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Full text of "Homenagem do Instituto Geographico e Historico da Bahia ao grande e famoso ..."

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HARVARD COLLEGE LIBRARY 

SOUTH AMERICAN COLLECTION 




THE GIFT OF ARCHIBALD CARY COOLIDGE, '87 

AND CLARENCE LEONARD HAY, '08 

IN REMEMBRANCE OF THE PAN-AMERICAN SCIENTIFIC CONGRESS 

SANTIAGO DE CHILE DECEMBER MDCCCCVIII 



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AO GRANDE E FAMOSO ORADOR 

ntr$ Jfakmro Tiara 



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No bi-centenario de sua morte 



ORGANISADA 



Pelo 1.° Secretario Cons. João Nepomuceno Torres 





BAHIA 

1897 






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AND 

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I 



Commissão executiva âo Centenário 



Dr. José Francisco da Silva Lima. 
Dr. Braz Hermenegildo do Amaral. 
Dr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos. 
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães. 
Professor F. Torquato Bahia da Silva Araújo. 
Cónego Manfredo Alves de Lima. 
Dr. José Júlio de Calasans. 



Mesa Administrativa do Instituto 



Presidente — Cons. Salvador Pires de Carvalho 
e Albuquerque. 

I o Vice-Presidente — Dr. Satyro de Oliveira Dias. 

2 o Vice-Presidente — Cons. Pedro Mariani. 

I o Secretario — Cons. João Nepomuceno Torres. 

2 o Secretario — Dr. Isaias de Carvalho Santos. 

Supplentes — Aloysio de Carvalho e José Lopes 
Velloso. 

Thesoureiro — Capitão Francisco Gomes Ferreira 
Braga. 

Orador — Dr. Braz Hermenegildo do Amaral. 

Substituto — Dr. Filinto Justiniano Ferreira 
Bastos. 



V I 



Programma do Centenário 



11 de Julho, ás 8 horas da noite 

Discurso inaugural pelo Presidente do Instituto, 
Cons. Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque; 
primeira conferencia pelo orador do Instituto, Dr. 
Braz H. do Amaral. 

13 de Julho, á mesma hora 

Segunda conferencia pelo Dr. Ernesto Carneiro 
Ribeiro. 

15 de Julho, á mesma hora 

Terceira conferencia pelo Revd. padre Elpidio 
Tapyranga. 

17 de Julho, á mesma hora 

Quarta conferencia pelo Revd. Monsenhor Dr. 
José Basílio Pereira. 

18 de Julho 

A's 9 horas — Missa na Cathedral, celebrada pelo 
Exm. e Revm. Sr. Arcebispo, e em seguida benção 
de uma lapida commemorativa por S. Ex. Revma. 

A's 10 horas — Procissão civica e collocação da 
lapida na fachada da Cathedral, antigo collegio dos 
Jesuítas; allocução do Vice-Presidente do Instituto, 
Dr. Satyro de Oliveira Dias; visita publica á cella 
do Padre António Vieira no mesmo collegio, à an- 
tiga capella do Provincial dos Jesuítas e à expo- 
sição bibliographlca no actual edifício da Facul- 
dade de Medicina. 



# 



PARTE I 



CONFERENCIAS SOBRE O BI-CENTENARIO 



DO 



'ak* jfcttoma Ymra 



DISCURSO INAUGURAL 

Pelo Presidente do Instituto 

Cons. Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque 

Exmas. Senhoras: 

Exm. Sr. Governador do Estado: 

Meus Senhores: 




Sbre hoje o Instituto Geographico e Histórico da 
' Bahia de par em par as portas do seu templo 
para recolher em sua nave soberba o que de mais 
selecto possue, pelo talento e pela bravura de seus 
filhos, a Athenas, senão a Sparta brazileira; mas o 

Sue symbolisa o brilho de tantas luzes, o esplendor 
esses ornatos, o perfume de tantas flores no meio de 
uma athmosphera tão serena e grave de que apenas 
se destacam visivelmente a curiosidade reverente, a 
inquirição muda de tão numeroso quanto respeitável 
e luzido auditório? 

Quizera poder honrar-me abrindo-vos, com chave 
de ouro, aquelle pórtico augusto, quizera dispor da 
extensa voz de Stentorpara robustamente, de uma 
só inflexão, annunciar-vos o que significa tão ap- 
paratosa sessão cujos tons fluctuam entre o lúgubre 
e o festivo, em que os espíritos como que ora expan- 
dem-se nas alegrias, que levam ao coração as gratas 
reminiscências, ora parecem concentrar-se no som- 
brio recolhimento de uma commemoração funérea. 
Seja, porém, o que for, ir-vos-hei a pouco e pouco 
descerrando o véo, não muito avaro, dos fulgores 
que abrilhantam este recinto, cuja escolha, já de 
per si, dá a primeira indicação do objectivo de tão 
A. V. 1 



imponente solemnidade. E si do recinto passarmos a 
contemplar o soberbo edifício em que acha-se elle en- 
cravado, ainda, através da justa admiração que produz 
a solidez de sua alvenaria, a singeleza de seus már- 
mores, a belleza de sua architectura, a opulência de 
seus relevos, divulga-se bem ao longe, como que 
extinguindo-se na penumbra do passado, os vultos de 
tantos heroes que, celebrados no mundo das lettras, 
não foram menos celebres na ingente obra da con- 
strucção de uma nacionalidade sobre o solido ali- 
cerce da cathechese e instrucção da gentilidade. 

Sim, foi aqui, neste monolitho de mármore, que 
impávido vae atravessando a acção destruidora dos 
séculos que passam; foi aqui a sede de uma das pro- 
víncias aa mais celebre das ordens sacras do orbe 
catholico, a cujo grémio, entre outros, pertenceram 
Vasconcellos, Vicente do Salvador, Nóbrega e An- 
chieta; daqui, centro de fé e de luz, foi que a virgin- 
dade das selvas brazilicas, tocada pelo sol das vir- 
tudes, abnegação e sciencia de tantos e tão inclytos 
martyres, fecundou a civilisação, que crystaUisou a 
nacionalidade brazileira: era realmente um verda- 
deiro systema planetário a grande companhia de Je- 
sus, essa vasta concepção de Loyola, da qual, de 
ãuando em vez, surgia, por entre as nebulosas de 
eseu infinito horisonte, um foco de luz tão intenso 
que, ao lado do astro-rei, parecia irmão do soll 

• 
* * 

Estavam turvos desde fins do século XV I os ho- 
risontes da Europa, principalmente para os lados 
da Ibéria; o dominio de Castella expandia-se para o 
norte e para o occidente, e a ambição adunca de 
seus reisapprehendera, e, entre suas garras, com- 
primia o esguio reino visinho desde 1580, quando, 
gela morte de D. Henrique, o cardeal, Felippe 2.° de 
[espanha cingiu as duas coroas; o commercio, a la- 
voura e a industria sentiam-se vulcanicamente estre- 
mecidos; o espirito publico, profundamente abatido, 
tragava em silente ódio as numilhações a que era 
subraettido; os vastos domínios sobre os quaes ga- 
lhardamente tremulavam, não havia muito, as 



luzas quinas, eram presas da Hollanda, como da 
França e da Inglaterra, que os avassalavam não 
só na Europa, como em todo velho e novo continente! 

Foi sob tão pesada athmosphera, que na cidade de 
Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608, soltara o primeiro 
vagido uma criança cujos pulmões, até os mais pro- 
fundos capillares, recolheu na primeira insuflação, 
de envolta com o oxigénio necessário á vida, uma 
partícula de todos os miasmas em suspensão na- 
quelle meio em que, pela vez primeira, a luz cre- 
puscular das amarguras luzitanas ferira a retina 
dessa criança, que recebeu no banho lustral o nome 
de António Vieira Ravasco, gravando-se tão fundo 
naquella intelligencia embryonaria a lúgubre vinhe- 
ta, que desenhava aquella época luctuosa, que ja- 
mais poude extinguil-a a acção do tempo, e contra a 
qual o seu espirito, desdobrando-se depois em um 
possante talento, cuja cultura fez-se em apropriada 
retorta, entre a taciturnidade sombria do claustro e 
os perfumes de clássica bibliotheca, tinha de arcar em 
todas as direcções e sentidos, patenteando as múl- 
tiplas faces da sua omnimoda aptidão intellectual, 
a possança de sua illustração e facúndia, tão vastas 
e admiráveis para aquelles tempos, que o não pu- 
deram reter nem os vergalhões da clausura claustral, 
nem os severíssimos preceitos da passiva obediência 
monástico inquisitonal : quiçá melhor interpretando 
o ad majorem Dei gloriam, divisa eterna da -Ordem 
que professara. 

Sinto, Senhores, que não vos possa ainda des- 
cerrar de todo o diaphano véo, que já não occulta 
somente uma criança predestinada, senão o vulto 
respeitável de quem, no mundo illustrado, descre- 
veu, sobretudo na larga zona luzo-brazileira, a mais 
fulgurante trajectória, que abriu em constellado fir- 
mamento tão profundo sulco, tão láctea via que 
jamais conseguirão apagar nem os maiores pheno- 
menos sideraes, nem a acção delecteria do elemento 
que tudo transforma, consome e leva, que o poeta 
latino desenhou nas palavras: «ternpus ferre omnia 
consuevit.» 



Sinto que a posição que immerecidamente occupo 
nesta solemnidade, cujo programma tão sabia e dis- 
cretamente traçou a illustrada e operosa commis- 
são, que foi delia incumbida pelo Instituto e cujo 
desempenhe, bem o vedes, não poude ser mais sur- 
prehendente, não me permitta ir além de uma sim- 
ples e breve allocução inaugural, em que antecipa- 
ções que me escapassem seriam duplamente imper- 
doáveis: um attentado a vossa justíssima anciedade, 
uma subtracção inglória dos primores oratórios que 
vão dentro em pouco echoar neste recinto, ou talvez 
um rapto que debalde tentaria encontrar a justifica- 
tiva que absolveu o immortal Franklin — quando m- 
puit ccelo fulmen. 

Mas por menos que deva dizer eu não poderia 
conter sem fazer-me violência, os estos do meu en- 
thusiasmo diante da magnificência desta solemnida- 
de em honra do vulto, que alli vedes, por tantos tí- 
tulos venerável, que para encomiar cada um delles 
foi commissionado um talento de primor dos muitos 
que possue a Bahia, dedicados á esmerada cultura 
das lettras, das sciencias e da historia, solemni- 
dade tão imponente e deslumbrante que não sei si 
a qualifique de festiva ou fúnebre. 



Senhores, desde os tempos mais remotos, desde 
a aurora das civilisações primitivas, todos os povos 
prestaram sempre homenagens e respeitos aos seus 
homens doutos, como áquelles que pelo tino e pers- 
picuidade levaram a melhor ao commum de seus 
compatriotas: é assim que os lettrados da China, os 
magos dos Persas, os padres dos Guebros, os drui- 
das dos Gaulezes e até os pagés das tribus selvagens 
eram tidos como oráculos e tinham em torno de si 
uma aureola de venerações e acatamentos. Essa reve- 
rencia e culto tradicional aos sábios e notabilidades 
de todos os tempos é como um instincto da perfec- 
tibilidade quevae haurir na pureza das origens, ele- 
mentos de progresso para a vida do espirito. 

Mas os sábios não morrem, porque elles são, como 



— $ 



já o disseram, pharoes nos desertos da humanidade, 
irradiando sua luz sobre os ermos do espirito; e como 
immortaes, porque suas fulgurações não perdem a 
intensidade, a commemoração do traspasso de sua 
existência material para a vida dos espíritos, deve, 
como um tributo de veneração, uma publica home- 
nagem á sua memoria, antes revestir os estofos de 
gala de que o crepe da tristeza: eis porque na coroa 
de gloria que enaltece aquella fronte severa e pensa- 
tiva, dentre os goivos da saudade destacam-se também 
purpúreas rosas. 

E que melhor interpretação poderse-hia dar ao 
pensamento que ditou a commemoração que hoje ce- 
lebramos; si o vime tornou-se roble; si a timidez da 
infância transformou-se em incoercivel coragem tan- 
tas vezes comprovada, ante a fereza anthropophaga 
do selvagem, como na presença das tempestades em 
que tantas vezes achou-se o homem, que aquelle vulto 
recorda, em frágeis caravellas, em pleno oceano que 
parecia, sempre que o sentia sobre seu movediço 
dorso, disputar á terra o direito de possuil-o, e ao 
qual enfrentava com a stoica intrepidez de um verda- 
deiro lobo domar, que «ou morre sem gemer no vór- 
tice espumante» «ou resurge astro ovante após o ven- 
daval» (*); entre os inextricáveis enredos da corte, 
como no meio das traças de arguta diplomacia; diante 
das injustiças e perseguições seculares ou ecclesias- 
ticas, como nasluctas pela sciencia em um século em 
mie desabrochavam talentos philosophicos, como os 
de Descartes e Leibnitz, génios astronómicos como o 
de Newton; si aquelle que celebramos com o nome de 
padre António Vieira, cognominado «o Grande,» para 
honra e gloria de sua pátria, que também era nossa, 
fez-se por si mesmo uma notabilidade universal 
«one self made man»; si após 200 annos a reminis- 
cência de seu nome, o brilho de seus feitos illustres, 
perdura indelével nas lettras e nas sciencias, nas bi- 
bliothecas, como nos annaes de sua Ordem, na his- 



(*)— R. Muniz Barreto. 



toria universal, como è principalmente, na de Portu- 
gal e do Brazil? 

E' que, Senhores, já o disseram com espirito, se 
deve julgar dos homens como das contas correntes; 
nem pelo debito, nem pelo credito, mas pelo saldo. 
Pois oem, aquelle vulto, cuja vida inteira vae ser sub- 
mettida á sabia critica dos illustrados conferentes, 
teve a seu favor tão grande saldo que dois séculos não 
puderam dissipar; e é, como tereis de ouvir, dos 
poucos que, pelo rastro luminoso deixado em sua 
gloriosa passagem entre os homens, como pela rigidez 
de sua tempera, pela oceânica profundeza e vastidão 
de seu génio, admirado nas cortes da Europa, onde 
relembrava Bossuet, e até pelo sólio Pontifício, onde 
parecia un novo Chrysostomo, nem dissolve a exten- 
são do espaço, nem destroe a acção do tempo. 

As impressões fundamente gravadas no grande 
coração da humanidade são eternas, e assim a me- 
moria do padre António Vieira se perpetuará através 
dos séculos porvir, envolta em uma tão deslumbrante 
nebulosa que a universalidade dos povos cultos lhe 
renderá sempre respeitosa veneração; que Portugal 
se desvanecerá de haver produzido nelle um dos mai- 
ores génios, e que mais renome deu-lhe; que o Brazil, 
tendo sido o scenario principal de sua vida sacer- 
dotal, sentir-se-ha por isso compensado de lhe não 
ter sido o berço; que a Bahia se ufanará sempre de 
ter illuminado o seu espirito, cultivado o seu talento, 
e de o haver, emfim, recolhido no seu regaço de pre- 
ciosas gemmas, como em lindas colchas d'ouro o 
occaso recebe o sol; e finalmente, Senhores, o «Insti- 
tuto Geographico e Histórico», não menos ávido de 
uma parcella da honra, que tanto entre si pleiteiam 
suas duas pátrias, de glorificar o bi-centenario da 
ausência de tão homérico vulto, reservou para si 
apenas a honraria de, por entre as grinaldas deposi- 
tadas hoje pelas lettras e sciencias em torno do mo- 
numento que lhe erige a humanidade, burilar no pe- 
destal em que descançam as columnas de seu glorioso 
e immarcessivel renome, uma inscripção modesta que 
possa em pouco traduzir o muito, como pela voz da 



poesia sabem dizer génios como foi o de Castro 
Alves. 

« . . .Quando o tempo entre seus dedos 
Quebra um século, uma nação, 
Encontra nomos tão grandes 
Que não lhe cabem na mão.» 

Estão inauguradas as conferencias commemora- 
tivas do bi-centenario do padre Vieira; tem a palavra 
o primeiro conferente, o orador do «Instituto». 



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> 






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A. V. 




PRIMEIRA CONFERENCIA 

11 de Julho de 1897 
Orador. — Dr. Braz do Amaral 

Exm Sr. Dr. Governador: 
Senhores: 



I 
encarregado da biographia de António Vieira, a 

> traço largo, não venho fazer um panegyrico enco- 
miástico a um homem ou ú sua memoria, mas pro- 
curar fazer resaltar a luz da verdade e da critica 
histórica sobre uma das grandes individualidades do 
século XVII, que é o typo, que é o representante 
privilegiado da litteratura e da eloquência portugueza, 
as quaes se tornaram pela força mesmo das coisas, 
pelas affinidades da lingua e do sangue, neste ponto 
de contacto, pelo menos, as próprias predecessoras da 
lingua e da litteratura nacionaes. 
Ao morto illustre, cuja memoria fazemos realçar 

D'esta conferencia disse o «Diário de Noticias»: «O Dr. Braz 
occupou-se brilhantemente da biographia do notável jesuíta. 

Foi uma peça de alevantada eloquência, de rutilancias de 
phrases aprimoradas, que deixou vivo deslumbramento no espi- 
rito de todos os ouvintes». 

E ainda o «Diário da Bahia»: 

«Assomando a tribuna, o orador, com aquella voz e scintil- 
lante eloquência que lhe anima a palavra de homem estudioso, 
discorreu de modo soberbo, traçando a biographia de António 
Vieira e analysando os factos e os acontecimentos históricos que 
se prendem á vida do notável jesuíta. 

Durante. todo o tempo em que se manteve na tribuna teye o 
auditório preso de sua palavra, que mais uma vez conquistava 
um verdadeiro triumpho.» 



iâ 



com esta sincera homenagem, honra hoje de duas 
pátrias, pelas mudanças que a politica e as exigên- 
cias da liberdade e da própria vida estabeleceram 
entre os dous povos, noutro tempo unidos sob uma 
mesma lei, e uma mesma te, a este morto illustre 
temos razão de sobra para respeitar e para amar. 

O arcebispo D. Romualdo António de Seixas já 
deixou fora de duvidas a questão aventada ha tempos 
de ser ou não Vieira nascido neste paiz. 

A nossa pátria, porém, nada perde por isso, porque 
para nós a magna questão, o facto de incontestável 
importância équeelle aqui se formou, robusteceu e 
se habilitou para os prandes feitos que illu.stram a 
memoria do espirito de escol que hoje commemo- 
ramos. 

Um dos seus melhores biographos, que aliás não ^ 

o Doupa, João da Silva Lisboa, diz terminantemente: 
«Os fortes estudos começados no Brazil continuou- 
os elle em Portugal com o mesmo fervor, sem em- 
bargo dos multiplicados e graves negócios que lhe 
enchiam quasi o tempo, pois das suas mesmas mis- 
sões politicas e diplomáticas tomava occasião para 
examinar na Europa as melhores livrarias e tratar 
homens eminentes. 

Todas as novas publicações devorava com avidez 
e sendo sempre o bibliothecario da ordem noscolle- 
gios em que residia, mais era morador da livraria _& 

que da cella.» 

Neste terreno, sob esta cobertura, sobre estas 
taboas passaram-se o principio e o fim daquella exis- 
tência dramática, desenrolaram-se a aurora e o 
crepúsculo dessa vida de um homem que fui sacer- 
dote, pregador, litteratc e publicista, que subiu aos 
cúmulos a que podia aspirar a ambição naquella 
epocha, que gosou do favor, quasi da omnipotência 
junto a um rei, para descer depois até a defender- 
se de crimes indignos que lhe imputaram e de ser 
profundamente insultado por um governador brutal; 
vida que não foi, porém, manchada pelos excessos 
da mesa como a de Pitt, pelo sangue das compres- 
sões como a de Cicero, nem degradada como a de 



13 



Rodney, mas fecunda, eminente e altiva, nãosecca e 
egoísta como a de Goethe, mas tão profundamente 
trágica, tão epicamente grandiosa e triste como as 
vidas de todos os grandes desequilibrados, de todos 
os homens de ambição c de génio, desde Pyrrho até 
lord Byron. 

Subindo da modéstia da sua infância ao valimento 
de um throno, como Demosthenes tinha subido da 
loja paterna do alfageme até a paixão patriótica, 
até ser o interprete da independência hellenica, até 
encarnar em si o resto da nobreza e da dignidade 
da sua grande pátria decahida, da grande alma de 
Athenas, elle seguiu, já edoso, como o outro, também 
velho grego, o caminho amargo das quedas de gráo 
em gráo até chegar á humilhação de uma sentença 
ignominiosa como ohoroe das Philippicas ao veneno 
de Calauria. 

Também aquella outra águia da tribuna latina, 
subindo victoriosa os degràos do toro romano, pre- 
cedida pelos doze lictores do consulado, acompa- 
nhada pelo séquito dos senadores e dos cavalheiros 
3ue, como clientes, o conjuravam para que não per- 
oasse Lentulus e Istatilius, a salvar a elles da ordem 
equestre e a elles patrícios assim como as suas for- 
tunas, mesmc pelas tramas, mesmo pelo sangue 
vertido mysteriosamente no Tullianum, para voltar 
a essacolumna dos seus triumphos, tão illustre como 
os esporões de bronze dos rostros com a lingua es- 
petada pela agulha de Fulvia, a esposa implacável de 
António, que vingava, com raiva de mulher, as im- 
precações da eloquência contra o seu marido, a 
fuga precipitada de Roma, as d-ecepções da ambição 
desmedida do general, e os perigos da guerra de Mo- 
dena, também aquella águia da tribuna latina não 
foi mais feliz do que elle. 

Condeninado ao celibato pela sua roupeta nem 
teve ao menos o grande e desditoso jesuíta na sua 
velhice, longa e triste, como a de Augusto, a con- 
solação que elle confiava á fecundidade de sua 
irmã, aquella mesma Leonor Ravasco, de quem 
era de esperar, a continuação do nome dos Vieiras, 



i4 



porque esta irmã foi estéril por alguma moléstia ou 
por algum capricho da natureza. (*) 

A esta memoria augus f a pelas fulgurações do ta- 
lento e pela intensidade dos soffrimentos temos 
razão de sobra para considerar uma genuína e das 
primeiras grandes -intelligencias do nosso paiz, 
porque foi no Brazil que se desenvolveram e forma- 
ram a sua imaginação e o seu senso, o seu gosto e a 
sua vocação. 

Não foi esta cidade, não foi esta mesma casa, não 
foi esta mesma argamassa que nos abriga que abri- 
gou a mocidade estudiosa de Vieira? 

E não fui ainda aqui que o génio, amadurecido 
pela edade e pelas desgraças, cortido pelas desillu- 
sões e pelas desesperanças, que o corpo abatido pelos 
achaques e pelas quedas veio reconciliar-se, abrir-se 
ás esperanças novas de sua fé, aprofundar-se na 
ideologia grandiosa das suas devoções, das suas ar- 
dentes crenças em Deus? 

Não ha, pois, ponto do Brazil em que essa existên- 
cia se tivesse desenvolvido melhor, eque tenha mais 
razão para íazer-lhe a homenagem que ora empre- 
hendemos, e não halogar, inclusive a própria Lisboa, 
em que ella se possa fazer mais justa pela relação 
histórica dos edifícios, pela solemnidade terna que 
o theatro da infância o da morte imprimem á vida 
de todos os homens! 

Si não foi este o campo da sua gloria mundana, 
foi o do seu preparo e o da sua agonia. 

Têm os homens demasiado grandes, como Vieira, 
dimensões que não se subordinam á intelligencia, ao 
modo de viver e pensar um tanto estreito dos seus 
contemporâneos. 

EUes são, nas cspheras da intelligencia e do ca- 
racter, á semelhança dos revolucionários, separados 
do seu tempo, porque se adiantam a elle e o prece- 
dem nas idéas e nos sentimentos. 



(*) E' possível que existam ainda, entre nós, descendentes 
de Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre António Vieira. 

«N. do A.» 



15 



Por isso talvez, Vieira commetteu gravíssimos 
erros e sacrificou algumas vezes tudo ao interesse do 
momento, quasi ambicioso como um César, e vaidoso 
como uma creança, pois alie queria muito a gloria dos 
factos sabidos que elevavam a sua fama, mas é pre- 
ciso confessar também, que havia sempre um ob- 
jectivo nobre nas suas" acções. Encontra-se o alvo 
de uma convicção honesta no fundo de todos os 
seus sentimentosl 

Podia haver desvio, mas havia intenção meritória, 
filha de um principio que se lhe afigurava bom ou 
genoroso. 

Como quasi todos os homens de excessivo ta- 
lento, nelle, não raro, a imaginação prejudicava a 
razão; mas quando isso se deu foi sempre de boa 
fé. 

Sustentou por exemplo a causa impatriotica do 
abandono de Pernambuco, mas não o fez comprado 
pelo dinheiro do estrangeiro, mas porque exagge- 
rava os perigos de Portugal, a braços com a guerra 
na fronteira e a guerra no mar, sem thesouros e sem 
frotas, visto no mundo inteiro como um pequeno 
principado rebelde, desconhecido como egual por 
todas as cortes, repellido do congresso de Munster, 
humilhado por todas as recusas. Porque enxergou 
nesse abandono economia e interesse para a sua 
pátria. 

Não tomou, por exemplo, a si essa defeza impo- 
pular pelas causas que levaram Danton a cnxuva- 
lhar-se nas concussões da Bélgica, pelos excessos de 
agentes ou amigos seus como Fabre d'Eglantine e 
Lacroix. 



Nascido em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, An- 
tónio Vieira veio para o Brazil com sua família, a 
qual aqui estabeleceu domicilio em 1615, ou porque 
seu pae viesse despachado para exercer algum 
cargo publico, ou por outro motivo que é desco- 
nhecido, 



16 



Frequentou logo as aulas da escola dos jesuítas 
que tinham naquella epocha, aqui e em toda a parte, 
grande reputação como educadores. 

Provavelmente conheceram os professores a capa- 
cidade do discípulo e tentaram seduzil-o pelo agrado, 
ou a ambição própria do caracter do futuro amigo de 
D. João IV cedeu a essas preferencias por compre- 
hender c[ue era realmente entrando para a ordem que 
elle podia mais fácil e seguramente seguir pela trilha 
da grandeza, da reputação e do poder. 

O que é certo é que aos 15 annos fugiu da casa 
paterna para recolher-se a este collegio, onde pro- 
fessou dois annos depois. 

Aos quatro lustros manifestou a resolução de ir 
pregar aos indios e africanos, provavelmente por 
uma dessas altruisticas irreflexões da juventude que 
nos assoberbam nas horas de enthusiasmo ou por 
um desses devaneios melancólicos, tão frequentes nas 
organisações nervosas e nos intellectuaes. 

Os superiores, porém, não consentiram nisso, e 
o moço padre foi leccionar rethorica no collegio de 
Olinda. 

Elle, porém, só celebrou em 1635. 

Já a esse tempo tinha percorrido, por gosto próprio 
ou em serviço da ordem, quasi todas as aldeias 
de indios da Bahia e já o seu nome subia no con- 
ceito publico, entre os colonos, pelos seus sermões 
nas egrejas e arredores da cidade e mesmo aqui, na 
capella d'Ajuda e na Sé. 

Os dois maiores inimigos de Castella, os Batavos 
e os Inglezes, acabavam de descobrir no mar o ele r 
mento em que se deviam expandir, livres e poderosas, 
a gloria e a vidadaquellas duas raças do norte. 

Os portuguezes tinham feito das ondas as estradas 
das suas conquistas; aquelles souberam fazer delias o 
berço da sua pujança e um campo de exploração 
para o seu commercio e sua riqueza. 

Vingavam os hollandezes as tyrannias do cardeal 
Granvelle e as atrocidades do duque d'A!ba outrora 
na sua húmida e laboriosa pátria e, ao poder da in- 
fantaria hespanhola, a primeira do mundo até Ro- 



17 



croi, elles oppunham a fria bravura dos seus almi- 
rantes e o vigor valoroso dos seus marinheiros. 

Não estava longe o dia em que um desses atrevi- 
dos leões do mar, Tromp, devia percorrer o mar da 
Mancha com uma vassoura no mastro grande, he- 
róico e insolente, para mostrar que os marujos de 
Hollanda tinham varrido da superfície das aguas os 
inimigos de sua pátria. 

Elles vingavam-se do Escurial o de Felippe II, do 
sangue de Egmont e de Horn, derramado nos cada- 
falsos, flagellando a Bahia com as suas armadas, des- 
pejando nas praias desde a bocca do S. Francisco até 
o cabo de Orange os seus mercenários e os seus mer- 
cadores. 

Já Pernambuco todo era delles e Nassau tinha 
vindo trazer a esta colónia, conquistada por uma 
nação viril e nova, a capacidade de um hábil admi- 
nistrador, a moderação, a justiça e as vistas largas de 
um reformador moderno. 

Como si tudo, até a mesma natureza, estivesse fati- 
gado do orgulho ignorante, da barbaridade regulari- 
sada c por isso mesmo ainda mais atroz da inquisição 
hespanhola e dos seus horrores, os ventos, as aguas e 
os rochedos levantavam-se contra as frotas de Castella 
como já tinham começado, no outro tempo, a bater a 
invencível armada. 

Foi por essa epocha que D. Fernando de Masca- 
renhas, Conde da Torre, veio ao Brazil com um exer- 
cito e uma esquadra; mas o exercito, desembarcado 
no porto dos Touros e perseguido pelos inimigos, 
pelos desertos e pela fome, alcançou a custo a frontei- 
ra da Bahia por uma marcha, que é uma das mais 
bellas retiradas que se tem feito na America, e a es- 
quadra foi inteiramente destruída por Huyghens nas 
aguas da Parahyba. 

Tendo-se feito orações publicas na Bahia por occa- 
sião de esperar-se esta batalha, pregou o moço 
sacerdote com tanto successo para a sua gloria e para 
a língua portugueza quão pouco o obtinha então o 
conde da Torre para a sua bandeira. 

Esse discurso, que é um primor pela forma e pelo 
A. V. 3 



18 



fundo, pôde sem receio ser comparado aos mais ce- 
lebres aa antiguidade e dos tempos modernos. 

Si elle peccou como crente, atrevendo-se a aban- 
donar as íormas reverentes de quem se dirige a Deus, 
si quasi apostropha a divindade nos arroubos de uma 
cólera desconhecida e desusada na tribuna sagrada, 
si já se percebe a preoccupação de brilhar pela gala 
do saber e si se prejudica pelo abuso do estylo antithe- 
tico, que foi uma das suas forças de occasião e uma 
das suas principaes falhas, não ha duvida, porém, que 
se elevou até o sublime pelo vigor dos conceitos, pelo 
encanto das descripções, pelo arrojo da forma, pela 
pureza da linguagem e a força do talento de produc- 
ção. 

Como muitos dos homens illustres de imaginação e 
de génio que tem produzido os povos latinos, pode-se 
dizer, que elle nunca foi propriamente, verdadeiramen- 
te, um homem de estado. 

Podia parecer tal em certas circumstancias, como 
quando aconselhou a instituição das companhias de 
commercio e a fogueira das caravellas, isto é, a refor- 
ma da armada e quando comprou navios e artilheria 
na Allemanha; mas faltava-lhe peso no espirito para 
mantel-o equilibrado emtaes alturas. 

Elle logo se desviava, vivo de mais para muita per- 
severança, attrahido por alguma coisa mais apparato- 
sa e mais brilhante, como uma creança que abandona 
o caminho da escola, attrahida pelo fulgor das azas de 
uma borboleta, ou pelo viço das pétalas de uma flor. 

Vieira, porém, nunca prostituiu nem venalisou o seu 
talento, nunca deshonrou pela libertinagem a sua elo- 

Íuencia nas orgias, nunca desceu ás abjecções da 
erótica Biblion de Mirabeau, nem mereceu como esse 
o dito feroz attribuido ao Marquez de Riquetti, seu 
pae e seu inimigo, incisivo como a lamina de um gla- 
dio: «Meu filho! O vendilhão de palavras! 

Era pundonoroso e honesto como os que mais o 
fossem e levava ao excesso, como tudo na sua vida, 
o que dizia respeito ao brio. Uma vez que se empe- 
nhava com el-rei sobre negocio de alta relevância, le- 
varam-lhe uma bolsa com seis mil dobrões de oiro, 



19 



sob pretexto de distribui 1-os em esmolas, mas Viei- 
ra respondeu que agradecia o presente com deixar ir 
o portador pela escada e não pela janella como mere- 
cia! 

Teve em Romae Hollanda grandes sommas ás suas 
ordens, das quaes nunca se serviu em seu proveito, 
empenhando antes o credito do seu nome glorioso e 
da sua roupeta para obter um empréstimo de 300 mil 
cruzados, quando foi preciso aprestara esquadra do 
Conde de Villa Pouca que devia vir soccorrer á 
Bahia, apertada, por Sigismundo Von Sckoppe, e 
quando mandou de Hamburgo as três fragatas que 
levaram a Portugal a artilheria que salvou Elvas 
dos Castelhanos. 

Confundiu muitas vezes o seu orgulho com os inte- 
resses das causas que tomou a peito e ainda com 
maior frequência confundia o amor a seu paiz com a 
obediência ou antes a subserviência aos seus mo- 
narchas. 

As cartas dirigidas ao Marquez de Niza e ao Duaue 
de Cadaval, de Maio e Julho de 1682 e de Maio e Julho 
de 1683, são provas exhuberantes de que o homem 
sacrificou algumas vezes a dignidade do seu grande 
nome ás aspirações do cortesão. 

Mas quem veria no seu tempo as coisas por prysmas 
dififerentes. 

E podemos exigir que pensasem os outros, ha dous 
séculos, como nós pensamos agora? 

E pôde até haver maior prova de ignorância do que 
esta? 

Não tinha sido pouco antes delle na Inglaterra 
Shakespeare o poeta da rainha? 

Não deviam ainda por quasi dois séculos morrer os 
soldados, gritar os generaes na hora do perigo 
pelo seu rei e pelo seu Deus? 

Não tinha expirado ha pouco Bayard, o cavalleiro 
sem medo e sem mancha, appellando para o rei e para 
Deus diante do inimigo que insultava a sua agonia? 

A idéa da pátria, separada da pessoa dos monar- 
chas, a consciência do dever cumprido perante a sua 
terra e a posteridade, osprincipios de humanitarismo 



20 



egualitario e de fraternidade não foram realmente 
postos em voga pelas theorias dos revolucionários do 
espirito que deviam chegar 100 annos depois, os phi- 
losophos do século 18? 

Não é propriamente depois delles que a sociedade 
os separa e distingue, que os povos os comprehendem 
nos elementos constituintes da demcrcracia moderna? 

Vieira, diz-se, humilliou-se muitas'vezès diante dos 
reis e dos grandes, á cata dos favores das cortes, após 
o brilho das embaixadas e do poder,á satisfação de 
um amor próprio, de uma sede de salientar-se que 
não se saciava no pequeno reino em que tinha nas- 
cido. 

Mas não era essa a regra então? E não se viam coa- 
gidos a seguil-a todos os que não tinham na nobreza o 
berço? 

Eram bem diversos esses tempos dos nossos I 

A philosophia insolente e desapiedada do século 
18, o riso sarcástico de Voltaire, o espirito immenso 
de Locke, o humorismo fino e irónico de Bolingbroke, 
o desembaraço ingénuo de Rousseau ainda não tinham 
ensinado aos homens aquella altivez que fazia do- 
minar, mesmo quando chacoteavam ou quando enga- 
navam desaffrontadamente, como o grande Frederico 
ou Talleyrand. 

Duzentos annos de soffrimentos, de revoluções, 
de livros, de idéas de philosophos, de palavras de 
oradores não tinham passado ainda por sobre a 
humanidade, melhorando-a e corregindo-a. Ainda 
Montesquieu não tinha escripto, Vergniaud e Abra- 
ham Lincoln não tinham morrido pela liberdade; 
ainda não tinham fallado Wilberforce e Brougham, 
Cobden e o bispo Strossmayer. 

Quando os eminentes espíritos que agitaram e 
deram nos meiados deste século a verdadeira orien- 
tação aos estudos da historia e da critica, envolvendo 
nas narrações da politica e da guerra a vida intima, a 
plena e livre evolução das sciencias e das artes de um 
povo, a formação e o irradiamento da intelligencia de 
uma nacionalidade, foi quando se comprehendeucomo 
esta força directriz tinha faltado ao estudo dos homens 



21 



e das coisas do passado e como esse estudo era falho 
por aquelle motivo. 

Enviado em 1641 com o filho do marquez de Mon- 
talvão para dar parabéns a D. João IV pela restauração 
de Portiígal, o moço jesuíta foi, com o filho do vice-rei, 
victima das violências de alguns exaltados em Peniche 
logo que desembarcou e teve depois, no dia seguinte, 
como consolação, ser recebido pelo próprio rei no 
paço. 

Dahi em diante data o seu favor na corte, onde logo 
pregou e foi admirado pela sua prodigiosa capacidade 
em fazer realçar todos os assumptos, pelo magnetismo 
que exercia sobre todos os auditórios. 

O governo era novo e precisava de homens novos, de 
actividade, talento e energia. 

Os meandros da politica de um povo que não tinha 
tido administração própria durante sessenta annos 
devassavam vastos horisontes aos ambiciosos e aos 
hábeis. Vieira lançou-se no abysmo seduetor que se 
abria diante dellel 

E' este, segundo parece- me, o período mais bello da 
sua vida, porque á magnitude da causa que abraçara, 
da independência e liberdade da sua pátria, juntava a 
pureza das intenções, o desprendimento dos interesses 
da sua individualidade litteraria e politica, a nobre e 
formosa generosidade da juventude. 

Têm um sabor agradável os seus discursos e tra- 
balhos outros dessa epocha como fruetos bem sazo- 
nados, ou como as ondas de ar puro das manhãs lu- 
minosas do nosso clima. 

Nos seus sermões é, porém, mais um tribuno do 
que um pregador. Lembra mais Castellar ou José Es- 
tevão nas suas cadeiras do parlamento do que um sa- 
cerdote estendendo-se sobre a vida dos santos e os 
pyrogenicos horrores do inferno. 

EUe raciocina como um economista e discute como 
abalisado no traquejo do governo dos homens. 

E' um propagandista da pátria nova e dos meios de 
sustental-a com honra. 

Elle falia do púlpito como quem quer formar mari- 
nheiros e soldados, transplantar das índias para o 



Brazil as especiarias para ferir de morte, no levante, o 
commercio hollandez e o hespanhol, esquipar frotas, 
organisar companhias de commercio, tão prosperas 
como as de Amsterdam e Haya, comprar garanhões, 
afim de fazer boas as raças equinas em Portugal, para 
rebater na guerra do Alemtejo a ca\ aliaria hespanhola 
que levava sempre a melhor. 

Falia ao povo e á nobreza, interessa a todos na in- 
gente causa nacional, familiarisando, fazendo discutir, 
por todos, os problemas graves, as questões impor- 
tantes que deviam tornar, bem resolvidas, a pátria 
grande, prospera e feliz. 

Coisa singular! Julgo Vieira aos trinta annos, 
superior na madureza do juizo, no vigor das con- 
cepções, pelo desejo de ser útil, pela precisão dos ra- 
ciocinios, superior ao que elíe foi mais tarde em , 

muitas occasiões, quando mesquinhas preoccupações -* 

de domínio na corte, de futilidades de valido emdecli- 
nio,de abstracções demasiado mysticas ou de prefe- 
rencias astrológicas transparecem nas suas palavras 
e nos escriptos copias do seu pensamento. 

E' interessante notar como elle atacava o fisco, 
como pedia a liberdade de commercio, achando-se 
com o príncipe de Nassau no mesmo terreno, como se 
levantava contra as iniquidades da inquisição, pe- 
dindo a abolição das distincções entre christãos novos 
e velhos tão contraria ao espirito do Evangelho, co- 
ragem que o grande jesuíta espiou mais tarde, já an- W 
cião, nos cárceres e pelas humilhações. 

O estado de Portugal era um tanto semelhante ao 
nosso actualmente, em face da desordem financeira 
e do descrédito no estrangeiro. 

A cada nova imprudência, a cada nova loucura que 
se commettia ali, contra o direito e a ordem normal 
das coisas, baixava a sua importância, já tão peque- 
nina, nos Estados prósperos da Europa. 

Quando chegou, por exemplo, a noticia de que a 
inquisição perseguia com rigor aos christãos novos e 
que um auto de fé fizera victima o negociante Du- 
arte da Silva, o cambio baixou logo cinco por cento e 
os embarques feitos em Hamburgo deixaram de ser 



23 



enviados, porque ninguém quiz mais naquella praça 
arriscar os seus capitães em tal paiz. 

E como o governo portuguez respondesse com de- 
sabrimento a uma reclamação dos Estados de Hol- 
landa sobre esta desgraçadíssima questão, quando 
aliás tragava sem protestos affrontas graves em muitas 
coisas em que tinha do seu lado razão e justiça, o 
nobre espirito de Vieira prorompia em um brado que 
vale um livro pela sua fina ironia, pela sua dôr patrió- 
tica: «Ora bemdicto seja Deus, que só para estas va- 
lentias temos resolução I» 

Esse período das suas missões diplomáticas é o 
mais brilhante da sua carreira politica e do seu vali- 
mento. 

Foi por esse tempo que elle provou que sabia sacri- 
s* ficar pelo interesse de Portugal até aquella vaidade ex- 

cessiva, aquelle ardor de domínio, que é tão frequente 
encontrar nas superioridades ambiciosas, ou quando 
á superioridade se reunc a ambição. 

Foi na occasião em que, segundo alguns dos seus 
biographos, recebeu em presença de Francisco Cou- 
tinho as cartas que o nomeavam embaixador em Haya 
em logar daquelle ministro. Vieira não lhe notificou 
esta substituição e embarcou para Lisboa, onde pro- 
vou ao rei, cjue não era só a sua roupeta negra que o 
incompatibilisava como brilho das grandes recepções 
y^ nas capitães ricas, mas a dignidade, a fortuna e a se- 

gurança do reino que Coutinho estava defendendo com 
vigilância e rara sagacidade perante o governo da re- 
publica batava. 

Em que intrigas andou envolvido o Padre em Hol- 
landa com o embaixador Coutinho e em França, um 
tanto como accessor do Marquez de Niza, é difficil 
dizel-o com certeza, ou melhor, será explicado daqui 
a alguns dias. 

Ha neste particular muita coisa mysteriosa e som- 
bria, mas a diplomacia sempre o foi, é e será; e sobre 
aquelles tempos com especialidade faltam documen- 
tos que desvendem cabalmente, plenamente, o que ha 
de ambíguo nas chronicas e narrativas. 

A historia tem ás vezes perplexidades sobre certas 



24 



coisas, como os erros e leviandades que lhe attri- 
buem por essa epocha, de modo que não podemos 
acreditar alguns delles sem muito severo, sem impar- 
cialissimo exame. 

Fallecem elementos precisos, por exemplo, sobre 
a insinuação a corsários de Saint Malô para virem á 
Bahia auxiliar a guerra hollandeza e sobre os subter- 
fúgios de que se serviu para negar-se á responsabili- 
dade de ter apoiado a promessa da entrega de Pernam- 
buco aos hollandezes, promessa feita pelo embaixador 
Francisco Coutinho; servindo-se das firmas em papel 
em branco que possuía do rei, urgido pelas circum- 
stancias, esmagado pela ameaça da partida immediata 
de uma poderosa esquadra, suspensa das ancoras no 
porto e que tinha força não só para saltear Lisboa, 
como para destruir a Bahia, desprovida e desarmada, ^ 

ou tomal-a e anniquilar todas as veleidades de resis- 
tência no Brazil. 

Parece-me que ainda assim, de todas as increpações 
feitas a Vieira esta é uma das mais serias e das que 
mais pesam sobre a sua memoria. 

O que é fora de duvida é que elle tinha pleiteado 
por aquella má inspiração no Papel Forte, apresenta- 
do sob a forma de relatório ao rei, talvez por ordem 
do mesmo monarcha, como affirmou mais tarde o 
padre, dizendo que traduzia apenas, sob a forma. bri- 
lhante que o seu talento sabia dará tudo, a convicção ,, 
e os desejos do monarcha e da maioria da corte. -** 

O que é também incontestável é que o governo por- 
tuguez approvou com açodamento o acto de que Cou- 
tinho desolado dava parte a seu paiz pedindo o seu jul- 
gamento e offerecendo a própria cabeça em holocausto 
a sua pátria como satisfação ao amor próprio nacional 
tão justamente ferido, eque talvez não comprehendes- 
se as razões formidáveis daquelle duro sacrifício, que 
elle fizera para impedir um perigo real e imminente 
e ganhar o tempo indispensável, de que o povo por- 
tuguez precisava para preparar a sua defesa. 

Vieira foi enviado a Paris em 1647 para tratar da 
questão nebulosa dos casamentos dcs príncipes e, 
segundo dizem alguns, a dignidade e até a indepen- 



25 



dencia do reino estiveram em perigo pelo procedi- 
mento ligeiro, e pelos arrojos do padre a quem o 
rei tinha dado um papel de mentor, ou coisa que o 
valha, da embaixada. 

A outra missão semelhante, á Roma em 1649, não foi 
mais feliz e até o jesuíta correu serio perigo, porque o 
duque do Infantado, embaixador hespanhol, promet- 
teu mandar matal-o, onde fosse encontrado. 

Em 22 de Novembro de 1652 partiu para o Mara- 
nhão, após uma serie de peripécias que têm sido muito 
mal interpretadas pelos seus biographos mais se- 
veros. 

Elles acreditam que o illustre jesuíta affectava partir 
com os seus superiores e que se servia do pezar mani- 
festado pelo rei, por causa de sua ausência e dos pe- 
rigos que ia correr, para ficar nas galas doiradas da 
corte, no mundo de lisonja que os seus talentos e a 
privança real lhe garantiam. 

Os processos de investigação histórica falham mui- 
tas vezes quando chegam á beira desses mares inson- 
dáveis da consciência humana e quando se vê o histo- 
riador arriscado á empreza temerária de pronunci- 
ar-se sobre as intenções intimas de um individuo. 

Somos tão capazes de pensamentos delicados no 
meio de más acções I 

E quantas vezes desejos máos não nosaccomettem, 
praticando os mais nobres actos? 

Não é, emfim, o homem o irmão e o maior inimigo 
do homem? 

Não é quasi sempre o preto quem vende o preto, o 
indio quem vende o indio? 

Talvez seja amargura ou moléstia do espirito pen- 
sarmos ás vezes como Shopenhauer; mas em todo 
caso, Senhores, por maior que seja o personagem de 
quem se escreve a historia, é sempre um bem para o 
biographado não ser considerado como extreme de 
defeitos, como uma organisação á parte na vida da hu- 
manidade, inaccessivel ás fraquezas e ás vacillações 
de todos os homens. 

Teria elle vindo realmente de moto próprio ao Brazil, 
tomado de uma dessas paixões de isolamento, ou de 
AV. 4 



26 



sacrifício, pela tendência um tanto mystica dos 18 
annos que voltava mais forte agora, pelo tédio a que 
são mui sujeitas essas naturezas susceptíveis e nervo- 
sas? 

Ou seria ainda o desejo de figurar com honra em 
um novo tablado, nestas terras virgens da America que 
illustravam com a immortalidade os seus martyres e 
que dariam a ?eu nome uma nova aureola e realçariam 
a sua gloria na Europa, onde era tão conhecido? 

Augmentar o seu prestigio pelo sacrifício, pelo lon- 
gínquo do desterro, pelo ignoto das selvas verdes em 
que se encravava, por esses- povos embrutecidos que 
ia submetter com pregações ou salvar com decretos 
alcançados do rei pelo seu favor, pelo mysterio das 
ondas desse immenso Atlântico que era preciso atra- 
vessar, não seria tudo isso adequado para tentar esse 
homem infatigável, este argumentador brilhante e in- 
saciável de gloria e de renome? 

Aqui, no Brazil, se abre para o eminente jesuíta 
uma das espheras de actividade em que a sua energia, 
um tanto febricitante, expandiu-se com admirável 
vigor. 

O homem habituado ao conforto das cortes, ás 
discussões palacianas das embaixadas, aos torneios 
do espirito a que era tão chegado, ás elevações or- 
gulhosas dos pensamentos em que nós subimos quasi 
até a divindade, dormia nas palhoças dos Índios, 
entre os igarapés do Amazonas, sobre as povoações 
lacustres dos Goyanás. 

Attrahido pelo perigo e por aquella exaltada dedi- 
cação com que costumava lançar-se nas causas em 
que se empenhava, entrou na ilha de Marajó, 
inaccessivel até então ás armas dos portuguezes, 
rebelde ás tentativas dos missionários, e obteve a 
paz ea catechese dos selvagens Nhengaibas. 

A feracidade dessas terras ricas que a civilisação 
não sabia ou não podia aproveitar, e que tão mal 
aproveita ainda hoje, transportava-o, e o seu amor 
pelos pobres índios, que as enchiam como os laby- 
rinthos dos seus mangues e cipoáes, crescia na 
grande alma do jesuíta, que se abria aos largos ho- 



> 



27 



risontes da moderação, da piedade, das branduras do 
Evangelho e da redempção pregada pelo seu Deus. 

E então elle se tornou o patrono e o apostolo 
destes desgraçados, o enthusiasta da causa santa da 
sua elevação e da liberdade pela cathechese, emba- 
lado pelo sonho de uma grandiosa civilisação, bro- 
tando no meio deste povo pela luz da religião e pela 
paz com os brancos! 

Então foi á serra de Ibiapaba, e tanto para leste 
como para oeste, nas tabas, entre os gentios simples 
e feros só se fallava no pae branco, no padre que 
tinha vindo de longe com palavras novas, com pro- 
messas que faziam dos perseguidos homens e 
irmãos! 

Vieira soffreu tudo, a fome e a sede, as viagens 
a pé pelos longos areaes, fustigados pelo vento duro 
do mar que escoria as pálpebras e levanta a poeira 
fina que anniquila a vista. 

Os Tobajáras receberam-no bem, apesar das des- 
confianças que Telles já tinham incutido os máos tra- 
tamentos que lhes foram feitos pelos portuguezes e 
os conselhos dos índios dos sertões de Pernambuco, 
alliados aos hollandezes; mas o prestigio, o ascen- 
dente do missionário foi tal em pouco, entre os sel- 
vagens, que elle fez retirarem-se os de Pernambuco 
e sujeitou toda a serra, estabelecendo relações na 
costa com o forte de Camuci. 

De volta ao Maranhão lança-se de novo aos rios do 
Norte, onde se entende com os Juninas e Tupinam- 
bás e lança os princípios de navegação regular e 
e trato dos portuguezes com os indios do Tapajoz e 
do Xingu, graças ao padre Manoel de Souza e ao 
padre Sottomaior. 

Logo, porém, reconheceu as difflculdades formi- 
dáveis da empreza de libertação que intentava, e 
Srevio as tempestades que o jogo dos interesses devia 
esencadear; mas foi desprendido, perseverante e 
nobre. 

Importância, reputação, a estima da gente da- 
quella pequena e alvoroçada terra, tudo, tudo elle 
sacrificou á causa magnânima que immortalisa tanto 



28 



a sua memoria como todos os dotes do seu espirito, 
e as torrentes da sua eloquência! 

Dos sargentos mores a quem se dava o domínio 
dos indios mansos, uns faziam delles escravos que 
trabalhavam nas suas searas, outros vendiam-nos 
abertamente a terceiros. E era essa toda a differença! 

Quanto aos indios bravos só se entendia para com 
elles a guerra barbara e fe^oz, em que eram legitimas 
todas as atrocidades, todas as traições e todas as 
torpezas! 

Contra tanta iniquidade e tanta injustiça se levantou 
imperterrita a figura homérica de Vieira e é força 
confessar que se bateu com sublime arrojo, em Por- 
tugal, onde foi buscar alvarás e leis para proteger os 
indios, e no Brazil onde veio promover a execução , 

delles. Jk 

Accusaram-no de ter sacrificado a pureza dos prin- 
cípios em relação á escravidão, quando no Maranhão 
e no Pará pleiteou, ora com enthusiasmo, ora com 
desespero e dôr, por essa raça desditosa e pros- 
cripta! 

Accusaram-no por ter lembrado, como Las Casas, 
a introducção de africanos em larga escala como 
um meio de alliviar os desgraçados indios e dimi- 
nuir a espantosa mortalidade que fazia entre elles a 
servidão. 

Perceberiam ambos que um cap>tiveiro ia sub- ^ 

stituir a outro e que, nem por ser maior o capital em- 
pregado, o interesse devia diminuir a crueldade dos 
agentes do negocio infame e os hábitos ferozes que o 
senhorio sempre contrahe? 

Com certeza não! 

A* alma impressionavel , nobre e apaixonada de 
Vieira tinha occorrido o mesmo pensamento em cir- 
cumstancia idêntica, por falta de melhor alvitre no 
desespero de encontrar moderação e justiça para com 
os indios, desorientado por ver o despovoamento do 
paiz que ameaçava ruir tudo pelos alicerces, socie- 
dade nascente, riauezas da pátria, principio de hu- 
manidade, honra ao seu povo, tudo! 



Os acontecimentos provaram depois que não tinha 
feito bem. 

Nós temos, porém, o direito ou devemos pretender 
que elle fosse mais previdente ha dois séculos e que 
visse as coisas como nós as vemos agora? 

Reprehende-se a Vieira ter acceitado o principio 
da escravidão, baseando-se na divisão das guerras 
em justas e injustas, e procurando apenas moderal-a 
ou corrigil-a. 

Não ha justiça na servidão, seja ella qual fôr, 
porque a escravidão é sempre iníqua, nem realmen- 
te se pôde admittir a legitimidade de uma presa, 
porque o vendedor diz que a fez em guerra justa ea 
victima, que não conhece quasi sempre a língua em 
que se estatue a sua posse como um aireito e que está 
sob a pressão do látego, confirma asserção mons- 
truosa. 

Esta victima é, alem d'isso, muitas vezes uma cre- 
ança de sete annosou de dez! 

Mas, tinha outro allivio nas suas mãos para os con- 
demnados o eminente jesuíta? 

Não eram todos os homens de guerra, todos os 
agricultores, toda a população, homens de calção e 
homens de sotaina os patrocinadores e os agentes da 
tremenda violência? 

António Nolasco, um dos mais ferozes caçadores 
de peças, não era um frade? 

Não teve sempre elle, padre Vieira, contra si em 
juízo, na celebre acareação e exame das victimas a 
maioria, isto é, o provincial do Carmo, o commis- 
sario das Mercês, e o custodio de Santo António, 
todos filhos daquella religião do captivo do monte das 
Oliveiras e do suppliciado do monte Calvário? 

Os dois primeiros porque estavam bem informados 
de que as guerras tinham sido justas por pessoas 
fidedignas e religiosos de sua ordem, o terceiro 
porque se as causas de guerra justa eram doze, se- 
gundo os doutores da Escolástica, seria impossível 
que de tantas não tivessem os escravisadores alguma 
com que se justificassem. 

Quanto ao vigário do . Maranhão encerrava-se 



30 



n'uma obtusidade d'onde só sahia a palavra captivos, 
capíivos, respondendo afinal á interpellação vehe- 
mente de Vieira, aos argumentos do seu génio., a 
toda inspiração do espirito e da bocca mais eloquente 
dalingua portugueza que, sendo christãos os homens 
que tinham ido fazer as presas, não se havia de 
presumir que fizessem cousa mal feita. 

Que podia fazer o sacerdote em tal meio? 

Que podia fazer o juiz liberal e justo com taes 
companheiros? 

Havia felizmente para honra nossa n'aquella junta, 
constituída em tribunal, Senhores, permitti ao meu 
orgulho patriótico esta expansão, um homem aue 
votava com Vieira pela liberdade e que era um aos 
soldados mais valentes e um dos filhos mais illustres 
d'esta terra do Brazil n'aquelles tempos: 

O parahybano André Vidal de Negreiros! 

E, entretanto, apesar de ser o governador do Es- 
tado, apesar da justiçada causa que elle sustentou 
n'aquella longa íuta como o mais solido esteio de 
Vieira e da Companhia de Jesus, elle nem se atrevia 
a limitar o prazo da escravidão a cinco annos, como 
o jesuíta, mas cedia sete, vencido pela razão de es- 
tado, pelo medo de subverter todo o elemento de tra- 
balho no Maranhão e no Pará, de derrubar todas as 
fortunas e fazer seccar todas as fontes da riqueza 
publica e particular. 

E podemos depois d'isto razoavelmente incriminar 
a Vieira porque cedia no captiveiro temporário, já 
que não podia impedir o absoluto? 

Quando Rio Branco, duzentos annos depois, n'esta 
mesma terra, flagellada, regada por tanto sangue de 
captivo, livrou o útero da mulher escrava, para que 
ao menos a liberdade protegesse a maca ou a es- 
teira que servia de berço aos innocentes que não 
deviam ao senhor de sua mãe d'elles o dinheiro que 
ella tinha custado, que não deviam soífrer como con- 
demnados, expiando como uma culpa o contubernio 
que lhes dera o ser, quasi toda a camará e muita 
gente no paiz não blaterava e accusava de revolucio- 
nário o ministro libertador? 



31 



Quando mais tarde ainda a nação brasileira, aba- 
lada nos seus alicerces, como edifício construído 
sobre lava e sobre cinza, humilhada na sua honra, 
ameaçada na sua paz, pedia, pelo órgão do ministé- 
rio Dantas, que soltassem os grilhões dos velhos para 
que ao menos a liberdade alumiasse o leito de morte 
crestes suppliciados durante a vida, não se levantaram 
os que tinham que perder, e não foi derrotado nas 
urnas o chefe liberal, que devia ser estrondosamente 
vingado, menos de três annos depois, pela imprensa 
abolicionista, pelos brados de um povo inteiro, pela 
capitulação da coroa perante a revolução, pelo peso 
da espada do exercito, quando ella também se deitou 
na balança? 

A* vista de tudo isto, Senhores, destas verdades 
que são eternas, porque esta é a voz da historia, po- 
deremos incriminar Vieira? 

Deixae-me, Senhores, que repita, como prova real- 
mente prodigiosa da eloquência humana, como jóia 
da nossa lingua, pelo vigor da dicção, pela potencia 
do arrazoado, pela grandeza do assumpto, pela ma- 
gnitude da questão, que é a da commiseração e da 
piedade para com aquelles perseguidos das brenhas, 
que pereciam ás centenas pela fome e pelo excesso de 
softrimento e de trabalho, afim de encher os que não 
tinham nada, para dar mais aos que não se saciavam, 
aapostrophe, quasi que me atrevo a dizer, as estro- 
phes com que o eminente padre, encanecido no ser- 
viço de seu paiz, advogava do um púlpito, em pre- 
sença da rainha e da corte, a causa dos desgraçados 
captivos. 

Parece o próprio génio da liberdade e da luz que 
troveja e invectiva, espancando as trevas e a escravi- 
dão, o illustre missionário quando volta do deserto 
para pedir repararão e justiça por ter sido expulso 
com seus companheiros da terra que quizera libertar. 

«Quem havia de imaginar, pronunciava elle, que 
aquella gloria tão heroicamente adquirida nas três 
partes do mundo e esclarecida era todas as quatro, 
se havia de escurecer e profanar em um rincão ou 
arrabalde da America? 



32 



Quem havia de crer que n'uma colónia chamada de 
portuguezes, se visse a egreja sem obediência, a cen- 
sura sem temor, o sacerdócio sem respeito, e as 
Eessoas e logares sagrados sem immunidades? Quem 
avia de crer que houvessem de arrancar dos seus 
claustros aos religiosos, e leval-os presos entre 
beleguins e espadas nuas pelas ruas publicas e 
tel-os aferrolhados e com guardas até os dester- 
rarem? 

Quem havia de crer que, com a mesma violência e 
affronta, lançassem de suasChristandades aos prega- 
dores do Evangelho, com escândalo nunca imagina- 
do dos antigos Christãos, sem [pejo dos novamente 
convertidos, e á vista dos gentios attonitos e pas- 
mados? 

Quem havia de crer que até aos mesmos parochos 
não perdoassem, e que chegassem a os despojar de 
suas egrejas, com interdicto total do culto divino, e 
uso dos seus ministérios; as egrejas ermas, os baptis- 
térios fechados, os sacrários sem sacramento, emtim, 
o mesmo Christo privado dos seus altares e Deus de 
seus sacrifícios? 

Não fallo nos auctores e executores destes sacrilé- 
gios, tantas vezes, e por tantos títulos excommun- 
gados; porque lá lhes ficaram papas que os absolvam. 
Mas que será dos pobres e miseráveis índios, que 
são a presa e o despojo de toda esta guerra? Que será 
dos Christãos? Que será dos Cathecumenos? Que será 
dos pães, das mulheres, dos filhos e de todo o sexo e 
idade? 

Os vivos e sãos sem doutrina, os enfermos sem sa- 
cramentos, os mortos sem sepulturas, e tanto género 
de almas em extrema necessidade, sem nenhum re- 
médio! Os pastores, parte presos e desterrados; 
parte mettidos pelas brenhas, os rebanhos despe- 
daçados; as ovelhas ou roubadas ou perdidas; os 
lobos famintos, fartos agora de sangue, sem resis- 
tência; a liberdade trocada por mil modos em servi- 
dão e captiveiro, e só a cubica, a tyrannia, a sensua- 
lidade e o inferno contentes. 

E que a tudo isto se atrevessem e atrevam homens 



com o nome de portuguezes, e em tempo de rei 
portuguez ? 

Outrora sahiam pela barra de Lisboa nossas naus 
carregadas de pregadores que voluntariamente se 
desterravam da pátria para pregar nas conquistas a 
lei de Christo. Não se envergonhe já agora a barra 
de Argel de que entrem por ella os sacerdotes capti- 
vos e presos, pois o mesmo se viu em nossos dias 
na de Lisboa. Certo, bem empregado prodígio fora 
neste caso, si fugindo daquella barra o mar e voltan- 
do atraz o Tejo, lhe pudéssemos dizer como ao rio e 
ao mar da terra, que então começava a ser santa: 
Quid est, tibi, maré, quod fugisti, et tu Jordanis, quia 
conversus es retrorsumf 

Desengana-te, porém, Lisboa, que o mesmo mar 
te está lançando em rosto o soífrimento de tamanho 
escândalo; e as ondas, com que, escumando de ira, 
bate ás tuas praias, são brados com que te está dizen- 
do as mesmas injurias que antigamente a Sydonia: 
.Erubesce, Sydon, ait maré.» 

Eu só conheço igual, a esplendida imprecação im- 

Eetuosa de 0'Connell, na língua ingleza, que é tam- 
em, como a nossa, forte e rica. 
Foi na occasião em que o grande orador irlandez 
na camará das communas de Inglaterra, indignado, 
inflamado no fogo de seu génio, inspirado na profun- 
da piedade que as desgraças da sua pátria lhe arran- 
cavam dos lábios e do coração, terminando um dos 
seus discursos com o gesto de quem repelle deante 
de si a visão de um monstro disforme, como a vin- 
gança ou o terror, que elle imaginava representados 
pelo monopólio que possue as terras da sua verde- 
jante Erin, pela aristocracia estrangeira que exhaure 
o povo desditoso e haure delle as forças com que o 
estrangula, num tremendo brado de desafio, de 
cólera e de dôr, por muito tempo contidos, exclama: 
«Não, duque de Noríhumberland, vós não sois meu 
rei! Não, duque de Richmond, eu não sou vosso homem 
ligio; eu não vos pagarei taxa. 

i . 

A.V. * * 5 



34 



Os mais acreditados dos seus biographos repre- 
sentam Vieira como um homem de estatura regular, 
com a tez tostada pelo sol tropical, um tanto moreno 
baço, como os brazileiros, com os cabellos negros que 
a idade e os desgostos embranqueceram mais tarde; 
o nariz aquilino, os traços finos. 

Mas a revelação da intelligencia está nos cantos 
da bocca, onde se lê a mordacidade do espirito, por- 
que elle tinha, como Cicero, o defeito de não peraoar 
aos seus inimigos ou mesmo aos indifferentes os epi- 
grammas e ditos que ferem como punhaladas. 

A sua superioridade tinha, como a do orador ro- 
mano, dessas explosões invencíveis, filhas do pró- 
prio caracter e que o lisongeavam pela voga de que 
gosavam dentro em pouco. ^ 

Por estas coisas e porque o favor dos reis é ingra- 
to como o das democracias, o padre, apezar do seu 
antigo poder, não conseguio a justiça que pedia para 
os seus índios. Arrastado pelas exaltações de seu ca- 
racter ou por ordem superior, encarregou-se ainda de 
umas tantas reprehensões que a rainha entendeu di- 
rigira seu filho D. Affonso antes da sua elevação ao 
throno. 

Então os seus inimigos aproveitaram a occasião e 
o eminente jesuíta foi nos começos do novo reinado 
perseguido pelo santo oflficio e encarcerado em Co- ^ 

imbra. 

Processado como conspirador ou simplesmente 
por intriga politica, auxiliada talvez pelo ciúme exis- 
tente entre os dominicanos e os jesuítas, elle soffreu, 
parece que por ser a cabeça mais illustre da ordem 
e aquella portanto que seria mais lisongeiro ou mais 
grato ao ódio de um inimigo ferir. 

