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HARVARD COLLEGE LIBRARY
SOUTH AMERICAN COLLECTION
THE GIFT OF ARCHIBALD CARY COOLIDGE, '87
AND CLARENCE LEONARD HAY, '08
IN REMEMBRANCE OF THE PAN-AMERICAN SCIENTIFIC CONGRESS
SANTIAGO DE CHILE DECEMBER MDCCCCVIII
.*>*
■yM
I
o/eicâe Qy/nÂ
#
AO GRANDE E FAMOSO ORADOR
ntr$ Jfakmro Tiara
i
No bi-centenario de sua morte
ORGANISADA
Pelo 1.° Secretario Cons. João Nepomuceno Torres
BAHIA
1897
(MmARDCOllEBEUBMir
ARCH1BALD CARY O80L1B6I
AND
CLARENCELEONARDHAY
5LARENCE LEOI
9*f
>
í
\
I
Commissão executiva âo Centenário
Dr. José Francisco da Silva Lima.
Dr. Braz Hermenegildo do Amaral.
Dr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos.
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães.
Professor F. Torquato Bahia da Silva Araújo.
Cónego Manfredo Alves de Lima.
Dr. José Júlio de Calasans.
Mesa Administrativa do Instituto
Presidente — Cons. Salvador Pires de Carvalho
e Albuquerque.
I o Vice-Presidente — Dr. Satyro de Oliveira Dias.
2 o Vice-Presidente — Cons. Pedro Mariani.
I o Secretario — Cons. João Nepomuceno Torres.
2 o Secretario — Dr. Isaias de Carvalho Santos.
Supplentes — Aloysio de Carvalho e José Lopes
Velloso.
Thesoureiro — Capitão Francisco Gomes Ferreira
Braga.
Orador — Dr. Braz Hermenegildo do Amaral.
Substituto — Dr. Filinto Justiniano Ferreira
Bastos.
V I
Programma do Centenário
11 de Julho, ás 8 horas da noite
Discurso inaugural pelo Presidente do Instituto,
Cons. Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque;
primeira conferencia pelo orador do Instituto, Dr.
Braz H. do Amaral.
13 de Julho, á mesma hora
Segunda conferencia pelo Dr. Ernesto Carneiro
Ribeiro.
15 de Julho, á mesma hora
Terceira conferencia pelo Revd. padre Elpidio
Tapyranga.
17 de Julho, á mesma hora
Quarta conferencia pelo Revd. Monsenhor Dr.
José Basílio Pereira.
18 de Julho
A's 9 horas — Missa na Cathedral, celebrada pelo
Exm. e Revm. Sr. Arcebispo, e em seguida benção
de uma lapida commemorativa por S. Ex. Revma.
A's 10 horas — Procissão civica e collocação da
lapida na fachada da Cathedral, antigo collegio dos
Jesuítas; allocução do Vice-Presidente do Instituto,
Dr. Satyro de Oliveira Dias; visita publica á cella
do Padre António Vieira no mesmo collegio, à an-
tiga capella do Provincial dos Jesuítas e à expo-
sição bibliographlca no actual edifício da Facul-
dade de Medicina.
#
PARTE I
CONFERENCIAS SOBRE O BI-CENTENARIO
DO
'ak* jfcttoma Ymra
DISCURSO INAUGURAL
Pelo Presidente do Instituto
Cons. Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque
Exmas. Senhoras:
Exm. Sr. Governador do Estado:
Meus Senhores:
Sbre hoje o Instituto Geographico e Histórico da
' Bahia de par em par as portas do seu templo
para recolher em sua nave soberba o que de mais
selecto possue, pelo talento e pela bravura de seus
filhos, a Athenas, senão a Sparta brazileira; mas o
Sue symbolisa o brilho de tantas luzes, o esplendor
esses ornatos, o perfume de tantas flores no meio de
uma athmosphera tão serena e grave de que apenas
se destacam visivelmente a curiosidade reverente, a
inquirição muda de tão numeroso quanto respeitável
e luzido auditório?
Quizera poder honrar-me abrindo-vos, com chave
de ouro, aquelle pórtico augusto, quizera dispor da
extensa voz de Stentorpara robustamente, de uma
só inflexão, annunciar-vos o que significa tão ap-
paratosa sessão cujos tons fluctuam entre o lúgubre
e o festivo, em que os espíritos como que ora expan-
dem-se nas alegrias, que levam ao coração as gratas
reminiscências, ora parecem concentrar-se no som-
brio recolhimento de uma commemoração funérea.
Seja, porém, o que for, ir-vos-hei a pouco e pouco
descerrando o véo, não muito avaro, dos fulgores
que abrilhantam este recinto, cuja escolha, já de
per si, dá a primeira indicação do objectivo de tão
A. V. 1
imponente solemnidade. E si do recinto passarmos a
contemplar o soberbo edifício em que acha-se elle en-
cravado, ainda, através da justa admiração que produz
a solidez de sua alvenaria, a singeleza de seus már-
mores, a belleza de sua architectura, a opulência de
seus relevos, divulga-se bem ao longe, como que
extinguindo-se na penumbra do passado, os vultos de
tantos heroes que, celebrados no mundo das lettras,
não foram menos celebres na ingente obra da con-
strucção de uma nacionalidade sobre o solido ali-
cerce da cathechese e instrucção da gentilidade.
Sim, foi aqui, neste monolitho de mármore, que
impávido vae atravessando a acção destruidora dos
séculos que passam; foi aqui a sede de uma das pro-
víncias aa mais celebre das ordens sacras do orbe
catholico, a cujo grémio, entre outros, pertenceram
Vasconcellos, Vicente do Salvador, Nóbrega e An-
chieta; daqui, centro de fé e de luz, foi que a virgin-
dade das selvas brazilicas, tocada pelo sol das vir-
tudes, abnegação e sciencia de tantos e tão inclytos
martyres, fecundou a civilisação, que crystaUisou a
nacionalidade brazileira: era realmente um verda-
deiro systema planetário a grande companhia de Je-
sus, essa vasta concepção de Loyola, da qual, de
ãuando em vez, surgia, por entre as nebulosas de
eseu infinito horisonte, um foco de luz tão intenso
que, ao lado do astro-rei, parecia irmão do soll
•
* *
Estavam turvos desde fins do século XV I os ho-
risontes da Europa, principalmente para os lados
da Ibéria; o dominio de Castella expandia-se para o
norte e para o occidente, e a ambição adunca de
seus reisapprehendera, e, entre suas garras, com-
primia o esguio reino visinho desde 1580, quando,
gela morte de D. Henrique, o cardeal, Felippe 2.° de
[espanha cingiu as duas coroas; o commercio, a la-
voura e a industria sentiam-se vulcanicamente estre-
mecidos; o espirito publico, profundamente abatido,
tragava em silente ódio as numilhações a que era
subraettido; os vastos domínios sobre os quaes ga-
lhardamente tremulavam, não havia muito, as
luzas quinas, eram presas da Hollanda, como da
França e da Inglaterra, que os avassalavam não
só na Europa, como em todo velho e novo continente!
Foi sob tão pesada athmosphera, que na cidade de
Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608, soltara o primeiro
vagido uma criança cujos pulmões, até os mais pro-
fundos capillares, recolheu na primeira insuflação,
de envolta com o oxigénio necessário á vida, uma
partícula de todos os miasmas em suspensão na-
quelle meio em que, pela vez primeira, a luz cre-
puscular das amarguras luzitanas ferira a retina
dessa criança, que recebeu no banho lustral o nome
de António Vieira Ravasco, gravando-se tão fundo
naquella intelligencia embryonaria a lúgubre vinhe-
ta, que desenhava aquella época luctuosa, que ja-
mais poude extinguil-a a acção do tempo, e contra a
qual o seu espirito, desdobrando-se depois em um
possante talento, cuja cultura fez-se em apropriada
retorta, entre a taciturnidade sombria do claustro e
os perfumes de clássica bibliotheca, tinha de arcar em
todas as direcções e sentidos, patenteando as múl-
tiplas faces da sua omnimoda aptidão intellectual,
a possança de sua illustração e facúndia, tão vastas
e admiráveis para aquelles tempos, que o não pu-
deram reter nem os vergalhões da clausura claustral,
nem os severíssimos preceitos da passiva obediência
monástico inquisitonal : quiçá melhor interpretando
o ad majorem Dei gloriam, divisa eterna da -Ordem
que professara.
Sinto, Senhores, que não vos possa ainda des-
cerrar de todo o diaphano véo, que já não occulta
somente uma criança predestinada, senão o vulto
respeitável de quem, no mundo illustrado, descre-
veu, sobretudo na larga zona luzo-brazileira, a mais
fulgurante trajectória, que abriu em constellado fir-
mamento tão profundo sulco, tão láctea via que
jamais conseguirão apagar nem os maiores pheno-
menos sideraes, nem a acção delecteria do elemento
que tudo transforma, consome e leva, que o poeta
latino desenhou nas palavras: «ternpus ferre omnia
consuevit.»
Sinto que a posição que immerecidamente occupo
nesta solemnidade, cujo programma tão sabia e dis-
cretamente traçou a illustrada e operosa commis-
são, que foi delia incumbida pelo Instituto e cujo
desempenhe, bem o vedes, não poude ser mais sur-
prehendente, não me permitta ir além de uma sim-
ples e breve allocução inaugural, em que antecipa-
ções que me escapassem seriam duplamente imper-
doáveis: um attentado a vossa justíssima anciedade,
uma subtracção inglória dos primores oratórios que
vão dentro em pouco echoar neste recinto, ou talvez
um rapto que debalde tentaria encontrar a justifica-
tiva que absolveu o immortal Franklin — quando m-
puit ccelo fulmen.
Mas por menos que deva dizer eu não poderia
conter sem fazer-me violência, os estos do meu en-
thusiasmo diante da magnificência desta solemnida-
de em honra do vulto, que alli vedes, por tantos tí-
tulos venerável, que para encomiar cada um delles
foi commissionado um talento de primor dos muitos
que possue a Bahia, dedicados á esmerada cultura
das lettras, das sciencias e da historia, solemni-
dade tão imponente e deslumbrante que não sei si
a qualifique de festiva ou fúnebre.
Senhores, desde os tempos mais remotos, desde
a aurora das civilisações primitivas, todos os povos
prestaram sempre homenagens e respeitos aos seus
homens doutos, como áquelles que pelo tino e pers-
picuidade levaram a melhor ao commum de seus
compatriotas: é assim que os lettrados da China, os
magos dos Persas, os padres dos Guebros, os drui-
das dos Gaulezes e até os pagés das tribus selvagens
eram tidos como oráculos e tinham em torno de si
uma aureola de venerações e acatamentos. Essa reve-
rencia e culto tradicional aos sábios e notabilidades
de todos os tempos é como um instincto da perfec-
tibilidade quevae haurir na pureza das origens, ele-
mentos de progresso para a vida do espirito.
Mas os sábios não morrem, porque elles são, como
— $
já o disseram, pharoes nos desertos da humanidade,
irradiando sua luz sobre os ermos do espirito; e como
immortaes, porque suas fulgurações não perdem a
intensidade, a commemoração do traspasso de sua
existência material para a vida dos espíritos, deve,
como um tributo de veneração, uma publica home-
nagem á sua memoria, antes revestir os estofos de
gala de que o crepe da tristeza: eis porque na coroa
de gloria que enaltece aquella fronte severa e pensa-
tiva, dentre os goivos da saudade destacam-se também
purpúreas rosas.
E que melhor interpretação poderse-hia dar ao
pensamento que ditou a commemoração que hoje ce-
lebramos; si o vime tornou-se roble; si a timidez da
infância transformou-se em incoercivel coragem tan-
tas vezes comprovada, ante a fereza anthropophaga
do selvagem, como na presença das tempestades em
que tantas vezes achou-se o homem, que aquelle vulto
recorda, em frágeis caravellas, em pleno oceano que
parecia, sempre que o sentia sobre seu movediço
dorso, disputar á terra o direito de possuil-o, e ao
qual enfrentava com a stoica intrepidez de um verda-
deiro lobo domar, que «ou morre sem gemer no vór-
tice espumante» «ou resurge astro ovante após o ven-
daval» (*); entre os inextricáveis enredos da corte,
como no meio das traças de arguta diplomacia; diante
das injustiças e perseguições seculares ou ecclesias-
ticas, como nasluctas pela sciencia em um século em
mie desabrochavam talentos philosophicos, como os
de Descartes e Leibnitz, génios astronómicos como o
de Newton; si aquelle que celebramos com o nome de
padre António Vieira, cognominado «o Grande,» para
honra e gloria de sua pátria, que também era nossa,
fez-se por si mesmo uma notabilidade universal
«one self made man»; si após 200 annos a reminis-
cência de seu nome, o brilho de seus feitos illustres,
perdura indelével nas lettras e nas sciencias, nas bi-
bliothecas, como nos annaes de sua Ordem, na his-
(*)— R. Muniz Barreto.
toria universal, como è principalmente, na de Portu-
gal e do Brazil?
E' que, Senhores, já o disseram com espirito, se
deve julgar dos homens como das contas correntes;
nem pelo debito, nem pelo credito, mas pelo saldo.
Pois oem, aquelle vulto, cuja vida inteira vae ser sub-
mettida á sabia critica dos illustrados conferentes,
teve a seu favor tão grande saldo que dois séculos não
puderam dissipar; e é, como tereis de ouvir, dos
poucos que, pelo rastro luminoso deixado em sua
gloriosa passagem entre os homens, como pela rigidez
de sua tempera, pela oceânica profundeza e vastidão
de seu génio, admirado nas cortes da Europa, onde
relembrava Bossuet, e até pelo sólio Pontifício, onde
parecia un novo Chrysostomo, nem dissolve a exten-
são do espaço, nem destroe a acção do tempo.
As impressões fundamente gravadas no grande
coração da humanidade são eternas, e assim a me-
moria do padre António Vieira se perpetuará através
dos séculos porvir, envolta em uma tão deslumbrante
nebulosa que a universalidade dos povos cultos lhe
renderá sempre respeitosa veneração; que Portugal
se desvanecerá de haver produzido nelle um dos mai-
ores génios, e que mais renome deu-lhe; que o Brazil,
tendo sido o scenario principal de sua vida sacer-
dotal, sentir-se-ha por isso compensado de lhe não
ter sido o berço; que a Bahia se ufanará sempre de
ter illuminado o seu espirito, cultivado o seu talento,
e de o haver, emfim, recolhido no seu regaço de pre-
ciosas gemmas, como em lindas colchas d'ouro o
occaso recebe o sol; e finalmente, Senhores, o «Insti-
tuto Geographico e Histórico», não menos ávido de
uma parcella da honra, que tanto entre si pleiteiam
suas duas pátrias, de glorificar o bi-centenario da
ausência de tão homérico vulto, reservou para si
apenas a honraria de, por entre as grinaldas deposi-
tadas hoje pelas lettras e sciencias em torno do mo-
numento que lhe erige a humanidade, burilar no pe-
destal em que descançam as columnas de seu glorioso
e immarcessivel renome, uma inscripção modesta que
possa em pouco traduzir o muito, como pela voz da
poesia sabem dizer génios como foi o de Castro
Alves.
« . . .Quando o tempo entre seus dedos
Quebra um século, uma nação,
Encontra nomos tão grandes
Que não lhe cabem na mão.»
Estão inauguradas as conferencias commemora-
tivas do bi-centenario do padre Vieira; tem a palavra
o primeiro conferente, o orador do «Instituto».
)
>
!>
A. V.
PRIMEIRA CONFERENCIA
11 de Julho de 1897
Orador. — Dr. Braz do Amaral
Exm Sr. Dr. Governador:
Senhores:
I
encarregado da biographia de António Vieira, a
> traço largo, não venho fazer um panegyrico enco-
miástico a um homem ou ú sua memoria, mas pro-
curar fazer resaltar a luz da verdade e da critica
histórica sobre uma das grandes individualidades do
século XVII, que é o typo, que é o representante
privilegiado da litteratura e da eloquência portugueza,
as quaes se tornaram pela força mesmo das coisas,
pelas affinidades da lingua e do sangue, neste ponto
de contacto, pelo menos, as próprias predecessoras da
lingua e da litteratura nacionaes.
Ao morto illustre, cuja memoria fazemos realçar
D'esta conferencia disse o «Diário de Noticias»: «O Dr. Braz
occupou-se brilhantemente da biographia do notável jesuíta.
Foi uma peça de alevantada eloquência, de rutilancias de
phrases aprimoradas, que deixou vivo deslumbramento no espi-
rito de todos os ouvintes».
E ainda o «Diário da Bahia»:
«Assomando a tribuna, o orador, com aquella voz e scintil-
lante eloquência que lhe anima a palavra de homem estudioso,
discorreu de modo soberbo, traçando a biographia de António
Vieira e analysando os factos e os acontecimentos históricos que
se prendem á vida do notável jesuíta.
Durante. todo o tempo em que se manteve na tribuna teye o
auditório preso de sua palavra, que mais uma vez conquistava
um verdadeiro triumpho.»
iâ
com esta sincera homenagem, honra hoje de duas
pátrias, pelas mudanças que a politica e as exigên-
cias da liberdade e da própria vida estabeleceram
entre os dous povos, noutro tempo unidos sob uma
mesma lei, e uma mesma te, a este morto illustre
temos razão de sobra para respeitar e para amar.
O arcebispo D. Romualdo António de Seixas já
deixou fora de duvidas a questão aventada ha tempos
de ser ou não Vieira nascido neste paiz.
A nossa pátria, porém, nada perde por isso, porque
para nós a magna questão, o facto de incontestável
importância équeelle aqui se formou, robusteceu e
se habilitou para os prandes feitos que illu.stram a
memoria do espirito de escol que hoje commemo-
ramos.
Um dos seus melhores biographos, que aliás não ^
o Doupa, João da Silva Lisboa, diz terminantemente:
«Os fortes estudos começados no Brazil continuou-
os elle em Portugal com o mesmo fervor, sem em-
bargo dos multiplicados e graves negócios que lhe
enchiam quasi o tempo, pois das suas mesmas mis-
sões politicas e diplomáticas tomava occasião para
examinar na Europa as melhores livrarias e tratar
homens eminentes.
Todas as novas publicações devorava com avidez
e sendo sempre o bibliothecario da ordem noscolle-
gios em que residia, mais era morador da livraria _&
que da cella.»
Neste terreno, sob esta cobertura, sobre estas
taboas passaram-se o principio e o fim daquella exis-
tência dramática, desenrolaram-se a aurora e o
crepúsculo dessa vida de um homem que fui sacer-
dote, pregador, litteratc e publicista, que subiu aos
cúmulos a que podia aspirar a ambição naquella
epocha, que gosou do favor, quasi da omnipotência
junto a um rei, para descer depois até a defender-
se de crimes indignos que lhe imputaram e de ser
profundamente insultado por um governador brutal;
vida que não foi, porém, manchada pelos excessos
da mesa como a de Pitt, pelo sangue das compres-
sões como a de Cicero, nem degradada como a de
13
Rodney, mas fecunda, eminente e altiva, nãosecca e
egoísta como a de Goethe, mas tão profundamente
trágica, tão epicamente grandiosa e triste como as
vidas de todos os grandes desequilibrados, de todos
os homens de ambição c de génio, desde Pyrrho até
lord Byron.
Subindo da modéstia da sua infância ao valimento
de um throno, como Demosthenes tinha subido da
loja paterna do alfageme até a paixão patriótica,
até ser o interprete da independência hellenica, até
encarnar em si o resto da nobreza e da dignidade
da sua grande pátria decahida, da grande alma de
Athenas, elle seguiu, já edoso, como o outro, também
velho grego, o caminho amargo das quedas de gráo
em gráo até chegar á humilhação de uma sentença
ignominiosa como ohoroe das Philippicas ao veneno
de Calauria.
Também aquella outra águia da tribuna latina,
subindo victoriosa os degràos do toro romano, pre-
cedida pelos doze lictores do consulado, acompa-
nhada pelo séquito dos senadores e dos cavalheiros
3ue, como clientes, o conjuravam para que não per-
oasse Lentulus e Istatilius, a salvar a elles da ordem
equestre e a elles patrícios assim como as suas for-
tunas, mesmc pelas tramas, mesmo pelo sangue
vertido mysteriosamente no Tullianum, para voltar
a essacolumna dos seus triumphos, tão illustre como
os esporões de bronze dos rostros com a lingua es-
petada pela agulha de Fulvia, a esposa implacável de
António, que vingava, com raiva de mulher, as im-
precações da eloquência contra o seu marido, a
fuga precipitada de Roma, as d-ecepções da ambição
desmedida do general, e os perigos da guerra de Mo-
dena, também aquella águia da tribuna latina não
foi mais feliz do que elle.
Condeninado ao celibato pela sua roupeta nem
teve ao menos o grande e desditoso jesuíta na sua
velhice, longa e triste, como a de Augusto, a con-
solação que elle confiava á fecundidade de sua
irmã, aquella mesma Leonor Ravasco, de quem
era de esperar, a continuação do nome dos Vieiras,
i4
porque esta irmã foi estéril por alguma moléstia ou
por algum capricho da natureza. (*)
A esta memoria augus f a pelas fulgurações do ta-
lento e pela intensidade dos soffrimentos temos
razão de sobra para considerar uma genuína e das
primeiras grandes -intelligencias do nosso paiz,
porque foi no Brazil que se desenvolveram e forma-
ram a sua imaginação e o seu senso, o seu gosto e a
sua vocação.
Não foi esta cidade, não foi esta mesma casa, não
foi esta mesma argamassa que nos abriga que abri-
gou a mocidade estudiosa de Vieira?
E não fui ainda aqui que o génio, amadurecido
pela edade e pelas desgraças, cortido pelas desillu-
sões e pelas desesperanças, que o corpo abatido pelos
achaques e pelas quedas veio reconciliar-se, abrir-se
ás esperanças novas de sua fé, aprofundar-se na
ideologia grandiosa das suas devoções, das suas ar-
dentes crenças em Deus?
Não ha, pois, ponto do Brazil em que essa existên-
cia se tivesse desenvolvido melhor, eque tenha mais
razão para íazer-lhe a homenagem que ora empre-
hendemos, e não halogar, inclusive a própria Lisboa,
em que ella se possa fazer mais justa pela relação
histórica dos edifícios, pela solemnidade terna que
o theatro da infância o da morte imprimem á vida
de todos os homens!
Si não foi este o campo da sua gloria mundana,
foi o do seu preparo e o da sua agonia.
Têm os homens demasiado grandes, como Vieira,
dimensões que não se subordinam á intelligencia, ao
modo de viver e pensar um tanto estreito dos seus
contemporâneos.
EUes são, nas cspheras da intelligencia e do ca-
racter, á semelhança dos revolucionários, separados
do seu tempo, porque se adiantam a elle e o prece-
dem nas idéas e nos sentimentos.
(*) E' possível que existam ainda, entre nós, descendentes
de Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre António Vieira.
«N. do A.»
15
Por isso talvez, Vieira commetteu gravíssimos
erros e sacrificou algumas vezes tudo ao interesse do
momento, quasi ambicioso como um César, e vaidoso
como uma creança, pois alie queria muito a gloria dos
factos sabidos que elevavam a sua fama, mas é pre-
ciso confessar também, que havia sempre um ob-
jectivo nobre nas suas" acções. Encontra-se o alvo
de uma convicção honesta no fundo de todos os
seus sentimentosl
Podia haver desvio, mas havia intenção meritória,
filha de um principio que se lhe afigurava bom ou
genoroso.
Como quasi todos os homens de excessivo ta-
lento, nelle, não raro, a imaginação prejudicava a
razão; mas quando isso se deu foi sempre de boa
fé.
Sustentou por exemplo a causa impatriotica do
abandono de Pernambuco, mas não o fez comprado
pelo dinheiro do estrangeiro, mas porque exagge-
rava os perigos de Portugal, a braços com a guerra
na fronteira e a guerra no mar, sem thesouros e sem
frotas, visto no mundo inteiro como um pequeno
principado rebelde, desconhecido como egual por
todas as cortes, repellido do congresso de Munster,
humilhado por todas as recusas. Porque enxergou
nesse abandono economia e interesse para a sua
pátria.
Não tomou, por exemplo, a si essa defeza impo-
pular pelas causas que levaram Danton a cnxuva-
lhar-se nas concussões da Bélgica, pelos excessos de
agentes ou amigos seus como Fabre d'Eglantine e
Lacroix.
Nascido em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, An-
tónio Vieira veio para o Brazil com sua família, a
qual aqui estabeleceu domicilio em 1615, ou porque
seu pae viesse despachado para exercer algum
cargo publico, ou por outro motivo que é desco-
nhecido,
16
Frequentou logo as aulas da escola dos jesuítas
que tinham naquella epocha, aqui e em toda a parte,
grande reputação como educadores.
Provavelmente conheceram os professores a capa-
cidade do discípulo e tentaram seduzil-o pelo agrado,
ou a ambição própria do caracter do futuro amigo de
D. João IV cedeu a essas preferencias por compre-
hender c[ue era realmente entrando para a ordem que
elle podia mais fácil e seguramente seguir pela trilha
da grandeza, da reputação e do poder.
O que é certo é que aos 15 annos fugiu da casa
paterna para recolher-se a este collegio, onde pro-
fessou dois annos depois.
Aos quatro lustros manifestou a resolução de ir
pregar aos indios e africanos, provavelmente por
uma dessas altruisticas irreflexões da juventude que
nos assoberbam nas horas de enthusiasmo ou por
um desses devaneios melancólicos, tão frequentes nas
organisações nervosas e nos intellectuaes.
Os superiores, porém, não consentiram nisso, e
o moço padre foi leccionar rethorica no collegio de
Olinda.
Elle, porém, só celebrou em 1635.
Já a esse tempo tinha percorrido, por gosto próprio
ou em serviço da ordem, quasi todas as aldeias
de indios da Bahia e já o seu nome subia no con-
ceito publico, entre os colonos, pelos seus sermões
nas egrejas e arredores da cidade e mesmo aqui, na
capella d'Ajuda e na Sé.
Os dois maiores inimigos de Castella, os Batavos
e os Inglezes, acabavam de descobrir no mar o ele r
mento em que se deviam expandir, livres e poderosas,
a gloria e a vidadaquellas duas raças do norte.
Os portuguezes tinham feito das ondas as estradas
das suas conquistas; aquelles souberam fazer delias o
berço da sua pujança e um campo de exploração
para o seu commercio e sua riqueza.
Vingavam os hollandezes as tyrannias do cardeal
Granvelle e as atrocidades do duque d'A!ba outrora
na sua húmida e laboriosa pátria e, ao poder da in-
fantaria hespanhola, a primeira do mundo até Ro-
17
croi, elles oppunham a fria bravura dos seus almi-
rantes e o vigor valoroso dos seus marinheiros.
Não estava longe o dia em que um desses atrevi-
dos leões do mar, Tromp, devia percorrer o mar da
Mancha com uma vassoura no mastro grande, he-
róico e insolente, para mostrar que os marujos de
Hollanda tinham varrido da superfície das aguas os
inimigos de sua pátria.
Elles vingavam-se do Escurial o de Felippe II, do
sangue de Egmont e de Horn, derramado nos cada-
falsos, flagellando a Bahia com as suas armadas, des-
pejando nas praias desde a bocca do S. Francisco até
o cabo de Orange os seus mercenários e os seus mer-
cadores.
Já Pernambuco todo era delles e Nassau tinha
vindo trazer a esta colónia, conquistada por uma
nação viril e nova, a capacidade de um hábil admi-
nistrador, a moderação, a justiça e as vistas largas de
um reformador moderno.
Como si tudo, até a mesma natureza, estivesse fati-
gado do orgulho ignorante, da barbaridade regulari-
sada c por isso mesmo ainda mais atroz da inquisição
hespanhola e dos seus horrores, os ventos, as aguas e
os rochedos levantavam-se contra as frotas de Castella
como já tinham começado, no outro tempo, a bater a
invencível armada.
Foi por essa epocha que D. Fernando de Masca-
renhas, Conde da Torre, veio ao Brazil com um exer-
cito e uma esquadra; mas o exercito, desembarcado
no porto dos Touros e perseguido pelos inimigos,
pelos desertos e pela fome, alcançou a custo a frontei-
ra da Bahia por uma marcha, que é uma das mais
bellas retiradas que se tem feito na America, e a es-
quadra foi inteiramente destruída por Huyghens nas
aguas da Parahyba.
Tendo-se feito orações publicas na Bahia por occa-
sião de esperar-se esta batalha, pregou o moço
sacerdote com tanto successo para a sua gloria e para
a língua portugueza quão pouco o obtinha então o
conde da Torre para a sua bandeira.
Esse discurso, que é um primor pela forma e pelo
A. V. 3
18
fundo, pôde sem receio ser comparado aos mais ce-
lebres aa antiguidade e dos tempos modernos.
Si elle peccou como crente, atrevendo-se a aban-
donar as íormas reverentes de quem se dirige a Deus,
si quasi apostropha a divindade nos arroubos de uma
cólera desconhecida e desusada na tribuna sagrada,
si já se percebe a preoccupação de brilhar pela gala
do saber e si se prejudica pelo abuso do estylo antithe-
tico, que foi uma das suas forças de occasião e uma
das suas principaes falhas, não ha duvida, porém, que
se elevou até o sublime pelo vigor dos conceitos, pelo
encanto das descripções, pelo arrojo da forma, pela
pureza da linguagem e a força do talento de produc-
ção.
Como muitos dos homens illustres de imaginação e
de génio que tem produzido os povos latinos, pode-se
dizer, que elle nunca foi propriamente, verdadeiramen-
te, um homem de estado.
Podia parecer tal em certas circumstancias, como
quando aconselhou a instituição das companhias de
commercio e a fogueira das caravellas, isto é, a refor-
ma da armada e quando comprou navios e artilheria
na Allemanha; mas faltava-lhe peso no espirito para
mantel-o equilibrado emtaes alturas.
Elle logo se desviava, vivo de mais para muita per-
severança, attrahido por alguma coisa mais apparato-
sa e mais brilhante, como uma creança que abandona
o caminho da escola, attrahida pelo fulgor das azas de
uma borboleta, ou pelo viço das pétalas de uma flor.
Vieira, porém, nunca prostituiu nem venalisou o seu
talento, nunca deshonrou pela libertinagem a sua elo-
Íuencia nas orgias, nunca desceu ás abjecções da
erótica Biblion de Mirabeau, nem mereceu como esse
o dito feroz attribuido ao Marquez de Riquetti, seu
pae e seu inimigo, incisivo como a lamina de um gla-
dio: «Meu filho! O vendilhão de palavras!
Era pundonoroso e honesto como os que mais o
fossem e levava ao excesso, como tudo na sua vida,
o que dizia respeito ao brio. Uma vez que se empe-
nhava com el-rei sobre negocio de alta relevância, le-
varam-lhe uma bolsa com seis mil dobrões de oiro,
19
sob pretexto de distribui 1-os em esmolas, mas Viei-
ra respondeu que agradecia o presente com deixar ir
o portador pela escada e não pela janella como mere-
cia!
Teve em Romae Hollanda grandes sommas ás suas
ordens, das quaes nunca se serviu em seu proveito,
empenhando antes o credito do seu nome glorioso e
da sua roupeta para obter um empréstimo de 300 mil
cruzados, quando foi preciso aprestara esquadra do
Conde de Villa Pouca que devia vir soccorrer á
Bahia, apertada, por Sigismundo Von Sckoppe, e
quando mandou de Hamburgo as três fragatas que
levaram a Portugal a artilheria que salvou Elvas
dos Castelhanos.
Confundiu muitas vezes o seu orgulho com os inte-
resses das causas que tomou a peito e ainda com
maior frequência confundia o amor a seu paiz com a
obediência ou antes a subserviência aos seus mo-
narchas.
As cartas dirigidas ao Marquez de Niza e ao Duaue
de Cadaval, de Maio e Julho de 1682 e de Maio e Julho
de 1683, são provas exhuberantes de que o homem
sacrificou algumas vezes a dignidade do seu grande
nome ás aspirações do cortesão.
Mas quem veria no seu tempo as coisas por prysmas
dififerentes.
E podemos exigir que pensasem os outros, ha dous
séculos, como nós pensamos agora?
E pôde até haver maior prova de ignorância do que
esta?
Não tinha sido pouco antes delle na Inglaterra
Shakespeare o poeta da rainha?
Não deviam ainda por quasi dois séculos morrer os
soldados, gritar os generaes na hora do perigo
pelo seu rei e pelo seu Deus?
Não tinha expirado ha pouco Bayard, o cavalleiro
sem medo e sem mancha, appellando para o rei e para
Deus diante do inimigo que insultava a sua agonia?
A idéa da pátria, separada da pessoa dos monar-
chas, a consciência do dever cumprido perante a sua
terra e a posteridade, osprincipios de humanitarismo
20
egualitario e de fraternidade não foram realmente
postos em voga pelas theorias dos revolucionários do
espirito que deviam chegar 100 annos depois, os phi-
losophos do século 18?
Não é propriamente depois delles que a sociedade
os separa e distingue, que os povos os comprehendem
nos elementos constituintes da demcrcracia moderna?
Vieira, diz-se, humilliou-se muitas'vezès diante dos
reis e dos grandes, á cata dos favores das cortes, após
o brilho das embaixadas e do poder,á satisfação de
um amor próprio, de uma sede de salientar-se que
não se saciava no pequeno reino em que tinha nas-
cido.
Mas não era essa a regra então? E não se viam coa-
gidos a seguil-a todos os que não tinham na nobreza o
berço?
Eram bem diversos esses tempos dos nossos I
A philosophia insolente e desapiedada do século
18, o riso sarcástico de Voltaire, o espirito immenso
de Locke, o humorismo fino e irónico de Bolingbroke,
o desembaraço ingénuo de Rousseau ainda não tinham
ensinado aos homens aquella altivez que fazia do-
minar, mesmo quando chacoteavam ou quando enga-
navam desaffrontadamente, como o grande Frederico
ou Talleyrand.
Duzentos annos de soffrimentos, de revoluções,
de livros, de idéas de philosophos, de palavras de
oradores não tinham passado ainda por sobre a
humanidade, melhorando-a e corregindo-a. Ainda
Montesquieu não tinha escripto, Vergniaud e Abra-
ham Lincoln não tinham morrido pela liberdade;
ainda não tinham fallado Wilberforce e Brougham,
Cobden e o bispo Strossmayer.
Quando os eminentes espíritos que agitaram e
deram nos meiados deste século a verdadeira orien-
tação aos estudos da historia e da critica, envolvendo
nas narrações da politica e da guerra a vida intima, a
plena e livre evolução das sciencias e das artes de um
povo, a formação e o irradiamento da intelligencia de
uma nacionalidade, foi quando se comprehendeucomo
esta força directriz tinha faltado ao estudo dos homens
21
e das coisas do passado e como esse estudo era falho
por aquelle motivo.
Enviado em 1641 com o filho do marquez de Mon-
talvão para dar parabéns a D. João IV pela restauração
de Portiígal, o moço jesuíta foi, com o filho do vice-rei,
victima das violências de alguns exaltados em Peniche
logo que desembarcou e teve depois, no dia seguinte,
como consolação, ser recebido pelo próprio rei no
paço.
Dahi em diante data o seu favor na corte, onde logo
pregou e foi admirado pela sua prodigiosa capacidade
em fazer realçar todos os assumptos, pelo magnetismo
que exercia sobre todos os auditórios.
O governo era novo e precisava de homens novos, de
actividade, talento e energia.
Os meandros da politica de um povo que não tinha
tido administração própria durante sessenta annos
devassavam vastos horisontes aos ambiciosos e aos
hábeis. Vieira lançou-se no abysmo seduetor que se
abria diante dellel
E' este, segundo parece- me, o período mais bello da
sua vida, porque á magnitude da causa que abraçara,
da independência e liberdade da sua pátria, juntava a
pureza das intenções, o desprendimento dos interesses
da sua individualidade litteraria e politica, a nobre e
formosa generosidade da juventude.
Têm um sabor agradável os seus discursos e tra-
balhos outros dessa epocha como fruetos bem sazo-
nados, ou como as ondas de ar puro das manhãs lu-
minosas do nosso clima.
Nos seus sermões é, porém, mais um tribuno do
que um pregador. Lembra mais Castellar ou José Es-
tevão nas suas cadeiras do parlamento do que um sa-
cerdote estendendo-se sobre a vida dos santos e os
pyrogenicos horrores do inferno.
EUe raciocina como um economista e discute como
abalisado no traquejo do governo dos homens.
E' um propagandista da pátria nova e dos meios de
sustental-a com honra.
Elle falia do púlpito como quem quer formar mari-
nheiros e soldados, transplantar das índias para o
Brazil as especiarias para ferir de morte, no levante, o
commercio hollandez e o hespanhol, esquipar frotas,
organisar companhias de commercio, tão prosperas
como as de Amsterdam e Haya, comprar garanhões,
afim de fazer boas as raças equinas em Portugal, para
rebater na guerra do Alemtejo a ca\ aliaria hespanhola
que levava sempre a melhor.
Falia ao povo e á nobreza, interessa a todos na in-
gente causa nacional, familiarisando, fazendo discutir,
por todos, os problemas graves, as questões impor-
tantes que deviam tornar, bem resolvidas, a pátria
grande, prospera e feliz.
Coisa singular! Julgo Vieira aos trinta annos,
superior na madureza do juizo, no vigor das con-
cepções, pelo desejo de ser útil, pela precisão dos ra-
ciocinios, superior ao que elíe foi mais tarde em ,
muitas occasiões, quando mesquinhas preoccupações -*
de domínio na corte, de futilidades de valido emdecli-
nio,de abstracções demasiado mysticas ou de prefe-
rencias astrológicas transparecem nas suas palavras
e nos escriptos copias do seu pensamento.
E' interessante notar como elle atacava o fisco,
como pedia a liberdade de commercio, achando-se
com o príncipe de Nassau no mesmo terreno, como se
levantava contra as iniquidades da inquisição, pe-
dindo a abolição das distincções entre christãos novos
e velhos tão contraria ao espirito do Evangelho, co-
ragem que o grande jesuíta espiou mais tarde, já an- W
cião, nos cárceres e pelas humilhações.
O estado de Portugal era um tanto semelhante ao
nosso actualmente, em face da desordem financeira
e do descrédito no estrangeiro.
A cada nova imprudência, a cada nova loucura que
se commettia ali, contra o direito e a ordem normal
das coisas, baixava a sua importância, já tão peque-
nina, nos Estados prósperos da Europa.
Quando chegou, por exemplo, a noticia de que a
inquisição perseguia com rigor aos christãos novos e
que um auto de fé fizera victima o negociante Du-
arte da Silva, o cambio baixou logo cinco por cento e
os embarques feitos em Hamburgo deixaram de ser
23
enviados, porque ninguém quiz mais naquella praça
arriscar os seus capitães em tal paiz.
E como o governo portuguez respondesse com de-
sabrimento a uma reclamação dos Estados de Hol-
landa sobre esta desgraçadíssima questão, quando
aliás tragava sem protestos affrontas graves em muitas
coisas em que tinha do seu lado razão e justiça, o
nobre espirito de Vieira prorompia em um brado que
vale um livro pela sua fina ironia, pela sua dôr patrió-
tica: «Ora bemdicto seja Deus, que só para estas va-
lentias temos resolução I»
Esse período das suas missões diplomáticas é o
mais brilhante da sua carreira politica e do seu vali-
mento.
Foi por esse tempo que elle provou que sabia sacri-
s* ficar pelo interesse de Portugal até aquella vaidade ex-
cessiva, aquelle ardor de domínio, que é tão frequente
encontrar nas superioridades ambiciosas, ou quando
á superioridade se reunc a ambição.
Foi na occasião em que, segundo alguns dos seus
biographos, recebeu em presença de Francisco Cou-
tinho as cartas que o nomeavam embaixador em Haya
em logar daquelle ministro. Vieira não lhe notificou
esta substituição e embarcou para Lisboa, onde pro-
vou ao rei, cjue não era só a sua roupeta negra que o
incompatibilisava como brilho das grandes recepções
y^ nas capitães ricas, mas a dignidade, a fortuna e a se-
gurança do reino que Coutinho estava defendendo com
vigilância e rara sagacidade perante o governo da re-
publica batava.
Em que intrigas andou envolvido o Padre em Hol-
landa com o embaixador Coutinho e em França, um
tanto como accessor do Marquez de Niza, é difficil
dizel-o com certeza, ou melhor, será explicado daqui
a alguns dias.
Ha neste particular muita coisa mysteriosa e som-
bria, mas a diplomacia sempre o foi, é e será; e sobre
aquelles tempos com especialidade faltam documen-
tos que desvendem cabalmente, plenamente, o que ha
de ambíguo nas chronicas e narrativas.
A historia tem ás vezes perplexidades sobre certas
24
coisas, como os erros e leviandades que lhe attri-
buem por essa epocha, de modo que não podemos
acreditar alguns delles sem muito severo, sem impar-
cialissimo exame.
Fallecem elementos precisos, por exemplo, sobre
a insinuação a corsários de Saint Malô para virem á
Bahia auxiliar a guerra hollandeza e sobre os subter-
fúgios de que se serviu para negar-se á responsabili-
dade de ter apoiado a promessa da entrega de Pernam-
buco aos hollandezes, promessa feita pelo embaixador
Francisco Coutinho; servindo-se das firmas em papel
em branco que possuía do rei, urgido pelas circum-
stancias, esmagado pela ameaça da partida immediata
de uma poderosa esquadra, suspensa das ancoras no
porto e que tinha força não só para saltear Lisboa,
como para destruir a Bahia, desprovida e desarmada, ^
ou tomal-a e anniquilar todas as veleidades de resis-
tência no Brazil.
Parece-me que ainda assim, de todas as increpações
feitas a Vieira esta é uma das mais serias e das que
mais pesam sobre a sua memoria.
O que é fora de duvida é que elle tinha pleiteado
por aquella má inspiração no Papel Forte, apresenta-
do sob a forma de relatório ao rei, talvez por ordem
do mesmo monarcha, como affirmou mais tarde o
padre, dizendo que traduzia apenas, sob a forma. bri-
lhante que o seu talento sabia dará tudo, a convicção ,,
e os desejos do monarcha e da maioria da corte. -**
O que é também incontestável é que o governo por-
tuguez approvou com açodamento o acto de que Cou-
tinho desolado dava parte a seu paiz pedindo o seu jul-
gamento e offerecendo a própria cabeça em holocausto
a sua pátria como satisfação ao amor próprio nacional
tão justamente ferido, eque talvez não comprehendes-
se as razões formidáveis daquelle duro sacrifício, que
elle fizera para impedir um perigo real e imminente
e ganhar o tempo indispensável, de que o povo por-
tuguez precisava para preparar a sua defesa.
Vieira foi enviado a Paris em 1647 para tratar da
questão nebulosa dos casamentos dcs príncipes e,
segundo dizem alguns, a dignidade e até a indepen-
25
dencia do reino estiveram em perigo pelo procedi-
mento ligeiro, e pelos arrojos do padre a quem o
rei tinha dado um papel de mentor, ou coisa que o
valha, da embaixada.
A outra missão semelhante, á Roma em 1649, não foi
mais feliz e até o jesuíta correu serio perigo, porque o
duque do Infantado, embaixador hespanhol, promet-
teu mandar matal-o, onde fosse encontrado.
Em 22 de Novembro de 1652 partiu para o Mara-
nhão, após uma serie de peripécias que têm sido muito
mal interpretadas pelos seus biographos mais se-
veros.
Elles acreditam que o illustre jesuíta affectava partir
com os seus superiores e que se servia do pezar mani-
festado pelo rei, por causa de sua ausência e dos pe-
rigos que ia correr, para ficar nas galas doiradas da
corte, no mundo de lisonja que os seus talentos e a
privança real lhe garantiam.
Os processos de investigação histórica falham mui-
tas vezes quando chegam á beira desses mares inson-
dáveis da consciência humana e quando se vê o histo-
riador arriscado á empreza temerária de pronunci-
ar-se sobre as intenções intimas de um individuo.
Somos tão capazes de pensamentos delicados no
meio de más acções I
E quantas vezes desejos máos não nosaccomettem,
praticando os mais nobres actos?
Não é, emfim, o homem o irmão e o maior inimigo
do homem?
Não é quasi sempre o preto quem vende o preto, o
indio quem vende o indio?
Talvez seja amargura ou moléstia do espirito pen-
sarmos ás vezes como Shopenhauer; mas em todo
caso, Senhores, por maior que seja o personagem de
quem se escreve a historia, é sempre um bem para o
biographado não ser considerado como extreme de
defeitos, como uma organisação á parte na vida da hu-
manidade, inaccessivel ás fraquezas e ás vacillações
de todos os homens.
Teria elle vindo realmente de moto próprio ao Brazil,
tomado de uma dessas paixões de isolamento, ou de
AV. 4
26
sacrifício, pela tendência um tanto mystica dos 18
annos que voltava mais forte agora, pelo tédio a que
são mui sujeitas essas naturezas susceptíveis e nervo-
sas?
Ou seria ainda o desejo de figurar com honra em
um novo tablado, nestas terras virgens da America que
illustravam com a immortalidade os seus martyres e
que dariam a ?eu nome uma nova aureola e realçariam
a sua gloria na Europa, onde era tão conhecido?
Augmentar o seu prestigio pelo sacrifício, pelo lon-
gínquo do desterro, pelo ignoto das selvas verdes em
que se encravava, por esses- povos embrutecidos que
ia submetter com pregações ou salvar com decretos
alcançados do rei pelo seu favor, pelo mysterio das
ondas desse immenso Atlântico que era preciso atra-
vessar, não seria tudo isso adequado para tentar esse
homem infatigável, este argumentador brilhante e in-
saciável de gloria e de renome?
Aqui, no Brazil, se abre para o eminente jesuíta
uma das espheras de actividade em que a sua energia,
um tanto febricitante, expandiu-se com admirável
vigor.
O homem habituado ao conforto das cortes, ás
discussões palacianas das embaixadas, aos torneios
do espirito a que era tão chegado, ás elevações or-
gulhosas dos pensamentos em que nós subimos quasi
até a divindade, dormia nas palhoças dos Índios,
entre os igarapés do Amazonas, sobre as povoações
lacustres dos Goyanás.
Attrahido pelo perigo e por aquella exaltada dedi-
cação com que costumava lançar-se nas causas em
que se empenhava, entrou na ilha de Marajó,
inaccessivel até então ás armas dos portuguezes,
rebelde ás tentativas dos missionários, e obteve a
paz ea catechese dos selvagens Nhengaibas.
A feracidade dessas terras ricas que a civilisação
não sabia ou não podia aproveitar, e que tão mal
aproveita ainda hoje, transportava-o, e o seu amor
pelos pobres índios, que as enchiam como os laby-
rinthos dos seus mangues e cipoáes, crescia na
grande alma do jesuíta, que se abria aos largos ho-
>
27
risontes da moderação, da piedade, das branduras do
Evangelho e da redempção pregada pelo seu Deus.
E então elle se tornou o patrono e o apostolo
destes desgraçados, o enthusiasta da causa santa da
sua elevação e da liberdade pela cathechese, emba-
lado pelo sonho de uma grandiosa civilisação, bro-
tando no meio deste povo pela luz da religião e pela
paz com os brancos!
Então foi á serra de Ibiapaba, e tanto para leste
como para oeste, nas tabas, entre os gentios simples
e feros só se fallava no pae branco, no padre que
tinha vindo de longe com palavras novas, com pro-
messas que faziam dos perseguidos homens e
irmãos!
Vieira soffreu tudo, a fome e a sede, as viagens
a pé pelos longos areaes, fustigados pelo vento duro
do mar que escoria as pálpebras e levanta a poeira
fina que anniquila a vista.
Os Tobajáras receberam-no bem, apesar das des-
confianças que Telles já tinham incutido os máos tra-
tamentos que lhes foram feitos pelos portuguezes e
os conselhos dos índios dos sertões de Pernambuco,
alliados aos hollandezes; mas o prestigio, o ascen-
dente do missionário foi tal em pouco, entre os sel-
vagens, que elle fez retirarem-se os de Pernambuco
e sujeitou toda a serra, estabelecendo relações na
costa com o forte de Camuci.
De volta ao Maranhão lança-se de novo aos rios do
Norte, onde se entende com os Juninas e Tupinam-
bás e lança os princípios de navegação regular e
e trato dos portuguezes com os indios do Tapajoz e
do Xingu, graças ao padre Manoel de Souza e ao
padre Sottomaior.
Logo, porém, reconheceu as difflculdades formi-
dáveis da empreza de libertação que intentava, e
Srevio as tempestades que o jogo dos interesses devia
esencadear; mas foi desprendido, perseverante e
nobre.
Importância, reputação, a estima da gente da-
quella pequena e alvoroçada terra, tudo, tudo elle
sacrificou á causa magnânima que immortalisa tanto
28
a sua memoria como todos os dotes do seu espirito,
e as torrentes da sua eloquência!
Dos sargentos mores a quem se dava o domínio
dos indios mansos, uns faziam delles escravos que
trabalhavam nas suas searas, outros vendiam-nos
abertamente a terceiros. E era essa toda a differença!
Quanto aos indios bravos só se entendia para com
elles a guerra barbara e fe^oz, em que eram legitimas
todas as atrocidades, todas as traições e todas as
torpezas!
Contra tanta iniquidade e tanta injustiça se levantou
imperterrita a figura homérica de Vieira e é força
confessar que se bateu com sublime arrojo, em Por-
tugal, onde foi buscar alvarás e leis para proteger os
indios, e no Brazil onde veio promover a execução ,
delles. Jk
Accusaram-no de ter sacrificado a pureza dos prin-
cípios em relação á escravidão, quando no Maranhão
e no Pará pleiteou, ora com enthusiasmo, ora com
desespero e dôr, por essa raça desditosa e pros-
cripta!
Accusaram-no por ter lembrado, como Las Casas,
a introducção de africanos em larga escala como
um meio de alliviar os desgraçados indios e dimi-
nuir a espantosa mortalidade que fazia entre elles a
servidão.
Perceberiam ambos que um cap>tiveiro ia sub- ^
stituir a outro e que, nem por ser maior o capital em-
pregado, o interesse devia diminuir a crueldade dos
agentes do negocio infame e os hábitos ferozes que o
senhorio sempre contrahe?
Com certeza não!
A* alma impressionavel , nobre e apaixonada de
Vieira tinha occorrido o mesmo pensamento em cir-
cumstancia idêntica, por falta de melhor alvitre no
desespero de encontrar moderação e justiça para com
os indios, desorientado por ver o despovoamento do
paiz que ameaçava ruir tudo pelos alicerces, socie-
dade nascente, riauezas da pátria, principio de hu-
manidade, honra ao seu povo, tudo!
Os acontecimentos provaram depois que não tinha
feito bem.
Nós temos, porém, o direito ou devemos pretender
que elle fosse mais previdente ha dois séculos e que
visse as coisas como nós as vemos agora?
Reprehende-se a Vieira ter acceitado o principio
da escravidão, baseando-se na divisão das guerras
em justas e injustas, e procurando apenas moderal-a
ou corrigil-a.
Não ha justiça na servidão, seja ella qual fôr,
porque a escravidão é sempre iníqua, nem realmen-
te se pôde admittir a legitimidade de uma presa,
porque o vendedor diz que a fez em guerra justa ea
victima, que não conhece quasi sempre a língua em
que se estatue a sua posse como um aireito e que está
sob a pressão do látego, confirma asserção mons-
truosa.
Esta victima é, alem d'isso, muitas vezes uma cre-
ança de sete annosou de dez!
Mas, tinha outro allivio nas suas mãos para os con-
demnados o eminente jesuíta?
Não eram todos os homens de guerra, todos os
agricultores, toda a população, homens de calção e
homens de sotaina os patrocinadores e os agentes da
tremenda violência?
António Nolasco, um dos mais ferozes caçadores
de peças, não era um frade?
Não teve sempre elle, padre Vieira, contra si em
juízo, na celebre acareação e exame das victimas a
maioria, isto é, o provincial do Carmo, o commis-
sario das Mercês, e o custodio de Santo António,
todos filhos daquella religião do captivo do monte das
Oliveiras e do suppliciado do monte Calvário?
Os dois primeiros porque estavam bem informados
de que as guerras tinham sido justas por pessoas
fidedignas e religiosos de sua ordem, o terceiro
porque se as causas de guerra justa eram doze, se-
gundo os doutores da Escolástica, seria impossível
que de tantas não tivessem os escravisadores alguma
com que se justificassem.
Quanto ao vigário do . Maranhão encerrava-se
30
n'uma obtusidade d'onde só sahia a palavra captivos,
capíivos, respondendo afinal á interpellação vehe-
mente de Vieira, aos argumentos do seu génio., a
toda inspiração do espirito e da bocca mais eloquente
dalingua portugueza que, sendo christãos os homens
que tinham ido fazer as presas, não se havia de
presumir que fizessem cousa mal feita.
Que podia fazer o sacerdote em tal meio?
Que podia fazer o juiz liberal e justo com taes
companheiros?
Havia felizmente para honra nossa n'aquella junta,
constituída em tribunal, Senhores, permitti ao meu
orgulho patriótico esta expansão, um homem aue
votava com Vieira pela liberdade e que era um aos
soldados mais valentes e um dos filhos mais illustres
d'esta terra do Brazil n'aquelles tempos:
O parahybano André Vidal de Negreiros!
E, entretanto, apesar de ser o governador do Es-
tado, apesar da justiçada causa que elle sustentou
n'aquella longa íuta como o mais solido esteio de
Vieira e da Companhia de Jesus, elle nem se atrevia
a limitar o prazo da escravidão a cinco annos, como
o jesuíta, mas cedia sete, vencido pela razão de es-
tado, pelo medo de subverter todo o elemento de tra-
balho no Maranhão e no Pará, de derrubar todas as
fortunas e fazer seccar todas as fontes da riqueza
publica e particular.
E podemos depois d'isto razoavelmente incriminar
a Vieira porque cedia no captiveiro temporário, já
que não podia impedir o absoluto?
Quando Rio Branco, duzentos annos depois, n'esta
mesma terra, flagellada, regada por tanto sangue de
captivo, livrou o útero da mulher escrava, para que
ao menos a liberdade protegesse a maca ou a es-
teira que servia de berço aos innocentes que não
deviam ao senhor de sua mãe d'elles o dinheiro que
ella tinha custado, que não deviam soífrer como con-
demnados, expiando como uma culpa o contubernio
que lhes dera o ser, quasi toda a camará e muita
gente no paiz não blaterava e accusava de revolucio-
nário o ministro libertador?
31
Quando mais tarde ainda a nação brasileira, aba-
lada nos seus alicerces, como edifício construído
sobre lava e sobre cinza, humilhada na sua honra,
ameaçada na sua paz, pedia, pelo órgão do ministé-
rio Dantas, que soltassem os grilhões dos velhos para
que ao menos a liberdade alumiasse o leito de morte
crestes suppliciados durante a vida, não se levantaram
os que tinham que perder, e não foi derrotado nas
urnas o chefe liberal, que devia ser estrondosamente
vingado, menos de três annos depois, pela imprensa
abolicionista, pelos brados de um povo inteiro, pela
capitulação da coroa perante a revolução, pelo peso
da espada do exercito, quando ella também se deitou
na balança?
A* vista de tudo isto, Senhores, destas verdades
que são eternas, porque esta é a voz da historia, po-
deremos incriminar Vieira?
Deixae-me, Senhores, que repita, como prova real-
mente prodigiosa da eloquência humana, como jóia
da nossa lingua, pelo vigor da dicção, pela potencia
do arrazoado, pela grandeza do assumpto, pela ma-
gnitude da questão, que é a da commiseração e da
piedade para com aquelles perseguidos das brenhas,
que pereciam ás centenas pela fome e pelo excesso de
softrimento e de trabalho, afim de encher os que não
tinham nada, para dar mais aos que não se saciavam,
aapostrophe, quasi que me atrevo a dizer, as estro-
phes com que o eminente padre, encanecido no ser-
viço de seu paiz, advogava do um púlpito, em pre-
sença da rainha e da corte, a causa dos desgraçados
captivos.
