na  lei  romana.  No  emtanto  S. 
Luiz  quer  que  a  mulher  louca  (folie)  que  vac  á  meschinage  ou  a  outro  sitio, 
para  se  alugar,  seja  admittida  por  direito,  assim  como  os  irmãos,  a  participar 
da  herança  paterna.  (Liv.  i,  cap.   138.) 

Completemos  esta  nomenclatura  franco-latina  da  prostituição  na  idade 
média,  com  o  exame  d'um  termo  muito  usado  que  se  diz  de  origem  italiana  e  ter 
sido  importado  para  França,  pelos  trovadoi^es,  no  undécimo  seeulo.  A  consonân- 
cia da  palavra  rnjjlnn  indica  logo,  mais  uma  origem  meridional,  do  que  barbara. 
Menage  deriva-a  do  nome  d'um  famoso  alcoviteiro  italiano,  chamado  liufo,  sem 
notar  que  este  Rufo  é,  certamente,  muito  posterior  ao  uso  da  palavra  a  que  se 
refere. 

Outros  etymologistas,  não  ,se  contentando  com  o  Rufo  problemático,  en- 
contraram em  Terêncio  um  Ibifus,  que  exercia  o  mesmo  oíiicio.  Por  um  abuso 
de  erudição,  ha  quem  tenha  approximado  esta  palavra  a  fornicator,  tirando-a 
do  allemão  ruef,  que  significa  abobada  e  que  daria  assim  a  traducção  de  forni.r. 

Mas  Ducange  approxima-se  mais  da  verdade,  fazendo  notar  que  as  pros- 
titutas romanas,  trazendo  cabelleiras  loiras  ou  ruivas  (ronsses,)  eram  chamadas 
ru/fm,  segundo  considefttções  de  Francisco  Pithon  e  Wovereno  acerca  de  Petro- 
nio. 

Vamos  completar  a  douta  obsjy^vação  de  Ducange,  dizendo  que,  sem  du- 
vida alguma,  a  palavra  ru/fianns  foWormada  nos  primeiros  séculos,  de  rufi  e 


64  HISTORIA 

de  anm,  duas  palavras  reunidas  n'uma,  sem  nenhuma  ellipse,  ou  de  rufia  e 
anus,  duas  palavras  igualmente  reunidas  por  meio  dellipse.  Emquanto  a  en- 
contrar anologia  entre  nijpan  e  fixn,  ftrnum,  ou  fimuin  (lameiro,)  é  necessário 
ignorar  que  não  pôde  subinetter-se  a  syllaba  ?-u/à  interpretação  ctymologica, 
inventada  por  não  sei  que  sonhador,  que  vé  era  ruffian  um  moço  de  estabulo 
(quod  eruit  fim  um.) 

A  juncção  de  rufi  e  de  anus,  ou  de  rufia  e  anus  conviria  muito  melhor 
ao  verdadeiro  sentido  da  palavra  ru/fians,  ru/fianus,  que  não  é  somente  um 
angariador  de  mulheres,  um  alcoviteiro,  mas  também  um  libertino,  um  fre- 
quentador de  lupanar,  um  amante  de  mulheres. 

ISós  como,  Menage  e  sobretudo  como  Duchat,  não  temos  a  audácia  ou  a 
ingenuidade  da  etymologia :  não  procuraremos  demonstrar,  porque  rufia  signi- 
ficava uma  pelle  curtida,  e  anuí  uma  velha  ;  significando  também  anus  o  anno, 
e  rufus  roxo  ou  vermelho,  estas  palavras  conduzem-nos  directamente  á  pro- 
fissão de  rufian,  a  qual  se  estendia  á  rufiana. 

Seja  como  fòr,  os  vocábulos  ru/fianus  e  rujfiana  não  figuravam  na  ida- 
de media,  a  não  ser  nos  escriptores  italianos  que  nos  apresentam  em  todas  as 
parles  os  rufianes,  em  amor  e  companhia  com  as  prostitutas  (ruffiani  et  me- 
retrices.) 

Ducange  e  Carpeniier  citam  muitas  e  interessantes  passflgens  d'aquelles 
escriptores  :  n'um  d'elles,  se  diz  expressamente  que  ruffian  é  synonimo  de  alco- 
viteiro (quilibet  et  qucelibet  leno,  qui  et  qum  vulqarilur  ru/Jini  dicuntur.) 

Ruffian  não  parece  ter-se  introduzido  em  França  antes  do  século  xiii, 
e  ainda  assim  não  esteve  em  voga  senão  nos  fins  do  século  xv,  quando  o  ita- 
lianismo  invadiu  por  toda  a  parte  o  idioma  galaico.  Esta  palavra,  que  se  em- 
pregava com  diversos  matizes  de  applicação  nunca  entrou  na  linguagem  orató- 
ria, nem  se  levantou  da  sua  abjecção. 

Mencionemos,  emfim,  uma  palavra  que  esquecemos  no  seu  logar  e  que 
prova  os  hábitos  mysteriosos  da  prostituição.  Os  albergues  da  libertinagem,  os 
bordeis  chamavam-se  em  sentido  figurado  chpiers  claperit  (tocas  de  coelhos) 
porque  as  meretrizes  se  occultavam  nVllas  como  coelhos  (ciíh/cíí/í,)  em  francez 
antigo  cunins.  Clapier,  segundo  Menage,  deriva-se  de  lepus,  transformando  em 
lapus  e  lapinus,  que  chegou  a  pronunciar-se  clapinus :  e  d'aqui  lapiarium  e 
clapiarium. 

Segundo  Ducange,  o  laço  para  apanhar  coelhos  chamava-se  clapa,  e  como 
se  collocava  á  entrada  das  covas,  estas  tiveram  de  usurpar-lhe  e  nome  que  re- 
presentava, sem  duvida  por  onomatopeia,  o  clappement  ou  ruido  da  machina,  no 
momento  em  que  o  coelho  cabia  no  laço. 

Segundo  outros  sábios,  clapier  derivava-se  da  raiz  grega,  que  significa  oc- 
cultar-se;  do  latim  lápis,  porque  as  covas  dos  coelhos  são  regularmente  mon- 
tões de  pedras  ou  terrenos  pedregosos. 

A  etymologia  pouco  nos  importa;  digamos  no  emtanto,  com  muita  re- 
serva, a  similhança  obscena  que  o  bom  bumor  francez  descobriu  nas  palavras 
cunnus  e  cunniculus  ou  cuniculus,  cujo  equivoco  indecente  .Marcial  não  suspei- 
tou. E'  certo  que  os  nossos  antigos  truôes  encontraram  uma  imagem  lúbrica, 
na  comparação  de  um  albergue  de  prostitutas  c  uma  toca  de  cocliios. 


CAPITULO  VII 


SUMMARIO 


Os  costumes  piihlicos  nos  rcin.iilos  anteriores  ao  de  Luiz  ix.— Grandes  progressos  da  sodomia.— Quadro  dos 
costumes  de  Paris,  no  Um  du  século  xii.— Os  collegiaes.— As  Ihermas  de  .luliano.— O  eeniiterio  dos  Santos  Innocentes. 
—Os  libertinos  e  as  prostiiutas  da  Croix-Senoiste.— As  primeiras  religiosas  da  abbadia  de  Santo  António  dos  Cam- 
pos.—A  padroeira  das  mulheres  piililicas.— Os  eslalutos  da  corporação  das  namoradas.— O  osculo  de  paz  da  prosti- 
tuta real  —A  eapella  da  riia  de.Iiissiènno.— Ksfcirfos  de  S.  Luiz  para  combater  e  diminuir  a  proslituição  —A  casa  das 
Fdl.-s-Uieu.— Como  S.  Luiz  caslit'ou  um  cavallijiro,  surprehendido  n'uma  casa  dii  prostitutas.— Suppressão  destei 
ustabelecimentos  e  desterro  das  mulberes  de  má  yida. 


|a  collecção  das  ordenações  dos  reis  de  França,  da  Icrcoira  dy- 
nastia,  não  se  encontra  nenhuma,  antes  de  S.  Luiz,  relativa  á 
proslituição;  mas  não  deve  crcr-se,  por  similliante  falta,  (jue  a 
|)ro.slituição  tinha  dcsapparecido  cm  França,  ou  que  a  auctori- 
dade  legal  a  deixara  absolutamente  livre  nos  seus  actos,  sema 
3j  cercar  d'uma  vigilância  preventiva e  repressiva.  Acreditamos  pelo 
contrario,  que  a  desordem  nos  costumes  não  tinha  feito  mais  do  que  aggravar-sc 
acalentada  pelas  guerras  feudaes,  que  tinham  assolado  o  paize  retardado  a  marcha 
da  eivilisação.  Cremos  tamhcm  que  a  antiga  legislação,  com  respeito  ás  prosti- 
tutas e  aos  seus  escândalos,  não  tinha  cessado  de  estar  cm  vigor ;  mas,  no  meio 
das  agitações  permanentes  que  perturbavam  a  sociedade,  havia-se  descurado 
muito  o  cumprimento  das  leis  da  policia,  occupando-se  antes  em  assegurar  a 
deleza  das  praças,  expostas  continuamente  a  cercos  c  a  todas  as  consequências 
d'uma  invasão  armada. 

Uma  espécie  de  tolerância  indulgente  tinha,  pois,  permittido  á  prostitui- 
ção o  desenvolvcr-sc  nas  cidades,  sobretudo  em  Paris,  onde  se  tinha  organi- 
sado,  como  os  outros  corpos  de  estado,  com  estatutos  que  a  regiam,  assim  como 
a  administração  municipal  approvara  esta  espécie  de  confraria  impura,  ou  fe- 
chava os  oliios  sobre  a  sua  existência  organisada. 

Não  nos  seria  diílicil  provar,  que,  sob  os  reinados  anteriores  ao  de  Luiz 
IX,  os  costumes  públicos  eram  mais  depravados  que  no  nosso  século,  e  que 
esta  corrupção,  mais  do  que  nunca,  tinha  um  caracter  odioso;  apresentaremos 
tami)ein  mais  que  uma  teslemunlia  contemporânea,  que  prova  o  quanto  se  ti- 
nha multiplicado  e  acclimatado,  para  assim  dizer,  nos  hábitos  da  população  pa- 
rizicnse  o  exercício  da  prostiTuição  regular. 

Esta  prostituição,  é  preciso  confessal-o,  tinha  então  uma  favorável  in- 
fluencia .sobre  os  costumes,  porque  desde  que  os  homens  do  Norte  se  mistura- 
ram, de  boa  ou  má  vontade,  com  os  indígenas  francos  ou  gallo-romanos,  o  vi- 

UlSTOHIA  DA  PROSTITtnC.iO.  ToMO  11  — FoLHA  9. 


66  HISTORIA 

cio  contra  nalnram  dcscnvolvia-sc,  como  contagio  devorador,  cm  todas  as  clas- 
ses da  sociedade,  sem  excluir  as  ordens  religiosas  e  as  famílias  reacs.  Gui- 
lherme de  Naugis,  contando  na  sua  chronica  a  morte  trágica  dos  dois  filhos  e 
uma  filha  de  Henrique  i,  rei  de  Inglaterra,  mortos  no  mar  com  uma  multidão 
de  inglczes  cmharcados  no  mesmo  navio,  apresenta  este  naufrágio  como  um 
castigo  do  ceu  e  não  receia  dizer  que  as  victimas  eram  quasi  todas  sodomitas 
(omnes  fere  xodomilica  lahe  direbenlur  et  erani  irreiili.) 

Esta  horrivel  degradação  mural,  como  já  o  deixamos  dito,  encontrava-sc 
por  toda  a  parte,  principalmente  entre  os  frades;  c  a  egreja,  altlicta  por  taes  ex- 
cessos, que  se  exforçava  em  occultar,  não  podia  deixar  de  fulminar  com  seus 
anathemas  estes  seus  memhros  indignos. 

Veremos  depois  que  a  condemnação  dos  Templários  não  f(ji  da  parte  de 
Bonifácio  vm  e  de  Philippe,  o  ForíiKiso,  mais  que  uma  medida  severa  de  jus- 
tiça contra  a  sodomia,  disfarçada  com  o  hahilo  da  ordem  do  Templo. 

k  sodomia  era  igualmente  o  laço  de  diflerenles  seitas  heréticas  que  que- 
ri.mi  cstabelecer-se,  fazendo  propaganda  rápida,  com  a  ajuda  das  suas  impure- 
zas e  que  dcsappareceram  pela  altitude  severa  e  firme  do  alto  clero,  que  o 
poder  temporal  secundou  com  os  carrascos  e  supplicios. 

Este  detestável  vicio  tinha-se  inveterado  por  tal  forma  no  povo,  que  as 
tentativas  dos  manicheos,  que  se  succederam  com  diiterentes  nomes  no  século 
XIV,  lhe  deveram  o  seu  êxito  momentâneo  e  ao  mesmo  tempo  a  sua  implacá- 
vel repressão.  Em  presença  dns  espantosos  progressos  de  similhante  praga, 
comprehende-se  que  a  prostituição  natural  podia  considerar-se  com  um  remé- 
dio para  es!e  mal,  como  um  dlíjue  a  taes  loucuras. 

Santiago  de  Vitry  na  sua  Histoire  accidentale  (cap.  vm)  registra  este  fa- 
cto curioso  e  significativo:  que  as  mulheres  publicas  detinham  descaradamente 
na  rua  os  (^eclesiásticos,  chamando-lhes  sodomitas,  quando  estes  se  recusavam 
a  seguir  estas  perigosas  sereias. 

«Este  vicio  vergonhoso  e  detestável,  accrescenta,  encontra-se  muito  gene- 
ralisado  n'esta  cidade;  este  veneno,  esta  peste,  é  tão  incurável,  que  aquelle  que 
fem  uma,  ou  mais  concubinas,  é  lido  como  homem  de  costumes  exemplares.» 

Santiago  de  Aitry,  que  nos  dá  esta  preciosa  observação  sobre  os  costumes 
de  Paris  no  fim  do  século  xii,  parece  querer  descrever  mais  particularmente  a 
prostituição  que  se  apoderou  do  bairro  da  Universidade,  onde  reinava  como 
soberana. 

«^'a  mesma  casa,  diz,  ha  escolas  nos  andares  superiores  e  asylos  de  li- 
bertinagem nos  inferiores;  no  primeiro  andar  leccionam  os  professores;  por 
baixo,  as  mulheres  libertinas  exercem  o  seu  vergonhoso  mister;  e  emquanio 
que,  por  um  lado,  cilas  disputam  entre  si  ou  com  os  amantes,  por  outro,  ou- 
vem-se  as  sabias  discussões  e  a  argumentação  dos>  estudantes.» 

O  bairro  dos  collcgios  e  das  escolas  era  povoado,  n'aquella  época,  apenas 
pelos  mestres  de  artes  e  pelos  estudantes:  estes,  com  a  idade  de  vinte  a  vinte 
e  cinco  annos  e  pertencentes  a  Iodas  as  nações,  formavam  um  exercito  indiscipli- 
nado de  l.)():()()l)  indivíduos  (|ue  escarneciam  da  policia,  sem  permillir  ao  pre- 
bostc  de  Paris  o  intervir  nos  seus  negócios;  protegiam,  é  verdade,  as  mulheres 
de  vida  alegre,  moradoras  no  seu  bairro  e  cohriam-nas  com  um  veu  de  impu- 
nidade, emquanto  (|ue  não  sabiam  dos  limites  marcados. 

O  reitor  e  dependentes  da  Universidade,  sabendo  que  a  juventude  neces- 
sita gastar  a  exuberância  do  seu  ardor  e  de  suas  forças  sensuaes,  não  lhes  im- 
punha a  obrigação  de  viver  como  anachorelas.  Assim  se  explica  o  quadro  que 
Santiago  de  Vilry  copiou  do  natural  e  que  nos  representa  fielmente  o  estado  de 
prostituição  na  visinhança  das  escolas  da  rua  de  Fouarre.  E'  provável,  todavia, 
que  esta  proslituição  no  domicilio,  não  fosse  a  única  que  existia  sob  a  salva- 
guarda dos  estudantes:  a  prostituição  errante,  que  correspondia  ás  ideias  e  aos 


DA    PHOSTITUIÇÃO  67 

inslinctos  d'aquellc  (empo,  havia  do  ter  como  campo  de  feira  o  Prc-aux-Clercs, 
a(iiu'lie  [lasseio  agresle  dos  íillios  pródigos  da  Universidade,  vasta  planicie  sul- 
cada de  arroios,  sombreada  por  grandes  arvores  e  cortada  por  vaiiailos  enormes. 

Era  af|iiolle,  naturalmente,  o  (xuito  de  reunião  das  jovens  alegres  que  se 
chamavam  de  campo  e  eèrca  e  (|ue  nada  tinham  a  lemer,  ii"a(]uelle  fresco  asylo, 
da  justiça  abacial  de  Sainl-derniain  des  l'rés.  A  Universidade  fazia  respeitar 
os  seus  privilégios  e  igualmente  as  suas  companheiras  de  lihertinagetn. 

O  Vré-cmx-Clercs  não  era  o  único  refugio  da  proslitui(,'ão  vagabunda,  pois 
finha  outro  não  menos  inviolável  e  mais  comniodo  na  estaí,'ão  fria  e  chuvosa. 
O  palácio  das  Tiíermas  de  Juliano,  (jue  os  reis  da  primeira  dynaslia  habitavam, 
estava  desoccupado  havia  séculos  e  as  ruinas  d'este  grande  edilicio  galo-romano 
cercadas  de  vinhas  e  jardins,  ollereciam,  segundo  a  expressão  d'um  poeta  con- 
temporâneo, «uma  iniinidadc  de  rcd-uctos  sinuosos,  sempre  favoráveis  aos  actos 
secretos,  mysteriosos  esconderijos,  cúmplices  do  crime,  occultavam  a  vergo- 
nha dos  (pie  os  commctiiam.» 

João  de  Hauleville,  que  nos  dá  a  conhecer  o  uso  obsceno  do  antigo  pa- 
lácio das  Thermas,  sob  os  reinados  de  Luiz  vn  c  Philippc  Augusto,  expõe  o 
que  cUe  próprio  viu : 

«Alli,  diz  com  menos  imlignaçâo  que  piedade,  a  espessura  do  arvoredo, 
usurpando  a  escuridão  á  noite,  protege  constantemente  os  amores  furtivos  c 
occulta,  com  frequência,  á  severa  vigilância,  os  últimos  symptomas  do  |>udor  que 
se  esvae,  pois  quem  quer  praticar  uma  má  acção,  procura  as  trevas,  e  a  sua 
vergonha  sente-sc  melhor  nos  logares  escuros,  gosta  de  envolver-sc  no  véu  da 
noite.» 

Philippe  Augusto  em  1218,  fez  doação  (Uesfas  ruinas  romanas  ao  seu  ca- 
marista Henritiuc,  provavelmente  com  o  encargo  de  as  murar  e  d'ellas  ex- 
pulsar a  prostituição.  Tal  toi  a  intenção  de  Philippe,  quando  fez  cercar  por  bons 
muros  o  cemitério  dos  Santos  Innocentes,  no  qual  a  prostituição  nocturna 
SC  expandia,  sem  respeito  pelos  mortos  a  quem  faziam  testemunhas.  Gui- 
lherme, o  Bretão,  fallando  (Feste  cemitério  no  poema  épico  da  Philippida,  in- 
digna-sc  com  profanação  tão  insolente:  {«El  (juod  pejus  eral  iiifrelricabnlur  in 
illo.y>  Liv.  I,  verso  441). 

O  mesmo  succedia  cm  todos  os  logares  próximos  da  muralha  do  recinto: 
a  prostituição  vinha  também  ahi  estabelecer  o  seu  campo  desde  o  anoitecer,  c 
as  vis  creatiiras,  que  a  exerciam  ás  escondidas,  collocavam-se  nas  ininiediações 
dos  sitios  mais  freciuenlados,  para  esperar  a  sua  presa.  Lè-se  nas  (Irandes  Chro- 
niijues  de  Saint-Denis,  esta  particulariílade  (]ue  se  refere  ao  reinado  de  Philippe 
Augusto : 

«E  também  as  mulheres  adoidejadas  {folies  femnies)  (|ue  se  collocavam 
nos  arredores  c.  encruzilhadas  das  estradas  e  se  entregavam  por  preços  iníimos 
a  todos,  sem  terem  vergonha.» 

E'  a  única  passagcn\  d'uni  escriptor  do  século  decimo  terceiro,  em  que 
se  falia  do  preço  da  prostituição,  c  ainda  que  esse  preço  de  meretriz  vadia, 
não  se  tenha  aqui  lixado,  não  pode  duvidar-se  (pie,  em  virtude  da  muita  con- 
corrência, era  muito  baixo. 

A  prostituição  linha  ainda  owlro  Ihealro  de  avenliii-as,  fíira  da  cidade,  no 
caminho  de  Vinccnnes,  num  sitio  |)ittorcsco,  para  diante  da  poria  de  Santo 
António.  iKibrcuI  rcfci'e  nas  suas  Ax.íiquitcs  de  l'iiris,  que  este  sitio  era  o  Ihea- 
lro ordinário  dos  attentados  ao  pudor,  praticados  pelos  estudantes  nas  mulhe- 
res, filhas  e  serventes  dos  plebeus  de  Paris.  A  meio  d'estc  bosípie  de  má  fama, 
teve  de  erigir-se  uma  cruz  de  pedra  chamada  Crnix-nenoisl ;  mas  este  santo 
remédio,  serviu  apenas  para  attrahir  maior  numero  de  homens  e  mulheres, 
que  se  entregavam  á  libertinagem  na  mais  escandalosa  promiscuidade. 

Um  pregador,  famoso  pelas   conversíies  que   tinha    feito,    Foulqucs   de 


68  HISTORIA 

Noiíilly,  cura  de  Saint-Denis,  appaivceii  lic  repente  no  meio  cFaquella  confusão 
de  lilierlinos  e  jjrosliiulas:  em  pé,  sobre  a  base  da  Cruix-lienoist,  e\l\orlou-os 
a  renunciar  aos  seus  iiai)ilos  detestáveis  e  a  fazer  penitencia,  consagrando-se 
a  Deus.  As  mulheres  que  o  escutavam  e  que  pertenciam  á  escoria  do  povo, 
senliram-sc  commovidas  de  arrependimento,  abandonaram  a  sua  profissão 
infame,  cortaram  o  cabelio  e  vieram  a  ser  as  primeiras  religiosas  da  Abbadia 
de  Santo  António  dos  (^aiiipos,  que  recrutou  a  sua  comnuinidade  em  todas  as 
classes  da  |)rostitui(,'ão. 

As  desgraçadas  que  a  Cruz  Bemdita  linha  visto  abandonar-se  por  um 
preço  vil,  cá  deshonra  do  corpo  e  da  alma,  fizeram  procissões  em  redor  do 
santo,  descalças  e  em  camisa  :  algumas  casaram  honradamente,  outras  consa- 
graram-se  á  vida  mystica.  Mas,  na  origem,  em  1190,  este  estranho  convento 
reunia  debaixo  do  mesmo  tecto  tanto  os  homens  como  as  mulh.eres,  e  pôde 
suppor-se  que,  apesar  das  eloquentes  prédicas  de  Foulqiies  de  Neuilly,  e  do 
seu  successor  Pedro  de  Boiny,  esta  mistura  dos  dois  sexos  não  era  para  inspirar 
virtudes  a  antigas  prostitutas  c  a  libertinos  convertidos.  O  illustre  bispo  de 
Paris,  Maurício  do  Sully  foi  quem,  em  I  196,  afastou  d'alli  os  homens  e  reteve 
as  mulheres  sob  a  regra  de  Cister,  com  ordem  de  expulsar  a  todas  que  se  não 
emendassem.  Além  d'estas  miseráveis  vagabundas,  que  exploravam  os  arredores 
da  cidade  e  que  à  noite  cabiam,  como  aves  de  rapina,  s  )bre  os  viajantes  retarda- 
tários, havia  em  alguns  bairros  e  ruas,  bordeis  e  antros  (des  bordeaux  et  des  cla- 
píVc.s)  que  recebiam  numerosas  visitas,  antes  da  hora  de  recidher,  e  pagavam  ao 
(isco  um  imposto  similliantc  ao  vectigal  r(miano. 

Escasseiam  as  provas  d'estes  factos  n'aquel!a  época,  mas  como  as  encon- 
traremos mais  tarde  em  abundância,  devemos  crer  que  dcsappareecram  nos  rei- 
nados anteriores  ao  de  S.  Luiz.  A  tradição,  que  nunca  deve  despresar-se,  so- 
bretudo se  se  refere  a  circumstancias  que  não  foram  mencionadas  por  eseripto, 
no  tempo  em  ([ue  occorrem,  a  tradição  recolhida  por  Sauval  no  século  xvii  (/íe- 
clier.  et  antiq.  de  Paris,  tit  !i,  pag.  Gl]!S)  diz-nos  c|ue,  niuilo  antes  de  Luiz  ix, 
«as  mulheres  escandalosas,  tinham  estatutos,  trajo  particular  afim  de  serem  re- 
conhecidas c  também  juizes  privativos.» 

Esta  tradição  tinha-sc  perpetuado  entre  as  mulheres  de  má  vida,  que 
pretendiam,  ainda  no  tempo  de  Sauval,  que  o  dia  da  Magdalena  tinha  sido  fes- 
tejado pelas  suas  adeptas  c  sequazes,  na  época  em  que  formavam  corporação  e 
tinham  ruas  e  usos,  c  ainda  antes  de  S.  Luiz  as  obrigaram  a  trazer  certo  trajo 
para  dislinguil-as  das  mulheres  honradas. 

Infelizmente,  os  detalhes,  que  Sauval  promettia  sobre  este  singular  assum- 
pto, não  tiguiam  na  sua  obra  impressa,  e  talvez  fossem  arrancados  com  o  cele- 
hre  trrdado  dos  Bordeis  de  ]'aris,  por  pudor  de  seus  editores;  mas  é  incrível 
(|ue  Sauval  não  tivesse  á  vista  a  prova  da  existência  d'estes  estatutos  da  pros- 
tituição, senão  os  próprios  estatutos,  que  deviam  ter  força  de  lei  anteriormente 
á  redacção  do  Livre  des  Méliers,  de  Estevão  lioileau. 

Esse  homem  pudico  teve  vergonha  de  adiiiillir  na  collecção  dos  privilé- 
gios e  usos  das  artes  c  oílicios,  no  qua\  evidenceia  tanto  o  ódio  á  prostituição, 
um  capitulo  especial  destinado  a  regular  o  exercido  de  um  escândalo  publico, 
(jue  linha  tenção  de  fazer  desapparecer,  não  lhe  dando  logar  na  juris|irudencia 
municipal.  listes  estatutos  do  meretricio,  que  ainda  se  encontram  aqui  e  alli 
na  historia  dos  costumes,  foram  inevitavelmente  restabelecidos  c  conservados 
pcdo  uso,  mas  não  ajiprovados  nem  confirmados  pelos  reis.  ("rémo-nos  auclo- 
risados  a  julgar  (jiu',  se,  n'um  tempo  em  (|ue  todos  os  oílicios  e  industi'ias  ti- 
nham um  código  especial,  a  prostituição  tolerada  não  tivesse  tido  o  seu,  as  mu- 
lheres bordelarias  não  teriam  formado  uma  corporação  especial,  como  a  forma- 
vam, s(d)  a  juri.sdição  do  Rei  dos  rihaldos.  O  titulo  de  rei.  dado  ao  chefe  ou  mes- 
tre de  uma  corporação,  era  sempre  inseparável  dos  estatutos  dVsVa  corporação; 


DA    PROSTITUIÇÃO  69 

a  ribaldia  Cmlia  um  rei  de  ribaldo.i,  como  a  mercerie  seu  rei  de  merciers  c  a 
meneslraudie  seu  rei  de  menetriers.  Todas  as  corporações  d'ar(es  e  oilicios  ti- 
nliam  enlão  os  seus  chefes. 

Veremos  depois  como  nada  faltava  ás  corfezãs  de  Paris,  evceplo  os  esta- 
tutos, para  mostrar  que  tinham  sido  desde  muito  tempo  agrupadas  em  corpo  de 
proíissão.  Nãí»  podia  supprir-se  a  perda  d'estes  estatutos,  no  (]uc  diz  respeito  ao 
uso  ou  modo  de  recepção  no  corpo  ou  communidade,  aos  graus  de  aprendiza- 
gem, á  tarifa  dos  preços,  aos  títulos  do  fisco,  ás  esmolas  e  multas,  n'oma  pa- 
lavra .1  toda  a  organisação  interior  do  ollicio ;  porém  temos  dados  precisos  com 
relação  ás  ruas  e  habitações  da  população,  designadas  para  a  libertinagem  com 
a  marca  dislincliva  das  mulheres  dedicadas  a  esta  vergonhosa  industri;i,  ás  ho- 
ras marcadas  para  este  trabalho  e  ás  leis  sumptuárias  respectivas  a  esta  classe 
de  mulheres. 

Uma  anedocta,  relativa  á  prostituição,  parcce-nos  muito  importante  sob 
este  ponto  de  vista,  tanto  mais  que  ainda  não  foi  bem  comprehendida  por  aquel- 
Ics  que  a  tiraram  da  Chronica  de  (íeofray,  prior  de  Yirgeois.  (Nova  hihlioth. 
manusc.  de  P.  Labbe,  tit.  i,  pag.  .309.) 

«Estando  na  missa  a  rainha  Margarida,  emquanto  os  devotos  davam  os 
ósculos  de  paz,  viu  uma  dama  enfeilada  com  um  trajo  magnifico  c,  julgando-a 
casada,  deu-lbe  um  osculo  de  paz.  Esta  dama  era  uma  rihalda  da  còrle  {iiiTe- 
tricein  rrtiiam).  Advertida  a  princeza  do  seu  erro,  teve  de  quei\ar-se  ao  rei, 
que  prohibiu  ás  mulheres  publicas  o  trazerem,  em  Paris,  a  capa  {clamyde  seu 
cappa  uti)  para  se  distinguirem,  assim,  das  que  eram  legitimamente  casadas.» 

Esta  curiosa  anedocta,  que  figura  na  Chronica  do  fim  do  anno  de  I  184, 
não  podia  de  forma  alguma  referir-se  ao  reinado  de  S.  Luiz  e  cnlender-se  com 
a  rainha  .Maigarida,  muilser  d'cstc  rei,  porque  o  auctor  da  Chronica  linha  mor- 
rido sessenta  annos  antes  do  matrimonio  de  S.  Luiz  com  .Margarida  de  Pro- 
vença. O  que  o  prior  de  Vigeois  tinha  ouvido  referir  no  fundo  do  seu  mosteiro 
lemosino  tem  uma  data  incontestável,  a  de  1  172,  quando  a  princeza  Margarida, 
filha  de  Luiz  vii  e  da  rainha  Constância,  foi  desposada  por  Henri(|ue  (Courl- 
manlel)  e  coroada  pelo  arcebispo  de  Ruão.  Pode,  coniiudo,  deixar-se  a  este  facto 
a  data  de  1158  que  lhe  assigna  o  chronista,  suppondoque  na  sua  Chronica,  es- 
cripta  depois  de  ri72,  chamou  rainha  a  Margarida,  queainda  não  era  coroada 
e  que  tinha  apenas  seis  annos,  na  época  em  que  devia  ter  recebido  o  osculo  de 
uma  prostituta. 

E'  extraordinário  que  o  facto  em  questão  somente  se  encontre  na  C.liro- 
nica  do  Pri(U-  de  Yirgeois,  que  muitos  historiadores  confundiam  com  (leolíroy 
de  Bcaulieu  por  datar  do  reinado  de  Luiz  ix,  uma  particularidade  que  per- 
tence seguramente  ao  reinado  de  Luiz  vii  e  que  prova  que  este  rei  fez,  contra 
as  mulheres  de  má  vida,  uma  ordenação  que  não  se  conservou. 

Para  o  nosso  fim,  jiódc,  d'este  facto,  firar-se  mais  d'uma  inducção  interes- 
sante. Portanto,  aquella  prostituta  que  o  chronista  chama  real,  fazia  parle  das 
mulheres  de  vida  alegre  e  de  corte,  que  encontramos  até  ao  reinado  de  Fran- 
cisco I,  com  esta  mesma  qualificação,  ou  então  era  somente  uma  das  súbditas 
ordinárias  do  Rei  dos  ribaldos,  uma  das  mulheres  da  sua  corporação  reali' 

Além  d'isso,  é  certo  que  Luiz  vii,  submettendo  o  olficio  das  mulheres  pu- 
blicas a  certas  condições  de  trajo,  reconhecia  imiilicitamenie  a  sua  existência 
legal  e  auctorisava-as  a  exercer  o  seu  culpável  commercio  no  recinto  de  Paris. 

Finalmente  o  sobrenome  do  esposo  da  princeza  Margarida,  Henrique  Court- 
manlel,  não  terá  alguma  relação  ou  analogia  indirecta  com  a  aventura  de  sua 
mulher,  (]ue  foi  causa  de  que  as  cortezãs  não  levassem  capa  ou  manto  grande? 
Ha  tanihem  a  notar  a  curiosidade  com  que,  desde  enlão,  as  prostitutas  de  Paris 
fonnand')  parle  da  corporação  das  ribaldas,  se  vestiram  de  curto,  como  as. me- 
retrizes de  Roma,  vestidas  de  toga,  e  não  de  estola. 


70  HISTORIA 

A  corporaçcão  das  mulheres  enamoradas  (amoureiíses)  chegou,  no  tempo 
de  Luiz  vii,  a  um  estado  de  prosperidade  que  se  revelava  muito  no  luxo  das 
suas  lilircs  ou  trajo  di)  ollirio.  Sauval  n'outra  passagem  da  sua  preciosa  eom- 
pila(,\u)  (tom.  II,  pag.  ioO,)  declara,  expressamcnie,  que  os  estatutos  d'esta  cor- 
poração deslionesta  regeram  o  seu  occulto  grémio  até  nos  estados  de  Oriéans, 
em  iotiO.  l'or  falta  d'estes  estatutos  não  temos  podido  descobrir  as  provas  da 
Confraria  da  Magdalena,  que  Sauval  aílirma  ter  existido,  sem  dizer  a  que 
freguezia  eslava  adjunta,  nem  quacs  eram  os  seus  privilégios,  indulgências  e 
festas.  Recorrendo  a  uma  conjectura,  bastante  acccitavel,  poderemos  dar  por 
matriz,  á(|iiclla  impura  confraria,  uma  pe([uena  egreja  da  Magdalena,  que  existia 
sob  esta  invocação  desde  o  século  undécimo,  e  que  depois  se  chamou  S.  !Ni- 
colau.  O  logar  occupado  por  aquella  antiga  egreja,  que  a  revolução  de  89  fez 
dcsappareeer,  tem  agora  edilicios  particulares.  Não  sustentaremos  que  fosse 
aquelle  o  logar  da  occorrencia  do  osculo  de  paz  dado  por  uma  prineeza  a  uma 
cortezã.  O  cura  d'csla  freguezia  tinha  o  titulo  de  arcipreste  e,  apesar  da  pouca 
importância  da  freguezia  e  da  egreja,  não  deixava  de  se  orgulhar  com  o  seu 
titulo,  por  causa  da  confraria  de  Nolre-Dain?.  aax  Ihurgeois  que,  segundo  pa- 
rece, succedeu  á  da  Magdalena,  quando  S.  Luiz  intentou  extirpar  radicalmente 
a  prostituição. 

A  esta  circumslancia  temos  de  juntar  a  troca  do  nome  da  egreja,  a  qual, 
ainda  que  consagrada  sempre  á  Magilalena,  teve  de  purificar-se,  digamol-o  as- 
sim, ciiamando-se  agora  S.  Nicolau.  Tíxlavia  a  imagem  da  grande  penitente  es- 
tava ainda  no  aliar  mór  c  as  suas  reliquias  expostas  n'uma  caixa  de  prata  dou- 
rada. 

Õuasi  todos  (IS  historiadores,  incluindo  Duhreul,  (|ue  fallaram  d'essa  an- 
tiga egreja  da  cidade,  prelendeni  (jue  S.  Nicolau  foi  o  Patrono  primitivo:  Hu- 
breul  e  Sauval  dizem  ter  sido  n"uma  das  capellas  que  se  construiu  a  expensas  de 
uma  judiaria,  confiscada  na  expulsão  dos  judeus  por  Piíilippe  Augusto,  a  Con- 
fraria dos  pescadores  e  barqueiros,  a  quem  não  importava  sem  duvida  a  visi- 
nhança  da  Confraria  das  rilnildas.  lista  egreja  era  a  única  que  possuía  reliquias 
da  santa,  que  se  veneravam  alli,  e  não  se  deve  acreditar,  como  parece  peree- 
ber-se  numa  passagem  obscura  de  Duhreul,  que  estas  reliquias  não  foram  de- 
positadas alli  senão  em  1491  por  Luiz  de  Beaumont,  bispo  de  Paris.  Este  bispo 
não  fez  mais  que  trocar  o  relicário.  As  reliquias  eram,  não  s()  os  cabellos  de 
Magdalena,  mas  também  alguma  porção  de  coiro  caheliudo  da  mesma  cabeça,  ti- 
rado do  silii)  que  Nosso  Senhor  lalcou  ao  dizcr-lhc:  «Não  me  toques.» 

Todas  as  mulhei^es  dissolulas  estavam  de  accordo  em  adorar  Magdalena 
como  sua  padroeira,  sem  demorar-se  cm  fazer  eleição  entre  as  diderenlcs  san- 
tas que  a  lenda  lhes  ofterecia  sob  este  nome.  Parece  que  também  prestavam 
culto  a  santa  Maria  Egypsiaca,  (|ue  antes  da  sua  conversão  era  uma  celebre 
priisliluia.  l'ma  tradição  (juasi  contemporânea  [lermille-nos  certificar  (|(ie  a  ca- 
|)ella  deilicada  a  csla  santa  na  rua  que  se  chamou  d(>pois  ,lHs.sicn)if,  em  vez  de 
Jujiiptienne  ou  Gifípcieiíni',  era  a  freguezia  inlilulaila  das  mulheres  publicas 
desde  a  sua  fundação  no  século  duodécimo.  Elias  frequentavam  esla  capella, 
olfereeiam  missas,  coliocavam  luzes  e  deixavam  em  ollerla  o  dizimo  tie  seus 
vergiinhiisos  lucros:  a  esla  i'apclla  iam  «'m  devola  peregrinação  de  lodos  os  |)on- 
tos  da  ciilade,  e  naila  mais  eslranlui  que  as  suas  |)romessas  e  ramos  arlilieiaes 
collocados  cm  roda  da  imagem  da  sua  padroeira. 

O  cura  de  Sainl-ilfrinuin  l'.iu.rerroi.s  que  linha  na  sua  dependência  esla 
capella,  mandou  aqui  pòr  um  quadro  que  alli  se  via  havia  três  séculos,  com  ver- 
dadeiro cscanilalo  das  pessoas  |)icd(isas.  Ksle  (]uadro  rcpresenlava  a  santa  a  bordo 
irum  barco  em  alliludc  de  l(M'anlar  as  saias  para  pagai'  ao  barijueiío,  e  com 
esla  inscripção,  .sem  duvida  em  linguagem  do  lempo: 

«Como  a  sanla  otlerece  o  seu  corpo  ao  barciueiro  pela  sua  passagem.» 


UA    PROSTITUIÇÃO  7'! 

Bem  se  vé  por  esta  ancdocta  a  razão  por  que  os  barqueiros  do  Sena  (i- 
nliain  adoptado  a  mesma  padroeira  que  as  prostitutas. 

E'  provável  que  a  Confraria  das  ribaklas  fosse  transferida  da  e^'reja  da 
Magdalena  para  a  eapeila  de  Sania  Maria  Egypsiaea,  quando  a  grande  eonfra- 
ria  da  Virgem  Maria  [yolre-Dame\  foi  estabelecida  em  1  KifS  n"csla  egreja,  por 
occasião  d'uiu  ultraje  feito  por  uma  cortezã  a  uma  nobre  donzella,  dando-ibes 
ou  recebendo,  o  osculo  de  paz.  O  rei  e  a  rainba  eram  membros  fundadorc, 
d'esta  confraria  de  .\otre-Dame.  (|ue  com  surprcza  se  via  sob  os  auspícios  de 
Magdalena.  Ouanto  á  capella  de  Santa  .Maria  Egypsiaea,  foi  erecta  extra-mu- 
ros,  nos  arredores  do  cemitério  dos  Santos  Innocentes,  um  dos  centros  peior  afa- 
mados da  proslilui(.'ão  errante. 

Quarvdo  Luiz  ix  subiu  ao  throno,  o  seu  primeiro  pensamento  não  foi  pro- 
liibir  absolutamente  no  seu  reinado  a  prostituição  legal  que  era  tolerada,  senão 
permittida,  mas  pouco  a  pouco  combatel-a,  diminuil-a  com  as  armas  da  reli- 
gião e  com  os  recursos  da  caridade. 

«Jamais,  diz  Sauval,  jamais  tinba  havido  tantas  mulheres  de  má  vida 
no  reino,  como  no  principio  do  século  decimo  terceiro,  e  todavia  nunca  ellas 
foram  castigadas  com  mais  rigor.» 

(iuilherme  de  Seligiiy,  bispo  de  Paris,  chamou  á  sua  presença  as  da  corte 
e  fel-as  envergonhar  da  sua  infame  profissão:  umas  abandonaram-a  para  ter 
vida  honrada  e  casar-se :  outras,  para  expiar  as  culpas,  recolheram-se  a  con- 
ventos. Guilherme  apresentou-se  ao  joven  monarcha  que  acabava  de  succeder 
a  seu  pae  Luiz  viii  e  que  tinha  a  alma  cbeia  dos  piedosos  sentimentos  que  a 
rainha  Branca  abi  fizera  brotar.  O  príncipe  maravilhou-se  das  conversões  fei- 
tas pelo  prelado,  e,  para  não  deixar  perder  tão  grande  fructo,  apressou-se  a  fun- 
dar uma  ca.sa  de  refugio  para  as  peccadoras  arrependidas. 

\o  principio  resolvera  edificar  este  recolhimento  n'uma  cerca  situada  na 
rua  Saint-Jacfjues,  pertencente  ao  seu  confessor  e  capellão,  Roberto  Sorbon  a 
quem  queria  dará  gerência  daquella  communidade  penitente;  mas  depois,  me- 
lhor inspirado,  còmprehendendo  que  as  escolas  da  rua  Fouarre  dariam  má  visi- 
nhança  às  recem-convertidas,  mudou  de  resolução.  Com  aldeia  pois  de  as  acau- 
telar d'este  ou  d'outro  perigo,  resolveu  definitivamente  coUocal-as  a  distancia 
das  escolas,  no  campo,  no  outro  extremo  da  cidade,  e  com  etíeito  concedeu-lhes 
um  vasto  terreno,  onde  mandou  construir  uma  egreja,  claustros,  dormitórios,  e 
vários  edificios  cercados  por  bons  muros. 

Este  mosteiro,  mais  tarde  hospital,  oecupava  todo  o  espaço  em  que  de- 
pois da  revolução  foi  construído  o  quartel  do  Cairo.  .4quella  espécie  de  forta- 
leza, onde  havia  jardins,  terrenos  cultivados  com  hortaliça,  chamava-se,  segundo 
diz  Joinville,  a  Maison  des  Chratriers.  iSão  se  sabe  a  origem  do  nome  Filles- 
de-Dieu  que  depois  tomou,  mas  deve  suppor-se  que  a  ironia  do  povo  baptisou 
assim  aquellas  religiosas  que  o  demónio  submettera  a  uma  aprendisagem  pouco 
edilicante.  Seja  como  fòr,  este  nome  de  Fillea-de-Dieu,  que  ao  principio  apenas 
fora  um  epigramma,  foi  depois  tomado  a  sério,  mesmo  pelas  ([ue  o  tinham. 

Um  poeta  satyrico  d'aquelle  tempo,  Rutebeuf,  mofa  das  Filhas  de  Deus; 
mas  dos  seguintes  versos  de  ■Rutebeuf  se  piule  concluir  que  as  |ienitenciadas 
de  (Iuilherme  de  Seligny,  anteriormente  tinham  sido  chamadas  FemiiK-í  de 
Dieu. 

Dicx  a  non  de  fdles  acoir 
Mes  je  ne  puy  oncques  savoir 
que  Diex  eust  (ame  en  sa  vie. 

Rutebeuf  comprehende  sob  a  dominação  de  descendência  de  Maria,  sub- 
entendendo-se  Magdalena,  todo  o  pessoal  de  prostituição  cm  que  S.  Luiz  en- 
contrara as  Filhas  de  Deus. 

«E,   conta  Joinville,   metteu    na  casa  um  grande  numero  de  mulheres, 


72 


HISTORIA 


que   viviam    no   pecoado   da  luxiina  c  dcu-ilies  quatrocentas  libras  de  renda 
para  que  se  suslenlassem.» 

Esta  doarão  de  (|iia(rocentos  escudos  de  renda  era  eonsideravel,  alíen- 
dendo  ao  valor  enorme  do  dinlieiro,  e  lodo  o  mundo  se  admirou  que  as  Filles- 
de-Dieu  fossem  mais  contempladas  que  as  Qmnze-Vimjts,  que  apenas  tinham 
trezentas  libras.  Nos  eomeros  as  Fille.-i-de-Dieu  eram  apenas  duzentas,  mas  re- 
coibiam  Imias  as  muiberes  perdidas  (]ue  o  arrependimento  arrancava  á  liberti- 
nagem. Este  mosteiro  iinba  por  director  um  sacerdote,  a  quem  o  bispo  de  Paris 
cbamava  seu  rnuilo  amado  em  Jesus  Christo  e  a  quem  as  religiosas  appellida- 
vam  pae  em  Deus.  Não  foi  esta  a  única  fundação  do  mesmo  género  que  o  rei 
favoreceu  com  conselhos  e  dinheiro. 

<'E  creou,  diz  ainda  Joinville,  em  muitas  terras  do  seu  reino,  muitas  ca- 
sas de  arrependidas  e  deu-lbes  rendimentos  para  a  sua  sustentação  e  ordenou 
que  n'aquelles  recolhimentos  se  recebessem  todas  as  mulheres  que  quizessem 
guardar  continência  e  viver  castamente.» 

Por  mais  que  Luiz  ix  quizcsse  assim  diminuir  a  torrente  da  prostituição, 
não  lograva  reformar  os  costumes  que  as  cruzadas  mais  haviam  piTverlido, 
porque  os  cruzados  imitavam  os  costumes  musulmanos  sustentando  verdaijei- 
ros  haréns,  ciíeios  de  escravas,  compradas  nos  bazares  da  Ásia.  «Le  commum 
peuple  se  prist  aux  foles  fémmes:»  a  maioria  do  povo  entregou-sc  ás  mulheres 
publicas,  diz  Joinville,  confessando  assim  a  principal  causa  dos  desastres  da 
cruzada,  em  que  o  rei  foi  feito  prisioneiro  pelos  infiéis.  Este  prudente  jirineipc 
sabia  a  que  altribuir  os  seus  desastres;  e,  por  isso,  ao  recuperara  liberdade,  des- 
pediu muitos  empregados  da  sua  casa,  por  saber  que  estes  libertinos  tinham  os 
seus  haréns  á  distancia  de  uma  pedrada  da  sua  tenda.  Em  vão  se  esforçou  o  rei 
por  limpar  o  seu  campo  da  prostituição  c  pilhagem;  as  suas  mais  severas  ordens 
só  serviram  para  manifestar  mais  a  impotência  dos  seus  castos  esforços  contra 
os  desregramentos  da  luxuria. 

Estando  cm  Cesaria  teve  de  julgar,  segundo  as  leis  do  paiz,  um  cava- 
lheiro que  fora  surprebendido  n'um  bordel.  O  culpado  tinha  que  optar  entre 
duas  condcmnações  igualmente  deshonrosas :  ou  devia  ser  levado  por  todo  o  campo 
ás  costas  da  prostituía;  com  quem  fora  encontrado,  indo  esta  em  camisa  e  le- 
vando uma  coi-da  presa  da  cinta,  ou  tinha  de  abandonar  cavallo  e  armadura  ao 
rei,  consideraudo-se  expulso  do  exercito.  O  cavalleiro  optou  por  esta  ultima. 
Apesar  de  tudo  quanto  Luiz  ix  fez  para  inspirar  a  seus  súbditos  o  nobre 
sentimento  do  dever,  o  bom  rei  entrislecia-se,  presenceando  os  espantosos  pro- 
gressos da  desmoralisação  social. 

Por  fim,  d("jiois  do  seu  regresso  da  Palestina,  para  tributar  uma  home- 
nagem solemne  á  boa  memoria  de  sua  casta  mãe,  cuja  uiorle  ainda  chorava, 
propoz-se  extirpar  radicalmente  a  prostituição  do  seu  reino,  tanto  nas  provín- 
cias do  Norte,  como  nas  do  Meio-dia  {Lampiedoc  e  LarKjuedoil.) 

N'uma  ordenação  de  1254  introduz  este  memorável  artigo,  que  com  ou- 
tros, se  oppnnba  d(í  uma  maneira  definiliva  e  concludente  á  existência  das  ca- 
sas de  lii)('rlÍMagem,  condemnando  taml)em  a  desterro  as  muiberes  de  má  vida. 
«Item,  sejam  expulsas  as  proslilulas,  tanto  dos  campos  como  das  cida- 
des; e,  feitas  as  admoestações  ou  probibições,  os  bens  d'ellas  sejam  tomados 
pelos  julgadores  dos  legares  ou  pelas  suas  auctoridades,  c  de  tudo  sejam  despo- 
jadas. E  quem  alugue  casa  á  proslilula  ou  a  reeel)a  em  sua  casa,  será  obrigatlo  a 
pagar  ao  prciíosle  ou  ao  julgador,  lanio  como  o  aluguer  de  um  anno  inteiro.» 
!\Ias  S.  Luiz  ccdii  reconluveu  lamixMii  (|ue  a  prostituição  era  uni  mal  ne- 
pessario  para  impedir  maiores  males  na  ordem  social. 


CAPITULO  VIII 


SU.MMARIO 


n  R(.'i  dos  ribaUlos.  — Inv(.'Sti^ai;ões  sohro  as  p"L'ro,íalivas,  catlii^po-ia  e  cargo  d'fsto  funccionario  da  casa 
real.— l'cliiiirão  das  snas  att-iibiiifucs.  — Analníria  dos  Minislfrinles  pnlalini  do  (^arlos-Maçno  com  o  Rei  dos  rihal- 
dos.— Filijipi;  .\iiL'USlo  orfranisa  os  ribaldos  em  corpo  do  tropa  nifreena:  ia.— Provas  di;  bravura  o  intrepidez  d'cstas 
hufdas  liceDcio.-as.— O  Rei  'ios  Riiialdus  —Vantagens  lioiioiiílcas  u  lucrativas  d'e.^tc  cargo. — Nu  como  um  rilialdo.— 
Decadência  successiva  do  iviuado  dos  ribaldos.  — A  rdiaideria.-  Apreciação  do  cargo  de  lui  dos  ribaldos  no  inIci'ior 
dos  palácios  reaes— Investigações  sobre  os  einolunientos  do  rei  dos  ribaldos.— Grasse  Jue,  rei  dos  ribaldos  de  Fi- 
lippe,  o  Largo.— Soio  Guerim,  rei  dos  ribaldos  do  duque  de  Normandia  e  de  .Aquitania,  filho  de  Carlos  v.— Direito  de 
execução  e  exacção  do  rei  dos  nbaldos  sobre  certos  criminosos.- João  lioulart  e  Peinette  de  la  Basmette.— O  rei  dos 
ribaldos  devia  .ser  um  fiel  e  inconuptivel  defensor  da  pessoa  do  rei.— Uoi|U'let.  — Provas  de  abnegação  de  João  Tal- 
lerau,  rei  dos  ribaldos  de  Francisco  i.— Gabella  semanal  dos  vassallus  do  rei  dos  ribaldos.— Ultima  transformação 
d»  ollic.o  do  rci  dos  ri  baldes  na  côrtede  França.— As  corbzãs  e  suas  damas.— Oliva  Santa.— Cecília  Viefville.- Cubn 
Boule,  rei  dos  ribaldos  de  Filippe,  o  Bom,  duque  de  Borgoaba.— O  parocho  de  Xotre-Dame  de  Abbeville,  rei  dos  ri- 
baldos.—Balderico,  rei  dos  ribaldos  de  Henrique  a,  rei  de  Inglaterra,  duque  de  Normandia.- Altribuições  do  rei  dos 
libaldos  nas  cidades  da  província.— António  de  Sagiav,  commissarío  do  rei  dos  ribaldos  de  Màcon  e  Coletlo,  mulher 
de  Pedro  Talon. 


lEMos  A(;(iRA  de  aprcstMilar  atiui  um  peisoii.igcm,  (|iic  a  liis(oiia 
nos  aponta  como  existindo  no  reinado  de  Filippe  Augusto,  e  que 
Item  pôde  ter  sido  contemporâneo  de  Carlos  Magno.  O  Rei  dos 
ribnlilos  (Ik.r  rilialdoruni)  foi  evidentemente,  desde  a  sua  ori- 
gem, o  juiz  da  proslituiyrio  na  corte  dos  reis  de  França.  (Irandc 
numero  de  sábios,  desde  João  Dutillet  até  (louye  de  Longuemare, 
se  tem  dedicado  a  eruditas  investigações  e  feito  engenhosas  dissertações,  para 
precisar  quaes  fossem  as  prerogativas,  a  cathegoria  e  cargo  d'este  funcciona- 
rio dd  casa  real:  citam  textos  de  ordenações,  apresentam  factos  novos,  fazem 
fallar  o  Thesouro  ou  Archivo  dos  tiíulos  e  procuram  a  verdade  por  entre  uni 
grande  numero  de  provas  contraditórias;  mas,  á  força  de  querer  systematica- 
menlc  exaltar  ou  deprimir  funcções  tão  complexas,  como  largas,  tão  singula- 
res, como  ten-iveis,  não  são  concordes  no  verdadeiro  mister  d'estc  notável  per- 


Depois  de  tantos  tralvillios  de  erudição  c  de  critica,  feitos  sobre  o  o!)scuro 
assumplo  do  oíFicio  do  rei  dos  ribaldos,  a  quem  consideramos  como  precursor 
solemne  dos  commissarios  de  policia  da  nossa  ordem  civil,  vamos  nós  também 
occuparmo-nos  d'essc  mysterioso  cargo. 

Cremos  poder  dar  um  grande  desenvolvimento  histórico  á  investigação 
d'cste  antigo  olficio  da  corte,  intimamente  enlaçado  com  a  historia  da  prostitui- 
ção em  França. 

Quasi  todos  os  auctorcs,  fullando  do  rei  dos  ribaldos,  teem  procurado  de- 
finir ou  determinar  as  suas  atlribuições,  enganando-se  mais  ou  menos  nas  con- 
clusões por  considerarem  uma  única  phase  deste  personagem  e  do  seu  cargo. 

IliSTOBiA  DA  Prostituição  Tomo  ii— Folha  10. 


74  HISTORIA 

Assim  João  Boutillicr,  (lue  escreveu  a  sua  Somme  rurale,  ahi  por  I 'i-60,  apre- 
senta o  rei  dos  ribaUlos  como  um  executor  das  sentenças  e' ordens  dos  prcbos- 
tes  no  séquito  do  rei;  João  Ferron  indica-o  como  o  primeiro  dependente  dos 
mordomos  do  palácio  real;  f.orondas  dii-o  commissario  do  prcbostc  do  palá- 
cio; Eclleforest  chama-o  prehoste  do  palácio  do  rei;  Ragueau  dcciara-o  super- 
intendente das  mulheres  publicas;  Estevão  Pasquier  aponta-o  como  bailio  dos 
ribaldos.  Cada  um  dá  ao  rei  dos  ribaldos  um  caracter  especial,  um  poder  mais 
ou  menos  reslricto,  uma  dignidade  mais  ou  menos  considerável,  sem  attender 
ás  transformações  suecessivas  que  o  tempo  fez  na  instituição,  que  tinha  deve- 
res tão  diversos  como  múltiplos. 

A  reunião  por  ordem  chronologica  de  todas  as  opiniões  dos  historiado- 
res e  jurisconsultos,  a  respeito  do  mysterioso  cargo  do  rei  dos  ribaldos,  prova- 
ria que  nenhuma  d'ellas  explicava  as  funcções  que  desempenhava  este  official 
de  palácio  na  época  da  sua  creação,  nem  a  decadência  sollVida  pelo  emprego,  á 
maneira  que  os  outros  funccionarios  da  casa  real  lhe  iam  usurpando  direitos  e 
privilégios.  O  rei  dos  ribaldos  deixou  de  existir,  quando  a  sua  qualificação  se 
tornou  vergonhosa,  quando  a  sua  antiga  auctoridade  passou  a  muitas  mãos, 
quando  os  seus  competidores  repartiram  a  gerência  do  cargo. 

O  ultimo  rei  dos  ribaldos,  depois  de  ter  visto  os  mais  beilos  florões  da 
sua  coroa,  disputados  e  arrancados  por  outros  funccionarios  de  nomeação  mais 
recente,  teve  o  supremo  desgosto  de,  no  reinado  de  Francisco  i,  vér  o  resto  da 
sua  antiga  supremacia,  a  que  exercia  sobre  a  prostituição  da  corte,  passar  ás 
mãos  de  uma  dama  de  profissão.  Assim  lhe  foi  arrebatado  o  sceptro. 

Dissemos,  citando  uma  capitular  de  Carlos  Magno  sobre  a  policia  interna 
dos  domínios  do  rei,  que  os  empregados  do  palácio  (Ministeriales  palatini,)  en- 
carregados da  vigilância  e  guarda  d'estes  domínios,  tinham  grande  analogia -com 
os  reis  dos  ribaldos,  que  encontramos  quatro  séculos  depois  exercendo  a  mesma 
vigilância  no  palácio  real.  Com  elTeito,  estes  Minisleriales  palaliiii,  dos  (juacs 
provieram  os  grandes  dignatarios  da  coroa,  deviam  ter  especial  cuidado  em  ex- 
pulsar das  residências  reaes  todo  o  individuo  suspeito,  que  n'ellas  houvesse 
penetrado,  fosse  qual  fosse  o  sexo  a  que  pertencesse;  os  vagabundos  principal- 
mente (fiadaks)  e  as  meretrizes  eram  as  que  mais  temiam  a  jurisdição  do  Mi- 
nisterial palatino,  que  julgava  soberanamente  estas  causas  e  mandava  açoitar 
os  delinquentes.  E'  esta  a  origem  do  rei  dos  ribaldos  e  pode  dízer-se  com  toda 
a  razão,  que,  se  assim  não  foi  chamado  até  ao  reinado  de  Fílíppe  Augusto,  já 
desempenhava  as  funcções  no  tempo  de  Carlos  Magno. 

E'  mui  natural  (|ue  este  cargo  tivesse  sido  creado  logo  n'aquellas  quintas 
(cillce)  ou  centros  de  exploração  agrícola  e  manufactureira,  que  os  reis  francos 
possuíam  em  vários  pontos  do  reino,  e  cujos  rendimentos  eram  a  principal  ri- 
queza do  thesouro  real.  Os  servos  de  ambos  os  sexos,  submettidos  a  certas  leis 
de  polícia  e  de  administração,  não  eram  senhores  nem  dos  seus  corpos,  nem 
do  seu  tempo;  tinha-se  o  maior  cuidado  em  afastar  d'elles  toda  a  íntluencía  de 
ociosidade  e  prostituição,  e  o  seu  trabalho,  a  saúde  e  os  seus  costumes  eram 
protegidos  com  previsões  paternacs.  Era,  pois,  muito  importante  que  nos 
gyneceus  e  dormitórios  se  não  introduzissem  desconhecidos;  a  regularidade  da 
vida  commum  muito  teria  sotlrido  com  o  contacto  das  mulheres  de  má  vida, 
e  bastaria  a  presença  de  um  leproso,  de  um  libertino,  de  um  ladrão,  ou  de  um 
mendigo,  pai-a  contagiar  physica  ou  moralmente  a  pacifica  povoação  d'aquelles 
recolhimentos,  em  ([ue  milhares  de  servos  de  um  e  de  outro  sexo  estavam  reu- 
nidos. O  funccionario,  a  quem  especialmente  pertencia  o  prohibir  o  accesso  aos 
intrusos  n'uma  quinta  real,  parece  ter  sido  o  concierge,  e  as  suas  funcções  eram 
idênticas  á  do  camarciro-mór.  Bastou  mudar-lhc  o  nome  para  apparecer  o  rei 
dos  ribaldos. 

Os   reis  merovingios  c  carlovingios,  acompanhados  de  numeroso  séquito 


HA    PROSTITUIÇÃO  10 

(le  empregados  c  servidores,  iam,  de  quando  cm  quando,  residir  n'eslc  ou 
n'aquclle  palácio,  e  o  grande  numero  de  pessoas  que  os  acompanliava  augmen- 
tava-se  inevitavelmcnie  com  grande  numero  de  mulheres  cstranlias,  allralii- 
das  pelo  lucro  dos  prazeres  sensuaes.  Era,  pois,  mister  uma  auctoridade  per- 
manente c  especial  para  manter  a  ordem  entre  aquclla  massa  de  gente,  e  para 
dar  ordens  que  CNÍgiam  prompta  exccuçcão.  D'aqui  proveio  a  creaçcão  de  um 
funccionario  com  diicito  de  vida  e  morte  sobre  todo  aquelle  que  causasse  per- 
turbação na  casa  real. 

Aimoin  (liv.  v,  cap.  10)  conta  que  Luiz,  o  Benigno,  expulsou  do  seu 
palácio  um  grande  numero  de  mulheres,  que  se  diziam  agregadas  ao  serviço  da 
rainha  c  das  princezas  irmãs  do  rei  [nmnen  cwtiiin  fcemineuni,  qiii  permaxi- 
mus  eral,  palácio  e.rcUuU  indicarit,)  c  só  se  exceptuou  d'esta  medida  um  pe- 
queno  numero  d'ellas,  que  se  julgaram  indispensáveis  ao  serviço  real. 

Mas  é  fora  de  duvida  que  toda  essa  allluencia  de  mulheres  não  tardou 
muito  em  reapparecer  na  corte  dos  reis,  das  rainhas  c  dos  príncipes,  o  engodo 
de  todas  as  ambições,  de  todos  os  vícios  interesseiros  e  todas  as  baixezas  do- 
mesticas. Concebe-se  facilmente  que  a  justiça  expcditiva  do  rei  dos  ribaldos  es- 
tivesse em  |)leno  vigor,  antes  que  o  seu  nome  tivesse  caracterisado  as  suas  at- 
tribuições  ordinárias,  e  indicado  a  classe  de  gente  que  mais  directamente  de- 
pendia do  seu  tribunal  supremo,  ou  sem  appellação.  Este  nome  qualificativo 
parece  não  ser  anterior  ao  reinado  de  Filippe  Augusto. 

]N"cste  reinado,  a  palavra  ribaldus  ou  rihaud,  cuja  et^ymologia  estuda- 
mos, fez  a  sua  apparição  na  língua  vulgar  e  n'clla  figurou  logo  em  má  parte. 
Eríim  assim  designadas  ao  principio  as  pessoas  de  um  e  de  outro  sexo,  sem 
oíTicio  nem  beneficio,  que  andavam  em  volta  da  corte,  ganhando  a  vida  como 
podiam,  pela  esmola,  pelo  jogo,  pelo  roubo,  pela  prostituição.  Esta  infame 
multidão  cresceu  prodigiosamente  com  as  cruzadas,  e  n'um  exercito  o  numero 
d'esles  vagabundos  era  muitas  vezes  superior  ao  dos  combatentes. 

Entre  estes  parasitas,  sempre  promptos  para  a  pilhagem,  havia  muitas 
mulheres  que  se  entregavam  á  impudicicia.  Filippe  Augusto  imaginou  aprovei- 
tar este  mal  necessário  e,  em  vez  de  com  ameaças  e  castigos  tentar  livrar-se 
d'esta  vagabundagem,  o  que  inutilmente  tentaria,  organisou  com  a(|uellas  hor- 
das de  parasitas,  menos  prejudiciacs  ao  inimigo  do  que  ao  exercito,  que  seguiam 
como  nuvem  de  assoladores  gafanhotos,  um  corpo  de  tropa  assoldada. 

Os  historiadores  não  faliam  no  modo  como  era  alistada  e  disciplinada 
aquella  chusma  de  insubordinados ;  mas  pôde  suppòr-se  que  lhes  deixaram  em 
parte  continuar  nos  seus  hábitos  de  libertinagem,  fechando  os  olhos  aos  excessos 
6   dando-lhes  a  liberdade  de  levar  para  a  guerra  quantas  mulheres  queriam. 

Seja  como  lor,  aquella  phalange  de  ribaldos,  composta  da  relê  d'uma  sol- 
dadesca vagabunda  e  desenfreada,  distinguiu-se  em  taes  feitos  de  armas,  com- 
metteu  tão  extraordinárias  façanhas,  tão  brilhantes  provas  de  intrepidez  deu 
que  Filippe  Augusto  fez  d'ella  um  corpo  d'clite,  encarregando-o  do  serviço  es- 
pecial de  guardar  a  sua  real  pessoa. 

Os  chronistas  referem  que  o  rei  tinha  a  acautclar-sc  dos  punbaes  dos  as- 
sassinos, que  o  Velho  da  Montanha  enviava  continuadamente  uns  após  outros 
a  arrojar-se  sobre  as  espadas  nuas  dos  ribaldos  do  rei  chrislianissimo.  Estes  ri- 
baldos acompanhavam  o  rei  por  toda  a  parte  e  cm  todas  as  guerras,  sem  pou- 
par o  sangue,  animados  como  eram  pelo  incentivo  do  saque,  riuilberme,  o  Hre- 
tão,  que  descreve  as  proezas  d'a(|uellcs  soldados,  apresenta-os  nasua  Piíilippi- 
da,  como  heroes  indomáveis,  nunca  voltando  as  costas  a  perigo  algum,  nem 
mesmo  resguardando  o  peito  com  qualquer  armadura  : 

/Ti  ribnldorum  nihil  hominus  agmcn  inerme 
(Jui  nuinquaiii  dubilanl  in  quwris  ire  perícia. 


70  HisToniA 

A'(iiilr.)  lof;ai-  o  mesmo  poela  descrcvo-os  carregados  com  o  saque  : 

Nec  nniniii  artniíjeri,  ribalilorumque  manipli, 
Dilali  spuliis,  et  rebtis,  equisciue  subibant. 

Oiiando  Filippe  Augusto  foi  siliar  Tours,  depois  de  ter  submetlido  Poilou, 
cscoliíeu  um  capilào  ribaldo  {diice  vibaldo)  para  procurar  um  vau  no  rio  Loire, 
e  encoiilrado  por  este  capitão,  quasi  por  milagre,  (quasi  per  miracula)  o  exer- 
cito passou  o  rio  e  os  ribaidos  do  rei  (ribaldi  /'Cí/ís,  di/  Rigord,)  que  <'ram  os 
primeiros  a  cornar  ao  assalto  (qni  primos  impetus  in  ej-intunandiu  niuni/iuni- 
hus  [acere  consueterunt)  prccipilaram-se  para  as  escadas,  e  a  pra(,-a  não  espe- 
rou para  ser  tomada  de  assalto  e  abriu  as  portas  ao  rei. 

Em  virtude  d'esles  feitos  e  de  outros  do  mesmo  género,  é  certo  que  os 
ribaidos  de  Filippe  Augusto  formavam  uma  melicia  íemivel,  mas  pouco  disci- 
plinada e  cajiaz  de  todas  as  violências.  O  rei,  em  attenção  aos  seus  servi^-os, 
ião  pouco  exigia  d'cllcs  a  mesma  disciplina  e  deveres  impostos  aos  outros  cor- 
pos do  exercito  ;  todavia  como  não  era  possível,  sem  maus  exemplos,  deixar 
impunes  todos  os  dclictos  d'aquella  tropa  desenfreada,  que  apenas  reconhecia 
a  aucloridade  dos  seus  chefes,  e,  que  quando  não  se  batiam,  unicamente  se  oc- 
cupavam  na  libertinagem,  o  rei  teve  de  coníiar  o  commando  supremo  d'estes 
indomáveis  ribaidos  a  um  dos  officiacs  mais  graduados  da  sua  casa,  ao  que  es- 
tava encarregido  da  p.dicia  interna  do  palácio,  e  que  tradicionalmenic  e\eicia 
uma  iemiiia  aucloridade  sobre  os  rcus  de  dclictos  de  to<la  a  ciasse,  commciti- 
dos  no  domínio  da  sua  jurisdic(,-ão. 

Kstc  funccionai'io  palaciano  linha  lambem  um  aniigo  prestigio  de  respeito 
e  terror,  pois  era  scm|)re  acompanhado  pelo  carrasco.  l'ara  ellc  não  havia  in- 
teivallo  eritre  a  ccmdemnação  e  a  execução,  sentenciando  a  pena  ultima  com  a 
mesma  facilidade  com  (pie  impunha  uma  ligeira  pena,  sempre  acompanhada 
d''uma  !iuiila  em  proveito  j)roprio. 

O  lugar  de  rei  dos  ribaidos  veio  a  ser  muito  lucralivo,  tanto  pelo  (|ue 
rendiam  as  muitas  criminaes,  como  pelas  contribuições  impostas  ás  j)rostilu- 
tas,  talierneiriís,  cie. 

Tinha  taiiil)em  parle  no  saque  feito  pelos  ribaidos  nas  suas  expedii;ões  e 
ainda,  como  se  tal  lhe  fizesse  falta,  arrogava-se  o  direito  sobre  os  prisioneiros 
de  guerra. 

Lè-se  na  lista  dos  cavallciros  feitos  prisioneiros  na  b.italiia  de  Bouvincs 
em  i  2 1 4  ; 

Hntjerus  df  Wajalia.  Hunc  habuit  lUx  Itibalduriim,  quia  dicebal  se  esse 
servienlem.    ' 

Este  fragmento,  citado  por  Ducange,  prova  que  o  rei  dos  ribaidos  tinha 
em  tempo  de  guerra  a  qualidade  de  primeiro  capitão  das  guardas  do  rei;  mas 
não  nos  cvidenceia,  se  este  oiiicial  da  coiòa  de  França  exercia  funcção  activa  nas 
batalhas  ou  se  combatia  á  frente  do  seu  bando  como  os  demais  capitães.  As- 
sim se  piide  suppòr,  acreditando  n'uma  licção  do  jiumaince  de  la  Huse,  com- 
posto no  século  decimo  terceiro  por  Guilherme  de  Lorris,  que  faz  do  rei  dos 
ribaidos  um  capitão,  ([uando  o  Deus  do  amor  reúne  o  seu  exercito  para  liber- 
tar da  ijrisão  Uel-acneil ;  mas  a  maneira  como  se  dirige  a  Faux-semblaul,  pe- 
tiindo-lhe  (|ue  conduza  os  ribaidos  ao  assalto,  demonstra  suilícienlemente  que 
a  má  r<'pulavão  dos  soklados  se  rclkctia  no  chefe. 

São  os  seguintes  os  versos  do  Rumaince  de  la  Rose,  em  que  o  deus  do 
amor  se  dirige  a  l-aa.v-semblant,  dizendo  o  que  deve  fazer  : 

Fãux-sciiiblant,  par  lei  convenant, 
Tu  serás  a  moy  maintenant 


DA    PROSTITUIÇÃO  /  / 

Et  ii  nos  timiá  aidcrus. 
Et  poiíH  tu  ne  Irs  graveras, 
Àins  penseras  les  enlever, 
Et  tDiis  nos  enneiiiis  grecer 
Tien  soie  le  poucoir  et  le  batix 
Car  le  roy  serás  des  ribaux. 

(Fnux-semblant,  cm  troca  (risto  perlencer-ine-has  c  aos  meus  amigos 
.ijiularás  sem  que  os  aiíraves;  protegc-os  e  molesta  os  inimigos.  Será  tcii  o  po- 
der c  a  lioiira,  |)orijiie  és  o  rei  dos  ribaldos.) 

E'  claro  (juc  n'csla  citação,  como  o  observa  Pasquier,  o  rei  dos  ribaldos 
é  apresentado  como  capitão  de  armas,  c  não  como  magistrado.  Ha  também  ra- 
zão para  siippòr  que  exercesse  os  dois  poderes,  quando  se  pensa  no  que  foram 
os  ribaldos  de  Filippe  Augusto,  ainda  mesmo  depois  de  terem  sido  orgaoisados 
como  guardas  de  corpo  do  rei.  Um  cliefe  que  não  tivera  a  aucloridade  de  um 
juiz  nunca  teria  podido  disciplinar  aciucUa  borda  de  miseráveis,  a  quem  ape- 
nas o  terror  podia  contei'  em  respeito.  Todos  os  bistoriadores  d'aquella  época 
fizeram  terríveis  descripções,  que  nos  iniciam  na  dilFicil  e  perigosa  missão  do 
rei  dos  ribaldos. 

Escutemos  Guillierme  de  Neubrige  (liv.  v,  cap.  2)  «Certos  desavergo- 
nhados da  estofa  dos  homens  chamados  ribaldos.» 

Ouçamos  Matbieu  Paris:  «Ladrões,  bandidos,  fugitivos,  cxcommungados 
que  a  França  agremia  sob  o  nome  de  ribaldos.» 

Mas  em  parte  alguma  está  melhor  deseripto  o  género  de  vida  dos  ribal- 
dos, do  que  na  ehronica  do  Longpont,  em  que  o  prior  da  abbadia  pergunta 
a  João  de  Montmirel  o  que  aspirava  a  ser  no  mundo. 

—  Quero  ser  ribaldo,  responde  altivamente  o  mancebo,  que  mais  tarde 
devia  ser  canonisado. 

—  Deveras!  exclama  estupefacto  o  prior.  Aspiras  a  fazer  parte  d'essa 
gentalha,  tão  desprezível  ante  Deus  como  perante  os  homens  I  Por  ventura, 
])ara  acompanhar  esses  facínoras  não  será  necessário  jurar  e  perjurar  constan- 
temente, jogar  os  dados,  levar  bilhetes  {t.abellam  co)nportare,)  ter  concubinas 
(pellicein  circuimhicere)  e  viver  sempre  na  crápula?» 

Compreliende-se  sem  diliiculdade  que  as  rixas  e  homicídios  eram  mais 
frequentes  entre  aquelles  bandidos,  e  que  o  rei  dos  ribaldos  deveria  muitas 
vezes  intervir  para  as  apaziguar,  pois  que  os  ribaldos  eram  sempre  acompa- 
nhados das  ribaldas,  mulheres  ávidas,  tão  turbulentas  e  incorrigíveis  como 
elles.  E'  provável  que  a.  milícia  dos  ribaldos  do  rei  tivesse  sido  licenciada,  de- 
pois da  morte  de  Eilippe  Augusto,  talvez  por  causa  de  qualquer  revolta;  pois 
que,  se  os  ribaldos  ainda  continuam  figurando  em  todas  as  cruzadas,  em  todas 
as  guerras  e  em  todas  as  cavalgalas,  iam,  mal  armadus  e  peior  vestidos,  de  tal 
modo,  que  o  provérbio  nu  como  um  ribaldo,  tornou-se  vulgar  desde  I5IJ0,  se- 
gundo o  relata  uma  antiga  ehronica  manuscripla,  de  que  Ducange  transcreveu 
alguns  versos. 

Guilherme  Guiart,  que  no  seu  poema  histórico  os  Hoíjauj:  lignages, 
mette  cm  scena  os  ribaldos,  pinta-os  com  as  mais  miseráveis  cores  : 

'Uruient  soudoiers  et  rihaus 
Qíii  de  toiít  pei-die  sont  si  baiix , 

Itibaux,  qui  volcntiers  oidivent, 
Par  cosluiite  d'antiquité, 
ijueurent  aux  tnurs  de  ia  cite. 

Ribaux,  qui  dei  ost  se  departent 
Par  les  chitnts  ra  et  la  s'espardent 
Si  utis  nue  pilete  porte, 
I.' lulva,  croc  on  luassue  torte. 


/»  HISTdRIA 

Por  fim,  já  não  são  tropas  regulares  nem  assoldadadas,  mas  sim  bandos 
que  se  entregam  á  pilhagem  que  devoram  o  paiz,  e  que  rccrulando-se  em  todas 
as  parles,  formam  essas  terríveis  hordas  d'aventureiros,  que  a  Fran^'a  assombrada 
viu  mulli|ilicar-sc  em  todos  os  seus  excessos,  até  ao  reinado  de  (Carlos  v. 

«Tal  gente,  diz  uma  velha  ehronica  inédita,  citada  por  Ducange,  são 
bandidos,  ratoneiros,  ladrões  e  são  gente  infame,  dissoluta  e  excominungada.» 

O  rei  dos  ribaldos  muito  tinha  que  fazer  com  tal  gente,  principalmente 
quando  o  exercito  do  rei  estava  acampado;  administrava  justiça  expeditiva  e 
algumas  vezes  presidia  ás  execuções,  para  lhes  dar  um  caracter  mais  solemne 
e  inspirar  mais  terror  aos  seus  incorregiveis  súbditos.  Mas  a  sua  auctoridade 
foi  pirdendo  a  importância,  á  medida  que  a  dos  marcehaes  ia  augmentando  ; 
pois  que  o  rei  dos  ribaldos,  sendo  um  cargo  unicamente  destinado  á  casa  real, 
não  tinha  alçada  senão  nos  estabelecimentos  dependentes  da  casa  do  rei.  Fora 
d'esle  caso,  nas  expedições  militares,  nos  acampamentos,  o  conhecimento  de 
todos  os  crimes  e  delictos  compelia  de  direito  nos  prebostes  dos  marcehaes, 
que,  pouco  a  pouco,  se  foram  apoderando  da  auctoridade  dos  reis  dos  ribaldos. 

Este  oliicial  foi  lambem  supplantado  pelo  grão  preboste  dos  marcehaes  na 
hoste  ou  séquito  real,  ahi  por  fins  do  decimo  quarto  século,  pois  que  João 
Boutillier  diz  que  o  rei  dos  ribaldos  era  encarregado  de  cumprir  as  ordens  da- 
das pelo  preboste  dos  marcehaes. 

«E  se  acontece,  accrescenta,  que  algum  facto  criminoso  suceeda,  o  preboste 
é  de  direito  senhor  do  ouro  e  prata  que  esteja  no  cinto  do  malfeitor,  e  aos  mare- 
chaes  peilenee  o  cavalio,  os  arnezes  e  mais  pertences,  se  os  ha,  ficando  as 
roupas,  sejam  ellas  quaes  forem,  para  o  rei  dos  ribaldos,  que  tiver  assistido  á 
execução. 

Na  época  em  que  Boutillier  escrevia  a  Somme  ruralc,  o  rei  dos  ribaldos 
já  não  era  senão  uma  pallida  sombra  do  que  tinha  sido:  o  próprio  titulo  era 
desprezado  e  os  seus  rendimentos  não  eram  tão  pouco  para  engrandecel-o. 

«O  rei  dos  ribaldos,  accrescenla  Boutillier,  tem  de  direito  conhecimento 
de  todos  os  jogos  de  dados  e  quaesquer  outros  que  se  joguem  no  séquito  do  rei. 
liem,  pelos  alojamentos  dos  bordeis  e  das  mulhees  bordaleiras,  receberá  dois 
soldos  por  semana.» 

E  não  é  tudo:  o  poder  do  rei  dos  ri!)aldos  da  casa  real  estava  eii'cums- 
cripto  aos  limites  da  sua  jurisdição,  fora  da  qual  funccionavam,  cada  um  na 
sua  zona,  um  grande  numero  de  rei  dos  ribaldos,  encarregados  da  policia  dos 
costumes  c  nomeados  pelos  senhores,  ou  pelas  cidades  ou  pelos  súbditos  de 
similhantes  reis,  isto  é,  pela  gente  perdida  dos  dois  sexos.  Onde  liouvesse  uma 
ribalderia,  naluraimenie  havia  um  rei  dos  ribaldos. 

Esta  qualificação  de  rei  pertencia  consuetudinariamente  ao  chefe  ou  su- 
perior d'uma  corporação,  principalmente  as  que  governavam  muitas  communi- 
dades  distinctas,  ou  que  Unham  sob  a  sua  auctoridade  um  grande  numero  de 
profissões  diversas,  for  isso  não  se  chamavam  reis  os  chefes  dos  [lelleiros,  dos 
tendciros,  dos  padeiros  e  mais  grémios  que  tinham  meslres  ajuramenlados, 
porque  só  compreliendiam  olficios  e  trabalhos  da  mesma  espécie  ;  mas  havia 
um  rei  de  grémio.  O  reinado  dos  poetas  reunia  n'uma  só  corporação  os  géne- 
ros e  talentos  mais  variados;  os  poetas  formavam  uma  grande  confraria,  em 
que  abrigavam  não  só  os  poetas,  mas  os  músicos,  os  bailarinos  c  os  mimieos. 
Os  alabardeiros  agrupavam-se  iiRlilTerenlcmcnte  a  quabjuer  oulra  classe  e  no- 
meavam um  rei  escolhido  pela  còrtc  ou  designado  como  o  mais  destro  ati- 
rador. 

A  ribaldeiia,  igualmente  composta  de  individuos  de  Iodas  as  classes,  como 
prostitutas,  rufiões,  libertinos,  jogadores,  vadios  e  outra  gente  da  mesma  quali- 
dade, era  digna  de  ler  o  seu  rei.  O  rei  dos  ribaldos  da  eòrle  segiiramenlc,  pelo  me- 
nos em  certas  occasiões,  exercia  certa  supremacia  sobre  as  demais  ribalderias. 


DA    PROSTITUIÇÃO  79 

Cláudio  Faiiclief,  no  seu  primeiro  livro  das  Difpiitrs  et  maf/istrnfs  de  la 
France,  faz  uma  apreeia(,'ão  bastante  exacta  do  cargo  do  rei  dos  ribaldos,  no 
interior  do  palácio  real : 

«Aquelle,  diz,  que  se  chamava  rei  dos  ribaldns,  não  exercia,  como  al- 
guns querem,  as  funcções  de  preboste  da  casa  do  rei ;  assim  era,  que  iinlia  au- 
ctoridade  para  expulsar  da  casa  do  rei  os  que  n'ella  não  deviam  comer  nem 
dormir  ;  porque  em  tempos  passados,  os  que  tinliam  bocca  na  cóiHe,  quando 
tocava  a  campainha  accudiam  ao  refeitório  c  os  demais  eram  obrigados  a  deixar 
o  palácio  ;  e,  fechada  a  porta,  as  chaves  eram  depositadas  sobre  a  meza  do  mor- 
domo-mór,  porque  aos  que  não  tinham  as  esposas  no  palácio  era-llies  probibido 
dormir  na  casa  do  rei  e  também  para  ver  se  alguns  estranhos  se  tinham  es- 
condido ou  alguns  tinham  levado  tjarzas  ou  mulheres  de  má  nota,  o  rei  dos 
ribaldos,  com  um  archote  na  nu"io,  esquadrinava  por  todos  os  recantos  do  palá- 
cio a  vèr  se  encontrava  ladrões  ou  gente  suspeita.» 

Fauchet,  quasi  contemporâneo  do  ultimo  rei  dos  ribaldos,  representa-o 
no  exercício  das  suas  func(>ões,  como  o  vira  ainda  na  eòrlc;  mas  não  o  consi- 
dera em  todas  as  suas  phases,  nem  o  descreve  em  todas  as  épocas  do  seu  es- 
plendor e  decadência. 

Estevão  Pasquier  transcreve  este  capitulo  do  memorial  do  Tribunal  de 
contas  em   1823  : 

«Item:  O  rei  dos  ribaldos  tem  uma  rat^-ão,  um  criado,  e  sessenta  soldos 
por  anno.» 

Como  anteriormente  a  este  artigo,  os  porteiros  do  parlamento,  quando  o 
rei  não  está,  estão  descriptos  como  tendo  dois  soldos,  deduz-se  que  o  rei  dos 
ribaldos,  ganhando  menos,  tinha  inferior  cathegoria  ;  mas  no  caso  do  extracto 
ser  errado,  o  que  é  evidente,  é  não  ser  a  sua  remuneração  grande. 

N'uma  conta  da  casa  real  do  anno  de  1812,  o  criado  do  rei  dos  ribaldos 
é  chamado  o  seu  preboste:  l^rwpositus  reijis  ribnldorum,  (/ííí  duxit  iv  cale- 
los  qni  vulnucerant,  ete.  Este  preboste  evidentemente  eommandava  uma  forca  de 
archeiros,  pois  levou  presos  ([uatro  servos  aceusados  de  ter  ferido  um  homem. 

Woutra  eonfa  da  casa  do  rei  Pbilippe,  o  Largo,  em  1371,  vc-se  apparecer 
novamente  o  rei  dos  ribaldos,  na  qualidade  de  chefe  supremo  da  policia  do  |)alacio. 

Depois  de  enumerados  alguns  servidores,  taes  como  porteiros,  Ic-se  o  se- 
guinte : 

«Item:  Crusse  Joe,  rei  dos  ribaldos,  não  comerá  na  corte  nem  entrará  na 
sala;  mas  terá  seis  dinheiros  tornezes  de  pão,  uma  ração  de  carne  e  uma  gal- 
linha,  e  uma  ração  de  aveia  e  treze  dinheiros  de  soldo,  e  tirará  cavalgadura 
das  rcaes  cavallariças,  c  deve  estar  sempre  tora  da  porta  e  tomar  sentido  que 
não  entre  senão  aquelle  que  direito  tiver.» 

Um  outro  capitulo  da  mesma  conta  apresenta-nos  o  rei  dos  ribaldos  em 
exereicio,  ás  horas  da  comida,  e  este  capitulo  está  conforme  com  o  que  Fau- 
chet diz  sobre  as  attribuiçôes  d'este  ollicial  no  interior  do  palácio. 

«item:  Deve  saber-se  que  os  guardas  da  sala,  logo  que  se  grite  liu'  Gueux 
(a  comer)  farão  sahir  da  sala  todos,  exceptuando  os  que  tenham  de  comer,  e 
os  devem  entregar  aos  escudeiros  da  porta  e  estes  aos  porteiros,  e  os  porteiros 
ao  rei  dos  ribaldos,  e  o  rei  dos  ribaldos  deve  ter  o  maior  cuidado  em  que  nin- 
guém entre,  e  o  que  commetter  alguma  falta  será  castigado  pelo  mordomo  de 
serviço.» 

Assim,  no  reinado  de  l'hilippe  o  Largo,  o  rei  dos  ribaldos  tinha  decahido 
de  seus  antigos  privilégios,  até  não  ter  bocca  na  corte,  e  estar  subordinado  aos 
mordomos  do  palácio. 

Esta  supremacia  dos  mordomos  reaes  apparece  principalmente  n'um  de- 
creto do  parlamento,  de  16  de  março  de  I40i,  em  que  se  diz  terem  os  mordo- 
mos real  jurisdição  sobre  os  dependentes  do  rei  dos  ribaldos. 


80  HISTORIA 

A  docadeiicia  progressiva  do  rei  dos  riiialdos  loi'na-se  ainda  mais  evi- 
dente pela  diminuieão  dos  seus  honorários.  Wiinia  conta  da  casa  real,  fi\am-se, 
em  1324  esses  iionorarios  em  20  soldos:  em  I3o0,  em  virtude  de  uma  orde- 
nação de  riiilippe  de  Valois,  esse  ordenado  é  reduzido  a  o  soldos  diários;  cm 
1386,  diz  uma  ordenação  de  Carlos  vii:  «O  rei  dos  ribaldos  receberá  quatro 
soldos  por  dia,  quando  esteja  na  corte.» 

Apesar  da  sua  decadência,  este  oílicio  da  coroa  conservou  uma  certa  con- 
sideração, até  ser  definitivamente  supprimido  nos  princípios  do  século  xvi.  Du- 
tillet  diz : 

«Foi  desempenhado  por  gcntis-homens  de  boas  famílias,  cuja  auctoridade 
era  grande  nas  famílias  dos  príncipes,  senhores  e  mais  pessoas  da  comitiva  real.» 

Todavia  a  iiistoria  menciona  um  rei  dos  ribaldos,  posto  com  o  seu 
preboste  no  pelourinho,  sem  duvida  por  não  ter  cumprido  o  seu  dever. 
Uma  conta  da  casa  do  duque  de  Normandia  e  d'Aquilania,  (ilho  de  Carlos  v, 
em  I3S3,  relata  n'estcs  termos  tão  notável  facto: 

"João  Ciuerin,  rei  d(js  ribaldos,  pela  dcspeza  d'elle  e  mais  Ires,  indo  de 
Corbeil  c  Scdane  conduzir  Guillet,  que  foi  rei  dos  ribaldos,  e  a  Picardin  seu  pre- 
boste, para  os  cxpôr  no  pelourinho.»  - 

Deve  suppôr-se  que  o  rei  dos  ribaldos,  a  quem  d'este  modo  se  expunha 
ao  desprezo  publico,  não  tivesse  desempenhado  as  suas  funcções  no  palácio 
real,  mas  sim  em  qualquer  cidade  de|)endentc  da  jurisdição  do  rei  dos  ribal- 
dos da  corte.  Este  tinha  direito  de  execução  e  de  evaeção  sobre  certos  crimino- 
sos, que  lhe  eram  entregues  por  sentença  dos  tribunaes  ordinários  da  casa  real, 
como  é  mencionado  no  registro  do  Tribunal  de  Contas  em  1330: 

«Impõe-se  silencio  perpetuo  a  duas  mulheres  que  reclamaram  contra  o  de- 
creto do  tribunal,  (|uc  as  condemnou  a  ser  eniregues  ao  rei  dos  ribaldos  para 
serem  castigadas  como  infames.» 

N'uma  conta  da  casa  real  de  1396  vèem-se  descriptos  ses.senta  e  oito  sol- 
dos pagos  pela  mão  do  rei  dos  ribaldos  ao  executor  que  tinha  enforcado  o  mal- 
feitor João  Bouhirt,  e  enterrada  viva  uma  mulher  chamada  1'crnelte  la  Bas- 
melte,  pelo  roubo  de  um  objecto  da  corte  no  caslcllo  de  C>ompiègnc. 

O  rei  dos  ribaldos,  quando  queria  ser  exemplar  no  cumprimento  dos  seus 
deveres,  tinha  muito  que  fazer  no  palácio  real;  naturalmente  não  assistia  em 
pessoa  ás  execuções,  que  lhe  eram  confiadas,  sendo  substituído  pelo  seu  pre- 
boste; mas  era  elle  quem  pagava  ao  carrasco  e  era  responsável  pelo  trabalho 
dos  seus  subordinados.  Estes,  exactamente  como  o  seu  chefe,  tíidiam  na  es- 
pada certas  insígnias,  diz  Dutillet,  para  recordar  que  o  rei  dos  ribaldos  n'oulros 
tempos  exercera  justiça  criminal  em  casa  do  rei. 

Este  personagem  devia  ser  um  dedicado  servidor,  um  fiel  e  incorruptível 
defensor  da  pessoa  do  rei,  pois  lhe  eram  confiadas  a  guarda  das  portas  e  a  po- 
licia interior  do  |)alacio,  durante  as  refeições  e  depois  da  sobremeza.  Por  isso 
não  c  para  estranhar  o  vèr-se  um  rei  dos  ribaldos  morrer  repenlinanieiite  de 
commoção  na  sagração  de  Carlos  vi,  em  1380.  Aquelle  que  se  reputa  ter 
gido  o  ultimo  titular  d'este  cargo,  João  Talleran,  senhor  de  (Irígnaux,  deu  uma 
prova  de  abnegação  á  coroa,  aconselhando  o  joven  duque  d'Angoulème,  a  (luem 
via  muito  enamorado  de  .Maria  d'lnglalerra,  a  (|uc  não  desse  um  herdeiro  ao, 
velho  Luiz  XII ;  fii  este  conselho,  de  uma  grande  previsão  politica,  acceite  pelo 
joven  pi-incipe,  depois  Francisco  i,  que  lhe  fez  refrear  c  extinguir  o  seu  impru- 
dente amor. 

O  rei  dos  ribaldos  não  exorbitava  das  suas  attribuições,  quando  dava  este 
consídho  ao  seu  liiluro  s(d)crano,  pois  que  o  seu  cargo  não  era  estranho  aos 
adultérios.  Segundo  muitos  eiudilos,  o  rei  dos  ribaldos  exigia  cinco  soldns  de 
toda  a  mulher  casada,  (jue  tivesse  relações  amorosas  com  homcrn  (|ue  não  (òra 
seu  marido.  .Mas  é  provável  que  o  rei  dos  ribaldos  da,  corte  não  tivesse  os  pri- 


DA    PROSTITUIÇÃO  81 

vilef!Ío,s  locaes  dos  domais  reis  da  rihalderia.  Não  é,  por  exemplo,  dillicil  o  ap- 
pliear-iiie  o  que,  da  multa  de  eiiico  soldos  lançada  a  toda  a  mulliei'  adulte- 
ra, diz  o  auetor  anonymo  da  Ifisforia  das  fnani/nraròes  (Bevy) :  «Se  a  mulher 
recusava  pat,'ar,  liulia  direito  de  se  apropriar  da  sua  cadeira,»  provavelmente 
a  sua  cadeira  de  honra,  a  que  hahitualinente  occupava. 

Que  as  mulheres  de  má  nota  do  séquito  real  lhe  pagassem  um  imposto, 
é  uma  circumstaneia  em  nada  contraria  aos  usos  e  costumes  do  direito  feudal, 
que  ohrigavam  todo  o  feudalario  a  pagar  um  trihuto  a  seu  senhor.  O  ti'ibulo 
semanal  das  vassallas  do  rei  dns  ribaldos  deve  ter  sido  de  dois  soldos  d'ouro,  a 
dar  credito  a  Boutillier  e  á  Ragueau. 

João  Ferrou,  que  descreve  este  funceionario  guardando  a  camará  do  rei, 
não  hesita  em  infamal-o,  alRrmando  que  tinha  casa  sua,  onde  negociava  com 
as  mulheres  publicas.  Esta  nova  attribuição,  com  que  se  enriqueceram  estes 
reis  da  gentíí  de  má  nota  dos  palácios  rcaes,  não  é  destituido  de  verosimilhança, 
quando  depois  se  viu  sobre  as  ruinas  d'aquelie  cargo  supprimido  ergucr-se  o  de 
Dama  das  cortezãs,  cargo  análogo  cm  pleno  exercício  durante  a  maior  parle 
do  século  decimo  sexto. 

Finalmente,  Dutillet  aecrcscenta  aos  emolumentos  do  rei  dos  ribaldos  um 
serviço  especial  das  mulheres  publicas,  que  tinham  a  obrigação  de  fazer-lhc  a 
cama  (faire  son  Ul)  durante  todo  o  mez  de  maio. 

Depois  da  morte  do  senhor  (irignaux,  quebrado  o  sceptro  do  rei  dos  ri- 
baldos «a  policia  das  cortezãs,  foi  encarregada  a  uma  dama  e  ás  vezes  a  uma 
dama  d'alta  linhagem,  diz  .Mr.  Rabutaux.»  Em  lo3o  chamava-se  essa  dama 
Oliva  Santa  e  recebia  de  Francico  i  uma  pensão  de  noventa  libras  «para  aju- 
dar a  ella  e  ás  referidas  cortezãs  a  viver  e  a  occorrer  ás  despezas  que  tinham 
a  fazer  segundo  a  corte.»  (V.  o  Glossaire  de  Ducange  e  Carpenticr,  na  palavra 

MERETRICALIS   VESTIS. 

Muitas  outras  ordenações  do  mesmo  género,  feitas  ahi  pelos  annos  de 
1539  a  'loi6,  foram  conservadas,  e  provam  estas  que  lodos  os  annos  no  mez 
de  maio  todas  as  cortezãs,  ofliciacs  por  assim  dizer-se,  tinham  a  honra  de  apre- 
sentar o  ramo  de  romanzeira,  que  annunciava  o  começo  da  primavera  e  dos 
prazeres  do  amor. 

Em  30  de  junho  de  loiO,  Francisco  i  ordena  a  João  de  Vai,  thesoureiro 
da  casa  real: 

«Que  pague  á  vista  a  f^ccilia  de  Viefville,  Dama  das  jorens  alegres  da 
comitiva  da  córie,  a  somnia  de  io  libras,  com  o  valor  de  29  escudos  de  oiro  cada 
uma,  o  que  lhe  manda  dar  a  ella  e  ás  outras  mulheres  da  sua  profissão  para  que 
entre  si  o  repartam,  e  isto  por  direito  do  ultimo  me/,  de  maio,  como  é  uso  desde  a 
mais  remota  antiguidade  fazer-se.» 

Não  somos  da  opinião  de  Babutaux,  que  confunde  Cecília  de  Viefville 
com  uma  duqueza  da  antiga  casa  de  Vieuviile,  que  só  possuia  marquezes  no 
tempo  de  Henrique,  e  duques  no  reinado  de  Luiz  xiv.  M.  Champollion-Figeae, 
publicando  esta  notável  ordenação  nas  suas  Mclatujes  liistoriqiies  (tit.  iv.,  pag. 
479)  julgou  vèr  na  nobre  esposa  de  um  duque  e  par  de  França  a  herdeira  col- 
lateral  do  rei  dos  rii)aldos  da  casa  real. 

Este  vergonhoso  cargo  ainda  existia  em  iooS,  pois  Gove  de  Longuemarc 
descobriu  uma  ordenação  de  Henrique  ii,  com  data  de  13  de  julho  d'aquelle 
anno,  que  reforma  os  abusos  da  instituição: 

«E'  expressamente  ordenado  a  todas  as  mulheres  publicas  que  não  este- 
jam no  registro  da  cilada  dama  das  cortezãs,  que,  immcdiatamente  depois  da 
publicação  d'esla,  saiam  da  corte,  com  prohibição  das  que  estiverem  n'csse  re- 
gistro de  atravessar  as  povoações,  e  aos  carreiros  c  mais  gente  (|ue  as  levem  ou 
alojem,  nem  que  jurem  ou  blaspheraem  contra  o  nome  de  Deus,  sub  pena  de 
açoites,  e  outrosim  se  ordena  ás  mesmas  cortezãs  que  obedeçam  e  sigamaci- 

HlSTORlA  DA  PbOSTITUIÇÃO.  ToMO  II— FoLHA  11. 


82  HISTORIA 

lada  dama  codk^  coslume  é,  sendo,  sob  puna  do  açoites,  pi'oliibido  o  injii- 
i-ial-a.>* 

Tal  foi  a  ultima  Iransformaeão  do  cargo  do  rei  dos  ribaldos  na  corte  de 
França. 

Em  quanto  aos  demais  reis  de  ribaldcria,  dependentes  do  da  còrtc,  eni- 
eontram-se  por  toda  a  parte  na  bistoria  municipal  das  cidades  c  na  historia 
particular  das  principaes  famílias.  Havia  também  na  corte  de  Borgonha  um  rei 
dos  ribaldos,  cujas  funcções  eram  as  mesmas  (]ue  as  do  seu  collcga  da  corte  de 
França.  Colin-Boule  exercia  esse  cargo  no  reinado  de  riiilipjje,  o  líom,  c  esto 
nome  não  revela  um  alto  personagem.  Em  142:5  o  titulo  de  rei  dos  ribaldos 
havia,  c  verdade,  perdido  muito  do  seu  antigo  esplendor  e  o  paroeho  de  Aolre- 
Dmne  de  Abbeville  n.ão  devia  sentir-se  muito  orgulhoso  com  o  seu  titulo  de  ri- 
babiia,  porque  os  súbditos,  chamados  ribaldos,  lhe  prestavam  homenagem  e  ser- 
viços. Comprebende-se  que  o  titulo  não  fosse  o  mais  conveniente  para  inpirar 
respeito,  aos  que  conheciam  os  excessos  dos  ribaldos,  a  quem  só  co::i  muito 
rigor  o  seu  rei  podia  governar. 

Este  funccionario  na  sua  origem  tinha  sido  muito  mais  respeitável  c  po- 
deroso, pois  que  a  ribalderia  ainda  o  não  tiniia  ennodoado  com  o  seu  nome. 
N'um  tratado  (i'Henri(iue  ii,  rei  de  Inglaterra,  o  duque  de  Normandia,  reinante 
em  II oi-  (v.  Ducange  na  palavra  I•A^AGATOR,)  evidentemente  se  trata  dos 
rei  dos  ribaldos  c  o  que  desempenhava  essas  funcções,  Bclderico,  filho  de  Gil- 
berto, honrado  com  o  favor  do  seu  senhor,  foi  investido  do  cargo  de  grande 
|irebosle  dos  marecbacs  na  província  da  Normandia,  e  chamado  «guardador  das 
mulheres  publicas,  que  se  |)rostilucm  no  lupanar  de  Ruão  {Custos  mereiricum 
publice  venalium  in  lujianar  de  Rolh.) 

Nas  cidades  da  província  o  rei  dos  ribaldos  era  não  só  juiz,  mas  executor 
da  justiça  criminal  da  ribalderia.  Um  antigo  registro  do  município  de  Bordéus 
refere  que  todo  o  condemnado  era  «entregue  ao  rei  dos  ribaldos,  para  o  fazer 
percorrer  a  cidade,  castigando-o  com  boas  varas.» 

Metz  tinha  igualmente  o  seu  rei  dos  ribaldos,  que  também  não  era  um 
elevado  personagem. 

O  cci  da  ribalderia  de  Laon  nem  sempre  vivia  em  boa  intelligencia  com 
o  bailio  do  Vermandois  :  em  1270,  o  .seu  prebosfe,  de  nome  Poinsard  (l^oinçar- 
dus,  prfjpposiliis  rlhaldnnnii)  foi  accusado  perante  o  tribunal  do  bailio  por  ha- 
ver commettido,  de  sociedade  com  os  chamados  C-roselon  e  Wiet  Lipois,  actos  de 
violência  contra  a  abbadia  de  S.  Martinho  de  í.aon,  e  contra  o  seu  abbade 
(v.  os  Oliin,  publicados  pelo  conde  Bengnot,  tit.  i,  pag.  813.) 

Este  facto,  sem  duvida,  motivou  a  suppressão  do  cargo  de  rei  dos  ribal- 
dos em  Laon,  pois  que  Filippe  n,  em  uma  ordenação  de  1283,  determina  ao 
i)ailio  de  Vermandois  ([ue,  sob  pretexto  algum,  consinta  tal  cargo,  quer  fosse 
publico  ou  secreto  (quod  ciam  rcl  palam  sub  aUqun  .simulato  colore  non  per- 
millat  regon  rilialdorum  in  cilla  Laadunensi.) 

.4  supressão  d'este  cargo,  não  se  estendeu  a  todas  as  localidades,  pois 
(|ue  em  t'/83  a  cidade  de  Saint-.iinand  linha  um  rei  das  mulheres  publicas, 
chamado  Jacob  (ioduncsme. 

O  algoz  de  Tobisa  lomou  tam!)em  o  titulo  de  rei  dos  ribaldos,  como  se  para 
desacreditar  a  ennodoada  causa  da  ribalderia  ainda  lhe  faltasse  mais  esta  in- 
fâmia 

Finalmente  la  Coutume  de  Cambray  definiu  sem  reticencias  os  privilé- 
gios do  seu  rei  dos  rii)aIdos. 

«O  dito  rei,  deve  receber  por  (|ual(|uer  mulher  ipie  com  homem  se  junte 
carnalmente...  cinco  soldos  |)or  uma  s(i  vez. —  item,  por  todas  as  mulheres 
que  venham  da  cidade  e  que  estejam  sob  a  sua  alçada,  dois  .soldos  lornezes 
pela    primeira  \CL.  —  ltem,   por  cada  mulher  da  dita  ordenação,  que  mude  de 


DA     PUOSTITUICAl) 


83 


casa,  ou  que  saia  da  cidade,  por  uma  noite,  doze  dinlieiros.  —  Jli'm,  deve  ter 
uma  mesa  e  um  Í)ra'laH(i  aparte,  para  eile  em  um  dos  feudos  do  palácio,  ou  no 
logar  que  liie  fòr  designado  jielo  bailio.» 

Estes  artigos  fazem-nos  conliecer,  d'uma  maneira  precisa,  o  imposto  que 
o  rei  dos  ribaldos  d'csla  cidade  exigia,  não  s(i  ás  muliíeres  publicas,  com  re- 
sidência fixa,  mas  também  ás  (pie  passavam  pelos  seus  domínios. 

Estes  impostos  nem  sempre  se  recebiam  sem  difficuldades,  e  os  agentes 
do  rei  dos  ribaldos,  as  mais  das  vezes  para  os  perceberem,  encontravam  grande 
opposição  e  resistência.  Um  certo  António  de  Sagiac,  que  se  dizia  commissa- 
rio  do  rei  dos  ribaldos  de  Macon,  morreu  n'uma  desordem  bavida  na  povoação 
de  Beaujeu  quando  ia  realisar  a  exácção  de  cinco  soldos  de  multa,  imposta  a 
uma  mulber  casada,  aecusada  de  adultério.  Pedro  Talou,  marido  desta  muiber, 
cbamada  Colasa  e  seu  irmão  Estevão,  intervieram  na  desordem  para  defender 
a  aecusada. 

António  de  Sagiac,  era  um  ribaldo  da  peior  espécie,  frequentador  de  ta- 
bernas, vivendo  á  custa  das  desgraçadas,  a  quem  para  extorquir  dinbeiro  im- 
punha multas  sob  os  pretextos  mais  indignos.  Mas  d'esta  vez  sabiu-se  mal  ; 
Colasa,  tirando  forças  da  sua  bonradez,  sustentou  ser  mulber  honesta,  allegando 
não  conhecer  outro  homem  (jue  não  fosse  o  seu  marido;  este  allirmou  também 
a  honra  da  esposa,  e,  como  o  ribaldo  a  quizesse  prender  para  a  levar  para  Ma- 
con, Pedro  Talon  e  seu  irmão  mataram-o  alli  mesmo. 

O  bailio  de  Macon  instaurou  processo  contra  os  homicidas  e  contra  Co- 
las^, causa  do  crime  ;  mas  o  processo  evidenciou,  que  o  indigno  funccionario 
havia  accusado  injustamente  Colasa  (contra  veriíaiem  imponens  quod  ipsa  cuin 
alio  quam  viro  occubuerat)  e  que  o  ribaldo  (se  ijerens  pro  ribaldo  et  se  dicens 
de  ordine  seu  de  estala  tialiardoram  seu  bulfi)nH)it)  passava  vida  escandalosa 
por  tabernas  e  bordeis,  abusando  da  ingenuidade  das  mulheres  mais  honestas, 
a  quem  exigia  o  imposto  meretrício  em  nome  do  rei  dos  ribaldos. 

Por  isso  obtiveram-se  cartas  de  perdão  para  os  processados,  que  nunca 
mais  tornaram  a  ser  ineommodados  por  causa  da  morte  de  Sagiac. 

Mas  n'aqueilas  cartas  de  perdão  que  justificavam  Colasa,  não  se  dizia  d'um 
modo  cathegorico  que  o  rei  dos  ribaldos  de  Macon  não  tivesse  direito  de  co- 
brar cinco  soldos  de  cada  mulher  convencida  de  iu]n[icv\o{superqualibel  muliere 
tixorata  adulterante,  sibi  compeiere  et  posse  exigere  quincjue  sólidos  el  pro 
eisdem  dictam  talem  viulierem  de  suo  tripede  pignorare.) 

Pelo  contrario,  o  rei  de  França  parecia  implicitamente  reconhecer  este 
vecligal,  ou  tributo  da  prostituição  [Ik  talique  et  alio  viíi  qacesta)  que  a  ri- 
baldia  de  Macon  lançava. 


'   CAPITULO  IX 


SUMMARIO 


Estado  da  prostituição  depois  da  ordenação  de  t'254.— Instituição  da  policia  dos  costumes.— Equipaiação 
das  tabernas  aos  bordeis.— Orjíanisação  das  raullieres  publicas  por  Luiz  xi.— Os  judeus.— Ordenações  sumptuárias 
relativas  ãs  inulberes  publicis.— Estatutos  dos  barbeiros.— Banbeiros  de  estufas.— Estatutos  dos  carniceiíos.— Morte 
de  S.  Luiz.— Filippe,  o  Cornyoso.— OrdenaçJo  de  1272.— As  agulhetas  e  cintos  dourados.— Correr  o  guitledou  —As 
Ires  amantes  de  Kilippe,  o  Formoso.— \  torre  de  Nesle.— 1'ilippj  e  Gautier  de  Launay.— João  Buridan.— O  burro  de 
Buridan.— Estado  dos  costumes  depois  das  cruzadas.- í/jc  et  /toe.- Os  templários. 


uiz  IX  (Jemonstrou  a  sua  candura  e  virtude,  pretendendo  sup- 
primir  a  proslitui(,'ão  no  reino  de  França.  \  ordenaçãi)  de  1254, 
em  que  era  decretado  o  desterro  das  mulheres  de  má  vida,  não 
foi  nunca  rigorosamente  executada,  portjue  não  podia  sel-o. 
I  Para  se  subtraliirem  às  severas  prescripções  da  lei,  aquellas 
à  desgraçadas  mulheres  sO  cm  segredo  exerciam  a  sua  vergonhosa 
industria,  acobertando-se  com  todos  os  disfarces,  recorrendo  a  todos  os  ardis 
para  não  serem  presas  em  flagrante. 

Sem  duvida,  o  numero  das  infelizes  diminuiu,  e  os  libertinos  encontra- 
ram grandes  obstáculos  para  satisfazerem  os  seus  desejos  sensuaes  ;  mas  a 
prostituição  não  deixou  de  continuar  a  sua  obra,  logrando  quasi  sempre  illu- 
dir  a  vigilância  dos  perseguidores  ofBciacs.  Já  não  existia,  é  verdade,  em  esta- 
belecimentos públicos,  vigiada  pelos  regulamentos  policiaes ;  mas  estava  em 
toda  a  parte  e  existia,  sob  apparencias  honestas  e  respeitáveis,  no  centro  das  ci- 
dades e  no  interior  das  casas  particulares. 

As  cortezãs  que  teimavam  em  desobedecer  á  ordenação  do  rei,  eram  e 
deviam  ser  as  mais  viciosas,  as  mais  corrompidas.  A  necessidade  de  dissimu- 
lar a  sua  depravação  abrigava-as,  por  assim  dizer,  a  preverterem-se  mais,  fa- 
zendo-se  hypocritas  e  mentirosas:  não  podiam  fugir  a  suspeitas,  sem  apparen- 
tar  de  honestas,  vestindo  e  tendo  os  hábitos  das  mulheres  virtuosas  :  frequenta- 
vam as  egrejas  e  só  appareciam  era  publico  trazendo  um  veu  sobre  o  rosto  e 
um  rosário  na  mão.  E  algumas  d'ellas,  privadas  do  seu  commercio,  entraram 
em  conimunidades  religiosas,  sob  o  pretexto  de  penitenciarem-se,  mas  que  deu 
como  resultado  o  peiorarem  os  costumes  dos  conventos. 

Bem  depi'essa  se  reconheceu  que  a  prostituição  legal  tinha  menos  incon- 
venientes, do  que  a  prostituição  occulta  e  illicita;  convenceram-se  também  de 
que  não  seria  possível  destruil-a  e  que  obrigal-a  a  esconder-se,  era  dar-lhc  no- 
vas forças,  mais  provocadoras  ainda.  Os  libertinos  de  profissão  sabiam  sempre 
onde  encontrar  os  meios  de  satisfazer  os  seus  hábitos  vícídsos  ;  conheciam  os 
logares  onde  se  escondiam  as  suas  cúmplices,  que  impunemente  procuravam 


86 


DA   PROSTITUIÇÃO 


sempre  que  queriam,  e  nem  mesmo  lhes  era  necessário  distinguir  entre  mui- 
tas muiiíeres  as  que  os  satislizessem,  e  até  muitas  vezes  fingiam  enganar-sc 
e  (Jirigiam-se  a  muliíeres  honestas,  que  fugiam  envergonhadas  dos  uitrages  re- 
cebidos. 

Os  libertinos,  ainda  em  começo  da  sua  vida  desregrada,  enganavam-se  ef- 
fecti vãmente  com  as  mulheres  encontradas  sós  e  perseguiam-as  com  galanteios 
licenciosos. 

«Então,  e  por  este  motivo,  diz  Delamare  no  seu  Tratado  da  Policia,  teve 
de  mudar-se  de  procedimento  sobre  este  ponto  disciplinar.  Resolveu-se,  pois,  que 
as  mulheres  de  má  vida  fossem  toleradas,  mas  que  também  fossem  designa- 
das ao  publico.  Marcaram-se-lhes  ruas,  casas  de  habitação,  o  vestuário  que  de- 
veriam usar  e  as  horas  de  recolher. 

Esta  passagem  do  Tratado  da  Policia  é  muito  notável,  pois  fixa  data  á 
instituição  da  policia  dos  costumes,  data  que  não  está  estabelecida  por  testemunha 
alguma  contemporânea,  nem  por  qualquer  ordenação  real,  nem  municipal ;  mas 
o  douto  Delamare  tinha  estudado  os  antigos  monumentos  da  nossa  jurisprudên- 
cia, os  registros  do  parlamento,  os  do  Chalelet,  os  do  prebostado  de  Paris,  e 
não  teria  asseverado  um  facto  d'esta  natureza,  não  tendo  visto  a  prova,  a  qual, 
naturalmente,  foi  deduzida  dos  estatutos  da  corporação  das  mulheres  alegres 
(folies;)  estatutos  que  Sauval  cita  expressamente,  e  que  foram  redigidos  na 
época  em  que  cada  profissão  cuidadosamente  recuperava  os  seus  antigos  privi- 
légios e  os  fazia  registrar  nos  archivos  do  prebcste  de  1'aris. 

Temos  pois  a  ordenação  de  I  í")6  (e  não  de  I2oi,  como  diz  Delamare,) 
restabelecendo  o  exercício  da  prostituição  legal;  mas  esta  ordenação  não  trata, 
de  modo  algum,  das  ruas,  nem  dos  logares  designados  para  habitação  de  mu- 
lheres publicas,  nem  dos  seus  vestuários,  nem  das  suas  horas  de  recolher.  To- 
davia, como  nas  ordenações  anteriores,  estes  differentes  detalhes  de  policia  ti- 
nham com  muita  precaução  sido  regulados,  é  mui  natural  attribuir  a  S.  Luiz 
ou  antes  a  Estevão  Boileau  esta  regulamentação  muito  similhante  á  dos  ofiicios 
de  Paris. 

Estevão  Boileau  não  pertenceu  ao  prebostado  até  1258,  mas  gosava,  já 
muito  antes,  da  estima  do  r-ei,  que  frequentemente  reclamava  os  seus  conse- 
lhos, e  que,  tendo-o  escolhiilo  para  reconstituir  o  prebostado,  ia  algumas  vezes 
sentar-se  a  seu  lado,  quando  Boileau  administrava  justiça  no  Chatclet. 

«Aquelle  prudente  preboste,  diz  Delamare,  foi  quem  reuniu  todos  os 
commercianles  e  artistas  em  corporações  ou  communidades,  sob  o  titulo  de 
C(jnfrarias  ou  grémios,  segundo  o  commeriio  ou  ai'te  de  cada  um  dos  grupos; 
foi  eile  quem  deu  a  estes  commcrciantcs  os  primeiros  estatutos  para  seu  governo 
e  regimen.» 

Não  seria  muito  natural  o  comprehender  as  mulheres  publicas  n'esta  vasta 
organisação  de  otficios,  em  que  o  legislador  quiz  proteger  os  direitos  de  cada 
um,  e  claramente  definir  as  profissões,  segundo  os  seus  usos  tradicionacs? 

Luiz  IX,  consentiu,  pois,  em  modificar  a  sua  ordenação  de  \2"}í  e,  accres- 
cenlando-liie  algumas  palavras  (|ue  não  lhc-<illeraram  muito  o  texto,  dcu-lhe  um 
sentido  totalmente  diverso  :  foi  uma  maneii-a  indirecta  de  tolerar  a  pi^sliluição. 

E'  este  o  artigo  que  annulla  a  ordenação  de  li'.')'i-: 

«.[tem:  que  todas  as  mullieres  publicas  e  ribaldas  communs  sejam  expul- 
sas d(!  todas  as  nossas  boas  cidades  e  villas;  especialnientc  sejam  expulsas  das 
ruas  das  ditas  boas  cidades,  para  fiira  dos  muros  e  para  longe  de  todos  os  lo- 
gares sagrados,  como  egrejas  e  cemiferios,  c  que  (luem  alugue  casa  nas  ditas 
cidades  e  boas  villas  a  mulheres  communs,  ou  as  receba  em  sua  casa,  pagará 
aos  fiscaes  da  lei  o  aluguer  d'um  anno.» 

Em  virtude  d'esla  ordenação  jiiiblicada  em  Paris,  a  prostituição,  legal  que 
havia  desapparecido   por  espaço  de  dois  annos,  recomeçou  regularmente  sob  a 


HISTORIA  87 

prolecção  dos  funccionarios  roacs,  c  todas  as  ordenações  an(criormcM)(o  pii!)li- 
cadas  a  respeito  da  prostiluição,  fimdarani-:-e  na  de  S.  Luiz  que,  se  não  iiavia 
creado,  iiavia  pelo  menos  reformado  a  policia  dos  costumes. 

Os  artigos  que  precedem,  na  ordenação  de  I  2o6,  o  que  acabamos  de  re- 
produzir, não  são  conipletanientc  estranl\os  ao  assumpto,  pois  qualificam  na 
classe  dos  libertinos  aos  jogadores  de  dados  e  aos  blasphcmos,  eijuiparando  as- 
sim o  jogo  e  a  blasphemia  á  prostituição. 

Ò  santo  rei  pr^diibc  jiois  aos  senescaes,  bailios  e  outros  funcrionarios  e 
serriçaeò-  de  qualquer  calhegoria,  o  proferir  qualquer  palavra  ollcnsiva  a  Deus, 
á  Virgem  ou  aos  santos.  «E  acautellem-sc,  accresccnta,  do  jugo  dos  dados, 
dos  bordeis  e  das  tabernas.» 

Em  seguida  probibe,  em  iodo  o  seu  reino,  o  fabrico  dos  dados  e  delermina 
que  qualquer  bomem,  encontrado  a  jogar  os  dados,  seja  tido  como  infaiiic  e  não 
possa  testemunhar  em  juizo. 

Estes  artigos  da  lei  provam  que,  n'aquelle  reinado,  as  tabernas  não  ti- 
nham nicibor  lama  que  os  bordeis,  e  pjr  isío  se  apreciará  a  espécie  de  ho- 
mens e  mulheres,  que  se  reuniam  n'aquelles  antros  de  libertinagem,  onde  não 
se  entrava  sem  desbonra. 

Era  isto  uma  recordação  da  lei  romana,  que  os  jurisconsultos  começavam 
a  estudar,  e  que  tinha  em  má  conta  as  tabernas  onde  se  bebia  e  se  comia  e 
lambem  onde  se  jogava  c  dormia.  Comiudo  pela  mesma  occasião  em  que  uma 
ordenação  do  rei  declarava  infame  áquelle  que  frequentasse  estes  immundos  to- 
gares, o  preboste  de  Paris  publicava  os  estatutos  dos  taberneiros,  nos  quaes,  to- 
davia, unicamente  se  oecupa  da  venda  de  vinho  a  pregão;  mas  como  (jualquer 
podia  ser  taberneiro,  comtanto  que  tivesse  meios  para  pagar  o  imposto  ao  rei 
c  á  cidade,  a  corporação  que  por  isso  se  com|)unba  de  toda  a  classe  de  gente, 
não  podia  aspirar  á  consideração  da  gente  honrada. 

Estes  taberneiros  eram  unicamente  obrigados  a  vender  o  vinho  por  me- 
dida legal,  e  podiam  além  d'isso  fazer  outras  especulações  dcsbonestas,  abrindo 
as  suas  portas  ás  ribaldas  e  ribaldos,  ([ue  passavam  alli  os  dias  jogando  os  dados, 
blasphemando  e  commettendo  as  acções  mais  culposas.  No  curto  espaço  do 
tempo  em  que  a  prostituição  foi  obrigada  a  oceultar-se,  as  tabernas  substituí- 
ram os  bordeis  e  estes  transformavam-se  em  tabernas,  quando  aquelles,  por 
uma  ordenação  do  mesmo  rei  que  os  havia  mandado  fechar  antes  de  comprc- 
hender  a  sua  utilidade,  foram  restabelecidos. 

Delamare  pretende  que,  durante  a  prohibição  da  prostituição  legal,  na 
nossa  lingua  as  mulheres  publicas  começaram  a  ser  qualificadas  com  nomes 
particulares  e  odiosos,  designadores  da  ignominia  do  seu  oílicio.  E'  de  erèr 
que  estes  nomes  tivessem  sido  expressamente  inventados  para  inspirar  mais 
horror  e  desprezo  pelas  mulheres  que  por  ventura  mereciam  taes  qualificativos. 
«Sem  duvida  julgou-se,  diz,  que  fazendo-as  assim  conhecer,  o  pudor  na- 
tural ao  sexo  coadjuvaria  as  leis,  e  que  os  próprios  homens  se  envergonhariam 
de  ser  recebidos  em  logares  e  por  pessoas  tão  infamadas.» 

Estamos  reduzidos  a  conjecturas  a  respeito  da  organisação  das  mulheres 
publicas,  no  reinado  de  Luiz  ix  ;  mas  é  incontestável  que  esta  organisação  exis- 
tiu e  que  se  perpetuou  pelos  reinados  seguintes  sem  ser  radicalmente  modifi- 
cada e  que  são  sempre  as  ordenações  de  S.  Luiz  as  que  os  reis,  seus  successo- 
res,  invocam  para  regulamentar  a  prostituição  legal.  Noutro  capitulo  oceu- 
par-nos-hemos  das  ruas  bordelarias  n'aquella  época.  Não  encontramos  nenhum 
texto  histórico  provando  que  as  mulheres  de  má  vida  fossem  então  marcadas  ou 
com  distinctivo  infamante  como  os  judeus,  ou  com  um  trajo  de  <'òr  caracterís- 
tica. Todavia,  motivos  hi  para  erèr  que  Luiz  ix,  não  tendo  querido  que  os  ju- 
deus se  confundissem  com  os  cbristãos,  tivesse  tomado  as  mesmas  precauções 
com  as  prostitutas  e  as  obrigasse  a  usar  um  distinctivo  análogo. 


88 


DA    PROSTITUIÇÃO 


Em  1269  os  judeus,  cuja  pormanencia  não  era  tnlcrarla  em  França  senão 
em  coniliçôes  tão  honorosas  como  humilhantes,  foram  ohrigados,  soh  pena  de 
prisão  e  de  multa  arbitraria,  a  porem  na  sua  túnica,  adiante  e  atraz,  «uma  ro- 
dclla  de  feltro  ou  de  panno  amarello  com  um  palmo  de  diâmetro  e  quatro  de 
circumferencia»  chamada  em  francez  rnuelle.  e  cm  ialim  rota  ou  roíella.  Mais 
tarde  este  si^Mal  foi  perdendo  gradualmente  a  sua  forma  e  as  suas  dimensões 
e  tornou-sc  triangular,  sendo  então  chamado  billelle ;  quando  foi  supprimido, 
já  não  era  maior  que  um  escudo;  mas  os  judeus  ricos  verteram  grossas  som- 
mas  no  thcsouro  de  Fillippe,  o  Gordo,  para  se  libertarem  desta  marca  infa- 
mante que  os  pobres  conservaram  unicamente  até  ao  tempo  do  rei  João,  em 
que  a  rouelle,  metade  roxa  e  metade  branca  e  do  tamanho  d'um  sello  real,  foi  res- 
tabelecida. Não  será  presumível  que  as  mulheres  publicas  fossem  também  obriga- 
das a  usar  uma  marca  similhante?  Provaremos  que  esta  marca  foi  usada  em 
muitas  províncias  da  França:  com  mais  probabilidade,  todavia,  afTirmarenios 
que,  por  aquelle  tempo,  as  ordenações  sumptuárias  prohibiam  ás  mulheres  dis- 
solutas o  uso  de  certos  tecidos,  adornos  e  jóias. 

A  primeira  ordenação  conhecida,  em  (|ue  se  trata  d'um  regulamento  d'estc 
género,  data  do  anno  1460  e  encontra-se  no  antigo  livro  verde  do  Chatelet, 
que  contém  as  actas  do  prebostado  de  Paris.  Nesta  ordenação,  apenas  sem  du- 
vida a  confirmação  d'outra  mais  antiga,  o  prebostc  de  Paris  prohibe  «ás  mu- 
lheres de  má  vida,  i|ac  fazem  peccado  com  o  seu  corpo,  o  terem  a  audácia  de 
usar  nos  seus  vestidos  bordados,  botões  de  prata,  brancos  ou  dourados,  péro- 
las, c  capas  forradas  de  pelle,  sob  pena  de  confisco.»  F'-lhes  ordenado  que 
abandonem  estes  enfeites  n'um  prazo  de  oito  dias,  passado  o  qual,  a  policia  do 
Chatelet,  enconlrando-as  em  desobediência,  poderá  prendel-as,  exceptuando 
nos  togares  consagrados  ao  serviço  de  Deus,  e  despojal-as  dos  ditos  enfeites, 
exigindo  cinco  soldos  por  cada  desobediência. 

O  prebosle  do  Paris,  Estevão  Boileau,  confidente  das  virtuosas  intenções 
de  S.  Luiz,  sem  duvida  se  encarregou  de  as  executar  e  de  reprimir  todos  os  ex- 
cessos da  prostituição  na  capital  do  reino.  O  seu  Livro  dos  Ojficios,  no  qual 
particularmente  se  occupa  da  constituição  industrial  de  cada  corpo  do  estado, 
não  nos  apresenta,  é  verdade,  passagem  alguma  cm  que  elle  figure  como  refor- 
mador dos  costumes;  mas,  como  os  estatutos  das  corporações  de  artes  e  oflicios 
se  referem  ájuella  época,  embora  não  tivessem  sido  confirmados  pelos  reis 
de  França,  senão  em  datas  muito  posteriores,  em  que  a  poli(!Ía  dos  costumes 
foi  objecto  de  attenção  do  prebostc  cie  Paris  que,  n'esse  tempo,  deu  a  sua  sanc- 
ção  oliícial  a  estas  leis  de  familia,  que  os  reis  mais  tarde  approvaram  e  reco- 
nheceram por  cartas  patentes,  não  é  portanio  imprudente  o  acreditar  (|ue  Este- 
vão Boileau  na  repressão  dos  excessos  das  prostitutas  tivesse  uma  grande  parte. 

Nos  estatutos  dos  barbeiros,  confirmados  em  1371,  probibe-se  aos  mes- 
tres de  olíicio  o  ter  mulheres  de  má  vida  em  sua  casa  e  favorecer  o  commercio 
infame  das  infelizes,  sob  pena  de  serem  privados  do  seu  oHicio,  perdendo  lam- 
bem todos  os  seus  utensílios,  taes  como :  cadeiras,  bacias,  navalhas,  e  mais  coisas 
pertencentes  á  profissão,  o  que  tudo  seria  vendido  em  proveito  do  rei  do  grémio. 

Os  bai'l)cii-os,  ao  mesmo  tempo  banheiros  d'estufa,  nem  sempre  respeita- 
vam a  pnjhibição,  e  os  lucros,  que  lhes  dava  a  prostituição  e  a  alcoviticc,  inci- 
tava-os  a  arrostar  com  as  penas  pecuniárias  que  constantemente  era  preciso 
renovar  por  meio  de  novas  ordenações. 

Nos  estatutos  dos  carniceiros  de  Paris,  confirmados  cm  l:fcSl,  probibe-se 
aos  aprendizes  do  grémio  o  casarem  com  muiiíer  (juc  tivesse  sido  publica  ou 
que  ainda  o  fosse. 

«y/em:  se  algum  casar  com  mulher  communi,  dilTamada,  sem  licença  do 
mestre,  para  senipre  será  privado  da  llrú  Cuniireria,  c  não  poderá  cortar  nem 
fazer  cortar,  nem  por  si  nem  por  outrem,  sem  perder  as  carnes,  ele.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  89 

Nem  todos  os  esforços  de  S.  Luiz  e  de  seus  ministros,  para  impor  á  pros- 
fifuieão  um  salutar  Ireio,  tiveram  o  êxito  que  se  esperava  ;  pois  que  o  piedoso 
ivi,  até  ao  lim  da  sua  vida,  se  arrependeu  de  ler  deixado  existir  o  vieio  sob 
a  protecção  das  leis  e  volveu  ao  seu  primeiro  projecto  de  eliminar  completa- 
mente, nos  seus  eslados,  os  maus  costumes.  Quando  se  dispunha  a  embarcar 
para  a  segunda  cruzada,  em  (|ue  iiioi'reu,  o  horror,  (|ue  tinha  á  impureza,  inspi- 
rou-lhe  o  desejo  d''  executar  esse  grande  projecto  de  relorma. 

A  2ú  de  junho  de  I  2(59  escreveu  clle  d'Aigucs-Mortcs,  a  iMalheus,  ab- 
bade  de  S.  Denis  e  ao  conde  Simão  de  iNcsle  : 

«Também  ordenámos  (jue  se  destruíssem  t'omplelamente  as  iKjlorias  e 
manifestas  prostituições  {noloria  el  mani/esla  proslihula)  que  maculam  com 
a  sua  infâmia  o  nosso  liei  [)ovo  e  que  tantas  vicliinas  arrastam  pai"i  a  perdição; 
ordenámos  que  estes  escândalos  íossem  pei'seguidos  nos  camp(is  e  nas  cidades 
e  desapparecessem  completamente  do  nosso  reino  {lerrani  noislram  pleniut  e.v- 
ptirgari)  todos  os  homens  libertinos  e  todos  os  malfeitores  (llafjitiosis  boiíiiiii- 
bas  ac  malefacloribm  publicix.)» 

Esta  carta  continha  uma  ordem  positiva,  que  a  morte  do  rei  não  pcrmil- 
(iu  que  se  executasse.  As  mulheres  dissolutas  e  .seu  infame  corlcjo  continuaram 
exercendo  o  seu  ollicio,  confiadas  na  lettra  das  ordenações  anteriores  e  não  ti- 
veram consequências  as  intenções  do  virtuoso  Luiz  ix,  que  mais  uma  vez  em 
balde  teria  querido  depurar  completamente  os  coslumes  públicos.  Transformar 
uma  sociedade  rudimentar  n'uma  sociedade  virtuosa,  era  n'aquelle  momento 
impossível. 

Pôde  todavia  acredilar-se  que  legou  a  seus  filhos  o  cuidado  dintcntar 
essa  reforma,  que  elle  não  teve  tempo  de  executar,  pois  que  a  isso  parece  alu- 
dir nos  Documentos  ou  conselhos  que  pela  sua  mão  deixou  escriptos  a  Inlippe, 
seu  filho  mais  velho  e  suecessor. 

«Nunca  faças  coisa  desagradável  a  Deus,  isto  é,  não  commellas  pcccado 
mortal,»  recommendava-lbe  no  seu  testamento.  «Mantém  sempre  os  bons  costu- 
mes no  teu  reino  e  aniquila  os  maus. .  .Foge  das  más  companhias. . .  Ama  o 
próximo  e  odeia  os  maus.  Que  ninguém  ouse,  na  tua  presença,  pronunciar  pala- 
vra que  attraia  ou  provoque  peceado.» 

Filippe,  o  Animoso,  aeceitou  os  conselhos  de  seu  glorioso  pae. 

No  parlamento  da  Ascenção,  em  1272,  fez  este  rei  uma  ordenação  prohibi- 
liva  contra  os  blasfemos,  contra  os  logares  de  prostituição  e  contra  os  jogos  de 
dados  que,  na  sua  reprovação,  S.  Luiz  equiparava.  Nós  apenas  conhecemos  a 
carta  dirigida  a  todos  os  bailios  «para  que  nos  territórios  da  sua  jurisdicção  e 
nas  terras  dos  barões  façam  respeitar  a  citada  ordenação,  prohibindo  os  jura- 
mentos falsos,  os  bordeis  e  os  jogos  de  dados  ;  a  pena  de  dinheiro,  diz  o  rei, 
poderá  ser  trocada  por  pena  corporal,  conforme  a  qualidade  da  pessoa  e  a  gra- 
vidade do  delicto.» 

Essa  pena  da  ordenação,  que  esta  carta  annuncia,  segundo  nossa  opinião 
prova  que  nunca  foi  cumprida  e  que  foi  esquecida  antes  mesmo  de  Filippe  o 
Formoso,  succeder  a  Filippe,  o  Animoso. 

O  completo  extermínio  dos  bordeis  era  coisa  impossível  e  perigosa  e  teve 
de  manter-se  a  tolerância  tacita,  que  até  então  estivera  em  vigor,  unicamente 
oppondo  obstaculosao  seu  ímmoderado  desenvolvimento.  De  suppôr  é,  que,  n'a- 
quelles  tempos,  os  poderes  públicos  se  limitaram  a  submetter  a  prostituição  ás 
regras  severas  de  uma  policia  vigilante,  assegurando  assim  o  respeito  e  conside- 
ração pelas  mulheres  honestas. 

Temos,  todavia,  de  referir  ao  reinado  de  Filippe,  o  Animoso,  os  usos  des- 
criptos  por  Pasquier  no  seu  livro  Ikcherches  de  In,  France,  sem  data  lixa  é 
verdade,  mas  que  devem  ler-se  dado  nas  proximidades  do  reinado  de  S.  Luiz. 
Foi  verosimilmente  n'aquella  época  que  se  proliibiu  ás  mulheres  publicas  o  usa- 

HisToRU  DA  Prostituição  Tojio  ii— Foi.oa  I ;. 


90  HISTORIA 

rem  cintos  dourados  e  aprcsentarem-sc  em  publico  sem  unia  agulheta  no  hom- 
1)1-0.  Esla  agulliela  era  de  difíerentes  cores,  conforme  as  cidades  em  que  a  pros- 
tituta finlia  direito  de  exercício  c  permanência. 

Já  veremos,  ao  faliar  dos  uso.'^  e  costumes  da  prostituição  nas  diíTercntcs 
cidades  da  França,  que  as  mulheres  publicas  de  Tolosa,  cm  vez  d'aguUieta  no 
hombro,  traziam  uma  jarreteira  ou  liga  no  braço,  sendo  sempre  de  differente 
còr  da  do  vestido,  para  que,  distinguindo-se  melhor,  mais  claramente  indicasse 
a  condiçcio  da  pessoa  que  a  trazia. 

«Os  que  succederam  áquelle  sábio  rei  (Luiz  ix,)  diz  Pasquier  no  capitulo 
XXXV  do  seu  livro  viii,  não  consentiram  por  lei  os  bordeis,  mas  toleraram-os 
por  conveniência,  julgando  que  de  dois  males  era  prudente  escolher  o  menor  c 
que  melhor  era  tolerar  mulheres  j)u!)iicas,  do  que  dar  occasião  aos  libertinos  de 
perseguirem  as  mulheres  casadas,  que  devem  fazer  da  castidade  a  sua  gloria. 
Orío  é  que  quizeram  que  as  ditas  más  mulheres,  (|ue  em  logares  públicos  se 
abandonam  a  qualquer,  não  só  fossem  reputadas  infames,  mas  também  trajas- 
sem de  modo  difierentc  d'aquelle  que  vestiam  as  mulheres  honestas;  que 
era  esta  a  razão  porque  antigamente  em  França  não  lhes  era  perraittido  usar 
cintos  dourados,  e  pelo  mesmo  motivo  foi  ordenado  que  usassem  um  distinctivo 
que  as  estremasse  da  gente  honrada,  e  assim  lhes  era  obrigatório  trazerem  uma 
agullieta  no  hombro. 

A  estes  dois  uzos,  pois,  refere  Pasquier  dois  provérbios  que  se  tinham  po- 
pularisado  desde  o  século  xiii,  e  que  não  envelheceram  tanto  que  deixem  de 
empregar-se  com  frequência  no  nosso. 

Dizia-sc  então,  e  ainda  hoje  se  diz,  correr  a  agnlheta,  e  vale  mais  boa 
fama  que  cinto  dourado.  Com  ctteito  sob  o  reinado  de  Filippe,  o  Animoso  e  de 
Filippe,  o  Formoso,  introduziu-se  como  moda  em  França  o  costume  oriental 
dos  cintos  de  couro  dourado,  ou  de  tecido  de  ouro,  quí  as  ordenações  sum- 
ptuárias prohibiam  ás  mulheres  de  condição  humilde  e  por  conseguinte  ás  ri- 
baldas  f|ue,  como  as  meretrizes  de  Rnma,  não  podiam  usar  ouro  ou  prata. 

A  prohibição  d'um  objecto  de  adorno  devia  parecer  tyrannica  ás  mu- 
llicrcs  do  povo  que,  pela  sua  condição  humilde,  se  viam  comparadas  ás  mulhe- 
res publicas,  e  tiveram  de  vingar-se  do  edito,  oppondo  a  sua  boa  fama  ao  luxo 
das  damas  da  corte,  que  nem  sempre  tinham  vida  irreprehcnsivel. 

Houve,  todavia,  frequentes  infi'acções  da  ordenação  sumptuária,  pois  mui- 
tas mulheres  se  enfeitaram  com  cintos  dourados  que  não  tinham  direito  de 
usar.  O  preboste  de  Paris  ameaçava-as  com  multas  c  confiscações,  mas  ellas 
persistiam  no  seu  empenho,  afírontando  as  chufas  a  troco  de  parecerem  damas 
de  cinto  dourado.  .\s  ribaldas  não  eram  as  menos  ousadas  em  infringir  a  pra- 
gmática, cingindo  o  dourado  adorno  com  o  risco  de  prisão  e  açoites. 

>'ão  temos  necessidade  de  refutar  os  eseriptorcs  que  aíTirmam,  sem  fun- 
damento, que  o  cinto  doui'ado  linha  sido  imposto  como  signal  distinctivo  das 
mulheres  publicas,  e  que  as  mulheres  honradas,  que  não  ousavam  confundir-se 
com  cilas  usando  este  adorno,  se  consolavam  da  sua  falta  fazendo  valer  as  vanta- 
gens da  sua  boa  reputação. 

Emquanto  á  níjulheln,  não  figurou  por  muito  tempo  no  hombro  das  ri- 
baldas de  Paris  ainda  que,  Pasquier  tinha  visto  com  os  próprios  olhos,  nos 
fins  do  século  xvi,  este  costume  em  Tolosa  entre  as  pensionistas  do  Chatel- 
Vert.  Correr  a  agulheta,  segundo  Pasquier,  significava  «prostituir  a  mulher  o 
seu  corpp,  entregando-sc  a  qualquer.» 

E'  provável  que  se  comprchendesse,  ao  principio,  coíbo  para  se  designar 
as  mulheres  que  corriam  as  ruas  com  a  agulhefa  no  homi)ro.  Depois  esla  ex- 
pressão pittorcsca  fransfurmou-sc,  ignorando-se  o  facto  (]ue  a  tinha  originado: 
o  povo  corrompcu-a,  sem  o  saber  e  sem  mudar  o  seu  sentido  primitivo,  quando 
se  acostumou  a  dizer  :  Courir  h  gidlledou  (vadiar.) 


>-)' 


DA   i'nusiiTUif:Ãu  -  y| 

iNão  Icnlaromos  mostrar  u  erro  (l'alguiis  philuluf^os  que  írcia  cjucrído 
demonstrar  que  as  ribaldas,  correndo  a  aguliicía,  se  dirigiam  sobretudo  aos  cal- 
ções das  pessoas  que  alcançavam,  cm  atfenção  a  que  estes  calções  eram  atados 
e  sustentados  no  seu  logar  por  um  laço  ou  agulhela.  Estes  philologos  commet- 
teram  um  anachronismo  na  areheologia  dos  calções  e  onganaram-se  pela  con- 
fusão que  fizeram  das  duas  agullias. 

Seja  como  1'òr,  sob  os  reinados  dos  successores  de  S.  Luiz,  a  prostkuição 
por  bem  regulada  que  estivesse,  tinha  estendido  tão  imprudentemente  o  seu  do- 
mínio e  os  costumes  tinham-se  relaxado  tanto,  que  as  ires  noras  de  Filippe, 
oFonnosn,  Margarida,  rainha  de  Navarra,  Joanna,  condessa  de  Poitierse  Branca, 
condessa  de  .Marclse,  foram  acusadas  de  adullerio  ao  mesmo  tempo  e  encerra- 
das por  ordem  do  rei  na  mesma  prisão,  no  Chateau-Gaillard.  O  processo  foi- 
Ihe  instaurado-  á  poria  fechada  e  nada  transpirou,  a  não  ser  as  vergonhosas  li- 
cenciosidades  que  se  lhes  imputavam.  Somente  uma  d'ellas,  Joanna  de  Borgonha, 
mulher  de  Filippe,  conde  de  Poiiiers,  foi  mudada  para  o  caslello  de  Doiírdan, 
onde  seu  marido  lhe  foi  dar  a  liberdade.  Margarida,  ainda  que  menos  culpada 
que  as  irmãs,  morreu  estrangulada  na  prisão  e  Branca  só  sahiu  para  vèr-se  re- 
pudiada e  ser  conduzida  ao  convento  de  Maubiiisson. 

A  voz  publica  attribuia  a  estas  três  irmãs  uma  monstruosa  cumplicidade  de 
libertinagem  e  crimes  :  dizia-se  que  se  haviam  alojadij  de  propósito  no  palácio 
de  Nesle,  situado  fora  de  Paris,  na  margem  do  Sena,  logar  occupado  hoje  pelo 
instituto  de  França,  e  que  aitrahiam  a  esta  bella  residência,  pertencente  a 
Joanna,  condessa  de  Poiiiers,  os  jovens  estudantes  de  que  se  enamoravam,  es- 
colhendo entre  os  (]ue  concorriam  ao  Pré-aux-Clercs. 

Estes  estudantes,  depois  de  satisfazerem  a  lubiicidade  das  Ires  piin- 
cezas,  eram  envenenados  ou  mortos  a  punhaladas  e  lançados  logo  ao  rio  que 
sepultava  as  tristes  victimas  da  torre  de  Nesle. 

«Segundo  esta  tradição  errónea,  diz  Roberto  Gaguin  no  seu  Coiapendiain 
da  historia  de  França,  a  rainha  Joanna  de  Navarra  iinlia-se  entregado  a  mui- 
tos estudantes  (aliquot  scolnslicorum  concubitu  usam)  e  para  occuítar  os  seus 
ci'imes,  lançava-os  pela  janellado  seu  quarto  ao  rio,  depois  de  os  mandar  ma- 
tar. Um  só  d'estes  estudantes,  João  Buridan,  pôde  escapar  casualmente  a  este 
'perigo  pelo  que  publicou  este  enigma:  Reginam  inter jictre  nolite:  timere  bo- 
nuin  est.» 

Este  enigma  celebre,  que  pôde  comprehender-se  e  explicar-se  de  mui- 
tas formas,  é  mui  pouco  digno  do  notável  João  Buridan,  a  quem  a  universi- 
de  Paris  contou  honrosamente  entre  os  seus  professores  de  philosophia  no  sé- 
culo decimo  quarto.  Buridan  que  foi  reitor  da  Universidade  em  1320,  (Vid. 
Bibl.  de  Valério  André,  pag.  i7l)  não  poderia  ter  sido  simples  estudante,  seis 
ou  sete  annos  antes. 

Emquanto  ao  enigma  de  que  seria  o  auctor,  cremos  podel-o  interpretar, 
dando-lhe  o  verdadeiro  sentido,  escrevendo-o  d'esta  forma:  Rejjinam  interfodere 
nolite;  timere  boniun  est.  Ponhamos  em  logar  de  interfícere,  que  nada  quer  di- 
zer n'este  caso,  interfodere,  interjerire,  interferre,  ou  qualquer  outro  verbo  de 
significação  erótica  e  traduziremos  então  com  a  possível  honestidade :  «Não  cor- 
tejeis a  rainha  que  é  perigosa  esta  honra.» 

A  tradição  relativa  á  lorre  de  Nesle,  que  existiu  até  ao  fim  do  século  de- 
cimo sétimo,  estava  tão  popularisada  em  Paris,  que  Brantome  faz  d'ella  men- 
ção nas  Dames  galantes. 

«Esta  rainha,  diz,  estava  no  palácio  de  Nesle,  em  Paris,  espreitando  os 
transeuntes,  e  mandava-os  chamar,  e  approximarem-se  d'ella,  aquelles  que  mais 
lhe  agradavam,  de  qualquer  classe  que  fossem;  c  depois  de  obter  d'elles  o  que 
desejava,  mandava-os  precipitar  do  alto  da  torre,  á  agua,  afogando-os.  Não 
quero  dizer  que  isto  seja  verdadeiro,  mas  o  vulgo,  pelo  menos  a  maioria  de 


'.)2  _  .       HISTORIA 

Paris,  aírirnia-o:  e  não  !ia  nenluiin,  que  moslramlo-lhe  a  turre  c  pcrguiitan- 
ilo-liro,  não  o  iliga  cxponfancamente.» 

.Xnh's  lio  Brantiiini',  Villon  tinha  lembrarlo  esta  trágica  liistoria,  dizendo 
na  sua  lialuda  ilas  dumas: 

Sfinhlabement  ou  eat  la  reine 
Qui  iiimmanda  que  Buridan 
Fut  jplé  en  unsar  au  Seine. 

(S^mcll)  inlinioiifo  nnde  esía  a  rainha,  que  mandou  lançar  ao  Sena  Bu- 
ridan, ilciilrn  (l'iiMi  saeo.) 

Mas  ,1  lenda  iiislorica  appareeia  singularmente  attenuada,  e  em  Ingar 
de  Ires  princezas  libertinas,  disputando  e  iepartindo  entre  si  as  caricias  dos 
bellos  e  robustos  estudantes,  que  se  renovavam  todas  as  noites,  nas  narrações 
do  vulgo  ap|iarceia  apenas  uma  rainha  namorada  de  Ruridan.  Violemos  ainda 
que  este  Buridan  tinha  [lodido  fazei'  alliisão  á  sua  aventura  da  torre  de  Nesle, 
inventando  uma  allegoria  que  se  tornou  proverbial  e  que  se  chamava,  o  burro 
de  Buridan  :  tinha  apresentado  um  burro  faminto  e  morrendo  de  fome,  entre 
dois  cestos  de  aveia,  sem  se  decidir  por  um  ou  por  outro.  Este  burro,  não  será 
o  próprio  Buridan,  entre  duas  ou  trez  princezas,  igualmente  bellas,  igualmente 
desejosas  de  prazer?  Além  d'isso,  se  as  mulheres  e  as  princezas  se  mostravam 
tão  sollicitas  e  afadigadas  em  correr  atraz  dos  homens,  era  talvez,  porque  os 
homens  pouco  caso  faziam  das  mulheres.  Uma  terrível  libertinagem  se  linha 
iníiltiado  em  todas  as  clas.ses  da  sociedade  desde  as  cruzadas,  e  o  vicio  con- 
tra naturam,  que  a  expedição  dos  francezes  :i  Palestina  tinha  trazido  e  accli- 
malado  em  França,  ameaçava  ainda,  apezar  da  cavallaria,  infectar  os  costumes 
e  corromper  a  população  inteira. 

Citamos  n'outro  logar  uma  passagem  da  llistoire  nccUlenlale,  de  Santiago 
de  VitiT,  que  íiiz  um  espantoso  quadro  da  perversão  dos  seus  contemporâneos. 
Outro  poeta  franccz  da  mesma  época,  (lauticr  de  Coincy,  ainda  que  prior  da 
abbailia  de  S.  Mcdardo  de  Soissons,  descreve  a  vida  do  claustro,  com  os  ne- 
gros traços  dos  seus  costumes  vers^inhosns.  no  spu  roíinoi- ■ 'l- '*■>•'••'  f.^i-n-iw. 


ii.:  f  íe.jh.:.\ 
-.    i  CO  II  in  i  •<ein''le, 
'juaidi  iiu'  cL  u '•  joijnenC  eiiseiiiliii\ 
.)/(//»•  Iiii-  et  liic  clit).-ie  e.-il  perdue 
AVíiire  en  ext  to.-tl  esperdue. . . 

(A  grammalica  hic  a  liic  ajunla,  mas  a  natureza  maldiz  simillianle  ajun 
lamento.  A  morte  perpetua  engendra  ai|uelle  (|ue  ama  o  género  masculino  mais 
que  o  feminino,  c  Deus  o  apaga  do  seu  livro    A  natureza  parcce-me  que  sorri 
quando  hic  c  lioc  se  juntam  e  indigna-se  ao  ver  juntos  kic  e  liic.) 

Este  detestável  vicio  tinha-.se  generalisado  tanto,  que  a  prostituição  le- 
gal merecia  ser  implantada  como  um  remédio,  ou  ao  menos  como  um  pallia- 
tivo  de  similhante  torpeza.  A  própria  existência  da  sociedade,  parecia  ameaçada, 
cjuando  Eilip|)c,  o  lorninso,  que  não  carecia  de  resolução  e  de  energia,  se  pro- 
poz  atalhar  os  progressos  da  sodomia,  enchendo  de  terror  os  que  davam  o  exein- 
])lo  d'csta  criminosa  aberração  dos  sentidos  :  tal  foi  a  causa  principal  do  processo 
dos  'i'cinplaiios.  A  detiila  leitura  das  peças  authenticas  creste  pr.icess),  |)rova- 
nos  que  Filippc,  o  fonnono,  não  perseguiu  iresta  ordem  religiosa  e  militar  se 


DA   PROSTITUIÇÃO  93 

não  o  sacrilégio  e  a  libertinagem,  levados  ao  ultimo  grau  de  audácia  e  escân- 
dalo. Seja  qtial  (òr  a  opinião  que  se  adopte  sobi'e  a  regra  dos  Templários  e  a 
innoceneia  primitiva  da  ordem  (diz  o  illustre  historiador  Michelet,  admirado 
dos  importantes  testemunhos  quíí  pela  primeira  vez  publicava,  e  (]ne  todos  con- 
lirinam  o  nosso  parecer)  não  é  dilliril  formar  juizo  acerca  das  desordens  dos 
seus  últimos  tempos,  desordens  iinalogas  ás  das  ordens  religiosas.» 

.\  publicação  d'estes  documentos  originaes  ()rova  de  forma  irrecusável, 
que  a  ordem  do  Templo  estava  infe.stida  totalmente  pela  depravação  mais  exe- 
cravel.  Filippe,  o  Funnoso,  de  accordo  com  o  papa  Bonifácio  viu,  teve  cora- 
gem de  atacar  o  mal  no  seu  f()co,  e  quiz  ani(]uilal-o  sob  as  minas  da  ordem 
do  Templo  (|ue  o  linlia  propagado,  acob>rlando-o  sob  o  seu  manto  branco. 

Não  .sab-mos  qual  é  a  clironica,  que  imputa  à  vingança  de  uma  mulher 
a  accusação  infamante,  que  se  levantou  contra  os  Templários  etn  1307  e  que 
logo  accendeu  as  suas  fogueií^as  por  t(jda  a  Europa.  O  interntgatorio  que  o  Grão- 
.Mestre  c  duzentos  e  trinta  e  um  cavalleiros  ou  irmãos  soffreram  em  Paris  na 
presença  dos  eommissarios  pontifícios  «foi  feito  lentamente,  diz  .Michelet,  e 
com  muito  tacto  e  doçura,»  por  altos  dignatarios  ecclesiasticos,  e  apesar  das 
negativas  systematieas  dos  accusados,  provou-se  que  a  maior  parte  das  accusa- 
çõcs  relativas  aos  costumes  deshonestos  da  ordem,  eram  fundadas  e  justas.  A 
própria  natureza  do  castigo  applicado  aos  condemnados  prova  suflicientemente  a 
espécie  de  crimes  que  a  voz  publica  lhes  altribuia,  muito  tempo  antes  que  uma 
averiguação  escrupulosa  tivesse  evidenciado  a  grande  ignominia. 

Os  templários  estavam  universalmente  desacreditados:  tinliam-se  tornado 
proverbiaes  os  seus  principaes  vicios,  o  seu  orgulho,  a  sua  avareza,  a  sua  am- 
bição, a  sua  embriaguez  e  a  sua  maldade;  ainda  que  se  dizia  vulgarmente,  be- 
ber ou  jurar,  ou  diverlir-se  comn  um  templário:  ainda  que  os  poetas  satyricos 
se  compraziam  em  enumerar  os  vicios  d'aquclles  monges  soldados,  não  se  co- 
nheciam ainda  as  monstruosas  infâmias  que  se  praticavam  no  seio  da  ordem 
do  Templo,  que  chegou  a  ser  uma  seita  odiosa,  dedicando-se  cá  prostituição  mais 
ignóbil. 

Em  virtude  das  deposições  das  primeiras  testemunhas  que  se  apresenta- 
ram esponlancíimeiíle  a  accusar  os  Templários,  fornuil.»u-se  uma  serie  de  per- 
guntas, prl;>s  (piacs  foraoi  interrogados  separadamente  todos  os  accusados, 
:  -  II-  i-.'-pi>las.  mais  m  mcnis  cv.isiviís,  se  pôde  deduzir  com  toda  a 
nu  ecrniiina  di  i-cccpçà  i  liis  irin.l  is.  o  qui'  era  recebido  e  o  que 
.1.  .;..,  ti  ,j .  >  ir,i-s  •  in  ilu  iin  iile  na  b  icra,  no  umbigo  oi  n  i  veiilri",  no  anus 
ou  n;i  évliTiui  lade  da  espinha  dorsal  e  ás  vezes  no  membro  viril,  {aliquaiido 
in  vinja  cirili;)  que  o  neophilo  era  ordinai'iainenle  o  siibmettido  unicamente  a 
esta  cerimonia  de  beijos  impuros,  depois  de  renegar  Jesus  (".hristo  e  cuspir  na 
cruz;  que  o  seu  padrinho  lhe  prohibia  ter  ciuninercio  carnal  com  as  mullieres, 
mas  auctorisava-o  a  entregar-se  com  os  seus  companheiros  aos  mais  horríveis 
excessos  de  obscenidade. 

Um  grande  numero  de  Templários,  fieis  aos  seus  juramentos  recíprocos, 
fizeram  um  orgulhoso  protesto,  contra  o  que  chamavam  ridículas  calumnias; 
muitos,  intimidados  ou  enganados,  fizeram  confissões  detalhadas  e  os  restantes 
contentaram-se  em  declarar  que  não  tinham  tomado  parte  em  acto  algum  re- 
prehensivel,  mas  contavam  as  obscenidades  da  recepção,  segundo  os  estatutos 
da  ordem.  De  resto,  estes  estatutos  não  foram  explicados  por  nenhum  d'elles, 
nem  sequer  para  justificar  as  suas  extranhas  e  mysteriosas  disposições. 

Huguet  de  Baris  contou  que,  durante  a  cerimonia  da  sua  recepção,  quando 
se  achou  apenas  em  camisa,  o  irmão  encarregado  de  o  receber,  ajudou-oa  ves- 
tir-se  com  a  túnica  e  manto  da  ordem,  e  levantando-lh'os  por  deante  e  por  de 
traz  {frater  /'.  levaoit  ipsí  te.-ili  nexles  ante  et  retro)  beijou-o  precipitadamente 
na  bocca,  no  umbigo  e  na  parte  posterior. 


y4  HISTORIA 

Mathieu  do  Tilley  diz,  pelo  contrario,  que  o  irmão  que  o  íiniia  recebi- 
do, depois  de  o  ter  feito  renegar  Jesus  Cliristo  e  cuspir  na  cruz,  lhe  ordenou 
que  o  beijasse  na  carne  nua,  e  descobi'iu  as  nádegas,  onde  o  iieopiíito  applicou  os 
lábios  (prcecepit  quod  oscularetur  enin  in  carne  nuda,  et  discoperuit  ae  circa 
fémur  el  ipse  juiL  osculalus  eum  in  anca  circa  illuin.)  Depois  o  irmão  introdu- 
ctor  acrescentou,  levantando  a  túnica:  E  aqui  na  frente  ?  o  que  fez  suppòr  ao 
neophito  que  devia  prestar-se  a  uma  odiosa  pratica  (quod  deberet  eum  oscu- 
lari  ante  circa  femoralia;)  mas  não  foi  por  deaníe  a  cerimonia. 

João  de  Saint-Just,  intimado  a  beijar  no  anus  o  irmão  que  o  recebia, 
(prcecepit  ei  quod  escularetur  eum  in  ano)  respondeu  com  indignayão,  que  nunca 
se  submctteria  a  similhante  vileza. 

Muitos  templários  confessaram  que  depois  da  sua  recepção  tinham  sido 
convidados  e  auctorisados  a  prostituir-se  com  seus  irmãos  de  religião ;  mas  to- 
dos sustentaram  que  não  tiniiam  feito  uso  de  tal  auctorisação,  acrescentando  que 
julgavam  tão  rara  a  sodomia  na  ordem  do  Templo  como  nas  outras  ordens  reli- 
giosas. ; 

Eis  aqui  a  deposição  de  Saint-Just: 

«Deinde  dixit  ei  quod  poterat  carnaliter  commisceri  eum  fratribus  ordi- 
nis  et  pati  quod  ip.ri  commiscerentur  cuni  eo ;  hoc  tamen  non  jecit  nec  fuit  re- 
qnisitus,  nec  scit,  nec  audivit  quod  fratres  ordinis  commiterent  pecatuin  prw- 
dictum.» 

O  depoimento  de  Rodoipho  de  Taverne  é  todavia  mais  explicito,  pois  qije, 
exigindo-lho  o  voto  de  castidade  com  respeito  ás  mulheres,  o  aconselharam  a 
extinguir  por  outra  forma  o  fogo  natural  dos  seus  alTectos  sensuaes. 

«Deinde  dixi  ei  quod,  ex  quo  cocerat  castitatem,  debebat  abstinere  á  mu- 
lieribus,  ne  ordo  infamareíur;  veruntamen,  secundum  dieta  puncta,  si  habc- 
ret  calorem  naiuralem,  poterat  refritjerare,  et  carnaliter  commisceri  eum  fra- 
tribus ordinis,  et  ipsi  eum  eo ;  hoc  tamen  non  fecit,  nec  credit  quod  in  ordine 
fieret.» 

O  depoimento  de  Gerard  de  Causse  não  foi  menos  circumstanciado,  ainda 
que  ofTerecia  uma  contradicção  evidente.  Assim,  segundo  elle,  todo  o  cavalieiro 
do  Templo  c[ue  se  tornava  culpado  de  sodomia  {si  essent  conmcti  de  crimine  so- 
domitico)  era  condemnado  a  prisão  perpetua  e  os  irmãos,  temendo  por  esta  causa 
a  tentação  do  demónio,  mantinham  a  luz  accesa  toda  a  noite  nos  seus  dormi- 
tórios (et  quod  tenerent  lúmen  de  nocte  in  loco  in  quo  jacemií,  ne  hostis  ini- 
micas  darei  eis  occasionem  delinquendi.)  Todavia,  quando  (jei^ardo  de  Causse 
foi  recebido  na  ordem,  um  dos  irmãos  assessores  disse-lhe,  que  se  não  podesse 
resistir  aos  Ímpetos  dos  desejos  carnaes,  procederia  melhor,  para  honra  da  ordem, 
se  peccando  com  os  seus  companheiros  do  que  approximaudo-se  das  mulheres. 
«Dixit  eis  quod  si  haberent  calorem  et  motus  carnales,  polerant  ad  incicem 
carnaliter  commisceri,  si  volebanl,  quia  melius  erant  quod  hoc  facerent  inter 
se,  ne  ordo  vituperaretur,  quam  si  accederent  ad  mulieres.» 

Este  templário  protestou,  como  os  outros,  que  não  tinha  visto  nem  sa- 
bido nunca  que  este  infame  preceito  fosse  seguido  por  algum  de  seus  compa- 
nheiros. 

As  consequências  d'este  processo  foram  terríveis:  um  gi\inde  numero  de 
templários  pereceram  nos  supplicios.  A  Ordem  do  Templo  abolida  e  anatiiemati- 
sada,  não  desappareceu  completaroente  e  perpetuou-se  a  occultas  com  os  mesmos 
costumes,  se  nos  é  licito  acreditar  algumas  testemunhas  que  não  teem  todo  o 
valor  d'uma  prova  histórica. 

Mas  depois  de  ter  lido  c  comparado  as  peças  d'este  processo  memorável, 
que  revela  uma  seita  de  impios  e  sochjinilas,  cobertos  com  o  habito  religioso, 
entregando-se  ante  os  altares  a  execráveis  desvarios,  vcmo-nos  obrigados  a 
procurar  as  causas  da  corrupção  d'uma  ordem,  que  se  tinha  feito  respeitar  por 


DA    PROSTITUIÇÃO  95 

muito  tempo  pelos  seus  costumes  regulares  e  pelas  suas  virturles.  Estas  causas 
cncontram-sc  na  prolongada  permanência  dos  Templários  no  Oriente,  onde  o 
vicio  contra  a  natureza  era  qiiasi  endémico  e  onde  o  Icmor  da  lepra  e  outras 
affecções  cutâneas  ou  orgânicas  Scão  inhcrcntes  ao  commercio  sensual  com  as 
mulheres. 

Os  Templários,  pois,  para  evitarem  este  contagio,  mancharam  o  seu  corpo 
c  alma,  acceitando  a  mais  vergonhosa  de  Iodas  as  prostituições,  que,  como  já 
dissemos  cm  face  de  inconlcsíaveis  provas,  e  do  testemunhos  autiienticos,  exer- 
ciam sempre,  emhora  a  occultas,  praticando  os  mais  execráveis  excessos  entre 
si,  no  insaciável  desvairamenlo  d'uina  desenfreada  sodomia. 


CAPITULO  X 


SLWIMARIU 


Ijò  luijaiei  da  (iKi^tituK-Àu  uii]  l'aiij.— ijuadiu  lia  piustiluiviu  liaiisieiise  na  idadu  luedia.-  A  rua  úl'  haliièic. 
—  A  ma  de  Fuon.— A  rua  de  C^udeles.— O  beco  de  Saiut  Sevriu.— A  rua  do  Hospital.— A  lua  de  í^aiut  Sipboiiei].— A 
rua  de  Cliavaterie.  —  A  rua  de  Sainl  Hiluire.— O  larjro  Buiniau — X  rua  de  Neyer.—  A  jua  de  Iiuu-fu|ts.— A  ruailt> 
'Kcole.—  A  rua  de  Cocal.rix.— A  me  de  Cliaroui.— A  rua  de  Sainte-llruis.— A  rua  Gervese-Laureus.— A  rua  de  Mai- 
mousct.— A  rua  Clievez.— O  Valle  damor.— A  rua  Saiut  Uenis  de  la  Gliatre.— A  rua  de  Lavaodiõres.— \  prai;a  des 
1'eurceaui.— A  rua  [totliiív.  -A  ruíi  d  Arbre-i^cc— A  rua  de  Mailre  lluiv.— A  rua  de  tíiaulii.iurc,utt. 


l;Mu^  juiro  poucos  dados  subi'C  ;i  historia  dos  locares  mui  afama- 
dos de  Caris,  o  apenas  podemos  eslabelecer  d  uma  forma  positiva 
a  sua  siluaeào  local  cm  certas  épocas  anteriores  ao  século  xvt. 
Todavia,  desde  o  século  decimo  terceiro  os  eiiconlra.mos  indi- 
cados nas  actas  (in.slruinfiita)  puMicas  d^i  prebostado,  nos  arclii- 
vos  das  treguezias  e  conventos,  nos  livros  e  nas  contas  das  dille- 
renles  juridieçõcs  c  ainda  nas  antigas  poesias.  Podemos,  pois,  eom  a  ajuda  des- 
las  auctoi'idades,  descrever,  para  assim  dizer,  a  (opographia  da  i.irostiluição  pa- 
risiense na  idade  média. 

Por  fatalidade,  ao  fazermos  este  mappa  das  ruas  de  má  fama  da  ca|)ilal, 
\('mo-nos  na  impossibilidade  de  dar  delallies  particulares,  pittorescos  e  cu- 
riosos, que  viriam  muito  a  propósito  para  distraliir  o  leitor,  no  meio  d'uma  dis- 
serta(,-ão  arclicologica,  monótona  e  árida.  Fallam-nos  absolutamente  esses  deta- 
lhes e  particularidades,  e  se  conhecemos  as  ruas  (jue  então  tinham  o  triste  des- 
liiio  (|ue  muitas  teem  conservado  até  nossos  dias,  não  sabemos  qual  era  o  as- 
pecto exterior  (festes  logares  de  libertinagem,  i[uaes  os  seus  nomes  e  signaes, 
pelo  menos  na  fnaior  parte,  (|ual  o  systema  ordinário  da  sua  impudica  organi- 
sacào,  qual,  emlim,  a  sua  forma  inferior.  Todo  este  capitulo  pertence  ao  don)i- 
nio  da  imaginação,  (jue  procurará  conitiido  em  Habelais  e  ainda  em  Regnicr 
as  cores  apropriadas  á  |tiiitura  dos  bordeis  de  nossos  antepassados. 

Mas  ainda  que  não  lenhamos  senau  noi;õcs  muito  vagas  e  imperfeitas  so- 
l.ire  os  myslerios  de  similhante  assumpto,  julgamos  útil  e  interessante  fazer  o 
inventario  arelieologico  d'estes  albergues;  que  veremos  irem-se  afastando  gra- 
dualmente do  centro  da  cidade  e  que  parecem  ter  sido  feudos  de  Vénus  e  de 
seu  tilho  (,u|iido,  a  quem  a  idade  média  franceza  não  envolvia  de  reminiscên- 
cias mythologicas. 

Naquelles  tempos  de  privilégios  e  tradições,  cada  grémio  possuía  conm 
propriedade  pi'opria  certos  (luarteirões  e  ruas  ás  (|uaes  dava  o  seu  nome  :  alli  cs- 
iMvam  os  seus  albergues,  alli  sónientc  concentravam  a  sua  induslria  <•  lommci- 
cio.  A  prostituição  que  se  regia  como  IjmIos  onlnK  ollicios  on  indosdi.is,  ti;'io  se 


UlSTMBlA  D.K   PriiSTITUIÇ.Io. 


T11.MU  a— l'liLH\    1.1 


98  HISTORIA 

liiilia  iMKlido  limilar  um  único  bairro,  nem  ofcupar  unicamente  algumas  ruas. 
contíguas,  porque  estava  no  seu  interesse  e  ainda  na  sua  essência  dividir  as 
suas  forças  e  ieval-as  a  todos  os  bairros  d'uma  vez,  para  por  oslc  modo  estar 
em  posição  de  estender  as  suas  redes  por  toda  a  parte  c  fazer,  por  conseguinte, 
maior  nuuiei-o  de  victimas. 

,V  politica  que  a  regulava  oppunba-se  seuiprc  a  esta  diífusão  de  liberti- 
nagem sobre  lodos  os  pontos  da  cidade  e  trabalhou  constantemente  para  res- 
tringir o  impuro  domínio  que  concedia  ás  mullieres  communs. 

Tal  c  a  lucta  que  nos  apresenta,  por  espaço  de  muitos  séculos,  a  prosti- 
(uição  que  allernalivamenle  faz  frente  á  auclorídaOc  do  bispo  de  l'aris,  á  do 
prcbosle,  á  do  parlamento  e  ainda  á  do  rei.  As  suas  usui-pações.  obslinanies,  au- 
dácias, resísiiam  ás  ordenações,  aos  decretos  e  ainda  aos  subordinados  da  auclo- 
ridade ;  somente  á  vi\a  força  cedia  o  terreno  (|ue  liie  agradava  e  que  a  tradição 
lhe  attribuia  :  a  ella  volta  sem  cessar  depois  do  ter  sido  expulsa  ;  não  é  escru- 
pulosa tambcni  na  escolha  dos  logares  em  que  se  fixa,  pois  faz  Justiça  a  si  mesma 
preferindo  as  ruas  mais  sombrias,  mais  estreitas,  mais  sujas,  mais  infectas,  cos- 
tume que  coiiser\a  como  se  não  ousasse  sahir  da  sua  guarida,  cmno  se  o  ar  (|ue 
respiía  a  gente  honrada  fora  ponco  saudável  jiara  (dia.  Do  mesmo  modo  que  os 
judeus,  (jue  não  tinham  direito  de  pór  pé  fora  da  judiaria  e  que  se  viam  encerra- 
dos toda  a  noite  como  os  lepro.sos  nos  seus  lazaretos,  as  ribaldas  e  seu  infame 
séquito  não  podiam  ultrapassar  os  limites  da  sua  residência,  sob  pena  de  se  e\- 
jiorem  ao  açoite,  á  prisão  ou  á  multa. 

Mas  logo  que  a  sua  existência  legal  foi  regulada  pelas  pragmáticas  de  S. 
Luiz,  não  tivera  necessidade  de  oceultar-sc  para  exercer  a  sua  proíissão  impu- 
dica, cora  a  condição  de  se  conformar  com  as  prescri()(;òes  e  estatutos  da  ribal- 
dcria. 

O  niais  antigo  documento,  cm  (|uc  encontramos  uma  nomenclatura  dos 
logares  mal  afamados  de  l'ai'is,  é  um  poema  ou  monologo  de  versos  compostos 
no  século  xiu  por  Guillot,  que  só  nos  é  conhecido  pelo  seu  Dit  áes  Unes  de  Pa- 
ris:. Este  poema  f(ji  publicado  pela  primeira  vez  em  1 7o4  pelo  abbade  I,c- 
beuf,  (|ue  linha  descoberto  em  Dijon  o  manuseriplo  e  o  depositou  na  biblio- 
ílicca  do  abbade  Fleurv,  cónego  de  yolre-Dame. 

Desde  então  fem-se  reimprimido  nniitas  vezes  a  (d)ra  de  (luilloí  c  serviu 
especialmente  para  fixar  a  topographia  parisiense  no  século  xni,  pois  que  pódc 
dalar-se  de  1270  este  catalogo  rimado  em  que  o  auetor  falia  de  Úom  Sequence 
chantre  de  Saint  Merry,  como  de  um  contemporâneo,  e  este  personagem  vivia 
ainda  em  I  283. 

Os  críticos  que  citaram  o  J)i/  iks  líue.s,  a  (jue  (luillot  deu  a  forma  dum 
ilínerario,  que  C(mieçava  na  rua  de  Huclietle.  no  quarteirão  do  Iniversidade,  não 
irpararam  que  o  poeta,  ou  antes  o  rimador,  accumulando  nomes  de  ruas  e  becos 
que  procurou  rimar  com  a  maior  indiflerença  do  mundo,  não  le\e,  ao  (]ue  pa- 
rece, outra  preoccupação  senão  in\estigar  e  indicai-  os  logares  consagrados  á  li- 
bertinagem. .>'ãn  ipu^rcmos  dizer  que  eslc  bom  Guiilol,  que  viu  j)assar  talvez  o 
seu  nome  á  posleridade  com  o  alcunha  de  Snnhador,  se  occupasse  da  investi- 
gação dum  objecto  vergonhoso  :  comludo  é  notável  que  n'estas  trezentas  rimas 
nomenclativas  das  principaes  digressões  do  poeta  sejam  relativas  á  prostituição  : 
sobre  este  |)onto  ao  menos  se  afasia  da  aridez  do  seu  catalogo  libertino  e  acres- 
centa, com  certa  complacência,  algumas  imagens  que  não  são  de  melhor  gosto. 
Todas  as  vezes  que  (luillot  encontra  no  seu  caminho  um  daquelles  an- 
tros, que  a  policia  urbana  rodeava  de  mysteriosa  tolerância,  queria  parar  alli 
ainda  que  só  fosse  para  marcar  o  logar  e  fazer  notar  a  sua  existência.  Como 
designa  mais  de  vinte  ruas  suspeitas  nas  Ires  grandes  divi.sõcs  de  Paris  coni- 
prchendidas  sob  as  denominações  de  Inirer-sidode.  I.n  Cile  e  os  arrabaldes,  de- 
\e-se  suppór  (|ui'  foi  chamado  linillot.  o  sonhador,  j)elas  mulheres  bordaleiras. 


DA    iMtnSTTTUIÇÃO  00 

que  mal   llie  ((ucriain  por  ler  aponlailo  bordeis  tjiie  só  exisilain  iia  sua  imagi- 
nação. 

O  primeiro  que  aponta  a  partir  do  Petit-Pont,  subindo  ao  bairro  ou 
distrieto  da  Universidade,  existia  na  rua  de  Platricre,  que  parece  ser  a  que 
depois  SC  chamou  rua  Botloir  : 

L(t'main  une  damf  Imidière 

(Jiii  maint  clinpH  ii  fnit  rir  (fuille. 

O  abbade  Lebeuf,  a  quem  sem  duvida  o  pudor  aeoiíarda,  evpiiea  a  palavra 
loudiére  por  cliapelleira,  mas  na  antiga  liuf^ua  IVanecza  lomlirre,  sifínificando 
cobertor  em  sentido  restricto,  equivalia  em  sentido  figurado  a  prostituta.  Esta /o/í- 
diére  que  Guillot  não  qualificou  assim  ao  acaso,  podia  muito  bem  no  tempo 
livre  que  lhe  deixava  a  sua  vil  profissão  de  ribalda,  occupar-se  em  fazer  cho- 
pe.ns  de  flniy.i-  ou  de  rerditra  que  os  confrades  das  corporações  traziam  nas  fes- 
tas da  padroeira,  nas  procissões  e  n'outras  occasiôes  soiemnes.  .\ão  estamos  longe 
de  acreditar  que  estes  chapeis  ou  chapéus,  cujo  fabrico  era  uma  industria 
muito  importante  em  Paris,  figuravam  na  cabeça  das  noivas,  das  esposas  e  dos 
namorados  nas  testas  de  família. 

Ciuillol  não  se  delem  muito  tempo  na  rua  de  Plntrinv,  (|uat'S(|uer  (|ue 
fossem  os  encantos  da  dama,  e  continua  o  seu  caminho  pela  rua  l'aon,  que  ellc 
rhnma   Puon. 

Je  descendi  loul  xellejiient 
Droil  u  la  rue  des  Cordeles: 
■  -  Dante  ia:  le  descord  d'elles 

Xi'  eoudroie  ucoir  niuítemenl. 

Esta  rua  dex  Cordeles  c  agora  a  de  Cordeliers,  que  deve  o  seu  nome  ao 
convento  dos  lírands-forileliers  que  a  revolução  destruiu. 

E'  provável  que  (luillul  transformasse  Cordeliers  em  CordeUs  pelas  neces- 
sidades da  rima  e  também  por  allusão  aos  assumptos  de  coração  que  n'esta  nui 
se  tratavam.  As  damas,  que  aqui  viviam,  não  eram  muito  laceis  ou  amáveis, 
pois  o  poeta  não  receia  cousa  alguma  tanto  como  o  ter  com  dias  disputas  {des- 
cord.) isto  prova  (]ue  em  toilo  o  tempo  as  mulheres  publicas  foram  sempre  mui- 
tas promplas  em  armar  rixas  e  muito  arrebatadas  nos  seus  Ímpetos  de  cólera. 

Para  encontrar  outras  mulhes  da  mesma  espécie,  Guillot  vè-se  obrigado 
a  ir  até  á  rua  de  Prélres-Saint-Sexrin,  que  elle  chama  o  beco  de  Saint-Sevriu 
onde. 

Mainte  meschinete, 

S'y  louent  souvent  et  menu. 

Es  font  batre  le  trmi  velu 

Des  fesseriaux,  que  nus  ne  die. 

Nãointentamostirardesoboveu  da  antiga  linguagem  o  escandaloso  officio 
das  mesquinetes,  a  quem  Ciuillot  põe  em  seena  com  muita  indulgência;  mas  se- 
guil-o-hemos  á  rua  de  rOspital,  que  se  chamou  depois  de  Saint-Jean  de  Le- 
iran,  em  memoria  dos  hospitaleiros  de  .feru.salem  que  tinham  alli  uma  casa. 
Guillot  cae  no  meio  d'uma  desordem  de  mulheres,  que  .se  injuriavam  com  pala- 
vras e  obras,  ao  ar  livre,  apesar  da  visinhança  dos  padres  hospiíalciros  :  o  texto 
está  aqui  menos  obscuro  que  corrompido  : 

fne  ffintne  i  d'espiUil 
Lne  auire  femme  folcnieni 
De  sa  parole  nionlt  cilnienl 


1 00  HISTORIA 

Guillot  fugiu  sem  esperar  o  íim  da  contenda  e  tanto  temia  vèr-se  met- 
lido  n'ella  que  não  fez  mais  que  atravessar  a  rua  de  Salnt-S>iphnrien.  Iiojc 
de  Cholfls,  onde  conhecia  uma  chamada  Maria,  que  devia  ser  ao  mi^snid  tcni|)n 
c^^pcia  (cxplicailor.i  de  lioroscoposi  e  louilinr  ou  chapeiieira. 

/.o  nie  (Ic  Cliaceterie  (aclualmeiíte  fharlierr 
Trnnbay.  N'allay  pa$  chez.Mari'^ 
F.n  la  ruc  Saint-Syphorien 
Ou  maignent  li  logiptien. 

Passando  peia  rua  de  Saint-Hiiaire,  que  conserva  o  nome,  recorda  que 
uma  (hiinii  accessivcl  n'ella  vive,  mas  não  tem  tempo  de  se  demorar  em  casa 
desta  dama  de  boa  vontade,  a  que  chama  Ijietfdas,  alcunha  cm  que  seria  fá- 
cil descobrir  um  sentido  obsceno. 

Eil-o,  pois,  no  pateo  lininpati(ltruniau)  onde  se  fizeram  muitos  hruUnn.r 
(fogueiras,)  diz  ;  mas  por  bruliatix  não  entendia  cerfamente  os  heiegcs  quealli  se 
queimaram.  A  cerca  Itninean  estava  no  centro  das  escolas  e  os  estudantes  que 
no  tempo  de  Rahelais  iam  alli  satisfazer  as  suas  necessidades,  iam  anlerior- 
mente  ao  mesmo  logar  diverfir-sc  com  as  suas  meschines.  Guillot  diz  pois 
com  razão,  que  se  fez  grande  fogueira  n'aquelle  logar  sombrio  e  infecto.  .Nós 
dizemos  no  mesmo  sentido  roíir  le  haloi  (queimar  a  vassoura.)  1'erto  havia  a 
rua  de  .Yo//p?-.í  (Nogueiras)  onde  havia  tantas  mulheres  de  má  vida  como  si>  cn- 
conlram  hoje  em  lodo  o  districlo  : 

Et  puis  hl  rue  de  Noijer. 

Ou  plusieurs  daiiieít,  por  louler 

Fonl,  souvent  bntler  léus  carliers. 

tiuiildl  na  rua  de  Boa-Puits  (Bom  l'o(,>o)  que  devia  o  seu  nome  a  uma 
allusão  luimoiislica,  não  se  esquece  de  registrar  os  altos  feitos  d'uma  parteira, 
mulher  d'um  carpinteiro,  n(davel  pelo  numero  de  homens  (|uc  mandou  da  sua 
(•aniii  para  o  cemitério,  segundo  uma  inlcrpreta(;ào  arriscada  destes  dois  ver- 
sos : 

/,(/  mninl  la  femme  u  un  ehnpuis 
Qni  de  maint  lioiunie  à  fail  ses  ylais. 

Leduchal  ou  Lenglel  Dufresnoy,  explicando  o  segundo  verso,  viu  sem  du- 
vida nVlle  uma  figura  erótica,  perturbado  com  o  dohre  dos  sinos  que  locam 
devagar  para  fazer  o  sigual  de  morte. 

(iuillol  que  conhece  todos  os  hons  lotjares,  como  se  dizia  na  linguagem 
liimiliar  do  ultimo  século,  dá  um  suspiro  ao  atravessar  a  rua  de  l'Ecole  (Hs- 
lolal  onde  vive  Madame  Nicolasa.  Nesta  rua,  que  veio  a  ser  a  que  boje  é  cha- 
mada de  Fonarre,  por  causa  da  palha  que  n'eHa  estava  espalhada  para  amorte- 
cer o  riiido  do  transito,  acliavam-se  comprcliendidas  as  grandes  esiolas  da  Ini- 
versidade,  e  ao  mesmo  tempo  mais  d'uma  e.scola  de  prostituição.  l'or  isto  diz 
(Iuillol  com  malícia  : 

Eu  celle  ruc,  se  lue  semble 
Vcnt-oul  í'l  faiií  cl  fcurrc  cuscuiblc. 

(iuillol,  quf  nada  tem  a  aprender  irestas  escolas,  passa  pela  rua  de  Ne» 
■lalien-le-Paurre  (S.  .Julião  o  pobre)  e  invoca  este  santo,  ijhc  nns  ijunrdti  ihs 
iimiis  liiijares.  S.  Julião  era  o  proleclor  dos  \iaianli>s,  a  quem  livrava  dos  maus 
passos  e  eneoniros.  (Iuillol  entra  são  o  salvo  na  Cite  c  ;i  primeira  rua  cm  (|U(" 
senie  os  ;iHimcIÍ\os  dn  coiicupiscciícia  é  na  ih'  ('.oc;ilri\. 


DA   PROSTITUIÇÃO  101 

Ou,  l'on  boil  soucent  de  bons  vins 
Uont  maiiU  linmx  xonrctit  se  varie. 

N'af|iieIIa  época  iiãu  havia  uma  labei'na  (lue  não  fosse  um  lofíar  do  pros- 
liluição.  (luillot  menciona  comtudo  uma  boa  taberna  na  rua  de  Ciiaroni  que 
se,  estendia  desde  a  entrada  do  claustro  í\otre-Uame  até  ás  ruas  das  Trois  Canet- 
/í.v.  Estas  tabernas  e  suas  dependências  eram  frequentadas  provavelmente  pelos 
cantores  da  cathedral.  Guillot  passa  de  larg),  sem  duvida,  e  esperamos  pela  sua 
honra  que  também  só  passe  pelo  beco  de  Saini-Croix  (Santa  (Iruz,)  onde  se 
(juebram  frequentemente  as  pernas  e  pela  rua  Ciervais-ÍMiumi  (|ue  elle  chama 
lierrese  f.aarens. 

Ou  maintes  dames  ignorent 

Y  mesnent,  'juis  de  levr  guiterne. 

iNão  cremos  que  os  habitantes  d'esta  rua  mal  afamada  allrahissem  inno- 
cenles  ao  som  da  guitarra  (i/niienie ;)  pelo  contrario,  attribuimos  a  esta  pala- 
vra ijuiterne  um  sentido  figurado  que  o  pudor  nos  impede  profundar. 

Não  nos  demoraremos  n'um  extranho  encontro  que  (luillot  leve  na  i  na 
de    \[armov.<<ei  (bonifrale.)  onde  alguém  llie  fez  uma  proposta  infame. 

Touoay  hotnme  qui  iu'eute  fel 
Une  musecume  belourde. 

Na  rua  de  ChaKet-Saint-Landrij ,  Guillot  só  encontra  mulheres  libertinas, 
cuja  profissão  define  dum  modo  pouco  comprehensivel  : 

Femnies  qui  vont  tout  le  checez 
Maignet  en  In  me  de  Chevez. 

Ciuillot  peneira  ainda  mais  no  dominio  hereditário  da  prostituição  e  vc 
logo  em    pleno  liluiiijnii,  que  se  chamava  o  Vai  d'amour:  (Valle  do  amor) 

En  bout  de  la  rue  descent 
De  Glateigny  ou  honne  gent 
Maignent  et  dames  au  cors  gent 
Qui  aux  hommes,  si  eom  inoy  seinblenl 
Volontiers  charnelmente  assemblent. 

Por  acaso  escapa  ao  perigo  da  tentação  e  mette-se  na  rua  de  Haiti-Moa- 
liii  (Moinho  alto)  que  se  chamava  rua  de  Saint-Denis  de  la  Charire,  da  egreja 
(jue  n'ella  havia  e  que  foi  demolida  na  época  da  revolução.  O  mau  logar  que 
Guillot  mostra  n'esta  rua  devia  ser  um  dos  mais  consideráveis  de  Paris  e  as 
mulheres  que  encerrava  não  sahiam  nunca  d'aquella  lúbrica  communidade. 

Ou  plusieur  dames  em  grant  chartre 
Oiti  mainl  v. .  .en  leur  c. .  -tenu, 
Comment  qui  Hz  y  soient  contenu. 

Esta  e  outras  muitas  passagens  provam  que  o  Dit  des  rues  podia  ler-se 
itililulado  mais  opportunamente  Dit  de  Bordeaux  de  Paris  (Nome  dos  bordeis 
de  Paris.)  Guillot  concluiu  com  os  dois  da  Cite,  e,  atravessando  o  Grand-Potd 
ou  o  l'on(-au-Chan(je,  continuou  o  seu  itinerário  pornographico. 

iSa  rua  de  Lavadières,  «onde  ha  muitas  lavandeiras,»  dá-nos  a  entender  que 
estas  muljieres  não  se  limitavam  unicamente  a  lavar  a  roupa  no  rio.  Em  lodos  os 
tempos  as  lavandeiras  tiveram  a  ínesma  reputação,  e  a  rainha,  que  ellas  elegiam 


102  HISTORIA 

todos  os  annos,  tinha  poderes  análogos  aos  do  rei  dos  ribaldos,  mas  s(í  nos  seus 
Estados  e  sobre  suas  súbditas.  Tiuillot  não  se  deixou  prender  por  estas  alegres 
ribaldas  e  proseguiu  no  seu  eaniinbo  atravez  das  ruas  sujas  do  i)airro  das 
Halles  (Mercado.)  Para  refrescar,  enfra  um  momento  n'unia  taberna  da  prat;a 
(nt.T  Ponrceau.T,  (dos  Porcos,)  que  foi  depois  a  praça  nn.r  rhats  (dos  gatos)  c  ainda 
depois  a  cova  «íí.í-  c/ííVjí.s'  (dos  cães,)  porque  se  amontoavam  alli  todas  as  iminun- 
dicies  ;  é  a  encru/.illiada  que  formam  as  ruas  de  Sniiil-Hnnon',  íierliarijevrs:  e 
l.intjerie. 

(luilíot,  (|ue  se  queixa  aqui  de  não  ser  feliz,  diz  comtudo  que  encon- 
trou no  seu  caminho,  ou  antes  n'aqnelle  que  procurava  a  pista  d'alguma  bella 
rihalda,  uma  com  quem  bebeu  um  copo  de  vinho. 

]S'a  rua  de  Kf/hisif  não  se  adniii'ou  de  encontrar  um  homem  que  l';dia\a 
com  uma  ribalda  sem  se  envergonliar  dos  transeuntes. 

I'n  home  Irouvai  en  ribitiidez  : 
lui  la  riir  de  DfUihy 
Enlré  :  iie  fus  pas  etliÍ!^i. 

Guillot  não  se  cncommodava  por  tão  pouco.  Chegou  á  rua  de  rArhre-Sfc 
(Arvore  Secca)  e  não  se  esqueceu  (rum  beco  sem  sabida  que  ainda  existe  i'om 
o  nome  de  Coiir-llntui)  e  (|ue  tinha  em  outro  tempo  o  malsoanle  de  Vnul-de- 
líaron.  }^"e.sta  denominação  local  não  se  deve  attribuir  á  palavra  liacon  o  sen- 
tido de  toucinho,  nem  procurar  n'clla  uma  imagem  mais  ou  menos  approxi- 
mada  d'este  sentido  primitivo  :  era  um  pateo  de  rihalderia  com  o  seu  poço,  em 
volta  do  qual  se  reuniam  as  mulheres  do  ollicio.  (luillof  não  tem  escrúpulo  em 
dizer  : 

Trocai  et  piiiti  Col  de  bacon 
Ou  l'on  a  trafairié  iiiaini  r.  . . 

Sol)re  este  verso  podia  fazer-se  uma  curiosa  dissertação  philosophica  (|uc 
recommendamos  ú  sombra  de  Lednchate  e  que  permiltiria  restabelecera  verda- 
deira accepção  do  antigo  verbo  í/yí/c/ívíV/  ou  Irafarcer.  (|uc  o  complemento  do  Dii'- 
cionario  da  Academia  fi-anceza,  muito  mal  traduz  por  irdcfrser  (atravessar. I 

Guillot  .segue  a  margem  do  rio  e  chega  á  entrada  d'unia  grande  rua  (|uc 
conduz  á  porta  do  Louvre  :  a  visinhança  do  rio  caracteriza  bastante  as  dainas 
que  encontra  o  que  vendiam  o  seu  género  por  um  preço  muito  elevado  para  a 
sua  bolsa. 

Dames  i  a  gentes  et  bonnes  ; 

De  leiírs  danres  sont  Irovp  (7uV/ií's    riclie.-^. 

Não  perde  tempo  em  regatear  o  que  não  pôde  comprar,  e  dirige-se  á 
rua  de  Saint-lIono)r  (S.  Honorato).  Depois  d"uma  rua  de  Mailrc-llnn',  cuja 
situação  não  é  possível  determinar,  embora  fos.se  iminediata  á  das  Poulies 
(Polidas)  teve  sem  duvida  de  alegrar-se  com  a  amabilidade  de  certas  damas 
que  o  comprimentaram: 

l.a  rue  trotirai-je  maialre  lliirê 
l.e:  liii  Keant  daniex  polie.i. 

Fazendo  do  maestro  llnré  um  personagem  vivo  em  logar  do  nome  de  uma 
i'ua,  era  necessário  accusal-o  d'um  ollicio  odioso  que  servia  as  damas  poli- 
das de-  que  parece  rodeado,  (luillot  nada  observa  relativo  á  prostituição  nas 
duas  ruas  da  '1'nuindcrii'  (Bambochata  )  onde  não  deixa  de  inosirar-nos  o  nnl;ncl 
/'o/V)  l/o    \iiiiir. 


DA    PROSTITUIÇÃO  103 

Une  (Jaiiie  ri  sur  mu  seil 
Qui  inoult  se  pnrloit  iiubleiíienl : 
Je  la  saluai  xiinpleiíiPiil, 
EUc  a  moy  par  Sun  Loif. 

Os  cosluincs  (l'osta  dama  não  dilToriani  dos  das  suas  simillianles  a  (jurm 
\ (Miios,  nas  incsinas  ruas,  exercer  o  mesmo  ollieio  que  em  outro  tempo ;  es|)eiar 
(•  espreitar  a  sua  presa  ao  limiar  das  portas,  á  entrada  das  sombrias  avenidas, 
rlianiando  ou  convidando  os  transeuntes,  (luillol  (jue  jura  por  S.  Luiz  ao  res- 
ponder a  esta  excitação  libidinosa,  teria  feito  bem  em  lembrar  á  ribalda  as  pra- 
,i;matieas  do  santo  rei.  Ouando  esteve  na  rua  de  Saint-Martin,  ouviu  cantar  o 
olticio  em  Nossa  Senbora  de  Saiiil-Marlin  des  Chainp.s  e  armou-se  de  conti- 
nência para  terminar,  sem  obstáculo,  a  sua  via.ucm  em  procura  fie  lo^'ares  im- 
puros. Alra\cssou  rapidamente  a  rua  de  lieaubonrij  que  lhe  ollereccu  com  que 
satisíazer  todos  os  f;eneros  de  libertinagem. 

Alai  droitenient  en  Uiaii  bniirc. 
Ne  chassoie  chièvre  ne  bouc. 

Da  rua  de  Limes  (Esluías)  avenlurou-se  á  de  Uiujarière,  que  não  po- 
dia ser  outra  senão  a  de  Manliii!\  um  dos  feudos  mais  antigos  da  prostituição. 

La  ou  leva  inainle  plaslricre 
l>'airhal  mise  en  triii:rc  pour  coir 
Vlu^ieurx  (jcns  pour  Icur  cie  arnir. 

\qucllas  [icssoas  que  punham  grades  de  arame  para  olhar  para  a  rua 
eram  sem  du\ida  os  hospedes  onlinaiios  da  rua  d  •  Vunlsnr.  i'm  (juc  havia  tan- 
tos antros  cnmo  casas,  tantas  muliíeres  e  homens  diss(dutos  como  habitantes. 
As  ruas  immedialas  resentiam-se  desta  m'i  visinhança.  Ciuiliot  contenta-se  em 
enumerar  a  rua  de  (Juincainiioi.T,  a  de  Aul>nj-le-lloucher  c  a  Cõnrecrie  de  que 

0  pudor  do  século  xv  fez  Co:roierip  e  que  agora  está  transformada  na  rua  de 
l'iii<]-Diannmix  (Cinco  diamantes^  allusão  á  sua  impudica  origem,  (luillot 
receia  que  lhe  succeda  alguma  desgraça  ao  appro\imar-se  da  rua  de  Trousse- 

1  inlie,  que  tirou  o  seu  nome  infame  dos  costumes  mais  infames  ainda  dos  .seus 
habitantes. 

/.(/  rue  Aniaunj  de  Rousl 

Encontre  Trousse  rache  chiei. 

Que  Dieu  garde  qu'il  ne  nous  nieschiel. 

iiuillot  estava  quasi  no  termo  das  suas  peregrinações,  mas  estava  tão  can- 
çado  qm;  teve  do  sentar-se  na  rua  d"Arcis  para  repousar  alguns  instantes,  po- 
n-m  ivcomeçou  logo  no  seu  caminhar  e  desprezou  sem  duvida  enumerar  certas 
ruas  especialmente  destinadas  á  prostituição.  Assim,  ao  passar  pela  rua  do  Ijtilile 
(In  ('li)i\irc,  (juc  outra  não  pôde  ser  senão  a  de  Cloilre  Sainl  iíerrij,  surpreheií- 
de-se  de  nVIla  não  encontrar  mulheres  bordaleiras,  como  n"outra  época  l)a- 
via  visto  e  aflirma  que  esta  rua  é  agora  honesta  (honestoble'),  mas  quando  passa 
de  Sainl  Mn-ji  para  [killeliof,  onde  encontrou  muita  infâmia,  essa  tal  rua  de  Beil- 
lehoe,  cujo  nome  era  apenas  um  feio  epitheto  (jue  mais  tarde  se  transformou  cm 
Urise-miche,  não  lhe  dá  remiiiiscencia  alguma  de  libertinagem  e  afasta-se  d'ella 
sem  a  ter  qualificado  como  merecia.  Logo  adiante  repara  no  Marais  e  deita  olha- 
res para  a  rua  do  Plalre. 

Ou  mainles  duines  leur  cinpluslre 
.í'niainl  cumpagnon  ont  fail  ballre, 
Ce  me  semble  pour  eux  esballre. 


lOi  HISTORIA 

fiuillol  ó  inc\gij(a\cl  em  encontrar  periphrascs,  mai.s  livres  (|iic  singelas, 
caraclerisando  os  logares  que  procura.  Sn  encruzilhada  Giiilhri,  cujo  iioiiie 
equivale  ao  que  mais  tarde  lhe  foi  dado,  Jea»  de  l.'Epine,  e  que  o  douto  Aul- 
naye  não  teria  deixado  de  evidenciar  com  toda  a  obscenidade  que  este  nome 
tem,  Guillot  não  sabe  a  quem  dar  fé: 

/,/  Míi  dii  ho!  1'uAitre  haril 

.liilgaaios  (|ue  acreditou  em  duas  prostituías,  das  quaes  cada  uma  o  quiz 
levar  para  seu  lado:  mas,  resistindo,  desembocou  na  rua  de  Gentkn,  Jiqjc  Co- 
<luiUes.  onde  vivia  um  bom  escudeiro,  «lue  ixirvenfura  lhe  inspirou  uni  culposo 
pensamento. 

C.onlinuou  sem  arriscar-se  a  entrar  na  rua  da  lísciderie,  que  era  o  beco 
sem  sabida  Sainl-raron.  e  que  não  tinha  entre  os  seus  habitantes  um  único 
homem  honrado. 

Passou  ra|)idamenle  pela  rua  1'luinírun  ou  dos  Mauiais-Gan^ons  perto  de 
Sa  iai-Jea  a-de-Grè  res- . 

Oii  muinle  duine  en  charlre  out 

Fenu  mninl  r.  pour  se  norier  {nourir\. 

K  a  segunda  vez  que  Guillot  nos  apresenta  em  reclusão  as  desprezadas 
prostitutas,  (llaro  é  (jue  a  sua  reclusão  não  era  voluntária  e  que  exclusiva- 
mente dependia  dos  regulamentos  da  policia.  Na  rua  do  Roi-dc-SicHr,  lem- 
brou-se  (luillol  d'uma  tal  chamada  Sedile,  que  vivia  na  rua  fleneaut-Lefccre, 
"ude  vendia  <pijsaiiles  c  babas,  diz  a  linguagem  ligurada  a  (jue  elle  rccorn-  para 
exprin)ir  os  mysterios  da  impudicia. 

Não  sem  precaui;ào  entra  depois  na  rua  futeimn^xe,  cujo  nome  muito 
significativo  não  permitte  duvidas  sobre  seu  destino.  Esta  rua  destinada  á  pros- 
lilui(,ào,  que  o.  povo  linha  baptisado,  conservou  sempre  tradicionalmente  este 
nome  obsceno,  embora  se  tivesse  intentado  modilicai-o  com  o  de  fetit-Mmc  e 
lr<ical-o  pelo  de  Cbir.hf-ferche,  que  ainda  tem  no  seu  letreiro.  \  virtude  de 
Guillot  havia  escapado  a  muitos  perigos  quando  entrou  na  rua  de  Tijruii.  onde 
foi  visitar  .Madame  Lucie. 

Y  eiil rui  dana  la  iixúnun  de  Lucie 
Qui  maint  en  la  rue  Tijron : 
Oc.<  dainert  hiiiniie!<  voux  dironl. 

.>ão  julgamos  como  o  abbadc  Lebeuf,  que  se  trate  a(|ui  dos  cânticos  reli- 
giosos (|ue  podiam  elevar-se  de  um  convento  de  mulheres  penitentes.  A  cam 
dr  Lacta  tem  todas  as  apparencias  d'um  logar  de  prostituição,  e  os  hyninos  que 
nella  se  entoavam  dirigiam-se  evidentemente  a  Vénus.  Tal  é  a  abbadia  galante 
que  insistimos  tíxistir  n'csta  rua,  onde  os  archeologos  imaginaram  collocar  um 
idilicio  pertencente  á  abbadia  de  Tyron.  (iuiilol,  no  fini  da  sua  excursão,  olha  as 
cousas  com  socego,  e  na  rua  Percee,  uma  das  cinco  ((ne  tinham  então  este  nome, 
indicando  um  antigo  beco  sem  sabida  transformado  em  rua.  rejiousa  c  refresca : 

I  nc  fciiime  i:i  deslrccic 
Pour  soi  pignicr,  qui  me  donitu 
De  bun  vin  ■ .  ■ 

Esla  mulher  (|uc  se  penteia  ou  se  arranja,  servindo  vinho  a  Guillot,  não 
pcjdc  ser  senão  uma  ribalda.   .Mas  Guillot  é   incansável  e  vae  logo  da  rua  de 

l'iiiilie.\  -Saial-finil  ;\   de   l-naroiDiiiTf. 

Ou  lun  triture  hieii,  jiur  deiiierx 
Pour  «on  ror.s  nnlaeier. 


DA  PROSTITUIÇÃO  105 

Não  nos  diz  se  ollc  fez  uso  da  receita  que  dá  aos  leitores.  Depois,  na  rua 
Commanderesses  (Commendadoras,)  que  actualmente  é  a  de  Cutelkrie  (Cutela- 
ria,) di/,  como  para  si : 

Ou  il  ã  mainlcs  trnchere.ies  ('querclleusesj 

Qui  ont  tiuiint  Iwmiiie  prís  aii  hrai  ,  f(  lu  pipie.) 

A  tarefa  de  (lUillot  está  por  fim  eoncluida:  recolheu  a  lama  de  todas  as 
ruas  de  Paris,  orgullia-se  com  o  seu  Dit  rimado  em  h^iivor  (relias,  dedicando 
sem  sombra  de  escrúpulo  esta  ohra  cheia  de  impurezas  «ao  doce  Senhor  do 
firmamentcr  c  á  sua  dulcíssima  mãe:  {au  doux  Seiíjnienr  dn  firmament  et  á  sa 
très-douce  chiera  mère.)» 

Apesar  d'esla  dedicatória  que  níío  cohoneslava  com  as  licenciosas  rimas 
de  Guillot,  ouiro  poeta  anonymo,  que  viveu  no  fim  do  século  decimo-quarlo, 
teve  a  ideia  de  apropriar-se  do  Dit  (ks  Uues,  tirando-lhe  o  cunho  de  leviandade 
e  renovando  o  csljlo  do  poema,  no  qual  já  não  se  conheciam  as  ruas  que  mu- 
daram de  nome.  Este  poeta  foi  Henrique  deraud,  que  publicou  este  novo  Dit 
copiado  d'um  manuscripto  dos  Archivos  Nacionaes,  como  continuação,  da  Taille 
(contribuição)  imposta  aos  liabilantes  de  Paris  em  1292  na  sua  obra  intitulada 
Daris  no  reinado  de  Filippe  o  Delia. 

Não  receiamos  que  a  este  propósito  o  registro  da  Taille  não  contenha  al- 
gum dado  particular  que  se  refira  á  prostituição,  o  que  prova  que  as  mulheres 
publicas  não  estavam  comprehendidas,  pelo  menos  sob  esta  designação,  nas  Tail- 
les  extraordinárias,  e\ccptuando-as  de  pagar  um  direito  proporcional  á  sua 
mesma  indignidade. 

O  poeta  (|ue  quiz  dar  nova  forma  ao  poema  de  Guillot  e  (jue  não  fez 
mais  que  reproduzil-o,  abrcviando-o,  consagroii-sc  especialmente  a  tirar-lhe 
o  seu  caracter  obsceno  e  sórdido,  e  este  anonymo,  em  logar  de  apiesenlar  Guil- 
lot andando  de  rua  em  rua  á  descoberta  de  maus  togares,  teve  de  inventar  uma 
fabula  bastante  divertida.  Põc-se  elle  mesmo  cm  scena;  ha  pouco  chegado  a 
l'aiis  onde  nunea  tinha  estado  e  vem  a  esta  capital  procurar  por  loilas  as  ruas 
a  sua  mulher,  a  quem  tinha  perdido  perto  de  Notre-Dauie.  Nada  pôde  dislra- 
hil-o  d'estas  pes(|uizas  ijue  são  iiifructuosas,  c  nenhuma  das  mulheres  que  en- 
contra a  cada  passo  pode  fazel-o  esquecer  a  sua:  d'esta  forma  percorre  UIO 
ruas,  que  tem  o  cuidado  de  enumerar  e  exclama  depois: 

Tanl  iay  quise,  que  j'en  sw-is  las. 
Or  la  quiere  qui  la  voudrà: 
Jamais  mon  corps  ne  la  querra. 

N'esla  nomenclatura  de  ruas,  não  falia  senão  de  mulheres  que  se  alu- 
gavam na  rua  de  Larandieres  e  na  rua  das  Commanderesses :  mas  cita  por  ou- 
tro lado  as  ruas  mais  mal  afamadas,  sem  fazer  allusão  á  natureza  da  sua  má 
fama. 

Desde  o  Dit  des  Dnes  de  Guillot,  até  á  primeira  ordenação  do  preboste 
de  Paris  que  lixa  os  togares  cm  que  a  prostituição  podia  excrcer-se  sem  se  ex- 
por a  penalidade  alguma,  ha  um  intervallo  de  mais  de  um  século.  Esta  orde- 
nação que  Delamare  insere,  data  de  18  de  setembro  de  1307.  Já  se  pressente 
a  iiillueneia  moralisadora  do  reinado  de  Carlos  v.  N'esta  ordenação  mandou  o 
|»rebostc,  que  todas  as  mulheres  de  vida  dissoluta  fossem  habitar  os  bordeis 
c  lugares  públicos  que  lhes  estavam  destinados,  a  saber:  «no  Ahreuimir  Ma- 
con,  na  Uucherie,  na  rua  de  rroidniantel,  perto  da  cerca  Dnineau,  no  Glati- 
ípiij,  na  Cour-HoberI,  em  Baillehoé,  em  Tijron,  na  rua  de  Chapou,  no  Champ- 
IJeury. 

São,  pois,  os  mesmos  logares  pouco  mais  ou  menos,  que  Guillot  tinha 
designado   no   Dii  des  Rucs,  mas  o  seu  numero  é  muito  mais  rcstricto  e  deve 

UlSTOHlA  DA  Phostituição  Tomo  u— Folha  U. 


1 06  HISTORIA 

deduzir-so  qiic  ;i  |'()|icia  prebosfal  se  csfoirava  em  diminuir  os  deploráveis  ef- 
eitos  (la  iii)er(inaíícni,    disputando-liie  o  ierreno  cm  que  estava  auclorisada  a 
prodiizir-se. 

O  prebostc  de  l'aris  além  d'isso  proliihe  a  todas  as  pessoas  honradas  o  alu- 
garem casas  ás  mulheres  puhlicas  em  qualquer  outro  logar,  soh  pena  de  per- 
da do  aluguer  estipulado;  tamhcm  prohihe  a  cslas  mulheres  comprar  casas  tora 
dos  togares  marcados  para  o  excrcicio  da  sua  vil  profissão,  soh  pena  de  perder 
as  mesmas  casas.  As  riiialdas  que  se  encontravam  exercendo  em  outros  toga- 
res além  dos  designados  podiam  ser  presas  e  levadas  para  a  prisão  do  Cliatelet 
por  denuncia  dos  visinhos.  Com  a  prova  do  facto,  expulsavam-sc  da  capital, 
exigindo-iiies  previamente  sobre  os  seus  bens  oito  soldos  a  cada  uma  para  pa- 
gar aos  agentes  da  auctoridade.  Segundo  as  apparencias,  a  medida  da  policia 
era  executada  com  todo  o  rigor. 

Os  asylos  de  tolerância  que  o  pndjosle  de  Paris  concedia  á  pros'ituiç.'ão, 
eram  grupos  de  casas  c  não  ruas  inteiras.  Depois  vemos  abrirem-se  do  mesmo 
modo  as  chamadas  Cortes  dos  Milagres,  que  ei'am  habitadas  pelos  bobos,  men- 
digos, ladrões  c  outros  malfeitores,  como  as  (]òrtes  das  ribaldas  reuniam  as  mu- 
lheres publicas  e  os  homens  dissolutos,  seus  cúmplices  ignóbeis. 

O  Bebedouro  Macon  (Ahreui-nir)  era.  no  século  xiv,  um  grupo  de  edifícios 
que  rodeavam  um  beco  immundo  que  descia  até  ao  rio  perto  da  ponte  de  S. 
Miguel,  ao  voltar  da  rua  de  Huchette.  Este  Bebedouro,  que  os  títulos  de  1272 
chamam  Aqmitorium  Matisronensis  e  Adaquatoriuiii  comitis  Matisconensis  li- 
rava  o  seu  nome  da  visinhança  do  palácio  dos  condes  de  Macon,  situado  na 
rua  ([ue  lem  ainda  este  nome.  Este  mau  logar  que  chegou  aos  nossos  dias  ti- 
nha então  uma  írisle  celebridade  e  os  libei-linos  faziam-lhe  honra  com  impuras 
analogias  do  .seu  nome,  que  obstinavam  cm  pronunciar  d'um  modo  deshones- 
lo.  Por  causa  d'este  grosseiro  equivoco  mudou-se  o  nome  de  Bebedouro  Maco- 
ncnse  em  Bebedouro  do  Cagnart,  isto  por  servir  de  albergue  nocturno  aos  coí/- 
nardifvs,  salteadoirs  de  rio,  ou  talvez  antes  porque  os  habitantes  ribeirinhos 
creavam  alli  patos.  Seja  como  lor,  havia  n'este  logar  muitos  cagnardiers,  va- 
gabundos perigosos  ijue  assim  se  chamavam,  segundo  Pasquier,  pelo  seu  gé- 
nero de  vida,  pois  á  similhan^a  dos  patos  tinham  a  sua  casa  na  agua.  Borcl, 
ao  contrario,  pretende  que  cagnardier  se  deriva  de  canis,  significando  gente  que 
vive  como  os  cães. 

E'  difíicil  designar  o  logar  que  o  prehoste  chama  Boucíicrie  (Açougue) 
sem  outra  designação;  mas,  ainda  que  muitos  houvesse  estabelecidos  nos  dif- 
ferentes  dislrictos  da  capital,  presumimos  que  se  tratava  da  Grande  Doucherie 
do  matadouro  de  Paris,  que  existia  desde  o  século  decimo  em  frente  do  Cha- 
telet  e  que  tinha  ido  augmenlando  progressivamente  até  formar  uma  espécie 
de  |)ovoação  no  meio  da  cidade.  Matavam-se  e  dividiam-se  alli  as  rezes  cuja 
carne  se  distribuía  logo  por  toda  Paris. 

Comprehcnde-se  que  o  prebostado  auclorisassc  a  existência  dos  ribaldos 
no  meio  de  uma  povoação  de  ribaldos,  como  os  carniceiros  e  demais  gente  d'esta 
laia.  Em  lodos  os  tempos  e  em  todos  os  paizes  houve  um  estigma  de  infâmia 
sobre  estas  profissões  que  respiram  o  cheiro  de  sangue ;  no  emtanto  exigiam-se 
certas  condições  di"  moi-alidadc  n'aipi('llas  que  cortavam  a  carne  nas  mezas  da 
Grande  líoucherie. 

A  cerca  Bruneau,  cuja  reputação  (luillot  já  linha  descfipto,  comprchendia 
ainda  no  .século  decimo-(|uinto  um  grande  espaço  de  hortas  e  jardins,  posto  que 
as  ruas  de  Sa.ini-.lean-de-líeauvais  e  de  Saint-llilaire,  livesseui  sido  abertas 
110  terreno  d'esta  cerca.  Os  bordeis  (ui  antros  das  mulheres  de  má  \'ida  linliam-se 
es|)alliado  ha  muito  tempo  pidas  immediações  da  (Jrrra  Itrunel  e  i|ueni  salie  mesmo 
SC  mesiuo  denti'o  d'(dla,  ili'nlni  tios  recinlus  e  cnlre  o  vinhedo. 

A   rua  de  Froidinaulrí,  (|uc  r.e  chamou  allcrnalivamente  i'reincntci,  Fres- 


DA    PROSTITUIÇÃO  107 

mantel,  Fremanteau,  clc,  cm\iú\m  Frirjidum  mantelluin  (Manto  frio)  c  foi  de- 
pois a  rua  de  Froinanlel,  com  desjirczo  da  sua  etymologia,  tloveu  com  certeza 
o  seu  nome  a  uma  cómica  ailusãn  ás  praLímalicas  de  S.  Luiz,  que  tiravam  o 
manto  e  pelliea  ás  mulheres  cduviclas  de  prostituição:  as  que  haliitavam  n"esta 
rua  de  prostitutas,  eram  naturalmente  despojadas  do  seu  manto  :  d'aqui  a  al- 
cunha de  damas  de  Froidmantel. 

O  feudo  de  Glalií/ny,  que  pertencia  em  1241  a  Roberto  c  a  Guilherme 
de  filatigny,  deu  o  seu  nome  a  um  lahyrintho  de  ruas  estreitas  e  sujas  que  a 
prostituição  oceuj)ava  por  privilegio  e  de  que  tinha  feito  o  famoso  Vai  d'Amoitr 
(valle  de  amor.)  O  destino  impudico  de  Glatigny  existiu  até  ao  século  xvii  cm 
que  as  ruas  adjacentes  foram  reedificadas  e  melhor  occupadas. 

>'em  Sauval,  nem  os  seus  continuadores  nos  dizem  em  que  quarteirão  es- 
tava situada  a  Cnurl  Roberto  de  Paris  e  o  nome  sob  que  é  designada,  não  nos 
ajudaria  também  a  encontrar  a  sua  situação  na  TaiUr  de  i27i  se  nos  tirasse 
da  incerteza.  Esta  Corte,  que  havia  de  ser  muito  peijuena,  pois  o  registro  da 
Taille  só  conta  n'ella  treze  pessoas  de  importância,  communicava  com  a  rua 
de  Baillehoé,  que  lhe  servia  de  corollario  e  que  reunia  a  mesma  classe  de  ha- 
bitantes. Henri([ue  Geraud  pri>tende  que  a  rua  de  Renard-Saini-ilerr]]  atra- 
vessou o  solar  da  Corte  Roberto  de  l'aris. 

A  rua  de  Cliapon,  que  não  mudou  de  nome,  fomou-o  no  setfulo  xiii  de  um 
de  seus  habitantes,  chamado  Roberto  lleynon  ou  ikgon,  ou  Capon,  que  suppomos 
ter  sido  rei  dos  Truões,  porque  hegon  ou  begnon  parece  derivado  de  &fí/!/í?ms, 
que  quer  dizer  originariamente  uíendigo,  em  inglez  hegging  :  cajion  que  vem  de 
capus,  falcão,  era  synonymo  de  begnon,  não  cremos  (jue  por  anii-phrasc  se  ti- 
vesse dado  o  nome  chapem  a  uma  rua  especialmente  destinada  á  prostituição. 

Finalmente  a  rua  de  Champs-Fleurg,  que  sob  o  nome  da  rua  da  Biblio- 
theca,  conservou  sempre  as  suas  tradições  bordelarias,  abriu-se  depois  d'alguns 
annos  no  logar  occupado  pelo  parcjue  do  Louvrc. 

Na  Taille  de  1292  esta  rua  S()  figura  com  quatro  contribuintes. 

Esta  rua  de  Cluunps-Flenrg  compunha-sc  apenas  d'alguinas  casilas  no 
meio  duma  pequena  cerca  e  assombreadas  por  arvores,  onde  a  prostituição  nada 
tinha  a  receiar  dos  olhares  curiosos  dos  transeuntes  que  só  alli  iam  procurar 
os  que  sabiam  alli  estar. 


CAPITULO  XI 


SUMMARIO 


A  taberna  do  «Cano  douiailo».— A  rua  Glatigny.— A  rua  do  Fumifr.— A  rua  do  Inferno.— A  rua  Fcrry.— A  casa 
Cocatrix.— As  alioliadas  da  C.alandiia  i:  do  Mercado  Palu.— A  illia  Oourdaine. -O  Forrain  ou  a  MoUo  anx  Papelards. 
—Os  arrabaldes.— O  Campo  (i.iillanl.- As  (|uatro  tabernas  Meritórias.— I)  Cbatuau  de  Paille.— A  taberna  da  Mula.— 
Os  lupanares  da  Universidade.— O  campo  d'Albiac.— A  rua  Craciosa.— Os  campos  do  Matadonro.-A  rua  d'Aronde.— 
A  rua  de  Git  le-Cucur. -A  rua  de  Sac-à-lic— A  rua  [iordit.— As  Cortes  dos  Milagres,  etc,  etc. 


oNTiNUEMos  a  nossa  viagem  pornographica  pelo  vellio  Paris,  de- 
(lifando-nos  a  enumerar  as  ruas  que  não  foram  meneii)iiadas  no 
|)oema  de  (luiilot  nem  nas  ordenações  do  Chateiel.  O  aniigo  nome 
d'estas  ruas  c  quasi  sempre  o  distinelivo  do  seu  earaeter  particular. 
.4pesar  do  uso  geral  que  afastava  do  eenlro  das  cidades  as  mu- 
lheres de  má  vida,  para  as  levar  extramuros,  e,  por  assim  di- 
zer, para  tora  da  vidacommum,  a  prostituição  tinlia-se  mantido  ao  principio  em 
muitas  ruas  da  cidade,  em  volta  de  Saint-Denis-de-la-Chatre,  qiie  já  existia 
quando  se  formou  a  primeira  confraria  da  Magdalena,  como  o  dissemos  pelas 
tradições  recolhidas  por  Dubreul  e  Sauval,  de  onde  se  vè  que  o  Vai  d'amo%ir  e 
Glatigny  foram  invadidos  de  preferencia  pelos  rihaldos  que  alli  iam  commeller 
o  peccado,  segundo  os  termos  dos  antigos  oííicios. 

Pode  pois  allirmar-se  que  a  maior  parte  dos  detestáveis  becos  que  de- 
sappareceram  ha  poucos  annos  com  os  trabalhos  executados  atravez  da  antiga 
cidade  luleciana  formavam  na  idade  média  o  theatro  permanente  da  prostituição, 
ainda  que  os  regulamentos  da  policia  municipal  procurassem  eircumscrevel-a 
ao  seu  asylo  de  (llatigny.  As  ruas  de  Marmousets,  Cocatrix,  Enfer,  Pcrpignan 
e  outras  que  formavam  um  labyrintho  de  casas,  agrupadas  umas  sobre  outras, 
privadas  de  luz  e  de  ar,  convinham  maravilhosamente  aos  costumes  bordclarios. 
Sabemos,  por  exemplo,  que  a  rua  de  Pcrpignan  se  chamava  rua  Charoiii,  por 
causa  de  uma  taberna  do  Carro  dourado  {De  carro  aurico.)  (luiilot  fallou  d'esta 
taberna  : 

En  Charoui-bonne  Uiverne  achiez  ovri 

Qualquer  taberna  tornava-se,  em  caso  necessário,  n'um  logar  de  prostitui- 
ção. Esta  taberna  de  Charoui  devia  ter  um  jardim  plantado  de  ro.seiras,  pois 
que  a  ma,  tomou  successivamente  os  nomes  significativos  de  Champrousiers, 
de  Chatiiji[leury  e  de  Cliainiirosij.  Não  seria  acaso  este  campo  de  rosas,  tuna 
testemunha  do  prazer  que  se  ia  buscar  a  esta  taberna,  que  foi  substituída  por 
um  jogo  de  bola,  e  de  que  a  rua  t(jmou  o  seu  ultimo  nome  de  1'anpiijnoin  ou 
Perpiynan. 

O  nome  de  ]'al  d'amour  applicava-sc  mais  particularmente  á  entrada 
muito  estreita  da  rua  de  Glatigny  que  descia  até  ao  rio  e  conduzia  ao  porlo 


I  10  HISTORIA 

Saint  Landnj.  No  cacs  crcsfe  porto,  ondo  vinham  parar  alguns  barcos  carrega- 
dos de  lenha  c  de  Irigo,  corria  uma  linlia  de  casas,  presas  umas  ás  outras  e 
sustendo-se  junlo  da  agua  que  lhe  banliava  os  seus  carcomidos  alicerces :  estas 
casas  pertenciam  de  direito  á  mais  abjecta  prostituição,  que  cm  toda  a  parte  ve- 
mos refugiar-se  nas  margens  dos  rios.  A  rua  húmida  e  escura  f|ue  aquellas  ca- 
sas formavam  por  deti'az,  chamava-se  l'ort-Saint-Landrtj-sur-l'eau  ou  rua  do 
Fumier. 

A  familia  dos  Ursinos  não  recciou  alli  edificar  um  palácio,  onde  viveu  um 
dos  seus  mais  illustres  membros,  Juvenal,  preboste  dos  commerciantes,  e  chan- 
celler  de  França,  no  reinado  de  Carlos  vi. 

A  presença  d'estc  grande  personagem  n'uma  rua  tão  mal  afamada  serviu 
para  fazel-a  mudar  de  nome:  e  com  elleito  se  chamou  desde  então  rua  dos  Ur- 
sinos; mas  a  extremidade  inferior  (cia  inferior,)  chamou-sc  rua  do  Enjer  (do 
inferno,)  allusão  á  má  vida  que  tinham  os  seus  habitantes. 

Já  arriscamos  uma  conjectura,  talvez  temerária,  sobre  a  rua  de  Marmou- 
sels,  que  Guillot  parece  apresentar-nos  como  frequentada  pelos  ribaldos,  ainda 
mais  do  ([ue  pelas  ribaldas,  todavia  n'uma  lista  das  ruas  de  Paris  que  o  abbade 
Lebeuf  julga  feita  em  I  ioO,  se  registra  esta  rua  sob  o  nome  de  Marnwuzí-- 
te^.  Sabemos  também  que  um  grande  edifício,  chamado  Casa  de  Mannousets 
{Domas  Marmosetaram)  para  a  qual  se  subia  por  escadas  exteriores,  existiu 
n'ella  até  ao  século  xvi.  Este  edifício  seria  um  bordel? 

Perto  d'elle,  havia  um  logar  d'esta  classe,  chamado  a  Còrie  de  Fe>-rtj, 
que  deu  o  seu  nome  á  rua  de  Trois-Canettes. 

Ha  ainda  a  citar  um  covil  análogo  na  casa  de  Cocatrix  (<lomus  Coqua- 
tricis,)  contigua  á  de  Marmouseís,  e  que  tirava  o  nome  da  casa  em  que  estava 
situado.  Esta  rua  que  os  archeologos  de  Paris  pretendem  ter  tido  o  nome  de 
um  dos  seus  habitantes  no  século  xui,  podia  ollerecer  também,  por  causa  do 
seu  vil  nome,  campo  pai'a  investigações  curiosas  da  ctymologia.  Cocalre  na  nossa 
antiga  lingua  significa  um  castrado;  cocatri.r  é  em  sentido  restricto  um  verme 
que  se  gera  nos  poços  e  cisternas,  e  em  sentido  figurado  uma  mulher  publica. 
Na  Verba  erótica  da  edição  de  Rabelais,  o  erudito  Aulnaye  define  a  palavra 
Cocatrix,  por  prostituta.  Em  apoio  d'esta  definição  e  para  não  deixar  duvida 
alguma  sobre  as  antigas  franquias  da  rua  Cocatrix  os  auctorcs  da  grande  His- 
toria de  Paris,  Felibien  e  Lobineau  tiraram  dos  registros  do  parian.ienio  as  pri- 
meiras linhas  de  um  decreto  que  começa  assim  : 

«Na  tcrça-feira  15  de  junho  de  l;JG7,  entre  Joanna,  a  1'eliiere,  appcllan- 
te,  de  uma  parte  e  o  mestre  João  d'Aliy  e  os  restantes  habitantes  da  rua  de 
Marmousets,  de  outra.  . .  A  appellanle  disse  que  vive  na  rua  de  Cocatrix, 
onde   tem  tido  bordel  ha  muito  tem|)o,  sem  memoria  do  contrario.»  etc. 

Esta  passagem  bem  prova,  que  as  ruas  em  que  havia  l)iii-dci  eram  con- 
sideradas estranhas  ao  regimen  e  ao  direito  conimum. 

Em  opposição  dos  logares  mal  afamados,  de  Glatigny,  encontravam-sc, 
todavia,  no  centro  da  cidade  outros  asylos  de  prostituição,  conhecidos  somente 
pelos  mais  vis  vagabundos;  eram  estes  o  Caignnrd  e  os  antros  da  Calandria  e 
do  .Mercado  fala.  Ainda  (jue  o  as|)eclo  iTcstes  logares  seja  actualmente  Ião 
triste  como  repugnante,  íormar-se-hia  dillicilmente  uma  ideia  do  cjue  eram  no 
século  XIII  e  xiv,  quando  serviam  de  asylo  nocturno  á  mais  immunda  e  as(|ue- 
rosa  libertinagem.  A  rua  da  Calandria,  nome  tirado  de  uma  avesinha  palra- 
dora,  caracterisava  as  reuniões  de  mulheres,  (|ue  havia  n'ella  desde  pela  ma- 
nliã  até  á  noite,  e  que  nada  mais  faziam  do  ([uc  pairar  eilis|nilar,  quando  não 
faziam  outra  cousa  |ieior.  Cheia  de  lama  e  inunundicies  csla  rua  (icscmbo- 
eava  no  Mcicado  l*alii,  cuio  nome  indica  um  taníjue  ou  lagoa  (palas,)  mas 
(|ue  não  era  mais  (|ue  uma  cloaca,  um  tnyu  panais,  como  si;  dizia  n'aquelle 
tempo. 


1>A    PROSTITUIÇÃO  1  I  I 

Mas  tinld  islo  craiii  msas,  cuniiiarado  cdtn  os  becos  que  a(|ui  eonduiain 
e  '|ue  nãu  fdiain  let-hados  até  ao  século  xvii.  Tin  (l'es(es  becos,  que  no  tempo 
lie  Sauval  existia  aiiiiia  em  |iarle,  entre  as  primeiras  casas  do  Petil-Ponl, 
(i'()nte  pequena)  e  algumas  outras  do  .t/rirc/ití-AVíí/" (Mercado  novo)  cbaniava-se 
o  Caiijnaril  por  causa,  diz  Sauval  (tit.  i  pag.  174,)  de  servir  Je  passagem  aos 
liomens  c  mulheres  de  má  vida,  que  passavam  a  noite  nas  casas  do  Pelit-Pont 
em  (lebodiada  eiin\iveiicia. 

Eiiilim  a  prosliluicão  erraiile  linba  ainda  no  rentro  da  cidade  ilois  campos 
(lc  leira  noclurna;  um  sob  o  arvoredo  de  uma  pequena  ilha,  que,  chamada  a 
ilha  (h\ Gnnrílaine  no  século  decimo  quinto  e  a  ilha  Aiu-Vache.s  (das  Vaccas)  Ires 
séculos  antes,  formou  depois  a  porta  occidental  da  ilha  da  Cilé;  c  o  outro  n'um 
outeiro  que  se  elevava  na  evtiemidade  oriental  e  se  chamou  sempre  o  Terrein 
(Terreno.)  Esta  pequena  proeminência  que  os  escombros  provenientes  da  re- 
construccão  de  .\ossa  Senhora  linliain  levantado  no  leito  do  rio,  de  que  o  cabido 
da  calitedral  se  tinlia  apropriado  sem  d"elle  tirar  partido,  era  todas  as  noi- 
|i's  o  ponio  de  reunião  dos  libertinos  e  das  suas  despresiveis  instigadoras, 
sendo  por  isso  chamado  desde  I2.')8,  a  .Uitl/e  au.r  l'apelardí>  (Motto  Papeíar- 
(lorum.) 

Uma  cita(,'ão  lirada  de  um  serm;"io  de  Roberto  de  Sorbon,  sobre  a  consciên- 
cia, nos  íará  comprebender  o  sentido  equivoco  em  que  o  povo  empregava  aqui 
a  palavi-a  Papelanls,  para  significar  os  vergonhosos  perseguidores  das  mulhe- 
res perdidas:  !itw  prnpter  hoc  dicuntur  pnpelardi  qnia  frecueníant  confessio- 
nea.  E'  para  notar  que  o  sermão  de  Roberto  de  Sorbon,  de  onde  Ducange  tirou 
esta  singular  cilacão,  é  quasi  contemporâneo  do  baptismo  do  iogar  cm  que  os 
papelard>>  encontravam  coui  quem  conversar. 

Emquanto  á  ilha  de  Uourdaine,  que  tinha  sido  a  ilha  aux  Vaches,  segundo 
antigos  títulos  que  os  archeologos  não  intentaram  explicar,  o  seu  nome  tem 
analogias  ou  similhanças  com  (joudlne,  gourijandiíif  e  gordane  que  eram  syno- 
iiymos  de  ()i'0stiluta.  Esta  ilha,  onde  foram  queimados  os  templários  em  tempo 
de  Eilippe,  o  Furitioso,  parece  ter  sido  um  Iogar  de  supplicio  consagrado  par- 
ticularmente ao  castigo  dos  crimes  obscenos,  pois  que  se  queria  afastar  do  povo 
os  culpados  que  se  mancharam  com  esta  espécie  de  crimes,  e  que  podia  ser  um 
objecto  de  escândalo  nos  seus  últimos  momentos. 

No  quarteirão  ou  districto  da  1'nivcrsiilade,  que  comprchendia  tantas  ruas 
desertas,  tantas  cercas  de  campos  desbal)it:idas,  tantos  bordeis  e  tabernas,  a 
prosliluiç,-ão  linha  uma  grande  quauntidade  d'-  asylos  que  os  agentes  da  aucto- 
ridade  não  ousavam  violar,  e  onde  allluia  a  mocidade  estudiosa.  A  descripção, 
que  faz  da  vida  dos  arrabaldes  uma  ordenat-ão  de  Henri(|ue  ii,  em  1348,  pôde 
applicar-se  ao  estado  d'estes  mesmos  legares,  dois  ou  três  séculos  antes. 

«Muitas  casas  dos  ditos  arrabaldes  são  apenas  guaridas  de  gente  mal- 
vada, tabernas,  jogo  c  bordeis,  e  a  ruina  de  um  grande  numero  de  jovens,  que 
attraliidos  pela  ociosidade,  consomem  e  perdem  alli  |irofusamcnte  a  sua  juven- 
tude.» 

Fácil  é  imaginar  as  necessidades  de  libertinagem  que  dominavam 
aíjuclla  povoação  universitai'ia,  composta  de  robustos  jovens,  pervertidos  na  sua 
maioria.  As  ordenações  de  S.  Luiz,  s(3  auctorisavam  dois  asylos  de  ribaldas,  o 
Abreuvoir-Mucon  e  Froidinanlel,  perlo  da  cerca  liruneau,  na  Universidade; 
mas  Guiiioí  indica-nos  seis  ou  sete  ruas,  onde  se  exercia  claramente  a  pros- 
tituição. Os  escriptores  do  mesmo  tempo,  e  Santiago  de  \  itry  principalmente, 
dizem-nos  que  cada  casa  do  quarteirão  das  Escolas  linha  pelo  menos  um 
bordel. 

Alain  de  llle,  o  Ihalor  niiirersal,  dizia  dos  estudantes  do  seu  tempo  : 
que  eram  mais  alfeiçoados  a  contemplar  as  bellezas  das  mulheres,  que  as  de 
Cicero.  E  Santiago  de  Vitry,  apresenta  os  llamengos,  como  os  mais  corrompidos. 


112  HISTORIA 

«São  pródigos,  diz,  amam  o  luxo,  os  prazeres  da  meza  c  a  libertinagem, 
fendo  uns  costumes  cm  extremo  relaxados.» 

Era,  pois,  necessária  uma  grande  quantidade  de  mulheres  fáceis  para 
satisfazer  as  paixões  d'esta  mocidade  indisciplinada  que  ia  em  magotes  tanto 
para  os  bordeis  como  para  as  aulas.  Rabeiais,  no  seu  Pankujrud,  referi ndo- 
nos  as  proezas  de  Panuríje,  diz-nos  que  a  policia  municipal  não  tiniia  ainda 
acção  no  século  decimo  sexto,  sobre  as  franíjuias  da  Universidade,  e  (juc  a  som- 
bra de  um  estudante,  |iunlia  em  fuga  os  agentes  da  vigilância. 

D'aqui  resulta  que  as  mulheres  dissolutas  se  encontravam  sol)  a  protec- 
ção dos  estudantes  que  as  tinham  fora  do  alcance  dos  regulamentos  do  t"dia- 
lelct.  Além  das  ruas  Platrirre,  Cordeliers,  Bnn-Pait.s,  Maijers,  Prrlres-Saiiit- 
Seoerin,  em  que  o  auctor  Dif  des-  Pnes  <le  l'aris,  confessa  ler  encontrado  mui- 
tas ribaldas  (mninle  ineschinele)  admiramos  que  não  tivesse  ainda  encontrado 
mais  no  Champ  d'.llbiac.  O  Clianip  liaill.ard  era  uma  praça,  ou  antes  um 
campo,  ladeado  pelos  muros  que  fechavam  o  recinto  Filippe  Augusto,  que  se 
estendia  desde  a  porta  Saint-Victor  até  á  de  Sainl-Marcel;  a  rua  aberta  n'estc 
terreno,  no  século  decitno  terceiro,  chamava-se  rua  dcs  Murs  (dos  muros)  por 
causa  da  su.i  situação;  pouco  depois,  chamava-se  d'Arras,  tomando  o  nome  de 
um  collegio  que  em  i;J32  alli  se  fundou;  mas  o  povo  que  lhe  deu  o  qualifi- 
cativo Champ-Gaillard,  para  assim  exprimir  o  seu  destino  nocturno,  não  subs- 
tituiu este  nome  que  ao  mesmo  tempo  era  justificado  pela  existência  d'uma  ri- 
balderia  frequentada  principalmente  por  estudantes. 

Este  logar,  tinha  ainda  no  decimo  sexto  século  a  celebridade  sutlicicnte, 
para  que  Uabelais,  que  d'elle  não  falia  unicamente  de  ouvido,  o  cilassi"  com 
mais  outros  três  para  caracterisar  as  desordens  promovidas  pelos  estudantes  de 
Paris.  No  capitulo  vi  do  livro  ii  é  onde  Lemosin,  que  mal  escrevia  o  francez, 
narra  os  feitos  dos  seus  collegas. 

nCerlaines  diecules,  nous  inoisons  le.s  bipnnaire.s  de  Chainp-llaiUard,  de 
Malsan,  de  cid-de-sac  de  líourlioii,  de  Huelea  et  en  cestes  ecslase  veneireique 
incidcnm  nos  verelres  es  penetissimes  recesses  de  pudendes  de  ces  merefricules 
aviicahilissimes.y> 

A  obscena  linguagem  do  estuJantc  que,  estropiando  o  latim,  julgava  es- 
crever clássico,  é  felizmente  bastante  intelligivcl  para  se  produzir  como  um 
monumento  de  grammafica  erótica  da  rniversidade. 

No  mesmo  capitulo  de  Rabeiais  também  se  trata  de  quatro  tabernas  que 
deviam  ter  tão  má  fama  como  os  bordeis,  pois  de  muitas  ordenações  do  pre- 
bostado  consta  que  a  maior  parte  das  tabernas  eram  servidas  por  mulheres 
publicas  ou  pelos  seus  rufiões  ou  corretores. 

«Depois,  diz  o  estudante  de  Pantagruel,  iamos  ás  tabernas  meritórias  de 
Pomme  de  Pin,  de  Caslcl,  da  Madeleinc  e  da  Mule.» 

Aqui  nos  appareccm  as  laberiue  meritória;,  dos  historiadores  romanos,  es- 
pecialmente de  Suetonio,  o  que  nos  prova  que  a  palavra  merilrix  deriva  do 
verbo  mereri  c  do  substantivo  meriíitin.  Não  cmprebenderenios  por  meio  de 
uma  dissertação  archeologica  o  lixar  a  situação  d'a(iuellas  tabernas  merilorins, 
e  limitar-nos-hemos  a  fazer  observar  (|uc  os  seus  nomes  parecem  concordar 
com  os  das  ruas  onde  sem  duvida  estavam  situadas;  assim  a  rua  Madeleinc  e 
a  de  Pomme  tornaram-se  depois  no  decimo  quarto  século  nas  ruas  de  la  Li- 
corne  c  na  de  Trais  Canettes,  conservando  as  suas  tabernas  com  o  nome  de 
Madeleine  e  Pumme-de-Pin;  a  rua  do  Chatel  ou  fhaleaii  compuiiha-se  d'uma 
|)arte  da  rua  Ferroneric  terminando  na  de  Arlire-scr,  c  uma  casa  chamada 
Chatenii-Felu,  ou  (Jhateaa-de-pnilíe  durou  ainda  por  muito  tempo  entre  a  cgreja 
de  Sainl-ÍMndry  c  O  rio.  Não  era  este  um  sitio  bem  escolhido  para  estabelecer 
uma  taberna  e  o  mais? 

Em  (]uanfo  á  taberna  Mnle,  o  seu  nome  tira-o  da  rua  do  Pa.fdr-la-Diule, 


riA   i'iii.srirtn;ui  I  lli 

aiitif^u  iKiiiic  que  prevaleceu  solirc  o  (l(  //'"-  /i''///<í/í'  (|ur  llic  i|ui/:('f;iiii  [iòi(|u;iii(|ii 
se  abriu  a  praea  Real. 

>'ão  receiainos  porlanlo  o  coinpreheiulcr  entre  ds  lo<;ares  mal  afamados 
de  l'aris  estas  quatro  famosas  tabernas,  fre(|ueiiteniente  mencionadas  pelos 
jjoetas  e  historiadores  do  secubi  dezeseis. 

Esta  digressão  a  respeito  das  tabernas,  distaniiou-niis  um  pnuco  dos  lupa- 
nares dá  universidade,  de  que  vamos  continuar  a  fallar  sem  todavia  lera  pre- 
tensão de  todos  conhecermos.  A  rua  llrariosa,  ao  principio  idiamada  Alhiac,  foi 
aberta  n'um  terreno  chamado  Cha)n}i  dWlbiar  e  que  (lesde  tempos  immemo- 
riaes  era  dedicado  á  prostituição :  as  habitavões  que  o  vicio  alli  occupára  por 
direito  hereditário,  como  veremos  logo,  só  foram  destruídos  em  lo^io.  Os  ety- 
mologistas  encontraram  nas  contas  de  Paris  o  appcilido  úo  ema  familia  llbinc 
e  d'uma  outra  (irario-sii  (|ue  dão  como  padrinhos  (Kcsta  rua  Ião  mal  habitada 
em  todos  os  tempos:  mas,  arriscando  uma  hyixitbesc  mais  vcrosimil,  prelc- 
rimos  reconhecer  no  appellido  Alhiac  uma  allusão  aos  Albigenses  {Albiaci  c 
Alliige)i.ii.<t)  que  eram  hereges  não  S(í  em  religião,  como  lambem  em  amor,  se- 
gundo a  opinião  popular  que  confunilia  sob  a  denominação  de  l/Aú/^.s/s  e  (/'!/- 
liKir  a  todos  os  liiierfÍH(js  cheios  de  vícios  e  maculados  poi'  impurezas. 

O  Clifiiiij)  irMhiiir  devia  pois  ser  o  campo  de  leira  d"estas  impurezas  e  a 
rua  (|ue  se  abriu  n"esíe  logar  h\]  cbamatla  (Irdciusa.  ou  por  ironia  ou  por  an- 
tinomia. 

Outros  campos  havia  cm  (pie  as  ribaldás  tinham  os  seus  bordeis  (bouii- 
cles  (Ui  pechr)  como  o  Chainji  de  la  Houcherie.  perto  da  rua  Miiiirai.s  Garro 1 1 s : 
II  ('limnii  l'eiir,  junio  da  rua  Bolloir:  o  Cbamp  de  f  lllueiie,  ele.  A  palavra 
ChíiDiii  designou  ordinariameíile  um  silio  em  que  se  comprava  c  vendia.  Tra- 
tando das  ruas  c  travessas  habitadas  pela  prostituição  não  devemos  csquci-er  a 
Aronde  ou  Ilirondelle  immcdiata  ao  Abrenroir  ][arnn  que  Rabclais,  pouco  dado 
a  clvmologias  obscenas,  chama   Maicrm. 

Esta  rua  de  VWrundelle,  escura  e  inununda,  (jiie  se  cncoiilra  por  de  traz 
das  casas  do  cães  S.  Miguel,  tinha  tirado  o  nome  da  tabolela  d"uma  ca.sa  de 
pro.slituição.  IVrto  (ralli,  seria  lacil  descobrir-se  equivoco  muito  signiticativo  no 
nome  da  rua  (lii-le-Cwiu-,  que  altcrnatlvamenle,  por  corrupção  maliciosa  ou 
invídunlaria,  se  chamou  \"dlequeu.r,  r,HÍIle(iuenr,  liHles-Dueur.  llui-le- conte, 
etc.,  etc. 

A  pequena  distancia  d"esta  rua  havia  também  a  rua  fafée,  a  que  so  es- 
crupulosos chamavam  rua  Parée  d'Andouilles.  As  ruas  immcdiafas,  cuja  in- 
duslria  nos  c  recordada  pelos  seus  antigos  nomes,  estiveram  igualmente  infes- 
tadas de  mulheres  de  má  vida;  a  rua  Sac-á-I.ic,  alcunha  que  se  dava  a  estas 
mulheres,  veio  a  ser  de  Zacarias;  a  rua  E(>eroii.  chamava-se  (lainjai  {Gnuf- 
ijinj,  prazer  alegre)  e  assim  inculcava  o  género  de  divci-fimcnto  que  alli  se  en- 
contrava. 

Finalmente,  n'este  dédalo  de  travessas  e  becos,  (|ue  tinham  substituído 
as  vinhas  de  Laas  ou  Liaas,  onde  a  prostituição  errante  passeava  os  seus  amo- 
res :  entie  a  rua  líurepoi.r  e  /(/  Ponpée  é  onde  mis  pielciulfmõs  localisar  o  lu- 
panar do  bccco  sem  sabida  de  Bourbon,  que  os  c(jmmcnt;ulores  de  Rabelais 
collocam  perlo  do  Louvre.  Numa  palavra,  o  districto  da  Universidade  era  mais 
abundante  em  logares  de  ))rostituição  que  os  mais  districtos  de  Paris,  ou  pelo 
menos,  n'elle  havia  muito  mais  prostitutas;  e  isto  não  é  necessário  provai-o, 
se  se  considerarem  os  costumes  licenciosos  dos  estudantes  que  não  sabiam  dos 
limites  dos  seus  domínios,  ipic  n"elles  tinham  prazeres  de  sobra  para  que  os 
fossem  buscar  a  outra  parte. 

Mas  os  eruditos,  que  teem  escripío  sobre  as  ruas  de  Paris,  dedicaram-se 
a  descobrir-lhes  os  seus  antigos  nomes  e  velhas  tradições  pornographicas  sem 
ler  em  conia  (pie  esses  nomes  das  ruas,  adtpiiridos  na  sua  grande  parle  em  vir- 

HisToau  DA  Prostituição.  Tomo  u— Folha  IJ. 


1  I  i-  IIIMIIKIA 

IiuIl'  de  ooi-orrciR'ias  popiilaces,  linliaiii  |)assa(l()  a  liiiineiis,  e  nàn  im-.iiii  us  lio- 
inciis  que  (la\'am  <t  nome  ás  ruas.  Assim  quando  querem  esludar  a  oiifiem  cly- 
molo^iea  da  rua  Bordet,  que  parte  da  ronie  (Je  San1(i-lh'iioteni,  e  sobe  alé  á  rua 
Moulfelunl,  no  mesmo  sitio  em  que  era  a  porta  Bordelle  que  lhe  deu  o  nome, 
dizem  que  um  tal  l'edro  de  Bordeiles  (Wo/y/sÍíí)  viveu  n'esta  rua  no  século 
duodécimo  e  que  lhe  legou  um  nome  que  não  podia  ter  uma  interprefafão  li- 
cenciosa. 

«£'  um  erro  |)opular,  di/.ern  os  auctores  do  Dicllounaire  hisloriqae  de  la 
tille  de  Paris,  julgar  que  em  virtude  da  similhan(,'a  do  nome,  esta  rua,  n'oulro 
tempo,  tivesse  sido  consagrada  á  prosliluiçào.»' 

Todavia,  certo  c,  que  Pedro  Bordeiles  assim  foi  designado  nas  actas,  por- 
(jue  possuía  uma  casa  chamada  Bordeiles,  Bourdelle  e  Bordel,  por  causa  do  seu 
primitivo  uso  e  dns  numerosos  bordeis  (|uc  Paris  continha.  A  rua  Bourdelle, 
(|ue  conduzia  á  porta  do  mesmo  nome,  nada  fez  para  desmentir  este  nome  des- 
honroso,  mais  confirmado  ainda  pela  visinhança  de  um  Cliamp-Gaillard,  que  se 
Iransfíjrmou  em  Cheniin-Gaillard,  quando  se  abriu  uma  nova  rua,  agora  clia- 
rnada  Clopin,  nome  moderno,  em  que  ainda  .se  reflecte  a  tradição  dos  maus 
costumes  de  Iodas  estas  ruas  próximas  dos  muros  e  das  portas  da  cidade. 

Só  nos  resta  (iesere\er  a  situação  |)ornograpiii(a  de  ceilos  centros  de  ri- 
baldeha  chamados  Còrles  duf:  Milagres,  poi-que  os  misei-aveis  que  alli  se  reu- 
niam e  aparentavam  as  mais  lastimo.sas  enfermidades  para  excitar  a  commiseração 
publica,  sabiam  d"esfes  antros.  Coxos,  mancos,  cegos,  leprosos,  cobertos  áv. 
chagas  e  á  noite  voltavam  sãos,  alegres  r.  di.spostos  para  as  orgias  e  libertina- 
gem. 

Estas  Vorie.s  dm;  Milaijre.s  eram  ])ovoadas  por  ladrões,  mendigos,  vaga- 
bundos, ratoneiros  e  ereaturas  abjectas,  que  de  mulheres  so  tinham  o  nom<' 
que  infamavam.  O  mais  antigo  d'cstes  covis  de  infâmia  era  a  Cirande.  Truande- 
rie,  ([uc  colonisou  todos  os  districtos  de  Paris,  em  que  a  policia  do  prebosle 
lhe  consentiu  abrir  delegações.  As  duas  grandes  snccursaes  da  Traanderie  fo- 
ram as  do  Teiiiple  on  das  ÁHinnnes  na  rua  Fraiirs-lioitríjeoif;  e  a  Curte,  dos  Mi- 
lagres por  exeellcncia  junto  de  FiU.es-Dieii,  entre  as  ruas  Sniiil-Denis  e  Mon- 
torgaeil. 

Além  d'estas  havia  mais  de  \  inte  cortes  da  mesma  espécie,  onde  se  levava 
a  mesma  vida  iorpe;  mas  b;'.slará  citar  a  Coar  de  la  .lussienne  na  rua  Mont- 
ata!re,  ao  lado  dó  oratório  das  prostitutas,  dedicado  a  Santa  Maria  Egypciaea; 
a  Cnar  Gentiens  na  rua  de  Coquille::;  a  Coar  Urissel  na  rua  MirtHkrie ;  a 
Cour  de  Haiiera  na  rua  Bordei ;  a  Cour  de  Sainte  Cataline  e  a  Coar  dn  rui 
François  na  rua  Poacena  ;  a  Cour  de  Bacon  na  rua  l'Arhre-Sec,  ete.,  etc. 

Sauval,  fallando  dos  perigosos  habitantes  da  rua  Francs-Bourgeois,  diz: 
«a  todas  as  horas  a  rua  e  as  casas  eram  theaíro  de  prostituição  c  de  crimes,» 
mas  S«uva!  ainda  faz  um  quadro  mais  hi>rrendo  da  principal  Corte  dos  Mila- 
gres, que  elle  poude  vèr  em  todo  o  seu  esplendor,  ([uando  servia  de  refugio  a 
tudo  quanto  havia  de  criminoso  e  infame  em  Paris.  Alli,  á  sombra  da  impuni- 
dade, .chegava  a  prostituição  ao  ultimo  grau  do  vicio. 

Esta  Córie  dos  Milagres  tinha  lido  noutros  tempos  uma  extensão  consi- 
derável, mas,  pouco  a  pouco,  se  viu  apertada  eiitre  a  rua  de  Montorgaeil,  o 
convento  das  Fiííes-Dieu  e  a  rua  Saial-Saaveur,  coinpondo-se  então  unii'amrnle 
d'uma  praça  irregular  (>  d'um  beceo  sem  sabida,  sujo  e  ma!  cheiroso. 

«Para  alli  ir,  diz  Sauval,  extravia-sc  qualquer  frequentemente  nas  tra- 
vessas asipierosas,  peslilentes  ;  para  entrar  é  preciso  descer  um  comprido  de- 
clive tortuoso  c  desigual.  Vi  uma  ea.sa  ostentando  velhice  e  porcaria:  não  li- 
niia  quatro  toezas  em  (piadrailo  e  todavia  alli  \i\  ia  uma  multidão  di'  eieafiças, 
iilhos   legítimos,   natnraes  e  espúrios.» 

Sauval,  que  Ião  curãosos  dados  sobi^e  os  liabilanies  (Pesias  Ciirieí^  de  Mi- 


A  corte  doi  mila 


grcs 


[>A    nidSIIILK.ÃO  I  li) 

Uiijrrs  iTcollicii,  ii;h)  mis  di/,  iiir('li/nR'iilc  iiiida  .'icci<a  i!;is  iiiirlh'jii's  ijiic  o  /•(•>- 
)íado  arijulico  registrava  sob  o  governu  do  j^rão  Cocsre.  Mais  notável  é  aiiKJa 
não  possuir  o  retrato  physico  e  moral  das  vassallas  d'cste  rei  dos  miseráveis, 
sabendo  uma  extravagante  pailieiílaridade  do  seu  infame  oflicio. 

<'As  menos  feias  das  mulheres,  diz  Sauval,  prosliluiain-se  por  dois  iianh. 
as  outras  por  um  ilobir.  a  maior  parle  por  cousa  alguma.  Muitas  delias  costu- 
nia\am  dar  dinheiro  aos  que  faziam  filhos  nas  suas  companheiras,  com  o  fim 
de  se  apoderarem  d'elles  para  ter  com  <|uc  ganhar  a  vida,  excitando  a  compai- 
xão publica,  arrancando  assim  esmolas.» 

O  preço  das  prostitutas  da  Grã  Côrie  i!o.\  Mila(jve>i  eia  sem  duxida  o 
mais  baixo  (jue  poilia  dar-se  a  uma  niulher  em  troca  das  suas  vergonhosas 
complacências;  no  tempo  de  Snuval  dois  liirrds  xaliam  cerca  de  dois  soldos  da 
nossa  moeda  e  o  doble,  dinheiro  tornez,  equivalia  a  dois  terços  d'um  liard,  islo 
é,  Ires  soldos  da  actual  moeda.  Duvidamos  que  o  preço  da  prostituição  algunin 
vez  tivesse  descido  mais,  nem  que  por  niais  vil  preço  uma  mulher  entreg;)sse 
o  seu  corpo. 

Esta  espécie  de  prostituição  eslava  compli'lamcnte  fora  da  acção  da  j)n- 
licia  do  (Jiatelet.  .\s  desgraçadas  que  a  exerciam,  protegidas  pelos  privilégios 
das  Cortes  dos  Milagres,  pertenciam  á  raça  cosmopolita  dos  vadios  c  dos  ladroes 
(juc  povoavam  estes  asylos  do  crime.  Andavam  cobertas  de  farrapos;  uma 
grande  |)arlc  d'cllas  tinham  segui-amentc  nas  veias  sangue  cigano,  distinguin- 
(lo-se  pela  sua  repugnante  fealdade,  pela  to:  acobreada,  pelo  cabello  encarapi- 
nhado: as  brancas  e  de  (Uibello  loiro  eram  as  formosas  e  por  isso  serviam  pai'a 
altrahir  para  aquelles  antros  os  oncaulos  que,  pordcndo-se.  ao  escurecer  se  en- 
contravam nas  cercanias  d'uma  Còrtt  dos  niilagres. 

\  bella  excitava  os  desejos  da  viclima  que  espreitava  ás  esquinas  d;i> 
ruas;  umas  vezes  mos!iMva-sc  lavada  em  lagrimas,  inventando  uma  fabula  c;i- 
paz  de  commovei'  ((uabjuer;  outras  sahia  ao  encontro  do  itoprudentc  que  a  cila 
SC  olíereeia  e  com  mil  pretextos  o  arrastava  atraz  de  si;  e  ainda  outras  injuria- 
vam o  viandante,  provocandoo  com  insolências  a  Icrctni  ella  iniia  pendência  que 
lhe  desse  motivos  para  gritar  por  soccorro.  Knfão  os  cunq)lices,  tingidos  pães,  ir- 
mãos, amigos,  acudindo  aos  gritos  atacavam  o  homem,  rouhavam-o,  niallriiÍ!!- 
vani-o  e,  se  procurava  defender-se,  assassinavam-o. 

A  mesma  sorte  esperava  o  desgraçadí),  (juando  se  deixava  scduzii-  por 
estas  sereias  das  encruzilhadas  e  se  arriscava  a  seguil-as  ale  ao  seu  antro;  um 
pue.  mil  marido,  um  irmão,  apparecia  sempre  pedindo-lhe  contas  de  uma  seduc- 
ção,  ipie  lhe  nãn  davam  tempo  de  consummar,  c,  pnr  vontade  ou  isor  fon;a,  tinii.M 
de  pagar  uma  iudemnisação  que  comprchcndia  tudo  (]uanlo  levava  comsigo, 
.sem  excepção  da  própria  roupa.  K  graças  tinha  a  dar,  se  com  a  camisa  podia 
salvar  o  corpo. 

Escusado  é  dizer  que  estes  artifícios  e  ciladas  eram  ensinados  pelos  j)aes 
aos  tilhos,  pelos  maridos  ás  mulheres,  pelos  irmãos  ás  irmãs.  Desde  a  mais 
tenra  idade,  as  creanças  eram  abandonadas  á  mais  hedionda  corrupção;  fa/:iam 
do  corpo  a  mais  vil  das  mercancias,  vendido,  sacrificado  á  sórdida  e  immora! 
avareza  dos  pães  ou  dos  amos;  não  tinham  noção  alguma  do  bem  ou  do  mal, 
principalmente  no  que  era  relativo  ao  pudor;  homem  ou  mulher,  os  seus  pri- 
ineiíos  (lassos  na  vida  eram  dados  para  a  prostituição  e  uma  vez  entrados  no 
caminho  da  infâmia  nunca  mais  de  lá  sabiam. 

.\'cstes  antros  viviam  as  prostitutas  (Fondc  sabiam  cm  busca  de  for- 
tuna e  para  onde  voltavam  quando  tinham  envelhecido  no  olficio.  (lontinuavum 
ainda  a  vil  preço  a  vergonhosa  industria  e  se  não  encontravam  (piem  lhes  com- 
prasse o  corpo  mudavam  de  mister,  len<lo  a  hnfnn-ilicha,  fazemlo  licores  amo- 
i'osos,  tillros,  aimiletiis,  vendendo  gordura  e  cíiiirllo  irenfi>rcado  jiara  m;ilelicins 
e  mais  operações  de  bruxaria. 


1  1  6  HISTORIA 

Os  propriclarios  das  casus  ilc  uma  rua  doslinada  á  prostiluiriíu  luiblica 
DUiica  SC  p"ek'iu!('raiii  lilieilar-  ila  veriiuiilinsa  imlustria  para  que  concoiiiaui. 
alugando  ôs  prédios  que  lhes  produziam  avultadas  rendas.  Vemos,  pelo  eoiilra- 
rio,  ii'um  processo  renovado  frequenlemcnte  e  relativo  á  rua  Bnillehoe.  que  o 
ilestino  d'estas  ruas  constituía  um  privilej^io  mui  vantajoso  em  favor  dos  pro- 
prietários nu  inquilinos,  que  sempre  se  mostraram  stdicilos  em  derendcj-d  c 
conserval-o. 

Este  processo,  de  que  enconlramus  vestígios  dispersos  nos  registros  do 
parlaiiKíiito,  durou  mais  d'um  século,  renovando-se  sob  todas  as  formas  entre 
os  interessados,  que  por  uma  parle  eram  os  proprietários  das  coisas  d'esía  rua 
infame  e  que  ])oi'  outra  eram  o  cni^a  e  concisos  de  Scini-^lerrij.  O  prebasfe  di" 
Paris  e  o  rei  alternativamente  iíílcriinham  na  questão  que  mais  enredavam  com 
éditos  c  ordenações  eontradilorias.  O  parlamento,  por  seu  turno,  tomando  eo- 
nliecimento  do  assumpto,  contentava  uns  e  outros,  sem  força  para  aniquilar 
direitos,  fundados  na  legislação  de  S.  Luiz  e  robustecidos  por  um  uso  cnn- 
liimado. 

l"in  decreto  de  ií  de  janeiro  de  l;í88,  inserto  nas  |u-o\as  da  llisioiretlr 
Pari>'  de  Felibien  e  Lobiiieau  (til.  iv,  pag.  •>3f<."'i  dá-nos  a  conbecer  o  estado  da 
questão  e  as  pretensões  reciprocas  das  duas  parles  litigantes.  O  cura  e  os  có- 
negos linliam  obtido  ordens  reaes,  que  supprimiam  delinitivamenle  a  prostitui- 
ção na  rua  BaUleliue  e  uma  ordem  do  preboste  de  Paris,   João  de   Folleville, 
determinou  que  as  mulliercs  publicas,  babitantes  d'esta  rua,  immediatamente 
a  desalojassem:  como  estas  infelizes  se  vissem  apoiadas  pelos  proprietários  dos 
prédios  que   oceupavani,  não   se    apressaram   em  obedecer  á  ordem  do  pre- 
boste, e  este  enviou  archeiros,  (|ue  á  força  as  fizessem  sahir  e  artistas  (jue  nni- 
lassem  as  entradas  das  casas. 

l'rejadicados  nos  seus  interesses. e  indignados  com  este  abuso  da  aucto- 
ridade,  (is  príqn-ietarios  levaram  a  demanda  perante  o  parlamento,  quei\ando-se- 
do  cura  e  dos  cónegos  de  S;únt-Merr\ ,  a  quem  accusavam  de  haver  abusado 
da  boa  fé  do  rei  e  do  preisosfe.  Estes  honrados  proprietários  deram  amplos  po- 
deres de  representação  a  Ires  dos  seus  companheiros  ([ue  eram  :  Santiago  de 
Rraux.  Filippe  (Tibier  e  (iuilherme  de  >"evers. 

Hcsuniamos  agora  os  argumentos  com  (juc  cada  uma  das  parles  defendia 
a  sua  causa,  que  com  grande  çm|)enho  lõi  discutida  cm  audiência  solcmnc  pelos 
nicllinies  advogados  do  foro  de  Paris. 

Por  parle  da  egreja  dizia-se  que  o  rei  S.  Luiz  ordenara  que  as  ribaldas 
não  vivessem  em  lo(jares  e  mais  Iwnesta-^í:  o  preboste  de  Paris  decidiu  (|uc  a 
ma  Baillehoe  csta\a  nas  condições  de  boneslidades  prescriplas  pela  ordenação 
do  rei  c  da  rua,  e  expulsou  as  ribaldas,  condemnando  os  i)riq)rietarios  das  ca- 
sas alugadas  áquellas  mulheres  dissolutas  no  quádruplo  do  nlugurr. 

«A  rua,  dizem  mais  os  defensores  dos  cónegos,  é  immediala  ás  maiores 
e  melhores  da  capital,  onde  vivem  muitas  famílias  honradas,  além  dos  cónegos 
<•  capellàes  da  egreja.  Além  disso  grandes  inconvenientes  podem  resultar,  pois 
(|ue  se  uma  ribalda  matar  um  homem,  pode  ella  acolher-sc  á  egreja:  que  esta 
rua  Uca  em  caminho  de  Sainl-Merrv,  para  ir  cresta  á  rua  deViderie  e  emtaes  ruas 
não  deve  haver  más  mulheres.  Item,  que  a  rua  está  próxima  da  egirja,  c  pci-to 
d"clla  não  deve  haver  faes  mulheres,  pois  é  o  caminho  que  os  cónegos  e  ea- 
pellàes,  seguem  para  ir  á  egreja.» 
A  oulra  parte  dizia: 

«Que  bom  era  que  taes  mulheres  vivessem  próximo  das  ruas  princijiaes. 
onde  menos  mal  fazem  do  (|ue  nas  ruas  escuias  c  nos  arrabaldes  ;  que  a  dita 
rua  só  serviria  i)ara  o  ollicio  d'ellas  e  que  se  alguém  praticasse  algum  delicio, 
s()  poderia  fugir  pela  rua  principal,  onde  mais  facilmente  seria  preso  do  que  se 
o  didiclo  fosse  coMimcllido  distanie  da  grande  artéria  :  ipu;  as  taes  mulheres  sem- 


DA   PROSTITUIÇÃO  1  I  7 

|nr  (inliaiii  vivido  na  ilila  i'ua,  (iiie  aiifigamontt'  tinlia  liilo  uma  poi'(a,-a  ijiial, 
|iiir  iiiii  inconvciiionlo  qualijuei-,   foi  tirada.» 

\  este  |)roposi((),  i-ccordava-se  que,  su!)  o  reinado  de  r,;irlos  v,  ílugues 
Uibriol,  pi-cljoste  de  Paris,  lendo  visitado  os  bordeis,  supiirimiu  muitos  d"eílcs, 
deixando  subsistir  os  de  Bailleboe,  justificando  a  permissão,  dizendo  que  os 
cnvergonliadiís  melhor  oii.siiridm  firíjiienlar  este  do  (jue  os  outros.  Também  se 
prciendia,  que  a  egreja  de  Saint-Merrv  tinlia  interesse  em  (|ue  outro  destino 
náo  tivesse  á  rua  «pelo  rendimento  (]ue  d'abi  se  auferia  e  ponjue  ln'rironi))) 
hnnentorant  dominibm  aa-pe  lupniiarin  exercniUir ,  eíe.,  e  graças  a  Deus,  nunca 
liial  algum  foi  praticado  cm  Bailleboe.» 

Argumentava-se  com  as  ordenações  de  S.  Luiz,  que  determinou  que. 
como  em  Glnlignii  e  na  Còrle-Roheno  de  faris,  houvesse  bordeis  em  Bailleboe, 
r  que,  tendo  elles  desapparecido  agora  da  Carte  Roberto,  era  conveniente  que  os 
i)ou\esse  nesta  rua. 

Os  proprietários  objectavam  também  que  a  rua  em  questão  não  era  o  ca- 
minho natural  para  a  egreja,  sendo-o  mais  directo  pela  rua  Sainl-Merry,  c  que 
se  |)0(lia  |)rescindir  de  por  alli  levar  o  vialico  aos  enferiuos,  embora  não  hou- 
vesse escrúpulos  de  o  levar  pela  rua  Tiron  que  não  era  mais  honesta. 

«E  é  conveniente,  conciuia  esta  parte,  (jue  o  bordel  esteja  próximo  da 
egi'eja,  pois  que  se  taes  mulheres  peccam  não  estão  condemnadas  e  bom  é  que 
alguma  vez  vão  á  egreja,  o  que  mais  facilmente  larãff  se  d'ella  estiverem  perto 
do  (juese  a  grande  distancia  habitarem.  Item.  não  é  inconveniente  que  perto  das 
egrejas  haja  bordeis,  jiois  que  Glaiignij  com  os  seus  está  junto  de  SoÁul- 
Denis-de-la-Chnrtre,  uma  das  mais  devotas  egrejas  da  cidade,  e  o  mesmo  suc- 
cede  com  a  de  Saiiit-Landry.» 

Os  defensores  na  replica  evitaram  tocar  a  espinhosa  questão  da  conveniência 
de  approximaros  bordeis  das  egrejas,  limitando-sc  a  dizer  que  a  leífra  da  pragmá- 
tica dl'  S.  Luiz,  se  oppunha  a  (]uc  as  mulheres  de  má  vida  vivessem  perlo  das 
egrejas;  em  apoio  d'este  argumento  citaram  o  levto  da  lei  romana  Deterivs 
ext  quod  penes  i-acrosanctas  mies  morentur. 

E  se  por  direito  natural  o  mais  intimo  da  cidade  pode  i^equerer  que  es- 
las  mulheres  sejam  postas  tora  da  sua  visinhança,  com  mais  forte  razão  o  pôde 
fazer  um  parodio  que,  tendo  de  amiudadamentc  ir  á  egreja,  tem  de  seguir  a  dita 
rua  como  caminho  mais  curto  para  a  egreja  Saint-Merrij. 

Não  sabemos  ao  certo  quando  terminou  esta  demanda,  mas  deve  Icr-sc 
como  um  dos  seus  últimos  episódios  a  pragmática  de  Henrique  vi,  rei  de  In- 
glaterra e  França,  que  em  15-25  se  declarou  pelo  parodio  e  cabido  de  Saiiit- 
Merrij.  E'  provável  todavia  que,  apesar  de  todas  as  ordenações  reaes  e  de  to- 
das as  ordens  dos  pi'ebostes,  a  prostituição  não  abandonasse  uma  rua  de  ([uc 
(\stava  de  posse  por  tal  e  tanto  tempo  que  não  lia  memoria  do  contrario. 

Mas  o  parocbo  de  Saint-Merrij  castigou  a  um  dos  proprietários  da  refe- 
rida rua,  a  quem  tivera  como  adversário  na  questão  das  tendas  do  peccado. 
iiindemnando-o  a  jusliíicar-se  n'um  domingo  á  purta  da  egreja  de  haver  co- 
mido carne  á  sexta-fcira. 

O  cabido,  tendo  triumpbado,  mudou  o. nome  da  rua,  que  tomou  o  da  im- 
mediata  Brisemiche,  perdendo  assim  o  seu  antigo  caracter  ignominioso,  pois  que 
pronunciando-se  Bailleboe  fazia  o  povo  uma  mimica  obscena  que  não  tinha  ra- 
zão de  ser  a  respeito  da  rua  Taillepain  ou  Brisemiche. 

Todas  estas  ctymologias  de  Baillehoe  eram  igualmente  significativas, 
que,  se  escrevesse  Ba illeliore  ou  Bailbbore  ou  Baiilchort,  quer  se  prefira  ado- 
ptar a  antiga  orthographia  Baillehoe  íiaíllehoche ,  porque  o  verbo  haille  variava 
de  significação  segundo  a  palavra  que  lhe  i^  junta  e  esta  palavra  tinha  sem- 
pre iim  sentido  obsceno;  houe  é  um  instrumento  de  trabalho;  horec  uma  mu- 
lher publica:   //os/  um  choque  violento;   hoehe  mosca.  !\"uma  palavra,  havia 


I  18  HISKIRIA 

sempre  iiin  seiílido  obsceno  nos  dillerciiíes  noini^s  desta  rua  iju",  imtiIimkIo  os 
seus  nomes  indecentes,  não  se  tornou  mais  honesta,  pois  ainda  no  ultimo  sé- 
culo as  mulheres  de  Brisemiche  tinham  uma  celebridade  proverbial. 

O  documento  que  analysamos  ao  fallar  do  litigio  entre  a  egreja  (]e  Saint- 
Merry  c  os  proprietários  de  BaiU^hoe  permitte-nos  fixar  alguns  pontos  de  ar- 
chiologia  pornographica.  Quasi  podemos  com  certeza  atfirmar  que  as  ruas  de- 
signadas para  a  prostituição  haviam  sido  n'outro  tempo,  de  noite,  fechadas  com 
portas;  que  estas  ruas  frequentadas  pelos  ribaldos  e  mais  gente  perdida  eram 
frequentemente  tbeatro  de  rixas  e  assassinatos;  que  apesar  (Kisso  o  aluguer 
das  casas,  era  alli  mais  elevado,  produzindo  avultados  rendimentos  aos  pro- 
prietários :  que  as  mulheres  publicas  linhara  entrada  franca  nas  <'grejas,  onde 
iam  menos  para  orar,  dn  (jue  em  busca  de  aventuras:  e,  finalmente,  que  a 
visinhanya  d'uni  bi>rdel  era  vantajosa  á  egreja,  por  eauvsa  das  esmolas  que  as 
suas  paroehianas  davam  ao  padre  e  para  a  fabrica  do  culto.  Além  d"isso,  con- 
clue-se  lambem,  que,  desde  então,  uma  razão  de  dií'eito  consuetudinário  sub- 
sistente até  aos  nossos  dias  auctorisava  a  todos  e  a  cada  um  dos  visinbos  ho- 
nestos a  apresentai'  queixa  contra  toda  a  mulher  de  ma  vida,  que  quizesse  fa- 
zer expulsar  da  sua  visinhanya  pelos  agentes  do  Chatelet  encarregados  da  poli- 
cia das  mulheres  publicas  e  dos  logares  da  prostituição. 


CAPITULO  XII 


SUAiAlARlO 


o  livrn  da  Taille  de  Pjiís.— O  rei  dos  ribaldos  da  rainha  Maria.— Isabel  Epineta.— Joaona,  a  Normanda.— 
Edclina, a  Raivosa.— Aaliz,  a  Berna. — Aaliz.a  Mourisca.— ,4  Bailesa  c  .K»\izSans-ari)ent.—\s7nfíz,  a.\lunrlra.— Joanna, 
a  lifbil.— Margarid?.,  a  Gala.— Genoveva,  a  Festejada.  — .luanna,  a  Grande.— I.sabel,  a  Cluita.— Mahent,  a  Lomtiania. — 
Margarida,  a  Brava.— Isabel,  a  Co.\a.— Isnez,  a  Serviçal.— Julieta,  a  Intriguista.— Joanna,  a  Ilorsontieza.  — Maheut,  a 
Normandia.- Gila  a  (2o.\a.— Mahi),  a  Escosseza.- Ignez,  a  Branca  de  mãos.— .loanninlia,  a  Brincalhona.— .\melina,  a 
Pe.juena.— .imflin;!,  a  Gorda.  -Maria,  a  .Nei;ra.— Ignez,  a  Grossa.— Joanna,  a  Sabia,  etc. 


ibsEMOs  QUE  O  livi'o  /((  Tailk  tlc  Paris,  do  auno  do  1202,  não 
(•(intinlia  facto  algiiin  relativo  á  prostituição;  mas,  dcpoi.s  do  no- 
vamente ter  examinado  este  li  vi  o  tão  preeioso  para  a  historia 
de  Paris  n'aquella  época,  julgamos  dever  modificar  a  nossa 
primeira  opinião  que,  posto  que  verdadeira  ao  primeiro  relan- 
i[iBi„.........,„.....,niaaaga|j  ^,^^^^.  ^j^  ollios,  não  devc  ser  acceite  sem  certas  reservas ;  pois 

se,  com  elieito,  cm  parte  alguma  nos  as.sentos  do  la  Taille  .se  encontra  a  de- 
signação precisa  das  mulheres  que  exerciam  a  profis.sào  de  prostitutas,  aqui  e 
alli  julgamos,  pelas  alcunhas  e  appeilidos  que  as  caracterisavam,  reconliecer  al- 
gumas. 

Certo  ó,  que  estas  mulheres  não  pagavam  impostos  na  qualidade  de  pros- 
titutas ;  mas  pagavam-os  na  qualidade  de  inquilinas  das  casas  que  habitavam 
na  capital,  que  não  eram  os  bordeis  onde  davam  largas  aos  seus  vicios  e  de- 
pravação (boa! telex  au  feche.) 

Infelizmente  nada  sabemos  das  condições  d  )s  impostos  c  não  é  fácil  com- 
prehender,  por  exemplo,  a  razão  porque  Paris,  no  tempo  de  Fiiippe,  o  Bello, 
contendo  uma  população  de  400  mil  almas,  apenas  tinha  15:200  contribuintes, 
scguntio  os  cálculos  do  sábio  Henrique  Gerardo,  pagando  ao  todo  12:218  libra.'? 
e  dez  soldos.  Estes  contribuintes  não  eram  os  habitantes  mais  ricos,  pois  es- 
tes eram  exceptuados  da  Taille  pelos  .seus  privilégios  campestres  :  nem  tão  pouco 
eram  os  mais  pobres,  como  o  vemos  pelas  diflerenças  de  fortunas  menciona- 
das nas  variações  da  Taille.  Não  merecem  confiança  as  hypotheses  de  Dulaure 
que  pridende  que  o  numero  das  Tailles  indique  o  de  fogos.  Se  isto  assim  fosse  o 
registro  da  Taille  não  mencionaria  em  quadro  especiai,  os  filhos,  os  servos, 
os  artistas,  convivendo  na  companhia  das  pessoas  sobre  quem  recahia  o  imposto. 

Vamos  também  apresentar  uma  hypothe.se  que  se  não  funda  em  provas 
escriptas:  emquanto  a  nós  a  Taille  comprehendia  unicamente  os  habitantes  de 
rez  do  chão  com  portas  para  a  rua.  Esta  conjectura,  que  nenhum  documento  con- 
tradiz, tem  a  vantagem  de  explicar  naturalmente  a  notável  desproporção  que 
existe  entre  o  numero  de  habitantes  e  dos  contribuintes,  entre  os  quaes  as 
imilheres  não  chegam  a  ser  a  decima  parte. 


lâU 


IIIS  lliKIA 


A  Tíulle  tle  I  á92  jwrniiítir-nos-lia  assigiialar  um  lado  conliriiuulo  por 
muitas  ordenações  posteriores  do  preI)osíado  de  Paris :,  as  ruas  destinadas  á  li- 
bertinagem publica  S(5  recebiam  as  mullieres  de  má  vida  nos  bordeis  a  certas 
boras  do  dia.  Veremos  que  ellas  não  babitavara  de  noite  n'eslas  mesmas  ruas, 
como  se  o  legislador  tivesse  querido  que  respirassem  o  arda  vida  lioncsta,  ar- 
rancando-as  momentaneamente  á  atmosphera  da  sua  infâmia.  Só  as  encon- 
traremos pois  nas  ruas  immediatas,  mas  não  nos  será  diíTicil  o  reconheeel-as 
pelos  appellidos  e  alcunbas  e  pela  uniformidade  do  imposto. 

Antes  de  proceder  á  procura  d'epsas  muliíeres  nas  parocbias  em  que  es- 
condiam a  sua  existência,  ás  vezes  cbristã  e  lioncsta  na  apparencia,  pois  muitas 
d'e!las  eram  casadas,  e  tinham  família,  devemos  tirar  do  livro  da  Tailk  uma 
particularidade  que  o  editor  deixou  passar  desapercebida  e  que  se  refere  á 
histor  a  da  prostituição.  Nos  assentos  da  arraia  miúda,  que  residia  no 
bairro  Sainl-Ciermain-rAuxerroise  em  quem  incidiu  o  imposto  de  um  soldo  c  doze 
dinlieiros  por  cabeça,  e\tranba-se  o  encontrar  o  rei  dos  rihaldos  da  rainha 
Maria  (V.  p.  o  do  lib.  (/"  la  'lailíe.)  Quem  c  este  rei  dos  ribaldos  morador  na 
rua  Osteriche,  actualmente  rua  do  Oratório,  em  frente  do  Louvre  ?  Seguramente 
não  se  traia  de  oíficial  da  casa  do  rei  de  França  e  a  intima  quota  que  lhe  impo- 
seram  suUicienlcmcnte  prova  a  inferioridade  da  sua  condição.  Não  era  decerlo  o 
rei  dos  ribaldos  da  corte  de  Fi'an(;a  quem  pagava  ao  fisco  a  mesma  ([uantia  que 
Adão,  o  sapateiro,  João,  o  aiendiíjo  e  uulros  da  mesma  laia. 

Como  já  dissemos  em  cada  centro  de  ribaldia  havia  um  rei  de  ribaldos  c 
esta  espécie  de  mordomo  encarregado  de  manter  a  ordem  no  antro  era  apenas 
uma  grutesca  caricatura  do  rei  dos  ril)aldos  da  casa  real.  O  da  rua  Osteriche 
jicrlencia  a  mais  inferior  ribaldcria  da  cidade  e  o  seu  pomposo  filulo  não  im- 
pede que  tivesse  sido  um  paiife  da  peior  espécie. 

Emquanto  a  essa  rainha  Maria  de  ijuem  se  declarava  olíicial  e  ministro, 
não  podia  ser  senão  uma  ribalda  ou  alguma  velha  que  tinha  subido  ao  throno  da 
devassidão  pelas  acclamações  das  suas  companheiras.  Não  pôde  concluir-se  ou- 
tra cousa  (Fesse  titulo  dado  a  unia  mullier  ciiamada  Maria,  tendo  um  rei  de 
ribaldos  taxado  com  \i  dinheiros;  e  inútil  é  demonstrar  que  este  vil  rei  dos 
ribaldos  não  podia  pertencer  á  rainha  Maria  de  Barbante,  viuva  de  Filippe  o  Co- 
rajoso, que  n'essa  época  ainda  era  viva. 

Podemos  atfirmar  com  fundamento,  e  só  por  este  singelo  raciocínio,  que 
pelo  menos  cm  certas  ribalderias  as  mulheres  publicas  elegiam  uma  rainha, 
como  outras  co!'porações  de  mulheres,  especialmente  as  lavadeiras  e  vendedo- 
ras de  peixe,  ele.  Esta  rainha  linha  naturalmente  um  rei  de  ribaldos  encarre- 
gado da  policia  interna  do  estabelecimento  em  que  reinava  esta  impudica  so- 
berana, se  era  o  nome  de  rainha  o  que  davam  á  gerente  da  ribalderia.  Já  vi- 
mos no  séquito  dos  reis  de  França  no  século  xvi  uma  gerente  d'csia  ordem, 
a  quem  as  ordenações  de  Frauciseo  i  e  de  Henrique  ii  não  concedem  as'hon- 
ras  d'um  obsceno  reinado. 

Geralmente  dando-se  aos  bordeis  o  titulo  irónico  de  alihadia  na  linguagem 
pittoresca  do  povo,  a  directora  de  tal  abbadia  chama va-se  abhadessa  ou  prio- 
resa.  Pôde  comtudo  suppor-se  que  a  rainha  .Maria  tinha  sido  elcila  por  uma  das 
associações  de  libertinos,  larápios  e  jogadores  (|uc  siniulavani  uma  còrle  com 
uma  burlesca  imitação  dos  oíiiciaes  e  dignafarios  da  coroa. 

Tratemos  agora  das  mulheres  sem  profissão  que  a  Taille  de  1 2d2  nos  aponta 
como  habitando  as  ruas  suspeitas  nas  immediaçõcs  das  destinadas  á  profissão. 
Primeiro  encontramos  entre  a  nenie  niiuda  da  cilada  parochia  de  Sainl-Ger- 
inain  com  o  imposto  de  \2  dinheiros  a  1'lerida  da,  Hoscaije,  do  Bosque,  (jue 
vivia  f(Jra  da  porta  Saiiit-Honorc  e  por  conscguinie  fora  do  fosso  da  cidade  ; 
Isabel  VEpiaeíe  na  rua  de  froiílaiantel,  que  acaba  de  desapparecer  com  os  seus 
antigos  aniros   de  i)rostiluição  ;  Joanna,  a  formanda  na  rua  lUauroir,  que 


DA  PROSTITUIÇÃO  I  2f 

ainda  ha  quarcnla  annos  existia  com  o  nome  de  Beauvais;  Edelina  VEnragiée 
na  rua  Riche-Bourc,  iinje  ciiamada  Cod-Saint-Honoré  ;  Aali:  la  fíernre  á  es- 
quina da  rua  dos  Poaiies  ;  Aali:  la  Morelle  na  rua  Jeham  Etront,  de  que  não 
ha  vestígios ;  a  BaiUie  e  Perronelk-aux-chiem  na  rua  l'aulins  ;  Leloys,  filha 
de  Anlh-sans-nriifnl  na  rua  Areron,  liojc  a  de  UaiUeul. 

E'  para  notar  que  as  ruas  sombrias  e  mal  cheirosas,  onde  residiam  essas 
mulheres,  cuja  profissão  bem  indicada  c  pelos  seus  alcunhas,  nunca  deixaram 
de  ser  habitadas  pela  escoria  da  população. 

Entre  a  ralé  do  bairro  Saint-Du-ilache  encontramos  Perone.Ue  do  Serenes 
ou  Sirenes,  Igne:  VAlelleie,  Joanna  la  Maigrct,  Margarida  la  (ialaise,  Geno- 
oeia  la  Bien-feteè,  .loaniia  la  Grand,  etc.  Estes  nomes  tecm-se  conservado 
tradicionalmente  entre  a  gente  dada  á  baixa  prostitui^'ão. 

Nos  mesmos  bairros  e  nas  mesmas  ruas,  a  Taille  de  1*92  menciona  ainda 
com  alcunhas  análogos  outras  mulheres  que  viviam  também  do  seu  corpo,  mas 
que  d'ellc  tiravrtm  mais  lucro,  pois  que  no  imposto  figuram  com  3,  ."{  c  mesmo 
•)  soldos:  taes  ci'am  fiira  de  portas  de  Sainl-Honorr,  Isabel  a  Ch.aAa  e  Maheul 
a  Lombarda  na  rua  Froidinantel ;  Margarida  a  Braça,  [sabei  a  Curuja  e 
Jgiie::  a  Sercinil  na  rua  Biamoir;  Jnliela  a  íntrigaista,  Joanna  a  llourgoin- 
que,  Mahenli  a  Nornw.nda  e  Gila  a  Coxa  na  rua  Jtiegebòurg. 

[)cvc-se  observar  que  estas  ruas  pobres  e  mal  afamadas  eram  lambem 
occupadas  por  artistas  da  mais  infima  classe,  pescadores,  sapateiros,  ferros-ve- 
Ihos,  etc. 