Deixado em abandono nas prisões da inquisição, 
o pobre condemnado somente soube que já havia 
outro rei, quando se executava a sentença, que sobre 
elle cahiu. 

Os partidos em todos os tempos e em toda a parte 
aproveitam os sacrifícios dos homens que servem a 
seus interesses, mas fingem não perceber, quando 



â5 



chegam a vencer, que elles se sacrificaram por sua 
causa. 

Humilhado e revoltado dirigiu-se Vieira a Roma 
em 1669, onde a fecundidade do seu talento e os re- 
cursos da sua palavra lhe grangearam a admiração 
de toda ac[uella corte faustosa e variada, taes eram 
ainda o vigor, a frescura e o luzimento do seu espi- 
rito que não enfraquecia. 

Já eram, porém, chammas sem fogo 1 Procuran- 
do a repercussão da sua gloria no reino, elle só en- 
contrava indifferença e hostilidade. 

Foi então que o coração do grande velho se acolheu 
ao retiro singelo e ridente que tinha abraçado a 
sua infância, e visto desferir os primeiros raios da- 
quella existência luminosa como uma constellação, 
e veio para a Bahia. 

Foi na Quinta do Tanque que elle passou os últi- 
mos annos da sua vida, commentando, corregindo, 
interpretando as passagens, elucidando alguns ca- 
pitulòs obscuros de suas obras. 

Mas até no seu deserto, como elle chamava, a des- 
graça perseguia-o. 

A fortuna não quer aos velhosl disse tristemente 
um dia Luiz XIV ao marechal de Villeroy gue voltava 
da Itália derrotado e depois de ter sacrificado um 
exercito! 

Vieira conheceu por dura experiência a verdade 
desta espécie de sentença. 

E' quasi sempre na velhice que, os que possuem 
a fortuna de ter família concentram nos seus a 
actividade e os ócios que a sociedade aproveitou 
n'outro tempo. 

Vieira foi ferido justamente n'estas caras e ardentes 
affeições 

No irmão, accusado falsamente de um assassinato 
que o obrigou a homisiar-se por muito tempo; no 
sobrinho, tão mal recebido pelo rei, que o idoso je- 
suíta cahiu fulminado e ficou gravemente doente 
auando soube, como tinha soffrido duramente do 
descendente o enviado daquelle que tinha sido por 



muitas vezes a cabeça aconselhadora do ascen- 
dente. 

O padre Vieira não poude afinal permanecer 
reais na quinta do Tanque, onde tanto trabalhara 
e tanto soffrera. 

Foi aqui mesmo, neste collegio, encerrado na 
pequena cella de que estamos separados por alguns 
passos apenas, que o eminente jesuíta, ornamento 
do seu século, fulgor da litteratura de sua pátria, vi- 
veu diante da esplendida paisagem da bella costa 
fronteira, das praias amarelladas da península que se 
estende á direita, d'ac[uelle Monserrate cercado de 
alvas espumas como Miramar, diante daquellas ondas, 
ora verdes como esmeraldas, ora azues como o céo, 
no dorso das quaes arriscara tantas vezes as suas es- 
peranças e os seus dissabores, no meio do bramido 
das tempestades ou no balouço brando das suas ma- 
reias. 

Depois, foi-se-lhe extinguindo a vista para o tra- 
balho e um dos seus últimos gosos era o deslum- 
brante espectáculo do formoso incêndio do céo, por 
detraz de Itaparica, quando o sol desce todas as 
tardes para as aguas, cercado de faxas de fogo. 

Como o sol elle foi também melhor admirado de- 
pois de desapparecido ! 1 

A sua retina de velho entretanto já não podia mesmo 
distinguir; mas elle adivinhava a approximação deste 
amigo da sua juvenilidade, que o vinha visitar todos 
os dias, quando, lá defronte, no oeste, ia esconder-se 
por detraz dos macissos sombrios do arvoredo da 
outra costa, quasi atufado nas terras, mas do lado de 
cá, tornando encostas, casas e ladeiras, o perfil dos 
navios e os rochedos, tudo fulvo, tudo rubro; e ainda, 
quando, mais tarde, dominam os tons violetas, lilazes, 
levemente esverdeados ou alaranjados, como fios de 
oiro nas visinhanças do disco, destacando o escorço 
elegante das palmeiras na crista dos montes da ilha 
até o momento em que se estende uma como mancha 
pardacenta de um claro escuro indefinível no céo e 
sobre a superfície das aguas, para que emfim em todo 
o occidente ha pouco inflammado, só se perceba a 



37 



curva rutilante do astro que se deita lenta e mages- 
tosamente no marl 

E foi também assim que aos 18 de Julho de 1697 
Vieira se deitou no tumulo! 1! 

(Applausoê gemes. O orador é vivamente felicitado.) 



* x 



A 



SEGUNDA CONFERENCIA 

13 de Julho de 1897 
Orador. — Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro. 

O Padre António Vieira considerado como clássico 
da lingoa Portngneza 

Senhores: 

Semper honos nomenque tuum, 
laudesque manebunt. — (Virg.) 




junca é tardio o preito que os vivos rendem aos 
^mortos illustres; nunca é excessiva essa homena- 
gem, que o respeito e a admiração dos séculos ligão ao 
nome desses mortos, cuja memoria venerável é sem- 
pre rediviva ao espirito das nações a que illuminarão 
com as luzes e scintillações de seo saber, com a 
claridade de suas virtudes, com os lampejos e clarões 
deslumbrantes de seo génio; sob cuja influição se 
formarão as nacionalidades, se robusteceo o amor 
da pátria, se fortificou o civismo, crescerão os 
talentos, engrandecerão as sciencias e as lettras, se 
centuplicarão as aspirações generosas, se radicou e 

D'esta conferencia disse o «Correio de Noticias »: 
«O provecto professor e abalisado philologo desempenhou- se 
da honrosa e difficil tarefa de estudar o Padre António Vieira 
como clássico, de um modo tão cabal, tão na altura do assum- 
pto, que o seu discurso constitue de hoje em deante um monu- 
mento de pureza de linguagem, de conhecimento profundo do 
idioma vernáculo, sagrando-se elle próprio clássico, assim como 
o escriptor, cujo elogio lhe fora incumbido ». 
E ainda o «Diário da Bahia» : 
« O erudito professor, traçando, çom a competência que tem, 



40 



encarnou no coração do povo o sentimento do grande, 
do justo e do honesto, se nobilitarão e requintarão os 
conceitos, se aprimorarão e sublimarão as virtudes; 
são mortos que vivem mais para a humanidade, quan- 
do, sobre a rude carcassa que lhes encadeava o espi- 
rito soberano e genial, lhes pesa a fria e gelada lapida 
de um tumulo; porque ahi desapparecem os fumos da 
lisonja, com que muitas vezes em \ida se incensão os 
grandes, os ricos e os poderosos, se bem que pobres 
em virtudes, falhos em saber; ahi se não ouvem mais 
essas alegres symphonias, esses hymnos estrepitosos 
que só subsistem com a vida, e são ephemeros, como 
os favores da fortuna; ahi a historia inexorável, essa 
grande mestra da vida, com imparcial magestade, vem 
sobre a sepultura do mérito inscrever, com sua pro- » 

pria mão, o epitaphio glorioso que fará perdurar na — ^ 

memoria dos vivos o nome daquelle que a noite taci- 
turna o queda da morte alli esconde e clausura. 

A morte só é adormecimento e olvido para os espíri- 
tos communse medíocres; para os grandes engenhos, 
porém, é antes reviviscencia e resurreição; estes são 
astros que, em sua larga eimmensa trajectória, luzem 
e luzem sempre, ou assomem no horizonte, ou se es- 
condão e sepultem para espargir seos raios sobre no- 
vas regiões; são mananciaes perennes d'agoa límpida 
e pura, os quaes sempre fecundão e fertilisão o solo 
donde vertem e por onde passão, e que nelles acertou 1 

de abeberar-se. O génio é essencialmente cosmopolita: . ^ 

não pertence a este ou áquelle paiz, a esta ou áquella 
nação, tem por pátria o mundo, são luzeiros da huma- 
nidade, e, como esta, não envelhece elle, nem morre; 
porque se não perdem, nem morrem as vibrações a 
cujo poderio magico submette os espíritos, que arras- 

a extraordinária individualidade de Vieira, como mestre e clás- 
sico da lingua portugueza, produziu uma oração verdadeira- 
mente notável, na qual ao substancioso do fundo corresponde a 
belleza e a magestade da forma. 

O primoroso discurso, no qual o Dr. Carneiro, em largos 
voos de eloquência, acompanhou o dizer puro e elegantíssimo de 
Vieira, de que leu trechos incomparáveis, de sublimidade e opu- 
lência da dicção, foi ouvido com o attencioso silencio que o seu 
merecimento impõe». 



41 



ta, avassalla, subjuga e fascina, vivendo e revivescen- 
do sempre, tirando da própria morte a vida, que o 
perpetua e eternisa. 

Nenhum homem mereceo mais de seos contempo- 
râneos, nenhum tem mais títulos a ser appellidado 
génio nas lettras, nenhum é mais digno dos applausos 
e das ovações com que a posteridade genuflexa, ha 
dois séculos, lhe honra e venera a memoria, do que 
aquelle que constitue o assumpto do discurso que ora 
vos dirijo, e tão benévola e generosamente attendeis. 
E', Senhores, o Padre António Vieira. 

Permitti que, antes de vos delinear o vulto ma- 
gestoso cujo nome commemoramos hoje, antes de 
vos apresentar o pallido bosquejo do grande en- 
genho, aue tanto* honrou a roupeta do jesuíta, 

>- quanto illustrou a penna do litterato e os agudos 

conceitos do politico e diplomata, do homem que 
a tantas luzes podemos estudar e considerar, me 
congratule com o Instituto Geographico e Histórico, 
essa nobre instituição, que com tanto lustro vae 
enriquecendo os annaes litterarios deste Estado, me 
congratule com a Bahia, dê parabéns a mim mesmo, 
por ter a ditosa e inesperada honra de ser, ante 
este luzido e selecto auditório, o aprégoador de uma 
das variadíssimas qualidades que enaltecem esse im- 
mortal burilador da palavra. 

^ A Bahia, a mater nutrix do talento e dos grandes 

commettimentos, que jamais regateou louvores ao 
mérito, nem honras ás virtudes peregrinas, a Bahia, 
coração largo, vasto, immenso, que vibra a todos os 
grandes sentimentos e estremece a todas as grandes 
commoções, a Bahia, que tem lagrimas e suspiros 
para todos os soffrimentos, flores e palmas de applau- 
sos para todas as conquistas das sciencias e das ar- 
tes, do saber e da virtude, mãe affectuosa e estreme- 
cida, que no mesmo regaço amoravel aninha, como 
se forão seos filhos, todos aquelles em cuja fronte se 
estampa o sello divino com que se assignalão os es- 
píritos singulares, seja qual fôr o aspecto por que os 
miremos e se elles nos manifestem, commemorando 
hoje o nome illustre de António Vieira, vem pagar 
AV. 6 



42 



uma grande divida de honra, iogando uma braçada 
de flores sobre a loisa veneranda do grande civilisa- 
dor e evangelisador de seos sertões, que, no virginal 
de suas florestas, no caudaloso de seos rios, em sua 
viçosa, ridente e luxuriante natureza, no anilado 
de seo côo, sempre azul e puro, hauiio as primeiras 
inspirações do génio, ensaiou os primeiros adejos 
d'aguia, alentou, aqueceo e inflammou os primeiros 
arroubos de eloquência, com que mais tarde assom- 
brava os ouvintes, nas praças, nas ruas, nas cortes, 
nos templos, em toda a parte em que se fazia ouvir o 
facundo verbo que o immortalisou. 

Celebrando, pouco ha, o tricentenário de Anchieta, 
que na historia dos tempos coloniaes do Brazil se des- 
taca como proeminente figura, a operosa terra, berço 
dos Andradas, mostra, no brilhantismo com que so- 
lemnisou essa data, que o gérmen do bem, quando se 
planta no coração do povo, não é como a semente do 
semeador do Evangelho, que cahio em solo duro e sa- 
faro, e se dispersou nos ares, varrida dos ventos, se- 
não como a que, cahindo em terreno fecundo e bom, 
brotou, se desenvolveo, floric e fructificou; celebran- 
do hoje o bicentenário de António Vieira, a Bahia on- 
de lhe madrugarão os esplendores alviçareiros dos 
primeiros arrebóes da aurora do génio, não cede a 
palma a sua irmã do sul, e, com a magestade de dois 
séculos de gratidão e reconhecimento, vem unanime 
inclinar-se ante o nome que constitue o padrão monu- 
mental de duas nacionalidades, que se abração e con- 
fraternisão na mesma ideia e no mesmo sentimento. 

Homens ha que o são tantas vezes, quantas as vari- 
as manifestações da actividade intellectual, a que 
especialmente entregão o espirito, manifestações que 
são os eixos polares de todas as suas producções, em 
cujo âmbito gira todo o seo engenho fecundo e inven- 
tivo. Tal foi o padre António Vieira: ao mesmo passo 
catechista e apostolo, orador e philosopho, professor 
e litterato, diplomata e politico, patriota e mestre da 
lingoa; sempre grande, sempre de intituitos alevanta- 
dos, sempre igual a si mesmo, sempre o mesmo 
Vieira. 



De feito,quem com mais fervor e zelo levou aos abo- 
rígenes da JSahia e do Maranhão a palavra e doutrina 
evangélica, pregando-à com aquella força de persua- 
são, que convencia o gentio, arrancando-o das trevas 
do erro, despertando-lhe no espirito amortecido a luz 
das verdades christãs? Que orador sagrado, com a 
magia de sua palavra, sempre animada, viva, garrida, 
insinuante e convincente, com o encanto e donaire de 
sua elocução, sempre fácil e desempeçada, com os lan- 
ces arrebatadores de sua eloquência, vehemente e se- 
nhoril, com os conceitos philosophicps com que ful- 
minava os reis e os grandes, com a ironia perspicaz e 
pungente com que lhes disfarçava a acrimonia da cen- 
sura e lhes estigmatisava os vicios e desacertos, con- 
quistou mais applausos entre seos contemporâneos, 
maravilhando até o estrangeiro, que o escutava com 
respeito e lhe admirava o vasto saber e a profunda 
noticia que em alto gráo possuia das sagradas escrip- 
turas? Quem, em tão verdes annos, supprindo com 
o saber o que lhe faltava em idade, preencheo com 
mais lustre e luzimento a cathedra de professor, illus- 
trando a sciencia de Quintiliano, merecendo os ap- 
plausos da culta companhia, de que era gloria e orna- 
mento? Quem, em seo paiz e em seo tempo, versou 
com mais discreta diligencia os textos exemplares 
da litteratura antiga e da coeva, donde a longos sorvos 
haurio as sabias lições, e a finura de tacto de que entre- 
tecia as suas cartas e os seos discursos, e em que em- 
moldurava todos os escriptos que sahião de sua mão 
magistral? Que homem foi em seo paiz investido em 
mais espinhosa missão, honrando-lhe no estrangeiro 
o nome e as tradições? 

Como patriota, em summa, tem o Padre António 
Vieira lugar reservadíssimo na galeria dos grandes 
homens; para elle é a pátria o phanal seguro em que 
tem os olhos fitos durante toda a sua longa, tributada 
e tempestuosa existência; é um raio de esperança, de 
doçura e de amor, que o anima e conforta nos desalen- 
tos e desenganos da vida. 

Mas não a mim, senão a illustres membros deste 
Instituto, é que toca fallar dessas qualidades e prendas 



44 



admiráveis de Vieira, que só de ligeiro e resumi- 
damente mencionamos. 

A mim coube tarefa mais estreita e modesta, se 
bem que honrosa: considerar este homem eminente 
como clássico da lingoa portugueza; sob este ultimo 
aspecto é que vou encarar o emérito mestre da lingoa, 
que tão profundamente lhe penetrou nos veios opu- 
lentos, donde tirou os thesouros, as jóias e louçaintias 
de que a vestio, esmaltou e enriqueceo. 

Grato por extremo, aos senhores sócios do Instituto 
pela honra com que me distinguirão, proporcionan- 
do-me o ensejo para aquilatar os méritos deste insig- 
ne artista da linguagem, eu lhes dou neste momento 
solemneas seguranças sinceras de meo agradecimen- 
to, lastimando que seja o panegyrico tão tosco, des- 
botado, rude, sem lavor nem elegância, quanto é 
grande e elevada a personagem de que é assumpto, 
cujos dotes como cultor exemplarissimo do idioma 
portuguez não ha louvores que possão encarecer, nem 
inveja que possa ensombrar e desdoirar. 

Nem sempre se liga ò mesmo sentido á palavra 
clássico, e ás expressões autores clássicos, obras clás- 
sicas. 

Desde o renascimento das artes, lettras e sciencias, 
em toda a Europa, uso foi applicar essa denominação 
aos escriptores modelos, que occupavão o primeiro 
plano na hierarchia litteraria, pela clareza, precisão, 

[mreza, correcção e elegância com que escrevião a 
ingoa, de feição que erão os verdadeiros guias e 
allumiadòs exemplares do bom dizer. 

A expressão foi tomada aos Romanos, que, sob Sér- 
vio Tullio, forão divididos em classes, sendo os da 
primeira appellidados classici, e d'ahi, por analogia, 
applicada a palavra aos escriptores que se relevavão 
dentre os seos contemporâneos, não somente pelas 
qualidades apontadas, senão também pelo cunho de 
originalidade que os distinguia, e por uma feição intei- 
ramente nacional, que deixavão transudar de suas 
obras, fossem artísticas, litterarias ou scientificas. 

Seja, porém, qual for o sentido em que se tomem 
taes expressões, caracteres especiaes ha que as notão 



45 



e discriminão , entre outros, deve o autor clássico re- 
unir os seguintes: ter conhecimento perfeito da lin- 
goa em que escreve, conhecer-lhe bem a índole, a 
physionomia particular, todos os seos modismos e na- 
tivos ademanes, todos os seos segredos, os recônditos 
thesouros de suas minas preciosas; fallal-a e escrevel- 
a com pureza e exacção, evitando adornal-a de vo*es 
e locuções estranhas, e corrompel-a e adulteral-a com 
construcções que tendão a desvirtual-aeabastardal-a; 
ser claro, fugindo a esses torneios rfciosos e obscuros, 
que tornão o discurso diffuso, frouxc, arrevesado e 
embaraçoso; ser elegante, pintando e representando 
as ideias e os pensamentos com belleza, clistincção e 
certo sainete de graça, que tanto aviva, anima e ro- 
bustece a elocução; adaptar e apropriar sempre as 
palavras e o estylo á natureza das ideias e dos pen- 
/*" samentos enunciados; de modo que todos os senti- 

mentos nobres ou vulgares, todas as paixões violentas, 
todas as grandes commoções, todos os conceitos ele- 
vados ou obscuros, tenhãona lingoa, que os traduz e 
photographa, sua adequada e verdadeira expressão. 
Assim como o pincel do pintor não desenha com as 
mesmas cores a tempestade e a bonança, as trevas 
e a luz, as lagrimas e os sorrisos, as magoas e a ale- 

Íjria, a crueldade e a ternura, a pusillanimidade e o 
íeroismo, o rouxinol e o mocho, assim o escriptor, 
que é o pintor da palavra, a qual não é mais que o pen- 
^ samento encarnado, deve, se conhece bem a lingoa que 

falia ou escreve, se sabe adivinhar-lhe e sondar-lhe jOS 
segredos, adaptal-a ás necessidades do pensamento. 
Afora esses dotes que deve ter a linguagem nos 
escriptos e discursos do clássico, accrescentão al- 
guns a vivacidade, a copia e abundância, a brevi- 
dade, a fluidez, a naturalidade, um cunho manifesto 
do espirito nacional que este traduz e representa, e um 
certo equilíbrio entre todas as suas faculdades, uma 
corta saúde da intelligencia, que, segundo a feliz 
concepção de Brunetière, é para o entendimento o que 
é para o corpo a saúde, isto é, o equilíbrio das forças 
que resistem á morte. 
Um clássico ô clássico, diz esse profundo litterato, 



4 



46. 



porque em sua obra todas as suas faculdades achão 
cada uma seo legitimo emprego: sem que a imagi- 
nação prevaleça á razão; sem que a lógica suste os 
voos da imaginação; sem que o sentimento usurpe os 
direitos do bom senso; sem que o bom senso arrefeça 
o calor do sentimento; sem que o fundo se nos depare 
privado da autoridade persuasiva que deve tomar ao 
encanto da forma; sem que nunca, em fim, usurpe a 
forma um interesse que só se deve ligar ao fundo. 

Esse è o padrão por que se aferem as qualidades, 
cujo conjuncto constitue o escriptor clássico; por isso 
é que na Itália, no século de Leão 10, é Ariosto o 
corypheo da poesia clássica, como Machiavel o é da 
prosa; na França são os grandes escriptcres do sé- 
culo 17, epocha de oiro da litteratura clássica nesse 
paiz, em que, por um concurso de circumstancias, 
honrarão as sciencias, as lettras e as artes, e illumi- 
narão o throno de Luiz 14 poetas, como Corneille, 
Racine, Molière e Boileau; prosadores, como La Ro- 
chefoucauld, Sévigné, Pascal, Bossuet e Fénelon; ar- 
tistas, como Lebrun e Girardon; na Inglaterra são 
Pope, Swift e Addison os representantes dessa cru- 
zada litteraria, que derramou tanto lustre no throno 
dos Jorges e da rainha Anna; na Allemanha, no século 
18, Herder, e Wieland; em Portugal é Luiz de Ca- 
mões, que, por si só, como poeta, é a synthese do que 
de mais bello, de mais elevado, de mais sublime, de 
mais nacional poude produzir em portuguez a poesia ^ 

épica no século 16; é ainda em prosa João de Barros, 
o autor das Décadas, o Tito Livio portuguez, de cujos 
lábios, dizia um douto, corria a oração mais doce que 
o mel; tuooue ex ore, (quod de N estore scripsit Ho- 
merus) melle dulcior profluit oratio; é Frei Bernardo 
de Britto e muitos outros, que forão os verdadeiros 
fundadores do bom fallar portuguez, arrancando nosso 
idioma da trilha onde o tinhão collocado seos prede- 
cessores, que o tornarão inculto, bárbaro e rude. 

No século 17, em que a nossa lingoa, como para 
descançar de jornada tão afanosa e brilhante nos ca- 
minhos da litteratura, parece começar a decahir da 
perfeição a que se havia elevado, surgem três vultos, 



47 



que são os representantes e dignos continuadores do 
legado precioso que lhes havia deixado o século an- 
terior; são, para não citar senão os mais illustres, o 
padre Manoel Bernardes, o elegante e mimoso autor 
da Nova Floresta, Frei Luiz de Souza, o famoso e 
correctíssimo escriptor da Historia de S. Domingos, 
e o immortal Padre António Vieira, cujos dotes como 
clássico primoroso a nenhum critico ainda lembrou 
contestar. Estes três notáveis escriptores constituem 
uma brilhante constellação, sendo o ultimo a estrella 
d'essa constellação que mais luz e refulge no céo da 
litteratura nacional, nada invejando á claridade 
que outros astros irradiarão no firmamento de seo 
paiz. 

Não fallemos do século actual, em que uma ra- 
diosa plêiade de escriptores portuguezes, exerci- 
tando-se em diversos géneros, se têm empenhado na 
doce e honrosa missão de não apoucar e desdoirar 
o precioso legado, cuidadosa e diligentemente guar- 
dando e mantendo a pureza de nosso formoso idioma, 
quaes sacerdotizas mythologicas guardavão e man- 
tinhão o fogo do altar da deusa pagan. 

Conhecidas são de todo o homem de lettrasas pa- 
ginas de oiro de que enriquecerão a lingoa portu- 
gueza os Castilhos, os A. Herculanos, os Garretts, 
os Latinos Coelhos, os Castellos Brancos, que esfor- 
çadamente sempre timbrarão de portuguezes, des- 
prezando os falsos ouropéis e atavios estranhos com 
que o pouco estudo e a ignorância da formosura na- 
tiva de nosso rico idioma lhe afeavão a gravidade e 
compostura. 

Isto posto, vejamos se o autor, que é o objecto deste 
desalinhado discurso, resume em si as qualidades 
inherentes a todo o escriptor que deve reputar-se 
clássico. 

Para proval-o e demonstral-o, é o mesmo António 
Vieira, cujos trechos aqui apontamos, quem vae 
fazel-o, mostrando que o seo nome é o seo maior 
panegyrico, e que com razão é collocado entre o 
daquelles mestres da lingoa, daquelles textos de- 
senganados, que souberão polir e aperfeiçoar o idio- 



48 



ma, cuja rudeza havia já desbastado João de Barros, 
o fundador da boa linguagem portugueza. 

Em verdade, aue escriptor fallou nunca com mais 
pureza que o Padre António Vieira? Quem com elle 
corre parelhas na correcção da phrase, na sensata es- 
colha e propriedade dos termos, na finura, delicadeza 
e primor de linguagem com que enunciava o pensa- 
mento? 

Folheem-no, loião-no e meditem-no os amantes da 
lingoa, e nos seguintes trechos se lhes deparará ensejo 
para adfnirar esse notável engenho: 

«Não se pode dizer nem imaginar, diz elle, a de- 
sordem, a confusão e dissonância horrendíssima da- 
ãuellecháos, concorde só no tumulto perturbadíssimo 
os affectos e paixões com o estrondo confusíssimo i 

dos bramidos e alaridos tremendos com que daquella — \ 

multidão immensa de lingoas sacrílegas é incessan- 
temente blasphemado o céo: arde o ódio, morde-se a 
inveja, escuma a ira, raiva a desesperação, grita furi- 
osa a dor e desaífoga-se sem nunca desaffogar-se a 
vingança em injurias, em opprobrios, em maldições 
contra o sempre mais e mais odiado Deos. Do todos 
os attributos e de todos os benefícios divinos se ouve 
ali em desentoados clamores a sua affronta: a justiça 
se chama injustiça; a bondade ini jua; a sabedoria 
ignorante; e até a omnipotência, fraca e covarde, como 
empregada só contra manietados e miseráveis». 1 

Que escriptor, que pintor da palavra soffre con- ^ 

fronto com Vieira na propriedade dos vocábulos, na 
força e energia da dicção, no vivo colorido da phrase 
com que finamente nos debuxa o fogo do ódio, que 
arde, a raiva da inveja, que se morde, o furor da ira, 
que escuma, os ímpetos mal soffridos da desespe- 
ração, que se enraivece, a fúria e delírio da dòr, que 
se desata em gritos e clamores, o desaffogo da vin- 
gança, que nunca se farta e satisfaz? 

Como é vivíssimo o quadro que nos apresenta, 
quando falia da difficuldade e repugnância de reali- 
zarmos na pratica da vida o diligite inimicos vestros 
doChristo? Ouçamol-o: «A memoria, sem jamais se 
esquecer, representa o aggravo; o entendimento pon- 



49 



dera a offensa; a phantasia afêa a injuria; a vontade 
implora e impera a vingança. Salta o coração, bate o 
peito, mudão-se as cores, chameão os olhos, desfa- 
zem-se os dentes, escuma a bocca, morde-se a lingoa, 
arde a cólera, ferve o sangue, fumeão os espíritos; 
os pés, as mãos, os braços, tudo é ira, tudo fogo, tudo 
veneno.» 

Que mimo, que ternura, que suavidade de colorido, 
que perfume de poesia, gue doce estrophe de melodia, 
se não derrama na seguinte passagem deste profundo 
conhecedor das jóias e arrecadas preciosas de nosso 
idioma? E' o quadro da vida humana, em que tudo 
passa, tudo é contingente, e ephemero e perecedouro 
e mortal. 

«Desde a terra até o céo, diz Vieira, está estabele- 
cida esta lei: Na terra a rosa, rainha das flores, é 
ephemera de um dia; toda aquella pompa branca, 
toda aquella ambição encarnada de que se veste, pela 
manhã são mantilhas, ao meio dia galas, á noite, 
mortalhas. 

No céo, a lua, rairrha das estrellas, quem a vio 
cheia, retrato da formosura, que logo a não visse 
minguante depois da mudança? 

Quando resplandece com toda a roda, então, se 
eclipsa; quando faz opposição ao sol, então a en- 
cobre a terra. Ajunte-se a formosura da terra com 
a do céo e na união de ambas veremos o mesmo 
exemplo.» 

«A aurora, diz noutra parte o mesmo escriptor, é 
o riso do céo, a alegria dos campos, a respiração .das 
flores, a harmonia das aves, a vida e alento do mundo. 
Começa a sahir e a crescer o sol, eis^o gesto agra- 
dável do mundo e a composição da mesma natureza 
toda mudada.» 

Ha em todos esses painéis primorosos do padre 
António Vieira um vivo frescor, uma desaffectada na- 
turalidade, um como que suave e doce aroma cam- 
pesino, que enleva e arrebata o leitor. 

Não ha a quem não admire a propriedade de ter- 
mos, abelleza de dicção, a elegância e viveza de estyio 
e a profundeza dos conceitos com que, animando Vi- 
A. V, 7 



50 



eira uma missão de religiosos, que de S. Luiz do 
Maranhão partia para o Amazonas, assim se exprime: 

«Concedo- vos que esse indio bárbaro e rude seja 
uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Ar- 
ranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, 
bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais 
grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a 
formar um homem: primeiro membro a membro, e 
depois feição por feição até a mais miúda: ondea-lhe 
os cabellos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, 
afila-lhe o nariz, abre-lhe abocca, avulta-lhe as faces, 
tornea-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espal- 
ma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os ves- 
tidos: aqui desprega, alli arruga, acolá recama, e fica 
um homem perfeito e talvez um santo, que se pode 
pôr no altar. O mesmo será cá, se á vossa industria -1 

não faltar a graça divina. E' uma pedra, como dizeis, ^ 

esse indio rude? Pois trabalhae e continuae com elle; 
applicae o cinzel um dia e outro dia; dae uma mar- 
tellada e outra martellada; e vós vereis como dessa 
pedra tosca e informe fazeis não só um homem, 
senão um christão, e pode ser que um santo». 

Em que lingoa, em que autor já se elevou tanto a 

Srosa? Quantos fios de pérolas se ennovelão aqui para 
ar relevo e realce ás bellezas nativas de nosso opu- 
lento e donoso idioma? 

Falia o autor do. sitio de Betulia, e assim viva e ele- 
gantemente se exprime com relação a Judith, sua 
libertadora: «Despe o cilicio de que estava toda coberta, 
enxuga as lagrimas com que orava ao céo, manda vir 
cheiros, ioias, galas, espelho: veste, compõe, enrique- 
ce, esmalta os cabellos, a garganta, o peito, as mãos, 
os braços e até os pés, não de todo cobertos, e feita 
Judith um thesouro de cobiça, um pasmo de formo- 
sura e mil laços do appetite, sáe confiada pelas 
portas da cidade; saltão fosso, passa as sentinellas, 
entra pelo exercito inimigo e vae direita á mesma 
tenda de Holophernes. » 
_Aqui é tudo vivo, conciso e animado: na colloca- 
çao das palavras, no tecido das phrases, observou 
bem o escnptor a ordem das ideias; a ellipse das con- 



4 



51 



juncções communica ao discurso um certo gráo de ra- . 
pidez, concisão e vivacidade; que bem se casa e con- 
certa com as disposições de espirito de que se 
achava possuída a heroina, segunao nol-a descreve 
o autor. 

As expressões thesourô de cobiça, pasmo de formo- 
sura, mil laços do appetite são empregadas com muita 
felicidade e attestâo um espirito conhecedor do cora- 
ção humano, que, por vezes, submette a humanidade 
á animalidade, dando a esta o sceptro que só devia 
empunhar aquella, cedendo e curvando-se com volú- 
pia aos mclles impulsos das paixões desenfreadas, 
e dos appetites insoffridos, e cerrando os ouvidos 
aos reclamos e brados imperiosos da razão e do 
dever. 

Trata Vieira da fragilidade e caducidade da for- 
mosura e com que mimosa delicadeza nol-a define e 
descrevei Como se affeiçôa ao pensamento e com elle 
se ajusta o estylo desse grande homem I Como a lingoa 
portugueza se"dobra flexível a sua inspirada pennal 
Quanto de vivo, fino e afinado resalta aa pintura bem 
acabada desse Raphael da palavra I 

Passagens ha em que parece não é o escriptor 
que cede e obedece á lingoa em que escreve, senão a 
lingoa que lhe obedece e submissa lhe desdobra, des- 
fia e traduz os sentimentos e as ideias, ante seos pró- 
prios olhos que se ufanão altivos dessa obediência. 

Acompanhemol-o e ouçamol-o ainda: 

«A formosura é um bem frágil e quanto mais se 
váe chegando aos annos, tanto mais váe diminuindo 
e desfazendo em si e fazendo-se menor. Seja exemplo 
desta lastimosa fragilidade Helena, aquella famosa e 
formosa grega, por cujo roubo foi destruída Troya. 
Durou a guerra dez annos, e, ao passo que ia durando 
e crescendo a guerra, se ia juntamente com os 
annos diminuindo a causa delia. Era a c^usa a for- 
mosa' Helena, flor em fim da terra e cada anno corta- 
da com o arado do tempo. 

Estava iá tão murcha e a mesma Helena tão outra, 
que, vendo-se ao espelho pelos olhos, que já não 
Unhão a antiga viveza, lhe corrião as lagrimas, e não 



82 



achando a causa por que duas vezes fora roubada, 
ao mesmo espelho e a si perguntava por ella. 

Os primeiros tyrannos da formosura são os annos, 
a a sua primeira morte é o tempo. Debaixo do impé- 
rio da morte acaba, debaixo da tyrannia do tempo 
muda-se; .e se alguém perguntara á formosura, qual 
lhe está melhor, se a morte ou a mudança, não ha 
duvida, que havia de responder, antes morta que mu- 
dada. » 

A linguagem de Vieira, sempre tersa, castiça, «apro- 
priada ao assumpto, viva, substanciosa, clara e ele- 
gante e por vezes maviosa e melliflua, evitando com 
ajustada parcimonia o baixo e o guindado, o excessivo 
antiquado e as innovações excusadas, é ás vezes de * 

um vigor brilhante, de um arrojo, de uma valentia, ^T 

de uma masculinidade admiráveis, pondo em luz os 
inexhauriveis recursos de seo aguçado engenho. 

Servem de exemplo os seguintes passos, colhidos 
em seos sermões: 

«E' a guerra aquelle monstro, que se sustenta das 
fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come 
e consome, tanto menos se farta. E' a guerra aquella 
tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, 
as villas, os castellos, as cidades e talvez em um mo- 
mento sorve os reinos e monarchias inteiras. E' a . 
guerra aquella calamidade composta de todas as cala- -# 
midades, em que não ha mal algum, que ou se não 
padeça ou se não tema; nem bem que seja próprio e 
seguro: o pae não tem seguro o filho; o rico não tem 
segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seo suor; 
o nobre não tem segura a honra; o ecclesiastico não 
tem segura a immunidade; o religioso não tem segura 
a sua cella; e até Deos nos templos e nos sacrários 
não está seguro. 

Falia o escriptor da náo de Noé e deste modo se 
enuncia: 

«Comp pode ser que coubessem em tão pequeno 
lugar tantos animaes, tão grandes e tão ferosi O leão, 



53 



para quem toda a Libia era pouca campanha; a águia, 
para quem todo o ar era pouca esphera; o touro, que 
não cabia na praça; o tigre, que não cabia no bosque; 
o elephante, que não cabia em si mesmo». 

No trecho seguinte, sobre ser correctíssimo na 
dicção e disposição das phrases, é notável esse be- 
nemérito da lingoa portugueza na harmonia imitativa. 

Trata-se do sermão ppln bom successo das armas 
de Portugal contra as de Hollanda, em que avultão 
em todo o sermão os maiores rasgos de eloquência, 
os mais sublimados lances oratórios. «Finjamos pois, 
diz Vieira, (o que até fingido e imaginado faz horror), 
finjamos que vem a Bahia e o resto do Brazil a mãos 
dos Hollandezes: que é que ha de succeder em tal 
caso? 

Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores 
e de hereges: não perdoarão a estado, a sexo, nem á 
idade; com os fios dos mesmos alfanges medirão a 
todos; chorarão as mulheres, vendo que se não guarda 
decoro a sua modéstia; chorarão os velhos, vendo 
que se não «uarda respeito as suas cãs; chorarão os 
nobres, vendo que se não guarda cortezia a sua qua- 
lidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacer- 
dotes, vendo que até as coroas sagradas os não de- 
fendem; chorarão finalmente todos e entre todos, 
mais lastimosamente os innocentes, porque nem a 
estes perdoará (como em outras occasiões não per- 
doou) a deshumanidade herética». 

Que effeito maravilhoso não produz nesse passo do 
grande orador a harmonia imitativa! Como parece ao 
leitor estar a ouvir os dobres fúnebres dos templos 
da Bahia, que compassadamente, tristemente, pesa- 
damente soarão aos ouvidos da imaginação do por-' 
tentoso rei da palavra I Com que engenho sobe elle 
todos os degráos que meçleião entre o bello, que 
encanta, e o sublime, que assombrai 

Como penetrão dentro d'alma e ferem as fibras 
de coração, uma a uma, as tétricas consonnancias 
do repetido chorarão, que se succedem no discurso 
como as monótonas, doridas e plangentes vibrações 
dos sinos de finados. 



54 



Como nas producções de todo o escriptor clássico 
seja qual for o século que o vio abrir os olhos á luz, 
nos sermões de Vieira, em suas cartas, em todos os 
seos escriptos, transpira, como nos Lusíadas de Ca- 
mões, na Divina Comedia do Dante e nos dramas de 
Shakespeare, aquelle espirito nacional, que faz, fez e 
fará sempre delles verdadeiros padrões da gloria de 
sua nação, conquistando uma popularidade, que os 
séculos não apagarão, e fazendo sempre vibrar a alma 
nacional, que os alentou e inspirou. 

No género epistolar, um dos mais difficeis da es- 
pinhosa e trabalhosa arte de escrever, se bem que 
não ostente aquella singela e engraçada jovialida- 
de, aquella doce, expansiva, affectuosa e cordial 
effusão de amizade com que se dirige Cicero a Te- 
rencia e a Tullia, mostra-se Vieira, comtudo, um 
consummado escriptor, no castigado e primoroso da 
phrase, na elegância e perspicuidade do estylo, na 
nobreza e vivacidade das metaphoras, no relevo das 
imagens, no substancioso das sentenças, na caden- 
cia numerosa do discurso, no apropriado do dizer, 
sempre terso, genuíno e correcto. Se as cartas do 
orador romano são copiosos e ricos mananciaes para 
a historia litteraria e politica da epocha tumultuosa 
em que vivêo, não o são menos as do escriptor portu- 
guez para a historia portugueza de sua epocha, 
igualmente agitada e tempestuosa. 

Podemos, em summa, açplicar em tudo a António 
Vieira o que avisada e judiciosamente escreveo este 
com refrencia a Frei Luiz de Scuza, na censura á 3. a 
parte da Historia de S. Domingos: «O estylo é claro 
com brevidade, discreto sem affectação, copioso sem 
redundância e tão corrente, fácil e notável, que, en- 
riquecendo a memoria e affeiçoando a vontade, não 
cança o entendimento. 

A linguagem, tanto nas palavras, como na phrase, 
é puramente da lingoa em que professou escrever, 
sem mistura ou corrupção de vocábulos estrangei- 
ros, os quaes só mendiguo de outras lingoas os que 



55 



são pobres de cabedaes da nossa, tão rica e bem do- 
tada, como filha primogénita da latina. 

A propriedade com que falia em todas as matérias é 
como de quem a aprendeu na eschola dos olhos. Nas 
do mar e navegação, fallã como quem o passou muitas 
vezes; nas da guerra, como quem exercitou as armas; 
nas das cortes e paço, como cortesão e desenganado; 
e nas da perfeição e virtudes religiosas, como reli- 
gioso perfeito.» 

Verdade è que em alguns dos escriptos do Padre 
António Vieira se nos depara um uso excessivo de 
equívocos, antitheses e trocadilhos, que lhe empan- 
não e ensombrão o estylo, levando não raro o espiri- 
to do leitor a um emmaranhado enleio e intrincado 
labyrintho, onde muitas vezes se quebra o fio das 
ideias, e se turva a claridade do pensamento do es- 
criptor; taes defeitos, porém, e os sophismas, subti- 
lezas e argucias piíeris dequeo accusão, não se de- 
vem só lançar á conta do escriptor, senão á do sé- 
culo em que viveo: nenhum escriptor ha, por singular 
e original que seja, que não comparta em subido gráo 
os defeitos, os preconceitos do século em que vive, 
submettendo-se insciente e inconscientemente á in- 
fluencia poderosíssima das opiniões e costumes de 
seos contemporâneos, não podendo delia seques- 
trar-se nem triumphar. Sócrates, o grande Sócrates, 
o philosopho atheniense, lega ao morrer um gallo a 
Esculápio. Boudin, famoso historiador, que foi o pri- 
meiro francez que mirou a historia á luz da philoso- 
phia, Boudin, que, segundo RobertFlint, nenhum rival 
teve entre seos contemporâneos, que foi profundo co- 
nhecedor das lingoas, da historia, do direito, da philo- 
sophia e da politica; esse espirito agudo, e penetran- 
te, <jue era sceptico relativamente a toda a religião 
positiva, acreditava puerilmente no malefício, na vir- 
tude dos números, na influencia das estreitas. João 
de Lucena, quinhentista famosíssimo e elegantíssimo 
escriptor, Manuel Bernardes, contemporâneo de Vi- 
eira, garboso e guapissimo conhecedor 4o idioma 



56 



portuguez, não se escoimão de todo desses defeitos, 
apresentando a trechos vários exemplos das mesmas 
faltas, que ainda mais concorrem para fazer sobrelevar 
as bellezas de séos primorosos escriptos. 

Em Vieira não ha porque se negue um certo nume- 
ro de locuções e ph rases, tidas hoje em dia por anti- 
quadas, bem que em voga no seo tempo ; mas a lingoa 
não é um instrumento passivo e sem vida: é um orga- 
nismo vivo, que se forma, nasce, se desenvolve, cres- 
ce, principia a decahir, e morre como tudo o que vive; 
liga-se de tal modo ao pensamento, com elle se identi- 
fica, a ponto que o acompanha em todas as suas vicis- 
situdes, elevando-se ou descahindo com elle, com elle 
engrandecendo-se e aprimorando-se, sendo sempre 
em tudo seo fiel transumptu. Se, por um lado, ligada 
intimamente ao espirito, nelle influe e actua, tornando ^ 

possíveis todas as suas manifestações, aclarando-o em » 

seos processos íntimos e profundos, excitando-lhe as 
energias, provocando-lhe os sentimentos, desdobran- 
do-lhe as ideias, desfiando-lhe e analysando-lhe os 
conceitos e as noções; por outro lado, obedece e cega- 
mente se submette ao espirito, de cuja vida vive e se 
nutre. 

Ha uma dupla correnteza de acções e reacções, de 
influencias, a que chamaremos centrífugas e centrípe- 
tas, as quaes se ligão á vida mesma dos idiomas, e 
que a todos arrastão fatal e instinctivamente. (*) i 

• * 

Sombra do grande orador, rei e gloria do púlpito, 
o peso esmagador de dois séculos comprime-te a ar- 
gila caduca, donde desprendeste o vôo para as infindas 
e insondáveis regiões do infinito ; mas o echo de tua 
voz ainda vive e parece reboar pelas abobadas de nos- 
sos templos, que abrazaste com o fogo dos raios de tua 
eloquência pujante e vigorosa; ainda as. naves sagra- 
das a quarenta lustros de distancia parece lobrigarem 
teo vulto sereno e magestoso a despedir torrentes cau- 
daes, que as inundarão de luz e de fé. Nosso céo de 
purpura e anil, qu e tantas vezes te sorrio, nossos cer- 

(■) Dr. Carneiro Ribeiro (Serões gram. ) 



57 



ros e penedias, as fragas de nossas serras, nossos rios 
gigantescos, nossas alpestres florestas, que te senti- 
rão os passos, te perceberão os movimentos, te ouvi- 
rão as queixas e os segredos o forào testemunhas 
de tuas luctas, de tcos esforços, de tuá abnegação, 
das ingratidões e injustiças que soffreste, de teo 
heroísmo em favor dos índios escravos, guardão 
ainda indelével tua imagem veneranda, e quaes har- 
pas eólias ou immensos órgãos suspirão e repetem 
teo nome e teos louvores. 

Insigne e nunca assaz celebrado es^riptor, quantos 
reis, quantos fidalgos e grandes, a despeito das cen- 
suras com que os verberavas, gostosamente trocarião 
pelo cinzel de tua inspirada palavra a purpura que 
trajavão, os títulos nobiliários que os distinguião, as 
gaias e telas de que se ornavão, os arminhos e broca- 
dos de que os enfeitava a vaidade e porventura a igno- 
rância frívola, presumpçosa e vã? Se muitas vezes no 
púlpito sagrado tua palavra, como a de Bossuet, era 
um raio, que feria e fulminava; de tua penna, outras 
vezes, como da de Bernardes, distillava o mel, com 
que commovias e enternecias. 

Aprimorado sacerdote do dizer castiço e de bom 
cunho, que pintor da palavra achará em sua paleta 
cores para traçar c desenhar condignamente teos 
finos quilates na lingoavernacula? 

Assim como as notas o producções musicaes de 
Mozart erão mais elevadas e sublimes, quando, tan- 
gendo os dedos o dilecto instrumento, não paredão 
obedecer ao esforço voluntário do artista," senão á 
actividade automática a que se submettião, e a que 
deve o mundo as mais inspiradas producções desse 
singular compositor, assim, grande mestre dá lingoa, 
os termos, os vocábulos, as phrases que escrevias, 
nunca os procuraste com esforço ou ornpenho affec- 
tado, vinhío por si.cahir submissos ,de teo calamo 
inimitável; escrevendo na lingoa de que* eras desvela- 
do cultor, a actividade automática de teo cérebro 
anticipava, porque assim o digamos, a actividade 
consciente de teo espirito. Como a Mozart, te sellou 
a natureza com o sinete do génio, o qual, em que 
A, V. . 8 



58 



Sese a Buffon, não é uma longa paciência, sonâo um 
ructo e producto espontâneo, a que o esforço educa 
e aperfeiçoa, mas não cria. 

Fonte inexgotavel, em que se têm inspirado tantos 
engenhos, no cryslal de tuas agoas a nossa lingoa 
mira-se altiva e se desvanece e rejubila de se ver tão 
formosa e louçã. 

Grande benemérito da pátria, é por demais justa ã 
homenagem que ora te rendemos, os tributos de ad- 
miração consagrados a tua memoria; a apotheose que 
te fazem duas nações que se abração, procla- 
mando em unisono tua gloria e teo renome. Se em 
Portugal tiveste as mantilhas que te enfaixarão a in- 
fância, na Bahia tiveste a eschola, onde começaste a 
soletrar o verbo de tua grandeza ; aqui provaste e acri- 
solaste teos dotes geniaes; aqui, no meio de teos 
irmãos, que te entoarão o requiern, nesta terra, a quem 
não eâauecem teos triumphos, tiveste a mortalha, que 
te envolveo as relíquias venerandas. 

Se a Bahia te não sentio os primeiros vagidos, ouvio- 
te os derradeiros suspiros, recebeo em seo seio, amo- 
rosamente maternal, as tuas ultimas lagrimas, e solu- 
çando, recolheo no cofre de seo coração as ultimas 
phrases que murmuraste no bello idioma que soubes- 
te honrar e engrandecer. 

Emquanto do mappa ethnologico não desapparece- 
rem a nação portugueza e abrazileira, vinculadas por 
laços que as identificão no convívio commum cios 
povos; emquanto no quadro das lingoas subsistir a 
que brazilfeiros e portuguezes falíamos; emquanto 
palpitar um coração verdadeiramente portuguez ou 
ferazileiro, inflammado do fervoroso patriotismo que 
resumbra de todas as tuas paginas immortaes, 
não morrerá tua gloria, nem teo nome, nem os louvo- 
res e louros immarcesciveis de que a humanidade in- 
teira te coroa, podendo applicar-te o verso que nos 
lábios de seo heróe põe o poeta mantuano: 

Semper hortos, nomenque tuum laudesque manebunt. 
(Virg.) 

(Ao terminar, o illustre conferente recebeu do audi- 
tório applausos geraes e prolongados). 



TERCEIRA CONFERENCIA 

15 de Julho de 1897 
Orador. — Risvd. Padre Elpidio Tapyranga. 

O Padre António Vieira, catechista no Brazil 

Exm. Sr. Dr. Governador: 
Senhores: 



io vasto cyclo do percorrer das eras só resistem 
?ás nortadas devastadoras dos séculos as gran- 
dezas incalcinaveis da intelligencia, quando esta se^ 
encumôa ás alturas das glorias. *" 

Péricles povoa a capital da Grécia de afamados mo- 
numentos, e esses desappareceram no sumidouro dos 
tempos, sem escapar ao menos uma pedra de suas 
minarias tristonhas. Mas a Odysséa do celebrado 
épico ainda faz o deslumbramento dos que abrem 
aquellas paginas illuminadas pelo génio, que nellas 
compendiou todas as modalidades sentimentaes do co- 
ração humano; e a Ilíada ainda faz palpitar com vida 
o peito aguerrido de Açhilles, o heróico vencedor de 
Heitor. 

O « Diário da Bahia » dando noticia d'esta conferencia assim 
se exprime: 

« Occupou a tribuna das conferencias oillustrado padre Tapy- 
ranga, que ainda uma vez, confirmando os bellissimos dotes que 
possue, de orador eloquente e homem de estudo, em phrase vi- 
brante e vivacissima, salientou o apostolado de Vieira, nos ser- 
tões do Brazil. 

A' descripção dos factos que se prendem a essa phuse da vida 
daquelle homem extraordinário, não faltou o critério histórico, 
nem o colorido da palavra lampeiante do orador, por vezes in- 
terrompida com espontâneos applausos do auditório. » 



60 



De Thebas e de Memphis, de Epheso e do antigo 
Egypto, não nos restam senão a memoria de suas 
sumptuósidades artísticas, emquanto as producções 
arrebatadoras de Theocrito e os carmes dulçorosos 
de Virgílio ainda infiltram no espirito a mellifluidade 
de seu estylo; e Juvenal, bem como o satyrico amigo 
de Mecenas esgarçam, ainda em nossos dias, com es- 
pinhos de ironia, a muita pequenhez que se envaidece, 
a muito zelo de correcção, que enfarda vicios de todos 
os tempos. 

O génio que deixa, pois, no livro as fulgurações de 
sua riqueza, escalando as alturas do assombro, desa- 
fia mais o transporte enthusiastico das gerações, que 
se succedem, <jue no mármore ou na tela, onde se es- 
tampe a magnitude de sua pujança. 

O bronze não passa com eguál seguridade a fama e 
a memoria aos povos de todas as edades, nem ha 
mais certeiro vehiculo para levar aos ângulos do mun-. 
do as magnificências excepcionaes da intelligencia, 
como esse poderoso meio de cternisar a gloria de um 
nome. Tem a vantagem de sua vulgarisação rápida, 
como de sua pcrduração, para a critica não encarrei- 
rar pela trilha da benevolência ou da vehemencia in- 
justa, para ser austera, mas desprevenida, intransi- 
gente, mas verdadeira. 

As estreitas têm o céo onde engastadas derramam 
o pálíor de seu clarão. A intelligencia do homem tem 
um firmamento onde fulge o brilho de sua luz, o livro, 

âue revela aos pósteros os esplendores adamantinos 
esses espíritos de eleição. 

Podem, pois, as gerações todas levar á balança dô 
critério e da justiça os documentos que legou-nos o 
cérebro três vezes portentoso do padre António Vieira, 
desde os annos de florescimento de sua mocidade, 
até os dias em que a edade enlourou-lhe a fronte de 
cabellos brancos, quando a gloria já a tinha circum- 
dado de seu fulgor perennal. 

Ficararn-nos os volumes de suas obras, orações 
sacras e cartas politicas, que enfeixam as irradiações 
de seu espirito, bastando por si sós para sopezarmos 
a superioridade de seu merecimento como homem de 



61 



lettras, não duvidando Ferdinand Dinis, em sua pro- 
funda competência, comparal-o cm oratória a Águia 
de Meaux, mas ainda que todos seus cpntemporaneos 
e compatriotas, continuador mais saliente que o admi- 
rado bispo de Évora, D. Garo ia de Menezes, em que 
Pomponio Leto achara a maior elegância de latinida- 
de, sendo filho alias da Lusitânia. E a Clavis Propheta- 
rum, sua collossal obra, nue não teve acabamento, 
testifica assas a erudição, que não se encontra entre 
os coevos da milícia de seu grande patriarcha, altean- 
do-o entre todos como a fronde que busca na arvore 
ramosa as regiões supernas de além. 

Como batalhador indefesso na liça da eloquência, 

seu verbo que desafiava parallelo na precisão e subti- 

lidade, como na facúndia inexhauyivol e na largueza 

doutrinaria, nunca menos feliz, nertífrenos admirado, 

> soube sempre desferir 

« O claro lume que apagar não podem 
<* Nem a descarnada mão da triste inveja, 
« Nem fouce cruel do voraz tempo. » (*) 

Não tenho, porém, como escopo estudal-o por essa 
face radiosa de sua mentalidade, embora que o elas- 
terio emprestado a muito pensamento bibhco, os bro- 
- cados rhetoricos excessivamente trabalhados e profu- 
samente esparsos, serzissem algumas vezes suas 
1 maravilhosas peças oratórias de peccadilhos, que 
^ esquecido o período de sua florescência, não passam 

indemnes da causticidade critica nos. dias correntes. 
Mas o sol tem também suas fáculas e nem por isso 
sua photosphera deixa de sèr tão esplendida e lumi- 
nosa. 

Vieira se excedia muita vez nos corollarios desdo- 
brados ao martellar de um talento especioso, opulento 
de recursos para convencer e attrahir, vibrando as 
mais arrojadas proposições, o que não o apêa, entre- 
tanto, da súpereminencia do mérito em meio de seus 
pares do século XVII. 
A meu ver, Senhores, António Vieira deve mais 

(") F. Gomes, A Restauração da Arcádia. 



avultar-se na estimação dos brazileiros pelos bene- 
fícios reaes.e sumrnamente relevantes, que prestou 
na phase de. nossa vida colonial, como missionário 
. civilisador de nossas raças aborígenes e como di- 
rector infatigável dos catechistas, que nas terras da 
Santa Cruz desbravaram brenhas incultas e espíritos __ 
selváticos. 

Quando mais férvidas eram as demonstrações de 
enthusiasmo por sua pessoa em toda parte e a nação 
portugueza inteira acercava-o de palmas e ovações; 
quando em sua volta triumphante de espinhosas in- 
cumbências, em as quaes se mostrara sempre destro 
diplomata, na resolução de embaraços na França, na 
Hollanda, na Hespanha e na Itália perlustrando o 
estádio escorregadio da politica internacional, hon- 
rando o nome de sua pátria; quando a confiança de i 
toda corte de Lisboa lhe era testemunhada pelas -^ 
provas de affectos de D. João IV e do povo, Vieira 
concebe o plano de procurar os confins das mattas do 
Brazil. 

A riqueza de seu espirito estava na mesma recta da 
grandeza de sua correcção. Por isso elle não se prendo 
ás sedacções que a outros poderiam escravisar, dci- 
xando-se ficar num meio, em que sua palavra era 
uma decisão, sempre uni ensejo de arroubos, c sua 
autoridade tinha um culto de indefectivel respeito, 
onde conhecia a estima sellada pela preferencia e a 
necessidade. que tinham de seu tino, o caracter du- k 

plame/ite escudado nas virtudes religiosas e cívicas. 

Mas desde que aportara ás terras de Portugal em 
1650, António Vieira aífagava a ideia de vir de novo 
ao Brazil evangelizar tribus indianas e nesse terreno 
ubertosp fazer brotara sementeira opima da fé ehristô, * 
conquistando inlelligencias para a civilisação e braços * : 
para o trabalho riobilitador. 

Já em Torres Vedras ensaiara os primeiros passos, 
n'essa vida de agruras, mas abençoada e profícua, em 
que o grande jesuíta tinha de pôr á prova dq sacrifí- 
cios a constância e a tenacidade. -todo atilamento de 
• seu espirito e toda sua abnega^p. 

Aquelle que creou o s.^I como insignificante fresta 



63 " 



por onde mal se escapa um raio de sua sabedoria; 
o mar como uma pagina minúscula, que não chega 
para dcscripção pallida de seu poder; os astros como 
uma infinidade de diamantes, esmaltando â -limpidez 
do espaço o que reunidos todos não valem uma alam- 
pada mortiça ante o infinito de seu resplendor; as 
selvas povoadas de arvores giganteas, com suas comas 
de espessura enorme, que só os ventos desgrenham 
para nellas gemer suas queixas sentidas em mysterios 
da dor; Aquelle que creou o homem como uma lettra 
apenas do grandios3 livro de sua Omnisciência, mas 
não deixando a razfio ler atravèz de sua sombra os se- 
gredos que se escondem em seií seio eterno e de im- 
mcnsuramlidade incomprehensivel; Aquelle finalmen- 
te que modelou o homem â feitura de sua imagem, 
em que pese o descomcdirnent ) theorico das oscholas 
darwinianas e suas variantes, quiz que um luzeiro 
que atrahia a admiração do mundo culto espraiasse 
também raios bemfjzejos, por sobre os primitivos ha- 
bitantes de nossas florestas, ven^éndo-lhesa braveza, 
para leval-os ao convívio da civilisação. (Appliusos). 

E assim, como que ora António Vieira arrastado 
por força ignota, inesquivavel, não cedendo às roga- 
tivas de seu rei, nem cogitando das incommodidades 
c quiçá da perda de vida para seguir caminhos aspe- 
rosos; ter por alento os infortúnios, em procura de 
índios, cuja ferocidade elle não desconhecia. 

Doirava-lhe o céo do pensamento o plano de dedi- 
car-so á catechese das tribus bravias com o ardor do 
zelo que lhe inspirava toda sua fé, esse elemento ani- 
mador das almas bem formadas. 

Poderiam surgir deante de sua emoreza muralhas 
de obstáculos que lhe cortassem o passo ousado; 
todas as diflficuldades poderiam emmaranhal-o em 
trama de desanimo e desesperanças, restar-lhe-hia o 
espaço de sua vontade, para acoroçoar-lhe o esforço, 
«pelos ares intentaria voar,» como se exprime seu 
melhor biographo, tal como Dédalo preso por Minos 
no labyrintho ae Creta, exclamando: 

Terras et undas obstruat; 

Omnia possidea } non possidet cethera Minos / 



64 



Colombo para descobrir a porção mais venturosa 
do universo, Vasco da Gama para atravessar o cabo 
das Tormentas, Saussure para subir o cume nevado 
do Monte-Branco, não teriam por certo mais resoluta 
firmeza em seus emprehendimentos, que a alma desse 
inspirado luctador, impondo-se à resolução de um 
novo mourejar, dos mais extrenuos trabalhos, em 
nome de seu sentimento christão. . 

Sua palavra que tantas gemmas de valor havia con- 
quistado para a coroa de imperecibilidade de seu 
nome, aquella palavra que em cada dicção valia uma 
sentença, e em cada sentença deixava transluzir o 
brilho magestatico do génio, não devia fazer-se ouvir • 
somente nos grandes círculos de illustração e de 
saber, produzir incendidos arroubos na capital lusi- j 

tana e maravilhar até mesmo os mestres na vetusta — £ 

cidade dos Cezares; devia como a flauta de Pan nos 
valles da Thessalia arrastar ao seio da civilisação mi- 
lhares de seres esquecidos nos braços da barbaria. 

Bem no âmago das florestas maranhenses ... lá 
onde o jequitibá robusto, com sua viridente folhagem 
não nega uma rama para o ninho de seus habitadores 
alados, teria também pousada amiga, á sua sombra, 
a águia que se arrojara de longes terras, sem temor 
de setta aue a prostrasse sem vida. 

Depois buscaria o cabeço de uma de nossas mais" 
elevadas serras, a Ibiapaba, brandiria as azas e no V 

rumor dô voo altaneiro acordaria as raças selvicolas * 

adormidas ao pé da mancenilha lethal da ignorância. 
(Applausos). 

Muito maior somma de sacrifícios pareceria exigir 
seu temerário intento que o conservar-se Vieira entre 
affeiçoados e companheiros que o estremeciam, na 
quadra em que preponderava seu espirito esmerada- 
mente polido de homem de lettras e politico, quando 
sua experiência era buscada como directriz de diflfi- 
culdades embaraçosas, cabendo-lhe mais de uma vez 
a gloria de resolvel-as facilmente; pareceria melhor 
o partido da contra resolução. Mas as almas de s«u 
quilate não conhecem o que são as pretenções es- 
treitas dos valido:? da mediocridade, nem sonham no 



65 



regaço- flácido da vaidade com as grandezas, 1 qtífe ò 
egoísmo fita com olhos de ciobiça. 

Esquecendo tudo António Vieira se determina éttt 
22 de Novembro de 1652 a demandar plagas -america- 
nas, levando comsigo, como companheiros de ltiçtás, 
os padres Manoel de Lima, Matheus Delgado e Ma- 
noel de Souza. (1) 

E sua actividade que não concedia tregoas á las- 
sidão, mesmo apezar de todas as inclemências de 
uma penosa viagem, levava-o a congregar os habi- 
tantes daquella «povoação nadante» para instruií-os 
na fé, implantando n J alma de viajantes e tripolantes 
os estímulos da honra e do dever. 

Eram os ligeiros primórdios do luctar afanoso. em 
beneficio de espíritos que precisavam tanto da cari- 
y- dade da instrucção, como de quem lhes ensinasse os. 

- . rudimentos da arte para o progresso do trabalho. 

As repetidas peripécias que lhe advieram durante 
a longa viagem por sobre o dorso do oceano, longe 
de desanimar aquelle espirito de tempera inquebran- 
tável serviam ao em vez disso para retemperal-o na 
coragem e obstinal-o no propósito de levar avante a 
empreza da catechisação. 

Pode-se, pois, avaliar bem seu aprazimento ao 
avistar terras de S. Roque e mais dias a formosa ilha 
de S. Luiz do Maranhão, onde aportou a 17 de Ja- 
i neiro de 1653 (2). 

^ O zelo apostólico, que lhe accendia no coração o 

desejo de resgatar centenas de victimas immoiadas á 
tyrannia da ignorância, ia achar messe fecundíssima 
para dar largas a seu ardor; e como as labaredas que 
incinerassem vasto e secular edifício, as chammas de 
sua fé fariam desap parecer naquellas paragens a fe- 
rocidade de indígenas de famílias differentes. 

A extensa e graciosa ilha descoberta por Luiz de 
Mello Silva acolhia com mais auspiciosa gentileza o 
seguidor corajoso do padre Manoel da Motta, que 
entrara pelo Tocantins até suas cabeceiras, desco- 



(1) O t ). cit. pag. 42. 

(2) Op. cit. pag. 48. 

AV. 



66 



brindo as tribus taquanhunas (*) e quaràrizes, raça 
de índios agigantados, conseguindo arrancar muitos 
á selvajaria, chegando por fim ao espesso daquelles 
sertões, onde jamais penetrara um raio débil de ci- 
vilisação. 



Não sei, Senhores, si neste globo sublunar, onde 
tamanhas aperturas se enfrentam a cada passo no 
estradar da vida, não sei se ha missão mais meritó- 
ria que essa de atirar-se o homem ás aventuras do 
imprevisto, para diffundir o ensino christão, aguar- 
dando somente o martyrio em troca de cuidados e 
sacrifícios. 

Para devotar-se uma existência inteira com heróico 
desprendimento ao exercício do bem, faz-se preciso 
alguma cousa mais que as forças humanas, sempre 
desarrazoadas, compellidas pelos desatinos da pró- 
pria natureza, que só capitula deante de um poder 
único, irresistível — o da religião do amor. 

E* ó crótalo sanhudo desarmado na fúria dos instin- 
ctos pela sonorosa flauta do canadiano, de que nos 
falia o litterato francez. 

A natureza desaçaimada pela instinctividade não 
conhece outra potencia que a subjugue, que a con- 
forme com as leis da adaptação civilisadora, senão a 
religiosa, e essa concebida á feição christã, como 
única que pode conduzil-a aos fins de seu aperfeiçoa- 
mento. 

A verdade é que a fé religiosa de Teutates na Gallia, 
a de Odin e dos deuses escandinavos na Germânia, a 
de Isis e de Osíris no Egypto, a de Júpiter e dos deu- 
ses do Olymjx) na Grécia e Roma antigas, a de Zoro- 
astro na Pérsia, a de Vichnu e de Brahma em parte 
do Oriente, a de Fó e de Confúcio na índia, a de Allah 
na Arábia e Ásia Menor e tantas seitas que alimentam 
extravagância de repulsivas crenças, como as doutri- 
nas dissolventes das esçholas de negação, jião consç- 

O Op. cit. pag. 56, 



G7 



guiriam nunca o que a custa de seus imperterritos 
soldados alcançou para a civilisação a dynamica mys- 
teriosa da Regeneradora dos povos, foco que ainda 
continua até hoje a projectar na ampla peripheria do 
mundo os effeitos benéficos de sua irradiação. 