Parece o próprio génio da liberdade e da luz que
troveja e invectiva, espancando as trevas e a escravi-
dão, o illustre missionário quando volta do deserto
para pedir repararão e justiça por ter sido expulso
com seus companheiros da terra que quizera libertar.
«Quem havia de imaginar, pronunciava elle, que
aquella gloria tão heroicamente adquirida nas três
partes do mundo e esclarecida era todas as quatro,
se havia de escurecer e profanar em um rincão ou
arrabalde da America?
32
Quem havia de crer que n'uma colónia chamada de
portuguezes, se visse a egreja sem obediência, a cen-
sura sem temor, o sacerdócio sem respeito, e as
Eessoas e logares sagrados sem immunidades? Quem
avia de crer que houvessem de arrancar dos seus
claustros aos religiosos, e leval-os presos entre
beleguins e espadas nuas pelas ruas publicas e
tel-os aferrolhados e com guardas até os dester-
rarem?
Quem havia de crer que, com a mesma violência e
affronta, lançassem de suasChristandades aos prega-
dores do Evangelho, com escândalo nunca imagina-
do dos antigos Christãos, sem [pejo dos novamente
convertidos, e á vista dos gentios attonitos e pas-
mados?
Quem havia de crer que até aos mesmos parochos
não perdoassem, e que chegassem a os despojar de
suas egrejas, com interdicto total do culto divino, e
uso dos seus ministérios; as egrejas ermas, os baptis-
térios fechados, os sacrários sem sacramento, emtim,
o mesmo Christo privado dos seus altares e Deus de
seus sacrifícios?
Não fallo nos auctores e executores destes sacrilé-
gios, tantas vezes, e por tantos títulos excommun-
gados; porque lá lhes ficaram papas que os absolvam.
Mas que será dos pobres e miseráveis índios, que
são a presa e o despojo de toda esta guerra? Que será
dos Christãos? Que será dos Cathecumenos? Que será
dos pães, das mulheres, dos filhos e de todo o sexo e
idade?
Os vivos e sãos sem doutrina, os enfermos sem sa-
cramentos, os mortos sem sepulturas, e tanto género
de almas em extrema necessidade, sem nenhum re-
médio! Os pastores, parte presos e desterrados;
parte mettidos pelas brenhas, os rebanhos despe-
daçados; as ovelhas ou roubadas ou perdidas; os
lobos famintos, fartos agora de sangue, sem resis-
tência; a liberdade trocada por mil modos em servi-
dão e captiveiro, e só a cubica, a tyrannia, a sensua-
lidade e o inferno contentes.
E que a tudo isto se atrevessem e atrevam homens
com o nome de portuguezes, e em tempo de rei
portuguez ?
Outrora sahiam pela barra de Lisboa nossas naus
carregadas de pregadores que voluntariamente se
desterravam da pátria para pregar nas conquistas a
lei de Christo. Não se envergonhe já agora a barra
de Argel de que entrem por ella os sacerdotes capti-
vos e presos, pois o mesmo se viu em nossos dias
na de Lisboa. Certo, bem empregado prodígio fora
neste caso, si fugindo daquella barra o mar e voltan-
do atraz o Tejo, lhe pudéssemos dizer como ao rio e
ao mar da terra, que então começava a ser santa:
Quid est, tibi, maré, quod fugisti, et tu Jordanis, quia
conversus es retrorsumf
Desengana-te, porém, Lisboa, que o mesmo mar
te está lançando em rosto o soífrimento de tamanho
escândalo; e as ondas, com que, escumando de ira,
bate ás tuas praias, são brados com que te está dizen-
do as mesmas injurias que antigamente a Sydonia:
.Erubesce, Sydon, ait maré.»
Eu só conheço igual, a esplendida imprecação im-
Eetuosa de 0'Connell, na língua ingleza, que é tam-
em, como a nossa, forte e rica.
Foi na occasião em que o grande orador irlandez
na camará das communas de Inglaterra, indignado,
inflamado no fogo de seu génio, inspirado na profun-
da piedade que as desgraças da sua pátria lhe arran-
cavam dos lábios e do coração, terminando um dos
seus discursos com o gesto de quem repelle deante
de si a visão de um monstro disforme, como a vin-
gança ou o terror, que elle imaginava representados
pelo monopólio que possue as terras da sua verde-
jante Erin, pela aristocracia estrangeira que exhaure
o povo desditoso e haure delle as forças com que o
estrangula, num tremendo brado de desafio, de
cólera e de dôr, por muito tempo contidos, exclama:
«Não, duque de Noríhumberland, vós não sois meu
rei! Não, duque de Richmond, eu não sou vosso homem
ligio; eu não vos pagarei taxa.
i .
A.V. * * 5
34
Os mais acreditados dos seus biographos repre-
sentam Vieira como um homem de estatura regular,
com a tez tostada pelo sol tropical, um tanto moreno
baço, como os brazileiros, com os cabellos negros que
a idade e os desgostos embranqueceram mais tarde;
o nariz aquilino, os traços finos.
Mas a revelação da intelligencia está nos cantos
da bocca, onde se lê a mordacidade do espirito, por-
que elle tinha, como Cicero, o defeito de não peraoar
aos seus inimigos ou mesmo aos indifferentes os epi-
grammas e ditos que ferem como punhaladas.
A sua superioridade tinha, como a do orador ro-
mano, dessas explosões invencíveis, filhas do pró-
prio caracter e que o lisongeavam pela voga de que
gosavam dentro em pouco. ^
Por estas coisas e porque o favor dos reis é ingra-
to como o das democracias, o padre, apezar do seu
antigo poder, não conseguio a justiça que pedia para
os seus índios. Arrastado pelas exaltações de seu ca-
racter ou por ordem superior, encarregou-se ainda de
umas tantas reprehensões que a rainha entendeu di-
rigira seu filho D. Affonso antes da sua elevação ao
throno.
Então os seus inimigos aproveitaram a occasião e
o eminente jesuíta foi nos começos do novo reinado
perseguido pelo santo oflficio e encarcerado em Co- ^
imbra.
Processado como conspirador ou simplesmente
por intriga politica, auxiliada talvez pelo ciúme exis-
tente entre os dominicanos e os jesuítas, elle soffreu,
parece que por ser a cabeça mais illustre da ordem
e aquella portanto que seria mais lisongeiro ou mais
grato ao ódio de um inimigo ferir.
Deixado em abandono nas prisões da inquisição,
o pobre condemnado somente soube que já havia
outro rei, quando se executava a sentença, que sobre
elle cahiu.
Os partidos em todos os tempos e em toda a parte
aproveitam os sacrifícios dos homens que servem a
seus interesses, mas fingem não perceber, quando
â5
chegam a vencer, que elles se sacrificaram por sua
causa.
Humilhado e revoltado dirigiu-se Vieira a Roma
em 1669, onde a fecundidade do seu talento e os re-
cursos da sua palavra lhe grangearam a admiração
de toda ac[uella corte faustosa e variada, taes eram
ainda o vigor, a frescura e o luzimento do seu espi-
rito que não enfraquecia.
Já eram, porém, chammas sem fogo 1 Procuran-
do a repercussão da sua gloria no reino, elle só en-
contrava indifferença e hostilidade.
Foi então que o coração do grande velho se acolheu
ao retiro singelo e ridente que tinha abraçado a
sua infância, e visto desferir os primeiros raios da-
quella existência luminosa como uma constellação,
e veio para a Bahia.
Foi na Quinta do Tanque que elle passou os últi-
mos annos da sua vida, commentando, corregindo,
interpretando as passagens, elucidando alguns ca-
pitulòs obscuros de suas obras.
Mas até no seu deserto, como elle chamava, a des-
graça perseguia-o.
A fortuna não quer aos velhosl disse tristemente
um dia Luiz XIV ao marechal de Villeroy gue voltava
da Itália derrotado e depois de ter sacrificado um
exercito!
Vieira conheceu por dura experiência a verdade
desta espécie de sentença.
E' quasi sempre na velhice que, os que possuem
a fortuna de ter família concentram nos seus a
actividade e os ócios que a sociedade aproveitou
n'outro tempo.
Vieira foi ferido justamente n'estas caras e ardentes
affeições
No irmão, accusado falsamente de um assassinato
que o obrigou a homisiar-se por muito tempo; no
sobrinho, tão mal recebido pelo rei, que o idoso je-
suíta cahiu fulminado e ficou gravemente doente
auando soube, como tinha soffrido duramente do
descendente o enviado daquelle que tinha sido por
muitas vezes a cabeça aconselhadora do ascen-
dente.
O padre Vieira não poude afinal permanecer
reais na quinta do Tanque, onde tanto trabalhara
e tanto soffrera.
Foi aqui mesmo, neste collegio, encerrado na
pequena cella de que estamos separados por alguns
passos apenas, que o eminente jesuíta, ornamento
do seu século, fulgor da litteratura de sua pátria, vi-
veu diante da esplendida paisagem da bella costa
fronteira, das praias amarelladas da península que se
estende á direita, d'ac[uelle Monserrate cercado de
alvas espumas como Miramar, diante daquellas ondas,
ora verdes como esmeraldas, ora azues como o céo,
no dorso das quaes arriscara tantas vezes as suas es-
peranças e os seus dissabores, no meio do bramido
das tempestades ou no balouço brando das suas ma-
reias.
Depois, foi-se-lhe extinguindo a vista para o tra-
balho e um dos seus últimos gosos era o deslum-
brante espectáculo do formoso incêndio do céo, por
detraz de Itaparica, quando o sol desce todas as
tardes para as aguas, cercado de faxas de fogo.
Como o sol elle foi também melhor admirado de-
pois de desapparecido ! 1
A sua retina de velho entretanto já não podia mesmo
distinguir; mas elle adivinhava a approximação deste
amigo da sua juvenilidade, que o vinha visitar todos
os dias, quando, lá defronte, no oeste, ia esconder-se
por detraz dos macissos sombrios do arvoredo da
outra costa, quasi atufado nas terras, mas do lado de
cá, tornando encostas, casas e ladeiras, o perfil dos
navios e os rochedos, tudo fulvo, tudo rubro; e ainda,
quando, mais tarde, dominam os tons violetas, lilazes,
levemente esverdeados ou alaranjados, como fios de
oiro nas visinhanças do disco, destacando o escorço
elegante das palmeiras na crista dos montes da ilha
até o momento em que se estende uma como mancha
pardacenta de um claro escuro indefinível no céo e
sobre a superfície das aguas, para que emfim em todo
o occidente ha pouco inflammado, só se perceba a
37
curva rutilante do astro que se deita lenta e mages-
tosamente no marl
E foi também assim que aos 18 de Julho de 1697
Vieira se deitou no tumulo! 1!
(Applausoê gemes. O orador é vivamente felicitado.)
* x
A
SEGUNDA CONFERENCIA
13 de Julho de 1897
Orador. — Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro.
O Padre António Vieira considerado como clássico
da lingoa Portngneza
Senhores:
Semper honos nomenque tuum,
laudesque manebunt. — (Virg.)
junca é tardio o preito que os vivos rendem aos
^mortos illustres; nunca é excessiva essa homena-
gem, que o respeito e a admiração dos séculos ligão ao
nome desses mortos, cuja memoria venerável é sem-
pre rediviva ao espirito das nações a que illuminarão
com as luzes e scintillações de seo saber, com a
claridade de suas virtudes, com os lampejos e clarões
deslumbrantes de seo génio; sob cuja influição se
formarão as nacionalidades, se robusteceo o amor
da pátria, se fortificou o civismo, crescerão os
talentos, engrandecerão as sciencias e as lettras, se
centuplicarão as aspirações generosas, se radicou e
D'esta conferencia disse o «Correio de Noticias »:
«O provecto professor e abalisado philologo desempenhou- se
da honrosa e difficil tarefa de estudar o Padre António Vieira
como clássico, de um modo tão cabal, tão na altura do assum-
pto, que o seu discurso constitue de hoje em deante um monu-
mento de pureza de linguagem, de conhecimento profundo do
idioma vernáculo, sagrando-se elle próprio clássico, assim como
o escriptor, cujo elogio lhe fora incumbido ».
E ainda o «Diário da Bahia» :
« O erudito professor, traçando, çom a competência que tem,
40
encarnou no coração do povo o sentimento do grande,
do justo e do honesto, se nobilitarão e requintarão os
conceitos, se aprimorarão e sublimarão as virtudes;
são mortos que vivem mais para a humanidade, quan-
do, sobre a rude carcassa que lhes encadeava o espi-
rito soberano e genial, lhes pesa a fria e gelada lapida
de um tumulo; porque ahi desapparecem os fumos da
lisonja, com que muitas vezes em \ida se incensão os
grandes, os ricos e os poderosos, se bem que pobres
em virtudes, falhos em saber; ahi se não ouvem mais
essas alegres symphonias, esses hymnos estrepitosos
que só subsistem com a vida, e são ephemeros, como
os favores da fortuna; ahi a historia inexorável, essa
grande mestra da vida, com imparcial magestade, vem
sobre a sepultura do mérito inscrever, com sua pro- »
pria mão, o epitaphio glorioso que fará perdurar na — ^
memoria dos vivos o nome daquelle que a noite taci-
turna o queda da morte alli esconde e clausura.
A morte só é adormecimento e olvido para os espíri-
tos communse medíocres; para os grandes engenhos,
porém, é antes reviviscencia e resurreição; estes são
astros que, em sua larga eimmensa trajectória, luzem
e luzem sempre, ou assomem no horizonte, ou se es-
condão e sepultem para espargir seos raios sobre no-
vas regiões; são mananciaes perennes d'agoa límpida
e pura, os quaes sempre fecundão e fertilisão o solo
donde vertem e por onde passão, e que nelles acertou 1
de abeberar-se. O génio é essencialmente cosmopolita: . ^
não pertence a este ou áquelle paiz, a esta ou áquella
nação, tem por pátria o mundo, são luzeiros da huma-
nidade, e, como esta, não envelhece elle, nem morre;
porque se não perdem, nem morrem as vibrações a
cujo poderio magico submette os espíritos, que arras-
a extraordinária individualidade de Vieira, como mestre e clás-
sico da lingua portugueza, produziu uma oração verdadeira-
mente notável, na qual ao substancioso do fundo corresponde a
belleza e a magestade da forma.
O primoroso discurso, no qual o Dr. Carneiro, em largos
voos de eloquência, acompanhou o dizer puro e elegantíssimo de
Vieira, de que leu trechos incomparáveis, de sublimidade e opu-
lência da dicção, foi ouvido com o attencioso silencio que o seu
merecimento impõe».
41
ta, avassalla, subjuga e fascina, vivendo e revivescen-
do sempre, tirando da própria morte a vida, que o
perpetua e eternisa.
Nenhum homem mereceo mais de seos contempo-
râneos, nenhum tem mais títulos a ser appellidado
génio nas lettras, nenhum é mais digno dos applausos
e das ovações com que a posteridade genuflexa, ha
dois séculos, lhe honra e venera a memoria, do que
aquelle que constitue o assumpto do discurso que ora
vos dirijo, e tão benévola e generosamente attendeis.
E', Senhores, o Padre António Vieira.
Permitti que, antes de vos delinear o vulto ma-
gestoso cujo nome commemoramos hoje, antes de
vos apresentar o pallido bosquejo do grande en-
genho, aue tanto* honrou a roupeta do jesuíta,
>- quanto illustrou a penna do litterato e os agudos
conceitos do politico e diplomata, do homem que
a tantas luzes podemos estudar e considerar, me
congratule com o Instituto Geographico e Histórico,
essa nobre instituição, que com tanto lustro vae
enriquecendo os annaes litterarios deste Estado, me
congratule com a Bahia, dê parabéns a mim mesmo,
por ter a ditosa e inesperada honra de ser, ante
este luzido e selecto auditório, o aprégoador de uma
das variadíssimas qualidades que enaltecem esse im-
mortal burilador da palavra.
^ A Bahia, a mater nutrix do talento e dos grandes
commettimentos, que jamais regateou louvores ao
mérito, nem honras ás virtudes peregrinas, a Bahia,
coração largo, vasto, immenso, que vibra a todos os
grandes sentimentos e estremece a todas as grandes
commoções, a Bahia, que tem lagrimas e suspiros
para todos os soffrimentos, flores e palmas de applau-
sos para todas as conquistas das sciencias e das ar-
tes, do saber e da virtude, mãe affectuosa e estreme-
cida, que no mesmo regaço amoravel aninha, como
se forão seos filhos, todos aquelles em cuja fronte se
estampa o sello divino com que se assignalão os es-
píritos singulares, seja qual fôr o aspecto por que os
miremos e se elles nos manifestem, commemorando
hoje o nome illustre de António Vieira, vem pagar
AV. 6
42
uma grande divida de honra, iogando uma braçada
de flores sobre a loisa veneranda do grande civilisa-
dor e evangelisador de seos sertões, que, no virginal
de suas florestas, no caudaloso de seos rios, em sua
viçosa, ridente e luxuriante natureza, no anilado
de seo côo, sempre azul e puro, hauiio as primeiras
inspirações do génio, ensaiou os primeiros adejos
d'aguia, alentou, aqueceo e inflammou os primeiros
arroubos de eloquência, com que mais tarde assom-
brava os ouvintes, nas praças, nas ruas, nas cortes,
nos templos, em toda a parte em que se fazia ouvir o
facundo verbo que o immortalisou.
Celebrando, pouco ha, o tricentenário de Anchieta,
que na historia dos tempos coloniaes do Brazil se des-
taca como proeminente figura, a operosa terra, berço
dos Andradas, mostra, no brilhantismo com que so-
lemnisou essa data, que o gérmen do bem, quando se
planta no coração do povo, não é como a semente do
semeador do Evangelho, que cahio em solo duro e sa-
faro, e se dispersou nos ares, varrida dos ventos, se-
não como a que, cahindo em terreno fecundo e bom,
brotou, se desenvolveo, floric e fructificou; celebran-
do hoje o bicentenário de António Vieira, a Bahia on-
de lhe madrugarão os esplendores alviçareiros dos
primeiros arrebóes da aurora do génio, não cede a
palma a sua irmã do sul, e, com a magestade de dois
séculos de gratidão e reconhecimento, vem unanime
inclinar-se ante o nome que constitue o padrão monu-
mental de duas nacionalidades, que se abração e con-
fraternisão na mesma ideia e no mesmo sentimento.
Homens ha que o são tantas vezes, quantas as vari-
as manifestações da actividade intellectual, a que
especialmente entregão o espirito, manifestações que
são os eixos polares de todas as suas producções, em
cujo âmbito gira todo o seo engenho fecundo e inven-
tivo. Tal foi o padre António Vieira: ao mesmo passo
catechista e apostolo, orador e philosopho, professor
e litterato, diplomata e politico, patriota e mestre da
lingoa; sempre grande, sempre de intituitos alevanta-
dos, sempre igual a si mesmo, sempre o mesmo
Vieira.
De feito,quem com mais fervor e zelo levou aos abo-
rígenes da JSahia e do Maranhão a palavra e doutrina
evangélica, pregando-à com aquella força de persua-
são, que convencia o gentio, arrancando-o das trevas
do erro, despertando-lhe no espirito amortecido a luz
das verdades christãs? Que orador sagrado, com a
magia de sua palavra, sempre animada, viva, garrida,
insinuante e convincente, com o encanto e donaire de
sua elocução, sempre fácil e desempeçada, com os lan-
ces arrebatadores de sua eloquência, vehemente e se-
nhoril, com os conceitos philosophicps com que ful-
minava os reis e os grandes, com a ironia perspicaz e
pungente com que lhes disfarçava a acrimonia da cen-
sura e lhes estigmatisava os vicios e desacertos, con-
quistou mais applausos entre seos contemporâneos,
maravilhando até o estrangeiro, que o escutava com
respeito e lhe admirava o vasto saber e a profunda
noticia que em alto gráo possuia das sagradas escrip-
turas? Quem, em tão verdes annos, supprindo com
o saber o que lhe faltava em idade, preencheo com
mais lustre e luzimento a cathedra de professor, illus-
trando a sciencia de Quintiliano, merecendo os ap-
plausos da culta companhia, de que era gloria e orna-
mento? Quem, em seo paiz e em seo tempo, versou
com mais discreta diligencia os textos exemplares
da litteratura antiga e da coeva, donde a longos sorvos
haurio as sabias lições, e a finura de tacto de que entre-
tecia as suas cartas e os seos discursos, e em que em-
moldurava todos os escriptos que sahião de sua mão
magistral? Que homem foi em seo paiz investido em
mais espinhosa missão, honrando-lhe no estrangeiro
o nome e as tradições?
Como patriota, em summa, tem o Padre António
Vieira lugar reservadíssimo na galeria dos grandes
homens; para elle é a pátria o phanal seguro em que
tem os olhos fitos durante toda a sua longa, tributada
e tempestuosa existência; é um raio de esperança, de
doçura e de amor, que o anima e conforta nos desalen-
tos e desenganos da vida.
Mas não a mim, senão a illustres membros deste
Instituto, é que toca fallar dessas qualidades e prendas
44
admiráveis de Vieira, que só de ligeiro e resumi-
damente mencionamos.
A mim coube tarefa mais estreita e modesta, se
bem que honrosa: considerar este homem eminente
como clássico da lingoa portugueza; sob este ultimo
aspecto é que vou encarar o emérito mestre da lingoa,
que tão profundamente lhe penetrou nos veios opu-
lentos, donde tirou os thesouros, as jóias e louçaintias
de que a vestio, esmaltou e enriqueceo.
Grato por extremo, aos senhores sócios do Instituto
pela honra com que me distinguirão, proporcionan-
do-me o ensejo para aquilatar os méritos deste insig-
ne artista da linguagem, eu lhes dou neste momento
solemneas seguranças sinceras de meo agradecimen-
to, lastimando que seja o panegyrico tão tosco, des-
botado, rude, sem lavor nem elegância, quanto é
grande e elevada a personagem de que é assumpto,
cujos dotes como cultor exemplarissimo do idioma
portuguez não ha louvores que possão encarecer, nem
inveja que possa ensombrar e desdoirar.
Nem sempre se liga ò mesmo sentido á palavra
clássico, e ás expressões autores clássicos, obras clás-
sicas.
Desde o renascimento das artes, lettras e sciencias,
em toda a Europa, uso foi applicar essa denominação
aos escriptores modelos, que occupavão o primeiro
plano na hierarchia litteraria, pela clareza, precisão,
[mreza, correcção e elegância com que escrevião a
ingoa, de feição que erão os verdadeiros guias e
allumiadòs exemplares do bom dizer.
A expressão foi tomada aos Romanos, que, sob Sér-
vio Tullio, forão divididos em classes, sendo os da
primeira appellidados classici, e d'ahi, por analogia,
applicada a palavra aos escriptores que se relevavão
dentre os seos contemporâneos, não somente pelas
qualidades apontadas, senão também pelo cunho de
originalidade que os distinguia, e por uma feição intei-
ramente nacional, que deixavão transudar de suas
obras, fossem artísticas, litterarias ou scientificas.
Seja, porém, qual for o sentido em que se tomem
taes expressões, caracteres especiaes ha que as notão
45
e discriminão , entre outros, deve o autor clássico re-
unir os seguintes: ter conhecimento perfeito da lin-
goa em que escreve, conhecer-lhe bem a índole, a
physionomia particular, todos os seos modismos e na-
tivos ademanes, todos os seos segredos, os recônditos
thesouros de suas minas preciosas; fallal-a e escrevel-
a com pureza e exacção, evitando adornal-a de vo*es
e locuções estranhas, e corrompel-a e adulteral-a com
construcções que tendão a desvirtual-aeabastardal-a;
ser claro, fugindo a esses torneios rfciosos e obscuros,
que tornão o discurso diffuso, frouxc, arrevesado e
embaraçoso; ser elegante, pintando e representando
as ideias e os pensamentos com belleza, clistincção e
certo sainete de graça, que tanto aviva, anima e ro-
bustece a elocução; adaptar e apropriar sempre as
palavras e o estylo á natureza das ideias e dos pen-
/*" samentos enunciados; de modo que todos os senti-
mentos nobres ou vulgares, todas as paixões violentas,
todas as grandes commoções, todos os conceitos ele-
vados ou obscuros, tenhãona lingoa, que os traduz e
photographa, sua adequada e verdadeira expressão.
Assim como o pincel do pintor não desenha com as
mesmas cores a tempestade e a bonança, as trevas
e a luz, as lagrimas e os sorrisos, as magoas e a ale-
Íjria, a crueldade e a ternura, a pusillanimidade e o
íeroismo, o rouxinol e o mocho, assim o escriptor,
que é o pintor da palavra, a qual não é mais que o pen-
^ samento encarnado, deve, se conhece bem a lingoa que
falia ou escreve, se sabe adivinhar-lhe e sondar-lhe jOS
segredos, adaptal-a ás necessidades do pensamento.
Afora esses dotes que deve ter a linguagem nos
escriptos e discursos do clássico, accrescentão al-
guns a vivacidade, a copia e abundância, a brevi-
dade, a fluidez, a naturalidade, um cunho manifesto
do espirito nacional que este traduz e representa, e um
certo equilíbrio entre todas as suas faculdades, uma
corta saúde da intelligencia, que, segundo a feliz
concepção de Brunetière, é para o entendimento o que
é para o corpo a saúde, isto é, o equilíbrio das forças
que resistem á morte.
Um clássico ô clássico, diz esse profundo litterato,
4
46.
porque em sua obra todas as suas faculdades achão
cada uma seo legitimo emprego: sem que a imagi-
nação prevaleça á razão; sem que a lógica suste os
voos da imaginação; sem que o sentimento usurpe os
direitos do bom senso; sem que o bom senso arrefeça
o calor do sentimento; sem que o fundo se nos depare
privado da autoridade persuasiva que deve tomar ao
encanto da forma; sem que nunca, em fim, usurpe a
forma um interesse que só se deve ligar ao fundo.
Esse è o padrão por que se aferem as qualidades,
cujo conjuncto constitue o escriptor clássico; por isso
é que na Itália, no século de Leão 10, é Ariosto o
corypheo da poesia clássica, como Machiavel o é da
prosa; na França são os grandes escriptcres do sé-
culo 17, epocha de oiro da litteratura clássica nesse
paiz, em que, por um concurso de circumstancias,
honrarão as sciencias, as lettras e as artes, e illumi-
narão o throno de Luiz 14 poetas, como Corneille,
Racine, Molière e Boileau; prosadores, como La Ro-
chefoucauld, Sévigné, Pascal, Bossuet e Fénelon; ar-
tistas, como Lebrun e Girardon; na Inglaterra são
Pope, Swift e Addison os representantes dessa cru-
zada litteraria, que derramou tanto lustre no throno
dos Jorges e da rainha Anna; na Allemanha, no século
18, Herder, e Wieland; em Portugal é Luiz de Ca-
mões, que, por si só, como poeta, é a synthese do que
de mais bello, de mais elevado, de mais sublime, de
mais nacional poude produzir em portuguez a poesia ^
épica no século 16; é ainda em prosa João de Barros,
o autor das Décadas, o Tito Livio portuguez, de cujos
lábios, dizia um douto, corria a oração mais doce que
o mel; tuooue ex ore, (quod de N estore scripsit Ho-
merus) melle dulcior profluit oratio; é Frei Bernardo
de Britto e muitos outros, que forão os verdadeiros
fundadores do bom fallar portuguez, arrancando nosso
idioma da trilha onde o tinhão collocado seos prede-
cessores, que o tornarão inculto, bárbaro e rude.
No século 17, em que a nossa lingoa, como para
descançar de jornada tão afanosa e brilhante nos ca-
minhos da litteratura, parece começar a decahir da
perfeição a que se havia elevado, surgem três vultos,
47
que são os representantes e dignos continuadores do
legado precioso que lhes havia deixado o século an-
terior; são, para não citar senão os mais illustres, o
padre Manoel Bernardes, o elegante e mimoso autor
da Nova Floresta, Frei Luiz de Souza, o famoso e
correctíssimo escriptor da Historia de S. Domingos,
e o immortal Padre António Vieira, cujos dotes como
clássico primoroso a nenhum critico ainda lembrou
contestar. Estes três notáveis escriptores constituem
uma brilhante constellação, sendo o ultimo a estrella
d'essa constellação que mais luz e refulge no céo da
litteratura nacional, nada invejando á claridade
que outros astros irradiarão no firmamento de seo
paiz.
Não fallemos do século actual, em que uma ra-
diosa plêiade de escriptores portuguezes, exerci-
tando-se em diversos géneros, se têm empenhado na
doce e honrosa missão de não apoucar e desdoirar
o precioso legado, cuidadosa e diligentemente guar-
dando e mantendo a pureza de nosso formoso idioma,
quaes sacerdotizas mythologicas guardavão e man-
tinhão o fogo do altar da deusa pagan.
Conhecidas são de todo o homem de lettrasas pa-
ginas de oiro de que enriquecerão a lingoa portu-
gueza os Castilhos, os A. Herculanos, os Garretts,
os Latinos Coelhos, os Castellos Brancos, que esfor-
çadamente sempre timbrarão de portuguezes, des-
prezando os falsos ouropéis e atavios estranhos com
que o pouco estudo e a ignorância da formosura na-
tiva de nosso rico idioma lhe afeavão a gravidade e
compostura.
Isto posto, vejamos se o autor, que é o objecto deste
desalinhado discurso, resume em si as qualidades
inherentes a todo o escriptor que deve reputar-se
clássico.
Para proval-o e demonstral-o, é o mesmo António
Vieira, cujos trechos aqui apontamos, quem vae
fazel-o, mostrando que o seo nome é o seo maior
panegyrico, e que com razão é collocado entre o
daquelles mestres da lingoa, daquelles textos de-
senganados, que souberão polir e aperfeiçoar o idio-
48
ma, cuja rudeza havia já desbastado João de Barros,
o fundador da boa linguagem portugueza.
Em verdade, aue escriptor fallou nunca com mais
pureza que o Padre António Vieira? Quem com elle
corre parelhas na correcção da phrase, na sensata es-
colha e propriedade dos termos, na finura, delicadeza
e primor de linguagem com que enunciava o pensa-
mento?
Folheem-no, loião-no e meditem-no os amantes da
lingoa, e nos seguintes trechos se lhes deparará ensejo
para adfnirar esse notável engenho:
«Não se pode dizer nem imaginar, diz elle, a de-
sordem, a confusão e dissonância horrendíssima da-
ãuellecháos, concorde só no tumulto perturbadíssimo
os affectos e paixões com o estrondo confusíssimo i
dos bramidos e alaridos tremendos com que daquella — \
multidão immensa de lingoas sacrílegas é incessan-
temente blasphemado o céo: arde o ódio, morde-se a
inveja, escuma a ira, raiva a desesperação, grita furi-
osa a dor e desaífoga-se sem nunca desaffogar-se a
vingança em injurias, em opprobrios, em maldições
contra o sempre mais e mais odiado Deos. Do todos
os attributos e de todos os benefícios divinos se ouve
ali em desentoados clamores a sua affronta: a justiça
se chama injustiça; a bondade ini jua; a sabedoria
ignorante; e até a omnipotência, fraca e covarde, como
empregada só contra manietados e miseráveis». 1
Que escriptor, que pintor da palavra soffre con- ^
fronto com Vieira na propriedade dos vocábulos, na
força e energia da dicção, no vivo colorido da phrase
com que finamente nos debuxa o fogo do ódio, que
arde, a raiva da inveja, que se morde, o furor da ira,
que escuma, os ímpetos mal soffridos da desespe-
ração, que se enraivece, a fúria e delírio da dòr, que
se desata em gritos e clamores, o desaffogo da vin-
gança, que nunca se farta e satisfaz?
Como é vivíssimo o quadro que nos apresenta,
quando falia da difficuldade e repugnância de reali-
zarmos na pratica da vida o diligite inimicos vestros
doChristo? Ouçamol-o: «A memoria, sem jamais se
esquecer, representa o aggravo; o entendimento pon-
49
dera a offensa; a phantasia afêa a injuria; a vontade
implora e impera a vingança. Salta o coração, bate o
peito, mudão-se as cores, chameão os olhos, desfa-
zem-se os dentes, escuma a bocca, morde-se a lingoa,
arde a cólera, ferve o sangue, fumeão os espíritos;
os pés, as mãos, os braços, tudo é ira, tudo fogo, tudo
veneno.»
Que mimo, que ternura, que suavidade de colorido,
que perfume de poesia, gue doce estrophe de melodia,
se não derrama na seguinte passagem deste profundo
conhecedor das jóias e arrecadas preciosas de nosso
idioma? E' o quadro da vida humana, em que tudo
passa, tudo é contingente, e ephemero e perecedouro
e mortal.
«Desde a terra até o céo, diz Vieira, está estabele-
cida esta lei: Na terra a rosa, rainha das flores, é
ephemera de um dia; toda aquella pompa branca,
toda aquella ambição encarnada de que se veste, pela
manhã são mantilhas, ao meio dia galas, á noite,
mortalhas.
No céo, a lua, rairrha das estrellas, quem a vio
cheia, retrato da formosura, que logo a não visse
minguante depois da mudança?
Quando resplandece com toda a roda, então, se
eclipsa; quando faz opposição ao sol, então a en-
cobre a terra. Ajunte-se a formosura da terra com
a do céo e na união de ambas veremos o mesmo
exemplo.»
«A aurora, diz noutra parte o mesmo escriptor, é
o riso do céo, a alegria dos campos, a respiração .das
flores, a harmonia das aves, a vida e alento do mundo.
Começa a sahir e a crescer o sol, eis^o gesto agra-
dável do mundo e a composição da mesma natureza
toda mudada.»
Ha em todos esses painéis primorosos do padre
António Vieira um vivo frescor, uma desaffectada na-
turalidade, um como que suave e doce aroma cam-
pesino, que enleva e arrebata o leitor.
Não ha a quem não admire a propriedade de ter-
mos, abelleza de dicção, a elegância e viveza de estyio
e a profundeza dos conceitos com que, animando Vi-
A. V, 7
50
eira uma missão de religiosos, que de S. Luiz do
Maranhão partia para o Amazonas, assim se exprime:
«Concedo- vos que esse indio bárbaro e rude seja
uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Ar-
ranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca,
bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais
grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a
formar um homem: primeiro membro a membro, e
depois feição por feição até a mais miúda: ondea-lhe
os cabellos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos,
afila-lhe o nariz, abre-lhe abocca, avulta-lhe as faces,
tornea-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espal-
ma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os ves-
tidos: aqui desprega, alli arruga, acolá recama, e fica
um homem perfeito e talvez um santo, que se pode
pôr no altar. O mesmo será cá, se á vossa industria -1
não faltar a graça divina. E' uma pedra, como dizeis, ^
esse indio rude? Pois trabalhae e continuae com elle;
applicae o cinzel um dia e outro dia; dae uma mar-
tellada e outra martellada; e vós vereis como dessa
pedra tosca e informe fazeis não só um homem,
senão um christão, e pode ser que um santo».
Em que lingoa, em que autor já se elevou tanto a
Srosa? Quantos fios de pérolas se ennovelão aqui para
ar relevo e realce ás bellezas nativas de nosso opu-
lento e donoso idioma?
Falia o autor do. sitio de Betulia, e assim viva e ele-
gantemente se exprime com relação a Judith, sua
libertadora: «Despe o cilicio de que estava toda coberta,
enxuga as lagrimas com que orava ao céo, manda vir
cheiros, ioias, galas, espelho: veste, compõe, enrique-
ce, esmalta os cabellos, a garganta, o peito, as mãos,
os braços e até os pés, não de todo cobertos, e feita
Judith um thesouro de cobiça, um pasmo de formo-
sura e mil laços do appetite, sáe confiada pelas
portas da cidade; saltão fosso, passa as sentinellas,
entra pelo exercito inimigo e vae direita á mesma
tenda de Holophernes. »
_Aqui é tudo vivo, conciso e animado: na colloca-
çao das palavras, no tecido das phrases, observou
bem o escnptor a ordem das ideias; a ellipse das con-
4
51
juncções communica ao discurso um certo gráo de ra- .
pidez, concisão e vivacidade; que bem se casa e con-
certa com as disposições de espirito de que se
achava possuída a heroina, segunao nol-a descreve
o autor.
As expressões thesourô de cobiça, pasmo de formo-
sura, mil laços do appetite são empregadas com muita
felicidade e attestâo um espirito conhecedor do cora-
ção humano, que, por vezes, submette a humanidade
á animalidade, dando a esta o sceptro que só devia
empunhar aquella, cedendo e curvando-se com volú-
pia aos mclles impulsos das paixões desenfreadas,
e dos appetites insoffridos, e cerrando os ouvidos
aos reclamos e brados imperiosos da razão e do
dever.
Trata Vieira da fragilidade e caducidade da for-
mosura e com que mimosa delicadeza nol-a define e
descrevei Como se affeiçôa ao pensamento e com elle
se ajusta o estylo desse grande homem I Como a lingoa
portugueza se"dobra flexível a sua inspirada pennal
Quanto de vivo, fino e afinado resalta aa pintura bem
acabada desse Raphael da palavra I
Passagens ha em que parece não é o escriptor
que cede e obedece á lingoa em que escreve, senão a
lingoa que lhe obedece e submissa lhe desdobra, des-
fia e traduz os sentimentos e as ideias, ante seos pró-
prios olhos que se ufanão altivos dessa obediência.
Acompanhemol-o e ouçamol-o ainda:
«A formosura é um bem frágil e quanto mais se
váe chegando aos annos, tanto mais váe diminuindo
e desfazendo em si e fazendo-se menor. Seja exemplo
desta lastimosa fragilidade Helena, aquella famosa e
formosa grega, por cujo roubo foi destruída Troya.
Durou a guerra dez annos, e, ao passo que ia durando
e crescendo a guerra, se ia juntamente com os
annos diminuindo a causa delia. Era a c^usa a for-
mosa' Helena, flor em fim da terra e cada anno corta-
da com o arado do tempo.
Estava iá tão murcha e a mesma Helena tão outra,
que, vendo-se ao espelho pelos olhos, que já não
Unhão a antiga viveza, lhe corrião as lagrimas, e não
82
achando a causa por que duas vezes fora roubada,
ao mesmo espelho e a si perguntava por ella.
Os primeiros tyrannos da formosura são os annos,
a a sua primeira morte é o tempo. Debaixo do impé-
rio da morte acaba, debaixo da tyrannia do tempo
muda-se; .e se alguém perguntara á formosura, qual
lhe está melhor, se a morte ou a mudança, não ha
duvida, que havia de responder, antes morta que mu-
dada. »
A linguagem de Vieira, sempre tersa, castiça, «apro-
priada ao assumpto, viva, substanciosa, clara e ele-
gante e por vezes maviosa e melliflua, evitando com
ajustada parcimonia o baixo e o guindado, o excessivo
antiquado e as innovações excusadas, é ás vezes de *
um vigor brilhante, de um arrojo, de uma valentia, ^T
de uma masculinidade admiráveis, pondo em luz os
inexhauriveis recursos de seo aguçado engenho.
Servem de exemplo os seguintes passos, colhidos
em seos sermões:
«E' a guerra aquelle monstro, que se sustenta das
fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come
e consome, tanto menos se farta. E' a guerra aquella
tempestade terrestre, que leva os campos, as casas,
as villas, os castellos, as cidades e talvez em um mo-
mento sorve os reinos e monarchias inteiras. E' a .
guerra aquella calamidade composta de todas as cala- -#
midades, em que não ha mal algum, que ou se não
padeça ou se não tema; nem bem que seja próprio e
seguro: o pae não tem seguro o filho; o rico não tem
segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seo suor;
o nobre não tem segura a honra; o ecclesiastico não
tem segura a immunidade; o religioso não tem segura
a sua cella; e até Deos nos templos e nos sacrários
não está seguro.
Falia o escriptor da náo de Noé e deste modo se
enuncia:
«Comp pode ser que coubessem em tão pequeno
lugar tantos animaes, tão grandes e tão ferosi O leão,
53
para quem toda a Libia era pouca campanha; a águia,
para quem todo o ar era pouca esphera; o touro, que
não cabia na praça; o tigre, que não cabia no bosque;
o elephante, que não cabia em si mesmo».
No trecho seguinte, sobre ser correctíssimo na
dicção e disposição das phrases, é notável esse be-
nemérito da lingoa portugueza na harmonia imitativa.
Trata-se do sermão ppln bom successo das armas
de Portugal contra as de Hollanda, em que avultão
em todo o sermão os maiores rasgos de eloquência,
os mais sublimados lances oratórios. «Finjamos pois,
diz Vieira, (o que até fingido e imaginado faz horror),
finjamos que vem a Bahia e o resto do Brazil a mãos
dos Hollandezes: que é que ha de succeder em tal
caso?
Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores
e de hereges: não perdoarão a estado, a sexo, nem á
idade; com os fios dos mesmos alfanges medirão a
todos; chorarão as mulheres, vendo que se não guarda
decoro a sua modéstia; chorarão os velhos, vendo
que se não «uarda respeito as suas cãs; chorarão os
nobres, vendo que se não guarda cortezia a sua qua-
lidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacer-
dotes, vendo que até as coroas sagradas os não de-
fendem; chorarão finalmente todos e entre todos,
mais lastimosamente os innocentes, porque nem a
estes perdoará (como em outras occasiões não per-
doou) a deshumanidade herética».
Que effeito maravilhoso não produz nesse passo do
grande orador a harmonia imitativa! Como parece ao
leitor estar a ouvir os dobres fúnebres dos templos
da Bahia, que compassadamente, tristemente, pesa-
damente soarão aos ouvidos da imaginação do por-'
tentoso rei da palavra I Com que engenho sobe elle
todos os degráos que meçleião entre o bello, que
encanta, e o sublime, que assombrai
Como penetrão dentro d'alma e ferem as fibras
de coração, uma a uma, as tétricas consonnancias
do repetido chorarão, que se succedem no discurso
como as monótonas, doridas e plangentes vibrações
dos sinos de finados.
54
Como nas producções de todo o escriptor clássico
seja qual for o século que o vio abrir os olhos á luz,
nos sermões de Vieira, em suas cartas, em todos os
seos escriptos, transpira, como nos Lusíadas de Ca-
mões, na Divina Comedia do Dante e nos dramas de
Shakespeare, aquelle espirito nacional, que faz, fez e
fará sempre delles verdadeiros padrões da gloria de
sua nação, conquistando uma popularidade, que os
séculos não apagarão, e fazendo sempre vibrar a alma
nacional, que os alentou e inspirou.
No género epistolar, um dos mais difficeis da es-
pinhosa e trabalhosa arte de escrever, se bem que
não ostente aquella singela e engraçada jovialida-
de, aquella doce, expansiva, affectuosa e cordial
effusão de amizade com que se dirige Cicero a Te-
rencia e a Tullia, mostra-se Vieira, comtudo, um
consummado escriptor, no castigado e primoroso da
phrase, na elegância e perspicuidade do estylo, na
nobreza e vivacidade das metaphoras, no relevo das
imagens, no substancioso das sentenças, na caden-
cia numerosa do discurso, no apropriado do dizer,
sempre terso, genuíno e correcto. Se as cartas do
orador romano são copiosos e ricos mananciaes para
a historia litteraria e politica da epocha tumultuosa
em que vivêo, não o são menos as do escriptor portu-
guez para a historia portugueza de sua epocha,
igualmente agitada e tempestuosa.
Podemos, em summa, açplicar em tudo a António
Vieira o que avisada e judiciosamente escreveo este
com refrencia a Frei Luiz de Scuza, na censura á 3. a
parte da Historia de S. Domingos: «O estylo é claro
com brevidade, discreto sem affectação, copioso sem
redundância e tão corrente, fácil e notável, que, en-
riquecendo a memoria e affeiçoando a vontade, não
cança o entendimento.
A linguagem, tanto nas palavras, como na phrase,
é puramente da lingoa em que professou escrever,
sem mistura ou corrupção de vocábulos estrangei-
ros, os quaes só mendiguo de outras lingoas os que
55
são pobres de cabedaes da nossa, tão rica e bem do-
tada, como filha primogénita da latina.
A propriedade com que falia em todas as matérias é
como de quem a aprendeu na eschola dos olhos. Nas
do mar e navegação, fallã como quem o passou muitas
vezes; nas da guerra, como quem exercitou as armas;
nas das cortes e paço, como cortesão e desenganado;
e nas da perfeição e virtudes religiosas, como reli-
gioso perfeito.»
Verdade è que em alguns dos escriptos do Padre
António Vieira se nos depara um uso excessivo de
equívocos, antitheses e trocadilhos, que lhe empan-
não e ensombrão o estylo, levando não raro o espiri-
to do leitor a um emmaranhado enleio e intrincado
labyrintho, onde muitas vezes se quebra o fio das
ideias, e se turva a claridade do pensamento do es-
criptor; taes defeitos, porém, e os sophismas, subti-
lezas e argucias piíeris dequeo accusão, não se de-
vem só lançar á conta do escriptor, senão á do sé-
culo em que viveo: nenhum escriptor ha, por singular
e original que seja, que não comparta em subido gráo
os defeitos, os preconceitos do século em que vive,
submettendo-se insciente e inconscientemente á in-
fluencia poderosíssima das opiniões e costumes de
seos contemporâneos, não podendo delia seques-
trar-se nem triumphar. Sócrates, o grande Sócrates,
o philosopho atheniense, lega ao morrer um gallo a
Esculápio. Boudin, famoso historiador, que foi o pri-
meiro francez que mirou a historia á luz da philoso-
phia, Boudin, que, segundo RobertFlint, nenhum rival
teve entre seos contemporâneos, que foi profundo co-
nhecedor das lingoas, da historia, do direito, da philo-
sophia e da politica; esse espirito agudo, e penetran-
te, <jue era sceptico relativamente a toda a religião
positiva, acreditava puerilmente no malefício, na vir-
tude dos números, na influencia das estreitas. João
de Lucena, quinhentista famosíssimo e elegantíssimo
escriptor, Manuel Bernardes, contemporâneo de Vi-
eira, garboso e guapissimo conhecedor 4o idioma
56
portuguez, não se escoimão de todo desses defeitos,
apresentando a trechos vários exemplos das mesmas
faltas, que ainda mais concorrem para fazer sobrelevar
as bellezas de séos primorosos escriptos.
Em Vieira não ha porque se negue um certo nume-
ro de locuções e ph rases, tidas hoje em dia por anti-
quadas, bem que em voga no seo tempo ; mas a lingoa
não é um instrumento passivo e sem vida: é um orga-
nismo vivo, que se forma, nasce, se desenvolve, cres-
ce, principia a decahir, e morre como tudo o que vive;
liga-se de tal modo ao pensamento, com elle se identi-
fica, a ponto que o acompanha em todas as suas vicis-
situdes, elevando-se ou descahindo com elle, com elle
engrandecendo-se e aprimorando-se, sendo sempre
em tudo seo fiel transumptu. Se, por um lado, ligada
intimamente ao espirito, nelle influe e actua, tornando ^
possíveis todas as suas manifestações, aclarando-o em »
seos processos íntimos e profundos, excitando-lhe as
energias, provocando-lhe os sentimentos, desdobran-
do-lhe as ideias, desfiando-lhe e analysando-lhe os
conceitos e as noções; por outro lado, obedece e cega-
mente se submette ao espirito, de cuja vida vive e se
nutre.
Ha uma dupla correnteza de acções e reacções, de
influencias, a que chamaremos centrífugas e centrípe-
tas, as quaes se ligão á vida mesma dos idiomas, e
que a todos arrastão fatal e instinctivamente. (*) i
• *
Sombra do grande orador, rei e gloria do púlpito,
o peso esmagador de dois séculos comprime-te a ar-
gila caduca, donde desprendeste o vôo para as infindas
e insondáveis regiões do infinito ; mas o echo de tua
voz ainda vive e parece reboar pelas abobadas de nos-
sos templos, que abrazaste com o fogo dos raios de tua
eloquência pujante e vigorosa; ainda as. naves sagra-
das a quarenta lustros de distancia parece lobrigarem
teo vulto sereno e magestoso a despedir torrentes cau-
daes, que as inundarão de luz e de fé. Nosso céo de
purpura e anil, qu e tantas vezes te sorrio, nossos cer-
(■) Dr. Carneiro Ribeiro (Serões gram. )
57
ros e penedias, as fragas de nossas serras, nossos rios
gigantescos, nossas alpestres florestas, que te senti-
rão os passos, te perceberão os movimentos, te ouvi-
rão as queixas e os segredos o forào testemunhas
de tuas luctas, de tcos esforços, de tuá abnegação,
das ingratidões e injustiças que soffreste, de teo
heroísmo em favor dos índios escravos, guardão
ainda indelével tua imagem veneranda, e quaes har-
pas eólias ou immensos órgãos suspirão e repetem
teo nome e teos louvores.
Insigne e nunca assaz celebrado es^riptor, quantos
reis, quantos fidalgos e grandes, a despeito das cen-
suras com que os verberavas, gostosamente trocarião
pelo cinzel de tua inspirada palavra a purpura que
trajavão, os títulos nobiliários que os distinguião, as
gaias e telas de que se ornavão, os arminhos e broca-
dos de que os enfeitava a vaidade e porventura a igno-
rância frívola, presumpçosa e vã? Se muitas vezes no
púlpito sagrado tua palavra, como a de Bossuet, era
um raio, que feria e fulminava; de tua penna, outras
vezes, como da de Bernardes, distillava o mel, com
que commovias e enternecias.
Aprimorado sacerdote do dizer castiço e de bom
cunho, que pintor da palavra achará em sua paleta
cores para traçar c desenhar condignamente teos
finos quilates na lingoavernacula?
Assim como as notas o producções musicaes de
Mozart erão mais elevadas e sublimes, quando, tan-
gendo os dedos o dilecto instrumento, não paredão
obedecer ao esforço voluntário do artista," senão á
actividade automática a que se submettião, e a que
deve o mundo as mais inspiradas producções desse
singular compositor, assim, grande mestre dá lingoa,
os termos, os vocábulos, as phrases que escrevias,
nunca os procuraste com esforço ou ornpenho affec-
tado, vinhío por si.cahir submissos ,de teo calamo
inimitável; escrevendo na lingoa de que* eras desvela-
do cultor, a actividade automática de teo cérebro
anticipava, porque assim o digamos, a actividade
consciente de teo espirito. Como a Mozart, te sellou
a natureza com o sinete do génio, o qual, em que
A, V. . 8
58
Sese a Buffon, não é uma longa paciência, sonâo um
ructo e producto espontâneo, a que o esforço educa
e aperfeiçoa, mas não cria.
Fonte inexgotavel, em que se têm inspirado tantos
engenhos, no cryslal de tuas agoas a nossa lingoa
mira-se altiva e se desvanece e rejubila de se ver tão
formosa e louçã.
Grande benemérito da pátria, é por demais justa ã
homenagem que ora te rendemos, os tributos de ad-
miração consagrados a tua memoria; a apotheose que
te fazem duas nações que se abração, procla-
mando em unisono tua gloria e teo renome. Se em
Portugal tiveste as mantilhas que te enfaixarão a in-
fância, na Bahia tiveste a eschola, onde começaste a
soletrar o verbo de tua grandeza ; aqui provaste e acri-
solaste teos dotes geniaes; aqui, no meio de teos
irmãos, que te entoarão o requiern, nesta terra, a quem
não eâauecem teos triumphos, tiveste a mortalha, que
te envolveo as relíquias venerandas.
Se a Bahia te não sentio os primeiros vagidos, ouvio-
te os derradeiros suspiros, recebeo em seo seio, amo-
rosamente maternal, as tuas ultimas lagrimas, e solu-
çando, recolheo no cofre de seo coração as ultimas
phrases que murmuraste no bello idioma que soubes-
te honrar e engrandecer.
Emquanto do mappa ethnologico não desapparece-
rem a nação portugueza e abrazileira, vinculadas por
laços que as identificão no convívio commum cios
povos; emquanto no quadro das lingoas subsistir a
que brazilfeiros e portuguezes falíamos; emquanto
palpitar um coração verdadeiramente portuguez ou
ferazileiro, inflammado do fervoroso patriotismo que
resumbra de todas as tuas paginas immortaes,
não morrerá tua gloria, nem teo nome, nem os louvo-
res e louros immarcesciveis de que a humanidade in-
teira te coroa, podendo applicar-te o verso que nos
lábios de seo heróe põe o poeta mantuano:
Semper hortos, nomenque tuum laudesque manebunt.
(Virg.)
(Ao terminar, o illustre conferente recebeu do audi-
tório applausos geraes e prolongados).
TERCEIRA CONFERENCIA
15 de Julho de 1897
Orador. — Risvd. Padre Elpidio Tapyranga.
O Padre António Vieira, catechista no Brazil
Exm. Sr. Dr. Governador:
Senhores:
io vasto cyclo do percorrer das eras só resistem
?ás nortadas devastadoras dos séculos as gran-
dezas incalcinaveis da intelligencia, quando esta se^
encumôa ás alturas das glorias. *"
Péricles povoa a capital da Grécia de afamados mo-
numentos, e esses desappareceram no sumidouro dos
tempos, sem escapar ao menos uma pedra de suas
minarias tristonhas. Mas a Odysséa do celebrado
épico ainda faz o deslumbramento dos que abrem
aquellas paginas illuminadas pelo génio, que nellas
compendiou todas as modalidades sentimentaes do co-
ração humano; e a Ilíada ainda faz palpitar com vida
o peito aguerrido de Açhilles, o heróico vencedor de
Heitor.
O « Diário da Bahia » dando noticia d'esta conferencia assim
se exprime:
« Occupou a tribuna das conferencias oillustrado padre Tapy-
ranga, que ainda uma vez, confirmando os bellissimos dotes que
possue, de orador eloquente e homem de estudo, em phrase vi-
brante e vivacissima, salientou o apostolado de Vieira, nos ser-
tões do Brazil.
A' descripção dos factos que se prendem a essa phuse da vida
daquelle homem extraordinário, não faltou o critério histórico,
nem o colorido da palavra lampeiante do orador, por vezes in-
terrompida com espontâneos applausos do auditório. »
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De Thebas e de Memphis, de Epheso e do antigo
Egypto, não nos restam senão a memoria de suas
sumptuósidades artísticas, emquanto as producções
arrebatadoras de Theocrito e os carmes dulçorosos
de Virgílio ainda infiltram no espirito a mellifluidade
de seu estylo; e Juvenal, bem como o satyrico amigo
de Mecenas esgarçam, ainda em nossos dias, com es-
pinhos de ironia, a muita pequenhez que se envaidece,
a muito zelo de correcção, que enfarda vicios de todos
os tempos.
O génio que deixa, pois, no livro as fulgurações de
sua riqueza, escalando as alturas do assombro, desa-
fia mais o transporte enthusiastico das gerações, que
se succedem, <jue no mármore ou na tela, onde se es-
tampe a magnitude de sua pujança.
O bronze não passa com eguál seguridade a fama e
a memoria aos povos de todas as edades, nem ha
mais certeiro vehiculo para levar aos ângulos do mun-.
do as magnificências excepcionaes da intelligencia,
como esse poderoso meio de cternisar a gloria de um
nome. Tem a vantagem de sua vulgarisação rápida,
como de sua pcrduração, para a critica não encarrei-
rar pela trilha da benevolência ou da vehemencia in-
justa, para ser austera, mas desprevenida, intransi-
gente, mas verdadeira.
As estreitas têm o céo onde engastadas derramam
o pálíor de seu clarão. A intelligencia do homem tem
um firmamento onde fulge o brilho de sua luz, o livro,
âue revela aos pósteros os esplendores adamantinos
esses espíritos de eleição.