Nas  ruas  de  mais  passagem  e  melhor  habitadas  são  mui  poucas  as  mu- 
iliercs  de  reputação  ccjuivoca.  Só  se  encontram  nas  immediações  das  ruas  des- 
tinadas á  prostituição,  mas  onde  não  viviam,  como  adeante  pro\aremos.  Assim 
na  rua  Glaligny,  em  que  a  prostituição  campeava  Ibrtemente,  cnconlram-se : 
Margarida  la  Crispininr,  .Inuo  le  Pasteur,  Eloisa  la  Chandaliere,  Samtiago 
le  cordomier. 

Mas,  encontrando  no  numero  dos  inquilinos  d'esta  rua  infame  um  certo 
Jeharra:,  pagando  22  soldos  de  contribuição,  um  Guiberlo  o  Bontano  com  2o 
soldos  de  imposto,  a  mulher  de  Nicolau  e  suas  duas  filhas,  pagando  38  soldos 
e  Gil  Marescot  que  paga  30,  inclinamos-nos  a  tomar  estes  individuos,  como  do- 
nos de  bordel,  cuja  clicntella  iam  procurar  ás  ruas  próximas. 

N'clla  encontramos  Mabil  1'Eseote,  Perronelles  la  Grmenle,  l.orencela, 
Ignez-Mains-Blanches,  Jeanetle  la  Papine  e  outras  que  reconhecemos  como  mu- 
lheres de  virtude  fácil.  N'um  centro  de  prostituição  não  menos  activo,  do  que 
o  Vai  d'unioiir,  em  Baillehoe  e  na  Corte  de  Roberto  de  Paris,  apenas  contamos 
quatro  mulheres  sem  profissão  entre  38  contribuintes,  dos  quaes  o  mais  sobre- 
carregado não  paga  mais  do  que  •')  soldos,  e  estes  são  :  Anielina  Baleasse:., 
Amelina  la  Pelitle,  Inês  la  liogoítona  e  Mahenf  la  Mornianda,  com  2  soldos 
de  imposto  cada  uma;  a  creada  de  Maheut  figura  com  o  mesmo  imposto  da 
ama,  de  cujos  trabalhos  c  beneficios,  aparentemente  pelo  menos,  participava. 

Mas  nas  ruas  adjacentes  ha  mulheres,  reconhecidas  pelas  alcunhas,  sem 
duvida  pertencentes  á  ribalderia  de  Baillehue,  embora  tivessem  o  seu  domici- 
lio naqucllas  honestas  habitações.  Inicamcntc  citaremos  Gbristina  e  sua  irmã 
Maria  na  nova  rua  de  Saint-Merrg ;  Juliana  c  Ignez  na  mesma  rua;  Ainelina 
a  Gorda  no  claustro :  Maria  a  Negra,  Maria  a  Ricarda  e  [gnez  a  Sabia  na  rua 
Simon-le-Franc,  etc. 

O  pessoa!  da  prostituição  n'estes  bairros  populosos  não  era  decerto  só 
este,  mas  comprehende-se  o  motivo,  porque  na  Taille  figuram  algumas  prosti- 
tutas e  não  todas. 

Dcve-se  ter  lambem  em  conta  que  nem  todas  as  mulheres  de  fácil  vir- 
tude se  entregavam  exclusivamente  á  prostituição  e  que  a  maior  parte  d'cllas 
estavam  comprchendidas  na  calhegoria  de  diversos  ollicios.  Do  espirito  das  Or- 

UlSIORIA  DA  PnOSTITUIcio.  TOMOII— FoLHA   16, 


122  HISKIIUA 

Henai/õcs  Je  S.  Ijiiz,  que  regiam  a  proslidiirSo,  pareee  deduzir-se,  qiio  tiida  a 
inullicr  era  livre  do  seu  corpo  c  com  cUe  á  vontade  podia  negociar,  comfanto 
(jue  se  não  entregasse  ao  peccado  senão  nos  antigos  bordeis  c  ruas  destinadas  a 
este  mister  desde  tempos  remotos.  Segundo  os  termos  de  muitos  decretos  do 
parlamento,  Delamarc,  que  tinha  á  vista  todos  os  monumentos  da  legislação  do 
Cliatelct,  d'oulro  modo  não  apreciou  as  mulheres  que,  entregando-se  á  prosti- 
tuição, só  eram  tidas  como  tal  no  exercício  d'essas  funcções. 

Resulta  d"esla  disíincção  numa  e  n'outra  phase  do  seu  género  de  vida 
que  a  authoridade  municipal  não  devia  intervir  nas  licenciosidades  secretas  das 
mulheres,  que  escrupulosamente  obedeciam  ás  ordenações  c  que  só  eram  ribal- 
das  communs,  quando  frc(|uentavam  os  logarcs  destinados  á  prostituição.  A  mu- 
lher que  se  prosliluia  n'um  desses  silios  ficava,  ])or  assim  dizer,  rehabilitada 
logo  que  d'elle  sahia.  Assim  se  explica  uma  sentença  di«  magistrados  de  Bor- 
déus que  condemnaram  um  homem  a  presidio  por  ter  violado  uma  mulher  pu- 
blica. Angelo  Stcfano  Garoni  transcreve  esta  memorável  sentença  no  seu  tra- 
tado de  jurispi'udencia  intitulado:  foiíimpoinriti  in  tiiulam  ile  inerelririlrus  et 
Ifnonibiis  Consiiíul  Medial. 

«Os  logares  infames  da  prostituição,  diz  Dchimarc  no  seu  Tratuda  da  po- 
liria., eram  communs  a  muitas  destas  mulheres  publicas  e  as  suas  vivendas 
estavam  d'elles  distantes.  Eram  pontos  de  reunião,  onde  tinham  liberdade 
para  o  seu  commerciar  impudico  e  que  se  lhes  marcavam  para  as  tornar  mais 
conhecidas  e  obrigai'  a  afastar  as  (jue  ainda  eram  susceptíveis  de  algum  pudor. 
Ei'a-lhcs  prohibido  (segundo  o  /('r,''o  verch'  antigo  do  Chatelet,  foi.  I'j9,)  com- 
nietter  o  peccado  em  qualquer  outra  parle,  sob  as  penas  estabelecidas  nos  re- 
gulamentos. Mas  ellas  illudiram  estas  sabias  precauções,  indo  aos  logares  pú- 
blicos tão  tarde,  que  não  eram  conhecidas,  nem  eram  vistas  entrar.» 

Desde  então,  marcaram-se-lbe  as  horas  d'entrada  e  sabida  nos  bordeis, 
que  não  se  abriam  antes  de  amanhecer  e  ei'am  fechados  ao  pôr  do  sol.  Todavia, 
não  consta  que  as  rameiras  esíivcssem  sujeitas  a  qualquer  inscripção;  mas, 
pódc-se  afoitamente  dizer  que  eram  obrigadas  a  pagar  um  imposto  lixo,  des- 
cripto  nos  rendimentos  da  cidade,  ou  formando  parte  dos  rendimentos  do  rei 
dos  ribaldos  da  casa  real.  O  preboste  de  l'aris,  a  17  de  março  de  1374-,  pu- 
blicou uma  ordem,  rezando  assim: 

«Todas  as  mulheres  que  se  reúnem  nas  ruas  de  tV.atiíjiijj.  \lin'aroir  Ma- 
con,  Kaillehoe,  Court-Hohert,  e  n'outros  bordeis,  são  obrigadas  a  sabir  ao  dar 
das  dez  da  noite,  sob  pena  de  vinte  soldos  de  multa.» 

A  multa,  que  equivalia  a  vinte  francos  da  nossa  moeda,  prova,  a  nosso 
ver,  que  o  jircço  dum  dia  de  peccado  não  lhe  era  inferior;  metade  d"esta 
multa  pei'lcncia  aos  agentes  do  ("hatelel.  Mais  tarde  esta  penalidade  teve  de 
dei\ai'-se  ao  arbítrio  do  juiz,  elevando  ao  dol)i'o  e  mesmo  quatripulo,  o  que  dá 
logar  a  suppòr  (|ue  mulhei'es  de  mais  elevada  classe  ás  vezes  não  temiam  ar- 
riscar-se  nestes  infames  logares  e  que  pouco  se  importavam  com  a  multa,  com 
lauto  que  a  troco  d'ella  gosassem  da  im|>unida(le  e  alcançassem  o  segredo  para 
a  sua  vida  dissoluta. 

A  'M)  de  junho  de  130o,  o  preboste  de  l'aris  |irohibiu  a  loilas  as  nuilhc- 
r'es  |)ublicas  o  pcrmanei-erem  nos  bordeis  depois  de  dadas  as  sele  da  noute, 
sob  pena  de  prisão  e  multa  arbitraria.  Uelamare,  que  cxtrahe  esta  disposição  do 
livro  roxo  antigo  do  í.hatelet,  accrescenia  uma  particularidade  confrontada  com 
os  registros  do  prcbostado. 

"As  ordens,  diz,  são  rennva<las  duas  vezes  poi'  anno  e  esia  rt'tirada  cra- 
Ihc  marcada  ás  seis  d'inverno  e  ás  sete  de  verão,  horas  a  que  havia  o  toque 
das  almas.» 

Tal  era  a  força  do  uso,  tal  era  o  império  do  costume  n'aquellcs  antigos 
lcni|)iis,  (|ue  loram  necessários  muitos  séculos  para  desalojar  a  j)rosliluição  de 


II V    riiii'^  1 1 1  (  II, AH 


I->:| 


miia  lias  iiias  i|uc  i.uiz  i.\  liu'  lia\ia  tlihliiiailo.  Oiiaijilo  miia  ur(lciiai;ã<)  do  |)rL'- 
liosle  do  Paris,  datada  de  18  de  selembro  de  1307,  eonlirmoii  o  deslino  d'eslas 
ruas,  o  l)i?po  de  Maeim  dirigiu  represou taeõcs  a  Carlos  v,  para  eonse54UÍr  que 
(la  rua  Ciiaj)"!)  fosso  retirado  tão  verjioiílioso  inisler.  Os  bispfis,  condes  de  CÍia- 
ioiis,  desde  remotos  tempos  possuíam  um  grande  palaeio  na  rua  Transnonaiii, 
então  eliamado  Trou-saenunain,  entre  as  ruas  Cltapou  e  Vaun-á-Vilain,  hoje 
Montinerencij.  As  mulheres  de  má  vida  tinham-se  apoderado  de  todas  estas 
ruas;  reuniam-se  totlos  os  dias  no  seu  usjilo  da  rua  C.hapon  e  alli  os  seus  can- 
tares, as  gargalhadas,  os  ralhos  e  obscenidades  continuamente  perturbavam  a 
consciência  dos  piedosos  habitantes  do  palácio  dos  condes  de  Chalons. 

O  bispo,  inembi'o  do  conselho  privado  do  rei,  teve  de  empregar  lodn  n 
seu  valimento,  para  eonseguir  afastar  para  longe  do  seu  palaeio  e  ao  niesnn» 
tempo  do  cemitério  de  S.  .Nicolau,  esta  visinhanea  que  insultava  não  so  os  vi- 
vos, mas  também  os  mortos.  Carlos  v  publicou  a  ;$  de  fevereiro  de  UHi7,  uma 
ordenação,  em  que  era  reslalieleeido  o  edilo  de  S.  I.uiz  contra  a  |)ioslitui(:ão 
em  geral.  l'ara  cliegar,  não  á  completa  execução  do  edito,  mas  para  unicamente 
o  appliear  á  rua  Chapon,  as  conclusões  que  tirava  da  ordenação  de  láoi,  não 
eram  nem  justas  nem  lógicas.  Depois  de  recordar  a  antiga  ordenação  (|ue  ex- 
pulsava da  cidade  (de  rilhi)  as  mulheres  |)ublicas  {iinhUcw  iiieretrlce.s)  conlis- 
cando-lhe  todos  os  seus  bens  e  até  o  vestido  e  as  pelicas  (u.síitws  ad  íanicdiii 
cel  pdliceain,)  ordenava  aos  proprietários  da  rua  Chapon,  (]ue  tivessem  alugado 
casas  ás  meretrizes,  as  despedissem  immediafamenie  sem  que  pai'a  o  futuro  as 
pudessem  tornar  a  ter  como  inquilinas,  sob  pena  da  multa  de  um  anno  da 
renda,  a  fim  de  que  essas  vis  creaturas,  dizia  o  edito,  não  continuem  a  viver 
na  citada  rua,  nem  iiYdla  tenham  as  suas  reuniões  {qaod  ibidem  mui,  Uipanaria 
II  lie  ri  us  de  eelern  iton  leneanl.)  isto  em  honra  do  bispo  e  no  interesse  das  pes- 
soas honeslas  que  viviam  nas  visinhanças  ou  na  própria  rua,  por  onde  já  nem 
mesmo  passar  ousavam.  A  ordenação  parece  que  quer  altribuir  ao  nome  da  rua 
uma  origem  que  documentos  mais  antigos  desmentem  {.saltem  melu  pene  dirlus 
cicus.) 

Sauval  attirma  que  as  meretrizes  resistiram  ás  ordens  do  rei,  fuhdando-se 
nos  privilégios  confirmados  por  S.  Luiz  e  provando  que  a  rua  Chapon  lhe  tinha 
sido  concedida  com  um  logar  d'asv!o,  por  Filippe  Augusto,  antes  que  esta  rua 
tivesse  sido  comprehcndida  dentro  dos  muros  da  cidade.  Os  bispos  de  t^balons 
insistiram  na  queixa,  auctorisando-.se  com  a  ordenação  de  CaHos  v  para  se  ve- 
rem livres  da  inconmioda  visiniiança;  mas  não  o  puderam  conseguir:  tanta  au- 
ctoridade  conservava  a  legislação  de  S.  Luiz  e  tanto  era  o  poder  do  costume 
na  administração  municipal. 

<,<As  ribaldas  mantiveram-se  firmes,  diz  Sauval,  e  não  sahiram  da  rua 
Chapon  até  lo6o,  quando  os  asylos  das  mulheres  publicas  totalmente  desap- 
pareceram  de  Paris.» 

As  ordenações  dos  reis  não  eram  também  melhor  executadas,  quando  se 
tratava  de  -impedir  a  prostituição  nas  ruas,  em  que  o  direito  antigo  e  consuetu- 
dinário não  podia  ser  invocado.  Estabelecidas  uma  vez  as  meretrizes  n'uma  rua 
ou  bairro,  ahi  se  fixavam  de  tal  modo,  (|ue  era  impossível  desalojal-as,  apesar 
de  todas  as  ameaças  de  multa  e  prisão.  Tinham,  já  se  vè,  uma  repugnância  in- 
vencível em  ir  residir  para  os  lugares  que  lho  estavam  designados,  e  (|ue  indu- 
bitavelmenie  lhes  infiingia  uma  notoriedade  infamante,  e,  portanto,  preteriam 
expòr-se  aos  rigores  da  lei,  e  exercer  occultamente  a  profissão  nas  ruas  em 
(jue  a  policia  nem  sempre  tinha  sobre  ellas  os  olhos  bem  abertos. 

F.m  1:581,  Cailos  \i  exigiu  a  execução  das  ordenações  de  S.  Luiz,  contra 
os  que  alugavam  casas  ás  mulheres  de  má  vida  nas  ruas  não  coinprehendidas  no 
numero  dos  seus  logares  iVasiihi.  Carlos  a  '.\  de  agosto  dirigiu  uma  ordem  ao  pre- 
boste  de  Paris  impondo-lhe  a  sua  execução  :  sem  razão  apoiava-se  nas  antigas 

#  • 


■ISi  IIISTOUIA 

nrdoiiações  do  rei  sanio  que  c\piils,ivani  da  eidade  c  dos  eainpos  (tam  de  campis 
(imun  lie  cilli.s)  ás  mulheres  de  vida  dissoluta  e  proliibia  sem  exeepyão  a  pros- 
filuição :  mas  não  exigiu  apenas  que  aquella  legislação  fosse  applieada  ás  me- 
retrizes (|ue  habitavam  as  ruas  de  Beanbourfj,  Geolfroi-V-Aiufetiii,  Jongleurs, 
Simon-le-Fraiic,  assim  como  nas  immediac;ões  de  SuiM-Denis-de-ia-Chartre  e 
da  fonte  Manlxir.  Como  no  edito  de  Carlos  v,  os  proprietários  (Cestas  ruas,  a 
quem  se  pretendia  libertar  de  tão  ineommodos  hospedes,  eram  avisados  jiara 
não  alugarem  casa  alguma  a  mulheres  suspeitas,  sob  pena  de  pagar  de  multa 
um  anno  do  mesmo  aluguer  ao  bailio  ou  ao  juiz  do  ('hatelet. 

Ha  dados  para  crer  que  o  preboste  de  Paris  fez  immedialamente  diligen- 
cias para  que  as  ordens  do  rei  fossem  cumpridas;  houve  proprietários  multa- 
dos, mulheres  ])resas  c  expulsas:  mas  ap(>sar  de  tudo  isso  a  prostituição  man- 
teve-se  no  domínio  conquistado. 

Todas  estas  ruas,  excepto  o  claustro  de  Saini-Denis-dc-la-Charlre,  ti- 
nham feito  parle  da  aldeia  Ikauliouru  (jue  Filippe  Augusto  reuniu  á  cidade  :  este 
Ileaabuurii,  pois,  estava  naturalmente  occupado  pelas  rameiras  que,  de  geração 
em  geração,  lhe  perpetuavam  il  infâmia.  A  fonte  Maubuf',  cercada  de  vivendas 
pobiTS,  era  o  centro  d'essa  ribalderia  possuidora  do  mesmo  nome  da  fonte  (Mau- 
bui,  porco,  sujo.) 

O  estabelecimento  das  meretrizes  nas  circumvisinhanças  da  égrejaSamí- 
Bfiúa  de-la-Cliartre  na  cidade,  remontava  ainda  a  maior  antiguidade,  pois, 
como  já  provamos,  a  confraria  da  Magdalena  tinha  tido  principio  n'esta  paro- 
ehia;  coisa  natural  era,  que  as  alegres  comadres,  que  formavam  e.ssa  confraria, 
se  agrupassem  em  volta  da  egreja  da  sua  padroeira  e  considerassem  este  bairro 
como  um  antigo  feudo  da  corporação. 

O  preboste  de  Paris,  ao  publicar  as  rcaes  ordens  de  3  de  agosto  com  o 
fim  de  proteger  a  honestidade  de  umas  certas  ruas,  julgou  também  dever  re- 
cordar que  outras  ruas  havia  parlicularmcntc  destinadas  á  prostituição;  mas, 
receando  põr-se  em  contradição  com  alguma  ordenação  real,  como  acontecera 
com  a  que  fora  expedida  para  a  reabilitar  a  rua  Chapou,  teve  o  cuidado  de  não 
designar  quacs  fossem  essas  ruas.  Prohibiu  ás  mulheres  publicas  o  «ter  bor- 
deis, exercer  a  sua  vergonhosa  industria  e  morar  nas  ruas  boas  de  Paris ;  mas 
que  se  desalojem  e  saiam  com  seus  bens  das  ditas  boas  ruas  e  vão  viver 
para  os  bordeis,  togares  c  ruas  destinadas  para  isso;  sob  pena  de  desteri'o.» 
Este  edito,  que  Ducange  transcreveu  do  noto  litro  verde  do  Chalelet,  não  de- 
signava os  logares  (|ue  o  prebostado  marcava  para  o  commercio  da  prostitui- 
ção, c  as  meretrizes  aproveitando  esta  lacuna  dis])crsaram-se  por  todos  os  baii'- 
ros  de  Paris,  onde  estabeleceram  um  .sem  numero  de  bordeis. 

Teve  pois  o  preboste  de  explicar  esta  amphibioiogia  com  outro  edilo 
mais  explicito,  que  Ducange  transcreve  no  seu  (llosario  (palavra  Hijinurniii) 
com  a  data  de  I39.J  e  como  tirado  do  licru  negro  de  Chatelel. 

«Item,  ordena-se  a  todas  as  mulheres  publicas  e  de  vida  dissoluta,  que, 
actualmente  vivam  nas  ruas  honestas  de  Paris.  .  .  que  d'ellas  saiam  immedia- 
lamente depois  d'este  pregão  e  se  retirem  e  fixem  as  suas  moradas  nos  bordeis 
e  logares  públicos  antigamente  designados  e  que  são  :  ruas  do  [bri'iuuir  de 
}Iascon,  de  (jlatigtig,  de  Tirou,  de  Coiirl  Hoíieri,  lluillelioe,  rua  CliajKin.  rua 
I'aU'e,  sob  pena  de  prisão  e  multa  voluntária.» 

Este  pregão  feito  ao  som  de  trombetas  nos  becos  de  Paiis  tem  a  origi- 
nalidade de  ter  feilo  esi]uecer  a  ordenação  do  ivi  relativa  á  rua  Cliajioa ;  talvez 
que  um  dfcreto  do  parlamento  houves.se  suspendido  os  eHeilos  d'esta  onlena- 
ção.  Entre  as  ruas  tidas  como  infames  não  é  citada  a  rua  Cliamp-Fleurg,  mas 
vc-se  (pie  foi  substituída  pela  rua  PahV,  que  .se  chamou  de  S.  Julião  e  mais 
tarde  da  l'oierne  ou  ruusse-l^iiifrne,  por  pouco  distar  da  cisterna  di' Sainl-.Ni- 
colas-Huidchjii. 


DA  ritosfiTUiijÃo  I  i'3 

Esla  rua,  liojo  chamada  do  Mouro,  tiiilia  um  centra  de  pi"oslituii,-ão,  cha- 
mada a  ('urlf  do  Houro,  (lcnomina(.'ão  tirada  talvez  d'alg;umas  increlrizes  que 
deviam  ser  mouriscas  ou  sarracenas.  Aqui  havia  um  dos  principaes  asylos  da 
prostituição,  ainda  que  não  pretendamos  encontrar  esta  rua  Palée  na  do  Petit- 
llurkur,  onde  (ieraud,  Jaiilot  e  Lcbeuf  julf^aram  dever  iocalisal-a.  A  grande 
rua  Palée,  duas  houve  d'este  nome  segundo  cremos,  era  o  logar  dasylo  das 
mulheres  publicas  íla  rua  Heauhourg  e  ruas  próximas. 

Também  havia  em  Paris  um  grande  numero  de  logares  de  prostituição 
não  auctorisados,  mas  a  (|ue  o  prehostado  fechou  os  olhos  até  I5G'),  em  que 
Carlos  IX  os  eomprehendeu  n'uma  medida  geral  prohibiliva.  Uma  ordenação  de 
Carlos  VI  de  14  de  setembro  de  1420,  durante  aoccupaçãode  Paris  pelos  inglezes, 
renovou  as  antigas  prohibições  ás  mulheres  de  má  vida  de  morarem  em  outros 
sitios  que  não  tossem  o -I/í/yímoíív,  Mucon,  lilatnjau,  Tiron,  Cour-ítuhert,  Ihiilie- 
lioe,  e  rua  Paire,  sob  pena  de  prisão.  (Delamare  leu  rua  /'rtccV  no  registro 
negro  do  Chatelet,  d'onde  copiou  este  documento.) 

Mas  quatro  annos  depois,  morto  Carlos  vi,  Henrique  vi,  rei  d'lnglaterra 
e  também  do  França,  deu  ouvidos  ás  queixas  dos  contribuintes  e  parochianos 
da  egreja  de  Saint-Merry,  que  pediam  a  suppressão  das  vergonhosas  franquias 
de  Baillehoe  «em  cujo  logar  de  Baillehoe,  dizem  os  reaes  despachos  de  Hen- 
rique VI  datados  d'abril  de  1424  e  entregues  em  Paris  ao  conselho  do  rei,  resi- 
dem e  estão  continuamente  mulheres  de  vida  dissoluta,  chamadas  bordelarias,  que 
alli  teem  um  bordel  publico ;  coisa  mal  vista  e  não  conveniente  ao  preito  que 
deve  prestar-se  á  egreja  c  a  todo  o  bom  catholico;  de  mau  exemplo,  vil  c  abo- 
minável também  para  a  gente  honesta  e  de  bons  costumes.» 

Para  satisfazer  aos  desejos  dos  queixosos,  que  se  escandalisavam  com  o 
espectáculo  d'aquella  libertinagem,  o  rei  inglez  prohibia  «que  d'ani  em  deante 
houvesse  qualquer  prostituta  na  rua  Baillehoe,  ou  nas  immediaçôes  da  egreja  de 
Saint-Merrti,  attendendo  a  que  na  cidade  havia  muitos  outros  logares  destina- 
dos ás  meretrizes  e  mesmo  mui  distante  d'esse  tal,  como  o  que  se  chama  Cor- 
te-Roberlo  e  em  outras  partes  mais  distantes  da  egreja.» 

Ordenava-se  ao  preboste  de  Paris  que  fizesse  executar  este  edito  irre- 
ro(/arel,  expulsando  immediatamente  da  rua  Baillehoe  as  mulheres  publicas. 
Provável  é  que  esta  ordenação  tivesse  o  etleito  das  antecedentes,  pois  a  rua 
Baillehoe  continua  a  ser  consagrada  ao  vicio.  Notamos  nas  ordens  de  Henrique 
VI  que  os  logares  destinados  ao  vicio  estavam  ermos,  não  occu[i(tdos,  emquanto 
que  o  pregão  do  preboste  de  Paris,  soleinnemente  apregoado  em  1393,  ordena 
ás  mulheres  publicas  que  façam  as  suas  iiabitações  nos  mesmos  sitios  que  desde 
antigos  tempos  lhe  tinham  sido  designados. 

Concluiremos  d'estes  documentos  (|uasi  contemporâneos  que  a  legislação 
relativa  ás  mulheres  de  má  vida  se  transformara  n'este  ponto ;  que  eram  obri- 
gados a  residir  no  theatro  da  sua  libertinagem  e  já  não  tinham  a  faculdade  de 
occultar  o  seu  domicilio  em  todos  os  bairros,  embora  vivessem  honradamente. 
Resulta,  além  d'isso,  da  ordenação  de  Henrique  vi  que  apesar  da  penalidade 
as  mulheres  dissolutas  recusavam  juntarem-se  nos  bordeis  que  continuavam  de- 
sertos e  abandonados. 

l'm  decreto  do  parlamento  citado  por  Sauval,  prova  a  teimosia  com  (jue 
esta  classe  de  mulheres  se  afastava  das  ruas  destinados  á  sua  infame  indus- 
tria para  se  dissiininarem  pelas  ruas  honestas  que  ellas  manchavam  com  as 
suas  torpezas.  N'estc  decreto  ordena-se  ás  meretrizes  que  abandonem  a  rua 
Cannels  e  outras  immediatas,  intimando-as  a  que  vão  habitar  os  antigos  bor- 
deis {Antiquiws  de  Paris,  tit.  iii,  pag.  9o2.) 

Kão  pode  duvidar-se,  segundo  os  termos  d'este  decreto,  que  o  preboste 
de  Paris  reconheceu  a  necessidade  de  que  a  morada,  e  o  logar  onde  as  prosti- 
tutas i)raticavam  os  actos  deshonestos,  fosse  a  mesma,  nem  que  as  ihuis  decen- 


]2Ct  IJÍSTdlílA 

tes  eram  peniiaiicnteinoiííe  liabiladas  por  estas  uuill)eres,  (juo  priínilivaini^nlc 
só  lá  iam  a  t^ertas  lioras  do  dia  e  nunca  de  noite. 

Tem  de  procurar-se  na  lopographia  de  Paris  antiga  as  ruas  percorridas 
pela  prosílluição  errante  e  que  as  ordenações  dos  reis,  os  decretos  do  parla- 
mento e  as  ordens  do  preÉDStado  não  designam  nominalmente.  Estas  ruas  em 
que  fartivameníc  se  exercia,  a  prostiiuiccio  eram  baslanlo  numerosas  e  ordina- 
riamente o  alcujiha  obsceno  que  llie  punha  o  po[)uhiciio,  designava-as  á  i'epro- 
vação  da  gente  honrada  o;ue  prudciítemente  delias  se  afastava.  Alem  das  cor- 
tes de  milagres,  onde  se  conlandia.m  ladrões  e  meretrizes  da  ultima  espécie, 
podiam  contar-se  umas  vinte  casas  tão  mal  afamadas,  como  as  que  S.  Luiz  de- 
signara para  a  libertinagem  publica.  Já  aeima'íizemos  observar  que  estas  ruas 
ficavam  sempre  proxiiiias  (le  qualquer  centro  de  prostituição.  Assim  a  rua 
Fransnonain  eslava  por  assim  dizer  dependente  da  rua  í.hapon.;  a  rua  íknirg-l- 
Abbé  da  rua  Hueleu,  a  de  Coeatris  da  de  Glatigny. 

Desde  o  principio  que  as  ribaldas  tiveram  de  escolher  residência  próximo 
do  logar  das  suas  reuniões  paia  a!li  poderem  ir  a  Iodas  as  horas  sem  se  expo- 
rem aos. insultos  e  arruaya  do  populacho.  A  rua  Bouvíj-l-Abbé  que  foi  aberta 
tora  do  recinto  de  Fiiippe  Augusto,  no  termo  d'abbadia^Sítíítí-.U(íí7iíi-í/e-s-C'((n/i/>s'. 
participava  da  má  reputação  da  rua  ou  antes  do  beco  .sem  sabida  chamado 
Hueleit,  entrada  da  actual  rua  de  nome  Grand-Hiiiieur.  (Sauval,  t.  i,  pag. 
120)  apresenta  uma  locução  proverbial  que  nos  faz  conhecer  quaes  eram  os  prin- 
cipaes  habitantes  d'cssa  rua.  São  da  rua  Bour<j-l-Abbé,  os  que  não  querem  mais 
do  que  amor  e  simplicidade  (^nimplesss.) 

Em  quanto  á'rua  Hueleu,  exclusivamente  destinada,  desde  a  origem  até 
hoje,  á  prostituição,  não  devia  o  nome,  como  o  diz  o  abbade  Lebeuf,  a  um  ca- 
cavalheiro  chainado  ílàgo  Lúpus  (eai  francez  antigo  Ihie-ku,)  que  viveu  no 
século  XII  e  fez  inuiías  doações  á  egreja  de  Saint-Magloire ;  senão  aos  gritos  [hiices) 
que  se  davam  á  gente  honesta  que  o  acaso  levava  a  este  logar  infame.  Esta 
ctymologia  está  coníirmada  pelo  nome  dado  á  dos  ínnocentes  que  esta  rua  teve 
pela  mesma  cpoclia.  Depois  tomou  o  de  Grand-lluelea  para  a  distinguir  da 
Petit-Hueleu,  sua  immediata,  ao  principio  beco  Palée  e  mais  tarde  comparada  á 
de  Hueleu  pelo  vergonhoso  destino  que  tomara. 

«Quando  se  via  entrar  um  iiomem  n'uma  d'estas  ruas,  dizem  os  auctores 
do  .Dicíionaire  íiltiloriqas  de.  la  cille  ds  Paris,  facilmente  se  adi\  inhava  o  ijue  alli 
o  levava  e  dizia-se  aos  garotos  :  !íue-le,  isto  é,  grita  atraz  d'elle,  Faz-lhe  Irura.y* 
Seja  como  fôr,  de  todos  os  eeiUros  de  prostituição  de  Paris,  o  de  líuelen 
foi  o  que  mais  terrível  fama  leve  e  foi  elie  que  determinou  as  severas  medi- 
das de  repressão  que  Carlos  ix  estendeu  a  todos  os  logares  impudicos  da  ca- 
pital. Pode  com  boas  auctoridades  susteiitar-se  que  os  garotos  tinham  costume 
de  grilar  ao  lobo  {im  loup)  e  por  corrupção  honloulou,  quando  um  homem  na 
rua  fallava  com  uma  meretriz,  ou  quando  uma  d'ellas  tinha  a  imprudência  de 
apresentar-se  em  publico  com  os  dislinctivos  da  sua  vergonhosa  industria. 

As  ruas  que  eouununicavam  com  a  rua  Chapon  niio  eram  habitadas  por 
melhor  gente  do  que  cila.  Por  muito  tempo  a  rua  Triuisnonaiii  serviu  para 
trocadilhos  mais  ou  menos  obscenos  do  populacho  que  lhe  chamou  Tro)isse-.\o- 
nain  ou  Tasse-i\onain  e  Trolte-Piilain.  X  rua  Ferpillon  cm  cujo  nome  se  julga 
encontrar  o  d'um,  dos  seus  primeiros  habitantes,  foi  ao  principio  chauuula  Ser- 
pillon,  palavra  antiquada,  que  corresponde  a  torcbun  (rodilha,  trapo  velho  para 
limpar.) 

A  rua  Monlmoréney,  onde  os  fidalgos  d'este.  titulo  em  outro  Icmpo  tive- 
ram um  sumptuoso  palácio,  era  unicamente  conhecida  pelo  nome  Coar  aa  I  (7- 
lain  (Còrle  do  villão)  por  causa  de  uma  espécie  de  (]òrtc  de  .Milagres  que  nella 
havia.  A  nsaior  parle  das  ruas,  tora  dos  muros,  ou  para  além  do  recinto  das 
muralhas,  construído  por  Fillippe  Augusto,  linham-se  dedicado  á  prostituição 


DA     ritOSTITUIÇAIi 


127 


livre,  que  alli  nfnínlava  socegadamcnte  as  ordens  do  prcboslado  c  ns  agentes 
da  policia  do  (^iialelet.  Assim  as  ruas  das  De)i,rzPorl!'s  (Duas  porias,)  a  de 
Ikanrepaire  (Bom  asyln,)  c  da  Itenarã  (da  Rapnza)  a  de  Lion-Saint-Snuvet' 
(Leão  de  S.  Salvador)  de  direito  perlenciam  ás  prostitutas  de  intima  espécie. 
A  rua  Deu.r-1'oiies  que  tirou  o  nome  das  porias  que  tinha,  e  que  á  noite 
eram  ieeiíadas,  l'oi  induvitavelmente  um  lo;.;ar  de  prosíituiç,'ão,  o  que  suilicien- 
tcmente  está  demonstrado  polo  alcunlia  obsceno,  conservado  até  ao  século  xv. 
Com  este  nome  obsceno  está  designada  n'uma  das  listas  das  ruas  de  Paris,  publi- 
cada por  Lebeuf,  conlbrme  um  nianuscripto  da  abbadia  de  Santa  Genoveva 
{Hi.tt.  rle  In  villr  et  du  diocese  de  l>aris\  tit.  iii,  nag,  603.)  Na  conta  do  Domínio 
de  Paris,  do  anno  de  líil  (Sauval,  tit.  iii,  pag.  273,)  o  cobrador  da  cidade 
declara  haver  recebido  de  .íoão  Jumauli  as  rendas  de  uma  casa,  curral  c  es- 
tabulo em  Paris,  rua  llvatec...  próximo  dfí  Tíre\^...  marcada  com  o  Escudo 
de  Borgonha  pertencente  ao  censo  real. 

A  rua  Tiver .  . .  de  que  n'csia  conta  se  trata  conservou  a  sua  infame  de- 
nominação ate  ao  século  xvr,  em  que  a  rainha  Maria  Sluarí,  muUier  de  Fran- 
cisco II,  passando  alli  uma  vez,  perguntou  pelo  nome  da  rua  ás  pessoas  que  a 
acompanhavam,  dando  por  isso  logar  a  que  lhe  fosse  mudado  o  nome  primi- 
iivo.  Seja  como  fòr,  esta  anedocta,  que  Saint-Foix  assegura  ter  colhido  da  tra- 
dição local,  deu  logar  a  que  em  1809  se  lesse  o  nome  de  Maria  Stuart  no  le- 
treiro da  rua  Tirebondin. 

Os  nomes  das  ruas,  inventados  e  corrompidos  pelo  povo,  que  gosava  com 
os  trocadilhos  mais  deshonestos,  quasi  bastariam  para  dar  $>  conhecer  os  covis 
da  prostituição  publica  e  particular  na  antiga  Paris.  Sem  sahir  dos  novos  bair- 
ros que  compunham  a  Cidade  e  que  se  ramificavam  para  o  norte  e  para  a  mar- 
gem direita  do  Sena,  além  e  áquem  do  recinto  de  Filippe  Augusto,  encontramos 
nos  antigos  inventários,  as  ruas  Truanderie,  Pmls-d'Ãiiwur,  de  Poilec....,  de 
Merdevel,  de  Putiç/neuse,  de  PiiJe-y-mm-sc,  etc. 

Estes  nomes  só  por  si  dizem  o  que  eram  as  ruas  que  os  tinham.  A  rua 
da  Truanderie,  única  que  atravez  seis  séculos  conservou  o  seu  nome,  dava  não 
só  asylo  as  prostitutas  vagabundas,  mas  também  a  mendigos,  a  ladrões,  a  vadios, 
n'uma  palavra,  aos  truões.  A  rua  Puils-d'Amour,  agora  Pelite-Truanderie, 
tinha  um  poço  celebre  de  que  já  falíamos  e  que  as  namoradas  conheciam  per- 
feitamente. Este  poço,  cuja  recordação  se  relaciona  com  a  de  muitas  chronicas 
d"amor,  estava  no  centro  da  pequena  praça  Ariana,  cujo  nome  primitivo  pa- 
rece ter  sido  praça  da  Rainha,  provavelmente  por  causa  d'alguma  rainha  de 
ribaldos  ou  d'amor  sagrada  com  a  agoa  d'aquelle  poço. 

A  rua  Poilec...  pode  ainda  ser  reconhecida  peio  seu  moderno  nome 
l'elicon,  que  um  indiscreto  pudor  crismou  em  Pwíjh',  (Purgada)  no  principio 
da  Revolução ;  esta  rua  nunca  variou  d'habitantes  e  n'elia  ainda  .se  encontram 
os  seus  maus  costumes.  A  rua  Merderel  ou  Merderet  ou  Merderiau  limpou-sc 
um  pouco  com  os  nomes  posteriores  de  Verderet  e  Verdereíe,  mas  em  parle 
manteve  os  seus  antigos  usos  e  a  prostituição  passeia  alii  agora  como  n'outros 
tempos. 

A  lua  PatiíjnenM  no  bairro  de  Santo  António  é  actualmente  (leofjroij- 
l.asnier.  .i  i'ua  Puíentj-Musse  tomou  um  nome  mais  honesto,  transformando-se 
em  Petil-Musc.  Guillot  no  seu  iíenerario  indica  outra  rua  do  mesmo  nome  que 
Lebeuf  julga  reconhecer  na  de  Cloche-Perce  ou  da  Cloche-Percce. 

Não  é  preciso  dizcr-se  que  estas  ruas  e  vielas,  frequentadas  pelas  mere- 
trizes e  seus  infames  saleliíes,  eram  notáveis  pela  sua  porcaria  e  mau  cheiro 
e  ainda  n'este  estado  nos  appareeem  no  século  xvii,  quando  os  commissarios  das 
vias  publicas  fizeram  uma  visita  sanitária  á  capital.  Este  exame  evidenciciu  ((ue  a 
maior  parte  dos  burdcis  eram  cloacas  infectas  que  perigosamente  infeciunavam 
o  ambiente. 


CAPITULO  XIII 


SUMMARIO 


Ord'--uaçâo  iumptuaiia  de  Filippe  Augusto— Leg^lslação  dos  reis  de  França  contra  a  diisoIuçSo  e  superflui- 
dade dus  vestuários.— As  rainbas  da  rihaldia.— ProliibifSes  do6  prebostes  da  Paris  e  decretos  do  parlamento.— De- 
■•reto  de  2G  de  junho  de  1  ili).— Pragmática  do  rei  Ueurique  vi  d'Inglaterra.— Decreto  do  parlamento  de  17  d'abril 
de  1429,  proUibindo  os  enfeites  das  doazellas.— Uainlias  e  priucezas  d'amor.— Ordinário  de  Paris.— Joaninha,  viuva 
de  Pedro  Mi:.'ijel,  Joaaninlia  Xeufville  e  Joauninha  Florida.— Os  cintos  de  prata.— Inventários  dus  despojos  de  Marga- 
rida, mulher  de  Pedro  Rains  e  de  Louren^a  Villeis.— Joanua  a  Paillarde  e  Ignez  a  Peiíuena.— OrdeuajSo  d'Henrique 
II— Joanninha  Ruisson— Dos  e  das  que  viviam  da  alcovitiee  em  bordeis,  alui'a\  am  quartos  para  o  peccaJo  e  regiam 
casas  de  meretrizes.- O  mercado  dos  Porceaux. 


v  VIMOS  que  o  preboste  de  Paris  pur  uma  ordenação  de  1360. 
sob  pena  de  conlisco  c  de  mulla,  prohibira  que  as  nuiiheres 
publicas  trouxcsscisi  nos  vestidos  ou  nos  ciiapeus  botões  de  prata 
ou  dourados  c  usassem  pérolas  e  capas  torradas  de  pelles.  Esta 
ordenação,  a  mais  antiga  que  conbeceinus  relativa  á  policia 
sumptuária  das  prostitutas,  foi  certamente  precedida  de  outras 
que  não  Ibrain  conservadas  nos  archivos  do  (Ihatelet  de  Paris.  Filippe  .4ugusto, 
foi  o  primeiro  rei  que  iiuiz  corrigir  o  luxo  no  vestuário,  ou  para  melbor  dizer, 
foi  o  primeiro  que,  st^b  o  j)rcte\to  de  reformar  o  vcstuarin  para  interesse  pu- 
blico, o  fez  servir  para  designar  a  hierarcliia  social,  segundo  o  nascimento  e 
fortuna.  Prtde  pois  suppòr-se  que  desde  os  primeiros  regulamentos  de  Filippe 
Augusto,  relativos  ao  luxo,  as  prostitutas  de  profissão  não  poderam  tornar-se 
a  vestir  como  damaí  e  castaUãs,  mas  d'esla  legislação  de  Filippe  Augusto  ape- 
nas ficaram  ircordações. 

A  legislação,  sobre  o  mesmo  assumpto,  de  Filippe.  o  Formoso,  que  sem 
duvida  nada  mais  era  do  (jue  a  confirmação  do  antecedente,  não  leve  a  mesma 
surte,  podciu!o-sc  datar  de  láíli  a  legislação  dos  reis  de  França,  contra  a  dis- 
solueão  (■  auperjluiilade  dos  vestuários.  Na  ordenação  de  iiOi  não  se  trata  das 
rnulberes  publicas,  nem  do  vestuário  que  lhes  pertencia  ;  mas  deve  crèr-se  não 
tereiu  sido  mais  privilegiadas  que  toda  a  mais  gente  de  baixa  condição,  que 
não  devia  usar  nem  cair,  nem  arminíio,  nem  ouro,  nem  pedras  preciosas,  e 
que  eram  obrigadas,  dentro  do  praso  de  um  anuo,  a  desfazer-se  d'esscs  artigos 
probibidos,  adquiridos  anteriormente  á  ordenação. 

A  execução  de  similhanle  ordem  não  era  cousa  fácil  e  enire  as  desobe- 
diências mais  teimosas  encontram-sc  as  das  rainhas  de  ribaldia  que  sustenta- 
ram, que  um  edito  relativo  ás  mulheres  vulgares  não  .se  podia  entender  com  ei- 
las  e  que  o  rei  de  França  não  podia  querer  desbonral-as  até  obrigal-as  a  usar 
vestidos  de  12  soldos  a  vara. 

A  ordenação  de  Filii)pc,  o  Foriaoso,  só  foi  o  ponto  de  jiartida  de  todas  as 
ordenações  do  mesmo  género,  que  só  fivcnim  por  hni  ieno\ai-a  c  completal-a. 

HisroniA  nx  l'uusTiTUir..to  Tomo  ii—Koliu  17. 


I  'V)  HISTOKIA 

ndilicionaiitlo-llic  piTscri|j(;ões  t|iii.'  variavam  cdm  as  iiiiidas  o  nsns.  Muitas  dVs- 
las  oi-deiiae6t>s  d('\em  tor  sido  publicadas  antes  da  de  \'.Wi,  (jue,  unicamente 
dirigida  aos  habitantes  de  Monipeilier,  especialmente  ás  mulheres,  está  cheia 
de  minuciosidades  sobre  a  f(5rma  dos  vestidos  e  qualidade  das  fazendas.  E'  dif- 
ticil  de  aerediiar-se  que  muitos  regulamentos  sumptuários,  pelo  menos  tão 
igualmente  minuciosos,  não  tivessem  sido  applicados  ás  mulheres  de  Pai'is  no 
largo  espaço  de  lemp','  que  medeia  entre  o  primeii-o  edilo,  lií'i,  e  o  de  1367. 
o  qual  apenas  tinha  força  de  lei  em  Monipeilier.  Apenas  se  encf)ntra  o  edito  do 
preboste  de  l'aris,  datado  de  1360,  |)or  nós  a<'ima  citado  e  que.ajienas  se  re- 
feria ás  mulheres  communs.  Ceríamente  houve  outros  éditos  análogos,  sem  con- 
tar com  o  que  exclusivamente  tratava  dos  cintos  dourados,  que  a  ti'adição  trouxe 
até  nós,  embora  o  texto  original  tenha  desapparecido ;  o  texto  também  era  uni- 
camente uma  paraphrase  de  um  artigo  da  ordenação  de  Filippe.  o  l-ornwso. 
Mas  motivos  ha  para  crer  (}ue  as  meretrizes  de  Paris  se  nifstraram  pouco  dó- 
ceis ás  ordens  do  prebostado  e  que  se  pozeram  ena  aberta  hostilidade  com  os 
agentes  encarregados  de  fazer  executar  a  lei,  pois  que  no  decurso  do  século  xv 
vemos  muitas  vezes  i"i'apparecer,  '■  sempre  com  augmenio  de  severidade,  as 
prohibições  (jue  o  preboste  diiMgia  ás  suas  humildes  súbditas  e  que  os  decretos 
lio  parlamento  não  cessavam  de  corroborar. 

Por  uma  ordenai-ão  de  8  de  janeiro  de  I  il'i,  unicamente  relativa  á  pros- 
tituição, o  preboste  prohibiu,  sob  pena  de  confiscação  e  multa  arbitraria,  tanto 
em  Paris  como  em  outra  parte,  tjue  as  mulheres  dissolutas  tivessem  a  ousadia 
de  usar  eideites  d'ouro  ou  prata  nos  seus  \eslidos  e  chapéus,  botões  de  praia 
ou  doui-ados,  pendas,  cintos  de  ouro  (ju  dourados,  capas  forradas  de  pellí'>,  c 
tivelas  de  prata  nos  sapatos.  Oeu-se-tlies  o  praso  de  oito  dias  para  abandonar 
esses  enfeites  e  d'elles  se  desfazerem,  passado  o  qual  praso  os  agentes  do 
prebostado  poderiam  prender  as  desobedientes  em  qualquer  logar  em  que  fos- 
sem encontradas,  exceptuando  nas  egrejas,  send"  levadas  ao  (".batelet  onde  lhe 
seriam  tirados  os  vestidos  e  castigadas  como  merecessem. 

Esta  ordenação  foi  renovada  e  apregoada  ao  som  de  trombetas  nas  ruas 
e  esquinas  de  Paris  em  I  ilíl,  o  que  prova  n.ão  ter  sido  muito  observada  pelas 
interessadas  e  que  a  sua  persistência  em  não  obedecer'  linha  desanimado  o  /elo 
dos  agentes  do  prebostado. 

O  parlamento,  apesar  da  guerra  civil,  da  pesle  e  da  fome  que  então  de- 
\aslava  a  capital  e  muitas  províncias  do  reino,  considerou  bastante  importante 
a  questão  sumptuai'ia  relativa  ás  prostitutas,  e  a  26  de  junho  de  1130  evjie- 
diu  imi  decreto  no  qual  a  essas  infelizes  era  prohibido  o  usarem  vestidos  de 
«auda  e  toda  a  espécie  de  pell<'s  de  quahjuer  valor  que  fossem,  cintos  doura- 
dos, botões  nos  chapéus,  sob  pena  de  prisão,  conliscação  e  multa  arbitraria 
passado  um  praso  de  oito  dias  depois  i!a  publicação  do  decreto. 

O  decreto  do  parlamento  tião  foi  melhor  obedecido,  de  que  o  lora  o  edito 
do  |)reboste  de  Paris;  e  foi  mister  que  cinco  annos  depois  este  magistrado  repe- 
tisse as  suas  ordens,  sem  que  todavia  ainda  desta  vezcolhesse  melhor  resultado. 

\s  prostitutas  não  queriam  renunciar  aos  enfeitos  e  constantemente  illu- 
diau)  o  cumprimento  das  ordens,  (juer  modiCcando  alguma  cousa  nas  inven- 
<;ôes  da  moda,  quer  imitando  o  luxo  das  mulheres  honestas. 

Parece  que  o  producto  da  apprehensão  dos  vestidos  c  jóias  prohibidas 
dava  n'aquclle  tempo  um  resultado  avultado,  pois  o  preboste  de  Paris  dVlle  se 
apropriava  como  um  dos  rendimentos  do  seu  cargo;  mas  IIenri(|ue  vi,  rei  de 
Inglaterra,  que  em  14  de  maio  de  Ií2l  era  senhor  de  Paris,  não  quiz  i'on- 
senlir  que  esla  infame  fonte  de  rt'ceila  se  desviasse  do  seu  erário  e  un)a  or- 
denação d'a(iuelle  anno  reeommendava  ao  preboste,  que  (Palli  em  dcanfe  não 
tornasse  a  apropriar-se  dos  cintos,  jóias,  vestidos  e  enfeites  prohibidos  das  mu- 
lheres dissohilas  ( r.    irnhr  df  Drilfii.  ilns  rfis  iln   V."  Ht/iins-tiiiA 


'JiHsri  11  II  A(i 


l;íl 


Liii  iKivi)  (lecrelo  lio  parlaineiilo  ile.  17  ile  abril  ilf  I lili  (iiidiiliiu  <mi;- 
(•rifi'ites  usados  pelas  meivlri/A's»  os  veslidos  tie  cauda,  Iodas  as  fM>llt>s,  (|ui-r 
fossem  usadas  em  eollaiinlios,  piínlMs,  dei)i-iiaiid(i  ou  com  iiuaiquer  outra  ap- 
plieação.  O  mesmo  decretn  tambero  prohibe  \iboloes  nos  i  liapeiis,  cintos  de 
seda,  de  ouro  ou  de  prata»  que  são  cnleites  para  niulliercs  lioriradas. 

A  repetição  d'eslcs  decretos  prova  a  teimosia  das  prostitutas  em  des- 
obedecer ás  ordenações;  não  podiam  convencei--se  de  que  iiaviam  de  estar  su- 
jeitas, como  a  gente  de  íuimiide  condição,  á  legislação  sum|itiiaiia,  que  á  inedidu 
que  o  luxo  augmenlava  em  todas  as  classes  sociaes,  se  lurnava  mais  rigíirosa. 
Durante  os  séculos  \\  e  xvi,  em  que  os  reis  de  França  davam  n  triste 
exemplo  da  prodigalidade  no  luxo,  eram  elles  os  próprios  todavia  que  sob  as 
mais  severas  penas  prohihiam  tudo  aquillo  que  podesse  concorrer  para  a  dis- 
■iolu(;ãú  dos  vestuários;  nem  sequer  permitliam  ás  suas  damas  de  honor  e  gen- 
tis-bomens  que  usassem  certos  tecidos  reservados  para  os  principes  e  prinee- 
zas :  prohibiam  a  toda  a  classe  de  gente  o  us(j  de  certos  bordados  e  passaman- 
taria  <le  ouro,  de  prata,  ou  de  seda;  mas  as  mulheres  publicas,  que  se  intitula- 
vam rninlia.s  e  princesas  dr  nmor,  nao  faziam  caso  dos  éditos,  e  nas  ruas  que 
lhes  eram  destinadas  continuavam  passeando  essas  surperíluidades  proliibidas. 
Deve  suppor-se  que  assim  vestidas  não  se  aventuravam  a  percorrer  as  ruas 
Iwiic.stjs,  pois  que,  despertando  a  attenção,  teriam  contra  ellas  concitado  o  odií. 
dos  transeuntes  iionrados.  .lá  dissemos  qui'  as  meretrizes  não  eram  s_vmp;iihi- 
cas  ao  povo,  que  frequentemente  as  injuriava,  lhe  atirava  lama  e  muitas  ve- 
zes pretendia  espancal-as. 

De  vez  em  quando  era  necessaiio  dar  satisfação  á  \ingança  popular,  cas- 
tiganilõ  uma  dessas  mulheres  descaradas  que  voluntariamente  contrariavam  as 
leis;  e  para  isso  prendiam-se  na  rua  algumas  dessas  desgraçadas,  a  (juem  a 
voz  publica  accusava  como  meretrizes  e  que  estavam  adornadas  com  enfeites 
probibidos.  Estes  castigos  nunca  alcançavam  as  mais  culpadas,  ([Ue,  sendo  as 
menos  p<dires,  traziam  sempre  no  bolso  com  que  cegar  a  \igilancia  dos  agen- 
tes ilii  preboslado,  ainda  que  fiisseni  encontradas  com  toda  a  .sua  innnpii,  como 
então  era  uso  dizer-se.  Havia  muitas  até  que  mensal,  Oii  semanalmente,  paga- 
Tam  a  esses  agentes  uma  certa  quantia  paia  nunca  ser  inquietadas  no  pacilico 
goso  do  luxo  prohibido. 

As  que  eram  levadas  para  a  prisão,  geralmente  só  tinham  no  corpo  al- 
guns farrapos,  despojos  insufíicienles  para  pagar  os  emolumentos  á  policia.  As- 
sim Sauval  e  Delamare  copiaram  das  contas  do  dominio  de  faris  verbas  curio- 
sas, que  demonstram  a  pobreza  das  victimas  vulgares  do  Cbatelel.  O  extracto 
do  Ordinário  de  Paris,  no  capitulo  Forfaiturfs,  Lspace^i  ti  Áubaines,  do  anno 
de  1438  merece  ser  conhecido,  como  Sauval  o  reproduz  nas  Provas  das  suas 
Antiguidades  de  Paris: 

«Pela  venda  de  uma  capa,  com  que  Joaiininlia,  NÍu\a  de  Pedro  Miguel, 
mulher  de  amores,  eslava  coberta  e  apertada  com  um  cinto  de  seda  preta,  com 
fivela  e  oito  botões  de  prata,  com  o  pezo  total  de  duas  onças  e  meia,  em  cujo 
estado  foi  encontrada  passeando  pela  cidade,  desobedecendo  ás  ordenações,  c 
pelo  que  foi  presa,  sendo  a  dita  peça  de  vestuário  e  enfeites  confiscados  |»ara  o 
rei  e  vendidos  em  hasta  publica  a  10  de  julho  de  i427,  a  saber:  as  pecas  de 
vestuário  pelo  preço  de  sete  libras,  doze  soldos,  cuja  quarta  parte  pertence  aos 
agentes  que  a  prenderam. >• 

«Pelo  valor  de  um  cinto  velho  de  seda  preta  em  que  havia  uma  chapa, 
oito  botões  de  prata  e  uma  fivela  de  ferro  branco,  encontrado  a  Joaiiiiinha 
Neufville,  presa  |)or  isto.» 

Não  se  detinhanr,  não  se  prendiam  senão  as  mulheres  que  se  encontra- 
vam na  via  publica  com  vestidos  que  não  deviam  trazer;  d'onde  resulta  que 
eram  livres  de  se  vestirem  a  seu  gosto  no  interior  de  suas  casas   e  ainda  no 

* 


lo?  .        iiisior.u 

recinto  dos  logares  próprios  para  o  evercifio  da  sua  escandalosa  profissão.  As 
inuiliercs  d'amores,  (jue  não  eram  obrigadas  a  ncnluinia  declaração  prévia  nos  re- 
gistros do  (Ihatelet  e  que  se  suhtrahiam  d'csta  forma  á  ignominia  da  sua  con- 
dit'ão,  podiam  pelo  seu  nascimento  e  pelo  seu  estado  civil,  conservar  uma  appa- 
rencia  dMionrailcz,  occultamio  a  sua  verdadeira  profissão,  até  que  [>or  um  acaso 
fatal  se  descobrisse  o  segredo  da  sua  existência  vergonliosa.  .\ssim,  Joan- 
ninba,  viuva  de  Pedro  Miguel,  não  tinba  alcuniia  onde  se  rellectisse  o  escân- 
dalo da  sua  eonducta;  Joanninha  iN'eufville  tinba  um  bom  appellido  entre  agente 
honrada:  emcjuanto  que  .loanninba,  a  Fleurie,  ou  Poissonière,  tinba  dois  em  to- 
gar d'um,  e  o  uiíinio  parece  indicar  que  se  dedicava  alternaiivam(>nte  á  pros- 
tituição e  á  venda  de  peixe. 

Além  d'isso,  já  dissemos  n'um  capitulo  anterior  que  o  actual  bairro  atra- 
vessado pelas  ruas  Poissonière  e  Moniorguiel  era  inteiramente  occupado  pelos 
habitantes  das  Cortes  dos  Milagres  e  pela  clientela  da  prostituição.  Aecrescen- 
taremos  agora  que  os  vendedores  de  peixe,  tendo  necessidad''  de  estar  próximo 
do  logar  oiid(>  o  peixe  desembarcava,  alojaram-se  ao  principio  no  sitio  cha- 
mado Vollarroiíeu.r.  que  mais  tarde  veio  a  ser  a  rua  dos  pescadores.  Facilmenti' 
se  adivinham  os  motivos  que  contribuíram  para  dar  a  alcunha  de  Pescadora  » 
uma  mulher  fácil,  que  frequentava  os  mercados  de  peixe,  ou  que  andava  rodeada 
de  pescadores.  O  nome  de  Joanninha  não  era  commum  e  genérico  para  designar 
todaS  as  miilhercs  publicas,  como  o  cn''  Rabnlaux.  Não  devemos  esquecer  no- 
tar ainda  que  os  objectos  contrários  á  ordenação  encontrados  em  poder  das  mu- 
lheres de  má  vida,  eram  equiparados  aos  objectos  perdidos  na  via  publica,  os 
quaes,  não  sendo  reclamados  em  tempo  opporluno,  pertenciam  ao  fisco.  Depois 
d'um  praso  de  50  dias,  uns  c  outros  eram  vendidos  em  hasla  publica,  e  o  pro- 
ducto  da  venda,  (jue  era  iníinio,  distribnia-se  pelo  rei,  pela  cidade  c  pelos  em- 
pregados da  policia. 

Sauval  não  ana!\ sou  todas  as  vendas  d'esta  espécie  deseriptas  nas  con- 
tas do  Ordinário  de  Paris,  mas  tomou  nota  d'elias  e  d'ahi  .se  conciue  que  eram 
mui  raras,  pois  menciona  muitos  annos  em  que  não  encontrou  nenhuma,  pelo 
menos  nos  registros  do  prebostado.  A  conta  de  I  i'i-7  contem  este  artigo  : 

'(\'enda  tie  um  cinturão  com  fivela  e  quatro  bolões  de  prata  eneonti'ado 
em  poder  de  Gmjomie  la  Uroijitre,  mulher  de  ribaldia,  pertencente  ao  rei  por 
confiscação. . .» 

.Vos  cintos  de  prata  ou  com  cila  adornados  faziam  os  agentes  de  policia 
especial  guerra,  provavelmente  para  assim  justificar  o  provérbio.  .4s  multas,  a 
que  o  uso  illegal  dos  ciiitos  dava  logar,  estão  registradas  nas  coiitas  dos  an- 
nos ISoi,  1457,  1 'itiO,  1 Í-6J  e  1464.  Desde  esta  ultima  epocha  as  persegui- 
ções são  menos  frequentes,  o  que  leva  a  crer  eslarem  os  cintos  já  fora  de  moda. 
O  extracto  do  capitulo  das  Forlailnres  íie  1  íõ7,  csiá  concebido  n'estcs  termos: 

v<Muitos  cintos  para  uso  de  mulheres,  com  fivela  e  botões  de  prata  per- 
tencentes ao  rei  por  ferem  sido  confiscados  a  nuillicres  de  má  vida.  que  os 
usavam  nas  ruas  de  Paris  confra  as  ordenações  rí'guIadoras  do  assumpto. »> 

Na  conta  de  I  i.'j9  i-nconíra-se  »  inventario  da  roupa  de  duas  mulheres 
de  vida  fácil,  de  apjiellidos  nobres,  poslo  que  vesti.ssem  com  grande  ditierença. 
A  primeira  pelo  vestuário  miserável,  revelava  o  triste  estado  a  que  o  vicio  a 
havia  reduzido,  sem  que  os  encantos  lhe  tivessem  dado  meios  para  levantar-se 
da  sua  abjí-eção :  sem  dusida  para  ser  presa  com  tal  vestuário  devia  ser  velha 
f  feia  : 

••i'm  vesti<lo  eurto  de~|'anno  cinzenio  coiii  enfeites  de  seda  branca,  e  tudo 
isto  no  fio,  umas  velhas  calças  de  panno  violeta  remendadas,  e  um  gibão  de 
fusfão  como  o  f|iie  Margarida,  mullxT  de  Pedro  Piains,  eslava  vestida,  foram 
declarados  pert(Micentes  ao  rei,  etc.» 

K'  singular  encontrar-se  uma  mulher  puldica  com  gibão  e  calças  comn 


IH    IMUISI  I  ll«    V(J 


I3:{ 


SC,  |)(ir  iH'cossi(l;ule,  tivesse  (luerido  (iisl'art.'íir-se  em  hoiiieiii.  A  se^undii  ré,  que 
sem  duvida  Ibi  presa  por  aecusayàn  do  povo  ao  sahir  da  e^-^eja,  di-n  mais  lu- 
ero  aos  agentes  t|ue  a  levaram  ao  ('lialeie(: 

«Um  cinto  com  fivela  e  botòcs  de  prata  dourada  de  peso  de  duas  ouças  c 
meia,  com  um  cinturão  mais  largo  pòr  baixo,  também  guarnecido  de  prata  dou- 
rada; um  rosário  de  coral,  um  li/nit.v  Dei  de  praia  com  fechos  de  jtrata  ilou- 
rada  e  uma  capa  de  vcllii  lo  forrada  de  vair,  declarados  perleneentes  ao  rei 
nosso  senhor,  em  virtude  de  eontiscaçãõ  feita  a  l.durenea  de  Vilieis.  mulher  de 
má  vida,  presa  por  uso  d 'estas  prendas,  etc.» 

Era  esta  uma  mulher  ?iol)re,  qualilícada  de  prostituta,  obrigada  a  aban 
donar  ao  rei  os  objectos  de  luxo  que  nem  mesmo  por  devoção  tinha  direito 
de  trazer.   Esta   Lourença  de  Villers  sabia  \òr,  pois  que   ia   á  egreja  com  o 
seu  Ágnus  Dei.  ou  livro  de  missa,  o  que  decerto  era  uma  excepção  entre  as 
mulheres  de  má  vida. 

Na  conta  1460  as  multas  por  usar  vestidos  e  cintos  proliihidos  pare- 
cem dever  ter  sido  numerosas,  mas  não  d'uma  grande  utilidade  para  os  que 
as  lançavam  :  a  «.Joanninlta  a  Bnllariíe,  prostituta,  foi  apprchendido  um  vestido 
de  panno  cinzento  com  forros  Itrancos,  pois  loilo  o  género  de  forros  eram  tam- 
bém prohibidos ;  a  líjacz  a  Peqiifwi,  mulher  casada,  mas  de'  vida  dissoluta, 
e  como  tal  pi'esa  muitas  vezes  por  igual  razão,  foi  apprehemlido  um  cinto  em 
mau  usT.  E  assim  com  raras  excepções  a  todas  as  demais. 

l.síe  ultimo  artigo,  como  já  atiirmamos,  prova  que  muitas  vezes  mulheres, 
casadas  exerciam  a  profissão  dé  prostitutas.  Sendo  o  uso  dos  cintos  n'aquella 
época  objecto  de  espcciaes  perseguições,  cremos  que  uma  ordenação  particular 
teria  motivado  as  que  em  maior  grau  solTieram  as  ribaldas,  contrariando-as. 

Estas  mulheres  eram  incorregiveis,  quando  se  tratava  dos  seus  adornos ; 
Iodas  tinham  mais  ou  menos  paixão  pelas  jóias  e  não  temiam  e\põr-se  á  pri- 
são e  ás  multas  para  ter  o  goso  de  se  enfeitarem  com  adornos  douro,  ou  de  prata, 
ou  mesmo  até  de  estanho  prateado.  ISão  era  isto  porque  quizessem  disfarçar  a 
sua  profissão  deshonrosa  e  pretendessem  confundirera-se  com  as  mulheres  ho- 
nestas. Elias  nã»  se  revollavam  contra  o  espirito  das  ordenações  com  que  se 
pretendia  remediar  a  confusão  das  classes  sociaes  entre  homens  e  mulheres  de 
lodos  os  estados,  os  quaes,  diz  uma  ordenação  de  Henrique  ii,  p07'  esle  meio, 
não  podem  dislinguir-se  uns  dos  outros.  As  ribaldas  de  profissão,  pelo  contra- 
rio, não  pretendiam  apparentar  o  que  não  eram,  mas  gostavam  de  adornar-se 
para  chamar  a  attençào  e  para  rivalisar  entre  si  cm  luxo. 

t]omo  os  coitares,  braceletes  c  anneis  eram  prohibidos,  illudiani  esta  pro- 
liibição,  u.sando  jóias  devotas:  rosários,  nominas,  cruzes  e  anneis  bentos;  cm- 
Ijora  os  agentes  policiaes  não  tV)ssem  todos  bastante  devotos  para  fechar  os  olhos 
a  estas  piedosas  contravenções  e  não  deixassem  de  esperar  as  culpadas  ás  por- 
tas das  egrejas  para  as  levar  ao  Chntelel  ng  meio  da  gritaria  do  populacho. 

Parece  que  Luiz  xi,  fazendo  elle  próprio  um  grande  abuso  de  nominas  íí 
amuletos,  de  rosários  c  'Agnus  Dei,  providenciou  severamente  contra  as  mu- 
ilicres  de  má  vida  que  usassem  objectos  similhantes  que  não  só  lhes  eram  confis- 
cadas em  proveito  do  rei  as  jóias,  que  nem  o  seu  caracter  de  devoção  podia 
pòr  fora  do  alcance  da  lei,  mas  eram  também  condemnadas  em  multa  as  mulhe- 
res que  as  usavam.  Em  1403  Joanninha  Ruisson  foi  condcmnada  a  quinze 
soldos,  quatro  dinheiros  parisii  (uns  vinte  e  cinco  francos)  pelo  uso  illcgal  de 
dois  rosários  de  coral.  Luiz  xi  mandou  também  castigar  rigorosamente  todas 
as  ribaldas  que  fossem  encontradas  vestidas  de  homem  nas  ruas  de  Paris. 

No  capitulo  de  crimes  e  delirtos  do  Ordinário  de  Paris  em  1491,  lè-se  o 
seguinte : 

«Pela  vcn<la  d'um  fato  preto  de  homem  e  d"um  chapéu,  tudo  velho,  com 
que  Joanna  a  ribalda  eslava  vestida  e  que  n'esse  estailo  foi  levada  presa  para 


\'\í  '  HISTORIA 

O  (.'-liatflct  lit'  Paris,  a  il  <li'  maio  ultimo,  declaiados  clu  rei  por  lontisfação.» 
Não  ousamos  cmillir  opinião  acerca  do  disfarce  masculino,  que  parece  ter 
lid(»  muitas  vezes  um  fim  deslionesto  nos  actos  da  prostituição.  Junto  das  ribal- 
das  havia  sempre  alcoviteiros  ou  auxiliares  da  libertinagem,  que,  apesar  das  ter- 
ríveis penas  das  leis,  mui  tranquillamente  se  entregavam  ao  seu  infame  eorn- 
mercio :  só  mui  raras  vcices  eram  perseguidos  e  mais  raramente  ainda  julgados 
e  Cí.ndemnados.  Ordinariamente  quando  as  queixas  dos  visinlios  ou  das  victi- 
mas  obrigavam  a  justiça  a  fazer  demonstração  de  publica  severidade,  eram 
pres(is  CS  accusados,  mas  tudo  terminava  por  uma  composição  em  dinheiro, 
por  un)a  confiscação  dos  immoveis  e  pelo  desterro.  Muitas  vezes  o  culpado  era 
absolvido  em  virtude  do  que  pagava,  mas  do  que  mui  rapidamente  se  indem- 
nisava  com  o  protiucio  do  seu  negocio. 

Aqueiles  ou  aqueilas  que  tinham  bordeis,  alugavam  tenda.''  para  u  peea- 
(Jú,  administravam  um  eslabelecimenlo  de  niuilieres  publií^as,  emprestavam  di- 
nheiro cism  usura,  moveis  ou  roupa,  aqueiles  que,  n'uma  palavra,  viviam  á 
custa  da  prostituição  legal,  eram  tolerados,  senão  protegidos,  e  na  sua  infame 
intervenção  se  reconhecia  uma  influencia  salutar  na  libertinagem. 

As  mulheres  que  se  <>mpregavam  n'esta  infâmia  era  preciso  serem  vigia- 
das por  uma  auetoridade  que  lhe  regulasse  o  seu  procedimento  e  que  constan- 
temente as  vigiasse:  era-llie  portanto  facultado  o  terem  um  ribaldo  ou  uma  ri- 
balda  como  regente.  Estes  chefes  de  ribalderia  disfarçavam-se  geralmente  com 
um  nome  honesto  e  decente:  umas  vezes  tomavam  o  de  porteira,  de  ciiinarci- 
ra,  de  estalajadeira,  ou  de  negociante;  mas  sempre,  homem  ou  mulher  era 
pessoa  de  idade  madura,  de  velhice  apparentemente  respeitável,  de  altitude 
austera,  de  palavra  sisuda  e  grave,  de  ares  solemnes,  o  que  não  impedia  que 
o  digno  personagem  constantemente  estivesse  evposlo  ás  desgraças  da  prisão, 
dos  açoutes,  do  desterro,  ele,  segundo  a  leltra  da  lei  romana. 

A  lei  franceza  prescrevia  a  pena  de  morte  para  os  intermediários  convi- 
ilos  d'esla  industria  ;  mas  esta  penalidade,  posto  que  permanecesse  como  es- 
pantalho no  Código  penal,  quasi  nunca  era  applicada.  Emquanfo  ao  re.sto,  a  opi- 
tiião  dos  jurisconsultos  não  tem  variado  com  relação  a  um  crime,  que  sob  o 
ponto  de  vista  moral  e  o  da  applieação  da  lei  não  encontrava  a  mesma  tolerân- 
cia. 

Alcoviteiros  e  alcoviteiras,  diz  o  celebre  José  Damhoudere  na  sua  Pratica 
farense  de  causas  criminaes,  que  servia  de  formulário  a  todos  os  jurisconsul- 
tos, do  século  .\.vi,  alcoviteiros  e  alcoviteiras  que  levavam  as  mulheres  a  pec- 
car  eram  por  direito,  castigadas  corporalmente,  e  por  costume,  para  o  desterro 
ou  outra  pena  arbitraria,  segundo  os  paizes  ou  cidades.».' 

Os  antigos  criminalistas  faliam  muito  sobre  este  ponto  r  ronc<K'dam  em 
(]ur  a  pena  foi  deixada  na  lei  como  útil  precaução,  para  atalhar  os  excessos  da 
libertinagem,  oppi>ndi»  ás  mais  atrevidas  auxiliares  uma  barreira  legal. 

O  douto  João  Durei,  no  seu  Traiíé .de  pelnes  et  nmendes.  (ediç.  de  Lvon, 
1583,  i1.   IO.'),)  é  tão  explicito  a  este  respeito  címio  J-.  de  Dainhoiidcre: 

"*)s  (jue  alugavam  ou  emprestavam  casas  para  exercer  o  lenocinio,  diz, 
perdem  o  seu  direito  de  propriedade  e  são  condemnados  a  mais  dez  libras  cm 
ouro  de  multa.  De  fado  (ts  nossos  práticos,  segundo  as  penas  ordenadas  por 
direito,  castigavam-as  corporalmente  ou  com  a  morte. >> 

í'odem  citar-.se  mais  d'um  exemplo  de  pena  capital,  dada  a  culpados  de 
ambos  os  sexos,  segundo  as  circumstancias  especiaes  do  seu  crime.  Assim, 
Duret,  cita  este  paragrapbo,  em  (jue  ikis  dá  a  conhecer  os  casos  em  que  se  re- 
queria a  pena  de  morte  contra  os  in.stigadon's  da  libertinagem. 

«(,>ue  se  o  pae,  a  mãe,  o  irmão,  a  irmã,  o  tio,  a  tia,  o  tutor  ou  curador 
é  quem  entrega  assim  a  (ilha,  parente  ou  menor,  ou  que  a  alcovilice  seja  para 
induzir  ao  adultério,  só  a  morl(>  é  pena  siinicienle.» 


fíA    PROSTITUIÇÃO  135 

Outro  jurisconsulto  da  tnesnia  época,  Cláudio  Lebruii  de  la  Rochette, 
no  seu  tratado  pratico,  intitulado  Les  Procès  ciril  et  crimineis,  icdiç;.  de  It)l7,) 
emprega  um  capitulo  inteiro  para  estabelecer  os  dilTerentes  graus  d'alcovitice, 
concluindo  que  a  impudicicia,  filha  da  ociosidade  e  da  mesma  alcovitice  pro- 
duz a  íornicavào,  o  adultério,  o  rapto,  o  incesto  e  a  sodomia. 

«Seja,  diz  elle,  que  os  execráveis  verdugos  das  consciências  tenham  a^^ 
mulheres,  de  que  são  correctores,  nas  suas  casas,  seja  que  com  boos  palavras, 
promessas  e  artiticios  as  attrahiam,  ou  que  levem  junto  delias  os  homens  liber- 
tinos, em  nada  diOerem  dos  ijue  próprio  corpore  cpiaefsinm  fnciunt,  como  disse 
I/lpano  na  lei  Pulam.  (Pár.  f.enorinium,  ff'.  />.'  rim  ni/pr.  I.  Arhletns.  Par.  i, 
//'.  /?''  his  qui  nor.  úi/a»)!.)» 

Cláudio  Lebrun  de  la  Rochette,  faz  notar  em  seguida  a  indulgência 
dos  tribunaes  francezes  sobre  o  facto  do  lenocínio  : 

«E  ainda  eram  castigados  antigamente,  diz,  com  o  ultimo  supplieio,  pro- 
vando-se  que  o  alcoviteiro  costumasse  sub^^rnar  as  jovens  que  arrasl-tva  a  per- 
dição, que  as  seduzisse  com  presentes  ou  palavras  persuasivas,  c  (jue  por  esta 
forma  as  obrigasse  contra  sua  vontade  á  prostituição  a  que  as  queria  expor, 
para  tirar  lucro  de  similliante  torpeza.  .  .  Porém  os  tribunaes  soberanos  dos 
parlameíitos  d'eslc  reino  e  os  inferiores  castigavani-os  mais  levemente,  iiini- 
tando-se  a  substituir  o  desterro  peia  fustigacão.  ilcnfro  ila  cidiíde,  ondf  exer- 
ciam o  seu  olliciu  ou  onde  fosseni  presos.» 

Cremos  que  a  tolerância  com  os  terceiros,  não  se  comprehendia  com 
aquelles  que  trabalhavam  em  corromper  a  juventude  e  a  innocencia,  mas  só 
com  os  que  geriam  lupanares  ou  seus  donos.  Fazia-se  disfinceão  entre  estes  e 
os  vis  e  detestáveis  tentadores  que  corronipiani  a  innocencia,  eonspií-amlo  sem 
cos.sar  contra  a  honra  do  sexo  feminino. 

«Que  se  evitavam  aqui  o  castigo  humano,  dizia  d'estes  corruptores  o 
honrado  Lebrun  de  la  Rochette,  não  evitariam  o  divino,  que  sempre  dá  ao  mau 
com  usura  o  castigo  da  sua  maldade.» 

Emquanto  aos  proprietários  c  gerentes  dos  bordeis,  por  toda  a  parte  lhes 
era  dada  uma  protecção  tacita  e  a  elles  se  recorria,  como  intermediários  officiosos, 
para  a  execução  dos  regulamentos  da  policia.  Auclorisavam-se  de  preferencia  as 
velhas  para  dirigiros  estabelecimentos  de  prostituição,  e  chamavam-se  maqnerel- 
les  publiqws.  Oucange  cita  um  documento,  datado  em  I.3'j0,  que  confirma  esta 
qualificação:  ín  domo  rupmiinm  iiviqufrellw  publirO'  in  \'ill.a  ]'aleniianis.  E' 
quasi  certo  que  a  matiucrelln  publica  existia  e  praticava  o  seu  oificio  sob  a  to- 
lerância da  lei  munifipal. 

Todavia,  as  ordenações  dos  reis,  os  decretos  do  parlamento  e  ós  edictos 
do  preboste  de  Paris  tinham  reprovado,  prohibido  e  eondemnado  muitas  vezes 
o  mnquerellaiie  em  geral,  sem  fazer  reserva  alguma,  nem  adiiiiltir  nenhuma 
i-irwunistancia  attenuante.  Numa  ordenação  de  ÍMH7,  anai\sada  por  ÍRdamare. 
o  preboste  de  Paris  prohibe  «a  todas  as  pessoas  dum  e  outro  .sexo  o  adminis- 
trarem mulheres  para  fazer  peccado  do  seu  corpo,  sob  pena  de  serem  expostas 
no  pelourinho  e  queimadas  (quer  dizer  marcadas  com  ferro  camlentei  e  expul- 
sas logo  da  cidade. 

Esta  ordenação,  como  se  vé,  comprehendia  indistiiictamente  as  pes- 
soas que  administravam  uma  ribaldia  de  mulheres  publicas.  Todas  as  ordena- 
ções relativas  ao  aluguer  das  casas  tocavam  indirectamente  a  questão  de  nia- 
qu^rellage,  e  os  indignos  auctores  d'esta  vileza,  não  podiam  pratical-a  sob  a 
qualidade  de  proprietários  ouinquilinos  principaes.  O  ediclo  prebostal  de  8  de 
janeiro  de  Itlo,  reproduzido  textualmente  cm  Iil9.  occupando-sc  de  prohibir 
ás  mulheres  libertinas  de  se  inslallarem  nas  ruas  honestas,  prohibe  também  a 
qual(|uer  pessoa  procurar  mulheres  p.lra  fa:i'r  pecrmio  <h  vc»  rorpo,  sob  pfn.i 


1 36  HISTORIA 

de  serem  postas  uo  peiourinlio,  marcadas  com  ferro  em  biai;a  e  expulsas  da  ci- 
dade. 

Tal  é  o  castigo  mais  frequente  que  se  lhes  infligia,  quando  estes  instru- 
mentos de  Safanaz,  como  lhes  chamava  Lehrun  de  la  Rochetle,  tiniiain  ajudado 
a  algum  escândalo  publico.  A's  vezes  condemnavam-se  á  fustigacáo  ou  a  cor- 
tarem-se-lhes  as  orelhas;  pai-ece  também  que  algumas  maqmrellas  foram  en- 
terradas vivas. 

Estas  penas  traziam  comsigo  muitas  vezes  a  confiscavão,  a  suppressão  c 
demolição  da  casa  que  tinha  sido  Iheafro  do  crime.  Pelo  menos  é  isto  o  que 
nos  permitte  suppòr  uma  passagem  das  Contas  do  Ordinário  de  Paris  durant<= 
o  anno  de  1428  : 

«De  Mcolau  Landemer  e  de  Isabel,  sua  mulher,  pela  venda  de  um  terreno 
cm  que  houve  casas,  quatro  bordeis  e  ediOcios  hoje  destruídos,  sitos  cm  Parií-j 
na  Cite,  em  Glatignij,  pegando  com  outra  por  uma  parte...  e  por  outra  foi- 
mando  a  esquina  de  uvn   bei-o   pelo  (]ual  se  desce  para  o  Sena.» 

Sabemos  que,  segundo  um  cosfiime  que  dafa  da  mais  remota  antiguidade, 
se  deslruia  uma  casa  que  tinha  sido  maculada  com  um  crime  e  se  deixava  o  ter- 
reno vasio  por  um  tempo  determinado  na  sentença,  como  para  purificar  o  logar 
inaldifo."  Cremos,  além  d'isso.  que  uma  casa  cm  que  ti\essc  ha\ido  por  muiln 
tempo  bordel,  não  era  occupada  por  gente  honrada  sem  previamente  ser  reedi- 
ficada. 

iN'o  capitulo  seguinte,  consagrado  a  factos  dispersos  da  prostituição  em  dif- 
ferentes  cidades,  vér-se-ha  que  o  castigo  infligido  aos  alcoviteiros  sotlria  algumas 
variantes  .segundo  os  paizes.  Entre  as  execuções  que  tiveram  logar  em  Paris 
não  encontramos  uma  única  em  que  o  pacienie  fosse  um  maqvtreau  ( rufião i 
mas  em  troca  as  maguerellas  abundavam.  Sau\al  diz-nos  (t.  ii,  pag.  o90}  que 
uma  ixnquerella  que  jurara  escandaloòtunente,  em  130!,  foi  exposta  no  pelou- 
rinho ou  patíbulo  de  Santa  denoveva.  Em  Paris  havia  vinte  (m  vinte  e  cinco 
justiças  particulares  com  patíbulo,  onde  os  rnoqutrellcs  f  as  inaquerdlas-,  \n<diíw.\ 
ser  açoutados. 

U  mesmo  bispo  de  Paris  tinha  um  pafibul(j  ile  justiça  no  a.frio  de  Nossa 
Senhora,  e  as  sentenças  do  funccionario,  que  fazia  as  vezes  de  bailio  do  bis- 
pado, recahiam  com  frequência  em  mulheres  dissolutas;  o  que  prova  que  a 
prostituição  não  esla\a  de  todo  foi'a  do  alçada  da  justiça  episcopal.  Em  1399. 
esfe  funccionario  para  castigar  uma  mulher  convicta  de  lenocínio,  condcmnou-a 
a  ser  posta  no  pelouriniio  com  (j  cabello  queimado,  desterrada  da  ferra  do  bispo 
e  confiscação  de  bens.  (\.  o  Glossaire  de  Ducange  e  tiarpentiei'  na  palavra  Cn- 

Outra  execução  do  mesmo  género  fe\e  logar  anteriormente. 

(  uia,  chamada  Izabel,  que  tinha  vendido  uma  joven  a  um  cónego  da 
'•alliedral,  foi  exposta  sol)re  o  patíbulo  c  n"ellc  atortnentada  e  chamuscada  com 
uma  tocha,  depois  do  que,  foi  desferrada  perpetuamente.  Mas,  em  1357,  izabel 
obteve  carta  de  remissão  do  i'ei,  provavelmente  por  mediação  do  cónego,  que 
parece  não  ter  sido  perseguido  pelo  liraço  secular.  A  tocha  (|ue  figura  no  stip- 
j)lício  d'esta  mulher,  servia  para  chamuscar,  queimando  tudo  quanto  tivesse 
pelo  eor|)o.   Estas  execuções  affrahiam  mais  gente  que  todas  as  outras. 

iNa  conta  do  Ordinário  de  1416,  {Provas  das  Antir).,  de  Paris,  tit.  ii!,j 
!é-se  que  os  empregados  do  Chatelet  compraram  uma  dúzia  de  varas  de  álamo 
verde,  para  conter  o  povo  que  assistia  á  justiça  das  waqufnrUaò-.  que  foram 
conduzidas  pelas  ruas  de  Paris,  avergasfadas,  chamuscadas  e  expostas  no  pe- 
louriídio.  ,\as  mesmas  contas  se  encontram  muitas  outras  d"esfas  mulheres, 
levadas  ao  pcioininho  com  o  mcsnio  cerimonial  c  cmii  o  mesma  distribuiv^to  de 
paniNula  aus  espectadores. 

O  jtehjniiiiho  i'm  (pie  MrilÍM.iri;nM''nle  cr.iin  p\])'l^l:l><  as  prostituliís.  i'iit  o 


DA    PROSTITUIÇÃO 


137 


Has  Hall.es,  que  foi  constriiido  na  mesma  praça  onde  existia  o  poço  Lori.  Antes, 
nii  no  próprio  momento  das  execuções,  punha-se  em  cima  d'esle  poço  um  ta- 
blado em  que  se  collocava  uma  espécie  de  jaula  giratória,  por  cujas  aberturas 
as  pacienics  mostravam  a  cabeça  e  as  mãos,  ficando  assim  exposlas  á  vista  do 
publico  durante  um  dia  de  mercado.  O  carrasco,  que  presidia  ao  supplicio,  de- 
via successivamcnte  virar  para  os  quati'o  pontos  cardeaes  os  criminosos,  de- 
pois de  ler  cumprido  as  prescripções  da  sentença,  coriando-lhes  as  orelhas,  íla- 
geilaiidu-os,  etc.  Em  geral,  as  prostitutas,  que  sofTriam  esta  pena  infamante, 
eram  escarnecidas  pela  multidão,  (jue  lhes  atirava  insultos  e  lama. 

Nem  todos  os  pelourinhos  eram  moveis,  como  o  das  Halles  de  Paris:  or- 
dinariamente só  tinham  uma  escada  sobre  um  tablado:  o  paciente,  atado  e  col- 
locado  na  parte  superior,  em  posição  muito  incommoda,  noticiava  á  multidão 
por  meio  de  um  letreiro  que  lhe  estava  fixo  no  peito,  nos  hombros  ou  na  ca- 
beça, o  crime  commeltido.  Dubreuil  diz  ler  visto  no  átrio  de  Nossa  Senhora, 
pertencente  á  justiça  do  iispo,  um  sacerdote  que  tinha  nos  hombros  o  letreiro: 
Propter  fornicationis. 

O  chibatar-se  e  eN.por-sc  as  proxenetas  foi  sempre  coisa  para  alegrar  o 
povo  de  Paris,  que  se  agglomcrava  no  caminho  da  victima  e  a  acompanhava 
até  ao  logar  do  supplicio.  Todas  as  mulheres  publicas  e  todos  os  libertinos  se 
deliciavam  em  presenciar  o  castigo  d'aquellas  infames  mulheres,  que  en- 
riqueciam á  sua  custa.  Esíe  género  de  execuções,  sempre  acompanhadas  da 
mesma  atlluencia  e  da  mesma  alegria,  poucas  vezes  se  reproduzia,  em  vir- 
tude do  escândalo  a  que  dava  causa. 

Comtudo  podem  citar-se  alguns  exemplares  no  século  xvii.  Lebrun  de  la 
Kochelte,  no  Procés  Criminei,  falia  d'uma  celebre  alcoviteira  de  Paris,  chamada 
Dumouiin,  que  por  este  modo  foi  castigada  no  reinado  de  Luiz  xiii,  e  embora 
salvasse  as  orelhas,  foi  perpetuamente  desterrada  do  reino. 

Nos  registros  do  parlamento  pôde  descobrir-se  um  grande  numero  de 
decretos  e  execuções  do  mesmo  género  :  algumas  d'estas  execuções  foram  to- 
davia espectáculo  mais  trágico.  Nas  contas  do  prebostado  de  Paris,  em  1440, 
encontra-se  um  facto,  citado  por  Sauval,  e  vor  nós  altribuido  a  um  crime  de 
alcovitice  com  a  aggravante  de  roubo.  Eil-o  aqui : 

«Pela  venda  dos  bens  moveis  das  defuntas  Joanninba  fíonne-Vallet  e 
Maricas  Bonne-Cosle,  enterradas  vivas  jtela  justiça  de  Paris,  pelos  seus  cri- 
mes, ele,  cujos  bens  foram  arrestados,  mas  depois  entregues  muitos  d'elles  a 
certas  pessoas  a  quem  pertenciam,  por  serem  mal  adquiridos  pelas  referidas 
mulheres.» 

Na  feira  dos  porcos  em  Saint-Roch,  tinham  logar  os  supplicios  das  mu- 
lheres condem  nadas  a  serem  enterradas  vivas,  castigo  muito  usado  antes  de 
serem  enforcadas,  como  se  fazia  aos  homens. 

A  primeira  que  foi  enforcada  em  Paris  era  uma  miserável,  que  exercia  to- 
dos os  ofTicios  inherentes  á  prostituição. 

Em  1440,  segundo  os  historiadores  de  Carlos  vii,  foram  enforcados  três 
infames,  réus  convictos  de  todo  o  género  de  crimes:  um  d'elles  foi  executado 
na  poria  Saint-Jacques:  o  outro  com  sua  mulher  na  f orla.  Saint-Denis:  «Posto 

HI8T0BIA   DA  PROSTITDIÇÃO.  TOMO  H  — FoLHA   fS. 


138  HISTORIA 

que  fossem  marido  e  mnllier,  diz  Sauval,  viviam  juntos  como  se  nào  fossem 
casados;*  o  que  prova  prostituir  o  marido  a  mulher,  e  ser  esta  igualmente 
eiimplice  das  torpezas  e  infâmias  do  marido. 

Sauval  circumstancía  miudamente  esta  historia  patibular: 

«Como  em  França,  diz  eile,  ainda  se  não  linha  visto  enforear  uma  mulIuT. 
Paris  inteiro  correu  ao  logar  do  supplieio.  A  ré  ia  desgrenhada,  vestida  com 
larga  túnica  atada  na  cintura.  Cus  diziam  que  ella  havia  pedido  para  ir  assim, 
por  ser  este  o  uso  da  sua  terra  natal;  outros  aliirmavam  ser  ordem  dos  juizes, 
para  que  as  mulheres  por  mais  tempo  se  lembrassem  da  execução.» 

Este  supplieio  todavia  não  foi  excepcional,  pois  Sauval  cita  mais  dois 
casos  tirados  das  Contas  do  preboslado  em  1457. 

«A  chamada  Herminia  Volcuciann.  condemnada  a  ser  cnleriada  \iva  sob 
o  patíbulo  de  Paris,  (isto  é,  em  Montfaucon)  pelos  seus  crimes,  etc.» 

«A  chamada  Luiza,  mulher  de  Hugo  Ghausier,  enterrada  no  mesum  lo- 
gar,  para  o  que  se  fez  uma  cova  de  sete  pés  de  comprido.» 

A  pena  de  morte  applicava-se  de  muitas  maneiras,  segundo  a  vontade 
do  juiz,  que  umas  vezes  ordenava  a  expiação  do  crime  por  meio  do  fogo,  e  ou- 
tras por  meio  da  agua.  Entre  as  mulheres  enterradas  vivas  em  Paris,  ou  lan- 
çadas á  agua  e  afogadas  na  Pont-au-Change,  pódc-se  aflirmar  sem  receio  de 
errar  que  muitas  haviam  praticado  actos  horríveis,  (jue  a  jurisprudência  da 
Edade  Média  contava  como  peccados  contra  a  natureza. 

«Emquanto  ás  mulheres  que  se  corrompiam  umas  ás  outras,  chamadas 
pelos  antigos  (ribades,  diz  o  austero  auctor  do  Procès  CrÍDiixel,  não  peide  du- 
vidar-sc  que  entre  si  commellem  uma  espécie  de  sodomia...  E  é  digno  da 
pena  de  morte  este  crime,  como  bem  o  observa  nas  suas  Resoluções  M.  Boyer.» 

Não  recorremos  ao  b^slemunho  de  Niddau  Bover,  auctor  das  Resoluções^ 
hurdigalenses,  para  mostrar  que  os  parlamentos  dos  tribunaes  inferiores  eram 
sempre  intransigentes  com  respeito  ás  mulheres  de  má  vida,  que  anli-  e)l»^s 
compareciam  sob  o  peso  d'uma  accusação  criminosa. 

Daremos  a  razão  dVsta  severidade,  citando  a  passagem  do  livro  de  Le- 
brun  de  la  Rochette,  que  consigna  n'estes  lermos  a  opinião  unanime  dos  ho- 
mens da  lei,  acerca  dos  infames  auxiliares  da  prostituição: 

«Emquanto  aos  alcoviteiros  e  alcoviteiras  (maquereaux  el  maquereUet; ' 
são  absolutamente  insupportaveis  como  inimigos  da  honestidade,  traidores  do 
pudor  conjugal  e  virginal,  as.sassinos  da  santa  sociedade  humana,  dilTamadores 
da  legitima  successão  dos  herdeiros,  tições  do  inferno  e  verdadeiros  instru- 
mentos do  espirito  immundo,  que  nunca  foram  tolerados  em  nenhuma  repu- 
blica bem  constituída,  por  não  mostrarem  senão  paganismo  e  alheismo,  como 
se  pôde  vèr  nas  Consliluições  de  Justiniano,  novell.  14."» 

Todavia,  um  dos  primeiros  códigos  escríptos  em  franccz,  o  l  ihrt-  de  jos- 
tice  el  de  piei,  que  contem  os  usos  de  França  misturados  com  uma  traducçã" 
litteral  do  Digesto,  só  impõe  a  pena  de  desterro  e  confiscaçãi»  de  Iumis  aos  au- 
xiliares da  prostituição  : 

«.4quellc  que  faz  maus  ajuiilainenlos  de  boribdaria  deve  perder  a  cida'le, 
e  seus  bens  são  para  o  rei.  (Livro  xviii,  eap.  24).» 


DA    PROSTITUIÇÍO  .  4  39 

Este  artigo  coinpietava-se  com  o  seguinte,  que  prescreve  a  fustigaçào 
antes  do  desterro : 

«O  alcoviteiro  de  mulheres  deve  ser  fustigado  e  expulso  da  cidade,  e  os 
seus  bens  silo  do  rei.» 

Temos  seguido  passo  a  passo  os  vestigios  da  legislação  contra  a  prosti- 
tuição e  seus  immundos  auxiliares,  nos  códigos  e  usos  da  Edade-Média.  A  lei, 
como  temos  visto,  era  quasi  sempre  implacável  contra  os  réos  d'esta  deplorá- 
vel aberração,  embora  não  houvesse  nas  suas  disposições  titulos  especiaes  para 
estes  crimes. 

Outros  capítulos  da  nossa  obra  serão  ainda  empregados  no  mesmo  as- 
sumpto. Poderíamos  adduzir  milhares  de  citações,  comprovativas  do  qi\e  vamos 
asseverando,  á  custa  de  longo  e  paciente  trabalho  de  investigação.  Resolvemos, 
porém,  ser  de  ora  avante  o  mais  sóbrios  possivel  na  transcripção  de  textos  an- 
tigos, para  não  fatigarmos  a  paciência  dos  leitores. 


CAPITULO  XIV 


SUMMARIO 


Estadu  da  pjustltuifâio  legai  uai  províncias  da  antiga  França.— Cosfumi  s  de  Beauvoísís.— A  piOítitulijSu  uo 
ducado  de  Oiieans.— O  Livre  de  jostice  et  de  plct.—  .^s  pro'v\aÚ3s  rio  Norto.— Organização  da  libcrlinageai  pdilica 
em  Tolosa,  Montpellier,  Narb'jnna.  otc— Costumes  de  Bayonna,  de  Marselha,  Montfoil,  Kodez,  Nimes,  ete.— As  multie- 
res  do  costumes  livres  'ie  liagnolles  e  de  S.  Saturnino.— Bordéus.  —  Supplicio,  deDOminado  da  accal/ussadc-  Mars-.- 
Iha,  Sisteron,  .\viul)3u,  Lyon.  «to.—  Costumes  diversos.—  Os  lombardos  e  as  prostitutas  —  Troyes,  AnieDS.  LaoD. 
Meaux.  etc— Ruas  sem  aucloridade  local,  destinadas  á  prostitiii^-So. 


uRDENAç.\o  de  Luiz  IX,  relativa  á  prostituição,  c  sempre  a  única 
base  da  jurisprudência  sobre  esta  matéria  que  os  outros  reis  de 
França  apenas  ousavam  tocar,  depois  do  santo  rei,  tjue  não  rc- 
ceiou  pòr-liie  a  mão,  para  a  fecliar  em  prudentes  limites;  mas 
os  juristas  e  os  magislrados,  sem  deixarem  de  acceilar  a  ordena- 
ção de  \2'ái,  ou  anies  a  de  l2oG,  alteraram  ás  vezes  o  texto  e  interpreiaraiii-no 
também  de  difterentes  modos,  segundo  as  necessidades:  juntaram-llie  ainda, 
como  corollarios  indispensáveis,  certas  disposições  da  lei  romana  que  estava 
em  vigor  nos  íribunaes,  e  que  se  confundiam,  mais  ou  menos,  com  as  fradicções 
consuetudinárias,  ultimits  vestígios  dos  usos  e  dos  códigos  bárbaros. 

Estes  usos  mudaram  completamente  o  estado  da  prostituição  legal  em 
cada  província  e  ainda  em  cada  cidade.  Era  necessário  con.'^ultar  n  liisloria 
particular  d'estas  cidades  e  províncias,  e  .sobre  tudo  fazer  um  exame  delido  da 
legislação  local,  para  mostrar  as  extravagâncias  annexas  á  tolerância  da  pros- 
tituição, e  especialmente  á  penalidade  que  soíTria  em  certos  casos.  Nós  apenas 
podemos  esboçar  ligeiramente  um  assumpto  tão  abundante  e  complexo,  cujos 
niateriaes  se  achariam  dispersos  em  muitos  volumes,  que  não  lemos  paciência 
para  consultar,  e  que  não  nos  otíereceriam,  talvez,  mais  do  que  numerosas  repe- 
tições inúteis.  Julgar-se-ba,  noemtanto.  por  um  rápido  extracto  dos  nossos 
apontamentos,  se  seria  possível  fazer,  cidade  por  cidade,  e  ainda  villa  por 
vilia,  uma  verdadeira  pornographia  da  França  antiga,  apoiada  em  textos  au- 
thenticos. 

Notemos  de  uma  vez  para  sempre  que  a  prostituição  nunca  lem  titulo  es- 
pecial nos  corpos  de  leis,  de  ordenações  ou  de  usos ;  encontra-se  misturada  em 
varies  outros  títulos,  onde  figura  entre  trechos  heterogéneos,  que  não  teem  re- 
lação com  ella  e  que  lhe  são  completamente  estranhos.  Ha  usos  geraes  onde 
não  se  encontra,  como  se  o  pudor  do  jurisconsulto  a  tivesse  eliminado  de  pro- 


1  lá  HISTORIA 

posilo.  Assim,  iu»s  celebres  Coulumes  de.  Beaucoisis,  (|iie  foram  a  fonte  prin- 
cipal do  direito  francez  por  espaço  de  quatro  séculos,  inutilmente  se  procura 
uma  decisão,  que  se  refira  á  libertinagem  publica.  O  caracter  pessoal  do  juris- 
consulto, a  austeridade  de  seus  costumes  e  a  modéstia  da  sua  linguagem,  op- 
punbam-se  sera  duvida  a  que  admittissc  no  formulário  dos  costumes  do  seu 
paiz  o  escandaloso  capitulo  da  prostituição. 

O  auctor  anonyrao  do  Lirre  dejostice  ei  de  plet,  redigido  ao  mesmo  tempo 
nas  escolas  de  direito  de  Orleans,  não  se  mostra  tão  reservado  nas  cousas  nem 
nas  palavras.  Começa  por  paraphrasear  a  ordenação  de  S.  Luiz  sobre  a  reforma 
dos  costumes,  e  traduz  no  seu  dialecto  orleanez  o  artigo  concernente  á  prosti- 
tuição : 

«As  mulheres  publicas  dos  campos  e  das  cidades  sejam  expulsas,  e  en- 
Ifm  (1  juiz  llips  confiscará  os  bens.  Item,  todo  aquelle  que  alugar  casa  a  mu- 
llier  de  má  vida,  ou  liver  bordel  na  sua  casa,  fica  obrigado  a  pagar  ao  bailio 
ou  ao  preboste,  ou  ao  juiz,  tanto  quanto  valha  o  aluguer  da  i'asa  n'um  anno.» 
Vé-se,  pois,  que  a  escola  de  direito  de  Orleans  mantinha  em  vigor  com 
força  de  lei  a  primeira  ordenação  de  S.  Luiz,  que  tinha  abolido  a  prostituição, 
e  não  a  segunda,  que  dois  annos  depois  a  auctorisava  sob  uii.  regimen  de  to- 
lerância. 

Km  virtude  d'este  principio  fundamental,  registrado  no  Livre  de  jostice  et 
de  piei,  vimos  no  capitulo  precedente  as  penas  com  ((uc  eram  castigados  o  ma- 
qiierel  de  íiiulheres,  e  o  (jue  /«^  maus  ajunlamenlos  de  bordelaria.  Este  não 
era  mais  que  um  industrial,  que  fazia  bordeis  em  sua  casa,  tirando  d'elles  um 
lucro  infame:  o  outro  procurava  corromper  em  .seu  proveito  as  mulheres  que 
arrastava  ao  vicio.  Este  ultimo  alcoviteiro,  mais  culpável  que  o  simples  bor- 
delciro,  pois  como  tal  estava  na  cathegoria  de  ladrão,  era  considerado  infame, 
sob  a  denominação  de  maurenomex. 

Entre  os  alcoviteiros  da  peor  espécie,  o  Licre  de  josllre  designa,  todavia^ 
fundando-se  na  Lei  romana  que  incessantemente  cita,  a  ignominia  dos  taber- 
neiros e  taberneiras,  que  geralmente  não  se  limitavam  a  dar  de  beber  aos  seus 
freguezes,  mas  também  lhes  offereciam  uni  pedaço  de  carne,  para  nos  servir- 
mos da  expressão  consagrada  em  taes  logares. 

A  ordenação  de  S.  Luiz,  que  precede  o  Licre  de  jostice,  contem  unica- 
m<'nlc  este  artigo,  (|ue  a  Irailuci-ãn  do  auctor  an(jn_vmo  não  deixa  muito  clara: 

"Ninguém  seja  admillido  a  vi\cr  numa  taberna,  se  não  fòr  pessoa  seria, 
ou  se  não  morar  no  mesmo  edilicio  da  taberna.)^ 

O  final  d'cste  paragrapho  pôde  entendcr-se  de  diversas  maneiras:  pode 
julgar-.se  que  a  taberna  nunca  podia  transformar-se  em  hospedaria,  e  que  uni- 
camente se  compunha  d'uma  loja  sem  domicilio  annexo  c  sem  andares  supe- 
riores destinados  a  dormidas. 

Uma  passagem  da  velha  traducção  do  Digesto  confirma  a  má  opinião, 
cm  (jue  eram  tidos  os  laix-rneirus  e  pi-incipalmcnle  as  tabernas,  tanto  em  França 
como  entre  os  i\omanos  : 

«Se  uma  mulher  é  taberneira  e  tem  na  sua  lahcrna  mulher  leviana,  que 
prostitue  i)ara  ganhar  com  ella,  deve  ser  tida  como  alcoviteira.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  H3 

O  antigo  direito  francez  ditlere  radicalmente  do  direito  romano  em  todos 
os  pontos  em  que  o  cliristianismo  o  niodilieou;  assim,  posto  que  aquelle  que 
possuía  um  bordel  era  qualificado  como  rnaurenontex,  a  mulher  de  má  vida 
não  participava  d'esta  nota  infamante,  e  isto  por  uma  rasão  de  caridade  evangé- 
lica, que  dava  sempre  á  mulher  tempo  para  arrepender-se  e  voltar  á  vida  ho- 
nesta. Não  era  então  raro  vér,  para  resgatar  uma  alma,  um  hom  ehristão  pro- 
curar esposa  n'um  logar  de  prostituição.  Fundando-se,  pois,  niima  decretai  de 
Clemente  iii,  o  auctor  do  Licre  de  jostice  et  de  piei,  pôde  dizer: 

«Estabelece-se  que  todos  os  que  esposarem  mulheres  de  bordel  o  façam 
em  remissão  de  seus  peccados,  Note-se  bem  que  é  obra  de  caridade  chamar 
ao  caminho  da  virtude  os  que  andam  no  da  perdição.» 

(>  mesmo  livro  propõe,  no  emlanln,  um  caso  de  consciência  sobre  o  ma- 
trimonio d"cste  género,  e  para  resolvel-o,  in\oca  nma  decretai  de  liinocencio 
m,  intitulada  Significasti : 

«Houve  um  homem  que  trouxe  para  a  sua  coinjianiúa  nina  prostituta, 
tendo  abandonado  sua  mulher  e  sendo  por  isso  excominuugado :  quando  a  mu- 
lher d'esse  homem  morreu,  tornou  elle  a  tomar  a  prostituta  para  a  sua  compa- 
nhia. Pergunta-se:  Podem  viver  juntos?  Responde-se  :  se  tentaram  o  assassínio 
da  mulher,  ou  se  o  homem  não  deu  pala\ra  de  casamento  á  prostituta  sendo 
viva  a  mulher,  o  homem  deve  ser  absolvido,  se  o  requerer.» 

O  Livre  de  jostice  et  de  plet,  no  qual  se  trata  do  matrimonio  com  um  tal 
impudor  de  expressões  (|ue  não  ousamos  reproduzir,  não  é  todavia  indulgente 
para  com  as  mulheres  que  se  prostituem,  nem  para  com  os  homens  que  as  favo- 
recem na  |)rostituição.  Não  tinham  estes  o  direito  de  testai',  nem  podiam  obter 
juizes  : 

«Testemunhada  a  má  fama,  o  rei  pôde  fazer  justiça  nos  ([uc  tem  bordeis.» 

As  que  exerciam  o  mesmo  oHieio,  ou  tinham  tai)ernas,  eram  egualmente 
incapazes  para  com  a  justiça: 

«Prohibe-se  que  a  mulher  seja  taberneira  ou  proprietária  di'  bordeis,  c 
se  o  fòr.  ou  os  tiver,  está  fora  do  direito  commum.» 

Estas  duas  passagens,  que  parecem  contradizer  as  que  já  aiílcriormenie 
citámos,  provam  a  existência  permittida  ou  tolerada  de  certos  bonleis  adminis- 
trados por  homens  e  mulheres,  que  como  os  judeus  consentiam  cm  viver  s/ib 
o  constante  rigor  da  lei,  rigor  (|ue  muitas  vezes  altenuavam  |ior  meio  de  c(ni- 
tribuições  secretas. 

Apesar  d'esta  tolerância  necessária  á  vida  publica  das  grandes  cidades, 
a  policia  dos  costumes  era  sempre  regulada  por  leis  austeras  reprimidoras  dos 
excessos  e  escândalos.  Assim,  a  fornicação,  ordinariamente  impune,  tinha  um 
artigo  penal  no  código  consuetudinário : 

«Os  que  se  entregam  á  fornicação  devem  moderadamente  ser  castigados 
com  pena  corporal.» 

Mas  só  em  circumsfancias  excepcionaes  o  castigo  era  applicado  aos  (|ue 
fornicavam.  Todavia  a  mulher,  que  se  separava  do  marido  para  eommetter 
egual  delicto,  perdia  os  seus  direitos  conjugaes.  Mas  o  rapto,  a  violação,  o 
adultério,  a  .sodomia  eram  rigorosamente  castigados  pelo  direito  commum. 


i  44  HISTORIA 

«A  lei  que  o  imperador  Justiniano  fez  sobre  o  adullerio  é  de  direito  com- 
mum,  e  por  esta  mesma  lei  é  castigado  o  delicto,  quando  easualmente  alguém 
tom  relações  com  uma  virgem  ou  viuva.» 

Os  sodomitas  de  ambos  os  sexos  não  eram  toda\  ia  condemnados  á  morte, 
senão  dcpi  ;  ■  de  terem  sotlrido  duas  penas  corporaes  pelo  mesmo  acto: 

«O  que  fôr  provadamcnte  sodomita  deve  perder  os  testículos.  E  se  é  pela 
segunda  vez  condemnado,  deve  perder  o  membro  viril.  E  se  o  é  pela  terceira 
vez,  deve  morrer.  Uma  mulher  sodomita  deve  perder  um  membro  de  cada  vez, 
e  á  terceira,  deve  morrer.  E  todos  os  seus  bens  pertencem  ao  rei.» 

Taes  eram  as  penas  relativas  á  policia  dos  costumes  no  ducado  de  Or- 
leans. 

V  penalidade  que  o  código  de  Justiniano  tinha  intrudiizidn  na  legislação 
franceza  encontrava-se  em  todas  as  partes  infinitamente  modificada,  conforme  o 
caracter  dos  habitantes.  As  provincias  do  norte  a  este  respeito  eram  mais  in- 
dulgentes que  as  do  meio-dia:  n'aqucllas,  a  prostituição  reinava  sem  receios,  e 
o  regimen  dos  costumes,  abandonados  a  si  próprios,  mantinha-se  nos  limites 
bastante  dilatados  (l'uma  fácil  tolerância.  Tolosa,  Montpellier,  Narhonna,  e  ou- 
tras cidades  do  Languedoc,  tinham  a  libertinagem  publica  sob  uma  organisação 
mais  regular  do  que  aquella  que  por  esse  tempo  existia  em  Paris. 

Todavia  Carlos  d'.Anjou,  conde  de  Provença  e  rei  das  duas  Sicilias,  a 
exemplo  de  seu  irnicão  Luiz  ix,  esforçou-se  por  expulsar  dos  seus  Estados  a 
prostituição  legal,  sem  conseguir,  porém,  alcançar  melhores  resultados  do  seu 
esforço,  mais  piedoso  do  que  politico,  e  teve  de  renunciar  á  guerra  contra  as 
ribaldas,  que  pouco  se  importavam  com  as  suas  ordenações.  Dirigiu  então  a  sua 
attenção  contra  as  mediadoras  da  prostituição,  que  com  razão  considerava  o  ele- 
mento mais  perigoso  do  vicio,  e  até  então  subtrahido  a  todas  as  medidas  de  rigor. 

Ojnformc  os  usos  de  Provença,  ordenou  que  todos  que  especulavam,  cor- 
rompendo ou  prostituindo  mulheres,  fossem  expulsos  do  território  ducal,  sem 
forma  alguma  de  processo;  que  se,  passados  dez  dias  depois  da  publicação  da 
sua  ordenação,  fosse  encontrado  algum  miserável  exercendo  esta  impia  indus- 
liia,  a  justiça  |U'oce(lcsse,  e  o  culpado,  além  da  confiscação  dos  seus  bens  e  do 
desterro,  fosse  castigado  com  penas  corporaes. 

Carlos  d'Anjou  probibia  também  a  todos  os  seus  empregados  dar  asylo 
em  suas  casas  a  alguma  nuilber  de  má  vida,  sob  pena  de  privação  do  emprego 
e  de  uma  multa  de  cem  libras. 

O  i,anguedoc,  no  emtanto,  não  cuida\a  da  reforma,  a  exemplo  das  pro- 
víncias limitrophes,  onde  a  prostituição  eslava  re|)rimida  por  leis  e  costumes, 
que  tendiam  a  deslruil-a  completamente. 

O  Coulunie  de  (íayonna,  feito  sem  duvida  sob  a  influencia  das  Constitui- 
ções hespanholas,  impunha  a  pena  de  açoutes  e  desterro  ás  alcoviteiras;  mas 
em  caso  de  reincidência,  eondemnava-as  á  morte. 

O  Couíime  de  Marselha  não  era  menos  terrível  com  respeito  ás  alcovitei- 
ras, ainda  (|ue  as  ribaldas  communs  fossem  toleradas  cm  certas  ruas  d'esta  ci- 
dade, onde  ;i  pi-escnça  de  tantos  forasteiros  e  gente  de  mar  tornava  indispcn- 
sav<'is  os  íjordeis.  Apezar  d'isto,  as  rib.ildas  que  existiam  no  porto  (l(>  Marselha 


DA    PROSTITUIÇÃO  J4o 

deviam  abster-se  de  trazer  vestidos  ou  adornos  de  còr  vermeiiia,  sob  pena  de 
multa,  e  em  caso  de  reincidência  incorriam  na  de  tustigação.  No  capitulo  se- 
guinte, faremos  a  bistoria  das  ahhadias  obscenas  de  Tolosa,  de  Montpeliier  e 
de  Avinbão. 

Procuremos  agora  os  vestigios  da  prostituição  n'algumas  outras  cidades 
do  Languedoc.  Em  Narbonna,  ainda  que  arcebispado,  os  cônsules  da  cidade  pos- 
suíam o  privilegio  de  ter  na  jurisdicção  do  visconde  uma  rua  denominada 
quente,  onde  os  fuiiccionarios  d'este  titular  não  tinham  direito  algum  de  jus- 
tiça, e  as  muliíeres  communs,  que  habitavam  n'esta  rua  sob  os  auspícios  da  au- 
ctoridade  consular,  tinham  a  liberdade  de  exercer  o  seu  impuro  commercio  em 
todo  o  viscondado,  sem  serem  admoestadas  por  isso. 

Em  Pamiers,  residência  de  um  bispo,  as  mulheres  publicas  não  habita- 
vam no  interior  da  cidade:  segundo  os  usos  do  condado  de  Montforl,  confirma- 
dos em  1212,  estas  peccadoras  não  podiam  abrir  os  seus  bordeis,  senão  extra- 
muros e  a  certa  distancia  das  portas. 

Em  Rodez,  que  também  tinha  o  seu  bispado,  a  prostituição  existia  todavia, 
como  parece,  dentro  do  recinto  da  cidade,  porque  o  bispo,  que  se  chamava  Pe- 
dro de  Pleine-Chassaigne,  prohibiu  em  1307  aos  habitantes  receber  nas  suas 
ctsas  mulheres  publicas,  cujo  vestuário  ordena  também  que  não  defira  do  trajo 
das  mulheres  honradas.  Prohibe,  pois,  ás  rameiras  trazer  capa,  mantos,  véus 
e  vestidos  de  cauda,  determinando  que  estes  não  devem  passar  dos  íorno- 
zellos. 

Em  INímes,  onde  o  bispo  era  também  senhor  temporal,  a  prostituição  foi 
confiada  a  uma  meò-rva  de  ribaldas,  que  arrendava  este  commercio  impudico, 
recebendo  plenos  poderes  dos  cônsules,  a  quem  ia  cumprimentar  em  certas  epo- 
chas,  levando-lhes  um  presente  de  investidura,  chamado  osculo. 

Bcaucaire,  que  ao  menos  não  tinha  bispado,  mas  que  attrahia  ás  suas 
feiras  celebres  uma  grande  quantidade  de  commerciantes,  não  podia  passar  sem 
um  bordel  privilegiado,  que  se  abria  ao  mesmo  tempo  que  a  feira  de  Santa  Ma- 
gdalena,  e  se  fechava  quando  ella.  Este  bordel  estava  sob  a  auetoridade  d'ou- 
tra  mestra  ou  directora,  que  se  chamava  abadessa,  e  ([ue  não  obtinha  este  cargo 
lucrativo  senão  sob  certas  condições.  Não  lhe  era  permiltido,  por  exemplo,  dar 
hospitalidade  por  mais  d'uma  noite  aos  passageiros  que  queriam  alojar-se  no 
seu  estabelecimento.  Em  1411,  uma  abadessa,  chamada  Margarida,  hospedou 
na  sua  casa  um  tal  .inequim,  ficando  tão  satisfeita  com  elle.  que  ampliou  a 
hospedagem  por  seis  noites  mais.  .4.ccusada  d'esta  contravenção,  foi  condem- 
nada  a  pagar  uma  multa  de  10  libras  tornezas  ao  castellão  de  Beaucaire.  Mr.  Re- 
buteau  consigna  este  facto  curioso  na  sua  memoria  sobre  a  Prostituição  na  Eu- 
ropa, mas  esquece-se  de  dizer-nos  a  fonte  d'onde  o  tirou. 

As  rendas  que  a  prostituição  dava  ás  cidades  de  Nimes  e  Beaucaire  foram 
consideráveis,  no  tempo  em  que  a  feira  d'esta  ultima  cidade  er^a  mais  frequen- 
tada; mas  no  século  xvi,  quando  as  guerras  de  Francisco  i  e  Carlos  v  impedi- 
ram a  concorrência  de  commerciantes  a  esta  celebre  feira,  as  ahhadias  do  amor, 
tão  alegres  e  prosperas  n'outro  tempo,  estavam  quasi  descrias ;  pois  nas  contas 
da  recebedoria  ordinária  de  lo39.  António  Baireau,  contador  da  Thesouraria  de 

Historia  da.  PRosTiimç.io.  Tomo  ii— Folha  19. 


)  Í(j  HISTMllIA 

.Ninifs  (•  Beaucaire,  (n/.  apenas  constar  uma  soinma  do  quinze  soklos  de  direitos, 
recebidos  durante  trez  annos  das  abbadias  da  localidade. 

Além  d'estas  hospedarias-bordeis  mal  afamadas,  arrendadas  a  Luiz  Cln- 
ches,  havia  outra  que  não  dava  rendimento  á  cidade  de  Beaucaire,  por  estar 
quasi  sempre  desoccupada. 

Não  havia  uma  povoação  no  i.anguedoc  que  não  tivesse,  se  nàoabbadia. 
pelo  menos  algumas  prostitutas. 

As  de  Baguoles  não  podiam  Irazer.  sem  se  exporem  a  castigos,  chapéus 
com  tlores,  véus,  pelles  de  arminho,  capuzes  abertos  adornados  cora  botões,,  etc. 
As  de  S.  Saturnino  não  podiam  receber  nos  dias  de  festa,  nas  ([uatro  têm- 
poras e  nas  vigílias.  Em  1414,  Izabel,  cognominada  a  Padeira,  foi  condemnada 
a  uma  multa  de  dez  soldos,  por  ter  recebido  no  dia  de  Pasclioa  um  chamado 
Jorge,  que  era  todavia  seu  amante  certo. 

Estes  costumes  do  i.anguedoc.  que  a  heresia  dos  albigenses  tinha  rela- 
xado bastante,  espalharamse  pelas  províncias  limiírophes.  Todavia  a  cidade 
de  Bordéus,  que  se  distinguiu  entre  Iodas  pela  .severidade  da  sua  policia  de 
costumes,  parece  ler  afogado  algumas  vezes  as  ribaldas  e  os  incorrigíveis  alco- 
viteiros, aiirando-os  ao  mar. 

Ducange,  na  palavra  Accalins.sore,  diz-nos  que  este  supplicio  estava  em 
uso  em  Bordéus,  onde  a  gente  de  baixa  classe  pronunciava  sem  duvida  a  sen- 
tença e  dirigia  a  execução.  O  paciente  era  fechado  numa  gaiola  de  ferro,  que 
se  submergia  no  mar,  e  que  .só  se  retirava  quando  a  asphyxia  era  completa. 
Ducange  diz  expressamente  que  as  victimas  d'este  supplicio  eram  afogadas. 

.\ccrescenta  que  a  mesma  penalidade  era  applicada  aos  blasphemos  em 
.Marselha,  quando  não  tinham  12  dinheiros  para  se  livrarem  do  mergulho  na 
agua  salgada,  da  qual  bebiam  mais  do  que  seria  para  desejar,  por  entre  os  gri- 
tos e  canções  da  canalha,  que  se  divertia  com  os  seus  esgares  alllictivos. 

Um  castigo  análogo  se  impunha  também  em  Tolosa  aos  blasphemos,  aos 
rufiões  e  ás  vezes,  diz  l.afaille,  ás  mulheres  publicas,  que  transgrediam  os 
regulamentos  de  policia,  .lousse,  no  seu  Traclado  da  Justiça  criminal  de  França, 
publicado  em  1771,  descreve  o  mergulho  tal  como  se  praticava  ainda  no  .seu 
tempo  com  grande  divertimento  dos  amadores  d'este  género  de  supplicio. 

(londuzia-se  á  casa  da  cidade  a  infeliz  que  linha  sido  condemnada  por 
qualquer  delido  da  prostituição;  o  executor  ligava-lhe  as  mãos.  punha-lhe  um 
barrete  feito  de  pão  d'assucar  e  enfeitado  com  plumas,  e  prendia-lbe  no  hom- 
bro  um  cartão  com  um  rotulo,  que  dizia  a  classe  do  delicio. 
Este  rotulo  era  ordinariamente  a  palavra  Proxeneta. 
Uma  multidão,  tão  curiosa  como  sarcástica,  acompanhava  a  ?-é,  diante  da 
qual  se  lia  a  senlença,  e  eonduziani-n"a  assim  proccssionalmente  até  á  ponte 
que  atravessa  o  Garonna:  uma  barca  recebia-a  com  o  verdugo  e  seus  ajudan- 
tes, e  levavam-n'a  para  um  rochedo  situado  no  meio  do  rio,  onde  a  faziam  en- 
trar na  gaiola  de  ferro,  feita  de  propósito,  que  se  submergia  três  vezes  na  agua. 
'(Conservam-n'a  dentro  delia  algum  tempo,  diz  .lousse,  de  forma  que  não 
possa  sulfocar-se,  o  que  produz  um  espectáculo  que  excila  a  curiosidade  de  Ioda 
a  povoação. 


Castigo  de  uma  adultera  em  Tolosa 


DA    PROSTlTlirÃn  147 

Depois  leNavaiii  a  polue  iiuillu-r  meio  afogada  ao  hospital  Ja  casa  tie  cor- 
recção, oiidc  havia  de  passar  o  resto  de  seus  dias,  a  não  ser  que  obtivesse  per- 
dão e  tornasse  ao  seu  pi-inieiro  oíílcio. 

Lembramo-iios  de  ter  lido  que  se  impunha  igual  castigo  ás  mulheres 
publicas,  accusadas  e  convictas  de  terem  communicado  o  virus  venéreo  a  al- 
guns libertinos,  que  davam  parte  civil,  e  reclamavam  a  visila  medica  do  seu 
contagio ;  mas  não  podemos  dizer  qual  (j  logur  e  a  épocha  em  que  se  lazia  sol- 
frer  esta  submersão  infamante  a  estas  perigosas  inimigas  da  saúde  publica. 

Apezar  das  ordenações  de  Carlos  de  Anjou  contra  a  prostituição,  em  ge- 
ral, a  Provença  nunca  chegou  a  vèr-se  livre  da  praga,  que  o  temperamento 
ardente  de  seus  habitantes  devia  naturalmente  propagar,  e  que  impedia  as 
desordens  das  paixões  sensuaes.  Comprchende-se  facilmente  que  a  prostitui- 
ção legal  não  podia  íer  um  curso  regular  c  patente  num  paiz,  onde  a  cavaila- 
ria  e  a  poesia  tinham  idcalisado  as  relações  Jus  clois  sexos,  onde  o  culto  da 
mulher  se  tinha  subtrahido  de  certa  forma  a  toda  a  mancha  material,  e  onde 
as  Córles  (/c  Amor,  elivollas  nas  abstracções  do  sentimento,  pareciam  ter  tomado 
a  empreza  de  malar  o  homem  pelo  homem,  de  aniquillar  o  corpo  em  proveito  da 
alma. 

Vimos,  todavia,  anteriormente  que  a  prostituição  existia  ás  claras  em 
Marselha  para  uso  dos  marinheiros  e  forasteiros,  que  necessitam  de  encontrar 
n'um  porto  de  mar  meios  de  se  distraireni  do  aborrecimento  de  uma  longa 
\  iagem . 

Havia  mulheres  de  prazer  ua  maior  parle  das  grandes  cidades;  mas  dis- 
simulavam a  sua  profissão  vergonhosa  sob  nomes  c  apparencias  honestas. 
.Não  eram,  por  essa  razão,  menos  perseguidas  pela  policia  municipal  e  eccle- 
siastica,  \end(i-sc  multadas  ou  presas  pelo  mais  frivolo  prele\lo.  l!,m  Sisler- 
non,  por  exemplo,  o  preboste  da  cidade  encarcerava  por  um  odioso  abuso  de 
poder  as  mulheres  estranhas,  que  iam  fixar  a  sua  residência  na  cidade  episco- 
pal com  seus  amantes  favoritos.  O  mesmo  funccionario  accusava  de  libertinagem 
estas  mulheres  sem  protecção,  obrigava-as  a  pagar  uma  contribuição  para  recu- 
perarem a  sua  liberdade  e  para  viverem  em  paz. 

Os  habitantes  queixaram-se  d'estas  iniqiias  exacções,  e  por  decreto  de  20 
de  abril  de  1380,  Foulques  d'Agonst,  senescal  dos  condes  de  Provença  e  de  For- 
calquier,  prohibiu  que  alguém  incommodasse  as  forasteiras  que  queriam  resi- 
dir na  cidade  com  seus  amigos,  com  a  condição  de  viver  honradamente. 

Eduafdo  de  Laplane,  que  menciona  estes  lados,  diz-nos  qne  os  magistra- 
dos da  cidade  de  Sislernon,  para  obstar  sem  duvida  aos  intoleráveis  abusos  que 
a  permanência  de  laes  mulheres  causava  na  povoação,  resolveram  adquirir  por 
conta  do  município  um  edifício  destinado  a  receber  as  mulheres  communs,  e 
albergal-as  somente  de  passagem. 

Esta  decisão  foi  tomada  em  139i,  mas  dez  annos  mais  tarde  ainda  se 
não  tinha  feito  a  acquisição.  Ate  I  i24  as  mulheres  de  má  vida  encontraram  em 
Sisternon  um  refugio,  onde  não  eram  vexadas  com  multas  e  prisões. 

.\sque,  todavia,  chegavam  pela  passagem  de  Peipin  era-lhes  lançado,  como 
aos  judeus,   um  impostn  de  o  soldos,  em  beneficio  das  freiras  de  Santa  Clara. 


148  HISTORIA 

Estas  religiosas  deviam  sem  duvida  expiar  com  suas  rezas  os  peccados  que  a 
prostituição  errante  atlraliia  aos  muros  de  Sisternon,  om  pelo  menos  ao  seu 
território,  porque  a  casa  de  refugio  das  ribaldas  não  estava  na  cidade. 

O  estabeiccinicnto  d"esta  casa  em  Sisternon  parece-nos  confirmar  tudo 
que  a  tradicção  diz  de  um  estabelecimento  análogo  na  cidade  de  Avinhão.  Mas 
trataremos  depois  esta  questão  de  archeologia  histórica,  que  merece  ser  exami- 
nada sem  ideias  preconcebidas. 

E'  incontestável  que  os  costumes  italianos  se  acclimaram  com  os  papas 
no  condado  de  Aviníião,  e  pode  sustentar-se  que  a  cidade  papal  não  mudou  os 
hábitos  das  mcrcíri/.es  r()manas,  a  quem  o  chapéu  vermelho  fios  cardeaes  não 
intimidava. 

f)e  Avinhão  a  Laon,  a  prostituição  teve  apenas  que  passar  o  Rhodano,  e 
esta  grande  cidade  tinha  muitos  habitantes  para  que  a  policia  não  fosse  tole- 
rante com  os  costumes.  Guilherme  Paradin,  nas  suas  Memorias  da  historia  de 
Lyon,  menciona  um  regulamento  municipal  de  1475,  que  recorda  as  ordena- 
ções do  preboste  sobre  o  mesmo  assumpto.  Ordenava-se  4i'este  documento  ás 
mulheres  publicas  de  Lyon,  que  deixassem  as  boas  e  honestas  ruas,  e  se  reti- 
rassem a  duas  casas  de  asylo,  onde  podiam  exercer  o  seu  miserável  officio  sob 
a  vigilância  dos  cônsules.  Cada  uma  d'estas  casas  tinha  uma  única  porta,  a 
íim  de  que  as  ribaldas  (]ue  commettiam  algum  delicto  n'esles  logares  de  liber- 
tinagem não  podessem  fugir  no  momento  da  captura.  Determinava-se  além  d'isso 
que  o  trajo  particular  das  mulheres  dissolutas,  a  quem  sob  pena  de  contiscação 
se  proliibia  empregar  nos  seus  enfeites  cintos  guarnecidos  de  praia,  pelles  caras 
e  alé  a  pelle  negra  ou  hranca  df  carneiro,  excepto  unicamente  os  chapéus  de 
mulher  honrada,  eram  obrigadas  a  trazer  sob  pena  de  prisão  e  sessenta  S(ddos 
de  multa  «conlinuamenle  cada  uma  no  braço  esquerdo  sobre  a  manga  do  vt's- 
tido,  Irez  dedos  abaixo  tio  hombro,  uma  divisa  vermelha  pendente  nuMO  pé  ao 
lado  do  biaço.»  Signaes  distinclivos  das  mulheres  publicas  não  se  viam  senão 
nas  cidades  cm  que  se  tolerava  ou  reconhecia  a  prostituição. 

Apesar  d'estas  condescendências  da  lei  em  favor  do  vicio,  o  len-ie.inio  não 
participava  dos  bcneíicios  da  tolerância,  e  aquelles  que  o  exerciam  ficavam  sem-, 
prc   fora  do   direito  commum.   Prendiam-se,  açoitavam-se,  c\pulsavam-se  da 
cidade,  confiscando-se-lhes  os  seus  bens. 

«Ás  vezes  a  proxeneta,  diz  Sluyart  de  Yougians,  era  montada  num  burro, 
às  avessas,  quer  dizer  com  a  cara  para  a  cauda,  levando  um  chapéu  de  palha 
e  um  rotulo.» 

Passeiavam-tra  assim  [n-hx  cidade,  entre  os  escarneos  e  ultrages  do  povo, 
e  depois  de  ser  açoitada  pelo  verdugo  era  expulsa  do  paiz  ou  encerrada  n'uma 
casa  de  correcção. 

Era  o  que  suecedia  em  Lyon  e  n'i»nlras  cidades,  onde  o  culpado,  «mi- 
trado,  açoutado  publicamente,  desterrado  para  sempre,  sob  pena  de  perder  a 
vida,»  segundo  o  auclor  do  Trnité  des  fieines  el  amendes,  arrastava  no  seu  cas- 
tigo o  cúmplice  que  se  lhe  tinha  associado  ao  delicto,  alugando  ou  emprestando 
a  sua  casa.  Além  da  conliscação  da  casa,  o  cúmplice  pagava  uma  multa  de  dez 
libras  em  ouro.  Durct,  (jueixando-se  da  indulgência  de  tal  legislação,  dá-nos  a 


DA     1'ROSTITUIÇÃO  \  í-9 

entender  qii(>  a   pena   de   morte  era  ainda  appjicada  em  certos  easos  no  seu 
tempo. 

As  cidades,  que  não  tinham  ribaldas  em  estabelecimento,  contentavam-se 
com  as  que  o  acaso  liics  trazia,  as  quaes  corriam  o  paiz  procurando  fortuna, 
apesar  de  não  poderem  permanecer  mais  de  vinte  e  quatro  iioras  nos  jogares 
iiabifados,  onde  se  demoravam  com  os  seus  rufiões.  Geralmente  hospedavam-se 
nos  arrabaldes  n"um  bordel  isolado,  ou  n'uin  logar  de  refugio  reservado  para 
ellas,  quando  não  ao  ar  livre,  sob  as  arvores,  ou  no  meio  do  trigo. 

Por  um  decreto,  feito  em  lo  1.3,  em  consequência  d'uma  disputa  entre  o 
titular  do  logar  e  os  habitantes  do  Roche  de  Glun  e  de  Alençon,  prohibiu-se  a 
estes  habitantes  hospedar  nas  suas  casas  por  mais  d'uma  noite  as  ribaldas  pu- 
blicas e  os  seus  rufiões,  que  atravessavam  o  paiz. 

Muitas  citações  poderíamos  adduzir,  em  testemunho  da  existência  das 
prostitutas  errantes,  que  andavam  de  povoação  em  povoação  mercadejando  com 
o  seu  corpo,  em  companhia  de  ribaldos  favoritos,  a  quem  sustentavam  com  o 
producto  do  seu  ignóbil  trafico. 

Os  ribaldos  não  eram  inúteis  ás  vezes  ás  suas  damas  ou  queridas;  pro- 
fegiam-n'as  contra  as  violências  a  que  as  desgraçadas  estavam  expostas  cons- 
tantemente, pela  impunidade  de  taes  ultrages.  As  leis,  todavia,  eram  previden- 
tes a  este  respeito,  c  a  violência  feita  a  uma  mulher  publica  era  equipara<la 
pelos  jurisconsultos  á  violação  d'uma  mulher  honesta. 

Assim,  nos  privilégios  que  o  senhor 'de  Chaudieu  outorgou  em  1389  aos 
visinhos  de  Eyrien,  perto  de  Valence,  privilégios  confirmados  no  mesmo  anno 
por  Carlos  vi,  diz-se  que  todo  aquelle  que  violar  uma  mulher  dissoluta,  ou  qual- 
quer outra  pertencente  a  um  logar  de  prostituição,  pagará  100  soldos  de  multa. 
Uma  parte  d'esta  multa  pertencia  de  direito  á  mulher  que  solTrèra  o  damno, 
que  a  lei  considerava,  não  como  ultrage,  mas  como  um  roubo  feito  com  amea- 
ças e  violências. 

Se  o  legislador  se  apresentava  ás  vezes  como  protector  das  mulheres  pu- 
blicas, cuja  deshonra  não  as  entregava  á  mercê  de  quantos  as  queriam  ultrajar, 
igualmente  protegia  aquelles  que  tinham  de  precaver-se  contra  as  inystificações 
de  mulheres  tão  astutas  e  de  seus  depravados  auxiliares.  L'ma  das  especulações 
mais  lucrativas  e  fáceis  era  accusar  de  violência  um  homent  que  nada  mais 
tinha  feito  do  que  comprar  um  género  de  commercio,  que  voluntaiiamenle  se 
lhe  ofTerccia.  Os  ricos  banqueiros  judeus,  lombardos  ou  italianos,  em  cujas  mãos 
se  concentrava  todo  o  commercio  de  dinheiro,  viam-se  sem  cessar  expostos  a 
accusações  d"este  género.  Uma  mulher  introduzia-se  nas  suas  casas  a  titulo  de 
criada  ou  de  qualquer  outra  espécie  de  serviço,  e  depois  fazia  a  sua  queixa  á 
justiça,  pretendendo  ter  sido  violentada.  Exigido  o  juramento  da  lei  a  esta  li- 
bertina, não  vacillava  ella  em  prestal-o  sobre  o  Evangelho,  e  o  innocente  ban- 
queiro só  podia  vèr-se  livre  da  justiça,  pagando  uma  grande  multa,  de  que  a 
accusadora  e  seus  cúmplices  obtinham  a  maior  parte. 

Esta  maneira  de  explorar  a  fortuna  e  a  posição  delicada  dos  lombardos  tor- 
nara-se  Ião  f.-equenie  no  século  xiv,  que  elles  já  não  queriam  estabelecer  banca  em 
nenhuma  cidade  de  França,  sem  que  a  sua  honra  e  bolsa  estivessem  ao  abrigo 


(las  ciladas  da  prostituição.  Em  consequência  d'isto,  l'ez-se  esta  clausula  quasi 
idêntica  nos  despachos  dos  reis  Carlos  v  e  Carlos  vi,  concedendo  ás  associações 
dos  lombardos  o  privilegio  de  abrir  banca  e  emprestar  dinheiro  nas  cidades  de 
Troyes,  Paris,  Aniiens,  Ninies,  Laon  e  .Meaux  : 

«Item,  se  alguma  mulher  com  fama  de  má  vida  estiver  nas  casas  dos 
ditos  commerciantes,  e  quizer  dizer  por  astúcia  e  preversidade  ter  sido  forçada 
pelos  ditos  commerciantes,  ou  por  algum  d'elles,  não  seja  recebida  a  querella 
d'essãs  más  mulheres,  nem  os  ditos  commerciantes,  on  algum  d'elles,  soffrani 
por  isso  cm  suas  pessoas  ou  em  seus  bens.» 

Graças  a  este  paragrapho  dos  seus  privilégios,  os  lombardos  já  não  ti- 
niiam  que  temer  da  malicia  das  mulheres,  que  entravam  nas  suas  casas,  sem 
outro  tim  que  não  fosse  o  de  fazerem  papel  de  victimas.  Esta  clausula  de  pre- 
caução dá-nos  também  a  entender  que  os  lombardos  se  achavam,  como  es- 
trangeiros, dispensados  de  guardar  as  ordenações  civis  c  eccicsiasticas,  que 
prohibiam  ás  pessoas  honestas  hospedar  na  sua  casa  uma  mulher  libertina  por 
inaisd"uma  noite.  A  permanência  da  prostituta  em  casa  d"elles  não  trazia  conse- 
quência alguma  desfavorável,  pois  nem  incorriam  na  pena,  nem  sequer  no 
vitupério  da  lei. 

Todas  as  disposições  relativas  ás  bancas  ou  casas  de  desconto  de  Paris, 
de  Troyes,  de  Amiens,  de  Laon,  de  .Meaux,  etc,  provam  a  presença  frequente 
ou  habitual  das  rihaldas  n'estas  ditferenles  cidades  e  as  tentativas  de  seducção 
que  renovavam  sem  cessar  contra  os  lombardos  e  italianos.  Estes  podiam  por 
sua  parte  pcrmittir-se  todas  as  desordens  moraes  que  a  lei  castigava  na  con- 
liucta  dos  nacionaes,  súbditos  do  rei.  O  sábio  e  virtuoso  Carlos  v  disse-o  cla- 
ramente, nos  privilégios  que  concedeu  em  1366  aos  commerciantes  italianos, 
estabelecidos  em  iNimes:  estes  commerciantes  não  podiam  .ser  inquietados  nem 
castigados  por  motivo  de  simples  fornicação,  a  não  ser  quando  convictos  de 
rapto  ou  adultério. 

E',  pois,  de  presumir  que  a  licença  dos  costumes  d'cstes  estrangeiros 
iníluisse  no  estado  moral  da  população  que  os  rodeava,  e  que  se  corrompia  com 
o  .seu  exemplo  e  contacto,  visto  que  tinham  junto  de  si  um  cortejo  de  mulhe- 
res dissjilutas  e  de  homens  libertinos,  que  passavam  vida  alegre  e  se  corron^- 
piam  mutuamente. 

Todavia,  não  attribuiremos  á  sua  installaçãu  na  cidade  de  Troyes,  em 
1389,  o  estabelecimento  das  tendas  (bouticles)  que  as  mulheres  communs,  em 
collegio  (cloiístières)  tinham  desde  muito  em  vários  pontos  da  cidade,  segundo 
podemos  fazer^  constar  pelo  seguinte  artigo  d'um  documento  anterior,  citado 
pelos  continuadores  de  Ducange  na  |)ala\  ra  íUiuisurw,  e  que  prova  a  antiguiilade 
de  similhantes  estabelecimentos: 

filiem,  que  Iodas  as  mulheres  de  vida  cloinlicre,  ou  mulheres  communs 
dlllamadas,  tenham  e  façam  as  suas  tendas  nos  legares  designados  desde  muito 
para  isso  na  cidade.» 

As  cidades  próximas  de  l'aris,  situadas,  pur  assim  dizei',  dentro  da  orbita 
da  corte  do  rei,  tinham  como  dever  serem  as  primeiras  a  obedecer  ás  ordena- 
ções reaes,   e  imitarem  escrupulosamente  a  organisação  da  policia  parisiense, 


DA    PnoSTITlIÍÇÃO  151 

nomo  pgiiíilmonlc  iinil;nnni  os  costmiies.  as  mod;is,  os  ii<o,«  o  .-it^  o  modo  t\r 
fallar  da  gente  da  còi"le. 

A  imitação  não  exceptuava  as  casas  libertinas,  mas  ati^ahi  se  \ia  com 
preferencia,  e  para  a  este  respeito  citar  um  caso  extravagante,  é  tradi^-iio  que 
um  libertino  da  província,  tendo  estado  em  Paris,  e  tendo  frequentado  as  ruas 
de  denominações  desbonestas,  foi  o  padrinbo  da  rua  Pou\:se-Pe)iil.  cm  Issoudun, 
e  da  Retrousse-Pcnil ,  em  Blojs,  como  de  Iodas  as  outras  ruas  destinadas  á 
prostituição  legal. 

Não  precisamos  dí'  Iradu/.ir  a  obscena  denominaçào,  para  os  lellorcs  po- 
derem avaliar  a  rude  franqueza  d'csfes  qualificativos.  Em  quosi  todas  as  cida- 
des da  França  se  encontram  vestígios  destes  títulos  imimindos,  dados  ás  ruas 
parliiularmente  consagradas  ao  exercício  d'esle  in\eterado  cancro  social. 

A  mercadoria  immunda  linba  d'este  modo  bem  publicamente  exposta  a 
•íUM  obscena  labolela. 


CAPITULO  XV 


SUMMARIO 


PioTinr-ias  centrites  da  França.— Champagne.—Touraiue.—Berry.—Poitou—Orli-ans.— As  mulheres  casadas 
de  Montluson  ei|iiipaiadai  as  prostitutas.— Reconhecimeato  de  Breull.  — Costumes  burlescos  e  ridiculus.  —A  calçada 
''n  terreno  pantanoso  de  Siiloire.— O  senhor  de  Pnizav  e  as  mulheres  fareis.  — O  rei  de  França  e  as  prostitutas  de. 
Vemeuil.—  As  prostitutas  de  Proyines. 


|;S  puovK\ciAS  cciitracs  (Ia  França  eram  as  que  oppunham  menos 
obstáculos  á  prostiluivão,  que  alli  encontrava  iim  meio  perfei- 
tamente prctpicio.  .\  prostituição  era  n'es?as  provincias  permit- 
tida,  com  tanto  que  se  submettesse  aos  usos  e  costumes  locaes, 
>■  se  mantivesse  sem  causar  perturbações :  só  o  escanrlalo  ora 
castigado. 

Deve  notar-se  que  n'estas  províncias  a  civilisação  adoçara  mais  os  cos- 
tumes do  que  nas  outras:  se  a  libertinagem  publica  vivia  em  boa  paz  com  a 
auctoridade  dos  senhores  e  dos  municijtios,  a  doçura  do  caracter  de  seus  habi- 
tantes isentava-a  naturalmente  do  cortejo  de  crimes  e  violcncias,  que  a  liber- 
tinagem arrasta  atraz  de  si. 

i  prostituição  achava-se,  portanto,  naturalisada  cm  todas  as  povoações 
da  Champagne,  da  Touraine,  de  Berry,  de  Poitou  e  de  Orleans,  devendo  unica- 
mente pagar  em  cada  um  d'estes  pontos  por  onde  passava,  ou  onde  se  fixava, 
.segundo  o  que  mais  lhe  convinha,  o  tributo  feudal,  e  acceitar  os  usos  e  costu- 
mes, que  ás  vezes  não  eram  escripfos,  mas  sim  guardados  de  século  para  sé- 
culo pela  tradicção  do  paiz. 

Entre  estes  tributos  havia  alguns  tão  singulares,  que  hoje  não  se  coni- 
prehende  como  poderam  ser  justificados  por  qualquer  razão.  Sauval  extrahiu 
dos  .\rchivos  do  Tribunal  de  contas,  um  documento  do  anuo  de  I  i98,  men- 
1'ionando  que  o  Coutume  de  Jlontiuson  equiparava  as  mulheres  casadas,  que 
batiam  em  seus  maridos,  ás  prostitutas;  todavia  umas  e  outras  não  prestavam 
homenagem  igual  ao  castellão  de  Montluson.  Ouali|ucr  mulher  que  batia  em 
seu  marido  era  obrigada  a  dar  ao  castellão  ou  á  castellã,  ou  um  escabcUo  ou  um 
pau.  Qualquer  ribalda,  que  chegava  áquella  povoação  para  n'clla  exercer  o  seu 
vil  officio,  devia  por  uma  só  vez  pagar  quatro  dinheiros,  e  além  d'isso,  em  re- 
conhecimento de  vassallagem,  ir  publicamente  á  ponte  do  castcllo,  e  pondo-se 
BisToau  DA.  PaoETiimçÃo.  Tomo  n  — Folba  20. 


154  HISTORIA 

n'e!la  de  cócoras,  expellir  ventosidades . . .   que  não  devia  abafar  debaixo  das 
saias. 

O  texlo  latino  do  reconhecimento  da  terra  de  Breiíil,  feito  pela  mui  alta, 
mui  nobre  e  mui  poderosa  senhora  de  Montluson,  em  27  de  setembro  de  1498, 
é  o  seguinte,  que  damos  textualmente,  graças  ao  veu  d'aquella  lingua  morta: 

Item  in  et  super  qualibet,  uxore  marium  suum  verberante,  unum  tripodem. 

Item  in  et  super  filia  comimuii,  sexus  videlicet  viriles  quoscumque  co- 
gnoscente,  de  novo  in  villa  Montislucii  eceniente,  qualuor  denarios  seniel,  aut 
unum,  bumbum,  sim  vulga/riíer  Pet,  super  pontem,  de  castro  Montislucii  sol- 
■oendum.i) 

Os  commentadores  que  não  evitam  estas  passagens  escabrosas  Utão  deixa- 
ram de  mostrar  o  seu  engenho  na  descripção  d'este  sujo  emblema.  Dizem  uns 
que  as  mulheres  de  má  vida  não  podiam  dar  ao  senhor  de  Monlluson  mais  do 
que  valiam,  e  a  este  propósito  citam  um  provérbio  empregado  n'outro  tempo  a 
respeito  das  prostitutas:  a  mulher  de  vida  airada  não  vale  w»!  crepito  de 
ventre.  Outros  archeologos  a  este  respeito  lembraram  uma  passagem  não  expli- 
cada de  Pantagruel,  em  que  Rabelais  nos  diz  como  d'estes  sons  nascem  os  ho- 
mens, e  das  ventosidades  surdas  os  huniunculos,  o  que  deu  logar  ao  rifão: — 
A  ventosidade  estrepitosa  é  nobre  e  leal,  a  surda  é  vergonhosa  e  traidora. 

Fácil  seria  compilar  um  grande  volume  sobre  estes  arroios  sub-intesti- 
naes  dos  ribaldas  de  Moníluson,  mas  preferimos  encerrar  a  discussão  d'este 
delicado  assumj)ío,  recordando  que  em  virtude  dos  usos  do  direito  feudal  a 
homenagem  e  a  lealdade  dependiam  do  género  de  serviço  que  o  vassallo  prestava 
ao  senhor  e  aos  seus  logares-tenentes.  Â  historia  dos  feudos  está  cheia  de  ser- 
vidões burlescas  e  ridículas,  entre  as  quaes  as  impostas  á  prostituição  não 
eram  as  mais  extraordinárias. 

Nos  censos  feitos  em  1376  e  outros  annos  pelos  senhores  dos  condados 
d'Ange,  Souloire,  e  Betisy,  na  Normandia,  o  senhor  de  Belhisy  declara  á  sua 
soberana.  Branca  de  França,  viuva  do  duque  d'Orlcans,  que  as  mulheres  pu- 
blicas, que  cheguem  a  Bethisy  ou  em  Bethisy  vivam,  lhe  devem  pagar  quatro 
dinheiros,  e  que  este  imposto  que  outr'ora  lhe  dava  desenove  soldos  annuaes 
(o  que  suppunha  a  chegada  de  trinta  ribaldas  por  anno)  já  não  rendia  mais  que 
cinco  soldos,  em  virtude  de  não  accudirem  tantas  ribaldas  áquella  terra,  diz 
Sauvel. 

O  senhor  de  Souluire  também  declara  que  todas  as  mulheres,  ao  passa- 
rem pela  calçada  do  pântano  de  Souloire,  deixem  ao  juiz  a  manga  do  braço  di- 
reito, ou  quatro  dinheiros,  ou  outra  cousa.  Para  comprehender  o  que  seja  esta  oit- 
tra  cousa,  é  mister  a!)rir  a  pagina  110  les  Réponses  de  J.  Boissel,  Bordier  e 
José  Conslant,  sobre  dilTerentes  perguntas  relativas  aos  Usos  do  Poitou.  O  se- 
nhor de  Poizay,  na  parochia  de  Verruge,  reservava  para  si  em  1469  o  direito 
de  impor  tributo  a  cada  mulher  publica  chegada  á  parochia,  ou  de  lhe  confis- 
car os  seus  pertences,  fisando  em  quatro  dinheiros  o  valor  (festes  objectos. 

Parece  também  que  em  todos  os  feudos  o  senhor  tinha  direito  a  este  im- 
posto uniforme  de  quatro  dinheiros,  por  cada  mulher  de  má  vida  que  entrava 
no  território  do  seu  respectivo  feudo,  com  intenção  de  n'elle  exeicer  a  sua  in- 


DA    PROSTITUIÇÃO  155 

dustria.  Mas  ordinariainenie  o  senhor  envergonhava-se  de  receber  o  imposto  da 
prostituição,  e  substituia-o  por  qualquer  costume  ridículo,  que  lhe  mantivesse  os 
seus  privilégios  leudaes. 

O  rei  de  França  era  menos  escrupuloso  relativamente  á  origem  dos  im- 
postos que  lhe  entravam  no  erário;  pois  que,  em  1283,  segundo  um  docu- 
mento inserto  no  Glos-taire  de  Dueange  (palavra  Piaagium,  ultima  edição,)  re- 
cebia ainda  o  tributo  das  ribaldas  de  Yerneuil,  a  4  dinheiros  por  cabeça. 

A  prostituição,  n'este  paiz  da  lingua  d'oil,  não  tinha  o  sello  de  infâmia 
que  imprimia  ás  pessoas  que  viviam  á  sua  custa  nas  provindas  da  lingua  d'oc. 
Os  romances  dos  trovadores  normandos,  champagnezes  e  outros,  estão,  como 
se  pôde  vèr,  cheios  de  particularidades  tiradas  da  vida  amorosa  das  mulheres 
communs  e  libertinas.  Os  poetas,  que  sem  duvida  as  frequentavam  e  que  cos- 
tumavam percorrer  com  ellas  o  paiz,  não  sentiam  repugnância  alguma  em  fa- 
zer figurar  nos  seus  versos  estas  alegres  companheiras  da  sua  existência  vaga- 
bunda. M.  Bourquelot,  na  sua  Histoire  de  Provins  (pag.  273)  diz-nos  que  as 
mulheres  communs  eram  notáveis  pelos  seus  encantos  e  voluptuosidade. 

Habitavam  estas  em  muitas  ruas,  cujos  nomes  impudicos  revelam  a  sua 
;intiguidade,  estando  noutro  tempo  calçadas  de  ribaldas,  segundo  a  expressão 
local  que  se  conservou,  e  que  a  rua  Pavée  d'AndouiUes  de  Paris  recorda. 

Estas  ruas,  destinadas  especialmente  ao  domicilio  de  mulheres  de  má 
vida,  provam  a  existência  de  uma  demarcação  que  separava  do  resto  da  popu- 
lação as  mulheres  publicas,  impedindo  que  se  confundissem  com  as  honestas. 
Estas  não  possuíam  nem  a  belleza  nem  a  seducção  das  impudicas,  mas  acha- 
vam-se  tão  satisfeitas  com  a  sua  boa  fama,  que  não  julgavam  encontrar  pena 
bastante  severa  para  castigar  a  maledicência  ou  calumnia  que  tocasse  na  sua 
reputação.  Com  este  receio  obtiveram  dos  condes  de  Champagne  appoio  e  pro- 
tecção para  o  caso  cm  que  qualquer  d'ellas  fosse  injuriada  por  outra,  e  tractada 
como  prostituta  em  presença  de  testemunhas. 

A  que  irrogava  similhante  injuria,  sem  razão  nem  provas,  devia  pagar  5 
soldos  de  multa  e  seguir  a  procissão  em  camisa  como  as  penitentes,  levando 
uma  pedra  que  se  chamava  de  escândalo,  emquanto  que  a  injuriada  ia  atraz 
d'ella,  picando-a  nas  nádegas  com  um  alfinete. 

E'  evidente  que  as  mulheres  publicas  eram  as  que  ordinariamente  se  tor- 
navam culpadas  n'esta  classe  dinjurias  ás  mulheres  honestas,  e  a  lei  tomava  a 
dcfeza  das  insultadas,  que  não  saberiam  responder  na  mesma  linguagem  a 
essas  mulheres  desbragadas.  A  Coutume  do  Champagne  occupa-se  especialmente 
d'este  dclicto  de  injuria. 

O  homem  ou  mulher,  que  ultrajasse  assim  uma  mulher  de  bem,  devia-lhe 
além  d'isso  a  multa  de  o  soldos,  e,  «se  acontece,  accrescenta  a  lei,  no  artigo  45, 
que  a  mulher  a  quem  se  diz  a  injuria  tenha  marido,  esta  multa  subirá,  á  von- 
tade do  senhor,  até  sessenta  soldos.» 

Os  Usos  de  Cerny  e  de  Fere,  outorgados  por  Philippe  Augusto,  auctorisa- 
vam  qualquer  homem  de  bem,  que  ouvisse  ser  injuriada  uma  mulher  honesta, 
por  outra  de  má  vida,  a  fazer-se  advogado  ex-olficio  e  a  vingar  a  insultada,  ap- 
plicando  á  insultante  duas  ou  três  boas  bofetadas,  de  forma  que  o  defensor  não 


156  HISTORIA 

tivesse  nenhum  ódio  antigo  contra  a  mulher,  maltratando-a  assim  por  sua  pró- 
pria satisfação  em  nome  da  honestidade  publica. 

O  uso  de  Beauvoisis  não  particiilarisa  as  injurias  e  tillania.s,  que  valiam 
o  soldos  de  multa  para  um  villão  c  10  para  um  nobre,  dizendo  unicamente  que 
o  facto  peior,  depois  d'um  caso  de  morte,  é  dizer  em  presença  d'um  marido 
que  se  gozou  sua  mulher,  e  por  isso  Philippe  de  Bcaumanoir  refere  que, 
sob  o  reinado  de  Philippe  Augusto,  tendo  um  homem  dito  a  outro :  «És  um  ma- 
rido ludibriado,  e  cu  mesmo  assim  te  fiz,»  o  injuriado  tirou  um  punhal  e  fe- 
riu-o.  Preso  e  submettido  a  juizo,  foi  absolvido  pelo  rei  e  seu  conselho,  consi- 
derando que  tinha  procedido  no  uso  de  legitima  defesa. 

.4s  mulheres  de  má  vida,  tanto  antigamente,  como  agora  e  como  sempre, 
eram  propensas  á  injuria  e  capazes  dos  mais  indignos  meios  para  intimidarem 
as  pessoas  honestas  que  as  temiam.  Uns  dos  meios  mais  communs  consistia  no 
odioso  uso  que  faziam  da  condiçãii  de  mulheres  casadas,  ameaçando  com  uma 
querella  (radullerio  ao  imprudente  que  as  frequentava,  e  que  se  via  obrigado  a 
comprar-lhes  o  silencio.  Para  praticar  estes  indignos  manejos  e  explorar  em  seu 
proveito  os  remorsos  da  libertinagem,  occultavam  cuidadosamente  a  sua  condi- 
ção de  casadas,  revelando-a  só  no  caso  de  terem  commettido  adultério  interes- 
sado. A  lei  familiar  não  admitlia  a  excusa  de  ignorância  em  similhante  crime, 
e  foi  preciso  que  o  direito  consuetudinário  adoçasse  n'este  caso  excepcional  o  ri' 
gor  do  direito  commum.  D'aqui  provêm  o  artigo  das  Franquias  de  Perusa 
em  Berry,  que  datam  do  anno  de  1260,  e  emanam  da  justiça  senhorial.  O 
artigo  é  o  seguinte  : 

«Se  uma  mulher  casada  chegar  a  Perusa  com  o  fim  de  exercer  a  prostituição, 
sem  homem  próprio  que  a  acompanhe,  a  nada  é  obrigada  para  com  o  senhor.» 

As  mulheres,  que  mercadejavam  com  o  seu  corpo  e  que  não  tinham  de 
apresentar  um  marido  para  as  salvar  do  crime  de  adultério,  exerciam  frequen- 
temente uma  especulação  análoga,  mas  inversa:  ameaçavam  com  denuncia  os 
homens  casados  que  queriam  fazer  cabir  nos  seus  ardis.  A  lei  feudal  castigava 
este  adultério  com  a  mesma  pena  imposta  ao  outro:  um  homem  casado,  que 
tivesse  relações  com  uma  mulher  publica,  podia  ser  accusado  e  condcmnado. 
Evitava-se  sempre  applicar  esta  rigorosa  jurisprudência,  fechando  os  olhos  a 
este  género  de  delidos,  mas,  quando  havia  denuncia  ou  queixa,  o  juiz  perse- 
guia o  delinquente,  que  por  feliz  se  dava  em  unicamente  pagar  uma  multa,  pois 
que  a  penalidade  mais  frequente  eram  os  açoites,  applicados  aos  dois  cúmplices, 
que  nús  percorriam  a  cidade,  recebendo  o  castigo  das  próprias  mãos  dos  espe- 
ctadores, que  extraordinariamente  se  divertiam  n'estas  occasiões. 

NVsle  antigo  uso,  pelo  menos  no  principio,  eslabelecido  em  toda  a  França 
na  edade  media,  encontramos  uma  tradicção  da  Roma  atiliga,  a  respeito  dos 
adultérios  das  cortezãs  e  dos  libertinos. 

Os  [sos  d'.41ais,  redigidos  no  século  xiii,  e  pela  primeira  vez  publicados 
em  continuação  dos  Olim,  formulam  nVstes  termos  a  penalidade  do  adultério: 

ditem  estabelecemos,  que  se  algum  homem  ou  mulher  casados  forem 
apanhados  em  flagrante  crime  de  adultério,  os  dois  cúmplices  percorram  a 
cidade,  sejam  chibatados,  e  a  mais  não  sejam  condemnados.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  -  157 

Os  dois  percorriam,  pois,  junfos  a  cidade,  mas  a  mulher  ia  na  frente,  para 
que  elia  fosse  a  primeira  a  ser  chibatada.  A  mesma  compilação  dos  Olim  ci- 
ta-nos  muitas  applicações  d'esta  penalidade.  Em  1273,  o  prior  da  ahhadia  de 
Charlieu  fez  correr  ou  fustigar  pela  cidade  a  muitas  pessoas  surprchendidas  em 
adultério  dentro  do  território  d'ahbadia.  Os  habitantes  da  cidade  fizeram  queixa 
ao  bailio  de  Mâcon,  sustentando  que  o  prior  se  revestira  d'uma  auetoridade  que 
não  possuia  na  dita  cidade,  e  o  bailio  reivindicou  esse  direito  em  nome  do  rei. 
Mas  o  prior,  fundando-se  também  cm  antigos  privilégios  da  abbadia,  conti- 
nuou no  exercicio  do  mesmo  direito,  fazendo  chibatar  de  igual  miuio  a  todos 
quantos  eram  surprehendidos  em  adultério,  sempre  nos  limití's  da  sua  juris- 
dicção. 

As  justiças  senhoriaes,  desavindas  umas  com  as  outras  constantemente, 
disputavam  o  terreno  da  sua  jurisdieção,  principalmente  em  questões  de  policia 
moral.  Em  1261,  em  Amiens,  o  bispo  sustentava  que  tinha  direito  de  justiça 
sobre  os  sodomitas,  que  viviam  na  cidade ;  os  outros  habitantes  sustentavam  o 
contrario:  que  este  direito  de  justiça  lhes  pertencia  desde  a  creação  do  muni- 
cípio. O  conflicto  foi  submettido  ao  Conselho  Real,  e  Luiz  ix  o  resolveu,  orde- 
nando que  a  cidade  fosse  mantida  no  seu  direito  de  fazer  justiça  e  castigar  cor- 
poralmente os  sodomitas. 

Em  Saint-Quentin  os  frades,  por  uma  parte,  e  as  auctoridades  municipaes, 
pela  outra,  disputavam  em  1304  o  direito  de  baixa  justiça  nos  arrabaldes  da 
cidade.  Os  frades  queriam  prender  e  expulsar  as  mulheres  ligeiras,  que  haviam 
invadido  as  visinhanças  do  convento;  as  auctoridades  municipaes  queriam  que 
estas  mulheres  vivessem  em  paz  nos  terrenos  do  convento.  O  conselho  do  rei, 
ao  qual  a  questão  foi  submellida,  resolveu  que  os  frades  podiam  desembara- 
çar-se  da  visinhança  licenciosa,  mas  que  as  auctoridades  municipaes  podiam 
fazer  justiça  e  castigar  as  prostitutas  cm  todo  o  território  municipal. 

Sem  duvida  entre  as  duas  partes  fez-se  uma  transacção,  que  regulamen- 
tasse nos  arrabaldes  de  Amiens  o  exercicio  da  prostituição. 

Estes  regulamentos  eram,  com  pequenas  diílerenças,  os  mesmos  em  Ioda  a 
parte:  determinavam  perseguir  os  alcoviteiros,  coníinar  a  libertinagem  em  cer- 
tas ruas  e  logares,  impedir  que  as  prostitutas  se  podessem  confundir  com  as 
mulheres  honestas. 

João  de  Borgonha,  conde  de  Nevers,  na  ordenação  de  o  de  março  de  1481, 
intimou  todas  as  mulheres  libertinas  a  que  usassem  na  manga  direita  um  dis- 
tinctivo  roxo,  sendo-Ihes  outrosim  prohibido  o  aprcscntarem-sc  em  publico  sem 
este  signal  infamante,  sob  pena  de  prisão,  e  habiiar  em  outra  parle  que  não 
fosse  entre  as  fontes,  antiga  moradia  d'ellas,  como  também  frequentar  os  ba- 
nhos da  cidade. 

As  desobediências  aos  regulamentos  eram  castigadas  de  muitos  modos. 
.4bbeville  tinha  um  pelourinho  especial,  expressamente  feilo  para  as  mulheres 
publicas  apanhadas  em  flagrante.  Era  este  instrumento  de  supplicio  um  caval- 
lete  de  madeira,  collocado  na  praça  de  S.  Pedro.  Depois  de  serem  açoitadas 
violentamente  eram  postas  em  cima  do  cavallete,  que  não  tinha  espaço,  onde 
se  sentassem.  Eram  depois  expulsas  ao  som  de  campainha,  c  se  alguma  d'ellas 


138  HISTORIA 

voltasse  á  cidade,  para  exerctT  a  sua  industria  vergonliosa,  era-lhe  então  cor- 
tado um  membro,  ou  novamente  expulsa  com  grande  soleranidade. 

Os  alcoviteiros  convictos  do  seu  infame  commercio  eram  n'esta  mesma 
cidade  mais  severamente  castigados,  que  em  qualquer  outra  parte.  Eram  pas- 
seados pelas  ruas  até  chegarem  ao  logar  do  supplieio,  onde  o  carrasco  lhes  cor- 
tava e  queimava  o  cabelio,  sendo  em  seguida  perpetuamente  expulsos,  e  avisa- 
dos de  que  seriam  queimados  vivos,  se  na  cidade  tornassem  a  ser  presos. 

«Em  1478,  Bclul  Canline  d'.4bheviIlo,  por  ler  querido  convencer  Joanni- 
nba,  (ilha  de  Vitace  de  Qucme,  a  que  fosso  com  um  chamado  Franqueviile,  ho- 
mem d'armas  da  guarnição  da  dita  cidade,  foi  conduzido  n'um  carro  pelas  ruas 
da  cidade,  e  os  cabellos  foram-lbe  queimados  no  pelourinho,  sendo  para  sem- 
pre desterrado  sob  pena  de  fogo.» 

Além  d'isso,  a  pena  capitai,  como  já  dissemos,  estava  também  inscripta 
na  lei,  embora  só  em  casos  de  reincidência,  revestidos  de  circumstancias  ag- 
gravantes,  fosse  applicada 

«O  castigo  dos  alcoviteiros,  segundo  os  privilégios  da  cidade  de  Gand, 
diz  J.  de  Damhondere,  era  o  desterro,  e  o  das  alcoviteiras,  o  corfar-se-lhes  o 
nariz,  e  também  o  desterro,  o  pelourinlio,  a  escada  e  o  cadafalso.» 

O  erudito  auctor  da  Pratica  forense  das  causas  criminaes,  a  respeito  da 
jurisprudência  da  cidade  de  Brugj^s,  sobre  o  mesmo  assumpo  accresccnia  : 

«Eu,  que  ha  muitos  annos  hz  parle  do  conselho  da  cidade  de  Bruges, 
nunca  vi  castigar  com  a  morte  os  alcoviteiros  ou  alcoviteiras,  ou  adulteras,  se- 
não com  o  desterro;  e  dentro  da  cidade  ou  do  paiz,  com  o  pelourinho,  com  a 
fustigaçào,  ou  penas  similhantes.» 

Esta  jurisprudência,  que  era  a  do  parlamento  de  Paris,  adoptou-se  con- 
secutivamente em  todos  os  tribunaes  da  França;  mas  o  costume  local  enearre- 
gou-se  quasi  sempre  de  modificar  a  legislação. 

N'umas  partes,  por  exemplo,  a  multa  era  considerável,  como  no  districto 
da  tribunal  de  Ronnes,  que  castigava  na  multa  de  mil  libras  a  venda  de  mu- 
lheres ou  creanças;  n'outras,  confiscavam-se  os  bens  moveis  ou  immoveis  aos 
condemnados;  n'umas  partes  ajuslava-se  á  cabeça  da  alcoviteira  uma  mitra  có- 
nica de  papel  amarello  ou  verde;  n'outras,  um  chapéu  de  palha,  indicando  que 
o  seu  corpo  esperava  sempre  um  comprador;  n'outras  ainda  eram  marcadas  com 
a  lettra  M.  ou  /'.  no  braço  ou  nas  nádegas.  Passeiava-se  a  condemnada  sobre 
um  burro  lazarento,  sobre  um  carro,  sobre  uma  carreia,  ou  sobre  uma  zorra; 
era  açoutada  com  vai-as,  com  correias,  ou  com  cordas  que  tivessem  nós.  Este 
supplieio  era  sempre  uma  festa  para  o  povo,  que  n'elle  tomava  parte,  gritando, 
c  escarnecendo  da  infeliz,  que  lhe  era  abandonada  como  um  instrumento  das 
suas  diversões.» 

«Na  repressão  d'esla  classe  de  dclictos,  diz  Sabateu  na  sua  Historia  da 
legislação  sobre  as  mulheres  publicas  e  togares  d?  prostituição,  desenvolveram 
nossos  pacs  um  rigor  extraordinário  em  castigos,  cuja  forma  offendia  a  huma- 
nidade e  a  decência,  que  elles  .se  propunhan)  desaggravar.» 

Mas  o  povo  era  sempre  ávido  de  presenoear  esles  escândalos,  e  de  per- 
seguir  os  culpados  com  os  seus  dichotes  e  impropérios,  e  ás  vezes  prescindia 


Castigo  infligido  a  uma  proxeneta  na  idade  média 


DA    PROSTITUIÇÃO  159 

da  sentença  do  juiz  e  fazia  correr  nús  aquelles  que  surprehendia  em  flagrante, 
como  facto  privativo  da  sua  jurisdicção.  Assim,  na  maior  parte  dos  privilégios 
que  os  municípios  obtiniiam  dos  senliores,  iiavia  quasi  sempre  o  cuidado  de 
fazer  conlirmar  o  direito  que  se  attriijuiam  de  castigar  os  adultérios,  e  foi 
necessário  que  os  senliores  e  os  próprios  reis  de  França  restringissem  este  di- 
reito a  certos  casos  particulares,  perinittindo  sempre  aos  delinquentes  o  pode- 
rem substituir  a  pena  por  multa. 

Nos  privilégios  da  cidade  de  Aiguesmortes,  reconhecidos  em  1350  pelo 
rei  João,  a  corrida  das  adulteras  foi  em  principio  admiftida,  mas  as  rés  po- 
diam a  ella  eximir-se,  pagando  uma  multa  fixada  pelo  magistrado.  Se  a  corrida 
tinha  logar,  os  cúmplices  não  eram  açoutados  e  a  mulher7  embora  núa  como  o 
homem,  devia  cobrir  os  seus  órgãos  sexuaes. 

O  rei,  pelo  mesmo  sentimento  de  pudor,  prolti!)ia  que  os  homens  e  mu- 
lheres estivessem  na  mesma  prisão. 

Acontecia  frequentemente  que  o  populacho  d'uma  cidade,  impaciente  por 
vêr  o  espectáculo  d'uma  corrida  tão  pouco  decente,  accusava  de  adultério  in- 
divíduos que  encontrava  isolados,  delatando  como  flagrante  delicto  uma  sim- 
ples conversação  amorosa.  Era,  pois,  necessário  que  a  lei  explicasse  claramente 
o  que  era  o  flagrante  delicto,  sobre  que  pesava  a  pena  do  adultério. 

Não  podia  haver  duvida,  em  virtude  das  minuciosas  circumstancias  que 
sobre  o  assumpto  explanava  o  código  dos  costumes,  liberdades  e  franquias,  ou- 
torgadas pelos  condes  de  Tolõsa  aos  habitantes  de  Moncuc,  e  formalmente  con- 
firmado por  Luiz  XI,  nas  suas  reaes  ordens  de  30  de  novembro  de  li63. 

.\  Normandia  em  Iodas  as  épochas  esteve  Ião  adiantada  como  Paris,  no  que 
respeita  á  prostituição.  Falíamos  já  d'aquclle  logar  de  libertinagem  que  havia 
na  cidade  de  Rouen,  na  segunda  metade  do  século  xii,  e  que  o  duque  da  Nor- 
mandia, Henrique  ii,  rei  de  Inglaterra,  pozera  sob  a  vigilamla  especial  '!o  em- 
pregado chamado  Bakleric.  Este  personagem  tinha  o  titulo  de  guarda  de  todas 
as  mulheres  publicas,  exercendo  a  sua  industria  em  Rouen,  e  accumuhiva  este 
extravagante  titulo  com  o  de  marechal  do  rei-duque,  e  com  as  funcções  de 
guarda  da  porta  da  prisão  do  caslello,  sendo-lbe  retribuídos  tão  variados  servi- 
ços com  a  percepção  do  direito  de  2  soldos  diários,  sobre  todos  os  ([uc  fossem 
encontrados  á  caça  nos  bosques  immediatos. 

O  logar  de  libertinagem  que  havia  em  Rouen,  desde  o  tempo  dos  primei- 
ros duques  da  Normandia,  e  que  sem  duvida  alcançou  os  seus  privilégios  no 
tempo  de  Guilherme,  o  conquistador,  foi  provavelmente  o  Iheaíro  das  prédicas 
de  Roberto  de  Arbrissel.  Consta  que  o  piedoso  fundador  da  ordem  de  Fonte- 
vrault  caminhava  descalço  pelas  ruas  e  praças  publicas,  para  chamar  ao  arre- 
pendimento e  penitencia  as  pcccadoras. 

«Um  dia  que  veio  a  Rouen,  conta  a  chronica,  entrou  no  lupanar,  e  sen- 
tou-se  ao  lume  para  aquecer  os  pés.  As  cortezãs  rodcaram-n'o,  julgando  que 
elle  havia  alli  entrado  para  peccar;  mas  elle  diz-lhes  palavras  de  salvação,  of- 
ferecendo-lhes  a  misericórdia  de  Christo.  Então  a  ribalda,  que  governava  nas  ou- 
tras, disse-lhe: 

— «Quem   és  tu,   que  d'esse  modo  falias?  Vinte  annos  ha  já  que  entrei 


460  HISTORIA 

n'esta  casa  para  servir  o  diabo,  e  a  ninguém  ouvi  fallar  de  Deus  ou  da  sua  mi- 
sericórdia. Se  essas  cousas  que  dizes  fossem  verdadeiras. .  .y> 

«N'esse  mesmo  instanie  fel-as  sahir  da  cidade  e,  radiante  d'alegria,  ás 
levou  para  a  solidão  do  deserto,  onde  lhes  fez  chorar  lagrimas  de  penitencia, 
e  onde  as  fez  passar  do  poder  do  demónio  para  o  poder  de  Christo.» 

A  abbadia  de  Fontevrault,  que  o  piedoso  Roberto  havia  fundado  para  de 
preferencia  acolher  as  mulheres  perdidas,  nem  esteve  ao  abrigo  das  tentações 
do  diabo,  nem  das  calumnias  do  século.  Segundo  parece,  o  fundador  teve  de 
submeíter-se  a  extraordinárias  provas  para  vencer  a  carne,  aquella  carne,  que 
era  o  seu  tormento  c  o  prendia  ás  vaidades,  do  mundo.  Era  accusado  de  com- 
partilhar o  leito  d'estas  religiosas,  e  estimular  a  carne  cm  contactos  sensuaes, 
para  depois  ter  a  gloria  de  domar  as  suas  paixões.  O  abbade  de  Mendome, 
Geoffroy,  escreveu-lhe  uma  carta  ccnsurando-o  por  este  facto. 

Roberto  gabava-se  de  nunca  haver  succumbido  n'este  novo  género  de 
marlyrio;  mas  n'uma  carta  de  Marboch,  bispo  de  Rennes,  publicada  por  J. 
Mainferme  no  seu  Clipeus  ordinis  mascenlis  forterbaldensis  expressamente  se 
diz  que  a  maior  parte  das  religiosas  ficaram  gravidas  do  .seu  director  espiri- 
tual. 

N'esía  curiosa  citação  se  vê  que  o  recolhimento  do  bemaventurado  Ro- 
berto se  distinguia  dos  togares  de  libertinagem  publica,  apenas  pela  escanda- 
losa fecundidade  das  recolhidas. 

Cada  cidade  da  Normandia  tinha  o  seu  lupanar,  e  pôde  dizer-se  com  ap- 
parencia  de  rasão,  que  os  alcoviteiros  e  alcoviteiras  que  figuram  nos  antigos 
Usos  normandos,  adquiriram  esta  designação  nas  costas  da  Mandia.  Comtudo, 
não  vemos  que  os  duques  da  Normandia  fossem  tão  favoráveis  á  prostituição 
legal  como  Guilherme  ix,  duque  da  Aquitania  e  conde  de  Poiliers,  que  esta- 
beleceu ou  quiz  estabelecer  em  Niort  um  lupanar,  pelo  systema  dos  mosteiros 
de  mulheres.  Guilherme  de  Malmesbury  cita  este  facto  singular  na  sua  chro- 
nica,  e  accrescenta  que,  construído  o  editicio,  destinado  a  este  lúbrico  mostei- 
ro, o  duque  determinara  confiar  a  sua  administração  ás  mais  formosas  prosti- 
tutas dos  seus  estados. 

Este  duque  de  Aquitania,  que  foi  um  galante  trovador  e  um  desenfreado 
libertino,  havia  resolvido,  em  virtude  de  razões  policiaes,  di?  M.  Weiss,  na 
fíiographia  Unicersal,  crear  um  tal  estabelecimento,  depois  imitado  em  mui- 
tas cidades  da  França,  da  Itália  e  da  Hespanha.  Não  sabemos  se  esta  foi  a  cau- 
.sa  pela  qual  o  papa  Calixto  ii  citou  Guilherme  perante  o  concilio  de  Reims  em 
1329.  Seja  como  fòr,  o  duque  não  se  corrigiu,  e  continuou  cantando  o  amor, 
('  dando  a  seus  vassnllos  exemplos  de  uma  vida  licenciosa. 

As  ribaldas  normandas,  poitevinas,  e  angevinas,  muito  tinham  feito  sem 
duvida  para  merecer  a  fama  de  que  gosavain ;  as  de  Angers  eram  de  todas  as 
mais  afamadas,  como  o  prova  este  provérbio  corrente  no  século  xv:  «Angers, 
cidade   baixa   e  de  altos  campanários,  de  ricas  ribaldas  e  pobres  estudantes.» 

A  visinliança  de  Anjou  c  Poitou  não  conseguiu  perverter  a  casta  Breta- 
nha, onde  a  prostituição  sempre  teve  uma  existência  occulta  e  timida,  que  só 
por  acaso  era  descoberta  pelos  ingénuos  bretões.  Ahi  pelos  fins  do  século  xv, 


DA    PROSTITUIÇÃO  •  161 

nas  informações  colhidas  para  canonisar  Carlos  tle  Blois,  uma  fesfenmnha,  cha- 
mada João  de  Fournet,  homem  d'armas  da  parochia  de  S.  José,  diocese  de  Dol. 
attestou  perante  os  commissario?  ecclesiasticos  o  modo  como  o  santo  duque  ha- 
via convertido  uma  peccadora,  que  pertencia,  de  mais  a  mais,  à  intima  espécie 
d'estas  desgraçadas. 

Na  sexta-feira  santa  de  l3o7,  indo  Carlos  de  Blois  da  cidade  de  Dinan 
para  o  castello  de  Léon,  acompanhado  pir  Alain  de  Tenou,  seu  thesoureiro, 
por  Ctodofredo  de  Poiíhlanch,  seu  mordomo,  pelo  cavalleiro  Bardy,  c  por  outros 
homens  d'armas,  viu  uma  mulher  sentada  á  beira  do  caminho.  O  duque  per- 
guntou-lhe  o  que  fazia  alli,  e  ella,  levanfando-se,  respondeu-lhe  que  ganhava  o 
pão  com  o  suor  do  seu  corpo.  O  duque  chamou  de  parte  o  seu  thesoureiro,  e 
ordenou-lhe  que  se  approximasse  da  mulher,  e  a  interrogasse  sobre  o  género 
de  vida  que  exercia,  pois  que  não  havia  compreliendido  a  rcsposia  da  pobre 
creatura;  a  qual  confessou  tristemente  ser  uma  prostituta,  a  quem  a  miséria 
obrigava  a  exercer  tão  vergonhosa  industria. 

Ouvido  isto,  o  duque  disse  á  infeliz  que  ao  menos  se  deveria  abster  de 
peccar  durante  a  semana  santa.  E  ella  replicou-lhe  que,  se  tivesse  vinte  soldos, 
se  absteria  até  ao  tim  do  niez.  Carlos  pegou  na  sua  bolsa,  que  não  estava  muito 
recheada,  e  d'ella  tirou  quarenta  soldos  que  entregou  á  infeliz.  Ao  recebel-os, 
prometteu  esta  não  peccar  durante  vinte  dias. 

Godofredo  de  Ponblanch  quiz  que  ella  jurasse  o  que  promettia;  mas  o 
duque  não  consentiu  que  a  mulher  se  expozessc  a  perjurar,  e  continuou  o  seu 
caminho,  aconselhando-lhe  que  perseverasse  nas  suas  boas  intenções. 

Esta  meretriz,  chamada  Joanna  Dupont,  cumpriu  a  sua  palavra,  e  jamais 
esqueceu  os  bons  conselhos  de  Carlos  de  Blois;  renunciou  para  sempre  á  vida 
dissoluta,  e  com  os  quarenta  soldos  de  que  fez  um  pequeno  dote.  casou-se  com 
um  rapaz  da  sua  terra,  filho  de  .Matheus  Rouce,  de  Pludiilian,  sem  que  tornasse 
a  peccar  contra  a  castidade. 

Pôde  deduzir-se  d'esta  aventura  que  Joanna  Duponi,  como  mulher  dos 
campos  e  bosques,  não  ganhava  mais  que  um  ou  dois  soldos  diários,  esperando 
os  passageiros  á  beira  dos  caminhos,  como  as  estrangeiras  da  Judéa,  citadas 
pelas  velhas  Escripturas. 

As  províncias  occidentaes,  onde  ós  costumes  francos  se  tinham  conser- 
vado em  toda  a  sua  impureza,  foram  sem|>re  Ihcatro  de  todas  as  depravações 
da  prostituição.  Na  Lorena  e  na  AIsacia,  como  n'outros  tosares,  havia  usos  e 
ordenações  que  castigavam  os  excessos  da  libertinagem,  sobretudo  quando  se 
tractava  do  clero,  que  se  lhe  entregava  com  o  maior  escândalo;  mas  em  cada 
cidade  a  impudicicia  publica  encontrou  instituições  protectoras,  se  é  licito  em- 
pregar esta  expressão,  para  caracferisar  a  organisação  do  vicio  sob  o  ponto  de 
vista  da  policia  edilitaria. 

M.  Rabuteau,.  depois  de  descrever  o  estado  da  prostituição  nas  regiões 
do  meio  dia  «onde  vemos  sem  espanto,  diz  elle,  paixões  fogosas,  produzindo 
as  suas  naturaes  consequências,»  admira-sc  de  não  encontrar  costumes  mais 
severos  nos  paizes  do  norte. 

«Sc  olhamos,  accrescenta,  pai-a  os  paizes  em  que  o  clima  menos  ardente 
HtSToniA  DA  Pbostitoicão.  Tomo  ii— Folha  21. 


i62  mSTORTA 

parece  dispor  para  costumes  mais  puros,  encontramos  os  mesmos  excessos,  ou 
talvez  ainda  mais  grosseiros.» 

Este  facln,  segundo  o  nosso  modo  de  vêr,  tem  uma  causa  histórica,  e  é 
filho  de  condições  cconomico-polilicas.  Os  povos  ausírasianos  tinham  conser- 
vado os  seus  hahilos  de  uma  luxuria  feroz,  e  a  legislação  nacional  nada  tentara 
para  modificar  os  instinctns  hrutacs,  que  o  abuso  das  bebidas  fermentadas,  faes 
como  a  cerveja,  o  hydromcl  e  os  vinhos  do  llhcno,  exaltavam  até  ao  delirio. 
A.  prostituição  era,  pois,  admittida  como  uma  lei  de  necessidade,  para  garantir 
a  honra  das  mulheres  casadas,  que,  ainda  assim,  nem  sempre  se  preservavam 
dos  ullrages  c  allcntados  da  sensualidade  masculina.  O  legislador  não  condem- 
na  mais  factos  do  que  os  que  resultam  d'esla  fonte  impura.  A  alcovitice  é  cas- 
tigada mais  severamente  que  a  violação,  mas  a  mulher  conserva  o  direito  de 
vender-se,  sujeitando-se  ás  formalidades  da  policia  municipal.  A  lei  srt  era  se- 
vera com  ella,  quando  se  entregava  á  gente  da  Egreja. 

Carlos  ni,  duque  de  Lorena,  resume  a  antiga  jurisprudência  na  sua  or- 
denação de  12  de  janeiro  de  1583,  que  eondemna  a  ser  cliibatadas  as  «mulhe- 
res notoriamente  infames,  que  frequentam  as  casas  dos  ecclcsiasticos.»  Os  re- 
gulamentos da  prostituição  legal,  posto  que  mais  amplos  e  menos  austeros  do 
que  esses,  que  rasões  d'ulilidade,  de  moralidade  c  prudência  haviam  feito 
adoptar  nas  grandes  cidades  do  meio  dia,  pouco  dilTeriam  entre  si. 

As  mulheres  de  má  vida  estavam  como  que  separadas  da  sociedade;  ha- 
bitavam bairros  e  ruas  infames;  não  podiam  exercer  a  sua  industria  em  ou- 
tra parte;  usavam  um  trajo  especial,  ou  um  signal  distinctivo  como  os  judeus; 
pagavam  um  imposto  ao  (isco,  e  governavam-sc  independentemente,  conforme, 
os  estatutos  de  uma  associação  regular,  análoga  á  dos  grémios. 

Em  Strasburgn,  as  ordenações  municipaes  de  1409  e  1430  dizem-nos 
que  as  mulheres  publicas  estavam  confinadas  nas  ruas  Bieckergass,  Klapper- 
gass,  Greibcngass,  e  por  traz  dos  muros  da  cidade,  onde  estas  mulheres  haviam 
habitado  sempre,  dizem  as  ordenações  muitas  vezes  renovadas  no  decurso  do 
século  XV. 

Com  elTcito,  conservam-se  nos  archivos  d'csta  cidade  os  regulamcntus  e 
estatutos,  concedidos  cm  24  de  março  de  1435,  pelo  magistrado  de  Strasbur- 
go,  á  communidade  das  mulheres  públicas,  estabelecidas  na  rua  e  casa  cha- 
mada Picken-gass.  Eslcs  regulamentos,  compostos  de  três  artigos,  comprehen- 
dem  as  medidas  policiaes  a  que  estavam  sujeitas  as  casas  de  libertinagem.  Es- 
tas casas  chegaram  a  multipliear-se  de  tal  modo,  que,  pelos  fins  do  século  xv, 
os  funccionarios  públicos,  encarregados  de  as  vigiar  e  de  arrecadar  o  imposto 
que  n'ellas  incidia,  contaram  mais  de  cincoenta  e  sete  em  seis  ruas  dilTerenles; 
unui  só  rua,  a  de  llndnujass,  tmha  nada  menos  que  dezenovc  d'estes  esta- 
belecimentos; havia  tanibcm  um  grande  numero  na  viella  fronteira  ao  Ktlte- 
ner,  e  não  poucas  ao  lado  da  casa  chamada  Sehnahelburg.  Kock  viu  o  regis- 
tro da  policia,  onde  constava  que  a  prostituição  legal  tinha  uma  centena  de 
bordeis  na  cidade  episcopal  de  Strasburgo. 

Os  especuladores  d'estes  haréns,  abertos  á  lubricidade  publica,  enviavam 
os  seus  agentes  e  angariadores  mesmo  aos  paizes  estrangeiros  em  procura  de 


DA    PROSTITUIÇÃO  <  63 

mulheres,  que  por  contracto  alugavam  o  seu  corpo,  e  que  uma  vez  presas  nos 
Klapper,  ou  bordeis  de  Slrasburgo,  se  viam  reduzidas  a  condiç^fio  mais  detestá- 
vel que  a  da  escravidão. 

Finalmente  em  principies  do  século  xvi,  as  casas  publicas  já  não  basta- 
vam para  conter  as  prostituías,  que  de  toda  a  parte  aflluiam,  c  que  não  encon- 
trando onde  se  albergassem,  invadiam  o  campanário  da  cathedral  e  das  outras 
eg  rejas. 

«No  que  respeita  ás  andorinhas  ou  ribaldas  da  cathedral,  diz  uma  orde- 
nação de  lo2l,  permiltir-se-lhes-ha  o  demorarcm-sc  por  ahi  mais  quinze  dias; 
passados  os  quaes,  jurai"ão  abandonar  a  cathedral  e  outras  egrejas  ou  togares 
santos.  As  que  quizcrem  persistir  na  libertinagem  serão  intimadas  a  retirar-se 
para  Riebery  (extra-muros,  perto  da  porta  dos  Carniceiros)  e  para  outros  sí- 
tios que  lhes  serão  designados.» 

Quinze  annos  mais  tarde,  graças  ao  protestantismo,  que  segundo  a  notá- 
vel phrasc  de  que  se  serve  Mr.  Rabutcau  «deu  certa  dignidade  á  vida  particu- 
lar,» só  havia  cm  Slrasburgo  duas  casas  de  prostituição.  N'esta  ultima  épocha, 
as  mulheres  publicas  ainda  usavam  o  signal  distinctivo,  que  o  magistrado  de 
Slrasburgo  lhes  impozcra  em  1384.  Esle  signal  era  um  gorro  cónico  c  alto,  ne- 
gro e  branco,  que  se  usava  por  cima  du  véu.  A'  excepção  da  còr,  este  chapéu 
foi  o  que  Izabel  de  Baviera,  com  grande  escândalo  das  mulheres  honestas,  in- 
troduziu na  corte  de  França. 

A  prostituição  não  era  menos  intensa  nas  terras  de  Messin,  do  que  na 
Alsacia,  em  Wetz  do  que  em  Slrasburgo,  compartilhando  das  suas  lubricidadcs 
o  clero  secular  c  regular.  N'um  atoar,  ou  ordenação  dos  magistrados  do  anno 
de  1332,  prohibe-se  á  gente  da  Egrcja  o  «ir  de  noite  e  de  dia  ás  casas  com- 
muns,  e  a  outros  logarcs  que  .se  não  devem  referir.»  Este  atoar  faz  constar  «a 
grande  dissolução  que  existia  entre  os  monges  de  Santo  Arnaldo,  S.  Clemente 
e  S.  Martinho,»  que  percorriam  de  noite  as  ruas,  arrombando  as  portas  das  ca- 
sas, frequentando  as  tabernas  c  logarcs  infames. 

Tal  estado  de  cousas  peorou  ainda  pelos  fins  do  século  xvi,  e  o  chronista 
Philippe  de  Vigneulles  attribue  tão  monstruosos  excessos  á  aflluencia  da  gente 
de  guerra  que  a  cidade  havia  tomado  a  soldo.  «Pelas  ruas  apenas  se  via  ribal- 
deria,  diz,  e  por  isso,  tudo  estava  dillamado.»  Publicaram-se  severos  edictos  a 
respeito  da  Pedra  Bordelaria  na  presença  dos  Treze  (magistrados  da  cidade.) 
Esta  Pedra  Bordelaria  devia  ser  o  pelourinho,  onde  se  justiçavam  os  condem- 
nados  cm  Metz. 

Um  dos  edictos  publicados  com  data  de  6  de  julho  de  1493  encontra-se 
na  Chronica  inédita  de  Philippe  de  Vigneulles: 

«Que  todas  as  mulheres  casadas,  que  deshonram  seus  maridos,  c  as  jo- 
vens entregues  ao  vicio,  se  não  querem  viver  como  mulheres  de  bem,  vão 
para  os  bordeis  de  Anglemure  (beco  sem  salda,  perto  dos  muros).  E  que  ne- 
nhum habitante  as  receba,  ou  lhes  alugue  casa  cm  boas  ruas,  sob  pena  de  qua- 
renta soldos  de  multa.  E  que  as  ditas  mulheres  não  se  encontrem  em  festas 
da  cidade,  e  que  ninguém  as  leve  a  danças,  sob  pena  de  dez  soldos  de  multa.» 

Metz  tinha  muitas  ruas  destinadas  á  habitação  e  trafico  das  mulheres 


i64  HISTORIA 

dissolutas,  e  as  que  não  desappareceram  cora  a  cidade  velha,  ainda  conservam 
o  seu  primitivo  uso.  Perto  do  beco  sem  saida  de  Anglemure,  que  era  o  foco  prin- 
cipal da  libertinagem  urbana,  existia  a  rua  de  Bordaus,  ou  Bordeis,  que  acabava 
na  muralha  de  circumvallação,  parailela  á  rua  de  Stancul,  mas  que  já  foi  fechada. 
Esta  ultima,  que  sobe  pela  vertente  oriental  da  collina  de  Sainte-Croix,  onde 
estava  situado  o  palácio  dos  reis  da  Austrasia,  é  estreita,  sombria,  fétida,  como 
todas  as  ruas  da  sua  espécie. 

.4s  mulheres  de  má  vida  compromcttiam-se,  mediante  uma  quantia  fixada 
n'um  contracto,  a  servir  corporalmente  nas  casas  de  tolerância,  que  algumas 
ribaldas  tinham  arrendadas,  sob  a  vigilância  dos  magistrados.  Assim,  qualquer 
mulher  solteira,  que  causava  escândalo  com  os  seus  maus  costumes,  era  con- 
duzida vergonhosamente  ao  bordel,  e  entregue  ás  ribaldas,  que  traficavam  com 
o  seu  corpo,  se  antecipadamente  não  lhes  dava  um  bom  resgate,  sempre  superior 
ao  que  a  nova  mercadoria  lhes  poderia  produzir. 

Philippe  de  Vigneulles  conta  a  este  propósito,  uma  interessante  historia, 
que  data  de  1401.  Uma  garse  (mulher  alegre,!  indo  para  a  cathedral  n'um  do- 
mingo de  Ramos  encontrou  o  seu  amante,  que  a  levou  para  casa,  em  vez  de  a 
acompanhar  à  missa.  Isto  foi  sabido  pelos  magistrados,  que  citaram  o  auctor 
do  escândalo  perante  o  tribunal,  e  que  apenas  o  condemnaram  a  pagar  qua- 
renta soldos  de  multa;  mas  a  joven,  que  foi  julgada  mui  viciosa  (de  malvaise 
voulente, )  (oi  mettida  n'uma  casa  de  prostitutas.  O  amante,  porém,  diz  o  chro- 
nista,  resgatou-a  das  mãos  das  ribaldas,  pagando  quinze  soldos,  levou-a  outra 
vez  para  sua  casa,  vendeu  todos  os  seus  bens,  e  foi  viver  para  longe  com  ella. 

Outro  chronisfa,  o  deão  de  Sainl  Thiebaut,  refere-nos  um  facto  que  indica 
o  preço  da  prostituição,  verdade  seja  que  n'um  tempo  em  que  a  abundância  das 
mulheres  publicas  estava  em  desproporção  com  a  do  trigo.  Em  1420,  obtinham-se 
quatro  mulheres  por  um  ovo,  diz  Emilio  Begin,  appoiando-se  na  auctoridade  do 
chronista,  pois  que  um  ovo  custava  um  gros,  e  uma  mulher  quatro  dinheiros, 
e  ás  vezes  ainda  mais  baratas  se  encontravam. 

A  alcovitice,  todavia,  não  deixava  de  ser  um  commercio  lucrativo,  e  ape- 
sar dos  perigos  que  corria,  não  obstante  o  exemplo  dos  castigos  applicados  ás 
alcoviteiras,  abundavam  as  mulheres  infames,  que  viviam  de  traficar,  até  com 
as  suas  próprias  filhas. 

«A  uma  mulher  foram  cortadas  as  orelhas,  diz  Philippe  de  Vigneulles, 
por  ter  praticado  muitos  crimes,  e  ter  levado  uma  moça,  que  era  sua  filha,  para 
o  bordel,  onde  foi  deshonrada.» 

Um  século  mais  tarde,  pelo  mesmo  facto,  ter-lhc-hia  sido  applicada  a 
pena  capital. 

A  historia  especial  de  todas  as  cidades  da  Lorena  e  da  AIsacia  está  re- 
cheada de  muitos  factos  análogos,  (|ue  demonstram  a  unidade  da  jurisprudên- 
cia em  matéria  do  prosliliiição.  rnicamenie  consignaremos  aqui  dois  casos  es- 
peciaes,  relativos  ás  cidades  de  Saint-Dié  e  Montbeliard.  N'esta  ultima,  um  ri- 
baldo  que  percorria  as  ruas  vestido  de  mulher  (ni39)  foi  preso  e  entregue  ao 
carrasco,  que  o  expôz  no  pelourinho,  o  açoitou,  e  finalmente  o  expulsou  das 
terras  do  senhor  de  .Montbeliard.  E'  provável  que  este  ribaldo  fuesse  do  seu 


OA    PROSTITUIÇÃO  165 

disfarce  feminino  lun  uso  abominável.  Vimos  também  já  que  em  Paris  as  ri- 
baidas,  disfarçadas  em  irajos  de  homem,  eram  egualmcnte  presas,  embora  ordi- 
nariamente se  Mies  impozesse  a  pena  de  confiscação  no  trajo  que  nílo  perten- 
cia ao  seu  sexo. 

Em  Saint-[)ié,  as  mulheres  de  má  vida,  que  habitavam  nas  ruas  Noze- 
vilh-  I'  Destord,  podiam  gabar-se  do  .seu  temperamento  prolitico,  pois  que  as 
quatro  aldeias  próximas,  Pierpont,  Saint-Helène,  Buli  e  Padoux,  chamadas  as 
quatro  aldeias  viris,  tinham  sido  povoadas  com  os  seus  filhos  varões,  os  quaes  se 
casaram  e  se  tornaram  súbditos  do  capitulo  cathedral  de  Saint-Dié,  o  que  tam- 
bém acontecia  aos  habitantes  de  maus  costumes  dos  bairros  immundos  de  Des- 
tord e  Nozeville. 


CAPITULO  XVI 


SUMMARIO 


Influencia  dos  costumes  e  dos  usos  da  Itália,  na  Pruveuça  e  no  LaDi'Ucdoc,  na  Edade- Media. — A  grand©  ab- 
hadla  da  rua  de  Comeuge,  em  Tolosa.—  Distinctivo  das  mulheres  da  grande  abbadla.—  O  bairro  de  Groses.—  A  casa 
do  Ccuteilo-  Verde.—  Vicissitudes  da  prostitui.jSo  legal  em  Tolosa  ate  fins  do  século  xvi.—  Hospício  da  prostituição 
lesai  em  Montpellier.—  Os  especuladores  do  bordel  de  Montpellier.  -  Ijlara  Panais.— Guilherme  de  la  Croix  e  as  duai. 
Olhas  de  Clara  Panais.—  A  caba  de  Dandrea.—  U  bordel  privileg^lad<i  .ic  .Avinháo.— Kstatutos  de  Joanna  de  Napolos  — 
A  pnxtitulçíio  em  .AvinhSo  antes  dos  estatutos  de  1347. 


REZ  cidades  lia  em  Franea,  em  cada  uma  das  quaes  a  prostitui- 
rão legal  teve  um  asylo  estabelecido  por  um  real  privilegio  e 

j  arrendado  em  beneficio  da  communa.  Estas  trcz  cidades  são 
.\vinhi3o,  Tolosa  e  Montpellier,  onde  por  causa  dos  bons  cos- 
tumes havia  a  instituição  de  uma  abbadia  obscena,  que  a  au- 


ctoridade  municipal  administrava,  como  um  estabelecimento  de  utilidade  publica. 

Julgamos  dever  fazer  a  historia  d'estes  trez  estabelecimentos  no  mesmo 
capitulo, approximando-os  assim,  para  fazer  comprehender  a  influenciados  usos 
e  costumes  da  Itália,  na  Provença  e  no  Languedoc,  na  Edade-Media. 

«Desde  os  mais  remotos  tempos,  diz  uma  ordenação  de  Luiz  xi,  já  por 
DÓS  citada,  é  costume  n'este  paiz  do  Languedoc,  e  especialmente  nas  boas  ci- 
dades do  dito  paiz,  haver  uma  casa  fora  das  ditas  cidades  para  habitação  t^  n- 
sidencia  das  mulheres  communs.» 

Com  elTeifo,  em  Tolosa  e  no  tempo  dos  seus  primeiros  condes,  foi  aber- 
ta uma  casa  de  prostituição  a  expensas  da  cidade,  dando  a  esta  crescido  ren- 
dimento, e  assegurando  a  tranquillidade  das  mulheres  honradas.  Este  lupanar 
estava  situado  na  rua  de  Comenge. 

A  heresia  dos  Albigenses,  que  não  podiam  ter  contacto  carnal  com  mulher 
alguma,  provavelmente  contribuiu  para  a  decadência  momentânea  da  prostitui- 
ção em  Tolosa,  e  para  empregar  a  formosa  expressão,  de  que  se  serve  Mignet. 
analysando  a  doutrina  d'aquellc  austeros  hereges,  o  deus  da  matéria  que  do- 
minava nas  regiões  tenebrosas  dos  corpos  polluidos  foi  impotente  para  lhe  de- 
fender o  templo.  Uma  ordenação  doannode  1201  rehabilitou  a  rua  Comenge,  tras- 
ladando para  o  arrabalde  de  S.  Cypriano  o  estabelecimento  impudico,  que  a  des- 
honrava.  Todavia- julgaram-no  ainda  mui  próximo  do  coração  da  cidade,  e  foi 
mudado  para  extra-muros,  cerca  da  porta  e  no  bairro  de  Croses. 


1  fiS  HISTORIA 

Se  se  tivessem  fechado  as  porias  d'esta  casa  publica,  que  chamavam  a 
grande  abbadia,  e  que  não  só  albergava  as  ribaldas  da  cidade,  mas  também  as 
que  eram  attraidas  a  Tolosa,  os  estudantes  da  Universidade  c  os  libertinos  ter- 
se-hiam  sublevado  para  manter  o  que  elles  chamavam  os  seus  antigos  privilé- 
gios. 

A  cidade  e  a  Universidade,  perfeitamente  d'accordo,  haviam  feito  as  des- 
pezas  para  a  insfallaçào  das  mulheres  communs,  e  compartiam,  boné  jure  et 
justo  titulo,  como  com-proprietarios,  os  benefícios  d'esta  explorarão  infame. 

As  prostitutas,  que  viviam  ou  estavam  de  passagem  na  grande  abbadia, 
eram  obrigadas  a  usar  um  chapéu  branco,  com  cordões  da  mesma  côr,  insígnia 
da  profissão  e  libré  da  casa.  Não  era  sem  violência  e  rcpugnanciaque  cilas  obede- 
ciam a  esta  prescripção  do  regulamento  sumptuário,  que  as  impedia  de  se  ves- 
tirem e  adornarem  a  seu  gosto  e  capricho,  pois  que  a  côr  branca  do  chapéu  não 
ia  bem  com  as  outras  cores  da  moda,  e  era  detestada  pela  impura  communi- 
dade  da  grande  abbadia.  Todavia  os  magistrados  mostravam-se  inflexíveis  ob- 
servadores das  antigas  ordenações,  e  rigorosamente  castigavam  toda  a  contraven- 
ção da  lei. 

Em  dezembro  de  1389,  o  rei  Carlos  vi,  visitando  as  principaes  cidades  do 
seu  reino,  fez  uma  entrada  triumphal  na  capital  do  Languedoc,  onde  foi  rece- 
bido com  grande  pompa,  e  onde  alguns  dias  se  demorou.  Toda  a  população  to- 
mou parte  nas  festas  da  recepção,  e  as  hospedas  da  grande  abbadia  sahiram 
a  receber  o  rei  com  doces,  vinhos  e  dores,  a  fim  de  lhe  supplicarem  uma  gra- 
ça, (^om  effeito,  em  commemoraçào  da  sua  feliz  chegada,  pediram-lhe  que  as 
livrasse  das  injurias  e  vitupérios,  a  que  a  branca  insígnia  a  que  eram  obri- 
gadas por  uma  antiga  ordenação  sujeitava  a  collegíada.  Parece  que  ogríto  — 0//ia 
o  chapéu  branco!  —  dado  nas  ruas  de  Tolosa,  fazia  sahir  das  casas  e  das  lojas 
um  grande  numero  de  rapazes,  que  perseguiam  o  vistoso  toucado,  alirando- 
Ibe  pedras  e  lama.  As  prostitutas  queixaram-se,  allegando  que  as  ordenações 
relativas  ao  seu  vestuário  tinham  sido  feitas  sem  auclorisação  do  rei,  a  quem 
supplicavdm  as  emancipasse  d'aquolla  escravidão. 

O  assumpto  foi  levado  a  conselho  de  Estado  e  discutido  em  presença  do 
bispo  de  Noyon,  do  visconde  de  Melun  e  de  messires  Enguerrand,  Dcudín  e 
.íoào  Estouteville.  Carlos  vi,  que  ainda  não  estava  demente,  recebeu  com  pa- 
ternal interesse  a  supplica  das  jo\ens  da  grande  abbadia,  e  segundo  os  termos 
da  ordenação  expedida  por  tal  motivo,  «desejando  dispensar  graças  e  favores  a 
lodos,  e  assegurar  a  liberdade  aos  habitantes  do  seu  reino»,  outorgou  ás  sup- 
plícanlcs  c  suas  successoras  na  dita  abbadia,  que  podessem  trazer  no  braço  uma 
braçadeira  de  cor  diíTerente  da  do  vestido  que  usassem,  sem  que  por  tal  facto 
incorressem  em  multa,  embora  ordenações  houvesse  em  contrario. 

O  Sencscal  de  Tolosa  e  todos  os  funccionarios  públicos  foram,  portanto, 
encarregados  d'ahi  em  diante  de  proteger  as  habitantes  da  abbadia,  e  de  paci- 
fica e  perpetuamente  fazer-lhes  gosar  os  beneficios  desta  real  graça,  sem  as 
molestarem,  ou  permittírem  (|ue  fossem  molestadas,  pelo  trajo  que  usassem. 
A  collegíada  da  grande  nbbadia  bem  depressa  se  arrependeu  de,  por  graça 
especial  do  rei,  se  ter  libertado  do  uso  da  antiga  insígnia.  A  população  de  To- 


DA    PROSTITUIÇÃO  169 

losa  revoltou-se  contra  esta  liberdade  auctorisada  pela  real  ordenarão,  e  como 
obedecendo  a  uma  deliberação  geral,  maltratava  todas  as  que  encontrava  na  rua 
sem  chapéu  nem  cordões  brancos.  O  Senescal  de  Tolosa,  e  assim  os  mais  func- 
cionarios  públicos,  recusaram  ouvir  as  queixas  que  diariamente  lhes  eram  apre- 
sentadas pelas  maltratadas;  e  não  podendo  estas  obter  justiça  nem  protecção, 
em  vez  de  renunciarem  ao  beneficio  da  real  ordenação,  que  as  libertava  d'um 
distinctivo  infamante,  preteriram  conservar-se  reclusas  no  seu  asylo.  Mas  nem 
por  isso  os  seus  perseguidores  as  esqueceram,  c  á  própria  abbadia  as  foram  in- 
sultar. 

Estas  perseguições  foram  pouco  a  pouco  afastando  os  clientes  da  casa,  que 
dava  á  cidade  um  rendimento  considerável,  empregado  em  despezas  de  utilidade 
publica.  A.  renda  foi  continuamente  baixando,  e  o  thesoureiro  do  Capitulo,  que 
a  recebia  annualrnente  das  mulheres  communs  e  dos  seus  arrendatários,  teve 
de  dar  conta  do  deficit,  causando  má  impressão  nos  capitulares,  que  viam  de- 
sapparecer  um  rendimento  tão  fácil  como  seguro.  Por  causa  d'isto,  fez-se  uma 
syndicancia,  d'onde  se  concluiu  que  as  moradoras  da  abbadia  já  alli  não  viviam 
em  segurança;  que  grande  numero  de  libertinos  e  de  homens  maus  de  noite 
e  de  dia  iam  áquelle  estabelecimento,  onde  praticavam  actos  inauditos;  que  es- 
tes perversos,  sem  temor  de  Deus  nem  da  justiça,  inspirados  peio  espirito  mau, 
arrombavam  as  portas,  penetravam  no  interior  da  casa  c  |)ara  se  apoderarem 
das  desgraçadas,  que  se  entrincheiravam  nos  seus  aposentos,  demoliam  as  pa- 
redes, ou  abriam  grandes  buracos  nos  tectos;  que  finalmente  feriara  c  ultraja- 
vam do  modo  mais  atroz  as  pobres  victimas  da  sua  feroz  e  cruel  lubricidade. 
Estas,  para  se  subtrahirem  a  taes  violências  e  ultrajes,  fugiam  da  Grande  Ab- 
badia, que  já  nada  mais  era  do  que  uma  ruina  abandonadar 

Os  capitulares  inutilmente  procuraram  remediar  o  mal  e  attrahir  as  fugi- 
tivas ao  estabelecimento,  promettendo-lhes  apoio  e  {)rotccção:  o  habito  tinha-sc 
inveterado,  c  apesar  das  disposições  e  esforços  da  guarda  urbana,  os  assaltos 
á  abbadia  repetiam-se  frequentemente,  sempre  com  a  reproducção  dos  mesmos 
escândalos  e  torpezas. 

Convencidos  da  inutilidade  dos  meios  de  que  dispunham,  os  capitulares 
dirigiram-se  ao  rei,  supplicando-lhe  viesse  protegel-os;  Carlos  vii,  que  então  só 
reinava  n'algumas  províncias  do  seu  reino,  dirigia-se  a  esse  tempo  ao  Langue- 
doc,  para  exaltar  o  zelo  dos  seus  partidários,  e  sem  diíFicuklade  foi  a  Tolosa: 
alli  examinou  o  assumpto  em  conselho,  recordou  que  seu  pae  havia  outorgado 
uma  graça,  alegremente  recebida,  ás  ribaldas  de  Tolosa,  e  por  um  real  decreto  de 
13  de  fevereiro  de  1423  ameaçou  com  toda  a  sua  cólera  os  auctorcs  dos  exces- 
sos que  muitas  vezes  se  haviam  reproduzido  na  Grande  Abbadia;  recommen- 
dou  aos  seus  agentes  que  protegessem  o  estabelecimento,  que  desde  então  fi- 
cava sob  a  sua  especial  guarda,  e  mandou  diante  da  porta  collocar  dois  postes, 
pintados  com  flores  de  liz,  em  signal  da  protecção  real. 

As  armas  da  França  pouco  respeito  impozeram  aos  desordeiros,  que  de  vez 
em  quando  repetiam  os  seus  ataques  nocturnos  contra  a  Grande  Abbadia,  dando  a 
desculpa  de  não  terem  visto  as  flores  de  liz,  com  a  escuridão  da  noite;  mas  as 
pobres  peccadoras,  por  mais  que  tocassem  o  sino  d'alarme,  pedindo  soccorro  e 

BuTORU  djl  PaosniDiçio.  Tomo  n— Folha.  22. 


no  -  HISTORIA 

auxilio,  por  muito  felizes  se  ciavam  em  salvar  a  vida.  Por  fim  tiveram  que.  aban- 
donar, o  estabelecimento,  que  sem  defesa  as  entregava  aos  seus  verdugos,  e 
voltaram  para  o  bairro  de  Groses,  onde  menos  evpostas  estavam  ás  violências 
d'aquelles  ferozes  libertinos. 

Os  capitulares  viram  então  elevar-se  a  cifra  dos  rendimentos  impudicos 
da  cidade,  e  esta  grave  considera^"ão  obrigou-os  a  fecbar  os  olhos  á  invasão  da 
libertinagem  publica,  no  interior  de  Tolosa.  As  prostitutas  permaneceram  cerca 
de  um  século  nos  becos  immediatos  á  porta  de  Groses,  d'onde  só  sahiram  em 
1525,  quando  a  Universidade  se  apoderou  das  casas  que  ellas  occupavam,  e  alli 
construiu  edifícios  para  seu  uso. 

Então  foram  novamente  relegadas  da  cidade,  e  para  ellas  á  custa  do  mu- 
nicípio se  adquiriu  uma  grande  casa,  situada  extra-muros,  n'um  sitio  chamado 
Pré-Moulardi,  pertencente  a  M.  de  Saint-Pol. 

Esta  casa  de  prostituirão  chamada  Chateau-Vert,  ou  Chatel-Vert  (Cas- 
tello  Verde)  já  não  tinha  que  receiar  dos  assaltos  dos  estróinas,  e  offerecia 
um  retiro  pacifico  áquellas  pobres  mulheres,  que  por  conta  da  cidade  continua- 
vam trabalhando  na  sua  infame  industria:  mas  o  estabelecimento  do  Chateau- 
Vert  era  n'aquolla  épocha  regido  por  alguns  regulamentos  severos. 

Em  1557,  tendo  apparecido  a  peste  em  Tolosa,  ordenou-seás  mulheres 
publicas  que  permanecessem  encerradas  no  seu  castello,  e  que  n'elle  ninguém 
admittissem,  até  que  o  flagello  cessasse:  algumas  desobedeceram  a  tão  justa 
ordem  e  foram  açoitadas  na  praça  do  mercado ;  outras  fugiram  para  cidades  on- 
de a  peste  não  reinava. 

Só  reappareeeram  em  Tolosa  em  1560,  quando  as  condições  da  salubri- 
dade publica  tinham  melhorado,  a  ponto  de  lhes  serem  reabertas  as  portas  do 
ChateaU-Vert.  O  seu  regresso  foi  alegremente  celebrado,  mas  os  capitulares, 
envergonhados  com  os  epigrammas,  que  lhes  dirigiam  a  propósito  da  direcção 
suprema  que  tinham  n'este  bordel  municipal,  c  também  sabendo  que  eram  ac- 
cusados  de  comprar  as  vestimentas  com  o  imposto  do  Chateau-Vert,  fizeram 
d'este  imposto  cedência  aos  hospitaes  da  cidade.  Os  hospitaes  apenas  o  perce- 
beram seis  annos,  passados  os  quaes  á  cidade  devolveram  tão  oneroso  privile- 
gio: os  rendimentos  da  exploração  do  Chateau-Vert  eram  absorvidos  e  até 
excedidos  pelos  encargos  correspondentes  a  esía  impudica  propriedade,  pois  que 
os  hospitaes  eram  obrigados  a  receber  e  a  tractar  gratuitamente  as  enfermas 
que  sabiam  do  Chateau-Vert.  JXecessario  é,  todavia,  lembrar  que  n'este  período 
de  seis  annos  os  doentes  tinham  sido  mais  numerosos  do  que  nunca,  e  que  o 
trataraciitu  da  s^j/iiiUs  era  então  caríssimo. 

Para  tratar  d'es1a  questão,  que  n'esse  tempo  preoccupava  todos  os  ma- 
gistrados do  reino,  reuniu-sc  um  conselho  solemne  no  Gapitulo.  A  questão  era 
simplesmente  esta :  a  radical  abolição  da  prostituição.  Os  notáveis  da  cidade  as- 
sistiram a  esta  reunião,  e  na  maior  parte  opinaram  pela  suppressão  do  Chateau- 
Vert;  mas  prevaleceu  o  parecer  do  abbade  Casedicu,  que  de  accordo  com  o  pri- 
meiro presidente  opinou  que  a  suppressão  fosse  addiada  para  momento  mais 
opportuno. 

Com  eCícito,  cidade  alguma  havia  onde  a  prostituição  legal  fosse  mais 


DA    PROSTITUIçiO  471 

necessária  do  que  em  Tolosa ;  os  costumes  eslavam  relaxados,  e  as  paixões,  sob 
a  influencia  do  clima,  tiniiam  necessidades  imperiosas  que  era  necessário  sa- 
tisfazer dentro  de  certos  limites.  Dois  factos  recentes  provavam  que  a  auctori- 
ridade  dos  magistrados  da  cidade  não  podia  exercer  grande  vigilância  sobre  as 
mulheres  publicas,  que  tão  pouco  o  Chateaii-Yert  convenientemente  vigiava. 
Em  1590,  quatro  d"estas  desgraçadas  haviam  sido  encontradas  no  convento  dos 
Grandes  Agostinhos;  haviam  alli  entrado  com  o  habito  monástico,  e  satisfa- 
ziam toda  a  communidade  nos  seus  desejos  sensuaes.  Trez  d'estes  monges  dis- 
farçados foram  enforcados  nas  Ires  portas  do  convento,  e  um  verdadeiro  frade, 
o  cúmplice  principal,  foi  levado  com  ferros  aos  pés  perante  o  bispo. 

Em  I06G,  outras  trez  mulheres  d'esta  classe,  que  também  se  disfarçaram 
para  entrar  no  convento  de  Beguines,  foram  egualmente  enforcadas  sem  forma 
de  processo. 

Comtudo  o  Chateau-Vert  conservou  as  suas  altribuições  e  franquias  até 
1587.  N'esle  anno,  pozeram-se  cm  vigor  em  Tolosa  as  medidas  que  a  epidemia 
reclamava.  O  Chalenu-Vert  foi  fecbndo  e  seiladas  as  portas;  mas  as  prostitu- 
tas, ao  sahirem  d'alli,  não  mudaram  de  vida  e,  apezar  da  peste,  que  não  as 
amedrontava,  exerciam  ás  escancaras  a  sua  infame  industria. 

Um  dos  capitulares,  a  quem  o  medo  da  epidemia  obrigou  a  fugir  do  seu 
posto  e  a  refugiar-se  no  campo,  foi  testemunha  involuntária  das  licenciosida- 
desque  se  praticavam  em  torno  da  cidade.  Quando  a  peste  terminou,  e  este  capi- 
íoul  voltou  ao  exercício  das  suas  funcções,  referiu  em  conselho  o  que  havia 
visto  de  vergonhoso  nas  vinhas  e  nos  campos,  que  por  então  substituíam  o 
Chateau-Vert.  Em  virtude  d'isto,  não  mais  se  pensou  em  reabrir  aquelle  bordei, 
e  deu-se  caça  a  todas  as  ribaldas  que  tinham  levado  vida  desordenada  durante 
a  epidemia.  Foram  encerradas  na  prisão  da  cidade,  e  puchavam  ás  carroças  da 
limpeza  das  ruas.  Taes  foram  as  vicissitudes  da  proslituição  legal  em  Tolosa,  até 
aos  fins  do  século  xvi. 

A  historia  dos  asylos  bordelarios  de  Montpellier  não  remonta  a  épocha-tào 
antiga,  ou,  pelo  menos,  os  documentos  authenticos  que  a  descrevem  não  são 
anteriores  ao  século  xv;  mas  era  Montpellier,  como  em  Tolosa,  vemos  que,  se- 
gundo o  uso  estabelecido  desde  remota  antiguidade  nas  principaes  cidades  do 
Languedoc,  a  prostituição  legal  tinha  extra-muros  um  hospício  sob  a  vigilân- 
cia dos  magistrados,  que  percebiam  um  imposto  das  mulheres  communs  e  dos 
arrendatários  privilegiados.  Nos  princípios  do  século  xv,  este  infame  privilegio 
pertencia  a  um  tal  chamado  Panais,  que  estabelecera  o  seu  negocio  n'uma  casa 
situada  oxtra-muros,  n'um  sitio  vulgarmenlc  chamado  o  Bordel. 

Alli,  diz  o  real  despacho  de  Carlos  viu,  que  confirma  o  artigo  privilegio 
de  Panais,  alli  é  onde  as  mulheres  publicas  e  communs  téem  a  sua  morada  e 
existência  de  dia  e  de  noutc.» 

Panais  gosava  pacificamenle  do  seu  privilegio,  e  enriquecia-se,  pagando 
enormes  direitos  á  sociedade.  Tinha  dois  filhos,  Alberto  c  Guilherme,  a  quem 
procurava  dar  uma  educação  esmerada,  mas,  tendo  morrido  o  pac,  os  dois  ra- 
pazes herdaram  o  privilegio  annexoá  casa  do  Bordel. 

Como  este  privilegio  dava  muilo  lucro,  os  novos  proprietários  não  pen- 


172  HISTORIA 

saram  em  deixal-o,  mas  tiveram  de  associar-lhes  Guilherme  de  la  Ooix, 
pertencente  á  nobreza  de  Montpellier,  e  contando  entre  os  seus  avós  o  celebre 
patrono  dos  empestados,  S.  Roque.  Desde  então  a  propriedade  indivisa  do 
Bordel  permaneceu  nas  mãos  de  la  Croix  e  dos  irmãos  Panais,  que,  sem  dei- 
xarem de  explorar  o  negocio  da  prostituição  legal  em  Montpellier,  chegaram  a 
ser  banqueiros. 

O  maior  numero  dos  magistrados  que  compunham  o  conselho  quizeram 
oppôr-se  a  que  as  mulheres  de  má  vida,  ainda  mesmo  com  o  distinctivo  do  of- 
ficio,  entrassem  na  cidade,  e  para  lhes  tirar  de  todo  o  pretexto  de  frequentar 
os  banhos  públicos,  onde  secretamente  exerciam  a  sua  infame  profissão,  intima- 
ram os  arrendatários  do  Bordel,  a  que  n'elles  contruissem  estufas  e  banhos. 
Os  irmãos  Panais  e  o  seu  associado  Guilherme  de  la  Croix  consentiram  em  fa-' 
zer  estas  grandes  e  sumptuosas  despezas,  que  tinham  por  único  fim  tornar  com- 
pletamente sedentárias  as  habitantes  do  Bordel;  mas  aproveitaram  tão  bôa  oc- 
casião  para  que  lhes  fosse  renovado  e  confirmado  o  antigo  privilegio  d'esta  casa 
de  toleradas,  em  virtude  do  qual,  e  mediante  a  somma  de  cinco  libras  torne- 
zas,  pagas  annualmente  ao  rei  ou  ao  seu  logar  tenente,  «desde  agora  em  diante 
pessoa  alguma,  seja  qual  fòr  o  seu  estado  ou  condição,  poderá  na  parte  antiga 
de  Montpellier  estabelecer  bordel,  taberna  ou  hospedaria  para  as  mulheres  pu- 
blicas, sob  pena  de  confiscação  das  ditas  casas,  bordeis,  tabernas  ou  banhos.» 

0  conselho  da  cidade,  a  quem  foi  presente  um  instrumento  publico,  passado  e 
assignado  pelas  partes  interessadas,  rectificou  as  clausulas  do  contracto,  e 
augmentou  as  vantagens  dos  arrendatários  do  Bordel. 

Mas  estes  em  breve  trecho  foram  perturbados  no  gozo  do  privilegio :  um 
dos  associados,  Alberto  Panais,  tendo  cedido  a  sua  parte  a  sua  filha  Jacobina, 
que  a  levou  em  dote  a  Estevam  Bucelly,  com  quem  contrahiu  matrimonio  em 

1  i-65,  um  tal  chamado  Paulo  Dandn^a,  que  habitava  na  mesma  cidade,  julgou-se 
auctorisado  a  especular  com  a  mesma  industria,  dando  por  caducado  o  privi- 
legio de  Panais.  Obrava  assim  por  inveja  ou  por  outro  móbil,  e  era  protegido 
pelo  reitor  ou  bailio  da  velha  cidade.  E  para  isto  começou  a  recolher  dentro 
d'unia  casa,  sita  no  centro  da  cidade,  a  todas  as  mulheres  publicas.  Mas  a  exis- 
tência d'uma  casa  de  libertinagem  no  centro  da  população  honrada  era  uma 
infracção  de  todos  antigos  usos  do  Languedoc,  e  os  habitantes  das  circumvisi- 
nhanças,  sacerdotes  e  seculares,  queixaram-se  ás  auctoridades,  e  protestaram 
contra  o  audaz  emprehendimento  de  Paulo  Dandrca,  pois  que  viam  «ser  a 
causa  um  grande  vitupério  e  deshonra,  e  máu  exemplo  para  as  mulheres  ca- 
sadas, suas  filhas  e  servas,  e  também  pelo  escândalo  e  outros  inconvenientes 
que  podia  produzir.» 

■  Dandréa,  com  o  apoio  secreto  de  certos  libertinos  que  desejavam  a  crea- 
ção  d'um  bordel  central,  sustentou  os  seus  pretendidos  direitos,  e  manteve  aberta 
a  porta  do  seu  alcouce.  Mas  Guilherme  de  la  Croix  e  Guilherme  Panais  eram 
ricos  e  poderosos,  principalmente  o  primeiro,  e  enipenbaram-se  para  que  fosse 
fechada  a  casa  de  Dandrca,  aberta  em  contravenção  das  ordenações  dos  reis  e 
dii  privilegio  de  Panais,  e  ao  levar  perante  o  rei  a  sua  demanda,  não  se  enver- 
gonharam de  se  declararem  proprietários  e  emprczarios  do  Bordel. 


DA'  PROSTITUIÇÃO  173 

Justamente  por  esse  tempo  Carlos  tii  enviara  aos  estados  do  Languedoc, 
como  seus  representantes,  messires  de  Monlaigu,  Hebert  e  Hallc,  conselheiros 
reaes  que  foram  a  Monipellier,  onde  em  1438  se  reuniram  ao  estados.  Estes 
Irez  personagens  tomaram  conhecimento  do  assumpto,  em  virtude  das  queixas 
que  riuilherme  de  la  Croix  e  seus  consócios  dirigiram  aos  estados,  que  não  des- 
denharam occupar-se  da  questão. 

Os  representantes  do  rei  fizeram  comparecer  ante  elles  os  interessados, 
e  depois  de  na  presença  do  procurador  da  cidade  os  terem  ouvido,  prohibiram 
a  Dandréa,  sob  pena  de  multa  de  dez  marcos  de  prata,  o  alojar  ou  receber  em 
sua  casa  qualquer  mulher  publica.  O  procurador  da  cidade  e  o  sencscal  de 
Beaucaire  foram,  conforme  os  antigos  usos  de  Montpellier,  os  encarregados  da 
execução  do  decreto.  Os  herdeiros  e  successores  de  Panais  foram,  mediante  a 
renda  annual  de  cinco  soldds  fornezes  para  o  rei,  confirmados  no  gozo  do  seu 
privilegio,  «sem  que  ninguém  d'ahi  para  o  futuro  podesse  construir  ou  estabe- 
lecer outra  casa  para  as  ditas  mulheres  publicas.» 

Não  contentes  com  isto,  os  consócios  em  1 469  sollicitaram  do  rei  a  con- 
firmação do  decreto,  que  lhes  foi  outorgada  mediante  fiança. 

Vinte  annos  depois,  Guilherme  de  la  Croix,  já  conselheiro  do  rei  e  the- 
soureiro  das  suas  guerras,  não  renunciara  por  isso  á  empreza  do  Bordel  de 
Montpellier.  Como  hahiluolmenfe  não  residia  n'esta  cidade,  e  Guilherme  Panais 
já  se  não  occupava  muito  n'este  negocio,  receiando  vèr  irromper  a  concorrên- 
cia que  n'outro  tempo  lhe  havia  feito  Dandréa,  sollicitoii  de  Carlos  viu  a  con- 
firmação do  real  privilegio  que  obtivera  de  I>uiz  xi. 

Carlos  VIII  appressou-se  a  publicar,  em  favor  do  seu  amado  e  leal  conse- 
lheiro e  em  bem  e  inleresse  da  causa  publica,  a  ordenação  que  lhe  garantia  os 
direitos  sobre  a  prostituição  de  Montpellier,  e  egualmente  os  dos  seus  consó- 
cios Guilherme  Panais  e  Jacobina,  mullier  de  Estevam  Buccelii,  todos  honra- 
dos habitantes  da  dita  cidade. 

Como  em  Montpellier,  em  Tolosa  e  nas  principaes  cidades  do  Langue- 
doc e  da  Provença,  em  Avinhão  havia  também  um  bordel  privilegiado,  estabe- 
lecido em  virtude  de  ordenações  reaes  e  municipaes:  e  este  grande  estabeleci- 
mento, o  mais  celebre  de  todos  os  da  França  pelos  estatutos  que  o  regiam,  pa- 
rece ter  sido  organisado,  tendo  por  modelo  as  casas  publicas  de  Itália.  A  au- 
Ihenticidade  d'esles  estatutos,  que  o  sábio  medico  Aslruc  pela  primeira  vez 
publicou  em  1736,  na  primeira  edição  do  seu  tratado  De  morbis  mnereis,  pa- 
rece-nos  incontestável,  apezar  da  longa  refutação  que  M.  Júlio  Courtet  pu- 
blicou em  a  Rcvue  Archeologique  (anno  2.°,  fasciculo  3.").  Segundo  Júlio  Cour- 
tet, Astruc  foi  victima  d'uma  mystificação,  e  os  estatutos  apocriphos,  attri- 
buidos  á  rainha  Joanna  de  Nápoles,  seriam  obra  de  M.  Garcin  e  dos  seus 
amigos. 

Em  uma  nota  anonyma,  escripta  á  mão  n'uni  exemplar  da  Cacomunade 
de  Linquet,  narra-se  a  historia  d'esta  mystificação,  em  que  como  cúmplice  en- 
trou um  filho  de  Avinhão,  M.  Commin,  que  nasceu  dez  annos  depois  do  ap- 
parecimento  do  livro  de  Astruc.  Por  todos  é  sabido  o  que  vale  em  geral  uma 
nota   de  calligraphia  feita  n'um  livro,  e  muito  nos  surprehende  que  a  critica 


1 74  HISTORU 

haja  fundado  em  similhante  nota  a  contestação  d'um  facto  histórico,  que  atra- 
vessou o  século  XVIII,  spíMiio  séptico  e  cynico,  sem  ser  desmentido,  nem  sequer 
posto  em  duvida. 

Indubitável  é  que,  se  os  mystiricadores  de  Avinhão  se  tivesssem  diver- 
tido á  custa  de  um  sábio  tão  illustre  como  Astruc,  em  toda  a  Europa  haveria 
repercutido  uma  immensa  gargalhada,  e  o  tratado  De  morbis  venereis,  em  que 
o  documento  citado  foi  impresso  pela  primeira  vez,  não  haveria  escapado  ás 
consequências  de  tal  myslificação,  isto  é,  aos  commenlarios  satyricos,  resultado 
inevitável  de  qualquer  myslificação.  Em  todo  o  caso,  o  gracejo  de  M.  Garein  e 
dos  seus  amigos,  haveria  pelo  menos  transpirado  cm  Avinhão,  e  Astruc  não  re- 
editaria os  estatutos  apocryphos  na  segunda  edição  da  obra,  corrigida  e  augmen- 
tada  em  1740. 

Além  d'isso,  esta  obra,  traduzida  cm  frar.ccz  e  também  em  outras  mui- 
tas linguas,  teria  encontrado  quem  refutasse  o  seu  famoso  capitulo  sobre  o  Bor- 
del de  Avinhão ;  e,  pelo  contrario,  se  demonstrou  que  a  tradicção  local  a  res- 
peito d'esía  casa  de  prostituição  era  constante  e  vulgar,  quando  Astruc  escre- 
veu a  um  individuo  de  Avinhão  (ahi  por  172o  ou  1730;  a  fim  de  obter,  se  pos- 
sível fosse,  uma  copia  do  original  dos  estatutos  de  1347. 

M.  JuIio  Courtet  diz  que  a  copia  foi  tirada  d"um  supposto  original,  que 
uns  indignos  falsarios  intercallaram  n'um  magnifico  manuscripto  do  século  xiii 
ou  XVI,  intitulado  Slattila  el  pricileíjia  reipublicae  Avenionensis.  Este  manus- 
cripto, que  faz  parte  da  magnifica  bibliotheca  do  marquez  de  Cambis  Velleron, 
passou  em  seguida  para  o  Museu  Calvet,  onde  Júlio  Courtet  o  examinou.  Os 
Staluln  prostiliuli  cifi latis  Acenionis,  que  M.  Couríct  julga  «uma  imitação 
pouco  hábil  não  só  do  cstylo  mas  também  da  maneira  escrever  do  século  xvi» 
estão  transcriplos  n"uma  folha  de  pergaminho  «a  segunda  das  quaes  tem  a  co- 
pia d'uma  bulia  do  Papa  Gregório,  cailigraphia  do  século  xvi.» 

Basta  esta  circumstaní  ia  para  provar  que  se  não  quiz  enganar  ninguém, 
c  que  o  antigo  possuidor  do  manuscripto,  no  século  xvi  sem  duvida  tentou 
complctal-o,  accrescentando-lhe  uma  copia,  feita  por  oiiira  mais  nu  menos  de- 
feituosa que  podo  cnccmtrar. 

O  marquez  de  Cambis,  que  era  de  Avinhão,  e  que  por  isso  vivia  na  fonte 
de  todas  as  noticias  concernentes  ao  assumpto,  não  teria  deixado  de  fazer  desa- 
pparecer  as  folhas  que  deshonravam  o  seu  manuscripto,  em  vez  de  mencionar 
no  seu  catalogo  os  singulares  estatutos,  «que  estão  (diz  a  pag.  46-j)  em  lingua 
provençal,  como  então  se  fallava,  e  que  pouco  diflere  da  de  hoje.» 

E'  provável  que  o  original  existisse  ou  tivesse  existido  nos  archivos  do 
palácio  dos  papas,  ou  nos  dos  condes  de  Provença,  e  que  algum  curioso  o  trans- 
crevesse a  seu  modo,  alterando  e  modernizando  o  texto  provençal,  ou  mesmo 
traduzindo-o  para  esla  lingua  do  texto  lalino.  O  que  parece  certo  é  que  a  exis- 
tência d  estes  estatutos  nunca  foi  tida  por  duvidosa,  e  que  a  sua  aulhenlicidade 
é  além  d'isso  confirmada  por  tudo  que  sabemos  a  respeito  da  prostituição  da 
Provença  na  Edade  Média. 

As  considerações  moraes,  feitas  para  demonstrar  a  inverosimilhança  d'estes 
estatutos,  auctorisados  por  uma  rainha  joven,  não  lêem  valor  para  quem  estuda 


DA    PROSTITUIÇÃO  175 

a  policia  dos  postumes  n'aquella  épocha.  Joanna  de  Nápoles,  condessa  de 
Provença,  nada  innovava  n'cste  assumpto:  não  fez  mais  de  que  com  a  sua 
auctoridade  suprema  saiiccionar  as  regras  da  administração  urbana,  que  os  ma- 
gistrados d'Avintião  iiaviam  feito  no  interesae  da  causa  publica,  baseando  nas 
razões  que  impelliram  Carlos  vii  a  publicar  ordenações  sobre  assumpto  aná- 
logo. 

A  dissertação  de  Júlio  Courtel  ajudar-nos-ha  a  demonstrar  que,  anterior- 
mente aos  estatutos  de  1347,  já  a  prostituição  se  bavia  installaJo  á  moda  italiana 
na  cidade  papal  d'Avinlião.  No  concilio  de  Vienna,  celebrado  em  1311-131 2, 
o  piedoso  e  sábio  bispo  de  Mende,  Guilberme  Durandi,  pediu  a  severa  repres- 
são dos  excessos  da  liberlintigem;  indignava-so  de  que  o  niarecbal  da  corte 
rle  Avinlião  tivesse  por  tributarias  as  mulheres  communs  e  os  seus  escandalosos 
cúmplices:  pretendia  que  aquella  peste  publica,  que  se  expunha  em  almoeda  á 
porta  das  egrejas,  diante  das  casas  dos  prelados,  e  mesmo  sob  os  muros  do  palá- 
cio dos  papas,  fosse  desterrada  para  os  bairros  menos  frequentados;  reclamava 
lambem  que  o  marechal  renunciasse  aos  infames  reditos  da  prostituição.  (V. 
Vitce  pap.  Aren.  publie.  por  Raluce,  t.  i,  f.'"  810). 

Todos  os  padres  do  concilio  concordaram  cora  as  queixas  do  bispo  de 
Mende,  mas  não  se  arriscaram  a  um  projecto  de  reforma,  que  haveria  |)reju- 
dicado  muitos  interesses  particulares,  c  o  marechal  da  corte  do  papa  continuou 
percebendo  os  impuros  impostos.  As  ribaldíis  muiíiplicavam-se  c  espalhavam-sc 
por  toda  a  cidade.  «Não  havia,  diz  Courtet,  logar,  por  sagrado  que  fosse,  que 
e.stivesse  ao  abrigo  da  sua  inacreditável  audácia.» 

Petrarca,  que  n'esta  cidade  residia  em  1326,  assombra-se  da  desordem 
dos  costumes,  que  a  mudança  da  Santa  Sé  parecia  haver  favorecido,  como  se 
o  papa  e  os  cardeaes  de  Roma  houvessem  trazido  atraz  de  si  um  cortejo  de 
homens  e  mulheres  depravadas. 

«Kiu  Roma,  a  grande,  diz  Petrarca,  não  havia  mais  que  dois  ruíióes; 
lia  pequena  .Vvinhão  havia  onze.  Cum  iii  niapia  Roma  duo  fueriui  knones, 
in  parva  Avennio  sunt  undecim.  (Obras  latinas  de  Petrarca,  edição  de  Bale, 
íl.   1:184). 

Bem  se  comprehende  que  a  prostituição,  a  si  própria  entregue,  necessi- 
tava de  um  regulamento  similhanfe  áquelle  que  nas  demais  cidades  da  Provença 
d'ella  fazia  uma  instituição  de  utilidade  publica.  A  rainha  Joanna,  ameaçada 
no  seu  reino  de  Nápoles  pelo  exercito  de  seu  cunhado  Luiz  da  Hungria,  acabava 
de  depor  a  coroa,  tincta  no  sangue  do  seu  esposo;  havia-se  refugiado  em 
terras  de  França,  c,  dejiois  de  ter  casado  em  segundas  núpcias  com  seu  primo 
e  amante  Luiz  de  Tarento,  dispunha-se  a  vender  ao  papa  o  condado  d'Avi- 
nhão,  para  assim  comprar  a  absolvição  do  seu  crime  e  o  apoio  do  papado. 

Em  virtude,  pois,  d'estes  graves  acontecimentos,  a  rainha  Joanna,  que 
vivia  em  Aix,  redigiu  ou  antes  sanccionou  os  estatutos  da  prostituição  legal  em 
Avinhão,  como  Carlos  vii  e  Luiz  xi  haviam  sanccionado  outros  do  mesmo  gé- 
nero para  as  cidades  de  Tolosa  e  Montpellier. 

Estes  estatutos  (e  o  seu  primeiro  artigo  affirma-o)  foram  formulados  pe- 
los cônsules  ou  governadores  da  cidade,  na  forma  ordinária  de  todos  os  privi- 


1 76  HISTORIA 

legios  concedidos  a  lupanares,  e  a  joven  rainha  nada  mais  fez  do  que  assignar 
sem  ler,   sob  a  responsabilidade  do  seu  chanceller,  que  os  havia  approvado. 

Pôde  affirmar-se  com  certeza  que  o  primeiro  a  quem  í"  concedeu  a  ex- 
ploração d'estes  privilégios,  estando  muito  interessado  em  obtel-os,  não  olharia 
a  despezas  para  pssim  assegurar  a  approvaçào  da  ruiiiha  e  para  fazer  reconhe- 
cer os  seus  direitos,  antes  da  cedência  do  condado  á  Santa  Sé. 

Eiii  uuunu  do  que  «iUrmanios,  poderíamos  reproduzir  o  texto  provençal  dos 
estatutos,  tal  como  Astruco  reproduziu,  e  sentimos  que  Júlio  Courlcl  não  acompa- 
nhasse o  manuseripto  do  museu  Calvet,  cheio  de  raspaduras  e  emendas,  d'este 
texto.  Basto  este  ficto  p;;ra  excluir  du  todo  a  ideia  de  fraude  da  parte  do  co- 
pista ou  do  traduetor  do  texto  original. 

Vamos  dar  uma  fraducçào  do  velho  texto  provençal,  mais  litteral  do  que 
aquella  que  se  vê  no  livro  d'Astrue,  inopportunamente  reproduzida  com  os  seus 
erros  e  desbotadas  periphrases : 

I 

No  anno  de  mil  trezentos  c  quarenta  e  sete,  aos  oito  do  mez  d'agosto,  a 
nossa  boa  rainha  Joanna  permittiu  o  bordel  em  Avinhão.  Quer  que  as  mulhe- 
res licenciosas  não  vivam  na  cidade,  mas  que  estejam  encerradas  no  bordel,  e 
que  para  serem  reconhecidas  usem  uma  insígnia  ou  laço  vermelho  no  hombro 
esquerdo. 

II 

Se  uma  joven  commettcr  uma  falta  e  quizer  continuar  no  vicio,  o  guar- 
da-chaves  da  cidade  ou  o  capitão  da  policia  conduzil-a-ha,  ao  som  do  tambor  c 
com  o  laço  vermelho  no  braço,  pelo  meio  da  cidade,  e  alojal-a-ha  com  as  demais 
no  bordel,  e  prohibir-lhe-ba  o  sair  para  fora  da  cidade,  sob  pena  de  uma  multa 
[lela  pi'imeira  vez,  e  de  ser  açoutada  e  desterrada  pela  segunda. 

III 

A  nossa  boa  rainha  ordena  que  o  bordel  seja  situado  na  rua  de  Pont- 
Traucal,  perto  dos  frades  Agostinhos,  nas  immediações  dA  porta  Peirc;  outro 
sim  ordena  que  haja  uma  porta  ao  lado,  por  onde  lodos  entrem,  mas  que  es- 
teja fechada  á  chave,  a  fim  de  que  qualquer  homem  não  possa  vér  as  mulhe- 
res sem  licença  da  governanta,  que  todos  os  annos  será  nomeada  pelos  cônsu- 
les. A  governanta  guardará  a  chave  e  advertirá  aos  frequentadores  que  não  ar- 
mem tumultos  nem  maltratem  as  infelizes.  No  caso  contrario,  havendo  a  menor 
queixa  contra  qualquer  que  provoque  desordem,  os  desordeiros  serão  presos. 

IV 

A  rainha  determina  que  todos  os  sabbados  a  abbadessa  e  um  barbeiro, 
nomeado  pelos  coneules,  inspeccionem  todas  as  mullieres  do  bordel,  e  se  n'al- 


DA    PUOSTITUIÇÃo  177 

guma  encontrarem  enfermidade  venérea,  que  seja  separada  das  oulras  c  isolada, 
de  modo  que  ninguém  com  ella  esteja,  a  fim  de  evitar  que  contagie  a  juventude. 


Item.  Se  acontecer  que  no  bordel  alguma  mulher  conceba,  a  directora 
providenciará  de  modo  que  ao  frucfo  mal  não  succeda,  e  prevenirá  os  cônsu- 
les para  que  ministrem  o  necessário  ao  nascimento  d'esta  creança. 

VI 

Item.  A  abbadessa  não  permittirá  que  homem  algum  entre  no  bordel  na 
sexta-feira  santa,  no  sabbado  d'Alleluia  e  no  dia  de  Paschoa,  sob  pena  de  ser 
expulsa  e  açoutada. 

VII 

Item.  A  rainha  quer  que  todas  as  libertinas  do  bordel  vivam  como  irmãs. 
Quando  houver  alguma  queixa,  a  directora  deve  reconcilial-as,  e  cada  qual  sub- 
metter-se  ao  que  esta  decidir. 

VIII- 

Se  alguma  roubar,  a  directora  deve  convencel-a  a  restituir  o  objecto  rou- 
bado, e  se  a  ladra  resistir  a  esta  ordem,  deverá  ser  fustigada  dentro  de  um 
quarto,  por  um  agente  de  policia:  e,  no  caso  de  reincidência,  será  açoutada  pelo 
verdugo  da  cidade. 

IX 

Item.  Que  a  directora  não  consinta  a  entrada  no  bordel  a  nenhum  judeu, 
mas,  se  acontecer  que  algum  alli  entre  ardilosamente  c  tenha  relações  com  al- 
guma mulher,  seja  preso  e  açoutado. 

Astruc,  publicando  estes  estatutos,  diz  que  foram  copiados  dos  registros  de 
M.  Tamarin,  notário  e  tabellião  apostólico,  em  139:?:  mas  não  pôde  alcançar 
esclarecimento  algum  d'este  Tamarin,  nem  do  seu  manuscripto,  á  excepção  d'um 
extracto  dos  mesmos  registros,  d'onde  consta  que  um  judeu  de  (larpentras,  cha- 
mado Doupedo,  publicamente  foi  açoutado  em  Avinlião,  em  1408,  por  haver 
entrado  furtivamente  no  bordel  e  ter  tido  cópula  com  uma  das  reclusas. 

Um  facto  análogo  é  referido  no  Appendix  Marcm  Hispaniae,  em  que  o 
sábio  Pedro  de  Marca  cita  um  documento  do  anno  1024,  onde  se  diz  que  um 
judeu  chamado  Isaac  foi  corporalmente  castigado  e  os  seus  bens  confiscados, 
por  ter  commettido  adultério  com  uma  christã. 

Astruc,  que  descobriu  este  precioso  facto  de  costumes  (Traiié  des  ma- 
ladies  vener.  tit.  i,  pag.  21 0,)  acrescenta  algumas  reflexões  aos  estatutos  da  rai- 
nha Joãnna. 

Historia  da  PBOSTiTmcÃo.  Tomo  ii— Foi.ha  ZS. 


Í78  HISTORIA 

Júlio  Courtet  diz  que  o  artigo  que  se  refere  aos  contágios  venéreos,  o  qual 
faz  duvidar  o  serio  Merlin  da  aulhcnlicidade  dos  estatutos,  bastaria  aos  olhos 
de  muitos  para  invalidar  o  supposto  original.  Já  veremos,  ao  fazer  a  historia 
da  prostituição  cm  Inglaterra,  como  os  estatutos  dos  lupanares  de  Londres 
prohibiam  em  1430  a  existência  nos  lupanares  de  mulheres  infestadas  d'esta 
enfermidade. 

Em  resumo,  e  depois  d'um  serio  exame  da  questão,  concluímos  que,  se 
não  possuímos  o  texto  original  dos  estatutos  do  bordel  de  Avinhão,  temos  pelo 
menos  os  regulamentos  que  parecem  conforraar-se  com  os  que  a  tolerância  mu- 
nicipal havia  posto  em  vigor  nas  cidades  do  meio  dia. 

Náo  esqueçamos  citar  n'este  momento  o  antigo  rifão  popular: 

Sur  lepontd'Avignon 
tout  le  monde  y  passe, 

todo  o  mundo  pas^a  pela  ponte,  de.  Aúnhão,  que  prtde  muito  bem  ser  uma  engra- 
çada ironia,  com  referencia  á  má  fama  da  rua  chamada  Pont-Traucatou-Troué. 

Esta  rua  tinha  uns  estabelecimentos  tão  mal  afamados,  que  n'um  synodo 
celebrado  em  Avinhão  a  19  d'()ulubro  de  1441  foi  prohibido  aos  ecciesiasticos  e 
homens  casados  o  frequentarem  estes  logares  da  prostituição.  Os  que  ousavam 
contrariar  esta  prohibição  e  que  incorriam  nas  excommunhão  do  synodo,  eram 
obrigidos  a  pagar  cm  beneficio  do  bispo  dez  marcos  de  prata,  se  fossem  sur- 
prehcnilidos  sahindo  de  dia  dos  lupanares,  e  vinte  marcos,  se  fosse  de  noite. 
O  veguer  de  Avinhão,  João  Blanchier,  foi  o  encarregado  de  fazer  executar  estes 
estatutos  synodaes,  e  de  vigiar  a  policia  interior  dos  lupanares  públicos. 

Poucos  annos  depois,  em  1437,  o  conselho  da  cidade  oecupou-se  também 
das  lupanares  da  Servelerie,  que  nada  mais  eram  do  que  albergues  da  pros- 
tituição, como  as  Sluphae  Pontis-Trouati. 

Todavia  Courtet  cila  uma  medida  de  policia  relativa  ás  mulheres  disso- 
lutas de  Avinhão,  fccto  extrabido  dos  archivos  municipacs  d'esta  cidade.  O  ve- 
guer mandou  apregoar  ao  som  de  trombetas,  pelas  esquinas,  que  nenhuma 
d'estas  desgraçadas  trouxesse  em  publico  manto  ou  véu,  nem  rosário  de  âm- 
bar, nem  aunei  de  ouro,  sob  pena  de  mulla  e  confiscação  d'estes  objectos. 

Pelo  mesmo  tempo,  também  pela  voz  do  pregoeiro  se  declarava  que  as 
mulheres  publicas  de  Paris  se  deviam  conformar  com  as  leis  sumptuárias,  e  suf- 
ficientemente  isto  prova  que  não  podiam  esconder  o  seu  caracter  infame,  feita 
uma  vez  a  profissão  em  qualquer  alihadln  publica.  Opporiunamenie  encontra- 
remos nos  usos  e  costumes  da  prostituição  napolitana  a  origem  tradiccional  do 
Bordel  de  Avinhão,  essa  estranha  fundação  de  uma  rainha  joven,  bella  e  galan- 
teadora. 

Além  d'i.sso,  se  as  ahhadias  impuras  eram  estabelecimentos  de  fundação 
real  ou  municipal,  na  maior  parte  das  cidades  da  Provença  as  mulheres  per- 
didas, que  se  entregavam  á  prostituição,  não  tinham  auclorisação  para  exercer 
a  sua  vergonhosa  industria,  fora  do  asylo  que  lhes  estava  designado.  Era  sem- 
pre considerada  como  infracção  dos  regulamentos  de  policia  a  sua  presença  nas 


UA    FKoblTrUI^ÀO  1 79 

ruas  com  trajos  de  mulheres  honestas.  Um  artigo  dos  estatutos  de  Aries,  feitos 
em  1454,  prova-nos  que  estes  regulamentos  de  policia,  vigentes  n'esta  cidade, 
não  dilíeriam  dos  que  enconlramos  estabelecidos  em  Avinhão  pela  mesma  épo- 
cha.  Eis  o  artigo  dos  estatutos,  que  Millin  cila,  no  seu  Ensaio  sohre  a  língua  e 
lilteratura  provençal : 

«Qualquer  mulher  publica,  reconhecida  ou  disfar\-ada  na  rua  das  mulhe- 
res honestas,  que  leve  manlellelc,  véu  na  cabeça  c  anncl  de  ouro  ou  praia,  ou 
qual(|ucr  outra  jóia,  serácondemnada  por  cada  objecto  em  50  soldos,  e  na  perda 
d'esscs  objectos.» 

Esta  passngem  da  legislação  arlesiana  parece  distinguir  as  mulheres  de 
mà  vida  das  noctívagas  e  libertinas,  que  viviam  em  ruas  honestas.  Os  objectos 
que  não  lhes  era  perniillido  usar,  eram  os  mesmos  que  os  filhos  abandonados 
e  as  mulheres  perdidas  de  Avinliào  não  podiam  trazer. 

INão  enconlramos  documento  que  nos  permitia  calcular  o  preço  corrente 
do  Bordel  da  rainha  Joanna,  mas  devia  ter  sido  módico  n'uma  província  em 
que,  segundo  um  provérbio  popular,  a  melhor  mulher  não  valia  lo  soldos.  Na 
verdade  os  provérbios  são  env  Iodeis  os  paizes  Ião  hoslis  ás  mulheres,  que  deve 
suppòr-se  -o  não  collaborarem  ellas  n'clles.  —  A  sombra  do  homem  vale  cinco 
mulheres,  dizia-se  tanto  em  Aries  como  em  Avinhão. 


CAPITULO  XVII 


SUMMARIO 


A  prostituição  legal  e  a  piostituiçuo  livre.  -  Influencia  da  cavallaria  na  huuesliJade  publica  —  O  pagem  de 
Imiira  (la  dama  de  Belles-Cousines.--  O  verdadeiro  cavalleiro  destruiddor  da  porrupção. —  A  camisa  de  Covey.—  O 
c-astelIJo  Coiicy  e  a  dama  de  Fayel.—  Principalia  amoris  prcecepta,  de  mestre  AaJrés,  capellão  de  Luiz  vii.— 
Aa  Cortes  do  amor.—  A  jurisprudência  amorosa.—  Decretos  do  amor.—  O  maireúo  Bois-vert.—  O  bailio  de  Joye, 
ij  reguei-  dos  amores,  etc. 


sTUDANDo  OS  iiioialistas  o  poetas  da  Edatle-Media,  observamos 
que  a  prostituição  legal  era  tão  antipathica  ao  povo,  como  á  no- 
breza, que  a  consideravam  como  uma  macula  da  sociedade,  e 
que  de  commum  accordo  tentavam  impedir  que  ella  produzisse 
escândalos,  queincommodassemos  olbares,  os  ouvidos  c  os  pen- 
samentos da  gente  bonrada.  Todavia  a  prostituição  não  estava  menos  solida- 
mente estabelecida  n'essa  classe  infame,  que  vivia  fora  da  decência  publica  e 
era  composta  de  ribaldos  e  libertinos  de  todas  as  cathegorias. 

Preciso  era  que  cada  cidade  tivesse  um  asylo  de  libertinagem  para  esta  popu- 
lação fluctuante,  que  sem  cessar  se  renovava,  e  constantemente  se  subtrabia  á 
acção  regular  da  policia  municipal.  Era  esta  uma  garantia  permanente  contra 
as  emprezas  d'aquelles  perdidos,  enfants  perdus,  como  em  toda  a  parle  eram 
cbamados,  temidos  pelas  mulheres  honestas  e  pelos  seus  maridos,  mas  feliz- 
mente desviados  dos  seus  maus  intentos  de  rapto  e  de  violência,  quando  lhes 
era  permitlido  frequentar  mulheres  publicas  e  achar  com  cilas  distracções. 

Andavam,  pois,  muitas  d'eslas  mulheres  percorrendo  o  paiz  acompanhadas 
dos  seus  amantes,  que  viviam  á  grande,  á  custa  do  obsceno  trafico  feito  á  sua 
vista;  mas  pôde  allirmar-se  que  estas  infâmias  não  eram  sabidas  cá  fora,  e  que 
o  bordel  porvençal  e  o  lupanar  normando  em  nada  corrompiam  os  costumes  da 
familia  e  da  cidade. 

Estes  costumes  as  mais  das  vezes  não  eram  muito  exemplares,  mas,  por 
mais  relaxados  que  fossem,  não  tinham  relação  alguma  com  os  actos  da  prosti- 
tuição legal,  pois  que  as  mulheres  communs,  fazendo  da  prostituição  modo  de 
vida,  só  tinham  relação  com  homens  de  vil  estofa;  ribaldas  c  ribaldos  forma- 
vam uma  conectividade  infame,  isolada  no  meio  da  sociedade. 

Embora  a  sociedade  não  tivesse  contacto  com  a  prostituição,  nem  por  isso 
tinha  uma  grande  continência:  a  fornicação  e  o  adultério  em  toda  a  parte  en- 
travam, e  em  todas  as  casas  eram  bem  recebidos. 


i  m  HISTOKLA 

No  seu  castello,  o  senhor  tinha  um  serralho  de  servas  e  pagens;  no  con- 
vento, o  frade  occultava  as  mais  criminosas  acções;  na  loja,  o  negociante  de- 
sejava a  mulher  do  seu  colicga  e  visinho;  e  mesmo  o  iuimilde  arlisfa  não  se 
privava  dos  prazeres  que  nada  lhe  custavam.  Em  parle  alguma,  naquelle  trans- 
bordar de  immoraiidade,  a  prostituição  propriamente  dita  exerceu  influencia 
perniciosa  ou  influiu  na  corrupção  geral,  antes  teria  atlrahido  a  si  elementos 
impuros  da  vida  social,  se  comsigo  não  tivesse  o  eslygma  infamante,  se  as  mu- 
lheres que  d'ella  faziam  profissão  tivessem  conservado  algum  prestigio  aos  olhos 
da  sociedade,  se  a  opinião  publica  não  tivesse  infligido  o  mesmo  desprezo  e 
deshonra  aos  homens  que  ousavam  penetrar  nos  lupanares. 

Constituída  assim  a  prostituição,  errava  ella  o  seu  fim  fundamental,  pois 
não  servia  para  depurar  os  costumes,  deixando  subsistir  outra  prostituição  li- 
vre mais  activa,  mais  audaz  e  mais  contagiosa.  Pôde  dizer-se,  repetiu  ol-o,  que 
por  espaço  de  muitos  séculos,  em  França,  estas  duas  classes  de  prostituição  não 
estiveram  ligadas  entre  si  por  laço  algum,  nem  similhança  alguma  houve  nos 
seus  actos  e  pessoas.  .4  auctoridade  civil  só  d'uma  d'estas  prostituições  se  oc- 
cupava;  a  outra,  que  não  tinha  nem  trajo  próprio,  nem  casas  especiaes,  nem 
regulamentos  de  policia,  innoculava-se  em  todas  as  classes  sociaes,  e  espalhava 
a  corrupção  por  entre  as  genercsas  e  brilhantes  instituições  da  cavallaria. 

Para  reformar  os  costumes,  principalmente  para  lhes  pôr  um  freio  .salu- 
tar, para  encaminhal-os  para  a  honra  e  para  a  virtude,  um  sábio  legislador, 
um  phiiosopho  desconhecido,  um  grande  polilito,  creou  a  cavallaria,  que  a  pro- 
pósito nasceu  no  meio  d'uma  sociedade  corrompida  e  gangrenada,  fazendo  im- 
perar o  espirito  sobre  a  matéria,  defendendo,  por  assim  dizer,  a  sociedade  de 
todas  as  prostituições  da  alma  e  do  corpo.  A  cavallaria  foi  apenas  uma  forma 
altrahente,  dada  á  pbilosophia,  á  moral  eá  religião:  protegeu  e  salvou  a  hones- 
tidade publica,  apesar  dos  inevitáveis  excessos  dos  cruzados  e  das  influencias 
desmoralisadoras  da  poesia. 

Cremos  que  a  cavallaria  não  foi  ainda  apreciada  sob  este  ponto  de  vista, 
como  sendo  a  inimiga  implacável  de  toda  a  espécie  de  prostituição,  como  sendo 
a  salvaguarda  dos  costumes  :  oppoz  ás  grosseiras  c  degradantes  fyrannias  do 
amor  material,  as  nobres  e  puras  inspirações  do  amor  metapliysico:  instituiu 
as  Cortes  do  amor,  aquelles  graciosos  tribunaes  de  galanteria,  para  abolir  as 
cortes  dos  ribaldos;  domou  e  pacificou  as  paixões  dos  sentidos;  cimentou  a  vir- 
tude no  respeito  pelo  similhanle,  e  por  assim  dizer,  ergueu  um  pedestal  de 
amorosa  admiração  e  um  tlinuio  de  honra,  onde  sentou  a  mulher.  É  este,  evi- 
dentemente, o  principio  da  cavallaria,  a  emancipação  d'um  sexo  que  a  prosti- 
tuição tinha  submetlido  á  mais  degradante  das  escravidões.  Ao  principio,  a  mu- 
lher era  escrava  e  via-se  humilhada  pela  sua  indigna  condição;  depois,  era  já 
rainha,  e  a  sua  soberania  apoiava-se  no  amor;  mas  já  não  era  o  amor  carnal, 
cujos  gosos  criminosos  sullbcam  o  inslincto  do  bem  e  predispõem  o  coração 
para  lodos  os  vicios;  era  o  amor  perfeito,  o  amor  heróico,  que  nasce  dos  mais 
bellos  sentimentos,  exallando-sc  pela  imaginação,  e  desprendendo-se  dos  laços 
da  natureza  physica. 

As  primeiras  lições  que  recebia  um  pagem,  escudeiro  ou  donzel,  que  se 


OÁ.   PROSTITUrçIO  I8S 

destinava  á  profiss.lrt  da  cavallaria,  consistiam  unicamenlp  no  amor  a  Dpus  r 
ás  damas,  isto  é,  segundo  Laciirno  di'  S.mla  Polaya,  a  religião  e  a  galanteria. 
Eram  ordinariamente  as  próprias  damas  que  se  encarregavam  de  ensinar  a  es- 
tes jovens  o  ealheeismo  c  a  arte  do  amor. 

«Parece,  diz  o  sábio  aiietor  das  Memoria'}  da  antiiia  cai-allaria,  parece 
que  n'aquelles  séculos  ignorantes  c  grosseiros,  não  se  podia  representar  aos  ho- 
mens a  religião  sob  unia  fornia  haslaole  material,  para  que  estivesse  ao  seu  al- 
cance, nem  siniultaneainenie  dar-llies  uma  idéa  do  amor  bastante  pura,  bas- 
tanlf"  melapli}>ir:i,  para  prevenir  os  excessos  de  que  «^ra  capaz  uma  nação,  que 
era  tudo  conservava  o  caracter  impetuoso  que  mostrava  na  guerra.» 

Lacurne  de  Santa  Peiaya  não  fez  mais  do  que  entrever  as  causas  pbiloso- 
phicas  da  instituição  da  cavallaria,  que  na  sua  origem  apenas  foi  uma  barreira 
moral  e  religiosa,  opposta  ao  allieismo  e  à  prostituição. 

Para  bem  comprchender  o  espirito  da  cavallaria,  é  preciso  ler  na  Histoi- 
re  fit  plaluant'  chroniqw,  da  flit  Jehui  ds  Siintré  os  conselhos  que  lhe  dá 
a  dama  de  Belles  Cominas,  quanto  este  na  qualidade  de  pagem  entra  ao  ser- 
viço d'esla  princcza.  A  dama,  que  falia  latim  como  um  Padre  da  Egreja,  com- 
menta-lhe  edificantemente  uns  certos  peccados  mortaes.  Vejamos  em  que  ter- 
mos o  aconselha  a  evitar  o  peccado  da  luxuria.  «Na  verdade,  meu  amigo,  diz-lhe 
ella,  este  peccado  tem  de  ser  estranho  ao  coração  do  verdadeiro  amante,  pois 
mui -grande  deve  ser  o  seu  receio  de  que  a  dama  adivinhe  esse  pensamento 
deshonesto,  e  d'elle  se  enoje.  Assim,  continua  ella,  citando-lhe  as  palavras  de 
Santo  Agostinho : 

tLururiam  fugias,  ne  cili  noniine  fias;  carni  non  credas,  ne  Christwn 
iiomine  cedas. 

«Isto  é:  iMeu  amigo,  foge  da  luxuria  para  que  não  tenhas  mau  nome; 
não  confies  na  tua  carne,  para  que  peccando  não  oííendas  a  Chrislo.  E  a  este 
respeito  na  sua  primeira  epistola  diz  S.  Pedro  apostolo: 

tiOsecro  cos,  tanquam  advpnas  et  peregrinos,  abstinere  ws  a  carnalibus 
desideriis,  qui  niilitant  adcesus  animam. 

«Quer  dizer,  meu  amigo,  que  vos  rogo  que  vos  abstenhaes  dos  desejos 
carnaes,  que  dia  e  noite  batalham  contra  a  alma.  E  a  este  respeito  diz  ainda  o 
philosopho : 

«Sex  perdu))t  rere  homines  in  miiUere:  Ingenium,  mores,  animam,  vim-, 
l.umina,  cocem. 

«Isto  é,  meu  amigo,  que  o  homem  apaixonado  por  más  mulheres  perde 
seis  coisas:  a  primeira  a  alma,  a  segunda  a  intelligencia,  a  terceira  os  bons 
costumes,  a  quarta  a  força,  a  quinta  a  vista  c  a  sexta  a  voz.  E  por  isto,  meu 
amigo,  livra-te  sempre  d'este  peccado.» 

A  dama  de  BelUs  Cousines  termina  os  seus  conselhos  com  esta  citação 
de  Boecio: 

«Luxuria  est  ardor  in  tmione,  fmdor  in  recessu,  brecis  delectaíio  corporis 
et  animae  destine  li  o. ■«> 

«Isto  é,  meu  amigo,  a  luxuria  é  uma  chamnia  quando  dois  corpos  .se 
unem,  uma  cousa  repugnante  quando  se  separam,  breve  deleite  do  corpo  e  per- 


I8'í  HISTORIA 

dição  da  alma.»  António  de  Salle,  escrevendo  a  historia  do  Joãosiniio  de  Saintré', 
para  prazer  e  recreio  da  còrle  de  Carlos  vii,  tirou  o  assumpto  da  sua  obra  de 
uma  chronica  da  corte  do  rei  João,  e  exlrahiu  de  um  livro  de.  cavallaria  muito 
mais  antigo  os  documentos  moraes  da  dama  de  Belles  Cousines. 

As  ceremonias  do  acto  de  armar  cavallciros  provam,  todavia,  melhor  que 
a  cavallaria  foi  instituída  para  corrigir  os  costumes  e  extirpar  a  prostituição.  O 
noviço  preparava-se  para  entrar  na  ordem  da  cavallaria  com  practicas  d'auste- 
ridade  e  devoção,  que  o  tornavam  digno  d'uma  ordem  monástica:  jejuns  rigoro- 
sos, noites  d'oração  n'uma  egrt'ja,  sermões  dogmáticos  sobre  os  principaes  ar- 
tigos da  fé  e  da  moral  chrislã,  banhos  e  abluçõcs,  que  indicavam  a  pureza 
necessária  no  estado  da  cavallaria,  hábitos  brancos,  que  eram  o  symbolo  d'es- 
sa  mesma  pureza.  Eis  aqui  a  preparação:  uma  promessa  solemni-  ao  pé  do  al- 
tar de  ter  vida  honesta  ante  Deus  e  ante  os  homens. 

«O  que  quizer  entrar  n'uma  ordem,  seja  em  religião,  ou  em  matrimonio, 
ou  em  cavallaria,  ou  em  outro  qualquer  estado,  diz  um  dos  personagens  do  ro- 
mance de  Perceforest,  deve  primeiro  que  tudo  limpar  e  expurgar  o  coração  e 
a  consciência  de  qualquer  vicio,  e  adornal-o  com  toda  a  virtude.» 

Os  numerosos  escriptos  em  verso  e  prosa,  que  tractam  dos  costumes  da 
cavallaria,  repetem  sem  cessar  que  um  bom  cavalleiro  deve  ser  o  destruidur  da 
corrupção.  Era  pois  a  cavallaria  uma  espécie  de  sacerdócio,  que  pregava  com 
o  exemplo  para  melhorar  o  povo,  para  fazel-o  virtuoso,  para  manter  a  bôa  or- 
dem na  sociedade,  e  para  d'ella  expulsar  todos  os  vicios. 

«Ninguém  deve  ser  investido  cavalleiro,  diz  o  respeitável  fidalgo  de  la 
Tour,  no  seu  Guidon  des  guerres,  se  não  deseja  o  bem  do  reino  e  de  todos,  e  se 
não  sabe  ser  valoroso  na  arte  da  guerra,  e  se  não  quer,  obedecendo  ás  ordens 
do  príncipe,  apaziguar  as  desordens  do  povo  e  combater  tudo  que  prejudica  o 
bem  coram  um.» 

A  prostituição  nunca  foi  favorecida  pela  cavallaria,  que  intentava  des- 
truil-a.  E  apesar  de  tudo  a  cavallaria,  só  empregava  como  meio  eíBcaz  o  amor  das 
damas  para  excitar  os  nobres,  que  desde  a  sua  tenra  edade  se  iam  educando 
na  arte  da  galanteria,  a  propugnarem  pelo  bem  da  sociedade. 

«Os  preceitos  do  amor,  diz  Lacurne,  cercavam  as  damas  de  considera- 
ções e  respeitosas  deferências,  o  que  sempre  :J  caracter  distinctivo  da  nação 
franceza.  As  lições  que  os  jovens  recebiam  relativamente  á  decência,  aos  cos- 
tumes e  á  virtude  foram  sempre  exemplificadas  pelas  damas  e  cavallciros  a 
quem  serviam. 

«O  primeiro  acto  da  cavallaria  era  a  escolha  d'uma  dama  ou  donzella  para 
amal-a  e  servil-a:  assim  começava  o  pagem  da  donzella  os  seus  deveres  de 
cortezia,  e  a  esta  dama  dos  seus  pensamentos  oíTerecia  então  todas  as  suas  em- 
prezas  e  feitos  d'armas.  Para  por  cila  ser  amado,  e  merecer-lhe  distincções, 
mostrava-se  esforçado  e  valente,  honesto  e  cortez,  leal  e  virtuoso.  O  nome  e  as 
cores  da  sua  dama  serviam-lhe  de  talisman  nas  circumstancias  mais  dilficeis 
da  sua  vida;  como  santa  da  sua  devoção  a  invocava  na  ferocidade  dos  comba- 
les, e  se  ferido  cabia,  cxhalava  o  seu  ultimo  suspiro  n'elhi  pensando  c  lion- 
rando-a.» 


I>\    CltiiSTirillJÀn  IS) 

Nada  menos  se  assimilliava  ao  amor  matéria  ilo  (|iii-  esla  profunda  e  amo- 
rosa dcdicaçào  jtor  uma  dama,  (|iu'  ordinariamcnli'  não  rL'eom|)ensav;i  um  sen- 
timento tào  exaltado  e  Ião  profundo  senão  eom  um  rasto  bi-ijo:  mas  esle  sen- 
timento cada  vez  mais  ardente  e  puro  era  uma  forea  invencivel,  que  ineessan- 
teniente  se  auginciitava  pela  ideia  fixa  e  peio  êxtase:  como  uma  sombra  seguia 
a  mullier  que  o  inspirava,  e  que  nem  sempre  lhe  correspondia,  e  atravez  do 
tempo  c  do  espaço  sem  esfriar  nem  desistir  continuava  amando,  a  nâo  ser  que 
a  amada,  d'essc  alTecío  se  tivesse  tornado  indigna.  «Quanto  mais  amor  me  pri- 
veis,  mais  fiel  e  amoroso  me  torpareis,»  dizia  á  sua  dama  Alberto  de  Gapen- 
sac,  cavalleiro  e  trovador. 

Na  linguagem  da  cavallaria  nota-se  uma  espécie  de  cumprimento,  que  con- 
sistia em  mutuamente  desejar,  entre  escudeiros  e  cavalleiros,  as  graças  ou  fa- 
vores das  suas  damas.  Estes  favores  limitavam-se  ordinariamente  a  um  sorriso, 
a  um  doce  olhar,  a  um  simples  beijo,  á  dadiva  de  um  cinto,  ao  presente  (fuma 
camisa.  Olivier  de  la  .Marche  termina  com  o  cumi)rimento  do  estylo  a  carta 
que  escreve  ao  mordomo  do  duque  da  Bretanha.  (Liv.  ii  das  suas  memorias.) 
No  mesmo  sentido  diz  a  rainha  a  João  de  Saintré  «Deus  vos  dè  a  alegria  do 
que  me  desejaes.»  O  que  João  de  Saintré  desejava,  era  viver  junto  de  sua 
aiiKida : 

«Alli  foram  tantos  os  beijos  dados  e  reccbibos,  que  contados  não  podiam 
ser,  e.  perguntas  e  respostas  todas  as  que  o  amor  queria  e  ordenava. 

«E  n'esfa  suavíssima  alegria  estiveram  até  que  força  foi  partir.» 

Apezar  destes  beijos  dados  e  recebidos,  apezar  d'estes  largos  colloquios 
de  amor,  jamais  João  de  Saintré  nem  a  sua  dama  foram  além  dos  limites  da 
verdadeira  cortezia.  Dizia -se  que  os  amantes  se  compraziam  em  excitar  a  sen- 
sualidade, afim  de  provar  quanto  podiam  combatel-a  e  vencel-a;  mas,  procu- 
rando o  perigo  e  expondo-se  a  elle  com  orgulho,  é  de  crer  que  alguma  vez 
succumbissem.  Este  amor  quasi  mystico  ao  qual  tudo  era  permitlido,  excepto  a 
ultima  expressão  dos  seus  mais  ardentes  desejos,  não  temia  satisfazer  com  cerl;i 
medida  os  seus  appetites  sensuaes:  frequentemente  crcr-se-hia  ver  aquellcs 
terríveis  assaltos  que  o  demónio  da  carne  dava  aos  santos  d;!S  lendas,  e  a])enas 
serviam  para,  depois  de  novos  esforços,  escudados  com  o  pensamenio  do  Re- 
demptor  e  de  sua  divina  Mãe,  firmar  uma  nova  vietoria. 

Cavalleiros  e  damas  não  fugiam  da  tentação,  com|)raziani  se  até  em  d"ella 
Iriumphar,  e  todas  as  vezes  que  não  iam  além  do  amor  decente  e  virtuoso, 
não  davam  recusa  a  algumas  compensações  de  sensualidade  melaphysica. 
Por  isso  o  famoso  castellão  de  Couey,  que  partira  para  as  cruzadas,  enviou 
uma  camisa  que  para  lá  levara  vestida,  a  uma  dama  de  Fayel,  que  amava  com 
puro  amor  de  cavalleiro,  embora  ella  estivesse  em  poder  de  marido  e  não  ti- 
vesse intenção  de  ser  adultera  de  facto,  posto  que  de  intenção  o  fora.  .\ 
dama,  quando  o  amor  a  impedia  de  dormir,  vestia  de  noite  esta  camisa,  ima- 
ginando que  o  contacto  do  panno  na  sua  carne  macia  eram  os  beijos  ardentes 
fio  seu  amante.  São  estas  as  jjroprias  palavras  da  dama  de  Fayel,  nos  cantares 
do  castellão  Covey. 

Tudo  era  amor  e  só  amor  na  cavallaria:  mas  amor  leal  e  discreto,  cujo 

UísTOHU  DÀ  1'aosTiTuiçÃo.  ToMO  II— Folha  H. 


1 86  HISTORIA 

código  foi  redigido  pelo  Mestre  Andrés,  capellão  de  Luiz  vii,  sob  o  titulo  di- 
Prvicipalia  amurin  praecepfa.  Nem  uma  só  lei  ha  n'este  código,  que  não  ti- 
vesse sido  escripta  sob  a  inspiração  dos  mais  nobres  sentimentos  c  da  mais 
respeitável  moral.  Disso  se  pode  ajuizar  pelas  seguintes  máximas: 

«Não  te  apoderes  de  favores  que  te  recusem  (in  amores  exercendo  sola- 
liutii,  coluntntis  non  e.ccedas  amantis). 

«Ainda  nos  mais  vivos  transportes  do  amor,  nunca  percas  o  pudor  (z» 
amoris  praestando  solalium  et  recipiendo,  omnis  debet  verecundia  rubor  adesse.)» 

Quanto  está  distante  similhante  doutrina  da  Arte  de  amar  de  Ovidio! 

O  Mestre  Andrés,  apesar  de  capellão,  não  era  noviço  era  amor,  mas  a  de- 
finição que  do  amor  dá,  tal  como  deve  ser  honestamente  practicadn,  não  pa- 
rece ir  de  accoi-do  com  os  costumes  do  digno  clérigo : 

«O  amor  paro,  diz,  c  aquelle  que  absolutamente  une  com  os  laços  d'uma 
ternura  intima  o  coração  de  dois  amantes;  mas  este  amor  consiste  na  contem- 
plação espiritual  e  na  paixão  ardente.  Pode  chegar  até  ao  beijo,  até  ao  abraço, 
até  ao  contacto  da  carne  núa,  esquivando-se  sempre  ao  ultimo  estremecimento 
do  amor.» 

Esta  legislação  do  amor  não  era  lettra  morta.  A  cavallaria  tinha  estabe- 
lecido em  cada  província,  e  especialmente  nas  do  meio-dia.  Cortes  do  amor  e 
Tribunaes  da  galanteria,  areópagos  femininos,  onde  se  discutiam  todas  as  cau- 
sas do  amor.  Estas  sessões  eram  celebradas  de  tarde,  á  sombra  d'um  olmeiro 
secular;  o  tribunal  era  presidido  por  um  cavalleiro  distincto,  chamado  Prin- 
cipe  do  amor  ou  da  mocidade,  eleito  pelas  damas  de  que  se  compunha  a  corte, 
e  que  tinha  por  accessores  grandes  personagens  da  nobreza  e  do  clero. 

A  forma  dos  julgamentos  era  a  mesma  que  nos  tribunaes  de  justiça  real 
e  senhorial,  todavia  as  sentenças  tinham  sempre  um  caracter  metaphysico  e 
não  applicavam  aos  réus  nenhum  castigo  corporal  ou  pecuniário:  era  unica- 
mente a  censura  o  castigo  dos  culpados. 

Estes  Tribunaes  do  amor,  de  que  faziam  parte  as  mais  nobres  e  honradas 
damas,  eompriam  missão  mais  delicada  ainda,  quando  doutoralmente  resolviam 
as  questões  do  amor  que  lhes  eram  propostas. 

«Emfim,  diz  Papon,  na  sua  Historia  da  Provença,  a  galanteria  era  de 
tal  modo  o  espirito  dominante  d'aquelle  século  de  ignorância,  que  em  tudo  se 
misturava,  sendo  o  thema,  o  logar  obrigado,  de  todas  as  conversações.  .4s  da- 
mas, os  cavalleiros,  e  os  trovadores  exercitavam-se  discutindo  seriamente  so- 
bre esta  importante  n)aleria ;  nenhum  sentimento  do  coração  escapava  á  sua 
sagacidade;  todos  os  casos  eram  previstos  e  resolvidos.» 

Attribuição  foi  sempre  das  Cortes  do  amor  o  pronunciar  sentenças  n'esta 
questões  diíliceis  c  minuciosas,   que  os  advogados  de  ambas  as  partes  discu- 
tiam com  grande  exaggero  de  eloquência  c  sciencia  amorosa. 

Deve  comprehenJer-se  bem  o  influxo  que  similhante  jurisprudência  teve 
na  prostituição;  nas  sentenças  de  amor  que  até  nós  chegaram  não  se  notam  cir- 
cumstancias  graves  accusadoras  da  conducta  licenciosa  d'uma  ou  outra  das  par- 
les litigantes.  Não  se  encontra  um  acto  de  libertinagem  otíensor  da  moralidade 
dos  juizes:    em   nenhumas  d'ellas  se  encontra  o  amor,  a  causa  de  todos  estes 


s 


DA  rit(isirriiiçÃo  187 

litígios,  acompanhado  de  manifestações  obscenas.  Todas  eslas  causas  são  pec- 
cadilhos  d'amanfes,  ligeiras  bagafellas  de  cxaggerada  galanteria;  nn,  se  o  pro- 
cesso  era  mais  grave,  a  corte  do  amor  transformava-se  em  tribnnal  de  honra. 

Um  secretario,  enviado  junto  d'uma  dama,  esquece  os  seus  deveres  de 
intermediário  e  confidente,  e  supplanla  aquelle  que  o  enviara,  requestando 
por  sua  conta  a  dama  que  -foutro  era.  A  condessa  de  Flandres,  assistida  de  ses- 
senta damas,  condemna  os  culpados,  declarando-os  excluídos  da  companhia  das 
damas  e  dos  conselhos  plenários  dos  cavalleiros. 

Mestre  Andrés  cita  outro  exemplo  de  jurisprudência  amorosa.  Um  amante 
para  tomar  outra  abandonou  a  sua  amada,  mas  em  breve  cansado  da  segunda 
requestou  de  novo  a  primeira.  Esta  desprezou-o,  mas  além  d'is.so  denunciou  o 
seu  procedimento  á  viscondessa  de  Narbonna.  O  tribunal  do  amor  presidido  pe- 
la viscondessa  resolveu  que  o  volúvel  amante  ao  mesmo  tempo  perdesse  o  af- 
fecto  d'uma  e  d'outra  das  requestadas,  por  não  ser  digno  de  possuir  o  coração 
d'uma  mulher  honrada  (mdlas  probce  (emince  debtdt  ulteriíis  amore  gaudere.) 

Condemnar  com  tanto  rigor  a  inconstância  d'um  amante  não  era  decerto 
ser  indulgente  com  a  prostituição. 

Mas  com  maior  rigor  era  castigada  a  infidelidade  da  mulher,  pois  que 
uma  dama  cujo  amante  desde  aniios  fazia  a  guerra  na  Palestina  foi  accusada 
perante  o  tribunal  da  condesa  de  Champagne  de  ter  acceitado  as  declarações 
d'um  outro.  A  dama  allegou  em  sua  defeza  que  se  havia  conformado  com  as 
leis  do  amor,  que  ordenavam  prantear  por  dois  annos  o  amante  que  se  finara, 
e  que  o  amante  que  não  dá  noticias  suas  pôde,  sem  que  aggravado  seja,  assi- 
milhar-se  a  um  morto.  Mas  a  condessa  de  Champagne  resolveu  cm  these  que 
a  mulher  nunca  deve  abandonar  o  seu  amante  por  causa  de  prolongada  ausên- 
cia. 

Os  tribunaes  das  damas  eram  inexoráveis  para  com  tudo  quanto  se  assimi- 
Ihasse  á  prostituição  do  corpo,  ou  do  coração.  Um  cavalleiro  que  encheu  de 
presentes  uma  dama  a  quem  amava  e  de  quem  em  recompensa  não  recebeu  fa- 
vor algum  queixou-se  á  rainha  Leonor  de  Goyena,  mulher  de  Luiz  vii,  e  esta 
bella  princeza  tão  competente  na  matcríra  proferiu  esta  memorável   sentença: 

«A  mulher  deve  repellir  todas  as  dadivas  que  com  intenção  amorosa  se 
lhe  façam,  ou  se  as  recebe  deve  pagal-as  entregando  o  seu  corpo;  mas  em  tal 
caso  colloca-se  na  cathegoria  das  cortczãs.»  {Ilist.  des  mceurs  ei  de  la  vie 
prhée  des  [rançais,  por  E.  de  la  Bcdollíère,  t.  iii,  pag.  324  e  seg.) 

Roberto  de  Blois,  no  seu  poema  Chastoimenl  des  dames,  reproduz  esta 
máxima  fundamental  do  direito  de  amar,  a  respeito  da  questão  de  uma  mulher 
receber  joías  do  homem  que  a  requesta. 

Os  Decretos  do  amor  (Ar reis  d'amoiir)  que  Marcial  d'Auvergne  eolligiu 
e  redigiu  nos  fins  do  século  xv,  e  (jue  um' chistoso  jurisconsulto  commentou 
em  estylo  palaciano,  não  são  d'uma  moralidade  muito  severa  e  alguns  parecem 
d"uma  galanteria  algum  tanto  devassa.  Cremos,  pois,  não  emanarem  das  anti- 
gas Cortes  do  amor  da  Provença,  mas  serem  leitos  no  tempo  de  Marcial  d'Auver- 
gnc  n'alguma  corporação  de  damas  e  cavalleiros,  formando  tribunal  á  similhança 
dos  grana  jours  de  Pierrefeu,  de  Signes  e  Romanin.  Já  não  é  esta  a  doutrina 


i  SN  HISTORIA 

siiiiplus  c  austera  da  cavallaria  piimiliva,  ijiie  não  tomava  o  amor  como  tli\ci- 
timento:  é  uma  galanloria  refinada,  mas  maliciosa  e  libertina;  senle-se  que  o 
amor  se  materialisa  c  vè-so  passar  com  frequência  e  sem  grande  escrúpulo  aos 
prazeres  mais  sensuaes.  Este  tribunal  também  differe  das  verdadeiras  Cortes 
do  amoi'  em  impor  muitas  às  vezes  consideráveis  e  penas  corporaes  aos  delinquen- 
tes, que  têem  como  perspectiva  o  látego,  embora  brandido  por  mão  de  damas. 