Não se destaca uma aldeia ainda na infância do 
desenvolvimento, ou paiz que escale as grimpas do 
progresso, em todos os ramos de cultura scientifica, 
como em todos os recantos menos conhecidos da terra, 
em que não se culmine entre os factores primeiros de 
seu alargamento o vigoroso influxo christão. 

Sirva-nos de exemplo, como mais próximo, esta 
mesma pátria que todos nós amamos com extrema 
dedicação, onde os primeiros e mais operosos semea- 
dores do gérmen de seu engrandecimento moral, soci- 
al e intellectual foram os audazes propagandistas da 
lei evangélica, que nunca retrocederam deante da fau- 
ce da mais barbara morte, os edificadores do templo 
que tem abertas as portas á concurrencia de todas as 
nações, para se reconhecerem irmãs na ara augusta 
da liberdade e do progresso e na communhão dos 
princípios que decerram-lhes a cúspide da perfectibi- 
lidade ideal. 

O Brazil, como todas as terras do continente novo, 
não deixou de ter como sua generosa nutriz a bemfei- 
tora universal, quando nenhuma potestade tinha força 
de domar a indole de seus naturaes. 

Uns tantos homens inspirados unicamente na fé que 
compellia-os á renuncia de toda gloria terrena, toma- 
vam aos hombros a pesada tarefa de romper por meio 
a densidade da ignorância, não como as águias roma- 
nas em seus dias triumphaes e dilacerando o manto 
dos soberanos da Ásia, ou devastando as florestas da 
Germânia para aplainar a rota escolhida por uma civi- 
lisação manca. 

Mas o que a razão e a espada, esses dous aphelios 
do poder, o terror ou a seducção não lograriam certa- 
mente, a presença humildosa e mansa do missionário 
e a cruz arvorada nas arestas das montanhas alcan- 
çaram em decidida victoria, convertendo tribus selva- 
gens á adopção de todos os costumes civilisados. 



«8 



Emquanto os aventureiros das plagas de além mar 
deixavam seus lares, esqueciam as doçuras da paz no 
sino da pátria, para se lançarem ávidos á exploração 
de riquezas que a mão da natureza guardara nesse 
escrinio americano, quaes Argonautas a sonharem 
com o tosão de ouro, confiando-se á mercê do elemen- 
to salso em procura da Colchida; emquanto esse ex- 
tenso inundo brazileiro era repartido ein capitanias 
para doações a cortesãos que mediam seus escrúpulos 
pelas curvas do egoísmo; emquanto as nacional idades 
européas apparelhavam-se para a conquista do paiz 
mais cobiçado da America meridional e cruzavam de 
norte a sul as quilhas cortadoras, fundeando em vári- 
os pontos, na esperança de um quinhão partilhado 
mesmo á custa de piratagem; emquanto se entrecho- 
cavam a ambição, a sordicia, a indignidade, o crime 
emfim cortejado pelas misérias que não faltam, reca- 
madas nos costumes de todos os povos, mais desper- 
tas pela cegueira de interesses farejados em afastadas 
regiões, quando tudo isso effervecía, homens inteira- 
ramente alheios á influencia das agitações dominan- 
tes, almas voltadas somente para as sublimidades do 
infinito, peitos vulcões que arremessavam lavas de fé 
ás alturas ínaccessiveis do sacrifício, illuminando os 
descalvados alcantis das verdes serras, como os som- 
brios esconderijos das mattas, eram os portadores da 
semente evangélica, que devia transformar em socie- 
dade cultivada as multidões erradias no fundo de 
nossos bosques. 

Senhores, conteste-o somente o despeito e a ausên- 
cia do critério histórico. 

Os membros da companhia de Jesus foram os mais 
dedicadas constructores de nossa grandeza moral e 
até material, porque ninguém como elles tinha o ar- 
dor, a perseverança além do estoicismo, a resignação 
orçada pelos soff-rimentos para o serviço verdadeira- 
mente evangélico da catechese dos indios, não obs- 
tante as incriminações rábidas de seus inimigos/ que, 
digamos incidentemente, jamais prestarão em sua 
maioria um negalho de benefício, que se equipare de 
longe ao menos a alguns dos sacrifícios por elles ex- 



périmentados em prol deste solo, em que todos vimos 
os primfeiros albores da existência. Não será da criti- 
ca estouvada, rebentando todo fél de sua malquerença 
contra uma classe inteira, que se ha de aferir a dene- 
gação da gloria, que lhe cabe. 

Após os Nobregas e Anchietas, que a mais traba- 
lhosa campanha encetaram contra os abusos de explo- 
radores, d'onde originaram-se contra elles calumnio- 
sas aggressões, des*aca-se nos capítulos da historia 
de nossa colonisação o vulto ingente do padre António 
Vieira, o catechista de toda região do norte, propu- 
gnador corajoso da liberdade dos pobres índios 
domesticados, reduzidos á vilania da escravidão por 
aventureiros gananciosos e desnaturados. • 

Era precisamente quando aquellazona ubere mais 
necessitava de um espirito superior, para dirigir-lhe 
os destinos que ali achou-se António vieira. 

A licença e a avareza desmensurada sopeavam os 
princípios racionáveis do direito e da justiça entre os 
compatriotas adventícios, exigindo portanto maneiro- 
sa perspicácia para serem siipplantados os males em 
vigor. 

Sua palavra, porém, consorciando a prudência á 
severidade, poude como a lyra de Orpheu acalmando 
as Fúrias do Averno, senão destruir, pelo menos mo- 
dificar aquelle pandemohium de abominações crimi- 
nosas. 

Urgia egualmente uma medida para maior seguran- 
ça do ministério da evangelisação, o conhecimento 
dos idiomas, o que fal-o ordenar que os missionários 
recebam lições, que em breve os tornem capazes de so 
entenderem com as tribus, ensinando os indígenas já 
domados por outras catecheses. 

Uma vez vencido esse óbice, foram designados a 
acompanhal-o os padres Francisco Velloso, António 
Ribeiro, Manoel de Souza e Sotto-Maior, (*) o qual 
se constituirá seu fiel Achates nas lides rudes do apos- 
tolado. E para mais fácil aprendizagem dos índios, 
aquelle soberano espirito, destinado á invejadas con- 



(*) A. de Barros pag. 



to 



enristas, não se dedigna de compor compêndios de ca- 
tnecismo, (1) fazendo-se tão grande n'esse mister 
como o notável estadista inglez (2), occupando-se em 
escrever livrinhos de civilidade para seus filhos. 

O que é certo é que sem custo, os que não obstante 
estarem civilisados .ignoravam os elementos básicos 
da religião, aprendiam rapidamente o que lhes era 
ensinado. 

Corria o mez de Janeiro do anno de 1653 (3) quando 
Vieira destinou-se a intemar-se pelos silvados mara- 
nhenses com os companheiros escolhidos, tentando 
subir o rio Tapicuru. 

Mas o capitão-mór, como não lhe convinha o aban- 
dono dos índios que tinha em seu serviço de lavoura, 
poz-lhe embaraços, instruindo os conductores de mo- 
do a demorarem até o mez de Agosto, quando a en- 
chente e correnteza impetuosa do rio não permittiam 
mais a navegação. 

Em face cTessa remora traidoramente preparada, 
teve o destemido evangelisador de passar-se ao Pará, 
com intuitos de seguir pelo Amazonas. Mas as mesmas 
difficuldades lhe sortiram, obrigando-o a voltar ao 
reino, onde todas as providencias foram estrictamente 
ordenadas, demittidos os governadores e .por carta 
regia restituída a liberdade aos Índios escravisados, 
supplica especial que fizera o mais desinteressado 
amigo das victimas do despotismo avarento. 

E d'essa vez para tornar ao Brazil, foi caprichosa 
a lucta que Vieira teve de travar com as cortes, que 
não queriam privar-se de suas luzes. 

Seu zelo ardentíssimo de missionar os gentios brazi- 
leiros fluctuavaátona de toda corrente deseducções. 

Devolta para o Maranhão, seu primeiro cuidado foi, 
de posse das aldeias de índios, distribuil-as por seus 
subordinados, emquanto o novo governador André 
Vidal de Negreiros, impunha a coerção dos abusos e 
da cobiça. 

(1) Vieira compoz um cat. em 6 linguas. Disc. de F. de Me- 
nezes. 

Lord Chattan. 

André de Barros, Op. cit. 



71 



Assim as varias aldeias que tinham numerosas 
íribus, salientando-se a dos arnós mamayanazes e 
anajazes, possuiam um director para inteiramente 
confiante, descer António Vieira mais ao sul, até o 
centro do Cear£. 

Para logo nas boccas do Tocantins foram, sob sua 
direcção, convertidas as tribus dos tupinambás e gua- 
rajás, sendo ós padres Francisco Velloso e Thomé 
Ribeiro os mais incansáveis iVessa cruzada penivel, 
mas gloriosa e immortalisadora. 

Demorava também no interior de Marajó uma raça 
mais inimiga que todas dos colonos, revoltada pelas 
suas injustiças. 

Era necessário enfrental-a com a linguagem doce 
da paz e dominar em toda sua cxtenção a bella e lu- 
xuriante ilha que estrella a foz do Amazonas. 

Os catechistas enviados são recebidos á frechadas 
pelos nheengahibas na mais sanguisedenta demons- 
tração de hostilidade. 

Tornando-se dessa vez inconquistaveis os naturaes 
de Marajó, foram entretanto assas fecundos os la- 
bores apostólicos entre as porções que marginam o 
Xingu, Gurupá e Tapajós. 

Desceram então no anno de 1655 Vieira e mais 
companheiros o restante do Tocantins, levando ás 
gentilidades daquellas distantes paragens as luzes do 
bem em suas scintilações mais puras, os raios divi- 
naes da civilisação a tantos seres prófugos na escuri- 
dade das mattas, menos trevosas todavia que o ne- 
grume da ignorância que lhes envolvia o espirito, 
terrorifica e triste, como a noite que vela a alma dos 
eternos condemnados, pintada ao vivo -pelo poeta 
mantuano. 

Deviam seguir rumo talvez sem termo, viseira le- 
vantada ás eminências da virtude, corações em desa- 
fio ás rajadas do destino, mas guardando um alento 
inextinguível para todos os sacrifícios — a fé, uma 
arma para toaos os combates, unica para derribar 
bem segura o monstro cruel da barbaria, mais forte 
que o tacape, a setta, a machada, arma que tem ven- 
cido milhões de e^ercitps em loucura de furor des-? 



A 



72 



crente, que a desfilada dos séculos riao tem conse- 
guido gastar-lhe a inflexibilidade, porque defende a 
tríade eterna- da justiça, da verdade e do direito,— a 
Cruz da Redempção. 
E foi assim que Vieira tomou caminho do Ceará 

Eara subtrahir almas ao império do obscurantismo, 
anhando-as nos clarões do Evangelho. 

Os fructos da gloriosa missão da serra de Ibiápaba, 
onde um seu venerando irmão derramara seu sangue 
nas mãos de indomados cannibaes, fazem os mais 
formosos lauréis que cobrem-lhe a fronte. As incle- 
mências da viagem marítima, gastando cincoenta dias 
em estreita sumaca, pouco velleira, até chegar ás 
praias de Fortaleza, foram os prodromos de uma serie 
de martyrisantes vexações, por amor ao cultivo dos 
indígenas serranos. 

A fome, a sede, o cansaço (1), as tentativas de morte 
de que foi victima, e toda sorte de padecimentos no 
Calvário de sua jornada até chegar a Ibiápaba, não 
desalentaram seu animo heróico e de intrepidez já 
provada. 

A catechese foi grandemente laboriosa, mas de 
effeito satisfactorio, sendo a edificação de umaegreja, 
onde ergueu-se o lábaro da cruz o meio de fazer per- 
durar a memoria daquelles trabalhos apostólicos. 

As creanças eram instruídas nos rudimentos indis- 
pensáveis, muitos adultos recebiam as aguas lustraes ^ 
ecomellas o ensino regenerador, que lhes marcava 
um logar digno no banquete da civilisação. 

Por essa occasião um acontecimento veio por assim 
dizer compensar os transes soffridos naquellas plagas 
ingratas. 

Os bellicosos nheengahibas, ramificados no norte, 
dos quaes acabamos de falar, convencidos da bondade 
paternal do padre António Vieira, pelas noticias di- 
vulgadas, mandaram-lhe emissários patenteando-lhe 
toda estima e obediência, chamando-o seu grande 
pae (2). A paz celebrada foi então de modo solem- 



(1} A. Barros, Op. Cit. pag. 141. 
(2) A de Barros. Op, Cit. pag. 15a 



> 



n 



nissimo, ficando concertado por juramento a vassa- 
lagem de toda tribu á coroa de Portugal e sua dedi- 
cação á religião. E ainda uma vez salvara também A. 
Vieira os interesses políticos do reino, poroue os 
nhecngahibas valentes e mais numqtfosos, alliados 
aos hollandczes, aos quaes votavam expansiva sym- 
pathia, perderiam totalmente os portuguezes em nu- 
mero relativamente reduzido, na impossibilidade do 
uma resistência prolongada, ficando a colónia pri- 
vada das três ricas capitanias do norte: o Pará, Ma- 
ranhão e Ceara. 

Engrinaldado de tantas victorias, impulsionado pòr 
zelo apostólico, para visitar as aldeia? deixadas, par- 
tiu do centro cearense, onde fora ma is que heroe, 
conseguindo ainda a submissão dos tobajarás, achaii- 
do-se no Maranhão em Janeiro de 1660. 

Mas não estava de vez terminada sua carreira êk- 
tenuante de missionário. As visitas constantes âòs 
núcleos de indios já civilisados, animando os pro- 
postos na continuação de suas lides, não lhe exigiam 
menos cuidados e forças. Neste comenos, revoltados 
os colonos europeus, por terem sido arrancados os 
indios ao seu captiveiro, depois de engendrarem ás 
mais abjectas calumnias, fizeram ser presos Vieira e 
seus companheiros e expulsos para a mesma pátria 
donde tinham sahido, para glorifical-a com seus 
innumerosos trabalhos e provações. 

Era mais uma pedra* preciosa achada entre os. es- 
pinhos do martyrio, para augmentar q valor do dia- 
dema rutilo de seu renome. Mas a indignação de todo 
povo de Lisboa e das cortes serviram de conforto a 
sua nobre alma, que pedia com empenho uma graça 
única, o perdão para todos os seus offensores. 

Por fim forçado a acceitar a nomeação de Visitador 
apostólico, fixou sua residência nesta cidade da Bahia, 
proseguindo na cadeira sagrada sua missão de bata- 
lhador intemerato, o Briareu nunca vencido, e que 
nunca curvou a fronte irradiada por célicas resplen- ' 
dencias deante do mais pavoroso abysmo das adversi- 
dades, no mais intenso dos embates, assignalando em 
cada infortúnio, que si era grande pelo génio, era 

A. v. 10 



74 



admirável pelo coração; si seu nome dignificava um 
seculo/súa vMa hóriorificavá a classe, tantas vezes 
zúfzidá, pslo lãtègo das málsihaçõés. 



Já «sttuiecorrido o tempo mais suffiçiehte paraillu- 
minâir èm seu íiòttíe os Wtèxos vivazes da justiça. 

Maè ahí eâtá o fanatismo pólitrço ultra- radical, ru- 
gindo fcspumailte contra a benemerência de seus 
«tt&tóssos por sobre as syrtes da vida diplomática; átri 
está a caturrice pseudo-historica de novelleirós estra- 
gados, o fálseamfeníb cte suas intenções mais purasi 
o òdip systematico em grita desatinada contra todos 
os primeiros cultores de nossa cMlisáção primeva, e 
a leiitedas prevenções exaggerando nugacidades des- i 

presiveis; ahi estão a mentira vomitando queixas, e, 
desvairadas Como as Eumenidés de Eschylo, a injuria, 
a éaíumnia, a málevolencia planejando mais enliços^ 
a cobardia espreitando o ensejo de descarregar a cla- 
va da imputação aleivosa, a vesânia irreligiosa esba- 
forindò-se para plantar o estandarte da victoria até 
nas ameias do edifício indestructivel da Historia, e 
tudo isso para abocanhar-se o merecimento desses 
varões, que têm um crime único, odiento, imperdoá- 
vel, õ de vergar a roupeta negra de filhos da Compa- 
nhia dé Jesus. . 

O padre António Vieira não escapou á generalidade, A 

na terra mesma que ouviu seus primeiros vagidos de 
filho, que lhe emprestara glorias e somente glorias. 

Mas, Senhores, ás grandes estatuas não se esc\ilpem 
senão a golpes de cinzel, e a esfusiada dé faíscas que 
cruzam o espaço de momento em momento pelas noi- 
tes hórridas de tempestade não fere a face alyinitente 
do astro que brilha depois, mais deslumbrante ainda, 
na cúpula azulada do infinito. 

Não morrerá, pois, na memoria dos povos de aquém 
e alêíii-màr ó nome desse evangelisador, que os mais 
proveitosos serviços prestou á civilisação dos indíge- 
nas brazileiros, fosse na piroga íragil, scindindo a su- 
perfície dos rios, que, quaes artérias de vida desse 



Í5 



gigante das Américas, buscam as entranhas do oce- 
ano, fosse percorrendo as devezas de nossos bosques 
incultivados, dominando fadigas e temores, até pene- 
trar na taba do selvagem, para falar-lhe de uma lei de 
bondade e sabedoria infinita— o Evangelho, da cultu- 
ra de todos os princípios de aperfeiçoamento para o 
homem — a civilisação christã. (Muitos applausns). 



> > 



X 



4 



A-. 



QUARTA CONFERENGIA 

17 de Julho de 1897 
Orador. — Mons. Dr. José Basílio Pereira 

O Padre António Vieira como politico e diplomata 

Senhores: 




*|ão pergunteis ao humilde orador porque se arroja 
ia. levantar a voz neste recinto, deante de tão lu- 
zido e respeitável auditório, quando parece ainda re- 
soar por entre salvas de applauso a palavra electrisa- 
dora de oradores laureados, — para discorrer sobre 
um vulto eminente que prendeu a veneração e o re- 
conhecimento de dois povos, para victoriar um nome 
que subjugou a inconstância e o clvido de dois séculos. 
Não o interrogueis: sob as indizíveis emoções que o 
dominam, só poderia dizpr-vos que elevou-o tão alto 
e alenta-o para tão nobre audácia, como bahiano a sua 
adhesão plena á brilhante homenagem que rendem os 
bahianos á memoria de um benemérito do povo bra- 
zileiro, e como sacerdote o culto respeitoso que vota 
ao egrégio varão que exerceu por doze lustros com 
honra, edificação e realce as augustas funcções do 
sacerdócio catholico. 



O «Diário da Bahia» dando noticia d'esta conferencia assim 
se exprime: 

«Não nos é dado descrever o que foi aquella solemnidadè de 
h onra. 

O Dr. Basílio Pereira, para quem se voltaram todos os olhos 
ao assumir o orador a tribuna, quando já não fosse possuidor 
de tantos títulos á admiração de seus contemporâneos, não pre- 
cisava de prova mais completa para firmar a reputação de es- 
criptor emérito, em quem concorre com o conhecimento dos 
segredos da palavra, admirável senso critico. 

A sua conferencia foi a critica histórica dos factos que 



t8 



Velada embora, jorra tanta luz essa figura mages- 
tosa, que não tacteafá na escuridão quem se avisinhe 
a contemplal-a; e todos vós, trazidos aqui por gene- 
rosos e elevados impulsos, recebereis de certo com a 
gentileza de espíritos superiores, com a animação de 
julgadores benévolos, o concidadão, o consócio, o 
irmão, que ríão ponde fugir ao honrosissimõ áppello, e 
tudo envida para corresponder á distincção da vossa 
confiança; porque estão nisto empenhadas, alem de 
um imperioso dever pessoal, a dignidade e a gran- 
deza de um preito a que se associam a religião e a 
pátria. 

Se aggravaram os riscos, se dobram o peso da ta- 
refa, a illustração notória e a provada superioridade 
dos vossos outros eleitos que vieram compartilhal-a, 
Sinto-rne também mais forte e mais altivo a seu lado, 
saudando-os como a guias experimentados e mestres 
eméritos, certo de que o surto rasgado e altaneiro de 
seus talentos pujantes já suppriu a timidez e incer- 
teza dos passos do obscuro companheiro, sem des- 
douro para elle, com exultação, porque vê triuni- 
phante o objectivo comnium. Vós os vistes, radiantes 
de convicção e enthusiasmo, assomarem à esta 
tribuna e illuminal-a com os lampejos da inspiração, 
juncando-a de louros. Rico do património precioso 
da historia e forte pelas aspirações e conquistas do 
talento, o primeiro personificava as tradições, repre- 
sentando o Insíituto que dedicou-se á recónstrucção e 
á guarda dos monumentos da vida pátria. Trazia o 

se prendem* á vida de Vieir a, como politico' e como diplo- 
mata». 

O «Jornal de Noticias» também disse o seguinte: 

Bem' fVftí<fá*da anciedade. 

Seduzindo o auditório durante duas horas, pela riqueza de 
rttta&ens, pela abundância de conceitos, pêlo fino lavor da 
P • r 2 S j e pel ° P rotundo do estudo, o Dr. Basilio Pereira, ga- 
rantindo a sua nomeada de estylista e de pensador, produziu * 
um tfraballíò notahllissimo. 

Esjtaiartdo a individualidade do Padre António Vieira, como 
politico* e como diplomata, a sua conferencia foi um tratado 
?252 P ? i' J àvr \ do * mS(> . de mestre, uma dadiva preciosa 
Í1ÍLÍ S lettras bra2lle i r as, destarte enriquecidas de' brilhante 
gemma». 



A 



70 



segundo a áurea credencial da, palavra* e. das lettras> 
e.é um sábio encanecido nas lucubrações do ^estudo : 
e.nas lides fecundas de honrado magistério* O ter- 
ceiro veiu era nome das crenças, inflamando de z^lo ç< 
de fé, e nobremente orgulhosp de sua missão, e do 
mérito do heróico operário evangélico que elle sabe 
con%prehender e imitar. 

Cabe hoje a representação aos fracos e aos- pe* 
quenos ls ás classes inferiores, ao povo, quo intervém^ 
de pleno direito e poderiam disputar larga pa^te: no 
tributo prestado á memoria daquelle queem. todas.-as 
phases da si*a vida de labor e do combato soecorreu., 
aos desprotegidos e humildes, epor não abandona 1-os- 
sacrificou posições e interesses, e desafiou o ódio <e a . 
perseguição de inimigos poderosos, E' por elles que 
ouso falar: não possa embora imprimir ao m.eu tosco * 
discurso as vivas scintillações que soem .prudusir ° 
voo da eloquência e o cinzel do estylista; elle ofTefe- 
cerá com o respeito escrupuloso d justiça e á verdade 
a singeleza de expressão que é própria da aima .po- 
pular, e a lucidez intrínseca do assumpto, que é de si 
inoffuscavel. 



Disse algures um notável estadista francez, que não 
pertencia ao grémio eatholico: «Tem a religião christã 
>ÉL um caracter que admiro: é o cio reunirá mais sábia 

metaphysica a simplicidade mais perfeita e efficaz. O 
Timeo de Platão e o XII Livro da Metaphysica de Aris- 
tóteles são maravilhas, sem duvida; mas não sahe de 
nenhum delles um symbolo que se possa fazer recitar 
ao povo e á infância. Até aqui só a religião christã já 
deu a um tempo a Sunima de S. Thomaz e um Cate- 
cismo.» (\) 

A justa e profunda observação, que fazia Júlio Si- 
mon, acudiu-me sob um novo prisma, ao contemplar 
o vulto de António Vieira, nobre e altivo a impôr-se á 
admiração ciosa das cortes, a captar o valimento es- 
quivo e inconstante dos reis; humilde e abnegado ao 

(1)— Jules Simon ? «Liberte c|e Çonscience», Introduotion,, 



ponto de assentar a sua habitação á beira de florestas 
inexploradas e querer por seu irmão o selvagem. Affi- 
gura-se que o evangelisador das selvas foi tibio, con- 
trafeito e desasado, ou o conselheiro dos príncipes 
mal escolhido e inapto. Crer-se-ia que o sacer- 
dote professo decahiunuma dessas transcendentes 
missões, e desconheceu ou sacrificou a vocação que o 
talhava para a outra. Ao envez disso, a orientação, a 
proficiência e o mérito de Vieira foram notórios e 
idênticos nos dois campos, aliás tão distinctos, em 
que se desdobrou a sua admirável actividade. Servir a 
religião e a pátria, —eis o objectivo supremo, a tarefa 
ininterrupta dessa vida operosa e fecunda, que nos 
cumpre agora apreciar na sua phase politica. 

Ao limiar deste assumpto, a muitos de vós occorre- 
rá uma duvida: entrando em tão extranho scenario, 
não infringiu o novel jesuita a regra do instituto que 
livremente abraçara, não esqueceu as lições do seu 
Patriarcha, o exemplo do bravo e galhardo cavalheiro 
que trocou a espada pela cruz e despiu as reluzen- 
tes divisas da milicia para cingir até á morte a pobre 
e malsinada roupeta? Senhores, a funeção própria do 
sacerdote não é, certamente, redigir constituições e 
dictar leis politicas; não é bater-se nos campos de ba- 
talha nem solicitar do voto dos seus concidadãos ou 
do favor dos governos parceilas do poder publico. Ain- 
da recentemente um sábio prelado* em carta dirigida 
ao seu clero, ponderava que «as populações christãs 
olham com secreta desconfiança o padre que se im- 
miscue nas luetas partidárias, e suspeitam-no quasi 
sempre de agir por motivos mundanos, dose desviar 
de sua missão, de ser menos sacerdote, menos pastor, . 
menos digno da confiança e do respeito de todos. A 
sua neutralidade, a sua abstenção, —concluía elle— ,é, 
por assim dizer, uma condição, um penhor do êxito 
ao sagrado ministério». (2) 

Mas todos estes judiciosos conceitos se referem ás 
condições ordinárias e condemnam só os extremos e 

di sÍb°ío H de g ?89i: BÍSP ° de BayeUX * * Carta Past " ral>) de 8 



81 



excessos; nao podem abranger os casos particulares ô 
as situações anormaes em que, a beneficio de interes-^ 
ses connexos ecommuns, e por grangear os serviços 
de uma aptidão superior e provada, a pátria reclama 
e a religião permitte e abençoa a presença e a acção 
sacerdotal nos comícios políticos. * 

O dever então é indeclinável; o chefe do catholi- 
cismo o assignalou numaencyclica(//n/nortofe Dei): 

«E* louvável collaborar na gestão dos negócios pú- 
blicos, quando circumstancias especiaes não impo- 
nham outra conducta. E um alto dignitário da Egréja, 
commenlando taes palavras, diçia: «Nem todos são 
chamados a este dever. Guarde-se o christão contra o 
prurido que leva a disputar funcções publicas para as 

auaes não se tem o conveniente preparo. Não é o bem 
a sociedade que a ambição visa, 6 o interesse pesso- 
al; e o christão deve buscar na consciência o testemu- 
nho de que, acceitando taes commissões, tem em mira 
sobretudo ser útil aos seus concidadãos. Por outro 
lado, porém, não recue, por apego a seus lares ou te- 
mor de embaraços, aquolle aquém a Providencia cha- 
mar a algum posto na escala da administração do 
paiz.» (3) 

Pois, se é assim hoje, quando, rôte em muitos pai- 

zes e noutros violada ou combalida a alliança entre 

a Egrçja e o Estado, soffre tão frequentemente o sacer- 

j^ dote na arena politica o embate inimigo, não deveria 

ser menos disso ha dois séculos, sob o regimen dm 

3ue os dois poderes, independentes mas unidos, se 
eviam attenções e auxilios recíprocos. Não pudera 
ser diversamente, não o foi; provam-no os successbs 
da época, a partir da França, a nação christianissima, 
onde o Cardeal Mazarini succedia a Richelieu no car- 
go de primeiro ministro, e Bossuet, o Bispo deMeaux, 
compunha ad usum Delphini a Politica extrahida da 
•Sagrada .Escript ura. E' em taes circumstancias que 
surge na vida publica o Padre António Vieira. 
O quadro que então offerecia a Europa era o de uma 

(3)— M. or Richard, Arcebispo de Paris, «Carta Pastoral» de 25 
de Fevereiro de 1889. 

A. V. 11 



82 



conflagração quasi geral: sopitada a fiam ma de genero- 
so enthasiasmo que levantara as cruzadas, as nações, 
esquecidas do inimigo cominum de vigia ás portas do 
Oriente, exploradas e divididas pelos ódios da Refor- 
ma, ensang-uentavam-se em luctas fratricidas. Os 
príncipes protestantes, depois de se ligarem aos. 
ttourbons para abaterem a casa d'Austria em decli- 
nio, faliam alliança com a Áustria abatida para 
atacar a França preponderante. Os peuuenos Esta- 
dos, cahidos no domínio de rais poderosos, por 
suppostos direitos hereditários ou por annexação 
pelas arrftas, consumiam-sc em tentativas heróicas 
paia sacudirem o jugo estrangeiro. O congresso das 
gràtiçtes potencias, que poz termo á guerra dos 30 an- 
nòs, concertava a paz de Westphalia, sem conseguir 
ttíàis do que um ephemero equilíbrio europeu, des- \ 

conhecendo põr transacções a autonomia do reino "^ 

lusitano, e provocando impassível o protesto do Sum- 
mo Pontífice (Innocencio X) contra a violação dos 
direitos da Egreja. Deslumbrado pelos esplendores 
de sua corte opulenta, desvanecido pela facilidade e 
extensão dos triumphos políticos da França, Luiz XIV 
emplumava es>e mal disfarçado cesarismo que se tra- 
hina afinal no seu famoso — UEtat c'est moi. Portu- 

tal, reatando suas tradições gloriosas, desprendia-se 
as garras do Leão de Castella, e esse arranco liberta- 
dor operava-se com o auxilio do clero, das ordens re- • 
ligiosas (4), da já illustre Companhia de Jesus, num * 
poderoso concurso prestado sem os excessos que ini- 
migos dà Companhia engendraram para lhe imputarem 

(4)— «A igreja tinba-lhe aplainado todos os caminhos, e o Ar- 
cebispo de Lisboa D. Rodrigo da Cunha e o seu clero, dando 
uma das mãos á nobreza e a outra ao povo, pozeram a. coroa na 
cabeça do duque de Bragança, e riscaram da existência politica 
em duas horas um dominio de sessenta annos. 

Sem a conspiração lenta, e perseverante dos claustros e do cle- 
ro menor, seria possivel dispor e enthusiasmar assim desde as 
aldeias mais obscuras até as cidades mais importantes? De cer- 
to não». 

■Rebello da Silva, «Historia de Portugal nos séculos XVII e 
XVIÍI», tomo 4.o pag. 640. 



insidias e crimes, (5) dfc facto com dedicação e per- 
severança bastante para responderem a seus aeM- 
sadores de hoje que a pátria parou o Jesuíta ntfo é 
uma terra estrangeira! (6) 

'Emancipada a nação lusitana, restaurado o seu 
thronò, a consolidação dpssa obra desafiava as- sym- 
pathias e os serviços de António Vieira; teve-os since- 
ros, constantes, e de^de o primeiro momento mais 
reclamados*cm prol do bem publico do que offerecídos 
por quem possuía real competência. O joven jesuíta 
não. se introduziu nos paços reaes, sahindo furtiva- 
mente do claustro, e meneando a intriga dos preten- 
dentes vulgares ou a lisonja dos aulicos; foi percebi- 
do, foi buscado do alto, e para as commissões que lhe 
confiou a politica indicaram-no as qualidades superi- 
^ ores com que exercia o sacerdócio. Subindo ao púlpito 

da Bahia em 1640, á chegada do 1.° Vice-Rei, Marquez 
de Montalvão, o egr egió pregador lhe disia: «A doença 
do Brazíí & falta da decida justiça, da justiça punitiva 
que castiga os maus, como da justiça distributiva que 
premia os bons. 

— Nenhuns serviços paga S. M. com mais liberal 
mão que os da guerra, e a guerra enfraquece) porque 
acontece nos despachos o de que o mundo se queixa, 
que os valorosos levam as feridas e os venturosos os 
prémios. Como se animará o soldado a buscar a honra 
por meio das bombardas e mosquetes, se vê num peito 
X o sangue das balas e noutro a purpura das cruzes? 

— Como se havia de restaurar o Brazil, se ia o capi- 
tão levantar uma companhia, e, por não lhe fugirem 



(5) — «E* provável que a Companhia de Jesus representasse nesta 
cruzada a parte principal. Imputar-lhe, porém, exclusivamente 
todo o plano, e a execução inteira delle, como. fez um escriptor 
do século XVIII, pode ser acto de apaixonada parcialidade, mas 
não de sincera critica.» 

Rebello da Silva, «Obra citada», tomo 1.° pag. 116. 

(6)— Theophilo Braga, em carta publicada no «Jornal do Com- 
mercio» do Rio de Janeiro nos dias 8 è 15 de Março do corr<en,te 
anno, sobre o «Centenário de Vieira», conclue assim: 

«Pela vida do grande varão vemos que não procedeu como 
portuguez, seguindo a máxima jesuítica:. «Toda a pátria é iiftia 
terra estrangeira, e toda a terra estrangeira é uma pátria.» 



84 



os soldados, trazia-os na algibeira? Como se havia de 
restaurar o Brazil, se os navios que sustentam o com- 
mercio e enriquecem a terra, haviam de comprar 
o descarregar, e o dar querena, e o carregar e o 

Sartir e não sei se também os ventos? Como so 
avia de restaurar o Brazil, se o capitão de mar 
e guerra fazia cruel guerra a seu navio, vendendo 
os mantimentos, as munições, as enxárcias, as velas, 
as.entenas, e se não vendeu o casco do galeão, foi 
porque não achou quem lh'o comprasse? — Acontece a 
V. Ex. o que a Christo com Lazaro. Chamaram-no 
para curar um enfermo, e quando chegou, foi-lhe 
necessário resuscitar um morto. Morto está o Brazil 
e ainda mal, porque tão morto e sepultado; fumeándo 
estão ainda e cobertas de suas cinzas essas campa- 
nhas. E' verdade que nun^a se viu esta província tão _C 
auctorisada; mas podem lhe servir os títulos de epi- ^ 
taphios; que pois a vemos levantada a reino entre as 
mortalhas, bem se pode dizer por ella também: Que 
depois de ser morta foi rainha.» (7) 

Falava assim o Padre Vieira ao Governador, que 
veiu a escolhel-o para acompanhar a seu filho D. Fer- 
nando na missão de saudar em home da colónia o rei 
acçlamado. 

Circulando na corte a fama de seus eminentes dotes 
oratórios, estréa na capella real com o discurso dos 
bojis annos, e, nesse encontro solemne com o sobe- . 

rano, a altivez respeitosa de sua palavra sacerdotal -* 

não se rende em homenagens que a baixeza possa 
nunca dictar a um servil: «Se o dia dos bens é véspera 
dos males, — diz elle — , se para merecer uma des- 
graça basta ter sido ditoso; quem fará confiança em 
glorias presentes para esperar prosperidades futuras? 
Se a campanha é mesa de jogo, onde se ganha e se 
perde; se as bandeiras victoriosas mais firmes seguem 
o vento contrario que as menea; quem se prometterá 
firmeza na guerra que derriba muralhas de mármore? 
E como a guerra e a felicidade são dois accidentes tão 



.(7)— Sermão pregado na capella da Misericórdia da Bahia, a 
2 de Julho de 1640. 



A 



85 



variòs, como a fortuna é arbitra do mundo tão incon- 
stante, como poderei eu seguramente prometter bons 
annos a Portugal em tempo que o vejo por uma parte 
com armas nas mãos, por outra com as mãos cheias 
de felicidades?» (8) 

E desse tom vigoroso, desse apostólico diapasão 
não desceu a voz eloquente do insigne orador, ouvida 
frequentemente com apreso manifesto da parte do 
rei, ávida curiosidade o applauso geral das classes 
sociaes. Nota um dos últimos historiadores portu- 
guezes que Vieira parece não ter subido nunca ao 
púlpito senão para envolver nas vestes da parenetica 
um discurso politico. (9) 

Podereis verificar o contrario: o sábio doutrinador 
rara vez se occupou de um assumpto politico que não 
puzesse em evidencia as suas estreitas relações com 
as verdades religiosas; elle tinha deante de si, mesmo 
na sociedade civil, uma ordem de coisas na qual os 
interesses da pátria casavam-se aos da religião, as 
leis do Estado, reforçavam as prescripções do culto, 
e, refreando os Ímpetos da liberdade numana, velava 
a Egreja em que ella se regesse no vasto e luminoso 
circulo dos princípios christãos. 

Nesse meio inspirava-se o illustre sacerdote, agi- 
tando a trechos os problemas políticos, mas pelas 
novas correntes que poderiam abrir á vida social, e 
, para acudirá sua solução com o appello ás virtudes 

V christãs e a projecção das luzes do Evangelho. O seu 

programma tinha um ponto de partida seguro e inva- 
riável: a lei de Deus; e não perdia de vista um fim, 
remoto embora, supremo: os nossos destinos eternos. 
Velha politica, idosa de muitos séculos, mas rica de 
sua experiência, senhora das maiores grandezas e 
glorias da tradição nacional, e consagrada leal e he- 
roicamente nas quinas do pavilhão portuguez. Vieira 
a definia em largos traços: «Toda a politica de um 
Rei christão se reduz a quatro respeitos: do Rei para 

(8)— Sermão pregado em Lisboa, na capella real, a 1<> de Ja- 
neiro de 1642. 

(9)— Pinheiro Chagas, «Historia de Portugal», 6" volume, 
pag. 69. 



com Deus; dò Rei para comsigo; do Rei para com os 
vassallos; do Rei para com os estranhos. Tudo isso 
achará o Rei na lei do Deus. De si para com Deus a 
religião; de si para comsigo a temperança; de si para 
com os vassallos a justiça; dn si para com os es- 
tranhos a prudência. Para todos estes quatro rumos 
navegará seguro, se os seus conselhos levarem sempre 
por norte a Deus e por leme a sua lei». (10) 

— O que perde nâo só o governo, mas as consciên- 
cias e almas dos príncipes, é cuidarem que tudo 
podem, porque podem tudo. Se assim. lh'o dizem, é 
lisonja; e se o crêem, é engano . . . Seja a resolução 
do príncipe justo tratar as suas leis como suas, sus- 
tentamlo-as c mantendo-as em seu vigor inviolável; 
porque as leis são os muros da republica, e se hoje se 
abriu a brecha por onde possa entrar um só homem, L 

amanhã será tão larga que entre um exercito; e o que * 

a lei nega a todos sem injuria, depois que se concede 
a um nào se pode negar a outro sem aggravo. (11) 

— Este mundo, composto de tanta variedade de es- 
tados, officios e exercícios públicos e particulares, 
políticos e económicos, sagrados e profanos, ne- 
nhuma outra coisa ó senão uma praça ou feira uni- 
versal, instituída e franqueada por Deus a todos os 
homens para negociarmos nella o reino do céo. Para 
as negociações da teiva a muitos falta o cabedal; 
outros têm cabedal, e falta-lhes a diligencia; outros 
têm cabedal e diligencia, mas falta-lhes a ventura. Na 
negociação do céo não é assim. A todos dá Deus o 
cabedal, a todos offerece aventura e a todos pede a di- 
ligencia. O cabedal são os talentos da natureza, a ven- 
tura são os auxílios da graça, a diligencia é a coope- 
ração das obras. (12) 

—A lei da restituição é lei natural elei divina. Em- 
quanto lei natural obriga aos Reis, porque a natureza 
fez eguaes a todos; e emquanto lei divina também os 

(10)'— Sermão sobre o «conselho», pregado na capella real, na 
penúltima sexta-feira da Quaresma. 

(11)— Sermão sobre o «não», pregado na capella real, na 3» 
quarla-feira da Quaresma. 

(12)— Sermão da Rainha Santa Isabel. 



A 



8? 



obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros, 
é maior que elles. Esta obrigação de restituir in- 
correm os príncipes pelos roubos que commettem os 
que são eleições e feituras suas; porque lhes dão os 
officios e poderes com que roubam, porque os con- 
servam, porque os adeantam o promovem a maio- 
res». (13) 

Eis como o preclaro jesuíta armava a confiança de 
D. João IV, e com que artificio mantinha o prestigio 
conquistado: falava franca e destemidamente a ver- 
dade. E, corno dando arrhas publicas de não sacri- 
ficar por nenhum interesse o dever que sua posição 
lhe creara, achado o enseja, elle media das eminên- 
cias da tribuna sagrada as graves responsabilidades 
da escolha dos validos, o peso e o vasto alcance da 
\ missão dos conselheiros do rei. «Da verdade de cada 

x um pode o príncipe julgar o seu amor; com advertên- 

cia, porém, que não deve esperar, como Dalila, pela 
terceira mentira. Pela primeira falsidade em que o 
vassallo for achado, ha de çahir logo da graça do 
príncipe e cahir para sempre . . . Não sei que influ- 
encias tem o lado do príncipe, que em todo este ele- 
mento em que vivemos, não ha parte tão fértil e tão 
fecunda, como aquelles dois pés de terra: tudo ali se 
dá, tudo ali medra, tudo ali cresce. Crescem os pa- 
rentes, os amigos, os creados; crescem as honras, os 
postos, os títulos; cresce a casa, a fazenda, o regalo; 
X cresce o poderio domínio, o rcs^cíio, a adoração; o 

sobretudo cresce a estatura dos mesmos adorados. 
Cuidam os homens que só tem a graça do príncipe, 
quem lhe leva até os vestidos; que tem a graça des- 
pojos, como se fora guerra ... No coração do prín- 
cipe se há de estimar o rendido, e não o rendoso. (14) 
— Nenhum negocio mais deve tirar o somno a um 
príncipe, que a eleição dos grandes ministros; porejue 
desta eleição depende o bom governo da republica. 
Aqui se faz ou se desfaz tudo. Direis que é necessário 
fazel-as com. grande consideração. Também assim o 

j(13)— Sermão do Bom Ladrão, 

\14)— Sermão pregado na festa do príncipe D. Theodosio 
na capella real, em 1644. 



digo: com consideração, sim; com considerações, 
não; e as considerações são as que levam e as que 
gastam o tempo. Não deve eleger nem o mau nem 
ainda o bom, senão o melhor. E a razão é porque 
o que elege não só é obrigado a procurar o bem pu- 
blico, senão o maior bem. Ha de fazer neste caso a 
balança da justiça o gue a balança da cubica nos 
seus. Ha de fazer a cubica do bem publico o que faz a 
cubica do bem particular, que da as dignidades a 
quem vê que tem mais, porque recebe ou espera mais. 
Assim ha de attender ao mais e ao menos a cubica do 
eleitor, ambicioso só do bem publico »\ (15) 

Deante de tanta isenção e hombridade, quem dirá 
jamais que Vieira introduziu-se por portas escusas, 
cortou rumos tortuosos da Monita Secreta, para 
captar os favores do rei? (16) A 

Vejamos quanto D. João IV o distinguiu, e do que ^ 

modo o inclyto vario correspondeu. 

Honram-no primeiro as funcções de mestre e edu- 
cador do príncipe D. Theodosio, o herdeiro da coroa; 
e a estatura moral que attingiu o real pupillo, como a 
respeitosa affeição que sempre votou ao eximio e de- 
dicado mentor, são penhores valiosos da esmerada 
execução da tarefa. «A educação que o. herdeiro do 
throno recebeu, — escreve um contemporâneo — , asse- 
gurava ao reino um futuro prospero, e consolidava a 
nova dynastia. O príncipe conhecia muitas línguas,, e V 

havia adquirido já conhecimentos notáveis nas scien- a 

cias militares c administrativas, quando a morte o 
arrebatou aos 19 annos! Estes estudos alliavam-se a 
qualidades superiores de caracter; basta lembrar que 
foi elle um dos que mais energicamente defendeu no 
conselho de Estado os príncipes cuja entrega Cromwell 
pedia como partidários de Carlos I». (17) 

Se algum historiador divergiu de tão honroso juizo 

(15) — Sermão de S. Bartholomeu. 

(1B)— «Conforme o espirito da Companhia, por este tempo 
condensado na «Monita», Vieira alcançou a sympathia dos prin- 
cipes e pessoas importantes.» Thoophilo Braga, «Carta» citada. 

(17)— Plutarcho Portuguez, «D. João IV», esboço biographico 
por Joaquim de Vasconcelios. 



e taxou«o de lisonjeiro a um príncipe dado a estudos 
astrológicos e exercícios ascéticos, resalla a sem 
razão da censura desde que frisa os factos. cri- 
tico (18), ou, coudemnando o acolhimento dos prínci- 
pes Palatinos em Lisboa, por voto de D. Theodq&io, 
desconhece o mérito daquefle abrigo generoso offere- 
cido pelo fraco ao perseguido e exilado; ou, repro- 
vando a partida furtiva cio príncipe a se unir ao 
exercito em Elvas, a despeito da contrariedade pa- 
terna, commette a flagrante injustiça deincrep^rum 
acto patriótico de D Theodosio, depois de harer 
estranhado severamente os seus hábitos de vida 
estudiosa e recolhida. Ha só um ponto em que a 
penna dos arguidores de Vieira; parece armar-se de 
justiça, é quando verbera o tópico de uma cartado 
V illustre jesuíta ao príncipe real sobre a sua jornada 

ao Alemtejo, exhortando-o a se ^pproximar dos pe- 
quenos para ganhar-lhe os corações, a repartir por 
sua mâo dobrões entre os soldados e operários, não 
acreditar que todos o sirvam só por fineza, porque é 
mais n-itural o interesse, e «deve eontentar-se de 
que se queiram vender aquclles que for necessário 
comprar.» (J9) 

«Maruvilha-nos que Vieira reduza descarte a ques- 
tão do patriotismo ao simples cobrir do lanço num 
leilão de consciências!» — Escreve o historiador 
v Pinheiro Chagas, vivamente indignado. (20) 

Mas é uma indignação fácil, precipitada, que já se 
desvanecerá ao pleno conhecimento dos factos. Um 
testemunho insuspeito, ò do Conde da Ericeira, faz 
a luz sobre este incidente, no seu Portugal Restau- 
rado: «Escreveu o príncipe a cl-rei lhe mandasse 
dinheiro, para satisfazer as muitas pagas que se 
deviam aos soldados, pois parecia mal baldarem-se 



(18)— Pinheiro Chagas, «Historia de Portugal», 6.° volume, 
pags. 109, 110 e 164. 

(19)— Carta escripta de Roma a D. Theodosio, datada de 23 de 
Maio de 1650. 

(20)- -Pinheiro Chagas, «Obra citada», vol. 6.o pag. 157. 
A. V. 12 



90 



ao exercito as esperanças de sahir naqúella occasião 
da estreiteza em que até aquelle dia passava.» (21) 

Daqui se vê que o Padre Vieira não propunha a 
D. Theodosio o emprego de meios de corrupção, o 
suborno do soldado portuguez, que elle tantas vezes 
proclamara um dos mais leaes e valorosos do mun- 
do. O que fazia era tão somente inclinar o animo do 
principe A munificência e á popularidade, insinuan- 
do, cortez, a inconveniência e perigo de faltar o 
governo ao exercito com o que lhe devia por jus- 
tiça, mormente havendo entre as forças tropas 
mercenárias. 

Cultivando solicito o espirito e o coração do her- 
deiro do throno, tinha o Padre Vieira attentas as 
vistas ás necessidades e aos soffrimentos do povo. 
Por sua vez, o rei não -se contentava de associal-o — k 

aos seus cuidados e responsabilidades de pae, entre- 
gando-lhe aquelle educando; ia alem, e chamava-o a 
auxilial-o na gestão dos negócios públicos, incum- 
bindo-o de altas e espinhosas commissões dentro e 
fora do reino. Revestido de poderes especiaes, foi 
enviado ás cortes de França e Hollanda, onde os in- 
teresses de Portugal demandavam o ajuste de uma 
paz honrosa e definitiva, e a conclusão de uma 
alliança poderosa. Para um e outro fim havia já 
negociações entaboladas e inicio de accordo, mas 
ainda sem vantagens reaes. As tréguas de dez annos 
alcançadas por Tristão de Mendonça, em 1641, en- 
cerravam a clausula de não perder a Hollanda as 
conquistas feitas no Brazil durante a dominação 
castelhana. (22) 

A liga celebrada no ipesmo anno com a França, 
por Francisco de Mello, a despeito de Richelieu 
qfferecer muito mais do que lhe era pedido, por im- 

(21)— «Historia de Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 746. 

(22) — «O tratado constava de trinta e cinco artigos. Pelo 21 « 
foi reconhecido, ao governo hollnndez, o dominio adquirido pela 
conquista; assim como pelo 22o foi aos súbditos hollandezes, o 
direito ás propriedades e engenhos de que estavam de posse.» 

Visconde de Porto-Seguro, «Historia Gerai do Brazil», tomo 
l.o pag. 593. - ' 



A 



91 



previdência nos agentes de Portugal proporcionara 
a este paiz muito menos do tjue lhe era necessário (23), 
reduzindo-se tudo á promessa de mandar o rei 
christianissimo alguns, navios de guerra em reforço 
, da armada portugueza. Depois disso, por morte de 
Richelieu succedera-lhe na chancelíaria de França 
Mazarini, menos favorável que seu antecessora causa 
de Portugal; e a Hollanda, em via de sellar pazes com 
a Hespanha, firmava o propósito de não entregar as 
praças brazileiras que havia tomado. (24) 

No próprio campo das negociações, os embaixa- 
dores de D. João IV não encontravam a lisura, e de 
uma hora a outra as propostas mudavam, as con- 
cessões fugiam: o governo francez com mil subter- 
fúgios procrastinava a conclusão do novo tratado de 
^ alliança, já pretendendo que o rei de Portugal se 
fizesse reconhecer primeiro em Roma e Veneza,— o 
que reputavam difficillimo (25); já onerando tanto o 

(23) — «Usou p Cardeal com os Embaixadores agradáveis termos 
e excessiva córtezia, offerecendo-lhes muito mais do que lhe 
pediram; porém elles acceitaram muito menos do que era neces- 
sário á defensa de Portugal, dizendo que nada lhes faltava.» 
Conde da Ericeira, «Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 151. 

(21)— Nassan, delegado do governo hollandez no Brazil, em 
carta aos Estados Geraes de 1.° de Junho de 1641, confessa que, 
«prevendo a revolução de Portugal deveria necessariamente con- 
* duzir ás pazes, e aproveitando-se do que pactuara e da retirada 

«F* dos nossos guerrilheiros das fronteiras, havia disposto que das 

forças até ahi destinadas a fazer-lhes frente, passassem umas a 
occupar Sergipe, e se embarcassem outras contra Loanda.» E 
assim,- já depois de restaurado Portugal e quando ratificava as 
tréguas com a Hollanda, Nassau fazia occupar quasi de surpre- 
za o Maranhão, Sergipe, Loanda e a ilha de S. Thomé. 

V. de Porto-Seguro, «Hist. do Brazil», tom. 1.° pag. 591. 

(25)— Em despacho de 26 de Fevereiro de 1645 dizia o Conde 
de Brienne, Secretario d'Estado, aos Plenipotenciários de Fran- 
ça em Munster, que para os desembaraçar, e a si, das importu- 
nações do Embaixador Portuguez, lhe insinuara que era mister 
fazer-se em Roma e Veneza diligencias, afim de que o Papa e o 
Senado reconhecessem o Duque de Bragança por Soberano de 
Portugal; e lhe dera tal conselho, por julgar seria difficil conse- 
guil-o. 

Visconde de Santarém, «Quadro Elementar das Relações Po- 
liticas e Diplomáticas de Portugal», tomo 4.o parte l. a pag. 126. 



auxilio a que se obrigavam, que o ministro portuguez 
vinha a não poder aceekal-o, porque seu paiz não 
soffresse maior op pressão no soccorro do que padecia 
na guerra. (26) 

Àfferfados á primitiva proposta, os negociadores 
d& Hoílanda tentavam peitar o secretario do embai- 
xador portuguez para surprehender a correspondên- 
cia do rei (27); e seus prepostos em Olinda fabrica- 
vam cartas apocryphas de D. João IV ao gover- 
nador da Bania, prohibindo-lhe soccorrer o mo- 
vimento restaurador que rebentara já em Pernam- 
buco. (28) 

•Da corte/ portugueza, seguia o rei, impaciente, a 
marcha de tão melindrosos negócios: os plenipoten- 
ciários francezes em Munster formulavam gueixas 
contra um de seus embaixadores alli, Francisco de _-Í^ 

Andrade Leitão (29); e o marquez de Niza pedia a S. 
M'. que retirasse também a Luiz Pereira de Castro, 
para que ambos fossem em suas casas descansar 
do muito que haviam trabalhado um contra o 
outro. (30) 

Vai então o Padre Vieira áquelles Estados a infor- 
formar-se da situação dos interesses portuguezes, e 
com instrucções para actival-os, ou ao menos impe- 



(26)— «O Marquez de Niza, entendendo que a politica dos 
Fraacezes era fazerem paz com Casteila/e mandarem quanti- 1 

dade de tropas a Portugal, para aliviar a França do peso dos sol- ^ 

dados, e prejudicar a Castella por parte mais sensitiva; mostra- 
va ao Cardeal que El-Rei não havia de acceitar tantas tropas, 
porque os povos de Portugal não podiam consentir maior op- 
pressâo no soccorro que na guerra». 

Ericeira, «Obra citada», tomo 1.° pag. 631. 

(27)— Ericeira, «Obra citada», pags. 734 e 735. 

(28)— Fr. Rapbaelde Jesus, «Castrioto Luzitano», pags. 422 a 
425. 

(29)— Em officio de 7 de Janeiro de 1645 ao Secretario d'Esta- 
do em França diziam-se receiosos de «não poderem amoldar-se 
com .o génio» de Andrade Leitão. 

V. de Santarém, «Quadro Elementar», tomo 4.° parte 1. a pags. 
120 e 121. P 

(30)— Ericeira, «Obra citada», tomo l.o pag. 614. 
\C de Santarém, «Quadro Elementar», pag. 69. 



dá 



dir que a Hollanda rompesse era novas hostilida- 
des. (31) 

Regressa prestes e dá por escripto o parecer de que 
se trate de rehaver Pernambuco por compra, sugge- 

(31) — Diz o illustre jesuíta, em sua carta de 23 de Maio de 1682 
ao Conde da Ericeira, que o rei mandou-o ás duas cortes por 
«não estar satisfeito com os avisos pouco coherentes que lhe fa- 
ziam os embaixadores. 

A tal propósito, João Fra:i«'i-*o Lisboa («Vida do Padre An- 
tónio Vieira», png. 151,) nota que este, pelos «meios tenebrosos 
e subservientes» com que desempenhou a tarefa, pouco menos 
fez que o «papel de espião»; mas, está mui longe de pro- 
vai- o. 

Que reinava a discórdia entre os agentes do governo Portu- 
guez, attestam-no as queixas apresentadas pelo Marquez de 
Niza e pelos plenipotenciários Francezes. Que não eram cohe- 
rentes os avisos que expediam, deprehende-se da própria narra- 
is ção do Conde da Ericeira ( «Portugal Rest.» tomo l. 4 png. 659, 
F~~ dizendo «ser tão inconstante o Cardeal Mazarini em suas pro- 
posições, mie, mal se entendia estarem seguras, já se desvane- 
ciam.» Tinha razão, pois, o rei em mandar alguém a infor- 
mar-se. 

— Como se houve nisto o Padre Vieira? Com Andrade Leitão, 
de tal modo que, t tx de Abril de 1648, escrevendo ao Marquez 
de Niza, communi ..a-lhe ter aquelle embarcado a 28 de Março, 
c que, embora não toncionasse partir tão depressa, «como bom 
servidor d'el-rei cortou pelo gosto ou conveniência que tinha 
em se dilatar mais na Hollanda». Com Sousa Coutinho, proce- 
deu com tanto desinteresse e lealdade que', nomeado para sub- 
stituil-o, guarda a «patente» e pede excusa; abona e remedeia a 
sua concessão relativa a Pernambuco; e insta junto ao rei para 
\ que seja elle mantido na embaixada. Com o Marquez de Niza, a 

r** sua conducta pode-se aferir pelo trecho seguinte de uma carta 

que a 11 de Março escreveu ao referido Ministro: «Na devassa 
em que V. Ex. me falia, tenho já tirado por testemunhas a toda 
França, que por toda eíla não ouvi fallar mais que nos grandes 
delictos daquella pessoa que S. M. saberá, referidos não como 
elles merecem, mas por boca de quem S. M. cuida que lhe 
ha de fallar verdade. Viva-nos V. Ex. muitos annos para honra 
da nossa nação e bem de todo o reino. » 

— Taes conceitos significarão cjue Vieira siga em tudo o pare- 
cer do Marquez? Não, e elle o declara mais de uma vez: «Hade 
me dar licença para me não conformar com que a confiança de 
V. Ex., que deve estar tão segura, dásse entrada a semelhante 
escrúpulo. Antes entendo que o pode fazer de se não pôr era pra- 
tica o negocio («Carta de 12 de Janeiro de 1648)» — «Baste o ex- 
emplo do marquez que, tendo sido de tão contraria opinião, re- 
tractou-se; e antes de eu vir tinha escripto a S.M., pedindo com 
grande aperto o mesmo de que. nós tratamos,, e se presa muito 



94 



rindo os meios de effectual-o (32); e, a sustentar essa 
proposta ou descobrir alvitre melhor, parte de novo, 
sendo nessa viagem annunciado a Mazarini pela lega- 
ção franceza como o confidente do rei. (33) 

Por esse tempo, a Hoílanda apparelhara uma es- 
quadra de trinta navios para a guerra a Portugal em 
todas as suas possessões, e dirigira um ultimatum a 
Sousa Coutinho, que, um dia, vendo em aprestos 
últimos de partida a frota poderosa, conhecedor de 
que o seu governo não tinha com que defrontal-a, 
serviu-se de ordens em branco que trazia com a 
rubrica do rei, e prometteu a cessão de Pernambuco. 
Participando logo o occorrido, pedia elle ao governo 
que o punisse como entendesse pelo aue fizera sem 
prévia ordem régia (34); mas D. João IV, convocan- 
do o conselho de Estado, attenta a conjunctura em 
que se vira o seu leal embaixador, approva a resolu- 
ção tomada. O successo da Hollanda e a notificação 
em Lisboa davam-se de Setembro a Novembro, e o 

de ser este o seu voto». (Carta de 25 de Outubro de 1647, a um 
ministro da corte de Lisboa). — «Sobre os navios que V. Éx. me 
encommendou, já tenho avisado que não ha dinheiro, e que se 
V. Ex. o não mandar, não se fará compra. Comtudo se mandar 
dinheiro para um navio, eu farei com que se comprem dois.» 
(Haya, 27 de Janeiro de 1648). Entretanto, sem mencionar 
siquer um facto que importe em hostilidade ou intriga de 
Vieira contra o marquez, João Lisboa, «pag. citada», taxa-o de 
baixa adulação para com este, porque, dando-lhe pesame pela 
morte da marqueza (Carta de 16 de Março de 1648), trata-o por 
«meu senhor de minha alma «e diz-lhe que não se acha capaz de 
mais que de sentir e chorar». 

(32)-«-Esse parecer tem a data de 14 de Março de 1647, e é 
dividido em cinco pontos. «O primeiro: como se ha de intro- 
duzir a pratica da compra. O segundo: que praças entregarão 
os hollandezes, em que forma, e por que preço., Terceiro: que 
eíTeitos darão esse dinheiro. Quarto: com que fianças se ha de 
segurar emquanto correrem os prazos. Quinto: que compo- 
sição ha de haver nas dividas dos homens de Pernambuco.» 

A Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro», 
tomo LVI, parte la. publica-o integralmente. 

(33) — «Dá M. Lanier parte a sua Corte, em officio de 17 de 
Agosto de 1647, que o Padre Vieira, Confidente d'El-Rei, havia 
partido para o Havre no dia 12. 

Santarém, obra citada, tomo 4.° parte 2 a . pag. XVIII. 

(34)— Ericeira, «Port. Rest,» tomo l/\ pags. 639 e 640. 



->l 



4 



95 



padre Vieira sahirade Portugal em Agosto, e só nos 
últimos dias do armo se reencontrava com Sousa 
Coutinho. (35) 

Levara instantes recommendações para adeantar a 
conclusão da liga com a França e das pazes com o 
Batavo. As industrias que usou nesse intuito na corte 
de Versailles deprime-as o Conde da Ericeira em seu 
histórico de taes negociações, (36) dizendo serem, tão 
exorbitantes algumas promessas que Vianda determi- 
nava fazer ao Cardeal, que o marquez de Niza decla- 
rou antes havia de deixar cortar as mãos quejirmal-as. 
Mas, aparte a clara confissão de gue, podendo valer- 
se de extensos poderes, e auctorisado a acompanhar 
o ministro residente a qualquer audiência que lhe 
desse a rainha ou Mazarini (37), Vieira não formulou 
officialmente as promessas a que se inclinava; o Con- 
de da Ericeira não declina quaes fossem. Refere, 
entretanto, que de uma feita, e por iniciativa própria, 
o marquez offerecera a cidade de Tanger, e de outra 

(35) J. F. Lisboa, «Vida do Padre Vieira», reproduz á pag. 681 
a carta do ministro Pedro Vieira da Silva a Sousa Coutinho, 
accusando recebidas na véspera «12 de Novembro» suas cartas 
de 15, 18, 25 e 30 de Setembro, 6 e 9 de Outubro, nas quaes elle 
«Coutinho» communicava a promessa que havia feito de se en- 
tregar Pernambuco. Na referida carta o ministro participa que 
nesse mesmo dia «12 de Novembro», o rei em conselho appru- 
vara o que seu embaixador tinha feito. Lisboa pretende ter 
provado que Vieira se contradisse nas explicações que deu 
sobre esses factos, esquivando-se á toda a responsabilidade 
por elles, e ao mesmo tempo confessando que ainda estava de- 
tido em Paço d'Arcos miando chegou a participação de. Sousa 
Coutinho, e o Conselho d'Estado ratificou o promettido. O 
escriptor maranhense equivocou-se: a communicação de 
Coutinho a que Vieira se refere versa ainda sobre exigências 
que fazia o nollandez e a reunião do Conselho d'Estado foi 
para tomar conhecimento delias e decidir como se haveria o 
embaixador. A promessa deu-se posteriormente ao aviso allu- 
dido e antes da resposta do governo portuguez chegar á Hol- 
ianda. Como implicar em taes successos quaesquer poderes 
que Vieira levasse, e de que não usou porque estava ou no mar 
«em Agosto», ou em Douvres «30 de Setembro», ou «até fins de 
Dezembro» em Paris ? 
(36)— «Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 659, 
(37)— Padre Vieira, Carta de 23 de Maio de 1682 ao Conde da 
Ericeira, 



96 



dois milhões e meio, nuo se fechando então o tratado, 
porque veiu tarde a resposta do rei. (38) 
Por outro lado, pondere-se que Vieira estacionou 

(38) — Referi ndo-se vagamente a divergências entre o marqucz 
de Niza e o Padre Vieira, o Visconde de Sant.irem, «Quadro 
Elementar», que na primeira Parte do Tomo 4.° (pag. 251) de- 
fendera o Padre, na segunda censura-o com acrímonia (In- 
trod. XIII), affirmando que a elle se devia o desanimo do rei 
e que, por ambição que tinha de dirigir os públicos negócios, 
reduzia ú nullidade os embaixadores do reino. Sem articu- 
lar como e quando isto fez, cita em seu apoio o ministro de 
França em Lisboa que até aconselhava D. João a dispensar 
como prematura e inútil a viagem de Vieira a Paris (XV 
e XVIII»), Ora, esse testemunho é o do representante de um go- 
verno que estava sempre a adiar a conclusão da alliança, e que 
em documento official (Santarém, tomo 4 o . pag. 153), récom- 
mendava aos seus agentes que «no proteger as pretenções de 
Portugal contra a Hespanha se houvessem com táctica de modo -4 

3ue, a convir affrouxar o fervor de tal protecção, tudo redun- 
asse em proveito da França». E' crivei que em taes circum- 
stancias o ministro francez se mostrasse contrario ao «confidente» 
d'El-Rei D. João, se elle deveras fizesse a Mazarini promessas 
exorbitantes, ou mesmo vantajosas? Accresce que no correr de 
sua exposição, relata Santarém que D. João IV se queixava a 
M. Lanier de que, não podendo um só homem dar razão a 
tantos negócios, o abandonavam Francisco de Mello, Pedro de 
Mendonça e outros que o tinham feito renunciar ao seu soee- 
go de Villa- Viçosa (pag. XIII); e por Ih" cigir a verdade, o 
mesmo Santarém (pag. XVIII) «declara qtK desde o principio 
de seu reinado se achou D. João IV envolto nas maiores difi- 
culdades; e exasperou-se o estado das cousas com as conse- i 
quencias da morte de Richelieu, e juntamente com as conjura- _X 
ções promovidas pelo partido castelhano, com as escabrosas ~\ 
negociações externas e os apuros terriveis da fazenda; assim que 
não é para admirar que apezar de sua firmeza e constância ti- 
vesse accesso no animo d'El-Réi a inquietação e até as suspeitas». 
Seria então Vieira o causador de tudo isto? — Vem em seguida 
as intrigas com o marquez de Niza, a quem ainda no dizer de 
M. Lanier, Vieira causara muitos desgostos, e de tal ordem que 
— o Visconde de Santarém o affirma positivamente (Parte I a . 
CCXLI), — quiz o marquez deixar a embaixada. Eis, todavia, o 
que sobre este ponto informa o Conde da Ericeira: «Esta confu- 
são e variedade de successos faziam ao marquez crescer umas 
vezes, diminuir outras nas esperanças da liga: porém enten- 
dendo que se dificultava, queria ver-se alliviado daquelle tra- 
balho, o que El-Rei lhe não permittiu». (Tomo 1.° pag. 634 j— 
«O marauez, vendo tanta variedade em todos os negócios, 
pediu a El-Rei com grande instancia licença para se voltar a 
sua casa». (Pag. 659). — «Exasperado escreveu a El-Rei que se 



97 



em Paris menos de dois mezes (39), e em todas as 
cartas, dirigidas de Haya ao próprio marquez de Niza, 
logo após, opina francamente contra as concessões 
estipuladas pelo governo francez, dizendo sempre: 
«Nem terras nem liberdade para commerciar em nos- 
sos portos parece razão que se conceda à França, 
pois como havíamos de dar de graça o que á custa de 
tanto sangue e dinheiro estamos defendendo? (40) 

«Não serei de voto que se lhes offereça nada sem 
resposta de S. M., nem ainda que se falle em Tanger. 
Emquanto V. Ex. espera resposta, se declarará o 
estado em que fica a França, c se for o da paz, não 
nos aproveitará darmos-lhe agora Tanger, senão para 
depois nos pedirem Lisboa, se quizermos que nos 
soccorram poderosamente.» (41) 

y~ Quanto á paz com a Hollanda e proposta sobre 

Pernambuco, da alludida correspondência evidencia- 
se que, assente embora a preliminar da entrega de 
accordo com o promettido por Coutinho, por sobrestar 
ao damno que causaria, tão pouco vantajosa a torna- 
ram em sua execução os embaixadores de Portugal 
que as conferencias com os Estados suecediam-se 
sem que estes chegassem á conclusão; e a frota que 
a promessa de Coutinho havia retido em Setembro do 
anno anterior, já cruzava o oceano com destino aos 
portos do Brazií. (4.2) 

^ O padre Vieira o noticiava ao marquez: « Os negó- 

cios daqui estão da parte dos Estado^ em silencio, 



partia no mez de Fevereiro, como executou, justamente moles- 
tado do grande t~ab;ilho que havia padecido «sem ajustamento 
algum» pela variedade que houve naquelle tempo dos sueces- 
sos de França.» (Pag. 652) — E ahi está, em summa, como Vieira 
foi a causa d js embaraços e da retirada do marquez de Niza! 
(39)— Escrevendo de Douvres a HO de Setembro, diz que es- 
pera chegar a Paris a 4 de Outubro, e a 3 de Dezembro escrevo 
de Calais, já de regresso. 