Podem, pois, as gerações todas levar á balança dô
critério e da justiça os documentos que legou-nos o
cérebro três vezes portentoso do padre António Vieira,
desde os annos de florescimento de sua mocidade,
até os dias em que a edade enlourou-lhe a fronte de
cabellos brancos, quando a gloria já a tinha circum-
dado de seu fulgor perennal.
Ficararn-nos os volumes de suas obras, orações
sacras e cartas politicas, que enfeixam as irradiações
de seu espirito, bastando por si sós para sopezarmos
a superioridade de seu merecimento como homem de
61
lettras, não duvidando Ferdinand Dinis, em sua pro-
funda competência, comparal-o cm oratória a Águia
de Meaux, mas ainda que todos seus cpntemporaneos
e compatriotas, continuador mais saliente que o admi-
rado bispo de Évora, D. Garo ia de Menezes, em que
Pomponio Leto achara a maior elegância de latinida-
de, sendo filho alias da Lusitânia. E a Clavis Propheta-
rum, sua collossal obra, nue não teve acabamento,
testifica assas a erudição, que não se encontra entre
os coevos da milícia de seu grande patriarcha, altean-
do-o entre todos como a fronde que busca na arvore
ramosa as regiões supernas de além.
Como batalhador indefesso na liça da eloquência,
seu verbo que desafiava parallelo na precisão e subti-
lidade, como na facúndia inexhauyivol e na largueza
doutrinaria, nunca menos feliz, nertífrenos admirado,
> soube sempre desferir
« O claro lume que apagar não podem
<* Nem a descarnada mão da triste inveja,
« Nem fouce cruel do voraz tempo. » (*)
Não tenho, porém, como escopo estudal-o por essa
face radiosa de sua mentalidade, embora que o elas-
terio emprestado a muito pensamento bibhco, os bro-
- cados rhetoricos excessivamente trabalhados e profu-
samente esparsos, serzissem algumas vezes suas
1 maravilhosas peças oratórias de peccadilhos, que
^ esquecido o período de sua florescência, não passam
indemnes da causticidade critica nos. dias correntes.
Mas o sol tem também suas fáculas e nem por isso
sua photosphera deixa de sèr tão esplendida e lumi-
nosa.
Vieira se excedia muita vez nos corollarios desdo-
brados ao martellar de um talento especioso, opulento
de recursos para convencer e attrahir, vibrando as
mais arrojadas proposições, o que não o apêa, entre-
tanto, da súpereminencia do mérito em meio de seus
pares do século XVII.
A meu ver, Senhores, António Vieira deve mais
(") F. Gomes, A Restauração da Arcádia.
avultar-se na estimação dos brazileiros pelos bene-
fícios reaes.e sumrnamente relevantes, que prestou
na phase de. nossa vida colonial, como missionário
. civilisador de nossas raças aborígenes e como di-
rector infatigável dos catechistas, que nas terras da
Santa Cruz desbravaram brenhas incultas e espíritos __
selváticos.
Quando mais férvidas eram as demonstrações de
enthusiasmo por sua pessoa em toda parte e a nação
portugueza inteira acercava-o de palmas e ovações;
quando em sua volta triumphante de espinhosas in-
cumbências, em as quaes se mostrara sempre destro
diplomata, na resolução de embaraços na França, na
Hollanda, na Hespanha e na Itália perlustrando o
estádio escorregadio da politica internacional, hon-
rando o nome de sua pátria; quando a confiança de i
toda corte de Lisboa lhe era testemunhada pelas -^
provas de affectos de D. João IV e do povo, Vieira
concebe o plano de procurar os confins das mattas do
Brazil.
A riqueza de seu espirito estava na mesma recta da
grandeza de sua correcção. Por isso elle não se prendo
ás sedacções que a outros poderiam escravisar, dci-
xando-se ficar num meio, em que sua palavra era
uma decisão, sempre uni ensejo de arroubos, c sua
autoridade tinha um culto de indefectivel respeito,
onde conhecia a estima sellada pela preferencia e a
necessidade. que tinham de seu tino, o caracter du- k
plame/ite escudado nas virtudes religiosas e cívicas.
Mas desde que aportara ás terras de Portugal em
1650, António Vieira aífagava a ideia de vir de novo
ao Brazil evangelizar tribus indianas e nesse terreno
ubertosp fazer brotara sementeira opima da fé ehristô, *
conquistando inlelligencias para a civilisação e braços * :
para o trabalho riobilitador.
Já em Torres Vedras ensaiara os primeiros passos,
n'essa vida de agruras, mas abençoada e profícua, em
que o grande jesuíta tinha de pôr á prova dq sacrifí-
cios a constância e a tenacidade. -todo atilamento de
• seu espirito e toda sua abnega^p.
Aquelle que creou o s.^I como insignificante fresta
63 "
por onde mal se escapa um raio de sua sabedoria;
o mar como uma pagina minúscula, que não chega
para dcscripção pallida de seu poder; os astros como
uma infinidade de diamantes, esmaltando â -limpidez
do espaço o que reunidos todos não valem uma alam-
pada mortiça ante o infinito de seu resplendor; as
selvas povoadas de arvores giganteas, com suas comas
de espessura enorme, que só os ventos desgrenham
para nellas gemer suas queixas sentidas em mysterios
da dor; Aquelle que creou o homem como uma lettra
apenas do grandios3 livro de sua Omnisciência, mas
não deixando a razfio ler atravèz de sua sombra os se-
gredos que se escondem em seií seio eterno e de im-
mcnsuramlidade incomprehensivel; Aquelle finalmen-
te que modelou o homem â feitura de sua imagem,
em que pese o descomcdirnent ) theorico das oscholas
darwinianas e suas variantes, quiz que um luzeiro
que atrahia a admiração do mundo culto espraiasse
também raios bemfjzejos, por sobre os primitivos ha-
bitantes de nossas florestas, ven^éndo-lhesa braveza,
para leval-os ao convívio da civilisação. (Appliusos).
E assim, como que ora António Vieira arrastado
por força ignota, inesquivavel, não cedendo às roga-
tivas de seu rei, nem cogitando das incommodidades
c quiçá da perda de vida para seguir caminhos aspe-
rosos; ter por alento os infortúnios, em procura de
índios, cuja ferocidade elle não desconhecia.
Doirava-lhe o céo do pensamento o plano de dedi-
car-so á catechese das tribus bravias com o ardor do
zelo que lhe inspirava toda sua fé, esse elemento ani-
mador das almas bem formadas.
Poderiam surgir deante de sua emoreza muralhas
de obstáculos que lhe cortassem o passo ousado;
todas as diflficuldades poderiam emmaranhal-o em
trama de desanimo e desesperanças, restar-lhe-hia o
espaço de sua vontade, para acoroçoar-lhe o esforço,
«pelos ares intentaria voar,» como se exprime seu
melhor biographo, tal como Dédalo preso por Minos
no labyrintho ae Creta, exclamando:
Terras et undas obstruat;
Omnia possidea } non possidet cethera Minos /
64
Colombo para descobrir a porção mais venturosa
do universo, Vasco da Gama para atravessar o cabo
das Tormentas, Saussure para subir o cume nevado
do Monte-Branco, não teriam por certo mais resoluta
firmeza em seus emprehendimentos, que a alma desse
inspirado luctador, impondo-se à resolução de um
novo mourejar, dos mais extrenuos trabalhos, em
nome de seu sentimento christão. .
Sua palavra que tantas gemmas de valor havia con-
quistado para a coroa de imperecibilidade de seu
nome, aquella palavra que em cada dicção valia uma
sentença, e em cada sentença deixava transluzir o
brilho magestatico do génio, não devia fazer-se ouvir •
somente nos grandes círculos de illustração e de
saber, produzir incendidos arroubos na capital lusi- j
tana e maravilhar até mesmo os mestres na vetusta — £
cidade dos Cezares; devia como a flauta de Pan nos
valles da Thessalia arrastar ao seio da civilisação mi-
lhares de seres esquecidos nos braços da barbaria.
Bem no âmago das florestas maranhenses ... lá
onde o jequitibá robusto, com sua viridente folhagem
não nega uma rama para o ninho de seus habitadores
alados, teria também pousada amiga, á sua sombra,
a águia que se arrojara de longes terras, sem temor
de setta aue a prostrasse sem vida.
Depois buscaria o cabeço de uma de nossas mais"
elevadas serras, a Ibiapaba, brandiria as azas e no V
rumor dô voo altaneiro acordaria as raças selvicolas *
adormidas ao pé da mancenilha lethal da ignorância.
(Applausos).
Muito maior somma de sacrifícios pareceria exigir
seu temerário intento que o conservar-se Vieira entre
affeiçoados e companheiros que o estremeciam, na
quadra em que preponderava seu espirito esmerada-
mente polido de homem de lettras e politico, quando
sua experiência era buscada como directriz de diflfi-
culdades embaraçosas, cabendo-lhe mais de uma vez
a gloria de resolvel-as facilmente; pareceria melhor
o partido da contra resolução. Mas as almas de s«u
quilate não conhecem o que são as pretenções es-
treitas dos valido:? da mediocridade, nem sonham no
65
regaço- flácido da vaidade com as grandezas, 1 qtífe ò
egoísmo fita com olhos de ciobiça.
Esquecendo tudo António Vieira se determina éttt
22 de Novembro de 1652 a demandar plagas -america-
nas, levando comsigo, como companheiros de ltiçtás,
os padres Manoel de Lima, Matheus Delgado e Ma-
noel de Souza. (1)
E sua actividade que não concedia tregoas á las-
sidão, mesmo apezar de todas as inclemências de
uma penosa viagem, levava-o a congregar os habi-
tantes daquella «povoação nadante» para instruií-os
na fé, implantando n J alma de viajantes e tripolantes
os estímulos da honra e do dever.
Eram os ligeiros primórdios do luctar afanoso. em
beneficio de espíritos que precisavam tanto da cari-
y- dade da instrucção, como de quem lhes ensinasse os.
- . rudimentos da arte para o progresso do trabalho.
As repetidas peripécias que lhe advieram durante
a longa viagem por sobre o dorso do oceano, longe
de desanimar aquelle espirito de tempera inquebran-
tável serviam ao em vez disso para retemperal-o na
coragem e obstinal-o no propósito de levar avante a
empreza da catechisação.
Pode-se, pois, avaliar bem seu aprazimento ao
avistar terras de S. Roque e mais dias a formosa ilha
de S. Luiz do Maranhão, onde aportou a 17 de Ja-
i neiro de 1653 (2).
^ O zelo apostólico, que lhe accendia no coração o
desejo de resgatar centenas de victimas immoiadas á
tyrannia da ignorância, ia achar messe fecundíssima
para dar largas a seu ardor; e como as labaredas que
incinerassem vasto e secular edifício, as chammas de
sua fé fariam desap parecer naquellas paragens a fe-
rocidade de indígenas de famílias differentes.
A extensa e graciosa ilha descoberta por Luiz de
Mello Silva acolhia com mais auspiciosa gentileza o
seguidor corajoso do padre Manoel da Motta, que
entrara pelo Tocantins até suas cabeceiras, desco-
(1) O t ). cit. pag. 42.
(2) Op. cit. pag. 48.
AV.
66
brindo as tribus taquanhunas (*) e quaràrizes, raça
de índios agigantados, conseguindo arrancar muitos
á selvajaria, chegando por fim ao espesso daquelles
sertões, onde jamais penetrara um raio débil de ci-
vilisação.
Não sei, Senhores, si neste globo sublunar, onde
tamanhas aperturas se enfrentam a cada passo no
estradar da vida, não sei se ha missão mais meritó-
ria que essa de atirar-se o homem ás aventuras do
imprevisto, para diffundir o ensino christão, aguar-
dando somente o martyrio em troca de cuidados e
sacrifícios.
Para devotar-se uma existência inteira com heróico
desprendimento ao exercício do bem, faz-se preciso
alguma cousa mais que as forças humanas, sempre
desarrazoadas, compellidas pelos desatinos da pró-
pria natureza, que só capitula deante de um poder
único, irresistível — o da religião do amor.
E* ó crótalo sanhudo desarmado na fúria dos instin-
ctos pela sonorosa flauta do canadiano, de que nos
falia o litterato francez.
A natureza desaçaimada pela instinctividade não
conhece outra potencia que a subjugue, que a con-
forme com as leis da adaptação civilisadora, senão a
religiosa, e essa concebida á feição christã, como
única que pode conduzil-a aos fins de seu aperfeiçoa-
mento.
A verdade é que a fé religiosa de Teutates na Gallia,
a de Odin e dos deuses escandinavos na Germânia, a
de Isis e de Osíris no Egypto, a de Júpiter e dos deu-
ses do Olymjx) na Grécia e Roma antigas, a de Zoro-
astro na Pérsia, a de Vichnu e de Brahma em parte
do Oriente, a de Fó e de Confúcio na índia, a de Allah
na Arábia e Ásia Menor e tantas seitas que alimentam
extravagância de repulsivas crenças, como as doutri-
nas dissolventes das esçholas de negação, jião consç-
O Op. cit. pag. 56,
G7
guiriam nunca o que a custa de seus imperterritos
soldados alcançou para a civilisação a dynamica mys-
teriosa da Regeneradora dos povos, foco que ainda
continua até hoje a projectar na ampla peripheria do
mundo os effeitos benéficos de sua irradiação.
Não se destaca uma aldeia ainda na infância do
desenvolvimento, ou paiz que escale as grimpas do
progresso, em todos os ramos de cultura scientifica,
como em todos os recantos menos conhecidos da terra,
em que não se culmine entre os factores primeiros de
seu alargamento o vigoroso influxo christão.
Sirva-nos de exemplo, como mais próximo, esta
mesma pátria que todos nós amamos com extrema
dedicação, onde os primeiros e mais operosos semea-
dores do gérmen de seu engrandecimento moral, soci-
al e intellectual foram os audazes propagandistas da
lei evangélica, que nunca retrocederam deante da fau-
ce da mais barbara morte, os edificadores do templo
que tem abertas as portas á concurrencia de todas as
nações, para se reconhecerem irmãs na ara augusta
da liberdade e do progresso e na communhão dos
princípios que decerram-lhes a cúspide da perfectibi-
lidade ideal.
O Brazil, como todas as terras do continente novo,
não deixou de ter como sua generosa nutriz a bemfei-
tora universal, quando nenhuma potestade tinha força
de domar a indole de seus naturaes.
Uns tantos homens inspirados unicamente na fé que
compellia-os á renuncia de toda gloria terrena, toma-
vam aos hombros a pesada tarefa de romper por meio
a densidade da ignorância, não como as águias roma-
nas em seus dias triumphaes e dilacerando o manto
dos soberanos da Ásia, ou devastando as florestas da
Germânia para aplainar a rota escolhida por uma civi-
lisação manca.
Mas o que a razão e a espada, esses dous aphelios
do poder, o terror ou a seducção não lograriam certa-
mente, a presença humildosa e mansa do missionário
e a cruz arvorada nas arestas das montanhas alcan-
çaram em decidida victoria, convertendo tribus selva-
gens á adopção de todos os costumes civilisados.
«8
Emquanto os aventureiros das plagas de além mar
deixavam seus lares, esqueciam as doçuras da paz no
sino da pátria, para se lançarem ávidos á exploração
de riquezas que a mão da natureza guardara nesse
escrinio americano, quaes Argonautas a sonharem
com o tosão de ouro, confiando-se á mercê do elemen-
to salso em procura da Colchida; emquanto esse ex-
tenso inundo brazileiro era repartido ein capitanias
para doações a cortesãos que mediam seus escrúpulos
pelas curvas do egoísmo; emquanto as nacional idades
européas apparelhavam-se para a conquista do paiz
mais cobiçado da America meridional e cruzavam de
norte a sul as quilhas cortadoras, fundeando em vári-
os pontos, na esperança de um quinhão partilhado
mesmo á custa de piratagem; emquanto se entrecho-
cavam a ambição, a sordicia, a indignidade, o crime
emfim cortejado pelas misérias que não faltam, reca-
madas nos costumes de todos os povos, mais desper-
tas pela cegueira de interesses farejados em afastadas
regiões, quando tudo isso effervecía, homens inteira-
ramente alheios á influencia das agitações dominan-
tes, almas voltadas somente para as sublimidades do
infinito, peitos vulcões que arremessavam lavas de fé
ás alturas ínaccessiveis do sacrifício, illuminando os
descalvados alcantis das verdes serras, como os som-
brios esconderijos das mattas, eram os portadores da
semente evangélica, que devia transformar em socie-
dade cultivada as multidões erradias no fundo de
nossos bosques.
Senhores, conteste-o somente o despeito e a ausên-
cia do critério histórico.
Os membros da companhia de Jesus foram os mais
dedicadas constructores de nossa grandeza moral e
até material, porque ninguém como elles tinha o ar-
dor, a perseverança além do estoicismo, a resignação
orçada pelos soff-rimentos para o serviço verdadeira-
mente evangélico da catechese dos indios, não obs-
tante as incriminações rábidas de seus inimigos/ que,
digamos incidentemente, jamais prestarão em sua
maioria um negalho de benefício, que se equipare de
longe ao menos a alguns dos sacrifícios por elles ex-
périmentados em prol deste solo, em que todos vimos
os primfeiros albores da existência. Não será da criti-
ca estouvada, rebentando todo fél de sua malquerença
contra uma classe inteira, que se ha de aferir a dene-
gação da gloria, que lhe cabe.
Após os Nobregas e Anchietas, que a mais traba-
lhosa campanha encetaram contra os abusos de explo-
radores, d'onde originaram-se contra elles calumnio-
sas aggressões, des*aca-se nos capítulos da historia
de nossa colonisação o vulto ingente do padre António
Vieira, o catechista de toda região do norte, propu-
gnador corajoso da liberdade dos pobres índios
domesticados, reduzidos á vilania da escravidão por
aventureiros gananciosos e desnaturados. •
Era precisamente quando aquellazona ubere mais
necessitava de um espirito superior, para dirigir-lhe
os destinos que ali achou-se António vieira.
A licença e a avareza desmensurada sopeavam os
princípios racionáveis do direito e da justiça entre os
compatriotas adventícios, exigindo portanto maneiro-
sa perspicácia para serem siipplantados os males em
vigor.
Sua palavra, porém, consorciando a prudência á
severidade, poude como a lyra de Orpheu acalmando
as Fúrias do Averno, senão destruir, pelo menos mo-
dificar aquelle pandemohium de abominações crimi-
nosas.
Urgia egualmente uma medida para maior seguran-
ça do ministério da evangelisação, o conhecimento
dos idiomas, o que fal-o ordenar que os missionários
recebam lições, que em breve os tornem capazes de so
entenderem com as tribus, ensinando os indígenas já
domados por outras catecheses.
Uma vez vencido esse óbice, foram designados a
acompanhal-o os padres Francisco Velloso, António
Ribeiro, Manoel de Souza e Sotto-Maior, (*) o qual
se constituirá seu fiel Achates nas lides rudes do apos-
tolado. E para mais fácil aprendizagem dos índios,
aquelle soberano espirito, destinado á invejadas con-
(*) A. de Barros pag.
to
enristas, não se dedigna de compor compêndios de ca-
tnecismo, (1) fazendo-se tão grande n'esse mister
como o notável estadista inglez (2), occupando-se em
escrever livrinhos de civilidade para seus filhos.
O que é certo é que sem custo, os que não obstante
estarem civilisados .ignoravam os elementos básicos
da religião, aprendiam rapidamente o que lhes era
ensinado.
Corria o mez de Janeiro do anno de 1653 (3) quando
Vieira destinou-se a intemar-se pelos silvados mara-
nhenses com os companheiros escolhidos, tentando
subir o rio Tapicuru.
Mas o capitão-mór, como não lhe convinha o aban-
dono dos índios que tinha em seu serviço de lavoura,
poz-lhe embaraços, instruindo os conductores de mo-
do a demorarem até o mez de Agosto, quando a en-
chente e correnteza impetuosa do rio não permittiam
mais a navegação.
Em face cTessa remora traidoramente preparada,
teve o destemido evangelisador de passar-se ao Pará,
com intuitos de seguir pelo Amazonas. Mas as mesmas
difficuldades lhe sortiram, obrigando-o a voltar ao
reino, onde todas as providencias foram estrictamente
ordenadas, demittidos os governadores e .por carta
regia restituída a liberdade aos Índios escravisados,
supplica especial que fizera o mais desinteressado
amigo das victimas do despotismo avarento.
E d'essa vez para tornar ao Brazil, foi caprichosa
a lucta que Vieira teve de travar com as cortes, que
não queriam privar-se de suas luzes.
Seu zelo ardentíssimo de missionar os gentios brazi-
leiros fluctuavaátona de toda corrente deseducções.
Devolta para o Maranhão, seu primeiro cuidado foi,
de posse das aldeias de índios, distribuil-as por seus
subordinados, emquanto o novo governador André
Vidal de Negreiros, impunha a coerção dos abusos e
da cobiça.
(1) Vieira compoz um cat. em 6 linguas. Disc. de F. de Me-
nezes.
Lord Chattan.
André de Barros, Op. cit.
71
Assim as varias aldeias que tinham numerosas
íribus, salientando-se a dos arnós mamayanazes e
anajazes, possuiam um director para inteiramente
confiante, descer António Vieira mais ao sul, até o
centro do Cear£.
Para logo nas boccas do Tocantins foram, sob sua
direcção, convertidas as tribus dos tupinambás e gua-
rajás, sendo ós padres Francisco Velloso e Thomé
Ribeiro os mais incansáveis iVessa cruzada penivel,
mas gloriosa e immortalisadora.
Demorava também no interior de Marajó uma raça
mais inimiga que todas dos colonos, revoltada pelas
suas injustiças.
Era necessário enfrental-a com a linguagem doce
da paz e dominar em toda sua cxtenção a bella e lu-
xuriante ilha que estrella a foz do Amazonas.
Os catechistas enviados são recebidos á frechadas
pelos nheengahibas na mais sanguisedenta demons-
tração de hostilidade.
Tornando-se dessa vez inconquistaveis os naturaes
de Marajó, foram entretanto assas fecundos os la-
bores apostólicos entre as porções que marginam o
Xingu, Gurupá e Tapajós.
Desceram então no anno de 1655 Vieira e mais
companheiros o restante do Tocantins, levando ás
gentilidades daquellas distantes paragens as luzes do
bem em suas scintilações mais puras, os raios divi-
naes da civilisação a tantos seres prófugos na escuri-
dade das mattas, menos trevosas todavia que o ne-
grume da ignorância que lhes envolvia o espirito,
terrorifica e triste, como a noite que vela a alma dos
eternos condemnados, pintada ao vivo -pelo poeta
mantuano.
Deviam seguir rumo talvez sem termo, viseira le-
vantada ás eminências da virtude, corações em desa-
fio ás rajadas do destino, mas guardando um alento
inextinguível para todos os sacrifícios — a fé, uma
arma para toaos os combates, unica para derribar
bem segura o monstro cruel da barbaria, mais forte
que o tacape, a setta, a machada, arma que tem ven-
cido milhões de e^ercitps em loucura de furor des-?
A
72
crente, que a desfilada dos séculos riao tem conse-
guido gastar-lhe a inflexibilidade, porque defende a
tríade eterna- da justiça, da verdade e do direito,— a
Cruz da Redempção.
E foi assim que Vieira tomou caminho do Ceará
Eara subtrahir almas ao império do obscurantismo,
anhando-as nos clarões do Evangelho.
Os fructos da gloriosa missão da serra de Ibiápaba,
onde um seu venerando irmão derramara seu sangue
nas mãos de indomados cannibaes, fazem os mais
formosos lauréis que cobrem-lhe a fronte. As incle-
mências da viagem marítima, gastando cincoenta dias
em estreita sumaca, pouco velleira, até chegar ás
praias de Fortaleza, foram os prodromos de uma serie
de martyrisantes vexações, por amor ao cultivo dos
indígenas serranos.
A fome, a sede, o cansaço (1), as tentativas de morte
de que foi victima, e toda sorte de padecimentos no
Calvário de sua jornada até chegar a Ibiápaba, não
desalentaram seu animo heróico e de intrepidez já
provada.
A catechese foi grandemente laboriosa, mas de
effeito satisfactorio, sendo a edificação de umaegreja,
onde ergueu-se o lábaro da cruz o meio de fazer per-
durar a memoria daquelles trabalhos apostólicos.
As creanças eram instruídas nos rudimentos indis-
pensáveis, muitos adultos recebiam as aguas lustraes ^
ecomellas o ensino regenerador, que lhes marcava
um logar digno no banquete da civilisação.
Por essa occasião um acontecimento veio por assim
dizer compensar os transes soffridos naquellas plagas
ingratas.
Os bellicosos nheengahibas, ramificados no norte,
dos quaes acabamos de falar, convencidos da bondade
paternal do padre António Vieira, pelas noticias di-
vulgadas, mandaram-lhe emissários patenteando-lhe
toda estima e obediência, chamando-o seu grande
pae (2). A paz celebrada foi então de modo solem-
(1} A. Barros, Op. Cit. pag. 141.
(2) A de Barros. Op, Cit. pag. 15a
>
n
nissimo, ficando concertado por juramento a vassa-
lagem de toda tribu á coroa de Portugal e sua dedi-
cação á religião. E ainda uma vez salvara também A.
Vieira os interesses políticos do reino, poroue os
nhecngahibas valentes e mais numqtfosos, alliados
aos hollandczes, aos quaes votavam expansiva sym-
pathia, perderiam totalmente os portuguezes em nu-
mero relativamente reduzido, na impossibilidade do
uma resistência prolongada, ficando a colónia pri-
vada das três ricas capitanias do norte: o Pará, Ma-
ranhão e Ceara.
Engrinaldado de tantas victorias, impulsionado pòr
zelo apostólico, para visitar as aldeia? deixadas, par-
tiu do centro cearense, onde fora ma is que heroe,
conseguindo ainda a submissão dos tobajarás, achaii-
do-se no Maranhão em Janeiro de 1660.
Mas não estava de vez terminada sua carreira êk-
tenuante de missionário. As visitas constantes âòs
núcleos de indios já civilisados, animando os pro-
postos na continuação de suas lides, não lhe exigiam
menos cuidados e forças. Neste comenos, revoltados
os colonos europeus, por terem sido arrancados os
indios ao seu captiveiro, depois de engendrarem ás
mais abjectas calumnias, fizeram ser presos Vieira e
seus companheiros e expulsos para a mesma pátria
donde tinham sahido, para glorifical-a com seus
innumerosos trabalhos e provações.
Era mais uma pedra* preciosa achada entre os. es-
pinhos do martyrio, para augmentar q valor do dia-
dema rutilo de seu renome. Mas a indignação de todo
povo de Lisboa e das cortes serviram de conforto a
sua nobre alma, que pedia com empenho uma graça
única, o perdão para todos os seus offensores.
Por fim forçado a acceitar a nomeação de Visitador
apostólico, fixou sua residência nesta cidade da Bahia,
proseguindo na cadeira sagrada sua missão de bata-
lhador intemerato, o Briareu nunca vencido, e que
nunca curvou a fronte irradiada por célicas resplen- '
dencias deante do mais pavoroso abysmo das adversi-
dades, no mais intenso dos embates, assignalando em
cada infortúnio, que si era grande pelo génio, era
A. v. 10
74
admirável pelo coração; si seu nome dignificava um
seculo/súa vMa hóriorificavá a classe, tantas vezes
zúfzidá, pslo lãtègo das málsihaçõés.
Já «sttuiecorrido o tempo mais suffiçiehte paraillu-
minâir èm seu íiòttíe os Wtèxos vivazes da justiça.
Maè ahí eâtá o fanatismo pólitrço ultra- radical, ru-
gindo fcspumailte contra a benemerência de seus
«tt&tóssos por sobre as syrtes da vida diplomática; átri
está a caturrice pseudo-historica de novelleirós estra-
gados, o fálseamfeníb cte suas intenções mais purasi
o òdip systematico em grita desatinada contra todos
os primeiros cultores de nossa cMlisáção primeva, e
a leiitedas prevenções exaggerando nugacidades des- i
presiveis; ahi estão a mentira vomitando queixas, e,
desvairadas Como as Eumenidés de Eschylo, a injuria,
a éaíumnia, a málevolencia planejando mais enliços^
a cobardia espreitando o ensejo de descarregar a cla-
va da imputação aleivosa, a vesânia irreligiosa esba-
forindò-se para plantar o estandarte da victoria até
nas ameias do edifício indestructivel da Historia, e
tudo isso para abocanhar-se o merecimento desses
varões, que têm um crime único, odiento, imperdoá-
vel, õ de vergar a roupeta negra de filhos da Compa-
nhia dé Jesus. .
O padre António Vieira não escapou á generalidade, A
na terra mesma que ouviu seus primeiros vagidos de
filho, que lhe emprestara glorias e somente glorias.
Mas, Senhores, ás grandes estatuas não se esc\ilpem
senão a golpes de cinzel, e a esfusiada dé faíscas que
cruzam o espaço de momento em momento pelas noi-
tes hórridas de tempestade não fere a face alyinitente
do astro que brilha depois, mais deslumbrante ainda,
na cúpula azulada do infinito.
Não morrerá, pois, na memoria dos povos de aquém
e alêíii-màr ó nome desse evangelisador, que os mais
proveitosos serviços prestou á civilisação dos indíge-
nas brazileiros, fosse na piroga íragil, scindindo a su-
perfície dos rios, que, quaes artérias de vida desse
Í5
gigante das Américas, buscam as entranhas do oce-
ano, fosse percorrendo as devezas de nossos bosques
incultivados, dominando fadigas e temores, até pene-
trar na taba do selvagem, para falar-lhe de uma lei de
bondade e sabedoria infinita— o Evangelho, da cultu-
ra de todos os princípios de aperfeiçoamento para o
homem — a civilisação christã. (Muitos applausns).
> >
X
4
A-.
QUARTA CONFERENGIA
17 de Julho de 1897
Orador. — Mons. Dr. José Basílio Pereira
O Padre António Vieira como politico e diplomata
Senhores:
*|ão pergunteis ao humilde orador porque se arroja
ia. levantar a voz neste recinto, deante de tão lu-
zido e respeitável auditório, quando parece ainda re-
soar por entre salvas de applauso a palavra electrisa-
dora de oradores laureados, — para discorrer sobre
um vulto eminente que prendeu a veneração e o re-
conhecimento de dois povos, para victoriar um nome
que subjugou a inconstância e o clvido de dois séculos.
Não o interrogueis: sob as indizíveis emoções que o
dominam, só poderia dizpr-vos que elevou-o tão alto
e alenta-o para tão nobre audácia, como bahiano a sua
adhesão plena á brilhante homenagem que rendem os
bahianos á memoria de um benemérito do povo bra-
zileiro, e como sacerdote o culto respeitoso que vota
ao egrégio varão que exerceu por doze lustros com
honra, edificação e realce as augustas funcções do
sacerdócio catholico.
O «Diário da Bahia» dando noticia d'esta conferencia assim
se exprime:
«Não nos é dado descrever o que foi aquella solemnidadè de
h onra.
O Dr. Basílio Pereira, para quem se voltaram todos os olhos
ao assumir o orador a tribuna, quando já não fosse possuidor
de tantos títulos á admiração de seus contemporâneos, não pre-
cisava de prova mais completa para firmar a reputação de es-
criptor emérito, em quem concorre com o conhecimento dos
segredos da palavra, admirável senso critico.
A sua conferencia foi a critica histórica dos factos que
t8
Velada embora, jorra tanta luz essa figura mages-
tosa, que não tacteafá na escuridão quem se avisinhe
a contemplal-a; e todos vós, trazidos aqui por gene-
rosos e elevados impulsos, recebereis de certo com a
gentileza de espíritos superiores, com a animação de
julgadores benévolos, o concidadão, o consócio, o
irmão, que ríão ponde fugir ao honrosissimõ áppello, e
tudo envida para corresponder á distincção da vossa
confiança; porque estão nisto empenhadas, alem de
um imperioso dever pessoal, a dignidade e a gran-
deza de um preito a que se associam a religião e a
pátria.
Se aggravaram os riscos, se dobram o peso da ta-
refa, a illustração notória e a provada superioridade
dos vossos outros eleitos que vieram compartilhal-a,
Sinto-rne também mais forte e mais altivo a seu lado,
saudando-os como a guias experimentados e mestres
eméritos, certo de que o surto rasgado e altaneiro de
seus talentos pujantes já suppriu a timidez e incer-
teza dos passos do obscuro companheiro, sem des-
douro para elle, com exultação, porque vê triuni-
phante o objectivo comnium. Vós os vistes, radiantes
de convicção e enthusiasmo, assomarem à esta
tribuna e illuminal-a com os lampejos da inspiração,
juncando-a de louros. Rico do património precioso
da historia e forte pelas aspirações e conquistas do
talento, o primeiro personificava as tradições, repre-
sentando o Insíituto que dedicou-se á recónstrucção e
á guarda dos monumentos da vida pátria. Trazia o
se prendem* á vida de Vieir a, como politico' e como diplo-
mata».
O «Jornal de Noticias» também disse o seguinte:
Bem' fVftí<fá*da anciedade.
Seduzindo o auditório durante duas horas, pela riqueza de
rttta&ens, pela abundância de conceitos, pêlo fino lavor da
P • r 2 S j e pel ° P rotundo do estudo, o Dr. Basilio Pereira, ga-
rantindo a sua nomeada de estylista e de pensador, produziu *
um tfraballíò notahllissimo.
Esjtaiartdo a individualidade do Padre António Vieira, como
politico* e como diplomata, a sua conferencia foi um tratado
?252 P ? i' J àvr \ do * mS(> . de mestre, uma dadiva preciosa
Í1ÍLÍ S lettras bra2lle i r as, destarte enriquecidas de' brilhante
gemma».
A
70
segundo a áurea credencial da, palavra* e. das lettras>
e.é um sábio encanecido nas lucubrações do ^estudo :
e.nas lides fecundas de honrado magistério* O ter-
ceiro veiu era nome das crenças, inflamando de z^lo ç<
de fé, e nobremente orgulhosp de sua missão, e do
mérito do heróico operário evangélico que elle sabe
con%prehender e imitar.
Cabe hoje a representação aos fracos e aos- pe*
quenos ls ás classes inferiores, ao povo, quo intervém^
de pleno direito e poderiam disputar larga pa^te: no
tributo prestado á memoria daquelle queem. todas.-as
phases da si*a vida de labor e do combato soecorreu.,
aos desprotegidos e humildes, epor não abandona 1-os-
sacrificou posições e interesses, e desafiou o ódio <e a .
perseguição de inimigos poderosos, E' por elles que
ouso falar: não possa embora imprimir ao m.eu tosco *
discurso as vivas scintillações que soem .prudusir °
voo da eloquência e o cinzel do estylista; elle ofTefe-
cerá com o respeito escrupuloso d justiça e á verdade
a singeleza de expressão que é própria da aima .po-
pular, e a lucidez intrínseca do assumpto, que é de si
inoffuscavel.
Disse algures um notável estadista francez, que não
pertencia ao grémio eatholico: «Tem a religião christã
>ÉL um caracter que admiro: é o cio reunirá mais sábia
metaphysica a simplicidade mais perfeita e efficaz. O
Timeo de Platão e o XII Livro da Metaphysica de Aris-
tóteles são maravilhas, sem duvida; mas não sahe de
nenhum delles um symbolo que se possa fazer recitar
ao povo e á infância. Até aqui só a religião christã já
deu a um tempo a Sunima de S. Thomaz e um Cate-
cismo.» (\)
A justa e profunda observação, que fazia Júlio Si-
mon, acudiu-me sob um novo prisma, ao contemplar
o vulto de António Vieira, nobre e altivo a impôr-se á
admiração ciosa das cortes, a captar o valimento es-
quivo e inconstante dos reis; humilde e abnegado ao
(1)— Jules Simon ? «Liberte c|e Çonscience», Introduotion,,
ponto de assentar a sua habitação á beira de florestas
inexploradas e querer por seu irmão o selvagem. Affi-
gura-se que o evangelisador das selvas foi tibio, con-
trafeito e desasado, ou o conselheiro dos príncipes
mal escolhido e inapto. Crer-se-ia que o sacer-
dote professo decahiunuma dessas transcendentes
missões, e desconheceu ou sacrificou a vocação que o
talhava para a outra. Ao envez disso, a orientação, a
proficiência e o mérito de Vieira foram notórios e
idênticos nos dois campos, aliás tão distinctos, em
que se desdobrou a sua admirável actividade. Servir a
religião e a pátria, —eis o objectivo supremo, a tarefa
ininterrupta dessa vida operosa e fecunda, que nos
cumpre agora apreciar na sua phase politica.
Ao limiar deste assumpto, a muitos de vós occorre-
rá uma duvida: entrando em tão extranho scenario,
não infringiu o novel jesuita a regra do instituto que
livremente abraçara, não esqueceu as lições do seu
Patriarcha, o exemplo do bravo e galhardo cavalheiro
que trocou a espada pela cruz e despiu as reluzen-
tes divisas da milicia para cingir até á morte a pobre
e malsinada roupeta? Senhores, a funeção própria do
sacerdote não é, certamente, redigir constituições e
dictar leis politicas; não é bater-se nos campos de ba-
talha nem solicitar do voto dos seus concidadãos ou
do favor dos governos parceilas do poder publico. Ain-
da recentemente um sábio prelado* em carta dirigida
ao seu clero, ponderava que «as populações christãs
olham com secreta desconfiança o padre que se im-
miscue nas luetas partidárias, e suspeitam-no quasi
sempre de agir por motivos mundanos, dose desviar
de sua missão, de ser menos sacerdote, menos pastor, .
menos digno da confiança e do respeito de todos. A
sua neutralidade, a sua abstenção, —concluía elle— ,é,
por assim dizer, uma condição, um penhor do êxito
ao sagrado ministério». (2)
Mas todos estes judiciosos conceitos se referem ás
condições ordinárias e condemnam só os extremos e
di sÍb°ío H de g ?89i: BÍSP ° de BayeUX * * Carta Past " ral>) de 8
81
excessos; nao podem abranger os casos particulares ô
as situações anormaes em que, a beneficio de interes-^
ses connexos ecommuns, e por grangear os serviços
de uma aptidão superior e provada, a pátria reclama
e a religião permitte e abençoa a presença e a acção
sacerdotal nos comícios políticos. *
O dever então é indeclinável; o chefe do catholi-
cismo o assignalou numaencyclica(//n/nortofe Dei):
«E* louvável collaborar na gestão dos negócios pú-
blicos, quando circumstancias especiaes não impo-
nham outra conducta. E um alto dignitário da Egréja,
commenlando taes palavras, diçia: «Nem todos são
chamados a este dever. Guarde-se o christão contra o
prurido que leva a disputar funcções publicas para as
auaes não se tem o conveniente preparo. Não é o bem
a sociedade que a ambição visa, 6 o interesse pesso-
al; e o christão deve buscar na consciência o testemu-
nho de que, acceitando taes commissões, tem em mira
sobretudo ser útil aos seus concidadãos. Por outro
lado, porém, não recue, por apego a seus lares ou te-
mor de embaraços, aquolle aquém a Providencia cha-
mar a algum posto na escala da administração do
paiz.» (3)
Pois, se é assim hoje, quando, rôte em muitos pai-
zes e noutros violada ou combalida a alliança entre
a Egrçja e o Estado, soffre tão frequentemente o sacer-
j^ dote na arena politica o embate inimigo, não deveria
ser menos disso ha dois séculos, sob o regimen dm
3ue os dois poderes, independentes mas unidos, se
eviam attenções e auxilios recíprocos. Não pudera
ser diversamente, não o foi; provam-no os successbs
da época, a partir da França, a nação christianissima,
onde o Cardeal Mazarini succedia a Richelieu no car-
go de primeiro ministro, e Bossuet, o Bispo deMeaux,
compunha ad usum Delphini a Politica extrahida da
•Sagrada .Escript ura. E' em taes circumstancias que
surge na vida publica o Padre António Vieira.
O quadro que então offerecia a Europa era o de uma
(3)— M. or Richard, Arcebispo de Paris, «Carta Pastoral» de 25
de Fevereiro de 1889.
A. V. 11
82
conflagração quasi geral: sopitada a fiam ma de genero-
so enthasiasmo que levantara as cruzadas, as nações,
esquecidas do inimigo cominum de vigia ás portas do
Oriente, exploradas e divididas pelos ódios da Refor-
ma, ensang-uentavam-se em luctas fratricidas. Os
príncipes protestantes, depois de se ligarem aos.
ttourbons para abaterem a casa d'Austria em decli-
nio, faliam alliança com a Áustria abatida para
atacar a França preponderante. Os peuuenos Esta-
dos, cahidos no domínio de rais poderosos, por
suppostos direitos hereditários ou por annexação
pelas arrftas, consumiam-sc em tentativas heróicas
paia sacudirem o jugo estrangeiro. O congresso das
gràtiçtes potencias, que poz termo á guerra dos 30 an-
nòs, concertava a paz de Westphalia, sem conseguir
ttíàis do que um ephemero equilíbrio europeu, des- \
conhecendo põr transacções a autonomia do reino "^
lusitano, e provocando impassível o protesto do Sum-
mo Pontífice (Innocencio X) contra a violação dos
direitos da Egreja. Deslumbrado pelos esplendores
de sua corte opulenta, desvanecido pela facilidade e
extensão dos triumphos políticos da França, Luiz XIV
emplumava es>e mal disfarçado cesarismo que se tra-
hina afinal no seu famoso — UEtat c'est moi. Portu-
tal, reatando suas tradições gloriosas, desprendia-se
as garras do Leão de Castella, e esse arranco liberta-
dor operava-se com o auxilio do clero, das ordens re- •
ligiosas (4), da já illustre Companhia de Jesus, num *
poderoso concurso prestado sem os excessos que ini-
migos dà Companhia engendraram para lhe imputarem
(4)— «A igreja tinba-lhe aplainado todos os caminhos, e o Ar-
cebispo de Lisboa D. Rodrigo da Cunha e o seu clero, dando
uma das mãos á nobreza e a outra ao povo, pozeram a. coroa na
cabeça do duque de Bragança, e riscaram da existência politica
em duas horas um dominio de sessenta annos.
Sem a conspiração lenta, e perseverante dos claustros e do cle-
ro menor, seria possivel dispor e enthusiasmar assim desde as
aldeias mais obscuras até as cidades mais importantes? De cer-
to não».
■Rebello da Silva, «Historia de Portugal nos séculos XVII e
XVIÍI», tomo 4.o pag. 640.
insidias e crimes, (5) dfc facto com dedicação e per-
severança bastante para responderem a seus aeM-
sadores de hoje que a pátria parou o Jesuíta ntfo é
uma terra estrangeira! (6)
'Emancipada a nação lusitana, restaurado o seu
thronò, a consolidação dpssa obra desafiava as- sym-
pathias e os serviços de António Vieira; teve-os since-
ros, constantes, e de^de o primeiro momento mais
reclamados*cm prol do bem publico do que offerecídos
por quem possuía real competência. O joven jesuíta
não. se introduziu nos paços reaes, sahindo furtiva-
mente do claustro, e meneando a intriga dos preten-
dentes vulgares ou a lisonja dos aulicos; foi percebi-
do, foi buscado do alto, e para as commissões que lhe
confiou a politica indicaram-no as qualidades superi-
^ ores com que exercia o sacerdócio. Subindo ao púlpito
da Bahia em 1640, á chegada do 1.° Vice-Rei, Marquez
de Montalvão, o egr egió pregador lhe disia: «A doença
do Brazíí & falta da decida justiça, da justiça punitiva
que castiga os maus, como da justiça distributiva que
premia os bons.
— Nenhuns serviços paga S. M. com mais liberal
mão que os da guerra, e a guerra enfraquece) porque
acontece nos despachos o de que o mundo se queixa,
que os valorosos levam as feridas e os venturosos os
prémios. Como se animará o soldado a buscar a honra
por meio das bombardas e mosquetes, se vê num peito
X o sangue das balas e noutro a purpura das cruzes?
— Como se havia de restaurar o Brazil, se ia o capi-
tão levantar uma companhia, e, por não lhe fugirem
(5) — «E* provável que a Companhia de Jesus representasse nesta
cruzada a parte principal. Imputar-lhe, porém, exclusivamente
todo o plano, e a execução inteira delle, como. fez um escriptor
do século XVIII, pode ser acto de apaixonada parcialidade, mas
não de sincera critica.»
Rebello da Silva, «Obra citada», tomo 1.° pag. 116.
(6)— Theophilo Braga, em carta publicada no «Jornal do Com-
mercio» do Rio de Janeiro nos dias 8 è 15 de Março do corr<en,te
anno, sobre o «Centenário de Vieira», conclue assim:
«Pela vida do grande varão vemos que não procedeu como
portuguez, seguindo a máxima jesuítica:. «Toda a pátria é iiftia
terra estrangeira, e toda a terra estrangeira é uma pátria.»
84
os soldados, trazia-os na algibeira? Como se havia de
restaurar o Brazil, se os navios que sustentam o com-
mercio e enriquecem a terra, haviam de comprar
o descarregar, e o dar querena, e o carregar e o
Sartir e não sei se também os ventos? Como so
avia de restaurar o Brazil, se o capitão de mar
e guerra fazia cruel guerra a seu navio, vendendo
os mantimentos, as munições, as enxárcias, as velas,
as.entenas, e se não vendeu o casco do galeão, foi
porque não achou quem lh'o comprasse? — Acontece a
V. Ex. o que a Christo com Lazaro. Chamaram-no
para curar um enfermo, e quando chegou, foi-lhe
necessário resuscitar um morto. Morto está o Brazil
e ainda mal, porque tão morto e sepultado; fumeándo
estão ainda e cobertas de suas cinzas essas campa-
nhas. E' verdade que nun^a se viu esta província tão _C
auctorisada; mas podem lhe servir os títulos de epi- ^
taphios; que pois a vemos levantada a reino entre as
mortalhas, bem se pode dizer por ella também: Que
depois de ser morta foi rainha.» (7)
Falava assim o Padre Vieira ao Governador, que
veiu a escolhel-o para acompanhar a seu filho D. Fer-
nando na missão de saudar em home da colónia o rei
acçlamado.
Circulando na corte a fama de seus eminentes dotes
oratórios, estréa na capella real com o discurso dos
bojis annos, e, nesse encontro solemne com o sobe- .
rano, a altivez respeitosa de sua palavra sacerdotal -*
não se rende em homenagens que a baixeza possa
nunca dictar a um servil: «Se o dia dos bens é véspera
dos males, — diz elle — , se para merecer uma des-
graça basta ter sido ditoso; quem fará confiança em
glorias presentes para esperar prosperidades futuras?
Se a campanha é mesa de jogo, onde se ganha e se
perde; se as bandeiras victoriosas mais firmes seguem
o vento contrario que as menea; quem se prometterá
firmeza na guerra que derriba muralhas de mármore?
E como a guerra e a felicidade são dois accidentes tão
.(7)— Sermão pregado na capella da Misericórdia da Bahia, a
2 de Julho de 1640.
A
85
variòs, como a fortuna é arbitra do mundo tão incon-
stante, como poderei eu seguramente prometter bons
annos a Portugal em tempo que o vejo por uma parte
com armas nas mãos, por outra com as mãos cheias
de felicidades?» (8)
E desse tom vigoroso, desse apostólico diapasão
não desceu a voz eloquente do insigne orador, ouvida
frequentemente com apreso manifesto da parte do
rei, ávida curiosidade o applauso geral das classes
sociaes. Nota um dos últimos historiadores portu-
guezes que Vieira parece não ter subido nunca ao
púlpito senão para envolver nas vestes da parenetica
um discurso politico. (9)
Podereis verificar o contrario: o sábio doutrinador
rara vez se occupou de um assumpto politico que não
puzesse em evidencia as suas estreitas relações com
as verdades religiosas; elle tinha deante de si, mesmo
na sociedade civil, uma ordem de coisas na qual os
interesses da pátria casavam-se aos da religião, as
leis do Estado, reforçavam as prescripções do culto,
e, refreando os Ímpetos da liberdade numana, velava
a Egreja em que ella se regesse no vasto e luminoso
circulo dos princípios christãos.
Nesse meio inspirava-se o illustre sacerdote, agi-
tando a trechos os problemas políticos, mas pelas
novas correntes que poderiam abrir á vida social, e
, para acudirá sua solução com o appello ás virtudes
V christãs e a projecção das luzes do Evangelho. O seu
programma tinha um ponto de partida seguro e inva-
riável: a lei de Deus; e não perdia de vista um fim,
remoto embora, supremo: os nossos destinos eternos.
Velha politica, idosa de muitos séculos, mas rica de
sua experiência, senhora das maiores grandezas e
glorias da tradição nacional, e consagrada leal e he-
roicamente nas quinas do pavilhão portuguez. Vieira
a definia em largos traços: «Toda a politica de um
Rei christão se reduz a quatro respeitos: do Rei para
(8)— Sermão pregado em Lisboa, na capella real, a 1<> de Ja-
neiro de 1642.
(9)— Pinheiro Chagas, «Historia de Portugal», 6" volume,
pag. 69.
com Deus; dò Rei para comsigo; do Rei para com os
vassallos; do Rei para com os estranhos. Tudo isso
achará o Rei na lei do Deus. De si para com Deus a
religião; de si para comsigo a temperança; de si para
com os vassallos a justiça; dn si para com os es-
tranhos a prudência. Para todos estes quatro rumos
navegará seguro, se os seus conselhos levarem sempre
por norte a Deus e por leme a sua lei». (10)
— O que perde nâo só o governo, mas as consciên-
cias e almas dos príncipes, é cuidarem que tudo
podem, porque podem tudo. Se assim. lh'o dizem, é
lisonja; e se o crêem, é engano . . . Seja a resolução
do príncipe justo tratar as suas leis como suas, sus-
tentamlo-as c mantendo-as em seu vigor inviolável;
porque as leis são os muros da republica, e se hoje se
abriu a brecha por onde possa entrar um só homem, L
amanhã será tão larga que entre um exercito; e o que *
a lei nega a todos sem injuria, depois que se concede
a um nào se pode negar a outro sem aggravo. (11)
— Este mundo, composto de tanta variedade de es-
tados, officios e exercícios públicos e particulares,
políticos e económicos, sagrados e profanos, ne-
nhuma outra coisa ó senão uma praça ou feira uni-
versal, instituída e franqueada por Deus a todos os
homens para negociarmos nella o reino do céo. Para
as negociações da teiva a muitos falta o cabedal;
outros têm cabedal, e falta-lhes a diligencia; outros
têm cabedal e diligencia, mas falta-lhes a ventura. Na
negociação do céo não é assim. A todos dá Deus o
cabedal, a todos offerece aventura e a todos pede a di-
ligencia. O cabedal são os talentos da natureza, a ven-
tura são os auxílios da graça, a diligencia é a coope-
ração das obras. (12)
—A lei da restituição é lei natural elei divina. Em-
quanto lei natural obriga aos Reis, porque a natureza
fez eguaes a todos; e emquanto lei divina também os
(10)'— Sermão sobre o «conselho», pregado na capella real, na
penúltima sexta-feira da Quaresma.
(11)— Sermão sobre o «não», pregado na capella real, na 3»
quarla-feira da Quaresma.
(12)— Sermão da Rainha Santa Isabel.
A
8?
obriga, porque Deus, que os fez maiores que os outros,
é maior que elles. Esta obrigação de restituir in-
correm os príncipes pelos roubos que commettem os
que são eleições e feituras suas; porque lhes dão os
officios e poderes com que roubam, porque os con-
servam, porque os adeantam o promovem a maio-
res». (13)
Eis como o preclaro jesuíta armava a confiança de
D. João IV, e com que artificio mantinha o prestigio
conquistado: falava franca e destemidamente a ver-
dade. E, corno dando arrhas publicas de não sacri-
ficar por nenhum interesse o dever que sua posição
lhe creara, achado o enseja, elle media das eminên-
cias da tribuna sagrada as graves responsabilidades
da escolha dos validos, o peso e o vasto alcance da
\ missão dos conselheiros do rei. «Da verdade de cada
x um pode o príncipe julgar o seu amor; com advertên-
cia, porém, que não deve esperar, como Dalila, pela
terceira mentira. Pela primeira falsidade em que o
vassallo for achado, ha de çahir logo da graça do
príncipe e cahir para sempre . . . Não sei que influ-
encias tem o lado do príncipe, que em todo este ele-
mento em que vivemos, não ha parte tão fértil e tão
fecunda, como aquelles dois pés de terra: tudo ali se
dá, tudo ali medra, tudo ali cresce. Crescem os pa-
rentes, os amigos, os creados; crescem as honras, os
postos, os títulos; cresce a casa, a fazenda, o regalo;
X cresce o poderio domínio, o rcs^cíio, a adoração; o
sobretudo cresce a estatura dos mesmos adorados.
Cuidam os homens que só tem a graça do príncipe,
quem lhe leva até os vestidos; que tem a graça des-
pojos, como se fora guerra ... No coração do prín-
cipe se há de estimar o rendido, e não o rendoso. (14)
— Nenhum negocio mais deve tirar o somno a um
príncipe, que a eleição dos grandes ministros; porejue
desta eleição depende o bom governo da republica.
Aqui se faz ou se desfaz tudo. Direis que é necessário
fazel-as com. grande consideração. Também assim o
j(13)— Sermão do Bom Ladrão,
\14)— Sermão pregado na festa do príncipe D. Theodosio
na capella real, em 1644.
digo: com consideração, sim; com considerações,
não; e as considerações são as que levam e as que
gastam o tempo. Não deve eleger nem o mau nem
ainda o bom, senão o melhor. E a razão é porque
o que elege não só é obrigado a procurar o bem pu-
blico, senão o maior bem. Ha de fazer neste caso a
balança da justiça o gue a balança da cubica nos
seus. Ha de fazer a cubica do bem publico o que faz a
cubica do bem particular, que da as dignidades a
quem vê que tem mais, porque recebe ou espera mais.
Assim ha de attender ao mais e ao menos a cubica do
eleitor, ambicioso só do bem publico »\ (15)
Deante de tanta isenção e hombridade, quem dirá
jamais que Vieira introduziu-se por portas escusas,
cortou rumos tortuosos da Monita Secreta, para
captar os favores do rei? (16) A
Vejamos quanto D. João IV o distinguiu, e do que ^
modo o inclyto vario correspondeu.
Honram-no primeiro as funcções de mestre e edu-
cador do príncipe D. Theodosio, o herdeiro da coroa;
e a estatura moral que attingiu o real pupillo, como a
respeitosa affeição que sempre votou ao eximio e de-
dicado mentor, são penhores valiosos da esmerada
execução da tarefa. «A educação que o. herdeiro do
throno recebeu, — escreve um contemporâneo — , asse-
gurava ao reino um futuro prospero, e consolidava a
nova dynastia. O príncipe conhecia muitas línguas,, e V
havia adquirido já conhecimentos notáveis nas scien- a
cias militares c administrativas, quando a morte o
arrebatou aos 19 annos! Estes estudos alliavam-se a
qualidades superiores de caracter; basta lembrar que
foi elle um dos que mais energicamente defendeu no
conselho de Estado os príncipes cuja entrega Cromwell
pedia como partidários de Carlos I». (17)
Se algum historiador divergiu de tão honroso juizo
(15) — Sermão de S. Bartholomeu.
(1B)— «Conforme o espirito da Companhia, por este tempo
condensado na «Monita», Vieira alcançou a sympathia dos prin-
cipes e pessoas importantes.» Thoophilo Braga, «Carta» citada.