As  questões  são  julgadas  por  juizes  de  dilTerentes  instancias  ou  reeui-s.is, 
como  o  mniri'-  dos  ho-sques  virdes,  o  bailio  da  alegria,  o  cetjuer  dos  amores,  etc. 
Os  títulos  d'esíes  magistrados  fazeni-nos  suspeitar  que  a  sua  jurisdicção  era 
apenas  uma  brincadeira.  D'entre  os  extraordinários  pleitos  que  Marcial  d'Au- 
vergne  coUigiu,  escolheremos  dois  por  onde  se  avaliará  o  que  os  outros  va- 
liam. No  século  \i,  ha  uma  dama  que  apresenta  uma  queixa  contra  o  .seu  amado, 
perante  o  juiz  dos  bosques  e  das  aguas  sobre  (actos  de  amor,  aceusando-o  de 
a  ter  feito  cahir  ao  rio  para  lhe  apalpar  as  nevadas  pomas  (pnur  Ini  mettre  la 
main  sur  les  tetins;)  e  \ioy  tal  a  offendida  requer  que  o  audaz  amante  seja 
severamente  punido  coi»  castigo  publico. 

O  amante  contesta  que  tendo  com  ella  cabido  á  agua  não  era  aquella  a 
occasião  mais  própria  para  apalpai'  fosse  o  que  fosse. 

Todavia  o  procurador  dos  amores  nas  aguas  e  nos  bosques  responde  ser 
proiíibida  pelas  oi'<lenaeões  a  caça  ardilosa,  caça  em  que  taes  peças  (as  pomas) 
jiódem  cabir,  e  termina,  pedindo  para  o  caçador  uma  pezada  multa. 

O  amante  replica  que,  se  lançou  as  mãos  ao  peito  da  dama,  foi  isso  uma 
consequência  da  queda,  sendo  então  natural  agarrar-,se  ao  que  mais  próximo 
lho  ficara. 

O  tribunal  considerou  este  argumento,  todavia  resolveu  que  o  amante 
desse  á  amada  como  indemnisação  de  lhe  ter  molhado  o  vestuário,  um  vestido 
novo  de  còr  verde. 

No  quarto  pleito  uma  dama  também  é  a  queixosa.  Accusa  o  amante  de 
lhe  ler  beijado  o  vestido  tão  bruscamente  que  lhe  rompeu  o  corpele,  de  modo 
(|ue  se  chegou  a  ver  alguma  cousa  da  camisa.  Pede,  pois,  que  a  tão  violento 
enamorailo  seja  prohibido  o  tornar  a  tocar-lhe  sem  sua  licença.  Este  pedido  da 
dama  foi  completamente  deferido,  e  por  mais  que  o  amante  protestasse,  foi  a 
sentença  em  ultimo  recurso  confirmada  pelo  maire  dos  bosques  verdes. 

As  sentenças  dos  tribunaes  do  amor  não  eram  as  únicas  a  condemnar  as 
más  acções  dos  que  pertenciam  á  jurisdicção  cavalheiresca;  a  opinião  <lava  tam- 
bém as  suas  sentenças  e  não  perdoava,  quando  recabiam  sobre  acções  vergonhosas 
e  reprehensiveis,  nem  ao  nascimento,  nem  á  jerarcbia,  nem  á  riqueza.  O  ser 
bem  conceituado  era  condição  tão  essencial  para  os  homens,  como  para  as  mu- 
lheres, que  por  honestas  queriam  passar,  nem  os  mais  poderosos  senhores  e  nem 
as  mais  illustres  damas  p-uliam  sublraliir-se  ao  vitupério  da  gente  humilde. 

«As  damas  que,  respeitando-sc  a  si  próprias,  respeitadas  queriam  ser,  diz 
l.acurne  de  Santa  Pelava,  bem  certas  estavam  (jue  ninguen»  lhes  faltava  á  con- 
sideraçàíj  devida:  mas  se  pela  sua  cj)nducta,  pelo  seu  procedimento,  davam  lo- 
gar  a  legitimas  censuras,  deviam  rcceiar  encontrar  cavalleiros  dispostos  a  fa- 
zer-liies  essas  censuras.» 


iiA    piiiisrnuiçÃd  189 

O  cavalleiro  do  la  Tour  toiítava  em  1371  a  suas  filhas  que  o  modelo  do 
cavaliaria  messiir  .lontViov  se  tinha  consagrado  á  repressão  do  mau  procedimento 
das  damas. 

«Quando  cavalgava  pelos  campos  e  via  um  castello  habitado  por  alguma 
dama,  perguntava  sempre  a  (|uein  pertencia.  Se  a  dama  proprietária  era  accu- 
sada  de  algum  facto  deshonesto,  ainda  que  tivesse  de  torcer  meia  légua  não  dei- 
xava de  ir  até  junto  da  porta  do  castello,  onde  com  um  lápis  fazia  um  signal 
na  porta  para  que  fosse  escarnecida.  Ao  contrario,  quando  passava  em  frente  de 
um  castello  de  dama  ou  donzella  bem  afamada,  se  não  tinha  muita  pressa  vi- 
sitava-a  e  dizia-lhe:  «Minha  boa  amiga  peço  a  Deus  quen'essa  situação  ho- 
nesta vos  conserve,  para  que  sejaes  honrada  e  adorada.»  —  E  por  este  meio  as 
honestas  cuidavam  em  cousa  alguma  fazer  que  lhes  prejudicasse  a  sua  honrosa 
fama.» 

Não  se  sabe  qual  fosse  o  signal  feito  pelo  cavalleiro  JeoíTroy  nas  portas 
das  damas  mal  afamadas,  signal  que  provocava  o  desprezo  dos  que  passavam, 
o  que  a  gente  do  povo  não  deixava  de  fazer,  quando  encontrava  alguma  mulher 
de  má  vida. 

Apezar  de  tudo,  se  a  moralidade  publica,  graças  á  cavaliaria,  fazia  pro- 
gressos (liariíjs  em  todas  as  classes  da  sociedade,  e  se  difliindia  até  ás  mais  Ín- 
fimas, a  prostituição  dos  seus  antros  infamados  continuava  deshonestando  a 
linguag(>m  usual  e  as  poesias  dos  romanceiros.  Estes  poetas  da  lingua  d'oil  não 
eram  como  os  trovadores,  cavalleiros  ou  escudeiros,  creados  nas  Cortes  d'amnr 
e  desde  cedo  educados  pelas  lições  da  galanteria. 

Os  romanceiros,  geralmente  <le  origem  popular,  conservavam  nas  suas 
obras  a  macula  original,  e  applicavam  a  composições  de  grande  estro,  de  grande 
amenidade  e  malícia,  a  crua  e  gros.seira  linguagem  apprendida  com  seus  pães ; 
chamavam  a  todas  as  cousas  pelo  seu  nome  e  com  preferencia  empregavam  a 
expressão  mais  popular,  e  que  sempre  era  a  mais  pittoresca.  Os  seus  primeiros 
ouvintes  eram  sempre  os  villões,  e  se  este  publico  tinha  grande  competência 
no  que  era  jovial  e  burlesco,  não  era  em  demasia  rigoroso  para  as  obscenida- 
des das  descripções  e  das  palavras. 

E  não  pára  aqui  tudo.  Os  romanceiros  que  abandonavam  o  arado  para 
fazer  romances  e  canções  abraçavam  uma  vida  vagabunda  e  desordenada,  e  to- 
dos se  faziam  libertinos  vivendo  com  os.  histriões  que  com  razão  passavam  por 
serem  os  homens  mais  depravados.  Estes  histriões  compunham  ordinariamente 
versos  que  cantavam  ou  recitavam  mais  ou  menos  intelligcnlemente,  acompa- 
nhando-os  de  pantomimas,  danças  e  gestos.  E'  certo  que  algumas  vezos  o  actor 
era  conjunctamente  o  romanceiro  e  o  histrião,  mas  isto  .só  acontecia  excepcio- 
nalmente, pois  que  os  romanceiros  não  eram  tão  desprezailos  como  os  histriões. 

Com  effeito  estes  últimos  mereciam  bem  o  desprezo  com  que  por  todos 
eram  tratados.  Dados  a  lodos  os  vícios,  e  especialmente  aos  mais  infames,  ne- 
nhuma lei  social  reconheciam  e  vagabundeavam  d(  povo  para  povo,  de  cas- 
tello para  castello,  arrastando  atraz  de  si  grande  multidão  de  mulheres  fáceis 
e  de  crianças:  tinham  pois  escola  de  prostituição.  Não  eram  todavia  ricos;  mui- 
tas vezes  eram  encontrados  semi-nús,  como  os  descreve  um  poeta  do  século 


I9U  HISTORIA 

xui,  suns  sorliiii  ei  sans  colelle,  i(mi  oh  sapatos  rolos  o  coltorlos  úa  lombas. 
Estes  miseráveis  linham  sido  lodos  rdiicados  e  creados  nas  Cartes  dos  Milaçires, 
segundo  é  de  crer :  os  seus  coslnmes  e  linguagem  d"isso  linham  sempre  vesli- 
gios,  e  eram  elles  os  que  percorrendo  o  paiz,  corromfjiam  a  lingua  e  os  costumes. 

Ao  principio,  appareceram  nas  reuniões  lioneslas,  nos  festins  de  gala,  nas 
lestas  cavalleirescas,  e  alii  recitavam  canções  de  gestas,  as  epopeias  phantas- 
licas  da  Tavola  Redonda  e  de  Carlos  Magno;  ent.ão  excitavam  o  enthusiasmo 
do  auditório,  composto  de  senhores  e  damas,  que  se  não  cançavam  de  ouvir 
recitar  feitos  de  armas  e  de  amor.  Appareciam,  no  emíanto,  dessiminadas  por 
aquelles  velhos  romances  scenas  bastante  livres  e  lermos  licenciosos,  mas  a  in- 
tenção do  poeta  era  sempre  correcta  e  o  histrião  nada  accrescentava  á  indecen- 
lia  do  quadro.  Então  eram  elles  generosamente  pagos;  davam-se-ihes  vestidos 
novos,  e  .'.ustento  para  elles,  para  seus  auxiliares  e  animaes,  pois  que  ensina- 
vam lambem  macacos,  cães  c  pássaros  habilidosos  em  diversos  exercícios; 
dava-se-lhes  pousada  no  castelli)  c  quando,  com  os  alforges  bem  recheados, 
partiam,  eram  convidados  a  voltar. 

Mas  este  paraizo  no  reinado  de  S.  Luiz  transformou-se  n'um  inferno:  os 
romanceiros  ainda  faziam  canções  de  gesta  de  doze  a  vinte  mil  versos;  mas  os 
histriões  já  não  as  decoravam  e  tão  pouco  as  recitavam :  notável  transforma- 
ção se  havia  feito  no  gosto;  já  se  não  desejava  ouvir  á  mcza  os  feitos  maravi- 
lhosos do  rei  Arthur,  ou  .Vrturo,  e  do  imperador  Carlos  Magno;  preferia-se  me- 
ditar estes  assumptos  no  retiro  dos  gabinetes.  Os  histriões  de  boa  vontade  se 
prestaram  a  este  capricho  da  moda  determinado  pela  influencia  das  cruzadas ; 
aligeiraram  pois  o  .seu  reportório,  e  só  contavam  contos  amorosos  e  devotos. 
Os  romanceiros,  pelo  menos  aquelles  que  se  inspiravam  na  consciência  popu- 
lar, corresponderam  ao  favor  com  que  eram  recebidos  os  seus  contos,  e  inven- 
taram um  grande  numero  d'clles  mais  alegres  uns  que  os  outros,  que  se  divul- 
garam ao  som  da  role,  por  toda  a  parte  onde  o  riso  honesto  ainda  tinha  eeco. 

Mas  o  abuso  não  tardou  muito  a  fazer  condemnar  este  género  de  di- 
versões: os  romanceiros  excediam  os  limites  da  decência  nas  suas  composições, 
c  os  histriões  ainda  mais  exaggeravam  a  obscenidade;  luis  r  outro's  foram  con- 
siderados como  instrumentos  do  demónio  e  se  lhes  imputou,  com  justiça  tal- 
vez, um  novo  desenvolvimento  na  prostituição. 

O  piedoso  Luiz  ix  protegia  todavia  a  musica,  por  isso  que  depois  de  comer 
c  antes  de  dar  graças  recebia  os  tangedorcs  que  diante  dVIle  t()cavam;  mas 
esta  benevolência  i-eferia-se  unicamente  á  musica  e  não  á  Icttra,  pois  que,  se- 
gundo um  te\lo  antigo,  adoptado  em  muitas  edições  dtí  Joinville,  expulsou  do 
seu  reino  a  todos  os  charlatães,  «os  quaes  no  seu  povo  muitas  sensualidades 
introduziam».  Estas  sensualidades  não  desagradavam  comtudo  a  certos  nobres, 
que  apezar  das  castas  lições  da  cavallaria  moslravara-se  apaixonados  parli<la- 
rios  da  gaia  seiencia,  e  nunca  fechavam  a  porta  aos  mais  libertinos  histriões : 
mas  em  geral  os  pobres  tangedorcs  eram  como  os  leprosos  afugentados  dos  cas- 
tellos,  e  os  seus  instrumentos,  aniuinciando  a  sua  presença  á  beira  dos  fossos 
d'uma  residência  senhorial,  nblinham  o  mesmo  resultado  que  os  cães  ladrando 
á  lua. 


DA    PRUSTITUigÀII  191 

Segundo  um  apologo  salyrico,  cscripto  om  laliui  por  a(iuolla  ópoca  (Fa- 
hliaux  de  Legran  d'Aussy,  t.  iv,  pají.  3')7),  Deus  ao  crear  o  tnumio,  n'(>llt' ool- 
locou  três  espécies  de  homens :  os  nobres,  os  clérigos  e  os  villócs.  Aos  primei- 
ros deu  as  terras,  aos  segundos  os  diziínos  o  as  esmolas,  c  aos  Icrceiros  o  Ira- 
ballio  e  a  miséria;  mas  feita  assim  a  divisão,  os  tangedores  e  ribaldos  reclama- 
ram pei-ante  Deus  para  que  lhes  fosse  fixada  a  sua  sorte  e  lhes  fosse  dada  al- 
guma cousa  com  que  viver. 

«O  Senhor,  diz  o  auctor  do  Apologo,  ordenou  aos  nobres  que  alimentas- 
sen)  os  tangedores,  e  aos  sacerdotes  que  soccorressem  os  ribaldos.  Estes  obede- 
ceram a  Deus  e  por  isso  se  poderão  salvar;  mas  aquelles,  os  nobres  que  em  ne- 
nhuma conta  tem  tido  as  ordens  de  Deus,  não  devem  esperar  salvação.» 

Os  histriões,  não  sendo  já  recebidos  nos  castellos,  completamente  esque- 
ceram os  cantares  de  gestas  e  a  poesia  honesta;  tinham  encontrado  um  publico 
mais  fácil  de  contentar-se,  menos  escrupuloso  sobre  a  natureza  dos  seus  pra- 
zeres ;  batiam  á  porta  do  popular  e  do  mercador,  e  ao  sentar-se  nas  tabernas 
c  na  casa  dos  bons  plebeus  que  os  recebiam  com  jubilo,  tinham  a  certeza  de 
fazer  escancaradamente  rir  o  auditório  com  os  seus  contos  licenciosos,  que  con- 
tavam depois  de  ter  bebido. 

Estes  contos,  preciosos  monumentos  da  imaginação  e  jovialidade  dos  nos- 
sos antepassados,  formam  uma  notável  collecção,  somente  publicada  em  parte 
por  Barbazan  c  traduzida  por  Legrand  de  Aussy.  D'este  rico  reportório,  Boc- 
cacio,  Ariosto,  l.a  Fontaine  e  outros  muitos  poetas  extrahiram  assumptos  e  ideias 
cómicas  a  que  só  nova  forma  deram. 

«A  collecção  dos  romances,  diz  Emilio  de  tíedollière,  abunda  em  inven- 
ções chistosas  e  c-m  traços  de  communicativa  jovialidade,  mas  também  às  ve- 
zes contém  repugnantes  obscenidades:  as  mais  sujas  palavras  da  língua  fran- 
ceza  são  alli  prodigamente  empregadas;  as  funcções  mais  vulgares  do  corpo  hu- 
mano são  assumpto  para  grosseiras  chocãrrices;  as  partes  mais  secretas  do 
corpo  são  alli  descriptas  com  (ermos  que  fariam  corar  as  prostitutas  de  hoje.» 

E  em  appoio  d'esta  apreciação  geral  dos  romances  do  século  xiu  e  xiv.  o 
notável  auctor  iki  Historia  dos  costumes  e  da  vida  particular  dos  Irancezes  cita 
alguns  títulos  escolhidos  na  edição  de  Barbazan ;  mas  que  nós  omittiremos  por 
decência. 

Para  ler  uma  ideia  d'esta  litteratura  é  preciso  ler  os  contos  mais  livres 
de  La  Fontaine  que  se  deleitava  na  leitura  dos  romanceiros,  mas,  nem  mesmo 
assim  serão  comprehcndidas  as  monstruosas  liberdades  d'aquelles  poetas,  que  ti- 
nham o  seu  Tarnaso  iium  bordel,  se  se  não  compararem  as  suas  obras  com  as 
de  rirevourt,  Piron  e  Robbé,  desavergonhados  romanceiros  do  século  xviii. 

«E'  evidente  (diz  ainda  Bedollière,  t.  iii  da  obra  citada,  pagina  3íl),  que 
os  nossos  antepassados  pronunciavam,  sem  espanto  nem  pudor  palavras  que 
nós  proscrevemos;  mas  ainda  assim,  não  eram  alheios  á  delicadeza,  e  os  con- 
tos escandalosos  inspiravam  justa  i-epugnancia  ás  pessoas  honestas.^) 

Com  elíeilo,  no  Jeu  de  Rohin  et  Marion.  comedia  lyrica  re|)resentada  no 
século  XIII,  e  cujo  auctor.  Adam  de  Hale,  ei-a  um  dos  romanceiros  mais  esti- 
mados do  seu  tempo,  um  dos  personagens  da  peça,  chamado  Gauthier,  sob  pre- 


192  .  HISTORIA 

(exto  (Je  recitar  uma  sirventa,  (\\z  uma  sórdida  poesia.  Robin  interrompe-o, 
censurando-o: — «Basta,  basla,  (lautliier,  não  quero  ouvir  essa  canção!» 

Os  tocadores  ambulantes  tiniiam  concorrido  para  a  propagação  da  linguagem 
obscena,  recitando  e  cantando  as  poesias  dos  trovadores,  e  estes  cuja  reputa- 
ção litteraria  recommendava  convi  modelo  na  arte  de  versificar  e  de  bem  dizer, 
exerciam  uma  funesta  iniluencia,  tanto  na  linguagem  escripta,  como  na  lingua- 
gem fallada;  pois  que  qualquer  que  em  prosa  ou  verso- escrevia,  com  este  exem- 
plo se  auctorisava  para  usar  das  palavras  mais  indecentes,  e  para  descrever  as 
imagens  mais  impudicas. 

Os  trovadores  nas  compoáições  de  generu  íikiís  rle\;ulo  não  se  corrigiam 
do  mau  costume  de  misturar  com  a  linguagem  poética  a  linguagem. dos  bordeis 
c  labcruas. 

O  auctor  do  celebre  romance  Partenoplex  de  Blois  faz  uma  descripção  em 
cores  tão  vivas  e  indecentes,  que  nos  limitamos  a  dar  a  seguinte  amostra  : 
«Abriu-Hie  as  pernas,  e  quando  n'ellas  introduziu  as  suas,  roubou-lbe  a  flor  da 
virgindade.» 

O  auctor  do  romance  de  (Varin  não  põe  na  bocca  dos  seus  personagens 
linguagem  mais  decente. 

.\'s  vezes  o  trovador  Ir.iíaxa  de  um  assunsplo  serio,  sem  por  isso  niu^lar  de 
vocabulário.  Nos  Milagres  de  ISossa  Senhora,  o  pnefa  traductor,  a  (juem  o  assum- 
pto edificante  não  bavia  purificado,  comprazi;i-se  em  descrever  os  episódios  de 
uma  noite  ri'  noivado,  em  que  graças  á  immaculada  Virgem  o  noivo  desempe- 
nhou um  bem  triste  papel,  contando-se  alli  em  termos  desbragados  as  infructi- 
feras  tentativas  do  pobre  esposo  para  consummar  o  matrimonio  n'aquena  noite. 

Os  poetas  e  escriptores  que  não  tinham  bocca  na  corte,  isto  é,  que  não  co- 
miam á  meza  dos  reis  ou  dos  príncipes,  não  sabiam  liem  distinguir  entre  a  lin- 
guagem honesta  e  a  deshonesta:  ignoravam  o  valor  real  das  palavras  e  nem  se- 
(|uer  suspeitavam  que  a  lingua  tivesse  diversos  termos,  rada  ijiial  apriiiiriado  ao 
seu  assumpto.  O  sentimento  da  delicadeza  litterari;\  tão  pour"  lhes  fazi:i  |)revèr 
que,  |)assan''io  d  um  assumpto  profano  para  um  assumpto  sagrado,  deviam  mudar 
de  linguagem. 

l,'m  (fesies  escriptores  foi  encarregado,  paia  uso  de  um  príncipe  de  França, 
de  verter  em  francez  a  santa  Bíblia.  O  traductnr  fez  o  seu  trabalho  com  toda 
a  consciência  de  que  era  capaz,  e  não  teve  escrúpulo  de  introduzir  na  sua  ver- 
são lilleral  um  grande  numero  de  palavras,  (|ue  («mbora  empregadas  por  Moy- 
sés  em  hebreu,  não  podiam  ser  admittidas  nas  Santas  Escripliiras  transplan- 
tadas pai'a  o  francez. 

Todavia,  esta  traducção  foi  copiada  por  um  serilia  em  [lergamiMliii,  or- 
nada de  miniaturas  e  formosamente  encadernada.  Assim  chegou  ás  mãos  dos 
reis  de  França  que,  por  espaço  de  muitas  gerações,  leram  a  Bíblia  n'aquelle 
bello  inanuscripto,  sem  se  escandalisarem  por  em  cada  pagina  encontrarem  coi- 
sas semelhantes  ás  seguintes,  que  Paulin  Paris  transcreve  no  seu  excellente 
Catalofiue  dn  inanuscrit-t  [rançais  di'  la  Uihíiolhéque  da  lloi : 

«E  n'aqui'lle  tempo  disse  Deus  a  Abraháo  :  toilos  o^  vossos  vaióes  siMáo 
circumcisados  e  eireumcisareis  a   carne  da  vossa   |i    •  . ,   i'm  signa!  da  ;ilhaiiea 


DA    PROSTITUIÇÃO  193 

entre  mim  e  vós.  Então  Abrahão  tomou  seu  filho  Ismael  c  todos  os  varões  de 
sua  casa  e  circumcisou  a  carne  das  suas  p.  .  .  (Et  autres  foijs  dist  Dieii  à 
ibraham:  Chacun  masle  de  vous  será  circumsis  et  wus  circumsirez  la  char 
de  wtre  v- . .,  que  ce  soit  en  signe  de  lien  entre  may  et  vous.  Lors  mena  Abra- 
h/tm  Ismael  son  fils  et  tous  les  fraiikes  mesmes  de  la  maison  et  tons  les  males 
«t  tous  les  louvriers  de  sa  maison  et  il  circumsisa  la  char  de  leur  c.  .  .»  — 
Cap.  17,  versic.  iO  e  23.)- 

«Nosso  Senhor  certamente  se  lembrou  de  Rachel,  e  abriu-lhe  a  sua.  .  ., 
que  concebeu,  e  pariu  um  filho.  (Notre  Seigneur  d  de  certes  se  rememora  de 
Rachel  et  overi  son  c. . .,  laquelle  conceust  et  enfanta  un  fils.» — Cap.  39-22.) 

«Irritaram-se  pela  desfloração  de  sua  irmã  e  responderam :  Abusaram  de 
noss.a  irmã  como  d'uma  p.  .  .  —  lis  se  courroucèrent  pur  le  despucelage  de  leur 
sorour...  et  ils  respondirent :  Dussent-il  avoir  usé  nostre  sorour pour putage. 
—  Cap.  34,  i3  e  31). 

Esta  Biblia  franceza  conserva-se,  sob  o  numero  6701,  entre  os  manus- 
criptos  da  Bibliotheca  Nacional,  e  só  causa  admiração  que,  em  vez  de  ser  des- 
tinada ao  uso  dos  Reis  Christianissimos,  não  tivesse  sido  traduzida  para  uso 
(íns  bordeis  de  Glatigny,  de  Tyron  e  Brisemiche 

De  resto,  os  moralistas  e  pregadores  que  se  dirigiam  ao  povo  e  lhe  fal- 
lavam  na  sua  linguagem  não  eram  mais  circumspectos  na  escolha  dos  termos 
que  levantavam  da  lama  para  misturar  com  as  cousas  santas.  S.  Bernardo  jul- 
gava ainda  pregar  em  latim,  quando  n'um  dos  seus  sermões  energicamente 
dizia :  Vieille  femme,  menant  pute  vie  de  corps,  esl  putain. 

Outro  pregador  do  mesmo  tempo  tomou  para  texto  do  seu  discurso  estas 
palavras  do  Propheta-rei :  Laus  mea  sordet  eo  quod  sit  in  ore  meo,  que  inter- 
pretou com  toda  a  energia  do  seguinte  modo:  O  meu  louvor  não  6  mais  do 
que  trampa  e  porcaria. 

A  linguagem  da  prostituição  tudo  invadiu,  até  a  própria  Egreja,  que  te- 
ve a  prudência  de  prohibir  aos  fieis  a  leitura  dos  livros  santos,  indignamente 
traduzidos  para  estylo  vulgar. 


li»T<J»u  OA  PEOSTnmcû.  Tono  ii  — FolhI  25. 


CAPÍTULO  XVíll 


SUMMARIO 


CustumHS  públicos  e  particulares  Jesdc.  o  swulo  xj.— João  Flora,  bispy  de  OrleaQS.— U  Golias  da  prosUtui- 
vlo.— Excentricidades  licenciosas  do  duque  de  Aquitania.— As  cruzadas  e  os  cruzados — As  trezintas  mulheres  fran 
oas.— AS  concubinas  da  hoste  do  rei.— A  rcctaguarda  dos  exércitos  em  campanha. -As  mil  prostitutas  do  capitão 
(iarnier.— Joanna  d'Aic,  em  Sancrre.—  Ordenação  d'esta  heroinn  contra  as  ribaldas  da  milícia.— Como  a  cavallaria 
comprehendia  a  hospitalidade.— Decadência  dos  costumes  cavalheirescos.— AbnminaçSes  do  reinado  de  Carlos  vi.— 
ámia  Pledeleu.—  Indulgência  de  Ambrósio  de  Lore,  preboste  de  Paris,  para  com  as  prostitutas. 


INCONTESTÁVEL  quc  a  cavallaría  soube  reprimir  os  excessos  da 
prostituição,  sem  que  lograsse  extirpal-a  dns  costumes  públi- 
cos. 

A  partir  do  século  xii,  notou-se  um  movimento  favorável 
nos  costumes  públicos  e  particulares,  apezar  da  acção  sempre 
corruplura  da  poesia  popular,  que  finalmente  devia  acabar  por  substituir  a  poe- 
sia heróica ;  sem  duvida  ha  ainda  uma  grande  dissolução  de  costumes  entre  os 
nobres  e  o  povo;  mas  ainda  assim  os  primeiros  já  não  dão  o  exemplo  da  mais 
abominável  perversidade.  Embora  os  costumes  do  Oriente  se  tivessem  introdu- 
zido nos  costumes  dos  cruzados,  o  peccado  contra  a  natureza  já  não  era  tão 
frequente,  como  na  corte  da  Normandia  em  1120. 

Segundo  Guilherme  de  Nangis,  um  prelado  já  não  ousa  apresentar  descara- 
damente as  suas  torpezas,  como  o  fez  aquellc  bispo  d'Orleans,  chamado  João, 
que  em  1092  pelos  seus  mancebos  (concuhii)  se  fazia  appellidar  Flora,  e  que 
ouvia  os  infames  adolescentes  dados  á  libertinagem,  que  cantavam  de  noite  pe- 
las esquinas  as  canções  impudicas,  compostas  em  honra  sua:  Quidam  enim  sui 
concubii,  diz  o  venerando  Ives  de  Chartres,  n'uma  caria  dirigida  ao  papa  Urba- 
no II,  appelleant  eiim  Floram,  multas  rhythmicas  cantilenas  de  eo  composue- 
runt,  quw  fcedis  adolescentihus,  sicul  no.ttris  miseriam  terre  illius,  per  urbes 
Francice,  in  plateis  et  compitis,  cantitantur. 

Estes  eseriptores  satyricos  não  perdoam,  é  certo,  aos  vicios  da  sua  époeba, 
uccusam  a  avareza,  o  orgulha,  a  crueldade  e  a  gula  dos  seus  senhores ;  mas 
não  lhes  pôde  ser  censurado,  como  aos  historiadores  do  século  xi,  o  viverem 
nos  antros  da  sensualidade  (impudici latis  barathriim.)  Odorico  Vital  afQictiva- 
mente  exclamava,  que  a  licenciosidade  já  não  conhecia  limites,  e  que  já  se  não 
seguiam  os  exemplos  dos  iieroi's,  mas  sim  os  passos  da  mais  desenfreada  pros- 
tituição:  não  se  cançava  de  amaldiçoar  os  iniquidades  do  seu  tempo  (seviíia 


190  HISTORIA 

iiúqui  (emporis,  diz,  no  livro  in  da  sua  chronica;)  todavia,  no  meio  das  espan- 
tosas licenciosidades  do  século  xi,  a  Egreja  activamente  trabalhava  na  reforma 
das  ordens  monásticas,  e  a  cavallaria,  cuja  instituição  se  attribue  a  um  velho 
ermita,  descidr.  d'uni  throno(lradicção  symbolica,  provavelmente,)  começava  a 
regenerar  a  nobreza,  corrigindo-lhe  os  seus  maus  costumes. 

Só  á  salutar  influencia  da  cavallaria  se  piíde  attribuir  a  conversão  do 
maior  peccador  que  o  século  xi  produziu.  Entre  tantos  filhos  do  diabo,  como 
então  eram  chamados,  (iuilherme,  nono  do  nome,  duque  da  Aquitania  e  conde 
de  Poitiers,  foi,  para  nos  servirmos  de  uma  figura  biblica,  o  Golias  da  prosti- 
tuição, qualificado  por  Emilio  de  la  Bedolière  como  o  Desaiergonhado  do  un- 
Jeclmo  século.  E  segundo  o  juizo  d'um  trovador  contemporâneo  (Choix  de  poé- 
sies  orig.  des  Trouhadours,  t.  v,  pag.  Hoj  o  maior  libertino  e  seductor  de 
mulheres,  cuja  fama  percorreu  o  mundo.  (Si  fo  uns  deis  maiors  trichadors  de 
dompnas  et  anet  lonc  teinps  per  lo  mon  per  enganar  las  donnas).  Todos  os  pro- 
cessos eram  bons  para  elle,  comtanto  que  lhe  facilitassem  as  suas  conqui.sta.s 
amorosas:  não  desdenhava  as  suas  humildes  vassallas,  e  tinha  especial  ten- 
dência para  as  religiosas,  a  quem  ia  seduzir  nos  próprios  conventos. 

Já  mencionamos  o  seu  projecto  de  bordel,  feito  pelo  modelo  das  abbadias, 
e  destinado  a  receber  uma  communidade  de  mulheres  publicas,  sob  a  direcção 
das  mulheres  mais  desavergonhadas  do  Poitou.  Não  se  sabe  a  causa  porque,  de- 
pois de  estar  construído  o  edifício,  não  se  pòz  em  practica  o  seu  projecto.  Ena- 
morou-se  da  bella  condessa  de  Chatellerault,  chamada  Malborgiana,  e  vivia  com 
eila  em  concubinato,  tendo  abandonado  a  mulher  legitima. 

Mandou  pintar  no  seu  escudo  o  retrato  da  sua  amante,  dizendo  que  a 
queria  levar  aos  combates,  como  ella  o  levava  para  o  leito  (dictitans  se  illam^ 
velle  ferre  in  prctlio,  sicut  illa  portabat  eum  in  íriclinio). 

Guilherme  de  Malmesbury,  que  conta  na  sua  chronica  as  excentricidades 
licenciosas  do  duque  da  Aquitania,  deixa  perceber  que  esfe  grande  libertino, 
embora  ama.sse  a  condessa  com  grande  paixão,  não  lhe  era  todavia  fiel. 

Uma  noite  de  sabbado  d'Alleluia  estava  o  duque  n'nnia  egreja,  onde  se 
pregava  a  respeito  da  resurrcição  de  Jesus-Christo. 

—  Que  fabulai   Que   mentira!  exclamou  elle,  desatando  ás  gargalhadas. 

—  Se  é  essa  a  vossa  opinião,  disse-lhe  com  vivacidade  o  pregador,  para 
que  permaneceis  aqui? 

—  Vim  aqui,  respondeu  o  impio,  para  vér  as  galantes  raparigas  que  assis- 
tem á  festa. 

Uma  outra  vez,  estando  enfermo,  e  como  o  frade  que  lhe  assistia  á  ca- 
beceira o  julgasse  em  perigo  de  vida,  dizendo-lhe  : 

— Irmão  meu,  preparae-vos  para  uma  santa  morte: 

—  O  que  tu  querias,  respondeu-lhe  o  moribundo,  era  que  eu  deixasse  os 
meus  bens  aos  parasitas,  isto  é  a  vos.sês ;  mas  juro-fe  que  não  vos  deixarei 
nem  um  obulo.  Pelo  que  respeita  á  minha  libertinagem,  nem  me  arrependo 
nem  me  emendarei,  se  d'esta  escapo:  pois  que  homens  mais  sabedores  do  que 
tu  me  teem  aflirmado  (]ue  as  mulheres  são  um  bem  commum,  e  que  entregar-se 
qualquer  ás  suas  caricias  é  apenas  um  peceado  venial. 


ti\     PRiiSTITlIÇÃO  197 

Comtudo  nã(t  morreu  iia  inipenitencia  final,  porque  innuenciado  pelas 
regras  da  cavallaria,  repenfinamente  passou  do  culto  da  matéria  á  contempla- 
1^0  espiritual,  dn  incredulidade  á  té,  do  escândalo  da  sua  vida  immunda,  ás 
praeticas  edificantes  do  ascetismo,  ('om  etíeito,  tendo-se  feito  soldado  de  Chris- 
to,  expiou  os  seus  peccados  com  exemplar  arrepenflimento.  Já  então  era  velho 
e  não  podia  continuar  com  os  seus  amores,  como  no  tempo  da  juventude,  ainda 
que  se  soccorresso  das  excitações  fictícias,  que  o  charlatanismo  medico  oflerecia 
aos  velhos  lihertinos,  e  cujas  receitas  foram  compiladas  pelo  douto  Arnaldo  de 
Villeneuve  sob  o  titulo :  Ad  virgam  erigendam. 

Guilherme  de  Aquilania  nos  seus  bons  tempos  levou  muito  longe  as  suas 
investigações  sensuaes,  e  a  fama  honra-o  com  algumas  receitas  eróticas  de  sua 
invenção,  que  também  se  encontram  nas  obras  de  Arnaldo  de  Villeneuve,  que 
por  pudor  as  traduziu  em  latim:  íí  desiderium  et  dulcedo  in  coilu  augmenMi- 
tur.  —  Lt  mulier  haheat  dulcedinem  in  coilu. 

As  cruzadas  foram  o  mais  bello  monumento  da  cavallaria,  e  todavia  nào 
pôde  negar-se  que  aquella  prodigiosa  multidão  de  homens  de  todas  as  edades, 
de  todas  as  classes  e  paizes,  alentaram  no  seu  seio  os  germens  corruptores  da 
prostituição.  O  abbade  Fleury,  fallando  d'aque]les  exércitos  innumeraveis,  que 
cahiam  sobre  o  Oriente,  diz  com  razão  que  eram  peiores  que  os  exércitos  ordi- 
nários : 

«Imperavam  nVsses  exércitos  todos  os  vicios;  os  que  os  perigrinos  ha- 
viam trazido  dos  seus  respectivos  paizes,  e  os  que  haviam  adquirido  nos  pai- 
zes estrangeiros.» 

Já  mencionamos,  sob  a  auctoridade  de  Joinville,  que  na  primeira  cru- 
zada de  S.  Luiz  os  barões  tinham  os  bordeis  em  volta  da  tenda  real.  Maior 
devia  ter  sido  o  escândalo  nas  cruzadas  precedentes,  principalmente  na  pri- 
meira, que  revolveu  a  Europa  antes  de  transformar  o  Oriente. 

«Os  cruzados,  diz  Alberto  de  Aix,  portaram-se  como  gente  grosseira,  in- 
sensata e  indomável,  emquantn  o  amor  carnal  n'elles  abafou  a  chamma  do 
amor  divino.  Traziam  comsigo  um  grande  numero  de  mulheres  vestidas  de  ho- 
mem, e  na  sua  companhia  viajavam  sem  distincçào  de  sexo.  entregando-se  á 
sensualidade,  (*)  {Hixt.  des  Gauks,  t.  xix,  pag.  684). 

Alberto  d'Aix  accrescenta  alguns  pormenores  que  nos  permittem  advinhar 
outros  mais  escandalosos : 

«Os  perigrinos  não  se  abstiveram  das  reuniões  illicitas,  nem  dos  praze- 
res da  carne;  incessantemente  se  entregavam  a  todos  os  excessos  da  meza,  di- 
vertindo-se  com  mulheres  casadas  e  solteiras,  que  só  abandonavam  para  com 
outras  se  entregarem  ás  mesmas  loucuras  e  vaidades.» 

Para  explicar  as  vaidades  a  que  o  chronista  se  refere,  é  preciso  lembrar- 
luo-nos  dos  innumeros  vagabundos  e  fanáticos  que  violavam  as  virgens,  des- 


(')     O  auclor  do  livro  De  Gesta  Urbani  II  liiuita-se  a  iiieueiouar  o  facto: 
Innumerabiles  feminas  secum  habere  non  timuerant.  qiiae  naturalem  habitum  m«t- 
rileni  nefarie  niHtaverunt.  rum  quibus  fornicaverunt. 


1 98  HISTORIA 

lnmrando  a  hospitalidade  que  se  lhes  dava  iia  Hungria.  (Puellis  eripiebatur, 
oiolentia  ablata,  virginitas:  desknneslabantur  conjugio.)  Não  foi  sem  causa 
que  a  mão  de  Deus  se  estendeu  sobre  aquelles  miseráveis,  «que  haviam  pec- 
i'ado  na  sua  presença,  revolvendo-se  no  lodo  dos  prazeres  carnae'*.»  Nem  a 
terça  parte  d'aquelles  bandidas  chegaram  á  Palestina. 

.\s  Cortes  dos  Milagres  e  os  Jogares  da  prostituição  tinham  dado  largo 
contingente  ao  exercito  dos  cruzados.  Era  n"esfe  exercito  que  os  ribaldos,  os 
/)ic'i mi,  os  truões  e  os  vagabundos,  formavam  phalanges  terríveis,  augmentadas 
com  as  mulheres  perdidas,  que  iam  em  companhia  dos  seus  amantes  resgatar 
a  Cruz! 

Mas  além  d'isso  todos  os  exercites  da  Edade-Média  eram  sempre  segui- 
dos de  um  grande  nuniero  de  gente  de  ribaldia,  que  acompanhava  a  bagagem 
e  a  saqufava  em  caso  de  derrota.  Os  soldados  não  podiam  passar  sem  este  cor- 
tejo embaraçoso  e  incommodo,  servindo-se  das  mulheres  para  recreio,  e  dt)s 
homens  para  os  ajudarem  n'algumas  fadigas  e  principalmente  para  aniquila- 
rem a  região  por  onde  passavam. 

Os  cruzados  não  renunciaram  aos  costumes  guerreiros,  ao  dedicarem-se 
à  conquista  do  Santo  Sepulchro,  e  quando  as  mulheres  lhes  faltaram  na  Pales- 
tina, onde  a  religião  mahometana  se  oppunha  a  todo  o  contacto  illicifo  com  os 
christãos,  mandaram  vir  da  Europa  um  reforço  de  prostitutas,  que  também  a 
seu  modo  concorreram  para  o  triumpho  geral  das  cruzadas. 

Um  historiador  árabe,  Ben-ad-Eddin,  conta,  que  durante  o  cerco  de  S. 
João  d'Arce,  em  1189,  «trezentas  mulheres  francas,  recolhidas  nas  ilhas,  che- 
garam n'um  -barco  para  consolação  dos  soldados  francos,  a  quem  inteirameute 
se  entregaram,  pois  que  estes  soldados  não  entram  em  combate  se  de  mulhe- 
res os  privam.» 

O  mesmo  his(oriad.)r,  citado  por  Hammer  na  sua  Historia  do  império 
Otlomano,  accresccnta  que  o  exemplo  dos  francos  foi  contagioso  para  os  ini- 
migos, que  também  quizeram  mulheres  para  o  seu  exercito,  onde  nunca  ha- 
viam sido  toleradas.  Aquella  multidão  de  mulheres  acompanhou  sempre  a  re- 
ctaguarda  dos  exércitos  francezes,  até  aos  fins  do  século  xvi.  deofíroy,  monge 
de  Vigeois,  calcula  em  mil  e  quinhentas  o  numero  das  concubinas  que  seguiam 
as  hostes  do  rei  em  1180,  e  os  adornos  para  estas  reaes  cortezãs  (meretrices 
regice)  custaram  sommas  enormes  (quarum  ornamenta  inestimabili  thesaiiro 
comparata  suni).  Este  chronista  sem  duvida  allude  ás  mullieres  directamente 
dependentes  do  rei  dos  ribaldos,  as  quaes  não  exerciam  a  sua  vil  industria 
sem  pagarem  um  tanto  a  este  empregado  palaciano. 

Emquanto  ás  ribaldas  livres  e  nío  auclorisadas,  o  seu  numero  devia  ser 
vinte  vezes  maior,  principalmente  nos  exércitos  irregulares,  como  os  das  cru- 
zadas, e  como  aquellas  Grandes  Companhias,  que  se  punluiin  a  soldo-d"aquelle 
que  mclliur  lhes  lhes  pagava  e  maior  saque  liies  promettia. 

O  monge  de  Vigeois  enumera  as  dilTerentes  espécies  de  soldados  (sodoyers) 
que  nos  tins  do  século  xu,  como  pragas  de  gafanhotos,  assolavam  as  re- 
giões por  onde  passavam:  Primo  liasculi ;  post  modum  Tlieutlwnici ;  Flandren- 
xes ;  et,   ut   rusticè  loquar,   BrminK-os.  Hatmuyers,  Asperes.  Pailler.  !\adar. 


DA    PROSTITUIÇÃO  499 

Turlan,  Vales,  Roma,  Cotarei,  Catalan,  Aragonês,  quorum  dentes  et  arma 
omnem  Aq)iiíaniam  croroserunl.  Cada  um  d'estes  corpos  de  milícia  devasta- 
dora levava  alraz  de  si  um  grande  numero  de  prostitutas,  que  incessantemente 
augmentavam,  i'  que  tomavam  parte  no  saque  das  cidades  conquistadas  pelo 
fogo  c  peio  sangue. 

Por  Ioda  a  parte,  na  historia  militar  da  França  e  das  demais  nações  da 
Europa,  se  encontra  essa  influencia  das  mulheres  libertinas,  nos  exércitos  em 
campanha:  a  recfnííuarda  compunha-se  sempre  d'essas  mulheres  e  dos  seus 
companheiros,  rlbaldo-;  e  truôes,  para  quem,  segundo  uma  expressão  já  consa- 
grada, nada  era  fatigante  nem  pesado  quando  se  tratava  do  saque.  Esta  recta- 
guarda  incommoda  era  ordinariamente  tão  numerosa  como  o  resto  do  exercito. 
Na  Chronica  de  Modena,  escripta  por  João  de  Bazans  (V.  a  grande  coUccção  de 
Muratori,  t.  xvi,  pag.  600)  lé-se  que  um  capitão  allemão  chamado  Ganiier, 
que  á  frente  de  hez  mil  e  quinhentas  lanças  invadiu  o  território  de  Modena, 
de  Régio  c  de  Manlua.  em  priíicipios  do  anno  de  1342,  levava  na  rectaguarda 
das  suas  tropas  mil  prostitutas,  mancebos  e  ribaldos  (mille  merelrices,  regalii 
et  ribaldi.) 

Os  caudilhos  da  guerra,  por  mais  honestos  que  fossem,  nada  podiam  con- 
tra esta  prostituição;  teriam  visto  sublevar  as  suas  tropas  e  abandonar  uma 
bandeira  que  n.ii>  protegia  as  mulheres  destinadas  au  passatempo  do  sol- 
dado. 

Só  Joanna  d'Arc,  que  linha  um  grande  horror  pelas  mulheres  deshones- 
tas,  finboraos  inglezes  lhe  chamassem  Putain  des  Armignats  (Hist.  de  França, 
pop  Michelet,  t,  v,  pag.  73),  conseguiu  tirar  da  sua  missão  divina  bastante  au- 
toridade para  expulsar  do  exercito  do  rei  todas  aquellas  impudicas  ribaldas. 
Primeiro  que  íudo,  ordenou  que  os  soldados  se  confessassem  <.<e  fez-lhes  aban- 
donar as  suas  mulheres,»  diz  n  auctor  anonymo  das  Memorias  concernentes  a 
esta  casta  heroina. 

«E'  dé  saber,  diz  João  Chartrier,  na  sua  historia  de  Carlos  vii,  que  de- 
pois da  batalha  de  Patoisy,  adita  Joanna  mandou  apregoar  que  homem  algum 
do  seu  exercito  tivesse  em  sua  companhia  mulher  infame  ou  concubina.» 

Todavia  foi  mais  forte  o  costume  que  esta  ordem,  e  algumas  d'aquellas 
mulheres,  que  se  viam  appoiadas  pelos  amantes,  atlrontavam  as  ordens  da  don- 
zella.  Esta,  n'uma  revista  que  Carlos  vu  fez  em  Sancerrc,  antes  de  partir  de 
Rennes,  viu  «muitas  mulheres  libertinas,  que  impediam  alguns  soldados  de  cum- 
prir os  deveres  do  serviço,»  e  desembainhando  a  sua  espada  de  Fierbois,  correu 
para  aquellas  miseráveis,  ferindo-as  por  tal  forma  que  a  lamina  se  despedaçou. 

Carlos  sentiu  muito  este  acontecimento,  e  disse  á  heroina  que  melhor 
fora  ter  pegado  n'um  pau,  para  não  ter  perdido  assim  a  espada  que  possuia 
por  milagre. 

A  donzella  comprehendeu  que  a  presença  de  uma  mulher  prejudicava  a 
disciplina  do  exercito,  e  para  não  excitar  a  sensualidade  nos  seus  companhei- 
ros de  armas  vestiu-se  de  homem.  «Parece-me,  dizia,  que  d'esta  forma  con- 
servarei melhor  a  minha  virgindade  de  corpo  e  alma.»  Com  efíeilo  a  sua  vir- 
gindade nenhuma  otTensa  recebeu,  apesar  de  «muitos  grandes  senhores  quere- 


200  HISTORIA 

rem  saber  se  seriam  adrnittidos  na  sua  companhia  carnal :  mas  qnando  a  viam 
tão  galhardaiiienle  vestida,  lodos  os  maus  desejos  lhes  passavam. 

A  ordenação  de  Joanna  d'Air  confra  as  ribaldas  ila  milicia  não  lhe  so- 
breviveu, sendo  apenas  um  parenthese  de  honostidade  na  vida  dos  homens  de 
guerra,  que  não  se  separaram  das  ssuis  mulheres.  E'  possivel  que  aquella  mul- 
tidão de  mulheres  dissoluta;*,  aggregadas  ao  serviço  permanente  de  um  exer- 
cito, tivesse  ás  vezes  influencia  favorável  nas  consequências  ordinárias  da  to- 
mada de  uma  cidade,  porquf  o  soldado,  tendo  a  sua  amada  entre  as  mulheres 
publicas  do  exercito,  mostrava-se  menos  propenso  ao  ultrage  e  violação  das 
prisioneiras. 

Seja  como  íòr,  o  numero  das  mulheres  communs,  filiadas,  para  assim  di- 
zer, sob  a  bandeira  de  um  cabo  de  guerra,  diminuía  ou  augmentava,  conforme  o 
bom  ou  mau  êxito  da  expedição.  N'aquelle  tempo  em  que  o  saque  era  condi- 
ção inevitável  da  guerra  estas  mulheres,  apoderavam-se  da  melhor  parte  da 
presa. 

Quanto  mais  provido  e  melhor  pago  era  um  exercito,  tanto  mais  aflluia 
de  toda  a  parte  a  prostituição.  Assim,  o  exercito  que  Carlos,  o  Temerário,  duque 
de  Borgonha,  levou  ao  paiz  dos  suissos,  em  1 476,  estava  amplamenf'"  pro- 
vido de  pt^ssoal  feminino,  e  depois  da  derrota  de  Granson,  os  vencedores  en- 
contraram no  campo  do  duque,  refere  Filippe  de  Commines  «grande  multidão 
de  serventes,  mercadores  e  prostitutas;»  mas  os  suissos  ligaram  pequena  im- 
|)ortancia  a  esta  espécie  de  prisioneiros,  e  pelo  que  respeita  ás  prostitutas,  sol- 
faram-nas,  e  deixaram-nas  vaguear  á  vontade  pelos  campos,  julgando  que  tal 
mercadoria  não  traria  grande  proveito  para  os  seus  concidadãos. 

Apezar  d'esta  indifferença  para  com  as  cortezãs  flamengas  e  borgonhezas, 
os  suissos  não  tinham  sob  as  suas  bandeiras  vida  mais  austera  que  o  seu  ini- 
migo; pois  que,  em  tempo  de  paz,  mantinha-se  nas  povoações  á  custa  do  es- 
tado um  certo  numero  de  mulheres  publicas,  que  em  tempo  de  guerra  se  in- 
corporavam nas  companhias  de  cada  cantão.  ÍRec.  d'édits  et  d'ordon.  roy.  por 
(Neron  e  Girard,  1720,  tit.  i,  pag.  643.) 

Voltemos  á  cavallaria,  que  fnem  sempre  dava  exemplos  de  castidade  e 
continência.  Os  cavalleiros  que  entretinham  amores  platónicos  com  as  damas 
e  donzellas  de  alta  gerarchia,  sem  d'ellas  obterem  mais  do  que  favores  hones- 
tos, ás  ;  vezes  um  beijo,  indemnisavani-se  d'estas  privações  com  as  creadas  e 
camponezas. 

Fornecer  de  mulher  o  leito  de  um  cavalleiro  que  pedia  asylo  n'um  cas- 
tello,  era  um  uso  de  hospitalidade.  L.  de  Santa  Pelava,  a  propósito  d'este  uso  cor- 
tez,  cita  uma  passagem  muito  curiosa  de  um  romance,  em  que  um  dama  que 
deu  hospitalidade  a  um  cavalleiro,  não  se  quiz  deitar  sem  lhe  mandar  uma  com- 
panheira de  cama. 

A  castellã  também  não  era  muito  escrupulosa:  talvez  a  leitura  da  Arte 
do  amor,  composta  pelo  trovador  Guiart,  o  poeta  das  immoraes  lições  galantes, 
tivesse  alTeiçoado  esta  dama  a  similhante  género  de  prazeres.  E'  de  crer 
que  nem  em  todos  os  castellos  houvesse  similhantes  costumes.  Um  poeta  do 
século  XIII  Iranquillisa-nos  a  este  respeito,  e  pelo  modo  como  ataca  a  prostitui- 


DA    PllOSTITUlÇÃO  201 

yão   nas  cidades,   deduzimos  que   havia  uma  grande  superioridade  moral  nos 
costumes  e  liabitos  da  cavallaria  d'esse  tempo. 

As  leis  munieipaes  pozeram  um  freio  á  prostituição,  como  já  dissemos, 
e  a  nobreza  geralmente  corrigida  pela  cavallaria,  distinguiu-se  do  povo  por  cos- 
tumes mais  regulares  e  pelo  menos  mais  honestos  na  apparemúa.  Mas  o  povo 
poi'  sua  vez  se  corrigiu,  emquanto  que  a  cavallaria  entrava  cm  decadência,  c 
os  nobres  se  entregavam  a  lodos  os  excessos,  (|ue  ate  enttão  tinham  evitado; 
gahavam-se,  todavia,  de  serem  t.ão  bons  cavalleiros  como  os  seus  antecessores. 
Esta  decadência  dos  costumes  cavalheirescos  começou  sob  o  reinado  de  Car- 
los VI. 

«Melhor  tempo  foi  o  antigo»,  diz  E.  Deschamps,  um  poeta  d'esfe  reinado, 
lamentando-se,  e  são  muito  justas  as  suas  queixas  em  presença  das  orgias  da 
corte,  em  que  Carlos  vi  c  seu  irmão,  o  duque  d'Orleans,  que  se  jactava  de 
manter  a  verdadeira  cavallaria,  tinham  esquecido,  como  parece,  os  seus  virtuo- 
sos preceitos.  Os  torneios  celebrados  em  1389  em  Saint-Dcnis  em  honra  do  rei 
de  Sicilia  e  de  seu  irmão,  que  foram  armados  cavalleiros,  acabaram  n'uma  hor- 
rível saturnal,  de  que  foi  theatro  a  ahbadia.  O  religioso  de  S.  Dyonisio,  na  sua 
chronica  de  Carlos  vi,  julgou  não  deixar  passar  cm  silencio  as  desordens  da 
quarta  noite. 

«Os  senhores,  diz  elle,  fazendo  da  noite  dia  e  entregando-se  a  todos  os 
excessos  da  meza,  chegaram  pela  embriaguez  a  taes  desordens,  que  sem  respeito 
pela  presença  do  rei,  muitos  dclles  mancharam  a  santidade  da  casa  religiosa 
c  cntregaram-se  á  libertinagem  c  ao  RáuUevio  (adinconcessam  venerem  el  adiil- 
leria  nefanda  prolapsi  sunt). 

As  casas  religiosas  n'aquella  época  tinham  costumes  tão  relaxados  como 
a  corte  do  rei  e  dos  príncipes;  a  Egreja  tinha  caiiido  no  mesmo  grau  de  deca- 
dência que  a  cavallaria,  e  a  sociedade  inteira  parecia  caminhar  para  a  dissolu- 
ção. Não  queremos  penetrar  nos  conventos  senão  para  levantar  o  véu  que  co- 
bria os  vicios  dos  frades  c  freiras.  A  prostituição  tinha-se  apoderado  da  casa 
do  Senhor,  como  da  casa  dos  grandes  da  terra..  Os  pregadores  n'aquelle  tempo 
repetiam  com  frequência  estas  palavras  do  Anjo  do  Apocalypse  : 

«Vinde,  mostrar-vos-hei  a  condemnação  da  opulenta  prostituta  que  está 
.sentada  sobre  as  grandes  aguas,  com  a  qual  se  corrom|)crani  os  reis  da  terra,  c 
(jue  embriagou  com  o  vinho  da  prostituição  os  habitantes  do  orbe.» 

Com  etfeito,  nada  pôde  expressar  bem  as  abominações  do  reinado  dy  Car- 
los VI,  em  que  ó  clero,  a  nobreza  e  o  povo  competiam  em  torpeza  e  preversão. 
Como  seria  a  vida  da  corte,  quando  .a  vida  do  claustro  era  tão-dcploravcl  como 
nol-a  descreve  Nicolau  de  Clemenges,  arcediago  de  Bayeux,  no  seu  tratado  De 
corrupio  stala  ecdesiw  ? 

«A  propósito  das  virgens  consagradas  ao  Senhor,  diz  este  philosoiilio 
christão,  seria  preciso  expor  todas  as  infâmias  dos  logares  do  prostituição,  Io- 
das as  manhas  e  desavergonhamcntos  dascortezãs,  todas  as  obras  execráveis  da 
fornicação  e  do  incesto;  .senão,  diz-me,  que  são  hoje  em  dia  (em  1400)  os 
mosteiros  de  mulheres,  senão  sanctuarios  consagrados,  não  ao  culto  do  ver- 
dadeiro Deus,  mas  ao  de  Vénus?  senão  impuros  receptáculos,  onde  a  juvcn- 

BiSTOBiA  DA  Pbostitoição.  Tomo  II  — Folha  26. 


203  HISTORIA 

tude  desenfreada  se  entrega  a  todas  as  desordens  da  luxuria?  O  mesmo  é  vestir 
o  veu  a  uma  joven  que  expôi-a  pu!)licamente  n'um  logar  de  abominação.» 

Nicolau  de  Ciemenges  leva  até  á  hyperbole  a  critica  dos  costumes  mo- 
násticos, mas  a  desmoralisação  dos  ccclcsiaslicos  era  muito  escandalosa,  e  não 
podia  dizer-se  se  era  a  Egrcja  quem  desmoraiisava  a  cavallaria,  se  a  cavallaria 
quem  desmoraiisava  a  Egreja.  Dulaure,  cujo  testemunho  é  geralmente  suspeito, 
appoia-sc  cm  auctoridadcs  respeitáveis  para  esboçar  este  quadro  dos  costumes 
clericaes  e  cavalbeircscos : 

«Os  prelados  e  sacerdotes  subalternos  andavam  ordinariamente  vestidos 
com  trajo  secular,  cingiam  espada,  entravam  nos  torneios,  frequentavam  as 
tabernas,  mantinham  concubinas.  Os  sacerdotes  e  os  curas  occupavam-se  em 
empregos  judiciaes,  emprestavam  dinheiro  a  juros  e  enlregavam-se  aos  exces- 
sos da  meza  e  da  sensualidade.  iValgumas  dioceses,  os  grandes  vigários  obti- 
nham licença  para  commctler  adultério  por  espaço  de  um  anno;  n'outras,  podia 
comprar-se  o  direito  de  fornicar  impunemente  por  toda  a  vida:  o  comprador 
d'este  privilegio  impudico  não  tinha  mais  que  pagar  certa  quantidade  de  vinho 
annualmentc,  e  este  encargo  tornava-se  vilalicio,  ainda  que  a  edade  inhabili- 
tasse  o  privilegiado  de  fazer  uso  da  sua  extranha  licença.» 

Nas  decretaes  dos  papas,  encontra-se  a  auctorisação  d'estes  abusos :  o  câ- 
none De  dilectissimis  eshorta  os  christãos  á  pratica  d'este  axioma :  Tudo  é  com- 
raum  entre  amigos;  até  as  mulheres,  accrescenta.  Para  obíer  licença  de  com- 
metter  o  peccado  infame  durante  os  mezes  caniculares,  houve  quem  tivesse  a 
audácia  de  recorrer  com  instancia  ao  papa  Xixto  iv.  Sua  santidade  despachou 
n'este  sentido,  palavras  textuaes:  Como  se  pede.  (Hist.  de  França,  pelo  abbadc 
Villy,  tit.  V,   pag.  10  e  seguintes.) 

E'  verdadeiramente  notável  que  as  ordenações  reaes  e  municipaes  contra 
a  prostituição  nunca  fossem  tão  frequentes  nem  tão  severas  como  durante  aquelle 
periodo  de  desmorali-sação.  Com  as  mulheres  publicas  não  se  tinha  piedade, 
quando  a  decência  e  o  pudor  pareciam  desterrados  dos  costumes,  quando  só  es- 
tavam em  moda  os  vestidos  dissolutos,  apezar  dos  edictos  sumptuários. 

Havia  resuscitado  a  moda  dos  sapatos  de  polaina,  e  d'aquelles  adornos 
obscenos  que  os  enfeitavam  no  século  xii,  segundo  Odorico  Vital,  mas  agora 
mais  lubricamente  caracterisados. 

Verdade  é  que  as  mulheres  não  ousaram  adoptar  os  accessorios  de  seme- 
lhante calçado,  mas  em  troca  usavam  vestidos  abertos,  ou  arregaçados  que  dei- 
xavam A'cr  a  perna  quasi  toda  núa.  Emquanto  ao  seio  lraziam-n'o  descoberto 
até  ao  mamillo.  O  auctor  do  Chastoienunt  des  dames,  Roberto  de  Hlois,  censura 
estas  modas  impudicas,  n'uns  versos,  cujo  sentido  é  o  seguinte  : 

«Nenhuma  encobre  o  peito,  para  que  se  veja  a  alvura  da  carne.  Algumas 
ha  que  deixam  apparecer  as  costas  e  as  pernas.  O  homem  honesto  não  louva 
estes  desaforos.» 

As  ccremonias  da  Egreja,  sobretudo  as  procissões,  participavam  também 
d'esta  indecencia  de  trajos,  por(|ue  em  muitas  d'ellas  tomavam  parte  homens  e 
mulheres  completomente  nús. 

A  este  respeito  Ic-se  na  ílisloria  de  Paris,  de  Dulaure : 


Castigo  do  uma  adultera  no  Berry,  no  século  XV 


DA    PROSTITUIÇÃO  á03 

«Entre  os  penitentes,  uns  levavam  pedias  atadas  ás  camisas;  outros  eom- 
pletamente  nús  eram  ílagellados,  e  outras  vezes  picados  com  alfinetes  nas  ná- 
degas.» 

N'esta  passagem  Duiaure  não  exaggcra  nem  inventa,  como  o  leilor  pôde 
facilmente  vereficar  no  Glossário  de  Ducange  e  Carpenlier,  nas  palavras:  Peni- 
tentiCR,  processiones,  villanice,  lapides  calenalos  ferre,  putaíjium,  naticce,  ele, 
Qucr-nos  parecer  que  os  penitentes  que  seguiam  as  procissões  em  completa  nudez 
c  que  se  faziam  picar  com  alfinetes,  eram  prostituías,  exactamente  como  as 
que  levavam  pedras  atadas  ás  camisas,  porque  taes  eram  precisamente  os  cas- 
tigos ordinários,  infligidos  pela  justiça  secular  ás  mulheres  de  escândalo.  Du- 
iaure cita-nos  um  exemplo  notável,  exfrahido  por  elle  dos  registros  criminaes 
do  parlamenlo  do  Paris  : 

Anna  Piedoleu,  mulher  de  maus  costumes,  tinha  uma  casa  de  prostituição 
na  rua  Saint-Martin,  em  contravenção  das  disposições  das  ordenanças  prebos- 
taes.  O  preboste  d'essa  cpocha,  o  famoso  Hugo  Aubriot,  fazia  executar  rigoro- 
samente as  leis,  e  tendo  recebido  uma  queixa  da  visinhança,  mandou  os  seus 
agentes  a  casa  da  Piedeleu,  a  quem  tractaram  com  toda  a  indulgência,  por  isso 
que  se  limitaram  a  fazel-a  desalojar,  sem  ([ue  em  seguida  a  prendessem. 
No  emtanto  a  Piedeleu  contava  sem  duvida  com  a  protecção  de  algum  alto 
personagem,  capaz  de  f;izer  frente  ao  preboste,  porque  em  seguida  a  esta  vio- 
lência querellou  do  magistrado,  accusando-o  de  mui  los  crimes  e  apresentando 
testemunhas  d'elles,  no  intuito  de  o  perder. 

O  parlamento,  ouvidas  as  conclusões  do  advogado  do  rei,  e  evidenciada 
a  falsidade  da  accusação,  condemnou  em  1374  a  Piedeleu  a  ser  passeada  comple- 
tamente núa  pelas  ruas  da  cidade,  levando  na  cabeça  uma  coroa  de  pergami- 
nho com  o  dislico  de  Falsaria.  Foi  assim  arrastada  ao  pelourinho  do  mercado 
publico,  e  alli  esteve  duas  horas  exposta,  indo  em  seguida  para  a  prisão,  d'ondo 
apenas  saiu,  quando  mais  tarde  foi  condemnada  a  desterro  perpetuo. 

Os  espectáculos  d'esle  género  nas  ruas  tia  cidade  deviam  ser  demasiado 
frequentes  n'aquella  époeha,  e  o  povo  assistia  a  elics  com  extraordinário  prazer. 
Como  as  ribaldas  e  proxenetas  assim  expostas  tiritassem  de  frio  e  tossissem 
muitas  vezes,  em  consequência  dos  rigores  da  estação  e  do  seu  estado  de  com- 
pleta nudez,  os  espectadores,  sobre  tudo  a  parte  mais  juvenil  e  mais  gaiata, 
costumavam  então  cantar  uma  canção  obscena,  adrede  composta  para  estes  casos. 
Pode  lèr-se  o  estribilho  indecente,  que  a  terminava  no  Journal  du  Bourgeois 
de  Ptiris : 

Viilre  C.  a  la  loux;  commére, 
Votre  C.  a  la  toux,  la  toux  I . . . 

A  iniciai  C.  facilmente  será  decifrada  pelo  leitor,  curioso  d'estes  sarcas- 
mos da  musa  popular. 

Era  natural  que  muitas  d"aquellas  desgraçadas  respondessem  ás  canções 
impudicas  e  iiisultantes  com  injurias  c  pragas.  Assim,  quando  a  tosse  epi- 
demica  invadiu  a  população  de  Paris,  no  inverno  dtí  1413,  os  indemnes  ou 
mesmo  os  que  já  estavam  curados  d'aquella  tosse  incommoda  e  cruel  zombavam 


2()'l-  HISTORIA 

(los  doentes,  dizendo-llies  entre  vários  outros  cliistes,  mais  ou  menos  graciosos 
e  livres : 

Votre  C.  a  la  luu.r,  cntiiniére, 
Volre  C.  a  la  toiíx,  la  toií.v! . . . 


O  estribilho  ireste  caso  fazia  allusão  a  toda  a  espécie  de  males,  á  lepra, 
á  sarna,  á  tosse,  tantas  vezes  rogados  nas  suas  imprecações  aos  cruéis  espe- 
ctadores do  seu  supplicio,  pelas  desgraçadas  expostas  ao  frio  e  aos  insultos  no 
bárbaro  pelourinho  de  mercado.  Não  havia  compaixão  para  com  estas  peccado- 
ras,  como  já  dissemos,  e  as  creanças  era  quem  mais  encarniçadamente  as 
perseguia.  A  auctoridadc  julgava  proceder  de  harmonia  com  o  sentir  una- 
nime da  sociedade,  recusando-ihcs  toda  a  espécie  de  indulgência. 

Houve,  no  emtanto,  um  preboste  de  I'aris,  que  as  tomou  sob  a  sua  pro- 
tecção e  lhes  concedeu  um  appoio  lalvez  exaggcrado.  Foi  este  magistrado  Am- 
brozio  de  Loré,  barão  de  Juilly,  nomeado  em  1  i3G,  e  fallecido  no  exercicio  do 
seu  cargo  em  14io.  O  povo  de  Paris  não  lhe  perdoou  haver  favorecido  a  pros- 
tituição, deixando  cahir  em  desuso  os  antigos  regulamentos.  Emquanto  durou 
a  sua  administração,  as  prostitutas  tiveram  uma  espécie  de  liberdade,  vestindo- 
se  como  queriam  e  habitando  em  todas  as  ruas,  segundo  bem  lhes  parecia. 
Ambrozio,  no  seu  leito  de  morte,  arrependeu-se  de  ter  sido  tão  paternal  para 
com  as  mulheres  publicas,  e  quiz  reparar  as  desordens  que  a  sua  lenidade  ha- 
via introduzido  na  policia  dos  costumes. 

«Uma  semana  antes  da  Ascensão,  refere  o  Bouryeoiíí  de  Paris,  no  seu 
Diário,  foi  lançado  um  pregão  cm  todas  as  ruas  da  cidade,  para  que  as  ribaldas 
não  usassem  cintos  de  prata,  nem- colleirinhos  voltados,  e  para  que  fossem  vi- 
ver nas  bordeis,  que  lhes  haviam  sido  destinados  n'outro  tempo.» 

Esta  tardia  satisfacção  dada  á  opinião  publica  não  fez  olvidar  os  escân- 
dalos que  a  haviam  precedido,  e  quando  Ambrozio  morreu,  poucos  dias  depois, 
o  Boiírgeois  de  Paris  eiicarregou-se  da  oração  fúnebre  do  alto  funccionario,  e 
declarou-o  menos  amante  do  bem  publico,  do  ([ue  todos  os  seus  predecessores 
nos  quarenta  annos  mais  chegados. 

Accrcscenta  o  mesmo  papel  que  o  preboste  tinha  uma  das  mais  bellas  o 
honestas  mulheres  do  mundo,  mas  «era  tão  lúbrico  c  dado  aos  prazeres  venéreos, 
que  linha  trez  ou  quatro  concubinas,  e  levava  a  sua  fraqueza  pelas  nuiliíercs 
devassas  ao  ponto  de  consentir  as  prostituías  por  toda  a  parte,  existindo  no  seu 
tempo  em  Paris  um  grande  numero  d'ellas,  o  que  lhe  grangeou  entre  o  povo 
péssima  reputação,  por  causa  d'esta  sua  tolerância  para  com  as  prostitutas  c 
onzeneiras.» 

Ambrozio  de  I.orc,  antes  de  ser  preboste  de  Paris  e  de  ser  tão  benévolo 
para  com  as  mulheres  publicas,  fora  um  dos  mais  valorosos  cavalleiros  das 
hostes  de  Carlos  vii;  no  emtanto,  os  seus  feitos  de  armas  não  o  haviam  tor- 
nado mais  honesto,  embora  fosse  contemporâneo  de  muitos  cavalleiros  de  vida 
exemplar  e  bons  eostumes.  l'assára  a  sua  mocidade  na  corte  de  (larlos  vi,  onde 
a  cavallaria  consistia  apenas  em  torneios  e  mascaradas;  não  pertencia  áquella 
plêiade  de  cavalleiros  castos  e  honestos,  que,  como  o  marechal  de  13oucicaut, 


DA    PROSTITUIÇÃO  203 

pensavam  que  «a  luxuria  é  a  coisa  d'esle  inundo  mais  indigna  de  iim  valente 
iiomem  de  armas.» 

O  bom  messirc  João  Le-Maingre,  diz  a  respeito  de  Boucicaut  «que  o  mare- 
chal nunca  inferiu  aggravo  á  castidade,  quando  foi  governador  de  Génova,  cidade 
em  que  as  occasiões  de  peccado  o  procuravam  sem  cessar;  mas  o  lidaigo  tem 
cm  si  próprio  as  virtudes  contrarias  á  sensualidade.  Nunca  pensou  cm  diver- 
lir-se  deslionestamenie  com  as  genovezas:  era  para  ellas,  como  se  fosse  de  pedra, 
embora  as  damas  fossem  muito  galanteadoras  c  bem  dispostas,  e  houvesse  entre 
ellas  algumas  de  rara  formosura.  Um  dia  em  que  sahiu  a  cavallo  com  a  sua 
comitiva  de  oííicíacs  pelas  ruas  de  Génova,  uma  dama  que  estava  penteando  os 
abundantes  e  louros  cabellos,  chegou  á  janella  para  o  ver  passar.  O  marechal 
não  fez  caso,  mas  um  dos  seus  officiaes  não  poude  deixar  de  exclamar  :  «Oh  ! 
que  hella  mulher I»  O  marechal  fingiu  não  o  ter  ouvido,  mas  como  o  oíficial 
se  voltasse  de  novo  para  ver  a  dama,  disse-lhe  com  um  olhar  glacial  que  se- 
guisse o  seu  caminho,  sem  dar  occasiào  a  escândalo  e  sem  se  importar  com 
aquella  mulher». 

O  i)iograp!io,  que  escreveu  os  feitos  de  Boucicaut,  accrescenta  estas  pala- 
vras: «Assim,  o  marechal  está  limpo  do  vicio  carnal,  e  é  da  mais  perfeita  c 
completa  continência.» 

Boucicaut  havia  sido  educado  na  corte  de  Carlos  v,  que  punha  a  casti- 
dade acima  de  todas  as  virtudes,  segundo  diz  o  seu  biographo  Cliristino  de 
Pisan ; — e  esta  virtude  era  por  elle  severamente  guardada  nos  pensamentos, 
nas  palavras,  e  nas  obras.  Carlos  v,  tão  severo  para  comsigo  n'este  ponto,  não 
o  era  menos  para  com  seus  servidores,  os  qnaes  desejava  que  fossem  castos, 
«nos  vestidos,  nas  palavras,  nas  obras,  e  em  tudo.»  Quando  sabia  que  alguém 
da  sua  corte  tinha  deshonrado  uma  mulher,  embora  fosse  seu  favorito,  despe- 
dia-o  severamente  da  sua  presença,  c  para  sempre  do  seu  serviço. 

No  emtanto,  não  lhe  faltava  caridade  christã  para  com  os  peccadores, 
e  tendo  em  cOHsiderat;ão  a  fragilidade  humana,  jamais  consentiu  que  um  ma- 
rido condemnasse  sua  mulher  a  penitencia  perpetua  por  crime  de  adultério, 
tolerando  apenas  que  a  conservasse  encerrada  em  casa,  quando  fosse  muito 
leviana,  para  não  causar  vergonhas  á  familia. 

Prohibia  severamente  que  se  introduzissem  livros  deshonestos  na  còrle 
da  rainha  e  dos  príncipes.  Disseram-lhe  um  dia  que  um  fidalgo  da  corte  havia 
instruído  o  delphim  em  certo  jogo  deshonesto.  O  rei  despediu  immediata- 
mente  o  fidalgo,  prohibindo-lhe  formalmente  que  se  apresentasse  de  novo  na 
presença  da  rainha  e  de  seus  filhos. 

Chrístino  de  Pisan,  que  refere  estas  particularidades  no  Livro  dos  feitos 
e  bons  costumes  do  defunto  rei  Carlos,  diz-nos  ainda  que  o  solicrano  não  ad- 
mittia  á  sua  mesa  os  que  proferiam  palavras  desbragadas,  e  que  considerava  as 
representações  theatraes  como  predisposição  para  a  luxuria.  Accrescenta  que  o 
monarcha  repetia  frequentemente  o  texto  da  epistola  de  S.  Paulo  aos  Corin- 
Ihios  : — .l.s-  más  palavras  corrompem  os  bons  costumes. 

O  reinado  de  Carlos  vi  e  parte  do  de  Carlos  vu  foram  manchados  por 
todos  os  vícios  e  crimes,  que  o  rei  Carlos  v  tanto  procurara  extirpar  do  seu,  e 


2Utí  nisroaiA 

a  prostituição  que  este  excellente  monarclia  soube  severamente  reprimir  com  o  seu 
exemplo,  não  conheceu  depois  do  seu  tempo  nem  barreiras  nem  limites. 

Para  se  fazer  ideia  do  grau  de  preversidade  a  que  haviam  chegado  alguns 
nobres,  que  se  entregavam  a  todas  as  aberrações  da  libertinagem,  ij.ista  lôr-se 
nos  archivos  de  Nantes  o  processo  criminal  de  Gil  de  Rctz,  marechal  de  França, 
condemnado  ao  supplicio  da  fogueira  em  1440. 

Gil  de  Retz  era  um  dos  mais  poderosos  senhores  da  Bretanha.  Havia  ser- 
vido valorosamente  a  Carlos  vii  na  guerra  contra  os  inglezes;  combatera  com 
Dunois  e  Lahire  sob  o  estandarte  de  Joanna  d'.\.rc,  e  era  um  homem  de  letíras. 
A  leitura  de  Suetonio  bavia-o,  porém,  incitado  a  imitar  as  monstruosas  desor- 
dens dos  imperadores  romanos.  .4paixonou-se,  como  Tibério  e  Nero,  pelas  sen- 
sualidades sanguinolentas,  e  o  seu  mais  grato  divertimento  era  corromper  com  abo- 
mináveis caricias  umas  infelizes  crcanças,  que  fazia  roubar  por  toda  a  parte. 
Quando  estas  innocentes  creaturas  eram  bonitas,  servia-se  d'ellas  como  instru- 
mento de  prazeres  infames,  ou  degollava-as  com  as  próprias  mãos. 

A  superstição  e  a  magia  eram  os  auxiliares  favoritos  das  suas  abomina- 
ções. Tinha  uma  capella  magnifica  onde  havia  cliantres  e  cónegos  porcUe  sus- 
tentados, e  mantinha  do  mesmo  modo  um  collegio  de  magos  e  feiticeiros,  com 
os  quacs  fazia  invocações  ao  espirito  das  trevas. 

Este  homem  execravel,  que  tantas  analogias  teve  cora  outro  preverso,  que 
mais  tarde  apparecerá  n'esta  obra,  o  marquez  de  Sade,  foi  alfim  accusado  pe- 
rante os  tribunaes,  preso  conjunctamente  com  os  principaes  agentes  das  suas 
infâmias,  e  julgado  por  um  tribunal  extraordinário,  que  para  este  ca.so  nomeou 
seu  primo,  o  duque  da  Bretanha. As  averiguações  judiciaes  chegaram  a  provar 
os  horrores  da  accusação.  Nos  subterrâneos  dos  castellos  de  Chanfocé,  de  la 
Suze,  de  Ingrande,  etc,  foram  encontrados  os  ossos  calcinados  e  as  cinzas  das 
creanças,  que  o  marechal  de  Retz  havia  assassinado,  depois  de  ter  abusado  da 
sua  innocencia. 

O  próprio  criminoso  confessou  tudo,  e  não  podendo  esperar  indulgência  da 
parte  da  justiça  humana,  pediu  perdão  ao  juiz  supremo,  ante  o  qual  ia  com- 
parecer. 

Os  depoimentos  dos  cúmplices  de  Gil  de  Retz  iniciam-nos  nas  scenas 
verdadeiramente  horríveis,  de  que  era  theatro  o  velho  caslello  de  Chantocé. 
Henriet,  cam.areiro  do  marechal,  declara  «que  Gil  de  Sille  e  um  certo  Pontou, 
haviam  entregado  muitas  creanças  ao  dito  senhor  de  Retz,  com  as  quaes  crean- 
ças eile  marechal  se  enthusiasraava  e  cohabilava  pelo  ventre,  tendo  com  isso  o 
seu  prazer  e  deleite;  que  nunca  tinha  copula  com  alguma  das  dilas  creanças 
mais  que  uma  vez  ou  duas,  e  que  depois  as  degollava  por  sua  própria  mão,  e 
algumas  vezes  Gil  de  Sillé,  Henriet  e  Pontou  as  degoliavam  na  camará  do  re- 
ferido marechal,  e  que  alli  mesmo  eram  as  creanças  mortas,  limpando-se 
o  sangue,  que  caía  sempre  no  mesmo  sitio.  As  creanças  eram  depois  queima- 
das na  mesma  camará  e  as  cinzas  deitadas  fora,  e  que  o  marechal  sentia  mais 
prazer  em  degolal-as,  do  que  em  ter  copula  com  ellas.» 

Interrogado  novamente,  Henriet  completou  estas  primeiras  revelações  com 
os  seguintes  pormenores.  Disse  que  «tinha  ouvido  dizer  ao  dito  marechal  de 


DA    PROSTITUIÇX»  t07 

Relz  que  sp  comprazia  exlraordinariamenlc  cm  ciírlar  a  cabeça  ás  creanças  de- 
pois de  as  haver  gozado  pelo  ventre,  segurando-lhes  as  pernas  entro  as  suas. 
Que  outras  vezes  se  sentava  sobre  o  ventre  das  creanças  depois  de  lhes  ter 
cortado  a  cabeça,  e  outras  lhes  fazia  uma  incizão  no  pescoço,  por  delraz,  para 
que  se  esvaíssem  em  sangue,  pouco  a  pouco,  e  n'esse  estado  as  gozava  até 
morrerem,  e  ás  vezes  mesmo  depois  de  mortas,  emquanlo  estavam  quentes. 
Dizia  que  ninguém  no  mundo  podia  saber  ou  fazer  o  que  elle  tazia.  Havia  oc- 
casiõcs,  em  que  o  mesmo  marechal  mandava  esquartejar  as  creanças,  goznndo 
extraordinariamente  em  ver  espirrar  o  sangue. 

«O  mesmo  marechal,  depoz  ainda  Henriet,  para  evitar  que  as  creanças 
gritassem  na  occasião  em  que  pretendia  gozal-as,  pendurava-as  pelo  peser)^to 
por  meio  de  uma  corda  a  três  pés  de  altura  a  um  canto  do  quarto,  e  antes  de 
morrerem,  desprendia-as,  obrigava-as  a  excitarem-lhe  o  membro  com  a  mão, 
e  em  seguida  refocillava-se  bestialmente  sobre  o  ventre  d'ellas,  degollando-ns 
quando  saciava  a  sua  feroz  bestialidade.» 

Tão  espantosas  revelações  foram  confirmadas  por  Estevam  Pontou.  o 
favorito  do  marechal  e  um  dos  seus  cúmplices.  Este  miserável  não  precisou  de 
ser  submettido  á  tortura  para  confessar  os  crimes  de  seu  amo  e  os  seus,  accrcs- 
centando  novos  pormenores  aos  que  Henriet  havia  declarado.  O  marechal  de 
Retz  dava  dois  ou  três  escudos  por  cada  creança  que  lhe  levavam,  e  manda- 
va-as  encerrar  secretamente  n'um  dos  seus  castellos.  As  creanças  eram  indi- 
fferentemente  dos  dois  sexos,  e  as  meninas  gosava-as  também  por  meio  de  in- 
cisões no  ventre,  confessando  que  se  deleitava  mais  assim,  do  que  se  as  go- 
zasse pelo  órgão  sexual. 

Gil  de  Relz,  depois  d'estas  revelações,  não  teve  remédio  senão  confessar 
os  seus  crimes. 

Declarou  que  tinha  muitas  vezes  gosado  assim  as  creanças  por  ardor  e 
deleite  de  luxuria,  e  que  costumava  niandal-as  matar  pelos  seus  confidentes,  ou 
serrando-lhçs  o  pescoço  com  uma  serra,  ou  cortando-lhes  a  cabeça,  ou  ([ue- 
brando-lhcs  o  craneo  ás  pauladas,  ou  de  qualquer  outro  modo.  Que  outras  ve- 
zes as  esquartejava  elle  próprio  ou  os  seus  cúmplices,  costumando  também 
abril-as  para  lhes  ver  as  entranhas,  pendurando-as  de  um  gancho  de  ferro  para 
as  estrangular.  Que  assim  mesmo  moribundas  as  gosava,  e  outras  vezes  lam- 
bem logo  que  morriam  e  emquanto  os  seus  cadáveres  estavam  quentes,  e  que 
tinha  um  prazer  extraordinário  em  vèr  assim  as  bellas  cabeças  das  creanças, 
e  que  terminava  quasi  sempre  as  suas  moslruosidades  por  mandar  queimar  os 
cadáveres  das  suas  victimas. 

Perguntaram-lhe  quando  e  como  concebera  a  infernal  ideia  d'aquella8 
sensualidades  diabólicas,  e  respondeu  : 

«Que  havia  começado  aquelle  género  de  vida  em  Chantocé,  no  anuo  cm 
que  seu  avô,  o  sire  de  Suze,  morrera;  e  que  ninguém  a  isso  o  incitara,  pois 
que  se  havia  dado  áquellas  sensualidades  e  infâmias  simplesmente  para  gosto 
e  satisfação  da  sua  grande  luxuria.» 

Ao  ouvirem  estas  espantosas  revelações,  feitas  com  a  maior  tranquilli- 
dade,  os  juizes  benziam-se  de  assombrados.  O  mímstro  d-'  condemnado  com  os 


208  HISTORIA 

seus  prevcrsos  cúmplices;  mas  a  coudemnayão  não  o  anniquilou.  Animou  os 
seus  cúmplices  a  jazerem  uma  boa  morte,  para  que  podessem  d'alii  a  pouco 
vèr-se  novamente  na  grande  alegria  do  paraíso. 

O  marcchiil  foi  suppliciado  a  26  de  outubro  de  lií-O  junto  da  ponte  de 
Nantes.  Esfranguiaram-no  sobre  a  fogueira,  e  entregaram  o  corpo  á  familia. 
Houve  enlào  muilas  damas  illustres  que  se  apressaram  a  receber  aquelle  ca- 
dáver manchado,  o  encerraram  n'uma  urna,  e  o  levaram  sol-emnemenle  á  egreja 
dos  Carmelitas,  onde  foi  enterrado,  deixando  nos  espectadores  do  supplicio  a 
recordação  do  seu  arrependimento  e  do  seu  fim  chrislão. 


CAPITULO  XIX 


SUM.MARIO 


ApparecimeDto  das  moléstias  venéreas  em  Fiauça.  — Origem  da  sypbilis,  gallico  ou  mal  f rancei .—  ís- 
pantosos  progressos  d'eíta  aQecçJo  venérea  em  lins  do  seculu  XV.  e  seu  curso  atravez  da  Edade-lktlia.— A  elephan- 
tiasis  o  outras  degenerarões  da  lepra.  —  A  raenlagra  easherpes.  —  A  íwes  !«//i(iiiarí(i.— Perigrinação  aos  lo- 
L'ares  santo.;.— A  pgreja  de  Xolre  Dame  em  Taris.— O  fogo  .íar raio,— Vicio  dos  normandos.— O  mal  dos  ardentes.— 
Seus  horríveis  estragos  —  O  mal  de  Saint-llain  e  o  fogo  de  Santo  António.—  Invocafões  a  S.  Karcello  e  a  Santa  Ge- 
noveva.—A  syphilis  do  século  XV.— Os  leprosos  e  as  gafaria-s.— Policia  sanitária  a  respeito  dos  lepmsos.— Caracteres 
gcraes  da  lepra. 


Jl  APPAUECiMENTo,  OU  para  melhor  dizer,  o  deseiivolvinienlo  das 
li  moléstias  venéreas,  tanto  cm  França  como  em  toda  a  Europa, 
mudou  de  certo  modo  a  face  da  prostituição  legal,  e  esteve 
mesmo  a  ponto  de  produzir  o  seu  definitivo  extermínio.  Em 
presença  das  terriveis  enfermidades  que  vinham  atacar  nos  ór- 
gãos da  vida  a  sociedade  inteira,  os  homens  mais  iliiislrados  e  mais  exemptos 
de  preoccupações,  tiveram  de  reconhecer  que  a  libertinagem  publica  era  a  causa 
única  de  tão  cruel  flagello,  ao  passo  que  os  espíritos  meticulosos  e  crédulos  o 
consideravam  como  um  castigo  do  ceu,  fulminado  contra  a  incontinência,  e 
applicado  precisamente  á  fonte  de  todos  os  prazeres  impuros. 

Foi  então  e  só  então  que  os  magistrados  se  arrependeram  amargamente 
de  ferem  auctorisado  e  organisado  o  exercício  do  peccado,  que  tão  fataes  con- 
sequências produzira,  e  o  primeiro  remédio  que  opj)ozei'am  á  invasão  d'esta 
nova  e  terrível  peste  foi  a  suspensão  dos  regulamentos  de  tolerância,  em  vir- 
tude dos  quaes  havia  em  cada  cidade  mu  foco  permanente  de  infecção  mor- 
bosa. 

iSo  cmtanlo,  bem  depressa  se  julgou  inútil  estorvar  o  curso  regular  da 
prostituição,  quando  se  reconheceu  que  o  mal  não  provinha  unicamente  dos 
estabelecimentos  tolerados.  Adoptaram-se,  é  verdade,  medidas  de  policia  sani- 
tária que  ainda  até  então  não  haviam  sido  prescriptas,  c  a  vida  dissoluta  das 
mulheres  publicas  ficou  submettida  á  inspecção  da  medicina.  Foi  um  progresso 
notável  no  regimen  da  tolerância  pornographíca,  e  desde  aquella  época  a  ad- 
ministração municipal  teve  de  occupar-se  muito  a  serio  da  saúde  publica  em 
todas  as  questões,  que  até  esse  tempo  apenas  tinham  interessado  á  moral  e  á 
ordem  social. 

Temos  de  tractar  n'este  capitulo  da  origem  da  syphilis,  visto  que  as  cir- 

HisTOBiA  DA  Prostituição.  Tomo  n— Folha  27. 


2)0  HISTORU 

cumstancias  fizeram  que  !hc  fosse  dado  o  nome  de  mal  francez,  oiigallico,  logo 
que  esta  liorrivel  enfermidade  explosiu  na  Europa,  e  visto  que  este  nome  se 
refere  também  aos  acontecimentos  que  acompanharam  o  seu  apparecimento  em 
França.  Seja-nos,  licito,  porém,  antes  de  mais  nada,  desenvolver  uma  these 
que  já  adduzimus  e  sustentamos  sobre  a  antiguidade  das  affecçôes  venéreas. 

E'  certo  que  estas  aílecçõcs,  assim  como  todas  as  epidemias  e  contágios, 
soffreram  numerosas  metaniorphoses,  especialmente  nos  seus  symptomas,  em 
razão  da  variedade  de  condi^ws  locaes,  atmosphericas  e  naluraes  que  prece- 
diam o  seu  apparecimento.  iNinguem  ousa  negar  que  esta  liorrivel  praga,  que  a 
sciencia  ha  perto  de  quatro  séculos  tem  sempre  considerado  como  um  assom- 
broso Proteu,  tivesse  antes  de  1493,  ou  1496,  os  espantosos  caracteres  e  so- 
bretudo o  virus  propagador,  que  se  observai'am  pela  primeira  vez  n'aquella  épo- 
cha,  em  que  os  casos  de  excepção  passaram  a  ser  casos  geraes.  Não  obstante, 
o  mal  venéreo  existia,  exactamente  o  mesmo  desde  a  mais  remota  antiguidade, 
como  já  demonstrámos,  e  nunca  tei-ia  assustado  mais  que  outra  qualquer  en- 
fermidade chronica,  se  uma  reunião  de  circumstaneias  imprevistas  e  inapreciá- 
veis não  lhe  houvessem  communicado  subitamente  os  meios  de  se  propagar  c 
aggravar  com  uma  espécie  de  furor. 

Já  provámos,  appoiados  na  auctoridade  de  Celso,  de  .\reteu  e  dos  mais 
illustres  médicos  gregos  e  i-omanos,  que  a  verdadeira  syphilis,  apesar  de  tão 
desarrazoadamente  a  quererem  dar  como  contemporânea  do  descobrimento  da 
America,  não  tardou  em  succeder  em  Roma  á  lepra  e  ás  outras  enfermidades 
cutâneas,  importadas  da  Ásia  e  da  Africa  juntamente  com  os  despojos  dos  povos 
conquistados.  Não  seria  difficil  fazer  coraprehender,  remontando  áquellas  pri- 
mícias mórbidas,  que  a  espantosa  libertinagem  romana  havia  acalentado  em  seu 
seio  os  germens  de  todas  as  aíiecções  venéreas,  e  que  da  sua  impura  fusão  de- 
viam necessariamente  resultar  males  desconhecidos,  que  voltavam  sem  cessará  sua 
origem,  corrompendo-a  cada  vez  mais.  Insi-stimos,  todavia,  em  julgar  que  a 
transmissão  do  virus  não  era  tão  rápida  nem  tão  frequente,  como  veio  a  ser, 
séculos  depois,  nos  tempos  modernos,  e  é  alem  disso  muito  provável  que  os  an- 
tigos, assim  como  possiriam  mais  de  quinhentas  espécies  de  collyrios  para  as 
doenças  dos  olhos,  tivessem  não  menor  quantidade  de  receitas  para  as  enfer- 
midades dos  órgãos  sexuaes. 

Passemos  agora  a  seguir  atravez  da  Edade-Media  o  curso  do  mal  venéreo, 
sob  differentes  nomes,  até  chegarmos  á  sua  ultima  transformação  com  o  nome 
de  syphilis,  ou  grasse  vérole. 

Esta  enfermidade  obscena  existiu  sempre  no  estado  chronico  em  indivi- 
fluos  isolados,  reproduzindo-se  por  contagio  com  uma  grande  variedade  de  ac- 
cidentes,  resultantes  do  temperamento  dos  enfermos  e  de  uma  multidão  de  cir- 
cumstaneias locaes,  que  seria  impossível  enumerar  ou  caractcrisar.  No  emtanto, 
o  gérmen  da  enfermidade  provinha  sempre  de  um  commcrcio  impuro,  e  não  se 
desenvolvia  por  si  próprio,  sem  causa  preexistente  de  infecção,  no  exercício  mo- 
derado das  relações  sexuaes.  A  prostituição  era  o  foco  mais  activo  d'esta  le- 
pra libidinosa,  que  se  propagava  mais  ou  menos  violentamente,  segundo  o  paiz, 
a  estação,  ou  o  próprio  temperamento  do  individuo.  Como  apenas  os  libertinos 


I)A    PROSTITUIÇÃO  211 

soíam  approxiniar-se  da  fonte  impura,  o  mal  Cubava  assim  cireumscripto  n'esta 
gente  de  vida  desregrada,  que  não  tinha  ontacto  algum  com  as  pessoas  lio- 
nestas.  Havia  époclias,  porém,  cm  que  por  um  conjuncto  de  factos  physiologi- 
cos,  a  enfermidade  se  exacerbava  e  sahia  dos  seus  limites  ordinários,  associan- 
do-se  a  outras  enfermidades  epidemicas  ou  contagiosas,  muliiplicando-se  com 
peiores  symptoraas,  e  ameaçando  contagiar  a  população  inteira,  dizimando 
desde  logo  uma  grande  parte  d'ella.  Depois  de  ter  feito  estes  estragos,  manifes- 
tos ou  occultos,  detinha  de  repente  a  sua  marcha  destruidora.  Era  a  medicina 
que  se  oppunha  aos  progressos  occultos  do  flagello?  Não,  era  a  religião,  que 
se  apressava  a  impor  penitencias  publicas,  a  religião,  mais  efficaz  contra  a  mo- 
léstia do  que  a  medicina,  que  aflasfava  os  perigos  do  contagio,  fazendo  guerra 
sem  tréguas  ao  peccado  da  luxuria,  sua  causa  immcdiata.  A  privação  absoluta 
dos  prazeres  sensuaes  durante  um  lapso  de  tempo  bastante  considerável,  era 
n'estes  casos  o  remédio  salutar  applicado  pelo  clero  contra  o  desenvolvimento 
da  obscena  enfermidade. 

N'estes  períodos  críticos  da  salubridade  publica,  a  prostituição  legal  desap- 
parecia  completamente.  Fechavam-se  os  bordeis,  as  mulheres  publicas  eram 
obrigadas  a  interromperem  o  seu  perigoso  fraPico,  sob  a  ameaça  de  penas  ar- 
bitrarias, e  a  policia  municipal  dictava  ordens  Ião  severas  sobre  este  assumpto, 
que  desde  o  principio  do  contagio,  no  século  xvi,  a  aucíoridade  expulsava  ou 
prendia  Iodas  as  mulheres  suspeiins,  e  as  delinha  em  cárceres,  ate  que  a  epi- 
demia deixava  de  fazer  estragos. 

Devemos  lembrar  aqui  que  o  clima  da  Gallia  era  extremamente  favorá- 
vel ás  enfermidades  epidemicas  e  a  todas  as  alTecções  cutâneas.  Pântanos  im- 
mensos  e  bosques  impenetráveis  mantinham  cm  todo  o  território  uma  humidade 
pútrida  e  maléfica,  que  os  calores  do  estio  saturavam  de  miasmas  deletérios  e 
venenosos.  A  terra,  em  vez  de  estar  desinfectada  pelo  cultivo,  exhalava  sem 
cessar  emanações  mórbidas.  Os  alimentos  e  o  modo  de  vida  dos  seus  habi- 
tantes não  eram  também  muito  conformes  com  os  preceitos  da  hygiene.  Dor- 
miam no  chão  sobre  pelles  de  animaes,  sem  outro  abrigo  contra  as  intempé- 
ries além  de  lendas  de  pelles,  ou  de  miseráveis  cabanas  de  colmo;  comiam 
pouco  pão,  muita  carne  e  muito  peixe,  creavam  grandes  rebanhos  de  porcos 
negros,  que  se  apascentavam  nas  immediaçõcs  dos  bosques  druidicos.  Não  é 
para  admirar,  portanto,  que  a  elephaníiasis  e  as  outras  ramificações  da  lepra 
se  tivessem  perfeitamente  acclimado  nas  Galiias  no  segundo  século  da  era 
moderna. 

O  sábio  Areteu,  que,  segundo  todas  as  probabilidades,  escreveu  no  tempo 
de  Trajano  o  seu  tratado  De  curatione.  elephantiasiit,  diz  que  os  celtas  ou  gau- 
lezes  possuíam  uma  grande  quantidade  de  remédios  contra  esta  espantosa  en- 
fermidade, e  que  empregavam  contra  ella  sobretudo  umas  pequenas  bolas  de 
nitro,  com  as  quaes  esfregavam  o  corpo  no  banho. 

Marcello  Empírico,  que  exercia  a  medicina  em  Bordéus,  em  tempo  ilo 
imperador  Graciano,  refere  que  o  medico  Sorano  emprehendeu  a  diílicíl  em- 
preza  de  curar,  s(5mpnte  na  província  da  Aquitania,  duzentas  pessoas  atacadas 
de  herpas  sórdidas,  que  se  espalhavam  por  todo  o  corpo. 


3  I  2  HISTORIA 

Já  provamos  (nie  o  mal  vciíitco  não  era  mais  do  que  uma  espécie  de 
lepra,  contrahida  com  o  habito  das  relações  sexuaes;  explicámos  também  de 
([ue  modo  as  abomináveis  aberrações  dos  sentidos  produziram,  em  casos  excep- 
cionaes,  o  desenvolvimenío  das  forças  do  virus,  Icvando-o  a  órgãos  do  corpo, 
menos  próprios  para  o  receber;  applicámos,  finalmente,  ás  origens  da  elephan- 
tiasis  as  liypoilieses,  que  mais  adiante  veremos  formular  aos  médicos  do  sé- 
culo XV,  por  occasião  do  apparecimcnto  do  mal  de  Nápoles,  enfermidade  em 
que  muitos  homens  de  sciencia  quizeram  reconhecer  os  monstruosos  effeitos 
das  desordens  da  sensualidade  anii-physica. 

Foi  durante  o  século  xvi  que  o  mal  venéreo  percorreu  a  França  com  os 
caracteres  appareníes  de  uma  epidemia,  e  com  o  nome  de  lues  inquinaria,  ou 
inguinaria.  Segundo  a  primeira  denominação,  este  mal  era  uma  impureza,  tal- 
vez uma  gonorrhèa,  como  a  que  se  descreve  na  Biblia  (Leritico,  cap.  xv);  pela 
segunda  era  uma  inflanimação  dos  tíanglios,  onde  se  formava  uma  ulcera  ma- 
ligna, que  produzia  a  morte  depois  de  sofTrimentos  verdadeiramente  horríveis. 
Gregório  de  Tours  indica  frcqueníemcnte  esta  enfermidade.  Ruinart,  na  sua 
edição  da  obra  d'estc  historiador,  explica  que  a  ulcera  inguinal  matava  o  en- 
fermo como  uma  serpente:  Lues  inguinaria  aic  Jicebalur,  quod  nascente  in 
inguine,  vel  in  axilla,  ulcera  in  modum  serpenlis  interficeret. 

O  Glossário  de  Ducange,  na  edição  dos  Benedictinos,  traz  os  dois  nomes 
desta  pestilência,  que  appareceu  pela  vez  primeira  em  oiG,  e  que  d'ahi  em 
diante  veio  (lagellar  por  varias  vezes  as  povoações  dadas  aos  vergonhosos  ex- 
cessos da  libertinagem  contra  a  natureza.  Os  doutos  editores,  porém,  não  se 
occuparam  di>  facilitar  a  interpretação  d'estes  dois  nomes  altribuidos  á  mesma 
enfermidade,  pela  comparação  luminosa  das  passagens  em  que  os  elironistas 
contemporâneos  fallaram  d'ella.  A  origem  infame  d'esta  enfermidade  parece- 
nos  suíTicientementc  indicada  no  próprio  horror  que  ella  inspirava,  e  que  não 
consistia  apenas  no  terror  da  morte,  por  isso  que  os  indivíduos  por  ella  accomn\et- 
tidos  pareciam  castigados  pela  mão  de  Deus,  por  causa  das  suas  impurezas.  A 
intlammação  purulenta  dos  órgãos  sexuaes,  os  bubões,  ou  tumores  das  virilhas, 
o  ílu\o  de  sangue  dos  intestinos,  os  abcessos  gangrenosos  dos  músculos,  dizem 
o  sulíicienle  a  respeito  da  natureza  d'este  contagio  obsceno. 

Reappareceu  com  outros  symplomas  em  9o4,  depois  da  invasão  dos  nor- 
mandos, que  talvez  não  fossem  cxiranhos  a  esla  recrudescência  do  contagio. 
Flodoardo,  no  emlanlo,  absiem-se  de  qualquer  conjectura  impudica  a  este  res- 
peito : 

«Em  redor  de  Paris,  em  diversos  logarcs  dos  seus  subúrbios,  diz  elie  na 
sua  Chronica,  havia  muitos  homens  verdadeiramente  aíllictos  por  causa  de  um 
fogo,  que  SC  lhes  manifestava  em  varias  partes  do  corpo,  e  que  os  ia  consum- 
mindo  até  que  morte  vinha  findar  o  seu  mariyrio.  Alguns  d'elles,  os  que  se 
recolhiam  a  um  logar  santo,  escapavam  aos  seus  tormentos,  e  a  maior  parle 
foram  curados  cm  Paris  na  egreja  da  Santa  Mãe  de  Deus,  Maria,  de  tal  modo 
que  se  aliirma  que  todos  os  que  para  alli  conseguiram  Iransportar-se  foram 
curados  do  .seu  mal,  e  o  duque  Hugo  lhes  dava  com  que  viver.  Houve  alguns, 
que  ao  voltarem  a  suas  casas,  sentiram-se  novamente  incendiados  pelo  fogo  que 


DA    PROSTITUIÇÃO  ■  MS 

na  casa  de  Deus  se  havia  extinguido,  e  voltando  á  cgreja,  ficaram  novamente 
livres  do  seu  flageilo.» 

Sauval,  que  nos  fornece  esta  singela  traducção,  accrescenta  que  «como 
os  remédios  não  serviam  de  nada,  houve  de  recorrer-se  á  protecção  da  virgem 
na  egreja  de  Notre-Dame,  que  por  essa  época  servia  de  hospital.» 

Ellectivamente  encontra-se  no  Grande  Pastoral  d'esta  egreja,  no  anno  de 
1248,  um  documento  capitular  relativo  ás  seis  lâmpadas  que,  noite  e  dia,  al- 
lumiavam  o  sitio  em  que  jaziam  os  desgraçados  enfermos  d'esta  cruel  epide- 
mia, que  se  chamava  fo(jo  sagrado.  Diz  o  texto:  Vbi  infirmi  et  morbo,  qui 
ignis  sacer  wcalur,  in  ecclesia  lahoranten  consueverunt  reponi. 

«A  maior  parte  dos  auctores  que  fatiaram  d 'esta  horrível  enfermidade, 
diz  o  sábio  compilador  do  Memorial  portátil  de  chronologia  (t.  ii,  pag.  839), 
estão  de  accordo  cm  attribuir-lhe  os  mesmos  symptomas  e  os  mesmos  cffeitos. 
Invadia  subitamente  os  indivíduos,  queimava  as  entranhas,  ou  qualquer  outra 
parte  do  corpo,  que  cabia  aos  pedaços,  e  debaixo  da  pelle  lívida  ia  consum- 
mindo  as  carnes  e  cspbacelando  os  ossos.  O  que  este  mal  tinha  de  mais  es- 
tranho, era  que  obrava  sem  calor,  e  penetrava  as  suas  viclimas  de  um  frio  gla- 
cial, jnas  isto  era  apenas  nos  primeiros  dias;  em  seguida  a  este  frio  mortal 
succedia  um  ardor  tão  vivo  na  região  accommettida,  que  os  doentes  sentiam 
todos  os  symptomas  de  um  cancro.» 

Os  progressos  do  fofio  sagrado  apenas  foram  detidos  pelos  sábios  conse- 
lhos da  Egreja,  que  se  exforçava  por  curar  os  enfermos  a  quem  havia  primei- 
ramente absolvido.  O  vicio  dos  normandos,  porém,  tinha-se  inveterado  nas 
províncias  por  ellcs  invadidas.  No  anno  de  994  reappareceu  o  mal  dos  arden- 
tes com  as  causas  criminosas  que  pela  primeira  vez  o  haviam  produzido,  e  este 
mal  transmillido  pela  mais  .sórdida  libertinagem  passou  logo  da  França  á  Al- 
lemanha  e  á  Itália. 

O  século  decimo  foi  extremamente  propicio  a  todas  as  espécies  de  cala- 
midades que  podem  affligir  o  género  humano.  Acreditava-se  que  o  anno  mil 
traria  o  fim  do  mundo,  e  n'esta  triste  previsão  os  preversos  que  se  julgavam 
destinados  ao  inferno  passavam  o  resto  dos  seus  dias  entregues  desenfreada- 
mente aos  vicios  habituaes.  Chuvas  continuas,  grandes  innundações  e  frios  ex- 
cessivos vieram  cm  auxilio  das  epidemias  despovoar  a  terra.  Os  campos  por 
falta  de  cultivo  transformavam-se  em  pântanos  cujas  emanações  pestilentes  in- 
fectavam a  atmosphera.  Os  peixes  morriahi  nos  rios  e  os  animaes  nos  bosques, 
e  todas  estas  corrupções  produziam  necessariamente  um  grande  numero  de  en- 
fermidades. 

O  mal  dos  ardentes  appareceu  de  novo  em  toda  a  França.  O  rei  Hugo 
Capeto  foi  uma  das  victimas  da  epidemia,  por  causa  da  sollicitude  com  que  vi- 
sitava continuamente  os  enfermos.  Era  infallivel  a  morte  dos  atacados,  quando 
a  doença  se  enraizava  n'aquelles  organismos  enfraquecidos.  A  horrivcl  epide- 
mia contra  a  qual  a  sciencia  houve  de  confessar-se  impotente,  por  isso  que  o 
vicio  lhe  disputava  passo  a  passo  o  terreno,  recebeu  o  nome  de  mal  sagrado, 
por  causa  da  sua  origem  maldita,  e  «porque,  segundo  diz  o  livro  da  Excellencta 
de  Santa  Genoveva,  n'isto  da  formação  dos  nomes  casos  ha  em  que  a  palavra 


214  <  HISTORIA 

vem  a  significar  oxacfamenle  o  conlrario  ila  ideia  que  se  tem  em  vista».  E  com 
referencia  ao  mal  sagrado:  Morbus  igneus,  quem  physici  sacrum'  ignem  ap- 
pellant  ea  nominum  insíilutione.  qua  nomen  unius  contrarii  alterius  signí- 
ficationem  sortitur. 

A  opinião  vulgar,  sem  poder  explicar  a  natureza  d'este  mal,  aífribuiu  a 
apparição  d'elle  a  castigo  do  ceu,  e  a  cura  á  intercessão  da  Virgem  e  dos  san- 
tos. Com  o  andar  dos  tempos  talvez  os  próprios  padres  da  Egreja  lhe  tirassem 
o  nome  de  mal  sagrado,  para,  no  intuito  de  lhe  imprimir  um  sello  infame  e 
vergonhoso,  lhe  chamarem  mal  dos  ardentes.  Pouco  depois,  o  povo  chamava- 
Ihe  também  mal  de  Saint-Main  e  mal  de  Sanio  Anlonio,  porque  estes  dois 
beniaventurados  tinham  fama  de  haver  curado  grande  numero  de  enfermos. 

O  papa  Urbano  n,  informado  dos  milagres  devidos  á  intercessão  de  Santo 
Autonio,  e  que  estavam  sendo  attcsíados  por  tantos  enfermos,  fundou  sob  a 
invocação  do  glorioso  santo  uma  ordem  religiosa,  cujos  membros  deviam  uni- 
camente iractar  das  vicíimas  do  mal  dos  ardentes. 

A  propósito  do  esiabelecimenlo  d'esta  ordem  religiosa,  não  devemos  dei- 
xar de  mencionar  uma  circumslancia  interessante.  E'  sabido  que  o  porco  eslá 
sujeito  á  lepra,  c  que  a  carne  d'este  animal  comida  com  excesso  a  pôde  pro- 
duzir também  :  pois  n'aquelle  lempo  começou  o  porco  a  ser  considerado  como 
o  animal  symbolico  de  Santo  António.  Uma  praga  conservada  ainda  no  voca- 
bulário das  ultimas  camadas  populares  no  tempo  de  Rabelais,  que  a  consigna 
nos  seus  escriptos,  dispensar-nos-ha  de  provar  que  o  fogo  de  Santo  António 
linha  uma  origem  infame.  A  ralé  do  povo  e  Rabelais  diziam  ainda  no  século 
XVI :  Que  le  feu  Saint  Antoine  tous  arde  le  boyau  culier !  —  Imprecação  sór- 
dida, que  se  encontra  tantas  vezes  nas  obras  d'estc  escriptor. 

Houve  ainda  muitas  recrudescencias  memoráveis  d'esia  impureza  nos  an- 
ãos de  104.3  c  1089.  A  ultima  foi  a  de  11. 30,  no  reinado  de  Luiz  vi.  A  esle 
respeito  diz  Dubreul : 

«Uma  exiranha  enfermidade  lavrou  pela  cidade  de  Paris  e  iogares  cir- 
cumvisinhos,  á  qual  o  vulgo  chamava  [ogo  sagrado,  ou  mal  dos  ardentes,  por 
causa  da  violência  interior  d'esle  coníagio,  que  queimava  as  entranhas. do  doente 
no  excesso  de  um  ardor  continuo,  cuja  causa  os  médicos  desconheciam,  não 
podendo  por  isso  dar-llie  remédio.» 

Não  leve  Santo  António  o  privilegio  exclusivo  das  invocações,  preces  e 
ollerendas  dos  enfermos  pela  cura  do  terrível  contagio.  Santa  Genoveva,  a  pa- 
droeira de  Paris,  e  São  Marcollo  collaboraram,  segundo  parece,  para  fazerem 
cessar  a  peste.  Desde  esta  épocha,  a  capella  da  Santa  em  Paris  foi  transfor- 
mada em  egreja  com  o  titulo  de  Santa  Genotena  dos  Ardentes,  que  conservou 
por  muito  lempo,  mesmo  depois  do  flagello  ficar  apenas  reduzido  a  alguns  ca- 
sos isolados.  Notaremos,  no  eniianio,  que  os  primeiros  atacados  da  syphilis  no 
século  XV  .seguiram  naturalmente  o  caminho  d'esia  anliga  egreja  procurando 
n'ella  os  milagres  referidos  pela  tradicção.  Assim,  os  novos  devotos  de  Santa 
denoveva  confe.s.savam-se  herdeiros  directos  dó  mal  dos  ardentes,  e  pela  mesma 
lei  hereditária,  os  outros  santos,  como  Santo  António,  S.  Magin  e  S.  Job,  in- 
vocados desde  tempos  immcmoriaes  na  cura  das  enfermidades  leprosas  e  sar- 


DA    PROSTITUIÇÃO  815 

nosas,  conservaram  as  suas  afli'i!)uit:ões  a  respeito  fia  enfermidade  venérea  pro- 
priamente dita,  que  não  era  nova  para  elles. 

A  partir,  porém,  do  século  xii  até  á  apparição  do  mal  de  Nápoles,  todas 
as  enfermidades  vergonhosas,  nascidas  de  commercio  impudico  ou  aggravadas 
por  esse  commercio,  estavam  absorvidas  pela  medoniia  hydra  da  lepra,  que  se 
alastrava  por  toda  a  parte,  multiplicando-se  sob  as  formas  as  mais  extravagan- 
tes. A  lepra  do  século  xn,  tivesse  ou  não  origem  venérea,  devia  principal- 
mente á  prostituição  os  progressos  assustadores  que  teve  n'aquella  épocba,  e 
que  todos  os  governos  trataram  de  atalhar  por  meio  de  medidas  análogas  de  po- 
licia e  salubridade.  Não  rcceiamos  alDrmar  que  o  desleixo  ou  suppressâo  de  si- 
milhantes  medidas  produziu  a  syphilis  do  século  xv. 

Do  silencio  dos  annaes  médicos  por  espaço  de  meio  século  não  devemos 
inferir  que  a  lepra  havia  desapparecido  da  Europa  até  ao  século  xi,  em  que  a 
vemos  lavrar  novamente  com  grande  intensidade.  A  historia  da  vida  privada  na 
Edade-Media,  seria  um  monumento  irrecusável  da  existência  inimterrupta  da 
elephantiasis,  se  os  escriptores  ecclesiasticos  não  ministrassem  abundantes  da- 
dos que  vêem  confirmar  este  facto.  Os  cartórios  das  egrejas,  conventos  e  mos- 
teiros fazem  repetida  menção  dos  leprosos.  Gregório  de  Tours  diz  que  elles  ti- 
nham em  Paris  uma  espécie  de  asylo  em  que  limpavam  o  corpo  e  curavam  as 
chagas.  O  papa  S.  Gregório  falia  de  um  leproso,  a  quem  o  mal  havia  desfigu- 
rado: que))í  ile»AÍs  cuíiieribus  morbus  elepliantinus  defoédaverat.  N'outro  logar 
diz  também  que  dois  frades  contrahirara  a  cruel  enfermidade,  a  qual  a  tal  ponto 
os  corrompeu,  que  os  membros  lhes  cabiam  de  podridão.  Ao  século  viu,  Nico- 
lau, abbade  de  Corbia,  mandou  construir  uma  enfermaria  para  leprosos,  o  que 
prova  que  não  era  pequeno  o  numero  d'elles.  .A  lei  de  Rothario,  rei  dos  lom- 
bardos, datada  do  anno  de  630,  é  a  base  de  todas  as  leis  sobre  este  assumpto. 

Por  toda  a  parle  o  leproso  era  separado  do  seio  da  sociedade,  que  o  con- 
siderava comii  morto,  e  se  a  miséria  o  obrigava  a  viver  de  esmolas,  não  ousava 
approximar-.se  de  ninguém,  e  annunciava  a  sua  presença  com  o  som  de  uma 
matraca. 

Apesar  d'estas  precauções  legislativas,  os  leprosos  conseguiam  por  vezes 
occultar  a  horrivel  enfermidade  e  contrahiam  matrimonio  com  pessoas  sãs.  D'a- 
qui  a  capitular  de  Pepino  para  a  pronipla  e  immediata  dissolução  d'esles  casa- 
mentos. Tem  a  data  de  7137. 

Outra  capitular  de  Carlos  Magno  em  789  prohibe  aos  leprosos,  sob  penas 
scverisssimas,  o  frequentarem  a  companhia  das  pessoas  sãs. 

Compreiíende-se  que  as  relações  sexuaes  deviam  ser  o  mais  perigoso  au- 
xiliar do  contagio,  que  não  se  propagava  extraordinariamente,  graças  ao  hor- 
ror geral  que  inspirava  a  enfermidade  e  s(d)re  tudo  á  intervenção  preventiva 
da  policia  municipal. 

(]omo  já  tivemos  occasião  de,  observar,  a  influencia  ecclesiastica  era  a  que 
maior  acção  exercia  sobre  os  costumes.  A  penitencia  era  ás  vezes  uma  espécie 
de  regimen  bygienico,  e  a  conns.são  subsliluia  as  consultas  medicas.  O  sacer- 
dote occupava-se  da  saúde  pbysica  e  moral  dos  lieis,  e  não  os  mantinha  geral- 
mente faltando  no  bom  caminho  da  vida  honesta,  senão  com  o  temor  dos  ma- 


816  HISTORIA 

les  horríveis  que  Deus  mandava  como  castigo  e  como  seilo  da  sua  divina,  co- 
leraaos  libertinos  e  infames. 

E'  uma  cousa  perfeitamente  averiguada  que  as  epidemias  coincidiam 
sempre  com  os  tempos  de  maior  corrupção  social,  e  que  as  desordens  dos  cos- 
tumes públicos  traziam  comsigo  as  da  economia  sanitária.  As  classes  morigera- 
das  viam-sc  com  espanto  accommeltidas  dos  males  impuros,  que  deviam  ser 
endémicos  entre  a  immensa  multidão  de  vagabundos,  mendigos,  libertinos  c 
prostitutas,  tanto  das  que  vagueavam  pelos  campos  cm  cata  de  freguezes,  como 
das  que  estanciavam  nos  bordeis  mais  Ínfimos.  Nesta  grande  massa  de  gente 
miserável  e  perdida,  era  onde  o  virus  venéreo  deixava  a  sua  funesta  peçonha, 
os  seus  symptomas  mais  característicos  e  as  suas  mais  horríveis  metamorpho- 
ses.  Caso  extranbo!  Nunca  um  physico,  ou  medico,  havia  penetrado  nos  im- 
mundos  albergues  d'esta  escoria  humana  para  estudar  as  enfermidades  espan- 
tosas que  alli  fermentavam,  produzindo  as  variedades  mais  monstruosas,  devo- 
rando-se  umas  ás  outras! . . .  Felizmente  os  miseráveis  que  se  entregavam  a  esta 
vida  de  infâmias  e  de  opprobrios,  ligados  peia  mais  odiosa  confraternidade,  ja- 
mais se  punham  em  contacto  com  a  população  sã  e  honesta,  excepto  em  épo- 
chas  de  crises  e  perturbações  sociaes,  depois  das  quaes  o  rio  impuro  voltava 
ao  leito  immundo,  deixando  ao  tempo,  á  i-eligião  e  á  policia  o  cuidado  de 
apagar  da  sociedade  bem  morigerada  as  seus  fataes  vestígios. 

Foi  assim  que  a  lepra  se  precipitou  de  súbito  sobre  todo  o  corpo  social, 
como  uma  torrente  que  despedaça  os  diques,  e  tel-o-bia  completamente  ense- 
nenado,  se  a  prudência  e  a  energia  dos  poderes  públicos  não  se  apressassem 
a  oppôr  uma  forte  barreira  á  invasão  do  tlagello.  As  cruzadas  tinham  por  assim 
dizer  revolvido  todo  o  lodo  da  sociedade,  e  misturado  na  mais  extranha  con- 
fusão a  nobreza  com  o  povo.  Os  regulamentos  policiaes  nada  puderam  contra 
o  choque  tremendo  d'esse  exercito  de  peregrinos  que  iam  ao  Oriente  morrer  ou 
fazer  fortuna.  A  prostituição  mais  sórdida  gangrenou  aquellas  hordas  de  gente 
indisciplinada.  No  regresso,  depois  das  suas -aventuras  na  Terra  Santa,  todos 
os  cruzados  vinham  mais  ou  menos  suspeitos  de  lepra.  Leprosos  verdes,  uns; 
leprosos  brancos,  outros,  quasi  todos  elles  traziam  comsigo  o  amargo  fructo  da 
prostituição  oriental.  E'  permittido  alfirmar-se  que  n'aquella  épociía  a  infecção 
ver)erea  não  era  mais  do  que  uma  das  formas  da  lepra. 

Tornou-se  mister  então  submetter  os  ieprxisos  a  uma  rigorosa  policia  de 
sanidade,  que  três  séculos  mais  tarde  foi  preciso  renovar  contra  o  venéreo,  e 
que  tinha  por  fim  atalhar  a  marcha  do  llagello.  Do  mesmo  modo  que  determi- 
nava o  código  de  Rothario,  o  leproso  ficava  tido  por  morto  desde  o  momento  em 
que  entrava  na  enfermaria,  e  segundo  esta  ficção  legal  faziam-se-lhe  exorcis- 
mos e  funeraes.  O  sacerdote  lançava-lhe  por  três  vezes  terra  do  cemitério  na 
cabeça,  dizendo-lhe  n'essa  occasião  estas  lúgubres  palavras: 

«Guarda-te  de  entrar  n'oufra  casa  que  nãa  seja  o  teu  albergue.  Quando 
faltares  com  alguém,  coUoca-te  contra  o  vento.  Quando  pedires  esmola  toca  a 
tua  matraca.  Nunca  te  aliastes  do  teu  albergue  sem  levares  a  libré  de  leproso. 
Não  bebas  agua  em  poço  ou  fonte  em  que  outro  beba.  Não  ponhas  a  mão  nem 
um  dedo  sequer  cm  silios  públicos,  sem  que  tenhas  luvas.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  ?I7 

Era-lhe  igualmente  proliibido  anelar  descalço,  passar  cin  ruas  cslrcilas, 
cuspir  para  o  ar,  encostar-se  ás  parcJcs,  ás  aiTores  ou  a  (|ual(iuer  cousa  que 
encontrasse  no  seu  caminho,  dormir  á  beira  das  estradas,  ele,  etc.  Se  mor- 
ria, nem  sequer  linha  sepultura  junto  dos  iieis  deluntos;  os  seus  companheiros 
de  desgra(.'a  eram  obrigados  a  enterral-o  no  cemitério  da  enfermaria.  IVunca 
mais  podia,  ainda  mesmo  que  sarasse,  enlrar  no  convívio  dos  outros  homens, 
ou  viver  no  interior  das  cidades  sob  o  regimen  da  vida  commum. 

Havia,  no  emtanto,  muitos  graus  na  enfermidade,  que  não  era  absoluta- 
mente incurável,  nem  se  manifestava  sempre  por  signaes  apparentes;  mas, 
como  ílagellava  de  preferencia  as  classes  pobres,  nem  os  médicos  pensavam  em 
cural-a,  nem  os  doentes  em  tractar-se.  Os  desgraçados  que  se  viaiu  acom- 
mettidos,  ou  por  nascimento  ou  por  contagio,  consideravam-se  como  victimas 
destinadas  a  moi-rer  do  (lagello,  entregavam-se  a  todos  os  csti'agos  da  enfír- 
midade,  que  por  falia  de  tratamento  se  exacerbava  a  ponto  de  desti-uir  lodos 
os  órgãos  vilães. 

A's  vezes,  o  mal  permanecia  estacionário,  e  mesmo  quando  o  principio 
mórbido  subsistia  no  individuo,  os  eITeitos  ficavam  paralysados  ou  adormecidos 
em  consequência  de  uma  boa  constituição,  ou  de  qualquer  outra  causa  inapre- 
ciável. O  commercio  com  os  leprosos  evitou-se  muito  mais  peio  horror  que 
estes  desgraçados  causavam,  do  que  pelo  rigor  da  lei  que  os  tinha  separado  dos 
sàos  sob  pena  de  morte. 

Em  compensação,  porém,  os  leprosos  communicavam  livremente  uns  com 
os  outros,  tinham  as  suas  mulheres,  os  seus  filhos  e  o  seu  lar  domestico.  Nào 
se  julgavam  extranhos  a  nenhum  dos  sentimentos  que  impellem  o  homem  a 
reproduzir-se,  e  assim  se  ia  perpetuando  a  sua  raça  no  meio  de  uma  população 
que  fugia  da  sua  vista  e  mais  ainda  do  seu  contado.  Eis  o  motivo  porque  a 
lepra  ia  passando  de  geração  em  geração,  infestando  já  as  pobres  creanças  no 
ventre  materno. 

O  que  valia  era  não  se  multiplicarem  os  leprosos,  como  era  de  esperar, 
porque  o  gérmen,  de  morte  que  traziam  comsigo  dizimava-os  sem  cessar,  de- 
pois de  os  haver  convertido  em  cadáveres  ambulantes.  O  tillio  de  um  leproso 
era  ordinariamente  mais  leproso  (]ue  o  pae,  e  o  mal  assim  transmitlido  tomava 
novas  forças.  A  familia  mais  numerosa  extinguia-se  d'este  modo  no  espaço  de 
um  século.  Eis  o  motivo  porque  a  lepra  dcsapparcceu  quasi  completamente 
com  os  leprosos  ao  cabo  de  alguns  séculos,  ainda  que  a  maior  parte  delles  fos- 
sem de  temperamento  muito  ardente  e  exlremamente  aptos  para  .se  i'eproduzi- 
rera. 

O  caracter  mais  geral  da  Ityira  era  uma  erupção  granulosa  por  tudo  o 
corpo,  e  especialmente  na  cara.  Os  grânulos  que  sem  cessar  se  renovavam  dis- 
linguiam-se  pela  variedade  das  formas  c  cores :  uns,  duros  e  scccos,  outros 
molles  e  purulentos,  inteiros  ou  fendidos,  brancos,  roxos,  amarellos  ou  verdes, 
todos  elles  repugnantes  á  vista  c  ao  olfacto.  Relativamente  aos  signaes  unifor- 
mes da  enfermidade,  o  celebre  Guy  de  Chauliac  enumera  seis  principaes,  que 
Joubert  define  do  seguinte  modo  na  sua  Grande  Çirunjia,  no  capitulo  que  se 
inscreve  Ladrerie: 

BUTORIA  DA  PKOSTnmçÃO.  TuMO  U— FoLHA  28. 


21 8  HISTOIUA 

«Redondez  dos  olhos  e  das  orellias,  depilação  e  luberosidade  das  sobran- 
celhas, dilalayão  externa  do  nariz  com  aperto  interno  das  fossas  nasaes,  feal- 
dade dos  lábios,  voz  gangosa,  hálito  e  cheiro  de  todo  o  corpo  pestilentc,  olhar 
fixo  e  horrível.» 

Guy  de  Chauliac,  que  vivia  no  século  xiv,  poude  observar  muitos  indiví- 
duos acommeltidos,  o  que  não  succedeu  a  Joubert,  o  qual  escrevia  sobre  este 
assumpto  em  fins  do  século  xiv,  quando  a  lepra  já  não  existia  senão  de  nome. 

Os  signaes  equívocos  da  lepra  eram  dezeseis : 

«kO  primeiro  é  dureza  e  tuberosidade  da  carne,  especialmente  nas  articu- 
lações e  extremidades;  o  segundo,  côr  tenebrosa  de  morpheia;  o  terceiro,  de- 
pilação c  entumescencia  das  sobrancelhas;  o  quarto  consumpção  dos  músculos; 
o  quinto,  insensibilidade,  estupor  c  adormecimento  das  extremidades;  o  sexto, 
herpes  e  ulcerações  no  corpo:  o  sétimo,  grânulos  debaixo  da  língua;  oitavo, 
ardor  e  picadas  como  de  alfinete  no  corpo;  nono,  aspereza  da  pelle  exposta  ao 
ar,  que  mostra  o  aspecto  de  uma  ave  depennada;  decimo,  quando  a  pelle  se 
molha,  ])arece  untada;  undécimo,  ausência  quasi  constante  de  febre;  duodé- 
cimo, os  doentes  tornam-se  astutos,  mentirosos,  coléricos,  provocadores;  de- 
cimo terceiro,  teem  o  somno  profundo  e  pesado;  decimo  quarto,  pulso  débil; 
decimo  quinto,  sangue  negro  ou  muito  escuro,  ás  vezes  còr  de  chumbo  ou  cin- 
zento; decimo  sexto,  urina  livida,  branca,  sólida  e  ás  vezes  cinzenta.» 

Veremos  mais  adiante  que  estes  symptomas  são  quasi  idênticos  aos  do 
mal  venéreo,  que  não  foi  senão  um  renascimento  da  lepra,  sob  a  influencia 
das  guerras  de  Itália. 

A  lepra  tinha  ainda  muitos  outros  caracteres  particulares,  determinados 
pelas  influencias  locaes  e  climatéricas.  Por  exemplo,  o  mal  dos  o.rdentes,  que  • 
havia  degenerado  n'uma  gonorrhéa  virulenta,  provinha  ainda  da  copula  com  um 
leproso.  N'esta  doença,  que  chamavam  ardor,  incêndio,  queimadura  (em  in- 
glez,  brenning,)  atacados  os  orgãc^s  genitaes  de  erysipelas,  ulcerações,  flogo- 
sis,  etc,  etc,  o  enfermo  sentia  dores  cruéis  quando  urinava.  Um  illustre  me- 
dico do  século  XIII,  chamado  Theodorico,  diz  textualmente  que  «todo  aquelle 
que  tem  copula  com  mulher  que  lenha  conhecido  leproso,  contrahe  um  mal 
maw»  (mauvaix  mal.) 

N'oulro  tractado  de  cirurgia,  attribuido  a  Rogério  Bacon,  que  escrevia  pela 
mesma  épocha,  encontra-se  uma  descripção  dos  males  horríveis  que  podiam  ori- 
ginar-se  de  uma  cohabitação  d'esta  espécie. 

Muitos  médicos  inglezes  contemporâneos  estudaram  esta  espécie  de  afife- 
cção  venérea,  que  reinava  em  Londres  nos  séculos  xiii  c  xiv,  como  teremos 
occasião  de  referir,  quando  fallarmos  da  Inglaterra.  Um  d'estes  médicos,  João 
de  Gaddesden,  consagra  um  capitulo  da  sua  Prac/ica  medicina,  seu  Rosa  angli- 
cana, aos  accidenlcs  que  resultam  da  cahabitação  impura  dos  leprosos  e  lepro- 
sas: 

«Quem  cohabita  com  mulher  que  haja  tido  copula  com  leproso,  sente  pi- 
cadas entre  a  pelle  e  a  carne,  c  ás  vezes  essas  picadas  manifestam-se  por  todo 
o  corpo.» 

Os  médicos  inglezes  Ibrnecein-nos  a  respeito  da  lepra  venérea  maior  nu- 


DA     PUOSTlTtlIÇÃO  219 

mero  ilc  dados  que  os  italianos  c  francezes,  porque  as  leis  contra  os  leprosos 
eram  muito  menos  rigorosas  na  Inglaterra  que  nas  outras  nações ;  assim,  os 
casos  do  contagio  leproso  foram  alli  mais  communs  e  graves  que  nos  demais 
paizcs. 

Graças  ás  medidas  enérgicas  e  geraes  adoptadas  em  toda  a  Europa,  com 
excepção  talvez  da  Inglaterra,  para  atalhar  os  progressos  da  lepra  e  das  enfer- 
midades que  d'ella  provinham,  poude  conservar-sc  indemne  do  contagio  a 
maior  parte  da  população.  Ao  tempo  de  Malheus  Paris,  que  escreveu  ahi  por 
melados  do  século  xiii  havia  na  Europa  mais  de  dezenove  gafarias,  ou  asylos 
de  leprosos.  Dois  séculos  mais  tarde,  as  gafarias  de  França  cahiam  em  ruinas, 
por  falta  de  enfermos.  Foi  entáo  que  alguns  parasitas  se  apoderaram  d'ellas, 
valendo-se  da  supprcssão  dos  titulos  de  fundação  e  dos  contractos  de  aluguel, 
de  modo  que  pela  ordenança  de  loi3  Francisco  i  provocou  quasi  inutilmente 
a  acquisição  d'esfes  titulos,  vendidos  ou  subfrahidos. 

Resulta  d'aqui  que  no  decurso  de  dois  ou  três  séculos  a  grande  lepra,  ou 
elephantiasis,  havia  quasi  desapparecido  com  os  infelizes  atacados,  que  não  po- 
deram  pcrpetuar-se  por  mais  de  três  ou  quatro  gerações. 

Quanto  á  pequena  lepra  e  suas  ramificações,  apesar  de  se  occullarem 
sempre  sob  apparencias  menos  inquietadoras,  foram  enfraquecendo  nos  seus 
symptomas  externos,  muito  embora  o  gérmen  da  enfermidade  se  manifestasse 
vivaz  n'um  sangue  que  o  houvesse  recebidn  do  nascimento  ou  por  transmis- 
são contagiosa. 

A  sociedade,  que  tinha  repellido  do  seu  seio  os  leprosos,  viu-se  novamente 
invadida  por  elles,  ou  por  seus  filhos,  e  a  lepra  perdendo  alguns  dos  seus  sym- 
ptomas horríveis,  continuou  a  minar  surdamente  a  salubridade  publica.  Por 
meio  da  prostituição  esta  infame  enfermidade  introduziu-se  novamente  nas  clas- 
ses inferiores,  e  conseguiu  insinuar-se  até  nas  elevadas,  graças  ás  suas  secre- 
tas metamorphoses.  Chegamos  mesmo  a  crer  que  o  mal  de  IWipoles,  que  não  era 
mais  do  que  uma  resurreição  da  lepra,  combinada  com  outros  males,  andou  por 
muito  tempo  em  silencio  pelos  antigos  mysterios  da  libertinagem,  antes  de  se 
apresentar  á  luz  do  dia  em  toda  a  Europa,  sob  o  nome  de  mal  venéreo. 

Já  falíamos  aqui  do  mal  que  havia  infectado  os  lupanares  de  Londres,  a 
tal  ponto  que  foi  preciso  em  1  i30  fazer  leis  severas,  prohibindo,  sob  pena  de 
morte,  dar  entrada  n'estes  lupanares  a  mulheres  atacadas  d'este  mal,  e  man- 
dando vigiar  de  perto  as  que  estivessem  em  mau  estado.  Infirmitas  nefanda, 
é  o  nome  com  que  as  leis  sanitárias  designavam  o  contagio,  segundo  lemos  no 
tomo  XXX  das  Tranisacçõe.'}  Phílosophicas,  de  Guilherme  Becketl. 

Ouçamos  agora  o  testemunho  de  alguns  médicos,  no  sentido  de  provar 
que  as  enfermidades  venéreas  não  foram  somente  contemporâneas  do  descobri- 
mento da  America: 

Guilherme  de  Salicef,  medico- de  Placencia  no  século  .\in: — Na  sua 
Cirurgia,  cap.  De  apostemate  in  inguinihus,  diz  este  homem  de  seieneia  «que 
o  bubão,  ou  abcesso  dos  ganglios  se  forma,  quando  o  homem  tem  ama  corru- 
pção  no  membro  em  connequencia  de  ter  tido  copula  com  uma  mulher  suja.» 

O  mesmo  clinico   trata  n'outro  logar  das  pústulas  brancas  e  vermelhas 


■}'20  HISTdlUA 

(lo  membro,  iliis  gielas  que  n"elle  se  produzem,  ou  em  redor  do  prepueio,  o 
(jue  provêem,  diz  el!c,  espressamente  «do  commcrcio  com  mulher  suja,  ou  com 
rameira».  Lanfranc,  famoso  medico-cirurgião  de  Milão,  que  veio  cstabelecer-sc 
eui  Paris  em  1495,  desenvolve  a  mesma  doutrina  sobre  as  enfermidades  dos 
órgãos  genilaes,  no  seu  livro  celebre  e  de  grande  uuctoridade  intitulado:  7'í'rt- 
clira,  aeu  af-s  romplet.a  chirurgiu': 

«As  ulceras  do  membro,  diz  elle,  são  occasionadas  por  humores  acres, 
(jue  escoriam  o  sitio  em  que  se  detèem,  ou  também  pela  copula  com  mulher 
suja,  que  tenha  conhecido  recentemente  um  homem  atacado  da  mesma  enfer- 
midade.» 

Bernardo  Gordon,  medico  muito  celebre  da  faculdade  de  Montpellier,  e 
que  viveu  depois  de  Lanfranc :  — Este  clinico  professa  as  mesmas  opiniões  a 
respeito  das  enfermidades  de  (|ue  temos  fallado,  e  no  capitulo  De  passionibus 
virga;  da  sua  obra  intitulada  LiHum  medicniw,  expressa-se  nos  seguintes 
termos  : 

«Taes  enfermidades  são  numerosas.  Ha  os  abcessos,  as  ulceras,  os  can- 
cros, as  inchações,  a  dôr,  as  comichões,  etc.  As  causas  são  internas  ou  exter- 
nas; externas,  como  por  exemplo,  uma  queda,  um  golpe,  a  conjun,c(;ão  carnal 
com  uma  nndher  com  a  madre  impura,  cheia  de  pus,  ou  de  virus,  ou  de  ven- 
losidades,  ou  de  matérias  coi  rompidas.  Mas,  se  a  causa  é  interna,  estas  enfer- 
midades produzem-se  então  por  alguns  humores  corrompidos  e  malignos,  que 
descem  ao  membro  e  ás  partes  inferiores.» 

João  Gaddesden,  medico  inglez  da  universidade  de  Oxford;  Guy  de  Chau- 
liac,  da  universidade  de  Montpellier;  Nale.rio  de  Tarenta,  da  mesma  universi- 
dade, c  muitos  outros  doutores,  que  fizeram  as  suas  observações  cm  ditíeren- 
tes  paizes  durante  o  século  xvi,  são  unaniriies  em  reconhecer  que  o  commer- 
cio  impuro  produzia  enfermidades  virulentas,  que  eram  contagiosas,  e  que  de- 
viam ser  venéreas. 

Em  todas  estas  enfermidades  a  lepra  linha  uma  acção  muito  importante 
antes  e  depois  da  apparição  do  mnl  de  Nápoles.  Os  clinicos  que  estudaram  a 
lepra,  c  deram  publicidade  a  estes  estudos,  são  unanimes  em  declarar  que  se 
communicava  muito  mais  pelas  relações  sexuaes  do  que  por  qualquer  outro 
meio.  Estas  relações  eram  raríssimas  entre  as  pessoas  sãs  c  as  leprosas,  mas. 
a  imprudência  e  a  libertinagem  produziam-nasás  vezes  com  grave  damno  da  pes- 
soa sã,  (|ue  por  sou  iurno  ficava  afiecíada  da  lepra. 

liernardo  Gordon,  já  por  nós  anteriormente  citado,  rcfert;  que  certa  con- 
dessa atacada  pela  lepra  foi  a  Montpellier,  onde  elle  a  traclou  d'esta  enfermi- 
dade. Um  esludante  de  medicina,  a  quem  o  doutor  collocára  junto  da  enferma 
para  Iractar  d'elia,  teve  a  desgraça  de  a  requestar  e  de  merecer  os  seus  favo- 
res. A  ccmdessa  ficou  gravida,  mas  o  pobre  do  bacharel  ficou  leproso.  (Lilhim 
medicinai,  parle  I,  cap.  22.) 

Muitos  fados  análogos  se  encontram  nos  escriptos  de  Forcstus  Paulonicr,. 
Pare  e  Fcrnel,  que  escreveram  sobre  a  elcphanliasis,  seguindo  o  con.senso  una- 
nime das  escolas  de  medicina  e  cirurgia. 

João   Menardi   de  berrara    resume  nos  seguintes   lermos  a  questão,  em 


DA    l-ftOSTITUIÇAO 


221 


princípios  do  século  xvi,  sem  dar  conta  <lc  ([110  confunde  a  lepra  e  as  enfermi- 
dades venéreas : 

«Os  que  têeui,  diz  clle  nas  suas  Epislohe  medicinales,  pul)licadas  em 
|.')2;3,  commercio  com  uma  mulher,  que  pouco  anies  se  entregou  nos  braços  de 
um  leproso,  de  modo  que  conserve  ainda  o  sémen  na  vagina,  apanham  umas 
vezes  a  lepra,  e  outras  vezes  enfermidades  dilíerentes,  mais  ou  monos  graves, 
segundo  as  suas  disposições.» 

Em  todas  estas  citações  reproduzimos  a  versão  que  Luiz,  traductor  e 
annotador  de  Astruc,  para  não  alterar  o  texto  do  sábio  auclor  do  tractado  Ik 
inorbU-  venereis  julgou  dever  adoptar  no  interesse  do  seu  systema.  Em  todo  o 
caso,  estas  mesmas  citações  parecem-nos  muitas  vezes  contrarias  ao  referido 
systema.  Examinando,  por  exemplo,  esta  passagem  de  Menardi,  é  impossível  não 
se  reconhecerem  as  doenças  venéreas  n'essas  differenles  enjermidadea,  maif, 
ou  menos  graves,  produzidas  por  uma  copula  inprudente  com  uma  pessoa  mais 
ou  menos  leprosa. 

De  resto,  um  commercio  d'esta  natureza  que  implicaria  sem  remissão  a 
pena  de  morte  para  o  leproso,  tinha  sido  até  julgado  impossível  pelo  legislador, 
que  não  o  previu  em  parte  alguma  do  direito  criminal. 

O  direito  consuetudinário  regula  tão  somente  o  que  diz  respeito  ás  gafa- 
rias. Segundo  o  uso  de  Boulenois,  quando  se  descobria  depois  da  morte  de  um 
homem  que  tinha  sido  leproso  e  que  tinha  vivido  apesar  d'lsso  na  companhia 
dos  sãos,  estes  deviam  ser  considerados  como  seus  cúmplices,  e  todas  as  rezes 
de  unha  fendida,  pertencentes  aos  habitantes  da  povoação  em  que  o  leproso 
vivera,  eram  confiscadas  em  proveito  do  senhor  feudal.  Cada  parochia  era 
d'este  modo  responsável  pelos  seus  leprosos,  e  tinha  obrigação  de  os  sustentar, 
depois  de  lhes  haver  vestido  uma  espécie  de  libré,  e  de  os  ter  encerrado  em 
asylos,  onde  havia  um  leito,  uma  meza,  e  alguns  utensílios  de  madeira  e  ferro. 
(Traité  de  la  police,  por  Delamarre,  tit,  I,  pag.  636.) 

Os  leprosos,  que  consideravam  a  sua  enfermidade  como  uma  morte  an- 
tecipada, procuravam  incessantemente  voltar  ao  seio  da  sociedade,  mas  todas 
as  suas  tentativas  eram  repellidas  com  horror.  Todas  as  vezes  que  a  incúria 
da  policia  urbana  permittla  a  estes  desgraçados  dissimular  a  sua  triste  condi- 
ção, havia  nas  cidades  um  alvoroto  indiscrlptivel,  que  obrigava  immedlata- 
mente  os  magistrados  a  restaurar  em  todo  o  seu  rigor  as  antigas  ordenações. 

Em  1371,  o  preboste  de  Paris  publicou  o  real  decreto  que  lhe  havia  di- 
rigido Carlos  v,  em  virtude  do  qual  todos  os  leprosos  eram  obrigados  a  aban- 
donar a  capital  no  praso  de  quinze  dias,  sob  penas  gravíssimas,  tanto  corpo- 
raes,  como  pecuniárias. 

Em  1388,  a  mesma  auctorldade  prohibiu  aos  leprosos  a  entrada  na  ci- 
dade de  Paris,  sem  expressa  licença  por  ella  firmada. 

Em  1394  e  1  i02  eguaes  prohibições  se  fizeram  «sob  pena  de  serem  en- 
tregues ao  carrasco  e  seus  ajudantes,  para  serem  açoitados,  e  depois  de  um 
mez  de  prisão  desterrados  do  reino.» 

Não  obstante  estes  rigores,  as  disposições  da  policia  eram  constantemente 
illudidas,  por  aquelle  tempo,  e  a  população  sã  ia  perdendo  o  seu  antigo  hor- 


322  HISTORIA 

ror  pelos  leprosos,  que  já  viviam  no  meio  delia,  como  se  não  estivessem  ata- 
cados de  um  mal  contagioso,  e  isto  porque  a  lepra  diminuía  notavelmente,  ou 
peio  menos  os  seus  symptomas  já  não  eram  tão  manifestos. 

O  parlamento  de  Pafis,  em  II  de  julho  de  I4'>3,  promulgou  uma  sen- 
tença contra  um  leproso,  que  havia  casado  com  uma  mulher  sã.  Esta  mulher 
em  quem,  segundo  parece,  a  lepra  não  se  havia  ainda  manifestado,  foi  se- 
parada do  marido,  e  prohihiu-se-lhe,  sob  pena  de  pelourinho  e  desterro,  com- 
municar  com  elle.  Consentiram-lhe,  porém,  que  vivesse  na  cidade,  com  a  con- 
dição de  abandonar  completamente  a  venda  de  fructas  a  que  se  entregava,  pelo 
receio  de  que  podesse  coramunicar  ao  povo  o  contagio  da  lepra. 

Esta  sentença  é  muito  significativa,  por  isso  que  prova  que  os  regula- 
mentos da  lepra  já  eram  mal  observados  no  século  xv,  e  ao  mesmo  tempo  que 
os  leprosos  já  podiam  viver  fora  das  gafarias.  Xs  consequências  doesta  relaxa- 
ção da  antiga  c  salutar  severidade  deviam  ser  a  reproducção  da  lepra  e  das  en- 
fermidades d'ella  provenienles. 

EtTectivamente,  poucos  annos  antes  da  terrível  irrupção  do  mal  venéreo 
em  Itália  e  França,  os  leprosos  tinham  multiplicado  e  reacccndido  o  veneno 
da  elephantiasis,  e  a  saúde  publica  estava  solfrendo  uma  invasão  violenta  d'este 
mal,  por  meio  da  prostituição,  á  qual  os  leprosos  de  ambos  os  sexos  levaram 
o  seu  funesto  concurso.  Por  uma  ordenação  do  preboste  de  Paris,  datada  de 
1d  de  abril  de  I48S,  previnem-se  «todas  as  pessoas  atacadas  do  mal  abominá- 
vel, perigosíssimo  e  contagioso  da  lepra,  de  que  tèem  de  sahir  de  Paris  antes 
da  Paschoa,  retirando-se  para  as  suas  enfermarias  em  seguida  á  publicação  da 
dita  deliberação  do  preboste,  sob  pena  de  um  mez  de  prisão  a  pão  e  agua,  e 
perda  de  seus  cavallos  e  demais  bens,  além  de  um  castigo  corporal  arbitrário; 
permittindo-se-lhes,  no  emianto  que  fizessem  administrar  o  que  lhes  pertencia 
por  meio  de  seus  crea_dos  ou  creadas,  no  caso  que  Innlo  uns  como  outras  es- 
tivessem em  boas  condições  de  saúde.» 

R'  claro  que  estes  leprosos,  que  tinham  cavallos  e  serventuários  em  bom 
estado  de  saúde,  deviam  fazer  uma  espanto.sa  dilfusão  da  lepra  pela  parte  sã  da 
população  que  frequentavam,  e  esta  lepra  surda,  dei\era-nos  assim  dizer,  trans- 
mittida  assim  de  individuo  para  individuo  por  meio  dos  prazeres  venéreos,  cor- 
rompia piíysicamente  aquillo  mesmo  que  o  vicio  já  havia  corrompido  cora  a  sua 
impureza  ou  mancha  moral. 

Não  era  já  a  lepra  propriamente  dita;  era  o  resultado  funesto  da  incon- 
tinência e  devassidão  dos  bord;^is — uma  enfermidade  horrível,  que  a  prostitui- 
ção trazia  comsigo  havia  muito,  e  que  tinha  constantemente  acalentado  no)  seu 
seio  impuro.  Era  o  mal  venéreo,  que  os  francezes  denominaram  desde  o  pri- 
meiro momento  da  sua  apparição  mal  de  Nápoles,  eque  os  italianos,  ou  por  es- 
pirito de  contradicção,  ou  por  um  acto  Je  desforço,  denominaram  mal  jrancez. 

O  filho  da  lepra,  herdeiro  em  linha  recta  das  suas  funestas  tradicções  e 
das  suas  impuras  genealogias,  não  devia  ser  menos  fatal  á  humanidade,  do 
que  a  sua  horrível  progenitora.  Fosse  qual  fosse  o  seu  berço,  nascesse  nos  im- 
mundos  bordeis  de  Nápoles  ou  nas  casernas  da  soldadesca  aventureira,  vémol-o 
dentro  em  pouco  alastrar-se  por  toda  a  Europa,  como  um  llagello  sinistro,  que 


DA  PRosTiiuigSn  223 

era  ao  mesmo  tempo  uma  terrível  punição  de  todas  as  impurezas  e  aberrações 
sensuacs. 

Novo  Proteu,  assume  todas  as  fornias  c  maiiiíesta-se  por  todos  os  modos, 
atacando  a  fonte  da  vida,  e  empeçonliando-a  com  o  seu  viver  hediondo,  que 
põe  nas  gerações  futuras  um  stigma  de  maldiçSo.  A  sciencia  confessa-se  ven- 
cida, depois  dos  mais  pertinazes  esforços;  os  médicos  mais  eminentes  nâo  se 
atrevem  a  combatel-o,  e  evilam-no,  como  se  lhe  conhecessem  uma  força  so- 
brenatural. Mais  terrivel  do  que  os  seus  predecessores,  o  novo  flagello  invade 
todos  os  povos  e  proj)aga-se  em  todos  os  climas.  Não  ha  repressões  policiaes, 
que  o  detenham,  nem  medidas  sanitárias  que  o  destruam. 

Filho  de  todas  as  impurezas  dos  séculos  anteriores,  o  venéreo  devia  pu- 
nil-os  severamente  e  oppôr  um  dique  terrivel  á  espantosa  corrupção  da  raça 
humana.  Era  como  que  um  protesto  da  natureza  contra  lodos  os  extravios  e 
aberrações  da  luxuria,  accumulados  em  tantos  séculos,  e  que  sem  clle,  chega- 
ria a  corromper  toda  a  humanidade. 


CAPITULO  XX 


SUMMARIO 


Nomes  sclentificosda  syphills:  morbus  iioous,  peslUenlialis  scorra,  pudendaíira.—  Henuminações  popu- 
lares que  Ib.i  foram  dadas.— Os  saiivos.  qm;  tinham  a  poder  dr  a  curar.— Cuincrdeocia  du  f.M  apparecimenio  m 
Itália  com  a  expadi^So  de  Carlos  viii  —  Qual  foi  a  data  precisa  d'este  apparecimen'o?—  Ucsacordo  a  este  reípt-lto 
eníre  te  médicos  e  os  histDríadores.—  Tradicfões  relativaí  ã  sua  uriíii^m.-  .^s  cuujuueçõc»  dos  planetas.—  O  Tjnho 
envcnonado  codi  u  .^angue  dos  leprosos.- Caraehumana.  — A  bestialidade  castigada  por  si  própria.— .4  ei;ua  e  os  ma- 
cacos— A  syphilis  da  Eurjpa  dío  provém  da  America  —  Os  médicos  recusam  a  priocinio  tratar  d'e.sta  enfermi- 
dade —  Menardi  e  nutras  notabilidades  medicas  sustentam  que  o  mal  venéreo  procede  da  lepra  da  prustituição. 


uLGAJios  cslarsufficientemenít^  dciiionslrado  tjue  o  mal  venéreo  oão 
precisou  de  esperar  pela  descoberta  da  America  para  se  introdu- 
zir na  Europa,  e  fazer  n'esta  parte  du  iiiiiiidu  os  mais  assolado- 
res progresso:^.  Muitos  factos  c  raciocínios  aprcscntáiuus  que 
comprovam  a  grande  antiguidade  d'csta  cruel  doenya,  cujos  vestí- 
gios se  encontram  atravez  dos  tempos,  umas  vez<'s  combinada  com  outras  en- 
fermidades, outras,  e  principalmente,  com  a  lepra,  da  qual  recebeu  uma  pliysio- 
nouiia  completamente  no\a.  Em  toJos  os  jiaizes  foi  sempre  a  prostitui^-ão  o  mais 
enérgico  auxiliar  d'este  flagello,  que  os  poderes  públicos  procuravam  conter  com 
lima  espécie  de  cordão  sanitário.  Quando  este  cordão  se  quebrou  peia  incúria 
nys  governos,  o  mal  recebeu  novos  alentos,  e  voltou  novamente  a  estabelecer 
os  seus  arraiaes  nos  centros  da  prostituição  legal. 

Eis  o  motivo  porque  a  lepra  venérea  appareceu  ao  mesmo  tempo  e  com 
egual  violência  em  França,  Itália,  Hospanha,  Vliemanha  e  Inglaterra,  no  mo- 
mento historicu  em  que  Christovam  Colomb  i  voltava  da  sua  primeira  viagem 
ás  terras  do  Novo  Mundo.  Não  temos  diUicuIdade  alguma  cm  sustentar  que  o 
mal  venéreo,  ou  pelo  menos  um  mal  análogo,  foi  conbecido  na  Europa,  desdeo 
anno  de  1483;  que  este  mal,  ou  outro  da  mesma  origem  e  da  mesma  Índole 
existia  muito  antes  da  descoberta  das  .Antilhas,  embora  não  produzisse  os  mes- 
mos accidentes  que  nas  latitudes  temperadas;  c  que  a  expedição  de  Carlos  riu 
à  Itália  contribuirá  talvez  para  propagar  e  exacerbar  esta  odiosa  enfermidade. 
No  euitanto,  apesar  da  França  e  a  Itália  se  cxprobarem  mutuamente  pela  priori- 
dade da  infecção,  nada  tiveram  que  invejar  uma  à  outra  a  este  respeito,  e  tro- 
caram apenas  as  pestes  que  possuíam,  e  que  tinham  importado  já  de  outros  po- 
vus.  Finalmente,  desde  que  logrou  pruvar-se  o  apparecimento  do  mal  venéreo, 
a  enfermidade  mudou  frequentemente  de  symptomas,  de  caracter  e  de  nomes. 
BarojuA  da  PaosTituicÃo.  Touo  n— Volha  13. 


iíé  HISTORIA 

Eiilrc  estes,  que  foram  numerosas,  temos  a  distinguir  os  populares  áot 
scientifieos.  Os  últimos  eram  quasi  sempre  latinos,  e  encontram-se  em  todos 
os  livros  e  formulários  de  medicina,  mas  foram  successi vãmente  desappare- 
cendo  para  cederem  o  logar  ao  que  Frascator  inventou  para  as  necessidades  da 
sua  fabula  poética,  na  qual  o  pastor  Sjpbilis  é  o  primeiro  atacado  d'esta  hor- 
renda enfermidade,  em  castigo  de  haver  offendidõ  os  deuses. 

A  maior  parte  dos  médicos  italianos  ou  allemães,  que  escreveram  ahi  por 
fins  do  século  xv  sobre  o  mal  novo  (morbus  noius),  sabido  da  sua  antiga  obs- 
curidade pelas  guerras  da  Itália,  José  Grundbèclí,  Carolino  Gilini,  Mcolau  Leo- 
niccno,  António  Benivenio,  Wendelin  Hock  de  Brackenaw,  Estevam  Cataneo, 
etc,  serviram-se  da  denominaçào  usual  de  morbus  galllcus  (mal  [rancei). 
Coratudo,  como  se  estes  bomens  de  scicncia  se  desgostassem  de  admittir  na 
linguagem  medica  um  erro,  que  era  ao  mesmo  tempo  uma  calumnia,  muitos 
d'elles  inventaram  outros  nomes,  mais  dignos  da  scicncia  e  menos  contrários 
á  verdade  bislorica. 

Grundbeck,  o  mais  antigo  de  todos,  accrescentou  á  denominação  vulgar 
de  mal  francez  a  periphrase  scorra  pestilentialis,  e  a  qualificação  mentulagra, 
que  quer  dizer  enfermidade  dos  membros  genitaes.  Gaspar  Torella,  que  na  sua 
qualidade  de  italiano  se  presava  de  mestre  em  latinismos  muito  superior  a  um 
allemão,  adoptou  o  nome  de  pudeiidagra,  enfermidade  das  partes  pudendas. 
Wendelin  Hock  preferiu  dizer  memajra,  porque  pretendeu  descobrir  no  mal 
francez  a  lepra  da  barba  descripta  por  Pliriio  (Hist.  uai.,  lib.  xxvii,  cap.  i). 
João  António  Robenel  e  João  Almenar  serviram-se  da  palavra  patursa,  sem 
que  conhecessem  a  sua  verdadeira  significarão,  o  que  nos  permitte  suppòr  que 
era  este  o  nome  genérico  da  enfermidade  na  America. 

Todas  as  nações  se  defendiam  da  grave  responsabilidade  de  haverem  pro- 
duzido o  mal  venéreo,  e  cada  qual  lhe  dava  o  nome  da  nação  visinha,  atlri- 
buindo  a  ci^ta  o  principio  ou  a  origem  do  mal.  Assim,  os  italianos,  os  allemães 
e  os  inglezes,  que  aceusavam  a  França  de  ler  sido  o  berço  do  ílagello,  deno- 
mina vam-no  maio  francese,  frantzosen,  ou  (rantzosichen  pochen,  e  frenchpox. 
Os  francezes  despicaram-se  immediatamente,  chamando-lbe  mal  napoUtain ; 
os  flamengos  e  'js  hollandezes,  os  africanos  e  os  mouros,  os  portuguezes  e  os 
navarros  denominavam-no  ínoi  hespaahol  ou  castelhano;  os  orientaes  charaa- 
vam-Ihe  mal  christão ;  os  asiáticos,  mal  português ;.  os  persas,  mal  turco;  os 
polacos,  mal  allemão,  e  os  russos,  mal  polaco.  (Tract.  De  morbis  venerein,  de 
Astruc,  lib.  I,  cap.  i.) 

Os  diversos  symptomas  da  enfermidade  derani-lbe  lambem  ditTerentís 
nomes^  que  recordavam  sobre  tudo  o  estado  pustuloso,  ou  canceroso  da  pellfi 
dos  enfermos.  Assim,  os  hespanboes  chamavam-lbe  bubas,  ou  boav;  os  geno- 
vezes,  maio  deVe  lovelle;  o^  toscanos,  maio  delle  bolle ;  os  lombardos,  maio 
delle  brosulle,  por  causa  das  postulas  uleerosas  e  multicores,  que  se  manifes- 
tavam em  todas  as  partes  do  corpo  nos  indivíduos  atacados  d'esta  espécie  de 
peste. 

Os  francezes  chamavam-lhe  grosse  vérole,  para  o  distinguirem  da  petite 
iérole,  que  desde  tfinpos  immemoriaes  havia  sido  classificada  etitre  as  enfer- 


nA  pnosTiTUiç.^o  2^7 

rnidades  epidemicas,  e  que  menos  lemivcl  do  que  a  sua  irtiià,  se  parecia  com- 
tudo  com  ella  pela  variedade  das  puslulas  e  das  ulcerações  da  face.  D'aqui  o 
nome  genérico  de  verole,  ou  variole,  formado  do  latim  carius,  e  o  nome  anti- 
quado vau',  que  significava  uma  pelie  branca  e  cinzenta,  e  que  se  applicava 
lambem  a  um  dos  metacs  heráldicos,  composto  de  peças  iguaes,  tendo  a  forma 
de  campainhas,  dispostas  symelricamenle.  Prelendia-se  que  esta  disposição 
das  peças  do  vair  tinha  certa  analogia  de  aspecto  com  a  pclic  pintalgada  e  fen- 
dida dos  desgraçados  enfermos. 

Por  toda  a  parte  se  erguiam  clamores  aos  santos  e  santas,  que  se  tinham 
por  advogados  contra  a  lepra,  e  que  nos  casos  afílictivos  d'esta  doença  costu- 
mavam ser  invocados.  Estes  bemaventurados  passaram  por  consenso  unanime 
a  ser  os  padroeiros  das  victimas  do  venéreo,  e  o  que  é  mais,  a  darem  os  seus 
nomes  á  tcrrivel  enfermidade,  que  as  pobres  victimas  coilocavam  sob  a  sua 
ígide  tutelar.  Deu-se  então  entre  a  lepra  e  o  venéreo  uma  espécie  de  confra- 
ternidade,  que  se  manifestou  pelos  nomes  dos  santos  applicados  indistincta- 
inente  ás  duas  enfermidades,  que  se  chamaram  mal  de  Saint-Main,  de  S.  Job, 
de  S.  Roque,  e  até  mesmo  de  Santa  llegina.  Bastava  que  fosse  attribuida  a 
qualquer  santo  uma  certa  influencia  para  a  cura  das  chagas  e  ulceras  malignas, 
e  os  atacados  do  mal  accudiam  aos  altares  do  santo,  considerando-se  seus  en- 
fermos privilegiados. 

-Os  médicos  e  historiadores,  que  foram  os  primeiros  a  escrever  acerca  da 
epidemia  venérea  dos  últimos  annos  do  século  xv,  estão  quasi  de  accordo  so- 
bre este  ponto:  —que  o  mal  venéreo  não  se  declarou  manifestamente  senão 
em  seguida  á  expedição  de  Nápoles,  mas  quasi  todos  referem  ao  anno  de  1494 
esta  expedição,  que  se  realisou  apenas  em  i49.j.  Este  equivoco,  porém,  não  é 
um  erro  histórico,  porque  antes  de  Carlos  ix  o  anno  começava  na  Paschoa,  se- 
gundo o  calendário  de  França. 

Alguns  escriptores  que  fizeram  uma  confrontação  de  époclias  entre  a  in- 
vasão de  Carlos  viu  em  Itália  c  a  apparição  da  grosse  vérole  na  Europa,  não 
hesitaram  em  referir  estes  dois  factos  heterogéneos  ao  mesmo  anno  de  1494. 
Segundo  esla  opinião,  a  enfermidade  venérea  dataria  do  principio  do  referido 
anno,  mas  o  rei  de  França  não  entrou  em  Nápoles  senão  em  2á  de  fevereiro 
de  1495,  e  como  a  festa  da  Poschoa  se  rcalisava  em  19  de  abril  seguinte,  é 
claro  que  só  d'essc  dia  em  diante  começava  a  contnr-se  o  novo  anno. 

Seria,  portanto,  mister  para  justificar  a  data  de  1  494  apontada  pelos  mé- 
dicos e  historiadores,  que  quizeram  precisar  o  momento  do  apparccimento  do 
flagello,  que  o  chamado  mal  francez  se  tivesse  manifestado  cm  Nápoles  entre 
22  de  fevereiro  e  19  de  abril  do  anno  de  149o. 

Ha  uma  certa  diíficuldade  em  admiltir  que  as  auctoridadcs  medicas  c  his- 
tóricas que  dão  ao  apparccimento  do  flagello  a  data  de  1494  se  enganassem 
n'um  anno.  E'  bem  pouco  provável  similhante  erro,  tractando-se  de  um  facto 
tão  notável  e  recente.  Notaremos  ainda  que  os  primeiros  a  estabelrcerem  esta 
data  foram  os  médicos  italianos,  c  o  anno  em  Itália  começava  no  1.°  de  ja- 
neiro, e  não  na  Paschoa,  como  cm  França. 

De  todas  estas  contradicçõcs  parece  averiguada  a  existência  de  um  accordo 


'2'2S  liiSTiiklA 

intii'  os  ilaliaiios,  tom  o  fim  de  accusarein  a  aveiitiuviía  expedição  dos  fratice- 
zcs  á  Itália  <le  um  mal,  que  cila  talvez  desenvolvesse  e  aggi-avasse,  mas  qiie 
em  verdade  não  levou  comsigo. 

'<0s  médicos  <lo  nosso  tempo,  escrevia  em  1497  Nicolau  Leonieeno,  no 
seu  traetado  De.  morho  gallico,  não  podcram  ainda  dar  o  verdadeiro  nome  a 
esla  enfermidade;  eoratudo  chamam-lhe  commummente  mal  francez,  ou  seja 
por  pretenderem  que  o  contagio  se  deve  á  vinda  d'aquelles  estrangeiros  á  Itália, 
ou  então  porque  a  Itália  foi  ao  mesmo  tempo  atacada  pelo  exercito  francez  e 
por  esta  enfermidade. » 

Gaspar  Torella,  no  seu  traetado  De  doíore  in  pudendragra,  é  mais  ex- 
plicito ainda  : 

..  «Esla  enfermidade,  diz  elle,  foi  descoberta  quando  os  francezes  entraram 
á  mão  armada  em  Ilalia,  e  sobre  tudo  depois  que  se  apoderaram  de  Nápoles 
e  ulli  permaneceram  ;  por  esta  r  izão  os  italianos  lhe  deram  o  nome  de  viaí 
francez,  imaginando  que  era  natural  d'aquelle  povo.». 

Estcvam  Caíanco,  no  seu  livro  De  morbo  gaflico,  que  viu  a  luz  da  pu- 
blicidade em    loOo,  limita-se  a  recordar  o  mesmo  facto: 

«O  anno  de  1494  do  nascimento  do  Salvador,  diz  elle,  na  occasião  em 
que  Carlos  viu,  rei  de  França  se  apoderou  do  reino  de  Nápoles,  c  sob  o  pon- 
tificado de  Alexandre  vi,  viu  nascer  em  Itilia  uma  espantosa  enfermidade,  que 
jamais  se  havia  visto  nos  séculos  precedentes,  e  que  era  desconhecida  em  todo 
o  mundo.» 

João  de  Viço  faz  coincidir  lambem  a  passagem  de  Carlos  viii  pela  Itá- 
lia, com  a  súbita  invasão  d'esta  enfermidade,  que  nunca  fora  observada  ante- 
riormente. 

A  antipathia  nacional  dos  italianos  pelos  vencedores  não  deixou  de  ro- 
bustecer e  propagar  esta  errónea  opinião,  que  se  enraizou  no  povo  com  injus- 
tos rescnlimentos.  Os  francezes,  pela  sua  parte,  não  se  apressaram  tanto  a' 
queixar-se  dos  vencidos  e  a  diíTundir  a  verdade  que  os  justificaria  imraediata- 
menfe,  aprcsenfando-os  como  victimas  do  mal  napolitano,  porque  os  primei- 
ros auclorcs  francezes,  que  fallaram  do  contagio,  nada  disseram  a  respeito  da 
sua  origem,  nem  apontaram  como  causa  d'elle  as  delicias  de  Nápoles  conquis- 
tada por  (Carlos  viu. 

Houve  no  emianio  na  Itália  e  na  Allemanha  muitos  médicos  e  historia- 
dores mais  imparciaes,  qne  não  vacillaram  cm  proclamara  innocencia  dos  fran- 
cezes sobre  este  ponto,  approximando-se  d'esto  modo  da  verdade,  que  nem  a 
seiencia  nem  a  historia  deviam  dejvar  empanar  de  nuvens.  Uns  confirmaram 
a  data  de  I  494,  alfribuida  á  invasão  da  peste  venérea  {lues  venérea);  outros 
foram  mais  longe  em  busca  da  sua  origem,  ou  dos  seus  primeiros  estragos ;  ou- 
tros ainda,  ou  menos  inslruidos,  ou  fingindo  calculadamente  igncirancia,  trans- 
feriram para  o  armo  de  Ii96  a  primeira  invasão  da  enfermidade,  que  sup- 
pozeram  importada  da  Hespanha,  c  por  conseguinte  da  America. 

«No  anno  da  no.ssa  salvação  de  1496,  escrevia  cm  1307  António  Beni- 
venio,  a(ipare<'cu  uma  nova  enfermidade,  não  só  em  Itália,  como  em  quasi  to- 
dos os  paizcs   da   Europa.   Este   contagio,  que  provinha  da  Hespanha,  propa- 


0  4    PRdSTITUIÇÃíl  ??'J. 

gou-se  por  toda   a  parle,  primoiramente  em  Itália,  em  seguida  em  França,  e 
depois  pelos  outros  paizes  da  Europa,  atacando  uma  infinidade  de  pessoas.* 

Aqui  temos  agora  o  pobre  Carlos  viii  absolvido  da  aecusação  terrivel, 
que  o  fazia,  por  assim  dizer,  réu  de  lesa-Europa !  Os  historiadores  vêem 
dVste  modo  em  appoio  da  justificação  dos  francezes.  António  Cocaio  Snbclico, 
que  sabia  por  experiência  própria  o  que  era  a  ijrosse  vérole  {Elogia,  de  Paulo 
Jove)  diz  cathegoricamentc  no  seu  Compendio  histórico,  publicado  em  Veneza, 
cm  1502: 

«Ao  mesmo  tempo  (em  1496)  um  novo  género  de  enfermidade  começou 
a  propagar-se  por  toda  a  Itália,  desde  a  primeira  invasão  que  os  francezes  fi- 
zeram no  anno  precedente  (liOo),  e  é  provável  que  por  esta  razão  lhe  chamas- 
sem mal  francez,  pois,  segundo  presumo,  não  prtde  ter-se  por  averiguado  d'onde 
procede  esta  cruel  enfermidade,  que  nenhum  século  tinha  visto  até  então.» 

Se  a  data  de  1405  tivesse  podido  ser  estabelecida  e  comprovada,  a  pro- 
cedência do  mal  decerto  seria  allribuida  ao  descobrimento  da  America.  Em  todo 
o  caso  a  data  em  questão  piíde  evidentemente  referir-se  á  propagação  rápida  e 
formidável  da  epidemia  venérea. 

Para  os  sábios,  porém,  que  seguiam  cegamente  a  tradicção  popular,  era  fora 
de  duvida  que  o  mal  francez  e  o  mal  napolitano  haviam  precedido  a  trium- 
phante  expedição  de  Carlos  viii. 

«Os  francezes,  diz  sensatamente  Francisco  Guicciardini,  na  historia  do 
seu  tempo,  tendo  sido  accommettidos  d'esta  enfermidade,  durante  a  sua  perma- 
nência em  Nápoles,  e  regressando  em  seguida  á  sua  pátria,  propagaram-n'a  por 
toda  a  Itália.  Esla  enfermidade,  absolutamente  nova,  ou  ignorada  até  nossos 
dias  no  continente  europeu,  fez  tantos  estragos  por  espaço  de  muitos  annos,  que 
deve  passar  á  posteridade  como  uma  das  calamidades  mais  funestas.» 

Guicciardini  tinha  razão  attribuindo  unicamente  ao  exercito  do  rei  de 
França  a  propagação  do  mal  por  toda  a  Itália.  E'  claro  que  este  mal  se  havia 
arreigado  em  Nápoles,  antes  da  chegada  dos  francezes. 

Ulrich  de  Hutten,  douto  escriptor  allemão,  que  tinha  uma  triste  experiên- 
cia do  contagio  venéreo,  indica  o  anno  de  1493,  como  o  do  começo  da  epidemia, 
facto  que  elle  não  podia  apreciar  senão  de  outiva,  por  isso  que  redigia  em  Mo- 
guncia  em  1519  o  seu  livro  intitulado  De  morbi  gallici  curatione. 

«No  anno  de  1493,  diz  este  illustre  medico,  um  mal  verdadeiramente 
pernicioso  começou  a  fazer-se  sentir  não  S(S  em  França,  mas  primeiramente  eni 
Nápoles.  O  nome  d'esta  cruel  enfermidade  provém  de  se  haver  manifestado  no 
exercito  francez,  que  andava  em  guerra  n'aquelle  paiz,  sob  o  commando  de  Car- 
los VIU.» 

Em  seguida  refere  uma  interessante  particularidade,  que  nos  explica  o  mo- 
tivo porque  não  existe  accordo  entre  as  datas  históricas  attribuidas  á  invasão 
do  Dagello : 

«Não  se  fallou  d'esta  enfermidade,  durante  dois  annos  inteiros,  a  contai- 
do  tempo  em  que  havia  principiado.» 

Ulrich  de  Hutten  seguia  a  opinião  dos  médicos  allemães,  que  considera- 
vam a  enfermidade  muito  anterior  á  conquista  de  Nápoles  pelos  francezes.  As- 


230  MISTORJA 

sim  Wendelin  Hoek  de  Bracknaw,  que  havia  terminado  os  seus  estudos  médi- 
cos na  universidade  de  Bolonha,  repete  o  que  ouvira  dizer  na  ítalia  a  respeito 
da  épocha  primitiva  do  mal  napolitano. 

«Desde  o  anno  de   149i  até  ao  presente  de  'Io02,  diz  elíe,  certa  enfer- 
midade contagiosa,  que  chamam  o  mal  francez,  tem  feito  bastantes  estragos.» 
N'outro  logar,  porém,  declara  o  que  a  este  respeito  sabiam  todos  os  seus 
collegas  da  .\llcmanha : 

«Este  mal,  para  fallar  com  exactidão,  começou  no  anno  de  1483  de  Nosso 
Senhor  Jesus  Christo,  em  consequência  da  conjuncção  de  muitos  planetas  no 
mez  de  outubro  do  mesmo  anno,  o  que  annunciava  a  corrupção  do  sangue  e 
da  bilis,  a  confusão  de  todos  os  humores  e  a  abundância  do  humor  melancó- 
lico, tanto  nos  homens  como  nas  mulheres.» 

Os  mais  hábeis  médicos  allemães,  L.  Phrjsius,  João  Benito,  etc,  segui- 
ram o  mesmo  syslema,  e  atlribuiram  a  causa  da  enfermidade  ás  revoluções 
planetárias  e  às  desordens  atmosphericas  do  anno  de  1483. 

Não  foi  esta  ainda  assim  a  única  hypothese,  nem  a  mais  inverosimil,  a 
que  recorreram  os  historiadores,  para  explicar  o  apparecimento  do  flagello.  N'este 
ponto  seguiam  elles  a  opinião  do  vulgo,  e  é  de  saber  que  o  vulgo,  especial- 
mente em  Itália  c  n'aquplla  época,  está  sempre  disposto  a  attribuir  origens  ma- 
ravilhosas a  tudo  aquillo  que  não  comprehende.  O  mal  franrez,  de  preferencia 
a  qualquer  outro  acontecimento,  excitou  a  imaginação  dos  napolitanos,  e  pres- 
tou-se  naturalmente  ás  invenções  mais  extravagantes,  entre  as  quaes,  no  em- 
tanto,  não  seria  impossivcl  descobrir  algum  facto  verdadeiro,  envolvido  em  fa- 
bulas ridículas. 

Gabriel  Fallope,  que  escreveu  em  '1560,  muito  tempo  depois  do  aconte- 
cimento que  refere,  affirma  que,  por  occasião  da  primeira  guerra  de  Nápoles, 
uma  guarnição  hespanhola  abandonou  alta  noite  as  trincheiras  confiadas  á  sua 
guarda,  dejjois  de  haver  envenenado  os  poços  e  de  ter  aconselhado  aos  padei- 
ros italianos  que  misturassem  gesso  c  cal  no  pão  de  munição  das  tropas  fran- 
cezas.  Este  pão  e  a  agua  envenenada  produziram  a  infecção  venérea,  segundo 
a  relação  do  referido  Gabriel  Fallope. 

André  Cisalpino  de  .\rezzo,  que  foi  medico  de  Clemente  viii,  pretendia 
que  o  envenenamento  dos  francezes  fora  devido  a  outros  processos,  assegu- 
rando que  testemunhas  occulares  lhe  haviam  referido  o  facto: 

«Depois  da  tomada  de  Nápoles,  os  francezes  tiveram  de  sitiar  Surama, 
praça  guarnecida  por  hespanhoes.  Estes  sahiram  da  fortaleza  durante  a  noite 
deixando  á  disprisição  dos  sitiados  muitos  tonneis  de  excellente  vinho  do  Ve- 
súvio, em  que  se  havia  misturado  sangue  ministrado  pelos  leprosos  do  hospi- 
tal de  S.  Lazaro.  Os  francezes  entraram  na  praça  sem  a  minima  resistência,  e 
embriagaram-se  com  aquelle  vinho  envenenado.  Ficaram  logo  enfermos,  e  os 
symptomas  da  enfermidade  assimilhavam-se  aos  da  lepra.» 

A  verdade  cobre-.se  aqui  de  véus  demasiadamente  transparentes. 
Ha  ainda  outras  tradicções,  que  se  alTastam  da  opinião  mais  geral  e  me- 
nos  inverosimil.    Fioravanli,    nos   seus    Cnprirrl   meilirinali  que  |)iiblicou  em 
1564,  refere   uma  singular   historia,  a  qual,  segundo  affirma,  lhe  fora  minis- 


•  DA    rRUSTIlLilÇÃO  234 

frada  por  um  certo  Paschoal  GibiloUa,  de  Nápoles,  seu  conlemporaoco.  Durante 
aquella  faniOvSa  expedição  de  Mapoles,  um  dos  factores  da  enfermidade,  os  vi- 
vandeiros  napolitanos  ({ue  abasteciam  os  exércitos  tiveram  falta  de  rezes,  e  lem- 
braram-se  —  que  infernal  idéa! — de  empregar  a  carne  dos  mortos  como  se 
fora  de  vacca,  ou  de  carneiro.  Os  desgraçados  que  comeram  carne  humana, 
que  a  morte  e  a  corrupção  haviam  envenenado,  foram  logo  atacados  por  uma 
enfermidade,  que  não  era  senão  a  syphilis. 

Fioravanti  não  nos  diz  qual  foi  o  thealro  d'aquellas  espantosas  scenas  de 
anlropophagia,  mas  como  na  sua  narração  apresenta  os  hespanhoes  em  presen- 
ça dos  francezes,  é  de  presumir  que  este  facto  isolado  se  desse  por  occasião  do 
silio  de  alguma  pequena  praça  da  Calábria,  occupada  pelos  hespanhoes.  E'  sa- 
bido que  toda  a  carne  corrompida  pôde  produzir  efíeitos  análogos  aos  do  enve- 
nenamento, mas  o  que  realmente  não  pôde  admiltir-se  é  a  idéa  de  Fioravanti 
de  que  os  animaes  por  comerem  outros  da  sua  espécie  fiquem  sujeitos  a  uma 
enfermidade  análoga  ao  mal  napolitano.  Era  uma  crença  extremamente  arrei- 
gada que  o  uso  de  carne  humana  causava  enfermidades  agudas,  epidemicas  e 
pestilenciaes. 

O  illustre  philosopho  Francisco  Bacon,  barão  de  Veruiam,  apesar  de  me- 
dico distinctissimo,  não  hesitou  em  repetir,  na  sua  llisloria  iSatural,  a  horrí- 
vel narração  de  Fioravanti : 

«Os  francezes,  diz  elle,  cujo  nome  tomou  o  mal  napolilaiw,  referem  que 
havia  no  cerco  de  Nápoles  fornecedores  tão  malvados,  que  vendiam  carne  de 
homens  mortos  na  Mauritânia,  e  que  se  atlrihuia  a  origem  da  enfermidade  a 
fào  horrível  alimento.  Parece  bastante  verosímil  este  facto,  porque  os  antropo- 
phagos  das  costas  occidenlaes  são  muito  propensos  á  varíola.» 

Procurar  na  anlropophagia  a  origem  do  mal  de  i\apoles  não  era  ainda 
o  cumulo  do  horror  attribuído  ás  causas  d'este  odioso  contagio,  que  se  julgava 
commummente  como  um  fructo  do  peccado  e  da  maldição.  Dois  ílluslres  médi- 
cos do  século  XVI,  que  não  haviam  observado  mais  do  que  os  effeitos  já  de- 
crescentes do  contagio,  atiraram-lhe  a  ultima  pedra,  procurando  demonstrar, 
com  melhor  intenção  do  que  êxito,  que  o  mal  venéreo  devia  a  sua  origem  á 
sodomia  e  á  bestialidade. 

«Um  santo  leigo,  refere  João  Baptista  Helmont,  no  seu  Tumidis  peslis, 
querendo  a  todo  o  custo  descobrir  porque  motivo  este  horrível  mal  havia  ap- 
parecído  somente  no  século  passado  e  não  antes,  teve  um  êxtase  milagroso,  e 
durante  elle  uma  visão  extraordinária.  Appareceu-lhe  uma  égua  cheia  de  tu- 
mores, por  onde  o  santo  homem  concluiu  que  no  cerco  de  Nápoles,  em  que 
esta  enfermidade  appareceu  pela  primeira  vez,  algum  soldado  tivera  copula, 
abominável  e-om  um  animal  d'aquella  espécie  atacado  do  mesmo  contagio,  o 
qual  ímmediatamenle,  e  por  eITeíto  da  justiça  divina,  infeccionara  desgraçada- 
mente o  género  humano.» 

Mais  tarde,  em  1706,  um  medico  inglez,  João  Linder,  procurando  des- 
cobrir as  causas  secretas  da  syphilis  americana,  não  receiou  alTirmar  «que 
este  mal  tinha  a  sua  origem  na  sodomia  entre  os  homens  e  os  grandes  maca- 
cos, que  são  os  satyros  dos  antigos.» 


fiS!  HISTORIA 

E'  conveniente  notar  que  em  todas  as  observações  dos  médicos  que  pri- 
meiro estudaram  o  mal  de  Nápoles,  tanto  em  Ilalia,  como  em  França  e  AUe- 
manha,  não  st'  faz  menção  alguma  da  enfermidade,  que  Christovam  Colombo 
trouxe  das  Anlillias,  a  qual  cm  caso  algum  jjudia  aiitecipar-se  a  um  mal  aná- 
logo, nascido  e  acdimado  na  Europa,  antes  que  o  descobrimento  da  America 
trouxesse  os  seus  amargos  fructos. 

Christovam  Colombo,  voltando  da  sua  primeira  viagem  á  America,  onde 
apenas  se  demorara  um  mcz,  arribou  ao  porto  de  Paios  no  dia  13  de  janeiro 
de  1493  com  oitenta  e  dois  marinheiros,  ou  soldados,  e  nove  Índios.  Pôde  ser 
que  o  estado  sanitário  da  tripulação  não  fosse  dos  melhores,  o  que  é  certo,  po- 
rém, é  que  os  historiadores  nada  dizem  a  tal  respeito,  constando  apenas  que 
partiu  immediatamente  para  Barcelona  com  alguns  companheiros  de  viagem 
afim  de  dar  conta  da  sua  expedição  aos  reis  catholicos. 

«A  cidade  de  Barcelona,  diz  Rodrigo  Diaz,  no  seu  tratado  Contra  las 
bubas,  foi  immediatamente  infectada  de  um  mal,  que  fez  assustadores  pro- 
gressos.» 

A  vinte  e  cinco  de  setembro  do  mesmo  anno,  Christovam  Colombo  fez-se 
outra  vez  de  vela  com  quinze  navios,  1.^00  soldados,  e  grande  numero  de  ma- 
rinheiros e  arlifices.  Qualorze  d'estes  navios  voltaram  a  Hespanlia  no  anno  se- 
guinte, e  no  fim  d'cste  anno  Bartholomeu  Colombo,  irmão  de  Christovam,  par- 
tia para  a  metrópole  com  três  navios,  trazendo  a  bordo  Pedro  Margarite,  fidalgo 
catalão,  gravemente  enfermo  de  syphilis.  Talvez  não  fosse  elle  o  único  atacado 
d'esta  enfermidade,  mas  o  diário  de  bordo  não  cila  outro  caso. 

O  anno  de  1493  multiplicou  as  relações  marítimas  entre  as  Antilhas  e 
Hespanha.  Por  isso,  quando  Christovam  Colombu,  accusado  de  crimes  imagi- 
nários, regressava  carregado  de  ferros  ao  velho  mundo,  o  navio  em  que  vinha 
prezo  transportava  também  duzentos  soldados  atacados  do  mal  americano.  Es- 
tes duzentos  empestados  desembarcaram  em  Cadix  a  10  de  junho  de  1496. 
Nove  mezes  depois,  o  parlamento  de  Paris  publicava  um  edito  relativo  aos  en- 
fermos da  grasse  vérole. 

Sem  receio  de  paradoxo,  poderia  muito  bem  suslentar-se  que  foi  a  Eu- 
ropa que  empestou  a  America  com  uma  enfermidade  à  qual  o  clima  das  Anti- 
lhas convinha  melhor  que  o  de  Nápoles.  Poderiam  adduzir-se  razões  bem  po- 
derosas para  demonstrar  que  os  aventureiros  hespanhoes  ao  serviço  do  exer- 
cito do  rei  de  Nápoles,  regressaram  á  pátria  infeccionados  de  virus  venéreo, 
embarcando  logo  em  seguida  para  a  Ameiica  sem  estarem  bem  curados.  De- 
masiado se  conhece  a  inlluencia  que  a  mudança  de  clima  e  de  hábitos  tiveram 
sempre  sobre  esta  enfermidade  inexplicável,  que  o  calor  adormece  e  o  frio  des- 
perta, augmentando-lhe  a  violência  e  os  estragos.  Finalmente  ficará  como^ 
cousa  provável,  senão  provada,  que  o  mal  venéreo  tal  como  appareceu  na  Eu- 
ropa abi  por  1494  não  era  senão  um  infame  producto  da  lepra  e  da  liberti- 
nagem . 

Todos  os  médicos  reconheceram,  ainda  que  tarde,  que  o  mal  não  era  tal- 
vez tão  novo,  como  a  principio  se  julgava,  e  viram  que  a  lepra  e  sobre  tudo  a 
f.lephantiasis  Unham  mais  de  um  symptoma  análogo  com  esta  alTecção  virulenta, 


DA    PROSTITUIÇÃO  233 

que  se  rodeava  de  symptomas  exlranlios,  mas  que  em  principio  se  mantinha 
sempre  invariável. 

A  opinião  do  vulgo  tanto  se  manifestou  a  este  respeito,  que  a  medicina  não 
poude  deixar  de  lhe  prestar  attenção.  E'  caso  notável  que  os  mais  audazes  fun- 
dadores da  sciencia  se  tenham  limitado  a  repetir  os  boatos  que  a  respeito  da 
origem  da  syphilis  corriam,  sem  assentarem  n'um  systema  que  teria  sido  pos- 
sível hast-ar  em  provas  o  experiências.  N.)s  primeiros  tempos  a  epidemia  era,  po- 
rém, considerada  como  uma  praga  enviada  pelo  eeu  e  odiosa  á  natureza,  se- 
gundo as  prapriís  expressões  de  José  Grundbeck,  auctor  do  mais  antigo  tra- 
ctado  que  se  conhece  sobre  esta  matéria,  e  os  médicos  recusavam-se  a  tractar 
dos  enfermos  que  reclamavam  os  seus  cuidados. 

«Os  sábios,  diz  Torella, .  evitam  tractar  esta  enfermidade,  persuadidos 
de  que  não  a  entendem.  Por  este  motivo,  os  vendedores  de  drogas,  os  herba- 
narios  e  os  charlatães  julgam  ser  os  únicos  que  a  sabem  curar.» 

UIrich  de  Hutten  mais  claramente  se  exprime  ainda,  confessando  que  o 
mal  foi  abandonado  a  si  próprio  e  ás  suas  forças  mysteriosas.  antes  que  a  me- 
dicina e  a  cirurgia  tivessem  a  coragem  de  o  tractar. 

«Os  médicos,  diz  clle,  espantados  d'esla  enfermidade,  nSo  somente  evi- 
tavam approximar-se  dos  atacados,  mas  até  mesmo  fugiam  d'ellcs,  como  de 
doentes  desesperados.  .  .  Emâm,  no  meio  d'este  desalento  dos  médicos,  os  cirur- 
giões arriscaram-sc  pouco  a  pouco  a  pôr  a  mão  em  tão  difíicil  Iractamento.v* 

Claramente  explicam  esías  circumstaneias  a  razão  porque  os  primórdios 
da  lepra  venérea  permaneceram  tão  obscuros  e  tão  mal  estudados,  em  todos  os 
paizes  nos  quaes  este  ílagello  appareceu  quasi  simultaneamente. 

No  emtanfo,  possuia-se  a  chave  do  enigma,  e  basfaria  consultar  as  frâ- 
dicções  das  Cortes  dos  Milagres  e  dos  antros  da  libertinagem,  para  averiguar  de 
que  maneira  se  produzia  c  transformava,  sob  a  influencia  da  prostituição,  ò 
monstro,  o  Proteu  syphilitico.  A  verdade  scientifiea  andava  provavelmente  en- 
volta n'aquellas  anecdotas  que  ate  mesoTO  os  grandes  médicos  não  desprezaram 
e  foram  muitas  vezes  buscar  ás  viellas  mais  suspeitas.  João  Menardi  de  Fer- 
rara, n'uma  carta  dirigida  em  loo2a  Miguel  Sanlanna,  cirurgião  que  se  dedi- 
cara ao  traclaniento  das  moléstias  venéreas,  diz-lhe  que  a  opinião  mais  antiga 
e  mais  geral  é  a  que  fixa  a  origem  d'.cslc  mal  na  épocha  em  que  Carlos  viu  se 
preparava  para  a  guerra  da  Itália,  em  1493. 

«Esta  enfermidade,  diz  elle,  appareceu  primeiramente  em  Valença  de  Hes- 
panha,  por  culpa  de  uma  famosa  corlezã,  que  mediante  o  preço  de  cincoenta  es- 
cudos de  ouro  concedeu  os  seus  favores  a  um  individuo  atacado  de  lepra.  In- 
feccionada desde  esse  momento,  a  referida  corlezã  contaminou  todos  os  man- 
cebos que  a  conheciam  carnalmente,  cujo  numero  dentro  em  pouco  subiu  a 
quatrocentos  e  tantos.  Alguns  d'cslps  mancebos  que  seguiram  á  Kalia  o  rei 
Carlos  importaram  n'aquelle  paiz  o  terrível  contagio.» 

Menardi  cita  também  este  facto,  e  o  mesmo  faz  o  sábio  medico  natura- 
lista Pedro  André  Matbioli,  que  apenas  muda  os  personagens  e  o  logar  da 
scena. 

Ouçamos  este  homem  de  sciencia  : 

HreTOBU  JVA  pBoexirniçIo.  Tnxo  d— FmtTA  30. 


134  HIRTORTA 

«Ha  quem  diga  que  os  francczcs  contrahiram  este  mal  cm  consequência 
de  haverem  tido  commercio  impuro  com  mulheres  leprosas,  ao  passarem  D'uraa 
das  montanhas  da  Ilalia.  (Tracl.  De  morbo  gallico.)')^ 

A  identidade  da  syphilis  e  da  lepra  é  claramente  indicada  n'esfas  simples 
reminiscências  de  bnm  senso  popular;  no  emianto,  os  homens  da  scicncia 
aproveitavam-n'as,  fechando  os  olhos  ao  grande  ensinamento  que  ellas  tào  lu- 
minosamente encerravam. 

Outro  medico  de  Ferrara,  António  Musa  Brassavola,  adraitlia  provavel- 
mente a  preexistência  dos  males  venéreos  e  do  virus  que  os  communica,  quando 
refere  o  seguinte  faclo  no  seu  livro  acerca  do  mal  francez : 

«No  acampamento  dos  francczcs,  diante  de  Nápoles,  diz  este  illustre  me- 
dico, havia  uma  cortezfl  tão  famosa  como  bella,  que  tinha  uma  ulc«ra  de  má 
qualidade  no  orifício  da  madre.  Os  homens  que  tinham  copula  com  ella  contra- 
hiam  immediatamenlc  uma  afTecção  maligna  que  lhes  ulcerava  o  membro.  Mui- 
tos homens  foram  victimas  d'esle  contagio,  e  em  seguida  muitas  mulheres  que 
que  com  elles  tiveram  copula  contrahiram  o  mesmo  mal,  que  por  sua  vez  com- 
municaram  a  outros  homens.» 

Vé-se,  portanto,  segundo  esta  opinião  de  António  Musa  Brassavola,  que 
o  mal  de  Nápoles  não  era  senão  uma  complicação  accidental  do  mal  venéreo, 
que  teria  existido  isoladamente  em  alguns  indivíduos,  antes  de  ser  epidemico 
e  de  haver  adquirido  a  sua  prodigiosa  actividade. 

Finalmente  um  dos  mais  illuslrcs  homens  de  sciencia  que  fizeram  a  luz 
nas  trevas  da  medicina,  Paracelso,  cxpoz  uma  Iheoria  completamente  nova  a 
propósito  das  cnformidailcs  venéreas,  quando  proclamou  a  sua  afinidade  com  » 
lepra,  na  Grande  Cirurgia  (lib.  i,  cap.  8.) 

«A  sy|)liilis,  diz  elle  com  es.sa  convicção  que  só  o  génio  pôde  dar,  teve 
origem  no  commercio  impuro  de  um  francez  leproso  com  uma  corlezã,  que  ti- 
nha bubões  venéreos,  a  qual  infestou  logo  quantos  tiveram  copula  com  ella. 
Foi  assim,  continua  este  hábil  e  audaz  observador,  que  a  syphilis,  procedente 
da  lepra  e  do  bubão  venéreo,  assim  como  a  raça  das  mulas  sabe  do  cruzamento 
do  cavallo  com  a  burra,  se  estendeu  por  conlngio  a  todo  o  mundo.» 

Ha  n'csla  paFsagem  da  Grande  Cirurgia  mais  lógica  e  mais  sciencia  do 
que  em  todos  os  cscriptos  dos  séculos  xv.  e  xvi  a  respeito  da  aíTecção  ven-^rea, 
cuja  verdadeira  origem  nenhum  medico  tinha  adivinhado. 

Paracelso  considerava,  segundo  se  vé,  o  mal  de  14-94  como  uma  nova  es- 
pécie da  antiga  família  das  enfermidades  venéreas. 

O  grande  reformador  da  medicina  chegou  a  esta  conclusão  depois  de  pro- 
fundos estudos  sobre  a  natureza  da  enfermidade,  considerada  geralmenf*'  a 
mais  terrível  e  assoladora  do  seu  tempo. 

Paracelso  nasceu  em  Zurich  cm  149:í.  Philosopho  distinclissimo,  o  sen 
espirito  deuma  penetração  assombrosa  resolvia  facilmente  os  mais  complica- 
dos problemas  nos  mais  oppostos  ramos  do  saber  humano. 

Como  medico,  a  sua  reputação  eguala  á  dos  mais  notáveis  e  audazes  fun- 
dadores da  medicina.   Reformou  os  conhecimentos  médicos  do  seu  tempo,  es- 


DA  rKosiiTuiçAo  233 

tabeleceu  novas  theorias  luminosas,  e  deu  o  maior  impulso  á  scicncia,  appli- 
cando-lhe  todos  os  recursos  do  génio  de  que  era  amplamente  dotado. 

A  sua  Grande  Cirurgia  foi  o  novo  evangelho  da  sciencia  de  curar,  e  o 
ponto  de  partida  de  uma  evolução  coroada  dos  mais  brilhantes  resultados. 

Citamos  com  admiração  as  palavras  do  grande  reformador,  que  soube 
lér  claramente  no  livro  da  natureza  o  que,  para  tantos  outros  mestres  illustrea, 
se  conservara  até  então  occullo  no  mais  impenetrável  myslerio. 

Paracelso  justifica  e  auctorisa  a  nossa  obscura  opinião,  embora  ella  seja 
contrariada  pelos  preconceitos  ridículos  de  muitas  outras  auctoridades  scien- 
tiflcas. 


CAPITULO  XXI 


SUMMARIO 


Syroptoma»  da  syptillis.  segundo  f  rascator.— TransformaçSo  do  vinis  a  paitir  do  anno  de  l-WC— TracU- 
mento  Italiano  polo  mercúrio.— Tractamento  fraccez.— Decreto  do  pailamento  de  Paris  contia  o  mal  de  Napt  le«  em 
1497.— Pi-itneiroí  hospitaea  venéreos  eai  Paris.— Ordenajões  do  preboste  de  Paris  e  medidas  policiaes  no  tempo  de 
Luiz  XII,  Francisco  i  e  Henrii[ue  ii.— lnvas5o  da  sypliilis  nas  provindas  desde  1494.— Os  médicos  recu.sam-se  a  ai- 
•iltlr  aos  enfermo».— Tritímp/io  glorioso  da  muito  alta  e  poderosa.daina  D.  Sypliilis,  livro  curioso  e  raris- 
ílmo  attribuido  a  RabeUu  e  publicado  sob  o  pseudonyrao  de  Martinho  Dorciiesino.— Citação  de  uma  pas-ag»m  de 
Pantagruel.— Ot  syphiliticoa  edmlttidoj  no  bospital //o/e/-i)í«í,  de  Paris.— O  hospital  de  Ourcine.—Dssapparlçíe 
dai  gafarias  em  Fraa;a. 


luAEs  FORAM  OS  symptoDQas  e  o  tractamento  mt^dico  do  mal  na- 
politano nos  primeiros  tempos  da  sua  apparição  ?  Não  deve- 
mos julgar  que  este  mal  horrível,  a  principio  tido  como  incu- 
rável, se  manifestou  nos  primeiros  tempos  da  invasão  com  o 
mesmo  caracter  e  o  mesmo  aspecto  da  sua  épocha  de  decadên- 
cia e  do  seu  periodo  estacionário.  Pôde  até  mesmo  aíBrmar-se,  sem  grandes  re- 
ceios' de  paradoxo,  que  esta  enfermidade,  com  algumas  excepções,  se  tornou 
actualmente  no  que  era,  antes  do  monstruoso  consorcio  da  lepra  e  do  virus  ve- 
néreo. Desde  1540,  segundo  o  testemunho  de  Guicciardini,  que  assignava  á  ori- 
gem da  epidemia  a  data  de  1494,  o  mal  atenuava-se  pouco  a  pouco,  reprodu- 
dndo-se  em  muitas  espécies  differentes  da  primeira. 

Na  sua  origem,  queremos  dizer,  no  espaço  de  tempo  que  se  seguiu  à  sú- 
bita e  quasi  univer.sal  explosão  d'este  flagello,  os  sympfomas  eram  verdadei- 
ramente dignos  do  espanto  que  inspiravam,  e  comprehende-se  que,  em  todos  os 
paizes  invadidos  por  elle,  os  regulamentos  policiaes  cuidadosamente  modelados 
pelos  que  haviam  servido  n'outros  tempos  para  a  lepra,  isolassem  da  sociedade 
dos  vivos  as  desgraçadas  victimas  d'esta  pesle  vergonhosa.  Suppunha-se  além 
d'isto  que  o  contagio  era  mais  immediato,  mais  prompto,  mais  inevitável  que 
o  de  outra  qualquer  enfermidade.  Julgava-se  como  averiguado  que  a  transmis- 
são do  mal  não  se  operava  tão  somente  pela  união  carnal,  mas  que  se  reali- 
sava  até  mesmo  pela  respiração  ou  pelo  olhar  de  um  syphilitico. 

Toiíos  os  médicos  que  observaram  a  enfermidade  entre  os  annos  de  1494 
c  1514,  primeiro  periodo  geralmente  indicado  para  a  sua  invasão  e  desenvol- 
vimento, parecem  assombrados  das  suas  próprias  observações.  Todos  ellet  con- 


?38  HISTORIA 

cordam  e  se  repetem  até  na  descripção  dos  symptomas  syphiliticos,  que  talvez 
não  se  manifestassem  cgualmenle  em  todos  os  enfermos,  mas  que  todavia  for- 
mavam a  conslitiiição  primitiva  do  mal  de  Nápoles. 

Jcronymo  Frascalor  compendiou  admiravelmente  os  tractados  de  Leoni- 
ceno,  Torella,  Calanco  e  Almenar,  seus  contemporâneos,  no  seu  livro  De  mor- 
bis  contagiosis,  onde  descreve  os  symptomas  que  elle  próprio  observara  na 
épocha  em  que  estudava  medicina  e  professava  philosophia  na  universidade  de 
Verona.  Frascator  resume  nos  termos  seguintes  a  descripção  espantosa  do  mal 
de  Nápoles  na  sua  origem : 

«Os  enfermos  andavam  trisles,  indolentes,  abatidos  e  pallidos.  A  maior 
parte  d'elles  tinbam  cancros  nos  órgãos  genitaes,  cancros  rebeldes  e  insidiosos, 
que  não  desappareciam  nunca  de  um  ponto  senão  para  reappareccrem  n'outro 
ponto.  Em  seguida  appareciam-Jhes  pústulas  na  pelle,  que  a  uns  começavam 
pela  cabeça,  o  que  succedia  mais  vulgarmente,  e  a  outros  em  diversas  parles 
do  corpo,  indistinclamente.  Eram  pequenas  a  principio,  depois  engrossando 
pouco  a  pouco,  tomavam  o  tamanho  e  a  forma  de  uma  bolota.  Havia  pacien- 
tes em  que  estas  pústulas  eram  pequenas  e  séccas  ;  n'outros  grossas  e  húmi- 
das; umas  vezes,  li  vidas  ou  esbranquiçadas;  outras,  duras  e  avermelhadas. 

«Ao  cabo  de  alguns  dias  abriam,  destillando  continuamente  uma  abun- 
dante porção  de  humor  repugnante  e  fétido.  Desde  que  rebentavam  eram  ver- 
dadeiras ulceras  que  consumiam  não  somente  as  carnes,  mas  lambem  os  ossos. 
Alguns  desgraçados  tinham  (luxões  malignas  que  lhes  corroiam  já  o  paladar, 
já  a  tracheia  artéria;  umas  vezes  a  garganta,  outras  os  gorgomillos. 

aCertos  pacientes  perdiam  os  lábios,  outros  o  nariz,  outros  os  olhos,  ou- 
tros finalmente  as  partes  vergonhosas. 

«Frequentemente  desfiguravam-lhc  os  membros  uns  tumores  gommosos  do 
tamanho  de  um  ovo,  e  quando  rebentavam  destillavam  um  humor  branco  e 
mucilaginoso.  Os  membros  quasi  sempre  atacados  eram  os  braços  e  as  peruas, 
que  se  cobriam  de  ulceras,  quasi  sempre  incuráveis. 

«Mas,  como  se  tudo  isto  não  bastasse,  manifestavam-sc  ainda  agudíssi- 
mas dores  ao  mesmo  tempo  que  appareciam  as  pústulas,  e  ás  vezes  ainda  an- 
tes d'ellas,  dores  prolongadas,  insupportaveis,  que  se  exacerbavam  principal- 
mente de  noite.  A  sede  d'estas  horríveis  dores  não  era  nas  articulações  propria- 
mente ditas,  mas  sim  na  massa  dos  membros  e  noa  nervos.  Havia  enfermos 
que  tinham  pusiulas  sem  dores,  ou  dores  sem  pústulas,  mas  o  mais  vulgar  era 
ler-se  uma  c  outra  cousa. 

«A  isto  vinha  juntar-se  o  enfraquecimento  dos  membros,  a  falta  de  appe- 
tite,  grandes  insomnias,  uma  grande  tristeza,  e  uma  prostração  invencível,  pa- 
recendo que  o  corpo  pedia  constantemente  o  leito. 

«Em  seguida  inchavam  o  rosto  e  as  pernas;  algumas  vezes  ^obrevinha 
uma  pequena  febre  e  uma  dôr  de  cabeça  que  não  cedia  .a  nenhuma  espécie  de 
remédio.» 

Sentimos  ter  de  recorrer  à  traducçâo  pesada  e  incorrecta  do  simple»  e 
ingénuo  Jaull,  que  nus  dá  uma  ideia  bem  pallida  do  eslylo  firme,  enérgico, 
«Jesanlc,  poclico  mc.mo  de  Frascalor;  em  hMlu  o  caso,  queremos  deixar  a  um 


B\    PRuSTITUIÇirt  139 

homem  de  sciencia  a  responsabilidade  de  nus  dar  d'csta  passagem  uma  versão 
medica,  em  legar  de  uma  reproducção  lillcraria  das  opiniões  do  auctor. 

Depois  da  leitura  d'esla  di-seripção  tão  caraclerisliea,  como  se  eompre- 
hcndc  que  o  sábio  Fraseator  lenha  negado  na  mesma  obra  a  profunda  analogia 
da  lipra  com  o  mal  napolitano?  Não  sendo  este  ultimo  mais  do  que  uma  com- 
plicação da  lepra  sob  a  influencia  do  virus  venéreo,  devia  ter  relações  intimas 
com  a  peste  inguinal  do  século  vi  e  o  mal  dos  ardentes  do  século  ix,  que  não 
foram  também  senão  transformações  epidemicas  da  elephantiasis.  O  mal  de 
Nápoles,  porém,  a  partir  do  anno  de  lol4  tem  também  as  suas  metamorpho- 
ses,  causadas  sem  duvida  pelo  que  denominaremos  um  cruzamento  de  raças 
da  enfermidade. 

João  de  Viço  falla-nus  também  de  seirros  ósseos  que  sobrevinham  aos 
enfermos,  um  anno  pelo  menos  depois  de  atrozes  dores  infernas  por  todos  os 
membros.  Estes  seirros  (|ue  atormentavam  muito  o  paciente,  sobre  tudo  de 
noite,  terminavam  sempre  pela  carie  da  espinha  dorsal. 

Pedro  Menardi,  que  tractava  habilmente  as  afTecções  syphiliticas  quasi  ao 
mesmo  tempo  que  João  de  Viço  (1514  a  1526)  indica  muitos  outros  sympto- 
mas  do  virus  venéreo : 

«O  principal  signal  do  mal  francez,  diz  elle  no  eap.  iv  do  seu  tractado 
De  morbo  gallico,  consiste  n'umas  pústulas  que  nascem  na  extremidade  do 
membro  e  á  entrada  da  vulva,  ou  collo  da  madre,  e  n'uma  grande  comichão 
nas  parles  que  contécm  o  sémen.  O  mais  frequente  é  que  estas  pústulas  se  ul- 
ccrem,  e  digo  o  mais  frequente,  porque  tenho  visto  enfermos,  cujas  pústulas 
se  endurecem  como  verrugas  e  callos.» 

Parece  que,  durante  este  segundo  periodo,  o  mal  de  Nápoles,  apezar  de 
algumas  variações  symptomaticas,  conservou  toda  a  sua  intensidade.  Mas  de 
1526  a  1540  entrou  n'um  periodo  decrescente,  ainda  que  o  mal  venéreo  se 
manifestasse  n'essa  epocha  mais  pelo  tumor  das  glândulas  inguinarias  e  pela 
depilação. 

«Ás  vezes  o  virus  afllue  ás  virilhas  e  entumece  as  glândulas,  diz  um 
medico  francez,  António  Lecocq,  publicando  em  1540  o  seu  opúsculo  De  ligno 
sanio  ;  se  o  tumor  suppura,  é  quasi  sempre  um  bem.  Esta  enfermidade  cbama-sc 
bubão;  outros  cluimam-n'a  caoallo  (poulain,)  alkulindo  burlescamente  ao  modo 
de  andar  dos  pacientes,  que  abrem  as  pernas  como  se  cavalgassem.» 

Pelo  que  respeita  á  depilação,  este  effcilo  deve  atlribuir-se  mais  ao  tra- 
ctamenlo  mercurial  do  que  á  própria  enfermidade. 

«Ha  seis  annos  a  esla  parte,  dizia  Fraseator  em  1546,  a  enfermidade 
mudou  consideravelmente.  Tornaram-se  raríssimas  as  pústulas,  desapparece- 
ram  as  dores,  e  o  que  se  nota  mais  são  os  tumores.  Uma  cousa  que  impres- 
siona em  extremo,  é  a  depilação.  E  ha  ainda  pcor:  os  dentes  abalam-se  e  cos- 
tumam cahir  também.» 

Era  a  consequência  fatal  do  emprego  do  mercúrio  na  medicação  italiana; 
em  França,  porém,  o  uso  dos  remédios  vegelaes  prevalecera,  os  accidentes 
da  enfermidade  ditTeriam  de  uma  maneira  essencial,  o  que  nos  permitle  alBr- 
mar  que    o   mal    de  Nápoles,  affaslando-se  da  sua  origem,  chegara  a  ser  ex- 


SiO  HISTORIA 

clusivamente  venéreo,  separando-se  da  lepra  e  de  qualquer  outra  affccção  con- 
tagiosa, com  que  primitivamente  contraiiira  alliança  adultera. 

Não  trataremos  de  seguir  a  degeneração  do  mal  de  Nápoles.  Foi  nosso 
intento  unicnmente  fazer  compreliender  que  a  lepra  existia  ainda  sob  a  appa- 
rencia  do  mal  novo,  e  que  os  climas,  os  temperamentos,  as  circumstancias  lo- 
caes  influíam  intimamente  sobre  as  causas  e  effeilos  da  enfermidade.  Era 
inútil  demonsírar  de  outro  modo  a  funesta  acção  que  devia  ter  n'ãquella  epo- 
cha  a  libertinagem  publica  sobre  a  saúde  dos  que  a  ella  se  entregavam. 

Ninguém  pôde  negar  que  o  mal  era  de  uma  natureza  tão  communi-ativa, 
que  podia  dar-se  o  contagio  em  grande  numero  de  casos,  sem  que  o  acto  ve- 
néreo lhe  servisse  de  vehiculo.  Ainda  assim,  comprebende-se  que  se  o  llagillo 
penetrava  sem  se  saber  como  no  interior  das  famílias  bonestas,  devia  ter  tido 
por  origem  factos  de  prostituição.  Nunca  a  frequentação  de  mulheres  de  má 
vida  foi  mais  perigosa  que  nos  cincoenta  annos  que  se  seguiram  á  primeira 
apparição  do  mal,  porque  só  muito  tarde  se  poude  observar  que  este  mal,  nas-, 
eido  de  um  commercio  impuro  qualquer,  se  transmittia  mais  rápida  e  segura- 
mente pelas  relações  sexuaes  do  que  por  qualquer  outro  contacto. 

Os  costumes  eram  mais  regulares  em  França  do  que  na  Itália,  e  os  li- 
bertinos, para  cujas  necessidades  se  deixavam  abertas  as  rasas  de  prostituição, 
viviam  absolutamente  fora  da  vida  commum.  Foi  n'elles,  portanto,  que  o  mal 
napolitano  exerceu  desde  logo  os  seus  assoladores  estragos,  sem  que  a  medi- 
cina e  a  cirurgia  se  dignassem  prestar-lhe  cuidados,  que  eram  lidos  como 
inúteis  para  o  enfermo  e  vergonhosos  para  o  facultativo.  Alguns  estudantes  de 
má  fama,  boticários  e  velhas  prostitutas  eméritas,  que  faziam  pagar  bem 
caras  as  suas  consultas  e  drogas,  furam  os  únicos  que  ousaram  tractar  dos  po- 
bres syphililicos,  c  não  deixaram  de  lazer  algumas  curas,  graças  a  certas  re- 
ceitas empíricas,  conhecidas  de  tempo  immemorial  para  o  tratamento  de  enfer- 
midades pustulosas. 

Só  alii  por  1327  é  que  nm  respeitável  medico,  Th.  de  Bettencourt,  ou- 
sou comprometter-sc  a  [lonlo  de  publicar  investigações  c.  conselhos  sobre  a 
sypbilis  n'um  opúsculo  intitulado  Pioca  quaresma  de  penitencia,  ou  purgatório 
do  mal  venéreo. 

Antes  de  Th.  Bettencourt,  apenas  um  medico  francez,  que  se  occuItoU 
sob  o  veu  do  anonymo,  se  arriscou  a  accrescentar  um  remédio  contra  a  grosse 
vérole  á  sua  paraphrase  franceza  do  Regimen  sanilatis,  de  Villeneuve,  publi- 
cado em  Lyon  em  loOI.  Ao  ver  a  scicncia  tão  extranha  ao  mal  de  Nápoles, 
pensar-se-hia  talvez  que  essa  horrível  enfermidade  não  tinha  entrado  ainda 
em  França,  quando  a  verdade  era  que  ella  se  havia  propagado  por  toda  a  parte, 
apesar  dos  constantes  esforços  da  auctoridade  religiosa,  politica  e  municipal. 
Devemos  no  emtanto  observar  que  a  enfermidade  só  raríssimas  vezes  accom- 
mellia  as  pessoas  de  costumes  honestos,  e  que  se  concentrava,  por  assim  di- 
zer, nas  classes  espureas  da  sociedade,  nos  homens  e  mulheres  de  vida  desre- 
grada, nos  vagabundos,  mendigos  e  outra  gente  perdida. 

Nos  arcbivos  do  parlamento  de  Paris  e  com  data  de  março  de  1497,  en- 
confra-se  uma  ordenação  d'onde  consta  que  o  bispo  de  Paris,  João  Simon,  pre- 


DA    PROSilTUlÇÃO  241 

lado  alfaiiipuli'  digno  o  venerável,  havia  (ornado  a  iniciativa  das  medidas  de 
salubridade  rechiniadas  pela  propagação  da  gronne  rérole.  Esla  enlermidadí" 
eonlagidsa,  «que  lia  dois  annos  a  esta  parle  tem  lido  grande  curso  n'este  rei- 
1111,  pahnras  textuaes  da  ordenação,  tanto  na  cidade  de  Paris  cunio  iTiiuIros 
togares»,  fazia  temer  aos  homens  da  sciencia  que  iidxas  forças  adquirisse  sol) 
a  inlluencia  da  primavera. 

Em  consequência  d'este  receio,  o  prelado  reuniu  no  seu  palácio  os  ma- 
gistrados do  Chaíelet  para  lhes  submetíer  as  suas  observações  sobre  ú  assum- 
pto. Decidiu-se  alli  que  se  informasse  o  parlamento,  e  reunida  a  asscmbléa 
para  deliberar,  foi  por  ella  nomeado  um  dos  seus  membros,  .Martin  Rellefaye, 
e  um  escrivão,  para  secundar  os  piedosos  esforços  do  bispo  e  para  se  enten- 
der a  este  respeito  com  o  prebosle  de  Paris. 

O  parlamento  promulgou  uma  ordenação,  que  fui  publicada  peias  ruas, 
c  que  continha  as  medidas  policiaes  relativas  á  nova  enf(>rmidade.  Kstas  me- 
didas haviam  sidas  discutidas  em  presença  do  bispo  de  Paris  por  ifíuilos  dos 
grandes  e  notaceis  per.sonageas  de  lodos  os  estados. 

Eis  as  principaes  disposições  adoptadas: 

Os  forasteiros,  tanto  homens  como  mulheres,  enfei-iuos  da  grosse  ccrolr, 
deviam  sahir  da  cidade,  vinte  e  quatro  horas  depois  da  publicação  da  ordenação, 
sob  pena  de  forca,  devendo  regressar  ao  seu  paiz  natal,  ou  ao  iogar  em  <|ue 
havia  sido  atacados  pela  enfermidade. 

Para  facilitar  esla  partida  impreterivel,  entrcgar-se-hia  a  cada  um,  quando 
sahissem  as  portas  de  Saiat-Denis,  ou  de  Sainl-Jacques  a  somnia  de  quatro 
soldos  parisis,  tomando-se-lhes  n'essa  occasião  os  nomes,  e  prohibindo-se-lhes 
voltar  á  cidade  sem  estarem  curados. 

Quanto  aos  enfermos  que  residiam  em  Paris,  ao  serem  atacados  da  enfer- 
midade, eram  obrigados  a  recolhcrcm-^e  em  casa,  sem  poderem  sahii'  á  rua 
nem  de  noite  nem  de  dia,  sob  pena  de  forca. 

Se  estes  enfermos  encerrados  nos  domicílios  eram  polires,  recommenda- 
va-se  aos  parochos  das  suas  freguezias  que  lhes  ministrassem  alimentos. 

Os  enfermos  que  não  tinham  domicilio  deviam  recolhcr-se  ao  arrabalde 
de  Saint-Germain-des-Prés,  onde  se  apropriara  uma  casa  para  lhes  servir  de 
hospital.  Haveria  também  outras  casas  para  as  pobres  mulheres  enfermas,  que 
eram  menos  numerosas  que  os  homens,  mas  (|uc  por  vergonha  <K-cullavani 
quanto  podiam  o  seu  estado  de  saiide. 

Previu-se  desde  logo  que  o  hospicio  pnnisorio  de  Sainl-Gerwnin  não 
seria  suííiente  para  o  successivo  augmento  dos  enfermos,  e  promettia-se  aceres  - 
ecntal-o  com  outros  togares  circumvizinhos,  segundo  as  necessidades  sanitárias. 

As  despezas  d'estas  enfermarias  ficavam  a  cargo  da  cidade,  para  o  (|ue  se 
levantaria  um  imposto  especial  em  caso  de  necessidade. 

Dois  agentes  responsáveis  seriam  postados,  um  na  porta  de  Sainl-Deuis 
e  outro  na  de  Saint-Jacques,  para  distribuir  os  quatro  soldos  a  cada  enfermo  c 
para  inscrever  os  nomes  dos  que  recebessem  esta  indemnisação  ao  sahir  da 
cidade.  Haveria  também  nas  outras  portas  agentes  da  policia  sanitária  para  impe- 
direm que  os  doentes  expulsos  voltassem,  ijuer  ás  claras,  quer  occultamente. 

BisToaiA  DA  Prustituição.  Tohu  a  — FeLBA  31. 


242  HISTORIA 

O  artigo  mais  importanle  da  ordenação  é  o  oitavo,  assim  concebido : 

«Item.  O  preboste  de  Paris  ordenará  aos  examinadores  e  agentes  de 
vigilância  que  nos  bairros  cm  que  exei-cereni  o  seu  cargo  não  permittam  a  ne- 
nlium  dos  enfermos  transitar,  conversar,  ou  communicar  com  pessoa  alguma, 
e  que  onde  quer  que  encontrem  algum,  o  expulsem  da  cidade,  ou  o  consti- 
tuam prisioneiro,  para  que  seja  castigado  corporalmente,  em  harmonia  com  as 
disposições  d'csta  ordenação.» 

Este  artigo  prova  que  a  sypliilis  se  considerava  como  uma  espécie  de 
peste,  e  que  desde  esta  épocha  se  havia  organisado  em  Paris  um  serviço  de  sa- 
nidade com  os  taes  examinadores  e  agentes  de  vigilância,  aggregados  aos  dis- 
trictos,  ou  bairros  da  cidade,  e  encarregados  de  fazer  observar  rigorosamente 
os  regulamentos  da  hygiene  publica.  Em  todo  o  caso,  não  se  acreditava  na  in- 
fecção do  ar  durante  a  epidemia,  por  isso  que  se  permittia  aos  enfermos  perma- 
necerem na  cidade,  com  a  condição  de  não  sahirem  de  suas  casas. 

E'  provável  que  as  casas  em  que  viviam  enfermos  fossem  indicadas  ao 
publico  por  algum  signal  exterior,  como  por  exemplo,  um  feixe  de  palha  pen- 
durado de  uma  janella,  ou  uma  cruz  negra  de  madeira  pregada  na  porta.  Uma 
designação  creste  género  foi  exigida  mais  tarde  aos  que  habitavam  casas  infe- 
ctadas pela  peste,  por  uma  ordenação  do  preboste,  de  16  de  novembro  de  1510. 

.\inda  que  esta  ordenação  e  outras  de  data  posterior  relativas  ás  epide- 
mias não  insiram  qualquer  medida  preventiva  contra  as  casas  da  prostituição, 
consta  no  emtanto  que  eram  mandadas  evacuar,  c  que  se  punham  scllos  nas 
portas  até  que  melhorasse  a  saúde  publica. 

O  mesmo  succedia  com  os  banhos,  que  se  mandavam  fechar  durante  o 
periodo  de  contagio. 

Na  primavera  de  1 4-97,  o  numero  de  syphiliticos  augmcntou  de  um  modo 
considerável,  segundo  previra  o  excellcnte  prelado : 

«Na  sexta-feira,  5  de  maio,  o  tribunal  do  parlamento  levantava  tima 
somma  de  60  libras  parisis  (approxiraadamente  Si^íOOO  réis)  sobre  os  fundos 
das  multas,  e  fazia-a  entregar  a  Nicolau  Potier  e  outros  encarregados  dos  doen- 
tes do  mal  de  Nápoles,  para  que  a  dispendessem  nas  necessidades  dos  ditos 
enfermos.» 

Os  registros  do  parlamento,  em  que  encontramos  consignado  este  facto, 
mencionam  também  com  data  de  27  de  maio  do  mesmo  anno  as  exhortações 
que  o  bispo  de  Paris  dirigiu  por  diversas  vezes  aos  príncipes,  pedindo-lhes  uma 
esmola,  «por  isso  que,  se  os  doentes  do  hospício  Saint-Germain  haviam  sa- 
rado cm  grande  numero,  outros  soffriam  cruéis  privações,  porque  o  dinheiro 
faltava,  e  n'aquclla  occasião  não  se  colhiam  muitas  esmolas.» 

O  secretario  do  tribuna!  propoz  que  se  consagrassem  a  esta  obra  de  ca- 
ridade uns  quinze  ou  dezeseis  escudos  (.3o?5íOOO),  que  estavam  depositados  em 
cofre  havia  pelo  menos  dez  annos,  c  nunca  tinham  sido  reclamados.  O  tribu- 
nal mandou  que  esta  somma  fosse  enviada  ao  prelado. 

Este  documento  prova  que  a  caridade  publica  começara  a  cansar,  prova- 
velmente porque  o  assumpto  não  era  dos  mais  edificantes.  Pelo  que  respeita 
aos  curados,  c  de  crer  que  não  fossem  verdadeiros  syphiliticos,  e  que  muitos 


DA    PROSTITUIÇÃO  243 

mendigos  fingiam  ter  a  enfermidade  para  participarem  dos  benefícios  da  orde- 
nação. Elíectivamente  as  esperanças  que  poderiam  inferir-se  da  carta  do  bispo 
ao  parlamento  não  se  realisaram,  e  as  numerosas  curas  que  este  documento  no- 
ticiava trouxeram  um  grande  augmento  de  enfermos.  A  população  sã  de  Paris 
assustou-se  e  pc<iiu  energicamente  a  expulsão  d'aquelles  extranbos  empestados, 
que  causavam  borror  á  vista. 

O  prebosle  de  Paris  alíendeu  a  estas  reclamações  unanimes  e  mandou 
apregoar  ao  som  de  trombetas  a  ordenação  seguinte:  {Registro  azul  do  Chaíe- 
lel,  f.  3). 

«Apesar  de  até  agora  ter  sido  ordenado  ao  som  de  trombetas,  e  pela  voz 
de  pregoeiro  por  todas  as  ruas  (festa  capital,  para  que  ninguém  podcsse  alle- 
gar  ignorância,  que  todos  os  enfermos  de  yrosse  vérole  desoccupassem  a  cidade 
e  fossem,  os  extrangeiros  para  o  seu  paiz  natal  e  os  naturaes  para  extra-muros, 
sob  pena  de  forca,  succede  que  os  referidos  enfermos,  desprezando  o  que  fora 
disposto  e  publicado,  voltaram  de  todas  as  partes,  communicando  pela  cidade 
com  as  pessoas  sãs,  o  que  é  uma  cousa  verdadeiramente  perigosa  para  todos 
os  habitantes  de  Paris: 

«Fica,  portanto,  expressa  e  formalmente  intimado  por  el-rei  e  seu  pre- 
boste  a  todos  os  ditos  enfermos  da  referida  enfermidade,  sejam  bomens  ou  mu- 
lheres, que  inçontinenti  desoccupem  a  dita  cidade  e  seus  subúrbios,  e  vão  — 
os  extrangeiros  para  os  paizes  da  sua  naturalidade,  e  os  naturaes  para  longe 
da  cidade  e  arrabaldes,  sob  pena  de  serem  deitados  ao  rio,  se  forem  encontra- 
dos passado  o  dia  de  boje. 

«Previnem-se  todos  os  eommissarios  e  agentes  de  vigilância  de  todos  os 
bairros  para  que  prendam  ou  façam  prender  os  que  forem  encontrados,  afira 
de  n'clles  se  executar  este  castigo.  Dada  na  segunda-feira,  2-')  de  junho  do 
1498.» 

Esta  ordenação,  que  não  admittia  nem  desculpa,  nem  demora,  nem  ex- 
cepção de  espécie  alguma,  fora  motivada  pela  presença  em  Paris  de  toda  a  no- 
breza, que  tinha  ido  render  homenagem  ao  novo  rei  Luiz  xii,  causando  es- 
panto por  essa  époclia  encontrarem-se  a  cada  passo  enfermos,  que  não  podiam 
ser  retidos  nos  domicílios,  visto  que  a  enfermidade  por  mais  horrível  que  fosse, 
não  os  impedia  de  sahir  a  tomar  ar.  Fecliavam-se  quasí  sempre  os  olhos  a  es- 
tas infracções  das  leis  polícíaes,  quando  os  doentes,  eram  pessoas  serias  e  de 
bom  porte,  mas  o  seu  aspecto  causava  horror  á  população  indemne,  quando  os 
via  apparecer  como  corrupções  vivas. 

«Não  eram  somente  ulceras,  diz  Sauval,  apropriando-se  das  palavras  de 
Fernel,  ulceras,  que  podiam  tomar-se  por  bolotas,  tal  era  o  tamanho  e  a  côr 
que  tinham,  e  das  quaes  se  dcsíillava  um  pus  asqueroso  e  fétido,  que  obrigava 
os  olhos  a  desviarem-sc  com  horror;  os  rostos  manifestavam  um  negro  esver- 
deado, e  cobríam-sc  de  chagas,  cicatrizes  c  pústulas,  que  nada  mais  horrível 
podia  existir.»  (Anlifj.  de  Paris,  t.  iii,  pag.  27). 

O  sábio  Fernel,  que  vivia  em  fins  do  século  xvi,  accrescenla  que  esta 
primeira  enfermidade  venérea  se  assimílhava  tão  pouco  á  do  seu  tempo,  que 
diíTicílmente  se  acreditaria  que  fosse  a  mesma. 


244  HISTORIA 

«Esta  enfermidade,  dizia  em  1339  o  auctor  do  Triumpho  ijlorioso  da 
inHitu  alta  e  muilo  poderosa  dama  Dona  Syphilis,  perdeu  muito  da  sua  pri- 
mitiva malignidade,  e  os  povos  já  não  são  por  elia  Ião  assolados.» 

O  decreto  do  parlamento  de  6  de  março  de  1497  (a  data  é  de  1496,  se- 
gundo o  calendário  pasclial)  não  deixa  a  menor  duvida  de  que  o  mal  de  Ná- 
poles reinou  por  toda  a  França  desde  o  anno  de  1 494 ;  no  emlanto,  não  está 
bem  averiguula  ainda  a  época  da  invasão  em  cada  província  e  em  cada  cidade. 
Os  archivos  municipaes  c  consulares  suhministrariam  documentos  preciosos  so- 
bre este  assumpto.  Astruc,  no  seu  grande  tractado  monogi^aphico,  cita  somente 
dois  factos,  que  fazem  constar  a  apnarição  do  mal  napolitano  em  Romans,  no 
Delphinado,  e  em  Puy,  no  anno  de  1496: 

«A  enfermidade  das  bithas,  dizem  os  registros  da  universidade  de  Manos- 
(|ue,  foi  importada  n'este  anno  por  alguns  soldados  de  Romans  do  Delpbinado, 
que  estavam  ao  serviço  do  rei  e  do  duque  de  Orleans,  na  cidade  sua  pátria, 
que  estava  ainda  indemne,  e  não  conbecia  tal  espécie  de  enfermidade,  que 
também  não  reinava  ainda  na  província.» 

IVuma  clironica  inédita  da  cidade  de  Puy,  o  aactor,  Estevam  de  .Meges, 
natural  da  mesma  cidade,  refei-e  que  a  grasse  rerole  appareceu  pela  primeira 
vez  em  Puy  no  decurso  do  anno  de  1496. 

Õ  extracto  dos  registros  de  Manosque  é  precioso,  por  isso  que  serve 
para  provar  que  o  exercito  de  Carlns  viii,  á  volta  da  expedição  de  Itália,  vinha 
infeccionado  da  nova  enfermidade,  e  eífeclivamcnte  esta  enfermidade  manifes- 
tou-se  cm  I  i9.j,  em  lodo  o  caminho  pei'corrido  pelos  restos  d'aquelle  exer- 
cito, que  vinha  em  debandada  depois  da  batalha  de  Fernova. 

Os  soldados  que  trouxeram  o  mal  a  Romans  tinham  sem  duvida  feilo 
parle  da  rectaguarda  sitiada  em  Novara  co'rn  o  duque  de  Orleans,  que  alli  sus- 
tentou um  cerco  formidável  por  espaço  de  cinco  mezes. 

Desde  a  épocha  em  ([ue  Asfruc  andou  recolhendo  os  makiiacs  para  a 
sua  encyclopedia  das  enfermidades  venéreas,  um  estudo  mais  allenio  e  minu- 
cioso dos  archivos  munieipaes  de  toda  a  França  permilliu  verilicar  que  o  mal 
napolitano  se  estendeu  de  povoação  em  povoação  até  ás  aldeias  mais  remotas 
e  obscuras, -pelos  annos  de  1494  a  1196,  o  que  está  em  harmonia  com  o  decreto 
do  parlamento  de  Paris,  que  observa  em  6  de  março  de  1497  <aiuc  a  yrosse 
cérole  tivera  grande  iniTemcnlo  ireste  reino  ha  dois  annos  a  esta  parle»,  quer 
dizer  em   I  i93  e  1496. 

Só  nas  grandes  cidades,  a  exemplo  de  Paris,  é  que  se  usou  de  rigor  con- 
tra (js  cnfeimos,  e\pulsando-os  sob  pena  de  castigo.  Nos  outros  pontos,  evila- 
va-se  apenas  o  seu  contacto,  deixando-os  morrer  em  paz. 

Não  acreditamos,  como  aífirmam  alguns  conlemporaneos,  que  a  vigessima 
parle  da  população  morresse  victima  d'aquella  epidenifa,  lanio  em  França  como 
no  resto  da  Europa.  António  Sabelico  dizia  em   Io02: 

«Pouca  gente  morreu,  relativamente  ao  grande  numero  de  enfermos; 
mas  foi  pe(]ueno  o  numero  dos  que  sararam.» 

ririch  de  Ilullen,  (|uc  chegou  a  julgar-se  curado,  c  succumbiu  aos  pro- 
gressos latentes    do  mal    na  edade    de  trinta  t'    seis  annos,  dizia    «que  de  cem 


DA    PROSTITUIÇÃO  245 

enfermos  apenas  se  curava  um  só,  e  que  esfe  recahia  com  frequência  em  es- 
tado muito  peior  que  o  primitivo.»  (De  morbi  gallici  curalione,  eap.  í.)  Por- 
que a  vida  era  mais  liorrorosa  que  a  morte  para  aquejles  desgraçados,  que  não 
tinliam  o  direito  de  viver  na  sociedade  dos  seus  similiiantes,  e  que  não  encon- 
travam nem  remédio  pliysico  nem  allivio  moral  para  os  seus  atrozes  soffri- 
mentos. 

Nos  primeiros  tempos  do  appareeimento  do  mal  de  Nápoles,  pôde  dizer-se 
que  em  neniiuma  parle  foi  traclado,  segundo  as  regras  da  sciencia ;  os  médicos 
abstinham-se  geralmente  de  assistir  aos  enfermos,  declarando,  a  exemplo  de 
Bartholomeu  Mortagnana,  professor  de  medicina  da  faculdade  de  Pádua,  que 
este  mal  fora  desconhecido  a  Hippocrates,  a  (Taleno,  a  Avicena  e  a  outros  mé- 
dicos antigos;  tinham  além  d'isso  uma  repugnância  invencível  contra  a  lepra, 
á  qual  succedia  a  syphilis. 

De  resto,  este  mal  vergonhoso  parecia  concentrado  na  classe  abjecta  que 
acalentava  no  seu  seio  o  gérmen  de  tantas  e  tão  repulsivas  enfermidades,  e 
por  isso,  no  fim  de  contas,  nenhum  proveito  tirarião  de  traclar  males,  pro- 
venientes, segundo  diziam,  do  vicio,  da  miséria  e  da  crápula. 

Envoltos  pedantescamente  na  sua  magestade  doutoral,  diziam  «que  na  cura 
das  enfermidades  a  indicação  do  traclamento  devia  ser  extrahida  da  sua  pró- 
pria essência,  e  por  isso  que  nenhum  indicio  podiam  tirar  de  um  mal  absoluta- 
mente desconhecido.» 

Os  médicos  francezes  moslraram-se  mais  indifTerentes  ou  mais  ignoran- 
tes que  os  ailemães  ou  italianos,  abandonando  completamente  a  toda  a  espécie 
de  charlatães  a  cura  de  um  mal  que  se  lhes  afigurava  um  problema  insolúvel. 
Esta  deserção  geral  dos  homens  da  sciencia  deu  logar  á  invasão  de  uma  mul- 
tidão de  empíricos  no  tratamento  das  afíecções  venéreas.  Depois  dos  boticários 
e  dos  barbeiros,  chegaram  até  os  sapateiros  a  tractar  d'estas  doenças.  D'aqui 
a  diversidade  dos  remédios,  a  diíTerença  de  methodos,  os  ensaios  infructiferos, 
os  processos  ridículos,  antes  de  .se  atreverem  a  empregar  o  mercúrio,  e  de  se 
conhecer  a  efficaeia  do  tjaiac.  As  sangrias,  as  lavagens,  os  emplastos,  as  pur- 
gas, as  tisanas,  exerciam  uma  acção  mais  ou  menos  neutra,  como  na  maior 
parte  das  enfermidades;  no  emtanto,  as  fricções,  os  banhos  e  os  sudorificos 
tinham  maior  virtude,  pelo  menos  na  apparencia. 

«O  melhor  meio  que  encontrei  para  curar  as  dores  e  até  mesmo  as  pús- 
tulas, escrevia  Ttaspar  Torella,  que  tinha  experimentado  em  França  esta  me- 
dicação anodyna,  é  fazer  suar  o  enfermo  n'um  forno  quente,  ou  pelo  menos 
n'uma  estufa,  por  espaço  de  quinze  dias  seguidos,  era  jejum.» 

Era  também  muito  usada  em  França  a  panaceia,  que  se  suppunha  tirar 
da  vibora,  quer  dizer,  vinho  em  que  se  deixavam  morrer  em  infusão  algumas 
víboras,  caldo  de  víboras,  carne  de  vibora  cosida  ou  assada,  decocto  de  víbo- 
ras, etc. 

Os  cirurgiões  foram  os  primeiros  que  se  serviram  do  mercúrio  para  ob- 
terem um  tratamento  enérgico  contra  um  mal  rebelde  a  todos  os  remédios.  O 
exíto  correspondeu  á  ousadia,  mas  a  ignorância  ou  a  imprudência  dos  opera- 
dores occasíonou  os  mais  terríveis  accídentes,  e  muitos  doentes,  que  feriara 


246  HISTORIA 

escapado  da  enfermidade,  morreram  então  da  cura.  Gaspar  Torella  attribue  aos 
effcilos  do  mercúrio  a  morte  do  cardeal  de  Segorbe  e  de  Aífonso  Borgia. 

Para  evitar  estes  desastrosos  eíTeilos  foi  necessário  procurar  um  remédio 
menos  perigoso  e  mais  seguro,  e  julgou-se  liaver  encontrado  a  solução  do  pro- 
blema, quando  o  acaso  fez  descobrir  na  America  as  propriedades  anti-sypbili- 
ticas  do  gaiac.  Ulricli  de  Hultcn,  que  fora  um  dos  primeiros  a  experimentar 
a  eíficacia  d'este  remédio,  refere  que  um  fidalgo  bespanbol,  estando  grave- 
mente enfermo  de  sypbilis,  soubera  Je  um  indígena  o  remédio  mais  eíiicaz  para 
combater  o  mal,  e  trouxera  á  Europa  a  receita  a  que  devia  a  saúde. 

Ulrich  de  Hutten  attribue  aos  annos  de  1315  ou  1317  a  importação  do 
gaiac  na  Europa.  O  facto  refere-se  de  diíTei'ente  modo  nas  notas  das  curiosas 
viagens  de  Jironymo  Benzoni.  (Edic.  de  Francjorl,   1394.): 

«Um  bespanhol  que  bavia  contrabido  o  mal  por  copula  com  uma  prosti- 
tuta Índia  e  que  soiTria  cruéis  dores,  depois  de  beber  agua  de  gaiac,  que  Ibe 
foi  dada  por  um  indio,  ficou  perfeitamente  curado.» 

Desde  aquella  épocba,  1515  a  1517,  começou  a  espalbar-se  pela  Europa 
que  o  mal  napolitano  podia  curar-se  com  uma  droga  fornecida  pela  America,  e 
desde  então  o  povo,  que  faz  sempre  enormes  confusões  nas  suas  cbronicas 
oraes,  persuadiu-se  de  que  o  remédio  c  o  mal  deviam  ser  compatriotas. 

As  denominações  de  mal  napolitano  e  mal  francez  não  podiam  sobrevi- 
ver por  muito  tempo  a  esta  pi'eoccupação  que  colíocára  o  berço  do  mal  junto 
da  arvore  que  o  curava,  por  isso  os  nomes  de  vérole  e  grosse  vérole  prevale- 
ceram por  excellencia,  como  que  para  restituírem  á  America  o  que  julgavam 
pertencer-lbe. 

As  primeira  curas  devidas  ao  emprego  do  gaiac  foram  maravilbosas.  Ni- 
colau Poli,  medico  de  Carlos  v,  affirma.que  três  mil  enfermos  desesperados 
sararam  quasi  ao  mesmo  tempo  á  sua  vista,  graças  ao  decocto  de  gaiac,  e  que 
a  cura  d'aquellcs  desgraçados  parecera  quasi  uma  resurreição. 

O  grande  Erasmo,  que  fora  atacado  de  uma  sypbilis  terrível  com  dores 
phrencticas,  ulceras  e  caries,  depois  de  ter  ensaiado  onze  vezes  o  tractamento 
mercurial,  foi  radicalmente  curado  com  o  gaiac,  ao  cabo  de  trinta  dias. 

Este  pau  de  gaiac  foi  por  toda  a  parte  acolbido  como  um  dom  do  ceu, 
mas  bem  depressa  se  reconlieccu  que  o  remédio  tiniia  também  os  seus  incon- 
venientes, por  isso  que  aos  accidenles  venéreos  succedia  com  frequência  uma 
consumpção  mortal.  Não  obstante  isto,  foi  conservando  numerosos  pai-tidarios 
até  que  foi  destbronado  por  outro  remédio,  procedente  também  da  America  e 
cbamado  pelos  indígenas  hoaxacan,  ao  qual  os  europeus  deram  o  nome  de  pau 
santo  (sancturn  lignum). 

Este  ultimo  remédio  foi  mais  usado  em  França  do  que  nas  outras  nações, 
durante  uma  parte  do  século  xvi,  justificando  o  grande  consummo,  que  teve,  a 
sua  denominação,  por  isso  ([ue  operou  curas  extraordinárias. 

Punba-se  de  infusão  por  espaço  de  vinte  c  quatro  boras  uma  libra  de 
pau  santo  cortado  em  pedaços  miúdos.  O  decocto  lomava-se  em  jejum,  quinze 
ou  trinta  dias  seguidos,  produzindo  um  suor  copioso,  que  diminuiu  a  intensi- 
dade do  mal,  ou  muitas  vezes  o  levava  comsigo. 


DA    PROSTITUIÇÃO 


247 


Os  médicos  francezes  escreveram  muitos  tractados  acerca  da  efricacia  do 
gaiac  e  do  pau  santo,  dos  quacs  faliam  'om  uma  espécie  de  respeito  e  de  pie- 
dosa admiração  :  mas  ainda  assim  não  fizeram  mais  do  que  repetir  os  elogios 
que  Ulrich  do  Hutten,  na  Allemanlia,  e  Francisco  Delgado,  na  Itália,  tinham 
antecedentemente  feito  d'este  maravilhoso  especifico,  em  reconhecimento  das 
suas  curas. 

«Oh  santo  lenho!  clamava  nas  suas  orações  um  doente,  já  alliviado  dos 
seus  padecimentos.  Oh  santo  lenho!  Serás  tu  da  arvore  bemdita  da  cruz  do 
bom  ladrão  ?» 

A  cura  que  se  obtinha  pelo  pau  santo  ou  pelo  gaiac  não  era  todavia  tão 
radical  que  os  vestígios  do  mal  desapparecessem  completamente.  Signaes  de- 
raasiadi!  evidentes  ficavam,  pelos  quaes  se  reconheciam  os  desgraçados  que 
haviam  escapado  á  aguda  acção  da  enfermidade,  sem  se  poderem  subtrahir  ao 
seu  trabalho  surdo  e  incessante. 

Eis  o  sombrio  quadro  que  faz  d'estes  suppostos  convalescentes  o  auctor 
do   Triumpho  glorioso  da  muito  alta  e  muito  poderosa  dama  Dona  Syphilis: 

«Uns  granulosos,  outros  inchados;  estes  cheioá  de  fistulas  lacrymosas, 
aqucUes  corcovados  e  gotlosos.» 

O  mesmo  auctor,  que  desejava  aconselhar  a  continência  c  a  moderação 
aos  seus  leitores,  pondo-Jhcs  diante  dos  olhos  «o  exemplo  dos  infelizes  que  pela 
abominável  luxuria  a  que  se  entregam  adquirem  estas  enfermidades»,  descre- 
ve-lhes  d'este  modo  os  prodromos  não  menos  espantosos  do  mal  napolitano  : 

«Outros  estão  nos  hospitaes  do  venéreo,  cobertos  de  ulceras,  de  can- 
cros, de  tumores  pútridos,  de  erupções,  de  carnosidades  e  de  outras  cousas  do 
mesmo  género,  que  se  adquirem  ao  serviço  de  Dona  Prostituição.» 

Muitos  annos  antes  da  publicação  d'esta  obra  singular,  a  poesia  franceza 
apodcrara-se  do  assumpto  deplorável,  que  Jeronymo  Frascator  devia  celebrar 
no  seu  bello  poema  virgiliano,  intitulado  SijphiUs,  sive  morbus  gallicus.  João 
Droyn  de  Amiens,  bacharel  em  leis  e  poeta  conhecieo  por  dois  poemas  moraes 
e  christãos,  a  Nau  dos  Tolos  e  a  Vida  dus  três  Marias,  compoz  uma  bailada 
em  honra  da  grosse  vérole,  a  qual  depois  de  ter  dado  a  volta  da  França  com  a 
nova  enfermidade,  foi  impressa  em  Lyon,  em  1312,  em  continuação  das  poesias 
moraes  de  frei  Guilherme  Aiexis,  monge  de  Lira  e  prior  de  Bussy. 

A  bailada  de  mestre  João  Droyn  é  extremamente  curiosa,  por. isso  que 
accusa  a  prostituição  de  haver  propagado  em  França  o  mal  de  Nápoles,  que  o 
poeta  attribue  aos  lombardos.  De  tudo  isto  pode  inferir-se  que  as  guerras  de 
Luiz  XII  na  Itália  foram  ainda  mais  funestas  á  saúde  dos  seus  vassallos  do  que 
a  primeira  expedição  de  Carlos  viii. 

Eis  a  paraphrase  d'esta  famosa  bailada,  que  não  reproduzimos  n'este  lo- 
gar  na  lingua  em  que  foi  composta,  ematlenção  ás  pessoas  pouco  lidas  no  francez 
inculto  d'essa  épocha : 

«Joviacs  amigos,  de  cabelleira  ou  gorra,  pensae  na  vida,  emendae-a  a 
tempo!  Cautella  com  os  buracos,  porque  são  perigosos!  Fidalgos,  burguezes, 
homens  de  lei,  que  dispendeis  escudos,  saúde  e  ducados,  em  banquetes,  jo- 
gos e  orgias,  acautellae-vos  em  questões  de  amores,  c  tom^ae  nota  no  vosso 


2i8  HISTORIA 

protocolo: — Foi  por  frequentardes  taulox  logares  obscuros,  que  se  engendrou 
a  grasse  vérole  I . . . 

«Amao  com  prudência,  coiupassadamenle,  nada  de  excessos,  nada  de  fo- 
lias! Cançar-vos  para  que!  Evitae  loucuras.  Nunca  o  prazer  nos  deixe  ex- 
haustos!  Amae  a  virtude,  sede  cautellosos.  Fugi,  amigos,  de  gente  corrupta! 
Foi  por  metlerdes  a  lança  em  concavidades  damninhas,  que  se  engendrou  a 
grasse  vérole  I .  .  ■ 

«Escolhei  mulheres  de  boa  qualidade,  mas  nunca  enlreis  no  antro  sem 
candeia.  INada  de  vergonhas!  Procurae,  apalpae,  investigae,  e  só  depois  d'isto 
reine  o  prazer!  Fazei  como  os  aventureiros  em  presença  duma  bagagem  aban- 
donada; esquadrinhae  de  alto  a  baixo.  Foi  por  não  serem  os  Lombardos  cau- 
tellosos, que  se  engendrou  a  grosse  vérole!. . . 

«Estribilho  :  Príncipe,  sabeis  que  o  santo  Job  foi  virtuoso,  mas  as  ulce- 
ras (|ue  teve  n'este  mundo  nos  fazem  recorrer  á  sua  guarda.  Foi  para  corrigir 
os  luxuriosos  que  se  engendrou  a  grosse  vérole!...» 

Segundo  as  regras  poéticas  da  bailada  franceza,  as  três  estrophes  syme- 
fricas  deviam  terminar  por  uma  volta  ou  estribiliio  (envoi)  de  cinco  versos, 
dirigidos  a  um  príncipe.  Ser-nos-hia  dillicil  descobrir  a  que  príncipe  foi  dedi- 
cada a  bailada  de  Droyn  ;  em  todo  o  caso,  fosse  qual  fosse,  e  por  mais  austero 
que  se  mostrasse,  nenhum  d'ellcs  teria  protestado  n'aquclla  épocha  contra  si- 
milhante  dedicatória,  tanto  mais  que  os  numerosos  tractados  então  escriptos 
sobre  o  mal  venéreo  eram  dedicados  aos  cardeaes,  bispos  e  outros  importantes 
personagens. 

O  exame  attento  (Festa  bailada  fornecer-nos-hia  ainda  assumpto  para  ou- 
tras observações  históricas.  Veriannis  n'ella,  por  exemplo,  que  o  mal  se  reve- 
lava por  alguns  signaes  externos,  como  se  os  doentes  soflfressem  assim  o  esty- 
gma  da  sua  impureza,  e  que  provinha  sempre  da  união  carnal  e  da  luxuria. 

E'  na  verdade  para  admirar  um  tal  rigor  de  oliscrvayão  n'um  poeta  de 
uma  épocha  em  que  os  próprios  médicos  acreditavam  na  propagação  do  virus 
pelo  ar  que  se  respirava,  e  pelo  simples  contacto.  O  vulgo  via  muito  melhor  a 
este  respeito  do  que  os  homens  da  sciencia,  e  o  seu  bom  senso  assimilhava  a 
grosse  vérole  á  lepra,  a  filha  á  mãe. 

Dois  scculos  depois,  o  abbade  de  Saint-Marlin,  que  fdi  a  expressão  viva 
de  todos  os  preconceitos  populares,  repetia  ingenuaiue^nlc  i>  que  ouvira  contar 
à  sua  ama  de  leite,  além  de  muitas  outras  coisas  de  que  fazia  responsável  o 
seu  amigo  João  de  Lorme,  primeiro  medico  do  rei : 

«E'  de  notar  que  o  venéreo  se  pega  pelo  contacto  da  pessoa  que  o  padece, 
dormindo  com  ella,  ou  andando-se  descalço  sobre  a  sua  cama,  c  de  outros  mo- 
dos ainda. » 

João  Droyn  não  foi  o  único  poeta  francez  que  cantou  o  mal  napolitano 
antes  de  Fraseator.  João  Lemaire  de  Relges,  o  amigo  intimo  de  Clemente  Ma- 
rot  e  de  Francisco  Uabelais,  historiograpbo  e  poeta  de  .Margarida  de  Áustria, 
traduziu  em  verso  um  conto  intitulado  6' ítpído  e  yl íropo.v,  que  Seraphi no  havia 
publicado  em  versos  italianos,  a  respeito  dos  extranhos  e  horríveis  elTeitos 
deste  contagio  nascido  do  prazer.  .\  este  conto  original  accrescentou  outros  de 


DA    PROSTITUIÇÃO  249 

sua  invenção,  pgualmente  consagradas  ás  contendas  entre  o  Amor  e  a  Morte. 
Exlraliimos  da  obra  de  Lemaire,  que  veio  a  lume  em  1320,  uma  doscripçâo 
vigorosamente  traçada  dos  estragos  da  enfermidade  nas  suas  desgraçadas  vi- 
ctimas.  E'  apenas  uma  paraphrase  do  poema,  cujo  texto  não  apresentamos  na 
iingua  original  pelas  razões  aeima  expostas : 

«Finalmente,  o  venéreo  chegou  à  sua  maturação  e  transformou-se  em 
enormes  bolbos.  Jíuoca  se  vira  na  terra  uma  tal  detV)rmidade!  Não  eram  ros- 
tos humanos,  eram  [verdadeiros  monstros.  Os  bolbos  reproduziam-se  por  toda 
a  parte,  na  fronte,  no  pescoço,  na  barba,  no  nariz;  nunca  se  vira  tanta  gente 
com  tão  exhuberante  tlorescencia !  O  veneno,  em  seguida,  graças  ao  seu  poder 
occult",  ia  perfidamente  atacar  as  veias  e  as  artérias,  communicando-lhes  tão 
extranhos  mysterios,  que  para  a  dòr,  para  a  gotta,  para  o  sofíriniento,  em 
summa,  só  havia  um  remédio,  um  só,  gritos,  choros,  prantos,  imprecações,  f' 
finalmente  appellar  para  a  morte,  como  o  termo  de  tanto  soffrimento.» 

■  João  Lemaire,  que  foi  como  poeta  o  precursor  elegante  de  Clement  Ma- 
rot,  seu  discípulo,  faz  entrar  nos  seus  versos  a  nomenclatura  polyglotta  daquella 
enfermidade,  que  os  jocosos  da  épocba  denominavam  sourenir,  ou  recordação, 
em  memoria  da  conquista  de  Mapoles.  Os  três  contos  allegoricos  de  Cupido  e 
Atropos  foram  reimpressos  em  15.39  juntamente  com  o  Triumpho  glorioso  lio 
muilo  alia  e  mui(o  poderosa  dama  Dona  Syphilis,  rainha  da  fome  dos  Amores. 
Este  triumpho  não  é  mais  do  que  uma  serie  de  34  figuras  em  madeira  repre- 
sentando os  accessorios  do  mal  de  Nápoles  e  do  seu  tractamento.  Viam-se  en 
tre  as  figuras  Vénus,  Cupido,  os  médicos,  a  dieta,  etc,  etc. 

Estas  figuras  compostas  e  executadas  ao  gosto  de  certa  dança  são  acom- 
panhadas de  decimas  e  oitavas  perfeitamente  rimadas,  de  modo  que  dão  a  en- 
tender que  o  supposto  auclor  era  o  próprio  Rabelais.  O  grande  philosopho  vi- 
via por  esse  tempo  em  Lyon,  onde  exercia  a  medicina,  compondo  nas  horas 
vagas  estas  e  outras  facécias  para  diversão  dos  pobres  syphiliticos. 

Na  sua  velhice,  o  illustre  e  implacável  crilico  recordava-se  ainda  da  ter- 
rível doença  que  observara  em  1327,  e  por  isso  no  livro  v  do  Pantagruel,  en- 
tre varias  outras  cousas  impossíveis,  cita  o  caso  de  um  jovcn  extractor  da  quinta 
essência,  que  se  gabava  de  curar  a  syphilis  «ainda  a  mais  fina,  como  quem 
diz  a  de  Rouen.»  Um  século  mais  tarde,  o  provérbio  sobrevivia  ainda  á  epide- 
mia, e  Sorel,  no  seu  romance  de  Francion  (lib.  x,)  diz  que  <- venéreo  de  Rouen 
p  lama  de  Paris  nunca  se  vão  de  todo  .senão  com  a  peça.» 

.4pesar  de  personagens  eminentes  e  do  mais  honesto  compiirlamento  te- 
rem sido,  não  se  sabe  bem  como,  vielimas  d'esta  enfermidade  impudica,  é  dif- 
fiiMÍ  negar-se  que  a  prostituição  fosse  o  principal  intermediário  do  contagio  c 
que  os  bordeis  fossem  o  foco  de  tão  espanlo><o  mal.  Em  parte  alguma  a  prosti- 
lituição  existia  regulanientada  sob  o  ponto  de  vista  sanitário,  e  só  em  1684  po- 
demos encontrar  uma  medida  policial  que  parece  tomar  em  consideração  a  sa- 
lubridade dos  estabelecimentos  de  libertinagem  publica. 

E'  fácil  inferir  d'este  facto  os  terríveis  eíTeitos  que  esta  incúria  da  aucto- 
ridade  produziria  na  saúde  publica.  Abandonando-se  aos  perigos  da  incontinên- 
cia, os  libertinos,  que  iam,  por  assim  dizer  beber,  o  mal  á  sua  própria  fonte, 

RiíTOMA  DA  PnoeirruiçÃo.  ~  Tomo  a  — Fslba  32. 


2o0  HISTORIA 

expunham  ;i  perigos  inevitáveis  as  imilheres  legitimas  f!'estes  imprudentes; 
as  mulheres  c  os  filhos,  aos  quaes  os  seus  progenitores  legavam  cresle  modo 
um  virus  incurável. 

.No  principio  da  enfermidade,  como  vimos,  os  doentes  eram  mettidos 
nas  enfermarias,  ou  expulsos  das  cidades,  onde  a  sua  presença  inspirava  re- 
ceios de  contagio.  Esta  expulsão  geral  dos  pobres  atacados  contribuiu  neccs.sa- 
riamenle  para  propagar  a  infecção  nos  campos. 

Quando,  porém,  a  experiência  demonstrou  que  o  mal  venéreo,  só  podia 
communicar-se  pela  copula  carnal,  ou  por  outro  contacto  intimo  e  immediato, 
não  houve  inconveniente  em  deixar  permanecer  nas  cidades  e  no  convívio  das 
pessoas  sãs  as  victimas  d'aquella  triste  e  vergonhosa  enfermidade,  c|ue  neces- 
sariamente devia  aterrar  os  próprios  libertinos. 

Não  lemos  a  data  exacta  d'esla  mudança  de  opinião  e  de  policia  sanitá- 
ria a  respeito  do  mal  napolitano  e  das  suas  victimas.  Nos  registros  do  parla- 
mento de  Paris,  lé-se  com  data  de  32  de  agosto  de  1505  um  decreto  que  au- 
ctori.sa  a  levantar  do  fundo  das  multas  a  somma  necessária  para  o  aluguer  de 
uma  casa  destinada  ao  alojamento  dos  syphilitieos. 

Este  decreto  é  o  ultimo  que  faz  menção  d'estes  hospitaes  temporários. 
l)iz-nos  também  que  o  asylo  de  Saint-Germain  não  era  suíficiente.  E'  muito 
provável  que  alguns  annos  mais  tarde,  a  medicina,  que  a  esse  tempo  havia  es- 
tudado já  o  principio  do  mal  venéreo,  admittisse  os  syphilitieos  de  raistnra 
com  os  outros  doentes  do  Hotel-Dieu,  embora  esta  concessão  se  estendesse 
apenas  aos  que  haviam  contrahido  em  Paris  a  grasse  vérole. 

Assim  se  passou  de  um  a  outro  extremo,  cahindo-se  d'um  excesso  irou- 
tro  peor.  No  Hõli'1-Dieu.  os  enfermos  tinham  uma  cama  para  cada  quatro,  e  a 
syphilis  foi  infeccionar  muitos  desgraçados  que  alli  haviam  entrado  apenas 
com  uma  febre  ou  com  uma  constipação,  e  que  sabiam  contagiados,  pejo  \irus 
ou  pelo  mercúrio. 

Multiplicavam-se,  portanto,  os  enfermos,  apesar  do  mal  linver  diminuído 
de  gravidade,  e  o  Hotel-Vieu  em  pouco  tempo  não  foi  sufficienie  para  cnntel-ns. 

Foi  mister  pensar  então  em  fundar  hospitaes  destinados  especialmente  ao 
tnicfamcnto  venéreo. 

O  primeiro  hospital  d'esta  natureza  foi  estabelecido  em  lo36  por  dccrelo 
do  iiarlamento,  devido  ás  informações  dos  commissarios  encarregados  da  policia 
dos  pobres.  Duas  salas  do  grande  hosjiitai  da  Trindade  tiveram  este  dcslitio. 
O  salão  do  andar  nobre,  onde  se  costumava  representar  farças  e  autos,  fni  di-s- 
tinado  a  albergue  dos  syphilitieos,  a  sala  do  rez-do-cbão  recebeu  os  atacados 
do  mal  que  chamavam  Sainl-Main  c  Sainl-Fíacre,  e  ainda  os  de  outras  mo- 
léstias contagiosas. 

Alguns  mezes  depois  da  ínstallação  d'este  hospital,  já  faltava  espaço  para 
o  grande  luimero  de  enfermos  (lue  chegavam  a  toda  a  hora.  O  parlamento,  por 
decreto  de  :í  i\r  março  de  líiiT,  ordenou  aos  mordomos  da  egrcja  de  Santo- 
Eustaquio  que  destinassem  o  hospital  da  freguezia  ao  alojamento  dns  |)ol)rcs 
enfermos  sypliiiilicos  e  da  enfermidade  chamada  de  Saint-.)ínin,  ou  de  quai's- 
quer  outras  do  mesmo  modo  contagiosas. 


DA    PKOSTITUIÇÂO  251 

Não  havia  ainda,  porém,  em  Paris,  apesar  (J'eslas  medidas  sanitárias, 
um  iiospilal  exclusivamente  reservado  ás  enfermidades  venéreas,  emquanto 
que  a  cidade  ile  Tolosa  possuía  um  desde  o  aiino  do  ITi^S,  denominado  na 
lingua  do  paiz  Hoiispital  des  Itowjnounéx  de  la  llouijnu  de  AajjDles.  (V.  as 
l/fíí).  de  la  hisl.  du  iMnijuedoc,  por  (1.  de  Catei,  p.  237.) 

A'  medida  que  se  abriam  novos  asylos  para  os  pol)res  enfermos  da  sy- 
pliilis,  manifestavam-se  os  estragos  do  mal  nas  ejasses  inferiores,  sobretudo 
nos  vagabundos.  A  humanidade  aconselhou  então  que  se  livrassem  as  pessoas 
sãs  da  vista  e  do  contacto  dos  enfermos.  Por  toda  a  parte  .se  construíram  iKt.s- 
pifaes,  onde  como  nos  cárceres  se  foram  aceumulando  todos  os  pobres  em  (|uc 
se  suppnnha  o  contagio. 

Pouco  tempo  bastou,  porém,  para  que  a  auctoridade  não  se  ai'rependesse 
de  ler  supprimldo  com  demasiada  leviandade  as  medidas  policiaes  relativas 
aos  leprosos  e  syphiliticos.  Recimheeeu,  ainda  que  tarde,  que  não  era  talvex 
Ião  grande  a  ditrerença  entre  estas  duas  classes  de  enfermos,  e  leve  a  idéa  de 
restabelecer  o  antigo  regimen  das  gafarias,  ou  lazaretos  dos  leprosos.  Por  isso 
preparou-se  para  os  syphiliticos  o  grande  hospital  de  S.  Nicolau  em  Paris, 
perto  da  Biévre,  na  freguezia  de  S.  Nicolau  de  Chardonnet. 

No  emtanto,  os  recursos  d'este  hospital  não  haviam  sido  calculados  para 
o  augmento  diário  do  numero  de  enfermos,  e  este  numero  eleva va-se  em  lo20 
a  660.  Os  lençoes  e  muitos  outros  artigos  vieram  a  faltar  completamente.  O 
pailamento  de  Paris  apiedou-se  d'estes  enfermos,  que  se  encontravam  na  maiur 
necessidade,  c  intimou  os  administradores  do  Hoíel-Dieu  a  proverem  Iodas  as 
faltas  do  hospital  de  S.  Nicolau.  (V.  Prouces  de  ['hist.  de  Paris,  poi-  Felibien 
e  Lohineau,  t.  iv,  p.  689  e  697.) 

Este  hospital  tomou  o  nome  de  Lourcines,  e  eram  para  elle  enviados  to- 
dos os  syphiliticos  que  se  apresentavam  na  repartição  dos  pobres  e  no  Hotel- 
Dieu,  onde  até  então  haviam  sido  admittidos  nos  mesmos  leitos  dos  não  ala- 
riidos  d'esta  enfermidade.  Tal  foi  a  origem  do  iiospital  do  venéreo,  e  um  de- 
creto de  24  de  setembro  de  l5o9  diz-nos  que  Pedro  Galandins  «costumava 
administrar  antes  d'isto  o  dito  Jiospilal  de  Lourciwes,  onde  vivia  e  assi.stia  como 
medico  aos  syphiliticos.»  (Ob.  citada,  l.  iv,  p.  778.) 

Ao  mesmo  (empo  que  se  procurava  isolar  esta  classe  de  enfermos,  Ira- 
etava-se  de  encerrar  nas  gafarias  os  leprosos  errantes,  que  tanlo  haviam  con- 
corrido para  corromper  a  saúde  publica,  vivendo  livremente  entre  a  população 
indemne. 

Francisco  i,  por  decreto  de  10  de  dezembro  de  loi3,  quiz  remediar  a 
(jrai-i'  desordem  das  gafarias,  e  tentou  fazer  encerrar  n'ellas  os  leprosos,  que 
mendigavam  pelas  aldeias.  Era  demasiado  tarde  para  restituir  ao  domínio  do 
estado  os  bens  pertencentes  á  caridade  publica,  mas  invadidos  ha  mais  de  um 
século  pelos  particulares.  Além  d'is{o,  de  que  serviam  as  gafarias,  se  já  não 
havia  leprosos  propriamente  ditos? 

EITectivamente,  os  que  por  este  nome  se  designavam,  não  eram  cm  ul- 
tima analyse  mais  do  ([ue  sypbiliiicos  de  vírus  recente  ou  inveterado.  .\  lepra 
e  o  venéreo  haviam  feito  causa-commum,  a  tal  pontoque  Henrique  iv,  por  um 


252  HISTORIA  • 

edito  de  1696  destinou  as  gafarias  que  ainda  restavam  para  alojamento  dos  fi- 
dalgos pobres  e  dos  soldados  estropeados. 

Naquella  épocha  nem  todos  os  syphiliticos  estavam  nos  hospitaes  e  pôde 
dizer-se  que  a  prostituição,  ao  passo  que  povoava  as  Cortes  dos  Milagres,  as 
ia  despovoando  também,  propagando  ri'ellas  sem  cessar  o  antigo  virus  da  lepra 
e  o  virus  novo  do  mal  venéreo. 


CAPITULO  XXII 


SUMMARIO 


Os  poetas  da  prostituii,  Jn  nu  swiilo  XIII.— Corrupção  obscena  da  linguagem.— Christina  de  Pisan  declara- 
guerra  ás  palavras  torpes.— Influfncia  do  Romance  da  Rosa  nos  costumes.— A  Arte  de  amar,  de  Guilherme  de  Lor- 
ris  e  JoSo  de  M-iin?.—  Vingança  das  damas.— Antagonistas  do  Romance  da  /íosn.— Projecto  de  refoima  das  mulho- 
re.i  publicas.— O  campeão  das  damas.— Os  poços  do  amor  da  Picardia  e  de  Hainant. —Guilherme  Coquillard.de  Relras. 
—Os  novos  direitos e  o  código  da  libertinagem.— íVjcío  iíí  des. —Fraude  a  respeito  da  i|ualidade  -do  jíenero.- Kstel- 
lionato  amoroso.— Litigio  entre  a  simples  e  a  astuta.- Antes  de  tudo,  pague.— Retrato  de  unia  velha  proxeneta.- 
Nomenclatura  das  coi  tez3s  de  Reims  com  as  suas  alcunhas  —  Oliva  de  GaieFatras.—  Mariquitas  de  Traine-Poétes.— 
Morte  de  Cociuillart.— Seu  epitaphio.— As  coquilles  de  Coquillart. 


|s  TRovEiRo.s  do  scculo  xiii,  como  já  dissemos,  haviam  sido  os 
poetas  da  prostituição.  As  suas  trovas,  contos  e  romances,  re- 
ílexo  vivo  da  licença  dos  seus  costumes  e  da  obscenidade  da 
sua  linguagem  tiveram  funesta  influencia  na  linguagem  e.scri- 
Hpta  e  nos  costumes  populares,  que  longe  de  se  depurarem,  se 
preverteram  cada  vez  mais,  a  exemplo  dos  que  a  alegria  gauieza  havia  elevado 
ás  nuvens  nos  seus  contos  licenciosos.  Não  s6  a  linguagem  foi  sobrecarregada 
de  uma  enorme  quantidade  de  palavras  torpes  e  de  locuções  impudicas,  mas 
aprendeu^" também  a  aproveitar  a  cada  passo  todos  os  logares  communs  do  amor 
carnal. 

Os  editores  de  Rufebeuf,  os  senhores  Achilles  Juvinal  e  o  seu  anteces- 
sor Meon,  não  se  atreveram  a  publicar,  nem  mesmo  supprimindo  as  palavras 
livres  ou  substifuindo-as  com  reticencias,  muitas  composições  que  provam 
■quanto  aquelle  desbragado  troveiro  se  esquecia  do  respeito  devido  á  decência 
publica.  Os  amadores  d'este  género  de  litteratura  podem  consultar  o  celebre 
manuscripto  da  Bibliotheca  imperial,  em  que  se  encontra  a  pag.  213,  a  compo- 
posição  intitulada  Dit  du  c.  .  .  et  de  la  c ... ,  que  principia  assim  : 

Une  c. . .  et  une  v. . .  s'esmurent 
A'  un  marche  oú  aller  durent. . . 

Uma  outra  composição,  não  menos  desaforada,  é  a  que  se  encontra  a  pa- 
ginas 24,  sob  o  titulo  de  Dit  des  c. .  .,  e  cuja  invocação  dirigida  a  um  alto  per- 
sonagem começa: 


254  HISTORIA 

.  Signor,  qvi  les  bons  c. . .  savez, 
Qui  snvpz  que  le  c. . .  esl  iels.  ■  ■ 

(^onío  estas,  outras  muitas  que  não  reproduzimos  ua  sua  integra,  e  das 
quaes  nem  mesmo  damos  a  traducção  dos  primeiros  versos,  para  não  indiíínar- 
iiios  o  leitor  avesso  a  taes  desbragamenlos  de  expressões. 

Ninguém  cvlranliava  esta  obscena  linguagem  nos  contos  jocosos,  onde 
era  sempre  bem  recebida  como  incentivo  da  gargalbada.  A  força  de  liabito  fez, 
porém,  com  que  ella  passasse  a  obras  mais  serias  e  ate  mesmo  ás  que  se  oc- 
cupavam  da  moral.  Já  citámos  diversas  passagens  de  uma  antiga  traducção  da  Bí- 
blia, para  provar  que  os  escriplorcs  c  poetas  profanos  se  rescnliam  sempre  das 
más  companhias  que  frequentavam.  Esta  inconveniência  da  linguagem  não  era, 
ainda  assim,  sensivel  a  todos,  e  mulheres  de  bons  costumes,  bem  como  homens 
de  grande  austeridade  iiavia,  que  levavam  a  sua  candura  ao  CNlremo  de  não 
se  escandalisarem  com  as  locuções  triviaes  ou  dcsiioneslas,  que  tinham  irrom- 
pido na  lingua  escripta  e  na  fallada  quasi  ao  mesmo  tempo.  Era  mister  possuir 
uma  delicadeza  excepciona!  n'aquclla  épocha  para  alguém  se  envergonhar  ou 
oftcnder  com  aquella  ingénua  grosseria,  que  o  uso  propagara  a  todas  as  clas- 
ses, fazendo-a  passar  dos  livros  á  conversação. 

\  amos  ver  como  a  discreta  e  jmdica  dama  Cbristina  de  Pisan  se  defen- 
dia da  accusação  de  haver  manchado  as  suas  obras  poéticas  e  moraes  com  esta 
prostituição  da  linguagem.  Responde  á  muilo  notável  e  compeiente  pessoa  de 
Gauthier  Col,  secretario  do  rei  Carlos  v : 

«Dizes  que  sem  razão  vitupero  o  (|uc  se  diz  no  Hnmance  da  Ito.sa,  no 
Capitulo  (la  /?a^ão,em  que  se  nomeiam  os  membros  do  homem  pelos  seus  no- 
mes, e  a  ponto  recordas  o  que  disse  n'outra  parte  já  —  que  Deus  creou  Iodas 
as  cousas  boas,  mas  que  emíim  pela  abominável  mancha  do  peccado  dos  nos- 
nos  primeiros  pães  se  tornou  o  homem  uma  cousa  immunda.  Trago,  em  re- 
forço, o  exemplo  de  Lúcifer,  cujo  nome  é  bello  e  a  pessoa  horrível,  e  concluo 
por  dizer  que  o  nome  não  faz  a  deshoneslidade  da  cousa,  mas  sim  a  cousa  é 
(jue  torna  o  nome  desbonesto.  E  por  isto  dizes  que  me  pareço  com  o  pelicano, 
que  se  mata  com  o  próprio  bico,  e  conclues : — Se  é  a  cousa  que  torna  o  nome 
desbonesto,  que  nome  se  pode  dar  á  cousa,  que  não  seja  desbonesto?— A  isto 
respondo  desde  já  que  nem  sou  lógica,  nem  vejo.  a  necessidade  de  taes  dispu- 
tas. No  emtanto,  sempre  accrescentarei  que  não  poderia  fatiar  de  modo  algum 
de  dcshonestidade,  ou  de  vontade  corrompida,  mas  se  cm  caso  de  enfermidade 
o  julgasse  conveniente,  faltaria  d'isso  de  modo  que  se  entendesse  o  (|uc  (|tieria 
dizer,  sem  fallar  ainda  assim  deshoncslamente.» 

Cbristina  de  Pisan  não  receia,  ao  que  se  vè,  entrar  ii"uma  discussão  es- 
pinhosa e  árdua  a  respeito  dos  casos  em  que  era  necessário  chamar  as  cousas 
pelo  seu  nome,  embora  esse  nome  fosse  desbonesto,  e  conclue  por  estabele- 
cer o  principio  de  que  só  a  dcshonestidade  do  coração  produz  a  dcshonestidade 
das  expressões.  Tractando,  porém,  d'estc  escabroso  assumpto,  nem  se  quer  nota 
que  vae  cahir  no  defeito  que  censura  a  João  de  Meung  e  aos  podas  da  sua  cs- 
chola,  por  isso  que  se  serve  de  palavras  t(U-pes  e  iiulccenlcs,  i]iie  contrastam 
com  a  pureza  das  suas  intenções. 


DA    PROSTITUIÇÃO  255 

O  Romance  da  Rosa,  qui-  Cliristiiia  de  Pisan  ataca  d'esto  iinxlo  nas  suas 
epistolas  (J/ò-,  da  BiblioiluH-ii  [inperial,)  j.jdia  com  razão  sor  accusatlo  de  haver 
exercido  unia  influencia  perniciosa  no' pudor  da  linguagem  e  no  estado  dos 
costumes  puidicos.  l'ódc  dizer- se  no  eintanfo  que  o  Romance  da  Rosa  foi  por 
espaço  de  mais  de  d  )is  séculos  o  evangelho  da  galanteria  franccza. 

O  auctor  da  primeira  parle  d'este  famoso  poema,  Guilherme  de  í.orris, 
que  mo)  reu  nos  fins  do  século  xiii,  deixando-o  incompleto,  prMendeu  compor, 
sob  uma  forma  allegorica,  uma  espécie  de  Arte  de  amar,  ao  gosto  do  seu  tempo  : 
no  emtanto,  não  se  illudia  a  respeito  dos  perigos  de  uftia  paixão,  que  é  ás  ve- 
zes um   mal  lerrivel  e  incurável. 

«Não  ha  remédio  nem  mezinha  ([ue  aproveite.  Fugir  do  amor  eis  Ioda  a 
sua  medicina!.  .  .» 

O  poeta  sabia  talvez  por  experiência  própria  que  o  amor,  por  elle  des- 
cripto  com  tanta  soduc.ção,  era  epidemico  entre  os  poetas  da  épocha. 

«.Muitos  perdem  com  elle  o  juizo,  o  tempo,  os  haveres,  o  corpo,  a  alma 
e  a  salvação». 

riuilherme  de  í.orris  lenlou  neutralisar  o  contagio  voluptuoso  do  seu 
assumpto  por  meio  de  reflexões  cheias  de  prudência,  e  de  sentimentos  de  uma 
nobre  honradez.  Não  consegue,  porém,  realisar  o  seu  fira,  por  isso  que  a  doida 
mocidade  (jue  se  havia  enlhusiasraado  com  o  seu  Romance  da  Rosa,  que  en- 
cerra índa  a  arte  do  amor,  só  viu  n'el!e  pasto  e  exemplos  de  libertinagem,  em 
vez  de  preceitos  e  de  licções  de  moral.  O  poeta  interrompeu  o  seu  trabalho  eró- 
tico, tlepois  dç  haver  escripto  quatro  mil   versus. 

Outro  poeta  se  apresentou  para  completai'  o  Romance  da  Rosa.  João  de 
Meung,  diz  Chopinel,  continuou  o  romance  de  Lorris,  alTastando-se,  porém,  al- 
gum tanto  do  plano  primitivo.  Não  quiz,  no  emtanto,  imitar  Ovidio,  ou  qualquer 
dos  poetas  clássicos  do  amor.  Sob  o  pretexto  da  moralidade  e  da  satyra  dos  cos- 
tumes, desencadeou  na  segunda  parte  da  sua  obra  uma  torpe  enxurrada  de  in- 
jurias contra  as  mulheres,  e  para  alTastar  os  seus  leitores  do  perigoso  escolho 
da  galanteria,  tractou  de  lhes  apresentar  em  toda  a  sua  nudez  os  amorosos 
incentivos  das  sereias,  que  se  dedicam  á  perdição  das  almas  e  dos  corjtos. 

Parece  estar  perfeitamente  averiguado  que  João  de  .Vleung  não  foi  frade 
dominico,  segundo  por  muito  tempo  se  julgou,  pelo  facto  de  haver  sido  enter- 
rado no  claustro  do  convento  dos  jacobinos  da  rua  de  Saint-Jacques.  Era  dou- 
tor e  professor  de  humanidades  na  universidade  do  Paris,  por  isso  que  o  seu 
panegyrista,  o  prior  de  Salon,  nol-o  representa  sentado  no  seu  jardim  da  Tour- 
nelle  e  vestido  com  uma  capa  forrada  de  arminho,  como  homem  de  qualidade, 
diz  o  bibliogiapho  .\nlonio  Duverdicr.  Oas  escholas  tiouxcra  o  habito  de  cha- 
mar as  cousas  pelo  seu  nome,  e  não  fazia  escrúpulo,  alentado  pelas  suas  boas 
intenções,  do  usar  dos  termos  mais  obscenos  e  de.  pintar  o  amor  com  as  co- 
res mais  lúbricas,  desprezando  toda  a  espécie  de  veu.  Apesar  d'isso,  jactava-se 
de  ser  homem  honesto,  de  corarão  ijenlil  e  animo  leal. 

Se  o  Romance  da  Rosa,  porém,  era  a  leitura  favorita  dos  jovens  disso- 
lutos, as  damas  e  as  meninas  novas,  ([ue  também  o  liam  em  segredo,  não  per- 
doavam ao  auctor  o  havel-as  ultrajado,  especialmente  n'uma  extensa  diatribe 


2(S6  HISTORIA 

contra  o  sexo  feminino,  que  termina  por  estas  palavra* :  ^ínlhei-es  honradas,  por 
S.  Diniz !  abundam  tanto  como  a  Phenix ! 

As  damas,  irritadas  por  este  ultrage,  resolveram  castigar  por  suas  pró- 
prias mãos  o  insultador  Veio  exacerbar-lhes  a  fúria  outra  opinião  demasiado 
cruel,  que  o  poeta  ousara  formular  contra  o  bello  sexo  em  geral:  «Todas 
fostes,  sois  ou  sereis,  por  obras  ou  por  vontade,  p.  . .» 

A  vingança  das  damas  vem  referida  por  André  Thevet  nos  Verdadeiros 
retratos  e  cidas  dos  homens  illustres  (Paris,  Kerver,  1584,  2  tomos  in-folio;) 
e  a  tradicção  do  facto  estava  ainda  tão  presente  na  memoria  de  todos,  que  An- 
tónio Duverdier,  sire  de  Vauprivas,  publicando  quasi  ao  mesmo  tempo  em 
Lyon  a  sua  'Biblioth.  franceza,  nVlla  faz  menção  da  desventura  de  João  de 
Meung.  A  narração  de  Duverdier  é  muito  menos  conhecida  que  a  de  André 
Thevet.  De  mais  a  mais  contém  interessantíssimos  pormenores,  e  por  isso  a 
transcrevemos  textualmente,  com  o  filo  de  provarmos  que  no  tempo  de  Filippe, 
o  Formoso,  as  damas  da  corte  não  tinham  melhor  fama  que  as  cortezãs  de  pro- 
fissão : 

«Mestre  João  de  Meung,  diz  o  sire  de  Vauprivas,  tendo  vindo  á  corte- 
em  certa  occasião,  foi  apanhado  pel.is  damas  n'uma  das  camarás  do  palácio  real, 
e  rodeado  logo  alli  mesmo  de  muitos  fidalgos,  que  por  agradarem  ás  damas  ti- 
veram de  prometter  auxilial-as  no  castigo  que  meditavam.  Apenas  João  de 
Meung  as  viu  armadas  de  fortes  azorragues,  e  ouvindo  que  intimavam  os  fi- 
dalgos a  despil-o,  pediu-lhe  a  mercê  de  o  deixarem  fallar,  jurando  que  não 
iria  pedir-lhes  o  perdão  do  castigo  que  desejassem  impor-lhe,  bem  que  não  o 
merecesse,  o  que  lhe  foi  outorgado,  depois  de  muitos  rogos  e  instancias  dos  fi- 
dalgos. 

«Então  João  de  Meung  tomou  a  palavra  e  disse : 

«Senhoras  minhas,  uma  vez  que  é  preciso  que  eu  seja  castigado,  pare- 
ce-me  justo  que  m'o  itifiijaia  somente  aquellas  qut  otTcndi.  Ora  como  cu  me 
referi  ás  damas  licenciosas  e  de  maus  costumes  e  de  nenhum  modo  ás  que 
n'este  logar  vejo  reunidas,  se  alguma  de  vós,  formosas  senhoras,  se  julga  victima 
das  minhas  allusões,  comece  immediatamente  a  zurzir-me  a  pelle  como  a  mais 
p.  .  .  de  todas  quantas  accusei. 

«Nenhuma  houve  que  se  determinasse  a  começar,  receiando  carregar  com 
a  infâmia  do  grosseiro  apodo,  e  mestre  João  escapou  incólume,  deixando  as  da- 
mas envergonhadas  e  muito  satisfeitos  os  fidalgos  circu instantes,  que  celebra- 
ram o  ca.so  com  grande  risada.  Alguns  d'elles  eram  de  parecer  que  havia  alli 
damas  que  deviam  por  justo  titulo  e  fama  fomeçar  o  castigo.» 

O  Romance  da  Rosa,  em  que  abundam  pormenores  eróticos  e  palavras 
obscenas,  foi  para  os  francezes  dos  séculos  xiv  e  xv  o  que  o  poema  de  Ovidio 
fora  para  os  romanos.  Escripto  em  magnifico  pergaminho,  e  ornado  de  minia- 
turas, encontrava-se  em  todas  as  livrarias  dos  palácios  e  dos  castellos;  sabia-se 
de  cór,  era  a  cada  instante  citado,  e  d'elle  se  tiravam,  como  de  uma  fonte  de 
refinada  galanteria,  todas  as  licçõcs  e  documentos  da  arte  de  amar. 

Mas  este  celebre  romance,  que  tinha,  apesar  de  tudo,  um  fim  moral,  não 
foi   menos  reprovado  pelas  mulheres  perdidas^^e  pelas  pessoas  de  bons  costu- 


DA    PROSTITUIÇÃO  257 

mes,  e  uma  multidão  de  poetas  e  prosadores,  sem  duvida  por  iiispiraçàn  das 
damas,  refutaram  as  accusações  parciaes  e  deshonestas  que  ii'esse  livro  contra 
ellas  st^  encontravam. 

Os  dois  mais  famosos  antagonistas  do  Romance  lia  Jtosa  foram  (".liristina 
de  Pisan  e  Martin  Lefranc,  que  .«-em  deixarem  de  fazer  justii,'a  ao  talento  do  au- 
etor,  o  censuram  igualmente  de  haver  sido  injusto  para  com  as  mulheres,  e  de 
se  ter  deivado  transviar  nos  torpes  atalhos  da  prosfiluiçào.  Eis  a  opinião  que 
a  famosa  Chrislina  de  Pisan  fez  d'este  livm,  (jue  tinha  imnienso  desejo  de  ani- 
quillar : 

«Por  isso  que  a  natureza  humana  é  mais  inclinada  ao  mal,  julgo  que 
esse  livro  pôde  ser  causa  do  resvalamento  aos  maus  costumes,  por  isso  que 
contem  vida  dissoluta,  doutrina  de  decepí,"ão,  vida  de  condeninaçào,  diffamação 
publica,  causas  de  suspeita  e  de  incredulidade,  e  vergonhas  para  muitas  pes- 
soas, p  sobre  tudo  mui  deshonesta  leitura  em  vários  pontos.» 