(40)— «Carta» de 20 de Janeiro de 1648. 



(H)— «Carta» de 10 de Fevereiro de 1648. 

(42) — «Resultou da arrojada deliberação de Coutinho dilatar- 
se a armada de Julho atí Dezembro. Neste tempo vendo os 
Hollandezes que Pernambuco se não restituía mandaram sahir 
a armada». (Ericeira, Tomo I o . pag. 640). 

A. V. 13 



ESSiSE. tV ^ ^ ° Sr ' embaixad0r ,odas « 

ri^ V °n?, . n n erenCÍa ' T quo se ex P°"'mentou menos 
r gores que_ nas passadas, c vjeram todas as provín- 
cias; mas nao se concluiu nada.» (44) 
«m í«!"t e T° t - 0mp0 ' altent0 as occurrenci^e postas 
eminonS , U1 ?v M T 8 rela Ç ões e ^dit Jféssoal, o 
fSSj --™' d f mãos com os ministros, ia 
™í aciuisiçao de armamento, conlractando a 

Sp^S.?h a| ' C0S ar,,lhad °s > remettendo provisões 

«!£,. °- VIvercs ^ UC escasseavam em Portugal, 
í?« pÍE? an f- 0S -° P or , noticia s do Brazil, porque, escre^ 
ILl 9 ' *< - " ao sabei ' e m o successo de sua armada, 
o £?i US,arao os 1,0| landezes cousa que os obrigue 
e de lá vencerem ou serem vencidos, deponde o ficar- 
mos aqui ou em paz ou em guerra para sempre». (45) i 
rfp nJL m « COrreram a s negociações até que, avisado "^ 
ífn?- congresso de Muusfer se dissolveria sem 
vantagem para Portugal, (46) António Vieira voltou 

(■f 3 )— " Car,a de 23 de Dezembro de 1617. 
(44)— «Carta» de 3 de Fevereiro de 1648 

10 ( fÍH- p*"' < ? e ' 10 ^ e Dezembro de 1647, 12 e 20 de Janeiro, 
*U e 17 de Fevereiro, 16 e 30 de Março de I618.-Dâ correspon- 

VwM a, AÍ e ^itt in A Dom x° ma iq ,,esl de Niza collige-se que até 
Abril de i648 nada se havia firmado com a Hollanda. Portanto, 
foi posterior a conferencia a qne clle se refere em sua carta aò 
Conde da Ericeira; finda a qual, Sousa Coutinho lhe dissera 
e a Feliciano Dourado que havia concluído a paz O repente 
de Vieira, acudindo-lhe que o hollandez lucrava mais com uma 
conferencia destas do que em mandar frotas ao Brazil, se ex- 
plicava desde que Sousa Coutinho fora ainda alem de sua pri- 
mitiva promessa, e daquillo que o rei autorisara e estava cóm- 

«??Ííi. e ' T l í lra e Felicia ™ Dourado, que era apenas 
sustentar a proposta da cessão de Pernambuco e pagamento 
de trezentos mil cruzados. Ha todo o fundamento para"crer-se 
que isto se deu ao receber-se a noticia de que a esquadra hol- 
landeza, que de passagem fizera muitas presas, havia chegado 
ja ao Kecile aonde ella só aportou em meiados de Março, como 
consta da «Historia Geral do Brazil» pelo Visconde de Porto 
Seguro, (tomo 2o. pag. 651). 

(46)— Dizem todos os biographos de Vieira que eUe trazia 
também a missSo de acompanhar a Munster D.- Luiz de Por- 
tugal; o que não se effeetuara por tor-se dissolvido o Con- 
gresso. Parece-nos todavia, que outra foi a causa de se frus- 
trar essa missão, da qual desde muito antes o rei o dispen- 



>- 



90 



a Lisboa, onde o rei, em decreto de 21 de Outubro 
de 1648, manda que seja elle ouvido pelo. conselho 
da fazenda sobre as capitulações ajustadas com Hol* 
landa, e que nisso teplia-so em vista que a paz da 
França com Hespantia está muito perto de se concluir 
sem inclwâo de Portugal. 

Dahi surgiu o importante documento archivado na 
historia com a denominação, que D. João IV lhe deu, 
de papel forte, ainda hoje commentado com insólita 
. severidade. (47) : 

Foi uma causa ruim a que Vieira serviu com o seu 
• grande talento (48), dfzem os aceusadores. 
Nós o contestamos. 

O governo poríuguez, na pessoa do seu represen- 
tante Sousa Coutinho, vira-se na collisão de soffrer a 
guerra em todas as suas possessões ou renunciar a 
Pernambuco. (49) 

Decidindo-se pela guerra, correr-lhe-ia o dever de 
enviar promptos so^corros, e o governo nao o podia; 
para combater Castella, era já preciso alliciar solda- 
dos mercenários, os arsenaes estavam desprovidos, a 
defeza das praças do reino fazia-se já com enorme 



sara, como se lè na sua carta de 13 de Março do 1648, por 
motivos que elle «havia representado em nome do marque/,». 
Não será difficil atinar <*om a razão, considerando que o 
neto do Prior do Crato fora designado para tal erab lixada 
no supposto de reunir á nobreza do sangue o mais alto pres- 
tigio; quando, entretanto, o embaixador tivera de acudir-lhe 
em extrema pobreza e segundo as informações de Vieira logo 
á sua chegada em Haya '(Carta de 23 de Dezembro» de 1647), 
«demandavam-no não ja os acredores maiores, mas os de 
pão e d'outras miudezas sendo tal o aperto e a impossibilidade 
sua, que estava arriscado a o executarem». 

(47)— «O Papel Forte» vem estampado na Revista do «Insti- 
tuto Histórico e Geographico Brazileiro», tomo LVI, lo. e 2.°» 
trimestres. 

(48)— A phrase é de Pinheiro Chagas, na saia «Historia de 
Portugal», 6°. volume pag. £9. 

(49)— «Communicando o marques ao Cardeal «Mazarini» a 
duvida que El-Rei tinha em entregar Pernambuco aos Hollan- 
dezes, foi de parecer que se lhes concedesse por não arris- 
car todo o reino». (Ericeira, tomo I o . pag.- 632). 



1ÔÒ 



sacrifício, o erário publico esgotava-se e para acudir 
ás despezas de campanha até jóias da coroa se tinham 
vendido. (50) 

Acceitar o repto para abandonar as colónias e 
deixar que cilas se defendessem só por si, fora in- 
digno: seria sacrificar, seria trahir. Por isso o rei 
capitulava, resalvando as garantias de vida, a liberda- 
de de consciência, o direito de propriedade o a emi- 
gração dos nacionaes que a, preferissem. O seu acto, 
que lhe tirava a responsabilidade de impor a seus 
súbditos uma guerra que elle não poderia sustentar, 
deixava-os livres para a emprehcndorcm a todo. o 
transe e com os recursos próprios, ató conquistarem 
plena autonomia. Que não tinha outro intuito a ca- 
pitulação imminente, o governo significava-o com as 
explicações do occorrido e aviso ao Brazil, á cada . 
expedição inimiga que partia (51); os insurgentes ~"^ 

pòrcebiam-no, respondendo nobre e corajosamente 
ás commnnicações mais desanimadoras, e guardando 
fidelidade sem embargo de não serem soccorridos. 
(52) ^ 

(50) — E' a própria Rainha D. Luiza de Gusmão quem o dia 
em 1665 ao Enviado de França M. De Jant. (Santarém, Qua- 
dro Elementar, tomo 4.°, pag. 385). 

(51) — «Carta» de Vieira ao marquez (23 de Dezembro de 
1647). — «Coutinho mostrou aos Estados que, sendo elles os 
offensores, se davam por offendidos, só porque determinavam 
dar côr a maiores excessos. Mostrou-lhes tudo o que haviam í 

executado em damno de Portugal depois da trégua ajustada, —^ 

e que eram tão injustas as suas queixas, que não passavam de 
que El-Rei lhes não sujeitasse os moradores de Pernambuco, 
que elles com todo o seu poder não podiam extingir». (Ericei- 
ra, tomo l.o pag. 701). 

(52)-~«Lidas as ordens, João Fernandes Vieira disse que 
El-Rei não estava bem informado dos progressos que nossas 
armas haviam feito; ponderou que havia casos, em que os de- 
cretos dos reis eram condicionaes, e concluiu: «Assim que 
nie parece repliquemos a S. Magestade com a informação d o 
estado das cousas, continuando com a guerra na forma pre- 
sente até nova ordem sua.» («Castrioto Lusitano» pag. 433) — 
«Dê 8 a 9 de Setembro de 1647 atacaram a frota de Serrão de 
Paiva no Recife, tomando por abordagem o navio em que este 
se achava. Não teve Paiva occasião de ir á sua camará destruir 
os documentos importantes que ahi tinha, e que vieram a des- 
cobrir ao inimigo que não só o governador da Bahia, como até o 



101 



Não era, pois, uma causa ignóbil a da^cessão de 
Pernambuco em taes condições. 

Sel-o-iam os meies de que usou Vieira para defen- 
dcl-a? Tão pouco. Diz-so que ultrajou o caracter 
patriótico dos insurrectos a replica de que muitos se 
haviam levantado por não pagarem o que deviam aos 
hollandezes. (53) 

Ora, alem de que não se estendia a iodos aquclla 
referencia, as dividas u;am provadas, o governo con- 
sultava sobre os meios de sòlvcl-£\s, e em nonhum 
caso se poderia acreditar como patriotismo sem jaca 
o que descera a tomar o inimigo por credor. (54) 

rei se achavam implicados nas tentativas de Pernambuco, Entre 

esses documentos se adiava uma carta regia de 9 de Maio para 

Salvador Corrêa (já por elle recebida), afim de ajudar a res- 

v tauração; carta que, traduzida em hollandez, foi dada á estampa 

r em Amsterdam em 1647» (Porto-Seguro, «Historia do Brazií», 

pag. 632). — Era chegada para os nossos a hora das represálias. 

Os hollandezes, fiados na validade do pactuado em virtude das 

ratificações, iam dormir o mesmo lethargo em que os nossos 

tinham jazido, fiados na honra de Nassau, e da mesma sorte 

que elles tinham abusado da boa fé, iam ser victimas da sua 

confiança nella. A elles, que haviam ensinado o caminho, cabe 

toda a responsabilidade.» (Porto Seguro, pag. 596). 

(53) — Pinheiro Chagas «Historia de Portugal», 6° volume, 
pogs. 89 a 94. 

(54) — Em seu parecer de 14 de Março de 1647, a favor da 
compra de Pernambuco, o Padre Vieira já ponderava o se- 
guinte: «A composição das dividas entre uma e outra parte, 
não é menos embaraço deste negocio, porque não estão era- 
*- penhados nelle só os das companhias, mas muitos outros 

mercadores e pessoas particulares de Hollanda, de quem os 
Portuguezes teem recebido tão grandes sommas de dinheiro; 
e não falta quem cuide, que a cubica de se levantarem com 
ellas, oú a impossibilidade de as pagarem, foi um dos princi- 
paes motivos daquellas capitanias se levantarem; e todos os que 
em Hollanda estão interessados nestas dividas, é certo que hão 
de resistir aos concertos, si delles não entrarem em melhores 
esperanças de cobrar o perdido. Mas a circumstancia que mais 
difliculta, são os modos illegitimos, por que as fazendas de 
Pernambuco se venderam e se possuem ainda hoje. E porque 
muitos dos que as compraram e receberam dos Hollandezes, 
que não tinham nellas mais direito que o das armas com que 
as oceupou o inimigo, e, por ser a guerra injusta, seus pri- 
meiros e antigos senhores não perderam o domínio delias, e 
teem direito e acção para as repetir, principalmente sendo os 
mais delles tão beneméritos, que por guardar maior fidelidade 



102 



Murmura-se que foi preconisado o direito da força, 
e reputados fracos e nullos os foros de Portugal como 
descobridor do Brazil: não é isso o articulado, senão 

Sue taes allegações não desarmam sempre o mais po- 
eroso, e muito valiosas no foro da consciência, eram 
triviaes e impotentes no caso. 

— Vozea-se: indignidade! commenta-se o escân- 
dalo, quer-se atirar sobre a memoria de Vieira o es- 
pesso crepe com que na galeria dos Doges em Veneza 
o pudor patriótico sumiu o retrato do Marino Fali- 
ero (55); porque o jesuíta na composição de umas 
pazes admittiu que os hollandefces tivessem por seu 
aquillo que occupavam e estendiam, e se atreveu a 
observar que èlles receberiam estragado e em ruina o 

3ue puzeram luzido e florescente. E os documentos 
a época, o testemunho dos coevos, a palavra do ~^l 

chronista official daquellas memoráveis luetas (56), 



as deixaram; de maneira que no mesmo tempo se ha de pe- 
dir ao possuidor da fazenda, por parte do legitimo senhorio, 
as propriedades; e por parte -dos Hollandezes o preço delias 
e tudo o mais que sobre ellas lhes vendeu ou ficou; e faltar ao 
primeiro, tanto seria offensa da justiça, como faltar ao segun- 
do, impossibilitando a composição; pelo que se devem buscar 
meios, ainda que custosos, com que se possam concordar 
estas difficuldades.» — Ao concluir pazes com a Hollanda, em 
Junho de Í6'il, Portugal no art. 25 do tratado regulou ainda o 
modo como seriam satisfeitas quaesquer indemnisaçôes, a que i 

podessem ter reciprocamente direito os súbditos das duas partes -4 

contractantes, nos bens possuídos ou dividas contrahidas no \ 

Brazil. (Porto-Seguro, «Historia do Brazil», pag. 754). 

(55) — «A musa da historia cobre-se de luto ao pensar que o 
Padre Vieira, um homem de superior talento, quasium génio, 
foi do parecer do rei nesse negocio ! E se o não cxcluimos da 
galeria de nossos grandes homens, ó porque antes e depois 
deste errado passo, elle nos prestou grandes serviços e sentiu 
mais tarde bem amargamente o arrependimento de seu grande 
erro.» (Sylvio Romero, «A Historia do Brazil ensinada pela 
biographi.i de seus heroes, «pag. 41). 

(56) — Fr. Raphael de Jesus, monge benedictino, au«*tor do 
«Castrioto Lusitano»— O Visconde de Porto-Seguro (Historia 
do Brazil, pag. 683), diz que esse escriptor faz gala de rheto- 
rico attribuindo aos cabos de guerra discursos que elle compõe; 
-o que, em seu entender, ainda quando bem desempenhado, des- 
virtua a Índole da historia. Mas não pode este juizo diminuir o 
valor histórico de um livro escripto por uma testemunha dos 



103 



acodem em confirmaçãp, e, inventariando os estragos 
e os despojos da guerra de Pernambuco, dizem isto: 
«Melhorou o flamengo o que no Brazil adquiriu, e só 
para o deixar melhorado o augmenío. Muito foi o 
que Hollanda na conquista do Brazil adquiriu, e 
muito mais o que entregou. Successivamente foi ex- 
pulso de duzentas léguas de costa, que deixou com as 
fortalezas que nellas levantou o possuiu. Em uma 
tarde nos rendeu dez fortalezas, os castellos do mar e 
da terra, cidade Mauricea e o Recife com todos os 
fortins, plataformas e baterias de que se guarne- 
ciam». (57) 

Não o teve em nenhum peso a critica estimulada 

contra o papel forte, e foi até a ponto de acoimar de 

dissimulado e contradictorio o padre Vieira, porque 

y. se deu como simples relator à&s forçosas razões que o 

rei tivera para annuir á cessão de Pernambuco. (58) 

Doscobriram-.se ahi desfallecimentos para os quaes 
só deparou explicação a decrepitude do auetor da 
carta ao Conde da Ericeira: trataram com somenos 
attenção o respeito e como a um octogenário vulgar 



acontecimentos, em homenagem no mais celebre dos seus pro- 
tagonistas, João Fernandes Vieira, e por este dedicado ao Prín- 
cipe Regente em 1676.. 

(57)— Cast-ioto Lusiúno, pag'. 602. — «Viu-se, como por en- 
canto, durante o governo de Nassau, levantar-se na ilha de Santav 
António, um novo bairro tendo pessoalmente o mesmo Na?sau o 
cuidado de traçar e alinhar as ruas. Por todo o Brazil não 
houvera anteriormente obras tão consideráveis e Ião habilmen- 
te executadas.... As ob?*as publicas emprehendidas levavam em 
si mesmas o cunho da boa administração: e essas paginas do 
livro da civilisação de um paiz que primeiro lè um forastei- 
ro, eram em Pernambuco tudas em abono do chefe hollan- 
dez» (Porto-Scguro, «Obra citada», pags. 560 e 562).— «Che- 
garam ao districto de Pernambuco os capitães Paulo da 
Cunha e Henrique Dias, e disposeram o modo mais seguro e 
melhor encaminhado ao firn pretendido; dividi^am-so em tro- 
ços de dez e quinze soldados; a cada um se consignou o 
lugar e a hora para a invasão e para o retiro. Desta sorte es- 
palhados pelas freguezias pozeram fogo a tudo que podia «er 
matéria para o incêndio, com o que, sem tempo nem distinc- 
ção, se viam arder os engenhos e edifícios, os campos e os 
mattos em uma mesmo cliamma. («Castrioto», pag. 151). 

(58) — João Francisco Lisboa, «obra citada,» pags. 126 e 685, 



104 



esse que nas vésperas da morte, em 1697, produzia 
ainda uma oração genethliaca da qual julgou um cri- 
tico eminente: — foi a chave da ouro deuma pregação 
de 60 annos, e nunca saudaram-se tão airosamente a 
aurora o o occaso. (59) 

Entretanto, Senhores, a carta do Padre Vieira re- 
siste á mais minuciosa syndicancia. O insigne sacer- 
dote viajava no dia em que Sousa Coutinho, enchendo 
a ordem em branco, se obrigou á cessão exigida. (60) 

Achava-se em Paris quando, informada, a corte de 
Lisboa referendou a promessa do seu embaixador. 
Chegando a Hollanda, as negociações não se ade- 
antam. (61) Como, pois, responsabilisal-opela entrega 
de Pernambuco? 

Surde uma prova esmagadora, — acarta do padre a 
Sousa Coutinho, escripta de Lisboa em 10 de No- — i 

vembro de 1648 que reza: «Já tenho dito a V. Ex. * 

como fui bem recebido de S. M., e muito approvada 
assim dello como de seus conselhos a resolução de 
V. Ex se não abalar. Não são mais de quatro os 
votos que temos pela nossa parte, — mas para V. Ex. e 
eu nos consolarmos basta que tenhamos o d'el-rei, o 
da rainha e príncipe, e do secretario d 'Estado que 
são resolutissimos e firmíssimos no que convém». E 



(59) — Padre António H jnorati, «O Chrysostomo Portugucz», 
4.° vol. Pròtogo, piíi?. XXXIX. 

(60)— O V. de Po-to-SegiKo («Historia do Brazil» pag. 651), 
diz que a proposta da entrega de Pernambuco realisou-se em 
Agosto e cita o seguinte documento. «Propositio facta... in con- 
cessu publico 16 Augusti &, Haya J. B''eevelt, 1647. 

(61) — Mesmo depois da restauração de Pernambuco o hollan- 
dez mandava ainda em 1657 á foz do Tejo uma esquadra recla- 
mar a restituição das terras do Brazil e d'Ango!a e o paga- 
mento de pesados tributos. Pedro Viera da Silva, em nome 
do governo, respondeu que não se lhes cederia território ne- 
nhum; e os commissarios hollandezes se retiraram deixando 
nas mãos do ministro a declaração de guerra. Um folheto 
publicado então (Razoes da guerra entre Portugal e as Pro- 
vindas Unidas dos Paizes Baixos, 22 pag.s. 4°. Lisboa, 'por João 
Alvares Leão, 1657) ; concluo: «Dissimulou-se a oftensa quanto 
foi decente; oftereceu-so pela paz quanto foi possível; e o con- 
trario mostra-se surdo á justiça... Espe M amos que o Deus dos 
exércitos, qno conhece os corações e razão de ambas as partos, 
pelejará pela justiça. (Porto-Seguro, pag. 749). 



\ 



105 



eonclue um arguidor: — Aqui temos como elle censu- 
rara tao asperamente o ministro portuguez em Hol- 
landa! (6.2)— Aqui tendes, direu eu, como o Padre 
Vieira veiu a abonar Sousa Coutinho, conforme lhe 
promettcra na occasião mesma em que dizia ganhar 
mais o hollandez nas conferencias com elle Coutinho 
do que em mandar armadas ao Brazil. A chave da 
conducta do grande estadista-se vai achar numa carta 
de 10 de Fevereiro de 1648, dirigida a propósito de 
outras negociações ao ministro portuguez em Paris; 
está aqui: «Nem á reputação de S. M. nemá de V. Ex. 
convém que na ratificação se altere o que agora se ca- 
pitular, pela fé publica dos embaixadores com que não 
se dará credito ao que os nossos daqui por deante dis- 
serem». Sousa Coutinho havia empenhado a palavra 
y~ do Rei; D. João IV honrara o compromisso do mi- 

nistro tomado em seu nome; o Padre Vieira acudia a 
abonar, quanto cabia em suas forças, a promessa do 
ministro, a solidariedade do Rei e os créditos do 
reino; e fazia-o, am arando também proficuamente 
os próprios interesse . da colónia. O Papel Forte é 
como que a ordem d dia de uma grande batalha em 
que se dirigem as so: idas, os ataques de flanco e até 
a simulação de umj retirada para melhor assegurar 
a victoria: é o traçado estratégico de uma porfiada 
campanha politica, no qual ao mesmo tempo que são 
i indicados os meios e os modos de assentar a paz, se 

^ possível; são também previdentemente discorridos os 

modos e os meios de fazer-se a guerra, se vier inevi- 
tável. (63) 



(62 ) — Pinheiro Chagas, «obra citada», pag. 93. 

(63) João F. Lisboa (Vida do Padre António Vieira) analysa 
cada período, esmiuça cada Inha, pesa cada palavra do «Papel 
Forte», acabando por lançar-lhe a nota de «solemne palinodia 
e acervo de contradicçòes e incoherencias flagrantes para des- 
figurar a verdade e justificar o erro» (pag. 113). Veja- se quanto 
é injusto o illustre escriptor. Começa por não considerar que 
os preopinantes impugnadores da proposta de Sousa Coutinho, 
a despeito de conhecerem as gravissimas circumstancias em 
aue fora apresentada, pretendiam que se a repudiasse como 
desleal para com os vassallos, deshonrosa á coroa e offensiva 
á religião; e assim não poderia Vieira fazer menos do que de- 
A. V. 14 



106 



Patriota e sagaz» era ao mesmo tempo um homem 
de, fé viva o hábil negociador. 

; Escrevendo, ao agente porluguez em Paris, elle di- 
zia: <íSíibe V. Ex. que ninguém mais do que eu deseja 
a paz^rpas.ha de ser como convém . . . Querem estes 
senhores (os francezes) nos vender a liga por terras 
das nossas conquistas, mas espero em Deus que nem 
q\Iqs nem outrem hade possuir nada delias.» (64) 

E, referindo-se particularmente aos motivos de sua 
vinda a Hollanda, assim se pronunciava: «Para dizer 
francamente a. V. Ex. o que sinto é que de nenhum 
conselho que derem a S. M. seus ministros, nem de 



monstrar que não eram taes inimigos da religião e da pátria os 
que era lance tão afflictivo se tinham daquelle modo empenhado. 
ReferLndo-se ás minudencias a que desceu oPadre António Vieira, 
Lisboa caustica-lhe «a incrível mania de argumentar e disputar» ~^4 

(pag, 121), mas esqueceu-se de que pouco antes (pag r 03) assigna- ^ 

Iara que esse memorial é «inteiramente moldado sobre o parecer 
de Pedro Monteiro, que refuta palavra por palavra, e como elle 
dividido em. partes, pontos e artigos, subdivididos, classificados, 
numerados, posta a competente resposta em trente de cada 
facto, argumento . e objecção al.le.gada»., »P,ondera. que. «o terri- 
tório > çecUdó çorçstitue o centro, e o. coração do Brazil, e é.por 
sua posLção avançada no oceano ò domínio mais asado para o 
jniniigQ receber promptos. sqccorròs da Europa e se estender 
fáçítnaenjte.para.os \ados».(pag. 119); mas, quando Vieira discutia 
o.assnmpíOj aoceupação de Pernambuco pelos hollandezes du- 
rara jS mais de dez annos, e nesse decurso havia sempre re- 
cuado; e o que só por esse facto se poderia deprehender, hoje 
melhor^ se .deve apurar com o. testemunho insuspeito do aju- 
danie-^eneraL Sigismundo Van Schkoppe no officio de 24 de 
Maiode 1651 (V. de Porto Seguro,, «Historia do Brazil», pag. 
66#), 'dirigida ao governo hollánuez, no qual declara que, si fôr 
decidida a guerra, será essencial tomar a Bahia, «sem o que 
nunca fariam fincapé no Brazil». — Chasquéa da argumentação 
de Vieira, porque disse que «o hollandez, tendo arte para tudo, 
n^O a tinha para lavrar assucar»; mas a observação do illustre 
Jesuiiá deixará de parecer tãu fútil, quando se pensar que 
Nassau, organisando uma expedição contra Loanda em Junho 
de 1641 (Porto-Seguro, pag. 591), iustificava-se perante o seu 
governo com «a necessidade de adquirir escravos para os en- 
genhos de Pernambuco». Hoje mesmo, não rirá da allegação do 
Padre Vieira nenhum dos agricultores brasileiros que tenha a 
experiência dos serviços do colono europeu na lavoura da 
canna. 

(64)— «Cartas» de 6 e 27 de Janeiro de 1648, 



A 



10? 



nenhuma resolução que tomarem ! nos^d^em0$^£- s 
pantar, porque a experiência vai mostrando qiiè airiâaí 
das menos consideradas se aproveita Decís pàrá eotí 1 ! 
seguir por meio delias os fins occultos deâaàprôtí^ 
dencia.» (65) 

Alenta vam-no, portanto, a cada emergénéiâ o'pá'- 1 
triotismo e a crença, mas crença •' bem ^ori^nttíd^ 1 
que na pratica não poderia jamais conformar-se corri' 
o desprezo ou com a incúria dos meios húfríaftòsv e 
sensatamente advertia que, sendo tão frequente neste 
mundo o opprimir a força ao direito e cônctilcal : ò, ô 
sempre de bom aviso guardar a justiça publica e 
assistir aos pleitos naciõnaes com bons mosque- 
teiros. (66) 

A entrega de Pernambuco fora promei;tida, l as l con- 
dições em que se effectuaria não estavam assentadas: 
nesse terreno é que agiria o diplomata; assegurando 
as vantagens e conjurando os perigos do passo dado: 
e a evolução executou-se com tanta perícia e felici- 
dade que o hollandez, apparentemente victorioso, na 
realidade nada tinha avançado e hesitava em ac^ 



(65)— Carta» de 17 de Fevereiro de 1648. 

(66) — Porque Vieira no «Papel Forte», referindo-se á victoria 
de Guararapes (2500 portuguezes sobre mais de dez rriil solda- 
dos de Hollanda.— «Castrioto», pags. 492 « 496), qualificou-a 
de successo milagroso, e disse que «os milagres é mais certo 
merecel-os que esperal-os, e fiar só nelles depois de os me- 
recer, é tentar a Deus»; João F. Lisboa («obra citada», pag. 
114) incriminou o Padre e inferiu qittí elle soccorriá-se ' á 
máxima de que «Deus sempre se põe da parte- dos^ mais mos- 
queteiros»; Mas é manifestamente forçada tal interpretação^ 
ainda mais quando Vieira nunca reproduziu essa phrasè s^inão/ 
para aceentuar que éllá é falsa. «R' pratica mui' ordin&rià" 
entre os politicos, que sempre Deus se põe da prirtè dós mais * 
mosqueteiros. Esta proposição nascei! nas guerras íje Londres 
e não é muito que seja herética. Dias ha que a desejo tomar ! 
entre mãos para a confutár: agora o farei brevemente.» 
(«Sermão» pelo bom successo da* armas portuguezas 1 contra' 
Castella) — «Dizem os nossos emulos que a foi tuna e a victòriâ 
sempre se pòe da parte dos mais mosqueteiros; posto que ella 
não o fez assim, ao menos nós nossos campos. As victorias dos 
portuguezes nunca se alcançaram por arithmetiqa, sempre ven- 
cemos poucos a muitos, eom a vantagem' 'só^dátiòssV união.» 
(«Sermão» do SS. Sacramento, pregado em 1662). 



108 



ceitar a capitulação inimiga. Não recuar da con- 
cessão, por<}ue o impedia a honra; delia auferir todo 
o proveito, porque o reclamavam a dignidade nacio- 
nal e o interesse politico, era ao que visava o Padre 
Vieira, lavrando o seu parecer; era o que elle conven- 
cionara em Haya com Sousa Coutinho, era o que lhe 
recommendava de Lisboa, dizendo continuasse lenta- 
mente com o tratado sem conceder mais do que o accor- 
dado e não concluindo sem ordem de S. M. (67) 

Alheia aos acontecimentos e longe delles, a opinião 
publica em Lisboa manifestou-se contraria; mas do 
valor desse pronunciamento se pôde ajuizar pelo que 
refere Vieira nessa mesma carta, escripta no aban- 
dono da intimidade: «Os artigos do tratado se viram 
logo no conselho d'Estado, e se resolveu que delles 
se fizessem copias e se enviassem a todos os conse- 
lheiros, . . . que foi o mesmo que publicar-so por toda ^t 
a corte, e não haver conversação, tenda nem taverna, 
cm que se não discorresse sobre as tristes capitula- 
ções e seus autores; cada um as referia como as 
tinha ouvido, accrescentando e interpretando clau- 
sulas . . ., e chegaram a andar vários papeis escriptos 
com o nome de propostas de Hollanda, em que ne- 
nhuma só palavra havia que jamais fosse lá, nao digo 
escripta, mas nem ainda imaginada.» 

Senhores, a estratégia dos mais invictos generaes, 
como a diplomacia dos estadistas de mais alto des- 
cortino tem soffrido sempre o abocanhar do vulgo na ^ 
palestra familiar e no rumor publico. Ao mais expe- 
rimentado cabo de guerra dão lições de táctica militar, 
e alvitram ou condemnam operações o manobras 
sem cogitar da topographia local e dos movimentos 
do inimigo no campo da batalha. Ao diplomata mais 
fino e atilado suspeitam de falso patriota e arguem de 
politico desastrado, criticando planos e negociações 
de que não temo preciso conhecimento e que ainda 
estão longe de seu termo. Um dos maisillustres diplo- 
matas deste século, escrevendo suas memorias, assi- 
gnalava espirituosamente essa balda vulgar de com- 

(67)— «Carta» de 10 de Novembro de 1648. 



109 



bater e deprimir os expedientes de êxito duvidoso- ou 
arriscado, sempre com sabida a appla.ud.il-os . e 
partilhal-os, quando porventura vingaram. Era um 
inoffensivo exemplar da espécie o seu creado Giroux. 
«Quando lhe demonstravam o contrario do que elle 
aftirmaranâo falhava a resposta: «Era isso mesmo que 
eu dizia.» 

Os diplomatas dessa estofa não se contam, notava 
o Príncipe de Metteraioli, eu os encontrei ás Cente- 
nas; «cada vez que era bem succedido em qualquer 
negociação, não havia ninguém em desaccordo com-, 
migo, a coisa era muito clara e muito simples, não se 
poderia proceder diversamente, todos tinham previsto 
e desejado isso mesmo; tal qual o meu creado Giroux.» 
(68) 
O Padre Vieira não requestou os applausos dos 

f~ Giroux de Lisboa, ouviu impassível a grita dos ódios 

e intrigas, e deixou correr sem o mais leve desmen- 
tido a voz popular que lhe perjilhaoa a entrega dj Per- 
nambuco. A' mingua de outros, seria isto por si só um 
titulo ao respeito publico em prol de sua palavra, um 
penhor de sua sinceridade, quando já serenadas as 
paixões que o incidente agitou, rebatendo censuras 
descabidas, interpellado mais de uma vez por quem 
lh'as irrogara, o venerando sacerdote, em resposta 
sobranceira, protestou que o seu feito não foi negocio 
seu, senão resoluto e mandado expressamente por S. 

^ M. (69) 

O que alem disso cumpre assignalar, é que as 
negociações como foram conduzidas surtiram effeito, 
afastando o perigo próximo, que era a quebra das. 
tréguas, e o damno emergente, que seria a eftectiva 
entrega de Pernambuco. 



(68) «Lorsqu'on lui soutenait le contralro de ce qu'U venait 
de dire, il ne manquait pas de rápondre: Cest ce que, je vous . 
disais.» — «Clmcun avait tout prévu, tout prèdit. Personne 
n*admettait qu'on eútpu procáder autrement... La chose était si 
siinple et si claire! Tout s'est passe três simplesment, tous ont 
constamment dásLrè et voulu la même chose, comrae mon yalet 
de chambre Giroux». «Mámoires du Prince de Mctternich», (III 
volume). 

(69)— «Carta» de 23 de Maio de 1682, ao Conde da Ericeira. 



110 



O vâlibéntcJ dé Vieira cresceu, e, gmtd á dedica- 
ção e fiíiiira com que o servira e á pátria em lances 
tâo apertados, o rei lhe confi )u nòvà e não menos 
árdua o importante missão. Desacoroçoado de con- 
cluir paz vantajosa com a H : ollanda, c iiludido em 
suas esperanças de liga com a França, D. João IV 
divisou um meio prompto, decoroso e nobre de pôr 
termo á guerra com a Hespanha: seria o casamento 
do herdeiro do throno pôrtuguoz com a filha única do 
rei de Castella. Vivos como estavam 1 ainda os resen- 
timentos dos Felippes contra os antigos vassallos que 
haviam sacudido o seu jugo, e com resistências indo- 
máveis traziam-os humilhados, difficuldades e ob- 
stáculos quasi invencíveis erriçavam a empréza, que 
requeria táctica superior, instrucções especiaes e 
secretas, e recursos extraordinários. Foi o Padre -^ 

Vieira o escolhido pára aplainar-lhe a exôcuçãò. (70) 

(70) — O Padre Vieira foi procurado como prestigioso media- 
neiro ou constituído negociador official de outros casamentos na 
família real, mas por nenhuma proposta pugnou quanto por 
esta; e sot>re as outras são tâo vagas e encontradas as noticias 
que se colhem des documentos da época e dos biographos do 
Padre, que por ellas não se pode fazer obra histórica nem 
critica aetida. Nem por isso abstiveram-se alguns escriptores 
de considerar «criminosas de lesa-nacionalidade as missões se* 
cretissimas» em que Vieira se occiípou deste assumpto, ou 
«aventuradas», senão «abertamente* sacrificadas» a indepen- 
pendencia de Portugal e a soberania de seus domínios coloniaès > 

nas negociações entaboladas (Theophilo Braga e J. F. Lisboa^. -♦ 

Entretanto, logo a respeito da primeira, ha duvida si a preten- * 

dida foi a filha do plenipotenciário francez em Munster, o 
duquede Longueville, ou M è * le de Montpensier, ou uma depois 
de outra. O documento de aceusaçãô contra o Padre é a sim- 
ples minuta de uma representação do marquez de Niza ao 
Príncipe Regente D. Pedro «allegando ter livrado Portugal de 
ser entregue aos francezes, quando em sua primeira estada em 
Paris o Padre Vieira lhe apresentara instrucções regias, es- 
cripttts do puriho do secretario d'Estado, ordenando-lhe (a <ellé 
marquez) propuzesse ao Cardeal o casamento de D. Theodosio 
com M ôílé de Lòngueviíle, com a garantia.de poder seu pae 
aeompanhal-a e reger Pdrtugal durante a menoridade do prín- 
cipe herdeiro, porque D. João IV passaria a governar o Brazil 
(Lisboa^ «Obra citada», pag. 719). Além de que este documento 
se refere a uma com missão na qualtodo o papel de Vieira foi 
o de mero portador das instrucções do rei, escriptas pelo punho 
do secretario d'Es ! tado; surge em contrario, como observa Lis- 



111 



Não havia nisso o .rmrjimo deslize , do, decoro 
sacerdotal. Os consórcios entre as dynastias reinantes 
correspondem a pactos de alliança. entro as nações 
interessadas. Vieira o ponderava nodiscurso, que foi 
o seu canto de cysnq: «Os reinos e os impérios eon- 
servam-se e suslentam-se cm duas raízes: das portas 
a dentro com a successão dos Reis naturaes; das 
portas a fora com a confederação dos Reis estrangei- 

boa, o facto do que Vieira nunca esteve com o m,a rq.ivez.no 
decurso de sua primeira embaixada, pois ao cbegar a Paris 
havia elle partido i já para. Lisboa (Carta de Vieira, . de 4; de 
Fevereiro de 1646), donde só voltou com a segunda embaixada 
em Janeiro do anno seguinte (Santarém, tomo , 4,., pag. 199). 
Émquanto á segunda missão do marquez, diz ; o Conde da Eri- 
ceira (pag. 530): «El-Rei tornou a mandar este anno (1647) p.or 
embaixador de França ao marquez de Niza... Levou ordem, piara 
tratar com o Cardeal o casamento do Príncipe com a filha mais 
velha do Duque de Orleans. O Cardeal approvou o intento,: e 
assim o mandou assegurar a El-Rei por Francisco Lanier, as- 
sistente em Lisboa, porém sem mais poderes que tratar dos 
soccorros que a França podia dar a El-Rei». Ora, o Padre 
Vieira só tornou a Paris em Outubro de 1647, donile. sahiu logo 
nos primeiros dias de Dezembro. Assim, tudo quanto conjectu- 
ram Lisboa e outros pão é bastante para destruir a simples 
affirmativa produzida por André de Barros (Vida do Padre An- 
tónio Vieira, pag. 19), de que o illustre Jesuita nessa occa&ião 
«impediu a vinda do Çondè (tio de M eIle de Longueville) . a 
Portugal, o que não importou menos que ficar illesa a sobera- 
nia da Coroa. E' ainda por e?tas negociações e om a alludida 
minuta que o Visconde de Santarém (tomo 4, parte 2. a , pag. XIV) 
argúe o Padre Vieira do ter aconselhado <> rei á largar o reino 
e entregal-o a um principe estrangeiro! Em tudo quanto foi 
proposto pelo governo portuguez o fito único era conseguir a 
«alliança», e, portanto, pão poderia nunca se reduzir ,ao sacri- 
fício da própria autonorpia. O próprio Santarém da o testemu- 
nho (2 a parte, pag. XXXIV): «Lanier escrevia ao Cardeal Ma- 
zarini em 22 de Junho de 1648, que a Corte de Portugal 
approvava o projecto dò casamento da Princeza Luiza com, o 
principe D. Theodosio}, mas «com a condição da Liga», pela 
obtenção da qual estava El-Rei resolvido a dar seis milhões. 
Para este effeito foram mandados plenos. poderes ,ao marquez 
de Niza para ajustar o dito casamento «no, caso de se fazer, a 
Liga», ou pelo menos uma trégua de vinte annos cpjn aiHespa- 
nha, de maneira que a mesma Potencia não a. po d esse .rom- 
per». Lanier escrevia jsto em Junho, quando ó Padre Vieira 
desde Dezembro do anno anterior se retirara, de Paris. Das 
concessões «exorbitantes» que.se d.izem feitas ou iniciadas, pelo 
eximio sacerdote, os únicos, .documentos diplomáticos, que se 



112 



ros. Por isso dá Deus ao Rei sou favorido filhos e 
mais filhas; os filhos, para que nuo faltem Reis ao 
próprio reino; as filhas, para que possam dar rainhas 
aos reinos estranhos; os filhos, para que por meio da 
successão se conserve o domínio dos vassallos; e as 
filhas, para que por meio dos casamentos se conserve 
a amisade dos alliados. Como nenhum reino se pode 
conservar sem Reis amigos e sem Reis herdeiros, 



í 



encontram não liras imputam; mas, ao contrario, relatando-as 
como aconselhadas ou propostas em diversas épocas, ja por 
agentes do governo francez, ja por emissários da Hespanha, 
consignam que Portugal rejeitou-as todas peremptoriamente, 
seja a dè ficarem D. João IV e seus suecessores como vice-reis 
erpetuos de Portugal; seja a de ir elle para o Brazil, dan : 
o-lhe a categoria de reino; e quer a de conservar, alem do 
Brazil, o Algarve; quer a de passar-se para a Sardenha na qua- . 

lidade dé rei. (Santarém, parte 2* pags. 459, 478, e CXVI, ^i 

CXIX, CLI). Criticando a intervenção que nestes negocius * 

attribue ao Padre Vieira, diz Theophilo Braga que nada menos 
se tratava do que de «entregar Portugal em dote da noiva à 
França ou à Hespanha», mas não attende a que o «noivo, me- 
eiro e administrador» dos bens do casal, era portuguez, e o con- 
tracto esponsalicio deveria ser ao mesmo tempo um tratado de 
alliança na paz e na guerra. Santarém (tomo 4.°, pag. 650) diz 
que em 24 de Agosto de 1676 o Embaixador de França em Por- 
tugal communicara a seu governo ter sabido que «o jesuíta Vi- 
eira, passando por Florença de volta de Roma, havia, de moto 
próprio e sem missão, feito ao Gram-Duque a proposição de 
casar com a Infanta de Portugal seu filho primogénito, e que 
chegado a Portugal o dissera a El-Rei que lhe ordenada de 
proseguir iia negociação; mas que, passados mezes, o Gram- X 

Duque renunciara aquelle casamento por saber que El-Rei \ 

Christianissimo e o de Hespanha á porfia demandavam a mão 
da infanta, o primeiro para o Delphim, e o segundo para si.» 
Eis, todavia, o que* sobre o referido projecto informa o Padre 
Vieira em carta de 5 de Novembro de 1675 ao próprio Gram- 
Daque da Toscana: «Tenho por mui provável que poderá pre- 
valecer o partido de V. A. e eu vigiarei sobre a occasião oppor- 
tuna em que mais immediatamente o possa introduzir. ...Mas 
porque a união dos Estados de V. A, com a coroa de Portugal, 
na. consideração dos interesses communs, é a que deve dar 
grande pendor á balança, será necessário que V. A. me ad- 
virta do modo com que devo responder, em caso que se me 
opponham duas duvidas, as quaes estão muito a flor da terra 
e não pode deixar de se reparar muito nellas. A primeira é 
ter V. A., alem do principe primogénito, outros dois filhos, 
de cujo estado se deve também deliberar, para que de presente 
e de futuro não possam ser de impedimento á firmeza do tra- 



113 



nos filhos dá-lhe os herdeiros e nas filhas dá-lhe os 
amigos.» (71) 

Estimulavam outrosim a Vieira nessa missão as 
tradições do throno portuguez, partilhado com lustre 
admirável pelas rainhas que tantas vezes foram nas 
discórdias dá família e nas sublevações do povo as 
medianeiras da justiça e da paz. Mais lhe pesariam 
no animo taes considerações, tratando-se do príncipe 
aue elle educara, e que dentre os casamentos que se 
lhe propunham tinha por melhor o que mais consul- 
tasse as conveniências ao reino. (72) 

Sahiu, pois, a esta nova campanha, e por centro 
de suas operações tomou Roma, a corte do mundo 
catholico, a metrópole da fé e da paz, como sendo o 
abrigo mais seguro, o foro mais independente para o 
julgamento de uma causa que affectava os destinos 
de dois povos, avisinhados pela natureza, inclinados 
á união pela communidade de muitos interesses, e 
todavia separados para se exterminarem numa lucta 
sangrenta que durara já dez annos, tudo pelo .desme- 
dido orgulho e despeito de um rei. Tão nobres eram 
os intuitos que levava o Padre Vieira, tão licitas e con- 
fessáveis foram as traças que usou para fazer vingar 
o seu plano, que, perto de 40 annos depois, os rela- 
tava em pleno templo, com essa isenção de respeitos 



tado e perpetua e irrevogável união de ambas as nações, vas- 
sallos e coroas, uma de que o príncipe da Toscana ja é her- 
deiro, outra de que será, casando com a herdeira de Portugal. 
À segunda é dà parte dos mesmos vassallos de V. A., os quaes 
por ventura se quererão conservar desunidos e debaixo de 
principe particular, de que em nós mesmos temos vivo e pre- 
sente exemplo, posto que os interesses communs entre elles e 
os portuguezes, com a largueza de conquistas, commercios e 
empregos de pessoas e fazendas, parece que sejam um vinculo 
muito forte e de sua natureza indissolúvel.» Deante de tudo 
isto, onde o fundamento para a -grave accusação de que Vieira 
subordinou a liberdade e a integridade do reino a interesses da 
casa de Bragança? 

(71)— «Sermão» pelo nascimento da Infanta Thereza Francisca 
Josepha. 

(72)— «Os outros príncipes consultam os casamentos com os 
retratos, o nosso consultava-o com as conveniências do reino.» 
Vieira, «Sermão» nas exéquias do Principe D. Theodosio. . 
A. V. 15 



114 



humanos que deve caracterisar o ministro do Evan- 
gelho e a serenidade de espirito que ás bordas do 
tumulo, só pode ter aquelle que dte a verdade. (73) 

A guerra não poderia destruir todos os laços, não 
estorvava todas as relações entre os filhos de Por- 
tugal e osde Castella: haveria campo neutro em que 
lhes fosse dado approximar-se e entender-se. Vieira 
buscou a seus irmãos de habito e de sacerdócio; falou 
aos sentimentos de humanidade e religião, contrá- 
rios naturalmente ás violências e aos horrores da 
guerra, e propensos por dever a toda a obra de 
congraçamento e pacificação. O meio conciliatório 
existia, e honroso para uma e outra parte: era o 
enlace conjugal entre os herdeiros das duas coroas. 
Pela. antiguidade e lustre da nobilíssima estirpe e 
excellerieia de seus predicados pessoaes, o primo- 
génito de Bragança erà o mais digno esposo para a' 
Infanta de Hespanha. As condições seriam que, nâo 
tendo El-rei de Castella filho varão, lhe succedessem 
nos dois thronos D.Theodosio e a Infanta, fixando-se 
a corte em Lisboa como cidade marítima; diversa- 
mente, reinariam os dois em Portugal separado poli- 
ticamente mas unido a Hespanha por uma álliança 
offènsiva e defensiva. No caso de Felippe IV não re- 
conhecer como rei a D. João, este abdicaria logo 
nos Príncipes. (74) 



í 



(73) — «Vejo que estão notando a El-Rei, de que quizesse nesto ^ 

acto desfazer o que tinha feito, e tornar a unir o que tinha desu- 
nido. Mas é porque até agora calei uma clausula do projecto, 
sem /a qual' eu também não havia de acceitar a commissãò. A 
clausula é que no tal caso a cabeça da monarchia havia de ser 
Lisboa; e deste modo se conseguia para o nosso partido a se- 
gurança e para o goyerno da monarchia a emenda.» «Sermão» 
pelo nascimento do novo Infante em 15 de Março de 1695. 

(74)— Pinheiro Chapas, «Historia de Portugal», pag. 106.— 
Entre as diversas criticas a esta missão diplomática do Padre 
Vieira surgiu ainda & accusação do que elle propoz a retirada 
de D. João IV para o Brazil, mas não se diz si o facto impor- 
taria a emancipação politica da colónia. Ainda nesta hypo- 
these, considerado o risco de cahirem as possessões portu- 
guesas em poder de Castella ou de Hollanda, não seria de 
nenhum modo condemnavel a idea do Padre Vieira, que poderia 
dizer, como escreveu recentemente Oliveira Martins: «A inclç- 



115 



O monarch^L portuguez provava o seu desprendi- 
mento, e o de Càstella era satisfeito no empenho que 
fazia junto ás cortes estrangeiras par$ que não dessem 
a seu contrario o titulo de Rei de Portugal. (75) 

Compensariam os benefícios da paz quaesquer 
constrangimentos que soffresse o amor próprio. As 
razões expendidas calaram no espirito dos assisten- 
tes, prestigiosos varões, entre os quaes se encontrava 
o doutíssimo e afamado Cardeal João De Lugo (76); 
e a idéa entrou de ser em mais largo circulo ponde- 
rada e acceita. Fora temerária, antipatriótica, insi- 
diosa a proposta? Dizem-no alguns escriptores deste 



pendência dos filhos nunca foi hostilidade para os paés, senão 
quando estes insensatamente pretendem prolongar uma depen- 
y dencia anachronica. Na vida dos filhos se continua e se pro- 

longa a vida dos pães, e a successão das geraçOes é para os 
homens e para as sociedades a pura expressão da immortaii- 
dade>\ (O Brazil e as colónias portuguezas). Não o merece- 
riam aquelles que, quasi por si sós, tão heroicamente se ha- 
viam defendido contra os hollandezes? Seria até uma reparação 
prestada pelo Padre Vieira, se elle deveras tivesse errado no 
parecer sobre a entrega de Pernambuco, 

No caso de tratar-se apenas da mudança de residenqia do so- 
berano, resignatario ou não, tudo se resumiria na interrogativa 
com que J. F. Lisboa «despede-se deste assumpto», cuja res- 
posta não pode hoje ser duvidosa: «Lucraria o Brazil se naquella 
occasião se tivesse éffectuado a emigração da família real, que 
cento e sessenta annos mais tarde «foi resultado de aconteci- 
i_ mentos análogos»? (Pag. 141). Fica também assim confutada a 

/ censura feita a Vieira por nâo ter sido extranhó kos planos* de 

refugíar-se a familia real em Pernambuco em 1659, quando 
com o tratado de paz dos Pyreneps, que deu só três mezes de 
tréguas a Portugal, ficou este isolado em sua lucta contra Hòl- 
landa e Hespanha. 

(75)— Quando ja reinava D. Affonso VI, em 1660, o Enviado 
de França, offerecendo-se para mediador % entre Portugal e 
Hespanha, dizia ainda que El-Rei de Càstella desAstiriada pre- 
tenção do Portugual «com condição que, D. Affonso não se 
chamasse Rei delle»; e por isso o aconselhava <jue ? «fosse em- 
bora Senhor do reino mas ànnuisse a governai- o com' o titulo 
de Rei do Brazil». (Santarém, tomo 4 o pãg. 486). 

(76) — Entre os favoráveis a idéa contava- sé também o Padre 
Pedro Gonzales de Mendoza, tio do embaixador. Duque, do 
Infantado. (Padre André de Barros, «Vida do Padre Vieira», 
iiag.27). 



116 



século (77), mas por injustas ' supposições, e com 
fracos argumentos, que vós julgareis. Annunciaram 
uma prova fornecida pelo próprio punho do Padre 
Vieira, e exhibiram o seu parecer, lavrado em 1676, 
reprovando formalmente o projecto de casamento da 
Infanta filha de D. Pedro com o herdeiro do throno 
hespanhol; mas a allegação não procede pela dispa- 
ridade das circumstancias. Num dos casos o repre- 
sentante dos direitos de Portugal é o príncipe D. 
Theodosio, e pesa em favor desse reino toda a supe- 
rioridade social e civil do varão cóm respeito á mu- 
lher: o que no outro caso inclina a vantagem em prol 
de Castella. Demais, as conveniências que, ainda por 
entre alguns riscos, faziam a primeira proposta igual- 
mente acceitavel aos dois povos empenhados em 
crua guerra, não bastariam de certo para decidir ^ 

em seu favor a nenhum dos dois reis, quando em <* 

plena paz e alliviados para attender mais seguramen- 
te á consolidação do throno e aos interesses do paiz. 
A* consideração de que nada se effectuaria sem a 
previa convocação e.o voto das cortes, acudiu-se 
com a replica de que tal consulta seria somente um 
apparatoso sacrifício em que a vontade nacional ren- 
der-se-ia esmorecida ante o cortejo bellico das am- 
bições colligadas 1 Veiu afinal o pavoroso phantasma 
da união ibérica, revolvendo os ódios e as paixões 
que se procurava desarmar e extinguir, e avivando 
as tristes recordações de um governo despótico e ^ 

sanguinário, quando se lançavam os alicerces de 
um throno liberal e bemfazejo. Augurou-se fatal- 
mente o illusorio da mudança da corte, avançando 
que na liga das duas nacionalidades o elemento 
portuguez seria o absorvido e transformado; e não 
perceberam tão acres accusadores que assim depri- 
miam o caracter do povo lusitano, malsinavam-lhe os 
destinos e o condemnavam ante a lição da sciencia 
moderna, que nas suas observações sobre a lucta pela 
vida garante a selecção aos mais idóneos e aos mais 



(77)— J. F. Lisboa, pags. 173 a 178; e Pinheiro Chagas, pags. 
106 a 108. 



11? 



fortes. Gemeram e sê escandalizaram de que, em. 
crise tão angustiada para a pátria, descortinasse o 
Padre Vieira um fio salvador nessa idéa de uma con- 
federação da península; quando hoje mesmo tantos 
patriotas (78) a affagam como um penhor de pro- 
gresso e de gloria, e elles próprios que se lhe mos- 
tram infensos chamam-na a complicada e espinhosa 
questão, sempre pendente e sempre ameaçadora ! No 
polo opposto a esse em que se acastellam os modernos 
accusaaores de Vieira, do outro extremo vigiou Fe- 
lippe de Hespanha o singular emissário do soberano 
rival: a seus olhos, aquella pretenção trazia no bojo 
só desdouro, humilhações e ruina para o throno e o 
povo castelhano. Historiando o facto, Vieira diz ape- 
nas: «Como a questão se havia de decidir não no juizo 
do Capitólio romano, senão em outro muito distante, 
onde a dor e a ferida estava ainda fresca e o progresr 
so das nossas armas não tinha amadurecido as ver- 
duras do pundonor, que depois humanou a experiên- 
cia e a necessidade; não foi acceita a proposta.» (79) 
Os biographos do preclaro varão accrescentam que 
o governo hespanhol, informado da crescente accei- 
tação que ia tendo o projecto, mandou instrucções 
a seu embaixador para empregar todos os meios até 
fazer sahir de Roma o Padre Vieira; o que foi tomado 
tanto a peito, que este houve de retirar-se presto 
para não sacrificar ingloriamente a vida. O poderoso 
rei das Hespanhas temia-se do humilde religioso, 
inerme, pacifico e respeitoso ! Surpresas taes, factos 

(78)— Magalhães Lima, Director do jornal «O Século» de 
Lisboa, em seu livro «La Fédération Iberique (Cap. V.), in- 
screve como campeões da idéa da «Federação Ibérica» Hen- 
riques Nogueira, Oliveira Marreca, Souza Brandão, Latino 
Coelho, o Visconde de Ouguella, Teixeira Bastos e outros. O 
distincto escriptor conclue assim: «Ou esclaves avec 1'Angle- 
terre, ou fédérès avec 1'EspagneI nous ne cesserons jamais de 
le répeter. Le Portugal n a qu'un moyen pour conserver ses 
colonies, c'est la * fédération avec PEspagne. E, defendant la 
cause de la Fédératioa iberique, 1'Europe defenderait sa propre 
cause; en nous aidant dans notre entreprise, 1'Europe aiderait 
aussi le grand oeuvre de Tliumanité et de la civilisation mo- 
derne». (Pag. 180). 

(79)— «Sermão» pregado em 15 de Março de 1695. 



m 



assim quan inexplicáveis, consigna mais de uma vez a 
historia. Ainda nos primeiros dias deste século Napo- 
leão o Grande, o leão da guerra, o vencedor de cem ba- 
talhas, mandando recolher a um fcastello o velho Pon- 
tífice que não curvara a soberania da egreja ao aceno 
de seu braço invasor, determinava fosse em aposento 
«com uma só sahida exterior, e guardas á porta com 
ordem positiva de tel-o incommunieavel-»! (80) 

Mas o attentado com todas as suas deponentes 
circumstancias deixou macula indelével na vida illus- 
tre do grande batalhador. Nas commemorações da 
época nodoará também o nome de Felippe IV a vio- 
lência commettida contra o Padre Vieira, e sua 
prudente retirada terá os louros do mais admirável 
triumpho, — o triumpho alcançado á arma branca da 
palavra sobre a negra bastilha da prepotência e do >^ 

despotismo. ^ 

Com esse gladio poderoso vai agora o bravo lucta- 
dor fazer mais largas conquistas em regiões ubérri- 
mas ainda inexploradas. (8í) 

(80)— «Le local será disposé de manière qu'il n'yait qu'une 
«issue exterieure». II será placè une garde á la porte; elle aura 
la consigne de ne laisser entrer personne. Le prèfetexercèraune 
grande surveillance sur tout ce qui se passera dans 1'intérieur 
du palais de Sa Sainteté et aura soin travoir parmi ses secrè- 
taires et domestiques des gens sur lesquels il puisse compter. 
On armera la forteresse de Savone; il y será plaçè 400 homens 
de garnison; il y aura aussi un détachement de 50 gendarmes, > 

pour la garde du Pape, commandè par un colonel. (Correspon- ^ 

dance de Napoléon I er «Lettre du 21 Aoút 1809, au Prince Bor- 
ghèsej. 

(81)— Das instrucções que o r«i deu a Vieira nesta missão e 
da carta que este escreveu ao Conde da Ericeira em 1682, 
consta que ia também encarregado de examinar e responder 
á proposta que insurrectos de Nápoles faziam de entregal-a á 
coroa portugueza. João F. Lisboa (pag. 168) julga que o Padre, 
«habituado a recuar deante das crises imminentes», não teve 
audácia e resolução para levar a cabo esta empreza, que Sousa 
Coutinho, entretanto, reputava «fácil» e o marquez de La Caya 
e outros napolitanos affirmavam só se ter mallogrado pela «in- 
discrição e falta de tino» do agente Rodrigues de Mattos. O 
facto é que, ante as informações prestadas pelo Padre Vieira, 
D. João em carta de 16 de Abril de 1650' (André de Barros, 
pag. 81) approvou que elle não tivesse levado avante esse nego- 
cio, e louvou-se de lh'o tor confiado. Para aquilatar melhor a 



119 



Se furtou prudentemente a vida- ao-golpe do sicatío; 
assalariado pelo temor do inimigo, é para consàgral-a 
melhor ao serviço dá religião e da pátria, affrontando 
enormes perigos que só a abnegação, dos, apóstolos 
soube até hoje vencer. Eil-o nas plagas brazileiras : , 
desprendido.de todos os vínculos que poderiam atel-o 
á terra natal e exemplificando mais livremente os 
costumes simples e austeros que. guardara irrepre- 
hensivelmente no meio dissipador e luxuoso das cor- 
tes. E da mesma sorte que ainda nas mais caracte- 
risadas missões diplomáticas sempre exercitou o 
dever e a influencia ao ministério .sagrado, nas pere- 
grinações bemfazejas do zelo evangélico serve ainda 
com devotamento exemplar os magnos interesses 
sociaes e políticos. Attestamrno as perseguições que 
soffreu imperterrito, as viagens penosas e trabalhos 
sobrehumanos que heroicamente curtiu, as luetas 
ardentes que sustentou pela civilisação e liberdade 
dos índios. O desenvolvimento e progresso do novo 
mundo não se poderiam realisar só pelo esforço de 
seus descobridores e sem o concurso das raças que o 
povoavam: assegurar-lhes todas as vantagens da so- 
ciedade culta sei ia a condição justa e efficaz de lhes 
merecer o sacrifício dos costumes selvagens de sua 
vida errante e independente. E nessa comprehensã.o 
os reis decretavam que na dilatação de suas conquis- 
tas pelo continente descoberto os íncolas domestica- 
dos gozassem de liberdade a egual de seus outros 
vassallos, exceptos só aquelles que nas tribus venci- 
das ou alliadas estivessem já em captiveiro e con- 

sensatez com que se houve em semelhante incumbência o 
illustre jesuita, basta reler as paginas de César Cantú era que 
se narram as peripécias dessa revolução em Nápoles, ou, ao 
menos, o seguinte episodio com que um de seus mais conhe- 
cidos heroes estreou na carreira politica: «Un di questi capi era 
Tommaso Aniello d'Amalfi, pesciaiuolo di venticinque anni, ri- 
dotto a miséria da una multa imposta dai doganieri a sua mo- 
glie perche trovata con una calza di farina in contrabbando. 
Armo egli di canne ed arpioni la sua banda, e passando avanti 
ai palazzo, scopersero a quei signori di Corte la parte che 
1'uomo suol nascondere.» («Storia Uuiversale», volume XVI. 
pag.680). 



120 



demnados á morte: a esses poderia o explorador 
livrar da pena capital a troco de servidão. (82; 

Era justa, a excepção ? deveria o Padre Vieira 
combatel-a? cumpria-lhe toleral-a? E' certo quede 
instituição universal, que foi nos séculos pagãos, o 
captiveiro se tornou por obra do christianismo um 
alvo da reprovação universal; mas este resultado se 
obteve por um trabalho perseverante de lenta e sabia 
demolição. Nenhum poder corta de golpe os abusos 
geraes e inveterados; não o tentaria o Estado, pela 
certeza de encontrar a sua força — invencível reacção; 
não o tentaria a Egieja, porque o ensino, que é a 
sua espada avassaladora, não obra com a velocidade 
do raio. A Egreja, portanto, combateu a escravidão, 
tomando-lhe paímo a palmo os domínios, e fazendo 
da própria posse dos escravos o ponto de partida e >J 

arma poderosa na sua campanha infatigável. Possuin- ' 

do escravos, ella offereceu ao mundo o espectáculo 
da auctoridade e da sujeição bem reguladas, e mos- 
trou a uma sociedade quasi incrédula que é possí- 
vel organisar o trabalho e installar a vasta machina 
económica sobre outras bases que não a violência 
legal; depois de haver feito comprehender como cum- 
pria tratar os escravos, fez a exhortação e deu o 
exemplo de os libertar. 