(17)— Plutarcho Portuguez, «D. João IV», esboço biographico
por Joaquim de Vasconcelios.
e taxou«o de lisonjeiro a um príncipe dado a estudos
astrológicos e exercícios ascéticos, resalla a sem
razão da censura desde que frisa os factos. cri-
tico (18), ou, coudemnando o acolhimento dos prínci-
pes Palatinos em Lisboa, por voto de D. Theodq&io,
desconhece o mérito daquefle abrigo generoso offere-
cido pelo fraco ao perseguido e exilado; ou, repro-
vando a partida furtiva cio príncipe a se unir ao
exercito em Elvas, a despeito da contrariedade pa-
terna, commette a flagrante injustiça deincrep^rum
acto patriótico de D Theodosio, depois de harer
estranhado severamente os seus hábitos de vida
estudiosa e recolhida. Ha só um ponto em que a
penna dos arguidores de Vieira; parece armar-se de
justiça, é quando verbera o tópico de uma cartado
V illustre jesuíta ao príncipe real sobre a sua jornada
ao Alemtejo, exhortando-o a se ^pproximar dos pe-
quenos para ganhar-lhe os corações, a repartir por
sua mâo dobrões entre os soldados e operários, não
acreditar que todos o sirvam só por fineza, porque é
mais n-itural o interesse, e «deve eontentar-se de
que se queiram vender aquclles que for necessário
comprar.» (J9)
«Maruvilha-nos que Vieira reduza descarte a ques-
tão do patriotismo ao simples cobrir do lanço num
leilão de consciências!» — Escreve o historiador
v Pinheiro Chagas, vivamente indignado. (20)
Mas é uma indignação fácil, precipitada, que já se
desvanecerá ao pleno conhecimento dos factos. Um
testemunho insuspeito, ò do Conde da Ericeira, faz
a luz sobre este incidente, no seu Portugal Restau-
rado: «Escreveu o príncipe a cl-rei lhe mandasse
dinheiro, para satisfazer as muitas pagas que se
deviam aos soldados, pois parecia mal baldarem-se
(18)— Pinheiro Chagas, «Historia de Portugal», 6.° volume,
pags. 109, 110 e 164.
(19)— Carta escripta de Roma a D. Theodosio, datada de 23 de
Maio de 1650.
(20)- -Pinheiro Chagas, «Obra citada», vol. 6.o pag. 157.
A. V. 12
90
ao exercito as esperanças de sahir naqúella occasião
da estreiteza em que até aquelle dia passava.» (21)
Daqui se vê que o Padre Vieira não propunha a
D. Theodosio o emprego de meios de corrupção, o
suborno do soldado portuguez, que elle tantas vezes
proclamara um dos mais leaes e valorosos do mun-
do. O que fazia era tão somente inclinar o animo do
principe A munificência e á popularidade, insinuan-
do, cortez, a inconveniência e perigo de faltar o
governo ao exercito com o que lhe devia por jus-
tiça, mormente havendo entre as forças tropas
mercenárias.
Cultivando solicito o espirito e o coração do her-
deiro do throno, tinha o Padre Vieira attentas as
vistas ás necessidades e aos soffrimentos do povo.
Por sua vez, o rei não -se contentava de associal-o — k
aos seus cuidados e responsabilidades de pae, entre-
gando-lhe aquelle educando; ia alem, e chamava-o a
auxilial-o na gestão dos negócios públicos, incum-
bindo-o de altas e espinhosas commissões dentro e
fora do reino. Revestido de poderes especiaes, foi
enviado ás cortes de França e Hollanda, onde os in-
teresses de Portugal demandavam o ajuste de uma
paz honrosa e definitiva, e a conclusão de uma
alliança poderosa. Para um e outro fim havia já
negociações entaboladas e inicio de accordo, mas
ainda sem vantagens reaes. As tréguas de dez annos
alcançadas por Tristão de Mendonça, em 1641, en-
cerravam a clausula de não perder a Hollanda as
conquistas feitas no Brazil durante a dominação
castelhana. (22)
A liga celebrada no ipesmo anno com a França,
por Francisco de Mello, a despeito de Richelieu
qfferecer muito mais do que lhe era pedido, por im-
(21)— «Historia de Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 746.
(22) — «O tratado constava de trinta e cinco artigos. Pelo 21 «
foi reconhecido, ao governo hollnndez, o dominio adquirido pela
conquista; assim como pelo 22o foi aos súbditos hollandezes, o
direito ás propriedades e engenhos de que estavam de posse.»
Visconde de Porto-Seguro, «Historia Gerai do Brazil», tomo
l.o pag. 593. - '
A
91
previdência nos agentes de Portugal proporcionara
a este paiz muito menos do tjue lhe era necessário (23),
reduzindo-se tudo á promessa de mandar o rei
christianissimo alguns, navios de guerra em reforço
, da armada portugueza. Depois disso, por morte de
Richelieu succedera-lhe na chancelíaria de França
Mazarini, menos favorável que seu antecessora causa
de Portugal; e a Hollanda, em via de sellar pazes com
a Hespanha, firmava o propósito de não entregar as
praças brazileiras que havia tomado. (24)
No próprio campo das negociações, os embaixa-
dores de D. João IV não encontravam a lisura, e de
uma hora a outra as propostas mudavam, as con-
cessões fugiam: o governo francez com mil subter-
fúgios procrastinava a conclusão do novo tratado de
^ alliança, já pretendendo que o rei de Portugal se
fizesse reconhecer primeiro em Roma e Veneza,— o
que reputavam difficillimo (25); já onerando tanto o
(23) — «Usou p Cardeal com os Embaixadores agradáveis termos
e excessiva córtezia, offerecendo-lhes muito mais do que lhe
pediram; porém elles acceitaram muito menos do que era neces-
sário á defensa de Portugal, dizendo que nada lhes faltava.»
Conde da Ericeira, «Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 151.
(21)— Nassan, delegado do governo hollandez no Brazil, em
carta aos Estados Geraes de 1.° de Junho de 1641, confessa que,
«prevendo a revolução de Portugal deveria necessariamente con-
* duzir ás pazes, e aproveitando-se do que pactuara e da retirada
«F* dos nossos guerrilheiros das fronteiras, havia disposto que das
forças até ahi destinadas a fazer-lhes frente, passassem umas a
occupar Sergipe, e se embarcassem outras contra Loanda.» E
assim,- já depois de restaurado Portugal e quando ratificava as
tréguas com a Hollanda, Nassau fazia occupar quasi de surpre-
za o Maranhão, Sergipe, Loanda e a ilha de S. Thomé.
V. de Porto-Seguro, «Hist. do Brazil», tom. 1.° pag. 591.
(25)— Em despacho de 26 de Fevereiro de 1645 dizia o Conde
de Brienne, Secretario d'Estado, aos Plenipotenciários de Fran-
ça em Munster, que para os desembaraçar, e a si, das importu-
nações do Embaixador Portuguez, lhe insinuara que era mister
fazer-se em Roma e Veneza diligencias, afim de que o Papa e o
Senado reconhecessem o Duque de Bragança por Soberano de
Portugal; e lhe dera tal conselho, por julgar seria difficil conse-
guil-o.
Visconde de Santarém, «Quadro Elementar das Relações Po-
liticas e Diplomáticas de Portugal», tomo 4.o parte l. a pag. 126.
auxilio a que se obrigavam, que o ministro portuguez
vinha a não poder aceekal-o, porque seu paiz não
soffresse maior op pressão no soccorro do que padecia
na guerra. (26)
Àfferfados á primitiva proposta, os negociadores
d& Hoílanda tentavam peitar o secretario do embai-
xador portuguez para surprehender a correspondên-
cia do rei (27); e seus prepostos em Olinda fabrica-
vam cartas apocryphas de D. João IV ao gover-
nador da Bania, prohibindo-lhe soccorrer o mo-
vimento restaurador que rebentara já em Pernam-
buco. (28)
•Da corte/ portugueza, seguia o rei, impaciente, a
marcha de tão melindrosos negócios: os plenipoten-
ciários francezes em Munster formulavam gueixas
contra um de seus embaixadores alli, Francisco de _-Í^
Andrade Leitão (29); e o marquez de Niza pedia a S.
M'. que retirasse também a Luiz Pereira de Castro,
para que ambos fossem em suas casas descansar
do muito que haviam trabalhado um contra o
outro. (30)
Vai então o Padre Vieira áquelles Estados a infor-
formar-se da situação dos interesses portuguezes, e
com instrucções para actival-os, ou ao menos impe-
(26)— «O Marquez de Niza, entendendo que a politica dos
Fraacezes era fazerem paz com Casteila/e mandarem quanti- 1
dade de tropas a Portugal, para aliviar a França do peso dos sol- ^
dados, e prejudicar a Castella por parte mais sensitiva; mostra-
va ao Cardeal que El-Rei não havia de acceitar tantas tropas,
porque os povos de Portugal não podiam consentir maior op-
pressâo no soccorro que na guerra».
Ericeira, «Obra citada», tomo 1.° pag. 631.
(27)— Ericeira, «Obra citada», pags. 734 e 735.
(28)— Fr. Rapbaelde Jesus, «Castrioto Luzitano», pags. 422 a
425.
(29)— Em officio de 7 de Janeiro de 1645 ao Secretario d'Esta-
do em França diziam-se receiosos de «não poderem amoldar-se
com .o génio» de Andrade Leitão.
V. de Santarém, «Quadro Elementar», tomo 4.° parte 1. a pags.
120 e 121. P
(30)— Ericeira, «Obra citada», tomo l.o pag. 614.
\C de Santarém, «Quadro Elementar», pag. 69.
dá
dir que a Hollanda rompesse era novas hostilida-
des. (31)
Regressa prestes e dá por escripto o parecer de que
se trate de rehaver Pernambuco por compra, sugge-
(31) — Diz o illustre jesuíta, em sua carta de 23 de Maio de 1682
ao Conde da Ericeira, que o rei mandou-o ás duas cortes por
«não estar satisfeito com os avisos pouco coherentes que lhe fa-
ziam os embaixadores.
A tal propósito, João Fra:i«'i-*o Lisboa («Vida do Padre An-
tónio Vieira», png. 151,) nota que este, pelos «meios tenebrosos
e subservientes» com que desempenhou a tarefa, pouco menos
fez que o «papel de espião»; mas, está mui longe de pro-
vai- o.
Que reinava a discórdia entre os agentes do governo Portu-
guez, attestam-no as queixas apresentadas pelo Marquez de
Niza e pelos plenipotenciários Francezes. Que não eram cohe-
rentes os avisos que expediam, deprehende-se da própria narra-
is ção do Conde da Ericeira ( «Portugal Rest.» tomo l. 4 png. 659,
F~~ dizendo «ser tão inconstante o Cardeal Mazarini em suas pro-
posições, mie, mal se entendia estarem seguras, já se desvane-
ciam.» Tinha razão, pois, o rei em mandar alguém a infor-
mar-se.
— Como se houve nisto o Padre Vieira? Com Andrade Leitão,
de tal modo que, t tx de Abril de 1648, escrevendo ao Marquez
de Niza, communi ..a-lhe ter aquelle embarcado a 28 de Março,
c que, embora não toncionasse partir tão depressa, «como bom
servidor d'el-rei cortou pelo gosto ou conveniência que tinha
em se dilatar mais na Hollanda». Com Sousa Coutinho, proce-
deu com tanto desinteresse e lealdade que', nomeado para sub-
stituil-o, guarda a «patente» e pede excusa; abona e remedeia a
sua concessão relativa a Pernambuco; e insta junto ao rei para
\ que seja elle mantido na embaixada. Com o Marquez de Niza, a
r** sua conducta pode-se aferir pelo trecho seguinte de uma carta
que a 11 de Março escreveu ao referido Ministro: «Na devassa
em que V. Ex. me falia, tenho já tirado por testemunhas a toda
França, que por toda eíla não ouvi fallar mais que nos grandes
delictos daquella pessoa que S. M. saberá, referidos não como
elles merecem, mas por boca de quem S. M. cuida que lhe
ha de fallar verdade. Viva-nos V. Ex. muitos annos para honra
da nossa nação e bem de todo o reino. »
— Taes conceitos significarão cjue Vieira siga em tudo o pare-
cer do Marquez? Não, e elle o declara mais de uma vez: «Hade
me dar licença para me não conformar com que a confiança de
V. Ex., que deve estar tão segura, dásse entrada a semelhante
escrúpulo. Antes entendo que o pode fazer de se não pôr era pra-
tica o negocio («Carta de 12 de Janeiro de 1648)» — «Baste o ex-
emplo do marquez que, tendo sido de tão contraria opinião, re-
tractou-se; e antes de eu vir tinha escripto a S.M., pedindo com
grande aperto o mesmo de que. nós tratamos,, e se presa muito
94
rindo os meios de effectual-o (32); e, a sustentar essa
proposta ou descobrir alvitre melhor, parte de novo,
sendo nessa viagem annunciado a Mazarini pela lega-
ção franceza como o confidente do rei. (33)
Por esse tempo, a Hoílanda apparelhara uma es-
quadra de trinta navios para a guerra a Portugal em
todas as suas possessões, e dirigira um ultimatum a
Sousa Coutinho, que, um dia, vendo em aprestos
últimos de partida a frota poderosa, conhecedor de
que o seu governo não tinha com que defrontal-a,
serviu-se de ordens em branco que trazia com a
rubrica do rei, e prometteu a cessão de Pernambuco.
Participando logo o occorrido, pedia elle ao governo
que o punisse como entendesse pelo aue fizera sem
prévia ordem régia (34); mas D. João IV, convocan-
do o conselho de Estado, attenta a conjunctura em
que se vira o seu leal embaixador, approva a resolu-
ção tomada. O successo da Hollanda e a notificação
em Lisboa davam-se de Setembro a Novembro, e o
de ser este o seu voto». (Carta de 25 de Outubro de 1647, a um
ministro da corte de Lisboa). — «Sobre os navios que V. Éx. me
encommendou, já tenho avisado que não ha dinheiro, e que se
V. Ex. o não mandar, não se fará compra. Comtudo se mandar
dinheiro para um navio, eu farei com que se comprem dois.»
(Haya, 27 de Janeiro de 1648). Entretanto, sem mencionar
siquer um facto que importe em hostilidade ou intriga de
Vieira contra o marquez, João Lisboa, «pag. citada», taxa-o de
baixa adulação para com este, porque, dando-lhe pesame pela
morte da marqueza (Carta de 16 de Março de 1648), trata-o por
«meu senhor de minha alma «e diz-lhe que não se acha capaz de
mais que de sentir e chorar».
(32)-«-Esse parecer tem a data de 14 de Março de 1647, e é
dividido em cinco pontos. «O primeiro: como se ha de intro-
duzir a pratica da compra. O segundo: que praças entregarão
os hollandezes, em que forma, e por que preço., Terceiro: que
eíTeitos darão esse dinheiro. Quarto: com que fianças se ha de
segurar emquanto correrem os prazos. Quinto: que compo-
sição ha de haver nas dividas dos homens de Pernambuco.»
A Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro»,
tomo LVI, parte la. publica-o integralmente.
(33) — «Dá M. Lanier parte a sua Corte, em officio de 17 de
Agosto de 1647, que o Padre Vieira, Confidente d'El-Rei, havia
partido para o Havre no dia 12.
Santarém, obra citada, tomo 4.° parte 2 a . pag. XVIII.
(34)— Ericeira, «Port. Rest,» tomo l/\ pags. 639 e 640.
->l
4
95
padre Vieira sahirade Portugal em Agosto, e só nos
últimos dias do armo se reencontrava com Sousa
Coutinho. (35)
Levara instantes recommendações para adeantar a
conclusão da liga com a França e das pazes com o
Batavo. As industrias que usou nesse intuito na corte
de Versailles deprime-as o Conde da Ericeira em seu
histórico de taes negociações, (36) dizendo serem, tão
exorbitantes algumas promessas que Vianda determi-
nava fazer ao Cardeal, que o marquez de Niza decla-
rou antes havia de deixar cortar as mãos quejirmal-as.
Mas, aparte a clara confissão de gue, podendo valer-
se de extensos poderes, e auctorisado a acompanhar
o ministro residente a qualquer audiência que lhe
desse a rainha ou Mazarini (37), Vieira não formulou
officialmente as promessas a que se inclinava; o Con-
de da Ericeira não declina quaes fossem. Refere,
entretanto, que de uma feita, e por iniciativa própria,
o marquez offerecera a cidade de Tanger, e de outra
(35) J. F. Lisboa, «Vida do Padre Vieira», reproduz á pag. 681
a carta do ministro Pedro Vieira da Silva a Sousa Coutinho,
accusando recebidas na véspera «12 de Novembro» suas cartas
de 15, 18, 25 e 30 de Setembro, 6 e 9 de Outubro, nas quaes elle
«Coutinho» communicava a promessa que havia feito de se en-
tregar Pernambuco. Na referida carta o ministro participa que
nesse mesmo dia «12 de Novembro», o rei em conselho appru-
vara o que seu embaixador tinha feito. Lisboa pretende ter
provado que Vieira se contradisse nas explicações que deu
sobre esses factos, esquivando-se á toda a responsabilidade
por elles, e ao mesmo tempo confessando que ainda estava de-
tido em Paço d'Arcos miando chegou a participação de. Sousa
Coutinho, e o Conselho d'Estado ratificou o promettido. O
escriptor maranhense equivocou-se: a communicação de
Coutinho a que Vieira se refere versa ainda sobre exigências
que fazia o nollandez e a reunião do Conselho d'Estado foi
para tomar conhecimento delias e decidir como se haveria o
embaixador. A promessa deu-se posteriormente ao aviso allu-
dido e antes da resposta do governo portuguez chegar á Hol-
ianda. Como implicar em taes successos quaesquer poderes
que Vieira levasse, e de que não usou porque estava ou no mar
«em Agosto», ou em Douvres «30 de Setembro», ou «até fins de
Dezembro» em Paris ?
(36)— «Portugal Restaurado», tomo 1.° pag. 659,
(37)— Padre Vieira, Carta de 23 de Maio de 1682 ao Conde da
Ericeira,
96
dois milhões e meio, nuo se fechando então o tratado,
porque veiu tarde a resposta do rei. (38)
Por outro lado, pondere-se que Vieira estacionou
(38) — Referi ndo-se vagamente a divergências entre o marqucz
de Niza e o Padre Vieira, o Visconde de Sant.irem, «Quadro
Elementar», que na primeira Parte do Tomo 4.° (pag. 251) de-
fendera o Padre, na segunda censura-o com acrímonia (In-
trod. XIII), affirmando que a elle se devia o desanimo do rei
e que, por ambição que tinha de dirigir os públicos negócios,
reduzia ú nullidade os embaixadores do reino. Sem articu-
lar como e quando isto fez, cita em seu apoio o ministro de
França em Lisboa que até aconselhava D. João a dispensar
como prematura e inútil a viagem de Vieira a Paris (XV
e XVIII»), Ora, esse testemunho é o do representante de um go-
verno que estava sempre a adiar a conclusão da alliança, e que
em documento official (Santarém, tomo 4 o . pag. 153), récom-
mendava aos seus agentes que «no proteger as pretenções de
Portugal contra a Hespanha se houvessem com táctica de modo -4
3ue, a convir affrouxar o fervor de tal protecção, tudo redun-
asse em proveito da França». E' crivei que em taes circum-
stancias o ministro francez se mostrasse contrario ao «confidente»
d'El-Rei D. João, se elle deveras fizesse a Mazarini promessas
exorbitantes, ou mesmo vantajosas? Accresce que no correr de
sua exposição, relata Santarém que D. João IV se queixava a
M. Lanier de que, não podendo um só homem dar razão a
tantos negócios, o abandonavam Francisco de Mello, Pedro de
Mendonça e outros que o tinham feito renunciar ao seu soee-
go de Villa- Viçosa (pag. XIII); e por Ih" cigir a verdade, o
mesmo Santarém (pag. XVIII) «declara qtK desde o principio
de seu reinado se achou D. João IV envolto nas maiores difi-
culdades; e exasperou-se o estado das cousas com as conse- i
quencias da morte de Richelieu, e juntamente com as conjura- _X
ções promovidas pelo partido castelhano, com as escabrosas ~\
negociações externas e os apuros terriveis da fazenda; assim que
não é para admirar que apezar de sua firmeza e constância ti-
vesse accesso no animo d'El-Réi a inquietação e até as suspeitas».
Seria então Vieira o causador de tudo isto? — Vem em seguida
as intrigas com o marquez de Niza, a quem ainda no dizer de
M. Lanier, Vieira causara muitos desgostos, e de tal ordem que
— o Visconde de Santarém o affirma positivamente (Parte I a .
CCXLI), — quiz o marquez deixar a embaixada. Eis, todavia, o
que sobre este ponto informa o Conde da Ericeira: «Esta confu-
são e variedade de successos faziam ao marquez crescer umas
vezes, diminuir outras nas esperanças da liga: porém enten-
dendo que se dificultava, queria ver-se alliviado daquelle tra-
balho, o que El-Rei lhe não permittiu». (Tomo 1.° pag. 634 j—
«O marauez, vendo tanta variedade em todos os negócios,
pediu a El-Rei com grande instancia licença para se voltar a
sua casa». (Pag. 659). — «Exasperado escreveu a El-Rei que se
97
em Paris menos de dois mezes (39), e em todas as
cartas, dirigidas de Haya ao próprio marquez de Niza,
logo após, opina francamente contra as concessões
estipuladas pelo governo francez, dizendo sempre:
«Nem terras nem liberdade para commerciar em nos-
sos portos parece razão que se conceda à França,
pois como havíamos de dar de graça o que á custa de
tanto sangue e dinheiro estamos defendendo? (40)
«Não serei de voto que se lhes offereça nada sem
resposta de S. M., nem ainda que se falle em Tanger.
Emquanto V. Ex. espera resposta, se declarará o
estado em que fica a França, c se for o da paz, não
nos aproveitará darmos-lhe agora Tanger, senão para
depois nos pedirem Lisboa, se quizermos que nos
soccorram poderosamente.» (41)
y~ Quanto á paz com a Hollanda e proposta sobre
Pernambuco, da alludida correspondência evidencia-
se que, assente embora a preliminar da entrega de
accordo com o promettido por Coutinho, por sobrestar
ao damno que causaria, tão pouco vantajosa a torna-
ram em sua execução os embaixadores de Portugal
que as conferencias com os Estados suecediam-se
sem que estes chegassem á conclusão; e a frota que
a promessa de Coutinho havia retido em Setembro do
anno anterior, já cruzava o oceano com destino aos
portos do Brazií. (4.2)
^ O padre Vieira o noticiava ao marquez: « Os negó-
cios daqui estão da parte dos Estado^ em silencio,
partia no mez de Fevereiro, como executou, justamente moles-
tado do grande t~ab;ilho que havia padecido «sem ajustamento
algum» pela variedade que houve naquelle tempo dos sueces-
sos de França.» (Pag. 652) — E ahi está, em summa, como Vieira
foi a causa d js embaraços e da retirada do marquez de Niza!
(39)— Escrevendo de Douvres a HO de Setembro, diz que es-
pera chegar a Paris a 4 de Outubro, e a 3 de Dezembro escrevo
de Calais, já de regresso.
(40)— «Carta» de 20 de Janeiro de 1648.
(H)— «Carta» de 10 de Fevereiro de 1648.
(42) — «Resultou da arrojada deliberação de Coutinho dilatar-
se a armada de Julho atí Dezembro. Neste tempo vendo os
Hollandezes que Pernambuco se não restituía mandaram sahir
a armada». (Ericeira, Tomo I o . pag. 640).
A. V. 13
ESSiSE. tV ^ ^ ° Sr ' embaixad0r ,odas «
ri^ V °n?, . n n erenCÍa ' T quo se ex P°"'mentou menos
r gores que_ nas passadas, c vjeram todas as provín-
cias; mas nao se concluiu nada.» (44)
«m í«!"t e T° t - 0mp0 ' altent0 as occurrenci^e postas
eminonS , U1 ?v M T 8 rela Ç ões e ^dit Jféssoal, o
fSSj --™' d f mãos com os ministros, ia
™í aciuisiçao de armamento, conlractando a
Sp^S.?h a| ' C0S ar,,lhad °s > remettendo provisões
«!£,. °- VIvercs ^ UC escasseavam em Portugal,
í?« pÍE? an f- 0S -° P or , noticia s do Brazil, porque, escre^
ILl 9 ' *< - " ao sabei ' e m o successo de sua armada,
o £?i US,arao os 1,0| landezes cousa que os obrigue
e de lá vencerem ou serem vencidos, deponde o ficar-
mos aqui ou em paz ou em guerra para sempre». (45) i
rfp nJL m « COrreram a s negociações até que, avisado "^
ífn?- congresso de Muusfer se dissolveria sem
vantagem para Portugal, (46) António Vieira voltou
(■f 3 )— " Car,a de 23 de Dezembro de 1617.
(44)— «Carta» de 3 de Fevereiro de 1648
10 ( fÍH- p*"' < ? e ' 10 ^ e Dezembro de 1647, 12 e 20 de Janeiro,
*U e 17 de Fevereiro, 16 e 30 de Março de I618.-Dâ correspon-
VwM a, AÍ e ^itt in A Dom x° ma iq ,,esl de Niza collige-se que até
Abril de i648 nada se havia firmado com a Hollanda. Portanto,
foi posterior a conferencia a qne clle se refere em sua carta aò
Conde da Ericeira; finda a qual, Sousa Coutinho lhe dissera
e a Feliciano Dourado que havia concluído a paz O repente
de Vieira, acudindo-lhe que o hollandez lucrava mais com uma
conferencia destas do que em mandar frotas ao Brazil, se ex-
plicava desde que Sousa Coutinho fora ainda alem de sua pri-
mitiva promessa, e daquillo que o rei autorisara e estava cóm-
«??Ííi. e ' T l í lra e Felicia ™ Dourado, que era apenas
sustentar a proposta da cessão de Pernambuco e pagamento
de trezentos mil cruzados. Ha todo o fundamento para"crer-se
que isto se deu ao receber-se a noticia de que a esquadra hol-
landeza, que de passagem fizera muitas presas, havia chegado
ja ao Kecile aonde ella só aportou em meiados de Março, como
consta da «Historia Geral do Brazil» pelo Visconde de Porto
Seguro, (tomo 2o. pag. 651).
(46)— Dizem todos os biographos de Vieira que eUe trazia
também a missSo de acompanhar a Munster D.- Luiz de Por-
tugal; o que não se effeetuara por tor-se dissolvido o Con-
gresso. Parece-nos todavia, que outra foi a causa de se frus-
trar essa missão, da qual desde muito antes o rei o dispen-
>-
90
a Lisboa, onde o rei, em decreto de 21 de Outubro
de 1648, manda que seja elle ouvido pelo. conselho
da fazenda sobre as capitulações ajustadas com Hol*
landa, e que nisso teplia-so em vista que a paz da
França com Hespantia está muito perto de se concluir
sem inclwâo de Portugal.
Dahi surgiu o importante documento archivado na
historia com a denominação, que D. João IV lhe deu,
de papel forte, ainda hoje commentado com insólita
. severidade. (47) :
Foi uma causa ruim a que Vieira serviu com o seu
• grande talento (48), dfzem os aceusadores.
Nós o contestamos.
O governo poríuguez, na pessoa do seu represen-
tante Sousa Coutinho, vira-se na collisão de soffrer a
guerra em todas as suas possessões ou renunciar a
Pernambuco. (49)
Decidindo-se pela guerra, correr-lhe-ia o dever de
enviar promptos so^corros, e o governo nao o podia;
para combater Castella, era já preciso alliciar solda-
dos mercenários, os arsenaes estavam desprovidos, a
defeza das praças do reino fazia-se já com enorme
sara, como se lè na sua carta de 13 de Março do 1648, por
motivos que elle «havia representado em nome do marque/,».
Não será difficil atinar <*om a razão, considerando que o
neto do Prior do Crato fora designado para tal erab lixada
no supposto de reunir á nobreza do sangue o mais alto pres-
tigio; quando, entretanto, o embaixador tivera de acudir-lhe
em extrema pobreza e segundo as informações de Vieira logo
á sua chegada em Haya '(Carta de 23 de Dezembro» de 1647),
«demandavam-no não ja os acredores maiores, mas os de
pão e d'outras miudezas sendo tal o aperto e a impossibilidade
sua, que estava arriscado a o executarem».
(47)— «O Papel Forte» vem estampado na Revista do «Insti-
tuto Histórico e Geographico Brazileiro», tomo LVI, lo. e 2.°»
trimestres.
(48)— A phrase é de Pinheiro Chagas, na saia «Historia de
Portugal», 6°. volume pag. £9.
(49)— «Communicando o marques ao Cardeal «Mazarini» a
duvida que El-Rei tinha em entregar Pernambuco aos Hollan-
dezes, foi de parecer que se lhes concedesse por não arris-
car todo o reino». (Ericeira, tomo I o . pag.- 632).
1ÔÒ
sacrifício, o erário publico esgotava-se e para acudir
ás despezas de campanha até jóias da coroa se tinham
vendido. (50)
Acceitar o repto para abandonar as colónias e
deixar que cilas se defendessem só por si, fora in-
digno: seria sacrificar, seria trahir. Por isso o rei
capitulava, resalvando as garantias de vida, a liberda-
de de consciência, o direito de propriedade o a emi-
gração dos nacionaes que a, preferissem. O seu acto,
que lhe tirava a responsabilidade de impor a seus
súbditos uma guerra que elle não poderia sustentar,
deixava-os livres para a emprehcndorcm a todo. o
transe e com os recursos próprios, ató conquistarem
plena autonomia. Que não tinha outro intuito a ca-
pitulação imminente, o governo significava-o com as
explicações do occorrido e aviso ao Brazil, á cada .
expedição inimiga que partia (51); os insurgentes ~"^
pòrcebiam-no, respondendo nobre e corajosamente
ás commnnicações mais desanimadoras, e guardando
fidelidade sem embargo de não serem soccorridos.
(52) ^
(50) — E' a própria Rainha D. Luiza de Gusmão quem o dia
em 1665 ao Enviado de França M. De Jant. (Santarém, Qua-
dro Elementar, tomo 4.°, pag. 385).
(51) — «Carta» de Vieira ao marquez (23 de Dezembro de
1647). — «Coutinho mostrou aos Estados que, sendo elles os
offensores, se davam por offendidos, só porque determinavam
dar côr a maiores excessos. Mostrou-lhes tudo o que haviam í
executado em damno de Portugal depois da trégua ajustada, —^
e que eram tão injustas as suas queixas, que não passavam de
que El-Rei lhes não sujeitasse os moradores de Pernambuco,
que elles com todo o seu poder não podiam extingir». (Ericei-
ra, tomo l.o pag. 701).
(52)-~«Lidas as ordens, João Fernandes Vieira disse que
El-Rei não estava bem informado dos progressos que nossas
armas haviam feito; ponderou que havia casos, em que os de-
cretos dos reis eram condicionaes, e concluiu: «Assim que
nie parece repliquemos a S. Magestade com a informação d o
estado das cousas, continuando com a guerra na forma pre-
sente até nova ordem sua.» («Castrioto Lusitano» pag. 433) —
«Dê 8 a 9 de Setembro de 1647 atacaram a frota de Serrão de
Paiva no Recife, tomando por abordagem o navio em que este
se achava. Não teve Paiva occasião de ir á sua camará destruir
os documentos importantes que ahi tinha, e que vieram a des-
cobrir ao inimigo que não só o governador da Bahia, como até o
101
Não era, pois, uma causa ignóbil a da^cessão de
Pernambuco em taes condições.
Sel-o-iam os meies de que usou Vieira para defen-
dcl-a? Tão pouco. Diz-so que ultrajou o caracter
patriótico dos insurrectos a replica de que muitos se
haviam levantado por não pagarem o que deviam aos
hollandezes. (53)
Ora, alem de que não se estendia a iodos aquclla
referencia, as dividas u;am provadas, o governo con-
sultava sobre os meios de sòlvcl-£\s, e em nonhum
caso se poderia acreditar como patriotismo sem jaca
o que descera a tomar o inimigo por credor. (54)
rei se achavam implicados nas tentativas de Pernambuco, Entre
esses documentos se adiava uma carta regia de 9 de Maio para
Salvador Corrêa (já por elle recebida), afim de ajudar a res-
v tauração; carta que, traduzida em hollandez, foi dada á estampa
r em Amsterdam em 1647» (Porto-Seguro, «Historia do Brazií»,
pag. 632). — Era chegada para os nossos a hora das represálias.
Os hollandezes, fiados na validade do pactuado em virtude das
ratificações, iam dormir o mesmo lethargo em que os nossos
tinham jazido, fiados na honra de Nassau, e da mesma sorte
que elles tinham abusado da boa fé, iam ser victimas da sua
confiança nella. A elles, que haviam ensinado o caminho, cabe
toda a responsabilidade.» (Porto Seguro, pag. 596).
(53) — Pinheiro Chagas «Historia de Portugal», 6° volume,
pogs. 89 a 94.
(54) — Em seu parecer de 14 de Março de 1647, a favor da
compra de Pernambuco, o Padre Vieira já ponderava o se-
guinte: «A composição das dividas entre uma e outra parte,
não é menos embaraço deste negocio, porque não estão era-
*- penhados nelle só os das companhias, mas muitos outros
mercadores e pessoas particulares de Hollanda, de quem os
Portuguezes teem recebido tão grandes sommas de dinheiro;
e não falta quem cuide, que a cubica de se levantarem com
ellas, oú a impossibilidade de as pagarem, foi um dos princi-
paes motivos daquellas capitanias se levantarem; e todos os que
em Hollanda estão interessados nestas dividas, é certo que hão
de resistir aos concertos, si delles não entrarem em melhores
esperanças de cobrar o perdido. Mas a circumstancia que mais
difliculta, são os modos illegitimos, por que as fazendas de
Pernambuco se venderam e se possuem ainda hoje. E porque
muitos dos que as compraram e receberam dos Hollandezes,
que não tinham nellas mais direito que o das armas com que
as oceupou o inimigo, e, por ser a guerra injusta, seus pri-
meiros e antigos senhores não perderam o domínio delias, e
teem direito e acção para as repetir, principalmente sendo os
mais delles tão beneméritos, que por guardar maior fidelidade
102
Murmura-se que foi preconisado o direito da força,
e reputados fracos e nullos os foros de Portugal como
descobridor do Brazil: não é isso o articulado, senão
Sue taes allegações não desarmam sempre o mais po-
eroso, e muito valiosas no foro da consciência, eram
triviaes e impotentes no caso.
— Vozea-se: indignidade! commenta-se o escân-
dalo, quer-se atirar sobre a memoria de Vieira o es-
pesso crepe com que na galeria dos Doges em Veneza
o pudor patriótico sumiu o retrato do Marino Fali-
ero (55); porque o jesuíta na composição de umas
pazes admittiu que os hollandefces tivessem por seu
aquillo que occupavam e estendiam, e se atreveu a
observar que èlles receberiam estragado e em ruina o
3ue puzeram luzido e florescente. E os documentos
a época, o testemunho dos coevos, a palavra do ~^l
chronista official daquellas memoráveis luetas (56),
as deixaram; de maneira que no mesmo tempo se ha de pe-
dir ao possuidor da fazenda, por parte do legitimo senhorio,
as propriedades; e por parte -dos Hollandezes o preço delias
e tudo o mais que sobre ellas lhes vendeu ou ficou; e faltar ao
primeiro, tanto seria offensa da justiça, como faltar ao segun-
do, impossibilitando a composição; pelo que se devem buscar
meios, ainda que custosos, com que se possam concordar
estas difficuldades.» — Ao concluir pazes com a Hollanda, em
Junho de Í6'il, Portugal no art. 25 do tratado regulou ainda o
modo como seriam satisfeitas quaesquer indemnisaçôes, a que i
podessem ter reciprocamente direito os súbditos das duas partes -4
contractantes, nos bens possuídos ou dividas contrahidas no \
Brazil. (Porto-Seguro, «Historia do Brazil», pag. 754).
(55) — «A musa da historia cobre-se de luto ao pensar que o
Padre Vieira, um homem de superior talento, quasium génio,
foi do parecer do rei nesse negocio ! E se o não cxcluimos da
galeria de nossos grandes homens, ó porque antes e depois
deste errado passo, elle nos prestou grandes serviços e sentiu
mais tarde bem amargamente o arrependimento de seu grande
erro.» (Sylvio Romero, «A Historia do Brazil ensinada pela
biographi.i de seus heroes, «pag. 41).
(56) — Fr. Raphael de Jesus, monge benedictino, au«*tor do
«Castrioto Lusitano»— O Visconde de Porto-Seguro (Historia
do Brazil, pag. 683), diz que esse escriptor faz gala de rheto-
rico attribuindo aos cabos de guerra discursos que elle compõe;
-o que, em seu entender, ainda quando bem desempenhado, des-
virtua a Índole da historia. Mas não pode este juizo diminuir o
valor histórico de um livro escripto por uma testemunha dos
103
acodem em confirmaçãp, e, inventariando os estragos
e os despojos da guerra de Pernambuco, dizem isto:
«Melhorou o flamengo o que no Brazil adquiriu, e só
para o deixar melhorado o augmenío. Muito foi o
que Hollanda na conquista do Brazil adquiriu, e
muito mais o que entregou. Successivamente foi ex-
pulso de duzentas léguas de costa, que deixou com as
fortalezas que nellas levantou o possuiu. Em uma
tarde nos rendeu dez fortalezas, os castellos do mar e
da terra, cidade Mauricea e o Recife com todos os
fortins, plataformas e baterias de que se guarne-
ciam». (57)
Não o teve em nenhum peso a critica estimulada
contra o papel forte, e foi até a ponto de acoimar de
dissimulado e contradictorio o padre Vieira, porque
y. se deu como simples relator à&s forçosas razões que o
rei tivera para annuir á cessão de Pernambuco. (58)
Doscobriram-.se ahi desfallecimentos para os quaes
só deparou explicação a decrepitude do auetor da
carta ao Conde da Ericeira: trataram com somenos
attenção o respeito e como a um octogenário vulgar
acontecimentos, em homenagem no mais celebre dos seus pro-
tagonistas, João Fernandes Vieira, e por este dedicado ao Prín-
cipe Regente em 1676..
(57)— Cast-ioto Lusiúno, pag'. 602. — «Viu-se, como por en-
canto, durante o governo de Nassau, levantar-se na ilha de Santav
António, um novo bairro tendo pessoalmente o mesmo Na?sau o
cuidado de traçar e alinhar as ruas. Por todo o Brazil não
houvera anteriormente obras tão consideráveis e Ião habilmen-
te executadas.... As ob?*as publicas emprehendidas levavam em
si mesmas o cunho da boa administração: e essas paginas do
livro da civilisação de um paiz que primeiro lè um forastei-
ro, eram em Pernambuco tudas em abono do chefe hollan-
dez» (Porto-Scguro, «Obra citada», pags. 560 e 562).— «Che-
garam ao districto de Pernambuco os capitães Paulo da
Cunha e Henrique Dias, e disposeram o modo mais seguro e
melhor encaminhado ao firn pretendido; dividi^am-so em tro-
ços de dez e quinze soldados; a cada um se consignou o
lugar e a hora para a invasão e para o retiro. Desta sorte es-
palhados pelas freguezias pozeram fogo a tudo que podia «er
matéria para o incêndio, com o que, sem tempo nem distinc-
ção, se viam arder os engenhos e edifícios, os campos e os
mattos em uma mesmo cliamma. («Castrioto», pag. 151).
(58) — João Francisco Lisboa, «obra citada,» pags. 126 e 685,
104
esse que nas vésperas da morte, em 1697, produzia
ainda uma oração genethliaca da qual julgou um cri-
tico eminente: — foi a chave da ouro deuma pregação
de 60 annos, e nunca saudaram-se tão airosamente a
aurora o o occaso. (59)
Entretanto, Senhores, a carta do Padre Vieira re-
siste á mais minuciosa syndicancia. O insigne sacer-
dote viajava no dia em que Sousa Coutinho, enchendo
a ordem em branco, se obrigou á cessão exigida. (60)
Achava-se em Paris quando, informada, a corte de
Lisboa referendou a promessa do seu embaixador.
Chegando a Hollanda, as negociações não se ade-
antam. (61) Como, pois, responsabilisal-opela entrega
de Pernambuco?
Surde uma prova esmagadora, — acarta do padre a
Sousa Coutinho, escripta de Lisboa em 10 de No- — i
vembro de 1648 que reza: «Já tenho dito a V. Ex. *
como fui bem recebido de S. M., e muito approvada
assim dello como de seus conselhos a resolução de
V. Ex se não abalar. Não são mais de quatro os
votos que temos pela nossa parte, — mas para V. Ex. e
eu nos consolarmos basta que tenhamos o d'el-rei, o
da rainha e príncipe, e do secretario d 'Estado que
são resolutissimos e firmíssimos no que convém». E
(59) — Padre António H jnorati, «O Chrysostomo Portugucz»,
4.° vol. Pròtogo, piíi?. XXXIX.
(60)— O V. de Po-to-SegiKo («Historia do Brazil» pag. 651),
diz que a proposta da entrega de Pernambuco realisou-se em
Agosto e cita o seguinte documento. «Propositio facta... in con-
cessu publico 16 Augusti &, Haya J. B''eevelt, 1647.
(61) — Mesmo depois da restauração de Pernambuco o hollan-
dez mandava ainda em 1657 á foz do Tejo uma esquadra recla-
mar a restituição das terras do Brazil e d'Ango!a e o paga-
mento de pesados tributos. Pedro Viera da Silva, em nome
do governo, respondeu que não se lhes cederia território ne-
nhum; e os commissarios hollandezes se retiraram deixando
nas mãos do ministro a declaração de guerra. Um folheto
publicado então (Razoes da guerra entre Portugal e as Pro-
vindas Unidas dos Paizes Baixos, 22 pag.s. 4°. Lisboa, 'por João
Alvares Leão, 1657) ; concluo: «Dissimulou-se a oftensa quanto
foi decente; oftereceu-so pela paz quanto foi possível; e o con-
trario mostra-se surdo á justiça... Espe M amos que o Deus dos
exércitos, qno conhece os corações e razão de ambas as partos,
pelejará pela justiça. (Porto-Seguro, pag. 749).
\
105
eonclue um arguidor: — Aqui temos como elle censu-
rara tao asperamente o ministro portuguez em Hol-
landa! (6.2)— Aqui tendes, direu eu, como o Padre
Vieira veiu a abonar Sousa Coutinho, conforme lhe
promettcra na occasião mesma em que dizia ganhar
mais o hollandez nas conferencias com elle Coutinho
do que em mandar armadas ao Brazil. A chave da
conducta do grande estadista-se vai achar numa carta
de 10 de Fevereiro de 1648, dirigida a propósito de
outras negociações ao ministro portuguez em Paris;
está aqui: «Nem á reputação de S. M. nemá de V. Ex.
convém que na ratificação se altere o que agora se ca-
pitular, pela fé publica dos embaixadores com que não
se dará credito ao que os nossos daqui por deante dis-
serem». Sousa Coutinho havia empenhado a palavra
y~ do Rei; D. João IV honrara o compromisso do mi-
nistro tomado em seu nome; o Padre Vieira acudia a
abonar, quanto cabia em suas forças, a promessa do
ministro, a solidariedade do Rei e os créditos do
reino; e fazia-o, am arando também proficuamente
os próprios interesse . da colónia. O Papel Forte é
como que a ordem d dia de uma grande batalha em
que se dirigem as so: idas, os ataques de flanco e até
a simulação de umj retirada para melhor assegurar
a victoria: é o traçado estratégico de uma porfiada
campanha politica, no qual ao mesmo tempo que são
i indicados os meios e os modos de assentar a paz, se
^ possível; são também previdentemente discorridos os
modos e os meios de fazer-se a guerra, se vier inevi-
tável. (63)
(62 ) — Pinheiro Chagas, «obra citada», pag. 93.
(63) João F. Lisboa (Vida do Padre António Vieira) analysa
cada período, esmiuça cada Inha, pesa cada palavra do «Papel
Forte», acabando por lançar-lhe a nota de «solemne palinodia
e acervo de contradicçòes e incoherencias flagrantes para des-
figurar a verdade e justificar o erro» (pag. 113). Veja- se quanto
é injusto o illustre escriptor. Começa por não considerar que
os preopinantes impugnadores da proposta de Sousa Coutinho,
a despeito de conhecerem as gravissimas circumstancias em
aue fora apresentada, pretendiam que se a repudiasse como
desleal para com os vassallos, deshonrosa á coroa e offensiva
á religião; e assim não poderia Vieira fazer menos do que de-
A. V. 14
106
Patriota e sagaz» era ao mesmo tempo um homem
de, fé viva o hábil negociador.
; Escrevendo, ao agente porluguez em Paris, elle di-
zia: <íSíibe V. Ex. que ninguém mais do que eu deseja
a paz^rpas.ha de ser como convém . . . Querem estes
senhores (os francezes) nos vender a liga por terras
das nossas conquistas, mas espero em Deus que nem
q\Iqs nem outrem hade possuir nada delias.» (64)
E, referindo-se particularmente aos motivos de sua
vinda a Hollanda, assim se pronunciava: «Para dizer
francamente a. V. Ex. o que sinto é que de nenhum
conselho que derem a S. M. seus ministros, nem de
monstrar que não eram taes inimigos da religião e da pátria os
que era lance tão afflictivo se tinham daquelle modo empenhado.
ReferLndo-se ás minudencias a que desceu oPadre António Vieira,
Lisboa caustica-lhe «a incrível mania de argumentar e disputar» ~^4
(pag, 121), mas esqueceu-se de que pouco antes (pag r 03) assigna- ^
Iara que esse memorial é «inteiramente moldado sobre o parecer
de Pedro Monteiro, que refuta palavra por palavra, e como elle
dividido em. partes, pontos e artigos, subdivididos, classificados,
numerados, posta a competente resposta em trente de cada
facto, argumento . e objecção al.le.gada»., »P,ondera. que. «o terri-
tório > çecUdó çorçstitue o centro, e o. coração do Brazil, e é.por
sua posLção avançada no oceano ò domínio mais asado para o
jniniigQ receber promptos. sqccorròs da Europa e se estender
fáçítnaenjte.para.os \ados».(pag. 119); mas, quando Vieira discutia
o.assnmpíOj aoceupação de Pernambuco pelos hollandezes du-
rara jS mais de dez annos, e nesse decurso havia sempre re-
cuado; e o que só por esse facto se poderia deprehender, hoje
melhor^ se .deve apurar com o. testemunho insuspeito do aju-
danie-^eneraL Sigismundo Van Schkoppe no officio de 24 de
Maiode 1651 (V. de Porto Seguro,, «Historia do Brazil», pag.
66#), 'dirigida ao governo hollánuez, no qual declara que, si fôr
decidida a guerra, será essencial tomar a Bahia, «sem o que
nunca fariam fincapé no Brazil». — Chasquéa da argumentação
de Vieira, porque disse que «o hollandez, tendo arte para tudo,
n^O a tinha para lavrar assucar»; mas a observação do illustre
Jesuiiá deixará de parecer tãu fútil, quando se pensar que
Nassau, organisando uma expedição contra Loanda em Junho
de 1641 (Porto-Seguro, pag. 591), iustificava-se perante o seu
governo com «a necessidade de adquirir escravos para os en-
genhos de Pernambuco». Hoje mesmo, não rirá da allegação do
Padre Vieira nenhum dos agricultores brasileiros que tenha a
experiência dos serviços do colono europeu na lavoura da
canna.
(64)— «Cartas» de 6 e 27 de Janeiro de 1648,
A
10?
nenhuma resolução que tomarem ! nos^d^em0$^£- s
pantar, porque a experiência vai mostrando qiiè airiâaí
das menos consideradas se aproveita Decís pàrá eotí 1 !
seguir por meio delias os fins occultos deâaàprôtí^
dencia.» (65)
Alenta vam-no, portanto, a cada emergénéiâ o'pá'- 1
triotismo e a crença, mas crença •' bem ^ori^nttíd^ 1
que na pratica não poderia jamais conformar-se corri'
o desprezo ou com a incúria dos meios húfríaftòsv e
sensatamente advertia que, sendo tão frequente neste
mundo o opprimir a força ao direito e cônctilcal : ò, ô
sempre de bom aviso guardar a justiça publica e
assistir aos pleitos naciõnaes com bons mosque-
teiros. (66)
A entrega de Pernambuco fora promei;tida, l as l con-
dições em que se effectuaria não estavam assentadas:
nesse terreno é que agiria o diplomata; assegurando
as vantagens e conjurando os perigos do passo dado:
e a evolução executou-se com tanta perícia e felici-
dade que o hollandez, apparentemente victorioso, na
realidade nada tinha avançado e hesitava em ac^
(65)— Carta» de 17 de Fevereiro de 1648.
(66) — Porque Vieira no «Papel Forte», referindo-se á victoria
de Guararapes (2500 portuguezes sobre mais de dez rriil solda-
dos de Hollanda.— «Castrioto», pags. 492 « 496), qualificou-a
de successo milagroso, e disse que «os milagres é mais certo
merecel-os que esperal-os, e fiar só nelles depois de os me-
recer, é tentar a Deus»; João F. Lisboa («obra citada», pag.
114) incriminou o Padre e inferiu qittí elle soccorriá-se ' á
máxima de que «Deus sempre se põe da parte- dos^ mais mos-
queteiros»; Mas é manifestamente forçada tal interpretação^
ainda mais quando Vieira nunca reproduziu essa phrasè s^inão/
para aceentuar que éllá é falsa. «R' pratica mui' ordin&rià"
entre os politicos, que sempre Deus se põe da prirtè dós mais *
mosqueteiros. Esta proposição nascei! nas guerras íje Londres
e não é muito que seja herética. Dias ha que a desejo tomar !
entre mãos para a confutár: agora o farei brevemente.»
(«Sermão» pelo bom successo da* armas portuguezas 1 contra'
Castella) — «Dizem os nossos emulos que a foi tuna e a victòriâ
sempre se pòe da parte dos mais mosqueteiros; posto que ella
não o fez assim, ao menos nós nossos campos. As victorias dos
portuguezes nunca se alcançaram por arithmetiqa, sempre ven-
cemos poucos a muitos, eom a vantagem' 'só^dátiòssV união.»
(«Sermão» do SS. Sacramento, pregado em 1662).
108
ceitar a capitulação inimiga. Não recuar da con-
cessão, por<}ue o impedia a honra; delia auferir todo
o proveito, porque o reclamavam a dignidade nacio-
nal e o interesse politico, era ao que visava o Padre
Vieira, lavrando o seu parecer; era o que elle conven-
cionara em Haya com Sousa Coutinho, era o que lhe
recommendava de Lisboa, dizendo continuasse lenta-
mente com o tratado sem conceder mais do que o accor-
dado e não concluindo sem ordem de S. M. (67)
Alheia aos acontecimentos e longe delles, a opinião
publica em Lisboa manifestou-se contraria; mas do
valor desse pronunciamento se pôde ajuizar pelo que
refere Vieira nessa mesma carta, escripta no aban-
dono da intimidade: «Os artigos do tratado se viram
logo no conselho d'Estado, e se resolveu que delles
se fizessem copias e se enviassem a todos os conse-
lheiros, . . . que foi o mesmo que publicar-so por toda ^t
a corte, e não haver conversação, tenda nem taverna,
cm que se não discorresse sobre as tristes capitula-
ções e seus autores; cada um as referia como as
tinha ouvido, accrescentando e interpretando clau-
sulas . . ., e chegaram a andar vários papeis escriptos
com o nome de propostas de Hollanda, em que ne-
nhuma só palavra havia que jamais fosse lá, nao digo
escripta, mas nem ainda imaginada.»
Senhores, a estratégia dos mais invictos generaes,
como a diplomacia dos estadistas de mais alto des-
cortino tem soffrido sempre o abocanhar do vulgo na ^
palestra familiar e no rumor publico. Ao mais expe-
rimentado cabo de guerra dão lições de táctica militar,
e alvitram ou condemnam operações o manobras
sem cogitar da topographia local e dos movimentos
do inimigo no campo da batalha. Ao diplomata mais
fino e atilado suspeitam de falso patriota e arguem de
politico desastrado, criticando planos e negociações
de que não temo preciso conhecimento e que ainda
estão longe de seu termo. Um dos maisillustres diplo-
matas deste século, escrevendo suas memorias, assi-
gnalava espirituosamente essa balda vulgar de com-
(67)— «Carta» de 10 de Novembro de 1648.
109
bater e deprimir os expedientes de êxito duvidoso- ou
arriscado, sempre com sabida a appla.ud.il-os . e
partilhal-os, quando porventura vingaram. Era um
inoffensivo exemplar da espécie o seu creado Giroux.
«Quando lhe demonstravam o contrario do que elle
aftirmaranâo falhava a resposta: «Era isso mesmo que
eu dizia.»
Os diplomatas dessa estofa não se contam, notava
o Príncipe de Metteraioli, eu os encontrei ás Cente-
nas; «cada vez que era bem succedido em qualquer
negociação, não havia ninguém em desaccordo com-,
migo, a coisa era muito clara e muito simples, não se
poderia proceder diversamente, todos tinham previsto
e desejado isso mesmo; tal qual o meu creado Giroux.»
(68)
O Padre Vieira não requestou os applausos dos
f~ Giroux de Lisboa, ouviu impassível a grita dos ódios
e intrigas, e deixou correr sem o mais leve desmen-
tido a voz popular que lhe perjilhaoa a entrega dj Per-
nambuco. A' mingua de outros, seria isto por si só um
titulo ao respeito publico em prol de sua palavra, um
penhor de sua sinceridade, quando já serenadas as
paixões que o incidente agitou, rebatendo censuras
descabidas, interpellado mais de uma vez por quem
lh'as irrogara, o venerando sacerdote, em resposta
sobranceira, protestou que o seu feito não foi negocio
seu, senão resoluto e mandado expressamente por S.
^ M. (69)
O que alem disso cumpre assignalar, é que as
negociações como foram conduzidas surtiram effeito,
afastando o perigo próximo, que era a quebra das.
tréguas, e o damno emergente, que seria a eftectiva
entrega de Pernambuco.
(68) «Lorsqu'on lui soutenait le contralro de ce qu'U venait
de dire, il ne manquait pas de rápondre: Cest ce que, je vous .
disais.» — «Clmcun avait tout prévu, tout prèdit. Personne
n*admettait qu'on eútpu procáder autrement... La chose était si
siinple et si claire! Tout s'est passe três simplesment, tous ont
constamment dásLrè et voulu la même chose, comrae mon yalet
de chambre Giroux». «Mámoires du Prince de Mctternich», (III
volume).
(69)— «Carta» de 23 de Maio de 1682, ao Conde da Ericeira.