Christina  de  Pisan  vivia  em  épocha  menos  despravada  do  (|ue  aquella  em 
que  João  de  Meung  apresentava  a  mulher  como  um  vaso  impuro  de  todos  os 
vícios.  Os  costumes  no  reinado  de  Carlos,  o  Prudente,  eram  mais  decentes  que 
nos  reinados  anteriores ;  no  emtanto,  a  prostituição  civil  não  deixava  de  ter  os 
seus  foros  de  cidade,  no  dizer  d'esta  virtuosa  escriptora,  que  na  sua  Cite  de.i 
dames  queria  mostrar  que  o  seu  sexo  sobresahia  ao  outro  em  toda  a  espécie 
de  méritos,  e  que  no  seu  livro  das  Três  Virtudes  dava  licyões  de  moral  e  de  de- 
coro ás  mulheres  de  todas  as  condições.  Não  esquecia  também  as  mulheres  de 
mà  vida,  e  propunha-se  convertel-as,  restituindo-as  à  estima  da  sociedade.  Por 
isso  dizia  a  illustre  dama : 

«Como  seria  bom  para  qualquer  mulher,  assim  victimada  á  vergonha  e 
ao  peccado,  voltar  ao  primitivo  estado  de  virtude!  E  ser-lhe-hia  fácil  conse- 
guil-o,  pois,  assim  como  tem  corpo  forte  para  fazer  o  mal  e  soffrer  muitas  in- 
jurias, tel-o-hia  também  para  ganhar  a  vida;  assim  ella  quizesse,  repetimos! 
que  não  lhe  faltaria  quem  de  boa  vontade  a  ajudasse,  lhe  desse  onde  trabalhar, 
mas  em  recato  e  com  toda  a  vigilância,  para  (|ue  nào  se  expozesse  novamente 
á  impureza  e  ao  vicio  em  que  vivera.  Fiaria,  assistiria  aos  enfermos,  teria  uma 
pequena  morada  n'alguma  rua  decente,  er)tre  gente  honesta,  onde  viveria  sim- 
ples e  recatadamente,  sem  que  ninguém  a  visse  jamais  ébria,  cheia  de  enfer- 
midades, ou  armando  pendências  com  a  outra  gente.  Teria  o  máximo  cuidado 
em  que  da  sua  bocca  jamais  sahisse  palavra  própria  de  bordel  ou  prostituição 
(puterie) ;  fallaria  sempre  corteznienti- ;  seria  meiga  e  obsequiosa  para  toda  a 
gente,  e  teria  o  maxmio  cuidado  em  que  nenhum  homem  a  enganasse,  porqui> 
n'èsse  caso  perderia  todas  as  vantagens  adquiridas.  Por  este  caminho,  poderia 
servir  a  Deus  e  ganhar  honradamente  a  vida,  e  mais  lhe  aproveitaria  assim 
um  escudo,  do  que  cem  recebidos  em  peccado.» 

O  projecto  de  reforma,  imaginado  por  Christina  de  Pisan  para  destruir  a 
prostituição,  não  leve  outro  resultado  senão  dar  honra  a  sua  aucíora.  As  mu- 
lheres publicas  não  renunciaram  á  sua  deshoiira.  nem  Ião  pouco  veio  a  cari- 
dade ao  seu  encontro  ofTerccer-lhcs  tima  pequena  moraAa,  nalguwa  rua  de- 
cente, entre  gente  honesta,  nem  trabalho,  nem  outro  quabjuer  meio  de  mudar 

BiSTOBiA  Dl  PBosTrrmçÃo.  Tomo  ii— Folha    3.'). 


258  HISTORIA 

de  vida.  Continuaram,  porlaiilo,  a  ser  d  que  eram  até  ahi;  bêbadas,  fallado- 
ras,  bulhentas  e  escandalosa^^. 

O  mesmo  resultado  leve  o  ata(|ue  de  Christina  de  Pisan  a  Joào  de  Meung. 
O  Romance  da  Rosa,  sempre  lido  e  admirado,  continuou  a  gosar  da  mesma  po- 
pularidade, sendo  uma  espécie  de  breviário  para  os  amantes  e  libertinos. 

Martin  Lcfranc,  o  auctor  do  Campeão  das  damas,  perdeu  egualmentr  a 
sua  campanha  contra  a  poesia  erótica,  tomando  o  Romance  da  Rosa  para  texto 
das  suas  declamações  uioraes  em  defeza  do  sexo  feminino. 

Lcfranc  era,  como  se  suppõe,  preboste  e  cónego  da  egreja  de  Leuse  cm  Hai- 
naut.  Homem  dado  a  galanteios,  e  dotado  de  bom  humor,  tomou  a  seu  cargo 
a  defeza  das  damas'  contra  as  insolências  de  João  de  Meung. 

O  seu  Campeão  das  damas  não  é  mais  de  que  um  extenso  panegyrico  da 
vida  feminina;  no  emlanto,  serve-se  com  demasiada  frequência  do  vocabulário 
do  mesmo  .íoão  de  Meung,  som  receio  ile  offender  os  castos  ouvidos  das  pessoas 
a  quem  se  dirige. 

Este  facto  comprova  o  que  ja  dissemos  a  respeito  do  desbragamento  da 
linguagem  lilferaria  e  do  iiupudoí'  dos  poetas.  Desde  que  se  entrava  no  plano 
rcsvaladiço  da  tjaia  scieacia,  força  era  adoptar-se  o  .seu  estylo,  creado  na  eschola 
da  libertinagem  e  dos  bordeis. 

Frei  Guilherme  Alexis,  monge  de  Lira  na  Normandia,  no  seu  Grande 
hrazão  dos  falsos  amores,  composto  em  meiados  do  século  .\v,  não  empregou 
linguagem  mais  decente  du  que  o  auctor  anonymo  do  livro  de  Mallieolus,  poema 
francez,  composto  no  século  xiv  contra  o  matrimonio  e  as  mulheres,  c  que  se 
attribue  a  um  bispo  de  Teronenne. 

.Vssim,  .Martin  Lcfranc,  que  julgava  empregar  honradamente  os  seus  ver- 
sos em  beneficio  das  damas,  condemna  severamente  os  poetas  profanos  e  as 
suas  academias,  que  elles  chauiavam  Poços  do  amor  (fui/s  d'am,oiir),  porque 
todos  os  seus  versos  pareciam  sahir  d'elles. 

Vamos  dar  uma  amostra  cm  paraphrase  da  cólera  de  Lcfranc  contra  os 
Poços  do  amor,  que  tinham  o  privilegio  de  attrahir  a  multidãx»,  sobre  tudo  na 
Picardia  c  no  Hainault : 

«E'  pelos  amores  (|ue  versejam  e  compõem  bailadas;  é  para  os  amores 
que  afinara  o  seu  alto  engenho.  INeste  estudo  passam  os  dias ;  no  serviço  «lo 
amor  se  empregam,  como  se  o  amor  fosse  omnipotente.  Fazem  mal,  ponjuc 
nem  se  defendem  contra  elle,  que  é  impotente. 

«Nunca  leste  em  vossos  livros  como  os  loucos  pagãos  versejavam  em  honra 
de  Baccho,  deus  dos  ébrios,  e  de  Vénus,  que  tanto  amavam?  Era  diante  d'estes 
dois  que  elles  entoavam  os  .seus  versos  e  improvisos.  Peior  do  que  esses  lou- 
cos faziam,  se  faz  hoje  na  Picardia  o  no  Artois.» 

Nos  poetas  dos  séculos  xv  e  xvi  pode  perfeitamente  estudar-se  o  estado 
dos  costumes  e  particularidades  da  vida  dissoluta  d'essas  épochas,  e  pelo  modo 
de  vida  de  alguns  d'clles  podemos  também  avaliar  o  que  seriam  os  hábitos  da 
maior  parte  d'esscs  versejadores,  que,  segundo  Clemente  .Marot,  passavam  o 
tempo  nos  bordeis.  Quasi  todos  elles  podem  ministrar  alguns  dados  a  uma  inves- 
tigação dos  i-ostunies  públicos  d"a(iue||c  tempo,  mat,  como  seria  irnpossi\  cl  es- 


n\  PROSTiTinçÃn  J59 

tildar  as  obras  d'ossa  plêiade  de  vates,  linii(amo-n'os  a  evirahir  dos  versos 
de  Coquillart  e  de  Villon,  os  dois  melhores  poetas  do  seonio  xv,  o  (|ue  pikle  in- 
teressar á  historia  da  prostituição. 

(iiiilherme  Coquillart,  empregado  publien  em  Reims,  transportava  para 
lís  seus  versos  a  gvria  das  rameiras  da  sua  provineia.  Deixou  muitas  obras  de 
poesia  joeosa,  que  foram  muito  estimadas  no  seu  tempo,  e  que  mereeiam  real- 
mente esta  grande  estima,  pelo  seu  espirito,  um  pouco  licencioso,  é  certo,  mas 
essencialmente  franeez. 

Sob  o  titulo  de  Direitos  aows,  reuniu  um  grande  r)umero  de  |)erguntas, 
que  foram  uma  espécie  de  código  da  libertinagem.  Vamos  traduzir  em  para- 
phrase  algumas  d'essas  perguntas  com  as  suas  respostas. 

Perguntam  a  este  jurisconsulto  de  causas  amorosas,  s<'  uma  mulher 
joven  deve  amamentar  seus  filhos.  Coquillart,  poeta  e  entendido  libertino,  res- 
ponde em  versos,  cujo  sentido  é  o  seguinte: 

«Ella  tem  as  mais  bellas  pomas,  formas  roliças,  bem  talhadas,  seio  de- 
licioso e  delicado,  n5o  ha  nada  mais  bello  n'este  mundo. 

«Transformada  em  ama,  ficará  repellente,  chupada,  cheia  de  farrapos: 
as  pomas  tornar-se-bão  pelbancras;  as  formas  roliças  desapparecer5o.» 

Perguntam-lhe  também,  se  quando  .se  propõe  um  negocio  de  amor  a  uma 
(Vessas  perigosas-  sereias,  que  nada  fazem  a  não  ser  por  dinheiro,  esse  nego- 
cio é  venda,  aluguer,  empréstimo,  permuta,  ou  mutuo,  t^.oquillart  responde  que 
é  um  verdadeiro  contracto,  fundado  n'este axioma  do  direito  romano  :  Facio  ut  des: 

kE'  para  que  dés,  que  eu  faço.  Eis  a  pura  intenção  do  caso;  sem  dadi- 
vas ninguém  ama  n'este  mundo.» 

Perguntam-lbe  se  uma  mulher  publica,  tendo  sido  enganada  por  uma 
proxeneta,  que  a  induziu  a  entregar-se,  pôde  e\igir  indemnisação  d'ella.  Co- 
quillart condemna  a  proxeneta  a  indemnisar  a  pobre  rapariga  que  se  fiou  nas 
suas  promessas  fraudulentas,  e  a  proseguir  gratuitamente  no  seu  trafico  du- 
rante um  tempo  determinado. 

O  poeta  falia  de  outro  caso  d'esta  natureza  que  se  refere  igualmente  á 
rubrica  De  dolo,  e  que  nos  demonstra  que  as  proxenetas  do  século  xv  não 
eram  mais  humanas  nem  menos  avarentas  que  as  dos  nossos  dias.  Faz  em 
seguida  o  retrato  de  uma  formosa  proxeneta,  a  quem  aponta  nmi  justiça  á  exe- 
cração publica,  por  isso  que  gente  d'esln  é  n  origem  de  todo  o  mal  que  ha  no 
mundo.  E,  contando  um  logro  pregado  por  esta  infame  a  uma  pobre  prostituta, 
termina  por  exigir  que  ella  pague  uma  boa  multa. 

•  Um  ponto  muito  mais  delicado  se  encontra  no  famoso  questionário  do 
poeta.  Pergunta-lhe  alguém  se  uma  joven  pôde  abusar  da  credulidade  dos  ho- 
mens, a  ponto  de  lhes  vender  três  vezes  a  mesma  cousa. 

«Gbega  o  primeiro,  talvez  um  ricaço.  Este  paga-lhe  a  aprendizagem  e  a 
preciosa  flor  que  vae  colher. 

«Depois  d'este,  vem  um  estudante,  umdoidivanasde  boa  casa,  que  julga 
fazer  uma  excellente  conquista,  e  é  o  segundo  a  beber  pelo  copo. 

«Vem  depois  ainda  algum  papalvo,  que  paga,  e  passa  o  estreito.  Parece- 
vos  que  será  justo  vender  uma  só  cousa  a  três?» 


?6<l  HISTÓRIA 

Coquillact  é  milito  ami^o  «la  justiça  para  pormittir  simiihante  desaforo, 
uma  fraude  de  tal  onlem  a  respeito  da  qualidade  do  ^teiiero,  e  ordena  que  a 
nympha,  eulpada  de  esfellioiíato  amoroso,  seja  açoitada  em  castigo  do  seu  crime, 

«Semi-núa,  para  se  reconhecer  o  delictn,  sohre  uma  cama,  eom  os  den- 
tes cerrados,  e  o  espirito  entregue  a  devaneios  amorosos.  .  .» 

O  digno  Coquillart,  que  na  sua  qualidade  de  funccionario,  tinha  que  jul- 
gar frequentemente  casos  difficeis,  desenvolve  toda  a  sua  sciencia  juridica  no 
famoso  Jjligin  entre  a  Simples  e  a  Áslufa. 

«O  que  predomina  n'esta  peça,  diz  o  abbade  Goujet  (Ribl.  franc,  t.  x, 
pag.  160)  é  a  obscenidade.  Duas  mulheres  disputam  entre  si  um  amante.  Os 
advogados  sustentam  o  pró  e  o  contra,  expondo  minuciosamente  os  direitos  de 
cada  parte,  c  estes  direitos  trazidos  a  publico  estão  longe  de  se  fundar  nos  bons 
costumes  das  partes  litigantes.  O  juiz  interrompe  os  advogados ;  estes  voltam 
logo  á  questão.  Segue-se  a  inquiriç.ão  das  testemunhas,  é  um  processo  em 
forma.» 

Um  dos  advogados,  mestre  Simon,  sustenta  largamente  que  se  os  homens, 
em  virtude  da  sua  força,  não  tivessem  mais  do  que  abaixar-se  para  salisfaze- 
rcín  os  seus  desejos  a  respeito  das  mulheres,  esta  grande  facilidade  de  praze- 
res sensuaes  traria  comsigo  sérios  inconvenientes,  porque  se  seguiriam  scenas 
de  luxuria  no  meio  das  ruas,  amesquinbar-se-hia  o  oflicio  das  prostitutas,  to- 
lias  as  raparigas  seriam i)erdidas,  e  todos  quereriam  possuirás  mulheres  mais  bet- 
las  e  mais  seductoras,  .se  cilas  assim  tão  facilmente  se  abandonassem. 

Entre  os  depoimentos  das  testemunhas  ha  um  muito  interessante  de  uma 
velha  proxeneta,  que  conta  como  a  Astutu  era  uma  mulher  de  vida  licenciosa, 
a  ponto  dl-  açular  todas  as  mulheres  publicas  do  bairro  contra  a  Simplex,  indo 
de  noite  acompanhada  de  seus  adeptos  lazer  um  sabbat  infernal  á  porta  da  sua 
inimiga.  U  retrato  d'e,sta  proxeneta  c  uma  id)ra  prima  de  apodos  burlescos  e 
obscenos.  Ella  é  a  prinrezo  dos  bordeis,  a  ijravde  esmoler  da.s  rdineiras,  etc. 
etc.  As  testemunhas  são  um  famoso  rancho  de  prostitutas,  cujos  nomes  e  al- 
cunhas são  curiosissimos,  e  denotam  a  persistência  dos  u.sos  da  prostituição: 
Mariquitas  de  Traine-Poelras,  Atjoslinha,  a  Mal-talhada,  fíeqnaudint,  a  Re- 
dondinha, Demoraut,  a  Porca,  Guillemette,  a  Coxiraça,  Michelor,  a  Pencuda, 
Clirisiina,  a  Descorada,  Egypriaca,  a  Espalhajato,  Henriqueta,  a  Panelleira, 
Lqurença,  a  Mal-encarada,  Oliva,  a  (laste-Faíras,  etc.',  etc. 

Estas  diver.sas  alcunhas,  que  caracterisavam  os  defeitos  ou  as  qualida- 
des das  prostitutas,  poderiam  dar  matéria  a  curiosos  commentarios.  A.ssim  Oliva, 
Itaste-halras  parece-nos  ter  merecido  este  nome  por  costumar  perder  'os  ho- 
mens que  com  ella  se  meltiam.  N'aquclle  tempo  chamava-se  fatras  um  mo- 
llio  de  chaves,  c  em  sentido  figurado,  as  trapaças  e  enganos. 

.Mariquitas  de  Trai ne-Poe trás  devia  a  alcunha  á  immundicie  da  cami.sa, 
simiihante  áquella  que  um  escriplor  cómico  daeschola  de  Bruscambille  nos  re- 
presenta pintada  por  diante  e  dourada  por  detraz.  De  resto,  é  de  presumir  que 
o  poeta  (loquillart  não  fosse  buscaros  seus  assumptos  a  Paris,  e  que  recolhia  nos 
seus  versos  tudo  o  que  tinlia  visto  pelos  próprios  olhos  na  cidade  de  Reims. 

Coquillart  toi   magistrado  excellenle,  e  João  Juvenal  dos  Ursinos,  arce- 


DA    PROSTITUIÇÃO  261 

bispo  de  Reimí!  chegou  a  no?Tieal-n  seu  executor  testamentario  em  1472;  mas 
era  poeta  demasiado  jocose  e  de  costumes  muito  livres.  Ha  nas  suas  poesias 
muitas  liberdades,  que  apezar  de  verdadeiramente  engenhosas,  Lafonlaine  não 
teria  imitado.  Pelo  que  .se  vè,  o  bom  Coquillart  não  era  muito  escrupuloso  a 
respeito  da  moralidade  das  pessoas  que  frequentava.  Os  seus  versos  iniciam-nos 
no  seu  género  de  vida,  e  o  seu  epitaphio,  composto  por  Clemente  .Marot,  mos- 
tra-nos  que  morreu  como  tinha  vivido. 

La  morre  est  jeu  pire  qu'aux  quilles, 
jVf  qu'aux  eschecs  ne  qu'au  quillart: 
.     Á  ce  meschant  jeu  Coquillart 
Perdit  la  cie  et  ses  coquilles. 

Este  epitaphio  não  foi  comprehendido  pelos  biographos  que  o  téem  ci- 
tado. Suppuzeram  elles  que  o  bom  Coquillart,  tendo  perdido  uma  grande  som- 
ma  ao  jogo  da  morra,  viera  a  morrer  de  pesar.  N5o  foi  assim,  segundo  o 
abbade  Goujet.  Clemente  Marot  nos  versos  citados  allude  ás  três  conchas,  ou 
coquillea  de  ouro,  que  o  velho  Coquillart  usava  no  seu  escudo. 

.4  nossa  opinião,  porém,  diverge  bastante  da  do  commentador  dos  ver- 
sos de  .Marot.  Quer-nos  parecer  que  ha  no  epitaphio  em  questão  um  jogo  de  pa- 
lavras e  nada  mais. 

A  morra  é  um  jogo  de  origem  antiquíssima.  Chamavam-lhe  os  romano.s 
micatio  digitam,  e  consistia  em  levantar  tantos  dedos  como  o  parceiro,  decla- 
rando o  numero  com  uma  rapidez  maravilhosa.  E'  fácil  comprehender  a  allu- 
são  indecente  que  o  poeta  oITerece  ao  espirito,  comparando  a  morra  com  o  jogo 
dò  amor,  pela  analogia  que  ha  entre  ambos. 

Resulta  d'aqui  ter  Coquillart  perdido  a  vida  e  as  coquilles,  outra  allusão 
indecente,  no  jogo  do  amor.  Entendia-se  em  sentido  metaphorico  por  coquãlc 
o  órgão  do  sexo  feminino,  e  por  coquilles  os  testículos.  Havia  até  um  provérbio 
para  as  mulheres:  —  La  coquille  lui  démange ;  e  outro  para  os  homens  —  Les 
coquilles  lui  sonnent. 

Dada  esta  explicação  philologica,  é  claro  que  Coquillart,  á  força  de  fre- 
quentar a  c^jmpanhia  das  mulheres,  contrahiu  uma  enfermidade  vergonhosa,  tão 
damninha,  que  o  pobre  homem  perdeu  a  vida  ás  mãos  do  cirurgião,  que  teve 
de  lhe  cortar  os  testículos.  Coquillart  morreu  elíectivamente  em  1500,  épocha 
em  que  o  mal  napolitano  assolava  a  França.  A  sua  morte  foi  em  verdade  bem 
pouca  honrosa  para  um  magistrado,  mas  muito  natural  para  um  poeta  que 
nunca  tivera  outras  musas  senão  as  nymphas  dos  bordéis 


CAPITULO  XXIII 


SUMMARIO 


Vida  dos  libertinos  «;  das  mulheres  publicas  ao  século  xv.— A  mocidade  de  Francisco  ViUon— Suas  p-o-iaf. 
—Seus  processos  e  seu  pequeno  testamento.  — Tabernas  famosas.—  Seu  epitapliio.— O  grande  testamento  de  Vlllon. 
—A  bella  Heaulmière.—  As  mulheres  alegres.—  Saint-Genou  e  Brisepaille  no  Poitou.—  Enné,  exclamaçSo  das  pros- 
titutas.— Quadro  domestico  das  ribaldas  e  dos  seus  amantes. —  Bailada  dos  devassos.—  As  trutas  u  os  porcos.— Vil- 
loD  encommenda  a  sua  alma.—  A  diaba  de  Montfaucon.—  Os  farsantes.— Os  Sem  cuidados.  -  A  mocidade  de  Cle- 
mente Marot.—  A  lenda  de  Pedro  Faifen.—  Maeeia,  devota  e  mulher  publica. 


Jas  obras  lie  Francisco  Villoii  pôde  l'azer-se  um  excellente  estudo 
do  que  era  no  século  xv  a  vida  dos  libertinos  e  das  mulheres  de 
maus  costumes.  Villon,  antes  de  entrar  na  prisão  do  Chatelet, 
onde  foi  condemnado  a  morrer  no  supplicio  da  roda,  passara  a 
mocidade  nos  bordeis,  sem  outras  companhias  que  nào  fossem 
as  que  por  aquelles  antros  encontrava.  Como  elle  próprio  confessa,  o  jogo,  os 
banquetes  e  as  mulheres  arrastaiam-ii'o  ao  crime,  sendo  castigado  duas  ou  três 
vezes  com  os  seus  cúmplices. 

Villon  era  filho  de  uma  familia  honrada,  ainda  que  pobre,  que  tinha  o 
appellido  de  Corbeuil.  O  poeta  adoptou  o  sobrenome  ou  alcunha  de  Villon,  como 
quem  diz  ladrão,  ou  ratoneiro,  quando  as  suas  proezas  na  arfe  o  fizeram  co- 
nhecer como  um  famoso  marau  entre  os  ribaldos  da  cidade  de  Paris.  Dizia-se 
estudante,  e  pôde  presuniir-se  pelas  suas  poesias  que  estudou  effectivamentc 
nas  grandes  eschólas  da  rua  de  Fouare,  antes  de  ser  proclamado  mestre  em  ar- 
tes nas  escolas  da  gyria  e  da  prostituição. 

Comevou  a  sua  carreira  por  alguns  roubos  de  pequena  importância,  que 
apenas  lhe  proporcionavam  uma  boa  comezaina  em  companhia  dos  seus  ami- 
gos e  amigas.  Encarregava-se  de  obter  sem  despeza  pão,  carne,  e  sobretudo 
vinho,  inventando  partidas,  e  verdadeiros  rasgos  de  engenho  para  enganar  os 
tendeiros.  O  seu  primeiro  processo  data  de  1456,  em  que  foi  encerrado  nas 
prisões  do  Petit  Chatelet.  Durante  este  primeiro  captiveiro  compoz  o  seu  Pe- 
queno Testamento  (Petit-TestamentJ  em  que  commemora  alguns  factos  da  sua 
vida  crapulosa.  Accusa  das  suas  faltas  uma  mulher  a  quem  amava,  e  que  nào 
nomeia.  Era  sem  duvida  alguma  mulher  publica,  que  teve  de  o  pôr  no  meio 
da  rua  uma  noite  de  inverno,  intimando-o  a  que  não  voltasse  mais. 


264  HISTORIA 

Vendo-se  sem  asylo  e  sem  meios  de  subsistência,  Villon  teve  de  recor- 
rer ao  roubo,  para  não  morrer  de  fome,  e  deu-se  á  vida  vagabunda  pelas  ruas 
de  Paris.  Apesar  d'isso,  recordando  com  prazer  os  bons  tempos,  que  havia  pas- 
sado com  elia,  deixa-lhe  em  herança  o  seu  coração  morto  e  gelado.  «A'quella, 
diz  o  poeta-salteador,  que  duramente  me  expulsou,  que  fiquei  para  sempre 
privado  de  alegria,  e  alheio  a  todos  os  prazeres!» 

Uma  passagem  d'este  curioso  Pequeno  Testamento  diz-uos  que  os  liber- 
tinos da  Universidade  costumavam  ir  passar  o  tempo  e  esquecer  maguas  á  ta- 
t)erna  do  Abreutoir  Popin,  sita  á  beira  do  rio,  defronte  da  rua  Tbibantodé,  e 
a  outra  espelunca  não  menos  famosa  chamada  o  baracn  da  Pomine  da  Pin, 
que  ainda  existia  no  século  xvii. 

Francisco  \  illon  tinha  apenas  vinte  e  seis  annos  quando  sahiu  do  Petit- 
Chatelet,  para  novamente  se  entregar  aos  seus  preversos  hábitos.  A  má  socie- 
dade que  frequentava  foi-lhe  o  mais  funesto  possível.  Continuou  a  viver  á  custa 
de  mulheres  publicas,  que  lhe  concediam  o  privilegio  de  amante,  mas  não  se 
contentava  com  o  dinheiro  que  lhe  provinha  da  indigna  profissão  das  suas 
companheiras,  por  isso  começou  a  assaltar  os  viandantes  á  mão  arn)ada  na  es- 
trada real,  de  combinação  com  alguns  homens  depravados,  que  o  ajudavam  logo 
a  dissipar  a  presa  no  jogo  e  nas  comezainas  a  que  se  entregavam. 

Em  1461,  depois  de  um  d'estes  assaltos,  que,  segundo  parece,  leve  por 
theatro  a  aldeia  de  Ruel,  nos  arredores  de  Paris,  foi  outra  vez  preso  em  Me- 
lun  com  cinco  dos  seus  cúmplices,  julgado  pelo  tribunal  do  Chatelet  e  condem- 
nado  a  morrer  na  forca  no  patíbulo  de  Mont-fancon. 

Apesar  disto,  não  tomou  o  caso  muito  a  serio,  e  até  compoz  a  propósito 
da  suíi  sentença  um  epitapbio  em  versos  burlescos. 

.  No  eratanto,  por  conselho  do  seu  advogado,  não  se  conformou  com  a  sen- 
tença do  prebostado  de  Paris,  e  appellou  para  o  parlamento.  Emquanto  espe- 
rava pela  resolução  do  seu  recurso,  escreveu  em  verso  o  seu  Grande  Testa- 
mento, no  qual  introduziu  com  muito  engenho  e  malícia  todos  os  jogadores  li- 
bertinos, e  outro  pessoal  da  prostituição  contemporânea.  O  Grande  Testamento 
não  revela  da  parte  do  seu  auclor  cunfricção  dos  crimes  (juc  o  haviam  posto 
n'aquclle  transe.  E'  apenas  um  echo  fiel  dos  bordeis  de  Paris,  e  um  espelho 
escandaloso  da  vida  dos  poetas,  dos  estudantes  e  dos  vadiíjs. 

Villon  começa  por  introduzir  no  seu  testamento  a  bella  Heaulmiére,  que 
chegara  a  usar  nos  seus  bons  tempos  cinto  dourado,  emblema  de  prostituta  de 
alta  voga,  mas  que  no  decahir  da  edade  não  tinha  outro  oilicio  senão  o  de  di- 
rigir e  governar  uma  abbadia,  ou  lupanar. 

A  bella  Heaulmiére,  tinha  sido  realmente  formosa,  e  por  isso  muito  re- 
questada por  gente  de  qualidade,  commerciantes,  homens  da  egrcja,  fidalgos, 
etc,  que  não  regateavam  o  preço  dos  seus  favores.  Mas  na  epoclia  em  que  es- 
tes favores  se  pagavam  tão  caros  amava  doidamente  um  rapaz  ([ue  não  lhe  dava 
senão  maus  tractos  e  grossa  pancadaria,  e  que  lhe  comia  tudo  quanto  ella  ga- 
nhava com  o  suor  do  seu  corpo.  Como  se  vé,  os  costumes  dos  miseráveis  pa- 
rasitas da  prostituição  não  haviam  ainda  mudado  no  decurso  de  quatro  sé- 
culos. 


IIA    PROSTtTUlÇÃO  â(i-') 

A  vida  fresta  cortezã,  segunda  se  dcprehende  dos  versos  de  Villon,  leve 
Iodas  as  pliases  desgrayadas,  que  são  próprias  da  libertinagem  e  da  itnpudiei- 
cia.  Bella  e  requestada,  apai\i)nou-se  de  niii  parasita  que  lhe  devitrava  (|natilo 
possuía,  e  ainda  por  cima  a  maltratava  rudemente.  Alguns  eommenladores  do 
poeta  obstinam-se  em  o  suppòr  amante  da  eortezíi,  c  dizem  que  a  seu  respeito 
se  devem  entender  as  magoadas  queixas  da  Heaulmière.  Ha  nos  versos  de  Vil- 
lon um  bello  quadro  dos  encantos  da  cortezã,  nos  tempos  da  sua  triumphante 
juventude,  e  dos  estragos  que  mçis  tarde  a  edade,  os  solírimentos  e  os  maus 
tractos  n'ella  produziram  : 

«Q)ue  foi  feito,  diz  ella  tristemente,  cresses  belios  cabellos  d'()uro,  (fcs- 
sas  avelludadas  sobrancelhas,  d'essa  fronte  polida,  d'esse  olhar  sympalhico  e 
tentador,  d'esse  nariz  tão  lindamente  proporcionado,  d'essas  encantadoras  ore- 
lhas, dos  lábios  vermelhos  e  frescos,  emlim  dVsse  rosto  delicioso' 

«Em  que  se  transformaram  aquellcs  formosos  hombros,  aquelles  braços 
e  mãos  tão  primorosas  e  fidalgas,  aquelle  seio  deslumbrante  de  alvura,  mais 
puro  e  branco  do  que  as  assucenas? 

«A  fronte  enrugou-se,  embranqueceu  o  cabello,  despovoaram-se  as  so- 
brancelhas, apagou-se  a  luz  do  olhar,  luz  em  (jue  tantos  amantes  se  queima- 
ram; o  nariz  perdeu  toda  a  elegância,  a  barba  cresceu  desmedidamente,  per- 
deram a  còr  os  lábios,  e  emhm  o  rosto  cobriu-se  da  pallidez  dos  cadáveres. 

«Fugiu  a  belleza.  Encolheram-se  os  braços,  descarnaram-se  as  mãos,  cur- 
vou-se  em  abobada  a  espinha  dorsal;  pelle  e  ossos,  eis  o  que  resta  de  tudo 
(|uanto  outr'ora  se  fez  amar  com  delírio!» 

A  bella  Heaulmière,  n'esta  ultima  phase  da  sua  tormentosa  existência, 
serve  apenas  para  dirigir  e  aconselhar  as  raparigas.  Vdion  compõe  uma  faiTiosa 
bailada,  i>m  que  registra  os  [irudentes  conselhos  Oados  agora  pela  proxeneta 
ás  suas  discípulas.  Da  mesma  bailada  se  conclue  (jue  as  mulheres  publicas  per- 
tenciam na  sua  maior  parte  a  cor|ioraçues  de  ollicios  ou  grémios,  segundo  já 
temos  indicado : 

«Pensa  bem  n'tsto,  bella  luveira,  que  costumas  ser  minha  discípula,  e 
tu,  Branca,  a  sapateira,  porque é  tempo  de  vos  conhecerdes.  Tirae  o  mais  que 
puderdes  á  direita  e  á  esquerda,  não  [)erdoeis  a  nenhum  homem,  poriiue  as  ve- 
lhas deixam  de  ter  curso,  como  a  moeda  mandada  retirar  <la  circulação. 

«E  tu,  gentil  salcliíclicíra,  tão  hábil  nu  arte  da  dança,  e  tu,  (iuilhermina, 
a  tecelã,  não  vos  ílludaes  a  respeito  dos  vossos  amantes,  porque  todos  eilcs  vos 
darão  com  o  pé  em*sendo  veliias,  como  moeda  mandada  tirar  da  circulação. 
«Joannica,  a  chapeilcíra,  evita  que  o  tedío  te  envolva  nos  braços,  (latba- 
rína,*  a  correeira,  não  despeças  desdenhosamente  os  homens.  Oueni  não  é  bella 
tem  de  ser  amável.  A  feia  velhice  não  inspira  amor,  é  como  a  moeda  mandada 
retirar  da  circulação. 

«Filhas,  quereis  saber  por(|ue  choro  e  me  lamento?  Porque  ja  não  sou 
mais  do  que  uma  velha  moeda  mandada  retirar  da  circulação." 

Esta  bailada  tem  o  merecimento.de  nos  mostrar  que  a  pro.stituição  se  re- 
crutava no  século  xv  entre  as  luveiras,  as  salchicheiras,  as  tecelãs,  as  cha- 
pelleiras  e  as  sapateiras.  Descobrimos  a(|ui,  no  emfanto,  uma  particularidade 

UUTORU  DÀ  PROSTITinpÃO.  ToUU  II— toLHA  34. 


266  HISTORIA 

que  mereço  consignar-se.  Essas  mullieres  punliam-se  á  janella  para  altraliirem 
os  transeuntes,  como  se  faz  ainda  na  Hollanda  e  em  Amste?-dam,  onde  em  cer- 
tas ruas  suspeitas,  em  casas  ao  rez-do-chão  se  vcem  peias  janellas  atravez  de 
cortinas  transparentes  muliicres  semi-nuas  ou  voluptuosamente  vestidas. 

Francisco  Villon,  que  tinha  em  perspectiva  as  forcas  patibulares  do 
Montfaucon,  e  que  talvez  estivesse  a  esse  tempo  algum  tanto  arrependido  dos 
seus  erros  com  a  esperança  de  escapar  ao  castigo,  aconselha  os  seus  leitores 
a  que  aprendam  o  baral,  ou  a  táctica  das  mulheres  publicas,  que  a  um  tempo 
arruinam  a  bolsa  e  a  honra  do  próximo,  por  isso  que  diz  : 

«São  mulheres  perigosas,  que  amam  apenas  por  dinheiro.  S(S  as  amamos 
por  hora,  ellas  amam  todos  aquelies  que  trazem  a  algibeira  bem  provida. >^ 

O  poeta  lamenta-se  de  não  haver  frequentado  as  mulheres  honradas,  que 
o  teriam  preservado  do  vicio,  em  vez  de  o  fazerem  cahir  n'elie.  >'o  cmtanto, 
não  pôde  deixar  de  recordar  com  uma  certa  complacência  as  companheiras  da 
sua  louca  juventude;  eram  mulheres  infames,  mas  Ião  bellas,  tão  bem  dispos- 
tas para  o  amor!  Lembra-se  lambem  das  licções  que  recebeu  de  duas  d'ellas 
que  lhe  ensinaram  a  fallar  alguma  cousa  o  poicieein.  Julgamos  que  Villon  en- 
tende por  esta  expressão,  cujo  sentido  exacto  nos  seria  dillicil  estabelecer,  a  arte 
de  souteneur  de  raparigas,  como  quem  diz  dono  de  casa  ou  bordel,  vivendo  a 
custa  do  corpo  das  prostitutas. 

Das  suas  duas  mestras  falia  por  uma  metaphora,  que  é  mais  intelligi- 
vel,  ou  que,  pelo  menos,  tem  sido  explicada.  «São,  diz  elle,  raparigas  bellas 
c  galantes,  que  moram  em  Saint-Genon,  perto  de  S.  Julião,  nos  degraus  da 
Bretanha  de  Poitou,  mas  não  digo  propriamente  aonde  é.  Pensae  n'islo  durante 
três  dias.  Eu  não  sou  fão  doido  que  vá  assim  descobrir  os  meus  amores.» 

Para  comprehender  esta  linguagem  figurada,  c  preciso  confrontal-a  com 
a  passagem  do  fiartjanlaa.  de  Rabídais  (liv.  i,  cap.  6)  em  (]ue  se  tracta  de 
uma  sórdida  velha  que  exercia  a  profissão  de  parteira.  «.A  velha  tinha  vindo 
de  Hrisepailk,  perto  de  Sainl-íknou.'»  O  douto  Leduchat,  no  seu  commentario, 
explica  que  no  Helphinado  se  designava  dVste  modo  uma  velha  impudica. 
«Quer  isto  dizer,  accrescenta  elle,  que  já  de  ha  muito  a  velha  tem  amachucado 
com  os  joelhos  a  palha  da  cama.» 

'  Nas  obras  de  Villon  encontra-se  a  seguinte  máxima  morai  para  uso  dos 
hons-mrantx  do  seu  tempo : 

«Não  ha  thcsouro  como  viver  cada  (|ual  ao  seu  gosto.» 

Faz  um  grande  elogio  das  mulheres  de  Paris  :  H  nesi  hnn  Iter  (jae  (h 
l'anx,  diz  cllc.  O  bico  a  (jue  se  refere  é  a  lábia  das  parisienses,  das  ((uaes  cita 
ainda  ontrras  (jualidades,  accrescentando,  porém,  ijue  estas  mulheres  não  cos- 
liimavam  fazer  fortuna  na  vida  airada.  «Testemunhas,  diz  elle,  Jac(|uelina, 
Perrette  e  Izabel,  que  diz  Enné  !v 

('.l<'inenle  Marot,  em  nota  á  sua  edição  de  Villon,  diz  que  a  palavra  eíuic' 
era  um  juramento  ou  interjeição  muito  usada  pelas  prostitutas.  Villon  compa- 
dece-sc  da  pobreza  d'estas  três  raparigas,  a  quem  não  pudera  enri(|uecer,  dese- 
jando-lhcs  as  migalhas  da  meza  dos  ("eleslinos  e  dos  C.harlreux:  não  obstante 
todas  as  suas  preferencias  são  |)ara  .Vlargot,  a  quem  dedica  uma  bailada,  em 


MA     PROSTITUIÇÃO 


á() 


que  ollt"  próprio  é  o  heroe,  c  a  sua  nymplia  a  lieroina.  Esta  bailada  oílerece-nos 
o  quadro  pilloreseo  c  cynico  da  vida  domeslica  ilas  rihaldas  o  dos  seus  ainanfes. 

O  poela  e  a  sua  nyinplia  impudica  viviam,  segundo  a  bailada,  no  mes- 
mo bordel,  en  re  hminhl.  diz  elle,  níi  /íohv  ifucins  noslre  ('lai.  Ouando  appa- 
recem  freguezes,  o  poela  laz-llies  as  honras  da  easa,  oITerece-lbes  agua,  queijo, 
pão  e  fruelas.  O  essencial  é  que  elles  paguem  bem.  A  questão  é  de  dinheiro. 
Quando  o  ha,  a  vida  corre  bem.  Mas  quando  elli'  se  acaba,  Deu.s  do  ceu,  que 
vida  aqueliai  O  poeta  e  a  nvmpha  descompôern-se  mutuamente,  elialurdando 
miseravelmente  naquelle  lodo  em  que  se  metterani.  dritos,  pragas,  impreca- 
ções, pancadaria,  lai  é  o  quadro  dos  dias  de  fome.  O  poela  lá  o  diz  n'esta  bai- 
lada :  Onlarf  acnns  et  ordure  nou!i  anil! 

E'  impossível  desciwer  com  cores  mais  vivas  e  reaes  aquelle  horrível  e 
intamc  concubinato,  em  que  o  homem  vivia  da  prostitui(,'ão  da  mulher,  a  quem 
amparava  e  dava  protecção.  Villon  laz-nos  entrar  n'aquelles  all)ergues  infectos 
lia  libertinagem  e  c'a  crápula. 

Nillon  tiidia  sido  amante  de  Margot,  a  (juem  espancava  quando  não  lhe 
trazia  dinheiro,  l.endo-se,  porem,  o  Grande  Teskiwento,  cncontram-se  muitas 
rivaes  de  iVlargot,  e  do  mesmo  getirro  exactamente.  Assim  o  poeta  falia  de  Ma- 
riquitas, o  hlolo,  e  da  famosa  .loaniia  de  Urelanha,  que  tinham  e.sehola  pu- 
blica, iiiide  (I  disripnio  dá  lirròe.s  ao  mestre. 

I  nia  outra  bailada  do  poeta  diz-nos  que  os  cómicos,  os  músicos  e  os 
jogadores  formavam  a  llòr  e  a  nata  da  prostituição.  Villon  distinguira-se  sempre 
entre  esta  gente  pelas  suas  loucuras  e  amores,  apesar  de  pobre.  Verdade  seja 
que  elle  costumava  tirar  dinheiro  ás  mãos  cheias  da  algibeira  das  suas  amantes, 
ou  melhor,  dos  frequentadores  das  suas  amigas.  Um  dia  roubou  um  rico  ava- 
rento, chamado  .lacques  .lames,  que  gastava  o  seu  dinheiro  em  trutas,  e  que 
comprava  os  seus  prazeres  o  mais  barato  possível. 

Depois  de  ter  feito  em  tom  burlesco  as  suas  ultimas  disposições,  o  desgra- 
çado Villon  recommenda  a  sua  alma  ás  orações  de  todos  os  que  se  podem  inte- 
ressar pela  sua  sorte  I 

«As  raparigas  que  costumam  mostrar  as  pomas,  para  terem  maior  numero 
de  freguezes.» 

E  segue  uma  longa  enumeração  de  todos  aquelles  que  passam  a  vida  nos 
oordeis,  e  (|ue  foram  n'outro  tempo  seus  companheiros  de  crimes  e  loucuras. 

O  recurso  que  até  então  havia  retardado  a  execução  de  Villon  teve  um 
resultado  que  o  poeta  estava  bem  longe  de  esperar.  Foi  comprehendido  no  in- 
dulto (|ue  Luiz  XI  concedeu  aos  presos  por  oceasião  da  sua  feliz  subida  ao 
throno.  O  poeta  escapou  assim  ao  supplicio  da  forca,  e  voltou  novamente  '/s 
tabernas  e  ás  mulheres. 

Tinha  visto,  porem,  muito  de  perto  as  consequências  de*  um  processo 
criminai  para  .se  expor  novamente  ao  mesmo  lance.  Mas,  como  era  em  dema- 
sia vicioso  para  morigerar  o  seu  procedimento,  não  seguiu  a  este  respeito  nova 
linha  de  conducla.  O  que  evitou  d'alii  em  diante  foi  voltar  a  roubar  nas  es- 
tradas, ou  cabir  por  qualquer  outra  forma  nas  mãos  de  justiça. 

Eoi    por   este    tempo  talvez  (jue  o  poeta  tomou  parte  n'aquelles  famosos 


2(>S  HISTORIA 

repiíes  franches,  comezainas  ú  cusin  da  hnrha  longa,  que  foram  celebradas  em 
verso  por  um  dos  seus  auhdilos,  e  que  descendiam  em  linlia  recta  das  suas  an- 
tigas proezas  (riUonerien.)  Tractava-se  sempre  de' hoas  comezainas  á  custa  do 
próximo,  e  de  arranjar,  como  n"outros  tempos,  carne,  pão  e  vinho  por  algum 
rasgo  de  astúcia  nas  tendas  dos  vendedores  de  viveres.  O  poema  dos  Repues 
franches,  que  foi  attribuido  a  Vilion,  convoca  para  estas  comezainas  toda  a 
turba  militante  da  prostituição,  as  s-acerdotisax  do  amor,  os  cómicos,  os  liber- 
iinoí,  os  vibaldos,  as  proxenetas,  ele,  ele. 

0  csfylo  do  poema  fal-o  suppor  muito  posterior  ao  tempo  de  Vilion. 
OiuHito  ás  aventuras  que  ri'elle  se  referem,  ha  uma  que  pertence  evidentemente 
ao  cclclire  estudante  de  Paris. 

1  us  alegres  companheiros  foram  uma  noite  fazer  uma  pastucada  ao  campo, 
perlo  do  patíbulo  de  Montfaucon.  Iam  bem  providos  de  vitualhas,  levavam 
pão  e  vinlio  em  abundância,  e  um  grande  pastel,  que  continha  nada  menos  de 
seis  frangos,  e  além  de  tudo  isto,  arec  eu.r  chacun  une  filie:  Cada  um  levava 
a  sua  rapariga. 

Dois  estudantes,  nm  dos  quaes  devia  ser  o  próprio  Nillon,  iembraiam-.se 
de  comer'  a  ceia  d'aquelles  joviaes  companlieiros,  que  foram  encontrar  sentados 
á  meza,  n'uma  espeeie  de  cabana,  onde  esperando  comer  como  uns  abbades, 
se  divertiam  a  apalpar  de  alio  a  baixo  as  raparigas.» 

Os  dois  estudantes  haviam-se  disfarçado  de  diaiws,  tinham  mascaras 
horríveis  e  umas  pesadas  massas  com  que  assaltaram  os  commensaes,  grilando : 
*.4'  morte  estes  patifes!  Prendam  com  estas  cadeias  de  ferro  os  ribaldos  e  as 
prostitutas,  e  levem-nos  para  o  inferno!» 

Os  convivas,  tanto  os  do  sexo  forte,  como  as  pobres  raparigas,  fugiram  es- 
pantados, julgando-se  nas  unhas  do  diabo,  e  deixaram  a  ceia  magnitica,  ape- 
nas encetada,  emquantc  que  os  dois  diabos,  sentando-se  muito  pachorrenta- 
mente á  meza,  comeram  e  beberam  com  grande  appelite,  sem  que  a  festa  lhes 
custasse  um  real. 

Esta  engraçada  aventura  foi  alecerto  a  origem  de  outras  contadas  pelo 
velho  Habelais  a  propósito  de  Vilion,  e  dos  seus  companheiros  estudantes,  dis- 
farçados em  diabos,  representando  farças,  mysterios  e  moralidades.  Os  actores 
nómadas  d'estas  composições  dramáticas,  eram  todos  consumados  libertinos, 
ainda  que  ás  vezes  represeniasseni  peças  moraes  e  religiosas.  No  emtanto,  as 
mais  das  vezes  faziam  comedias  que  não  exigiam  grandes  apparatos  de  scena- 
rio,  nem  de  trajos,  como  os  myslerios.  Este  género  de  comedia  popular  era  o 
que.  mais  convinha  aos  .seus  costumes  e  modo  de  vida. 

Assim  andavam  de  povoação  em  povoação,  representando  as  suas  farças 
com  applausrt  dos  seus  rudes  espectadores,  que  só  tractavam  de  rir,  saboreando 
com  delicia  o  Sal  e  pimenta  da  graça  e  vivacidade  franceza. 

J-^stcs  actores  c  poetas  ambulantes  viviam  cora  mulheres  perdidas,  ás 
quaes  não  apresentavam  em  scena,  por  is.so  mesmo  que  elles  próprios  desem- 
penhavam os  papeis  de  mulher,  pintando  a  cara,  ou  cobrindo-a  com  uma  mas- 
cara. Antes  dos  lins  do  século  xvi  nunca  mulher  alguma  tomou  parte  (Mii  França 
nas   representações   tlieatraes.    O  bom   publico  francez,  que  jamais  .se  escan- 


DA  pnnsTiTurçÀo  '  S69 

(lalisava  do  ouvir  os  mais  obscenos  dilos,  não  os  loleraria  na  liocca  de  nma 
nnillier. 

No  emianto,  a  verdade  é  que  estas  companhias  cómicas,  na  sua  maior 
parle  compostas  de  poetas,  estudantes,  ajudantes  de  notários  c  jovens  aventu- 
i'eiros  de  todas  as  ciasses,  tiniiam  costumes  Ião  livres  e  tão  impudicos  mesmo, 
que  a  auctoridade  civil  e  judiciai  teve  por  mais  de  uma  vez  de  ordenar  que 
se  dissolvessem,  impedindo-os  de  percorrer  o  paiz  com  o  escândalo  das  suas 
rcpresenla(,ões.  As  companiiias  de  Basorhe,  da  Mère-Sone,  do  Prince  des  Snts, 
do  Império  de  Orlemos,  dos  Sem-cuidados,  foram  ainda  muito  maisassociayues 
de  libertinagem  do  que  associações  de  gente  de  tlieatro.  O  produclo  das  f arca n, 
segundo  a  e\prcssã<t  do  tempo,  era  sempre  destinado  a  fornecer  a  meza  e  o 
leito  dos  farra  mes. 

jNos  fins  do  século  xv,  os  poetas  profanos  iam  fazer  a  sua  aprendizagem 
a  estas  alegres  associações  de  lii)ertinos,  onde  cada  qual  esquecia  o  seu  ver- 
dadeiro nome  para  tomar  uma  divisa,  ou  alcunha.  João  Bouchet  inlitulava-se 
o  Traressetir  des  nries  periUeiises:  Francisco  Haber,  o  Baunij  'df  liesse;  Pedro 
Gringoire,  o  Mère  Solte,  etc. 

Clemente  Marot,  que  foi  auctor  e  actor  de  farças  na  companhia  dos  Sem- 
cuiiladosr  encarregou-se  de  defender  em  verso  os  seus  companheiros  de  ollicio 
contra  os  invejosos  que  os  tinham  accusado  de  passarem  vida  escandalosa,  e 
que  provocaram  a  sua  expulsão  de  Paris  no  anno  de  1512. 

Marot,  porém,  tinha  demasiado  interesse  em  occullar  a  verdade  para  não 
cobrir  com  uma  capa  de  honestidade  os  escândalos  de  Sem-cuidados.  A  dar 
credito  ás  suas  alfirmativas,  os  seus  companheiros  não  tinham  senão  peccados 
veniaes. 

As  obras  do  poeta  estão  cheias,  no  emtanto,  do  que  elle  chama  as  remi- 
niscências da  sua  verde  juventude.  Ainda  assim,  Calvino  conseguiu  eonvertel-o 
á  reforma. 

Tal  era  a  vida  ordinária  dos  estudantes,  que  seguiam  seus  cursos  até  á 
edade  viril,  e  que  encontravam  em  Paris  e  nas  cidades  universitárias  tantos 
pretextos  de  libertinagem.  Por  isso,  quando  Clemente  Marot  tinha  apenas  deze- 
nove  annos  já  fazia  este  juizo  hiperbólico  das  ribaldas  da  capital:  «Quando  as 
(|ueridas  filhas  do  prazer  encontram  algum  amante  arrojado  que  lhes  colloque 
um  diamante  diante  dos  olhos  risonhos  e  alegres,  ora!  cahem  logo  de  barriga 
para  o  ar!» 

Um  contemporâneo  de  .Marot,  Pedro  Faifeu,  que  era  estudante  de  Angers, 
e  cuja  lenda  em  rimas  foi  colligida  por  Carlos  Bordigné  no  anno  de  15:11,  con- 
quistou uma  fama  quasi  igual  á  de  Villon  pelos  seus  ditos  e  feitos  celebres.  No 
emianto,  como  o  seu  historiographo  era  sacerdote,  teve  de  passar  em  silencio 
os  factos  mais  indecentes  e  os  conceitos  mais  impudicos  do  estudante  de  Angers, 
cuja  celebridade  rivalisava  com  a  do  estudante  de  Paris.  N'esta  lenda  assim 
expurgada,  não  se  encontra  o  quadro  da  prostituição  dos  estudantes,  mas  é 
licito  julgar  que  Faifeu  frequentava  assim  como  Villon  as  tabernas  e  as  mu- 
iheiTs,  com  as  quaes  gastava  todo  dinheiro  que  podia  escamoteai-  ao  pi'oximo. 

Kis  o  modo  como  elle  se  vingou  um  dia  de  uma  velha  devota,  chamada 


?70  "  HISTORIA. 

Maceia,  que  elle  (jualifica  de  Lorpidiim.  como  quem  diz  feiticeira.  Em  Raheiais, 
a  palavra  encontra-sc  d'este  modo  Lourpidon.  A  velha  malquistara  o  poeta 
com  sua  mãe,  contando  á  boa  senliora  as  partidas  que  a  voz  publica  attribuia 
ao  endiabrado  estudante.  Emquanto  a  beata  ia  d'este  modo  desfiando  o  seu  rosá- 
rio de  maledicências  em  detrimento  de  Pedro  Faifeu,  o  estróina  consegue  fur-, 
tar-lhe  &  chave  da  porta,  vae  procurar  uma  ribalda  alegre  e  folgazã,  com  a 
qual  já  havia  combinado  a  troça,  e  introdul-a  no  quarto  de  Maceia,  e  faz  en- 
tregar á  velhota  a  chave  o  mais  disfarçadamente  possível.  A  gente  honrada  do 
bairro,  vendo  a  prostituta  á  janella  da  beata,  escandalisa-se,  e  vae  pôr  cerco  á 
casa,  insultando  a  vejha  com  os  apodos  de  alcoviteira  e  dona  de  bordeis.  Fai- 
feu, quando  as  cousas  chegaram  a  este  ponto,  corre  a  casa  de  sua  mãe  e  diz- 
Ihe,  fingindo  a  maior  indignação: 

—  Como!  Pois  dá  credito  a  esta  maldita  velha!  AÍIirmo-lhe,  sob  a  minha 
palavra,  é  enforcado  seja  eu,  se  minto,  que  n'este  mesmo  instante  ella  tem  es- 
condida em  casa  uma  prostituta,  que  destina  para  algum  frade.  Se  d.uvida, 
peço-lhe  que  vônha  ver,  minha  mãe! 

A  excellente  senhora  vae  eííectivamente  em  companhia  da  velha,  que  pro- 
testava contra  a  calumnia  de  Faifeu,  mas  ao  chegara  casa, julga-se  victima  tie 
uma  illusão  diabídica,  e  benze-se  aterrada,  eni  presença  de  uma  realidade 
incomprebensivel  para  cila.  Abre  a  porta,  no  meio  dos  insultos  e  gritaria  da 
gente  (|ue  alli  estava,  e  vè  correr  ao  seu  encontro  a  abraçal-a  uma  mulher 
publica  atiiunir.  diz  taifeu,  isto  é,  vestida  com  todos  os  atavios  e  insígnias  da 
|)rostiluição!.  .  . 


CAPITULO    XXIV 


SUMMARIO 


Pbilolugia  erótica.— Gyiia.  ou  dialeelo  da  proslituicão.— Origens  d't'.sla  gyiia.— Um  autigo  conto  a  les- 
pcitn  de  Wc  e  /loc— Commeniario  de  Rahi'lai?  por  I.educliat,— E»'oííVo  verba,  rto  Al)hade  d'Auliiaye.— O  dicci  jnario 
cómico  de  Leroux.— Riqueza  da  liujjiia  erótica  no  século  xvi.— Nooies  antigos  Oas  muiliercs  pulilicas.— S\non\nios 
formados  do  grego,  do  latim,  do  italiano,  ctc— Synonymos  tomados  dos  noaies  danimaes.— Syuonymos  relativos 
á  vida  errante  das  prostitutas.  —  Outros  ainda  relativos  ao  seu  ollicio.  —  Outros  i|iie  as  claísiiieam  por  categorias. 

—  Periphrases  e  jogos  de  palavras  licenciosas.— Nomes  de  santos  disfarçados  oii  corrompidos  —  Novas  addie;ões  a 
nomemlatura  ilo  Abbade  de  lAuInayc—  As  mulheres  de  talão  curto. -Provérbios  moraos  tirados  da  prostituirão. 

—  Iliminutivo  de  Catbarina.— Antigos  nomes  dos  bordeis  «  suas  etymologias.— Antigos  nomes  dos  parasitas  da  pros- 
tituição e  suas  etymologias.—  Retrato  de  uma  velha  proxeneta  feito  pelo  illusire  Rabelais.—  A  sybilla  de  Panzousl. 

—  Rêgnier. 


E  A  PHiLitiotíiA  eiotica  devesse  entrar  n  unia  liisloria  geral  da 
prostiluiç,lo,  poderiumos  eon.sagrar-lhe  muitos  eapiliilos  lào  no- 
vos como  interessantes,  por  isso  que  não  existe  ainda  nenhuma 
obra  especial  em  que  se  tenham  estudado  a  fundo  as  oriycns 
da  língua,  ou  melhor,  da  gyria  dos  bordeis.  Ksla  lingua,  que 
pôde  chamar-se  tecbnica,  existe  apenas  indicada  n'alguns  diceionarios  france- 
zes,  emquanto  (jue  a  maior  parte  dos  glossários  gregos  e  latinos  lhe  concedem 
logar  amplo,  inislurando-a  por  assim  dizer  sem  o  menor  escrúpulo  com  a  lin- 
gua oratória  e  lifteraria. 

Nada  seria  mais  fácil  do  que  extrahir  dos  glossários  consagrados  ás  lín- 
guas antigas  e  clássicas  tudo  quanto  se  relaciona  com  a  prostituição  antiga,  c  o 
douto  l'.  Pierhugucs  não  precisou  de  fazer  grande  dispêndio  de  erudicção  para 
compilai-  o  seu  (llossariuin  erotictau  lingiue  latinai,  cujos  artigos  mais  curiosos 
são  obra  de  um  notável  philologo,  o  barão  de  Schonen,  tão  conhecido  pelos 
seus  interessantes  trabalhos  sobre  os  eróticos  gregos,  que  o  collocaram  na  pri- 
meira plana  dos  modernos  eruditos 

Tudo  está  ainda  por  fazer  para  o  conhecimento  da  antiga  lingua  erótica 
franceza.  São  enormes  os  maleriaes,  mas  no  emtanto  não  foram  ainda  recolhi- 
dos para  este  fim.  Se,  como  diz  Boileau, 

Le  latin  duns  Us  mots  brave  l'honneteté. 


O  francez  é  mais  modesto,  ou  pelo  menos  mais  timido.   Esta   lingua   erótica 
tão   rica  e  ás  vezes  tão  engenhosa,  não  costuma  espandir-se  a  não  ser  nos 


Zn  HISTORIA 

chistes,  nos  romances  lilierliiios,  nas  poesias  livres,  nos  cantos  alegres  e  nas 
trovas  deslionestas.  Por  outro  lado  está  cuidadosamente  cerceada  da  linguagem 
|iropi'ianiente  dita,  e  desterrada  dos  vocabulários,  onde  sii  penetra  graças  a  um 
disfarce  convenienie  e  honesto  ;  mas  nem  por  isso  perdeu  a  sua  existiíncia  e 
a  sua  originalidade,  perpetuando-se  de  hocca  em  bocea,  pela  tradicção,  conser- 
vando os  seus  arcliaismos,  as  suas  metaplioras,  as  suas  imagens,  os  seus 
provérbios,  e  até  as  suas  onomatopeias.  Tem  alguns  pontos  de  contacto  com 
a  outra  gyria  não  menos  interessante  e  pittoresca  dos  ladrões  e  assassinos  e 
com  o  calão  do  populacho.  Tem  a  sua  razão  de  ser,  e  apezar  de  não  se  elevar 
jamais  á  linguagem  da  gente  honesta,  apezar  de  estar  f(ira  da  lei  da  grainma- 
tica,  apezar  de  não  fazer  parte  do  curso  de  humanidades,  conserva-se  ainda 
cheia  de  vida,  e  não  eiivelhecerá  jamais,  por  isso  que  assenta  sempre  sobre 
as  mesmas  l)azes  e  não  precisa  de  se  estender  a  novos  objectos. 

Seria  fácil  provar  n'um  estudo  philologico  a  respeito  da  gyria  da  prosti- 
tuição (|ue  esta  gyria  é  contemporânea  da  linguagem  vulgar,  e  que  se  tormou 
de  uma  mistura  confusa  de  todos  os  idiomas  e  dialectos,  como  se  houvesse  tido 
a  pretenção  de  ser  uma  lingua  universal. 

Ha  enecíivamente  nesta  extranha  gyria,  nascida  do  capricho  e  da  oppor- 
luiiidade,  do  acaso  e  da  occasião,  uma  multidão  de  palavras  que  nem  seiíuei- 
perderam  o  seu  caracter  nacional  e  que  se  fizeram  francezas  permanecendo  gre- 
gas, latinas,  italianas,  allemãs,  ou  hespanholas.  Parece  que  a  prostituição, 
sempre  de  sua  natureza  errante  e  vagabunda,  teve  de  estabelecer  entre  os  seus 
filiados  de  ambos  os  sexos  uma  linguagem  de  convenção,  que  se  fallava  e  en- 
tendia igualmente  nas  dilTerentes  províncias  da  França,  n'uma  éjjocha  em  que 
duas  cidades  vizinhas  eram  ás  vezes  exiranhas  nma  á  outra  por  causa  dos  seus 
dialectos. 

l'm  auclor  francez  parodiou  livriMuente  o  conto  de  Heródoto,  o  qual  atlri- 
hue  a  Psametico,  rei  do  Kgypto,  um  singular  invento  para  descobrir  qual  fosse 
a  lingua  primiliva.  mãe  de  todas  as  outras.  Segundo  esse  auctor,  tratava-se  de 
saber  i|ual  liniia  sido  a  primeira  palavra  da  lingua  franceza,  e  as  academias 
declai'aram-se  incompetentes  peraiite  esta  espinhosa  e  dillicil  (|uestão. 

I)  sábio,  que  se  occupava  da  solução  desta  enorme  dilliculdade,  lembiou-se 
um  dia  de  consultar  uma  mulher  demente,  por  isso  que  os  loucos  costumam 
ter  a  sciencia  infusa,  na  opinião  de  alguns  aucfores.  A  louca  havia  sido  cor- 
iezã. 

— Tiveste  alguma  vez  na  lua  vida  copula  com  uni  mudo:'  Perguntou-llie 
o  sábio,  assumindo  o  seu  tom  mais  doutoral. 

—  Muitas  vezes,  respondeu  a  mulher. 

— Muito  bem.  Dize-me,  e  nunca  podesle  arrancar-lhe  ucua  palavra  qual- 
(|uer  n'essa  occasião? 

Decerto.  C.ostumam  dizer  Kiv  e  hov. 

— Mas  isso  são  palavras  latinas,  mulher! 

— Nada,  fillio,  são  francezas:  cm  et  cela  (isto  e  aquillo.l 

Kste  conto  merece  ser  invocado  em  appoio  da  venerável  antiguidade;  do 
dialecto  erótico. 


PA    fKOSTITUIÇÃn  2"  3 

A  obra  iiuo  Iracta  mais  circunislanciadamenle  iFesta  mysleriosa  linguagem 
ó  por  certo  o  commentario  de  Gargantua  e  Panlaurnel,  por  J.  Leducliat.  Esle 
lionesto  pliilologo,  apesar  dos  seus  protestos,  não  tiniw  escrúpulo  em  chamar 
as  cousas  pelo  seu  nome,  c  em  questões  de  erudicy;\o  nada  lhe  parecia  inde- 
cente. Remettemos  o  leitor  para  este  celebre  commentario,  (|ue  outro  philoiogo, 
E.  .íohanneau,  completou  depois  no  mesmo  gosto,- excedendo  ainda  as  obsceni- 
dades requintadas  de  Rabelais.  . 

Ha  um  terceiro  commentador  do  auctor  do  Ganjantna;  que  se  consagrou 
particularmente  a  estudar  a  lingua  erótica  no  seu  auctor  favorito.  E'  o  douto 
e  paiiKigruelico  abbadc  dAuInaye,  ijue  na'edade  de  oiteirta  annos  publicou 
uma  edi<,'ão  de  Kabelais  (Paris,  Desoer,  1820,  'i  volumes.)  Sob  o  titulo  de 
Erótica  verba,  inseriu  no  terceiro  volume  da  sua  edição  um  pequeno  glossário, 
(|ue  não  lhe  foi  apenas  ministrado  pelo  auctor  commenlado,  e  que  necessita  de 
desenvolvimento  na  explicaçào  das  palavras.  O  audacioso  abbade  hesitou  sem 
duvida  ante  os  perigos  da  matéria,  apesar  de  haver  collocado  o  seu  ensaii 
pornologico  sob  a  égide  (Peste  dislico  de  Tabourot : 

l'iili(liiluni  xcriplori,  opus  iif  deapice,   nainquc 
Si  lascira  leijis,  iiuieiiiosa  leges. 

Esle  glossário  tem  o  defeito  de  i'egislrar  simplesmente  por  ordem  alplia- 
betica  locuções  na  sua  maior  parte  antigas,  sem  accrescentar  a  nenhuma  d'ellas 
os  commentarios  etvmologicos  e  históricos  de  que  tanto  precisavam. 

O  diccionario  cómico  de  Leroux,  ([ue  foi  reimpresso  três  ou  ([uatro  vezes 
no  século  passado,  offerece  uma  nomenclatura  muito  mais  completa  ijuc  a  da 
Erolica  Verba  de  Estanislau  de  Tlulnave,  e  aeerescenta  a  cada  palavra  alguma 
citação  ([uc  lixa  o  seu  sentido  e  propriedade.  Este  diccionario  cómico  carece 
infelizmente  de  erudição  critica,  e  o  compilador,  que  estava  longe  de  conhecer 
as  melhores  fontes  da  antiga  linguagem,  não  teve  escrúpulo  cm  tornar  mais 
escabroso  ainda  o  assumpto,  juntando-lbe  definições  que  excedem  frequente- 
mente a  indeccncia  das  próprias  palavras. 

Não  entraremos,  nem  mesmo  com  reservas  c  cautcllas,  nas  escabrosidades 
de  similhanlc  assumpto,  e  limitar-nos-hemos  a  fazer  noia.r  (juc  a  lingua  eró- 
tica franceza,  i[ue  se  apresenta  aberta  e  francamente  do  século  xiii  em  diante, 
procede  habitualmente  pelo  pleonasmo,  traduz  para  seu  u.so  palavras  das  lín- 
guas estrangeiras,  ou  apropria-se  d'ellas  com  a  própria  consonância  indígena: 
procura  imagens  de  .sentido  figurado,  tem  eciuivocosc  trocadilhos,  e  obsta  sem 
cessar  á  monotonia  do  discurso  pela;;  mais  singulares  combinações  philologicas. 
Dir-se-hia  que  todas  as  palavras  e  Iodas  as  plirases  da  lingua  geral  podem 
em  caso  de  necessidade  applicar-se  a  esta  lingua  particular,  que  assim  se  enri- 
quece continuamente  à  custa  de  toda  a  tecbnologia 

\  lingua  erótica,  segundo  nota  o  abbade  de  I  Aulnayc,  é  sem  contradicçái) 
uma  das  mais  ricas  de  todas  as  linguas  tecbnicas.  Assim  é  ([ue  no  século  wi, 
por  exemplo,  não  havia  menos  de  trezentas  palavras  para  exprimir  o  acto  ve- 
néreo. (V.  esta  palavra  na  Erótica  Vfrha.)  Oiianto  ás  partes  genitaes  dn  ho- 

HiSTORix  DA  PsosmoiçÃo.  Tomo  ii  — Folb*  3ò. 


274  HISTORIA 

mem  r  da  nuillxT  havia  tanilictii  ([uatriiccDlos  nomes  ilifTiTontrs.  para  as  desi- 
gnar, distinclos  pela  sua  piHoresra  variedade  e  singulares  attribuieões. 

Um  capitulo  da  linguagem  erótica  pertence  essencialmente  á  historia  da 
prostituição.  F'  o  que  contém  as  denominações  populares,  sob  as  quacs  as 
mulheres  de  má  vida  eram  designadas  em  certas  épochas  e  eircumslancias,  os 
synonymos  mais  ou  menos  decenles,  inventados  para  caracterisar  as  casas  de 
prostituição  sob  os  seus  diversos  aspectos. 

Já  em  outro  logar  explicámus  etymoiogicamente  os  nomes  usuaes  das 
mulheres  publicas,  das  suas  pi-o\ene(as,  dos  seus  amantes  e  das  suas  moradas 
no  século  xiii.  Nu  emlanlo,  esla  M')menclalura  especial  nào  permaneceu  estacio- 
naria, astes  foi  augmentandii  rum  os  contingentes  fornecidos  a  cada  passo  pela 
imaginação  dos  poetas  e  narradores.  Eis  o  motivo  porque  no  século  xvi  a  lin- 
gua  franceza  foi  sobrecarregada  com  essas  excrecencias  eróticas,  similhanles 
a  \errugas  produzidas  peln  mal  napolitann. 

Bastar-nos-ha  citar  aqui  a  extensa iMuimeraí-ào  que  o  abbade  de  iMuinaye 
apresenta  nosen 'í/o.v.yíT.r/oem  seguiila  a  palavra  miiJlfrrs  publicas.  Depois  d'isto. 
mencionaremos  alguns  do  estranhos  nomes  que  não  se  eni-<mtram  nos  livros. 
intprpref,indii-ii'^  e  iiivcstioando  d  si'U  \i'rdadeiro  sentidii. 


I'»I   WKAS    l\TRoniT7II'AS    NA    MXGUAC.ÍíM    EUOTlí.A    FIlANflEZIi 
fAM\   OESir.NAK    AS   PROSTITl'rAS 

Accrochfiise.a.  i\e-  nrrrorher,  agarrar,  pendurar. 

Alicnires  :  Amhuhaijei< ;  Hn.ijns^es:  fíaJiince.s  de  boncher,  qm  pksent  toules 
Kijrtes  df  rixuuks :  Balanças  de  carniceiro  (|ue  pesam  toda  a  espécie  de  carnes: 
Baraihres :  Hnssnra:  fíezzoches;  Hlanchisseuses  de  tuyait.r  df  pipe,  lavadeiras 
de  tubiis  dl'  cacbimbits;  [ionsolrs:  HourheUuses ;  fírnjidonnes ;  raignardières ; 
CaiUes,  palavra  derivada  di' ca/V/c.  codorniz:  Camhi-oase.s:  Canioiúères :  Cham- 
pi-sses.  eram  as  que  viviam  no  campo;  Cloislrières,  as  que  não  sahem  do  an- 
tro; Cocquat,ri.t,  devoradoras  de  homens;  Coignée.i;  Courieu.ies ;  Courtisanes: 
Dewoieslles  de  marais;  J)rnu'n)es;  Drues:  Emoignanles ;  Esquoceresse.i ;  Fetv- 
mes  de  cotirt  talou;  Fennves  folies  de  son  corp ;  lllUs  d' amour ;  Filies  de joie: 
mies  de  jiibilation;  Filleíes  de  jiis :  Folies  [em mes;  Folieuses;  Gatloises ;  Jan- 
nefons;  Gast;  Gimthieres ;  (iaupes;  Gonilines;  Gouges;  Goiunes;  Gourgan.di- 
nes;  Grues;  Hnrrebanes ;  Uollières-  Hores;  Hourieuses;  Hourrieres;  Lesbiaes  ; 
i.esbias  ou  saphicas;  Lescheresses ;  Levriers  d'àmour;  Linottes  eoijfées ;  Londié- 
res ;  Lo^ires,  Lobas,  prostitutas  nocturnas;  fjjnces;  M and  fies ;  Maranes ;  Mo- 
randos  :  MnrtínqaUs  ;  Mn  rimes;  Mochees  ;  Musequines ;  Panv  n  nesses ;  Panton- 
>'irres;  fe.lrrines  de  Vénus;  1'ellires  ;  Persnnnières;  Poiísiiquenses ;  Prêtes.ies 
de  Vénus:  riedresiieuses ;  Rénéleuses ;  Itibaudes  e  liibauldes.  liigobeles ;  Hous- 
.■i"cv'in's:  S'i,es  de-  iiuit ;  S:i.ffrele.s ;  Snnrdites;  Snaldrines ;  Tendriers  de  houcbr 
<■'  de  reins;  Tireuse.i  de  rJnnigre ;  Tuupies;  Tottses ;  Trot/ieres :  Vingères;  17/- 
Int.ikrcs  :  Vogageres ;  Waunes  ;  Fsagères.  ele.  etc; 

Kiilre  estes   n.nnes,   que  nem  IuiIds  iuiviam  passadn  da  lingna  escripta  á 


LlAjHKOSillLIlfÀU  ■ila 

tall;ul;i,  ou  nce-crrxa,  ("iicontraiii-si-  imiitos  liiados  da  anliguiilade  grc^a  f  la- 
tina, e  por  (■(jiisftiuinte  purameiílp  liltcraiios,  romo  estes: 

Alicaiirs  de  Alicariív. 

Ámbiibuyes,  de  Ambubaiíe. 

Lesbines,  de  Lesbue.  , 

Uaximes,  de  Ma.rimif. 

Mocltcex,  de  Moichiv. 

Haralhres,  de  linrailira. 

Um   pequeno  numero  d'elies  são  imila(,'ôes  do  italiano,  <l()  hespanlioi,  do 
baivo  bretão,  do  provençal  e  do  laiifiurdoc,  laes  eomo : 

Bagasse-t,  de  Baijasse. 

Scaldrines,  de  Sgaaldrini'. 

liicnldes',  de  Iticalde. 

Ha  outnis,  que  por  despic/n  oii  sairasmo  nHNirdani  as  analogias  inora< « 
ou  piíysicas,  ijue  podia  haver  entre  as  prostitutas  i-  diversos  aiiiniaes: 

Cocqualri.r,  de  crocodilo. 

Lecriers  d'ainoar,  leíjres  do  .'loior. 

l.inolles,  pinlasilgos. 

louves,  lobos. 

l.yces,  cães  de  ca(;a. 

Iloussecaignes,  cadellas,  cm  languedor. 

Wauces,  lobos  famintos. 
Outros  alludiam  á  vida  errante  e  vagaliunda  d'estas  desgraçadas: 

Bourbeleuses,  que  andam  no  iodo. 

Champisseis,  campestres,  do  campo. 

Canlonières,  as  das  esquinas. 

Gaullières,  as  dos  bosques. 

Uollières,  andarilhas. 

Posliqueuses,  as  da  posta  ou  L+uifio. 

Uaraudes,  as  vagabundas. 

Tattpies,  as  que  andam  por  toda  a  parte. 

Trulíières,  as  que  trottam  noite  e  dia. 

\'iayère.<s,  as  dos  caminhos. 

Muitos  referem-se  a  particularidades  imlçcentes  da  prolissào  de  uieretri/, 
taes  são. 

Bezoches,   Drues,  Uourrièrcs.  etc. 

A   vida  alegre  d'estas  mulheres  com  os  seus  amantes  acha-se  imlicada 
pítr  alguns  nomes: 

Filies  de  joie,  mulheres  alegres,  ou  de  alegria. 

Galloise.t,  de  tjalle,  alegria. 

Goudiíieíi,  ou  (jaudlnes.  de  (jaudere,  folgar. 

Goiíines  de  iioija,  gosar. 

Iligobetes,  de  riijober,-  passar  hem  a  vida. 

As  dillerentcs  classes  de  mulheres  estão  designadas  nCstas  deinminav;óes : 
IctToc/icíf.sr.s'.  as  ipte  se  agarram  aos  transeuntes. 


?70  HISTORIA 

Hiiiisnir.  a'-  (|iie  flianinni  a  atlciiçào  saudando. . 

Caiyn.ardJrrfs,  as  (jue  Ircquenfam  a  companhia  dos  tnisoravcis. 

fourtisanes,  as  que  vivem  nas  cortes  do  amor. 

Demoiselle.s  du  maraia,  as  que  têem  o  pé  no  lodo. 
Drouiius,  as  que  trazem  comsigo  todos  os  utensílios. 

Ilrms,  as  que  esperam  ás  esquinas  das  ruas. 

I.escheresneít.  as  que  tinlisni  a  al)ominavel  industria  das  fel  o  i  rires  romã 
nas. 

I.oudiiire.s,  as  (]uc  possuem  apenas  uma  larimiia. 
Maranes,  as  morenas,  as  ciganas. 

Sourdileft,  as  que  caliiram  na  vicio  por  seduc^;ão. 

Salfreies,  as  que  usam- bordados  de  ouro. 

As  peripl)rases,  que  procedem  pela  maior  parle  de  alguma  locução  pro- 
verbial, não  pr(>cisain  de  commentaiios. 

Algumas  das  denominações  foram  tiradas  da  tcclinologia  do  direito  con- 
suetudinário, como  personnières,  que  participam  da  acção  ou  cúmplices:  nsa- 
jlèrex,  terrenos  baldios,  pertencentes  a  toda  a  gente. 

Outros  nomes  haviam-se  tornado  genéricos,  por  causa  da  qualidade  or- 
dinária (ias  mullieres  que  os  tinham  ou  recebiam,  bem  que  tacs  nomes  fossem 
de  santos,  disfarçados  ou'  corrompidos,  tacs  .como  .lanneloii,  diminutivo  de 
.leaiine,  Joanna  ;  Mnnjni,.  diminutivo  de  Marriarile,  Margarida. 

Finalmenlc  outros  ainda,  tacs  como  Camhrnuses,  Arrehanes,  ctc,  que 
nunca  foram  explicados,  exigiriam  uma  larga  dissertação  etymologica,  que  não 
estamos  muito  dispostos  a  emprehender. 

O  Abbide  de  r-AuInaye,  na  sua  nomenclaturra  dos  synonymos  emprega- 
dos no  século  xvi  para  qualificar  as  prostitutas,  fez  numerosas  omissões,  entre 
os  quaes  apontaremos  apenas  as  seguintes  : 

Ancelks,  serventes  ou  escravas  (de  Ancillae). 

Baçjues,  anneis  em  sentido  figurado. 

ítas-cnlz. 

fíringues,  onomalopeia,  irrequietas,  buliçosas. 

Hrimbdeuses,  que  tocam  campainhas. 

Capres,  de  cabras,  pela  sua  lubricidade. 

Clwueltef:;'  áVes  líocturnas! 

Chérre.-i,  o  mesmo  de  Capres,  cabras. 

Ildlière.i,  amigas  dâ  alegria  e  do  prazer. 

■(■'dnscpurs,  irnixãs  da  alliánça. 

('riipierielles,  galantes. 

Haures,  sentido  muito  (li)scuro  aclualmcnle. 

Ilorres,  trutas. 

íinaíjes,  imagens,  quer  dizer  pintadas,  cheias  di;  arrcl)i(|ues. 

PeauUes,  prostitutas  de  marinheiros. 

Poupines,  bonecas. 

PaiUasses,  Palllardes,  (|uc  dormem  sobre  a  palha. 

Seraiiies,  ou  Siráie.s,  traiiloras,  asiuias,  sereias. 


IIA     PROSTITUIÇÃO  Zí, 

O  (liccionario  coiiiíl-o  de  l.croux  uoòresccntaria  ainda  uns  vinlc  nomes 
talvez,  todos  elles  baixos  e  grosseiros,  coliiidos  pelos  andores  do  século  xvi 
no  lodo  da  prostiluiyão,  e  registrados  por  Bcroaldc  de  Aervilleno  seu  Moijendt 
parvenir. 

Quanto  ás  periphrases  inventadas  para  exprimir  o  mesmo  assumpto  soh 
todas  as  suas  phases,  são  innumeraveis  e  estão  na  Índole  do  bom  bumor  france/. 
Por  isso  julgamos  desnecessário  accrescentar  mais  alguma  ás  que  o  abbade  de 
TAulnaye  teve  o  cuidado  de  apontar,  como  (|ue  para  dnr  um*  ideia  das  que 
ainda  poderiam  ser  aproveitadas  depois  d'elle. 

Lniad'estas  peripbrases,  famines  au  court,  talon,  não  seria  comprebensivel 
pelo  simples  confronto  d'este  provérbio  :  l.a  heaiué  de  la  caurl  r'fiii  d'aroir  It 
lalon  court. 

Uma  passagem  do  livro  v  de  Rabelais  faz-nos  comprebender  o  que  (|uer 
dizer  ter  u  talão  curlo.  Paliando  da  rejuvcnesccncia  que  a  rainba  de  (Juinl;i 
operava  nas  suas  mulberes  vellias,  observa  Rabelais,  que  depois  de  voltarem  a 
novas,  Kacaienl  les  lalons  plxs  courtz  que  o  natural,  e  por  isso  ao  em-oti- 
trarem-se  com  os  lioniens  eram  sujeitas  ou  propensas  ;>  cabir  de  costas.» 

Apesar  d'esta  multidão  de  apodos  ou  designações  applicadas  ás  mulberes 
de  má  vLda,  o  sou  nome  por  e\cellencia  e  caracteristitto  Ibi  sempre  Putain, 
palavra  que  não  foi  completamente  desterrada  da  linguagem  e  do*eslylo  até 
fins  do  reinado  de  Luiz  xiv,  visto  que  se  encontra  ainda  nas  comedias  de  Mo- 
lière.  No  século  xv  e  século  xvi,  esta  palavra  apparecia  ainda  em  toda  a  parte, 
no  foro,  no  púlpito,  nos  livros  de  moral  e  de  jurisprudência,  nos  de  bistoria, 
nas  obras  de  poesia  e  de  litteratura.  Até  mesmo  se  encontra  em  livros  escrip- 
tos  por  mulberes. 

O  Abbade  de  TAuInave  cita  quatro  provérbios,  em  que  a  sabedoria  das 
nações  se  dirige  á  putain  com  esta  ingénua  grosseria: 

Amour  de  putain,  feu  d'éloiippes. 
Amor  de  prostituta  é  fogo  de  estopa. 

Putain  fait  com  me  corneille: 
flus  se  lave,  pliis  noire  est  elle. 
A  prostituta  é  como  a  gralha  : 
(Juanlo  mais  se  lava,  mais  suja. 

Quand  maisti-e  coud  et  putain  jili', 
Peiile  pratique  est  en  ville. 

Em  porlugucz  lia  um  provérbio  equivalente  a  este  ultimo  e  muito  mais 
pittoresco  ainda:  Quando  a  prostituta  fia,  o  soldado  reza  e  o  e.tcriruo pergunta 
a  ijuautos  estamos  do  me:,  mal  vae  a  todos  três. 

O  quarto  provérbio,  citado  pelo  Abbade  de  TAuInavc,  é  o  seguinte: 

Jamais  putain  n'aima  preudliom, 
Ni  graxse  galine  au  chopoií. 

A  Iraduccão  d'este  ultimo  ditado  popular  é  a  seguinte:  !\aiir(t  mulher 
perdida  amou  linmem  honrado,  nem  (/allinhu  ijurda  rapãu. 


?73  HlSTORiA 

Outros  [iroverbids  relalivos  a  cslas  imillitTos,  com  a  detioininavào  de /ò/- 
/cA  [emines,  provatn-nos  que  i>  bom  senso  popular  dava  um  sentido  moral  às 
palavras  (|ue  recordavam  um  pensamento  deslionesto,  a  fim  de  collocar  por  as- 
sim dizer  o  remédio  ao  lado  do  mal  : 

Folies  feiíimes  n'ainient  que  pour  pasture. 
As  (íortt^zãs  amam  sii  por  interftsse. 
« 

Se  nesta  vasta  nomenclatura  não  figura  o  nomií  Calin,  é  porque  nào  foi 
introduzido  na  língua  ei'Otioa  senão  em  épocha  muito  próxima  dos  nossos  dias. 
Uisse-se  durante  muilo  tempo  Calin,  nnno  diminutivo  de  Caíhénne,  Latiiarina, 
nome  muito  usual  entre  as  filhas  do  povo.  .4.  palavra  veio  a  ser  pouco  depois 
synonymo  de  poupe,  por  isso  que  as  crianças  chamam  assim  ás  suas  bonecas, 
e  <l'aqui  passou  naturalmente  para  as  mulheres  licenciosas,  que  ficam  toda  a 
vida  solteiras,  o  que  se  chama  proverbialmente  coiffer  sainie  Calhcrinc,  pentear 
Santa  Catliarina,  como  quem  diz  veslir  santos.  De  Calin  lez-se  logo  Calauí, 
sem  que  a  mudança  de  terminação  conseguisse  rehabililar  o  diminutivo. 

O  infame  logar  em  que  a  prostituição  assentou  os  seus  arraiaes,  o  bordel, 
cujo  nome  conseguiu  insinuar-se  nas  satyras  de  Boileau  e  nos  contos  di'  Vol- 
taire, parece  (|ue  nunca  inspirou  o  estro  dos  inventores  de  synonymos.  O  ab- 
bade  de  lAulnaye  apresenta  apenas  cinco  ou  seis,  que  nem  sequer  ainda  li- 
liliam  curso  na  linguagem  usual,  rescrvando-se  apenas  para  a  lingua  escripta  : 

Clnpaire,  derivado  de  clapier,  coelheira. 

Curatrie,  que  revela  a  ideia  de  curato  ou  prebenda. 

Eschecinaíje,  que  parece  conter  um  torpe  jogo  de  palavras. 

Paillhre,  que  dá  a  entender  que  similhanlcs  antros  não  tinham  outros 
leitos  senão  uma  pouca  de  palha. 

Peaullre,  uma  barcaça  de  rio. 

Ptitefji,  como  quem  diz  feudo  de  prostitutas. 

No  emtanto,  a  palavra  bordel  teve  sempre  preferencia,  ainda  que  a  si- 
tuação ou  o  regimen  dos  antros  da  prostituição  mudassem  completamente  em 
consequência  das  disposições  e  regulamentos  a  respeito  da  prostituição  legal. 
Os  bordeis,  que  tinham  sido  os  primeiros  albergues  da  libertinagem  publica,  já 
não  e\.isliam  em  parte  aíguma,  s^ccepto  n'algumas  cidades  da  província,  na 
èpocha  em  que  as  muliien^s  de  vida  dissoluta  tinham  o  direito  de  manter  boi- 
Jeis  em  certas  ruas  de  má  fama,  onde  viviam  dos  productos  do  olficio  sob  a  tu- 
tela da  policia  munici|)al,  e  mediante  »  pagamento  da  respectiva  licença. 

Os  amantes,  os  companheiros,  ou  os  protectores  d'eslas  mulheres  poixii- 
das,  toilos  es.ses  parasitas  infames  ila  prostituição,  tinham  o  nome  genérico  de 
inaqueraux.  Outros  nomes  havia,  porém,  ainda  para  designar  estes  miseráveis, 
e  nomes  que  soavam  muito  melhor  a  seus  próprios  ouvidos.  Denominavam-se 
ás  vezes : 

Calinières,  porque  attrahiam  com  alfagos. 

Calnis,  pelo  mesmo  motivo. 

I'axse-inane,iiii.r.  valentões. 


PA    PBOSTlxriçS"  579 

roíirrntiers.  piir;|uo  favurecinin  o  trafiro  das  Mias  amand-s. 

Courtriers,  a  mesma  iJoia 

Chnlands,  frcguczes  da  casa. 

Coliafres,  que  devoravam  n  [iroducto  do  impura  commpioin  das  sua* 
desgraçadas  companheiras. 

Gniilliarda.  a  mesma  ideia. 

Hollierií,  que  viajavam  com  suas  amantes  pelo  paiz. 

Francs-gonlierx,  bons  amigos.  ' 

Eialons,  cavallos  de  cobrição. 

í.escheurs,  que  engordavam  eom  a  substancia  da  casa. 

Lapins,  coelhos. 

Lesbins,  sodomitas. 

Mignons,  queridos,  prediletos. 

Maquignons,  protectores,  auxiliares  do  impnio  trafico. 

Paillards,  que  dormiam  sobre  palha. 

Os  homens  desprcziveis,  que  assim  se  consagravam  ao  mais  vil  concu- 
binato, do  qual  tiravam  o  seu  único  rendimento,  eram  os  depositários,  senJio 
op  inventores  da  giria  da  prostituição,  e  nas  tabernas,  onde  passavam  o  dia. 
bebendo,  comendo,  jogando,  blasphemando  e  dormindo,  nã'i  dei\a\ani  de  v- 
Nelar  a  depravação  dos  sons  jostumes  na  linguagem  de  que  usavam. 

Ouantii  ás  mulheres  infames  que  intervinham  nos  tráficos  secretos  da 
prostituição,  eram  apontadas  ao  desprezo  e  reprovação  das  pessoas  honestas 
com  o  nome  genérico  de  maqunrilfs.  Este  (jualificativo  correspondia  a  l^das  a»' 
condições  do  seu  abominável  oflit-in,  c  era  indilTerentemente  admittido.  lantn  no 
pstyjo  elevado,  como  na  linguagem  mais  vulgar,  ou  mais  rasteira.  Os  poetas 
da  corte  no  scimhi  xvi  empregavam -no  a  cada  passo,  bem  ci>mo  os  jurisi-on- 
snltos  e  legisladores. 

Este  nome,  que  não  Coi  excluido  da  linguagem  culta  até  ao  século  xvu, 
bastava,  segundo  parece,  para  todas  as  necessidades.  .4s  pessoas,  a  quem  re|in- 
gnava  servir-se  d"elle,  costumavam  dizer  courrih'e.  ou  courreiiere,  corretora  ; 
as  palavras  enirfinftteuse  c  appareilltasi',  mediadora,  ou  agenciadora,  vieram 
mais  tarde,  e  resentem-se  já  do  estylo  académico. 

Também  se  recorria  a  periphrases,  que  revelam  a  intenção  de  atlagar  a 
susceptibilidade  d'estas  damas:  ambassntrires  d'amonr,  embaixatrizes  do  amor  .■ 
coHri7í'7'r?'r.ç  (/»>  lolontes.  conciliadoras  de  .vontades;  iDun-handrs  d"  chair 
frairhf,  eommerciantes  de  carne  fresca ;  .s«n./TO(?íífi.s  d'amoHr,  sentinellas  do 
amor.  etc. 

\s  que  exerciam    este  odioso  (_■  lucrativo  trafico  so   recebiam  de    toda  a 
parte  injurias  e  maldições.  O  próprio  libertino,  que  as  empregava  em  serviço 
dos  seus  próprios  prazeres,  comprehendia  bem  a  infâmia  e  toda  a  indignidade 
destas  mediadoras.  Felizmente  não  eram  mulheres  as  negociadoras  dVstes  in 
fames  contractos:  eram  velhas. 

O  retrato  de  uma  d'estas  infames  velhas,  devido  a  um  poeta  do  século 
xvt.  c  iiN)a  passagem  notabilisima  que  se  attribuin  a  Francisco  Rabelais  na 
primeii'a    edição  completa   das  suas    obras,  e  que    havia  appareciílo    em   \ort\ 


?8fl  HISTORIA 

n  uma  collccvão  de  poesias  de  Francisco  Habert.  Este  Habcrt  era  um  amigo  ijr 
Rabelais,  e  pôde  suppòr-se  cora  algumas  probabilidades  que  quizesse  salvar  do 
olvido  as  Epistolas  a  duas  velhas  de  costumes  dilferentes,  que  Rabelais,  a  esse 
tempo  cura  de  Mendon,  não  podia  nem  queria  publicar  com  o  seu  nome. 

De  reslo,  o  retrato  da  veliia  mediadora  encontra-se  feição  por  feição  na 
Syhilla  de  Panzoust,  que  figura  entre  os  personagens  allf^oricos  do  Pantagruel. 

«Aelba  desdentada,  infame  e  miserável,  velba  sem  graça,  de  hypocritas 
virtudes,  velba  traidora,  iniqua  mediadora,  velha  que  trazes  a  deshonra  c  o 
crime  a  solteiras  e  casadas!  Tu  nunca  soubeste  o  que  é  a  caridade,  mulber 
infame,  que  só  sabes  ter  rancores  e  azedume!  A  tua  asquerosa  e  feia  pelle  ex- 
cede em  fétido  tudo  quanto  ha  de  mais  immundo!  Velha!  Tu  nunca  fallaste 
bem  de  pessoa  alguma:  tu  fazes  do  teu  leito  um  bordel.  O  teu  ubre  pode 
muito  bera  araraaraentar  o  próprio  diabo  do  inferno.  Velha!  Tu  exerces  o  infer- 
nal poder  de  Medeia  v.  Circe !  Velha  maligna,  execravel  e  infecta,  que  envene- 
nas com  a  voz  os  elementos,  não  receias  ser  castigada  um  dia  por  teus  cri- 
mes sórdidos  e  impudicos,  ante  Deus  e  ante  os  homens?  Pensas  que  has  de 
ficar  impune,  velha  maldita,  tendo  perdido  tantas  donzellas,  tendo  vcndiílo 
contra  íod.i  a  lei  e  justiça  mulheres  honradas  e  de  boa  familia  '!...)* 

\s  cores  enérgicas  d'estc  quadro  serviram  depois  de  modelo  a  Réguier 
par-a  o  retrato  da  sua  Macette,  que  é  o  prototypo  ijas  corruptoras  tia  prostitui- 
ção no  tempo  de  Henrique  iv. 


CAPITULO  XXV 


SUMMARIO 


A  prostituiç5o  lefral  considerada  por  ura  moralista  coiim  as  |iartes  secretas  do  corpo  social.—  Ultimos  ves- 
tígios e  transformai;(jes  (la  prostituição  rtrliL^iosa  —  li  iQanif|Ucisino  e  a  feiticeria  —  Mctamorphose  diabi-lica  da 
prostituirão  hospitalar.  —  Os  iucuhos  e  surcubns  siilisliluem  os  deuses  lai  es  e  os  .semideuses  aprestes.  —  Os  dni 
sios  dos  saulezes.  —  S.  .^Kostinlio  alliriiia  e  .'■'.  Cliiysostomo  nega.  —  SoiiUos  dos  ]'abtiinos  judeus  adoptados  pelos 
doutores  da  E^Teja.  —  Adão  e  os  diabos.  —  Multiplicação  siibiciiatural  dos  primeiros  homens.  —  Variedades  úe 
pesadellos.  —  Opinião  de  Guiberto  de  Nogunt.  —  Opinião  do  padru  (lostadau.  — JJtymolojjia  das  palavras  incubo  p 
succubo  —  O  prefeito  Mumnolo.  —  Os  succubos  do  bispo  Eparchio.  —  O  incubo  da  mãe  de  Guiberto  Noffent.  — 
O  báculo  e  o  exorcismo  de  S.  H-Tnardo.  —  Decisão  do  papa  Innoceiício  viii.  —  A  vida  a.«citica,  predispondj  para 
os  attentailos  dos  incubos  e  succubos.  —Doutrina  dos  casuistas  acerca  dos  sonhos  impudicos.  —  Armella  Nicolau. 
—  Angela  de  Fohgno.  —  Correspoiíiieucia  de  Soror  Gertrudes  com  Satanaz.  — O  demónio  e  as  virgens.  —  Joanna 
Harbiller.  —  Os  incubos  quentes  u  os  incubos  frios.  —  Cuufissões  das  suas  victiraas.  --  O  mau  cheiro  do  diabo  — 
Filhos  gerados  pelo  diabo.  —  DistincçSo  entre  n  incubismo  e  a  feiticeiia.  —  Os  incubos  c  succubos  discutidos  pui 
plena  academia  no  secii  n  \vn.  —  Seus  feitos  explicjidos  pela  sciencia  e  pela  razão. 


piuisTiTUiçÃo  LEGAI,  chcgáfíi,  ao  qiK'  parecia,  a  possuir  todo  n 
desenvolviíiuTilo  rcgitlar  e  n(H-cssai'io.  Tinha  o  st-u  código,  os 
seus  usos,  os  seus  cotumes,  es  .seus  privilégios,  muitos  outros 
accessorios  e  até  mesmo  a  sua  lingua  privativa.  Vivia,  por  as- 
sim dizer,  em  perfeito  aceordo  com  a  aucloridade  ecclesiastica  e 
civil.  Estabelecera  o  seu  império  em  certas  ruas,  a  certas  horas,  mediante  cer- 
tas condições  de  policia  urbana.  Fazia  parte  iHtegrante  da  organisa(,'ão  do  corpo 
social,  do  ([uaI  era,  segundo  a  c\tranha  expressão  de  um  antigo  escriptor,  «as 
palies  secretas,  que  o  pud  )r  manda  occuilar,  mas  (|ue  não  se  ani(|uillariain 
sem  destruii"  os  bons  costumes,  (jue  são  como  ipie  a  cabeça  e  o  coração  de  um 
paiz  morigcrado». 

Apesar  d'isto,  porém,  ao  lado  da  prostituição  legal,  reconhecida  ou  tole- 
rada pelos  poderes  públicos,  encontravam-se  ainda  os  mal  apagados  vestígios, 
muito  degenerados,  de  certo,  da  prostituição  hospitalar  e  da  prostituição  reli- 
giosa, aquellas  duas  companheiras  do  paganismo  entre  os  povos  primitivos. 

X  prostituição  religiosa,  propriamente  dita,  persistia  ainda  obscuramente 
no  culto  tradiccional  de  alguns  santos,  aos  quaes  a  superstição  popular  conser- 
vara as  attribuiçõcs  obscenas  de  Pan,  de  Priapo  e  dos  deuses  lares.  Estes  des- 
varios constituíam,  porém,  e  felizmente,  raras  excepções,  annexas  a  certas  pe- 
regrinações mysteriosas,  a  certas  capellas  ou  sanctuarios  extravagantes,  que  se 
conservavam  pagãos  apezar  ilas  suas  invocações  christãs. 

HiBTORU  TIA  PbostituiçIo.  Tomo  II— KoiBA  36 


282  HISTORIA 

Estas  impudicas  reminiscências  da  idolatria  estavam  como  que  escondi- 
das no  fundo  dos  campos,  até  (jue  alguma  das  monstruosas  heresias,  que  não 
cessavam  de  se  reproduzir  no  próprio  seio  da  religião  de  Jesus,  vieram  dar 
largo  desenvolvimento  á  prostitui(,-ão  religiosa. 

O  maniqueismo  pioduzira  a  heresia  dos  \'aa<le.s,  e  a  Vauãeric,  apesar 
do  fogo  e  do  ferro  a  lerem  sem  cessar  procurado  extirpar  da  sociedade,  bro- 
tava aqui  e  alli  vários  rebentões,  que  davam  fructos  impuros,  e  desappareciam 
dahi  a  pouco  em  cinzas  nas  fogueiras.  Não  será  destituido  de  interesse  pro- 
curar, nas  frias  cinzas  destas  heresias  maniqueiasc  dos  Vaudes,  o  principio  vi- 
tal da  prostituição  religiosa. 

Outra  espécie  de  heivsia  \eio  tamhein  contribuir  para  o  desenvolvimento 
dVsta  prostituição.  Tendo  (ido  a  mesma  origem,  a  uova  heresia  separnu-se 
bera  depressa  do  mani((ueismo.  e  pareceu  dirigir-se  para  um  lim  inteiramente 
opposto.  A  feiticeria,  instituindo  o  culto  dos  demónios,  apoderou-se  logo  da 
prostituição  como  de  um  poderosd  meio  de  acção  sobre  os  seus  hori-i\eis  ade- 
ptos. A  prostituição  infernal  nãi>  iardou  a  arrastar  comsigo  uma  depravação 
inaudita,  qui'  servia  de  laçn  invizivel  entre  as  feiticeii'as  de  todas  as  idades  e 
pai/.es,  e  era  a  almH  das  suas  assembleias  infames. 

Pelo  que  respeita  á  prostituição  hospitalar,  essa  crédula  e  ingénua  lilha 
da  prostituição  religiosa  apparecia  ainda  de  vez  em  quando  no  sanctuario  da 
vida  domestica,  sendo  ordinariamente  a  sua  causa  ordinária  os  desvarios  e  ex- 
citações (Ím  imaginação.  Esta  espécie  de  prostituição  era  ainda  rellexo  das  cren- 
ças e  mysterios  do  paganismo.  O  commercio  carnal  dos  espíritos  com  os  ho- 
mens e  as  mulheres  passava  então  por  um  fado  inconleslavel,  e  este  maldito 
commercio,  que  a  egreja  considerou  por  muito  tempo  c(jnit>  uni  dos  s\mptomas 
ria  preversão  diabólica,  ha\  ia  abertit  a  poria  ;'i  libertinagem  secreta. 

A  impudica  supersti(;ão  dos  incubos  e  succubos  tinha  origem  nos  hábi- 
tos da  prostituição  lios^iitalar,  e  os  chrislãos  de  ambos  os  sexos  persuadiam-so 
de  lerem  relações  lúbricas  com  os  demónios  e  os  anjos,  que  participavam 
egualmenie  de  um  e  outro  sexo,  assim  como  os  pagãos  cohabilavam  com  os 
.seus  deuses  lares,  ou  entravam  ás  vezes  em  communicação  directa  com  os 
faunos,  satvros,  na.yades  e  semi-deuses  agrestes. 

Temos,  pois,  de  examinar  o  que  era  a  prostituição  na  Kdade-Media,  sob 
as  suas  Ires  phazes  distinctas,  a  lieresia,  a  feiticeria,  c  a  superstição  dos  incu- 
bos e  succubos. 

Estes  demónios  chamados  pelos  gaulezes  drusios  (dnissi)  já  exerciam  as 
suas  violências  e  seducçoes  nocturnas  na  époclia  em  (|ue  Santo  Agostinho  re- 
conhecia a  sua  existência  e  aKenlados,  declaiando  que  seria  imprudência  ne- 
gar um  facto  tão  bem  estabelecido:  li  hoc  M(jare  imprudenlia  oidealur.  Mui- 
tos Padres  da  Egreja,  c  entre  elles  S.  .loão  ("hrvsosthomo  negavam  este  fado, 
pronunciando-sc  contra  os  ados  de  luxuria  attribuidos  aos  demónios  incubos 
e  succubos. 

A  religião  hebraica,  porém,  dava  a  estes  demónios  uma  origem  contem- 
porânea da  dos  primeiros  homens,  e  a  Egreja  christà  adoptou  a  opinião  dos  rab- 
binos   lia  interpretação  do    famoso   capitulo  do  (ieiiesis,  em  i)ue  se  vêem  os  li- 


DA    PROSTITUIÇÃO  SSâ 

llios  de  Deus  tomar  por  imilliercs  as  lillias  ilos  liumens,  e  procrearetii  uma  raça 
de  gigantes. 

Os  doutores  e  coneilios,  apesar  d'isto,  não  foram  tão  longe  como  os  in- 
terpretes judeus,  que  referiam  a  lenda  dos  demónios,  como  se  o  facto  se  tivesse 
dado  á  sua  vista.  Assim,  .segundo  estes  veneráveis  personagens,  «durante  cento 
c  trinta  annos,  em  que  .idão  se  absteve  de  cohahilar  com  sua  mulher,  vieram 
ter  com  ellc  diabn.s,  (|uc  conceberam  por  obra  do  venerando  pae  da  raça  bu- 
mana,  e  pariram  diabos,  espíritos,  espectros  noi  turnos  e  phantasmas.  i^O  numdu 
e.ncantatlo,  por  Baltliazar  Becker,  .4msterdam,   1694,  4  voí.  i,   ICíí.) 

Os  rabbinos  e  os  demonologos,  uma  vez  a  contas  com  a  genealogia  dos 
demónios  da  noite,  proseguirani  ousadamente  n'este  caminbo,  e  descobriram 
que  se  o  pae  Adão  tivera  copula  com  succubos,  a  nossa  mãe  Eva,  pela  sua 
parte,  não  deixara  de  entrar  em  communicação  carnal  com  os  inculios,  contri- 
bumdo  assim  pcilldamente  para  a  multiplicacrii  do  r;fneni  liumaud. 

Qualquer  que  fosse  o  valor  destas  lendas  dci  mundo  antidiluviano,  a 
existência  dos  incubns  e  succubos  não  estava  provada  por  iiini;uefn,  e  attribuia- 
se-lhe  o  èíTcito  do  pesadelo.  Estes  linspedcs  incomniodos,  que  visitavam  du- 
rante a  noití-  os  jovens  de  ambos  os  sexos,  nem  sempre  atti-iitavam  contra  a 
sua  castidade.  Umas  vezes  sentavam-se  a  .seu  lado,  murniurando-llíes  ao  ou- 
vido insen.satas  illusucs,  outras  pesavam  sobre  o  peito  das  iiHiocentes  vicfimas, 
que  julgavam  afogar-.sc,  e  despertavam  nur  liiu,  cbeias  de  espanto  e  innunda- 
das  d.e  sutu  frio. 

Mais  vulgarmente,  porém,  este  demónio,  macho  ou  fêmea,  e  ás  vezes 
dotado  simultaneamente  dos  dois  sexos,  cevava  os  seus  furores  luxuriosos  na 
victima  que  havia  escolhido,  e  que  um  somno  pesado  como  o  chumbo  lhe  en- 
tregava indefesa.  iJonzella  ou  mancebo,  o  cúmplice  involuntário  dos  prazeres 
do  espirito  maligno,  perdia  a  sua  virgindade  ou  innoceneia,  sem  conhecer  jamais 
o  ser  invisível  a  quem  merecia  tão  horrorosas  caricias.  Ao  despertar,  não  po- 
dia duvidar  da  impura  oppressào  que  havia  sotVrido,  quando  via  com  assom- 
bro as  provas  irrecusáveis  que  lhe  mancbavam  o  leito. 

Tal  era  a  opinião  geral,  não  s/i  do  |)o\o,  senão  também  dos  homens  mai.s 
illustrados  e  eminentes. 

«Citam-se  por  toda  a  parte,  diz  o  piedijso  (luiberto  de  Nogent,  nas  me- 
morias da  sua  vida  (De  riía  suo,  lib.  i,  cap.  l:{|  exemplos  de  demónios  que 
se  fazem  amar  das  mulheres  e  se  lhes  introduzem  nos  leitos.  Se  a  decência 
nol-o  permitlisse,  havíamos  de  referir  muitos  destes  amores  diabólicos,  entre 
os  quaes  sabemos  de  alguns  bem  terríveis  por  causa  dos  atrozes  solTrimentos 
que  fazem  ter  a  estas  pobres  creafuras.  emquanto  (|uc  outros  contentau)-se 
apenas  de  saciar  a  sua  lubricidade.» 

Tacs  demónios  eram,  cllectivamente,  mui  diílerentcs  em  génios  e  i-apri- 
chos.  Uns  amavam  coukj  \  erdadeiros  galans,  aos  quaes  procuravam  imitar  em 
tudo;  menos  néscios  talvez,  ou  niais  preversos,  davam-se  a  inciiveis  excessos 
de  libertinagem.  A  maior  parte  dellcs  não  se  distinguiam  dos  homens  nos  re- 
sultados da  paixão:  mas  alguns  juslilicavam  a  sua  natur'eza  superior  idin  ver- 
dadeiros prodígios  de  incontinência  e  luxuria. 


^4  HISTORIA 

A  fondiicta  das  vicfinias  paru  com  os  seus  diabólicos  oppressores  era 
lambem  dilTerenfo.  Umas  acosfumavam-se  logo  á  opprcssão  do  diabo,  e  viviam 
com  elle  no  melhor  acecrdo;  outras  sentiam'  n'cste  indecente  commercio  tanta 
aversão  c  repugnância  ao  tyranno  como  a  si  próprias.  Quasi  todas  guardavam 
silencio  sobre  o  que  se  passava  n'estes  casos  de  união  infernai,  f|ue  a  Egreja 
anathemalisava,  desviando  os  f)lhos  com  horror. 

«Não  restaria  mais  que  demonstrar,  dizia  o  reverendo  Costadau  em  pleno 
século  XVII,  como  os  demónios  podem  ter  commercio  carnal  com  os  homens  e 
as  mulheres,  mas  a  matéria  r  demasiado  obscena,  para  a  expressarmos  na 
nossa  língua.» 

Osescriplos  dos  theologos,  dos  pbilosophos,  dos  médicos  e  dos  demonologos 
da  Edade-Media  estão  cheios  de  observações  eircumstanciadas  a  respeito  dos  ineu- 
bos  e  succubos,  que  encontravam  poucos  incrédulos,  antes  que  a  sciencia  hou- 
vesse explicado  naturalmente  todas  as  suas  proezas.  O  christianismo  acceitára 
á  conta  do  diabo  e  dos  seus  súbditos,  os  detestáveis  actos  de  violência  e  sedn- 
cção  que  o  paganismo  desde  a  mais  remota  edade  attribaia  aos  deuses  subal- 
ternos e  aos  demónios  occullos  e  nocturnos.  Uns  e  outros  exerciam  os  mesmos 
actos  de  prostituição  phantastica,  mas  os  espíritos  íntísíveis,  que  d'clla  se  tor- 
navam culpados,  não  eram  detestados  pelos  pagãos,  como  o  foram  pelos  ehris- 
tãos,  a  quem  a  Egreja  recommendava  (jue  se  defendessem  sem. tréguas  nem  des- 
canço  contra  as  insidias  do  diabo. 

Não  obstante,  se  a  opinião  vulgar  não  podia  pôr  em  duvida  os  horríveis 
atlentados  que  estes  malignos  espíritos  faziam  contra  á  espécie  humana  durante 
o  .somno,  a^)hilõsophia  negou  em  alta  voz  estes  attenlados,  quando  se -entregou 
ao  exame  dos  factos,  averiguando  os  phenomenos  do  pesadèllo. 

Chamava-se  incubo  (incubns)  o  demónio  que  tomava  a  figura  de  homem 
para  cohabitarcom  uma  mulher  adormecida  ou  acordada.  Esta  palavra  deríva-se 
do  verbo  latino  incubare,  que  significa  estar  deitado  sobre  outro.  Os  gregos  cha- 
mavam ao  incubo  demónio  sallmlnr  ou  invasor,  que  acommelte  ou  se  atira  a 
alguém.  N'uni  antigo  glossário  manuscrípto,  citado  por  Ducange,  a  palavra  in- 
cubo tem  esta  definição :  «Incubi  rei  incuhones,  uma  espécie  de  diabos  que 
costumam  brincar  com  as  mulheres.»  Ducange  çxtrahe  também  das  Glosas  ma- 
nuseriplas,  para  intelligencia  das  obras  medicas  de  .\lexan(lre  de  Tralles,  uma 
passagem  (|uc  prova  que  os  sábios  confundiam  antigamente,  sob  a  denominação 
de  incubo,  o  demónio  do  pesarlcllo  e  o  solírimcnto  tiuc  elle  causava  ao  dor- 
mente : 

«lucubim  esi  jnissio  in  qn<t  dortirienies  siijjorori  el  a  dceiíionibuK  opprinii 
lidenlnr.» 

A  etimologia  de  suecubo  (tmccubus)  não  dilTere  da  de  incubo,  senão  pela 
mclamorphose  do  demónio,  transfoi-mado  agora  em  mulher,  succubare,  axib-cu- 
bare,  rubare  -w.b,  isto  ^,  estar  deitado  debaixo  de  outro.  Não  obstante,  Ducange 
não  admittiu  esta  ()alavra  nem  o  seu  derivado  no  seu  (ilossario. 

Verdaile  seja  que  os  succubos  são  mais  rar^s  (|ue  os  incubos  nas  narra- 
ções da  Edade-Mcdia,  |)on|iie  cslcs  iillimus,  apesar  dos  exorcismos  c  das  penas 
ecciesiaslicas,  não  deixavam  ,is  mulheres  em  descanço  por  aquelle  tempo.  De- 


!>A    PKOSTITUIÇÃU  9*6 

pois  de  haverem  lejto  milagres  nas  lendas  dos  saiilos,  vinham  agora  ostentar 
novas  proezas  à  luz  da  historia.  Gregório  de  Tours  referc-nos  a  morte  do  pre- 
feito Mummulo  (I.ib.  vi),  enviando  demónios  obscenos  ás  damas  gaulezas, 
que  desejava  condemnar.  O  mesmo  ciironista  dá  a  entender  que  o  próprio  Sa- 
tanaz  não  desdenhava  muitas  vezes  entregar-se  a  esse  passatempo. 

Um  santo  bispo  do  Auvergnc,  chamado  Euparchio,  acordou  uma  noite 
com  a  ideia  de  ir  orar  á  sua  egreja.  Levantou-se  com  etteito  e  dirigiu-se  á  sé 
episcopal,  que  foi  encontrar  toda  ilhiminada  por  uma  luz  extranha  e  cheia  de 
demónios,  que  praticavam  as  maiores  abominações  diante  do  altar.  Entre  elles 
estava  o  próprio  Satanaz,  vestido  de  mulher,  que  sentado  na  cadeira  prehilicia 
presidia  áquelles  mysterios  de  impudica  iniquidade. 

— Infame  cortezã!  bradou  o  bispo  indignado,  não  te  contentas  de  man- 
char tudo  com  as  tuas  profanações,  e  vens  ainda  sujar  com  o  teu  corpo  repu- 
gnante a  cadeira  consagrada  a  Deus! 

— Uma  vez  que  me  chamas  cortezã,  disse-lhc  o  principe  das  trevas,  deixa 
estar  que  te  heide  inflammar  a  carne  com  o  fogo  da  luxuria! 

Satanaz  desfez-se  eomo  o  fumo  e  junto  com  elle  a  sua  cõrle  diabólica,  mas 
d'ahi  a  pouco  lá  cumpria  a  sua  palavra,  fazendo  sotTrer  ao  sanio  bispo  todas 
as  torturas  da  concupiscência  carnal. 

Um  historiador  tão  grave  como  (Ircgorio  de  Tours,  (luiberfo  de  .\ogent, 
referia  com  a  mesma  boa  fé  cinco  séculos  mais  tarde  os  insultos  que  sua  mãe 
tivera  que  sofircr  da  parte  dos-  incubos,  que  a  belleza  d'aquclla  mulher  attra- 
hia  sem  cessar  para  junto  d'ella.  «Uma  noite,  conta  elle,  durante  uma  dolorosa 
insomnia,  que  lhe  fazia  innundar  de  lagrimas  o  leito  em  (jue  jazia,  o  demó- 
nio, segundo  o  seu  costume  de  tentar  os  corações  aillictos,  apresentou-se 
subitamente  a  seus  olhos,  que  o  somno  não  conseguia  cerrar,  e  opprimiu-a 
cruelmente  com  um  peso  asphyxiante.»  A  pobre  senhora  nem  podia  mover-se, 
nem  queixar-se,  nem  mesmo  respirar,  mas  no  intimo  d'alma  implorou  o  auxi- 
lio divino,  e  viu  immediatamente  o  seu  anjo  da  guarda  junto  da  cabeceira. 

«Santa  Maria,  ajuda-nos!  exclamou  o  anjo  custodio  em  voz  doce  e  sup- 
plicante;  e  dizendo  isto  lançou-se  sobre  o  demónio,  para  o  obrigar  a  largar  a 
sua  presa.  O  espirito  infernal  ergueu-se  logo  para  resistir  a  tão  inesperado  ata- 
que, mas  o  anjo  deitou-o  por  terra  com  um  estrépito  que  fez  tremer  a  casa 
toda.  .4s  creadas  levanlaram-se  assustadas  e  inquietas  e  correram  ao  quarto  de 
sua  ama,  que  pallida,  desvairada  e  semi-morta  de  terror,  lhes  contou  o  perigo 
de  que  havia  escapado  e  de  que  manifestava  ainda  signaes  bem  evidentes.  iGui- 
berto:  De  vita  sua,  lib.  I,  cap.    13.1 

Os  anjos  da  guarda,  porém,  nem  sempre  estavam  no  seu  poslíj  para  pres- 
tarem auxilio  n'esles  lances  ás  débeis  creaturas,  e  o  demónio  tinha  então  todo 
o  partido.  Não  obstante,  a  Egreja  podia  ainda  arrebatar-lhes  a  presa,  como  se 
prova  pelo  memorável  exorcismo  de  que  se  tracta  na  vida  de  S.  Bernardo,  es- 
cripta  pouco  tempo  depois  da  sua  morte. 

Uma  mulher  de  Nantes  tinha  relações  impudicas  com  um  demónio  que 
a  visitava  todas  as  noites,  quando  estava  deitada  com  seu  marido,  sem  que  o 
pid)rc   homem   acordasse.   Xo   cabo   de  seis  annos  d'c!>li'  adultiMÍo  diabólico,  a 


?8(Í  HISTORIA 

peccadoiii  qiu'  nunca  /'aliara  em  sirnilhantr  cousa,  resolveu  contar  tudo  ao  seu 
confessor,    e   em   seguida  a  seu    marido,   que  liorrorisado  d'ella  a  abandonou. 

O  incubo  ficou  assim  senhor  absoluto  da  sua  victima.  Uma  noite  conlou- 
Ihe  o  seu  infernal  amante  que  o  illusire  São  Bernardo  devia  ir  áqu^lla  cidade. 
A  victima  esperou  com  impaciência  a  chefiada  do  santo,  e  foi  proslrar-se  a  seus 
pés,  pedindo-lhe  que  a  livrasse  d'aquella  obsessão  diabólica. 

São  Bernardo  aconselhou-llie  que  fizesse  o  signa!  da  cruz  ao  deitar-se,  e 
que  pozesse  a  .seu  lado  no  leito  um  báculo  que  lhe  deu. — Se  o  demónio  vier, 
disse  o  santo  varão,  não  o  temas.  Desafia-o  a  que  se  approxime  de  li.  l)ei\a 
estar  que  não  lhe  hade  faltar  que  fazer! 

Etrectivamente  o  incumbo  apresenlou-se  como  de  costume  para  usurpar  os 
direitos  do  marido,  mas  encontrou  o  báculo  de  S.  Bernardo,  e  não  poude  lazer 
.senão  andar  em  volta  delle  colérico  e  ameaçador.  Uma  barreira  insuperável  se 
erguia  entre  os  dois. 

No  domingo  seguinte,  dirigiu-se  S.  tiernardo  á  cathedral  acompanhado  dos 
bispos  de  .Nantes  c  de  Chartres.  Uma  multidão  immensa  aecudira  ao  templo  para 
receber  a  benção  do  santo,  que  ordenou  que  a  lodos  os  assistentes  se  distri- 
buíssem velas  a(-ce.sas,  coutando-lbes  cm  seguida  a  historia  daquella  miilbei- 
dailH  ao>  prazeres  do  demónio.  IJepois  dislo,  e\orcis(nou  o  espirito,  pi'ohibiudo- 
Ihe  peia  aucforidade  de  Jx*sus-(^',bristo  que  atormentasse  aquella  mulher  ou  ou- 
tra ijuaUiuer.  Conelui<lo  o  exorcismo,  ordenou  que  todas  as  luzes  se  apagassem 
ao  mesmo  lempo,  e  a  potencia  no  demónio  incubo  extinguiu-se  i-ompleta- 
mente. 

Se  S.  Bernardo  não  duvidava  da  realidade  da  copula  dos  incubos  com  as 
mulheres,  não  é  de  exlranhar  também  que  S.  Thomaz  de  Aquino  se  occupasse 
extensamente  d'estes  audazes  demónios  libertinos,  na  sua  Sumtna  Theologicv 
(Questio  LI,  art.  3).  A  auctoridade  d'estes  dois  grandes  santos  era  sufliciente 
para  desculpai'  as  desgraçadas,  que  julgavam  soíTrer  bem  apesar  seu  esta  ex- 
tranha  prostituição,  e  que  não  possuíam  o  talisman  preservativo  do  báculo  de 
S.  Rernardo.  Nada  mais  vulgar  que  as  revelações  d'este  género  no  tribunal  da 
penitencia,  e  o  confessor  tirava  d'eslas  confidencias  a  convicção  do  facto,  (|ue 
combatia  sempre  inutilmente  com  exorcismos  e  orações. 

O  papa  Innocencio  viii  não  se  mostrava  menos  supersticioso  (juc  os  seus 
contemporâneos,  quando  reconhecia  n  estes  termos  de  uni  breve  apostólico  a 
existência  dos  incubos  e  succubos: 

n,\on  sine  ingenli  inolfslia  ad  iiosiruiii  yerceiíu  audiíuin  cuinijluras 
utriusque  sexus  personos  proprice  .lalutia  inunemores-,  fi  a  fuh  calholica  de- 
ciantes,  doemonibus  incuhis  et  auecubis  abuli.» 

Não  foi  S(í  a  confissão  sacramental  que  revelou  os  mvslerios  do  Incubii- 
inu  e  suvcítbistnu;  revelaram  nos  especialmente  as  declarações  voluntárias  ou 
forçadas  que  a  inquisição  aiiaucou  aos  accusados,  nas  innumeraveis  causas  de 
ft.-iticeria,  que  encheram  as  fogueiras  e  patíbulos  de  lodosos  paizes  ihi  Europa. 

Foi  sempre  a  imaginação  a  culpada  única  de  Iodas  as  cdiras  nocturnas 
que  se  imputavam  ao  diabo,  mas,  segundo  a  crença  dos  antigos,  as  trevas  per- 
tenciaiii  ;ios  rspiíilns  iiiIVriíaes,  e  o  somno  dos  homens  achava-se  exposto  as- 


DA    PROSTITUIÇÃO  t87 

sim   á   nialclaclc  íJ'cstes  audores  do  peccadu.  Eram  laiubeui  accusados  de  em- 
progarem  o  sonho  como  um  dos  meios  de  tenta^'ão  dos  peccadores  adormecidos. 

"O  diabo,  diz  o  sábio  António  de  Tor(|uemada,  procura  principalmente 
fazer  cahir  no  peccado  da  luxuria  os  que  dormem,  fazendo-os  s(mhar  com  pra- 
zeres carnaes,  até  que  os  obriga  a  polluções,  de  maneira  que  comprazendo-se 
n'ellas  logo  que  despertam,  são  a  causa  de  que  pequem  mortalmente.  (Ilexa- 
meron) . 

I5ay1c,  na  sua  Hc-iposía  ás  penjaiilas  de  um  Promncial,  cita  a  este  res- 
peito a  doutrina  dos  casuistas  sobre  os  sonhos,  que  por  muito  tempo  se  attri- 
buiram  aos  incubos  e  succubos. 

«Os  mais  remissos  concordam  que  somos  obrigados  a  rogar  a  Deus  que 
nos  preserve  de  sfmhos  impuros.  Dizem  elles  que  se  pecca  sempre  nos  seguin- 
tes casos:  quando  se  tizeram  cousas  próprias  para  excitar  as  impurezas  du- 
ríliite  <t  sonho:  quando  ao  acordar  não  se  deplora  o  ter-se  sentido  prazer  com 
os  sonhos;  quando  finalmente  se  emprega  quali|uer  artificio  para  os  reprodu- 
zir.» fOeuvres  ih  lki\jk,  I.  iii,  p.  o63.) 

l'(i(le  dizer-se  até  certo  ponto  que  os  incubos  e  succubos  nasceram  nos 
conventos  de  ambos  os  sevos,  porque  a  vida  ascética  predispõe  niaravilhosa- 
inentc  o  espirito  e  o  cor|Mi  para  esta  prostituição  involuiil;iria,  que  se  realiza 
em  sonhos  c  que  o  mysticismo  considera  como  obra  dos  demónios  nocturnos. 

«As  religiosas,  diz  Bayle,  altribneni  á  nialicia  de  Satanaz  <«k  maus  pen- 
samentos que  téem,  e  se  notam  certa  tenacidade  ou  insistência  nas  suas  sen- 
savões,  imaginam  que  o  infernal  tentador'  as  persegue  mais  de  |iorfii,  (|ue  lhes 
faz  cerco,  que  se  apodera  linalmenle  dos  seus  corpos.» 

A  biographia  de  muitas  d'estas  santas  martyres  dos  seus  próprios  senti- 
dos faz-nos  conhecer  as  provas  que  tinham  de  sotfrer  para  guardarem  a  sw\ 
pureza  e  para  escaparem  ás  violências  ou  as  seducvões  dos  anjos  maus.  Uma 
religiosa  de  Santa  Úrsula  da  communidade  de  Vannes,  chamada  Armclia  .Nico- 
lau, «pobre  rapariga  idiota,  villã  de  íiasciruenlo  e  servente  de  condição»,  como 
a  qualifica  o  seu  hi.storiador,  olíerece-nos  um  dos  últimos  exemplos  do  impé- 
rio que  o  diabo  podia  exercer  pbysica  e  moi'alnicnle  ao  mesmo  Icmpo,  sobre 
aquellas  reclusas  ignorantes,  crédulas  e  apaixonadas. 

Esta  pobre  rapariga,  que  viveu  nos  lins  do  século  wiii,  coineç.-ara  por  s»' 
exaltar  nos  ardores  do  amor  divino,  antes  de  ser  viclima  dos  incubos. 

A  seu  respeito  diz  o  auetor  anonymo  da  Eschola  do  paro  amor  de  Deux. 
iilieria  nas  siihius  e  aos  ujnoraiUes,  p.  :{'i-  da  nova  edigão  de  Colónia  : 

«Parecia-lhe  estar  sempre  em  companhia  dos  demónios,  (|ue  .sem  cessar 
a  provocavam  a  enlregar-se-lhes.  J'or  espaço  de  cinco  ou  seis  mezcs  que  du- 
rou o  mais  forte  d'aquella  grande  batalha,  era-lhe  impossível  dormir  de  noite, 
por  causa  dos  espectros  espantosos  com  (|ue  ns  demónios  a  alnrmentavam,  to- 
mando horriveis  c  monstruosas  figuras.» 

E'  o  (|ue  se  chama  pòr  o  remédio  ao  lado  do  mal,  e  a  pobre  freira  cada 
vez  se  sentia  mais  forte  para  resistir  áquelles  terríveis  tentadores,  que  em  vez  de 
lon)arem  formas  agradáveis  e  sympatbicas  para  facilitarem  a  seducvão,  se  indi- 
gnavam de  seus  desdéns  e  a  maltratavam  cruelmente. 


>88  msTORU 

Outra  mystica,  Angela  de  Foligno,  cujas  tentações  diabólicas  descreve 
Martin  dei  Rio,  nas  suas  Disquisitiones  magiccB,  tinha  de  haver-se  também 
com  grosseiros  demónios,  que  a  golpeavam  sem  piedade,  depois  do  lhe  have- 
rem inspirado  desejos,  que  não  chegavam  a  ver  realisados.  Não  tinha  no  corpo 
sitio  algum  que  não  fosse  ferido  por  aquelles  cruéis  incubos,  de  modo  que  não 
podia  mover-se,  nem  ao  menos  levantar-se  do  leito,  e  elja  própria  diz :  «^on 
est  in  me  inembrum,  quod  non  sit  percussum  tortura,  et  panalum  a  dcemoni- 
hiís  et  semper  sum  infirma,  et  semper  estupefacta  et  plena  doloribus  in  om,ni- 
hux  meinbris  méis.» 

iVão  obstante  isto,  os  incubos  não  conseguiam  os  seus  desejos,  apesar  de 
não  cessarem  de  a  atormentar. 

Segundo  os  demonoiogos  mais'bem  informados,  um  demónio  incubo  tomava 
,a  figura  de  um  homiinculo  negro  e  cabelludo,  mas  tinha  sempre  o  cuidado  de 
conservar  certa  cuusa  da  natureza  dos  gigantes,  como  um  gl<irioso  attributo  da 
sua  origem  paterna.  Nos  interrogatórios  de  um  grande  numero  de  processos  de 
teiliceria  encontra-se  a  prova  d'estas  enormidades,  que  não  existiam  por  certn 
a  nào  ser  na  depravada  imaginação  dos  pacientes. 

Kste  coramercio  absnrdf)  tornava-se  ás  vezes  duradouro,  e  a.  desgraçada 
qu<'  o  solTria  sem  vontade,  ou  que  se  habituava  a  elle  como  uma  questão  de 
libertinagem,  permanecia  assim  em  poder  do  demónio  annos  inteiros.  Cilam-sc 
numerosas  possessas  que  amavam  eOectivamente  o  diabo  e  lhe  correspondiam, 
•loão  Wier  conta  que  no  seu  tempo  umajoven  religiosa,  chamada  dertrudes,  de 
qualorze  annos  de  edade,  dormia  todas  as  noites  com"  Satanaz,  e  que  o  prín- 
cipe das  trevas  tanto  se  fizera  amar  d'aquella  menina,  que  ella  lhe  escrevia  nos 
termos  mais  ternos  e  apaixonados.  N'uma  syndicancia  que  se  verificou  um  dia 
na  abbadia  de  iNazareth,  perto  de  Colónia,  onde  esta  religiosa  havia  introdu- 
zido o  seu  infernal  ainante,  descobriu-se  na  sua  cella,  a  io  de  março  de  156o, 
uma  carta  de  amor  dirigida  a  Satanaz  e  cheia  de  pormenores  horríveis  acerca 
das  suas  noites  libidinosas. 

De  resto,  os  auctores  nào  estão  de  accordo  a  respeito  das  predilecções  li- 
cenciosas que  se  atlribuiam  aos  incubos,  e  a  controvérsia  demonologa  sobre 
este  ponto  tomou  por  vezes  grande  vulto.  O  celebre  Lancre  assegura  que  os  de- 
mónios não  se  niettem  com  as  donzellas;  Martin  dei  Rio  allirma  o  contrario  : 
Bodin  sustenta  que  os  demónios  tèem  horror  á  sodomia  e  á  bestialidade :  Prie- 
rías  considera-os  como  inventores  d'estas  infames  aberrações. 

Esta  divergência  de  opinião  a  respeito  do  grau  de  preversidade,  que  se 
atlribuia  ao  espirito  maligno,  prova  unicamente  mais  ou  menos  depravação  vn- 
enlre  os  casuislas  que  se  occupavam  de  questões  tão  delicadas. 

Não  procuraremos  explicar  a  espécie  de  impossibilidade  (|ue  se  oppunha 
ao  commercio  de  um  demónio  com  uma  donzella. 

Lancre,  no  seu  Tableau  de  Vinconstance  des  mantais  anges  et  démons, 
refere  que  uma  donzelloua  de  edade  avançada  lhe  contara  «que  o  diabo  não  faz 
ajuntamento  com  as  donzellas,  porque  não  pôde  commeller  com  ellas  adultério, 
por  isso  espera  que  se  cazcm.» 

Eis  uni  i'\tranbo  riM|nihl(' de  malícia  da  parte  do  diabo,  pois  julgava  que 


DA    PROSTITUIÇÃO  289 

não  era  ainda  suHiciLMile  peccado  violar  uma  dunzclla  c  esperava  a  opporluni- 
dade  do  adultério.  Ainda  assim,  n'outras  passagens  do  seu  livro,  Lanerc  da- 
nos a  entender  que  o  demónio  tinha  mais  compaixão  da  fraqueza  das  donzellas 
do  que  da  sua  iiinocencia. 

«Se  não  receiasse  oflender  a  vossa  imaginarão,  diz  o  abbade  Bordelon,  na 
curiosa  Histoire  des  imaginations,  de  M.  Oullle,  reterir-vos-hia  aqui  o  que  os 
demonograplios  contam  a  respeito  das  dores  que  solTriam  as  mulheres,  ([uando 
tinham  commcrcio  com  os  demónios,  e  o  motivo  porque  sollriam  estas  dores.» 

No  emianto,  parece  demonstrado  pelas  revela(,'ões  de  um  grande  nUmero 
de  feiticeiras  e  possessas,  que  diziam  ter  copula  carnal  com  o  tentador  desde  a 
edade  de  dez  annos,  que  elle  nem  sempre  esperava  que  as  suas  escolhidas  es- 
tivessem aptas  para  o  matrimonio  para  as  possuir.  Os  demonogra(  hos  sem  entra- 
rem em  pormenores  especiaes  a  respeito  da  deslloração  das  donzellas  por  obra 
dos  incubos,  citam  muitos  casos  em  que  as  virgens  conheceram  o  diabo  antes 
da  puberdade. 

Deve  notar-se  todavia  que  a  maior  parte  d'estas  desgra(,'adas  eram  filhas 
de  feiticeiras  consagradas  ao  demónio  e  ás  suas  obras,  desde  o  seu  nascimento, 
.íoanna  Herviller,  que  foi  condemnada  á  fogueira,  como  o  tinha  sido  sua  mãe, 
por  seotenç,'a  do  parlamento  de  Paris,  confessou  que  a  auctora  dos  seus  dias  a 
tinha  apresentado  ao  diabo  «na  figura  de  um  homem  alto  e  negro,  vestido 
também  de  negro,  ealvado  de  botas  e  esporas,  que  trazia  espada  e  linha  um 
cavallo  cá  porta.»  .loanna  tinha  então  doze  annos,  e  desde  o  dia  d'a(|uella  apre- 
sentavão,  o  diabo  «tinha  cohabitado  com  ella  do  mesmo  modo  que  os  homens 
com  as  mulheres,  exceptuando  que  o  sémen  era  frio.  Isto  continuou  por  muito 
tempo,  cada  oito  ou  quinze  dias,  ainda  mesmo  quando  estava  deitada  com  seu 
marido,  que  não  percebia  cousa  alguma.» 

Dois  ou  três  factos  do  mesmo  género,  citados  também  por  Bodin,  indi- 
cam que  certos  incubos,  mais  espertos  e  depravados  que  os  outros,  mostravam 
grande  empenho  em  colher  as  primícias  da  virgindade.  Em  lolo,  a  abbadessa 
de  um  mosteiro  de  Hespanha,  Magdalena  de  la  (^ruz,  foi  deitar-se  aos  pés  do 
papa  Paulo  iii,  pedindo-lbe  a  absolvição  pelo  facto  de  se  ter  sacrificado  desde 
a  edade  de  doze  annos  a  ura  espirito  maligno,  em  figura  de  um  woii.ro  prelo, 
continuando  n'este  execravel  commercio  por  espaço  de  trinta  annos. 

«Sou  de  opinião,  accrescenta  Bodin,  que  Magdalena  de  la  Cruz  fora  con- 
sagrada a  Satanaz  pelos  seus  próprios  pães  desde  o  ventre  de  sua  mãe,  por  isso 
que  confessou  que  aos  seis  annos,  que  é  a  edade  do  conheciuíento  nas  meni- 
nas, Satanaz  lhe  apparecera,  e  que  a  seduzira  aos  doze,  que  é  a  edade  da  pu- 
berdade nas  mulheres.» 

Outra  Jovcn  hespanhola,  que  fora  desflorada  pelo  demónio  na  edade  de 
dezoito  annos,  não  quiz  arrepender-se  do  que  havia  feito,  e  foi  queimada  n'um 
auto  de  fé. 

Havia  duas  espécies  de  incubos,  implicitamente  reconhecidos  como  laes, 
os  frios  e  os  quentes. 

António  de  Torquemada  explica  de  uma  maneira  bem  singular  a_inva- 
são  de  certos  diabos  frios  no  corpo  do  homem: 

BiSTOBiA  DA  Prostituição.  Tomo  ii— Folha  37. 


290  ■  HISTORIA 

«Ainda  <|U('  os  diabos  st\jani  inimigos  dos  liomens,  diz  cllc  no  seu  llexa- 
iiicron,  cnlruin  nos  seus  eorpos,  não  laiit(j  pela  vontade  de  lhes  fazerem  damno, 
como  peio  desejo  de  um  eaior  vivificante;  porque  estes  diabos  são  os  que  ha^ 
bitam  em  logares  profundissimos,  seeeos  e  frios,  e  porisso  desejam  os  sítios 
húmidos  e  quentes.» 

Seja  como  fòr,  quando  um  diaho  entrava  no  corpo  humano,  e  alli  an- 
dava às  voltas,  revelava  a  sua  presença  pelo  excessivo  calor  que  causava  em 
todas  as  partes  que  estavam  em  contacto  com  elle.  Assim  Santa  Angela  de  Fo- 
ligno,  que  tinha  de  precaver-se  sem  cessar  contra  as  sollicitações  do  diabo, 
sentia  á  sua  approximação  um  tal  togo  no  órgão  sexual,  que  se  via  forçada  a 
applicar-lbe  um  ferro  candente  para  extinguir  assim  o  incêndio  que  n'clle  se 
desenvolvia  sob  a  influeticia  da  lubricidade  infernal. 

Apesar  do  fogo  interno  ou  externo,  que  os  incubos  quentes  traziam  com- 
sigo  na  cohabitação  nocturna,  o  seu  principio  algido  fazia-se  sempre  sentir  de 
algum  modo  durante  o  próprio  acto  da  obsessão.  Depois  de  ter  fallado  do  sen- 
timento de  frio  e  de  honor  (jue  os  possessos  do  demónio  sotTriam  no  meio  dos 
seus  espantosos  transportes,  Bodin  diz  que  «taes  copulas  não  são  illusões  nem 
enfermidndes}^,  e  atlirma  que  não  dilTcrem  das  relações  sexuaes  ordinárias  senão 
pela  frialdade  do  sémen. 

A  este  respeito  dá  um  extracto  dos  interrogatórios  feitos,  perante  Adriano 
de  Fer,  magistrado  de  Laon,  ás  feiticeiras  de  Longny,  que  foram  condemnadas 
á  fogueira  por  terem  tido  copula  com  os  incubos. 

Margarida  Bremon,  mulher  de  Noel  de  Lavaret,  confessou  ter  sido  con- 
duzida por  sua  mãe  certa  noite  a  um  campo,  em  que  se  reuniam  as  feiticeiras: 

«Havia  n'aquelle  sitio,  diz  ella  textualmente,  seis  diabos  em  forma  hu- 
mana, mas  verdadeiramente  horríveis. . . .  Acabada  a  dança,  os  diabos  atira- 
ram-se  ás  feiticeiras  e  tiveram  copula  com  ellas.  Um  d'elles,  com  (|uem  ella 
dançara,  agarrou-a  e  beijou-a  duas  vezes.  Em  seguida  cohabitou  com  ella  por 
espaço  de  meia  hora,  mas  o  seu  sémen  era  frio.» 

.loanna  Guillemin  «reporta-se  ás  palavras  de  Margarida,  e  accrescenta 
que  estiveram  juntos,  ella  e  um  demónio,  mais  de  meia  hora,  e  que  o  sémen 
diabólico  era  como  o  gelo».  (Drmunonianie  des  .sorcière.s.  lih.  ii,  cap.  7). 

.loão  Bodin  nota  uma  circumslancia  completan)ente  análoga  no  processo 
da  feiticeira  de  Biévie,  que  foi  instaurado  e  julgado  pela  justiça  do  senhor  de 
Boue,  bailio  de  Vermandois.  Esta  feiticeira  confessou  que  Satanaz,  a  quem 
chamava  seu  companheiro,  cohabitava  com  ella  ordinariamente,  c  (jue  o  seu 
sémen  era  muito  frio. 

Os  historiadores  da  feiticeria  e  os  jurisconsultos  não  .se  limitavam  a  re- 
gistrar estas  extranhas  |)arlicularidades.  O  seu  íim  principal  era  procurar  a  causa 
delias,  e  julgaram  tel-a  eiicontra<l(j,  cslribando-sc  na  aucloridade  de  S.  Thomaz 
de  A(|uino. 

«l'ns,  diz  o  ingénuo  Bodin,  opinam  (|ue  os  demónios /ii//í/n'(7//(>,s-,  ou  suc- 
cubos  recebeni  o  sémen  dos  homens  c  se  servem  d'elle  com  as  mulheres,  como 
demónios  eiihnaltux,  ou  incubos,  como  diz  S  Thomaz  de  Aquino,  cousa  que 
parece  incrivel.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  291 

O  mesmo  aucfor,  (|ue  de  eoiisa  alfjimia  se  admira,  nos  mais  sinistros 
arcanos  da  demonomania,  adia  a  explicação  dVste  plicnomeno  n'um  versículo 
da  Bíblia,  em  presença  de  qual  os  commentadores  ficaram  mudos  e  confundidos. 
Diz  elle: 

«Talvez  a  passagem  da  lei  de  Deus,  que  diz:  Maldito  xejn  o  que  der  o 
seu  seineii  a  Molnrli,  se  possa  entender  a  respeito  d'esles.» 

Não  era  este,  porém,  o  único  caracter  distinctivo  da  possessão  diabólica: 
o  cheiro  pestilencial  que  o  demónio  e\bala\a  de  todos  os  seus  membros  com- 
municava-se  quasi  immediatamente  aos  bomens  e  ás  mulheres  que  visitava. 
I)'aqui  a  origem  de  locuções  proverbiacs,  que  ainda  hoje  se  usam:  Cheirar  como 
o  diabo;  apestar  coí/ío  o  demónio,  etc.  Os  possessos,  que  tinham  tido  copula 
com  o  tentador,  apestavam  tudo  em  torno  de  si,  e  reconheciam-se  especial- 
mente pelo  hálito  insupportavel. 

Diz  o  ingénuo  Bodin,  rcferindo-sc  a  Cardan  : 

«Os  cspiritos  malignos  são  íVtidos  c"  d(i  mesmo  niodd  se  consideram  os 
logares  por  elles  frequentados.  (>reio  que  vem  d'ai|ui  o  lerem  i>s  antigos  cha- 
mado ás  feiticeiras  (atenies,  e  os  gascões  felilleros,  pelo  seu  fétido  repugnan- 
tíssimo, que  procede,  segundo  creio,  da  copula  com  o  diabo.» 

Todos  os  demonographos  concordatn  na  allirmação  d'esle  horrível  fétido, 
que  ordinariamente  annunciava  a  passagem  do  diabo,  c  sabia  da  bocca  dos  pos- 
.sessos. 

«Pódc  allirmar-se,  accrescenta,  que  as  mulheres,  que  de  si  próprias  tèem 
o  hálito  muito  mais  doce  c  agradável  que  os  bomens,  em  consequência  d'esta 
copula  diabólica  se  tornam  tristes,  feias,  horrorosas  e  fétidas.» 

Não  é  tudo  ainda:  o  abominável  commercio  dos  incubos  produzia  ás  ve- 
zes fructos  monstruosos,  e  o  demónio  tinha  um  prazer  maligno  em  introduzir 
assim  a  sua  progénie  na  raça  humana.  n'este  modo  se  explicavam  todas  as 
aberrações  da  natureza  nas  obras  dar  geração.  Os  monstros  tinham  então  a  sua 
razão  de  ser. 

Spranger  escreve  «que  os  allemães,  tendo  mais  experiência  em  feitícerias, 
por  isso  que  as  tiveram  desde  tempos  immemoriaes,  e  em  maior  numero  que 
nos  outros  paizes,  são  de  opinião  que  d'essas  copulas  sabem  ás  vezes  filhos, 
que  elles  chamam  Wechsel-Kind.  Estas  crianças  são  muito  mais  pesadas  que 
as  outras,  estão  sempre  doentes,  e  seriam  capazes  da  csgolarem  três  amas  de 
leite- sem  saciarem  a  sua  fome  diabólica.»  ( Démonologie  des  sorciéres,  lih.  ii, 
ca|i.  7.) 

Martinho  Lutbero,  nos  seus  Colloquios.  reconhecia  a  verdade  dVste  fa- 
do, tanto  mais  insuspeitamente,  que  elle  próprio  era  arguido  de  ser  um  d'estes 
filhos  do  diabo,  a  quem  as  camadas  populares  da  liba  de  França  chamavam 
rhampis,  como  quem  diz,  achados,  ou  gerados  no  campo. 

No  século  XIII,  um  bispo  de  Troves,  chamado  (íuichart,  foi  accusado  tam- 
bém de  ser  filho  de  uni  incubo,  chamado  1'enim.  o  qual.  segundo  diziam,  pn- 
zcra  lodos  os  sciis  d<'ni()nicos  as  serviço  do  prelado,  seu  amado  lillio.  \  .  .\iiiir. 
Mnnoires  de  I' .[nidriiiie  des  hif<rrlplioiis.   I.  vi,  p.  (iOIÍ.) 

(ts  inctibds  linbani,   portanto,  a  aptidão  de  crear  filhos  bastante  fortes  e 


292  KISTORIA 

hábeis  para  alcaiii^^arem  no  mundo  unia  elevada  posição.  Ordinariamente,  po- 
rém, estas  vergonteas  infernaes  eram  apenas  umas  espantosas  parodias  da 
humanidade.  Rodin  falia  de  um  nionstro  desta  espécie,  nascido  em  1365  na 
aldeia  de  Selicmir,  |)crlo  de  IJresiau,  e  que  livera  por  pães  uma  feiticeira  e 
Satanaz : 

«Era  um  monstro  horrível,  diz  elle,  sem  cabeça  nem  pés,  com  a  bocca 
no  hombro  esquerdo,  ciir  de  figado,  que  gritava  com  clamor  espantoso  quando 
o  lavavam.» 

De  resto,  Bodin  apresenta  varias  opiniões  acerca  dos  resultados  da  pros- 
tituição diabólica. 

«Outras  feiticeiras,  diz  elle,  parem  diabos  á  maneira  de  crianças,  que 
para  logo  cohabilani  com  as  suas  amas,  cgualmente  feiticeiras,  sem  que  (Fahi 
a  pouco  se  saiba  o  que  foi  feilo  d'clles.  A  respeito  d'esta  copula  de  diabos, 
Santo  Agostinho,  S.  João  Chysoslhomo  e  S.  (Iregorio  ÍNazianzeno  sustentam, 
contra  Laclancio  e  Josephus,  que  é  infecunda:  e  que,  se  o  não  c,  mais  facil- 
mente produz  um  demónio  que  um  homem.» 

O  vulgo,  porém,  não  duvidava  que  o  demónio  tivesse  a  faculdade  de  se 
reproduzir  sob  a  forma  humana,  e  considerava  succubos  todos  estes  filhos  do 
inferno.  i\o  emtanto,  pôde  concluir-se  (|ue  a  maior  parle  das  obras  do  incu- 
bismo  eram  estéreis. 

"O  homem  feiticeiro  que  tem  copula  com  o  diabo,  como  com  uma  mulher, 
diz  líodin,  não  é  incubo  ou  ephiidlln,  é  hijphialto  uu  succubo.» 

A  este  respeito  conta  muilas  historias  de  succubos  sob  a  responsabili- 
dade de  Spranger,  de  Cardan  e  de  Pico  de  Mirandola.  Spranger  refere  que  um 
feiticeiro  allemão  cohabitava  assim  diante  de  sua  mulher  c  de  seus  filhos,  que 
o  viam  no  leito  sem  verem  a  mulher  succuba. 

fico  de  Mirandola  conheceu  uni  sacerdote  feiticeiro,  chamado  Benito 
Berna,  que  na  cdadc  de  oitenta  annos  declarou  ter  cobabilado  por  mais  de  qua- 
renta vezes  com  um  succubo  disfarçado  de  mullier,  que  o  acompanhava  sem 
que  ninguém  desse  por  elle,  e  que  se  chamava  Hermiona. 

Cardan  cila  o  caso  de  um  outro  sacerdote  de  noventa  annos,  que  tinha 
cobabilado  por  espaço  de  mais  de  cincoenta  com-  um  demónio  em  forma  de 
malltfr.  É  para  noiar-se  um  facto  curioso:  os  inciibos  diiigiam-se  de  ordinário 
ás  mulheres  mais  bellas  e  jovens,  assim  como  os  succubos  aos  homens  mais 
bonitos  e  bem  proporcionados. 

Ouanto  aos  feiticeiros  e  feiticeiras,  que  iam  procurar  nos  seus  conciliá- 
bulos iioclurnos  os  detestáveis  prazeres  que  o  diabo  jamais  lhes  recusava, 
iraquella  monslruosa  prmniscuidade  de  sexos  e  de  edades,  eram  quasi  sempre 
feios,  velhos  e  repugnantes.  I'ódc,  poi'lanlo,  considerar-se  o  incubismo  como 
uma  espécie  de  iniciação  na  feiticeria,  que  desprezava  complclamente  o  pudor 
e  levava  a  libertinagem  ale  aos  ullimos  limilcs  do  possível.  i'or  via  de  regra, 
o  incubo  não  cnconlrava  complacência  alguma  na  pessoa  que  desejava  e  pre- 
tendia: era  apenas  o  preludio  do  pcccado.  O  feiticeiro,  pelo  conlrario,  pre- 
verlido  c  dado  de  li;i  nuiilo  ao  diabo,  dci\ava-se  arrastar  á  perdição  e  vivia 
cxclusivamenlc  ua  pr;itica  das  obias  das  Irevas. 


DA    PROSTITUIÇÃO  293 

E'  conveniente,  portanto,  estabelecer  utna  distinc(,'ão  muito  significativa 
entre  o  incuijismo  e  a  feificeria,  dizendo  que  esta  era  a  |)rostitui(,'ão  das  iiui- 
llieres  veliias,  e  aquelle  a  da  juventude. 

Apesar  de  tantos  factos,  de  tantas  revelações  e  de  tantos  exemplos  me- 
moráveis, certos  demonograplios  negaram  a  existência  dos  incubos  e  succubos. 
O  sábio  astrólogo  Aggripa  e  o  celebre  medico  Wicr,  attribuem  á  imaginação  os 
principaes  malefícios  d'aquelles  demónios  nocturnos.  «As  mulheres  são  dotadas 
de  grande  imaginação,  e  julgam  fazer  o  que  não  fazem»,  diz  Wier.  Os  médi- 
cos mais  illustrados  do  século  xvii  eram  já  d'este  parecer,  e  não  obstante, 
n'este  mesmo  século,  em  que  ainda  se  queimavam  feiticeiras,  que  confessavam 
ter  tido  copula  com  o  diabo,  discutia-se  nas  escliolas  e  academias  a  tbeoria  dos 
incubos  e  succubos. 

A  ultima  vez  que  esta  singular  theoria  se  debateu  em  França,  sob  o  du- 
plo ponto  de  vista  religioso  e  scientifico,  foi  nas  conferencias  do  celebre /?i//'?aií 
il'Ádresse,  que  o  medico  Tbeoplirasto  Renaudot  havia  estabelecido  em  Paris, 
exclusivamente  para  zombar  ao  mesmo  tempo  da  Faculdade  de  medicina  e  da 
Academia  franceza.  Estas  conferencias  que  se  celebravam  uma  ou  duas  vezes 
por  semana  no  salão  do  Ihireau,  sito  na  rua  da  Calanãrf,  na  cifi',  attrahiam 
ura  numeroso  auditório,  curioso  de  ouvir  os  oradores  que  tomavam  parte  na  dis- 
cussão. 

Tractavam-se  alli  as  questões  mais  espinhosas,  e  Theophrasto  Renaudot 
dirigia  os  debates  com  uma  seriedade  imperturbável.  A  discussão  sabia  frequen- 
temente dos  limites  do  que  n'esse  tempo  se  chamava  honestidade,  e  agora  cha- 
mamos decoro,  ou  decência,  mas  como  todos  estavam  ávidos  de  saber, ninguém 
via  nas  opiniões  dos  oradores  nem  um  átomo  de  malicia  ou  zombaria. 

>'a  conferencia  128,  que  se  realisou  na  segunda-leira,  9  de  fevereiro  de 
1637,  um  curioso  da  natureza,  como  ao  tempo  appellidavam  os  aíTeiçoados  da 
physica  e  das  sciencias  naturaes,  apresentou  a  seguinte  these  á  discussão : 

Dos  incubos  e  succubos:  poderão  os  demónios  procrear? 

O  assumpto  não  era  novo;  era,  coratudo  singular  e  de  sensação. 

Inscreveram-se  immediatamente  quatro  oradores. 

O  primeiro  a  tomar  a  palavra  foi  um  medico  pouco  favorável  ao  sys- 
tema  dos  demónios  incubos  e  succubos.  (Considerou  este  facto  como  effeito  de 
uma  enfermidade  chamada  pelos  gregos  ephijallos,  e  pelo  vulgo  pesndHlo,  e  de- 
tiniu-a — uma  diíficuldade  invencível  de  respiração,  voz  e  movimento,  com 
oppressão  do  corpo,  sentindo-se  por  sonhos  um  peso  sobre  o  estômago.  Se- 
gundo elle,  a  causa  d'esta  enfermidade  é  um  vapor  grosseiro,  que  occupa  prin- 
cipalmente a  parte  posterior  do  cérebro  e  impede  a  sabida  dos  espíritos  ani- 
niaes,  destinados  ao  movimento  das  partes. 

Accrescenta  que  o  vulgo  attribue  estes  edVilos  e  perturbações  ao  espirito 
maligno,  de  muito  melhor  vontade  do  que  á  malignidade  de  um  vapor  ou  de 
qualquer  humor  grosseiro,  ou  mucoso,  que  faz  oppressão  n'aquelle  ventrículo, 
cuja  frialdade  e  debilidade,  produzidas  pela  falta  de  espíritos,  são  as  causas 
mais  manifestas.  Conclue  em  consequência  d  isto  por  dizer,  ([ue  este  estado 
mórbido,  nu  qual  nenhuma  iniluencia  tem  o  diabo,  não  podia  produzir  a  con- 


394  HISTORIA 

cep^-ão,  «que  sendo  um  eíTeito  de  faculdade  nalural,  e  estado  da  alma  vegetativa, 
não  podia  convir  ao  demónio,  que  é  um  puro  espirito.» 

Esta  tlieoria  da  geração  devia  produzir  uma  viva  curiosidade  na  assem- 
biéa,  que  nem  sequer  suspeitava  as  faculdades  da  alma  vegetativa;  o  segundo 
orador,  porém,  que  era  um  sábio  empanturrado  na  leitura  dos  clássicos  gregos 
e  latinos,  tomou  a  defeza  dos  demónios,  c  quiz  provar  a  realidade  das  suas  co- 
pulas com  creaturas  humanas,  factos  que  não  podiam  negar-se  sem  desmentir 
uma  infinidade  de  pessoas  de  todas  as  edadcs,  sexos  e  condições  a  quem  ha- 
viam succedido. 

Em  seguida,  cita  muitos  outros  personagens  illustres  da  antiguidade  e 
da  Edade-Média,  que  foram  procreados  pelos  deuses  falsos  ou  pelos  demónios. 
«São  verdadeiros  incubos,  diz  elle,  os  faunos,  os  satyros,  e  o  principal  d'elies, 
faii,  chefe  dos  incubos,  chamado  pelos  hebreus  Haza,  assim  como  ao  chefe 
dos  succuhos  chamavam  Ijíith.  Ha  ainda  os  Nephesolienses,  que  os  turcos  tèein 
por  lilhos  do  demónio:  e  pode  succeder  que  sejam  por  dois  motivos,  ou  por- 
que os  demónios  se  apoderem  das  mulheres  e  transportem  para  ellas  sémen 
extranlio,  ou  porque,  e  é  o  mais  provável,  possam  fazer  sémen  próprio,  porque 
tudo  quanto  é  natural  pode  ser  feito  pelos  demónios.  E  mesmo  que  não  podes- 
sem  fazer  seiíifii  jiroprio,  nem  por  isso  deve  concluir-sc  que  não  esteja  nos  seus 
recursos  produzir  uma  creatura  perfeita.» 

Havia  na  assembléa  grande  numero  de  damas,  que  não  perdiam  uma  pa- 
lavra d 'esta  discussão. 

O  terceiro  orador  reconheceu  como  facto  incontestável  o  commercio  dos 
incubos  e  succubós  com  as  creaturas  humanas,  mas  era  de  opinião  que  estes 
espiritos  malignos  não  podiam  procrear,  e  explicava  assim  a  sua  idéa: 

«Pelo  que  respeita  ao  succubo,  direi  que  é  bem  claro  não  poder  de  forma 
alguma  procrear,  por  isso  que  não  tem  logar  conveniente  para  receber  o  .sé- 
men, e  falta-lhe  o  sangue  para  alimentar  o  feto  durante  os  nove  mezes  da  ges- 
tação.» 

A  respeito  do  incubo,  não  cortava  tão  peremptoriamente  a  questão.  Recor- 
dava as  três  condições  principaes  que  requer  a  geração,  a  saber:  «a  diversi- 
dade do  sexo,  o  ajuntamento  do  macho  e  da  fêmea  e  a  eílusão  de  alguma  ma- 
téria, que  contenha  em  si  a  virtude  procreadOra.»  T.oncorda  que  o  diabo  pode 
em  caso  de  necessidade  dispor  das  duas  primeiras  condições,  mas  nunca  da 
ultima,  do  tal  .senien  |)ropno  e  conveniente,  dotado  de  espíritos  e  de  calor  vi- 
tal, sem  o  que,  é  iíifecundo  e  estéril;  porque  o  diabo  não  tem  scnwn,  que  se 
produz  n'um  corpo  actuainícnte  vivo,  como  não  é  o  do  tentador.  Quanto  a  tra- 
zer doutra  parte  o  sémen,  isso  não  deve  admittir-se  por  falta  de  espiritos,  que 
não  podem  conservar-.se,  a  não  sci'  |ior  uma  irradiação  que  se  faz  das  parles 
nos  vasos  cspcrniaticos. 

O  (|uarlo  orador,  hniiiein  douto  c  prudente,  veio  muito  a  pi'oposito  acal- 
mar a  anciedade  do  auditório,  declarando  «(|uo  não  ha  nada  de  .sobrenatural 
no  incubismo.  (|ue  não  c  mais  do  (|uc  um  s\mptoma  da  faculdade  animal, 
acompanhado  de  três  ciiHiumstancias,  a  saber:  a  respiração  impedida,  parai v- 
sação  do    movimento  e  uma  imaginação  volupluo.sa.»  Reiíabililou  o  pesadcllo, 


DA    PROSTITUIÇÃO 


295 


cujas  causas  e  elkilos  explicou,  e  terminou  a  discussão  por  dar  um  conselho 
aos  circumslanles,  que  era  absterem-se  de  dormir  de  barriga  para  o  ar  c  dos 
perigos  de  uma  imagiiia(,-ào  voluptuosa,  «elleito  da  abundância  ou  qualidade  do 
sémen,  o  ([ual  enviando  a  sua  espécie  á  pbanlasia  forma  um  objecto  agradá- 
vel e  remove  a  potencia  motriz,  e  esta  a  faculdade  expellifiva  dos  vasos  es- 
permaticos.» 

Todos  se  retiraram  satisfeitos  d'estas  doutas  investigações  no  mundo  en- 
cantado, ás  quaes  o  douto  Becker  não  havia  ainda  levado  á  luz  da  duvida  e 
da  razão. 

Depois  de  Theopbrasto  Renaudot  e  até  aos  nossos  dias,  a  theologia  e  a 
sciencia  tem-se  occupado  ainda  da  questão  de  incubos  c  succubos,  tão  arraiga- 
dos na  credulidade  popular,  que  era  impossível  destruil-os  completamente.  As 
proezas  d'estes  demónios  subalternos  são  ainda  hoje  pontos  de  fé  entre  os  ha- 
bitantes do  campo.  Voltaire  zombou  d'esta  crença  com  o  seu  inllexivcl  bom 
senso,  mas  pouco  faltou  para  que  não  o  accusassem  de  desacatar  o  diabo,  dis- 
putando-lhe  as  suas  antigas  prerogativas. 

Antes  de  Voltaire,  um  medico  ordinário  do  rei  de  França,  de  Sainf-André, 
descobriu  a  verdadeira  causa  d'esta  superstição,  de  que  tracfou  nas  suas  Cartai 
sobre  a  magia,  malefícios  e  feiticeiros. 

«O  incubo,  diz  elle,  é  ordinariamente  uma  quimera,  que  não  lem  outro  fun- 
damento senão  um  sonho,  uma  imaginação  enferma,  e  na  maior  parle  dos  casos 
a  imaginação  das  mulheres.. .  .  O  artificio  não  lem  parte  menos  importante  na 
historia  dos  incubos.  Uma  mulher,  uma  rapariga,  uma  beata  libertina,  que 
apparenta  virtudes  para  occultar  vicios,  faz  passar  o  seu  amante  por  um  incubo 
que  a  tornou  possessa.  Ha  espíritos  succubos,  e  incubos  que  não  teem  mais  ra- 
zão de  ser  que  o  sonho  ou  os  delírios  da  imaginação.  Um  homem  ouve  fallar 
cm  succubos,  e  d'aqui  imagina  ver  e  gozar  em  sonhos  as  mulheres  mais  bellas 
e  voluptuosas..  .  .» 

De  Saint-André  resume  d'este  modo  e  mui  sensatamente  as  circumstan- 
cias  em  que  se  podia  produzir  a  superstição  dos  incubos  e  dos  succubos,  e 
não  podemos  deixar  de  louvar  a  sua  sensatez,  n'uma  épocha  cm  que  os  casuis- 
tas  e  os  doutores  da  Sorbonna  não  vacillavam  em  reconhecer  a  potencia  geradora 
do  demónio.  Assim,  por  exemplo,  o  P.''  (^ostadau,  que  era  um  jcsuita  muito 
douto,  escrevia  n'aquella  mesma  épocha,  no  seu  celehve  Traité  des  signes,  o 
seguinte: 

«O  caso  é  muito  singular  e  importante  para  poder  ser  traclado  á  ligeira. .  . 
Não  menos  dillicilmenteo  acreditarianios,  se  não  estivéssemos  convencidos  por 
uma  parte  do  poder  do  demónio,  e  por  outra  não  encontrássemos  uma  infini- 
dade de  cscriptores  de  primeira  ordem,  papas,  theologos  e  philosophos,  (|uc 
sustentaram  e  provaram  a  existência  d'esta  espécie  de  demónios  succubos  c 
incubos.  HaefTectivamente  pessoas  tão  desgraçadas,  que  tiveram  com  elles  com- 
mercio  vergonhoso  e  cxecravel.» 

A  Egreja  e-o  parlamento  livcram  de  fazer  leis  contra  estes  desgraçados, 
que  consideravam  como  cúmplices,  bem  que  fossem  involuntários,  da  prosti- 
liluição  diabólica,  c  só  a  fogueira  era  sulTiciente  para  os  purificar  d'esta  man- 


296  HISTORIA 

cha  horrível,  quando  a  penitencia  não  se  encarregava  de  os  trazer  ao  caminho 
do  perdão.  As  victimas  do  siiccubismo  e  do  incubismo  tinham  motivos  de  in- 
dulgência que  invocar,  apresentando-se  como  taes.  A  jurisprudência  ecclesiastica 
e  civil  mostrava-sc  implacável  com  outra  espécie  de  prostituição  infernal,  a  dos 
feiticeiros  e  feiticeiras,  que  se  consagravam  de  boa  vontade  a  Satanaz,  pres- 
tando-se  a  toda  a  espécie  de  abominações  nos  seus  sabhats,  ou  reuniões  no- 
cturnas. 

Taes  eram  em  França  e  em  toda  a  Europa,  durante  o  século  xvi  e  mesmo 
no  século  xvii,  os  derradeiros  vestígios  da  prostituição  hospitalar  e  da  prosti- 
tuição religiosa. 


CAPITULO   XXVI 


SUMMARIO 


A  |irostituir,ãi>  na  li'iticei'r:i.  — Oiisens  do  snlihat.  —  Via.apns  nocturnas  ric  Diana  o  i]i'  HiTodiadns.  —  Capi- 
tular cíiutra  os  feiticeiros.— Leis  ecciosíasticas.— A  mais  anti;;a  drscripção  do  sahhat  —As  ohras  do  dialio,  segundo 
os  interrogatórios  dos  processos  da  ft-itícei-ia.  — Cliepada  dos  feiticciíos  ao  mhlKit. —  Adoi"ação  do-bode. —Horrorosos 
sacríficios  ao  diabo.  —  O  pec.rado  supcr-contra-vaturnm.  —  A  ronda  do  xnhhat.  —  Diversos  testemunlios  era  seu 
appoio.  —  Pliysiologia  ol)scena  de  Satanaz.  —O  sdhhat  da  Vnuderie  d'Arras.  — O  sahhat  de  Gaulridi.  -Impurezas  ■ 
dos  feiticeiíos  e  leiticeiras.— r.astrarão  magica.  —As  vellias  leiticeiras.  —  Signaes  dialiolicos.-Os  feiticeiros  de  So- 
doHia  —  Snpplicio  dos  sodomitas  no  inferno. — Incestos  do  snlihat.—  Accusação  de  bestialidade.  —  As  serpentes  da 
caverna  de  Norcia.  —  O  cão  das  religiosas  do  r.olonia  e  de  Tolosa. —Consequências  da  demononjauía.  — A  verdade 
sobre  os  actos  ila  prostituiçiio  da  feiticeria.— .lustificaçrio  ria  jurispni  lencia  ila  Edade-Media. 


iMuisiiTUiç.lo  na  Iciliceria  não  era,  como  o  iiicultismo,  iitiia 
conseqiicrii-ia  acciticnlal  da  ob.sessão  diabólica,  senão  o  resnl- 
(ado  ordinário  da  possessão:  era  o  estado  haiiifuai  dos  iioinens 
c  das  nuillieres  consagrados  voluntariamente  ao  demónio,  e  de 
yi  certo  modo  o  sello  do  pacto  abominável  que  os  lifjava  com  o 
poder  internai,  com  aqiielle  que  se  denominava  o  aiietor  do  peecado. 

E'  claro,  pois,  que  a  feitic(M'ia  tinha  dois  caracteres  principaes,  um  dos 
(|uacs  poilia  ser  o  etTeito  e  o  outro  a  causa:  aqui  dava  satisfação  aos  mais  in- 
fames caprichos  da  preversão  humana;  alli  empregava  a  intervenção  dos  maus 
espíritos  nas  obras  sobrenaturaes  c  malditas. 

IVeste  modo,  o  principio  da  feiticeria  cm  todas  as  (!'pochas  consistia  no 
mutuo  accordo  entre  o  homem  e  o  diabo:  o  primeiro,  subincllcndo-sc  corpo  e 
alma  á  dominação  do  segundo:  este  comparlilbamlo  de  certo  modo  com  o  seu 
escravo  o  poder  occullo,  que  o  Ser  Supremo  deixara  a  Satanaz,  ao  prccipital-o 
da  morada  celestial  nas  profundezas  dos  abysmos.  Tal  era  a  recompensa  d"a- 
iiuella  \i)luntaria  escravidão;  tal  era  o  mysterio  da  feiticeria,  que  podia  deliiiir-se 
uma  vergonhosa  prostituição  do  homem,  (|uc  se  vendia  e  entregava  ao  diabo. 
Coniprchendc-se  agora  o  que  seria  na  sua  origem  a  feiticeria,  (jiie  evi- 
dentemente servia  de  pretexto  a  extianhas  aberrações  de  uma  vergonhosa 
promiscuidade,  por  isso  os  antigos  olhavam  com  profundo  desprezo  os  feiti- 
ceiros, cujas  reuniões  secretas  não  eram  mais  do  que  execráveis  conciliábulos 
de  libertinagem. 

Os  legisladores  e  philosophos  da  antiguidade  foram  sempre  unanimes  em 
comlcmnar  e  impor  castigos  rigorosos  aos  magos  e  ás  suas  odiosas  com|)anhei- 

Bl8T0BI\  DA  PBnSTITDIçiio.  ToMO  H— FoLBA  38. 


298  HISTORIA 

ras.  Apesar  d'isso,  puJoinos  apenas  lazer  conjectutas  a  respeito  do  que  se  pas- 
sava tias  suas  reuniucs  iioL-tiirnas,  visto  tião  se  encoutrareiu  nos  poetas  gregos 
c  romanos  senão  liinilailissiiuas  desL^ripções.  S(3  em  Pelronio  e  Apuleyo  se  en- 
eiiiitram  duas  ou  Ires  passagens  que  deixam  suspeitar  o  que  não  dizem.  As 
narraeões,  que  ao  tempo  se  faziam  d"estas  spintrias  magieas  e  danças  volu- 
ptuosas, achavam  então  muitos  incrédulos,  que  não  ll»es  ligavam  importância, 
ou  não  viam  n'ellas  malieia  alguma. 

Horácio  diz  expressamente  em  muitas  passagens  das  suas  odes  e  episto- 
las que  as  velhas  IViliceiras  eoinmeltiain  gi'aiides  indeceneias  á  luz  da  lua,  e  que 
duranlc  a  noite  nos  campos  e  nos  bosques  os  jovens  iam  rcunir-se  aos  choros 
úr  sat\ros  c  nymphas  i  nintiihnrionqiir  leris  cum  ■■iíili/ris  choril. 

,\ão  era  aimla  o  suíiliní  (|a  Edade-Mcdia  com  os  seus  monstruosos  liorro- 
i'cs,  (|uc  parecem  lei-  sido  rcalmcnlc  um  inveiiío  do  demónio,  e  (|ue  tinham 
lodos  os  i'equisilos  para  lazer  crer  no  poder  e  intluencia  do  príncipe  das  trevas., 

O  verdadeiro  salibui  já  existia  nosjjovos  do  Norte,  onde  a  feiticei'ia  ar- 
r.ista\a  a  todos  os  c\ti'avios  e  aherracóes  da  imaginação  mais  depravada.  Aquel- 
les  povos  esla\am  ainda  muilo  próximos  do  estado  primitivo  da  natureza  para 
não  se  di'i\arem  arrastai'  a  eslcs  excessos  pelas  suas  paixoi's  hrutaes,  e  a  su- 
perstição que  instigava  a(|uclla  grosseii-a  sensualidade  enconlrava-os  dóceis  ás 
suas  crenças  c  aberrações. 

Os  imperadores  romanos,  para  manterem  a  sua  anctoridade  nos  paizes 
conquistados,  procuraram  destruir  n'elles  a  magia,  os  seus  adeptos  e  as  suas 
praticas.  A  fiallia,  sobretudo,  estava  infestada  de  feiticeiros,  e  Tibério  não  eon- 
.seguiu  expurgar  esta  província  romana,  senão  fazendo  uma  guerra  implacável 
aos  druidas  e  á  sua  religião. 

Talvez  não  venha  fora  de  proposiio  notar  aqui  que  os  demónios  incuhos 
a  que  se  refere  Santo  Agostinho  e  que  elle  chama  Drusil  (quos  Galli  Dntsios 
imncnpanl)  foram  confundidos  com  os  druidas  pelos  antigos  escriptores;  e  Ho- 
din,  citando  esta  mesma  |)assagein.  reproduzida  nas  Elijinoliniias  de  Izidoro 
de  Sevilha,  accrescenta : 

«Todos  se  tem  enganado  com  a  palavra  Danios,  que  deve  lèr-se  Dnixios. 
como  quem  diz  diabos  dos  bo.siines,  aos  (juaes  os  latinos  chamaram  Sfilranos. 
K'  verosímil  o  (|ue  iliz  Sanio  Agostinho,  a  respeito  de  nossos  pacs  haverem 
chamado  antigamente  a  eslcs  diabos  Dntsios,  para  os  distinguirem  dos  druidas, 
que  viviam  também  nos  bosques. 

A  analogia  de  nome  provinha  mais  laUcz  da  similhança  do  ipie  da  dif- 
ferença  entre  Drusitis  e  nruidas. 

O  cbrislianismo  teve  de  augmentar  ainda  os  rigores  da  perseguição  con- 
Ira  os  cúmplices  da  demonomania.  iNo  tempo  do  imperador  Valente  (3t3l-:$7S) 
começaram  a  ser  iiueimados  os  feiticeiros;  mas  a  feiticeria  e  o  druidismo  ti- 
nham Ião  profundas  raízes  nos  costumes  d<)s  gaulezes,  ijue  nem  depois  de  mui- 
tos stículos  de  sanguinoleiilos  esforços  se  logrou  exiinguil-os  a  fogo  e  a  ferro. 
Iv  claro  (pie  o  {Iruidismo  e  a  feiticeria  encerravam  desde  esse  lempo  nos  seus 
usos,  ou  pelo  menos  nas  suas  cereinonias,  uma  multidão  de  escandalosos  por- 
menores da  pi'o>liluição  hospilalar  e  religiosa. 


IIA    IMIOSTITUH.IÀII  Í99 

Afiezar  (Pisso,  nos  aiictoirs  clirislãos  não  se  (rata  das  assembleias  mi- 
ctiirnas  de  feiticeria  antes  do  século  sexlo,  ou  do  sétimo.  Todos  os  códigos  dos 
povos  l)arbaros,  a  l.i'i  nipiinria.  a  Lfi  Snlica,  a  Lei  dos  liurqQndfís  e  a  Lei 
dos  Mlemães,  comminavam  tão  somente  uma  penalidade  terrive!  contra  os  fei- 
ticeiros,  sem  todavia  (ts  accusarem  do  prostituição  diabólica. 

O  monumento  mais  antiiijo  que  faz  menção  do  snhhnl,  ou  de  uma  junta 
tenebrosa  de  mullierí>s  (|ue  linlia  por  lim  obras  de  magia,  é  uma  capitular, 
cuja  data  não  foi  fixada  de  uma  forma  bem  autbentica,  e  que  talvez  não  seja 
anterior  a  (larlos  Magno.  ( Vcja-se  a  «ollecção  de  líaluze,  Cfipiltdnria  rctiuni, 
fragm.  cap,  13.) 

Esta  capitular  não  subministra  iionnenores  muito  explícitos  a  respeito 
das  viagens  aéreas  que  os  feiticeiros  julgavam  fazer  em  companbia  de  Diana  e 
de  Herodiades,  montados  em  animaes  phantasticos,  que  os  conduziam  prova- 
velmente'a  uma  assembléa  geral  da  feiticeria. 

Eis  a  curiosa  passagem,  (|ue  pai-ece  pertencer  aos  cânones  de  um  conci- 
lio, e  (|ue  frequentes  vezes  foi  truni'ada  e  adulterada: 

«lllnd  Piiiim  ni))i,  csi  omillcndiim  quod  quifdain  sci-lfraitc  nnilicrr.s.  re- 
ifti.  iiDsi  Sitiiiiiiiin  i-on>'crKa',  difiiitiniim  liliisioinhus  fi  iilifníiasmaiilnis  .sedii- 
cliv,  ciriliiiii  ft  iirofilfiiiuin  .v^  miciiiniis  horis  nim  flinna,  dea  fini/oiinnuti, 
iv/  (•///((  Hffoiliiidc  ei  inHiimera  muJíiladine  mulifrinti.  i'iiiiiinri'  super  ijuns- 
ihnn  lii'slliis,  e:  mui  ta  rum  lerroriim  spuiiii  uilemiiestif  nociis  sileulio  jicriruit- 
sire,  ejiisíiiie  jussilius.  reluí  dixiihuv  nhedire  el  rerlis  Doclihiis  iid  ejiis  serri- 
liiim  ecncari.» 

Ilécon beee-.se  claramente  a  partida  das  feiticeiras  para  o  sahbdl ;  mas 
não  assistimos  á  cbegada  d'esta  infernal  comitiva,  nem  sabfemos  o  que  iam  fa- 
zer á  reunião.  E'  licito  suppòr  (|ue  os  animaes  pbanfasticos  em  que  immtavam 
durante  estas  viagens  aéreas  não  eram  senão  os  demónios,  (|ue  mais  tarde  ve- 
remos servir  |)ara  este  mesmo  uso  ás  feiticeiras. 

Não  podemos  duvidar  de  que  fosse  o  snhhnt  esta  reunião  tíi ysteriosa  : 
(|uer  dizer,  uma  reunião  illicita,  clandestina  em  que  se  prestava  culto  ao  diabo 
e  este  culto  devia  ser  erriçado  de  indeeeneias,  infâmias  e  monstruosidades, 
(|ue  foram  sempre  estas  as  praticas  da  feiticeria.  Mas  se  o  facto  existia  já,  fal- 
tava ainda  n'esse  tempo  a  palavra  saMmi.  para  o  significar,  .lulgamos  ('om 
boas  razões  (|ue  esta  palavra  não  é  anterior  ao  século  xii,  o  que  não  impediu 
os  sábios  de  a  dei'ivarem  do  nome  de  Haccbo,  porque  as  bacchanaes  tinbam  al- 
guma relação  com  as  orgias  nocturnas  celebradas  em  bonra  do  demónio,  com 
danças  lúbricas,  festins  opíparos  e  monstruosas  libertinagens. 

E'  evidente  que  esta  douta  etymologia,  apesar  das  relações  que  jKkle  ba- 
ver  entre  stihhal  e  Baccbo,  cabe  jtor  terra  perante  uma  impossibilidade  de  data, 
e  poi'  isso  (levemos  attendcr  síímenle  á  etymologia  mais  natural. 

"O  povo,  (|ue  deu  o  nome  dií  suhhai  i\>  juntas  ou  conciliábulos  dos  fei- 
ticeiros, diz  Calmei,  mo  seu  Traclado  das  apparições  dos  espíritos,  (luiz  appa- 
rentemente  com|)arar  piu'  uma  extiMiiba  irrisão  estas  assembléas  ás  dos  judeus 
e  ait  {|ue  estes  praticavam  nas  suas  suiagogas,  no  dia  de  salijiiido." 

Todos  os  (lemoiiologos,  (|ue  não  querem  pas.sar  por  ignorantes,  occiípa- 


:íOO  historia 

rain-se  em  procurar  nas  antigas  lestas  de  Baccho  a  origem  do  sabhat  dos  de- 
mónios. Assim,  segundo  Lcloyer,  no  seu  livro  dos  Especlros  (Lib.  iv,  c.  3)  os 
iniciados  cantavam  Saboé  nas  bacclianaes,  c  os  feiticeiros  nas  suas  reuniões 
bradavam,  voz  em  grita:  liar!  Sabhat!  Sabhat! 

Mais  provável  é,  porém,  que  os  cbristãos,  não  tendo  menus  liorror  aos 
judeus  (|ue  aos  feiticeiros,  fingissem  confundil-os  na  mesma  reprovação,  attri- 
l)UÍndo-ihes  o  mesmo  culto,  os  mesmos  costumes,  as  mesmas  profanações. 

A  mais  antiga  descripção  do  sabhat  diabólico  temol-a  n'uina  carta  do  papa 
(iregorio  ix,  dirigida  collectivamenle  ao  arcebispo  de  Moguncia,  ao  bispo  de 
Hildcsbeim  e  ao  doutor  (_!onrado,  em  1234,  para  Ibes  denunciar  as  iniciações 
dos  bereges. 

<vQuando  recebem  um  neopbyto,  diz  o  pontífice,  e  quando  elle  entra 
peia  primeira  vez  nas  suas  assembleias,  vè  um  sapo  enorme,  do  tamanbo  de 
um  pato,  ou  maior  ainda.  Uns  beijam-no  na  bocca,  outros  por  dctraz.  Em 
seguida,  o  neopbylo  encontra  um  bomem  pailido,  de  olbos  muito  pretos,  c  tão 
débil  c  cmfermiço  que  não  tem  senão  os  ossos  e  a  pelle.  Beija-o,  e  encontra-o 
frio  como  neve,  e  logo  depois  d'este  beijo  esquece  facilmente  a  lei  catbolica. 
Em  seguida  fazem  um  festim,  depois  do  qual  desce  um  gato  preto,  que  vae  col- 
locar-se  dctraz  de  uma  estatua,  collocada  ordinariamente  no  logar  da  assembleia. 
O  neopbyto  beija  primeiramente  esse  galo  por  dctraz,  depois  o  que  preside  á 
reunião  e  os  oulrus  (]uc  são  dignos  d'isso.  Os  imperfeitos  recebem  somente  o 
beijo  dl)  clicfc  a  ([uem  juram  obediência:  cm  seguida,  apagam  as  luzes  e  eom- 
mettem  toda  a  espécie  de  impureza.  (Historia  ecclesiuslica  úe  Fleurv,  t.  xvii, 
p.  o3.) 

Aqui  temos,  |)ois,  o  subíxu,  (jue  o  século  xvi  nos  descreveu  multas  vezes 
com  tão  minuciosos  pormenores;  mas  esta  assembleia  de  bcrejes-,  ainda  (|uc  si- 
milbante  á  dos  feiticeiros,  inoslra-aos  mais  a  prostituição  na  bercsia  do  i|ue  na 
fciliccria. 

O  .sabhat  propriamente  dito,  remonte  ou  não  á  mais  alta  antiguidade,  não 
foi  bem  conbecido  até  ao  .século  xvi,  quando  a  inquisição  se  occupou  d'elle  a 
serio  n'uma  multidão  de  processos,  em  que  os  pobres  feiticeiros  referiam  com 
certo  orgulbo  as  monstruosas  inaravilluis  de  que  baviam  sido  testemunlias, 
actores  ou  cúmplices.  Os  interrogatórios  d'estes  processos  permittein-nos  nive- 
lar com  a  máxima  exactidão  as  principaes  obras  da  prostituição,  (|ue  tinliam 
por  ibeatro  o  sabhat  dos  feiticeiros. 

A  maior  parte  dos  liistoriadores,  que  referem  eátes  pormenurcs  deplorá- 
veis da  |)i'osliluição  bumana,  eram  dotados  de  uma  fé  inquebrantável,  e  attri- 
buiam  de  boa  mente  ao  diabo  lodos  os  crimes  (|ue  os  seus  crédulos  vassallos 
llic  imputavam.  Depois  de  liaver  reunido  um  ()equeno  numero  d'estes  iiorri- 
veis  testemunlios,  ticamos  convencidos  que,  se  a  imaginação  tinba  uma  inven- 
cível influencia  nas  sensações  dos  dcmonomaniacos,  a  fraude  e  a  astúcia  abu- 
.savam  com  frequência  da  sua  fraqueza  moral,  em  proveito  da  lubricidade  de 
uns  c  cm  prejuízo  do  pudor  dos  outros. 

As  feiticeiras  ([uc  queriam  ir  ao  sablial  começavam  a  prcparar-se  com 
invocações.  Em  seguiila  punbam-se  completamente  nuas,  e  esfregavam  o  corpo 


DA    PROSTITUIÇÃO  liOl 

com  um  i-ei'lo  unguento,  c  á  Imra  mairadn,  fcilo  o  signal  convencionado,  mon- 
lavani  n'uma  vassoura  c  saliiam  pelas  cliainincs  das  suas  casas,  clevando-se 
nos  ares  a  uma  aliara  considerável. 

Ordinariamente  encontravam  nos  orifícios  das  chaminés  uns  diabinhos,  que 
linliain  recebido  a  missão  de  as  conduzir  atravez  do  espaço.  JN'este  caso  as  fei- 
ticeiras, ou  bruxas,  cavalgavam  n'elles,  ou  enl.ão  agarravam-sc-ihe  ao  rabo  ou 
aos  cornos. 

Chegavam  ao  sahbal  com])I(>lamente  nuas  e  reluzindo  coin  a  uniura  magica 
(|ue  as  tornava  invisiveis  c  impalpáveis,  excepto  aos  demónios  e  feiticeiros.  A 
receita  para  compor  o  unguento  destinado  aos  familiares  do  sabbat,  encòntra-sc 
ainda  formulada  nos  livros  de  magia.  Provavelmente  perdeu  toda  a  sua  virtude, 
visto  que  ninguém  faz  uso  d'ella  hoje  em  dia;  n'outros  tempos,  porém,  não 
era  inútil  para  augmenlar  as  forças,  que  cada  ([ual  tinha  de  gastar  n'essas  in- 
fernaes  orgias. 

Untados  com  a  gordura  magica,  feiticeiros  e  feiticeiras  chegavam  comple- 
tamente nús  ao  sabhal,  e  nús  voltavam.  Esta  nudez  absoluta  prova  que  o 
sahbat  era  uma  entrevista  de  abominável  prostituição.  Bodin  refere  muitas  his- 
torias, cuja  responsabilidade  deixamos  á  conta  d'ellc,  em  que  nos  descreve  como 
os  homens  e  as  mulheres  iam  a  estas  entrevistas  nocturnas. 

l'm  pobre  iiomem,  que  vivia  perto  de  Loches  na  Turenna,  notou  que  sua 
mulher  se  ausentava  de  noite,  sob  o  pretexto  de  ir  fazer  a  barrella  a  casa  de 
uma  visinha.  Chegou  a  desconfiar  d'ella,  e  cheio  de  ciúmes  ameacou-a  de 
morte,  se  não  lhe  dissesse  a  verdade.  A  mulher  confessou  que  ia  ao  sahbnt  e 
oITereceu-se  em  prova  do  que  dizia  a  levar  alli  o  marido. 

Elfeciivamente  foram  os  dois,  e  viram-se  logo  em  companhia  de  feiticei- 
i'os  e  demónios;  mas  o  pobre  homem  teve  medo,  e  pcrsignou-se  invocando  i? 
nome  de  Deus.  No  mesmo  instante,  tudo  desappareccu,  até  a  própria  mullier  d(» 
aprendiz  de  feiticeiro,  ([ue  andou  núa  e  erranie  (tclos  campos  até  ao  dia  seguinte. 

Outra  anccdota  idêntica: 

Uma  jovcn  estava  em  Lyão  deitada  com  o  seu  amante,  que  não  podia 
dormir.  A  rapariga  levanta-se  sem  fazer  ruido,  accende  uma  luz,  pega  n'uma 
caixa  de  unguento  e  esfrega  com  ella  todo  o  corpo,  depois  do  que  é  transpor- 
tada. O  galan  levantase,  serve-se  tam!)em  da  mesma  untura,  conforme  vira 
fazer  á  sua  rihalda,  pronuncia  as  mesmas  palavras  magicas  que  lhe  ouvira  e... 
chega  ao  sabbat  quasi  ao  mesmo  tempo  que  a  Joven.  A'  vista  dos  demónios, 
porém,  e  das  suas  horríveis  altitudes,  é  tão  grande  o  seu  (error,  que  encom- 
menda  a  alma  a  Deus. 

«Toda  a  companhia  desappareccu  instantaneamente,  diz  Bodin,  e  o  pobre 
rapaz  íicou  só  e  nú,  voltando  logo  a  Uyão,  onde  accusou  a  sua  ribalila  de  fei- 
ticeira. A  rapariga  confessou  e  foi  condemnada  a  morrer  queimada.» 

O  emprego  do  unguento  magico  para  os  feiticeiros  se  transportarem,  não 
era  sempre  indispensável,  sobretudo  para  os  da  profissão,  ijue  não  precisavam 
mais  do  (|ue  metlcr  entre  as  pernas  nma  vassoura  ou  um  pau  quahiucr  par.i 
voarem  como  uma  Mecha  pelos  ares  ate  ao  logar  da  reunião  diai)olica.  Bodin  as- 
segura que  este  pau  ou  vassuui^a  bastava  ás  feiticeiras  IVancczas,  que  ncllc  ca- 


303  HISTORIA 

valgavam  (It-strainciilt',  sem  [)n'iMsart'ri)  de  uniiiionlos,  tMiit|iiaiilo  iiui-  os  tVili- 
ceiras  italianas  liiihain  que  unlar-.so  <!(is  pés  á  cal»('ç;a  antes  do  montarem  iki 
bode  que  as  i-onduzia  ao  fiahbat. 

Esta  (lillcrenva  de  meios  de  transporte  aéreos,  usados  peios  feifieeiros, 
explica  a  diversidade  dos  trajos  nas  antigas  gravuras  que  representam  os  mys- 
terios  do  stibhai.  Umas  feiticeiras  estão  níias,  e  são  as  que  se  untam:  outras 
estão  vestidas,  e  são  as  que,  como  diz  Lancre,  «vão  ao  sahbai  sem  se  untarem 
de  gordura,  nem  lêem  de  passar  pelos  tui)OS  das  chaminés.» 

A  mesma  distineção  se  nota  entre  os  leiticeiros,  dos  quaes  os  mais  no- 
vos não  levam  fato  algum,  em(|uanto  que  os  mais  velhos  levam  largas  túnicas 
e  capuzes. 

Os  demonologos  não  estão  de  acccordo  acerca  do  que  se  passava  no  sab- 
bat.  pelo  que  se  pode  inferir  que  se  passavam  alli  muitas  cousas,  na  sua  maior 
parte  ridículas,  mas  havendo  algumas  infames  tamlwm.  Depois  de  se  ter  lido  e 
comparado  todas  as  descripçôes  que  nos  restam  do  tahbní.  reconhece-se  que 
esta  horrível  promiscuidade  de  sexos  e  de  edades  não  devia  ter  mais  que  um 
fim,  e  (jue  esta  liherlinagcm  se  realisava  de  quatro  modos:  pela  adoração  do 
hoile,  por  festins  sacrílegos,  por  danças  ohscenas  e  pelo  commercio  impudico 
dos  demónios. 

Estas  (juatro  priricipaes  funcçòes  do  sn.bbal  em  Iodas  as  épocas  e  paízes 
estavam  ilcvidamente  estabelecidas  nos  interrogatórios  e  provas  dos  processos 
sobre  feiliceria. 

IVãí)  se  pôde  dizei'  com  certeza  em  que  consistia  a  adoração  do  bode;  mas 
deve  crér-se  que  as  praticas  sempre  detestáveis  d'esie  crime  variavam  segundo 
os  legares  e  os  lerapos.  Vinha  a  ser  ordinariamente  uma  espécie  de  homena- 
gem, seguida  de  investidura  diabólica,  e  acompanhada  de  tiábuto,  imitando  cm 
tudo  os  usos  do  feudalismo.  O  novo  fcudatario  do  diabo  acccitava-o  por  amo  c 
senhor,  preslava-lhe  juramento  de  fidelidade  e  vassallagem,  olTerecia-lhe  um 
sacrifício  e  recebia  em  troca  os  eslygmas  ou  sellos  do  inferno.  Era  este,  pois, 
o  fundo  da  ceremonia,  que  se  praclicava  de  muitas  maneiras  com  um  prodi- 
gio.so  alarde  de  espantosa  libertinagem. 

O  diabo,  que  presidia  em  toda  a  parle  ao  snlibnl,  ou  pelo  menos  se  fazia 
representar  por  algum  dos  seus  escolhidos,  tomava  ordinariamente  a  figura  de 
um  bode  gigantesco,  branco,  ou  preto,  d'esse  animal  impuro,  que  foi  sempre  o 
svnibrdo  da  lubricidade.  O  bode  diabólico  linha,  porém,  algumas  particularida- 
des características.  Segundo  uns,  tinha  dois  cornos  na  frente,  e  outros  dois 
no  occiput,  ou  então  sómcnle  Ires  cornos  na  cabeça  com  uma  espécie  de  luz 
no  corno  do  meio.  Segundo  oulros,  tinha  em  cima  do  pescoço  uma  cara  de  hn- 
mem  negro.  (Trailif  de  Vinconalance  de.-:  démons.  por  De  í.ancrc,  pag.  Tíí  e  128.) 
O  demónio  tomava  lambem  a  forma  de  alguns  oulros  animaes  não  me- 
nos lúbricos  do  que  o  bode. 

•<\i,  (juando  estive  na  Touiiicllc,  refere  o  bom  lie  l.aiicrc,  alguns  pro- 
cessos em  que  se  dizia  apparecer  o  diabo  no  sulibai,  na  ligura  de  um  grande 
lebrcii  negro.  .N'oulros  ainda,  presidia  cm  ligura  de  iim  grande  boi  de  bion/c' 
deitado  por  leria,  on  como  um  boi  vivo  i|ue  repousa.» 


DA    PROSTITUIÇÃO 


303 


o 


Outras  vezes  S;ilaita/.  ou  Belzehutli  vinlui  rcceluT  a  adoraràn  dos  seus 
siihililos  e  súbditas,  soba  f(>rni;i  de  um  pássaro  iie^ro,  do  taiiiaiibo  de  um  ganso. 

Em  varias  cireuinslaiieias,  assumia  a  forma  iiuinana,  aceieseenlando-lhe 
vários  aliributos  do  seu  poder  infernal.  Umas  vezes  era  vermelho,  outras  ne- 
!;ro:  ora  tinha  uma  eara  no  sitio  em  que  os  lombos  terminam,  ora  tinba-a  so- 
bre a  nuea,  Jazendo  symetria  a  do  outro  lado,  como  o  deus  .lano  da  niytbo- 
logia. 

Casos  bavia  ainda  em  que  tomava  uma  conliguraçào  extravagante,  eomo 
veremos  de  uma  passagem  de  Prierias,  que  n'outro  logar  citaremos. 

vHa  quem  diga,   refere   De  Lanere,  que  no  sabbat  o  diabo  é  eomo  um 
rande  tronco  de  arvore,  escuro,  sem  braços  e  sem  pés,  eom  uma  espécie  de 
rosto  humano,  grande  e  espantoso.» 

Finalmente,  depois  de  haver  recolhido  todas  as  opiniões  relativas  ao  diabo, 
De  Lanere  traça  o  retrato  seguinte  : 

«O  diabo  no  sabhal  está  si-ntado  n'uma  cadeira  negra,  eom  uma  eoròa 
de  cornos  negros,  sendo  o  mais  alto  do  meio  da  lesta  como  que  uma  espécie  de 
facho  que  illiimiiia  a  assembleia.  Tem  os  cabellos  erricados,  rosto  pallido  e  som- 
brio: olhos  redondos,  grandes,  muito  abertfis,  inllammados  e  borrendíis;  barba 
de  bode:  o  resto  do  corpo  mal  feito,  em  forma  de  honieui  e  de  bode:  mãos  e 
pés  como  os  de  uma  creatura  humana,  com  excepção  que  os  dedos  são  todos  eguaes  e 
agudos,  armados  de  largas  unhas  :  o  rabo  comprido  como  o  de  um  burro,  e  co- 
bre eom  eile  as  partes  vergonhosas.  Tem  a  voz  espantosa  e  a|)resenla-se  com 
HUM  espécie  de  gravidade  solieriia,  e  com  a  expressão  de  uma  pessoa  nielan- 
ehídica  e  triste.» 

Tal  era  o  terrivel  senhor,  a  quem  os  feiticeiros  e  teiliceiras  prestavam  ju- 
ramento de  fé  e  homenagem  nas  assembleias  do  sabbat.  «Ha  muita  gente  d'esfa 
(|tie  adora  o  bode  e  o  beija  no  trazeiro.»  Nestes  próprios  termos  o  declarou 
■M>  rei  *'.arios  ix  o  famoso  feiticeiro  Trois-Ecliciles.  (Démovnmanif,  lib.  ii,  eap. 
IV.  I  ile  l.ancie  falia  em  muitos  logares  deste  osculo  indecente,  que  se  costu- 
mava dar  lambem  nas  partes  vergonhosas  do  diabo  : 

^<0  irazeiro  d'aquelle  poderoso  senhor,  diz  elle,  na  obi'a  cilada,  a  paginas 
7<J»  linha  a  forma  de  uma  cara,  e  era  esta  eara  que  se  beijava,  e  não  outra 
parte  mais  indecente.»  No  emtanto,  segundo  as  declarações  de  uma  joven.  cha- 
mada .íoanna  Hostilapits,  residente  em  Sare,  a  qual  não  tinha  ainda  quatorze 
ânuos,  quando  foi  consagrada  á  prostituição  do  sabbat,  «os  grandes  beijavam  o 
diabo  por  detraz,  e  elle  beijava  o  trazeiro  aus  pequenos.» 

Em  seguida,  o  diabo  urinava  n'uma  espécie  de  tubo  ou  agulheiro,  e  as 
Nelhas  feiticeiras  corriam  a  molhar  no  liquido  infecto  e  ardenie  peiínas  de  gálio, 
com  que  aspergiam  a  assembleia,  (^omo  se  vè,  era  uma  exeeravel  parodia  tbi'- 
eeremonias  da  missa. 

hA's  vezes,  refere  ainda  De  Lanere,  adora va-se  o  diabo  uo  sabbui.  com 
as  costas  voltadas  para  elle;  outras  vezes  com  os  pés  para  o  ar,  depois  de  ac- 
eender  uma  vela  de  pez  negro  no  corno  do  meio,  e  também  o  beijavam  por  dianie 
c  por  deti'az.» 

.\d  processo  de  muitas  feiticeiras,  ijue  foram  julgadas  e  condemnailas  ao 


304'  HISTORIA 

to;,'')  em  Veniun,  cm  15i-i,  eslas  desgraçadas  confessaram  71'c  eram  sercns  de 
lodos  os  inimiijos  do  inferno,  e  que  tiiiliam  eommeltido  muitos  pecrados  enor- 
mes. Cada  uma  (Fellas  tinha  o  seu  nome  dialjolieo;  umas  preslavam  liomena- 
gein  ao  seu  senlior,  heijando-lhe  o  liombro.  outras  o  trazeiro,  outras  a  boeea. 

Além  do  lieijo,  havia  a  otliírcnda,  e  os  es('riptorcs  omiltem  de  propósito 
a  declaração  do  que  fosse  essa  olf(;renda.  Era  simplesmente  uma  moeda  de  en- 
xofre, representando  uma  imagem  phanlastica,  como  as  que  se  encontraram 
nas  exeavaçõps  da  AIsacia  ?  Era  um  emblema  mysicrioso,  como  um  ovo  de 
serpente,  um  ramo  de  verbena,  um  dente  de  lobo,  ou  qualquer  outro  objecto 
dedicado  á  magia  negra? 

Não  recusamos  considerar  esta  olFerenda  como  uma  iniciação  impudica, 
pela  qual  o  neopiíyto  se  entregava  corporalmente  a  Satanaz,  enfcudando-se  ao 
inimigo  por  um  acto  carnaL  Também  se  pretende  que  o  diabo  dava  algumas 
moedas  aos  que  lhe  beijavam  o  trazeiro. 

Havia  também  os  estygmas  diabólicos.  O  chefe  do  sahhat,  Satanaz  ou 
f!cl/.eijulli,  marcava  os  seus  adoradores,  como  se  costumam  marcai'  as  rezes  de 
utn  iet)anho.  Esta  marca  fazia-se  com  a  extremidade  ardente  do  sceptro,  que 
o  principe  das  trevas  tinha  na  mão,  ou  com  uin  dos  seus  cornos,  e  iinprimia-se 
nos  lábios,  ou  nas  pálpebras,  no  hombro  direito  ou  nas  nádegas  dos  homens. 
As  mulheres  eram  marcadas  nas  pernas,  nos  sobaeos,  no  olbo  esquerdo,  ou 
n.is  |)artes  secretas.  Esta  marca  indelével  representava  umas  vezes  uma  lebre, 
outras  uma  pata  de  sapo,  um  gato  ou  um  cão.  Era  por  estes  signaes  especiacs 
que  se  reconheciam  as  prostituías  do  diabo. 

Terminada  a  adoração  com  uma  multidão  de  praticas  tão  extranhas  como 
repugnantes,  celebrava-se  a  festa  com  banquetes,  cantos  e  danças,  como  pre- 
paração para  as  scenas  libidino.sas.  No  dizer  de  algumas  feiticeiras,  mais  ingé- 
nuas qu(!  as  outras,  os  banquetes  servidos  sobre  um  panno  dourado  oHercciam 
ao  appetite  dos  convivas  «toda  a  classe  de  viveres  com  pão,  sal  e  vinho.»  Mas, 
segundo  a  maioria  das  testemunhas  oculares,  não  eram  senão  sapos,  carne  de 
enforcados,  cadáveres  exluimados  dos  cemitérios,  corpos  de  crianças  por  bapti- 
sar,  animaes  mortos,  e  tudo  sem  sal  nem  vinho. 

Procedia-se  em  seguida  á  benção  da  meza,  fazendo-se  em  torno  (Fella 
uma  procissão  com  velas  accesas,  e  entoando-se  canções  impuras  em  honra  do 
demónio,  o  rei  do  festim. 

E'  provável  que  eslas  orgias  da  meza  tivessem  por  fim  exaltar  os  senti- 
dos d"aque!lcs  desgraçados  e  preparal-os  para  os  monstruosos  actos  de  prosti- 
tuição, que  completavam  a  ronda  do  snhhal . 

Não  pdilcmos  dizer  ao  cerio  o  (|ue  fosse  esta  ronda,  visto  (jue  cada  (|ual 
a  de.sçi'evia  com  particularidades  novas.  Se  era  uma  dança,  é  licito  crèi'  (|ue  o 
seu  fim  principal  era  a  provocação  á  liberlinagem,  porque  dava  occasião  ás 
altitudes  as  mais  indecentes,  a  contorsões  e  movimentos  ob.scenos.  A  maior 
parti'  do  corpo  choreographico  aprcsentava-se  em  completa  nudez;  alguns  an- 
davam em  camisa  com  um  grande  galo  alado  ás  costas ;  quasi  todos  elles  tra- 
ziam sapos  nos  hombros. 

A    CNiilação  á  dança  era  o  grilo  Unr!  liar!  Us  espectadores,  os  velhos 


DA    PROSTITUIÇÃO  305 

nigromantes,  os  feiticeiros  centenários  e  os  demónios  veneráveis,  repetiam  em 
choro:  Sabhat!  Sabbat  ! 

Havia  na  assembléa  coriplicus  de  ambos  os  sexos,  que  davam  saltos  e 
voltas  prodigiosas,  c  faziam  supremos  esfor(,'os  para  excitarem  a  luxuria  dos 
assistentes  e  para  satisfazerem  a  impura  malicia  do  principe  das  trevas. 

A  ronda  continuava  (Keste  modo  até  aos  primeiros  alvores  da  madru- 
gada, até  ao  cantar  do  gallo,  c  emquanto  durava  o  ruido  das  vozes  e  dos  ins- 
trumentos infernaes,  cada  par  se  entregava  por  seu  turno,  com  ardor  plirene- 
tico  á  mais  espantosa  prostituição.  Era  então  que  se  commettia  o  decimo-quinto 
crime  capital,  de  que  os  feiticeiros  podiam  tornar-se  réus  contra  a  lei  divina 
e  humana: — a  copula  carnal   com  o  diabo,  (fírmonomanie,  lib.  iv,  cap.  o.) 

Os  jurisconsultos  da  demonomania  procuraram  caracterisar  este  crime, 
pelo  testemunho  dos  próprios  que  o  haviam  commettido.  Eis  o  que  Nicolau  Rémy 
conia,  a  propósito  das  immundas  caricias  que  os  concorrentes  ao  sahhal  deda- 
)'avam  haver  recebido  dos  diabos: 

«Hic  igitur,  sive  pir  inciihi'1.  site  saccithef  fcemina,  liherum  iu  utroque 
natura;  debel  esse  o/ficium,  nihilque  nmnino  intercedere  qiiod  id  vel  minimum 
moretur  atque  im.pediat,  si  pudor,  metus,  horror,  sensusque  aliqiiis  acrior  in- 
ijruil ;  illicet  ad  irritum  redeunt  omnia  e  lumbis  e/foeaqtie  prorsus  sit  natura.» 
( Dwmonol.,  lib.  iii,  Lugd.,  1o9o.) 

Resulta  daqui  não  estarem  menos  expostos  os  Aiiticeiros  que  as  feiticei- 
ras ás  torpezas  do  diabo.  No  emtanto,  mais  de  um  theoiogo  e  muilos  crimina- 
listas ousaram  tomar  a  defeza  do  diabo  c  provar  que  elle  tinha  horror  ao  pec- 
cado  contra  naluram ;  mas,  ao  que  parece,  não  conseguiram  rehabilitar  n'esfe 
ponto  o  espirito  maligno,  pois  que  Sylvestre  Prierias,  que  escrevia  o  seu  fa- 
moso tractado  De  slrigimaqaruni  doemonumque  mirandam,  em  presença  da  in- 
(|UÍsi(,'ào  romana,  sustenta  doutoralmente  que  a  sodomia  era  uma  das  preroga- 
livas  do  diabo.  E  falia  na  monstruosidade  diabólica  do  luembrus  (/enilalis  bifor- 
catus,  de  maneira  que  entrava  ao  mesmo  tempo  nos  dois  vasos. 

Bayle,  para  dar  nome  ás  espantosas  enormidades,  que  se  produziam  na 
imaginação  desenfreada  dos  demonomaniacos,  inventoa  uma  plira,se,  que  não 
logrou  ter  curso  entre  os  theologos  e  os  criminalistas.  Chama  peccado  super- 
contra-naturam  ao  coito  alternado  ou  simultâneo,  que  o  diabo  hermaphrodita 
fazia  ordinariamente  no  sabbat  com  um  c  outro  sexo. 

Um  inquisidor  loreno,  Nicolau,  Rémv,  dedicou-se  com  toda  a  sua  curio- 
sidade e  paciência  de  frade  a  reconhecer  os  caracteres  da  copula  carnal  com  os 
demónios.  Para  esse  fim  foi  interrogando  com  todo  o  cuidado  as  desgraçadas 
victimas  da  prostituição  diabólica,  e  concluiu  por  descobrir  que  nada  era  mais 
doloroso  do  que  soífrer  as  caricias  do  espirito  immundo :  A'í7í,/7  esl  friíjidius, 
ingratiusque,  diz  elle. 

Todos  estavam  de  accordo  a  respeito  da  impressão  de  horror  glacial  que 
haviam  soffrido  nos  braços  do  diabo  :  era  um  coito  frio,  aílirmavam  elles,  e 
além  de  frio,  desagradabilissimo  e  infeclo.  Muitas  das  feiticeiras  ficavam  enfer- 
ntas  para  toda  a  vida,  em  consequeucia  d'esfa  copula  diabólica.  Hémy,  que  não 
linha  o  menor  escrúpulo  a  respeito  do  deshragamcnto  das  suas  perguntas,  obteve 
BuTORiA  DA  Phobtiiuição.  Tomo  n— Folha  39. 


306  HISTORIA 

importantes  roveliicõcs  da  parlo  das  rihalílas  ilo  diabo.  Estas  dcsgraí.'adas,  a  quem 
o  salihal  consagrava  desde  a  mais  tenra  edade  a  uma  prostituição  mysteriosa, 
não  se  envergonhavam  de  descobrir  todos  os  pormenores  do  horrivel  commer- 
cio  que  tinliam  com  os  demónios.  Podia  fazer-se  a  pii\sioiogia  erótica  de  Sata- 
naz  em  presença  das  declarações  formacs,  que  Nicolau  Rémy  recebeu  da  bocca 
das  próprias  feiticeiras  eméritas  do  seu  tempo,  especialmente  de  Aleixa,  Clau- 
dia, Nicolina  e  Didacia,  que  tinham  frequentado  os  sahhats  das  montanhas  dos 
Vorges.  Todas  ellas  narravam  circumstanciadamente  as  agudas  dores  que  tinham 
sollrido  por  occasião  da  copula  com  o  tentador,  e  até  mesmo  os  irreparáveis 
estragas,  que  Ihestinha  feito  nas  entranhas  o  penis  do  demónio,  umas  vezes 
pesado  e  de  grandeza  desmarcada:  outras  agudo  c  penetrante  como  um 
fuso. 

Hémv,  historiando  Ião  pacientemente  estas  minuciosidades,  parece  ate 
certo  ponto  compadecido  d'aquellas  desgraçadas,  que  eram  apenas  victimas  de 
uma  invencível  obsessão,  e  nem  sequer  peccavam  por  deleite,  mas  eram  pas- 
sivamente e  a  seu  pesar  instrumentos  dos  execráveis  prazeres  do  demónio,  sem 
se  poderem  subtrahir  a  esta  escravidão  oppressora  e  maldita.  Com  todas  estas 
aftenuantes,  as  feiticeiras  convictas  de  se  terem  enrai-allndo  com  o  detnonio 
eram  (|ueimadas  sem  piedade. 

O  que  está  perfeitamente  averiguado  é  (juc,  soh  o  pretexto  de  feiliceria 
ou  magia,  o  sahhai  abria  um  vago  e  sombrio  campo  á  mais  abominável  |)rosti- 
tuição.  iNão  eram  os  demónios  (|ue  lucravam  na  saturnal  desbragaila  ;  os  espíritos 
das  trevas  figuravam  apenas  em  effigie  n'estas  reuniões,  embora  fossem  a  alma 
da  tenebrosa  orgia.  O  snhhal,  despojado  do  seu  apparato  diabólico  e  phantas- 
lico,  reduzia-se  a  um  congresso  de  libertinagem,  em  que  o  incesto,  a  sodomia 
e  a  bestialidade  eram  os  peccados  mais  saborosos.  f)e  Lancre,  sem  queriT  al- 
tenuar  as  culpas,  que  elle  propi'io  altribuia  á  Inconstância  dos  demónios, 
vè-se  obrigado  a  confessar  ([ue  o  diabo  linha  menos  parle  do  <]ue  se  dizia  nas 
abominações  do  sabbat. 

«A  mulher,  diz  elle,  prostituo- se  diante  de  seu  marido,  sem  (|ue  ello  te- 
nha por  isso  zelos  ou  desgosto  ;  até  ás  vezes  lhe  serve  de  alcoviteiro;  o  pae  des- 
flora sua  filha  sem  repugnância,  nem  vergonha  :  a  mãe  colhe  sem  escrúpulo 
as  primícias  de  seu  filho;  o  ii'mão  as  do  sua  irmã.» 

Por  isso,  todo  o  feiticeiro  era  considerado  peia  lei  como  incestuoso,  só 
pelo  facto  de  haver  concorrido  ao  salibat,  ainda  (|ue  não  tivessse  nem  pães, 
nem  filhas,  nem  irmãs. 

O  nono  crime  comnuim  aos  feiticeiros,  sígundo  os  cânones  da  Rgreja, 
foi  .sempre  o  incesto,  «que,  segundo  Hodin,  é  o  crime  de  (|ue  foram  sempre 
convictos  os  feiticeiros,  por(iuc  Satanaz  lhes  faz  comprohendor  (|ue  nunca  houve 
perfeito  feiliceiro  ou  oiícantadur,  (|uc  luVi  fosso  gorado  por  um  pae  cm  sua  fi- 
lha, ou  por  um  hlho  em  sua  mãe.» 

Temos  uma  doscripção  circumslanciada  dos  crimes  do  siibbal,  na  sentença 
proferida  pelo  tribunal  dWrras  em  1  ItiO  contra  cinco  mulheres  o  muitos  ho- 
mens, accusados  de  rauderie,  ou  feiticeria.  Entre  os  condemnados,  havia  um 
pintor,  um  poeta  e  um  sacerdote  do  setenta  annos  do  edade,  que,  segundo  to- 


o 


DA    PROSTITUIÇÃO  307 

(las  as  probabilidades,  fora  o  auc-lor  (Keslas  libertinagens  misturadas  com  um  pou- 
cochinho de  heresia. 

"Oiiando  queriam  ir  á  rnwierie,  ou  ao  sahhai,  serviam-se  de  um  un- 
guento fornecido  pelo  próprio  diabo,  c  montados  num  pau  de  vassoura,  voa- 
vam até  ao  sitio  da  reunião,  por  cima  das  cidades,  dos  bosques  c  das  aguas. 
Era  o  diabo  que  assim  os  transportava.  Chegados  aiíi,  encontravam  as  raezas 
postas  e  cobertas  de  iguarias,  e  presididas  por  um  demónio  em  figura  de  bode, 
de  cão,  de  macaco,  e  até  algumas  vezes  em  figura  humana.  Faziam-se-lhe  obla- 
ções, prcstava-se-lhe  homenagem,  adoravam-no,  e  a  maior  parte  dos  concor- 
rentes davam-ihe  logo  alli  a  alma  e  o  corpo. 

«Beijavam-no  no  trazeiro,  tendo  velas  accesas  na  mão.  .  .  E  apenas  co- 
miam e  bebiam,  tinham  coliabilação  carnal  lodos  juntos  c(Mn  o  próprio  diabo, 
o  qual  tomava  alternadamente  ligura  de  homem  e  de  mulher,  e  tinham  coba- 
bilação  com  elle  os  homens  e  as  mulheres.  K  commeltiam  também  o  peccado 
de  sodomia  e  outros  peccados  repugnantes  e  enormes,  tanto  contra  Deus,  como 
contra  a  natuueza,  chegando  ale  o  inquisidor  a  dizer  que  não  se  atrevia  a  no- 
mear estes  peccados,  com  receio  de  (|uc  os  ouvidos  innocentes  fossem  sabedo- 
res de  tão  grandes,  terríveis  c  cruéis  monstruosidades.  {}lem.  <le  Jacqufs  Dii- 
elerq.,  lib.  iv,  c.  i). 

Bodin  acreditava  cegamente  na  copula  carnal  com  os  diabos,  mas  nunca 
se  referiu  ás  desordens  aiiti-physicas  do  sabbai,  e  isto  provavelmente  por  jul- 
gar, como  tantos  outros  demonologos,  que  o  peccado  contra  a  natureza  não 
causava  menos  horror  aos  diabos  do  que  aos  homens. 

No  emtanto,  a  "renva  vulgar  não  fazia  tanta  justiça  aos  demónios,  e  jul- 
gava-os  entregues  no  sabbat  a  todas  as  abominações  da  lubricidade.  Um  monge 
inglez,  Evesham,  que  em  I  196  desceu  aos  infernos,  guiado  por  S.  Nicolau,  re- 
fere nos  termos  seguintes  o  (|ue  viu  de  mais  extraordinário: 

«Ha  um  supplicio  mais  abominável,  vergonhoso  e  horrível,  ao  qual  es- 
tão condemnados  os  que,  durante  a  sua  vida  mortal,  se  tornaram  réus  d'esse 
crime  que  um  cbristão  não  pôde  nomear  e  que  inspirava  horror  até  mesmo  aos 
próprios  pagãos.  Estes  miseráveis  eram  acommettidos  por  monstros  enormes, 
que  pareciam  de  fogo,  e  cujas  formas  espantosas  excedem  tudo  quanto  a  imagi- 
nação pôde  conceber.  Apesar  dos  seus  esforços  e  de  toda  a  sua  resistência, 
viam-se  obrigados  a  soflrer  as  suas  execráveis  copulas,  que  lhes  arrancavam 
gritos  penetrantes  e  horríveis.  Em  seguida,  cabiain  sem  sentidos  e  como  mor- 
tos, mas  tinham  que  voltar  á  vida,  renascendo  para  o  mesmo  supplicio.  Oh!  A 
multidão  d'cstes  desgraçados  era  Ião  numerosa  como  os  castigos  que  sollriami 
N'aquelie  logar  horrível,  não  reconheci  nem  procurei  reconhecer  ninguém,  tanto 
1'oi  o  horror  que  me  inspiraram  a  enormidade  <lo  crime,  a  obscenidade  do  sup- 
plicio e  o  fétido  insupportavcl  que  alli  se  cxhalava.»  {Ilrande  Chronique,  de 
-Matth.  Paris,  trad.  de  A.  Huillar-Lirchoilcs,  t.  ii,  pag.  20.'j.) 

Os  feiticeiros  não  tinham,  pois,  o  menor  escrúpulo  em  imitar  os  costu- 
mes do  diabo,  que  assim  lhes  dava  o  exemplo  dos  vicios  mais  detestáveis,  não 
só  no  inferno,  como  também  na  terra.  O  sabhat  foi  em  todos  os  tempos  e  pai- 
zes  uma  eschola  de  sacrilégio  e  prostituição.  N'elle  se  reuniam  todos  os  feiti- 


.'{08  HISTORIA 

ceiros  e  feiticeiras,  diz  Anlonio  de  Toniueinada,  no  seu  Hfxameron,  «e  muitos 
demónios  eoni  elles,  em  figura  de  esbeltos  mancebos  e  formosíssimas  mulheres, 
e  se  unem  aili  aifernadaiiiente,  consummando  d'est'arte  os  seus  desordenados 
e  sórdidos  appetites.» 

O  mesmo  succedia,.  ainda  fora  do  sabbat,  quando  Satanaz  andava  atraz 
dos  homens.  No  tempo  de  Guiberto  de  Nogent,  que  refere  esta  tentação  diabó- 
lica, certo  monge  perigosamente  enfermo  teve  de  receber  os  cuidados  de  um 
medico  judeu,  muito  hábil  em  malefícios,  e  sentiu  o  fatal  desejo  de  vér  o  diabo. 
Este,  evocado  pelo  judeu,  appareceu  ix  cabeceira  do  enfermo,  e  promelteu-lhe 
a  saúde,  a  riqueza  e  a  scieneia,  em  troca  de  um  sacrifício. 

—  Seja,  disse  o  frade.  Mas  em  que  consiste  o  sacrifício  ? 

—  O  sacrifício  do  que  ha  de  mais  delicioso  no  homem,  respondeu  o  ten- 
tador. 

—  Falia. 

O  diabo  exj)licou-se  immediatamente. 

«Oh  crime!  Oh  vergonha  I  exclama  indignado  Guiberto  de  Nogent  (í>p 
vila  sua,  lib.  i,  cap.  2(5.)  E  u  sollicitado  era  sacerdote!.  .  .  E  o  miserável  fez 
o  que  se  lhe  exigiu  !  E  por  esta  horrível  castração  veio  a  renegar  da  fé  christã.» 

Os  feiticeiros,  como  o  seu  infernal  padroeiro,  tinham  extranhos  caprichos, 
e  costumavam  arrancar  os  órgãos  sexuaes  ás  victimas  da  sua  maldade,  para 
as  consagrarem  ás  abominações  do  sablml. 

«Elles  não  tèem,  diz  Bodin,  o  puder  de  tirar  um  único  membro  ao  ho- 
mem, á  excepção  das  partes  viris,  o  que  fazem  na  .4llemanha,  (jbrigando  essas 
partes  a  recolher-se  no  ventre.  E  a  este  respeito  refere  Spranger  (lue  um  ho- 
mem de  Spira,  julgando-se  privado  das  suas  partes  viris,  se  fez  examinar  por 
médicos  (!  cirurgiões,  que  nada  lhe  encontraram,  iicni  ferida  neni  cousa  alguma. 
O  homem  foi  depois  d'isto  fallar  com  uma  feiliccira,  que  lhe  restituiu  a  sua 
faculdade  viril.» 

Este  attentado  da  feiticeria  contra  a  virilidade  renovava-se  a  cada  passo, 
sol)  o  nome  de  nó  da  ayulhela,  e  quando  o  feiticeiro  não  praticava  no  paciente 
a  castração  magica,  tirava-lhe  e  apropriava-se,  por  assim  dizer,  da  alma  e  da 
potencia  do  seu  sexo.  Os  demonologos  iiilerpretam  este  facto,  dizendo  (jue  o 
diabo  aceeitava  em  sacrifício  os  allributos  e  tropheus  da  luxuria,  emquanto  que 
os  feiticeiros  se  reservavam  o  seu  uso  poi'  conta  própria,  afim  de  podeieiu  oc- 
correr  aos  monstruosos  excessos  do  sabhai. 

Entre  estes  excessos  devemos  incluir  o  crime  de  bestialidade,  que  foi  ao 
(|ue  parece  vulgarissimo  nas  assembléas  nocturnas  (hjs  feiliceiros.  Esle  crime 
execra\el,  tão  fre(|uenle  nos  povos  antigos,  s('i  rar^issiiiias  vezes  apparccia  nos 
trihunaes  dos  povos  modernos,  onde  era  sempre  castigado  com  a  pena  capital. 
O  culpado  era  queimado  com  o  seu  cúmplice,  fosse  qual  fosse  a  catiiegoria  que 
este  ultimo  tivesse  na  escala  zoológica.  E,  como  este  crime  era  inberente  á  fei- 
ticeria, a  jurisprudência  da  Edade-Média  linha  como  suspeito  de  bestialidade 
(|ual(|iier  individuo  de  um  ou  outro  sexo,  que  tivfsse  figui-ado  nas  orgias  do 
sabbal.  Bodin  expressa-sc  a  este  respeito  com  uma  reserva  (juc  prova  bem  lodo 
o  horror  que  esta  immundicie  lhe  inspirava: 


DA    PROSTITUIÇÃO  309 

«A  lei  de  Deus,  no  capitulo  xxii  do  E.vodo.  manda  que  não  se  deixe  vi- 
ver (I  feiticeiro,  quando  ordena  (|ue  (jucin  conimetter  acto  carnal  com  uma  bosta 
seja  castigado  de  morte.  Este  preceito  da  lei  divina  refere-se  especialmente  ás 
preversidades  monstruosas,  quando  diz:  «Não  offerec  rás  a  Deus  nem  o  prcç,'» 
da  fornicação  nem  o  preço  do  cão.»  Isto  diz  respeito  á  bestialidade  carnal  dos 
homens  com  os  cães.» 

O  mesmo  Hodin  fallára  já  n'outro  logar  destas  infâmias,  que  .elle  hesi- 
tava cm  considerar  como  um  acto  carnal  do  demónio : 

«A's  vezes,  diz  elle,  o  appetite  bestial  de  algumas  mulheres  faz  crer  que 
seja  lenlação  do  demónio,  como  succedeu  no  anno  de  1566  na  diocese  de  Co- 
lónia. Havia  n'um  convento  um  cão,  que  todos  julgavam  o  próprio  demónio. 
Este  lúbrico  animal  levantava  as  saias  das  religiosas  para  abusar  d'ellas.  Em 
Tolosa,  havia  uma  mulher  que  se  servia  de  um  cão  para  o  mesmo  fim  bestial, 
e  o  n  ferido  animal  queria  fornical-a  diante  de  toda  a  gente.  A  mulher  leve  de 
confessar  a  verdade  e  foi  queimada.» 

Não  obstante,  bastaria  que  Hodin  se  recordasse  da  descripção  do  sahhal, 
para  ser  de  mui  diversa  opinião.  O  espirito  das  trevas  tomava  habitualmente 
a  forma  do  cão,  do  touro,  do  asno,  ou  do  bode  para  receber  o  sacrificio  dos 
seus  adoradores.  Bodin,  pouco  depois,  arrepende-se  de  ter  justificado  Satanaz 
á  cusia  da  raça  humana  : 

«Pôde  succeder,  diz  elle,  rectificando  a  opinião  anterior,  que  Satanaz 
seja  (  nviado  por  Deus,  pois  é  certo  que  d'Elle  vem  todo  o  castigo  por  meios  or- 
dinários ou  extraordinários,  para  vingar  similhantes  torpezas,  como  succedeu 
no  mosteiro  de  Mont-de-Hesse,  na  AUemanha,  onde  as  religiosas  eram  demo- 
níacas, e  foram  encontrados  nos  seus  leitos  cães,  que  as  esperavam  impudica- 
mente para  commetler  o  peccado  que  se  chama  peccado  mudo.i> 

Bayle,  nas  suas  Ik.spostds  ás  questões  de  um  Provincial,  quiz,  ao  (|ue  pa- 
rece, explicar  todas  as  obras  lúbricas  altribuidas  ás  feiticeiras,  provando  (|ue 
quasi  todas  ellas  eram  velhas  libertinas,  que  não  podiam  já  encontrar  a  satis- 
fação dos  sentidos,  senão  nos  desvarios  immundos  de  um  commercio  sobrena- 
tural (í  diabólico. 

«Antes  do  diluvio,  diz  elle,  no  capitulo  o7,  o  gosto  dos  demónios  era 
mais  delicado,  pois  não  queriam  senão  mulheres  jovens  e  bellas  ;  com  o  tempo 
foram-se  tornando  menos  exquisitos,  e  chegaram  por  lim  ao  extremo  opposto 
de  não  quererem  já  senão  velhas  e  feias.  Cazam  somente  com  as  velhas,  se  é 
licito  servirmo-nos  d'esta  palavra  para  explicarmos  o  commercio  carnal  que 
tèera  com  as  feiticeiras,  e  (|uc  começa  regularmente  depois  da  primeira  home- 
nagem que  ellas  tributam,  címtiiiuando  isto  de  cada  vez  (jue  voltam  ao  saJihiU.» 
(V.  Bydin,  cap.  iv  e  vii  do  livro  ii   da  sua  Déinoiwinanie.) 

Todos  os  escriptores  que  se  occuparam  critica  e  philosophicainent<!  do 
exame  dos  arcanos  da  feiticeria,  faliam  da  espécie  de  furor  uterino  que  o  diabo 
excitava  de  preferencia  nas  velhas.  O  sábio  e  grave  professor  Thomaz  Erasto 
confessou  que  havia  feiticeiras  de  todas  as  edades,  mas  demonstra  doutoral- 
mente que  todas  ellas  eram  velhas,  porque  a  velliic(;  em  certas  naturezas  fe- 
mininas exalta  as  paixões  physicas,  em  vez  de  as  extinguir. 


310  HISTORIA 

«Antes  <le  serem  feiticeiras,  diz  elle,  estas  iniiliíeres  eram  libidinosas,  e 
cada  vez  se  tornam  mais,  nas  suas  relaçõ<'s  com  os  demónios.» 

(>ompai'a-as  com  as  caljras  velhas,  que  nunca  estão  satisfeitas  c(mi  o  maclio. 
Hinc  procerhio  apnd  noslro.s  jaclus  e.s-l  locas,  relutas  cajiras  libeniiiis  liyere 
salis  jamnrulis.  E  acerescenta  :  «Não  é  de  evtranhar  que  mulheres  d'esta  classe, 
tendo  perdido  todo  o  temor  de  Deus,  e  iodo  o  pudor  sexual,  se  entreguem  a 
excessos  de  que  a  edade  não  preserva  as  outras  mulheres,  mais  dignas  de  com- 
paixão do  que  de  odio.» 

Os  demónios,  esses  mestres  de  impurezas,  como  lhes  chama  um  mystico, 
eram  muito  dados  a  extravagantes  e  sórdidas  desordens,  e  não  se  podia  fre- 
quentar a  sua  companhia  sem  contrahir  os  mais  deploráveis  hábitos.  A  IVilice- 
ria  era  uma  eschola  de  perdição,  em  (|ue  o  homem  e  o  diabo  competiam  em 
questões  de  lubricidade  e  incontinência.  4  iniciação  consistia  sempre  em  qual- 
quer peccado  horrivel,  em  que  Satanaz  tomava  parte.  Basta  citar  um  facto,  en- 
tre milhares  d'e[les  :  a  Svbilla  de  Norcia,  tão  celebre  na  Edade-Média,  como 
director;!  de  uma  e.schola  de  magia,  onde  iam  iniciar-se  muitos  amadores  do 
género,  com  giaves  riscos  e  perigos.  Era  uma  espécie  de  rainha  de  um  povo 
de  encantadores,  que  recebia  de  um  mo. lo  singular  os  curiosos  que  se  iipre- 
sentavam  na  sua  caverna  : 

«A  sybilla  e  os  magos  que  habitavam  no  seu  reino,  diz  Bayle,  tomavam 
todas  as  noites  a  figura  de  uma  .serpente,  e  era  mister  que  todos  os  que  entra- 
vam na  caverna  tivessem  primeiramente  deleitação  venérea  com  alguma  d'es- 
las   serpentes.    Era  esta  a  iniciação,  e  assim  se  pagava  o  direito  de  entrada.» 

Leandi'o  Àlberti  diz  isto  mesmo  na  sua  ])escrilt.  di  Iníln  Itália,  p.  '27S. 
Citamos  o  texto  original: 

«/.a  noite.,  tanto  i  mascoti  quanto  le  femine  doventano  spaventose  serpi, 
insieme  con  la  sihilla,  e  che  tutti  cjudli  clie  desiderano  entrarei  gli  besofina 
primieramente  pigliare  lascivi  piaceri  con  le  detie  stomacose  serpi. >> 

Havia  continuamente  uma  grande  allluencia  de  peregrinos,  que  ousavam 
emp.rehender  a  aventura.  A  sybilla  dava  audiência  a  todo  o  mundo,  e  ás  vezes 
liunava  o  logar  das  serpentes  |)ara  fazer  h mra  aos  seus  hospedes.  Durante  este 
(empo,  as  bellas  fadas  que  foi-mavam  a  sua  corte  transformavam-se  em  serpen- 
les,  em  lagartos,  escorpiões,  crocodillos,  etc,  para  tomarem  parle  n'um  sabbat 
medonho,  em  (|ue,  segundo  Braz  de  Vigenère,  nas  suas  notas  aos  Tnldeaur  de 
plalle  peinture  de  IMiilostrato,  se  viam  fazer  o  mais  sórdido  e  horroroso  ser- 
viço. Desgraçado  d'aquelie  qiuí  não  obedecia  ás  ordens  da  sybilla  ou  as  execu- 
tava mal!  Yiniia  a  ser  dentro  em  pouco  victima  da  lubricidade  dos  reptis,  até 
(|ue  era  libertado  pela  feliz  chegada  de  um  monge  ou  eremita. 

Fica,  portanto,  bem  averiguado  por  estes  e  outros  factos  análogos  que  a 
íeiliecria  teve  sempre  por  objecto  a  prostituição.  Exceptuando  um  pequeno  nu- 
mero de  magos  crédulos  e  de  feiticeiros  convictos,  lodo  a(|uelle  (jue  se  tinha 
iniciado  servia  ou  fazia  servir  os  outros  no  mais  abominável  commercio  de  li- 
bertinagem. O  sablial  era  um  campo  aberto  jiara  Iodas  as  torpezas.  Alii  se  reu- 
nia uma  mnllidão  de  liijcrtinos  de  ambos  os  sexos  de  parceria  com  alguns  cré- 
dulos e  fascinados.  1'ode  inferir-sc  pelas  revelações  dos  accusados  ih)S  diversos 


DA    PROSTITUIÇÃO  311 

processos  de  leiticcria  ([iic  lodo  o  proveito  do  sabhai  rccahia  de  ordinário  ii'uin 
individuo  apenas,  que  prosliluia  donzellas  de  tenra  edade,  e  experimentava  nas 
suas  iniciadas  as  odiosas  invenções  da  sua  preversidade. 

Km  muitas  eircumstancias  o  papel  do  dialio  pertencia  a  um  malvado  qual- 
([uer,  (|ue  al)usava  d'elie  para  satisfazer  os  seus  liorriveis  capricitos,  recebendo 
um  trilnito  olisceiío  das  miseráveis  mulheres  que  atlraliia  ás  suas  reuniões  no- 
cturnas. 

N'um  dos  últimos  processos  de  leiticeria,  em  \{S'.M,  o  cura  de  (".ordet, 
julgado  e  condemnado  em  Epinal,  foi  accusado  de  haver  introduzido  no  sabbal 
a  ribalda  Catliarina,  apresentando-a  a  Persin,  homem  grande  e  negro,  frio  como 
o  gelo,  até  mfsmo  iio  coilo,  diz  o  processo,  o  (jual  Persin,  vestido  de  encar- 
nado, estava  sentado  n'uma  cadeira  coberta  de  velludo  preto,  e  picava  na  testa 
os  seus  neophvtos  para  os  fazer  renegar  de  Deus  e  da  Virgem.  (Irc/ifpe.v  rf'J?pt- 
nal,  citados  por  E.  Regin.) 

N'um  processo  do  mesmo  género,  que  teve,  poucos  annos  antes,  uma 
enorme  publicidade,  soube-se  que  outro  padre  de  Marselha,  chamado  Luiz  Gau- 
fridi,  entregou  a  alma  ao  diabo,  com  a  condição  de  que  elle  lhe  daria  virtude 
para  inspirar  amor  ás  mulheres  síimcnte  soprando  sobre  ellas.  Elfectivamente 
o  padre  soprou  sobre  VIagdalena,  filha  de  um  fidalgo  provençal  chamado  Ma- 
dolo  de  la  Paiud,  quanilo  cila  tinha  apenas  nove  annos.  Soprou  lambem  sobre 
outrHs  mulheres,  qne  não  lhe  recusaram  cousa  alguma,  e  a  referida  Magdalciia 
continuou,  bem  a  pesar  seu,  a  ter  relações  com  o  padre,  (|ue  a  final  a  fez  en- 
ti'ar  na  ordem  das  religiosas  UrsuLinas. 

Finalmente,  este  .seductor  da  innocencia,  perseguido  pela  inquisição,  con- 
fessou os  seus  crimes,  declarando  que  tivera  muitas  liberdades  com  IVÍagdalena, 
tanto  em  casa  como  na  egreja,  de  noite  c  de  dia;  que  a  conhecera  carnal- 
mente, e  lhe  lizei-a  até  no  corpo  diversos  signaes  e  caracteies  diabólicos:  que 
a  levara  ao  xabhal,  onde  fizera  em  sua  presença  grande  numero  de  acções  es- 
candalosas, Ímpias  e  abomináveis  em  honra  de  Lúcifer.  Luiz  Ciaufridi  foi  (|uei- 
mado  vivo  em  Ai\,  na  praça  dos  Jacobinos,  depois  de  haver  feito  retractação 
.publica,  levando  uma  corda  ao  pescoço,  uma  vela  na  mão  e  os.  pés  descalços. 

Poderia  citar-se  uma  grande  multidão  de  processos  de  feiticeria,  nos 
quacs  se  vè  a  depravação  moral  cobrir-se  com  a  capa  da  possessão  do  diabo  e 
attribuir  todas  as  suas  prcversidades  á  tyrannia  infernal,  e  reconhecer-se  até 
sem  grande  custo  que  muitos  dos  que  pretendiam  ter  cedido  a  um  poder  oc- 
culto  de  irresistível  prestigio,  nem  sempre  acreditavam  na  intervenção  dos  de- 
mónios. Os  libertinos  envergonhados,  obrigados  pela  sua  posição  ou  estado  a 
mostrarem-se  continentes,  ou  a  occullarem,  pelo  menos,  sob  apparencias  res- 
peitáveis a  eITervescencia  das  suas  paixões  sensuaes,  os  sacenloles  e  os  frades, 
eram  os  que  ordinariamente  se  entregavam  á  tentação  do  demónio,  assistindo 
a  estes  horríveis  conciliábulos. 

O  sabbal  era  o  pont()  de  reunião  de  tudo  (juanto  havia  de  mais  preverso, 
e  por  isso  celebrava-se  em  sitios  remotos,  no  meio  dos  bosques,  nas  monta- 
nhas, entre  os  rochedos,  e  o  theatro  d'estas  assembléas  nocturnas  leve  sempre 
desde  tempos  immemoriaes  o  mesmo  destino. 


312  HISTORIA 

Part'L'P-nos,  pois,  demonsfradn  (\no  os  feiticeii'os,  senão  lodos,  pelo  me- 
nos a  grande  maioria  d'ciles,  não  se  serviam  da  magia  senão  para  obras  de 
prostitui^'ão,  6  que,  se  as  feiticeiras  iam  ás  vezes  de  iioa  fé,  quer  dizer,  cegas 
e  fascinadas  pela  própria  imaginação,  os  diabos  que  tinham  copula  com  ellas, 
pertenciam  em  ultima  analvse  á  peior  espécie  de  libertinos. 

D'es(e  modo  se  ex|)lica  bem  a  razão  porque  a  justiça  ecclesiastica  e  se- 
cular tractava  com  lanto  rigor  os  feiticeiros  e  feiticeiras.  E'  porque  conipre- 
bendia  na  feiliceria  os  actos  mais  execráveis  da  depravação  bumana,  e  quando 
condemnava  um  feiticeiro,  impunlia-liie  a  penalidade  do  incesto,  da  sodomia  e 
da  bestialidade,  como  se  fora  culpado  de  todos  estes  crimes. 

•lulgiimos  baver  provado  que  a  feiticeria,  ou  melbor  a  libertinagem,  se 
propagara  de  tal  modo  na  Europa,  no  século  xvi,  que  o  famoso  Trois-Écbclles, 
condemnado  ao  fogo  em  1571,  o  perdoado  com  a  condição  de  denunciar  todos 
os  seus  cúmplices,  disse  a  el-rei  que  podia  calcular-se  n'uns  trezentos  mil 
o  numero  de  feiticeiros  de  toda  a  França. 

«Foi  tão  grande  o  numero  de  feiticeiros  ricos  e  polires,  diz  Rodin,  que 
uns  lizeram  escapar  os  outros,  de  maneira  que  esta  praga  se  multiplicou  sem- 
pre como  um  leslemunbo  perpetuo  da  impiedade  dos  accusados  e  da  repugnân- 
cia dos  juizes,  que  tinham  o  dever  de  instaurar  os  processos.» 

No  reinado  de  Francisco  i,  não  havia  mais  de  cem  mil  feiticeiros,  se- 
gundo o  calculo  do  padre  Crespei,  no  seu  traclado  De  la  linine.  de  Satan.  Trois- 
Écbelles,  que  era  por  certo  auctoridade  na  matéria,  revelou  que  este  numero 
havia  triplicado  em  menos  de  meio  século. 

Filesac,  doutor  da  Sorbonna,  e  também  muito  competente  em  estatística 
demoníaca,  escrevia  ein  KiOO  fiue  os  feiticeiros  eram  mais  numerosos  (|ue  as 
proslilotas,  e  cila  em  appoio  do  seu  dito  dois  versos  de  Planto,  onde  o  escri- 
ptor  lalino  diz  (|ue  as  prostituías  eram  mais  numerosas  que  as  moscas  no 
estio  : 

Nam  nuvc  lenormm  et  scnrtnrum  plus  est.  ferr 
Quiuii  olim  miiscariiin  est,  cum  caletur  maxiniò. 
Trucul. :  Act.  i,  scen.  i. 

Era  caso  para  fazer  julgar  pela  inquisição  metade  da  população  de  França. 
e  os  jurisconsullos  viam-se  obrigados  a  applicar  Ioda  a  severidade  das  leis  para 
reprimirem  a  comipçáo  dos  costumes  públicos,  corrupção  (|ue  ameaçava  destruir 
a  soi'iedade  nos  seus  fundamenlos.  Attribuiam-se  por  prudência  ao  diabo  mui- 
tos actos  detestáveis,  que  s(í  [jrovavam  a  preversão  dos  homens,  pai"a  conser- 
var II  horror  salutar  que  a  crueldade  do  vulgo  linha  pelo  siMini .  Se  as  cou- 
sas se  aprcsenlassem  evaclamente  como  eram,  esla  reunião  de  libcrlinos  seria 
inuilo  mais  fre(|ucnlada.  A  curiosidade  auxiliaria  enlão  admiravelmeníe  a  de- 
pravação moral  e  physica. 

Os  Iribunaes  moslravam-se  implacáveis  com  os  feiliceiros,  mas  sabiam 
perfcitamenle  (|ue  o  diabo  era  cxtranbo  aos  crimes  que  a  libertinagem  lhe  im- 
putava. I'óde,  jjortanto,  juslificar-se  até  certo  ponio  a  Icrrivel  legislação  da 
Edade-Média  a  respeilo  dos  feiticeiros,  c  provar-se  ([ue  a  sociedade  se  via  obri- 


DA    PROSTITUIÇÃO  313 

c;ada  a  defender-sc  a  ferro  c  fogo  confra  a  assustadora  ganf^rena  da  prostituição 
publica. 

Foi  longa  e  terrível  a  lucta  contra  esta  superstição  libidinosa,  e  durante 
muitos  séculos  o  clarão  sinistro  das  fogueiras  illuminou  a  velba  Europa,  pro- 
curando extirpar  da  sociedade  um  cancro  tão  profundamente  radicado. 

A  civilisação,  pnrém,  foi  maiseflicaz  do  que  as  fogueiras  inquisitoriaes,  e 
só  á  luz  brilhante  por  cila  irradiada  se  apagaram  nos  lobregos  recessos  das 
montanhas  os  últimos  vestígios  dn  prostifui(;ão  diabólica.  Satanaz,  isto  c,  o  vicio 
e  a  ignorância,  a  superstição  e  o  crime  não  puderam  resistir  por  muito  tempo 
a  essa  luz  trium|)bante,  e  os  horri^(•is  sahhnis  nocturnos  desappareceram  com- 
pletamente. 


HwTORU  DA  PnoíTTrmçÃo  Tomo  ii— Rolha  40 


CAPITULO  XXVII 


SUMMARIO 


A  prostitulfSo  por  meio  da  linresia  na  Edade-Média  —  O  inauir|ueismii  reapparecc  em  todas  as  lieretías.— 
Keuuiues  secretas.—  Fim  d'estas  reuniões  e  meios  de  'pi»  se  serviam. -Os  hnlqaros,  ou  bougérex  »  a  sua  doutriua 
—Sua  destrui^'So  em  I^Yança  —  K  liougerie.—  Pnlants  e  Cittliavux.-  liltymologia  d 'estes  dillei  entes  nomes.  —  Sta- 
dÍDííS,  Fraticeile.í  e  Beg<fbards.—  Us  diseiplinantes.—  Suas  reuniões  impudicas.—  \'aDtaiíens  raoraes  da  flageUa>,'.lo, 
segundo  os  casuislas.—  Abusos  rpie  a  liljertinagem  lazia  cia  llagellarão.—  Retralíj  de  um  disviplinanle,  por  Pico  de 
Mirandola  —  Flageilações  publicas  em  Krançíi  —Procissão  dos  açoitados,  no  rein.idn  ile  HMirii]Ue  iii.—  Os  novos 
adamltas.  —  Picard,  seu  propheta.  —  Ceremonial  dõ  matrimonio  entre  estes  seetarios.  —  Os  Tiirlupins.  —  Origem 
d'este  nome.  —  Seus  trajos  indecentes. —  Irmandade  dos  pobres. —  .loanna  Dabeotoune,  queimada  viva  no  Marche- 
aux  Pourceau.!.-  A  cauderie  d'Arras.—  Os  anabaptistas.  —  Seus  dogmas  de  prostituirão.—  Hayle  zomba  dVlles  e 
corabatc-os  pelo  ridículo.  -  Os  bons  e  maus  berejes.  —  Os  reformados,  ealumniados  por  causa  das  suas  assembléas. 
—A  corte  de  Koma,  denominada  a  Grande  Prostituía.—  A  lioresia  declara  guerra  á  prostituição. 


iMii.s  já  nos  primeiros  séculos  da  era  eliristã  como  a  prostituição 
sagrada  seguiu  o  paganismo,  e  como  se  foi  reproduzindo  e  con- 
tinuando na  heresia  ;  vimos  também  esta  ultima,  fundada  na  sa- 
tisfação dos  sentidos,  e  multiplicada  até  ao  infinito  no  seio  da 
I  Egreja  de  ('liristo,  d'onde  apenas  sahia  para  se  entregar  desen- 
freadamente a  todos  os  excessos  das  paixões  physicas.  Comprehende-se  perfei- 
tamente que  o  christianismo,  no  sou  principio,  invocando  apenas  as  nobres  e 
generosas  expansões  do  espirito,  devia  empregar  meios  rigorosos  para  reprimir 
e  suffocar  as  seitas  que  corrompiam  os  costumes  e  ameaçavam  o  futuro  da  nova 
sociedade,  dando  plenos  poderes  ás  forças  cegas  e  brutaes  da  matéria. 

No  emtanio,  as  perseguições  emanadas  da  auctoridade  dos  concílios,  e  di- 
rigidas pelo  braço  secular  das  egrejas  grega  c  latina,  não  lograram  aniquilar 
a  heresia,  embora  fizesssem  desapparecer  da  lace  da  lerra  os  hercsiarchas  e 
herejes.  Depois  de  guerras  sangrentas,  e  depois  de  innumeraveis  supplicios,  o 
principio  da  heresia  permaneceu  vivo  e  perseverante,  porque  este  principio 
não  era  outra  cousa  senão  a  prostituição  sagrada. 

Eis  o  motivo  porque  a  heresia,  variando  de  fiírma  e  mudando  de  nome, 
reappareceu  sem  ces.sar  na  Edade-Média;  eis  o  motivo  porque  a  prostituição 
procurou  quasi  sempre  refugiar-se  na  heresia,  como  n"um  baluarte,  dVinde  po- 
dia arrostai'  com  audácia  a  moral  do  Evangelho  e  a  austeridade  do  dogma 
chri.stão. 

Havia,  não  ha  duvida,  nas  differentes  seitas  da  heresia  doutores  e  philo- 
sophos,  que  de  boa  fé  se  consagravam  ás  discussões  metaphysicas  e  não  pro- 


31 G 


HISTORIA 


curavam  mais  que  a  verdade  com  paixão,  senão  com  discernimento;  o  vulgo, 
porém,  os  espirilos  falsos  c  preversos,  as  imaginações  fracas  e  depravadas,  as 
naturezas  ardentes  e  vicijisas,  eram  arrastadas  pelo  desejo  de  gosos  materiaes, 
c  não  viam  na  religião  sendo  um  pretexto  de  vergonhoso  sensualismo.  Não  se 
poderia  explicar  melhor  o  motivo  da  longa  pei'sistencia  da  heresia,  que  recor- 
ria sempre  ás  mesmas  seducções,  e  que  obtinha  em  toda  a  parte  o  mesmo  re- 
sultado. 

Desde  o  século  xii  até  nossos  dias,  a  heresia  fez  em  França  numerosas 
invasões,  nas  quaes  se  reconhece  ordinariamente  o  gérmen  do  maniqucismo  e 
o  fruclo  da  prostituição.  Bayle,  no  seu  Dictionnaire,  oceupou-se  do  maniqucis- 
mo, para  demonstrar  (|ue  esta  forma  de  heresia  nascera  naturalmente  do  c(m- 
traste  das  paixões  que  travam  lucta  na  vida  do  homem. 

«Como  pôde  ser,  diz  elle,  no  artigo  Guarin,  que  o  género  humano  seja 
attrahido  para  o  mal  por  um  incentivo  insuperável,  e  se  desvie  d'elle  pelo  re- 
ceio dos  remorsos,  da  infâmia,  ou  de  muitas  outras  penas?.  . .  O  maniqueismo 
sahiu  apparentemente  de  uma  grande  meditação  sobre  este  deplorável  estado 
do  homem.» 

Bayle  racionava  como  um  philosopho,  mas  a  maioria  dos  maniqueos  não 
eram  capazes  de  raciocinar  sobre  islo,  nem  mesmo  de  comprehender  o  racioci- 
nio.  .\ceeitavam  a  olhos  fechados  um  dogma  e  um  culto,  <iue  lhes  favoreciam 
a  sensualidade  e  as  desordens,  e  d'esle  modo  a  religião  não  era  para  elles  mais 
do  que  uma  continua  excitação  á  libertinagem. 

Iremos  demonstrar  agora,  a  largos  Iraços  que  seja,  a  existência  da  pros- 
tituição na  heresia  quasi  em  todas  as  épochas,  em  França  pelo  menos.  Devemos 
antes  dê  mais  nada  observar  que  em  toda  a  heresia,  a  partir  do  século  vii,  os 
sectários  tinham  reuniões  secretas  e  nocturnas  em  togares  desertos  ou  fecha- 
dos. Estas  reuniões  tinham  por  lim,  ou  pelo  menos  por  pretexto,  a  pratica  do 
culto.  Os  dois  sexos  umas  vezes  achavam-se  reunidos  n'estas  assembléas  reli- 
giosas, outras  separados,  e  conciliábulos  mysleriosos  havia  nos  quaes  apenas 
os  homens  tinham  direito  a  ser  admittidos. 

Em  grande  numero  de  casos,  Iractava-se  apenas  de  orar  em  commum, 
e  por  isso  tudo  se  passava  na  melhor  ordem  e  na  mais  liei  observância  de 
todas  as  conveniências.  NVjutros,  porém,  havia  grandes  desordens  e  abusos, 
por  causa  da  impureza  de  alguns  falsos  apóstolos  e  neophylos,  e  a  opinião  pu- 
blica apoderava-se  da  fama  d'estes  escândalos  das  reuniões  heréticas.  Accusa- 
vam  os  berejes  de  apagarem  as  luzes  a  um  signal  combinado,  e  de  se  entre- 
garem nas  trevas  a  todas  as  impurezas  (la  sensualidade.  Uuiros  atlribuiam-lbes 
os  mais  vergonhosos  excessos  de  pronuscuidade,  e  havia  ainda  quenj  os  cen- 
surasse de  ultrajarem  a  natureza  com  abomináveis  hábitos  de  sodomia. 

Os  Hulíjara.s,  que  não  se  muiliplicai-am  cm  França  até  lins  do  século  xii, 
tinham  começado  a  es|)albar-se  pela  Europa  desde  o  século  x,  estabelecendo-se 
na  Bulgária,  onde  tiveram  uma  espécie  de  papa,  ou  chefe  espiritual.  Da  pala- 
vra Huljiaroii,  destinada  a  designar  os  habitantes  da  nação  veiu  a  fazer-se  o 
nome  da  seita,  propagando-se  por  todos  os  paizes  com  a  heresia,  que  não  era 
senão  o  antigo  maniqueismo. 


1)A    PROSTITUIÇÃO  317 

Ksti!  nome  foi  logo  coitou) piílo  na  língua  IVaiiceza,  que  ao  tempo  se  lal- 
lava,  e  em  vez  de  Hulgaros,  eomeyou  a  dizer-se  fiuatjare.s  e  Bowjiãres;  de 
Hoiujutreu  fez-se  depois  llouijres,  eompreliendendo-se,  sob  esta  qualilicavào 
genérica  todos  os  homens  depravados  que  se  eonformavam  em  seus  costumes 
com  a  doutrina  e  exemplo  dos  verdadeiros  Bultjaros. 

listes  herejes  consideravam  como  ura  sacrilégio  o  acto  das  relavõcs  sc- 
xuaes,  ainda  mesmo  no  estado  do  matrimonio,  por  isso  que  não  permittiam  a 
copula  conjugal,  senão  com  a  mira  de  procrear  filhos,  e  ás  vezes  esqueciam 
este  destino  providencial  da  humanidade  para  prohibirem  absolutamente  ao  ho- 
mem lodo  o  commercio  carnal  com  a  mulher.  Tão  monstruosa  heresia  contra 
a  lei  natural  expòz  os  búlgaros  ás  mais  graves  accusações,  que  elles  mesmos 
talvez  conlirmassem  cora  o  seu  género  de  vida. 

Ainda  assim,  esta  heresia  tinha  feito  espantosos  progressos,  sobre  tudo 
no  Laiiguedoc,  quando  Filippe  Augusto,  segundo  uma  chronica  nianuscri|)ta, 
citada  por  Ducange,  mandou  seu  lillio  destruir  a  heresia  dos  Uomjrea  do  paiz. 

A  mesma  chronica  accrescenta,  cora  a  mesma  data  de  1225:  «]N'este 
aimo  juram  queimados  os  liouijres  irmãos  João,  que  eram  da  ordem  dos  frades 
pregadores.» 

Quanto  á  heresia,  que  accendeu  fogueiras  por  toda  a  Europa,  não  se  sabe 
verdadeiramente  se  era  culpada  das  horríveis  impurezas  que  a  voz  do  povo  lhe 
attribuia.  Sabe-se  apenas  que  a  heresia  que  os  chronistas  contemporâneos  (|ua- 
liticam  de  execravel — omiiiunt  errorum  fas  exirema,  diz  o  monge  (fAuxerre 
—  linha  por  synonymo  a  palavra  Houguerie,  e  isto  justificaria  só  por  si  os  ri- 
gores da  legislação  a  respeito  dos  liuUjaros. 

S.  Luiz,  apesar  da  sua  caridade  e  clemência,  não  hesitou  era  comminar 
a  pena  de  morte  contra  estes  herejes  : 

«Se  alguém  fòr  suspeito  de  bougrerie,  a  justiça  deve  prendel-o  e  envial-o 
ao  bispo,  e  se  se  provar  o  peccado,  deve  ser  queimado  o  hereje.» 

Para  se  subtrahirem  á  reprovação  geral  que  os  perseguia  em  França,  os 
Imlgams  não  encontraram  melhor  meio  que  mudar  de  nome.  Etlectivaraenle 
procuraram  confundir-se  com  os  albigenses,  que  os  repeilirara  com  horror  e 
raisturar-se  com  os  i'alares  e  Calhares,  que  não  quizeram  lambem  ser  conla- 
rainados  por  este  nome  infame.  Chamaram-se,  pois,  successivamenle  1'ateri- 
aos,  Falares,  Calhares,  Jovinianos,  ele.  Mas,  sob  estes  nomes  lodos,  eram 
ainda  suspeitos  de  bouguerie,  e  não  escapavam  á  fogueira,  quando  cahiain  nas 
mãos  dos  inquisidores.  A  historia  pode  accusal-os  de  haverem  lambem  provo- 
cado 110  reinado  de  Luiz  xiii,  pelo  horror  que  geralmente  inspiravam,  a  cru- 
zada contra  os  albigenses,  com  os  (juaes  havia  empenho  em  confundil-os. 

A  etymologia  pôde  até  certo  ponto  descobrir  nos  nomes  d'esles  herejes 
a  prova  das  torpezas  que  caracterisavam  a  sua  impura  seita.  O  nome  de  bul- 
yari  deriva-se  de  bulga,  que  significava  ao  mesmo  tempo  alforjes  de  couro, 
bolsa  e  as  bragas  do  homem.  Menaje  e  Leduchat  não  se  detiveram  n'esta  ob- 
servação etyraoiogica,  que  é  todavia  bastante  para  dar  a  entender  tudo  quanto 
por  causa  do  decoro  deixamos  de  explicar. 

O  nome  de  Paíermi "parece  ter  sido  formado  por  conlracçào  de  Palerni  e 


318  HISTORIA 

Paleniiadi,  liorojes  igualmente  maiii(|iiei)s,  qiie  no  lempo  de  Santo  Agostinho 
pretendiam  que  as  partes  inferiores  do  corpo  humano  haviam  sido  creadas,  não 
por  Deus,  mas  sim  pelo  diabo,  e  (jue  por  conseguinte  não  tiniiam  o  menor  es- 
crúpulo em  se  servirem  d'ellas  para  Ioda  a  classe  de  usos  vergonhosos. 

(hnnium  cr  illis  parlibufí  flafiiloram  licentiam  tribuentes,  impurissimè 
viinmí,  diz  Santo  Agostinho.  Tempos  depois,  o  nome  d'estes  herejes  conver- 
tia-se  em  l'(ilelin,  ou  PakiUn,  palavras  que  ficaram  na  lingua,  e  significavam 
que  estes  lierejes  usavam  de  toques  obscenos  nos  proselytos,  que  queriam  ar- 
rastar para  a  sua  seita. 

O  nome  de  Cnthari,  segumio  o  doulor  dodofrcdo  Henschenius,  citado  por 
Ducange,  provinha  da  palavra  allemã  calers,  que  significa  demónio  incubo,  e 
"ato,  e  este  epitheto  applicado  aos  Búlgaros  alludia  ás  suas  reuniões  ou  juntas 
de  libertinagem  (])ropter  nocturnas  coitiones.) 

Vm  requinte  de  libertinagem  levava  estes  sectários  a  impõr-se  lodo  o 
•'cnero  de  priva(;ucs  e  a  alleclar  um  com|deto  desprendimento  das  cousas  mate- 
riaes.  Todavia  era.  isto  apenas  uma  mascara  hypocrita  de  continência  e  abnega- 
ção, sob  a  (|ual  maior  facilidade  encontravam  para  se  entregarem  ás  suas  pai- 
xões e  a  todos  os  extravios  da  sensualidsde.  As  suas  austeras  praclicas  .le  de- 
voção davam  uma  e.specie  de  attractivo  ás  suas  desordens  occultas,  sendo  sempre 
a  proslituição  o  iman  do  proselytisrao  e  o  laço  occulto  da  heresia. 

.Nem  de  outro  modo  pôde  e\plicar-se  o  favor  que  encontrava  cada  nova 
metamorphose  do  maniqueismo,  apesar  da  perseguição  catholica. 

.Muitas  seilas  nascidas  fora  de  França,  a  dos  Siadings  em  \2'.i2,  a  dos 
Fralricelks  em  1296,  a  dos  fíeiígliayds  nu  l>p(j}iim  em  1312,  e  muitas  outras 
não  menos  extranhas,  não  tiveram  uma  existência  tão  longa  e  tão  persistente 
como  a  dos  linUjaros,  porque  não  eram  tão  favoráveis  aos  maus  instinclos  do 
homem.  Quando  em  1259  appareceu  a  S(;ifa  dos  disciplinanles,  ninguém  sus- 
peitou sequer  que  as  penitencias  voluntárias  d'estes  peccadores,  que  se  açoita- 
vam em  publico,  fossem  um  invento  de  luxuria. 

Os  proselvtos  d'esta  séila  iam  <le  dois  em  dois  em  procissão,  precedidos 
de  cruzes  e  bandeiras,  nús  até  á  cintura  i  solis  pudendis  honeste  relaiis)  mesmo 
no  meio  do  inverno,  e  açoitavam-se  muluamenle  com  correias  de  couro,  sol- 
tando gemidos  e  derramando  abundantes  lagrimas.  Ensanguentavam  as  carnes, 
e  era  então  que  mais  fervorosamente  se  flagellavam. 

Não  é  tudo  ainda:  altas  horas  da  noite  iam  ao  campo,  ao  meio  dos  bos- 
ques sombrios,  ou  togares  isolados  e  de  má  reputação,  e  alli  no  meio  das  tre- 
vas, ou  á  In/  de  archotes  redobravam  as  suas  ílagellações,  os  seus  grilos  e  as 
suas  loucuras  impudicas,  l<'acil mente 'se  calculam  as  consequências  dVstas  reu- 
niões de  homens  e  de  mulheres  semi-núas,  (|ue  se  exaltavam  com  o  espectá- 
culo d'esta  indecente  pantomima,  em  que  lodos  eram  adores  e  chegavam  gra- 
dualmente ao  ultimo  paroxysmo  do  êxtase  libidinoso. 

Os  casuistas  confessavam  que  esta  llagellação  individual  ou  reciproca  li- 
nha como  resultado  ordinário  a  .sobreexcitação  dos  sentidos,  mas  pretendiam 
que  o  pacicnie  era  mais  meritório,  se  n'esses  momentos  domava  os  Ímpetos  da 
natureza,   guaniandu  a   sua   castidade   sob  o   império  ilo   tnais   vivo  desejo  de 


UA  PKosrrruigAo  319 

pcccar.  Outros  cdsuistas,  pelo  contrario,  sustentavam  que  o  oflVito  iininediato  da 
flagcllaí,'ão  era  re|)riinir  os  mo\iinenlos  desordenados  da  carne,  caslifíando  as- 
sini  o  demónio  que  se  aloja  nas  parles  vergonhosas. 

Seja  eomo  fòr,  não  pôde  duvidar-se  que  os  disciplinantes,  lendo  tomado 
do  paganismo  o  indecente  cerenionial  <las  Luperrae.s,  não  encontrassem  n'estas 
penitencias  publicas  um  aguillião  de  libertinagem  e  uma  extranha  deleita^,'ão  sen- 
sual. O  uso  da  llagella^;ão  na  anliguidade  era  bem  conhecido  de  todos  os  liber- 
tinos, que  a  empregavam  como  uma  espécie  de  predisposição  para  os  prazeres 
do  amor.  Na  Edade-Média,  porém,  a  flagellação  erótica  raras  vezes  se  empre- 
gava, a  não  ser  no  mais  profundo  raysterio  e  tinha  tomado  um  caracter  de  fe- 
rocidade sanguinária,  que  se  reproduzia  nos  actos  dos  disciplinantes. 

Pico  de  Mirandola,  no  seu  Traclado  contra  os  asirolojios,  (\Áb.  iii,  cap. 
i7.)  indica-nos  o  que  devia  ser  a  llagellação  dos  herejcs,  descrevendo  o  refi- 
nado prazer  que  tinha  um  libertino,  quando  .se  fazia  açoitar  até  lhe  rebentar  o 
sangue  de  todas  as  partes  do  corpo. 

Este  infame  chegava  pela  dor  á  voluptuosidade,  e  só  á  vista  do  pro|)rio 
.sangue  é  que  attingia  o  supremo  deleite  sensual,  num  phrenesi  libidinoso  indes- 
criptivel. 

A  seita  dos  disciplinantes,  que  vinha  da  llalia,  e  se  propagou  rapida- 
mente por  toda  a  Europa,  não  teve  f*rande  curso  em  França  no  anuo  de  I  :'■')'.», 
porque  a  auctoridade  ecciesiastica  apressou-se  a  condemnar  e  perseguir  esta  he- 
resia, que  não  era  senão  um  odioso  espectáculo  da  prostituição.  Uiu  século  mais 
tarde,  porém,  os  disciplinantes  reappareceram  em  França,  especialmente  nas 
províncias  do  Norte  e  do  Levante,  continuando  as  suas  penifi-ncias  publicas 
com  disciplinas  armadas  de  pontas  de  ferro,  entoando  cânticos  e  incitando-s<' 
mutuamente  a  ter  grande  firmeza  na  mão. 

Havia  penitencia  commuin,  na  qual  homens  e  mulheres  com  a  cabeça  c 
o  rost(>  cobertos  e  de  espáduas  nuas  trocavam  entre  si  grande  numero  de  açoi- 
tes:  e  penitencia  individual,  em  que  cada  um  recebia  da  mão  do  ijeral  da  de- 
coçuo  um  numero  de  açoites  proporcionado  á  culpa  que  queria  expiar.  Os 
penitentes  proslravam-se  por  terra  em  posições  análogas  ás  ditlerenles  classes 
de  peccado.  O  perjuro  levantava  três  dedos  da  mão,  o  adultero  deitava-se  de 
barriga  para  bai\o,  o  ébrio  fingia  beber,  o  avaro  representava  enterrar  um  thf- 
souro,  c  todos  elles  punham  a  descoberto  a  parte  do  corpo  em  (jue  deviam  re- 
ceber a  llagellação.  O  ciíefe  da  confraria  distribuía  com  vigor  os  açoites,  se- 
gundo os  peccados  que  lhe  indicava  a  muda  pantomima  do  penitente. 

O  povo  acendia  em  tropel  a  estes  escandalosos  especiaculos  e  admirava 
com  enthusiasmo  a  constância  dos  marlyres,  que  não  se  cançavam  nem  de  dar 
nem  de  receber  açoites.  Em  1343,  durante  a  peste  negra,  havia  em  França 
mais  de  S00:000  disciplinantes,  e  entre  elles  damas  e  cavalheiros,  ávidos  da 
llagellação  publica,  que  abandonavam  os  seus  castellos,  as  suas  famílias,  e  es- 
queciam o  brilho  dos  brazões  heráldicos,  para  se  inscreverem  nestas  irmanda- 
des de  fanáticos  e  libertinos. 

Ignora-se  como  a  seita  desappareceu  em  tão  pouco  tempo,  mas  a  llagel- 
lação  religiosa  sobreviveu  aos  seus  seclai'ios,  e  para  não  ultrajar  o  pudor  pu- 


.120 


HISTORIA 


blico,  coiicenlrou-se  no  retiro  do  claustro.  Apesar  d'isto,  sahiu  novamente  das 
eellas  monásticas,  ousando  passear  pelas  ruas  de  Paris,  quando  o  rei  Henrique 
III  estabeleceu  a  ordem  dos  penitentes,  e  figurou  elle  próprio  nas  procissões 
dos  açoitados.  Este  derradeiro  ensaio  de  flagellação  publica  prova  sufficiente- 
mente  quanta  parte  tinha  a  libertinagem  em  similhantes  actos  de  devoção,  si- 
mulada ouincoberente. 

Na  maior  parte  das  heresias  provenientes  do  maniqueismo,  os  sectários 
não  se  envergonhavam  da  nudez  do  corpo,  considerando-a  até  como  uma  con- 
dição essencial  das  jiraticas  do  culto,  mais  ou  menos  abominável,  que  pi-estavam 
a  f)eus.  Os  Adamilas,  que  nunca  deixaram  de  existir  no  seio  da  egreja  christã, 
onde  evitavam,  todavia,  causar  escândalo,  não  exigiam  esta  nudez  senão  nas 
ceremonias  secretas,  mas  um  dos  seus  adeptos,  chamado  Picard,  nome  que  tal- 
vez designe  o  seu  paiz  natal,  não  se  contentou  com  uma  nudez  temporária  ou 
accidental  e  aconselhou  aos  seus  discípulos. que  andassem  sempre  nús.  Pica?-d 
dizia-se  filho  de  Deus,  e  pretendia  que  o  Pae  celestial  o  tinha  enviado  ao  mundo 
como  um  novo  Adão,  para  restabelecer  a  lei  natural,  e  o  que  elle  chamava  lei 
natural  consistia  n'estas  duas  cousas:  —  nudez  completa  e  communidade  de 
mulheres. 

r 

(Ihamaram-se  Picarás,  ou  Pkardo,^  os  que  ouvii'am  as  prédicas  d'estp 
propheta  impudico  c  quizeram  viver  segundo  a  sua  lei.  No  emtanto,  as  rela- 
ções entre  os  dois  sexos  não  se  verificavam,  sem  que  o  chefe  da  seita  o  orde- 
nasse. Assim,  quando_  um  sectário  sentia  desejos  sensuaes  para  com  alguma  das 
suas  correligionárias,  conduzia-a  á  presença  do  Mestre  e  formulava  assim  o  seu 
requerimento : 

—  O  meu  espirito  inílammou-se  por  esta  mulher. 
O  Mestre  respondia  com  estas  palavras  da  Riblia: 

—  Crescile  et  muíliplicamini. 
E  o  negocio  concluia-se. 

Os  Picardos,  que  julgariam  perder  a  sua  liberdade  original  renunciando 
á  sua  querida  nudez,  viram-se  obrigados  a  procurar  fora  de  França  um  retiro 
onde  podessem  subtrahir-se  ás  perseguições  da  inquisição.  Reí'ugiaram-se,  por-  . 
tanto,  na  Bobemia,  junto  dos  Hussilan,  que  apesar  de  herejes,  se  indignaram 
das  infâmias  d"aquelles  miseráveis,  e  os  exterminaram  até  ao  ultimo,  sem  pie- 
dade nem  mesmo  para  mm  as  mulheres,  que  estavam  todas  gravidas,  e  recu- 
saram obstinadamente  vestir-se  na  prisão,  onde  deram  á  luz,  no  meio  de  gar- 
galhadas e  cantando  canções  horríveis.  (V.  Hayle,  Diclion.) 

Parecia  que  a  prostituição  não  poderia  chegar  a  novos  excessos,  quando 
cm  \'M'.\  os  Pirardos  resuscitarani  em  França  sob  o  nome  de  Turlupins.  Este 
nome,  cuja  etymologia  não  foi  bem  determinada,  parece  fazer  allusão  á  vida 
errante  c  brutal,  que  tinham  estes  novos  adamitas,  escondiílos  como  os  lobos 
no  fundo  das  íloresias.  Não  só  andavam  completamente  nús  como  os  Picardos, 
senão  que,  á  imitação  dos  cynicos  gregos,  «faziam  a  obra  da  carne  á  luz  do  dia, 
em  presença  de  todo  o  mundo.»  São  palavras  de  Bayle,  ao  tractar  d'estes  he- 
rejes. 

A  sua  doutrina  era  pouco  mais  ou  menos  a  dos  liegardos,  que  foram  con- 


DA    PROSTITUIÇÃO  321 

clemnados  pelo  concilio  de  Ravena  cm  1312.  Ensinavam  que  o  homem  ('■  livre 
para  obedecer  a  lodos  os  instinclos  da  natureza,  e  que  a  |)erfeição  consiste  n'uma 
liberdade  sem  limites,  .\ccrescentavam  ainda  que  a  creatura  deve  orpulhar-se 
de  tudo  quanto  recebeu  do  Oeador.  Eis  o  motivo  porque  tinham  em  tanta  es- 
tima o  seu  estado  de  nudez. 

INo  emtanto,  íoram  obrigados  a  vestir-se,  por  causa  do  frio  sem  duvida, 
mas  ainda  assim,  deixavam  a  descoberto  os  attributos  do  seu  sexo,  ostcntamlo 
sem  pudor  o  que  julgavam  divino.  O  douto  (lenebrad  diz  expressamente  na  sua 
Chronica,  que  esta  seita  detestável  se  fazia  reconhecer  pela  nudez  parcial  com 
que  descaradamente  se  apresentava  em  toda  a  parte. 

Estes  infames  multiplicaram-se  na  Saboya  e  no  Delphinado,  mas  a  sua 
principal  associação  era  em  Paris,  presidida  por  uma  mulher  chamada  Joanna 
Dabentonne,  que  foi  queimada  viva  no  Mairhc-iiu.v-Pmirceaux,  perlo  da  praça 
de  Sainl-Honoré.  Foram  ao  mesmo  tempo  queimados  os  livros  da  confraria  e 
muitos  dos  pregadores  d'esta  superstição  religiosa,  que  havia  tomado  o  nome 
de  Irmandade  dos  Pobres. 

Carlos  V  encarregou  Jacques  de  More,  da  ordem  de  S.  Domingos,  de  ir 
ás  províncias  meridionaes  da  França  extirpar  tão  execravel  heresia.  Jacques  de 
Mure,  (|ue  tinha  o  titulo  de  inquisidor  dos  Bougres,  não  teve  compaixão  com 
o.s  sectários  de  ambos  os  sexos,  surprehendidos  em  flagrante  delicto.  Desde  en- 
tão não  ficou  d'essa  irmandade  impudica  mais  do  que  o  nome  proverbial  de 
lurlupin.  que  se  usa  no  sentido  de  chocarreiro  ou  truão  sem  graça,  provavel- 
mente em  recordação  das  prédicas  excêntricas  e  dos  vestidos  ridículos  da  seita 
de  Joanna  Dabentonne. 

Houve  ainda  outras  heresias  em  que  a  mais  criminosa  prostituição  se 
cobria  com  o  manto  religioso.  .4ssim,  a  famosa  rauderie  d'Arras  no  século  xv 
não  era  mais  do  que  um  simulacro  da  doutrina  dos  mudes,  misturada  com  a 
feiticeria,  e  que  servia  de  pretexto  ás  assembléas  nocturnas,  cheias  de  abomi- 
náveis mysterios. 

iNo  capitulo  precedente,  referimos  parte  dos  mysterios  que  os  feiticeiros 
praticavam  no  ceremonial  ordinário  do  sabbat;  outras  reuniões  havia  ainda, 
que  nada  tinham  que  ver  com  o  diabo,  e  que  não  tinham  mais  decência.  Eram 
feitas  por  uma  associação  de  libertinagem,  organisida  por  sacerdotes  apostóli- 
cos, que  pregavam  o  mais  sórdido  epicurismo  e  pregavam  com  o  exemplo  e  com 
a  palavra.  O  inquisidor  da  diocese  dWrras,  auxiliado  pelo  conde  d'Étampes, 
governador  do  Artois,  dirigiu  ao  principio  as  perseguições  contra  as  mulheres 
publicas,  que  eram  os  apóstolos  mais  perigosos  da  vaiiderie;  pouco  depois  fo- 
ram comprehendidos  n'estas  perseguições  judiciaes  homens  do  povo,  fidalgos, 
e  personagens  de  representação,  prevertidos  já  pela  nova  heresia. 

Submettidos  á  tortura,  osjaccusados  fizeram  espantosas  revelações  c  mui- 
tos d"elles  foram  condemnados  á  fogueira.  Durou  mais  de  trinta  annos  esta 
horrível  perseguição  contra  os  vauderes  dWrras,  e  accendeu  milhares  de  fo- 
gueiras no  Artois. 

Vauderes,  Anabaptistas,  Adamitas  e  Maniijueos,  apezar  da  violência  das- 
perseguições,  rena.sciam  sempre  das  próprias  cuizas,  tão  certo  é  que  a  liberti- 

UuToRiA  DA  Prostituição.  Tomo  ii— Folua  41. 


322  HISTORIA 

nagem  (em  alfractivns  irrcsisfivcis  para  certas  nalurczas  prevcrsas,  débeis  ou 
depravadas!  Ainda  assim,  varias  heresias  invertidas  pela  prostituição  percor- 
reram a  Europa  sem  entrar  em  h'ança,  ou  pelo  menos  sem  alli  fazerem  gran- 
des progressos.  Assim,  os  Anabaptistas,  que  chegaram  a  ter  exércitos  na  Hol- 
landa  e  na  Allemanha,  appareceram  apenas  isoladamente  em  alguns  estados 
do  rei  christianissimo.  E  comtudo  estes  herejes  abriam  largo  campo  á  prosti- 
tuição, quando  ensinaram  que  toda  a-  mulher  é  obrigada  a  prestar-se  á  sensua- 
lidade de  todos  os  homens,  e  que  todo  o  homem  é  igualmente  obrigado  a  sa- 
tisfazer todas  as  mulheses. 

Bayle,  mettendo  a  ridículo  a  impossibilidade  material  de  similhante  dou- 
trina, pensa  com  razão  que  era  uma  fabula  inventada  pelos  adversários  dos 
anabaptistas,  afim  de  os  tornar  ao  mesmo  tempo  odiosos  e  ridículos.  A  dou- 
trina do  coraniunismo  das  mulheres,  não  é  tão  depravada  com  esta  abominação, 
porque  não  tira  ao  sexo  fraco  a  liberdade  de  recusar,  nem  compromette  a  cons- 
ciência de  ninguém.  E'  demasiado  absurdo  estabelecer  como  principio  que  o 
matrimonio  é  contrario  á  lei  de  Deus,  e  (|ue  a  mulher,  para  se  conformar  com 
esta  lei,  deve  pertencer  successiva  ou  simultaneamente  a  todos  quantos  a  sol- 
licitarem.  O  sexo  mais  fraco  estava  entregue,  segundo  esta  detestável  heresia, 
ás  paixões  brutaes  e  "depravadas  do  sexo  mais  forte.  A  prostituição  introdu- 
zira-se  d'este  modo  no  código  religioso  d'aquelles  fanáticos,  que  deram  ao 
mundo  o  odioso  espectáculo  dos  seus  estranhos  desvarios  no  meio  das  mais 
horríveis  scenas  de  assassínios,  incêndios  e  roubos,  tanto  é  verdade  que  a  i)ros- 
tituição  pôde  comparar-se  a  un)  caminho  coberto  de  llores,  conduzindo  a  ut» 
horrível  ab ysmo ! 

Os  anabaptistas  não  eram  senão  maniqueos  disfarçados,  assim  como  a  maior 
parte  dos  lierejes,  que  procuraram  fundar  seitas  depois  do  século  xn,  e  que 
tinham  todo  o  cuidado  em  não  confessarem  a  sua  origem  commum.  De  resto, 
em  cada  heresia,  havia  bons  e  maus,  puros  e  impuros,  de  maneira  que  cada 
qual  seguia  os  impulsos  da,sua  natureza,  segundo  obedecia  mais  ou  riienos  ao 
espirito  (ui  á  matéria.  P('ide,  portanto  dizer-se  com  o  sábio  Beausobre,  histo- 
riador do  maniqueismo,  que  os  maniíiueos  foram  sempre  calumniados.  Deve 
crér-se*tudo  quanto  geralmente  se  dizia  das  suas  assembléas  nocturnas  e  dos 
horrores  que  se  praticavam  alli  no  meio  das  trevas?  Similhantes  accusaçòes 
reproduziram-se  em  todos  as  épochas,  e  é  de  notar  que  os  pagãos  attribuiam 
aos  primitivos  christãos  os  costumes  dissolutos  e  as  praticas  sacrílegas,  que 
os  christãos  attribuiram  depois  aos  herejes. 

E'  muito  de  suppor  (|ue  o  christianismo  e  o  paganismo  se  servissem  das 
mesmas  armas  contra  os  seus  adversários,  a  (|uem  combatiam,  calumniando-os 
do  mesmo  modo.  Tanto  na  heresia  como  no  christianismo  (trimitivo  houve  sem 
duvida  naturezas  ardentes,  exaltadas  e  [)reversas,  que  se  aproveitaram  do  culto 
para  a  satisfacção  dos  seus  sentidos,  e  que  d'esle  modo  auetorisaram  a  crença 
geralmente  estabelecida  no  vulgo  acerca  das  aboniinaçõ(>s  praticadas  nas  reu- 
niões secretas,  em  que  se  apagavam  as  luzes. 

Os  próprios  protestantes  não  estiveram  na  sua  origem  ao  abrigo  das 
injuriosas  suspeitas  a  (|iic  tiavam  margem  as  reuniões  nocturnas  de  ambos  os 


r>A    PROSTITUIÇÃO  32ÍÍ 

sexos.  Como  estas  reuniões  se  ruileavam  de  um  profundo  mysterio,  para  se 
subtrahirem  á  curiosidade  e  á  perseguição  dos  catlioiieos,  como  preferiam  as 
noites  mais  escuras  e  os  logares  mais  sombrios  e  retirados,  suppoz-se  que  a 
nova  seita  tiniia  motivos  para  occultar  as  suas  cermonias  e  as  suas  doutrinas. 
O  povo  foi  sempre  muito  propenso  a  diffundir  estas  indignas  falsidades  e  a 
dar-lhes  inteiro  credito. 

«Ouvi  contar,  diz  Brantòme,  nas  suas  Dnmes  galanles,  ouvi  contar  que 
quando  os  luiguenotteá  fundaram,  a  sua  religião,  tinham  as  suas  predicas  de 
noite  e  em  silios  occultos,  temendo  ser  surprehendidos  e  castigados,  como  fo- 
ram um  dia  na  rua  de  Saint-Jacques,  cm  Paris,  no  tempo  de  Henrique  ii, 
on^e  algumas  illustres  damas  estiveram  a  ponto  de  ser  surprehendidas.  Logo 
que  o  ministro  concluía  a  sua  prédica,  recommendando-lhes  a  caridade,  apa- 
gavam-se  as  luzes,  c  cada  um  e  cada  uma  a  exercia  com  o  seu  irmão  e  a  sua 
irmã,  segundo  a  sua  vontade  e  poder.  O  que  eu  não  ouso  crer,  embora  me  as- 
segurem que  é  verdade;  mas  é  possível  também  que  seja  mentira  e  calumnia.» 

No  emtanto,  e  apesar  da  asserção  do  catholíco  abbade  Brantòme,  que 
refere  as  aventuras  da  bella  Grotlerelle,  pôde  dizer-se  com  visos  de  verdade  que 
nunca  os  innovadores  do  século  \vt  em  França  deram  iogar  aos  escândalos 
com  que  os  anabaptistas  e  os  adamílas  dos  Paizes-Baivos  oITendiam  o  pudor  pu- 
blico. Nunca  em  toda  a  historia  das  innovações  religiosas  de  França  poderia 
enconlrar-se  facto  algum  simílhante  áquclla  indecente  reunião  que  teve  Iogar 
em  Amsterdam,  a  13  de  fevereiro  de  I53'j,  na  qual  sete  homens  e  cinco  mu- 
lheres, cedendo  ás  excitações  e  exemplo  de  um  proplicta  anabaptista,  se  des- 
pojaram das  suas  vestes,  as  arremessaram  ao  fogo  e  sahiram  para  a  rua  em  es- 
tado de  complcla  nudez.  (Hclal.  des  lamuítes  des  Anabapt,  por  L.  Hortênsia.) 
Só  entre  os  convulsionarios  do  século  xviii  c  ([ue  se  encontra  em  França  algu- 
ma analogia  com  aquella  cegueira  da  prostituição  religiosa. 

Esta  persistência  da  prostituição  na  heresia  em  todos  os  tempos  e  paizes 
prova  superabundanlemente  a  excellencia  da  moral  evangélica,  a  única  que 
tinha  poder  para  combater  os  grosseiros  appetites  da  sensualidade.  .4  heresia 
começa  desde  que  o  christão,  assaltado  pelo  demónio  da  carne,  quebra  os  la- 
ços da  continência  e  se  entrega  aos  funestos  instinetos  que  o  impellem  ao  vi- 
cio. Se  os  discípulos  de  Luthero  e  de  Calvino  chamaram  á  corte  de  Rdina  a 
Cirande  Prosiiluki,  foi  porque  a  Egreja  romana,  na  épocha  cm  que  apparece- 
ram  estes  reformadores,  havia  esquecido  completamente  os  preceitos  deJesus- 
Christo. 

Foi  então  que  a  heresia,  purificada  no  Evangelho,  ao  passo  que  a  Santa 
Catbedr^a  se  transformara,  por  assim  dizer,  no  sanctuario  da  prostituição,  fez 
cíirar  de  vergonha  o  catholicísmo,  apontando  a  depravação  dos  .seus  ministros 
e  a  corrupção  dos  seus  sectários.  A  heresia  teve  a  gloria  de  i^estabelecer  a  cas- 
tidade de  costumes  na  Egreja  de  Jesus. 


CAPITULO   XXVIII 


SUMMARIO 


Os  antigos  seraionarios  fazem  a  historia  ila  priistituifão  ilo  seu  tempo,  —  a  prostituiçãn,  segundo  Dulsure. 
—Opinião  de  Henrique  Estienne.  — A  prédica  de  Olivier  Maillard.— Os  vendiltiões  do  templo.— Numero  de  raullieres 
publicas  era  Paria  no  seeuln  xv.— Admiração  do  poeta  António  Astezani.-Os  namorados  ua  E^reja.— Préaava-se  em 
francez  ou  em  latim?— Olivier  Maillard  em  Saint-.Iean-en- Greve.  —Extracto  dos  seus  sermões  e  dos  de  Miguel 
Menot  relativos  a  prostituição.  —  Desenvolvimento  da  prostituição  no  tempo  de  Luiz  xi.  Carlos  viu  e  Luiz  xii.— Mães 
que  vendem  as  filhas.-  Filhas  que  recorrem  á  prostiluição  para  ganharem  o  dote.— Estylo  macarronico  de  Menot.— 
O  corretor  do  amor  e  as  cinco  mulheres.  — Corrupção  dos  ecciesiasticos.  —  As  concubinas ap  ão  e  agua.  —  Mvsteiios 
dos  convi  ntos,  segundo  Theodorico  de  Niem.  —  Os  jogos  de  palavras  no  púlpito  do  italianíj  Barletta.  —  Causas  do 
progresscida  prostituição. 


EMos  extrallido  as  provas  d'esta  historia  das  obras  ílos  poetas 
que  na  sua  maior  parte  passavam  vida  errante  e  iii)ertina,  e 
provámos  que  estas  obras  eram  o  espelho  liei  dos  costumes  da 
époeha  em  que  foram  eseriptas.  Não  é  somente  nos  poetas 
onde  iremos  agora  procurar  os  vestígios  da  corrupção  publica 
desde  o  fim  do  século  xv  até  aos  primeiros  annos  do  século  xvi. 