A Egreja não podaria destruir de um arranm a 
rija e enorme cadeia do captiveiro; quebrou-a, elo a 
elo. Isso foi o que ella entendeu e executou desde os 
primeiros séculos, e ainda recentemente proseguia 
pelo zelo de um de seus mais generosos e estrénuos 
apóstolos, o Cardeal Lavigerie. Solicitando a acção 
dos comités anti-escravistas em favor de sua obra 
que, triumphante, daria o quarto de nosso globo d ci- 
vilização e â vida, o inclyto arcebispo advertiu: «Sup- 
puzeram alguns que eu pretendia cortar desde logo 
não só o trafico, mas a servidão, o captiveiro domes- 
tico, tal como existe ainda em alguns paizes orientaes, 
em Madagáscar, por exemplo. Eu só tenho recla- 



A 



(82)— D. Francisco Alexandre Lobo, («Memoria Histórica do 
Padre António Vieira», pag. 61) 



121 



mado a suppressão immediata do trafico, isto é, da 
caçada ao homem, da venda publica ou secreta, e do 
transporte dos escravos para os mercados turcos. 
E' isto, de facto, o que dá pasto ás qrueldades sem 
nome, á destruição atroz, contra as quaes protestei 
do alto das tribunas da Europa. O resto nade vir 
pouco a pouco pelo progresso dos costumes.» (83) 

Não poderia agir diversamente o Padre Vieira: 
respeitou a excepção feita na lei, mas não transigiu 
quanto á regra que a lei estabelecia. Cumpria assim 
um dever; encandeou, porém, contra si a cupidez 
insaciável e o interesse feroz dos colonos que, se- 
nhores fáceis de vastos lotes de terra, quereriam 
arrebanhar tribus inteiras e reduzil-as á condição 
de instrumentos sem outro uso e destino que o de 
augmentar-lhe os bens grangeados. As incursões 
violentas aos sertões brazileiros succederam-se fre- 
quentes, fazendo a cada vez levas numerosas de 
captivos, e afugentando ainda mais, raivoso ou espa- 
vorido, o selvicola. Notável historiador portuguez 
traça um rápido quadro dos acontecimentos que então 
occorriam nas missões ultramarinas: 

«A lucta dos missionários com os erros dos povos 
bárbaros foi em muitos logares prolongada e em 
outros estéril. Derramou-se o sangue dos que vinham 
pregar o perdão das offensas, e não poucas vezes 
paixões e cubicas villãs lançaram o fogo á seara, 

auando ella principiava a medrar. O santo nome de 
>eus, falsamente invocado por homens de armas 
sedentos de oiro, serviu para cobrir violências e ex- 
poliações, que deshonrando a bandeira portugueza, 
fizeram odiosos os ministros evangélicos. Accresciam 
ás difficuldades quasi insuperáveis de climas insa- 
lubres e de línguas ignoradas os obstáculos das dis- 
tancias, e da braveza dos homens e das selvas. Em 
vários lances os missionários affrontaram perigos e 
trabalhos, que excedem quanto a phantasia pôde 



(83)— Cardeal Lavigerie, «Carta» de 19 de Janeiro de 1889, 
publicada a 25 do dito mez no «Boletim da Sociedade Ánti-es- 
cravista de França.» 

A. V. 16 



imaginar de arriscado.. Desamparados nas solidões 
ou ^embrenhados nas florestas, sem outro soccorro 
alem da fô dúbia dos guias, padecendQ fomes e mi- 
sérias, sentindo as forças esmorecidas e quebranta- 
das, os religiosos, só com a esperança no céo, e sem 
outro escudo mais que o. sentimento do dever, cin- 
giam os rins, como os antigos apostolas, e á manei- 
ra delles encaminhavara-se alegres para o martyrio, 
naidéa de que a arvore plantada por suas mãos, 
embora pequena e enfesada no começo, mais tarde 
havia de erguesse forte e frondosa.» (84) 

Era um continuador dessa gloriosa tarefa o Padre 
Vieira; herdara de seus antecessores o mesmo zelo 
apostólico; não poderia jamais conformar-se a que 
estorvassem e desfizessem a propaganda civilisadora 
aquelles que tinham por dever auxilial-a. Ergueu *j 

a voz em S. Luiz do Maranhão, e dirigiu ura appello * 

vibrante, em nome de Deus: «Sabeis, christãos, sa- 
beis, nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum 
que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as 
ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que 
tendes captivos e opprimidos. Estes são os pecca- 
dos do Maranhão, estes são os que Deus me manda 
que vos annuneie. Direis que os vossos chamados es- 
cravos são os vossos pés e mãos; e também pode- 
reis Hizer que os amais muito, porque os criastes 
como filhos, e porque vos criam os? vossos. Assim i 

é, mas já Christo respondeu: se a tua mão ou teu Hjf 

pé te for motivo de escândalo, corta-o fora. Não quer 
dizer 'Christo que cqrtemos os pés e as mãos, mas 
quer dizer que se no? servir de escândalo aquillo que 
havemos mister como os pés e as mãos, que o lance- 
mos de, nós, ainda que nos dôa, como se o cortára- 
mos. Quem ha que qão ame muito o seu braço e a 
sua mão? Mas senejla lhe saltaram herpes, permitte 
que lh'a -cortem por conservar a vida. O mercador 
ou passageiro que vem da índia ou do Japão, muito 
estima as drogas que tanto lhe custaram lá, mas se 

, (84)— Rebello da Silva, «Historia de Portugal nos séculos 
XVII e XVIII», 5o Tolume, pag. 180. 



123 

* 

a vida perigar, vai tudo ao mar para que ella se 
salyè: O mèsitio digo erhTtiò$$o**fcaso;*fc pà¥& £ègfcríéi* : 
a Consciência e para salvar à alma; foi^i^**^iFÍé^ 
perder tudo e 1 ficar como urh Job, pérca-se ttíflo^Wa&i 
nom animo, senhores' meus, 4 que riãò' # nefcSsgarte 
cHegar a tanto, neni a muito menos. Venho a Wdtt^ 
zir às coisas a estado, que entendo com mUitopôttêâ 
perda se podem segurar as consciências áe todo* 
os moradores deste Estado, e com' muito graftdesin- 
teresses se^odem melhorar Suas consciendiás <jpára 
o futuro.» (85) , { * . • vV 

E proseguiu dominando tão poderosamente o au- 
ditório, que nesse rtiesmo diá muitos' : dos' ou- 
vintes deraín liberdade a todos os escravos tjiie pos- 
suíam. (86) ' "' ' /{ ' • " ;í '• "'*** 

Mas, desvanecida a impressão, acordou o egoísmo 
offendido e a lucta recrudesceu. As' antigas pfovisíJtès 
regias e as novas que aos reclamos de /Vieira (87/ se 
expediram em reforço, foram violadas ou illddidàs 
pelos encarregados de sua execução. Centra ò ^adi% 
Vieira e os religiosos da Companhia surgiu áinttígâ 
de que monopolisavamo serviço dos indíos, * leváírao 
o seu produeto aos mercados em tâo baixo preço, 
que não podiam os colonos concorrer com elles « 
logo se arruinavam. E a penna de mais dè tfm.toista- 
riador acolheu e divulgou o aleive; mas, por e£se 
irresistível império que sempre exerce a verdade* 
com taes increpações, e a contrastar com ellas, vem 
preso o testemunho de que o gentio só se prestava a 
lavrar as terras dos padres, e as tarefas ahi eram sua- 
ves, a alimentação sadia e abundante , sendo elleâ èfn 
grandíssimo numero. (88) l< ' - ; ' 

A um escriptòr não repugnou repetir em fé dos 

(85)— «Sermão» pregado no anno de 1653 no Maranhão. 

(86)— André de Barros; pags. 78 e 79.— João F. Lisboa^ pag. 
450. 

(87)— «Cartas» de 20 de Maio de 1653, 4 de Abril de 1654, 6 
de Dezembro de 1655, 20 de Abril de 1657, a Ei-Rei; c de* 1» de 
Setembro de 1658 á Rainha. 

(88)— Rebello da Silva, «Hist. de Portugal», tomo 5.°, pags. 175 
e 177 .-^V. dePorto-Seguro, «Histi dòB*ftzil»í torno lo, pag. 843. 



124 



inimigos dos jesuítas, que estes não foram contrários 
ao captiveiro dos africanos, porque não pretendiam o 
domínio d* Africa, nem lhes agradava esse clima; e, 
por conta procria advertiu que, vindo a recobrar a 
sua vitalidade d'outrora, tinha a Companhia que de- 
saffrontar-se da accusação, passando a missionar nos 
sertões africanos. (89) 

Injusto! Não mereciam a lição aquolles que o pri- 
meiro governador enviado a Angola teve a seu lado, 
e de quem poude attestar que pela propagação da fé 
não recuam nem ante o martyrio. (90) 

Não attin^iu tampouco o Padre Vieira, que no cur- 
so de suas viagens ao Brazil mais de uma vez evange- 
lisara com fructo copioso as ilhas de Cabo- Verde e 
Açores. (91) 

Os documentos da época, e os próprios historia- 
dores contrários aos jesuítas, o consignam todos: 
a razão de preferirem os colonos o captivo ind ; o ao 
africano, era a de achal-o mais perto o sahir menos 
caro. (92) 

Não podendo por si abolir a escravidão, o jesuíta 
descarregava-lhe golpe destruidor, combatendo para 



(89)— V. de Porto-Seguro, tomo I o , pag. 319. 

(90) — «Resolveram os jesuítas acceitar a nova missão, entran- 
do ém Angola com o primeiro governador Paulo Dias de No- 
vaes. . . A palavra dos missionários da Companhia operou em 
Loanda e seus arredores bastantes conversões, elevnndo-se alli 
a christandade em algum tempo a 20,000 almas. ..... Em 

1560 sahiram de Goa os primeiros jesuítas destinados áquellas 
regiões (Africa Oriental), e, apóstolos e martyres, deixaram as- 
sefiado com o sangue do seu chefe, Gonçalo da Silveira» o tes- 
temunho glorioso da sua fé nos dominios do Monomotapa. 

(Rebello da Silva, tomo 5o, pags. 166 e 170). . 

(91) — Em carta escripta ao confessor do Principe, em 25 de 
Dezembro de 1652, pede-lhe o Padre Vieira que «ae lá queira 
ser apostolo desta antiga e nova conquista e aggregal-a á pro- 
víncia (dos jesuítas) do Alemtejo»; e diz também: 

«Ha aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas 
tão compostos, tão auctorizados, tão doutos, tão discretos e bem 
morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas 
nossas cathedraes.» 

(92)— João F. Lisboa, pag. 441. —Porto-Seguro, (pags, 312, 313, 
e 319). 



-k 



125 



que os exploradores do trafico só se fornecessem á 
custa de sacrifícios que poucos arrostassem. (93) 

Estimulasse este exemplo as classes dirigentes nas 
possessões africanas, servisse-lhes para defenderem 
também osnaturaes, impedindo as correrias barbaras 

3ue se faziam contra elles para acudir á conservação 
o braço escravo: mais se adeantaria a obra da civili- 
sação das colónias, e a supprcssão do ignóbil e deshu- 
mano mercado! Esse, porém, era o abominável crime 
dos jesuítas: chamar para o convívio dos povos cultos 
o íncola das regiões da Africa e America. (94) 

Um eminente publicista contemporâneo disse-o 
sem rebuço: «A errónea philosophia da natureza, a 
illusão espiritualista que suppunha inherente, á falia 
e á forma humana, uma alma divina, essencialmente 
idêntica em todas as espécies de homens, eis ahi a 
causa primaria das antigas doutrinas coloniaes dos 
jesuítas, e ainda hoje o motivo das opiniões sentimen- 
taes dos philantropos bíblicos. O platónico empenho 
de civilisar uma raça inferior vem dessa illusão anti- 
ga. . . O indio domesticado vem a valer menos, porque, 
sem ganhar nada em capacidade, perdeu na natureza 
esthetica da liberdade bravia e selvagem. Melhor lhe 
fora morrer independente, do que prolongar uma exis- 
tência artificial que não pôde impedir o curso das leis 
de uma natureza sem piedade». (95) 



(93) — Entre as accusações que nesta parte faz ao Padre Vieira, 
diz Lisboa (pag. 441) que elle até suggeriu a idéa de que o go- 
verno á sua custa mandasse buscar escravos africanos; mas não 
considerou que o Padre com esse alvitre prevenia maiores 
abusos do trafico, mormente quando propunha essa medida por 
uma só vez e limitando a duzentos o numero dos escravos a 
remetter para todo o Maranhão. 

(94) — Os colonos fazem todas as~concessões aos jesuitas, cora- 
tanto que elles «não se intromettam em questões de liberdade 
de indios.» (V. de Porto-Seguro, pags. 700, 724, 768 e 936).— O 
que o Padre Vieira quer e reclama é que essas questões se re- 
solvam de accordo com as leis e regulamentos expedidos peio 
governo, ou sejam submettidos a uma «Junta das Missões» com 
sede na corte, e nella tendo representação e voto os principaes 
interessados. 

(95)— Oliveira Martins, «O Brazil e as colónias portuguezas», 
pags. 145 e 149. 



1% 

A cpacljusão ê— que os descobridores da America 
deveriam qecupaí-a, afugentando ou perseguindo os 
n#luraes como féràs bravias, quando não' se reduzis- 
sem ao préstimo automático e incondicional de bestas 
de carga! Outro conceito, orientação; muito 'bp posta 
foi a, dos missionários, e do acerto e cohérenciá 
co v ni que nellá se houveram, como da fidelidade 
que os indios lhe guardaram, dá testemunho ainda 
Oliveira Martins: «Eiji 1757 o poder temporal das 
missões foi supprimido: as aldeias dos indiòs trans^ 
formam-se em riflas de direito commum, separa-se 
o espiritual do temporal. . i O plano jesuíta estava 
destruído. . . Sc aos padres se retirava o poder. . .como 
haviam de ellos converter o indio?As duas missões 
eram inseparáveis; e nisto os jesuitas demonstra- 
vam,— como em tudo, --um conhecimento da aíma 
humana, nunca excedido, nem antes, nem depois. A *t 

prova é que as aldeias se despovoaram, que os índios 
regressaram á vida selvagem, fugiram de novo para o 
sertão, quando em 1768 os seus padres foram expul- 
sos do Brazil.» (96) 

Registremos esta insuspeita homenagem; venha 
eryibara o seu autor amesquinhal-a, articulando que 
se os colonos nao vencessem, o Brazil seria como o 
Para^uay, «a obra prima da coldnisação jesuíta, mise- 
rável canto do mundo, povoado pór uma raça inferior, 
que só perde os instinctos de fera sei vage ria, para 
cahir num torpor de cretinismo idiota.» (97) -_** 

Õòntra es§e conceito injuriosamente desdenhoso T 

sobre as Reducções, protestava ha cinco anriós um 
ilíustre viajante, Theodoro Child, escrevendo ô se- 
guinte, em seu livro— As Republicas Hispano — ameri- 
canas: «O Páraguay tentou ôs jesuitas, úue lá estabe- 
leceram suas Redacções, ensaiando rieilaS um syste- 
rriade còmmunismo cujos resultados fòrâiíi muiio 
consideráveis rio ponto de vista da felicidade colecti- 
va; Qs ^estabelecimentos dos jesuitas prosperaram du- 
rante dois séculos, depois foi a oraem expulsa em 



(97)-F 



(96)-*Qbra citada, pag. 77. 
-Pag. 76. 



127. 



1765, e quando os architectos commúriístas àKandònà- 
ram o bello monumento em que os indígenas guâra- 
nys haviam aprendido os elementos de uma civilisaçíío 
quasi idyllica, o monumento cahiu em ruinàs, e paiz 
e população declinaram rapidamente.» (98) 

A voz imparcial do estrangeiro nao convence? Fale 
a de um compatriota eminente, a quem 6 povo brasi- 
leiro, pela iniciativa de seus homens de lettras, acaba 
de erigir uma estatua, saudando-a como a brilhante e 
gloriosa imagem do espirito americano. (99) 

«Se a posição geographica excepcional dó Pàraguay 
o entregou inerme ao despotismo de um Franciae de 
dois Lopez, diz José de Alencar, os jesuítas não tem 
culpa dessa degeneração de sua obra; elles foram ex- 
pulsos, o seu poder foi abatido muito antes. Qúaes- 
quer que sejam os erros commettidos por elles, espe- 
cialmente no Pàraguay, ô preciso não esquecer que 
esse paiz é talvez, pelo menos na America do Sul, a 
única nacionalidade em grande parte formada pela 
primitiva raça dos habitadores deste solo. A quem se 
deve isto? -Aos jesuítas que lá puderam salvar da bar- 
bárie dos aveniureiros aquelles restos do uma raça, 
que foi destruída em todo o vasto continente america- 
no.. Não é um serviço relevante prestado a humani- 
dade? Os jesuítas cm todo o Brazil pugnaram sempre 
pela liberdade da raça indígena, luctaram tenazmente 
.contra a avareza dos colonos qu^ qn^mm escravisal-a. 
A democracia q um pouco ingrata para com a Com- 
panhia de Jesus, que, apoderando-se de uma das cida- 
dellas que dominam o espirito publico, da escola, e 
instruindo as massas, foi quem preparou o grande 
movimento do século actual.» (100) 

Esse é o testemunho soberano da historia, é o de- 
poimento desinteressado e leal da verdade; o outro é 
ainda o echo das paixões desenfreadas dos colonos 



(98)— Obra citada, pag, 385. 



9)— Discurso pronunciado por Coelho Netto, na cerimonia 
da inauguração da estatua de José de Alencar, a 1.° de Maio do 
corrente uiino. 

(100)— Discurso proferido no Parlamento Brazileiro, em ses- 
são de 28 de Maio de 1873. 



128 



que, insurgindo-se contra a pregação e os actos do 
Padre Vieira a favor dos Índios, cobriam-no de caiu- 
mnias e ultrages, e prendendo-o como a um vil mal- 
feitor, baniam-no do Maranhão. 

Mas a memoria do preclaro jesuíta vai á posterida- 
de por entre bênçãos e applausos, emquanto o nome 
de seus *aggressores, os mais declarados adversários 
da Companhia não ousam relembraí-o, e a pátria só 
não os esquece, porque pelo crime delles já não pode- 
rá exclamar como a França pela voz de um dos seus 
Immortaes: «Se, pensando em tudo que temos possu- 
ído e em tudo quanto perdemos, não nos é possível ler 
sem magua e saudade a chronica de nossas colónias, 
poderemos ao menos lel-a sem remorsos. Nenhum 
dos nossos reis fez gemer a alma de um Las-Casas; 
nenhum dos nossos costumes suscitou insaciáveis de- 
sejos de vingança no coração de up Montbars; nenhum ^ 
dos nossos governadores com a fúria da rapacidade 
iaflammou a eloquência indignada de um Burke e um 
Sheridan.» (101) 

Não poderá dizer tanto a nação luzitana, mas pôde 
replicar desaffrontada que sahiu de seu seio o Las- 
Casas que representou destemido contra a deshuma- 
nidade e a fereza, e foi um grito de Alho o que pediu 
bálsamo á chaga, fazendo echoar sob as abobadas sa- 
gradas, ante a Rainha Regente, os gemidos da raça 
opprimida e a queixa enérgica e vibrante de seus de- 
fensores aggravados. «Não se envergonhe já a barra t 
de Argel,— pregava o Padre Vieira deante da corte em t 
dia da Epiphania, — não se envergonhe a barra de Ar- 
gel de que entrem por ella os sacerdotes de Christo 
captivos e presos; poiso mesmo se viu em nossos dias 
na barra de Lisboa. Gloriava-se o Tejo, quando nas 
suas ribeiras se fabricavam e pelas correntes sahiam 
as armadas conquistadoras do Império de Christo; hoje 
envergonhado de tão affrontosa mudança devera tor- 
nar atraz e ir-se esconder nas grutas de seu nasci- 
mento. Não fora grande injustiça, não fora grande 
mpiedade trazer os Magos a Christo e depuis entre- 



(101) — Xavier Marmier, «En divers pays», pag. 293. 



129 



gal-os a Herodes? Pois sãp estas as culpas daquelles 
pregadores de Christo; e esta é a causa porque se vê- 
em tão .perseguidos. Querem qiie tragam os gentios 
á fé e os entreguem á cubica; querem que tragam 
as ovelhas ao rebanho e as entreguem ao cutellò; que- 
rem que tragamos Magos a Christo e os entreguem 
a Herodes. E porque encontramos esta sémrazão, 
somos os desarrazoados; porque resistimos a esta 
injustiça, somos es injustos; porque contradiremos a 
esta impiedade, somos os ímpios, — Mas como 6 funda- 
mento e base do reino de Portugal é a propagação da 
fé e conversão das almas dos gentios, não só perde- 
rão infallivelmente as suas todos aquelles sobre que 
carrega esta obrigação, se descuidarem dellà; mas o 
mesmo reino, tirada e perdida a base sobre qUe foi 
fundado, fará naquellà conquista a ruina que. em tan- 
tas outras tem experimentado.» (102) 

Eis' como o illustre jesuíta Padre António Vieira 
entendia a missão e os deveres dos descobridores do 
Brazil, e advogaya a causa da liberdade dos Índios, 
praticando christãmente o cosmopolitismo, e ensi- 
nando que a terra estrangeira pôde também ser 
amada como uma pátria ! 

Patrono dos pequenos e dos fracos, defensor dos 
eondemnados e perseguidos, o Padre Vieira ô foi até 
em frente a uma instituição poderosa e temida, que 
se armara a um tempo com os anathemas da Egreja 
e com as justiças do Estado, e, não podendo sek* des- 
tituída por um sem o outro, serviu frequentemente 
ao mais forte, exorbitou de setts fins, rasgando pór 
mãos ungidas, e algures contra innocentes, o cânon 
ecclesiastico que sagra a inviolabilidade da vidai 
Vieira falou e agiu em soccorro dos judeus e chris- 
tãos novos, pugnando esforçado péla reforma dos 
estylos injustos e odiosos da inquisição portugueza, 
para que adoptasse os que regiam a de Roma, onde 
não havia distineções entre os christãos e viviam li- 
vremente os judeus. (103) 

Í 102)— «Sermão» pregado na Capella real no anno de 1662. 
103)— Rabões e Propostas que o Padre Vieira apresentou em 
favor dos christãos novos e judeus (Lisboa, pags. 56 e 63). 
A. V. 17 



130 



Frustrado embora tão nobre empenho, a sua ma- 

Snitude moral, ã sua correcção christã avulta deantc 
os séculos o mérito de Vieira, e glorifica a resigna- 
ção e serenidade com que um dia, após longa estada 
em um cárcere e as humilhações de um processo 
que o inquinava de judaizante e blasphemo, com os 
olhos cravados no grande Crucifixo pendente da pa- 
rede, ouviu impassível a sentença. de sua condemna- 
ção lavrada por esse pavoroso tribunal, onde os 
jesuítas não compareceram nunca senão como victi- 
mas, e o mais encarniçado inimigo da Companhia, o 
famoso ministro de D. José I, quiz o odiento papel de 
guarda e executor 1 

Emprezas assim arriscadas e luctas renhidíssimas 
parece deveriam consumir-lhe todo esse minuto mor- 
tal que se chama— a vida — ; mas a sua actividade 
assombrosa achava ainda monções de repartir-se por 
vários outros cuidados do bem publico, revelando até 
nos lazeres a sua intuição genial. Desfarte vemol-o 
hoje empenhado em attrahir capitães para supprir as 
necessidades e mobilisar as riquezas das futurosas 
colónias, propondo e conseguindo a creação da Com- 
panhia de Commercio, num plano que mais tarde 
Colbert adoptaria para a França, e com resultados 
tão promptos qúe, no dizer de Wamhagen, foi essa 
instituição valiosíssimo elemento para se restaurar 
Pernambuco. (104) 

Logo após, desce attento ás conveniências da pro- 
ducção agrícola, explorando a liberdade do solo bra- 
sileiro, e ãnnuticiando minas verdadeiras á flor da 
terra com a transplantação das arvores asiáticas de 
mais alto preço; tão deveras interessado nessa ada- 
ptação de espécies estimadas e exóticas, que lhe dava 
prazer olhal-as a se enraizarem e crescerem, e já nos 
fins da vida, escrevendo a um ex-governador da 
Bahia, ainda o informava de que na quinta dos Pa- 
dres a canella que elle deixara só em tronco era já 
uma arvore desafogada e a pimenta subia pelas esta- 






(104)— «Hist. do Brazil», 2o tomo, pag. 665. 



131 



cas, mas retardando os signaes promissores de 
fructo. (105) r : 

Aqui, elle ponderava a desvantagem e os riscos das 
caravellas, presa fácil de qualquer inimigo, que mal 
sabiam fugir, e insistia em que se traçasse outra bi- 
tola para a construcção dos navios; fazendo-o tão 
acertadamente que, diz um historiador portuguez 
(106), a marinha mercante poude com isso transfor- 
masse de improviso em poderosa marinha de guerra 
e bater o hollandez. Além, vindo em auxilio do go- 
verno exhausto de recursos para soccorrer a Bahia, 
levantava um empréstimo de trezentos mil cruzados 
sem outro, abono mais do que o de sua roupeta re- 
mendada (107); como um século antes fizera o mais 
celebre dos vice-reis da índia, D. João de Castro, em- 
penhando as próprias barbas, para reedificar a for- 
taleza de Diu. (108) 

Um dia em 1668, secundava as solicitações do Pro- 
curador do Brazil perante ás cortes reunidas, e o rei 
deferia que nos cargos do estado que ahi vagassem 
os filhos da terra fossem preferidos. Outra vez, di- 
rigia-se ao duque de Cadaval, ao ex-governador Costa 
Barreto e outras personagens, pedindo-lhes remediar 
a extrema escassez de numerário que difficultava as 
mínimas transacções nas colónias, e o governo da 
metrópole providenciava, mandando montar casa de 
moeda para cunhagem de dinheiro provincial na 
Bahia (1694). 

A cada ensejo, lavrando pareceres sobre questões 
em que era consultado, ou explanando na cadeira 
evangélica as verdades moraes e religiosas, o Padre 
Vieira traçava sabias normas de governo, vulgarisava 
os mais sãos princípios que podem fornrrar alicerce ás 
instituições de um povo culto, e defendia as medidas, 
ainda morosas e vexatórias, que fossem reclamadas 

(105)— «Cartas de 28 de Janeiro de 1675 a Duarte de Macedo e 
de B3 de Junho de 1683 a Roque da Costa Barrettd. 

flOG) — Pinheiro Chagas, «Obra citada», pag. 126. 

(107)— Carta ao Conde da Ericeira. 

(108) — «Diccionario Popular», dirigido por Pinheiro Chagas 
vol. 4o, pag. 191. 



132 



por justos motivos de ordem publica. "Deste modo, 
na véspera da reunião das cortes em 164.2, pregando 
em honra a Santo António, figura o santo compare- 
cendo á asssembléa para tratar da salvação commum, 
e propondo a votação dos impostos, com doutrinas e 
preceitos que, segundo ubserya J. F. Lisboa (109), 
revelavam já a luminosa intuição dos princípios da 
sciencia económica e politica que hoje tem mais voga. 
Numa dominga da quaresma, na capella real, lem- 
brando o que era de costume pregar-se quando as cor- 
tes eram mais*christâs ou os pregadores menos de corte, 
procede a um exame de consciências, centrando no 
assumpto, demonstra ao auditório os inconvenientes, 
os riscos e os males da aceumulação de cargos. 
«Quem sou eu? Isto se deve perguntar a si um minis- 
tro oi} seja secular, ou seja ecçlesiastico. Eu sou um 
desembargador do paço; sou um procurador da coroa; 
sou um regedor da justiça; sou um conselheiro de 
guerra; sou um presidente da camará; sou um secre- 
tario de estado; sou um deputado; sou um governador; 
sou um bispo, etc. Bem está, já temos oofficio; . . .mas 
tendes um sô desses officios ou tendes muitos? Ha 
sujeitos na nossa corte que teem logar em três ou qua- 
tro tribunaes; que teem seis, que teem oito, que teem 
dez officios. Este ministro universal, não pergunto 
como vive nem quando vive; não pergunto como acode 
a suas obrigações nem quando acode a ellas. Só 
pergunto como se confessa?— Quando Deus deu 
forma ao governo do mundo, poz no céo o sol e 
a lua, e deu a cada um delles uma presidência: 
ao sol a presidência do dia e á lua a presidência 
da noite. E porque fez Deus esta repartição? Porven- 
tura porque sé não queixasse a lua e as estrellas ? Não, 
porque com o sol ninguém tinha competência nem 
podia ter justa queixa. Pois, se o sol tão conhecida- 
mente excedia a tudo quanto havia no céo, porque 
não proveu Deus nelle ambas as presidências ? Porque 
ninguém pode fazer bem dois officios, ainda que seja 
o mesmo sol. mesmo sol, quando allumia um he- 

(Í09)-Pag. 42. 



133 



mispherio, deixa o outro as escuras. E que haja de 
haver homem com dez hemispherios ! E que cuide e 
se cuide que em todoâ pode alluminar ! Não vos admi- 
ro a capacidade do talento, a da consciência, sim.» 
(110) r 

Pregando nesta ciqade, na capella da Misericórdia 
em dia da Visitação, a 2 de Julho de 1640, presente o 
vice-rei, desenrolou <j sudário das misérias e abando- 
no que iam pelo Estado, atacando a cenlralisação, 
como não o fizera mjns afoitamente quem pugnasse 
pelo regimen federativo e, como que, em raptos de 
vidente, presentiu e saudou o dia duplamente glori- 
oso de nossa emancipação politica: «Muito deu Per- 
nambuco; muito deue dá hoje a Bahia, e nada se lo- 
gra; porque o que sé tira do Brazil, o Brazil o dá, 
- leva-o Portugal. Com terem tão pouco do ceo os que 
isto fazem, temol-os retratados nas nuvens. Apparece 
uma nuvem no meiodaquella bahia; lança uma manga 
ao mar; vae sorvendo porocculto segredo da natureza 
grande quantidade de agua; e depois que está bem 
cheia, dá-lhe o vento e vae chover daqui a 30, daqui a 
50 léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na 
Bahia tomaste essa agua, se na Bahia te encheste 
porque não choves também na Bahia? Se a tiraste de 
nós, porque a não despendes comnoscofSe a rou- 
baste aos nossos mares, porque não a restitues a nojs- 
sos campos? Taes como isto são muitas vezes os mi- 
nistros que vêem ao Brazil. 

«Partem de Portugal estas nuvens, passam as cal- 
mas da linha; e em chegando, (verbi gratia, a esta 
Bahia,) não fazern mais que adquirir, ajuntar, encher- 
se (por meios occultos, mas sabidos) e no cabo de três 
ou quatro annos em vez de fertilisarem a nossa terra 
corfiaagua que era nossa, abrem as azas ao vento e 
vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid. E o mal 
mais para sentir de todos é, que a agua que por lá 
chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abun- 
dância do mar, como noutro tempo, se não das lagri- 
mas do miserável e dos suores do pobre, que não sei 



(110) — «Sermfto» pregado na Capella Real em 1655. 



134 



como atura tanto a constância e fidelidade destes vassal- 
los. Muitos trances destes tens padecido, desgraçado 
Brazil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos 
edificaram palácios com os pedaços de tuas ruínas, 
muitos comem o seu pão ou o pão n&o seu, com o suor 
do teu rosto: elles ricos, tu pobre; élles por ti vivendo 
em prosperidades, tu por elles a risco de expirar. Mas 
agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças. . . 
tudo o que der a Bahia para a Bahia ha de ser, tudo o 
que se tirar do Brazil, com o Brazil se hade gastar.» 
Quando o evangelho diurno lhe deparou o texto — 
si vis potes, — o eminente orador desdobrou-o em con- 
siderações as mais dignas de se produzirem num 
grémio de legisladores, evidenciando, contra a vanglo- 
ria do lemma que o génio de Napoleão o Grande não 
logrou fazer triumphar, a sensatez e o acerto da poli- 
tica moderada e ordeira que saiba descortinar e não 
deixe perder a boa opportunidade: — «O querer e 
o poder, — disse elle, — se divididos são nada, juntos e 
unidos são tudo. — O querer sem o poder é fraco; o 
poder sem o querer é ocioso; e deste modo divididos 
são nada. O querer com o poder é efficaz, o poder com 
o auerer é activo, e deste modo juntos e unidos são 
tudo. — Começando pelos maiores corpos políticos, 
que são os reinos, qual é a causa de tantos se terem 
perdido, de que apenas se conserva a memoria; e ou- 
tros se verem tão arruinados e enfraquecidos, senão 
o appetite desordenado e cego de quererem os reis 
mais do que podem? Daqui se seguem as guerras e a 
ambição de novas e temerárias empresas, como as de 
Membro th; daqui as fabricas de edifícios magníficos e 
insanos, como Babel; daaui a prodigalidade de exces- 
sivas mercês, amontoando em um o que se tira a to- 
dos; daqui as festas e jogos públicos mais que extra- 
ordinários, sem outro fim que a falsa ostentação e 
vaidade do que não ha, nem é. E quando as despesas 
de tudo isto deveram sahir do que sobejasse nos the- 
souros reaes; que será onde se vêem tiradas e espre- 
midas todas do sangue, do suor, e das lagrimas dos 
vassallos, carregados e consumidos com tributos so- 
bre tributos, chorando qs naturaes para que se ale- 



J> 



135 



grem os estranhos, é antecipàndo-se as exéquias á 
pátria, por onde se lhe devera procurar asáude?^ 
Vejo que me estão dizendo os prezados de grande 
coração, que este discurso quebra os espíritos e 
acovarda os aninhos, para que não émprehendam 
e façam o que é glande. Emprehendei e fazei 
coisas grandes, mas dentro da esphera e proporção 
do vosso poder porque fora delia não fareis nada.» 
Ahi está, em conceitos simples e claros, a mais cri- 
teriosa e justa sentença contra os povos pelas revo- 
luções em que o impeto de demolir não se acompanhou, 
em grau egual, do zelo e capacidade de fundar; e não 
menos contra os governos pelas leis e reformas, cuja 
largueza e superioridade de intuitos se frustraram com 
a escassez ou incúria dos meios de execução. E' a 
lição de todos os tampos, é a experiência de todos os 
paizes; foi o erro da França que um publicista emi- 
nente assignalava quando, com a lei do suffragio uni- 
versal, o nivel moral da representação politica desceu 
pela proponderançia do eleitorado incapaz. Lembra 
o conto de Goethe, a que Maxime du Camp referiu-se 
(111): 'o aprendiz de magia, senhor da palavra myste- 
riosa que ia buscar a agua ao rio, profere-a na ausência 
do mestre, e a agiia corre, a cisterna enche e trans- 
borda, inunda-se a casa; cheio de terror, mas não sa- 
bendo a palavra de contra-ordem que pode conter os 
espíritos o represar a torrente, o temerário aprendiz 
morre afogado. A lição da allegoria éa do eloquente 
e sèntencioso discurso proferido ha mais dè dois 
séculos pelo Padre Vieira na Sé de Lisboa. 



Eis, Senhores, em pallido esboço, a personalidade 
cívica daquelle que um eminente escriptor brazileiro 
(Conselheiro Pereira da Silva) reputou «o mais fiel 
representante do seu tempo, da nacionalidade, da 
língua, da litteratura e até da politica de Portugal* 

(111)— Discurso proferido na Academia Franceza a 28 de 
Março de 1882. 



136 



(112), e que o foi, additaremos :nós, com orientação 
tão superior e iniciativa tão adeantada a seu século, 
que poderíamos chamal-o um corttemporaneo do futu- 
ro e um precursor dos mais beneméritos estadistas e 
reformadores modernos. A sua politica foi a politica 
da paze do trabalho em cortes agitadas pelos ruídos 
da guerra e pela corrente das conquistas; foi a politica 
da persuasão e da liberdade de consciência em épocas 
invadidas pelo terror e pela intolerância; foi a politica 
da emancipação e da igualdade civil, ouando impera- 
vam os preconceitos de raça e o erro aa imprescindi- 
bilidade do escravo. Diplomata correcto e admirado, 
elle soúbe-o ser; já calçando os cothurnos de chumba 
medidos pela arte para demorar-lhes os passos (113), 
já revestindo a envergadura da águia para os surtos 
arrojados quando o ganho se prendia á occasião, e \ 

sempre fazendo capitular ou fugir o contendor na liça "* 

das negociações. 

Deante desse vulto colossal, qs críticos e historia- 
dores, como que assombrados de tanta grandeza, 
soffreram por vezes a tentação de representar com 
elle o papel que no cortejo dos antigos triuraphadores 
coube ao escravo que lhes recordava a sua condição 
de mortaes. Nessa inglória tarefa extranharam como 
sentimentos habituaes oqjue não foi mais do que des- 
fallecimento passageiro, fizeram feição dominante do 
caracter o que seria apenas a falha da natureza, e, ao 
envez de imitarem a nobreza do velho julgador que não ^ 

se offendia das leves maculas, crivaram de tão graves 
senões ô mérito de Vieira, que descel-o-iam á esteira 



(112)— -Nacionalidade, iingua elitteratura de Portugal e Brazil, 
pag. 312. 

(113)— «Des talents donc; mais une cbaussure de plomb plutòt 
que des ailes. D'abord, pour prévoir les conseauences d'un en- 
gagement ou d'un traité; et ensuite pour éviter les dèfférends et 

les pièges Mais èntendons nous bjen touchant la cbausure 

de plomb. Elle ne consiste pas á faire fe minutieux qui fatigue, 
ni Vindecis qui ne conclut jamais, ni le paresseux qui perd les 
occasions. Elle a été mieux comprise par le poete, lorsqu'il a 

dit: «Guarda quel che tu di E va piu lesto, e col calzar 

dei plombo». 

Audisio, «Diplomatie Ecclesiastique», Introduction. 



137 



das glorias as mais contestáveis, das virtudes mais 
suspeitas; se no descomedimento do critico não se des- 
vendasse a infidelidade e o erro do historiador; se ao 
golpe violento que cavava a ruga ou imprimia a nódoa 
á cffigie admirável, não succedesse togo, como a «m 
impulso irresistivel, o toque do pincel a reviver o traço 
desfigurado. 

A todos esses é applicavel a resposta do insigne 
sacerdote a seu contemporâneo, autor do Portugal 
Restaurado: seus livros louvam-no com descréditos ou 
desacreditam- no com louvores. (114) 

Louva-o com descréditos odesacredita-o com louvo- 
res o visconde de Porto Seguro, taxando-o de ahifoi- 
cioso, indiscreto e immodesto; negando-lhe o mérito 
da creação da Companhia do Commercio, porque o 
l respectivo decreto não traz a sua assignatura (115), 

^ e não duvidando responsabilisal-o pelas propostas 

da cessão de Pernambuco á Hollanaa, quando nem 
estas nem o chamado Papel Forte são por elle firma- 
dos; e qualificando-o de politico sem tino pratico, 
espirito visionário, nas próprias paginas da historia 
em que memora ter o Padre Vieira «recommendado o 
Brasil d Europa com o seu génio desenvolvido nos 
embates da guerra e a sua embaixada officiosa na 
Hollanda». (116) 

Refuta-se por si próprio João Francisco Lisboa, 
emprestando ao illustre jesuíta «uma ambição preco- 
K ce, uma vaidade jactanciosa que reivindicava glorias 

e perigos, requintes de dissimulação indignos de 
homem tão eminente» (117); o, todavia, apurando 
elle mesmo dos factos que o seu biographado «se 
escusa de acceitar honrarias e títulos por não as- 
sentarem em seu habito, mostra um desinteresse 
tão completo em matéria de riquezas que até os 



(114)— «Carta» do 18 do Agosto de 1-668, ao Comi e da Ericeira. 

(115) — Na primeira edição da sna «Historia Geral doBrazil», 
tomo 2 o , secção XXXI II. Reeditando esse livro, o auetor suppri- 
mm os tópicos que formulavam essa contestação; mas não disse 
uma palavra em reparação da injustiça commettída. 
. (116)— «Obra citada», pags. 655, 726 e 6P0. 

(117)— «Vida do Padre António Vieira, pags. 11, 414, 223 e 150. 
A. V. 18 



138 



provetitos licitou engeitava», e tão pouco se captiva 
a respeitos humanos que ao próprio escriptor que 
o julga neste século parece imprudente e ousado 
na sua resistência a;osi colonos do Brazil e na attitude 
sobranceira em que ouviu os interrogatórios e a sen- 
tença "da inquisição 1 (118) 



(11Ô)— «Obra citada», paçs. 154, 191, 445, 267, 466 e 470. O il- 
lustre escriptor brazileiro, sob o influxo de certa prevenção 
injusta accusou frequentemente a Vieira, sem razão. Na quês-, 
tão do captiveiro dos índios, por exemplo, (pag: 431) diz que o 
Padre «fez concessões em matéria que não as admittia, pois o 

f>rinjipioda liberdade é absoluto»; mas, poucas paginas adeante 
pag. 439), nota elle que «os espíritos absolutos se encontram a 
largos séculos de distancia» e irmana com o missionário do 
Maranhão o Deputado á Constituinte Franceza é/h 1790 que de- 
clarava preferir a ruina de todas as colónias ao sacrifício de um 
só principio! — Diz também (pag. 340) que em todo o curso da 
vida de Vieira sempre o achou mais portuguez que jesuita, mais 
amigo da pátria que da sua ordem»; e depois (á pag. 431) vem 
denunciar que foi .o jesuita «quem planeou seriamente a intro- 
ducção da escravatura africana, para que podesse a ç.qm panjjla 
mais desimpedida de estorvos, exercitar um-i jurisdicção exclu- 
siva sobre os Índios». — Com menta maliciosarriente a sal) ida 
«sem caridade» (pag. 343) com que o Padre um dia respondeu 
«cozessem» então os ministros o negocio que haviam despre- 
zado por «cru» quando ellc o propuzera; e rebaixa-o a cortezão 
incorrigível (pag. 317), porque «vergado ao pezo da regia des- 
graça, pregou nas exéquias da Rainha, para não ficar muda a 
solem nidade do. dia». — Verberou a linguagem e a conducta de 
Vieira (pag. 127) ottribuindo-lhe haver dito que «ainda quando o 
Brazil se desse de graça, era muito para duvidar se convinha 
acceital-o, ficando com elle Portugal, alem da guerra de Cas- 
tella, o encargo da de Hollanda». Entretanto, o que o Padre 
escreveu em carta ao Marquez de Niza, em 11 de Março de 
1646, foi que «era matéria muito digna de ponderação acceital-o 
com os encargos da guerra com Hollanda, em tempu que tão 
embaraçados os tinha a de Castella»; e tanto isso importava 
quanto dizer que dal-o em taes condições era expol-o a ser 
perdido logo depois. — Responsabilisa a Vieira como propagan- 
dista de doutrinas extranhas e de moralidade equivoca (pag. 73), 
porque pregou que «a bondade das obras está nos fins, e não 
nos instrumentos; as obras de Deus todas são boas; os instru- 
mentos de que se serve, estes, sim, podem ser bons e maus». 
Lera menos attentamente e não ponderara esse trecho e o 
contexto que o explica. Vieira accrescentava que «bons e maus 
todos podem servir a Deus: os bons servem a Deus, os maus 
serve-se Deus delles». («Sermão de S, Roque » pregado na Ca- 



•139 



Louva-o com descréditos e , desacredita-o com 
louvores, refuta-se por si próprio Theophilo Braga, 
desconhecendo espirito apostólico no Padre An- 



pella Real em 164 Q. Não ha em taes conceitos nenhuma insi- 
nuação de que os fins por si sós justifiquem os meios. 

Tratava-se da creação da companhia do commercio, e o Padre 
demonstrava não haver inconvenientes, senão vantagens, em 
que nella fossem admittidos os chamados christãos novos e os 
judeus, O dinheiro não é uma coisa má de st, mas indtfferente, 
de tal modo que o seu uso é que pode fazer bem ou mal. A 
interpretação que á citada phrase deu Lisboa e a censura que 
faz levam à ; conclusão de que nas boas obras não se deve 
acceitar jamais o concurso, ainda material, dos reputados maus 
ou siquer suspeitos.— O primoroso escriptor condemna o jesuita 
porque este disse ter extranhado a Sousa Coutinho a sua larga 
i promessa aos hollandezes, e mais porque veiu dizel-o, quando 

■^ o outro, ja havia trinta annos sepultado, não lh'o poderia re- 

bater (pag. 128); mas o que é que faz J. F. Lisboa em três 
quartas partes de seu livro, senão processar apaixonadamente a 
Vieira, de quem já nem as cinzas, por desapparecidas, lhe 
podem responder? A verdade, quando offendida, tem sempre o 
seu reivindicador, que é as vezes ainda mais pequeno do que o 
era David anto o gigante. Lisboa foi injusto, excessivamente e 
inexplicavelmente injusto com o Padre Vieira, não só inter- 
pretando mal tantas vezes o que o digno religioso intentou e 
fez, mas até imputando-lhe o que elle não fez. 

Discorrendo sobre as medidas tomadas pela Rainha Regente 

para a entrega do governo a D. Affonso VI (pag. 223), affirma 

que «o papel monitorio» contendo exprobrações severissimas, 

j lido perante a corte, havia-o redigido o Padre Vieira, e não só 

j£ o redigiu, mas o assignou, e como para chamar a si toda a 

gloria e perigo da empreza, inserira estas palavras entre as que 
havia de ler o secretario d'Estado: «Senhor, isto que tenho re- 
ferido, o mais breve que pude, não é meu, nem em substancia, 
nem ainda em palavras! — Eis, entretanto, em resumo, como 
narra as occurencias o Conde da Ericeira, coevo do illustre je- 
suíta, e insuspeito em semelhante defeza: Reuniu a Rainha em 
Conselho os ministros e alguns nobres e ecclesiasticos, entre 
os quaes o Padre Vieira, e consultou-os sobre os meios de 
arrancar o Príncipe á influencia da gente indigna de que elle 
se acompanhava e estimulal-o a corrigir-se de sua conducta 
escandalosa. Foram de parecer que se prendesse e banisse 
Conti e outros dissolutos e perniciosos companheiros do Prín- 
cipe, e a este o Secretario d' Estado lesse em publico as rabões 
de tal procedimento. O livro de Ericeira reproduz na integra o 
alludido «papel monitorio», que não é mais do que uma expo- 
sição respeitosa das justas queixas que subiam á presença da 
Rainha, e em nome desta e do povo um appello aos mais 



140 



tonio Vieira porque trajou a secular na Hollanda 
(119): mas registrando que «a sua vida de acção cou- 
sumiu-se çm lutas do corte e fadigas de catechese; 
condemnando de impatriotica e sem escrúpulos 



nobres sentimentos que podem alentar a coração de um rei; e 
conclue deste modo: 

«Senhor, isto que tenho referido o mais brevemente que pud*, 
não é meu na substancia, nem ainda nas palavras: é, como te- 
nha dito, dos Ministros e dos vassallas, a que o zelo, a consciên- 
cia, a honra e o deseja da saúde publica obrigou a representar 
á Rainha, e são tudo cousas tão conformes ã razão e á justiça, 
de que V. Maçeatade ó tão zeloso, que esperamos muito con- 
fiadameute do iuízo de V. Magestade, da sua clemência e da incli- 
nação, que todos conhecemos em V. Magestade para o melhor, 
do muito que aborrece a lisonja, e estima a liberdade e inteireza 
dos Ministras que nã3 só approve o que com tão boas conside- 
rações está disposto, mas que conheça a igualdade e o socego 
do seu Real animo, a boa tenção e o cordeal aífecto, com que 
o aconselhou, e obrou o Reino por meio de tão grandes vassal- 
los: assim o pedimos prostrados humilissimamente deante do 
Real acatamento de V. Magestade.» (Ericeira, tomofc.opags. 
471 a 477.) . 

Portanto, em reparação, á verdade, seja expungida do livro 
de J. F. Lisboa a pagina 223, em que elle tão provadamente fal- 
tou ao mais comezinho respeito e justiça para com um morto 
illustre por muitos títulos. O livrado insigne maranhense tem o 
valor do testemunho prestado por um admirador que é ao mesmo 
tempo um inimigo. A sua suspeição está confessada na pag. 199, 
onde se lè: «A esoacez dos documentos, nestas discussões intes- 
tina», é cousa quasi infallivel, quando se trata de jesuitas, que 
sendo tão avezados a destruir, dissimular, adulterar, e mesmo 
a inventar documentos, não se descuidariam de seu mister em 
dissensões de cuja publicidade podesse resultar desar ou da 
corporação, ou d'algum dos seus membros.» A derradeira pagi- 
na dessa biographia do Padre Vieira é por assim dizer, a excu- 
sa, a^enão a retractação do auctor. Diz assim: «Para que esse 
homem extraordinário possa ficar mais bem conhecido, o seu 
caracter e talentos se hão de apreciar Delo todo das suas acçõas 
e escriptos, condensado em um painel mais resumido e cohe- 
rente do que o soffrem as contrariedades de uma vida tão longa 
e tão agitada. Esse quadro vamos nós agora esboçar, ja substan- 
ciando o que deixamos escripto, ja accrescentando.» 

A obra aqui promettida não se executou, como o declaram os 
editares da que foi estampada. 

(U9)_ O Padre Vieira vinha ao encontro deste reparo quando, 
em sua carta de 12 de Janeiro de 1648 30 Marquez de Niza, di- 
zia-lhe que «mais se lembrava do habito que professava que 
desse que então vestia». 



141 



a sua diplomacia, quando consigna que sabe-se 
pouco sobre o objectivo de suas missões (120); 
e denunciando que a politica do eximia religioso 
foi a da Momta, paru fechar o despiedado libteUo com 
este honrosissimo pregão: «Plínio escrevendo aTacilo 
dizia-lhe- «Felizes os que sabem praticar coisas dignas 
de serem escriptas, ou escrever coisas dignas de se- 
rem lidas». Tal ê a Característica do grande homenri. 
Vieira possuiu esta, dupla i.M & .,i.:idadc». (121) 

Quem desconhecerá a um novo o direito de honra.» 
aquello que escroveu coisas dignas de serem lidas, e 
se distinguiu por fejtos dignos de serem escriptos? 
Justificada está, poifc, a celebração deste centenário, 
e justificada por aquolle que náo a reputou merecedo- 
ra da sympathia social, o presumiu amesquinhal-a, 
chamando-a^osía da Companhia. E' outro o vosso jul- 
gamento: rendeis justa homenagem a um vario que 
não disputou posições nem recusou serviços e, devo- 
tado igualmente á religião ea pátria, elevou-as ornais 
alto que é dado á acção prodigiosa de um génio, e 
mereceu de uma e outra um reconhecimento illimi- 
tado e perenne. «0 ideal que deve ter o cidadão, dizia 
em recinto nobre como este e em solemnidadade aná- 
loga o ministro da instrucção e dos cultos em França, 
Bourgeois,— o ideal, que deve ter um cidadão é um 
ideal de actividade generosa c fecunda. homem deve 
desenvolver cm si todas as forças de sua inteiligencia 
e da sua vontade, viver da actividade a mais intensa, 
e, de accordo com a lei de todos os seres, esforçar-se 
por augmentar a quantidade de vida que lhe coube 
em legado. Mas este acerescimo de energia é para os 
menos favorecidos que o adquirimos, é por elles que 
devemos despendel-o; e a porção de nós mesmos que 
assim damos aos outros, aos que nos amam,, a nossa 

(120)— Ainda isso é um testemunho honroso que rende ao Pa- 
dre Vieira, comprovando a sua discrição co.mo diplomata. 

(121)— PÍutarcho Portuguez (pag. 48), «Esboço biographico do 
Padre António Vieira», por Tueophilo Braga. — E\ com ligeiras 
alterações e omissões, uma reproducção desse estudo a «carta» 

3ue o mesmo escríptor endereçou ao «Jornal do Commercio» 
o Rio de Janeiro, e foi ahi publicada nos dias 8 e 15 de Março 
do corrente an.no» 



142 



família, á nossa cidade, á nossa pátria, à sociedade 
inteira, essa é que é o padrão de nosso mérito, e, 
quando a morte. nos colhe em suas azas, é o peso va- 
lioso que deixamos nas conchas da balança. Ôs con- 
quistadores enchem ó mundo com ò estrépito de suas 
armas; seus nomes duram algum tempo na memoria 
dos homens, objecto de admiração e de terror; vem 
depois o olvido. Ha immortalidade mais certa e mais 
elevada: é a dos que são bons e são úteis». (122) 

Essa é a do Padre António Vieira, que a simples re- 
cordação de seu nome attestaria, se ã vossa festa não 
a proclamasse de um modo tão solemne. Homens de 
lettras, vós recolhestes o espolio preciosíssimo do gé- 
nio, inventariado também por um sábio, reunindo ca- 
bedaes os mais variados e thesouros inestimáveis, 
desde a chave leve e subtil para abrir ás luzes da ins- A 

trucção o cérebro mal conformado e inculto do indio, 
até as peças massiças e primorosas de finíssimo lavor 
que desafia a admiração dos mais peritos mestres da 
arte. Humens de crenças, conduzidos por um guia es- 
clarecido, seguistes o luminoso trajecto do eloquente 
e zeloso propagador do Evangelho, brandindo o facho 
da fé e semeando as messes do bem desde os paços 
reaes até a choça miserável do bravio aborígene. Ho- 
mens de acção, vistes agora em tela pobre e vulgar, 
traçado com respeito e amor, mas sem as cores bri- 
lhantes com que a oratória os realça, o quadro dos ^ 
teitos illustres, a resenha dos commettimentos herói- ? 
cos, das pugnas valorosas, e das campanhas longas 
e arriscadas que o batalhador da liberdade, da paz e 
do progresso arrostou, leal e desinteressado, ao ser- 
viço da pátria. 

A nobre instituição que promoveu estas commemo- 
rações elevou-se ainda mais, e, galgando, á voz de 
seu digno chefe, a mais alta culminância, abrangeu o 
largo horisonte, reviu em seu conjuncto a obra trípli- 
ce, a utilidade múltipla, a virtude integral do varão 
eminente. Como a alma de um povo não é só o nume- 
ro e a labutação dos habitantes que se albergam no 

(122)— Discurso*pronunciado na Sorbonna em Agosto de 1891. 



143 



torrão natal; é também a tradição dos que nelle vive- 
ram; a lição e o exemplo daquelles que desbravaram 
o campo e construíram o solar, é-a estreita união dos 
vivos com os mortos, estabelecendo a continuidade 
da idéa de pátria; o Instituto Geographico e Histórico 
resolveu a glorificação publica do eminente operário da 
evangelisação e do progresso da terr^ brazileira, da- 
quelle que seu brilhante orador, num arroubo de ins- 
piração e a traços de artista primoroso, desenhou a 
a gyrar no ceo pátrio, admirado e magestoso até su- 
mir-se, como no firmamento o sol nos dias de seu 
mais doirado arrebol e occaso mais iriado e esplen- 
dente. A esse fim convocou os representantes de todas 
as classes e aqui os tem reunido; não poderia, pois, 
não quer excluir os dignos irmãos do insigne comme- 
jnorado. Seria uma injuria á memoria daquelle que 
declinou todas as honras e grandezas por não romper 
o vinculo de sua profissão. Seria grave injustiça con- 
tra os esforçados continuadores da missão do Padre 
Vieira e do seu zelo pelo engrandecimento deste paiz, 
onde o braço de ferro que os dispersou não poude 
aniquilar os padrões immorredouros de sua actividade 
operosa. Assim creio ser fiel intrepete dos vossos ca- 
valheirosos sentimentos, affirmando que mesmo aqui 
onde o jesuíta Vieira não vê presente o irmão, a eom- 
memoraçãode seubi-centenario é também, pelo mais 
legitimo dos tituloé, uma festa da egrégia Companhia; 
e me calasse eu embora, o diriam todas as preciosas 
relíquias que vós aqui reunistes para reviver a sua 
lembrança; clamaj-o-ia cada pedra deste edifício que 
foi a sua habitação, resurgiria o passado para procla- 
mal-o. Representado por toda esta luzida galeria de 
varões illustres, eu o vejo como que reanimar-se, e, 
formando selecto e imponente cortejo, acompanhar- 
vos neste elevado !e justo preito, coroar o benemérito 
jesuíta, e dizer-lhq que o seu nome e o de seus coope- 
radores foi sempre abençoado e querida, e, quando o 
arbítrio de um déspota não trepidou em arrancal-os 
de seus lares brazileiros, como em reparação do 
attentado, como em eloquente e viva homenagem 
ás- grandes causas servidas com dedicação infa- 



144 



tigavel e por assim dizer personificadas cm Vieira 
e em seus suecessores, as portas de sua habitação de- 
serta e sequestrada só se descerraram para dar entra- 
da e oífereeer digno abrigo á sciencia eá caridade. 

Ao fraternal testemunho dos mortos associa-se o 
voto affectoioso dos vivos ainda pela voz dessas duas 
forças bemfazejas e salvadoras que velam pelos desti- 
nos do homem: a caridade e a sciencia, consorciadas 
no appello que um duplo representante do illustre cor- 
po docente e da nobre instituição hospitalar installa- 
das no velho collegio dos jesuítas, dirigia em hora 
solemne em prol da «conservação piedosa, reverente 
e grata ao coração brazileiro das relíquias desses 
grandes batalhadores do bemí> (123),' no recinto 
assignalado gue foi o centro de suas operações 
pacificas o civilisadoras e o campo sagrado em que 
dormiram o somno derradeiro. -A 

Os echos dessas manifestações espontâneas, unidos 
aos da acclamação tocante em que vos congregais 
nestes dias, sobem á região my^teriosa em que pai- 
ram o.5 espíritos de eleição; aqqella grande alma se 
inclina agradecida, revive e pulsa vigoroso o nobre 
coração que impulsionou tantas causas humanitárias 
e patrióticas; e a voz immortal do Padre António Viei- 
ra, traduzindo os sentimentos generosose puros com 
que outrora lembrava ao delegado da metrópole por- 
tuguesa o amor e o patrocínio que p Brasil lhe merecia , 
e de seu governo bem inspirado confiava a prompta ^ 

resurreição da colónia decadente (124), hoje con- 
cita os brios dos filhos da Bahia para que asse- 
gurem vida pacifica, prospera, fecunda e gloriosa 
á nação livre e altiva, á terra opulenta e abençoada, 
à qual também elle, António Vieira, pelo segundo nas- 
cimento depe as obrigações de pátria. 

(O orador ê vicloriado com uma prolongadíssima e 
unanime saloa de palmas.) 

(12-1) — Discurso proferido pelo Dr. Pacifico Pereira, Mordomo 
da Santa Casa da Misericórdia e Catliedratico da Escola de Me- 
dicina, na sessão solemne da inauguração do novo Hospital, a 
30 de Julho de 1893. 

(121) — Carta de 9 de Setembro de 1673, ao Marquez das Minas. 



PARTE II 



A COMM EM ORAÇÃO DO CENTENÁRIO 



A. V. 19 



ANTÓNIO VIEIRA o 



NA COMMEMORAÇAO DO SEU BI-CENTENARIO 

Volvei o olhar aquém do sol que hoje irradia 
E contemplae, na tela escura do passado, 
O vulto colossal de um homem, levantado 
Sobre a montanha altiva e belia da Bahia. 

Seu corpo, já curvado ao peso do lidar, 
Velha roupeta negra unicamente cobre; 
Ao peito um Crucifixo — a venera mais nobre 
Que o serviço do bem pôde condecorar. 

Movem -se os lábios seus ao fluxo impetuoso 
Da eloquência christã que pasma as multidões; 
A fronte larga e branca, em gesto magestoso, 
Tem-na erguida p'ra o céo, bebendo inspirações. 

Em torno delle, a matta; em cima, o firmamento, 

Onde o sol espadana o brilho prateado; 

Em redor o gentio, o seu gentio amado, 

Que lhe escuta a palavra e aprende o ensinamento. 

Que quadro. . • Estou a vel-a, essa immortal figura, 
Dominando a montanha, augusta e sobranceira, 
Como estatua de luz, que a brenha brazileira 
Envolve numa enorme e esplendida moldura. 



Vieira ! ... eu nâo te sigo a esteira rutilante 
Na culta Europa, em frente ás testas coroadas, 
(*) Recitada após a Conferencia de 17 de Julho. 



148 



Nem te vou escutar nas cathedras doiradas 
De Roma e de Lisboa o verbo triumphante. 

NSo quero aquilatar-te o onro precioso 
Da linguagem de escol na olympica opulência; 
Nem ó perante o sol de tua intelligencia 
Que eu agora me curvo, ó génio portentoso 

Enumere-te a. historia os dotes singulares, 
Grandeza colossal em tudo, homem — prodígio; 
Vejam-te outros subir das honras ao fastígio 
Eu quero apenas ver-te á sombra dos palmares. 

Quero ver-te, encurtando os voos ao pensamento 

Para falar de Deus ao Íncola tupy; 

Quero que me deslumbre a luz que sae de ti ( 

Nesse humilde, sublime e heróico abaixamento. ^ 

Rei que desce do throno, abraça o vil plebeu, 
Ou senta-se de par co' o triste proletário, 
Foste tu, reclamando a cruz de missionário, 
P'ra derramar na tabaa luz do go nio teu. 

Meteoro que cae dos rútilos espaços 
Dentro de escuro abysmo em que se perde e morre; 
Caudal que esconde ao sol os seus possantes braços 
E no seio da terra a sépultar-se corre, 

Foste tu, desprezando o hymno da homenagem 
Que te cantava aos pés a fama universal 
Para arriscar o peito á frecha do selvagem 
E abrir também caminho ao lábaro immortal! 

Como és grande, ó Vieira, erguido na peanha 
Do amor ao Bem, á Fé e á civilisação! 
Amor que vem de Deus, e cuja força estranha 
Ao martyrio e á morte arrasta o coração l 

Como és bello, arrancando ao intimo do peito 
O grito, a onda de luz, a hosanna á liberdade, 



149 



E, da raça infeliz proclamando o direito, 
Como és bello a soffrer em nome da Verdade! 

Bem hajas tu, heroe, prodígio, npostolo, santo, 
De duas pátrias filho e de ambas lustre e gloria! 
Bem haja o teu labor, eterno na memoria 
Do brasileo paiz, por quem luctaste tanto ! 

Rebrilha o nome tetí, gravado na largueza 
Da historia, que te aponta aos moços como exemplo! 
Hão de dizel-o sempre o lar, a escola, o templo, 
Onde quer que se fale a lingua portugueza! 

Defensor da justiça, estrella da tribuna, 
Látego ardente contra a tyrannia vil, 
Tua gloria estará no cimo da columna 
Que aos seus heroes erguer o povo do Brazil. 

Tardos embora, vôm os justos preitos nossos 
Cumprir o seu dever, sagrando-te um trophéo 
E, se a sombra do ignoto esconde-nos teus ossos, 
A luz de nosso amor será teu mausoléo ! 

Julho de 1897. 

Amélia Rodrigues. 



Padre António Vieira (*) 

Pregador, ou S. Paulo ou Vieira 

(D. Luis de Sousa, primaz das Hespanhas. ) 

Vinte decénios faz que aquella vóz potente 
Deixou de reboar nos âmbitos do templo; 
E quanto mais se engrossa aos annos a corrente, 
Mais os triumphos seus podem servir de exemplo. 

E f que naquelia voz havia tal grandeza 

Que a orador mais nenhum a eclypsar será dado; 



(*) Recitada após a Conferencia do dia 17 de Julho. 



150 

O génio innovador da língua portugueza, 
Imprimiu-lhe um quilate e brilho desusado. 

Vieira era a palavra em toda a magestade ! 
Enunciando a idéa, ou es ulpindo a imagem, 
Convertia a tribuna em sólio da verdade, 
E obtinha até dos reis pasmados vassallagem. 

Naquella bocca de oiro a voz fez-se um prodígio; 
Quer propagasse a fé, quer combatesse o crime, 
Tomava do condor as azas no remigio 
Pará se alar dos soes á região sublime. 

Na tela a scintillar do vasto sermonario, 

NSo pintou, fez viver homéricas figuras. I 

O eleito do Sinai, o martyr do Calvário j 

Desta^am-se d^lli como nas escripturas. 

Seu altivo desdém pela riqueza e o fausto 

O tornou singular na face do planeta; 

Tinha sagrado a Deus a vida em holocausto, | 

Via um manto de luz na frigida roupeta. 

A sua vida foi um interminável brado 

Dos fracos em favor: elle imitava o Christo. 

NSo tendo a quem vencer no ardor do apostolado, 

Vencia-se a si mesmo. . . Oh! homem nunca visto! v 

> 
Tutelando o direito em todos os sentidos, 
Imperterrito, audaz, no transe mais acerbo, 
Tornou-se o vingador dos índios opprimidos, 
Sem mais armas que a penna e o raio de seu verbo. 

A morte que sellou do padre o lábio augusto, 
Escondendo na fossa o que era a cinza inerte, 
Do púlpito nSo tira o levantado busto, 
Que o tem por pedestal donde a eloquência verte. 

Se te é dado transpor, ó grande jesuíta, 
A distancia da terra á sideral morada, 



151 

Onde gosâs de Deus, como suprema dita, 
A presença eternal aos justos reservada, 

Vem, no mesmo logar, á sombra deste tecto, 
Que alegre te acolheu inda creança um dia, 
Para te ver depois, astro de luz repleto, 
Brilhar entre os demais da excelsa companhia, 

Que Loyola fundou, essa arvore pujante, 
Que arraigada no chão da gloriosa Roma, 
Sorriu dosvendavaes para, num dado instante, * 
Todo o mundo abrigar sob a frondante coma, 

O preito receber que a humanidade deve 
Aos varões como tu, portento de seu seio, 
Que embora na velhice acha a existência breve 
Para espalhar o bem, ser da sciencia o esteio. 