110
O vâlibéntcJ dé Vieira cresceu, e, gmtd á dedica-
ção e fiíiiira com que o servira e á pátria em lances
tâo apertados, o rei lhe confi )u nòvà e não menos
árdua o importante missão. Desacoroçoado de con-
cluir paz vantajosa com a H : ollanda, c iiludido em
suas esperanças de liga com a França, D. João IV
divisou um meio prompto, decoroso e nobre de pôr
termo á guerra com a Hespanha: seria o casamento
do herdeiro do throno pôrtuguoz com a filha única do
rei de Castella. Vivos como estavam 1 ainda os resen-
timentos dos Felippes contra os antigos vassallos que
haviam sacudido o seu jugo, e com resistências indo-
máveis traziam-os humilhados, difficuldades e ob-
stáculos quasi invencíveis erriçavam a empréza, que
requeria táctica superior, instrucções especiaes e
secretas, e recursos extraordinários. Foi o Padre -^
Vieira o escolhido pára aplainar-lhe a exôcuçãò. (70)
(70) — O Padre Vieira foi procurado como prestigioso media-
neiro ou constituído negociador official de outros casamentos na
família real, mas por nenhuma proposta pugnou quanto por
esta; e sot>re as outras são tâo vagas e encontradas as noticias
que se colhem des documentos da época e dos biographos do
Padre, que por ellas não se pode fazer obra histórica nem
critica aetida. Nem por isso abstiveram-se alguns escriptores
de considerar «criminosas de lesa-nacionalidade as missões se*
cretissimas» em que Vieira se occiípou deste assumpto, ou
«aventuradas», senão «abertamente* sacrificadas» a indepen-
pendencia de Portugal e a soberania de seus domínios coloniaès >
nas negociações entaboladas (Theophilo Braga e J. F. Lisboa^. -♦
Entretanto, logo a respeito da primeira, ha duvida si a preten- *
dida foi a filha do plenipotenciário francez em Munster, o
duquede Longueville, ou M è * le de Montpensier, ou uma depois
de outra. O documento de aceusaçãô contra o Padre é a sim-
ples minuta de uma representação do marquez de Niza ao
Príncipe Regente D. Pedro «allegando ter livrado Portugal de
ser entregue aos francezes, quando em sua primeira estada em
Paris o Padre Vieira lhe apresentara instrucções regias, es-
cripttts do puriho do secretario d'Estado, ordenando-lhe (a <ellé
marquez) propuzesse ao Cardeal o casamento de D. Theodosio
com M ôílé de Lòngueviíle, com a garantia.de poder seu pae
aeompanhal-a e reger Pdrtugal durante a menoridade do prín-
cipe herdeiro, porque D. João IV passaria a governar o Brazil
(Lisboa^ «Obra citada», pag. 719). Além de que este documento
se refere a uma com missão na qualtodo o papel de Vieira foi
o de mero portador das instrucções do rei, escriptas pelo punho
do secretario d'Es ! tado; surge em contrario, como observa Lis-
111
Não havia nisso o .rmrjimo deslize , do, decoro
sacerdotal. Os consórcios entre as dynastias reinantes
correspondem a pactos de alliança. entro as nações
interessadas. Vieira o ponderava nodiscurso, que foi
o seu canto de cysnq: «Os reinos e os impérios eon-
servam-se e suslentam-se cm duas raízes: das portas
a dentro com a successão dos Reis naturaes; das
portas a fora com a confederação dos Reis estrangei-
boa, o facto do que Vieira nunca esteve com o m,a rq.ivez.no
decurso de sua primeira embaixada, pois ao cbegar a Paris
havia elle partido i já para. Lisboa (Carta de Vieira, . de 4; de
Fevereiro de 1646), donde só voltou com a segunda embaixada
em Janeiro do anno seguinte (Santarém, tomo , 4,., pag. 199).
Émquanto á segunda missão do marquez, diz ; o Conde da Eri-
ceira (pag. 530): «El-Rei tornou a mandar este anno (1647) p.or
embaixador de França ao marquez de Niza... Levou ordem, piara
tratar com o Cardeal o casamento do Príncipe com a filha mais
velha do Duque de Orleans. O Cardeal approvou o intento,: e
assim o mandou assegurar a El-Rei por Francisco Lanier, as-
sistente em Lisboa, porém sem mais poderes que tratar dos
soccorros que a França podia dar a El-Rei». Ora, o Padre
Vieira só tornou a Paris em Outubro de 1647, donile. sahiu logo
nos primeiros dias de Dezembro. Assim, tudo quanto conjectu-
ram Lisboa e outros pão é bastante para destruir a simples
affirmativa produzida por André de Barros (Vida do Padre An-
tónio Vieira, pag. 19), de que o illustre Jesuita nessa occa&ião
«impediu a vinda do Çondè (tio de M eIle de Longueville) . a
Portugal, o que não importou menos que ficar illesa a sobera-
nia da Coroa. E' ainda por e?tas negociações e om a alludida
minuta que o Visconde de Santarém (tomo 4, parte 2. a , pag. XIV)
argúe o Padre Vieira do ter aconselhado <> rei á largar o reino
e entregal-o a um principe estrangeiro! Em tudo quanto foi
proposto pelo governo portuguez o fito único era conseguir a
«alliança», e, portanto, pão poderia nunca se reduzir ,ao sacri-
fício da própria autonorpia. O próprio Santarém da o testemu-
nho (2 a parte, pag. XXXIV): «Lanier escrevia ao Cardeal Ma-
zarini em 22 de Junho de 1648, que a Corte de Portugal
approvava o projecto dò casamento da Princeza Luiza com, o
principe D. Theodosio}, mas «com a condição da Liga», pela
obtenção da qual estava El-Rei resolvido a dar seis milhões.
Para este effeito foram mandados plenos. poderes ,ao marquez
de Niza para ajustar o dito casamento «no, caso de se fazer, a
Liga», ou pelo menos uma trégua de vinte annos cpjn aiHespa-
nha, de maneira que a mesma Potencia não a. po d esse .rom-
per». Lanier escrevia jsto em Junho, quando ó Padre Vieira
desde Dezembro do anno anterior se retirara, de Paris. Das
concessões «exorbitantes» que.se d.izem feitas ou iniciadas, pelo
eximio sacerdote, os únicos, .documentos diplomáticos, que se
112
ros. Por isso dá Deus ao Rei sou favorido filhos e
mais filhas; os filhos, para que nuo faltem Reis ao
próprio reino; as filhas, para que possam dar rainhas
aos reinos estranhos; os filhos, para que por meio da
successão se conserve o domínio dos vassallos; e as
filhas, para que por meio dos casamentos se conserve
a amisade dos alliados. Como nenhum reino se pode
conservar sem Reis amigos e sem Reis herdeiros,
í
encontram não liras imputam; mas, ao contrario, relatando-as
como aconselhadas ou propostas em diversas épocas, ja por
agentes do governo francez, ja por emissários da Hespanha,
consignam que Portugal rejeitou-as todas peremptoriamente,
seja a dè ficarem D. João IV e seus suecessores como vice-reis
erpetuos de Portugal; seja a de ir elle para o Brazil, dan :
o-lhe a categoria de reino; e quer a de conservar, alem do
Brazil, o Algarve; quer a de passar-se para a Sardenha na qua- .
lidade dé rei. (Santarém, parte 2* pags. 459, 478, e CXVI, ^i
CXIX, CLI). Criticando a intervenção que nestes negocius *
attribue ao Padre Vieira, diz Theophilo Braga que nada menos
se tratava do que de «entregar Portugal em dote da noiva à
França ou à Hespanha», mas não attende a que o «noivo, me-
eiro e administrador» dos bens do casal, era portuguez, e o con-
tracto esponsalicio deveria ser ao mesmo tempo um tratado de
alliança na paz e na guerra. Santarém (tomo 4.°, pag. 650) diz
que em 24 de Agosto de 1676 o Embaixador de França em Por-
tugal communicara a seu governo ter sabido que «o jesuíta Vi-
eira, passando por Florença de volta de Roma, havia, de moto
próprio e sem missão, feito ao Gram-Duque a proposição de
casar com a Infanta de Portugal seu filho primogénito, e que
chegado a Portugal o dissera a El-Rei que lhe ordenada de
proseguir iia negociação; mas que, passados mezes, o Gram- X
Duque renunciara aquelle casamento por saber que El-Rei \
Christianissimo e o de Hespanha á porfia demandavam a mão
da infanta, o primeiro para o Delphim, e o segundo para si.»
Eis, todavia, o que* sobre o referido projecto informa o Padre
Vieira em carta de 5 de Novembro de 1675 ao próprio Gram-
Daque da Toscana: «Tenho por mui provável que poderá pre-
valecer o partido de V. A. e eu vigiarei sobre a occasião oppor-
tuna em que mais immediatamente o possa introduzir. ...Mas
porque a união dos Estados de V. A, com a coroa de Portugal,
na. consideração dos interesses communs, é a que deve dar
grande pendor á balança, será necessário que V. A. me ad-
virta do modo com que devo responder, em caso que se me
opponham duas duvidas, as quaes estão muito a flor da terra
e não pode deixar de se reparar muito nellas. A primeira é
ter V. A., alem do principe primogénito, outros dois filhos,
de cujo estado se deve também deliberar, para que de presente
e de futuro não possam ser de impedimento á firmeza do tra-
113
nos filhos dá-lhe os herdeiros e nas filhas dá-lhe os
amigos.» (71)
Estimulavam outrosim a Vieira nessa missão as
tradições do throno portuguez, partilhado com lustre
admirável pelas rainhas que tantas vezes foram nas
discórdias dá família e nas sublevações do povo as
medianeiras da justiça e da paz. Mais lhe pesariam
no animo taes considerações, tratando-se do príncipe
aue elle educara, e que dentre os casamentos que se
lhe propunham tinha por melhor o que mais consul-
tasse as conveniências ao reino. (72)
Sahiu, pois, a esta nova campanha, e por centro
de suas operações tomou Roma, a corte do mundo
catholico, a metrópole da fé e da paz, como sendo o
abrigo mais seguro, o foro mais independente para o
julgamento de uma causa que affectava os destinos
de dois povos, avisinhados pela natureza, inclinados
á união pela communidade de muitos interesses, e
todavia separados para se exterminarem numa lucta
sangrenta que durara já dez annos, tudo pelo .desme-
dido orgulho e despeito de um rei. Tão nobres eram
os intuitos que levava o Padre Vieira, tão licitas e con-
fessáveis foram as traças que usou para fazer vingar
o seu plano, que, perto de 40 annos depois, os rela-
tava em pleno templo, com essa isenção de respeitos
tado e perpetua e irrevogável união de ambas as nações, vas-
sallos e coroas, uma de que o príncipe da Toscana ja é her-
deiro, outra de que será, casando com a herdeira de Portugal.
À segunda é dà parte dos mesmos vassallos de V. A., os quaes
por ventura se quererão conservar desunidos e debaixo de
principe particular, de que em nós mesmos temos vivo e pre-
sente exemplo, posto que os interesses communs entre elles e
os portuguezes, com a largueza de conquistas, commercios e
empregos de pessoas e fazendas, parece que sejam um vinculo
muito forte e de sua natureza indissolúvel.» Deante de tudo
isto, onde o fundamento para a -grave accusação de que Vieira
subordinou a liberdade e a integridade do reino a interesses da
casa de Bragança?
(71)— «Sermão» pelo nascimento da Infanta Thereza Francisca
Josepha.
(72)— «Os outros príncipes consultam os casamentos com os
retratos, o nosso consultava-o com as conveniências do reino.»
Vieira, «Sermão» nas exéquias do Principe D. Theodosio. .
A. V. 15
114
humanos que deve caracterisar o ministro do Evan-
gelho e a serenidade de espirito que ás bordas do
tumulo, só pode ter aquelle que dte a verdade. (73)
A guerra não poderia destruir todos os laços, não
estorvava todas as relações entre os filhos de Por-
tugal e osde Castella: haveria campo neutro em que
lhes fosse dado approximar-se e entender-se. Vieira
buscou a seus irmãos de habito e de sacerdócio; falou
aos sentimentos de humanidade e religião, contrá-
rios naturalmente ás violências e aos horrores da
guerra, e propensos por dever a toda a obra de
congraçamento e pacificação. O meio conciliatório
existia, e honroso para uma e outra parte: era o
enlace conjugal entre os herdeiros das duas coroas.
Pela. antiguidade e lustre da nobilíssima estirpe e
excellerieia de seus predicados pessoaes, o primo-
génito de Bragança erà o mais digno esposo para a'
Infanta de Hespanha. As condições seriam que, nâo
tendo El-rei de Castella filho varão, lhe succedessem
nos dois thronos D.Theodosio e a Infanta, fixando-se
a corte em Lisboa como cidade marítima; diversa-
mente, reinariam os dois em Portugal separado poli-
ticamente mas unido a Hespanha por uma álliança
offènsiva e defensiva. No caso de Felippe IV não re-
conhecer como rei a D. João, este abdicaria logo
nos Príncipes. (74)
í
(73) — «Vejo que estão notando a El-Rei, de que quizesse nesto ^
acto desfazer o que tinha feito, e tornar a unir o que tinha desu-
nido. Mas é porque até agora calei uma clausula do projecto,
sem /a qual' eu também não havia de acceitar a commissãò. A
clausula é que no tal caso a cabeça da monarchia havia de ser
Lisboa; e deste modo se conseguia para o nosso partido a se-
gurança e para o goyerno da monarchia a emenda.» «Sermão»
pelo nascimento do novo Infante em 15 de Março de 1695.
(74)— Pinheiro Chapas, «Historia de Portugal», pag. 106.—
Entre as diversas criticas a esta missão diplomática do Padre
Vieira surgiu ainda & accusação do que elle propoz a retirada
de D. João IV para o Brazil, mas não se diz si o facto impor-
taria a emancipação politica da colónia. Ainda nesta hypo-
these, considerado o risco de cahirem as possessões portu-
guesas em poder de Castella ou de Hollanda, não seria de
nenhum modo condemnavel a idea do Padre Vieira, que poderia
dizer, como escreveu recentemente Oliveira Martins: «A inclç-
115
O monarch^L portuguez provava o seu desprendi-
mento, e o de Càstella era satisfeito no empenho que
fazia junto ás cortes estrangeiras par$ que não dessem
a seu contrario o titulo de Rei de Portugal. (75)
Compensariam os benefícios da paz quaesquer
constrangimentos que soffresse o amor próprio. As
razões expendidas calaram no espirito dos assisten-
tes, prestigiosos varões, entre os quaes se encontrava
o doutíssimo e afamado Cardeal João De Lugo (76);
e a idéa entrou de ser em mais largo circulo ponde-
rada e acceita. Fora temerária, antipatriótica, insi-
diosa a proposta? Dizem-no alguns escriptores deste
pendência dos filhos nunca foi hostilidade para os paés, senão
quando estes insensatamente pretendem prolongar uma depen-
y dencia anachronica. Na vida dos filhos se continua e se pro-
longa a vida dos pães, e a successão das geraçOes é para os
homens e para as sociedades a pura expressão da immortaii-
dade>\ (O Brazil e as colónias portuguezas). Não o merece-
riam aquelles que, quasi por si sós, tão heroicamente se ha-
viam defendido contra os hollandezes? Seria até uma reparação
prestada pelo Padre Vieira, se elle deveras tivesse errado no
parecer sobre a entrega de Pernambuco,
No caso de tratar-se apenas da mudança de residenqia do so-
berano, resignatario ou não, tudo se resumiria na interrogativa
com que J. F. Lisboa «despede-se deste assumpto», cuja res-
posta não pode hoje ser duvidosa: «Lucraria o Brazil se naquella
occasião se tivesse éffectuado a emigração da família real, que
cento e sessenta annos mais tarde «foi resultado de aconteci-
i_ mentos análogos»? (Pag. 141). Fica também assim confutada a
/ censura feita a Vieira por nâo ter sido extranhó kos planos* de
refugíar-se a familia real em Pernambuco em 1659, quando
com o tratado de paz dos Pyreneps, que deu só três mezes de
tréguas a Portugal, ficou este isolado em sua lucta contra Hòl-
landa e Hespanha.
(75)— Quando ja reinava D. Affonso VI, em 1660, o Enviado
de França, offerecendo-se para mediador % entre Portugal e
Hespanha, dizia ainda que El-Rei de Càstella desAstiriada pre-
tenção do Portugual «com condição que, D. Affonso não se
chamasse Rei delle»; e por isso o aconselhava <jue ? «fosse em-
bora Senhor do reino mas ànnuisse a governai- o com' o titulo
de Rei do Brazil». (Santarém, tomo 4 o pãg. 486).
(76) — Entre os favoráveis a idéa contava- sé também o Padre
Pedro Gonzales de Mendoza, tio do embaixador. Duque, do
Infantado. (Padre André de Barros, «Vida do Padre Vieira»,
iiag.27).
116
século (77), mas por injustas ' supposições, e com
fracos argumentos, que vós julgareis. Annunciaram
uma prova fornecida pelo próprio punho do Padre
Vieira, e exhibiram o seu parecer, lavrado em 1676,
reprovando formalmente o projecto de casamento da
Infanta filha de D. Pedro com o herdeiro do throno
hespanhol; mas a allegação não procede pela dispa-
ridade das circumstancias. Num dos casos o repre-
sentante dos direitos de Portugal é o príncipe D.
Theodosio, e pesa em favor desse reino toda a supe-
rioridade social e civil do varão cóm respeito á mu-
lher: o que no outro caso inclina a vantagem em prol
de Castella. Demais, as conveniências que, ainda por
entre alguns riscos, faziam a primeira proposta igual-
mente acceitavel aos dois povos empenhados em
crua guerra, não bastariam de certo para decidir ^
em seu favor a nenhum dos dois reis, quando em <*
plena paz e alliviados para attender mais seguramen-
te á consolidação do throno e aos interesses do paiz.
A* consideração de que nada se effectuaria sem a
previa convocação e.o voto das cortes, acudiu-se
com a replica de que tal consulta seria somente um
apparatoso sacrifício em que a vontade nacional ren-
der-se-ia esmorecida ante o cortejo bellico das am-
bições colligadas 1 Veiu afinal o pavoroso phantasma
da união ibérica, revolvendo os ódios e as paixões
que se procurava desarmar e extinguir, e avivando
as tristes recordações de um governo despótico e ^
sanguinário, quando se lançavam os alicerces de
um throno liberal e bemfazejo. Augurou-se fatal-
mente o illusorio da mudança da corte, avançando
que na liga das duas nacionalidades o elemento
portuguez seria o absorvido e transformado; e não
perceberam tão acres accusadores que assim depri-
miam o caracter do povo lusitano, malsinavam-lhe os
destinos e o condemnavam ante a lição da sciencia
moderna, que nas suas observações sobre a lucta pela
vida garante a selecção aos mais idóneos e aos mais
(77)— J. F. Lisboa, pags. 173 a 178; e Pinheiro Chagas, pags.
106 a 108.
11?
fortes. Gemeram e sê escandalizaram de que, em.
crise tão angustiada para a pátria, descortinasse o
Padre Vieira um fio salvador nessa idéa de uma con-
federação da península; quando hoje mesmo tantos
patriotas (78) a affagam como um penhor de pro-
gresso e de gloria, e elles próprios que se lhe mos-
tram infensos chamam-na a complicada e espinhosa
questão, sempre pendente e sempre ameaçadora ! No
polo opposto a esse em que se acastellam os modernos
accusaaores de Vieira, do outro extremo vigiou Fe-
lippe de Hespanha o singular emissário do soberano
rival: a seus olhos, aquella pretenção trazia no bojo
só desdouro, humilhações e ruina para o throno e o
povo castelhano. Historiando o facto, Vieira diz ape-
nas: «Como a questão se havia de decidir não no juizo
do Capitólio romano, senão em outro muito distante,
onde a dor e a ferida estava ainda fresca e o progresr
so das nossas armas não tinha amadurecido as ver-
duras do pundonor, que depois humanou a experiên-
cia e a necessidade; não foi acceita a proposta.» (79)
Os biographos do preclaro varão accrescentam que
o governo hespanhol, informado da crescente accei-
tação que ia tendo o projecto, mandou instrucções
a seu embaixador para empregar todos os meios até
fazer sahir de Roma o Padre Vieira; o que foi tomado
tanto a peito, que este houve de retirar-se presto
para não sacrificar ingloriamente a vida. O poderoso
rei das Hespanhas temia-se do humilde religioso,
inerme, pacifico e respeitoso ! Surpresas taes, factos
(78)— Magalhães Lima, Director do jornal «O Século» de
Lisboa, em seu livro «La Fédération Iberique (Cap. V.), in-
screve como campeões da idéa da «Federação Ibérica» Hen-
riques Nogueira, Oliveira Marreca, Souza Brandão, Latino
Coelho, o Visconde de Ouguella, Teixeira Bastos e outros. O
distincto escriptor conclue assim: «Ou esclaves avec 1'Angle-
terre, ou fédérès avec 1'EspagneI nous ne cesserons jamais de
le répeter. Le Portugal n a qu'un moyen pour conserver ses
colonies, c'est la * fédération avec PEspagne. E, defendant la
cause de la Fédératioa iberique, 1'Europe defenderait sa propre
cause; en nous aidant dans notre entreprise, 1'Europe aiderait
aussi le grand oeuvre de Tliumanité et de la civilisation mo-
derne». (Pag. 180).
(79)— «Sermão» pregado em 15 de Março de 1695.
m
assim quan inexplicáveis, consigna mais de uma vez a
historia. Ainda nos primeiros dias deste século Napo-
leão o Grande, o leão da guerra, o vencedor de cem ba-
talhas, mandando recolher a um fcastello o velho Pon-
tífice que não curvara a soberania da egreja ao aceno
de seu braço invasor, determinava fosse em aposento
«com uma só sahida exterior, e guardas á porta com
ordem positiva de tel-o incommunieavel-»! (80)
Mas o attentado com todas as suas deponentes
circumstancias deixou macula indelével na vida illus-
tre do grande batalhador. Nas commemorações da
época nodoará também o nome de Felippe IV a vio-
lência commettida contra o Padre Vieira, e sua
prudente retirada terá os louros do mais admirável
triumpho, — o triumpho alcançado á arma branca da
palavra sobre a negra bastilha da prepotência e do >^
despotismo. ^
Com esse gladio poderoso vai agora o bravo lucta-
dor fazer mais largas conquistas em regiões ubérri-
mas ainda inexploradas. (8í)
(80)— «Le local será disposé de manière qu'il n'yait qu'une
«issue exterieure». II será placè une garde á la porte; elle aura
la consigne de ne laisser entrer personne. Le prèfetexercèraune
grande surveillance sur tout ce qui se passera dans 1'intérieur
du palais de Sa Sainteté et aura soin travoir parmi ses secrè-
taires et domestiques des gens sur lesquels il puisse compter.
On armera la forteresse de Savone; il y será plaçè 400 homens
de garnison; il y aura aussi un détachement de 50 gendarmes, >
pour la garde du Pape, commandè par un colonel. (Correspon- ^
dance de Napoléon I er «Lettre du 21 Aoút 1809, au Prince Bor-
ghèsej.
(81)— Das instrucções que o r«i deu a Vieira nesta missão e
da carta que este escreveu ao Conde da Ericeira em 1682,
consta que ia também encarregado de examinar e responder
á proposta que insurrectos de Nápoles faziam de entregal-a á
coroa portugueza. João F. Lisboa (pag. 168) julga que o Padre,
«habituado a recuar deante das crises imminentes», não teve
audácia e resolução para levar a cabo esta empreza, que Sousa
Coutinho, entretanto, reputava «fácil» e o marquez de La Caya
e outros napolitanos affirmavam só se ter mallogrado pela «in-
discrição e falta de tino» do agente Rodrigues de Mattos. O
facto é que, ante as informações prestadas pelo Padre Vieira,
D. João em carta de 16 de Abril de 1650' (André de Barros,
pag. 81) approvou que elle não tivesse levado avante esse nego-
cio, e louvou-se de lh'o tor confiado. Para aquilatar melhor a
119
Se furtou prudentemente a vida- ao-golpe do sicatío;
assalariado pelo temor do inimigo, é para consàgral-a
melhor ao serviço dá religião e da pátria, affrontando
enormes perigos que só a abnegação, dos, apóstolos
soube até hoje vencer. Eil-o nas plagas brazileiras : ,
desprendido.de todos os vínculos que poderiam atel-o
á terra natal e exemplificando mais livremente os
costumes simples e austeros que. guardara irrepre-
hensivelmente no meio dissipador e luxuoso das cor-
tes. E da mesma sorte que ainda nas mais caracte-
risadas missões diplomáticas sempre exercitou o
dever e a influencia ao ministério .sagrado, nas pere-
grinações bemfazejas do zelo evangélico serve ainda
com devotamento exemplar os magnos interesses
sociaes e políticos. Attestamrno as perseguições que
soffreu imperterrito, as viagens penosas e trabalhos
sobrehumanos que heroicamente curtiu, as luetas
ardentes que sustentou pela civilisação e liberdade
dos índios. O desenvolvimento e progresso do novo
mundo não se poderiam realisar só pelo esforço de
seus descobridores e sem o concurso das raças que o
povoavam: assegurar-lhes todas as vantagens da so-
ciedade culta sei ia a condição justa e efficaz de lhes
merecer o sacrifício dos costumes selvagens de sua
vida errante e independente. E nessa comprehensã.o
os reis decretavam que na dilatação de suas conquis-
tas pelo continente descoberto os íncolas domestica-
dos gozassem de liberdade a egual de seus outros
vassallos, exceptos só aquelles que nas tribus venci-
das ou alliadas estivessem já em captiveiro e con-
sensatez com que se houve em semelhante incumbência o
illustre jesuita, basta reler as paginas de César Cantú era que
se narram as peripécias dessa revolução em Nápoles, ou, ao
menos, o seguinte episodio com que um de seus mais conhe-
cidos heroes estreou na carreira politica: «Un di questi capi era
Tommaso Aniello d'Amalfi, pesciaiuolo di venticinque anni, ri-
dotto a miséria da una multa imposta dai doganieri a sua mo-
glie perche trovata con una calza di farina in contrabbando.
Armo egli di canne ed arpioni la sua banda, e passando avanti
ai palazzo, scopersero a quei signori di Corte la parte che
1'uomo suol nascondere.» («Storia Uuiversale», volume XVI.
pag.680).
120
demnados á morte: a esses poderia o explorador
livrar da pena capital a troco de servidão. (82;
Era justa, a excepção ? deveria o Padre Vieira
combatel-a? cumpria-lhe toleral-a? E' certo quede
instituição universal, que foi nos séculos pagãos, o
captiveiro se tornou por obra do christianismo um
alvo da reprovação universal; mas este resultado se
obteve por um trabalho perseverante de lenta e sabia
demolição. Nenhum poder corta de golpe os abusos
geraes e inveterados; não o tentaria o Estado, pela
certeza de encontrar a sua força — invencível reacção;
não o tentaria a Egieja, porque o ensino, que é a
sua espada avassaladora, não obra com a velocidade
do raio. A Egreja, portanto, combateu a escravidão,
tomando-lhe paímo a palmo os domínios, e fazendo
da própria posse dos escravos o ponto de partida e >J
arma poderosa na sua campanha infatigável. Possuin- '
do escravos, ella offereceu ao mundo o espectáculo
da auctoridade e da sujeição bem reguladas, e mos-
trou a uma sociedade quasi incrédula que é possí-
vel organisar o trabalho e installar a vasta machina
económica sobre outras bases que não a violência
legal; depois de haver feito comprehender como cum-
pria tratar os escravos, fez a exhortação e deu o
exemplo de os libertar.
A Egreja não podaria destruir de um arranm a
rija e enorme cadeia do captiveiro; quebrou-a, elo a
elo. Isso foi o que ella entendeu e executou desde os
primeiros séculos, e ainda recentemente proseguia
pelo zelo de um de seus mais generosos e estrénuos
apóstolos, o Cardeal Lavigerie. Solicitando a acção
dos comités anti-escravistas em favor de sua obra
que, triumphante, daria o quarto de nosso globo d ci-
vilização e â vida, o inclyto arcebispo advertiu: «Sup-
puzeram alguns que eu pretendia cortar desde logo
não só o trafico, mas a servidão, o captiveiro domes-
tico, tal como existe ainda em alguns paizes orientaes,
em Madagáscar, por exemplo. Eu só tenho recla-
A
(82)— D. Francisco Alexandre Lobo, («Memoria Histórica do
Padre António Vieira», pag. 61)
121
mado a suppressão immediata do trafico, isto é, da
caçada ao homem, da venda publica ou secreta, e do
transporte dos escravos para os mercados turcos.
E' isto, de facto, o que dá pasto ás qrueldades sem
nome, á destruição atroz, contra as quaes protestei
do alto das tribunas da Europa. O resto nade vir
pouco a pouco pelo progresso dos costumes.» (83)
Não poderia agir diversamente o Padre Vieira:
respeitou a excepção feita na lei, mas não transigiu
quanto á regra que a lei estabelecia. Cumpria assim
um dever; encandeou, porém, contra si a cupidez
insaciável e o interesse feroz dos colonos que, se-
nhores fáceis de vastos lotes de terra, quereriam
arrebanhar tribus inteiras e reduzil-as á condição
de instrumentos sem outro uso e destino que o de
augmentar-lhe os bens grangeados. As incursões
violentas aos sertões brazileiros succederam-se fre-
quentes, fazendo a cada vez levas numerosas de
captivos, e afugentando ainda mais, raivoso ou espa-
vorido, o selvicola. Notável historiador portuguez
traça um rápido quadro dos acontecimentos que então
occorriam nas missões ultramarinas:
«A lucta dos missionários com os erros dos povos
bárbaros foi em muitos logares prolongada e em
outros estéril. Derramou-se o sangue dos que vinham
pregar o perdão das offensas, e não poucas vezes
paixões e cubicas villãs lançaram o fogo á seara,
auando ella principiava a medrar. O santo nome de
>eus, falsamente invocado por homens de armas
sedentos de oiro, serviu para cobrir violências e ex-
poliações, que deshonrando a bandeira portugueza,
fizeram odiosos os ministros evangélicos. Accresciam
ás difficuldades quasi insuperáveis de climas insa-
lubres e de línguas ignoradas os obstáculos das dis-
tancias, e da braveza dos homens e das selvas. Em
vários lances os missionários affrontaram perigos e
trabalhos, que excedem quanto a phantasia pôde
(83)— Cardeal Lavigerie, «Carta» de 19 de Janeiro de 1889,
publicada a 25 do dito mez no «Boletim da Sociedade Ánti-es-
cravista de França.»
A. V. 16
imaginar de arriscado.. Desamparados nas solidões
ou ^embrenhados nas florestas, sem outro soccorro
alem da fô dúbia dos guias, padecendQ fomes e mi-
sérias, sentindo as forças esmorecidas e quebranta-
das, os religiosos, só com a esperança no céo, e sem
outro escudo mais que o. sentimento do dever, cin-
giam os rins, como os antigos apostolas, e á manei-
ra delles encaminhavara-se alegres para o martyrio,
naidéa de que a arvore plantada por suas mãos,
embora pequena e enfesada no começo, mais tarde
havia de erguesse forte e frondosa.» (84)
Era um continuador dessa gloriosa tarefa o Padre
Vieira; herdara de seus antecessores o mesmo zelo
apostólico; não poderia jamais conformar-se a que
estorvassem e desfizessem a propaganda civilisadora
aquelles que tinham por dever auxilial-a. Ergueu *j
a voz em S. Luiz do Maranhão, e dirigiu ura appello *
vibrante, em nome de Deus: «Sabeis, christãos, sa-
beis, nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum
que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as
ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que
tendes captivos e opprimidos. Estes são os pecca-
dos do Maranhão, estes são os que Deus me manda
que vos annuneie. Direis que os vossos chamados es-
cravos são os vossos pés e mãos; e também pode-
reis Hizer que os amais muito, porque os criastes
como filhos, e porque vos criam os? vossos. Assim i
é, mas já Christo respondeu: se a tua mão ou teu Hjf
pé te for motivo de escândalo, corta-o fora. Não quer
dizer 'Christo que cqrtemos os pés e as mãos, mas
quer dizer que se no? servir de escândalo aquillo que
havemos mister como os pés e as mãos, que o lance-
mos de, nós, ainda que nos dôa, como se o cortára-
mos. Quem ha que qão ame muito o seu braço e a
sua mão? Mas senejla lhe saltaram herpes, permitte
que lh'a -cortem por conservar a vida. O mercador
ou passageiro que vem da índia ou do Japão, muito
estima as drogas que tanto lhe custaram lá, mas se
, (84)— Rebello da Silva, «Historia de Portugal nos séculos
XVII e XVIII», 5o Tolume, pag. 180.
123
*
a vida perigar, vai tudo ao mar para que ella se
salyè: O mèsitio digo erhTtiò$$o**fcaso;*fc pà¥& £ègfcríéi* :
a Consciência e para salvar à alma; foi^i^**^iFÍé^
perder tudo e 1 ficar como urh Job, pérca-se ttíflo^Wa&i
nom animo, senhores' meus, 4 que riãò' # nefcSsgarte
cHegar a tanto, neni a muito menos. Venho a Wdtt^
zir às coisas a estado, que entendo com mUitopôttêâ
perda se podem segurar as consciências áe todo*
os moradores deste Estado, e com' muito graftdesin-
teresses se^odem melhorar Suas consciendiás <jpára
o futuro.» (85) , { * . • vV
E proseguiu dominando tão poderosamente o au-
ditório, que nesse rtiesmo diá muitos' : dos' ou-
vintes deraín liberdade a todos os escravos tjiie pos-
suíam. (86) ' "' ' /{ ' • " ;í '• "'***
Mas, desvanecida a impressão, acordou o egoísmo
offendido e a lucta recrudesceu. As' antigas pfovisíJtès
regias e as novas que aos reclamos de /Vieira (87/ se
expediram em reforço, foram violadas ou illddidàs
pelos encarregados de sua execução. Centra ò ^adi%
Vieira e os religiosos da Companhia surgiu áinttígâ
de que monopolisavamo serviço dos indíos, * leváírao
o seu produeto aos mercados em tâo baixo preço,
que não podiam os colonos concorrer com elles «
logo se arruinavam. E a penna de mais dè tfm.toista-
riador acolheu e divulgou o aleive; mas, por e£se
irresistível império que sempre exerce a verdade*
com taes increpações, e a contrastar com ellas, vem
preso o testemunho de que o gentio só se prestava a
lavrar as terras dos padres, e as tarefas ahi eram sua-
ves, a alimentação sadia e abundante , sendo elleâ èfn
grandíssimo numero. (88) l< ' - ; '
A um escriptòr não repugnou repetir em fé dos
(85)— «Sermão» pregado no anno de 1653 no Maranhão.
(86)— André de Barros; pags. 78 e 79.— João F. Lisboa^ pag.
450.
(87)— «Cartas» de 20 de Maio de 1653, 4 de Abril de 1654, 6
de Dezembro de 1655, 20 de Abril de 1657, a Ei-Rei; c de* 1» de
Setembro de 1658 á Rainha.
(88)— Rebello da Silva, «Hist. de Portugal», tomo 5.°, pags. 175
e 177 .-^V. dePorto-Seguro, «Histi dòB*ftzil»í torno lo, pag. 843.
124
inimigos dos jesuítas, que estes não foram contrários
ao captiveiro dos africanos, porque não pretendiam o
domínio d* Africa, nem lhes agradava esse clima; e,
por conta procria advertiu que, vindo a recobrar a
sua vitalidade d'outrora, tinha a Companhia que de-
saffrontar-se da accusação, passando a missionar nos
sertões africanos. (89)
Injusto! Não mereciam a lição aquolles que o pri-
meiro governador enviado a Angola teve a seu lado,
e de quem poude attestar que pela propagação da fé
não recuam nem ante o martyrio. (90)
Não attin^iu tampouco o Padre Vieira, que no cur-
so de suas viagens ao Brazil mais de uma vez evange-
lisara com fructo copioso as ilhas de Cabo- Verde e
Açores. (91)
Os documentos da época, e os próprios historia-
dores contrários aos jesuítas, o consignam todos:
a razão de preferirem os colonos o captivo ind ; o ao
africano, era a de achal-o mais perto o sahir menos
caro. (92)
Não podendo por si abolir a escravidão, o jesuíta
descarregava-lhe golpe destruidor, combatendo para
(89)— V. de Porto-Seguro, tomo I o , pag. 319.
(90) — «Resolveram os jesuítas acceitar a nova missão, entran-
do ém Angola com o primeiro governador Paulo Dias de No-
vaes. . . A palavra dos missionários da Companhia operou em
Loanda e seus arredores bastantes conversões, elevnndo-se alli
a christandade em algum tempo a 20,000 almas. ..... Em
1560 sahiram de Goa os primeiros jesuítas destinados áquellas
regiões (Africa Oriental), e, apóstolos e martyres, deixaram as-
sefiado com o sangue do seu chefe, Gonçalo da Silveira» o tes-
temunho glorioso da sua fé nos dominios do Monomotapa.
(Rebello da Silva, tomo 5o, pags. 166 e 170). .
(91) — Em carta escripta ao confessor do Principe, em 25 de
Dezembro de 1652, pede-lhe o Padre Vieira que «ae lá queira
ser apostolo desta antiga e nova conquista e aggregal-a á pro-
víncia (dos jesuítas) do Alemtejo»; e diz também:
«Ha aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas
tão compostos, tão auctorizados, tão doutos, tão discretos e bem
morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas
nossas cathedraes.»
(92)— João F. Lisboa, pag. 441. —Porto-Seguro, (pags, 312, 313,
e 319).
-k
125
que os exploradores do trafico só se fornecessem á
custa de sacrifícios que poucos arrostassem. (93)
Estimulasse este exemplo as classes dirigentes nas
possessões africanas, servisse-lhes para defenderem
também osnaturaes, impedindo as correrias barbaras
3ue se faziam contra elles para acudir á conservação
o braço escravo: mais se adeantaria a obra da civili-
sação das colónias, e a supprcssão do ignóbil e deshu-
mano mercado! Esse, porém, era o abominável crime
dos jesuítas: chamar para o convívio dos povos cultos
o íncola das regiões da Africa e America. (94)
Um eminente publicista contemporâneo disse-o
sem rebuço: «A errónea philosophia da natureza, a
illusão espiritualista que suppunha inherente, á falia
e á forma humana, uma alma divina, essencialmente
idêntica em todas as espécies de homens, eis ahi a
causa primaria das antigas doutrinas coloniaes dos
jesuítas, e ainda hoje o motivo das opiniões sentimen-
taes dos philantropos bíblicos. O platónico empenho
de civilisar uma raça inferior vem dessa illusão anti-
ga. . . O indio domesticado vem a valer menos, porque,
sem ganhar nada em capacidade, perdeu na natureza
esthetica da liberdade bravia e selvagem. Melhor lhe
fora morrer independente, do que prolongar uma exis-
tência artificial que não pôde impedir o curso das leis
de uma natureza sem piedade». (95)
(93) — Entre as accusações que nesta parte faz ao Padre Vieira,
diz Lisboa (pag. 441) que elle até suggeriu a idéa de que o go-
verno á sua custa mandasse buscar escravos africanos; mas não
considerou que o Padre com esse alvitre prevenia maiores
abusos do trafico, mormente quando propunha essa medida por
uma só vez e limitando a duzentos o numero dos escravos a
remetter para todo o Maranhão.
(94) — Os colonos fazem todas as~concessões aos jesuitas, cora-
tanto que elles «não se intromettam em questões de liberdade
de indios.» (V. de Porto-Seguro, pags. 700, 724, 768 e 936).— O
que o Padre Vieira quer e reclama é que essas questões se re-
solvam de accordo com as leis e regulamentos expedidos peio
governo, ou sejam submettidos a uma «Junta das Missões» com
sede na corte, e nella tendo representação e voto os principaes
interessados.
(95)— Oliveira Martins, «O Brazil e as colónias portuguezas»,
pags. 145 e 149.
1%
A cpacljusão ê— que os descobridores da America
deveriam qecupaí-a, afugentando ou perseguindo os
n#luraes como féràs bravias, quando não' se reduzis-
sem ao préstimo automático e incondicional de bestas
de carga! Outro conceito, orientação; muito 'bp posta
foi a, dos missionários, e do acerto e cohérenciá
co v ni que nellá se houveram, como da fidelidade
que os indios lhe guardaram, dá testemunho ainda
Oliveira Martins: «Eiji 1757 o poder temporal das
missões foi supprimido: as aldeias dos indiòs trans^
formam-se em riflas de direito commum, separa-se
o espiritual do temporal. . i O plano jesuíta estava
destruído. . . Sc aos padres se retirava o poder. . .como
haviam de ellos converter o indio?As duas missões
eram inseparáveis; e nisto os jesuitas demonstra-
vam,— como em tudo, --um conhecimento da aíma
humana, nunca excedido, nem antes, nem depois. A *t
prova é que as aldeias se despovoaram, que os índios
regressaram á vida selvagem, fugiram de novo para o
sertão, quando em 1768 os seus padres foram expul-
sos do Brazil.» (96)
Registremos esta insuspeita homenagem; venha
eryibara o seu autor amesquinhal-a, articulando que
se os colonos nao vencessem, o Brazil seria como o
Para^uay, «a obra prima da coldnisação jesuíta, mise-
rável canto do mundo, povoado pór uma raça inferior,
que só perde os instinctos de fera sei vage ria, para
cahir num torpor de cretinismo idiota.» (97) -_**
Õòntra es§e conceito injuriosamente desdenhoso T
sobre as Reducções, protestava ha cinco anriós um
ilíustre viajante, Theodoro Child, escrevendo ô se-
guinte, em seu livro— As Republicas Hispano — ameri-
canas: «O Páraguay tentou ôs jesuitas, úue lá estabe-
leceram suas Redacções, ensaiando rieilaS um syste-
rriade còmmunismo cujos resultados fòrâiíi muiio
consideráveis rio ponto de vista da felicidade colecti-
va; Qs ^estabelecimentos dos jesuitas prosperaram du-
rante dois séculos, depois foi a oraem expulsa em
(97)-F
(96)-*Qbra citada, pag. 77.
-Pag. 76.
127.
1765, e quando os architectos commúriístas àKandònà-
ram o bello monumento em que os indígenas guâra-
nys haviam aprendido os elementos de uma civilisaçíío
quasi idyllica, o monumento cahiu em ruinàs, e paiz
e população declinaram rapidamente.» (98)
A voz imparcial do estrangeiro nao convence? Fale
a de um compatriota eminente, a quem 6 povo brasi-
leiro, pela iniciativa de seus homens de lettras, acaba
de erigir uma estatua, saudando-a como a brilhante e
gloriosa imagem do espirito americano. (99)
«Se a posição geographica excepcional dó Pàraguay
o entregou inerme ao despotismo de um Franciae de
dois Lopez, diz José de Alencar, os jesuítas não tem
culpa dessa degeneração de sua obra; elles foram ex-
pulsos, o seu poder foi abatido muito antes. Qúaes-
quer que sejam os erros commettidos por elles, espe-
cialmente no Pàraguay, ô preciso não esquecer que
esse paiz é talvez, pelo menos na America do Sul, a
única nacionalidade em grande parte formada pela
primitiva raça dos habitadores deste solo. A quem se
deve isto? -Aos jesuítas que lá puderam salvar da bar-
bárie dos aveniureiros aquelles restos do uma raça,
que foi destruída em todo o vasto continente america-
no.. Não é um serviço relevante prestado a humani-
dade? Os jesuítas cm todo o Brazil pugnaram sempre
pela liberdade da raça indígena, luctaram tenazmente
.contra a avareza dos colonos qu^ qn^mm escravisal-a.
A democracia q um pouco ingrata para com a Com-
panhia de Jesus, que, apoderando-se de uma das cida-
dellas que dominam o espirito publico, da escola, e
instruindo as massas, foi quem preparou o grande
movimento do século actual.» (100)
Esse é o testemunho soberano da historia, é o de-
poimento desinteressado e leal da verdade; o outro é
ainda o echo das paixões desenfreadas dos colonos
(98)— Obra citada, pag, 385.
9)— Discurso pronunciado por Coelho Netto, na cerimonia
da inauguração da estatua de José de Alencar, a 1.° de Maio do
corrente uiino.
(100)— Discurso proferido no Parlamento Brazileiro, em ses-
são de 28 de Maio de 1873.
128
que, insurgindo-se contra a pregação e os actos do
Padre Vieira a favor dos Índios, cobriam-no de caiu-
mnias e ultrages, e prendendo-o como a um vil mal-
feitor, baniam-no do Maranhão.
Mas a memoria do preclaro jesuíta vai á posterida-
de por entre bênçãos e applausos, emquanto o nome
de seus *aggressores, os mais declarados adversários
da Companhia não ousam relembraí-o, e a pátria só
não os esquece, porque pelo crime delles já não pode-
rá exclamar como a França pela voz de um dos seus
Immortaes: «Se, pensando em tudo que temos possu-
ído e em tudo quanto perdemos, não nos é possível ler
sem magua e saudade a chronica de nossas colónias,
poderemos ao menos lel-a sem remorsos. Nenhum
dos nossos reis fez gemer a alma de um Las-Casas;
nenhum dos nossos costumes suscitou insaciáveis de-
sejos de vingança no coração de up Montbars; nenhum ^
dos nossos governadores com a fúria da rapacidade
iaflammou a eloquência indignada de um Burke e um
Sheridan.» (101)
Não poderá dizer tanto a nação luzitana, mas pôde
replicar desaffrontada que sahiu de seu seio o Las-
Casas que representou destemido contra a deshuma-
nidade e a fereza, e foi um grito de Alho o que pediu
bálsamo á chaga, fazendo echoar sob as abobadas sa-
gradas, ante a Rainha Regente, os gemidos da raça
opprimida e a queixa enérgica e vibrante de seus de-
fensores aggravados. «Não se envergonhe já a barra t
de Argel,— pregava o Padre Vieira deante da corte em t
dia da Epiphania, — não se envergonhe a barra de Ar-
gel de que entrem por ella os sacerdotes de Christo
captivos e presos; poiso mesmo se viu em nossos dias
na barra de Lisboa. Gloriava-se o Tejo, quando nas
suas ribeiras se fabricavam e pelas correntes sahiam
as armadas conquistadoras do Império de Christo; hoje
envergonhado de tão affrontosa mudança devera tor-
nar atraz e ir-se esconder nas grutas de seu nasci-
mento. Não fora grande injustiça, não fora grande
mpiedade trazer os Magos a Christo e depuis entre-
(101) — Xavier Marmier, «En divers pays», pag. 293.
129
gal-os a Herodes? Pois sãp estas as culpas daquelles
pregadores de Christo; e esta é a causa porque se vê-
em tão .perseguidos. Querem qiie tragam os gentios
á fé e os entreguem á cubica; querem que tragam
as ovelhas ao rebanho e as entreguem ao cutellò; que-
rem que tragamos Magos a Christo e os entreguem
a Herodes. E porque encontramos esta sémrazão,
somos os desarrazoados; porque resistimos a esta
injustiça, somos es injustos; porque contradiremos a
esta impiedade, somos os ímpios, — Mas como 6 funda-
mento e base do reino de Portugal é a propagação da
fé e conversão das almas dos gentios, não só perde-
rão infallivelmente as suas todos aquelles sobre que
carrega esta obrigação, se descuidarem dellà; mas o
mesmo reino, tirada e perdida a base sobre qUe foi
fundado, fará naquellà conquista a ruina que. em tan-
tas outras tem experimentado.» (102)
Eis' como o illustre jesuíta Padre António Vieira
entendia a missão e os deveres dos descobridores do
Brazil, e advogaya a causa da liberdade dos Índios,
praticando christãmente o cosmopolitismo, e ensi-
nando que a terra estrangeira pôde também ser
amada como uma pátria !
Patrono dos pequenos e dos fracos, defensor dos
eondemnados e perseguidos, o Padre Vieira ô foi até
em frente a uma instituição poderosa e temida, que
se armara a um tempo com os anathemas da Egreja
e com as justiças do Estado, e, não podendo sek* des-
tituída por um sem o outro, serviu frequentemente
ao mais forte, exorbitou de setts fins, rasgando pór
mãos ungidas, e algures contra innocentes, o cânon
ecclesiastico que sagra a inviolabilidade da vidai
Vieira falou e agiu em soccorro dos judeus e chris-
tãos novos, pugnando esforçado péla reforma dos
estylos injustos e odiosos da inquisição portugueza,
para que adoptasse os que regiam a de Roma, onde
não havia distineções entre os christãos e viviam li-
vremente os judeus. (103)
Í 102)— «Sermão» pregado na Capella real no anno de 1662.
103)— Rabões e Propostas que o Padre Vieira apresentou em
favor dos christãos novos e judeus (Lisboa, pags. 56 e 63).
A. V. 17
130
Frustrado embora tão nobre empenho, a sua ma-
Snitude moral, ã sua correcção christã avulta deantc
os séculos o mérito de Vieira, e glorifica a resigna-
ção e serenidade com que um dia, após longa estada
em um cárcere e as humilhações de um processo
que o inquinava de judaizante e blasphemo, com os
olhos cravados no grande Crucifixo pendente da pa-
rede, ouviu impassível a sentença. de sua condemna-
ção lavrada por esse pavoroso tribunal, onde os
jesuítas não compareceram nunca senão como victi-
mas, e o mais encarniçado inimigo da Companhia, o
famoso ministro de D. José I, quiz o odiento papel de
guarda e executor 1
Emprezas assim arriscadas e luctas renhidíssimas
parece deveriam consumir-lhe todo esse minuto mor-
tal que se chama— a vida — ; mas a sua actividade
assombrosa achava ainda monções de repartir-se por
vários outros cuidados do bem publico, revelando até
nos lazeres a sua intuição genial. Desfarte vemol-o
hoje empenhado em attrahir capitães para supprir as
necessidades e mobilisar as riquezas das futurosas
colónias, propondo e conseguindo a creação da Com-
panhia de Commercio, num plano que mais tarde
Colbert adoptaria para a França, e com resultados
tão promptos qúe, no dizer de Wamhagen, foi essa
instituição valiosíssimo elemento para se restaurar
Pernambuco. (104)
Logo após, desce attento ás conveniências da pro-
ducção agrícola, explorando a liberdade do solo bra-
sileiro, e ãnnuticiando minas verdadeiras á flor da
terra com a transplantação das arvores asiáticas de
mais alto preço; tão deveras interessado nessa ada-
ptação de espécies estimadas e exóticas, que lhe dava
prazer olhal-as a se enraizarem e crescerem, e já nos
fins da vida, escrevendo a um ex-governador da
Bahia, ainda o informava de que na quinta dos Pa-
dres a canella que elle deixara só em tronco era já
uma arvore desafogada e a pimenta subia pelas esta-
(104)— «Hist. do Brazil», 2o tomo, pag. 665.
131
cas, mas retardando os signaes promissores de
fructo. (105) r :
Aqui, elle ponderava a desvantagem e os riscos das
caravellas, presa fácil de qualquer inimigo, que mal
sabiam fugir, e insistia em que se traçasse outra bi-
tola para a construcção dos navios; fazendo-o tão
acertadamente que, diz um historiador portuguez
(106), a marinha mercante poude com isso transfor-
masse de improviso em poderosa marinha de guerra
e bater o hollandez. Além, vindo em auxilio do go-
verno exhausto de recursos para soccorrer a Bahia,
levantava um empréstimo de trezentos mil cruzados
sem outro, abono mais do que o de sua roupeta re-
mendada (107); como um século antes fizera o mais
celebre dos vice-reis da índia, D. João de Castro, em-
penhando as próprias barbas, para reedificar a for-
taleza de Diu. (108)
Um dia em 1668, secundava as solicitações do Pro-
curador do Brazil perante ás cortes reunidas, e o rei
deferia que nos cargos do estado que ahi vagassem
os filhos da terra fossem preferidos. Outra vez, di-
rigia-se ao duque de Cadaval, ao ex-governador Costa
Barreto e outras personagens, pedindo-lhes remediar
a extrema escassez de numerário que difficultava as
mínimas transacções nas colónias, e o governo da
metrópole providenciava, mandando montar casa de
moeda para cunhagem de dinheiro provincial na
Bahia (1694).
A cada ensejo, lavrando pareceres sobre questões
em que era consultado, ou explanando na cadeira
evangélica as verdades moraes e religiosas, o Padre
Vieira traçava sabias normas de governo, vulgarisava
os mais sãos princípios que podem fornrrar alicerce ás
instituições de um povo culto, e defendia as medidas,
ainda morosas e vexatórias, que fossem reclamadas
(105)— «Cartas de 28 de Janeiro de 1675 a Duarte de Macedo e
de B3 de Junho de 1683 a Roque da Costa Barrettd.
flOG) — Pinheiro Chagas, «Obra citada», pag. 126.
(107)— Carta ao Conde da Ericeira.
(108) — «Diccionario Popular», dirigido por Pinheiro Chagas
vol. 4o, pag. 191.
132
por justos motivos de ordem publica. "Deste modo,
na véspera da reunião das cortes em 164.2, pregando
em honra a Santo António, figura o santo compare-
cendo á asssembléa para tratar da salvação commum,
e propondo a votação dos impostos, com doutrinas e
preceitos que, segundo ubserya J. F. Lisboa (109),
revelavam já a luminosa intuição dos princípios da
sciencia económica e politica que hoje tem mais voga.
Numa dominga da quaresma, na capella real, lem-
brando o que era de costume pregar-se quando as cor-
tes eram mais*christâs ou os pregadores menos de corte,
procede a um exame de consciências, centrando no
assumpto, demonstra ao auditório os inconvenientes,
os riscos e os males da aceumulação de cargos.
«Quem sou eu? Isto se deve perguntar a si um minis-
tro oi} seja secular, ou seja ecçlesiastico. Eu sou um
desembargador do paço; sou um procurador da coroa;
sou um regedor da justiça; sou um conselheiro de
guerra; sou um presidente da camará; sou um secre-
tario de estado; sou um deputado; sou um governador;
sou um bispo, etc. Bem está, já temos oofficio; . . .mas
tendes um sô desses officios ou tendes muitos? Ha
sujeitos na nossa corte que teem logar em três ou qua-
tro tribunaes; que teem seis, que teem oito, que teem
dez officios. Este ministro universal, não pergunto
como vive nem quando vive; não pergunto como acode
a suas obrigações nem quando acode a ellas. Só
pergunto como se confessa?— Quando Deus deu
forma ao governo do mundo, poz no céo o sol e
a lua, e deu a cada um delles uma presidência:
ao sol a presidência do dia e á lua a presidência
da noite. E porque fez Deus esta repartição? Porven-
tura porque sé não queixasse a lua e as estrellas ? Não,
porque com o sol ninguém tinha competência nem
podia ter justa queixa. Pois, se o sol tão conhecida-
mente excedia a tudo quanto havia no céo, porque
não proveu Deus nelle ambas as presidências ? Porque
ninguém pode fazer bem dois officios, ainda que seja
o mesmo sol. mesmo sol, quando allumia um he-
(Í09)-Pag. 42.
133
mispherio, deixa o outro as escuras. E que haja de
haver homem com dez hemispherios ! E que cuide e
se cuide que em todoâ pode alluminar ! Não vos admi-
ro a capacidade do talento, a da consciência, sim.»
(110) r
Pregando nesta ciqade, na capella da Misericórdia
em dia da Visitação, a 2 de Julho de 1640, presente o
vice-rei, desenrolou <j sudário das misérias e abando-
no que iam pelo Estado, atacando a cenlralisação,
como não o fizera mjns afoitamente quem pugnasse
pelo regimen federativo e, como que, em raptos de
vidente, presentiu e saudou o dia duplamente glori-
oso de nossa emancipação politica: «Muito deu Per-
nambuco; muito deue dá hoje a Bahia, e nada se lo-
gra; porque o que sé tira do Brazil, o Brazil o dá,
- leva-o Portugal. Com terem tão pouco do ceo os que
isto fazem, temol-os retratados nas nuvens. Apparece
uma nuvem no meiodaquella bahia; lança uma manga
ao mar; vae sorvendo porocculto segredo da natureza
grande quantidade de agua; e depois que está bem
cheia, dá-lhe o vento e vae chover daqui a 30, daqui a
50 léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na
Bahia tomaste essa agua, se na Bahia te encheste
porque não choves também na Bahia? Se a tiraste de
nós, porque a não despendes comnoscofSe a rou-
baste aos nossos mares, porque não a restitues a nojs-
sos campos? Taes como isto são muitas vezes os mi-
nistros que vêem ao Brazil.
«Partem de Portugal estas nuvens, passam as cal-
mas da linha; e em chegando, (verbi gratia, a esta
Bahia,) não fazern mais que adquirir, ajuntar, encher-
se (por meios occultos, mas sabidos) e no cabo de três
ou quatro annos em vez de fertilisarem a nossa terra
corfiaagua que era nossa, abrem as azas ao vento e
vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid. E o mal
mais para sentir de todos é, que a agua que por lá
chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abun-
dância do mar, como noutro tempo, se não das lagri-
mas do miserável e dos suores do pobre, que não sei
(110) — «Sermfto» pregado na Capella Real em 1655.