E'  aos  sermonarios  dos'  pregadores  contemporâneos  que  iremos  l)uscar 
agora  cores  novas,  mais  fidedignas  e  mais  audaciosas  para  completarmos  o  e\- 
tranho  quadro  de  uma  corrupção  geral,  que  demonstra  bem  a  impolencia  das 
leis  divinas  e  humanas  contra  o  demónio  da  sensualidade. 

Dulaure,  que  na  sua  Historia  de  l'aris  se  serviu  egualmente  dos  anti- 
gos sermonarios  para  pintar  o  estado  moral  da  sociedade  n'aquella  mesma 
époeha,  não  exaggera  quando  apresenta  a  prostituição  como  a  rainha  Irium- 
pbante  do  século  xv,  e  accrescenta  que  era  um  dos  efteitos  dos  vicios  do  go- 
verno. 

«A  prostituição  auclorisada  pelos  reis,  diz  o  implacável  Dulaure,  era 
também  favorecida  por  um  grande  numero  de  celibatários,  sacerdotes  e  frades 
e  peja  libertinagem  dos  magistrados,  homens  de  guerra,  etc.  Dulaure  não  sus- 
tenta a  Ihese  da  Apologia  de,  fleraclio,  em  que  Henrique  Estevam  se  esforça 
por  demonstrar  que  tudo  vac  de  mal  a  peior  n'este  mundo  «porque,  por  grande 
que  fosse  n'esse  tempo  a  corrupção,  diz  elle,  pequena  era  ainda  assim,  em 
comparação  da  que  se  lhe  seguiu,  visto  que  foi  sempre  gradualmente  cres- 
cendo.» 

Os  sermonarios,  sobretudo  os  que  eram  escriptos  em  estylo  simples  ou 
trivial,  ao  alcance  do  povo,  ollerecem-nos  testeiiitinhos  incontestáveis  da  prc- 


320  _  HISTORIA 

versiihulc  lio  seu  feculo,  e  podcmos-acceilar  como  verdadeiros  a  maior  parte 
dos  factos  referidos  ii'esses  discursos  oratórios.  Olivier  Maillaid,  Miguel  Menot, 
João  Cleréo,  (iuillierme  Pepin  e  .muitos  outros  pregadores  celebres,  que  não 
se  importavam  de  cultivar  no  púlpito  llores  oratórias,  tinham  maior  acção  e 
auctoridade  sobre  o  seu  auditório,  composto  de  gente  simples,  quando  fallavam 
com  a  eloquência  do  coração,  do  lioni  senso  c  da  honradez,  quando  entiavam 
francamente  na  pintara  dos  vicios  e  torpezas  que  pretendiam  verberar  e  cor- 
rigir. 

Eram  ás  vezes  grosseiros  e  livres  nas  suas  expressões  e  nos  exemplos 
de  que  se  serviam  para  se  tornarem  mais  inlelligiveis  ao  seu  auditório,  mas 
por  isso  mesmo  impressionavam  muito  mais,  obtendo  resultados  extremamente 
louváveis,  embora  á  custa  de  meios,  que  estavam  longe  de  o  ser. 

Podemos  aitirmar  que  esícs  sermões,  apezar  de  nos  parecerem  hoje  ri- 
dículos c  escandalosos,  operavam  então  grande  numero  de  conversões  verda- 
deiras, c  o  pregador  ao  descer  da  cadeira  da  verdade  via  o  confessionário  cheio 
de  arrependidos.  Actualmente  muitos  são  os  que  se  riem  á  custa  d'estes  anti- 
gos sermonarios,  que  tinham 'tão  extravagantes  movimentos  oratórios,  e  que 
empregavam  tão  excêntricos  recursos,  acompanhados  de  gestos  ridículos,  mas 
não  SC  faz  uma  ideia  perfeita  da  espécie  de  publico  que  accudia  a  ouvir  as  pa- 
lavras, bem  pouco  edilicantes  pr.ra  nós,  d'aquelles  frades  pregadores. 

')  publico  d'esses  bí  ms  iL^mpos,  no  qual  o  sexo  feminino  estava  por  certo 
em  maioria,  iião  se  reçommcndava  nem  pela  decência  dos  costumes  nem  pela 
pureza  das  intenções.  Aquellas  mulheres  apre,senlavam-se  na  egreja  impudica- 
mente vestidas,  para,  segundo  a  phrase  da  época,  fazerem  caçada  aos  olharea, 
provocando  os  homens,  marcando-lhes  entrevistas  mesmo  na  casa  do  Senhor, 
procurando  aventuras  e  lazèn'^  contractos  de  galanteria  ou  vendas  de  amor. 

«Se  quabjuer  homem  levasse  o  sou  cavallo  á  egreja  para  o  vender,  diz 
o  andor  de  um  poema  latino  manuscripfo,  intitulado  Mntheolus  bigamus,  pra- 
ticaria uma  coisa  em  extremo  incoavenicnie.  (^>ue  direjnos  então  das  mulheres 
que,  sob  pretexto  <lc  religião,  vão  á  egreja  para  se  venderem  a  si  próprias? 
Não  serão  mais  culpadas  ainda  '  Não  convertem  a  casa  do  Senhor  n'um  mer- 
cado de  prostituição?» 

O  mesmo  poeta  enumera  Iodas  as  egrejas  c  capellas  de  Paris  em  que  se 
realisava  esta  feira  de  prostituição. 

Paris  contava  no  século  xv  cinco  ou  seis  mil  mulheres  dedicadas  á  pros- 
tituição legal,  segundo  o  calculo  de  um  escriplor  contemporâneo.  IJm  poeta 
italiano,  António  Astczani,  qu(>  viajava  em  França  por  esse  tempo,  escrevia 
n'uma  das  suas  cartas  datadas  de  Paris: 

«Vi  aqui  com  grande  admiração  uma  multidão  innumeravcl  ne  mulheres 
em  extremo  bcllas,  de  maneiras  tão  graciosas  e  lascivas,  que  seriam  capazes 
de  iiillammar  o  prudente  Neslor  e  o  velho  Priamo.  (v.  Jennne  d'.\rr,  por  Her- 
ryat  Saiiit-Prix,  ]).  lill.) 

lloniáinos  iroutro  logar,  cxtrabindo  o  fado  do  .lonrnal  dn  hourijeois  de 
Paris,  que  António  de  Loré,  preboste  da  cidade,  deixou  augmentar  desmedi- 
damcnli'  o  niimcio  das  ribahias,  a|)czar  das  disposições  policiaes  em  contrario. 


DA    PROSTirUigAO 


327 


a  poiílii  lie  lazer  iiuliniiar  n  pniprio  redactor  do  ./o/thííL  .Nenhuiua  duvida  te- 
mos de  (|ue  estas  ribaldas,  que  costumavam  inostrar-se  à  porta  das  egrejas  com 
os  seus  rozarios  e  livnts  de  devoção  adornados  de  ouro  e  prata,  formavam  a 
parte  mais  assídua  do  auditório  n'estas  prédicas  a  que  assistiam  para  arranja- 
rem fi'e^ue/es. 

t:iemente  de  Marol,  que  se  pòz  em  evidencia  no  seu  IHalofio  ihs  íia;,o- 
rados,  declara  lia  ver  encontrado  a  sua  bel  la  na  cgreja.  Era  provavelmente  a 
mesma  costureira  de  quem  tanto  se  enamorou,  antes  que  a  peccadora  lhe  dei- 
xasse bem  dolorosas  recorda(.'ões. 

O  seu  amigo  pergunta-llie  onde  se  apaixonou  tão  subitamente. 
"  —  N'uma  egreja,  responde  o  poeta  dando  um  suspiro.  Foi  alli  que  co- 
meçaram os  meus  amores. 

O  amigo  ri  ás  gargalbadas,  c  observa-lhe: 

—  Ahi  téem  as  nossas  devoções. 

l)iscreteou-se  muito  alim  de  averiguar  se  o  pregador,  que  se  dirigia  a 
este  galante  auditório,  fallava  francez  ou  latim.  Uns  sustentaram  que  os  ser- 
mões, pregados  em  lingua  vulgar,  se  escreviam  logo  em  latim  para  a  impres- 
são: outros,  pelo  contrario,  pensaram  que  visto  fallarem  os  advogados  no  foro 
em  latim,  não  deviam  os  p.i-égadores  scrvir-se  da  lingua  vulgar.  A  disputa, 
apcíar  de  toda  a  copia  de  erudieção  com  que  foi  tractada  por  uma  e  outra 
paiMe,  está  ainda  pendente,  e  é  agora  occasijo  de  a  resolver.  Notaremos  desde 
já  ([ue  Olivier  Maillard,  tendo  pregado  em  Bruges  eni  francez  (V.  este  sermão 
em  i  de  agosto,  lá  f.)  não  havia  de  pregar  em  latim  era  Paris,  em  Tours,  i- 
cm  Poitiers.  E'  provável  que  os  seus  sermões,  reproduzidos  peia  stenographia, 
na  occasião  em  que  eram  pregados,  fossem  traduzidos  em  latim  macarronicd, 
exactamente  como  os  do  italiano  riuilherme  Barletla,  que  pregava  na  sua  lin- 
gua em  \eneza  sermões,  que  não  eram  publicados  senão  em  latim.  O  latim  ma- 
carronico  era  até  muitíssimo  próprio  para  reproduzir  a  linguagem  burlesca  e 
livre  d'aquelles  pregadores  populares. 

Olivier  Maillard,  cuja  reputação  estava  solidamente  estabelecida,  no  tempo 
de  Luiz  XI,  pregava  ordinariamente  em  Saint-Jean-en-Grève,  e  é  de  crer  que 
a  pí.pulação  immunda  das  ruas  visinbas  accudisse  em  tropel  aos  seus  sermões, 
que  tinham  sempre  por  objecto  a  luxuria  e  a  libertinagem  do  seu  tempo  (hiijus 
lempuns),  diz  o  pregador  a  cada  momento.  Chama  a  todas  as  cousas  pelos  seus 
riomes,  sem  empregar  periphrases,  a  não  ser  para  accrescenlar  mais  alguns 
traços  ás  suas  grosseiras  pinturas.  Xão  se  preoccupa  com  a  santidade  do  logar 
em  que  pronuncia  as  suas  invectivas  contra  os  agentes  e  os  actos  da  prostitui- 
ção, e  parece  mesmo  com|)razer-se  em  tomar  as  suas  expressões  do  vocabulá- 
rio do  vicio  ((ue  llagella:  mas,  apesar  d'esla  licença  de  termos  e  de  imagens, 
não  o  podemos  accusar  de  uma  immoralidade,  qae  não  existe  no  seu  pensa- 
mento. 

Devemos  recordar  a(|ui  uma  circumstancia  bastante  attendivel :  —  n'a- 
quelle  tempo  a  obscenidade  da  linguagem  não  era  consequência  immediata  de 
uma  vida  ob.scena  e  desbragada,  e  nos  assumptos  mais  graves,  mais  sérios  i' 
mais  dignos,  o  emprego  de  uma  palavra  li\re  ou  de  uma  tigura  indecente  não 


328  HISTORIA 

ei'a  considerado  como  um  ultraje  aos  ouvidos  castos,  ou  às  consciências  ho- 
nestas. Para  se  apreciar  bem  o  que  era  a  prostituição  parisiense  em  fins  do  sé- 
culo XV,  jjasta  extraliir  dos  sermões  de  Olivier  Maiiíard  e  de  Miguei  Menot  o 
que  alli  se  diz  a  respeito  dos  iierdeis,  das  prostitutas,  dos  libertinos,  e  de  to- 
das as  impurezas  e  infâmias  que  elles  censuram  aos  seus  contemporâneos. 

^'as  citações  que  vamos  fazer,  servir-nos-liemos  do  estylo  elegante  de 
Henrique  Estienne,  quetraduziu  um  grande  numero  d'estas  passagens  na  sua 
Introdacção  ao  traclado  das  maravilhas  antigas  e  modernas,  ele. 

Estienne,  como  bom  protestante  que  era,  attribuia  malignamente  ao  ca- 
(iinjirismo  as  liberdades  e  indecencias  dos  seus  pregadores,  sem  se  lembi'ar 
que  l.utbero  e  Caivino,  tanto  nos  seus  sermões  como  nos  seus  escriptos,  não 
guardaram  maiores  reservas  ao  descreverem  os  excessos  da  Grande  Prostituta 
Romana. 

Comecemos  pelos  logares  de  libertinagem: 

«Ha  prostitutas  em  todas  as  ruas  de  Paris».  Maillard.  (Jnadrat/.  serni.  23. 

N'outro  logar  (|ueixa-se  dos  proprietários,  dizendo  : 

«Alugam  as  suas  casas  ás  prostitutas  e  aos  alcoviteiros  dos  dois  sexos. 
Em  tempos,  o  rei  S.  Luiz  mandou  construir  fora  da  cidade  uma  casa  para  as 
mulheiTs   publicas.   Actualmente  ha  Ixji-deis  por  todas  as  esiiuioas  das  ruas.» 

l)irigindo-se  aos  magistrados,  para  os  exbortar  a  rumprir  a  antiga  dis- 
posição do  santo  rei,  diz: 

«O  que  é  feito  das  ordenações  de  S.  Luiz?  O  santo  rei  [wescreveu  que 
nunca  os  bordeis  estivessem  perto  dos  collegios  e  casas  de  educação,  e  agora  a 
primeira  cousa  que  os  estudantes  encontram  ao  sahir  das  aulas,  é  o  bordel.» 

lí  ataca  oulra  vez  ainda  os  proprietários,  (|ue  apenas  cuidam  de  obter 
bom  alugueres:  mas,  ao  mesmo  tempo  confessa  que  se  as  riltaldas  fossem  ex- 
pulsas das  grandes  cidades,  a  libertinagem  seria  muito  mais  escandalosa. 

Menot  accrescenta  que  não  havia  apenas  bordeis  estacionários  e  regula- 
mentados, masque  a  libertinagem  estava  em  toda  parle,  e  não  havia  casa  alguma 
izenta  de  impureza.  Tanto  nas  cidades  como  nos  subúrbios,  não  se  via  outra 
mercadoria  senão  mulheres  publicas!  Esta  mercadoria  era  de  todas  as  edades 
e  de  todas  as  condições.  Velhas  e  novas,  casadas  e  solteiras,  criadas  e  amas, 
todas  faziam  o  (|iie  o  pregador  chama  lurruni  rorporis,  tra(i<;o  do  seu  corpo. 

As  tabernas  e  as  estalagens  eram  n'es(e  tempo,  como  sempre,  albergues  de 
prostituição.  Miguel  Menot  põe  najsoca  dos  rapazes  casados.de  fresco  estas  pa- 
lavras: 

«Sabeis  qne  não  podemos  trazer  sempre  as  nossas  mulheres  atadas  á  cin- 
tura, nem  mettidas  na  manga,  e  todavia  a  nossa  juventude  não  pode  passar 
sem  mulheres.  Entramos  nas  tabernas,  nas  hospedarias,  nos  banhos  e  n'outros 
togares  onde  encontramos  raparigas  liabeis  no  seu  oHicio  e  (|ue  se  dão  por  pouco 
dinheiro.  Será  por  ventura  um  mal  servimo-nos  -.i'ellas  como  de  nossas  mu- 
lheres?» 

Os  banhos  pubiicíjs  s(M'viam  também  |)ara  estes  encontros  amorosos.  Mail- 
lard falia  d'elles  muitas  vezes,  e  no  sermão  De  peceati  stipendio  diz  ao  seu 
auditório : 


DA    PROSTITUIÇÃO  329 

«Senhoras,  não  vão  aos  banhos,  e  não  façam  n'elles  o  que  sahem.» 

As  egrejas,  que  a  prostituição  não  respeitava  melhor  do  que  as  tabernas 
ou  os  banhos,  eram  ás  vezes  eomo  que  uma  succursal  dos  bordeis. 

«Se  as  columnas  das  egrejas  tivessem  olhos,  exclama  Maiiiard,  o  vissem 
o  que  se  passa  em  redor  d'ellas,  se  tivessem  ouvidos  para  ouvir,  e  ptdessem 
fallar,  o  que  diriam  ?  De  mim  confesso  que  o  não  sei,  mas,  reverendos  sacerdo- 
tes, o  que  me  dizeis  a  isto?»  (Quadrag.  Serm.  II.) 

Encontra-se  etTectivamentc  em  todos  os  penitenciaes  antigos  a  designa- 
ção especial  do  peccado  de  luxuria  commettido  n'unia  egreja,  ou  durante  os 
officios,  ou  depois  das  ceremonias  de  culto,  o  que  estabelecia  muitos  graus 
n'este  peccado  e  na  sua  penitencia.  Maiiiard  admirava-se  até  de  que  os  santos 
sepultados  nas  egrejas,  onde  taes  abominações  se  conimettiam,  não  se  erguessem 
dos  seus  túmulos  para  arrancar  os  olhos  aos  libertinos  e  ás  suas  infames  ri- 
baldas.  Nem  Maiiiard,  nem  os  outros  pregadores  do  seu  tempo,  nos  dão  circums- 
tanciados  pormenores  a  respeito  das  ribaldas  de  profissão.  Apesar  de  as  deno- 
minar vis  meretrizes,  não  dei\a  de  se  compadecer  d'ellas: 

<\0h  pobres  peccadorasl  exclama  eile.  Oh  mulheres  mundanas,  que  vi- 
veis como  os  cães  (socim  canum),  não  sejaes  duras  de  coração;  convertei-vos, 
convertei-vos!.  . .» 

N'outro  logar,  exhorta-as  a  voltar  para  Deus  com  os  seus  cúmplices  de 
libertinagem,  para  não  perderem  as  suas  almas  nas  delicias  do  mundo: 

«Oh  peccadoresi  Oh  companheiros  d'essas  desgraçadas!  Rogo-vos,  em 
nome  de  Jesus-Christo,  que  não  deixeis  perder  a  alma  nos  deleites  munda- 
nos ! .  .  .  » 

N'()utro  sermão  intima-as  a  converterem-se,  chamando-lhes  filhas  do 
diabo.  Dirige-se  também  ás  cortezãs,  que  occultam  a  sua  vergonhosa  profissão, 
exerccndo-a  secretamente  (vos  secretce  meretrices  quce  facitis  pejora  publica), 
Vê-se  que  mostra  um  sentimento  de  caritativa  compaixão  para  com  estas  des- 
graçadas victimas  da  sensualidade. 

(Juanto  aos  agentes  da  prostituição,  mostra-se  implacável,  denunciando-os 
ao  ódio  e  desprezo  das  pessoas  honradas  e  invocando  contra  elles  todo  o  rigor 
das  leis  : 

«Estarão  aqui  os  encarregados  de  fazer  justiça?  Pergunto-vos,  magistra- 
dos, que  castigos  infligis  aos  corretores  da  prostituição  n'esta  cidade?» 

De  outra  vez  dirige-se  também  aos  magistrados,  convidando-os  a  casti- 
gar a  excitação  á  libertinagem  : 

«Appello  para  vós,  senhores  da  justiça,  que  não  castigaes  similhantes 
preversas»,  diz  elle  referindo-se  ás  mulheres  perdidas  que,  depois  de  haverem 
traficado  comsigo  mesmo  nos  bordeis,  traficam  também  com  as  outras,  corrom- 
pcndo-as  e  vendendo-as,  por  assim  dizer  em  hasta  publica.  O  pregador  eleva- 
se  ás  regiões  da  eloquência,  quando  exclama:  «Se  houvesse  n'esta  cidade,  um 
homem  que  roubasse  dez  soldos,  seria  açoitado  pela  primeira  vez.  Se  reinci- 
disse, cortar-lbe-iam  as  orelhas,  ou  qualquer  outra  parte  do  corpo.  Se  tornasse 
ainda  a  roubar,  iria  á  forca.  Dizei-me  agora,  homens  da  lei,  qual  é  peior:  Rou- 
bar cem  escudos  ou  uma  mulher?» 

BUTOBIA  DA  PROSTTTtnçÃO.  ToMO  n — FoLHA  42 


330  HISTORIA 

Esta  passagem  do  sermonario  confirma  o  que  já  aqui  dissemos  a  respeilo 
do  [irimeiro  ollicio  das  maqiierelles. 

Ollvier  Maillard  é'  implacável  no  seu  zelo  contra  todos  os  seres  infames 
que  auxiliam  a  prostikiitjão  e  vivem  á  custa  d'ella.  Enche-os  de  vitupérios, 
aponta-os  á  aversão  de  todos,  procura-os  com  os  olhos  c  designa-os  até  mesmo 
com  o  gesto,  no  meio  de  um  auditório  eommovido  pelas  suas  palavras  ardentes. 
«Dizei-me  agora,  mães,  incitaste  vossas  filhas  ao  peceado?  E  vós,  mu- 
lheres, com  os  vossos  contractos  impudicos  impelliste  outras  mulheres  á  abo- 
minação? E  vós  também,  oh  maquerelles !  o  que  tendes  a  dizer  a  este  res- 
peito?» {Sermon.,  37.) 

As  mulheres  a  quem  o  zeloso  franciscano  se  dirigia,  baixavam  a  cabeça 
de  envergonhadas,  e  procuravam  fugir  d"esta  penitencia  publica,  que  tanto  as 
fazia  soffrer,  arrancando-lhes  a  mascara. 

Chega  a  pedir  que  as  esfollem  vivas,  a  essas  impudicas  proxenetas!  í)es- 
crcve-as  como  inspiradas  pelo  demónio  e  não  occulta  que  são  quasi  tão  nume- 
rosas em  Paris  como  as  desgraçadas  a  quem  procuram  incessantemente  cor- 
romper. 

Mas,  no  meio  d'esta  multidão  de  vis  creaturas,  quem  elle  mais  detesta  e 
abomina  são  as  mães  que  [irocuram  a  prostituição  de  suas  filhas,  sob  o  pretexto 
de  lhes  arranjarem  um  dote.  A  essas  entrega-as  o  pregador  sem  remissão  ás 
chammas  do  inferno. 

Lança  os  olhos  em  torno  de  si  por  todo  o  auditório,  como  que  para  des- 
cobrir algumas  d'essas  mães  desnaturadas,  c  o  auditório  commove-se  e  espera 
anciosaraente  o  anathema: 

«Ha,  diz  elle,  entre  vós  muitas  mães  que  vendem  suas  próprias  filhas: 
c  essas  infames  prestam-se  a  ser  as  alcoviteiras  das  innocentes,  obrigatido-as 
a  ganharem  o  dote  com  o  suor  dos  seus  corpos!» 

Era  mister  que  essa  pnislituição  infame  fos.se  muito  fre(|uente  por  essa 
épocha,  por  isso  que  os  pregadores  não  se  cançam  de  a  analhematisar.  Mcnot 
denuncia-a  quasi  nos  mesmos  termos  de  Maillard  : 

«.As  mães,  diz  elle,  condemnam  suas  filhas  com  os  exemplos  que  lhes  dão, 
com  a  inclinação  ao  luxo  o  ás  vaidades  que  lhes  fazem  crear,  e  com  a  dema- 
siada liberdade  que  lhes  c(mcedem.  E  o  que  c  peor  ainda,  o  que  declaro  com 
as  lagrimas  nos  olhos,  meus  irmãos,  c  que  chegam  a  vender  as  suas  filhas  aos 
corretores  da  prostituição!» 

Todos  os  pregadores  estão  de  accordo  sobre  esta  horrível  exploração  das 
filhas  por  seus  pães.  Maillard  diz  expressamente  a  estas  mães  de  familia: 

«Mães  que  daes  a   vo.ssas  (ilhas  roupas  e  vestidos  abertos  e  decotados, 
para  que  ellas  possam  ganhar  indecentemente  o  seu  dote!» 
E  aos  pães  de  familia  : 

«E  vós  também  para  que  daes  a  vossas  filhas,  senão  para  as  prostituir- 
des, vestidos  indecentes,  e  para  que  as  pintaes  como  ididos  ?>> 

Tudo  quanto  de  perlo  ou  de  longe  se  referia  ao  trafico  da  prostituição 
merecia  as  censuras,  ás  vezes  pessoaes,  do  pregador,  que  fulminava  n  vicio 
do  alto  da  cáthedra  evangélica.  Assim,  dejiois  de  haver  marcado  com  um  ferro 


n\  PROSTITUIÇÃO  nni 

om   braza  as  mães  proxenetas,   Maillanl  volta-se  para  as  damas  que  n'aquelle 
momento  estavam  cocliichando  umas  com  as  outras,  e  diz-lhes: 

«Senhoras,  não  sois  também  do  numero  d'aquellas  que  fazem  ganliar  o 
dote  a  suas  filhas  com  o  suor  do  seu  corpo?» 

As  mulheres  publicas  rofíavam-lhc  que  não  se  occupasse  d'ellas  c  que 
tomasse  antes  á  sua  conia  os  barbeiros  c  os  boticários,  por  exemplo. 

«Já  vos  disse,  f^ritava  o  ind  imavel  Maillard  que  certa  dama  que  parece 
recatada  c  uma  mediadora  de  lihertinafícm,  c  muitas  outras  ha  não  conhecidas 
e  que  eu  igualmente  vos  denunciarei!» 

Os  sermões  d'este  terrível  franciscano  produziam  tal  clíeito  no  mundo 
da  libertinagem,  que  as  prostitutas  costumavam  dizer  aos  seus  frequentadores: 

—  Já  ouviste  o  pregador?  Receio  que  vocês  todos  se  mettam  a  fiades  e 
preguem  também  contra  as  mulheres! 

Estes  sermões  dão-nos  a  entender  que  n'aquella  époeba  os  alcoviteiros 
não  eram  menos  perigosos  do  (|ue  as  suas  vis  competidoras  no  degradante 
otficio.  O  pregador  ataca  sem  cessar  os  alcagoles  que  os  ricos,  os  membros  do 
parlamento,  os  clérigos  e  os  cónegos  empregavam  no  serviço  dos  seus  amores 
illicitos.  Em  muitas  passagens  vè-se  que  as  prostitutas  tinham  lonieredores, 
que  anilavam  pela  cidade  em  procura  de  frcguezia. 

«Meretrizes,  diz  elle  no  seu  sermão  43,  os  vossos  acarretadores  de  fre- 
guezes  procuram-vos  por  toda  a  parle  os  mais  ricos,  ou  aquelles  por  quem  vos 
sentis  mais  inclinadas.» 

N'oulros  logares  chama-os  procuradores.  .4inda  assim,  não  lhes  attribue 
toda  a  responsabilidade  do  peccado,  pois  reprehende  o  penitente  que  quer  des- 
culpar a  sua  falta,  lançando-a  á  conta  ({'esses  miseráveis  traficantes  de  carne 
humana: 

«Não  lance  á  conta  da  consciência  do  intermediário  o  peccado  de  luxu- 
ria aquelle  que  por  obra  d'elle  possuir  uma  rapariga.» 

Aconselha  os  intermediários  a  arrependerem-se  dos  seus  peccados  para 
evitarem  a  condemnação  eterna. 

«Ouvi,  oh  pobres  peccadores,  hlasphemadores,  usurários  e  alcoviteiros, 
e  vós  também,  oh  vis  meretrizes!  não  temeis  ser  condemnados?»  (Serm.  I.) 

Miguel  Menot  refere-se  muitas  vezes  também  nos  seus  sermões  a  estas 
intermediarias  da  libertinagem,  e  nem  sequer  as  exborta  á  emenda  dos  seus 
crimes,  como  se  estivera  convencido  da  sua  impenitencia,  e  condemna-as  sem 
remissão  a  todas  as  penas  do  inferno.  Eis  como  as  trácia : 

«A  alcoviteira  que  pòz  muitas  raparigas  no  olíicio  irá  fatalmente  a  ga- 
lope para  as  profundas  do  inferno.  E  será  tudo?  Não,  peccadora  endurecida, 
não  será  isto  só!  Em  punição  dos  teus  crimes,  todas  as  que  excitas"te  ao  mal 
te  servirão  de  carrascos  e  hão  de  queimar-te  o  corpo  maldito!»  (Serm.  qua- 
ilnuj.  2) 

Olivier  Maillard,  no  seu  sermão  pregado  em  Saint-Jean-en-Grève,  no  pri- 
meint  domingo  do  advento,  faz-nos  uma  curiosíssima  descripção  do  papel  que 
desempenhavam  os  alcoviteiros  nos  negócios  em  que  tomavam  parte.  Diz  (|ue 
um  dVstes  agentes  da  prostituição  (aliqui.i  maquerellus)  foi  encarregado  de 


332  HISTORIA 

levar  da  parte  de  um  magistrado  um  formoso  annel  a  qualquer  filie  de  joie, 
que  quizesse  acccitara  prenda  j  relril)uil-a  com  o  seu  corpo.  São  cinco  as  que 
o  agente  infame  vae  procurar,  por  llie  parecer  que  estão  no  caso.  A  primeira 
é  picarda,  a  segunda,  poitevina,  a  terceira,  da  Touraine,  a  quarta,  lyoneza  e 
a  quinta,  parisiense.  O  alcoviteiro  vae  a  casa  da  primeira  e  bate  á  porta : 

—  Traz!  Trazl  Traz! 

—  Quem  é?  pergunta  a  criada,  vindo  á  janella. 

— Abre,  responde  o  mensageiro,  e  diz  a  tua  ama  que  sou  criado  do  res- 
peitável senlior  Fulano,  e  que  preciso  fallar-lbe. 

A  criada  vae  dar  parte  á  ama,  e  volta  no  mesmo  instante,  dizendo  ao 
alcoviteiro : 

— Minlia  ama  não  recebe  recados  de  ninguém.  Pôde  retirar-se. 

«Esla  mulber  é  virtuosa!»  exclama  o  pregador. 

O  mensageiro  da  luxuria  do  magistrado  vae  bater  á  porta  da  poitevina. 

A  criada  abre  a  porta  e  apresenta-o  a  sua  ama,  que  lhe  responde  : 

— Diga  a  seu  amo  que  eu  não  sou  quem  elle  pensa.  (Uiciíe  mayi^tru 
vesiro  quod  non  sum  de  illis.) 

«Esta  segunda  mulber  é  também  virtuosa,  diz  o  pregador,  mas  muito 
menos  que  a  primeira.» 

O  mensageiro  vae  a  casa  da  terceira,  entra  e  mostra-lhe  o  annel : 

— Que  bonito!  exclama  a  rapariga.  Gosto  muito  d'elle  I 

— Pois  se  o  quer,  será  seu,  diz-lbe  o  enviado. 

— Não,  que  receio  que  meu  marido  o  saiba. 

«Esta  mulber  é  má,  exclama  o  pregador,  porque  o  mal  consiste  na  in- 
tenção, e  é  só  o  receio  do  escândalo  que  a  impede  de  passar  a  vias  de 
facto.» 

O  alcoviteiro  é  ainda  mais  amavelmente  recebido  pela  terceira,  que  Ibe 
diz  : 

— O  annel  é  bonito,  não  ba  duvida,  mas  meu  marido  é  muito  ciumento, 
e  se  soubesse  o  que  me  pedem  far-me-bia  os  ossos  n'um  feixe;  porisso,  não 
posso  fazer  a  vontade  ao  senhor  Fulano. 

«Esla  mulher,  diz  o  pregador,  não  acceita,  mas  é  o  receio  do  castigo  que 
a  impede  e  não  o  temor  de  Deus.» 

O  mediador  vae  por  fim  a  casa  da  ultima  que  nasceu  em  Paris  e  em 
Paris  tem  vivido.  Esta  acceita  logo,  guarda  o  annel  e  diz  ao  alcoviteiro  : 

— Diga  a  seu  amo  que  meu  marido  vae  para  fora  na  quarta-feira,  e 
nesse  dia  irei  visitar  o  senhor  Fulano. 

«Esta  mulher,  diz  Olivier  IVlaillard,  é  a  peior  de  Iodas  quatro.» 

A  etoíjuencia  dos  pregadores,  troveja  indignada  contra  a  incontinência  dos 
sacerdotes  e  religiosos,  e  comprehende-se  que,  ao  apontarem  as  impurezas  e  es- 
cândalos do  clero  regular  e  secular,  se  submettiam  á  opinião  commum.  Tão 
vergonhosa  e  depravada  era  n'aquella  épocha  a  conducla  de  uma  grande  parte  dos 
eccicsiasticos,  que  fechar  os  olhos  a  esle  respeito,  seria  o  mesmo  que  approvul-a. 
Olivier  iVIaillard  é  inílcxivelcom  a  gente  da  lígreja,  (|ue  tem  concubinas  de  porias 
a  dentro  ou   que  l're(iuenla  as  mulheres  publicas,  e  chega  a  dizer  que  os  i)is- 


DA    PROSTITUIÇÃO  333 

pos  e  sacerdotes  que  entram  em  casas  de  pessoas  honestas  deslionram  todas  as 
mulheres  que  as  habitam.  A  cada  instante  talla  em  sacerdotes  cunciibinarii  e 
fornicara  e  verbera  asperamente  as  mulheres  que  se  abandonam  a  clérigos  e 
frades,  (lo*,  mulieres,  quiv  Jalis  corpus  vestriiin  curialibus,  monachis,  pres- 
byteris.  Serm.  36.) 

.\nathematisa  os  que  passam  a  noite  com  mulheres,  e  vão  em  seguida 
dizer  missa;  os  que  dão  presentes  ás  prostitutas;  os  que  dão  objectos  de  ouro 
ás  penitentes,  obrigando-as  a  ganhar  estes  presentes  com  o  suor  do  corpo;  os 
que  fyzem  dos  seus  inferiores  agentes  de  prostituição :  os  que  nos  banquetes 
faliam  obscenamente;  os  que  .se  encarregam  do  dote  das  raparigas  casadouras, 
e  finalmente  todos  os  que  commettem  abominações. 

Miguel  Menot  não  é  menos  explicito  a  respeito  dos  excessos  dos  eccle- 
siasticos.  Prohibe  que  a  eucharistia  seja  ministrada  ás  amas  dos  padres,  que 
não  são  senão  suas  concubinas.  Falia  de  muitas  raparigas  seduzidas  pelos  pa- 
dres, (|ue  as  encerram  ás  vezes  um  anno  inteiro  nas  suas  residências. 

U  mesmo  pregador  diz  ainda  n'outro  logar  que  quando  os  homens  de 
armas  entravam  nas  povoações,  a  primeira  coisa  que  procuravam  era  a  amiga 
do  parocho.  E  a  respeito  dos  prelados  accrescenta  que  devia  fazer-se  um  pre- 
gão, aconselhando  a  todas  as  mulheres  que  se  acautellassem  d'elles,  porque 
além  das  que  tinham  em  casa,  era  grande  a  freguezia  d'ellas  por  toda  a  cidade, 
e  tinham  um  prazer  especial  em  enganar  maridos.  Não  havia  casa  rica  (lúe  não 
tivesse  o  prelado  por  compadre,  e  succedia  quasi  sempre  que  o  marido  tomava 
por  compadre  o  que  já  era  pae,  sem  o  pobre  homem  desconfiar. 

Os  pregadores  são  muito  mais  reservados,  quando  faliam  dos  costumes 
dissolutos  de  certos  conventos  de  mulheres,  mas  em  todo  o  caso  dizem  o  bas- 
tante para  se  adivinhar  a  prostituição  que  n'elles  havia. 

«Theodorico  de  Niem,  diz  Duiaure  na  sua  Historia  de  Paris,  conta 
que  os  conventos  de  freiras  eram  uma  espécie  de  serralhos  para  uso  dos  bis- 
pos e  dos  frades;  d'esta  libertinagem  resultavam  filhos  que  se  faziam  também 
frades.  Algumas  religiosas  tomavam  remédios  para  abortar  e  outras  matavam 
os  filhos.» 

Olivier  Maillard  dizia  com  toda  a  razão: 

«.\nles  não  tivéssemos  ouvidos  para  ouvir  os  lamentos  das  criancinhas 
arremessadas  ás  latrinas  ou  aos  rios !» 

Grande  devia  ser  por  certo  a  desmoralisação,  visto  que  o  próprio  Mail- 
lard nem  sequer  ousava  fallar  dos  incestos  e  outros  peccados  de  luxuria,  que 
censurava  aos  seus  contemporâneos: 

«Callo-me,  diz  elle,  callo-me  a  respeito  dos  adultérios,  dos  estupros,  dos 
incestos  e  dos  peccados  contra  a  natureza.» 

Gabriel  Barletta,  que  não  foi  mais  do  que  um  echo  de  Maillard  e  .Menot 
na  Itália,   é   menos  reservado  n'este  ponto  quando  diz  aos  seus  compatriotas: 

«Oh !  Quantos  sodomitas  e  ribaldos  vemos  por  ahi !  Que  o  exorcismo  im- 
peça a  lingua  do  sodomita,  que  faz  torpezas  com  as  crianças.  .  .  Destruidores 
da  natureza,  malditos  sejaes  vós  !  Maldito  seja  também  o  que  não  cohabita  com 
sua  mulher  pela  via  natural !  Maldito  seja  o  que  faz  torpezas  com  os  animaes!» 


33  i  HISTORIA 

Barlclla  satyrisava  do  púlpito  os  vicios  de  seu  tempo,  e  fazia  trocadilhos 
espirituosos,  tars  como  este  :  em  vez  da  palavra  carnalitate.i,  significando  im- 
puresas  rarnnes,  empregava  carãinaUtales,  rcferindo-se  aos  cardcaes,  a  quem 
accusava  principalmente  d'esto  género  de  acções  lihidiíiosas. 

Maillard  esforç-a-se  também  por  verberar  as  impurezas  carnaes,  mas  não 
ataca  ninguém  em  particular.  Limita-se  a  accusar  os  ribaldos  de  viverem  como 
os  porcos.  «l''o,s  qui  vkntis  sicut.  porei.»  {Serm.  57.) 

O  íamoso  pregador  envergonba-se  do  seu  século,  e  exclama  indignado  : 

«Deus  meu,  Deus  meu  !  Eu  creio  que  desde  que  o  Verbo  se  fez  homem 
e  desceu  a  este  mundo  de  iniquidade,  nunca  houve  tanta  corrupção  de  costu- 
mes, como  a  que  n'este  momento  reina  em  l'aris  í» 

Os  progressos  da  prostituição  conslituem  uma  consequência  inevitável  dos 
progressos  do  luxo.  A  causa  do  mal  foram  a  garridice  e  a  vaidade.  As  mulheres 
entregavam-se  escandalosamente  a  estas  duas  paixões  perigosíssimas,  e  ])ai'a 
occorrerem  ás  despesas  dos  atavios  frívolos  e  ás  phantasias  e  extravagâncias 
da  moda,  deram-se  a  todos  os  vicios,  mercadejando  ignohilmenie  com  ns  seus 
encant'  s. 

"  Direis  lalvez,  senhoras,  exclama  Maillard  justamente  indignado,  que  vos- 
sos maridos  não  vos  dão  o  suíiicienie  para  as  dcsjjczas  com  as  modas,  e  por 
isso  tendes  necessidade  de  o  adquirir  com  o  trabalho  dos  víjssos  corpos.  Pois 
em  verdade  vos  digo  que  leve  o  diabo  tal  trabalho,  senhoras!» 

A  historia  fios  costumes  prova-nos  que  sem[)re  o  lu\o  c  a  prostituição 
estiveram  na  rasão  directa. 

Lu.ro  e  luxuria  são  irmãos,  dizia  o  padre  André,  num  dos  seus  celebres 
sermões  jocosos. 


CAPITULO   XXIX 


SUMMARIO 


A  ríiiti',  pschola  dos  ciistunirs  do  povo.  — Propensão  dos  iie(|ueiios  para  imitaiein  os  grandes.  —  Malícia  do 
vulso.  —  Branca,  mãe-  de  S.  Luiz  e  Tliiliaut,  et  Dcto  de  Clianipapne.  -  Canção  dos  esludanU-s  de  Paris  a  respeito  do 
Núncio.  —  A  côi  le  de  França  no  leinpo  dos  suecessores  de  Luiz  i.\.  —  Canção  da  Torre  de  Nesle.—  Corte  -virtuosa  de 
Carlos  V  —Depravação  da  corte  de  Carlos  vi  —A  luxuria  no  torneio  de  Saiut-Deuis.— Galeria  dos  retratos  no  palácio 
Harbetle.—  As  inascaias  e  os  vestidos  injpuilicos.—  (I  baile  rios  A!dente,'-..-Os  dois  Agostinhos  do  palácio  de  Tour- 
nelles.-  Os  sermões  de  Jaci|ues  Legrand.-  Cólera  de  Izabel  du  Baviera  e  da  sua  corte.— Castigo  dos  seus  favoi  itos  e 
de  seus  cúmplices.  — Odette.—ds  amores  rio  riu-^pie  d'Orleans  — O  senhor  de  Canny  e  sua  mulher.— A  corte  de  Carlos 
vil  e  as  suas  diversões.— A  menna  de  Fromerileau.— Ignt-z  Rorel  salva  o  rei  de  Fi-an>;a  com  ura  bom  conselho.— Uma 
([uadra  de  Kiancisco  i.— Os  parisienses  iusullam  a  citncubiua  do  lei  — As  mascaradas  da  côite. — A  lesta  dos  Loucos 
e  as  ta)'ia(0)-ín,'.-.— Decretos  contra  as  mascaras. —A  lesla  de  Conaidie.  — O  dia  dos  Innocentes.— Costume  oiigiual 
—Um  epigramma  de  iMarot.  — Libeitinagem  esfuiiluosa.  — Ariivinliaçnes  amorosas.— Costume  indecente  da  noite  nu- 
pcial.—O  casamento  de  Hercules  de  Kste  com  lienata  de  Krança-  //  horior  delia  ciladella.~0  pelourinho  do  ma 
triíiionio. 


'oitTKds  tempos  a  fòrt(>  de  França  era,  segundu  uma  expressão 
eonsa^írada,  a  eselioln  dos  coslumes  do  povo.  Era  o  incentivo  e 
o  modelio,  tanto  do  mal  como  do  bem,  corrom|)endo  com  o  seu 
exemplo,  ou  depurando  também  a  moral  publica.  Todos  os  que 
ncão  participavam  das  prerogativas  da  nobreza  tinbam  continua- 
mente os  oibos  filos  na  eonducta  dos  grandes,  procurando  imital-os  cm  tudo, 
para  se  assimiihareni  o  mais  possível  á  casta  privilegiada.  Se  a  prostiluiyão  en- 
trava na  corte,  espalhava-se  logo  em  seguida  pela  cidade,  o  mais  descarada- 
mente possível.  Eis  o  motivo  por  que  as  épochas  mais  dissolutas  Ibram  sem- 
pre aquellas  em  que  a  licença  e  a  depravação  da  eòrte  tiveram  uma  íunesta  in- 
fluencia nos  costumes  do  paíz. 

A'  vista  d'isto,  comprebende-se  bem  todo  o  rigor  com  que  o  soberano 
devia  velar  pela  manutenção  da  decência  e  da  lionestídade  no  interior  de  sua 
casa,  porque  era  até  certo  ponto  responsável  pelos  escândalos  que  tão  funes- 
tos resultadss  costumavam  produzir.  Os  povos  eram  sempre  propensos  a  imi- 
tar os  vícios  de  (|ue  eram  testemunbas. 

Verdade  seja  que  a  calumnia,  prompta  a  espalliar  o  seu  veneno  sobre 
tudo  quanto  é  brilbante,  feria  ás  vezes  injustamente  algumas  reputações  irre- 
prcbensiveis.  (".omtudo,  se  isto  era  suiricíente  para  entreter  a  malícia  do  vulgo, 
não  bastava  ainda  assim  para  a  auclorisar  a  entregar-sc  a  excessos  que  o  pró- 
prio vulgo  condemnava  como  vergonhosas  excepções. 


336 


HISTORIA 


Assim,  na  corte  de  Luiz  ix,  cujos  costumes  eram  tjío  exemplares  como 
o  exigia  a  rigidez  de  caracter  do  santo  rei,  a  calumnia  não  deixou  de  enlamear 
a  boa  reputação  de  sua  mãe,  e  não  obstante,  não  foi  Thibaut,  conde  de  Cham- 
pagne,  quem  assim  desacreditou  a  rainha  Branca  de  Castella. 

Toda  a  gente  sabia  que  a  paixão  do  conde  galanteador  não  oftendia  de 
modo  algum  o  leito  conjugal  de  Luiz  viii,  porque  esse  amor  não  passava  de 
uma  phantasia  innocente  do  poeta,  que  escolhera  para  dama  dos  seus  pensa- 
mentos a  rainha.  Em  honra  do  elevado  objecto  dos  seus  amores  platónicos,  o 
moço  conde  compunha  canções  apaixonadas,  que  fazia  escrever  nas  paredes 
dos  seus  castellos  de  Troyes  e  de  Provins,  e  elle  próprio  as  cantava,  acompa- 
nhando-se  do  seu  alaúde.  Tudo  se  limitava  apenas  a  isto,  e  o  povo  sabia-o 
perfeitamente. 

No  emtanto,  a  rainha  Branca,  apesar  de  toda  a  sua  piedade,  tinha  na 
opinião  de  muita  gente  relações  menos  platónicas  com  o  cardeal  legado  de  Roma 
na  corte  de  França,  e  os  estudantes  da  universidade  de  Paris,  que  tinham  al- 
guma razão  de  queixa  da  intervenção  da  cúria  nas  suas  (luestôes  com  a  auclo- 
ridade  ecclesiastica,  vingaram-se  do  cardeal  legado,  dedicando-lhc  este  dístico, 
que  Mathieu  Paris  nos  conservou  na  sua  chronica : 

Heu  !  nuirinnir  strati,  cindi,  mersi,  spoliuli ! 
Mentula  Legati  noa  facit  islã  pati! .  .  ■ 

Os  suppostos  amores  do  legado  com  Branca  de  Castella  não  produziram 
elleitos  mcraes  funestos  sobre  o  povo,  que  tinha  diante  dos  olhos,  como  um 
imponente  contraste,  a  circumspecção  e  honestidade  do  joven  monarcha,  a  se- 
veridade das  suas  ordenações  e  o  virtuoso  exemplo  da  sua  corte. 

No  reinado  dos  successorcs  de  Luiz  i\  a  corte  de  França  conservou  as 
tradicções  de  honestidade,  que  devia  especialmente  ao  reinado  d'este  piedoso 
monarcha.  Os  differentes  reis  que  se  succederam  desde  Fiiippe,  o  Atrevido,  até 
Carlos  V,  tiveram  como  ponto  de  honra,  segundo  uma  antiga  expressão,  não 
empanar  a  esplendida  pureza  dos  Lizes,  e  foram,  senão  austeros  nos  seus  cos- 
tumes, pelo  menos  extremamente  rigidos  a  respeito  dos  costumes  da  corte.  As- 
sim, vimos  já  Fiiippe,  o  Famoso,  implacável  para  com  as  suas  três  noras,  as 
heroinas  da  Torre  de  Nesle,  e  a  prisão  d'estas  princezas,  seguida  de  um  pro- 
cesso á  porta  fechada,  demonstrou  ao  povo  que  o  manto  das  tlores  de  liz  não 
se  havia  feito  para  capa  da  prostituição. 

Fiiippe,  o  Formoso,  dava  assim,  á  custa  da  sua  própria  familia,  satis- 
fação aos  sentimentos  moraes  dos  seus  vassallos,  que  perpetuaram  a  recordação 
das  horríveis  desordens  de  Margarida  de  Borgonha  n'uma  canção,  que  ainda 
em  nossos  dias  anda  na  bocca  das  amas  de  meninos.  Conta-se  que  os  estu- 
dantes, ao  passarem  defronte  da  Torre  de  Nesle,  quando  iam  ao  Prr-aux- 
Clercs,  sitio  habitual  dos  seus  passeios  e  diversões,  cantavam  em  voz  baixa 
este  estribilho : 

Iji  tour,  prends  garde  de  te  Iniaser  nbnttre! 
O  qUe  quer  dizer:  Torre,  cuidado,  não  te  deixes  derribar!  Não  obstante, 


DA    PROSTITUIÇÃO  337 

aquella  famosa  loriL',  tlioafrn  das  or^'ias  de  três  priíicezas,  ou  do  nina  so,  (|iie 
a  historia  não  averiguou  ainda  heni  este  ponto,  não  foi  derriliada  aló  niciados 
do  século  xvii. 

A  corte  de  (".arios  v  não  foi  menos  lionesfa  que  a  de  S.  Luiz,  e  deve 
crèr-se  que  exerceu  salutar  intluencia  sobre  os  costumes  públicos.  O  prudente 
nionarciia  não  só  teve  cuidado  em  manter  n'ella  as  virtudes  que  emanam  da 
nobreza  do  coração,  mas  quiz  até  que  as  damas  de  Paris  tivessem  frequentes 
relações  com  as  damas  da  corte,  atim  de  que  se  tornassem  mais  perfeitas,  (>s- 
forçando-se  mutuamente  em  progredir  no  caminho  do  bem. 

Chrislina  de  Pisan  diz  que  as  mulheres  de  estado  de  Paris  eram  convi- 
dadas para  o  palácio  de  Saint-Pol,  quando  o  rei  ou  a  rainha  alli  se  apresen- 
tavam em  plena  corte.  A  soberana,  que  era  bella,  boa  c  allavei,  rccebia-as 
attenciosamente.  Dançava-se,  cantava-se,  e  em  seguida  havia  um  alegre  ban- 
quete, passando-se  tudo  na  melhor  ordem  e  decência,  em  conformidade  ccmi 
os  costumes  severos  e  honestos  do  monarcha. 

O  historiographo  dos  feitos  e  costumes  de  tlarlos  v  faz-nns  observai-  ([ue 
da  nobreza  do  coração  mascem  os  bins  costumes  e  as  acções  virtuosas,  a  abs- 
tenção de  todos  os  hábitos  e  acções  vis,  a  abundância  das  graças,  o  louvor,  a 
honra,  a  cortezia,  o  amor,  a  caridade,  a  paz  e  a  tranquillidade. 

Por  morte  d'este  rei,  porém,  o  aspecto  da  corte  mudou  subitamente,  como 
se  o  pudor  e  a  castidade  houvessem  descido  com  Carlos  v  ao  sepulchro.  O  jo- 
ven  rei  Carlos  vi,  sobretudo  seu  irmão  Luiz,  duque  d'Orleans,  estavam  sedentos 
de  prazeres  e  eram  favorecidos  nas  suas  prcversas  disposições  por  seus  tios,  os 
duques  d'Anjou,  de  Bourbon,  de  Borgonha  e  do  Berry,  que  haviam  supportado 
com  violência  a  t\  rannia  moral  de  seu  virtuoso  irmão.  Opinam  todos  os  histo- 
riadores que  a  prostituição  pareceu  haver-se  desencadeado  na  corte  de  França 
desde  o  casamento  de  Carlos  vi  com  Isabel  de  Baviera.  Já  falíamos  das  espan- 
tosas loucuras  que  assignalaram  o  famoso  torneio  de  S.  Diniz  em  1380. 

«Estas  justas,  segundo  a  pittoresca  expressão  de  um  contemporâneo,  fo- 
ram scenas  da  mais  espantosa  libertinagem.» 

.\a  ultima  noite  da  festa  todos  se  mascararam,  e  esta  mascarada  deu  lo- 
gar  a  scenas  incríveis.  Começou-se  por  posições  indecentíssimas,  e  afinal  pas- 
sou-se  á  realisação  de  verdadeiras  loucuras.  Segundo  um  chronista,  não  houve 
ninguém,  tanto  homens  como  mulheres,  que  não  tivesse  a  sua  aventura  obs- 
cena. 

«E'  fama,  diz  .loão  Juvenal  dos  1'rsinos,  na  sua  Historia  de  Carlos  vi, 
(jue  estas  justas  foram  o  pretexto  de  cousas  desbonestas  em  matéria  de  galan- 
teios, e  causa  de  muitos  males  que  ao  diante  se  seguiram.» 

Na  vertigem  d'aquella  noite,  o  duque  d'Orleans  encontrou  mascarada  Isa- 
bel de  Baviera,  mulher  do  rei  seu  irmão,  e  Margarida  de  Baviera,  mulher  de 
seu  primo  João  de  Borgonha. 

O  duque  d'Orleans  era  um  libertino,  que  não  se  cançava  de  seduzir  mu- 
lheres, e  não  se  limitava  a  damas  de  posição,  por  isso  que  até  fazia  raptar  ra- 
parigas de  condição  humilde,  triumphando  d"ellas  ou  por  vontade  ou  á  força.  De 
Haillau   refere  que  este  príncipe  tinha  no  seu  palácio  Barbette  uma  galeria  de 

HuToxiA  Dá  PRosTmncÃo.  Tomo  ii— Folha  tS. 


338  HISTORIA 

rclratos,  (jiic  representavam  todas  as  suas  amantes,  c  o  ilc  Isabel  de  liaviera 
aehava-se  alli  também  ao  lado  de  sua  parenta  Margarida  de  Baviera,  nnilIuT 
do  duque  de  IJorgonba,  João  Sem  Medo.  Este  príncipe  entrou  alli  em  certa  oc- 
casião,  e  viu  o  retrato  de  sua  mulher,  .lurou  vingar-se,  e  pouco  depois  assas- 
sinou o  duque  d'Orleans  a  dois  passos  do  seu  palácio,  quando  ia  passando  pela 
rua  Barbette. 

Luiz  d'Orleans,  apesar  de  ler  uma  esposa  tão  digna  de  amor  e  respeito, 
a  bel  la  e  graciosa  Valcntina  de  Milão,  cuja  reputação  nunca  foi  empanada  pela 
menor  mancha,  foi  sempre  a  alma  dos  divertimentos  e  loucuras  da  corte,  tanto 
antes  como  depois  da  demência  de  seu  irmão.  Era  auxiliado  pela  rainha  a  quem 
prevertera,  como  ella  por  sua  vez  preverteu  as  outras. 

As  mascaradas  constituiam  por  essa  époclia  a  principal  diversão  da  corte, 
e  os  que  a  elias  concorriam  e  n'ellas  tomavam  parte,  com  trajos  c  mascaras 
deshonestas,  adoptavam  somente  o  disfarce  «para  gosarem  facilmente  os  seus 
amores.»  Uma  mascarada  d'esla  espécie  no  carnaval  de  1393  acabou  de  uma 
maneira  tão  desastrosa,  que  os  companheiros  de  libertinagem  do  rei  viram 
n'ella  um  aviso  do  ceu,  e  convei'tcram-sc  durante  alguns  dias. 

O  lu)i'rivel  baile  dos  Anknli^s  derramou  um  clarão  sinistro  por  hido  o  rei- 
nado de  Carlos  vi,  (|U(  cntioidcceu  em  consc(|uencia  d'este  deplorável  aconle- 
cimento.  í)ava-se  um  baile  no  palácio  de  Saint-1'ol,  por  occasião  do  casamento 
de  uma  dama  de  honor  da  i'ainlia.  A  noiva  já  havia  tiJo  três  maridos,  e  segundo 
um  antigo  costume,  muito  vulgar  em  França,  devia  fazcr-se  uma  grande  alga- 
zarra, acompiMihada  de  chocalhadas  e  caqueiradas,  á  viuva  que  entrava  em 
quartas  núpcias.  «E'  um  costume  ridículo,  diz  o  clironisla  anonymo  de  Saint- 
Deiiis,  e  contrario  a  todas  as  leis  da  decência  e  honeslidade.»  Todavia  era  um 
costume  inveterado,  e  os  (|uc  tomavam  parte  n'estes  a|)upos  iam  disfarçados 
com  trajos  deshonestos,  e  perseguiam  com  palavras  obscenas  os  pobres  cônju- 
ges, que  não  tinham  remédio  senão  soIVrer  esta  prova. 

O  rei  e  cinco  senhores  da  corte  deviam  ser  d'esta  vez  os  adores  da  ex- 
travagante algazarra,  e  para  isso  se  vestiram  dos  pés  á  cabeça  com  uns  fatos 
de  lã  muito  unidos  á  pclle,  aos  (|uaes  haviam  accre.sconlado  uma  capa  de  es- 
topa pegachi  com  pez.  Assim  disfarçados,  entraram  no  salão  dando  gritos  hor- 
ríveis e  correndo  cm  todas  as  direcções  com  maneiras  indecentes.  Em  seguida, 
puzei'ani-se  a  dançar  um  bailado  lubiíco  tão  desordenado,  (|uc  parecia  uma  dança 
de  demónios. 

O  du(|ue  d'Orleans  teve  a  infernal  idéa  de  atirar  com  urna  tocha  ao  meio 
dos  bailarinos,  em  cujos  fatos  o  pez  c  a  estopa  se  inllammaram  rapidamente. 
Como  estavam  ligados  uns  aos  outros  por  uma  cadeia,  arderam  juntos,  á  exce- 
pção do  rei,  que  conseguiu  desprendci-se  e  foi  metler-se  debaixo  do  am|)lo 
vestido  de  cauda  da  duqueza  de  IJerry. 

O  clironisla  faz  um  (|uadro  terrível  da  morle  d'aqu(dics  desgraçados: 

«U  logo,  diz  cllc,  consummíu  lambem  as  partes  inferiores  dos  corpos  dos 
desditosos  e  até  mesmo  os  seus  membros  xiris,  (|ue  cahírauí  aos  pedaços  e  ín- 
nundaram  de  sangue  o  pavimento  di)  salão.» 

Carlos  \i  salvou-se  milagrnsamciilc  e  deu  graças  a  Ueus  niima  procissão 


IIA    PROSTITUIÇÃO  XW 

solemnp,  em  que  os  príncipes  foram  descalros,  desde  a  poria  Monlniarlre  alé 
.\otre-[)ame. 

A  doença  do  rei  interrompeu  as  lestas,  mas  não  as  desordens  da  eòrte. 
A  rainha  c  o  seu  amante,  o  duque  d'Orleans,  profegiam-nas,  assegurando-llies 
a  impunidade.  Não  obstante,  para  se  apparentar  um  certo  respeito  pela  indi- 
gnação da  opinião  publica,  e\ereeu-se  um  castigo  exemplar  em  dois  frades  agos- 
tiniios,  que  se  otTercceram  para  curar  cl-rei,  e  que  não  lograram  cumprir  a  sua 
promessa.  Estes  frades  manchavam  o  palácio  de  Tournelics,  omle  viviam,  pra- 
ticando verdadeiras  abominações,  dcshonrando  as  famílias  e  commettendo  con- 
tinues adultérios  que  pagavam  com  o  dinheiro  do  monarcha.  Os  hvpocritas  fo- 
ram cxhautorados  da  dignidade  ecclesiastica,  e  depois  de  haverem  conrcssailo 
as  suas  torpezas,  solTreram  a  decapitação  na  praça  da  Cirève. 

Três  annos  depois  outro  frade  da  mesma  ordem,  Jacques  Legrand  (Jaeo- 
inis  .Magnos")  foi  o  viiigadur  dos  pobres  suppliciadns,  pregando  nos  seguintes 
teiínos  cm  presença  da  soberana  e  tia  sua  curte  : 

«Desejaria  muito,  nobre  rainha,  nada  ter  a  dizei'-vos  de  desagrada\('l, 
mas  a  vossa  salvação  intcressa-mc  muilo  mais  qui>  a  vossa  helleza,  e  hei  de  di- 
zer a  verdade.  \  deusa  Vénus  é  a  suprema  dominadora  do  vosso  coração, 
servindo-lhe  de  cortejo  a  embriaguez  e  a  concupiscência;  e  v(is,  senhoras,  fa- 
zeis da  noite  dia  entregues  ás  danças  mais  deshonestas.  Essas  malditas  mulhe- 
res, (iliias  do  inferno,  que  compõem  a  vossa  corte,  senhora,  corrompem  os  cos- 
tumes c  (ioervam  os  corações.» 

Passando  ao  luxo  dos  vestidos,  que  a  rainha  contribuirá  especialmente 
para  introduzir,  censura-o  energicamente: 

«Por  toda  a  parte,  nobre  rainha,  se  murmura  d'cstas  desordens  e  de  muitas 
outras  que  deshonram  o  vosso  coração.  Se  não  quereis  acreditar-me,  percorrei 
a  1'idade  disfarçada  em  mulher  ordinária,  e  ouvireis  o  que  por  alii  se  diz.» 

Isabel  de  Baviera,  cmboi^a  tivesse  de  fazer  grande  violência,  logrou  dis- 
simular a  sua  cólera,  mas  as  damas  da  corte  appro\imaram-se  do  pregador  c 
disseram-lhe  que  estavam  admiradas  da  sua  audácia. 

—  Mais  admirado  devo  eu  estar,  senhoras,  respondcu-ihes  severamente 
o  pregador,  das  acções  por  vós  praticadas,  e  a  respeito  das  quaes  informarei  a 
rainha  quando  ella  se  dignar  ouvir-me. 

Tm  dos  palacianos  julgou  lisongear  as  damas  e  fazer  calar  a  boeca  ao 
audacioso  frade,  dizendo : 

—  Sc  quizesscm  scguii'  o  meu  conselho,  o  í|ue  deviam  era  deitar  ao  rio 
esse  miserável! 

—  Isso  é  verdade,  respundcu  tranquillamente  o  pregador,  mas  para  or- 
denar esse  crime,  seria  mister  um  rei  tão  bárbaro  como  tu. 

El-rei  mostrou-se  muito  satisfeito  com  as  duras  rcprchensões  que  o  fa- 
moso pregador  havia  dirigido  a  Isabel,  mas  apesar  disso  apenas  uma  vez  se 
resolveu  a  intervir  nos  escandalosos  galanlci<is  da  rainha.  Foi  isto  em  lilH, 
pouco  antes  da  sua  morte,  (|uando  fez  julgar  e  executar  o  cavalheiro  Luiz  de 
Hourdon,  (|ue  passava  por  amante  c  favorito  de  Madatiif  fsahel.  como  o  povo 
a  denominava. 


340  HISTORIA 

«A  rainha,  rclerc  o  clironisla,  nomeara  para  o  seu  serviço  pessoal  um 
grande  numero  de  homens  de  armas,  que  collocou  sob  o  commando  de  Graville, 
Giac  e  Bourdon.  Estes  fidalgos,  especialmente  encarregados  de  velarem  noite  e 
dia  pela  segurança  da  rainha  e  das  damas  da  corte,  tinham  uma  conducta, 
indigna  da  sua  nobreza.  Enriquecidos  com  os  beneficios  da  rainha,  não  tinham 
escrúpulo  algum  em  mancharem  a  honra  da  cavallaria,  e  com  o  auxilio  dos 
corretores  impudicos  haviam  conseguido  seduzir  algumas  damas  de  elevada 
condição.  Os  adultérios  a  que  so  entregavam  continuamente,  mesmo  na  se- 
mana santa,  causaram  grande  indignação  nos  grandes  da  corte,  que  aconse- 
lharam el-rci  a  fazer  um  acto  de  exemplar  justiça.  Por  isso  Luiz  de  Bourdon 
foi  encerrado  na  torre  de  Montlhery,  d'onde  foi  trazido  a  Paris  e  afogado  secre- 
tamente no  Sena,  para  que  o  povo  não  fallas.se  mais  do  seu  crime.» 

Garlos  VI,  nos  primeiros  annos  do  seu  reinado,  liavia  lido  uma  grande 
multidão  de  amantes,  (|nt'  disputavam  reniiidamente  a  sua  preferencia.  O  ma- 
rechal de  houcicaul  diz  a  propósito  disto  «que  a  vista  de  tão  nojjres  e  heilas 
damas  augnienia  a  vontade  de  se  ser  namorado.»  Mas,  desde  (|ue  a  loucura 
aeommefteu  o  monarcha,  os  médicos  procuraram  evitar  o  dispêndio  que  fazia 
de  suas  forças  physicas,  allastando  d'elle  as  occasiões  de  gastar  o  seu  prodi- 
gioso ardor  erótico. 

A  rainha,  n'estas  criticas  circumstancias,  recusava-se  ao  cumprimento 
dos  deveres  coiijugaes,  fugindo  do  leito,  ou  resistindo  ás  caricias  de  seu  es- 
poso, que  louco  e  ultrajado,  chegava  a  pòr  mãos  na  esquiva  esposa. 

l'ara  se  col locar  ao  abrigo  d'estas  exigências,  madame  Izabel  tratou  de  es- 
colher uma  victima  que  se  prestasse  sem  resistência  aos  prazeres  d'el-rei.  Esta 
viclima  foi  Odette  de  Champdivers,  filha  de  boa  casa.  O  povo,  compadecido  d'ella, 
nem  sequer  a  censurava  pelo  vergonhoso  papel  de  que  se  havia  encarregado,  e 
dava-lhe  o  titulo  de  pelite  reine. 

Odetie  dormia  ao  pé  do  leito  real,  e  quando  sentia  (|ue  começava  a  lucta 
entre  o  rei  e  a  rainha,  introduzia-.sc  habilmente  no  leito,  emquanto  a  rainha 
sabia  d'elle  com  egual  pericia.  O  pobre  rei  não  dava  pela 'troca  de  pessoas,  e 
cessava  logo  os  seus  maus  tractos,  encontrando  ás  vezes  a  razão  nos  braços  da  pe- 
lile  reine.  (|ue  se  .strvia  da  sua  influencia  n"aquelle  desgraçado  para  o  obrigar 
a  mudar  de  roupa  e  a  fazer  as  abluções  indispensáveis  á  hygiene. 

Allirmou-se  por  aquelle  tempo  com  alguns  visos  de  verdade  que  a  de- 
mência d'el-rei  era  a  consequência  natural  dos  excessos  a  que  se  entregara  na 
sua  juventude.  Apesar  d'isso,  seu  irmão,  o  duque  de  Orleans,  que  tinlia  lido 
tantas  amantes  como  de  dias  lem  o  anno,  para  nos  servirmos  da  pittoresca 
expressão  do  povo  n'a(juelia  épocba,  nunca  deu  signaes  de  loucura.  Não  era 
todavia  um  modello  de  prudência  e  de  bom  senso,  e  permittia-sc  ás  vezes  ex- 
cessos que  provam  a  força  da  sua  imaginação  em  questões  de  libertinagem. 

Sauval,  nos  seus  Amonris  des  róis  de  France,  refere  a  aventura  da  dama 
de  ("anny,  como  prova  da  dissolução  de  costumes  da  còrle  de  (larlos  vi.  Igno- 
ramos a  fonte  original  onde  o  auctor  das  Anliqiiilés  de  Paris  foi  buscar  a 
noticia.  l>cmos  que  a  tradição  liie  ministou  os  pormenores,  senão  o  facto  prin- 
cipal. 


o  duque  de  Orléans  e  Mr.  de  Cany.  (Século  XIV) 


DA    PROSTITUIÇÃO  341 

O  (lii(|iie  dl-  Orleans  amava  apaixonadainenfe  a  (iaina  ãc  Caniiv,  sem  que 
o  marido  d'csfa  dama  suspeitasse  sequer  d'estes  amores,  que  davam  assumpto 
ás  uiurmurações  de  toda  a  gente,  não  sii  na  eòrte,  como  também  entre  o  povo. 

Uma  manhã  o  du(|uc  e  a  sua  amante,  que  haviam  passado  juntos  á 
noite,  ouviram  a  voz  do  senhor  de  Canny,  que  podia  permissão  para  faliar  ao 
príncipe. 

— Entre,   disse  este,   tapando  a  cabeç;a  da  infiel  esposa  com  um  lençol. 

O  pobre  marido  enganado  entrou. 

O  duque  disse-lhe,  apenas  o  viu,  (jue  ia  mostrar-lhe  o  mais  delicioso  corpo 
de  mullier,  que  elle  jamais  vira,  com  a  condição  que  não  procuraria  conhecer  a 
dama  (juc  se  occultava  no  leito. 

— Combinado,  responde  Canny. 

O  duque  descobre  aos  olhos  admirados  do  mando  o  corpo  esplendido  de 
sua  mulher  cm  plena  nudez,  permitlindo-lhe  que  o  examinasse  á  sua  vontade, 
admirando-lhe  as  beliezas  mais  occultas,  e  que  as  tocas.se  mesmo  para  melhor  as 
apicciar.  Cann\  está  encantado  do  (jue  vè  e  do  que  apalpa,  c  expressa  a  sua 
admiração  em  termos  que  fazem  rir  o  duque  até  ás  lagrimas,  emquanio  qu»í 
debaixo  do  lençol  a  dama  ri  lambem  como  uma  perdida. 

Na  seguinte  noite,  o  senhor  de  Canny,  deitado  com  sua  mulher,  couta- 
llie  minuciosamente  a  aventura,  e  ella  ri  a  bandeiras  despregadas.  Ao  ama- 
nhecer, a  dama  vae  ter  com  o  duque  e  conta-lhe  o  que  se  passara,  e  ambos 
se   riem   até  mais  não  poderem  da  imbecilidade  d'aquelle  modcllo  de  maridos. 

Toda  a  corte  celebra  com  inextinguiveis  gargalhadas  a  chistosa  aventura, 
que  não  foi  segredo  para  ninguém,  senão  para  o  marido  ludibriado. 

A  corte  de  Carlos  vii,  pelos  menos  nos  primeiros  tempos  do  reinado 
d'este  monarcha,  não  differia  da  de  seu  pae.  O  novo  rei  era  ainda  mais  ar- 
dente nos  prazeres  do  que  o  fora  o  seu  real  progenitor;  mas  estes  prazeres,  como 
elles  os  entendia,  consistiam  menos  em  vergonhosos  excessos  do  que  em  ga- 
lantes devaneios.  Era  ainda  a  cavallaria  andante,  mais  refinada  que  a  do  sé- 
culo precedente.  O  príncipe  não  dava  aos  seus  vassalios  exemplos  de  liberti- 
nagem, porque  comprehendia  o  amor  das  damas  á  maneira  dos  antigos  caval- 
leiros  e  rodeava  este  perfeito  amor  de  justas,  torneios  e  emprezas  cavalhei- 
rescas. 

Os  inglezes  haviam-se  assenhoreado  do  seu  reino,  e  o  soberano  da  In- 
glaterra reinava  em  Paris,  emquanto  que  Carlos  vii,  na  sua  pequena  corte  de 
Bourges,  não  pensava  senão  em  quebrar  lanças  em  honra  das  damas,  em  lèr  ro- 
mances, em  danças  e  caçadas. 

Tinha  uma  amante  e  nunca  mais  teve  outra,  desde  o  momento  em 
que  d'ella  se  enamorou.  X  belia  Ignez  Sorel  era  dama  de  honor  da  rai- 
nha Maria  d'Anjou,  e  durante  os  cinco  primeiros  annos,  que  a  menina  de 
Fromenteau,  como  lhe  chamavam  na  corte,  passou  junto  da  rainha,  ignorou-se 
completamente  que  ella  houvesse  captivado  o  coração  d'el-rei.  O  segredo  reve- 
lou-o  apenas  o  favor  que  a  familia  Sorel  ou  Soreau  alcançou  repentinamente, 
e  os  enfeites  de  ouro  e  pedras  preciosas,  (jue  Ignez  Sorel  ousava  ostentai'  nas 
ceremonias,  eclipsando  com  o  seu  luxo  as  mais  nobres  damas  da  cMe. 


;142  IIISTOJUA 

«Foi  então,  diz  Monsfralef  na  sua  (liironica,  que  começou  a  correr  o  boato 
de  que  el-rei  a  tomara  por  amiga.» 

Parece  que  Ignez  Sorel  era  mais  engraçada  do  que  jjeila,  mais  seductora 
do  que  vistosa.  Era  de  caracter  jovial  e  de  conversação  divertida  (lépida  e  fa- 
ceta, diz  o  clironista  Gaguin). 

A  paixão  de  Carlos  vii  pela  bella  ígnez  não  foi  indigna  de  um  rei  de 
França,  se  pensarmos  que  esta  paixão  decidiu  o  pequeno  rei  de  Bourges  a  re- 
conquistar a  sua  coroa,  expulsando  de  França  os  inglezes. 

Um  dia  em  que  CarlDs  consultava  um  astrólogo  a  respeito  do  destino  de 
Ignez,  o  astrólogo  respondeu  que  a  bella  dama  havia  de  ser  durante  muito 
tempo  amada  por  um  grande  e  poderoso  monarclia. 

Ignez,  ouvindo  isto,  levaiitou-se  e  disse  ao  rei,  saudando-o  com  a  má- 
xima gravidade: 

—  Sire,  rogo-vos  encarecidamente  que  me  permiltaes  partir  para  a  corte 
do  rei  Henrique,  para  que  se  cumpra  o  meu  dcslinn.  O  lioroscopo  manda-me 
servir  o  rei  de  Inglaterra,  que  c  o  verdadeiro  rei  tle  França,  emquanto  que 
V()S,  sire,  sois  apenas  o  rei  de  Bourges ! . .  . 

A  justiça  da  censura  impressionou  muito  o  rei,  que  se  envergonhou  do 
seu  abatimento,  e  para  merecer  a  estima  de  Ignez,  não  descançou  até  libertar 
a  França  da  oppressão  dos  inglezes  e  até  ser  coroado  em  Reims. 

O  serviço  prestado  por  Ignez  á  coroa  de  França  e  á  propia  França  era 
digno  de  apagar  o  que  havia  de  illcgitimo  nas  suas  relações  com  Carlos  vii,  e 
Francisco  i  (juiz  reliabililar  a  sua  memoria,  dedicando-lhc  esta  quadra,  ([ue  é 
um  docnmenlii  hisloi-ico  cm  a|q)oio  da  tradicção  : 

Centillr  Áijnp^.  pUix  dlionnenr  tu   nierile, 
Lii  rdiise  f.tlMil  la  France  recourrer, 
Que  c.e  ijue.  peul  dédans  nn  doisire  oiierer 
Close  nonnain,  ou  bien  devnt  hermilp. 

A  opinião,  porém,  dos  contemporâneos  não  era  tão  favorável  a  Ignez,  e 
a  bella  dama,  por  mais  esforços  que  empregou,  nunca  poude  erguer-se  da  ab- 
jecção das  eorlczãs,  em  que  a  lançara  a  inflexivel  sentença  da  opinião  publica. 
Ouando  ousava  apresenlar-sc  em  publico,  a  multidão  agrupava-se  em  torno 
(rdla,  e  não  faltavam  olhares  de  desprezo,  ditos  sarcásticos  e  injurias  amea- 
çadoras. 

Foi  uma  única  vez  a  Paris  em  abril  de  1  ii8,  e  poucos  dias  depois  teve 
de  sabir  da  cidade,  dizendo  (|uc  os  parisienses  «eram  uns  viilõcs,  e  que  se 
soubesse  que  a  haviam  de  rece!)er  tão  friamente,  nunca  teria  posto  os  pés 
n'a(|iiclla  cidad(\» 

O  Journal  dii  Hnunjeuis  de  Paria  refci'e  a  entrada  de  Ignez  na  cidade  do 
Sena,  i\  aecrescenia  (|ue  se  dizia  publicamenti!  «(|ue  ella  era  a  amante  do  rei 
de  Fr:\nça,  uma  descarada  sem  fé  nem  lei,  (pie  ludibriava  a  boa  rainha  sua 
ama.  Ignez  linha  um  grande  estado  como  condessa  ou  (lu(|ueza,  acompanhando 
sempre  a  boa  raiiiiia,  sem  veigonha  do  seu  p(>ccado,  e  sem  commiseração  jia- 
ra  com  a  pobre  senhora,  que  solliia  i'om  isto  um  grande  desgosto.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  343 

flarlos  vil  rcspeilava  baslanto  a  opiíiiãd  publica  |)aia  confessar  escaiida- 
losainente  as  relações  adulleras,  que  havia  dezoito  ou  de/.enove  ariiios  existiam 
entre  elle  e  Ignez.  Tivera  d'ella  quatro  ILlIios,  trcs  dos  quacs  viviam,  e  tinham 
o  titulo  de  l.a  France,  como  os  lilhos  legitimos  d'el-rci.  Desde  o  nascimento 
(ia  primeira  lilha,  que  morreu  poucos  dias  depois,  diz  Moiistrelet,  «Ignez  de- 
clarou ([ue  essa  filha  era  d'el-rei,  mas  o  monareha  deseulpou-se  sempre,  e 
nunca  mais  se  lallou  em  tal.» 

Carlos  Yii,  porém,  reconheceu  as  outras  três  bastardas,  que  ('oram  esplen- 
didamente dotadas  e  casaram  no  reinado  de  Luiz  xi.  E  de  crer,  todavia,  que 
durante  a  vida  de  seu  pae  nunca  se  apresentassem  na  corte,  e  o  seu  nasci- 
mento chegou  mesmo  a  ser  ignorado  de  muita  gente.  Historiailores  houve, 
taes  como  João  Ciiastier  e  Enguerrand,  que  allirmam  o  completo  platonismo 
das  relações  d'el-rei  com  Ignez  Sorel. 

O  mysterio  de  que  o  rei  Carlos  cercava  os  seus  amores  prova  exuberan- 
temente como  elle  entendia  o  seu  dever  de  dar  exemplos  de  moralidade  aos  seus 
vassallos  e  á  corte,  que  elle  não  queria  ver  transformada  em  logar  de  prosti- 
tuição, rodemos  d"aqui  infei'ir  a  grande  reforma  de  costumes  que  na  corte  se 
operou,  principalmente  nos  últimos  annos  da  vida  d"el-rci,  (|uc  ao  envelhecer 
se  tornou  triste,  sombrio  e  myanthropo. 

O  povo  de  Paris  não  esquecera  nunca  a  iiorrivci  recordação  do  baile  dos 
Anleiíles  e  as  obscenas  mascaradas  que  iiaviam  tido  por  theatro  os  palácios  do 
rei,  da  rainha  e  dos  príncipes.  E'  possível  até  (jue  se  exaggerasse  bastante  a 
preversão  d'esses  passatempos  da  t'órte,  por  isso  que  a  elles  se  attribuiain  os 
desgraçados  acontecimentos  do  reinado  de  Carlos  vi,  considerados  geraliucnie 
como  um  castigo  das  im|)iedades  e  infâmias  que  este  malaventurado  rei  auc- 
torisára  com  o  seu  exemplo.  E'  muito  provável,  porém,  que  as  mascaradas 
d'aquella  épocha  não  fossem  apenas  innotlensivos  disfarces  inventados  para  re- 
crear os  ânimos,  mas  que  tive.ssem,  pelo  contrario,  o  seu  tanto  ou  quanto  de 
impudicas.  Conta-se  que  umas  vezes  as  mascaras  representavam  certas  partes 
do  corpo  que  o  pudor  manda  occultar,  especialmente  attributos  do  sexo  mas- 
culino, outras,  os  mascarados  traziam  a  descoberto  os  seus  órgãos  sexuaes,  ou 
vestiam  ouropéis  recamados  de  imagens  e  dixisas  indecentes. 

Não  é  tudo  ainda.  Estes  disfarces  dissolutos  facilitavam  a  quem  os  adop- 
tava o  meio  de  satisfazer  as  suas  paixões  sem  ser  recimhecido.  Daqui  o  grande 
numero  de  estupros  e  insultos  que  a  historia  d'essa  épocha  registra  a  cada 
passo.  Os  namorados  serviam-se  igualmente  do  disfarce  para  poderem  fallar 
com  as  suas  deusas,  e  chegarem  mesmo  com  ellas  ás  ultimas  liberdades,  diante 
do  pae  da  mãe,  do  esposo,  ou  d'um  parente  qualquer,  e  isto  em  presença  de 
toda  a  còrle. 

Este  delírio  de  mascaradas  não  Ibí  um  invento  da  corte  de  Carlos  \  i.  Era 
apenas  uma  imitação  da  fesla  dos  loncots,  tão  vulgar  na  Edade-.Media  na 
maior  parte  das  egrejas  e  conventos  da  cbristandade,  e  que  descendia  em  linha 
recta  das  Saturnaes  do  paganismo.  .4  /'esta  dos  louros  não  havia  desapparecido 
ainda  no  século  xv,  apezar  dos  esforços  do  episcopado,  (|ue  debalde  |)rocurára 
destruil-a  desde   o  estabelecimento  do  christianisino  nas  Callias.  (Ireaorio  de 


34Í  -  HISTORIA 

Tours,  na  sua  Hisloria  dus  trancos,  menciona  uni  dccrelo  episcopal  conlra 
as  religiosas  de  Poitiers,  que  iiaviam  celebrado  as  harbalurias.  Cliamava-se 
assim  tamliem  a  f-esla  dos  loucos,  por  causa  das  mascaras  barbudas  com  que 
os  adores  d'eslas  liccnciosidades  publicas  cobriam  o  rosto. 

No  priuieiro  de  janeiro,  dia  da  (lircumcisão,  a  cathedral  de  l'aris  era  in- 
\adida  por  uma  multidão  de  gente  mascarada,  que  a  profanava  com  danças  lú- 
bricas, jogos  prohibidos,  descantes  obscenos,  burlas  sacrílegas  e  mil  outros 
excessos  que  cbegavam  até  mesmo  á  elTusão  de  sangue.  Os  sacerdotes  e  cléri- 
gos eram  os  instigadores,  e  cúmplices  de  tão  escandalosas  mascaradas,  que  se 
espalhavam  pelas  ruas  da  cidade,  levando  o  escândalo  a  toda  a  parte.  (Moyen 
age  et  la  íienaissance.  por  P.  Lacroix,  cap.  da  Fête  des  Fous.) 

O  bispo  Eudes  de  Sully  comminou  excommunbão  maior  a  todo  o  sacer- 
dote ou  leigo  que  tomasse  parte  n'estas  vergonhosas  orgias,  que  se  renovavam 
annualmentc  sob  o  titulo  de  liberdade  de  dezenihro.  Apesar  d'isto  a  Festa  dos 
loucos  continuou  a  celebrar-se  e  cada  vez  com  maior  escândalo  na  sua  egreja. 

Foi  mister  que  a  auctoridade  civil  viesse  em  auxilio  da  ecciesiastica,  para 
extirpar,  ou  melhor  para  reprimir  excessos,  que  não  se  limitavam  á  eleição  de 
um  papa  ou  bispo  dos  loucos  pelos  seus  súbditos,  que  se  submettiam  ás  suas 
ordens  burlescas  durante  todo  o  tempo  da  festa. 

No  eintanto,  esta  festa  dos  loucos,  tão  variada  nos  seus  nomes,  nos  seus 
costumes  e  na  sua  lilhurgia  burlesca,  só  foi  definitivamente  supprimida  em 
França  no  meiado  do  século  xvii. 

O  povo  gostava  muitíssimo  d'aquelles  grotescos  espectáculos  e  abando- 
nava de  bom  grado  o  trabalho  e  os  negócios  para  vèr  pas.sar  uma  cavalgada  de 
mascarados,  vestidos  de  um  modo  verdadeiramente  extravagante.  Se  a  policia 
não  interviesse  no  próprio  interesse  da  ordem  publica,  as  mascaras  e  os  disfar- 
ces ter-se-iam  multiplicado  com  os  crimes  e  desordens  que  tanto  favoreciam. 

Basta  citar  a  seguinte  passagem  de  Sauval,  para  se  fazer  ideia  das  inde- 
cencias  que  se  commetliam  sob  pretexto  d'estas  mascaradas : 

«Actualmente,  no  fim  do  anno  (dezembro  de  lo02)  já  os  mascarados  não 
percorrem  as  ruas  com  os  seus  disfarces  de  doidos,  -irazendo  nas  mãos  uns 
paus  ocos  por  dentro  e  cheios  de  palha,  e  feitos  em  forma  de  priapos,  com  que 
batiam  em  quanios  encontravam  no  seu  caminho,  (intiquilrs  de  l'aris,  lib. 
\ii,  p.   (i.il.) 

lina  das  mais  licenciosas  variantes  da  festa  dos  loucos  foi  a  que  se  ado- 
ptou no  século  xiv  na  Normandia,  especialmente  em  Evreux  c  em  Houen.  As 
fienle.s  de,Conardie,  confrades  de  São  Barnabé,  elegiam  um  chefe  intitulado  o 
abbade  dos  Conards,  que  visitava  os  seus  estados  montado  n'um  burro,  levando 
na  cabeça  uma  carapuça  verde,  adornada  de  um  famoso  penacho,  empunhando 
um  sceptro  e  acompanhado  dos  seus  conards.  Este  ai)bade  dos  conards  cha- 
mava ao  seu  tribunal  todas  as  causas  licenciosas,  pronunciava  sentenças  em 
matéria  ronardante  e  tirava  os  seus  argumenios  do  Evangelho  dos  Conixiilles, 
antigo  re|iertorio  de  torpes  trocadilhos  e  de  aphorismos  licenciosos. 

O  obsceno  abbade  conservou  a  sua  jurisdicção  na  cidade  de  Rouen  ale  lins 
(lo  século  XVI,  em  (|ue  ainda  visitava  os  seus  vassallos,  (|ue  se  chamavam  ro- 


DA    PROSTITUIÇÃO  343 

nards,  e  não  mrnards,  confdrme  alguém  |)ri'l('n(lrii  bapfisal-os  por  iloconcia 
He  etymologia,  e  que  as  pessoas  honestas  denominavam  innorevics,  para  não 
ferem  de  proferir  um  termo  tão  grosseiro.  Conanl  {('onnrdus)  era  synonymo 
de  fátuo  ou  tolo  (stultus-,  fátuas),  mas  esta  ohseena  palavra,  que  bem  mostra 
o  séllo  da  sua  origem  plebeia,  e\plica-se  naturalmente  por  um  provérbio,  que 
o  auctor  do  Wof/eíi  de  parcenir  teve  o  cuidado  de  recolher  do  antigo  arsenal 
das  cousas  burlescas.  Dizia-se  então,  c  talvez  ninda  hoje  se  diga  na  torpe  lin- 
guagem das  vicllas —  loln  como  tim  c.  .  . 

.4  festa  extravagante  dos  Innoceiílex,  on  dos  l^niards  deu  .sem  duvida 
origem  a  um  costume  demasiado  imperfineiilc,  (|iic  foi  muito  conimum  em 
França,  tanto  na  alta  nobreza  como  entre  a  gente  mais  humilde  das  cla.sses  po- 
pulares, durante  os  séculos  xv  e  xvi.  Só  os  poetas  e  narradores  de  contos  al- 
ludem  a  este  costume  e  pode  crèr-se  que  ninguém  tinha  razão  de  (|ueixa  d'elle. 
Ris  como  o  abbade  Leuglet-Dufresnoy,  nas  suas  notas  sobre  as  obras  de  ('de- 
mente Marot,  evplica  este  costume: 

«A  gente  nova  que  era  surprehendida  rta  cama  cm  dia  dos  liinocenles 
(28  de  dezembro)  recebia  uns  tantus  açoites  e  ás  vezes  alguma  cousa  mais, 
quando  o  caso  o  exigia.  Isto,  porém,  já  hoje  passou  de  moda.  i\os  somos  mais 
prudentes  e  reservados  que  os  nossos  maiores.» 

Leuglef-Dufresnoy  escrevia  isto  em  17.10  ou  1731,  e  cincoenta  annos  an- 
tes a  palavra,  senão  o  facto,  estava  ainda  em  voga,  pois  que  se  lè  no  Diclion. 
de  la  langue  franraise,  de  Richclet : 

(iDar  0.1  innocentes  a  alíjuem  (aliqnem  rirr/is  e.rcipere),  quer  dizer  dar- 
Ihe  um    par  de  açoites  nas  nádegas,  em  dia  dos  Innocentes,  por  brincadeira.» 

CJement  Marot,  n'um  epigramma,  que  serve  de  pretexto  a  uma  nota  bem 
erótica  do  seu  editor,  faz-nos  suppòr  que  n  dia  dos  Innocentes  não  era  muitas 
vezes  senão  um  pretexto  innocente  para  obter  um  resultado,  (]ue  bem  longe  es- 
tava de  o  ser: 

«Querida  irmã,  se  eu  soubesse  onde  esse  corpo  adorável  dorme  no  dia 
(los  Innocentes,  logo  de  madrugada  dirigir-me-hia  ao  vosso  leito,  para  o  ver, 
para  o  adorar,  a  esse  corpo  gentil,  que  prefiro  entre  milhares  dVlles.  O  êxtase 
do  meu  amor  não  consentiria  que  esta  mão  deixasse  de  o  tocar,  scguindo-lhc 
apaixonadamente  todos  os  contornos  delicados,  e  se  por  acaso  viesse  alguém, 
fingiria  dar-vos  os  innocetites.  Oue  vos  parece  o  ardil,  oh  querida  irmã?!.  .  .» 

A  querida  irmã,  a  quem  Marot  se  dirigia  com  tanta  familiaridade,  não  era 
outra,  se  dermos  credito  aos  commentadf)res  e  á  tradicção,  senão  a  sediictora 
rainha  de  Navarra,  irmã  de  Francisco  i. 

D'aqui  podemos  naturalmente  inferir  que  o  jogo  dos  innocentes,  como 
u'essa  époclia  se  jogava  na  corte,  encurtava  as  distancias  sem  se  prender  com 
bagatellas,  nem  com  etiquetas  palacianas.  Este  jogo  salvava  as  apparencias  e 
occultava  muitos  mysterios,  sob  a  honnèle  courerlure,  segundo  a  própria  ex- 
pressão de  Marot. 

Brantòrae,  nas  suas  Damas  galantes,  cita  a  este  respeito  «uma  grande  fi- 
dalga, que  por  espaço  de  quarenta  annos  foi  considerada  como  a  mais  honesta 
mulher  do  paiz  e  da  corte,  e  que  ficando  viuva  leve  a  fraqueza  de  se  apaixo- 

HlSTOBIA    D*    PaOSTUDIçio.  TOMO  H— KOLBA  U 


340  HISTORIA 

nar  por  iiin  fidalgo.  C.onio  não  podesse  lograr  o  sou  desejo  sensual,  dia  de  In- 
noL-rntes  foi  ao  quario  do  mancebo,  para  iiros  dai',  mas  elle  foi  quem  lii'os  deu 
a  ella,  e  decerto  que  não  foi  com  as  mãos.» 

Pôde  calcular-se  facilmente  a  que  estado  de  depravação  moral  havia  che- 
gado a  córfe  de  Franya,  quando  adoptava  similhantcs  costumes,  nascidos  nas 
classes  populares.  Veremos  ainda  como  esta  depravação  subiu  de  ponto  no 
tempo  dos  Valois,  em  que  os  costumes  italianos  entraram  na  corte  antes  mesmo 
de  (^atharina  de  Medíeis. 

De  resto,  devemos  dizer  desde  já  que  o  jogo  dos  innocentes  não  era  o  mais 
escabroso  de  (pianlos  se  jogavam  com  as  damas  de  honor  da  rainha.  Estas  da- 
mas entravam  desde  a  mais  tenra  juveiituih'  numa  cschola  de  perigosa  galan- 
teria que  as  conduzia  naluialmente  á  prostituição.  As  palavras  obscenas  c  os 
espectáculos  indecentes  eram  as  suas  lições  quotidianas. 

Havia  uma  multidão  de  brincadeiras  licenciosas  e  grosseiras,  que  se  col- 
locavam  sem  cessar  diante  dos  olhos  das  jovens  :  trocadilhos  arrojados,  obsce- 
nidades, contos  immoraes,  tudo  isto  constituía  a  conversação  habitual  das  pes- 
soas da  corte. 

Não  ousaremos  apresentar  aqui  uma  amostra  scijuer  das  {ilinnharõex 
amorosas,  audaciosos  enigmas  pi-oposlos  sem  a  menor  eciámonia  ás  damas  da 
còrtc  de  Borgonha.  E'  preciso  ler  as  Ceiíl  niiu.rclles  aouceíles  da  bon  roi  Loiíis 
XI,  para  se  fazer  uma  ideia  perfeita  do  que  era  a  desmoralisação  da  corte  de 
França  no  século  xv ;  comtudo  um  só  dos  usos  d'esta  côile,  uso  admittido  e 
auctorisado  em  toda  a  parte,  tanto  entre  os  príncipes  como  entre  os  pobres,  fará 
conhecer  melhor  do  que  temos  dito  o  grau  de  relaxação  a  que  havia  descido  a 
mor.il  publica.  lodosos  casamentos,  ainda  mesmo  os  dos  príncipes,  davam  logar 
a  uma  escandalosa  comedia,  que  so  poderia  tolcrar-se  n'uni  paiz  de  selvagens,  ou 
n'uma  Cnrie  dos  Mikujres. 

Logo  que  os  esposos  entravam  na  camará  nupcial,  todos  os  (|ue  haviam 
assistido  ás  bodas,  novos  ou  velhos,  doídos  ou  sensatos,  tomavam  posição  para 
verem  e  ouvirem  o  que  se  ia  passar  entre  os  noivos.  Não  era  como  entre  os 
antigos  um  grupo  de  crianças  que  agitavam  nozes,  cantando  o  llimen  tradic- 
cional,  era  uma  conspiração  de  todos  os  convivas,  (|ue  tinha  por  hm  surpre- 
liender  os  mysterios  do  thalamo  nupcial. 

Para  este  fim,  uns  trepavam  á.>  b;indeiras  das  portas,  outros  subiam  ás 
janellas,  outros  esburacavam  as  paredes,  outros  finalmente  o  tecto.  .Muitas  ve- 
zes o  fim  d'este  uso  desavergonhado  era  impedir  <is  dois  esposos  de  consutnma- 
reni  a  copula  conjugal. 

Tudo  (|uanto  estes  obscenos  .-\rgus  surprehcndiam  era  em  seguida  com- 
menlado  e  apimentad(j  de  facécias  por  todos  os  convivas. 

Comprebende-se  que  este  uso  indiscreto  se  estabelecesse  no  campo  entre 
gente  pouco  delicada,  mas  é  caso  para  admiração  vermol-o  assim  vulgarisado 
ainda  mais  na  corte  do  que  em  ouli-a  parle  (|ual(|uer.  Era  como  i]ue  um  tri- 
buto (|ue  os  reccm-casados  pagavam  á  libertinagem  dos  seus  amigos.  Cada  grito, 
cada  (|uci\ume  da  noiva,  provocava  nos  circunislanles  uma  salva  de  applansos 
em  honra  do  noivo. 


bA     PROSTITUIÇÃO  -347 

(llcim-iite    Marot,  que  assistiu  ao  (.-asatiuMilo  de  Renata  de  Krani^-a,  lillia. 
de  Luiz  XII  com  o  duque  de  Ferrara,  Hcreules  d'Este,  em  Julho  de  |.')28,  al- 
lude  a    este  eostume,  de  que  nem  a  própria  prineeza  foi    exceptuada.  Do  seu 
canil)    epitlialamieo   vè-se    que  as  damas  não  eram    mimos  curiosas  do  que  os 
liomens  a  respeito  dos  episódios  da  noite  de  núpcias  : 

«Vós  que.  ceiaes,  deixae  as  mezas  sueculentas.  E'  j)reciso  comer  p.iuco 
para  l)em  dançar.  Sus,  reverendos,  recitae  depressa  as  graças,  porque  o  ma- 
rido diz  qu(>  é  preciso  apressarmo-nos.  O  dia  incommoda-o.  como  podeis  cal- 
cular. Dançae,  dançael  E  tracte  cada  qual  de  escutar  á  porta,  se  elle  dér  o 
assalto  á  meia  noite.  O  ardor  do  desejo  tiMusporta-nos  a  estes  togares.  E  a 
bemaventurada  noite  é  uma  noite  perigosa!»^ 

Era  provavelmente  tão  perigosa  para  as  damas  (|ue  aeeudiam  a  receber 
unia  instiiicção  espeeial,  comn  p;!ra  a  pobre  esposa,  (|ue  desempenhava  um  pa- 
pel tanto  mais  dillicil,  quanto  era  certo  que  cada  uma  das  suas  palavras  era 
repetida  por  milhares  de  echos.  Não  deve  e\tranhar-se,  em  vista  ifisto,  o  ex- 
traordinário numero  de  contos  immoraes  e  desopilantes,  que  a  venturosa  noiíf 
ministrava  aos  nossos  maiores.  Todas  eslas  historias  ingénuas  ou  grosseiras 
eram  aprendidas  com  especial  cndailn  e  constituíam  a  conversação  ordinária  do 
dia  seguinte,  lirantòme  nãn  esqueceu  i^sfe  capitulo  nas  suas  Ihininn  iiníanies, 
onde  diz  «inu'  na  noite  de  bodas  todos  estavam  á  escuta,  segundo  era  cosluine.'» 
Esta  noite,  em  que  tudo  .se  passava,  porque  assim  o  digamos,  entre  tes- 
temunhas, como  o  contracto  nupcial,  era  caso  para  assustar  deveras  os  noivos. 
Era  preciso  deixar  bem  demonstrada  a  honra  conjugal,  no  dizer  de  um  auctor 
i|iie  havia  experiínenlado  os  azares  e  perigos  da  situação.  O  noivo  linha  de  pro- 
var de  certo  modo  a  virgindade  de  sua  mulher,  e  quantas  vezes  ell;i  fazia  ho- 
roicos  esforços  para  lingii'  o  que  não  existia!  Era  preciso  ás  vezes  entrar  em 
explicações  muito  penosas,  mas,  segundo  Branlòme,  *<os  senhores  médicos  e 
os  babeis  e  espertos  boticários  sabem  inventar,  a  propósito,  remédios  para  eslas 
fraípiezas  das  noivas.» 

Eis  um  d'esses  remédios,  que  Hrantòme  diz  ler  ouvido  a  um  empirico  : 
«Appliquem-se  na  região  própria  quatro  sanguesugas,  de  maneira  que  pe- 
guem e  tirem  algum  sangue.  Ao  largarem,  fazem  umas  empollas  e  fistulas 
cheias  de  sangue.  Apenas  o  esposo  roça  o  membro  por  estas  empollas,  reben- 
la-as,  e  os  dois  ficam  ensanguentados  com  grande  satisfação  reciproca,  e  d'este 
modo  il  honor  delln  cilaãella  e  salvo  ! 

Hrantòme,  no  capitulo  dos  maridos  enfeitados,  entra  em  pormenores  ainda 
mais  tcchnicos,  que  não  são  mal  cabidos  nas  suas  Damas  Galantes,  mas  que  o 
poderiam  ser  acjui,  ainda  que  perti'nçam  essencialmente,  como  bem  se  com- 
prehende,  á  Historia  da  Prosiiiiiinln. 

De  resto,  temos  dito  o  bastante  sobre  este  escabroso  assumpto,  para  se 
poder  formar  uma  ideia  dos  costumes  de  uma  sociedade,  na  ipial  nem  a  pró- 
pria instituição  do  matrimonio,  sua  base  mais  solida  e  mais  santa,  era  respei- 
tada na  occasião  em  que  o  sacerdote  acabava  de  abençoar  o  leito  nupcial. 

Chega  a  pensar-se  com  horror  na  desmoralisação  precoce  das  meninas, 
que   antes  da   puberdade   eram    iniciadas  em  segredos,  que  o  matrimonio  não 


348  HISTORIA 

tinha  já  de  revelar-llies,  por  isso  que  haviam  sido  expostos  n'aquella  espécie 
de  pelourinho  obsceno,  que  tantas  vezes  cobria  de  deshonra  o  marido  e  seus 
filhos. 

O  escândalo  tornava-se  ainda  mais  grave,  quando  a  noiva  era  viuva.  Fe- 
lizmente que  n'esle  caso,  no  meio  de  todas  as  inconveniências,  insultos  e  al- 
gazarras dos  convivas,  não  era  a  pureza  de  uma  donzclla  que  assim  era  entre- 
gue sem  defeza  á  impudência  e  á  iinmoralidade  dos  libertinos! 


CAPITULO   XXX 


SUMMARIO 


Os  cuu.os  do  rei  Luiz  xi.—  Vida  privada  das  miillíeres  ao  século  xv.  —  Margarida  de  Escócia  c  Jatuet  do 
Tillay.  —  As  comadres  de  Luiz  si.  —  Chronica  escandalosa.  —  A  mula  du  cardeal  Balue.  —  O  servente  de  Olivier  Le 
Oain.— O  duque  rrOrleans  e  a  senhora  de  Beaujeu.  —  Carlos  viu  ua  Itália.  —A  sua  castidade.  —  Process  i  de  Luiz 
xu  e  de  Joanua  de  França,  sua  mulher.—  Trechos  do  inlerrojíatorio  das  duas  partes.—  Anna  de  Bretanha  e  a  côite 
das  damas.—  Luiz  su  na  Itália.  —  Thomasiiia  Spínola  —  As  milanezas.—  O  doclrmal  das  damas,  de  J.  Marot  —  Pa- 
rallelo  entre  as  lombardas  e  as  parisienses. 


Dei.phi.m  Lliz,  priíiiogenilu  de  Carlos  vii,  foi  na  sua  juvt-iilude 
II  tão  libertino  como  seu  avò  Carlos  vi.  Teve  um  grande  numero 
de  amantes,  (jue  llie  deram  muitos  bastardos,  aos  quacs  sem  a 
menor  diíliculdade  reconheceu,  dotou  e  casou,  apenas  subiu  ao 
tlirono.  Segundo  a  tradic(,-ão,  o  monarclia  espalhou  também  al- 
gumas vergonteas  pelas  ciasses  populares,  onde  tinha  comadres,  que  continuou 
a  favorecer  e  a  visitar  mesmo  depois  de  ser  acciamado  rei.  Os  seus  favoritus  e 
servidores  não  tratavam  de  ter  uma  conducla  mais  regular,  e  a  pequena  còrtc 
do  delphinado  e  de  Geneppe  de  Hrabante,  onde  foi  refugiar-se  para  evitai  os 
elleitos  da  cólera  paterna,  distinguiu-se  das  cortes  de  trança  e  da  Borgonha 
naquella  épocha  pela  relaxação  dos  costumes  e  sobretudo  pela  completa  depra- 
vação de  todos  os  que  a  compunham. 

Basta  folhear-se  a  coliccçào  das  Cem  novas  noiellas  do  bom  rei  Luiz  xi, 
para  fazermos  uma  perfeita  ideia  a  respeito  da  libertinagem  que  animava  aquella 
alegre  còrtc,  em  que  cada  qual  se  orgulhava  pelas  suas  proezas  galantes,  e  fa- 
zia, por  assim  dizer,  o  registro  d'ellas,  divulgando-as  sob  o  transparente  veu 
dos  nomes  suppostos. 

O  dclphim  animava  com  o  seu  exemplo  a  libertinagem  dos  narradores  de 
contos,  António  de  la  Sale,  João  de  la  Roche,  Dampmartin,  e  outros  emprega- 
dos da  sua  casa,  que  nos  serões  do  paço,  sentados  diante  do  brazeiro,  porfia- 
vaiu  em  audácia  nas  suas  impudicas  narrativas,  que  se  reproduziam  em  todos 
os  lares. 

Verdade  seja  que  as  mulheres  não  assistiam  a  estes  serões.  N'esse  tempo 
viviam  cilas  muito  retiradas  nos  dillerentes  misteres  da  vida  domestica,  sem 
lerem  relações  algumas  com  os  homens  em  publico,  a  não  ser  em  certas  cere- 
monias.  Passavam  a  vida  nos  trabalhos  manuaes  de  suas  casas,  c  tinham,  por 
isso   mesmo,    raríssimas  occasiões  para  peccarem.  Era  só  isto  o  que  lhes  fal- 


350 


HISTORIA 


tava,  porque  estavam  bem  dispostas  paca  o  amor  pela  licyão  dos  livros  da  ca- 
vallaria.  A  etiqueta,  porém,  alTastando-as  da  intimidade  com  os  extranhos,  de- 
fendia-lhes  cflicazmente  a  virtude. 

Margarida  de  Escócia,  primeira  mulher  de  Luiz  xi,  viu-se  gravemente 
compromettida  por  ter  sido  emtontrada  ás  escuras  nos  seus  aposentos  com  as 
suas  damas  e  dois  ou  Ires  fidalgos  da  corte.  Um  (relles,  por  nome  Jamct  de 
Tillay,  jactou-sc  de  haver  obtido  da  delphina  alguns  favores,  que  se  limitavam 
a  simples  apertos  de  mãos.  A  calumnia  envenenou,  porém,  a  indiscrição  de 
Tillay,  c  duas  ou  três  testemunhas  attribuiram-lhe  palavras  muito  injuriosas 
contra  esta  princeza,  que  depois  de  o  ter  acolhido  com  extrema  benevolência, 
o  despediu  de  si,  em  castigo  da  sua  leviandade.  Segundo  as  referidas  testemu- 
nhas, Tillay  havia  dito,  indicando  a  delphina,  «que  umas  vezes  se  apertava 
muito,  e  outras  andava  desapertada  e  á  vontade  e  que  passava  as  noites  a  lèr 
e  a  faziM-  versos»: 

-  Vedes  (sia  dama?  Tem  maneiras  de  ribalda,  e  parece  mais  isto  do  que 
uma  princeza!.  .  . 

Tillay,  porém,  procurando  justificar-se  d'esta  accusação,  deixou  cahir 
sobre  a  delphina  uma  suspeita  muito  mais  grave  do  que  as  duras  palavras  que 
llic  eram  imputadas.  Tillay  referiu  na  syndicancia  que  leve  logar  a  este  res- 
peito, depois  da  morlc  de  Margarida  de  Escócia,  que  a  princeza  estava  uma 
noite  deitada  no  seu  leito,  tendo  em  volta  de  si  muitas  das  suas  damas,  antes 
de  SC  haverem  accendido  as  luzes.  O  senhor  Régnant,  moivlomo  da  dcl|ibina, 
c  outro  fidalgo  estavam  encostados  á  cama  de  Margarida,  e  fallava-se  cm  voz 
bai\a  no  aposcnío,  havendo  ate  por  vezes  grandes  intervallos  de  silencio. 

.lainet  Tillay,  que  entrou  n'um  d'esses  intervallos,  disse  vivamente  ao 
senhor  Régnant  «que  era  uma  grande  patifaria  tanto  d'elie  como  dos  outros  ser- 
vidores da  delphina  o  não  haverem  ainda  accendido  as  luzes.»  Apressaram-se 
logo  a  accendel-as,  mas  a  pi^incza  alHigiu-se  muito  com  aqiiillo,  cahiu  n'uma 
grande  melancholia,  e  (i'ahi  a  pouco  tempo  morreu  de  consumpção. 

Uma  das  damas  de  honor,  .loanna  de  Trasse,  encontrando-se  cara  a  cara 
com  Tillay,  quando  a  pobre  princeza  ia  evhalar  o  ultimo  suspiro,  não  poude 
deixar  de  lhe  dizer  : 

— .Maldito   ribaldo!  A  jiobicsinha  morre  poi'  eausa  das  tuas  falsidades! 

Espalhou-se  pela  còile  o  boato  de  que  Tillay  havia  sido  amante  de  Mar- 
garida e  de  (jue  os  seus  ciúmes  '""ntra  um  rival  lhe  tinham  inspirado  as  duras 
palavras  que  allligiram  mortalmente  a  delphina. 

A  historia  vingou  a  honra  da  piinceza,  (|ue  era  sem  duvida  romântica, 
mas  ainda  assim  |)ouco  disposta  á  gaianicria.  Foi  ella  que  passando  um  dia  n'um 
pomar,  em  que  eslava  a  dormir  o  poeta  .\lain  (Iharticr,  se  approximou  d'el!e 
c  o  beijou  na  bocca. 

As  pessoas  do  séquito  da  romântica  princeza  exlranharam  o  facto,  e  tanto 
mais  (|ue  Alain  era  talvez  o  homem  mais  feio  de  toda  a  Franç,'a. 

—  Eu  não  beijei  o  homem,  mas  sim  a  bocca  que  tem  sabido  dizer  Ião 
bellas  cousas. 

Margarida  era  mullur  de  belieza  extraordinária,  mas  o  delphim  seu  es- 


DA    PROSTITUIÇÃO 


3ol 


poso,  do(ostava-a  por  ter  um  hálito  pestilento.   Comines  diz  «(|ue  o  principe 
eazára  contra  vontade  c  que  viveu  sempre  desgostoso  cm  quanto  ella  viveu.» 

Quando  em  \ííí  a  perdeu,  não  pensou  em  cazar  sejíunda  vez,  ainda 
que  a  primeira  mulher  não  lhe  tivesse  dado  suceessão.  Em  liol,  porém,  mu- 
dou de  parecer  e  cazou  eom  Carlota  de  Sahoya.  Esta  prinecza  tinha  seis  annos 
no  dia  dos  seus  dcspozorios  e  o  matrimonio  só  poude  eonsummar-sc  quando 
Carlota  entrou  na  puberdade.  Tinha  apenas  doze  annos  quando  compartilhou  o 
leito  do  rei. 

Emquanio  esperou  pela  puberdade  da  esposa,  não  se  descuidava  nos  seus 
amores.  Enamorou-se  de  duas  mulheres  nobres,  Felícia  líenard  e  Margarida 
de  Sassenage,  das  quaes  teve  alguns  filhos.  Preferia,  porém,  as  mulheres  do 
povo  c  as  esposas  dos  commerciantcs  ás  damas  de  alta  jcrarchia.  Eis  o  mo- 
tivo porque  em  Dijon  teve  amores  com  Huguette  Jacquelin,  em  Lyon  com  a 
(ligonne  e  em  Paris  com  a  Passefilon,  ás  (juacs  amava  ao  mesmo  tempo,  fa- 
zendo-se  acompanhar  por  elhis  nas  suas  viagens,  e  dormindo  com  qualquer 
d'ellas,  depois  de  ceias  alegres,  apimentadas  eom  nairalivas  de  contos  licen- 
ciosos. 

El-rei  não  se  envergonhava  de  appareeer  em  publico  com  a  (ligonne  c  a 
Passefilon,  que  eram  muito  cimhecidas  do  povo.  Chamavain-lhcs  as  comadres 
d'el-rei,  mas  a  sua  honeslidaile,  palavra  de  que  se  scr\('  o  chronista  João  de 
Troyes,  tornava-as  bem  acceites  em  toda  a  parle,  apesar  do  ofíicio  pouco  iion- 
niso,  que  ambas  ellas  desempenhavam  na  camará  real. 

.\s  pessoas  de  condiç^ão  humilde  não  levavam  a  mal  que  o  rei  Luiz  hou- 
vesse preferido  mulheres  d'esta  classe  ás  damas  principaes,  e  as  suas  duas  co- 
madres, a  Gigonne  e  a  l'asserilon,  que  não  se  jactavam  da  sua  prostituição  como 
Ignez  Sorel,  não  tiveram  como  a  illustre  cortezã  motivo  de  queixa  do  [)o\()  de 
Paris. 

Julgamos  que  os  nomes  de  Giyonne  e  Passefilon  eram  alcunhas  das  duas 
amigas  d'el-rei.  O  que  nunca  pudemos  descobrir  foi  a  elymologia  dVstas  pa- 
lavras. 

Muito  tempo  depois  do  seu  reinado  de  cortezãs,  dançava-sc  ainda  um 
bailado  chamado  Gigonne,  e  usava-se  um  penteado  á  Passe  filou,  luas  já  havia 
sido  esquecida  a  origem  do  penteado  e  da  dança. 

Apesar  do  papel  que  estas  duas  mulheres  desempenharam  simultanea- 
mente junto  do  rei  e  que  parece  haver  duradolWé  ao  seu  casamento  cm  1 47(i, 
o  historiador  de  Luiz  \i,  Filippe  de  Comines,  aílirma  que  este  principe,  lendo 
perdido  em  1  ioi)  um  filho  chamado  Joaquim,  «fez  xoto  a  Deus,  na  minha  pr(>- 
sença  de  nunca  t(jcar  cm  nenhuma  outra  mulher,  a  não  ser  em  sua  esposa.» 
Demasiado  sabemos  que  Luiz  xi  pequena  importância  dava  aos  seus  juramen- 
tos; não  obstante.  Comines  parece  inclinado  a  crer  que  o  rei  havia  perseverado 
no  seu  temerário  juramento,  «ainda  que  a  rainha,  acerescenta  o  chronista,  não 
fosse  d'aquellas  com  quem  se  pudesse  ter  grande  prazer,  sendo  de  resto  muito 
boa  senhora.»^ 

Etlectivamenle,  Carlota  de  Sahoya,  que  havia  estado  em  poder  de  .seu 
marido  desde  os  seis  annos,  vi\eu  (|uasi  sempre  á  parte  no  castello  d'.4mboisc. 


S5S  HISTORIA 

«com  unia  grande  simplicidade,  diz  Brantòme,  mal  vestida  até,  como  se  fora 
uma  mulher  de  classe  ordinária.  El-rei  dei\ava-a  alli  com  um  pequeno  nu- 
mero de  criados  entregue  ás  suas  praticas  de  devoção,  emquanto  clle  ia  pas- 
sear e  diverlir-se.» 

Não  é  para  admirar  que  esta  princeza,  a  quem  Iaiíz  xi  não  amava,  pas- 
sasse uma  vida  casta  e  virtuosa  no  retiro  e  no  abandono.  Os  servidores  que  a 
rodeavam  eram  por  certo  menos  castos  do  que  ella.  .Mas  Luiz  xi,  que  mudava 
muitas  vezes  de  residência,  e  que  tinha  ao  lado  de  si,  como  diz  r.umines  (Lib. 
VI,  c.  13)  tantas  mulheres  ás  suas  ordens,  não  fez  honra  ao  seu  volo  de  fide- 
lidade conjugal  senão  quando  se  viu  velho,  enfermo  e  moribundo. 

Pôde  dizer-se  que  a  còrle  de  França  neste  reinado  não  deu  exemplos  de 
moralidade,  nem  de  decência  nos  costumes.  Reinava  por  esse  tempo  em  todas 
as  classes  um  desmando  escandaloso  nas  ideias,  nas  palavras  e  nas  acções.  O 
amor  metaphysico  e  novellesco,  cujo  código  havia  sido  elaborado  pela  cavalla- 
ria,  cedia  o  passo  ao  amor  material  e  |»osilivo,  (|uc  tão  frequentemente  levava 
á  libertinagem  e  ao  escândalo.  Não  havia  senão  maridos  enganados,  viuvas 
aventureiras,  mulheres  libertinas,  jovens  seduzidas.  Os  contos  de  Boccacio  en- 
earnaram-se  de  certo  modo  na  sociedade  franceza.  Depois  de  tantas  calamidades 
publicas,  depois  da  guerra,  da  peste,  da  fome  e  da  miséria,  não  se  pensava 
senão  em  ganhar  o  tempo  perdido:  o  prazer  era  a  ideia  dominante. 

Cirandes  eram  n'essa  épocha  os  progressos  da  prostituição,  cm  consequên- 
cia da  difficuldade  (|ue  havia  para  se  viver  com  o  producto  de  um  trabalho  hon- 
rado. Uma  passagem  que  vamos  citar  do  Journal  da  fíourijenis  de  Paris,  em- 
bora seja  bastante  obscura,  dá  uma  ideia  dos  soíTrimentos  e  das  difliculdades 
em  que  se  viam  as  mulheres  publicas. 

«i\"aquelle  tempo  em  que  cada  (|ual  havia  aprendido  a  ganhar,  os  ganhos 
estavam  tão  maus,  que  as  mulheres  que  costumavam  tirar  cinco  ou  seis  fran- 
cos diários  se  davam  de  boa  víuitade  por  dois  francos,  e  assim  viviam. w 

E'  possível  que  estas  mulheres  não  fossem  prostitutas,  como  houve  quem 
pretendesse  demonstrar,  mas  em  todo  o  caso  uma  desgraçada  (|uc  não  ganhava 
senão  dois  francos  diários,  eslava  muito  arriscada  a  vender  o  seu  corpo  por 
alguns  soldos. 

O  reinado  de  Luiz  xi,  a  avaliar  por  dilTerentes  fados  consignados  na 
chronica  escandalosa  de  João  de  Troves,  foi  mais  favorável  (|ue  os  precedentes 
á  prostituição  propriamente  dita. 

Por  certo  que  a  moral  publica  era  bem  pom'o  respeitada  n'utna  épocha 
i'm  (|ue  SC  e\punham  á  vista  dos  transeuntes  nas  festas  da  entrada  do  rei  em 
Paris  (liOl)  «três  raparigas  formosíssimas  inteiramente  nuas,  mostrando  as 
pomas  redondas  c  duras,  cousa  deveras  ap|)etitosa;»  n'uma  épocha  em  (|ue  as 
aves  palreiras  não  repetiam  senão  palavras  obscenas,  taes  como  pntnin,  cntin 
«e  outras  bellas  palavras»,  diz  João  de  Troyes  em  14-68;  n'uma  épocha  em  que 
um  certo  normando  vivia  carnalmente  com  sua  (ilha.  tendo  ruuitos  filhos  d'este 
repugnantíssimo  incesto,  filhos  que  ambos  estrangulavam  logo  ao  nascer  (]  506); 
n'uma  épocha  cm  (|uc  um  frade  hcrmaplirodila,  de  tal  modo  soube  usar  dos  du- 
plos órgãos  f|ue  concebeu   e  pariu  (Ii78);  n'uma  épocha,  finalincrilc,  cm  que 


i>A  pitdSTiTuiçÃo  :('j:{ 

iim  moço  da  cjimafailVI-rei,  clianinilo  Hr'<,'Maiill  ia  Pie,  fazia  piililicamonfc  afòrtc 
á  esposa  de  Nieoiaii  Halailie,  o  mais  sahio  legista  da  Franea,  <\n<'  mf)n'('U  de  pesar 
(IÍ82),  depois  de  ter  vislo  Ioda  a  sua  roriuna  í^aeiilicada  nas  leviandades 
d'aqup|la  impii<lica  e  dos  seus  ribaldos  (V.  fhroiiicd  escandalosa,  eseripla  por 
um  cartorário  do  fíotcl  de  vUle,  de  Paris,  nas  datas  indicadas.") 

Luiz  XI  sahia  d'eslas  aventuras,  e  riu  ás  gargalhadas  quando  sonhe  (|ue  o 
sen  ministro,  o  cardeal  í.a  Baine,  (|ue  niaiitiniia  relações  adulteras  com  a  mu- 
lher de  um  fahellião  de  Paris,  chamada  .loanna  huhois,  «famosa  pelos  seus 
amores»,  diz  Sauval,  cahira  numa  emhoscada  que  o  seu  rival,  o  senhor  de 
Villière-Ie-Bocage,  lhe  havia  preparado  no  regresso  ile  uma  das  suas  visitas 
amorosas. 

No  momento  em  que  o  prelado,  montado  na  sua  mula,  e  acompanhado 
dos  seus  criados,  qne  aliumiavam  com  archotes,  passava  na  rua  de  Barre-du- 
Bec,  uma  turha  de  homens  arniailos  alacou-o  l\^'  inifiroviso,  e  o  pobre  do  car- 
deal ver-se-hia  em  papos  de  aranha,  se  a  mula  desbocada  não  partisse  á  rédea 
solta,  indo  parar  síímente  no  claustro  de  ^atir-Dame,  onde  o  cardeal  vivia. 

Este  caso  não  teve  consequências  funestas  pra  os  auctores  da  aggressão, 
porque  o  prelado  temendo  comprometter-se  e  comprometter  a  sua  ribalda,  teve 
de  intervir  com  a  sua  influencia  para  (jue  não  prosegiiissem  as  diligencias  ju- 
diciaes. 

Outro  processo  de  Índole  ditTerenle,  mas  não  menos  escandaloso,  inten- 
tado em  14-77,  esteve  a  ponto  de  compromettci'  muito  seriamente  um  favorito 
do  rei,  Olivier  l.e  Dain,  seu  l>arheiro  e  camarista.  Este  personagem  não  figu- 
rou na  causa,  mas  o  seu  criado  e  amigo  Daniel  de  Bar  teve  de  defender-se  de 
uma  accusação,  qu(^  houvera  por  certo  recahido  cm  Olivier,  se  Bar  fosse  con- 
demnado. 

Duas  mulheres  de  má  vida,  uma  (relias  cisada  com  um  tal  Colin  Pan- 
nier,  e  a  outra  concubina  de  um  certo  .lanviei',  accusaram  Daniel  de  Bar  de 
«as  ter  violentado,  e  feito  com  ellas  o  sórdido  e  1'epugnante  peccado  de  sodo- 
mia.» Em  consequência  disto,  Daniel  de  Bar  foi  feito  prisioneiro  por  mandado 
do  preboste  de  Paris.  Feitas,  porém,  as  informações  judiciaes,  reconheceu-se 
que  o  accusado  era  innocente  do  crime  que  se  lhe  imputava,  e  as  suas  aceu- 
sadoras  chegaram  mesmo  a  confessar  a  calumnia.  Em  virtude  d'esta  confissão, 
foram  condemnadas  a  ser  açoitadas  nuas,  e  desterradas  do  reino  e  os  seus  bens 
confiscados  para  o  rei,  o  (]ue  foi  executado  pelas  ruas  de  Paris,  na  ([uarta  feira, 
1 1  de  março  de  1  i77. 

(Iraças  a  este  resultado,  Olivier  i.e  Dain  c  o  seu  criado  Daniel  de  Bar 
escaparam  ás  vergonhosas  suspeitas  que  os  poderiam  ter  feito  ir  á  fogueira, 
porque  n'a(]uelle  tempo  o  peccado  contra  a  natureza  não  era  menos  punido  (|ue 
a  bestialidade. 

Este  vicio  abominável  foi  raríssimo  em  França  até  ás  expedições  da  Itá- 
lia, i|ue  familiarizaram  com  elle  os  exércitos  de  C.arlos  viii  e  Luiz  xii.  Apesar 
d'isto  a  corte  d'estes  reis  foi  de  certo  modo  preservada  pelo  bom  exemplo  de 
ambos  elles,  que,  segundo  Brantòme,  nnn  (jusin^^im  do  amor  á  ilaliann.  f.ar- 
los  VIII  e  Luiz  XII  tinham  no  mais  alto  grau  a  paixão  das  mulheres.  O  duque 

BiSTORIA  DA  PRO8TITmÇÃ0.  Tomo  II— FflLHA   45. 


334  HISTORIA 

(l'Orlcans,  que  foi  ao  depois  o  prudente  rei  Luiz  xii,  era  Ião  libertino  na  sua 
juventude,  que  não  altendia  nem  á  eda<ie,  nem  á  eara,  nem  á  cundição  das 
mulheres.  Poi  isso,  í'aliando-se  d'esla  paixão  erótica  do  du(|ue,  resuseitara-se 
o  antigo  provérbio,  posto  já  em  cireulação  no  tempo  de  seu  avô  Luiz  d'Orleans, 
irmão  de  Carlos  vi :  Toda  a  mulher  dece  resigyiar-se  a  faze-r  uma  inagem  a 
Orleans. 

No  emtanto,  este  príncipe  de  costumes  tão  dissolutos  recusou  sempre  ae- 
ceder  aos  desejos  impuros  da  regente  de  França,  Anna  de  Beaujeu,  que  estava 
perdidamente  namorada  delle,  e  que  não  lhe  oeeuitava  este  senlimenlo. 

«Se  este  príncipe,  diz  Bianiòme,  liouvesse  correspondido  ao  amor  da 
regente,  poderia  ter  lido  uma  boa  parte  no  governo.» 

Longe  d'isso,  porém,  o  duque  mostrou-se  sempre  frio  e  desdenlioso  pai'a 
com  esta  princeza,  que  lhe  desagradava  em  extremo.  iN'uma  partida  de  jogo 
da  bola,  em  que  o  duque  jogava  em  presença  do  rei  Carlos  vm  e  de  sua  irmã, 
casada  com  o  senhor  de  Beaujeu,  esta  princeza  julgou  em  alta  voz  uma  bola 
duvidosa,  |)ronunciando-se  contra  n  duque.  Orleans  fingiu  não  a  ter  ouvido  e 
disse: 

—  Quem  condemnou  o  nwn  jogo,  se  é  homem  mentiu,  se  é  mulher  é 
uma  grande  P.  .  . 

Esta  injuria  dirigida  á  regente,  transformou  logo  aqueile  aniigo  amor  da 
princeza  n'um  ódio  tidagal,  e  o  duque  dOrlcans  teve  d'ahi  a  pouco  de  sahir 
da  corte  e  de  se  declarar  em  rebeldia  contra  a  sua  implacável  inimiga,  que  o 
mandou  prender  e  encerrar  no  castello  de  Loches. 

O  rei  Carlos  vm,  que  morreu  muito  novo,  e  subitamente,  no  dizer  di> 
Branlôme,  por  haver  amado  as  mulheres  mais  do  que  lhe  permiltia  a  sua  com- 
pleição, era  de  natureza  apaixonada  e  ardente.  Não  obstante,  quando  casou  com 
a  virtuosa  Anna  de  Bretanha,  apenas  se  entregava  a  galanteios  inuilo  recatada- 
mente, e  a  corte  de  França,  que  o  exemplo  da  joven  rainha  havia  feito  entrar 
na  senda  dos  bons  costumes,  veio  a  ser  uma  escliola  de  virtude  e  austeridade. 
E  apesar  d'isso,  Anna  de  Bretanha  teve  em  volla  de  si  mais  damas  do  que  era 
costume  nos  reinados  precedentes.  Foi  ella  quem  começou,  diz  Brantòme,  a  for- 
mar a  grande  corte  de  damas,  |)ois  linha  um  grande  numero  d'ellas,  e  nunca 
recusou  nenhuma,  e  Iodas,  a  exemplo  da  rainha,  eram  sensatas  e  virtuosas.» 

Todavia  entre  estas  damas  lá  foi  Carlos  vm  encontrar  uma  (|ue  leve  bas- 
tante dominio  sobre  elle,  para  o  impedir  de  fazer  uma  segunda  expedição  á  Itá- 
lia. Na  primeira,  que  o  rei  de  França  conseguiu  realisar  com  tanta  felicidade, 
não  perdeu  a  occasião  de  ser  iniiel  ao  mesmo  tempo  a  rainha  é  a  sua  amante. 

Todas  as  cidades  que  visitava  com  o  seu  exercito  Iriumphante  lhe  oITe- 
reciain  prazeres  amorosos  sem  a  menor  dilliculdade.  Ouando  entrou  em  Milão, 
«as  bellas  damas  da  cidade  e  do  paiz,  refere  i'iranlòme,  traduzindo  a  Chronica 
de  liajiain,  aprcsenlavam-se  nas  ruas  c  nas  praças  Ião  bellamenle  vestidas,  ijue 
os  francczes  não  se  ('ançavam  di;  as  ver,  confessando  (|ue  nunca  tinham  encon- 
trado nas  mulheres  do  seu  paiz  nem  tanta  belleza,  nem  lanta  graça  e  elegância.» 

Estas  tentadoras  sci^eias  appro\imavam-se  a  |)orlia  do  monarcha,  sob 
pretexto   di'    lhe  aprescniaicm  seus  lilhos,   e  «u  rei  luiiia  Ioda  a  occasião   para 


Continência  de  Carlos  Vlll — Século  xv 


I)A    PROSTITUIÇÃO  355 

contemplar  a  lormosuia  o  os  encantos  (l'estus  beldades  e  o  aprimorado  gosto  dos 
seus  vestidos  e  adornos.» 

Carlos  VIII  deixou  assignalada  a  sua  passafjem  pela  Itália  com  aljíiins  fi- 
lhos, que  mais  tarde  se  honraram  do  seu  nascimento,  e  parece  haver  escapado 
ao  funesto  contagio  do  mal  napolitano,  que  atacou  grande  numero  dos  seus  of- 
ficiaes  e  soldados. 

E'  verdade  que  este  mal  não  se  havia  ainda  estendido  por  toda  a  Itália, 
mas  el-rei,  que  dava  largas  aos  seus  caprichos  sensuaes,  não  se  haveria  con- 
tido com  esse  receio.  Só  um  sentimento  mais  elevado  e  monos  egoisla  o  pode- 
ria deter  nos  extravios  da  incontinência.  «As  delicias  de  Vénus  e  os  Iranspor- 
tes  da  volupluosidade,  diz  Simão  .\anquier,  n"uma  écloga  lalina  a  respeito  da 
morte  d'esle  príncipe,   não  o  lariam  Jamais  sahir  do  caminho  da  justiça.» 

Quando  esteve  na  cidade  de  Ast,  uma  noite,  ao  recolher-se  ao  seu  quarto, 
encontrou  uma  joven  de  extraordinária  formosura.  Dois  dos  seus  criados  de  quarto 
haviam  escolhido  aquella  menina  para  o  leito  real.  A  pobre  don/.elia,  ajoelhaila 
ante  uma  imagem  da  Virgem,  orava  fervorosamente  quando  el-rei  entrou.  Car- 
los convidoii-a  meigamente  a  approximar-se  d'elle,  e  ella  obedeceu  toda  tremula 
de  receio. 

Como  derramasse  sentidas  lagrimas  e  gemidos  dolorosos,  n'uma  grande  e 
despedaçadora  angustia,  el-rei  quiz  saber  a  causa  de  tamanha  dor. 

—  Sire,  disse-lhe  a  debi!  menina,  slmh  interromper  os  seus  magoados 
prantos,  rogo-vos  que  vos  digneis  salvar  a  minha  honra:  é  uma  graça  que 
vos  supplico  de  joelhos,  em  n.ime  da  Virgem  immaculada! 

El-rei  quiz  saber  a  sua  historia,  e  a  desditosa  contou-lbe  que  seus  pães 
a  haviam  vendido  aos  dois  camaristas  para  o  prazer  de  sua  magestade. 

Carlos,  embora  se  sentisse  encantado  com  a  belleza  da  joven,  respeitou  a 
sua  honra,  tranquillizando  a  p  )bre  victima  collocada  á  mercê  irelle.  Soube 
ainda  que  a  joven  amava  um  esbelto  moço,  com  quem  desejava  cazar,  e  man- 
dou logo  chamar  o  noivo  e  os  pães  da  menina,  fazendo  com  que  os  dois  aman- 
tes se  cazassem  na  sua  presença,  e  dotando  a  noiva  com  cinco  mil  escudos  de 
oiro. 

A'  volta  da  conquista  de  Nápoles,  Carlos  viii,  que  se  havia  divertido  bas- 
tante, não  tardou  em  renunciar  ás  mulheres.  Não  se  sentia  já  com  forças  para 
viver  como  até  alli,  e  nem  scíjuer  conservou  a  amante,  que  escolhera  entre  as 
damas  de  honor,  iornando-sc  des  ie  aquella  data  tão  regular  nos  seus  costumes 
como  um  monge  enclausurado.  Fora  conselho  dos  médicos,  por  isso  que  as 
forças  d'el-rei  não  estavam  em  harmonia  co'm  os  seus  ardores  libidinosos. 
Ainda  assim,  esta  moderação  tardia  não  lhe  poude  prolongar  muito  a  existência. 

Seu  primo,  o  duíiue  d'()rli'ans,  que  lhe  succedeu  como  o  mais  próximo 
herdeiro  da  coroa,  havia  já  mudado  de  vida  e  d  minado  as  suas  paixões,  quando 
subiu  ao  throno.  Estava  enamorado  da  raiiilia  Anua  de  Bretanha,  e  para  con- 
seguir cazar  com  ella  em  segundas  núpcias^  procurou  annullar  o  seu  matrimo- 
nio com  Joanna  de  França,  ainda  que  este  matrimonio  estivesse  eon.sagrado 
por  vinte  e  cinco  ou  vinte  e  seis  annos  d  ^  cohabitação. 

Kl-rei   pretend-ni    provar   n'este   escandaloso    processo   que  o  seu  ca.sa- 


336  HISTORIA 

mento  nunca  lòia  consiunmado,  [lor  isso  que  sua  esposa  não  podia  sofirer  a 
copula. 

A  piedosa  .loanna  respondeu  (|ue,  apesar  de  reconhecer  que  «não  era  tão 
bem  formada  nem  Ião  hella  como  as  oulras  mulheres»,  havia  sempre  cumprido 
lodos  os  actos  e  deveres  do  matrimonio. 

O  propiio  rei  soflVeu  um  interrogatório  no  tribunal  de  Tours  e  declarou 
alli  que  sempre  lhe  parecera  não  haver  realisado  complelamenle  os  seus  deve- 
res eonjugaes:  Mfijup,  realilir  licei  inliis  jafrii,  escreveu  o  tabellião,  ([ue  dis- 
iar(;ava  o  mais  possivcl  no  seu  latim  lorense  as  incongruências  das  perguntas 
e  respostas.  .4ssim,  tendo  o  juiz  declarado  a  .loanna  de  França,  que,  segundo 
as  aflirmações  de  seu  marido,  ella  não  tinha  a  devida  conformação  para  pro- 
crear  filhos,  o  tabellião  escreveu  no  processo: 

vUiiiid  non  potuisset  aut  posse  parere,  sed  nfc  smnen  virile  secundum 
iialitrw  roírt/riifiiUaiH  reripere,  inih  neque  a  riro  intra  clausira  piidoris  nalu- 
raUler  roíjiiiisci.  (Ilist.  dii  xvi.""'  sit-rle,  par  le  hihlinpli.  .lanili..  tit.  i,  |).  I  I  :í 
c  seg.). 

O  tiibunal  ordenou  que  .loanna  fosse  examin.ida  por  parteiras,  que  decla- 
rassem qual  o  seu  estado  physico,  mas  a  pobre  princeza,  que  ao  diante  foi 
canonisada,  não  quiz  stibraetter-se  a  uma  humilhação  tão  penosa  para  o  seu 
pudor,  e  preferiu  consentir  no  divorcio. 

Em  virtude  desta  resolução,  eiilríju  num  convento,  e  Luiz  xii,  ajienas 
se  viu  livre  (]'ella,  api'i!ssou-se  logo  a  casar  com  a  sua  (juerida  Anua  de  l!re- 
tanha. 

JN'este  reinadii,  a  corte  de  França  foi  mais  virtuosa  do  que  nunca.  X  iii- 
lluencia  moral  da  rainha  Anna  de  Bretanha  fazia-se  sentir  n'ella,  ((jmo  a  da 
rainha  Branca  na  corte  de  S.  Luiz.  .V  prostituição,  que  no  dizer  dos  poetas  e 
dos  pregadores  não  respeitava  classe  alguma  da  sociedade  franceza,  detinha-se 
nos  hiimbraes  da  cóite,  onde  apenas  peneirava  ás  escondidas,  fugindo  sempre 
da  vigilância  da  rainha. 

Luiz  XII  não  impedia  esta  vigilância,  que  sua  excellente  esposa  exercia 
nos  Costumes  da  corte,  ainda  que  se  ria  ás  escondidas,  recoidando  as  suas  proe- 
zas dos  antigos  tempos,  e  quando  os  estudantes  da  Basoche  e  os  Sein-Cuida- 
dos  ousaram  zombar  nas  suas  farças  da  hypoerisia  cjue  reinava  na  corte  da  rai- 
nha Anna,  Luiz  xii  disse: 

—  Representem  com  loila  a  liberdade,  .^ão  me  parece  mal  (|ue  os  i-apa- 
zes  deniuirieiu  os  abusos  da  minha  iMirte,  já  que  os  confessores  e  outros  sá- 
bios de  egual  (juilate  não  querem  fallar  n'islo.  O  (|ue  não  quero  é  (|ue  fallem 
(la  rainha,  porque  desejo  (|ue  a  honra  das  damas  se  mantenha  illesa  de  lodo  e 
qualquer  ataque. 

Si)  uma  grande  rigidez  de  costumes,  como  a  de  ,\nna  de  Bretanha  era  ca- 
paz tle  pór  um  dique  á  prostituição,  porque  as  expedições  da  Itália  c  a  per- 
manência do  exercito  francez  no  paiz  coiuiuistado  haviam  produzido  a  importa- 
ção em  França  dos  costumes  italianos,  o  desejn  immoderado  dos  |)razeres  sen- 
suaes  e  todos  os  refinamentos  da  volupluosidade. 

O    mal   de   Mapoies,    como  lemos  dito,  foi  a  consequência  iminediata  da 


BA    PROSTITUIÇÃO  ',Vá~ 

conquista  d'aquellc  rL-ino,  mas  nas  f^ucrr^as  sufcessivas  (juc  occuparam  loilo  d 
reinado  de  l.uiz  xii,  o  novo  mal,  que  se  ia  buscar  constantemeiíle  á  sua  ori- 
gem, naluralisou-se  de  tal  moilo  entro  os  homens  de  armas,  que  Coi  levado  de 
tienova  a  Nápoles,  e  de  Milão  a  Veneza,  e  por  conseguinte  foi  perdendo  pouco 
a  pouco  o  seu  pscudonymo  de  mal.  francez. 

Ijiíz  XII  teve  de  rejirimir  os  seus  desejos  e  a  sua  sensualidade  para  po- 
der i'esistir  ás  seducções  d'aquellas  encantadoras  italianas,  que  pareciam  apos- 
tadas a  lizel-o  ser  iníií-i  a  sua  esjjosa  ausente.  Oe  uma  vez,  porém,  esteve  a 
ponto  de  succumbir,  e  só  poude  prcservar-se  dos  perigos  que  ameaç^-avam  a 
sua  continência,  eutregando-se  ao  mvsticismo  de  um  amor  platónico  com  a 
bella  geiioveza  Tomasina  Spinola,  de  (jucm  era  o  intendio,  quer  dizer,  o  ainií/o 
do  coraçãi),  emquaiito  que  em  torno  (i'elle  a  sua  nobreza  se  submergia  nas  de- 
licias e  se  embriagava  de  amor  com  phrenesi. 

iNão  piide  imaginar-se  bem  todo  o  prestigio  das  mulheres  italianas  sobre 
os  coii(|uislatlores  da  Itália,  (|ue  foram  por  sua  vez  dominados  e  vencidos.  Os 
historialorcs  contemporâneos  não  deixaram  de  fazei-  o  retrato  d'aquellas  en- 
cantadoras, (|uc  tão  repugnante  iníluencia  deviam  ter  nos  costumes  e  na  saiide 
dos  seus  imprudentes  adoradores.  Eis  coqio  João  Marot,  poeta  e  moço  da  ca- 
mará de  Anna  de  Bretanha,  nos  representa  no  seu  poema  Viagem  de  Genora  o 
bello  espectáculo  que  esperava  os  vencedores  na  sua  entrada  em  Milão  cm 
1507.  E'  claro  que,  como  de  outras  vezes  temos  feito,  substituímos  os  rudes 
versos  iId  poeta  por  uma  pcri(ilirase,  que  nos  dará  o  sentido  dVlles,  e  mais 
eomprebensivcl  será  para  o  leitor  do  (|ue  a  linguagem  aichaica  de  Marot: 

«Os  balcúes  estavam  atiilbados  de  muitas  damas  de  grande  formosura. 
Tens  visto  as  feiras  de  Lyon  e  Anvers,  de  (jibray  e  doutros  muitos  togares, 
mas  nunca  viste  uma  mercadoria  assim,  tão  bella,  tão  encantadora.  Cada  uma 
d'clias  sentava-se  n'uma  cadeira,  de  geito  (|ue  podia  patentear  nielbor  a  ele- 
gância do  corpo.  Havia  invejosos  (raquelles  encantos,  que  desdenhavam  das 
formosas.  Mas,  por  Deus,  digam  o  que  disserem,  não  havia  especlacub)  mais 
divino !» 

O  mesmo  espectáculo,  que  a  tal  ponto  impressionou  a  imaginação  do 
poeta,  produziu  n"elle  ós  mesmos  efíeilos,  quando  dois  annos  mais  tarde,  Luiz 
XII  fez  a  sua  entrada  em  Milão,  para  punir  uma  insurreição  que  alli  tinha  ha- 
vido. O  bello  sexo  milanez  teve  por  certo  muita  parte  no  perdão  que  o  rei  de 
França  outorgou  aos  habitantes  da  cidade  rebelde.  João  Marot  lá  estava  tam- 
bém, e  foi  captivado  como  suecedeu  aos  mais  c\|)eiiiiientados  capitães,  á  vista 
daquelle  triumplio  feminino,  que  eclipsou  todos  os  triumpbos  e  victorias  dd 
rei. 

«Balcões  e  lojas,  diz  ainda  Marot,  estavam  povoadíw  de  belias  damas. 
Alli  iam  saciar-se  muitos  olhos,  famintos  de  tantos  encantos.  Ricos  vestidos, 
jóias  preciosas,  cobriam  aquelles  corpos  divinos.  Mas,  cauteila,  que  as  sereias 
teem  dardos  venéreos,  com  que  trespassam  os  seus  ingénuos  amantes  I» 

E'  para  extranliar  como  a  rainha  Anna  de  Bretanha  teve  suíTiciente  poder 
e  força  de  vimiade  para  evitar  tão  completamente  que  o  contagio  de  desmorali- 
.sação,  que  ia  em  breve  corromper  a  França,  não  se  llzesse  sentir  na  sua  corte 


358  HISTORIA 

de  Blois,  durante  a  sua  vida.  Se  os  costumes  se  não  reformaram,  a  culpa  não 
foi  da  exccllente  rainlia,  que  tamanhos  esforços  fez  para  rehabilitar  o  seu  sexo. 
.!oão  Marot,  que  compoz,  por  sua  ordem,  o  dnnlrinal  das  damas,  limita-se  a 
paraphrasear  os  bons  preceitos  que  ella  ensinava,  sobre  tudo  com  o  exemplo. 

Um  (resses  preceitos  era  ser  casta,  sendo  bella.  A  paraphrase  começa  do 
seguinte  modo : 

«Quem  tem  estes  dois  dotes — castidade  e  bellcza — pôde  jactar-se  de  ex- 
ceder em  tudo  quabiuer  outra  dama  d'este  mundo,  visto  que  a  beileza  nunca 
se  cançou  de  fazer  guerra  á  castidade:  mas  quando  ellas  se  alliam,  n'um  doce 
convívio,  oh!  então  tornam  uma  dama  completa,  e  piide  dizer-se  um  conjuiiefo 
de  graças  aquella  que  tem  estes  dois  dotes.» 

Anna  de  Bretanha  recommenda  também  n'este  doutrinal,  que  João  Ma- 
rot divide  em  vinte  e  quatro  eslropbes,  a  honestidade,  «que  é  a  pérola  e  a  gem- 
ma  engastada  pelos  deuses  na  nobreza.»  Em  seguida  vem  o  elogio  da  prudên- 
cia, «que  é  o  verdadeiro  guia  que  conduz  ao  templo  da  virtude.» 

Convida  as  damas  a  serem  o  exemplar  de  todas  as  mulheres,  a  fugirem 
da  ociosidade,  a  serem  zelosas  do  amor,  finalmente,  a  amarem  a  um  Deus  e  a 
um  homem  só. 

Reconhece-se  n'estas  edificantes  rimas  a  casta  inspiração  que  Anna  de 
Bretanha  havia  communicado  ao  seu  poeta  favorito,  e  vê-se  que  a  rainha  de- 
terminara pòr  ao  serviço  do  ensino  moral  da  corte  a  poesia,  que  até  alli  não 
tivera  outra  altribuição  que  não  fosse  corromper  os  corações  e  effeminar  os  tem- 
peramentos. 

Atina  de  Bretanha  ligava  diminuta  consideração  aos  logares  communs  do 
amor  profano  com  (|ue_os  poetas  a  cada  passo  enchem  as  suas  obras  lieencio- 
sas.  Censurava-os  também  por  empregareni  n'ellas  expressões  demasiado  livres, 
que  ollendiam  os  ouvidos  castos.  Não  liderava  nos  livros  o  (|ue  decentemente 
não  podesse  ouvir  da  bocca  do  auctor,  julgando  que  a  castidade  das  palavras 
deve  acompanhar  sempre  a  castidade  das  acções.  Foi  por  isso  que  só  a  mnito 
custo  perdoou  ao  senhor  de  Grignaux,  genlilhomem  da  sua  casa,  que  em  vez 
das  palavras  de  um  cumprimento  ao  embaixador  de  Hespanha  lhe  ensinara  cer- 
tas phrases  licenciosas  cm  lingua  bcspanhola,  que  a  rainha  não  coniprehendia. 
Anna  prcparava-se  para  pronunciar  as  referidas  phrases  n'uma  audiência  so- 
lemne,  (]uando  el-rei  a  advertiu  da  par/iV/a,  que  elle  próprio  auclorisára,  «para 
se  rir  e  passar  o  tempo»,  diz  Branlòíne. 

A  morte  desta  virtuosa  rainha  fechou  este  parenthese  de  moralidade  c 
compostura  dos  poetas  palacianos.  João  Marot,  que  acabava  de  compor  .1  rer- 
dadfira  advogada  das  damas,  obedecendo  á  sua  boa  ama  c  senhora,  voltou  no- 
vamente aos  iscriptos  licenciosos  e  galantes.  Bastou  um  momento  para  a  corte 
de  França  sodVer  um;i  metamorphose  completa,  c  para  a  prostituição  tirar  a 
mascara. 

O  próprio  Marol  vem  declarar,  nesta  nova  phase  dos  seus  versos,  que  os 
costumes  estavam  mais  escandalosos  (|iic  antigamcnlc: 

«A  ivspeito  de  amores,  phrases  de  mel  são  inúteis,  porque  se  não  tendes 
dinheiro,  é  como  se  fallasseis  em   hebreu;   e  ainda  que  fosseis  o  mais  guapo 


DA    PROSTITUIÇÃO  359 

fiilaljíD   rio  mundo,  a  mim  me  degollem,  se  sem  o  auxilio  do  ouro,  conseguir- 
des alguma  cousa!.  .  .» 

Tal  foi  o  resultado  das  guerras  de  Itália.  Os  hábitos  de  lil)er(inag»>m  que 
os  homens  de  armas  haviam  adijuirido,  além  dos  Alpes,  foram  implantados  em 
França,  e  as  mulheres  franeezas,  mesmo  sem  darem  por  isso,  modelaram-se 
exactamente  pelos  hábitos  das  italianas,  que  tantas  recordações,  boas  c  más, 
haviam  deixado  aos  conquistadores  do  seu  pai/.. 

Os  (idalgos,  que  haviam  feito  parte  das  expedições  de  (larlos  viii  e  Luiz 
XII,  não  deixavam  iio  seu  regrcí^so  de  exaltar  os  encantos  e  as  gi'aças  incom- 
paráveis das  italianas,  por  peiores  e  por  rnais  luneslos,  que  pura  clles  tivessem 
sido  os  resultados  dos  seus  amoi^es.  As  franeezas,  a  (juem  seus  maridos  e  aman- 
tes pareciam  desprezar  por  aquellas  perigosas  sereias,  conceberam  contra  ellas 
um  ódio  implacável,  comprazendo-se  em  fazer  contrastar  com  os  defeitos  das 
estrangeiras  os  seus  propi'ios  méritos  e  superioridade.  Eis  o  que  Marot  escrevia, 
provavehDenIe  sob  a  inspii'ação  de  alguma  b(  lia,  que  se  desesperava  ao  vér-se 
despresada  por  uma  lombarda  : 

«Em  seguida  a  uma  longa  conversa  acerca  de  amores,  fiz  um  d'estesdias 
a  um  amigo  esta  pergunla:  —  Qual  vale  mais,  a  franceza,  ou  a  lombarda'  — 
Elle  respondeu:  —  A  lombarda  é  vistosa,  mas  fria  o  molle,  sob  o  peso  do  ho- 
mem. Tem  boas  palavras,  e  é  geralmente  .^obria,  mas  os  seus  encantos  são 
postiços.  O  rosto  é  uma  pintura;  e  muitas  vezes  as  formas  são  de  contrabando. 

«A  franceza  é  nalural  e  deciWida,  doce  como  o  mel  e  inlre|tida  no  assalto. 
E'  o  prazer  que  a  decide,  e  despreza  qualquer  interesse.  Em  conclusão:  —  Di- 
gam o  que  disserem  as  más  línguas,  as  franeezas  são  a  obra  prima  da  natu- 
reza ! .  .  . » 

Por  mais  que  dissessem  e  lizesscm  as  franeezas,  os  seus  compatriotas 
nem  por  isso  deixavam  de  se  inclinar  para  as  italianas,  que  eram  um  dos  maio- 
res attractivos  das  campanhas  de  Itália.  Os  fidalgos  da  corte  davam-se  tão  bel- 
lamenle  para  além  dos  Alpes,  que  nunca  tinham  pressa  de  voltar  a  França. 
i'elo  contrario.  Estabeleciaiu-se  nas  principaes  cidades  do  principiujo  de  Milão 
com  as  suas  amantes  italianas,  como  se  não  tivessem  cm  França  mulheres  e 
filhos. 

Durante  todo  o  reinado  de  Luiz  xii,  e  nos  primeiros  aiinos  do  de  Fran- 
cisco I,  a  paixão  dominante  dos  francezes  era  viver  em  Ilalia.  As  pobres  fran- 
eezas não  sabiam  já  como  vencer  rivaes  tão  sedueloras,  que  continuamente 
lhes  roubavam  esposos  e  amantes,  deixando-os  sómenie  partir  dos  braços 
quando  estavam  arjuinados  de  dinheiro  e  de  saúde. 

Ao  tempo  da  acciamação  de  Francisco  i,  a  lior  da  nobreza  de  França  ha- 
via atravessado  os  Alpes,  dispersando-se  por  toda  a  Lombardia.  Na  corte  viam- 
se  apenas  barbas  grisalhas  e  cabellos  brancos.  As  damas  casadas  podiam  con- 
siderar-se  viuvas,  è  as  solteiras  tinham  de  resignar-se  a  ficar  solteiras.  N'esld 
eonjunctura,  formou-se  em  França  uma  conspiração  feminina  contra  o  bcllo 
sexo  do  Miianado,  e  as  damas  encari'egaram  o  poeta  .íoão  Marot  de  escrever 
aos  fidalgos  francezes,  a  esse  tempo  residentes  em  Itália,  uma  epistola  satyrica,  em 
que  as  lombardas  eram  apresentadas  cm  paralleloc(Mu  as  franeezas,  pondo-se  em 


360 


niSToniA 


evidencia  as  virtudes  o  méritos  de  umas  c  os  vicios  e  Imperfeições  das  oulras. 

Razão  havia  para  se  confiar  a  Marol  o  delicado  encargo  de  secretario  das 
damas  de  Paris.  O  poeta  havia  residido  muito  tempo  em  Ttalia  e  estava  bem 
instruído  dos  costumes  do  paiz,  conhecendo  o  forte  e  o  fraco  das  alegres  es- 
trangeiras, que  tanto  mal  faziam  ás  damas  suas  compatriotas.  N'enhuma  difll- 
culdade  teve,  pois,  em  fallar  claramente  cm  nome  (i'ellas. 

(>omeya  a  sua  epistola  por  accusar  as  italianas  de  amarem  apenas  por  in- 
teresse, «porque  a  lombarda  pinta-se  e  afavia-se  somente  para  ganhar  dinheiro. 
Só  a  eobiya  a  excita  e  a  leva  á  libertinagem.  Os  deuses  téem  misericórdia  para 
com  os  peccados  de  amor,  quando  o  amor  os  inspira,  mas  esses  peccados  são 
infames,  quando  a  avareza  lhes  discute  o  preço. 

«O  coração  da  franceza  só  ao  amor  se  rende,  e  o  amor  consegue  facil- 
mente o  que  nenhum  thesouro  poderia  obter.  Em  Itália,  velhas  e  novas  trafi- 
cam escandalosamente  com  os  seus  favores,  e  vc-se  muitas  vezes  uma  velha 
ler  mais  requebros  e  blandícias  que  uma  joven. 

«Em  França,  quando  uma  dama  declina,  ou  envelhece,  deixa  o  campo 
do  amor  completamente  livre  ás  novas.  E'  bom  recolher  a  casa  quando  anoitece. 

« 4s  lombardas  usam  opulentos  vestidos  tecidos  a  ouro,  quando  se  apre- 
sentam em  publico,  e  parecem  verdadeiras  fadas,  mas  debaixo  d'a(|iielles  ou- 
ropéis estão  mais  gastas  que  as  calças  d'um  postilhão.  Se  as  p  d)res  não  comem 
todos  os  dias,  apesar  de  todos  os  dias  ti-ahaliiarem  sem  repouso!  .\s  francezas 
pelo  contrario,  alimentam-se  bem,  são  robustas  e  podem  dizer  com  orgulho  : 
— Somos  valentes  para  o  combate,  as  nossas  pomas  são  duras,  emquanto  que 
vós,  desgraçadas,  não  tendes  senão  pelhancras  pendentes  sobre  essas  pernas 
de  gaivotas. 

«Não  tèem  senão  bellas  apparencias  essas  triumphantes  lombardas  :  de 
resto  nada  valem.  Por  isso  nut)ca  os  amantes  encontram  sob  essas  apparencias 
o  que  a  sua  illusão  lhes  fazia  esperar.  Não  é  tudo  ainda.  São  mais  frias  que  o 
gelo,  mais  frouxas  que  uma  tripa  e  mais  sujas  que  os  andrajos,  apesar  de  lo- 
dos os  seus  enfeites  e  atavios.  Como  contraste  a  essas  vis  libertinas,  as  damas 
de  Paris  não  traficam  com  os  seus  amores,  e  não  querem  senão  mostrar  o  que 
valem  aos  ingratos  que  as  olvidam.» 

(!  poeta  pinta  em  seguida  a  traços  rudes  os  predicados  naturaes  das  fran- 
cezas, os  amplos  seios,  as  nádegas  volumosas,  a  frescura  da  pelle,  a  redondeza 
das  f(írmas,  e  lança  em  nome  das  suas  constituintes  um  repto  ás  suas  rivaes  : 

«Levantem  as  saias,  diz  elle,  as  francezas  farão  o  mesmo,  c  ver-se-ha 
então  a  (|uem  foi  que  a  natureza  mais  favoreceu.» 

E'  claro  que  as  lombardas  não  ousariam  acceilar  o  repto,  e  por  isso  Ma- 
rot,  senipre  em  nome  das  damas  'de  Paris,  convida  os  gentis-iiomens  a  vol- 
tar ao  seu  paiz.  t)irige-se  para  isso  a  Francisco  i,  que,  segundo  parece,  não 
tem  mais  pressa  do  (|ue  os  seus  cortezãos  de  voltar  aos  patriíjs  lares  : 

<ySire,  sois  muito  cruel  para  nós!  Amor  incita-nos,  e  o  desejo  iq)pi-Hue- 
nos.  Nossos  corações  estão  cheios  de  tristeza.  Paris  chiíra,  Tours  suspira,  RIois 
desfallece,  e  .Vmbroise  não  cessa  de  grilar:  Sire,  voltae,  vollae!» 

Franci.sco  i  c  os  seus  cortezãos  deixaram  com  pesar  a  ítalia,  (inde,  ((ue 


DA    PROSTITUIÇÃO  361 

Marot  e  as  damas  de  Paris  nos  perdoem  !  o  amor  ora  nuiilo  mais  agradável  do 
que  em  França  ;  e  trouxeram  para  o  sou  paiz  os  ooslumcs  italianos,  (|ue  se 
fundiram  com  os  costumes  francezes,  durante  todo  o  scculo  xvi. 

A  Itália  foi  sempre  fatal  á  França,  mesmo  quando  os  louros  da  victoria 
enramavam  a  fronte  dos  capitães  francezes.  IJIlalie  c'est  le  (ombeau  des  Fran- 
çais,  tem-se  dito  e  repetido.  Os  concjuisladores  do  xv  século  trouxeram  para 
áquom  dos  Alpes,  de  mistura  com  os  Iropiícus  das  victorias,  o  gérmen  impuro 
de  um  flagello  atroz,  que  ameaçou  por  muito  tempo  destruir  o  fundamento  da 
sociedade.  E  a  esse  flagello  succedeu  outro  não  menos  terrível  —  a  dissolução 
dos  costumes,  o  completo  esquecimento  do  todas  as  Iradicçôes  honestas  de  um 
período  menos  açoitado  pelo  flagello  da  prostituição. 

Tal  foi  o  mais  funesto  dos  resultados  da  conquista  de  Itália  pelos  exér- 
citos francezes. 


HisTosu  DA  Prostituição.  Tomo  ii— Polba  46. 


CAPITULO   XXXI 


SUMMARIO 


As  Damai  nalaiites,  de  Biantòiue,.— IJedioaloila  i  raiuba  Mai>iarida.  —A  prostituiríu  nu  tempo  diis  Va- 
lols.  —  Kranci.-co  i,  o  rei  Gran-iXez.  —  Causa  da  sua  priíni^iia  expudifão  á  Itália.— Sua  primeira  enlermidadi-.— Elo- 
Kio  da  Cúrle  das  Damas.  —Sua  oriseni  e  seu  uso.-  o  e.vi-niplo  da  cftrti-.-  Ei-roi  libei  imo  —A  copula  dos  veados. 

—  As  damas  na  í|uaresma  — loileceucia  da  hiisuaj^era  e  da  poesia.— A  meaina  de  Tallard  e  os  papas. -A  bel'a  lieilly. 

—  A  cond>-ssa  de  Cbateaubriant.  —  Favor  da  dui|ueza  ri'Élampes.  —A  pei|Ucnacasa  d'el-rei  ua  rua  de  la  Hirondelle. 

—  Surpivzas  nocturnas  no  palácio  d'tl-rei.—  A  prostitu  rão  na  clemência.  -Diana  de  Poitieis  e  seu  pae.  — Joáo  de 
liosse,  marido  da  duqueza  aÉtampes.  —  A  bella  Ferronière. 


HISTORIA  DA  Prostituição  na  corte  de  Franva  iluiaiile  o  século 
XVI  tiaria  um  volume  inteiro,  se  quizcssemos  aproveitar  todas 
as  aneedota.«  próprias  para  descrever  os  costumes  da  aristocra- 
cia no  reinado  dos  Valois.  Para  se  fazer,  porém,  um  quadro 
completo  d'aquella  inerivel  depravação,  bastaria  extractar  das 
obras  de  Brantòme  o  que  este  abbade  corlezão  reuniu  de  factos  escandalosos, 
que  relVre  com  a  mais  completa  liberdade,  sem  suspeitar  sequer  que  poderá 
oHender  o  pudor  de  alguém.  Basta  esta  circumstancia  para  provar,  melbor  do 
que  o  poderiam  fazer  as  mais  extensas  narrativas,  o  grau  de  corrupção  a  que 
havia  chegado  a  sociedade  franceza  no  tempo  de  Carlos  ix  e  de  Henrique  iii. 
Nem  sequer  se  possuia  já  nesse  tempo  o  sentimento  da  honestidade,  e  por  isso 
nenhum  estorvo  havia  para  evplicar  sem  reticencias,  mesmo  diante  das  damas, 
os  mais  vergonhosos  c.  sórdidos  mysterios  da  libei-tinagem. 

Por  isso  Brantòme,  ao  dedicar  as  suas  Damas  galantes  ao  duque  d'.4len- 
çon,  filho  e  irmão  dos  )wssos  reis,  diz  elle,  supplica-lhe  que  honre  e  acredite 
com  o  seu  nome  e  aucioridade  esse  livro,  cheio  de  aventuras  e  contos  engra- 
çados, que  o  mesmo  príncipe  lhe  iiavia  narrado,  muilo  particularmente,  nas 
suas  conversações  familiares.  O  primeiro  manuscripto  d'esta  obscena  collccção, 
tão  preciosa  para  a  historia  da  corte,  é  uma  espécie  de  homenagem  que  o  au- 
ctor  faz  á  rainha  Margarida,  esposa  divorceada  de  Henrique  iv. 

Brantòme  não  se  atreveu,  porem,  a  dar  ao  prelo  em  sua  vida  os  contos, 
historias,  discursos  e  anecdolas,  que  havia  colligido  com  Ímprobo  trabalho. 
Sc)  por  disposição  testamentária  é  que  deixou  a  sua  sobrinha,  a  condessa  de 
Uurtal,  o  encargo  d(  os  fazer  imprimir. 


364  HISTORIA 

«Itein,  é  minlia  vontade,  dizia  elle  no  seu  testamento,  que  o  primeiro 
livro  que  sahir  da  imprensa  seja  levado  de  presente,  bem  encadernado,  à  rai- 
nha Margarida,  minha  muito  illustre  senhora,  que  me  deu  a  honra  de  ler  al- 
guns, fazendo  grande  estimação  d'elles.» 

Tractaremos  de  resumir  o  mais  possível  este  assumpto  inexgotavel,  e 
procuraremos  apenas  caracterisar  o  género  da  prostituição  que  reinava  na  corte 
de  França,  sob  a  influencia  de  cada  um  dos  reis  do  ramo  dos  Valois,  porque 
cada  um  d'cstes  reis,  com  o  seu  exemplo  e  paixões,  deu  uma  physionomia 
especial  aos  costumes  do  seu  tempo,  e  pôde  mesmo  dizer-se  que,  se  todo  o 
século  XVI  se  tornou  notável  pela  sua  monstruosa  libertinagem,  nada  se  parece 
menos  com  a  libertinagem  da  corte  de  Henrique  iii  do  que  a  libertinagem  da 
corte  de  Francisco  i.  Uma  é  ainda  toda  franceza,  ao  passo  que  a  outra  é  com- 
pletamente italiana.  No  reinado  de  Francisco  i  encontram-se  ainda,  aqui  e  alli, 
no  meio  dos  mais  vergonhusos  excessos,  algumas  nobres  e  puras  reminiscên- 
cias da  cava.llaria  da  Edade-Media.  Sobe  ao  throno  Henrique  iii,  e  tudo  se  de- 
grada, envilece  e  deshonra,  com  desprezo  das  leis  religiosas  e  sociaes. 

Branfòme  dirá  mais  do  que  nós  a  respeito  d'este  capitulo  deplorável  dos 
excessos  dos  seus  contemporâneos,  e  mais  de  uma  vez,  mesmo  ao  citai'mos 
textualmente  este  escriplor,  seremos  obrigados  a  eliminar  muitas  passagens  das 
suas  obras,  que  a  decência  não  nos  permittirá  transcrever. 

Francisco  i,  como  disse  um  dos  seus  panegyristas,  que  Brantòme  não 
ousou  refutar,  foi  '(verdadeiramente  grande,  por  isso  que  teve  grandes  virtudes 
e  grandes  vicios  também.»  Qualquer  dos  bobos  da  sua  corte,  o  Triboulct  por 
exemplo,  accrescentaria  ainda  de  bom  grado  que  o  grande  rei  fora  grande  até 
no  nariz.  O  povo  tinha-lhe  posto  a  alcunha  de  narifjudo.  Quem  sabe  até  se 
este  desenvolvimento  nasal  do  monarchíi  não  teria  alguma  parte  nos  seus  vicios 
ou  nas  suas  virtudes! 

El-rei  teve  por  certo  grandes  qualidades,  que  etnanavam  do  seu  caracter 
cavalheiresco;  a  paixão  das  mulheres  dominou-o  toda  a  sua  vida,  a  ponto  de 
quasi  todos  os  actos  do  monarcha  terem  ordinariamente  este  principio. 

Assim,  segundo  Brantòme,  a  primeira  expedição  de  Milão,  que  produziu 
as  desastrosas  guerras  da  Itália,  foi  devida  ao  desejo  que  el-rei  tinha  de  ver  a 
signora  Clarice,  dafna  milancza,  considerada  ao  tempo  como  a  mais  bella  mu- 
lher de  Ilaiia,  e  de  dormir  com  Ma.  como  o  licencioso  chronisla  declara  ex- 
pressamente. 

Bonnivet  fora  em  tempo  amante  da  referida  dama,  e  desejava  tornar  a 
vèl-a.  Por  isso  aconselhou  a  el-rei,  conhecedor  como  era  do  seu  fraco,  que  pas- 
sasse os  Alpes  para  vèr  tal  maravilla. 

«Eis  a  explicação  d'aquclle  acto  de  el-rei,  diz  Brantòme;  eis  a  causa 
principal  d'clle,  que  nem  de  toda  a  gente  é  conhecida.» 

Basta  isto  para  |)rovar  como  el-rei  Francisco  i  era  capaz  de  sacrificar  o 
reino  e  a  corô.i,  a  troco  da  satisfd-çã)  de  um  simples  capricho  de  galanteria. 
Este  ardor  amoroso  começou  a  manifeslar-se  desde  a  mais  tenra  edade.  O  diá- 
rio de  sua  mãe,  Luiza  de  Sabuya,  conta-nos  que  o  príncipe  desde  a  edade  de 
dezoito  annos  começou  a  sentir  as  consequências  dos  seus  vicios. 


UA    PROSTITUIÇÀO  36$ 

«Dia  4  de  seteiiibru  de  1312.  Teve  doença  nas  partes  de  secrela  natu- 
reza .  I) 

Esta  doença  reappareeeu  muitas  vezes,  apresentando  novos  sympfomas 
e  dores  novas,  a  ponto  de  el-iei  pi'oi'erir  estas  palavras,  no  dizer  do  liistorio- 
grapho  Mathieu:  «Deus  castiga-me  por  onde  pequei.» 

Brantòme  refere  com  uma  engraçada  ingenuidade  que  o  ardor  erotieo 
d'el-rei  foi  causa  da  grande  multidão  de  mullieres,  que  ao  tempo  existiam  na 
corte  de  França.  Anna  de  Bretaniia  havia  tornado  a  sua  corte  mais  abundante 
de  bello  sexo  do  que  as  rainhas  suas  predecessoras.  Mas  isto  nada  era  ainda 
em  comparação  da  corte  de  Francisco  i,  que  «considerando  que  todo  o  adorno 
e  decoro  de  uma  corte  consistia  nas  damas,  quiz  povoal-a  mais  do  que  o  cos- 
tume.» 

El-rei  costumava  dizer  a  este  respeito : 

«Uma  corte  sem  damas  é  como  um  jardim  sem  llores,  e  mais  parece  a 
côrle  de  um  satrapa  ou  de  um  turco,  do  que  a  de  um  rei  christianissimo.» 

Attrahindo  á  sua  côrle  a  fina  llòr  das  damas  do  reino,  Francisco  i  pre- 
tendia, no  dizer  de  iJranlòme,  supprimir  aqu?lla  indecente  e  perigosa  turba 
de  mulheres  dissolutas,  que  os  antigos  reis  de  Fi-ança  traziam  no  seu  séquito, 
e  que  o  rei  dos  ribaldos  tinha  o  encargo  de  alojar,  dirigir  e  vigiar.  Já  vimos 
que  o  ultimo  rei  dos  ribaldos  exercia  as  suas  funcções  no  principio  do  reinado 
de  Francisco  i,  mas  provamos  com  documentos  authenticos  que  foi  substituído 
por  uma  dama  n'aquella  cpocha,  e  que  este  cargo  deixou  vestígios  até  ao  rei- 
nado de  Carlos  ix. 

Brantòme  atllrma  que  a  corte  de  damas  era  destinada  a  substituir  aquel- 
las  ribaldas  do  séquito  real,  que  mais  temíveis  se  tornaram  depois  da  invasão 
das  enfermidades  venéreas. 

«Parece-me,  diz  muito  a  serio  Brantòme,  que  um  tal  piilanisme  desen- 
freado, publico,  cheio  de  males,  não  podia  ser  muito  acceitavel  ás  nossas  da- 
mas, que  eram  muito  limpas  e  sãs,  e  que  não  gastavam  nem  tornavam  impo- 
tentes os  homens,  como  as  dos  bordeis.» 

Assim,  pois,  segundo  o  testemunho  de  Brantòme,  esta  prostituição  da 
corte  não  só  havia  sido  prevista,  mas  até  approvada  por  Francisco  i,  sob  o 
ponto  de  vista  da  hygiene  e  da  moralidade,  e  o  rei  costumava  dizer  que  «as 
damas  tornavam  os  seus  cavalleiros  tão  valentes  como  as  espadas.» 

Não  era  isto  já  a  cavallaria  austera  e  sentimental  do  século  xiv;  era 
uma  cavallaria  decerto  egualmente  apaixonada  pela  gloria  das  armas,  mas  an- 
ciosa  de  gosos  materiaes  e  de  prazeres  grosseiros.  N'outro  tempo,  nas  épochas 
cavalheirescas,  não  havia  senão  amores  castos  e  honestos.  Na  corte  de  Fran- 
cisco I,  todos  os  amores  eram  carnaes,  ou  de  facto  ou  de  intenção,  o  que  Bran- 
tòme não  deixa  de  desculpar  lá  a  seu  modo: 

«Se  as  damas  ás  vezes  favoreciam  os  seus  amantes  e  servidores,  el-rei 
não  era  d'isso  responsável,  pois  que  sem  usar  de  violência,  deixava  a  cada 
qual  guardar  a  sua  fortaleza.  Se  alguém  n'eila  entrava,  el-rei  não  podia  evi- 
tal-o.  N'uma  fortaleza  a  que  se  quer  fazer  guerra  a  todo  o  cavalleiro  é  permít- 
tido  entrar,  o  caso  é  poder.» 


366  HISTORIA 

A  esplendida  prostituição  da  corte  d'el-rei  não  se  deteve  alli,  infeliz- 
mente. Nos  primeiros  tempos,  irradiou  logo  sobre  a  sociedade  franceza,  e  pouco 
depois  lornou-se  um  incêndio  iiorrivel  que  devorou  tudo  quanto  restava  de 
bons  costumes  nas  classes  medias  c  populares.  Eis  o  que  dizia  a  Branlòme  um 
grande  príncipe,  que  não  estava  ainda  suíDcientemente  corrompido  para  negar 
as  funestas  consequências  d'esta  desmoralização  da  nobreza: 

—  .4inda  se  estivessem  apenas  corrompidas  as  damas  da  corte,  o  mal 
não  seria  irreparável.  O  exemplo  dado  por  cilas  era,  porem,  tão  funesto  para 
todas  as  damas  da  França,  que  apressando-se  a  imilar  por  toda  a  parte  as  suas 
modas  e  os  seus  modos,  pareciam  dizer:  «Na  corte  vestem  assim,  dançam  as- 
sim, peccam  assim  ;  pois  bem,  parece  que  do  mesmo  modo  podemos  nós  lam- 
bem viver.» 

—  Quer  o  meu  amigo  concluir,  respondia  Branlòme,  que  antes  de  Fran- 
cisco I  não  havia  tantas  ribaldas  por  toda  a  França '?  Pois  cu  sustento,  apesar 
de  tudo,  (]ue  nunca  houve  melhor  idéa  do  que  esta  de  encher  uma  corte  de  da- 
mas. E  oxalá  que  eu  tivesse  passado  toda  a  vida  na  còrle  do  grande  rei  para 
gosar  a(|uellas  b  ias  foilunas! 

Francisi-o  i  havia  feito  da  sua  corte  uma  espécie  de  serralho,  e  não  le- 
vava a  iii.il  (]ue  os  seus  cavalleirDS  e  serviílores  eoiiiparliihasscm  com  eile  os 
favores  das  damas.  Dava-lhes  ainda  exemplos  e  iicçõcs  de  lil)eilinagem,  e  não 
se  envergonhava  de  fazer  ás  vezes  o  papel  de  alcoviteiro,  desijando  que  todos 
tivessem  as  mesmas  fraquezas  que  clle  linha. 

«No  seu  reinado,  diz  Sauval,  não  havia  eortezão  sem  amante,  e  quando 
algum  lieava  disponível,  quer  dizer  sem  c  iinpaniieira  de  prazer,  el-reí  informa- 
va-se  immedialamenledosru  nDine,  e  ia  elle  próprio  fallar  com  as  damas,  reconi- 
mendando-(j  jiiiilo  dillis.  Eiiilin,  ciuando  os  pretendentes  vinham  á  falia,  e 
eram  enconli-ados  no  lance  por  el-reí,  apressava-se  a  perguntar  o  que  estavam 
dizendo,  c  se  não  lhe  parecia  bem,  elle  projirio  ensinava  o  melhor  plano  do 
assalto.» 

Não  SC  contentava,  portanto,  o  monarcha  de  ser  preceptor  da  galanteria, 
e  podia  orgulhar-sc  de  saber  do  seu  (idi.-io ;  acceilava  mesmo,  no  interesse  dos  seus 
amigos,  o  papel  de  alcoviteiro,  papel  ([ue  lodos  os  cort<"zãos  também  estavam 
sempre  prom|ilos  a  desempenhar  em  f.ivor  de  seu  amo.  JNào  consentia  que  hou- 
vesse na  sua  corte  damas  recaladas.  E  apesar  d  isso  jaetava-se  de  ser  o  mais 
firme  defensor  da  honra  feminina,  c  considerava  como  um  crime  o  mais  ligeiro 
gracejo,  que  beliscasse  essa  honra  por  dle  tão  compromettida. 

Um  dia  teve  o  extravagante  capricho  de  querer  ver  como  os  veados  dos 
seus  parques  se  reproduziam.  Para  esse  fim,  fez-se  acompanhar  das  damas  mais 
bellas  da  corte  a  Sainl-Germain,  onde  em  certa  clareira  se  reuniam  grandes 
manadas  d'e>tes  animaes,  na  estação  do.s  seus  amores.  O  espeetacuhj,  devemos 
convir,  era  de  molde  para  oITcnder  o  pudor  d. is  damas,  se  t  lias  tivessem  pudor, 
bem  entendido.  Elias,  porem,  não  se  oITenderam,  e  longe  disso,  observaram 
alegremente  lodos  os  pormenores  d'aquelle  divertimento.  L'm  eortezão,  que  fora 
testemunha  de  similhanlc  índecencia,  lembrou-sc  de  dizer  que  os  amores  dos 
veados  tinham  feito  crescer  a  agua  na  bocca  ás  damas  da  corte. 


DA  rnosTiTUiçÃo  387 

El-rci  indignou-se  a  )nl  ponfo  cnnlra  o  maligno  aurlor  do  opigramma, 
que  o  desterrou  da  còríe,  som  pnrmillir  jiímai-;  qm'  alli  voltasse! 

D'outra  vez  zangoii-se  ainda  mais  seriamente  com  o  jovon  lírisamboiírg, 
a  quem  havia  encarrcgailo  de  levar  durante  a  quaresma  ao  easlello  dcí  Meudon 
alguns  pratos  de  carne  da  meza  real,  destinados  á  duqueza  d'Elanipcs  e  oulras 
damas  da  sua  casa.  Brisambourg  teve  a  leviandade  de  dizer: 

—  Estas  damas  não  se  eonlenhim  de  comer  carne  crua  na  quaresma;  eo- 
mem-na  também  cozida  a  dois  carriili  is!    .  . 

O  epigramma  cliegou  aos  ouvidos  das  damas  qne  compunham  o  que  ao 
tempo  se  chamava  a  p^tllf  bande.  A  palite  bande.  (|iu-i\ou-se  a  el-rei,  c  el-rei 
furioso  até  á  loucura  deu  ordem  para  que  o  pobre  Brisambourg  fosse  enforcado. 

Felizmente  o  pobre  rapaz,  avisido  a  tempo,  poz-se  em  fuga,  illu- 
dindo  as  pesquisas  da  justiça  real.  D'aiii  a  pouco  voltou  novamente  a  graça  do 
monareba,  mas  não  sem  se  haver  retraclado  perante  a  pKlilff  bande  da  duqueza 
d'Étampcs. 

Era  aquella  a  cpoeha  do  grande  favoritismo  da  duqueza,  concubina  d'el- 
rei  Francisco,  e  todos  os  cargos  da  magistratura,  da  fazenda  e  do  exercito,  se 
distribuíam  a  seu  bel-prazei-  entre  os  seus  parentes,  amigos  e  aduladores.  A 
duqueza  jactava-sc  também  de  dispor  do  papa  e  do  sacro  collegio,  que  nada 
lhe  recusavam,  e  cífectivamcnte  cinco  ou  seis  dos  seus  rccommendados  id)ti- 
veram  por  sua  interven^-ão  a  purpura  cardinalícia.  A  este  respeito  dizia  um 
dia  a  famosa  duqueza  que  «não  era  mais  didicil  a  uma  mulher  fazer  um  car- 
deal, do  que  fazer  um  cabrão.» 

Francisco  i,  que  lãa  zeloso  se  mostrava  da  honra  das  damas,  q\iando  ella 
era  atacada  de  viva  voz,  não  era  tão  escrupuloso  a  respeito  das  expressões  li- 
vres de  que  as  suas  damas  se  serviam  com  todo  o  descaramento.  Qualquer  das 
poesias  alegres  dos  poetas  palacianos  pôde  servir  de  specimen  d'este  desaforo 
da  linguagem  da  corte.  Não  havia  na  giria  da  prosliluição  uma  só  palavra  ou 
imagem,  que  elles  hesitassem  em  empregar  nos  seus  versos. 

Brantômc  refere  um  grande  numero  de  aneedotas  que  comprovam  esta 
espantosa  licença  da  linguagem  e  da  litleralura.  Nem  podia  esperar-se  maior 
eommedimento  da  parle  de  uma  còrie  depravada,  cujas  delicias  eram  o  livro 
de  Rabelais,  onde  se  procurava  menos  o  génio  do  auclor  do  que  os  grosseiros 
trocadilhos  e  as  obscenas  coarctadas. 

Marot,  moço  da  camará  e  secretario  da  bella  Margarida,  rainha  de  Na- 
varra, divertia  immensamente  as  mais  illustres  damas  da  corte,  poetizando  os 
repugnantes  amores  de  Alice  e  de  Marlin. 

Uma  passagem  muito  divertida  de  Branfòme  tem  o  sèlio  da  cpoeha  e  ca- 
racterisa  perfeitamente  a  desfaçatez  das  damas  da  corte.  Luiza  de  Clermont- 
Tallard,  a  quem  Francisco  i  chamava  a  sua  rã  (grenouille)  sem  que  Marot  nos 
diga  o  motivo  d'estc  apodo,  passava  por  ser  o  génio  mais  desenvolto  e  folgazão 
da  corte.  Era  espirituosíssima,  aquella  geníil  e  pequenina  loura,  de  quem  o 
poeta  diz: 

Car  rien  qii'esprit  est  la  pelile  blonde. 


569 


HrSTORXA 


Branfòme  diz  também  quedesde  a  infância  ella  tivera  sempre  ditos  magní- 
ficos. Quando  o  papa  Paulo  iii  em  Iõ28  teve  em  Nice  uma  entrevista  com  o 
rei  de  França,  madame  de  Clermont-Tallard  foi  prostrar-se  aos  pés  do  sanfo  pa- 
dre e  pediu-ihe  a  absolvição,  com  ares  de  troça,  rcferindo-lhe  «que  quando  o 
papa  Clemente  xiii  estivera  em  Marsellia,  ella,  criança  ainda  n'esse  tempo,  pe- 
gara numa  das  almofadas  do  leito  papal,  e  se  esfregara  com  ella  da  cintura 
para  baixo,  por  diante  e  por  delraz,  deitando  depois  d'islo  sua  santidade  a  sua 
veneranda  cabeça,  cara  e  bocca  sobre  a  referida  almofada !»  ( Dames  (jalan- 
tes,  disc.  VI.) 

Frncisco  i  teve  sempre  uma  amante  principal,  que  merecia  mais  que  as 
outras,  mas  que  Ucão  podia  evitar  a  existência  de  rivaes,  porque  el-rei  não  dei- 
xava de  satisfazer  os  seus  caprichos,  ainda  mesmo  no  meio  dos  seus  mais  ter- 
nos e  duradouros  amores.  A  duqueza  d'Élampes  foi  a  sua  predilecta  durante 
uma  grande  parle  do  seu  reinado,  mas  el-rei  chegou  a  ter  ao  lado  d'ella,  mes- 
mo á  sua  vista,  outras  amantes,  que  eram  chamadas  loijares-lene.nlcs  de  ma- 
dame Anna,  e  que  esta  dama  não  procurava  derribar  do  seu  throno  ephemero, 
cerla  coino  estava  de  conservai'  o  seu  logar,  apezar  de  todas  as  inconstancias 
do  seu  real  amante. 

Anna  de  Pisseleu,  a  quem  chamavam  Mademoiselle  de  Heilly  anfes  d'el- 
rei  a  ter  casado  e  de  lhe  haver  concedido  o  ducado  d'Étampes,  ainda  não  ti- 
nha iniciado  os  seus  amores  com  o  monarcha  cm  1526,  na  oecasião  em  que 
o  prisioneiro  de  Pavia  sahia  de  Hespanha  par  voltar  a  França.  A  rainha  re- 
gente Luiza  de  Saboya,  quando  foi  esperar  seu  filho,  teve  a  graciosa  ideia  de 
lhe  levar  aquella  formosa  menina,  que  ella  destinara  para  substituir  a  antiga 
concubina  real,  com  quem  a  rainha  mãe  havia  tido  os  seus  dares  e  tomares. 

Esta  concubina,  a  quem  a  de  Heilly  facilmente  supplantou  logo  na  pri- 
meira entrevista,  era  a  condessa  de  (^hateaubriant,  a  celebre  Francisca  de  Foix, 
que  devia  pagar  com  a  vida  o  seu  amor  e  a  sua  abnegação  pelo  rei.  Francisca 
de  Foix,  apezar  da  sua  belleza,  não  poude  dominar  por  muito  tempe  o  velu- 
vel  coração  do  seu  real  amante.  Amava-o  com  a  máxima  delicadeza,  e  bem  o 
demonstrou  quando  o  rei  grosseiro  e  brutal,  lhe  foi  reclamar  as  jóias  dadas  na 
quadra  feliz  dos  seus  amores.  A  condessa  mandou  fundir  as  jóias  e  enviou  a 
el-rei  o  ouro  em  bruto,  dizendo  que  os  emblemas  eram  seus,  e  que  os  ficava 
guardando  na  memoria. 

A  duqueza  d'Étampes  estava  bem  longe  de  querer  imitar  este  exquisito 
spntimento.  E'  licito,  todavia,  duvidar  do  seu  verdadeiro  anuir  para  com  el-rei. 
O  que  ella  tinha  em  subido  grau  era  o  talento  de  saber  atear  constantemente  a 
paixão  d'el-rei,  com  toda  a  arte  da  mais  hábil  cortezã. 

O  amor  da  bella  Heilly,  como  el-rei  a  chamava,  era  uma  pro.stituiçào 
refinada  e  engenhosa,  que  fazia  não  só  a  fortuna  d'esta  concubina,  mas  até  a 
de  toda  a  sua  familia  c  de  uma  turba  de  protegidos  que  ella  sem  cessar  recom- 
mendava  á  benevolência  d'el-rei.  A  duqueza  d'Élampes  não  contrariava  em 
cousa  alguma  as  phaniazias  de  Francisco  i,  que  corria  a  novas  aventuras,  e 
voltava  sempre  para  os  braços  da  duqueza.  A  astuta  amante  do  rei  nunca  o 
censurou  pela  sua  volubilidade,  e  fingia  até  ignorar  as  suas  infidelidades,  ape- 


DA    PROSTITUIÇÃO  369 

sar  de  que  ellas  algumas  vezes  llie  tivessem  prejudicado  a  saúde.  A  duqueza 
enlrou  em  Iraclamento  e  curou-se;  cl-rci,  não.  O  gérmen  venéreo  nunca  lhe 
sahiu  do  organismo. 

Toda  a  corte  sabia  das  relações  da  bella  duqueza  com  ei-rei,  mas  ainda 
assim,  elia  adoptava  uma  espécie  de  precauções  refinadas,  (|ue  tornavam  os 
seus  amores  mais  interessantes.  Assim,  quando  se  encontravam  cm  publico, 
el-rei  evitava  tudo  quanto  podesse  assimiibar-se  á  lamiliaridade,  limitando-se 
unicamente  ás  galanterias  do  ceremonial,  Quando  se  viam  em  particular,  ado- 
ptavam-se  de  parte  a  parte  todos  os  meios  de  prudência,  para  que  estas  visitas 
fassem  ignoradas.  Ia  a  casa  da  duqueza  por  subterrâneos  e  escadas  secretas, 
ou  então  de  noite,  só  e  disfarçado,  ou  outi^as  vezes  seguido  do  capitão  das  suas 
guardas.  Ai  d'aquelle  que  n"esta  occasião  reconhecesse  o  rei,  ou  surprehendesse 
o  seu  segredo ! 

A  duqueza  d'Etampes  não  vivia  ordinariamente  no  palácio  real,  mas  de- 
fronte d'elle,  ou  nas  suas  immediações,  para  mais  livremente  poder  communi- 
car  com  o  .seu  amante.  El-rei  fez-llic  doação  de  um  palácio  que  tomou  o  seu 
nome  e  estava  situado  em  frente  do  de  Tournelles,  onde  o  monarcba  residia 
habitualmente.  b'este  modo  podiam  ter  frequentes  entrevistas  no  palácio  d'É- 
tampes,  sem  que  pessoa  alguma  suspeitasse  no  de  Tournelles.  Para  estar  ainda 
mais  á  vontade  n'estas  mysteriosas  entrevistas,  mandou  construir  na  extremi- 
dade do  cães  dos  Agostinhos,  perto  da  porta  de  S.  Miguel,  uma  casa  que  foi 
depois  o  palácio  de  Luynes, 

A  duqueza  comprou  também  outra  casa  por  detraz  d'cste  palácio,  na  rua 
da  Hirondelle,  e  estas  duas  casas  independentes,  segundo  parecia,  não  forma- 
vam senão  uma,  para  facilitar  as  relações  dos  dois  amantes. 

Era  alli  que  el-rei  ia  encerrar-se  alguns  dias,  sob  pretexto  de  repousar  das 
fadigas  do  governo,  e  a  duqueza  ia  lá  em  segredo,  emquanto  que  toda  a  gente 
a  suppunha  em  viagem,  muito  longe  de  Paris. 

Pôde  considerar-se  esta  casa  da  rua  da  Hirondelle,  como  a  origem  das 
casinhas  mysteriosas,  que  tão  vulgares  foram  em  Paris  dois  séculos  mais 
tarde. 

Sauval  diz  a  este  respeito  : 

«Parece  que  era  um  pequeno  palácio  de  amor,  ou  casa  dos  prazeres  de 
Francisco  i.» 

Esta  casa,  no  tempo  de  Sauval  (em  1060)  conservava  ainda  parte  da  sua 
decoração  interior,  que  recordava  o  uso  a  que  era  destinada.  As  paredes  esta- 
vam cobertas  de  esculpluras,  entre  as  quaes  se  via  a  salamandra  de  Francisco 
I,  emblema  fabuloso  dos  seus  amores  inevtinguiveis,  que  se  via  repetido  em 
lodos  os  ângulos  do  edifício  com  uma  variedade  de  monogrammas  e  divisas. 
Por  toda  a  parte  se  via  um  coração  inflammado  entre  um  aipha  c  um  omeya, 
para  significar  que  o  amor  era  o  principio  c  o  lim  de  todas  as  acções  d'el- 
rei. 

Ha  quarenta  annos  viam-se  ainda  os  vestígios  d'estas  esculpturas  n'a- 
quella  casa,  que  os  habitantes  do  bairro  chamavam  a  casa  d'el-rei. 

Francisco  i,   graças  ás  suas  delicadas  precauções,  guardou  tão  bem  as 

UUTOBIA  DÁ  PBOaTITOlÇÂO.  TuMO  Q— FSLHA  47. 


370  ,  HISTORIA 

apparencias  com  a  duqueza  d'Etampes,  casada  com  João  de  Brosse  sem  fazer 
com  elle  vida  marital,  que  esla  dama  podia  negar  de  fronte  erguida  as  suas 
relações  com  o  monarcha. 

Seu  marido  sabia  tudo,  porém,  e  de  certa  passagem  das  Dameò-  galantes 
vemos  que  tinlia  muitos  zelos  de  sua  esposa,  e  que  procurava  surprehendel-a 
com  ei-rei  para  os  matar,  (^erta  noite  esteve  a  ponto  de  realisar  os  seus  dese- 
jos. Surprelicndeu  os  dois  amantes,  e  ia  cahir  sobre  Francisco  i,  mas  el-rei 
teve  tempo  de  lançar  mão  da  espada,  e  de  pôr  fora  da  porta  o  importuno, 
amcaçando-o  de  lhe  mandar  tirar  a  vida,  se  tivesse  a  ousadia  de  fazer  mal  a 
sua  mulher.  Em  seguida,  el-rei  recomeçou  o  seu  doce  combate  amoroso  com  a 
dama,  tranquillizandn-a  o  melhor  que  poude  do  susto  que  havia  tido. 

O  monarcha  tinh;i  muitas  vezes  necessidade  de  lançar  mão  de  guarda- 
costas,  no  interesse  das  damas  ([uc  lhe  davam  entrevistas,  (juando  pela  noite 
adiante  se  apresentava  de  improviso  em  casa  d'cUas.  Os  maridos  não  o  igno- 
ravam, mas  sofTriam  phiio.sophicamente  uma  desgraça,  que  demais  a  nlais  pa- 
recia inherente  á  própria  condição  de  cortezão.  Tanto  no  palácio  de  Tournel- 
les,  como  no  Louvre,  como  era  todos  os  palácios  reaes,  el-rei  preparava  sem- 
pre os  meios  de  poder  entrar  a  toda  a  hora  nos  aposentos  das  damas  que  lhe 
agradavam. 

Não  havia  escândalo,  porque  as  paredes  não  tèem  olhos  nem  ouvidos.  As 
victimas  d'estas  surprezas  nocturnas  guardava m-se  sempre  de  serem  os  pre- 
goeiros da  sua  própria  vergonha,  e  por  outra  parte  os  criados  d'el-rei  estavam 
habituados  a  ver,  ouvir  e  calar. 

As  damas  estavam  alojadas  na  corte,  de  maneira,  diz  Sauval,  que  el-rei 
tinha  as  chaves  dos  seus  quartos  c  entrava  n'elles  de  noite  á  hora  que  queria, 
sem  tropeçar  nem  fazer  ruído.» 

Vé-se  de  tudo  isto  que  os  maridos,  os  pães,  os  irmãos  e  os  amantes  d'es- 
tas  damas  não  deviam  estar  alojados  a  tão  pequena  distancia,  que  podessem  ser 
advertidos  da  sua  deshonra  pelos  gritos,  que  vinham  expirar  na  espessura  dos 
muros  e  das  tapeçarias. 

«Quaixlo  as  damas,  accrcscenla  Sauval,  por  serem  virtuosas  e  iioiiestas, 
recu.savam  estes  traiçoeiros  aposentos  que  el-rei  lhes  oiterecia  em  Tournelles, 
em  Mcudon,  ou  no  Louvre,  era  preciso  que  seus  maridos  tivessem  muita  cau- 
tella  comsigo.  Se  desempenhavam  cargos  ou  empregos,  qualquer  accusação  po- 
dia leval-os  ao  patíbulo.  E  não  havia  a  esperar  graça,  a  não  ser  que  suas 
mulheres  lhes  resgatassem  a  vida  á  custa  da  sua  honra.» 

Tal  ci'a  esla  vergonhosa  prostituição  do  reinado  de  Francisco  i,  se  hou- 
vermos de  dar  credito  ao  testemunho  de  Sauval,  que  tinha  por  i-erto  à  vista 
preciosos  documentos,  de  que  nós  carecemos.  Sauval  diz  expressamente  que 
nada  era  mais  vulgar  do  que  esta  prostituição  na  còrle.  Se  as  damas  que  ti- 
nham maridos,  pães,  ou  amigos  a  salvar,  não  eram  bcllas,  mas  tinham  filhas 
que  o  fossem,  eram  estas  que  obtinham  á  custa  da  sua  honra  o  perdão  dos 
condcmnados.  Francisco  i  não  acceitava  os  olíerecimentos  de  ilinheiro  que  lhe 
podessem  ser  feitos  para  obter  estes  perdoes,  mas  se  as  mulheres  ou  as  filhas 
d.s  condcmuMiliis  i;irn  otlereccr-lhc  os  seus  encantos,  o  rei  cavalheiresco  aceci- 


DA    PK<>ST1TUI(,:ÃÚ  371 

tava  sempre  esta  espécie  de  siihornn,  eomlaiilo  i|ue  ellas  livesseni  lielleza,  jii- 
venliule,  ou  pelo  menos  honesto  procedimento. 

Mem  lodos  os  condemnados  (luo  salvavam  a  vida  á  eusia  de  similhante 
vergonha,  se  mostravam  reconhecidos  a  suas  muliíeres  e  lilhas,  e  ás  vezes  não 
lhes  perdoavam  o  sacrifício  que  os  havia  livrado  do  palibulo.  Fallou-se  muito 
por  aquclle  tempo  do  perdão  que  Francisco  i  outorgou  ao  senhor  de  Sainf-Val- 
Uer,  quando  sua  tilha,  a  hclla  Diana  de  Poitiers,  foi  lançar-sc  aos  pés  do  mo- 
narcha,  supplicando-lhc  que  perdoasse  a  seu  pae,  (|ue  havia  sido  condemnado 
como  cúmplice  do  condestavel  de  Bourbon.  O  rei  nada  recusou  a  Diana,  que 
pela  sua  parte  nada  recusou  também  ao  monarcha. 

Saint-Vallier  estava  já  no  cadafalso,  na  praça  da  (iiève,  (|uando  el-rei 
fez  suspender  a  execução,  commutando  a  pena  de  morte  na  de  prisão  perpe- 
tua. O  fidalgo,  ao  descei'  do  cadafalso,  exclamou  : 

—  Deus  proteja  o  pássaro  de  minha  lilha,  que  me  salvou  da  moi'lc!  Sau- 
val diz  te  fOí/,  e  Brantòmc  emprega  ainda  outra  expressão  mais  forlc. 

Esta  Diana  de  Poitiers,  que  Ião  generosamente  sacrificara  a  sua  bcllcza 
para  salvar  seu  pae,  foi  o  (|ue  o  povo  denominava  la  jiunetUa  <lu  mi,  a  mula 
<rel-rei.  Era  assim  (|uc  a  chamavam  os  contemporâneos  de  Rahelais,  e  para 
continuarmos  a  nictapliora,  entiou  dahi  a  pouco  tempo  nas  cavallariças  do 
delpbim,  ao  depois  Henrique  ir,  cujo  primeiro  cuidado  ao  subirão  throno  foi 
fazel-a  duqucza  de  Valentinois.  O  reinado  da  duqueza  dElampes  acabou  com  o 
de  Francisco  i. 

Se  a  prostituição  sob  este  reinach»  tomou  na  corte  uma  audácia,  que  nunca 
tivera  até  alli,  devemos  reconhecer  ainda  assim  que  Francisco  i  com  o  seu 
exemplo  ccom  as  suas  iicçõcs  havia  posto  em  moda  a  delicadeza  e  a  galanteria, 
como  véus  destinados  a  encobrir  o  escândalo  dos  amores  illegilimos.  Mezeray,  na 
sua  Uisloire  de  lú-ancf,  apresenta-nos  um  quadro  curioso  d'esla  corrupção,  que, 
diz  elle,  começou  com  Francisco  i,  propagiui-sc  extraordinariamente  com  Hen- 
rique 11,  e  trasbordou  com  Carlos  ix  c  Heni-ique  iri.  No  emtanto,  Mezeray  apre- 
sentando os  diUerentes  graus  da  depravação  moral,  desde  Francisco  i  até  Hen- 
rique m,  deixou  de  notar  que  o  primeiro  dos  Valois  foi  o  inimigo  implacável 
do  escândalo  e  o  obstinado  protector  do  que  elle  chamava  a  honra  das  damas. 
Francisco  i  não  descobriu  nem  comprometteu  neniiuma  das  suas  amantes,  e  a 
própria  duqueza  d'Etampes,  que  por  espiíço  de  mais  de  vinte  annos  foi  a  sua 
favorita,  poderia  dcfcnder-se  de  (|ual(iuer  accnsação,  e  sustentar  que  fora  ape- 
nas muito  honradamente  o  que  os  cavalleiros  da  Edadc-Média  chamariam  a 
amiga  do  coração  do  rei  Francisco  de  Valois. 

«Ainda  que  se  suspeitava  que  havia  deshonestidadc,  diz  o  senhor  de  Vau- 
privas,  na  sua  Prasopnijrnphie,  el-rei  protestou  que  só  amava  esta  dama  peia 
sua  graça  e  donaire.  Seja  como  fòr,  julga-se  (|ue  ella  era  realmente  sua  amante. » 

O  senhor  de  Vauprivas,  que  escrevia  e  publicava  a  sua  Prosopograpliia 
no  tempo  de  Henri((ue  iii,  mostra-se  pouco  convencido  da  innocencia  das  re- 
lações da  duqueza  d'Etampes  com  el-rei.  Sabia  talvez  que  logo  em  seguida  á 
morte  de  Francisco  i  o  marido  da  duqnv.a,  a  quem  Vauprivas  suppòe  homem 
pouco  sen&ivel  aos  prazeres  do  amor,  loi  o  próprio  a  publicar  a  sua  deshonra, 


372  HISTORIA 

intentando  um  processo  contra  sua  mulher  a  respeito  de  dinheiro,  e  provocando 
umas  averij^uações  judiciaes,  que  deram  em  resultado  provar  que  elle  havia  ca- 
sado com  a  rihalda  d'el-rei  (patain  riu  roi). 

P"rancisco  i  não  se  contentou  de  fazer  da  sua  corte  um  serralho,  onde 
nem  os  maridos,  nem  os  tutores,  nem  os  pães,  nem  as  mães  ousavam  pertur- 
bar os  prazeres  do  rei.  Multas  vezes  divertia-se  em  procurar  aventuras  nas  ruas 
de  Paris,  e  dirigia-se  a  toda  a  classe  de  mulheres  que  encontrava.  No  Hepta- 
meron  da  rainha  de  Navarra,  vc-se,  porém,  que  estas  aventuras  não  eram 
izemptas  de  perigos,  e  que  mais  de  uma  vez,  surprehendido  em  flagrante,  o  rei 
foi  tractado  como  um  galan  vulgar.  Felizmente  a  sua  espada  dava-lhe  meio 
de  sahir  do  aperto  cm  que  tão  levianamente  se  mettera,  mas  nem  sempre  sahia 
são  e  salvo  dos  azares  destes  seus  amores  subalternos. 

Assim  foi  que,  segundo  a  tradicção,  uns  amores  d'esta  espécie  lhe  cau- 
saram a  enfermidade  que  atinai  o  levou  ao  sepulehro,  depois  de  dez  ou  doze 
annos  de  sotfrimento,  e  é  de  crer  que  as  suas  amantes  da  corte  não  ficassem 
indemnes  da  sua  fatal  enfermidade. 

Dando  curso  a  esta  tradicção,  que  não  podia  appoiar-se  em  documentos 
authenticos,  os  historiadores  não  fizeram  senão  mencionar  o  acontecimento, 
sem  afliançarem  as  suas  circumstancias.  Mezeray  costumava  tomar  da  narra- 
ção dos  seus  contemporâneos  as  particularidades  mais  curiosas  da  sua  Historia 
de  França.  Segundo  elle,  a  ulcera  maligna  que  foi  causa  da  morte  de  Fran- 
cisco I,  começara  já  em  lo.39  a  devoral-o  com  ardor  insupporfavel,  de  modo 
que  a  dòr  e  a  infecção,  que  era  geral  no  corpo  do  monarcha,  lhe  produzia  uma 
febre  lenta  e  um  desalento  sombrio,  que  o  tornavam  incapaz  de  qualquer  pm- 
preza. 

«Ouvi  dizi>r  varias  vezes,  accrescenta  Mezeray,  que  o  mal  d'el-rei  lhe 
iòra  coiniiuinicado  pela  bella  Ferronicre,  uma  das  suas  amantes,  cujo  retrato 
se  vc  ainda  em  alguns  curiosos  gabinetes  do  palácio,  e  cujo  marido,  por  uma 
eslraniia  e  estúpida  vingança,  fora  buscar  a  infecção  venérea  a  um  lupanar 
jiara  contaminar  os  dois.» 

Mezeras,  no  seu  Compendio  clivonoloçjico  da  Historia  de  França,  apre- 
senta novos  pormenores  d'cste  lado,  que  consigna  reporlando-se  a  certos  boatos 
que  haviam  corrido  no  tempo  de  Francisco  i.  Brantòme,  porém,  não  falia  d'esta 
bella  Ferronicre,  nem  de  seu  marido,  que  segundo  uns  era  um  ferrageiro,  se- 
gundo outros,  um  advogado,  e  segundo  todos  elles  um  ciumento  insupporla- 
vel. 

Esta  aventura,  que  merece  um  logar  importante  na  Historia  da  prostitui- 
ção, apparece  pela  primeira  vez  minuciosamente  narrada  nas  Diversas  licções, 
de  Louis  (luyon  (I.  ii,  lih.  i,  pag.  109.)  O  auctor  rccebeu-a  talvez  da  bocca  de 
algum  ancião  ainda  do  tempo  do  rei  cavalleircsco,  por  isso  que  escrevia  a  sua 
collecção  em  fins  do  século  xvi.  Além  d'isso,  na  sua  qualidade  de  medico, 
talvez  encontrasse  entre  os  seus  collegas  alguma  tradicção  especial,  relativa  á 
alVecção  venérea  de  que  foi  victima  el-rei. 

«El-rei  Francisco  i,  diz  elle,  pretendeu  seduzir  a  mulher  de  um  advogado, 
dama  de  verdadeira  bclleza,  que  não  (jucro  nomear,  porque  deixou  filhos,  que 


DA    PROSTITUIÇÃO  373 

alcançaram  uma  elevada  posição  e  gosam  de  excellentc  fortuna.»  A  dama  não 
queria  acceder  aos  desejos  (í'el-rei,  antes  o  repellia  com  palavras  rudes  que 
entristeciam  o  seu  real  animo. 

«Sabendo  este  caso,  alguns  cortezãos,  que  faziam  junto  delle  o  papel  de 
alcoviteiros,  aconselharam  ao  monarcha  que  empregasse  a  sua  real  auctoridade 
e  todo  o  seu  poder  para  tomar  á  força  o  que  de  bom  grado  não  podia  obter. 
Effectivamente  um  d'elles  foi  avisar  a  dama  da  sorte  que  a  esperava,  e  ella 
apressou-se  a  contar  fudo  a  seu  marido. 

«O  advogado  comprehendeu  immediatamente  que  elle  e  sua  mulher  te- 
riam de  fugir  do  reino,  e  Deus  sabia  quanto  haveriam  de  passar  para  salvarem 
as  vidas,  se  ella  não  se  submettesse  áquelle  real  capricho.  Determinou,  por- 
tanto, aconselhar  a  esposa  a  resignar-se  com  a  sua  triste  sorte,  obedecendo  á 
exigência  do  tyranno,  e  para  não  causar  estorvo,  tingiu  que  tinha  de  sahir  da 
capital  por  uns  oito  a  dez  dias. 

«>'ii  emianto,  conservou-se  em  Paris,  e  andou  percorrendo  os  bordeis 
em  procura  do  mal  venéreo  para  contagiar  sua  mulher,  a  qual  por  sua  vez  se 
encarregaria  de  communicar  o  llagello  ao  rei. 

«Depressa  encontrou  o  advogado  o  que  procurava,  e  foi  logo  contagiar 
sua  mulher,  e  esta  em  seguida  ao  rei,  o  qual  por  sua  vez  pegou  o  mal  a  mui- 
tas outras  mulheres  com  quem  tinha  relações,  e  nunca  poude  curar-se  bem, 
porque  o  resto  da  sua  vida  passou-o  sempre  doente,  triste,  mysantropo  e  inac- 
cessivel.» 

Nada  se  nos  afigura  mais  verosímil  do  que  a  aventura  da  bella  Ferro- 
nière,  na  parle  que  se  refere  á  sua  funesta  inlluencia  sobre  a  saúde  d"el-rei. 
Julgamos  inútil,  porém,  attribuir  á  vingança  do  marido  as  vergonhosas  conse- 
quências da  libertinagem  do  monarcha.  O  que  isto  prova  somente  é  que  o  mal 
venéreo  tinha  já  n'essa  épocha  uma  fonte  inexgotavel  nos  albergues  da  prosti- 
tuição publica. 

Ha  certas  duvidas,  ainda  assim,  a  respeito  da  épocha  em  que  Francisco  i 
foi  tão  gravemente  castigado  na  sua  incontinência.  Mezeray  cita  uma  data  pre- 
cisa, l.")3"J.  Branlòme,  porém,  attribue  sem  hesitação  aos  primeiros  annos  do 
reinado  de  Francisco  i  a  invasão  do  mal  venéreo,  que  lhe  abreviou  a  vida  e 
que  lhe  mereceu  este  famoso  epitaphio : 

L'an  mil  cinq  cent  quarente  sept. 
François  mourut  á  RambouiUel 
De  la  vérole  qu'il  avoit. 

«El-rei  Francisco,  diz  Brantòme,  no  elogio  de  Henrique  ii,  amou  dema- 
siado, pois  sendo  joven  e  livre,  tomava  indistinctamente  esta  ou  aquella,  (n'a- 
quelle  tempo  não  havia  rapaz  novo  que  não  fosse  amigo  de  mulheres,  putassier.) 
D'aqui  lhe  proveio  o  mal  que  abreviou  seus  dias.  Não  morreu  de  velho,  por 
isso  que  não  tinha  mais  de  cincoenta  e  três  annos.  Ouando  se  viu  mortificado 
pelo  mal,  pensou  que  se  continuasse  nos  seus  amores  vagabundos  peior  seria 
ainda,  e  por  isso,  tornando-se  prudente  com  a  experiência  do  passado,  deter- 
minou amar  galantemente.  Com  este  fim  instituiu  a  sua  bella  corte,  frequen- 


374  HISTORIA 

tada  por  tão  bellas  damas  e  donzellas,  para  se  preservar  de  feios  males,  e 
niinea  mais  manchou  seu  corpo  com  impuridades,  antes  seguiu  d'aiii  avante 
um  amor  limpo  e  puro.  E  depois  que  sahiu  da  sua  prisão  (ornou  por  sua  prin- 
cipal dama  e  amante  madcmoisclle  d'Heilly.» 

•  Esta  passagem  na  qual  Hrantòme  persiste  em  dar  uma  origem  tão  im- 
inoral  á  grande  corte  das  damas,  instituída  por  Francisco  i,  parece  dar  a  en- 
tender que  a  bella  Ferronicre  havia  deixado  tristíssimas  recordações  da  sua 
seducção  a  ei-rei,  antes  d'elle  ter  sido  feilo  prisioneiro  na  batalha  de  Pavia,  em 
1525. 

N'outro  logar  das  suas  Memorias,  Brantftme  está  de  accordo  comsigo 
mesmo  e  confirma  esta  asserção,  quando  se  compadece  da  sorte  da  rainha 
Claudia,  dizendo  que  «el-rei  seu  marido  a  contagiara  do  mal  que  lhe  abreviou 
a  existência.» 

A  rainha  Claudia  morreu  em  julho  de  I5?4,  em  consequência  do  virus 
mórbido  que  seu  espo.so  lhe  communicára. 

Para  descrever  bem  a  prostituição  da  corte  de  Francisco  i,  seria  mister 
citar  textualmente  metade  da  collecção  das  Dames  galantes,  e  dar  a  conhecer 
pelos  seus  nomes  os  personagens  que  Brantòme  não  se  atreveu  a  nomear  ao 
referir  as  suas  escandalosas  aventuras. 

Seria  hoje,  porém,  muilo  diílicil  erguer  o  veu  do  anon\ mo  que  cobre  a 
maior  parte  das  galanterias,  que  o  discreto  compilador  attribue  já  a  um  grande 
príncipe,  já  a  uma  grande  princcza,  umas  vezes  a  uma  bella  viuva,  outras  a  uma 
dama  de  elevada  jerarchia.  O  auctor  não  as  designa  de  outro  modo,  sem  du- 
vida porque  deixava  a  cargo  das  más  línguas  da  corte  supprir  todas  as  suas 
omissões. 

Não  nos  parece  conveniente  reproduzir  n'este  logar  as  anecdotas  que 
pertencem  ao  reinado  de  Krancisco  i,  e  que  caracterisam  a  depravação  moral  da 
nobreza.  No  emtanto,  deve  notar-se  que  se  a  licenciosidade  é  enorme,  se  as  mu- 
lheres casadas  fazem  um  ludibrio  da  honra  de  seus  maridos,  e  se  as  solteiras 
l)reUuliam  o  matrimonio  com  o  esquecimento  completo  do  pudor,  ha,  no  emtanto, 
mesmo  nos  homens  mais  libertinos  um  sentimento  elevado,  austero,  intransi- 
gente a  respeito  da  virtude  e  da  honra  de  uma  mãe  de  familia.  Os  maridos  que 
não  temem  manchar  o  Icilo  alheio,  velam  pela  honra  do  seu  com  a  espada  ou 
o  punhal  na  mão.  I)  aqui  tantas  historias  trágicas  em  que  um  amor  impuro  e 
criminoso  termina  sempre  com  o  veneno  ou  com  o  ferro. 

Estas  sangrentas  represálias  que  ameaçavam  o  mau  procedimento  das 
mulheres  casadas,  não  eram  ainda  assim  suíTicientes  para  as  conservar  nos  li- 
mites do  dever,  ponjue  Brantòme  refere  que  o  perigo  era  para  ellas  um  esti- 
mulo a  excilal-as  a  redobrar  de  astúcia  na  arte  de  enganarem  seus  maridos. 
«INão  obstante,  d.  ciara  o  chronisln,  depois  de  haver  verberado  esses  coi- 
ladinhos  perigosos,  cruéis,  sanguinoli'nlos  e  trágicos,  que  atormentam,  ferem 
e  matam  suas  mulheres  inlieis — não  (d)stante,  conheci  damas  e  amantes  que 
não  se  importavam  com  isto,  porque  embora  os  maridos  fossem  tcmiveis,  el- 
las eram  corajosas,  e  as  piimciras  sempre  a  animar  os  seus  amantes,  pensando 
que  se  a  empreza  é  árdua  e  diílicil,  tanto  maior  deve  ser  o  valor  para  a  levar 


DA    PROSTITUIÇÃO 


37o 


a  cabo.  Outras  conheci  tambom,  (|iic  não  tinham  coragem  para  estas  árduas 
emprezas,  c  só  se  occupavam  de  cousas  fáceis  e  comesinhas:  e  por  isso  se  cos- 
tuma dizer  coração  cobarde  como  uma  prostiliUa.f 

Lendo  as  Damas  galantes  de  Hranlòme,  até  nos  repugna  acreditar  que 
este  desaforado  historiador  da  inipudicicia  das  mulheres  da  còrle,  quizesse  de- 
monstrar que  similhantes  excessos  de  leviandade  não  fossem  censuráveis  nas 
grandes  e  honradas  damas.  Tão  singular  paradoxo  reproduz-se  cm  muitos  dos 
seus  escriptos,  onde  o  auclor  o  põe  na  bocca  de  certos  personagens.  Assim, 
uma  dama  escoceza  de  boa  familia,  que  tinha  lido  um  hlho  de  Henrique  n,  di- 
zia no  seu  escocez  afrancezado  : 

".]'ai  fácil  tant  que  fui  pu  qu'à  la  bonne  lieure  je  sais  encentie  dn  ntij. 
itoni  je  m'en  sens  Irès-honoree  et  Irès-heurense :  et  si  cenx-je  ilire  ijue  le  sang 
rogai  a  je  ne  sçaiy  qiiog  de  plus  suave  et  friand  liqueur  que  1'autre,  tant  }e 
m'en  trouve  bien,  sans  compter  les  bons  brins  de  presents  que  l'on  eu  tire: — 
Fiz  quanto  pude  e  tive  a  fortuna  de  ficar  gravida  d"el-rei,  e  por  isso  me  sinto 
muito  honrada  e  venturosa.  Posso  até  dizer  que  o  sangue  real  tem  um  não  sei 
que  de  mais  suave  que  os  outros,  que  eu  até  me  sinto  muito  contente,  sem 
contar  com  os  presentes  que  el-rei  me  dá.» 

Brantôme  accrescenta  este  commentario  : 

«Esta  dama  e  outras  muitas  de  quem  tenho  ouvido  fallar  julgavam  (|ue 
entregar-se  uma  mulher  ao  seu  rei  não  era  cousa  infame.  Diziam  até  que  pros- 
titutas são  as  que  se  entregam  aos  pequenos,  porque  as  que  vão  dar-se  a  el-rei 
são  grandes  personagens.» 

Brantôme  faz  dizer  o  mesmo  a  um  grande  que  discorria  sobre  o  assum- 
pto, defendendo  uma  grande  princeza  muito  amável  e  sempre  disposta  a  con- 
tentar todo  o  mundo,  como  o  sol  que  espalha  sobre  todos  o  seu  brilho.  O  fi- 
dalgo declara  expressamente  que  estas  leviandades  são  permittidas  e  ficam  bem 
ás  grandes  damas,  e  nunca  ás  damas  vulgares,  tanto  da  corte,  como  da  cidade 
e  das  aldeias. 

«As  mulheres  vulgares,  accrescenta  elle,  hão  de  ser  constantes  e  firmes 
como  as  estrellas  fixas.  Se  começam  a  mudar  de  amores,  são  dignas  de  castigo, 
e  devem  ser  dillamadas,  exactamente  como  as  dos  bordeis.» 

Em  presença  d'esta  engenhosa  tlieoria,  não  é  para  extranliar  que  uma  da- 
ma da  corte,  de  certo  uma  grande  dama,  tenha  a  velleidade  de  invejar  a  liber- 
dade das  cortezàs  de  Veneza,  como  se  vé  d'esta  passagem  : 

«Quanto  mais  felizes  não  seriamos,  diz  ella  a  uma  amiga,  se  estivésse- 
mos alli  passando  essa  vida  divertidíssima  e  aprazível,  a  que  nenhuma  outra 
pôde  comparar-sel» 

Brantôme,  referindo  este  caso,  exclama:  «Eis  um  desejo  bem  patusco!" 
No  emtanto,  o  licencioso  abbade  não  deixa  de  o  approvar  por  ter  partido  de  uma 
illustre  dama. 

A  famosa  cortezà  romana,  denominada  a  Grega,  que  foi  a  França,  se- 
gundo diz  Brantôme,  de  propósito  para  ensinar  a  licenciosidade  aos  maridos  c 
preleccionar  suas  mulheres  nos  segredos  mais  galantes  da  prostituição,  dizia  a 
algumas  damas  da  corte: 


376  HISTORIA 

— O  nosso  otlicio  é  fão  ardente,  quando  se  sabe  como  deve  ser,  que  se 
tem  cetn  vezes  mais  prazer  em  pralical-o  com  muitos  do  que  só  com  um.» 

Não  eram,  porém,  somente  as  cortezãs  eméritas  que  professavam  este 
magistério  de  libertinagem  na  corte  de  Francisco  i.  Damas  de  jerarcbia  iilustre, 
princezas,  principes  da  Egreja  encarregavam-se  á  porfia  de  o  exercer.  O  car- 
deal de  Lorena,  a  quem  el-rei  nomeara  seu  logar-tenente  em  questões  de  ga- 
lanteria, tinha  a  seu  cargo  amestrar  as  donzellas  e  as  damas  noviças  que 
entravam  na  corte. 

—  Que  mestre  aquelle!  exclama  Brantòme.  (Juer-me  parecer  que  o  tra- 
balho não  seria  tão  grande  como  o  de  amansar  potros  selvagens. 

Depois  de  ter  fallado  a  respeito  da  competência  do  cardeal,  o  abhade  accres- 
centa  que  raríssimas  ou  nenhumas  mulheres  de  bem  haviam  sabido  daquella 
corte. 


CAPITULO    XXXII 


SUMMARIO 


A  prostituição  na  corte  de  Henriíiue  ii.— Elogio  das  beilas  francezas.—  Diana  de  Poitiere,  concubina  d'el-rei. 
—As  cifras  e  divisas  de  Diana.— Brisac  debaixo  da  cama.— Bonnivft  na  chaminé— Horhveis  depravações  da  corte. 
—As  arles  conuptoras.— Uescripção  dos  (|uadros  e  estatuas  dns  palácios  rraes.—  A  lai,-a  obscena.—  As  figuras  do 
AretiDO.— Digressão  bibliograi.hica  acerca  desta  liceuciosa  colleiíão.  — Destruição  das  gravuras  e  exemplares  do 
livit).— A  .Siimína  dej.  Benedicti.— Miniaturas  no  gosto  do  Arelinn.— A  galeria  do  conde  de  Cbateauvillaiu. 


lE  O  .SERRALHO  de  Henriquc  ii,  diz  Sauval,  não  foi  Ião  grande 
como  o  de  Francisco  i,  a  sua  corte  não  eslava  menos  corrom- 
pida.» 

.\s  memorias  de  Brantiime  ahi  eslão  para  nos  fazerem  co- 
H  nliecer  esta  corrup^.-ào  de  costumes,  que  não  podia  .ser  maior, 
porque  a  corte  de  França  naquella  épocha  havia  adoptado  e  naturalisado  to- 
dos os  géneros  de  prostituição  e  libertinagem,  todos  os  relinamenlos  da  luxu- 
ria e  da  galanteria.  Iodas  as  licções  de  preversão  moral,  (|uc  n'oufro  lempo  in- 
vejava às  cortes  italianas. 

No  emlanto,  Brantôme  applaude  o  que  vé,  considerando-o  como  uma 
conquista  c  melhoramento  no  interesse  dos  prazeres  sensuaes. 

«As  nossas  belias  francezas,  diz  elle  no  primeiro  discurso  das  suas  Da- 
nies  yah,ntes,  eram  em  tempos  que  lá  vão  muito  grosseiras,  contentando-se 
de  fazer  o  amor  rudemente.  Ha  cincoenta  annos  a  esta  parte,  porém,  apren- 
deram de  outras  naçíjes  tantos  primores,  attractivos,  garridices  e  seducyões, 
tantas  graças  e  maneiras  lascivas,  ou  por  si  próprias  se  tem  exercitado  tanto, 
que  lemos  de  confessar  já  agora  que  vencem  em  tudo  quacsquer  outras.  Até 
as  mesmas  palavras  de  sensualidade  são  na  bocca  das  nossas  compatriotas 
mais  voluptuosas,  sonoras  e  excitantes  que  as  outras.» 

(".onclue  d'aqui  o  bom  do  abbade  que  o  amor  em  França  é  melhor  que 
n'outra  parte  qualquer,  e  invoca  o  testemuniio  dos  sábios  na  arte  de  amar  e 
dos  coftczãos,  que  são  unanimes  em  dar  a  palma  ás  francezas,  «ainda  que  te- 
nham de  reconhecer  em  ultima  analyse,  que  isto  de  pecoras  e  coitadinhos  é 
fructa  qiie  apparece  por  toda  a  parte,  visto  que  a  castidade  não  habita  uma 
região  qualquer  de  preferencia  a  outra.» 

Ainda  assim,  el-rei  Henrique  ii  teve  menos  parte  do  que  Francisco  i  na 
depravação  do  seu  tempo,  por  quanto,  «embora  amasse  tanto  como  el-rei  seu 
pae,   embora   se  desse  de  alma  e  coração  aos  encantos  das  damas,»  como  diz 

BuTcaiÀ  DA  Peustituicâo.  Tomo  n— Folha  í8. 


378  HISTORIA 

Branlòme,  deu  aos  seus  corlezãos  um  raro  exemplo  de  constância  c  de  amor 
nas  suas  relações  com  Diana  de  Poitiers,  que  foi  a  única  concubina  ofBcial 
(en  tiire)  de  sua  mageslade,  duranie  todo  o  seu  reinado. 

Diana  não  era  joven  a  esse  tempo,  mas  conservava  ainda  toda  a  sua  bel- 
leza  deslumbrante.  Brantòme,  que  a  viu  na  avançada  cdade  de  setenta  annos, 
seis  mezes  antes  da  sua  morte,  admirou  extraordinariamente  encontral-a  tão 
bella,  tão  fresca,  e  tão  appetitosa  como  se  tivera  apenas  trinta  annos.  Accres- 
centa  o  cbronista  da  galantaria  da  sua  cpocba  «que  a  dama  era  muito  branca, 
e  que  não  usava  pinturas  nem  cosméticos,  o  que  fazia  crer  que  se  servia  de 
certas  beberagcns  compostas  com  ouro  potável.» 

Seja  como  fòr,  Henrique  ii  amava-a  tão  apaixonadamente  que  não  podia 
passar  sem  ella,  estando  sempre  triste,  quando  não  a  via.  Vivia  tão  intima- 
mente com  ella  como  se  fora  sua  esposa  legitima,  e  a  rainha  via-se  obrigada 
a  devorar  em  silencio  o  ciúme  da  supremacia  dVsta  rival,  que  ainda  assim 
evitava  quanto  possível  humilhar  a  sua  soberana. 

Henrique  n  não  deixava,  porem,  de  cohabitar  com  a  rainha  Catharina 
de  Medicis,  que  parecia  não  ter  outro  destino  senão  dar  ao  mundo  uma  nume- 
rosa geração  de  príncipes  e  princezas.  Diana,  pela  sua  parte,  não  se  mostrava 
ciosa  d'esta  virtude  prolífica,  a  qual  dava  em  resultado  atlastar  el-rei  do  leito 
conjugal,  condemnando  a  rainha  gravida  a  prolongadas  ausências.  N'essas  oc- 
casiões,  Diana  era  a  verdadeira  rainha  da  corte,  até  que  Catharina  de  Medieis 
ficava  livre  da  sua  gravidez. 

Diana  tomou  uma  parte  muito  activa  nos  negócios  do  estado,  e  pôde  di- 
zer-se  que  a  sua  influencia  nunca  foi  funesta  á  politica  do  reinado  de  Henri- 
que II. 

«Feliz  o  rei,  diz  IJranlòme,  que  encontra  uma  favorita  boa,  prudente  c 
perfeita.  Sendo  assim,  o  seu  reinado  não  pode  deixar  de  ser  venturoso!» 

Sem  accusarmos  Diana  de  Poitiers  de  haver  exercido  uma  influencia  per- 
niciosa nos  costumes  da  corte,  podemos  dizir,  ainda  assim,  que  a  favorita  nada 
contribuiu  para  os  melhorar,  nem  com  o  seu  exemplo,  nem  com  o  seu  presti- 
gio junto  do  rei.  Pelo  contrai'i(»,  Diana  devia  rejubilar  com  a  desenfreada  licença 
c|uc  reinava  na  còrle  e  que  tendia  sempre  a  fazer  novos  progressos,  por  isso 
que  d'este  modo  justificava  as  suas  relações  adulteras  com  el-rei.  A  favorita, 
ainda  assim,  |)odia  rehabilitar  até  certo  ponto  a  sua  conducta,  comparando-a 
com  as  escandalosas  desordens  que  as  principaes  damas  se  permittiam  em  torno 
(relia  com  um  completo  esquecimento  du  (|ue  deviam  ao  seu  nome  c  jerarchia. 

Henrique  ii,  cujo  amor  tinha  refinamentos  de  delicadezas  para  com  a  sua 
favorita,  não  omittia  cousa  alguma  ([ue  podesse  fazer  realçar  o  brilho  d'csse 
amor,  tornando-o  por  assim  dizer  respeitável  á  força  de  o  rodear  de  attençòes 
c  homenagens.  Eis  o  motivo  porque  mandara  collocar  por  toda  a  parte,  nos 
adornos  dos  seus  paços,  no  Louvre,  em  Fontainebieau,  em  .Meudon,  etc,  a  ci- 
fra de  Diana  entrelaçada  com  a  sua,  e  as  armas  d'ella  unidas  ao  escudo  real. 

listes  testemunhos  de  uma  ternura  e  de  uma  admiração  eiilhusiaslas  nãi) 
se  viam  somente  na  decoração  interior  dos  aposenlos,  incluindo  o  da  rainha, 
tnas  até  tnesmo  nos  fnmlesjiieios  drts  cililicios,  nas  esculp(in'as  das  janellas,  nos 


DA    PROSTITUIÇÃO  379 

lavoí-fs  das  portadas,  no  mosaico  dos  paviíiicntos,  ek-.,  etc.  Era  um  propósito 
feito  de  ostentar  ú  vista  de  todo  o  mundo  os  anagrammas  dos  nomes  de  Diana 
e  Henrique.  Nunca  iiaviam  alcançado  uma  tal  apotiíeose  o  adultério  e  a  pros- 
tituição ! 

O  (im  que  el-rei  tiniia  em  vista  rcalisou-se  por  completo.  Não  só  a  corte 
se  habituou  a  confundir  a  concubina  com  a  rainlia,  mas  o  próprio  povo  consi- 
derou sempre  Diana  como  uma  espécie  de  fada,  que  devia  ás  suas  artes  a  mi- 
lagrosa virtude  de  se  conservar  eternamente  joven  e  bella,  e  cuja  meia  lua 
symbolica  presidia  aos  destinos  da  França. 

.4  tal  ponto  se  havia  familiarisado  Henrique  com  este  concubinato,  de  que 
tanto  se  orgulhava,  que  não  tinha  es'Tupiiio  de  se  apresentnr  em  publico  a  ca- 
vallo,  levando  á  garupa  a  duqucza  de  Valentinois,  que  se  segurava  abraçando 
o  monarcha.  E'  preciso  dizer  que  a  moda  auctorisava  este  costume  de  cavalgar 
a  dois.  Não  podemos  dizer  se  foi  Diana  ou  Henrique  quem  mandou  fazer  um 
quadro  em  que  os  dois  amantes  estavam  representados  ambos  a  cavalio  d"este 
modo.  Ignoramos  também  se  a  ordem  de  multiplicar  os  anagrammas  e  em- 
blemas da  real  concubina  nos  edifícios  públicos  partia  (feila  ou  do  seu 
amante. 

Julga-se  com  alguns  visos  de  verdade  que  os  arcbitectos,  estatuários, 
pintores  e  outros  artistas,  conhecendo  a  louca  paixão  do  rei  por  aquella  mu- 
lher, o  lisongeavam  com  estas  allegorias  destinadas  a  immortalisar  os  seus 
amores. 

Os  artistas  italianos  foram  os  primeiros  a  tomar  a  iniciativa  n"esta  obra 
de  adulação,  que  agradou  a  Diana  e  não  desagradou  ao  seu  amante.  Os  artistas 
francczes  imitaram  em  seguida  o  que  os  seus  emulos  haviam  feito  com  tanta 
felicidade,  e  desde  então  lornou-se  um  costume  geral  em  todas  as  obras  d'arte, 
que  se  fizeram  n'aquelle  reinado  reproduzir  as  iniciaes  de  Henrique  e  de  Diana 
com  a  meia  lua  e  a  divisa:  Doner  lotum  Impleaí  orbem.  Era  uma  allusão,  se- 
gundo se  dizia,  ao  desejo  que  el-rci  tinha  de  vèr  arredondar-se  o  ventre  da 
concubina? 

Henrique  ii,  a  exemplo  de  seu  pae,  mostrou- se  sempre  muito  discreto  a 
respeito  da  honra  das  damas. 

Brantòme  diz  acerca  desta  discrição  real  o  seguinte  : 

«El-rei  não  queria  que  as  damas  fossem  escandalisadas,  nem  divulgadas 
as  suas  condescendências,  e  elle  próprio,  quando  ia  visital-as,  procurava  sem- 
pre rodear-se  de  grandes  mysterios  para  que  as  suas  amantes  ficassem  livres 
de  qualquer  suspeita  nu  dilTamacão.» 

Será  crivei,  porém,  que  el-rei  tomasse  tantas  precauções  para  evitar  que 
o  echo  das  suas  infidelidades  chegasse  aos  ouvidos  de  Diana  de  Pnitiers,  que 
pela  sua  parte  traclava  o  melhor  que  podia  de  occultar  as  suas?  Brantòme  diz 
expressamente  «que  esta  bella  dama,  no  Icmpo  do  real  favor,  concedera  os 
seus  braços  a  tantas  pessuas,  (|ue  bem  podia  dizer-se  d'ella  que  era  grande 
em  tudo.» 

Henrique  ii  ria-se  d'eslas  fragilidades  da  sua  concubina,  e  não  mostrava 
ciúmes.   El-rei   sabia  que  Diana  tinha  amantes,  mas  que  não  lhe  dava  rivaes. 


380  HISTORIA 

Um  dia,  seguntJu  di/.  Biantòtne,  a  duqueza  de  Valentinois  e  o  marechal  de 
Brissac  estavam  juntos,  quando  el-roi  veio  bater  á  porta  do  quarto.  Brissac 
teve  apenas  tempo  para  se  metter  del)ai\o  da  cama.  El-rei  deitou-se  convi- 
dando Diana  a  fazer  outro  tanto,  mas  d'ahi  a  pouco  sentiu  appetite  e  le- 
vantou-se. 

Diana,  toda  tremula,  apresentou  a  el-rei  uns  ixdos.  O  monarclia  acceitou 
e  comeu,  mas  de  repente  atirou  com  alguns  para  debaixo  do  leito,  dizendo: 

—  Toma,  Brissac,  é  preciso  que  todos  vivamos. 

Em  seguida  retirou-se,  e  não  tornou  a  failar  da  aventura  nem  a  Diana 
nem  a  Brisac,  que  julgava  ciicgada  a  sua  ultima  hora. 

Em  circumstancias  análogas,  Francisco  i  tinha  sido  menos  delicado,  ou 
menos  philosopho  com  o  almiianle  Bonnivet.  Estava  o  marechal  longe  de  pen- 
sar na  vinda  d'el-rei,  quando  sua  magestade  se  apresentou  em  casa  da  sua 
favorita,  que  fazia  amor  á  porta  fechada  com  Bonnivet.  O  galan,  muito  assus- 
tado, foi  esconder-se  na  chaminé,  debaixo  de  umas  poucas  de  folhas  seccas. 
Krancisio  j  substituiu-o  no  leito,  fingindo  não  desconfiar  da  existência  de  um 
terceiro.  Em  seguida  levantou-se  sob  pretexto  de  .satisfazer  uma  necessidade, 
c  foi  direito  á  chaminé,  urinando  em  cima  do  seu  rival,  (|ue  não  se  atreveu  a 
dar  palavra. 

Quando  d'ahi  a  piuico  cl-rei  se  letirou,  a  dama  deu  uma  camisa  lavada 
ao  seu  amante,  perfumou-lhe  a  cabeça  e  a  barba,  e  fez  quanto  foi  possível 
para  que  elle  esquecesse  a  ridícula  aventura. 

Já  o  dissemos,  seria  mister  transcrever  para  aqui  uma  grande  parte  das 
Dames  GalanUa,  de  Brantôme,  para  caracterisarmos  bem  a  prostituição  do  rei- 
nado de  Ht  nrique  ii.  Esta  prostituição  parece-nos  tão  horrível  e  monstruosa, 
(jue  apodariamiis  de  cxaggcro  o  narrador,  se  elle  se  mostrasse  mais  indignado 
das  torpezas  ()iic  refere.  Enconlra-sc,  porém,  tanta  ingenuidade  nas  suas  nar- 
rativas, que  nos  é  preciso  confessar  que  as  mais  abomináveis  depravações  nem 
se  quer  tinham  poder  para  fazer  corar  fosse  quem  fosse. 

«Emquanto  as  viuvas  e  as  mulheres  casadas  se  entregavam  a  todas  as 
extravagâncias  do  amor,  diz  Sauval,  repetindo  as  historias  de  Brantôme  o  mais 
decentemente  que  a  matéria  pcrmittia,  as  .solteiras  pela  sua  parte  faziam  outro 
tanto.  De  resto,  fronte  erguida  dcscaradanente,  e  auzencia  completa  de  vergo- 
nha. As  mais  escrupulosas  casavan)  com  os  primeiros  que  as  pretendiam,  a  fim 
de  poderem  entregar-se  d'ahi  a  pouco  a  quem  melhor  lhes  parecia.» 

Bianiòme  dá  a  entender  que  na  maior  parte  dos  casamentos  da  còrle  as 
desposadas  não  chegavam  intactas  ao  thalamo  nupcial,  e  que  quasi  todos  os 
maridos  sabiam  que  suas  mulheres  haviam  tido  logar  «no  registro  de  algum 
rei,  príncipe,  senhor,  fidalgo,  ou  outro  qualquer.» 

Isto,  porém,  eram  ainda  |)cccados  veniaes  em  comparação  dos  incestos, 
que  segundo  elle,  eram  muito  communs  nas  famílias  nobres,  na  maior  parte 
das  quaes  o  pae  não  casava  suas  filhas  sem  previamente  as  haver  desllorado. 

"Ouvi  failar,  diz  elle,  de  muitos  outi'os  pães,  e  sobretudo  de  um  de  po- 
sição bem  elevada,  (]ue  a  respeito  de  suas  filhas  não  linha  mais  consciência 
que  tivera  o  gallo  de  Esopo.» 


DA    PROSTITUIÇÀlt  381 

Depois  de  infâmias  laes,  (|ne  Branlòinc  nos  refere  sem  iiorior  nem  repu- 
gnância, até  se  nos  afigura  uma  innocente  aqueiia  beUissima  e  hnnesla  donzeUa, 
que  dizia  ao  seu  pretendente  : 

—  Espera  que  me  case,  e  verás  como  debaixo  d'essa  capa,  <iue  tudo  tapa, 
nos  poderemos  divertir  á  nossa  vontade! 

«Quanto  áqueilas  que  eram  completamente  descaradas,  refere  Sauval, 
umas  saciavam-se  de  sensualidades  antes  do  seu  matrimonio,  outras  levavam 
o  pudor  a  ponto  de  commetterem  desvergonhas  mesmo  na  presenya  de  suas 
mães  ou  aias,  sem  que  ellas  dessem  por  tal.  Outras  ainda  recorriam  a  certos 
instrumentos  de  prazer,  como  esses  que  a  rainha  Catharina  de  Medicis  encon- 
trou n'um  cofre  de  certa  donzella  de  honor.  O  uso  d'estes  instrumentos  era 
muito  vulgar  entre  as  donzellas  e  viuvas.» 

A  Itália  dos  Borgias  e  dos  Medicis  havia  ensinado  á  França  todas  estas 
praticas,  todos  estes  instrumentos,  todos  estes  estímulos  da  prostituição,  e  a 
corte,  que  era  sempre  a  primeira  n'estes  jogos  obscenos,  a  còi'te  tão  sollicita  em 
aproveitar-se  d'eslas  innovações  impudicas,  propagava-as  pela  nação,  onde  den- 
tro em  pouco  se  havia  extinguido  toda  a  candura  gauleza. 

Devemos  dizel-o,  embora  nos  custe,  as  artes  que  devem  ter  por  objecto 
apaixonar  os  espiritos  por  tudo  quanto  é  nobre,  puro  e  generoso,  foram  as  pri- 
meiras corruptoras,  ou  pelo  menos  as  mais  importantes  auxiliares  d'aquella 
corrupção  universal. 

Francisco  i  e  Henrique  u  chamaram  para  junto  de  si  uma  multidão  de 
artistas  italianos,  homens  de  grande  talento  sem  duvida,  mas  de  costumes  dis- 
solutos. Os  escuiptores  fizeram  estatuas  de  bronze  e  de  mármore  tanto  de  ho- 
mens como  de  mulheres,  de  deuses  e  de  deusas,  e  n'essas  obras,  ás  vezes  ma- 
gnificas, triumphava  sempre  a  lubrici<lade.  Os  pintores  encheram  os  palácios 
reaes  de  frescos  e  telas,  representando  não  só  cousas  lascivas,  mas  também  in- 
cestuosas e  execráveis.  Leonardo  de  Vinci,  Benvenuto  Cellini,  o  Priraatice,  Ni- 
colo  dellAbbate,  o  Rosso  e  seus  discípulos  não  foram  mais  reservados  e  castos 
em  França  do  que  no  seu  paiz,  onde  o  pincel  e  o  cinzel  pareciam  os  cúmpli- 
ces dedicados  de  todos  os  extravios  dos  sentidos. 

Os  maiores  artistas  da  Renascença  submctteram-se  ao  gosto  prevertido 
dos  seus  contemporâneos,  e  houve  entre  elles  uma  deplorável  emulação  de  gé- 
nio impudico. 

Os  priapos  gregos  e  romanos  multiplicaram-se  por  toda  a  parte  e  sob  to- 
das as  formas  com  tanta  audácia,  como  se  a  França  fosse  pagã,  como  .se  as 
mulheres  houvessem  perdido  completamente  o  costume  de  se  ruborisarem. 

Os  castellos  e  os  palácios  dos  reis,  as  casas  de  recreio  dos  príncipes  e 
princezas,  os  palácios  dos  senhores  da  corte  e  as  casas  dos  particulares  enchc- 
ram-se  de  (juadros  e  de  frescos  indecentes. 

«Para  dar  uma  succinta  ideia  de  algumas  d'estas  pinturas,  diz  Sauval, 
que  ainda  as  poude  ver,  aqui  deuses  completamente  mis  dançam  ou  fazem  cou- 
sas peores  com  mulheres  ou  deusas  nuas  também.  Alli  outras  mulheres  oITc- 
recem  aos  olhos  dos  seus  adoradores  o  que  a  natureza  teve  tanto  cuidado  em 
occullar;   outros  embrulecem-se  em  sensualidades   bestiaes  com  águias,  cys- 


382  HISTORIA 

ni's,  avestruzes,  touros,  ele.  !S'oufros  logares  vèem-se  Ganvmedes,  Safilios  e 
oulras  (|ue  tacs.  Deuses  e  liomcns,  mulheres  e  deusas  revolvein-se,  ullrajanilo 
a  natureza,  no  lodo  dos  vicios  mais  monstruosos.  Depois  d'isto,  quem  se  admi- 
niirará  ainda  dos  incestos  e  aboniinaç^ões  que  assignalaram  tão  ti-isteinente  os 
reinados  de  (larlos  ix  e  Henrique  iii?» 

Sauval  aeerescenia  ([iie  em  Konlainebleau  as  salas,  as  camarás  e  as  ga- 
lei'ias  estavam  cheias  d'estas  pinluras  eróticas,  e  (|uc  a  rainlia  Anna  de  .4us- 
tria  mandou  (|ueiniar  d"eslas  ohscetiidades  um  valor  superior  a  cinco  mil  escu- 
dos, quando  foi  rej^enlc  em  Kiíl]. 

Os  mesmos  assumptos  estavam  tamhcm  repi^esenlados  cm  bai\(is-i-elevos 
nos  aposentos,  em  todos  os  corredores  e  nos  jardins  das  casas  reaes.  Figura- 
vam além  d'isso  nas  tapeçarias  e  em  todas  as  molduras  da  mobília.  Brantòme, 
nas  suas  Dames  (jaldule.s,  consagra  muitas  paginas  á  narrativa  dos  discitrsos, 
sonhos,  fieslos  e  palacrns  das  damas  da  còrlc,  ás  quaes  se  dava  vinho  a  beber 
por  uma  ta(,-a  de  prata  dourada,  esculjiida  com  figuras  obscenas. 

Ksta  famosa  ta^a,  que  teve  uma  verdadeira  celebridade  ira(|uclla  cpocha, 
pcili  mia  a  um  príncipe,  que  gostava  immensode  dar  de  beber  por  cila,  á  meza, 
aos  seus  convidados.  Kra  uma  obra  de  arte,  uma  iirande  spfcinuti',  diz  Bran- 
tòme, «cxcellcntemente  lavrada,  onde  se  viam  abertas  a  buril  muitas  figuras 
de  Aretino,  homens  e  mulheres,  isto  na  base.  Ao  alto  da  tai,'a  havia  ainda  mui- 
t.is  oulras  allegorias  de  diversas  maneiras  de  cohabitação  com  os  animacs.» 

(Is  ililos  das  damas  que  por  cila  bebiam,  que  vem  ref-ridos  em  Bran- 
lonic,  sã  1  curiosos  para  conhecermos  a  falia  absoluta  de  pudor,  e  o  desvcrgo- 
nhanicnlo  (l'aquellas  damas. 

i^Umas  diziam,  (juanilo  se  lhes  perguntava  o  que  tinham  visto,  e  porque 
se  riam,  que  não  tinham  visto  senão  pinturas,  e  (pie  por  isso  não  dei\ariam 
de  beber  ainda  outras  vezes. 

«Diziam  outras:  (hianto  a  mim,  não  |)enso  em  maldade  nenhuma.  O  que 
os  olhos  vccm  não  pode  manchar  a  alma. 

«Havia  outras  que  tinhani  esta  iqtiniào:  o  bom  vinho  tão  bom  é  por  aqui 
como  por  outra  parte. 

«O  mesmo  diziam  outras:  Tão  bem  se  bebe  por  esta  taça  como  por  outra 
qualquer.  A  sèile  passa  do  mesmo  modo. 

«Se  perguntavam  a  algumas  delias,  pnn|ue  motivo  abriam  os  olhos  quando 
bebiam,  respondiam  ijue  ijueriam  vèr  o  qiu'  bebiam,  receiando  que  o  liquido 
não  fosse  vinho,  mas  sim  algum  veneno  ou  bibcragcm. 

«()uti'as  a  quem  perguntavam  o  que  mais  lhes  agradava,  se  vèr  ou  be- 
ber, rcspoMiliain  (|iic  ambas  as  cousas. 

MOulras  diziam  ainda:  Ouc  bellas  imagensi  (^)uc  bellos  espelhos!  Que  en- 
graçadas cousas!» 

Brantòme  pretendeu  evidentcmenie  imitar  n"esla  passagem  os  ditos  dos 
bebedores,  ijue  constilui  in  um  dos  capítulos  mais  jocosos  do  Garyantua  de  Ra- 
bclais. 

Oeslc  caso  podemos  conjediirar  que  as  liguras  obscenas  do  Aretino  não 
eram  menos  conhecidas  em  França  do  que  em  Itália.  K   muito  provável  que  as 


DA    PROSTITUIÇÃO  383 

laminas  d'estas  figuras,  tão  tristemente  celebres,  fossem  levadas  secretamente  a 
Paris  depois  do  reinado  de  Francisco  i,  e  que  alii  se  conservassem  até  ao  sé- 
culo xvn,  em  que  foram  destruídas.  Consta  que  a  collecção  de  dezeseis  figuras 
obscenas  que  liaviam  sido  cravadas  cm  Bolonha  pelo  famoso  Marco  António 
Raymondi,  sobre  os  desenhos  de  Júlio  Ilomano,  ia  ver  a  luz,  acompanhada  de 
dezeseis  sonetos  impudicos  de  Pedro  Aretino,  sob  o  titulo  De  oinnibiis  Venerin 
schemalibus,  quando  o  papa  Clemente  vii  mandou  prender  o  gravador,  o  qual 
correu  o  risco  de  ser  enforcado  ou  queimado  vivo.  Pedro  de  Medicis,  porém, 
salvou-lhe  a  vida,  a  instancias  de  Aretino,  que  não  foi  perseguido,  c  ijue  estava 
residindo  em  Veneza  com  toda  a  tranquillidade  e  seguranga.  O  pintor,  impli- 
cado no  processo,  teve  o  bom  senso  de  fugir  para  Manlua,  (mrle  esperou  que 
o  papa  lhe  perdoasse. 

Tirara-se  apenas  um  pequeno  numero  de  gravuras,  que  foram  dispu- 
tadas pelos  grandes  senhores  de  Roma,  e  até  mesmo  por  muitos  cardeaes. 
As  laminas,  porém,  haviam  desapparecido,  e  a  jusliça  ponlifical  não  poude  dar 
com  ellas.  Foram  depois,  segundo  se  julga,  levadas  para  França,  e  serviram 
para  fazer  muitas  tiragens  succcssivas,  que  mal  chi'garam  para  satisfazer  a  cu- 
riosidade libertina  do  século  xvi,  mas  que  felizmente  não  deixaram  vestígios, 
porque  o  deslino  (restes  abomináveis  livros  é  não  sobreviver  nunca  á  pessoa 
que  os  possue. 

Eis  o  motivo  até  porque  a  existência  das  gravuras  originaes  foi  por  va- 
rias vezes  posla  em  duvida,  mas  o  testemunho  de  RrantAme  parece  confirmar 
essa  existência. 

«Conheci,  diz  ellc,  em  Paris  um  bom  livreiro  veneziano,  que  lhe  chamava 
messer  Bernardo,  parente  d'aquelle  grande  Aldo  Manuccio  de  Veneza,  que  ti- 
nha o  seu  estabelecimento  na  rua  de  Saint-Jacqucs.  Jurou-me  ellc  um  dia  que 
em  menos  de  um  anno  havia  vendido  mais  de  cem  livros  do  Aretino  a  muitas  pes- 
soas casadas  e  solteiras  e  até  mesmo  a  mulheres,  das  quaes  me  chegou  a  no- 
mear três  de  elevada  posição,  cujos  nomes  não  direi.  O  livreiro  vcndeu-os  a 
ellas  mesmas,  muito  bem  encadernados,  com  o  juramento  de  que  haviam  de 
guardar  segredo.» 

E'  muito  provável  que  este  messer  Bernardo  possuísse  em  loSO  as  ver- 
dadeiras laminas  de  Marco  António,  e  que  as  recebesse  na  herança  de  .Manuccio, 
porque  as  referidas  laminas,  que  a  policia  pontifieia  não  pudera  descobrir,  por 
occasião  do  proces,so  do  gravador,  haviam  por  certo  sido  enviadas  para  Veneza, 
onde  a  publicação  dos  livros  e  das  gravuras  mais  obscenas  não  encontrava,  a 
a  esse  tempo,  op|)asição  alguma:  tal  era  n"aquella  cidade  a  liberdade,  ou  me- 
lhor, a  licença  dos  costumes! 

Os  filhos  do  grande  Aldo  Manuccio  imprimiam  e  publicavam  sem  repu- 
gnância os  execráveis  eseriptos  do  seu  amigo  Pedro  Arelino.  Foram  elles,  por 
certo,  que  fizeram  uma  edição  italiana  da  collecção  De  variis  Veneris  schema- 
libus. Todos  os  exemplares,  porém,  d'esta  edição  desappareceram  ha  muito 
tempo,  queimados,  no  interesse  da  moral  e  das  famílias,  ilepois  da  morte  dos 
possuidores  do  perigoso  livro. 

Quanto   aos  exemplares  da    edição  franceza,   mais    numerosos  por  certo 


384  HISTORIA 

que  os  outros,  quasi  todos  desappafee^eram  entre  as  mãos  das  pessoas  que  os 
possuiam.  A  severidade  dos  regulamentos  das  livrarias  em  França,  durante  o 
século  xviii,  impediu  sem  duvida  que  se  fizesse  uma  nova  tiragem  das  gravur 
ras  originacs,  (jue  (içaram  sepultadas  nas  estantes  de  algum  antigo  arma/.em  de 
estampas,  porque,  se  a  venda  de  ohras  obscenas  costumava  verilicar-se  furti- 
vamente n'aquella  époclia,  as  Figuras  do  Aretino  eram  muito  reconimendadas  á 
vigilância  dos  magistrados  para  que  qualquer  livreiro  ousasse  ter  á  venda 
exemplares  d'ellas. 

>'o  emtanto,  um  anonymo  accrescentou,  segundo  parece,  quatro  gravu- 
ras ás  dezeseis,  que  Marco  António  havia  gravado  sobre  desenhos  de  Júlio  Ro- 
mano. Pôde  suppòr-se  que  estas  (juatro  novas  gravuras  foram  feitas  também 
segundo  desenhos  do  mesmo  pintor,  pois  n'uma  carta  de  29  de  novembro  de 
1527  Pedro  Aretino  envia  ao  siijHor  Osare  Fregoso  //  libro  dei  sonctli  e  ddle 
figure  lussuriose  . 

Ha  também  mais  de  dezeseis  sonetos,  o  que  dà  a  suppòr  mais  de  deze- 
seis figuras.  O  numero  primitivo  de  ambas  as  cousas  era  dezeseis,  mas  este 
numero  augmentou  successivamente,  e  sempre,  segundo  julgamos,  sob  a  inspi- 
ração do  Aretino,  que  tinha  a  impudica  vaidade  de  querer  exceder  a  libertina- 
gem antiga,  por  isso  (|ue  o  livro  ilr  Elepluinlis  so  continha  nove  íigurus,  como 
nos  diz  Marcial:  Suni  illic  Veneria  noceni  jiguriv.  (Epigr,  i:5,  lib.  12.)  Are- 
tino não  se  prendeu  com  bagatellas,  e  o  numero  de  liguras  chegou  a  trinta  e 
cinco.  Elle  próprio  o  declara  no  seu  famoso  dialogo  da  Prosliniía  errante,  onde 
tracta  di  diverse  congiuntjimente. 

Depois  do  Aictino,  houve  (juem  completasse  a  sua  obra  com  a  addicçào 
de  uma  trigessima  sexta  e  ullinia  figura,  e  a  collecção  assim  augmentada  era 
vulgarmente  conhecida  debaixo  do  titulo  de  Trinta  e  seis  maneiras  do  Arelinn. 

É  para  extranlnr  que  esta  ccdlecção,  apesar  de  não  ser  rara  no  tempo 
de  Brantóme,  visto  que  um  livreiro  de  Paris  vendeu  mais  de  cem  exemplares 
num  anno,  desapparccesse  completamente.  A  nosso  vèr,  a  causa  da  desappa- 
rição  total  dos  exeuiplaies  que  no  século  xvi  circulavam  em  França  e  na  Itália 
é  a  seguinte:  Quando  um  iiornem  estava  em  perigo  de  vida,  o  sacerdote  que 
lhe  assistia  aos  uliimos  momentos,  em  virtude  dos  seus  p(jderes  ecciesiaslicos 
exigia  ao  moribundo  que  lhe  entregasse  toilos  os  livros  Ímpios,  heréticos  ou 
obscenos  que  tivesse.  Estes  livros  eram  queimados  no  mesmo  acto,  ou  o  sacer- 
dote os  levava  para  os  destruir. 

Comprehende-se  que,  mesmo  no  caso  do  sacerdote  os  ter  conservado, 
não  deviam  sobreviver-lhe.  Esta  guerra  feita  aos  livros  prohibidos  foi  determi- 
nada pelo  clero  calholico  desde  a  origem  da  reforma,  (jue  atacava  sobre  tudo 
por  meio  de  livros  a  n)issa  e  o  papa,  e  foi  como  que  um  mol  d'ordre  em  todo 
o  catholicismo,  passado  com  o  máximo  sigillo,  e  religiosamente  ob.servado  até 
nossos  dias  pelos  confessores  in  extremis.  D'aqui  resultou  que  os  escriptos 
heterodoxos  de  ("alvino,  entre  outros,  a  sua  instituição  da  religião  christã,  vie- 
ram a  ser  tão  raros  como  as  escandalosas  figuras  do  Aretino. 

Brantóme  faz  uma  dissertação  theologica  sobre  o  assumpto  destas  figu- 
ras,   que  elle  conhecia    perfeitamente,  e  prova  que    o  franciscano   bretão  João 


DA    PROSTITUIÇÃO  385 

Benedicti,  que  escrevia  por  aquelle  tempo  o  seu  livro  dogmático  e  contessionai, 
as  conhecia  igualmente.  E'  sabido  que  este  livro  traduzido  e  impresso  em  fran- 
cez,  em  Lyon,  no  anno  de  loOl,  sob  o  titulo  de  Summa  e  remédio  dos  pec- 
cados,  não  c  menos  sórdido  que  a  celebre  coUecção,  a  que  parece  passar  revista 
no  capitulo  da  luxuria. 

No  dizer  de  Brantòme,  o  franciscano  Benedicti  «escreveu  muito  bem  so- 
bre todos  os  peccados,  demonstrando  que  muito  havia  lido  e  visto».  O  abbade 
não  se  mostra  mais  escandalisado  com  esta  Summa  libidinosa,  do  que  com  a 
collecção  do  Aretino. 

«Todas  estas  maneiras  e  posições,  diz  elle,  são  odiosas  a  Deus,  por  isso 
que  S.  Jeronymo  diz  :  Ouem  se  mostra  desordenadamente  amante  de  sua  mulher, 
c  mais  adultero  do  (|ue  marido,  e  pecca.  E,  visto  que  alguns  doutores  da  Egreja 
teem  faltado  a  este  respeito,  direi  em  latim  o  que  cUes  consideram  excesso  no 
matrimonio:  Excessus  conjiij/iim  fit,  ijwindo  u.ror  cogtiosciUír  ante  retro, 
slando  a  lalere  el  mulier  super  virum.» 

O  tractado  de  Benedicti,  na  épocha  em  que  appareceu,  tinha  por  fim  elu- 
cidar os  jovens  confessores  sobre  certos  peccados  que  eram  novos  no  antigo 
tractado  dos  casos  de  consciência,  e  que  se  accusavam  quotidianamente  no  con- 
fessionário. 

A  auctoridade  civil  fechava  os  olhos  a  respeito  das  obscenidades  plásticas, 
que  podiam  executar-se  impunemente,  pòr-se  á  venda,  adquirir-se  e  exhibir-se 
á  vista  de  todos.  Não  nos  consta  que  se  castigasse  em  França  no  século  xvi 
nenhum  pintor  ou  gravador  de  assumptos  eróticos,  ao  passo  que  Sixto  v  man- 
dava enforcar,  segundo  diz  Brantòme,  o  secretario  do  cardeal  de  Este,  cha- 
mado ("apella,  que  havia  representado  ao  vivo  e  pintado  ao  natural  os  amores 
de  um  grande  fidalgo  com  uma  bella  dama  romana. 

Os  pintores  obscenos  corriam  menos  risco  em  França.  Brantòme  cita  um 
d'clles,  sem  nomear,  que  fez  muito  mais  do  que  Capella,  no  tempo  de  Henrique  iii: 
«Um  fidalgo  em  quem  me  fallaram  e  que  eu  conheci,  ofíereceu  um  dia  á 
sua  amante  um  livro  de  pinturas  em  que  havia  trinta  e  duas  damas  das  mais 
elevadas  da  corte,  pintadas  ao  natural,  deitadas  e  divertindo-se  com  os  seus 
amantes,  pintados  do  mesmo  modo.  Havia  algumas  que  se  divertiam  com  dois 
ou  Ires  amantes,  c  outras  mais  ainda.  Estas  trinta  c  duas  dainas  representavam 
uma  multidão  de  figuras  das  do  Aretino,  todas  diversas.  Os  personagens  esta- 
vam tão  bcllamentc  representados,  que  só  lhes  faltava  fallar.  Mulheres  nuas,  ou- 
tras com  a  mesma  roupa,  que  ordinariamente  usavam,  e  os  homens  do  mesmo 
modo.  O  livro  era  tão  bem  pintado,  e  feito  com  tanta  perfeição,  que  não  havia 
nada  a  dizer,  e  havia  custado  oitocentos  a  novecentos  escudos.» 

Brantòme  arllirmaque  os  obscenos  desenhos  d'este  livro  produziam  efleitos 
perigosíssimos  nas  mulheres  que  achavam  prazer  em  vèl-os.  De  uma,  conia  elle 
que  foi  tal  o  ardor  do  desejo  que  se  apoderou  dos  seus  sentidos,  que  ao  vera 
quarta  folha  cahiu  por  terra  sem  conhecimento.  Oueremos  crer  que  foi  a  ver- 
gonha c  não  outra  causa  qualquer  que  produziu  este  desmaio! 

N'outro  logar  das  liames  galantes  falia  ainda  Brantòme  d'estas  pinturas 
lúbricas,  (jue  começaram  a  entrar  em  voga  no  reinado  de  Francisco  i. 

HiSTOntA    D.\  1'R0STITU1CÃ0.  TOMO    II— FOLHA  49. 


386  HISTORIA 

«Taes  pinturas  c  quadros,  diz  o  abbadc  com  maior  lino  e  decência  do 
fjue  habitualmente  manifesta,  prejudicam  um  espirito  frágil  mais  do  que  se 
pensa.» 

O  conde  de  r.hateauvillain  tinha  na  sua  galeria  entre  muitos  outros  qua- 
dros bellissimos  «uma  d'estas  pinturas  libidinosas,  onde  estavam  representa- 
das muitas  e  bellas  damas  nuas,  n'um  banho,  em  posições  indecentíssimas,  ca- 
pazes de  fazerem  morrer  de  desejos  o  mais  austero  e  frio  eremita.»  Uma  dama 
da  corte,  que  foi  vèr  esta  curiosa  galeria,  disse  ao  seu  amante : 

—  Vamo-nos  embora  d'aqui,  e  para  casa  sem  perda  de  tempo.  Não  posso 
resistir  ao  ardor  que  me  devora,  e  quero  extinguil-o  immediatamente. 

Os  maridos  eram  os  principaes  culpados  da  prostituição  de  suas  mulhe- 
res, por  isso  que  de  tudo  lançavam  mão  para  as  corromper. 

«Alguns  fazem  mais  indecencias  com  suas  mulheres,  que  os  frequenta- 
dores de  bordeis  com  as  prostitutas.» 

Não  se  envergonhavam  ctlectivamenfe  de  introduzir  em  suas  casas  taes 
estampas  e  livros  obscenos,  que  faziam  da  esposa  mais  pura  a  corlezã  mais 
impudica  e  descarada,  olíerecendo  ao  adultério  os  mais  enérgicos  incentivos. 

«Hoje,  dizia  Brantòme  nos  últimos  tempos  de  Henrique  iii,  não  ha  ne- 
cessidade d'esses  livros  e  pinturas.  Demasiado  ensinam  os  maridos  as  immo- 
ralidades,  e  lá  se  vê  para  que  servem  essas  licções  que  elles  dão  !» 

Havia  maridos  que  eram  os  próprios  a  dar  a  suas  mulheres  o  livro  do 
Aretino  com  illustrações,  em  guisa  de  livro  de  missa.  Brantòme  cita  uma  bella 
e  honrada  dama  que  o  tinha  no  seu  quarto.  Um  fidalgo  que  estava  namorado 
d'ella,  logo  que  soube  esta  circumstancia,  jurou  que  havia  de  conseguir  os  seus 
desejos,  e  «conseguiu-os,  conhecendo  que  a  dama  havia  aprendido  boas  lic- 
ções e  praticas  amorosas.» 

Um  fidalgo  da  corte  namorou-se  um  dia  de  uma  das  raras  damas  d'esse 
tempo,  que  faziam  gala  de  se  mostrar  austeras,  no  meio  d'aquella  enorme  cor- 
rupção. 

A  dama  resistia  a  todas  as  supplicas,  e  mostrava  pelo  seu  adorador  o  mais 
soberano  desdém. 

O  apaixonado  sentia  redobrar  a  intensidade  do  seu  amor,  ou  do  seu  ca- 
pricho, com  a  frieza  que  lhe  manifestavam,  e  resolveu  recorrer  a  todos  os  ex- 
tremos. 

Chegou  a  comprar  toda  a  criadagem,  e  a  introduzir-se  de  noite  no  quarto 
da  dama,  que  ao  dar  pelo  estratagema,  repelliu  energicamente  o  atrevido,  obri- 
gando-o  a  ir  para  a  rua  sem  conseguir  os  seus  intentos. 

Cada  vez  mais  acirrado  pela  resistência  que  a  fortaleza  lhe  ofíerecia,  o 
nosso  fidalgo  resolveu  recorrer  a  novos  maleriacs  de  guerra. 

O  livro  do  Aretino  tinha  fama  de  ser  um  talisman  infallivel. 

Quantos  milagres  d'esta  espécie  não  havia  conseguido  já  a  musa  obscena 
do  ousado  c  impudico  poeta  italiano!  (Jue  fastos  nos  annaes  da  corrupção  não 
tinha  a  registrar  n'essa  épocha  o  lápis  erótico  de  Júlio  Romano? 

O  fidalgo  conseguiu  que  o  livro  obsceno  fosse  collocado  por  mão  amiga 
no  quarto  da  sua  dcu.sa. 


DA    PROSTITUIÇÃO  387 

O  resultado  não  se  fez  esperar.  Siirpreliendida  novamente  pelo  seu  ado- 
rador, uma  noite  em  que  se  entregava,  toda  tremula  de  desejo,  á  leitura  exci- 
tante do  Aretino,  a  dama  achou-se  nos  braços  do  audacioso  amante,  sem  que 
d'esta  vez  o  seu  rude  pudor  lograsse  cantar  victoria. 

O  livro  d'onde  extraliimos  esta  verídica  historia  refere  centenares  d'ellas 
do  mesmo  género. 

Os  manes  do  Aretino  deviam  estremecer  de  horror,  se  podessem  apreciar 
os  funestos  resultados  da  sua  obra  impudica ! 

(Jue  mais  poderia  accrescentar-se  para  dar  a  conhecer  a  espantosa  liber- 
tinagem de  uma  épocha,  em  que  até  o  próprio  leito  conjugal  não  se  envolvia 
no  veu  do  pudor  ? 

Não  obstante  esta  immoralidade  atroz  e  deplorável,  houve  mesmo  n'a- 
quella  épocha  homens  escrupulosos,  pertencentes,  devemos  dizel-o,  ás  classes 
medias,  que  mutilavam  nos  livros  as  passagens  obscenas,  arrancavam  as  gra- 
vuras, ou  cobriam  de  tinta  as  figuras  nuas.  D'aqui  a  grande  porção  de  volumes 
incompletos  ou  mutilados,  provas  irrefragaveis  da  castidade  e  da  virtuosa  cen- 
sura, exercida  pelos  seus  antigos  leitores  ou  proprietários. 


CAPITULO  XXXIII 


SUMMARIO 


A  prostituição  applicaila  á  politica  por  (latliarina  de  Medíeis.—  Retratos  das  damas  de  honor  por  BrantOme. 
—  A  bella  Limeuil.— Depravação  das  damas  e  das  suas  criadas  de  ([uarto.—  Digressão  acerca  dos  cintos  de  casti- 
dade.— Pua  oriyem.  —  Sua  ap[iai'içâo  na  feira  de  Saint-Geimain.  —  Corrupí^ão  da  curte  favorecida  poi-  Catharina  de 
Medicis.  -  Carlos  ix  e  Maria  Toiícliet.  —  Os  inventos  da  rainha  Margot.  —  A  casa  da  Saint-Barthéjémy.  —  O  grande 
cardeal  de  Lorena  e  a  raiuha-mãe.  —  U  baar[uete  de  Chenonceanx.  —  As  bodas  do  ourives  Marcello.  —  A  linguagem 
lúbrica.—  As  poesias  do  capitão  Lasphrise. 


REINADO  de  Catharina  de  Medicis,  quer  dizer  dos  seus  Ires  li- 
llios  Francisco  ii,  Carlos  ix  e  Henrique  iii,  que  foram  sucees- 
sivamente  reis  sob  a  sua  tutelia  e  regência,  —  um  longo  e  es- 
candaloso reinado,  cheio  de  guerras  civis,  de  pertuibações  reli- 
^^]\  giosas  e  de  horriveis  morticinios,  o(Terece-nos  uma  nova  phase 
na  historia  da  prostituição.  Catharina  de  Medicis  lembrou-se  de  applicar  a  pros- 
tituição á  politica,  transformando-a  em  arma  para  vencer  os  seus  inimigos,  em 
narcótico  para  os  adormecer,  em  grilhão  dourado  para  os  algemar,  e  em  ve- 
neno para  os  destruir.  Nunca  talvez  a  immoralidade  recorresse  a  simiiliantes 
refinamentos;  nunca  a  arte  de  governar  empregara  meios  tão  vergonhosos.  O 
próprio  Machiavello  envergonhar-se-hia  de  transformar  em  systema  permanente 
o  que  não  havia  sido  até  essa  épocha  senão  um  caso  especial  da  politica. 

As  mulheres  exerciam,  é  certo,  em  determinadas  circumstancias  uma 
notável  influencia  nos  negócios  públicos;  em  todas  as  épochas  o  seu  encanto  e 
seducção  haviam  feito  numerosas  viclimas;  comtudo  eslava  reservado  a  (Catharina 
de  Medicis  exercer  pela  primeira  vez,  pelo  menos  em  França,  uma  espécie  de 
lenocínio  politico,  tendo  a  seu  lado  damas  de  honor  amestradas,  que  deviam 
ser,  quando  chegasse  a  occasião,  os  impuros  instrumentos  dos  seus  planos  po- 
líticos. 

4  corrupção  geral  da  corte  n'aquella  épocha  é  um  facto  que  não  carece 
de  demonstração.  Esta  corrupção  para  a  qual  Catharina  não  havia  pessoalmente 
concorrido  não  foi,  como  diz  Bayle  (Õeiifre.s,  t.  ii,  p.  17),  um  eITeito  da  poli- 
tica desta  rainha,  por  isso  que  seu  marido  Henrique  ii  nada  lhe  deixou  por 
fazer  n'estc  assumpto;  o  que  ella  fez  foi  aproveitar-se  d'ella  em  proveito  do 
seu  machiavellico  governo. 

«Antes  d'esle  reinado,  diz  Mezeray,  no  seu  Compendio  chronologico  da 


390  HISTORIA 

Historia  ãt  França,  eram  os  homens  que  com  o  seu  exemplo  e  com  as  suas 
seducções  attraliiam  as  mulheres  á  galanteria.  Desde,  porém,  que  os  amores 
sensuaes  começaram  a  tomar  parte  nas  intrigas  e  mysterios  do  estado,  eram 
as  mulheres  que  procuravam  os  homens.» 

Foi  esta  a  estratégia  galante  que  Catharina  de  Medicis  ensinou  muito  ha- 
bilmente ás  damas  da  corte,  que  formavam  um  bando,  chamado  n'esse  tempo 
o  esquadrão  volante  da  rainha. 

Catharina,  em  vida  de  seu  marido,  havia-se  instruído  n'csta  táctica  de 
novo  género,  quando,  não  tendo  ainda  filhos  e  receiando  ser  repudiada,  «teve 
de  ganhar  a  amizade  e  as  boas  graças  da  bella  Diana  de  Poitiers,  a  íim  de  que 
ella  a  conservasse  nas  graças  de  seu  senhor,  o  delphim  seu  e.sposo,  e  não  se 
envergonhou  de  se  transformar  em  alcoviteira  para  lograr  os  seus  desejos.» 
(Discurso  inararilhosQ  da  rida.  feitos  e  loucuras  de  Catharina  de  Médicis,  por 
H.  Estienne.) 

Faltam-nos  dados  precisos  a  respeito  do  famoso  esquadrão  volante  da  rai- 
nha, que  só  conhecemos  por  algumas  das  suas  proezas.  Todos  os  historiadores, 
porém,  são  unanimes  em  affirmarem  a  sua  existência  ou  a  sua  organisação  eró- 
tica, e  Brantòme,  muito  mais  discreto  do  que  o  seu  costume,  a  respeito  d'este 
delicado  assumpto,  diz  o  bastante  para  nos  fazer  apreciar  todos  os  serviços  que 
as  damas  de  honor  da  rainha  mãe  podiam  prestar  á  sua  politica. 

«Um  famoso  prelado  da  nossa  corte  assegura-nos,  diz  Sauval,  que  Catha- 
rina de  Medicis  tinha  um  serralho  de  damas  coquettes,  que  trazia  sempre  com- 
sigo  como  instrumentos  para  arrancar  dos  corações  dos  príncipes  e  dos  senho- 
res do  reino  os  seus  mais  secretos  pensamentos.  Estas  damas  souberam  tão  bem 
corromper  os  chefes  dos  partidos  em  I'37'J  e  sobre  tudo  Heni'ique  iv,  que  uma 
das  guerras  civis  d'essa  épocha  se  chamou  a  guerra  dos  namorados.» 

O  tal  famoso  prelado  citado  por  Sauval  é  Brantòme,  que  por  certo  havia 
historiado  as  proezas  do  esquadrão  volante  em  memorias  que  não  possuímos 
já.  As  que  chegaram  ao  nosso  conhecimento  contèem  por  certo  muitas  anecdo- 
tas  relativas  ás  damas  inscriptas  por  Catharina  n'esta  milicia  amorosa,  mas 
Brantòme  exime-se  a  declarar  o  nome  das  heroinas  por  elle  apresentadas  nas 
suas  Dames  çialantes. 

«Fallo  d'algumas,  diz  elle,  e  espero  apresentar  contos  alegres  n'este  li- 
vro, mas  modestamente,  sem  escândalo,  apresentando  tudo  envolvido  no  véu 
do  silencio  dos  nomes,  e  assim,  se  algumas  se  virem  nomeadas  n'estes  contos, 
não  lerão  de  que  envergonhar-se,  pelo  contrario.  Se  o  prazer  amoroso  não  pôde 
durar  sempre,  por  muitos  incommodos,  impedimentos  e  mudanças,  pelo  menos 
a  recordação  do  passado  trará  ainda  alguns  momentos  de  alegria.» 

Apesar  d'islo,  Brantòme  não  omittiu  nas  suas  Dames  //a/a/í7ís  a  lista  das 
damas  de  honor  que  davam  tanio  lustre  á  corte  da  rainba-mãe.  Em  seguida, 
dirige-lhes  elogios  capazes  de  envergonhar  as  que  houvessem  ainda  conservado 
um  rosto  de  pudor. 

«Toda  esta  esplendida  companhia  que  acabo  de  nomear,  diz  elle,  tinha 
uma  invejável  belleza,  magestade,  gentileza  e  graças.  Ditoso  aquelle  que  podia 
.ser  ferido  pelo  seu  amor:  mais  diloso  ainda  o  que  podia  escapar  ao  seu  dominio. 


Catliarina  de  Medicis  (/-/'íojí  refralo  (bt  epocha) 

Dianna  de  Poitier  (rctrato^  que  esteve  na  exposição  universal  de  Paris) 

(ignora-se  o  auctor) 


DA    PROSTITUIÇÃn  391 

Juro-vos  que  nenhuma  das  que  nomeei  era  feia.  Todas  ellas  eram  bellas,  agra- 
dáveis e  dislinclas,  capazes  de  ineendiarem  com  os  olhares  o  mundo  inteiro. 
Assim,  emquanti  estiveram  na  edade  juvenil  ahrazaram  os  corações  de  muitos 
dos  nossos  fidalgos  da  còrle,  que  se  approximaram  do  fogo  do  seu  olhar.» 

Brantòme  teve  o  cuidado  de  explicar  em  que  consislia  a  corlezia  o  a 
amabilidade  d'estas  damas  : 

«Na  minha  opinião,  diz  elle,  o  melhor  tempo  que  cilas  passam  é  o  de 
solteiras,  porque  podem  ser  á  sua  vontade  religiosas  de  Vénus  e  de  Diana, 
tendo  sempre  toda  a  prudência  c  habilidade  para  evitarem  as  inchações  do 
ventre.» 

Era  isto  o  que  a  rainha  especialmente  lhes  evigia,  e  sem  duvida  aquella 
prudente  e  experimentada  italiana  havia-lhes  ensinado  remédios  para  evitarem 
estes  precalços  do  ofQcio.  Qnando  tal  desgraça  succedia,  era  implacável  para 
com  as  suas  alumnas.  Foi  por  isso  que  expulsou  da  corte  Mademoiselle  de  Li- 
meuil,  a  mais  bella  das  suas  damas  de  honor,  «apesar  de  não  haver  omittido 
cousa  alguma  para  servir  a  sua  ama  com  boa  vontade  e  zelo»,  diz  Mezeray. 
Esta  pobre  rapariga,  depois  de  haver  seduzido  o  príncipe  de  Conde,  chefe  do 
partido  protestante,  «teve  a  infelicidade  de  se  achar  indisposta  nove  mezes», 
accrescenta  o  grave  Mezeray,  c  por  isso  foi  logo  demitlida  do  serviço  da  rai- 
nha mãe. 

A  respeito  d'esta  aventura,  fez-,se  uma  composição  latina,  que  começa 
assim  : 

Puella  ista  iiobilis, 

Quw  eral  amahilis. 

Com in isit  adullerium 

Et  nuper  fecil  filhem; 

Sed  diciint  matrem  reginam 

Illi  fuisiie  Lucinam, 

Et  quo  hoc  patiebatur 

Ut  principein  lucraretur. 

Mulli  dicunt  quod  pater 

Non  est  princeps,  sed  esl  alter . . . 

O  Discurso  maravilhoso  da  vida  de  Calharina  refere  (|uc  «estando  o 
príncipe  de  Conde  preso  na  corte  de  França  no  anno  de  1561,  Mademoiselle  de 
Limcuil  foi  uma  das  damas  de  honor  enviada  pela  rainha  ao  príncipe  para  o 
seduzir,  por  isso  que  a  ambição  julga  tudo  louvável,  quando  trata  de  conse- 
guir os  seus  fins.» 

Por  isso  quando  a  rainha  quiz  censurar  á  Limeuil  a  sua  desgraça,  esta 
teve  a  audácia  de  responder  «que  havia  seguido  as  suas  prescripções  e  obe- 
decido á  lettra  ás  suas  ordens.» 

.Mademoiselle  de  Rouet,  companheira  e  amiga  da  Limeuil,  desempenhou 
melhoroseupapel,  quando  a  rainha  lhe  deu  o  encargo  de  se  apoderar  do  rei  de 
Navarra,  e  arrastal-o  aos  prazeres  da  corte,  segundo  declara  Henrique  Estienne. 
Era  uma  espécie  de  pesca  á  rede,  dirigida  por  Catbarina  de  Medíeis  nos  mares 
da  politica,  como  diz  d'Aubigné,  na  Confissão  de  Sancy : 


392  HISTORIA 

«Oiiaiido  as  aguas  não  estavam  turvas,  pescava-sc  com  a  máxima  tran- 
quillidade,  economisando-se  a  coca  levantina,  ministrada  pelas  droguislas  ita- 
lianos. Assim  foram  pescados  os  mais  incommodos,  taes  como  os  marechaes 
Montmorencv  e  Case.  Depois  passou-se  aos  mais  gordos,  cahindo  António  de 
Bourbon,  rei  de  Navarra  no  anzol  da  Rouet,  e  Luiz  de  Bourbon  no  da  Limeuil, 
mas  este  ultimo  logrou  salvar-se  a  tempo.  Alguns  peixes  perdem-se  na  esteira 
dos  delphins,  taes  como  são  os  barbos,  os  sargos  e  outros  peixes  miúdos.» 

E'  fácil  de  calcular  que  no  meio  d'esta  companhia  de  damas  de  honor, 
que  viviam  juntas  na  corte  em  numero  de  duzentas  ou  trezentas,  a  deprava- 
ção dos  costumes  não  tardou  em  produzir  os  mais  escandalosos  excessos,  que 
não  eram  um  segredo  para  ninguém,  e  Brantôme  lá  os  aponta  nas  suas  Dames 
galantes. 

Sauval  procura  referir  o  mais  decentemente  possível  as  torpezas  que  o 
histuriographo  Brantôme  se  compraz  em  descrever  minuciosamente  com  o  seu 
cynismo  habitual : 

«Assim  comu  os  homens  havia  achado  meio  de  passar  sem  mulheres, 
diz  elle,  assim  também  as  mulheres  tractaram  de  passar  sem  homens.  l'ma 
grande  |)rinceza  amava  apaixonadamente  uma  das  suas  damas,  que  era  herma- 
phrodita.  Paris  e  a  corte  estavam  cheias  de  mulheres  lesbias,  tanto  mais  que- 
ridas de  seus  maridos,  quanto  era  certo  que  elles  não  tinham  motivos  de  ciú- 
me. Umas  tinham  raparigas  adestradas,  outras  acirravam  os  desejos  com  os 
seus  adoradores  sem  nada  lhes  concederem,  para  d'ahi  a  pouco  se  embrutece- 
rem com  as  suas  eompinheiras.  Esta  belia  vida  era  tanto  do  gosto  de  algumas 
que  não  quizeram  cazar,  nem  permittiram  que  as  suas  amigas  cazassem.» 
(Amours  des  róis  ih  France,  edic.  de  1739,  p.   I  1-5.) 

Brantôme  diz  que  as  doninhas  eram  entre  os  antigos  o  symbolo  dos 
amores  femininos,  amores  que  se  faziam  por  dois  processos — fricatrix,  egemi- 
nos  committere  cunnos.  Esta  segunda  maneira  não  causa  damno,  segundo  al- 
guns, quando  para  isso  se  empregam  instrumentos  apropriados  chamados  go- 
(lemicbijs,  palavra  que  se  forma  de  duas  latinas:  gaude  mihi. 

Depois  de  alardear  a  sua  erudição  clássica  a  respeito  de  um  assuni|)to 
que  não  era  então  m^nos  commum  do  que  na  antiguidade  grega  e  romma, 
Brantôme  pergunta  «se  duas  dam;is  namoradas  uma  da  outra,  como  é  tão  fre- 
quente hoje  em  dia,  deitadas  na  mesma  cama  e  fazendo  o  que  os  italianos 
chamam  donna  com,  donna,  á  imitação  da  illustre  Saplio,  peidem  commetler 
adultério  e  enfeitar  a  fronte  de  seus  maridos.» 

O  abbade  opina  que  não : 

«O  caso  c  intrincado,  diz  elle,  mxs  eu  sustento  que  onde  não  ha  homem 
não  pikle  haver  adultério.» 

«Desculpa  dão  alguns  a  estas  mulheres,  continua  elle,  que  sendo  s(dtei- 
ras  ou  viuvas,  procuram  similhantes  prazeres  frívolos  e  vãos,  preferindo  dar-se 
a  elles  para  extinguirem  as  suas  paixões,  a  entregarem-se  aos  homens,  e 
e\porcm-se  á  prenhez  c  á  deshonra,  se  não  destroem  o  fructo  como  teem 
feito  c  fazem  muitas.  Atfirma-se  que  estas  lesbias  não  ollendeni  tanto  a  Deus 
nem  são  tão  pécoras,  como  os  homens.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  "  393 

Brantômc,  n'este  espiriliioso  capitulo,  (|iio  toria  podido  desenvolver 
milito  mais,  não  cita  o  nome  de  nenluiina  das  damas  que  se  davam  a  estes 
infames  exercícios,  mas  dá  a  entender  que  as  damas  de  honor  da  rainha  n<ão 
se  corrompiam  mutuamente.  Ilehitivamcntc  ao  senhor  de  Clermont-Tallard,  diz 
que  este  fidalgo,  que  ao  tempo  fazia  os  seus  estudos  em  companhia  do  duque 
de  Anjou,  ao  depois  Henrique  iii,  viu  um  dia  pela  fechadura  da  porta  duas 
damas  de  elevada  jerarchia,  entregues  a  esse  obsceno  passsatempo. 

E  o  abbade,  depois  de  ter  dado  os  pormenores  d'esta  scena  escandalosa, 
accrescenta  : 

«Conheci  muitas  senhoras  inclinadas  a  estes  amores,  entre  as  quaes  ouvi 
lallar  de  uma,  que  era  famosa  n'esta  especialidade,  e  que  amava  varias  da- 
mas, as  honrava  e  servia  mais  do  que  os  homens,  c  lhes  fazia  amor,  evacta- 
mente  como  um  homem  á  sua  amada.  Se  as  lomava  por  sua  conta,  dava-lhes 
tudo  quanto  ellas  exigiam.  Seu  marido  eslava  muilo  satisfeito,  assim  como 
outros  maridos  que  folgavam  sempre,  que  suas  mulheres  se  davam  a  estes 
exercícios  e  não  aos  dos  homens,  julgando  que  d'este  modo  não  eram  tão  doidas 
nem  Ião  pécoras.  Eu  creio  que  se  enganam  muito  estes  senhores,  porque  esse 
pequeno  exercido  das  damas  é  apenas  uma  espécie  de  tirocínio,  que  as  prepara 
para  o  grande  exercício  dos  homens.» 

E'  para  extranhar  que  no  meio  (raquelles  impudicos  extravios,  que  ex- 
cediam todos  os  limites  da  moral  e  da  religião,  os  maridos  se  preoccupassem 
ainda  com  a  honra  conjugal.  E'  todavia  certo  que  aquelles  maridos,  que  haviam 
passado  uma  juventude  dissoluta,  conspirando  a  cada  passo  contra  a  virtude 
das  mulheres,  fossem  em  geral  intransigentes,  quando  se  Iractava  do  seu  lar 
domestico,  e  timbrassem  cm  defender  de  portas  a  dentro  o  que  tantas  vezes 
haviam  atacado  nos  lares  dos  outros.  I)'aqui  esses  terríveis  ciúmes  e  essas  fe- 
rozes represálias  que  apenas  serviam  para  agu(,'ar  a  audácia  e  a  astúcia  das 
mulheres. 

Brantòme,  no  primeiro  discurso  das  suas  Daines  ijalante-s,  intitulado  Do 
amor  de  muitas  damas  casadas,  que  não  são  Ião  dignas  de  censura  como  pa- 
rece, pretendeu  escrever  os  annaes  dos  maridos  burlados,  dos  coitadinhos  ce- 
lebres do  século  XVI,  e  temos  de  reconhecer  que,  apesar  da  depravação 
universal,  o  pundunor  do  matrimonio  era  mais  sagrado  do  (jue  em  épochas 
menos  dissolutas. 