As honras que hoje tens, após duzentos annos, 
No templo do saber mudado em capitólio, 
Não conseguem lograr da terra os soberanos, 
Que julgam do valor pelo que pesa um sólio. 

Á Roma, á Hollanda, ao mar, á secular floresta, 
Onde os yestigios teus o tempo não consome, 
Possa um echo chegar da estrepitosa festa, 
Na qual se funde inteira a gloria de teu nome. 

Bahia, 1897. 

João de Britto 



Ao Padre António Vieira 

NO SEU SEGUNDO CENTENÁRIO 

Nâojoijsomente a espada do guerreiro 
Que* dos séculos rompendo o nevoeiro 
Do Capitólio na entrada se mostrou; 



152 



Nem das quinas a flamma dò estandarte 
Deslumbrando as Nações em toda parte, 
Que o progresso do Mundo conquistou I 

Não foi da cemitarra o golpe agudo, 
Que preparou do povo o novo escudo 
E nas trevas do crime se envolveu I 
Alvejada de golpes repetidos, 
Ella sangrava em cima dos vencidos, 
Como o abutre rasgando Prometheu ! 

Não foi somente a águia dos Romanos, 
Que, levando o terror aos Musulmanos, 
Nas Mesquitas pousava a triumphar; 
E, lançando nos pontos do universo 
As primeiras centelhas do progresso, 
Via os círios sagrados d'ura altar I 

Foi o verbo da Igreja omnipotente, 
Que, salvando os humanos da torrente, 
Do Evangelho nas folhas estampou 
A virtude, a justiça, a caridade, 
A força, convertida na humildade 
Ante a Cruz, onde Christo descançou I 

No centro dessa luta, o povo escravo, 
Não via a mesma luz que olhava o bravo 
No. vermelho luzir, tingindo o chão. . . 
Foi preciso um martyrio ao novo sólio 
E vôa a pomba branca ao Capitólio 
Onde o ninho se faz da Redempção. 

E os obreiros ^da lenda do Calvário, 
Conquistando *do Mundo o itinerário 
Que se via, brilhando sobre a Cruz, 
Caminhavam, sublimes forasteiros, 
Nos desertos enormes sobranceiros 
Levando á toda terra a nova-luz ! 



k 



153 



Desponta o centenário de Vieira, 
Festejado, na Athenas brazileira, 
Da mocidade no paço Triumphal. 
São passados dous séculos e a memoria 
Deste sábio nos conta a sua historia 
Que pertence ao Brazil e a Portugal I 

Bahia, 17 de Julho de 1897. 

Francisco Leiria. 



Extracto do discurso do sr. cônsul de Portugal 
proferido após a ultima conferencia 

O * orador começou dizendo perceber ainda na sala 
o vibrar do enthusiasmo, o resoar dos applausos ao 
illustre orador precedente, os sons do hymno portu- 
guez, o fulgurar de tantas luzes, o rescender de flores, 
ò brilhar das galas e o sorrir das festas deixando por 
toda a parte entrelaçadas a formosa bandeira auriver- 
de e o histórico pendão das quinas. Disse ter ouvido 
naquelle salão a voz eloquente de oradores muito 
distinctos que haviam feito relembrar com primor as 
i altas qualidades do grande génio de Vieira» um prin- 

^ cipe da eloquência e das lettras portuguezas, e que 

entre tantas louçanias, longe da sua pátria, distante, 
tinha chegado a ter por momentos, como que num 
doce sonho, a illusão fagueira das frescas brisas do 
seu Tejo a oscular-lhe a fronte, e do seu dulcíssimo 
pôr do sol do Heria a acalentar-lhe a alma. Mas era 
ístô porque longe, bem longe da pátria, elle orador 
sentia a pátria ali, pois circulava nas veias de todos o 
mesmo sangue, batiam em todos os peitos corações 
que eram irmãos do seu, e articulava cada garganta 
as mesmas palavras que elle orador primeiro articu- 
lara nos braços de sua mãe. 

Era por isto que se reuniam ali portuguezes e bra- 
zileiros com o mesmo pensamento, prestando aquella 
A. v. 20 



154 



homenagem a Vieira, bem traduzindo a força dos 
laços que uniam os dous povos, tão estreitamente 
ligados que nem esse oceano tão vasto, profundo e 
revoltoso que os separava, poderá nunca afrouxar. 
. Que apesar de Vieira ser um amigo do Brazil e ter 
escolhido para seu tumulo frio esta terra mais cálida, 
elle orador era obrigado a considerar sempre, que 
aquella festa é uma apotheose feita em terra extranha 
a um vulto da sua pátria e que por isso não pudera 
pôr de parte o direito de pedir a palavra para agra- 
decer, em nome dn seu paiz e do seu governo, em 
nome da republica das lettras lusitanas e da com- 
missão que aquella hora celebrava também em Lisboa, 
o mesmo centenário, em sou nome e no da colónia 
portugueza ali largamente representada, aquellas ho- 
menagens que tanto honravam o bom nome portu- i 
guez. * 

Agradecia muito reconhecido ao Instituto Geogra- 
phico e Histórico da Bahia a iniciativa daquella 
brilhante festa, á illustre commissão executiva os 
seus valiosos esforços paia leval-a a effeiío com 
tamanho esplendor, aos oradores que com tanto ta- 
lento tinham salientado as geniaes qualidades do 
grande portuguez as suas palavras, ás dignas auto- * 
ridades orazileiras a honra da sua presença e a todos 
aíquelles que patenteando a sua admiração por um 
príncipe da eloquência, das lettras e da sciencia por- 
ttigueza, aqui vieram, prestando ao mesmo tempo ^ 

um alto preito de estima e consideração por aquellas 
cousas que constituem tradições e glorias da glande 
nacionalidade qiie encerra no pequeno paiz do orador. 

Esta phrase carecia ser justificada, mas explicava-se 
porque a grandeza das nacionalidades estava na ele- 
vação intellectual e moral do seu ser, no valor do seu 
trabalho, na grande obra da civilisação, e não .na lar- 
gueza do seu território; o que si tem havido naciona- 
lidades que tenham dado bastante prova para a obra 
desta civilisação que o velho oriente nos legou no 
berço, Portugal foi uma delias. 

Em seguida o orador expoz qual tinha sido o valor 
do legado dos grandes povos para a civilisação, a 



155 



Grécia, Roma, a idade média* a Itália, AHea&ansha, 
Inglaterra e França, concluindo por dizer que Portu^ 
gal tinha com as descobertas, as navegações e as coiv* 
quistas trazido para o grémio dessa civilisação, para 
a luz do christianismo metade do mundo que, era des- 
conhecido e vivia envolto nas mais tenebrosas lendas. 
Disse que a historia portugueza era rica dç per- 
gaminhos de gloria que muito honravam o Brazil* ç 
'que a amizade de Portugal e Brazil era um facto im-? 
posto pela própria natureza que determinava uma 
união inquebrantável expressa na raça, nas tradições, 
no caracter, na língua, . . ,e que si permittido fosse 
haquelle momento ao orador fazer uma comparação 
imaginosa diria que essa união era tão intima, como 
intima era a harmonia das cores das duas bandeiras 
nacionaes. 

/^ Disse que uma tinha o azul, o puro azul que era. a 

côr do céo e a alvura immaculada das nuvens de pri- 
mavera,. outra tinha o verde, o verde esmeraldino das 
campinas férteis e o amarello fecundo das margaritas 
estivaes. Que ambas estas cores se ligavam, numa 
mesma e esbatida côr lá no horisonte distante como 
na alma nos liga a affeição reciproca dos dois povos; 
e que Analisando as suas palavras pedia licença para 
dizer ali a brazileiros e portuguezes que deveriam 
amar-se e estimar-se, como podiam e deviam amar-se 
e estimar-se dous povos que durante séculos tiveram 

-^ o mesmo nome e a mesma historia. 

(O orador foi muito applaudido.) 



A PROCISSÃO CÍVICA (•) 

18 de Julho de 1897 

As magnificas festas celebradas nesta capital, par v i 
commemorar o segundo centenário do notável jesuíta 
Padre António Vieira, tiveram brilhantíssimo remate 
no dia 18 de Julho, por ser esse o dia em que se 
completava a data do facto rememorado. 

(*) Noticia extrahida do «Correio de Noticias» de 19 do Julho 
. e do «Diário da Bahia» do dia 21. 



156 



A's 9 horas da manhã, com a assistência de uma 
commissão do Instituto, composta dos Srs. Drs. José 
Francisco da Silva Lima, Dr. Filinto Justiniano Fer- 
reira Bastos, Dr. António Calmon du Pin e Almeida, 
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães, Dr. Isaías de Car- 
valho Santos, professor Austricliano Coelho, capitão 
Francisco Gomes Ferreira Braga, e com o concurso 
de senhoras e cavalheiros, que em avultadíssimo 
numero alli se notavam, celebrou o venerando Sr. 
arcebispo D. Jeronymo Thomé da Silva uma missa 
na Cathedral, em intenção do Padre Vieira, com 
assistência dos alumnos do seminário archiepiscopal, 
membros do clero e religiosos franciscanos. 

Finda a missa, procedeu S. Ex. Revma. á benção 
da lapida commemorativa do centenário, que tinha 
de ser collocadada na frontaria dessa egreja, que ô a i 

do antigo Collegio dos Jesuítas, onde professara ^* 

Vieira. 

Concluída essa cerimonia, retirou-se o arcebispo 

{>ara seu palácio, acompanhado da commissão do 
nstituto. 



Na praça da Piedade á essa hora começavam a 
chegar incorporados e acompanhados de $eus pro- 
fessorei e directores as escolas, collegios e acade- 
mias, convidados para a procissão cívica annrfhciada. 

Ahi compareceram egualmente S. Ex. o Sr. Dr. 
governador do Estado, seus secretários e official de 
gabinete, cônsul e vice-consul de Portugal, o presi- 
sidente^e membros do Instituto, commissòes ao se- 
nado e da camará dos deputados, intendente muni- 
cipal, commissões de varias associações, membros 
da colónia portugueza, imprensa, funccionarios e 
representantes de todas as classes. 

Na praça era considerável a agglomèração de povo, 
que se apinhava para assistir á sahida do cortejo. 

A's 10 1/2 da manhã, organisado o luzidissimo 
préstito festivo, á que deu o mais vivo realce a pre- 
sença de innumeras e .encantadoras creanças, e gentis 
senhoras, fallou da janella central da secretaria do 



157 



interior o Dr. Octaviano Muniz Barretto, em cujo es- 
pirito illustrado encontrada a commissáo executiva o 
mais franco apoio para a realisação dessa festa. 

O illustre funccionario, salientando o objectivo de 
sua solicitação ao professorado, para secundar o pen- 
samento da commissáo, produziu eloquente discurso, 
ouvido no meio de geraes applausos. 

A procissão desfilou, volteando o jardim da Pieda-. 
de, peias ruas seguintes: Portão da Piedade, S. Pedro, 
S. Bento, praça Castro Alves, rua de Palácio, praça 
do mesmo nonie, ruas da Misericórdia, Collegio, lar- 
go do Terreiro, vindo cpllocar-se em frente ao pavi- 
lhão erguido ao lado direito da Cathedral, em cuja 
fachada ia ser collocada & pedra. 

O cortejo foi constituído dos alumnos dos seguintes 
estabelecimentos: 
^ Collegio Spencer, collegio S. Salvador, collegio 

Septe de Septembro, com estandarte, collegio Car- 
neiro, collegio Florêncio, collegio S. José, collegio 
de meninas União, de Na£areth, collegio de meninas 
Nossa Senhora da Piedade, collegio de meninas 
Nossa Senhora da Boa-Ésperança, collegio de me- 
ninas Oito de Dezembro, Gymnasiò da Bahia, acom- 
panhado da congregação, Orphãos de S. Joaquim, 
com sua banda, escola de Bellas-Artes com a sua 
congregação e estandarte, Lyceu de Artes e Officios 
com a respectiva direcção, escola Treze de Maio, 
4^ escola annexa ao Instituto Normal, acompanhada de 

seu professor o Sr. Argemiro Cavalcante, director 
e professores desse estabelecimento, escola prima- 
ria municipal da Rua do Paço do professor Barrei- 
ros, l. a escola municipal de SanfAnna do professor 
Leopoldo dos Reis, uma commissão de alunemos da 
escola do professor Casimiro, escola particular de 
SanfAnna da professora D. Maria Joanna Gomes de 
Mello, Faculdade Livre de Direito com o seu estan- 
darte, Escola Polytechnica, Escola de Medicina e 
Pharmacia com o seu estandarte. 

No cortejo tocaram alegres marchas as musicas do 
regimento policial, 5.° de artilheria, Orphãos de S. 
Joaquim e Philarmonicado Lyceu de Artes e Officios. 



M 



• Fechavam-no o Instituto Geographico e Histórico 
junto ao qual vieram os Srs. Dr. governador do Es- 
tado, cônsul e viee-coasul portuguez, associações, 
imprensa, intendente municipal* membros da camará 
e do senado, magistrados* homens de lettras, etc. 

O Instituto Histórico e Geographico Brasileiro esta- 
va representado n'esta soleranidade pelo Dr. Silva 
Lima. A commissão nomeada compunha-se dos só- 
cios Dr. Silva Lima, Dez. Montenegro e Barão do 
Desterro. 

Uma multidão do pessoas de todas as classes 
acompanhou o préstito, que apresentava aspecto 
deslumbrante. 

No Terreiro, tomando logar no pavilhão as auto- 
toridades e a mesa do Instituto, o presidente, mem- 
bros da commissão executiva, e as redacções dos ( 
jarnaes, o Sr. Dr. Satyro de Oliveira Dias, vice-pre- -* 
sidente do Instituto, proferiu entre os. applausos de 
todos vibrante discurso de alevantado patriotismo, e 
que era um ensinamento á mocidade a quem se di- 
rigiu principalmente. 

* Após S. Ex., seguiram-se os poetas Silva Sennae 
Costa o Silva, e o académico Eutychio Maia, sendo 
todos applaudidos. 

Por ultimo o Sr. conselheiro Salvador Pires, pre- 
sidente do Instituto, agradeceu ao publico o seu 
comparecimento áquella festa da intelligencia. 

Collocada pelo artista Sr. Domingos Silva, presi- ^ 

dente do Centro Operário, a pedra no logar talhado T 

na fachada do mencionado templo, foram as escolas 
•e o publico visitar a cella do Padre Vieira, onde fora 
collocado o retrato do preclaro orador sagrado, o 
salão da Faculdade, onde se realisaram as conferen- 
cias e-estavam expostos obras e documentos sobre a 
vida de inclyto sacerdote, e a antiga capella do pro- 
vincial dos jesuítas no actual edifício da Faculdade. 

A -visita a esses logares foi extraordinária, e pro- 
longou-se até hora adiantada depois da cerimonia. 



Áó-alto da pedra destaca-se o escudo do Insti- 



159 



tutOyCom o lemma Urbi et orbi, e abaixo a ins- 
cripçfio: 

A' Memoria do 

étPctdze \£tntonio Uieira 

Nascido em Lisboa em 6 de Fevereiro de 1 608 

Fallecido neste Collegio em 18 de Julho de 1697 

No 2° centenário da sua morte 

Mandou collocar aqui esta lapida 

O Instituto Geographico e Histórico da Bahia 

Em 18 de Julho de 1897 

A cella do Padre Vieira fica no extremo direito do 
corredor térreo do Collegio entre a egreja e a Facul- 
dade de Medicina. Termina, portanto, o edifício deste 
lado, ficando como vértice de um dos seus ângulos, e 
tem duas janellas, uma deita para o pateo da Facul-, 
dade e a outra para o mar. 

A forma da cella é quadrangular. Em meio ao lanço 
de parede que enfrenta com esta janella já celebre, 
está collocado o retrato de Vieira, trabalho a óleo, 
destacado por um modesto docel formado de bandei- 
ras portuguezas e com as cores symbolicas da nossa 
nacionalidade. . 

No plano inferior viam-se duas modestas colrçmnas- 
encimadas por simples cestas com flores nrtiliciaes, 
onde. estavam expostos exemplares da Cidade do 
Salvador, Diário da Bahia e Jornal de Noticias com 
artigos commemorativos. 

A' tarde, por convite do Sr. Dr. Salgado, digno 
cônsul <le Portugal neste Estado, visitou a cella do ! 
Padre Vieira, no antigo collegio dos Jesuítas, cres- 
cido numero de portuguczes, que para alli se diri- 
giram incorporados. 

O Sr. cônsul proferiu ante o retrato de Vieira 
expressivo discurso, em que salientando a obra ex- 
traordinária daquelle grande príncipe da eloquência 
e da litteratura do século XVII, externou o agradeci- 
mento da colónia portugueza ao Instituto Geographi- 



160 



co, promotor da brilhante commemoração que se 
celebra. 

— O Terreiro apresentava aspecto festivo, ornado 
de bandeiras e vistosas flammulas. 

—O bello chafariz dessa praça jorrou agua abun- 
dantemente durante toda a cerimonia. 

—As redacções de jornaos e innumeros estabeleci- 
mentos e edifícios particulares içaram a bandeira 
nacional. 

—Em todas as ruas por onde passou o préstito 
viara-se asjanellas apinhadas de senhoras. 



Discurso do Dr. Octaviano Muniz Barretto 

Eu vos saúdo, amigos, e pela vossa presença vos 
envio os meus sentimentos de louvor, applaudindo a 
espontaneidade com que correspondestes ao convite, 
aue tive o grande prazer em dirigir-vos, por intermé- 
dio dos vossos dignos directores. 

A estes, aos illustrados professores, egualmente 
saúdo e agradeço, e perante todos dou testemunho 
de minha satisfação. 

Avaliae a intensidade do meu jubilo, ponderando que 
eu divulgo, na romaria civica ao Padre António Vieira 
uma das mais expressivas revelações do impulso vital, 
que nos anima a um grande destino, entre os Estados 
nossos co-irmãos. 

Festa a que não concorrem paixões de outra na- 
tureza, senão as que promanam do amor dedicado ás 
lettras, numa homenagem fie elevação em justa apo- 
theose, rendida sem caracter pessoal, mas como tri- 
buto devido ao verdadeiro mérito, assignalado no 
valor litterario e nos serviços do insigne luctador. 

Muito ha que fazer para a mocidade, a qual, ao 
envez de quedar-se deante dos descommedimentos, 
de tpda ordem, por que o paiz -está passando, deve, 
attenta ao meio que a envolve, concentrar-se na preoc-. 
cupação do futuro, reunindo forças na imitação do 
merecimento verdadeiro, traçando-se normas pela esr 



A 



^ 



161 



cala superior dos cidadãos legitimamente bons, tra- 
balhar, estudar e produzir, afim de que seja vantajo- 
samente definido o nosso caracter de nacionalidade. 
Vós, mocidade, varões do futuro, deveis considerar 
quão insignificante é o homem, isolado dos seus fei- 
tos. Um dos mais débeis animaes, o que seria delle, 
depois de arredado da vida selvagem, sem a cultura 
intellectual e moral, sujeito á perversidade aleitada 
na tara hereditária das ambições, e á fragilidade 
oriunda de sua contingência pbysica? ! 

A solução do problema está na actividade pro.d.u- 
ctiva, philantropica, humanitária. 

Ponderae que a sua menor acção lhe sobrevive, e 
que o ser bom ou ser mau, o ser fecundo ou estéril 
não pôde ser indiíferente para a sociedade. 

A humanidade vive por millenarios, e deante ^este 
tempo é um instante a vida de um homem, cujos fei- 
tos, entretanto, duradouros, ás vezes immortaes, aqui 
ficam prejudicando ou beneficiando. 

O homem, compenetrando-se de si mesmo, deve 
viver para a sociedade; que, de seu lado, lhe fica a 
dever a consagração dos seus feitos, revivendo as suas 
datas em solemnidades significativas. 

À esta festa, pois, de caracter realmente social, 
fazem bem os moços em concorrer, porque deste 
modo assignalam a sua fé na divindade do trabalho; 
o seu enthusiasmo nas demonstrações altivas e des- 
interessadas; e da esperança que a todos, no momen- 
to actual, devem infundir, dão uma das provas mais 
expressivas, mais satisfactorias, mais vibrantes. 

Ha pouco António Fratti, rico, instruído, na flor 
dos aunos, estimado, deputado no Parlamento, um 
dos oradores mais ouvidos, armado, portanto, dos 
meios mais certeiros para desfructar uma existência 
egoísta, deixou a Itália, sem dizer ao menos um adeus 
aos amigos, e foi morrer como soldado da legião 
garibaldina em Damoco, varado por uma bala turca. 

Um grito de dôr e de admiração echoou no Parla- 
mento e em todo o paiz, e honras pomposas lhe 
foram celebradas em sua memoria em todas as ci- 
À. V. 21 



162 



dadès, desde Forti até a Roumania e até a extrema 
Sicília. 

Este facto, estupendo em sua singeleza, mas nâo 
excepcional em sua sinceridade, faz transluzir, mes- 
mo aos olhos dos que não sabem o que é pátria, nem 
civismo, que o fervor desinteressado pelas causas 
collectivas e phylantropicas, tem raízes profundas no 
coração da humanidade. 

Dôante de taes exemplos e no meio destas festas, 
levantae o vosso espirito á altura dos ideaes, afim de 
manterdes em sua elevação magestosa o nome da 
Bahia; terra' que tem nas entranhas as maiores ri- 
quezas conhecidas, e na sua verde e fresca superfície 
um povo intelligente, arrojado ,e capaz; cujos destinos 
poderão. ser os mais ambicionáveis, confiados a esta 
geração que tantas esperanças alimenta; que èm- 
auanto nos horisontes aa pátria vislumbram-se duvi- 
das, ameaças, agitações, ódios, temores, num mo- 
vimento de sombras sinistras, sabe abstrahir-se 
de tudo, para, acudindo ao appello patriótico do 
Instituto Geographico, vir rememorar, rium tran- 
sllmpto de fraternidade e de amor, o nome de um varão 
illustre, cuja fulgurante intelligencia glorificou as 
nossas lettras, e a cuja energia devem-se, em grande 
parte, os fundamentos de nossa civilisação. 

Daês assim conforto, alento aos que têm fé, con- 
fundindo os incrédulos e os desanimados. 

À prova ahi está, pujante de exhuberancia, no 
vosso tão expressivo comparecimento a esta festa, 
mais vossa do que mesmo de outros. 

Nella celebram-se honras, no nome do Padre An- 
tónio Vieira, ao talento fecundo, cultivado e útil, ao 
culto do dever, ao amor da pátria, ao desinteresse 
pelo bem commum, a ambição da felicidade dos ho- 
mens e dos povos: e vós sois aqui a semente destas 
mesmas virtudes. Por isso eu vos applaudo. Vós sois 
mais: o sacrifício de nossas virentes esperanças de 
que ellas se confirmem entre nós, e continuem a 
fructificar. Por isso eu vos exalto. 

Vós sois, ainda como Vieira, o génio, o valor, o 
altruísmo que são os deuses desta solemnidade; e 



w 

■■ ! ■■■ *t i w * » > wyj^f 

que, se acaso não estiverem reuuidos em una» só, Q&tão 
ahi espalhados em vossas cabeças e em vossos CAPa- 
çõqs, e que hão de abrir os nossos horisontes, $té 
que delles se despenhem, como realidades palpitan- 
tes, as divinas promessas da democracia. Por isso 
eu vos sublimo. 

Bahia, 18 de Julhc de 1897.— Dr. Octaviano Mu- 
niz Barretto. 



Discurso do Dr. Satyro Dias 

NO ACTO DA COLLOCAÇÂO DA PEDRA COMMEMORATtVA 

«Urbi et orbi»: á pátria, e 
ao mando (Leramn <jo 
escudo do «Instituto His- 
tórico» da Bahia.) 

Ha dois séculos, Senhores, dia por dia, hora por 
hora, reboavam os sinos deste templo tocando a fi- 
nados. Os echos desta cidade repetiam ao longe, em 
larga vibração sonora, o chamamento plangente e 
saudoso; e a Bahia enlutada, o seu clero, o seu go- 
verno, o seu povo, apinhavam-se aqui, nesta mesma 
praça, a quem a lisonja cortezan roubou o nome du- 
plamente sagrado de Terreiro de Jesus, para levarem 
á treva da sepultura o despojo mortal do Padre Antó- 
nio Vieira Ravasco. 

Imaginae o dó, o desconsolo, o pranto desatift&do 
daquella geração, ao contemplar, como agora m$s*»o 
estão vendo os olhos do meu espirito, numa vigorosa 
evocação do passado, ao contemplar esse esquiíe que 
passava, conduzindo aos segredos da eternidadft o 
corpo mirrado e inerte do velho augusto, cuja figttça 
luminosa dominara, e enchera de fama e renome* as 
terras virgens da America e as velhas cortes da Eu- 
ropa. 
deAcabou-se o Padre Vieira, clamava essa. geração, 

svairada pela sua dôr profunda e inconsolável; a&a- 
bou-se o Padre Vieira 1 . . Como si a carne, e os osgps 



164 



*do grande jesuíta valessem mais que a terra, que se 
abria a devoral-ós; como si esta faminta feroz o insa- 
ciável, podesse também consumir a obra imperecível, 
que aquelle cérebro de eleição legara á humanidade! 

Não, Senhores, o Padre Vieira não acabou, nem 
acabará jamais. Dorme, é certo, o somno eterno da 
matéria debaixo deste mesmo chão da sua gloria, mas 
despertará hoje para esta apotheose, e em cada sé- 
culo se alevantará do seu tumulo, envolto nas sombras 
mysticas das naves desta Cathedral, para sentir que 
o coração da pátria brazileira, a quem tanto amou, 
pulsa ainda e sempre, maravilhado e reconhecido, ao 
calor das fulgurações do seu génio immortal. 

Nascido em Portugal, nesse «jardim da Europa á 
beira mar plantado», de onde, pouco mais de um sé- 
culo antes, sahira a frota de Cabral para o acaso da 
descoberta do Brazil, que este fidalgo navegador con- 
quistara para a coroa de D. Manoel, e a cruz de Fr. 
• Henrique para o diadema de Christo, o Padre Anto- 
.nio Vieira deve á seiva deste solo feraz, ás scintilla- 
ções magicas deste firmamento, á magestade incom- 
parável da natureza americana, ás doçuras deste 
clima, aos deslumbramentos miríficos deste sol tro- 
pical, deve as inspirações do seu espirito, que agui 
desabrochou e expandiu-se num raio de luz tão in- 
tenso e poderoso, que sobrou a derramar claridades 
immortaes sobre a terra do seu berço e sobre a pátria 
de seu génio. 

Providencia ou fatalidade, lei divina ou natural, 
consoante o aprazimento de crentes ou scepticos; em 
todo o caso, certamente, phenomeno extraordinário, 
como tantos outros que escaparão sempre ás cogi- 
tações dá sabedoria humana, tanto mais vaidosa, 
quanto mais ignorante dos mysterios da vida e da 
morte na terra e no céo, parece que este Padre, des- 
tinado a encarnar, no século 17.°, a suprema potencia 
intellectual de dois povos, devia ter o berço repartido, 
entre ambos, porque, para sua grandiosa missão so- 
cial e evangélica, precisava haurir de um o sangue da 
velha e intemerata raça lusitana, e do outro os su- 



165 



Mimes idéaes deste infinito azul, e ás energias indó- 
mitas do aborígene americano. 

Só assim, Senhores, podia este homem percorrer na 
vida a trajectória de esplendor intellectual, que lhe 
traçara a mão irreductivel do destino. 

E foi uma existência cheia, e gloriosa e excepcional, 
a deste Padre. 

Attesta-o de modo irrefragavel a commemoração 
solemnissima, que lhe promoveu o Instituto Histórico 
da Bahia nesta semana de honra para as lettras ba- 
hianas; confirmam-no as vozes de egual apothéose, 
que neste mesmo instante parece trazer- nos, das 
bandas do Tejo, a vaga do oceano, deste mesmo 
oceano, de cuja fúria tantas vezes elle zombou, librado 
nas azas da fé, e escudado na sua couraça de amor 
pela pátria e pelo indio brazileiro. 

A palheta de Braz do Amaral, o biographista 
brilhante, esboçou-lhe o vulto, desde que abriu os 
olhos de açuia ao scenario da vida, até que $e dei- 
tou para dormir o somno derradeiro, ílluminado 
pelos arrebóes da gloria, tal qual o sol se deita na 
montanha ou no mar, por entre as nuvens do oiro 
do poente em chammas cambiantes. O verbo magis- 
tral de Ernesto Carneiro erigiu-lhe o pedestal de 
summo pontífice da língua, em que falaram nossos 
pães, e em que se perpetuará, com a historia da 
nossa raça e civilisação o património sagrado do 
nosso porvir. A palavra eloquente e imaginosa de 
Elpidio Tapiranga arrastou-nos ás selvas maranhen- 
ses, o grande theatro de suas luctas apostólicas em 
prol do selvagem, contra a ignorância do próprio 
indígena, mas principalmente contra a coDiça e 
a perversidade do colono portuguez, que timbrava 
•era reduzir o indio á besta-tera^ ou escravo. A alta 
competência de Basílio Pereira, um verdadeiro 
doutor da egreja catholica, digno dos seus tempos 
heróicos, completou afinal o perfil do grande jesuí- 
ta, do mestre da língua vernácula, do apostolo, 
do orador incomparável, com o painel perfeito e 
-acabado, em que avulta a figura genial do politi- 
co e do diplomata. 



166 



Que me resta, pois, a mim, para dizer do Pa- 
dre António Vieira, e porque subo a esta tribuna, 
expondo a humildade da minha palavra ao contraste 
desta commemoração magestosa? 

Porque não venho aqui para vós, mestres da historia 
e da sciencia, senão para estes, para esta mocidade 
das nossas academias, dos nossos collegios, das nos- 
sas escolas, para estes filhos do nosso povo, aos quaes 
mandou-me o Instituto confiar este mármore, que o 
martello do operário vae em breve encravar na rocha 
deste monumento christão, e que elle deseja se grave 
no espirito e no coração destes jovens cidadãos, para 
espelho, lição e ensinamento civico. 

Sim. meus jovens amigos, esta pedra é vossa. Ella 
vos recordará primeiro esta glorificação pacifica e 
cidadã, serena e desapaixonada, em que todos os i 

olhos se encontram sem lampejos de ódios ou ambi- 
ções; em que todos os peitos "batem num isochronis- 
mo patriótico, arfando de gozo nesta homenagem 
impessoal prestada á soberania do génio. 

Depois ella vos dirá que é desta sorte que a altiva 
e generosa Bahia ensina a seus filhos o cathecismo 
domocratico. Açoitada de todos os lados pelos ventos 
da ironia ingrata e suspeitosa, calumniaaa na sua fé 
republicana, embora esgotando o seu sangue na defe- 
za da sua lei e do seu território; conturbado o seu ani- 
mo varonil, não tanto pela desgraça que a afflige, 
porque ella, a vencerá, quanto pela injustiça da 
aggressão isolitae descommunal, ella a mãe adoptiva 
de José Bonifácio, a pátria de Cayrú e Sabino Vieira, 
de Ferreira França e Rio Branco, a heroina dos vo- 
luntários da Pátria pousa sobranceira a fronte senho- 
ril no brazão do seu passado, e offerece ao Brazil 
este exemplo soberano de luz, de paz e de fraterni- 
dade. 

"E só então este mármore vos ensinará que o Padre 
António Vieira não illuminou somente as abobadas 
dos nossos templos com os fulgores de sua eloquência 
de tamanho prodígio, que ousava approximar-se do 
sólio de Deus, em inimitáveis apostrophes; nem .dei- 
xou somente assignalada no seio das nossas mattas 



16? 



seculares a sua grande figura de bemfeitor da huma- 
nidade no apostolado sublime da libertação do gentio. 

Mais do que isto, se é possível, legou-nos elle a 
cella em que viveu, e que ides a breve trecho visitar, 
povoada das creações geniaes do seu espirito, e cheia 
de seu profundo e sincero amor pelo Brazil e por esta 
querida pátria bahiana; porque elle foi mais brazileiro 
que lusitano, mais bahiano que portuguez, e merece 
as honras de vidente e precursor da independência e 
liberdade politica. 

Quereis a prova? Eil-a: 

Era a 2 de Julho de 1640. Reparae na coindidencia 
providencial desta data bahiana. Celebrava-se na Mi- 
sericórdia a festa da Visitação. Vieira sobe á tribuna 
sagrada, e, desafiando a cólera do rei absoluto na 
, metrópole, despede do púlpito estes raios de corajosa 

■ eloquência nativista diante do vice-rei, ainda mais 

absoluto na Bahia: 

«Aconteceu a V, Ex. com o Brazil o que. a Christo 
com Lazaro. Chamaram-no para curar um enfermo, 
e quando chegou, foi-lhe necessário resuscitar um 
morto. Morto está o Brazil, senhor, porque alguns 
ministros de Sua Magestade não vem cá buscar nos- 
so bem, vem cá buscar nossos bens. . . Muito deu em 
seu tempo Pernambuco, muito deu e dá hoje a Bahia, 
e nada se logra; porque o que se tira do Brazil, tira-se 
ao Brazil; o. Brazil o dá, Portugal o leva ! . . Partem de 
^L Portugal estas. nuvens, passam as calmarias da linho, 

e em chegando a esta Bahia, em vez de fertilisarem a 
nossa terra com a agua que era nossa, abrem as 
azas ao vento, e vão chover a Lisboa e esperdiçar a 
Madrid. Cá se padecem as fomes dos apertadíssi- 
mos cercos, e se derrama o sangue, e lá se cortam 
as galas e vestem as purpuras: cá se batem á viva 
força, e se derrubam as muralhas, e lá se levantam 
os palácios; cá se dão as tremendas batalhas, e lá se 
vae ás comedias; cá se padecem as feridas e as curas 
nos hospitaes, e lá, nas casas de prazer, se regam e 
cheiram as flores». 

E concluiu essa oração admirável com este repto 
de incisiva ironia ao poderoso vice-rei: 



168- 



«Mas agora alegra-te, anima-tc, torna em ti: tudo 
o que der a Bahia, para a Bahia ha de ser; tudo 
o que se tirar do Brazil, com o Brazil se ha de 
gastar d 1 

A alma do patriarcha da nossa independência 
não vibraria mais eloquentemente nos santos arrou- 
bos do seu patriotismo. 

Eis aqui, meus jovens concidadãos, quem foi o 
Padre António Vieira Ra vasco. 

Quando nós, os mais velhos, os vivos de hoje e 
mortos de amanhã, nos houvermos recolhido áquelle 
repouso fatal, de que se não torna mais; auando, 
como no momento actual, surgirem nuvens ae con- 
vulsão no horisonta da republica; quando da triste 
vasa social ousarem alçar o collo os ódios e as 
paixões, ameaçando as instituições, a honra e a in- 
tegridade do Brazil; apontae a vossos filhos esta me- 
moria, para que elles a transmittam ás outras gera- 
ções, ensiilando-lhes a amar, como esse grande 
cidadão amou, a Deus e a pátria, a paz e a fra- 
ternidade brazileira ! 



(Applausos geraes). 



Padre António Vieira 

Quando o seu verbo de oiro irradiava, 
A multidão attonita pasmava, 

Ouvindo attentamente; 
De sua bocca as phrases dulçurosas 
Brotavam, como nos jardins as rosas 

Brotam naturalmente. 

Ninguém mais soube, envolto na sotaina, 
Das grandes causas se envolver na faina, 

Honrando a pátria sua 
No púlpito— era maior do que um propheta; 
Seus conceitos feriam como setta 

A calumnia que estua. 



169 



Flammejavam-lhe os olhos quando abria 
O cofre perolado da magia 

Que tinha o seu (alento; 
E assim cada palavra que seus lábios 
Semeavam na terra, era para os sábios 

Um sábio pensamento. 

Diplomata — ninguém jamais venceu-lhe, 
Foi o seu verbo sem rival que encheu-lhe 

O nome de respeito. 
Elle sabia, aos risos da alliança, 
Brandir a penna como brande a lança 

Um guerreiro perfeito. 

Sábio— elle engastou no diadema 
De príncipe do estylo a rara gemma 

Da erudição brilhante; 
Se fallava— seu verbo era um flamma, 
E se escrevia — elle ateiava a chamma 

Do génio a todo instante ! 

O génio é sempre assim: não morre nunca, 
Muito embora lhe cravem garra adunca 

Os séculos atrozes I 
Cosmopolita — elle pertence ao mundo, 
E no seu vão triumphal, profundo 

Não teme os albatrozes. 



Bahia, Julho de 1897. 



Costa e Silva. 



No bi-centenario^do Padre Vieira 

I 

Viestes collpcar, obreiros do progresso, 
Aqui ao grande génio a pedra e dar ingresso 
A toda a multidão. . . 
A. V. 22 



170 



— Pyramide não é do legendário Egypto, 
E nem pedaço algum de antigo aerolitho 
Óahido da amplidão. 

Da velha cathedral na lúcida fachada 
Do sol um raio beija a pedra levantada 

Em meio de ovações. 
Poetas, lede vós, do ninho do talento, 
Uma strophe de luz, um loiro pensamento 

Ao berço de Camões. 

Seu nome immorredoiro o tempo não apaga; 
Nem vae alli bater a solitária vaga, 

Bramindo de furor: 
E* pagina de um livro aberta para o povo, 
Que se inspira e seduz, num pensamento novo, 5 

Com azas de condor. 

Romeiros, levantae bem alto monumento 
Ao génio, que subiu da terra ao firmamento 

Por espiraes de luz. 
Ainda não é tarde. A pedra está na estrada. 
Romeiros, carregae-a ao toque da alvorada 

Voltados para a cruz. 

Levantae esse véo do tumulo do morto: 

Elle já descansou. Além, do ethereo porto . ~t 

Inda a voz lhe escutaes, 
Dois séculos já lá vão que o bronze de seu verbo, 
Refundido, tenaz, indómito, soberbo, 

Tem brilhos immortaes. 

II 

Deixando o pátrio lar ainda bem creança, 
Aqui, sob este céo, em sonhos de esperança, 

Talhou o seu porvir; 
Mas do naufrágio a vaga, horripilante e louca, 
No mar da Parahyba abriu a larga bocca 

Feroz p'ra o engolir, 



171 



Como de, ave bravia, a asa da procella 
Arrebatara a náo; mas deslumbrante estrella 

No horisonte accendeu: 
Era o supremo olhar que a onda castigava. . . 
E, attonito, o mar que, pasmo, recuava 

De medo se escondeu. 

Por uma inspiração uniu-se aos Jesuítas, 

De que bebeu a luz em lettras de oiro escriptas- 

Nas taboas de Moysés. 
Sereno, elle entoou á musica dos ventos, 
Na estante da floresta os grandes mandamentos, 

Em coro aos Aymorés. 

Diz-nos a tradição que um dia, ajoelhado, 
Com os olhos no altar, achou-se illuminado. . . 

Maravilha dos céos! 
Lá dentro de seu craneo uma impressão sentira: 
Foi o Anjo da Fé, que lhe accendeu a pyra 

Quando elle orava a Deus. 

Para levar perfume ás aras magestosas 
Enchia as aebeis mãos de pétalas de rosas, ■ 

De lume os olhos seus. 
Das grandes orações do púlpito vetusto 
Fez o seu pedestal, onde eu fito o seu busto 

Enlaçado em trophéos. 

No alto mar da vida, abriu as brancas velas 
A náo do seu saber ás lúcidas estrellas, 

Das ondas ao vae-vem. 
Quem poude se altear no estylo immorredoiro? 
Quem mais enriqueceu a lingua em phrases de oiro 

Do que elle? — Ninguém. 

Erecto e varonil, o vulto soberano, 

Oh I nunca deu a mão por cima do oceano 

Para a Hollanda beijar: 
Em prol dacátechese aos Índios mais selvagens, 
Com a Cruz deu-lhes a fé, symbolicas imagens, 

Relíquias e um altar. 



172 



Patriota, se fez]eximio diplomata, 
Politico de fé na opinião sensata 

pâtPor onde viajou. 
Fez 'de Paris— degrao para subir aos astros, 

De Roma — capitólio Enormes vivos rastros 

De seu génio deixou. 

Quebrando da inveja o dente envenenado, 
Jamais deixou de ter seu nome aureolado, 

Limpa aquella altivez, 
Com que elle defendia a raça brazileira, 
Contra a negra oppressão de uma horda aventureira, 

Contra o povo hollandez. 

Brazil e Portugal, no mais estreito abraço, 
Olhando aberta em luz a solidão do espaço, 

Falam do filho seu . . . 
Tão sábio que elle foi ! em astro transformou-se, 
Ao levantar seu nome o mundo ajoelhou-se, 

Génio reviveu 1 

Bahia, 18—7—97. 

Silva Senna. 






Exposição Bibliographica 

. Dr. Director da Bibliotheca Publica enviou o 
seguinte officio á commissão executiva: 

«Bibliotheca publica da Bahia, 10 de Julho de 
1897. — Tenho a honra de vos remetter junto a este 
a relação das obras que a bibliotheca publica, por 
ordem do Dr. secretario do interior, justiça e ins- 
trucção publica expõe na justa commemoraçãu pro- 
movida pelo patriótico Instituto Histórico da Bahia 
ao 8 o centenário da morte do Padre Vieira; expo- 
sição esta que tiveste a gentileza de acceitar para 
abrilhantar a homenagem que no salão nobre da 



1?3 



Faculdade de Medicina pfrestaes à memoria de tão 
illustre pregador e homehn de lettras. 

A bibliotheca só remelte obras do mesmo Padre 
Vieira, ou de auctores que delia s/? occuparam. 

Aproveito a occasião para vos testemunhar os meus 
respeitosos protestos de toda estima e conside- 
ração. 

Saúde e fraternidade. Illms. Exms. Srs. Dr. José 
Francisco da Silva Lima.— Dr. Braz Hermenegildo do 
Amaral. — Dr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos. — 
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães. — Professor Tar- 
quato Bahia da Silva Araújo.— Cónego Manfredo 
Alves de Lima. — Dr. José Júlio de Calasans, dignís- 
simos membros da commissão do Instituto Históri- 
co da Bahia, incumbida da commemoração do cen- 
tenário do Padre António Vieira. — Do bibliotheca- 
rio José de Oliveira Campos.» 



Relação das obras que foram remettidas pela Bi- 
bliotheca Publica para serem expostas na comme- 
moração do 2 o centenário da morte do Padre Abt 
tonio Vieira. 

1.° Um volume contendo diversos trabalhos do 
padre António Vieira maíiuscriptos pela curiosida- 
de do* padre Manoel Thomaz Machado. 

2.° Bibliotheca Luzitana ppr Diogo Barbosa Ma- 
chado em quatro grandes volumes, publicada em 
Lisboa em 1 741 com todas as licenças necessárias. 

3.° A mesma obra em duplicata. 

4.° Vida do Apostólico padre António Vieira da 
Companhia de Jesus, cnamado por antonomásia 
o Grande — pelo padre André de Barros da Compa- 
nhia de Jesus, publicada em Lisboa era 1746, coca 
permissão dos Superiores e Privilegio Real. 

5.° A mesma obra em duplicata. 

6.° Historia de Portugal restaurado, por D. Luia 
de Menezes Conde de Ericeira, editada em Lisboa 
em 1679 em dous volumes. 

7.° A mesma obra em duplicata. 

&° Diccioaario da Lingua Portuguesa publicado 



174 



pela Academia Real de Lisboa em 1793 com licen- 
ça da Real Mesa da Commissão Geral sobre o 
exame e censura dos livros, onde vem o catalogo 
dos Authores e Obras, que se levam e de que se 
tomarão as autoridades, para a composição do Dic- 
cionario da Lingua Portugueza. 

9.° Gasparis Barloei Historia Mauntii Nassovioe 
et comitis. 

10. Synopsis annalium SocÍ6tatis Jesuin Lusitâ- 
nia ab anno 1540 usque adannum 1725 authore R. 
P. António Franco, societatis ejusdem Sacerdote 
—editada em 1726. 

11. Historia da America Portugueza por Sebas- 
tião da Rocha Pitta, edição rara e primitiva, pu- 
blicada em Lisboa em 1730. 

12. A mesma obra, edição de 1880 em Lisboa. 

13. A mesma obra, editada na Bahia por ordem 
do Barão de Homem de Mello em 1878. 

14. Cartas selectas do padre Vieira publicadas 
pelo padre Roquete. 

15. Cartas do padre Vieira publicadas em Lisboa 
em 1735, obra que pertenceu a Francisco Agosti- 
nho Gomes. 

16. Cartas do padre António Vieira editadas em 
Lisboa em 1735. 

17. Arte de furtar do padre Vieira, edição de 
1821. 

18 Sermões do padre António Vieira, edição de 
Lisboa de 1690. 

19. Maria, Rosa Mystica, pelo padre Vieira, edi- 
ção de Lisboa em 1686. 

20. Xavier dormindo e Xavier acordado, dedi- 
cada aos três príncipes, editada em Lisboa em 
1694, pelo padre Vieira. 

21. Carta apologética escripta em lingua caste 7 
lhana pelo padre António Vieira, Ecco das vozes 
saudosas, editada em Lisboa em 1757 

22. A mesma obra em duplicata. 

23. Obras completas do padre António Vieira, 
em (14 volumes) editadas em Lisboa em 1855. • 

24. Annaes Históricos do Estado do Maranhão, 



175 



por Bernardo Pereira de Berredo, edição de Lisboa 
em 1749. 

25. A mesma obrado mesmo autor em duplicata. 

26. A mesma obra de Berredo, editada no Mara- 
nhão em 1849. 

27. Diccionario de Chauffepié, editado em Ams- 
terdam em 1756 (volume 8'). 

28 Bibliotheca Souzana de Manoel Caetano de 
Sousa, editada em Lisboa. 

29. Diccionario Histórico de Biographia Universal, 
editado em Paris no anno de 1827— (volume S— Z). 

30. Bibliotheca Histórica de Portugal, por diversos 
autores portuguezes e estrangeiros, editada em Lis- 
boa no anno de 1801. 

31. Agiologio Lusitano, por George Cardoso, edi- 
tado em Lisboa em 1666 (volume 3*). 

32. Biographia Universal antiga e moderna, por 
uma sociedade de homens de lettras e sábios, edita- 
da em Paris em. 1827 (volume 48). 

33 Biographia Universal de homens celebres, por 
F. X. Feller, editada em Paris em 1856. 

34. Revista do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, 
anno de 1842. 

35. Idem do anno de 1843. 

36. Idem do anno de 1844. 

37. Idem do anno de 1856. 

38. Historia de Portugal, por Luiz Augusto Rebello 
da Silva editada em Lisboa em 1871 

39. P. Larousse, DiccionarioUniversal (Volume 15). 

40. The Century Cyclopedia, grande obra em sete 
volumes, editada em New- York em 1895 ( volume dos 
nomes). 

41. Diccionario Popular, publicado por Manoel 
Pinheiro Chagas em 1884 (volume 13). 

42. Diccionario de Biographia, por Luiz Gregoire, 
editado em Paris em 1871. 

43. Diccionario Geral de Biographia, por Ch. De- 
zobery, editado em Paris em 1869. 

44. Diccionario Portuguez de Farias, publicado no 
Rio de Janeiro no anno de 1861. 



w 



45. Historia do Brazil, por Francisco Solano Con- 
stâncio, publicada em Paris em 1839. 

46. Accioli, Memorias históricas e Politicas da 
Bahia, tomo 1°, editada na Bahia em 1835. 

47. Diccionario Bibliogr4phico Portuguez, por In- 
nocencio Francisco da , Silva, editado em Lisboa em 
1858, tomo I o da obra é l q do supplemento. 

48. Historyof Brazil by Robert Southey, editada 
em Londres em 1817 (volume 2* 1 ). 

49. A mesma obra em poptuguez (volume 4 o ). 

50. Anno Histórico, Diccionario Portuguez, no- 
ticia abreviada das pessoas grandes e cousas notá- 
veis de Portugal, por Francisco de Santa Maria, edi- 
tado em Lisboa em 171,4. 

51. L'Univers, grande obra de Ferdinand Denis, 

volume sobre o Brazil, editado em Paris em 1837. H. 

52. Parallelos de Príncipes e Varões Illustres, por. 
Francisco Soares Toscano, comparando o padre 
Viera com Cieero, orador romano, editados em 
Lisboa em 1733. 

53. Ephemerides Nacio^iaes do Dr. Teixeira de 
Mello, publicadas no Rio de Janeiro em 1881. 

54. Vida do padre António Vieira, p>or André de 
Barros, edição publicada Aa typographia do Diário 
da Bahia, quando era administrador Firmino Thomaz 
de Aauino em 1837. Offerecida ao arcebispo D. Ro- 

mualdo António de Seixas f -^ 

55. O Chrysostomo Portiguez ou o Padre António 
Vieira, pelo padre Antopio Honorati, obra em 
quatro volumes editada ejn Lisboa em 1879. 

56. Obras de João Francjiscó Lisboa, volume qua 
traz a vida do padre Vieira, editada- no Maranhão 
em 1865. 

57. Biographia UniversaJ Clássica, (volume R. Z), 
editada em Paris em 1830. 

58. Rebello da Silva, Varões Illustres. 

59. Anno Biogra^hico Bhmleiro, por Joaquim Ma- 
nuel de Macedo (volumes 2 e 3) editado no Rio de 
Janeiro em 1876. • , 

60. Historia Geral do Brazil, pelo visconde de Poi to 



177 



Seguro, com o retrato do grande Vieira, editada no 
Rio de Janeiro (2° volume.) 

61. A escravidão, o clero e o abolicionismq, pelo 
Dr. Luiz Anselmo da Fonseca, editada na Bahia 
cm 1887. 

62. Almanack da Bahia de 1881, por António Freire. 

63. Cartas do padre Vieira, editadas pelo padre 
Francisco António Martins em Lisboa, em 1746. 

64. Chorographia e Historia do Brazil pelo Professor 
António Alexandre Borges dos Reis, Bahia, 1894. 



Relação das obras e outros objectos expostos 
pelo Instituto Histórico e seus sócios: 

Um retrato de padre Vieira, original do pintor Ve- 
lasco, moldura de jacarandá com frisos dourados. 

A cadeira, que a tradição diz ter sido da pregação 
do mesmo padre Vieira na Bahia. 

Três photographias da Quinta do Tanque (Láza- 
ros; onde elle passou os últimos tempos de sua vida: 

Memorias Históricas pelo coronel Accioli,l° volume, 
com uma vista do antigo Collegio dos Jesuítas, ^es- 
ta capital. 

Manuscripto antigo contendo as peças principaes 
do processo do padre Vieira perante o Tribunal do 
Santo Officio em 1667 (Instituto). 

O padre António Vieira np Pará — {Diário Offícial, 
Belém, 1894, pelo coronel Alves da Cunha).: 

Jornaes do Commercio de 8 e 15 de Março de 1897 — 
Artigos de Theophilo Braga sobre o centenário. 

Plutarcho Portuguez, com retrato, 1 volume. 

Archivo Pittoresco, com retrato. (1808) 

Vida do padre António Vieira por João Francisco 
Lisboa, 1 vol. Rio, 1874. 

Vida do padre António Vieira, reimpressa e dedi- 
cada a D. Komualdo do Seixas, 1837, Bahia, 2 vols. 

Historia do Futuro pelo padre Vieira, 1 volume, 
Bahia, 1838. 

A. V. 23 



178 



Diccionario Encyclopedico por Corrêa de Lacerda, 
Lisboa, 1879, volume 2°. 

Micellanea Histórico — Biographica pelo professor 
Theodoro da Silva, Lisboa, 1877. 

Historia Litteraria, cónego Fernandes Pinheiro, 
volume 2.° 

Historia do Brazil, Francisco Solano Constâncio, 
volume 1.° 

Chorographia Histórica, Mello Moraes, volume 4.° 

Brazil Histórico, Mello Moraes, volume 2.° 

Curso de Litteratura Portugueza e Brazileira, Sote- 
ro dos Reis, volume 3 o . 

Historia do Brazil, Robert Southey, volume 4°. 

Datas e Factos para a historia do Ceará, Dr. G. 
Studart, volume I o . ^4 

Datas Celebres, José de Vasconcellos, Recife, 1872, 

Oração fúnebre recitada nas exéquias do padre An- 
tónio Vieira pelo padre D. Manoel Caetano de Souza 
em Dezembro de 1697, em Lisboa. 

Memoria histórica acerca do padre António Vieira 
e das suas obras por D. Francisco Alexandre Lobo. 

Anthologia Nacional por Fausto Barretto e Carlos 
deLaet(1896). 

Diccionario de Biographia e Historia, Dezobry et 
Bochelet, 15.° volume. 

Exposição Nacional, vol. 1, pag. 492. .^ 

Novo Diccionario da língua portugueza por Edu- 
ardo de Faria, volume 2°, Lisboa, 1857. 

A litteratura brazileira nos tempos coloniaes, Edu- 
ardo Perié, Buenos-Ayres, 1885. 

Vozes Saudosas da eloquência, do espirito, do zelo 
e eminente sabodoria do padre António Vieira, pelo 
padre André de Barros, Lisboa, 1736. 

Diccionario Bibliographico Portuguez por Inno- 
cencio da Silva, volume I o . Lisboa, 1858. 

Diccionario Popular, por Pinheiro Chagas, volume 
13.°, Lisboi, 1884. 

Historia do Portugal Restaurado, Condo da Ericei- 
ra, volume 2°, Lisboa, 1710. 



179 



Obras Clássicas do padre António Vieira, edição 
da Empreza Litteraria Fluminense, 1885, 2 volumes. 

O Chrysostomo Portuguez, compilação de seus 
sermões, pelo padre António Honorati, Lisboa, 1878, 
4 volumes. 

Nacionalidade, lingua e litteratura de Portugal e 
Brazil, por Pereira da Silva, Paris, 1884. 

Historia-Geral do Brazil, visconde do Porto-Seguro, 
Rio de Janeiro, 2. a edição, 2 volumes. 

Quadro elementar das relações politicas e diplomá- 
ticas de Portugal, visconde de Satarém, Paris, 1844. 

Vida do padre António Vieira, por João Francisco 
Lisboa, Maranhão, 1865, 1 volume. 

Soror Margarida Ignacia. Apologia a favor do 
padre António Vieira. Resposta ao que com o nome 
de Crise escreveu contra elle a religiosa mexicana 
Joanna Ignez da Cruz: Lisboa, 1717, 1 volume. (Este 
opúsculo defende as doutrinas de Vieira num sermão 
sobre a Eucharistia.) 

César Cantú, Historia Universal, volume 15. 

Historia do Brazil, por Silvio Roméro, Rio de Ja- 
neiro, 1893. 

Memorias para a Historia do Extincto Estado do 
Maranhão, por Cândido Mendes, 2 vols. 1860 — 74. 



Telegrammas 

Ao Instituto foi dirigido o seguinte telegramma, 
enviado pelo distincto sócio correspondente tenen- 
te-coronel Raymundo Cyriaco Alves da Cunha: 

«Belém, Pará, 12 de Julho de 1897: 
Associo-me ineffavel prazer commemoração Padre 
Vieira, eminente vulto histórico, de veneranda me- 
moria. Aloés da Cunha.» 

A Academia Cearense dirigiu ao illustre Sr. Dr. 
Satyro de Oliveira Dias, vice-presidente do «Insti- 
tuto Geographico e Histórico da Bahia» o seguin- 
te despacho telegraphico de congratulação. 



180 



«Ceará, 18 de Julho de 1897.— Ao Dr. Satyro Dias 
— Bahia. — A Academia Cearense associa-se ao In- 
stituto Geographico e Histórico da Bahia», nas ho- 
menagens hoje prestadas ao immortal missionário 
dalbiapaba. — Thomaz Pompeu, presidente, — Guilher- 
me Studart, secretario.» 

O Instituto recebeu mais o seguinte telegram- 
ma enviado pela deputação bahiana: 

Rio, 19 de Julho de 1897. 

«Parabéns brilhante festa centenário Padre Viei- 
ra. — Arthur Rios. — Neica. — Adalberto. — Paranhos 
Montenegro — Milton. — Castro Rebello. — Marcolino 
Moura. — Paula Guimarães. — Manoel Caetano. — Ro- 
drigues Lima. — Tolentino. — Seabra. — Jayme Villas- 
boas. — Tourinho. — Torquato Moreira. — Monsenhor 
Mourão, — Sodró. — Eduardo Ramos.» 

TELEGRAMMA ENVIADO PARA O JORNAL DO COMMERCIO 

Bahia (expedido ás 8 h. n. do dia 18). 

Depois das conferencias realisadas no salão nobre 
da Faculdade de Medicina desta capital sobre o 
padre António Vieira, pelos Drs. Braz do Ama- 
ral, Ernesto Carneiro, vigário Elpidio Tapiranga e 
monsenhor Basílio Pereira, cujas conferencias le- 
varam ao antigo collegio dos jesuítas tudo que a 
Bahia tem de mais notável no governo, nas lettras, 
nas sciencias, nas artes, na politica e nas outras 
espheras da actividade humana, realisou-se hoje 
a grande procissão cívica para a grande commemora- 
ção do centenário do padre António Vieira. 

A maioria dos collegios desta Capital, faculdades 
superiores, diversas bandas de musica, o governa- 
dor do Estado, senadores, deputados, magistrados, 
imprensa, varias corporações, povo, tudo isto for- 
mando o immenso préstito civico, talvez o mais im- 
ponente que se tenha visto nesta terra, desfilou de- 
Sois de ouvir a bella oração do Dr. Octaviano 
luniz, justamente applaudida, da Praça da Pieda- 
de, onde se organisou, para o antigo largo do Ter- 



181 



reiro, hoje 15 de Novembro, afim de assistir á collo- 
caçãp da pedra commemorativa na fachada da Ca- 
thedral, nessa mesma igreja onde brilhou e mor- 
reu o padre António Vieira. 

Era meio dia quando o préstito chegou ao Ter- 
reiro. No coreto erguido para col!ocar-so a pedra 
em logar previamente # designado tomaram assento 
os Srs. Dr. governador do Estado, representantes 
da imprensa, Dr. Satyro Dias, secretario do interior, 
conselheiro Salvador Pires, presidente do Instituto, 
Drs. Silva Lima, Filinto Bastos e outros, muitos se- 
nadores e deputados. 

Depois de ter sido collocada a pedra, falou o Dr. 
Satyro Dias, como vice-presidente do Instituto. Seu 
discurso foi sempre applaudido sendo o orador muito 
felicitado. Fizeram-se ouvir os poetas Silva Senna 
e Costa e Silva. 

Em nome do Instituto, o conselheiro Salvador Pires 
agradeceu a todos que prestaram concurso a essa 
festa. 

A cella do padre António Vieira tem sido muito vi- 
sitada hoje, tornando-se muitas vezes impossível a 
entrada pela grande quantidade de pessoas. 

Sem exagero, póde-se calcular em 5.000 a 6.000 
pessoas a multidão que tomou parte nesta comme- 
ração». 

TELEGRAMMA DO CORRESPONDENTE d\<0 PAIZ» 

A commemoração do centenário do padre António 
Vieira continua com brilhantismo. 

A's 9 horas foi resada missa pelo arcebispo, que fez 
a benção da lapida, sendo a cerimonia bastante con- 
corrida. 

A's 101/2 sahio da praça da Piedade a procissão cí- 
vica, composta de cerca de 2,000 alumnos das aca- 
demias, escolas superiores, collegios particulares, es- 
colas municipaes de ambos os sexos, diversas bandas 
militares e philarmonicas, principaes auctoridades 
estadoaes, em direcção ao Instituto Geographico, 



182 



sendo digna de todos os elogios a commissão promo- 
tora das festas. 

Achava*se representada a imprensa local, repren- 
sentantes da imprensa do norte e sul, inclusive «O 
Pais», cônsul portuguez, commissões de associações 
portuguezas e representantes de todas as classes, 
formando um préstito nunca aqui visto egual. 

A's 11 3/4, chegada a procissão ao Terreiro de Je- 
sus, foi a lapida de mármore conduzida da nave da 
Cathedral para um estrado levantado no grandioso 
templo dos Jesuítas. 

O Dr Satyro Dias, secretario do interior e vice-pre- 
sidente do Instituto, proferio eloquente e patriótica 
allocução, seguindo-se diversos oradores e inspira- 
das poesias. 

O presidente do Instituto encerrou a commemora- t 

ção agradecendo a presença do selecto auditório, ^ 

superior de 4,000 pessoas. 

Em seguida inaugurou-se a exposição das obras 
do padre Vieira no salão da Faculdade de medicina, 
pertencentes á bibliotheca publica. 

Foi muito visitada a cella do padre Vieira. 

Precedeu á sahida do préstito da praça da Piedade 
eloquente allocução proferida pelo director da ins- 
trucção publica, Dr. Octaviano Barretto. 

TELEGRAMMA PARA A GAZETA DE NOTICIAS. v 

Bfihia 18 de Julho de 1897: 

Encerrou-se hontem a serie de conferencias sobre 
o Padre António Vieira. 

Foi extraordinária a concui rencia para ouvir mon- 
senhor Dr. Basilio Pereira, que oceupou a attenção 
do auditório por espaço de duas horas 6 meia, enca- 
rando Vieira como diplomata e politico: o confe- 
rente alçou-so á altura da reputação que gosa. 

Monsenhor Basilio recebeo de todo o auditório as 
manifestações de applauso e admiração por sua pro- 
funda e variada illustração. Como nas conferencias 
anteriores, estiveram presentes o governador e todo 



183 



o mundo official, além da representação selecta de 
todas as classes sociaes. 

Falou o cônsul portuguezem agradecimento; sendo 
muito applaudido. 

Hoje, ás 10 horas da manhã, na praça da Piedade, 
formou-se o grande préstito cívico para solemnisar o 
acto da collocação da lapida commemorativa na 
fachada da cathedral, junto ao angulo do lado da 
Faculdade de Medicina, antigo convento dos jesuítas. 

Da janella central da secretaria do interior dirigiu 
palavras á multidão o Dr. Octaviano Muniz, inspe- 
ctor geral da instrucção publica. O discurso foi 
vibrante e análogo ao assumpto, sendo o orador 
bastante acclamado pelos ouvintes. 

A's 11 horas destilou o préstito nesta ordem, em 
direcção á praça 15 de Novembro, antiga Terreiro: 
musica de policia, alumnos da escola annexá e seu 
professor; alumnos da escola Treze de Maio com um 
laço de fita ao peito, estandarte e seu director; alum- 
nos da escola de Bellas Artes e seus professores; 
alumnos do Collegio Florêncio e seu Director; colle- 
gio União, de meninas e sua directora; collegio Car- 
neiro e seu director; collegio S. José e seu director; 
collegio Piedade, de meninas, directora e professoras; 
musica do 5.° batalhão; Collegio S. Salvador e seu 
director; collegio Spencer e seu director; musica 
dos orphãos de S. Joaquim e alumnos do estabeleci- 
mento; musica do Lyceu de Artes e Officios, alum- 
nos, professores e direcção; reunidas as Faculdades 
de Medicina e de Direito, alumnos da escola Polyte- 
chnica, seguindo-se unidos os estandartes da faculda- 
de medica e de Direito, marchanlo sob:* j uôtaudartus 
os Drs. Pacifico Pereira, JosêOlyrnpio, director e vice- 
director da faculdade medica, seguindo-se o corpo 
docente da escola Polytechnica e seu director: o 
governador do Estado, tendo á direita o conselheiro 
Lopes de Vasconcellos, presidente do Tribunal de 
Appellaçfio e revista, e á esquerda o cônsul portuguez; 
commissão do Instituto Geographico, official de ga- 
binete e ajudante de ordens do governador, a im- 
prensa d'aqui e d'ahi, presidente do senado, senado- 



1*4 



res, ^deputados, magistrados e muitas outras com- 
missões. 

O préstito chegou ao Terreiro ao meio dia. Ao 
lado da catbcdral, onde foi colíocada a lapida, esta- 
va erguido um coreto coberto de bandeiras de varias 
nacionalidades. 

Occuparam o coreto o governador, conselheiro 
Salvador, presidente do Instituto Histórico, Dr. Sa- 
tyro Dias, vice-presidente do Instituto e secretario do 
interior, cônsul portuguez, imprensa, alguns sena- 
dores, Dr. Silva Lima, iniciador da idéa de comme- 
moraçao ao padre Vieira, poetas Silva Senna, Costa 
e Silva e mais alguns cavalheiros. 

Conduziram a lapida para o coreto os Drs. Braz 
do Amaral, Reis Magalhães. Filinto Bastos e Silva 
Lima, Cónegos Hermelino Leão e Manfredo, conse- ± 

lheiro João Torres e Capitão Francisco Gomes Fer- ^ 

reira Braga. 

Em discurso cheio de ensinamento cívico discor- 
reu o Dr. Satyro Dias, que foi muito applaudido e 
felicitado ao terminar. 