134
como atura tanto a constância e fidelidade destes vassal-
los. Muitos trances destes tens padecido, desgraçado
Brazil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos
edificaram palácios com os pedaços de tuas ruínas,
muitos comem o seu pão ou o pão n&o seu, com o suor
do teu rosto: elles ricos, tu pobre; élles por ti vivendo
em prosperidades, tu por elles a risco de expirar. Mas
agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças. . .
tudo o que der a Bahia para a Bahia ha de ser, tudo o
que se tirar do Brazil, com o Brazil se hade gastar.»
Quando o evangelho diurno lhe deparou o texto —
si vis potes, — o eminente orador desdobrou-o em con-
siderações as mais dignas de se produzirem num
grémio de legisladores, evidenciando, contra a vanglo-
ria do lemma que o génio de Napoleão o Grande não
logrou fazer triumphar, a sensatez e o acerto da poli-
tica moderada e ordeira que saiba descortinar e não
deixe perder a boa opportunidade: — «O querer e
o poder, — disse elle, — se divididos são nada, juntos e
unidos são tudo. — O querer sem o poder é fraco; o
poder sem o querer é ocioso; e deste modo divididos
são nada. O querer com o poder é efficaz, o poder com
o auerer é activo, e deste modo juntos e unidos são
tudo. — Começando pelos maiores corpos políticos,
que são os reinos, qual é a causa de tantos se terem
perdido, de que apenas se conserva a memoria; e ou-
tros se verem tão arruinados e enfraquecidos, senão
o appetite desordenado e cego de quererem os reis
mais do que podem? Daqui se seguem as guerras e a
ambição de novas e temerárias empresas, como as de
Membro th; daqui as fabricas de edifícios magníficos e
insanos, como Babel; daaui a prodigalidade de exces-
sivas mercês, amontoando em um o que se tira a to-
dos; daqui as festas e jogos públicos mais que extra-
ordinários, sem outro fim que a falsa ostentação e
vaidade do que não ha, nem é. E quando as despesas
de tudo isto deveram sahir do que sobejasse nos the-
souros reaes; que será onde se vêem tiradas e espre-
midas todas do sangue, do suor, e das lagrimas dos
vassallos, carregados e consumidos com tributos so-
bre tributos, chorando qs naturaes para que se ale-
J>
135
grem os estranhos, é antecipàndo-se as exéquias á
pátria, por onde se lhe devera procurar asáude?^
Vejo que me estão dizendo os prezados de grande
coração, que este discurso quebra os espíritos e
acovarda os aninhos, para que não émprehendam
e façam o que é glande. Emprehendei e fazei
coisas grandes, mas dentro da esphera e proporção
do vosso poder porque fora delia não fareis nada.»
Ahi está, em conceitos simples e claros, a mais cri-
teriosa e justa sentença contra os povos pelas revo-
luções em que o impeto de demolir não se acompanhou,
em grau egual, do zelo e capacidade de fundar; e não
menos contra os governos pelas leis e reformas, cuja
largueza e superioridade de intuitos se frustraram com
a escassez ou incúria dos meios de execução. E' a
lição de todos os tampos, é a experiência de todos os
paizes; foi o erro da França que um publicista emi-
nente assignalava quando, com a lei do suffragio uni-
versal, o nivel moral da representação politica desceu
pela proponderançia do eleitorado incapaz. Lembra
o conto de Goethe, a que Maxime du Camp referiu-se
(111): 'o aprendiz de magia, senhor da palavra myste-
riosa que ia buscar a agua ao rio, profere-a na ausência
do mestre, e a agiia corre, a cisterna enche e trans-
borda, inunda-se a casa; cheio de terror, mas não sa-
bendo a palavra de contra-ordem que pode conter os
espíritos o represar a torrente, o temerário aprendiz
morre afogado. A lição da allegoria éa do eloquente
e sèntencioso discurso proferido ha mais dè dois
séculos pelo Padre Vieira na Sé de Lisboa.
Eis, Senhores, em pallido esboço, a personalidade
cívica daquelle que um eminente escriptor brazileiro
(Conselheiro Pereira da Silva) reputou «o mais fiel
representante do seu tempo, da nacionalidade, da
língua, da litteratura e até da politica de Portugal*
(111)— Discurso proferido na Academia Franceza a 28 de
Março de 1882.
136
(112), e que o foi, additaremos :nós, com orientação
tão superior e iniciativa tão adeantada a seu século,
que poderíamos chamal-o um corttemporaneo do futu-
ro e um precursor dos mais beneméritos estadistas e
reformadores modernos. A sua politica foi a politica
da paze do trabalho em cortes agitadas pelos ruídos
da guerra e pela corrente das conquistas; foi a politica
da persuasão e da liberdade de consciência em épocas
invadidas pelo terror e pela intolerância; foi a politica
da emancipação e da igualdade civil, ouando impera-
vam os preconceitos de raça e o erro aa imprescindi-
bilidade do escravo. Diplomata correcto e admirado,
elle soúbe-o ser; já calçando os cothurnos de chumba
medidos pela arte para demorar-lhes os passos (113),
já revestindo a envergadura da águia para os surtos
arrojados quando o ganho se prendia á occasião, e \
sempre fazendo capitular ou fugir o contendor na liça "*
das negociações.
Deante desse vulto colossal, qs críticos e historia-
dores, como que assombrados de tanta grandeza,
soffreram por vezes a tentação de representar com
elle o papel que no cortejo dos antigos triuraphadores
coube ao escravo que lhes recordava a sua condição
de mortaes. Nessa inglória tarefa extranharam como
sentimentos habituaes oqjue não foi mais do que des-
fallecimento passageiro, fizeram feição dominante do
caracter o que seria apenas a falha da natureza, e, ao
envez de imitarem a nobreza do velho julgador que não ^
se offendia das leves maculas, crivaram de tão graves
senões ô mérito de Vieira, que descel-o-iam á esteira
(112)— -Nacionalidade, iingua elitteratura de Portugal e Brazil,
pag. 312.
(113)— «Des talents donc; mais une cbaussure de plomb plutòt
que des ailes. D'abord, pour prévoir les conseauences d'un en-
gagement ou d'un traité; et ensuite pour éviter les dèfférends et
les pièges Mais èntendons nous bjen touchant la cbausure
de plomb. Elle ne consiste pas á faire fe minutieux qui fatigue,
ni Vindecis qui ne conclut jamais, ni le paresseux qui perd les
occasions. Elle a été mieux comprise par le poete, lorsqu'il a
dit: «Guarda quel che tu di E va piu lesto, e col calzar
dei plombo».
Audisio, «Diplomatie Ecclesiastique», Introduction.
137
das glorias as mais contestáveis, das virtudes mais
suspeitas; se no descomedimento do critico não se des-
vendasse a infidelidade e o erro do historiador; se ao
golpe violento que cavava a ruga ou imprimia a nódoa
á cffigie admirável, não succedesse togo, como a «m
impulso irresistivel, o toque do pincel a reviver o traço
desfigurado.
A todos esses é applicavel a resposta do insigne
sacerdote a seu contemporâneo, autor do Portugal
Restaurado: seus livros louvam-no com descréditos ou
desacreditam- no com louvores. (114)
Louva-o com descréditos odesacredita-o com louvo-
res o visconde de Porto Seguro, taxando-o de ahifoi-
cioso, indiscreto e immodesto; negando-lhe o mérito
da creação da Companhia do Commercio, porque o
l respectivo decreto não traz a sua assignatura (115),
^ e não duvidando responsabilisal-o pelas propostas
da cessão de Pernambuco á Hollanaa, quando nem
estas nem o chamado Papel Forte são por elle firma-
dos; e qualificando-o de politico sem tino pratico,
espirito visionário, nas próprias paginas da historia
em que memora ter o Padre Vieira «recommendado o
Brasil d Europa com o seu génio desenvolvido nos
embates da guerra e a sua embaixada officiosa na
Hollanda». (116)
Refuta-se por si próprio João Francisco Lisboa,
emprestando ao illustre jesuíta «uma ambição preco-
K ce, uma vaidade jactanciosa que reivindicava glorias
e perigos, requintes de dissimulação indignos de
homem tão eminente» (117); o, todavia, apurando
elle mesmo dos factos que o seu biographado «se
escusa de acceitar honrarias e títulos por não as-
sentarem em seu habito, mostra um desinteresse
tão completo em matéria de riquezas que até os
(114)— «Carta» do 18 do Agosto de 1-668, ao Comi e da Ericeira.
(115) — Na primeira edição da sna «Historia Geral doBrazil»,
tomo 2 o , secção XXXI II. Reeditando esse livro, o auetor suppri-
mm os tópicos que formulavam essa contestação; mas não disse
uma palavra em reparação da injustiça commettída.
. (116)— «Obra citada», pags. 655, 726 e 6P0.
(117)— «Vida do Padre António Vieira, pags. 11, 414, 223 e 150.
A. V. 18
138
provetitos licitou engeitava», e tão pouco se captiva
a respeitos humanos que ao próprio escriptor que
o julga neste século parece imprudente e ousado
na sua resistência a;osi colonos do Brazil e na attitude
sobranceira em que ouviu os interrogatórios e a sen-
tença "da inquisição 1 (118)
(11Ô)— «Obra citada», paçs. 154, 191, 445, 267, 466 e 470. O il-
lustre escriptor brazileiro, sob o influxo de certa prevenção
injusta accusou frequentemente a Vieira, sem razão. Na quês-,
tão do captiveiro dos índios, por exemplo, (pag: 431) diz que o
Padre «fez concessões em matéria que não as admittia, pois o
f>rinjipioda liberdade é absoluto»; mas, poucas paginas adeante
pag. 439), nota elle que «os espíritos absolutos se encontram a
largos séculos de distancia» e irmana com o missionário do
Maranhão o Deputado á Constituinte Franceza é/h 1790 que de-
clarava preferir a ruina de todas as colónias ao sacrifício de um
só principio! — Diz também (pag. 340) que em todo o curso da
vida de Vieira sempre o achou mais portuguez que jesuita, mais
amigo da pátria que da sua ordem»; e depois (á pag. 431) vem
denunciar que foi .o jesuita «quem planeou seriamente a intro-
ducção da escravatura africana, para que podesse a ç.qm panjjla
mais desimpedida de estorvos, exercitar um-i jurisdicção exclu-
siva sobre os Índios». — Com menta maliciosarriente a sal) ida
«sem caridade» (pag. 343) com que o Padre um dia respondeu
«cozessem» então os ministros o negocio que haviam despre-
zado por «cru» quando ellc o propuzera; e rebaixa-o a cortezão
incorrigível (pag. 317), porque «vergado ao pezo da regia des-
graça, pregou nas exéquias da Rainha, para não ficar muda a
solem nidade do. dia». — Verberou a linguagem e a conducta de
Vieira (pag. 127) ottribuindo-lhe haver dito que «ainda quando o
Brazil se desse de graça, era muito para duvidar se convinha
acceital-o, ficando com elle Portugal, alem da guerra de Cas-
tella, o encargo da de Hollanda». Entretanto, o que o Padre
escreveu em carta ao Marquez de Niza, em 11 de Março de
1646, foi que «era matéria muito digna de ponderação acceital-o
com os encargos da guerra com Hollanda, em tempu que tão
embaraçados os tinha a de Castella»; e tanto isso importava
quanto dizer que dal-o em taes condições era expol-o a ser
perdido logo depois. — Responsabilisa a Vieira como propagan-
dista de doutrinas extranhas e de moralidade equivoca (pag. 73),
porque pregou que «a bondade das obras está nos fins, e não
nos instrumentos; as obras de Deus todas são boas; os instru-
mentos de que se serve, estes, sim, podem ser bons e maus».
Lera menos attentamente e não ponderara esse trecho e o
contexto que o explica. Vieira accrescentava que «bons e maus
todos podem servir a Deus: os bons servem a Deus, os maus
serve-se Deus delles». («Sermão de S, Roque » pregado na Ca-
•139
Louva-o com descréditos e , desacredita-o com
louvores, refuta-se por si próprio Theophilo Braga,
desconhecendo espirito apostólico no Padre An-
pella Real em 164 Q. Não ha em taes conceitos nenhuma insi-
nuação de que os fins por si sós justifiquem os meios.
Tratava-se da creação da companhia do commercio, e o Padre
demonstrava não haver inconvenientes, senão vantagens, em
que nella fossem admittidos os chamados christãos novos e os
judeus, O dinheiro não é uma coisa má de st, mas indtfferente,
de tal modo que o seu uso é que pode fazer bem ou mal. A
interpretação que á citada phrase deu Lisboa e a censura que
faz levam à ; conclusão de que nas boas obras não se deve
acceitar jamais o concurso, ainda material, dos reputados maus
ou siquer suspeitos.— O primoroso escriptor condemna o jesuita
porque este disse ter extranhado a Sousa Coutinho a sua larga
i promessa aos hollandezes, e mais porque veiu dizel-o, quando
■^ o outro, ja havia trinta annos sepultado, não lh'o poderia re-
bater (pag. 128); mas o que é que faz J. F. Lisboa em três
quartas partes de seu livro, senão processar apaixonadamente a
Vieira, de quem já nem as cinzas, por desapparecidas, lhe
podem responder? A verdade, quando offendida, tem sempre o
seu reivindicador, que é as vezes ainda mais pequeno do que o
era David anto o gigante. Lisboa foi injusto, excessivamente e
inexplicavelmente injusto com o Padre Vieira, não só inter-
pretando mal tantas vezes o que o digno religioso intentou e
fez, mas até imputando-lhe o que elle não fez.
Discorrendo sobre as medidas tomadas pela Rainha Regente
para a entrega do governo a D. Affonso VI (pag. 223), affirma
que «o papel monitorio» contendo exprobrações severissimas,
j lido perante a corte, havia-o redigido o Padre Vieira, e não só
j£ o redigiu, mas o assignou, e como para chamar a si toda a
gloria e perigo da empreza, inserira estas palavras entre as que
havia de ler o secretario d'Estado: «Senhor, isto que tenho re-
ferido, o mais breve que pude, não é meu, nem em substancia,
nem ainda em palavras! — Eis, entretanto, em resumo, como
narra as occurencias o Conde da Ericeira, coevo do illustre je-
suíta, e insuspeito em semelhante defeza: Reuniu a Rainha em
Conselho os ministros e alguns nobres e ecclesiasticos, entre
os quaes o Padre Vieira, e consultou-os sobre os meios de
arrancar o Príncipe á influencia da gente indigna de que elle
se acompanhava e estimulal-o a corrigir-se de sua conducta
escandalosa. Foram de parecer que se prendesse e banisse
Conti e outros dissolutos e perniciosos companheiros do Prín-
cipe, e a este o Secretario d' Estado lesse em publico as rabões
de tal procedimento. O livro de Ericeira reproduz na integra o
alludido «papel monitorio», que não é mais do que uma expo-
sição respeitosa das justas queixas que subiam á presença da
Rainha, e em nome desta e do povo um appello aos mais
140
tonio Vieira porque trajou a secular na Hollanda
(119): mas registrando que «a sua vida de acção cou-
sumiu-se çm lutas do corte e fadigas de catechese;
condemnando de impatriotica e sem escrúpulos
nobres sentimentos que podem alentar a coração de um rei; e
conclue deste modo:
«Senhor, isto que tenho referido o mais brevemente que pud*,
não é meu na substancia, nem ainda nas palavras: é, como te-
nha dito, dos Ministros e dos vassallas, a que o zelo, a consciên-
cia, a honra e o deseja da saúde publica obrigou a representar
á Rainha, e são tudo cousas tão conformes ã razão e á justiça,
de que V. Maçeatade ó tão zeloso, que esperamos muito con-
fiadameute do iuízo de V. Magestade, da sua clemência e da incli-
nação, que todos conhecemos em V. Magestade para o melhor,
do muito que aborrece a lisonja, e estima a liberdade e inteireza
dos Ministras que nã3 só approve o que com tão boas conside-
rações está disposto, mas que conheça a igualdade e o socego
do seu Real animo, a boa tenção e o cordeal aífecto, com que
o aconselhou, e obrou o Reino por meio de tão grandes vassal-
los: assim o pedimos prostrados humilissimamente deante do
Real acatamento de V. Magestade.» (Ericeira, tomofc.opags.
471 a 477.) .
Portanto, em reparação, á verdade, seja expungida do livro
de J. F. Lisboa a pagina 223, em que elle tão provadamente fal-
tou ao mais comezinho respeito e justiça para com um morto
illustre por muitos títulos. O livrado insigne maranhense tem o
valor do testemunho prestado por um admirador que é ao mesmo
tempo um inimigo. A sua suspeição está confessada na pag. 199,
onde se lè: «A esoacez dos documentos, nestas discussões intes-
tina», é cousa quasi infallivel, quando se trata de jesuitas, que
sendo tão avezados a destruir, dissimular, adulterar, e mesmo
a inventar documentos, não se descuidariam de seu mister em
dissensões de cuja publicidade podesse resultar desar ou da
corporação, ou d'algum dos seus membros.» A derradeira pagi-
na dessa biographia do Padre Vieira é por assim dizer, a excu-
sa, a^enão a retractação do auctor. Diz assim: «Para que esse
homem extraordinário possa ficar mais bem conhecido, o seu
caracter e talentos se hão de apreciar Delo todo das suas acçõas
e escriptos, condensado em um painel mais resumido e cohe-
rente do que o soffrem as contrariedades de uma vida tão longa
e tão agitada. Esse quadro vamos nós agora esboçar, ja substan-
ciando o que deixamos escripto, ja accrescentando.»
A obra aqui promettida não se executou, como o declaram os
editares da que foi estampada.
(U9)_ O Padre Vieira vinha ao encontro deste reparo quando,
em sua carta de 12 de Janeiro de 1648 30 Marquez de Niza, di-
zia-lhe que «mais se lembrava do habito que professava que
desse que então vestia».
141
a sua diplomacia, quando consigna que sabe-se
pouco sobre o objectivo de suas missões (120);
e denunciando que a politica do eximia religioso
foi a da Momta, paru fechar o despiedado libteUo com
este honrosissimo pregão: «Plínio escrevendo aTacilo
dizia-lhe- «Felizes os que sabem praticar coisas dignas
de serem escriptas, ou escrever coisas dignas de se-
rem lidas». Tal ê a Característica do grande homenri.
Vieira possuiu esta, dupla i.M & .,i.:idadc». (121)
Quem desconhecerá a um novo o direito de honra.»
aquello que escroveu coisas dignas de serem lidas, e
se distinguiu por fejtos dignos de serem escriptos?
Justificada está, poifc, a celebração deste centenário,
e justificada por aquolle que náo a reputou merecedo-
ra da sympathia social, o presumiu amesquinhal-a,
chamando-a^osía da Companhia. E' outro o vosso jul-
gamento: rendeis justa homenagem a um vario que
não disputou posições nem recusou serviços e, devo-
tado igualmente á religião ea pátria, elevou-as ornais
alto que é dado á acção prodigiosa de um génio, e
mereceu de uma e outra um reconhecimento illimi-
tado e perenne. «0 ideal que deve ter o cidadão, dizia
em recinto nobre como este e em solemnidadade aná-
loga o ministro da instrucção e dos cultos em França,
Bourgeois,— o ideal, que deve ter um cidadão é um
ideal de actividade generosa c fecunda. homem deve
desenvolver cm si todas as forças de sua inteiligencia
e da sua vontade, viver da actividade a mais intensa,
e, de accordo com a lei de todos os seres, esforçar-se
por augmentar a quantidade de vida que lhe coube
em legado. Mas este acerescimo de energia é para os
menos favorecidos que o adquirimos, é por elles que
devemos despendel-o; e a porção de nós mesmos que
assim damos aos outros, aos que nos amam,, a nossa
(120)— Ainda isso é um testemunho honroso que rende ao Pa-
dre Vieira, comprovando a sua discrição co.mo diplomata.
(121)— PÍutarcho Portuguez (pag. 48), «Esboço biographico do
Padre António Vieira», por Tueophilo Braga. — E\ com ligeiras
alterações e omissões, uma reproducção desse estudo a «carta»
3ue o mesmo escríptor endereçou ao «Jornal do Commercio»
o Rio de Janeiro, e foi ahi publicada nos dias 8 e 15 de Março
do corrente an.no»
142
família, á nossa cidade, á nossa pátria, à sociedade
inteira, essa é que é o padrão de nosso mérito, e,
quando a morte. nos colhe em suas azas, é o peso va-
lioso que deixamos nas conchas da balança. Ôs con-
quistadores enchem ó mundo com ò estrépito de suas
armas; seus nomes duram algum tempo na memoria
dos homens, objecto de admiração e de terror; vem
depois o olvido. Ha immortalidade mais certa e mais
elevada: é a dos que são bons e são úteis». (122)
Essa é a do Padre António Vieira, que a simples re-
cordação de seu nome attestaria, se ã vossa festa não
a proclamasse de um modo tão solemne. Homens de
lettras, vós recolhestes o espolio preciosíssimo do gé-
nio, inventariado também por um sábio, reunindo ca-
bedaes os mais variados e thesouros inestimáveis,
desde a chave leve e subtil para abrir ás luzes da ins- A
trucção o cérebro mal conformado e inculto do indio,
até as peças massiças e primorosas de finíssimo lavor
que desafia a admiração dos mais peritos mestres da
arte. Humens de crenças, conduzidos por um guia es-
clarecido, seguistes o luminoso trajecto do eloquente
e zeloso propagador do Evangelho, brandindo o facho
da fé e semeando as messes do bem desde os paços
reaes até a choça miserável do bravio aborígene. Ho-
mens de acção, vistes agora em tela pobre e vulgar,
traçado com respeito e amor, mas sem as cores bri-
lhantes com que a oratória os realça, o quadro dos ^
teitos illustres, a resenha dos commettimentos herói- ?
cos, das pugnas valorosas, e das campanhas longas
e arriscadas que o batalhador da liberdade, da paz e
do progresso arrostou, leal e desinteressado, ao ser-
viço da pátria.
A nobre instituição que promoveu estas commemo-
rações elevou-se ainda mais, e, galgando, á voz de
seu digno chefe, a mais alta culminância, abrangeu o
largo horisonte, reviu em seu conjuncto a obra trípli-
ce, a utilidade múltipla, a virtude integral do varão
eminente. Como a alma de um povo não é só o nume-
ro e a labutação dos habitantes que se albergam no
(122)— Discurso*pronunciado na Sorbonna em Agosto de 1891.
143
torrão natal; é também a tradição dos que nelle vive-
ram; a lição e o exemplo daquelles que desbravaram
o campo e construíram o solar, é-a estreita união dos
vivos com os mortos, estabelecendo a continuidade
da idéa de pátria; o Instituto Geographico e Histórico
resolveu a glorificação publica do eminente operário da
evangelisação e do progresso da terr^ brazileira, da-
quelle que seu brilhante orador, num arroubo de ins-
piração e a traços de artista primoroso, desenhou a
a gyrar no ceo pátrio, admirado e magestoso até su-
mir-se, como no firmamento o sol nos dias de seu
mais doirado arrebol e occaso mais iriado e esplen-
dente. A esse fim convocou os representantes de todas
as classes e aqui os tem reunido; não poderia, pois,
não quer excluir os dignos irmãos do insigne comme-
jnorado. Seria uma injuria á memoria daquelle que
declinou todas as honras e grandezas por não romper
o vinculo de sua profissão. Seria grave injustiça con-
tra os esforçados continuadores da missão do Padre
Vieira e do seu zelo pelo engrandecimento deste paiz,
onde o braço de ferro que os dispersou não poude
aniquilar os padrões immorredouros de sua actividade
operosa. Assim creio ser fiel intrepete dos vossos ca-
valheirosos sentimentos, affirmando que mesmo aqui
onde o jesuíta Vieira não vê presente o irmão, a eom-
memoraçãode seubi-centenario é também, pelo mais
legitimo dos tituloé, uma festa da egrégia Companhia;
e me calasse eu embora, o diriam todas as preciosas
relíquias que vós aqui reunistes para reviver a sua
lembrança; clamaj-o-ia cada pedra deste edifício que
foi a sua habitação, resurgiria o passado para procla-
mal-o. Representado por toda esta luzida galeria de
varões illustres, eu o vejo como que reanimar-se, e,
formando selecto e imponente cortejo, acompanhar-
vos neste elevado !e justo preito, coroar o benemérito
jesuíta, e dizer-lhq que o seu nome e o de seus coope-
radores foi sempre abençoado e querida, e, quando o
arbítrio de um déspota não trepidou em arrancal-os
de seus lares brazileiros, como em reparação do
attentado, como em eloquente e viva homenagem
ás- grandes causas servidas com dedicação infa-
144
tigavel e por assim dizer personificadas cm Vieira
e em seus suecessores, as portas de sua habitação de-
serta e sequestrada só se descerraram para dar entra-
da e oífereeer digno abrigo á sciencia eá caridade.
Ao fraternal testemunho dos mortos associa-se o
voto affectoioso dos vivos ainda pela voz dessas duas
forças bemfazejas e salvadoras que velam pelos desti-
nos do homem: a caridade e a sciencia, consorciadas
no appello que um duplo representante do illustre cor-
po docente e da nobre instituição hospitalar installa-
das no velho collegio dos jesuítas, dirigia em hora
solemne em prol da «conservação piedosa, reverente
e grata ao coração brazileiro das relíquias desses
grandes batalhadores do bemí> (123),' no recinto
assignalado gue foi o centro de suas operações
pacificas o civilisadoras e o campo sagrado em que
dormiram o somno derradeiro. -A
Os echos dessas manifestações espontâneas, unidos
aos da acclamação tocante em que vos congregais
nestes dias, sobem á região my^teriosa em que pai-
ram o.5 espíritos de eleição; aqqella grande alma se
inclina agradecida, revive e pulsa vigoroso o nobre
coração que impulsionou tantas causas humanitárias
e patrióticas; e a voz immortal do Padre António Viei-
ra, traduzindo os sentimentos generosose puros com
que outrora lembrava ao delegado da metrópole por-
tuguesa o amor e o patrocínio que p Brasil lhe merecia ,
e de seu governo bem inspirado confiava a prompta ^
resurreição da colónia decadente (124), hoje con-
cita os brios dos filhos da Bahia para que asse-
gurem vida pacifica, prospera, fecunda e gloriosa
á nação livre e altiva, á terra opulenta e abençoada,
à qual também elle, António Vieira, pelo segundo nas-
cimento depe as obrigações de pátria.
(O orador ê vicloriado com uma prolongadíssima e
unanime saloa de palmas.)
(12-1) — Discurso proferido pelo Dr. Pacifico Pereira, Mordomo
da Santa Casa da Misericórdia e Catliedratico da Escola de Me-
dicina, na sessão solemne da inauguração do novo Hospital, a
30 de Julho de 1893.
(121) — Carta de 9 de Setembro de 1673, ao Marquez das Minas.
PARTE II
A COMM EM ORAÇÃO DO CENTENÁRIO
A. V. 19
ANTÓNIO VIEIRA o
NA COMMEMORAÇAO DO SEU BI-CENTENARIO
Volvei o olhar aquém do sol que hoje irradia
E contemplae, na tela escura do passado,
O vulto colossal de um homem, levantado
Sobre a montanha altiva e belia da Bahia.
Seu corpo, já curvado ao peso do lidar,
Velha roupeta negra unicamente cobre;
Ao peito um Crucifixo — a venera mais nobre
Que o serviço do bem pôde condecorar.
Movem -se os lábios seus ao fluxo impetuoso
Da eloquência christã que pasma as multidões;
A fronte larga e branca, em gesto magestoso,
Tem-na erguida p'ra o céo, bebendo inspirações.
Em torno delle, a matta; em cima, o firmamento,
Onde o sol espadana o brilho prateado;
Em redor o gentio, o seu gentio amado,
Que lhe escuta a palavra e aprende o ensinamento.
Que quadro. . • Estou a vel-a, essa immortal figura,
Dominando a montanha, augusta e sobranceira,
Como estatua de luz, que a brenha brazileira
Envolve numa enorme e esplendida moldura.
Vieira ! ... eu nâo te sigo a esteira rutilante
Na culta Europa, em frente ás testas coroadas,
(*) Recitada após a Conferencia de 17 de Julho.
148
Nem te vou escutar nas cathedras doiradas
De Roma e de Lisboa o verbo triumphante.
NSo quero aquilatar-te o onro precioso
Da linguagem de escol na olympica opulência;
Nem ó perante o sol de tua intelligencia
Que eu agora me curvo, ó génio portentoso
Enumere-te a. historia os dotes singulares,
Grandeza colossal em tudo, homem — prodígio;
Vejam-te outros subir das honras ao fastígio
Eu quero apenas ver-te á sombra dos palmares.
Quero ver-te, encurtando os voos ao pensamento
Para falar de Deus ao Íncola tupy;
Quero que me deslumbre a luz que sae de ti (
Nesse humilde, sublime e heróico abaixamento. ^
Rei que desce do throno, abraça o vil plebeu,
Ou senta-se de par co' o triste proletário,
Foste tu, reclamando a cruz de missionário,
P'ra derramar na tabaa luz do go nio teu.
Meteoro que cae dos rútilos espaços
Dentro de escuro abysmo em que se perde e morre;
Caudal que esconde ao sol os seus possantes braços
E no seio da terra a sépultar-se corre,
Foste tu, desprezando o hymno da homenagem
Que te cantava aos pés a fama universal
Para arriscar o peito á frecha do selvagem
E abrir também caminho ao lábaro immortal!
Como és grande, ó Vieira, erguido na peanha
Do amor ao Bem, á Fé e á civilisação!
Amor que vem de Deus, e cuja força estranha
Ao martyrio e á morte arrasta o coração l
Como és bello, arrancando ao intimo do peito
O grito, a onda de luz, a hosanna á liberdade,
149
E, da raça infeliz proclamando o direito,
Como és bello a soffrer em nome da Verdade!
Bem hajas tu, heroe, prodígio, npostolo, santo,
De duas pátrias filho e de ambas lustre e gloria!
Bem haja o teu labor, eterno na memoria
Do brasileo paiz, por quem luctaste tanto !
Rebrilha o nome tetí, gravado na largueza
Da historia, que te aponta aos moços como exemplo!
Hão de dizel-o sempre o lar, a escola, o templo,
Onde quer que se fale a lingua portugueza!
Defensor da justiça, estrella da tribuna,
Látego ardente contra a tyrannia vil,
Tua gloria estará no cimo da columna
Que aos seus heroes erguer o povo do Brazil.
Tardos embora, vôm os justos preitos nossos
Cumprir o seu dever, sagrando-te um trophéo
E, se a sombra do ignoto esconde-nos teus ossos,
A luz de nosso amor será teu mausoléo !
Julho de 1897.
Amélia Rodrigues.
Padre António Vieira (*)
Pregador, ou S. Paulo ou Vieira
(D. Luis de Sousa, primaz das Hespanhas. )
Vinte decénios faz que aquella vóz potente
Deixou de reboar nos âmbitos do templo;
E quanto mais se engrossa aos annos a corrente,
Mais os triumphos seus podem servir de exemplo.
E f que naquelia voz havia tal grandeza
Que a orador mais nenhum a eclypsar será dado;
(*) Recitada após a Conferencia do dia 17 de Julho.
150
O génio innovador da língua portugueza,
Imprimiu-lhe um quilate e brilho desusado.
Vieira era a palavra em toda a magestade !
Enunciando a idéa, ou es ulpindo a imagem,
Convertia a tribuna em sólio da verdade,
E obtinha até dos reis pasmados vassallagem.
Naquella bocca de oiro a voz fez-se um prodígio;
Quer propagasse a fé, quer combatesse o crime,
Tomava do condor as azas no remigio
Pará se alar dos soes á região sublime.
Na tela a scintillar do vasto sermonario,
NSo pintou, fez viver homéricas figuras. I
O eleito do Sinai, o martyr do Calvário j
Desta^am-se d^lli como nas escripturas.
Seu altivo desdém pela riqueza e o fausto
O tornou singular na face do planeta;
Tinha sagrado a Deus a vida em holocausto, |
Via um manto de luz na frigida roupeta.
A sua vida foi um interminável brado
Dos fracos em favor: elle imitava o Christo.
NSo tendo a quem vencer no ardor do apostolado,
Vencia-se a si mesmo. . . Oh! homem nunca visto! v
>
Tutelando o direito em todos os sentidos,
Imperterrito, audaz, no transe mais acerbo,
Tornou-se o vingador dos índios opprimidos,
Sem mais armas que a penna e o raio de seu verbo.
A morte que sellou do padre o lábio augusto,
Escondendo na fossa o que era a cinza inerte,
Do púlpito nSo tira o levantado busto,
Que o tem por pedestal donde a eloquência verte.
Se te é dado transpor, ó grande jesuíta,
A distancia da terra á sideral morada,
151
Onde gosâs de Deus, como suprema dita,
A presença eternal aos justos reservada,
Vem, no mesmo logar, á sombra deste tecto,
Que alegre te acolheu inda creança um dia,
Para te ver depois, astro de luz repleto,
Brilhar entre os demais da excelsa companhia,
Que Loyola fundou, essa arvore pujante,
Que arraigada no chão da gloriosa Roma,
Sorriu dosvendavaes para, num dado instante, *
Todo o mundo abrigar sob a frondante coma,
O preito receber que a humanidade deve
Aos varões como tu, portento de seu seio,
Que embora na velhice acha a existência breve
Para espalhar o bem, ser da sciencia o esteio.
As honras que hoje tens, após duzentos annos,
No templo do saber mudado em capitólio,
Não conseguem lograr da terra os soberanos,
Que julgam do valor pelo que pesa um sólio.
Á Roma, á Hollanda, ao mar, á secular floresta,
Onde os yestigios teus o tempo não consome,
Possa um echo chegar da estrepitosa festa,
Na qual se funde inteira a gloria de teu nome.
Bahia, 1897.
João de Britto
Ao Padre António Vieira
NO SEU SEGUNDO CENTENÁRIO
Nâojoijsomente a espada do guerreiro
Que* dos séculos rompendo o nevoeiro
Do Capitólio na entrada se mostrou;
152
Nem das quinas a flamma dò estandarte
Deslumbrando as Nações em toda parte,
Que o progresso do Mundo conquistou I
Não foi da cemitarra o golpe agudo,
Que preparou do povo o novo escudo
E nas trevas do crime se envolveu I
Alvejada de golpes repetidos,
Ella sangrava em cima dos vencidos,
Como o abutre rasgando Prometheu !
Não foi somente a águia dos Romanos,
Que, levando o terror aos Musulmanos,
Nas Mesquitas pousava a triumphar;
E, lançando nos pontos do universo
As primeiras centelhas do progresso,
Via os círios sagrados d'ura altar I
Foi o verbo da Igreja omnipotente,
Que, salvando os humanos da torrente,
Do Evangelho nas folhas estampou
A virtude, a justiça, a caridade,
A força, convertida na humildade
Ante a Cruz, onde Christo descançou I
No centro dessa luta, o povo escravo,
Não via a mesma luz que olhava o bravo
No. vermelho luzir, tingindo o chão. . .
Foi preciso um martyrio ao novo sólio
E vôa a pomba branca ao Capitólio
Onde o ninho se faz da Redempção.
E os obreiros ^da lenda do Calvário,
Conquistando *do Mundo o itinerário
Que se via, brilhando sobre a Cruz,
Caminhavam, sublimes forasteiros,
Nos desertos enormes sobranceiros
Levando á toda terra a nova-luz !
k
153
Desponta o centenário de Vieira,
Festejado, na Athenas brazileira,
Da mocidade no paço Triumphal.
São passados dous séculos e a memoria
Deste sábio nos conta a sua historia
Que pertence ao Brazil e a Portugal I
Bahia, 17 de Julho de 1897.
Francisco Leiria.
Extracto do discurso do sr. cônsul de Portugal
proferido após a ultima conferencia
O * orador começou dizendo perceber ainda na sala
o vibrar do enthusiasmo, o resoar dos applausos ao
illustre orador precedente, os sons do hymno portu-
guez, o fulgurar de tantas luzes, o rescender de flores,
ò brilhar das galas e o sorrir das festas deixando por
toda a parte entrelaçadas a formosa bandeira auriver-
de e o histórico pendão das quinas. Disse ter ouvido
naquelle salão a voz eloquente de oradores muito
distinctos que haviam feito relembrar com primor as
i altas qualidades do grande génio de Vieira» um prin-
^ cipe da eloquência e das lettras portuguezas, e que
entre tantas louçanias, longe da sua pátria, distante,
tinha chegado a ter por momentos, como que num
doce sonho, a illusão fagueira das frescas brisas do
seu Tejo a oscular-lhe a fronte, e do seu dulcíssimo
pôr do sol do Heria a acalentar-lhe a alma. Mas era
ístô porque longe, bem longe da pátria, elle orador
sentia a pátria ali, pois circulava nas veias de todos o
mesmo sangue, batiam em todos os peitos corações
que eram irmãos do seu, e articulava cada garganta
as mesmas palavras que elle orador primeiro articu-
lara nos braços de sua mãe.
Era por isto que se reuniam ali portuguezes e bra-
zileiros com o mesmo pensamento, prestando aquella
A. v. 20
154
homenagem a Vieira, bem traduzindo a força dos
laços que uniam os dous povos, tão estreitamente
ligados que nem esse oceano tão vasto, profundo e
revoltoso que os separava, poderá nunca afrouxar.
. Que apesar de Vieira ser um amigo do Brazil e ter
escolhido para seu tumulo frio esta terra mais cálida,
elle orador era obrigado a considerar sempre, que
aquella festa é uma apotheose feita em terra extranha
a um vulto da sua pátria e que por isso não pudera
pôr de parte o direito de pedir a palavra para agra-
decer, em nome dn seu paiz e do seu governo, em
nome da republica das lettras lusitanas e da com-
missão que aquella hora celebrava também em Lisboa,
o mesmo centenário, em sou nome e no da colónia
portugueza ali largamente representada, aquellas ho-
menagens que tanto honravam o bom nome portu- i
guez. *
Agradecia muito reconhecido ao Instituto Geogra-
phico e Histórico da Bahia a iniciativa daquella
brilhante festa, á illustre commissão executiva os
seus valiosos esforços paia leval-a a effeiío com
tamanho esplendor, aos oradores que com tanto ta-
lento tinham salientado as geniaes qualidades do
grande portuguez as suas palavras, ás dignas auto- *
ridades orazileiras a honra da sua presença e a todos
aíquelles que patenteando a sua admiração por um
príncipe da eloquência, das lettras e da sciencia por-
ttigueza, aqui vieram, prestando ao mesmo tempo ^
um alto preito de estima e consideração por aquellas
cousas que constituem tradições e glorias da glande
nacionalidade qiie encerra no pequeno paiz do orador.
Esta phrase carecia ser justificada, mas explicava-se
porque a grandeza das nacionalidades estava na ele-
vação intellectual e moral do seu ser, no valor do seu
trabalho, na grande obra da civilisação, e não .na lar-
gueza do seu território; o que si tem havido naciona-
lidades que tenham dado bastante prova para a obra
desta civilisação que o velho oriente nos legou no
berço, Portugal foi uma delias.
Em seguida o orador expoz qual tinha sido o valor
do legado dos grandes povos para a civilisação, a
155
Grécia, Roma, a idade média* a Itália, AHea&ansha,
Inglaterra e França, concluindo por dizer que Portu^
gal tinha com as descobertas, as navegações e as coiv*
quistas trazido para o grémio dessa civilisação, para
a luz do christianismo metade do mundo que, era des-
conhecido e vivia envolto nas mais tenebrosas lendas.
Disse que a historia portugueza era rica dç per-
gaminhos de gloria que muito honravam o Brazil* ç
'que a amizade de Portugal e Brazil era um facto im-?
posto pela própria natureza que determinava uma
união inquebrantável expressa na raça, nas tradições,
no caracter, na língua, . . ,e que si permittido fosse
haquelle momento ao orador fazer uma comparação
imaginosa diria que essa união era tão intima, como
intima era a harmonia das cores das duas bandeiras
nacionaes.
/^ Disse que uma tinha o azul, o puro azul que era. a
côr do céo e a alvura immaculada das nuvens de pri-
mavera,. outra tinha o verde, o verde esmeraldino das
campinas férteis e o amarello fecundo das margaritas
estivaes. Que ambas estas cores se ligavam, numa
mesma e esbatida côr lá no horisonte distante como
na alma nos liga a affeição reciproca dos dois povos;
e que Analisando as suas palavras pedia licença para
dizer ali a brazileiros e portuguezes que deveriam
amar-se e estimar-se, como podiam e deviam amar-se
e estimar-se dous povos que durante séculos tiveram
-^ o mesmo nome e a mesma historia.
(O orador foi muito applaudido.)
A PROCISSÃO CÍVICA (•)
18 de Julho de 1897
As magnificas festas celebradas nesta capital, par v i
commemorar o segundo centenário do notável jesuíta
Padre António Vieira, tiveram brilhantíssimo remate
no dia 18 de Julho, por ser esse o dia em que se
completava a data do facto rememorado.
(*) Noticia extrahida do «Correio de Noticias» de 19 do Julho
. e do «Diário da Bahia» do dia 21.
156
A's 9 horas da manhã, com a assistência de uma
commissão do Instituto, composta dos Srs. Drs. José
Francisco da Silva Lima, Dr. Filinto Justiniano Fer-
reira Bastos, Dr. António Calmon du Pin e Almeida,
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães, Dr. Isaías de Car-
valho Santos, professor Austricliano Coelho, capitão
Francisco Gomes Ferreira Braga, e com o concurso
de senhoras e cavalheiros, que em avultadíssimo
numero alli se notavam, celebrou o venerando Sr.
arcebispo D. Jeronymo Thomé da Silva uma missa
na Cathedral, em intenção do Padre Vieira, com
assistência dos alumnos do seminário archiepiscopal,
membros do clero e religiosos franciscanos.
Finda a missa, procedeu S. Ex. Revma. á benção
da lapida commemorativa do centenário, que tinha
de ser collocadada na frontaria dessa egreja, que ô a i
do antigo Collegio dos Jesuítas, onde professara ^*
Vieira.
Concluída essa cerimonia, retirou-se o arcebispo
{>ara seu palácio, acompanhado da commissão do
nstituto.
Na praça da Piedade á essa hora começavam a
chegar incorporados e acompanhados de $eus pro-
fessorei e directores as escolas, collegios e acade-
mias, convidados para a procissão cívica annrfhciada.
Ahi compareceram egualmente S. Ex. o Sr. Dr.
governador do Estado, seus secretários e official de
gabinete, cônsul e vice-consul de Portugal, o presi-
sidente^e membros do Instituto, commissòes ao se-
nado e da camará dos deputados, intendente muni-
cipal, commissões de varias associações, membros
da colónia portugueza, imprensa, funccionarios e
representantes de todas as classes.
Na praça era considerável a agglomèração de povo,
que se apinhava para assistir á sahida do cortejo.
A's 10 1/2 da manhã, organisado o luzidissimo
préstito festivo, á que deu o mais vivo realce a pre-
sença de innumeras e .encantadoras creanças, e gentis
senhoras, fallou da janella central da secretaria do
157
interior o Dr. Octaviano Muniz Barretto, em cujo es-
pirito illustrado encontrada a commissáo executiva o
mais franco apoio para a realisação dessa festa.
O illustre funccionario, salientando o objectivo de
sua solicitação ao professorado, para secundar o pen-
samento da commissáo, produziu eloquente discurso,
ouvido no meio de geraes applausos.
A procissão desfilou, volteando o jardim da Pieda-.
de, peias ruas seguintes: Portão da Piedade, S. Pedro,
S. Bento, praça Castro Alves, rua de Palácio, praça
do mesmo nonie, ruas da Misericórdia, Collegio, lar-
go do Terreiro, vindo cpllocar-se em frente ao pavi-
lhão erguido ao lado direito da Cathedral, em cuja
fachada ia ser collocada & pedra.
O cortejo foi constituído dos alumnos dos seguintes
estabelecimentos:
^ Collegio Spencer, collegio S. Salvador, collegio
Septe de Septembro, com estandarte, collegio Car-
neiro, collegio Florêncio, collegio S. José, collegio
de meninas União, de Na£areth, collegio de meninas
Nossa Senhora da Piedade, collegio de meninas
Nossa Senhora da Boa-Ésperança, collegio de me-
ninas Oito de Dezembro, Gymnasiò da Bahia, acom-
panhado da congregação, Orphãos de S. Joaquim,
com sua banda, escola de Bellas-Artes com a sua
congregação e estandarte, Lyceu de Artes e Officios
com a respectiva direcção, escola Treze de Maio,
4^ escola annexa ao Instituto Normal, acompanhada de
seu professor o Sr. Argemiro Cavalcante, director
e professores desse estabelecimento, escola prima-
ria municipal da Rua do Paço do professor Barrei-
ros, l. a escola municipal de SanfAnna do professor
Leopoldo dos Reis, uma commissão de alunemos da
escola do professor Casimiro, escola particular de
SanfAnna da professora D. Maria Joanna Gomes de
Mello, Faculdade Livre de Direito com o seu estan-
darte, Escola Polytechnica, Escola de Medicina e
Pharmacia com o seu estandarte.
No cortejo tocaram alegres marchas as musicas do
regimento policial, 5.° de artilheria, Orphãos de S.
Joaquim e Philarmonicado Lyceu de Artes e Officios.
M
• Fechavam-no o Instituto Geographico e Histórico
junto ao qual vieram os Srs. Dr. governador do Es-
tado, cônsul e viee-coasul portuguez, associações,
imprensa, intendente municipal* membros da camará
e do senado, magistrados* homens de lettras, etc.
O Instituto Histórico e Geographico Brasileiro esta-
va representado n'esta soleranidade pelo Dr. Silva
Lima. A commissão nomeada compunha-se dos só-
cios Dr. Silva Lima, Dez. Montenegro e Barão do
Desterro.
Uma multidão do pessoas de todas as classes
acompanhou o préstito, que apresentava aspecto
deslumbrante.
No Terreiro, tomando logar no pavilhão as auto-
toridades e a mesa do Instituto, o presidente, mem-
bros da commissão executiva, e as redacções dos (
jarnaes, o Sr. Dr. Satyro de Oliveira Dias, vice-pre- -*
sidente do Instituto, proferiu entre os. applausos de
todos vibrante discurso de alevantado patriotismo, e
que era um ensinamento á mocidade a quem se di-
rigiu principalmente.
* Após S. Ex., seguiram-se os poetas Silva Sennae
Costa o Silva, e o académico Eutychio Maia, sendo
todos applaudidos.
Por ultimo o Sr. conselheiro Salvador Pires, pre-
sidente do Instituto, agradeceu ao publico o seu
comparecimento áquella festa da intelligencia.
Collocada pelo artista Sr. Domingos Silva, presi- ^
dente do Centro Operário, a pedra no logar talhado T
na fachada do mencionado templo, foram as escolas
•e o publico visitar a cella do Padre Vieira, onde fora
collocado o retrato do preclaro orador sagrado, o
salão da Faculdade, onde se realisaram as conferen-
cias e-estavam expostos obras e documentos sobre a
vida de inclyto sacerdote, e a antiga capella do pro-
vincial dos jesuítas no actual edifício da Faculdade.
A -visita a esses logares foi extraordinária, e pro-
longou-se até hora adiantada depois da cerimonia.
Áó-alto da pedra destaca-se o escudo do Insti-
159
tutOyCom o lemma Urbi et orbi, e abaixo a ins-
cripçfio:
A' Memoria do
étPctdze \£tntonio Uieira
Nascido em Lisboa em 6 de Fevereiro de 1 608
Fallecido neste Collegio em 18 de Julho de 1697
No 2° centenário da sua morte
Mandou collocar aqui esta lapida
O Instituto Geographico e Histórico da Bahia
Em 18 de Julho de 1897
A cella do Padre Vieira fica no extremo direito do
corredor térreo do Collegio entre a egreja e a Facul-
dade de Medicina. Termina, portanto, o edifício deste
lado, ficando como vértice de um dos seus ângulos, e
tem duas janellas, uma deita para o pateo da Facul-,
dade e a outra para o mar.
A forma da cella é quadrangular. Em meio ao lanço
de parede que enfrenta com esta janella já celebre,
está collocado o retrato de Vieira, trabalho a óleo,
destacado por um modesto docel formado de bandei-
ras portuguezas e com as cores symbolicas da nossa
nacionalidade. .
No plano inferior viam-se duas modestas colrçmnas-
encimadas por simples cestas com flores nrtiliciaes,
onde. estavam expostos exemplares da Cidade do
Salvador, Diário da Bahia e Jornal de Noticias com
artigos commemorativos.
A' tarde, por convite do Sr. Dr. Salgado, digno
cônsul <le Portugal neste Estado, visitou a cella do !
Padre Vieira, no antigo collegio dos Jesuítas, cres-
cido numero de portuguczes, que para alli se diri-
giram incorporados.
O Sr. cônsul proferiu ante o retrato de Vieira
expressivo discurso, em que salientando a obra ex-
traordinária daquelle grande príncipe da eloquência
e da litteratura do século XVII, externou o agradeci-
mento da colónia portugueza ao Instituto Geographi-
160
co, promotor da brilhante commemoração que se
celebra.
— O Terreiro apresentava aspecto festivo, ornado
de bandeiras e vistosas flammulas.
—O bello chafariz dessa praça jorrou agua abun-
dantemente durante toda a cerimonia.
—As redacções de jornaos e innumeros estabeleci-
mentos e edifícios particulares içaram a bandeira
nacional.
—Em todas as ruas por onde passou o préstito
viara-se asjanellas apinhadas de senhoras.
Discurso do Dr. Octaviano Muniz Barretto
Eu vos saúdo, amigos, e pela vossa presença vos
envio os meus sentimentos de louvor, applaudindo a
espontaneidade com que correspondestes ao convite,
aue tive o grande prazer em dirigir-vos, por intermé-
dio dos vossos dignos directores.
A estes, aos illustrados professores, egualmente
saúdo e agradeço, e perante todos dou testemunho
de minha satisfação.
Avaliae a intensidade do meu jubilo, ponderando que
eu divulgo, na romaria civica ao Padre António Vieira
uma das mais expressivas revelações do impulso vital,
que nos anima a um grande destino, entre os Estados
nossos co-irmãos.
Festa a que não concorrem paixões de outra na-
tureza, senão as que promanam do amor dedicado ás
lettras, numa homenagem fie elevação em justa apo-
theose, rendida sem caracter pessoal, mas como tri-
buto devido ao verdadeiro mérito, assignalado no
valor litterario e nos serviços do insigne luctador.
Muito ha que fazer para a mocidade, a qual, ao
envez de quedar-se deante dos descommedimentos,
de tpda ordem, por que o paiz -está passando, deve,
attenta ao meio que a envolve, concentrar-se na preoc-.
cupação do futuro, reunindo forças na imitação do
merecimento verdadeiro, traçando-se normas pela esr
A
^
161
cala superior dos cidadãos legitimamente bons, tra-
balhar, estudar e produzir, afim de que seja vantajo-
samente definido o nosso caracter de nacionalidade.
Vós, mocidade, varões do futuro, deveis considerar
quão insignificante é o homem, isolado dos seus fei-
tos. Um dos mais débeis animaes, o que seria delle,
depois de arredado da vida selvagem, sem a cultura
intellectual e moral, sujeito á perversidade aleitada
na tara hereditária das ambições, e á fragilidade
oriunda de sua contingência pbysica? !
A solução do problema está na actividade pro.d.u-
ctiva, philantropica, humanitária.
Ponderae que a sua menor acção lhe sobrevive, e
que o ser bom ou ser mau, o ser fecundo ou estéril
não pôde ser indiíferente para a sociedade.
A humanidade vive por millenarios, e deante ^este
tempo é um instante a vida de um homem, cujos fei-
tos, entretanto, duradouros, ás vezes immortaes, aqui
ficam prejudicando ou beneficiando.
O homem, compenetrando-se de si mesmo, deve
viver para a sociedade; que, de seu lado, lhe fica a
dever a consagração dos seus feitos, revivendo as suas
datas em solemnidades significativas.
À esta festa, pois, de caracter realmente social,
fazem bem os moços em concorrer, porque deste
modo assignalam a sua fé na divindade do trabalho;
o seu enthusiasmo nas demonstrações altivas e des-
interessadas; e da esperança que a todos, no momen-
to actual, devem infundir, dão uma das provas mais
expressivas, mais satisfactorias, mais vibrantes.
Ha pouco António Fratti, rico, instruído, na flor
dos aunos, estimado, deputado no Parlamento, um
dos oradores mais ouvidos, armado, portanto, dos
meios mais certeiros para desfructar uma existência
egoísta, deixou a Itália, sem dizer ao menos um adeus
aos amigos, e foi morrer como soldado da legião
garibaldina em Damoco, varado por uma bala turca.
Um grito de dôr e de admiração echoou no Parla-
mento e em todo o paiz, e honras pomposas lhe
foram celebradas em sua memoria em todas as ci-
À. V. 21
162
dadès, desde Forti até a Roumania e até a extrema
Sicília.
Este facto, estupendo em sua singeleza, mas nâo
excepcional em sua sinceridade, faz transluzir, mes-
mo aos olhos dos que não sabem o que é pátria, nem
civismo, que o fervor desinteressado pelas causas
collectivas e phylantropicas, tem raízes profundas no
coração da humanidade.
Dôante de taes exemplos e no meio destas festas,
levantae o vosso espirito á altura dos ideaes, afim de
manterdes em sua elevação magestosa o nome da
Bahia; terra' que tem nas entranhas as maiores ri-
quezas conhecidas, e na sua verde e fresca superfície
um povo intelligente, arrojado ,e capaz; cujos destinos
poderão. ser os mais ambicionáveis, confiados a esta
geração que tantas esperanças alimenta; que èm-
auanto nos horisontes aa pátria vislumbram-se duvi-
das, ameaças, agitações, ódios, temores, num mo-
vimento de sombras sinistras, sabe abstrahir-se
de tudo, para, acudindo ao appello patriótico do
Instituto Geographico, vir rememorar, rium tran-
sllmpto de fraternidade e de amor, o nome de um varão
illustre, cuja fulgurante intelligencia glorificou as
nossas lettras, e a cuja energia devem-se, em grande
parte, os fundamentos de nossa civilisação.
Daês assim conforto, alento aos que têm fé, con-
fundindo os incrédulos e os desanimados.
À prova ahi está, pujante de exhuberancia, no
vosso tão expressivo comparecimento a esta festa,
mais vossa do que mesmo de outros.
Nella celebram-se honras, no nome do Padre An-
tónio Vieira, ao talento fecundo, cultivado e útil, ao
culto do dever, ao amor da pátria, ao desinteresse
pelo bem commum, a ambição da felicidade dos ho-
mens e dos povos: e vós sois aqui a semente destas
mesmas virtudes. Por isso eu vos applaudo. Vós sois
mais: o sacrifício de nossas virentes esperanças de
que ellas se confirmem entre nós, e continuem a
fructificar. Por isso eu vos exalto.
Vós sois, ainda como Vieira, o génio, o valor, o
altruísmo que são os deuses desta solemnidade; e
w
■■ ! ■■■ *t i w * » > wyj^f
que, se acaso não estiverem reuuidos em una» só, Q&tão
ahi espalhados em vossas cabeças e em vossos CAPa-
çõqs, e que hão de abrir os nossos horisontes, $té
que delles se despenhem, como realidades palpitan-
tes, as divinas promessas da democracia. Por isso
eu vos sublimo.
Bahia, 18 de Julhc de 1897.— Dr. Octaviano Mu-
niz Barretto.
Discurso do Dr. Satyro Dias
NO ACTO DA COLLOCAÇÂO DA PEDRA COMMEMORATtVA
«Urbi et orbi»: á pátria, e
ao mando (Leramn <jo
escudo do «Instituto His-
tórico» da Bahia.)