Os  maridos  eram  ciosos  da  honra  conjugal  na  proporção  dos  motivos  que 
tinham  para  o  ser,  e  não  tinham  compaixão  para  com  as  suas  pérfidas  esposas. 
E'  isto  o  que  explica  a  introducção  dos  cintos  de  castidade  em  França  no  rei- 
nado de  Henrique  iii,  de  certo  por  conselho  de  alguns  italianos  da  corte,  que 
sabiam  d'este  meio  empregado  no  seu  paiz  para  ter  debaivo  de  chave,  como  se 
fosse  um  thesouro,  a  virtude  das  mulheres. 

Nada  mais  escandaloso  do  que  o  emprego  d'esta  medida  de  segurança, 
adoptada  em  Veneza  liavia  muitos  séculos,  e  que  alli  fora  importada  do  Oriente. 
E'  provável  que  as  cruzadas  importassem  também  em  França  este  uso  odioso, 
que  não  podia  conciliar-se  com  o  respeito  que  nossos  maiores  tinham  pelas 
damas.  Os  cintos  de  castidade  datavam  da  mais  remota  antiguidade  e  pcrpetua- 

HlSTOBIA  DA  PhOSTITUICÃO.  TOMO  II— FoLHA  50. 


394  ■  itisToiíiA 

ram-se  naturalmente  ontrc  os  pov.is  cuja  religião  preceituava  a  escravidão  ria 
mulher. 

Mas  unia  nação  tcão  nobre  como  a  franceza,  diz  o  conde  de  Laborde,  re- 
pelliu  com  desprezo  este  vergonhoso  instrumento  da  tyrannia  e  da  escravidão. 
Pio  emtanto,  parece  que  o  cinto  de  castidade  se  conservou  por  excepção  nos 
costumes  da  cavallaria  mais  retinada.  Se  o  marido  o  não  punha  a  sua  mulher, 
a  mãe  a  sua  filha,  ou  o  irmão  a  sua  irmã,  a  amante  adoptava-o  espontanea- 
mente como  um  symbolo  de  tidelidade,  e  olferccia  a  chave  d'elle  ao  seu  namo- 
rado. Era  uma  d'ai|uellas  provas  mais  delicadas  dadas  entre  dois  amantes  para 
afTirmarem  a  constância  c  a  (irmeza  do  seu  amor. 

D'csle  modo  o  cinto  de  castidade,  em  vez  de  um  ultraje  ou  de  uma  ver- 
gonlia,  veio  a  ser  uma  delicada  prova  de  amor  e  abnegação.  Tal  é,  a  nosso 
vèr,  a  explicação  mais  natural  que  pôde  dar-se  de  muitas  passagens  das  poe- 
sias e  cartas  de  Guilherme  de  Machaut,  relativas  ao  thesouro  cuja  chave  lhe 
havia  remettido  a  sua  amada  Ignez  de  Navarra. 

O  conde  de  Lab.irdc,  citando  essas  curiosas  passagens,  não  é  de  opinião 
que  esse  thesouro  signifique  um  cinto  de  castidade.  Não  obstante,  vamos  vèr 
de  que  termos  se  serve  aquelle  poeta  do  século  xv,  para  dizer  que  linha  ern 
seu  poder  a  chave  do  thesouro  de  Ignez : 

«Então  a  bclla  abraçou-me,  e  n'essa  occasião  coUocou-me  ao  pescoço  uma 
chavesinha  de  ouro,  feita  por  mão  de  mestre,  e  disse :  Amigo,  trarás  sempre 
comtigo  esta  chave,  e  guardal-a-has  bem,  porque  é  a  chave  do  meu  thesouro. 
Faço-te  senhor  d'e!lc,  e  sel-o-bas  sempre,  aconteça  o  que  acontecer.  Esse  the- 
souro amo-o  mais  do  que  as  meninas  dos  meus  olhos,  porque  é  a  minha  feli- 
cidade, a  miniia  riqueza,  tudo  aquillo  de  que  eu  posso  dispor.» 

Ignez  de  Navarra,  escrevendo  a  (íuilhernie  de  Machaut,  faz-lhe  recoin- 
mendações,  que  não  tèem  sentido,  se  o  thesouro  confiado  á  sua  guarda  não  é 
o  que  nós  suppoinos. 

«Não  percas,  meu  amigo,  a  chave  do  cofre,  porque  se  a  perdesses,  nunca 
eu  teria  alegria.  Esse  cofre,  por  Deus  o  juro,  nunca  será  aberto  com  outra 
chave,  senão  com  a  que  tens  em  teu  poder,  e  ahril-o-lias  quando  quizeres, 
pois  não  tenho  no  mundo  outro  desejo  senão  esse.» 

Esta  passagem  e  outras  similbantes,  igualmente  explicitas,  não  impedem 
o  conde  de  Laborde  de  negar  a  aulbenticidadc  dos  cintos  de  castidade,  que  se 
encontram  em  certos  gabinetes  de  curiosos. 

«N'estas  espécies  de  particularidades,  diz  por  uma  distracção  demasiado 
evidente  para  que  a  lancemos  á  conta  de  falta  de  erudicção,  só  se  é  forte,  quando 
se  lem  a  penna  de  Branlòme.» 

«No  tempo  de  Henrique  iii,  refere  liraiitòme,  houve  certo  negociante  de 
quinquilherias  que  apresentou  uma  dúzia  de  cintos  ou  cadeados  de  ferro,  des- 
tinailos  defender  a  castidade  das  mulheres.  Eram  muito  bem  feitos,  e  prepa- 
rados com  tal  artificio,  que  uma  vez  cingida  com  um  d'elles,  a  mulher  não  podia 
cntregar-se  ao  doce  prazer  da  copula,  jjorque  não  linha  senão  um  pequeno  ori- 
fício por  onde  sabiam  as  urinas.» 

A    descripção  d'esles  cintos  é  Ião  exacta,  que  bem  se  vè  (]ue  o  auclor 


DA    PROSTITUIÇÃO  39o 

conhecia  o  original,  e  além  d'isso  Brantòiiie  não  se  mostra  admirailo,  ilanclo  a 
entender  que  isto  não  era  novidade  para  eile. 

Accrpscenía  ainda  que  ninil;  s  fidalgos  da  côrfc  ameaçaram  de  morte  o  re- 
ferido quinquilheiro,  se  continuasse  a  fabricar  e  a  pòr  á  venda  aquelles  cadea- 
dos, e  obiigaram-no  a  destruir  lodos  os  que  ainda  linha.  Tanto  elles  conside- 
ravam prejudiciaes  aos  seus  amores  aquelles  artiíicios! 

('ontava-se  por  essa  épocha  uma  aneedota  curiosa.  Uma  mullier  prosti- 
tuiu-se  a  um  serralheiro  para  obter  uma  segunda  chave  para  o  cinto,  que  seu 
marido  julgava  que  mais  ninguém  podesse  abrir,  mas  esla  aneedota  é  prova- 
velmente um  d'aquelles  conlos  ji>eosos,  que  a  apparii;ão  dos  cintos  de  castidade 
fez  correr  por  toda  a  corte. 

Ainda  assim,  (>mb!>ra  o  quinquilheiro  da  feira  de  Saint-Germain  fizesse 
o  sacriflcio  de  alguns  d Csles  cintos,  o  modello  não  se  perdeu,  e  continuaram 
a  fabricar-se  secretamente  para  uso  de  certos  maridos  ciumentos,  que  não  se 
envergonhavam  de  proceder  para  com  suas  mulheres  como  os  mercadores  de 
escravos  na  Turquia. 

O  ridículo,  porém,  não  tardou  a  declarar  guerra  a  esta  invenção  desho- 
ncsta,  e  só  um  pequeno  numero  de  ciumentos  ousaram  recorrer  aos  cintos  de 
castidade,  que  a  lei  franceza  considerava  como  uma  sevicia  ou  mau  tractamento 
do  marido  a  sua  mulher. 

Apesar  de  tudo,  encontram-.se  ainda  exemplos  d'esta  extravagante  e  in- 
decorosa precaução  até  melados  do  século  xviii,  por  isso  que  o  advogado  Frey- 
dier  defendeu  no  parlamento  uma  mullier  casada,  que  accusava  seu  marido  de 
a  haver  siibmetlido  a  este  imligno  tratamento.  ( Plnidoijer  contre  l.'inlroiluclit)n 
lies  cadena-i,  od  cplntures  de  chasleté.  Montpeilier  I7o0,  in-8.°,  com  uma  fi- 
gura representando  o  cinto.) 

Era  preciso  realmente  que  os  costumes  italianos  estivessem  muito  arrei- 
gados em  França  para  que  se  ousasse  pòr  publicamente  á  venda  similliantes 
objectos,  e  para  que  houvesse  também  quem  os  comprasse  e  os  applicasse  ao 
uso  para  que  tinham  sido  inventados.  N'um  dos  capítulos  seguintes,  veremos 
de  que  modo  a  influencia  italiana  tinha  prevcrtido  os  costumes  dos  homens  na 
eòrte  dos  Valois,  mas,  por  honra  da  França,  diremos  também  que  taes  torpezas 
não  sahiram  por  assim  dizer  dos  limites  da  corte,  e  foram  geralmente  repelli- 
das  e  condemnadas  pela  galanteria  írancezn. 

Só  a  corte  era  n'aquella  épocha  o  theatro  e  o  receptáculo  de  todos  os  ví- 
cios. (>alharina  de  Slcdicis  julgara  que  esta  corrupção  desenfreada  servia  os 
interesses  da  sua  poliliea,  eITeminando  os  caracteres  mais  fortes  e  corrompendo 
os  mais  nobres  corações.  No  emianio,  a  rainha  deu  assim  aos  inimigos  do  go- 
verno e  do  catholicismo  uma  força  immensa  e  uma  arma  terrível,  porque  a 
reforma  desfraldando  o  estandarte  da  revolução  contra  a  monarchia  e  o  papado, 
poude  dizer  ao  povo  com  razão  que  o  fim  traquelia  guerra  santa  era  destruii' 
Sodoma  e  Gomorrha. 

O  povo  aprendeu  deste  modo  a  desprezar  e  a  odiar  os  grandes,  prestou 
fé  a  todos  os  rumores  verdadeiros  ou  Talsos,  que  sabiam  da  corte,  deixou  de 
ser   indiíierente  á   vida  privada  dos  piincipes  e  cortezãos,  julgou  ter  o  direito 


396  HISTORIA 

de  a  accusar  perante  os  tribunaes  e  pronunciou  a  sentença  de  Henrique  iii, 
quando  a  Liga  o  fez  tomar  as  armas,  sob  o  pretexto  de  defender  os  costumes  e 
a  religião  dos  seus  maiores. 

Pôde,  |)oitaiiio,  dizer-se  que  se  Cattiarina  de  Medicis  recorreu  á  prosti- 
tuirão para  governar,  a  pi'osti(uiç,'ão,  deshonrando  o  rei  e  a  còrle,  produziu  a 
gran<]e  sublevarão  popular  da  Liga. 

Não  devemos  acreditar,  ainda  assim,  Iodas  as  abominações  que  os  escri- 
ptores  reformados  imputaram  à  sua  implacável  inimiga  Catbarina  de  Medicis. 
Assim,  temos  como  inverosímil  a  ideia  de  que  esta  rainba  tivesse  corrompido  com 
intenção  politica  os  costumes  de  seus  c|ualro  filbos  e  Ires  fillias ;  ainda  que 
ambiciosa,  Catbarina  era  niãc  terna  e  cbcia  de  sollicitude  por  seus  filbos.  Na 
sua  correspondência,  vé-se  que  a  sua  ideia  dominante  ei'a  a  consolidação  do 
poder  real  tia  dynastia  dos  Valuis.  Se  reinou  sempre  cm  nome  de  seus  tilbos, 
foi  por  se  sentir  mais  capaz  do  que  illcs  de  dirigir  os  negócios  e  de  sustentar 
o  tbrono,  onde  todos  elles  successivamenle  se  sentaram.  Sentia  um  pesar  pro- 
fundo por  vèr  que  neiíbum  dos  seus  quatro  filhos,  que  pareciam  prometter 
uma  numerosa  descendência,  p.jdéra  continuar  a  posteridade  de  Henrique  ii. 
É  pouco  provável,  portanto,  que  a  própria  rainba  pretendesse  esgotar  de  caso 
pensado  as  fontes  bereditarias  da  sua  familia. 

Disse-se  tumbem  n'algnns  librllus  infames  que  a  rainba  não  esperava 
pela  ad(descencia  de  seus  íilbos  para  os  impellir  á  mais  repugnante  prostitui- 
ção- Segundo  estes  pampbletarios  anonymos,  a  rainba  alterara  profundamente 
com  espantosos  excessos  a  saúde  dos  desgraçados  reis  Francisco  ii,  Carlos  ix 
e  Henrique  iii,  os  quaes,  em  consequência  de  prematuros  abusos  das  suas  for- 
ças pbvsicas  não  foram  capazes  de  ler  um   herdeiro. 

Carlos  ixencarregou-sc  de  desmentir  esla  caiumnia,  porque  teve  uma  fi- 
lha legitima,  morta  em  tenra  edade,  e  dois  filhos  naturaes.  O  que  deve,  porém, 
ter-se  por  averiguado  é  que  estes  três  reis  não  haveriam  deixado  extinguir  a 
linha  dos  Valois,  se  a  libcrlinagem  os  não  houvesse  privado  da  faculdade  de 
se  reproduzirem. 

Quanto  á  aflirmativa  de  que  a  rainba  Catbarina  tivesse  relações  inces- 
tuosas com  seu  filho  Henrique,  a  quem  cflectivamente  amava  mais  do  que  aos 
outros,  é  essa  uma  das  infâmias  (|uc  a  historia  não  deve  ir  buscar  ao  lodo  das 
guerras  civis,  em  que  cada  partido  jírocura  desbonrar  o  outro  nas  pessoas  dos 
seus  chefes.  Catbarina  foi  sem  duvida  demasiado  indulgente  a  respeito.da  mo- 
ralidade de  seus  filbos,  e  esse  foi  a  nosso  ver  o  seu  erro  mais  imperdoável. 

Francisco  ii,  que  morreu  Ião  joven,  e  que  era  de  constituição  extrema- 
mcnle  dcbil  «não  era  tão  inclinado  ao  amor  como  os  seus  predecessores,  diz 
Brantòmc,  no  que  commefleu  um  grande  erro,  porque  teve  por  esposa  a  mais 
bclla  mulher  do  mundo,  e  a  mais  amável  de  todas  (Maria  Sluart.")  Apesar  d'isso 
accrescenta  o  cbronista,  vi-o  peccar  muitas  vezes.» 

Carlos  IX,  que  lhe  succedeu,  pouco  se  importava  com  o  bello  sexo,  na 
sua  juventude,  preferindo  a  caça  e  os  exercícios  gymnasticos.  Apezar  d'isso, 
respondeu  a  uma  grande  dama  que  meltia  a  ridículo  a  sua  frieza: 

—  Julgaes  então  que  me  apraz  mais  o  exercicio  da  caça  do  que  o  vosso. . . 


DA    PROSTITUIÇÃO  397 

Por  Deus,  que  se  algum  dia  me  resolvo,  atiro-me  a  Iodas  as  damas  da  corte 
e  haveis  de  caliir  commigo  umas  atraz  das  outras!... 

Branlòme,  referindo  esta  tirada  do  rei,  accrescenta  apenas  : 

«O  que  el-rei  não  fez,  apezar  ifisso,  com  todas,  e  só  com  algumas,  mais 
por  vaidade  do  que  por  laseivia,  e  ainda  assim  mui  sobriamente,  e  escolheu 
para  concubina  uma  donzelía  de  boa  casa,  á  qual  não  nomearei.  Essa  dama 
era  muito  bclla,  prudente  e  honesta,  e  recebeu  d'el-rei  todas  as  honras  e  res- 
peitos possíveis. » 

Esta  concubina  foi  Maria  Touchet,  filha  de  um  perfumista  ou  notário  d'Or- 
leans,  e  el-rci  amou-a  sempre,  mas  secretamente,  porque  a  rainha  mãe,  muito 
complacente  para  com  amores  passageiros,  via  com  desagrado  seu  filho  seria- 
mente ligado  a  uma  mulher  que  lhe  dava  bastardos.  Catharina  de  Medicis  tão 
contraria  se  mostrou  a  este  concubinato,  que  Carlos  ix  ao  morrer  não  teve  co- 
ragem para  lhe  recommendar  Maria  Touchet. 

E  foram  estas  relayões  amorosas  a  causa  da  morte  do  rei,  se  havemos 
de  dar  credito  á  chronica  escandalosa  da  corte,  que  popularisou  este  epitaphio 
d'el-rci  : 

Four  aimer  trop  Diane  et  Cytherée  aussi, 
L'une  et  1'autre  m'onl  mis  en  ce  tombeau  ícy. 

Brantòme  mostra  algumas  duvidas  a  respeito  dos  boatos  que  correram 
então. 

«Alguns  disseram  que  durante  a  sua  doença  fugira  para  junto  da  rainha 
sua  esposa,  e  que  tanto  se  excedera  com  ella,  que  abreviara  seus  dias,  o  que 
deu  occasião  a  dizer-se  que  Vénus  o  fizera  morrer  com  Diana.» 

Apresentamos  em  itálico  as  palavras  que  o  primeiro  editor  de  Brantòme 
houve  por  bem  introduzir  no  texto  original,  em  substituição  das  iniciaes  que 
alli  havia. 

«Brantòme,  diz  Sauval,  que  tinha  á  vista  um  manuscripto  d'aquelle  des- 
bocado historiador,  refere  o  boato  profusamente  espalhado  por  esse  tempo,  de 
que  el-rei  durante  a  sua  enfermidade  fugira  do  leito  e  se  fora  metter  no  da 
rainha  Margarida,  ainda  que  confessa  não  se  fallar  na  corte  n'estes  amores; 
mas,  no  emtanto,  a  voz  mais  geral  era  que  este  caso  se  dera  com  L.  R.  M. 
(a  rainha  Margarida),  e  d'cste  modo  devemos  restituir  a  passagem  de  Bran- 
tòme, porque  em  summa  el-rei  e  sua  irmã  amavam-se  mais  do  que  fraternal- 
mente, o  que  elles  nem  mesmo  dissimulavam.» 

O  incesto  de  Margarida  de  Valois  com  seu  irmão  Carlos  ix  é  um  facto 
averiguado,  posto  que  Brantòme  não  alluda  a  elle  senão  n'esta  passagem,  em 
que  o  nome  de  Margarida  é  occulto  por  iniciaes  que  podiam  ser  interpretadas 
de  diversos  modos.  Não  devemos  esquecer,  porém,  que  o  jovialissimo  abbade 
era  o  favorito  e  o  secretario  de  Margarida,  e  d'aqui  as  attenções  e  delicadezas 
que  devia  ter  para  com  esta  princeza. 

O  auctor  do  Divorcio  satyrico,  escripto  sob  a  inspiração  de  um  rei  enco- 
lerisado,   não  tinha  de  guardar  as   mesmas  conveniências;  no  emtanto  evita 


398  HISTORIA 

fazer  recaliir  nos  reis  de  França  a  vergonha  qae  lança  sobre  a  irmã  dos  monar- 
chas,  e  deixa  na  obscuridade  esles  incestos,  (lue  ainda  assim  ncão  pôde  negar: 
«Depois  d'isto,  diz  elie,  accresccniou  ás  suas  conquistas  immundas  o  amor 
de  seus  jovens  irmãos,  um  dos  quacs,  Francisco  (duque  d'Alençon)  continuou 
toda  a  sua  vida  estas  relações  incestuosas  ;  c  Henrique  (Henrique  iii)  tanto  se 
aborreceu  d'ella,  que  nunca  mais  a  poude  amar,  vendo  que  os  annos,  em  vez 
de  apagar-llie  os  desejos,  mais  llic  augmentavam  os  ardores.» 

Os  amores  de f.arlos  ix  com  sua  irmã,  a  quem  chamava  Margot,  teriam 
causado  maior  escândalo  n'uma  corte  menos  corrompida.  IN'aquella  époclia  este 
facto  deplorável  apenas  deu  assumpto  a  alguns  versos  e  canções. 

E'  de  presumir  que  o  incesto  não  fosse  para  estes  irmãos  mais  do  que 
uma  distracção  passageira,  e  que  cm  breve  voltaram  ás  suas  paixões  favoritas: 
Carlos  á  caça  e  Margot  aos  galanteios. 

Carlos  IX  conhecia  demasiado  Margot,  para  não  fazer  d'ella  a  mesma 
ideia  que  faz  o  auclor  do  Divorcio  salijrim : 

«Tudo  serve  àquella  sensualidade  insaciável,  e  não  a  contém  nem  a 
edade,  nem  a  grandeza,  nem  o  nascimento,  quando  tracta  de  .satisfazer  os  seus 
appetitcs.  Desde  a  ed  i  i^  i-  onzi;  annos  até  agora,  nunca  s'^  recusou  a  nin- 
guém.» 

Assim  se  explica  o  sentido  d'estas  palavras  d'el-rei,  que  alguém  repetiu  a 
propósito  do  casamento  de  Henrique  de  Navarra  com  esta  princeza  : 

«Não  só  dou  a  meu  primo,  el-rei  de  Navarra,  minha  irmã  Margarida, 
mas  a  todos  os  liuguenotes  da  França.» 

Este  casamento  occultava  uma  traição  horrível.  Os  chefes;  protestantes, 
que  tinham  vindo  a  Paris  para  assistirem  a  elle  e  assignarem  a  paz,  foram  quasi 
todos  envolvidos  na  mortandade  da  Saint-Barthélémij.  No  dia  que  succedeu 
áqueila  noite  sangrenta,  Carlos  ix  dizia  rindo  aos  seus  dignatarios: 

—  Tfih !  que  c'est  um  ijenlil  c.  .  .  qm  celui  de  ma  grosse  Maryot! 
Uma  cousa  verdadeiramente  singular.  A  rainha  mãe,  que  havia  fomen- 
tado por  politica  esta  escandalosa  licença,  parece  que  não  se  contaminou  no 
lodo  da  prostituição  em  que  toda  a  còrle  chafurdava.  Agripa  d'Aubigné  e  ou- 
tros escriptores  buguenoles  dizem,  segundo  observa  Sauval,  que  «a  rainha 
amava  o  mais  illustre  prelado  do  seu  tempo  e  outros  senhores  da  corte.»  Não 
podemos,  porém,  admiltir  esta  supposição  como  um  facto  averiguado,  porque 
não  encontramos  cm  lírantòme  uma  s()  palavra  que  alhida  aos  galanteios  da 
rainha  mãe.  Henrique  Esticnnc  diz  apenas  no  Discurso  marnnilhoso  que  Ca- 
tharina,  desde  a  mais  tenra  edade,  havia  dado  signaes  evidentes  de  um  génio 
ambicioso  e  propenso  a  satisfazer  as  suas  voluplés.  Parece-nos,  porém,  que 
esta  palavra  devo  corrigir-se  no  texto  por  nolontés,  vontades,  e  que  revela  tão 
somente  um  erro  de  coinposição. 

Quanto  ao  cardeal  de  Lorena,  que  no  dizer  de  Esticnnc  tinha  síMupre  na 
bocca  palavi'as  torpíssimas,  e  que,  segundo  lírantòme,  era  «o  mais  enamorado 
do  reino,»  foi  cúmplice  dos  actos  [loliticos  da  rainha  mãe.  Se  teve,  porém,  a 
boa  fortuna  de  a  tornar  infiel  á  memoria  de  seu  real  esposo,  guardou  sem|»re 
mui  discretamente  este  segredo  de  estado. 


DA    PROSTITUIÇÃO 


399 


Brantòme  refere  que  este  opulento  prelado,  lendo  ido  á  còrie  do  Piemonte, 
abraçara  duas  ou  três  vezes  á- força  a  duqueza  de  Saboya  (a  infanta  D.  Beatriz 
de  Portugal),  que  havia  recusado  eoneeder-ihe  o  beijo  da  etiqueta. 

— Como  I  dissera-lhe  o  cardeal,  é  para  mim  que  vossa  alteza  guarda  es- 
ses melindres!  Eu  beijo  a  rainhi  minli.i  senhora,  que  é  a  mais  excelsa  rainha 
do  mundo,  e  não  hei  de  beijar  vossa  alteza,  que  não  passa  de  unui  simples  du- 
queza !  Deveis  saber,  senhora,  que  tenho  dormido  com  damas  Ião  bellas  e  tão 
illustres  ou  mais  que  vossa  alteza!... 

E  Brantòme  accresccnta  discretamente  : 

—  Talvez  o  cardeal  dissesse  a  verdade. 

E'  licito  suppòr  que  o  prelado,  que  esteve  a  pontn  de  descobrir  o  seu  se- 
gredo, se  gloriasse  dos  favores  que  a  rainha  mãe  lhe  havia  concedido. 

Seja  como  for,  o  que  é  certo  c  (|ue  a  rainha  mãe  não  era  muito  severa 
em  questões  de  moralidade  ou  de  pudor,  o  que  podemos  avaliar  pelo  banquete 
que  deu  a  el-rei  em  lo77,  no  jardim  do  castello  de  Chenonccaux : 

«As  mais  bellas  e  honestas  damas  da  corte,  diz  o  diário  de  L'Estoile, 
semi-núas  c  com  o  cabello  Ihiclnante,  como  desposadas,  foram  empregadas  no 
serviço.» 

O  chronista  não  assistiu  infelizmente,  e  não  poude  por  isso  dizer-nos  (piaes  . 
foram  as  consequências  do  banquete.  As  festas  d'este  género,  poiém,  acabavam 
ordinariamente  com  excessos  preparados  e  favorecidos  pelas  repelidas  libações. 

l\o  casamento   do   ourives  Cláudio  Mareei  com  a  (ilha  do  senhor  de  Vi- 

'courl,  as  bodas  foram  celebradas  no  palácio  de  Guise,  sendo  convidada  toda  a 

corte    Depois  da  ceia,  el-rei  Henrique  lu  e  os  seus  cortezàos,  as  princezas  e  as 

damas  da  còrle  mascararam-se  para  ireni  levar  o  malrimo)tio  aos  dois  esposos,  cc- 

remonia  indecentíssima,  que  havia  sobrevivido  ao  culto  de  Priapo  e  de  Vénus. 

«As  mais  prudentes  retiraram-se,  e  fizeram  bem,  diz  Estoile,  pois  a  con- 
fusão produziu  taes  excessos  e  infâmias,  que  se  as  tapeçarias  e  as  paredes  po- 
dessem  fallar,  teriam  dito  bonitas  cousas.  {.Journal  <l'[Ienri  iii,  10  de  dezem- 
bro de  lo78.) 

A  mascara  no  reinado  dos  Valois  não  era  menos  propicia  aos  amores  do 
que  no  tempo  de  Carlos  vi,  pois  que,  segundo  a  expressão  de  Brantòme,  a  mas- 
cara tudo  esconde.  No  emtanlo,  as  damas  da  corte  de  Carlos  ix  e  de  Henrique 
III  despresavam  ordinariamente  estas  precauções  e  mysterios. 

«Quando  queriam  procurar  amantes,  diz  Brantòme,  sabiam  escolhel-os 
bem  e  fazer-se  amar  e  servir  d'elles.  E  quando  conheciam  a  sua  lealdade  e 
perseverança  entregavam-se-lhes  sem  mascara  nem  disfarces,  á  luz  do  dia, 
deixando-se  francamente  abraçar  e  tocar,  deleitando-os  com  os  seus  discursos 
levianos,  razões  lúbricas  e  palavras  lascivas.» 

Esta  licença  da  linguagem  era  então  considerada  como  um  elemento  in- 
dispensável dos  prazeres  sensuaes : 

«A  palavra,  em  questões  de  amor,  diz  Brantòme,  que  consagra  a  este  as- 
sumpto um  capitulo  das  suas  Dames  galanies,  tem  grande  etficacia,  e  aonde 
falta  é  incompleto  o  prazer.» 

As  poesias  obscenas  que  se  liam  na  corte,  sem  (jiie  ninguém  se  escanda- 


400  HISTORIA 

lisasse,  deixam-nos  julgar  o  que  seria  a  linguagem  nas  entrevistas  dos  aman- 
tes. Assim,  Brantòme  apresenta  como  principio,,  que  «a  sós  com  o  amante  toda 
a  dama  que  se  preza  de  saber  amar,  quer  ser  livre  nas  suas  palavras  e  dizer 
o  que  lhe  apraz,  afim  de  melhor  excitar  Vénus.»  Não  é,  pois,  de  extranhar  que 
as  grandes  damas  fossem  em  particular  «cem  vezes  mais  impudicas  e  lascivas 
na  linguagem  e  nas  maneiras  que  as  mulheres  vulgares.» 

O  provérbio  tão  vulgarisado  n'aquella  épocha — pulain  comine  une  prin- 
cesse  —  foi  sem  duvida  motivado  por  essa  espantosa  libertinagem  de  palavras 
que  fazia  a  admiração  de  Brantòme,  e  que  accrescentava  diariamente  tantas  pa- 
lavras, tantas  phrases  e  tantas  imagens  á  linguagem  erótica. 

«N'outro  tempo,  diz  elle,  a  nossa  lingua  não  era  tão  bella  nem  tão  rica 
como  hoje  é.  Ha  muilo,  porém,  que  a  italiana,  a  hespanhola  e  a  grega  o  são, 
c  nunca  vi  mulher  d'estas  nações,  que  por  menos  pratica  que  tenha  tido  do 
amor,  não  saiba  exprimir-se  admiravelmente.» 

De  tudo  quanto  deixamos  dito,  conclue-se  ([ue  nenhuma  espécie  de  pros- 
tituição, nem  sequer  a  da  linguagem,  faltava  áquella  corte  corrompida,  que  ri- 
valisava  nos  costumes  e  na  linguagem  com  os  mais  sórdidos  alcouces  e  bordeis. 

Vejam-se  a  este  respeito  as  Pretnières  reuvres  jioéliques  do  capitão  La- 
phrise,  Paris,  J.  rresselin,  (1599). 


CAPITULO   XXXIV 


SUMMARIO 

O  edict'1  de  1500  contra  a  prostituição.— Abolifão  dos  bordeis.— Rescisão  do  inquilinato.— Encerramento  das 
casas  de  prostituição  em  Paris.— Processo  celebre.— Urig-em  das  cafas  de  tolerância.— Decreto  do  parlamento  contra 
os  bordeis  de  Champ-Gaillard  e  filiarap  d'Albiac.— Horríveis  estrap-os  da  syphilis  causados  pela  prostituição.— O 
Gros-CaiUou — As  i  uas  de  la  Corne.— O  inferno  da  tia  Cardine  e  outros  gracejos  a  respeito  da  abolição  do  Hurleur.— 
As  ribaldas  do  e:çercito.— P/eço  correntj  das  prostitutas  no  século  xvi.— A  cortezã  arrependida,  por  .leaquim  t)u- 
bellay. 


i'M  FACTO  realmente  notável  que  a  ordenação  de  Luiz  ix,  que 
aboliu  a  prostituição  legal,  e  que  não  ponde  execular-se  no  rei- 
nado d'aquelle  .santo  rei,  fosse  novamente  promulgada  e  posta 
em  vigor  no  reinado  de  Carlos  ix. 

Os  pliylo.sophos  e  os  magistrados  tinham  opinado  até  então 
que  havia  um  perigo  real  em  supprimir  absolutamente,  em  principio  e  de  facto, 
a  libertinagem  publica,  essa  lejjra  inevitável  do  corpo  social.  A  auctoridade  ci- 
vil estava,  porém,  de  accordo  com  a  ecclesiastica  para  impedir  que  o  mal  se 
estendesse  além  dos  limites  que  a  legislação  lhe  havia  traçado. 

De  repente,  porém,  em  pleno  século  xvi,  no  meio  de  toda  aquella  pre- 
versão  de  costumes,  em  frente  da  corte  mais  corrompida  e  desaforada,  a  pros- 
tituição lega!  foi  abolida  por  um  edicto  do  rei,  que  os  successores  de  Carlos  ix 
não  ousaram  resuscitar,  nem  mesmo  modificar  n'um  sentido  vigoroso. 

Verdade  seja  que  o  edicto  foi  expedido  em  nome  do  joven  rei  em  tutela, 
pelos  Estados  d'0rleans,  que  se  occuparam  da  reforma  dos  costumes  com  um 
zelo  digno  de  uma  cpocha  mais  virtuosa. 

O  artigo  Kll  da  grande  ordenação  de  '!o60,  que  não  foi  lida  nem  registrada 
no  parlamento,  senão  em  13  de  setembro  de  I06I,  era  concebido  nos  seguin- 
tes termos  : 

«Prohibimos  a  todas  as  pessoas  alojar  e  receber  em  sua  casa  por  mais  de 
uma  noite  gente  vadia  e  desconhecida.  E  ordenamos  que  a  denunciem  á  jus- 
tiça sob  pena  de  prisão  e  multa  arbitraria.  Prohibimos  tanibem  todos  os  bor- 
deis, jogos  de  bola  e  de  dados,  que  queremos  sejam  castigados  extraordinaria- 
mente sem  dissimulação  nem  connivencia  dos  juizes,  sob  pena  de  privação  do 
emprego.» 

Carlos  IX  tinha  apenas  dez  annos,  quando  assignou  o  edicto,  que  era  in- 
capaz de  comprehender,  e  que  talvez  mais  tarde  não  houvesse  sanccionado. 
HisTOBiA  DÁ  PRosTirmcIo.  Tomo  n— Folha  51. 


402  HISTORIA 

«Não  obstante,  diz  Estevani  Perrier,  n'»ma  das  suas  cartas  (l.  ii  p.  120) 
nenhum  dos  seus  predecessores  fez  fão  bons  edictos  como  clle.  Para  prova  ci- 
taremos o  de  1560  nos  Estados  celebrados  na  cidade  d'Orleans,  o  do  Rossillon, 
no  anno  de  15G3,  e  o  ultimo  cm  Moulins  no  anno  de  lo6fi.  Todos  elles  conti- 
nham uma  multidão  de  artigos  em  matéria  de  policia  e  regulamentos  que  exce- 
dem todas  as  ordenações  anteriores.  A  quem  somos  devedores  d'este  benefi- 
cio? A  mcssire  Miguel  de  THòpital,  seu  sábio  chanccller,  que  sob  a  auctoridade 
do  joven  monarcha,  seu  amo,  fui  o  principal  auxiliar  e  instigador  do  primeiro 
edicto,  e  o  promotor  e  auctor  dos  outros  dois.  E  oxalá,  accrescenta  o  douto  Pas- 
quier,  que  todos  elles  fossem  observados  com  o  mesmo  zelo  com  que  foram  pro- 
mulgados!» 

Deve,  pois,  attribuir-se  ao  grande  chanceller  Miguel  de  THòpital  toda  a 
honra  d'estes  edictos,  que,  como  diz  Pasquier,  cabiram  logo  em  desuso,  em- 
bora deixassem  nos  códigos  de.  França  testemunho  impericivel  de  uma  alta  mo- 
ralidade. 

A  ordenação  probibitiva  da  prostituição  produziu  uma  surpreza  geral,  e 
julgou-se  logo  como  cousa  impraticável,  pelo  menos  em  Paris.  Não  obstante, 
havia  sido  precedida  de  differentcs  ordenações  reaes,  que  pareciam  destinadas 
a  abrir-lbe  caminho  e  que,  apesar  dos  obstáculos  e  resistência,  eram  executa- 
das fielmcnttv  Assim,  a  prostituição  clandestina  era  de  tal  modo  perseguida, 
que  uma  mulher  dissoluta  podia  ser  srmpre  expulsa  da  casa  em  que  vivia, 
tendo  os  visinlios  o  direito  de  obrigar  o  proprietário  á  rescisão  do  contracto 
com  elia  feito.  Mais  ainda:  um  inquilino  de  bons  costumes  e  que  vivesse  em 
uma  casa  pertencente  a  uma  mulher  de  má  vida,  não  tinha  mais  do  que  de- 
nuncial-a  como  tal,  para  obrigar  a  referida  proprietária  á  expulsão,  ou  ao  reem- 
bolso, depois  de  uma  simples  informação  judicial. 

O  parlamento  de  Paris  confirmara  uma  sentença  d'esta  espécie  por  um 
decreto  de  1  I  de  s"tembro  de  1542.  Outro  decreto  de  10  de  fevereiro  de  155i 
foi  ainda  mais  explicito  : 

«Foi  determinado,  diz  Papou,  na  sua  coUecção  de  decretos  notáveis  dos 
tribunaes  supremos  de  França,  que  uma  mulher  de  má  vida  não  fosse  admit- 
lida  á  adjudicação  do  arrendamento  judicial  de  uma  casa  embargada,  ainda  que 
offerecesse  mais  dinheiro  que  outro  qualquer,  e  que,  outrosim,  quando  por 
ventura  a  obtivesse  e  n'clla  se  estabelecesse,  o  seu  mau  comportamento  fosse 
sufficiente  para  a  obrigarem  a  desalojar.» 

Não  é  tudo.  Henrique  ii  havia  tentado  muitas  vezes  afíastar  da  corte  e 
do  exercito  uma  multidão  de  mulheres  perdidas,  que  viviam  do  producto  do 
seu  trafico,  seguindo  o  exercito  e  a  corte:  mas  el-rei  nunca  logrou  comprehen- 
der  n'esta  exclusão  parcial  as  corfezãs  privilegiadas,  que  exerciam  a  sua  pro- 
fissão sob  a  direcção  ou  governo  de  uma  alia  dama! 

Quanto  ás  ribaldas  do  exercito,  nenhum  rei,  nenhum  general  poderia 
expulsal-as  completamente.  No  emtanto,  a  policia  militar  tendia  a  diminuir  o 
numero  d'ellas,  que  ia  sempre  cm  augmento  com  prejui/.o  da  disciplina.  Não 
se  sabe  precisamente  o  numero  de  mulheres  aggregadas  a  cada  corpo  de  tropa. 
Consta  apenas  que  os  inspectores  dos  alojamentos  auelorisavam  a  presença  de 


DA    PROSTITUIÇÃO  403 

um  mo(,'u  de  campanha  por  cada  três  soldados,  e  nos  exércitos  estes  moços  e 
as  ribaldas  compartilhavam  a  mesma  sorte. 

O  prebostado  de  Paris  apoderou-se  do  artigo  relativo  á  prostituição,  em- 
quanto  teve  força  de  lei  o  edicto  de  loôO,  e  determinou  executal-o  na  cidade. 
Havia  então  nas  classes  medias  uma  espécie  de  ostentação  de  austeridade  mo- 
ral, que  protestava  ao  mesmo  tempo  contra  as  desordens  da  corte' e  rivalisava 
com  os  huguenotes  em  rigidez  de  costumr-:.  O  protestantismo  havia  feito  uma 
espécie  de  repto  ao  calholicismo,  apresentando-ihe,  como  modelo  de  continência 
e  de  virtude,  aquelles  herejes  que  eram  enforcados  e  queimados  como  crimi- 
nosos. Houve  então,  tanto  em  l'aris  como  nas  principaes  cidades,  uma  guerra 
declarada  á  piostituição,  uma  cruzada  emprehendida  pelo  poJer  municipal,  com 
o  intuito  de  fazer  desapparecer  os  logares  de  libertinagem  e  a  sua  vergonhosa 
população. 

As  mulheres  de  má  vida,  que  até  enião  haviam  exercido  tranquillamente 
a  sua  escandalo.sa  industria  sob  a  protecção  das  leis  e  dos  magistrados,  foram 
expulsas  do  recinto  d.as  cidades,  presas  e  condemnadas,  no  caso  de  reincidên- 
cia, á  flagellação,  á  marca  de  ferro  em  braza,  ao  pelourinho,  balidas  nos  cam- 
pos como  animaes  damninhos  e  obrigadas  a  esconder-se  para  se  subtrahirem 
a  esta  perseguição  geral. 

Parece,  no  emtanto,  que  os  logares  públicos  de  Paris,  que  haviam  sido 
destinados  á  prostituição  legal  desde  o  reinado  de  S.  Luiz,  e  que  estavam,  se- 
gundo os  termos  das  antigas  ordenações,  apropriados  para  este  fim,  não  soIlVe- 
ram  a  principio  os  efteitos  do  edicto  de  1560,  porque  este  edicto  não  devia 
invalidar  a  antiga  legislação,  que  regulara  durante  tros  séculos  o  modo  de  vida 
das  prostitutas. 

Estas,  pela  sua  parte,  principalmente  as  que  não  receiavam  as  despezas 
e  os  perigos  de  um  processo,  apresentaram  as  suas  razões  ao  prebostado,  sus- 
tentando que  o  novo  edicto  não  podia  expulsal-as  dos  logares  públicos,  desti- 
nados á  sua  profissão. 

«Esses  logares  são,  dizia  a  ultima  ordenação  do  prebostado  que  renovara 
a  de  Luiz  xi  em  LJ67  :  Abreuvoir  de  .ilascon,  Boticlerie,  rua  de  Froidementel, 
junto  ao  circo  Brunei,  Glatignij,  Cour  Robert,  Baille-Goc,  Tijron,  rua  de 
Champon,  e  Champ-flory.» 

Ignoramos  as  circumstancias  d'este  processo,  que  durou  muitos  annos, 
mas  temos  motivos  para  julgar  que  a  prostituição  continuou  de  posse  de  alguns 
dos  seus  antigos  albergues. 

«As  ruas  de  Glatigmj  ou  do  \'al-d'Aniour,  de  Arras  ou  Champ-Gaillard, 
de  Fromenteau,  etc.  continuaram  a  olíerecer  as\io  á  libertinagem.»  (Historia 
de  Paris,  por  Dulaure,  edic.  de  182o,  t.  iv,  pag.  oGI.) 

Não  descobrimos  os  decretos  promulgados  a  este  respeito,  mas  podemos 
quasi  affirmar  que,  se  o  numero  de  logares  nomeados  na  ordenação  de  1367 
foi  reduzido  por  decisão  do  parlamento,  muitos  (içaram  na  posse  do  seu  obsceno 
privilegio,  pois  (|ue  se  provou,  por  cartas  authenticas,  que  haviam  sido  cons- 
tituídos por  S.  Luiz.  Assim,  o  lupanar  d.i  rua  de  Champon,  que  por  tanto  tempo 
arrostou  a  indignação  dos  bispos  de  ChJons,  permanecendo  aberto  junto  do  seu 


404  H  .STOIUA 

palácio,  foi  só  então  fechado  por  não  podor  provar  a  sua  antiguidade.  (Anii- 
quités  de  Paris,  por  Sauval,   t.  ii,  p.  78.) 

Outro  lupanar  publico,  celebre  por  causa  da  sua  directora,  a  lia  Cardine, 
resistiu  mais  do  que  t.idos  os  bordei.s  de  Paris  á  ordenação  real  que  os  sup- 
primiu.  A  tia  Cardine,  a  quem  conhecemos  por  varias  peças  satyricas,  publi- 
cadas por  aquelles  tempos,  devia  ser  a  rainha  das  alcoviteiras  de  Paris.  Era 
decerto  muito  rica,  porque  teve  de  sustentar  uma  grande  demanda,  e  quando 
se  pronunciou  sentença  contra  elia  no  tribunal  do  Chatelet,  teve  ainda  bastante 
força  para  impedir  a  execução  da  referida  sentença. 

O  estabelecimento  da  tia  Cardine  era  considerável.  Comprehendia  muitas 
casas  de  vaslas  proporções  nas  ruas  do  lírand  e  PeAil-fíurleur,  no  centro  do 
bairro  Bour(j-l' Ábhé .  Estas  ruas  infames,  cujos  nomes  indicam  talvez  a  maneira 
porque  alli  se  gritava  ou  ciiainava  pelos  liberlinos,  não  tinhiuii  outros  habitan- 
tes senão  as  mulheres  publicas  e  os  seus  vis  amantes  e  apaniguados.  lodosos 
proprietários  d'aquelles  predids  empregaram  esforços  para  conservarem  os  seus 
inquilinos,  e  dirigiram-se  para  esse  tim  aos  juizes  do  Chatelet,  ao  preboste  de 
Paris  e  até  ao  próprio  rei. 

Tudo  foi  inútil,  porém.  Depois  das  peripécias  de  um  longo  pleito,  el-rei 
por  decreto  de  12  de  fevereiro  de  t.'iG5(ou  1566,  segundo  o  calendário  actual,) 
ordenou  aos  do  Chatelet  que  pozessem  em  execução  sem  demora  a  referida 
sentença. 

Em  consequência  d'isto,  o  decreto  foi  intimado  pelo  pregoeiro  á  entrada 
das  ruas  do  bairro  llurkur.  As  mulheres  de  má  vida  que  alli  habilavam  tive- 
ram de  sahir  dentro  de  vinte  c  quatro  horas,  e  todos  os  bordeis  se  fecharam 
sem  remissão,  sendo  vencidos  na  lucla  por  fanlo  tempo  sustentada  contra  o  Cha- 
telet e  o  parlamento. 

Sauval,  referindo-se  a  este  desenlace,  diz  que  n'aqiielle  anno  «os  asylos 
das  mulheres  publicas  ficaram  completamente  arruinados.»  O  decreto  real  re- 
gistrado no  Chatelet  a  2i  de  março  de  l-iG-i  (ou  melhor,  e  como  já  dissemos 
io66,)  provocou  uma  nova  ordenação  Jo  preboste  de  Paris,  que  supprimiu  de- 
finitivamente a  prostituição  legal  nos  termos  do  edicto  de  1560.  (V.  os  Edictos 
e  ordenações  dos  reis  de  França,  colleccionados  por  Fontanon,  t.  i,  pag.  547). 

Migue!  de  THòpifal  era  infatigável  na  emprcza  verdadeiramente  árdua  da 
reforma  dos  costumes.  Foi  elle  quem  resolveu  impedir  que  as  mulheres  disso- 
lutas ousassem  fazer  frente  a  el-rei  e  á  magistratura.  Ao  decreto  de  12  de  fe- 
vereiro, que  alludia  siimente  ao  bordel  d'ífurli'iir  o  preboste  d(>  Paris  fez  o  ad- 
ditamenlo  seguinte,  confirmando  o  artigo  prohibilivo  do  edicto: 

«Além  d'isso,  fazendo  justiça  ao  requerimento  verbal  dos  referidos  súb- 
ditos d'el-rei,  fica  probibido  a  todos  os  habitantes  d'esla  cidade  e  arrabaldes 
de  Paris,  consentir  em  suas  casas  bordeis  públicos  ou  secretos,  sob  pena  de  60 
libras  pnrisis  de  multa,  pela  primeira  vez,  de  120  pela  segunda,  e  pela  terceira 
perda  dos  prédios  que  possuírem.  E  o  dito  real  decreto  será  com  a  presente 
ordenação  lido  e  |iublicad()  ao  som  de  Iriimbeta  e  voz  de  pregoeiro,  tanto  nas 
ruas  d'esta  cidade  como  nos  arrabaldes  de  Paris  e  outms  togares,  onde  existem 
os  ditos  bordeis,  a  tim  de  que  ninguém  possa  allegar  ignorância.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  405 

O  encerramento  dos  bordeis  do  Grand  e  Hetit-Hurleiír  trouxe  comsigo  o  de 
quasi  todos  ao  tempo  existentes  em  Paris.  Aquelles  que  foram  exceptuados  d'esta 
prohibição  geral,  e  consentidos  pelo  preboste  de  Paris  perderam  todos  os  direi- 
tos que  gosavam  peia  ordena(,'ão  de  S.  Luiz,  e  como  tinham  apenas  uma  exis- 
tência precária,  como  eram  unicamente  consentidos  á  porta  fechada,  e  sob  a 
salvaguarda  de  uma  permissão  tacita,  foram  a  nosso  vér  denominados  desde 
essa  épocha  com  um  titulo,  que  ainda  hoje  está  em  uso,  e  que  define  a  natu- 
reza do  seu  privilegio:  Casas  de  tolerância. 

De  resto,  a  partir  d'esta  épocha,  segundo  Sauval  diz  expressamente  (t.  ii, 
pag.  650),  as  mulheres  publicas  «deixaram  de  ter  estatutos,  juizes,  vestidos 
especiaes  e  ruas  destinadas  á  sua  libertinagem»,  podendo  dizer-se  que  a  pros- 
tituição legal  foi  legalmente  abolida  em  França.' 

Indicámos  as  causas  que  nos  parecem  haver  provocado  esta  grande  me- 
dida policial ;  dissemos  que  o  protestantismo  havia  obrigado  o  governo  a  to- 
mar esta  iniciativa  de  uma  grande  reforma  de  costumes;  observámos  que  o 
virtuoso  chancellcr  de  THòpital  se  havia  interessado  especialmente  n'esta  re- 
forma, que  vinha  satisfazer  os  votos  das  pessoas  honestas  sem  distincção  de 
crenças  nem  de  idéas  politicas.  DifTerentes  historiadores  sustentam,  porém,  que 
a  suppressão  dos  bordeis  tivera  como  causa  as  imperiosas  necessidades  da 
saúde  publica,  porque  a  enfermidade  venérea  que  se  havia  generalisado  de  uma 
maneira  espantosa,  em  consequência  da  libertinagem  popular,  havia  feito  de 
cada  bordel  um  foco  permanente  de  infecção. 

Sabe-se  eflectivamedte  que  esta  horrível  enfermidade,  cujos  symptomas 
não  eram  já  tão  repugnantes  como  n'oulro  tempo,  havia  não  obstante  multi- 
plicado os  seus  estragos  ao  ponto  de  chegar  a  ser  a  prostituição  o  inimigo  de- 
clarado da  vida  humana. 

A  i  de  dezembro  de  1553,  o  advogado  d'el-rei  Dyonisio  Riant,  apre- 
sentou perante  o  parlamento  de  Paris  um  requerimento  contra  os  bordeis  de 
Champ-Gaillard  e  Champ-de  VAbbé,  «onde  se  commettiani  diariamente  infini- 
tos roubos,  violências  e  outros  crimes  por  parte  dos  inquilinos  das  casas,  que 
tèem  pela  maior  parte  os  bordeis  nas  suas  próprias  vivendas,  onde  recebem 
gente  desconhecida  e  vadia,  rufiões  e  prostitutas.» 

O  advogado  accrcscenlou  no  seu  requerimento  que  «somente  n'um  anno, 
dezoito  ou  vinte  mancebos,  estudantes  e  filhos  de  boas  famílias,  haviam  sido 
atacados  do  mal  venéreo,  por  terem  frequentado  as  referidas  casas,  o  que  é 
muito  deplorável  e  requer  da  parte  das  auctoridades  enérgicas  e  promptas  pro- 
videncias.» 

Já  a  esse  tempo  o  parlamento  havia  expedido  dois  decretos,  em  que  or- 
denava aos  proprietários  das  casas  de  Champ-Gaillard  e  Champ-de  l' \bbé,  que 
não  as  alugassem  senão  a  gente  conhecida  e  bem  comportada,  e  para  este  fim 
ordenara  ao  juiz  do  crime  que  executasse  os  decretos  precedentes,  pondo  termo 
a  similhantes  torpezas.  (V.  Provas  da  Hist.  de  Paris,  por  I.obineau  e  Fili- 
bien,  t.  II,  p.  767.) 

E  facto  quasi  averiguado  que  o  mal  napolitano  havia  invadido  todos  os 
albergues  da  libertinagem,  no  momento  em  que  Carlos  ix  supprimiu  totalmente 


406  HISTORIA 

a   prostituição   legai.  O  poeta  Baif  nos  seus  Passatemyon  faz  o  retrato  de  mes- 
sire  Maeé,  que  liavia  sollrido  grandes  infortúnios: 

A  suivre  les  anwurs  communs. 

Eis  a  mercurial  dirigida  por  um  amigo  a  este  ineorregivel,  que  não  podia 
desistir  de  festejar  as  rihaldas : 

«Pois  não  está  ainda  satisfeito  de  ter  tido  tão  más  fortunas  n'esses  amo- 
res communs,  mcssire  Mace?!  Não  se  cançou  ainda  dos  eITeitos  da  vérole,  que 
não  lhe  poupou  nem  os  dentes  nem  as  guellas?!  Não  se  lembra,  desgraçado, 
que  tem  a  hocca  devorada  pelos  cancros,  e  que  o  membro,  roido,  lhe  está  ca- 
hindo  aos  pedaços?  I» 

Outro  epigramma  de  Baif,  em  que  um  certo  Galin  é  o  heroe  de  uma 
triste   aventura,   desereve-nos   esse  heroe  com  cores  não  menos  repugnantes: 

Poiír  hanter  snuoent  les  boiírdeaux 
Le  chancre  1'acueiUil  si  bien, 
Que  du  ner  en  ta  face  rien 
Ne  Vest  re.ité  que  les  naseaux. 

Um  escriptor  da  mesma  époclia,  António  Duverdier,  era  de  opinião  que 
Deus  havia  enviado  esta  peste  á  terra  em  castigo  das  sórdidas,  illicitas  e  fre- 
quentes sensualidades  dos  preversos,  e  reconhecia  nas  suas  Diversas  licções  que 
o  mal  ora  muito  mais  contagioso  ao  principio  (jue  no  seu  tempo,  por  causa, 
dizia  eile,  «dos  soberanos  remédios  que  se  tèem  descoberto.»  Admira-se,  to- 
davia, de  que  os  libertinos  ousassem  arriscar-se  a  um  mal,  que  se  não  era 
mortal,  deixava  ordinariamente  recordações  bem  tristes  ás  suas  victimas. 

«Ha  muitos,  diz  elle  com  assombro,  que  teem  tido  o  mal  seis  e  sete  vezes!» 

Luiz  Ciuyon,  que  escreveu  também  as  suas  Diversas  licções,  para  conti- 
nuar as  de  Duverdier,  altirma  na  sua  qualidade  de  medico,  que  a  enfermidade 
venérea  zombava  ainda  de  lodos  os  remédios  da  sciencia: 

«Este  contagio  venéreo,  diz  elle  (t.  i,  p.  612),  por  se  contrahir  mais  fre- 
quentemente no  acto  deshonesto  com  mulheres  de  bordeis,  é  vergonhoso.» 

Luiz  (iuyon  quer  dizer  com  isto  que  o  virus  da  mulher  commum  era 
mais  perigoso  que  outro  quaUiuer,  e  cita  o  facto  de  dois  adolescentes  de  famí- 
lia illustre,  aos  quacs  tractára  em  Paris,  em  loG3,  sem  ter  podido  obter  a  sua 
cura.  Verdade  seja  que  estes  dois  imprudcnics  haviam  procurado  occultar  o 
seu  mau  estado,  ale  (|uc  elle  próprio  se  revelou,  «por  pústulas  vermelhas  na 
fronte,  dores  nos  ossos,  tantíj  nos  braços  como  nas  pernas,  nas  espáduas  e  no 
interior  da  cabeça,  desde  o  anoitecer  até  de  madrugada,  e  outros  signaes,  como 
dores  na  garganta,  que  lhes  dillicultavam  a  deglutição.» 

Todos  os  médicos  e  cirurgiões,  em  cujas  mãos  se  entregaram  os  pobres 
enfermos,  dcclararam-sc  impotentes  contra  mal  Ião  rebelde,  até  que  um  em- 
baixador do  rei  de  llcspanha,  (|ue  os  ouvia  queixar  durante  a  noite,  lhes  acon- 
selhou que  partissem  para  a  America,  para  se  curarem  alli,  segundo  o  tracta- 
menlo  dos  indígenas. 


DA    PROSTITUIÇÃO  407 

Este  tractamento  teve  um  cxifo  feliz,  e  os  desgraçados  rapazes  que  ha- 
viam partido  éticos,  e  similhanles  a  cadáveres,  voltaram  a  França  completa- 
mente, restabelecidos. 

Um  tal  resultado  serviu  sem  duvida  para  confirmar  a  opinião  dos  sábios, 
que  pretendiam  ter  sido  o  mal  napolitano  descoberto  an  mesmo  tempo  que  a 
America  por  Colombo.  Não  obstanie,  esta  opinião  níio  eslava  ainda  tão  solida- 
mente estabelecida,  que  certos  doutores  da  Faculdade  de  Medicina  de  Paris 
não  sustentassem  tenazmente  que  esta  enfermidade  não  era  nova,  embora  ti- 
vesse mudado  de  caracter. 

«Enganam-se  redondamente,  dizia  António  Duverdier,  os  que  acreditam 
que  a  enfermidade,  chamada  pelos  antigos  meníagra,  e  por  nós  usagre  seja  o 
mal  que  denominamos  venéreo.» 

E'  possível  que  os  homens  de  estado,  que  tentaram  abolir  a  prostituição 
por  um  decreto  real,  quizessem  applicar  um  remédio  heróico  á  vergonhosa 
enfermidade,  que  esperavam  repellir  de  França,  juntamente  com  as  desgraçadas 
mulheres  que  pela  sua  maior  parte  estavam  por  ella  contaminadas.  Deveria,  no 
emtanto,  ter-se  previsto  que,  obrigando  assim  as  mulheres  de  má  vida  a  vol- 
tar ao  seio  da  sociedade  e  a  disfarçarern-se  no  meio  d'ella,  sob  honestas  appa- 
rencias,  se  fazia  refluir  o  contagio  venéreo  para  a  corrente  da  vida  domestica. 

Falfam-nos  absolutamente  os  documentos  para  apreciarmos  os  effeitos 
physiologicos  e  hygienicos  da  suppressão  dos  bordeis.  Os  excessos  da  liberti- 
nagem, como  é  fácil  de  suppòr,  não  cessaram  com  esta  medida:  não  tinham, 
é  certo,  asylos  auctorisados,  mas  mostravam-se  á  luz  do  dia  com  o  maior  des- 
plante. Assim,  a  prostituição  clandestina  teve  mercados  públicos  em  todas  as 
ruas  e  em  todas  as  praças.  .A  mulher  commum,  ao  perder  o  direito  de  exercer 
legalmente  a  sua  profissão  em  certas  condições  determinadas,  adquiriu  a  liber- 
dade de  se  apresentar  em  toda  a  parle  e  de  regular  por  si  própria  as  condições 
da  criminosa  industria  que  exercia  furtivamente.  Em  breve,  por  certo,  devia 
haver  em  Paris  tantos  lupanares  secretos,  como  antes  d'isto  houvera  públicos. 
O  numero  dos  agentes  da  prostituição  não  diminuiu:  pelo  contrario,  .sendo 
d'ahi  em  diante  mais  necessários  os  alcoviteiros  de  ambos  os  sexos,  vieram  a 
ser  também  mais  numerosos,  e  o  uso  designou  na  cidade  e  nos  seus  arrabaldes 
pontos  de  reunião,  onde  a  libertinagem  ia  recrutar  a  sua  milicia  e  assentar  as 
suas  baterias. 

Os  bordeis,  que  deixaram  de  estar  sob  a  vigilância  do  poder  municipal, 
ficaram  á  mercê  de  todos  os  entes  abjectos,  que  não  receiavam  expòr-se  ao 
castigo  da  lei  e  que  fizeram  d'esfas  inpuras  cavernas  o  receptáculo  de  todos 
os  criminosos. 

Não  deve  restar  a  menor  duvida  de  que  o  edicto  de  1560  contra  os  bor- 
deis teve  escandalosas  consequências,  quando  se  vé  a  prostituição  errante  agru- 
par-se  de  noite  em  torno  das  cruzes  de  pedra,  que  se  elevavam  em  quasi  todas 
as  praças  de  Paris.  Em  lo73,  o  bispo  quiz  tirar  a  cruz  de  (lastini,  erecta 
n'uma  pequena  praça  da  rua  de  Saint-Denis,  porque  esta  cruz,  segundo  a  ex- 
pressão de  um  chronista,  servia  de  taboleta  aos  libertinos,  que  alli  se  reuniam 
todas  as  noites  e  commettiam  mil  profanações. 


408  HISTORIA 

O  Journal  d'Henri  iii  refere  n'estes  termos  o  facto  de  se  tirar  outra  cruz, 
que  a  libertinagem  egualmente  profanava  : 

«Em  a  noite  de  quinta-feira,  10  de  março  de  1580,  por  ordem  do  bispo 
de  Paris,  foi  tirado  do  sitio  onde  estava  o  crucifixo  cbamado  Maquereau,  e  foi 
levado  pela  gente  da  policia  ao  paço  episcopal,  e  isto  em  consequência  do  es- 
candaloso nome  que  o  povo  Ibe  havia  dado,  por  que  este  crucifixo,  de  madeira 
pintada  e  dourada,  do  tamanho  de  dois  que  ha  nas  parocbias,  estava  pregado 
na  parede  da  uma  casa,  sita  no  fim  da  antiga  rua  do  Templo,  perto  das  cloa- 
cas, na  qual  rua  havia  um  bordel.  De  modo  que  este  venerável  signal  da  nossa 
redempção  servia  de  tabolela,  ou  indicação  de  todos  os  albergues  de  prosti- 
tutas.» 

Pedro  de  TEstoile  não  nos  diz  se  o  bordel  foi  fechado  por  ordem  do  pre- 
bostado,  depois  que  o  bispo  Pedro  de  (londi  puzera  termo  ao  escândalo,  que 
era  mais  deplorável  que  o  da  impunidade  de  um  albergue  de  libertinagem. 

A  maior  parte  das  casas  n'aquelle  tempo  tinham  marcas  que  as  faziam 
conhecer  á  falta  de  números  ou  de  outros  signaes  indicadores.  .4s  casas  de 
prostituição  deviam,  pois,  ter  também  a  sua  marca  ou  signal,  que  não  recor- 
dava sempre  o  destino  do  logar,  por  isso  que  o  signal  podia  ser  mais  antigo 
que  o  destino  actual  da  casa.  Frequentemente,  porém,  annunciava  com  um 
emblema  indecente,  ou  com  uma  divisa  equivoca,  o  género  de  commercio  a 
que  o  local  se  consagrava.  Assim  Piganiol  de  la  Force  atfirma  que  o  bairro  do 
Gros  Caillou,  devia  o  seu  nome  a  um.  gros-cailloii,  que  servia  de  taboleta  a 
um  lupanar.  Em  todo  o  caso,  este  nome  não  esteve  em  uso  antes  do  século 
XVI,  e  póile  ser  qu:'  proviesse  da  installação  d"estc  logar  de  libertinagem  e  da 
sua  taboleta  metaplioricamenle  obscena. 

Os  historiographos  de  Paris  mencionaram  muitas  taboictas  da  mesma  es- 
pécie, que  haviam  dado  o  nome  de  la  Corne  a  duas  ruas  do  antigo  arrabalde 
de  Saint-Germain-ilf-s-Prrs.  chamadas  agora  rua  Beurrirri' e  ISeuce-duillemin, 
do  mesmo  modo  que  outra  riia  do  Fauhourg  de  Saint-Marceau  veio  a  ser  o 
becco  sem  sabida  das  Corderies.  Sauval  refere  que  havia  uma  cabeça  de  veado, 
<vque  o  povo  chama  corne  (corno),  incrustada  na  parede,  cá  esquina  da  rua  de 
la  Corne,  e  que  esta  insígnia  havia  dado  também  o  nome  de  l'elile-Corne  á 
rua  adjacente,  e  accrescenta  que  este  nome  proviera  lambem  de  uma  turba  de 
prostitutas  que  tinham  ido  alli  estabelecer-se. 

Alii  pelos  fins  do  século  xvi  estas  prostitutas,  que  não  podiam  já  residir 
no  recinto  da  cidade,  rcfugiaram-se  no  arrabalde,  onde  o  abbade  de  Saint-(ler- 
main  as  deixou  estabelecer  mediante  uma  certa  renda  ou  imposto. 

Mais  tarde,  este  estabelecimento  de  libertinagem  provocou  taes  desordens, 
c  escandalisou  de  tal  modo  os  bons  parochianos  de  S.  Sulpicio,  que  o  cura 
d'esla  parochia  obteve  do  abbade  de  Saint-dermain  a  expulsão  de  tão  escan- 
dalosa visinhança. 

Ao  mesmo  tempo  fez-se  desappareccr  a  taboleta  ou  annuncio  d'cste  lu- 
panar e  o  próprio  nome  das  duas  ruas,  derivado  d'aquella  taboleta.  A  primeira 
rua  tomou  então  o  nome  de  fiuillcmin,  por  causa  de  um  f('»ro  pertencente  a 
uma  familia  dVste  appellido,  e  a  segunda  o  de  Beurrière,  ou  fíeiírriers. 


DA    PROSTITUIÇÃO  409 

O  povo,    porém,    quo   se  rebordava  lii'   ler  visto  o  corno  e  o  bordel  que 

annuneiava  aos  lianseunl<>s,  insisliu  por  muito  tempo  em  designar  as  duas 

ruas  pelos  seus  antigos  nomes,  ainda  que  os  novos  houvessem  sido  cravados 

com  leltras  d'ouro  em  lapides  de  mármore  postas  nas  esquinas  de  ambas  as 

ruas  por  ordem  do  baillio  de  Saint-Germain. 

Foi  mister  por  fim  que  todos  se  acostumassem  a  substituir  pelos  moder- 
nos os  antigos  nomes,  mas  ainda  assim  alli  ficou  sempre  alherente  a  ideia  de 
uma  casa  de  prostituição,  e  isto,  segundo  Sauval,  «porque  o  nome  de  Guil- 
lemin  é  um  tanto  proverbial,  e  o  povo  que  se  compraz  em  escarnecer  de  tudo, 
não  se  contentando  de  juntar  ao  nome  de  (iuillemin,  proprietário  do  local  do 
bordel,  a  aleunlia  de  Crocquesolle,  poz  também  a  mesma  alcunha  á  rua,  de 
maneira  que  mais  commummente  se  diz  rua  de  Guillemin-CrocquesnUe,  do 
que  apenas  rua  de  GuiUrmin.» 

Sem  que  nos  seja  mister  entrar  aqui  em  bmgas  dissertações  archcologi- 
cas,  diremos  desde  já  que  Guillemin,  na  linguagem  metaphorica  das  ultimas 
camadas  populares,  significava  muitas  vezes  a  natureza  máscula,  o  membro  vi 
ril,  assim  como  a  palavra  guillenj.  Por  esse  tempo  cantava-se  nas  ruas  de  Pa- 
ris a  famosa  copla,  ainda  cm  voga  no  tempo  da  Regência,  por  isso  que  o  du- 
que d'Orleans  a  tinha  sempre  na  bocca  (]li'moires  du  cardinal  Dnhois): 

Du  temps  du  roy  Guillemot, 
De  la  reine  Fuillemotte. 
Ou  prenoit  les  hommes  nu  niot 
Et  les  femmes  à  la  m . . . 

Deixamos  aos  etymologistas  a  tarefa  de  procurar  e  descobrir  a  origem  de 
guillemin  e  guillemot.  Quanto  a  crocquesolle,  é  evidentemente  um  epitheto  qua- 
lificativo, e  quer-nos  parecer  que,  sendo  a  solle  ou  soulle  um  jogo  de  pella 
muito  vulgar  nCitro  tempo,  se  fez  uma  approximação  muito  natural  entre  este 
jogo  e  o  que  se  usa  nas  casas  de  prostituição,  onde  a  mulher  passa  de  mão  em 
mão  comj  uma  solle,  ou  pella,  que  os  jogadores  atiram  um  ao  outro;  d'aqui  a 
palavra  solle,  como  synonymo  de  prostituta,  e  por  extensão,  da  natureza  ou 
sexo  de  uma  mulher  de  má  vida. 

E'  evidente  que  o  povo  tinha  então  diminuta  sympathia  e  bem  pouca 
piedade  para  com  as  mulheres  de  má  vida,  por  isso  que  as  perseguia  cora  di- 
tos sarcásticos,  e  até  as  apedrejava  quando  as  encontrava  nas  ruas  honestas. 
Vimos  também  que  os  libertinos,  que  ousavam  entrar  de  dia  nas  ruas  infames 
destinadas  á  libertinagem,  não  eram  tractados  mais  benevolamente  pelo  po- 
pulacho. 

Pode,  portanto,  conjecturar-se  que  o  edicto  de  1560,  que  supprimia  a 
prostituição  legal,  foi  favoravelmente  acolhido  pela  opinião  publica,  c  que  os 
habitantes  de  Paris,  excepto  os  que  tiravam  d'esta  prostituição  interesses  dire- 
ctos, foram  unanimes  em  applaudir  as  medidas  policiaes  que  deram  em  resul- 
tado ã  suppressão  da  mór  parte  dos  bordeis. 

A  ruina  e  perturbação  dos  que  viviam  do  lenocínio,  a  desordem  e  disper- 
são das  meretrizes,  a  raiva   e  a  confusão  dos   libertinos,  não  interessaram  a 

HisToiíÀ  DA  PaosTirmcÃo.  Touo  n— Folha  52. 


4  I  O  HISTORIA 

ninguém,  antes  fizeram  rir  toda  a  gente,  e  de  Ioda  a  parte  se  ergueu  um 
concerto  de  epigrammas  e  sarcasmos  contra  os  exilados  da  prostituição.  O 
lupanar  de  Hurleur,  e  a  sua  celebre  directora,  a  tia  Cardine,  deram  especial- 
mente margem  a  estas  verrinas  em  prosa  e  verso,  que  a  hilaridade  popular 
inspirava  com  tanto  estro  e  abundância. 

A  mais  conhecida  d'estas  satyras  é  o  Inferno  da  tia  Cardine,  cuja  primeira 
edição,  que  não  possuímos,  foi  certamente  contemporânea  de  todas  as  troças 
em  verso  a  que  deu  logar  a  destruição  do  Hurleur.  Eis  o  summario  d'esta  cu- 
riosa e  raríssima  satyra  contra  as  cortezãs  mais  famosas  d'aquelles  tempos: 

«O  inferno  da  lia  Cardine,  onde  se  trácia  da  mais  horrível  e  espantosa 
batalha,  que  houve  nos  infernos  entre  os  diabos  e  as  alcoviteiras  de  Paris,  por 
occasião  das  bodas  do  cão  Cerbéro  e  de  Cardine,  a  quem  as  suas  companheiras 
queriam  fazer  rainha  do  inferno,  tendo  uina  d'ellas  dado  o  conselho  da  traição.» 
(Não  tem  data  nem  indicação  de  logar,  mas  foi  sem  duvida  impresso  em  Paris 
em  1570,  in-S.") 

Esta  composição  poética,  geralmente  attribuida  a  Flaminio  de  Birague, 
sobrinho  do  chanceller  de  França,  foi  reimpressa  em  1583  e  em  1597.  Nas 
reimpressões  foi-Ihe  addicionada  uma  canção  de  certas-  mulheres  de  Paris,  que 
fingindo  ir  de  viagem  foram  surprehendidas  em  casa  de  uma  alcoviteira  de 
Saint-riermain-dcs-Prcs.  Não  existem  senão  dois  ou  três  exemplares  das  edi- 
ções do  século  XVI,  mas  em  1793  um  philosopho  benemérito  não  quiz  que  des- 
apparecesse  completamente  o  Inlerno  da  tia  Cardine,  e  fez  outra  edição  de  108 
exemplares,  que  são  actualmente  tão  raros  como  as  das  antigas  edições. 

Eis  o  principio  d'este  poema  allegorico,  espécie  de  satyra  collectiva  con- 
tra todas  as  rainhas  da  prostituição,  e  não  um  acto  de  vingança  pessoal  do  poeta 
contra  a  tia  Cardine,  como  suppõe  o  marquez  de  Rouze,  no  seu  Analecta- 
biblion : 

«Pois  que  a  ociosidade  é  a  mãe  de  todos  os  vícios,  quero  cantar  aqui  a 
maldade,  a  traição  e  os  cruéis  esforços,  que  fez  Cardine  um  dia  na  região  dos 
mortos,  quando  Cupido  lhe  fez  tirar  as  cliammas,  que  atormentam  na  outra 
vida  as  nossas  almas  peccadoras.>^ 

«A  fabula  do  poema  é  muito  simples,  diz  o  marquez  de  Rouze.  Cardine 
casa  com  Cerbéro,  e  no  festim  das  bodas  apparecem  as  princípaes  prostitutas 
de  Paris:  Margarida  Rémy,  denominada  a  dos  Olhou  grandes,  a  Cre-smière, 
Anna  Pardalinha,  a  .\ormanda,  a  Leoneza,  ele.,  ele.  Cupido,  inimigo  decla- 
rado de  Plutão,  comparece  na  boila  para  excitar  os  condemnados  a  combater 
contra  o  inferno,  e  para  estrangular  o  Orbéro.» 

O  marquez  de  Rouze  resume  todo  o  poema  n'este  apophtegma  :  —  «Algu- 
mas mulheres  são  peiores  que  todos  os  diabos  juntos.» 

O  editor  de  1793  reimprimiu  além  d'isso,  em  continuação  do  Inferno  da 
tia  Cardine,  uma  peça  do  mesmo  género,  (jue  nos  dá  a  data  do  poema  de  Fla- 
minio de  Birague,  a  que  vem  junta: 

«Lamentação  e  queixumes  da  tia  Cardine,  de  Paris,  em  tempos  directora 
(lo  Hurleur,  a  respeito  da  abolição  d'esle  estabelecimento.  Esta  lamentação  foi 
encontrada  depois  da   morte  de  Cardine,  n'um  cofre  onde  tinha  os  seus  mais 


DA    PROSTITUIÇÃO  4H 

particulares  e  preciosos  segredos,  os  tilulos  das  suas  qualidades  aullienticas, 
receitas,  contas,  antídotos,  baisatnos,  pinturas,  arrei)ii|ues,  ferramentas  c  uten- 
sílios pertencentes  ao  oíTicio.»  (Nfio  tem  nome  de  logar,   1570,  in-i.") 

Citaremos  outras  duas  coniposi(;õos  da  mesma  époclia,  que  foram  inspi- 
radas peia  execução  do  edicto  de  loíiO. 

«Destruiç<ão  e  desolação  das  poljres  ribaidas  do  Hurleur  e  do  Darnetal. 
(Sem  logar  nem  data,  in-H."  com  uma  gravura  de  madeira  sobre  o  titulo.) 

M.  J.  C.  Brunei,  no  seu  Manual  do  Livreiro,  diz  que  esta  peça  de  ver- 
sos de  seis  syllabas  foi  composta  em  Io20.  Sai)e-se,  porém,  que  Brunei  não  é 
auctoridade,  quando  julga  uma  obra  apenas  pelo  tilulo.  Esta  lamentação  é  evi- 
dentemente do  mesmo  tempo,  se  não  é  d;i  mesma  penna  que  escreveu  a  da  tia 
Cardine. 

A  outra  composição,  que  se  refere  lambem  ao  mesmo  assumpto  da  abo- 
lição dos  lupanares,  intitula-se:  ^Desterro  de  alguns  commerciantes  de  mau 
género  e  de  algumas  ribaidas  de  Paris.  (Sem  designação  de  logar,  I.tOO,  in-8'\) 
Duvidamos,  porém,  que  um  só  exemplar  da  edição  primitiva  sobrevivesse  á  sua 
épocha.  Por  fortuna,  em  1814  liouve  um  bibiiopbilo  que  fez  reimprimira 
obscena  salyra,  cujo  auctor,  Rassé  Desneux,  era  cirurgião  de  Carlos  ix  e  amigo 
de  Ronsard. 

A  abolição  dos  bordeis,  por  mais  incompleta  que  tivesse  sido,  obtivera 
tantos  appiausos  em  toda  a  França,  que  Carlos  ix  e  o  seu  chanceller  Miguel 
de  THòpital,  resolveram  insistir  na  reforma  dos  coslumes  por  meio  de  orde- 
nações. Fora  muito  mais  fácil  afifastar  do  recinto  das  cidades  os  logares  do 
libertinagem,  do  que  expulsar  completamente  as  prostitutas  da  corte  e  do  exer- 
cito. Desde  os  tempos  mais  remotos,  a  còrle  e  o  exercito  arrastavam  no  seu 
séquito  uma  multidão  de  gente  perdida  de  ambos  os  sexos.  El-rei,  de  accordo 
com  o  seu  virtuoso  ministro,  esforçou-se  por  evitar  este  abuso,  e  n'um  edicto 
de  1570  ordenou  que  todos  os  vadios  da  corte,  sabissem  dentro  de  vinte  c 
quatro  horas,  sob  pena  de  serem  enforcados  sem  esperança  de  graça  nem  re- 
missão e  que  todas  as  mulheres  publicas  d'ella  sabissem  também  dentro  do  mes- 
mo prazo,  sob  pena  de  serem  açoitadas  e  marcadas. 

Houve  decerto  muitas  mulheres  publicas  condemnadas  a  estas  penas, 
porque  não  se  apressaram  a  comprir  a  real  ordenação,  e  Carlos  ix  teve  por 
muitas  vezes  de  recordar  a  mesma  lei  no  decurso  do  seu  reinado. 

A  que  decretou  contra  as  ribaidas  que  seguiam  o  exccito  não  encontrou 
menos  difliculdades  na  sua  applicação,  por  isso  que  Henrique  iii  a  reproduziu 
nos  mesmos  termos  assim  que  subiu  ao  throno. 

«Ordenamos  não  só  aos  prebostes  dos  marechaes  e  aos  seus  tenentes, 
mas  também  aos  juizes  ordinários,  que  expulsem  as  ribaidas  das  suas  compa- 
nhias e  troços,  castigando-as  com  a  pena  de  açoites,  assim  como  aos  moços  da 
tropa,  logo  que  haja  mais  de  um  por  cada  Ires  soldados.» 

Consta  que  esta  ordenação  nunca  fora  executada,  pelo  menos  de  um  modo 
regular.  Algumas  vezes,  porém,  teve  uma  applicação  cruel,  segundo  o  capri- 
cho do  chefe  do  exercito.  Se  dermos  credito  ao  Itstemunho  de  Varillas  {Hisl. 
d'Henri  m,   lib.  ix),  o  marechal  Filippc  SIrozzi,  que  o  historiador  nos  repre- 


41  á  KISTORIA 

senta  sevi-m  cin  dcniasia,  mandou  doita'  ao  rio  nitocentas  ribaldas  que  seguiam 
as  suas  fi-opas! 

Não  LMain  estas  desgraçadas  tiaeladas  em  tndn  parte  com  o  mesmo  rigor,  e 
se  não  figuravam  nos  exércitos  dos  reformados,  passavam  alegre  vida  nos  exér- 
citos catholicos.  Assim,  Branlôme  descreve  com  ufania  a  bella  reefagnarda  a 
que  o  duque  de  Alba,  na  sua  expedição  contra  os  hcrejes  da  Flandres,  podia 
passar  revista,  juntamente  com  os  seus  dez  mil  homens  de  tropas  aguerridas. 

«Eram,  diz  o  licencioso  ehronista,  quatrocentas  cortezãs  a  cavallo,  bellas 
e  valentes  como  princezas,  e  oitocentas  a  pé,  de  muito  bom  aspecto  também.» 

Fazia  parte  do  exercito  hespanbol  um  fidalgo  francez,  messire  Francisco 
Le  Poukhre,  senhor  de  la  Motte  Messemé,  cavalleiro  da  casa  d'el-rei,  e  capi- 
tão de  cincoenta  homens  d'armas  das  ordenanças  de  sua  magestade.  O  (|ue 
este  brilhante  fidalgo  mais  admirou  foi  o  corpo  das  mil  e  duzentas  cortezãs,  de 
que  falíamos,  que  pareciam  encarregadas  de  assegurar  a  honra  das  mulheres 
lio  Iheatro  da  guerra. 

Eis  como  eile  falia  (restas  creaturas,  no  livro  vii  dos  seus  Honnêtes  Loi- 
sirs  (Ócios  honestos),  obra  dedicada  a  el-rci  Henrique  iii.  (Paris,   1587)  : 

«Quem  queria  fallava  com  ellas  durante  o  dia,  mas  com  mil  altenções  e 
delicadezas.  Eslas  damas  recebiam  todas  as  noites  alojamento  e  viveres  por 
ordem  do  marechal  do  campo,  e  ninguém  ousaria  fazer-liies  uma  insolência.» 

A  vaidade  d'estas  cortezãs  cresceu  de  tat  forma,  que  acabaram  por  que- 
rer fingir  de  mulheres  honradas,  e  tão  alto  preço  puzeram  aos  seus  favores, 
que  SC  tornaram  inacessíveis  aos  soldados.  Foi  preciso  que  o  duque  de  Alba 
interviesse  e  mandasse  annunciar  no  acampamento  pelos  seus  arautos  de 
armas : 

«Que  nenhuma  d'ellas  ousasse  d'ahi  avante  recusar  ceder  a  quem  lhe 
pedisse,  mediante  cinco  soldos  por  noite.» 

A  taxa  estabelecida  pelo  duque  de  Alba  não  peide  considerar-se  como 
preço  corrente  da  prostiluifão  popular  n'aquella  époeha.  No  emtanio,  pôde  sup- 
por-se  pelo  capitulo  de  Rabelais,  intitulado:  «De  como  Panurgio  ensina  uma 
nova  maneira  de  edificar  as  muralhas  de  Paris»,  que  a  relaxação  dos  costumes 
públicos  havia  prejudicado  singularmente  o  officio  impudico  das  prostitutas  das 
viellas. 

«Vejo,  diz  Panurgio  que  os  c.  .  .  das  mulheres  d'este  paiz  estão  mais  bara- 
tos (jue  as  pedras.  Seria  bom  edificar  as  muralhas  com  elles,  collocando-os  com 
boa  symetria  de  architectura  e  pondo  os  maiores  cm  primeira  linha,  em  se- 
guida os  medianos,  e  (inalmente  os  pequenos.» 

Esta  torpe  truaniee  de  Panurgio  symbolisa  por  certo  uni  indicio  do  vil 
preço  das  mercadorias  da  libertinagem.  O  encerramento  dos  bordeis  não  dimi- 
nuiu o  numero  de  mulheres  de  má  vida.  I/Estoile,  no  seu  Journal  cfllenri 
m,  com  data  de  l"í7">,  caracterisa  do  seguÍTite  modo  a  corru[)ção  que  via  rei- 
nar em  redor  de  si  nas  classes  medias  e  no  povo  de  Paris  : 

«Aquillo  de  que  se  lamenta  .leremias  no  capitulo  iii  das  l-'ilhas  de  Sião, 
que  caminhavam  de  pescoço  erguido,  c  com  os  olhos  cerrados  pela  volupluo- 
sidade,   rcquebiando-se  e  fazendo  resoar  os  passos,  poderia  dizcr-se  lambem  e 


DA    PROSTITUIÇÃO  4Í  3 

com  muita  mais  razão  das  mulheres  de  Paris,  em  nossos  dias,  e  das  filhas 
da  còrfe  especiahnenle.  Assim,  pois,  não  é  de  extranhar  que  o  Seniior,  se- 
gundo a  ameaça  que  faz  no  mesmo  logar  pelo  seu  propheta,  desgrenhasse  os 
seus  eabellos  e  exposessc  á  vergonha  puhliea  as  suas  partes  secretas,  por  meio 
dos  insanos  poetastros  da  corte.  Em  conclusão,  as  desordens  dos  costumes  fa- 
ziam com  que  o  adultério  fosse  um  dos  mais  notáveis  rendimentos  d'aquelle 
tempo.  (V.  a  edição  puhlicada  por  M.  M.  Champollion,  pae  e  lilho,  na  colle- 
cção  das  Mein.  pour  servir  à  rilistoire  de  Franre.) 

Nas  obras  dos  poetas  do  século  xvi,  encontrariamos  por  certo  uma  mul- 
tidão de  personagens  referentes  ao  nosso  assumpto,  e  que  nos  permittiriam 
fazer  a  pintura  fiel  e  mesmo  minuciosa  dos  costumes  da  prostituição.  Temos, 
porém,  picssa  de  sahir  d'este  .século  impuro  em  que  a  libertinagem  italiana 
é  o  derradeiro  esterquilinio  em  que  vae  manchar-se  e  extinguir-se  a  raça  dos 
Valois,  e  seriamos  por  certo  arrastados  a  uma  larga  digressão,  folheando  os  poe- 
tas libertinos,  que  se  compraziam  em  fundar  o  Parnaso  de  Priapo,  e  tinham 
por   única  musa  inspiradora  a  Vénus  dos  bordeis  das  mais  immundas  vicllas. 

Os  poetas  estavam  decerto  previamente  auctorisados  a  todas  as  desordens 
da  poesia  erótica,  por  isso  mesmo  que  se  encontravam  em  casa  das  prostitutas 
com  os  mais  graves  personagens  da  corte,  com  os  príncipes  da  Egreja,  e  com 
os  austeros  e  graves  magistrados.  O  cardeal  Carlos  de  Lorena  não  ia,  como  po- 
deria fazer  um  estudante,  passar  a  noite  fora  do  seu  palácio  em  casa  de  uma 
mulher  perdida?  Luiz  Régnier,  senhor  de  la  Planche,  refere-nos  na  sua  His- 
toria de  Francisco  ii,  que  e.ste  prelado  libertino,  «sahindo  uma  madrugada  de 
casa  da  bella  Romana,  famosa  cortezã  do  tempo  d'aquelle  rei,  esteve  em  pe- 
rigo de  ser  maltractado  por  certos  rufiões,  que  procuravam  esta  espécie  de  pro- 
veitosas aventuras  em  viclimas  de  primeira  ordem. 

A  Romana,  que  rivalisava  em  bellcza  e  libertinagem  com  a  Grega,  tão 
exaltada  por  Brantòme,  parece-nos  ser  o  typo  d'aquella  cortezã,  que  Joaquim 
Kubellay  pòz  em  scena  n'um  poema  famoso  intitulado  A  Alcoviteira,  ou  a  Cor- 
tezã arrependida.  O  poema  ofierece-nos  muitos  dados  que  servem  para  fazer  o 
retrato  das  cortezãs  celebres  do  século  xvi.  Ella  própria  conta  a  sua  vida  e, 
passados  os  seus  bons  tempos,  procura  suavisar  as  maguas 

Par  les  soupi)'s  d'une  complainte  vaine. 

Na  edade  de  dezeseis  annos,  corrompida  pelo  mau  exemplo  de  sua  mãe 
impudica,  deixou-se  seduzir  por  ura  criado,  mas  o  caso  ficou  a  tal  ponto  no  es- 
curo, que  nunca  ninguém  d'clle  suspeitou,  a  não  ser  sua  própria  mãe. 

Em  seguida,  foi  parar  ás  mãos  de  dois  ou  três  fidalgos  romanos,  que 
imaginaram  ter  colhido  a  llòr  da  virgindade,  segundo  a  mãe  lh'a  havia  ven- 
dido. O  logro  continuou  por  algum  tempo  ainda,  cahindo  mais  uns  seis  na  es- 
parrella  de  pagarem  á  mãe  da  uympha  por  alto  preço  uma  virgindade  hypothe- 
lica,  já  de  ha  muito  pertencente  ao  rol  das  cousas  destruídas,  como  diz  o  poeta 
d'esta  famosa  cortezã.  O  ultimo  explorado  foi  um  cardeal,  que  a  comprou  por 
bom  preço  como  donzella,  e  a  ensinou  em  seguida  a  cantar,  a  dançar,  a  locar 


414  HISTORIA 

alaúde,  a  faltar  com  correcção  e  a  ataviar-se  como  as  altas  damas.  O  prelado 
amava-a  bastante  para  não  lhe  recusar  nenhuma  prova  de  ternura.  Enrique- 
ceu-a  primeiro,  e  em  seguida  casou-a  com  um  fidalgo,  que  a  roubou  emquanto 
se  celebravam  as  bodas.  Ficou  arruinada,  e  deitando  para  traz  das  costas  os  res- 
tos de  vergonha,  abriu  a  porta,  e  sabendo  mais  o  que  era  o  mundo  do  que  no 
principio,  em  pouco  tempo  toriiou-se  celeberrima.  Quando  se  viu  tão  conhe- 
cida, determinou  pòr-se  por  conta  de  dois  ou  três,  que  lhe  davam  cada  qual 
trinta  escudos  por  mez. 

Era  pouco.  Tractou  de  esfollar  os  seus  amantes,  fazendo  crer  a  cada  um 
d'elles  que  era  mais  amado  do  que  os  outros.  Não  eram  jovens  nem  bonitos, 
mas  eram  crédulos  e  generosos.  .41ém  d'isso  ella  fugia  como  da  peste  d'esses 
rapazolas,  que  sem  gastarem  um  ceitil  querem  ser  amados  das  bellas,  e  ima- 
ginam ter  pago  muito  bem  com  uma  chalaça,  uma  canção,  uma  serenata. 

Conhecia  todos  os  mysterios  da  vida  das  cortezãs  e  empregava-os  em 
proveito  próprio,  dando-se  ainda  assim  ares  de  honradez  e  honestidade. 

Tinha  também  um  cuidado  especial  em  não  tolerar  no  seu  corpo  a  me- 
nor immundicie.  Bebia  pouco,  comia  sobriamente,  cheirava  bem,  estava  sem- 
pre vestida  com  accio  irreprehensivel  tanto  em  publico,  como  nos  seus  apo- 
sentos. Nunca  lhe  faltava  roupa  branca  perfumada  com  essências  agradáveis. 
O  seu  quarto  de  vestir  era  uma  espécie  de  loja  de  perfumaria.  Um  artificio 
muito  vulgar  nas  cortezãs,  e  em  todas  as  mulheres  que  se  preoccupam  com  as 
impressões  que  podem  causar:  —  nunca  permitlia  que  a  surprehendessem  de 
manhã.  N'uma  palavra,  estava  instruída  na  arte,  tão  proficientemente  ensinada 
pelo  Aretino.  Conhecia  theorica  e  praticamente  todos  os  segredos  do  livro  do 
poeta  italiano,  e  além  d  estes,  muitos  outros  ainda,  que  tinham  por  fim  acor- 
dar os  sentidos  adormecidos. 

Sabia  também  occultar  a  sua  profissão.  Era  recatada  nas  palavras,  fingia 
admiravelmente  a  virtude,  e  conseguia  disfarçar-se  tão  bem,  que  da  sua  bocca 
apenas  saiam  palavras  honestas;  era  como  engraçadamente  diz  o  poeta: 

Sage  au  parler  et  fôlalre  «  la  couche. 

Foi  assim  que  ella  conseguiu  adquirir  fama  em  Roma  e  em  Paris,  de 
maneira  que  era  do  bom  tom  fazer-lhe  amor, 

Au  demeurant,  (úl  de  nuil  ou  de  jour. 

Comprehcnde-se  que  a  famosa  cortezã  nada  tinha  a  temer  das  medidas 
policiaes  relativas  ás  suas  similhanles,  que  pertenciam  á  arraia  miúda  da  pros- 
tituição. Não  leceiava  andar  pelos  logares  públicos  sem  a  sua  licença,  porque 
tinha  auctorisação  tacita  para  fazer  o  que  quizesse.  Nem  o  preboste,  nem  os 
beleguins  a  assustavam.  A  própria  prisão  não  lhe  incutia  terror.  Em  caso  de 
perigo  lá  tinha  pelo  seu  lado  a  protecção  de  um  cardeal,  ou  de  um  grande  fi- 
dalgo, de  tantos  que  lhe  fre(|uentavam  a  casa,  o  que  fazia  com  que  fosse  res- 
peitada. 


DA   PROSTITUIÇÃO  415 

A  Romana  chegara  a  este  apogeu  de  fortuna,  em  seis  ou  sete  annos. 
Quando  o  espelho  começou  a  revelar-lhe  os  primeiros  symplomas  da  decadên- 
cia, penetrou-lhc  no  coração  a  vergonha  e  o  arrependimento  dos  seus  erros.  Um 
dia  entrou  n'uma  cgreja,  e  o  sermão,  que  alli  ouviu,  fez-lhe  comprehender  bem 
■  o  escândalo  da  sua  vida  passada,  e  sentiu  toda  a  amargura  que  deixam  na 
alma  os  prazeres  da  prostituição.  Que  prazeres  aquellesi  murmurava  ella  ar- 
rependida e  humilhada.  Expor  vergonhosamente  o  corpo  ao  appetite  lúbrico  de 
tantos  libertinos,  imitar  o  viver  dos  animaes  mais  sórdidos,  para  procurar  no 
vicio  o  ouro  deshonesto,  não  fallando  já  nos  perigos  de  enfermidades  horríveis, 
que  são  quasi  sempre  a  triste  herança  de  uma  vida  abjecta  e  dissoluta  I 

A  celebre  cortezã  entrou  n'um  convento  para  fazer  penitencia  e  lavar-se 
das  suas  impurezas  com  a  pratica  das  mais  austeras  devoções,  e  julgando  não 
precisar  já  de  bens  terrenos  legou  á  santa  casa  o  producto  dos  seus  vicios. 

Pouco  depois,  arrepende-se  de  se  ter  arrependido.  Atira  com  os  hábitos 
para  traz  dos  moinhos,  e  volta  novamente  á  vida  antiga. 

Era  tarde,  porém. 

Adeus,  grandes  fidalgos!  Adeus  amores  de  alto  cothurno! 

Em  vez  delles,  bate  á  porta  da  cortezã  a  syphilis  gottoza, 

La  denterelle  et  pelade  honteuse, 

como  diz  o  cantor  dos  seus  feitos  impuros. 

Um  dia  bate-lhe  á  porta  o  carrasco  a  quem  cila  recebe  no  leito  em  vez 
de  algum  dos  antigos  e  fidalgos  amantes,  e  que  lhe  recompensa  os  sediços  fa- 
vores, açoitando-a,  pouco  depois,  na  praça  publica  I 


CAPITULO  XXXV 


SUMMARIO 


A  prostituição  nas  modas  —Historia  dos  Irajíissnh  o  ponto  do  vista  dos  costumes.  — O  amor  do  luxo  conduz 
A  p-ostituífão.—  l.eis  sumptuárias  dos  reis.  — Simpliciílade  do  trajo  nacional  dos  IVanci^zus.— Começo  da  licença  dos 
tiajos.  — Os  monges  de  Saint-lténv  de  lleims.  — O  cal;adu  «  la  pnnlnine.  -  A  poulaine,  araaloiçoada  por  lleiís.— 
Anatliemas  da  E-r.J  i  contra  esta  moda  obscena.  —  As  cruzada»  trazem  á  França  os  costumes  urientaes.  —O  culto 
da  mola,  se-uudn  Roberto  Gaíuin.  —  O  iiom-ni  esFoieando-se  por  se  parecer  com  o  demónio.— Os  cornos  c  os  rabos 
no  tempo  de  Carlos  vi  —  Esap-ee.ação  dos  rmurinos  dos  vestido?.— Dellnieão  doí  vi'Stidos  boneslos.  seRundo  Cliris- 
tina  de  Pisan  —As  modas  de  Isabel  de  lia  viera  — Estiavagantes  vestidos.  -Preoccupaçõe.í  contra  as  mullieres  que  se 
lavam,— Os  banbos  e  estufas.— As  modas  dos  homens  no  S''ai\nxv.—3lali.oUrcs.—Braguettes.—Basquines.—  $en 
uso.— O  decote,  o:i  nudez  do  seio.  -  Leitos  de  setim  preto.— RePinimentos  de  sensualidade.  —  Progresso.s  da  decen 
cia  publica. 


xiSTiRAM  serapre  intimas  relagóes,  analogias  c  aíTinidailes,  singu- 
lares cnlrc  os  costumes  c  as  modas  francezas,  de  inodo  tal  que 
podem  apreciar-se  uns  poios  ouiros.  Ouando  os  costumes  são 
puros,  austei-os,  moderados,  as  modas  são  lambem  simples, 
ducenli's  i'  honestas;  pelo  contrario,  são  as  modas  extra- 
vagantes, dissolutas,  obscenas,  quando  os  costumes  são  desenfreados  e  escan- 
dalosos. O  trajo  de  cada  époclia  da  Historia  de  França  é,  por  assim  dizer,  um 
espelho  fiel  dos  hábitos  da  vida  intima  das  famílias.  Basta  por  exemplo  ver  a 
represenlaçã.0  fi^i  dos  trajos  dos  homens  e  mulheres  do  século  xvi,  para 
reconhecer  de  uma  maneira  exacta  que  eslc  século  foi  mais  inclinado  á  pros- 
tituição que  todos  os  precedenles. 

Seria  fácil  escrever  a  historia  do  trajo  em  França,  sob  o  ponto  de  vista 
dos  costumes,  desde  os  tempos  mais  remotos.  No  emlanlo,  limilar-nos-hemos 
aqui  a  procurar  episodicauicnle  os  caracteres  mais  salientes  do  que  se  poderia 
chamar  a  prostituição  indumentária  de  ambos  os  sexos.  Pretendemos  apenas 
esboçar  este  vasto  e  curioso  assumpto,  dizendo  comtudo  o  bastante  para  termos 
como  assente  (|ue  a  moda  foi  sempre  entre  os  nossos  maiores  o  reflexo  dos 
seus  costumes. 

A  moda  não  é  ordinariamente  senão  uma  forma  e  uma  expressão  do  luxo, 
que  tão  funesta  inlluencia  exerce  na  moralidade  publica,  e  que  abre,  por  assim 
dizermos,  a  porta  a  todas  as  loucuras,  a  todas  as  desordens  e  a  todos  os  vicios. 
O  amor  do  luxo  conduz  á  libertinagem  e  aconselha  a  prostituição;  é  o  atlraelivo 
e  o  chamariz  de  todas  as  paixões  más.  Ha  em  todo  um  povo  uma  emulação 
ardente  e  desordenada  para  o  mal,  quando  o  objecto  único  de  todos  os  pensa- 
mentos e  de  todas  as  acções  humanas  não  é  mais  do  que  a  satisfação  immode- 

HuTOBU  DA  PaoiTiruiçÃo.  Tomo  n— Folha  53. 


4-18  HISTORIA 

rada  dos  sentidos  c  da  vaidade.  N'estas  circumstancias,  a  moda  é  simultanea- 
mente um  alarde  de  orgulho  e  uma  excitação  á  incontinência. 

Os  soberanos  tentaram  por  mais  de  uma  vez  pôr  limites  ás  exaggerações 
do  luxo,  por  meio  de  leis  sumptuárias  regulando  o  trajo  especial  de  cada  classe 
de  cidadãos.  Em  todo  o  caso,  não  attenderam  senão  á  qualidade  e  valor  dos 
objectos  materiaes  que  haviam  de  auctorisar  ou  prohibir,  e  as  suas  prescripções 
são,  portanto,  puramente  económicas  e  politicas.  Umas  vezes  pretendem  que 
cada  qual  vista  segundo  o  seu  estado,  e  que  por  meio  dos  trajos,  como  diz  uma 
ordenação  de  Carlos  vii,  possa  reconhecer-se  a  classe  da  pessoa,  seja  ella  príncipe, 
nobre  ou  plebeu ;  outros  querem  que  os  seus  vassallos  não  se  arruinem  com 
vestidos  sumptuosos,  impróprios  da  sua  condição  e  estado,  como  se  lé  n'uma 
ordenação  de  Carlos  viii,  que  recorda  ao  mesmo  tempo  que  taes  abusos  são 
desagradáveis  a  Deus,  nosso  Creador:  outros  ainda  pretendem  que  o  paiz  não 
se  empobreça  com  a  compra  de  certos  artigos  estrangeiros,  que  fazem  sahir 
do  reino  uma  parte  do  numerário,  como  se  diz  n'uma  ordenação  de  Carlos  ix  ; 
nenhum  d'elles,  porém,  tracta  de  manter  a  decência  do  trajo  com  regulamen- 
tos fixos  e  uma  penalidade  severa.  Recommendar,  exigir,  impor  a  modéstia  do 
trajo,  é  da  competência  do  poder  ecclesiastico;  só  a  elle  pertence  condemnar, 
proscrever  e  anathematisar  as  modas,  que  não  estão  em  harmonia  com  o  pudor 
que  a  religião  chrislã  impõe  a  todos  os  seus  filhos. 

Não  deixam  de  encontrar-se  aqui  e  alli  nas  leis  de  policia  ordenações 
do  parlamento,  que  prohibem  o  uso  de  trajo.s  dissolutos:  ainda  assim  não  eram 
designados  sob  esta  denominação  os  vestidos  immodestos  que  os  dois  sexos 
usavam  á  porfia,  como  refinamento  de  galanteria  e  de  sensualidade.  A  lei  civil 
não  atacava  senão  os  excessos  do  luxo.  Só  a  lei  religiosa  e  a  lei  moral,  desde 
a  introducção  do  christianismo  nas  Gallias,  podiam  reprimir  a  licença  das  mo- 
das, e  vigiar  os  trajos  sob  o  ponto  de  vista  dos  costumes. 

Nos  primeiros  tempos  da  monarchia,  hom\^ns  e  mulheres  usavam  trajos 
largos  e  amplos,  que  dissimulavam  os  movimentos  do  corpo  sem  deixarem 
nada  a  descoberto.  Os  francezes  adoptaram  o  trajo  romano,  a  toga,  a  chlamj'de 
e  a  túnica,  conservando  as  bragas  ou  calções  dos  povos  bárbaros. 

O  trajo  da  mulher,  mais  simples  ainda  que  o  dos  homens,  compunha-se 
de  uma  túnica  de  lã  ampla  e  fluctuante  até  aos  calcanhares  e  de  um  manto 
preso  ao  hombro.  Usavam  além  d'isso  um  longo  véu,  em  que  se  envolviam 
completamente  e  que  prendiam  á  cabeça  com  um  broche  de  metal.  Fosse  qual 
fosse  a  classe  da  mulher,  não  se  mostrava  em  publico,  senão  honestamente 
velada,  e  tinha  um  cuidado  especial  em  não  deixar  ver  sob  aquellas  vestes  ro- 
çagantes forma  alguma  reveladora  do  seu  sexo. 

O  amor  dos  adornos  e  enfeites,  esse  traço  distinctivo  da  nação,  apenas  se 
traduzia  pelos  braceletes  de  ouro  macisso,  auneis,  collares  e  jóias  de  toda  a 
espécie.  A  mulher  mais  carregada  de  ouro  era  a  mais  adornada,  e  comprehen- 
de-se  que  esta  necessidade  de  brilhar  a  todo  o  custo  fizesse  ás  vezes  vacillar  a 
virtude. 

Bem  depres.sa,  porém,  o  bello  sexo  se  mostrou  mais  cioso  dos  seus  di- 
reitos e   vantagens.   As  mulheres  começaram  a  usar  túnicas,  cujo  feitio  deli- 


DA    PROSTITUIÇÃO  4  I 

neava  as  formas,  modelando-se  no  seio.  Em  seguida  estas  túnicas  decotaram-se 
ainda  em  volta  do  pescoço  e  até  ao  principio  dos  hombros.  Mais  tarde,  para 
dar  graça  ao  movimento  do  andar,  ajustaram-se  mais  ao  corpo  debaixo  da  cin- 
tura, de  modo  que  dessem  relevo  ás  nádegas  e  aos  músculos  das  pernas,  que 
■  até  então  desappareciam  completamente  sob  as  espessas  pregas  da  casta  e  an- 
tiga túnica  das  gaulezas. 

Apesar  d'isto,  porém,  nenbuma  mulher  honrada  ousaria  facilmente,  an- 
tes do  século  XII,  arrostar  os  olhares  dos  homens  com  um  trajo  que  deixasse 
vèr  o  seio,  os  hombros  e  os  braços. 

Talvez  fossem  os  homens  que  começassem  a  relaxar  a  decência  do  trajo 
nacional,  a  que  Carlos  Magno  quiz  dar  a  antiga  singeleza  franca.  Em  um  sy- 
nodo  celebrado  em  Reims,  em  973,  Raul,  abbade  de  Saint-Rémy,  queixou-se 
dos  seus  frades,  que,  ajustando  os  hábitos  sobre  as  nádegas,  pareciam  por  de- 
traz  mais  umas  cortezãs  do  que  austeros  religiosos.  (Chronica,  de  Richer, 
lib.  m.)  Estes  mesmos  frades  usavam  calções  impudicos  (iníqua)  de  desme- 
dida largura,  e  de  fazenda  tão  transparente  que  nada  occultavam. 

Desde  esta  épocha,  o  calçado  à  la  poulaine,  de  garra  ou  de  bico,  foi  usado 
por  mais  de  quatro  séculos,  apesar  dos  analhemas  dos  papas  e  das  reprehen- 
sões  dos  pregadores.  Este  calçado  foi  sempre  considerado  pelos  casuistas  da 
Edade-Média,  como  o  mais  abominável  emblema  da  sensualidade.  A  primeira 
vista  não  se  percebe  lá  muito  bem  o  que  poderiam  ter  de  escandaloso  esses 
sapatos  terminados  em  garra  de  leão,  bico  de  águia,  proa  de  navio,  ou  outro 
qualquer  appendice  de  metal.  A  excommunhão  imposta  a  esta  espécie  de  cal- 
çado procedia  da  impudente  invenção  de  alguns  libertinos,  que  o  usaram  em 
f(5rma  de  phallo,  ou  membro  viril.  Este  calçado  phalloide  foi  egualmenfe  ado- 
ptado peias  mulheres,  que  talvez  nem  comprehendessem  bem  o  que  a  moda 
lhes  fazia  usar  nas  biqueiras  do  calçado. 

Este  calçado,  maldito  de  Deus,  como  era  então  denominado,  fora  também 
prohibido  pelas  ordenações  dos  reis  ((Cédula  de  Carlos  v,  de  1 7  de  outubro  de 
1367,  relativa  ao  trajo  das  mulheres  de  Montpellier). 

Comtudo  isto,  porém,  as  damas  principaes  e  os  grandes  senhores  não 
deixaram  de  usar  este  calçado,  por  certo  mais  honesto  então  do  que  aquelle 
que  suscitara  a  indignação  da  Egreja,  e  que  segundo  a  expressão  do  continua- 
dor de  Guilherme  de  Nangis,  parecia  querer  tirar  do  seu  logar  os  membros 
iiumanos.  Por  esta  razão  Carlos  v,  de  accordo  com  o  papa  de  .4vinhão,  Ur- 
bano V,  prohibiu  o  uso  d'este  indecente  calçado : 

Quia  res  erat  valdè  liwpis  el  qiiasi  contra  creationem  naluralium  inem- 
brorum  circa  pedes,  quin  ima  alimus  nalunv  videbatur.  (Continuator  Nangis, 
an.   1365.) 

A  moda  arrostou,  porém,  com  os  edictos  reaes,  porque  no  tempo  de 
Luiz  IX  a  gente  da  corte  usava  ainda  esses  appendices  de  vinte  a  trinta  centí- 
metros de  comprimento,  d' une  quarlier  de  long,  como  ao  estylo  da  épocha  di- 
zia Monstrelet,  ou  o  seu  continuador.  Estes  appendices,  porém,  não  tinham  já 
formas  obscenas,  voltando-se  apenas  para  cima  como  o  calçado  chinez  ou  turco. 

Temos  de  attribuir  precisamente  ás  cruzadas  a  variação  do  trajo  nacional 


420  HISTORIA 

francez.  As  modas  do  Oriente  foram  impo"tadas  em  França  pelas  cruzadas  eom 
as  sedas  do  paiz,  e  a  juventuJe  nobre  cffL'minou-se  para  logo,  apropriando-se 
os  usos  e  hábitos  do  luxo  asiático.  Não  se  viam  por  essa  épocha  senão  teci- 
dos de  ouro,  panos  de  purpura,  sedas,  selins,  pelles  preciosas,  bordados  e  fran- 
jas, em  vez  dos  grosseiros  tecidos  de  lã  e  de  pelle  de  cabra,  que  chegavam  até 
alii  para  os  fatos  dos  nossos  maiores. 

Vimos  como  o  luxo  foi  projudi -iai  aos  hons  costumes.  Pôde  dizer-se  af- 
foitamente  que,  desde  esta  épociía,  sobre  tudo  as  mulheres  se  deixaram  arras- 
tar a  todo  o  impudor  do  que  hnje  denominamos  a  toilelle.  A  partir  d.i  século 
XII,  renunciaram  á  simplicidade  e  castidade,  para  seguirem  com  desenfreada 
paixão  o  culto  da  moda,  que  veio  a  ser  desde  esse  tempo  uma  divindade  com- 
pletamente franceza. 

Eis  em  que  termos  Roberto  Gaguin  se  pronuncia  contra  este  culto  pro- 
fano, que  o  demor)io  da  luxuria  parecia  ter  inventado  : 

«Esta  nação,  diz  elle  lallando  dos  írancezes,  entregue  ao  orgulho  c  á  li- 
bertinagem, não  faz  senão  desvarios  c  loucuras.  Umas  vezes  os  vestidos  que 
ella  adopta  são  muito  largos,  outras  muito  estreitos;  aprescnta-os  agora  com- 
pridos e  logo  curtos.  Ávida  sempre  de  novidades,  não  pode  conservar  por  es- 
paço de  dez  annos  a  mesma  fíírma  de  vestidos.  (Compendiuni  Uobeni  Gaguini, 
lib.  VIII,  anno  134(i.) 

Dir-se-hia  que  em  toda  a  Edade-Média  houve  uma  espécie  de  porfia  en- 
tre os  inventores  da  moda  para  deformarem  o  corpo  do  homem  com  vestidos 
ridículos  ou  monstruosos,  a  que  o  chronista  (iaufredo  Vosiensis  chama  defor- 
mila.s  vestinni,  e  para  accrcscentarem  á  creatura  de  Deus  alguns  attributos  do 
diabo,  tal  como  a  imaginação  dos  pintores  e  dos  estatuários  o  havia  creado. 
Assim,  podemos  coiisideiMr  o  calçado  à  la  pouíaine  como  uma  imitação  do  pé 
fendido  que  se  altribuia  a  Satauaz  e  á  sua  infernal  familia.  D'aqui  sem  duvida 
a  cólera  da  Egreja  contra  a  audaz  pretensão  do  homem  libertino  se  assimilhar 
physicamente  com  o  espirito  maligno. 

A'  mesma  origem  foi  certamente  buscar  a  moda  do  século  xiv  os  cornos 
e  os  rabos.  Os  cornos  extraordinariamente  largos  e  elevados,  que  adornavam 
lateralmente  o  toucado  das  mulheres  no  tempo  de  (larlos  vi,  chegaram  a  tomar 
taes  proporções,  (]ue  as  portas  das  salas  já  não  eram  sutiicientemente  grandes 
para  que  uma  dama  assim  adornada  podesse  passar  sem  se  abaixar. 

Um  pregador  da  corte  fulminou  os  raios  da  sua  cólera  contra  os  cornos, 
exactamente  o  mesmo  que  os  seus  predecessores  haviam  feito  contra  o  calçado 
phalloide. 

«Depois,  diz  Juvenal  dos  Ursinos,  na  sua  chronica,  as  damas  levantavam 
e  abaixavam  os  cornos,  e  lizeram  como  os  caracoes,  que,  quando  sentem  algum 
ruido,  os  retiram  e  escondem.» 

As  caudas,  que  mereceram  também  as  imprecações  dos  pregadores,  eram 
mais  ou  menos  deshonestas  e  desenvolvidas  por  baixo  das  saias  e  nas  extre- 
midades dos  capuzes.  As  caudas  dos  vestidos,  que  Olivier  Maillard  considera 
como  invenções  diabólicas  em  muitos  dos  seus  sermões,  ficaram  não  obstante 
em  uso  sob  a  protecção  da  etiqueta. 


DA    PROSTITUIÇÃO  421 

As  dos  capu/es,  que  cabiam  pelas  costas  dos  homens  e  das  mullieres  e 
chegavam  até  ao  chão,  cnrolavam-sc  a  principio  sobre  o  hombro  e  depois  ao 
pescoço. 

Não  podemos  conjecturar  se  um  orgulho  satânico  poz  em  moda  as  gar- 
ras, os  cornos  e  os  rabos,  ou  se  um  gosto  depravado  aconselhou  os  homens  e 
as  mulheres  a  diminuir  ou  a  augmentar  nos  seus  trajos  as  proporções  de  cer- 
tas partes  do  corpo.  A  origem  d'cstas  illusões  de  trajo  accusa  certamente  o  de- 
sejo de  corrigir  a  natureza  no  que  ella  pode  ter  de  defeituoso  ou  imperfeito. 
Procurou-se  talvez,  com  o  auxilio  dos  prestígios  do  toucado,  descobrir  o  meio 
de  occultar  os  vicios  da  forma:  a  muliíer  demasiado  magra  quiz  parecer 
gorda,  e  pelo  contrario  a  mulher  demasiado  gorda  quiz  dissimular  a  sua  adi- 
posidade. 

«É  preciso,  diz  Maria  de  Romien,  na  sua  Inslrucrão  ás  damas,  é  preciso 
remediar  os  defeitos  e  imperfeições  da  natureza  o  melhor  que  podermos.» 

Devemos  reconhecer,  porém,  que  a  maior  parte  d'eslas  exaggerações  da 
forma  de  trajar  tiveram  por  objecto  satisfazer  instinctos  e  caprichos  de  liberti- 
nagem, porque  similbantes  exaggeros  aflectaram  sempre  as  partes  do  corpo 
que  principalmente  influem  nas  imaginações  licenciosas.  Assim,  as  nádegas, 
as  pernas,  a  cintura,  o  collo  c  o  seio  foram  sempre  nas  mulheres  as  formas 
que  excitaram  a  arte  das  costureiras  e  modistas  ;  pela  sua  parte,  a  industria 
do  alfaiate  procurou  sempre  pôr  em  relevo  e  offerecer  á  vista  com  descarado 
cynismo  os  membros  mais  desiioncstos  do  homem. 

Esla  alTcctação  indecente  de  ambos  os  sexos  nunca  foi  mais  sensível  do 
que  no  tempo  de  Carlos  vi,  e  devemos  alfribuir  á  garridice  desenvolta  da  rai- 
nha Isabel  de  Baviera  os  extravios  das  modas  do  seu  tempo,  em  que  a  pros- 
tituição tão  audazmente  se  rellecliu  no  trajo  da  corte. 

Christina  de  Pisan,  aquella  honesta  e  casta  dama,  que  por  esse  tempo 
compunha  o  seu  Trésor  de  la  cite  des  dames,  não  foi  decerto  muito  estimada 
n'aquclla  sociedade  depravada,  que  bem  pouco  se  importava  aprender  d'ella 
como  as  mulheres  da  nobreza  devem  ser  recatadas  no  vestir.  (Christina  recom- 
mendava-lhes  expressamente  que  não  fossem  insolentes  nos  seus  trajos  e  modo 
de  vestir,  nem  nos  costumes  nem  nas  maneiras. 

Uma  das  razões  que  ella  apresentava  contra  o  luxo  immoderado  da  moda, 
era  que  «o  fato  dissoluto  fornece  ao  homem  occasião  de  peccado,  de  murmu- 
ração, ou  de  appelite  sensual.» 

Este  appetile  ou  desejo  é,  elTectivamente,  uma  das  más  paixões  a  que  a 
moda  se  dirige  especialmente,  e  Christina  de  Pisan  notava  com  justiça  «que  o 
mais  perigoso  e  inconveniente  que  tem  para  a  mulher  o  trajar  deshonesto  é 
a  ideia  que  d'ella  podem  formar  os  néscios,  de  que  se  veste  assim  para  ser 
sensualmente  desejada.» 

Eis  algumas  das  virtuosas  instrucções,  que  Christina  dá  ás  damas  e  don- 
zellas,  mas  que  ninguém  acceitava  nem  seguia : 

«Convém,  portanto,  a  toda  a  mulher  que  quer  guardar  a  sua  boa  repu- 
tação, que  seja  honesta  e  desaíicctada.  Os  vestidos  nem  devem  ser  muito  es- 
treitos nem  muito  largos,  nem  de  outras  maneiras  impudicas,  nem  procurar 


422  HISTORIA 

coisas   novas,   quasi   sempre  deslionestas.  Os  inodos  agradáveis,  o  bom  porte, 
a  compostura  ficam  sempre  bem  a  toda  a  mulber.» 

Apesar  d'estes  prudentes  e  bonestos  conselhos,  as  contemporâneas  de 
Cliristina  não  se  contentavam  com  os  trajos  modestos,  e  porfiavam  em  mos- 
trar-se  aos  olbos  dos  homens  com  todos  os  requintes  da  elegância  sensual  da 
sua  épocha. 

Usavam  hennins,  ou  altos  capuzes  de  orelhas  e  cornos,  vestidos  de  cauda 
arrastando  pelo  chão,  surcots,  ou  corpctes  justos,  sapatos  ã  la  poulaine,  todos 
os  enfeites  e  adornos  dos  seus  eslals  e  bomhans,  e  o  seu  gosto  era  mostrarem 
a  sua  aptidão  para  a  luxuria,  o  seu  en  boii  poinct,  como  se  dizia  em  França 
no  estylo  da  épocha. 

O  poeta  da  corte  de  Carlos  vi,  Eustáquio  Deschamps,  no  poema  intitu- 
lado Miroir  de  maringe.  Espelho  do  matrimonio,  anima  as  solteiras  que  procu- 
ram marido  a  adoptarem  os  vestidos  da  ultima  moda  para  tornarem  mais  ap- 
parentes  o  seio  e  a  garganta. 

Ainda  que  a  magreza  nas  mulheres  fosse  mais  rara  n'oulro  tempo  do  que 
actualmente,  havia  não  obstante  mulheres  magras  que  se  teriam  julgado  des- 
honradas,  se  não  adquirissem  por  meios  artificiaes  a  gordura  que  lhes  faltava. 
Era  aquillo  ainda  a  infância  dos  falsos  attractivos,  que  desde  aquella  épocha 
até  nossos  dias  não  deixaram  de  fazer  parte  essencial  da  compostura  da  mu- 
lher. O  poeta  Eustáquio  Deschamps,  no  poema  já  citado,  não  os  deixa  no  ol- 
vido, e  dá-se  até  mesmo  ao  trabalho  do  indicar  o  modo  de  os  fabricar,  de  forma 
que   pela    descripção  do  poeta  tinham  quasi  o  aspecto  de  um  corset  moderno. 

Uma  mulher  da  moda  n'aqueile  tempo  devia  fazer  sobresahir  as  nádegas 
e  quadris,  dando  ás  suas  formas  posteriores  grande  amplitude  e  proeminência. 
O  processo  menos  íiclicio  consislia  em  apertarem  muito  a  cintura,  afim  de  pa- 
recerem mais  amplas  e  desenvolvidas  estas  formas,  debaixo  do  busto  oppri- 
mido  por  aquella  espécie  de  corset,  de  que  já  falíamos. 

Eustáquio  Deschamps  descreve  este  processo  como  se  houvera  aprendido 
a  poesia  n'um  atelier  de  modista.  Segundo  a  sua  descripção,  o  vestido  de  uma 
mulber  da  moda  devia  ser  estreito  dos  lados,  largo  e  entufado  atraz,  guarne- 
cido com  esse  accessorio  (|ue  chamamos  lournuve,  menos  largo  abaixo  dos  joe- 
lhos, e  cabindo  sobre  os  pés  em  forma  de  fundo  de  pipa. 

As  miniaturas  dos  escriptos  da  épocha  permittem-nos  apreciar  o  aspecto 
extravagante,  rigido  e  desengraçado,  que  similhantes  vestidos  davam  ás  mu- 
lheres. 

Weste  modo  de  vestir,  o  peito  estava  inteiramente  descoberto,  pectus  dis- 
coperlum  usqae  adve.ntre.in,  diz  Olivier  Maillard  iVuin  dos  seus  sermões.  Esta 
espécie  de  vestidos,  abertos  por  diante  até  ao  ventre,  foram  inventados  pela 
rainha  Isabel,  e  o  povo  que  se  indignava  d'cste  luxo  escandaloso,  cbamou-lhes 
vestidos  à  la  grande  (jorre,  como  quem  diz  á  grande  porca.  Chamava  também 
gorrières,  ou  porcas,  ás  mulheres  que  os  usavam,  e  consideravam  como  mulheres 
publicas  as  (jue  não  tinham  a  procancão  de  segurar  com  um  broche  a  abertura 
do  peito. 

Desde  os  fins  do  século  xiv,  existiu  sempre  nas  modas  das  mulheres  uma 


DA    PROSTITUIÇÃO  i?3 

intenção  mais  ou  menos  pronunciada  de  patentear  o  que  se  fingia  querer  en- 
cobrir. 

Se  a  licença  de  costumes  d'aquella  épocha  trouxe  a  deshonestidade  do 
trajar,  se  o  amor  do  luxo  foi  o  principal  agente  da  prostituição,  precisamos 
confessar  que  o  galanteio  ensinou  as  mulheres  a  serem  limpas,  ellas  que  ate 
então  eram  tão  porcas  e  tão  pouco  cuidadosas  de  suas  pessoas.  Um  provérbio 
popular,  referido  e  commentado  por  Bernardo  de  Verville  no  seu  \lot]en  de  par- 
tenir,  prova  sullicientcmente  que  as  mulheres  honestas  se  jactavam  de  nunca 
se  permittirem  ablucções  secretas. 

Segundo  este  provérbio  obsceno,  só  as  cortezãs  lavavam  outras  partes  do 
corpo  que  não  fossem  a  cara  e  as  mãos. 

O  desejo  e  a  necessidade  de  agradar  ensinaram  evidentemente  as  damas 
a  ser  limpas  e  acceiadas,  a  perfumarem-se  e  a  combater  com  cheiros  agradá- 
veis as  emanações  nauseabundas  da  enfermidade  humana.  Parece,  no  emtanlo, 
que  certos  cuidados  de  toucador  foram  a  principio  desprezados  pela  preoccupa- 
ção  nacional,  e  que  decorreu  muito  tempo  antes  de  se  empregarem.  Se  as  mu- 
lheres, porém,  rodeavam  do  mais  profundo  mysferio  estas  delicadezas  do  acceio 
local,  não  receiavam  confessar  o  uso  que  faziam  dos  cosméticos,  pelo  que  se  lhes 
deu  a  alcunha  de  muguettes,  isto  é,  presumidas. 

Até  ao  século  xvi  a  limpeza  do  corpo  não  era  uma  condição  essencial  da 
belleza  feminina.  Maria  de  Romien,  na  sua  Instrucrâo  das  damas,  convida-as 
a  estarem  sempre  muitas  limpas,  «ainda  que  não  seja  senão  para  satisfacção 
própria,  ou  de  seus  maridos.» 

E  accresccnta : 

«Não  se  deve  fazer  o  que  fazem  algumas,  que  eu  conheço,  que  não  tcem 
cuidado  da  limpeza  senão  do  (jue  apparcce  á  vista,  conservando-se  immundas 
por  baixo  das  roupas.  Eu  quero  que  uma  joven  se  lave  frequentemente  com 
agua  em  se  hajam  misturado  alguns  perfumes,  pois  não  ha  nada  mais  certo 
do  que  o  acceio  e  limpeza  fazerem  llorescer  a  formosura  da  dama.» 

Nas  Controvérsias  do  sexo  masculino  e  feminino,  de  Graciano-Du-Pont, 
senhor  de  Drusac,  publicadas  era  1530,  lê-se  que,  não  obstante  as  leis  natu- 
raes  da  limpeza,  as  mulheres  usavam  mais  de  perfumes  do  que  de  agua  limpa, 
com  o  que  não  faziam  mais  do  que  augmentar  o  mau  cheiro  que  pretendiam 
destruir.  Drusac  diz  que  algumas  d'eUas,  as  gordas  sobretudo,  usavam  espon- 
jas perfumadas,  «entre  as  coixas,  debaixo  dos  assentos,  para  não  cheirarem  a 
bacalhau,  a  suor,  e  a  outros  fedores  infames.» 

E'  mister  ler  estas  Controvérsias  para  se  fazer  ideia  do  que  era  a  por- 
caria de  quasi  todas  as  mulheres,  e  principalmente  das  honradas,  apezar  do 
seu  abuso  de  perfumarias,  que  não  consideravam  de  modo  algum  como  uma 
deshonra. 

O  senhor  de  Drusac  refere  que  algumas  d'ellas  costumavam  usar  (-alças 
quando  dançavam  as  danças  lombardas  ou  alegres,  e  que  essas  calças  estavam 
ordinariamente  tão  cheias  de  manchas,  que  cheiravam  peior  que  uma  latrina. 
Não  era  isto  um  perservativo  ellicaz  da  sua  virtude  ? 

Os   banhos  de  agua  do  rio,  fria  ou  tépida,  quasi  não  estiveram  era  uso 


i84  BkSTOKIA 

antes  do  século  xvii.  Tomavam-sc  apenas  no  interior  das  casas  ricas,  quando 
se  voltava  de  uma  viagem  ou  antes  de  se  sentar  á  meza. 

Na  Chronica  escandalosa  de  Luiz  xi,  vemos  que  este  rei,  quando  ia 
ceiar  ou  pernoitar  em  casa  de  alguns  moradores  de  Paris,  encontrava  sempre 
um  banho  tépido  á  sua  espera.  JNada  era  menos  geral,  porém,  do  que  esta  es- 
pécie de  banhos,  a  que  todos  preteriam  os  simples  banhos  de  vapor,  e  para  esse 
fim  iam  ás  estufas. 

Estes  eslabelecimenlos  públicos  multiplicaram-se  em  Paris  ate  ao  século 
XII  e  foram  muito  frequentados  até  ao  século  xvi,  cm  que  foram  abandonados, 
não  sabemos  bem  porquê.  Eram  uma  imitação  dos  costumes  orientaes,  que  as 
crusadas  haviam  importodo  em  França. 

As  mulheres,  porém,  pelo  menos  as  que  tinham  em  alguma  conta  a  sua 
reputação,  nà)  iam  ás  estufas,  onde  só  se  encontravam  parteiras,  criadas  de 
servir  e  mulheres  de  má  vida. 

«Assim,  dizia  Chrislina  de  Pisan,  banhos  e  estufas,  e  a  frequentação  de 
taes  companhias,  como  as  que  existem  alli,  sem  necessidade  algutna,  são  ape- 
nas despezas  superlluas,  sem  que  possa  provir  de  tal  bom  resultado,  e  por  isso 
de  cousas  taes  mulher  prudente  que  se  prése,  deve  abster-se  caulellosamente.» 

Deduz-se  de  uma  multidão  de  testemunhos,  todos  concordes,  que  a  mu- 
lher que  frequentava  as  estufas  não  voltava  d'ellas  limpa  do  physico,  senão 
á  custa  da  sua  pureza  moral.  l'"is  o  motivo  porque  estas  estufas  foram  equipa- 
radas aos  logares  de  prostituição. 

Os  homens  podiam  jactar-se,  pois,  de  serem  mais  difficeis  em  questões 
de  limpeza  do  que  as  mulheres,  e  por  isso  se  habituaram  menos  do  que  ellas 
aos  perfumes  e  arrebiques.  iNo  emianto,  em  modas  e  atavios  modellavam-se 
sempre  pelo  sexo,  que  era  o  arbitro  soberano  destas  preoccupações  mundanas. 
Em  todas  as  épochas  eríi  que  o  luxo  dos  vestidos  se  resentia  da  depravação  dos 
costumes,  os  homens,  do  mesmo  modo  que  as  mulheres  compraziani-se,  se- 
gundo a  expressão  de  Dulaure,  em  desfigurar  a  forma,  refazendo  por  assim 
dizer  a  obra  do  creador,  sob  a  inspiração  de  uma  ideia  indecente  ou  libertina. 

Assim,  quando  as  mulheres  se  empenharam  em  fazer  resallar  artificial- 
mente as  formas  do  seio,  das  pernas,  das  nádegas  e  do  ventre,  os  homens,  diz 
Monstrelct,  usaram  vestidos  tnais  curtos  de  que  nunca,  de  forma  que  se  lhes 
via  a  saliência  do  trazeiro  e  o  volume  das  pudendas,  coisa  deveras  impudica 
e  indecente.  Usavam  também  nos  gibões  grossos  mahoiíres,  para  fingirem  que 
eram  largos  dos  hombros. 

Os  mahoiíres  eram  apparelhos  acolchoados,  que  augmenlavam  o  volume 
dos  hombros  e  guarneciam  o  antebraço,  de  maneira  que  o  franganote  mais  es- 
quálido podia  assim  offerecer  o  aspccio  de  um  Hercules. 

A  vaidade  masculina  não  parou  aqui,  porém. 

•«No  tempo  de  Carlos  vii,  diz  Ludovic  Lalane,  no  seu  Diclion.  Enajclo- 
ped.  de  la  France,  artic.  Coslumes,  gcncralisou-sc  a  moda  dos  homens 
artificiacs  ou  enchumaçados,  chamados  mahoiíres,  de  que  pendiam  grandes 
mangas  acolchoadas,  e  a  das  braguelles,  que  se  collocavam  ao  meio  das  calças 
e  se  adornavam  com  franjas  e  fitas.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  425 

Os  historiadores  lia  moda  faliam  com  grandes  reservas  d'esta  parle  das 
calças,  ou  d'este  evlranho  appendice  a  que  se  chamava  liraguetti'  ou  breijette. 
nos  séculos  xv  e  xvi,  e  que  nos  seria  dilíicil  considerar  como  uma  moda  his- 
tórica, se  não  a  encontrássemos  nos  antigos  quadros  e  f^ravuras.  i\'a  sua  origem, 
era  uma  bolsa  ou  funda  de  coiro,  separada  inteiramente  das  calças,  a  que  se 
unia  por  meio  de  nós  ou  laços. 

Comprehende-se  que  esta  singular  peça  de  vestuário  não  esteve  em  uso 
a  principio  senão  entre  a  gente  do  povo.  C.onsiderou-se,  porém,  como  moda,  e 
quando  todos  se  habituaram  a  véi-a,  não  houve  inconveniente  algum  cm  lhe 
dar  foros  de  cidade  e  de  iiobrc/.a.  Desde  logo  muitos  homens,  sem  distiiicção, 
tanto  o  rei  como  o  trabalhador,  adoptaram  a  liraiiaeiíe,  e  a  cxhibiram  á  vista 
das  damas,  que  olharam  para  ella  sem  rubor. 

A  origem  da  hroíjuelle  remonta  sem  duvida  á  hisloi-ia  das  armas  defen- 
sivas. 

A  este  respeito,  pôde  Icr-se  um  capitulo  ijc  l^antai/nifl  (iib.  iii)  intitu- 
lado: De  como  a  hrmjuetle  c'  (í  pritneirn  pfva  de  armadura  entre  a  (jeiíle  de 
guerra. 

Quando  um  homem  de  guerra  estava  armado  dos  pés  á  cabeça  e  coberto 
de  chapas  de  ferro,  uma  caixa  de  metal,  guarnecida  interiormente  por  uma  es- 
ponja protegia-lhe  as  partes  pudendas.  Esta  caixa  foi  substituída  por  uma  rede- 
sinha  de  aço,  e  depois  por  uma  bolsa  de  couro.  O  couro  não  tardou  muito  a 
ceder-  o  logar  a  pannos  de  lã  ou  de  seda,  logo  que  a  braguelte  veio  a  ser  uma 
peça  do  Irajo  civil,  c  como  que  para  melhor  despertar  a  attenção,  enfeitou-se 
com  fitas,  com  dourados  e  até  com  jóias. 

1'ma  passagem  do  Garijanlaa,  em  que  Kahelais  descreve  minuciosamente 
o  trajo  de  um  heroe,  dá  uma  ideia  exacta  do  efíeito  que  devia  produzir  uma 
d'aquellas  braguettes-monsivos,  que  só  estavam  cheias  de  vento.  E'  preciso  não 
esquecer  que  o  Gargantua  era  um  gigante  enorme,  que  olhava  para  os  pari- 
sienses como  que  do  alto  de  uma  torre. 

Para  a  bragiiette  d'este  collosso  foi  mister  empregar  perto  de  vinte  me- 
tros de  panno  de  estopa,  branco,  e  deu-se-lhe  a  forma  de  um  arco  de  aboboda 
preso  por  dois  anneis  de  ouro,  que  enlaçavam  dois  broches  de  esmalte,  em  cada 
um  dos  quaes  se  engastava  uma  grossa  esmeralda  do  tamanho  de  uma  laranja, 
«porque,  como  dizem  Orpheu  e  Plinio,  não  tem  virtude  coercitiva  nem  confor- 
tativa  do  membro  natural».  A  abertura  da  braguelte  era  do  comprimento  de 
mais  de  um  metro,  dehiuada,  como  os  calções,  de  <lainasco  azul. 

«Yendo,  porém,  o  bello  bordado  de  canulilhos  e  os  preciosos  lavores 
de  ourivesaria,  guarnecidos  de  finíssimos  diamantes,  de  rubis,  de  turquezas, 
esmeraldas  e  pérolas  pérsicas,  comparar-se-hia  á  cornucopia  da  abundância, 
tal  como  se  vé  na  antiguidade,  e  tal  como  a  que  deu  Rhéa  ás  duas  nymphas 
Adrastea  e  Ida,  amas  de  Júpiter:  cornucopia,  galante,  succulenla,  sempre  ver- 
dejante, florescente  e  fructificante,  cheia  de  humores  prolíficos,  (lòres,  fructas 
e  delicias.  Por  Deus  juro  que  era  bello  de  ver!» 

Rabelais  occupa-se  tantas  vezes  das  braguetlea,  no  decurso  da  sua  bur- 
lesca historia,   que  é  fácil  comprehender  o  importante  papel  que  desempenha- 

HlSTORIi   DA  PBOSTITDIÇÍO.  TOMO  n— FOLHA  54. 


426  HISTORIA 

vam   no   mundo.  O  mesmo  jocoso  auctor  falia  até  de  um  livro  que  havia  es- 
cripto  a  respeito  da  dignidade  e  impoiiancia  das  braguettes. 

O  reinado  d'este  acccssorio  dos  trajos  masculinos  chegou  até  Henrique 
III,  em  que  os  alfayatcs  tiveram  a  ideia  de  o  substituir  pelos  calções  á  suissa. 

De  resto,  no  decurso  do  século  xvi,  o  trajo  dos  homens  sem  ser  amplo 
nem  largo  começou  a  ter  uma  decência  que  não  tivera  até  então,  embora  os 
velhos  e  os  libertinos  usassem  ainda  a  antiga  braijuette,  «esse  vão  e  inútil  mo- 
delo de  um  membro  que  nem  sequer  podemos  nomear  honestamente,  e  do  qual, 
sem  embargo,  fazemos  mostra  e  gala  em  publico».  {Essais,  de  Miguel  de  Mon- 
taigne, lib.  1,  cap.  22.) 

Os  trajos  enchumaçados  estavam  em  moda;  a  nosso  vêr,  porém,  não  se 
dava  uma  intenção  deshonesta  áquella  mania  de  pôralgodão  em  tudo,  enchendo 
assim  o  peito,  o  abdómen,  as  pernas,  as  costas,  com  almofadinhas  enchumaçadas. 

Lemos,  todavia,  em  alguns  auctores  que  os  costumes  italianos,  que  a 
esse  tempo  reinavam  na  côrtc  de  França,  foram  as  causas  únicas  d'aquella  os- 
tentação de  formas  redondas  e  voluptuosas,  que  os  jovens  libertinos  invejavam 
ás  mulheres.  Estas,  pelo  menos,  mostravam-se  fieis  ás  tradicções  do  seu  sexo, 
descobrindo  quanto  possível  o  seio,  e  ostentando  todos  os  atlribulos  da  Vénus 
Callipygia. 

As  basquines,  inventadas  d'ahi  a  pouco,  fizeram  furor.  Um  commenta- 
dor  da  Satijre-Menippée  (Edic.  de  Ralisbonne,  ITPG.  t.  ii,  pag.  388),  diz  que 
estes  trajos  foram  inventados  pelas  cortezãs  para  occultarem  a  sua  prenhez. 
Assim,  quando  as  mulheres  honradas  quizeram  rehabilitar  esta  moda,  adop- 
tando-a,  um  franciscano,  que  ao  tempo  pregava  em  Paris,  disse  n'um  sermão, 
que  as  damas   haviam  deixado  a  virtude,  mas  que  lhes  havia  ficado  a  sarna. 

Esta  moda  estava  já  em  voga  em  looO.  Um  poeta  moralista,  embora  jo- 
coso, publicou  por  esse  tempo  uma  satyra  a  respeito  d'este  trajo.  A  peça  teve 
bastante  êxito  para  excitar  o  estro  salyrico  dos  imitadores.  Um  d'elles  compoz 
e  deu  á  luz  a  Querella  do  c. .  .  contra  os  inventores  das  basquines.  Outro  fez 
logo  em  seguida  a  resposta  da  basquine  ao  c.  .  .  em  forma  de  invectiva. 

Os  postiços  que  as  mulheres  usavam  posteriormente  tomaram  um  nome 
grosseiro,  que  se  manteve  na  linguagem  usual  por  espaço  de  mais  de  quarenta 
annos.  Quando  uma  dama  queria  sabir,  dizia  ás  suas  criadas  :  «Tragam-me  o 
c...»  E  as  criadas,  que  o  procuravam,  respondiam:  «Não  apparcce  o  c...  da 
senhora»,  ou  então:  «O  c...  da  senhora  perdcu-se».  (V.  o  Dialogo  da  nora 
linguagem  franceza  italianisada,  por  Eslicnne,  edic.  de  Auberes,  1o79,  p.  202.) 

Lé-se  também  na  Salgre-  Menippée,  escripla  em  1393: 

«Mandou-se  igualmente  ás  mulheres  que  usassem  grandes  c.  ..» 

A  grosseira  palavra,  de  que  as  damas  se  serviam  sem  resguardo  para  de- 
signarem as  suas  basquines,  fora  inventada  pelo  povo,  que  só  com  repugnân- 
cia se  acostumou  a  similhanle  moda.  As  más  linguas  perseguiam  com  ditos  sa- 
fyrieos  e  injuriosos  as  que  ousavam  aprcsenlar-se  cm  publico  tão  ridiculamente 
vestidas.  O  auctor  anonymo  da  salyra  contra  as  basquines  faz-llies  guerra  sob 
o  ponto  de  vista  christão,  e  aprcsenta-as  como  dissoluções  infames,  que  não 
serviam  senão  para  produzir  escândalo  e  arriscar  a  salvação  dos  homens.  Pre- 


DA    PROSTITUIÇÃO  427 

tende  ainda  provar  que  toda  a  mulher  que  se  deshonra  com  esta  moda  disso- 
luta é  uma  ribalda,  ou  uma  desavergonhada,  uma  alcoviteira  ou  uma  adultera. 

O  auetor  da  Querella,  de  que  acima  falíamos,  tracfa  este  assumpto  com 
muito  menos  severidade.  Queixa-se  apenas  de  que  esta  moda  expõe  mais  a 
virtude  da  mulher  a  assaltos  perigosos,  contra  os  quaes  o  antigo  vestido  es- 
treito as  defendia.  Refere  nos  termos  mais  livres  o  favorável  serviço  que  pres- 
tava a  basquine,  quando  um  amante  queria  conseguir  os  seus  fins,  e  assegura 
que  Lúcifer  inventou  por  certo  uma  moda  tão  favorável  á  libertinagem  para 
ter  a  complacência  de  comprometter  a  honra  das  mulheres,  que  tinham  a  des- 
graça de  cahir.  «Depois  que  isto  se  inventou,  diz  elle,  as  mulheres  são  mais 
descaradas,  e  se  caliem,  vé-se-Ihe  ludo.» 

Estes  trajos  serviam  também  para  occultar  a  preniieí  por  espaço  de  cinco 
ou  seis  mezes  e  conservar  á  mulher  gravida  a  apparencia  fina  e  delicada  das 
que  o  não  estavam.  Segundo  uma  pas.sagcm  do  Dialogo  acima  citado,  parece 
que  esta  moda  não  tivera  por  fim  dar  a  apparencia  de  gordas  ás  magras,  como 
muita  gente  suppoz. 

No  melado  do  século  xvi,  as  mulheres  magras  eram  muito  mais  estima- 
das que  as  gordas. 

Diz  o  francez  que  figura  n'cste  Dialogo: 

«As  damas  venezianas  procuram  por  todos  os  meios  parecer,  não  direi 
gordas,  mas  obesas,  e  contam-mc  que  para  este  fim  fazem  uso  da  noz  da  ín- 
dia entre  outras  viandas.  Sabeis  como  as  nossas  damas  detestam  esta  gordura.» 

No  emianto,  para  significar  que  nem  ludo  era  algodão  nas  modas  d'aquelle 
tempo,  fazia-se  o  elogio  de  uma  mulher  empregando  este  italianismo:  «E'  um 
hom  vestido.»  Os  homens,  porém,  preferiam  a  carne  á  gordura,  o  que  bem  se 
manifesta  n'esta  profissão  de  fé  de  um  libertino  latinista  : 

Carnarius  sum,  pinguiarius  non  suni. 

Estes  trajos  foram  abandonados  no  tempo  de  Luiz  xiii,  mas  reappare- 
ceram,  annos  depois,  com  proporções  phantasticas  e  com  os  nomes  de  mrtuga- 
din,  paniers,  luslucru,  etc. 

De  resto,  haviam  trazido  comsigo  um  antigo  costume  que  não  interessava 
menos  á  limpeza  que  ao  pudor:  as  mulheres  tinham  voltado  ao  uso  das  calças, 
tanto  para  se  preservarem  do  frio  e  do  pó,  como  da  vergonha  de  uma  queda. 

«.4lém  d'isso,  as  calças,  diz  o  francez  italianisado  dos  Diálogos  de  Es- 
tienne,  livra-as  de  alguns  jovens  dissolutos,  pois  que,  mettendo-lhes  a  mão 
por  debaixo  das  saias,  não  póJeni  de  modo  algum  tocar-lhes  na  carne.» 

Cremos  que  a  moda  das  calças  para  as  mulheres  era  essencialmente  fran- 
ceza,  por  isso  que  esta  moda,  já  introduzida  na  còrle  ahi  pelos  fins  do  século 
XIV,  recommendava-se  por  variadíssimas  razoes  de  ulilidade  e  decência.  A  moda, 
porém,  dos  vestidos  abertos,  decotados,  sem  peito,  essa  moda  que  reinou  era 
lodo  o  século  xvi,  foi  introduzida  cm  França  com  os  costumes  italianos  no  rei- 
nado de  Francisco  i. 

N'aquella  épocha,  o  povo  chamava  mulheres  à  la  grande  yorre  ás  que 


i28  HISTORIA 

usavam  os  vestidos  abertos  no  peilo.  Os  vetilidos  d  porca  eram  apenas  uma 
recordação  vaga  n'esse  tempo,  apesar  do  escândalo  que  haviam  causado,  quando 
Isabel  de  Baviera  os  pòz  em  uso.  Foi  evidentemente  a  Itália  que  deu  o  exem- 
plo d'este  novo  abuso  da  desnudez  do  seio.  Uma  salyra  impressa  em  1612,  que 
tiniia  por  titulo  «A  moda  do  tempo  e  as  suas  particularidades»,  auctorisa-nos 
a  sustentar  uma  tal  accusayão  contra  esse  bello  paiz,  que  foi  n'csse  tempo  o 
foco  da  corrupção. 

Foi  d'alli  que  veiu  também  a  moda  de  apresentar  com  impudor  o  peito  à 
vista,  elevado  artificialmente,  para  recreio  dos  libertinos,  e  por  isso  se  dizia 
n'aquelle  tempo: 

Jeanne  qiii  fiiit  de  xon  telon  parure, 

Fa/t  veoir  h  tous  que  Jennrip  reiít  jiaslure. 

Os  poetas  e  romancistas  da  cpocha  fallatn-nos  d'esta  escandalosa  nudez 
do  seio,  favorecida  pelos  esparlilbos  de  aço  e  de  baleia. 

No  Discurso  noco  da  Moda,  exceliente  satyra  em  verso  publicada  em  IGI3, 
o  auctor  anonymo,  depois  de  descobrir  sem  grande  repugnância 

D'un  large  sein  le  tetín  bondissant, 

diz-nos  que,  se  por  um  resto  de  pudor,  a  mulher  honesta  usava  ainda  pannos 
e  lenços  para  cobrir  o  peito,  a  maior  parle,  do  que  tractavam  era  de  se  apre- 
sentarem em  completa  nudez. 

As  mulheres  gostam  muito  fie  deixar  ver  a  alvura  alabastrina  do  seio, 
com  que  lançam  dardos  cem  vezes  mais  luxuriosos  do  que  com  o  fulgor  lú- 
brico do  olhar. 

Nunca  em  c|)ocha  alguma  as  mulheres  do  bom  tom  haviam  posto  maior 
cuidado  e  esmero  na  arte  de  se  ataviarem  e  patentearem  a  altura  do  seio,  e  pa- 
recerem o  (|ue  então  se  chamava  honne  cuiiche.  A  mais  magra,  á  força  de  aper- 
tar o  busto,  encontrava  meio  de  fazer  avolumar  os  peitos,  com  auxilio,  é  claro, 
de  almofadinhas  de  algodão.  A  mais  gorda  não  procurava  dissimular  a  enormi- 
dade da  sua  lablatiire,  segundo  a  exjiressão  equivoca  tomada  da  notação  mu- 
sical da  épocha.  As  próprias  velhas  não  se  julgavam  dispensadas  d'este  imle- 
cente  abuso  de  nudez. 

O  Divorcio  satyrico,  de  (|ue  já  falíamos,  apresenta-nos  a  rainha  Marga- 
rida na  edade  de  cincoenta  e  cinco  annos,  «indo  ao  templo  receber  a  sagrada 
communbão.  Ires  vezes  por  semana  com  a  cara  coberta  de  arrebiques,  e  o  peito 
completamente  nú,  que  mais  parecia  na  verdade  ura  c.  .  .  do  que  um  peilo.» 
(Edic.  de  I7'ii,  I.  IV,  p.  oM.) 

Apesar  d'isso,  Branirtme,  nas  suas  Dnmes  (jalantes,  cujo  manuscripto  o 
licencioso  cbronista  dera  a  ler  á  rainha  Margarida,  não  procura  evitar  uma  al- 
lusão  desagradável  a  esta  [)rinceza,  (|iiando  falia  sem  reparo  de  certas  mulhe- 
res ««pulentas  de  peilos,  mas  ([ue  os  tinham  mais  frouxos  e  decahidos  do  que 
uma  vacca  leiteira.»  Branlòme  accrescenta  jovialmente  «que  se  um  ourives 
qualquer  tomasse  estes   peitos   para  modelo  de  alguma  taça  de  ouro,  a  sua 


DA    PROSTITUIÇÃO  429 

obra  ficaria  tendo  a  a|t|)areiicia  de  uma  d'essas  gamellas  n-doiidas  de  madeira, 
em  que  se  dá  de  comer  aos  porcos.» 

Nem  só  os  confessores  e  pregadores  condemnavam  esta  nudez  impu- 
dica. Os  philosoplios  e  moralistas  aconselhavam  egualmente  ás  mulheres  que 
não  perdes.sem  uma  grande  parte  das  suas  vantagens,  não  deixando  nada  que 
desejar  ao  homem. 

«A  saciedade  produz  o  ledio,  dizia  a  este  respeito  Montaigne  {Essais,  lib. 
II,  cap.  XV);  é  uma  paixão  embotada  e  entorpecida.» 

Depois,  como  se  não  tivesse  visto  ainda  o  que  a  moda  tão  escandalosa- 
mente ofTerecia  a  todos  os  olhares,  Montaigne  tinha  a  ingenuidade  de  julgar 
que  as  damas  da  corte  de  Henrique  iii  andavam  Ião  decentemente  vestidas  como 
as  matronas  romanas. 

«Porque  motivo,  dizia  o  poeta,  cego  por  esta  preoccupação  ingénua,  por- 
que motivo  andam  veladas  até  aos  calcanhares  essas  bellezas,  que  cada  qual  de- 
seja mostrar,  e  todos  anceiam  por  vèr?  Para  que  se  encobrem,  sob  tantas  pre- 
gas decentes,  as  partes  a  que  naturalmente  se  inclinam  os  nossos  desejos?» 

O  philosopho,  apesar  de  não  ter  visto  ainda  a  nudez  escandalosa  do  seio 
das  suas  contemporâneas,  notara  ainda  assim  as  proporções  monstruosas  das 
basquines,  por  isso  que  pergunta  com  uma  certa  malícia : 

«Para  que  serve  essa  fortaleza  de  panno?  Para  que  .se  armam  as  nossas 
mulheres  com  uma  inchação,  senão  para  nos  excitarem  os  desejos  com  a  dilfi- 
culdade,  e  para  nos  attrahirem,  ao  passo  que  parecem  aflastar-nos  ?» 

De  tudo  isto  parece  concluir-se  que  o  pudor,  por  essa  épocha,  consistia 
antes  em  exaggerar  certas  formas  sob  véus  que  mais  as  faziam  avultar,  do  que 
em  as  occultar  aos  olhares  licenciosos.  A  prostituição  era  decerto  a  inspiradora 
d'estes  caprichos  da  moda,  e  segundo  Branlòme  pretende  provar  com  anecdo- 
tas  que  podem  lèr-se  no  capitulo  intitulado  De.  la  veue  en  amour,  os  olhos  eram 
sempre  os  corruptores  da  alma  e  os  cúmplices  da  imaginação. 

A  nudez  não  oflendia  a  vista  dos  homens  mais  graves,  quando  acompa- 
nhava, como  um  accessorio  indispensável,  o  trajo  de  gala  da  corte.  Já  vimos 
no  castello  de  Chenonceaux  Catharina  de  Medicis,  dando  um  festim,  servido 
pelas  suas  damas  de  honor,  semi-núas. 

As  memorias  do  tempo  ministrar-nos-hiam  uma  multidão  de  factos  aná- 
logos. iXada  mais  vulgar  do  que  vér  nos  bailes,  nas  mascaradas,  nos  banque- 
tes, mulheres  representando  nymphas  e  deusas,  com  os  cabellos  soltos  e  (lu- 
ctuantes  sobre  os  hombros,  o  peito  descoberto  até  á  cintura,  as  pernas  e  os 
braços  nós,  e  o  resto  do  corpo  apenas  velado  por  algumas  gazes  transparentes. 

A  nudez  não  era  considerada  como  um  ultraje  ao  pudor,  quando  se  ex- 
cluía d'ella  toda  a  ideia  deshonesta  e  todo  o  desejo  carnal.  Assim,  por  occasião 
das  entradas  solemnes  dos  monarchas  nas  principaes  cidades  do  seu  reino,  o 
povo  comprazia-se  em  vér  representar  nas  praças  certos  mysterios  ou  quadros 
allegoricos,  por  homens  e  mulheres  completamente  nús.  Gabriclla  d'Estrées  fez-se 
pintar  muitas  vezes  núa  pelos  pintores  ordinários  do  rei,  Raymundo  Dubreuil 
e  Martin  Freminet,  no  acto  de  entrar  ou  sahir  do  banho.  O  que  aflasta  comple- 
tamente d'estes  quadros  qualquer  suspeita  de  um  pensamento  libertino  ou  vo- 


430  HISTORU 

luptuoso,  é  que  a  amante  de  Henrique  iv,  ao  fazer-se  pintar  núa,  mandava  sem- 
pre coilocar  na  sala  as  amas  de  leite  dos  seus  fiilios. 

A  nudez  do  seio  não  era,  pois,  n'aquclla  cpocha  senão  um  adorno  indis- 
pensável do  trajo  de  ceremonia,  e  só  os  ccclesiasficos  c  os  protestantes  se  for- 
nialisavam  contra  ella.  A  maior  parle  dos  hclios  retratos  que  Dumoustier  e  os 
seus  imitadores  executaram  nos  fins  do  século  xvi  provam  a  generalidade  d'esta 
moda,  que  havia  então  ciiegado  aos  seus  ullimos  limites,  por  isso  que  os  ves- 
tidos, os  de  gala  pelo  menos,  eram  abertos  ate  deixar  vér  metade  do  seio  e  al- 
gumas vezes  mais  ainda.  Os  liombros  viam-se  até  aos  sovacos  e  as  espáduas 
até  abaixo  das  omoplatas. 

A  etiqueta  da  corte  auctorisava  este  esquecimento  completo  do  pudor,  que 
a  moral  publica  e  a  religião  condcmnavam  ao  mesmo  tempo,  sem  obterem  uma 
reforma  que  tanto  parecia  interessar  aos  costumes.  As  mulheres  que  iam  ao  tem- 
plo ouvir  um  sermão  contra  os  vestidos  dissolutos,  não  se  envergonhavam  de 
se  apresentar  com  o  peito  descoberto,  mesmo  defronte  do  pregador.  Attribuiam 
simplesmente  ao  rigorismo  dos  huguenoltcs  a  guerra  continua  feita  pela  Egreja 
a  estas  pompas  de  Satanaz  e  a  estas  vaidades  mundanas.  Elfectivamente,  Gene- 
bra começou  a  fulminar  maldições  contra  as  modas  impudicas. 

Em  lool,  um  amigo  de  Calvino  publicou,  sem  se  nomear,  uma  Inslruc- 
ção  christã  sobre  as  pompas  e  excessos  dos  homens  e  mulheres  dissolutas,  no 
artificio  dos  seus  adornos  e  no  impudor  dos  seus  vestidos.  Esta  instrucção  foi 
novamente  publicada  para  uso  especial  dos  calvinistas,  sob  o  titulo  de  Traité 
de  Vestal  honneste  des  chrétiens  en  leur  accouslrement  (Genebra,  J.  de  Laon, 
1580,  in-8.°),  e  para  uso  dos  catholicos  por  Jeronymo  de  Choestillon,  sob  ou- 
tro titulo  :  Bref  et  utile  discours  sur  l'iminodeslie  e  siuperfliúlé  des  habits  (Lyon, 
Seb.  Griphius,  1577,  in-4.°) 

Os  casuisfas  catholicos  dedicavam-se  de  preferencia  a  censurar  o  luxo, 
sob  o  ponio  de  vista  do  orgulho.  Os  heterodoxos  mostravam-se  mais  preoccu- 
pados  da  castidade  e  da  decência,  quando  atacavam  a  dis.solução  dos  trajos. 
Temos  de  reconhecer  um  austero  protestante  n'esse  Francisco  Estienne,  que 
em  138!  fez  imprimir  em  Paris  um  tractado  de  moral  sumptuária,  intitulado: 
Remoustrance  chnrilahle  aux  dames  et  demoiselles  de  ['rance  sur  leurs  orue- 
mens  dissolus,  pour  les  induire  à  laisser  1'habit  du  paíjanisme  et  prendre  celui 
de  la  lemmç  pudique  et  chréslienne. 

Os  theologos  catholicos  cslimularam-se,  porém,  com  isto  e  não  deixaraoí 
que  fazer  aos  protestantes,  denunciando  ao  desprezo  das  pessoas  piedosas  aquelJa 
espantosa  nudez,  que  o  padre  Jacques  Olivier  não  esqueceu  no  seu  Álphabel 
de  Vimperfeclion  et  malice  des  feinmes.  (Paris,  IG23.) 

Esta  cruzada  dos  escriptores  ecelesiasticos  contra  a  nudez  continuou  por 
lodo  o  século  XVII,  e  pode  registrar-se  como  um  dos  seus  eiTeitos  mais  dispu- 
tados a  reclusão  de  uma  parle  do  seio  e  dos  hombros  no  corpo  do  vestido.  Não 
devemos  perder  de  vista  que  os  inimigos  implacáveis  das  modas  impudicas 
haviam  tocado  o  ponIo  mais  delicado  da  controvérsia.  Polman  tomou  a  inicia- 
tiva, publicando  o  Chancre  ou  couvre-seiíi  féminin.  (Douai,  16.3o,  in-S.")  De- 
pois d'elle,   Pedro  Juvernay  tocou  ainda  mais  de  perto  a  questão  no  seu  Dis- 


DA    PROSTITUIÇÃO  i3l 

eours  particulier  sur  les  femmes  desbraillées  de  ce.  temps.  (Paris,  Lemur, 
1637,  in-S.") 

Foi  grande  o  cxito  (l'ostc  livro,  sem  que  possamos  averiguar  a  que  classe 
de  leitores  o  deveu.  Em  IG40,  porem,  a  i."  edição  apparecia  com  este  titulo: 
Discours  particulier  conire  les  filies  et  les  femmes  decoucrant  leurs  sein  et 
portant  des  moustaches.  Não  se  dissera  tudo  ainda  sobre  o  assumpto,  quando 
um  anonymo,  sob  cujo  vcu  houve  quem  pretendesse  descobrir  o  abbade  João 
Boileau,  doutor  da  Sorhonna,  irmão  do  grande  salyrico,  publicou  finalmente  a 
obra  prima  do  género:  De  l'abus  des  nudilcs  de  la  gorrje.  (Bruxellas,  1675.) 
A  segunda  edição  (Paris,  1677)  era  augmcntada  com  a  ordenação  dos  vigários 
geraes  de  Tolosa  contra  a  nudez  dos  br.iços,  dos  bombros  e  do  seio. 

O  marqucz  de  Rouze  fez  na  sua  Analecta-Bibllon  uma  curiosa  analyse 
<l'este  celebre  tractado,  em  que  o  auctor  examina  em  113  paragraphos  o  damno 
e  peccabilidade  da  nudez  dos  bombros  e  do  seio : 

«Não  sabem  as  mulberes,  lé-sc  na  referida  analyse,  que  a  vista  de  um 
bello  seio  não  c  menos  perigosa  para  nós  que  a  de  um  basilisco? 

«Quando  cilas  patenteiam  estas  cousas,  não  pôde  deixar  de  ser  com  má 
intenção. 

«Se  as  mulberes  têem  cm  alguma  conta  o  que  diz  S.  João  Cbrysostoniò, 
devem  cubrir-se. 

«Querem  apenas  agradar  aos  libertinos?  Serão  suas  victimas. 

«Querem  agradar  aos  homens  honestos?  Então  cubram  o  seio. 

«A  mulher  é  um  templo  cujas  chaves  estão  nas  mãos  da  pureza. 

«E  uma  inconsequência  serem  castas  nas  palavras  e  não  o  serem  nós 
adornos. 

«Um  seio  e  uns  bombros  nús  dizem  muito  mais  que  as  palavras. 

«Deus  compara  uma  nação  corrompida  á  mulher  que  eleva  o  seio  para  o 
fazer  ver  melhor. 

«Cubri-vos,  senhoras,  velae  vossos  encantos,  mas  cubri-os  de  todo,  e  não 
deixeis  ver  uma  cousa  depois  de  haverdes  coberto  outra.» 

Esta  controvérsia  da  Sorbunna  acabou  por  chamar  a  attenção  da  corte 
de  Roma  e  por  decidir  o  papa  Innocencio  ix  a  expedir  uma  bulia  de  excom- 
munhão  contra  o  abuso  da  nudez  do  seio.  N'aquella  cpncha,  porem,  a  Ejíreja 
não  estava  já,  como  no  século  xvi,  interessada  em  questões  de  vida  ou  de  morte. 

Comprebende-se,  por  tanto,  que  as  modas  licenciosas  d'aquelle  século 
depravado,  tão  combatidas  pelos  escriptores  protestantes,  haviam  quasi  esca- 
pado ás  censuras  dos  doutores  catholicos,  que  não  desciam  a  estes  pormeno- 
res da  vida  mundana,  entretidos  como  estavam  nas  cspheras  nebulosas  do  do- 
gma. Havia  então  moralistas  que  se  constituíam  em  defensores  da  honestidade 
publica  e  que  não  perdoavam  os  vergonhosos  excessos  do  trajar. 

O  venerável  João  de  (laurrcs,  reitor  do  eollegio  d"Amicns,  aqueile  singu- 
lar prototypo  de  Miguel  de  Montaigne,  falia  frequentemente  das  indecencias  do 
trajo  dos  seus  contemporâneos,  na  volumosa  coUccção  das  suas  Oeucres  mora- 
les  et  dicersifiées  en  histoires.  (2.°  edic.  Paris.  0.  de  la  Noue,  Iõ84,  in-8.° 
Umas  vezes  exclama: 


i33  HISTORIA 

«O  disfarce  é  tão  grande  e  tão  supérfluo,  que  hoje  se  toma  a  mulher  por 
homem  e  o  homem  por  mullter,  sem  nenhuma  distincção  de  sexo.» 

Outras  vezes  condem  na  os  espelhos  que  as  cortezãs  e  raparigas  disfar- 
çadas traziam  á  cinta,  e  que  elle  chama:  «Espelhos, do  peccado,  pendentes  so- 
bre o  ventre.» 

«Prouvera  a  L)eus,  accresccnta  elle,  que  fosse  permittido  a  todo  o  mundo 

chamar-lhes    libertinas   e  p para  vêr  se  se  corrigem!  Leiam-se  todas  as 

historias  divinas  e  humanas  e  vèr-se-lia  que  as  impudicas  e  meretrizes  jamais 
trouxeram  este  adorno  em  publico,  senão  agora,  em  que  parece  que  o  diabo 
anda  solto  por  toda  a  Franga  !» 

O  honesto  João  de  Caurres  volta  repetidas  vezes  ao  assumpto  da  usur- 
pação do  trajo  sexual,  ao  disfarce  dos  sexos,  e  indigna-se  de  ver  as  mulheres 
com  fatos  e  capas  de  homem  «o  que  é  um  trajo  muito  inconveniente  para  as 
ditas  mulheres  e  prohibido  por  Deus  no  Deuteronomio,  quando  diz: — Non  in- 
duel/ur  muUer  veste  virile,  nec  cir  ntetur  reste  feminea,  ahominabilis  enim 
apud  Deum  est.» 

Os  cortezãos,  porém,  de  Henrique  iii,  a  exemplo  do  rei  e  dos  seus  man- 
cebos, levaram  mais  longe  ainda  do  que  as  mulheres  esta  vergonhosa  masca- 
rada, estudando  o  modo  de  não  conservarem  cousa  alguma  dos  caracteres  e 
attributos  próprios  do  seu  sexo.  Paliaremos  mais  oppurtunamente  d'este  as- 
sumpto no  capitulo  que  precisamos  de  consagrar  aos  hermaphroditas. 

Brantòme — já  os  leitores  sabem  que  o  licencioso  chronista  estava  longe 
de  ser  um  moralista,  muito  embora  fosse  abbade  como  João  de  Caurres,  — da- 
nos também  a  coniiecer  alguns  dos  excessos  da  moda  do  seu  tempo.  Citando-os 
porém,  compraz-sf  em  apresental-os  com  uma  indulgência  accusadora  da  des- 
vergonha dos  seus  costumes.  Refere  sem  indignação,  nem  vergonha,  os  mais 
exiranhos  factos  da  preversão  da  corte.  Renunciamos  a  traduzir  o  que  elle  diz, 
por  exemplo,  a  respeito  das  almofadinhas,  e  do  seu  uso  nas  alcovas  das  bellas. 
Do  mesmo  modo  ommiltiremos  o  que  nos  conta  a  respeito  das  calças  usadas 
pelas  mulheres,  e  as  suas  extranhas  revelações  a  respeito  dos  arcanos  do  tou- 
cador das  damas  galantes. 

Desejaríamos,  ainda  assim,  indicar,  como  um  dos  stigmas  da  prostituição 
d'aquelle  século,  o  incrível  adorno  inventado  pelas  mulheres  libertinas  para 
contentarem  os  seus  amantes,  mas  preferimos  recommendar  ao  leitor  o  capi- 
tulo intitulado  De  la  veue  en  amoiir,  na  collecção  das  Dames  galantes  do  torpe 
chronista  da  depravação  da  corte. 

Alli  se  encontrarão  todos  os  pormenores  d'esta  moda  secreta,  que  as  da- 
mas da  còrle  não  se  pejavam  de  imitar  das  prostitutas.  Brantòme  ouvira  fallar 
de  uma  belia  e  honesta  dama  que  tomava  sem  pudor  estes  obscenos  cuidados, 
e  (|ue  SC  presava  de  ser  assim  mais  (juerida  aos  olhos  de  seu  marido. 

A  morte  trágica  de  madame  de  Rourdaiscièrc  revelou  uma  inilccenciad'esta 
espécie,  e  causou  um  escândalo,  cujo  echo  se  repercutiu  por  toda  a  França. 
Todas  as  memorias  contemporâneas  referem  o  caso,  que  pôde  considerar-se 
como  o  typo  dos  costumes  d'aquella  cpocha  tão  corrompida.  Pedro  de  TEs- 
loile  teve  o  cuidado  de  o  archivar  no  seu  registro-diario.  Encontra-se  também 


DA    PROSTITUIÇÃO  433 

consignado  nas  observações  que  o  editor  do  Journal  iVHenri  iii  (edic.  de  1744) 
imprimiu  cm  conlinuagão  dus  Amours  du  (jrand  Alcandre,  dizendo  que  estas 
observações  «vinbam  de  uma  pessoa  que  conhecia  a  fundo  a  còrle  do  rei  Hen- 
rique IV.»  Francisca  Babon  de  la  Bourdaiscière,  tia  de  Gabriella  d'Estrées,  vi- 
via em  concubinato  com  o  barão  d'Alpgre,  que  morreu  com  elia  em  1592,  as- 
sassinados pelo  povo  em  Issoire,  d'onde  era  governador  ao  serviço  de  Hen- 
rique IV. 

Brantòme  falia  ainda  do  um  dos  refinamentos  mais  engenhosos  da  pros- 
tituição na  corte  dos  Valois: 

«Um  grande  príncipe  que  eu  conheço  fazia  dormir  as  suas  cortezãs  entre 
iençoes  de  tafetá  preto. .  . » 

Poderia  ter  accrescentado  o  licencioso  chronista  que  esta  invenção,  attri- 
buida  á  bclla  Imperia,  e  usada  frequentemente  peias  grandes  cortezãs  italianas, 
fora  introduzida  em  França  sob  os  auspícios  da  rainha  Margarida,  primeira  mu- 
lher de  Henrique  iv.  O  auctor  do  Divorcio  satijrico  refere  a  propósito  d'isto 
que  esta  rainha  adultera,  «continuando  na  sua  obcecada  inclinação  á  sensuali- 
dade, e  querendo  enlregar-se  a  ella  com  maior  delicia,  e  fora  da  aspereza  dos 
Iençoes  vulgares,  recebia  o  seu  amante,  o  senhor  de  Champvallon,  n'um  leito 
allumiado  por  diversas  luzes,  e  entre  dois  Iençoes  de  tafetá  preto,  no  meio  de 
uma  mullidão  de  caprichos  voluptuosos,  que  deixo  de  referir.» 

Os  leitos  do  século  xvi  costumavam  ser  de  sete  ou  oito  pés  de  largura, 
por  isso  i|ue  cm  certas  circumstancias  a  etiqueta,  a  cortezia  ou  a  amizade  exi- 
giam que  um  cavalheiro  otíerecesse  a  outro  um  logar  no  seu  leito,  para  lhe  fa- 
zer honra  e  dar-lhe  uma  prova  de  fraternal  confiança.  Era  um  antigo  costume 
da  cavallaria  esta  confiança  gentil,  que  equivalia  a  todos  os  juramentos  da  an- 
tiga fraternidade  de  armas. 

Em  a  noite  que  pi-ecedeu  a  batalha  de  Montcontour,  segundo  uma  rela- 
ção citada  por  Mayer,  «o  duque  de  Guise  deu  logar  no  seu  leito  ao  príncipe 
de  Conde  e  dormiram  juntos.» 

O  auctor  da  Galeria  philosophica  ilo  século  xvi,  (^ Paris,  IT83,  in-8.",  3 
vol.),  acc.rescenta : 

«O  costume  de  oflerecer  o  leito  não  passou  de  moda  até  á  menoridade 
de  Luiz  XIV.  Luiz  xiii  partilhou  o  leito  do  condestavel  de  Lu\  nes :  o  condes- 
tavel  dormia  no  meio,  o  rei  á  sua  direita  e  a  dmiueza  á  sua  esquerda.» 

Este  singular  costume,  que  parece  haver-se  conservado  nas  classes  infe- 
riores ate  á  revolução,  e  que  prova  unicamente  a  simplicidade  dos  costumes  dos 
nossos  maiores,  nem  sempre  foi  tão  respeitável.  E'  difificil,  por  exemplo,  não 
termos  uma  suspeita,  quando  a  tradicção  de  Luiz  siv  nos  recorda  que  a  bella 
viuva  de  Scarron,  ao  depois  a  severa  e  irreprehensivel  madame  de  Maintenon, 
compartilhava  frequentemente  o  leito  da  sua  amiga,  a  bella  iNinon  de  Lenclos. 
Seja  como  fòr,  quando  favorita  do  rei  e  quasi  rainha  de  França,  recordava 
ainda  cora  saudade  as  intimas  e  alegres  conversações  da  camará  amarella  do 
bairro  de  S.  Paulo. 

Kuma   épocha  de    desmoralisaçào   geral,  como  a  que  havia  em  França, 
sob  o  reinado  de  Henrique  iii,  tudo  era  pretexto  ou  occasião  de  escândalo.  A 

UiiTOBiA  Dx  Phoitituição.  Tomo  n — Folha  55. 


434  HkSTORIA 

prostituição  mais  geral  e  audaz  infestara  tanto  a  vida  publica  como  a  particular. 
O  próprio  rei  que  dava  o  exemplo  do  vicio  e  que  fazia  gala  da  sua  vergonhosa 
depravação,  publicava  inutilmente  edictos  contra  o  luxo.  As  ordenações  sum- 
ptuárias dos  seus  predecessores  eram  «tão  mal  cumpridas  e  guardadas,  que 
nunca  se  vira,  em  memoria  de  homens,  —  dizia  elle  no  seu  edicto  de  24  de 
março  de  1583,  um  excesso  mais  licencioso  nos  trajos  e  adornos.» 

O  que  motivava,  porém,  estas  ordenações  successivas  era  menos  a  inde- 
cencia  do  trajo  que  o  uso  immoderado  das  sedas,  dos  bordados  de  ouro  e  prata, 
das  jóias  e  de  todos  os  productos  da  arte  estrangeira.  O  que  preoccupava  so- 
bretudo a  nobreza,  a  quem  particularmente  interessavam  estas  ordenações,  não 
era  tanto  ver  desapparecer  as  modas  impudicas,  quanto  obrigar  a  gente  rica, 
mas  da  classe  media,  a  soffrer  um  regulamento  tyrannico  a  respeito  do  preço, 
da  matéria  e  da  forma  dos  seus  vestidos. 

Henrique  iii  dizia  no  preambulo  do  seu  grande  edicto  de  1583  que  os 
seus  vassallos  se  destruíam  e  empobreciam  «peia  dissolução  e  superíluidade 
dos  vestidos,  e  o  que  é  peor  e  mais  nos  desagrada.  Deus  está  por  este  motivo 
muito  olfendido,  e  a  modéstia  vai-se  quasi  de  todo  extinguindo.» 

Mas  cl-rei  não  pensou  cm  introduzir  nos  artigos  da  ordenação  uma  só 
disposição  que  fosse  contra  a  immodestia  do  trajar.  Prohibe  com  minucioso 
cuidado  os  bordados,  as  passamcntcrias,  as  franjas,  os  acolchoados,  os  diade- 
mas, as  cadeias,  os  coitares,  etc;  enumera  com  a  mesma  severidade  as  diffe- 
renças  notáveis  que  a  condição  das  pessoas  deve  auctorizar  com  a  riqueza  do 
trajo;  prohibe  os  capuzes  de  panno,.mais  de  uma  cadeia  de  ouro  ao  pescoço, 
e  mais  de  uma  tilei ra  de  botões,  e  ao  mesmo  tempo  os  laços  e  bordados  nos 
corpos  e  costuras  dos  vestidos.  Mas  não  procura  remediar  as  abominações  e 
disfarces  da  moda,  como  os  qualificava  eriião  o  honrado  João  de  Courres,  que 
supplicava  aos  magistrados  e  mais  auctoridades  a  graça  de  corrigirem  a  escan- 
dalosa relaxação  dos  costumes. 

Já  em  1.^76  Henrique  iii  havia  tentado  pôr  em  vigor  os  edictos  sum- 
ptuários de  Carlos  ix,  fazendo-os  lér  e  publicar  «ao  som  de  trombeta  e  pela 
voz  do  pregoeiro  pelas  ruas  de  Paris  c  demais  cidades  do  reino.»  Uma  multa 
de  mil  escudos  de  ouro  devia  ser  imposta  a  todo  o  contraventor,  homem  ou  mu- 
lher, que  usasse  vestidos  impróprios  da  sua  condição  social. 

No  momento,  porém,  em  que  el-rci  considerava  como  uma  necessidade 
renovar  as  excellentes  ordenações  dos  seus  antepassados  contra  os  excessos  do 
luxo,  «com  prohibição  ás  pessoas  que  não  fossem  nobres,  de  usurpar  o  trajo 
dos  fidalgos,  e  de  apresentar  como  damas  as  suas  mulheres»,  não  attendia, 
nem  pouco  nem  muilo,  á  indccencia  do  Irajo  feminino. 

O  parlamento,  apesar  de  haver  mandado  fechar  o  theatro  italiano  dos 
Oelosi,  pela  immoralidadc  das  suas  comedias,  não  ousava  refrear,  nem  refor- 
mar o  impudor  das  modas  femininas. 

«Os  excessos  dos  costumes,  diz  Pedro  de  TEstoiie,  no  seu  Registro  diá- 
rio, com  data  de  2o  de  junho  de  1577,  annunciando  a  expulsão  dos  Gelosi, 
era  bastante  grande  já,  mesmo  sem  taes  preceptores,  principalmente  entre  as 
damas  e  donzellas,  que  pareciam  seguir  as  modas  dos  soldados  do  seu  tempo, 


DA    PROSTITUIÇÃO  435 

que  fazem  gala  de  mostrar  as  suas  couraças  douradas  e  reluzentes,  quando  se 
apresentam  nas  revistas.  De  igual  modo  fazem  ellas  gala  dos  peitos  descobertos 
e  de  outras  partes  do  peito,  que  teem  cm  perpetuo  movimento,  similhantes  aos 
folies  dos  serralheiros,  quando  accendcm  o  fogo  na  sua  fragua.» 

As  ordenações  sumptuárias,  que  tão  frequentes  foram  no  decurso  do 
século  XVI,  não  se  dirigiram  nunca  senão  ao  luxo  ou  á  qualidade  das  sedas  ou 
brocatins,  que  deviam  regular-se  pela  condição  das  pessoas.  Nunca  atacaram 
os  caprichos  deshonestos  da  moda,  eram  mesmo  indiíTei^entes  aos  escandalosos 
abusos  da  nudez. 

Mas  a  religião  e  a  moral  suppriam  o  silencio  das  leis  relativo  ao  trajar. 
Ambas  ellas  favoreceram  os  progressos  da  decência  publica,  e  as  mulheres 
honestas,  que  se  terião  envergonhado  de  se  assimilharam  ás  cortezãs  na  ma- 
neira de  trajar,  encarrcgaram-se  muito  melhor  do  que  o  poderia  ter  feito  o  rei 
e  os  parlamentos  com  os  seus  cdictos  e  ordenações,  de  submetter  a  moda  ás  leis 
do  pudor  e  da  honestidade. 

Não  obstante,  como  diz  Joiy,  nas  suas  Adve)'tencias  christãs  para  instruc- 
ção  dos  meninos,  «uma  das  cousas  mais  diíliceis  c  tirar  aos  jovens  a  affeição  dos 
trapos  e  adornos  do  corpo.  A  razão  d'isto  é  que  as  mulheres  desejam  natural- 
mente parecer  bem.» 

A  loucura  havia  ido  tão  longe  em  questões  de  vestidos  e  adornos,  que  o 
próprio  excesso  do  mal  produziu  uma  feliz  e  salutar  reacção.  Todos  quizeram 
que  a  sua  maneira  de  vestir  não  fosse  um  vergonhoso  indicio  dos  seus  costu- 
mes, e  ninguém,  execepto  as  pessoas  de  má  vida,  procurou  distinguir-se  d'ahi 
avante  por  caracteres  exteriores  de  impudor  e  libertinagem. 

As  conveniências  recuperaram  pouco  a  pouco  o  seu  império  nos  domínios 
da  moda,  e  as  damas,  reservando  a  nudez  do  seio  para  os  bailes  e  outros  actos 
de  ceremonia,  abstiveram-se  de  se  apresentar  nas  ruas,  como  no  século  xvi, 
com  a  impudica  libré  da  prostituição. 


CAPITULO   XXXVI 


SUMMARIO 


O  Ualiineíe  du  rcí  de  Friincu.— Nicolau  Beroaud  não  é  o  auctor  (l'esla  obra.— I,a  MoDnoye  refutado.— O 
«Segredo  das  rendas  dtí  Friinçan.— (Jucni  f  o  seu  auc'or.— Analy.stí  do  Gabinete,  e  explicação  das  suas  ti'es  pérolas. 
—O  tractado  da  polyganiia  sagrada.— Estatística  singular  da  piostituição  em  !.')8I.— O  pessoal  do  bispado  de  Lyon. 
—Trechos  curiosos  eitrahidos  do  livro  da  polyganiia  sagrada.— Excessos  e  desordens  de  uma  só  diocese  —O  auclor 
prova  a  exactidão  dos  seus  cálculos  pelo  computo  da  Honarcliia  az'«òo/íca.— Pormenores  do  estado  das  dioceses  de 
Fran^ja,  sob  o  ponto  de  vista  da  prostiluição.- Piovas  singulares  ministradas  pelo  auclor  em  appoio  da  sua  estatís- 
tica.—O  cardeal  de  Lorena  desculpado  por  Branlôme.- Os  pagens  dos  cardeaes.-  Pessoal  de  um  palácio  episcopal. 
— O  baile  do  bispo.- Os  pagens  dos  abbades,  dus  priores,  dos  monges,  etc. — Cinco  artigos  do  ColloqutO  de  Poissy. 
— Polygamia  dos  nobres.— Prostituição  da  nobr,  zadn  Berry  —A  collação  do  abbade.— Rendimentos  do  clero.— Con- 
clusão do  libello  buguenotte.— Os  costumei  eccli  siasticos  no  século  xvi.— Testemunhos  de  João  de  Monlluc  e  de 
Brantôme.— Informação  contra  o  abbade  d'Aurillac.— O  clero  recebe  a  inllueucia  moral  da  Reforma. 


ossuiMos  um  documento  tão  .singular  como  curioso  sobre  o  es- 
tado da  prostituição,  alii  por  fins  do  século  xvi.  E'  uma  obra 
intitulada  o  Gabinete  do  rei  de  França,  em  que  ha  Ires  pérolas 
preciosas  de  valor  inestimável,  por  meio  das  quaes  sua  maijes- 
tade  é  o  primeiro  monarcha  do  mundo  e  os  seus  vassallos  ficam 
exemplos  de  tudo.  Esta  obra  rara,  de  que  não  ha  senão  uma  edição,  forma  um 
volume  de  64-7  paginas  in-8.°,  com  cinco  folhas  preliminares  e  cinco  de  Índice. 
Não  tem  designação  de  imprensa,  e  apresenta  a  data  de  1381  e  a  dedicatória 
a  Henrique  iii.  O  auctor  occulta-se  sob  as  iniciaes  N.  D.  C,  e  a  impressão  ter- 
minou em  novembro  de  loSI. 

Os  bibliographos  apenas  se  tem  dignado  citar  este  livro,  sem  se  occupa- 
rem  do  que  elle  contém.  Conhecemos  tão  somente  a  collecção  Mélamjes  d'une 
grande  bibliothéque,  onde  se  encontra  uma  espécie  de  analyse,  muito  succinta 
e  imperfeita,  d'esta  extranha  publicação,  sabida  da  imprensa  ,secreta  dos  refor- 
mados. 

Basta  examinar  este  volume  e  comparar  os  caracteres  e  a  maneira  da  im- 
pressão com  a  dos  livros  publicados  pela  mesma  époeha  na  Rocbella,  para  fi- 
carmos lendo  a  certeza  de  que  foi  fabricado  nas  oíEcinas  typographicas  d'esta 
cidade,  que  era  então  a  capital  dos  huguenottes. 

Quanto  ao  auctor  do  Gabinete  do  rei  de  França,  o  doutor  La  Monnoye, 
nas  suas  observações  sobre  os  auctores  disfarçados  de  Baillet,  sustenta  que  é 
Nicolau  Bernaud,  a  quem  attribue  igualmente  o  Espelho  dos  francezes,  que 
contém  o  estado  e  manejo  dos  negócios  da  França,  publicado  sob  o  pseudonymo 


438  HISTORIA 

de  Nicolau  de  Montaud.  Nada  auctoriza  ou  justifica,  porém,  esta  opinião  que 
La  Monnoye  não  se  deu  ao  tral)alho  de  appoiar  cm  provas  ou  razões  attendi- 
veis.  A  opinião  suslentada  peio  commentador  de  Baillet  não  é  um  facto  averi- 
guado em  bibliograpliia,  embora  se  quizessem  interpretar  as  iniciaes  N.  D.  C. 
por  Nicolau  de  Crest,  fundando-se  esta  conjectura  em  Nicolau  Bernaud  ser  na- 
tural de  Crest,  no  Delphinado. 

Pouca  importância  tem,  portanto,  o  nome  do  auçtor,  e  não  entraremos  em 
longas  minuciosidades  para  demonstrar  que  Nicolau  Bernaud,  medico,  theologo 
sociniano  e  sobre  tudo  investigador  imfatigavel  da  pedra  pbilosopbal,  não  po- 
deria ter  nunca  reunido  os  immensos  materiaes  estatísticos,  que  serviram  para 
a  composição  do  Gabinete  do  rei  de  França.  Basta  consignar,  com  referencia  a 
uma  carta  de  Bernaud,  eseripta  em  Leyde  em  1599,  que  bavia  viajado  por 
Hespanba  por  espaço  de  mais  de  quarenta  annos,  antes  de  ir  residir  na  Hol- 
landa.  (^Veja-se  esta  carta  no  seu  tractado  de  alchimia  intitulado:  Quadriga  au- 
rífera, nunc  primum  d  Nicola  Bernaurdo  Delphinale  in  lucem  edita.  Lugd. 
Batav.  ap.  Cbrist.  Raphetengium,  1399,  in-S."» 

Sentimo-nos  muito  mais  inclinados  a  attribuir  o  Gabinete  a  Nicolau 
Fromenteau,  cujo  nome  figurava  com  todas  as  lettras  no  titulo  de  uma  obra 
do  mesmo  género  publicada  n'esse  anno  :  «O  Segredo  das  rendas  de  França, 
descoberta  e  dividido  em  três  livros  e  agora  publicado  para  arbitrar  os  meios 
legítimos  e  necessários  de  pagar  as  dividas  d'el-rei,  desonerar  seus  vassallos 
dos  subsídios  impostos  ha  trinta  annos  e  recobrar  todo  o  dinheiro  dado  a  Sua 
Magestade.» 

A  primeira  edição,  muito  menos  completa  do  que  esta,  forma  três  tomos 
in-8.°,  e  havia  apparecido  já  em  1-38 1  cora  este  titulo  dillerente:  «O  segredo 
dos  thesouros  de  França  descoberto  e  dividido  em  três  livros.»  O  impressor, 
n'uma  advertência  que  se  encontra  junto  do  frontespicio,  diz  que  esta  obra  era 
esperada  com  tanta  impaciência,  que  até  se  disputavam  as  folhas  húmidas 
ainda,  á  propoição  que  iam  sahindo  dos  prelos.  Esta  circumstancia  indica  suf- 
ficientemente  que  a  impressão  se  fizera  n'uma  cidade  protestante,  onde  se  im- 
primia furtivamente. 

Com  etleito,  o  Segredo  das  rendas  parece  haver  sido  impresso,  como  o 
Gabinete  do  rei  de  França,  na  Rochella,  e  é  muito  provável  que  esta  ultima 
obra  anonyma  publicada  depois  da  primeira,  que  foi  igualmente  dedicada  a 
Henrique  Kl,  e  datada  de  Paris,  1  de  janeiro  de  1581,  tivesse  por  auctor  o 
mesmo  Nicolau  Fromenteau,  cujo  nome  não  se  encontra  em  nenhum  outro 
livro. 

Falta  agora  saber  se  Fromenteau  é  um  pseudonymo,  sob  o  qual  se  oc- 
cultava  algum  dos  mais  terríveis  campeões  do  protestantismo  d'aquelle  tempo. 

Os  principaes  campeões  da  Reforma  eram  a  esse  tempo  em  França  Agrippa 
d'Aubigné,  Plessis-Mornay,  Lancedot-Voisin  de  Ia  Popelinicrc,  e  o  fogoso  mi- 
nistro reformado  Guilherme  Reboul,  que  escreveu  muitos  livros  violentos,  e  não 
menos  excêntricos. 

Não  pretendemos  occupar-nos  aqui  do  «Segredo  das  rendas»,  embora  elle 
nos  podcsse  ministrar  muitos  factos  curiosos  para  a  historia  da  prostituição, 


BA   PROSTITUIÇû  439 

como  por  exemplo  o  numero  das  mulheres  violadas  em  França  durante  as  guer- 
ras civis.  O  «Gabinete  do  rei  de  França»  é  um  vasto  repositório  de  dados  e 
noticias,  e  por  isso  não  precisamos  de  ir  buscal-os  a  outra  parte  a  respeito  do 
mesmo  assumpto  e  da  mesma  épocha. 

Eis  a  analyse  d'esse  curioso  livro  : 

As  três  pérolas  preciosas  que  o  auctor  se  propõe  examinar,  são  a  Palavra 
de  Deus,  a  Nobreza  e  o  Terceiro  Estado  que  nos  mostra  encerradas  n'um  estojo, 
que  não  é  outra  cousa  senão  o  reino  de  França.  Faz  em  seguida  a  enumeração 
dos  bens  e  rendimentos  do  clero,  pretende  que  el-rei  se  apodere  d'elles,  a  fim 
de  com  o  auxilio  destes  novos  recursos,  manter  exércitos,  soccorrer  os  pobres, 
auxiliar  a  agricultura  e  pôr  termo  ás  desordens  que  deshonram  a  Egreja  catholica. 

Indica  em  seguida  os  vicios  e  excessos  da  nobreza  e  as  reformas  que 
poderão  restabelecel-a  no  seu  antigo  esplendor. 

Finalmente  falia  do  terceiro  estado  com  uma  predilecção  mui  especial. 
Segundo  o  plano  financeiro,  imaginado  pelo  auctor,  o  terceiro  estado  far-se-hia 
colono  das  terras  ecciesiasticas  e  nobiliárias.  Em  seguida,  encarrega-se-hia  de 
pagar  as  dividas  da  republica,  encher  as  arcas  do  rei,  e  prover  aos  dotes  conve- 
nientes para  casar  todos  os  frades  e  sacerdotes. 

Depois  d'esta  simples  exposição  das  ideias  priíicipaes  do  auctor,  que  era 
por  certo  um  feroz  huguenotte,  perguntará  talvez  o  leitor,  que  relação  pode  ter 
similhante  obra  com  historia  da  prostituição. 

Basta  abrir  o  «Gabinete  do  rei  de  França»,  para  comprehender  a  importân- 
cia dos  documentos  interessantes  que  alli  se  amontoam,  embora  não  hajamos  de 
tomar  á  Icttra  todas  as  accusações  que  o  auctor  acumulou  contra  a  nobreza  c 
o  clero  do  seu  tempo. 

Parece  todavia  que  este  auctor  reunira  sob  o  titulo  de  Tractado  da  Po- 
lygamia  sagrada,  uma  immensa  quantidade  de  notas  e  materiacs  eslaliscos  para 
estabelecer  com  a  prova  dos  números  o  verdadeiro  estado  da  Egreja  catholica. 
Este  Tractado  não  tinha  menos  de  três  mil  folhas,  e  teria  dado  grande  numero 
de  volumes  se  chegasse  a  ser  publicado.  Pode  aíTirmar-se,  porém  que  jamais  se 
imprimiu,  bem  que  muitos  bibliographos,  especialmente  Leduchat,  nas  suas  ob- 
servações sobre  a  Confissão  de  Sancy,  o  tenham  cilado  como  obra  impressa. 

D'esta  obra  tirou,  pois,  o  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França»,  o  que 
diz  sobre  a  polygamia  e  prostituição  do  reinado  de  Henrique  iii. 

Não  obstante  o  exaggero  dos  cálculos,  apezar  da  grosseria  das  reflexões 
que  os  acompanham,  por  mais  monstruoso  que  seja  o  resultado  do  seu  livro, 
é  preciso  reconhecer-se,  ainda  assim,  que  o  auctor  da  estatística  fez  mais  do 
que  uma  obra  de  phantazia,  tendo  tido  o  cuidado  decolligir  indicações  precisas. 
Assume  uns  certos  ares  de  convicção  e  de  boa  fé  na  maneira  de  fazer  as  suas 
investigações  e  de  deduzir  as  suas  conclusões,  mostra-se  animado  de  um  santo 
horror  contra  a  polygamia  e  a  prostituição,  dizendo  que  quizera  ver,  não  só 
todos  os  frades  casados,  mas  também  todos  os  maridos  e  todas  as  mulheres 
fieis.  Este  zelo  pelo  matrimonio  inspira-o  continuamente,  e  torna-o  implacável 
contra  os  celibatários,  adúlteros  e  polygamos. 

«Sustento,  diz  elle  na  sua  dedicatória  a  el-rei,  que  mais  de  quatro  vezes 


440  HISTORIA 

setecentas  mil  mulheres  se  dão  á  polygamia  e  ao  concubinato,  com  esses  ma- 
gos e  encantadores,  que  liveram  por  tanto  tempo  occultas  estas  pérolas  no  vosso 
gabinete.» 

Os  magos  e  encantadores  são  os  maus  sacerdotes,  os  falsos  nobres  e  os 
libertinos  de  toda  a  espécie.  O  aucfor  não  declara  de  outro  modo  que  é  luigue- 
notte,  e  que  sob  o  pretexto  de  reformar  os  rendimentos  da  nação,  quer  subs- 
tituir a  egreja  catliolica  pela  egreja  reformada  de  Calvino,  à  qual  cliama  a  ver- 
dadeira palavra  de  Deus.  Os  pormenores,  porém,  que  elle  pretende  haver  ex- 
trahido  das  melhores  fontes,  a  respeito  do  estado  moral  do  clero,  não  são  me- 
nos preciosos,  prescindindo  do  que  possam  ter  de  e\aggerados.  Por  testemunho 
dos  próprios  escriptores  calholicos,  sabemos  que  o  clero  não  tinha  uma  vida 
mais  ediíioante  que  o  resto  dos  fieis,  n"a(iuella  épocha  de  corrupção  universal. 

O  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França»,  depois  de  citar  o  facto  do  ren- 
dimento total  do  clero  se  elevar  a  duzentos  milhões  de  escudos,  que,  segundo 
o  actual  valor  do  dinheiro,  representariam  perto  de  dois  milhões,  pretende  de- 
monstrar que  este  rendimento  enorme  é  devorado  pela  prostituição,  por  isso 
que,  segundo  elle,  ha  mais  de  dais  milhões  de  pessoas,  que  sob  o  veu  da  egreja 
gallicana,  vivem  a  expensa;  da  cruz.  Para  comprovar  a  exactidão  dos  seus  cál- 
culos, toma  como  typo  um  dos  arcebispados  de  França,  o  de  Lyon,  e  faz  a 
enumeração  de  tudo  o  que  compõe  n'este  arcebispado  o  pessoal  da  polygamia 
sagrada. 

Sem  entrarmos  em  lodos  os  pormenores  d'esta  espantosa  estatística,  antes 
de  apresentarmos  esse  quadro,  imitação  dos  que  Parent-Dnchatelet  forma  tão 
laboriosamente  na  sua  obra  acerca  da  prostituição,  julgamos  que  bastarão  alguns 
trechos  para  fazei'  ideia  do  processo  estatístico,  seguido  pelo  auctor. 

«Enconlram-se,  diz  elle  na  pagina  19,  nas  dioceses  d'este  arcebispado 
mais  de  quarenta  e  cinco  mulheres  casadas  cora  homens  honrados  de  todas  as 
condições,  torpemente'  amigadas  com  os  prelados.  Além  de  taes  adulteras,  estes 
prelados  teem  tido  e  continuam  a  ter  mocetonas  solteiras,  que  lhes  tem  dado 
muitos  filhos,  alguns  dns  quaes  dão  o  ser  a  outros  filhos,  Não  faremos  conta, 
por  agora,  senão  dos  bastardos  gerados  por  estes  prelados  e  bispos,  durante  o 
anno  corrente,  que  são  em  numero  de  vinte  e  sete.  Encontram-se  na  lista  qua- 
renta e  duas  mulheres  deshonestas.» 

O  auctor  falia  ainda  das  épaves  episcopales,  isto  é,  <,<das  mulheres  com 
que  é  costume  obsequiar  os  bispos,  quando  andam  em  jornada,  ou  melhor 
quando  visitam  as  suas  diocezes,»  mas  declara  que  o  numero  d'ellas  não  figura 
n'esta  lista. 

Os  serventes  e  fâmulos  dos  prelados  seguem  naturalmente  o  exemplo  de 
seus  senhores. 

«Na  lista  que  a  este  respeito  nos  apresentaram,  diz  o  auctor  com  a  tran- 
(luiilidade  de  um  mathcmatico,  estão  mencionadas  sessenta  e  cinco  mulheres, 
casadas  com  homens  honrados,  as  quaes  estão  por  conta  dos  referidos  domés- 
ticos dos  paços  episcopaes.  Além  d'estes  adultérios  e  sodomias,  encheram  o 
ventre  de  cento  e  sessenta  jovens,  oitenta  das  quaes  tiveram  cada  uma  o  seu 
bastardo,  no  anno  que  vae  correndo.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  441 

Esíes  domésticos  eram  cm  numero  de  cincoenta.  Vêem  depois  os  secre- 
taries e  capellães,  dando  um  total  de  duzentas  e  quarenta  e  duas  pessoas,  entre 
as  quaes  o  auctor  comprehende  os  dispenseiros,  os  músicos,  os  monteiros,  etc, 
mas  exceptua  os  pagens  e  os  lacaios. 

«D'este  numero,  a  lista  representa  cincoenta  e  três  sodomitas,  sem  com- 
prehender  pagens  nem  lacaios,  que  são  por  assim  dizer  obrigados  a  satisfazer 
estes  monstros.  Trezentas  mulheres  casadas  e  todas  ellas  nomeadas  na  lista 
mantiveram  relações  com  estes  familiares,  que  além  d'estas,  téem  aiuda  qui- 
nhentas raparigas,  de  cuja  relações  resultaram  trezentos  bastardos  no  anno  em 
que  estamos.  Segundo  os  dados  estatísticos  do  Tractado  da  Polygamia,  não  se 
descobriram  mais  de  quarenta  e  oito  proxenetas.  Se  ha  mais,  de  tal  modo  são 
secretas,  que  não  as  podemos  conhecer,  nem  ao  menos  pelos  seus  nomes  ou 
sobrenomes.» 

Esta  passagem  dá-nos  a  entender  que  o  catalogo  dos  agentes  da  polyga- 
mia se  fazia  por  nomes  e  sobrenomes. 

«Os  suíTraganeos,  vigários,  curas  e  outros  formavam  um  pessoal  de  du- 
zentos 6  quarenta  e  cinco  indivíduos.  A  lista  da  polygamia  sagrada  attribue- 
Ihes  cincoenta  e  oito  mulheres  casadas,  de  famílias  honradas,  dezenove  sodo- 
mitas, quatorze  alcoviteiras,  trinta  e  nove  velhas  criadas  de  quarto,  e  outras, 
das  quaes  cento  e  vinte  e  uma  tiveram  bastardos  no  anno  que  vae  correndo.» 

Os  cónegos,  em  numero  de  quatrocentos  e  setenta  e  oito,  não  são  mais 
regulares  na  sua  conducta,  se  dermos  credito  ao  auctor  da  estatística.  Dcscul- 
pa-se  de  não  ter  podido  descobrir  mais  de  seiscentas  mulheres  casadas  n'estas 
relações  canónicas,  mas  cita  um  cónego,  que  só  n'um  anno  teve  relações  com 
nove  mulheres,  a  saber:  duas  mulheres  de  advogados,  uma  de  um  procurador, 
três  de  fabricantes,  uma  de  cambista,  uma  de  um  corretor  e  outra  de  um  mer- 
ceeiro. Faz  entrar  no  capitulo  dos  cónegos  sessenta  e  oito  sodomitas,  trinta  e 
oito  alcoviteiras,  oitocentas  e  quarenta  e  seis  raparigas  e  criadas,  «a  maior 
parte  das  quaes  destruíram  o  fructo  dos  seus  ventres»,  e  sessenta  e  duas  al- 
coviteiras designadas  pelos  seus  nomes  e  sobrenomes. 

«Além  dos  referidos  cónegos,  accrescenta,  sessenta  e  seis  mais  são  go- 
tosos e  syphiliticos.» 

oHa  também  muitos  sexagf^narios.  Todos  estes  por  causa  das  suas  enfer- 
midades c  velhice,  nem  téem  dentes,  nem  podem  reproduzir-se.» 

Estes  cónegos  teem  ao  seu  serviço  novecentos  domésticos,  frescos,  gor- 
dos e  fartos,  os  quaes  conhecem  carnalmente  mil  e  quatrocentas  mulheres  sol- 
teiras e  cento  e  cincoenta  casadas. 

Os  capellães,  em  numero  de  trezentos,  «multiplicam  extraordinariamente 
os  bastardos»,  e  a  lista  da  polygamia  dá  a  cada  um  d'elles  duas  ou  três  aman- 
tes, casadas  ou  solteiras. 

Os  sachristães  são  mais  libertinos  ainda,  e  um  d'elles  apparece  na  lista, 
por  ter  conhecido  em  um  anno  vinte  e  oito  mulheres. 

Os  creados  dão-lhes  exemplo  de  continência,  por  isso  que,  apesar  de  se- 
rem em  numero  de  duzentos  e  quinze,  a  sua  polygamia  apenas  consta  de  cento  e 
sessenta  e  oito  mulheres,  que  produziram  cento  e  dezoito  bastardos  só  n'um  anno. 

HiSTOBU.  DA  Prostituição.  tomo  n— Folha  56. 


i43  HISTORIA 

Os  escreventes,  que  havia  por  esse  tempo  no  arcebispado  de  Lyon,  em 
numero  de  trezentos  e  dezescte,  todos  jovens  e  bem  dispostos,  procuravam  me- 
nos as  solteiras  que  as  casadas.  Duzentas  d'estas  ultimas  foram  inscriptas  como 
cúmplices  da  libertinagem  d'esses  jovens.  Presume-se,  porém,  que  o  auctor 
não  tivera  noticia  de  todas. 

Detenhanio-nos  n'esta  escandalosa  nomenclatura.  Púnhamos  de  parte  tudo 
o  que  o  implacável  inimigo  da  prostituição  refere  a  respeito  das  loucuras  dos 
frades  e  freiras.  Bastar-nos-ha  termos  especificado  com  citações  textuaes  o  gé- 
nero de  estatística,  que  tão  audazmente  se  empregou  na  Polygamia  sagrada. 

Vamos  agora  apresentar  um  quadro  synoptico,  feito  pelo  mesmo  auctor, 
a  respeito  do  estado  numérico  e  completo  dos  inauditos  excessos  do  anno  de 
1581  no  arcebisfiado  de  Lyon,  escolhido  entre  todos  os  outros  como  um  escan- 
daloso espécimen  da  depravação  do  clero. 

Estado  rirciiraslaiiciado  da  poljjjaiiiia  sajjrada  no  arcebispado  de  Lyon,  em  lS8i,  segundo  as 
invesligações  e  cálculos  do  auclor  do  «Gabinele  do  rei  de  França» 

1  Arcebispos,  bispos,  abbades  e  priores 480 

2  Fâmulos  e  domésticos 1:782 

3  Dependentes  abbaciaes 957 

4  Seus  criados  p  serviçaes 1:250 

5  Cónegos 478 

O  Criados  e  serviçaes 900 

7  Curas 13:200 

8  Criados  e  serviçaes 6:700 

9  Vigários  d'estes  curatos 13:200 

10  Seus  criados  e  serviçaes 4:200 

11  Sachristães ■  849 

12  Criados 225 

13  Dependentes  claustraes .  800 

14  Seus  criados 420 

15  Frades 4:200 

Ifí  Seus  criados  e  leigos 800 

17  Cnrtuclios 150 

18  Seus  criados 169 

19  Franciscanos 700 

20  Dominicos 600 

21  Seus  criados 166 

22  Carmelitas 452 

23  Seus  criados 180 

24  Seus  leigos 160 

25  Antoninos 315 

26  Mínimos,  Celestinos,  etc 500 

27  Jesuítas  e  seus  criados 62 

28  Cavalleiros  de  Malta 692 

29  Seus  criados 1:800 

30  Freiras  e  religiosas 2:345 

31  Padres,  guardiães  e  serventes  d'estas  freiras 600 

32  Noviços  e  meninos  de  coro 2:800 

33  Serventes  de  egreja 317 


DA    PROSTITUIÇÃO  4i3 

Episcopaes 468 

Canónicas 750 

De  capellães 160 

Societárias 600 

Parochiaes 17:000 

Re  vigários 24:700 

Monachaes 12:100 

Maltezas 12:120 

Franciscanas 400 

Dominicas 200 

Carmelitas 200 

Agostinhas 130 

Cartuchas 40 

Jesuitas 5 

SOLTEIRAS 

Episcopaes 900 

Canónicas 2:200 

De  Capellães 800 

Societárias 600 

Parochiaes 20:000 

De  vigários ,30:003 

Monachaes  ou  abbaciaes 22:000 

De  bastardos  de  bastardos 5:000 

Maltezas 2:000 

Franciscanas 400 

Dominicas '. 1:278 

Carmelitas 410 

Agostinhas 378 

Cartuchas 166 

.4.ntouinas 800 

Celestinas,  rainimas,  etc 600 

Jesuitas 7 

De  guardiães 600 

De  serventes  de  egreja 187 

PROXEIVETAS 

Episcopaes 484 

Canónicas ' 62 

De  capellães 45 

Societárias 411 

Parochiaes 2:000 

Dos  vigários 3:000 

Monachaes  ou  abbaciaes 2:400 

Da  ordem  de  Malta 200 

De  Franciscanos 75 

De  Dominicos 180 

De  Carmelitas 130 

De  Agostinhos 96 

De  Cartuchos 40 


Í44  HISTORIA 

De  Jesuítas 3 

De  Celestinos 24 

De  Guardiães 38 

De  empregados  de  egreja õ9 

De  freiras 300 

S0I>03IITAS 

De  bispos 124 

De  cónegos 68 

De  capcllães 200 

De  parochos 200 

De  secretários 112 

De  abbades  e  priores 411 

De  frades 1:100 

De  Franciscanos 160 

De  Dominicos 108 

De  Agostinhos 60 

De  Cartuchos 30 

De  Celestinos  e  Minimos 9 

De  Jesuítas 49 


Nota:  Julgamos  inútil  fazer  figurar  n'este  quadro  a  enumeração  dos  bas- 
tardos, dos  bastardos  dos  bastardos,  ele.  ctc. 

O  auclor  d'estes  estranlios  cálculos,  tirados  do  tractado  da  Polygamia 
sagrada  (Lib.  v,  cap.  í)  e  10)  não  nos  diz  de  que  modo  fez  o  mysterioso  com- 
puto, que  assegura  haver  existido  não  só  na  egreja  gallicana,  mas  até  em  toda 
a  christandade,  mas  vae  ao  encontro  da  objecção,  que  desde  logo  se  offerece  ao 
espirito  dos  seus  leitores: 

«Dir-me-bão:  Como  foi  que  poude  contar  n'este  arcebispado  tantos  ecele- 
siaslicos,  tantas  mulheres  de  ma  vida,  tantas  proxenetas,  e  tantas  outras  pes- 
soas qualificadas  no  sunimario  d'cs(e  capitulo?» 

A  resposta,  se  bem  que  especiosa,  não  é  lá  muito  concludente.  O  auctor 
diz  que  não  lhe  foi  mais  dilficil  fazer  o  cadastro  da  prostituição,  do  que  a  ou- 
tros o  catalogo  das  estrelias  e  o  recenseamento  da  monarchia  diabólica,  que 
comprehende  72  príncipes  e  7.40.):926  diabos,  sem  contar  os  pequenos.  Te- 
mos, pois,  de  confessar  que  similhanle  estatística  era  menos  fácil  que  a  outra, 
visto  que,  segundo  diz  o  auctor,  <<frequenfamos,  comemos,  e  bebemos  a  cada 
passo  com  os  cúmplices  da  Polygamia  sagrada.» 

Depois  de  defender  (Test»'  modo  a  authenticidade  dos  seus  dados,  o  ins- 
pector geral  da  Polygamia  sagrada  faz  um  resumo,  por  diocezes,  dos  prelados 
e  beneficiados,  dos  seus  familiares  e  outras  pessoas  que  vivem  á  custa  da  Egreja. 
Este  resumo,  ao  qual  bem  longe  estamos  de  conceder  inteiro  credito,  merece 
todavia  ser  arcbivado,  á  falta  de  dados  mais  sérios  e  menos  suspeitos  de  par- 
cialidade calvinista.  Formamos  assim  um  ([uadro,  á  maneira  de  Parent-Ducba- 
telet,  para  darmos  corno  que  um  balanço  da  prostituição  em  cada  dioceze,  com 
a  receita  e  despeza  dos  polygamos  da  egreja  gallicana. 


DA    PROSTITUIÇÃO 


445 


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446  HISTURIA 

O  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França»  envia  sempre  os  seus  leitores 
para  o  traclado  da  polygamia  sagrada,  d'onde  tira  os  elementos  dos  seus 
monstruosos  cálculos,  mas  não  diz  que  este  traclado  havia  sido  impresso.  Nào 
podemos,  pois,  apreciar  as  circumstancias  que  o  impediram  de  sahir  á  luz,  ou 
que  destruíram  todos  os  seus  exemplares.  O  que  nos  demonstra  a  existência 
da  referida  obra,  é  que  o  auctor,  referindo-se  a  ella,  não  apresenta  dados 
exactos  a  respeito  da  polygamia  dos  nobres,  e  não  pôde  formar  uma  estatística 
análoga  á  que  encontrava  preparada  na  enumeração  geral  da  polygamia  dos  re- 
ligiosos. Dedíca-se  de  preferencia  e  com  uma  espécie  de  prazer  maligno  á  pri- 
meira parle  do  seu  assumpto,  sem  se  cançar  de  a  repelir  em  todo  o  decurso 
da  obra,  que  parece  não  ter  outro  fim,  senão  fazer  passar  os  bens  do  clero 
para  o  domínio  do  rei,  casando  de  boa  vontade  ou  à  força  todos  os  ecclesíasti- 
cos  e  religiosos  de  ambos  os  sexos. 

A  maneira  de  estabelecer  a  prova  do  numero  dos  agentes  da  prostituição 
nada  tem  de  sério  nem  de  autbentico,  e  reconhece-se  n'esle  processo  de  insi- 
nuação e  inducção  a  má  fé  dos  huguenottes  furibundos  e  raivosos,  como  então 
lhes  chamavam.  INo  emlanto,  estas  mesmas  caluinnias,  cheias  de  veneno,  não 
são  completamente  para  desprezar,  por  quanto  pintam  a  vida  licenciosa,  que  ao 
tempo  levavam  alguns  membros  indignos  do  clero  catholico. 

Eis,  por  exemplo,  como  o  auctor  se  justifica  de  haver  attribuido  a  cada 
cardeal  franccz  um  serralho  composto  de  seis  concubinas,  sem  contar  as  rela- 
ções adulteras : 

«Como  provaremos,  porém,  este  numero  de  seis?  l^.om  os  próprios  car- 
deaes.  Nem  tão  pudicos  elles  costumam  ser,  que  não  ousem  confessar  muitas 
mais  ainda.  O  mais  antigo  d"clles  teve  amores  com  mais  de  trinta  n'um  anno 
so.  Ha  mesmo  cardeaes  que  não  se  occupam  de  outra  cousa.  Nos  três  primei- 
ros mezes  depois  da  imposição  do  barrete,  um  dos  mais  novos,  apesar  d'esse 
tempo  dever  ^er  o  de  maior  continência  para  elle,  cardinalizou  duas  mulheres 
casadas  e  três  solteiras.  Como  provar  isto?  Com  elle  próprio.» 

Effectívamente  Brantòme,  que  se  presava  de  muito  bom  catholico,  não 
falia  n'outros  termos  do  cardeal  de  Lorena,  que  era  o  professor  das  jovens  e 
inexperientes  damas  de  honor,  na  arte  do  galanteio.  Para  o  desculpar  da  sua 
incontinência,  o  hístoriographo  das  damas  galantes,  diz  apenas  que  o  cardeal 
era  um  homem  de  carne  e  osso  como  os  mais,  e  que  el-rei  o  queria  assim  e 
fazia  muito  gosto  n'clle. 

O  auctor  do  «Cabincte»  eslá,  portanto  de  accordo  com  Branfôme,  quando 
chega  a  esta  conclusão  rabelaisíana,  que  recorda  o  eslylo  da  Confissão  de  Sancy  : 
«Todos  esses  numerosos  cardeaes  de  còrle  são  outros  t;inlos  eavallos  de 
padreação  (esta'nns-,  diz  o  textn).  O  numero  de  coitadinhos  feitos  |)or  elles  du- 
rante a  semana  é  igual  ao  das  pedras  que  lhes  enfeitam  as  mitras.  Eque  hão  de 
elles  fazer?  Pregar?  Sabem  lá  o  que  isso  c?!  A  maior  parle  d'elles  nunca  sou- 
beram o  que  é  um  sermão.  Di.-ípular  IhcologiafNcm  as  damas  estão  preparadas, 
nem  os  cardeaes  Ião  pouco.  De  (|ue  hão  de  elles  tractar  ?  De  dançar  e  cousas 
alegres.  Para  qiic?  Para  namorarem.  Como  se  prova?  Observando  como  vão 
augmentaníío  de  vidiime  os  ventres  de  algumas,  cmquanto  vae  diminuindo  a 


DA    PROSTITUlÇiO  A47 

bolsa  dos  cardeaes.  E  os  próprios  nogocianles  que  lhes  vendem  fazendas  de 
seda,  objectos  de  ouro  e  de  praia,  bem  sabem  para 'quem  são  taes  presentes.» 

Depois  d'esta  pintura  dos  costumes  dos  prelados,  não  é  para  exlranhar 
que  o  censor  da  polygamia  sagrada  não  escrupulise  em  pintar  com  as  mesmas 
.  cores  os  seus  fâmulos  e  domésticos. 

«Os  prelados  e  cardeaes,  diz  elle,  escudando-se  no  proloquio  de  taea 
amos,  taes  criados,  —  são  tão  lúbricos  e  desregrados  como  todos  os  seus  ser- 
vidores. Se  elles  se  perdem  por  mulheres,  aos  criados  succede  o  mesmo,  não 
porque  sejam  cardeaes,  mas  porque  os  servem,  que  para  o  caso  o  mesmo  é 
exactamente.  No  mais  impuro  e  desaforado  bordel  de  França  não  se  ouvem  as 
torpes  conversações  que  a  cada  passo  se  celebram  nos  palácios  dos  cardeaes. 
Invoco  o  testemunho  de  quantos  as  frequentam.  De  resto,  não  se  vé  acarretar 
para  alli,  de  dia  e  de  noite,  senão  cai-ne  fresca.  É  assim  que  elles  denominam 
as  pobres  mulheres  que  prostituem,  e  depois  de  o  fazerem,  zombam  impunen- 
temente  delias.» 

No  tractado  da  polygamia  sagrada,  faz-se  menção  da  burla  pregada  pelos 
servidores  dos  cardeaes,  até  mesmo  os  moços  das  bestas,  abusando  de  algumas 
cortezãs,  cujos  restos,  deixem-nos  assim  dizer,  offereciam  em  .seguida  a  seus 
amos,  como  se  fossem  primícias  deliciosas. 

Era  sobretudo  em  viagem,  por  occasão  das  visitas  dos  prelados  ás  suas 
diocezes,  que  os  fâmulos  e  outros  domésticos  davam  larga  a  esta  libertinagem. 
Alojavam-se  com  seus  amos  em  casa  dos  notáveis  de  cada  povoação,  onde  cos- 
tumavam pernoitar,  ou  mesmo  passar  alguns  dias,  «e  raros  são,  diz  o  impla- 
cável critico,  os  que  se  retiram  sem  haverem  manchado  a  casa  hospitaleira. 
Se  a  filha  da  casa  é  rica,  arranja-se-lhe  o  casamento  com  algum  dos  secretá- 
rios, se  é  casada,  está  perdida,  porque,  no  meio  de  tamanha[confusào  e  desa- 
foro, não  logra  escapar  áquella  polygamia.» 

D'aqui  podemos  concluir  que  os  numerosos  servidores  do  séquito  de  um 
prelado  estavam  longe  de  ser  modelos  de  continência  e  moralidade,  quando  se 
apreciam  os  tristes  resultados  do  mau  exemplo  e  dos  maus  conselhos  n'uma 
reunião  de  homens  ociosos  e  libertinos.  O  pessoal  de  um  palácio  cardinalício 
compunha-se  de  mais  de  cem  indivíduos,  e  o  de  um  palácio  episcopal  não  com- 
prehendia  menos  de  cincoenta  a  sessenta,  vivendo  todos  á  custa  do  prelado. 
Assim  um  bispo  que  linha  completo  o  pessoal  da  sua  casa,  contava  os  seguin- 
tes familiares : 

Um  ou  dois  eapellães. 

Um  mordomo. 

Um  picador. 

Um  mediei). 

Três  protonotarios. 

Três  ou  quatro  gentis-homens. 

Quatro  ou  cinco  pagens. 

Um  ou  dois  secretários. 

Um  ou  dois  ajudantes  de  camará. 

Um  cosinheiro. 


448  HISTORIA 

Um  reposteiro. 

Um  copeiro. 

Dois  cliantres. 

Dois  ou  três  músicos. 

Um  alfayate. 

Um  boticário. 

Um  monteiro. 

Um  vivandeiro. 

Oito  serventes. 

Um  faicoeiro. 

Três  ou  quatro  lacaios. 

Um  arcabuzeiro. 

Um  palafreneiro. 

Dois  moços  de  estrebaria. 

Um  carroceiro. 

Um  cocheiro. 

Dois  trintanarios. 

Todos  estes  homens,  na  sua  maior  parte  novos,  e  votados  peio  geral  ao 
celibato,  tinham  os  mais  depravados  costumes,  qualquer  que  fosse,  de  resto, 
a  conducta  do  prelado  a  cujo  serviço  estavam.  Concebe-se  que,  em  dadas  cir- 
cumstancias,  poderiam  fazer  recahir  nos  seus  respeitáveis  amos  a  vergonha  do 
seu  irregular  procedimento,  e  n'este  capitulo,  pelo  menos,  o  auctor  do  «Gabi- 
nete d'el-rei  de  França»  não  exaggerou  talvez  as  cifras  da  prostituição  que  fer- 
mentava em  redor  <le  um  prelado. 

«O  bispo  é  himem,  diz  o  auctor  fallando  como  um  huguenotie,  o  seu 
fâmulo  não  é  cavallo.  Não  querem  que  se  casem,  e  elles  necessariamente  hão  de 
viver  e  arranjar  a  sua  vida  á  custa  da  honra  dos  mais.» 

Uma  aventura  escandalosa,  referida  com  graça  pelo  auctor  que  a  apre- 
senta como  um  quadro  intimo  da  vida  episcopal,  declarando  além  dMsso  haver 
conhecido  pessoalmente  a  heroina,  dar-nos-ha  uma  ideia  do  que  eram  ás  vezes 
os  costumes  dos  príncipes  da  egreja  n'aquella  épocha  de  dissolução  e  de  desa- 
vergonhamento  universal. 

«Uma  noite,  diz  o  narrador  a  paginas  79,  uma  dama  de  distincção  mas- 
carou-se  e  foi  em  companhia  de  vinte  c  três  mulheres  suas  amigas  jogar  a  casa 
do  bispo,  que  sem  duvida  a  esperava,  ainda  que  d'isto  não  suspeitava  a  refe- 
rida dama,  pois  de  outro  modo,  é  muito  provável  que  não  tivesse  ido. 

«O  prelado  perdeu  três  escudos,  c  para  se  compensar  da  perda  mandou 
chamar  a  orchestra,  e  toda  a  companhia  desatou  a  dançar  até  perder  o  fôlego. 

«Na  dança,  tomaram  parte  o  bispo,  dois  prolonotarios,  o  secretario  e  sete 
ou  oito  cónegos  que  o  jogo  alli  havia  attrahido.  Os  pagens,  como  as  mulheres 
chegavam  para  todos,  tractaram  também  de  arranjar  cada  (jual  seu  par. 

«Em  poucas  palavras,  o  baile  continuou  desde  as  dez  até  ás  duas  da  noite, 
seguindo-.se-lhe  a  collação  com  grande  abundância  de  doces  e  bebidas.  A  dama 
de  distincção  foi  victima  de  uma  indigna  surpreza.  Foi  o  caso  que  uma  das  al- 
coviteiras episcopaes  a  conduziu  illudida  ao  gabinete  do  prelado,  dizcndo-lhc 


DA    PROSTITUIÇÃO  449 

que  iria  encontrar  alli  outras  liainas,  mas  quem  estava  lá  era  o  prolonotario, 
que  fez  com  ella  o  que  bem  poderão  presumir.  A  dama,  ao  sahir  da  embosca- 
da em  que  havia  cabido,  coi)riu  de  injurias  a  proxeneta,  jurando-lhe  que  a  fa- 
ria arrepender,  e  derramando  lagrimas  amargas,  apressou-se  a  sahir  do  paço 
episcopal. 

«O  bispo  n'essa  noite  mandou  chamar  até  os  seus  palafreneiros,  que  lhe 
confessaram  as  proezas  por  elles  feitas  n'aqaella  campanha  nocturna.  Sua  gran- 
deza riu  a  bandeiras  depregadas  de  tudo  quanto  n'essa  noite  ouviu  contar.» 

Parece  ura  capitulo  do  Moijen  df  panenirdií  Bcroaldo  de  Yerville.  O  auc- 
tor  accrescenta  que  o  marido  d'aquella  dama,  quando  soube  a  emboscada  em 
que  sua  esposa  cabira,  jurou  vingar-se  do  bispo  e  se  fizera  huguenotte.  É  possí- 
vel, ainda  assim,  que  o  bispo  não  fosse  cúmplice  do  acto  de  violência  pratica- 
do por  um  dos  seus  domésticos.  Talvez  sua  grandeza  fosse  apenas  demasiado 
amigo  da  dança  e  dos  contos  licenciosos,  mas  nem  por  isso  deixa  de  ser  me- 
nos responsável  pelo  proceder  desregrado  do  pessoal  da  sua  residência. 

O  tractado  da  Polvgamia  sagrada  accusa  dos  mesmos  desvarios  os  serven- 
tes dos  cónegos,  abbades,  priores,  etc,  das  ordens  religiosas  ou  militares. 

«Este  servidores,  diz  o  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França»,  são  tão 
bem  tractados,  que  basta  olhar  para  elles,  conhece-se  logo  que  são  pessoas  ads- 
trictas  a  cónegos  e  frades,  tão  nédios  e  corados  elles  andam. 

«Nem  assim  lhes  é  difíicil  arranjar  raparigas,  porque  as  de  seus  amos  tra- 
zem outras  em  sua  companhia,  e  que  não  trouxessem,  elles  sabem  perfeita- 
mente onde  hão-de  ir  buscal-as.  De  tal  modo  estão  i)s  claustros  habituados  a 
presenciar  as  scenas  escandalosas  com  estas  raparigas,  que  ao  passar  por  alli, 
scnte-se  o  cheiro  da  carne.» 

E  innegavel  que  esta  promiscuidade  de  domésticos,  bem  mantidos  e  ocio- 
sos; não  podia  deixar  de  favorecer  os  progressos  da  prostituição  livre  e  secre- 
ta, especialmente  desde  que  fora  abolida  a  prostituição  legal  pela  ordenação  de 
Carlos  IX. 

«.Não  ha  filha  de  artífice,  de  operário,  de  trabalhador  ou  serventuário  em 
que  estes  infames  não  se  refocillem,  e  muitas  vezes  a  troco  de  um  pedaço  de 
pão  desfloram  uma  pobre  donzella.  Se  é  formosa,  é  para  o  senhor  cónego :  se 
o  não  é  muito,  e  o  amo  o  permitte,  o  domestico  encarrega-se  de  o  substituir. 
Quem  lançar  os  olhos  para  esta  prostituição  que  nos  cerca,  verá  que  não  ha 
pae  nem  mãe  que  não  deva  tremer  pelo  grande  perigo  em  que  se  encontram 
suas  pobres  filhas  e  serventes,  porque  os  homens  do  pessoal  do  paço  são  como 
os  touros  entre  as  vaccas  e  as  novilhas.» 

Os  serventes  das  abbadias  gosavam  certos  privilégios  que  os  dos  có- 
negos lhes  invejavam. 

«Ha  mesmo  infames,  que  depois  de  haverem  abusado  de  algumas  mu- 
lheres, graças  ao  credito,  auctoridade  e  favor  do  seu  abbade,  casaram  com  suas 
filhas,  bem  contra  a  vontade  dos  pães.» 

Quanto  aos  serventes  dos  frades,  que  segundo  a  estatística  eram  em  nu- 
mero de  cem  mil  e  faziam  então  um  terrível  escândalo  em  questões  de  amores, 
apresentam-se  como   infames,    «que  se   introduzem   nas  casas    mais  honestas 

UUTOJUÂ  DA  PROSTTTDIÇÃO.  ToMO  U — FOLHA   57. 


450  HISTORIA 

para  prostituirem  as  filhas-familias  e  as  criadas,  deixando-nos  depois  o  encargo 
de  liies  sustenlarmos  os  Ijastardos.» 

0  escriptor  protestante  conclue  o  odioso  quadro  com  esta  ultima  pince- 
lada : 

«Os  que  são  tão  castos,  que  não  téem  senão  uma  ou  duas  ribaldas,  po- 
deis crer  que  se  entregam  á  sodomia.» 

Diz  também  que  nas  aldeias,  sufíraganeas  da  abbadia  de  Cluny,  se  con- 
tavam sete  a  oito  mil  mulheres  libertinas,  destinadas  exclusivamente  a  satis- 
fazer os  desejos  dos  seus  religiosos. 

«Basta  lèr  o  tractado  da  Polygamia  sagrada,  accrescenta,  para  se  conhe- 
cerem as  subtilezas  monásticas  dos  frades,  mais  voluptuosos  do  que  se  pôde 
imaginar.» 

A  tantas  torpezas,  a  tantos  excessos  públicos  ou  particulares,  os  hugue- 
nottes  oppôem  um  remédio  único,  um  remédio  que  elles  reputam  como  infal- 
livel  —  o  matrimonio.  Elles  queriam  que  todos  os  celibatários  ecclesiasticos  e 
religiosos  respondessem  ás  perguntas  seguintes  : 

1  .*  —  Se  são  virgens. 

2.*  —  Se  conheceram   mulheres. 

3."  —  Quantas  téem  tido,  ou  téem  ainda? 

No  caso  de  serem  a  este  respeito  negativas  as  respostas,  far-se-lhes-hiam 
ainda  outras  perguntas  mais  apertadas  : 

I  .■  —Se  téem  tido  copula  com  os  demónios? 

2."  —  Se  commetteram  algumas  vez  sodomia? 

3."  —Se  sabem  que  a  continência  é  um  dom  singular  de  Deus,  que  elle 
não  concede  senão  a  certas  pessoas,  e  ás  vezes  por  um  tempo  determinado,  e 
que  aquelles  a  quem  este  dom  é  recusado,  devem  recorrer  ao  matrimonio,  que 
é  o  remédio  disposto  por  Deus  para  a  necessidade  humana? 

Em  consequência  d'isto,  o  matrimonio  da  gente  da  egreja  devia  ser  re- 
querido e  ordenado  pela  lei  religiosa,  tanto  mais  que  os  cinco  artigos  propostos 
e  adoptados  no  Colloquio  de  Poíssy,  como  uma  salvaguardada  moralidade  pu- 
blica, nunca  poderam  ser  executados  por  parte  do  clero. 

Estes  cinco  artigos  encerravam  todas  as  garantias  moraes,  que  se  tinham 
podido  inventar  contra  a  luxuria  e  seus  desastrosos  effeitos. 

1." — Os  ecclesiasticos,  que  não  tivessem  o  divino  dom  da  continência, 
eram  obrigados  a  jejuar  a  pão  e  agua,  sempre  que  se  sentissem  espicaçados 
pelo  aguilhão  da  carne. 

2."— Não  podiam  failar  nem  communicar  com  mulheres,  senão  em  pre- 
sença de  seus  pacs  ou  mandos,  sob  pena  de  degradação. 

3.° — -Não  deviam  beber  vinho  senão  duas  vezes  por  semana  para  melhor 
se  poderem  conter. 

4.°  —  Se  fossem  convidados  para  algum  banquete  nupcial,  deviam  limi- 
lar-se  a  dançar  um  simples  minuete,  com  os  mais  modestos,  santos  e  editi- 
cantes  movimentos. 

5,"  —  A  confissão  auricular  não  poderia  realisar-se  senão  em  uma  ca- 
pella  com  cinco  nu  seis  pessoas  ao  mesmo  tempo. 


DA    PROSTITUIÇÃO  451 

O  auctor  do  Gabinete  du  rei  de  trança,  desmascarando  e  perseguindo 
assim  os  escândalos  da  polygamia  sagrada,  julga  ler  provado  que  a  primeira 
pedra  preciosa  que  se  pôde  tirar  d'este  lodo  é  «a  palavra  de  Deus,  ou  a  ver- 
dadeira religião,  por  cujo  meio  o  rei  pôde  limpar  o  seu  reino  d'esta  sórdida  e 
detestável  polygamia.» 

A  segunda  pérola,  a  nobreza,  parece  menos  enlodada  que  a  outra.  No 
emtanto,  o  rigido  reformador,  depois  de  liaver  assentado  como  principio  que  a 
verdadeira  nobreza  é  completamente  inimiga  d'aquella  cxccravel  polygamia, 
admoesta  os  nobres,  e  censura-os,  «por  se  prenderem  tanto  com  a  nobreza  do 
sangue,  que  esquecem  e  desprezam  a  nobreza  da  virtude,  de  tal  modo  que  cbcgava 
a  parecer  a  alguns  que  nenbum  vicio  poderia  desbonrar  a  nobreza  berdada  de 
seus  pães  e  maiores.» 

Considera  os  lalsos  nobres  como  o  mais  perigoso  sustentáculo  da  poly- 
gamia, e  a  ennumeração  d'estes  falsos  nobres  dá-nos  a  conbecer  o  caracter  e 
o  calibre  de  cada  um  d'elles.  «Fidalgos  de  Mort-Dieu,  e  outras  blaspiíemias  si- 
milbantes;   fidalgos   feitos  á  pressa,  lobos  brancos,  lanzudos,  birbantes,  etc.» 

Toda  esta  fidalguia  dava  por  certo  grande  contingente  á  prostituição,  mas 
o  auctor  carece  de  materiaes  e  números  exactos,  vendo-se  obrigado  a  entre- 
ter-se  com  generalidades,  e  contentando-se  de  mencionar  na  sua  revista  da  no- 
breza franceza  as  qualidades  distinctivas  boas  e  más,  que  caracterisam  os  no- 
bres de  tal  ou  tal  província. 

Os  nobres  da  Touraine  são  sobretudo  juradores  e  blasphemos,  atheus  ou 
epicuristas.  Os  da  Guyenne,  dados  á  rapina  e  moedeiros  falsos;  os  da  Gasco- 
gne,  cruéis  e  sanguinários,  etc. 

«O  vicio  predominante  entre  os  nobres  do  Berry  é  a  luxuria.  Ainda  que 
os  nobres  das  outras  províncias  não  sejam  exemplos  d"este  vicio,  não  se  refo- 
cillam  tanto  n'elle,  ainda  assim,  com(»  os  do  Berry,  sem  que  possamos  dar  a  ra- 
são  d'isto.  Devem  saber,  pois,  que  se  téem  outros  sórdidos  e  feios  vicios,  não 
é  este  um  dos  mais  pequenos,  e  vejo-me  na  necessidade  de  lhes  dizer  o  se- 
guinte :  Como  tractam  de  gosar  as  mulheres  dos  seus  parentes  e  visinhos,  a 
torto  e  a  direito,  devem  esperar  que  elles  façam  o  mesmo  ás  suas.» 

O  censor  da  nobreza  passa  logo  ao  seu  assumpto  favorito,  accusando  o 
clero  do  Berry  de  todas  as  desordens  que  a  nobreza  do  paiz  se  permittia  a 
exemplo  da  Polygamia  sagrada.  Denuncia  a  immoralidade  que  preside  ás  rela- 
ções das  damas  nobres  cora  os  ecclesiasticos,  e  condemna  o  pouco  reparo  dos 
maridos  pela  conducta  de  suas  mulheres. 

«E'  uma  prostituição  manifesta,  exclama  elle  com  a  indignação  de  um 
pregador,  erguer-se  uma  dama  do  leito  conjugal  para  ir  procurar  á  meia  noite 
um  abbade  ou  prior,  e  passar  até  de  madrugada  dançando  e  divertindo-se  com 
elle,  sem  que  o  marido  o  saiba,  praticando  além  d'isto  tão  exlranhas  e  mons- 
truosas impurezas,  que  as  ribaldas  dos  bordeis  se  envergonhariam  de  as  fazer. 
E'  uma  prostituição  e  até  um  lenocínio  dar  de  beber  a  estes  patifes  e  ás  suas 
amigas,  e  tomar  depois  a  taça  e  beber  com  elles.  Se  isto  continua,  eis  uma 
província  inteira  manchada  de  toda  a  abominação  e  impureza.» 

Depois  d'este  exórdio,  espera  toda  a  gente  que  o  auctor  anonymo,  tão  pro- 


452  HISTORIA 

digo  de  números  ao  tractar  da  polygamia  sagrada,  faça  lambem  uma  estatística 
do  mesmo  género  a  propósito  da  nobreza  do  Berry,  que  parece  conbecer  me- 
Ibor  que  as  outras  províncias.  Não  nos  apresenta,  porém,  cálculos  que  nos  re- 
vellem  o  numero  de  mulheres  casadas  e  solteiras  da  aristocracia,  entregues 
á  libertinagem.  Prefere  deliciar-nos  sobre  este  delicado  assumpto  com  a  narra- 
ção de  uma  aventura,  que  alguma  cousa  provaria,  se  se  tivesse  repetido  com 
frequência. 

«Nove  íidalgos  e  três  rapazes  mais  de  boa  família  foram  a  uma  feira,  e 
depois  de  haverem  dançado  alegremente,  levaram  umas  parentas  suas  a  casa 
de  um  abbade,  que  os  havia  convidado  para  um  banquete.  O  ecclesíastíco,  pela 
sua  parte,  tractou  também  de  arranjar  umas  quatorze  ou  quinze  mulheres,  suas 
conhecidas,  e  já  por  outras  vezes  habituadas  a  estas  diversões.  .4  reunião  cor- 
reu animada  c  alegre,  e  na  meza  servirani-se  manjares  delicadíssimos. 

«Um  pagem  veio  em  seguida  deleitar  os  convivas  com  o  som  do  .seu 
alaúde;  organísaram-se  danças  animadas,  e  depois  d'ellas  os  convivas  dirigi- 
ram-se  ao  jardim. 

«AUi  cada  conviva,  levando  pelo  braço  a  sua  dama,  dirigiu-se  ao  bosque, 
e  só  depois  de  duas  ou  três  horas,  quando  começou  a  anoitecer,  se  lembraram 
de  voltar,  provavelmente  por  lerem  procurado  nas  sombras  do  arvoredo  algum 
logar  aprazível,  onde  as  horas  passaram  rápidas. . . 

«O  abbade  e  Ires  dos  seus  fâmulos,  que  tomaram  parte  em  todas  as  di- 
versões, mostravam-.se  contentíssimos. 

«Veio  a  hora  da  ceia,  e  todos  ceiaram  lautamente,  voltando  em  seguida 
ao  passeio,  e  depois  d"elle  para.  .  .  os  leitos. 

«No  dia  seguinte,  correu  o  boato  de  que  uma  das  mais  honestas  damas 
do  Berry,  não  podéra  salvar  a  sua  honra  das  garras  de  um  libertino,  e  que 
fora  um  primo  quem  lhe  havia  armado  o  laço  em  que  a  sua  virtude  succum- 
bira.  E  como  alguém  censurasse  ao  indigno  parente  o  haver  prostiluido  sua 
prima,  tendo-se  indisposto  por  causa  d'isto  com  o  marido,  que  poderia  lançar- 
Ihe  em  rosto  a  sua  traição,  respondeu : 

«Meu  primo  tem  bastante  senso  commum,  para  comprehender  que  se  os 
porcos  não  fizessem  o  presunto,  nem  elle,  nem  eu  o  comeríamos.» 

X  historia  da  polygamia  accrescenla,  como  que  para  confirmar  a  sua 
narrativa,  «que  os  nobres  do  Berry  são  Ião  indecentes,  que  trocam  uns  com  os 
outros  as  suas  mulheres.» 

O  auctor  volta  mais  vezes  ainda  a  este  assumpto  da  licenciosidade  que 
attribue  aos  ccclesiaslicos,  mas  não  procura  apreciar  de  uma  maneira  mais  pre- 
cisa os  damnos  da  prostituição  na  nobreza  e  no  terceiro  estado.  Vc-se  que  neste 
assumpto  lhe  escasseiam  materiaes  e  pormenores. 

De  reslo,  exceptuando  a  violência  dos  seus  ataques  contra  a  polygamia 
sagrada,  as  suas  intenções  são  cxcellentes. 

«E'  preciso,  diz  elle,  que  o  bem  s'>ja  n'este  reino  mais  forte  e  poderoso 
que  o  mal ;  c  preciso  ([ue  a  modéstia  domine  o  orgulho,  a  nobreza  a  villania, 
a  castidnde  a  impureza.» 

Exborla  em  seguida  os  bons  cidadãos  a  unirem  os  seus  esforços  aos  d'elie 


DA    PROSTITUIÇÃO  453 

para  corrigir  os  costumes  e  levantar  ao  seu  verdadeiro  esplendor  a  monarchia 
franceza.  Entra  nos  cálculos  financeiros,  e  com  uma  minuciosidade  prodigiosa 
enumera  os  dilTerentes  productos  que  constituem  os  rendimentos  da  egreja  gal- 
licana,  concluindo  que  estes  rendimentos,  que  se  elevam  a  cento  e  dez  milhões, 
são  sutíiciontes  não  só  para  sustentar  o  clero,  que  não  gastaria  mais  de  setenta, 
implantando  geralmente  o  regimen  matrimonial,  mas  também  para  occorrer  ás 
necessidades  do  thesouro  de  sua  magestade. 

Todo  o  segredo  d'esta  grande  reforma  consiste  no  matrimonio  dos  poiy- 
gamos,  e  na  entrada  dos  bens  temporaes  da  Egreja  nos  domínios  da  coroa. 
Taes  são  as  bases  d'este  plano  de  economia  politica,  architectado  em  números 
e  combina^.'ôes,  que  parecem  demasiado  minuciosas  para  não  serem  reaes,  por- 
que o  auctor  d'este  singular  plano  apresenta  como  specimen  do  seu  trabalho 
um  estudo  completo  de  todos  os  rendimentos  do  arcebispado  de  Lyoii,  gaban- 
do-se  de  não  haver  esquecido  no  seu  quadro  estatístico  nem  um  frangão,  nem 
um  salamim  de  aveia,  nem  uma  carroça  de  palha. 

Esta  admirável  aptidão  de  calculista,  cousa  rara  e  nova  naquelle  tempo, 
permitte-nos  ter  alguma  confiança  no  recenseamento  especial,  feito  pelo  auctor 
ou  auctores  da  Polygamia  .sagrada. 

Não  julgamos,  porém,  que  o  remédio  proposto  por  este  terrível  adversá- 
rio do  celibato,  tivesse  produzido  os  benéficos  e  promptos  eITeitos  que  elle  es- 
perava para  a  melhoria  dos  costumes.  O  casamento  de  todos  os  ecclesiasticos 
pagos  pelo  rei  teria  por  certo  diminuído  o  numero  dos  mercenários  que  viviam 
em  torno  (Telles  da  prostituição,  mas  a  própria  prostituição  que  as  ordenações 
reaes  não  conseguiam  destruir,  privando -a  da  sua  forma  legal  e  regular,  teria 
continuado  a  reproduzir-.se,  como  uma  corrupção,  á  sombra  dos  conventos  e  das 
communidades. 

.4pe.sar  d'isto,  o  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França»  estava  tão  conven- 
cido da  eflicacia  da  sua  panaceia  conjugal,  que  supplicava  ao  digno  e  virtuoso 
cardeal  de  Bourbon,  a  esse  tempo  já  com  cincoenta  e  oito  annos,  que  desse  um 
exemplo  salutar  ao  clero  e  á  nobreza,  casando-se  e  fazendo  uma  confissão  so- 
lemne  de  todas  as  suas  «infracções  á  virgindade  e  á  continência  requeridas  pelo 
celibato.» 

Este  bom  casamento,  na  opinião  do  inventor  das  três  pérolas,  devia  in- 
fallivelmente  produzir  dentro  de  muito  pouco  tempo  trezentos  ou  quatrocentos 
casamentos  puros  e  legítimos. 

«D'este  modo,  diz  elle  ao  cardeal  que  suppõe  arrependido  de  ter  violado 
o  seu  voto  de  castidade  mais  de  sete  vezes,  d'este  modo,  chegareis  a  preve- 
nir trinta  ou  quarenta  mil  incestos  todos  os  annos  na  Egreja  gallicana,  c  da- 
reis sobre  tudo  fim  á  sodomia,  por  isso  que  as  vinte  e  cinco  ou  trinta  mil  pes- 
soas habituadas  a  esta  infâmia,  voltariam  á  pureza  pelo  caminho  do  matrimo- 
nio. Obteríamos  também  a  suppressão  de  todas  as  ribaldas  (putains)  cardina- 
lícias, episcopaes,  abbaciaes,  canónicas,  monásticas,  presbyteriaes  e  de  todas 
as  outras  cathegorias,  e  a  suppressão  de  todos  os  rufiões,  alcoviteiros  e  bastar- 
dos, cujas  despezas  de  alimentação  e  posição  são  mais  que  sufficientes  para  sa- 


454  HISTORIA 

tislazer  todas  as  obrigações,  tanto  ordinárias  como  extraorditiarias  da  coroa  de 
França. 

«Eis  o  beneficio  que  o  vosso  casamento  traria  conisigo.  Yêde,  porém,  um 
outro,  o  maior  que  elle  produziria.  Seria  a  causa  de  todas  as  mulheres  reclu- 
sas nos  mosteiros  se  cazarem,  e  darem  assim  um  golpe  mortal  no  incubismo, 
essa  sensualidade  diabólica,  exercida  pelo  inimigo  da  natureza  no  sexo  frágil.» 

O  cardeal  não  se  cazou,  apesar  do  bom  conselho,  e  a  prostituição  seguiu 
o  seu  curso. 

Não  damos  a  esta  curiosa  obra  mais  fé  do  que  ella  merece;  convimosaté 
com  o  marquez  de  Paulmy  (Mélanges  lirés  d'une  grande  bibliothèque)  que  o 
auetor  revelia  nas  suas  paginas  um  ódio  encarniçado  contra  o  clero;  mas  temos 
forçosamente  de  reconhecer  que  o  clero  do  século  xvi  estava  muito  longe  de 
se  recommendar  pelas  virtudes  que  deviam  ser  para  elle  o  mais  santo  dos  pa- 
trimónios. 

Dulaure,  na  sua  Historia  de  Paris  (p.  316  e  seguintes  do  t.  iv)  reuniu 
incontestáveis  testemunhos  da  immoralidade  e  preversão  do  clero,  e  estes  tes- 
temunhos estão  quasi  completamente  conformes  com  as  asserções  da  Polyga- 
mia  sagrada.  João  de  Montluc,  bispo  de  Valência,  dizia  a  23  de  agosto  de  1360, 
em  um  discurso  proferido  perante  o  conselho  do  rei: 

«Os  cardeaes  e  bispos  não  tiveram  escrúpulo  de  entregar  os  benefícios 
aos  seus  mordomos,  e  o  que  é  mais  ainda,  aos  seus  criados  de  quarto,  cozi- 
nheiros, barbeiros  e  lacaios.  Os  mesmos  sacerdotes  pela  sua  avareza,  ignorân- 
cia e  vida  licenciosa,  tornaram-se  odiosos  e  desprezives.»  {Mem.  de  Conde,  t.  i, 
p.  360). 

Em  uma  assembleia  de  notáveis,  celebrada  no  Hotel  de  Ville  de  Paris, 
em  dezembro  de  1373,  dirigiram-se  humildes  observações  a  el-rei,  nas  quaes 
se  nota  esta  passagem  : 

«Nem  os  bispos  nem  os  parochos  residem  nas  suas  diocezes  ou  benefícios, 
entregando  assim  o  seu  rebanho  ás  garras  do  lobo,  sem  instrueção  nem  bons 
exemplos.  Os  ccclesiasticos  são  tão  inclinados  á  luxuria,  á  avareza  e  aos  outros 
vicios,  que  o  escândalo  é  espantoso.» 

No  mesmo  anno,  um  escriptor  catbolico,  B.  Marchand,  dirigia  egualmente 
admoestações  a  povo  fraiicez  a  respeito  dos  vicios  innumcravcis  que  reinavam 
por  aquelle  tempo. 

«Haverá  hoje  em  dia  gente  mais  cheia  de  vicios  do  que  os  prelados  da 
Egreja  ?» 

Censura  amargamente  os  sacerdotes  e  os  frades  por  frequentarem  as  ta- 
bernas, as  casas  de  jogo  e  os  bordeis,  e  lamenta-se  dos  vergonhosos  excessos 
que  manchavam  a  casa  do  Senhor. 

.4s  mesmas  q  seixas  se  encontram  consignadas  n'uma  multidão  de  docu- 
mentos históricos  que  não  sabiam  das  imprensas  dos  huguenotfcs  nem  jamais 
suscitaram  contradictores.  Brantòme,  por  exemplo,  fez  na  sua  Vida  de  Fran- 
cisco I  um  trisle  i|uadro  do  interior  dos  conventos  e  das  abbadias  antes  da  Con- 
cordata. Diz-nos  que  os  frades  elegiam  para  superior  da  communidade  «o 
melhor  companheiro,  quer  dizer,  o  que  mais  gostava  de  raparigas,  de    cães  e 


DA    PROSTITUIÇÃO  455 

de  pássaros,  n'uma  palavra,  o  mais  dissoluto  de  todos,  a  fim  de  que  lhes  per- 
mittisse  todas  as  loucuras  e  excessos  da  libertinagem.» 

Corria  entre  o  jidvo  um  provérbio,  que  a  ninguém  escandalisava  :  Avaro 
«...  dissoluto  como  um  padre,  ou  como  um  frade. 

Finalmente  Brantòrae  atreve-se  a  fallar  dos  bispos  e  abbades  nos  termos 
seguintes : 

«Deus  sabe  a  vida  que  elles  passam.  Estão  agora  mais  permanentes  nas 
suas  diocezes  do  que  antigamente,  mas  para  que?  Para  passarem  uma  vida  com- 
pletamente dissoluta,  em  caçadas,  festins  e  orgias  de  mulheres,  de  que  fazem 
serralhos,  como  um  de  quem  tenho  ouvido  fallar,  que  procurava  raparigas  de 
dez  annos,  contanto  que  promettessem  vir  a  ser  bonitas  lá  para  diante,  man- 
dando-as  criar  e  educar  nas  aldeias  das  suas  diocezes,  como  os  fidalgos  costu- 
mam fazer  aos  cães,  para  se  servirem  d'elles  quando  são  grandes.» 

Taes  vicios  e  depravações  seriam  talvez  apenas  tristes  e  deploráveis 
excepções  na  Egreja  catholica,  e  o  próprio  B-antòme  o  confirma,  quando  diz  : 

«Os  nossos  bispos  modernos  são  mais  cautos,  ou  pelo  menos  mais  astutos 
e  hj'pocritas,  para  melhor  occultarem  a  sua  vida  licenciosa,  dizia-me  ha  tem- 
pos um  elevado  personagem.  O  que  digo  de  alguns  d'elles,  tanto  antigos  como 
modernos,  não  o  posso  dizer  de  todos,  nem  Deus  tal  permitta.  Em  todos  os 
tempos  tem  havido  muitos  homens  de  bem,  de  vida  santa  e  exemplar,  e  hade 
havel-os  sempre,  mercê  de  Deus,  que  nunca  abandona  o  seu  povo.» 

No  emtanto,  no  interesse  da  verdade,  e  sem  querer  attenuar  a  homenagem 
prestada  por  Brantòme  á  conducta  irreprehensivel  de  certos  prelados,  confron- 
taremos com  os  factos  e  cálculos  apresentados  pelo  auctor  do  Gabinete  do  ret 
de  França  um  documento  jurídico,  cuja  authenticidade  Dulaure  nos  assegura, 
e  podia  fazel-o,  porque  o  teve  diante  dos  olhos.  E  um  inquérito  ordenado  pelo 
parlamento  de  Paris,  em  virtude  da  representação  dos  syndicos  e  cônsules  da 
cidade  d'Aurillac,  e  feito  em  1555  pelo  logar-tenente  do  baillio  d"esta   cidade. 

Demos  a  palavra  a  Dulaure  que  analysa  este  inquérito,  em  que  foram 
ouvidas  mais  de  oitenta  testemunhas. 

«Carlos  de  Senectaire,  abbade  do  convento  d'.4urillac  e  senhor  d'esta  cida- 
de; seus  sobrinhos,  João  Belveser,  protonotario  e  António  de  Senectaire,  abbade 
de  S.  João,  sua  sobrinha  Maria  de  Senectaire,  abbadessa  de  Blois,  convento 
da  mesma  cidade,  e  os  frades  e  freiras  de  um  e  outro  convento  entregavam-se 
a  todos  os  excessos  da  libertinagem. 

«Cada  frade  vivia  com  uma  ou  muitas  concubinas,  mulheres  por  elle 
prostituídas,  e  que  roubara  da  casa  paterna  ou  conjugal.  Estes  religiosos  sus- 
tentavam-nas  e  alojavam-nas  no  convento,  bem  como  os  filhos  que  de  taes  re- 
lações provinham,  e  que  já  chegavam  a  setenta,  consummindo  todas  as  offe- 
rendas  feitas  á  Egreja. 

«O  abbabe  tinha  no  jardim  da  sua  residência  um  pavilhão  destinado  ás 
suas  sensualidades  e  adornado  de  pinturas  obscenas.  Dera-lhe  um  nome  que 
não  pode  escrever-se  por  demasiado  grosseiro  e  impudico.  Os  padres  eram  os 
fornecedores  habituaes  d'aquelle  logar  infame,  desempenhando  ás  vezes  também 
os  sobrinhos   do  abbade  essas  funcções.  A  mercadoria  impura  era  recrutada 


436  HISTORIA 

iião  so  na  cidade,  mas  até  nas  aldeias  circumvizinhas.  Donzeilas  inexperientes 
eram  barbaramente  arrancadas  em  pleno  dia  dos  braços  das  mães  á  vista  de 
todo  I)  mundo,  e  os  libertinos  arrostavam  a  indignação  publica,  mostrando-se 
insensíveis  ás  queixas  e  gritos  das  suas  victimas,  que  conduziam  ao  convento 
a  pontapés  e  empurrões  para  servirem  de  pasto  á  brutal  lubricidade  do  pre- 
lado e  de  seus  sobrinhos,  e  finalmente  de  todos  os  frades.»  (Edic.  de  1825,  t- 
IV,  p.  322.) 

Mão  parece  estar-se  lendo  uma  pagina  da  polygamia  sagrada  ?  Em  con- 
sequência d'esta  informação  foi  secularisado  o  convento,  e  a  cidade  d'Aurillac 
viu-se  livre  por  fim  dos  seus  abomináveis  tyrannos. 

Depois  de  se  ter  visto  o  resumo  do  inquérito  judicial,  em  que  Dulaure, 
ainda  assim,  imprimiu  o  sello  da  sua  parcialiJade,  sentimo-nos  inclinados  a 
repetir  com  o  auctor  do  «Gabinete  do  rei  de  França» : 

«Ninguém  deve,  portanto,  admirar-se  de  ver  a  polygamia  prostituir  com 
os  seus  vícios  todas  as  famílias  d'este  reino.» 

E'  preciso  notar,  comtudo,  que  a  licença  dos  costumes  no  clero  e  sobre- 
tudo no  innumeravel  exercito  de  cúmplices  desbragados,  era  uma  consequên- 
cia fatal  da  desmoralisação  publica  n'aquelia  épocha,  em  que  poucas  pessoas 
tinham  uma  verdadeira  ideia  da  honestidade  sob  o  ponto  de  vista  social. 

A  religião  reformada,  devemos  confessal-o  para  sermos  justos,  com  o 
seu  exemplo  c  com  as  suas  severas  censuras,  contribuiu  muitíssimo  para  de- 
purar os  costumes  do  clero  catliolico,  que  devia  oflerecer  brevemente  tão  cas- 
tas e  gloriosas  virtudes. 


CAPITULO  XXXVII 


SUMMARIO 


A  prostituirão  dos  mignons  de  Henriíiue  lu.  — Cbpgada  dos  italianos  a  corte  de  França  -  Influencia  dos 
seus  costiimi'S.  —Nicolau  Maillard.  da  Soibonna.  —  Opioiãi)  das  pessoas  honestas,  citada  por  B:antôme.  —  Maridos 
abomináveis.  --  Heniii|ue  iii  voltada  Polónia.   -Uma  aventura  d'el-ici  cm  Veneza  —Data  exada  da  sua  conupçSo. 

—  Os  estudantes  e  os  italianos.  —  O  capitão  L,a  Visrerie Oi i^ein  da  iramoialidade  e  (lepravaçiio  dos  mifinons.  — 

Retrato  d'elles  por  E>toiIe  —  .As  diguidadi-s  da  côrle.  —  Catalogo  djs  mit/nons.  —Torpe  soneto.  —  A  calumoia.  — 
Poesias  e  liliellos  salvricos  dos  liusuenoltes  e  dos  da  iíja.— Carla  de  ura  parisimse.  —  .\s  feiticerias  de  Hi^nriíue  de 
Valois  —  Mascaradas  e  procissões.  —  A  confraria  dus  Penitentes.  —  O  frade  Pon^et  -  Nomes  dos  miiy/íons. — Os 
Trágicos  de  Agfrrippa  d'Aubigné.—  Os  hermaphrodita,s.  —  O  altar  de  Antinoo  —  A  deusa  Salauihuna  —  A  Confi-^são 
de  Sancy.  —  O  Juvenal  da  corte  ile  Henrique  m. 


NTES  DE  EXPOR.Mos  30  Icíloi'  ()  estíido  da  prostituição  na  corte  de 
Henrique  iii,  não  podemos,  sob  pena  de  deixarmos  uma  grande 
lacuna  n'esfy  historia  dos  costuines,  omiltir  um  género  de  de- 
pravação, que  inaiieliou  vergonhosamente  o  reinado  do  ultimo 
dos  Valois. 

Tractaremos  este  assumpto  á  parte,  com  toda  a  repugnância  que  nos 
inspira,  e  com  todas  as  precauções  que  a  decência  da  linguagem  nos  permittir 
lio  extracto  das  obras  contemporâneas.  .\ão  pódc  esludar-se  a  vergonhosa  épo- 
cha  de  Henrique  ui  sem  fallar  dos  seus  mitjnons  e  das  torpezas  com  que  elles 
deshonraiam  a  memoria  de  seu  amo.  Todos  us  historiadores  mais  sérios  e  gra- 
ves, .\ubigné,  Tliou  e  Mezeray,  etc,  resignam-se  a  manchar  as  paginas  dos 
seus  aniiaes  históricos,  apresentando  n'ellas,  para  exemplo  e  licção  da  posteri- 
dade, as  abominações  que  aviltaram  a  vida  intima  de  um  rei  christão.  Apenas 
um,  o  Padre  Daniel,  procura  justifical-o,  ou  pelo  menos  favorecel-o  com  certas 
reticencias. 

«Ainda  que  não  possamos  dar  fé,  diz  clle  na  sua  grande  Historia  de 
França,  a  tudo  quanto  os  huguenotles  e  os  da  Liga  disseram  e  escreveram  a 
respeito  das  suas  libertinagens  secretas,  é  dillicil  crer  que  fosse  calumnioso 
tudo  quanto  d'este  monarcha  se  propalou.» 

Não  emprehenderemos  a  árdua  empreza  de  defender  Henrique  iii  e  os 
seus  migaons  das  accusações  por  lodos  formuladas  no  seu  tempo,  e  que  bem 
depressa  formaram  a  trementia  voz  da  opinião  publica.  Reconheceremos,  porém, 
com  o  Padre  Daniel,  que  as  calumnias  dos  huguenottes  e  mais  tarde  as  dos 
da  Liga,  não  deixaram  de  formar  um  tecido  das  mais  torpes  extravagâncias, 
appoiadas  infelizmente  em  alguns  factos  verdadeiros.  O  horrível  episodio   dos 

HiSTOkU  HA.  Phostituicão.  toho  n— Folha  58. 


458  HISTORIA 

mignons  de  Henrique  iii,  parece-nos  haver  sido  singularmente  exaggerado  pelo 
espirito  de  partido,  tanto  religioso  como  politico. 

Não  pôde  negar-se  que  a  chegada  dos  italianos  a  França,  no  séquito  de 
Catharina  de  Medicis,  não  deixou  de  ter  uma  influencia  deplorável  nos  costumes 
da  corte;  mas  se  alguns  jovens  libertinos  se  davam  ás  vezes  á  imitação  dos 
vergonhosos  costumes  de  Chouse,  como  se  chamava  ao  italianismofrancez,  pu- 
nham especial  cuidado  em  não  alardearem  estes  infames  excessos,  muito  con- 
traries á  galanteria  nacional,  e  até  mesmo  se  defendiam  da  accusação  de  um 
vicio  que  causava  horror  a  todas  as  pessoas  honradas.  Bem  depressa,  porém, 
se  foi  perdendo  aquella  salutar  vergonha  e  começou  a  haver  tolerância  para  o 
que,  até  então,  não  tinha  havido  mais  do  que  indignação  implacável. 

«E  quando  mesmo  não  houvesse  mais  de  que  sodomia,  com  ella  hoje  se 
pratica,  diz  H.  Estienne,  no  seu  apologo  p.  Heródoto,  publicado  em  1576, 
mas  escripto  muito  antes,  não  poderíamos  chamar  ao  nosso  século  o  cumulo 
da  preversidade,  mas  de  uma  preversidade  execravel  e  maldita  ?» 

No  emtanto,  o  povo  conservou-se  por  muito  tempo  exempto  d'estas  e  de 
outras  impurezas,  e  o  deplorável  exemplo  da  corte  não  havia  tido  o  poder  de 
corromper  a  antiga  virtude  gauleza.  A  sodomia,  era  vulgar  em  Itália,  onde  o 
homem  que  tinha  este  vicio  ficava  absolvido  d'elle,  desde  que  pagasse  36  libras 
tornezas  e  9  ducados  (V.  a  Taxe  des  parlies  casuelles  de  la  boutique  du  pape). 
Em  França  este  peccado  obsceno  era  um  crime  capital  que  levava  o  criminoso 
á  fogueira.  Verdade  seja  qne  os  tribunaes  raríssimas  vezes  impunham  esta 
pena,  comminada  pela  lei,  quando  este  crime,  que  se  considerava  como  um 
caso  de  heresia,  não  se  complicava  com  a  magia,  a  feiticeria  ou  o  atheismo. 

«Eu  seja  leproso,  diz  o  Petit-Jean  de  Bragmarde,  na  sua  arenga  a  Gar- 
gantua  (lib.  i,  20)  se  não  vos  fizer  queimar  como  sodomitas,  libertinos,  herejes 
e  seductores,  inimigos  de  Deus  e  das  virtudes!» 

Os  libertinos  suspeitos  d'esta  macula  indelével  eram  apontados  a  dedo, 
detestados  e  aborrecidos,  como  diz  Rabelais.  Ninguém  perdoava  aos  italianos 
estabelecidos  em  França  desde  o  casamento  do  delphim  Henrique  com  a  filha 
de  Lourenço  de  Medicis,  duque  dTrbino,  uma  innovação  de  libertinagem,  que 
haviam  trazido  comsigo. 

O  auctor  do  «CTabinete  do  rei  de  França»,  na  sua  epistola  a  Henrique  iii, 
não  hesitou  em  denunciar  o  atheismo,  a  sodomia  «e  outras  sinistras  ou  asque- 
rosas manias,  (|ue  o  estrangeiro  introduziu  em  França.»  Ouinze  annos  antes, 
já  H.  Estienne  quizera,  ao  que  parecia,  rehabilitar  a  Itália  e  os  italianos  para 
dirigir  este  cruel  epigramma  ao  doutor  da  Sorbonna,  Nicolau  Maillard. 

«Eu  digo  que  nem  todos  os  que  se  mancham  com  este  abominável  pec- 
cado o  aprenderam  na  Itália  ou  na  Turquia,  por(|ue  o  nosso  Maillard  ensinava-o 
prolicicntemenle,  e  nunca  esteve  n'aquelles  paizes.» 

Demonstrámos  n'outro  logar  que  as  expedições  da  Kaiia  foram  falaes  aos 
costumes  francezes.  As  relações  constantes  entre  os  dois  paizes  desde  o  reinado 
de  Carlos  iii,  não  podiam  deixar  de  espalhar  odiosos  elementos  de  corrupção 
entre  a  nobreza  e  o  exercito.  H.  Estienne  indica  também  o  pernicioso  ensino 
que  a  Itália  havia  comraunicado  á  França. 


DA    PROSTITUIÇÃO  439 

«Voltando  a  esse  infame  ppccado,  diz  ellc  na  sua  Apologia,  (pag.  107  da 
edic.  orig.  de  1566,)  não  é  para  lastimar  que  alguns  indivíduos,  que  antes  de 
porem  o  pé  em  Itália  até  aborreciam  as  conversações  relativas  a  esta  infâmia, 
depois  de  lá  terem  estado  não  só  se  comprazem  a  failar,  mas  até  mesmo  façam 
profissão  d'esses  vicios  como  cousa  aprendida  em  boa  eschola  ? 

Apesar  do  vicio  italiano  haver  feito  deploráveis  progressos  na  corte  de 
França,  todos  os  homens  honrados  sentiam  um  profundo  desprezo  por  aquelles 
indignos  transfugas  do  amor  francpz,  que  era  o  único  approvádo  e  recommen- 
dado,  segundo  a  expressão  de  Brantòme.  Encontramos  nos  escriptos  do  gracioso 
abbade  a  prova  do  sentimento  de  repulsão,  que  inspiravam  estes  sórdidos  e  ignó- 
beis excessos,  n'uma  épocha  em  que  a  prostituição  não  conhecia  limites. 

Diz  elle  nas  suas  Dames  gnlantes: 

Ouvi  dizer  a  um  grande  fidalgo,  e  é  verdade,  que  nunca  o  sodomita  foi 
bravo  e  generoso,  exceptuando  o  grande  Júlio  César.  Deus  permitte  que  tão 
abomináveis  pessoas  sejam  geralmente  desprezadas.  E,  ainda  que  pareça  ex- 
tranho  haver  alguns  indivíduos  manchados  d'este  vicio  em  grande  prosperi- 
dade, Deus  lá  os  espera  para  o  castigo,  e  alfim  se  verá  o  que  vem  a  ser  d'el- 
les.» 

O  licencioso  chronista  era  homem  de  consciência  fácil  e  nada  timorata 
em  assumptos  de  galanteria,  mas  ainda  assim,  vemol-o  sempre  horrorisado  a 
respeito  dos  vicios  contra  a  natureza,  e  mesmo  quando  a  corte  de  Henrique 
III  se  entregava  loucamente  aos  costume  italianos,  Brantòme  não  deixa  de  os 
censurar,  nas  suas  Damen  (jalanles,  livro  que,  não  obstante,  pôde  considerar-se 
como  o  repertório  da  libertinagem  do  século  xvi.  E'  verdade  que  Brantòme 
escrevia  este  tractado  de  moral  lúbrica,  sob  a  inspiração  e  auspicies  da  rai- 
nha Margarida  de  Valois,  que  presidia  por  essa  épocha  á  banda  feminina,  (^ha- 
mava-se  assim,  na  corte  de  Carlos  ix,  uma  espécie  de  liga  das  damas  contra 
as  vergonhosas  desordens  da  juventude  italianisada. 

«Não  me  espanto,  diz  Estienne,  nos  seus  diálogos  da  linguagem  franceza 
italianisada,  não  me  espanto  de  que  as  damas,  italianisando  a  linguagem,  a 
exemplo  dos  homens,  queiram  também  italianisar  outras  cousas.» 

Quando  Henrique  iii,  que  era  rei  da  Polónia,  foi  chamado  a  succeder  a 
seu  irmão  Carlos  ix,  os  italianos  haviam  já  penetrado  na  corte,  mas  os  seus 
péssimos  costumes  apenas  se  propagavam  em  segredo,  sem  que  ninguém  ou- 
sasse declarar-se  do  seu  partido.  Assim,  o  poeta  palaciano  Estevam  Jodelle, 
que  passava  pelo  mais  notável  arauto  do  amor  anti-physico,  deshonrou-se  mes- 
mo aos  olhos  dos  seus  amigos  da  Pleyade,  prostituindo  a  sua  musa  ate  ao 
extremo  de  compor,  por  ordem  de  Carlos  ix,  segundo  se  cré,  o  Triumpho  de 
Sodoma. 

«Foi  encarregado  pelo  defunto  rei  Carlos,  refere  Pedro  Estoile,  que  con- 
signa nos  seus  Registros-diarios  o  fim  miserável  e  digno  de  dó  d'este  poeta 
parisiense,  o  mais  indigno  e  lascivo  de  todos,  de  escrever  o  hymno  que  el-rei 
chamava  a  «Sodomia  do  seu  preboste  de  Nantouillet.»  (Journal  dlíenri  m,  edic. 
de  Champollion,  p    29,  anno  de  1373.) 

Quando  Henrique  iii  partiu  de  França  para  a  Polónia,  onde  o  esperava 


ífid  HISTORIA 

uma  coiòa,  pôde  aílirmar-so  que»  não  s<"  havia  aimla  manchado  com  o  vergo- 
nhoso vicio,  que  Ião  deploravelmcnfe  o  defjradou  ao  vollar  ao  reino  de  seus 
maiores.  Era  desde  a  mais  tenra  edade  propenso  á  luxuria,  ardente,  sensual  e 
libertino,  mas,  ainda  que  rodeado  de  cortezãos  perversos  c  voluptuosos,  nunca 
se  entregara  aos  (culpáveis  extravios  do  amor  italiano.  Não  seria  diílicii  averi- 
guar se  cohtrahiu  esta  infame  inclinação  na  Polónia  ou  em  Veneza,  onde  pas- 
sou alguns  dias  no  regresso  a  Franç.i,  quando  veio  receber  a  coroa,  por  morte 
de  seu  irmão. 

«Desde  a  morte  da  princeza  de  Conde,  diz  Mezera\ ,  no  seu  Renimo  chr. 
da  Historia  de  França,  Henrique  iii  mostrou-se  pouco  alTeiçoado  ás  mulheres, 
e  a  sua  aventura  de  Veneza  deu-lhe  outras  inclinações.» 

Esta  aventura  de  Veneza  não  foi  outra  cousa  senão  uma  enfermidade  sy- 
philitica,  que  o  real  viajante  contrahiu,  e  que  o  incommodou  por  muito  tempo. 
A  princeza  de  (^ondé,  Maria  de  Cièvcs,  a  quem  Henrique  amava  apaixonada- 
mente, morreu  em  Paris  no  dia  30  de  outubro,  seis  semanas  depois  do  re- 
gresso do  seu  real  amante,  a  quem  viu  em  lastimoso  estado,  em  consequência 
da  referida  aventura.  Eis  algumas  datas  que  nos  permittem  fixar  de  uma  ma- 
neira quasi  indiscutível  a  épocha  om  que  começou  a  vergonhosa  libertinagem 
d'el-rei. 

Apenas  el-rei  chegou  ao  Louvre,  formou-se  em  volta  d'elle  a  corte  dos 
mancebos  (miijnons)  e  dos  italianos.  Estes  últimos  produziram  a  principio  na 
piqiulação  de  Paris  uma  surda  irritação,  que  não  tardou  em  transformar-se  em 
ódio  implacável.  Os  estudantes  da  Universidade  tornaram-se  interpretes  d'este 
ódio  puramente  nacional,  e  perseguiram  o  bando  italiano  com  canções,  libellos 
e  satyras  injuriosas,  havendo  frí^quentes  pendências  e  mortes,  por  causa  dos 
escândalos  provocados  pelos  maus  costumes  d'aquelles  estrangeiros. 

Em  julho  de  io73,  um  valenli'  capitão,  chamado  La  Vergerie,  foi  con- 
demnado  á  nioric  c  enforcado,  por  ler  dito  publicamente  que,  «n'esta  questão, 
era  preciso  pôr  de  parte  os  estudantes,  e  cortar  o  pescoço  a  toda  essa  cáfila  de 
pederastas  italianos,  que  eram  a  causa  única  da  ruina  da  França». 

Pedro  de  TEsloilc,  ao  referir-nos  o  triste  fim  do  capitão,  affirma  que  el- 
rei  assistira  ao  supplicio,  embora  d:  -sapprovassc  a  sentença  que  o  ordenara. 
Ueve  suppòr-se,  no  emtanto,  que  o  processo  d'aquelle  desgraçado  official  não 
se  formou  sem  annuencia  d'el-rei,  pois  que  o  chanceller  Renato  de  Biraguo  se 
encarregou  pessoalmente  d'elle. 

Desde  o  supplicio  do  capitão  Ea  Vergerie,  «houve  sempre  quem  ultra- 
jasse com  toda  a  classe  de  escriplos  e  libellos  os  italianos  c  a  rainha  Catharina 
de  Medicis,  sua  ama  e  protectora.»  Pedro  de  TEstoile  archivou  muitas  d'estas 
satyras,  entro  outras  algumas  estancias  e  sonetos  contra  os  italianos,  a  quem  se 
imputavam  lodos  os  males  e  desordens  do  reino. 

No  anno  seguinte,  porém,  deixou  de  failar-se  dos  italianos,  como  se  os 
Miíjnons  os  tivessem  feito  desapparecer.  Pedro  de  TEstoile,  echo  fiel  de  toda  a 
maledicência  do  seu  tempo,  escrevia  em  julho  de  lo7G  nos  seus  Hegistres-Jour- 
tiauT : 

«O  nome  de   llií/nons  começou  então  a  andar  na  bocca  do  povo,  que  os 


DA    PROSTITUIÇÃO  461 

odiava  laiitu  pelas  suas  maneiras  sarcásticas  e  altivas,  coniu  pelos  enfeites  e 
atavios  elíeininados  e  impudicos,  c  sobre  tudo  pelas  mercês  e  benefícios  que 
el-rei  llies  dispensava,  julgando-sc  geralmente  que  isto  era  a  causa  da  ruina 
do  paiz,  quando  a  verdade  era  que  as  munificencias  regias  não  eram  por  clles 
amontoadas,  antes  passavam  para  o  povo,  como  um  rio  que  vae  dar  ao  oceano. 

«Os  Mignons  usavam  o  cabello  comprido  e  artificialmente  annellado, 
lendo  no  alto  da  cabeça  um  pequeno  gorro  de  velludo  á  maneira  das  p.  .  .  Os 
collares  engommados  e  largos  davam  á  cabeça  d'estes  indivíduos  o  aspecto  da 
cabeça  de  S.  João  n'um  pralo.  O  resto  do  trajo  era  na  mesma  proporção.  Pas- 
savam a  vida  a  jogar,  a  blasphcmar,  a  dançar,  a  procurar  pendências  e  na- 
moros, a  acompanbar  o  rei  a  toda  a  parte.  Nada  faziam  nem  diziam  (|ue  não 
fosse  do  gosto  do  seu  príncipe,  pouco  se  importando,  de  resfo,  com  Deus  ecom 
a  virtude,  bastando-ihes  estar  nas  boas  graças  de  seu  amo,  a  quem  lionravam 
e  temiam  mais  que  ao  próprio  Deus.»  {Journal  d'Henri  iii,  edic.  de  Cliampol- 
lion.) 

Esta  passagem  é  muito  importante,  por  isso  que  íixa  de  um  modo  posi- 
tivo a  data  d  i  apparição  dos  .Uif/nons,  ou  pelo  menos  a  épocba  em  que  come- 
çaram a  ser  apontados  pela  indignação  popular.  De  resto,  Pedro  Estoile  nada 
diz  próprio  para  caracterisar  os  seus  costumes  perniciosos,  e  o  retrato  que 
d'elles  faz  podia  applicar-se  a  todos  os  cortezãos. 

.Iccrescenta  a  este  retrato  um  poema  composto  de  quinze  estropbes,  que 
foi  espalhado  largamente  por  toda  a  cidade,  sob  o  titulo  de  Virtudes  e  proprie- 
dades dos  Mignons,  25  ãe  julho  de  i576. 

Os  editores  do  Journal  d'Henri  iii  não  publicaram  mais  do  que  seis  es- 
tropbes d'este  poema,  que  vem  publicado  na  sua  integra  com  o  titulo  de  in- 
dignidades da  corte,  no  «Gabinete  d'el-rei  de  França,»  (p.  i97.)0s  textos  apre- 
sentam algumas  difierenças:  observaremos,  no  emtanto,  que  tanto  n'um  como 
n'outro,  a  accusação  de  sodomia  não  se  formula  contra  os  mancebos  senão  sob 
a  forma  de  uma  duvida  injuriosa. 

O  auctor  anonymo,  que  era  sem  duvida  um  poeta,  ataca  especialmente 
a  deshonestidade  e  o  luxo  dos  vestidos,  que  elle  considera  como  vergonhosos 
indícios  de  um  mau  procedimento. 

Eis  a  paraphrase  de  algumas  estropbes,  escriptas  no  francez  ainda  bas- 
tante rude  da  épocba. 

«Estes  bellos  e  vistosos  mignons  refociilam-se  constantemente  em  deli- 
cias, e  talvez  em  vicios  de  tal  ordem,  que  nem  podem  dizer-se  por  desho- 
nestos. 

«Na  linguagem  e  nos  atavios  são  peiores  do  que  as  mulheres.  Vestem-se 
lascivamente,  de  forma  que  uma  mulher  honesta  rcceiaria  tomal-os  por  mo- 
dello.  O  pescoço  dillÍL-ilmente  se  move  n'ai|tielle  marde  panno  cngommado,  que 
tem  de  rocorrer  ao  pó  de  arroz,  para  apresentar  uma  alvura  que  a  farinha  de 
trigo  nãn  poderia  facilmente  dar-liíe. 

«Cabellos  desegual mente  cortados,  compridos  na  frente  e  curtos  atraz, 
cuiíscrvando-se  arrepiados  por  meio  de  um  cosmetic)  apropriado.  N'aquellas  ca- 
beças ocas,  um  leve  gorro  mais  os  disfarça  c  eflemina. 


462  HISTORIA 

«Não  ousarei  dizer  que  os  atavios  liies  sejam  mais  gratos  do  que  ás  mu- 
lheres. Receiaria  oílendel-os,  dizendo  que  entre  elies  se  pratica  a  arte  do  im- 
pudico Ganymedes.  Quanto  ao  trajo,  direi  que  excede  os  recursos  d'aquelles 
estouvados,  porque  cada  um  dos  mignons  não  veste  como  simples  fidalgo,  mas 
sim  como  principe.» 

Dêmos  a  preferencia  ao  texto  do  «Gabinete  d'el-rei  de  França,»  e  deve- 
mos notar,  que  segundo  este  texto,  o  poeta  parece  querer  evitar  a  suspeita  de 
que  os  mignons  praticassem  a  arte  do  impudico  Ganymedes.  Pelo  contrario, 
na  versão  evidentemente  alterada  que  nos  ministram  os  diários  d'Estoile,  o 
sentido  é  muito  diíTerente,  pois  que  o  auctor  di/  que  elles  praticam  essa  arte 
vergonhosa,  por  meio  de  uma  insinuação,  que  equivale  a  uma  declaração  formal. 

Parece  concluir-se  d'esta  salyra,  datada  de  lo96,  que  na  sua  origem  os 
mignons  de  Henrique  in  não  eram  considerados  como  agentes  da  libertinagem 
italiana.  Accusavam-nos  apenas  de  devorarem  a  substancia  do  povo,  de  esgo- 
tarem as  arcas  do  thesouro,  de  usarem  trajos  deshonestos  e  de  viverem  n'uma 
elíeminada  ociosidade. 

Outro  poeta  se  encarregou  por  esse  tempo  de  responder  ás  Indignidades 
da  Corte,  compondo  um  poema  florido  e  palavroso,  que  intitulou  Brasões  da 
Corte.  Sem  se  demorar  nas  imputações  indirectas  a  respeito  dos  costumes  dos 
cortezãos,  vitupera  somente  as  linguas  satyricas  e  os  espíritos  mordazes,  que 
diziam  ser  a  corte  de  França 

Un  retrait  des  abus,  des  dissolutions. 

Poderia,  pois,  inferir-se  d'este  certamen  poético  que  a  libertinagem  dos 
mignons  não  foi  a  principio  estygmatisada  pela  opinião  publica.  Havia  certa- 
mente muito  que  reprehender  na  sua  conducta,  mas  a  calumnia  inventou  desde 
logo  tudo  quanto  devia  tornal-os  odiosos  e  abomináveis.  D'aqui  o  papel  infame 
attribuido  aos  mignons,  isto  é,  a  todos  os  jovens  voluptuosos  que  formavam  o 
.séquito  d'el-rei.  O  que  não  era  mais  do  que  uma  triste  excepção  nos  favoritos 
de  Henrique  iii  foi  considerado  como  um  vicio  geral,  e  a  corte  de  França  veio 
a  ser  aos  olhos  do  povo  indignado  o  receptáculo  da  mais  abominável  prosti- 
tuição. 

Dulaure  tinha  razão  em  dizer  «que  Henrique  iii  se  distinguiu  dos  seus 
predecessores  pelas  suas  predilecções  efíeminadas,  e  sobretudo  pelos  seus  ex- 
cessos uUramontanos.»  {Hist.  de  Paris,  t.  iv,  p.  493.)  Devia,  no  emtanto,  ter 
accrescentado  que  os  huguenottes  e  os  da  ÍÂga  não  foram  extranhos  a  muitas 
das  calumnias,  propaladas  contra  o  rei  e  os  seus  ministros. 

«A  infâmia  em  que  haviam  cabido  as  damas  da  corte,  diz  elle  com  grande 
parcialidade,  estendeu-se  durante  este  ultimo  reinado  aos  jovens  cortezãos,  que 
muito  mais  desprezíveis  do  que  ellas,  se  entregavam  como  seu  amo  aos  mais 
repugnantes  excessos  da  libertinagem.» 

Os  mignons  eram  rapazes  de  boas  famílias  e  bem  parecidos,  que  Renato 
de  Villequíer  c  François,  commissarios  dos  prazeres  d'el-rei,  haviam  introdu- 
zido na  sua  intimidade.  Os  mais  notáveis  d 'elles  foram :  Levy  deCaylus,  Fran- 


DA    PROSTITUIÇÃO  463 

cisco  de  Maugiron,  João  Darcet  de  Livarot,  Francisco  d'Epinay  de  Sainf  Luc, 
Paulo  Estuer  de  Caussade  de  Sainl-Mesgrin,  Bernardo  e  João  Luiz  de  Nogaret, 
ambos  filhos  de  João  de  la  Valette. 

Os  outros  eram  menos  conhecidos,  porque  não  tinham  a  tal  ponto  con- 
quistado a  estima  do  monarcha,  e  por  isso  os  seus  nomes  não  sahiram  da  es- 
phera  da  corte.  No  emtanto,  alguns  d'clies  vêem  nomeados  n'um  soneto,  que 
circulou  em  Paris  em  1577,  e  que  foi  conservado  nos  Registros  diários  de  TEs- 
toiie.  O  soneto  pôde  servir  para  provar  que  nem  todos  os  mignons  estavam 
corrompidos  pelas  mesmas  torpezas  : 

Saint  Luc,  petit  qiiil  est.,  coinmande  bravemenl 
A  la  troupe  líaultefort,  que  sa  bourse  a  conquise. 
Mais  Cayliis,  dédaignant  si  paurre  marchandise, 
Ne  trouve  qii'en  son  c. .  .  toul  son  advancement. 

D'0,  c'est  archi-larron,  hardy,  ne  scay  commenl, 
Àime  le  jeu  de  main,  craint  atissi  peu  la  prise  ; 
D'Archaut,  d'un  beau  semblant,  veut  cacher  sa  sottise ; 
Sagonne  est  un  peu  bougre  et  noble  nullement ; 

Montigny  fait  le  òeryiíc,  e  ooudroil  bien  sembler 
Estre  honneste  hoiiime  un  peu,  mais  il  ny  peut  aller ; 
Riverac  est  un  sot,  Tournon  une  cigale ; 

Sainl-Mesgrin,  sans  sujet  bravache  audacieux  : 
Je  parlerois  pius  haut,  sans  la  crainte  des  dieux, 
De  ceux  qui  tiennent  rang  en  la  belle  eabale. 

Este  torpe  soneto,  como  diz  Estoile,  demonstrando  a  corrupção  da  corte 
e  do  século,  não  contém  a  nosso  ver  mais  do  que  os  nomes  dos  mancebos, 
que  se  prestavam  á  mais  odiosa  prostituição.  Os  deuses  que  o  poeta  não  ousa 
nomear,  são  o  rei  e  os  seus  favoritos  O  e  Villeguier,  com  vários  outros,  que 
partilhavam  com  os  fidalgos  da  côrle  o  dominio  da  prostituição  italiana. 

Pedro  de  FEstoile  apresenta-nos  também  estes  mignons,  enfeitados,  fri- 
zados,  penteados,  polvilhados  com  pós  tão  odoríferos,  que  perfumavam  as 
ruas,  as  praças  e  as  casas  que  frequentavam.  Este  abuso  dos  perfumes,  estas 
modas  feminis,  estes  vestidos  ridículos,  são  os  únicos  artigos  de  accusação  fei- 
tas por  este  chronista  aos  mignons,  e  não  vemos  que  caracterise  em  parte  al- 
guma os  costumes  d'elies,  de  modo  que  pareça  dar  credito  aos  rumores  que  cir- 
culavam a  respeito  d'estes  favoritos  reacs.  Llmita-se  a  reunir  escrupulosa- 
mente satyras  e  epigrammas,  que  provam  sobre  tudo  o  ódio  do  espirito  publico 
contra  Henrique  iii  e  os  seus  favoritos. 

Quasi  todos  elles  morreram  miseravelmente,  uns  em  duello,  outros  as- 
sassinados, muitos  victimas  de  diversos  accidentes.  O  horror  que  inspiravam 
ao  povo  tradu7.ia-se  nas  suas  orações  fúnebres ;  em  todo  o  caso,  as  injurias  e 
maldições  fulminadas  contra  a  sua  memoria  não  se  referiam  a  circumstancias 
authenticas  da  sua  vida  libidinosa,  que  estava  sempre  envolvida  n'um  veu 
impenetrável. 


Í64  HISTORIA 

Os  cscriptores  prolestaiites  c  os  da  Liga  procuraram  levantar  este  veu, 
muito  tempo  depois  de  terem  desapparecido  os  mignons;  e  a  t-adicção  da  corte, 
desfigurada  ou  envenenada  peia  malevolencia,  retlectiu-se  em  muitas  obras 
safyricas,  que  não  foram  impressas  até  ao  reinado  de  Luiz  mii,  vinte  e  cinco 
ou  trinta  annos,  depois  da  morte  de  Henrique  m. 

Na  vida  d'este  principe  appareceram  unicamente  algumas  peças  em  verso 
ou  em  prosa,  que  circularam  clandestinamente  em  Paris,  e  que  não  tiveram  pu- 
blicidade, embora  momentânea,  senão  em  consequência  das  Barricadas.  Já  an- 
tes d'isto,  porém,  outras  composições  mais  infames  ainda  haviam  sido  divul- 
gadas, sem  que  nenhum  impressor  ousasse  puhlical-as. 