Recitaram poesias Costa o Silva e Silva Senna. 

Colíocada a lapida em seu lagar, o Conselheiro 
Salvador agradeceu a todos em nome do Instituto 
Geographico o Histórico da Bahia. A pedra foi 
benta pelo preclaro arcebispo D. Jerónimo, após 
a missa que celebrou. 

A capella e a cclla do padre Vieira serão expôs- -^ 

tas d visita publica hoje. A multidão que assistiu 
& commomoração ascendia a mais de cinco mil 
pessoas. 

A IMPRENSA 

O Centenário de Vieira 

(Diário da Bahia) 

O padre António Vieira, a grande individualidade 
que ha £00 annos, no dia de hoje, cerrou nesta 
terra os olhos & vida e ao trabalho incessante de 



185 



um apostolado fecundo, recebe na canonisação de 
sua oora immorrecloura o mais legitimo dos preitos 
que a humanidade pode render a um benemérito. 

Esta sentença da posteridade, quando os grandio- 
sos dotes do espirito de Vieira nào tivessem subju- 
gado e vencido os ódios e a inveja que tantas vezes 
lhe rugiram no caminho triumphante que percorreu 
o intemerato apostolo christão, bastaria para reivin- 
dicar, em nome da verdade histórica, a justiça que 
alguns dos seus coevos lhe tentaram negar. 

A historia, despertando do somno centenário esse 
espirito, que encheu em seu século toda a vastidão 
do predomínio da pátria de seu nascimento, vem fa- 
zer a sagraçào suprema de seu nome, como o de um 
de seus eleitos immortaes. 

A Bahia, em cuja magestosa natureza seus olhos 
de águia fitaram a grandeza de seu destino, sob cujo 
céo sua alma se inspirou e se apaixonou pelo ideal 
desse apostolado que honrou até o ultimo momento, 
tazendo do Evangelho a clava invencível de seus 
combates, paga-lhe hoje em bênçãos o precioso 
acervo de benefícios que lhe legou com o desinte- 
resse próprio dos espíritos superiores. 

Sente-se que da poeira divina desse tumulo, de 
que seu vulto irrompe á evocação da posteridade, 
maravilhada e absorta ante a magnificência da obra 
de sua palavra phenomenal, se côa uma como pul- 
verisaçâo abundante de luz, que transforma a se- 
pultura do missionário humilde num arco de tri- 
umpho para todas as conquistas de sua arrojada 
palavra. 

Essa porção de creanças gentis que lhe atiram á 
memoria braçadas de flores de um enthusiasmo que 
não murcha, entre os hymnos de uma alegria que 
não se apaga; essa plêiade de moços que se curvam 
diante das manifestações de seu gonio, vem signifi- 
car, em nome da civilisação e do bem, o seu reco- 
nhecimento ao catechista das tribus brazileiras, que, 
arrostando os perigos, vencendo às fadigas do corpo, 
softVendo penúrias, tendo por leito Uma simples es- 
teira de palha, foi levar ao seio virgem das florestas 
A. V. 24 



186 



os raios da fé em que se inflammava, para trazer ao 
trabalho e á civilisação almas que se voltassem para 
o céo e braços que se voltassem para a terra. 

Poderoso milagre da palavra esse, que, depois de 
ter vertido nas almas ha dois séculos o estimulo do 
bem, a fé no trabalho, o amor á \erdade, illuminan- 
do as cabeças e ameigando os corações, alvoroça 
uma geração inteira, que lhe perpetua o prestigio, 
doirando-se em seus clarões, avigorando-se com a 
polpa de seus fructos substanciosos. 

Espirito immortal da justiça, tu, que accendes nas 
arestas negras do erro eme ensombra os povos sem 
fé a alampada da verdade que não se extingue; tu, 
que acompanhaste em toda a sua peregrinação o 
evangelisador intemerato, fazendo ainda mais forte, 
ainda mais inquebrantável a sua austeridade, a sua ^ 

tenacidade, a sua serenidade de animo; tu, que o 
ajudaste a transpor as serras e a percorrer as cha- 
padas dos sertões desertos; tu, que o conduziste aos 
triumphos e o alentaste nos revezes, para que nós o 
vejamos a toda a luz de sua grandeza, abre esse 
pórtico immortal que a morte lhe arqueou sobre a 
cabeça laureada, para a gloria dos dois povos que 
elle amou, a pátria de seu nascimento e a pátria de 
sua intelligencia: — Portugal e Brazil — os dois poios 
do seu amor, os dois extremos de sua dedicação, 
os dois cantos do poema de sua vida fecundíssima. 



(Diário de Noticias) 

Ha dous séculos exhalava o derradeiro alento de 
uma vida operosa, no retiro de uma cella, cercado 
dos confortos da religião de que fora devotado 
apostolo, o Padre António Vieira, um dos mais 
proeminentes vultos de Portugal no século XVII. 

Vestindo a roupeta negra da celebre ordem que 
então refulgia pelas preclaras virtudes e notabilis- 
simos triumphos de nossos filhos, elle alçou-se ás 
elevadas alturas dos conselhos régios pelo seu pró- 
prio merecimento, e cTelles desceu sem haver cies- 



A 



18* 



merecido a fama que o circumdava comos ápplau- 
sos dos contemporâneos. 

Perlustrou todos os campos da actividade e saber 
humano, deixando o seu nome ligado para sempre 
á formosa lingua portugueza, que elle esmaltava 
de bellezas peregrinas. 

E ainda hoje, ha quarenta lustros de distancia, 
e sem as asperesas da luta empenhada em volta 
d'elle, a sua individualidade se destaca inteiriça, 
para vir receber a sagração da posteridade. 

Honra á Bahia e aos promotores do centenário. 



(Jornal de Noticias) 

De quantos vultos culminaram no segundo sé- 
culo do regimen colonial, d'esta parte da Ame- 
rica, nenhum talvez sobrelevou a individulidade do 
Padre António Vieira, nascido portuguez, nutrido 
aos seios ubertosos desta carinhosa «mater nutrix», 
que lhe guardou os despojos e lhe glorifica a me- 
moria. 

O eminente jesuíta, em razão da sua estrénua 
capacidade, das múltiplas aptidões com que ella se 
revelou, dos vários objectos a que teve applicação 
durante uma longa existência solicitada por am* 
bicões elevadas e nobres, conseguiu galgar na his- 
toria daquelle século uma altura sufflciente para 
aue ainda hoje o contemplem os olhos admirados 
da gsração moderna, pasma de tanto saber e tama- 
nha força. 

E ó uma verdadeira constellação a gloria de Vi- 
eira. Cada uma das espheras em aue empregou os 
seus talentos e a sua virtude, brilna como o disco 
de um astro, e como os próprios astros ellas apre- 
sentam ás vezes pequenos pontos opacos, que toda- 
via não deslustram o phenomenal esplendor desse 
conjuncto...São as manchas do sol. 

Si ha na sua carreira diplomática e na sua po- 
litica a sombra do Papel Forte e do Parecer sobre 
as cousas do Brasil, e as condições, ou antes con* 



188 



descendências, apuradas pela critica histórica no 
seu procedimento em face da escravidão dos Índi- 
os e negros, sombras aliás explicáveis pelo nivel 
moral do tempo e a pressão dos interesses da 
corte e da ordem a que servia o grande jesuíta, 
ficam-lhe soberanos, indestructiveis, os méritos ex- 
cepcionaes do catechistu abnegado, do orador sem 
rival, do admirável minerador da língua, do in- 
cansável servidor da pátria. 

Os invios sertões brazileiros, as nossas praias 
arenosas, os nossos rios invadeaveis guardam as pe- 
gadas e a imagem dáquelle apostolo da caridade, que 
ha duzentos annos affrontou. por ahi além, a flecha 
ervada do selvagem, o rigor das intempéries e a 
covardia sanguinária das feras, a pregar a lei do 
Christo, a chamar para a luz da fé e da civilisação 
os cegos e rudes que viviam na grosseira animalidade 
da taba e da maftta virgem. 

A tribuna dos nossos tempos ainda repete, como 
echos longiquos, a voz do portentoso sermonista, 
aquelle verbo inflammado e rutilante, ora incendido 
na chamma das verdades evangélicas a doutrinar o 
povo, ora inspirado nos divinos exemplos da cari- 
dade, apostrophando o captiveiro: 

«Oh! trato deshumano em que a mercancia são ho- 
mens!» «Porventura esses homens não são nossos 
irmãos?» «A natureza como mãe, desde o rei até o 
escravo, a todos fez eguaes, a todos livres.» 

Nem o burel da roupeta em que tantos outros se 
amortalharam, morrendo para as cousas da terra, 
suffocou em aquelle espirito os estos do patriotismo. 

Por isso quando a Bahia atravessava aquella época 
de resistência ás conquistas hollandezas, de armas 
em punho sempre attenta á approximação dos inva- 
sores, impávido, militante, mais parecendo um guer- 
reiro cruzado que um padre evangelista, assomava 
no púlpito a figura enérgica de Vieira, e traçava aos 
olhos do povo, com tanto primor de artista quanto 
fogo de patriota, aquelle estupendo quadro imaginá- 
rio da occupação da cidade, onde ha passagens 
dignas da tragedia eschyliana. 



189 



Mas ainda resta a sua obra escripta, esses thesou- 
ros accumulados do idioma portuguez, esse vasto 
sermonario, a que um dos seus maiores continuador 
res na tradição liUeraria de Portugal chamou, com 
admiração, «riquíssimos minérios do mais fino ouro 
pelo que respeita & linguagem.» 

E' a essa gloria, em que tem grande parte a Bahia, 
como fecunda nutriz, que foi, do génio de Vieira; é a. 
esse homem respeitado quer pelos seus pósteros, 
quer pelos seus contemporâneos, o único aeante de 
quem se refreou o génio satyrico de Gregório de 
Mattos, seu emulo na capacidade, embora dissidente 
na vocação; a esse insigne cidadão de duas pátrias é 
que a Bahia tributa agora a veneração a que têm di- 
reito os immortaes. 

Justiça da posteridade! sede sempre a recompensa 
dos que se elevam pelas próprias forças do espirito, 
pelo trabalho, o saber, a intelligençia, a virtude. 

Ha muitos annos, esta capital não presenciava so- 
lemnidade tão bem organisada, tão engalanada das 
pompas do talento e do concurso popular, como a 
soberba apotheose que durante oito dias engrinal- 
damos a memoriado illustre filho de duas pátrias. 

Honra á Bahia, «mãe da intelligençia», pelo fausto 
com cjue eternisou sua commemoraçao, a mais 
grandiosa certamente de quantas tributadas, nq 
mundo, por motivo d'esse bi-centenarip. 

Honra ao Instituto Geographico e Histórico da 
Bahia pelo êxito victorioso de sua idéa, valiosa-, 
mente patrocinada pelo mérito dos conferenciadores, 
pela dedicação da commissão executiva e pela soli- 
dariedade do povo, affluindo respeitoso e avultado, . 
em todas as cerimonias havidas. 



(Cidade do Salvador) 

Quizeramos empunhar hoje uma penna de ouro 
para cantar com o povo bahiano o nome três vezes 
aureolado do Padre António Vieira.. 

Quizeramos possuir o que o génio tem de mai§ 



itf> 



vivo e sublime para que completas fossem hoje 
nossas homenagens. 

Quizeramos, emfim, ter á nossa disposição tudo 
que a eloquência tem de admirável e encantador, 
para, nas azas de uma ardente imaginação, fitar de 
perto aquella águia de ouro, aquelle sol tão luminoso, 
cujos raios atravessam dous séculos sem perder sua 
limpidez eseu brilho. 

O insigne Jesuíta, cujos feitos assombrosos a his- 
toria registrou nas suas paginas mais gloriosas, acaba 
de receber das gerações actuaes as honras de uma 
legitima apotheose. 

Sempre de todos admirado, já pelas suas virtudes 
religiosas, já pelo seu patriotismo, umas vezes pelo 
seu talento diplomático, outras vezes pelo génio po- 
litico e sempre pela sua eloquência, que o aureolou — *, 
com o principado da palavra— eil-o, depois de morto 
ha dois séculos, vivo na memoria dos povos, accla- 
mado por quantos no peito bata forte e vigoroso, o 
sentimento da liberdade, louvado com generosidade 
e com applausos pelos homens de lettras, querido atè 
o enthusiasmo pelos seus irmãos, nos quaes também 
refulgem singularmente os reflexos de sua immar- 
cessivel glorin! 

Sim, foram duzentos annos que atravessaram a 
memoria doillustre morto; duzentos annos com as va- 
riedades, as alternativas, as inconstancias e as des- 1 
truições que sóe apresentar o tempo com sua es- ^ 
pada inhumana e implacável; mas o homem que 
não foi senão um simples religioso, zombou destes 
obstáculos, e hoje comparece no scenario da vida so- 
cial cercado da maior grandeza. 

Tal é o destino do génio: encarna-se na successão 
dos séculos, e, assim como o sol, quanto mais ganha 
o horisonte, depois de seu bello oriente, mais au- 
gmenta èm fulgor, assim também elle, dia a dia, vai 
assignalando com maiores glorias sua passagem lu- 
minosa. 

E ainda dizem que a Bahia é refractária ao pro- 
gresso, que a Bahia se divorcia de seus deveres, que 
$ Bahia é filha madrasta da Republica. 



m 



Pois a Bahia que se levanta, ettí meio de tão pro- 
fundas agitações, para não esquecer um de seus 
maiores bemfeitores, um dos mais importantes guer- 
reiros da causa santa da sua civilisação, é digna de 
suspeita? 

Pois a Bahia que, sem olvidar seus mais graves 
deveres e suas tremendas responsabilidades, que 
sem afastar-se do caminho do patriotismo, entoa 
hosannas ao insigne cultor da lingua pátria e derrama 
flores sobre sua lousa preciosa, pode ser suspeita á 
Republica, quando celebra com delírio e magnitude 
uma das columnas brilhantes do edifício de suas 
liberdades? 

E' a primeira festa essencialmente litteraria que se 
celebra na terra de Santa Cruz depois da proclamação 
da republica. E' a primeira vez que, em pleno regimem 
democrático, se congregam os homens de lettras 
congraçados com a mocidade discente para honrar 
o génio. 

E esta primazia coube á Bahia, a Athenas brazilei- 
leira. 

Associando-nos ás homenagens que o patriótico 
Instituto Histórico acaba de prestar ao primoroso 
orador sagrado e ao mestre sem rival de nossa lin- 
gua, reverentes curvamo-nos ante sua memoria, li- 
cção preciosa aos presentes e ás gerações futuras. 

Cónego Manfredo de Lima. 



A Bahia não o viu nascer, mas foi a Bahia quem 
lhe abriu, de par em par, as portas do Parthenon 
das lettras, onde se sublimou nas sciencias; foi a 
a Bahia quem lhe burillou o nobre espirito e o 
formou na piedade; foi a Bahia que lhe offere- 
ceu o terreno aptissimo para a sega do bem, em 
que se salientou; foi na Bahia que encontrou o 
campo vastíssimo em que empregou sua variada 
actividade; foi ella o theatrode suas mais nobres 
ç elevadas acções: suas selvas incultas, seus matta- 



19S 



gaes espessos, seus agros cerros, suas immensas 
cordilheiras lhe serviram de tecto amoroso ou de 
leito deleitoso; o bravo índio ou o civilisado íncola 
lhe deram arrhas ás suas pregações. 

Na Bahia não nasceu, mas na Bahia cresceu, na 
Bahia formou-se. Na Bahia trabalhou, na Bahia go- 
zou. Na Bahia pregou, na Bahia salvou; e, quando 
mais não poude. na Bahia linou-se. Guarda, terra 
eleita, os despojos sagrados deste preclaro varfiu. 
Em teus celleiros litterarios alberga os prodigiosos 
ensinamentos deste génio soberbo, inimitável. Flo- 
restas virgens, nos murmúrios vagos de tua esver- 
deada folhagem, dae guarida á sombra ao teu 
missionário. Passarinhos dos bosques desferi os 
cantares dos teus chilros mimosos em honra do com- 
panheiro de tantos annos. ^ 

Terra minha muito amada, celebra com honra e 
distínceâo a memoria do teu civilisador. 

A. Machado. 



(Correio de Noticias) 

Ajuízo geral amplamente manifesto, a coramerao- 
raçáo do bí-centenario do Padre António Vieira, 
promovida pela iniciativa do nosso Instituto Geogra- 
phico e Histórico, esteve um acontecimento na 
altura dos créditos litterarios, scientiíicos e cívicos 
da Bahia. 

« A' proporção que se succediam os actos da ma- 
gna sulemnidade, distribuídos por sessões litterarias 
e terminadas por uma imponente procissão ante 
cuja enorme representação, na pedra do sumptuoso 
monumento de nossa crenças religiosas, so inscul- 
piu o testemunho de homenagem publica rendida ao 
grande cidadão, á medida que esses factos foram-se 
succedendo, dir-se-hia que a Bahia senhoril ia to- 
mando posse de si mesmo, e, alçada superior ás 
lutas pequenas e opprobriosas em que a envolvem, 



A 



193 



surgia aquella que por tanto tempo mereceu as 
honras da hegemonia com que lhe cognominaram 
de Athenas Brazileira. 

Era a Bahia a tomar posse de si mesma, acudin- 
do pelas múltiplas representações activas de seu 
espirito litterano, scientifico, industrial e artístico 
para dar mais um exemplo da superioridade de 
animo e serenidade de altivez, da nobreza de senti- 
mentos e critério de justiça, com que suas manifes- 
tações se revestem de característico altruísmo e 
notável sobranceria, de grandes ensinamentos e ade- 
antada civilisação. 

A Bahia fechou a commemoração do bi-centena- 
rio do Padre António Vieira com uma festa na 
altura da civilisação. 

Dir-se-hia que foi o tempo lhe abrindo ensejo, bem 
aproveitado, para que mostrasse, serena e varonil, 
que sabe honrar as suas tradições democráticas 
sem desvarios, faz justiça ao passado com bom senso, 
e consciente resguarda o futuro zelando vigilante 
pelo presente que é de acendrada fé republicana. 



(Jornal do Commercio do Rio) 

Passa hoje o centenário da morte, na Bahia, do 
notabilissimo cultor da lingua portugueza, o famo- 
so Padre António Vieira. 

Nasceu em Lisboa esta surnmidade litteraria. Edu- 
cado na escola clássica da sua época, dotado a um 
tempo de superiores qualidades de escriptor e de 
orador, o Padre António Vieira deixou de si im- 
morredouro conceito, porque ninguém como elle, 
na época em que nasceu, sabia manejar com maior 
opulência e com mais aristocrático arreganho a 
lingua primorosa de Camões. 

No púlpito, a phrase sahiu-lhe dos lábios espon- 
tânea, fácil, conceituosa, vivaz; no livro,, nas suas 
Cartas, nos seus Sermões, na sua Historia do Futu- 

A. V, 25 



194 



ro, a observação ligàva-se caprichosamente a um 
estylo opulento e engalanado, de sorte que ainda 
hojo o Padre António Vieira é modelo de oratória. 

Foi jesuíta, e um dos mais illustres membros 
desta vasta congregação. 

A Bahia serviu-lhe de desterro, e alli morreu, sem 
ter, na opinião dos historiadores, prestado ao seii 

Í)aiz os serviços que seria licito esperar do seu 
òrmidavel talento. Mas apezar desse senão, no que 
todos os investigadores do passado são concordes, 
é que o Padre António Vieira ergueu, com a sua 
eloquência, um monumento primoroso á litteratura 
do seu paiz. E, como homem de lettras, como estu- 
dioso, o Padre António Vieira é ura dos mais por- 
tentosos vultos da galeria portugueza. 



(O Pais) 



E' hoje o 2. centenário da morte do Padre Antó- 
nio Vieira, que falleceu na cidade da Bahia a 18 de 
Julho de 1697. 

Foi um dos maiores talentos que Portugal tem 
produzido; pregador eminente e escriptor emérito, 
não foi ainda excedido na propriedade da phrase, e 
no arrojo das descripções. 

Passou grande parte da sua existência trabalhosa 
no Brazil, que lhe deveu os mais assignalados ser- 
viços. Caracter austero, probo e franco até á rudeza, 
a autoridade do seu conselho influio muita vez nos 
decretos do throno e nos destinos da colónia. 

Para nós, brazileiros, honrar a sua memoria não 
é somente dar um preito de admiração dos seus 
grandes privilégios, é dever de reconhecimento aos 
extraordinários serviços. 



195 



Padre Vieira 

OFFERECIDO AO DR. SILVA LIMA 

(Contribuição para a festa do centenário) 
SOVETO 

Debaixo da sotaina esfarrapada 
Pulsou teu coração a vida inteira; 
Mais brilhante que o sol era, Vieira, 
Tua voz, tua palavra adamantada. 

Portuguez deste á Pátria tão amada 
Glorias, do berço á hora derradeira; 
Ao Brazil, tua Pátria na carreira, 
Foste a luz no cruzeiro constellada, 

Davas o pão, matando a sede aos pobres, 
Davas a luz, que entre as nações commanda 
Davas a lei que soffreava os nobres, 

Pequeno, forte, humilde, irmão do povo. 
Tua palavra, só, venceu a Hollanda, 
Teu nome é Portugal no mundo novo. 

Bahia, Julho de 1897. 

J. B. G. Cerne. 



Padre António Vieira 

Que vulto é esse grandioso e altivo, 
Que do Brazil na historia tanto brilha? 
Que para grandes feitos veio ao mundo, 
E o caminho da gloria cedo trilha ? 

Pregador primoroso, grão politico, 
Da Egreja luminar e defensor 
Dos indios brazileiros, em que algemas 
De dura escravidão quizeram pôr I 



196 



Quem é esse que outr'ora nos livrou 
De ficarmos um povo escravisado, 
E com tanta eloquência doutrinou-nos, 
Na lei santa de um Deus crucificado? 

E' o grande portuguez, o heroe brasileo, 
Do Evangelho eminente semeador, 
O clássico rival do magno Épico, 
De Portugal o máximo orador! 

Padre António Vieira— eis o nome 
No velho e novo mundo veneradol 
Águia sublime, filho de Loyola, 
Escrevendo ou falando, um inspirado! 

Três séculos são passados! ainda vive, 
Na memoria e no peito do Brazil, 
O nome que immortal honra dous povos, 
Mais alto do que estatua e mais gentil! 

Emquanto este planeta que habitamos 
Se mover a saudar o rei dos astros, 
Do génio excelso do preclaro luso 
Hão de luzir os fulgurantes rastros. 

Vale seu nome uma epopeia rutila! 
Hoje, porém, em doce orchestra echôa, 
Em hymnos numerosos repetido, 
Que ao seu bicentenário o mundo entoa! 

Coroam tua fronte, lá na gloria, 
Acções heróicas, tuas dignas filhas, 
O vulto illustre, nobre e magestoso, 
Que doBrazil na historia tanto brilha. 

Flive. 



197 



O bicentenário da morte do Padre António Vieira 

Escriptor, diplomata, missionário., 
Vivo elle está dos séculos no piosceniol 
O tempo, das grandezas usurário, 
Consome o corpo, mas não mata o génio! 



O renascimento das lettras im Bahia 

Não sabe-se qual foi a mais brilhante, 
Nem a mais erudita conferencia . . . 



Revela-se a Bahia, a cada instante, 
Ninho de glorias, «Mae daintelligencial 

Jornal de Noticias {Lulu Parola) 



No bi-centenario do Padre António Vieira 

Gloria da pátria lusa e da bahiana, 
D'um justo preito te render se ufana 

Nosso brio também; 
Paladino que em prol da caridade, 
Sacrificaste — ardente — a mocidade, 

Na cruzada do bem 1 



Quando echoava na floresta escura 
Da tua bocca sacrosanta e pura 

O verbo atroâdor, 
O selvagem curvava-se tremendo 
Ao veMe o vulto homérico, estupendo, 

De evangelisador. 



198 



Mas que nobre missão em que te empenhas? ! 
O que procuram nas incultas brenhas 

Os filhos de Jesus ? . . . 
Apedraria — que deslumbra a vista?., . 
A gloria, tão precária, da conquista ? . ; 

O ouro que seduz ? . . . 

Irão como o paulista bandeirante 
Em busca do Eldorado fascinante 

As mãos cheias colher 
Inexgotavel, preciosa Veifr-^" '^ ; 
Que a terra cuidadosa no seu seio 

Sabe, avara, esconder? 

• • • í ' 

Não, a cubica não te guia o passo, 
Sem temer nem fadigas, nem cançaço 

A' chuva exposto e ao sol 
D'outra victoria vás colher as palmas 
Purificando embrutecidas almas 

Da crença no crisol 1 

Terás por tecto — a abobada celeste, 
Por trfbuna sagrada — o monte agreste, 

Por templo — os alcantis, 
Porém lá, como cá, um povo inteiro, 
Civilisadoou rude brazileiro, 

Curvando-te a cerviz. 

Estatuário debastando a pedra, 
Da rocha aonde apenas joio medra 

Sabias arrancar 
A creatura san, civilisada, 
Que inda um dia talvez tosse levada 

Pr'a cima d'um altar. 

E' que esse verbo altivo e magestoso, 
Rolando em catadupas, caudaloso, 

Por entre os matagaes, 
Ardente— como sol d'aquellas zonas, 
Soberbo— como o curso do Amazonas, 

Como o tapir— aud^z. 



4 



199 



Da flauta canadense tinha encantos, 
Qual fabuloso Orpheu sustava os cantos 

Ferozes do tupy! 
Da penedia pela rude escarpa 
Era sonoro como as notas a harpa 

Sublime de David. 

Despertava em seu antro a fera brava, 
Do valente guerreiro a enorme clava 

Abatia a teus pés, 
Partia os arcos, deshervava as settas, 
E na doutrina simples dos ascetas 

Confundia os pagés. 

Do indígena inculto fez o crente, 
Quebrou a ignorância — esta corrente 

D'um eterno galé! 
E da noite sombria d'esses craneos 
Fez surgir os incêndios subtaneos 

Da verdadeira fé ! 

Nunca se viu no púlpito um gigante, 
Como tu, se elevar altisonante 

Dominando escarcéus, 
N'um arroubo sublime de insensato, 
Qual outro Prometheu, intemerato, 

A provocar os céus! 

Ergues a voz e rola pelas naves 
Como o incenso — em espiraes suavqs . ; 

A musica dos sons! 
Serena a tempestade, os aros tolda, 
A tua voz é um protheu, se amolda 

A forma que lhe impões. 

Este auditório attento que lectrizas, 
Oceano que agitas, tranquilisas, 

Qual outro povo hebreu 
Tua doutrina, teus conselhos sábios, 
Moysés! — elle suspenso de teus lábios, 

Ouve-te humilde e é teul 



200 



Se a soberba Castella o colo erguia 
Ou se o batavo audaz tinha a ousadia 

De querer dominar 
Chamados pelas côrtos de Lisboa, 
Diplomata sagaz junto a coroa 

Achavas teu logar. 

Alli, o teu engenho assaz fecundo, 
Resolvia espantando todo o mundo 

Intrincadas questões 
Da politica ousado palinuro 
Ensinando o caminho do futuro 

A's novas gerações. 

Junto dos reis teu gesto dominava, 

A' tua augusta fronte circumdava ~^\ 

Uma aureola de luz! 
Foi tua voz — o grito dos alarmas 
Teu escudo — o burel, as tuas armas 

—O evangelho e a cruz. 

Não cabem n'uma estreita sepultura 
Cinzas de quem attinge a estatura 

Dos vultos collossaes; 
Homens que como tu sobem tão alto 
As raias do porvir tomam de assalto . 

E tornam-se immortaes. ^\ 

Bahia, Julho 1897. 

Dr. Manoel Brito. 



201 

O Padre António Vieira 

COMMEMORANDO O SEGUNDO CENTENÁRIO DE SUA MORTE 

(Ao Sr. Theophilo Braga) 

« . . .Dir-se-ha que Deus está 
hollandez ? . . . » — Sermão 
pregado em 1640, na Bahia, 
pelo bom successo das armas 
de Portugal contra as de Hol- 
landa. 

Alto; magro; espectral; cozido na roupeta 

Da morte; cruz ao p?ito e solidéo á fronte; 

Livido a-barba hirsute:— outro Jehovah no «Monte» 

Da cathedra troveja o Victor Hugo asceta. 

Já não tem o sorriso, em lamina secreta, 

Com que ao peixe-voador vasara o orgulho insonte; 

Rompe-lhe a indignação em lavas de ignea fonte, 

Cedendo Juvenal o látego ao propheta 

Isaias.— E alli, n'um ímpeto tremendo, 

Rouca a voz, largo o gesto, emphatico e estupendo, 

Como um raio a estalar nas tenebras dos céus... 

Contra o hollandez que affronta a «Cruz» a couce d'armas, 

Não tendo em quem vingar seus Íntimos alarmas 
— Polvo enorme do génio— elle estrangula Deus. 

Rio— (1897.) 

Generino dos Santos. 



A 9 memoria de António Vieira 

Firme, grave, de pé, na estreita cela, 
De olhar prescrutador, nesse momento 
Parecia uma eterna sentinella, 
Estatua contemplando do firmamento. 
A.v. 



202 



À seus olhos o mtmdo se revela 
Grande e pequeno; mísero e opulento! 
Ora— a rugir em gritos de procella, 
Ora — a espalhar a luz do pensamento. 

E elle, o collosso lusitano, altivo, 
Vencendo o tempo audaz que o não consome 
Sempre gigante e heroe, mas sempre esquivo, 

Até na fria lousa em que se some 
Mostra-se ao mundo inteiro redivivo 
Transpondo os sec'los a deixar seu nome! 

Rio,— Julho 1897. 

Alexandre Fernandes. 



-A 



PARTE III 



VIDA E OBRAS 



DO 



^adjre -A-ntonio Vieira 



-i 



VIEIRA E SUAS OBRAS 

JUÍZO critico 
Noticia biographica do Padre António Vieira 




» adre António Vieira, um dos mais famosos va- 
rões que produziu Portugal, nasceu na Cidade 
de Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, e em 15 foi bapti- 
sado na igreja Cathedral, em cuja pia recebera a 
primeira graça o insigne Thaumaturgo Santo Antó- 
nio. Logo na puerícia se admirou a perspicácia do 
juizo, e sublimidade do talento, com que a natureza 
prodigamente o dotara, respondendo com tão discreta 
promptidão ao que se lhe perguntava, que eram ve- 
neradas as suas respostas como sent t enciosos apo- 
themas. 

Na tenra idade de sete annos partiu com seus pães, 
Christovão Vieira Ravasco e D. Maria de Azevedo 
para a Bahia, capital da America Portugueza, onde, 
obedecendo á divina vocação, desprezou heroicamente 
o amor e casa paterna, ausentando-se furtivamente 
delia para a Companhia de Jesus, em cuja sagrada 
milícia, depois de repetidas instancias, foi alistado 
em 5 de. Maio de 16.23, quando contava 15 annos; 
fazendo a profissão solemne a 26 de Maio de 1634. 

Desejoso de illustrar com o seu talento a religião 
de que era filho, se prostrou devotamente na presença 
de uma imagem da Virgem Santíssima, supplican- 



2Ô6 



do-lhe com fervorosas instancias o fizesse digno de 
exercitar o ministério de orador Evangélico, e para 
manifesto argumento do despacho desta supplica sen- 
tiu, que se lhe dissipava repentinamente do entendi- 
mento uma sombra, experimentando daquelle dia por 
diante penetrar sem difficuldade os mysterios cias 
sciencias mais profundas, que fielmente depositou no 
precioso thesouro da sua memoria. 

Como o seu engenho era agigantado, logo começou 
a fruetificar ao tempo de florescer, escrevendo de de- 
zesete annos as cartas annuaes do Brazil em a lingua 
latina, com elegante estylo, dictando no seguinte 
como mestre da primeira aos seus domésticos, as 
tragedias de Soneca, eruditamente illustradas, e com- 
pondo, de vinte, um Commentario Literal e Moral 
sobre Josué e outro sobre os Cantares de Salomão, --4 

em cinco sentidos. 

Para se instruir nas sciencias escolásticas,, não teve 
outro mestre mais que a si mesmo, compondo o 
curso de Philosophia e Theologia, pelo qual aprendeu 
estas faculdades, causando ao mesmo tempo inveja e 
admiração aos maiores professores delias que dispu- 
tasse, defendesse e arguisse com profunda subtileza 
nas questões mais diffleeis, sem o soccorro de in- 
strucçâo alheia, mas unicamente pela laboriosa appli- 
cação do seu estudo. Admirados os superiores de que 
nunca, sendo discípulo, fosse já mestre consummado, i 

o elegeram com maduro conselho lente, esperando ^ 

que da sua escola sahissem mestres todos os seus dis- 
cípulos; porém não teve effeito esta eleição por ser 
obrigado a acompanhar D. Fernando Mascarenhas, 
filho do Marquez de Montalvão, governador do Brazil, 
quando, em nome daquelle Estado, veio dar obediência 
ao Sereníssimo Rei D. João o IV, novamente elevado 
ao throno de Portugal. 

Tanto que chegou à Corte noanno de 1641, foi re- 
cebido por este monarcha com singulares demonstra- 
ções de affecto; e, certificado occultamente da sua* 
profunda capacidade, não somente o elegeu seu 
pregador, mas lhe commetteu negócios de gravíssimas 
consequências, que administrou com igual pru- 



207 



dencia, que fidelidade, assim nas cortes de Paris e 
Hollanda no anno de 1646 e 1647, como em Roma no 
anno de 1650, escrevendo em todas estas negociações 
doutíssimos tratados em obsequio do seu príncipe, 
e zelando como verdadeiro portuguez os políticos in- 
teresses desta monarchia contra as cavilosas máximas 
das outras coroas. 

Entre tão diversas nações por onde discorreu, deu 
claros testemunhos da penetração do seu juizo, 
adquirindo, com a lição dos livros mais raros que re- 
volveu nas melhores bibliothecas e com o commercio 
familiar dos professores de todo o género de sciencia, 
tanta cópia de noticias, que era respeitado como orá- 
culo da Sabedoria Christãe Politica. Com igual gloria 
da Religião Catholica e credito da sua profunda 
sciencia, convenceu em Amsterdam a Manasses Ben 
Israel, o mais insigne Rabino da Sinagoga, e trium- 
phou em Roma da impiedade de um atheista. 

Não alcançou menor gloria nas continuas disputas 
em que por varias vezes altercou com os mais doutos 
hereges, que, com apparentes sophismas, queriam 
rebater a solida efflcacia dos seus argumentos, con- 
tando nesta litteraria campanha as victorias pelas 
disputas, e os triumphos pelos combates. Soube per- 
feitamente as línguas mais polidas da Europa, fa- 
lando a italiana, franceza e hespanhola com proprie- 
dade e elegância: principalmente foi insigne na 
materna, explicando a sublimidade dos seus conceitos 
e a fineza dos seus discursos com phrases : puras, e 
termos próprios, sem mendigar vocábulos de idiomas 
estranhos. 

Foi o maior pregador do seu tempo, e o será com 
inveja das outras nações em toda a posteridade, ve- 
rificando em si a fabula de Hercules ír.illico, pois 
com a torrente de sua auren. doquenciá attrahia 
suavemente suspensa a attenção dos seus ouvintes. 
Em Roma, pátria dos oradores mais famosos, se 
venerou com profundo respeito a sublime facúndia 
da sua lingua, e ao mesmo tempo que venerou a 
memoria de Tullio, lhe diminuiu a gloria e sepultou 
0. nome. Nesta grande corte, aonde chegou segunda 



208 



vez por ordem de el-rei D. Pedro II a 16 de Novem- 
bro de 1669, pregou os cinco Discursos das pedras 
de David na presença da celebre heroina a Serenís- 
sima Rainha de Suécia, Christina Alexandra, que, 
como outra Sabá, veio a admirar de longe a discreta 
elegância deste Evangélico Salomão, sendo as 
acclamações e applausos que mereceu desta prince- 
za, como de todos os príncipes ecclesiasticos e secu- 
lares da cabeça do mundo, pequeno brado á sua fama, 
limitado premio ao seu talento. 

Da oratória Ecclesiastica teve o principado, falan- 
do o commum com singularidade, o semelhante sem 
repetição, o vulgar com novidade, o sublime com 
clareza e o humilde com decoro; sendo discreto sem 
affectação, copioso sem redundância, e tão corrente 
o estylo como nascido menos da arte, que da natu- 
reza. Representou com tão viva energia, que eram 
escusadas as palavras por serem eloquentes as 
acções. Penetrou com profunda subtileza os myste- 
rios mais occultos da Sagrada Escriptura, que toda 
leu por diversas vezes, examinando as suas maiores 
difficuldades >'om as luzes dos Santos P. P. e Sagra- 
dos Interpretes, em que foi muito versado, particu- 
larmente correndo a cortina aos Oráculos dos pro- 
phetas para serem intelligiveis os seus vaticínios. 

Em todas as sciencias foi eminente, sendo insigne 
humanista, consummado rhetorico, e elegante poeta 
vulgar e latino, subtil phylosopho, profundo theolo- 
go, sublime escripturario, grande chronologo e 
completamente douto na Historia Sagrada e profana. 

Ornado de tantos dotes com que copiosamente o 
enriquecera a divina liberalidade, nunca se desco- 
briu no seu animo ornais leve signal de jactância, 
antes recebendo notáveis honras e estimações de 
muitos príncipes, assim naturaes como estranhos, 
ijão foram poderosas para lhe alterarem a humilde 
Condição do seu génio; de tal sorte que, escrevendo- 
lhe em 12 de Setembro de 1680 o seu geral João 
Paulo Oliva de estar eleito confessor da rainha de 
Suécia, querendo esta heroina que fosse o seu dire- 
ctor para alcançar uma coroa pela qual tinha dei- 



A 



2Q9 



xado heroicamente tantas, se escusou com summa 
modéstia de ministério tão honorifico. 

Toda a sua ambição era da gloria divina, e não da 
humana; deixando por ella a pátria e o declarado 
affecto da magestade de el-reiD. João IV, partiu para 
o Maranhão a procurar com indefesso trtxbalno a 
cohversão daquella gentilidade, para cuja sagrada 
empreza se obrigara com voto desde a edade de 27 
annos. Acompanhado de alguns varões apostólicos, 
promovidos do seu exemplo, chegou ao Maranhão a 
22 de Novembro do 1652, onde, lançando os pri- 
meiros fundamentos àquella nova missão, de que 
era o fundador, foi obrigado a voltar a Portugal a 16 
de Julho de 1653 a solicitar da magestade de el-rei 
D. João o IV a liberdade dos Índios, como totalmente 
necessária c conducente para a sua conversão. 

Vencidos os obstáculos, que tão justificada repre- 
sentação se oppuzeram, segunda vez partiu para o 
Maranhão em companhia do seu novo governador, 
André Vidal de Negreiros, sendo impossível de rela- 
tar o ardente zelo com que pelo espaço de nove annõs 
cultivou aquella -agreste vinha. Para converter gen- 
tios, doutrinar cathecumenos e conservar neophitos 
visitou onze vezes as residências da missão; na- 
vegou vinte duas vezes rios mais extensos cjueoMár 
Mediterrâneo; discorreu a. pé quatorze mil léguas 
por lugares incultos, fragosos e solitários, tolerando 
excessivos calores, vigorosos frios, horrorosas 
tempestades, em que muitas vezes se viu quasi en- 
golido das ondas e, por superior auxilio, livre e salvo. 
Em beneficio dos novos convertidos compoz seis ca- 
thecismos em diversas linguas, levantou dezeseis 
igrejas, para cujo ornato despendeu mais de 50 mil 
cruzados, sendo tal o fervor apostólico com que en- 
sinava áquelles bárbaros o caminho da vida eterna, 
>arecia se animavam as suas palavras do espi- 
e S. Paulo e do zelo de Xavier. 

A tão laboriosa cultura correspondeu abundante- 
mente o frueto, pois á efflcacia das suas vozes se 
converteu infinita multidão de gentios Inheigaras, 
Tupinambás, e Poquiguarás, habitadores do Ceará, 
A. V, 27 



que m 
rito ae 



210 



Maranhão, Pará e o grande Rio das Amazonas, não 
sendo menos glorioso o triumpho com que, a 16 de 
Agosto de 1659, foi recebido pelos Nheengaybas em 
agradecimento de os ter reduzido á fé catliolica e â. 
obediência do el-rei de Portugal. 

Attendendo o Revm. geral da companhia Tyrso 
Gonzales ao incansável desvelo com que tinha aggre- 
gado tantos filhos ao grémio da igreja, o nofrieou 
a 17 de Janeiro de 1688 visitador da província do 
Brazil e superior absoluto de todas as missões, lu- 
gares que acceitou constrangido, como quem estuda- 
va mais obedecer que mandar. 



Os últimos annos de sua vida assistiu na Bahia 
para onde partira no anno de 1681, elegendo com 
madura resolução esta cidade para sepultura, já que 
fora o seu berço para a religião. Retirado em uma 
quinta do arrabalde da mesma cidade, se occupou 
como outro Cicero no seu Tusci\lano, preparando 
as suas obras para a impressão, o que executou por 
expressa ordem do seu geral, ordenando-lhe que 
também acabasse o livro intitulado Clavts Propheta- 
rum; posto que estivesse quasi cego, para fazer mais 
, meritória a sua obediência, se valia dos olhos alheios 
para lhe lerem os livros, cujas paginas apontava de 
memoria, achando-se fielmente o que nellas procu- 
rava, sendo este trabalho muito superior ás suas 
forças. 

Praticou como religioso observante todas as virtudes 
próprias daquelle estado. Levantava-se muito cedo 
para a oração, cortando pelo descanso necessário a 
sua idade para ficar expedito para o estudo. O livro 
espiritual de que mais frequentemente usava era o 
De Imitatione Christi, escutando como vozes divinas 
as sentenças que nelle lia 

Teve um animo impc/turbavol, soffrondo com 
heróica constância o ódio dissimulado em zelo de 
muitos emulos que, armados contra a sua pessoa, não 
deram grave matéria para exame da sua paciência, 



án 



não tendo outro motivo para esta injustiça do que 
nascer mais singular que todos em tantos dotes de 
que abundantemente o ornou a graça e a natureza. 
Retribuiu sempre bjneficios por aggravos, satisfa- 
zendo-se com tão no^re vingança dos seusoffensores. 
Nunca no seu semblante se descobriu o menor signal 
de alteração, ainda quando se sentiu infamado com 
satyras, accusado em diversos tribunaes; antes, como 
se tora o Olympo, q;ie goza de uma inalterável tran- 
quilidade, dissimulava com prudência e soffria com 
resignação toda esta furiosa tormenta. 

Entre tantas cortes e paizes por onde discorreu, nos 
quaos costuma reinar licenciosamente a incontinência,' 
conservou, como se fosso aujo, illeza a pureza com tal 
privilegio, que nunei teve contra esta angélica vir- 
tude matéria para a confissão. Foi exactíssimo obser- 
vador da pobreza religiosa, usando sempre dos vestidos 
mais remendados, c mservando uma capa pelo largo 
espaço de quatorze annos, que largou violentado. 

Igual era ao amor á pobreza o ódio das riquezas, re- 
jeitando heroicamente 25 mil cruzados que lhe mandou 
a Paris el-rei D. Joã j o IV para comprar livros para 
o seu uso e 40 mil cruzados que a Ilha Terceira lhe 
offereceu em premio de patrocinar com a sua autori- 
dade um grave neg >cio. Como sempre foi superior á 
mais alta fortuna; fugiu das maiores estimações que 
do seu talento fizeram os Summos Pontífices Inno- 
cencio X e Clemente X, as magestades augustas de 
Luiz XIV de Franra, D. João o IV e D. Pedro II de 
Portugal, e o duque de Florença, como das dignidades 
a que o destinavam estes soberanos príncipes, assim 
ecclesiasticas como seculares. 

Na ultima enfermidade padeceu tão acerbas dores, 
que o privavam do descanso, e tão resignado estava 
na vontade divina, que quando eram mais rigorosas 
rompia a sua afflieção nestas palavras: Dominus esí: 
quod bonum est in oculis suisfaciat 

Recebeu com teraissima piedade os sacramentos 
e expirou entre a meia noite e uma hora para o dia 
de 18 de Julho de 1697, em idade de 80 annos, 5 
mezes e 12 dias, e de religião 74, 2 mezes e 13 dias. 



212 



Teve a estatura mais que mediana, o rosto grave; a- 
testa dilatada, o nariz' aquilino, os olhos vivos, a eó* 
algum tanto morena, o eabello negro e a barba po- 
voada. 

Foi nas acções circumspecto, no trato aftavel, na 
conversação erudito, no discurso subtil, solrdo è 
pVompto, por cujos dotes conciliou o universal aflfecto 
de natUVâefc e estranhos. 

Extraordinário sentimento causou em todos os 
ânimos a sua morte; não havendo pessoa de qualquer 
qualidade que deixasse de testemunhar com lagrimas 
copiosas tâo deplorável perda. 

O cabido da cathedral da Bahia lhe officiou o fune- 
ral no Collegio da Companhia, assistido de toda a 
nobreza ecclesiastica e secular, no fim do qual foi 
levado o cadáver á sepultura aos hombros de D. João 
de Alencastre, governador daquelle Estado, seu filho 
D. Rodrigo de Alencastre, o bispo eleito de S. Thomé, 
seu irmão o vigário geral João Calmon, o provincial 
dá religião de S. Bento e o reitor do Collegio dos 
Jesuítas. 

Não somente o mundo concorreu para as ultimas 
honras deste grande varão, mas até o céo se empe- 
nhou em canònisar a sua memoria, apparecendo-lhe 
três noites antes da sua morte c três depois uma 
brilhante estrella de extraordinária grandeza, a qual. 
perpendicular sobre o seu cubículo, foi vista e admi- 
rada do mar e terra, affirmando as pessoas mais 
judiciosas, que aquelle meteoro era uma luminosa 
testemunha com que o côo declarava as virtudes do 
P. Vieira. 

Tanto que nesta corte se recobou a lamentável noti- 
cia de um seu tão illustre filho, se resolveu o Exm. 
Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier do Menezes, 
insigne Mecenas dos cstu lio.sos, dedicar umas sum- 
ptuosas exéquias á memoria do Príncipe dos Orado- 
res Evangélicos; e elegendo para theatro a casa 
professa de S. Roque, não perdoando a género .algum 
de dispêndio a sua profusa liberalidade mandou le- 
vantar uma soberba machina que oceupava grande 
parte do templo, animada de muitos emblemas o 



213 



poesias, com grande copia de luzes. Cantou o -.offteio-' 
a Musica daCapella Real, a aue fe7 o compasso o 
seu grande mestre ^Vntonio Marquez Lesbio. Não 
houve pessoa grave de uma e outra jerarchia que nâo 
assistisse a este fúnebre obsequio, o qual coroouo 
P. D. Manoel Caetano de Sousa/ tau illustre pelo 
sangue como pela erudição, com uma oração tão 
elegante, que renasceu nelle a eloquência que lamen- 
tava defunta». 

(Diogo Barbosa Machado) 

(Dibliotheca Lusitana. Tom. I.) 

Vinte o dons annos e meio depois de sua morto, 
aos 19 de Janeiro de 1750, foram exhumados os seus 
restos e guardados em um caixão ou urna, cujo 



Sua Pátria 

Durante muitos annos foi objecto de discussão 
cmal a pátria de tão eminente vulto, ficando, porém, 
desde ent?\o decidido sor elle natural da cidade de 
Lisboa; tendo aliás um irmão o parentes outros que 
nasceram na Bahia. 

Diz Rocha Pitta: «Muitos annos se duvidou* da 
«rugião em que nascera, passando a contenda desta 
«incerteza entre Portugal e o Brazil; e poderão appe- 
«tecera fortuna da pátria do Padre António Vieira 
«todas as cidades do mundo,, como as da Grécia plei- 
tearam o serem pátria de Homero; mas pela indigne 
«Corte de Lisboa, se declarou esta pre roga ti va e: foi 
«justo que produzisse ao mais famoso pregador: \iw& 
«cidade que fundara o capitão mais eloq : i*enfcG; poièm 
não deixou de iicar a da Bahia direito reservado pw& 
outra acção, porque vindo aelln-o- Padre* Anton*^ 
Vieira muito menino, pode litigar-se se deve, tanto a 
Portuga] pela felicidade do horóscopo em que nasceu^ 



214 



como ao Brazil pela influencia do clima em que se 
creou; se teve nelle mais domínio a força do planeta 
que o poder da educação; problema ou ponto sobre 
que disputam muitos autores, mais a favor da cre- 
ação que do nascimento». 

O Marquez de Santa Cruz respondeu ao seguinte 
programma do Instituto Histórico Brazileiro que lhe 
foi distribuído por S. M. o Imperador em 10 de 
Março de 1855: 

l.o Em que documentos se basearam os biogra- 
phos do Padre António Vieira, para lhe dar por pátria 
acidado de Lisboa? 

2.° Deprehender-se-ha da leitura de suas obras 
ser elle lilho do Brazil 1 

3.° Em conclusão, a ser possível, a apresentação 
de copia authcntica do assentamento de sou baptis- 
mo, que lixe a sua naturalidade f 

Discorrendo sobre esse assumpto comove vê na 
Revista deste Instituto de 1856 D. Romualdo susteria 
tou e provou que o eminente pregador era natural de 
Lisboa. E apresentou a sua certidão de idade que 
adiante transcrevemos. 

CERTIDÃO 

Manoel Pinto Corrêa d'Araujo Lima, .cavalheiro 
da ordem cie Christo e parodio da freguezia de 
Santa Maria Maior da Sé de Lisboa. 

«Certifico que, compulsando os livros do archivo 
desta parochia, achei no que serviu no atino de mil 
quinhentos noventa e seis, até mil seiscentos e dez, 
para os assentamentos de baptisados, casamentos e 
óbitos, sondo parodio Jorge Perdigão, a folhas cento 
e uma, um assento, cujo theor ó o segainto: Aos 
quinze deste Fevereiro de mil seiscentos e oito bapti- 
zei eu Jorgí Perdigão, cura, a António, filho de 
Christovao Vieira Rivas^o, escrivão das devassas,' 
e de sua mulher Maria de Azovedo. padrinho é 
somente Fe ralo Telles do Mjiuzes. — Oatrosim que, 
no verso da referida folha, é este o quarto assento, e 
á margem do mesmo se le — Padre António Vieira» 



2i5 



Nada mais se contém no dito assento que fielmente 
copiei, passei por certidão, e a que me reporto. 
Lisboa, 13 de Dezembro de 1854. — O reitor, Manoel 
Pinto Corrêa de Araújo Lima.» 



Figura natural é génio do Padre A. Vieira 

«Foi o Padre A. Vieira de não pequena estatura, 
como se até no corporal quizesse formar a naturpza 
mais que ordinária habitação úqúolle grande espirito: 
o rosto comprido e magestoso; nariz aquilino; bocca 
proporcionada; muita barba; o cabello na edade 
vigorosa preto; todo branco nâ velhice; a ôôr íno- 
rena; os olhos sobremaneira vivos, e que parecia 
scintillavam. O seu génio era humaníssimo, urbano 
o eortez; o engenho quasi sem egual; a memoria um 
real arcliivo de erudição, tão feliz em tomar, como 
em reter, o que lia. A discrição nadava-lho tão 
formosa na bocca, como ó admirada na penna; na 
conversação não era um só homem, era muitos ho- 
mens, e por isso dizemos que era um Vieira, porque 
é dizer tudo. Si se falava em sciencias maiores, era 
doutíssimo. Si em lettras humanas, históricas, poéti- 
cas, mathematicas, era sublime eexquisita a erudi- 
ção: ainda nas artes mechanicas, na náutica, na 
sciencia bellica, nos systemas, ou dictames políticos, 
era assombroso. 

Si se mettia a conversação em matérias mais ale- 
gres e divertidas, era tal a viveza e jucundidade e o 
enleio, em que mettia os corações o os entendimentos, 
que arrebatava tudo. 

A observância dos votos religiosos foi no Padro 
António Vieira cxemplarissima. O seu cubículo era 
o palácio da pobreza: o que alli se via, eram os 
livros para os seus elevados estudos; e sobre todos 
aquelle de que tirava, o que sabia, o seráfico doutor 
S. Boaventura, que era um pequeno crucifixo de 
metal, que tinha por peanha uma caveira do mesmo. 
Esta pequena imagem eram todas as suas alfaias; 



216 



estas as laminas o pinturas preciosas em que se 
revia. 

O seu desinteresse cm matéria de dinheiros c ri- 
quezasnunca so desmentiu um só instante em tantas 
occasiões; em que a tentação ora tào fácil o natural. 

Jamais quiz acceitar por seus sermões nem a menor 
sombra de agradecimento, por mais disfarçada que 
viesse; e da impressão dos que sé estamparam, outros 
levaram a utilidade. 

(Vida do Padre Vieira. André de Barros). 



O seu retrato sahiu aberto primorosamente em uma 
lamina na Cidade de Bruxellas com esta opigrapho na 
parte inferior: «Vera effigies celeberrimi P. Antonii 
Vieyra e Societ. Jesu Lusitanicorum Regum Con- 
cionatoris, et Concionatoram Principis quem dedit 
Lusitânia mundo, Ulyssipo Lusitaaioo, S >cietati Bra- 
sília. Obiit Baliioe prope uonagenarius die Julii 18, 
anni 1697. Qui esit in Régio C)lle^ii Bahiensis templo 
ubi sepultus frequentíssimo urbis concursu oetorno 
orbis desiderio.» 

Deste retrato se tiraram varias copias que sahiram 
abertas em Roma, Veneza e Barcelona com a mesma 
epigraphe. 



Seu Processo perante a Inquisição 

O Padre Vieira tendo incorrido ims iras da In- 
quisição em cujos cárceres foi caliir depois da morto 
de D. João IV, esteve preso o incommunicavcl em 
Coimbra durante 27 mczes. 

A base positiva da accusacâo orjm os seus livros 
da Clavis Prophetarwn e do Quinto Império. 

Processado em 1631, e prjso em 1633, depois de 
soffrer vários interrogatórios em que procurou re- 
pellirde si a mancha de heterodoxia, a sentença foi 
dada a 33 de Dezembro de 1667, que assim coaclue: 



217 



«Mandam que o réo Padre António Vieira ouça a 
sua sentença na sala do santo oflficio, na forma cos- 
tumada, perante os inquisidores, e. mais ministros, 
officiaes e algumas pessoas religiosas e outras eccle- 
siasticas do corpo da universidade, e seja privado 
p^ra sempre — de vos actioa e passiva e do poder de. 
pregar — o recluso nocollegio ou casa de sua religião, 
que o santo officio lho assignar, d'onde sem ordem sua 
não sahirá, e que por termo por elle assignado se 
obrigue a não tratar mais das proposições de que 
foi arguido no eurso de sua causa, nem de palavra, 
nem por escripto, sob pena de ser rigorosamente cas-' 
tigado; o que depois do publicada a sentença, o seja 
outra vez no seu collegio d'esta cidade (Coimbra) por 
um dos notários do santo officio em presença de toda 
a communidade; e que da maior condemnação que 
por suas culpas merecia, — o relevam — havendo res J 
peito ás sobreditas desistências e retractação e vários 
protestos que tinha feito de estar pela censura e de- 
terminação do santo officio depois que n'elle se vissem 
a explicação e intelligencia que ia dando a todas as 
suas proposições de que se lhe tinha feito carga, e ao 
muito tempo de sua reclusão e a outras considera-» 
ções que no caso se tiveram, e pague as custas.» (') 

Vieira ouvio ler a sentença de pé, durante duas 
horas em presença de um grande auditório, com os 
olhos cravados em um crucifixo do tribunal, sem 
fazer o menor gesto ou movimento. Elle, o theologo 
consummado, era condemnado a ser recolhido a um 
collegio de noviços ! 

Seis mezes depois, em Julho de 1688, foi perdoado 
pela Inquisição, e tendo partido para Roma, onde a 
sua recepção foi um triumpho, obteve do Papa Cle- 
mente X isempção da jurisdicção do Santo Officio. 



.(") O processo original existo na Bibliotkeca Nacional de 
Lisboa. O «In-stituto» possue uma copi«a. 

A. V, 38 



218 



O Padre António Vieira no Pará 

o Este vulto extraordinário, que tanto celebrisou-se 
em quasi todo o correr do século XVII, patenteando 
um talento altamente robusto, primeiro nos seus es- 
tudos, e depois na sua correspondência, no púlpito, 
na politica e na diplomacia, chegou a esta capital em 
15 de Novembro de 1653, nomeado Superior e Visi- 
tador Geral das Missões. 

Apresentou á Camará a caria regia de 21 de Outubro 
do anrio anterior, que lhe dava, além de outras facul- 
dades, autorisação para levantar igrejas, fundar 
Missões nos logares aue julgasse mais apropriados, 
trazer para ellas os índios do centro e cathechisal-os. 

Acérrimo defensor da liberdade dessa pobre gente, 
assim como também o foi o Governador e Capitão- 
Greneral deste Estado o Commendador André Vidal 
de Negreiros, um dos bravos das guerras que susten- 
tamos contra os hollandezes, a sua vinda não agradou 
aos colonos, acostumados desde longos ánnos a se 
locupletarem com os serviços dos mesmos índios. 

• •• 

No período de 1655 a 1661, que Vieira reputa assaz 
glorioso para si, fizeram-se sob o seu governo nove 
missões a diversos logares, descendo delles mais de 
três mil indios forros, e cerca de mil e oitocentos 
escravos. 

Percorreu grande parte do nosso interior, pacificou, 
converteu e civilisou as missões dos Nheengahibas, 
Cambòcas, Mapuás, Mamayanás, Aruans, Anajús, 
Guajarás, Tupinambás, Jurunas, Tapijós, Tricujús e 
outras. 

Compoz formulários e eathecismos tendo o por- 
tuguez de um lado e o idioma indígena de outro. 

Muitas vezes para estudar e aprender as línguas de 
algumas tribus, Vieira applicava o ouvido ábocca dos 
indivíduos para melhor ouvil-os e entendel-os, acon- 
tecendo não perceber palavra nem syllaha nenhuma, 
senão mais do que o sonido. 

Eram deste valor 03 serviços prestados pelo inirru- 



r 



210 



tavel sacerdote, que preferia dar a sua roupa e dormir 
em esteiras de tabúa para não ver a pobreza soffrer. 

Nenhum necessitado lhe batia á porta, que não 
voltasse mais on menos remediado. 

Foi assim e em levantar e paramentar igrejas, assim 
como em dar presentes aos índios, que o Padre An- 
tónio Vieira gastou mais de cincoenta mil cruzados, 
provenientes da impressão de suas obras e da li- 
beralidade de seus amigos. 

Homem completamente despido de vaidades, al- 
gumas vezes desempenhou funcções que não eram 
compatíveis com o sou elevado cargo, e até a de cosi- 
nheiro do seu collegio, onde succedia ficar sósinho. 

Entre as obras que compoz sobresahe uma a que 
ia dar o titulo de— Claois prophetarum,^- extrema- 
mente encomiada pelo Padre André de Barros, e com 
a qual Vieira occupou-se durante mais de vinte annos. 

Nunca chegou a ser impressa, nem mesmo con- 
cluída. 

Deste importante e preciosíssimo legado de uma 
epocha em que o clero prestou a este paiz incontes- 
táveis serviços, e quo é escripto em Latim, existe na 
bibliotheca publica desta capital, uma cópia manu- 
scripta em volume encadernado, que foi offerecido 
pelo illustrado D. António de Macedo Costa, que por 
largos annos honrou o sólio episcopal paraense, e de- 
pois foi com merecimento Arcebispo da Bahia. 

Como ninguém está isento dcs botes da maledi- 
cência, o santo missionário teve assim de pagar a' 
ella o seu tributo, e infelizmente aqui no Pará. 

Um alferes e um seu companheiro, ambos de lin- 
guagem libertina, espalharam um boato em detrimento 
da dignidade do exemplar sacerdote, que achando-se 
grandemente enfermo, e até com o sagrado viatico 
junto de si, declarou em presença de pessoas fide- 
dignas ser uma calumnia que lhe levantavam, assim 
como que perdoava aos seus detractores. 

Não obstante a Companhia, ciosa do credito dos seus 
membros, fez instaurar processo contra os execrandos 
calumniadores, que foram condemnados a degredo 
perpetuo para fora do Estado, e a irem á matriz ouvir 



220 



a sentença de mordaça na bócca, e despidos da cin- 
tura para cima; mas os jesuítas intervieram, pedindo 
que fosse perdoada a parte mais vergonhosa da mesma. 

Cansado de lutas e protelações em Portugal e na 
Itália, voltou o Padre António Vieira para o Brazil em 
1681, indo residir na Bahia, onde fallèceu a 18 de 
Julho de 1697 com perto de noventa annos de idade, 
porquanto nascera em 1608 na cidade de Lisboa. * 

Terminamos as presentes linhas eom algumas pa- 
lavras de Sylvio Roméro, esse espirito superior, que 
tanto honra a nossa pátria. 

Tratando ultimamente do famoso orador, elle assim 
se expressou: «E' uma das maiores intelligencias quo 
tem fulgurado no Brazil.— E' a figura mais alta da 
litteratura portugueza depois de Camões. — Foi um 
benemérito da liberdade c da consciência em pugnar 
pelos infelizes caboclos. 

Belém, Março de 1894. 

Raymundo Cyriaco Alves da Cunha. 

{Diário Official do Pará). 



A propósito da grave accusação irrogada ao ca- 
racter do preclaro varão, illustre consócio, residente 
na Capital Federal, enviou-nos os seguintes aponta- 
mentos: 

«O Padre foi accusado de ter deflorado uma india 
de Monção, e soffreu muitos insultos, aggressões, e 
quasi que o espancam. 

.0 Padre era de tempera de ferro, não fez caso, e 
por isso o Sargento-mór António Carneiro Homem 
Souto Maior fez uma queixa contra elle á Rainha: 
mandou esta ouvil-o; não respondeu. 

António Carneiro fez outra queixa, percorreu os 
mesmos tramites, e o Padre não respondeu, e o*do- 
nunciante salientou muito o despreso do Padre ás 
ordens régias, a ponto de a Rainha impor -lhe o pre- 



221 



ceito de obediência, e então o nosso Jesuíta respondeu 
assim: 

«Senhora. — Por duas vezes recusei-íne a manchar 
a baeta das minhas vestes sacerdotaes, respondendo 
á queixa que contra mim deu o Sargento-mór A. C. 
H. de Souto Maior. 

«Agora, Vossa Magestade ordena-me sob o pretexto 
de obediência, e se o faz, estou certo, é porque n<Vo 
sabe que em todo este Estado de Maranhão, que com- 
prehende o Piauhy, o Pará e S. José de Javarv, 6 
sabido que todo o Carneiro é doido, o toda Car- 
neira é. . . 

«Beija reverente as mãos de Vossa Magestade o 
humilde Capellão — Padre António Vieira.» 

Achei este papel, separado do livro dos registros 
do Archivo dos Jesuítas em Maranhão, o qual estava 
no antigo Convento da Madre de Deus. 

Offereci-o ao Instituto. O Imperador admirou-se 
muito da linguagem do Padre, e levou o manuscripto 
para casa para confrontar com os que tinha em seu 
archivo. Lá no Paço extraviou-se . . . 



Padre António Vieira 

QUESTÕES DO MARANHÃO 

«E' una dos vultos mais notáveis da historia do 
Brazil no século XVII. 

Educado na cidade do Salvador, desde verdes 
annos a todos assombro pelo seu pujante talento, 
máscula eloquência e variada illustração. 

Águia da tribuna sagrada, clle é ao mesmo tempo 
o hábil politico, o emérito escriptor, o mestre da 
língua. 

Após vários trabalhos apostólicos a que se entre- 
gara na Bahia, vai a PoMugal no momento da Res- 
tauração em 1641, exhibindo-se dosde logo nc 
púlpito e na corte, firmando brilhante renome. 

Encarregado de varias o melindrosas questões^ 



m 



envolve-s« e prepondera em todos os negócios pú- 
blicos, e contribuo para a rastauração de Pernam- 
buco, conseguindo a creação da Companhia de Com- 
mercio do Brasil. 

Voltando ao Brazil em 1652 envolve-se nas graves 
questões entie colonos e jesuítas no Maranhão. 

Consegue n'esta capitania por meio de uma elo- 
quentíssima predica serenar os ânimos; mas no Pará 
é obrigado a transigir com as imposições dos co- 
lonos. 

Vai ainda a Portugal em 1654, donde regressa no 
atino seguinte, portador de providencias, decretos 
e alvarás attinentes á liberdade dos indígenas. 

N'esta quadra dedica-se a enormes e fatigantes 
trabalhos de catechese pelos Ínvios sertões do Ma- 
ranhão, Pará e Amazonas: mas os colonos dessas 
duas capitanias irritados pelo excessivo poder tem- 
poral dos jesuítas, na questão dos indígenas, revol- 
tam-se contra elles, prendem-nos o os deportam 
para Lisboa, inclusive António Vieira, que é a prin- 
cipal victima desses ódios. 

Velho e alquebrado volta á Bahia em 1681 e fallece 
em 1697 approximadamente corn 90 annos de uma 
existência agitada e útil, legando á posteridade 
sermões, cartas, escriptos, que são um primor de 
eloquência e de estylo». 