Ha dois séculos, Senhores, dia por dia, hora por
hora, reboavam os sinos deste templo tocando a fi-
nados. Os echos desta cidade repetiam ao longe, em
larga vibração sonora, o chamamento plangente e
saudoso; e a Bahia enlutada, o seu clero, o seu go-
verno, o seu povo, apinhavam-se aqui, nesta mesma
praça, a quem a lisonja cortezan roubou o nome du-
plamente sagrado de Terreiro de Jesus, para levarem
á treva da sepultura o despojo mortal do Padre Antó-
nio Vieira Ravasco.
Imaginae o dó, o desconsolo, o pranto desatift&do
daquella geração, ao contemplar, como agora m$s*»o
estão vendo os olhos do meu espirito, numa vigorosa
evocação do passado, ao contemplar esse esquiíe que
passava, conduzindo aos segredos da eternidadft o
corpo mirrado e inerte do velho augusto, cuja figttça
luminosa dominara, e enchera de fama e renome* as
terras virgens da America e as velhas cortes da Eu-
ropa.
deAcabou-se o Padre Vieira, clamava essa. geração,
svairada pela sua dôr profunda e inconsolável; a&a-
bou-se o Padre Vieira 1 . . Como si a carne, e os osgps
164
*do grande jesuíta valessem mais que a terra, que se
abria a devoral-ós; como si esta faminta feroz o insa-
ciável, podesse também consumir a obra imperecível,
que aquelle cérebro de eleição legara á humanidade!
Não, Senhores, o Padre Vieira não acabou, nem
acabará jamais. Dorme, é certo, o somno eterno da
matéria debaixo deste mesmo chão da sua gloria, mas
despertará hoje para esta apotheose, e em cada sé-
culo se alevantará do seu tumulo, envolto nas sombras
mysticas das naves desta Cathedral, para sentir que
o coração da pátria brazileira, a quem tanto amou,
pulsa ainda e sempre, maravilhado e reconhecido, ao
calor das fulgurações do seu génio immortal.
Nascido em Portugal, nesse «jardim da Europa á
beira mar plantado», de onde, pouco mais de um sé-
culo antes, sahira a frota de Cabral para o acaso da
descoberta do Brazil, que este fidalgo navegador con-
quistara para a coroa de D. Manoel, e a cruz de Fr.
• Henrique para o diadema de Christo, o Padre Anto-
.nio Vieira deve á seiva deste solo feraz, ás scintilla-
ções magicas deste firmamento, á magestade incom-
parável da natureza americana, ás doçuras deste
clima, aos deslumbramentos miríficos deste sol tro-
pical, deve as inspirações do seu espirito, que agui
desabrochou e expandiu-se num raio de luz tão in-
tenso e poderoso, que sobrou a derramar claridades
immortaes sobre a terra do seu berço e sobre a pátria
de seu génio.
Providencia ou fatalidade, lei divina ou natural,
consoante o aprazimento de crentes ou scepticos; em
todo o caso, certamente, phenomeno extraordinário,
como tantos outros que escaparão sempre ás cogi-
tações dá sabedoria humana, tanto mais vaidosa,
quanto mais ignorante dos mysterios da vida e da
morte na terra e no céo, parece que este Padre, des-
tinado a encarnar, no século 17.°, a suprema potencia
intellectual de dois povos, devia ter o berço repartido,
entre ambos, porque, para sua grandiosa missão so-
cial e evangélica, precisava haurir de um o sangue da
velha e intemerata raça lusitana, e do outro os su-
165
Mimes idéaes deste infinito azul, e ás energias indó-
mitas do aborígene americano.
Só assim, Senhores, podia este homem percorrer na
vida a trajectória de esplendor intellectual, que lhe
traçara a mão irreductivel do destino.
E foi uma existência cheia, e gloriosa e excepcional,
a deste Padre.
Attesta-o de modo irrefragavel a commemoração
solemnissima, que lhe promoveu o Instituto Histórico
da Bahia nesta semana de honra para as lettras ba-
hianas; confirmam-no as vozes de egual apothéose,
que neste mesmo instante parece trazer- nos, das
bandas do Tejo, a vaga do oceano, deste mesmo
oceano, de cuja fúria tantas vezes elle zombou, librado
nas azas da fé, e escudado na sua couraça de amor
pela pátria e pelo indio brazileiro.
A palheta de Braz do Amaral, o biographista
brilhante, esboçou-lhe o vulto, desde que abriu os
olhos de açuia ao scenario da vida, até que $e dei-
tou para dormir o somno derradeiro, ílluminado
pelos arrebóes da gloria, tal qual o sol se deita na
montanha ou no mar, por entre as nuvens do oiro
do poente em chammas cambiantes. O verbo magis-
tral de Ernesto Carneiro erigiu-lhe o pedestal de
summo pontífice da língua, em que falaram nossos
pães, e em que se perpetuará, com a historia da
nossa raça e civilisação o património sagrado do
nosso porvir. A palavra eloquente e imaginosa de
Elpidio Tapiranga arrastou-nos ás selvas maranhen-
ses, o grande theatro de suas luctas apostólicas em
prol do selvagem, contra a ignorância do próprio
indígena, mas principalmente contra a coDiça e
a perversidade do colono portuguez, que timbrava
•era reduzir o indio á besta-tera^ ou escravo. A alta
competência de Basílio Pereira, um verdadeiro
doutor da egreja catholica, digno dos seus tempos
heróicos, completou afinal o perfil do grande jesuí-
ta, do mestre da língua vernácula, do apostolo,
do orador incomparável, com o painel perfeito e
-acabado, em que avulta a figura genial do politi-
co e do diplomata.
166
Que me resta, pois, a mim, para dizer do Pa-
dre António Vieira, e porque subo a esta tribuna,
expondo a humildade da minha palavra ao contraste
desta commemoração magestosa?
Porque não venho aqui para vós, mestres da historia
e da sciencia, senão para estes, para esta mocidade
das nossas academias, dos nossos collegios, das nos-
sas escolas, para estes filhos do nosso povo, aos quaes
mandou-me o Instituto confiar este mármore, que o
martello do operário vae em breve encravar na rocha
deste monumento christão, e que elle deseja se grave
no espirito e no coração destes jovens cidadãos, para
espelho, lição e ensinamento civico.
Sim. meus jovens amigos, esta pedra é vossa. Ella
vos recordará primeiro esta glorificação pacifica e
cidadã, serena e desapaixonada, em que todos os i
olhos se encontram sem lampejos de ódios ou ambi-
ções; em que todos os peitos "batem num isochronis-
mo patriótico, arfando de gozo nesta homenagem
impessoal prestada á soberania do génio.
Depois ella vos dirá que é desta sorte que a altiva
e generosa Bahia ensina a seus filhos o cathecismo
domocratico. Açoitada de todos os lados pelos ventos
da ironia ingrata e suspeitosa, calumniaaa na sua fé
republicana, embora esgotando o seu sangue na defe-
za da sua lei e do seu território; conturbado o seu ani-
mo varonil, não tanto pela desgraça que a afflige,
porque ella, a vencerá, quanto pela injustiça da
aggressão isolitae descommunal, ella a mãe adoptiva
de José Bonifácio, a pátria de Cayrú e Sabino Vieira,
de Ferreira França e Rio Branco, a heroina dos vo-
luntários da Pátria pousa sobranceira a fronte senho-
ril no brazão do seu passado, e offerece ao Brazil
este exemplo soberano de luz, de paz e de fraterni-
dade.
"E só então este mármore vos ensinará que o Padre
António Vieira não illuminou somente as abobadas
dos nossos templos com os fulgores de sua eloquência
de tamanho prodígio, que ousava approximar-se do
sólio de Deus, em inimitáveis apostrophes; nem .dei-
xou somente assignalada no seio das nossas mattas
16?
seculares a sua grande figura de bemfeitor da huma-
nidade no apostolado sublime da libertação do gentio.
Mais do que isto, se é possível, legou-nos elle a
cella em que viveu, e que ides a breve trecho visitar,
povoada das creações geniaes do seu espirito, e cheia
de seu profundo e sincero amor pelo Brazil e por esta
querida pátria bahiana; porque elle foi mais brazileiro
que lusitano, mais bahiano que portuguez, e merece
as honras de vidente e precursor da independência e
liberdade politica.
Quereis a prova? Eil-a:
Era a 2 de Julho de 1640. Reparae na coindidencia
providencial desta data bahiana. Celebrava-se na Mi-
sericórdia a festa da Visitação. Vieira sobe á tribuna
sagrada, e, desafiando a cólera do rei absoluto na
, metrópole, despede do púlpito estes raios de corajosa
■ eloquência nativista diante do vice-rei, ainda mais
absoluto na Bahia:
«Aconteceu a V, Ex. com o Brazil o que. a Christo
com Lazaro. Chamaram-no para curar um enfermo,
e quando chegou, foi-lhe necessário resuscitar um
morto. Morto está o Brazil, senhor, porque alguns
ministros de Sua Magestade não vem cá buscar nos-
so bem, vem cá buscar nossos bens. . . Muito deu em
seu tempo Pernambuco, muito deu e dá hoje a Bahia,
e nada se logra; porque o que se tira do Brazil, tira-se
ao Brazil; o. Brazil o dá, Portugal o leva ! . . Partem de
^L Portugal estas. nuvens, passam as calmarias da linho,
e em chegando a esta Bahia, em vez de fertilisarem a
nossa terra com a agua que era nossa, abrem as
azas ao vento, e vão chover a Lisboa e esperdiçar a
Madrid. Cá se padecem as fomes dos apertadíssi-
mos cercos, e se derrama o sangue, e lá se cortam
as galas e vestem as purpuras: cá se batem á viva
força, e se derrubam as muralhas, e lá se levantam
os palácios; cá se dão as tremendas batalhas, e lá se
vae ás comedias; cá se padecem as feridas e as curas
nos hospitaes, e lá, nas casas de prazer, se regam e
cheiram as flores».
E concluiu essa oração admirável com este repto
de incisiva ironia ao poderoso vice-rei:
168-
«Mas agora alegra-te, anima-tc, torna em ti: tudo
o que der a Bahia, para a Bahia ha de ser; tudo
o que se tirar do Brazil, com o Brazil se ha de
gastar d 1
A alma do patriarcha da nossa independência
não vibraria mais eloquentemente nos santos arrou-
bos do seu patriotismo.
Eis aqui, meus jovens concidadãos, quem foi o
Padre António Vieira Ra vasco.
Quando nós, os mais velhos, os vivos de hoje e
mortos de amanhã, nos houvermos recolhido áquelle
repouso fatal, de que se não torna mais; auando,
como no momento actual, surgirem nuvens ae con-
vulsão no horisonta da republica; quando da triste
vasa social ousarem alçar o collo os ódios e as
paixões, ameaçando as instituições, a honra e a in-
tegridade do Brazil; apontae a vossos filhos esta me-
moria, para que elles a transmittam ás outras gera-
ções, ensiilando-lhes a amar, como esse grande
cidadão amou, a Deus e a pátria, a paz e a fra-
ternidade brazileira !
(Applausos geraes).
Padre António Vieira
Quando o seu verbo de oiro irradiava,
A multidão attonita pasmava,
Ouvindo attentamente;
De sua bocca as phrases dulçurosas
Brotavam, como nos jardins as rosas
Brotam naturalmente.
Ninguém mais soube, envolto na sotaina,
Das grandes causas se envolver na faina,
Honrando a pátria sua
No púlpito— era maior do que um propheta;
Seus conceitos feriam como setta
A calumnia que estua.
169
Flammejavam-lhe os olhos quando abria
O cofre perolado da magia
Que tinha o seu (alento;
E assim cada palavra que seus lábios
Semeavam na terra, era para os sábios
Um sábio pensamento.
Diplomata — ninguém jamais venceu-lhe,
Foi o seu verbo sem rival que encheu-lhe
O nome de respeito.
Elle sabia, aos risos da alliança,
Brandir a penna como brande a lança
Um guerreiro perfeito.
Sábio— elle engastou no diadema
De príncipe do estylo a rara gemma
Da erudição brilhante;
Se fallava— seu verbo era um flamma,
E se escrevia — elle ateiava a chamma
Do génio a todo instante !
O génio é sempre assim: não morre nunca,
Muito embora lhe cravem garra adunca
Os séculos atrozes I
Cosmopolita — elle pertence ao mundo,
E no seu vão triumphal, profundo
Não teme os albatrozes.
Bahia, Julho de 1897.
Costa e Silva.
No bi-centenario^do Padre Vieira
I
Viestes collpcar, obreiros do progresso,
Aqui ao grande génio a pedra e dar ingresso
A toda a multidão. . .
A. V. 22
170
— Pyramide não é do legendário Egypto,
E nem pedaço algum de antigo aerolitho
Óahido da amplidão.
Da velha cathedral na lúcida fachada
Do sol um raio beija a pedra levantada
Em meio de ovações.
Poetas, lede vós, do ninho do talento,
Uma strophe de luz, um loiro pensamento
Ao berço de Camões.
Seu nome immorredoiro o tempo não apaga;
Nem vae alli bater a solitária vaga,
Bramindo de furor:
E* pagina de um livro aberta para o povo,
Que se inspira e seduz, num pensamento novo, 5
Com azas de condor.
Romeiros, levantae bem alto monumento
Ao génio, que subiu da terra ao firmamento
Por espiraes de luz.
Ainda não é tarde. A pedra está na estrada.
Romeiros, carregae-a ao toque da alvorada
Voltados para a cruz.
Levantae esse véo do tumulo do morto:
Elle já descansou. Além, do ethereo porto . ~t
Inda a voz lhe escutaes,
Dois séculos já lá vão que o bronze de seu verbo,
Refundido, tenaz, indómito, soberbo,
Tem brilhos immortaes.
II
Deixando o pátrio lar ainda bem creança,
Aqui, sob este céo, em sonhos de esperança,
Talhou o seu porvir;
Mas do naufrágio a vaga, horripilante e louca,
No mar da Parahyba abriu a larga bocca
Feroz p'ra o engolir,
171
Como de, ave bravia, a asa da procella
Arrebatara a náo; mas deslumbrante estrella
No horisonte accendeu:
Era o supremo olhar que a onda castigava. . .
E, attonito, o mar que, pasmo, recuava
De medo se escondeu.
Por uma inspiração uniu-se aos Jesuítas,
De que bebeu a luz em lettras de oiro escriptas-
Nas taboas de Moysés.
Sereno, elle entoou á musica dos ventos,
Na estante da floresta os grandes mandamentos,
Em coro aos Aymorés.
Diz-nos a tradição que um dia, ajoelhado,
Com os olhos no altar, achou-se illuminado. . .
Maravilha dos céos!
Lá dentro de seu craneo uma impressão sentira:
Foi o Anjo da Fé, que lhe accendeu a pyra
Quando elle orava a Deus.
Para levar perfume ás aras magestosas
Enchia as aebeis mãos de pétalas de rosas, ■
De lume os olhos seus.
Das grandes orações do púlpito vetusto
Fez o seu pedestal, onde eu fito o seu busto
Enlaçado em trophéos.
No alto mar da vida, abriu as brancas velas
A náo do seu saber ás lúcidas estrellas,
Das ondas ao vae-vem.
Quem poude se altear no estylo immorredoiro?
Quem mais enriqueceu a lingua em phrases de oiro
Do que elle? — Ninguém.
Erecto e varonil, o vulto soberano,
Oh I nunca deu a mão por cima do oceano
Para a Hollanda beijar:
Em prol dacátechese aos Índios mais selvagens,
Com a Cruz deu-lhes a fé, symbolicas imagens,
Relíquias e um altar.
172
Patriota, se fez]eximio diplomata,
Politico de fé na opinião sensata
pâtPor onde viajou.
Fez 'de Paris— degrao para subir aos astros,
De Roma — capitólio Enormes vivos rastros
De seu génio deixou.
Quebrando da inveja o dente envenenado,
Jamais deixou de ter seu nome aureolado,
Limpa aquella altivez,
Com que elle defendia a raça brazileira,
Contra a negra oppressão de uma horda aventureira,
Contra o povo hollandez.
Brazil e Portugal, no mais estreito abraço,
Olhando aberta em luz a solidão do espaço,
Falam do filho seu . . .
Tão sábio que elle foi ! em astro transformou-se,
Ao levantar seu nome o mundo ajoelhou-se,
Génio reviveu 1
Bahia, 18—7—97.
Silva Senna.
Exposição Bibliographica
. Dr. Director da Bibliotheca Publica enviou o
seguinte officio á commissão executiva:
«Bibliotheca publica da Bahia, 10 de Julho de
1897. — Tenho a honra de vos remetter junto a este
a relação das obras que a bibliotheca publica, por
ordem do Dr. secretario do interior, justiça e ins-
trucção publica expõe na justa commemoraçãu pro-
movida pelo patriótico Instituto Histórico da Bahia
ao 8 o centenário da morte do Padre Vieira; expo-
sição esta que tiveste a gentileza de acceitar para
abrilhantar a homenagem que no salão nobre da
1?3
Faculdade de Medicina pfrestaes à memoria de tão
illustre pregador e homehn de lettras.
A bibliotheca só remelte obras do mesmo Padre
Vieira, ou de auctores que delia s/? occuparam.
Aproveito a occasião para vos testemunhar os meus
respeitosos protestos de toda estima e conside-
ração.
Saúde e fraternidade. Illms. Exms. Srs. Dr. José
Francisco da Silva Lima.— Dr. Braz Hermenegildo do
Amaral. — Dr. Filinto Justiniano Ferreira Bastos. —
Dr. Joaquim dos Reis Magalhães. — Professor Tar-
quato Bahia da Silva Araújo.— Cónego Manfredo
Alves de Lima. — Dr. José Júlio de Calasans, dignís-
simos membros da commissão do Instituto Históri-
co da Bahia, incumbida da commemoração do cen-
tenário do Padre António Vieira. — Do bibliotheca-
rio José de Oliveira Campos.»
Relação das obras que foram remettidas pela Bi-
bliotheca Publica para serem expostas na comme-
moração do 2 o centenário da morte do Padre Abt
tonio Vieira.
1.° Um volume contendo diversos trabalhos do
padre António Vieira maíiuscriptos pela curiosida-
de do* padre Manoel Thomaz Machado.
2.° Bibliotheca Luzitana ppr Diogo Barbosa Ma-
chado em quatro grandes volumes, publicada em
Lisboa em 1 741 com todas as licenças necessárias.
3.° A mesma obra em duplicata.
4.° Vida do Apostólico padre António Vieira da
Companhia de Jesus, cnamado por antonomásia
o Grande — pelo padre André de Barros da Compa-
nhia de Jesus, publicada em Lisboa era 1746, coca
permissão dos Superiores e Privilegio Real.
5.° A mesma obra em duplicata.
6.° Historia de Portugal restaurado, por D. Luia
de Menezes Conde de Ericeira, editada em Lisboa
em 1679 em dous volumes.
7.° A mesma obra em duplicata.
&° Diccioaario da Lingua Portuguesa publicado
174
pela Academia Real de Lisboa em 1793 com licen-
ça da Real Mesa da Commissão Geral sobre o
exame e censura dos livros, onde vem o catalogo
dos Authores e Obras, que se levam e de que se
tomarão as autoridades, para a composição do Dic-
cionario da Lingua Portugueza.
9.° Gasparis Barloei Historia Mauntii Nassovioe
et comitis.
10. Synopsis annalium SocÍ6tatis Jesuin Lusitâ-
nia ab anno 1540 usque adannum 1725 authore R.
P. António Franco, societatis ejusdem Sacerdote
—editada em 1726.
11. Historia da America Portugueza por Sebas-
tião da Rocha Pitta, edição rara e primitiva, pu-
blicada em Lisboa em 1730.
12. A mesma obra, edição de 1880 em Lisboa.
13. A mesma obra, editada na Bahia por ordem
do Barão de Homem de Mello em 1878.
14. Cartas selectas do padre Vieira publicadas
pelo padre Roquete.
15. Cartas do padre Vieira publicadas em Lisboa
em 1735, obra que pertenceu a Francisco Agosti-
nho Gomes.
16. Cartas do padre António Vieira editadas em
Lisboa em 1735.
17. Arte de furtar do padre Vieira, edição de
1821.
18 Sermões do padre António Vieira, edição de
Lisboa de 1690.
19. Maria, Rosa Mystica, pelo padre Vieira, edi-
ção de Lisboa em 1686.
20. Xavier dormindo e Xavier acordado, dedi-
cada aos três príncipes, editada em Lisboa em
1694, pelo padre Vieira.
21. Carta apologética escripta em lingua caste 7
lhana pelo padre António Vieira, Ecco das vozes
saudosas, editada em Lisboa em 1757
22. A mesma obra em duplicata.
23. Obras completas do padre António Vieira,
em (14 volumes) editadas em Lisboa em 1855. •
24. Annaes Históricos do Estado do Maranhão,
175
por Bernardo Pereira de Berredo, edição de Lisboa
em 1749.
25. A mesma obrado mesmo autor em duplicata.
26. A mesma obra de Berredo, editada no Mara-
nhão em 1849.
27. Diccionario de Chauffepié, editado em Ams-
terdam em 1756 (volume 8').
28 Bibliotheca Souzana de Manoel Caetano de
Sousa, editada em Lisboa.
29. Diccionario Histórico de Biographia Universal,
editado em Paris no anno de 1827— (volume S— Z).
30. Bibliotheca Histórica de Portugal, por diversos
autores portuguezes e estrangeiros, editada em Lis-
boa no anno de 1801.
31. Agiologio Lusitano, por George Cardoso, edi-
tado em Lisboa em 1666 (volume 3*).
32. Biographia Universal antiga e moderna, por
uma sociedade de homens de lettras e sábios, edita-
da em Paris em. 1827 (volume 48).
33 Biographia Universal de homens celebres, por
F. X. Feller, editada em Paris em 1856.
34. Revista do Instituto Histórico do Rio de Janeiro,
anno de 1842.
35. Idem do anno de 1843.
36. Idem do anno de 1844.
37. Idem do anno de 1856.
38. Historia de Portugal, por Luiz Augusto Rebello
da Silva editada em Lisboa em 1871
39. P. Larousse, DiccionarioUniversal (Volume 15).
40. The Century Cyclopedia, grande obra em sete
volumes, editada em New- York em 1895 ( volume dos
nomes).
41. Diccionario Popular, publicado por Manoel
Pinheiro Chagas em 1884 (volume 13).
42. Diccionario de Biographia, por Luiz Gregoire,
editado em Paris em 1871.
43. Diccionario Geral de Biographia, por Ch. De-
zobery, editado em Paris em 1869.
44. Diccionario Portuguez de Farias, publicado no
Rio de Janeiro no anno de 1861.
w
45. Historia do Brazil, por Francisco Solano Con-
stâncio, publicada em Paris em 1839.
46. Accioli, Memorias históricas e Politicas da
Bahia, tomo 1°, editada na Bahia em 1835.
47. Diccionario Bibliogr4phico Portuguez, por In-
nocencio Francisco da , Silva, editado em Lisboa em
1858, tomo I o da obra é l q do supplemento.
48. Historyof Brazil by Robert Southey, editada
em Londres em 1817 (volume 2* 1 ).
49. A mesma obra em poptuguez (volume 4 o ).
50. Anno Histórico, Diccionario Portuguez, no-
ticia abreviada das pessoas grandes e cousas notá-
veis de Portugal, por Francisco de Santa Maria, edi-
tado em Lisboa em 171,4.
51. L'Univers, grande obra de Ferdinand Denis,
volume sobre o Brazil, editado em Paris em 1837. H.
52. Parallelos de Príncipes e Varões Illustres, por.
Francisco Soares Toscano, comparando o padre
Viera com Cieero, orador romano, editados em
Lisboa em 1733.
53. Ephemerides Nacio^iaes do Dr. Teixeira de
Mello, publicadas no Rio de Janeiro em 1881.
54. Vida do padre António Vieira, p>or André de
Barros, edição publicada Aa typographia do Diário
da Bahia, quando era administrador Firmino Thomaz
de Aauino em 1837. Offerecida ao arcebispo D. Ro-
mualdo António de Seixas f -^
55. O Chrysostomo Portiguez ou o Padre António
Vieira, pelo padre Antopio Honorati, obra em
quatro volumes editada ejn Lisboa em 1879.
56. Obras de João Francjiscó Lisboa, volume qua
traz a vida do padre Vieira, editada- no Maranhão
em 1865.
57. Biographia UniversaJ Clássica, (volume R. Z),
editada em Paris em 1830.
58. Rebello da Silva, Varões Illustres.
59. Anno Biogra^hico Bhmleiro, por Joaquim Ma-
nuel de Macedo (volumes 2 e 3) editado no Rio de
Janeiro em 1876. • ,
60. Historia Geral do Brazil, pelo visconde de Poi to
177
Seguro, com o retrato do grande Vieira, editada no
Rio de Janeiro (2° volume.)
61. A escravidão, o clero e o abolicionismq, pelo
Dr. Luiz Anselmo da Fonseca, editada na Bahia
cm 1887.
62. Almanack da Bahia de 1881, por António Freire.
63. Cartas do padre Vieira, editadas pelo padre
Francisco António Martins em Lisboa, em 1746.
64. Chorographia e Historia do Brazil pelo Professor
António Alexandre Borges dos Reis, Bahia, 1894.
Relação das obras e outros objectos expostos
pelo Instituto Histórico e seus sócios:
Um retrato de padre Vieira, original do pintor Ve-
lasco, moldura de jacarandá com frisos dourados.
A cadeira, que a tradição diz ter sido da pregação
do mesmo padre Vieira na Bahia.
Três photographias da Quinta do Tanque (Láza-
ros; onde elle passou os últimos tempos de sua vida:
Memorias Históricas pelo coronel Accioli,l° volume,
com uma vista do antigo Collegio dos Jesuítas, ^es-
ta capital.
Manuscripto antigo contendo as peças principaes
do processo do padre Vieira perante o Tribunal do
Santo Officio em 1667 (Instituto).
O padre António Vieira np Pará — {Diário Offícial,
Belém, 1894, pelo coronel Alves da Cunha).:
Jornaes do Commercio de 8 e 15 de Março de 1897 —
Artigos de Theophilo Braga sobre o centenário.
Plutarcho Portuguez, com retrato, 1 volume.
Archivo Pittoresco, com retrato. (1808)
Vida do padre António Vieira por João Francisco
Lisboa, 1 vol. Rio, 1874.
Vida do padre António Vieira, reimpressa e dedi-
cada a D. Komualdo do Seixas, 1837, Bahia, 2 vols.
Historia do Futuro pelo padre Vieira, 1 volume,
Bahia, 1838.
A. V. 23
178
Diccionario Encyclopedico por Corrêa de Lacerda,
Lisboa, 1879, volume 2°.
Micellanea Histórico — Biographica pelo professor
Theodoro da Silva, Lisboa, 1877.
Historia Litteraria, cónego Fernandes Pinheiro,
volume 2.°
Historia do Brazil, Francisco Solano Constâncio,
volume 1.°
Chorographia Histórica, Mello Moraes, volume 4.°
Brazil Histórico, Mello Moraes, volume 2.°
Curso de Litteratura Portugueza e Brazileira, Sote-
ro dos Reis, volume 3 o .
Historia do Brazil, Robert Southey, volume 4°.
Datas e Factos para a historia do Ceará, Dr. G.
Studart, volume I o . ^4
Datas Celebres, José de Vasconcellos, Recife, 1872,
Oração fúnebre recitada nas exéquias do padre An-
tónio Vieira pelo padre D. Manoel Caetano de Souza
em Dezembro de 1697, em Lisboa.
Memoria histórica acerca do padre António Vieira
e das suas obras por D. Francisco Alexandre Lobo.
Anthologia Nacional por Fausto Barretto e Carlos
deLaet(1896).
Diccionario de Biographia e Historia, Dezobry et
Bochelet, 15.° volume.
Exposição Nacional, vol. 1, pag. 492. .^
Novo Diccionario da língua portugueza por Edu-
ardo de Faria, volume 2°, Lisboa, 1857.
A litteratura brazileira nos tempos coloniaes, Edu-
ardo Perié, Buenos-Ayres, 1885.
Vozes Saudosas da eloquência, do espirito, do zelo
e eminente sabodoria do padre António Vieira, pelo
padre André de Barros, Lisboa, 1736.
Diccionario Bibliographico Portuguez por Inno-
cencio da Silva, volume I o . Lisboa, 1858.
Diccionario Popular, por Pinheiro Chagas, volume
13.°, Lisboi, 1884.
Historia do Portugal Restaurado, Condo da Ericei-
ra, volume 2°, Lisboa, 1710.
179
Obras Clássicas do padre António Vieira, edição
da Empreza Litteraria Fluminense, 1885, 2 volumes.
O Chrysostomo Portuguez, compilação de seus
sermões, pelo padre António Honorati, Lisboa, 1878,
4 volumes.
Nacionalidade, lingua e litteratura de Portugal e
Brazil, por Pereira da Silva, Paris, 1884.
Historia-Geral do Brazil, visconde do Porto-Seguro,
Rio de Janeiro, 2. a edição, 2 volumes.
Quadro elementar das relações politicas e diplomá-
ticas de Portugal, visconde de Satarém, Paris, 1844.
Vida do padre António Vieira, por João Francisco
Lisboa, Maranhão, 1865, 1 volume.
Soror Margarida Ignacia. Apologia a favor do
padre António Vieira. Resposta ao que com o nome
de Crise escreveu contra elle a religiosa mexicana
Joanna Ignez da Cruz: Lisboa, 1717, 1 volume. (Este
opúsculo defende as doutrinas de Vieira num sermão
sobre a Eucharistia.)
César Cantú, Historia Universal, volume 15.
Historia do Brazil, por Silvio Roméro, Rio de Ja-
neiro, 1893.
Memorias para a Historia do Extincto Estado do
Maranhão, por Cândido Mendes, 2 vols. 1860 — 74.
Telegrammas
Ao Instituto foi dirigido o seguinte telegramma,
enviado pelo distincto sócio correspondente tenen-
te-coronel Raymundo Cyriaco Alves da Cunha:
«Belém, Pará, 12 de Julho de 1897:
Associo-me ineffavel prazer commemoração Padre
Vieira, eminente vulto histórico, de veneranda me-
moria. Aloés da Cunha.»
A Academia Cearense dirigiu ao illustre Sr. Dr.
Satyro de Oliveira Dias, vice-presidente do «Insti-
tuto Geographico e Histórico da Bahia» o seguin-
te despacho telegraphico de congratulação.
180
«Ceará, 18 de Julho de 1897.— Ao Dr. Satyro Dias
— Bahia. — A Academia Cearense associa-se ao In-
stituto Geographico e Histórico da Bahia», nas ho-
menagens hoje prestadas ao immortal missionário
dalbiapaba. — Thomaz Pompeu, presidente, — Guilher-
me Studart, secretario.»
O Instituto recebeu mais o seguinte telegram-
ma enviado pela deputação bahiana:
Rio, 19 de Julho de 1897.
«Parabéns brilhante festa centenário Padre Viei-
ra. — Arthur Rios. — Neica. — Adalberto. — Paranhos
Montenegro — Milton. — Castro Rebello. — Marcolino
Moura. — Paula Guimarães. — Manoel Caetano. — Ro-
drigues Lima. — Tolentino. — Seabra. — Jayme Villas-
boas. — Tourinho. — Torquato Moreira. — Monsenhor
Mourão, — Sodró. — Eduardo Ramos.»
TELEGRAMMA ENVIADO PARA O JORNAL DO COMMERCIO
Bahia (expedido ás 8 h. n. do dia 18).
Depois das conferencias realisadas no salão nobre
da Faculdade de Medicina desta capital sobre o
padre António Vieira, pelos Drs. Braz do Ama-
ral, Ernesto Carneiro, vigário Elpidio Tapiranga e
monsenhor Basílio Pereira, cujas conferencias le-
varam ao antigo collegio dos jesuítas tudo que a
Bahia tem de mais notável no governo, nas lettras,
nas sciencias, nas artes, na politica e nas outras
espheras da actividade humana, realisou-se hoje
a grande procissão cívica para a grande commemora-
ção do centenário do padre António Vieira.
A maioria dos collegios desta Capital, faculdades
superiores, diversas bandas de musica, o governa-
dor do Estado, senadores, deputados, magistrados,
imprensa, varias corporações, povo, tudo isto for-
mando o immenso préstito civico, talvez o mais im-
ponente que se tenha visto nesta terra, desfilou de-
Sois de ouvir a bella oração do Dr. Octaviano
luniz, justamente applaudida, da Praça da Pieda-
de, onde se organisou, para o antigo largo do Ter-
181
reiro, hoje 15 de Novembro, afim de assistir á collo-
caçãp da pedra commemorativa na fachada da Ca-
thedral, nessa mesma igreja onde brilhou e mor-
reu o padre António Vieira.
Era meio dia quando o préstito chegou ao Ter-
reiro. No coreto erguido para col!ocar-so a pedra
em logar previamente # designado tomaram assento
os Srs. Dr. governador do Estado, representantes
da imprensa, Dr. Satyro Dias, secretario do interior,
conselheiro Salvador Pires, presidente do Instituto,
Drs. Silva Lima, Filinto Bastos e outros, muitos se-
nadores e deputados.
Depois de ter sido collocada a pedra, falou o Dr.
Satyro Dias, como vice-presidente do Instituto. Seu
discurso foi sempre applaudido sendo o orador muito
felicitado. Fizeram-se ouvir os poetas Silva Senna
e Costa e Silva.
Em nome do Instituto, o conselheiro Salvador Pires
agradeceu a todos que prestaram concurso a essa
festa.
A cella do padre António Vieira tem sido muito vi-
sitada hoje, tornando-se muitas vezes impossível a
entrada pela grande quantidade de pessoas.
Sem exagero, póde-se calcular em 5.000 a 6.000
pessoas a multidão que tomou parte nesta comme-
ração».
TELEGRAMMA DO CORRESPONDENTE d\<0 PAIZ»
A commemoração do centenário do padre António
Vieira continua com brilhantismo.
A's 9 horas foi resada missa pelo arcebispo, que fez
a benção da lapida, sendo a cerimonia bastante con-
corrida.
A's 101/2 sahio da praça da Piedade a procissão cí-
vica, composta de cerca de 2,000 alumnos das aca-
demias, escolas superiores, collegios particulares, es-
colas municipaes de ambos os sexos, diversas bandas
militares e philarmonicas, principaes auctoridades
estadoaes, em direcção ao Instituto Geographico,
182
sendo digna de todos os elogios a commissão promo-
tora das festas.
Achava*se representada a imprensa local, repren-
sentantes da imprensa do norte e sul, inclusive «O
Pais», cônsul portuguez, commissões de associações
portuguezas e representantes de todas as classes,
formando um préstito nunca aqui visto egual.
A's 11 3/4, chegada a procissão ao Terreiro de Je-
sus, foi a lapida de mármore conduzida da nave da
Cathedral para um estrado levantado no grandioso
templo dos Jesuítas.
O Dr Satyro Dias, secretario do interior e vice-pre-
sidente do Instituto, proferio eloquente e patriótica
allocução, seguindo-se diversos oradores e inspira-
das poesias.
O presidente do Instituto encerrou a commemora- t
ção agradecendo a presença do selecto auditório, ^
superior de 4,000 pessoas.
Em seguida inaugurou-se a exposição das obras
do padre Vieira no salão da Faculdade de medicina,
pertencentes á bibliotheca publica.
Foi muito visitada a cella do padre Vieira.
Precedeu á sahida do préstito da praça da Piedade
eloquente allocução proferida pelo director da ins-
trucção publica, Dr. Octaviano Barretto.
TELEGRAMMA PARA A GAZETA DE NOTICIAS. v
Bfihia 18 de Julho de 1897:
Encerrou-se hontem a serie de conferencias sobre
o Padre António Vieira.
Foi extraordinária a concui rencia para ouvir mon-
senhor Dr. Basilio Pereira, que oceupou a attenção
do auditório por espaço de duas horas 6 meia, enca-
rando Vieira como diplomata e politico: o confe-
rente alçou-so á altura da reputação que gosa.
Monsenhor Basilio recebeo de todo o auditório as
manifestações de applauso e admiração por sua pro-
funda e variada illustração. Como nas conferencias
anteriores, estiveram presentes o governador e todo
183
o mundo official, além da representação selecta de
todas as classes sociaes.
Falou o cônsul portuguezem agradecimento; sendo
muito applaudido.
Hoje, ás 10 horas da manhã, na praça da Piedade,
formou-se o grande préstito cívico para solemnisar o
acto da collocação da lapida commemorativa na
fachada da cathedral, junto ao angulo do lado da
Faculdade de Medicina, antigo convento dos jesuítas.
Da janella central da secretaria do interior dirigiu
palavras á multidão o Dr. Octaviano Muniz, inspe-
ctor geral da instrucção publica. O discurso foi
vibrante e análogo ao assumpto, sendo o orador
bastante acclamado pelos ouvintes.
A's 11 horas destilou o préstito nesta ordem, em
direcção á praça 15 de Novembro, antiga Terreiro:
musica de policia, alumnos da escola annexá e seu
professor; alumnos da escola Treze de Maio com um
laço de fita ao peito, estandarte e seu director; alum-
nos da escola de Bellas Artes e seus professores;
alumnos do Collegio Florêncio e seu Director; colle-
gio União, de meninas e sua directora; collegio Car-
neiro e seu director; collegio S. José e seu director;
collegio Piedade, de meninas, directora e professoras;
musica do 5.° batalhão; Collegio S. Salvador e seu
director; collegio Spencer e seu director; musica
dos orphãos de S. Joaquim e alumnos do estabeleci-
mento; musica do Lyceu de Artes e Officios, alum-
nos, professores e direcção; reunidas as Faculdades
de Medicina e de Direito, alumnos da escola Polyte-
chnica, seguindo-se unidos os estandartes da faculda-
de medica e de Direito, marchanlo sob:* j uôtaudartus
os Drs. Pacifico Pereira, JosêOlyrnpio, director e vice-
director da faculdade medica, seguindo-se o corpo
docente da escola Polytechnica e seu director: o
governador do Estado, tendo á direita o conselheiro
Lopes de Vasconcellos, presidente do Tribunal de
Appellaçfio e revista, e á esquerda o cônsul portuguez;
commissão do Instituto Geographico, official de ga-
binete e ajudante de ordens do governador, a im-
prensa d'aqui e d'ahi, presidente do senado, senado-
1*4
res, ^deputados, magistrados e muitas outras com-
missões.
O préstito chegou ao Terreiro ao meio dia. Ao
lado da catbcdral, onde foi colíocada a lapida, esta-
va erguido um coreto coberto de bandeiras de varias
nacionalidades.
Occuparam o coreto o governador, conselheiro
Salvador, presidente do Instituto Histórico, Dr. Sa-
tyro Dias, vice-presidente do Instituto e secretario do
interior, cônsul portuguez, imprensa, alguns sena-
dores, Dr. Silva Lima, iniciador da idéa de comme-
moraçao ao padre Vieira, poetas Silva Senna, Costa
e Silva e mais alguns cavalheiros.
Conduziram a lapida para o coreto os Drs. Braz
do Amaral, Reis Magalhães. Filinto Bastos e Silva
Lima, Cónegos Hermelino Leão e Manfredo, conse- ±
lheiro João Torres e Capitão Francisco Gomes Fer- ^
reira Braga.
Em discurso cheio de ensinamento cívico discor-
reu o Dr. Satyro Dias, que foi muito applaudido e
felicitado ao terminar.
Recitaram poesias Costa o Silva e Silva Senna.
Colíocada a lapida em seu lagar, o Conselheiro
Salvador agradeceu a todos em nome do Instituto
Geographico o Histórico da Bahia. A pedra foi
benta pelo preclaro arcebispo D. Jerónimo, após
a missa que celebrou.
A capella e a cclla do padre Vieira serão expôs- -^
tas d visita publica hoje. A multidão que assistiu
& commomoração ascendia a mais de cinco mil
pessoas.
A IMPRENSA
O Centenário de Vieira
(Diário da Bahia)
O padre António Vieira, a grande individualidade
que ha £00 annos, no dia de hoje, cerrou nesta
terra os olhos & vida e ao trabalho incessante de
185
um apostolado fecundo, recebe na canonisação de
sua oora immorrecloura o mais legitimo dos preitos
que a humanidade pode render a um benemérito.
Esta sentença da posteridade, quando os grandio-
sos dotes do espirito de Vieira nào tivessem subju-
gado e vencido os ódios e a inveja que tantas vezes
lhe rugiram no caminho triumphante que percorreu
o intemerato apostolo christão, bastaria para reivin-
dicar, em nome da verdade histórica, a justiça que
alguns dos seus coevos lhe tentaram negar.
A historia, despertando do somno centenário esse
espirito, que encheu em seu século toda a vastidão
do predomínio da pátria de seu nascimento, vem fa-
zer a sagraçào suprema de seu nome, como o de um
de seus eleitos immortaes.
A Bahia, em cuja magestosa natureza seus olhos
de águia fitaram a grandeza de seu destino, sob cujo
céo sua alma se inspirou e se apaixonou pelo ideal
desse apostolado que honrou até o ultimo momento,
tazendo do Evangelho a clava invencível de seus
combates, paga-lhe hoje em bênçãos o precioso
acervo de benefícios que lhe legou com o desinte-
resse próprio dos espíritos superiores.
Sente-se que da poeira divina desse tumulo, de
que seu vulto irrompe á evocação da posteridade,
maravilhada e absorta ante a magnificência da obra
de sua palavra phenomenal, se côa uma como pul-
verisaçâo abundante de luz, que transforma a se-
pultura do missionário humilde num arco de tri-
umpho para todas as conquistas de sua arrojada
palavra.
Essa porção de creanças gentis que lhe atiram á
memoria braçadas de flores de um enthusiasmo que
não murcha, entre os hymnos de uma alegria que
não se apaga; essa plêiade de moços que se curvam
diante das manifestações de seu gonio, vem signifi-
car, em nome da civilisação e do bem, o seu reco-
nhecimento ao catechista das tribus brazileiras, que,
arrostando os perigos, vencendo às fadigas do corpo,
softVendo penúrias, tendo por leito Uma simples es-
teira de palha, foi levar ao seio virgem das florestas
A. V. 24
186
os raios da fé em que se inflammava, para trazer ao
trabalho e á civilisação almas que se voltassem para
o céo e braços que se voltassem para a terra.
Poderoso milagre da palavra esse, que, depois de
ter vertido nas almas ha dois séculos o estimulo do
bem, a fé no trabalho, o amor á \erdade, illuminan-
do as cabeças e ameigando os corações, alvoroça
uma geração inteira, que lhe perpetua o prestigio,
doirando-se em seus clarões, avigorando-se com a
polpa de seus fructos substanciosos.
Espirito immortal da justiça, tu, que accendes nas
arestas negras do erro eme ensombra os povos sem
fé a alampada da verdade que não se extingue; tu,
que acompanhaste em toda a sua peregrinação o
evangelisador intemerato, fazendo ainda mais forte,
ainda mais inquebrantável a sua austeridade, a sua ^
tenacidade, a sua serenidade de animo; tu, que o
ajudaste a transpor as serras e a percorrer as cha-
padas dos sertões desertos; tu, que o conduziste aos
triumphos e o alentaste nos revezes, para que nós o
vejamos a toda a luz de sua grandeza, abre esse
pórtico immortal que a morte lhe arqueou sobre a
cabeça laureada, para a gloria dos dois povos que
elle amou, a pátria de seu nascimento e a pátria de
sua intelligencia: — Portugal e Brazil — os dois poios
do seu amor, os dois extremos de sua dedicação,
os dois cantos do poema de sua vida fecundíssima.
(Diário de Noticias)
Ha dous séculos exhalava o derradeiro alento de
uma vida operosa, no retiro de uma cella, cercado
dos confortos da religião de que fora devotado
apostolo, o Padre António Vieira, um dos mais
proeminentes vultos de Portugal no século XVII.
Vestindo a roupeta negra da celebre ordem que
então refulgia pelas preclaras virtudes e notabilis-
simos triumphos de nossos filhos, elle alçou-se ás
elevadas alturas dos conselhos régios pelo seu pró-
prio merecimento, e cTelles desceu sem haver cies-
A
18*
merecido a fama que o circumdava comos ápplau-
sos dos contemporâneos.
Perlustrou todos os campos da actividade e saber
humano, deixando o seu nome ligado para sempre
á formosa lingua portugueza, que elle esmaltava
de bellezas peregrinas.
E ainda hoje, ha quarenta lustros de distancia,
e sem as asperesas da luta empenhada em volta
d'elle, a sua individualidade se destaca inteiriça,
para vir receber a sagração da posteridade.
Honra á Bahia e aos promotores do centenário.
(Jornal de Noticias)
De quantos vultos culminaram no segundo sé-
culo do regimen colonial, d'esta parte da Ame-
rica, nenhum talvez sobrelevou a individulidade do
Padre António Vieira, nascido portuguez, nutrido
aos seios ubertosos desta carinhosa «mater nutrix»,
que lhe guardou os despojos e lhe glorifica a me-
moria.
O eminente jesuíta, em razão da sua estrénua
capacidade, das múltiplas aptidões com que ella se
revelou, dos vários objectos a que teve applicação
durante uma longa existência solicitada por am*
bicões elevadas e nobres, conseguiu galgar na his-
toria daquelle século uma altura sufflciente para
aue ainda hoje o contemplem os olhos admirados
da gsração moderna, pasma de tanto saber e tama-
nha força.
E ó uma verdadeira constellação a gloria de Vi-
eira. Cada uma das espheras em aue empregou os
seus talentos e a sua virtude, brilna como o disco
de um astro, e como os próprios astros ellas apre-
sentam ás vezes pequenos pontos opacos, que toda-
via não deslustram o phenomenal esplendor desse
conjuncto...São as manchas do sol.
Si ha na sua carreira diplomática e na sua po-
litica a sombra do Papel Forte e do Parecer sobre
as cousas do Brasil, e as condições, ou antes con*
188
descendências, apuradas pela critica histórica no
seu procedimento em face da escravidão dos Índi-
os e negros, sombras aliás explicáveis pelo nivel
moral do tempo e a pressão dos interesses da
corte e da ordem a que servia o grande jesuíta,
ficam-lhe soberanos, indestructiveis, os méritos ex-
cepcionaes do catechistu abnegado, do orador sem
rival, do admirável minerador da língua, do in-
cansável servidor da pátria.
Os invios sertões brazileiros, as nossas praias
arenosas, os nossos rios invadeaveis guardam as pe-
gadas e a imagem dáquelle apostolo da caridade, que
ha duzentos annos affrontou. por ahi além, a flecha
ervada do selvagem, o rigor das intempéries e a
covardia sanguinária das feras, a pregar a lei do
Christo, a chamar para a luz da fé e da civilisação
os cegos e rudes que viviam na grosseira animalidade
da taba e da maftta virgem.
A tribuna dos nossos tempos ainda repete, como
echos longiquos, a voz do portentoso sermonista,
aquelle verbo inflammado e rutilante, ora incendido
na chamma das verdades evangélicas a doutrinar o
povo, ora inspirado nos divinos exemplos da cari-
dade, apostrophando o captiveiro:
«Oh! trato deshumano em que a mercancia são ho-
mens!» «Porventura esses homens não são nossos
irmãos?» «A natureza como mãe, desde o rei até o
escravo, a todos fez eguaes, a todos livres.»
Nem o burel da roupeta em que tantos outros se
amortalharam, morrendo para as cousas da terra,
suffocou em aquelle espirito os estos do patriotismo.
Por isso quando a Bahia atravessava aquella época
de resistência ás conquistas hollandezas, de armas
em punho sempre attenta á approximação dos inva-
sores, impávido, militante, mais parecendo um guer-
reiro cruzado que um padre evangelista, assomava
no púlpito a figura enérgica de Vieira, e traçava aos
olhos do povo, com tanto primor de artista quanto
fogo de patriota, aquelle estupendo quadro imaginá-
rio da occupação da cidade, onde ha passagens
dignas da tragedia eschyliana.
189
Mas ainda resta a sua obra escripta, esses thesou-
ros accumulados do idioma portuguez, esse vasto
sermonario, a que um dos seus maiores continuador
res na tradição liUeraria de Portugal chamou, com
admiração, «riquíssimos minérios do mais fino ouro
pelo que respeita & linguagem.»
E' a essa gloria, em que tem grande parte a Bahia,
como fecunda nutriz, que foi, do génio de Vieira; é a.
esse homem respeitado quer pelos seus pósteros,
quer pelos seus contemporâneos, o único aeante de
quem se refreou o génio satyrico de Gregório de
Mattos, seu emulo na capacidade, embora dissidente
na vocação; a esse insigne cidadão de duas pátrias é
que a Bahia tributa agora a veneração a que têm di-
reito os immortaes.
Justiça da posteridade! sede sempre a recompensa
dos que se elevam pelas próprias forças do espirito,
pelo trabalho, o saber, a intelligençia, a virtude.
Ha muitos annos, esta capital não presenciava so-
lemnidade tão bem organisada, tão engalanada das
pompas do talento e do concurso popular, como a
soberba apotheose que durante oito dias engrinal-
damos a memoriado illustre filho de duas pátrias.
Honra á Bahia, «mãe da intelligençia», pelo fausto
com cjue eternisou sua commemoraçao, a mais
grandiosa certamente de quantas tributadas, nq
mundo, por motivo d'esse bi-centenarip.
Honra ao Instituto Geographico e Histórico da
Bahia pelo êxito victorioso de sua idéa, valiosa-,
mente patrocinada pelo mérito dos conferenciadores,
pela dedicação da commissão executiva e pela soli-
dariedade do povo, affluindo respeitoso e avultado, .
em todas as cerimonias havidas.
(Cidade do Salvador)
Quizeramos empunhar hoje uma penna de ouro
para cantar com o povo bahiano o nome três vezes
aureolado do Padre António Vieira..
Quizeramos possuir o que o génio tem de mai§
itf>
vivo e sublime para que completas fossem hoje
nossas homenagens.
Quizeramos, emfim, ter á nossa disposição tudo
que a eloquência tem de admirável e encantador,
para, nas azas de uma ardente imaginação, fitar de
perto aquella águia de ouro, aquelle sol tão luminoso,
cujos raios atravessam dous séculos sem perder sua
limpidez eseu brilho.
O insigne Jesuíta, cujos feitos assombrosos a his-
toria registrou nas suas paginas mais gloriosas, acaba
de receber das gerações actuaes as honras de uma
legitima apotheose.
Sempre de todos admirado, já pelas suas virtudes
religiosas, já pelo seu patriotismo, umas vezes pelo
seu talento diplomático, outras vezes pelo génio po-
litico e sempre pela sua eloquência, que o aureolou — *,
com o principado da palavra— eil-o, depois de morto
ha dois séculos, vivo na memoria dos povos, accla-
mado por quantos no peito bata forte e vigoroso, o
sentimento da liberdade, louvado com generosidade
e com applausos pelos homens de lettras, querido atè
o enthusiasmo pelos seus irmãos, nos quaes também
refulgem singularmente os reflexos de sua immar-
cessivel glorin!
Sim, foram duzentos annos que atravessaram a
memoria doillustre morto; duzentos annos com as va-
riedades, as alternativas, as inconstancias e as des- 1
truições que sóe apresentar o tempo com sua es- ^
pada inhumana e implacável; mas o homem que
não foi senão um simples religioso, zombou destes
obstáculos, e hoje comparece no scenario da vida so-
cial cercado da maior grandeza.
Tal é o destino do génio: encarna-se na successão
dos séculos, e, assim como o sol, quanto mais ganha
o horisonte, depois de seu bello oriente, mais au-
gmenta èm fulgor, assim também elle, dia a dia, vai
assignalando com maiores glorias sua passagem lu-
minosa.
E ainda dizem que a Bahia é refractária ao pro-
gresso, que a Bahia se divorcia de seus deveres, que
$ Bahia é filha madrasta da Republica.
m
Pois a Bahia que se levanta, ettí meio de tão pro-
fundas agitações, para não esquecer um de seus
maiores bemfeitores, um dos mais importantes guer-
reiros da causa santa da sua civilisação, é digna de
suspeita?
Pois a Bahia que, sem olvidar seus mais graves
deveres e suas tremendas responsabilidades, que
sem afastar-se do caminho do patriotismo, entoa
hosannas ao insigne cultor da lingua pátria e derrama
flores sobre sua lousa preciosa, pode ser suspeita á
Republica, quando celebra com delírio e magnitude
uma das columnas brilhantes do edifício de suas
liberdades?
E' a primeira festa essencialmente litteraria que se
celebra na terra de Santa Cruz depois da proclamação
da republica. E' a primeira vez que, em pleno regimem
democrático, se congregam os homens de lettras
congraçados com a mocidade discente para honrar
o génio.
E esta primazia coube á Bahia, a Athenas brazilei-
leira.
Associando-nos ás homenagens que o patriótico
Instituto Histórico acaba de prestar ao primoroso
orador sagrado e ao mestre sem rival de nossa lin-
gua, reverentes curvamo-nos ante sua memoria, li-
cção preciosa aos presentes e ás gerações futuras.
Cónego Manfredo de Lima.
A Bahia não o viu nascer, mas foi a Bahia quem
lhe abriu, de par em par, as portas do Parthenon
das lettras, onde se sublimou nas sciencias; foi a
a Bahia quem lhe burillou o nobre espirito e o
formou na piedade; foi a Bahia que lhe offere-
ceu o terreno aptissimo para a sega do bem, em
que se salientou; foi na Bahia que encontrou o
campo vastíssimo em que empregou sua variada
actividade; foi ella o theatrode suas mais nobres
ç elevadas acções: suas selvas incultas, seus matta-
19S
gaes espessos, seus agros cerros, suas immensas
cordilheiras lhe serviram de tecto amoroso ou de
leito deleitoso; o bravo índio ou o civilisado íncola
lhe deram arrhas ás suas pregações.
Na Bahia não nasceu, mas na Bahia cresceu, na
Bahia formou-se. Na Bahia trabalhou, na Bahia go-
zou. Na Bahia pregou, na Bahia salvou; e, quando
mais não poude. na Bahia linou-se. Guarda, terra
eleita, os despojos sagrados deste preclaro varfiu.
Em teus celleiros litterarios alberga os prodigiosos
ensinamentos deste génio soberbo, inimitável. Flo-
restas virgens, nos murmúrios vagos de tua esver-
deada folhagem, dae guarida á sombra ao teu
missionário. Passarinhos dos bosques desferi os
cantares dos teus chilros mimosos em honra do com-
panheiro de tantos annos. ^
Terra minha muito amada, celebra com honra e
distínceâo a memoria do teu civilisador.
A. Machado.
(Correio de Noticias)
Ajuízo geral amplamente manifesto, a coramerao-
raçáo do bí-centenario do Padre António Vieira,
promovida pela iniciativa do nosso Instituto Geogra-
phico e Histórico, esteve um acontecimento na
altura dos créditos litterarios, scientiíicos e cívicos
da Bahia.
« A' proporção que se succediam os actos da ma-
gna sulemnidade, distribuídos por sessões litterarias
e terminadas por uma imponente procissão ante
cuja enorme representação, na pedra do sumptuoso
monumento de nossa crenças religiosas, so inscul-
piu o testemunho de homenagem publica rendida ao
grande cidadão, á medida que esses factos foram-se
succedendo, dir-se-hia que a Bahia senhoril ia to-
mando posse de si mesmo, e, alçada superior ás
lutas pequenas e opprobriosas em que a envolvem,
A
193
surgia aquella que por tanto tempo mereceu as
honras da hegemonia com que lhe cognominaram
de Athenas Brazileira.