Pedro  de  TEstoile  archivou  muitas  d'estas  composições  nos  seus  Regis- 
tros diários,  e  na  reunião  de  curiosidades  que  consagrou  k  historia  anecdotica 
e  escandalosa  do  seu  tempo.  Todos  os  editores  do  Journal  iVHpnri  iii  hesitaram 
ante  a  publicação  das  poesias  obscenas,  que  formam  o  triste  monumento  da  hor- 
rível reputação  dos  mignons.  N'esta  ultima  edição,  que  devemos  á  sollicitude 
de  Champollion,  lemos  apenas  com  data  de  10  de  setembro  de   lo8fl: 

«Diversas  poesias  e  escriptos  satyricos  foram  publicados  contra  el-rei  e 
seus  favoritos,  n'estes  três  annos  1377,  l-o78  e  1579,  os  quaes  por  serem  na 
sua  maior  parle  Ímpios  e  torpes,  de  tal  modo  que  o  papel  se  envergonhava, 
seriam  dignas  do  fogo,  assim  como  os  seus  auolorcs,  nV)utro  século  que  não 
fosse  este,  que  parece  destinado  a  ser  a  vergonha  dos  precedentes. 

«Os  seus  titulos  são  os  seguintes : 

«Les  trésoripvs  el  les  mignons,  por  M.  .  .  da  Uga. 

«O  soneto  impudico  a  Saint-Luc. 

«O  Pasquim  cortezão. 

«Este  ultimo  é  torpe,  obsceno,  lascivo,  e  corria  na  corte  em  1379,  sendo 
cousa  muito  conhecida. 

«Os  versos  livres  que  se  escreveram  na  egreja  da  abbadia  de  Poissy, 
num  dia  em  que  o  rei  lá  foi.» 

Cada  vez  que  um  dos  favoritos  d'el-rei  era  arrebatado  por  uma  morte 
violenta  ao  aííecto  de  seu  amo,  quando  Caylus,  Maugiron,  Schomberg  e  Riberac 
morreram  num  duello,  quando  Saint-Mesgrin  foi  uma  noite  assassinado  á 
porta  do  Louvre,  desencadeiou  se  em  Paris  e  na  corte  uma  explosão  de  libei- 
los  atrozes  contra  os  mignons  de  cabelio  frizado.  Seria,  porem,  injustiça  con- 
siderar estes  libcllos  como  a  expressão  legal  da  verdade  histórica.  Era  antes  a 
obra  pérfida  das  vinganças  da  corte,  e  ás  vezes  também  das  paixões  politicas. 

Não  escasseavam  poetas  no  palácio  da  Universidade,  para  infamarem  os 
mignons,  cm  versos  cortezãos,  quer  dizer,  em  versos  deshoneslos,  torpes,  sór- 
didos, á  moda  da  corte,  ainda  mesmo  que  atacassem  também  a  honra  d'el-rei, 
segundo  a  definição  de  Pedro  Estoile. 

Damos  n'esle  logar  para  exemplo  um  soneto  satyrico,  largamente  espalha- 
do em  Paris  em    1378,  e  que  sahiu  da  odicina  da  Uga. 


DA    PROSTITUIÇÃO  46È{ 

Ganymédes  elfrontéx,  impudique  canaillc, 
Ceroaux  ambitieux.  d' ignorance  coinblés, 
Cest  Vinjure  du  temps  et  les  gens  mal  zeles, 
Qui  vous  font  prn.iperer  sous  un  )-ní  fail  de  paille. 

Ce  n'est  ni  par  assault  ni  par  grande  bataille 
Qu'avez  eu  la  faveiir,  mais  pour  èlre  alliés, 
D'un  corrompu  esprit,  l'un  et  1'autre  enfidés, 
Guidés  de  vnstre  chef,  qui  les  lininienrs  mus  baille. 

Qui  vos  teinls,  damiseaux,  vos  perruques  trousées 
Aime,  aulanl  comine  esciis  et  lume  et  epées; 
Puisque  les  grans  estiits  qui  vous  rendent  infames 

Sont  de  vice  loieurs  au.r  jeuues  imprudents, 
Gardez-les  d  toujours,  car  les  hoimnes  vaillanls 
Pfen  veulent  aprés  vous,  qui  êtes  moins  que  feuimes. 

Paraphraseemos  esta  composiçcão  poética  : 

«Ganymédes  desaforados,  canalha  impudica,  patetas  ambiciosos,  odres  de 
ignorância,  só  a  preversidade  dos  tempos  que  vão  correndo  e  as  pessoas  infa- 
mes vos  fazem  medrar  á  sombra  de  um  rei  de  palha. 

«Não  foi  por  assalto  nem  por  batalha  que  alcançaste  esse  favor,  mas  sim 
pciíis  vossos  costumes  corrompidos,  unidas  estreitamente  uns  aos  outros,  e 
guiados  peio  vosso  chefe,  que  vos  dislribue  os  cargos  e  as  honrarias. 

«Ha  quem  seja  tão  inclinado  aos  vossos  feminis  enfeites,  como  ás  es- 
padas c  aos  escudos.  Uma  vez,  que  as  grandes  honras  que  vos  tornam  odiosos, 
são  o  premio  do' vicio,  guardae-as  muito  embora!  Os  homens  valentes  e  dignos 
nada  querem  comvosco,  que  valeis  menos  que  as  mulheres  I» 

Esta  inimisade  irreconciavcl  contra  os  favoritos  foi  constantemente  pro- 
gredindo cm  todo  o  reinado  de  Henriciue  iii,  e  o  povo  sempre  inclinado  a  crer 
o  que  é  cxtranho  e  monstruoso,  nunca  tomou  a  precaução  de  acceitar  com  des- 
confiança as  calumnias  frequentemente  ridículas,  que  corriam  a  respeito  do 
bando  dos  mignons. 

Houve  mesmo  quem  se  convencesse  muito  seriamente  que  João  Luiz 
-Nogaret,  duque  d'Épernon,  que  Pedro  de  TEstoiie  chama  Árchi-mignon  d'el- 
rei,  c  que  veio  a  ser  o  principal  favorito  de  Henrique  iii,  depois  da  morte  dos 
mignons  Caylus  e  Maugiron,  não  era  senão  um  demónio  do  inferno,  destinado 
a  acabar  de  corromper  e  condemnar  o  desgraçado  Henrique  de  Valois. 

Esta  lenda  diabólica  foi  largamente  referida,  n'um  libello  publicado  por 
essa  épocha,  e  que  tinha  por  titulo: 

«Cousas  horriveis  contidas  n'uma  carta  dirigida  a  Henrique  de  Valois  por 
um  filho  de  Paris,  no  dia  28  de  janeiro  de  1589,  e  impressas  pela  copia,  que 
se  encontrou  nVsta  cidade  de  Paris,  perto  do  relógio  do  Palácio,  por  Jacques 
Gregório,  impressor  mdlxxxix.» 

O  filho  de  Paris,  a  quem  Pedro  de  TEstoile  cliama  um  patife  da  Liga, 
refere  n'esta  carta,  cheia  de  obscenidades,  que  os  feiticeiros  e  encantadores 
haviam  dado  ao  rei  um  espirito  familiar,  chamado  Terragon,  e  que  este  espi- 

UíSTOBu  DA  PHoiírrmçÃo.  Toom  ii— Folha  59. 


466  HISTORIA 

rito,  com  a  appaiencia  de  um  mancebo,  lhe  fora  apresentado  no  Louvre,  como 
um  fidalgo  da  Gascunha.  Apenas  el-rei  vira  este  fidalgo,  cliamou-lhe  logo  seu 
irmão,  e  o  levou  a  dormir  á  sua  própria  cama.  Por  conseguinte,  o  duque 
d'Épernon  não  era  senão  aquelle  mesmo  espirito  Terragon. 

O  filho  de  Paris,  referindo-se  ao  tal  archi-mignon  d'el-rci,  entra  em  por- 
menores maravilhosos,  que  provam  a  sua  impudica  diabrura.  Estes  pormeno- 
res são  tão  horríveis,  que  M.  M.  ChanpoUion  não  se  atreveram  a  reprodu- 
zil-os  todos,  reemprimindo  apenas  alguns  extractos  da  carta,  no  appendice  da 
sua  edição  do  Journal  d'Henri  iii,  que  forma  parle  da  collecção  de  memorias 
relativas  á  historia  de  França,  publicada  por  M.  M.  Michaud  e  Ponjoulat. 

Talvez  não  exista  já  nem  um  único  exemplar  da  edição  original  d'este 
celebre  disparate,  como  o  qualifica  Pedro  d'Estoile.  Este  chronista,  porém,  pu- 
blicou uma  copia  feita  por  elle  na  grande  coUecção  in-folio,  composta  de  libei- 
los,  impressos  e  estampas  gravadas  em  madeira  e  intitulada:  As  bellas  figuras 
e  anecdolas  da  Liga.  Esta  preciosa  e  curiosíssima  collecção  existe  actualmente 
na  secção  de  livros  impressos  da  Bibliolheca  imperial. 

Attribuiam-se  ordinariamente  aos  feiticeiros  as  infâmias  de  que  Henri- 
que III  era  accusado  pela  opinião  publica.  Estas  infâmias  pareciam  ao  vulgo 
crédulo  consequências  naturaes  das  feiticerias  imputadas  ao  desgraçado  rei. 
Assim,  ninguém  duvidava  em  Paris  de  que  os  mignons,  e  especialmente  o  du- 
que d'Épernon,  estivessem  ligados  a  seu  amo  por  um  pacto  diabólico,  e  todo  o 
mundo  se  convenceu  d'isto,  quando  se  disse  do  alto  do  púlpito  que  as  provas 
raateriaes  dos  seus  sortilégios  abomináveis  haviam  sido  descobertas  no  Louvre 
e  no  bosque  de  Vincennes,  nos  próprios  aposentos  d'el-rei. 

«Eram  dois  salyros  de  prata  dourada,  da  altura  de  quatro  pollegadas 
cada  um,  tendo  na  mão  esquerda  uma  grande  massa  a  que  se  encostavam,  e 
segurando  com  a  direita  um  copo  de  chrystal  puro  e  brilhante,  levantando-se 
sobre  uma  base  redonda  sustentada  por  quatro  pés.  N'estes  copos  havia  dro- 
gas desconhecidas,  que  constituíam  uma  oblação,  e  o  peior  de  tudo  era  esta- 
rem defronte  de  uma  cruz  de  ouro,  no  meio  da  qual  havia  incrustado  um  pe- 
daço de  madeira  da  verdadeira  cruz  de  Nosso  Senhor  Jesus  Chrislo.» 

Esta  ingénua  descripção,  que  tomamos  de  um  libello,  que  appareceu  por 
aquelle  tempo  com  o  titulo  de  Feiticerias  de  Henrique  de  )'alois,  e  oblações 
que  elle  fazia  no  bosque  de  Vincennes  ás  imagens  de  demónios  de  prata  dou- 
rada (Paris.  Didier  Millot,  1589),  refere-se  simplesmente  ás  navetas  do  in- 
censo collocadas  n"um  oratório  de  cada  lado  do  crucifixo. 

Oauctor  do  referido  pamphlcto  indica  o  uso  impuro  e  sacrílego  dos  sup- 
postos  Ídolos,  dizendo  : 

«Sabe-sc  que  os  pagãos  adoravam  os  satyros  como  deuses  dos  bosques  e 
logares  retirados,  por  acreditarem  que  delles  provinha  a  aptidão  e  a  potencia 
da  sensualidade.» 

E  impossível  purificar  a  memoria  de  Henrique  m  das  manchas  que  a 
deshonram.  Pode  allirmar-sc,  no  emtanio,  que  as  torpezas  de  que  são  resjion- 
saveis  no  tribunal  da  historia  este  príncipe  e  os  seus  tnignuns,  não  foram  nem 
Ião  repugnantes,  nem  tão  frequentes  como  se  suppõe,  pelas  accusações  dos  hu- 


DA     PROSTITUIÇÃO  467 

guenottcs  o  dos  da  Liga.  Clieganios  a  aciTditar  que  em  muitas  circiimsfancias 
o  atleclo  do  rei  aos  seus  favoritos  cra  alheio  de  toda  a  impureza,  e  não  temos 
coragem  para  vèr  uma  pai\<ão  vergonliosa  nos  sentimentos  de  amisade  e  dôr, 
que  Henriqne  iii  deu  publicamente  a  Caylus  e  a  Maugiron,  chorando-os  amar- 
gamente, beijando-os  depois  de  mortos,  diz  Estoile,  fazendo  com  que  liies  cor- 
tassem os  cabeilos  louros,  e  tirando  a  t^aylus  os  brincos  que  elle  próprio  lhe 
havia  dado  e  posto  por  sua  própria  mão. 

Nada  é  mais  commovedor  do  que  a  morte  de  Cay''i''i  repetindo  até  ao 
ultimo  suspiro:  Oli !  meu  rei!  meu  rei!.  .  . 

O  povo  considerava  tudo  isto  de  modo  difTcrente,  e  via  com  desgosto  os 
sumptuosos  túmulos  crigitlos  em  honra  d'estes  dois  jov(>ns  efíeminados,  que 
tanto  se  havia  habituado  a  odiar.  O  povo,  cego  e  irritado  pelas  intrigas  dos 
partidos  anarchicos,  tinha  aversão  a  tudo  quanto  considerava  como  causa  dos 
seus  males  e  misérias.  Estava  sempre  dispjsto  a  acreditar  os  horrores  que  ou- 
via referir  a  respeito  dos  costumes  d'el-rei  e  dos  seus  favoritos,  deixava-se  en- 
ganar pelas  apparencias,  c  sentia-se  prevenido  desfavoravelmenti*  contra  os 
cortezãos  que  faziam  mascaradas  e  procissões. 

Os  pregadores  com  as  suas  declamações  tiveram  por  essa  épocha  a  mais 
funesta  inlluencia  na  opinião,  e  Henrique  iii  teve  motivos  para  se  arrepender 
de  os  não  ter  reduzido  ao  silenciíi.  Depois  de  o  terem  aviltado  e  dilfamado, 
mandaram-n'o  assassinar  por  JacqU'\s  Clemente. 

«N'um  dia  de  quaresma,  lé-se  no  .lournal  d'flenri  iii  de  20  de  fevereiro 
de  lo83,  el-rei  e  os  seus  favoritos  mascararam-se  e  sahiram  pelas  ruas  de  Pa- 
ris, onde  practicaram  mil  insolências,  e  de  noite  andaram  de  casa  em  casa, 
visitando  gente  de  mau  porte  até  ás  seis  da  manhã  do  dia  seguinte.  ]\'essedia, 
quasi  todos  os  pregadores  de  Paris  nos  seus  sermões  o  accusaram  desasssom- 
bradamente  das  suas  noitadas  e  insolências.» 

Foi  talvez  para  fazer  penitencia  d'estas  loucuras,  que  el-rei  poucos  dias 
depois  instituiu  a  Confraria  dos  Penitente.^,  fazendo  procissões,  em  que  os  ir- 
mãos, vestidos  de  sacco,iam  ein  duas  alas  cantando  psalmos  e  açoitando-se.  Os 
mignons  figuravam,  porém,  n'estas  procissões,  e  a  sua  presença  destruiu  logo 
todo  o  salutar  efTeito  d'ellas. 

«Soube  de  fonte  limpa,  dizia  o  frade  Poncet,  que  pregava  a  quaresma  em 
iSotre-Dame,  que  hontem  se  encheu  o  assador  para  a  ceia  d'esses  bons  peni- 
tentes, e  que  depois  de  haverem  comido  carne  de  porco,  passaram  a  noite  a 
olFender  o  Senhor  nosso  Deus.» 

O  pregador  foi  preso  por  ordem  d'el-rei,  e  as  procissões  continuaram  com 
a  comparência  do  monarcha,  vestido  de  sacco  e  rodeado  sempre  dos  seus  favo- 
ritos. 

«Houve  alguns  d'el!es,  diz  Pedro  de  TEstoile,  que,  segundo  se  conta,  se 
açoitaram  n'csta  procissão,  apresentando  os  hombros  vermelhos  dos  açoites  que 
se  applicavam.  A  respeito  d'isto  correram  muitos  versos  satyricos,  que  foram 
distribuidos  na  mesma  confraria  de  pcMiitentes  d'el-rei.» 

SegunJo  alguns  historiadores,  Henrique  iii  fazia  estas  procissões  e  pe- 
nitencias publicas  para  evpiar  os  feios  pcccados,  que  intimamente  se  censurava, 


468  HISTORIA 

mas  cm  que  recaliia  sem  cessar.  Obriga /a,  por  isso,  os  »ii(jnons,  como  seus 
cúmplices  a  apparecerem  rrestas  ceremonias  em  trajo  de  penitentes.  Ia  com 
eiles  visitar  as  egrejas  e  conventos,  rezar  estações,  fazer  preces,  ouvir  ser- 
mões e  ganhar  indulgências,  isto,  como  o  povo  julgava,  era  apenas  uma  pre- 
paração para  melhor  peccar  d'ahi  a  pouco.  Allirrnava-se  que  el-rei  fizera  pintar 
no  seu  oratório  e  em  habito  monástico  os  seus  mignons  e  favoritos.  (Confession 
de  Sancy,  capitulo  viii.) 

Contava-se  que  fazia  açoitar  na  sua  presença  e  no  seu  gabinete  os  seus 
companheiros  de  devoção  e  de  vicios,  e  suppunha-se  que  a  Confraria  dos  Pe- 
nitentes havia  apenas  sido  instituída  para  angariar  vis  e  complacentes  auxilia- 
res de  torpezas,  e  para  propagar,  sob  a  capa  de  uma  associação  religiosa,  os 
infames  principies  da  sodomia., 

O  diário  de  Henrique  iii  diz-nos  eíTecti vãmente  que  um  dos  mestres  de 
ceremonias  da  confraria  era  um  tal  l)u-Peirot,  fugitivo  de  Lyon  pelo  crime  de 
alheismo  e  sodomia.  Comprehende-se  facilmente  o  motivo  porque  o  povo  cha- 
mava aos  penitentes  confrades  do  Gabinete  e  ministros  do  bando  d'el-rei. 

Sully,  nas  suas  Economies  réelles,  dá  uma  lista  dos  mignons,  na  qual  fi- 
guram entre  outros  que  já  nomeamos,  Bellegarde,  Sonoré,  Buchage  eThermes. 
Não  allude,  porém,  aos  seus  costumes,  e  diz  unicamente  que  todos  elles  haviam 
sido  ao  mesmo  tempo  favoritos  d'el-rei.  O  douto  Leduchat,  nas  suas  armota- 
ções  á  Confissão  de  Sancij,  nomeia  mais  quatro  d'estes  privados,  refei'indo-se 
ás  Mem.  do  esiado  dn  /■'rança  no  tetnpo  de  Carlos  ix,  e  ás  cartas  de  Estevam 
Pasquier. 

«Le  Voyer,  senhor  de  Lignerolles,  Pibrac,  Roissy  e  Vic  de  Ville,  os  quaes, 
accrescenta  o  commentador,  não  eram  tidos  como  igualmente  viciosos  e  «or- 
rompidos.» 

Qualquer  fidalgo,  honrado  por  el-rci  com  a  sua  sympathia  ou  intimidade, 
ficava  logo  suspeito  de  miqnon  ou  hermaphrodita.  Esta  ultima  denominação, 
menos  popular  e  mais  refinada  que  a  outra,  caracterisava  a  espécie  de  prosti- 
tuição, á  qual  segundo  a  fama  deviam  o  seu  valimento  e  fortuna. 

Agrippa  d'Aubigné,  o  Juvenal  d'aquella  épocha,  que  elle  nos  descreve 
como  mais  depravada  ainda  que  a  de  .\ero  e  Domiciano,  consagrou  a  sua  prosa 
e  os  seus  versos  ao  estygma  dos  favoritos  de  Henrique  iii. 

No  lib.  II  dos  seus  Tragiciens,  exclama : 

.  .  .  les  Heriniiphrodilex,  moni^lres  ejfeniinés, 
Currnmpuit  hnrihlierí  et  qui  e^tuyenl  inieiíx  nés 
Pour  valeis  de  putains  que  .spíjockí-s  sur  les  Iwninies, 
Sont  les  inoustres  dn  siècle  et  dii  tenips  oit  noits  sommes. 

Os  Tragiciens  foram  apenas  impressos  em  1616,  sem  nome  de  auctor, 
mas  estas  admiráveis  satyras  haviam  sido  cscriplas  na  mocidade  ded'Aubigné, 
que  apesar  de  ser  um  calvinista  demasiado  zeloso,  nem  por  isso  deixou  de  ser 
um  homem  honrado  e  um  grande  historiador. 

Outra  obra   igualmente  salyrica,   mas  muito  menos  apaixonada  c  cruel, 


DA    PROSTITUIÇÃO  469 

foi  também  composta  pelo  mesmo  tempo  para  verberar  os  costumes  dissolutos 
(la  corte  de  Henrique  iii.  Não  sahiu  á  luz  senão  muito  tempo  depois  de  haver 
sido  escripta,  mas  ainda  assim  muito  antes  do  poema  de  d'Aubigné. 

Piide,  portanto,  ser  considerada  como  um  documento  contemporâneo,  que 
merece  mais  confiança  que  os  pampblefos  do  tempo,  ainda  que  não  passe  de 
uma  engenhosa  aliegoria. 

O  livro  de  que  vamos  faltar,  e  que  não  nos  permitte  rehabilitar  os  rni- 
(jnons,  intitulava-se  apenas  os  Hennaphrodiííis,  na  1."  edição  que  foi  feita  em 
Paris,  n'um  pequeno  volume  in-12.",  sem  nome  de  imprensa,  ahi  pelo  anno 
de  1604.  O  frontespicio  tem  o  retrato  de  Henrique  iii  em  pé,  e  com  trajos  e 
attributos  de  homem  e  mulher  ao  mesmo  tempo.  Por  cima  do  retrato,  esta  di- 
visa: .1  /ous  accords,  —  para  todos  os  usos.  Por  baixo,  estes  seis  versos,  mali- 
ciosamente enygmaticos: 

Je  ne  suis  mâle  ni  femelle 
Et  je  ne  .■<çaij  bien  en  cervelle 
Le  quel  des  deiix  je  dois  choisir ; 
Mais  quHmporle  à  qui  je  rassemble  .' 
11  vaul  iiueux  les  avoir  ensemble : 
—  On  en  reçoit  dotible  plaisir. 

Traducção:  —  «Não  sou  nem  macho  nem  fêmea,  nem  mesmo  sei  qual  dos 
dois  escolher.  Que  importa  atinai  o  que  eu  pareço?  Vale  mais  ter  os  dois  se- 
xos ao  mesmo  tempo,  porque  o  prazer  assim  é  duplo.» 

A  publicação  d'este  volume  fez  grande  sensação,  especialmente  na  corte, 
onde  muitos  dos  antigos  mignons  de  Henrique  iii,  taes  como  Bellegarde, 
Épernon,  etc,  conservavam  ainda  o  mesmo  valimento,  sem  o  deverem  já  a 
meios  tão  ignóbeis.  O  pamphleto  foi  denunciado  a  el-rei  e  envidaram-se  gran- 
des esforços  para  que  o  auctor  recebesse  um  castigo  severo.  Henrique  iv,  po- 
rém, depois  de  ter  lido  os  Hermaphrodilas,  não  quiz  que  se  procurasse  o  auctor, 
apesar  de  ter  achado  a  obra  demasiado  livre  e  audaciosa,  «não  sendo  justo, 
dizia  el-rei,  que  se  castigasse  um  homem  por  ter  dito  a  verdade.» 

Pedro  de  TEstoile  transcreve  esta  memorável  sentença  de  Henrique  iv, 
na  qual  temos  necessariamente  de  vèr  a  prova  dos  factos  históricos  referidos 
pelo  auctor  dos  Hermaphrodilas. 

Quem  era  o  auctor  do  livro? 

Estoile  chama-lhe  Artus  Thomas,  que  alguns  julgam  ser  Thom;iz  Artus, 
senhor  dEmbry,  litlerato  obscuro  e  palavroso.  Sorel,  na  sua  BibUolh.  (rançaise, 
diz  que  o  livro  se  attribuiu  ao  cardeal  Pcrron. 

Pouco  importa  para  o  nosso  caso  saber  a  que  penna  elegante  e  satyrica 
se  deve  esta  composição  poética,  que  fui  reimpressa  pouco  depois  com  outro 
titulo  ainda  mais  explicito  : 

«Ilha  dos  bermaphroditas,  reccm-descoberta,  com  os  costumes,  trajos, 
leis  e  ordenações  que  lhes  dizem  respeito.» 

Este  novo  titulo  annuncia  que  o  auctor  se  propuzera  criticar  sobre  tudo 
a  extravagância  e  immodestia  dos  trajos  da  corte.  Estas  modas  eITeminadas  estão 


Í70  HISTORIA 

elTectiv;imente  descriplas  tão  prolixamente  na  obra,  que  preferimos  citar  uma 
passagem  dos  Tragiciens,  em  que  d'Aubignc  resume  em  versos  bellissimns, 
muitas  paginas  dos  Hermaphroditas : 

Henry  fui  mieux  instruii  a  jiiger  des  alours 

Des  putains  de  sa  cour,  plus  propres  aux  amours: 

Avoir  ras  le  menton,  garder  la  face  pale, 

Le  geste  elfeminé,  Vair  d'un  Sardanapale, 

Si  bien  qu'un  jour  des  Róis,  ce  douleux  animal, 

Sans  cervelle,  sans  front,  parul  lei  en  son  bal  : 

De  cordons  emperlés  sa  chevelure  pleine 

Sous  un  bonnet  sans  bord,  fait  à  l' ilalienne, 

Faisait  deux  ares  voutés;  son  menlon  pincele, 

Son  cisage  de  rouge  et  de  blanc  embosté, 

Son  chef  toiíl  etiipoudré,  nous  monslrèrerenl  l'idèe ; 

En  la  place  d'un  roy,  d'une  pxitain  fardée. 

Pensez  quel  beau  spectacle !  el  comme  il  fil  bnn  voir 

Ce  prince  avec  un  buse,  un  corps  de  satin  noir 

Coupé  à  1'éspagnole,  oii  des  dechiquetures 

Sortoienl  des  passemens  et  des  blanches  tirures, 

Et  a  [In  que  1'habit  s'enlresuivil  de  rang, 

II  monslroit  des  manchons  gauffrés  de  satin  blanc, 

D'autres  manches  encor,  qui  s' eslendoient  fendues, 

Et  puis,  jusqtie  aui  pieds.  d'anlres  manches  perdues. 

Pour  nouveau  paremenl  il  porta  tout  ce  jour, 

Cel  habit  monstrueux,  pareil  à  son  amour ; 

Si  qu'au  premier  abord  chascun  éloit  en  peine, 

S'il  voyoit  un  roy-femme,  ou  bien  un  homme-reine. 

Traducção  :  —  «Henrique  entendia  como  ninguém  de  todos  os  atavios  e 
adornos  das  cortez.ãs.  Um  dia  este  animal  inqualificável,  imbecil  e  sem  juizo, 
apresentou-se  n'um  baile  com  a  barba  perfeitamente  escanhoada,  o  rosto  muito 
pallido,  o  gcblo  effeminado,  e  os  olhos  de  um  Sardanapalo.  Levava  o  cabello 
cingido  com  diademas  de  pérolas,  sob  um  chapéu  sem  abas,  á  moda  italiana.  O 
rosto  cheio  de  arrebiques,  a  cabeça  polvilhada,  ofTerecendo  mais  o  aspecto  de 
lima  ribalda,  que  o  de  um  rei.  Vede,  pois,  que  bello  espectáculo,  e  que  deplo- 
rável figura  a  d'aquclle  príncipe  espartilhado,  com  o  seu  justilho  de  setim 
preto  á  hespanhola,  coberto  de  bordados  brancos  !  E  para  que  o  trajo  fosse  com- 
pletamente ridículo,  levava  mangas  de  setim  branco,  com  outras  mangas  por- 
rima  d'estas,  e  outras  ainda  que  lhe  cabiam  até  aos  pés.  Este  trajo,  tão  mons- 
truoso como  as  suas  inclinações  amorosas,  fazia  duvidar  a  quem  o  via  se  Hen- 
rique era  um  rci-inulher,  ou  uni  homem-rainha.» 

O  auctor  dos  fhrmaphrodilns  não  omitte  pormenoi'  algum  a  respeito  do 
vergonhoso  trajo  dos  seus  personagens,  ou  dos  seus  refinamentos  de  sensuali- 
dade e  galanteio.  É,  porém,  demasiado  sóbrio  era  dados  estatisticos  e  em  allu- 
sões  a  respeito  dos  costumes,  o  que  dá  a  entender  que  houve  algumas  sup- 
prcssões  na  impressão.  E'  fácil  suppòr  o  que  deviam  ser  os  actos  secretos  dos 
agentes  do  llerniaphrodila  n  aquella  camará,  que  denominavam  o  altar  de  An- 
tinoo,  porque  a  tapeçaria  representava  os  amores  d'este  personagem  mytholo- 


DA    PROSTITUIÇÃO  471 

gioo,  OU  mesmo  naquella  galeria  em  que  estavam  pintadas  a  fresco  as  lascivas 
occupações  de  Sardanapalo,  e  as  meditações  do  Aretitio,  relativas  ás  melamor- 
plioses  dos  deuses,  e  outras  scenas  iguaes,  perfeitamente  pintadas  ao  natural. 

Pfide  imaginar-se  lambem  o  que  o  auetor  ou  o  impressor  omittiram, 
quando  se  notam,  na  galeria  dedicada  aos  legisladores  da  libertinagem,  calças 
com  os  assentos  abertos,  que  subiam  e  desciam  conforme  se  queria,  invenção 
hermapbrodita,  recentemente  introduzida  no  paiz.» 

A  opinião  de  Henrique  iv  a  respeito  d'esta  obra,  que  o  monarcha  julgava 
demasiado  livre  e  audaciosa,  reconhecendo,  não  obstante,  que  dizia  a  verdade, 
não  necessita  justificação  de  citações.  É,  todavia,  extrabida  das  ordenações  re- 
lativas á  policia  entre  os  herma|)liroditas,  e  não  deixa  duvida  acerca  do  objecto 
principal,  que  o  auetor  se  propunha  n'esta  mordaz  satyra  dos  mignona. 

«E,  como,  os  nossos  leitos  são  altares  em  que  queremos  que  se  faça  um  sa- 
crifício perpetuo  á  deusa  Salambona,  desejamos  também  que  sejam  mais  ricos 
que  os  demais,  e  bem  adequados  á  maior  commodidade  dos  nossos  Íntimos  ami- 
gos. Sabendo  também  que  as  acções  vulgares  se  fazem  sob  um  ceu  que  se 
chama  lunar,  e  estando  os  mysterios  de  Vénus  dois  graus  acima,  entendemos 
que  cada  qual  deve  ter  duplo  ceu  no  seu  leito,  e  que  o  de  dentro  não  deve 
ser  menos  rico  do  que  o  de  fora.  Queremos  que  a  sua  historia  se  tome  das 
Metamorpkoses  de  Ocidio,  transformações  de  deuses  e  coisas  similbantes  para 
animar  os  mais  frios;  que  o  posterior  seja  mais  notável  que  o  anterior  pela 
sua  largura  como  o  mais  conveniente  aos  Herniiipbroditas.  E,  como  a  terra  não 
é  digna  de  supportar  cousas  tão  preciosas,  ordenamos  que  se  estendam  sobre  o 
pavimento,  debaixo  dos  leitns,  ricos  tapetes  do  Cairo  ou  qualquer  alcatifa  de 
seda.» 

O  auetor  limita-se  a  tocar  o  assumpto  com  uma  delicadeza  que  prova 
bem  todo  o  horror  que  lhe  inspirava  a  vida  desordenada  dos  cortezãos,  e  con- 
fessa que  se  allastava  com  repugnância  dos  que  jogavam  e  brincavam,  com  re- 
ceio de  ver  alguma  cousa  que  lhe  podesse  desagradar. 

Temos  de  voltar  aos  escriptos  de  igrippa  d'.4ubigné  para  conhecer  os  ca- 
racteres mais  salientes  da  prostituição  dos  mignons.  O  grave  e  sensato  Thou 
não  teve  inconveniente  em  fazer  entrar  na  sua  Historia  algumas  anecdotas  que 
também  se  encontram  na  Confissão  de  Sancy.  A  da  buzina,  por  exemplo,  prova 
quando  menos  que  o  rei  não  eslava  tão  endurecido  pelo  vicio,  que  se  entregasse 
a  elle  sem  remorsos. 

Ahi  pelo  anno  de  1580,  Saint-Luc  e  Joyeuse,  envergonhados  da  sua 
deshonesta  condição,  quizeram  sahir  d'ella,  fazendo  ao  mesmo  tempo  enver- 
gonhar seu  amo  dos  vicios  a  que  já  só  mui  dillicilmente  se  submettiam.  Por 
conselho  da  c mdessa  de  Retz,  a  quem  ambos  amavam,  furaram  a  parede  do 
gabinete  de  Henrique  iii  e  «introduziram  pelo  orifício,  entre  as  cortinas  e  o 
leito,  uma  buzina  de  bronze,  por  meio  da  qual  pretendiam  fazer  crer  na  inter- 
venção de  um  anjo  »,  segundo  a  narração  que  Aubigné  faz  d  esta  aventura, 
(Hist.  iniverselle),  lib.  ii,  cap.   v.  t.  iii.) 

Tractava-se  de  fazer  chegar  mysteriosamente  aos  ouvidos  d'el-rei  um  avi- 
so do  ceu,   aviso  e  ameaça  ao  mesmo  tempo,  para  ver  se  se  corrigia  dos  seus 


47?  H.STORIA 

odiosos  hábitos.  O  êxito  d'este  estratagema  superou  a  espectativa  de  Saint-Luc 
c  de  Joyeusp,  porquo  Henrique  iit,  apenas  ouviu  a  imperiosa  voz  que  o  cha- 
mava ao  caminho  da  moralidade,  sob  pena  de  ser  castigado  como  os  preversos  ha- 
bitantes de  Sodoraa  e  Gomorrha,  jurou  não  tornar  a  reincidir  no  seu  peccado, 
fazendo  também  arrepender  os  seus  mifjnons. 

O  pobre  peccador  ciiegou  a  ter  tanto  medo,  (jue  ao  menor  trovão  corria 
a  csconder-se  debaixo  do  leito,  e  por  pouco  que  a  trovoada  continuasse,  fugia 
todo  tremulo  para  os  subterrâneos  do  Louvre. 

Joyeuse,  porém,  teve  compaixão  do  rei,  vendo  o  deplorável  estado  a  que  che- 
gara, e  para  o  curar  do  seu  terror  tudo  lhe  confessou,  lançando  as  culpas  a 
Saint-Luc.  Este  teve  tempo  de  fugir,  antes  que  a  cólera  real  podesse  alcançal-o, 
e  refugiou-se  na  cidade  de  Bronage,  de  que  era  governador,  abjurando  para 
sempre  os  seus  vieios  de  miynon. 

Thou  refere  a  mesma  aventura,  mas  dá  como  cúmplice  de  Saint-Luc  a 
Francisco  de  O,  em  vez  de  Joyeuse,  e  attribue  á  mulher  de  Saint-Luc,  Joanna 
de  Coisé-Brissac,  a  invenção  da  famosa  buzina. 

De  resto,  apesar  dos  seus  peccados  da  mocidade,  o  ex-miçinon  Francisco 
d'Epinay,  senhor  de  Saint-Luc,  veio  a  ser  grão-mestre  da  artilheria  e  marechal 
de  França,  no  reinado  de  Henrique  iv. 

«Este  pobre  rapaz  tinha  horror  por  aquelle  vicio,  diz  Agrippa  dWubigné  : 
na  Confissão  de  Sanrii,  e  foi  forçado  da  primeira  vez  que  o  commetteu,  mandan- 
do-lhe  o  rei  buscar  um  li\ro  a  um  cofre,  com  cuja  tampa  o  prenderam  por  me- 
tade do  corpo  o  grão-prior  e  Camillo,  c  a  isto  se  chama  apanhar  uma  lebre  na 
armadilha,  de  maneira  que  o  honrado  rapaz  foi  posto  á  força  na  degradação 
d'aquelle  vil  ofBcio.» 

A  deshonra  do  desgraçado  favorito  tornou-se  publica  na  corte,  por  meio 
deste  obsceno  anagramma,  que  Rochepot  compoz  com  o  nome  de  Saint-Luc: 
Cast  in  c  .  ■  . 

O  anjo  da  buzina  deixou  todavia  no  animo  del-rei  uma  saudável  dispo- 
sição para  ttmer  o  castigo  do  ceu,  e  d'aqui  as  suas  procissões,  penitencias  e 
expiações  solemnes.  .Não  é  dilFicil,  porém,  de  acreditar,  como  diz  dAubignc, 
que  «o  terror  crescia  com  o  artificio  esquisito  das  sensualidades».  Pela  nossa 
parle,  repellimos  com  horror  as  monstruosas  columnias  que  os  da  IJga,  ainda 
mais  que  os  huguenottes,  propalavam  venenosamente  para  aniquillar  aquelle 
reinado,  stygmatizando  o  rei. 

Custa  a  crer,  na  verdade,  como  Aubigné  pôde  obstinar-se  a  repetir  estas 
indignidades  nos  seus  Trn<iir,ns.  na  sua  Historia  unirersal,  e  na  sua  Confissão 
de  Sdnnj.  Devia  ter  deixado  nos  pamphictos  da  Liija  aquelles  rosários  trazidos  de 
Hmna,  aquellas  contas  bemdilas,  que  el-rei  havia  distribuído  pelos  seus  com- 
panheiros de  orgias,  ordenando-lhes  que  as  resassem  antes  das  suas  sensuali- 
dades ;  aquella  missa  sagrada  que  se  dizia  no  leito  do  gabinele-lupanar  d'el-rei, 
com  ornamentos  próprios  do  peccado;  aquellas  ablucções  e  clysteies  de  agua 
benta,  ((ue  os  impudicos  mignons  usavam  como  preservativos  contra  o  fogo  do 
ceu. 

Sauval,   nas  suas  memorias  históricas  c  secretas  a  respeito  dos  amores 


DA    PROSTITUIÇÃO  473 

dos  reis  de  França,  não  hesitou  em  lomar  a  defeza  de  Henrique  iii,  em  pre- 
sença das  odiosas  profanações  ailegadas  por  Auhigné. 

«Todas  estas  abominações  de  Gomorrlia,  diz  olle,  com  que  o  denegriam, 
e  que  os  satyros  chamavam  amores  sagrados,  como  que  prohibindo  o  amor  das 
mulheres,  eram  antes  os  vieios  dos  grandes  e  sobretudo  dos  seus  favoritos,  de- 
nominados o  bando  xaijrado,  do  que  os  seus.  Assim,  dizia-se  a  respeito  das 
monstruosas  desordens  que  faziam  as  suas  delicias : 

«Em  Hespanha,  os  fidalgos:  em  França,  os  grandes  ;  na  Allemanha,  pou- 
cos ;  na  Itália,  todos.» 

Não  obstante,  temos  de  acceilar  como  verdadeira  uma  parte  das  revela- 
ções da  Confissão  de  Sancy,  por  mais  infames  que  ellas  sejam,  eé  preciso  não 
confundir  com  os  abjectos  pamphletarios  da  Liga  o  honrado  e  leal  Aubigné,  que 
foi  o  amigo  e  companheiro  de  armas  do  rei  bcarnez,  ainda  mesmo  quando  te- 
nhamos de  o  ouvir  dizer  com  profundo  sentimento  de  indignação: 

«Se  eu  contasse  o  que  me  revelou  em  segredo  o  príncipe  de  Conde, 
quando  passou  a  noite  muito  contente,  elle  e  os  da  corte,  com  a  aprendizagem 
do  conde  d'Auvergne;  ou  se  fallasse  no  desterro  do  joven  Bonny,  por  não 
querer  ser  do  bando! 

«Noailles  escreve  no  seu  leito  estes  versos : 

"Nul  heur,  nul  bien  ne  me  cunlente, 
«Absent  de  ma  divinitél 

«E  0  rei  de  Navarra  accrescenlou  em  seguida  com  a  própria  mão : 

''iTappelez  pas  ainsi  ma  tante: 
«Elle  aiine  írop  humanité. 

«Estes  versos  deram  a  conhecer  que  de  Noailles  amava  as  mulheres  con- 
tra as  regras  do  amor  sagrado,  e  por  isso  foi  expulso  a  pontapés,  como  o  du- 
que de  Longueville. 

«Se  contasse  também  os  deposorios  de  Caylus,  e  o  contracto  íirmado 
com  o  sangue  d'el-rei  e  com  ú  sangue  de  O,  como  testemunha,  por  cujo  con- 
tracto se  casava  com  M.  Grande.  Emfim,  se  eu  repetisse  as  palavras  d'este 
príncipe,  ajoelhado  diante  de  Maugiron  morto  e  com  a  bocca  pegada  ás  suas 
partes  vergonhosas!. .  .»  {Confissão  de  Sancij,  cap.  vii.) 

Quando  Aubigné  escrevia  d'este  modo  as  horríveis  revelações  da  historia 
secreta  de  Louvre,  havia  sido  condemnado  á  morte,  duas  ou  três  vezes,  como 
contumaz,  como  huguenotte  incorrigível,  e  gosava  um  alto  favor  na  corte  de 
Henrique  iv.  Tinha  a  esse  tempo  a  barba  grisalha,  e  sentia  ainda  estuar  nas 
veias  o  ódio  implacável  que  lhe  inspirava  o  vicio  coroado.  Trinta  annos  antes, 
durante  as  guerras  de  1577,  residia  cm  Castel-jaloux,  onde  commandava  al- 
guns soldados  da  cavallaria  ligeira  do  exercito  protestante,  e  formulava  as  mes- 
mas accusações  contra  Henrique  mi  e  os  seus  cortezãos  na  sua  obra,  os  Traçji- 
cos,  só  publicada  vinte  annos  mais  tarde. 

HitTOKIA  DÁ  PB09T1T0IÍÃ0.  TOMO  H— FoLHA  60. 


474  HISTORIA 

No  leito  da  dòr,  com  a  morte  á  cabeceira,  entregava  ainda  à  execração 
da  posteridade  os  odiosos  feitos  dos  mignons  e  do  seu  real  protector. 
Eis  como  o  poeta  preparava  o  trabalho  do  historiador : 


Quand  j'oy  qu'un  roy  transi,  ejfrayé  du,  tonerre 
Se  couvre  d'une  voiite,  et  se  cache  sous  terre, 
Sembusque  de  laurier,  fait  les  cloches  snnner, 
Son  péché,  poursuivy,  poursuil  de  1'eslonner; 
Quil  use  d'eaw  lustrale,  il  la  boit,  la  consomme 
En  clystères  infects;  il  fait  venir  de  Rome 
Les  cierges,  les  agnus,  que  le  pape  fournit; 
Botíche  tous  ses  conduils  d'un  charme  grain  bénit; 
Quand  je  voy  coinposer  une  messe  complete, 
Pour  repousser  le  ciei,  inutile  amulette; 
Quand  la  peur  n'a  cesse  par  les  signes  de  croix, 
Le  braier  de  Massé,  ni  le  froc  de  François: 
Tels  spectacles  inconnus  font  confesser  le  reste, 
Le  péché  de  Sodome  et  le  sanglant  iiiceste 
Sont  reproches  joyeux  de  nus  impurs  cours. 
Triste,  je  trancheray  ce  tragique  discours, 
Pour  laisser  aux  pasquins  ces  ejfroyables  contes. 
Honteuses  vérités,  Irop  véritables  hontes! 


Damos  em  seguida  a  traduc^ão  d'estes  excellentes  versos,  que  parecem 
inspirados  pela  musa  de  Juvenal : 

«Quando  me  dizem  que  um  rei,  com  o  medo  do  trovão,  se  esconde  de- 
baixo da  terra,  se  cobre  de  folhas  de  louro  e  manda  tocar  os  sinos ;  que  o  seu 
ppccado  habitual  o  persegue  sem  descanço;  que  usa  de  agua  benta,  de  todas 
as  maneiras,  bebendo-a,  lomando-a  em  cl3'steres;  que  manda  vir  de  Roma  cí- 
rios e  afinus-dei,  que  o  papa  lhe  fornece;  que  tapa  todos  os  seus  orifícios  com 
contas  bentas ;  quando  vejo  celebrar  uma  missa  solemne  para  aplacar  o  ceu  — 
inútil  amuletto! —  quando  o  medo  não  cessa  nem  com  signaes  da  cruz,  nem 
com  o  cinto  de  Massé,  nem  com  o  habito  de  Francisco.  .  .  Estes  espectáculos 
desconhecidos  fazem  conhecer  o  resto.  O  peccado  de  Sodoma  e  o  repugnante 
incesto  são  alegres  censuras  de  uma  corte  obscena.  Interrompo  com  tristeza 
este  trágico  discurso,  para  deixar  aos  libellos  tão  espantosos  contos,  vergonho- 
sas verdades,  verdadeiras  vergonhas!» 

Podíamos  multiplicar  as  citações  d'Aubigné  e  de  outros  escriptores  hu- 
guenotles,  que  se  occuparam  da  espantosa  dissolução  da  corte  de  Henrique  iii. 
O  leitor  deve  estar,  porém,  ennauseado  de  todos  os  excessos  que  temos  nar- 
rado, e  que  dão  a  medida  exacta  da  inlluencia  da  depravação  italiana,  ifuma 
corte,  em  que,  como  já  vimos,  a  prostituição  foi  arvorada  cm  meio  politico, 
destinado  pela  rainha  Catharina  de  Medíeis,  cá  consecução  dos  seus  ambiciosos 
planos. 

A  épocha  era  de  depravação  gerai.  O  século  xvi  refinou  todos  os  exces- 
sos da  sensualidade  antiga,  e  tanto  em  Itália,  como  em  Hcspanha,  como  em 
França,  a  dissolução  dos  costumes  chegou  a  limites  nunca  até  então  phanta- 


DA    PROSTITUIÇÃO  475 

siados.  Os  grandes,  sobre  tudo,  largaram  desaforadamente  a  rédea  a  todas  as 
paivões  infames,  e  por  toda  a  parte  cuidaram  incessantemente  de  adquirir  pelo 
vicio  a  mais  triste  das  celebridades. 

Henrique  iii,  um  rei  fraco,  demente  quasi,  presidia  inconscientemente, 
na  sua  bestialidade  estúpida,  a  este  desmonoramento  dos  princípios  moraes  e 
das  ideias  virtuosas.  A  sua  corte  era  o  triste  quadro  das  mais  espantosas  obs- 
cenidades. 

Resta-nos  descrever  ainda  a  consequência  do  funesto  exemplo  do  mo- 
narcha  em  todas  as  classes  sociaes. 


CAPITULO   XXXVIII 


SUMMARIO 


o  níDorcíO  Salijíkú.—  As  Memorias  da  ramha  Margarida.— Os  amores  do  Grande  Alcanáre.— Os  pri- 
meiros amoii-s  de  Margot.— I.a  Mole,  Russy,  Tureniie,  Maycnne,  Clermont  d'Amboise,  etc.  -Uma  aventura  da  rainha 
com  Chani|ivalloii.— Partida  da  corte  e  prisão  da  rainl]a.— Carla  de  Henrique  iii  a  seu  cunhado.— Mar!,'arida  casada. 
—Sua  fuga  de  Nerac— Sua  cliegada  a  Carlat.— Os  bastardos  da  Gascuntia  e  os  caldeireiros  do  Auversíne.  — Em  que  se 
occupava  a  rainha  em  Carlat.— Auviac  e  o  man|uez  de  Canillac— O  castello  d'Usson.  — Seus  mysterios,  segundo  va- 
rias testemuidias  contemporâneas.— O  cantor  Poraiuy-  —A  caixa  de  prata.— O  culto  de  Vénus  llrania  — Os  seus  dois 
sacerdotes  Diipleis  e  Brantònie.— O  divorcio  de  Henrique  iv.— Regresso  de  Margarida  a  Paris  -O  palácio  de  Sens  — 
Morte  do  mitjnfín  Date.— A  ilha  de  Cytheia  no  arrabalde  Saint-Germain—Baujaraont.— Últimos  clarões  da  galante- 
ria da  rainha  .Margot.— Historia  das  mil  e  uma  concubinas  do  rei  de  Navarra  —Opinião  sobre  a  condiicta  dVsle  prín- 
cipe.—Catharina  de  Luc,  Mademoiselle  de  Montaigne,  TignouviUe,  .Maioquin.  — Madame  de  Sauve  — Dayelle,  La  Fos- 
Seuse,  etc—  A  condessa  de  Guiché.—  Madame  de  Guercheville.—  As  abbadias  de  Longchamps  e  Monlmartre  —  Ga 
briella  d'Éstrées.—  Seus  amores  com  el-rei  e  com  outros.—  A  duqueza  de  Verneuil  — La  Haye.  Kanuche,  a  condessa 
di;  Moret,  La  Glandée,  etc— .4  princeza  de  Conde.— As  proxenetas  d'el-rei. 


ER-SE-HA  traçado  o  melhor  quadro  dos  costumes  da  corte  nos 
fins  do  século  xvi,  contando  os  pormenores  da  vida  privada  de 
Margarida  de  Vaiois,  rainha  de  Navarra,  primeira  mulher  de 
Henrique  iv,  e  alguns  dos  factos  relativos  aos  amores  de  seu 
esposo,  immortali.sados  sob  o  titulo  de  Grande  Akandre.  Os  dois 
esposos  tomaram  a  peito  revelar  o  segredo  dos  seus  adultérios,  a  rainha  nas 
suas  Memorias,  onde  enumera  com  grande  reserva  e  delicadeza  os  aggravos  de 
seu  infiel  e  volúvel  esposo  ;  o  rei  no  famoso  Divorcio  Satyrico,  redigido  sob  os 
seus  auspícios  por  Agrippa  d'Aubigné,  ou  por  outro  qualquer,  para  servir  de 
elucidação  aos  commissarios,  encarregados  de  examinar  as  causas  de  separação 
que  existiam  entre  os  reaes  esposos. 

Estas  duas  peças  authenticas  do  divorcio  não  foram  impressas  senão  muito 
tempo  depois,  mas  é  certo  que  circulavam  manuscriptas  ao  principiar  o  pro- 
cesso. Ambas  provavam  do  modo  mais  escandaloso  que  el-rei  de  Navarra  e  sua 
esposa  nada  tinham  a  exprobrar  um  ao  outro  em  questões  de  libertinagem. 

De  resto,  o  escândalo  era  moeda  corrente  na  corte,  e  quando  a  princeza 
de  Conti  escreveu  os  Amores  do  Grande  Alcayidre,  para  servirem  de  comple- 
mento ás  Memorias  de  Margarida  de  Vaiois,  não  julgou  infringir  as  leis  da  ga- 
lanteria, oITerecendo  estes  exemplos  de  depravação  e  escândalo  á  juventude  no- 
bre da  França. 

Seria  difficil  passar  revista  a  todas  as  loucuras  da  rainha  Margarida,  desde 
a  sua  entrada  precoce  na  senda  da  prostituição,  quando  Enlragues  e  Charins 


478  HISTORIA 

«gosaram  as  primícias  do  seu  ardor»,  como  diz  o  próprio  Henrique  iv,  no  seu 
Divorcio  Satijrico. 

Já  n'outra  parte  nos  referimos  aos  boatos  que  corriam  em  tempo  de  Car- 
los IX  a  respeito  dos  amores  incestuosos  da  rainha  com  os  seus  três  irmãos. 
Não  faltaremos  aqui  d'esses  primeiros  amantes,  nem  do  coronel  Martigues,  que 
a  amava  eslremosamente,  ao  ponto  de  levar  sempre  para  a  guerra  uma  banda 
bordada  e  um  cãozinho  com  que  ella  o  havia  presenteado.  Deixaremos  também 
no  silencio  o  duque  de  Guise,  que  «imaginou  casar  com  ella  depois  dos  seus 
impudicos  beijosx>  e  de  la  Mole  que  foi  decapitado  com  Coconnas  na  praça  da 
Greve,  e  cujo  coração  e  outras  relíquias  mais  singulares  ainda  ella  conservava 
em  caixas  de  ouro,  e  Saint-Luc,  a  quem  recebia  todas  as  noites  para  se  consolar 
da  perda  do  seu  ultimo  amante,  e  de  Bonny,  que  «apesar  de  valente  como  as 
armas,  não  o  podia  ser  com  as  mulheres,  por  causa  de  uma  cólica  violenta, 
que  lhe  costumava  dar  á  meia  noite.» 

O  Divorcio  Saiijrico  cita  ainda  entre  os  que  mereceram  os  favores  d'esta 
princeza,  o  duque  de  Mayenne,  ijordo  e  coluptuoso  como  ella,  o  visconde  de 
Turenne,  que  ella  despediu  dentro  em  pouco,  por  lhe  achar  varias  despropor- 
ções na  sua  pessoa,  Lebnle,  que  n'um  accesso  de  ciúme  lhe  comeu  as  plumas 
do  chapéu,  Amhroise,  que  a  acariciava  em  roupas  brancas,  mesmo  á  porta  do 
seu  aposento,  emquanto  o  rei  de  Navarra  jogava  ou  passava  a  noite  com  os  da 
sua  corte,  o  velho  rufião  de  Pibrac,  que  por  gostar  muito  de  vinho  veio  a  sér 
seu  chanceller,  emfim  o  senhor  de  Champvallon,  que  penetrava  no  guarda- 
roupa  da  rainha  dentro  de  um  cofre,  que  os  creados  levavam  e  traziam. 

Passaremos  agora  a  contar  o  grande  acontecimento  da  partida  da  rainha 
Margarida,  quando  por  ordem  d'el-rei,  seu  irmão,  teve  de  sahir  de  Paris,  para 
ir  ter  á  Gascunha  com  seu  marido.  Henrique  iii  estava  muito  irritado  contra 
ella,  porque  as  suas  relações  com  Champvallon  haviam  fruclificado  n'um  me- 
nino que  desappareceu  logo  em  seguida  ao  nascimento.  Champvallon  retirou-se 
prudentemente  para  a  Allemanha,  quando  o  estado  de  Margarida  começou  a 
inspirar  suspeitas.  Disse-se  por  essa  épocha  que  o  filho  adultcrino  havia  sido 
afogado,  feito  em  pedaços  e  atirado  a  uma  latrina,  mas  soube-se  mais  tarde 
que  lòra  criado  com  o  nome  de  Luiz  de  Vaux  pelo  porteiro  do  palácio  de  Na- 
varra, e  que  passava  por  filho  de  um  perfumista  da  corte. 

Seja  como  fòr,  tendo  Henrique  iii  ordenado  a  partida  de  sua  irmã,  esta 
obedeceu  de  muito  má  vontade,  pondo-se  a  caminho  na  segunda-feira,  23  de 
agosto  de  \'')8'.i,  com  algumas  pessoas  do  seu  serviço,  ('hegou  de  noite  a  Palai- 
seau,  mas  el-rei  havia  determinado  que  a  seguissem  sessenta  archeiros  da  sua 
guarda,  e  o  seu  capitão,  o  senhor  d"Archant,  cumprindo  ordens  secretas,  foi 
procural-a  até  ao  próprio  leito,  prendendo  por  essa  occasião  as  senhoras  de 
Duras  e  de  Bclluine,  «accusadas  de  incontinência  e  de  promoverem  abortos  á 
rainha.» 

O  senhor  de  l.odon,  gcntii-huriicm  ila  rainha  de  Navarra,  foi  também 
preso,  e   bem   assim  o  seu   escudeiro,  o  seu  secretario,  e  outros  creados  seus. 

Tod  IS  eiles  foram  conduzidos  a  Montargis,  onde  o  próprio  rei  os  interro- 
gou a  respeito  da  conducta  de  sua  irmã,  e  acerca  da  crcança  que  ella   tivera 


p-t 


Margarida  tle  Valois,  rainlia  de  França  e  de  Navarra 
(Copia  d' um  retrato  des  uFummes  Célhhres) 


DA    PROSTITUIÇÃO  479 

na  côrlc.  Este  iniefrogatorio,  porém,  bem  como  o  processo  que  (Iflle  resultou 
nenhuma  luz  deu  ao  assumpto  e  todas  as  pessoas  presas  foram  postas  em  li- 
berdade. Margarida  poudc  então  continuar  a  sua  viagem  e  chegar  a  Nerac,  onde 
estava  seu  marido. 

El-rei  de  Navarra  não  quiz  recebel-a,  em  razão  do  escândalo  que  este  caso 
havia  produzido,  e  nenhumas  relações  se  estabeleceram  entre  estes  dois  espo- 
sos, que  vivian)  separados  sob  o  mesmo  tecto,  como  se  o  divorcio  já  se  tivesse 
realisado. 

Henrique  iii  quiz  intervir,  para  os  chamar  a  uma  reconciliação,  quando 
menos  apparcnte,  e  n'uma  das  suas  cartas,  dizia  maliciosamente  a  seu  cunhado: 

«Bem  sabeis,  meu  querido  irmão,  que  os  reis  estão  sujeitos  a  ser  enga- 
nados por  falsas  informações,  e  que  nem  as  princezas  mais  virtuosas  estão  li- 
vres da  calumnia.  Até  da  defunta  rainha,  vossa  mãe,  se  fallou  sempre  mal, 
como  deveis  saber.» 

O  rei  de  Navarra  soltou  uma  gargalhada,  e  dirigindo-se  a  Bellievre,  que 
lhe  havia  entregado  a  carta,  disse-lhe  em  tom  jovial  : 

—  El-rei  vosso  amo  faz-nie  sempre  muita  honra  nas  suas  cartas.  Nas 
primeiras  chama-me  coitadinho.  .  .  e  na  ultima,  (ilho  da  p.  .  .  «.lounial  d'Henri 
III,  edic.  de  M.  M.  Champollion.) 

Os  dois  esposos  não  viveram  d'ahi  avante  em  boas  relações,  posto  qi^e  o 
rei  de  Navarra,  por  politica,  apparentasse  haver  olvidado  os  seus  aggravos. 

«O  rei  de  Navarra,  diz  Estoile,  acceitou  sua  mulher  para  obedecer  a  sua 
magestade,  que  tinha  sobre  elle  grande  império.  Nunca  foi,  porém,  possivel, 
persuadil-o  a  recebel-a  no  seu  leito.  l'ma  noite  apenas  teve  a  complacência  de 
a  acariciar  com  bom  semblante  e  boas  palavras,  mas  não  passou  d'aqui,  e  por 
este  motivo  a  mãe  d'ella  (Catharina  de  .Medicis)  e  a  filha  davam-se  a  todos  os 
diabos.» 

Estoile  riscou  esta  passagem,  ao  passar  a  limpo  o  seu  Uegistro  diário, 
contentando-se  em  dei.\ar  com  a  data  de  fevereiro  de  lo85  uma  phraze,  em 
que  diz  que  a  rainha  Margarida  «não  estava  satisfeita  com  seu  marido,  que  a 
desprezava,  não  lhe  tendo  reclamado  nunca  mais  os  seus  direitos  conjugaes, 
desde  a  noticia  da  afíronta  que  o  rei  seu  irmão  lhe  fizera  sofiVer  em  agosto  de 
1583.»  Durante  este  tempo  passado  na  corte  de  Nerac,  a  rainha,  que  parecia 
(juerer  mudar  de  vida,  mostrou  tendências  mais  ajuizadas,  cicendo  com  a  ver- 
gonha dos  seus  peccados,  diz  o  Dirorcio  Srtyrico,  mas  por  fim  cançou-se  d'esta 
continência  forçada,  «e  deixou-se  novamente  arrastar  pela  carne  e  pela  sua  des- 
enfreada sensualidade.» 

Abandonou,  portanto,  o  palácio  do  rei  seu  esposo,  onde  era  estreitamente 
vigiada  e  guardada  por  ordem  de  seu  irmão  Henrique  iii,  e  relirou-se  para  a 
cidade  d'Agen,  «para  estabelecer  alli  commercio  impuro,  e  continuar  nas  suas 
torpezas  com  maior  liberdade  de  consciência.» 

Não  parou  por  muito  tempo  em  Agen,  por  isso  que  os  habitantes  da  cidade, 
que  eram  do  partido  catholico,  apenas  souberam  que  a  rainha  de  Navarra  alli 
se  havia  installado,  revoltaram-se,  e  obrigaram-na  a  partir,  tendo  de  fugir  a 
toda  a  pressa. 


480  HISTORU 

«Diíiicilmente  se  poude  encontrar  um  cavallo  e  uma  cadeirinha  para  a 
transportar,  e  bem  assim  para  as  suas  damas,  que  a  seguiram  n'um  deplorá- 
vel estado,  parecendo  mais  ribaldas  do  que  damas  de  boa  familia.  Alguns  no- 
bres que  no  mesmo  deplorável  estado  a  acompanharam,  conduziram-n'a,  sob  a 
guarda  de  Liguerac  ás  montanhas  do  Auvergne,  a  ('arlat». 

Quando  Henrique  iii,  soube  da  fuga  de  sua  irmã,  irritou-se  extraordina- 
riamente e  disse  em  alta  voz  aos  seus  eortezãos : 

—  Os  bastardos  da  Gascunha  não  poderam  saciar  a  rainha  de  Navarra,  e 
por  isso  foi  procurar  os  caldeireiros  do  Auvergne. 

A  pobre  Margarida,  no  transito  de  Agen  para  Çarlat,  tinha  ido  á  garupa 
do  cavallo  que  montava  um  dos  seus  creados,  tendo  por  essa  occasião  deslo- 
cado uma  perna,  de  que  esteve  doente  um  mez.  O  medico  que  lhe  assistiu 
apanhou  uma  tremenda  sova,  por  ter  dado  demasiado  a  lingua,  o  que  nos  leva 
a  crer  que  a  deslocação  da  perna  tivera  uma  origem  suspeita. 

A  rainha  de  Navarra,  se  dermos  credito  ao  Divorcio  Saiijrico,  carecia 
de  tudo  no  castello  de  «onde  esteve  muito  tempo,  chegando  não  só  a  não  ter 
docel  nem  leito  de  gala,  mas  até  mesmo  camisas  para  vestir  todos  os  dias.» 
A  rainha  indemnisava-se  d'estas  priva(,'ões  entregando-se  a  todas  as  sensuali- 
dades do  seu  temperamento,  n'aquelie  castello,  que  mais  parecia  guarida  de 
ladrões,  do  que  habitação  de  uma  princeza,  filha,  esposa  e  irmã  de  reis.» 
Margarida  não  podia  alli  renovar  tão  frequentemente  como  desejava  o  pessoal 
das  suas  galanterias,  tcodo  de  limitar-se  a  um  pequeno  numero  de  amantes. 
Na  ausência  do  senhor  de  Duras,  a  quem  encarregara  de  ir  pedir  dinheiro  em 
seu  nome  a  el-rei  de  Hespanha,  dignou-se  pôr  os  olhos  em  Choisnin,  um  dos 
músicos  da  sua  çaiuaia,  no  seu.  cosinheiro,  em  Saint-VincenI,  seu  mordomo,  e 
ultimamente  em  Aubiac,  o  «mais  bem  penteado  de  todos  os  seus  criados,  ao 
qual  elevou  desde  a  cavaliariça  até  ao  seu  real  e  obsceno  leito.» 

O  referido  Aubiac,  havia-se  enamorado  d'ella,  ao  vel-a  pela  primeira  vez 
sete  ou  oito  annos  antes. 

—  De  bom  grado  me  deixaria  enforcar,  disse  elle  em  voz  alta  a  troco  de 
possuir  essa  mulher! 

Paliando  assim,  com  os  olhos  encendidos  em  sensualidade,  o  pobre  homem 
nem  suspeitava  que  estava  pronunciando  o  seu  horóscopo,  porque  depois  de 
ler  logrado  os  favores  da  rainha,  apesar  de  ser  um  miserável  moço  de  estre- 
baria, vermelho,  mais  pintalgado  do  que  uma  truta,  cujo  nariz  còr  de  mala- 
gueta nunca  se  poderia  lembrar  de  ser  em  sua  vida  acariciado  por  uma  prin- 
ceza de  França,  foi  preso  com  a  sua  dama  no  castello  dlvoy,  onde  ella  fora 
rcfugiar-se,  ao  sahir  de  Carlat. 

El-rei  de  França,  indignado  contra  sua  irmã,  deu  ordem  ao  marquez  de 
Canillac  para  que  se  apoderasse  d'clla,  por  isso  que  Margarida  muito  tempo 
antes  havia  abiaçado  o  partido  da  /.(V/a,  para  se  vingar  ao  mesmo  tempo  de 
seu  irmão  e  de  .seu  marido. 

Foi  então  a  rainha  conduzida  ao  castello  dTsson,  no  Auvergne,  onde  o 
mar(|uez  de  Canillac  devia  tel-a  encerrada,  emquanto  que  o  seu  ultimo  amante, 
o  desgraçado  Aubiac  era  transferido  para  Aiguiperse,  onde  devia  ser  julgado. 


DA    PROSTITUIÇÃO  j  g-J 

O  resultailo  creste  julgamento  foi  ser  comiemiiado  á  forca  como  partidário 
lia  Lign.  Xu  caminho  para  o  siipplicio,  ia  beijando  fervorosamenie  um  miléne 
de  velludo,  única  rciii|uia  dos  favores  de  sua  ama. 

Margarida  já  a  esse  tempo  cuidava  em  dar-llie  um  successor,  o  o  mar- 
que/, de  ('iniilac  .lei\ava-se  captivar  das  seducçóes  da  sua  l)eila  prisioneira. 
f)e  desastrado  e  immundo  que  era  até  alli,  o  marquez  tornou-se  tão  amável, 
lielio  e  perfumado,  como  o  fidalgo  mais  joven  e  apaixonado  da  corte. 

A  rainha  não  o  amava,  mas  fingia  extremos  e  caricias  que  o  enlouque- 
ciam. O  pobre  homem,  ciumento  como  um  tigre  de  todos  os  rivaes  possíveis  c 
imagináveis,  esquecia  o  servi(,'o  do  rei,  para  obedecer  aos  menores  caprichos 
da  sua  amada.  Tá<i  habilmente  cila  soube  ilirigir  o  seu  plano,  que  logrou  de- 
sembaraçar-se  do  enamorado  cavalheiro,  e  assenborear-se  do  castello  apro- 
veilando-se  de  uma  ausência  do  marquez. 

No  seu  regresso,  o  ludibriado  amante  encontrou  a  porta  do  seu  castello 
fechada,  e  uma  carta  em  que  a  rainha  de  >'avarra  lhe  declarava  que  não  pre- 
cisava dos  seus  serviços. 

O  bom  do  marquez  teve  de  se  retirar  de  Usson,  triste  e  cabisbai.vo,  dando 
grande  assumpto  de  troça  c  risada  á  corte  de  Henrique  iii.  El-rei  perdoou-lhe 
(1  mau  desempenho  da  sua  commissão,  a  troco  da  sua  ridícula  derrota. 

Henrique  ui,  por  único  castigo,  perguntou-ihe  diante  dos  seus  cortezãos  : 

—  Marquez,  porque  não  soilicitaes  da  rainha  Margarida  a  graça  de  serdes 
peiTumista  da  sua  corte  ? 

,\  fortaleza  de  Ussnn,  edificada  sobre  uma  rocha  alcantilada,  era  inexpu- 
gnável. O  rei  de  Navarra  nem  por  sombras  se  lembrou  de  sitiar  n'ella  sua  es- 
posa, e  deu-.se  por  satisfeito  de  a  ter  alli  captiva,  embora  como  soberana  d'a- 
quella  espécie  de  prisão. 

.Mais  de  vinte  annos  durou  aquelle  capliveiro  da  rainha.  O  padre  Hilarion 
de  Caste,  nos  FAoíjíos  das  Damas  illustres,  não  hesitou  em  dizer,  apesar  de 
ser  o  panegyrista  desta  princeza,  que  «aquelle  fortíssimo  castello  do  Auvergne 
fora  um  Thabor  para  a  sua  devoção,  um  Líbano  para  a  sua  sollicitude,  um 
Olympo  para  as  suas  musas,  e  um  (Cáucaso  para  as  suas  afleiçôes». 

Bjyle  observa  com  justiça  que  a  estada  da  rainha  de  Navarra  em  Usson, 
podia  mais  razoavelmente  comparar-se  ao  retiro  de  Nero  na  ilha  de  (]aprea.  E" 
certo,  porém,  que  a  voluptuosa  sereia  de  Isson,  tão  habilmente  soube  occul- 
tar  aos  profanos  os  mysterios  de  sensualidade  que  se  praticavam  no  interior  do 
seu  castello,  onde  nunca  penetrou  um  extranho,  que  os  olhos  e  os  ouvidos  do 
publico  nunca  lograram  ver  nem  ouvir  nada  desfavorável.  Tudo  quanto  se  pas- 
sava detraz  daquellas  fortes  muralhas  escapava  á  curiosidade  e  á  censura  ex- 
terior. Até  mesmo  nos  arredores  se  ignorava  o  género  de  vida  que  se  fazia 
n'aquelle  retiro  impenetrável,  onde  todos  os  echos  foram  mudos  até  que  Mar- 
garida o  abandonou. 

Eis  como  um  homem  honrado  e  serio,  .loão  Durnall,  procurador  do  rei 
no  tribunal  de  Agen,  chegou  a  illudir-se  a  respeito  dos  costumes  da  castellã 
de  Usson  : 

«E'  cousa  verdadeira  e  para  notar-se,  diz  elle  nas  AnliquiUs  d' Agen,  obra 

HisTonu  DA  Prostituição  Toom  ii— Folha  61 


482  HISTORIA 

impressa  em  Paris  em  I60(j,  que  sua  magestade  segue  escrupulosamente  cos- 
tumes muito  austeros,  desde  que  alli  reside.  Depois  de  se  entregar  modera- 
damente ao  e.;ercicio  das  musas,  passa  o  resto  do  tempo  na  capeila,  encom- 
mendando-se  a  Deus  com  todo  o  ardor  e  vehemencia,  e  commungando  uma 
vez  ou  duas  por  semana.» 

O  digno  Tiagistrado,  que  escrevia  sem  duvida  de  boa  fé  o  seu  extrantio 
elogio,  não  se  teria  atrevido  a  publical-o,  nem  sequer  a  escrevel-o,  se  podesse 
suspeitar  a  verdade,  porque  estas  palavras  dirigidas  á  rainha  mais  parecem  iro- 
nias, e  Margarida  devia  rir-se  a  bandeiras  despregadas,  quando  Darnalt  lhe  di- 
zia muito  a  serio  n'este  bello  trecho  de  eloquência : 

«Phenix,  que  renasces  diariamente  de  tuas  próprias  cinzas,  abrazando-te 
c  consumindo-te  no  amor  divino!  Tu  vives  de  outra  vida  bem  dilTerente  da 
d'este  mundo!  Retiro  santo,  devoto  mosteiro,  em  que  sua  magestade  se  consa- 
gra completamente  á  devoção  .ustera,  que  só  tende  dos  fins  ao  fim  supremo! 
Rochedo,  testemunha  da  soleda  !e  voluntária,  muito  louvável  e  religiosa  d'esta 
princeza,  onde  pela  doçura  da  musica,  pelo  canto  harmonioso  das  mais  bellas 
vozes  da  França,  parece  que  o  paraizo  na  terra  não  pode  estar  n'outra  parte, 
e  onde  sua  magestade  gosa  o  c  itentamento  e  o  repouso  do  espirito  que  as  al- 
mas bemavcnturadas  .sentem  nc  outro  mundo!» 

Não  temos  infelizmente  uma  contraprova  para  este  incrível  panegyrico. 
l\o  Divorcio  Salfjrico  ha  apen  is  algumas  linhas  pouco  importantes  relativas  à 
estada  de  Margarida  em  Ussoii.  Quando  se  livrou  do  marquez  de  Canillac, 
«resolveu  não  obedecer  nem  seguir  mais  do  que  os  seus  caprichos,  diz  Henri- 
que IV  no  seu  pamphleto,  e  estabelecer  n'aquelle  rochedo  inexpugnável  o  im- 
pério das  suas  delicias,  onde  |  reservada  por  três  recintos  de  muralhas.  Deus 
sabe  os  bellos  jogos,  que  em  \inte  annos  alli  jogou  I  A.  Nanna  do  Aretino  e  a 
sua  Santa,  nada  são  em  comparação  d'isto.» 

Depois  d'este  preambulo,  que  promettia  revelações  singulares,  o  libello  do 
rei  nada  nos  diz,  porém,  a  respeito  dos  laes  bellos  jogos,  que  por  tanto  tempo 
occuparam  a  dama  dUsson,  e  que  foram  sufficientes  para  apagar  n'ella  os 
sonhos  ua  ambição  e  as  vaidades  do  orgulho. 

Pôde  inferir-se  com  toda  a  certeza  do  próprio  silencio  do  historiador  a 
respeito  dos  pormenores  de  tão  largo  período  de  isolamento,  que  a  illustre  re- 
clusa vivia  entregue  á  dissolução  mais  monstruosa. 

«E'  verdade,  diz  a  este  respeito  o  seu  real  esposo,  que  em  vez  dos  nu- 
merosos amantes  que  costumavam  suavizar-lhe  a  sua  vida  passada,  está  redu- 
zida, á  falta  de  cousa  melhor,  aos  seus  criados,  secretários,  cantores,  e  mesti- 
ços da  nobreza,  desconhecidos  dos  seus  mesmos  vizinhos,  e  indignos  de  ([ue 
se  faça  menção  d'elles.» 

Henrique  iv  cita  apenas  um,  (|ue  dá  bem  a  medida  dos  outros,  mas  que 
reinou  com  grande  prestigio,  por  causa  do  amor  desenfreiado  que  soube  inspi- 
rar á  rainha. 

«.\  respeito  d'cllc,  diz  a  rainha  que  é  homem  para  mi  dar  de  voz,  de  cara, 
de  cabellos,  como  e  quaiidii  lhe  apraz,  e  i|uc  onlra  á  porta  fechada  onde  quer. 
Por  isso  Margarida  ordenou  (|ueos  leitos  das  damas  d'lIsson  fossem  altos,  para 


DA    PROSTITUIÇÃO  483 

poder  olhar  para  debaixo  d'clles  sem  se  curvar,  (|uando  tivesse  de  o  procurar. 
Por  causa  d'elle  apalpou  muitas  vezes  as  tapeçarias,  julgando  encontral-o  de 
traz  d'ellas ;  por  sua  causa  magoou  mais  de  uma  vez  o  rosto  nas  portas  e  nas 
paredes,  procurando-o  ás  escuras  desesperada ;  por  sua  causa  ainda  deveis  ter 
ouvido  às  mais  beilas  vozes  da  corte  a  musica  d'cstes  versos,  compostos  pela 
rainha  : 

A'  CM  bois.  CPU  prés  et  ces  antres, 

0/frnns  les  rceux,  les  plmirs  ies  sons, 

La  pluine,  les  ris,  les  chansons 

D'un  poete,  d'un  amanl,  d'uH  chantre. 

Era  effectivamente  um  cantor,  cliamado  Pominy,  ou  l^omines,  filho  de 
um  caldeireiro  do  Auvergne,  que  só  tinha  de  notável  a  sua  enorme  lealdade  e 
a  sua  beila  voz.  Fora  menino  de  coro  n'uma  egreja  rural  antes  de  ser  admit- 
tido  na  capella  da  rainha,  que  teve  de  o  jiuiir  um  pouco  para  fazer  d'ellc  seu 
secretario  e  seu  favorito.  Margarida  enamorou- ;e  (relle  d'uma  maneira  insen- 
sata, e  houve  quem  attribuis.se  a  algum  encant  magico  uma  paixão  tão  vio- 
lenta, que  tomava  ás  vezes  o  caracter  de  uma  inicura  furiosa. 

Henrique  iv  dizia  que  ás  vezes  não  podia  deixar  de  rir  dos  estravagan- 
ganles  zelos  e  vehementes  paixões  que  se  conta\ain  d'aquelles  amores  «o  que 
a  leva  com  frequência  a  desprezar  o  que  vê,  e  a  crer  o  que  não  existe ;  umas 
vezes  procurando  ardente  e  furiosamente  os  seus  amantes  por  todos  os  cantos 
da  casa,  apesar  de  saber  muito  bem  que  estão  'foutra  parte,  outras,  vendo-os 
e  ouvindo-os,  e  não  obstante  persuadindo-se  q  c  sob  aquelle  seu  aspecto  estão 
outros  que  procuram  enganal-a.» 

Tudo  isto  fazia  crer  que  a  rainha  nos  sell^  arrebatamentos  amorosos  era 
victima  de  um  sortilégio  que  lhe  suíTocava  o  sentimento  do  pudor,  crença  esta 
muito  mais  justificável  pelos  extravagantes  amuletos  que  usava,  do  que  pelos 
excessos  e  loucuras  que  fazia. 

Dizia-se  que  guardava  em  caixinhas  de  ouro  os  corações  dos  seus  aman- 
tes mortos,  como  relíquias  dos  seus  amores,  e  este  boato  é  até  certo  ponto  con- 
firmado pelo  grande  numero  de  caixas  e  bocetas  em  forma  de  coração,  que 
trazia  nos  bolsos  dos  vestidos,  ou  presos  á  cintura.  Sabe-se,  porém,  que  n'es- 
sas  caixas  não  havia  senão  perfumes. 

Não  obstante,  quando  estava  em  Usson  trazia  de  ordinário  ao  pescoço  e 
mettida  entre  a  camisa  e  a  peile  uma  bolsa  de  seda  azul,  «de  ilro  da  qual  os 
seus  Íntimos  haviam  descoberto  uma  caixa  de  prata,  cuja  superfície  cinzelada 
representava,  entre  outros  difterentes  e  desconhecidos  caracteres,  de  um  lado  um 
retrato  e  do  outro  o  seu  brazão.» 

Deve  acreditar-se  que  esta  caixa  de  prata  não  era  um  talisman  de  feiti- 
ceria,  mas  sim  um  amuleto  de  amor.  Podemos  até  comparal-o  com  aquelle 
que  Brantòme  nomeia,  faltando  de  uma  dama  da  corte,  cujo  nome  deixa  no 
mysterio: 

«Tendo-lhe  morrido  o  marido,  diz  elle,  cortou-lhe  as  partes  genitaes,  tão 
amadas  n'outro  tempo,  embalsamou-as,  aromatisou  as,  e  encerrou-as  n'uma 
caixa  de  prata  dourada,  que  guardou  e  conservou  como  cousa  preciosíssima.» 


484  H.STORIA 

A  tradicção  diz-nos  com  eíTeito  que  Margarida  de  Valois  não  só  foi  ella 
própria  roubar  a  cabeça  do  seu  querida  La  Mole,  a  quem  não  poude  livrar  do 
supplicio,  mas  mutilara  também  o  cadáver,  que  eslava  feito  cm  quartos  pre- 
gados nos  quatro  ângulos  da  praça  da  Greve.  A  cabeça  foi  enterrada  de  noite 
por  ordem  e  sob  a  vigilância  da  desolada  amante,  na  capeila  de  Sainl-Martin  ; 
o  coração  e  os  outros  despojos,  roubados  ao  corpo  do  justiçado,  foram  embalsa- 
mados e  mettidos  em  caixas  de  ouro  c  prata,  que  a  rainha  usava  como  joyas 
e  relicários,  muito  embora  acceitasse  novos  amores,  que  apenas  serviam,  se- 
gundo ella  dizia,  para  relembrar  o  antigo. 

«A  rainha  usava,  refere  Tallemant  des  Reaux,  que  o  sabia  de  boa  fonte, 
um  amplo  verlufjalle,  que  tinha  muitos  bolsos,  em  cada  um  dos  quaes  guar- 
dava uma  caixa  com  o  coração  de  um  dos  seus  amantes  mortos,  tendo  sem- 
pre um  grande  cuidado,  quando  elles  morriam,  de  lhes  mandar  embalsamar 
os  corações.  O  i;?rt.n'jalk  pendurava-so  todas  as  noites  n'ura  guarda-roupa  que 
se  fechava  com  um  cadeiado,  pjr  dctraz  do  doeel  do  seu  leito.» 

O  historiador  Dupleix,  a  quem  Margarida  havia  aggregado  ao  seu  serviço 
na  qualidade  de  advogado,  como  elle  diz,  não  esteve  para  encobrir  a  desorde- 
nada vida  da  princeza,  quando  teve  que  faltar  d'clla  na  historia  de  Henrique  iv. 
No  emtanto,  lançou  alguns  véus  sobre  o  quadro  de  prostituição  que  tivera  á  vista 
por  espaço  de  vinte  annos. 

«Proc.lamando-a  todos  como  deusa,  diz  elle  na  Historia  de  Luiz  xiii  (p. 
53)  chegou  a  imaginar  que  o  era,  e  d'aqui  a  sua  complacência  em  que  a  cha- 
massem Vénus  Urania,  quer  dizer  celeste,  tanto  para  mostrar  que  participava 
da  divindade,  como  para  fazer  distinguir  o  seu  amor  do  amor  do  vulgo,  pois 
tinha  uma  maneira  de  amar  diíTcrente  da  de  todas  as  outras  mulheres,  afFe- 
ctando  sobre  tudo  que  amava  mais  com  o  espirUo  do  que  com  o  corpo,  e  cos- 
tumava dizer  a  miúdo  : 

—  Quereis  deixar  de  amarí'  Possui  a  cousa  amada. 

«Se  eu  quizesse,  poderia  fazer  uma  novella  mais  cxcellente  e  admirável 
do  que  Iodas  as  que  se  tem  cscripto  nos  séculos  precedentes,  mas  tenho  occu- 
pações  mais  serias»,  accrescenta  o  historiador. 

Dupleix  juslificou-se  de  haver  revelado,  ou  antes  de  ter  deixado  adivi- 
nhar a  incontinência  da  rainha,  declarando  «que  não  fazia  panegyricos  de  prín- 
cipes, mas  sim  uma  verdadeira  historia  que  deve  expressar  as  suas  virtudes  e 
não  occullar  os  seus  vicios,  a  fim  de  que  os  seus  successores,  receiando  os 
baldões  da  posteridade,  imilem  as  suas  boas  acções  e  evitem  as  más.»  Mas  foi 
l)or  isso  geralniente  vituperado,  e  Bassompierre  tornou-se  o  eccho  d'estas  cen- 
suras nas  suas  Notas  á  obra  de  Dupleix,  a  ([uem  chama  : 

«Vibora  vil,  que  rasgas  com  as  tuas  calumnias  as  entranhas  de  quem  te 
deu  a  vida,  gusano  que  devoras  a  própria  carne  que  te  creou,  (|ue  envergonhas 
a  França,  publicando  e  legando  á  posteridade  cousas  tão  infames  de  uma  das 
mais  notáveis  princezas  de  sangue  real,  que  talvez  sejam  falsas,  ou  pelo  menos 
apenas  conhecidas  de  um  pe(|ueno  numero  de  pessoas.» 

Ainda  assim,  o  próprio  Bassompierre,  loíoando  tão  vivamente  a  defcza  de 
Margarida,  confessa  que  as  calumnias  por  elle  censuradas  a  Dupleix  podiam 


DA     PROSTITUIÇÃO  485 

ser  somente  indiscrições.  Dupleix,  no  emlanto,  nãu  tizera  mais  do  que  renetir 
com  extrema  reserva  o  que  se  dizia  por  toda  a  parte,  (anto  na  corte  como  por 
entre  o  povo,  desde  que  a  rainlia  de  Navarra  deixou  o  seu  casteilo  encantado 
de  Ussnn  para  voltar  a  Paris,  ahi  pelos  fins  do  anno  de  KiOo.  O  estado  li^-ste- 
rico  ou  hypocondriaco  da  rainlui  era  tão  grave  por  essa  époclia,  que  os  seus 
continuados  escândalos  davam  assumpto  ás  conversações  de  toda  a  França. 

«Este  estado,  diz  Dupleix,  manifestava-se  apenas  a  principio  em  ""rtos 
factos  conhecidos  dos  seus  familiares,  mas  desde  a  sua  ultima  viagem  á  corte, 
ella  própria  se  encarregou  de  o  tornar  conhecido  de  todo  o  mundo.» 

Qualquer  que  fosse  a  notoriedade  dos  excessos  e  loucuras  da  rainha 
Margarida,  Hrantòme,  que  havia  sido  tamhem  um  dos  seus  familiares,  e  que 
conservava  ainda  por  ella  tanto  respeito  como  admiraçtão,  não  se  lemhrou,  a 
exemplo  de  Uupleix,  de  descobrir  os  segredos  da  vida  privada  de  sua  ama  e 
senhora. 

Se  nas  suas  Dame-s  ijalanles  referiu  muitos  factos,  que  lhe  diziam  res- 
peito, e  que  talvez  a  própria  Vénus  Urania  lhe  houvesse  contado  nas  suas  in- 
timas confidencias,  nunca  a  nomeou  n'essas  alegres  narrativas,  chegando  até 
a  desnortear  o  leitor,  modificando  adrede  diversas  particularidades. 

A  noticia  por  elle  consagrada  a  Margarida,  nas  Vidas  das  Mulheres  11- 
iustres,  é  ura  panegyrico  brilhante,  em  que  o  auctor  não  admitie  nem  uma 
sombra  de  galanteria,  como  se  tivesse  em  vista  oppòr  este  elogio  de  sua  ama 
ao  Divorcio  Salyrico,  ao  tempo  em  grande  circulação  na  corte.  Assim,  evita 
refutar  uma  por  uma  as  accusações  que  o  auctor  do  Divorcio  Satyrico  havia 
accumulado  n'esse  libello  contra  os  costumes  de  Margarida.  Longe  de  entrar 
n'essa  Ihcse  difficil  e  delicada,  passa  a  generalidades  iaudalorias,  e  dedica-se 
quasi  exclusivamente  a  pòr  em  relevo  os  encantos  de  seducção  que  haviam 
sido  sempre  os  característicos  da  rainha. 

«Eis  aqui  uma  dama,  que  em  tudo  e  por  Indo  está  a  cima  do  commum 
das  damas  de  todo  o  mundo.» 

O  alegre  cirronista  d'aquella  corte  dissoluta  compraz-sc  em  descrever  a 
maraviliiusa  belleza  da  rainha,  a  sua  graça  incomparável,  o  seu  gosto  delicado 
para  as  cousas  do  toucador,  a  riqueza  do  seu  corpo,  as  suas  admiráveis  perfei- 
ções physicas,  esse  complexo  de  encantos,  que  faziam  dizer  a  um  joven  fidalgo, 
recem-chegado  á  corte : 

—  Não  admiro,  senhores,  vér-vos  tão  unidos  e  satisfeitos  na  còrle.  Quando 
mesmo  não  tivésseis  outro  prazer  senão  ver  todos  os  dias  esta  formosíssima 
princeza,  tinhcis  já  o  bastante  para  vos  julgardes  n'um  paraizo  terreal  I.  . .» 

O  auctor  do  Divorcio  Satyrico,  entre  todos  os  crucis  epigrammas  que 
dirige  á  esposa  repudiada  de  Henrique  iv,  não  escreveu  talvez  injurias  mais 
sensíveis  ao  amor  próprio  de  uma  mulher  do  que  as  que  se  lêem  em  duas  ou 
três  passagens,  em  que  ousa  atacar  uma  belleza  que  o  próprio  tempo  havia 
respeitado.  Estas  injuriosas  passagens  são  aquellas  que  Brantôme  se  esforça 
por  combater  e  apagar  principalmente,  como  se  ellas  apenas  interessassem  á 
iionra  da  rainha  Margarida. 

O  pamphletario  censurava  a  esta  princeza  o  abuso  que  fazia  dos  arrebi- 


486  HISTORIA 

ques  e  cosméticos  para  oci_  iltar  as  rugas  da  velhice.  Branfòme  lembra  iiabil- 
menle  a  csle  respeito  uma  'omparaçào  que  havia  feito  d'esta  rainha  com  a  bella 
Aurora,  «quando  acaba  de  nascer  com  a  sua  branca  face  rodeada  da  mais  linda 
e  viva  côr  vermelha.» 

O  oamphlelario  zomh.va  em  termos  demasiado  grosseiros  da  impudica 
exhibiçtão  que  a  raiiilia  fazia  do  seio.  Brantôme,  sem  fazer  allusão  a  uma  cen- 
sura, que  menos  recahia  na  rainha  que  nas  modas  da  sua  épocha,  approva  e 
glorifica  'sta  nudez,  que  elle  não  via  do  mesmo  modo  que  Htnrique  iv : 

«Os  seus  bellos  trajos  e  riquíssimos  adornos,  diz  elle,  não  ousarão  nunca 
cobrir-lbe  o  esplendido  seio,  receiando  causar  damno  aos  olhares  que  tão  agra- 
davelmente vão  pousar  sobre  tão  bellas  cousas.  Nunca  se  viu  seio  tão  formoso, 
tão  cheio  de  encantos,  tão  abundante  e  opulento  como  ella  nos  mostrava,  de 
tal  modo  que  a  maior  parte  dos  cortezãos  morriam  por  elle,  e  até  as  próprias 
damas  o  admiravam,  pois  vi  algumas  das  mais  intimas  beijal-a  n'elle,  com  pre- 
via licença,  mostrando  n'isso  a  maior  paixão.» 

Brantôme,  velho  e  enfermo  a  esse  tempo,  permanecera  sempre  fiel  ao 
serviço  de  sua  antiga  ama,  a  qual  n'uma  carta  escripta  de  Usson  lhe  manifes- 
tava nos  seguintes  termos  a  expressão  do  seu  affecto  inalterável  : 

«Soube  que  como  cu,  meu  amigo,  resolveu  abraçar  uma  vida  tranquilla, 
na  qual  lhe  desejo  que  permaneça,  como  Deus  me  fez  a  mim  a  graça  de  m'o 
conceder  vae  em  cinco  annos,  tendo-me  deparado  uma  arca  de  salvação,  onde 
as  tempestades  das  antigas  perturbações  não  podem  altingir-me,  graças  á  di- 
vina bondade.  iN'este  retiro,  se  me  restar  algum  meio  de  poder  servir  aos  meus 
amigos  e  particularmente  a  si,  cncontrar-me-ha  sempre  disposta  e  animada 
da  melhor  vontade.» 

A  rainha  Margarida,  satisfeita  da  vida  tranquilla  que  passava  na  sua  arca 
de  salvação,  nem  se(|uer  teria  protestado  contra  a  ruptura  do  seu  matrimonio 
com  el-rei,  se  não  receiasse  vèr  passar  a  coroa  de  França  para  a  cabeça  de  Ga- 
briella  d'ÉstréLS,  a  quem  detestava,  não  como  uma  rival  indigna  d'ella,  mas 
sim  como  uma  inimiga  fatal  á  coroa.  Por  isso  recusou  associar-se  ás  inten- 
ções e  diligencias  de  Henrique  iv,  que  havia  apresentado  uma  informação  de 
divorcio  ante  a  corte  de  Roma.  Logo,  porém,  que  a  sua  rival  morreu  subita- 
mente, envenenada  sem  duvida,  a  10  de  abril  de  l.'J99,  Margarida  consentiu 
immediatamente  no  divorcio. 

«Desisti  da  minha  opposição,  escrevia  ella  em  29  de  julho,  e  sabeis  o  mo- 
tivo melhor  que  ninguém.  Não  queria  vèr  em  meu  logar  uma  infame  rameira, 
indigna  d'elle.» 

Em  consequência  d"isto,  ella  própria  apre.sentou  ao  papa  Clemente  viii 
uma  informação  idêntica  á  d'el-rei,  a  quem  não  guardou  rancor  pelos  meios 
bem  pouco  delicados  e  corlezes  que  havia  empregado  para  realisar  o  divorcio, 
apesar  d'ella.  Perdoou-lbe  igualmente  os  ultrajes  do  Divorcio  Satyrico  e  os  do 
interrogatório  que  os  commissarios  do  papa  fizeram  sofTror  a  ambos  os  esposos. 
Margarida  riu-se  de  boa  vontade  ao  saber  que  seu  marido  havia  respondido  ao 
cardeal  .loveuse,  qui  lhe  perguntara  se  no  matrimonio  haviam  tido  communi- 
cação  carnal : 


DA    PROSTITUIÇÃO  487 

—  Ambos  cramos  jovens  na  noite  nupcial,  e  Lão  libertinos,  que  não  po- 
diamos  conter-nos. 

Margarida  nunca  pudera  amar  Henrique  iv,  a  quem  censurava  o  mau 
cheiro  dos  sobacos  e  dos  pés.  Henrique,  pelo  contrario,  estava  ainda  tão  pene- 
trado das  suaves  recordações  d'ella,  que  ao  saber  do  seu  consentimento  para  a 
sentença  do  divorcio,  exclamou  : 

—  Ah!  desgraçada!  Ella  sabe  quanto  eu  a  amei,  e  como  a  respeitei  sem- 
pre! Não  procedeu  assim  para  commigo,  e  as  suas  loucuras  fizeram  com  que 
nos  separássemos  ha  tanto  tempo!...  (liem.  et  anecd.  des  reines  et  reij.  de 
France,  por  Dreux  de  Radier,  t.  v.) 

IMargarida  dizia  que  o  bem  da  França  a  havia  determinado  a  romper  uma 
união,  que  não  podia  assegurar  um  herdeiro  á  coroa,  e  por  isso  foi  a  primeira 
a  applaudir  o  casamento  d'el-rei  com  Maria  de  Medicis. 

Estava  ainda  n'aquella  épocha  sob  o  encanto  de  um  novo  amor,  ao  qual 
a  ausência  de  Pominy  havia  cedido  o  logar.  E'  provável  (]ue  olla  própria  hou- 
vesse aíTastado  esse  Pominy,  de  quem  não  se  importava  já,  e  que  mais  tarde 
voltou  a  reclamar  os  seus  direitos  com  tal  brutalidade,  que  se  viu  obrigada  a 
expulsal-o,  dizendo  «que  aquelle  mau  homem  deitava  a  perder  os  seus  criados». 

O  successor  de  Pominy  foi  a  principio  um  criado  da  Prjvença,  chamado 
Julião  Date,  a  quem  a  rainha  nobilitara  com  o  titulo  de  Saint-Julian,  deixan- 
do-o  em  Usson,  quando  teve  a  idéa  de  voltar  á  corte,  depois  de  vinte  e  quatro 
annos  de  desterro  voluntário. 

.No  mez  de  agosto  de  160o,  chegou  repentinamente  a  Paris  c  foi  hospe- 
dar-se  no  palácio  de  Sens,  junto  do  Arsenal. 

No  dia  seguinte  ao  da  sua  chegada,  appareceram  estes  quatro  versos  es- 
criptos  na  porta  do  referido  palácio,  que  pertencia  ao  arcebispo  de  Sens: 

Coiiime  reine,  lu  devrais  exlre 
En  ton  rnyrtle  maison; 
Comine  putain,  cest  bien  raison 
Que  tu  sois  au  loyis  d'un  prestre. 

Margarida  demorou-se  apenas  alli  alguns  dius,  e  para  fazer  caiar  os  ru- 
mores que  a  sua  repentina  apparição  havia  moti  ado,  despertando,  como  diz 
Estoile,  os  espíritos  curiosos,  foi  passar  seis  semanas  no  palácio  de  Madrid,  no 
bosque  de  Bolonha.  Henrique  tornou  a  vcl-a  com  :  itisfação,  e  reconciliaram-se 
de  tal  modo,  que  el-rei  lhe  pediu  dois  favores :  o  primeiro  que  por  causa  da 
sua  saúde  não  fizesse  do  dia  noite  e  da  noite  dia;  o  segundo  que  restringisse 
as  suas  liberalidades  e  fosse  mais  económica.  Dava-lhe  repetidas  provas  de  ca- 
rinho e  interesse,  visitava-a  de  vez  em  quando  e  passava  alli  muito  tempo  a 
conversar  alegremente  com  ella,  mas  quando  vob  iva  ao  Louvre,  costumava 
dizer  por  graça  «que  vinha  do  bordel.»  (Méin.  et  )  >urnau.r  de  Pierre  Estoile, 
no  reinado  de  Henrique  iv,  cdic.  de  M.  M.  t^hampoUion,  p.  425.) 

Ao  estabelecer  a  sua  residência  em  Paris,  a  rainha  Margarida  tivera  pro- 
vavelmente idéa  de  mudar  de  vida  e  de  renuncÍE,r  á  galanteria,  «mas,  diz  o 
implacável  auctor  do  Divorcio  Satijrico,  não  podendo  passar  sem  homem  e  não 


488 


HISTORIA 


(jUcTendo  esiai  ociosa,  mantlou  chamar  Date,  ou  Saint-Julien,  lanias  vezes  re- 
clamado duranle  as  suas  sensualidailes.» 

Saint-Julicn  pôz-se  immediatamenle  a  caminho  e  vciu  reclamar  de  novo 
o  seu  jogar  de  favorito.  A  rainha,  cuja  paixão  pelo  criado  se  havia  exacerbado 
até  ao  delírio,  despediu  Pominy  e  conservou  a  <!istancia  respeitosa  todos  os  ou- 
tros do  seu  serviço  interno.  Vm  d'elles,  por  nome  Vermond,  que  tinha  apenas 
dezoito  annos,  faes  ciúmes  concebeu,  que  matou  o  feliz  favorito  com  um  tiro 
de  pistola,  mesmo  junto  do  estribo  da  carruagem  da  rainha. 

O  as.sassino  foi  preso  immcdiatamente,  e  «revistando-o  encontrarain-lhe, 
diz  o  Diário  d'Estoile,  três  talismans  —  um  para  a  vida,  outro  para  o  amor  e 
outro  para  o  dinheiro.»  O  processo  foi  quasi  summario,  por  isso  que  a  rainha 
havia  jurado  não  comer  nem  beber  cmquanto  justiça  não  fosse  feita, 

Ouando  o  reu  foi  acariado  com  o  corpo  ensanguentado  da  sua  victima,  a 
rainha  innundada  de  lagrimas  quiz  assistir  a  este  acto. 

—  Oh!  como  eu  estou  satisfeito!  exclamou  o  reu  olhando  para  o  cadá- 
ver do  .seu  rival.  Está  morto  e  bem  morto,  mas  se  o  não  estivesse,  eu  o  aca- 
baria aqui  mesmo. 

—  Matem-no!  grifou  a  rainha.  Matem  esse  malvado!  Esperem!  .\qui  es- 
tão as  minhas  ligas,  estrangulem-no  com  cilas! 

.No  dia  seguinte,  Vermond,  condcmnado  á  decapitação,  marchou  serena- 
mente para  o  supplicio,  ([ue  se  realisou  em  frente  do  palácio  de  Sens.  Wzia 
eom  satisfação  que  morria  contente,  visto  que  já  não  existia  o  seu  rival. 

Immediatanieiitc  depois  dVsta  execução,  a  rainha  abandonou  o  palácio 
de  Sens,  que  lhe  recordava  a  cada  passo  a  perda  do  seu  favorito,  e  comprou 
ouiro  no  arrabalde  !c  Saint-dcrfnain,  á  beira  do  rio,  perto  da  Torre  de  Nesle, 
e  á  entrada  do  Pré-mir-Clercs.  Mandou  reconstruir  sumptuosamente  o  edifício, 
pintar  e  decorar  os  aposentos,  plantar  e  aformosear  os  jardins,  tudo  isto  com 
o  fim  de  arranjar  alli  uma  espécie  de  ilha  de  Cythera,  onde  Vénus  Urania  que- 
ria estabelecer  o  seu  templo  e  o  seu  culto. 

Não  se  viam  alli  elfectivamcnte  senão  emblemas  e  divisas  de  amor,  ei-- 
fras,  armas  e  retratos  dos  seus  amantes  antigos  e  modernos.  A  rainha,  por  uma 
singular  faculdade  da  sua  imaginação  licenciosa,  misturava  tão  bem  o  facto 
material  com  a  recordação,  que  chamava  sem  cessar  cm  auxilio  dos  seus  pra- 
zeres as  emoções  e  os  gosos  d'oulros  tempos,  como  se  todos  os  amantes  que 
tivera  no  decurso  da  vida  estivessem  sempre  alli  como  desejo  de  a  satisfazerem, 
sem  a  saciarem  jamais.  Era  assim,  por  exemplo,  que  Julião  Date  conservava 
sempre  os  seus  direitos  e  privilégios,  ainda  que  por  sua  morte  viesse  a  occu- 
par  o  logar  d'elle  o  joven  Hajaumont.  Eis  como  o  Dirorcio  Satyrico  pinta  o 
successor  de  Date  : 

«Este  liajaumonl,  ou  melhor  í'ajamot,  da  casa  de  Duras,  novo  manjar 
'''íiqiiclla  eterna  íaminla,  idolo  do  seu  tm;""'".  bezerro  de  ouro  dos  seus  sacri- 
''^•i"s  f  (•  mais  compiel(.  idiota  que  havia  cíieV"  '^  ^^ '"'*''  introduzido  pela  mão 
')'  Madame  Anglure,  instruído  p„r  Madame  "Rolan,.',  ^''vilisado  por  Leraayne, 
'•uradn  .1-.  c.  .  i.:i:,       .  .      «^  .  ,     .,,(io  por  Delin,  actual- 

,„„  „.,„  medico  Pcnna,  e  depms  c»b»t.*.       I 


DA    PROSTITUIÇÃO  489 

Margarida  amou  Bajaumonl,  como  tinha  amado  Date,  Pominy,  Aubiao  c 
La  Mole.  Esteve  em  gravo  risco  de  o  perder  lambem,  apesar  de  facilmente  se 
poder  consolar  dessa  perda  como  das  outras.  O  senhor  do  Lone  lançou  mão 
da  espada  contra  o  favorito  com  intenção  de  o  matar  mesmo  na  egreja.  Houve, 
porém,  quem  detivesse  o  furioso,  que  foi  mandado  preso  para  o  Forl-1'Évcque, 
e  teve  que  solFer  um  processo  em  que  a  rainha  foi  parte. 

Bajaumont  ficou  tão  mal  d'aquelle  susto,  que  teve  uma  icterícia  de  que 
nunca  se  limpou  completamente.  Margarida,  ainda  assim,  não  se  tirava  da  ca- 
beceira do  seu  amarello  amante.  El-rei  n'estc  entretanto  foi  visital-a  e  encon- 
trou-a  tão  triste  por  causa  da  doença  do  seu  favorito,  que  ao  sahir  disse  ás 
damas  de  honor : 

—  Rogae  a  Deus  pelo  restabelecimento  de  Bajaumont,  porque  se  elle 
morre,  Ventre-sainl-gris !  que  grande  despeza!  Preciso  de  arranjar  outro  pa- 
lácio, novo  como  este!  (Journal  d'llenri  iv  por  Estoile.) 

Bajaumont  não  morreu,  e  o  amor  de  Margarida  augmentou  de  vehemencia 
e  excentricidade.  Como,  por  esse  tempo  a  rainha  tivesse  nas  pernas  duas  ul- 
ceras malignas,  exigiu  do  seu  amante  que  puzesse  nos  braços  dois  cáusticos, 
para  que  em  questões  de  chagas  nada  tivessem  que  lançar  em  rosto  um  ao 
outro!.  .  . 

«Ao  ler  estes  actos  heróicos,  a  que  nunca  faltarão  historiadores,  quem 
haverá  que  não  admire  a  sua  propensão  para  a  vida  dissoluta,  e  que  não  os 
julgue  dignos  de  terem  cabimento  nos  fastos  dos  bordeis?»  pergunta  o  auctor 
do  Divorcio  Satijrico. 

Apesar  d'isso,  o  género  de  vida  que  se  fazia  no  palácio  da  rainha  Mar- 
garida não  foi  descripto  nas  memorias  contemporâneas,  a  não  ser  que  se  pro- 
cure uma  pintura  allcgorica  n'algum  romance  do  género  da  Áslrèa.  Sabe-se 
apenas  que  a  rainha  não  sabia  quasi  nunca  da  sua  clausura  amorosa  e  que  se 
occupava  n'ella  tanto  de  devoção  como  de  galanteria.  Edificou  o  convento  dos 
Agostinhos  mesmo  ao  pé  do  palácio,  para  ter  frades  á  mão,  como  se  dizia.  Ti- 
nha ao  seu  serviço  quarenta  presbyteros  inglezes,  escocezes  ou  hollandezes, 
pagando-lhes  quarenta  escudos  por  anno.  Fazia  todos  os  annos  consideráveis 
donativos  a  differentes  communidades  religiosas,  dava  esmollas  com  uma  prodi- 
galidade dez  vezes  maior  que  os  seus  rendimentos. 

O  fim  manifesto  de  todas  estas  piedosas  liberalidades  era  a  remissão  de 
tantos  peccados  comraettidos  com  os  seus  amantes,  especialmente  com  o  ul- 
timo, que  foi  um  musico  chamado  Villars,  a  quem  se  deu  o  titulo  de  Rei  Mar- 
got.  (Hist.  de  Tallemant  des  Reaux.) 

Não  obstante,  alfirma  Dupleix  «que  nos  amores  de  Margarida  havia  mais 
arte  e  apparencias  do  que  realidades.  Comprazia-se  singularmente  em  promet- 
ter  amor,  em  alimental-o  com  esperanças  e  discrição,  em  ver  e  ouvir  os  ho- 
mens apaixonados  por  ella,  o  que  era  uma  diversão  habitual  da  corte,  onde 
dilficilmente  um  homem  é  tido  por  hábil  se  não  sabe  namorar  as  mulheres, 
nem  uma  mulher  por  fina  e  intelligente  se  ignora  a  arte  de  fazer  esperar  os  ho- 
mens.» 

Pôde  atíirmar-se  que  a  rainha,  apesar  das  suas  obras  pias  e  de  empre- 

HlSTOBIA  DA  PrOSTITOIÇIO.  TOMO  U— FOLBA  62. 


490  HISTORIA 

gar  frequentemente  grandes  sommas  para  casar  donzellas  pobres,  tinha  unia 
cschola  de  refinada  prostituição  no  seu  palácio  do  arrabalde  Saint-Germain, 
onde  a  sua  pequena  corte,  composta  de  poetas,  philosophos,  músicos,  nobres, 
libertinos  e  damas,  vivia  nos  mais  lúbricos  excessos,  vangloriando-sc  de  lhe  imi- 
tar os  exemplos  e  de  lhe  seguir  as  licções. 

Henrique  iv,  no  final  do  Divorcio  Satyrico,.  desejava  cá  rainiia  alguma 
emenda,  e  podia  a  Deus  que  lhe  concedesse  uma  scentelha  de  arrependimento, 
«pois  que  sem  elle,  diz,  os  líquidos  brancos  e  vermelhos  que  lhe  escorrem  pelo 
rosto,  não  podem  occultar  as  suas  imperfeições  nem  o  óleo  de  jasmin  com  que 
todas  as  noites  unta  o  corpo,  poderá  impedir  o  mau  cheiro  da  sua  reputação, 
nem  a  erysipela  que  lhe  cobre  os  membros  poderá  mudar-lhe  a  velha  e  encar- 
quilhada pelle.» 

Henrique  iv,  devemos  confessal-o,  não  era  inferior  em  libertinagem  á 
sua  primeira  mulher  nem  a  nenhum  dos  maiores  dissolutos  do  seu  tempo.  Se- 
jam quaes  forem  as  grandes  qualidades  d'este  principe,  um  dos  melhores  reis 
que  tem  governado  a  França,  é  preciso  confessarmos  que  a  historia  dos  seus 
amores  faz  parte  integrante  da  historia  da  prostituição  do  século  xvi. 

«Pôde  dÍ7,er-se,  observa  Bayle,  no  seu  Diccionario  histórico  e  ciitico,  que 
se  o  amor  das  mulheres  lhe  tivesse  permiltido  applicar  todas  as  suas  cxcellentes 
qualidades,  teria  excedido  ou  igualado  os  heroes  mais  admirados.  Se  da  primei- 
ra vez  que  prostituiu  a  filha  ou  a  mulher  do  seu  próximo,  tivesse  sido  por  isso 
castigado  do  mesmo  modo  que  Pedro  Abeillard,  seria  capaz  de  conquistar  a  Eu- 
ropa inteira.» 

Sem  admittirmos  como  Bayle  que  a  paixão  desenfreada  de  Henrique  iv 
pelas  mulheres  o  prejudicasse  a  esse  ponto,  reconhecemos  que  este  grande  rei 
excedeu  todos  os  seus  predecessores  em  sensualidade  e  incontinência.  Somos 
de  opinião  que  este  fogoso  libertino  não  teria  sido  um  guerreiro  mais  intrépido 
nem  um  politico  mais  babil,  se  lhe  tivessem  applicado  o  supplicio  de  Abeillard. 

Os  seus  vicios  e  as  suas  virtudes  eram  inherentes  ao  seu  temperamento, 
e  os  seus  próprios  costumes  dissolutos,  que  não  difleriam  dos  dos  seus  contem- 
porâneos senão  n'um  excesso  de  impetuosidade  e  de  ardor,  não  tiveram  in- 
fluencia funesta  nos  excellentes  impulsos  do  seu  coração  nem  nas  bellas  mani- 
festações do  seu  caracter. 

N'uma  admirável  caria  a.  SuUij  (Oecovomies  ro\jales,  ediç.  in-folio,  t.iii, 
p.  138),  el-rei  defende-se  de  amar  demasiado  as  mulheres,  as  delicias  e  o  amor. 

«A  Escriptura  não  ordena  absolutamente  que  não  se  tenham  peccados  nem 
defeitos,  porque  taes  debilidades  são  filhas  da  impetuosidade  da  natureza  hu- 
mana, mas  sim  que  não  nos  deixemos  dominar  por  ellas  nem  as  deixemos 
reinar  sobre  as  nossas  vontades,  que  é  o  (|ue  eu  faço,  não  podendo  fazer  cousa 
melhor.  Já  sabeis  por  muitas  cousas  que  se  teém  dado  relativamente,  ás  minhas 
amantes  (que  são  as  paixões  que  todos  tèem  julgado  mais  poderosas  em  mim) 
se  eu  não  lenho  seguido  com  fre(|uencia  as  vossas  opiniões  contra  os  seus  ca- 
prichos c  phantazias,  ate  ao  ponto  de  lhes  ter  dito  que  antes  queria  ter  per- 
dido dez  amantes  como  ellas,  do  (pie  um  só  servidor  como  vós,  que  tão  neces- 
sário me  sois  para  as  coisas  honestas  e  úteis.» 


UA    HHOSTITUIÇÃO  491 

Os  liistoriadores  e  os  panegyristas  il'ei-i'ei  não  podiam  satisfazcr-se  com 
eslas  desculpas,  e  lodos  estão  de  accordo,  quando  Irautam  de  viluperar  a  pro- 
digiosa licença  da  sua  conducla. 

«Menos  ainda  poderá  perdoar  llie  a  liisloria,  diz  Mezeray,  a  sua  paixão 
pelas  niullieres,  que  Ião  publica  e  constante  foi  desde  a  sua  juventude  até  ao 
seu  ultimo  dia,  paixão  a  iiue  nem  sequer  se  poderia  dar  o  nome  de  amor  ou 
galanteria.  {Abrtijc  cliron.  de  1'hisloire  de  Franct,  t.  iv,  p.  392). 

O  douto  e  venerável  bispo  de  Kodez,  Hardouin  de  Perelixe,  que  escrevia 
a  liistoria  de  Henrique,  o  Grande,  para  educação  do  rei  I.uiz  xiv,  não  poude 
deixar  de  censurar  lambem  ao  seu  beroe  a  fragilidade  continua  que  tinha  pelas 
mulheres : 

«.\s  vezes,  diz  eile  com  uma  ingenuidade,  que  chega  a  ser  indecente,  ti- 
nha desejos  passageiros,  ([ue  não  lhe  duravam  mais  do  que  uma  noite,  mas 
quando  encontrava  beldades  que  lhe  impressionavam  o  coração,  amava  até  á 
loucura,  e  n'estes  transportes  tudo  parecia,  menos  Henri(|ue,  o  (Irande.» 

Agrippa  dAubignc,  que  na  sua  Historia  Lniversal  desde  looO  até  ItíOI, 
não  hesitou  em  referir  minuciosamente  algumas  das  aventuras  amorosas  do 
rei  de  ?íavarra,  passa  na  Cunfissão  de  Sancij  uma  espécie  de  revista  ás  primei- 
ras amantes  d"este  príncipe,  mulheres  obscuras  ou  das  iiifimas  classes,  que  ape- 
nas tiveram  um  reinado  ephemero  e  pouco  lucrativo. 

Começa  por  lembrar  os  infames  amores  do  Bearnez  com  Catharina  de 
Luc  de  Agen,  «a  qual  morreu  de  fome  com  o  tilho  que  tivera  d"el-rei».  Falia 
em  seguida  de  mademoiselle  de.Moníaigu,  filha  de  João  Balzac,  superintendente 
da  casa  do  príncipe  de  Conde,  joven  que  o  cavalheiro  de  .Montiuc  poz  á  mercê  do 
príncipe  por  meio  de  um  nobre  gascão  chamado  Salbeuf,  o  que  lhe  foi  muito 
penoso,  porque  a  pobre  menina  estava  enamorada  do  cavalheiro  de  xMontluc, 
a  quem  havia  seguido  até  Roma,  e  sentia  uma  profunda  aversão  pelo  rei,  cheio 
a  esse  tempo  de  males,  que  lhe  iiavia  communicado  a  Armandine,  ribalda  do 
monteiro  Lebrone. 

Agrippa  dWubigné  falia  depois  d'esta  da  pequena  Tignonville,  que  foi  inex- 
pugnável antes  de  casar.  Era  filha  da  aia  da  rainha  de  Navarra,  irmã  do  joven 
Henrique.  O  príncipe  enamorou-se  loucamente  d'el!a,  augmentando  a  paixão 
com  a  resistência. 

Conta  Sully,  nas  suas  Uecuaoinien  roíjalex,  que  no  anno  de  Io70  o  prín- 
cipe foi  ao  ÍJéarn  sob  pretexto  de  vér  sua  irmã,  mas  ninguém  na  corte  igno- 
rava (]ue  esta  viagem  tinha  por  fim  visitar  a  joven  Tignonville,  de  quem  es- 
lava enamorado.  O  príncipe  quiz  encarregar  Aubigné  de  ser  medianeiro  para 
com  a  bella  esquiva.  Aubigné,  porém,  não  quiz  encarregar-se  de  similhante 
olTicio,  e  Henrique  leve  de  dirigir-se  a  outra  parle,  para  conseguir  o  seu  fim. 

Tignonville  obslinava-se  em  não  acceder  aos  desejos  do  príncipe  antes  de 
ter  um  marido  que  tomasse  a  seu  cargo  as  consequências  da  aventura.  O  prín- 
cipe casou-a  emfim,  e  obleve  o  direito  de  prioridade. 

Henrique  não  se  envergonhava  de  descer  até  ás  camareiras  e  criadas  mais 
Ínfimas  do  paço.  Contrahiu  uma  enfermidade  venérea  n'uma  cavallariça  de 
.\gen  com   a   concubina   de  um   palafreneiro,  e  logo  que  melhorou,  entrou  no 


492  HISTORIA 

leito  de  uma  criada,  cujos  favores  disputou  a  um  serviçal  por  nome  Goliat.  O 
criado  que  não  suspeitava  ter  uin  rival  tão  illustre,  esteve  a  ponto  de  o  matar 
com  um  estoque,  quando  o  viu  sahir  do  quarto  da  sua  i'ibalda. 

Foi  sob  os  auspícios  de  similhanfes  amores,  que  se  mallograram  as  tenta- 
tivas do  príncipe  contra  a  virtude  de  mademoiselle  de  Rebours,  que  lhe  prefe- 
riu o  almirante  Auville. 

Aublgné  cita  apenas  summarlamente  os  amores  das  Dayelle,  Fosseuse  e 
Fleurette,  filha  de  um  jardineiro  de  Nerac,  Martine,  mulher  de  um  medico  da 
princeza  de  Conde,  da  mullier  de  Sponde,  Esther  de  Imbert,  que  morreu  de  fome 
com  o  filho  que  tivera  do  rei,  assim  como  do  mesmo  modo  morreu  o  pae  de 
Esther,  sollicitando  inutilmente  a  pensão  de  sua  filha. 

Vêem  em  seguida  os  amores  da  Moraquin,  antiga  libertina  gascã,  a  quem 
deram  esta  alcunha  por  ter  a  pclle  granulosa.  A  estes  amores  succederam  os 
de  uma  padeira,  os  de  madame  Pelonvilie,  os  de  mademoiselle  Duras,  os  da 
filha  do  porteiro,  os  da  forncira  de  Pau,  os  da  condessa  de  Saint-Megrin,  os  da 
ama  de  leite  de  Castel-Jaloux,  e  emfim  das  duas  irmãs  de  TEspce. 

O  maligno  auctor  da  Confissão  de  Sancy  não  pretende  referir  todas  as 
aventuras  da  mocidade  do  rei  Henrique.  Por  isso  não  falia  da  dama  de  Nor- 
manticr,  que,  segundo  as  novas  memorias  de  Bassompierre,  não  era  a  ultima 
da  lista.  (]ita  apenas  alguns  nomes  e  factos,  indignando-se  de  haver  sido  tes- 
temunha ou  cúmplice  d'elles,  o  que  repugnava  grandemente  á  sua  austeridade 
de  huguenotle. 

A  rainha  Margarida  nas  suas  memorias  tivera  evidentemente  a  inten- 
ção de  justificar  a  sua  conducta  pessoal,  accusando  a  d'el-rei,  mas  não  se  sabe 
porque  motivo  se  deteve  em  meio  do  caminho  do  seu  propósito,  que  devia  de- 
fendel-a.  A  parte  que  se  publicou  apresenta  também  grandes  e  sensíveis  omis- 
sões, em  que  se  nota  o  desejo  manifoslo  de  desfazer  ou  pelo  menos  attenuar 
os  aggravos  da  esposa  para  com  o  esposo. 

Estas  omissões  dão-se  exactamente  nas  passagens  mais  interessantes  da 
historia  secreta  dos  amores  d'el-rei.  Vc-se  que  o  manuscripto  original  da  rainha 
soíTreu  grandes  cortes,  que  de  nenhum  modo  pôde  supprir  o  livro  dos  Amores 
do  Grande  Alcnndre,  que  começa  no  anno  de  1389. 

Em  todo  o  caso,  na  Confissão  de  Snncy  encontraremos  a  rectificação  de 
algumas  das  passagens  truncadas  e  alteradas  das  Memorias  da  rainha  ÍHargarida. 

Margot,  como  sabem  é  este  o  nome  familiar  da  rainha,  estava  casada, 
havia  apenas  dois  annos  com  o  Bearnez,  quando  seu  irmão  Henrique  iii  a  in- 
dispoz  com  seu  esposo. 

Pela  sua  parle,  o  rei  de  Navarra  indispuzera-se  também  com  seu  cunhado, 
o  duque  d'Alençon  por  questões  de  zelos  a  respeito  de  Madame  de  Lauvé,  Car- 
lota de  Beaune  de  Semblanclay. 

Henrique  de  Navarra  amava  apaixonadamente  esta  dama,  que  ao  tempo 
se  inspirava  nos  conselhos  de  Guast,  não  menos  perniciosos  que  as  instrucções 
da  Celestina.  Os  dois  príncipes  tão  intensos  zelos  vieram  a  ter  um  do  outro, 
que  apesar  da  referida  dama  ser  requestada  pelos  senhores  de  Guise,  Guast, 
SoHvray  e  vários  outros,  não  queriam  saber  d'isso. 


DA    PROSTITUIÇÃO  403 

A  rainha  não  linha  ciúmes  de  seu  esposo.  O  que  ella  apenas  desejava, 
é  «que  elic  estivesse  contente.»  Uma  noite  notou  que  perdia  os  sentidos,  e 
apressou-se  a  soceorrel-o  n'aquella  syncope,  «que  lhe  provinha  provavelmente, 
diz  cila,  de  excessos  com  as  mulheres.» 

iN'aqueIla  épocha  os  reaes  consortes  já  não  dormiam  juntos,  e  o  rei  que 
passava  todo  o  tempo  entregue  «ao  deleite  único  de  gosar  a  presença  da  sua 
concubina,  Madame  de  Lauvre,  não  entrava  na  alcova  conjugal  senão  ás  duas 
da  manhã,  levantando-se  logo  ao  romper  do  dia  para  voltar  para  junto  da  mu- 
lher amada». 

O  rei  de  Navarra  sui)mettia-se  a  seu  pesar  aos  deveres  da  politica,  au- 
zentando-se  da  corte  e  de  .Madame  de  Lauvre.  Bem  depressa,  porém,  esqueceu 
a  encantadora,  «pon|ue  as  seducções  d'esta  (lirce,  diz  Margarida,  haviam  per- 
dido uma  grande  parte  da  sua  força  com  o  alTastamento.» 

A  pequena  corte  de  Navarra  foi  por  esse  tempo  uma  fina  eschola  de  ga- 
lanteria e  prostituição.  A  rainha-mãe  tinha  ido  lá,  acompanhada  de  sua  filha 
Margarida,  alini  de  entabolar  negociações  com  os  protestantes,  e  demorou-se 
dezoito  mezes  em  (luvenoe  e  na  (rascunha,  fazendo  manohrar  n'aquellas  pro- 
víncias o  esquadrão  volante  das  suas  damas  de  honor.  N'uma  conferencia  rea- 
lisada  em  Nerac,  entre  os  deputados  huguenottes  e  (latharina  de  Medicis,  a 
rainlia  procurou  seduzil-os  com  os  encantos  das  suas  damas  e  com  a  eloquência 
de  Pibrac.  Margarida,  porém,  poz  em  pratica  o  mesmo  artificio,  conquistando 
os  nobres  que  rodeavam  a  rainha-mãe,  graças  ás  seducções  das  suas  damas,  e 
ella  própria,  tomando  á  sua  conta  Pibrac,  conseguiu  perturbar  completamente 
a  razão  e  a  vontade  do  pobre  homem.»  (flist.  iVHenri  le  Grami,  porHardouin 
de  Perefixe.) 

Woutra  conferencia  celebrada  no  castello  de  Saint-Brix,  perto  de  Cognac, 
o  rei  de  Navarra,  que  por  mais  de  uma  vez  linha  rendido  as  armas  ás  bellas 
damas  de  honor  do  esquadrão  volante,  sentiu-se  mais  aguerrido  contra  estes 
ardis  da  guerra  amorosa.  Achava-se  então  muito  incommodado  de  saúde,  em 
consequência  dos  excessos  praticados  com  a  Maroquin.  Catharina  de  Medicis, 
rodeada  do  gracioso  estado  maior  das  suas  bellas  e  seductoras  damas,  pergun- 
tou sorrindo  a  el-rei : 

—  Precisa  de  alguma  cousa,  meu  genro? 

—  Não,  minha  senhora,  não  preciso  de  nada,  respondera  o  Bearnez  com 
tristeza,  olhando  com  alguns  suspiros  de  magua  para  todas  aquellas  bellezas 
que  se  lhe  onereciam  e  a  que  se  via  obrigado  a  renunciar.  (Diccion.  hisioriq. 
et  critiq,  de  Baijle,  artic.  Henri  iv.l 

El-rei  já  em  tempo  estivera  seriamente  enamorado  de  uma  d'aquellas  da- 
mas tão  bem  ensinadas  pela  rainha-mãe  a  divertir  os  príncipes  e  senhores, 
como  diz  H.  de  Perefixe,  e  a  descohrir-lhe  todos  os  seus  pensamentos.  Esta 
joven  era  a  Davelie,  oriunda  da  ilha  de  Chypre,  que  ganhou  o  dote  nos  bra- 
ços do  Bearnez,  casando  em  seguida  com  João  de  Hemerits,  fidalgo  normando. 
A  Dayclle  não  fora  uma  paixão  tão  forte  do  rei,  que  podcsse  distrahil-o  dos  seus 
amores  levianos.  Emquanto  a  amou,  Henrique  requestou  a  mulher  do  sábio 
Martinio,   professor  de  grego,  homem  bom  e  simples  que  teve  a  ingenuidade 


494  HISTORIA 

(ie  suppòr  que  sua  esposa  e  o  rei  nunca  liaviam  transposto  os  limites  do  gra- 
cejo, como  diz  Coloniiez,  na  sua  (laule  OrkiUnle,  p.  93. 

Quando  os  amores  fáceis  da  Dayelle  acai)aram,  el-rei  comegou  a  perse- 
seguir  a  Rebours,  filha  de  um  presidente  de  Paris,  dil-o  a  própria  Margarida, 
accrescentando  que  esta  rapariga,  ladina  e  astuciosa,  não  a  amava,  e  que  lhe 
fazia  sempre  que  podia  as  peiores  ausências.  A  Uebours  morreu  pouco  depois 
em  Chenonceaux,  onde  Margarida  foi  vel-a  e  perdoar-llie,  mas  tinha  dado  um 
rival  ao  rei,  na  esperança  de  fazer  d'esle  amante  seu  marido.  Chamava-se  o 
novo  predilecto,  Buade,  senhor  de  Frontenac. 

Depois  da  Rebours,  el-rei  começou  a  namorar  a  Fosseuse,  uma  criança 
apenas,  mas  bella  como  um  anjo.  Francisca  de  Montemorency,  chamada  a  bella 
Fosseuse,  porque  seu  pae  era  barão  de  Fosseux,  era  dama  de  honor  da  rainlia- 
mãe.  Consentiu,  porém,  em  passar  para  o  serviço  da  rainha  Margarida  para 
estar  mais  perto  do  rei,  que  ella  amava  ardentemente,  apesar  de  não  lhe  dar 
ensejo  «a  maiores  liberdades  do  que  a  honestidade  tolera.»  Henrique,  porém, 
leve  outra  vez  ciúmes  de  seu  cunhado  o  duque  de  Alençon,  que  galanteava 
lambem  a  Fosseuse,  e  esta  para  desvanecer  as  suspeitas  do  rei  c  fazer-lhe  co- 
nhecer que  s()  o  amava  a  elle,  eiitregou-se  lanlo  á  sua  vontade  e  aos  seus  dese- 
jos, que  d'ahi  a  pouco  estava  gravida. 

A  rainha  .Margarida  apressou-se  a  occultar  aquella  falta,  e  ella  própria 
se  encarregou  do  filho  que  a  sua  rival  deu  á  luz. 

A  Fosseuse  pensava  apesar  d'isso  em  supplantar  a  rainha  para  casar 
mais  tarde  com  o  pae  de  seu  íilho.  A  criança  morreu,  porém,  d'ahi  a  pouco,  e 
a  mãe,  abandonada  como  todas  as  suas  predecessoras,  ca.sou  por  intervenção 
do  rei  com  Francisco  de  Broc,  senhor  de  Saint-Mars. 

Diana,  viscondessa  de  Louvigny  c  senhora  de  Lescur,  foi  a  successora 
da  Fosseuse.  Lully,  fallando  nas  suas  Memoriaa  dos  acontecimentos  do  anno 
de  lo83,  diz  que  el-rei  de  Navarra  \<estava  então  no  mais  forte  do  seu  amor 
pela  condessa  de  Guiché.»  Diana,  casada  em  1507  com  Felisberto  de  (iram- 
mont,  conde  de  fruiche,  ficara  viuva  em  1580,  e  não  resistira  por  muito  tempo 
as  constantes  sollicitaçòes  do  rei,  que  havia  quinze  annos  a  perseguia.  Diana 
não  era  joven,  mas  conservava  toda  a  sua  formosura. 

Agrippa  d'Aubigné  descreve-nol-a  indo  á  missa  a  Monl-de-Marsan,  ves- 
tida de  verde,  e  com  o  mais  exlranho  cortejo: 

^<Vèem  a(iuella  mulher  que  domina  o  rei  como  lhe  apraz?  Eil-a  indo  á 
missa  em  dia  de  fesla,  levando  atraz  de  si  um  macaco,  um  cão  de  agua  e  um 
bobo.» 

A  paixão  do  rei  por  esta  dama,  que  não  tinha  menos  de  trinta  e  cinco 
a  quarenta  annos,  durou  até  1-389.  Em  l-iB?  escrevia-lhe  elle  de  Marans  : 

«Alma  minha,  conservae-me  o  vosso  amor,  crede  que  a  minha  fideli- 
dade não  tem  mancha  que  a  ensombre.  Nunca  tive  paixão  como  esta.  Se  isto 
vos  api'az,  vivei  tran(juilla  e  ditosa.» 

Chegou  a  paixão  do  rei  a  ponto  de  pensar  em  divorciar-se  para  casar 
com  a  referida  dama,  firmando-lhe  a  promessa  de  casamento  com  o  próprio  san- 
gup.  Atfastou-o  d'este  louco  propósito  Aubigné  que  teve  a  coragem  de  lhe  dizer: 


DA    PROSTITUIÇÃO  49Õ' 

«Não  pretendo  que  renuneieis  á  vossa  paivão.  Já  estive  também  namo- 
rado e  calculo  o  que  sofírereis.  Mas,  sire,  sede  pelo  menos  digno  da  vossa  fa- 
vorita,'a  quem  desprezaríeis,  se  vos  rebaixásseis  ao  ponto  de  vos  unirdes  com 
ella  em  matrimonio^ 

Apesar  d'isto,  Diana  teria  triumpbado  dos  prudentes  conselhos  de  Aubi- 
gné,  se  o  rei  estivesse  muito  tempo  ao  pé  d'elia.  Os  azares  da  guerra  leva- 
ram-n'o  á  Normandia,  onde  teve  occasião  de  ver  outra  viuva  de  alta  gerarohia, 
diz  o  auctor  anonymo  dos  Amores  do  Grande  Alcandre.  Era  joven  e  formosís- 
sima, e  pareceu  tão  amável  aos  olbos  d'el-rei,  que  deixou  immediatamente  de 
amar  a  dama  que  o  esperava,  e  que  nunca  mais  o  tornou  a  vèr. 

Esta  bella  viuva  era  Antonietta  de  Pons,  que  fora  esposa  de  Henrique 
de  Filly,  conde  de  Roeheguyon.  A  casta  viuva  conservou-se  inexpugnável,  e 
soube  de  tal  modo  defender  a  sua  virtude,  que  el-rei  viu-se  obrigado  a  fallar- 
Ihe  em  casamento  como  ás  outras.  Nem  assim.  Apesar  da  promessa,  tão  adian- 
tado estava  o  rei  como  no  principio.  Olíendeu-se  de  tão  dura  resistência,  mas 
sentiu  que  a  amava  cada  vez  mais,  e  mais  tarde  a  virtuosa  viuva  casou  em 
segundas  núpcias  com  Carlos  de  Plessis,  senhor  de  Liancourt. 

Cançado  d'aquelia  lucta  improlicua,  Henrique  resolveu-se  a  abandonar  a 
sua  empreza,  dizendo  á  condessa  de  Roeheguyon,  que  «visto  ser  verdadeira- 
mente dama  de  honor,  o  havia  de  ser  da  rainha  que  elle  havia  sentado  no  throno 
pelo  seu  segundo  casamento. « 

Apesar  de  tanta  resistência,  ha  motivo  para  crer  que  a  dama  de  honor 
teve  por  tim  amores  ou  cousa  parecida  com  o  seu  real  adorador.  Antonietta  de 
Pons  teve  ciúmes  de  Gabriclla  d'Estrces,  dama  de  Liancourt,  favorita  d'el-rei, 
visto  que  impoz  a  seu  marido  a  condirão  de  nunca  usar  o  appellido  de  Lian- 
court, «usado  igualmente  por  uma  prostituta.» 

El-rei  acabou  com  estes  escrúpulos,  dando-lhe  o  titulo  de  marqueza  de 
Guercheville.  Amava-a  verdadeiramente,  mas  nem  por  isso  guardava  uma  fide- 
lidade que  julgava  inútil  ou  ridícula.  Consolava-se,  pois,  dos  pesares  ipie  lhe 
causava  a  intractavel  condessa  de  la  Roeheguyon,  amando  Carlota  des  Rssarts, 
condessa  de  Romerentin,  filha  natural  do  barão  de  Santour,  seu  eslribeiro.  Teve 
d'ella  duas  filhas  que  foram  legitimadas. 

Esta  beldade,  menos  cruel  que  a  viuva  normanda,  era  ao  mesmo  tempo 
amante  do  cardeal  de  Guise,  Luiz  de  Lorena,  filho  do  duque  de  Guise,  morto 
de  repente  nos  estados  de  Blois,  mas  o  rei  nem  .sequer  suspeitava  d'esta  cobarde 
infidelidade. 

Durante  o  sitio  de  Paris  em  Io90,  installou-se  com  o  seu  séquito  na  ab- 
badia  de  Montmartre.  Conheceu  alli  uma  linda  noviça,  filba  do  conde  de  Saint- 
Aignan  e  de  Maria  Babou  de  la  Bourdaisiòre.  Não  teve  a  mienor  diíficuldade 
em  possuil-a,  sem  deixar  de  se  divertir  com  as  demais  religiosas,  e  quando  le- 
vantou o  sitio,  andou  com  ella  sem  o  menor  escrúpulo  de  cidade  em  cidade, 
ainda  vestida  com  o  habito  monástico. 

Passado  este  capricho,  mandou  a  freira  para  o  seu  convento,  onde  ia  vèl-a 
de  vez  em  quando,  fazendo-a  eleger  abbadcssa  de  Montmartre. 

«El-rei,  segundo  diz,  déra-se  tão  bem  com  a  abbadessa,  que  quando  fa|- 


496 


HISTORIA 


lava  d'este  convento  chamava-lhe  o  seu  mosteiro,  e  dizia  que  fora  alli  religioso.» 
(Antiquilés  de  Paris,  por  Sauval,  t.  i,  p.  154.) 

Não  se  deu  el-rei  do  mesmo  modo  na  abbadia  de  Longcliamp,  onde  uma 
religiosa  chamada  Cafharina  de  Verdeur,  a  quem  ainda  assim  recompensou,  no- 
meando-a  ahbadessa  de  Vernon,  lhe  deixou,  segundo  conta  Bassompierre,  uma 
recordação  de  que  não  conseguiu  livrar-se  facilmente.  Eis  o  motivo  porque  se 
chamou  ás  abbadias  de  Longchamp  e  de  Montmartre,  Magasins  des  entjins  de 
l'armée.  (Confissão  de  Sancy,  1.  i,  cap.  8.) 

El-rei  tinha  então  necessidade  de  um  amor  mais  romanesco  e  platónico 
para  soíírer  com  paciência  as  prescripções  dos  médicos,  que  lhe  aconselhavam 
um  repouso  necessário  ao  restabelecimento  da  sua  saúde.  Os  seus  antigos  ex- 
cessos haviam  produzido  fructos  fataes,  e  dizia-se  que  o  rei,  cujo  sangue  es- 
tava viciado  pelo  mal  de  Nápoles,  devia  entregar-se  mais  aos  boticários  do  que 
ás  mulheres. 

Os  pregadores  da  Liga  alludiam  no  púlpito  bastas  vezes  a  este  assumpto, 
que  não  era  positivamente  catbolico: — Rose,  que  pregava  em  Saint-Germain  TAu- 
xerrois,  dizia  ao  seu  auditório,  «que  emquanto  aquella  santa  rainha  (a  de  Na- 
varra) estava  encerrada  entre  quatro  paredes  (em  Usson)  seu  marido  tinha  um 
harém  de  p.  . .,  mas  que  já  estava  recebendo  a  paga  dos  seus  feitos.  . . » 

O  editor  das  memorias  dEstoile,  em  que  esta  passagem  figura  com  data 
de  12  de  outubro  de  lo92,  accrescenta  esta  nota: 

«A  conclusão  d'esta  phrase,  que  não  pôde  imprimir-se,  existe  na  pagina 
288  do  manuscripto.» 

A  6  de  junho  de  lo93,  o  franciscano  Fe^-Ardent,  que  pregava  em  Saint- 
Jean,  vomitava  mil  injurias  contra  o  rei,  dizendo  que  chegaria  um  dia  em  que 
seria  ferido  pelo  raio,  ou  rebentaria  subitamente.  «Já  elle  tem,  accrescenta  o 
frade,  o  baixo  ventre  podre  d'aquillo  que  sabeis.» 

Dissessem  ou  não  a  verdade  os  pregadores  da  Liga,  o  certo  é  que  Hen- 
rique IV  era  por  esse  tempo  o  amante  ou  o  perseguidor  de  Gabriella  d'Estrées. 
Esta  encantadora  mulher,  uma  das  filhas  de  António  d'Estrces,  marquez  de 
Coeuvres,  e  de  Francisca  Babou  de  la  Bourdaisicre,  habitava  com  suas  irmãs  o 
castello  de  seu  pae,  perto  de  Compiégne.  Roger  de  Saint-Lary,  duque  de  Belle- 
garde,  estribeiro-mór  e  favorito  d'el-rei,  mantinha  com  ella  relações  secretas 
que  mais  augmentavam  o  seu  mutuo  amor. 

Maderaoiselle  de  Coeuvres  era  admiravelmente  bella,  e  o  seu  retrato  não 
é  menos  parecido  n'estes  versos  de  Guilherme  de  Sabbe,  do  que  nas  telas  de 
Pedro  Dumoustier  e  de  João  Babel: 

Mon  (eil  est  tout  ravij,  quatid  il  cuil  el  contemple 

Ses  beim.v  cheoeux  orins,  qui  ornenl  c/trc/ne  temple. 

Sou  beau  et  larije  fronl  et  sourcils  ébenins, 

Son  beau  nez  decorant  et  l'une  et  1'autre  joue, 

Sur  lesquelles  Amour  à  tout  heure  se  joue, 

FA  ses  beaux  brillants  yeux,  deux  beaux  aslres  bènins. 

Heureiíx  qui  peul  baiser  sa  bouche  cinabrine. 
Ses  lèoi-es  de  corail,  sa  denlure  ivoirine, 


DA    PROSTITUIÇÃO  497 

Son  beau  double  menlou,  l'une  des  seple  benulèa, 
Le  tout  acompagné  d'un  petit  ris  folaHre, 
Une  gorge  de  lys,  stir  un  beau  sein  d'albastre. 
Ou  deux  fermes  lelins  sont  assis  et  plantes. 

Guilherme  de  Sable,  aiitifjo  cavalleiro  da  montoria  real,  que  havia  feito 
a  sua  aprendizagem  com  Francisco  i,  c  que  era  grande  entendedor  em  assum- 
ptos de  belleza  feminina,  segundo  lirantòme,  não  esquece  n'este  retrato  in- 
serto na  sua  Musa  caradora  (Paris,  161  I,  in-12)  as  demais  perfeições  de  Ga- 
briella  —  a  sua  mão  branca  e  poliila,  os  hellos  dedos  afilados,  a  estatura  es- 
belta, a  sua  graça,  e  Qnalmente 

Ces  petits  pieds  ouverts,  rendant  hon  lesmoignage 
Queí  est  le  demeuranl  dii  rare  personage. 

E  provável  (|ue  fosse  Maria  de  Beaiivillers  quem  fallasse  de  sua  prima 
de  Ca^uvres  a  Henrique  iv,  inspirando-lhe  assim  um  violento  desejo  de  a  co- 
nhecer. Diz-se  todavia,  nos  Amores  do  Grande  Alcandre,  que  lendo  uma  vez 
Bellegarde  tido  a  indiscrição  de  elogiar  diante  do  rei  a  singular  belleza  d'aquella 
donzella,  o  elogio  fizera  impressão  no  animo  de  Henrique,  o  qual  teve  desejos 
de  a  ver,  e  ficou  enamorado  d'ella,  apenas  a  viu. 

Em  consequência  d'isto,  abandonou  subitamente  a  marqueza  de  Humié- 
res,  que  se  lhe  havia  entregado  com  demasiada  leviandade,  e  declarou-se  apai- 
xonado de  Gabriella,  o  que  causou  um  grande  pezar  a  Bellegarde.  Gabriella,  que 
amava  este  fidalgo,  mostrou-se  a  principio  refractária  ao  novo  amor,  mas  suas 
irmãs,  que  eram  mais  espertas  e  politicas  do  que  ella,  fizeram-lhe  comprehen- 
der,  que  uma  vez  que  o  quizesse,  poderia  encontrar  cem  Bellegardes,  ao  passo 
que  não  encontraria  em  segundo  rei  de  França. 

É  de  presumir  que  o  próprio  Bellegarde,  pouco  disposto  também  a  casar 
com  a  filha  do  marquez  de  Conuvrcs,  nada  fizesse  para  destruir  o  elleito  de 
taes  conselhos,  se  não  é  que  elle  próprio  procurou  encaminhal-a  n'este  sen- 
tido. 

Além  d'isto,  Gabriella  tinha  uma  tia  materna,  a  senhora  de  Sourdis,  da 
familia  dos  Bordaisière,  a  qual  era  em  tudo  e  por  tudo  digna  irmã  da  senhora 
d'Estrées,  a  quem  seu  marido  apontava  com  o  dedo  aos  Íntimos  de  sua  casa, 
dizendo-lhes  sem  a  menor  reserva  : 

—  Vêem  essa  mulher?  E'  capaz  de  tornar  esta  casa  uma  coelheira  de 
ribaldas  (putains).  (Obserc.  sur  le  Grand  Alcandre,  no  J.  d'Henri  iii,  e  Dic.  de 
Leuglet-Dufresno}'. ) 

A  senhora  de.  Sourdis  e  o  seu  amante,  o  chanceller  Haraut  de  Cheverny, 
souberam  dispor  de  tal  modo  o  animo  da  mãe  de  Gabriella  para  ouvir  as  pro- 
postas d'el-rei,  que  Bellegarde  foi  posto  fora  de  combate,  e  a  joven  era  d'ahi  a 
pouco  tempo  a  favorita. 

A  tal  ponto  o  rei  se  namorara  d'ella,  que  não  podendo  já  supportar  o  tor- 
mento da  ausência,  deixou  um  dia  o  exercito,  e  disfarçado  em  camponez  atra- 
vessou a  Picardia,  com  grave  risco  de  cair  em  poder  dos  da  Liga,  para  ir  ver 

Historia  da  Prostituição.  tomo  ii— Folba  63. 


498  HISTORIA 

a  sua  amante.  As  cartas  que  lhe  escrevia  diariamente,  no  meio  dos  episódios 
de  uma  guerra  aventureira,  transpiram  tanta  paixão,  que  desculpam  até  certo 
ponto  a  loucura  do  real  amante.  Ainda  assim,  a  correspondência  d'el-rei  com 
Gabriella,  mais  escandalosa  torna  a  conducta  d'este  homem  volúvel  e  lascivo, 
que  apesar  da  sua  paixão  pela  favorita,  nunca  deixou  de  andar  de  mulher  em 
mulher. 

N"este  meio  tempo,  Gabriella  ficou  gravida  e  precisava-se  de  um  marido 
para  encobrir  as  manchas  d'a(|uella  reputarão,  que  Bellegarde  e  o  rei  haviam 
compromettido.  Henrique  tractou  de  arranjar  o  homem  de  que  precisava,  e 
encontrou  um  fidalgo  picardo,  por  nome  Nicolau  de  Amerval,  senhor  de  Lian- 
court,  que  consentiu  em  acceitar  a  mão  de  Gabriella. 

A  favorita  linha  obrigado  o  rei  a  jurar  que  mesmo  no  dia  do  casamento 
iria  subtrahil-a  ao  dominio  conjugal.  O  casamento  realisou-se,  mas  um  obs- 
táculo imprevisto  impediu  o  rei  de  cumprir  o  juramento,  e  Gabriella  não  teve 
remédio  senão  sujeilar-se  a  reconhecer  os  direitos  conjugaes  de  Liancourt. 

«Ainda  assim,  lé-se  nos  Amores  do  Grande  Alcandre,  Gabriella  não  se 
queria  deitar.  Seu  marido  julgou  então  que  estaria  mais  á  vontade  em  sua  casa 
do  que  na  cidade  cm  que  o  casamento  se  realisara,  e  conduziu  a  noiva  para 
o  seu  solar.  Ella,  porém,  fez-se  acompanhar  de  seus  pães  e  das  damas  que 
haviam  assistido  ás  bodas,  e  o  pobre  marido  teve  que  esperar.» 

No  dia  seguinte  chegou  o  rei  e  libertou  a  noiva.  Pouco  tempo  depois,  deu 
á  luz  um  filho,  a  quem  o  rei  não  quiz  dar  o  nome  de  Alexandre,  para  que  não 
se  lembrasse  alguém  de  o  cognominar  Alexandre  le  Grand,  por  isso  que  deno- 
minavam a  Bellegarde  o  senhor  le  Grand,  e  o  fidalgo  podia  muito  bem  dispu- 
tar a  paternidade  d'aquella  criança. 

Não  obstante,  Henrique  iv  legitimou  f.esar  Vendôme  no  mesmo  dia  (7  de 
janeiro  de  159o)  em  que  foi  annullado  o  matrimonio  de  Gabriella  de  Eslrées 
com  o  senhor  de  Liancourt. 

Gabriella,  que  teve  logo  a  principio  o  titulo  de  marqueza  de  Monceaux, 
recebeu  mais  tarde  o  de  duqueza  de  Beaufort.  El-rei,  que  nas  suas  cartas  lhe 
chamava  coração  meu  e  outras  ternuras  similhantes,  denominava-a  publica- 
mente meu  bello  anjo,  o  que  deu  logar  a  esta  quadra: 

N'est  pas  une  chose  étrange 
De  voir  un  grand  roy  serviteur, 
Les  femmes  vivre  sans  honneur, 
Et  d'un  putain  se  faire  un  ange  ? 

A  conducta  da  duqueza  de  Beaufort  era  pouco  regular ;  no  emtanto,  ainda 
que  os  seus  costumes  fossem  muito  diflamados  pelo  povo,  que  chamava  á  il- 
lustre  dama  putain  dii  roy,  denominação  que  lhe  davam  também  no  púlpito 
os  pregadores  da  Lúja  e  especialmente  Guarni,  não  se  podem  tomar  á  leltra  as 
accusações  que  se  amontoaram  contra  cila  nas  Novas  Memorias  de  Bassom- 
pierre,  publicadas  pela  primeira  vez  cm   1803. 

Segundo  estas  memorias,  cuja  authenticidade  está  longe  de  ser  provada, 
Gabriella  prostituiu-se  na  cdade  de  dezcseis  annos  por  conselhos  de  sua  mãe. 


Gabriella  d'Estiies  (segundo  um  retrato  da  Historia  de  França  de  II.  Martins) 


DA    PROSTITUIÇÃO  499 

que  a  lançou  nos  braços  de  Henrique  iii,  mediante  uma  somma  de  seis  mil 
escudos,  e  Montigny,  corretor  d'este  negocio  por  parte  do  rei,  fçuardou  para  si 
a  terça  parte  d'esta  quantia.  Em  seguida,  o  marquez  de  Cneuvres  vendeu-a  a 
Zamet,  rico  proprietário,  c  a  outros  ainda.  Pouco  depois,  Gabriella,  vendida  a  di- 
nheiro de  contado  ao  cardeal  de  Guise,  entregou-se  de  boa  vontade  e  gratui- 
tamente ao  duque  de  Bellegarde,  e  a  vários  outros  (ilalgos  das  immediações  de 
Copuvres,  faes  como  Brunct  e  Stenay  ;  finalmente  Bellegarde  acabou  por  lan- 
çal-a  nos  braços  do  rei.  {llist.  de  l'aris,  por  Dulaure,  t.  v,  p.  183  e  se- 
guintes.) 

Facilmente  poderia  provar-se  que  Bassompierre,  ou  o  auctor  das  Novas 
Memorias,  impressas  com  o  seu  nome,  confundiu  os  personagens,  os  factos  e 
as  épocbas.  Attribuiu  talvez  só  a  Gabriella  todas  as  galanterias  e  desordens  de 
que  suas  irmãs  e  parentas  ei-am  responsáveis,  por  isso  que  na  casa  de  Bour- 
daisière,  diz  Tallcmant  des  Reanx,  «a  raça  mais  fecunda  cm  mulheres  galan- 
tes, que  houve  jamais  em  França,  contam-se  unias  vinte  e  cinco  ou  vinte  e 
seis,  entre  religiosas,  casadas  e  solteiras,  entregues  publicamente  a  amores  fá- 
ceis e  libertinos.  I)'aqui  vem  que  as  armas  desta  familia  são  um  punhado  de 
ervilhas,  emblema  de  mulheres  de  má  vida,  por  isso  que  se  descobre  por  uma 
agudeza  satyrica  haver  n'cstas  armas  uma  7não  semeando  ervilhas».  A  este  res- 
peito fez-se  a  seguinte  quadra: 

.V(;íis  dccons  hénir  cette  iiiain, 
Qui  séine  avec  lant  de  largesses, 
Pour  le  plaisir  du  genre  huniain 
Quantilé  de  si  belles  vesses. 

Apesar  de  ser  já  concubina  do  rei,  Gabriella  mantinha  ainda  relações  se- 
cretas com  o  seu  antigo  amante,  Bellegarde,  a  quem  nunca  deixou  de  amar. 
Em  todo  o  caso,  despediu  terminantemente  todos  os  galans  que  a  chronica  es- 
candalosa lhe  attribuia.  Neste  numero  entrava  o  duque  de  Longueville,  que 
lhe  devolvera  já  a  esse  tempo  todas  as  cartas  d'ella  recebidas. 

Não  obstante,  Henrique  iv  só  tinha  ciúmes  de  Bellegarde. 

«Itez  vezes  ordenou  el-rei  que  o  matassem,  diz  Tallemant  des  Reaux, 
mas  bem  depressa  se  arrependia,  quando  se  lembrava  que  fora  elle  quem  lhe 
entregara  a  dama.» 

Uma  noite,  o  senhor  de  Praslin  fui  avisar  o  rei  de  que  a  duqueza  de 
Beaufort  estava  fechada  com  Bellegarde  nos  seus  aposentos.  El-rei,  tremulo  de 
cólera,  levanta-se,  vesle-se  a  toda  a  pressa,  toma  a  espada  e  segue  Praslin 
muito  aíllicto.  Ao  chegar,  porém,  á  porta  do  aposento  da  sua  amante  sentiu 
remorsos  e  parou  : 

—  Nada!  exclamou  elle.  Podia  aííligir-se  com  isto. 

E   foi  novamente  deitar  se  sem  perturbar  a  entrevista  dos  dois  amantes. 

De  outra  vez  Bellegarde  e  a  duqueza  estavam  juntos  também,  e  descan- 
çadissimos,  porque  não  esperavam  o  rei.  Henrique  chega  á  porta,  e  manda 
abrir.  Não  havia  uma  única  sabida  por  onde  o  amante  podcsse  escapar-se. 
A  duqueza  inventa  em  vão  toda  a  espécie  de  pretextos  para  que  o  rei  se  retire. 


oOO  HISTORIA 

Henrique  insiste,  ordena  e  encolerisa-se.  A  camareira  de  (labriella,  matrona 
conhecedora  do  seu  oiilcio,  fa/  entrar  Bellegarde,  meio  nú,  n  uma  pequena 
dispensa,  onde  se  costumavam  guardar  os  doces. 

Abre-se  a  porta,  e  el-rei  entra,  procurando  qualquer  vcsfigio  accusador 
deixado  peio  seu  rival  ao  fugir.  Senta-se  sem  dar  palavra,  e  d'alii  a  pouco 
pede  que  llie  sirvam  doce.  \ae  direito  á  porta  da  dispensa,  pede  a  chave,  que 
não  lhe  dão,  e  ameaga  metter  a  porta  dentro. 

Bellegarde,  a  esse  tempo,  vesíira-se  como  pudera,  no  seu  estreito  recinto, 
e  saltara  pela  janella,  que  deitava  para  a  rua.  Foi  só  então  que  a  camareira  ap- 
pareceu  com  a  chave,  desnorteando  as  suspeitas  d'el-rei : 

—  Meu  senhor,  disse-lhe  Gabriella,  recuperando  toda  a  sua  tranquillidade, 
vejo  que  me  quereis  tractar  como  a  todas  as  mulheres  que  haveis  amado.  O 
vosso  génio  volúvel  procura  apenas  um  pretexto  para  romper  commigo.  Pois 
bem,  sire,  vou  anfecipar-me  aos  vossos  desejos,  rompendo  desde  já  comvosco... 
e  para  sempre  I . . . 

Dizendo  isto,  as  lagrimas  cabiam-lhes  pelas  faces  em  torrentes.  El-rei 
apressou-se  a  encliugar-lh'as  carinhosamenle,  supplicando-lhe  que  lhe  per- 
doasse. 

Assim  refere  a  aventura  o  auctor  dos  .i mores  do  Grande  Alcandre. 

.4  tradicção  popular  accrescenta,  porém,  alguns  traços  mais  em  harmo- 
nia com  o  caracter  de  Henrique  iv.  Segundo  esta  tradicção,  Bellegarde  tivera 
de  esconder-se  debaixo  do  leito  de  Gabriella,  e  o  rei,  occupando  o  logar  que 
o  seu  estribeiro  acabara  de  deixar,  pediu  alguns  doces  que  a  camareira  se 
apressou  a  servir-lhe.  El-rei  então,  pegando  n'uma  caixa  d'elles,  atirou-a  para 
debaixo  da  cama,  dizendo  : 

—  Toma,  Bellegarde,  é  preciso  que  todos  vivam! 

Correra  o  boato  de  que  o  nascimento  de  César,  duque  de  Vendòme,  não 
podia  attribuir-se  ao  rei,  e  uma  anecdola  que  Sully  não  hesitou  em  escrever 
nas  suas  iVlemorias  parece  ter  dado  origem  a  este  boato  calumnioso.  Alibour, 
primeiro  medico  d'el-rei,  visitara  Gabriella,  que  eslava  indisposta,  e  foi  an- 
nunciar  a  Henrique  iv,  que  a  doença  teria  felizes  consequências. 

—  E'  preciso  sangral-a?  perguntou  el-rei. 

—  Não,  meu  senhor,  a  doença  só  terminará  ao  cabo  de  alguns  mezes. 

—  Que  queres  dizer,  bomein  de  Deus'  disse  o  rei  encolerisado.  Estás 
.sonhando!  Não  se  Irada  de  gravidez,  e  ou  não  entendes  nada  disso,  ou  então 
outros  peores  do  que  tu  te  fazem  fallar  assim  1 

—  Senhor,  replicou  Alibour,  eu  ignoro  as  vossas  contas,  mas  o  que  sei 
perfeitamente,  é  que  antes  de  sele  mezes  se  verificará  o  que  tive  a  honra  de 
vos  dizer. 

A  prophecia  realisou-se.  CTabriella  deu  á  luz  um  lillio,  mas  Alibour  não 
sobreviveu  a  este  acontecimento,  dizendo-se  que  fora  envenenado. 

Tallemanl  des  Heaux  deu  a  explicação  d'esta  anecdola,  tantas  vezes  in- 
vocada contra  a  memoria  de  (labriella,  n'esta  passagem  que  Mr.  l'aulin  Paris 
faz  figurar  na  sua  edição,  colhendo-o  no  manuscripto  original: 

«A  verdade  da  anecdola  de  Alibour,  jirimeiro  medico  d'el-rei,  é  que  Hen- 


UA     PROSTITUIÇÃO  oOI 

rique  iv  linlia  umu  gi)iioriii('i;u|iio  lhe  produziu  uma  carnosidade  e  cm  seguida 
retenção  da  urina,  qu;  o  poz  ás  porias  da  morte  em  Monceaux.  Alibour  dizia 
que  ei-rei  não  podia  proerear  na  constância  d'este  incommodo.  Era  uma  questão 
de  medicina,  mas  a  gravidez  de  Madame  de  Beaufort  estava  muito  adiantada^ 
quando  surgiu  esta  questão.» 

O  primogénito  de  fialjriella  nem  por  isso  deixou  de  ser  legitimado,  assim 
como  seu  irmão  Alexandre  e  sua  irmã  Catliarina  Henriqueta.  A  mãe  chegaria 
a  ser  esposa  d'cl-rci,  se  não  tivesse  morrido  envenenada,  em  quanto  em  Roma 
se  tractava  de  annullar  o  matrimonio  de  Henrique  iv  com  Margarida  de  Valois. 

Mr.  de  Sancy  cahiu  em  desgraça  por  haver  ousado  dizer  ao  rei,  que  o 
consultara  a  respeito  do  seu  projecto  de  casamento  com  Madame  de  Beaufort, 
que,  desavergonhada  por  desavergonhada  (puiain  por  putain,  diz  o  texto)  me- 
lhor estaria  sua  magestade  com  a  filha  de  Henrique  ii  do  que  com  a  de  Madame 
dEstrées,  que  havia  morrido  n"um  bordei.  (V.  a  historieta  de  SuUy  em  Talle- 
mant  des  Reaux.) 

Sully,  que  não  era  menos  contrario  do  que  Sancy  a  este  vergonhoso  enlace, 
mas  que  sabia  combatel-o  com  muito  mais  politica,  afTirmou  todavia  nas  suas 
Memorias  que  «el-rei  nunca  se  poderia  resolver  a  casar  com  uma  mulher  de 
má  vida.» 

Quanto  mais  apaixonado  se  mostrava  Henrique  iv  pelo  seu  bello  anjo, 
mais  se  pronunciava  a  opinião  publica  contra  a  favorita,  que  nem  mesmo  o 
casamento  poderia  reliabilitar.  Os  seus  amores  com  o  duque  de  Bellegarde  eram 
tão  conhecidos,  mesmo  nas  Ínfimas  classes  sociaes,  que  se  ouvia  com  frequên- 
cia este  dito  proverbial: 

«As  bellas  espadas  {belles  gardes)  andam  sempre  nas  bellas  bainhas.» 

Os  parisienses  entre  os  quaes  fermentava  sempre  o  espirito  de  revolta  da 
Liga,  detestavam  a  duquezade  Beaufort,  p)r  causa  dos  maus  costumes  que  lhe 
atlribuiam,  e  o  ódio  que  esta  favorita  havia  excitado  recahia  também  em  el-rei. 

«O  povo,  escrevia  P.de  TEstoile  com  data  de  23  de  abril  de  1396,  é  de 
seu  natural  teimoso,  inconstante  e  volúvel.  Começou  a  dizer  tanto  mal  d'el-rei, 
como  havia  dito  bem,  tudo  por  causa  dos  seus  amores  com  Gabriella.» 

IS"uma  satyra  muito  escandalosa,  que  ao  tempo  corria,  havia  versos  em 
que  el-rei  não  era  menos  atacado  que  a  sua  favorita. 

Todas  as  pessoas  honradas,  todos  os  bons  cidadãos  se  indignavam  contra 
a  ideia  da  união  d'el-rei  com  uma  mulher  sem  honra,  que  se  dava  ares  da  rai- 
nha. Um  safyrico  publicou  esta  oilava  a  propósito  de  um  casamento,  que  só 
existia  na  promessa  firmada  pela  mão  d'el-rei : 

Mariez-vous,  de  par  Oieu,  sire! 
Volre  héritier  esl  loul  cerlain, 
Puisqu'ausí<i  bien  un  peu  de  cire 
l.égilime  un  fils  de  putaiti  : 
Putain,  dont  les  stivurs  xonl  putantm, 
La  grand'  mère  le  fiU  jadis, 
La  nière,  cousines  el  tuntes, 
Hunids  Madame  de  Sintrdis. 


502  HISTORIA 

Madame  de  Sourdis  como  já  dissemos,  era  a  amante  do  velho  chanceller 
ou  guarda-scllos,  de  Cliaverny,  de  quem  teve  um  flllio  que  o  rei  levou  á  pia  do 
baptismo  em  Saint-Germain  FAuxerrois. 

—  Sirc,  disse-llie  a  parteira,  entregando-llie  a  criança,  tende  cautella,  que 
é  muito  pesado. 

—  Não  admira,  respondeu  o  rei,  provavelmente  são  os  sellos,  que  traz 
pendurados  do  c.  .  . 

Gabriella  não  teve  tempo  de  ver  realisadas  as  suas  aspirações,  porque 
suecumbiu  quíisi  de  repente,  ferida  de  uma  enfermidade  extranha,  com  todos  os 
symptomas  de  um  envenenamento.  Os  seus  inimigos  nem  mesmo  depois  de  mor- 
ta lhe  perdoaram.  Dirigiu  as  ceremonias  fúnebres  seu  cunhado,  o  marechal  de 
Balagny,  filho  natural  de  um  bispo  de  Valence,  e  assistiram  as  suas  seis  irmãs, 
mais  dissolutas  ainda  do  que  ella.»  O  poeta  Cigogne  compoz  este  versos  que 
Sauval  archivou  nos  Amoiirs  des  róis  de  France: 

J'ai  vu  passer  sous  ma  fénHre 
Les  six  péchés  mortels  vivants, 
ConduiU  par  Iv  halard  ifitn  prètre, 
Qui  tous  ensemble  allaienl  chantants 
Un  reqxíiescal  in  pace 
Par  le  septième  trespasse. 

Henrique  iv  não  podia  viver  sem  uma  amante  effectiva  e  permanente,  o 
(]ue  não  o  estorvava  de  ter  outras  volantes,  quando  a  oecasião  se  apresentava. 
Madame  de  Beaufort  estava  apenas  enterrada,  e  já  as  cortezãs  andavam  á  por- 
fia na  lucta  de  apanharem  a  herança  da  graça  do  rei,  ganhando  em  fim  a  vic- 
loria  Margarida  d'Entragues. 

Teria  n'esse  tempo  dezenove  ou  vinte  annos  a  nova  favorita,  edistinguia- 
se  não  menos  pelo  talento  do  que  pela  belleza.  Tão  recomniendada  fora  a  el-rei 
pelas  pessoas  que  desejavam  eleval-a  á  dignidade  de  favorita,  que  el-rei 
«sentiu  desde  logo  o  desejo  de  a  ver,  em  seguida  o  de  a  tornar  a  vèr,  e  afinal 
o  de  a  amar.» 

Amou-a  el-rei,  e  Mademoiselled'Entragues,  fiel  aos  conselhos  de  soa  mãe, 
e  sobre  tudo  aos  de  seu  irmão,  deixou-se  amar  de  boa  vontade.  Segundo  era 
fama,  não  estava  já  na  a|)rendizagem  da  arte,  não  (distante,  regateou  o  mais  que 
poude  os  últimos  favores,  que  Henrique  iv  reclamava  com  todo  o  ardor  de  um 
amante  e  com  toda  a  auctoridade  de  um  rei. 

l)eu-se  n'esle  caso  um  dos  mais  monstruosos  tráficos  de  prostituição  (|ue 
nos  ministra  a  historia  dos  amores  dos  reis.  A  familia  d'Entragues,  o  pae,  a 
mãe,  os  amigos  e  os  conselheiros  todos  intervieram  mais  ou  menos  n'estas 
vergonhosas  negociações,  que  tinham  por  fim  a  venda  impura. 

Pediam  cem  mil  escudos  pela  virtude  da  Entragues.  Algumas  memorias 
referem  que  a  somma  foi  reduzida  a  cincoenta  mil.  Em  todo  o  caso,  foi  com- 
binado o  preço,  mas  o  preço  era  o  menos.  Mademoiselle  d'Entragues,  por  con- 
selho de  seus  pães,  exigia  promessa  de  casamento,  sob  a  extranha  condição  de 
dar  ao  rei  um  lilho  varão  no  praso  de  um  aiino. 


BA    PROSTITUIÇÃO  503 

«Sou  de  tal  modo  Yi^'iada,  dizia  Henriqueta  ao  seu  amante,  que  se  me 
torna  absolutamente  impossível  conceder-vos  todas  as  provas  de  reconheci- 
mento e  de  amor,  que  não  posso  negar  ao  maior  rei  do  mundo.  E'  preciso  es- 
perar a  occasião,  e  creio  que  não  teremos  nunca  liberdade,  se  não  contarmos 
com  meus  pães.» 

Estes  consentiam  em  fechar  os  olhos,  logo  que  tivessem  na  mão  a  pro- 
messa de  casamento,  firmada  e  sellada  em  forma. 

«Esta  astuta  e  hábil  mulher  soube  de  tal  modo  seduzir  el-rei,  diz  Sully, 
que  a  promessa  foi  escripta  e  dada  pela  conquista  de  um  thcsouro,  que  talvez 
el-rei  não  encontrasse.» 

Sully  teve  a  coragem  de  fazer  todos  os  esforços  possíveis  para  desviar  o 
rei  d'esta  loucura  amorosa,  que  ameaçava  custar-lhe  mais  de  cem  mil  escudos. 
Chegou  até  a  rasgar  a  promessa  de  casamento  que  el-rei  lhe  mostrou. 

«Sire,  disse-lhe  elle,  se  quizesseis  recordar  o  que  n'outros  tempos  me 
dissestes  d"essa  jovcn  e  de  seu  irmão,  o  conde  dWuvergne,  em  vida  da  duqueza 
de  Beaufort,  as  conversações  que  por  es.sa  épocha  tivemos  e  as  ordens  de  que 
me  encarregastes  para  fazer  sahir  de  França  essa  gentalha,  levaríeis  mais  longe 
ainda  a  duvida  que  tendes,  esperando  encontrar  menos  do  que  desejaes.  Con- 
siderae,  sire,  que  a  peça  não  vale  cem  mil  escudos,  e  Deus  queira  que  mais 
tarde  não  vos  seja  ainda  mais  pesada!» 

Estes  conselhos  do  bom  e  leal  servidor  eram  auxiliados  pela  refinada  ga- 
lanteria imaginada  e  posta  em  acção  pelo  partido  contrario  aos  Entragues.  To- 
dos os  dias  se  recommendavam  novas  donzellas,  que  apesar  de  escolhidas  en- 
tre as  mais  bellas  e  seductoras  não  faziam  senão  excitar  cada  vez  mais  a  paixão 
do  rei  por  mademoiselle  dEntragues. 

«Quando  não  possuía  ainda  a  Entragues,  diz  Bassompierre,  nas  suas  Me- 
morias, desenfastiava-se  com  uma  bella  rapariga,  chamada  a  (tlandée.» 

Ia  passar  a  noite  ao  palácio  de  Zamet,  para  onde  a  levavam.  A  (llandée 
foi  bem  depressa  desthronada  pela  Fanuche. 

Tallemant  des  Reaux,  que  nos  revelou  tão  novas  e  curiosas  particulari- 
dades a  respeito  de  Henrique  iv,  recorda  uma  boa  anecdota,  ainda  que  um 
tanto  livre,  d'este  príncipe  a  propósito  da  Fanuche,  que  lhe  haviam  apresen- 
tado como  donzella,  apesar  de  ser  casada. 

Esta  Fanuche  era  uma  cortezã  celebre,  no  estylo  da  grande  Imperia  e 
e  das  cortezãs  italianas,  e  era  robretudo  famosa  pelas  suas  bellas  formas  e  per- 
feições secretas.  Um  quartetto  impresso  cm  1637,  na  segunda  parte  das  poe- 
sias do  senhor  de  Neuf-Germain,  poeta  de  Gastão  d'Orleans,  prova-nos  que  a 
Fanuche,  que  n'aquella  épocha  tinha  mais  de  quarenta  annos,  era  ainda  digna 
das  homenagens  dos  seus  adoradores  e  dos  elogios  da  poesia  galante. 

Henrique  iv  não  se  contentava,  porém,  com  estes  amores  passageiros. 
Queria  amores  mais  permanentes,  e  teria  dado  metade  do  seu  reino  para  pos- 
suir mademoiselle  d'Entragues.  Possuiu-a  emfim,  mediante  a  solemne  promessa 
de  casamento  e  a  doação  de  cem  mil  escudos.  Esta  quantia  foi  a  credito,  mas 
quando  chegou  a  épocha  do  pagamento,  pagou,  não  sem  grande  pezar.  Antes 
de  entregar  a  somma,  quiz  vèl-a  reunida  e  mandou  que  a  levassem  ao  seu  ga- 


504 


HISTORIA 


binete.   As   moedas  corriam  no  solo  como  um  rio  de  ouro,  c  quando  o' rei  viu 
a  seus  pés  aquelie  monte  de  escudos,  não  poude  deixar  de  dizer  : 

—  Venlre-sainl-íjris !  E'  o  que  se  pôde  chamar  uma  noifo  bem  paga!... 

Desde  esse  dia  cada  vez  se  alíeiyoou  mais  á  sua  conquista,  que  tão  cara 

lhe  custara,  e  elevou  a  Entrngues  á  dignidade  de  favorita,  sem  deixar  por  isso 

de  commetter  algumas  infidelidades,  que  ainda  assim,  não  o  tornavam  menos 

terno  e  sollicilo  para  com  ella. 

Quando  a  còrle  de  Roma  pronunciou  a  sentença  de  divorcio,  o  rei,  por 
maior  que  fosse  o  seu  amor,  acceitou  uma  alliança  politica,  e  casou  em  1600 
com  Maria  de  Medicis. 

A  Entragues  oppozera-sc  cm  vão  a  este  enlace,  e  depois  delle  empregou 
todos  os  esforços  para  conservar  o  titulo  e  as  fu noções  de  favorita,  renunciando 
á  coroa  de  França  que  lhe  havia  sido  ollerccida.  Henrique  iv  fel-a  marqueza 
de  Verneuil,  e  apesar  do  seu  casamento  não  parecia  muito  disposto  a  renun- 
ciar a  umas  relações  que  elle  preferia  a  outras  quaesquer. 

Apesar  d'isso,  Henriqueta  de  Balzac  d'Enfragues,  cujo  caracter  violento, 
flexível  e  dominador  a  um  tempo  tamanha  influencia  soubera  sempre  exercer 
sobre  o  rei,  não  lhe  poupava  censuras  e  reprimendas,  a  propósito  da  sua  falta 
de  palavra.  Um  dia  chegou  a  dizer-lhc,  que  lhe  valia  apenas  a  fortuna  que  ti- 
vera de  ser  rei,  porque  se  não  fosse  isso  ninguém  o  poderia  .soflrer,  por  chei- 
rar mal  como  um  porco.  (V.  Tallemanl  des  Reaux).  Charaava-lhe  o  capitão 
Bon-vouloir,  porque  estava  sempre  disposto  a  amar  todas  as  mulheres  ao  mesmo 
tempo. 

A  marqueza  de  Verneuil,  que  habitava  no  palácio  da  Force,  perto  do 
Louvre,  compartilhava  por  assim  dizer  com  a  rainha  as  attenções  d'el-rei  e  as 
lisonjas  dos  cortezãos,  e  não  perdia  a  esperança  de  deixar  um  dia  no  segundo 
plano  a  Italiana,  ou  a  grande  Banqueira,  como  ella  chamava  a  Maria  de  Me- 
dicis. Esta  installação  pui)lica  de  uma  concubina  real  em  frente  do  Louvre,  era 
um  escândalo  que  fazia  murmurar  o  povo  e  allligii-  os  leaes  servidores  d'el-rei. 

Para  o  separarem  d'esta  mulher  astuta,  que  aspirava  sem  cessar  á  coroa 
de  França,  puzeram-se  em  obra  muitas  combinações  e  intrigas  amorosas,  des- 
tinadas a  diminuir  o  pi'estigio  da  marqueza  de  Verneuil.  Henrique  iv,  porém, 
aeceitando  todas  as  aventuras  que  se  lhe  otíereeiam,  nunca  deixava  de  voltar 
cada  vez  mais  apaixonado,  para  junto  da  marqueza. 

Em  1600,  segundo  Bassompierre,  (antigas  e  novas  Memorias)  enamorou-se 
de  uma  das  damas  da  rainha,  por  nome  Bourdaisière,  em  seguida  de  madame 
Boinville,  de  madame  Cleni,  da  esposa  do  conselheiro  Quelin,  da  condessa  de 
Lamoux,  de  outra  dama  de  honor,  chamada  Foulebon,  ctc,  etc. 

A  marqueza  de  Verneuil  nem  por  isso  era  despresada.  O  exemplo  do  rei, 
porém,  ensinou-a  por  certo  a  gosar  também  a  vida,  e  é  de  crer  (juc  não  lhe 
faltariam  adoradores. 

lim  dito  de  Henrique  iv,  referido  por  Tallcmant  des  Keaux,  dá  a  entender 
que  não  tinha  tantos  ciúmes  da  marqueza  como  tivera  de  (labriella  d'Estrées: 

«Disseram-lbe  um  dia  que  o  duque  de  Guise  estava  enamorado  de  ma- 
dame de  Verneuil.  O  rei  não  se  incommodou  por  isso  e  disse: 


Heiii'<(iirt;l  dl'    Ikil/.íU'  .1   lMitr:i;;-UL'S 
(/>(•  um  vdrato  da  ípoclut) 


DA    PROSTITUIÇÃO  505 

«  —  Coitado!  Deixemos-lhe  lá  o  pão  e  as  pécoras,  já  que  lhe  tiramos  tan- 
tas cousas !» 

Razões  tinha  a  marqueza  de  Verneuil  para  não  se  temer  da  influencia  das 
ephemeras  amantes  de  el-rei,  mas  ainda  assim  uma  dVllas  houve,  que  esteve 
a  ponto  de  a  derribar.  Foi  Jacqueline  de  Bueil,  filha  de  um  honrado  fidalgo 
bretão,  Cláudio  de  Bueil,  senhor  de  Courcillon.  N'um  d'esses  arrufos  que  o  rei 
costumava  ter  frequentes  vezes  com  a  sua  favorita,  procurou  distrahir-se  com  a 
joven  e  encantadora  Bueil.  A  nova  amante  ficou  logo  gravida.  Tractou-se  de 
remediar  o  incidente  com  a  responsabilidade  de  um  marido. 

«Quarta-feira,  o  do  mez  de  outubro,  refere  ingenuamente  P.  de  TEstoile 
no  seu  liegistre-Journal,  ás  seis  horas  da  manhã,  mademoiselle  de  Bueil,  ca- 
s)u  em  Saint-Main  des  Fosses  com  o  joven  fidalgo  Chanvallon,  excellente  mu- 
sico, tocador  de  alaúde.  Teve  a  honra  de  dormir  com  sua  mulher  mas  allu- 
miado,  segundo  se  dizia,  por  velas  e  guardado  por  gentis-homens,  obedecendo 
ás  ordens  d'el-rei,  que  no  dia  seguinte  dormiu  com  a  mulher  do  seu  próximo 
em  Paris,  no  palácio  de  Montauban,  permanecendo  no  leito  até  ás  duas  da  tarde. 
Dizia-se  que  o  pobre  marido  dormira  n'um  quarto  que  ficava  no  pavimento  su- 
perior da  camará  d'el-rei,  estando  assim  em  cima  de  sua  mulher,  mas  com  um 
tecto  de  permeio.» 

Esta  nova  concubina  ameaçava  supplantar  a  marqueza  de  Verneuil,  com- 
tudo  a  antiga  favorita  descobriu  o  meio  de  attrahir  o  seu  real  amante.  Para  este 
fim  valeu-se  do  próprio  coração  de  Jacqueline  de  Bueil,  por  meio  do  joven 
príncipe  de  Joinville,  irmão  do  duque  de  Guise,  que  namorava  também  a  fa- 
vorita e  desejava  servil-a.  Quando  o  príncipe  logrou  possuir  Jacqueline,  o  rei 
foi  avisado,  e  sua  magestade  queixou-se  amargamente  da  velha  duqueza  de 
Guise. 

—  iSão  me  importa  que  casem  com  as  minhas  amantes,  mas  que  m'as 
disputem  e  se  atrevam  a  ser  seus  galans,  isso  é  que  eu  não  posso  telerar! 

E  teria  mandado  prender  o  príncipe,  se  este  rival  demasiado  favorecido 
não  houvesse  renunciado  immediatamente  á  posse  de  Jacqueline,  affastando-se 
d'ella  e  da  corte. 

Henrique  iv  perdoou.  Mademoiselle  de  Bueil  foi  feita  condessa  de  Mo- 
ret,  e  o  filho  que  deu  á  luz,  depois  da  partida  do  príncipe  de  Joinville,  foi  le- 
gitimado como  o  haviam  sido  antes  os  de  Gabriella  d'Estrées. 

A  marqueza  de  Verneuil  tinha  sempre  sob  o  influxo  dos  seus  encantos  o 
seu  capitão  Bon-wuloir,  deixando-lhe  impressões  que  o  attrahiam  continua- 
mente para  junto  de  si,  apezar  de  toda  a  sua  volubilidade.  Quando  foi  accusada 
de  haver  entrado  n'uma  conspiração  contra  el-rei  com  seu  pae,  seu  irmão  e  ou- 
tros senhores,  a  Entragues  riu  a  bandeiras  despregadas.  Quando  foi  condem- 
nada,  bastou-lhe  ver  o  rei  para  obter  o  perdão  de  todos  os  condemnados.  Ape- 
sar de  n'essa  épocha  haver  perdido  o  seu  logar  de  favorita,  Henrique  iv  ia 
vél-a  muitas  vezes,  e  não  se  mostrava  menos  galante  para  com  ella. 

A  marqueza  divertia-o  mais  que  ninguém,  e  a  rainha  tinha  sempre  mui- 
tos ciúmes  d'ella.  Em  março  de  1607,  foi  com  a  corte  a  Chantilly,  onde  es- 
tava Madame  de  Verneuil,  levando  na  sua  companhia  uma  dama  chamada  La 

Historia  da  Prostitdicão  .  Tomo  ii— Folha  64. 


506  HISTORIA 

Haya,  a  quem  fazia  amor,  diziam,  e  que  o  seguia  para  toda  a  parle.  A  mar- 
queza  disse-llie,  sorrindo  : 

—  Sire,  os  vossos  mordomos  não  sabem  doseuofficio.  Mandam-vos  para 
La  Haya,  ao  vento  e  á  chuva. 

La  Haya  perdeu  o  real  agrado  no  anno  seguinte  e  tomou  o  veu  na  aii- 
badia  de  Fontevrault,  «retiro  finai  e  habitual  das  damas  do  oIReio,  diz  Es- 
toile,  e  onde  algumas  vezes  não  deixavam  de  o  continuar  a  exercer.» 

Uma  anedocla,  referida  nas  notas  de  Lenglet-Dufresnoy,  diz-nos  que  el- 
rei  levava  a  toda  a  parte  no  seu  séquito,  tanto  nas  viagens,  como  nas  devo- 
ções, uma  multidão  de  mulheres  da  corte.  Assim,  quando  ia  ouvir  os  sermões 
do  padre  jesuita  (ionthier  ás  egrejas  de  Paris,  estas  damas  accudiam  em  tro- 
pel para  trocarem  um  olhar  e  um  sorriso  com  el-rei. 

Um  dia  pregava  o  jesuita  em  Saint-dervais.  A  marqueza  de  Verneuil  e  mui- 
tas outras  damas  foram  collocar-se  perto  do  sitio  onde  o  rei  estava  sentado. 
Emquanto  algumas  d'ellas  cochichavam,  a  marqueza  fazia  alguns  signaes  a  el- 
rei,  que  só  a  muito  custo  podia  reprimir  o  riso. 

—  Sire,  disse-lhe  com  amargura  o  jesuita,  não  deixará  jamais  vossa 
magestade  de  vir  com  um  serralho  ouvir  a  palavra  de  Deus,  e  dar  similhante 
escândalo  n'cste  santo  logar  ? 

El-rei  ouviu  com  resignação  christã  a  reprimenda  Ião  justamente  mere- 
cida, mas  nem  por  isso  foi  mais  reservado  no  seu  proceder,  nem  deixou  de 
dar  escândalo  aos  seus  súbditos. 

O  seu  derradeiro  amor,  o  que  talvez  puzesse  o  punhal  na  mão  de  Ravail- 
lac,  mostra  até  onde  podia  chegar  a  depravação  dos  seus  costumes,  e  é  um 
dos  episódios  mais  extraordinários  da  historia  da  prostituição  na  corte  de  França. 

«!N'aquelle  tempo  el-rei,  escrevia  Estoile,  no  seu  diário  com  data  do  mez 
de  junho  de  1609,  perdidamente  namorado  da  princeza  de  (2ondé,  que  passava 
pela  mulher  mais  bella  não  só  da  corte,  mas  até  de  toda  a  França,  deu  assum- 
pto aos  curiosos  e  maldizentes,  que  mesmo  sem  este  caso  já  fatiavam  muito 
licenciosamente  de  Sua  Magestade  e  da  corrupção  da  corte.» 

A  joven  Carlota  Margarida,  filha  de  Henrique,  duque  de  Montmorency, 
marechal  e  condestavel  de  França,  apparecia  n'aquelle  anno  pela  primeira  vez 
na  corte. 

«Era  tão  joven,  diz  o  auctor  dos  A)nores  do  Grande  Alcandre,  que  a|íe- 
nas  havia  sabido  da  infância.  A  sua  belleza  era  milagrosa,  as  suas  maneiras 
tão  graciosas,  que  parecia  uma  maravilha.  Alcandre  viu-a  dançar  com  uma  seta 
na  mão,  porque  n'aquella  dança  ella  e  as  damas  da  rainha  representavam  as 
nymphas  de  Diana,  e  sentiu  o  coração  trespassado  com  tanta  violência,  que  a 
ferida  nunca  mais  poude  cicatrizar-se. 

O  condestavel  havia  posto  os  olhos  em  Bassompierre  para  o  casar  com 
sua  filha,  mas  el-rei  que  vira  aquclle  milagre  de  belleza  e  de  encantos,  não  va- 
cillou  em  procurar-lhe  outro  commodo,  que  deixasse  o  campo  livre  aos  seus 
vergonhosos  desígnios. 

Um  dia  el-rei  disse  a  Bassompierre,  que  era  o  seu  conjpanheiro  favorito 
de  meza  e  de  libertinagem: 


DA    PROSTITUIÇÃO  507 

—  Estou  mais  do  que  namorado,  eslou  furiosamente  apaixonado  por  Ma- 
demoiselle  de  Montmorency.  Se  casares  com  ella  e  fores  amado,  ficarei  teu  ini- 
migo. Se  ella  chegar  a  gostar  de  mim,  não  me  poderás  ver  com  bons  oliios. 
O  melhor  é  evitar  este  motivo  de  contendas  entre  nós,  porque  gosto  de  ti,  e 
tenho-le  verdadeira  amisade.  De  resto,  tenho  pensado  em  casal-a  com  meu 
sobrinho,  o  príncipe  de  (2ondé,  para  a  ter  assim  na  minha  família.  Esta  mulher 
será  a  consolação  e  o  entretenimento  da  velhice  em  que  vou  entrar.  A  meu  so- 
brinho, que  gosta  mil  vezes  mais  da  caça  do  que  das  mulheres,  dar-lhe-hei  cem 
mil  libras  annuaes,  e  por  mim  contentar-me-hei  com  o  allecto  d'ella,  sem  pre- 
tender outra  cousa. 

Bassompierre  obedeceu  sem  demora  a  uma  ordem  tão  peremptória,  e  ma- 
demoiselle  de  Montmorency  casou  com  o  príncipe  de  Conde. 

Desde  então  el-rei  entregou-se  sem  pudor  a  todas  as  extravagâncias  da 
sua  paixão,  «que  era  tão  grande,  diz  Estoile,  que  el-rci  Henrique,  o  Grande, 
mudou  dentro  de  pouco  tempo  de  trajo,  de  barba,  e  até  de  aspecto.» 

O  poeta  Malherbe  prestava  indignamente  a  sua  musa  á  glorificação  d'este 
amor  adultero,  e  se  dermos  credito  a  algumas  estrophes  escriptas  sob  o  nome 
de  Alcandre,  Orante,  a  nympba  inspiradora  do  rei,  não  era  insensível  a  esse 
amor. 

Tão  enthusiasmado  andava  el-rei  na  caça  de  sua  sobrinha,  que  pôz  em 
movimento  um  numero  prodigioso  de  pessoas,  inclusive  a  mãe  do  marido.  O 
príncipe  de  Conde,  indignado  dos  manejos  d'el-rei,  ousou  dirigir-lbe  as  mais 
vivas  censuras,  chegando  até  a  chamar-lhe  os  nomes  mais  injuriosos.  {Ilegis- 
tres-Journaux,  de  P.  Estoile,  ediç.  de  Champollion,  pag.  547,  reinado  de  Hen- 
rique IV.) 

O  príncipe  de  Conde,  quando  soube  que  el-rei  se  valia  de  sua  mãe  como 
da  medianeira  mais  efficaz  para  corromper  a  virtude  de  sua  esposa,  dirigiu 
também  as  mais  justas  censuras  a  essa  dama  venal,  exprobando-lhe  ter  que- 
rido deshonral-o.  Na  sua  indignação  justíssima,  o  príncipe  chegou  a  chamar  a 
sua  mãe  proxeneta  {miuinerflle.) 

Este  extranho  caso  que  nos  mostra  a  própria  mãe  collahorando  na  des- 
honra  de  seu  filho,  é  um  dos  mais  deploráveis  testemunhos  da  degradação  mo- 
ral dos  cortezãos  n'aquclla  épocba. 

f^edro  de  TEstoilc  dá  mais  um  traço  neste  horrível  quadro,  atlribuindo 
á  própria  rainha  uma  cerla  cumplicidade  n'esta  cabala  de  tantos  illustres  per- 
sonagens contra  a  honra  da  princeza  de  Conde. 

—  Sei  perfeitamente,  dizia  Maria  de  Medíeis,  que  ha  trinta  proxenetas  em 
acção  para  esta  intriga  amorosa.  Se  eu  entrar  n'ella,  ficará  havendo  trinta  e  uma. 

O  príncipe  de  Conde  conseguiu  livrar  a  sua  honra  conjugal  das  violên- 
cias que  contra  ella  el-rei  e  os  cortezãos  premeditavam.  E  para  não  ser  victima, 
teve  de  tirar  de  França  sua  esposa,  levando-a  para  Bruxellas,  onde  a  poz  a 
bom  recato. 

Henrique  iv  tel-a-hia  ido  buscar  com  as  armas  na  mão,  se  o  punhal  de 
um  regicida  não  tivesse  destruído  de  chofre  com  a  vida  do  monarcha  a  sua 
torpe  intriga. 


508  HISTORIA 

A  paixão  frenética  de  Henrique  iv  pela  princeza  de  Conde,  dera  grande 
incremento  ao  numero  e  á  actividade  dos  intermediários  da  prostituição,  que 
se  dedicavam  a  promover  os  prazeres  do  rei.  Um  dos  caracteres  mais  notáveis 
da  prostituição  n'aquella  époclia  é  o  zelo  da  gente  da  corte  no  desempenho 
d'estes  papeis  indignos,  não  só  em  proveito  dos  soberanos,  como  também  no 
dos  principes  e  dos  grandes.  O  senso  moral  estava  de  tal  modo  perdido,  que 
os  fidalgos  não  tinham  escrúpulo  em  prestar-se  a  estes  papeis,  quando  se  tra- 
ctava  de  satisfazer  os  desejos  de  um  poderoso  protector. 

Ninguém  se  importava  de  ser,  em  caso  de  necessidade,  um  vil  alcovo- 
teiro,  a  troco  de  merecer  as  graças  do  seu  protector.  Todos  se  consideravam 
fejizes,  honrados  e  orgulhosos  de  descobrirem  uma  nova  belleza  destinada  ao 
leito  real.  Assim,  o  estigma  da  infâmia  cabe  muito  mais  a  estes  vis  medianei- 
ros, do  que  ao  mesmo  rei,  embora  elle  fosse  incapaz  de  poder  resistir  ás  suas 
impuras  sollicilações. 

O  typo  mais  completo  do  proxenetismo,  o  principal  cúmplice  dos  exces- 
sos de  Henrique  iv,  foi  o  italiano  Sebastião  Zamet,  simples  sapateiro  no  tempo 
de  Henrique  ni,  que  chegou  bem  depressa  a  ser  senhor  de  um  milhão  e  sete- 
centos mil  escudos,  conselheiro  do  rei,  administrador  de  Fontainebleau,  supe- 
rintendente da  casa  da  rainha,  barão  de  Bllly  c  Murat,  etc,  etc. 

Zamet,  a  quem  Henrique  iv  chamava  familiarmente  o  seu  Sebastião, 
apreciando  muitíssimo  os  seus  gracejos  e  a  sua  abnegação  servil,  tinha  sido  o 
medianeiro  de  quasi  todos  os  amores  de  seu  amo.  Era  elle  que  desempenhava 
as  mysteriosas  funcçóes  de  superintendente  dos  prazeres  do  rei.  No  seu  magni- 
fico palácio  da  rua  de  (Jerisaie,  era  onde  o  rei  costumava  dar-se  ás  grandes  ex- 
pansões com  os  seus  companheiros  de  orgia.  Era  alli  também  que  passava  a 
noite  com  as  mulheres  que  Zamet  se  encarregava  de  lhe  fornecer.  Finalmente, 
todas  as  favoritas  reaes  alli  tinham  começado  as  suas  aventuras  com  el-rei. 

O  italiano  teve  dois  competidores  no  vil  otRcio  que  exercia  com  tanta 
aptidão  como  cynismo  em  serviço  d'el-rei,  o  duque  de  Bellegarde  e  o  marquez 
de  la  Varenne.  O  primeiro,  conhecido  até  pelo  titulo  de  maqaerel  orcUnaire  de 
Sa  Magesté  (Tocsin  des  Massacreurs,  ediç.  de  1579,  p.  47)  sobresabia  na  arte 
de  escolher  e  preparar  bons  manjares  para  a  mesa  d'el-rei.  Sabia  egualmente 
preparar  as  mulheres  destinadas  aos  reaes  prazeres.  Fora  elle  «que  introdu- 
zira (labrieila  d'Estrées,  e  em  seguida  Jacqueline  de  Bueil.» 

O  segundo  começara  por  ser  cosinheiro  da  irmã  d'el-rei.  Ganhou,  porém, 
tanto  no  favor  do  monarcha,  que  chegou  a  ser  administrador  geral  dos  correios 
e  conselheiro  de  estado.  Era  o  mercúrio  del-rei,  encarregado  especialmente  de 
levar  e  trazer  os  bilhetes  e  mensagens  de  amor,  e  denominavam-no  :  ministro 
dos  reaes  prazeres.  [Víe  de  M.  Plessis-Mornaij,  lib.  \\.) 

«Os  alcoviteiros  são  agora  marquezes!»  exclamava  Aubigné,  na  Confis- 
são de  Sancy,  faltando  de  Varenne,  que  havia  passado  da  arte  culinária,  para 
as  intrigas  do  amor  e  do  estado. 

As  mais  illustres  damas  intervinham  também  n'este  infame  trafico,  que 
lhes  assegurava  o  favor  e  a  projecção  d'el-rci.  Vimos  ainda  agora  a  piinceza 
de  Conde  associada  a  este  galan  de  barba  branca  contra  a  castidade  de  sua  nora 


IIA    PROSTITUIÇÃO  509 

e  a  honra  de  seu  próprio  filho.  Vimos  também  que  Madame  de  Sourdis  favo- 
rei'ia  o  commerclo  ailultero  de  sua  sobrinha,  (iabriella  d'Estrécs.  A  prineeza  de 
(Jonli,  .Mademoisellc  de  (iuise,  que  fora  lambem  uma  das  favoritas  do  Grande 
Alcandre,  não  cessava  de  lhe  procurar  divertimentos  d'esta  espécie,  e  tornara-se 
a  corruptora  das  suas  rivaes. 

Poderíamos  mencionar  um  grande  numero  de  mulheres  illustres,  que  es- 
tavam sempre  dispostas  a  secundar  as  phantazias  licenciosas  do  mais  libertino 
dos  reis.  •    . 

Na  nihliotheca  de  M.  Gnillaame,  sal\  ra  cilada  frequentemente  nas  notas 
da  Confissão  de  Sancy,  mencionavam-se  as  duas  obras  seguintes  :  Os  sete  li- 
vros de  castidade,  feitos  por  La  Varenne  e  dedicados  a  Madame  de  Retz :  e  os 
Preceitos  do  ]'roj-enetismo,  compostos  por  Madame  de  Villers,  commentados 
por  Madame  de  Vitry  e  dedicados  a  La  Varenne. 

Outra  satyra  do  mesmo  género,  que  não  possuímos,  mas  de  que  encon- 
tramos um  extracto  no  Journal  d'Estoile  Qulho  de  IG09),  caracterisa  ainda  me- 
lhor o  escandaloso  lenocínio  (|ue  se  praticava  em  proveito  do  rei  Henrique  iv. 
N'uma  suppjica  dirigida  a  ei-rei,  o  chamado  ("-havelle  allega  que  exercera  me- 
lhor que  Duret,  de  quem  se  diz  companheiro,  o  oílicio  de  maquereau,  «um  dos 
principaes  do  mundo,  e  no  qual  o  espirito  do  homem  se  revela  melhor.»  Accres- 
centa  que  levara  a  cabo  emprezas  muito  dilficeis,  com  excellente  resultado  e 
menos  azar  que  Duret,  pelo  que  o  desafiava  a  eile  Duret,  e  ao  mais  famoso  na 
matéria  em  questão.  Como  prova  d'esta  verdade  citava  as  conquistas  tal  e  tal, 
«das  quaes,  diz  elle  ao  rei,  vós  mesmo,  sire,  podeis  dar  testemunho,  levadas 
a  eíTeito  por  minha  diligencia,  conquistas  tão  dilficeis  que  o  mais  hábil  no  meu 
olficio  teria  perdido  completamente  o  seu  tempo.» 

Tallemant  des  Reaux  conta  que  o  marechal  de  Roquelaure,  que  era  torto, 
andando  um  dia  com  ei-rei  Henrique  iv,  passara  por  uma  vendedora  de  sar- 
gos  {maquereaux)  e  lhe  perguntara  para  rir: 

—  Como  distingues  tu  os  machos  das  fêmeas? 

—  E'  muito  fácil,  meu  senhor:  os  machos  são  tortos. 

«Boa  resposta,  accrescenta  Tallemant,  porque  o  marechal  era  accusado 
de  haver  servido  mais  de  uma  vez  de  alcoviteiro  de  seu  real  amo.» 

A  palavra  maquereau  significa  o  peixe  sargo,  N'outra  accepção,  como 
tantas  vezes  temos  visto,  designa  o  nlcoviteiro  e  o  rufião. 

Os  amores  innumeraveis  da  rainha  Margarida  e  do  Grande  Alcandre, 
referidos  summariamente,  como  neste  capitulo  fizemos,  constituem  o  mais  curioso 
e  característico  episodio  da  historia  da  prostituição  no  fim  do  século  xvi. 


CAPITULO  XXXIX 


SUMMARIO 


Annaes  da  corte  no  tempo  de  Ueuii(|ue  iii  e  de  Henrique  iv.— A  bella  Cliateauneur.— A  ceia  dos  três  reis  com 
Nanlouillet.— O  casamento  da  favorita  d'el-rei.— Assassínio  de  Madame  Villei|uier  por  seu  marido.— Indi,;nas  vio- 
lências de  Henrique  iii  e  dos  seus  favoritos.— A  cocui^dia  do  Paiaiso  do  nmor.—.\  bitiliolbeca  de  Madame  de  Mont- 
pensier.— U  manifesto  das  damas  da  coite.—  As  damas  de  honor  da  ramha.  —  .Malherbe  e  o  senhor  de  la  Loue.—  A 
Sagonne  e  o  barão  de  Termes.— Indulgência  de  Henrique  iv.— Principies  da  bella  galanteria.— Consequências  do  lu- 
.10.  — O  lenço  de  19:000  escudos  de  Gabrieila  d'EslréBS.—  A  tapeçaria  de  um  palaciano  e  a  noite  de  uma  pnnceza.  — 
Os  mysterios  dos  deuses. 


ULAURE  uiz  com  razão  na  sua  Historia  de  l'aris  (ecli^.  in-li.  t. 
IV,  p.  492)  que  as  scenas  de  sensualidade  descriptas  por  Bran- 
lòme,  para  dar  uma  ideia  dos  costumes  da  corte  «parecem 
iguaes  ás  que  poderiam  fornecer  os  annaes  de  uma  casa  de 
prostituição.»  O  licencioso  chronista,  que  viveu  até  ao  anno  de 
1614,  teve  de  abandonar  a  corte  em  I'i82,  refugiando-se  nas  suas  propriedades, 
onde  escreveu  as  famosas  memorias  a  que  tantas  vezes  nos  temos  socorrido. 
Nem  todas  elias,  porém,  chegaram  ao  nosso  conhecimento.  Sua  sobrinha.  Ma- 
dame de  Duretal,  teve  o  cuidado  de  queimar  as  mais  escandalosas.  Podemos 
perfeitamente  calcular  o  que  ellas  seriam,  pelo  que  a  sobrinha  do  chronista  nos 
conservou. 

Brantôme  não  poude  vér,  portanto,  o  fim  do  reinado  de  Henrique  lu  nem 
cousa  alguma  do  de  Henrique  iv.  Sabia  apenas  o  que  se  passava  no  Louvre 
pela  correspondência  com  os  amigos  que  alli  deixara,  e  por  isso  absteve-se  de 
referir  acontecimentos  de  que  não  fora  testemunha,  e  cuja  authenticidadc  não 
podia  assegurar.  Não  podemos  pedir  ao  engraçado  chronista  dos  escândalos  da 
sua  épo<;ha  noticias  a  respeito  da  prostituição  da  corte  de  Henrique  ui  e  de 
Henrique  iv. 

Brantôme,  a  julgar  por  algumas  paginas  em  que  se  mostra  inimigo  im- 
placável da  libertinagem  italiana,  sentia  immensamente  a  vergonhosa  aberração 
em  que  havia  cabido  o  ultimo  dos  Valois,  rodeado  de  vis  mancebos.  Julgava 
o  chronista  que,  sob  a  iniluencia  d'estes  horrores  estrangeiros,  havia  cessado 
a  galanteria  franceza,  e  que  o  amor  das  damas,  tão  recommendado  pelas  tradic- 
ções  do  paiz,  existia  apenas  entre  os  antigos  cortezãos  c  n'alguns  fidalgos  in- 
corruptíveis. 

Não  devemos  suppòr,  todavia,  que  a  abominável  seita  dos  mancebos  e 


512  HISTORIA 

hcrmaphrodilas  dcstruisse  de  lodo  a  galanteria  da  côrle,  a  ponto  de  se  haverem 
tornado  as  damas  niillas  ou  indilíerentcs  n'uma  questão  em  que  sempre  ha- 
viam sido  as  primeiras  interessadas.  Diremos  até  em  honra  dos  mignons,  que 
elles  não  eram  tão  insensíveis  aos  encantos  do  bejio  sexo,  como  se  poderia 
julgar  por  causa  da  sua  péssima  reputa(,'ão.  Henrique  m  tivera  amantes  e  os 
seus  mancebos  lambem,  e  muitos  d'elles  que  acabaram  tragicamente,  não  po- 
deriam accusar  da  sua  morte  senão  as  mulheres. 

Quando  Henrique  iii  era  apenas  duque  d'Anjou,  amou  Renata  de  Rieux, 
conhecida  pela  alcunha  de  bella  Chatemineuf.  Renata  era  uma  das  damas  de 
honor  de  Catharina  de  Medicis,  as  quaes  o  famoso  iibello  hugucnolte,  intitulado 
o  Tocsin  des  Massacreurs,  não  calumniou  decerto,  marcando-as  com  o  sello  da 
prostituição. 

«Ninguém  ignora,  lè-se  n'eslc  Iibello  [p.  49,  da  edição  de  loTO)  o  im- 
pudor  das  damas  da  rainha  mãe.  Sirva  de  exemplo  a  Rouet,  a  Montigny,  a 
Chateauneuf,  a  Atry  e  outras,  cuja  castidade  é  tão  duvidosa,  que  dilficilmente 
acharia  um  defensor  entre  todos  os  cortezãos.» 

«Quando  o  duque  d'Anjou  partiu  para  a  Polónia  onde  o  chamavam  os 
votos  da  nobreza  d'aquelle  paiz,  que  lhe  ofíerecia  a  coroa,  quiz  deixar  um  ma- 
rido a  mademoiselle  de  Chateauneuf,  á  qual  dera  por  eseripto,  segundo  se  di- 
zia, promessa  de  casamento,  e  procurou-lh'o  entre  vários  fidalgos  da  corte. 
Mademoiselle  de  Chateauneuf  era,  porem,  de  um  caracter  muito  orgulhoso  e 
inlícxivel  para  se  submeltcr  a  este  trafico  mairimoniai.  Apesar  d'isso,  o  duque 
d'Anjou  pòz  os  olhos  cm  Nantouillet,  preboste  de  Paris,  um  dos  seus  compa- 
nheiros de  meza  e  de  prazeres. 

Nantouillet  declinou  immediatamente  a  honra  que  pretendiam  fazer-lhe, 
respondendo  ao  novo  rei  da  Polónia,  que  para  casar  com  uma  mulher  perdida, 
esperaria  que  el-rei  Carlos  ix  estabelecesse  bordeis  no  Louvre. 

Esta  digna  resposta  chegou  aos  ouvidos  de  Carlos  ix,  que  guardou  sem- 
pre por  este  motivo  um  certo  rancor  a  Nantouillet. 

Poucos  dias  depois  (setembro  de  1573),  interceptou-se  uma  carta  escripta 
em  Paris  por  um  cortezão,  na  qual  se  faltava  nos  termos  seguintes  d'um  es- 
cândalo recente,  que  estava  dando  assumpto  ás  conversações  da  corte  e  da  ci- 
dade: 

«Vi,  dizia  o  auctor  da  carta,  os  três  reis,  que  chamam  o  Tyranno,  o  da 
Polónia  e  o  de  Navarra,  que  para  darem  graças  a  Deus  pela  paz  e  pela  sua  li- 
berdade, não  deixavam  um  momento  de  o  oilender  com  os  seus  lascivos  e  asque- 
rosos prazeres.  Estes  bons  monarchasfizcram-se  servir  n'um  banquete,  que  ul- 
timamente deram,  por  prostitutas  nuas.  .  .» 

M.  M.  Champollion,  na  sua  edição  do  Diário  de  Henrique  iti,  ahstive- 
ram-se  de  reproduzir  certas  jjassagens  obscenas,  que  l'edro  dT-stnile  inseriu 
iiitegralmenlc   no  seu  manuscr^ipto. 

O  banquete  não  fora  mais  do  í|uc  o  preludio  de  scenas  muito  mais  es- 
candalosas. Os  três  reis,  não  sabendo  como  passar  o  resto  da  noite,  avisaram 
Nantouillet  de  que  iriam  visital-o  ao  seu  palácio  de  Hercules,  situado  ao  fim 
da  rua  dos  Agostinhos.  Nantouillet  excusou-se  em  vão  de  receber  os  reaes  hos- 


DA    PROSTITUIÇÃO  oin 

pedes,  mas  viu-sc  obrigado  a  issn  por  ordem  expressa  de  el-rei.  e  por  fanto 
mandou  preparar  a  eollação. 

Os  convidados  meios  ébrios  baviani  resolvido  saquear  o  palaeio  de  Hei- 
cules,  e  por  tanlo,  feito  o  signal  previamente  combinado,  apoderaram-se  da 
baixella  de  prata,  arrombaram  os  cofres  e  os  armários,  e  tiraram  tudo  (|uantn 
encontraram  de  precioso,  retirando-se  carregados  com  a  presa  opima,  apesar  das 
queixas  e  supplicas  do  proprietário. 

No  dia  seguinte,  correu  o  boato  de  que  uma  somma  de  cincocnta  mil  es- 
cudos, roubada  dos  cofres  de  .\antouillel,  fora  entregue  cem  uma  prodigio.sa  ri- 
queza de  jóias  á  bella  Chateaunef,  para  a  indemnisar  e  vingar  do  despre/.u  feito 
da  sua  mão  pelo  desgraçado  preboste  de  Paris. 

Este  queixou-se  do  roubo  ao  primeiro  presidente  do  parlamento,  i|ue  an- 
tes de  instaurar  o  processo,  deu  conhecimento  do  i|ue  se  paçsava  a  el-rei  Car- 
los IX. 

—  Não  faça  caso  d'isso,  respondeu  el-rei.  Diga  a  .Nantouillel  que  repe- 
tiremos a  brincadeira,  se  voltar  a  pedir  uma  indemnisação 

.Nantouillet,  avisado  pelo  presidente,  apressou-se  a  retirar  a  sua  (juerella. 

O  duque  d'Anjou  havia  a  esse  tempo  rompido  com  mademoiselle  de  Cha- 
teaunef, ou  pelo  menos  dava-lhe  publicamente  uma  rival,  a  princeza  de  Conde, 
cujo  retrato  trazia  ao  pescoço.  O  amor  de  Henrique  por  esta  encantadora  re- 
sistiu ate  mesmo  à  ausência.  Ao  voltar  da  Polónia  para  succeder  a  Carlos  ix, 
tornou  a  encontrar  a  sua  amante,  mas  teve  o  pezar  de  a  perder,  d'ahi  a  pouco 
tempo. 

.Mademoiselle  de  Chateauneuf  tentou  ainda  fazer  valer  os  seus  antigos  di- 
reitos sobre  o  coração  do  príncipe,  que  não  cessara  de  lhe  mostrar  afFeclo,  e 
ainda  que  os.  costumes  de  Henrique  houvessem  soUrido  uma  triste  metamor- 
phose,  foi  por  um  momento  sua  amante.  A  bella  era,  porém,  tão  pouco  tole- 
rante para  com  os  mitjnons,  que  el-rei  voltou  n<n'amenlc  á  ideia  de  a  casar 
para  se  vér  livre  d'ella. 

El-rei  casou  também  com  Luiza  de  Vaudemont,  sabendo  que  esta  prin- 
ceza havia  sido  requestada  pelo  conde  de  Brienne,  que  nunca  deixou  de  estar 
enamorado  d'ella. 

—  Conde,  dissera-lhe  el-rei  em  tom  peremptório,  ai;abo  de  lhe  tirar  a 
sua  amada.  Em  compensação,  vou  dar-lhe  a  minha:  caso-o  com  a  Chateau- 
neuf. 

Não  era  um  gracejo  de  seu  amo,  eo  conde  de  Brienne,  por  assim  o  enten- 
der, fugiu  precipitadamente  da  corte,  para  se  eximir  a  esse  ridículo  casamento. 
A  bella  Chateauneuf  teve  com  isso  grande  prazer,  pois  nada  desejava  menos 
do  que  um  marido,  aspirando  unicamente  a  conservar  o  seu  titulo  de  favorita. 
Commetteu,  porém,  a  imprudência  de  se  pòr  abertamente  em  guerra  com  ajo- 
ven  rainha;  e  Catharina  de  Medíeis  prohibiu-lhe  que  voltasse  á  corte. 

El-rei  absteve-se  cuidadosamente  de  a  defender.  A  pobre  favorita,  ven- 
do-se  abandonada  do  príncipe,  que  os  mignons  indispuzeram  com  ella,  pra- 
ticou uma  tolice,  pelo  despeito  que  tinha,  mas  d'ahi  a  pouco  arrependeu-sc 
amargamente. 

BUTOaU  Dá.  PBMTTrOIçIo.  TOMO  n— FOLHA  65. 


3  I  4  HISTORIA 

«Esta  joven  tão  orgulhosa  e  cheia  de  desdéns,  diz  Brantõme,  que  só  ti- 
nha palavras  arrogantes  para  os  galans  que  d'ei!a  se  aproximavam,  entrega- 
va-se  d'ahi  a  pouco  a  um,  que  obteve  d'ella  tudo  quanto  quiz,  poucos  dias 
antes  de  se  casar. 

«Era  um  italiano  chamado  Altoviti,  muito  abaixo  em  tudo  e  por  tudo  dos 
esbeltos  fidalgos  que  a  requestavam.» 

Dois  annos  depois,  tendo-o  surprehendido  n'uma  infidelidade,  matouo 
varonilmente  por  a  sua  própria  mão. 

A  esse  tempo,  Henrique  iii  não  precisava,  nem  sabia  que  fizesse  de  uma 
favorita  official,  e  bem  satisfeito  ficou  de  se  vèr  assim  livre  das  eternas  censu- 
ras da  Chateauneuf,  que  a  cada  instante  lhe  exprobrava  os  seus  infames  hábi- 
tos. Desde  então  não  tornou  a  cahir  sob  o  predominio  de  nenhuma  mulher,  mas 
apezar  dos  seus  perfumados  mignons,  voltava  de  vezes  em  quando  às  primei- 
ras inclinações  da  sua  juventude. 

Accusaram-no  de  haver  impellido  o  seu  favorito  Renato  de  Villequier  a 
matar  sua  mulher,  (agosto  de  1377)  gravida  de  cinco  mezes,  ainda  que  liavia 
mais  de  dez  que  seu  marido  não  tinha  relações  com  ella. 

Esta  dama  tinha  por  amante  o  senhor  de  Barbizi,  bello  parisiense,  que 
ella  não  queria  sacrificar  aos  ciúmes  d'el-rei. 

«Este  assassinio,  diz  Estoile  {Journal  d'Henri  iii,  antiga  edição)  foi  jul- 
gado por  todos  como  cruel,  por  ser  perpetrado  n'uma  mulher,  gravida  de  dois 
gémeos,  e  como  deveras  estranho  por  ser  praticado  no  palácio  real  (em  Poitiers) 
estando  alli  sua  magestade  e  a  corte,  onde  a  libertinagem  se  pratica  publica  e 
notoriamente  entre  as  damas,  tendo-a  ellas  como  virtude. 

«A  facilidade,  porem,  do  perdão  que  Villequier  obteve  sem  demora,  levou 
a  crer,  que  em  tudo  isto  houvera  uma  ordem  secreta  d'el-rei,  talvez  para  pu- 
nir a  dama  de  algum  desaire  similhante,  ou  de  um  insulto  qualquer.» 

Esta  ultima  phraze  pertence  a  Pedro  Dubry,  que  melhor  informado  do 
que  Estoile,  a  introduziu  na  sua  copia  em  vez  da  que  encontrara  no  original. 

N'um  epitaphio  satyrico,  que  ao  tempo  corria  a  respeito  d'essa  tragedia, 
a  mulher  impudica  era  tão  atacada  como  o  marido  infame  : 

«>'em  a  ira,  nem  a  honra,  nem  os  ciúmes  o  fizeram  derramar  o  sangue 
de  sua  esposa.  A  honra!  Tem-n'a  elle  porventura?  Como  poderia  também  ter 
ciúmes  de  uma  mulher,  que  sabia  muito  bem  ter  pertencido  a  lodo  o  mundo, 
e  a  quem  elle  próprio  havia  prevertido  com  mil  baixezas,  torpezas  e  infâmias? 
Oh!  vós  que  ides  passando,  esta  mulher  teve  o  justo  castigo  de  uma  adultera, 
e  o  infame  carrasco  serei  sempre  amaldiçoado,  visto  que  foi  o  seu  alcoviteiro.» 

A  coUecção  de  Sauval  publicada  em  17.39,  sob  o  titulo  de  Memorias  his- 
tóricas relalicas  aos  amores  dos  reis  de  França,  contém  muitas  anecdotas  que 
provam  o  seguinte  facto  curioso: — Os  mignons  foram  sempre  mais  inclinados 
ás  mulheres  do  que  el-rei.  «Um  dia  Henrique  iii  teve  a  velleidade  de  conquis- 
tar a  esposa  de  um  conselheiro  do  parlamento,  tão  bella  como  virtuosa,  e  ha- 
vendo-o  conseguido  emfim  no  seu  próprio  gabinete,  abandonou-a  em  seguida 
aos  seus  mignons.  A  pobre  senhora,  desesperada  pelo  ultrage  e  pela  vergonha, 
teve  um  accidente  c  morreu  nos  braços  d'elles.» 


DA    PROSTITUIÇiO  515 

Dc  outra  vez,  sabendo  que  um  dos  seus  favoritos  estava  enamorado  de 
madame  de  Mirande,  senhora  de  virtude  provada,  el-rei  não  julgou  impróprio 
da  sua  dignidade  desempenliar  o  papei  de  alcoviteiro,  e  atlraliiu-a  ao  Louvre, 
sob  pretexto  de  lhe  conceder  certa  gra^a,  por  cila  cm  tempo  sollicilada.  Madame 
de  Mirande  chegou  ao  paço  á  hora  em  que  el-rei  estava  á  meza,  e  foi  introdu^ 
zida  n'um  gabinete  secreto,  onde  em  seguida  Henrique  foi  interceder  pelo  seu 
favorito  La  Guiché  . . . 

«A  dama  era  inflexível,  c  para  se  subtrahir  ao  perigo  em  que  a  sua  am- 
bição a  havia  posto,  allegou  uma  indisposição  comnium  ás  pessoas  do  seu  sexo, 
que  a  impedia  n'aquelle  momento  de  acceder  aos  desejos  d'el-rei.  Henrique  iii 
ordenou  que  dois  criados  a  segurassem.  .  .  e  facilmente  se  adivinha  o  que  suc- 
cedeu  n'aquelle  gabinete  em  que  tomaram  parte  no  crime  o  rei  e  os  seus  mi- 
gnons.  Quando  aquelles  infames  Tarquinios  deixaram  em  paz  a  sua  Lucrécia, 
moslraram-se  indilíerentes  ás  lagrimas  do  sangue  com  que  ella  deplorava  a 
violação  de  que  fora  victima,  e  aos  grilos  e  lamentos  que  commoveriam  as  pró- 
prias feras.» 

Outro  dia  mandou  levar  a  Saint-Cloud  as  mulheres  mais  batidas  de  Pa- 
ris. Logo  que  chegaram,  mandou  que  as  despissem,  e  que  os  suissos  da  guarda 
fizessem  o  mesmo,  auctorisando-os  então  a  atacal-as,  para  o  que  as  mandou 
espalhar  pelos  jardins.  As  ribaldas  obedeceram,  soltando  gritos  indecentes.  El- 
rei,  acompanhado  dos  seus  favoritos  e  dos  seus  mais  Íntimos  confidentes,  di- 
vertiu-se  por  muito  tempo  a  vèr  o  que  só  se  costuma  praticar  sob  a  pudica  pro- 
tecção das  trevas,  ou  do  isolamento.» 

Scenas  como  estas  não  eram  raras  na  corte,  mas  em  escala  infinitamente 
mais  restricta,  e  nem  sempre  eram  actores  exclusivos  os  suissos  e  as  ribal- 
das. 

Brantòme  falia  com  uma  reserva  que  n'elle  não  é  muito  habitual,  (Dames 
galantes,  iv  discours,  De  rainour  des  filies)  de  uma  bella  comedia  intitulada, 

0  Paraizo  do  Amor,  que  fora  inventada  por  uma  joven  dama  da  corte  e  por 
ella  própria  representada  na  sala  de  Bourbon,  á  porta  fechada,  não  havendo 
outros  espectadores,  além  dos  que  tomavam  parte  na  representação.  Os  perso- 
nagens eram  seis,  três  homens  e  três  mulheres,  a  saber:  um  príncipe  e  a  sua 
amante,  um  senhor  e  uma  grande  dama,  uin  fidalgo  e  a  auctora  da  peça. 

Era  joven,  mas  soube  desempenhar  o  seu  papel  melhor  do  que  as  casa- 
das, porque  sabia  mais  do  que  de  ordinário  as  mulheres  costumam  saber  n'a- 
quella  edade. 

As  damas  da  corte  haviam  progredido  muito  desde  o  tempo  de  Francisco 

1  n'aquella  eschola  de  prostituição,  que  não  suspendia  nunca  as  suas  licções 
escandalosas.  As  suas  loucuras  e  excessos,  por  muito  tempo  occultos  á  sombra 
do  throno,  revelaram-se  de  súbito  á  indignação  publica,  quando  a  Reforma  e 
a  Liga  fizeram  cahir  successi vãmente  todos  os  véus  que  envolviam  a  vida  par- 
ticular dos  reis  e  dos  grandes.  O  olhar  indiscreto  do  povo  penetrou  em  abys- 
mos  de  depravação  até  então  desconhecidos,  e  quando  a  terrível  verdade  se 
apresentou  por  toda  a  parte,  todos  se  esforçaram  por  arrancar-lhe  os  muitos 
farrapos  que  a  encobriam. 


•3IG  HISTORIA 

Assim,  pois,  n'um  libello  satyrico,  que  começou  a  circular  em  Paris  em 
1587,  sol)  o  titulo  de  Bililiolhera  de.  Madame  de  Moiilpensier,  e  que  foi  apro- 
veitado então  |)or  Estoile  para  os  seus  Registres- J o nvnauT,  muitas  das  obras 
de  pliantazia,  (jue  faziam  parte  desta  bihliotheca,  àlludeui  á  má  conducta  das 
damas  da  corte. 

Eis  os  titulos  d'essas  obras,  cuja  explicação  nos  abstemos  de  fazer,  visto 
que  elles  S()  por  si  são  demasiado  eloquentes: 

Maneira  de  medir  rapidamente  os  t/randes  prados  ((^irandprez,  era  o  nome 
do  seu  estribeiro),  por  Madame  de  Nevers. 

Seijredos  da  desflorarão  dos  pagens,  por  Madame  de  Sourdis. 

\  avios  pratos  de  amor,  obra  tradazida  do  Itespanhol,  pela  Marecliala  de 
Retz,  e  dedicada  ao  senhor  de  Uunes,  seu  escudeiro. 

Modo  '/''  trabalhar  iio  pé  roxo  com  o  primeiro  que  chega,  por  Madame  de 
.Montpensier.  (Esta  dama  era  coxa.) 

I  ribaíderia  da  corte,  collegida  pelo  senhor  de  JÀncourt,  a  instancias  de 
(laboclic. 

Ó  gancho  das  donzellas  da  córie.  pela  dama  de  honor  de  Saint-Martin. 

Tractado  das  truanices  e  do  pro.renetismo  da  corte,  pelo  conde  Maulevrier. 

Historia  da  donzelía  .loanna,   por  Mademoiselle  de  Bourdeille. 

A  rhelorica  das  pro.veneles,  por  Madame  de  la  Chastre. 

Ámanach  das  entrevistas  amorosas,  por  Madame  de  Pragny. 
.    As  damas  da  rainha,  com  lettra  e  musica,  por  Madame  de  Sainl-Marlin. 

Tomámos  estes  titulos  já  da  edição  de  Leuglet-Dufresnoy,  já  da  de  Cham- 
pollion,  sem  nos  preoccuparmos  com  as  variantes  que  uma  e  outra  oíTerecem. 

lina  peça  do  mesmo  género  e  da  mesma  épocha,  o  Manifesto  das  da- 
mas da  corte,  pode  servir  de  commentario  a  alguns  d'ai|uelles  titulos  de  livi'0S 
inaginarios.  Este  manifesto  é  a  confissão  de  uma  das  maiores  peccadoras,  a 
começar  pela  rainha-mãe,  que  se  desculpa  de  haver  educado  seus  lilhos  nos 
maiores  vicios,  blasphemias  e  perlidias,  e  suas  filhas  n'uma  liberdade  im- 
pudica, permittindo  c  auctorisando  um  bordel  na  corte. 

O  manifesto,  publicado  em  Charcheau,  na  viagem  de  Nerac,  e  lirmado 
por  Pericart  com  licença  do  senhor  arcebispo  de  Lyon,  termina  d'este  modo: 

«As  damas  Vitry,  Bordeille,  Sourdis,  Birague,  Surgère  e  outras  da  corte 
(ia  rainha,  dizem  todas  a  uma  voz:  Ai,  ai,  ai,  meu  Deus!  (jue  será  de  nós,  se 
não  estendes  sobre  nossas  culpas  o  veu  da  lua  misericórdia!  Clamamos  em 
alta  voz  e  rogamos-te  que  te  dignes  perdoar  tantos  peccados  da  carne,  commel- 
lidos  com  reis,  príncipes,  cardeaes,  gentis- homens,  bispos,  abbades,  priores, 
poetas,  e  outra  muila  gente  de  Iodas  as  classes  e  condições,  taes  como,  pd- 
lafreneiros,  pagens,  lacaios  e  até  leprosos,  immundos  e  asquerosos.  E  digamos 
com  o  senhor  Villcquier:  Deus  meu,  misericoiilia,  que  bem  precisamos  d'ella, 
e  se  não  pudermos  encontrar  maridos,  entraremos  nas  Arrependidas!» 

Quantas  aventuras  escandalosas  não  constituiriam  por  esse  tempo  a  chro- 
nica  de  uma  crtrie,  em  que  os  velhos  não  eram  mais  regulares  e  prudentes  que 
os  jovens!  Fosse  qual  fosse,  de  resto,  a  relaxação  dos  costumes  não  se  perdoava 
aos  desgraçados,  que  se  deixavam  surprchendcr  in-llagrante.  O  próprio  Hen- 


DA    PROSTITUIÇÃO  3  I  7 

rique  lu  inoslrava-se  rij^ido  c  honesto,  digamol-o  assim,  quando  por  alguma 
imprudência  se  revelava  o  invslerio  dos  seus  amores  illicilos.  Uma  vezquiz  mandar 
decapitar  o  senhor  de  Loue,  que  tinha  impuras  rela(,'óes  com  a  Malherbc,  dama 
de  honor  da  rainha-mãc.  C.ontentou-se,  poi-ém,  de  o  ohrigar  a  casar-se  de  bom 
ou  mau  grado  com  a  sua  cúmplice,  mandando-os  passar  a  lua  de  mel  á  prisão 
de  Vincennes,  «por  causa,  diz  Estoile  (22  de  março  de  1578)  do  ultrage  feito  á 
casa  da  rainha,  sua  esposa,  tendo  tido  o  atrevimento  de  deixar  gravida  uma 
das  suas  damas.» 

Henrique  iv,  que  tantos  niotivos  tinha  para  ser  a  este  respeito  indulgente, 
esteve  a  ponto  de  castigar,  com  o  maior  rigor,  o  barão  de  Thermes,  irmão  do 
duque  de  Bellegarde,  que  eslava  exactamente  no  mesmo  caso  do  senhor  de  Loue, 
«tendo  sido  surprehcndido  uma  noite,  diz  Estoile  (fevereiro  de  1604),  na  ca- 
mará das  damas  de  honor  da  rainha,  deitado  com  a  Sagonne,  a  quem  amava 
já  havia  muito  tempo,  tendo  de  fugir  em  camisa.  A  dama  estava  gravida.» 

Tallemant  conta  a  mesma  aventura  com  as  seguintes  variantes: 

«Causou  grande  escândalo  por  esse  tempo  o  caso  de  uma  dama  da  rainha- 
mãe,  chamada  Sagonne.  O  galan  foi  passar  a  noite  ao  Louvre  com  ella.  A  go- 
vcrtiadora  deu  o  signal  de  alarme,  e  o  pobre  teve  de  saltar  pela  janella,  aban- 
donando o  casaco  ás  puas  das  grades,  para  melhor  descer.  Os  guardas  das  por- 
tas deixaram-n'o  fugir.  Era  muito  estimado,  e  de  mais  a  mais,  crimes  de  amor 
facilmente  se  perdoam.» 

Maria  de  Medíeis,  apesar  de  italiana,  ticou  tão  olfendida  com  este  escân- 
dalo, que  pediu  a  cabeça  do  barão  de  Thermes.  Henrique  iv  desterrou-o  apenas 
por  alguns  mezcs,  sem  o  obrigar  a  casar  com  a  Sagonne,  a  qual  foi  ignominio- 
samente expulsa  com  madame  de  Drou,  mostrando-se  a  rainha  inllexivel,  «como 
faz  sempre,  diz  Est(jile,  quem  tem  honestidade  e  virtude.» 

Henrique  iv  não  tinha  o  direito  de  ser  demasiado  severo  em  similhantes 
assumptos.  Por  isso,  fingindo  associar-se  á  causa  da  rainha,  e  participar  da  sua 
indignação,  não  usou  de  grande  rigor  para  com  os  pobres  amantes  que  se  dei- 
xaram surprehender.  Julga-se  até  que,  lendo  este  caso  chamado  a  sua  altcn- 
ção  para  a  tal  Sagonne,  mostrara  desejos  de  a  conhecer,  e  aproveitou  para  isso 
a  ausência  do  barão  de  Thermes. 

Segundo  Leduchal,  a  Sagonne  era  aquella  Bourdaisière,  que  figura  entre 
as  favoritas  de  Henrique  iv.  Esle  princi|)e  via  com  prazer  que  os  seus  corte- 
zãos  lhe  imitavam  os  exemplos,  mas  exigia  que  as  cousas  se  fizessem  scíu  es- 
cândalo, e  á  imitação  de  Francisco  i  mostrava-se  sempre,  ao  menos  nas  pala- 
vras, o  fidalgo  mais  sollicito  da  honra  das  damas  da  sua  corte. 

«Henrique  iv,  diz  Bassompierre  {Nouveaux  Mem.,  p.  171)  tinha  o  fraco 
das  mulheres,  e  apesar  de  não  gostar  de  as  arrebatar  aos  pacs  ou  aos  maridos, 
dava  comludo  muitos  maus  exemplos  e  escândalos,  tornando  públicos  certos 
vieios  que  a  decência  manda  occultar.» 

Vimos  no  capitulo  anterior  como  el-rei  sacrificava  os  pães  e  os  maridos 
aos  seus  caprichos.  Os  costumes  da  corte  não  podiam  ser  diflerentes  dos  seus. 
Deve  agradecer-se-lhe  todavia  o  ter  diminuído  consideravelmente  na  sua  corte 
a  prostituição  italiana,  que  Henrique  iii  deixara  como  uma  lepra  terrível  na  mo- 


518  HiSTORIA 

cidade  franceza.  Quando  os  Hermaphrodiías  foram  publicados,  Henrique  appro- 
vou  essa  terrível  salyra,  e  o  mesmo  fez  ao  libello  de  Tliomaz  Artus,  que,  se- 
gundo Estoile,  «descobria  os  costumes  da  corte  e  fazia  vêr  claramente  que  a 
França  era  n"essa  époclia  um  albergue  de  vicios  e  impudencias,  emquanto  que 
n'outros  tempos  fora  uni  honesto  seminário  de  virtudes.» 

E'  preciso  notarmos,  todavia,  que  a  bella  galanteria  começa  no  reinado 
de  Henrique  iv,  e  que  n'este  reinado,  se  o  fundo  dos  costumes  da  corte  era 
geralmente  detestável,  a  fcjrma  d'essa  corrupção,  se  assim  nos  podemos  expri- 
mir, era  quasi  sempre  honesta  e  elegante. 

Os  prazeres  sensuaes  n'aquella  épocha  pareciam  constituir  o  principal 
assumpto.  Tomavam,  porém,  uma  apparencia  mais  refinada  e  mais  decente, 
rodeavam-se  de  delicadezas  moraes  e  até  mesmo  de  uma  espécie  de  mysticismo. 
A  Aslrêa,  de  Honoré  d'Urfé,  poeta  de  estylo  alambicado,  servia  de  código  a 
todos  os  amantes. 

O  luxo  excessivo,  que  havia  invadido  a  corte  de  Henrique  iv,  bem  que 
este  monarcha  possuísse  em  summo  grau  o  amor  da  simplicidade,  não  podia 
também  deixar  de  ser  prejudicial  aos  bons  costumes.  As  favoritas  do  rei,  ape- 
sar do  seu  real  amante,  davam  leis  á  moda,  que  vinha  a  ser  então  um  funesto 
auxiliar  da  libertinagem.  Quando  se  sabe  que  Gabriella  d'Estrées  deu  ura  dia 
a  somma  de  19:000  escudos  por  um  lenço  bordado,  comprehende-se  perfeita- 
mente quantos  esforços  as  suas  rivaes  não  envidariam  para  possuírem  lenços 
iguaes.  Daqui  uma  multidão  de  compromissos  secretos,  que  deshonravam  as 
pobres  mulheres,  a  quem  a  garridice  e  a  vaidade  impelliam  á  perdição  e  ao 
abysmo. 

Sauval  refere,  nos  Amours  des  i-ois  de  Prance,  uma  singular  anecdota, 
mostrando  o  vergonhoso  trafico  a  que  o  amor  do  luxo  levava  as  principaes  da- 
mas da  corte. 

Vm  preboste  do  paço,  cujo  nome  não  menciona,  perseguia  ha  muito 
tempo  certa  princeza. 

O  galan  obtivera  apenas  da  sua  amada  recusas  e  desdéns.  Um  dia,  po- 
rém, chegaram  a  entender-se,  e  decidiu-se  que  uma  famosa  tapeçaria  que  o  pre- 
boste possuia  seria  o  preço  da  noite  que  a  princeza  lhe  outorgava. 

O  preboste  estava  de  má  fé,  e  no  dia  seguinte,  recusou-se  a  dar  á  dama 
a  tapeçaria  promettida,  «porque  a  noile  passou-se  de  modo,  por  culpa  d'elle, 
que  sahiu  do  leito  como  havia  entrado.» 

Isto  deu  logar  a  uma  espécie  de  litigio  entre  as  duas  partes,  e  para  o  re- 
solver, nomeou-se  como  arbitro  a  mulher  de  um  secretario  de  estado,  a  qual 
decidiu  a  pendência,  resolvendo  que  ambas  as  partes  haviam  de  carregar  a  ta- 
peçaria aos  hombros  de  um  moço  de  esquina,  e  que  a  dama  concedesse  outra 
noite  ao  queixoso  galan. 

Não  temos  n'este  extranho  caso  uma  das  mais  repugnantes  phases  da 
prostituição,  n'uni  tempo  em  que  os  bordeis  estavam  abolidos  por  uma  ordena- 
ção real  ? 

Henrique  iii  irritou- se  em  extremo  contra  Buscelay,  por  este  fidalgo  ter 
ousado  dizer-lhe,  a  propósito  da  epidemia  de  158i,  que  a  corte  era  uma  peste 


DA    PROSTITUIÇÃO  519 

mais  funesta,  ainda  e  á  qual  desgraçadamente  a  outra  não  podia  atacar. 
(Journal  d'Henri  iii,  19  de  outubro  de  loSí.) 

Henrique  iv,  em  igualdade  de  circumstancias,  teria  rido,  e  o  mesmo  faria 
o  jovial  monarclia,  se  podesse  ter  lido  nos  Registres-Journaiix,  de  Pedro  d'Es- 
toile  (outubro  de  1609),  por  oceasião  do  escândalo  causado  pelos  amores  do 
príncipe  de  Joinville  com  a  condessa  de  Moret,  estas  palavras : 

«Os  que  na  corte  se  tinbam  por  mais  sensatos,  e  penetravam  melhor  os 
sagrados  mysterios  dos  deuses  (ainda  que  muitas  vezes  parecessem  tão  humil- 
des como  os  outros)  diziam  haver  n'este  caso  um  plano  occulto  do  rei,  que  ti- 
nha mandado  fazer  á  condessa  o  que  ella  linha  feito,  e  que  a  respeito  d'estas 
cousas  havia  pouco  escrúpulo  na  corte.» 

Já  Lipsio  o  dizia  nas  suas  epistolas  : 

Mores  jam  vocentur,  nec  in  veniam  modo  veniant,  sed  in  Imidem. 


CAPITULO  XL 


SUMMARIO 


Corrupi'ão  do  povo  nos  fins  ilo  serulo  xvi.  —  Perniciosa  influencia  da  Liga  nos  costumes.  —  Gravuras  ob- 
scenas. —  Prostituição  da  linguagem  -  As  procissões  dos  nús.—  A  prostituição  da  linguagem  do  tempo.  —  O  padre 
Pigenat.  —  A  Sainte-lieuve.  —  Retraio  de  um  partidário  da  Liga.  —  Violações  e  excessos  dos  homens  de  guena.  — 
Violações  de  crianças  em  Paris.  —  liestialidades.  —  Supplicio  de  Guillet-Goulard.  —  Supplicio  de  homens  e  animaes. 
Crime  de  sodomia. —  O  medico  Sylva.  —  Progressos  do  vicio.  —  Haplos  e  seducções.— Penalidades.  —  Castigo 
do  incesto.  —  O  presidente  de  Jambeville.  —  Imliflerença  dos  trilumaes  a  respeito  de  certas  excitações  á  libertina- 
gem. —  Os  amores  dos  deuses.  —  O  tractado  de  Sanchez,  De  matrimonio.  —A  Swnma  peccaloruni ,  do  Padre  Be- 
nedicti,  sequestrada.  —  Le  Moyeii  de  Parvenir,  de  Beroaldo  de  Vervíile.  —  As  arrependidas.—  Desordens  e  exces- 
sos das  communidades  de  mulheres,  durante  a  Liga.  —  Amores  freiraticos. 


M  NENHUMA  époclia  cl  França  se  havia  deshonrado  com  maiores 
torpezas  e  sensualidades,  nem  o  povo  havia  jamais  descido  a  tão 
immundo  lodaçal  da  libertinagem.  O  exemplo  fatal  da  corrup(,-ão 
dos  costumes  havia  prevertido  o  senso  moral  da  nação  inteira. 
A  Liga  acabou  de  destruir  os  restos  de  pudor  que  ainda  existiam 
nas  classes  médias  e  na  plebe,  apesar  dos  excessos  de  Henrique  de  Valois  e  dos 
seus  favoritos  as  haverem  n'outro  tempo  levantado  em  massa  contra  o  throno 
envilecido. 

Nos  Registres-JournauT  de  Pedro  de  TEstoile,  esses  fieis  memoriaes  da 
chronica  escandalosa  de  Paris,  durante  mais  de  trinta  e  cinco  annos,  encontra-se 
a  expressão  franca  e  simples  dos  excessos  da  sociedade  franceza  no  fim  do  sé- 
culo XVI. 

Pedro  de  TEstoile,  que  vivera  também  no  tempo  de  Carlos  ix,  não  hesita 
em  denunciar  á  posteridade  a  decadência  dos  costumes  no  reinado  de  Henrique 
IV,  apesar  de  amar  e  respeitar  este  monarcha,  que  elle  sempre  considerou  um 
grande  rei.  Em  muitos  logares  da  sua  coUecção,  este  homem  honrado  clama 
com  pesar  e  indignação  contra  os  vicios  de  sensualidade  e  impureza,  «que  es- 
tavam então  mais  espalhados  do  que  em  tempo  algum.»  (Journal  dlhnri  iv, 
fevereiro  de  1907.) 

«N'um  século  tão  prevertido  como  o  nosso,  diz  elle  n'outro  logar  (agosto 
de  1610)  pouco  trabalho  dá  ser  homem  de  bem,  ainda  mesmo  que  se  lenha  nm 
pouco  de  sensual  e  bastante  de  atheu  ou  mesmo  de  parricida.  Ainda  assim, 
ninguém  deixa  de  ser  pessoa  honrada.» 

Não  pôde  calcular-sc  bem  quanto  a  inlluencia  da  Liga  foi  perniciosa  aos 

HuToaiA  DÀ  PaosTiTinçÃo.  tomo  n— Folha  66. 


522  HISTORIA 

costumes.  O  povo  que  havia  censurado  a  Henrique  iii  e  á  sua  corte  tantas 
abominações,  inventadas  ou  exaggeradas  pelo  espirito  de  partido,  tanto  dos  da 
Liga  como  dos  huguenottes,  não  teve  escrúpulo  de  incorrer  nos  mesmos  ex- 
cessos e  de  os  manifestar  escandalosamente  á  luz  do  dia.  Durante  o  tempo  em 
que  a  capital  esteve  em  poder  dos  Dezeseis,  os  olhos  e  os  ouvidos  dos  seus 
habitantes  foram  a  cada  passo  escandalisados  com  canções,  libellos  e  gravuras 
obscenas,  que  tinham  sempre  por  pretexto  a  politica  da  Santa  União. 

«As  galerias  do  paço,  diz  Aubigné,  na  sua  Historia  Universal  (t.  ui,  lib. 
II,  c.  20,)  estavam  cobertas  de  retratos  do  rei,  acompanhados  de  diabos  ves- 
tidos com  calções  nas  posições  do  Aretino,  e  de  cousas  peiores  ainda,»  porque 
desde  o  assassínio  dos  Guises,  Henrique  iii,  diz  o  commentador  da  famosa  Sa- 
tyre  Menippée  (ediç.  de  Ratisbonne,  1726,  t.  ii,  p.  346)  passava  na  opinião 
do  povo  não  só  por  um  monstro  dotado  de  toda  a  classe  de  vicios  e  de  aber- 
rações sensuaes,  mas  também  por  um  abominável  feiticeiro. 

As  memorias  d'Estoile  estão  cheias  d'estas  torpezas  da  Liga,  que  lucta- 
vam  á  porfia  em  immoralidade  com  as  mais  atrozes  calumnias  dos  huguenottes. 
A  língua  havia-se  aviltado,  arrastando-se  pelo  lodo  das  ruas  suspeitas;  os  pre- 
gadores nem  respeitavam  o  púlpito  nem  a  santidade  dos  templos,  misturando 
as  suas  blasphemias  com  palavras  obscenas  e  imagens  repugnantes.  Não  havia 
sermão  em  que  o  Bearnez  não  fosse  apodado  de  filho  da  p. . .  e  alcagote. 

N'uma  recepção  solemne  em  que  os  personagens  mais  importantes  da 
Liga  foram  em  corporação  cumprimentar  o  cardeal  de  Perevé,  um  delles,  o 
conselheiro  Sermoise,  disse  que  talvez  o  rei  de  Navarra  abjurasse  da  heresia 
para  voltar  ao  seio  do  catholicismo.  O  cardeal  interrompeu-o,  dizendo-lhe: 

— Não  sei  se  o  illustre  conselheiro  c  casado  ou  viuvo,  mas  se  é  ou  foi 
casado,  e  se  sua  mulher  se  tivesse  prostituído  n'um  bordel,  admittil-a-hia  por 
ventura  quando  ella  quizcsse  voltar  aos  seus  braços  ?  Pois,  sr.  conselheiro,  a 
heresia  é  uma  p. . .  .» 

Já  n'outro  logar  tractamos  do  escândalo  que  produziram  as  procissões 
dos  disciplinantes,  ás  quaes  o  próprio  rei  presidia,  acompanhado  de  toda  a  cor- 
te. O  povo  tomara  gosto  por  ellas,  e  quando  el-rei  se  retirou  em  consequência 
das  Barricadas,  deixou  de  haver  escrúpulos  n'este  género  de  devoções,  que  to- 
cava muito  de  perto  a  mais  vergonhosa  sensualidade. 

«Em  30  de  janeiro  de  1589,  Ic-se  no  «Resumo  das  cousas  acontecidas 
em  Paris,  desde  23  de  dezembro  de  lo88  até  ao  ultimo  de  abril  de  1589»,  obra 
citada  por  Dulaure,  fizcram-se  na  cidade  varias  procissões  a  que  assistiram 
muitas  crianças,  homens  e  mulheres,  todos  em  camisa,  de  tal  modo,  que  nunca 
se  vira,  mercê  de  Deus,  cousa  tão  bella,  Freguezias  houve,  onde  se  contaram 
umas  quinhentas  ou  seiscentas  pessoas  nuas.» 

No  dia  3  de  fevereiro,  novas  e  bellas  procissões,  em  que  se  viam  mui- 
tos nús,  levando  bellas  cruzes.» 

«A  li  de  fevereiro,  outras  ainda,  principalmente  na  freguezia  de  Saint- 
Nicolas-des-Champs,  a  que  assistiram  mais  de  mil  pessoas  nuas,  contando-se 
n'este  numero  os  padres  de  Saint-Nicolas  e  o  seu  parocho,  Francisco  Pigenat, 
o  qual  apenas  levava  uma  espécie  de  capuz.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  523 

Estoile,  que  foi  testemunha  occular  d'estas  famosas  procissões,  refere  par- 
ticularidades tão  abomináveis,  que  a  pagina  452  do  seu  manuscripto  foi  arran- 
cada pelos  jesuítas  de  Saint-Aclunil,  em  cujas  mãos  estiveram  por  muito  tem- 
po depositados  os  papeis  d'Estoile. 

Não  obstante,  os  jesuítas  deixaram  na  sua  integra  uma  passagem  multo 
importante,  que  nos  edificará  a  respeito  das  procissões  da  Liga. 

«Tão  enthusiasta  era  por  esse  tempo  o  povo,  diz  elle,  a  respeito  d'estas 
procissões,  que  muita  gente  levantava-se  de  noite  da  cama,  para  pedir  aos  sa- 
cerdotes que  mandassem  fazer  procissões,  como  fizeram  com  o  parochode  Santo 
Eustáquio.  Muitos  dos  freguezes  d'este  sacerdote  dirigiram-se  alta  noite  a  sua 
casa,  pedindo-lhe  que  os  levasse  em  procissão.  Como  elle  lhes  fizesse  algumas 
observações,  apodaram-no  de  hereje,  de  maneira  que  o  parocho  viu-se  obrigado  a 
fazer-lhes  a  vontade.  Em  verdade,  este  bom  parocho  e  mais  dois  ou  três  da  ci- 
dade condemnavam  estas  procissões  nocturnas.  Para  fallarmos  com  franqueza, 
aquillo  não  era  mais  do  que  um  carnaval,  em  que  homens  e  mulheres,  noves 
e  velhos,  completamente  nús,  faziam  scenas  muito  diversas  d'aquellas  para 
que  devotamente  se  reuniam.  Assim,  perto  da  porta  de  Montmartre,  a  filha  de 
um  chapelleiro  teve  de  dar  á  luz  um  fructo,  que  não  era  de  benção,  ao  cabo  de 
nove  mezes;  e  um  cura  de  Paris,  que  dissera  n'um  sermão  que  em  taes  pro- 
cissões os  pés  brancos  e  delicados  das  mulheres  eram  muito  agradáveis  aos  olhos 
de  Deus,  preparou  também  o  seu  fructo,  que  chegou  á  maturação  no  mesmo 
prazo  de  tempo.» 

Não  seria  a  peior  das  prostituições  esta  que  se  cobria  com  o  manto  das 
cousas  sagradas  e  se  insinuava  perfidamente  nas  practicas  da  devoção? 

Sauval  desfigura,  nas  suas  Memorias  históricas  e  secretas  dos  amores  dos 
reis  de  França,  um  trecho  do  Journal  d'Henri  iii,  e  por  isso  attribue  a  este 
rei  as  procissões  da  Liga  e  os  escândalos  que  ellas  occasionavam.  Estoile  dis- 
sera eflectivamente  que  o  cavalheiro  d'Aumale,  que  fazia  scenas  carnavalescas 
n'estas  procissões,  «costumava  assistir  a  ellas  para  se  divertir,  e  tanto  na  rua 
como  nas  egrejas,  atirava  por  meio  de  um  canudo  bolos  aromáticos  ás  bellas 
penitentes,  excitando-as  em  seguida  com  as  excellentcs  collaçôes  que  lhes  pre- 
parava, na  ponte  de  Change,  na  de  Notre-Dame  ou  na  rua  de  Saint-.íacques, 
onde  a  santa  Viuva  não  era  esquecida.  Esta  mesma  santa  Viicva,  coberta  de 
alto  a  baixo  com  uma  riquíssima  tela  transparente,  aberta  no  seio,  andou  um 
dia  pelo  braço  d'elle  na  egreja  de  S.  João  a  galantear  e  a  tentar  com  grande 
escândalo  as  pessoas  devotas,  que  iam  de  boa  fé  a  estas  procissões. 

Mademoiselle  de  Sainte-Beuve,  denominada  por  Estoile  a  santa  Viuva,  era 
filha  de  André  de  Hacqueville,  primeiro  presidente  do  parlamento  e  prima  do 
cavalheiro  d'Aumale,  que  por  fim  a  tomou  por  concubina. 

Esta  joven,  tão  notável  pela  sua  formosura,  como  pela  leviandade  da  sua 
conducta,  representava  um  papel  bem  pouco  decente  n'estas  procissões  noctur- 
nas, que  serviam  de  preludio  a  verdadeiras  orgias.  Era  ella  quem  dizia  a  res- 
peito das  mulheres  honradas  do  partido  realista  que  tinha  um  singular  prazer 
em  vêr  metler  essas  miseráveis  na  Rastilha,  para  irem  remendar  os  calções  de 
seus  maridos. 


o24  HiSTORIA 

Estoilo  parece  haver  copiado,  quasi  palavra  por  palavra,  de  um  libeilo  da 
époclia,  intitulado  Conselho  salutar  de  um  bom  francez  aos  parisienses,  tudo  o 
que  diz  da  Sainte-Beuve  no  seu  Journal  (FFIenri  in. 

Da  fíraiide  analogia  textual  das  duas  passagens  referidas,  poderia  indu- 
zir-se  também  que  o  Conselho  salutar  fora  devido  à  penna  d'Estoile. 

Seja  como  fòr,  a  aventura  da  Sainte-Beuve  na  egreja  de  S.  João,  «onde 
nem  o  respeito  do  lugar  nem  das  pessoas  impediu  certos  toques  impudicos,» 
causou  tanto  escândalo,  e  deu  tanto  que  fallar,  que  as  procissões  acabaram  por 
essa  épocha. 

Tornaram  a  organisar-se  a  24  de  janeiro,  mas  o  numero  dos  nús  fora 
singularmente  reduzido,  vendo-se  apenas  os  meninos  do  collegio  dos  Jesuítas 
«os  quaes  iam  todos  nús»  em  numero  de  trezentos.  (V.  o  Journal  des  Occ.  de 
l'aris,  citado  por  Dulaure.) 

Os  partidários  da  Liga,  que  tanto  haviam  invectivado  os  costumes  disso- 
lutos da  còríe,  eram  agora  os  primeiros  a  dar  o  exemplo  da  mais  deplorável 
immoralidade. 

«Hoje  em  dia,  escreve  o  honrado  Pedro  de  FEstoile  em  abril  de  1589, 
roubar  o  próximo,  assassinar  os  irmãos,  roubar  os  altares,  profanar  as  egrejas, 
violar  as  mulheres,  atropellar  todo  o  mundo,  são  cousas  vulgares  n'um  parti- 
dário da  I-iga,  e  os  signaes  indispensáveis  de  um  zeloso  catholico.» 

O  auctor  do  Conselho  salutar  repete,  quasi  nos  mesmos  termos,  esta  im- 
pi^ecação  de  Fedro  de  TEstoilc  contra  os  heroes  da  Liga. 

«As  violências  contra  Ioda  a  classe  de  mulheres,  nas  próprias  egrejas, 
os  sacrilégios  dos  altares,  são  para  elles  brincadeiras,  uma  delicada  galanteria, 
um  habito  naturalissimo  em  todo  o  bom  partidário  da  Liga.» 

A  maior  parte  dos  pormenores  relativos  aos  excessos  incríveis  commet- 
lidos  pelos  da  Liga  encontram-se  alternativamente  no  Conselho  salutar,  e  no 
Journal  d'llenrl  iii,  como  se  estas  duas  obras  fossem  eseriptas  pelo  mesmo 
auctor. 

Quando  o  duque  de  Mayenne,  á  frente  do  exercito  da  Liga,  invadiu  os 
arrabaldes  de  Tours,  e  ameaçou  esta  cidade  (8  de  maio  de  1589)  «umas  qua- 
renta ou  cincoentas  mulheres,  que  se  haviam  escondido  n'um  subterrâneo,  fo- 
ram todas  violentadas.  O  mesmo  siiccedeu  a  muitas  outras  dos  arrabaldes  e 
alé  ás  que  tinham  ido  refugiar-.se  na  egreja,  julgando-se  alli  em  .segurança. 
Estas  ullimas  soílVeram  aquella  infâmia  em  presença  de  seus  maridos  e  de  seus 
paeç,  que  aquelles  grandes  preversos  obrigavam  a  assistir  a  sirailhante  espectá- 
culo, para  maior  uUrage.  Eu  próprio,  accrescenta  o  auctor  do  Conselho  salu- 
tar, vi  ainda  no  dia  seguinte  os  leitos  que  cobriam  o  pavimento  da  egreja,  e 
para  onde  o  iiarociío  me  disse  ter  visto  arrastar  as  mulheres  pelos  cabellos.» 

Quando  o  cavalheiro  (rAumalc,  primo  do  duque  de  Mayenne,  fazia  as 
suas  correiias,  saqueando  as  povoações  dos  arredores  de  Paris,  «entrou  n'algu- 
mas  casas  em  que  encontrou  senhoras  honestas,  (|ue  violou  na  ausência  de  seus 
maridos,  entregando-as  em  seguida  á  soldadesca.» 

De  resto,  n'aquelles  desgraçados  tempos,  a  gente  de  guerra,  fosse  qual 
fos.se  o  seu  partido,  liuguenotles  ou  catl)olicos,  do  partido  da  Liga  ou  do  d'el-rei, 


DA    PROSTITUIÇÃO  525 

consideravam  como  a  melhor  parte  da  presa  as  mulheres  que  encontravam 
n'uma  cidade  saqueada,  e  era  impossivel  impedir  a  soldadesca  de  exercer  hor- 
ríveis violências  nas  desgraçadas  que  lhe  cahiam  nas  mãos. 

Succedia  frequentemente  cahir  n'um  curto  periodo  uma  povoaçtio  qual- 
quer em  poder  de  amhos  os  partidos  belligerantes,  e  cada  occupação  da  praça 
trazia  novos  ullrages  ao  pudor,  de  maneira  que  os  habitantes  não  faziam  senão 
mudar  de  verdugos. 

O  exercito  real,  que  em  1389  occupava  os  arredores  de  Paris  para  blo- 
quear a  capital,  commetteu  talvez  as  mesmas  atrocidades  que  o  exercito  da 
Liga.  No  Discurso  cerdadeiro  da  extranha  e  súbita  morte  de  Henrique  de  Va- 
lois,  (Troyes,  J.  Moreau,  1589,  in-8.°,  o  auctor,  que  se  intitula  um  religioso 
da  ordem  dos  Jacobinos,  accusa  o  rei  de  derramar  o  vomito  da  sua  raiva  em 
todas  as  cidades,  taes  como  Pontoise,  Poissy,  Etampes,  Saint-Cloud,  etc.  etc, 
invadidas  pelos  seus  soldados. 

«Creanças  de  tenra  edade,  religiosas  e  mulheres  do  povo,  todas  foram 
violentadas,  diz  elle.» 

Cinco  annos  mais  (arde,  quando  o  duque  de  Mayenne  quiz  ter  o  seu  exer- 
cito junto  dos  muros  de  Paris,  para  estar  preparado  para  o  sitio  e  para  dar  ba- 
talha ao  inimigo  (dezembro  de  lo93),  «os  arrabaldes  da  cidade,  diz  Estoile,  en- 
cheram-se  de  soldados,  que  fizeram  mil  abominações,  violando  crianças  e  ve- 
lhas, do  que  se  fizeram  numerosos  inquéritos,  mas  sem  castigo  para  os  crimi- 
nosos.» 

Os  tribunaes  não  tinham  nem  acção  nem  força  contra  a  gente  de  guerra, 
que  devia  a  sua  impunidade  á  cumplicidade  dos  chefes,  e  que,  de  resto,  teria 
Iractado  os  seus  juizes  com  tão  pouco  respeito  como  as  victimas  dos  seus  ex- 
cessos. Quando,  porém,  a  lei  marcial  não  vigorava  exclusivamente  e  a  aucto- 
ridade  civil  voltava  a  funccionar  com  liberdade,  os  actos  de  violência  e  de  es- 
cândalo que  se  commettiam  entre  o  povo  e  chegavam  ao  conhecimento  dos  ma- 
gistrados, eram  prompta  e  severamente  punidos. 

Não  pôde  negar-se  que  o  exemplo  dos  abomináveis  excessos  da  soldadesca 
exercia  a  mais  corruptora  influencia  nas  naturezas  preversas,  que  se  julgavam 
auctorisadas  em  plena  paz,  do  mesmo  modo  que  em  tempo  de  guerra,  a  abando- 
nar-se  ao  impulso  das  suas  paixões  brutaes.  Assim,  a  violação  era  um  dos  cri- 
mes mais  frequentes  n'aquella  épocha  e  tomava  ás  vezes,  segundo  certas  cir- 
cumstancias,  um  caracter  particular  de  ferocidade. 

Nunca  este  crime  a  tal  ponto  manchou  os  costumes,  como  na  épocha  em 
que,  para  os  depurar,  se  aboliu  a  prostituição  legal.  Foi  preciso  que  o  parla- 
mento de  Paris  redobrasse  de  vigilância  e  de  rigor,  para  fazer  diminuir  o  nu- 
mero de  aftentados  contra  o  pudor  das  mulheres  e  sobretudo  das  crianças. 

«Quarla-feira,  23  de  dezembro  de  1603,  ié-se  nos  Regislres-Journaux, 
de  P.  de  TEstoile,  foi  enforcada  na  Greve  a  criada  de  um  tal  Depras,  por- 
teiro da  quinta  sala  da  justiça,  por  ter  vendido  a  um  certo  libertino  uma  encan- 
tadora joven  de  nove  ou  dez  annos,  que  este  miserável  violou  preversamenie, 
com  grande  magua  e  dòr  do  dito  Depras,  seu  pae,  e  de  toda  a  sua  familia.» 

Não  consta,  porém,  que  o  auctor  de  tão  repugnante  stupro  fosse  desço- 


526  HISTORIA 

berto  e  castigado.  A  justiça,  cm  casos  tacs,  não  costumava  ter  indulgência  nem 
consideração  para  com  pessoa  alguma,  pois  que  em  1607  um  labellião  de  Pa- 
ris, chamado  N.  de  Nesmes,  «tendo  violado  uma  menina  de  cinco  ou  seis  an- 
nos,  filha  do  boticário  Pufresnoy,»  teve  que  fugir  para  Flandres,  onde  se  jul- 
gava ao  abrigo  de  qualquer  perseguição  criminal.  El-rei,  porém,  que  tanto  se 
interessara  no  castigo  de  tamanha  atrocidade,  reclamou  e  obteve  a  extradicção 
do  culpado. 

O  tabellião  foi  submettido  á  tortura  ordinária  e  extraordinária,  mas,  ape- 
sar d'isto,  não  quiz  confessar  o  crime  de  que  era  arguido,  e  como  não  hou- 
vesse mais  do  que  uma  testemunha  de  accusação,  apenas  o  poderam  condem- 
nar  a  desterro. 

Durante  os  horríveis  soffrimenlos  da  tortura,  o  tabellião  protestava  sem 
cessar  a  sua  innocencia. 

—  Calla-te,  infame!  disse-lhe  encolerisado  o  conselheiro  Faideau,  que  o 
estava  interrogando.  Assim  Deus  me  livrasse  a  mim  de  todo  o  peccado,  como 
estou  certo  de  que  és  culpado  d'esle  crime.  O  que  te  vale  é  a  arte  que  tens  de 
saber  occultar  a  verdade,  mesmo  á  custa  do  soffrimentoi. .  . 

Eram  por  esse  tempo  muito  vulgares  attenlados  d'esta  espécie,  na  cidade 
de  Paris,  mas  nem  todos  se  conheciam,  porque  frequentes  vezes  os  pães  das 
victimas  con.sentiam  em  desistir  da  sua  queixa  perante  os  tribunaes,  mediante 
uma  sonima  convencionada,  tornando-se  d'este  modo  cúmplices  do  stupro  com- 
mettido  na  pessoa  de  seus  pioprios  tilhos. 

Pedro  de  TEstoile  diz-nos  que  em  agosto  de  1607  «fora  preso  dentro  do 
seu  mosteiro  o  prror  dos  Fralri-uinorantes ,  por  ter  stuprado  uma  menina  de 
cinco  annos  e  meio  de  idade,  filha  de  um  tintureiro  do  arrabalde  de  Sainl- 
Germain-des-Prés».  Não  nos  diz,  porém,  o  erudito  chronista  se  este  miserável 
frade  recebeu  o  premio  condigno  dos  seus  feitos. 

Quando  a  parle  queixosa  cedia  a  preço  de  dinheiro,  e  se  declarava  sa- 
tisfeita, o  tribunal  costumava  sobre-estar  no  processo,  para  evitar  o  escândalo. 

Ontro  crime,  mais  abominável  ainda,  e  para  o  qual  não  havia  perdão  nem 
misericórdia,  quando  a  voz  publica  o  denunciava  aos  tribunaes,  era  o  de  bestia- 
lidade. Este  odiosíssimo  crime,  cuja  absolvição  se  fixava  em  90  libras  tornezas,  1  2 
escudos  e  6  carlinos,  no  Licro  das  Taxas  da  cúria  Romana,  produzia  sempre 
em  França  a  pena  de  morte.  E,  comtudo,  esta  abominação,  que  devia  ter  desap- 
parecido  com  os  tempos  de  barbárie,  mu Itiplicava-se  extraordinariamente  ainda 
nos  fins  do  século  xvi. 

A  jurisprudência  era  a  mesma  em  todos  es  tribunaes  de  França,  a  res- 
peito d'esta  monstruosa  sensualidade: — homem  ou  mulher  eram  queimados  com 
o  animal,  seu  cúmplice. 

Cláudio  Lebrun  de  la  Rocbette,  sábio  jurisconsulto,  na  sua  obra  intitu- 
lado Les  1'rocés  civil  et  criminal  (Ruan,  1647,  in-4.°)  explica  nos  termos  se- 
guintes os  motivos  da  sentença  c  o  supplieio  do  animal: 

«Os  animaes,  dizellc,  não  são  punidos  pela  sua  culpa,  por  isso  que  não 
a  téem,  mas  sim  por  haverem  sido  cúmplices  de  uma  execravel  aberração  hu- 
mana, pela  qual  se  lira  a  vida  ao   ente   racional.   Como   depois  de  tão  revol- 


DA    PROSTITUIÇÃO  527 

tante  maldade,  o  animal  recordaria  o  actn  impuro  que  c  preciso  eliminar  e  ris- 
car para  sempre,  por  isso  a  sabedoria  dos  Iribunaes  ordenou  que  até  mesmo 
os  processos  de  tão  impuros  delinquentes  com  elles  sejam  queimados,  afim  de 
que  não  reste  memoria  em  tempo  algum  de  tão  nefandas  abominações.» 

Nem  estas  prudentes  precauções,  nem  o  espantoso  apparato  do  suppHcio, 
nem  o  horror  que  rodeava  a  condemnavel  e  brutal  cohabitação  do  homem  ou 
da  mulher  com  a  besta»,  nem  o  inilexivel  rigor  dos  juizes  indignados,  nada,  fi- 
nalmente, podia  extirpar  crime  tão  execravel,  que  continuava  a  praticar-se 
tanto  no  isolamento  dos  campos,  como  no  interior  das  cidades. 

Nas  Contas  do  Preboslado  de  Paris,  insertas  em  continuação  das  Anti- 
quilés,  de  Sauval  (t.  iii  p.  387)  cncontram-se  curiosos  pormenores  a  respeito 
da  execução  de  um  chamado  Gil  Soulart,  que  foi  queimado  em  Corbeil  junta- 
mente com  uma  porca  em  1645. 

Dulaure  na  sua  Histoire  de  Paris  (t.  iv,  p.  06.3),  aíTirma  que  este  Sou- 
lart era  um  sacerdote,  mas  tal  asserção  não  é  de  modo  algum  justificada  pelo 
extracto  a  que  Dulaure  se  refere.  Diz-se  alli  somente  que  Soulart  fora  execu- 
tado pelos  seus  feitos,  e  que  as  despezas  da  execução  attingiram  a  quantia  de 
9  libras,  16  soldos  e  4  dinheiros,  parisis,  justificada  do  seguinte  modo: 


LIBRAS    SOLDOS    DINHEIROS 

Pelo  processo  do  dito  Soulard,  que  foi  levado  á  presença  do  Con- 

sellio O  22  O 

Por  duas  pintes  de  vinho  (quasi  um  alraude),  levadas  ao  patí- 
bulo da  cidade  de  Paris,  para  os  que  arranjaram  as  cordas 
para  atar  a  porca O 

Pela  corda  para  o  referido  animal,  que  era  de  14  pés  de  com- 
primento      O 

Por  duas  viagens  a  Corbeil,  feitas  por  Henrique  Cousin,  execu- 
tor da  justiça .  6 

Por  mais  irespintes  de  vinho,  fornecidas  á  justiça  com  um  pão 

para  o  réu  e  para  o  executor O 

Pela  comida  da  porca  e  sua  guarda  por  espaço  de  11  dias,  a  8 

dinheiros,  parisis,  cada  um O 

Por  500  molhos  de  lenha,  comprados  a  Robinet  e  a  Henriet, 
chamados  os  irmãos  Fouquières,  na  ponte  de  Morsant,  esua 
conducçâo  á  justiça  de  Corbeil  .     ........  O  40 

Total 9  ir. 


2 

0 

2 

0 

0 

12 

2 

1 

7 

4 

Dulaure  cita  ainda  outros  dois  supplicios  por  crime  de  bestialidade,  ex- 
trahidos  dos  Registros  84  e  105  da  Tournelle  criminelle : 

Guyot  Vuide  foi  enforcado  e  queimado,  a  26  de  março  de  1546,  «por  ha- 
ver cohabitado  com  uma  vacca,  a  qual  foi  queimada  antes  da  execução  do  cri- 
minoso.» 

João  de  la  Souille  foi  eguaimente  queimado  vivo,  a  5. de  janeiro  de  1556, 
juntamente  com  uma  burra,  que  também  foi  morta,  por  compaixão,  antes  de 
ser  arremessada  à  fogueira. 

Pedro  de  TEstoile  não  cita  uma  única  execução  deste  género  no  seu  Jonr~ 


528 


HISTORIA 


nal  íFUenri  iii,  mas  diz  que  houve  muitas  no  reinado  de  Henrique  iv.  Deve 
conciuir-se  d'aqui  que  a  policia  dos  costumes  se  fazia  então  com  maior  cui- 
dado, e  que  os  tribunaes,  compostos  de  homens  illustrados  e  respeitáveis,  ten- 
tavam corrigir  a  immoralidade  e  corrupção  dos  tempos. 

«Touco  depois,  escrevia  Estoile  em  agosto  de  1607,  occorreu  um  caso 
prodigioso,  que  excedeu  em  abominação  todos  os  precedentes.  Um  homem  teve 
dois  filhos  de  uma  égua,  e  por  isso  foi  condemnado  a  ser  queimado  vivo  com 
o  animal,  e  tendo  appellado  para  Paris,  alli  foi  a  sentença  confirmada  por  de- 
creto do  parlamento,  e  devolvida  logo  para  se  realisar  a  execução,  e  a  res- 
peito dos  filhos,  ordenou-se  que  a  Sorbonna  se  reunisse  para  decidir  o  que 
havia  a  fazer.» 

Estoile  esqueceu-se  infelizmente  de  referir  a  sentença  da  Sorbonna,  e 
não  sabemos  se  os  filhos  do  homem  e  da  égua  foram  queimados  como  os  au- 
ctores  dos  seus  dias.  Devemos,  porém,  nutrir  algumas  duvidas,  não  da  boa  fé 
do  chronista,  mas  sim  da  realidade  do  caso  extraordinário,  por  eile  registrado 
nas  suas  memorias. 

Em  novembro  do  mesmo  anno  escreve  o  seguinte: 
«..  .Um  rapaz,  condemnado  este  mcz  na  Tournelle  a  ser  enforcado,  por 
ter  tido  copula  carnal  com  uma  égua,  que  foi  morta  ao  pé  do  patibulo.» 

Varias  outras  sentenças,  relativas  ao  mesmo  crime,  vem  citadas  nos  cri- 
minalistas francezes,  especialmente  em  Papou,  coUecção  de  decretos  notáveis 
dos  supremos  iribunaes  de  França.  Lebrun  de  la  Rochetle,  ao  redigir  o  seu 
tractado  do  Processo  criminal  no  tempo  de  Henrique  iv,  registra  uma  sentença 
do  parlamento  de  Paris,  proferida  em  IfiOl  «contra  Claudina  de  Culan,  natural 
de  Rozay,  em  Bride,  accusada  c  convicta  de  haver  commettido  bestialidade  com 
um  cão,  sendo  enforcada  e  queimada  com  elle.  E  no  anno  passado  de  1609, 
accrescenta,  por  outra  sentença  do  parlamento  de  Doubes,  foi  executado,  em 
Trevols,  um  camponez  convicto  de  bestialidade  com  uma  vacca.» 

A  frequência  d'estes  vergonhosos  processos  e  das  suas  horríveis  execuções 
prova  que  a  magistratura  franceza,  espantada  da  corrupção  dos  costumes,  tra- 
balhava sem  descanço  por  lhe  procurar  um  remédio  opportuno,  inspirando  um 
terror  salutar  aos  libertinos  e  a  todos  os  inimigos  da  moral  publica.  Assim,  a 
sodomia  e  outros  crimes  análogos,  bem  que  se  reproduzisem  na  corte,  á  som- 
bra da  impunidade,  eram  castigados  com  extremo  rigor,  quando  cabiam  sob  a 
Jurisdicção  da  justiça  civil  ou  ecciesiastica.  Parece,  todavia,  que  durante  o  rei- 
nado de  Henrique  iii  e  dos  seus  favoritos,  a  pena  de  morte  nunca  foi  applicada 
como  expiação  de  um  crime,  que  se  abrigava,  por  assim  dizer,  á  sombra  do 
throno. 

Pedro  de  1'Estoile  refere,  com  data  de  30  de  janeiro  de  lo86,  que  um 
medico  piemonlez,  chamado  Sylva,  casado  em  Abberville,  eslava  preso  havia 
mais  de  um  anno  na  (^oncicrgerie,  «por  causa  de  sodomia,  crime  de  que  sua 
própria  mulher  o  accusou»,  quando  assassinou  um  dos  seus  companheiros  de 
prisão,  á  mesa  do  carcereiro.  Por  isso,  furioso,  encerrou-se  n'um  calabouço  e  afo- 
gou-sc,  engulindo  novellos  feitos  com  farrapos  da  própria  camisa.  Não  obstante, 
o  cadáver  do  desgraçado  não  deixou  de  sollrer  o  castigo  que  seus  crimes  inere- 


DA    PROSTITUIÇÃO  529 

ciam,  pois  foi  arrastado  á  cauda  de  umcavallo  pelas  ruas  de  Paris,  e  conduzido 
a  um  monturo,  onde  ficou  dependurado  pelos  pés. 

Nas  Rémontrances  tres-luimbles  auroi  de  France  et  de  Polotjne,  publi- 
cadas em  1388,  o  auctor,  que  era  um  bom  realista,  exclamava  com  amargura: 

«Failarei  das  sodomias,  que  vulgarmente  se  commettem?» 

Henrique  iv  ordenou  ao  parlamento  que  procedesse  sem  piedade  na  per- 
seguição de  taes   torpezas,   e  foi  elle  quem  poz  em  vigor  a  penalidade  antiga. 

«Terça-feira,  12  de  novembro  de  lo96,  diz  Estoile,  foram  queimados  em 
Saint-Germain-en-Loye  dois  sodomitas,  que  haviam  seduzido  dois  pagens  do 
príncipe.» 

Este  odioso  vicio,  apesar  do  exemplo  dos  cortezãos,  fez  poucos  progres- 
sos no  povo,  que  timbrou  em  preservar-se  do  que  denominava  a  mancha  ita- 
liana. Henrique  iv,  apesar  do  horror  que  tinha  a  estas  torpezas,  não  poude 
conseguir  limpar  delias  a  sua  corte. 

«A  sodomia,  que  é  a  maior  das  abominações,  escrevia  Estoile  em  1608, 
reina  aqui  de  (ai  modo,  que  é  uma  ignominia.  Deus  deu-nos  um  príncipe  que 
não  é  egual  a  Xero,  porque  é  bom,  justo,  virtuoso  e  temente  a  Deus,  e  que 
detesta  cordealmenle  esta  abominação.  Não  se  encontra,  porém,  pessoa  alguma 
na  corte,  nem  cardeal,  nem  bispo,  nem  esmoller,  nem  confessor,  nem  sacer- 
dote, nem  jesuita,  que  tenha  força  para  abrir  a  bocca,  apesar  de  ser  esta  a 
sua  obrigação,  para  fallar  e  representar  a  sua  magestade,  temendo  incorrer  na 
desgraça  de  certos  grandes,  a  quem  chamam  os  deuses  da  côrte.í> 

O  mal  aggravou-se  no  reinado  seguinte,  sem  encontrar  remédios  mais 
•'Ificazes.  4  nação,  porém,  protegida  por  um  nobre  sentimento  de  dignidade 
humana,  nunca  se  degradou,  entregando-se  a  esta  infame  prostituição. 

As  leis  destinadas  a  garantir  os  costumes  e  a  castigar  todos  os  delictos 
de  impureza  eram  muito  rigorosas,  mas  nem  sempre  se  applicavam  com  equi- 
dade. Algumas  podiam  dizer-se  atrozes,  como  se  o  pensamento  do  legislador 
fosse  deixar  ao  juiz  o  harmonisar  a  pena  com  as  circumstancias  que  podiam  fa- 
vorecer ou  prejudicar  o  interessado.  Assim,  o  rapto  e  a  seducção  podiam  ser 
castigados  de  morte,  ainda  mesmo  quando  o  cuifiado  propozesse  reparar  o  seu 
crime  por  um  casamento  que  lhe  destruísse  o  eífeito. 

Em  1383,  o  parlamento  de  Paris  condemnou  á  forca  um  viajante  que 
havia  seduzido  a  filha  do  presidente  do  conselho  real,  apesar  d'csta,  que  tinha 
vinte  e  cinco  annos,  haver  declarado  que  queria  casar  com  o  seu  seductor. 

Um  empregado  dos  impostos,  que  Pedro  de  TEstoile  não  nomeia,  dizend<i 
apenas  qne  era  de  Rennes,  na  Bretanha,  foi  condemnado  por  sentença  do  par- 
lamento a  casar  com  uma  viuva  a  quem  havia  seduzido  com  promessa  de  ca- 
samento. 

«Dizia-se  na  sentença  (coisa  notável!)  que  havia  de  casar  immediafa- 
mente,  ou  que  de  contrario  seria  decapitado  ás  duas  da  tarde.  O  homem  pre- 
feriu casar  esta  manhã  (18  de  setembro  de  1604)  na  egreja  deS.  Bartholomeu, 
ás  I  I  horas.  O  presidente  Mo!é  pronunciou  a  sentença  n'esles  termos  :  «Ha-de 
casar  ou  morrer;  tal  é  a  vontade  do  tribunal.» 

N'esta  ciasse  de  processos,  a  justiça  mostrava-se  sempre  accessivel  a  in- 

BiSTORU  DA  PHosTmncio.  Tomo  ii— Folha  67. 


Õ30  HISTORIA 

fluencias  de  diversas  naturezas.  Bastava  o  prestigio  de  um  grande  senhor  para 
pesar  na  balança  de  Tlierais,  fazel-a  subir  ou  descer,  segundo  se  traclava  da 
satisfacção  de  uma  vingança,  ou  de  outro  qualquer  interesse.  Nas  causas  rela- 
tivas á  policia  dos  costumes,  a  prostituição  servia  'com  demasiada  frequência 
de  móbil  á  sentença  do  juiz,  que  d'este  modo,  ou  comprazia  á  vontade  de  qual- 
quer poderoso  personagem,  ou  obedecia  em  segredo  ás  suas  próprias  pai- 
xões. 

Pedro  de  TEstoile  cita  um  deplorável  exemplo  d'estas  prevaricações  da 
justiça.  Em  1609  viu  na  Conciergerie  uma  pobre  mulher,  que  havia  mais  de 
doze  annos  perseguia  em  vão  perante  os  tribunaes  o  violador  e  assassino  de  sua 
filha.  Tinha  esta  menina  cinco  annos  apenas,  quando  foi  violada  por  um  ho- 
mem, a  cuja  guarda  a  pobre  mãe  a  confiara,  e  a  pobresinha  contagiada  de  ve- 
néreo pelo  monstro,  morreu  nas  mãos  dos  barbeiros  e  cirurgiões. 

A  desolada  mãe  não  poude  conseguir  o  castigo  do  infame  criminoso.  Mais 
ainda,  foicondemnadaainda  em  cima  á  pena  de  açoites  como  culpada,  na  ma  vi- 
gilância de  sua  filha,  havendo-se-lhe  recusado  toda  a  indemnisação  pecuniária 
pelos  prejuízos  que  lhe  causara  a  perda  da  pobre  criança. 

Além  d'isfo,  o  conselheiro  Baron,  que  era  o  relator  d'este  processo,  não 
receiou  dizer  «que  a  própria  mão,  com  o  dedo  ou  com  outro  qualquer  instru- 
mento, havia  cstropeado  e  corrompido  sua  filha,  apesar  de  por  este  modo  não 
se  poder  communicar  o  venéreo,  o  que  liça  provado  pelas  declarações  dos  ci- 
rurgiões e  das  parteiras,  em  24  de  julho  de  lo99.» 

Pedro  de  TEstoile,  que  tivera  conhecimento  d'estas  declarações,  conser- 
vara-as,  diz  elle,  «para  memoria  da  boa  justiça  do  nosso  século.» 

O  mesmo  chronista  registra  nos  seus  diários  outro  exemplo  mais  notável 
ainda  das  prevaricações  da  justiça  do  seu  tempo.  E'  um  precioso  documento 
para  juntarmos  ao  capitulo  em  que  tratamos  da  prostituição  na  clemência : 

«Na  quarta  feira,  8  de  julho  de  1609,  foi  enforcado  na  praça  da  Greve 
em  Paris,  um  verdadeiro  patife  chamado  Lanonc,  alcagote  de  profissão,  casado 
com  uma  ribalda,  pelo  crime  de  incesto  cornmettido  com  a  irmã  de  sua  mu- 
lher, que  era  também  ribalda,  a  qual  bem  que  merecesse  occupar  outra  forca, 
junto  da  de  seu  cunhado,  foi  apenas  condemnada  a  desterro  e  açoites,  que  rece- 
beu ao  pé  do  cadafalso.  Dizia-se  que  o  presidente  de  Jambcville,  impressionado 
pela  grande  belleza  e  juventude  d'esta  rapariga,  que  só  tinha  uns  quinze  ou 
dezesseis  annos,  lhe  salvara  a  vida  contra  a  opinião  dos  juizes,  que  quasi  to- 
dos pediam  a  sua  morte.  E  c  de  notar  também,  que  logo  que  soffreu  a 
pena  a  metteram  n'uma  carroça,  que  a  estava  esperando  e  que  expressamente 
lhe  mandaram.  A's  mulheres  d'aquella  espécie  nunca  lhes  falta  protecção  e 
boas  fortunas.» 

A  carruagem  que  esperava  a  ribalda  e  que  a  recebeu  ao  sahir  das  mãos 
do  carrasco,  era,  por  corto,  uma  fineza  do  presidente  de  .lambeville,  a  quem 
a  bella  prostituta  devia  a  vida.  Esto  magistrado,  cujo  rigor  o  integridade  até  o 
próprio  Mezeray  elogia,  distinguira-sc  sempre  pelas  suas  torrivois  sentenças 
contra  as  mulheres  de  má  vida. 

Foi  elle  quem  faltando  dos  cscriptos  mysticos  de  Santa  Thereza,  que  ao 


DA    PROSTITUIÇÃO  531 

tempo  começavam  a  traduzir-se  para  francez  e  a  circular  por  toda  a  França,  di- 
zia ao  presidente  Séguier : 

«Nós  dois  temos  feito  açoitar  em  Paris  cincoenta  alcoviteiras,  que  não  o 
mereciam  tanto  como  essa  Madre  Thereza,  actualmente  tão  fallada.»  {Journal 
d'Henri  iv,  30  de  julho  de  1008.) 

O  parlamento  de  Paris,  que  não  perdoava  aos  fornecedores  da  prostitui- 
ção, e  que  castigava  severamente  as  excitações  á  libertinagem,  parecia,  no  em- 
tanto,  fechar  os  olhos  para  com  os  livros  e  gravuras  obscenas,  que  se  vendiam 
publicamente,  até  nas  próprias  galerias  do  palácio  da  justiça.  Nunca  a  penna  e 
o  lápis  haviam  sido  tão  licenciosos,  e  não  obstante  não  havia  perseguição  al- 
guma contra  os  auctores  de  tão  impudicas  exhibiçôes.  Todos  tinham  direito  a 
publicar,  sem  que  pessoa  alguma  os  incommodasse,  escriptos  ou  figuras  que 
ultrajavam  o  pudor  e  escarneciam  a  moral  publica,  sempre  que  em  laes  obsce- 
nidades não  houvesse  o  menor  vestígio  de  heresia  ou  alheismo.  Dir-se-hia  que 
a  honestidade  das  pessoas  honradas  não  se  escandalisava  com  as  indecencias  da 
arte.  Assim,  pois,  viam-se  a  cada  passo  nas  vitrines  dos  livreiros  as  poesias 
obscenas  de  Sigognes,  de  .Marin,  de  Theophile,  etc,  que  foram  depois  reunidas 
em  volumes,  sob  os  litulos  de  Musa  brincalhona,  Musas  aleyres,  Gabinete  sa- 
tyrico,  etc,  etc. 

O  honesto  Pedro  de  TEstoile  não  se  envergonhou  de  deixar  esta  nota  nos 
seus  Registres-Journaux : 

«Quarla-feira,  19  de  agosto  de  1608,  troquei  com  o  augmento  de  60  sol- 
dos umas  miniaturas  que  tinha,  por  nove  figuras  do  A  retino,  feitas  por  Tempeste, 
em  Roma,  obscenas,  sórdidas  e  impudicas  em  extremo,  que  se  vendem  aqui 
sob  o  nome  de  Amores  dos  Deuses. 

«Quatorze  d'ellas  todos  as  acham  bem  feitas,  ainda  que  o  bem  não  possa 
estar  onde  está  o  mal.  Troquei-as  a  D.  L.  N.  com  pezar,  mas  conservo-as  como 
uma  amostra  da  honestidade  deste  pudico  século.» 

Estoile  colligia  também  com  muita  curiosidade  todas  as  composições  obs- 
cenas em  prosa  ou  verso,  que  se  imprimiam  livremente  e  se  expunham  nas  ruas 
e  praças  publicas,  especialmente  na  rua  Hauphine,  ha  pouco  tempo  construída. 

A  policia  não  tractava  de  evitar  a  circulação  d'estas  innumeraveis  publi- 
cações obscenas,  que  faziam  as  delicias  do  povo  e  da  nobreza.  Longe  de  o  fa- 
zer, deixava  até  vaguear  pela  cidade  alguns  loucos  libertinos,  taes  como  o  cha- 
mado conde  de  Permission  e  Mestre  Guilherme,  que  oíTcreciam  aos  transeun- 
tes, a  troco  de  alguns  soldos,  vários  livrinhos  da  sua  lavra,  cheios  de  chocar- 
rices  e  de  gravuras  infames.  O  consummo  d'estas  obras  chulas  era  considerável, 
e  ninguém  se  importava  com  o  seu  espantoso  atrevimento. 

Não  obstante  esta  complacência  das  auctoridades  e  do  publico,  encontra- 
mos nas  chronicas  de  Pedro  de  TEstoile  a  noticia  de  haver  sido  sequestrado  o 
livro  De  matrimonio,  de  Sanchez,  que  uma  ordenação  do  parlamento  ana- 
thematisara  em  1011,  «por  ser  um  livro  abominável  e  de  leitura  má  e  per- 
niciosa.» 

Um  dia  Estoile  estava  por  acaso  na  loja  do  livros  de  Adriano  Perrier, 
quando  o  commissario  de  policia  Langlois  foi  alli  prohibir  a  venda,  fosse  a  quem 


o',V2  HISTORIA 

fosse,  (l'esse  grande  volume,  que  havia  sido  ultimamente  reimpresso  e  vendido 
a  esmo,  até  que  se  descobriu  ser  uma  obra  de  sodomia. 

Estoile  apressou-se  a  comprar  o  livro  prohibido,  e  confessa  que  o  jesuíta 
Sanchez  «tractava  alli  da  arte  da  sodomia,  mas  de  um  modo  tão  obsceno  e  abo- 
minável, que  este  papel  em  que  estou  a  escrever  se  envergonharia.  O  jesuíta 
falia  como  homem  de  grande  experiência  no  otficio.» 

O  livro  de  Sanchez  não  teria  sido  prohibido,  apesar  da  doutrina  que  con- 
tinha, se  o  auctor  em  vez  de  jesuíta  fosse  franciscano,  ou  capucho.  Em  todos 
os  livros  publicados,  porém,  pelos  jesuítas,  descontiava-se  sempre  de  máximas 
perigosas  para  o  poder  e  auctorídade  dos  reis,  sendo  geral  a  preoccupagão  con- 
tra a  companhia  de  Jesus,  suas  doutrinas  e  escriptos. 