(Borges dos Heis — Chorographia e Historia do 
Brasil, Bahia, 1894.) 



Catalogo das Obras impressas 

Sermões. Parte I — Lisboa, por João da Costa, 1679, 
559 pags. 

Parte II— Lisboa, por Miguel Deslandes, 1682,. 
470 pags. 

Parte III— Lisboa., por Miguel Deslandes, 1683, 
574 pags. 



i- Parte IV — Lisboa, pelo mesmo, 1685, 600 pags. 

i- Parte V— Lisboa, pelo mesmo, 1689, 624 pags. 

i Parte VI— Lisboa, pelo mesmo, 1690, 595 pags. 

Parte VII — Lisboa, pelo mesmo, 1692, 558 pags. 
Parte VIII — (Xaoier dormindo e Xavier acordado). 
i Dedicada aos três príncipes. Lisboa, pelo mesmo 

impressor, 1694, 536 pags. 

Maria Rosa Mystica. Excellencias, poderes e ma- 
ravilhas do seu rosário, 30 sermões. Parte I, (e que 
se conta como IX dos Sermões do auctor), Lisboa, 
pelo mesmo impressor, 1686. 

Maria Rosa Mystiea, etc. Parte II (contada como 
X dos Sermões). Lisboa, 1688, 518 pags. 

Parte XI — Offerecida á Senhora Rainha da Grã- 
Bretanha. Lisboa, por Miguel Deslandes, 1696, 
*- 590 pags. 

Parte XII — Dedicada á puríssima Conceição da 
Virgem Maria. Lisboa, 1699, 441 pags. 

Palavra de Deus empenhada e desempenhada cm 
dous Sermões (como Parte XIII). Lisboa, pelo mes- 
mo, 1690, 260 pags. 

Sermões e Vários Discursos. Tomo XIV. Obra 
posthuma. Lisboa, por Valentim Deslandes, 1710, 
350 pags. 

Voses Saudosas da eloquência, do espirito, do zelo 
e eminente sabedoria do Padre António Vieira. Lis- 
^ boa, por Miguel Rodrigues, 1736, 315 pags. 

Comprehende a Relação da Missão da Serra do 
Ibiapaba e outros escriptos, como o Papel Forte, 
Memorial sobre os serviços do seu sobrinho Ber- 
nardo Ravasco, Defesa do livro— Quinto Império, etc. 

Sermões vários o Tractados ainda não impressos: 
que formam o torno XV dos Sermões, e das Vozes 
Saudosas o tomo 2o. —Lisboa, por Manuel da Silva, 
1748, 434 pags. 

Sermões Selectos do P. António Vieira. Lisboa, 
na Typ. Rollandiana, 1852-1853, 6 tomos. 

Historia do Futuro. Livro ante-primeiro. Lisboa, 
Pedroso Galrão, 1718; 2 a edicc." Domingos Rodrigues, 
1755, 220 pags.: reimpressa na Bahia em 1838, 



224: 



Vos Sagrada, politica, etc, supplemento ás Vozes 
Saudosas. Lisboa, Luiz Ameno, 1748, 247 pags. 

Rhetorica sigrada, ou Arte de pregar, descoberta 
entre outros fragmentos littorarios do P. António 
Vieira, por Carvalho Bandeira, Lisboa, 1745,37 pags. 

Ecco das Vozes saudosas, formado em uma carta 
apologética em língua castelhana. Lisboa, Luiz 
Ameno, 1757, 143 pags. 

Cartas. Tomo I— Offerecido ao Cardeal Nuno de 
Ataíde. Lisboa, 1735, 468 pags. 

forno II — 1735, 479 pags. Estes dous volumes sa- 
hiràm por diligenciado Conde da Ericeira. 

Tomo III — Offerecido ao patriarcha de Lisboa, D. 
Thomás de Almeida. Lisboa, 1746, 451 pags. 

Cartas do Padre António Vieira a Duarte Ribeiro, 
de Macedo. Lisboa, 1827, 354 pags. typ. do Eugénio 
Augusto. 

C;irta escripta a El-rei, e datada do Maranhão ali 
de Fevereiro de 1660, em que lhe dá conta do estado 
das missões na província do Brazil. (Reo. do Inst. 
Gcog. Brás. vol. 4/ 1842). 

Annua da Missão dos Mares Verdes (1624-1625) 
mandada a Roma. E outra da missão da Capitania do 
Espirfto-Santo, dos mesmos annos. (Reo. f idem, 
vol. V.) 

Arte de Furtar, espelho de enganos, theatro de 
verdades etc. Composta pelo P. António Vieira. Ams- 
terdam 1652, 512 pags: reimpressa em Londres, 
1820. 

Noticias recônditas do modo de procedera Inqui- 
sição de Portugal com os seus presos. Informação 
que ao Pontífice Clemente X deu o P. António Vi- 
eira. Lisboa, Imp. Nacional, 1821, 272 pags. 

Os seus sermões foram traduzidos em italiano, 
francez e castelhano. 

A collecção completa das obras consiste em 14 
volumes de Sermões, 2 das Vozes Saudosas, 3 das 
Cartas, A Historia do Futuro e A Arte de Furtar. 



225 



Opiniões sobre Vieira. 

Soria impossível repetir os elogios com que cele- 
bres escriptores exaltaram o nome deste grande 
varão: somente transcreveremos alguns, para que 
claramente se conheça a sua grandeza. 

Não ha escriptor estrangeiro, que tenha tratado 
de nossa litteratura, que não fale de Vieira com 
assombro e enthusiasmo. 

Seja o primeiro aquelle que o foi na dignidade o 
Summo Pontífice Clemente X, no Breve, que lhe 
expediu para que pudesse publicar as suas obras 
sem que fossem examinadas por algum Censor. 
Começa. «Dilecte Fili: Salutem, et Apostolicam Be- 
nedictionem. Religionis zelus, Sacrarum litterarum 
scientia, vitoe, ac morum honestas, aliaque laudabi- 
lja, probitatis, ac virtutum merita, super quoe apud 
nos fide digno commendaris testimonio». 

Foi ainda o Santo Padre Clemente X quem admi- 
rando a agudesa de engenho e sciencia das Escriptu- 
ras, disso d'elle: «Devemos dar muitas graças a Deus, 
por fazer este homem Catholico; porque si o não 
fosse, poderia dar muito cuidado á Igreja de 
Deus». 



João Paulo Oliva, Geral da Companhia, congra- 
tulando-o do sermão de S. Estanisláu em uma carta 
escripta a 13 de Março de 1675: «Dou graças a Deus 
por ter dado á Companhia um homem, que pode 
falar tão divinamente, e que sabe proferir o seu con- 
ceito, o que todos confessam que é igualmente mara- 
vilhoso assim no que entendemos, como no que não 
penetramos, mas igualmente veneramos nas suas 
intelligencias». 



«Que sermon dei Padre António Vieira nó es un, 
assombro? Hombre verdaderamente sinsemejante d^ 
A. V, 29 



226 



quien me attrevera decir Io que Veleyo Paterculo di 
de Homero: 

«fíeque «ftte illúrti quem imitarettfr, mqm post 
iílffíftqui ettfn imitari possit, inventus est». 

(Fr. Bento Feijó, Theatro Critico). 



«A melhor censura que se pode dar ás suas obras 
é e será sempre o seu nome». 

(Dr. Frei Jeronymo de Santiago). 



«Príncipe de todos os pregadores, sem competên- 
cia de netfhum, (posto que com inveja de todos) 
respeitado pelo oráculo do púlpito entre as nações 
do mundo», 

(D. Frei João da Madre de Deus, Arcebispo da 
Bahia). 



aDe cada uma das suas virtudes se podia fazer 
diverso e largo capitulo: e si o mundo as visse no 
púlpito sem sobrepelliz, seria da opinião, que concebi 
e conservo persuadido, que entre tantos talentos de 
espirito e naturaes, o menor no Padre António Vieira 
era o de pregador». 

(Padre Gaspar Ribeiro). 



«Mestre dos pregadores evangélicos o sempre com 
uma vida inculpável e justificada. 

Não podia caber em povoações pequenas, quem 
havia de occupar com a sua fama o mundo inteiro. 

Representa na subtileza a um Agostinho, na profun- 
didade a um Tertuliano, na magestade a um Leão, 
& m suavidade a um Ambrósio ou um Bernardo. 



ffl 



Nascendo em Lisboa morrendo m Rabia, knirou 
a uma com o berço, á outra com a sepultará. Nin- 
guém poderá negar que foi o Pad**e Vièiim una ramo 
de tão alta esphera que bastou para honrar dois mun- 
dos». 

(D. José Barbosa, synodal do patm*chaiJo $ c&mot 
da Academia Real, etc). 



o Evangélico Pregador, de quem podemos dizer, 
o que o Grande Bautista de si, que era a voz. Sempre 
tive ao Padre António Vieira por homem espiritual». 

(Padre Bartholomeu do Quental, fundador da con* 
gregaçâo do Oratório). 



«Grande Homem, que nascendo para ensinar e 
explicar tudo e a todos, só em si se nos fez sempre 
incomprehensivel». 

(Dr. D. João Eoangelista, consultor do Santo 
OJicio). 



«Pregador divino, apostolo elevado, missionário 
angélico». 

(D. Manoel Caetano de Sousa. Oração Fúnebre, 
Í697). 



«A sua eloquência vence a admiração. Glorioso 
tjfnhre da nação portugueza». 

(£>. Diogo Justiniano, arcebispo de Grangamr). 



228 



«Feliz parto da famosa Lisboa». 

{Fr. José de Soma , qualificador do Santo-Officio). 



«Pregador, ou S. Paulo; ou Vieira». r 
(D. Luiz de Sousa, Primaz das' Hespanhus) . 



«E* entre todos os pregadores o que o sol entre 
todas as luzes». 

(Padre Manoel de Sousa, Congregação do Oratório). 



«Príncipe dos pregadores evangélicos, o Grande 
por antonomásia, mas nunca bastantemente engran- 
decido». 

(Fr. José Pereira de SanV Atina, consultor do Santo 
Officio). 



«Varão incomparável e de entendimento muito 
além da esphera dos humanos». 

(Padre Carlos A. Casnedi) 



«Será talvez opinião temerária, mas a minha é 
que nenhum povo possuiu jamais nas obras de um 
só homem tão rico e tão escolhido thesouro da lingua 
própria, como nós possuímos nas deste notável 
jesuíta. 

Se a nossa lingua, como agradecida, e em certo 
modo desvanecida de se ver tratada por quem a 
sabia aperfeiçoar e honrar, se prestava aquasitudo 

3ue d'ella requeria Vieira, de sua parte Vieira pelo 
isvello, pela estimação, pelo mais fino respeito, ple- 
namente lhe merecia tão primorosa complacência. 



229 



Se o uso da nossa língua se perder, e com ella por 
acaso acabarem todos os nossos o^-riptos que não 
são os Lusíadas e as obras de Vieira; o portuguez, 
quer no estylo da prosa, quer no poético, ainda vive- 
rá na sua perfeita Índole nativa, na sua riquíssima 
copia e louçania. 

Não ha uma composição de Vieira, que não mostre 
muita capacidade de entendimento, sufficiente ordem 
e expressão claríssima dos seus conceitos». 

(D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Viseu. — 
Mem. Hist. e Crit. 2. a Edic. 1897). 



«Sujeito em quem concorriam todas as partes ne- 
cessárias para ser «ontado pelo maior pregador do 
seu tempo». 

(Conde de Ericeira, D. Francisco Xavier de Me- 
neses). 



«Proponho ao Mundo um dos maiores homens 
de Portugal, e proponho a Portugal o maior homem, 
que em muitas idades elle dco ao Mundo. 

Lustre immortal da Companhia de Jesus, a pátria 
lhe deu o titulo de Grande, o inundo todo o admirou 
ainda maior e será seu nome em todos os séculos 
occupação da fama. 

Pae da eloquência e do magestoso idioma portu- 
guez, honra da pátria e em tudo heróe consummado. 

«Vai-te mil vezes ditoso: que emquanto houver 
homens te acclamará a fama; emquanto engenhos, 
te cederão os maiores; emquanto houver púlpito, 
se suspirará tua voz; emquanto houver Mundo, se ou- 
virá teu nome; emquanto houver Deus, durará tua 
gloria». 

(André de Barros, Vida do Apostólico Padre 
António Vieira. Lisboa 1746). 



230 



A' fama do Padre António Vieira (*) 

Cessem do orador grego e do romano 
As glorias immortaes, que a fama canta, 
Que outro orador mais alto se levanta 
N'outro sol da eloquência soberano. 

Demosthenes, e Tullio Luzitaíio 
António foi, mas com vantagem tanta 
Quanta leva a doutrina illustre e santa 
Aos assumptos politico e profano. 

Sol da eloquência foi no movimento 
Com que girou; qual sol á terra escura, 
A todo o mundo encheu de luzimento, 

E teve, como o sol, esta luz pura 
N'uma parte do mundo o nascimento, 
N'outra parte do mundo a sepultura. 

António Telles da Siloa. 



Soror Violante do Céo, religiosa dominicana tio 
convento da Rosa em Lisboa e celebre poetiza, lhe 
fez em seu applauso a Sylva seguinte, que está nas 
suas Rimas , á pag. 74: 

«E' vosso entendimento 
Felice suspensão do pensamento; 

Vossa doce elegância 
Cifra da mais perfeita consonância. 

Vossa graça excessiva 
A pedra de Cedar mais attrativa. 

Vosso saber profundo 
Portentoso exemplar de todo o mundo; 

Vossa agudeza rara 
Delicia do discurso altiva e clara; 

Vossp estylo famoso 
Agradável motivo do invejoso. 

(') O original acha-se na Torre do Tombo, em Lisboa^ 



«31 



Etttfim vosso juizo soberano, 
Credito do divino, honra do humano. 
Ohl vivei assombro das edades, 

Gosto das magestades, 

Extasis dos sentidos, 

Prodígio dos nascidos, 

Excesso dos passados: 
Vivei para motivo dos agrados, 

Objecto dos louvores, 

Archivo dos favores, 
Compendio de excellencias, 

Thesouro das elegâncias. 
E se minhas grosseiras ignorâncias 

Têm sido dilatadas, 

Deixae-as castigadas. 
Mas confessae, doutíssimo Vieira, 
Que se ignorante sou, sou verdadeira». 



Soror Joanna Ignes de la Cruz na Censura que fez 
ao Sermão do Mandato, impressa no 2o Tomo das 
suas obras diz: «Siempre admirãndome de su sin 
igual ingenio. Las proposiciones deste subtilissimo 
talento, que es tal su suavidad, su viveza, su energia, 
que ai mismo que dissient enamora com la belleza 
bella Oracion suspende com la dulçura, Hechiza com 
la gracia, eleva, admira, y encanta com el todo. . . 
admirable pasmo delos ingenios». 



Bonucci Istor. dei Re D. Affonso Enriq. liv. 3. 
cap. 10. «Bon noto ai mond pea il suo singolare 
ingegno, profunditá de sapere, e doòtrczza amrnira» 
bile in manegiar le divine Scriturc». 



Innocencio Francisco da Silva em seu Diccíonario 
Bibliographico, traz uma minuciosa biographia do 
Padre António Vieira, na qual cita a seguinte apre- 
ciação e conceito do bispo de Viseu em relação a 



232 



Vieira: depois de chamar ao corpo completo das 
suas obras um monumento admirável da própria 
linguagem, nào duvida assegurar que— se o uso da 
nossa lingua se perder, e com elle por acaso acaba- 
rem todos os nossos escriptos que nâo sejam os Lu- 
ziadas e as obras de Vieira; o portuguez quer no 
estylo da prosa quer no poético ainda viverá na per- 
feita Índole nativa, na sua riquíssima cópia e louça- 
nia». 

(Dicc. Bib. Vol. l,o Lisboa, 1858.) 



Pedro José da Fonseca, no Diccionario da lingua 
portugueza da Academia Real das Sciencias, traz 
brilhante biographia do erudito pregador, na qual 
relaciona entre. outras proposições as seguintes, de 
diversos escriptores, relativas ao mesmo Padre 
Vieira: 

a) Príncipe .de todos os pregadores. 

b) Serri competência de nenhuma (posto que com 
inveja de todos), respeitado pelo oráculo do púlpito: 
entre as nações do mundo. 

c) Príncipe da eloquência sagrada. 

d) E' entre todos os pregadores o que o sol entre 
todas as luzes. 

e) Oráculo dos pregadores. 

f) Mestre de todos pregadores. 

g) Mestre de todas as sciencias. 

h) Verdadeiramente foi pregador real ou o rei de 
todos os pregadores. 

i) Glorioso timbre da nação portugueza, mostre 
universal de todos os declamadores evangélicos. 

k) O grande, memorável, insigne Padre António 
Vieira, feliz parto da formosa Lisboa, glorioso ornato 
da virtuosa companhia, invejado ornamento do es- 
clarecido Portugal. 

/) Engenho soberano. 

m) Foi quasi outro Salomão. 

n) Homam maravilhoso. 

o) Julgaram sempre os mais discretos e sábios 



233 



quanto fosse obra de entendimento, tão raro devia 
sahir á luz para accrescentar mais luz á pátria; que 
a não ter outros esclarecidos filhos, bastavam as 
luzes de um só Vieira para darem a todo o Portu- 
gal o illustre nome de Luzifania. 
„ p) Varão raro, o maior orador de todas as edades. 

q) Egualmente mestre, que milagre dos oradores 
sagrados e profanos. 

r) Singular orador, angélico pregador. 

s) Grande heroe, lustre de Lisboa, credito de Por- 
tugal e admiração do mundo todo. 

t) Admirável e inimitável heroe, verdadeiro Salo- 
mão e apostolo dos nossos tempos. 

u) O padre Manoel- Bernardes, -que o alcançou, o 
que por sua grande autoridade, intelligencia e virtude 
se não pôde lançar de suspeito, o cita varias vezes 
com veneração e louvor desta maneira: 

v) segundo disse um discreto; 

x) como discretamente disse o Padre António 
Vieira; 

y) como uma vez ideava um grande pregador. 

2) Outro escriptor também coevo o intitula o mais 
insigne pregador de todas as edades». 

(Dicc. Port. da Academ. Real de Sciencias). 



«Os seus sermões são dignos de ser perpetuados 
não só para a utilidade universal, mas para singular 
gloria do Reino; pois quando não tivesse produzido 
mais talentos, que os do Padre António Vieira em 
tudo eminente, lhe bastava para summo credito». 

(D. Fr. Francisco de Lima,' Bispo do Maranhão). 



«Porém tão fora estou de o poder desculpar, que 
é forçoso que o torne a arguir de dous crimes: da 
inveja, que do seu talento toda a Europa tem a Por- 
A. v t 30 



234 



tugal, e da desesperação em que metle os Ora- 
dores, de poder imitar o seu estylo». 

(P. D. Raphael Bluteau, Clérigo Regular). 



«António Vieira, da Companhia de Jesus. Foi bau- 
tisado na Freguesia da Sé de Lisboa, na mesma pia, 
onde o fora Santo António, cuja língua e espirito 
soube imitar na eloquência, agudeza, fervor com que 
expoz a palavra divina, sendo, sem controvérsia, no 
seu tempo (e o será nos futuros) a gloria dos Púl- 
pitos, a luz e mestre dos Pregadores». 

(Francisco de Santa Maria. Annua Histórica, Diário 
Português, Lisboa, 1714). 



«O seu talento foi ainda maior que o seu nome, 
com o qual voou por todos os hemispherios a fama 
elevada pela sua penna. Foi em Portugal pregador 
dos seus augustissimos monarchas e da sereníssima 
rainha de Suécia em Roma, cuja sagrada cúria o 
ouviu com admiração e lhe respondera com o premio 
de altas dignidades, se a sua religiosa modéstia o 
não obrigara a fugir entre os estrangeiros das honras 
e logares de que já se livrara entre os naturaes, onde, 
achando na vida e na posteridade as maiores esti- 
mações são ainda inferiores ás que tem entre as 
outras nações, andando os seus escriptos traduzidos 
e venerados por todo mundo catholico com grande 
gloria do nome portuguoz». 

(Rocha Pitta. Hist. da Am. Port. Lio. 8. n. 54) 



«Resta, só que, satisfeito o Brazil com a subida 
honra, que ninguém lhe contesta, de haver creado em 
seu seio esse homem notável, e servido de amplíssi- 
mo thçatro de suas heróicas virtudes, ene* vez; de inu- 



235 



teis e intermináveis disputa? sobre a sua naturalida- 
de, consagre á sua memoria um voto ou testemunho 
publico desse vivo interesso e sympathia, que lhe 
tributa; e nesta consideração ousamos lembrar que 
o seu retrato, outrora venerado em muitas cidades 
da Europa, seja collocado em todas as bibliothecas 
do império, e se promova em beneficio da mocidade 
que cultiva as lettras, a vulgarisação das mais esco- 
lhidas dessas obras admiráveis, onde felizmente se 
conserva o precioso thesouro de uma lingua tão rica, 
harmoniosa, e musical, qual 6 a pórtuguoza, sem 
duvida uma das principaes glorias das duas nações, 
a que pertence este homem extraordinário». 

(D. Romualdo, Arcebispo da Bahia. Reoista do 
Instituto Histórico Brasileiro. Vol. X.). 



«António Vieira, cujo renome fez época por quasi 
toda a Europa, e pela maior parte da America, nasceu 
cm Lisboa aos de Fevereiro de 1G08, e teve por pães 
a Cliristovuo Vieira Ravasco, lidalgo da casa real, e 
D. Maria de Azevedo. De oito annos incompletos de 
idade, embarcou-se para a Bahia, escapando nessa 
viagem do naufrágio, na altura da Parahiba, em o 
dia 20 de Janeiro de 1G16, e alistado na companhia 
dos Jesuítas, foi elevado ao sacerdócio a 13 de De- 
zembro de 1635. 

Tão grande apostólico quanto estadista, lhe foram 
confiados importantes negócios ante as nações es- 
trangeiras, e no Brazii, còm especialidade no Ma- 
ranhão e Pará; o seu nome hade sempre ser dura- 
douro, pois, munido unicamente da força suasória, 
que o distinguiu, fez mais reducções e estabeleci- 
mentos de indios do que poderião fazer grossos exér- 
citos: foi na Bahia o nono reitor do collegio da 
companhia, e o decimo provincial, e são geral- 
mente estimadas as suas producções litterarias, pela 
facúndia, elegância e sublimidade de princípios, que 
encerrão. 



1 



236 



Falleceu no mesmo collegio á primeira hora do 
dia 18 de Julho de 1697, com perto de 90 annos de 
idade, c 75 de religião, tendo feito profissão do 4 o voto 
em 26 de Maio de 1644. Sua moléstia foi rápida, e, a 
despeito da idade avançada, jamais perdeu o uso in- 
teiro de suas faculdades intellectuaes, porquanto, 
ainda entre as dores da enfermidade, compunha, 
dictando aos amanuenses, por já estar cego. 

No dia immediato ao do sua morte, fafloceu seu 
irmão Bernardo Vieira Ravasco, que no emprego de 
secretario doestado do Brazil tinha feito serviços im- 
portantes». 

(Ignacio Accioli. Memorias Históricas). 



«Foi António Vieira dotado de um engenho subtil e 
importante, de uma imaginação viva e asisada, de 
uma alma nobre e aspirante a grandes emprezas; qua- 
lidades estas, que, sendo cultivadas pela desvelada 
educação que do seus pães recebeu, se desenvolve- 
ram tão promptamente, e se mostraram tão suas, 
que a mesma subtileza e penetração, que se notava 
nas respostas e ditos de sua puerícia, se admirou na 
sua decrepitude, com a addição de uma firmeza de 
mempria, de uma clareza de idéas, e de uma facilida- 
de de expressão que raramente se encontra em a 
avançada idade em que elle terminou seus dias. 

Dos seus sermões sabiam os ouvintes uns com mo- 
vidos, outros satisfeitos, e todos admirados do 
engenho, do saber e espirito do pregador. (Não só 
o diz André de Barros, e Francisco de Santa Maria 
no Diário Portuguez; mas até o confessa o auetor 
da Deducção Chronologica, o mais ardente adver- 
sário da gloria de Vieira). 

As cartas (4 volumes), posto que não tenham as 
graças das de Cícero, nem o delicado gosto das de 
Sevigné, são a umas e outras pouco inferiores na 
elegância e nobreza de linguagem, e por ventuia 
superiores na qualidade e importância dos assumptos. 
São modelos de estylo epistolar, e não se encontram 



237 



n!eilas aquelles defeitos tão frequentes nos sermões 
do que tanto adoecia o seu século, ;>>r isso foram 
sempre tidas pelos portuguezos entendidos em 
subida estimação. 

Não se encontra, ó verdade, em Vieira um estylo 
melifluo e cadencioso; sua imaginação viva e ardente 
falleco de suavidade; seu coração secco não minis- 
tra á penna os doces traços da sensibilidade; assim 
que, debalde buscaremos em seus discursos os 
movimentos patheticos tão necessários a um orador 
christão; porém não ha um só escripto (.reste homem 
extraordinário que seja desprezível, e que não mereça 
ser lido; e pelo que respeita á linguagem, em que 
sobreleva a todos os escriptores portuguezes, con- 
cluiremos repetindo o que disse o mais douto, o mais 
justo apreciador de Vieira e do suas obras, que — 
«so o uso da nossa lingua se perder, e com ella 
por acaso acabarem todos os nossos escriptos, que 
não são os Luziadas e as obras de Vieira, o portu- 
guez, quer no estylo de prosa, quer no poético, 
ainda viverá na sua perfeita Índole nativa, na sua 
riquíssima copia e louçania. Será talvez opinião 
temerária; mas* a minha ó que nenhum povo possuiu 
jamais nas obras de um só homem, tão rico, tão es- 
colhido thesouro da lingua própria, como nós pos- 
suímos nos d'cste notável jesuíta». 

Elle empregou a linguagem culta e publica,, e 
também a familiar o domestica; fallou a dos negócios, 
a da cortezia, a das artes, a dos provérbios: e como 
tratou tantos e tão diversos assumptos, pode affir- 
mar-se, fora de hyperbole, que em suas compo- 
sições a resumiu toda inteira com felicidade sin- 
gular». 

(Roquete — Biographia do Padre Vieira, Rev. do 
Inst. HisL Brás. Vol. 6. pags. 229 a 252). 



«Vieira (Antoine;, né á Lisbonne le 6 février 1608 
d'une famillo illustre, ayant été mené par $es parents 
au Brésil, fut si frappè des travaux des jesuites pour 



238 



la ppopagation de la foi datis cette contrée, qu'il entra 
dans leur societé en 1623. Envoyé en Portugal, il y 
prêcha avec une réputation extraordinaire: Philippe 
IV, qui lui connaissait encore d autros talents, Tem- 
ploya dans les ambassades de.Hollande et dAngle- 
lerre. 

Appelé à Rome il y donna de nouveau 1'essor á ses 
talents pour la chaire; mais la societé des barbares du 
Brésil lui fut plus choro que les applaudissements 
qu'il recevait dans la capitalo du monde ehrétien. II 
demanda de retourner choz oux et y arriva le 22 
octobre 1652. 

II parcourut ces vastos contróes en instruissant et 
en convertissant une multitude incroyable desauva- 
ges. Ses forces étant épuisées, et ayant perdu la vue, il 
se retira á la Baie de tous les Saints, oú, avec les se- 
cours d'un de sesconfréres, il mit la derniére main, 
à un ouvrage qu'il avait commencó depuis longtemps 
intitule: Clavis prophetavum. 

II mourut le 18 juillet 1697, agé de 89 ans. Le cha- 
pitrc cathédral assista á son enterrement, et son corps 
fut porte par le gouverneur da Brésil, son íils, Pévê- 
quo de Saint Thomas et deux autres grands seigneurs. 

Ses Sermonsoni été imprimes à Lisbonne, 1673--1693, 
12 vols. Cest ce qu'il y a de mieux écrit en portugais. 

Ils ont paru à Madrid, traduits en espagnol, 21 vols. 
Son Clavis prophetarum parut à Rome en 17.23». 

(F. X. Feller Biogvaphie Unioerselle, T. 8. 
Paris, 1856). 



«Dístincto pregador portuguez, e um dos.escriptores 
clássicos de nossa língua. Pertencia á ordem dos 
Jesuítas, e foi o mais distincto pregador do seu século, 
nlerecendo nas differentes cortes da Europa, onde 
pregou em latim e francoz os applausos de todos os 
doutos. Manejou a lingua pátria com energia e natural 
propriedade; a sua eloquência arrebatava e grangeou- 
lhe os.titulos de Cicero catholico e pae da eloquência 



239 



portugueza. Escreveu Sermões, Cartas e a Historia 
do Futuro. Falleceu na Bahia a 18 de Julho de 1697». 

(C. de Lacerda, Dicc. Port. pãg. 1107). 



«Vieira (Antoine) jesuite et predicateur portugais, 
nè a Lisbonne en 16Ò8, m. à Bahia en 1697. 

Ses discours íui ont merité lo surnom de Ciceron 
lusitanien: il a de la hardiesse, de Tenergie, de la 
grandeur; mais son gout n'est pas toujours pur.» 

{Dezobry et Bachelet. Dicc. de Biographie et d y His- 
toire). 



«Vieira, celebre pregador, e, no pensar dos crí- 
ticos portuguezes, um dos melhores escriptores d'esta 
nação, nasceu em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608... 

Passou os últimos annos de sua vida no Collegio 
da Bahia, occupado em preparar uma edição do seus 
Sermões. 

Seus compatriotas o tem chamado o Cícero Lusi- 
tano; e de facto elle merece esta honrosa dis- 
tineção. 
^ A abundância, a imaginação o as outras qualidades 

que fazem do Padre Vieira um dos primeiros es- 
criptores de sua nação, não podem oceultar a nossos 
olhos a falta de gosto que se nota em todas as suas 
composições». 

(Biographia Unioersal, vol. 48 Puris, 1827). 



«Vieira (António), missionário portuguez, da ordem 
dos jesuítas, foi nomeado pregador de João IV, e 
encarregado do missões diplomáticas em Paris, Haya, 
Londres, Roma e Nápoles, teudo-se consagrado 
posteriormente á conversão dos índios, onde en- 
controu os maiores ol)staci}Io$, 



240 



Distinguiu-se sobretudo como pregador, e é con- 
siderado como um dos melhores prosadores de Por- 



tugal» 



(Louis Gregoire, Dicc. de Historia e Biographia 
e Geographia, Paris, 1871). 



«Excluir o nome deste insigne orador do catalogo 
dos escriptores brazileiros, é roubarão Brazil uma das 
suas mais esplendentes glorias do século XVII, pois, 
comquanto nascesse cm Portugal, foi no Brazil que 
o menino se fez homem, e que o seu descommunal 
talento cresceu, robusteceu e floriu de modo tal que 

Suando na força daedade foi ao reino, já era um ora- 
or notabilissimo, e um varão de tio grande saber, que 
a Corte o attrahiu a si, e tentou suquestral-o completa- 
mente á Companhia de Jesus, de que era na verdade 
genuíno filho. Tudo quanto já ontao ora e sabia, 
aprendera e conquistara na Bahia, sua segunda 
pátria». 

(Eduardo Perié. A Litteratura Brasileira nos tempos 
coloniaes, Buenos-Ayres, 1885). 



«O Padre António Vieira foi diplomata em paizes 
estrangeiros; e não consta da sua vida que subtrahisse 
ás alfandegas o valor de um ceitil. 

Precisando el-rei D. João IV de dinheiro para 
comprar umas fragatas, o Padre A. Vieira lhe fez 
emprestar trezentos mil cruzados. Não fez menores 
serviços na Hollanda: obteve a confirmação daalliança 
com Portugal, e um empréstimo considerável. 

Os seus sermões dizem mais, que os artigos sem 
fundo, de alguns periódicos. E' muito para se ver e 
admirar o modo, por que esse famoso pregador cen- 
sura os costumes da corte. 

{Pedro Dinis. As Ordens Religiosas em Portugal). 



241 



«Teve Portugal jesuítas sábios e hábeis professores. 
Um delles nos é apresentado por Barbosa Machado 
na èua Bibliotheca Lusitana como um dos personagens 
rnais illustres que produzio o Reino: é o Padre An- 
tónio, nascido em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608. 

Theologo, poeta, orador, philosopho, historiador, 
elle unia a todos os dons do espirito a força de von- 
tade e a energia da intelligencia. Embaixador de 
João IV em Paris, na Hollanda e em Roma, mos- 
trava-se ao mesmo tempo um profundo diplomata, um 
elegante pregador e um douto controversista. Elle 
procurava nas missões de além mar, nos collegios, 
na corte o nos púlpitos, despertar o espirito nacional, 
cuja indolência era para elle um supplicio.» 

(Cretineau-Joly. Hist. da Companhia de Jesus, 
Paris, 1846). 



«O Padre A. Vieira, um dos vultos mais grandiosos 
do século XVII por sua palavra eloquente, por sua 
capacidade superior em administração e diplomacia, 
por sou fervoroso apostolado na America, pertencèu- 
nos por mais de um titulo. Grande orador, epistolo- 
grapho, e escriptor místico e politico, é um dos 
maiores engenhos que produzio Portugal depois de 
Camões. 

Este orador sagrado, que pode por sua eloquência 
ser comparado a Cicero, ou a Bossuet, apezar do 
abuso que fez da agudeza de seu engenho, um dos 
mais perspicazes que se conhecem na Republica das 
Lettras, éao mesmo tempo o prosador mais eloquente 
da lingua portugueza, o mais correcto e perfeito sem 
contradicção, o pela ventura o mais bem apreciado dé 
todos, por ser o que mais se approxima de nossa 
idade e modo de fallar. 

Linguagem depurada e castiça, admirável proprie- 
dade de termos, riqueza e variedade de elocução, 
viveza de imagens, novidade e primor de pinturas* 
modos de dizer concisos, expressivos, engenhosos, 
são dotes que sobresahem a cada passo neste es- 
A. v. 31 



812 



criptor insigne, e lhe assignam como mestre da 
língua úm dos primeiros logares, entre os primeiros. 

Vteíra não é um homem, mas a eloquência en- 
carnada no homem. 

Como epistolographo não tem rival em Portugal 
e corre parelhas com os grandes modelos da anti- 
guidade. 

As cartas de Vieira são modelos de estylo epistolar. 

Taes são os grandes dotes do seu engenho, que 
a posteridade o admirará sempre como uma das 
intelligenciás mais privilegiadas. 

Os brazileiros, e sobretudo os maranhenses e pa- 
raenses, devem um testemunho de gratidão á me- 
moria deste homem superior ao seu século, que 
tantos serviços prestou á grande ^ausa da humani- 
dade na America». 

Francisco Sotero dos Reis. Curso de Litieratura, 
vol. 2.o, 1867). 



«Um dos mais distinctos ornamentos da sua ordem 
e da sua pátria. Nomeado pregador régio, grangea- 
ram-lhe os seus sermões a maior reputação. São 
èlles realmente as mais extraordinárias composições 
idesíe género: nada lhes pode exceder a absurdidade 
na parte typica e allegorica, a não ser talrez a ingenui- 
jdade assim pervertida, mas a par disto encontrão-se 
uma liberdade politica egual á de Latimer, com quem 
o orador frequentemente se assemelha tanto no estylo 
como na destemida honestidade, uma satyra pungente, 
Uma felicidade de expressão, uma valentia de lin- 
guagem, e uma eloouencia a jorrar da plenitude duma 
imaginação rica e dum nobre coração, que tem feito 
dos escriptos de Vieira, apezar de toda a sua liga, a 
gloria e o orgulho da litteratura portugueza.» 

. (Robert Southet/. Historia do Brasil, Edic. Port., 
Rio de Janeiro, 1862, vol. IV;. 



243 



«Vieira (António), celebre pregador portuguez; 
nascido cm Lisboa em 1608, entrou com a id^de de 
15 annos para a ordem dos jesuítas, na Bahia, Brazil, 
e fez proscntir desde então o futuro orador da cadeira 
christã. 

A datar de 1652 Vieira, depois de ter recusado o 
episcopado, dedicou-se particularmente ás missões 
dos selvagens do Brazil, onde chegou a civilizar m,ais 
de 600 léguas do paiz, e estabeleceu o Evangelho, as 
artes e a liberdade. 

Accusado perante a Inquisição de ter enunciado 
proposições condemnadas pela Egreja, recobrou sua 
liberdade em 1667 depois de dous annos de prisão, 
sem que se lhe exigisse retratacção alguma. 

Seus sermões têm sido traduzidos em hespanhol*, 
em italiano, em latim e em allemão». 

(Goslchler. Dicc. Encyc. da Theologia Cath., vol. 25). 



«Chrisostomo c Vieira, estes dous luzeiros da ora- 
tória sagrada, chegaram ao apogeu de seus resplen- 
dores vingando os árduos caminhos da virtude, a par 
e passo que subiam nos da scfencia. Verdadeiros gi- 
gantes desde o principio de sua carreira! 

Ambos, pelos raros talentos com que a natureza e a 
graça os enriquecera, oppozeram um peito de bronze 
á prepotência dos grandes por zelo da honra de Deiís 
e em prol de desvalidos; e quanto não soffreram por 
isto! 

E para mais particularisar a eloquência de ambos., 
três qualidades características nota Isidoro ria de 
Chrysostomo: a facúndia da dicção, xi belleza das sen- 
tenças, a multiplicidade e força dos argumentos. Q 
mesmo louvor merece a eloquência de Vieira, salvo 
os gongorismos e outros desprimores de seu tempo. 

Em seus sermões nota-se dicção altamente fecunda, 
sentenças em grande numero e sobremodo bellas, ar- 
gumentos multiplicados e qual delles mais poderosos 
o seu estylo se conforma com a natureza do assumpto, 



244 



já sublime, já ténue, já impetuoso, já insinuante, já 
florido e pomposo.» 

(Padre António Honorati. O Chrysostomo Português, 
Lisboa, 1878). 



«Grande orador, eximio litterato. escriptor de agi- 
gantado fôlego, politico, diplomai ico, economista, 
cathequisador, religioso activo, o mais audaz con- 
selheiro em alvitres lembrados, e o mais perspicaz 
nos desígnios e planos, tal foi o Padre António 
Vieira. 

Foi elle o mais genuino e fiel representante do seu 
tempo, da politica, da nacionalidade, da lingua e 
da htteratura de Portugal. 

Caracter forte, natureza robusta e vontade firme 
nunca recuou, nunca se atemorisou diante do perigo, 
e nunca se desvaneceu no seio da potestade e da 
grandeza.» 

(Conselheiro Pereira da Silva. Nacionalidade, lingua 
e Htteratura de Portugal e Brasil, Paris, 1884). 



João Lisboa trata o notável jesuíta com demasiado 
rigor, e não obstante accrescenta em seu importante 
trabalho: 

«Homem singular e extraordinário, escriptor elo- 
quente e soberbamente inspirado, e grande orador, 
esse insigne A. Vieira tanto deve viver hoje pelos 
seus escriptos, como outrora viveu pelas suas pa- 
lavras e façanhas. 

«A' uma noticia vasta, immensa e quasi universal 
de todas as sciencias, reunia Vieira a novidade e 
agudeza, própria do seu engenho, com que tratava 
e desenvolvia as matérias, a facilidade, pureza, cópia 
e energia da linguagem, não menos que a efficacia 
e nobreza da declamação e do gesto, em que &ra 
singularmente ajudado pelos dotes corporaes. 

«Fizeram-lhe sumptuosas exéquias tanto na Bahia 



245 



íf ( como em Lisboa. Quanto havia de ilkistre na no* 

breza, na religião e nas lottrn.s acudio n honrar nestas 
solemnidades a memoria do grande pregador, so- 

*■' peados ou esquecidos então os sentimentos de inveja 

e de ódio, absorvidos todos nos da admiração e es- 
tima dos seus grandes talentos e virtudes.» 

(João Francisco Lisboa. Vida do Padre António 
Í Vieira, Rio, 1877). 



L 



«Orador sagrado, epistolographo, escriptor politico, 
hábil diplomata e primeiro estadista de seu tempo, 
o grande Padre António Vieira, em summa, 6— um 
dos vultos mais extraordinários do seu século, com 

3uem a natureza ás mãos largas tora. pródiga em 
otar com todas as virtudes e grandes qualidades 
do génio, e defeitos de sua Índole e da sua épocha, 
e que deslumbraria o velho mundo como estadista 
e politico, si a vocação lhe não andasse errada* 
constringindo-lhe e abafando as aspirações e ousadias 
na roupeta do jesuita.» 

(Dr. António Henriques Leal. Vida e obras de João 
Lisboa). 



«Vieyra (António), celebre pregador c missionário 
porfuguez, nasceu cm Lisboa em 1608, morto na 
Bahia em 1697. 

O padre Vieira era um destes pregadores de tem- 

Eeramento singular, de est ylo colorido e extravagante, 
ornem de profundo saber e um dos mais vigorosos 
espíritos que produziu Portugal. 

Versado no estudo das línguas antigas, escrevia 
em latim com o talento de Erasmo, falava e escrevia 
as principaes línguas da Europa, tendo aprendido 
todos os idiomas do Brazil. Era, de mais, um histo- 
riador exacto, escrupuloso, cousa rara em sua época, 
e elle mostrou nas suas cartas politicas sobre as 



246 



missões do Brazil uma grande elevação de ideias e 
de sentimentos. 

Os seus sermões são seguramente neste género a. 
collecção mais original que existe. Um delles, o que 
foi pronunciado na Bahia, na egreja d'Ajuda, pode 
passar por uma obra prima. Abbade Raynal, tra- 
duzindo as principaes passagens, diz, com razão, que 
é o discurso mais extraordinário, que se tenha 
jamais ouvido num púlpito christâo. 

Perseguido pela Inquisição, onde esteve preso 
cerca de 26 mezes, recebeu do Papa Clemente X 
uma brilhante reparação e uma distineção talvez única, 
na historia ecclesiastica, qual a de ser julgado por 
Um concilio de cardeaes e publicar suas obras in- 
dependente de qualquer censura.» 

(P. Lirousse. Dicc. Universal, vol. XV). 



«Ninguém antes do Padre Vieira penetrara em 
Portugal nos arcanos da verdadeira eloquência, 
nenhum affrontára os raios da imprensa, sendo por 
isso impossivel aquilatar- lhe o mérito. 

Partecipava de quasi heterogéneos predicados; 
possuía a violência cie Demosthenes, a abundância e 
fluência de Cicero, não desconhecia os recursos ora- 
tórios de S. João Chrysostomo, nem o imaginoso 
estylo dos padres alexandrinos, entresachado de dis- 
tineções e subtilesas. Arrastava-o o excessivo amor 
do paradoxo; cra-lhe a antithese saboroso alimento, 
pagando pingue tributo ao máo gosto da época em 
que vivia. 

que entretanto tem deslumbrado grande numero 
de críticos é a admiração pelo magestoso estylo de 
Vieira e pelo cabal conhecimento que tinha da íingua 
vernácula de que ainda é um dos primeiros clássicos. 

A' imitação das de Cícero são as cartas do Padre 
Vieira uma espécie d'auto-biographia, repleta de 
abundantes dados para a historia de seu tempo. >> 

(Cónego Dr. Fernandes Pinheiro. Historia Litíe- 
raríz, vol. II, Rio, 1873). 



•247 

0(fe] í? 

. «O nosso compatriota, o grande Padre Anfonio 
5( e ^ Vieira, o maior orador sagrado, a maior intelligencia 

y^ politica, o maior estadista e o mais atillado diplomata 

Ijiii ^ e seu tem P°» J á em *640 sentindo as agonias dos 

C' seus conterrâneos, em um sermão de visitação, pre- 

'. ' gado na igreja da Misericórdia da Bahia, em presença 

do 1.° Vice-rei, Marquez do Montalvão, falou-lhe 
com a sua costumada franqueza, reconhecendo a 
má politica do governo metropolitano, e ameaça va-o 
com a independência, demonstrando com os factos 
a necessidade de separar-se o Brazil de sua metro- 
* ft polé, se as causas que tanto tinham aggravado as 

circumstancias, seguissem o mesmo rumo.» 

(Dr. Mello Moraes. Brazil Histórico, 1867). 



sefe 
mê. 






a 



Fevereiro, 26—1641. — «Para felicitar o rei accla- 
mado (D. João IV;, dando-lhe conta do reconheci- 
mento de sua autoridade e acclamação no Brazil, 
ordena o Marquez de Montalvão, vice-rei da Bahia, 
que partisse seu filho o mestre de campo D. Fernando, 
acompanhado de dous jesuítas celebres, o padre Si- 
mão de Vasconcellos, chronista da Companhia de 
Jesus e autor de vários escriptos, e o fecundo padre 
António Vieira que com 33 annos de idade ia agora 
recommendar-se por seus talentos na Europa, não 
só como pregador de primeira ordem, vindo a sel-o 
da Corte, mas até como estadista e conselheiro dos 
reis nos casos mais críticos.» 

Julho, 18 — 1697— «Morre no seucollegio da Bahia 
o celebre jesuíta António Vieira com cerca de 90 
annos de idade. Era filho do Lisboa o tinha vindo 
para a Bahia de 8 annos de idade em companhia do 
S3us pais. 

O nome do Padre António Vieira é clássico em 
Portugal e no Brazil não só por seus escriptos, como 
pelos seus serviços durante muitos annos empregados 
na cathechese dos índios, dos quaes foi o mais valioso 
patrono.» 

(José de Vasconcellos. Datas Celebres, Recife, 1872). 



248 



«O nome de Vieira 6 popular cm Portugal e no 
Brazil, não sô pelos seus numerosos escriptos, em 
que joga admiravelmente e de um modo peregrino 
com a nossa lingua, como pelos serviços que prestou 
durante longos annos na cathechese e civilisaçãò 
dos indígenas, dos quaes foi, no seu século, o mais 
valioso patrono e infatigável apostolo. 

Como escriptor e orador sagrado é considerado litfi 
dos mais puros o portentosos da lingua portugtieza, a 
qual muito lhe deve em conceito e elegância.» 

, Depois de transcrever a apologia, que do famoso 
jesuíta, fez o bispo do Viseu, accrescenta: «E* o 
maior elogio que se possa tecer a um escriptor por 
mais competente juiz: Vieira merece-o.» 

(Dr. Teixeira de Mello. Ephemerides Naciônaes, 
Rio, 1881). 



«Iguala em autoridade, acerca do mesmo successo, 
(tomada da Bahia) a Annua da Província Brazilica 
da Companhia de Jesus em 1624 el625, escripta pelo 
Padre António Vieira, ainda então muito joven, mas 
já manejando a penna com a facilidade, lucidez e 
brilho com. que veio mais tarde a distinguir-so tanto 
nas lettras.» 

(Visconde de Porto-Seguro. Historia das Luctas). 



«Foi um verdadeiro génio este homem notável... 

Era Vieira dotado de espirito agudo e prompto, 
bastante instruído, de muito engenho, e fácil e sen- 
tencioso no dizer. O seu estylo, corrente e vivo, é as 
vezes magestoso. Sua linguagem é sempre correcta, 
agradável e pura. Os seus pareceres políticos, bem 
que nem sempre conscienciosos, nem coherentes uns 
com os outros, sào admiravelmente deduzidos; e a 
sua correspondência epistolar è sentenciosa, cheia de 
continuados encantos, e repleta de noticias, que se- 



249 



riam de mais importância para a historia, se o es- 
criptor se recommendasse por dotes de verdade é de 
boa fô a toda prova.» 

(V. de Porto- Seguro. Historia Geral do Brasil, 
vol. 2 o ). 



«Vieira foi um homem de peregrina inlelligencia, 
de instrucção muito ampla para seu tempo, e ao 
mesmo tempo um orador eminente e um escriptor 
distincto. 

Ha na sua vida factos que provam que elle era do- 
tado de unia força de vontade extraordinária e capaz 
de virtudes raras.» 

^ (Dr. Anselmo da Fonseca. A Escravidão, o Clero e 

• o Aboli cionismo, Bahia, 1887). 



«Os grandes oradores da tribuna portugueza, Gar- 
rett, Rodrigo da Fonseca, José Estevão, Rebeílo da 
Silva, todos o manuseavam com fructo. O Sr. Latino 
Coelho toma-o como um dos seus mais queridos con- 
vivas littorarios: sabe quasi de cor os seus sermões, 
militas vezes molda pela phraso vieirense a phrase 
dos seus próprios escriptos.» 

(Diccionario Popular. Vol. 13. Pag. 193. Lisboa, 
1884). 



«Se me não enganam os testemunhos de sábios 
infinitos, nem antes nem depois deste singular ora- 
dor tivemos penna do mesmo aparo. Possuiu em 
grau sublime todas as delicadezas, propriedades e 
energias da língua; por isso ainda ninguém duvidou 
usar de vocábulo, phrasB e expressão achada em 
seus escriptos. Seguir sempre em tudo e por tudo o 
fallar de Vieira é uma seguríssima regra de conse- 
guir não só a pureza, mas o louvor de ter todo o co- 
A. V. 32 



, 250 



nheciraento das subtilezas do idioma portuguez; 
porque nenhum outro clássico temos que escrevesse 
tanto e sòbfe tão diversas matérias.» 

(Francisco José Freire. Reflexões sobre a língua 
portuguesa, Lisboa, 1842). 



ANTÓNIO VIEIRA E A RAINHA DA SUÉCIA 

«En 1669 il fut appellé á Rome par son General, á 
la sollicitation de la Reine Christine, toujours cu- 
rieuse de voir et d'entendre les hommes extraordi- 
naires. 

Elle entendit Vieira, et Tinvita aux Conféronces 
savantes, qui se faisaient dans son Palais; elle le 
gouta mêmeá un tel point, qu'elle résolut de lefixer 
& Rome, et de se Pattacher á titre de Confesseur: 
mais Tair de Rome lui étant contraire, il fut obligé 
de retourner á Lisbonne, ou vil revint en 1676. La 
Reine de Suôde persista néanmoins á vouloir Pa voir 
pour Confesseur; elle engagea le General de la Com- 

Íagnie á lui écrire, ce qu'il fit le premier Dôcembre 
678; mais en lui proposant la chose, il lui laissa la 
liberto de faire ce qVil jugerait á propôs. Vieira s'ex- 
cusa» et pour n'étre pas exposé áde nouvelles solli- 
citations, il s*embarqua pour le Brésil enl6Sl. 

(Chaufepiè. Dictionnaire Historique, voL 8 t pag. 573 
Í7S6). 



Latino Coelho fazendo um confronto entre o Pa- 
dre António Vieira e D. Francisco de S. Luiz, assim 
se exprime: 

«Em ambos è o patriotismo ardente a principal 
camena que os inspira* Em António Vieira» o amor 
de sua terra exalta sob a roupeta do jesuíta os ta- 
lentos e os recursos do estadista. Em D. Fr. Fran- 
cisco <Je S* Luiz, similhante e não menos fenroroos 



i 



251 



sentimento lhe accende, sob a humildade da cogiilla 
os brios e os esforços para as grandes eropre?as f 
em que vae a salvação e o bem do estado. Fr. 
Francisco de S. Luizapparece pela primeira vez rça 
scena publica, membro de uma junta popular levan- 
tada no Minho para organisar a resistência da .pro- 
víncia contra as phalanges invasoras do pri^íieiro 
Napoleão. O padre António Vieira apparecp como 
ligura principal em todas as occasiões c em todos os 
logares, em que se pede contra a airogawfcia caste- 
lhana um coração verdadeiramente portuguez, um 
espirito fértil e inventivo, um animo aventuroso e re- 
soluto e um conselho prudente e moderado. 

Quasique não subiu uma só vez ao púlpito, que 
não aproveitasse aquella só tribuna dos seus tempos 
. para vindicar os foros dos humildes, e para dourar 

\ nas apparencias da homilia a objurgação politica e 

a vehemente imprecação contra os que, por ambições 
e desacertos, arriscavam a honra d'este reino o devo- 
ravam a mais preciosa substancia da nação. 

Em um e em outro sempre o culto da patrra nas 
emprezas e nos escriptos. 

O padre Vieira que descorrera por tantas peregri- 
nas regiões, enriqueceu a lingua com palavras e 
modismos que João de Barros houvera taxado de 
contrários á vernacul idade, como a elle entendia e 
praticava.» 

(Latino Coelho. Elogios Académicos, vol. í). 



ANTÓNIO VIEIRA E JOSÉ ESTEVAM 

«Notava-se-lhe certa familiaridade com alguns dos 
nossos clássicos, e sobretudo intima convivência com 
os livros do Padre Vieira. 

A cada momento appareciam trechos,, que lembra- 
vam as ousadias e as elegâncias, que em tantos 
períodos estimados cunham o estylo admirável da- 
quelle engenho ainda mais apto para a eloqtjeflcia 



1 



. 252 . , 

politica, do que para a persUasa,ò. religiosa,, engenho 
'comprimido pelo habito e pela ;época, cujas èxplo- 
j soes repentinas transformando çj^ púlpito era tribuna, 
* tantas vezes converteram, o pariegyrico em sqiyras, 
. píara cravar os validos na cru^V.dò rnau ladrão, ou 
< para na mais plangente das irtfôiàs, flageílar uma 
, legião inteira de perseguidores, peaindq aos peixes o 
, thema e o disfarce.» 

(Rebello da Silva. Biograp/tiu dj J° 8( * Ettevam). 



O idioma pátrio tornou-se em suas mãos um instru- 
mento dócil, poderoso e irresistível. 

(Retíêlloda Silva. Varões /Ilustres): 



«Homem extraordinário, patriota ardente como 
ninguém, o Padre António Vieira foi um conselheiro 
cujo génio quasi universal o rei (D. João IV) admi- 
rava, um amigo querido, que valia para elle mais. do 
que todos os seus ministros e diplomatas, porque lhe 
dizia a verdade. 

Ò Padre era grande demais para ser um favorito!» 

(Joaquim de Vasconcellos. Plutarcho Português).'. [ 



«A face dominante do Padre Vieira é a sua coope- 
ração diplomática em todos os negócios que a nova 
dynastia dos Braganças teve de propor ou propugnar 
nas cortes estrangeiras. Visto a esta luz o vulto de 
Vieira toma proporções colossaes. 

«Plinio escrevendo a Tácito, dizia-lhe: «Felifces os 
que sabem praticar cousas dignas de serem eseri- 

f)tas, ou de escreverem cousas dignas de serem 
idas.» Tal 6 a característica do grande homem; Vieira 
possuiu esta dupla capacidade.» ' 

(Theophiló Braga. Plutarèhò Português)! • '* ■ 



253 



«Homem eminente, quo na longa carreira .de quasi 
um século deu á pátria no velho e no novo mundo 
provas irrecusáveis de vasiissimo^alpato, nao menos 
que de applicaçâo estudiosa, e de Subtil penetração 
nos negócios mais árduos da- monarchia. Admirado 
no retiro do sou cubículo, applaudido nos púlpitos, 
ouvido e consultado nos gabinetes' dos soberanos em 
tempos de maior perigo; lfcgotrporfinrá posteridade 
apesar de cmulos e dottatetores um nome impero- 
ciTel.» :í f •••; 

(Innocencio Francisco da $tfp$ h Archioo Pitto- 
resco, 1868). 



«Nunca a nossa língua soou mais bolla, opulenta, 
enérgica e magestosa, do que na bocca.dest.c emi- 
nente orador. Para elle, o púlpito foi muitas vezes 
tribuna. As suas orações não excitavam unicamente 
sentimento religioso; mas, quantas vezes cnthiisi- 
asmavam, quantas vozes também verberavam a cor- 
rupção da corte e os escândalos do governo. Era um 
poeta e um pensador. O homem que nos sermões 
sabia casar com uni lyrismo inexcouivel de phrase,. a 
alteza do pensamento phylosophico, o homem que fa- 
zendo vibrar essa lyra de mil cordas que tinha ha voz, 
ora arrancava lagrimas ao auditório, ora lhe fazia 
correr nas veias o frémito do patriotismo, da ira sa- 
grada, do nobre enthusiasmo, úquelles que tinha 
presos da sjua palavra colorida, em que se traduziam 
sublimes ideias, a corte e o povo, os róis e os pon- 
tífices, os nobres e os plebeus, os ignorantes e os 
sábios I ! » 

E mais adiante: «Os seus «Sermões» e as suas 
«Cartas», além de outras obras notáveis que publicou, 
dâo-lhe um dos primeiros lugares entre os Clássicos 
portuguçzes; o so haverá quem o vença em limpidez 
de linguagem, ninguém o excede na energia da lo- 
cução e na propriedade dos termos. Soube afinar 
admiravelmente o idioma portuguez, instrumento ma- 



254 



ravilhoso, em que ellò fez vibrar melodias immor- 
taes.» 

(Pinheiro Chagas. Portugueses Illustres). 



«Illustre jesuíta, sábio orador e o clássico mais 
autorisado da lingua portugueza. Nenhum outro 
clássico temos que tanto escrevesse e sobre tio di- 
versas matérias, e foi encarregado de importantes 
missOes diplomáticas cm Paris, Amsterdam e Roma 
mostrando grande vocação para a politica.» 

(Theodoro José da Siloa. Miscelânea Histórico - 
Biographica. Lisboa, 1877). 



— «E* elle um dos primeiros, senão o maior dos 
prozadores portuguezes.» 

(The Century cyclopedia. New- York, 189 <5). 



<*E' incontestavelmente a individualidade mais sa- 
liente d 'entre os jesuítas de seu tempo em Portugal e 
Brazil, tendo por mestre entro outros a Fernão 
Cardiíw. Notabilisou-se no púlpito, nas lettras, na 
politica, quer no Brazil, quer em Portugal, quer na 
cidade dos Papas. 

Suas viagens ao Marajó, á Serra da Ibiapaba são 
conhecidas pelas luctas, que travou em favor da li- 
berdade dos índios, pela tenacidade e zelo apostólico 
com que se houve, pelos resultados que colheu na 
pregação da fé catliolica. 

Essa grande figura do século XVIf portenee-nos 
palmais de um titulo. Elle próprio disse-o: oPelo se- 
gundo nascimento devo ao Brazil as obrigações de 
pátria.» 

(Dr. Guilherme Studart — Datas e Factos sobre a 
flistoria do Ceará, 1896). 



255 



aFoi exinno pregador, notável epMolographp & 
autor de opúsculos de menor valia. 

Como orador sagrado attinge universal nomeada, e 
aos Brazileiros sympathicamente se recofacn^oda 
como propugnador da liberdade dos índios, e elo- 
quente adrersario da invasão hóllandeza. Envolvido 
nos interesses políticos da época, prestou relevantes 
serviços á sua pátria. 

Viveu largos annos no Brazil, e em Roma pregou 
perante o summo pontífice Clemente X. Em sua tra- 
balhosa existência duas vezes provou as agruras do 
cárcere: no Maranhão, onde foi preso pelos^ sectários 
do escravisamento dos indígenas e remettído para o 
reino; e pela Inquisição, que levara amai certas arris- 
cadas proposições do Quinto Império. 

Posto que pague copioso tributo ao immoderado 
gosto das antitheses, Vieira ó um dos melhores 
mestres da lingua e offerece lato campo de estudo 
aos amadores da vernaeulidade.» 

(Fausto Barreto e Carlos de Laét — Anthologia Na- 
cional. Rio de Janeiro, 1896). 



«Grande Padre! chamavam os innocentes Índios 
do Brazil ao seu gençroso mestre; e, tão grande, que, 
até hoje, em terras portuguezas, nenhum outro se 
lhe avantajou na universalidade da grandeza. Eu con- 
fesso abertamente que, ao ler a historia pátria, nunca 
vi passar ante meus olhos, um vulto mais enorme- 
mente grande. Que orador ! que esçriptor I que di- 
plomata I que sábio I que apostolo ! 

Como orador, deve medir-se pela estatura de Do- 
mosthenes, pela pujança de Cicero, pela envergadura 
de Chrysostomo e pela magestade de Bossuet; a não 
ser que na erudição phcnomenal e no engenho sub- 
tilissimo e fertilissimo, ganhe sobre excellencia a 
todos quatro. Accresce, que nunca recebeu sombra 
de reconhecimento ou um real pelos seus sermões, e, 
dos estampados, outros gosaram o proveito. 

Como escriptur, é indubitavelmente o nossopri- 



256 



meirò clássico, representando é resumindo com Lujz 
de Camões a máxima gloria littcraria de Portugal. . 
Como apostolo, excedendo em aptidões o próprio 
S. Francisco Xavier, nao admitte, depois de S. Paulo,-, 
confrontos e parallelos em toda a Egreja CathoIica.> 
Elle, o egrégio pregador da corte de Lisboa e da ci-, 
dade Eterna, o Bossuet portuguez, que regeitara 
mitras episcopaes e purpuras cardinalícias offere- 
cidas á sua escolha, o sacerdote portuguez mais ce- 
lebrado e afamado na Europa, um tal, homem, n'um 
artranco de fervor apostólico, despreza a opulência 
dos paços, abandona o luzimonto dos príncipes, es- 
quece o applauso dos admiradores, e no impulso de 
civilisar gentios, abala, foz em fora, aproando aos 
sertões do Brazil !» , 



(Alves Mendes — Lisboa, 1897). 



«A sua existência foi uma das mais activas e 
illustres do seu tempo. Grande pregador, grande poli-, 
tico, grande escriptor, missionário, grande coloni- 
sador, esteve envolvido nos maiores negócios, tratou 
com os maiores personagens o trabalhou pelas maio- 
res idéas de sua época. 

Os seus magniticos sermões arrebatavam tanto a' 
gente inculta do Brazil, aomo encantavam em Roma* 
o sábio e requintado mundo dos prelados rrírhanos. 
A sua fama estendeu-se por toda a Europa. 

Depois de ser confidente dos reis e dos papas, de 
ter conhecido as grandezas do mundo e as do alto 
saber, morreu com a pobresa e a simplicidade de 
um mystico, na capital da Bahia.» 

(Eça de Queiroz. Almanak Encuelopedico para 
1897). 



«Quem ha ahi que o nao conheça? Quem nao terá 
lido, em mil fragmentos, dispersos em logares se- 



257 



lectos e rapsódias clássicas, os mais bellos trechos 
cTesse escriptor incomparável ? 

E se ha vultos gloriosos, que immortalisàm uma 
nação, Vieira é um (Telles; tão sublime e enorme é 
-a sua compleição genial, e tão levantada a sua fi- 
gura I» 



(Revista Catholica— Lisboa, 1897). 



«Nas missões do Brazil serviu a causa da humani- 
dade e do progresso, nas commissões diplomáticas 
serviu a causa da pátria, e do púlpito abaixo, com a 
eloquência de sua palavra inspirada, serviu a causn 
da língua nacional, descobrindo n'ella primores e 
•encantos de harmonia e de vigor, que talvez desde 
•Camões não tivessem sido muito explorados e quo 
no seu tempo estavam a submergir-se sob a onda in- 
fecundante do gongorismo. 

Os serviços que António Vieira prestou ao idioma 
portuguez bastavam para o glorificar.» 

(Correio da Europa — Julho de 1897). 



«Quem appareceu n^quelia época mais patriota, 
mais trabalhador, que mais se multiplicasse em ser- 
viços de toda a espécie e em toda a parte do que o 
Padre Vieira? 

Cumpre um dever exaltando a memoria de Vieira, 
portuguez de lei e servidor da sua pátria, como 
poucos. 

O Padre António Vieira, debaixo da sua sotaina, 
foi o maior liberal de seu tempo. Disse verdades 
amargas ao povo e ao Rei.» 

( Thomaz Ribeiro) . 



A. V. 33 



•258 



«Glorioso sacerdote, exemplo sublime de génio, de 
talento, de saber, de zelo, de dedicação, de actividade 
e de patriotismo, qualidades que sobrenadam e re- 
sistem atravez a Historia. 

Quando parecer que a memoria do grande Vieira 
desceu novamente á obscuridade e ao esquecimento, 
vel-a-hemos dentro em pouco reapparecer trium- 
phante e ainda mais pujante da vida, no apreço uni- 
versal do seu nome, na reedição de suas obras, ver- 
dadeiras jóias litterarias, na sua leitura muito mais 
assidua, no culto mais positivo e na imitação d'essa 
lingua que elle fixou, que elle crystalisou na per- 
feição, que elle manejou com tanta clareza, riquezau 
e magestade.» 



(Padre Senna Freitas. Lisboa, 1897). 



ÍNDICE 



PARTE PRIMEIRA 

Conferencias sobre o Centenário 

Pa* 

Discurso inaugural 3 

Conferencia do Dr. Braz do Amaral 11 

Conferencia do Dr. Ernesto Carneiro Ri- 
beiro . 39 

r\ Conferencia do Revd. Padre Elpidio Tapy- 

ranga 59 

Conferencia de Monsenhor Dr. Basílio Pe- 
reira 77 

PARTE SEGUNDA 

À commemoraçfio do Centenário 

r A Procissão Cívica 155 

Exposição Bibliographica 172 

Opinião da Imprensa 184 

PARTE TERCEIRA 

Vida e obras do Padre Vieira 

Noticia Biographica 205 

Seu processo perante a Inquisição 216 

Catalogo das obras impressas 222 

Opiniões sobre Vieira 225 



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