Assim,  Estoile,  que  acaba  de  comprar  por  8  libras  inirísis  o  grosso  vo- 
lume de  Sanchez  encadernado  em  pergaminho,  porque  (josto  dos  jesuítas,  diz 
elle  sarcasticamente,  justifica  a  sua  compra,  dizendo  que  quer  possuir  este  li- 
vro, «não  porque  o  assumpto  me  agrade,  mas  para  provar  melhor  a  boa  vida 
e  santa  doutrina  d'esses  novos  prophetas,  condemnados  pelos  seus  próprios  es- 
criptos, dos  quaes  já  tenho  uma  boa  collecção.» 

Ao  mesmo  tempo  que  a  Sorbonna  mandava  sequestrar  em  Paris  a  obra 
de  Sanchez  De  matrimonio,  reimprimia  se  pela  terceira  ou  quarta  vez  a  Sítmína 
peccalorum  do  franciscano  bretão  .1.  Henedicti,  que  já  apparecera  em  Lyon  em 
lo8t,  sem  excitar  de  modo  algum  os  escrúpulos  da  cgreja  ou  da  magistratura. 
Este  tractado  mystico,  (jue  o  auctor  tivera  a  imprudência  de  dedicar  á  Virgem 
Maria,  continha  muito  mais  obscenidades  e  infâmias  que  o  tractado  De  malri- 
inonio.  E'  verdade  que  o  Padre  Benedicti,  na  sua  impura  locubração,  se  havia 
mostrado  menos  indulgente  que  Sanchez  a  respeito  da  sodomia,  por  isso  que 
enumera  entre  os  peccados  mortaes  o  caso  de  um  marido  que  se  portara  para 
com  sua  mulher  como  os  rabinos  auctorisam.  O  frade  serve-se  d'estes  termos, 
que  vamos  citar  na  traducção  latina,  porque  o  vulgar,  que  chegou  a  escanda- 
lisar  o  próprio  Brantòme,  soa  mui  desagradavelmente  aos  ouvidos  honestos : 

Ihwhus  niulieribus  apud  Synagojiam  conquesiis  se  fuisse  a  viris  suis 
coita  sodomico  cognilas,  responsum  est  ab  illis  rabbinis:  Virum,  esse  uxoris 
dominuni,  proinde  posse  uti  ejus  utcunque  libuerit,  non  aliter  quain  is  qui 
pisoei}!  emil ;  ille  enim  Iam  anterioribus  qaam  poslerioribm  partibtis,  adar- 
bitrium  vesci  potest. 

A  maior  parte  dos  (iuias  da  coíi^s.sào  e  dos  tractados  canónicos  a  respeito 
dos  ca.sos  de  consciência  eram  um  diluvio  de  obras  obscenas,  que  circulavam 
com  profusão  não  só  em  Paris,  mas  lambem  nas  províncias.  Os  prelos  de 
Uouen,  dí'  i-yon,  de  l*oitiers  e  de  muitas  outras  cidades  não  cessavam  de  vo- 
tnilar  uma  (pianlidade  espantosa  de  libellos  sórdidos  e  licenciosos,  que  os  ven- 
dedores ambulantes  compravam  e  vendiam  até  mesmo  nas  aldeias  c  nos  toga- 
res mais  remotos  c  obscuros. 

Estes  monumentos  da  antiga  jovialidade  gauleza  tinham  uma  influencia 
funesta  nos  costumes,  tanto  mais  que  andavam  de  mão  em  mão  sem  distiiic(,'ão 
de  sexo  nem  de  edade.  A  policia  na<la  prohibia,  emíjuanto  não  fossem  atacados 
nos  seus  princípios  fundamentaes  o  tliiono  ou  a  religião. 


As  arrependidas 


DA    PROSTITUIÇÃO  Ji3g 

Mm  d'esles  livros  licenciosos,  o  mais  foiuoso  ilo  todos,  o  Meio  de  conse- 
finir  {Mot/en  de  Parcenir),  que  sahiu  á  luz  ahi  polo  anno  de  lOOÍ)  ou  1610, 
teve  duas  ou  tivs  edições  simultâneas,  e  apesar  da  audácia  de  muitas  das  suas 
proposi(,'õcs  hcielicas,  cheirando  pronunciadameiíle  á  fogueira,  esta  collecção 
de  contos  livres  c  dcsliragados  não  íoi  supprimida  pela  censura  ecciesiastica, 
nem  por  decreto  do  rei,  tien)  por  sentença  do  parlamento.  O  auctor,  Beroaldo 
de  Verville,  apesar  de  ser  cónego  de  Tours,  manifestava  uma  certa  sympalhia 
peia  Reforma  e  pelos  reformados,  e  nem  sequer  foi  incommodado  pela  sua 
obra.  O  nome  do  cónego  não  vinlia  no  fronlespicio  do  livro,  mas  toda  a  gente 
sabia  quem  era,  e  o  cabido  de  que  Beroaldo  era  membro  nem  sequer  precisou 
de  denunciar  ao  arcebispo  de  Tours  o  libertino,  que  se  havia  inspir.ido  nos  es- 
criptos  de  Kabclais,  t-  que  até  mesmo,  segunda  corria,  se  apropriara  de  uma 
obra  inédita  do  mestre. 

O  Moyen  de  Paroenir,  collecção  de  contos  licenciosos,  não  é  menos  audaz 
que  o  Ganjaniiui  e  o  PanUujruel.  E'  ainda  muito  mais  obsceno  e  cynico,  e 
apesar  de  tudo  isto,  nunca  despertou  as  cóleras  da  Sorbonna  ou  do  parlamento. 
Foi  decerto  a  este  impudor  e  cynismo  que  o  livro  e  o  auctor  deveram  a  sua 
salvação.  Se  a  épocha  fosse  menos  propensa  a  satyras  e  contos  licenciosos, 
tanto  um  como  o  outro  teriam  sido  infallivelmente  (|ueimados. 

Estes  contos  em  que  os  frades  e  as  freiras  eram  os  personagens  obriga- 
tórios, desempenhando  os  papeis  ordinários  que  a  malicia  do  vulgo  lhes  attri- 
buia  desde  a  origem  dos  conventos,  não  eram  decerto,  força  é  dizel-o,  mais 
estranhos  nem  mais  escandalosos  que  os  factos  succedidos  todos  os  dias  á  vista 
dos  leitores  do  Moyen  de  Parvenir.  Assim,  Pedro  de  TEstoile,  que  se  presava 
de  escrever  a  historia  contemporânea,  quando  não  fazia  mais  que  recolher  e 
archivar  os  rumores  da  còrtc  e  da  cidade,  consignava  com  data  de  fevereiío  de 
l()IO,  uma  aventura,  que  Beroaldo  poderia  ter  transcripto,  sem  lhe  mudar 
uma  palavra,  no  seu  engraçado  Motjen  de  Panenir: 

«Uma  dama  desta  cidade,  que  pouco  antes  bavia  sido  niettida  nas  Arre- 
pendidas, disse  e  confessou  passados  dias  a  um  amigo  meu  que  foi  visital-a, 
que,  desde  a  segunda  noite  que  para  alli  entrara,  tivera  por  companheiro  um 
sacerdote,  que  dormia  com  ella  e  com  outra  arrependida,  e  não  cessavam  de  se 
dar  alli  a  estes  prazeres,  uma  vez  que  fosse  com  sacerdotes  e  gente  de  egreja, 
pelo  que  as  denominavam  consagradas.  O  mesmo  amigo  contou-me  que  um  ho- 
mem distincto  d'esta  cidade  tentara  muitas  vezes  leval-o  a  esta  communidade 
de  mulheres,  assegurando-lhe  que  bem  depressa  lhe  proporcionaria  o  meio  de 
gosar  á  sua  vontade  as  que  elle  quizesse,  em  Longchamp  e  em  (lif,  onde  se  pec- 
cava  mais  livremente  que  no  mais  afamado  bordel  da  cidade  de  Paris.» 

Apesar  de  de  TEsloile  dar  inteira  fé  ao  testemunho  do  seu  amigo  a  quem 
linha  por  homem  temente  a  Deus,  pôde  qualilicar-se  de  exaggerada  uma  nar- 
ração que  se  baseia  simplesmente  em  um  dicilur.  E  todavia  cousa  averiguada 
que  as  communidades  de  mulheres  estavam  tão  relaxadas  n'aquella  épocha,  que 
foi  preciso  reformar  a  maior  parte  d'cllas  no  decurso  do  século  xvii. 

Esta  relaxação  e  as  desfordens  que  eram  a  sua  consequência  necessária 
datavam  do  tempo  das  guerras  civis  e  sobre  tudo  das  da  Liya,  quando  a  gente 


534  HISTORIA 

fie  guerra  se  alojava  nos  conventos,  entrando  ás  vezes  n'elles  como  n'uma  ci- 
dade tomada  de  assalto.  A  maior  parte  das  vezes,  os  da  Liga  parlamentavam 
com  as  religiosas,  c  estas  offereciam-lhes  uma  hospitalidade  inteiramente  fra- 
ternal. A  abbadessa,  ou  superiora,  dava  o  exemplo  ás  suas  filhas  no  Senhor,  e 
quando  não  era  nem  demasiado  velha  nem  feia,  depressa  se  punha  de  accordo 
com  o  chefe  das  tropas.  Realisado  o  accordo,  não  cessavam  os  banquetes,  até 
que  as  tropas  evacuavam  a  casa  do  Senhor.  Os  amantes  separavam-se,  depois 
daqueila  vida  encantadora  de  alguns  dias,  indo  os  soldados  atraz  do  inimigo, 
e  voltando  as  freiras  novamente  á  sua  vida  religiosa,  em  que  haviam  aberto, 
pela  força  das  circumstancias,  um  delicioso  parenthese  de  gozos  niateriaes. 

No  dia  seguinte,  passava  por  alli  outro  corpo  das  tropas  catholicas,  e  o 
mosteiro  acolhia  os  seus  novos  hospedes  com  a  mesma  sollicitude  e  deferência. 
Já  vimos  como  Henrique  iv  e  os  seus  cortezãos  se  estabeleceram  com  todos  os 
direitos  de  guerra  nos  conventos  de  Maubuisson,  de  Longchamp  e  de  IVlont- 
martre. 

Comprehende-se  á  primeira  vista  quanto  esta  vida  passada  entre  soldados 
devia  comprometter  gravemente  a  castidade  monástica.  As  freiras  davam-se  tão 
bem  com  esta  vida  volupiuosa  e  mundana,  que  não  receiavam  infringir  os  vo- 
tos e  abandonar  a  disciplina  claustral.  Emquanto  Paris  esteve  em  poder  da 
Liga,  em  1593,  «não  se  via  no  Paço  e  por  toda  a  parte,  diz  Estoile,  senão  frei- 
ras e  soldados,  fazendo  amor  á  vista  de  todo  o  mundo.» 

Estas  freiras  libertinas,  que  passeavam  com  os  seus  amantes  nos  logares 
públicos,  «Ião  impudicas  e  cynicas  em  suas  palavras  como  em  tudo  o  mais», 
traziam  debaixo  do  veu,  que  conservavam  como  único  indicio  da  sua  profis.são, 
verdadeiros  trajos  de  p. .  .  e  de  cortczãs,  arrebiques,  pós  e  perfumes.» 

Os  pregadores  trovejavam  em  vão  contra  taes  escândalos,  e  o  Padre  Com- 
molet,  que  se  revolvia  no  púlpito  como  um  energúmeno,  chamando  p.  ..  des- 
caradas áqucllas  desgraçadas  peccadoras,  e  vis  ruliões  aos  seus  cúmplices,  di- 
zia que  o  povo  devia  apedrejal-as  e  atirar-lhes  á  cara  com  a  lama  das  ruas,  como 
faria  ás  mulheres  de  má  vida  e  aos  seus  libertinos  amantes,  se  elles  se  atre- 
vessem a  olfender  a  castidade  publica,  sahindo  á  luz  do  dia  dos  seus  immun- 
dos  asylos  de  prostituição. 


CAPITULO   XLI 


SUMMARIO 

A  tclerancia  ilo,<  loirares  de  prostituição.—  Inconvenientes  deste  systema  de  administração  politica.— Opinião 
de  Montaig-ne  a  respeito  d'este  assumpto.—  O  ministro  Cayet  to:na-s  o  advogado  dos  bordeis.— Seu  discurso  con 
tra  a  libertinagem  publica.  -Setpicstro  da  ob  a  .■m  casa  do  impressor  Roberto  Estienne.— Cayet  deposto  pelu  con- 
sistório. —Accusações  dos  protestantes  por  lhe  haverem  attribuido  o  livro.  —  Aubigné  pretende  que  o  padre  Cayet 
escrevera  dois  livros  infames  em  vez  de  um.— A  upiuião  de  Cayet  appoiada  p-la  auctoridade  de  um  Papa.— jrdena- 
ção  real  de  1588  contra  os  bordeis.— Ordenações  prebostaes  de  1619  e  163.T  para  a  e.wcução  do  edito  de  1560.—  Os 
libertinos  de  Paris  no  fim  do  século  xvi.— O  conselheiro  ,loão  Levv.l.t  e  a  sua  concubina. -O  capitão  Richelieu  —De- 
sordens da  policia  dos  costumes  em  161 1.— A  casa  do  pre-idente  de  Harlay. 


ORDEN.Aç.vo  de  l}6(),  que  luivia  preseripto  a  abolirão  do.s  bor- 
deis, continuava  em  vigor,  apesar  de  não  ser  estriclameiite 
observada.  De  vezes  em  quando,  porém,  uma  série  de  medidas 
rigorosas,  exercidas  contra  a  prostituirão,  vinha  provar  ener- 
gicamente que  o  principio  da  lei  prohibiliva  não  seria  aijandonado 
facilmente  pelos  magistrados,  que  julgavam  interessada  a  moral  publica  na 
existência  d'esta  lei.  Não-  obstante,  o  systema  de  prohibii,-ão  absoluta  a  res- 
peito dos  bordeis,  havia  produzido  elTeitos  tão  deploráveis  como  os  da  prote- 
cção legal,  que  por  tanto  tempo  se  concedeu  a  estes  antros  do  vicio.  O  nu- 
mero de  mulheres  perdidas  não  havia  diminuído;  pelo  contrario,  parecia  ter  au- 
gmentado.  Os  grandes  bordeis  primitivos  haviam  desapparecido,  mas  milhares 
de  outros,  occultos  nas  trevas,  ou  disfarçados  sob  honestas  apparencias  haviam- 
se  formado  secretamente  a  expensas  dos  antigos  feudos  da  prostituição,  que  não 
haviam  tido  senão  uma  existência  reconhecida  e  patente. 

E'  fácil  de  suppòr  que  os  cognards,  como  então  se  chamavam,  não  es- 
tando sob  a  vigilância  de  administração  municipal,  eram  perigosas  embosca- 
das, onde  os  desgraçados  que  alli  cabiam,  perdiam  frequeiilemeiíle  a  bolsa,  a 
capa  e  ás  vezes  a  vida.  Quanto  ao  estado  sanitário,  nada  ha  que  dizer,  por- 
que bem  claramente  se  comprehende  o  que  seria  aquilio  : — a  s\philis  mais  ter- 
rível, contagio.sa  e  incurável,  fermentava  n'aquelies  antros  immundos. 

Houve  eITectivamente  muitas  prostitutas  açoitadas,  marcadas  com  o  ferro 
infamante,  tosqueadas  pela  tesoura  do  verdugo,  desterradas  perpetuamente. 
Houve  muitas  proxenetas  passeadas  em  burros  pelas  ruas  da  cidade,  amarra- 
das aos  pelourinhos  e  condemnadas  a  grandes  multas.  Iniiumeros  rufiões  o  li- 
bertinos foram  presos  e  condemnados  ás  galés,  mas  o  castigo  de  uns  não  tor- 
nava os  outros  mais  honestos,  e  por  mais  que  se  trabalhava  para  extirpar  o 
cancro  da  prostituição,  ella  augmentava  sem  cessar  pelas  povoações,  e  como  a 


SSfi  HISTORIA 

peste  parecia  apostada  a  arrostar  todos  os  esforços  da  previsão  e  da  sabedoria 
humana. 

Os  próprios  factos  mosli^avatn  de  um  modo  palpável  a  necessidade  de  res- 
tabelecer a  prostituição  legal,  para  extinguir  a  prostituição  secreta.  Os  legisla- 
dores besitaram  perante  o  escândalo  desta  necessidade,  e  não  ousaram  tocar 
na  ordenação  de  Carlos  ix,  mas,  ao  mesmo  tempo,  como  já  vimos,  mantendo 
o  principio  da  lei,  chegaram  á  tolerância  dos  bordeis.  Ignoramos  em  que  épo- 
cha  foi  admittida  esta  tolerância  local.  Devemos  suppòr,  no  emtanto,  que  es- 
teve em  practica  em  Paris  no  reinado  de  Henrique  iii.  Nos  escriptos  do  fim  do 
século  XVI,  encontra-se  a  menção  formal  de  certos  bordeis,  que  tinham  bas- 
tante fama,  para  que  podessem  existir  como  estabelecimentos  públicos  sem  a 
auctorisação  tacita  do  prebostado  do  Chatelet  de  Paris.  Pedro  de  TEstoile,  n'uma 
passagem  dos  seus  Hegistros-diarios,  que  já  anteriormente  citámos,  allude  ao 
mais  celebre  dos  bordeis  da  capital,  embora  não  o  nomeie. 

Ignoramos  também  em  que  logar  havia  assentado  o  seu  domicilio  a  pros- 
tituição tolerada.  Estamos,  porém,  dispostos  a  crer  que  as  mesmas  ruas  e  pra- 
ças, já  n'outros  tempos  destinadas  para  estes  estabelecimentos,  ivcab iram  pouco 
a  pouco  sob  o  seu  domínio. 

No  emtanto,  estes  locaes,  cujo  numero  era  Ião  restriclo,  e  que  estavam 
sujeitos  a  certas  condições  de  vigilância  interior,  não  bastavam  agora  para  o 
desenvolvimento  das  paixões  vergonhosas  e  para  os  excessos  da  lubricidade.  A 
prostituição,  em  vez  de  se  encerrar  no  estreito  espaço,  que  lhe  era  concedido, 
em  vez  de  acceilar  o  patronato  occullo  da  municipalidade  parisiense,  não  co- 
nhecia limites,  e  invadia  todos  os  dislrictos,  todas  as  ruas  e  todas  as  casas  da 
cidade.  Os  centros  mais  contagiosos  eram,  porém,  as  (".orles  dos  milagres,  onde 
se  estabelecera  um  asylo  inaccessivel  á  lei.  Era  alli  onde  o  vicio  podia  desafiar 
impunemente  o  pudor  publico,  onde  o  crime  podia  cobrir  as  suas  manchas  san- 
grentas com  o  lodo  da  libertinagem. 

A  abolição  dos  bordeis  não  tora  completamente  extranha  a  este  deplorá- 
vel estado  de  cousas.  Muitos  homens  illustrados  e  pios  o  pensavam  assim,  em- 
bora tivessem  o  cuidado  de  o  não  dizer.  Miguel  de  Montaigne,  que  não  se  aco- 
bardava jamais  de  dizer  tudo,  não  se  atreveu  ainda  assim  a  dar-nos  a  conhe- 
cer a  sua  opinião  a  respeito  d'csta  grave  questão  de  moral  e  de  policia.  Deve 
presumir-se  todavia  que  o  illusfre  pensador  era  da  opinião  do  maior  numero  de 
homens  notáveis  do  seu  tempo,  e  ha  mesmo  quem  assevere  que  pôde  applicar-se 
a  esta  questão  o  que  se  lé  nos  seus  Essais,  publicados  pela  primeira  vez  em 
1580.  (Bordéus,  Millanges,  2  vol.  in-S."): 

«O  que  chamamos  honestidade,  diz  elle  no  livro  ii,  cap.  12,  e  que  con- 
siste em  não  se  fazer  ás  claras  o  que.se  nos  pcrmitte  fazer  cm  segredo,  cha- 
mam elles  (os  stoicos)  necessidade .  Ser  uma  pessoa  delicada,  occullando  e  des- 
approvando  mesmo  o  que  a  natureza,  o  coslumc  c  o  próprio  desejo  publicam  a 
respeito  das  nossas  acções,  era  por  elles  julgado  vicioso.  D'a(iui  dizem  alguns 
que  supprimir  os  bordeis  públicos  é  não  só  estender  a  Ioda  a  parte  o  vicio,  que 
estava  circumscripto  á(|uelles  logares,  mas  excitar  a  eilc,  pela  diíliculdade,  os 
homens  de  maus  costumes  e  os  vadios.» 


DA   PROSTITUIÇÃO  0.37 

Montaigne,  na  sua  qualidade  de  antigo  membro  do  parlamento  de  Bordéus, 
não  podia  pronunciar-se  abertamente  contra  uma  lei,  que  passava  a  esse  tempo 
peia  melliorda  jurispudencia  fraiiceza,  e  que  diariamenteestava  tendo  applicai^-ão 
em  vários  pontos  do  reino.  Tinha,  porém,  elevados  intuitos  tanto  na  pliilusopiíia 
como  na  politica,  para  não  deplorar,  pelo  menos  em  segredo,  um  remédio  peior 
que  a  doença. 

Não  foi  elle,  por  tanto,  quem  ergueu  a  voz  para  defender  a  causa  da  pros- 
tituição legal  no  interesse  dos  costumes  públicos,  e  para  pedir  o  restabelecimento 
dos  antigos  privilégios  da  libertinagem.  Foi,  segundo  parece,  um  sábio  ministro 
da  religião  reformada,  Pedro  Victor  Cayet,  que  julgou  útil  dar  ao  vicio  um  domí- 
nio circumscripto  e  limitado,  onde  podesse  destillar  o  seu  veneno,  sem  infestar 
a  parte  sã  da  população. 

Cayet,  filho  de  pães  pobres  e  obscuros,  e  natural  de  Montrichard,  na  Tu- 
renna,  tinha  adquirido  conhecimentos  vastíssimos  em  todas  as  sciencias  e  ainda 
n'aquellas  que  se  chamavam  diabólicas  ou  occultas.  Tinha-se  occupado  de  ma- 
gia e  gabava-se  de  ter  intelligencia  com  o  diabo,  que  lhe  havia  dado  o  dom 
das  línguas.  O  seu  immenso  saber,  melhor  ainda  que  a  sua  dcmonomania, 
grangeou-lhe  o  titulo  e  o  exercício  de  pregador  da  princeza  Catharinu  de  Na- 
varra. Havia  composto  já  muitos  tratados  de  magia,  de  polemica  religiosa  e  de 
historia,  quando  pensou  em  tornar-se  reformador  dos  costumes,  e  redigir  um 
Discurso,  que  continha  o  remédio  contra  as  dissoliK^ões  publicas,  para  ser  apre- 
sentado ao  parlamento. 

Este  discurso  não  era,  segundo  elle  dizia,  mais  que  a  traducção  ou  pa- 
raphrase  de  um  opúsculo  italiano,  impresso  quinze  ou  vinte  annos  antes  sob 
o  titulo  de  Discorso  dei  remedie  delle  publiche  dissoluzioni,  com  o  nome  do 
celebre  Nicolau  Perotto,  arcebispo  de  Siponto.  E'  provável  que  Cayet  não  se 
limitasse  a  traduzir  o  Discorso,  e  que  inserisse  muita  coisa  da  própria  lavra 
n'esta  apologia  da  prostituição  legal. 

Houve  quem  dissesse  que  Cayet  não  tinha  por  essa  épocha  vida  muito 
regular,  tendo  até  tido  uma  aventura  com  certa  dama.  Esta  accusação  formu- 
lada por  Coloniés  na  sua  Gallia  Orientalis,  (p.  lií)  não  tem  relação  muito 
directa  com  o  projecto  que  o  pregador  de  Catharina  de  Navarra  ruminava  po'- 
esse  tempo,  de  se  fazer  o  restaurador  dos  bordeis.  A  memoria  que  n'este  in- 
tuito escrevera,  continha  considerações  moraes,  económicas  e  pornographicas, 
bem  pouco  em  harmonia  com  o  caracter  e  modo  de  vida  do  auctor.  Habitava, 
segundo  corria,  n'uma  trapeira  da  rua  da  Huchette,  e  alli  permaneceu  mais 
de  três  mezes  com  um  famoso  mago,  a  quem  chamavam  o  Juiz  de  Condon. 
Succedia  isto  no  decurso  do  anno  de  139.5,  e  já  n'essa  épocha  os  reformados 
tinham  a  Cayet  por  suspeito  de  querer  converter-se  ao  catholicismo  por  cálcu- 
los de  ambição. 

Tendo  Cayet  concluído  o  seu  livro  a  respeito  dos  bordeis  e  da  necessi- 
dade de  os  estabelecer  de  uma  forma  sensata  e  bem  regulada,  mandou-o  co- 
piar a  um  secretario,  accrescentando  na  copia  pela  sua  própria  mão  grande 
numero  de  citações  gregas  e  latinas. 

Preparado  assim  o  manuscripto,  foi  confiado  a  um  impressor  protestante, 

HUTOKU  DA  PaotTITOIçIo.  TOMO  U— FOLHA  68. 


338  HiSTORIA 

Roberto  Estienne,  que,  segundo  parece,  hesitou  em  imprimil-o,  e  resolveu 
consultar  um  amigo  commum.  Suppõe-se  que  esse  amigo  fora  Pedro  de  TEs- 
toile,  com  quem  Cayet  tinha  relações  da  maior  intimidade. 

Succedeu,  no  emtanto,  que  o  manusíripto  foi  subtrahido  das  mãos  do 
impressor,  e  Cayet  foi  accusado  de  libertinagem  ante  o  consistório  de  ministros 
reformados,  que  inquiriram  testemunhas,  interrogaram  o  accusado,  e  o  con- 
demnaram  como  auctor  de  um  livro  execravel,  ainda  que  o  pobre  Cayet  sus- 
tentasse com  energia  que  esse  livro  estava  cheio  de  bons  remédios  contra  a  in- 
continência. 

Havendo  censurado  a  Roberto  Estienne  a  sua  traição,  o  impressor  res- 
pondeu : 

—  Não  foi  traição,  engana-se.  Eu  mesmo  fui  illudido  por  uma  pessoa  em 
quem  tinha  toda  a  confiança.  A  ninguém  disse  que  era  o  sr.  Cayet  o  auctor  do 
livro,  por  isso  mesmo  que  lhe  havia  prometlido  não  o  mostrar  a  ninguém. 
(Chronol.  novenn.  por  Cayet,  1o9õ.) 

O  ministro  protestante,  que  acabava  de  ser  solemnemente  deposto  pelo 
consistório,  declarou  immediatamente  que  voltava  á  religião  catholica  romana, 
e  deixou  o  serviço  da  irmã  d'el-rei.  O  tractado  a  respeito  dos  bordeis  não  foi 
impresso,  e  os  ministros  evangélicos  que  tinham  o  manuscriplo  original  fize- 
ram d'elle  uma  ameaça  contra  a  honra  do  convertido,  que  veio  a  ser  doutor  da 
faculdade  de  theologia,  sem  deixar  de  se  consagrar  ás  sciencias  occultas. 

Dizia-se  á  bocca  pequena  que  se  havia  consagrado  ao  diabo  e  que  tinha 
firmado  com  o  próprio  sangue  um  contracto  com  o  príncipe  das  trevas.  Os  pro- 
testantes perseguiram-no  com  calumnias  e  salyras,  em  que  era  assumpto  obri- 
gado o  famoso  livro,  que  ninguém  vira,  a  não  ser  o  impressor  Roberto  Eslienne, 
Pedro  de  TEstoile,  e  os  membros  do  consistório. 

Eis  como  Estoile,  que  muita  gente  suppoz  ser  o  auctor  d'esse  livro,  falia 
d'elle  nos  seus  Registres-Journaux : 

«N'este  tempo  (fins  de  looo)  um  ministro  evangélico  da  princeza  Catha- 
rina,  chamado  Pedro  Victor  Cayet,  abjurou  a  religião  e  deixou  o  ministério  a 
que  pertencia  para  se  fazer  sacerdote  catholico  romano.  Este  homem  escreveu 
muitos  cadernos  de  papel  conlra  os  ministros,  seus*collegas,  que  o  accusavam 
de  ter  começado  a  sua  conversão  pelo  bordel,  reproduzindo  um  livro  que  elle 
havia  escripto,  pedindo  permissão  e  tolerância  para  os  referidos  estabelecimen- 
tos, a  respeito  do  que  se  compoz  a  seguinte  copla  : 

Cayet  se  voidanl  faire  prêtre, 
A  montré  qu'il  a  bon  cerveau  ; 
Car  il  veiilt,  avant  de  Vitre, 
Faire  rétablir  le  bourdeau. 

Esta  passagem  dá  a  entender  que  Pedro  de  TEstoile  conhecia  o  livro,  e 
que  houvera  alguém  que  tirara  copias  d'clle.  Cayet,  porém,  nunca  declarou 
que  este  livro  fosse  obra  sua,  o  que  nos  dá  a  entender  (|U("  se  envergonhava 
de  o  ter  escripto. 


DA    PROSTITUIÇÃO  539 

Agrippa  d'Aubigné,  que  nunca  perdoou  a  Cayet  a  sua  apostasia,  refere  o 
seguinte  na  sua  Hisioire  Liniverselle  (l.  iii.  I.  iv,  cap.  1  I  : 

«Succedeu  também  que  o  tal  ("ayet,  por  se  dar  ao  estudo  da  magia,  foi 
deposto  por  algum  tempo,  e  accusado  em  seguida  de  haver  escripto  dois  livros, 
um  para  provar  que  o  sexto  mandamento  não  prohibe  nem  a  fornicação  nem  o 
adultério,  mas  somente  o  peccado  de  Onan  (sola  masfurbatio)  e  outro  sobre 
a  necessidade  de  restabelecer  os  bordeis.» 

Aubigné  não  cessou  de  vilipendiar  Cayet  a  respeito  d'estas  duas  obras, 
que  não  faziam  mais  do  que  uma,  na  opinião  do  auctor  das  notas  da  Confissão 
de  Sancfi  (p.  58  da  ediç.  publicada  por  Lcduchat  em  1746,  em  continuação  do 
Journal  d'Henri  iii.)Na  Confissão  de  Sancij,  porém,  Agrippa  d'Aiibigné  volta 
à  sua  teimosia  dos  dois  livros,  de  forma  ((ue  parece  ter  a  este  respeito  uma 
convicção  profunda. 

O  heroe  d'Aubigné,  o  senhor  de  Sancy,  diz  estas  palavras: 

—  «A  fornicação  e  o  adultério  por  amor  não  são  peccados,  segundo  o  dou- 
tor Cayet,  no  seu  erudito  livro  a  respeito  do  restabelecimento  dos  bordeis,  e  na 
sua  douta  disputa  sobre  o  sexto  mandamento.  Este  sexto  mandamento,  que  diz 
i\on  mcechaberis,  prohibe  S(ímente  o  peccauo  dos  filhos  d'Onan.» 

No  Barão  de  Foenesle,  Aubigné  volta  ainda  á  carga  contra  os  dois  livros, 
posto  que  esta  satyra  fosse  escripta  depois  da  morte  de  Cayet : 

—  «Despediste-o  por  magia  ?  pergunta  o  barão. 

—  «A  principio,  responde  Enay  (que  é  o  próprio  Aubigné),  não  foi  accu- 
sado senão  por  dois  livros,  um  em  que  sustentava  que  nem  a  fornicação  nem 
o  adultério  eram  o  peccado  prohibido  pelo  sexto  mandamento,  mas  sim  o  vicio 
dOnan,  pelo  que  se  inimisou  com  a  sagrada  sociedade  (a  companhia  de  Jesus); 
o  outro  livro  é  uma  memoria  para  o  restabelecimento  dos  bordeis.» 

O  capitulo  termina  com  um  abominável  soneto,  que  se  encontra  também 
no  final  da  Confissão  de  Saiici/,  sob  o  titulo  de  Syllogismo  e.rposiúco  da  con- 
trovérsia sobre  se  a  Eyreja  é  só  dos  escolhidos.  Este  soneto,  cujo  verso  final  é 
uma  imitação  de  uma  passagem  de  Passatant,  de  Theodoro  de  Béze,  applica 
á  Egreja  Romana  as  palavras  do  propbeta  Ezechiel  acerca  da  mulher,  qiuv  di- 
varicaiit  libias  suas  sub  oinni  arbvre.  E  uma  composição  poética  inspirada 
pela  apostasia  de  Cayet,  e  recorda  que,  se  o  apóstata  «quiz  dar  franquias  e  exem- 
pções  às  prostitutas>\  quando  era  ainda  huguenotte: 

Catholiqiie.  il  poursuil  encore  son  entrepise. 

Agrippa  d'Aubigné,  que  era  inimigo  pessoal  do  pobre  Cayet,  nunca  dei- 
xou de  arremessai'  á  sua  memoria  as  mais  atrozes  injurias.  E  assim  que  elle  o 
qualifica: 

Uavocat  de$  ptitainu,  syndic  des  mai^uereaux. 

Finalmente,  n'outro  logar  da  Confession  de  Sancy,  Aubigné  apresenta 
outra  vez  em  scena  um  dos  livros  de  Cayet,  fallando  do  papa  Sixto  v,  «que 
supprimiu  os  bordeis  de  mulheres  e  mancebos,  por  não  haver  lido  a  obra  de 
M.  Cayet.» 


340  HISTORIA 

Bastar-nos-ha  osta  plirase  para  inferirmos  com  toda  a  probabilidade  que 
o  cscriplor  Cayet,  no  Discurso,  que  tencionava  apresentar  ao  parlamento  e  que 
havia  soi)recarregado  de  citações  gregas  e  latinas,  tractava  das  diíTerentes  es- 
pécies de  libertinagem  em  todos  os  povos  e  em  todas  as  épocbas,  citando  em 
appoio  da  sua  opinião  a  auctoridade  do  papa  Sixto  iv,  ao  qual  se  attribuia  o 
estabelecimento  dos  lupanares  de  um  e  outro  se\o.  Lupannria  utrique  Veneri 
erexit,  havia  dito  o  sábio  Cornelio  Agrippa  de  Netlesheim,  n'uma  das  primeiras 
edições  do  seu  celebre  tractado  De  tanilate  et  incertiludine  scienliarum  (c.  64, 
De  lenocinio).  Verdade  seja  que  pouco  depois  teve  de  modificar  esta  asserção 
um  tanto  arriscada,  contentando  se  de  recordar  que  aquelle  papa  desbragado 
havia  estabelecido  em  Roma  um  lupanar  nobre:  Homce  nobile  admodum  lupa- 
nar exíruxit.  (Bayle,  Dicdonn.,  art.  Si-rte  iv.) 

Os  planos  pornograpbicos  de  Cayet  não  foram  submettidos  ao  exame  do 
parlamento  nem  á  apreciação  de  juizes  competentes;  não  houve,  porisso,  ne- 
nhuma reforma,  nenhuma  innovação  na  policia  dos  costumes,  e  alguns  bordeis 
permaneceram  abertos  com  tacita  permissão  dos  magistrados  civis  e  criminaes. 
Não  obstante,  p(5de  suppòr-se  que  houvera  graves  abusos  n'esta  tolerância  de 
certos  asylos  de  prostituição.  'ístamos  inclinados  a  crer  que  os  commissarios 
ou  agentes  de  policia  recebiam  ás  vezos  dinheiro  ou  presentes  da  parte  dos  mi- 
seráveis especuladores  da  liberlinagcm,  pois  que  uma  ordenação  de  Henrique 
III,  promulgada  a  lo  de  outubro  de  IoH,S,  dá-nos  a  entender  que  em  muitas  cir- 
cumstancias  os  magistrados  se  esqueciam  de  applicar  o  edicto  de  1360,  relativo 
aos  bordeis,  mostrando-se  favoráveis  aos  impuros  interesses  das  pessoas  depra- 
vadas, que  viviam  á  casta  da  prostituição. 

N'esta  ordenação  contra  «os  blaspbemos,  taberneiros,  barqueiros  e  outras 
pessoas  dadas  a  costumes  dissolutos,»  devem  notar-se  os  dois  paragraphos  se- 
guintes : 

«Fica  prohibido  a  toda  e  qualquer  pessoa  ter  bordeis  e  jogos  de  dados. 
Os  infractores  serão  punidos  extraordinariamente,  c  sem  dissimulação  ou  con- 
nivencia  dos  juizes,  sob  pena  de  privação  dos  respectivos  officios. 

«Fica  prohibido  a  todo  o  proprietário  alugar  as  suas  casas,  a  não  ser  a 
gente  de  bom  nome  e  boa  reputação,  não  permittindo  nellas  bordel  publico  ou 
particular,  sob  pena  de  setenta  libras  parisis  de  multa,  pela  primeira  vez,  e  de 
cento  e  vinte  pela  segunda,  e  pela  terceira  de  confisco  das  referidas  casas.» 

Tinha,  portanto,  havido  conRÍvencia  entre  os  juizes  e  as  parles  interes- 
sadas, por  isso  que  el-rei  admoestava  estes  magistrados  para  que  evitassem 
qualquer  dissimulação  ou  tibieza  na  perseguição  dos  bordeis  públicos  ou  secre- 
tos. Esta  ordenação  real  não  foi,  porém,  mais  bem  observada  (iLie  as  outras,  e 
a  prostituição,  essa  chaga  necessária  das  paixões  vergonhosas,  que  de  continuo 
fermentam  n'uma  grande  cidade,  continuava  ao  abrigo  dos  banheiros,  barbei- 
ros, taberneiros,  estalajadeiros  e  outra  gente  do  mesmo  estofo,  apesar  das  suas 
ca.sas,  mal  afamadas  sempre,  estarem  expostas  a  visitas  domiciliarias  de  dia  e 
de  noite,  que  os  commissarios  visitadores  do  Chatelet  eram  obrigados  a  fazer, 
ainda  que  não  as  fizessem  com  frequência. 

«Houve  sempre,  diz  Delamare  (Tractado  ile  policia,  t.  i,  pag.  323)  muitos 


DA    PROSTITUIÇÃO  S41 

particulares,  bastante  corrompidos  ou  interesseiros,  que  alugavam  as  suas  casas, 
todas  ou  parte  dVilas,  para  este  infame  commercio.  O  magistrado  da  policia 
providenciava,  renovando  de  vezes  em  quando  a  publicação  dos  regulamentos, 
acompanhando-os  de  novas  ordenações  para  seu  mais  fiel  e  exacto  com- 
primento.» 

Delamare  cita  uma  d'estas  ordenações,  datada  de  19  de  julho  de  1619  e 
promulgada  por  mes;  ire  Henrique  de  Messues,  senhor  de  Irval,  conselheiro  do 
rei,  tenente  civil  da  cidade,  preboste  e  visconde  de  Paris.  O  procurador  do  rei 
havia-se  queixado  de  «que  muitas  pessoas  de  mcá  vida  tinham  bordeis  públicos, 
que  davam  occasião  a  muitos  roubos  e  assassínios»,  e  o  tenente  civil  prohibia 
expressamente  «a  toda  a  pessoa,  de  qualquer  classe  e  condição  que  fosse,  o  alu- 
gar suas  casas  a  gente  de  má  vida,  sob  pena  de  perder  o  aluguer,  que  seria 
distribuído  em  esmollas  pelos  pobres  e  presos,  sendo  ainda  além  d'isso  as  ca- 
sas alugadas  por  diligencia  do  mesmo  procurador  do  rei,  e  a  importância  dos 
alugueres  distribuída  pelos  pobres  presos.» 

Ao  mesmo  tempo  o  tenente  civil  ordenava  «a  todos  os  vadios  e  prosti- 
tutas que  desoccupassem  a  cidade  e  os  seus  arrabaldes,  dentro  das  vinte  e 
quatro  horas  seguintes  à  publicação  da  presente  ordenação,  sob  pena  de  prisão 
e  de  processo.» 

Todos  os  habitantes  de  Paris  eram  obrigados  a  prestar  auxilio  ao  pri- 
meiro agente  do  Chalelet  e  mais  agentes  de  justiça  encarregados  da  execução 
da  referida  lei,  a  deter  os  contraventores  e  a  conduzil-os  á  esquadra  do  com- 
missario  do  bairro,  sob  pena  de  cem  libras  parisis  de  multa.  Esta  ordenação 
parece  haver  sido  reproduzida  muitas  vezes,  e  pouco  mais  ou  menos  nos  mes- 
mos termos. 

Outra  de  30  de  março  de  1635,  promulgada  por  Miguel  Moreau,  tenente 
civil  do  preboslado,  continha  prescripções  mais  rigorosas,  a  julgar  por  estes 
três  artigos,  que  Delamare  insere  na  sua  obra  : 

1 ."  —  Mandamos,  segundo  as  ordenações  e  decisões  do  Tribunal,  ante- 
riormente publicadas,  que  todos  os  vagabundos,  rapazes,  aprendizes  de  barbeiro, 
de  alfaiate  e  outros  officios,  e  as  mulheres  licenciosas,  tomem  serviço  ou  modo 
de  vida  dentro  de  vinte  e  quatro  horas,  e  no  caso  contrario  que  saiam  da  ci- 
dade e  seus  subúrbios,  sob  pena  de  cadeia  e  galés  para  os  homens  e  açoites  e 
desterro  para  as  mulheres,  sem  outra  forma  de  processo. 

2."  —  Fica  prohibido  a  todos  os  proprietários,  e  principalmente  inqui- 
linos das  casas  d'esta  cidade  e  subúrbios,  arrendal-as  ou  sub-arrendal-as  a 
pessoas  de  má  fama;  outrosim  permittir  n'ellas  actos  deshonestos  e  jogos  11- 
licitos  sob  pena  de  multa  de  sessenta  libras  pela  primeira  vez,  perda  dos  alu- 
gueres de  três  annos  pela  segunda,  e  confiscação  da  propriedade  pela  terceira, 
em  proveito  do  Hotel  Dieu  d'esta  cidade. 

3."  —  Igual  probibição  se  faz  aos  taberneiros,  banheiros  e  estalajadeiros, 
os  quaes  não  poderão  admittir  nem  de  dia  nem  de  noite  nenhuma  das  pessoas 
supramencionadas,  nem  ministrar-lhes  viveres  ou  alimentos  de  qualquer  es- 
pécie, sob  pena  de  um  castigo  exemplar. 

Vários  successos  trágicos,  consignados  nas  memorias  de  P.  de  TEstoile, 


542  HISTORIA 

revelam-nos  quanto  eram  perigosos  para  a  segurança  pessoal  estes  libertinos, 
rufiões  e  outra  gente  perdida,  que  estava  sempre  disposta  a  commetter  um 
crime,  comtanto  que  lli'o  pagassem.  A'  maneira  dos  braiú  italianos,  tinham 
sempre  no  bolso  um  punhal,  uma  navalha,  ou  um  jeton.  Esta  ultima  arma  cor- 
tava como  uma  navalha  aliada,  e  era  com  ella  que  retalhavam  o  nariz  a  um 
adversário,  ou  lhe  picavam  a  cara,  com  uma  destrezaprodigiosa.  (Journal  cVHenri 
III,  ediç.  de  Champollion,  pag.  131.) 

Em  1581,  João  Levoix,  conselheiro  do  parlamento  de  Paris,  quiz  vin- 
gar-se  da  sua  amante,  que  era  mulher  do  governador  do  Chàtelet,  chamado 
Boulanger.  A  adultera,  que  mantivera  com  o  amante  relações  publicas,  reíle- 
ctiu  sobre  o  seu  estado  escandaloso  e  resolveu  emendar-se.  Por  isso,  rogou  ao 
seu  corruptor  que  a  deixasse  ir  em  paz,  e  resistiu  d'ahi  por  diante  com  tena- 
cidade a  todos  os  esforços  por  elle  empregados  para  a  fazer  voltar  ao  antigo 
caminho. 

«O  amante,  vendo  que  nada  conseguia  d'ella,  disse-lhe  mil  injurias,  e 
ao  sahir  ameaçou-a  de  a  marcar  com  um  ferrele  indelével,  como  mulher  de 
condição  depravada.» 

Pouco  tempo  depois,  na  véspera  de  Pentecostes,  a  pobre  mulher  foi  ao 
campo  acompanhada  de  seu  marido,  e  João  Levoix,  quando  o  soube,  seguido 
de  alguns  ruliões  de  bordel,  surprehendeu-a  n'um  logar  descampado,  e  obri- 
gando-a  a  apear-se,  ordenou  aos  miseráveis  que  o  acompanhavam  que  lhe 
cortassem  o  nariz  com  o  jeton. 

A  victima  de  tão  bárbaro  tractamento  perseguiu  perante  os  tribunaes  o 
conselheiro  João  Levoix,  que  foi  obrigado  a  compôr-se  com  a  parte  queixosa, 
mediante  a  somma  de  dois  mil  escudos. 

Depois  d'esta  decisão  do  tribunal  de  Rouen,  a  mãe  do  culpado  foi  agra- 
decer a  el-rei. 

^Não  é  a  mim  que  deveis  agradecimentos,  respondeu-lhe  el-rei,  mas 
sim  ás  más  justiças  d'este  reino,  porque  se  boas  fossem,  vosso  filho  não  vos 
daria  taes  desgostos. 

E'  provável  que  os  libertinos,  que  haviam  mutilado  a  mulher  de  Boulan- 
ger, fossem  menos  poupados.  Foi  gente  d'esta  espécie,  que  matou  em  lo7G  na 
rua  Lavandières  o  capitão  Richelieu,  denominado,  o  Frade,  «homem  de  má 
nota,  famoso  pelos  seus  furtos,  roubos  e  blasphemias,  sendo  de  mais  a  mais 
rufião  e  freguez  de  todos  os  bordeis.» 

O  capitão,  irritado  pela  gritaria  e  bulha  que  faziam  n'uma  casa  da  visi- 
nhança  d'elle  alguns  homens  e  mulheres  de  vida  licencio.sa,  invectivava  da  ja- 
neild  toda  aquella  gente,  ameaçando  ir  pòl-os  fiira  a  ponlapés,  se  não  entras- 
sem na  ordem,  dizendo  que  «lhe  parecia  muito  mal  aquelle  escândalo  de  vida 
licenciosa  tão  próximo  da  sua  morada,  e  por  assim  dizer  nas  suas  barbas.»  Os 
rufiões,  ouvindo  estas  invectivas,  desafiaram  o  capitão  a  sahir  á  rua.  Não  se  fez 
este  rogar,  confiando  no  seu  braço  e  na  sua  espada,  mas  não  teve  tempo  de  a 
desembainhar,  cabindo  logo  ferido  com  mais  de  cem  |)unbaladas.  (^Journal 
iVllenrí  iii,  |).  55.) 

Em  IG()7,  outro  fidalgo  a  (|uem  Estoile  não  nomeia,  foi  morto  n'um  bor- 


DA    PROSTITUIÇÃO  543 

dei  de  Paris,  pelo  filho  do  baillio  de  Roclicfoit,  por  causa  de  uma  ri\a  entre 
os  dois. 

Este  ultimo  facto,  referido  por  Pedro  de  TEstoile.  conselheiro  do  rei  e 
escrivão  da  camará  da  chancellaria  de  França,  prova  que,  não  obstante  as  or- 
denações de  rei  e  os  regulamentos  da  policia,  os  bordeis  de  Paris,  tolerados 
se  não  auctorisados,  tinham  uma  notoriedade  tão  escandalosa,  que  chegavam  mui- 
tas vezes  a  originar  a  prisão  ou  expulsão  das  mulheres  perdidas  e  dos  liberti- 
nos que  alli  passavam  a  vida.  Pedro  de  TEstoile  caracterisa  muito  melhor  a 
extranha  desordem  dos  costumes  d'aquella  époeha  : 

«Quarta  feira,  13  de  abril  de  1611,  celebrou-se  a  Mercuriale  ('),  na  qual 
o  presidente  de  Harlay  obteve  um  grande  successo,  discorrendo  sobre  a  neces- 
sidade da  reforma  em  todas  as  classes,  e  principalmente  sobre  os  grosseiros 
abusos  e  corrupção  da  justiça  e  da  policia  de  Paris,  ao  que  era  mister  pôr  or- 
dem, como  tencionava  fazer.  Receio,  porém,  que  isto  não  passe  de  bons  desejos. 

«O  presidente  fallou  muito  contra  as  casas  de  jogo  e  bordeis  tolerados  pu- 
blicamente, que  era  necessário  supprimir. 

«Quanto  ás  casas  de  jogo,  não  era  muito  difficil,  apesar  de  se  dizer  que 
havia  muitas  em  Paris.  Entre  ellas,  porém,  quarenta  e  sete  havia  auctorisa- 
das,  tão  celebres  e  tão  publicas,  que  de  cada  uma  recebia  o  tenente  civil  uma 
pistola  diária  (perto  de  âiJOOO  réis),  o  que  era  um  bom  lucro,  pouco  honesto, 
na  verdade,  mas  limpinho,  e  livre  dos  azares  do  jogo.» 

O  que  se  dava  com  as  casas  de  jogo,  succederia  também  naturalmente 
com  os  alcouces,  que  decerto  não  deixariam  de  pagar  tributo  para  não  serem 
supprimidos.  Não  nol-o  diz  Estoile,  e  temos  de  suppòr  que  o  tenente  civil  ti- 
rava, pelo  menos,  outra  pistola  diária  de  cada  bordel,  que  vinha  a  ser  em  caso 
de  necessidade  uma  ca.sa  de  jogo,  assim  como  a  casa  de  jogo  servia  ás  vezes 
de  bordel. 

«Quanto  aos  bordeis  de  Paris,  accre.scenta  Estoile,  penso  que  poderíamos 
justamente  applicar  a  esta  cidade  o  dito  de  Stratonico,  o  qual  sahindo  de  Heraclea, 
olhou  para  todos  os  lados,  como  que  para  ver  se  alguém  o  estava  observando,  e 
como  um  dos  seus  amigos  lhe  perguntasse  a  razão  d'isto  : — 

« — E'  porque  me  envergonharia  de  que  me  vissem  sahir  de  um  lupanar.» 
—  Esta  resposta  denota  o  grau  de  corrupção  d'aquella  cidade.  EfTecti vãmente  em 
Paris  até  os  moços  de  esquina  e  os  remendões  o  diziam  e  cantavam  em  alta  voz, 
e  as  más  linguas  do  Palácio  da  Justiça  (que  também  pertenciam  á  classe  liberti- 
na,) diziam  que  o  presidente  devia  começar  a  reforma  por  sua  casa.»  {Journal 
d'Henn  iv.) 


(1)  Reunião  do  parlamento  de  Paris,  que  se  celebrava  na  primeira  qiiarta-feira  de- 
pois da  Paschoa  e  do  S.  Martinho,  e  na  qual  n  procurador  geral  faltava  dos  abusos  da 
administração  da  justiça,  etc. 


CAPITULO  XLII 


SUMMARIO 


Malhiirin  Rf saíei ,  u  eraniti'  poeta  ria  pioslituirãn.— Sua  |ibilosopUia  epirurista.— Caraotep- e  costnincs  Ho 
puela.— A  hoa  lei  naluial.— A  íiupolt-ncia— L'nia  das  suas  aventuras  nocturnas.— A  má  cama.— Discurso  de  uma  ve- 
lha proxeneta—  A  boticária  Joanna.—Macette.— Epistola  ao  senhor  de  for  luevauj  .-Ooeuía  e  morte  de  lic^iiier. 


oMos  procurar  a  plivsionomia  da  prosfiluição  cio  scculo  xr  aos 
poetas  d'aquella  cpoclia  e  sobretudo  ás  poesias  de  Francisco 
Villon,  que  não  receiava  deshonrar  a  sua  miisa,  passeando  de 
braço  dado  com  eila  de  taberna  cm  taberna,  e  dando-ihe  um 
cortejo  de  homens  perdidos  e  mulheres  publicas.  Façamos  agora 
um  trabalho  similhanfe  de  investigação  especial  nas  poesias  do  principio  do  sé- 
culo XVII,  c  sobretudo  nas  de  .Mathurin  Régnier,  que  do  mesmo  modo  que 
Villon,  traçou  o  quadro  da  prostituição  do  seu  tempo,  consagrande  sem  es- 
crúpulo algumas  das  suas  obras  á  descripção  dos  costumes  depravados. 

Villon  era,  como  já  vimos,  um  estudante  vadio,  que  vivia  nas  tabernas 
e  nos  bordeis  mais  immundos.  Régnier  era  quasi  um  cíirfezão,  (juasi  um  fi- 
dalgo, quasi  um  ecclesiastico,  que,  arrastado  pelo  Ímpeto  das  suas  paixões,  es- 
quecia ás  vezes  o  seu  nome,  o  seu  nascimento  e  a  sua  posição,  para  visitar 
incógnito  os  mais  repugnantes  asylos  da  libertinagem  publica.  Em  Villon,  ha- 
via o  habito  da  degradação  moral.  Em  Régnier,  pelo  contrario,  havia,  por  assim 
dizer,  o  capricho  do  mau  procedimento,  o  gosto  das  aventuras  do  prazer  eró- 
tico em  todas  as  suas  phases. 

Régnier  vae  pois  conduzir-nos,  sahindo  da  corte  de  Henrique  iv,  onde  o 
seu  talento  poético  lhe  havia  grangeado  um  logar  honroso,  aos  repugnantes  al- 
bergues em  que  se  refugiava  a  prostituição  livre,  tal  como  a  haviam  feito  as 
leis  prohibitivas  e  as  medidas  variáveis  da  tolerância  municipal. 

Mathurin  Régnier,  filho  de  um  administrador  da  cidade  de  Chartres,  so- 
brinho por  sua  mãe  do  poeta  Desportes,  tonsurado  desde  os  onze  annos  de 
edade,  destinado  ao  sacerdócio  e  aggregado  desde  muito  cedo,  na  ijualidade  de 
secretario,  ao  serviço  do  cardeal  Francisco  de  la  Joycusc,  que  o  conduziu  a 
Roma,  e  o  teve  alli  por  espaço  de  dez  annos,  nunca  poude  dominar  as  tendên- 
cias libertinas,  que  o  levaram  aos  mais  escandalosos  excessos.  >"ão  pode  di- 
zer-se  bem  se  a  poesia  o  predispoz  á  libertinagem,  ou  se  foi  a  libertinagem  que 
despertou  no  seu  espirito  a  inspiração  da  poesia.  Régnier,  a  quem  «o»  evces- 

HuTORiA  DA  Prostituição.  Tomo  n— Folha  69. 


546  HISTORIA 

SOS  do  amor  fizeram  embranquecer  o  cabello  antes  do  tempo»,  reconhecia  de 
boamente  aos  trinta  annos  que  o  seu  temperamento  de  poeta  o  arrastava  na 
corrente  suavíssima  da  vida  epicurista.  «Este  temperamento,  c  que  torna  o 
poeta  ardente  e  impetuoso,  submettendo-o  de  ta!  modo  ao  prazer,  que  detesta 
o  vulgo  e  as  coisas  vulgares,  e  desprezando  os  favores,  fal-o  zombar  da  for- 
tuna. E'  um  fogo  e  enthusiasmo  que  o  enlouquece,  que  o  arrasta  aos  precipí- 
cios, e  o  sujeila  mais  aos  seus  caprichos  que  aos  dictames  da  razão.» 

E'  o  que  o  poeta  canta  n'estes  versos.  «O  temperamento  fogoso,  dizelle: 

. . .  rend  le  poete  ardent  et  chaiid, 
Subject  a  ses  plaisirs,  de  courage  si  haut, 
Qu'il  inéprise  le  peuple  et  les  choses  communes. 
Et  bravanl  les  faveitrs  se  mocque  des  fortunes ; 
Que  le  fait  débauché,  frénétique,  rêvant, 
Porter  la  tête  basse  et  Vesprit  dans  le  vent. 
Egayer  sa  fiireur  parmi  les  précipices. 
Et  pliis  qu'à  la  raison  síibjecl  à  ses  caprices! ■ . . 

Tal  era  a  desculpa  que  dava  de  não  mudar  de  conducla,  apesar  das  cen- 
suras que  a  cada  passo  lhe  faziam : 

Cesl  (jue  mon  huineur  libre  á  Vamour  esi  subject. 

Era  lambem  esta  a  única  censura  que  se  podia  irrogar  ao  joven  Régnier, 
que  fora  d'isto  possuia  as  mais  distinctas  qualidades  de  espirito  e  de  corai;ão, 
aperfeiçoadas  pelo  estudo,  pela  convivência  com  pessoas  distinctas  e  pela  pbi- 
losophia.  No  emtanto,  a  incorrigível  libertinagem  do  poeta  prejudicava-lhe  a  for- 
tuna, apesar  das  alias  protecções  e  sympatliias  que  a  doçura  do  seu  caracter 
lhe  grangeára.  O  cardeal  .loyeuse  não  ousou  dar-lhe  uma  prebenda  ou  uma  ab- 
badia,  e  quando  Régnier  deixou  o  serviço  d'este  prelado  para  ir  ser  secretario 
de  legação,  sob  as  ordens  de  Filippe  de  Bethun,  embaixador  de  França  em  Roma, 
estava  tão  pobre  e  enamorado  como  á  sua  chegada  de  Chartres,  sob  os  auspícios 
de  seu  tio,  o  abbade  Desportes.  Tudo  quanto  havia  ganho,  deixara-o  nos  antros 
immundos  da  prostituição  romana. 

O  poeta  retrata-se  a  si  próprio  com  uma  ingenuidade  e  franqueza,  que  fa- 
zem d'este  retrato  o  typo  do  libertino  do  seu  tempo.  (Satyre  iv,  aii  marquis 
de  Coeuvres.)  Declara  que  a  inclinação  para  com  as  mulheres  é  n'elle  tão  forte, 
tão  violenta  mesmo,  que  lhe  faliam  ab.solutamente  as  forças  para  resistir  a  uma 
paixão  exclusiva  e  dominanle.  «Não  tenho,  diz  elle,  tino  para  guiar  a  minha 
barca,  n'estes  arrebalameritos  de  uma  paixão  dominante.  A  corrente  arrasta-me 
ao  abysmo  do  prazer.  Tal  como  um  cavallo  dur(j  de  bocca,  eu  obedeço  ao  ca- 
pricho. .  .»: 

Ah  goiífrr  du  plaisir  la  couranlc  m'eiiiporle ; 

Toul  ninsi  qu'un  cheval  qui  a  la  bouche  [orle. 

J'obéis  au  caprice  ■ . . 

Régnier  abandona-se  deliciosamente  a  este  extranho  ardor  dos  sentidos. 
A  sua  culpa  é  voluntária,  e  o  poela,  conleiíle  do  seu  mal,  julga-se  ditoso  «de 


DA    PROSTITUIÇÃO  547 

ser,  como  a  nalurcza  o  foz,  um  eterno  enamorado:  e  como  milliarcs  de  cousas 
o  convidam  a  amar,  mil  bellezas  não  bastam  para  saciar  a  sede  do  seu  amor. 
Procurando  aventuras  por  toda  a  parte,  encontra  a  cada  passo  assumptos  novos, 
novos  amores»: 

Et  comme  it  bien  aimer  mille  causes  minvilent, 
Aussi  mille  beaiités  mes  amoiirs  ne  limitenl ; 
El  coiiranl  çà  et  lá,  je  Irouie  tous  lesjours 
Et  de  siibjects  nouveaux  et  de  nnuveaux  amours. 

O  poeta  ama  a  torto  e  a  direito,  sem  escollia  nem  escrúpulo.  Novas  e 
velhas,  bellas  e  horrendas,  todas  lhe  servem,  sustentando  a  thcse  singularis- 
sima  de  que  a  creatura  mais  feia  e  repugnante  pode  também  desempenhar  o 
seu  papel  na  eterna  comedia  do  amor.  E'  um  refinamento  da  sua  sensualidade 
monstruosa  e  depravada.  De  todos  os  eróticos  antigos  e  modernos,  talvez  Ré- 
gnier  seja  o  único  que  tenha  emittido  similhante  paradoxo :  «Tanto  enfeitiça  os 
homens  o  cego  desejo,  que  ainda  c|ue  uma  mulher  cause  medo  ao  amor,  porque 
o  ceu  e  Vénus  a  vêem  com  desgosto,  é  certo  que,  como  mulher,  lá  terá  as  suas 
delicias,  lá  saberá  substituir  os  ausentes  encantos,  com  artifícios,  que  a  farão 
manter  no  estado  do  amor,  e  lhe  permittirão  reter  os  amantes  por  meio  de  al- 
guns attractivos»  : 

Tant  Vaveugle  appetit  ensorcelle  les  hommes, 
Qu'encore  quiíne  femme  aux  amours  fasse  peur, 
Que  le  ciei  et  Vénus  la  coient  a  conlre  ca'ur. 
Joules  fois,  étant  femme,  elle  aura  ses  délices, 
Relevera  sa  grace  avec  des  arlifices, 
Qui  dans  Vélat  d'amour  la  sauront  maintenir. 
Et  par  quelques  altraits  les  amanls  relenir. 

Como  homem  de  talento  e  de  convicções,  desenvolve  em  seguida  a  sua 
theoria  das  compensações  no  amor,  e  põe  cm  relevo  os  méritos  occultos,  que  po- 
dem enconlrar-se  em  uma  mulher,  capazes  até  mesmo  de  compensar  a  falta  de 
outros  dotes  plásticos  e  a  sua  apparente  inferioridade.  De  accordo  com  Ovidio, 
toma  também  a  defeza  da  ignorante  e  da  néscia : 

Je  crois  qu'en  fait  d'amour  elle  será  savante, 
Et  que  Nalure,  habile  h  courrir  son  défaut, 
Lni  aura  mis  au  lil  tout  resprit,  qu'il  lui  faul. 

Como  elle  sabe  desculpar  essa  pobre  creatura  ignorante,  ou  completamente 
destituída  das  bellas  qualidades  de  espirito  e  de  intelligcncia,  que  tanto  fazem 
brilhar  algumas  feias!  «E'  ignorante?  Que  tem  isso  a  final? 

«Aposto  que  em  questões  de  amor  saberá  desempenhar  cabalmente  o  seu 
papel!...  A  natureza,  tão  iiabil  em  encobrir  defeitos,  deu-lhe  no  leito  o  espi- 
rito e  a  graça,  que  lhe  faltam  cá  fora.  A  natureza!  Como  eila  é  boa  e  previ- 
dente! Poderia  lá  recusar  isto  a  alguém,  ella  que  tudo  ordena  tão  previdente- 
mente», 


548  HISTORIA 

Ue  petir  ifue  nulle  femme,  nu  fiH  luide  ou  fúl  belle, 
Ne  vccul  sans  le  faire  et  ne  mourút  pucelle. . . 

Depois  cie  haver  jiistificado  (]'este  modo  Iodas  as  imperfeições  que  pôde 
ter  o  sexo  feminino,  volla  á  sua  cega  e  irresistive!  necessiilade  de  experimen- 
tar as  forças  e  o  ardor  da  sua  incontinência,  e  o  seu  estro  libidinoso  espande- 
se  em  manifestações  ardentes  do  seu  fogoso  temperamento.  O  poeta  arde  con- 
stantemente em  desejos,  a  paix.ão  rouba-lhe  o  juizo.  E'  um  furioso,  correndo 
loucamente  atraz  de  mil  aventuras,  não  escolhendo  nunca  o  objecto  do  seu 
amor.  Todas  lhe  agradam,  não  escolhe,  nem  sequer  pensa  em  ter  preferencias. 
Aquillo  não  é  amor,  é  uma  sensualidade  brutal,  sem  delicadeza,  sem  freio,  sem 
lei .  .  .  Ouçamol-o  : 

Ur,  iiioi  (jui  suis  loul  jlainme,  et  de  nuil  el  de  jour, 
Qtti  nliitleine  que  feu,  ne  respire  qu'amour, 
■le  me  lai^se  empnrter  a  mes  ardeurs  communes 
Et  conrs  sous  divers  vents  de  dioerses  forlune.s. 
Ravi  de  mes  objects,  i'aiwe  si  vivement, 
Que  je  n'ai  pofir  Vumour  ni  choix  ni  jugement, 
De  toute  election  mnn  Ame.  esl  depourvue. 
Et  nul  ohject  certain  ne  limite  ma  rue. . . 
Tuute  fem iit e  m'agrée 

E'  impossível  mostrar-se  mais  complacente  com  o  vicio. 

]N'esta  continua  febre  de  prazeres  illicitos,  Régnier  teve  mais  de  um  en- 
contro perigoso  para  a  sua  saúde  e  para  a  sua  magra  algibeira  de  poeta.  Elíe- 
ctivamente  todas  as  pragas  de  Vénus  cahiram  sobre  elle  e  o  encheram  de  en- 
fermidades precoces.  Valeu-lhe  o  seu  Mecenas,  Filippe  de  Bethun,  que  lhe 
obteve  uma  prebenda  na  egreja  de  Nossa  Senhora  de  Chartres,  e  um  beneQcio 
de  duas  mil  libras  na  abbadia  de  Vaux-Cernay,  ende  seu  tio  Desportes  havia 
sido  titular. 

Régnier,  aos  trinta  annos  apenas,  era  um  velho  mortificado  pelo  rheu- 
matismo  e  pela  gotta,  alquebrado  pelos  remédios  e  continuamente  nas  mãos 
dos  médicos,  que  desesperavam  de  o  curar.  Em  muitas  das  suas  poesias,  de- 
plora o  funesto  resultado  a  que  o  havia  reduzido  o  que  elle  chamava  a  boa  lei 
natural,  á  qual  obedecera  sempre  cegamente,  «A  dòr,  diz  elle,  coberta  de  setlas 
envenenadas,  cingc-me  o  corpo  com  um  cilicio,  tortura  horrível  !  !\Ieus  bellos 
dias  traiisformaram-se  em  noites,  e  o  coração  vencido  |)clii  desgosto,  apenas 
es|)era  a  scpullura  : 

La  douletir  aux  traits  vénimeux, 
Comme  d'un  hahit  spineu.r. 
Me  ceint  d'une  horrible  torture; 
Mes  beaux  jours  snul  cliangés  en  nuits, 
El  mon  cwur,  loul  /lélri  dennuis, 
N'iilte)id  plus  que  la  sépulture! .  .  . 

Énirré  de  cent  maux  divers, 
Je  chuncelle  et  cais  de  travers, 


« 


Uma  casa  de  prostituição  no  tempo  de  Luiz  XIII,  do  França 


DA    PROSTITUIÇÃO  549 

Tant  innn  âme  em  regorge  pleitie : 
.Fen  ai  Vexpril  toul  hébelé 
Et  si  peu  íyHí  m'en  est  reste, 
Encor  >ne  jait-il  de  lapeine. 

Os  solTrimenlos  (jiie  lhe  maceravam  o  -urpo,  os  penosos  traclamentos  a 
que  tiiilia  de  submetter-se,  as  operações  dolorosas  a  que  estava  condemnado, 
não  eram  ainda  assim  o  maior  dos  marlyrios  do  poeta.  A  impotência,  a  vei'fío- 
nha  de  se  sentir  incapaz  de  vtltar  ao  vicio  que  por  tanto  tempo  amara,  era  o 
que  mais  o  penalisava.  N'uma  das  suas  elegias  refere  eni  versos  esplendidos, 
dignos  dos  eróticos  gregos  c  romanos,  a  allronta  que  uma  das  suas  amantes 
teve  um  dia  de  sollrer,  em  premio  do  deleite  que  havia  tentado  proporcionar- 
Ihe.  O  poeta  envergonha-se  de  encontrar  as  suas  faculdades  tão  hostis  aos  seus 
desejos,  e  indigna-se  contra  si  próprio. 

Esta  impotência  era  provavelmente  transitória  e  dependia  de  circumstan- 
cias  excepcionaes,  mas  Ré^nier  que  se  lisongcava  de  poder  amar  mesmo  de- 
pois de  morto,  esquecia  facilmente  uma  humilhação,  que  só  devia  attribuir  at) 
abuso  dos  prazeres  venéreos  e  aos  estragos  das  moléstias  obscenas.  Pouco  de- 
pois, começava  novamente  a  procurar  aventuras  pelas  ruas  suspeitas,  e  a  con- 
sumir as  poucas  forças  que  lhe  restavam  na  vida  da  prostituição.  Sigamol-o 
um  pouco  por  essas  excursões  pornographicas. 

Ima  noite,  depois  de  uma  orgia,  em  que  tomou  parte  por  convite  de  al- 
guns amigos,  e  que  terminou  por  um  desaforo  indecente,  uma  verdadeira  ba- 
talha impudica,  sahiu  da  casa,  sem  que  ninguém  desse  por  isso,  e  dirigiu-se 
para  a  sua  morada.  Vivia,  porém,  muito  longe,  e  não  sabia  bem  o  caminho;  além 
d'isso  a  noite  estava  escuríssima  e  chovia  a  cântaros.  O  poeta  caminhava  apres- 
sado, encostando-se  ás  casas,  embuçado  na  sua  capa,  mas  de  súbito  escorrega. 
Procura  segurar-se  á  parede.  iNão  é,  porém,  a  parede  o  que  a  sua  mão  tre- 
mula encontra,  é  uma  porta  apenas  encostada,  e  que  se  abre.  O  poeta  perde  o 
equilíbrio,  por  lhe  faltar  tão  deploravelmente  o  appoio,  e  vae  cahir  ruidosa- 
mente de  bruços  no  limiar  de  uma  casa  fedorenta  e  tenebrosa: 

«Lá  de  dentro  perguntam  o  que  é.  . .  Levanto-me  conforme  posso,  e  en- 
tro. O  cão  não  ladra,  e  os  gonzos  da  porta  não  fazem  bulha.  O  que  será?  Uma 
criada,  que  mostra  e  esconde  a  luz  ao  mesmo  tempo,  e  que  ri  a  bandeiras  des- 
pregadas, faz-me  desconfiar  de  tudo  aquillo.  Pergunto,  respondem-me  .sem 
flores  de  rhetorica,  e  dahi  a  pouco  estamos  todos  de  accordo.  Reconheço  a 
historia: — cahi  n'um  logar  non  sancto... 

«Puxo  pela  bolsa,  passaporte  indispensável  n'estas  casas,  e  ponho  uma 
moeda  sobre  a  meza,  para  captar  a  boa  vontade  da  dona  do  bordel.  Ao  ver  bri- 
lhar o  escudo,  ama  e  criada  apressam-se  a  scrvir-mc,  julgando-me  um  grande 
personagem ...» 

I\'este  momento.  Ires  vetustas  mulheres  approximam-se  a  passos  caden- 
ciados, e  vão  sentar-se  junto  do  lar,  onde  fumegam  uns  míseros  paus  verdes. 
Dir-se-hiam  três  phantasmas,  fugidos  do  inferno.  Uma  d'ellas  tinha  um  aspeclo 
ameaçador  de  Eumenide  de  theatro,  outra  é  mais  decrépita  e  enrugada  que  uma 
feiticeira  do  sabbai,  a  terceira  é  tão  magra,  amarellae  transparente,  que  se  lhe 


550  HISTORIA 

poderiam  contar  os  ossos.  As  três  horríveis  veliias,  cobertas  de  emplastos  e  de 
chagas,  gemiam  soh  o  látego  de  cruéis  enfermidades,  ganhas  no  campo  da 
honra.  Uma  quei\a-se  dos  rins,  outra  da  bocca,  outra  de  um  cáustico. 

«Eram  três,  como  disse,  mas  os  ollios  d'ellas  sommados  faziam  apenas 
dois.  Eram  três,  mas  entre  ellas  poderia  apenas  reunir-se  meio  nariz  e  qua- 
tro denlcs  tão  movediços,  que  bastava  um  sopro  para  os  fazer  osciilar.  Eram  três 
monstros.  Cada  qual  podia  representar  com  vantagem  o  idolo  da  febre,  da  peste 
e  do  veneno.» 

Taes  eram  as  mulheres  que  exploravam  n'essa  époclia  a  prostituição  le- 
gal. A'  vista  de  tão  odioso  e  repugnante  quadro,  o  poeta  teve  horror  do  seu 
vicio,  c  dispunha-se  a  retirar-se,  quando  de  súbito,  sahiu  de  um  quarto  visi- 
nho  uma  rapariga  com  aspecto  de  boneca,  bem  vestida  e  cuidadosamente  pen- 
teada, que  disse  ao  poeta  : 

—Tenho  tanto  medo  dos  homens  de  espada,  que  se  o  senhor  não  me  pa- 
recesse um  sujeito  socegado,  preferiria  deixar-me  matar  a  apparecer  aqui.  Meu 
marido  é  boticário.  Viva  o  amor!  Não  haja  medo  da  policia!. .  .  Ao  que  vejo, 
o  senhor  é  amigo  de  se  divertir,  mas  eu  não  tenho  medo,  visto  que  paga  bem 
e  adiantado.  . . 

Vê-se  que  entre  as  mulheres  de  má  vida,  havia  algumas  casadas,  ou 
que  pelo  menos  o  fingiam  ser,  para  causarem  mais  furor  ou  inspirarem  mais 
confiança  aos  amantes. 

—  Meu  caro  senhor,  dizia  a  mulher  do  boticário  ao  enamorado  poeta, 
com  a  maior  amabilidade  e  cortezia, — já  ceiou  ? 

Je  vous  prie,  note:  1'hcure.  Eh  bicnl  Que  vous  ensemhleí 
Êtes-vous  pas  d'avis  que  nous  couchons  ensemhle  ! 

Régnier  estava  cheio  de  lama  até  á  cintura  e  molhado  até  aos  ossos.  Pre- 
cisava de  uma  cama  e  s(')  desejava  dormir.  A  dona  da  casa  oíTercceu-lhe  então 
um  quarto,  onde  podesse  descançar  commodamcnte.  O  poeta  acceita,  e  a  me- 
gera, caminhando  diante  delle  p;ira  o  conduzir,  vae  fazendo  o  elogio  das  duas 
raparigas,  Joanna  e  Macette,  o  beijinho  do  estabelecimento. 

Par  le  vray  Dicu!  ijue  Je.anne  étail  et  claire  et  nelle, 
Claire  comine  un  bassin,  nelle  coinnie  im  denier ; 
Au  reste,  hors  Monaieur,  que  j'élaisi  le  premier.  ■  ■ 

Era  Joanna  a  mesma  rapariga  que  Régnier  acabava  de  ver,  mas  todos  os 
elogios  que  a  respeito  d'clla  ia  ouvindo,  não  o  animavam  a  tractal-a  mais  de 
perto.  Era  mister  subir  uma  escada  tortuosa  para  chegar  ao  tal  quarto  que  lhe 
haviam  olíerecido  : 

«A  escada,  estreita  c  tortuosa,  ollereeia  uma  subida  bastante  dilficil.  Tudo 
tremia  debaixo  dos  nossos  pés.  De  degrau  em  degrau,  como  um  pássaro  na 
gaiola,  era  pi'eeiso  ir  subinilo,  agarrando-me  como  uma  cabra  que  trepa  por  um 
rochedo.  Depois  de  muitos  sustos,  chegamos  emlim  ao  tal  ([uarlo,  que  para  di- 
zer a  verdade  não  cheirava  a  âmbar.  A  poria  era  baixa  e  estreita,  e  linha  por 
única  fccliadura  um  gancho.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  551 

Apesar  de  ter  dobrado  o  corpo,  o  poeta  não  calculou  bem  as  dimensões  da 
porta,  e  ao  entrar  no  asqueroso  ninbo,  deu  com  a  cabeça  uma  tão  violenta  pan- 
cada, que  se  deixou  caliir  para  traz,  e  rolou  pela  escada  abaixo.  Na  queda,  Rég- 
nier  arrastou  comsigo  a  desgraçada,  que  ficou  ainda  mais  maltractada  do  que  elle, 
chegando  a  perder  os  sentidos. 

Ao  espantoso  ruido  d'este  desastre,  accodem  as  outras  mulheres  da  casa, 
trazendo  luzes,  e  levantam  a  directora  do  prostíbulo,  que  ao  voltar  a  si  cobre  de 
impropérios  Joanna  e  Macelte,  a  quem  altribue  a  culpa  de  tudo.  Régnier,  pela 
primeira  vez  em  sua  vida  talvez,  não  pensa  em  tolices,  e  o  que  deseja  é  ficar 
só  para  se  subtrahir  ás  suas  imparas  tentações.  Pede  uma  vela,  torna  a  fazer 
a  perigosa  ascenção  da  escada,  c  toma  finalmente  posse  do  quarto  infecto  que 
lhe  dão  para  dormitório.  Não  havia  cama,  porém,  apesar  de  lá  existirem  outros 
moveis  esquisitos  e  cousas  deveras  curiosas  de  que  passa  a  fazer  inventario  : 

«Em  primeiro  logar  encontro  a  meus  pés  uma  caldeira  rota,  a  bolsa  de 
um  relógio,  quatro  caixas  de  pomada,  duas  luvas  desirmanadas,  três  frascos  de 
agua  de  cheiro,  uma  seringa  pequena,  uma  esponja,  uma  sonda,  uma  escova 
para  ir  ao  sabbal,  uma  lanterna  velha,  um  tamborete  de  palha,  um  barril  sem 
fundo,  duas  garrafas  sem  gargallo,  uma  bolsa  cheia  de  pó  de  mercúrio  e  uma 
capa  de  côr  parda,  muito  desbotada.» 

Emquanto  o  poeta  passava  revista  a  estes  miseráveis  e  nojentos  despojos 
da  prostituição,  chega  Joanna  trazendo  debaixo  do  braço  a  roupa  da  cama.  E 
o  leito  onde  estava?  Depressa  é  improvisado.  A  um  canto  havia  uma  velha 
porta  e  dois  bancos  immundos  e  coxos.  Arma-se  tudo  aquillo,  e  põe-se-lhe  em 
cima  uma  cousa,  que  poderia  com  alguma  boa  vontade  parecer  um  colchão.  l*rom- 
pto!. .  .  Joanna,  que  acaba  de  ser  reprehendida  e  espancada  ate  pela  dona  do 
alcouce,  indemnisa-se  vomitando  contra  a  fúria  sapos  e  cobras,  e  queixando-se 
amargamente  da  sua  triste  sorte. 

Ao  passo  que  fallava,  ia  fazendo  a  cama,  estendendo  os  lençoes,  muito 
curtos  e  cheios  de  manchas  equivocas. .  . 

Dieu  sait  queU  lacs  d'ainour,  quels  ci/fres,  quels  jleurs. 
De  quels  compartiments  et  combien  de  couleurs, 
Rélévaient  leur  maintien  et  leur  blancheur  naive, 
Blanchie  en  un  civet,  non  datis  une  lessive. 

Está  a  cama  prompta.  Joanna  convida,  o  mais  seductoramente  que  pôde, 
o  poeta  a  deitar-se,  mas,  apesar  de  cahir  de  somno,  Régnier  não  se  mostra 
muito  resolvido,  porque  a  cama  não  o  tenta  mais  que  a  dama. .  .  A  rapariga 
não  o  larga,  porém,  e  começa  logo  a  despil-o,  apesar  da  resistência  que  encon- 
tra... Que  diabo!  Para  que  foi  então  lá,  se  queria  fazer-se  tão  fino! ...  O  poeta 
dá-lhc  razão,  e  tem  de  resignar-se  com  a  sua  sorte.  Desata  um  sapato,  des- 
aperta uma  liga,  e  continua  lentamente  a  despir-se.  Prompto!  Era  dilhcil  outra 
cousa  ainda,  mas  que  remédio?.  .  .  O  poeta  faz  das  fraquezas  forças  e,  procu- 
rando dominar  o  nojo,  vae  metter-se  entre  os  immundos  lençoes,  onde  a  sua 
Vénus  o  estava  esperando  já.  .  . 

Ciosava  pouco  tempo  havia  aquellas  delicias  de  Capua,  quando  ouviu  bsi- 


552  HISTORIA 

ter  á  porta  da  rua.  Joanna  apagou  logo  a  luz,  que  fóra  provavelmenle  o  quo  ha- 
via chamado  a  atlenção  de  algum  transeunte  devasso,  e  fez  ouvidos  de  merca- 
dor, como  toda  a  gente  da  casa.  Dahi  a  pouco,  redobravam  as  pancadas  á  porta, 
batendo  até  com  os  pés  o  nocturno  pretendente.  Lá  dentro,  silencio  completo: 
lá  fóra,  o  freguez  pretendente  grita,  ameaça,  jura,  e  d'ahi  a  pouco  junta-se  ou- 
tro, e  outro  e  outro,  um  bando  de  desaforados  libertinos,  que  fazem  um  mo- 
tim diabólico  á  portal. .  . 

Entretanto,  Joanna  censura  asperamente  o  pobre  Régnier,  que  se  amo- 
fina por  aquelle  transtorno  imprevisto.  A  culpa  fora  d'elle...  Porque  não  se 
deitara  mais  cedo?...  Estivera  para  aiii,  como  um  parvo,  perdera  um  tempo 
precioso...  Os  que  batem  á  porta  não  cansam  apesar  do  silencio,  e  passam 
das  ameaças  ás  supplicas...  Nem  assim  abrem.  Os  de  fóra  mudam  logo  de 
maneiras,  e  faliam  com  a  arrogância  de  uma  patrulha,  ou  dos  agentes  da  po- 
licia municipal. — <iAbra  em  nome  d'el-rei!» — Uma  ronda  que  ia  passando  ouve 
esta  intimação  solemne  e  approxima-se  da  casa.  Os  libertinos  largam  a  correr 
e  desapparecem  nas  ruas  visinhas. 

Houve  um  momento  de  tréguas,  durante  o  qual  Régnier  se  levanta  da 
cama,  e  procura  ás  apalpadellas  a  roupa  para  se  vestir. .  .  Ouanto  mais  se 
apressa,  porém,  menos  adianta,  por  isso  (|ue  nada  encontra  em  ordem.  Em  vez 
do  chapéu,  encontra  um  sapato,  e  quando  procura  o  gibão  acha  apenas  uma 
meia. 

Joanna  não  se  erguera,  e  jicde  ao  poeta  que,  se  tiver  de  se  apresentar  á 
ronda,  não  a  compromelta: 

Si  mon  compère  Pirrre  eH  de  garde  aujour  d'hMÍ, 

Nnn,  ne  vous  fachez  point,  rou.f  n'aurez  pnint  d'enmii-  ■  ■ 

Mas  o  perigo  renasce.  I.á  fóra  a  ronda,  a  verdadeira  ronda,  bate  á  j)orta 
com  auctoridade,  e  não  ha  remédio  senão  abrir  uma  janella  para  parlamentar. 
Régnier,  meio  vestido  apenas,  sáe  timidamente  do  seu  infecto  asylo,  e  desce 
a  escada  com  um  pé  calçado  e  outro  descalço.  Esconde-se  a  um  canto,  no  mo- 
mento em  que  a  porta  se  abre  e  a  patrulha  entra  de  roldão  pela  casa  dentro 
com  ares  de  hostilidade.  Não  tendo  sido  visto,  Régnier  poude  safar-se  sem  dar 
as  boas  noites  a  ninguém.  . . 

Uma  vez  na  rua,  aílasta-se  d'aquelle  infame  albergue  do  vicio  a  pas.sos 
largos  e  sem  olhar  para  traz.  .  .  O  infortúnio  continuava,  porém,  e  o  poeta  foi 
cahir  n'um  monte  de  argamassa.  Despontava  o  dia,  quando  o  libertino  entrava 
em  casa,  cheio  de  lama  como  um  porco,  jurando  e  tornando  a  jurar  não  tor- 
nar a  metter-se  outra  vez  em  taes  aventuras!. . . 

Mas,  apezar  dos  seus  juramentos,  Régnier  não  podia  resistir  ao  vicio  que 
tanto  amava.  Todos  os  caminhos  o  conduziam  á  proslituição,  cm  (|uc  tantas  ve- 
zes havia  deixado  a  saúde,  o  dinheiro  e  a  honra. 

I'm  dia  leve  os  seus  dares  c  tomares  com  um  antigo  amigo,  (|uc  ellc 
chama  1'liilíin,  '■  para  cs(|uccci'  estas  zangas  resolve  ir  iioniedialamenle  ao  seu 
templo  favorito,  ao  i)ordel, 


DA   PROSTITUIÇÃO  .'WÍ3 

Dans  un  iiett  de  maurais  rcnotn. 
Ou  jamais  femme  na  dit  non. 

Enfra  cfTectivamcnle  no  antro  impuro,  mas  que  foiílrafompo !  onconlra 
apenas  a  dona  da  casa.  A  velha  é,  porém,  muito  complacente  e  serviçal,  c  diz- 
Ihe  sorrindo,  com  a  máxima  allabilidadc  : 

—  Desculpei  Hoje  é  dia  de  festa,  c  por  isso  não  tenho  ninguém.  Demais 
a  mais,  prometti  a  mim  própria  não  me  tornar  n'este  dia  culpada  de  simi- 
Ihante  peccado.  Mas,  como  o  senhor  c  amigo,  tudo  se  poderá  arranjar.  Veio  de 
tão  longe,  coitado,  que  não  quero  deixal-o  descontente!  Vou  mandar  n'um  mo- 
mento alli  ao  Escudo  de  Sahoija.  E  um  pulo,  e  lá  encontra-se  decerto  o  que 
deseja . .  . 

A  criada  recebe  as  convenientes  ordens  da  ama,  e  corre  ao  Escudo  de 
Saboya,  que  era  uma  hospedaria  de  má  lama,  onde  havia  sempre  fornecimento 
de  ribaldas.  Este  pormenor  prova-nos  que  as  liospedarias,  tabernas  e  banhos 
eram  n'aquelle  tempo  os  logarcs  privilegiados  da  prostituição,  e  que  as  des- 
graçadas, tendo  de  exercer  clandestinamente  o  vergonhoso  ofíicio  que  as  leis 
haviam  prohibido,  estavam  constantemente  n'aquelles  logares,  onde  as  attra- 
hia  a  concorrência  dos  libertinos.  Nada,  po.-cin,  succedia  alli  que  despertasse 
a  desconfiança  da  policia,  sob  cuja  vigilância  estavam  os  logares  públicos.  Nas 
ruas  próximas  era  onde  os  intermediários  da  prostituição  franqueavam  as  suas 
casas  ao  commercio  clandestino  dos  amores  mercenários. 

N'estas  casas,  e  graças  aos  manejos  d'estas  velhas  proxenetas,  prosti- 
tuiam-se  as  solteiras  e  ás  vezes  as  casadas,  com  o  risco  de  serem  presas  c  cas- 
tigadas como  culpadas  de  tão  vergonhoso  co;nmercio.  Deve  suppòr-se  que  estes 
castigos  eram  raros,  e  que  a  policia  tinha  ordem  de  fazer,  segundo  costuma 
dizer-se,  a  vista  grossa.  As  casas  das  fornecedoras  de  bordeis,  como  então  as 
chamavam,  não  eram  propriamente  fatiando,  estabelecimentos  públicos,  aber- 
tos a  todo  o  mundo,  e  a  applicação  da  lei  encontrava  difliculdades  quasi  insu- 
peráveis, a  respeito  d'estas  casas  de  passe,  que  não  recebiam  permanentemente 
as  mulheres  publicas,  sendo  como  que  um  terreno  neutro  da  prostituição. 

Voltando,  porém,  a  Régnier,  a  quem  vimos  entrar  n'um  d'esses  antros 
impuros,  como  a  criada  só  d'ahi  a  um  quarto  de  hora  voltaria,  a  dona  da  casa 
convidou-o  a  sentar-se,  e  começou  a  dar  á  lingua,  com  um  grande  palavreado, 
para  que  o  tempo  não  parecesse  tão  longo  ao  freguez.  Depois  de  ter  procurado 
em  vão  entabolar  uma  cavaqueira,  que  o  poeta  não  queria  sustentar,  a  velha, 
sempre  no  intuito  de  entreter  o  poeta,  abaiançou-se  á  empreza  de  lhe  contar, 
tim  íim  por  Hm  tim,  a  sua  historia,  que  não  era  afinal  senão  uma  reminiscên- 
cia do  poema,  já  de  outra  vez  aqui  citado,  da  Corlezã  prefertiiln,  por  .íoaquini 
Dubellay.  Com  esta  narrativa,  procurava  a  dona  do  prostíbulo  entreter  a  impa- 
ciência de  Régnier 

Começou  por  passar  em  revista  os  seus  numerosos  amantes,  desde  a  épocha 
remota  em  que  a  mãe  vendera  três  ou  quatro  vezes  as  primícias  da  filha.  Não 
occultou  que  aprendera  o  seu  vil  oflicio,  traficando  comsigo  própria,  como  de- 
pois traficava  com  as  suas  viclimas,  por  não  poder,  por  causa  da  idade,  conti- 

BuToau  DA  PRosTiTuiçia.  lOHO  n— Folha  70. 


554  HISTORIA 

nuar  a  vida  alegre  dos  seus  bons  tempos.  Gabava-se  de  ser  mais  hábil  do  que 
as  suas  companheiras,  e  de  ler  em  sua  casa  o  beijinho  da  freguezia  de  Paris. 

— Eu  conheço  perfeitamente  toda  essa  gente  fina,  porque  tenho  tido  mui- 
tas occasióes  de  lhe  receber  as  confidencias.  Ha  muitas  grandes  damas,  que  o 
senhor  vê  ir  á  Egreja,  parecendo  umas  virtudes,  e  que  afinal  de  contas  são  o 
que  PU  sei,  e  mais  nada.  Conheço-lhe  os  amantes.  Algumas  dizem  que  vão 
commungari . .  .  Só  se  fòr  com  os  chischibcus,  como  Helena  com  o  Troyano! . . . 

Mais  ia  por  diante  a  velha  com  a  fiel  narração  da  sua  vida  aventurosa, 
quando  acertou  de  passar  um  commissario-visitador ,  ura  desses  agentes  de 
policia,  que  tinham  debaixo  da  sua  vigilância  as  casas  suspeitas.  Como  a  porta 
estivesse  entre-aberta,  o  homem  entrou.  Régnier  teve  apenas  tempo  de  sahir 
por  outra  porta  que  conhecia,  e  como  elle  diz 

Moitié  figue,  moilié  raisin, 
N'ayant  ni  trislesse,  ni  joie, 
Pour  n'avoir  trouvé  la  proie. 

Apesar  de  ter  procurado  satisfazer  os  seus  appelites  depravados  em  todos 
os  bordeis  da  cidade,  o  poela  nunca  se  lembrou  na  sua  obra  de  censurar  a 
abjecção  das  desgraçadas  com  quem  tractava,  e  que  por  certo  devia  de  despre- 
zar, logo  que  saciasse  os  seus  brutaes  desejos.  Apenas  n'este  verso  encontra- 
mos a  expressão  d'esse  desprezo  : 

St  moins  qu'une  putain  nn  eslimait  ma  muse  I 

Devemos  notar,  todavia,  que  nas  poesias  d'eslc  vate  libertino,  apesar  do 
modo  como  descrevem  rudemente  a  relaxação  dos  costumes  do  seu  tempo,  não 
se  encontram  os  nomes  das  escandalosas  companheiras  da  sua  vida  dissoluta, 
exhibidos  com  essa  descarada  ostentação  que  os  poetas  do  seu  tempo  usavam 
nas  suas  obras,  ao  fallarem  dos  seus  amores,  fossem  elles  quaes  fossem.  Ré- 
gnier, ainda  assim,  respeita-se  bastante  para  erguer  um  altar  poético  aos  entes 
abjectos,  que  apenas  considerava  como  instrumenlos  materiaes  do  vicio,  e  não 
como  tristes  victimas  das  paixões.  Nomeia  apenas  MadeAon  e  Toinette  em  dois 
epigrammas,  um  dos  quaes  é  obsceno,  emquanto  que  o  outro  caracterisa  hem 
a  mulher  de  vida  alegre,  typo  franco  e  audaz  da  prostituição. 

Damos  uma  amostra  d 'este  ultimo  . 

Madclon  n'est  point  difficile. 
Comine  un  las  de  mignardes  sonl : 
Boiírgeois  et  gens  sans  dnniicile, 
Sans  beaucoup  marchander,  lui  foni,. . . 
Pour  raison  elle  dit  ce  poinl : 
Qu'il  faut  êlre  ptUain  lout  outre 
Ou  bien  dii  toul  ne  iêlre  point. 

O  poeta  envolve  no  vcu  da  piedade  c  do  silencio  as  desgraçadas  que  eram 
innoccntcs  dos  seus  erros,  causados  por  uma  madrasta  indigna,  ou  aconselha- 


DA    PROSTITUIÇÃO  .  OOO 

dos  por  uma  infame  proxeneta.  Km  fompensa^ão,  não  perdoa,  poráii,  ás  media- 
neiras da  libertinagem,  a  essas  velhas  devassas  e  beatas,  (jiie  não  podendo  vi- 
ver já  á  custa  da  sua  gasta  beileza,  procuravam  grangear  a  subsistência,  cor- 
rompendo raparigas  solteiras,  alfastando  as  casadas  do  cumprimento  do  seu  de- 
ver, e  sendo  n'uma  palavra,  as  inimigas  implacáveis  do  pudor  do  seu  sexo. 
Foi  Rcgnier  quem  fez  o  admirável  retrato  de  .Macettc,  esse  Tartufo  feminino, 
ao  qual  de  certo  Molière  quiz  fazer  pemlanl  com  a  sua  famosa  comedia  Tartuje. 

A  satyra  de  Macette,  nome  proverbial  que  designa  talvez  uma  famosa 
cortezã  dos  fins  do  século  xv,  era  provavelmente  uma  vingança  pessoal  do 
poeta.  Em  todo  o  caso,  foi  considerada  como  a  expressão  de  uma  indignação 
meritória  contra  as  medianeiras  do  amor,  e  houve  quem  agradecesse  a  Régnier, 
apesar  de  ser  tão  libertino,  o  havcr-se  arvorado  em  defensor  enérgico  da  opi- 
nião das  pessoas  honestas  contra  as  abomináveis  corrupturas,  (|ue  se  haviam 
multiplicado  até  ao  inlinito,  espalhando  por  toda  a  parte  o  veneno  da  sua  pre- 
versidade. 

Eis  os  primeiros  versos  d'essa  famosa  satyra : 

La  fameuse  Macette  à  la  cour  si  conniie, 
Qui  s'est  aux  lieux  d'honneur  en  crédit  mainleniie. 
Et  qui  depuis  dix  ans  jusq'en  ses  derniers  jours, 
Á  sotitenue  le  prix  en  1'esctime  d^inwurs; 
Lasse,  eiifin,  de  seroir  au  peuplf  de  quintaine, 
ffétanl  passe-rolant,  soldai,  ni  capiíaine, 
Depuis  les  plus  chetifs,  jusqii,es  aux  plus  feudans, 
Qu'elle  n'ait  descnnfit  et  mis  dessus  les  dents, 
Lasse,  dis-je,  et  non  sóule,  enfin  s'esl  retire. 

Esta  cortezã  que  não  conhecia  outro  ceu,  senão  o  do  seu  leito  voluptuoso, 
faz-se  beata,  e  mostra  grande  arrependimento  dos  seus  peccados.  Veste  com 
simplicidade,  jejua,  resa,  visita  as  egrejas  e  os  conventos,  usa  rosários  e  a(//ius- 
dei,  e  praclica  muitas  obras  pias.  Encontram-na  muitas  vezes  ajoelhada  ante 
os  altares,  chorando  como  uma  Magdalcna,  c  batendo  rudemente  no  peito;  c 
uma  santa  a  quem  todo  o  mundo  admira,  e  cujo  infame  passado  desapparece. 
sob  o  veu  de  uma  austera  penitencia. 

Régnier,  que  recorda  os  altos  feitos  d'esta  grande  peccadora,  duvida 
muito  da  sua  conversão,  e  não  se  deixa  enganar  pelas  apparencias.  Um  dia, 
estando  em  casa  de  uma  joven  a  quem  fazia  a  corte,  ficou  muito  surprehen- 
dido  de  ver  entrar  esta  velha  infame,  que  vinha  a  passos  lentos  e  compassa- 
dos, com  palavras  modestas  e  olhar  humilde,  saudando  os  circumstantes  com 
uma  Avè-Maria.  Régnier  foi  esconder-se  detraz  de  uma  porta,  sem  que  a  velha 
desconfiasse,  e  d'alli  prestou  ouvido  attento  á  conversação  da  beata,  que  de- 
pois dos  logares  comnuins  de  moral  edificante,  entrou  descaradamente  no  as- 
sumpto da  sua  visita,  dizendo  á  rapariga,  que  visto  ser  tão  bella,  devia  ter 
bellos  vestidos. 

A  velha  conhece  um  homem  rico,  enamorado  da  donzella,  e  que  não  de- 
seja senão  fazer  despezas  para  a  obsequiar.  Portanto,  logo  que  quizer,  terá  se- 


■)06  HISTORIA 

(las,  pérolas  o,  rubis,  o  fudo  quanto  concorre  paia  f.i/.i-r  realçar  a  belleza  de  uma 
mulher. 

A  namorada  de  Régnier  escuta  com  espanto  os  conselhos  da  beata,  que 
ella  estava  bem  longe  de  esperar.  A  velha  é  uma  execravei  corruptora,  que  sabe 
expor  com  a  máxima  impudência  toda  a  doutrina  da  prostituição.  O  que  é  a 
honra  ? 

La  sage  le  sail  vendre,  ou  la  soUe  le  donne. 

A  mulher  prudente  sabe  vendcl-a,  a  néscia  cede-a  gratuitamente.  E,  con- 
tinuando a  disertar  sobre  este  thema,  a  pérfida  conselheira  desenvolve  sem  pu- 
dor algum  os  horríveis  mysterios  da  prostituição,  empregando  toda  a  sua  ha- 
bilidade e  eloquência,  com  grande  espanto  da  rapariga,  que  apesar  de  não  po- 
der dizer-se  uma  vestal,  não  era  todavia  uma  prostituta.  Despoja-se,  portanto, 
de  toda  a  sua  hypocrisia,  mostrando-sc  tal  qual  era,  para  deslumbrar  a  sua 
victima,  para  fascinar  a  pobre,  que  assim  vae  ensinando  na  arte  de  enriquecer 
por  meio  da  deshonra. 

—  Minha  filha,  óiz-lhe  ella  com  a  sua  voz  mais  doce  e  acariciadora,  en- 
Iregue-se  ao  amor,  e  saiba  vcmder  por  bom  preço  os  seus  favores.  E'  gloria 
para  nós  acceitarmos  o  que  nos  oflerccem  aqueiles  que  conquistámos.  Venda 
esses  doces  olhares,  esses  sorrisos,  esses  attractivos : 

«Yenda-se  a  si  própria  sem  se  sacrilicar. 

«Conserve  a  sua  liberdade  e  o  seu  orgulho.  Conquistando  o  mais  que  pu- 
der, não  se  deixe  conquistar  nunca. 

«Receba  a  duas  mãos  e  não  se  esqueça  de  que  o  lucro  é  agradável,  ve- 
nha elle  d'onde  vier. 

«Estime  os  amantes  na  proporção  do  que  renderem  :  aquellc  que  mais 
dér  seja  o  preferido. 

«Não  os  avalie  pela  cara,  mas  sim  pela  algibeira;  um  villão  rico  vale 
mais  (|uc  um  fidalgo  pobre. 

«Eu  nunca  aprecio  os  homens  pelo  que  são,  mas  sim  pelo  que  têem. 

«(Juando  o  dinheiro  se  mistura,  quem  poderá  lá  saber  qual  foi  o  do  es- 
cravo ou  o  do  senhor? 

«Os  pintalegretes  da  corte  não  são  mais  do  que  vento  e  fumo.  Belios,  bem 
vestidos,  cuidado.samentc  penteados,  isso  é  verdade:  tracla-sc  de  pagar  ?  Oesfa- 
zem-sc  em  cortezias  c  galanteios..  .  e  nada  mais! 

«Quem  SC  deixa  embair  pelas  suas  maneiras,  arrisca-sc  a  morrer  de 
fome. 

«(Juem  joga  a  credito  está  de  mal  com  o  dinheiro. 

«Acceite  prelados,  filhos  de  capitalistas  e  demais  galans  d'esta  polpa  :  é 
uma  seara  em  que  ha  sempre  que  ceifar.» 

—  Minha  filha,  continuou  a  velha,  depois  de  ter  expendido  estas  theorias, 
sei  de  muito  boas  pes.soas  que  suspiram  por  si .  .  .  A  menina  é  tão  gentil!  olhe, 
para  lhe  faiiar  com  Iraijueza,  tantos  tidalgos  me  teem  fallado,  a  seu  respeito, 
que  nen)  sei  por  onde  começar!. .  . 

llégnier  eslava  furioso,  e  não  poude  conter  um  movimento  de  cólera.  A 


DA    PROSTITUIÇÃO  5^7 

velha  vollou-se,  surpreliendida  de  ter  ouvido  aquelle  ruido  inesperado,  e  notou 
com  espanto  que  havia  alli  uma  testemunha.  Levaniou-se  no  mesmo  instante, 
e  apressou-se  a  sahir,  dizendo  á  rapariga  em  voz  baixa : 

— A'manhã  voltarei,  adeus!. .  . 

A  primeira  ideia  do  poeta  foi  tomar  alli  mesmo  cruel  vingança  daquella 
perigosíssima  adversaria  da  sua  felicidade.  Não  quiz,  porém,  envergonhar  a  sua 
amada,  provando-lhe  que  ouvira  os  bellos  conselhos  e  máximas  da  asquero- 
sa e  repugnante  sereia.  Contentou-se  com  amaldiçoar  em  segredo  a  velha  me- 
dianeira, que  se  propusera  arrebatar-lhe  o  coração  da  sua  amada,  corrom- 
pendo-a. 

E,  com  elíeito,  o  coração  da  rapariga,  até  então  nobre  e  generoso,  em- 
briagara-se  agora  de  ideias  de  ambição,  e  estava  em  muito  bom  caminho  de  se 
deixar  arrastar  ao  abysmo.  Macette  triumphára,  e  Régnier,  pouco  depois,  fu- 
rio.so  de  se  ver  supplantado  por  um  rival,  cujo  mérito  não  passava  além  da  al- 
gibeira, stygmatizou  cruelmente  nos  seus  versos  a  velha  abominável  que  o  de- 
mónio da  luxuria  trouxera  a  casa  da  sua  amada. 

Vamos  dar  algumas  das  sextilhas  do  poeta,  que  decerto  perderiam  na  pa- 
raphrase  uma  grande  parle  da  sua  vehemencia  : 


Esprit  errant,  âme  idolatre, 
Corps  verolé,  couvert  d'emplâti'e, 
Aveuglé  d'tin  lascif  baudeau  ; 
Grande  nyinphê  à  la  harlequine, 
Qiti  s'esl  brisé  lanl  Veschine, 
Dessus  le  pavé  d'uii  bordeau ! . .  ■ 

Je  veiix  que  parUmt  on  fappelle 
Louve,  chienne  el  oursc  cruelle, 
Tant  dérlt  que  délà  des  iiwnts ; 
Je  veux  que  de  plus  on  ajoiUe : 
Voila  le  grand  diable  qui  joule 
Contre  1'enfer  et  les  démons. 

Je  veux  qit'on  crie  ainsi  la  rue : 
•iPeuple,  gardez-vous  de  la  prue, 
Qui  délruit  tous  les  esguillons. 
Démandant  si  c'est  aventure 
Ou  bien  un  effecl  de  nature. 
Que  d'aecoucher  de  cardillons.» 

De  cent  dons  elle  fui  formée, 
Et  puis,  puur  en  êlre  animie, 
On  la  frolla  de  vif  argent  : 
Le  fer  fut  première  malière, 
Mais  meilleure  en  fut  la  dernière, 
Qui  fil  son  cul  si  diligeiíl. 
Depuis,  honorant  son  lignage, 

Elle  fit  voir  un  beau  ménage, 
D'ordure  et  d'iiiipudicilés, 
Et  puis  par  Vexcés  de  ses  flanimes, 
Elle  a  produil  filies  et  femmes 
Au  chanip  de  ses  lubricilés. 


558  HISTORIA 

Vieille  sans  dents,  grande  hallebarde. 
Vieuxbaril  d  mettre  moutarde, 
Grande  inorion,  vieu.r  pol  casse, 
Plaque  de  lit,  corne  à  lanterne, 
Manche  de  lut,  corp  de  gxdterne. 
Que  n'est-tu  déju  in  pace? 

Vous  tous  qui,  malins  de  naUire, 
En  désirez  voir  la  peinture, 
Allez-vous  en  chez  le  hourreau: 
Car,  s'iln'esl  touché  d'inconstance, 
II  la  fait  voir  à  la  potence. 
Ou  dans  la  salle  du  bordeau. 

A  vingança  de  Régnier  immortalisou  assim  o  nome  de  Macette,  que  foi 
desde  então  synonimo  de  Maquerelle,  palavra  que  a  lingua  erótica,  tanto  a  fal- 
tada como  a  escripta,  conservava  ainda. 

N'essa  épocha,  o  poeta,  apesar  de  todas  as  decepções  porque  tiniia  pas- 
sado, estava  longe  ainda  de  ser  prudente.  E,  no  emtanto,  estava  cheio  de 
achaques  e  dobrara-lhe  o  corpo  uma  velhice  prematura.  No  emtanto,  apesar  de 
o  dominar  ainda  a  paixão  das  mulheres,  não  ia  procural-as  aos  mesmos  loga- 
res.  Evitava  entrar  nos  bordeis  e  antros  de  corrupção.  Attendia  mais  alguma 
cousa  á  sua  saúde,  e  deixara  de  correr  ás  cegas,  como  até  ahi,  atraz  dos  pra- 
zeres. 

Na  sua  Epistola  ao  senhor  de  Fourquevaux,  que  não  é,  como  muita  gente 
suppoz,  o  pseudonymo  do  senhor  d'Esternod,  ou  Desternod,  desenvolve  com 
um  cynismo,  que  não  é  completamente  destituído  de  ingenuidade,  a  sua  nova 
theoria  de  amor.  Tem,  como  sempre,  uma  decidida  aversão  pelas  damas  de  alto 
cothurno,  porque  diz  elle  que  não  gosta  de  se  servir  de  chapéu  na  mão.  Não 
quer  estar  sempre  ao  remo,  como  um  forçado,  o  que  prefere  é  ser  livre,  e  com 
o  dinheiro  na  mão  escolher  á  vontade  o  género,  na  vasta  feira  do  amor: 

La  grandeur  en  amour  est  vice  insupportable. 
Et  qui  sert  hautement  est  toujours  misérable  ; 
II  n'est  que  d'être  libre,  et  en  deniers  comptants, 
Dans  le  marche  d'ainour  acheter  du  bon  teitips, 
El  pour  le  prix  cominun  choisir  sa  marchandise. 

Violet-Leduc,  na  sua  edição  de  Régnier  (Paris,  P.  .lannet,  1854)  diz  com 
razão  a  propósito  d'esta  epistola : 

«Seria  tão  diíhcil  desculpar  a  Régnier  a  escolha  do  assumpto,  como  a 
maneira  por  que  o  tractou.  Esta  obra  não  pode  dar  senão  muito  má  ideia  da  de- 
licadeza e  dos  costumes  do  seu  auctor.» 

Régnier  sentia-se  velho,  apesar  de  não  ter  ainda  quarenta  annos.  Come- 
çava a  ter  medo  também  dos  perigos  futuros,  e  deixava  de  boa  vontade  em 
lierança  aos  seus  successores : 

Les  boutuns  du  prinlemps  et  les  autres  fleurelles, 
Que  l'on  cueille  au  jardin  des  douces  amoureltes. 


DA    PROSTITUIÇÃO  559 

O  poeta  tinha  um  pronunciado  horror  pelos  remédios  e  ingredientes  de 
botica,  detestava  o  mercúrio,  a  agua  forte,  e  os  sudoriferos,  que  lhe  haviam  rou- 
bado as  forças.  Tinha  um  braço  e  uma  perna  dormentes  e  «como  um  mari- 
nheiro, que  se  houvesse  livrado  de  uma  tormenta»  jurara  não  tornar  a  embar- 
car no  mar  da  prostituição.  O  seu  sonho  dourado  era  então  uma  concubina,  em 
cujos  amores  pacíficos  e  seguros  podesse  descançar  as  suas  paixões  eróticas. 
Mas  o  pobre  poeta  não  podia  realisar  este  roubo,  senão  depois  de  sahir  das 
mãos  dos  seus  refundidores. 

«Régnier,  diz  Tallemant  dcs  Reaux,  na  historieta  de  Desportes,  morreu 
aos  trinta  e  nove  annos  de  edade  cm  Rouen,  onde  tinha  ido  curar-se  com  um 
tal  Sonneur.  Apenas  obteve  algumas  melhoras,  resolveu  obsequiar  os  seus  mé- 
dicos com  um  banquete,  em  que  se  serviu  vinho  novo  de  Hespanha.  Os  médi- 
cos deixaram-lh'o  beber  por  condescendência,  mas  o  resultado  foi  acommettel-o 
uma  pleurisia,  que  o  arrebatou  em  três  dias  (22  de  outubro  de  1613.)» 

O  eminente  poeta  satyrico,  apesar  da  sua  libertinagem  foi  muito  feste- 
jado pelos  seus  contemporâneos,  sem  que  pessoa  alguma  lhe  censurasse  a  li- 
cenciosidade das  suas  poesias,  que  não  eram  ainda  assim  tão  livres  como  as  de 
Sigogne,  Desternod,  Motin  e  Theóphile.  Ainda  mesmo  que  Régnier  possa  con- 
siderar-se  o  mais  notável  poeta  da  prostituição,  devemos  citar  aqui  as  palavras 
de  Viollet-Leduc,  na  sua  Historia  da  Salijra  em  França:  «No  tempo  de  Ré- 
gnier, só  a  palavra  Satyra  envolvia  já  um  sentido  obsceno.» 

O  austero  Boileau,  não  attendeu  decerto  aos  usos  e  costumes  da  épocha, 
ao  dizer  de  Régnier,  na  sua  Arte  poética  : 

Heureux,  si  dans  ses  vers,  pleins  de  verve  et  de  sei, 
II  ne  menait  souvent  les  muscs  au  bordel, 
Et  si,  du  soii  hardi  de  ces  rimes  cyniques, 
II  n'alarmait  souvent  les  oreilles  pudiques. 

Caso  digno  de  notar-se.  O  critico  para  não  cahir  no  defeito  que  censurava 
ao  cantor  de  Macette,  depurou  a  forma  dos  dois  primeiros  versos,  attenuan- 
do-os,  mas  sem  mudar  cousa  alguma  á  sentença  que  havia  publicado  a  res- 
peito do  mestre  da  satyra : 

Heureux,  si  ses  discours,  craints  du  chaste  lecteur, 
Ne  se  sentaient  des  lieux,  que  fréquentaient  Vaucleur. 


CAPÍTULO  XLIII 


SUMMARIO 


Os  imitadores  de  Rtígnier.— O  senhni-  d'Esteruo(]  r  o  seu  Expadon.—Vmn  lioa  fortuna  rio  poeta  satyrico.— 
O  paranympho  da  velha  beata.— A  bclla  Magdalena.— O  senliorde  Courval-Sounet.— A  eensura  das  inulberes. — 
CoDselbos  a  uma  i'oitezã.  —  Cs  exer cicios  d'ai|ueile  tempo.  —  U  baile.  —  O  passeio.  —  O  libertino.  —O  processo  de 
Tlieophilo  Viaud.—  Collecçõcs  de  versus  satyi  icos  —  O  Pariiusn  satyrico.—  A  vingaufa  do  l'aiire  Uerasse  e  dos  jesuí- 
tas.—Nova  jurisprudência  contra  os  maus  livros  e  discuríos  i  bscenos. 


ATHURiN  Rógnier  não  foi  o 


nico  poela  (rafiiiolla  ('•pocha  cm  i|iie 
SC  encontra  uma  viva  c  fra.ica  piíilura  da  prostituição.  A  maior 
|)arlc  (los  poetas,  seus  contemporâneos  e  imitadores,  não  recoia- 
vam  deslionrar-se  frequentando  tabernas  e  bordeis.  Era  muito 
natural,  pois,  que  a  licenciosidade  dos  seus  costumes  se  refle- 
ctisse nus  suas  obras.  Além  d'isso  o  género  de  poesia  mais  grata  por  esse  tempo 
aos  leitores  da  boa  sociedade  era  a  satyra.  bem  que  muitas  vezes  as  diversas 
composições  não  inscrevessem  este  titulo. 

«Os  auctores  e  provavelmente  o  publico,  diz  Violet  Leduc,  na  sua  His- 
toria da  Sati/ra  em  Fra)iça,  tinham  por  esse  tempo  a  opinião,  talvez  por  causa 
da  meã  orientação  dos  seus  estudos,  de  qu  '  o  estylo  da  satyra  devia  ser  con- 
forme com  a  supposta  linguagem  dos  satyros,  divindades  lascivas  dos  gregos.» 
D'aqui  a  obscenidade,  ou  pelo  menos  a  licença,  da  maior  parte  dos  ver- 
sos satyricos. 

Não  é  nosso  intento  ir  buscar  aos  poetas  da  esciíola  de  Régnier  todos  os 
dados,  que  alli  se  possam  encontrar  a  respeito  da  historia  da  moralidade  pu- 
blica nos  princípios  do  século  xvii.  Procuraremos  tão  somente  escolher  n'al- 
gumas  collecções  de  satyras,  publicadas  por  ;ujuelle  tempo,  diversos  quadros  de 
costumes,  que  completarão  o  que  Régnier  pintou  do  natural  na  sua  Macette  e 
no  seu  Mauvais  íjite. 

Estes  novos  dados,  colhidos  cm  livros  raros  e  bem  pouco  conhecidos,  re- 
produzirão sob  novas  phases  a  physionomia  essencialmente  móbil  da  prostitui- 
ção, embora  se  reconheça  sempre  nas  satyras,  que  sob  este  ponto  de  vista  va- 
mos citar,  a  evidente  intenção  de  luctar  com  vantagem  contra  o  auctor  de  Ma- 
cette,  n'esses  domínios  verdadeiramente  escabrosos  do  seu  génio  libertino. 

O  senhor  d'Esternod  é  o  primeiro  a  apresenlar-se  com  uma  imitação 
muito  inferior,  embora  notável,  da  Macelte.  E.sla  satyra  de  Uégnier  obtivera 
tantos  applausos,  que  tirou  o  somno  aos  poetas  contemporâneos. 

HUTOKIÀ  DA  PaOSTITlUpÃO.  TOMO  II— FoLHA  71. 


562  HISTORIA 

Cláudio  d'Esiernod,  ou  Desternod,  não  era,  como  alguns  suppuzeram, 
o  pseudonymo  de  Francisco  de  Fourquevaux,  amigo  de  Régnier,  nias  sim  um 
fidalgo  de  Salins,  que  não  cultivou  as  musas,  senão  depois  de  haver  passado  a 
sua  juventude  na  carreira  das  armas.  A  sua  poesia  resentia-se,  portanto,  da 
rudeza  e  licença  da  sua  primitiva  profissão. 

Apesar  de  ser  governador  do  castello  d'Ornans,  na  Borgonha,  este  cargo 
militar  deixava-lhe  muito  tempo  livre  para  ir  a  Paris,  onde  as  suas  relações  com 
os  poetas  o  levavam  muitas  vezes  á  libertinagem.  Embora,  porém,  os  poetas  seus 
companheiros  de  prazer  fossem  na  sua  maior  parte  atheus  ou  epicuristas,  como 
Theóphile  e  Berthelot,  Desternod  continuava  sempre  a  harmonisar  os  seus  costu- 
mes licenciosos  com  uma  grande  piedade  c  até  mesmo  com  uma  e.specie  de  zelo 
fanático  pela  religião. 

N'um  dos  capítulos  do  seu  Espadon,  livro  satyrico,  impresso  pela  primeira 
vez  em  Lyon  em  1619,  Desternod  verbera  com  uma  energia  brutal,  de  caserna, 
a  hypocrisia  de  uma  mulher,  que  se  fingia  devota  e  deu  atinai  em  prostituta 
Esta  mulher,  que  o  poeta  não  nomeia,  era  d'essas  que  encobrem  as  suas  torpe- 
zas com  a  mascara  da  virtude,  e  que  são  tão  estimadas  geralmente,  quanto  se- 
riam desprezadas,  se  ,se  conhecesse  melhor  a  sua  conducta.  N'aquelle  tempo 
abundavam  mais  do  que  hoje  as  hypocritas  d'esta  laia,  e  Desternod  não  se  dei- 
xava enganar  pelas  apparencias. 

«Ha  mulheres,  diz  elle,  que  passaiu  o  dia  inteiro  na  egreja,  depois  de  eu 
próprio  as  ter  visto  toda  a  noite  no  bordei.  Uma  d'eslas  conheço  eu  que  é  uma 
Lais  e  que  se  faz  uma  virtude:» 

Et  telle  est  aii  sermoji,  tant  que  le  jour  riDUx  luil. 
Que  j' ai  vu  au  bordeau  tniit  le  long  de  la  nuit: 
Or  une  j'en.  coimais  de  semhlable  farine. 
Qui  est  une  Lais  et  fait  de  la  Pauline. 

Esta  mulher,  devassa  e  hypocrita,  dá  esmola  quando  a  vêem,  falia  só  em 
cousas  santas,  taes  como  agua  benta,  indulgências  e  jubileus,  passa  e  repassa 
sem  cessar  as  contas  do  rosário,  e  parece  não  pensar  nas  vaidades  do  mundo 
nem  nas  obras  do  diabo.  Uma  noite  Desternod  sahiu  de  casa  triste  e  pensativo 
e  com  a  algibeira  completamente  vasia.  Era  esta  afinal  a  causa  da  sua  tristeza, 
porque  havia  perdido  ao  jogo  até  o  ultimo  escudo. 

Caminhava  de  fronte  abatida  como  um  velho,  retlectindo  na  sua  penúria, 
que  o  não  deixava  ir  a  um  d'esses  sitios  onde  tudo  se  paga.  Caminhava  ao 
acaso,  por  assim  dizer,  arrancando  os  cabellos,  sem  descobrir  o  meio  ou  de 
arranjar  dinheiro,  ou  de  passar  sem  elle.    . 

De  repente,  ouve  o  ruido  de  uma  (iua<lrilha  de  ladiíies,  ((ue  ao  tempo 
infestava  aquelle  bairro. 

Para  evitar  o  encontro,  apesar  de  nada  ter  que  perder,  além  da  capa, 
entra  n'uma  ruasita  eseu.sa  e  tenebro.sa,  <■  esconde-se  no  vão  de  uma  porta. 

Ao  mesmo  tempo,  quasi,  abre-se  unui  janella  por  cima  da  sua  cabeça. 

O  passeador  nocturno  dá  imnie  liatamenle  um  pulo  para  o  lado,  receiando 
um  banho,  (|ue  não  scvria  por  cerlo  de  agua  de  rosas... 


DA    PROSTITUIÇÃO  563 

A  LTÍada,  porém,  aprossa-se  a  traiiquillizal-o,  dizondo-llie  da  janclla: 

—  Olá,  meu  caro  senhor!  Queira  esperar  que  eu  desço  n'um  momento. 
O  poeta   não  responde,   suppondo  que  talvez  não  se  entendessem  com 

pile  aquellas  palavras,  e  ia  relirar-se  discretamente,  quando  a  porta  se  entrea- 
bre e  a  criada  lhe  diz  em  voz  baixa  : 

—  Entre,  meu  senhor,  mas  não  faça  bulha,  e  desculpe  não  ter  luz,  mas 
assim  c  preciso. 

O  poeta  não  pôde  duvidar  de  que  o  tomam  por  outro,  e  hesita  em  conti- 
nuar aquella  estranha  aventura.  A  criada  (juebra  toda  a  hesitação  de  Desternod, 
empurrando-o  para  dentro  e  fechando  a  porta  logo  em  seguida. 

Resigna-se,  e  deixa-se  guiar  pela  mão  até  ao  leito  de  uma  dama,  que  o 
esperava,  ou  esperava  por  outro,  metlida  entre  os  lençoes.  A  beldade  dirige-lhe 
a  palavra,  como  se  fora  um  antigo  conhecimento.  .  .  O  poeta  tinha  ido  muito 
longe  para  retroceder..  .   Deita-se,  portanto,  sem  dar  palavra. 

Não  havia  luz,  recordam-se  ? 

E  Desternod  d'ahi  a  pouco  arrepende-se  de  não  a  ter  pedido,  porque  co- 
meça a  ter  grandes  suspeitas  de  que  está  deitado  com  uma  velha!.  . . 

Quando,  à  força  de  apalpadellas,  chega  a  convencer-se  da  sua  desgraça, 
resolve  abandonar  a  partida,  sem  mais  cumprimentos  nem  delongas. 

A  velha,  surprehendida  d'aquellas  maneiras,  chama  a  criada,  que  traz  fi- 
nalmente luz. 

A  dama,  reconhecendo  o  seu  detractor,  quer  esconder-se  debaixo  da 
roupa.  Enganara-se;  não  era  aqueile  homem  quem  ella  esperava!... 

O  poeta,  reconhecendo  a  beata,  diz-lhe  sarcasticamente : 

—  Deus,  nosso  senhor,  nos  dè  muito  boas  noites,  mamã!.  .. 

—  Quem  diabo  o  trouxe  aqui?  perguntou  a  beata,  desesperada. 

—  A  minha  fortuna  maldita,  responde  o  poeta: 

Ma  fortune  maudite, 
Qui  vnulait  que  je  susse  qu'étiez  une  hypncrite. 

A  beata  desolada  supplica-lhe  que  seja  discreto  e  não  queira  perder  uma 
pobre  mulher  a  quem  acaba  de  deshonrar. 

O  poeta,  sempre  irónico,  tranquillisa-a  o  melhor  que  p<5de. 

—  Descance,  diz-lhe,  lenho  ainda  mais  interesse  que  a  senhora  em  que 
este  caso  não  transpire. 

—  E  porque?  pergunta  a  velha,  muito  surprehendida. 

—  Porque  a  sua  conquista  serôdia  seria  para  mim  uma  grande  vergonha! 
No  emtanto,  faz  pagar  o  silencio  pedido,  e  não  sahe  d'aquella  casa,  sem 

obter  dez  escudos  pelo  serviço  que  prestara  á  pobre  velha,  sem  ter  mesmo  o 
pudor  de  lhe  fazer  suppòr  que  pretendia  distribuir  aqueile  dinheiro  pelos  pobres. 
O  deplorável  e  infame  desenlace  d'esta  aventura  não  nos  deixa  conceber 
uma  opinião  muito  lisongeira  da  moralidade  do  senhor  Desternod.  De  resto, 
apenas  se  apanhou  cá  fora,  a  primeira  cousa  que  fez  foi  revelar  o  segredo  pro- 
mettido,   e  demais  a  mais  pago.  Parece  até  que  nem  mesmo  occultou  o  nome 


Ò6Í  HISTORIA 

da  dama,  por  isso  que  compoz  em  verso  o  jiardiiiimiiho  da  vellia,  em  recom- 
pensa do  favor  que  llie  devia: 

«Unia  vez  que  tantas  finezas  te  devo,  oii  velha,  que  por  alguns  instantes 
me  tiveste  amor!  Serás  o  meu  eondestavel,  no  dia  cm  que  me  fizerem  rei!... 

«Nunca  a  tinha  ou  a  sarna,  a  cn\ai[ucca  ou  os  laparões  te  persigam, 
velha  de  Satanaz !  Quando  a  morte  vier  Í5uscar-te,  oxalá  que  dois  burros  te 
levem  ao  paraizo  n'uma  liteira  !.  .  . 

Este  senhor  Desternod,  que  havia  feito  as  suas  primeiras  armas  poéticas, 
com  a  armadura  de  soldado  envergada,  conservava  nos  seus  costumes  e  lin- 
gungem  toda  a  grosseria  da  sua  antiga  pr  lílssão,  e  não  contava  com  a  algi- 
beira, quando  queria  com|)iar  género,  mais  ou  menos  avariado,  no  mercado  da 
prostituição.  Vinga-se  com  versos  acres  e  venenosos  de  uma  mulher  a  quem 
chama  a.hella  Magdalena,  que  não  se  lhe  quizcra  vender  por  cincoentas  pistolas. 
Por  algumas  passagens  d'esta  composição  poética,  pôde  julgar-se  que  esta  mu- 
lher era  um  manjar  destinado  ao  appetite  sensual  de  um  grande  fidalgo,  se- 
gundo corria,  a  ponto  das  vellias  provenetas,  que  tinham  descoberto  a  mina, 
contarem  fazer  com  ella  um  bom  negocio.  Vigiavam-na  de  perto,  e  Desternod 
bíilia  em  vão  áquclla  porta. 

Irritado  con>  a  resistência,  o  poeta  vomita  todo  o  seu  despeito  n'uma  poesia 
de  bordel,  em  que  enche  de  invectivas  a  desgraçada,  que  não  quer  recebel-o. 
Chama-lhe  velha,  diz  que  não  tem  amantes,  porque  todos  a  abominam,  de- 
clara-a  miserável,  atormentada  pela  recordação  das  boas  fortunas  que  desdenhou, 
e  que  nunca  mais  voltarão. 

A  veliiicedas  mulheres  dissolutas  era  decerto  pouco  respeitável.  Desternod, 
a  este  respeito,  era  um  poeta  implacável.  Não  perdoava  nunca,  sobre  tudo  ás 
vcdlias  peccadoras,  que  em  vez  de  fazerem  penitencia  pelas  culpas  da  mocidade, 
procuravam  ainda,  graças  ás  ficções  do  toucador,  continuar  na  mesma  vida.  A 
essas  é  que  elle  de  preferencia  açoita  com  o  látego  da  satyra : 

Ces  láches  demoixelles, 
Qui  repaírenl  Icurx  fronl :,  du)xissent  leiírs  mainelles, 
l{everdis.<ent  leitr  .tcin,  Ictir  peaii  vont  corroyanl, 
Alignent  leurs  sourcils,  li'urs  chereux  vont  poudranl, 
Vermillonanl  Icur  joue,  cncroiislanl  letir.f  visages. 

Desternod  tomava  por  modelo  a  Rcgnier,  e  todos  os  poetas  de  taberna 
e  de  bordel,  seus  cmulos  e  seus  amigos.  O  mesmo  género  de  vida  ociosa  e  des- 
regrada devia  produzir  o  mesmo  género  de  poesia.  De  Régnier  a  Desternod 
havia,  porém,  a  mesma  distancia,  que  vae  di'  Paris  ao  castello  de  Ornans. 

O  auctor  do  Espadon  satyrique  encontrou  também  nos  logarcs  suspeitos 
esses  achaques  vergonhosos  que  foram  sempre  os  satellites  da  prostituição.  A 
exemplo  de  Rcgnier,  não  teve  escrúpulo  de  cantar  as  suas  desventuras.  Mas  n'esla 
ode  obscena  e  torpe,  em  que  brilha  um  csiro  digno  de  melhor  emprego,  Régnier 
liça  muito  atraz  do  poeta  da  Borgonha.  Desternod  tinha  a  brutal  franqueza  de 
um  soldado,  c  valia-se  (rdla  para  denunciar  ao  publico  a  ovelha  ranhosa,  que 
pretendia  c\pul.sar  do  rcdil  da  prostituição.  Não  se  arrepende  de  ter  vivido  de- 


DA    PROSTITUIÇÃO  565 

saforadamontp,  mas  accusa-sc  de  ter  confiado  n'uma  miserável,  que  tantos  ha- 
via iiludido. 

—  Não  era  uma  verdadeira  loucura  procurar  alli  os  meus  amores  ?  diz  o 
incorregivel  libertino. 

A  satyra  eslava  em  moda  n'a(]uellc  tempo,  e  os  satyricos,  sem  se  im- 
portarem com  o  pudor  dos  leitores,  perseguiam  cruelmente  a  libertinagem, 
procurando  fazer  envergonhar  a  prostituição. 

Um  d'esscs  salj^ricos,  Tiiomaz  de  Courval  Sonnet,  era  um  pobre  fidalgo 
normando,  que  tendo  vivido  em  Paris  no  tempo  de  Maria  de  Medicis,  para  es- 
tudar medicina,  teve  a  ideia  de  fazer  versos  contra  os  costumes  da  capital.  A 
leitura  das  suas  poesias,  em  que  o  poeta  se  mostra  grandemente  animado  do 
ódio  do  mal  e  do  amor  do  bem,  dá-nos  uma  favorável  ideia  do  seu  caracter  e 
sentimentos,  apesar  das  expressões  triviaes  e  das  imagens  cynicas,  que  pulul- 
lam  na  sua  obra,  dedicada  á  rainha.  Era  o  gosto  do  século,  e  a  linguagem  dos 
próprios  cortezãos  parecia  inspirada  nos  costumes  das  Cortes  dos  Milagres.  Deve 
suppòr-se,  todavia,  que  Courval  Sonnet  não  vivia  na  crápula  como  a  maior 
parte  dos  seus  collegas,  podendo  mesmo  afiirmar-se  que  tinha  uma  vida  regu- 
lar, que  nunca  manchara  no  lodo  dos  bordeis. 

A  sua  primeira  collecção,  que  appareceu  em  1G2I,  (Paris,  Rolet-Boutonné, 
in-H.")  prova  a  aversão  e  a  desconfiança  que  o  auctor  tinha  contra  as  mulhe- 
res em  geral.  Na  satyra  sexta,  intitulada  Censura  das  mulheres,  faz  uma  des- 
cripção  muito  desfavorável  do  bello  sexo,  ao  qual  atira  com  muitos  punhados 
de  injuriosas  metaphoras. 

«Inferno  dos  espíritos,  diz  elle,  paraizo  do  olhar,  sepulchro  dos  fracos, 
purgatório  da  bolsa,  porta  do  hospital,  etc.  etc.» 

Sonnet,  na  sua  qualidade  de  medico,  pretende  curar  a  libertinagem  com 
o  quadro  dos  estragos  materiaes  que  as  mulheres  licenciosas  produzem  quasi 
sempre  aos  seus  cúmplices. 

«Essas  mulheres,  diz  elle,  desfolham  as  flores  da  juventude,  empanam 
o  brilho  da  belleza,  antecipam  a  velhice,  arrugam  e  murcham  a  pelle.  O  que 
suceede,  sempre  que  se  abusa  das  mulheres  publicas  do  bordel.» 

O  poeta  abre  uma  excepção  respeitosa  a  favor  das  damas  virtuosas,  de- 
clarando que  se  dirige  tão  somente  ás  mulheres  de  maus  costumes.  Se  lhe  der- 
mos credito,  porém,  a  prostituição  existia  em  toda  a  parte,  e  as  damas  mais 
illnstres  não  desdenhavam  entregar-se  a  este  oíTicio.  Compara  a  mulher  leviana 
com  uma  barca,  em  que  se  navega  pelo  rio  da  juventude. 

«Ainda,    se  a  barca  apenas  servisse  a  um  só!  Mas  es.se  sexo  infiel,  pér- 
fido e  inconstante,  entrega-se  de  ordinário,  ao  primeiro  que  deseja  passar  a  tor- 
rente dos  prazeres  do  amor. .  .  (Juantas  não  vemos  por  ahi,  servindo  de  barca 
de  aluguel,  vendendo-se  como  mercenárias,  e  para  que?  Para  terem  uma  jóia 
um  annel,  um  collar,  ou  outra  qualquer  vaidade : 

liien  que  méchanceU  ne  sort  de  leur  boutiiiiie, 
Et  rare  est  le  bienfait  qu'une  pulain  pratique. 

N'este   ponto   Courval  Sonnet  intcrroinpc-se,  porque  receia  ter  ultrajado 


566  HISTORIA 

todas  as  mullieres,  revelando  assim  as  desordens  de  algumas,  e  por  isso  vae 
reparar  o  seu  erro,  particularisando  d'esle  modo  os  seus  epigranimas,  que  ti- 
nham uma  tendeneia  demasiado  geral  e  pareciam  dirigidos  a  todo  o  bello  sexo: 

Ce  discours  seulevtent  s'adresse  atix  vicieuses. 

O  poeta  entende  por  viciosas  as  mulheres  de  maus  costumes,  que  não  se 
importam  cora  os  meios,  quando  se  trácia  de  ganhar  dinheiro. 

Na  sua  Censura  das  mulheres,  muilo  inferior  á  celebre  satyra  de  Boileau 
sobre  o  mesmo  assumpto,  Courval  caracterisa  especialmente  duas  classes  de 
prostituição,  muito  vulgares  n'aquclla  épocha  :  a  prostituição  das  mulheres  e  a 
dos  homens,  não  tendo  tanto  uma  como  a  outra  por  fim  senão  sustentar  as  exi- 
gências do  toucador.  As  mulheres,  cuja  ambição  não  vae  além  de  uns  tantos 
escudos  por  conquista,  entregam-se  a  todos  os  que  podem  |)agar-ihes;  os  ho- 
mens desprezíveis,  que  se  dão  a  tão  abjecto  modo  de  vida,  só  se  dedicam  a 
uma  que  pôde  pagar-lhes  e  sustental-os.  O  papel  dos  galans  d'esta  espécie  não 
se  limita  a  satisfazer  secretamente  as  brutaes  paixões  das  velhas  libertinas.  O 
complacente  mercenário,  ao  serviço  de  uma  dama  viciosa,  deve  leval-a  aos  bai- 
les, dançar  toda  a  noite  com  ella,  e  acompanhal-a  a  casa,  para  alli  concluir  o 
seu  serviço  diário  e  receber  a  paga : 

Le  ba.i  de  soie,  ou  1'habit  de  satin. 
Les  jarretiers  denteies,  1'écharpe  en  broderie. 

A  expensas  da  sua  amada,  o  galan  apresenta  esplendidos  trajos,  sem  gas- 
tar um  ceitil. 

Parece  inacreditável  que  uma  collecção  de  versos,  escripla  n'cste  eslylo, 
fo.sse  dedicada  á  rainha-mãe,  a  Maria  de  Medicis,  que  apesar  de  italiana,  foi  ir- 
reprehensivel  nos  seus  costumes.  Surprehende  lambem  egualmente  que  Cour- 
val Sonnet,  fidalgo  de  boa  casa,  introduzisse  nas  suas  poesias  moraes  a  infame 
gyria  dos  bordeis.  Temos  de  dizer,  em  sua  dcfeza,  que  a  esse  tempo  as  pala- 
vras mais  obscenas  tinham  entrada  até  mesmo  nos  sermões,  e  mais  ainda  na 
poesia,   que   fazia  uso  dos  .seus  antigos  privilégios,  atrevendo-se  a  dizer  tudo 

Courval  Sonnet  exaggera  a  miúdo  os  factos.  Assim,  fallando  dos  cônju- 
ges, descreve-nol-os. 

Se  iiiettant  en  hasard  des  bourdeaux  aux  dlaples, 
De  gagner,  par  argent,  le  royaume  de  Naples. 

Não  sabe,  porém,  dos  limites  da  mais  escrupulosa  verdade,  quando  faz 
com  mão  de  mestre  o  retrato  de  uma  corfezã  famosa,  que  ao  envelhecer  voltou 
ao  primitivo  ponto  de  partida,  obscuro  e  miserável. 

A  Satyra  xxv  é  dedicada  a  esta  cortezã. 

«Os  freguezes  desgostosos  dirigem-se  a  outra  parte,  e  vcs  diminuir  todos 
os  dias  o  .seu  numero.  Fecha  o  estabelecimento.  E'preciso  que  tomes  outro  gé- 
nero de  vida,  uma  vez  que  já  não  pertences  ao  bcllo  sexo.  A  mulher  que  chega 
aos  trinta  annos,   lorna-se  feia;  as  rosas  lambem  se  transformam  em  lixo.» 


DA    PROSTITUIÇÃO  567 

Courval  Sonnet  aconselha  á  antiga  ribalda  que  aproveite  bem  os  seus  der- 
radeiros dias.  Adquira  dinheiro  por  todos  os  meios  possiveis,  coinmova  as  suas 
victimas,  dizendo-ihes  que  teme  a  justi\,'a  e  tem  a  roupa  empenhada,  reúna  em- 
fím  um  pequeno  pecúlio  que  liie  pcrniitta  viver  nos  dias  da  velhice.  Ella,  porém, 
não  altende  estes  conselhos,  nem  prevê  a  chegada  do  tempo  em  que  os  recursos 
da  prostituiçcão  lhe  hão  de  fallar  completamente.  Nem  mesmo  nota  que  vae  en- 
velhecendo e  enfada-se  com  o  importuno  que  lhe  faz  advertências. 

«Ninguém  espere  vêr-me  fazer  rendas  ou  tapetes,  o  trabalho  mais  leve  ó 
para  mim  um  supplicio.  Uma  vez  que  tenho  com  que  viver,  fallem-me  em  rir  e 
não  em  trabalhar.  U  que  eu  quero  é  andar  bem  vestida,  e  passar  alegremente 
o  tempo.  A  mulher  que  vive  de  amores  licenciosos  não  pensa  no  dia  de  ama- 
nhã!... 

Courval  deixa  de  lhe  fallar  a  linguagem  da  razão  e  da  prudência.  O  vi- 
cio n'aquella  mulher  é  incurável.  Por  isso  convida-a  ironicamente  a  seguir  a 
senda  em  que  se  perdeu;  nada  de  remorsos,  nada  de  pezares.  Cada  qual  tem 
n'este  mundo  o  seu  destino:  o  de  uma  cortezã  é  morrer  cortezã  ! 

«Ostenta,  zombando  de  mim,  todos  os  utensílios  de  bordel  que  possues. 
Não  tens,  por  ventura,  um  pente,  um  espelho,  uma  meza  de  três  pés,  um  leque, 
um  copo,  agua  de  ílòr,  alvaiade,  pós,  um  par  de  luvas,  que  foram  novas,  uma 
caixa  de  unguento,  um  par  de  ligas,  uma  tigella,  um  prato,  um  guardanapo  ?» 

Esta  descriprão  do  ménatie  de  uma  mulher  publica  em  princípios  de 
século  xvu  seria  ainda  exacta  hoje  em  dia,  se  a  referíssemos  á  maior  parte  das 
mulheres  publicas  da  classe  inferiur.  Estas  desgraçadas  conservam  a  sua  phy- 
sionomia  e  modo  de  ser,  como  o  ollicio  que  as  avilta.  Courval  continua  a  pintar 
do  natural  os  traços  característicos  da  cortezã,  que  chegcára  ao  limiar  da  edade 
da  decadência: 

«Já  não  podes  saciar  a  fome  com  bons  bocados.  Apenas  te  resta,  por  man- 
jar delicado,  pão  duro  e  agua  suja.  Foi  lempo  em  que  comias  à  regalada  do 
bom  e  do  melhor;  foi  tempo  cm  (|ue  te  vias  rodeada  de  amantes  jovens  e  gen- 
tis? Como  tu  sabias  captivar  toda  essa  gente,  para  em  seguida  a  expulsares,  logo 
que  maior  interesse  te  seduzia!  impudente!  O  teu  olficio  é  infame  e  doce  ao 
mesmo  tempo!  E'por  isso  que  tanto  te  custa  a  deixar!.  .  .» 

Courval  Sonnet  deixou  Paris,  logo  que  obteve  o  grau  de  doutor  na  fa- 
culdade de  medicina.  Não  era  novo  então,  e  havia  sabido  incólume  de  todas  as 
tempestades  da  juventude.  Partiu  para  Hnuen,  onde  ia  exercera  sua  profissão. 
AUi,  ao  passo  que  assistia  aos  enfermos,  compunha  satyras,  que  tinham  ainda 
por  fim  corrigir  os  costumes,  segundo  parece,  tão  corrompidos  na  província 
como  na  metrópole.  Publicou,  sob  o  véu  do  anonymo,  os  Exercidos  d'esle 
tempo,  que  mereceram  a  honra  de  muitas  edições  successivas,  sem  que  o  poeta 
pensasse  em  expurgar  a  sua  obra  das  incorrecções  e  grosserias  de  eslyio  que 
a  afeiavam.  Este  livro  é  um  bosquejo  curiosíssimo  de  costumes  deveras  inte- 
ressantes para  a  historia  da  prostituição. 

«Courval  não  imitou  Régnier,  senão  no  qu  í  este  tinha  mais  digno  de 
censura,  diz  Violet-Leduc,  e  nem  mesmo  se  deu  ao  trabalho  de  dissimular  os 
seus  plagiatos.  O  seu  Libertino  e  o  seu  lijnoranle  foram  calcados  sobre  as  su- 


568  HISTORIA 

Ivras  X  c  XI  de  Régnicr.  Na  sua  qualidade  de  medico,  abusou  das  palavras  e 
das  descripções,  tão  impuras  e  torpes  como  repugnantes.» 

Occupar-nos-hemos  aqui  tão  somente  das  Satyras  i,  ii  e  xi. 

Intitulam-se  o  Baile,  o  Passeio  e  o  Libertino.  A  primeira  prova-nos  que 
no  século  xvii  havia  l)ai[es  públicos,  análogos  aos  que  actualmente  estão  em 
moda  em  Paris,  e  em  todas  as  grandes  cidades  da  França,  exercendo  uma  in- 
fluencia perniciosa  nos  costumes  do  povo.  No  tempo  de  Courval  Sonnet,  ia-se 
a  estes  bailes  procurar  aventuras  amorosas.  Eis  o  que  a  este  respeito  nos  diz 
n'uma  satyra,  em  que  elle  próprio  se  põe  em  scena  : 

«Os  desejos  depravados  entram  em  acção  no  baile,  templo  libertino,  onde 
outr'ora  a  mocidade  ia  como  ao  bordel  procurar  uma  prostituta.  Vede  :  Lustres, 
brilhantes,  espelhos,  bellezas,  Cu|)ido  em  campo,  amores  por  toda  a  parte!  Se 
um  vae  alli  para  dançar,  outro  tem  outros  intentos.  Um  procura  uma  mulher 
outro  procura  amantes  I .  . . » 

Como  se  vê,  (lourval  Sonnet  não  mudara  de  linguagem  ao  regressar  ao 
seu  paiz  natal;  n'esse  tempo,  todavia,  já  o  poeta  não  dedicava  os  seus  ver- 
sos á  rainha,  que  decerto  não  apreciaria  em  grande  cousa  a  dedicatória 
da  primeira  collccção.  O  poeta  medico  dedicou  a  segunda  á  crilica  dos  cos- 
tumes normandos.  O  baile  licencioso  cm  que  introduz  o  leitor  assimclha-se 
muito  aos  dos  músicos  da  Holianda,  e  presumc-se  que  eslava  estabelecido  em 
Rouen,  terra  da  residência  do  poeta. 

Sonnet  encontra  n'esse  baile  uma  mulher  com  quem  entabola  uma  con- 
versação, que  d'aiii  a  pouco  escorrega  para  assumptos  liceiuiosos.  IN'esle  de- 
clive, o  poeta  f.iz-lhc  propostas  muito  transparentes,  que  a  principio  a  dama 
recusa,  atíectando  uma  indignação  calculada. 

—  (]omo !  exlama  ella,  cheia  de  pudor.  Atreve-se  a  dizer-mc  essas  cou- 
sasl  Sou  uma  mulher  honrada,  senhor! 

E  não  obstante  estas  phrases,  diz  o  poeta  : 

.  .  .deu.r  heure.t  devanl,  auprés  des  chambrières, 
Un  jeune  rAtoalier  lui  tallait  des  croupières  .'... 

Depois  de  alguns  momentos  de  airosa  resistência,  a  dama  concede  a 
maior  familiaridade  ao  seu  namorado  poeta,  acceitando  o  cinvite  que  lhe  fez, 
e  comendo  e  bebendo  como  se  tivesse  jejuado  dois  dias.  A  gula  fcl-a  encher 
tão  desmedidamente  o  estômago,  que  teve  de  sahir  do  baile  para  se  livrar  de  uma 
parte  d'aquella  indigesta  carga.  Apenas  ficou  algum  tanto  alliviada,  volta  á  sala 
do  baile,  e  pouco  depois  ao  gabinete.  IVesta  vez  retém  melhor  o  que  come,  e 
liça  pre|)arada  para  supportar  as  fadigas  da  noite.  Feito  isto,  sabe  do  baile  com 
o  poeta,  dizendo: 

Si  chasl  on  en  revienl,  c'est  graiid  coup  d'avcntiire: 
De  la  lable  á  la  danse,  el  de  la  danse  nu  licet. 

Tal  era  o  Haile,  e  o  Passeio  não  é  muito  dittcrente.  O  nosso  poeta  en- 
contra outra  beldade  a  quem  pretendia,  sem  ler  jamais  obtido  d'ella  nem  se- 


DA    PROSTITUIÇÃO  B69 

quer  uma  esperan(;a.  DVsla  \n  convicla-o  a  ir  passar  o  dia  a  uma  casa  de  re- 
creio, onde  devem  reunir-se  alegres  convivas.  Courval  não  resiste  á  seducção, 
e  acceita  o  convite.  Entra  n'uma  carruagem  com  a  sua  sereia,  e  deixa-se  con- 
duzir a  olhos  fecliados  a  um  retiro  campestre,  onde  encontra  reunidos  vinte  ou 
trinta  pares  de  namorados,  que  não  fazem  outra  coisa  em  todo  o  dia  senão  en- 
tregarem-se  ao  prazer  nos  massissos  de  dores.  E'  uma  alegre  saturnal,  que  o 
poeta  nos  descreve  com  o  seu  cynismo  costumado,  sem  esquecer  o  pittoresco 
do  sitio,. 

Ok  respire  d'Àinour,  ou  Vénus  prit  naissance. 

Não  nos  conta  .se  também  se  entregou  aos  excessos  do  mau  exemplo, 
mas  admittindo  mesmo  que  fosse  bastante  senhor  de  si,  para  se  subtrahir  aos 
perigos  d'aquelle  logar  voluptuoso,  foi  pido  menos  testemunha  dos  escandalo- 
sos actos  de  prostituição  que  alli  se  priticaram  ao  ar  livre.  Todos  aquelles 
amantes  impudicos  e  desavergonhados  renovavam  entre  si  as  scenas  vergonho- 
sas dos  antigos  mysterios  d'Isis! 

Oiurval  Sonnet  nada  omittiria  de  tu  lo  quanto  viu  n'aqelle  i'eeinlo,  (|ue 
poderíamos  denominar  da  prostituirão  publica,  se  não  IIkí  tivessem  faltado  pa- 
lavras para  todos  os  quadros,  se  tivesse  sabido  pintar  d'uma  maneira  viva  e 
piltoresca  as  singulares  recordações  d'aquelle  seu  passeio  ao  campo.  De  resto, 
lembra-se  com  tristeza  e  repugnância  d<!  um  espectáculo  que  o  fez  indignar 
contra  o  belio  sexo,  e  termina  assim  a  sua  satyra,  recordando  os  famosos  ver- 
sos de  João  de  Meung- contra  as  mulheres: 

Ainsi  s'accerait  le  lice  et  pulliile  en  l.ous  lieu.v: 
Si  l'une  fait  du  mal,  Vautre  ne  fait  pas  mieux, 
Car  tnutes  vous  serez,  oous  ctes,  mi  vous  fútes, 
De  fait,  ou  de  puissance,  ou  de  volante,  puies ! ■ .  ■ 

Na  satyra  intitulada  o  Libertino,  ('ourvai  Sonnet  traça  em  versos  esplen- 
didos um  episodio  da  prostituição  vagabunda,  que  não  devia  ser  rara  n'aquella 
épocha,  em  que  as  províncias  eram  continuamente  atravessadas  por  bandos  de 
ciganos,  que  viviam  fora  da  sociedade  sem  conhecer  rei  nem  roque,  entregues 
desde  a  infância  á  prostituição.  .4  estas  tribus  errantes  iam  frequentemente  os 
homens  viciosos  procurar  prazeres  mercenários  e  depravações  precoces. 

Todas  as  mulheres,  que  faziam  parte  d'esta  população  nómada,  eram  desde 
os  dez  annos  exercitadas  no  infame  trafico,  e  tanto  os  costumes  como  a  saúde 
publica  soflriam  a  perniciosa  influencia  d'aquella  gente  vil,  que  deixava  por 
toda  a  parte  um  largo  rastro  de  manchas  vergonhosas. 

Sonnet,  no  Libertino,  dá-nos  talvez  uma  scena  da  sua  juventude,  para 
contar  como  foi  castigado  na  sua  primeira  campanha,  a  qual  serviu,  ((uando 
menos,   para   o  tornar  prudente,  inspirando-lhe  além  d'isso  o  horror  do  vicio. 

«Oiado  sob  a  vigilância  de  uma  mãe  severa,  filho  familia,  sem  dinheiro 
nem  credito,  e  ainda  por  cima  cheio  de  dividas,  inchado  de  ambição,  de  vai- 
dade, de  orgulho,  mas  sequioso  de  amor,  sahi  um  dia  de  casa  de  meu  patrão, 
BuTOBU  t)k  PnosTiTinçÃo.  Tomo  n— Folha  72. 


570  HISTORIA 

com   a   roupa  debaixo  do  bra^.'!),  tros  ducados  e  dez  soldos  na  algibeira,  e  uns 
sapatos  novos  nos  pés,  para  andar  melhor.» 

Era  esta  toda  a  fortuna  do  pobre  rapaz,  que  se  aíTastava  alegremente  de 
Rouen,  ou  d'outra  cidade  qualquer  da  Normandia,  para  ir  procurar  fortuna  a 
outra  parte.  Cbega  de  noite  ao  logar  de  Saint-Martin,  e  encontra  um  bando  de 
ciganos,  que  pernoitavam  alli,  vagabundos  e  charlatães,  ciganos,  jogadores, 
prostitutas,  alcoviteiras,  mulheres,  crianças,  pagens,  macacos  sábios,  carroças 
cheias  de  drogas,  perfumes,  ouropéis  e  mercadorias  de  toda  a  espécie,  que 
formavam  o  commercio  d'aquelles  vagabundos. 

O  recem-chegado  approxima-se  de  uma  das  carroças  «para  vêr  os  uten- 
sílios» d'aquelle  commercio,  e  especialmente  uma  das  raparigas,  que  «lhe  ca- 
ptivara  o  coração  com  o  encanto  dos  olhos».  E',  porém,  mal  acolhido  pela  es- 
quiva beldade,  que  o  repelle,  ameaçando-o  de  lhe  fazer  levar  uma  boa  sova. 
Bem  depressa  se  mostra  mais  accessivel.  Vem  ter  com  aquelle  novato,  que  mal 
sabe  fallar  de  amor,  e  leva-o  para  um  quarto  da  estalagem  onde  podem  fallar 
a  sós. 

Apenas  chegam,  sentam-se  n'uma  tarimba,  e  a  rapariga  desata  a  chorar 
amargamente,  lamenlando-se  da  sua  sorte,  e  dizendo  que  é  uma  mulher  de  boa 
familia,  roubada  por  aquellcs  charlatães,  e  retida  alli  à  força,  n'uma  vida,  tão 
pouco  adequada  ás  suas  ideias  c  ao  seu  nascimento. 

O  nosso  galan  enterncce-se  e  fica  mais  enamorado  ainda  do  que  estava. 
Jura  á  sua  bella  libertal-a  d'aquella  odiosa  escravidão  e  restituil-a  á  sua  familia. 

Ajustam  uma  nova  entrevista  para  a  meia  noite,  e  á  hora  combinada  os 
dois  amantes  encontram-se  a  cem  passos  da  estalagem.  • 

«Ella  traz  debaixo  do  braço  um  cofrezinho,  em  que  mettera  dois  lençoes, 
um  pente,  um  cinto  de  prata,  umas  luvas  c  umas  ligas.  Era  todo  o  seu  en- 
xoval.» 

Esta  passagem  prova  que  as  mulheres  de  má  vida,  expulsas  das  cidades 
pela  ordenação  de  1560,  se  haviam  acolhido  ás  companhias  de  mercadores  am- 
bulantes, de  cómicos  e  charlatães,  entre  os  quaes  nunca  deixava  de  figurar  a 
prostituição  mais  crapulosa. 

A  chegada  de  uma  d'estas  companhias  a  uma  cidade  era  assignalada  pe- 
las maiores  licenciosidades  e  quando  a  auctoridadc  civil  ou  ecciesiastica  conhe- 
cia estes  excessos,  que  se  manifestavam  de  repente  n'uma  povoação  honesta  e 
pacifica,  já  os  auctores  do  escândalo  haviam  levantado  arraiaes,  sahindo  de 
uma  terra,  onde  tantas  victimas  tinham  feito. 

A  joven  e  seu  raptor,  (emendo  ser  perseguidos  pelos  ciganos,  caminham 
toda  a  noite,  muito  leves  de  roupa  e  de  dinheiro,  e  chegam  de  manhã  a  uma 
aldeia,  onde  se  julgam  ao  abrigo  de  qualquci-  perseguição. 

Param  defronte  da  ultima  casa  da  aldeia  e  batem  á  porta.  E'  uma  mise- 
rável tasca,  onde  costumam  parar  os  carroceiros  e  outros  homens  de  estrada, 
mas  os  dois  amantes  não  se  teriam  julgado  mais  felizes  n'um  palácio,  do  que 
n'aquella  casinha  rústica,  livre  de  visinhos  e  longe  da  estrada: 

Ecarléc  du  rhcmiii  cl  loiíi  dii  voisinagc. 


DA   PROSTITUIÇÃO  571 

Dão-llies  um  qiiartd  indcpcndonto,  para  onde  a  rapariga  manda  levar  vi- 
nho e  presunto.  Comem  e  beliem,  e  deitam-se  d'ahi  a  poueo.  O  libertino  não 
tarda  muito  em  adormecer  profundamente.  A  sua  companheira  não  pensa  em 
o  imitar,  c  ao  despontar  do  dia,  foge  com  o  dinheiro  do  incauto  amante,  que 
diz  a  este  respeito, 

Ah  sortir  du  couclier, 
Ayant  tire  de  moi  ce  qui  m'esl  le  plus  cher, 
Endormi  de  Iravail.  las  de  Irop  longue  veille, 
Icre  de  ses  appas,  et  d'excés  de  bouteille, 
Elendu  dans  le  lit,  sans  poul,  sans  sentimenl. . . 
Troiisse  qiiille  et  bcujage,  et  iu'enlève  »i«  bourse ; 
['uis,  droit  oii  je  Vai  prit,  s'en  rctnurne  a  la  course. 

Quando  o  pobre  diabo  acorda,  c  estendendo  a  mão,  não  acha  ninguém  a 
seu  lado,  chama,  espera  e  desespera  por  fim,  notando  que  a  sua  bolsa  seguira 
o  mesmo  caminho  da  aventureira,  que  nem  sequer  lhe  deixou  com  que  pagar 
a  despeza.  i\ão  pôde,  portanto,  sahir  da  estalagem  sem  deixar  parte  da  ba- 
gagem. 

Desgostoso  já  da  vida  errante,  e  envergonhado  de  haver  tropeçado  logo 
ao  primeiro  passo,  entra  num  convento  que  encontra  no  seu  caminho,  e 
pede  alii  hospitalidade. 

O  seu  pensamento  era  fazer  penitencia  e  consagrar-se  a  Deus.  Tranquil- 
iizaria  d'este  modo  a  sua  consciência  perturbada,  e  teria  esquecido  a  cruel  de- 
cepção que  havia  recebido  ao  entrar  na  senda  do  peccado,  se  o  não  tivessem 
impedido  dores  agudíssimas.  .\  prostituta  que  lhe  havia  roubado  a  bolsa,  ape- 
sar de  ser  mulher  de  bem,  como  ella  dizia,  deixara-lhe  bem  cruéis  recordações 
dos  seus  amores,  recordações  que  de  dia  para  dia  peioravam  de  aspecto,  to- 
mando um  caracter  grave.  O  infeliz  não  podia  sequer  occultar  já  as  vergonho- 
sas consequências  da  sua  loucura,  e  viu-se  obrigado  a  renunciar  á  vida  reli- 
giosa, e  a  sahir  do  convento. 

O  seu  mal  era  demasiado  grave  para  ser  tractado  n'uma  cidade  de  pro- 
víncia, e  o  pobre  não  tinha  dinheiro  para  ir  a  Paris.  Foi  então  que  reflectiu  a 
sério  na  sua  imprudência  e  deu  a  todos  os  diabos  a  miserável  que  d"aquelle 
modo  lhe  viciara  o  sangue! 

X  doença  teve  tempo  de  fazer  progressos  horríveis,  antes  que  o  pobre 
libertino,  que  soíTria  como  um  martyr,  tivesse  tempo  para  se  entregar  nas 
mãos  dos  médicos  de  Paris. 

O  tractamento  foi  tão  doloroso  como  o  mal,  e  quando  o  paciente  poude 
julgar-se  curado,  não  era  mais  do  que  um  esqueleto,  uma  sombra,  um  velho 
decrépito  e  repugnante. 

Voltou  em  tal  estado  a  casa  de  seu  patrão,  que  este  compadeceu-se 
d'elle  e  consentiu  em  rccebel-o.  Por  experiência  própria,  e  bem  custosa  na  ver- 
dade, o  rapaz  sabia  demasiado  quão  funesta  é  a  libertinagem  para  a  saúde  da 
alma  e  para  a  do  corpo,  e  leve  todo  o  cuidado  d'ahi  cm  diante,  para  não  cahir 
de  novo  nas  redes  da  prostituição. 


572  HISTORIA 

Escrevendo  as  suas  salyras  com  uma  pcnna  molhada  quasi  sempre  em 
lodo,  Courval  Sonnet,  estava  animado  pcl»  menos  de  boa  intenção,  ejactava-se 
de  corrigir  os  costumes  do  seu  tempo,  que  os  poetas  celebres  tanto  haviam 
contribuído  .para  tornar  cada  vez  mais  viciosos  e  corrompidos.  Pode  dizer- 
se  que  nunca  a  poesia  franceza  foi  mais  li(;enciosa,  mais  obscena  e  mais  abo- 
minável do  que  na  regência  de  Maria  de  Mcdicis.  Parece  que  o  seu  único  fim 
era  exaltar  até  ao  deiirio  os  sentidos,  e  celebrar  escandalosa  e  impunemente 
os  ditos  e  os  feitos  da  mais  infame  prostituição. 

A  juventude  da  corte  era  quem  animava  esta  degradação  da  poesia,  e  quem 
dava  sempre  com  as  suas  desordens  e  loucuras  assumpto  para  as  composições 
impudicas. 

É  de  notar,  todavia,  que  as  primeiras  perseguições  exercidas  contra  um 
mau  livro,  que  ultrajara  os  bons  costumes  e  o  pudor  publico,  datam  d'essa 
épocha  em  que  os  Sigognes,  os  Motin,  os  Berthelot  e  os  Théophile  manchavam 
a  lingua  franceza,  fazendo-a  exprimir  horríveis  obscenidades,  que  antigamente 
se  costumavam  occulfar  sob  o  véu  das  priapicas  latinas.  O  processo  de  Théo- 
phile e  dos  seus  collegas,  a  propósito  do  l^nrnaso  satyrico,  é  o  ponto  de  par- 
tida de  uma  jurisprudência  complelaineiitc  nova,  que  põe  as  obras  obscenas  na 
cathegoria  das  excitações  á  libertinagem,  e  que  pede  contas  aos  auctores  d'es- 
las  culpáveis  tentativas  de  desmoralisação  publica. 

Esta  jurisprudência,  porém,  ainda  que  baseada  em  razões  de  alta  sabedo- 
ria, achou  grandes  dilíiculdades  para  se  estabelecer  em  França,  porque  aflfe- 
ctava  os  hábitos  liltcrarios  e  restringia  as  liberdades  do  espirito  francez.  Ainda 
ninguém  havia  suspeitado  sequer  que  podesse  existir  delicto  na  publicação  de 
uma  d'essas  obras  yaiilardes,  que  não  estavam  sujeitas  a  nenhuma  lei  de  de- 
cência, logo  que  não  tocassem  nem  na  religião  nem  na  politica. 

Théophile,  porém,  e  os  seus  amigos  commelteram  a  imprudência  de  allu- 
dir  á  religião,  e  de  fazerem  o  que  então  se  chamava  atheismo  ou  epicurismo, 
compondo  poesias  livres.  Estas  poesias  foram  publicadas  por  livreiros,  que  ou- 
.saram  pòr  os  seus  nomes  no  frontespicio  dos  livros,  que  vendiam  á  vista  dos 
magistrados  no  Palácio  da  Justiça.  Tão  obscenas  eram  essas  poesias,  que  a 
gente  chega  hoje  a  perguntar  com  assombro,  como  os  auctores  e  os  livreiros- 
editores  não  se  pejavam  de  se  expònin  assim  á  vergonha  dos  seus  contempo- 
râneos e  da  posteridade ! 

No  cmlanlo,  livros  taes  eram  o  manjar  predilecto  da  corte,  e  Théophile 
Viaud,  (jue  viera  a  Paris  em  1610  para  se  tornar  conhecido  como  poeta,  re- 
cebeu maiores  honras  e  applausos  quando  se  fez  o  cantor  d'eslas  iníamias,  do 
que  todos  os  poetas  que  haviam  empregado  os  seus  talentos  em  composições 
lionestas  e  moraes. 

Temos  necessariamente  de  concordar  com  Violet  Leduc  que  n'aquelle 
tempo  .se  entendia  por  satvra  uma  poesia  livre  e  quasi  .sempre  obscena,  e  que 
os  poetas  sal\  ricos  eram  os  (|ue  dedicavam  o  seu  cslro  desaforado  aos  assum- 
ptos da  prostituição.  N'este  conceito,  Tlicupliilc  era  um  mestre,  e  os  seus  cos- 
tumes licenciosos  relralavam-se  perrcilamenlc  nos  seus  e.scriptos. 

As   pessoas  honestas   viam  com  indignação  pullular  estas  poesias  liceu- 


DA    PROSTITUIÇÃO  573 

ciosas,  que  preverliam  a  juventude,  dando  pasto  ás  paixões  sensuaes.  Em  1617 
o  livreiro  António  Estoc  deu  á  luz  um  volume  intulado  Colleci;ão  dos  mais  ex- 
celleníes  (sic)  versos  satyricos  d'esle  tempo,  enconlra(h)s  nos  gabinetes  dos  se- 
nhores Sigognes,  Régnier,  Motin  e  outros  poetas  dislinctos  d'este  século.  Esta 
coUecção,  em  que  o  desaforo  do  pensamento  corre  parelhas  com  o  da  linguagem, 
teve  um  êxito  ruidoso  entre  os  amadores,  e  a  policia  que  não  se  oppozéra  á 
venda  d'esla  primeira  edição,  não  se  oppoz  também  a  que  fosse  reimpressa. 

Billaine  foi  um  dos  livreiros  mais  em  voga,  que  então  fizeram  uma 
edição  augmentada  d'estes  versos  licenciosos,  (em  1618)  sob  o  titulo  de  (iabi- 
nete  satyríco  ou  collec^ão  de  poesias  livres  d'este  tempo,  compostas  por  Sigo- 
gnes,  Régnier,  Motin,  etc.  Ambas  estas  edições  appareceram  com  privilegio 
d'el-rei.  O  editor  declara  n'esta  edição  de  1618,  em  uma  espécie  de  prologo. 
que  se  esmerara  em  tornal-a  mais  perfeita  e  bem  ordenada  que  a  outra,  em 
que  havia  desegualdades,  misturas  e  confusões  em  tudo. 

A  primeira  edição  esgotou-se  em  ti'es  mezes,  a  segunda  desappareccu 
n'um  periodo  quasi  igual,  tendo  o  livreiro  António  Estoc  de  fazer  uma  nova 
edição  em   1620. 

Até  então  nem  auctores,  nem  livreiros,  nem  editores,  haviam  sido  in- 
commodados.  Théophile,  é  verdade,  foi  condemnado  a  desterro  temporário,  em 
razão  mais  dos  seus  costumes,  que  dos  seus  versos,  e  em  maio  de  1619  rece- 
beu ordem  de  sahir  do  reino,  mas  ainda  assim  não  permaneceu  muito  tempo 
em  Londres,  onde  a  sua  reputação  de  poeta  e  as  recommendações  dos  seus 
amigos  da  corte  de  França  lhe  mereceram  o  melhor  acolhimento.  Censurava- 
se-lhe,  bem  como  aos  seus  amigos,  Sigognes,  Motin  e  outros  satyricos,  o  haver 
deixado  publicar  uns  versos  licenciosos,  que  os  amantes  das  lettras  haviam  ap- 
plaudido.  Théophile,  era  subvencionado  pelo  rei  e  pela  casa  de  Montmorency, 
Motin  tinha  uma  prebenda  em  Bourges,  Sigognes  era  governador  do  Havre. 

Théophile  teve  a  desgraça  de  se  malquistar  com  o  jesuita  Gerasse,  que 
na  sua  Doutrina  curiosa  dos  melhores  engenhos  da  épocha,  o  atacou  do  modo 
mais  violento,  apodando-o  de  libertina  e  atheu.  O  padre  Gerasse  levou  o  seu 
ódio  e  má  fé  ao  extremo  de  falsificar  alguns  versos  do  seu  inimigo,  aos  quaes 
attribiiia  um  sentido  anti-religioso. 

Théophile  chamou  aos  tribunaes  o  jesuita  e  o  seu  livro,  que  fez  seques- 
trar e  supprimir,  depois  de  haver,  provado  com  o  manuscripto  na  mão  que  os 
versos  por  elle  citados  para  o  perder  estavam  singularmente  desfigurados. 

O  jesuita  não  se  deu,  ainda  assim,  por  vencido  e  publicou  a  sua  Apolo- 
gia, em  que  não  perdoava  a  Théophile,  nem  aos  bons  engenhos  da  épocha,  ou 
pelo  menos  tidos  como  taes. 

«Nunca,  dizia  elle  (cap.  xii,  p.  132)  foram  tão  vulgarisadas  na  Grécia 
as  obscenidades  de  Carpocras,  como  as  torpezas  de  Viaud,  as  blasphemias  de 
Lucilio  e  as  impiedades  de  Charron  são  conhecidas  hoje  em  França.» 

Atraz  de  Gerasse,  porém,  estava  a  companhia  de  Jesus,  que  havia  jurado 
a  perda  de  Théophile,  tendo  os  jesuítas  feito  causa  commum  com  o  seu  irmão 
em  Christo,  que  ateava  nelles  o  seu  èspiril(»  bellicoso. 

Entretanto  saliia  em  livro  uma  nova  collecção  de  versos  obscenos  inli- 


574  HISTORIA 

Uilada  :  O  Parnaso  dos  poetas  salyricos,  ou  coUecrão  de  versos  lyricos  e  sa- 
lyricos  do  nosso  tempo.  Esta  collecção  continha  muitas  composições  poéticas 
sob  o  nome  de  Thcopiíilc,  que  não  linha  conhecimento  d'esta  inserçcão.  Correu, 
no  emtarito,  o  boato  de  que  toda  a  collecção  sahira  das  mãos  de  Théophile, 
e  antes  que  os  primeiros  exemplares  do  Parnaso  houvessem  circulado,  o  poeta 
que  soubera  do  caso  que  lhe  attribuiam,  foi  o  próprio  a  ir  denunciar  o  livro 
ao  preboste  de  Paris,  declarando  que  se  iiaviam  incluido  n'clle,  a  seu  pesar, 
varias  poesias  que  elle  realmente  compozera,  mas  que  não  haviam  sido  desti- 
nadas á  imprensa. 

Em  virtude  d'esta  espontânea  declaração,  o  preboste  passou  um  man- 
dado de  prisão  contra  o  editor  e  o  impressor,  fazendo  ao  mesmo  tempo  seques- 
trar e  destruir  a  tiragem.  Parece,  porém,  que  esta  destruição  não  se  levou  a 
eflcito,  e  os  exemplares,  para  os  quaes  se  fizeram  novos  frontespicios,  sem  nome 
de  imprensa,  circularam  subrepticiamenie  em  Paris,  tendo  uma  grande  pro- 
cura da  parte  dos  libertinos. 

O  livreiro  preso,  que  segundo  nos  parece,  era  Billaine,  declarou  que 
Thcophile  não  era  estranho  á  publicação  do  Parnaso  Saiyrico,  e  o  parlamento, 
que  tomou  conta  do  processo,  procedeu  contra  o  supposto  auctor  da  obra  con- 
dem nada. 

Outro  jesuita,  o  padre  Voysin,  amigo  do  Padre  tlerasse,  foi  também  o 
denunciador  de  Thcophile,  cuja  cumplicidade  oHereccu  provar  por  meio  de  tes- 
temunhas. Théopiíile  era  aecusado  não  só  de  olTensas  aos  bons  costumes,  mas 
até  de  atheismo,  e  esta  segunda  parte  da  accusação  dominava  todas  as  outras, 
bem  que  só  se  fundasse  em  alguns  versos  mais  philosophicos  do  que  sacrí- 
legos. 

O  poeta,  debaixo  d.n  ameaça  de  um  processo  criminal,  apenas  motivado 
pela  perfídia  dos  seus  inimigos,  julgou  mister  homisiar-se,  c  a  sua  fuga,  como 
elle  próprio  disse,  «não  sendo  mais  do  que  medo,  corroborou  as  suspeitas  do 
crime.» 

O  processo  foi  seguindo  os  seus  tramites  á  revelia,  e  Gerasse  e  os  seus 
amigos  perseguiram  o  fugitivo  cada  vez  com  maior  encarniçamento,  tanto  nos 
seus  livros  como  nos  seus  sermões,  increpando-o  especialmente  de  haver  cor- 
rompido a  juventude  com  os  seus  versos,  com  os  seus  discursos  e  com  o  seu 
exemplo.  Davam-no  como  o  único  auctor  do  Parnaso  satyrico,  apesar  d'esta 
collecção  conter  versos  dos  mais  distinctos  poetas  contemporâneos. 

Eis  aqui  o  modo  coino  o  jesuita  Raynaud  falia  d'esta  obscena  publicação, 
no  tractado  De  Theophilis,  pag.  229: 

«Opus  item,  cui  lilulus  esl  «Parnasus  satyricus»,  supra  quasús  Ápu- 
leii,  Liiciani,  liomanlii  a  liosa,  ac  similiam  scriptorum,  camarinas  grave  olen- 
tíssimum,  et  adjuvenilis  pudoris  cladem  ac  lotius  honesli  exlerminium  in  dia- 
boli  incudi  [abre  faclum,  hujus  potentissimi  ingenii  foediis  est,  etc.  etc.» 

Ainda  que  o  Parnaso  salyrico  .seja  um  livro  execravel,  merecendo  jus- 
tamente a  honra  (pie  se  lhe  concedia  de  ter  sido  diclado  pelo  demónio  da  luxu- 
ria, não  bastaria,  ainda  assim,  para  motivar  a  condemnação  de  Théophile,  visto 
que  a  impressão  e  a  venda  dos  livros  obscenos  eram  por  essa  épocha  toleradas. 


DA    PROSTITUIÇÃO  575 

havendo  até  alguns  tledicaclos  á  rainha,  e  publicados  com  privilegio  d'el-rei.  Te- 
mos de  confessar  que  outras  accusayõcs  mais  serias  se  ergueram  contra  o  poeta. 
Dizia-se  que  Théophiie  havia  proclamado  o  seu  athcismo,  no  Iractado  da 
immortalidade  da  alma,  que  não  era  senão  uma  imita(,'ão  do  Phédon,  de  Platão. 
AíDrmava-se  que  havia  organisado  uma  sociedade  secreta  de  atheus  e  liber- 
tinos, que  tinham  por  fim  preverter  a  mocidade  com  os  seus  escriplos  e  propó- 
sitos. Apresentarara-se  finalmente  muitas  testemunhas,  que  declararam  ter  ou- 
vido ao  poeta  cantar  canções  livres  n'uma  orgia,  e  que  diziam  ter  aprendido  da 
sua  bocca  alguns  vers  )s  Ímpios  e  sacrílegos. 

O  parlamento  teve  então  de  se  occupar,  pela  primeira  vez,  dos  livros  de- 
testáveis que  ultrajavam  o  pudor  publico,  e  viram-se  envolvidos  no  processo  de 
Théophiie  muitos  amigos  do  poeta,  que  mais  ou  menos  haviam  collaborado  na  pu- 
blicação do  Parnaso  sadjrico  e  de  outras  publicações  do  mesmo  género.  Passou-se 
pois,   mandado  de  prisão  contra   Berlhelot,  Colletet  e  Frenicle,  mas  não  poude 
ser  cumprido  senão  por  este  ultimo,  que  sendo  o  menos  culpado,  não  procu- 
rou subtrahir-se  á  acção  da  justiça.  Berthelot  e  Colletet  esconderam-se,  como 
Théophiie.  E  para  extranhar  que  Destcrnod,  tendo  escripto  tantas  vezes  versos 
muitos  mais  obscenos  que  os   d'estes  poetas,  não  fosse  envolvido  no  processo. 
Assustou-se  o  parlamento  com  os  perigos  que  corria  a  mocidade,  exposta 
ás  perniciosas  excitações  da  poesia  obscena,  e  não  vacillou  em  estabelecer  me- 
didas protectoras  da  moralidade  publica,  incluindo  na  cathegoria  dos  crimes  de 
lesa-magestade  divina  e  humana,  a  composição  e  publicação  de  maus  livros. 
Em  19  de  agosto  de  1623  os  três  tribunaes  reunidos,  a  Coar,  a   llraiid' 
C/iamfrí-e  e a  rowrneí/e,  promulgaram  uma  sentença  contra  Théophiie,  Berthelot, 
Colletet  e  Frenicle,  <\auctores  dos  versos  que  contém  as  impiedades,  blaspbe- 
'mias  e  abominações  mencionadas  no  livro  perniciosissimo,  intitulado  Parnaso 
satyrico.v  Théophiie,   Berthelot  e  Colletet,  verdadeiros  contumazes,  julgados 
e  convictos  do  crime  de  lesa-magestade  divina  eram  «conderanados  a  ser  con- 
duzidos n'uma  carroça  á  poria  principal  da  egreja  de  Notre-Dame  d'esta  cidade 
de  Paris,  desde  as  prisões  da  Conciergerie,  e  alli,  descobertos,  descalços  e  de 
joelhos,  com  uma  corda  ao  pescoço,  e  na  mão  um  círio  de  duas  libras  de  peso, 
dizerem   e  declararem,   que  mal  e  abominavelmente  compuzeram,  fizeram  im- 
primir e   puzeram  á  venda  o  livro  intitulado  Parnaso  satyrico,  que  contém 
tantas  blasphemias,  sacrilégios  e  abominações  contra  a  honra  de  Deus  e  da  sua 
Egreja,  assim  como  contra  a  honestidade  publica,  do  que  se  arrependem  e  pe- 
dem perdão  a  Deus,  ao  rei  e  á  justiça.  Feito  isto,  serão  conduzidos  á  praça  da 
Greve  d'esta   cidade,  e  alli  o  dito  Théophiie  será  queimado  vivo,  o  seu  corpo 
reduzido  a  cinzas,  c  estas  deitadas  ao  vento,  sendo  também  queimados  os  seus 
livros;  e  Berthelot,  estrangulado  n'um  patíbulo,  que  para  esse  fim  se  levantará. 
Isto  no  caso  de  poderem  ser   havidos  em  suas  pessoas,  no  caso  contrario  em 
ettigie.  Todos  os  seus  bens  serão  confiscados.» 

Quanto  a  Frenicle,  que  estava  preso,  o  procurador  del-rei  devia  infor- 
mar contra  elle  mais  circumstanciadamente,  a  respeito  dos  factos  mencionados 
no  processo.  Além  d'isso,  o  tribunal  «probíhia  a  qualquer  pessoa,  seja  qual  for 
a  classe  a  que  pertença,  possuir  qualquer  exemplar  do  Parnaso  salyrico,  ou 


o76  HISTORIA 

de  qualquer  oulro  livro  do  referido  Thcophile;  ficando  outrositn  intimados  oS 
que  os  possuírem  a  entregal-os  dentro  de  vinte  e  quatro  lioras  nas  mãos  do  es- 
crivão, para  os  reduzir  a  cinzas,  sendo  considerados  e  punidos  os  contravcnto- 
res,  como  se  fossem  auctores  do  dicto  crime.» 

Finalmente,  «quatro  livreiros,  Estoc,  Sommeville,  Billaine  e  Quenel,  que 
tinham  editado  as  obras  de  Tliéophile,  deviam  ser  constituídos  em  custodia,  ou- 
vidos e  interrogados  sobre  alguns  factos  constantes  do  processo,  e  se  não  fossem 
encontrados,  seriam  emprazados  ao  som  de  trombeta  ou  voz  de  pregoeiro,  para 
comparecerem  dentro  de  três  dias,  e  os  seus  bens  embargados,  até  obedecerem 
aos  mandados  da  justiça.»  {Hist.  de  nolre  temps,  por  Malingre,  Paris,  João 
Petitpas,  1624,  t.  iii,  p.  .330  e  seguintes). 

Esta  memorável  sentença  pode  considerar-se  como  o  primeiro  acto  de 
repressão  e  castigo  contra  os  delictos  de  imprensa  a  respeito  dos  costumes.  A 
sentença  foi  executada  no  mesmo  dia  da  sua  data. 

«Fez-se  um  espantalho,  ou  boneco,  vestido  cemo  Théophile,  diz  Malin- 
gre, e  metteu-se  n'uma  carroça  que  foi  até  á  porta  de  Notre-Dame  para  fazer 
a  retracfação,  sendo  em  seguida  levado  á  praça  da  Greve,  onde  foi  queimado.» 

Quando  Théophile,  que  se  havia  refugiado  no  castello  do  barão  de  Panat, 
soube  da  sua  execução  em  etfigie,  resolveu  abandonar  a  França,  c  conseguiu 
chegar  disfarçado  á  fronteira.  Os  signaes  do  poeta  e  o  mandado  de  prisão  ha- 
viam-se,  porém,  antecipado  no  caminho,  e  o  pobre,  sendo  recohhecido  na  estrada 
de  Catelet,  foi  preso  pelo  prebostc  Leblanc.  Ataram-no  a  um  cavallo,  e  condu- 
ziram-no  assim  a  Saint-Quentin,  onde  permaneceu  muitos  dias  incommunica- 
vel,  até  que,  algemado  de  pés  e  mãos,  foi  transferido  para  a  Conciergerie  de 
Paris. 

Encerrado  no  calabouço  de  Ravaillac,  decorreram  para  elle  uns  longos 
dezoito  mezes  antes  do  parlamento  se  dignar  começar  a  revisão  do  processo.  O 
poeta  tinha  amigos  poderosos,  interessados  em  seu  favor,  mas  os  seus  prote- 
ctores nada  podiam  contra  a  sanha  implacável  dos  jesuítas. 

O  réu  negava  obstinadamente  a  accusação  que  lhe  faziam  de  ser  o  auctor 
ou  editor  do  Parnaso  salijrko,  base  do  processo,  porque  nas  outras  accusações 
já  elle  tinha  provado  a  sua  innocencia  sem  a  menor  dilliculdale. 

O  parlamento  queria,  porém,  descobrir  a  todo  o  custo  e  castigar  com 
rigor  exemplar  os  Ímpios  e  libertinos,  que  haviam  tido  a  audácia  de  publicar 
aquella  escandalosa  collecção  de  poesias  eróticas  e  obscenas.  Os  livreiros  ha- 
viam tido  a  fortuna  de  justificar  a  sua  innocencia  n'esta  publicação.  Berthelot 
e  Colletet,  condemnados  á  revelia,  estavam  auzentes  de  França,  e  Frenicle  havia 
sido  posto  em  liberdade. 

Thcophile  continuava  a  negar  a  sua  accusação,  e  o  procurador  geral  ob- 
teve auctorisaçãn  para  ordenar  que  se  lesse  em  todas  as  egrejas,  por  occasião 
da  missa  conventual,  uma  monitoria  ecciesiastica  de  4  de  outubro  de  1623,  na 
qual  se  exhortavatn  os  lieis,  sob  pena  de  excommunbão,  a  denunciar  «os  mal- 
feitores, que  haviam  composto  ou  escriplo,  feito  escrever  ou  publicar,  muitos 
maus  sonetos,  satyras,  estancias,  elegias  e  outras  composições  poéticas,  inser- 
tas num  livro  então  impresso  e  publicado  sob  o  nome  e  titulo  de  Varnaso  Saly- 


UA    PROSTITUIÇÃO  o77 

/•(Po,  O  t|iial  cdiilóm  rnuilas  blasphcmias  (.'oiili^a  Deus  c  os  sons  santas,  o  mui- 
tos sacrilégios,  ini|jicclad('s  c  oulras  abominações  eonlra  a  iionia  de  Deus  e  da 
sua  Egreja,  e  eonlra  a  honestidade  publiea.  Aquelies  (|ue  souberem,  quando, 
cm  que  tempo  e  em  que  logar  se  imprimiram  o  l^arnaso  siUtiriro  c  oiili'os 
livros  do  mesmo  género,  quem  os  eompoz,  ou  deu  as  copias  para  a  sua  im- 
|)ressão,  e  (|uem  reviu  as  provas  de  imprensa,  são  obrigados  a  deciaral-o, 
e  o  mesmo  se  entende  com  os  (|ue  si)ubi'rem  o  paradeiro  dos  criminosos,  (|ue, 
advertidos  peias  diligencias  judiciaes,  instauradas  eonlra  elles,  fugiram  (festa 
corte  para  illudirem  a  execução  da  senten^,;a  do  tribunal.  Os  que  souberem 
também  de  ([ualquer  pessoa,  que  haja  recitado  ou  publicado  algum  dos  ditos 
sonetos,  salyras  ou  qualquer  outra  poesia,  como  cousa  sua,  ou  haja  proferido 
as  mesmas  blasphemias  e  impiedades  ri'elles  contidas,  ou  subornado,  sollicitado 
ou  corrompido  o  espirito  da  mocidade  para  a  induzir  a  crer  nas  mesmas  im- 
piedades ou  blasphemias,  são  egualmenlc  obrigados,  etc.  etc.» 

Esta  monitoria,  [)oréni,  só  provocou  \  agas  e  ridículas  denuncias,  que  ne- 
nhum novo  capitulo  deaccusação  apresentaram  contra  Thcophile.  O  poeta  defen- 
dia-se  com  tanto  vigor  como  habilidade,  o  que  animou  muitos  homens  de  lettras  a 
tomarem  tanlbetn  a  sua  defeza  com  uma  multidão  de  composições  em  verso  e 
prosa.  Os  seus  inimigos,  especialmente  os  jesuítas,  distinguiram-se  por  sua 
[)arte  lambem  n'esta  guerra  de  penna  e  papel,  (|ue  apenas  serviu  para  azedar 
a  (|ueslão  e  tornar  mais  critica  a  situação  do  accusado.  Estava  elle  ainda  preso, 
e  esperando  a  sua  sentença,  quando  o  desejo  do  lucro  instigou  alguns  impres- 
sores (ia  província  a  reimprimirem  as  obras  satyricas,  que  haviam  feito  nascer 
este  ruidoso  processo. 

Em  Lyon  e  em  Kouen  foi  d'on(le  sahiram  subrepticiamentc  as  reproduc- 
(;ões  do  Espadou  saltjriqae,  do  llaliinete  saljirico  e  d(j  l'arna.so  sal ij rico.  Estas 
rcimpress(jes,  feilas  em  mau  [lapel,  estavam  crivadas  de  incorrecções  e  eri-os 
grosseiros,  e  tinham  no  logar  do  nome  da  imprensa  a  data  de  I(i2-").  O  Par- 
naso sabiu  com  o  titulo  augmcniado  d'este  modo:  Parnaso  satírico  de  .][. 
Tlicopliile,  como  que  para  dar  mais  uma  arma  contra  o  desgraçado  poeta,  (|ue 
era  assim  publicamente  denunciado  no  fronlespicio  do  livro,  que  os  seus  inimi- 
gos lhe  altribuiam.  Seria  uma  perhdia  da  parte  de  um  inimigo  occullo,  ou  en- 
tão o  vergonhoso  resultado  de  uma  especulação  de  editor? 

Seja  como  (òr,  o  caso  de  Th(!'ophile  estava  quasi  de  todo  esquecido,  quando 
a  revisão  do  processo  foi  favorável  ao  pobre  paeta. 

«E'  um  caso,  que,  segundo  o  costume,  fez  grande  ruido  a  principio,  es- 
crevia Malherbe  a  Racan,  n'uma  carta  de  4  de  novembro  de  IG2o,  mas  depois, 
ipiasi  que  não  se  tornou  a  fallar  cm  tal.  O  que  me  faz  presagiar  mal  de  tudo 
isto,  c  a  condição  das  pessoas  {|ue  o  pobre  homem  tem  contra  si.  Pelo  (|uc  me 
diz  respeito,  penso  ter-lhe  dito  já  que  não  o  julgo  culpado,  senão  de  não  ter  feito 
cousa  que  preste  no  ollicio  em  que  se  metteu.  Sc  elle  morrer,  não  tenha  receio 
algum,  porque  ninguém  o  tomará  por  seu  cúmplice.» 

Esta  cruel  perseguição  acabou  cnilim.  Tluniphile,  na  defeza  da  sua  causa, 
confundiu  as  testemunhas  (|ue  depunham  contra  elle,  destruindo  a  maior  parte 
da  accusação  que  a  principio  lhe  faziam.  O  parlamento  revogou  a  sentença,  li- 

BiaTOKU  DÀ  ProstitdiçIo.  tomo  ii— Folha  73. 


378  HISTORIA 

mi(ando-se  a  desferrar  o  poeta  da  capital.  Assim  foi  inaugurada  a  lejiislação 
criminal  contra  os  maus  livros,  prejudiciaes  aos  bons  costumes  e  attentatorios 
da  honestidade  publica. 

O  pobre  Théophile  morreu  alguns  mezes  depois,  em  consequência  da  sua 
longa  e  dolorosa  perseguição,  a  2o  de  setembro  de  1626.  Acabava  de  ser  in- 
dultado por  el-rei,  e  poderá  voltar  a  Paris,  para  a  convivência  dos  seus  alegres 
amigos,  que  admiraram  a  sua  morte  edificante.  .Ainda  assim,  o  arrependimento 
do  poeta  não  impediu  o  jesuita  Raynaud  de  sustentar  que  o  auctor  do  Parnaso 
satijrico  havia  morrido  na  impenitencia  final,  e  que  tinha  ido  em  linha  recta 
para  o  inferno!.  .  . 

Apesar  da  jurisprudência  estabelecida  pelo  processo  de  Théophile  Viaud, 
o  parlamento  deixou  passar  impunemente  muitos  livros  do  mesmo  género  do 
Parnaso  satyrico,  antes  de  renovar  as  perseguições  contra  os  auctores  e  edi- 
tores d'estas  poesias  obscenas,  não  dando  nem  sequer  mostras  de  saber  que  as 
reimpressões  das  obras  satyricas,  por  elle  anteriormente  perseguidas  e  con- 
demnadas,  se  multiplicavam  por  toda  a  parte.  A  Musa  brincalhona  (Muse  fò- 
lalre),  que  não  cedia  em  obscenidade  ao  Parnaso  salijrico,  reimprimia-se  to- 
dos os  annos  em  formato  mais  commodo.  As  Musas  alegres,  a  Quinta  essência 
salyrica,  e  outras  collecções  análogas,  espalhadas  com  profusão,  atacavam  gra- 
vemente a  moral  c  alentavam  sem  cessar  os  impuros  germens  da  prostituição. 
Não  vemos,  porém,  nos  annaes  da  justiça,  que  os  poetas  ou  os  livreiros  fossem 
incommodados  por  causa  das  suas  publicações  licenciosas,  até  á.  maioridade  de 
Luiz  XIV,  em  cuja  épocha  começa,  no  interesse  dos  bons  costumes,  uma  serie 
de  medidas  de  rigor  contra  toda  a  classe  de  corrupção. 

Théophile  não  foi  (|ueiiiin(lo,  nem  Berthclot  enforcado,  no  tempo  de  Luiz 
xiii,  mas  outro  satyrico,  Luiz  Petil,  auctor  de  versos  menos  abomináveis  (|uc 
os  do  Parnaso  salijrico,  morreu  na  fogueira  em  pleno  século  de  Luiz  xiv!.  .  . 


CAPITULO   XLIV 


SUMMARIO 


A  prostituiçãu  no  theatru.  —  Hisljiria  do  thealio  francez,  sob  o  piintu  rie  vista  dos  costumes.  —  Os  histriões 
inrames  im  tempo  de  Carlos  Magno.  —  Fundação  da  ronfrarm  da  Paixão.—  fls  niysterios  em  si-ena,  e  a  nua  inde- 
reucia.— Ilni  milairre  de  Santa  Genoveva  —  A  vida  de  Madame  de  Sainte-Barlje.— Obscenidade  dos  trajos  dos  panto- 
miniiros  -  Os  diattos  e  os  anjos.— A  illuminaoão  da  sala— Companhias  cómicas.— A  censura  Iheatral.—  Desordens 
dos  cómicos. —  Épocha  em  que  as  ujuiheres  cíuueyarani  a  pisar  o  tablado.—  Os  Gelosi  e  its  actores  h'Spanbces. — As 
mais  antiíras  actrizes  francezas.— O  parlamento  proliibe  a  representação  dos  mysterios.— As  farças  do  século  xvi. — 
A  sua  obscenidade.— De  como  a  roaior  parte  delias  foram  destruirias.- As  que  nos  restam.— A  cnllccção  de  Londres 
e  a  do  duque  de  La  Valliére.  —  Cullecção  de  muitas  Parcas  antii.>as  e  modernas.  —  A  farça  de  Frei-Guilherme  e  o  seu 
sermão  jocoso  —  As  calças  de  S.  Francisco.-  Grande  numero  de  farças.  —  Tolerância  da  auctoridade  civil  a  respeito 
lio  iheatro.  —  Titulos  de  muitas  farças  licenciosas.  —  Us  piinuiros  comediantes  do  Uotul  de  Borgonha.—  Turlupin.— 

Guillaume.-  Taultier Garçuille.—  As  canções.— Os  ditos  chistosos  de  Bruscambille.— Os  theatros  campestres.— Os 

jogos  da  pella.— Theatros  do  PoDt-Neuf.— Tabaiin  e  o  barão  de  Giatelard. 


in.sTORiA  no  THEATRo,  nas  suas  r('la<,'ões  com  a  prostiluição, 
não  devia  ser  feita  n'nm  capitulo,  mas  sim  n'um  volume  in- 
teiro. iNa  sua  origem,  o  tlieatro  exerceu  nos  costumes  uma  in- 
fluencia perniciosa,  que  em  certas  époclias  de  depravação  so- 
cial cliegou  a  tomar  o  caracter  de  uma  verdadeira  provocação 
a  lihertinageui.  Nos  primeiros  séculos  da  Egreja  cliristã,  esta  classe  de  espe- 
ctáculos chegou  aos  últimos  limites  da  indecencia,  e  por  isso  encontramos  em 
cada  pagina  dos  escriptos  dos  Padres  um  protesto  de  pudor  contra  os  abomi- 
náveis excessos  daqucila  horrível  eschola  de  escândalos. 

E  devemos  confessar  que  o  horror  dos  philosophos  christãos  pelo  thea- 
tni  era  justilicado  pelo  abuso,  que  n'outros  tempos  se  fazia  da  arte  scenica. 

Quando  o  christianismo  substituiu  o  culto  dos  deuses  falsos,  o  theatro 
não  sobreviveu  por  muito  tempo  aos  idolos  e  aos  templos  pagãos,  e  por  espaço 
de  muitos  séculos  não  houve  em  França  outros  vestígios  da  comedia  antiga, 
além  das  mascaradas  de  terça  feira  gorda,  da  Festa  dos  loucos  e  da  dos  Diáconos, 
dos  mysterios  e  procissões  religiosas,  das  entradas  de  reis,  príncipes,  bispos, 
abbades,  etc,  das  danças  c  cançcjes  dos  truões,  e  das  narrações  dos  trovadores. 
Se  algumas  representações  dramáticas,  imitadas  de  Terêncio  e  de  Flauto,  se  fa- 
ziam ás  vezes  nos  conventos,  não  se  livravam  jamais  dos  anathemas  ecclesias- 
ticos,  .senão  servindo-se  de  um  pretexto  lilterarío,  e  cercando-se  da  maior  dis- 
crição e  reserva.  Estas  raras  reminiscências  da  comedia  latina  não  constituíam, 
porém,  hábitos  Ihealraes  na  nação,  ijiic  nem  sequer  sabia  que  tinha  existido  o 


Õ80  HISTUtllA 

Ihealro,  antes  dos  simples  e  grosseiros  liDsquojos  dos  Confrades  da  Paixão,  nos 
íiiis  do  seeulo  xiv. 

A  doutrina  da  Egreja  contra  os  espectáculos  estava  invariavelmente  es- 
tabelecida pelos  Padres  e  pelos  ctneilios,  e  pôde  dizer-se  que  havia  sido  aucto- 
risada  pelas  odiosas  orgias,  que  assign.ilaram  a  decadência  do  tlieatro  pagão. 
As  capitulares  e  as  ordenações  dos  reis  estavam  conformes  com  o  sentimento 
dos  doutores  catholicos,  a  respeito  do  theatro  e  dos  histriões.  Estes  eram  clas- 
sificados de  infames  só  pelo  facto  de  exercerem  o  seu  ofBcio.  Nas  capitulares 
de  789,  lé-sc :  Omnes  infamim  macuiis.  aspersi,  id  est,  histriones,  sicut  viles 
persona;,  noji  habeanl  poleslat.eni  accumndi.  As  pessoas  honradas  deviam  es- 
lar  lillastadas  d'esles  infames,  e  os  ecclcsinsticos  deviam  abster-se  de  ouvir  pa- 
lavras obscenas  c  de  ver  gestos  impudicos. 

Não  obstante  esta  severidade  da  lei,  havia  sempre  histriões  que  arrosta- 
vam as  exconimunhôes  da  Egreja  e  actcilavam  a  nota  de  infâmia  inherenje  á 
sua  profissão,  por  isso  que  havia  também  vi)ln|)luosos  e  libertinos  para  paga- 
rem a  todo  o  custo  um  prazer  Ião  sfriclamenle  pi^obibido.  O  ollicio  de  cómico 
era,  pois,  considerado  como  uma  espécie  li"  prostituição,  e  S.  Thomaz  não  va- 
cilla  em  pòr  ao  mesmo  nivel  a  cortezã  (jue  trafica  com  o  seu  corpo  e  o  come- 
dianle  que  se  proslilue  em  publico,  vendendo,  por  assim  dizer,  os  seus  gestos 
f  altitudes  licenciosas. 

Os  bens  adquiridos  d'este  modo  panciam  ao  douto  casuisla  bens  mal  ad- 
quiridos, que  ei'a  |)reciso  restituir,  dislribiiindo-os  em  esmolas.  Eis  o  motivo 
porque  Filippe  Augusto,  convencido  de  que  <<dar  aos  histriões  era  .)  mesmo  que 
dar  ao  diabo»,  os  expulsou  da  sua  corte,  prohibindo-lhes  que  voltassem  a  ella, 
e  applicando  a  obras  pias  o  dinheiro  (|ue  teria  empregado  em  sustentar  as  es- 
candalosas dissoluções  do  theatro. 

O  theatro  não  teve  uma  existência  legal  em  França,  senão  atravez  do 
piedoso  véu  com  que  se  apresentou  a  Carlos  vi.  Os  costumes  d'aquella  épocha 
eslavam  muito  relaxados,  como  dissemos,  e  a  alfcição  ao  luxo  havia  predis- 
posto (js  espirites  a  apai\onareiii-se  por  todas  as  novidades  sensuaes.  Os  Passou 
dos  Confrades  da  Paixão  foram,  pus,  acolhidos  como  uma  espécie  de  furor, 
(juando  se  representaram  pela  \m\\.  ira  vez  ás  portas  de  I'aris,  na  aldeia  de 
Sainl-Maur. 

Em  i:i!>S,  uma  companhia  de  cómicos  ambulantes,  que  se  inliluiavau)  os 
Confrades  da  Paixão,  porque^  ropreseniavam  os  myslerios  da  morte  ili-  .Icsus. 
dialogados,  começaram  a  dar  reprcsenlações,  ás  (|uaes  a  multidão  acendia  de 
Ioda  a  parle.  Estas  representações,  inleiMueadas  de  rezas  c  de  cantos,  eram, 
por  cerlo,  muito  edificantes,  a  avaliar  pelo  assumpto.  No  emianto,  o  prebuste 
de  Paris  receiou  que  degenerassem  em  graves  desordens,  e  por  uma  ordenação 
de  :{  de  junho  de  1398  probibiu  a  todos  os  habilantes  de  Pai'is,  aos  de  Sainl- 
Maur  (!  aos  de  todos  os  logares  sujeitos  á  sua  jurisdicção  «repi'esenlar  Passos 
de  personagens,  tanio  da  vida  de  (^brislo  como  da  dos  sanios,  sem  permissão 
d  rirei,  s(d)  pena  de  incorrerem  na  sua  indignação.» 

Estas  rigorosas  probibiçues  pro\am  (|ue  nos  Passos.  representa<los  em 
Saint-iMaur,  houvera  algum  escândalo,  ou  (jue,  segutxlo  uma  o|)inião,  (|ue  não 


DA    PROSTITUIÇÃO  581 

conlradiz  a  nossa,  uma  antiga  lei  de  Filippe  Atifiiislo  ou  de  S.  Luiz  havia  abo- 
lido o  tlieatro  e  proiíibido  o  e\crcicio  c  a  prolissão  dos  comediantes. 

Seja  como  fòr,  as  representações  não  se  renovaram  até  l'i()2,  em  que 
Carlos  VI  teve  o  gosto  de  assistir  a  elias,  e  saliiu  de  tal  maneira  edificado,  que 
outorgou  aos  Confrades  da  Pai.rno  um  privilegio,  (jue  os  auclorisava  a  repre- 
sentarem os  seus  myslerios,  tantas  vezes  quanlas  lhes  aprouvesse.  Em  virtude 
d'este  privilegio,  os  confrades  estabeleceram  o  seu  tbeatro  perto  da  porta  de 
Saint-Denis,  no  rez-do-ehão  do  Hospital  da  Trindade,  onde  os  peregrinos  c 
viajantes  pobres  encontrav;un  um  asylo  para  passarem  a  noile,  (juando  chega- 
vam depois  de  fechadas  as  portas  da  cidade. 

Estes  mesmos  confrades  já  haviam  fundado  na  egreja  d'este  hospital  a 
confraria  da  Paivão  e  da  Hesurreiçrio  de  Christo. 

Parece-nos  poder  inferir  da  fundação  d'esla  confraria  que  os  primeiros 
cómicos  da  aldeia  de  Saint-Maur  costumavam  recrutar  os  seus  confrades  entre 
os  artilices  da  capital.  Desde  essa  épocha  a  alTeição  pelo  tbeatro  propagou-se 
phreneticamente  pela  população,  que  nos  dias  de  festa  acendia  em  tropel  a  as- 
sistir á  representaçã  >  dos  mysterios  e  milagres,  deixando  á  companhia  fundos 
bastantes  para  occoirer  a  todas  as  suas  despezas. 

Esta  curio-sidadc  e  este  enthusiasino  nada  tinham  de  devotos,  ainda  que 
o  lim  apparente  de  taes  espectáculos  fosse  elevar  as  almas  á  contemplação  das 
cousas  santas  e  dispol-as  á  oração.  Pôde  ter-se  como  certo  que,  apesar  do  ca- 
racter mystico  dos  Passos,  que  se  representavam,  e  apesar  mesmo  da  pi'olecçãõ 
que  o  clero  outorgava  a  estes  piedosos  espectáculos,  o  tbeatro  já  n'essa  épocha 
era  um  auxiliar  da  prostituição.  Basta  imaginar  por  um  pouco  o  que  seria  uma 
d'essas  representações,  n'uma  sala  estreita  e  mal  illuminada,  cm  que  os  especta- 
dores se  reuniam  n'uma  promiscuidade  piltoresca,  uns  sentados,  outros  em  pé, 
mas  agglomerados  e  compactos,  sem  dislincção  de  edade,  nem  de  sevo,  nem 
de  condicção. 

A  .sala  tinha  31  toezas  e  meia  de  comprimento,  por  6  de  largura.  De  al- 
tura teria,  quando  muito,  quinze  a  vinte  pés,  havendo  uma  arcada  que  sus- 
tentava o  andar  superior.  Do  comprimento  total  temos  de  descontar,  peio  menos, 
l-ia  20  pés,  para  o  scenario  e  seus  accessorios,  ponjue  além  do  tablado  em  que 
se  representava,  havia  ao  fundo  do  tbeatro  outros  tablados,  que  pareciam  ser  os 
dilíercnles  jogares  em  que  se  passava  a  acção,  e  que  communicavam  uns  com 
(IS  (uitros  p{ir  escadas. 

No  tecto  do  tablado  em  que  se  moviam  os  diderentes  actores,  o  Paraizo, 
envolto  em  nuvens,  abria  o  seu  largo  pavilhão  azul  celeste,  marchetado  de 
estrellas  de  latão.  Em  baixo,  a  boeca  enorme  de  um  dragão  temivel,  moven- 
do-se  sem  cessar,  indicava  a  entrada  do  inferno,  (ronde  sabiam  os  demónios 
entre  goljdiadas  de  chammas  e  acres  rolos  de  fumo.  Ao  centro,  muitas  deco- 
rações, toscamente  pintadas,  e  que  se  alternavam  devidamente,  quando  a  acção 
ia,  como  o  seu  protogonista,  de  Herodes  para  Pilatos. 

D'esta  maneira  tinham  aqnelles  ingénuos  e  primitivos  espectadores  diante 
dos  olhos  a  physionomia  local  do  ingénuo  poema,  que  s(>  passava  alternativamente 
no  ceu,  na  terra  c  no  inferno. 


582  HISTORIA 

Oiilro  pormenor  inlcrcssante :  Emquanto  durava  o  espectáculo,  os  acto- 
res estavam  sempre  á  vista  do  publico,  vestidos  com  os  trajos  apropriados, 
dentro  de  uma  espécie  de  varanda  gradeada,  que  corria  á  direita  e  á  esquerda 
do  scenan  •  Alli  esperavam  o  momento  de  entrar  em  scena,  assistindo  no  em- 
tanto  á  i.. presentação  como  simples  espectadores.  Cada  qual  vinha  por  sua  vez 
desempenhar  o  seu  papel,  voltando  logo  em  seguida  para  o  seu  posto  de  re- 
serva. D'este  modo  não  deixavam  nunca  ile  estar  em  evidencia,  a  não  ser  nos 
momentos  solemnes  em  que  o  papel  exigia  que  o  actor  desapparecesse  para  d e- 
traz  das  cortinas  de  um  aposento  especial,  que  servia  para  subtrahir  aos  olha- 
res do  publico  certos  pormenores  delicados  da  peça,  taes  como  os  partos  de 
SanfAnna,  de  Santa  Isabel  e  da  Virgem  Maria. 

Este  aposento  mysterioso  aguçava  no  mais  alto  grau  a  imaginação  do 
publico,  o  qual  esperava  com  impaciência  que  se  corressem  as  cortinas,  quando 
estavam  descidas,  e  que  descessem  quando  estavam  corridas.  U  espectador  não 
deixava  de  adivinhar  tudo  quanto  se  occultava  por  decência,  e  seguia  com  o 
pensamento  as  mais  escabrosas  peripécias  da  acção;  d'aqui  essa  locução  pro- 
verbial de  íicar  uma  cousa  detraz  da  cortina,  para  exprimir  que  não  deve  ex- 
por-se  á  vista,  por  causa  do  escândalo. 

Escasiciam-nos  dados  precisos  para  narrarmos  as  immoralidades  e  inde- 
cencias,  que  desde  os  primeiros  tempos  acompanharam  o  renascimento  do  thea- 
tro.  E'  certo,  porém,  que  estas  representações  piedosas  eram  causa  e  occasião 
de  graves  perigos  para  os  bons  costumes.  O  mysterio  da  paixão  e  outras  com- 
posições dramáticas  do  mesmo  género,  que  se  representavam  aos  domingos  e 
outros  dias  festivos  no  thealro  da  Trindade,  não  tinham  evidentemente  outro 
(im  senão  excitar  os  sentimentos  religiosos,  e  pôde  presumir-se  que  o  auctor 
d'esse  immenso  drama,  que  abrange  o  nascimento,  a  vida,  a  morte  e  a  resur- 
reição  de  Jesus-tihristo,  fizera  uma  obra  de  devoção,  sob  a  forma  de  uma  obra 
litteraria,  em  que  forçoso  é  reconhecer  grandes  bellezas. 

Efíectivamente  esta  obra  mereceu  ser  retocada  e  refeita  em  grande  parte 
por  João  Miguel,  bispo  de  Mans,  que  viveu  no  século  xv,  mas  não  obstante, 
segundo  a  Índole  do  Iheatro  n'aquella  cpocba,  grande  numero  de  scenas  do 
Myslerio  da  Paixão  e  dos  mysterios  análogos,  arraslavam-sc  nos  togares  com- 
muns  da  obscenidade,  e  o  dialogo  dos  personagens  subalternos  tomara  da  lin- 
guagem popular  uma  multidão  de  imagens  e  palavras  licenciosas,  torpes  e  im- 
mundas.  Os  próprios  apóstolos,  os  santos  e  até  mesmo  as  santas,  pareciam  ás 
vezes  gente  que  tinha  vivido  no  convivio  das  mulheres  perdidas  e  dos  mais 
viciosos  libertinos. 

Entre  uma  multidão  de  exemplos,  escolheremos  uma  scena  do  Myslerio 
de  Sania  llenoveva,  onde  se  via  unia  freira  de  Hourges,  (|ue  por  li-r  ouvido  a 
fama  dos  milagres  da  santa,  linha  ido  visilal-a. 

Santa  (lenoveva  pergunla-lhe : 

—  Qual  é  o  teu  estado? 

—  Virgem,  responde-lhe  a  freira. 

—  Virgem  tu!  exclamou  a  sanIa  com  desprezo. 
£  continuou : 


DA   PROSTITUIÇÃO  583 

Non  pns  vierge,  non,  mais  ribaude,. 
j  Qui  fustes  en  avril  si  baude, 

Le  tiers  joiír,  entre  chien  et  loitp, 
Qit,'au  jardin  Gaultier  Chanlelou, 
Vous  souffrites  que  son  berchier 
Vnus  des/lorast  sotis  un  péchier! 

A  poética  dos  mysterios  desprezava  ordinariamente  as  tímidas  restricçõcs 
da  narrativa,  e  só  separava  da  vista  do  publico  certos  jogos  scenicos,  que  te- 
riam sido  demasiado  vivos  e  nús  para  serem  executados  fora  da  cortina.  A  ac- 
ção dramática  era  levada  até  ao  ponto  extremo  em.  que  a  intelligencia  do  es- 
pectador se  encarregava  de  acabar  um  episodio,  cujos  prelúdios  já  de  si  oden- 
diam  o  pudor  menos  assustadiço.  Ainda  mesmo  corridas  as  cortinas,  o  auclor 
linba  sempre  o  cuidado  de  interpretar  com  os  seus  gestos  e  visagens  o  que  o 
poeta  deixara  sob  um  transparente  véu. 

Na  Vida  e.  historia  de  Sania  Barbara,  que  foi  representada  e  impressa 
em  Io20  (V.  o  catai,  da  Biblioth.  dram.  de  iM.  de  Soleine,  pelo  biblioph.  .la- 
cob,  t.  I,  p.  107)  ainda  que  o  mvsterio  começa  por  um  sermão  .sobre  um  texto 
do  Evangelho,  a  scena  abre  n'um  bordel,  em  que  uma  prostituta  canta  uma 
canção,  fazendo  gestos  impudicos  (siijna  amoris  illiciti,  diz  o  editor  em  guisa 
de  rubrica).  O  imperador  ordena  a  esta  mulher  que  seduza  a  santa,  e  eis  como 
a  conselheira  impudica  falia  a  Santa  Barbara,  (|ue  se  encommenda  a  Deus : 

—  Eu  nunca  perco  o  dia.  Ainda  hoj(!  nem  descancei.  Conheço  perfeita- 
mente o  jogo  do  amor.  .Mostro  boa  cara  a  todos  os  galans,  e  deveis  fazer  o 
mesmo.  Nunca  vi  mãos  tão  bellas  como  as  vossas,  nem  pernas  mais  seduelo- 
ras.  Havemos  de  ganhar  muito  dinheiro,  porque  tendes  um  corpo  bellissimo! 

Os  auctores  de  mysterios  tractavam  de  uma  maneira  completamente  pro- 
fana os  assumptos  mais  santos  e  mais  respeitáveis,  mas  longe  de  imitarem  o 
antigo  theafro  latino,  não  conseguiam  jamais  dar  amplo  logar  ao  anior  meta- 
physico.  Nada  entendiam  do  que  nós  chamamos  drama  apoixonado,  expressa- 
vam quasi  sempre  sem  rodeios  nem  circumioquios  os  appetites  da  carne,  com- 
praziam-se  em  tractar  brutalmente  as  cousas  da  luxuria,  e  só  raras  vezes  bo- 
quejavam um  idyllio  portátil  em  que  se  notavam  as  vagas  inspirações  do  co- 
ração, como  um  dialogo  dos  dois  pastores  do  Mjisterio  da  Paixão: 

Melchy  —  As  juvenis  pastoras  cantarão. 

AcHiN —  E  os  jovens  pastores  encararão  amorosamente  n'ellas  .... 

Melchy —  As  nymphas  virão  escutar  o  canto,  e  nos  bosques  as  drya- 
das  dançarão  com  as  oréadas. 

AcHiN — Pan  virá  dançar  á  festa.  Dos  (limpos  Elyseos  virá  Orpheu  com 
a  sua  musica  divina,  c  não  faltarão  as  bailadas  de  Mercúrio! 

Melchy —  E  nos  prados  .serão  de  súbito  abraçadas  as  pastoras  I. .  .  . 

Eram  ainda  excitações  ao  amor,  que  podiam  perturbar  o  coração  terno  e 
simples  de  uma  joven,  mas  que,  ainda  assim,  não  poderiam  corrompel-o  ou  cm- 
briagal-o  com  o  veneno  do  vicio.  Os  adores,  mais  por  exigência  do  olficio,  do 
que  por  cálculos  de  preversão  pessoal,  tractavam  sempre  de  accrescentar  ao  seu 
papel  uma  pantomima  licenciosa,  (|ue  o  poeta  não  preverá,  e  (|ue  o  publico  ce- 


o8.i 


HISTORIA 


Icbiava  com  risada  e  applausos.  Assim,  a  comparseria  de  (liai)os,  não  se  dislin- 
guia  menos  pelas  suas  mascaras  iiorriveis  e  por  seus  exlrahos  disfarces,  do  (jue 
por  suas  atlitudes  indecentes  e  gestos  impudicos. 

Os  diabos,  cujos  retratos  mais  ridiculos  do  que  espantosos,  nos  onerecem 
as  miniaturas  dos  manuscriptos,  as  antigas  pinturas  muraes  e  as  vellias  estam- 
pas gravadas  em  madeira,  costumavam  apresentar  cabeças  de  satyros  com  a 
iingua  de  fora,  postas  no  sitio  das  partes  naturaes,  e  outras  vezes  tetas  pen- 
dentes. Satanaz,  ou  Lúcifer,  era  quem  especialmente  apresentava  estas  cabeças 
grotescas,  cujos  olbos  provocantes  se  revolviam,  e  cuja  Iingua  era  muitas  ve- 
zes um  emblema  de  impureza.  Alem  d'isso  o  rabo  de  certos  demónios  tomava 
ás  vezes  formas  e  proporções  obscenas. 

Toleravam-se  nos  comparsas  diabólicos  estes  escândalos  de  excentri- 
cidades libidinosas,  visto  que,  segundo  a  tradicção  da  E.íreja,  o  espirito  do 
mal  é  sobretudo  o  agente  da  sensualidade.  As  representaçõi-s  tiniiani  logar 
sob  a  vigilância  da  policia,  que  tinha  a  seu  cargo  a  decência  e  a  onleni  puldica. 

Esta  vigilância  tinlia  por  certo  muito  onde  se  exercer,  tanio  enire  os  ac- 
tores como  entre  os  espectadores.  Os  primeiros,  por  exemplo,  não  seguiam  ne- 
nhuma regra  de  arte  e  entregavam-se  a  todas  as  phantazias  do  seu  capricho 
ou  da  sua  inventiva.  Cada  qual  vestia-se  a  seu  modo,  e  imaginava  o  que  podia 
fazel-o  mais  notável  entre  os  seus  companheiros,  lisongeando  o  gosto  ilo  pu- 
blico. D'este  desejo  de  sobresahir  pela  excentricidade,  d'isla  emulação  entre 
os  artistas,  resultavam  as  mais  extravagantes  creaçôes  e  os  chistes  e  gestos 
mais  licenciosos. 

A  comparsaria  diabólica  (diablerie),  como  dissemos,  perinitlia-se  os  mais 
graves  ultrages  ao  pudor,  mas  taes  ultrages  eram  sempre  adribuidos  ao  diabo.  ' 
INtão  era  mais  decente  o  choro  dos  anjos,  os  quaes,  por  vezes,  chegavam  a  es- 
quecer o  seu  papel  mudo.  Anjos  e  diabos  eram  comparsas,  que  caniavam  cân- 
ticos, recitavam  orações  e  faziam  ruidosos  alaridos,  a  um  signal  dado.  .As  suas 
evoluções,  danças,  gestos  e  truanices  dependiam  S(imente  do  capricho  e  do  ta- 
lento de  cada  qual.  I'mas  vezes,  um  eherubim,  ao  voltarão  seu  logar,  arrega- 
çava a  sua  larga  túnica  branca,  deixando  vèr  por  baixo  d\  lia  o  avental  de 
um  sapateiro  da  rua  de  Saint-Denis,  outras  vezes  um  anjo,  ao  cahir  das  altu- 
ras, ficava  pendurado  dos  bastidores  de  cabeça  para  baixo,  até  que  iam  soccor- 
rel-ó  e  pôr  em  ordem  a  ampla  túnica  descomposta,  que  lhe  cobria  a  cabeça. 
Estes  episódios  burlescos  encontram-se  até  pintados  nas  miniaturas  de  alguns 
Passos. 

De  resto,  a  mulher  não  apparecia  em  scena.  Os  papeis  femininos  eram 
desempenhados  por  mancebos,  cuja  presença  não  desdizia  do  papel,  e  que  af- 
fectavam  maneiras  de  mulher.  Este  disfarce  era  um  attractivo  particular  para 
certos  libertinos,  que  não  deixavam  de  se  interessar  pelos  efeminados,  e  (|ue 
à  força  de  os  admirarem  em  scena,  acabavam  |)or  procuial-os  e  encontral-os 
talvez  fora  d'ella.  Deve,  pois,  suppòr-se  que,  apesar  da  vigilância  da  auctori- 
dade  civil  por  meio  dos  seus  delegados,  a  policia  dos  costumes  não  podia  fa- 
zer-se  bem  no  interior  da  sala,  onde  os  espectadores  formavam  uma  massa 
compacta   e  impenetrável,   e  nas  escadas  ou  corredores,  que  nunca  estavam 


DA    PROSTITUIÇÃO  385 

desertos   nem   silenciosos  diininle  iis  roprcsentações,  e  (|Ut'  não  foram  illumi- 
nados  até  fins  do  século  xvi. 

Um  regulamento  do  preboste  relalivo  ao  llieatro  do  Hotel  de  Bori^nmha, 
datado  de  12  de  novembro  de  1609  {Traitc'  de  la  police,  de  Delamare)  diz  : 

«Os  ditos  comediantes  serão  obrigados  a  ter  luz  de  lanterna,  ou  oulra 
qualquer,  assim  no  pateo,  escadarias,  e  galerias,  como  também  nas  portas,  á  sa- 
bida, sob  pena  de  um  castigo  exemplar  e  de  cem  libras  de  multa.  Recommen- 
damos  ao  commissario  de  policia  a  maior  vigilância  n'este  ponto,  dando-nos 
conta  das  contravenções.» 

Apezar  d'este  regulamento  e  dos  da  miasma  natureza  que  o  precederam, 
consta-nos,  de  um  livro  publicado  no  tempo  de  Luiz  xiv,  que  a  illuminação 
das  escadas  e  dos  corredores,  era  muito  descurada  n'aquella  épocba,  e  que 
aquelles  logares  obscuros  serviam  para  proteger  as  entrevistas  e  encontros  amo- 
rosos durante  o  espectáculo,  porque  o  auctor  que  citamos,  sem  nos  podermos 
recordar  agora  do  lilulo  do  seu  livro,  1  )mentava-se  de  que,  clicgando  um 
pouco  tarde  ao  tlieatro,  isto  c,  de|)ois  de  ter  começado  o  espectáculo,  qualquer 
mulber  bonesta  arriscava-se  a  tropeçar  na  obscuridade  com  algum  par  ([ue  llie 
estorvava  o  passo. 

O  interior  da  sala  era  apenas  illuminado  por  duas  ou  três  lanternas  es- 
fumadas, suspensas  do  tecto  e  por  uma  fila  de  velas  de  cebo  ao  longo  do  proscé- 
nio, que  ficava  ás  escuras,  ao  menor  descuido  do  encarregado  da  illuminação, 
Não  nos  demoraremos  mais  a  respeito  dos  actos  de  libertinagem  que  se 
commettiam  especialmente  no  pateo,  durante  as  representações.  Basta  dizer-se 
(|ue  este  escândalo  quotidiano,  que  não  contribuiu  pouco  para  dar  armas  aos 
inimigos  do  tbeatro,  durou  até  que  Voltaire  conseguiu  que  os  espectadores  do 
pateo  se  sentassem.  O  Padre  f^atour,  nas  suas  llelle.ròes  moraes,  politicas,  liix- 
torica.s  e  litterarias  a  respeito  do  theatro,  queixa-se  ainda  em  17(32  das  desor- 
dens e  escândalos  do  pateo.  (Lib.  ix,  t.  v,  p.  6.) 

Apesar  d'isto,  ó  tbeatro  teria  escapado  ás  excommunhões  da  Egreja,  ás 
recriminações  dos  parlamentos  e  ás  correcções  da  policia,  se  tivesse  conservado 
sempre  o  caracter  exclusivamente  religioso,  que  havia  favorecido  o  seu  resta- 
belecimento, sob  a  protecção  de  Carlos  vi. 

Quando,  porém,  outras  companhias  similhantes  à  da  Paixão  se  estabe- 
leceram nas  provindas  è  representaram  também  mijsterios  e  milagres,  com  o 
concurso  dos  mestres  e  operários  dos  grémios,  a  mocidade  bem  depressa  se  can- 
çou  de  um  espectáculo,  que  parecia  um  sermão  em  acção.  A  antiga  hilaridade 
gauleza  não  se  contenva  já  com  representações  piedosas,  onde  ainda  assim  ha- 
via muito  de  que  rir,  e  nasceu  então  a  comedia  franceza. 

Companhias  de  cómicos,  denominados  os  Eiifans-sans-souci  e  os  vieres 
de  la  Raroche,  í'undaram-se  bem  depressa  em  Paris,  e  representaram  farças, 
((ue  não  requeriam  a  pompa  thealral  dos  mystei'ios,  e  que  só  tinham  necessi- 
dade de  alguns  cómicos  com  uma  certa  aptidão. 

Este  novo  theatro  jocoso  era  a  principio  ao  ar  livre,  nas  feiras,  nos  mer- 
cados e  nas  praças  das  cidades.  Dois  ou  trcs  farçantes,  subiam  a  um  tablado, 
cobertos  d'ouropeis,  com  o  rosto  enfarruscado,  e  dialogavam  com  estro  licencioso 

HisTOUA  DA  Prostituição.  tomo  ii— Folha  74. 


586  HISTORIA 

algumas  scenas  de  costumes  populares,  que  tinham  invariavelmente  por  assumpto 
o  amor  e  o  matrimonio.  Estes  esboços  pouco  decentes  prestavam-se  maravilhosa- 
mente a  improvisos  mais  indecentes  ainda. 

Mais  tarde,  aos  improvisos  succederam  peças  escriptas  em  verso,  ou  me- 
lhor em  linhas  rimadas,  que  não  impediam  o  actor  de  ir  improvisando,  e  que 
davam  margem  à  sua  pantomima  licenciosa.  Não  foi  mister  mais  para  arreba- 
tarem aos  seus  coUegas  dos  Paxsos  da  Paixão  a  maior  parte  dos  seus  especta- 
dores, e  com  elles  os  seus  lucros. 

Em  vão  intentaram  estabelecer  competência  com  os  seus  temíveis  ri- 
vaes,  intercalando  nos  mystcrios  certos  episódios  burlescos,  certos  personagens 
ridículos,  que  davam  uma  espécie  de  amenidade  aos  assumptos  sérios.  Nada 
lhes  valeu.  Os  actores  das  farças  eram  sempre  muito  melhor  acolhidos  que  os 
confrades  do  Hospital  da  Trindade,  e  o  publico  a  quem  divertiam  tomou  par- 
tido contra  elles,  quando  foram  perseguidos  pelo  prebostado  de  Paris,  que  pre- 
tendeu oppòr-se  á  installação  permanente  do  seu  theatro.  Era  já  tarde  para  re- 
primir um  género  de  espectáculo,  que  tanto  lisongeava  as  aíleições  do  espirito 
francez.  Poude  apenas  conseguir-se  que  se  contivessem  em  certos  limites,  su- 
bordinados, por  assim  dizer,  ao  privilegio  concedido  por  Carlos  vi  aos  Confra- 
des da  Paixão. 

Em  consequência  d'isto,  os  Confrades  formaram  com  os  Enfans-sans- 
sotici  um  tratado  de  alliança,  pelo  qual  se  obrigavam  a  explorar  de  commum 
accordo  e  na  mesma  scena  os  dois  géneros  dramáticos,  que  ao  tempo  constituíam 
o  domínio  ainda  bem  restricto  da  arte.  Ficou,  portanto,  estatuído  entre  as  duas 
companhias  alliadas,  que  se  fariam  valer  uma  á  outra,  e  que  representariam 
alternadamente  a  farça  e  o  mysterio  para  variarem  o  espectáculo. 

O  povo,  que  parecia  ter  sido  chamado  como  testemunha  do  contracto, 
apreciou-lhe  devidamente  a  importância  no  interes.se  dos  seus  divertimentos,  e 
designou,  pelo  nome  de  Jen  des  pois  piles,  aquella  associação  de  géneros  tão 
oppostos,  o  sagrado  e  o  profano,  o  trágico  e  o  cómico,  o  mystico  e  o  escanda- 
loso. Esta  expressHo  tie  pois  piles,  que  significa  mistura  de  feijão  e  grão,  mis- 
cellanea,  Irapalhaiín.  allude  evidentemente  a  alguma  farça  muito  conhecida 
n'outro  tempo,  na'(|ual  um  gracioso  misturava  n'um  guisado  tremoços  com  grão 
de  bico. 

O  theatro  de  Paris,  que  foi  sempre  o  theatro  modelo  das  demais  cidades 
da  França,  apresentou  esta  physionomia  singular,  até  melados  do  século  xvi, 
tendo  sempre  duas  companhias  distinctas,  a  dos  Confrades  e  a  dos  Enfans, 
que  representavam  simultânea,  ou  alternadamente,  .segundo  convinha.  As  re- 
presentações eram  ao  domingo  entre  a  missa  e  as  vésperas,  isto  c,  do  meio  dia 
ás  quatro  da  tarde,  pouco  mais  ou  menos.  E  como  seria  impossível  representar 
n'cste  espaço  de  tempo  um  mysterio,  que  tinha  ás  vezes  trinta  actos,  quarenta 
mil  versos  e  duzentos  ou  trezentos  actores,  era  mister  limitar  o  espectáculo  a 
algumas  scenas,  ou  a  um  acto  completo,  (|ue  acompanhado  de  uma  farça,  ou 
de  uma  arenga,  ou  monologo,  constituía  a  futicção. 

Raríssimas  vezes,  especialmente  nas  províncias,  se  representava  um  mys- 
terio completo,  e  ijuando  se  representava,  durava  o  espectáculo  muitos  dias  se- 


DA     PROSTITUIÇÃO  387 

guidos.  A  representação  fazia-sc,  não  n'uma  sala  fechada,  mas  sim  nas  minas 
de  um  amphitiíealro  romano,  como  em  Douai,  ou  n'um  theatro  aberto,  arran- 
jado na  praça  publica,  ou   mesmo   n'um  vasto  largo  para  esse  fim  apropriado. 

A'estas  solemnes  circumstancias,  todos  os  habitantes  de  uma  cidade,  de 
uma  comarca,  ou  de  uma  província,  contribuíam  para  as  despezas  communs, 
dando  esmolas,  viveres,  armas,  trajos,  etc,  e  tinham  o  direito  de  assistir  ao 
espectáculo.  Imagine-se  que  bello  ensejo  encontraria  a  prostituição,  em  simi- 
Ihantes  reuniões  de  povo,  que  punham  em  jogo  tantas  paixões  diversas,  tantas 
vaidades,  tantas  concupiscências,  tantos  prestígios  e  seducções!..  . 

A  representação  de  um  Myslerio  dava  inevitavelmente  logar  a  numero- 
sas orgias  e  desordens  de  toda  a  espécie.  Em  Paris,  pelo  menos,  as  represen- 
tações hebdomadai-ias  dos  Conjradea  e  dos  Enfans,  se  bem  que  egualmente  pe- 
rigosas para  os  costumes,  não  podiam  ainda  assim  produzir  taes  excessos.  Obra- 
vam com  lentidão  sobre  a  moralidade  publica,  e  alteravam  insensivelmente  a 
candura  das  almas,  dissolvendo  pouco  a  pouco  os  laços  sociaes. 

No  emtanto,  apesar  de  obsceno,  corruptor  e  escandaloso,  o  theatro  não 
incorreu  no  ódio  das  pessoas  honestas  de  Paris,  nem  nas  censuras  e  repressões 
da  auctoridade  civil,  ou  ecclesiastica,  antes  do  reinado  de  Luiz  xi. 

Dissemos  n'outro  logar  que,  ahi  pelo  anno  de  1512,  os  Enfans-sans- 
isouci  se  viram  ameaçados  de  expulsão,  e  obrigados  a  suspender  as  suas  repre- 
sentações, até  que. um  delles,  Clemente  Marot,  os  restabeleceu  nas  boas  graças 
d'el-rei.  Ignora-se  o  motivo  do  desagrado  real,  mas  é  provável  que  não  ti- 
vesse por  motivo  nenhuma  questão  de  moralidade  ou  pureza  de  costumes. 
Talvez  que  esses  audaciosos  farçantes  se  permittissem,  a  exemplo  dos  seuscol- 
legas  da  Bazoche,  algum  chiste  contra  a  avareza  d'el-rei,  contra  a  sua  poli- 
tica, ou  mesmo  contra  a  rainha  Anna  de  Bretanha.  Foi  sem  duvida  pelo  tempo 
cm  que  Luiz  xii  se  empenhou  em  fazer  respeitar  a  honra  das  damas,  dizendo 
que  havia  de  fazer  arrepender  todo  aquclle  que  ousasse  oITendel-as.  E  muito 
provável  até  que  os  aggravos,  allegados  por  aquella  épocha  para  se  fazer  fe- 
char o  theatro  dos  Enfans,  fossem  a  origem  de  um  uso,  que  já  existia  no  de- 
curso do  século  XVI,  e  que  se  perpetuou  até  nossos  dias.  Para  a  representa- 
ção de  qualquer  peça  nova,  era  mister  que  o  emprezario,  ou  director  das  far- 
ças,  depositasse  no  prebostado  os  manuscriptos  e  obtivesse  prévia  auctorisação. 

Muitas  vezes,  porém,  os  auctores  e  os  actores  recusavam  ^ubmetter-se  a 
esta  espécie  de  escravidão,  e  muitas  farças  obscenas,  que  passavam  por  impro- 
visos, escapavam  assim  ao  exame  dos  censores,  que  de  outro  modo  não  as  te- 
riam auctorisado. 

O  tenente  civil,  no  seu  regulamento  de  22  de  novembro  de  1609,  reno- 
vou a  prohibição  de  se  representar  «farça  alguma,  sem  que  os  comediantes  a 
houvessem  primeiramente  submettido  ao  exame  do  procurador  d'cl-rei,  afim  de 
obter  a  auctorisação  competente.»  Não  podemos  crer  que  os  prólogos  de  Brus- 
carabille,  as  arengas  de  Tabarini,  as  canções  de  (lauthier-Garguille,  e  tantas 
outras,  tivessem  sido  submettidas  á  censura,  ou  tivessem  obtido  a  auctori.sação 
dl)  procurador  d'el-rei. 

Paliámos  já  da  vida  desordenada  dos  farçantes  e  de  todos  os  jovens  li- 


588  HISTORIA 

bertinos,  que  abraçavam  esta  profissão  bem  pouco  honrosa,  para  mais  livre- 
menle  se  entrefíarem  á  vagabundagem  e  á  sensualidade.  Vimos  que  os  poetas, 
á  imitação  de  Villon  e  de  Clemente  Marut,  tinham  uma  inclinação  irresistível 
para  o  tbeatro.  Conccbe-se,  pois,  facilmente  que  o  enthusiasmo  religioso  não 
era  já,  como  nos  primeiros  tempos,  o  laço  que  unia  os  Confrades  da  Paixão. 
A  Egreja,  no  emtanto,  não  os  havia  ainda  anathematisado,  por  maior  que  fosse 
a  preversão  dos  seus  costumes  e  o  escândalo  da  sua  conducta  privada. 

Os  Ibeoiogos,  nos  seus  escriptos  dogmáticos,  diziam  que  sem  infringir 
as  leis  canónicas,  não  podia  administrar-se  a  eucharistia  aos  liistriões,  que  es- 
tavam sempre  em  peccado  mortal.  (Trnclado  histórico  e  dogmático  dos  «Pas- 
sos» dos  tkealros,  pelo  Padre  Lehrun,  p.  2Ú2)  e  o  famoso  casuista,  Gabriel  Biel, 
que  estudava  este  caso  de  consciência  nos  fins  do  século  xv,  no  pmprio  mo- 
mento em  que  se  fundava  a  Confraria  da  Pairão,  comprchendia  a  arte  sce- 
nica  entre  as  artes  malditas  e  prohibidas. 

Os  estalutos  da  Universidade  de  Paris  ordenavam  que  os  comediantes 
fossem  allastados  para  lá  das  pontes,  c  não  viessem  nunca  installar-se  no  dis- 
Iricto  ou  bairro  das  escholas :  tão  perigoso  pareiíia  o  seu  mister,  sob  o  ponto 
de  vista  da  moral.  (Lndi.  .  .  (inibas  lasciria,  pftulanlia,  procacilasque  e.rci- 
tenlur.  Stat..  29  e  23.) 

.Apesar  d'isto,  nunca  se  applicava  de  um- modo  geral  e  rigoroso  a  dou- 
trina da  Egreja  contra  os  cómicos,  os  qtiacs  eram  enterrados  em  logar  sagrado, 
<'omo  provam  os  epitaphios  e  sepulluras  de  alguns  d'ellcs,  ([ue  se  viam  em  va- 
rias parocbias  de  Paris. 

Pelo  que  respeita  ás  cómicas,  não  foram  menos  anathematisadas  que  os 
cómicos,  quando  appareceram  em  scena,  mostrando-se  sem  mascara  no  rei- 
nado de  Henrique  iii,  ou  Henrique  iv.  Estas  mulheres  eram,  a  principio,  as 
concubinas  dos  cómicos,  e  viviam  conio  elles  na  libertinagem,  a  tal  p:jnto  (iiic, 
.segundo  Tallemant  des  Reaux,  eram  communs  a  toda  a  companhia.  Haviam 
cm  todo  o  tempo  formado  parle  ilas  companhias  de  actores,  tanto  nómadas, 
como  sedentários,  mas  o  publico  ainda  não  as  conhecia,  e  as  suas  attribuiçòes, 
mais  ou  menos  deshonestas,  occultavam-se  nos  bastidores  do  tbeatro.  Quando, 
porém,  reivindicaram  os  papeis  de  d. mias,  até  ahi  desempenhados  sempre  por 
homens,  a  sua  apparição  em  scena  Ijí  considerada  como  utna  odiosa  prostitui- 
ção do  seu  se\o. 

As  primeiras  actrizes  tiveram,  pois,  que  luctar  com  a  animadver.são  do 
publico,  que  não  se  mostrava  muito  disposto  a  toleral-as  em  scena,  e  os  ()ro- 
prios  cómicos  lhes  disputavam  com  fi'equencia  os  seus  papeis,  que  segundo  a 
opinião  communi,  não  desempenhavam  com  direito. 

(Iremos  que  ao  exemplo  das  companiiias  bes|)aniiolas  e  italianas  se  deve 
esta  innovação  na  scena  franceza.  ,4  companhia  italiana  veio  de  \eneza  a  Pa- 
ris, chamada  por  Henrique  iv,  e  tanto  esta  como  outra  hespanhola,  causaram 
muitas  desordens,  de  que  foram  accusadas  as  actrizes,  as  quaes  com  o  desplante 
dos  .seus  gestos  e  com  a  deshotiestidade  dos  seus  trajos,  pretendiam  accrescen- 
lar  um  novo  allractivo  ás  rcprcscnlaçòcs  Iheatraes. 

«Domingo,   11)  de  maio  de    loT",  dl/  Pedro  de  lEsioilc,  os  comediantes 


DA    PROSTITUIÇÃO  589 

italianos,  chamados  í  Gelofii,  caineoiram  a  represenlar  comedias  na  sala  do 
l'alacii)  de  llourbon,  em  Paris.  Recebiam  (lualro  soldos  por  espectador,  e  iioiive 
tanta  concorrência  para  os  vèr  trahaliiar,  (pie  os  quatro  pregadores  mais  fa- 
mosos de  Paris  nunca  tinham  visto  auditório  tão  numeroso,  quando  ensinavam 
a  palavra  de  Deus.» 

Já  n'outro  logar  indicamos  o  encanto  particular  que  tinham  para  os  li- 
bertinos estas  representações.  Concorriam  enthusiasticamente  a  ellas  para  admi- 
rarem as  damas,  cujo  seio,  completamente  descoberto,  «elevava-se  e  abaiva- 
va-se  a  compasso,  como  um  relógio.»  O  parlamento  julgou  dever  pòr  termo 
a  estas  impudicas  exhibições,  e  seis  semanas  depois  da  inauguração  do  thea- 
tro  italiano,  ou  dos  Gelosi,  prohibiu-lhes  as  representações,  sob  pena  de 
10:000  libras  parisi.t,  applicaveis  á  caixa  dos  pobres. 

Os  italianos  não  se  deram,  porém,  por  vencidos,  e  no  sabbado  27  de 
julho,  tornaram  a  abrir  o  theatro  de  Bourbon,  com  a  permissão  expressa  d'el- 
rei,  sendo  tanta  a  corrupção  do  século,  diz  Estoile,  «que  os  farçantes,  os  truões 
as  prostitutas  e  os  luancebos  tinham  na  corte  o  maior  lavor  e  estimação.» 

A  companhia  bespanhola  estabcleceu-se  em  ItíOi-  na  feira  de  Saint-Oer- 
main,  e  a  sua  permanência  em  Paris  foi  assignalada  pelo  supplicio  de  dois  dos 
actores,  por  ordem  do  bailio  de  Saint-dermain,  por  terem  assassinado  uma 
comediante  da  sua  companhia,  cujo  cadáver  arremessaram  ao  Sena. 

«A  victima  d'este  crime,  diz  Estoile,  era  uma  formosa  bespanhola,  de  22 
annos,  que  por  muilo  tempo  tivera  relações  secretas  com  os  dois  comii-os,  (jue 
a  mataram,  mais  por  ciúmes,  do  que  para  a  roubarem.» 

Tal  é  em  nossa  opinião  a  origem  da  apparição  das  actrizes  na  scena  IVan- 
ceza.  Não  pôde  dizer-se  qual  foi  a  primeira  que  ousou  expòr-se  aos  olhares  dos 
espectadores.  Encontra-se  o  nome  d'uma  tal  Dafresne  manuscripto  n'um  exem- 
plar da  União  do  amor  e  da  castidade,  poema  pastoril  em  cinco  actos  e  em 
verso,  inventado  por  A.  (laulhier.  lista  obra  dramática,  impressa  em  Poitiers 
em  1006,  foi  lambem  representada  na  mesma  épocha.  (Bibliot.  drnm.  de  M. 
de  Soleinne,  t.  i,  p.   189.) 

N'um  exemplar  de  outra  peça  de  theatro  da  mesma  épocha,  a  Trafiedia 
de  Joanna  d' Are  {Jeanne  d' Arques,)  cliamadn  a  IJonzella  d'Orléans)  impressa 
em  Rouen,  Por  B.  de  Petitzal,  em  1603,  encontram-se  os  nomes  de  duas  actri- 
zes, também  manuscriptos.  O  redactor  do  catalogo  da  Bibliotheca  drjimatica  de 
M.  de  Soleinne  (Suppl.  ao  t.  i,  p.  :i0)  |i'u  1.  h-oneuplie  e  Marthon  Plus.  So- 
mos de  parecer  que  deve  lèr-se  Fanucbe,  que  era  uma  cortezã  celebre  do  tempo 
de  Henrique  iv,  e,  como  vimos,  conhecida  também  d'este  monarcba. 

Finalmente,  o  Padre  Marolles,  nas  suas  Memorias,  (t.  i,  p.  59  da  edição 
publicada  em  1735)  cita  com  elogio  a  um  actor  do  Palácio  de  Borgonha,  que 
desempenhava  os  papeis  de  mulher  em  1616,  sob  o  nome  de  Perrine,  com 
("lauthier-darguille.  Falia  também  da  famosa  cómica  Laporte  (Maria  Vernier,) 
que  a  esse  tempo  representava,  merecendo  com  \aleran  os  applausos  de  todos 
os  espectadores. 

O  que  podemos  alíirmar  com  segurança,  é  que  as  mulheres  nunca  ligu- 
raram  nos  Mysterios.  Não  deve,  pois,  attribuir-se  a  prohibição  d'esse  género 


590  HISTORIA 

(Ic  espectáculos  a  um  escândalo  qualquer  por  ellas  causado.  Foi  em  1540  que 
o  parlamento  julgou  necessário  intervir  pela  primeira  vez  na  questão  do  thea- 
tro,  visto  que  o  interesse  dos  bons  costumes  reclamava  havia  muito  tempo  a 
sua  intervenção.  O  parlamento  começou  por  dar  ao  liospital  da  Trindade  a  sua 
antiga  a  j  p  li  cação  e  por  fazer  saliir  d'elle  os'  Confrade.i,  que  por  este  motivo 
foram  para  a  egreja  dos  Jacobinos,  na  rua  de  Saint-Jacques,  estabelecendo  o 
seu  theatro  no  palácio  denominado  Hotel  de  Flandres. 

Pouco  tempo  depois,  em  seguida  ás  re|)resentações  de  um  novo  Mij-tíe- 
rio,  o  do  A7itigo  Tesíamento,  que  subiu  á  scena  em  loil,  o  parlamento  orde- 
nou que  se  fechasse  o  theatro,  pelos  motivos  seguintes: 

«1 ."  —  Que  para  divertir  o  publico  se  misturam  ordinariamente  com  es- 
tes sagrados  Passos  farças  e  comedias  irrisórias,  o  que  é  gravemente  prohibido 
pelos  sagrados  cânones. 

«2.°  —  Que  os  actores  de  similhantes  peças,  representadas  com  a  mira 
no  lucro,  deviam  passar  por  histriões  ou  pantomimeiros. 

«3."  —  Que  as  reuniões  de  taes  espectáculos  davam  logar  a  muitas  des- 
ordens e  escândalos. 

«4."  —  Que  estes  espectáculos  obrigam  a  despezas  escusadas  os  artífices 
e  as  outras  classes  populares». 

{Discurso  sobre  a  comedia,  ou  Traclado  histórico  e  doumatico  dos  «Pas- 
sos» dõ  theatro,  pelo  Padre  Lebrun,  Paris,  viuva  Delaubre,  1731,  p.  214.) 

Os  Confrades  da  Paixão  fizeram  valer  os  seus  privilégios,  outorgados  por 
Carlos  vr,  e  confirmados  repetidas  vezes  pelos  seus  successores,  e  para  esse 
fim  dirigiram  um  requerimento  ao  parlamento  e  uma  supplica  a  el-rei,  «expondo 
que  desde  tempos  immemoriaes  os  Mysterios  haviam  contribuído  para  a  edifica- 
ção do  povo,  sem  offensa  nem  geral  nem  particular.» 

O  rei  deu  as  convenientes  ordens,  e  o  parlamento  revogou  a  sua  decisão 
por  decreto  de  27  de  janeiro  de  1541  (1542,  segundo  o  novo  estylo).  O  tribu- 
nal, em  vista  do  real  privilegio  que  permittia  a  Carlos  Leroyer  e  collegas  re- 
presentarem o  Mijsterio  do  Antigo  Testamento,  «outorgou-lbes  a  mesma  per- 
missão, com  a  condição  de  fazerem  bom  uso  d'ella,  sem  permittirem  fraudes, 
nem  a  interposição  de  cousas  profanas,  lascivas  ou  ridículas.» 

Dizia  mais  ainda  o  referido  documento : 

«Que  de  entrada  no  theatro  não  poderiam  levar  mais  que  dois  soldos  por 
pessoa,  e  trinta  escudos  por  cada  camarote,  durante  a  representação.  As  func- 
ções  r(!alisar-se-hiam  somente  nos  dias  festivos,  não  solemnes,  começando  á 
uma  hora  da  tarde  e  acabando  ás  cinco.  Teriam  sempre  o  maior  cuidado  em 
não  provocar  escândalo  ou  tumulto,  c,  porque  o  povo  se  distrahirá  do  serviço 
divino,  o  que  diminuirá  as  esmolas,  entregarão  aos  pobres  a  somma  de  mil 
libras,  sem  prejuizo  de  qualquer  outra  quantia  mais  avultada  que  seja  neces- 
sária.» Vemos  aqui,  segundo  parece,  a  primeira  applicação  do  direito  dos  po- 
bres, que  se  fez  a  principio  em  beneficio  dos  orphãos. 

Dfsde  então  abriu  sempre  o  parlamento  os  olhos  a  respeito  da  inconve- 
niência dos  mysterios  e  da  obscenidade  das  farras,  (|ue  os  acompanhavam.  O 
Myslerio  da  Paixão,  emendado  e  corrigido  por  Arnaldo  (Ircvan,  tinha  ainda  ai- 


DA    PROSTITUIÇÃO  bd\ 

giins  personagens  intoleráveis.  O  Miisterio  do  Antigo  Testamento,  o  ultimo  que 
se  representou  e  imprimiu,  tinha  ainda  scenas  que  ultrajavam  a  moral  ea  re- 
ligião. 

Quando  el-rei  ordenou  a  demoliçcão  do  Hotel  de  Flandres,  os  Confrades 
da  Pai.rnn  fit-aram  novamente  sem  asylo.  Fora  provavelmente  um  meio  de  os 
obrigar  a  abandonar  a  protissão.  Elles,  porém,  compraram  o  velho  palácio  de 
Borgonha,  na  rua  Mauconseil  e  fizeram  alli  construir  um  novo  theatro.  Estavam 
as  cousas  n'este  ponto,  e  os  cómicos  preparavam-se  para  continuarem  as  suas 
representações,  quando  o  parlamento,  ao  qual  haviam  pedido  a  conlirmação  dos 
seus  privilégios,  lhes  prohibiu  e\|)ressamente,  por  aceordam  de  17  de  novem- 
bro de  1o84,  «que  puzessem  em  scena  os  Mysterios  da  Paixão  do  .\osso  Sal- 
vador, sob  pena  de  multa  arbitraria,  permiltindo-se-lhes  todavia  que  represen- 
tem mystcrios  profanos,  honestos  e  licitos,  sem  injuriar,  nem  olVonder  a  nin- 
guém.» 

Os  Mijsterios  haviam  tido  a  sua  épocha.  Ileimprimiam-se  ainda  alguns, 
mas  só  se  representavam  já  no  fundo  das  provindas.  O  parlamento,  prohibin- 
do-os,  conformava-se  com  o  gosto  do  publico,  ao  qual  este  género  de  espectá- 
culos só  inspirava  já,  ou  inditTerença  ou  indignação. 

A  tragedia  e  a  comedia  partilharam  entre  si  a  successão  dramática  dos 
Mlislerios.  O  género  favorito,  porém,  do  século  xvi,  aquelle  que  as  pessoas  ho- 
nestas reprovavam,  c  que  o  parlamento  não  ousava  prohibir,  era  a  farça  dos 
Enfans-san-f-sotici ,  o  género  cómico  e  licencioso,  que  punha  em  scena  os  vi- 
dos e  os  ridículos  do  povo. 

«As  farças,  diz  Luiz  fiuyon,  nas  suas  Dimrsas  lições,  (Lyon,  Ant.  Cha- 
rol,  162.5,  3  vol.  in-8.")  não  difTerem  das  comedias,  senão  em  introduzirem  per- 
sonagens que  representam  gente  de  pouca  importância,  que  faz  rir  o  povo 
com  os  seus  ditos  e  esgares.  Entre  outros,  introduziram  um  ou  dois  persona- 
gens, chamada  Zanis  e  Pantalons,  apresentando  rostos  muito  contrafeitos  e  ri- 
dículos. Em  França,  chamam-se  bodins,  (graciosos),  e  vestem  do  mesmo  modo. 

«Na  maior  parte  dos  casos,  não  se  tracta  senão  das  partidas  que  certos  es- 
pertalhões pregam  aos  pobres  incautos,  que  se  deixam  enganar  ingenuamente. 
Ou  então,  introduzem-se  personagens  voluptuosos,  que  enganam  os  maridos 
simples  para  abusarem  de  suas  mulheres:  e  outras  vezes  são  as  mulheres  que 
inventam  artimanhas  para  gosar  os  prazeres  do  amor,  sem  que  ninguém  dè 
por  tal. 

«Estas  farças  estão  cheias  de  impurezas,  grosserias  c  deshonestidades,  en- 
sinando ao  povo  como  se  pôde  enganar  a  mulher  do  provimo,  aos  criados  como 
SC  podem  enganar  os  amos,  e  partidas  simiihantes,  pelo  que  as  pessoas  discre- 
tas as  acham  más  e  as  reprovam.» 

Apesar  (Pisso,  as  farças,  a  maior  jiarte  das  f|uaes  ficou  inédita  descendo 
ao  tumulo  com  os  velhos  comediantes,  estiveram  cm  voga  até  ao  reinado  de 
Luiz  XIV,  em  que  as  mais  celebres  se  transformaram  em  comedias. 

Desde  a  suppressão  dos  Mysterios,  o  theatro,  em  vez  de  se  depurar  c 
tender  a  um  fim  moral,  abandona-se  a  uma  licença,  capaz  de  justificar  as  amar- 
gas queixas  dos  seus  inimigos.  Corrompera  mocidade  c  ensinar  a  libertinagem, 


592  HISTORIA 

parecia  o  seu  único  fim.  Eis  em  que  lermos  o  denunciava  cm  1588  um  zelo.so 
catliolico  ao  horror  dos  fieis  e  ao  casfii^o  dos  magislrados,  nas  suas  Ohxerca- 
rões  kumillimas  a  el-rei  de  França  e  de  folonia,  Henrique  iii,  a  respeito  das 
desordens  e  misérias  do  reino: 

«N'essa  cloaca  e  casa  de  Salanaz,  chamada  Palácio  de  Borgonha,  cujos 
actores  se  chamam  descarada  e  abusivamente  Confrades  da  1'aixão  de  .lesus- 
Chrislo,  commettem-se  mil  escandalosos  peccados,  em  prejiiizo  da  honestidade 
e  do  pudor  das  mulheres  e  das  famílias  dos  pobres  artificcs,  que  enchem  o  pa- 
teo,  duas  horas  antes  do  espectáculo,  e  entreteem  o  tempo  íaliando  de  cousas 
impudicas,  jogando  jogos  de  azar,  comend<i  e  bebendo  até  á  gula  c  a  embria- 
guez, e  resultando  de  tudo  isto  desordens  e  pendências  deploráveis.  ..  No  ta- 
blado, apparecem  altares  com  cruzes  e  ornamentos  sagrados,  vindo  á  scena  em 
faryas  impudicas  sacerdotes  revestidos,  para  fazerem  casamentos  ridículos... 
Em  conclusão,  não  ha  fari^-a  que  não  seja  obscena,  suja,  escandalasa,  e  própria 
só  para  corromper  a  juventude,  que  vae  assistir  a  esses  espectáculos.» 

As  fardas  do  século  xvi  foram  a  deslionra  do  thcatro  íVancez,  e  contri- 
buíram deploravelmente  para  a  desmoralisacão  social.  Não  as  conheceriamos, 
porém,  senão  pela  tradicção,  se  duas  publicações  recentes  não  livessem  tirado 
do  pó  do  olvido  umas  cento  e  cincoenta,  que  escaparam  assim  a  uma  destrui- 
ção .systhematica. 

«Não  poderia  dizer-se,  escreve  R.  de  Verdier,  senhor  de  Vauprivas,  na 
sua  Ribliolheca  francesa,  impressa  em  1584  em  Lyon,  com  certeza  o  numero 
de  farças,  compostas  e  impressas,  porque  c  infinito.  Nos  tempos  antigos  todos 
se  davam  ao  njister  de  as  fazer,  e  ainda  hoje  os  histriões,  chamados  Enjans 
sans-souci  as  representam.  A  íarça  não  é  mais  do  que  um  acto  de  comedia,  e 
a  mais  curta  é  a  melhor,  ou  a  mais  apreciada,  pelo  enfado  (|iie  causa  aos  es- 
pectadores a  prolixidade  e  demasiada  extensão.» 

Verdier  accrescenia  que,  segundo  a  arte  de  rhetorica  de  Graciano  l)u- 
pont,  a  farça  não  deve  passar  de  quinhentos  versos.  Além  d'i-;fo,  a  farça  pro- 
priamente dita,  tinha  também  diálogos  jocosos,  monólogos  e  sermões  alegres, 
recitados  por  um  estudante. 

Apezar  do  assombroso  numero  d'ellas,  apenas  umas  vinte  lograram  es- 
capar ao  naufrágio  universal,  por  isso  que  os  ecciesiasticos  e  as  pessoas  devo- 
tas iam  destruindo  sempre  quantos  exemplares  podiam  d'aquellas  composições 
obscenas  e  livres.  Nem  de  outro  modo  se  explica  como  tantas  farças  impres- 
sas e  tantas  edições  successivas  desappareeeram,  sem  nem  sequer  deixarem 
vestígios. 

Ha  poucos  annos  ainda  descobriu-se  na  AUemanha  uma  collecção  de  64 
farças,  diálogos,  monólogos  e  sermões  jocosos,  impressos  pela  maior  parte  em 
Lyon  em  154.').  O  Uritish  Museum.  de  Londres,  adquiriu  esta  c(dleeçâo  única, 
em  que  só  se  encontram  seis  ou  sele  peças  já  e<Md\eiidas  por  edições  ditVeren- 
les.  Esta  collecção  de  farças  é  a  que  publicou  Violei  Ledue,  sob  o  titulo  de 
Antigo  tliealro  frnncez  (Paris,  P.  .lannet,   1854.) 

Anteriormente,  François  Michel  havia  publicado,  por  um  manuscrípto 
(juc  possuía  o  duque  de  la  Vallíère,  e  que  pertenceu  depois  á  Biblioiheca  im- 


UA    PltOSTITLItÃO  o93 

perial,  scssenia  e  qualni  f.u'(,-as  ila  ims;na  époclia,  cujas  antifías  cilivões  ha- 
viam, como  lautas  outras,  sido  aniquillacias.  Estas  duas  collccgões,  tão  precio- 
sas para  a  historia  do  tiíeatro  antigo,  bastam  para  nos  fazerem  coniiccer  o  pe- 
rigoso que  eram  para  a  moral  c  para  os  costumes  públicos  as  represenlaç,'õcs 
d'estas  farças,  cuja  indecencia  de  assumpto  e  de  dialogo  os  actores  decerto 
ainda  exaggeravam. 

A  guerra  implacável  feita  ás  fardas  impressas  havia  conseguido  lornal-as 
raríssimas  já  no  principio  do  século  xvii.  Tin  bibliophilo,  alTeicoado,  porém,  a 
este  género  de  iittcratura,  teve  o  cuidado  de  salvar  algutnas  do  naufrágio,  fa- 
zendo reimprimir  desde  IG22,  por  Nicolau  Bousscf,  impressor  de  Paris,  uma 
Collecrão  de  muitau  fairaa  antigas  e  modernas,  an  qíiaes  foram  postas  em  me- 
lhor ordem  de  linguaiiem  do  que  de  antes.  Os  auctores  da  IUbliotlieca  do  Thea- 
Iro  francez  (o  duque  de  la  Valiicre,  Marin  e  Mercier  de  Saint-Leger)  analysa- 
ram  as  sete  farças  contidas  n'esta  curiosa  collecção,  provando-nos  que  no  thca- 
tro  d'aquclle  tempo  não  se  cuidava  do  decoro  do  publico,  que  perdoava  todas 
as  inconveniências,  comtanto  que  o  fizessem  rir. 

Uma  d'estas  fabulas,  que  La  Fontaine  imitou  no  conto  do  «['aiseur  de 
oreilles,y  põe  cm  scena  uma  mulher  gravida,  a  qual  pergunta  ao  medico  se  dará 
á  luz  varão  ou  fêmea.  O  medico  observa-lhe  a  mão,  e  diz-lhe  que  a  criant^-a 
não  terá  nariz.  A  mulher  amofina-se  muito  cora  esta  prophecia,  mas  o  doutor 
consola-a,  promettendo-lhe  arranjar  as  cousas  de  modo  que  possa  reparar 
aquella  lacuna,  e  para  isso  retira-se  cora  ella.  A  mulher  vem  d"ahi  a  pouco  ter 
com  o  marido,   que  a  esperava  á  porta,  e  pare  um  momento  depois. 

—  Porque  será,  mulher,  pergunta-lhe  o  bonacheirão  do  marido,  (]ue  ha- 
vendo treze  mezes  que  não  me  junto  comtigo,  tens  agora  ura  filho,  em(juanto 
que  no  primeiro  anno  do  nosso  matrimonio  tiveste  ura  aos  dez  mezes? 

—  Ora,  meu  homem!  responde  logo  a  esposa  infiel,  é  porque  da  primeira 
vez  a  criança  ficou  mais  perto  da  porta  que  da  segunda. 

Fazer  parir  em  scena  era  cousa  vulgar  no  theatro  antigo,  onde  frequen- 
temente se  viam  os  esposos,  ou  os  amantes  deilarem-se  e  continuarem  o  seu 
papel  entre  lençoes. 

Era  também  vulgar  pa.ssar-se  a  acção  detraz  da  scena,  n'um  aposento  fe- 
chado, ou  coberto  com  cortinas,  mas,  para  evitar  qualquer  interpretação  er- 
rada, havia  sempre  o  cuidado  de  advertir  o  publico  do  que  occorria  lá  dentro. 

Na  Farça  jocosa  e  recreativa  de  uma  mulher  que  reclama  o  dote  ao  ma- 
rido, os  dois  esposos,  que  chegam  a  ponto  de  armar  uma  grande  ri\a  por  causa 
d  este  capitulo  matrimonial,  compõem-se  por  (im,  e  sabem  juntos  da  scena  para 
o  tal  gabinete  reservado.  Ura  visinho,  que  tinha  intervindo  na  reconciliação 
das  duas  partes,  explica  aos  espectadores: 

—  Foram  alli  dentro  sellar  o  seu  accordo,  como  podem  suppòr.  .  .  para 
que  dure  por  mais  tempo.  E'  sempre  assim  que  se  devem  amansar  as  mulhe- 
res, quando  estão  em  maré  de  levantar  contendas!.  .  .- 

Na  Farra  nora  da  ri.ia  de  um  frade  noro  e  de  um  soldado  velho,  por 
uma  questão  de  amores,  uma  rapariga  (lue  é  a  causa  da  contenda,  vera  e\pòr 
o  caso  perante  o  throno  de  (Uipido.  A  rapariga  senlc-se  perturbada  pelos  dese- 

UUTOIUA  DA  Pkostitdicão.  Tomo  n— Folha  75. 


o94  HISTORIA 

jos  c  necessidades  amorosas.  Cupido,  n'cstc  lance,  aconselha-llie  que  procure 
um  amante,  sempre  melhor  para  estas  cousas  do  que  um  marido,  e  promelte 
conceder-ihe  um  á  medida  dos  seus  desejos.  Um  frade  moço  e  robusto  e  um 
soldado  velho  disputam  a  posse  da  moeetona,  e  Cupido,  para  os  harmonisar  a 
todos  trcs,  convida-os  a  cantarem  juntos  uma  canção.  Todos  elles  se  desculpam 
qual  melhor,  allegando  motivos,  que  afinal  não  passam  de  dichotes  equívocos 
e  grosseiros.  Em  conclusão,  depois  de  outras  inconveniências  do  mesmo  género 
impudico,  o  deus  arbitro  resolve  qui'  mais  vale  para  as  faltas  da  sensual  mo- 
eetona um  frade  novo  e  robusto,  do  que  um  soldado  velho  e  trôpego. 

Seria  mister  citar  todas  as  farças  (|ue  nos  restam  do  século  xvi,  para  ava- 
liarmos bem  os  innumeraveis  recursos  da  sua  immoralidade  e  para  comprehen- 
dermos  ate  que  ponto  favoreciam  a  prostituição.  Uma  mulher  honesta  e  reca- 
tada, depois  de  haver  assistido  a  estas  representações  impudicas,  ficava  fatal- 
mente com  a  alma  prevertida  e  com  a  vontade  inclinada  á  luxuria. 

As  mais  impuras  imagens,  as  palavras  mais  obscenas,  máximas  immo- 
ralissimas,  era  o  ijue  sobresahia  a  cada  plirase  dos  diálogos  dos  cómicos,  e  alem 
d'isto,  a  pantomima  e  o  gesto  exaggeravam  a  maldade  do  sentido,  provocando 
deplorável  mente  á  libertinagem. 

E'  impossível  fazer  ideia  do  que  eram  as  farças  d'aquelle  tempo,  sem  se 
ter  lido  algumas  d'ellas.  A  Bibliotheca  do  iheatro  francez,  pelo  duque  de  la 
Vallicre,  Marin  e  Mercier  de  Saint-Leger,  a  Historia  do  iheatro  francez  pelos 
irmãos  Parfaict,  e  a  Historia  universal  dos  iheatros,  por  uma  sociedade  de 
homens  de  lettras,  dão  uma  analyse  circumstanciada  de  muitas  d'estas  peças 
licenciosas.  O  leitor  que  desejar,  porém,  estudar  com  maior  exactidão  as  ori- 
gens da  litteratura  dramática  franceza,  deve  recorrer  á  preciosa  collecção  de 
farças,  que  Paul  Jannet  reimprimiu,  na  sua  Bibliotheca,  intitulada  Antigo  thea- 
Iro  francez. 

Entre  as  sessenta  e  quatro  farças,  historias,  moralidades,  debates,  diálo- 
gos, monólogos  e  sermões  jocosos,  que  compõem  esta  collecção,  indicaremos 
especialmente  a  [•'arra  de  Frei  (iniUebert,  que  o  antigo  editor  qualificou  de 
muito  bella  e  divertida.  E'  effectivamente  muito  cómica,  e  comprchcndem-se 
bem  os  applausos  com  que  a  sua  representação  era  acolhida,  sendo  a  mais  li- 
vre de  todas  ellas,  ou  pelo  nrnos  das  que  chegaram  ao  nosso  conhecimento. 
Começa  por  um  d'aquelles  sermões  jocosos  que  formavam  a  raiudo  o  entreacto 
das  comedias  e  tragedias. 

Tal  era  o  theatro  popular  no  principio  do  século  xvi. 

A  analyse  d'esta  farça  celebre  demonstra  a  deplorável  influencia  (|ue  de- 
via exercer  nos  costumes.  As  farças  dVsta  espécie  eram  innumeraveis,  como 
diz  Du  Verdier.  Em  França  representavam-se  até  nas  |)equenas  aldeias,  e  ser- 
viam de  Ihema,  por  assim  dizer,  á  panloinima  mais  indecente,  oíVendeiuIo  ao 
mesmo  tempo  os  ouvidos  e  a  vista  dos  espectadores,  que  alentavam  com  os 
seus  applausos  e  risadas  a  impudica  acção  dos  farçantes.  Comprehende-se,  pois, 
que  o  clero  catholico  condemnasse  com  indignação  este  deplorável  abuso  da 
arte  scenica,  c  em  presença  de  obscenidades  similhantes  não  é  para  exíranhar 
que  o   theatro  e  os  cómicos  fossem  excommungados  pela  Egreja.  S.  Francisco 


DA    PROSTITUIÇÃO  595 

de  Sailcs,  que  eompunha  por  esse  (empo  os  seus  escriptos  de  moral  religiosa, 
comparava  as  reprosentavõrs  tluMlraos  «com  as  selas,  que  nem  as  meliiores 
(loivam  de  ser  pri'judiciacs.» 

i\o  eintanto,  a  auotoridadc  civil  que  tinha  por  missão  velar  pelos  coslu- 
mes,  não  parecia  assustar-sc  muilo  com  a  espaniosa  licença  d'cllcs,  durante  o 
reinado  de  Luiz  xiii.  Algumas  disposições  houve  relativas  aos  cómicos,  prohi- 
bindo-llios  que  representassem  peças  deshonestas,  mas  os  eommissarios  e  agen- 
tes não  cumpriram  estas  ordens  tão  íavui-avcis  á  decência  publica. 

Em  compensação,  a  repressão  era  tão  severa  como  prompta,  a  respeito 
das  salyras  dirigidas  a  pessoas  notáveis.  i>"este  caso,  prendia-se  e  castigava-se 
sem  KÍrma  de  processo  qualquer  cómico  (|ue  se  permiítissc  o  menor  ataque  á 
respeitabilidade  das  pessoas  ou  ao  segredo  da  vida  privaila.  Quando  não  esta- 
vam escriptas  de  modo  que  satyrisassem  determinadamente  este  ou  aquelle  in- 
dividuo, ninguém  se  importava  que  as  farças  fossem  deshonestas,  tanto  mais 
que  os  espectáculos  d'esle  género  faziam  o  encanto  do  povo,  que  encontrava 
n'elles  a  pintura  dos  seus  grosseiros  costumes,  a  expressão  fiel  dos  seus  sen- 
timentos e  a  copia  da  sua  linguagem. 

Dissemos  que  nem  todas  as  farças  se  imprimiram,  e  que  a  maior  parte 
das  impressas  desappareceram.  Ha,  todavia,  bastantes  na  colleeção  do  firitlsh 
MuseuDi,  de  Londres,  e  na  Bibliothcca  Imperial  de  Paris,  para  se  poder  fazer 
uma  idéa  exacta  do  excesso  de  depravação  que  era  preciso  haver  n'um  povo, 
para  se  tolerar  a  representação  de  tão  repugnantes  peças. 

Eis  os  titulos  de  algumas  d'ellas,  as  quacs  estão  perfeitamente  em  har- 
monia com  o  que  esses  titulos  promettem  : 

Farça  nova  e  muito  divertida  das  mulheres  que  pedem  o  dote  a  seus  ma- 
ridos. Tem  quatro  pessoas,  a  saber:  o  marido,  a  mulher,  a  creadae  o  aisinho. 

Farra  nova  e  muito  divertida  das  mallieres  que  jazem  limpar  as  caldei- 
ras e  prohibem  que  se  deite  atjua  na  pia.  Tem  três  pessoas  :  a  primeira  mu- 
lher, a  segunda  e  o  amante. 

rar§a  nova,  muito  boa  e  divertida,  de  Jeninot,  que  nomeou  rei  ao  seu 
(jdto,  á  falta  de  outro  companheiro  e  subiu  para  cima  da  sua  ribalda  para  a 
levar  á  missa.  Tem  três  pessoas,  etc. 

Taes  são  os  titulos  que  dão  uma  ideia  exacta  das  peças  que  o  cartaz  an- 
nunciava  ao  publico,  e  que  tinham  uma  extraordinária  acceifação. 

Estas  farças  aprendiam-se  de  cor,  e  qualquer  estava  no  caso  de  desem- 
penhar n'ellas  um  papel,  quando  á  falta  de  cómicos  de  profissão,  um  grémio, 
ou  uma  sociedade  alegre  se  conslituia  em  companhia  de  curiosos  dramáticos. 
As  associações  d'estes  actores  curiosos,  que  eram  quasi  sempre  artistas,  multi- 
plicaram-se  em  todo  o  reino  no  principio  do  século  xvi,  e  a  prostituição,  que 
era  sempre  o  móbil  da  desenfreada  paixão  do  thcatro,  multip!icou-se  egual- 
mente  na  proporção  do  numero  dos  cómicos  de  ambos  os  sexos,  que  viviam  na 
mais  crapulosa  desordem. 

«Havia  então  em  Paris,  refere  Tallemant  des  Reaux,  duas  companhias, 
compostas  na  sua  maior  parle  de  ratoneiros,  cujas  mulheres  viviam  na  maior 
dissolução.» 


396  iiisTdRiA 

N'(tulro  logar  aecrcsconia  : 

«A  comedia  não  era  espectáculo  ciccenfe,  cm  quanto  o  cardeal  de  Richo- 
lieu  n<ão  se  occupou  d'clla  (lOS-i)  e  aníes  d'isto  lião  assistiam  ás  funccões  do 
thealro  as  mulheres  honradas.» 

Os  três  mais  haheis  comediantes  d"afjuell,i  épocha,  conhecidos  pelos  seus 
nomes  de  theatro,  Turlupin,  (laultier-darguille  e  (iros-(Vuillaume,  representa- 
vam sem  mulheres  e  cxaggeravam  o  burlesco  até  ao  eynismo  e  ao  desaforo. 
Tailemant  des  Reaux  diz,  todavia,  que  (laultier-darguillc  «fui  o  primeiro  que 
comc(,-oii  a  viver  com  mais  alguma  decência  (|ue  os  outros,  e  (jue  Turlupin, 
excedendo  a  modéstia  de  (laultier-tiarguille  mobilou  muilo  bem  os  seus  apo- 
sentos, pois  que  os  outros,  dispersos  por  aqui  e  por  alli,  nã<»  tinham  nem  casa 
nem  arranjo  algum.» 

Siuivai,  que  escrevia  a  Fíisíoria  das  Anthjuidiuht;  de  Paris  ao  mesmo 
tempo  que  Tailemant  as  suas  Historietas,  não  passa  certificado  de  bons  costu- 
mes a  estes  celebi-es  truões,  e  accrescenta,  fallando  de  (inulticr-darguiile,  que 
o  aclor  nunca  teve  amores,  senão  nas  ultimas  camada«  ile  prostitutas. 

O  epilíiphio  dos  três  companheiros,  enterrados  jiuiliis  na  egreja  de  S.  Sal- 
vador, alludc  lambem  á  immoralidade  da  sua  associai.ão  : 

tJauUier,  Guillaume  et  '1'urlupin, 
Ignoram  en  grec  e  latin. 
íirillèrp.nl  Unis  troix  smr  la  scène. 
Sans  recourir  au  séxe  (éminin, 
Quils  dinaient  un  peu  trop  walin  : 
Faisanl  nublier  toule  peine, 
Leur  jeu  de  lliéatre  badin, 
Oisáipail  le  plus  fort  chagrin. 
Mais  la  mort,  en  une  semaine. 
Pnur  venger  son  séxe  viulin, 
PH  à  lous  Irois  trouoer  leur  fin. 

(luillaiime  representava  com  a  cara  descoberta,  mas  os  seus  dois  compa- 
nheiros usavam  sempre  mascara.' t'a(la  um  d'ellcs  tinha  um  trajo  característico, 
que  nunca  mudavam  na  farça.  Anles*de  entrarem  na  compatihia  do  Hotel  de 
jiorgoiilin,  linhnm  estabelecido  o  si  ii  thealro  n'um  jogo  da  pella,  que  não  podia 
conter  todos  os  curiosos  altrahidos  i)cias  representações.  Õ  cardeal  Riehelieu 
leve  desejos  de  v(M-os  trabalhar,  e  julgou-os  dignos  de  figurarem  no  Hotel  de  lior- 
gonha,  para  onde  os  populares  actores  levaram  as  suas  farças  c  canções. 

Suppòmos  que  estas  farças  eram  devidas  ao  talento  cómico  dos  dois  acto- 
res Turlupin  e  (luillauinc,  por  isso  que  a  denominação  de  Turlupinades,  ficou 
d'ahi  por  diante  consagrada  ás  facécias  que  clles  improvi.«avam,  como  os  cómi- 
cos italianos,  (".onsla  alem  disto  (jue  as  canções  dos  três  amigos.  Ião  aprecia- 
das pelo  publico,  eram  devidas  ao  eslro  de  (íaultier-tlarguillc,  que  as  impri- 
miu em  \{VM  (Paris,  Turga,  in-li),  obtendo  para  is.so,  sob  o  seu  verdadeiro 
nome,  um  jirixilcgio  do  rei,  outorgado  aí)  nosso  mniia  aniadn  lliKjit  Ilueni, 
um  dos  nossos  rohticos  ordinários,  para  (jue  não  reniiam  (iniros  onresrentar 
rnnròps   mais   dissolutas.    A   Cani-ão  de  (iaullier-liarfjinlle,  por  mais  dissoluta 


UA    PROSTITUIÇÃO  597 

que  fosso,  lornou-sc  imiilo  cclel^T  n'aquellc  tempo,  e  liavia  miiilo  (|uom  so  di- 
rigisse ao  tliealro  do  P,ilai"io  dç  norfjonlia  só  para  a  ouvir. 

Quaiilo  ás  fardas  em  (|iie  'ruiiupin  (^Henri(|iie  Legrand)  se  distinguia  pe- 
las suas  laeeeias  engenhosas  e  dilos  engraçadíssimos,  não  tiveram  eilas  prova- 
velmente as  honras  da  imi>ressrio,  e  si)  as  eonheeemos  hoje  por  algumas  see- 
iias,  reproduzidas  nas  antigas  enlleeções  de  estampas  de  .Marielle  c  IJosse.  De 
resto,  estes  illusires  eomieos  haviam  famhem  tentado  a  comedia  lieroiea,  (|ue 
por  vezes  descia  ás  vulgaridades  da  larça. 

O  Palácio  de  Borgonha,  onde  se  representaram  farças  propriamente  ditas 
até  meiado  do  século  xvi,  linha  no  principio  do  século  um  actor  cómico  tão  ta- 
moso  c  distincto,  como  o  Coram  mais  tarde  Turlupin,  (laultier  e  Ciuillot-Cioi ju. 
Era  e!le  um  tal  Deslauriers,  que  havia  adoptado  a  alcunha,  ou  nome,  de  guerra, 
de  Hruscamhille,  soh  o  qual  compunha  e  publicava  peças  que  representava, 
como  uma  espécie  de  entremezes,  que  tinham  o  publico  entretido  entre  as  duas 
peças,  e  que,  por  assim  dizer  o  preparavam  para  fazer  um  bom  acolhimento 
aos  disparates  da  farça. 

O  uso  d'estes  intervalios  cómicos  e  licenciosos  remontava  |)or  certo  aos 
espectáculos  dos  pois  pilrs,  de  (|ue  já  falíamos,  e  o  gracioso  que  vinha  recitar 
ao  publico  um  monologo  ou  um  sermão  burlesco,  aproveitava  todos  os  meios, 
ainda  mesmo  os  mais  indecentes,  para  despertar  a  hilaridade  dos  espectadores, 
que  não  coravam  nunca,  por  mais  obscena  que  fosse  a  phrase,  ou  por  mais  li- 
cenciosa que  fosse  a  pantomima.  Assim,  chegaram  os  cómicos  á  audácia  de 
recitarem  em  pleno  thealro  o  Sennoii  jaijeux  liun  (Irpuceleur  de  nourrices,  e 
muitos  outros  monólogos  em  verso  ou  prosa,  não  menos  divertidos  nem  menos 
indecentes. 

No  tempo  de  Henrique  iv,  Bruscambille  tornou-se  celebre  pelas  arengas 
jocosas  que  dirigia  aos  especladorcs  antes  ou  di'pois  da  comedia,  e  (juc  se  ba- 
seavam sobre  toda  a  espécie  de  assumptos,  extravagantes  ou  ridículos.  Ora  na 
demanda  do  piolho,  imitava  as  formas  judiciacs  e  a  eloquência  pcdantesca 
do  foro,  ora  n'um  panegyrico  cm  favor  dos  grandes  narizes  paraphraseava  sen- 
tenças esdrúxulas  cm  latira  macarronico.  Umas  vezes  esforçava-se  por  desco- 
brir debaixo  das  saias  das  mulheres,  os  niysterios  do  salto  das  pulgas  :  outras, 
contava  ao  publico  as  peripccias  de  uma  viagem  ao  ceu  ou  ao  inferno  para 
interrogar  os  manes  sobre  esta  grande  questão  :  1'ter  vir  an  mulier  se  maijis 
de.lectet  in  copulatione.  Na  sala  sabia-se  o  latim  sufficiente  para  comprehender 
o  de  Bruscambille,  c  o  [)ub!ico  perdia-se  de  riso,  ainda  mesmo  quando  não  o 
compreliendia,  porque  a  acção  dizia  tanto  como  as  palavras  do  cómico. 

A's  vezes  Dcslauriers  começava  a  tractar  jocosamente  assun)[»tos  sérios, 
que  agradavam  muito  menos  aos  frequentadores  do  theatro  de  Borgoniia.  Fazia 
o  elogio  do  theatro,  procurando  expurgal-o  da  nota  de  infâmia  que  pesava  soi)re 
o  cómico,  mas  via-se  obrigado  a  voltar  bem  de|)ressa  á  sua  eloquência  bur- 
lesca e  licenciosa,  accumulando,  por  exemplo,  as  torpezas  c  obscenidades  mais 
excêntricas. 

,0  marquez  de  Boure  cita,  na  sua  Ámúecla  llihlion,  (t.  ii,  p.  I;)2  e  se- 
guintes) alguns  dos  provérbios  obscenos,  pbanlazias,  e  paradoxos  impudentes. 


598  HISTORIA 

que  Deslaiiricrs  recitava  cm  sccna.  Remctlcmos  o  leitor,  que  desejar  cscla- 
recer-sc  meliior  sobre  o  assumpto  para  as  yúurp.ltes  el  plaisantes  iiiKKjinalions 
íle  liruscambille,  que  o  auctor  ousou  dedicar  a  Momeigneur  le  l'iince,  quer  di- 
zer, a  Henrique  de  Bourbon,  príncipe  de  Conde. 

E  tudo  isto  se  imprimiu  e  i-eimprimiu  com  privilegio  d'el-rci !  E  tudo 
isto  se  representou,  não  só  no  theatro  de  Borgonha,  como  também  em  todos  os 
denominados  Théatres  de  Campagne,  que  seguiam  o  seu  repertório!.  .  . 

O  mal  não  seria  nuiilo  para  deplorar,  ainda  assim,  se  o  publico,  que  fre- 
quentava estas  obscenas  representações,  se  compozesse  apenas  de  libertinos,  be- 
bi iiões,  prostitutas  e  outra  gente  perdida;  mas  não  succcdia  assim,  infeliz- 
mcnli'1  O  homem  lujnesto  levava  ao  Ihealro,  como  hoje  succede,  sua  mulher  e 
suas  lilhas;  os  rapazes  novos  tinham  paixão  por  esta  classe  de  espectáculos  que 
os  conduziam  á  libertinagem,  e  assim  o  theatro  vinha  a  ser  um  seminário  de 
amores  fáceis,  uma  eschola  de  voluptuosidades,  em  que  os  maridos  iam  apren- 
dei- a  enganar  as  mulheres,  estas  os  maridos,  a  juventude  a  corromper-se  e  as 
proxenetas  a  explorar  toda  aquella  gente,  n'esse  fecundo  campo  de  prostituição! 

O  povo  perdia-se  alli  c  jm  o  mau  exemplo  e  com  a  seducção  do  mau  exem- 
pla. Mas,  ainda  mesmo  que  não  fosse  ver  as  farças  ao  Hotel  de  Borgonha,  lá 
tinha  as  do  Hotel  d'.4rgent,  as  da  feira  de  Saint-fiermain,  e  as  que  se  repre- 
sentavam nos  jogos  da  pella,  para  se  preverter  á  vontade  e  por  preços  módicos. 
Tinha  ainda  uma  larga  eschola  de  desmoralisação  nas  exhibições  do  Pont-Neuf, 
ao  ar  livre,  e  nas  da  praça  Dauphine.  Podia  alli  ir  ver  e  ouvir  de  graça  as  phan- 
tazias  do  grande  Tabarin  e  do  barão  de  Gratelard,  que  vendiam  as  suas  dro- 
gas, unguentos  e  perfumes  serelos,  com  o  auxilio  d'essas  farças  joviaes,  im- 
pressas e  reimpressas  tão  repetidas  vezes  para  corresponder  á  sollicitude  do  pu- 
blico, (|ue  não  se  assustava  com  a  escabrosidade  do  assumpto,  nem  com  a  li- 
cença e  obscenidade  da  linguigem. 

Tabarin  e  os  seus  émulos  tinham  o  direito  de  dizer  tudo  do  alto  dos  seus 
tablados,  e  os  transeuntes  tudo  podiam  ouvir  lambem.  Se  por  acaso  andava  por 
alli  algum  ommissario  de  policia  nunca  se  lembrava  de  interromper  os  pra- 
zeres do  jiublico,  impondo  silencio  áquelles  desaforados  actores  das  farças  de 
Tabarin,  que  só  muito  mais  tarde  foram  prohibidas  por  decreto  do  parlamento. 


IIM  DO  2."  VOLUME 


INDICK  DO  TOMO  SKGUNDO 


II 

III 

IV 
V 


SEGUNDA  PARTE 


PAG. 

Capiliilo  1              -T 

15 

23 

31 

43 

VI           55 

vil          ■ .  (lÕ 

VIII         73 

IX 85 

X             97 

XI          109 

XII          119 

XIII         129 

XIV         141 

XV          153 

XVI         1B7 

XVII        181 

XVIII       195 

XIX         209 

XX          225 

XXI         237 

XXII        253 

xxm       203 

XXIV       271 

XXV        281 

XXVI       297 

xxvii      315 

xxviíi    325 

xxii       335 

XXX        349 

XXXI       3ii3 

XXXII      377 

XXXIII    389 


600  índice 

l'AG. 

Capitiilo  XXXIV  ^  401 

"         xssv  417 

xxxvi  437 

"         XXXVII  457 

"         XXXVIII  477 

»         XXXIX  511 

XL  ,521 

iLi  535 

»        XLii  545 

»         iLiii  561 

»        xLiv  579 


-c<^^^>o- 


^ 


IIsTIDIOE 


OKAVURAS    r>0    X03I0    «EOUIVOO 


OltAVinAS  TAC. 

Fronti'spicio  :  A  sediic.;io  1 

A  Corte  dos  Milagre? 115 

Castigo  de  uma  adul  e  a  cm  Tolosa   147 

Castigo  de  uma  proxeneta  na  Edadf-Jlédia 158 

Castigo  de  uma  adultera  uo  Berry 203 

O  duque  d'Orleans  e  Mr.   le  Cany • 341 

Coutineiicia  de  Carlos  viii 355 

Catiiariíia  de  .Medíeis  e  Dian.i  Je  Tniliers 391 

Margarida  de  \'aIois,  rainhn  de  Navarra 479 

Gabriella  d'Eslrées - 499 

Henriqueta  de  Baixar  d'Eiitragues 505 

As  arrependidas 533 

Uma  casa  de  prostituição  no  reinado  de  Luiz  xiii 549 


i 


HQ 
111 
1,219 
1885 

t.2 


Lacroix,  Paul 

História  da  prostituigão 


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