Era a Bahia a tomar posse de si mesma, acudin-
do pelas múltiplas representações activas de seu
espirito litterano, scientifico, industrial e artístico
para dar mais um exemplo da superioridade de
animo e serenidade de altivez, da nobreza de senti-
mentos e critério de justiça, com que suas manifes-
tações se revestem de característico altruísmo e
notável sobranceria, de grandes ensinamentos e ade-
antada civilisação.
A Bahia fechou a commemoração do bi-centena-
rio do Padre António Vieira com uma festa na
altura da civilisação.
Dir-se-hia que foi o tempo lhe abrindo ensejo, bem
aproveitado, para que mostrasse, serena e varonil,
que sabe honrar as suas tradições democráticas
sem desvarios, faz justiça ao passado com bom senso,
e consciente resguarda o futuro zelando vigilante
pelo presente que é de acendrada fé republicana.
(Jornal do Commercio do Rio)
Passa hoje o centenário da morte, na Bahia, do
notabilissimo cultor da lingua portugueza, o famo-
so Padre António Vieira.
Nasceu em Lisboa esta surnmidade litteraria. Edu-
cado na escola clássica da sua época, dotado a um
tempo de superiores qualidades de escriptor e de
orador, o Padre António Vieira deixou de si im-
morredouro conceito, porque ninguém como elle,
na época em que nasceu, sabia manejar com maior
opulência e com mais aristocrático arreganho a
lingua primorosa de Camões.
No púlpito, a phrase sahiu-lhe dos lábios espon-
tânea, fácil, conceituosa, vivaz; no livro,, nas suas
Cartas, nos seus Sermões, na sua Historia do Futu-
A. V, 25
194
ro, a observação ligàva-se caprichosamente a um
estylo opulento e engalanado, de sorte que ainda
hojo o Padre António Vieira é modelo de oratória.
Foi jesuíta, e um dos mais illustres membros
desta vasta congregação.
A Bahia serviu-lhe de desterro, e alli morreu, sem
ter, na opinião dos historiadores, prestado ao seii
Í)aiz os serviços que seria licito esperar do seu
òrmidavel talento. Mas apezar desse senão, no que
todos os investigadores do passado são concordes,
é que o Padre António Vieira ergueu, com a sua
eloquência, um monumento primoroso á litteratura
do seu paiz. E, como homem de lettras, como estu-
dioso, o Padre António Vieira é ura dos mais por-
tentosos vultos da galeria portugueza.
(O Pais)
E' hoje o 2. centenário da morte do Padre Antó-
nio Vieira, que falleceu na cidade da Bahia a 18 de
Julho de 1697.
Foi um dos maiores talentos que Portugal tem
produzido; pregador eminente e escriptor emérito,
não foi ainda excedido na propriedade da phrase, e
no arrojo das descripções.
Passou grande parte da sua existência trabalhosa
no Brazil, que lhe deveu os mais assignalados ser-
viços. Caracter austero, probo e franco até á rudeza,
a autoridade do seu conselho influio muita vez nos
decretos do throno e nos destinos da colónia.
Para nós, brazileiros, honrar a sua memoria não
é somente dar um preito de admiração dos seus
grandes privilégios, é dever de reconhecimento aos
extraordinários serviços.
195
Padre Vieira
OFFERECIDO AO DR. SILVA LIMA
(Contribuição para a festa do centenário)
SOVETO
Debaixo da sotaina esfarrapada
Pulsou teu coração a vida inteira;
Mais brilhante que o sol era, Vieira,
Tua voz, tua palavra adamantada.
Portuguez deste á Pátria tão amada
Glorias, do berço á hora derradeira;
Ao Brazil, tua Pátria na carreira,
Foste a luz no cruzeiro constellada,
Davas o pão, matando a sede aos pobres,
Davas a luz, que entre as nações commanda
Davas a lei que soffreava os nobres,
Pequeno, forte, humilde, irmão do povo.
Tua palavra, só, venceu a Hollanda,
Teu nome é Portugal no mundo novo.
Bahia, Julho de 1897.
J. B. G. Cerne.
Padre António Vieira
Que vulto é esse grandioso e altivo,
Que do Brazil na historia tanto brilha?
Que para grandes feitos veio ao mundo,
E o caminho da gloria cedo trilha ?
Pregador primoroso, grão politico,
Da Egreja luminar e defensor
Dos indios brazileiros, em que algemas
De dura escravidão quizeram pôr I
196
Quem é esse que outr'ora nos livrou
De ficarmos um povo escravisado,
E com tanta eloquência doutrinou-nos,
Na lei santa de um Deus crucificado?
E' o grande portuguez, o heroe brasileo,
Do Evangelho eminente semeador,
O clássico rival do magno Épico,
De Portugal o máximo orador!
Padre António Vieira— eis o nome
No velho e novo mundo veneradol
Águia sublime, filho de Loyola,
Escrevendo ou falando, um inspirado!
Três séculos são passados! ainda vive,
Na memoria e no peito do Brazil,
O nome que immortal honra dous povos,
Mais alto do que estatua e mais gentil!
Emquanto este planeta que habitamos
Se mover a saudar o rei dos astros,
Do génio excelso do preclaro luso
Hão de luzir os fulgurantes rastros.
Vale seu nome uma epopeia rutila!
Hoje, porém, em doce orchestra echôa,
Em hymnos numerosos repetido,
Que ao seu bicentenário o mundo entoa!
Coroam tua fronte, lá na gloria,
Acções heróicas, tuas dignas filhas,
O vulto illustre, nobre e magestoso,
Que doBrazil na historia tanto brilha.
Flive.
197
O bicentenário da morte do Padre António Vieira
Escriptor, diplomata, missionário.,
Vivo elle está dos séculos no piosceniol
O tempo, das grandezas usurário,
Consome o corpo, mas não mata o génio!
O renascimento das lettras im Bahia
Não sabe-se qual foi a mais brilhante,
Nem a mais erudita conferencia . . .
Revela-se a Bahia, a cada instante,
Ninho de glorias, «Mae daintelligencial
Jornal de Noticias {Lulu Parola)
No bi-centenario do Padre António Vieira
Gloria da pátria lusa e da bahiana,
D'um justo preito te render se ufana
Nosso brio também;
Paladino que em prol da caridade,
Sacrificaste — ardente — a mocidade,
Na cruzada do bem 1
Quando echoava na floresta escura
Da tua bocca sacrosanta e pura
O verbo atroâdor,
O selvagem curvava-se tremendo
Ao veMe o vulto homérico, estupendo,
De evangelisador.
198
Mas que nobre missão em que te empenhas? !
O que procuram nas incultas brenhas
Os filhos de Jesus ? . . .
Apedraria — que deslumbra a vista?., .
A gloria, tão precária, da conquista ? . ;
O ouro que seduz ? . . .
Irão como o paulista bandeirante
Em busca do Eldorado fascinante
As mãos cheias colher
Inexgotavel, preciosa Veifr-^" '^ ;
Que a terra cuidadosa no seu seio
Sabe, avara, esconder?
• • • í '
Não, a cubica não te guia o passo,
Sem temer nem fadigas, nem cançaço
A' chuva exposto e ao sol
D'outra victoria vás colher as palmas
Purificando embrutecidas almas
Da crença no crisol 1
Terás por tecto — a abobada celeste,
Por trfbuna sagrada — o monte agreste,
Por templo — os alcantis,
Porém lá, como cá, um povo inteiro,
Civilisadoou rude brazileiro,
Curvando-te a cerviz.
Estatuário debastando a pedra,
Da rocha aonde apenas joio medra
Sabias arrancar
A creatura san, civilisada,
Que inda um dia talvez tosse levada
Pr'a cima d'um altar.
E' que esse verbo altivo e magestoso,
Rolando em catadupas, caudaloso,
Por entre os matagaes,
Ardente— como sol d'aquellas zonas,
Soberbo— como o curso do Amazonas,
Como o tapir— aud^z.
4
199
Da flauta canadense tinha encantos,
Qual fabuloso Orpheu sustava os cantos
Ferozes do tupy!
Da penedia pela rude escarpa
Era sonoro como as notas a harpa
Sublime de David.
Despertava em seu antro a fera brava,
Do valente guerreiro a enorme clava
Abatia a teus pés,
Partia os arcos, deshervava as settas,
E na doutrina simples dos ascetas
Confundia os pagés.
Do indígena inculto fez o crente,
Quebrou a ignorância — esta corrente
D'um eterno galé!
E da noite sombria d'esses craneos
Fez surgir os incêndios subtaneos
Da verdadeira fé !
Nunca se viu no púlpito um gigante,
Como tu, se elevar altisonante
Dominando escarcéus,
N'um arroubo sublime de insensato,
Qual outro Prometheu, intemerato,
A provocar os céus!
Ergues a voz e rola pelas naves
Como o incenso — em espiraes suavqs . ;
A musica dos sons!
Serena a tempestade, os aros tolda,
A tua voz é um protheu, se amolda
A forma que lhe impões.
Este auditório attento que lectrizas,
Oceano que agitas, tranquilisas,
Qual outro povo hebreu
Tua doutrina, teus conselhos sábios,
Moysés! — elle suspenso de teus lábios,
Ouve-te humilde e é teul
200
Se a soberba Castella o colo erguia
Ou se o batavo audaz tinha a ousadia
De querer dominar
Chamados pelas côrtos de Lisboa,
Diplomata sagaz junto a coroa
Achavas teu logar.
Alli, o teu engenho assaz fecundo,
Resolvia espantando todo o mundo
Intrincadas questões
Da politica ousado palinuro
Ensinando o caminho do futuro
A's novas gerações.
Junto dos reis teu gesto dominava,
A' tua augusta fronte circumdava ~^\
Uma aureola de luz!
Foi tua voz — o grito dos alarmas
Teu escudo — o burel, as tuas armas
—O evangelho e a cruz.
Não cabem n'uma estreita sepultura
Cinzas de quem attinge a estatura
Dos vultos collossaes;
Homens que como tu sobem tão alto
As raias do porvir tomam de assalto .
E tornam-se immortaes. ^\
Bahia, Julho 1897.
Dr. Manoel Brito.
201
O Padre António Vieira
COMMEMORANDO O SEGUNDO CENTENÁRIO DE SUA MORTE
(Ao Sr. Theophilo Braga)
« . . .Dir-se-ha que Deus está
hollandez ? . . . » — Sermão
pregado em 1640, na Bahia,
pelo bom successo das armas
de Portugal contra as de Hol-
landa.
Alto; magro; espectral; cozido na roupeta
Da morte; cruz ao p?ito e solidéo á fronte;
Livido a-barba hirsute:— outro Jehovah no «Monte»
Da cathedra troveja o Victor Hugo asceta.
Já não tem o sorriso, em lamina secreta,
Com que ao peixe-voador vasara o orgulho insonte;
Rompe-lhe a indignação em lavas de ignea fonte,
Cedendo Juvenal o látego ao propheta
Isaias.— E alli, n'um ímpeto tremendo,
Rouca a voz, largo o gesto, emphatico e estupendo,
Como um raio a estalar nas tenebras dos céus...
Contra o hollandez que affronta a «Cruz» a couce d'armas,
Não tendo em quem vingar seus Íntimos alarmas
— Polvo enorme do génio— elle estrangula Deus.
Rio— (1897.)
Generino dos Santos.
A 9 memoria de António Vieira
Firme, grave, de pé, na estreita cela,
De olhar prescrutador, nesse momento
Parecia uma eterna sentinella,
Estatua contemplando do firmamento.
A.v.
202
À seus olhos o mtmdo se revela
Grande e pequeno; mísero e opulento!
Ora— a rugir em gritos de procella,
Ora — a espalhar a luz do pensamento.
E elle, o collosso lusitano, altivo,
Vencendo o tempo audaz que o não consome
Sempre gigante e heroe, mas sempre esquivo,
Até na fria lousa em que se some
Mostra-se ao mundo inteiro redivivo
Transpondo os sec'los a deixar seu nome!
Rio,— Julho 1897.
Alexandre Fernandes.
-A
PARTE III
VIDA E OBRAS
DO
^adjre -A-ntonio Vieira
-i
VIEIRA E SUAS OBRAS
JUÍZO critico
Noticia biographica do Padre António Vieira
» adre António Vieira, um dos mais famosos va-
rões que produziu Portugal, nasceu na Cidade
de Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, e em 15 foi bapti-
sado na igreja Cathedral, em cuja pia recebera a
primeira graça o insigne Thaumaturgo Santo Antó-
nio. Logo na puerícia se admirou a perspicácia do
juizo, e sublimidade do talento, com que a natureza
prodigamente o dotara, respondendo com tão discreta
promptidão ao que se lhe perguntava, que eram ve-
neradas as suas respostas como sent t enciosos apo-
themas.
Na tenra idade de sete annos partiu com seus pães,
Christovão Vieira Ravasco e D. Maria de Azevedo
para a Bahia, capital da America Portugueza, onde,
obedecendo á divina vocação, desprezou heroicamente
o amor e casa paterna, ausentando-se furtivamente
delia para a Companhia de Jesus, em cuja sagrada
milícia, depois de repetidas instancias, foi alistado
em 5 de. Maio de 16.23, quando contava 15 annos;
fazendo a profissão solemne a 26 de Maio de 1634.
Desejoso de illustrar com o seu talento a religião
de que era filho, se prostrou devotamente na presença
de uma imagem da Virgem Santíssima, supplican-
2Ô6
do-lhe com fervorosas instancias o fizesse digno de
exercitar o ministério de orador Evangélico, e para
manifesto argumento do despacho desta supplica sen-
tiu, que se lhe dissipava repentinamente do entendi-
mento uma sombra, experimentando daquelle dia por
diante penetrar sem difficuldade os mysterios cias
sciencias mais profundas, que fielmente depositou no
precioso thesouro da sua memoria.
Como o seu engenho era agigantado, logo começou
a fruetificar ao tempo de florescer, escrevendo de de-
zesete annos as cartas annuaes do Brazil em a lingua
latina, com elegante estylo, dictando no seguinte
como mestre da primeira aos seus domésticos, as
tragedias de Soneca, eruditamente illustradas, e com-
pondo, de vinte, um Commentario Literal e Moral
sobre Josué e outro sobre os Cantares de Salomão, --4
em cinco sentidos.
Para se instruir nas sciencias escolásticas,, não teve
outro mestre mais que a si mesmo, compondo o
curso de Philosophia e Theologia, pelo qual aprendeu
estas faculdades, causando ao mesmo tempo inveja e
admiração aos maiores professores delias que dispu-
tasse, defendesse e arguisse com profunda subtileza
nas questões mais diffleeis, sem o soccorro de in-
strucçâo alheia, mas unicamente pela laboriosa appli-
cação do seu estudo. Admirados os superiores de que
nunca, sendo discípulo, fosse já mestre consummado, i
o elegeram com maduro conselho lente, esperando ^
que da sua escola sahissem mestres todos os seus dis-
cípulos; porém não teve effeito esta eleição por ser
obrigado a acompanhar D. Fernando Mascarenhas,
filho do Marquez de Montalvão, governador do Brazil,
quando, em nome daquelle Estado, veio dar obediência
ao Sereníssimo Rei D. João o IV, novamente elevado
ao throno de Portugal.
Tanto que chegou à Corte noanno de 1641, foi re-
cebido por este monarcha com singulares demonstra-
ções de affecto; e, certificado occultamente da sua*
profunda capacidade, não somente o elegeu seu
pregador, mas lhe commetteu negócios de gravíssimas
consequências, que administrou com igual pru-
207
dencia, que fidelidade, assim nas cortes de Paris e
Hollanda no anno de 1646 e 1647, como em Roma no
anno de 1650, escrevendo em todas estas negociações
doutíssimos tratados em obsequio do seu príncipe,
e zelando como verdadeiro portuguez os políticos in-
teresses desta monarchia contra as cavilosas máximas
das outras coroas.
Entre tão diversas nações por onde discorreu, deu
claros testemunhos da penetração do seu juizo,
adquirindo, com a lição dos livros mais raros que re-
volveu nas melhores bibliothecas e com o commercio
familiar dos professores de todo o género de sciencia,
tanta cópia de noticias, que era respeitado como orá-
culo da Sabedoria Christãe Politica. Com igual gloria
da Religião Catholica e credito da sua profunda
sciencia, convenceu em Amsterdam a Manasses Ben
Israel, o mais insigne Rabino da Sinagoga, e trium-
phou em Roma da impiedade de um atheista.
Não alcançou menor gloria nas continuas disputas
em que por varias vezes altercou com os mais doutos
hereges, que, com apparentes sophismas, queriam
rebater a solida efflcacia dos seus argumentos, con-
tando nesta litteraria campanha as victorias pelas
disputas, e os triumphos pelos combates. Soube per-
feitamente as línguas mais polidas da Europa, fa-
lando a italiana, franceza e hespanhola com proprie-
dade e elegância: principalmente foi insigne na
materna, explicando a sublimidade dos seus conceitos
e a fineza dos seus discursos com phrases : puras, e
termos próprios, sem mendigar vocábulos de idiomas
estranhos.
Foi o maior pregador do seu tempo, e o será com
inveja das outras nações em toda a posteridade, ve-
rificando em si a fabula de Hercules ír.illico, pois
com a torrente de sua auren. doquenciá attrahia
suavemente suspensa a attenção dos seus ouvintes.
Em Roma, pátria dos oradores mais famosos, se
venerou com profundo respeito a sublime facúndia
da sua lingua, e ao mesmo tempo que venerou a
memoria de Tullio, lhe diminuiu a gloria e sepultou
0. nome. Nesta grande corte, aonde chegou segunda
208
vez por ordem de el-rei D. Pedro II a 16 de Novem-
bro de 1669, pregou os cinco Discursos das pedras
de David na presença da celebre heroina a Serenís-
sima Rainha de Suécia, Christina Alexandra, que,
como outra Sabá, veio a admirar de longe a discreta
elegância deste Evangélico Salomão, sendo as
acclamações e applausos que mereceu desta prince-
za, como de todos os príncipes ecclesiasticos e secu-
lares da cabeça do mundo, pequeno brado á sua fama,
limitado premio ao seu talento.
Da oratória Ecclesiastica teve o principado, falan-
do o commum com singularidade, o semelhante sem
repetição, o vulgar com novidade, o sublime com
clareza e o humilde com decoro; sendo discreto sem
affectação, copioso sem redundância, e tão corrente
o estylo como nascido menos da arte, que da natu-
reza. Representou com tão viva energia, que eram
escusadas as palavras por serem eloquentes as
acções. Penetrou com profunda subtileza os myste-
rios mais occultos da Sagrada Escriptura, que toda
leu por diversas vezes, examinando as suas maiores
difficuldades >'om as luzes dos Santos P. P. e Sagra-
dos Interpretes, em que foi muito versado, particu-
larmente correndo a cortina aos Oráculos dos pro-
phetas para serem intelligiveis os seus vaticínios.
Em todas as sciencias foi eminente, sendo insigne
humanista, consummado rhetorico, e elegante poeta
vulgar e latino, subtil phylosopho, profundo theolo-
go, sublime escripturario, grande chronologo e
completamente douto na Historia Sagrada e profana.
Ornado de tantos dotes com que copiosamente o
enriquecera a divina liberalidade, nunca se desco-
briu no seu animo ornais leve signal de jactância,
antes recebendo notáveis honras e estimações de
muitos príncipes, assim naturaes como estranhos,
ijão foram poderosas para lhe alterarem a humilde
Condição do seu génio; de tal sorte que, escrevendo-
lhe em 12 de Setembro de 1680 o seu geral João
Paulo Oliva de estar eleito confessor da rainha de
Suécia, querendo esta heroina que fosse o seu dire-
ctor para alcançar uma coroa pela qual tinha dei-
A
2Q9
xado heroicamente tantas, se escusou com summa
modéstia de ministério tão honorifico.
Toda a sua ambição era da gloria divina, e não da
humana; deixando por ella a pátria e o declarado
affecto da magestade de el-reiD. João IV, partiu para
o Maranhão a procurar com indefesso trtxbalno a
cohversão daquella gentilidade, para cuja sagrada
empreza se obrigara com voto desde a edade de 27
annos. Acompanhado de alguns varões apostólicos,
promovidos do seu exemplo, chegou ao Maranhão a
22 de Novembro do 1652, onde, lançando os pri-
meiros fundamentos àquella nova missão, de que
era o fundador, foi obrigado a voltar a Portugal a 16
de Julho de 1653 a solicitar da magestade de el-rei
D. João o IV a liberdade dos Índios, como totalmente
necessária c conducente para a sua conversão.
Vencidos os obstáculos, que tão justificada repre-
sentação se oppuzeram, segunda vez partiu para o
Maranhão em companhia do seu novo governador,
André Vidal de Negreiros, sendo impossível de rela-
tar o ardente zelo com que pelo espaço de nove annõs
cultivou aquella -agreste vinha. Para converter gen-
tios, doutrinar cathecumenos e conservar neophitos
visitou onze vezes as residências da missão; na-
vegou vinte duas vezes rios mais extensos cjueoMár
Mediterrâneo; discorreu a. pé quatorze mil léguas
por lugares incultos, fragosos e solitários, tolerando
excessivos calores, vigorosos frios, horrorosas
tempestades, em que muitas vezes se viu quasi en-
golido das ondas e, por superior auxilio, livre e salvo.
Em beneficio dos novos convertidos compoz seis ca-
thecismos em diversas linguas, levantou dezeseis
igrejas, para cujo ornato despendeu mais de 50 mil
cruzados, sendo tal o fervor apostólico com que en-
sinava áquelles bárbaros o caminho da vida eterna,
>arecia se animavam as suas palavras do espi-
e S. Paulo e do zelo de Xavier.
A tão laboriosa cultura correspondeu abundante-
mente o frueto, pois á efflcacia das suas vozes se
converteu infinita multidão de gentios Inheigaras,
Tupinambás, e Poquiguarás, habitadores do Ceará,
A. V, 27
que m
rito ae
210
Maranhão, Pará e o grande Rio das Amazonas, não
sendo menos glorioso o triumpho com que, a 16 de
Agosto de 1659, foi recebido pelos Nheengaybas em
agradecimento de os ter reduzido á fé catliolica e â.
obediência do el-rei de Portugal.
Attendendo o Revm. geral da companhia Tyrso
Gonzales ao incansável desvelo com que tinha aggre-
gado tantos filhos ao grémio da igreja, o nofrieou
a 17 de Janeiro de 1688 visitador da província do
Brazil e superior absoluto de todas as missões, lu-
gares que acceitou constrangido, como quem estuda-
va mais obedecer que mandar.
Os últimos annos de sua vida assistiu na Bahia
para onde partira no anno de 1681, elegendo com
madura resolução esta cidade para sepultura, já que
fora o seu berço para a religião. Retirado em uma
quinta do arrabalde da mesma cidade, se occupou
como outro Cicero no seu Tusci\lano, preparando
as suas obras para a impressão, o que executou por
expressa ordem do seu geral, ordenando-lhe que
também acabasse o livro intitulado Clavts Propheta-
rum; posto que estivesse quasi cego, para fazer mais
, meritória a sua obediência, se valia dos olhos alheios
para lhe lerem os livros, cujas paginas apontava de
memoria, achando-se fielmente o que nellas procu-
rava, sendo este trabalho muito superior ás suas
forças.
Praticou como religioso observante todas as virtudes
próprias daquelle estado. Levantava-se muito cedo
para a oração, cortando pelo descanso necessário a
sua idade para ficar expedito para o estudo. O livro
espiritual de que mais frequentemente usava era o
De Imitatione Christi, escutando como vozes divinas
as sentenças que nelle lia
Teve um animo impc/turbavol, soffrondo com
heróica constância o ódio dissimulado em zelo de
muitos emulos que, armados contra a sua pessoa, não
deram grave matéria para exame da sua paciência,
án
não tendo outro motivo para esta injustiça do que
nascer mais singular que todos em tantos dotes de
que abundantemente o ornou a graça e a natureza.
Retribuiu sempre bjneficios por aggravos, satisfa-
zendo-se com tão no^re vingança dos seusoffensores.
Nunca no seu semblante se descobriu o menor signal
de alteração, ainda quando se sentiu infamado com
satyras, accusado em diversos tribunaes; antes, como
se tora o Olympo, q;ie goza de uma inalterável tran-
quilidade, dissimulava com prudência e soffria com
resignação toda esta furiosa tormenta.
Entre tantas cortes e paizes por onde discorreu, nos
quaos costuma reinar licenciosamente a incontinência,'
conservou, como se fosso aujo, illeza a pureza com tal
privilegio, que nunei teve contra esta angélica vir-
tude matéria para a confissão. Foi exactíssimo obser-
vador da pobreza religiosa, usando sempre dos vestidos
mais remendados, c mservando uma capa pelo largo
espaço de quatorze annos, que largou violentado.
Igual era ao amor á pobreza o ódio das riquezas, re-
jeitando heroicamente 25 mil cruzados que lhe mandou
a Paris el-rei D. Joã j o IV para comprar livros para
o seu uso e 40 mil cruzados que a Ilha Terceira lhe
offereceu em premio de patrocinar com a sua autori-
dade um grave neg >cio. Como sempre foi superior á
mais alta fortuna; fugiu das maiores estimações que
do seu talento fizeram os Summos Pontífices Inno-
cencio X e Clemente X, as magestades augustas de
Luiz XIV de Franra, D. João o IV e D. Pedro II de
Portugal, e o duque de Florença, como das dignidades
a que o destinavam estes soberanos príncipes, assim
ecclesiasticas como seculares.
Na ultima enfermidade padeceu tão acerbas dores,
que o privavam do descanso, e tão resignado estava
na vontade divina, que quando eram mais rigorosas
rompia a sua afflieção nestas palavras: Dominus esí:
quod bonum est in oculis suisfaciat
Recebeu com teraissima piedade os sacramentos
e expirou entre a meia noite e uma hora para o dia
de 18 de Julho de 1697, em idade de 80 annos, 5
mezes e 12 dias, e de religião 74, 2 mezes e 13 dias.
212
Teve a estatura mais que mediana, o rosto grave; a-
testa dilatada, o nariz' aquilino, os olhos vivos, a eó*
algum tanto morena, o eabello negro e a barba po-
voada.
Foi nas acções circumspecto, no trato aftavel, na
conversação erudito, no discurso subtil, solrdo è
pVompto, por cujos dotes conciliou o universal aflfecto
de natUVâefc e estranhos.
Extraordinário sentimento causou em todos os
ânimos a sua morte; não havendo pessoa de qualquer
qualidade que deixasse de testemunhar com lagrimas
copiosas tâo deplorável perda.
O cabido da cathedral da Bahia lhe officiou o fune-
ral no Collegio da Companhia, assistido de toda a
nobreza ecclesiastica e secular, no fim do qual foi
levado o cadáver á sepultura aos hombros de D. João
de Alencastre, governador daquelle Estado, seu filho
D. Rodrigo de Alencastre, o bispo eleito de S. Thomé,
seu irmão o vigário geral João Calmon, o provincial
dá religião de S. Bento e o reitor do Collegio dos
Jesuítas.
Não somente o mundo concorreu para as ultimas
honras deste grande varão, mas até o céo se empe-
nhou em canònisar a sua memoria, apparecendo-lhe
três noites antes da sua morte c três depois uma
brilhante estrella de extraordinária grandeza, a qual.
perpendicular sobre o seu cubículo, foi vista e admi-
rada do mar e terra, affirmando as pessoas mais
judiciosas, que aquelle meteoro era uma luminosa
testemunha com que o côo declarava as virtudes do
P. Vieira.
Tanto que nesta corte se recobou a lamentável noti-
cia de um seu tão illustre filho, se resolveu o Exm.
Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier do Menezes,
insigne Mecenas dos cstu lio.sos, dedicar umas sum-
ptuosas exéquias á memoria do Príncipe dos Orado-
res Evangélicos; e elegendo para theatro a casa
professa de S. Roque, não perdoando a género .algum
de dispêndio a sua profusa liberalidade mandou le-
vantar uma soberba machina que oceupava grande
parte do templo, animada de muitos emblemas o
213
poesias, com grande copia de luzes. Cantou o -.offteio-'
a Musica daCapella Real, a aue fe7 o compasso o
seu grande mestre ^Vntonio Marquez Lesbio. Não
houve pessoa grave de uma e outra jerarchia que nâo
assistisse a este fúnebre obsequio, o qual coroouo
P. D. Manoel Caetano de Sousa/ tau illustre pelo
sangue como pela erudição, com uma oração tão
elegante, que renasceu nelle a eloquência que lamen-
tava defunta».
(Diogo Barbosa Machado)
(Dibliotheca Lusitana. Tom. I.)
Vinte o dons annos e meio depois de sua morto,
aos 19 de Janeiro de 1750, foram exhumados os seus
restos e guardados em um caixão ou urna, cujo
Sua Pátria
Durante muitos annos foi objecto de discussão
cmal a pátria de tão eminente vulto, ficando, porém,
desde ent?\o decidido sor elle natural da cidade de
Lisboa; tendo aliás um irmão o parentes outros que
nasceram na Bahia.
Diz Rocha Pitta: «Muitos annos se duvidou* da
«rugião em que nascera, passando a contenda desta
«incerteza entre Portugal e o Brazil; e poderão appe-
«tecera fortuna da pátria do Padre António Vieira
«todas as cidades do mundo,, como as da Grécia plei-
tearam o serem pátria de Homero; mas pela indigne
«Corte de Lisboa, se declarou esta pre roga ti va e: foi
«justo que produzisse ao mais famoso pregador: \iw&
«cidade que fundara o capitão mais eloq : i*enfcG; poièm
não deixou de iicar a da Bahia direito reservado pw&
outra acção, porque vindo aelln-o- Padre* Anton*^
Vieira muito menino, pode litigar-se se deve, tanto a
Portuga] pela felicidade do horóscopo em que nasceu^
214
como ao Brazil pela influencia do clima em que se
creou; se teve nelle mais domínio a força do planeta
que o poder da educação; problema ou ponto sobre
que disputam muitos autores, mais a favor da cre-
ação que do nascimento».
O Marquez de Santa Cruz respondeu ao seguinte
programma do Instituto Histórico Brazileiro que lhe
foi distribuído por S. M. o Imperador em 10 de
Março de 1855:
l.o Em que documentos se basearam os biogra-
phos do Padre António Vieira, para lhe dar por pátria
acidado de Lisboa?
2.° Deprehender-se-ha da leitura de suas obras
ser elle lilho do Brazil 1
3.° Em conclusão, a ser possível, a apresentação
de copia authcntica do assentamento de sou baptis-
mo, que lixe a sua naturalidade f
Discorrendo sobre esse assumpto comove vê na
Revista deste Instituto de 1856 D. Romualdo susteria
tou e provou que o eminente pregador era natural de
Lisboa. E apresentou a sua certidão de idade que
adiante transcrevemos.
CERTIDÃO
Manoel Pinto Corrêa d'Araujo Lima, .cavalheiro
da ordem cie Christo e parodio da freguezia de
Santa Maria Maior da Sé de Lisboa.
«Certifico que, compulsando os livros do archivo
desta parochia, achei no que serviu no atino de mil
quinhentos noventa e seis, até mil seiscentos e dez,
para os assentamentos de baptisados, casamentos e
óbitos, sondo parodio Jorge Perdigão, a folhas cento
e uma, um assento, cujo theor ó o segainto: Aos
quinze deste Fevereiro de mil seiscentos e oito bapti-
zei eu Jorgí Perdigão, cura, a António, filho de
Christovao Vieira Rivas^o, escrivão das devassas,'
e de sua mulher Maria de Azovedo. padrinho é
somente Fe ralo Telles do Mjiuzes. — Oatrosim que,
no verso da referida folha, é este o quarto assento, e
á margem do mesmo se le — Padre António Vieira»
2i5
Nada mais se contém no dito assento que fielmente
copiei, passei por certidão, e a que me reporto.
Lisboa, 13 de Dezembro de 1854. — O reitor, Manoel
Pinto Corrêa de Araújo Lima.»
Figura natural é génio do Padre A. Vieira
«Foi o Padre A. Vieira de não pequena estatura,
como se até no corporal quizesse formar a naturpza
mais que ordinária habitação úqúolle grande espirito:
o rosto comprido e magestoso; nariz aquilino; bocca
proporcionada; muita barba; o cabello na edade
vigorosa preto; todo branco nâ velhice; a ôôr íno-
rena; os olhos sobremaneira vivos, e que parecia
scintillavam. O seu génio era humaníssimo, urbano
o eortez; o engenho quasi sem egual; a memoria um
real arcliivo de erudição, tão feliz em tomar, como
em reter, o que lia. A discrição nadava-lho tão
formosa na bocca, como ó admirada na penna; na
conversação não era um só homem, era muitos ho-
mens, e por isso dizemos que era um Vieira, porque
é dizer tudo. Si se falava em sciencias maiores, era
doutíssimo. Si em lettras humanas, históricas, poéti-
cas, mathematicas, era sublime eexquisita a erudi-
ção: ainda nas artes mechanicas, na náutica, na
sciencia bellica, nos systemas, ou dictames políticos,
era assombroso.
Si se mettia a conversação em matérias mais ale-
gres e divertidas, era tal a viveza e jucundidade e o
enleio, em que mettia os corações o os entendimentos,
que arrebatava tudo.
A observância dos votos religiosos foi no Padro
António Vieira cxemplarissima. O seu cubículo era
o palácio da pobreza: o que alli se via, eram os
livros para os seus elevados estudos; e sobre todos
aquelle de que tirava, o que sabia, o seráfico doutor
S. Boaventura, que era um pequeno crucifixo de
metal, que tinha por peanha uma caveira do mesmo.
Esta pequena imagem eram todas as suas alfaias;
216
estas as laminas o pinturas preciosas em que se
revia.
O seu desinteresse cm matéria de dinheiros c ri-
quezasnunca so desmentiu um só instante em tantas
occasiões; em que a tentação ora tào fácil o natural.
Jamais quiz acceitar por seus sermões nem a menor
sombra de agradecimento, por mais disfarçada que
viesse; e da impressão dos que sé estamparam, outros
levaram a utilidade.
(Vida do Padre Vieira. André de Barros).
O seu retrato sahiu aberto primorosamente em uma
lamina na Cidade de Bruxellas com esta opigrapho na
parte inferior: «Vera effigies celeberrimi P. Antonii
Vieyra e Societ. Jesu Lusitanicorum Regum Con-
cionatoris, et Concionatoram Principis quem dedit
Lusitânia mundo, Ulyssipo Lusitaaioo, S >cietati Bra-
sília. Obiit Baliioe prope uonagenarius die Julii 18,
anni 1697. Qui esit in Régio C)lle^ii Bahiensis templo
ubi sepultus frequentíssimo urbis concursu oetorno
orbis desiderio.»
Deste retrato se tiraram varias copias que sahiram
abertas em Roma, Veneza e Barcelona com a mesma
epigraphe.
Seu Processo perante a Inquisição
O Padre Vieira tendo incorrido ims iras da In-
quisição em cujos cárceres foi caliir depois da morto
de D. João IV, esteve preso o incommunicavcl em
Coimbra durante 27 mczes.
A base positiva da accusacâo orjm os seus livros
da Clavis Prophetarwn e do Quinto Império.
Processado em 1631, e prjso em 1633, depois de
soffrer vários interrogatórios em que procurou re-
pellirde si a mancha de heterodoxia, a sentença foi
dada a 33 de Dezembro de 1667, que assim coaclue:
217
«Mandam que o réo Padre António Vieira ouça a
sua sentença na sala do santo oflficio, na forma cos-
tumada, perante os inquisidores, e. mais ministros,
officiaes e algumas pessoas religiosas e outras eccle-
siasticas do corpo da universidade, e seja privado
p^ra sempre — de vos actioa e passiva e do poder de.
pregar — o recluso nocollegio ou casa de sua religião,
que o santo officio lho assignar, d'onde sem ordem sua
não sahirá, e que por termo por elle assignado se
obrigue a não tratar mais das proposições de que
foi arguido no eurso de sua causa, nem de palavra,
nem por escripto, sob pena de ser rigorosamente cas-'
tigado; o que depois do publicada a sentença, o seja
outra vez no seu collegio d'esta cidade (Coimbra) por
um dos notários do santo officio em presença de toda
a communidade; e que da maior condemnação que
por suas culpas merecia, — o relevam — havendo res J
peito ás sobreditas desistências e retractação e vários
protestos que tinha feito de estar pela censura e de-
terminação do santo officio depois que n'elle se vissem
a explicação e intelligencia que ia dando a todas as
suas proposições de que se lhe tinha feito carga, e ao
muito tempo de sua reclusão e a outras considera-»
ções que no caso se tiveram, e pague as custas.» (')
Vieira ouvio ler a sentença de pé, durante duas
horas em presença de um grande auditório, com os
olhos cravados em um crucifixo do tribunal, sem
fazer o menor gesto ou movimento. Elle, o theologo
consummado, era condemnado a ser recolhido a um
collegio de noviços !
Seis mezes depois, em Julho de 1688, foi perdoado
pela Inquisição, e tendo partido para Roma, onde a
sua recepção foi um triumpho, obteve do Papa Cle-
mente X isempção da jurisdicção do Santo Officio.
.(") O processo original existo na Bibliotkeca Nacional de
Lisboa. O «In-stituto» possue uma copi«a.
A. V, 38
218
O Padre António Vieira no Pará
o Este vulto extraordinário, que tanto celebrisou-se
em quasi todo o correr do século XVII, patenteando
um talento altamente robusto, primeiro nos seus es-
tudos, e depois na sua correspondência, no púlpito,
na politica e na diplomacia, chegou a esta capital em
15 de Novembro de 1653, nomeado Superior e Visi-
tador Geral das Missões.
Apresentou á Camará a caria regia de 21 de Outubro
do anrio anterior, que lhe dava, além de outras facul-
dades, autorisação para levantar igrejas, fundar
Missões nos logares aue julgasse mais apropriados,
trazer para ellas os índios do centro e cathechisal-os.
Acérrimo defensor da liberdade dessa pobre gente,
assim como também o foi o Governador e Capitão-
Greneral deste Estado o Commendador André Vidal
de Negreiros, um dos bravos das guerras que susten-
tamos contra os hollandezes, a sua vinda não agradou
aos colonos, acostumados desde longos ánnos a se
locupletarem com os serviços dos mesmos índios.
• ••
No período de 1655 a 1661, que Vieira reputa assaz
glorioso para si, fizeram-se sob o seu governo nove
missões a diversos logares, descendo delles mais de
três mil indios forros, e cerca de mil e oitocentos
escravos.
Percorreu grande parte do nosso interior, pacificou,
converteu e civilisou as missões dos Nheengahibas,
Cambòcas, Mapuás, Mamayanás, Aruans, Anajús,
Guajarás, Tupinambás, Jurunas, Tapijós, Tricujús e
outras.
Compoz formulários e eathecismos tendo o por-
tuguez de um lado e o idioma indígena de outro.
Muitas vezes para estudar e aprender as línguas de
algumas tribus, Vieira applicava o ouvido ábocca dos
indivíduos para melhor ouvil-os e entendel-os, acon-
tecendo não perceber palavra nem syllaha nenhuma,
senão mais do que o sonido.
Eram deste valor 03 serviços prestados pelo inirru-
r
210
tavel sacerdote, que preferia dar a sua roupa e dormir
em esteiras de tabúa para não ver a pobreza soffrer.
Nenhum necessitado lhe batia á porta, que não
voltasse mais on menos remediado.
Foi assim e em levantar e paramentar igrejas, assim
como em dar presentes aos índios, que o Padre An-
tónio Vieira gastou mais de cincoenta mil cruzados,
provenientes da impressão de suas obras e da li-
beralidade de seus amigos.
Homem completamente despido de vaidades, al-
gumas vezes desempenhou funcções que não eram
compatíveis com o sou elevado cargo, e até a de cosi-
nheiro do seu collegio, onde succedia ficar sósinho.
Entre as obras que compoz sobresahe uma a que
ia dar o titulo de— Claois prophetarum,^- extrema-
mente encomiada pelo Padre André de Barros, e com
a qual Vieira occupou-se durante mais de vinte annos.
Nunca chegou a ser impressa, nem mesmo con-
cluída.
Deste importante e preciosíssimo legado de uma
epocha em que o clero prestou a este paiz incontes-
táveis serviços, e quo é escripto em Latim, existe na
bibliotheca publica desta capital, uma cópia manu-
scripta em volume encadernado, que foi offerecido
pelo illustrado D. António de Macedo Costa, que por
largos annos honrou o sólio episcopal paraense, e de-
pois foi com merecimento Arcebispo da Bahia.
Como ninguém está isento dcs botes da maledi-
cência, o santo missionário teve assim de pagar a'
ella o seu tributo, e infelizmente aqui no Pará.
Um alferes e um seu companheiro, ambos de lin-
guagem libertina, espalharam um boato em detrimento
da dignidade do exemplar sacerdote, que achando-se
grandemente enfermo, e até com o sagrado viatico
junto de si, declarou em presença de pessoas fide-
dignas ser uma calumnia que lhe levantavam, assim
como que perdoava aos seus detractores.
Não obstante a Companhia, ciosa do credito dos seus
membros, fez instaurar processo contra os execrandos
calumniadores, que foram condemnados a degredo
perpetuo para fora do Estado, e a irem á matriz ouvir
220
a sentença de mordaça na bócca, e despidos da cin-
tura para cima; mas os jesuítas intervieram, pedindo
que fosse perdoada a parte mais vergonhosa da mesma.
Cansado de lutas e protelações em Portugal e na
Itália, voltou o Padre António Vieira para o Brazil em
1681, indo residir na Bahia, onde fallèceu a 18 de
Julho de 1697 com perto de noventa annos de idade,
porquanto nascera em 1608 na cidade de Lisboa. *
Terminamos as presentes linhas eom algumas pa-
lavras de Sylvio Roméro, esse espirito superior, que
tanto honra a nossa pátria.
Tratando ultimamente do famoso orador, elle assim
se expressou: «E' uma das maiores intelligencias quo
tem fulgurado no Brazil.— E' a figura mais alta da
litteratura portugueza depois de Camões. — Foi um
benemérito da liberdade c da consciência em pugnar
pelos infelizes caboclos.
Belém, Março de 1894.
Raymundo Cyriaco Alves da Cunha.
{Diário Official do Pará).
A propósito da grave accusação irrogada ao ca-
racter do preclaro varão, illustre consócio, residente
na Capital Federal, enviou-nos os seguintes aponta-
mentos:
«O Padre foi accusado de ter deflorado uma india
de Monção, e soffreu muitos insultos, aggressões, e
quasi que o espancam.
.0 Padre era de tempera de ferro, não fez caso, e
por isso o Sargento-mór António Carneiro Homem
Souto Maior fez uma queixa contra elle á Rainha:
mandou esta ouvil-o; não respondeu.
António Carneiro fez outra queixa, percorreu os
mesmos tramites, e o Padre não respondeu, e o*do-
nunciante salientou muito o despreso do Padre ás
ordens régias, a ponto de a Rainha impor -lhe o pre-
221
ceito de obediência, e então o nosso Jesuíta respondeu
assim:
«Senhora. — Por duas vezes recusei-íne a manchar
a baeta das minhas vestes sacerdotaes, respondendo
á queixa que contra mim deu o Sargento-mór A. C.
H. de Souto Maior.
«Agora, Vossa Magestade ordena-me sob o pretexto
de obediência, e se o faz, estou certo, é porque n<Vo
sabe que em todo este Estado de Maranhão, que com-
prehende o Piauhy, o Pará e S. José de Javarv, 6
sabido que todo o Carneiro é doido, o toda Car-
neira é. . .
«Beija reverente as mãos de Vossa Magestade o
humilde Capellão — Padre António Vieira.»
Achei este papel, separado do livro dos registros
do Archivo dos Jesuítas em Maranhão, o qual estava
no antigo Convento da Madre de Deus.
Offereci-o ao Instituto. O Imperador admirou-se
muito da linguagem do Padre, e levou o manuscripto
para casa para confrontar com os que tinha em seu
archivo. Lá no Paço extraviou-se . . .
Padre António Vieira
QUESTÕES DO MARANHÃO
«E' una dos vultos mais notáveis da historia do
Brazil no século XVII.
Educado na cidade do Salvador, desde verdes
annos a todos assombro pelo seu pujante talento,
máscula eloquência e variada illustração.
Águia da tribuna sagrada, clle é ao mesmo tempo
o hábil politico, o emérito escriptor, o mestre da
língua.
Após vários trabalhos apostólicos a que se entre-
gara na Bahia, vai a PoMugal no momento da Res-
tauração em 1641, exhibindo-se dosde logo nc
púlpito e na corte, firmando brilhante renome.
Encarregado de varias o melindrosas questões^
m
envolve-s« e prepondera em todos os negócios pú-
blicos, e contribuo para a rastauração de Pernam-
buco, conseguindo a creação da Companhia de Com-
mercio do Brasil.
Voltando ao Brazil em 1652 envolve-se nas graves
questões entie colonos e jesuítas no Maranhão.
Consegue n'esta capitania por meio de uma elo-
quentíssima predica serenar os ânimos; mas no Pará
é obrigado a transigir com as imposições dos co-
lonos.
Vai ainda a Portugal em 1654, donde regressa no
atino seguinte, portador de providencias, decretos
e alvarás attinentes á liberdade dos indígenas.
N'esta quadra dedica-se a enormes e fatigantes
trabalhos de catechese pelos Ínvios sertões do Ma-
ranhão, Pará e Amazonas: mas os colonos dessas
duas capitanias irritados pelo excessivo poder tem-
poral dos jesuítas, na questão dos indígenas, revol-
tam-se contra elles, prendem-nos o os deportam
para Lisboa, inclusive António Vieira, que é a prin-
cipal victima desses ódios.
Velho e alquebrado volta á Bahia em 1681 e fallece
em 1697 approximadamente corn 90 annos de uma
existência agitada e útil, legando á posteridade
sermões, cartas, escriptos, que são um primor de
eloquência e de estylo».
(Borges dos Heis — Chorographia e Historia do
Brasil, Bahia, 1894.)
Catalogo das Obras impressas
Sermões. Parte I — Lisboa, por João da Costa, 1679,
559 pags.
Parte II— Lisboa, por Miguel Deslandes, 1682,.
470 pags.
Parte III— Lisboa., por Miguel Deslandes, 1683,
574 pags.
i- Parte IV — Lisboa, pelo mesmo, 1685, 600 pags.
i- Parte V— Lisboa, pelo mesmo, 1689, 624 pags.
i Parte VI— Lisboa, pelo mesmo, 1690, 595 pags.
Parte VII — Lisboa, pelo mesmo, 1692, 558 pags.
Parte VIII — (Xaoier dormindo e Xavier acordado).
i Dedicada aos três príncipes. Lisboa, pelo mesmo
impressor, 1694, 536 pags.
Maria Rosa Mystica. Excellencias, poderes e ma-
ravilhas do seu rosário, 30 sermões. Parte I, (e que
se conta como IX dos Sermões do auctor), Lisboa,
pelo mesmo impressor, 1686.
Maria Rosa Mystiea, etc. Parte II (contada como
X dos Sermões). Lisboa, 1688, 518 pags.
Parte XI — Offerecida á Senhora Rainha da Grã-
Bretanha. Lisboa, por Miguel Deslandes, 1696,
*- 590 pags.
Parte XII — Dedicada á puríssima Conceição da
Virgem Maria. Lisboa, 1699, 441 pags.
Palavra de Deus empenhada e desempenhada cm
dous Sermões (como Parte XIII). Lisboa, pelo mes-
mo, 1690, 260 pags.
Sermões e Vários Discursos. Tomo XIV. Obra
posthuma. Lisboa, por Valentim Deslandes, 1710,
350 pags.
Voses Saudosas da eloquência, do espirito, do zelo
e eminente sabedoria do Padre António Vieira. Lis-
^ boa, por Miguel Rodrigues, 1736, 315 pags.
Comprehende a Relação da Missão da Serra do
Ibiapaba e outros escriptos, como o Papel Forte,
Memorial sobre os serviços do seu sobrinho Ber-
nardo Ravasco, Defesa do livro— Quinto Império, etc.
Sermões vários o Tractados ainda não impressos:
que formam o torno XV dos Sermões, e das Vozes
Saudosas o tomo 2o. —Lisboa, por Manuel da Silva,
1748, 434 pags.
Sermões Selectos do P. António Vieira. Lisboa,
na Typ. Rollandiana, 1852-1853, 6 tomos.
Historia do Futuro. Livro ante-primeiro. Lisboa,
Pedroso Galrão, 1718; 2 a edicc." Domingos Rodrigues,
1755, 220 pags.: reimpressa na Bahia em 1838,
224:
Vos Sagrada, politica, etc, supplemento ás Vozes
Saudosas. Lisboa, Luiz Ameno, 1748, 247 pags.
Rhetorica sigrada, ou Arte de pregar, descoberta
entre outros fragmentos littorarios do P. António
Vieira, por Carvalho Bandeira, Lisboa, 1745,37 pags.
Ecco das Vozes saudosas, formado em uma carta
apologética em língua castelhana. Lisboa, Luiz
Ameno, 1757, 143 pags.
Cartas. Tomo I— Offerecido ao Cardeal Nuno de
Ataíde. Lisboa, 1735, 468 pags.
forno II — 1735, 479 pags. Estes dous volumes sa-
hiràm por diligenciado Conde da Ericeira.
Tomo III — Offerecido ao patriarcha de Lisboa, D.
Thomás de Almeida. Lisboa, 1746, 451 pags.
Cartas do Padre António Vieira a Duarte Ribeiro,
de Macedo. Lisboa, 1827, 354 pags. typ. do Eugénio
Augusto.
C;irta escripta a El-rei, e datada do Maranhão ali
de Fevereiro de 1660, em que lhe dá conta do estado
das missões na província do Brazil. (Reo. do Inst.
Gcog. Brás. vol. 4/ 1842).
Annua da Missão dos Mares Verdes (1624-1625)
mandada a Roma. E outra da missão da Capitania do
Espirfto-Santo, dos mesmos annos. (Reo. f idem,
vol. V.)
Arte de Furtar, espelho de enganos, theatro de
verdades etc. Composta pelo P. António Vieira. Ams-
terdam 1652, 512 pags: reimpressa em Londres,
1820.
Noticias recônditas do modo de procedera Inqui-
sição de Portugal com os seus presos. Informação
que ao Pontífice Clemente X deu o P. António Vi-
eira. Lisboa, Imp. Nacional, 1821, 272 pags.
Os seus sermões foram traduzidos em italiano,
francez e castelhano.
A collecção completa das obras consiste em 14
volumes de Sermões, 2 das Vozes Saudosas, 3 das
Cartas, A Historia do Futuro e A Arte de Furtar.
225
Opiniões sobre Vieira.
Soria impossível repetir os elogios com que cele-
bres escriptores exaltaram o nome deste grande
varão: somente transcreveremos alguns, para que
claramente se conheça a sua grandeza.
Não ha escriptor estrangeiro, que tenha tratado
de nossa litteratura, que não fale de Vieira com
assombro e enthusiasmo.
Seja o primeiro aquelle que o foi na dignidade o
Summo Pontífice Clemente X, no Breve, que lhe
expediu para que pudesse publicar as suas obras
sem que fossem examinadas por algum Censor.
Começa. «Dilecte Fili: Salutem, et Apostolicam Be-
nedictionem. Religionis zelus, Sacrarum litterarum
scientia, vitoe, ac morum honestas, aliaque laudabi-
lja, probitatis, ac virtutum merita, super quoe apud
nos fide digno commendaris testimonio».
Foi ainda o Santo Padre Clemente X quem admi-
rando a agudesa de engenho e sciencia das Escriptu-
ras, disso d'elle: «Devemos dar muitas graças a Deus,
por fazer este homem Catholico; porque si o não
fosse, poderia dar muito cuidado á Igreja de
Deus».
João Paulo Oliva, Geral da Companhia, congra-
tulando-o do sermão de S. Estanisláu em uma carta
escripta a 13 de Março de 1675: «Dou graças a Deus
por ter dado á Companhia um homem, que pode
falar tão divinamente, e que sabe proferir o seu con-
ceito, o que todos confessam que é igualmente mara-
vilhoso assim no que entendemos, como no que não
penetramos, mas igualmente veneramos nas suas
intelligencias».
«Que sermon dei Padre António Vieira nó es un,
assombro? Hombre verdaderamente sinsemejante d^
A. V, 29
226
quien me attrevera decir Io que Veleyo Paterculo di
de Homero:
«fíeque «ftte illúrti quem imitarettfr, mqm post
iílffíftqui ettfn imitari possit, inventus est».
(Fr. Bento Feijó, Theatro Critico).
«A melhor censura que se pode dar ás suas obras
é e será sempre o seu nome».
(Dr. Frei Jeronymo de Santiago).
«Príncipe de todos os pregadores, sem competên-
cia de netfhum, (posto que com inveja de todos)
respeitado pelo oráculo do púlpito entre as nações
do mundo»,
(D. Frei João da Madre de Deus, Arcebispo da
Bahia).
aDe cada uma das suas virtudes se podia fazer
diverso e largo capitulo: e si o mundo as visse no
púlpito sem sobrepelliz, seria da opinião, que concebi
e conservo persuadido, que entre tantos talentos de
espirito e naturaes, o menor no Padre António Vieira
era o de pregador».
(Padre Gaspar Ribeiro).
«Mestre dos pregadores evangélicos o sempre com
uma vida inculpável e justificada.
Não podia caber em povoações pequenas, quem
havia de occupar com a sua fama o mundo inteiro.
Representa na subtileza a um Agostinho, na profun-
didade a um Tertuliano, na magestade a um Leão,
& m suavidade a um Ambrósio ou um Bernardo.
ffl
Nascendo em Lisboa morrendo m Rabia, knirou
a uma com o berço, á outra com a sepultará. Nin-
guém poderá negar que foi o Pad**e Vièiim una ramo
de tão alta esphera que bastou para honrar dois mun-
dos».
(D. José Barbosa, synodal do patm*chaiJo $ c&mot
da Academia Real, etc).
o Evangélico Pregador, de quem podemos dizer,
o que o Grande Bautista de si, que era a voz. Sempre
tive ao Padre António Vieira por homem espiritual».
(Padre Bartholomeu do Quental, fundador da con*
gregaçâo do Oratório).
«Grande Homem, que nascendo para ensinar e
explicar tudo e a todos, só em si se nos fez sempre
incomprehensivel».
(Dr. D. João Eoangelista, consultor do Santo
OJicio).
«Pregador divino, apostolo elevado, missionário
angélico».
(D. Manoel Caetano de Sousa. Oração Fúnebre,
Í697).
«A sua eloquência vence a admiração. Glorioso
tjfnhre da nação portugueza».
(£>. Diogo Justiniano, arcebispo de Grangamr).
228
«Feliz parto da famosa Lisboa».
{Fr. José de Soma , qualificador do Santo-Officio).
«Pregador, ou S. Paulo; ou Vieira». r
(D. Luiz de Sousa, Primaz das' Hespanhus) .
«E* entre todos os pregadores o que o sol entre
todas as luzes».
(Padre Manoel de Sousa, Congregação do Oratório).
«Príncipe dos pregadores evangélicos, o Grande
por antonomásia, mas nunca bastantemente engran-
decido».
(Fr. José Pereira de SanV Atina, consultor do Santo
Officio).
«Varão incomparável e de entendimento muito
além da esphera dos humanos».
(Padre Carlos A. Casnedi)
«Será talvez opinião temerária, mas a minha é
que nenhum povo possuiu jamais nas obras de um
só homem tão rico e tão escolhido thesouro da lingua
própria, como nós possuímos nas deste notável
jesuíta.
Se a nossa lingua, como agradecida, e em certo
modo desvanecida de se ver tratada por quem a
sabia aperfeiçoar e honrar, se prestava aquasitudo
3ue d'ella requeria Vieira, de sua parte Vieira pelo
isvello, pela estimação, pelo mais fino respeito, ple-
namente lhe merecia tão primorosa complacência.
229
Se o uso da nossa língua se perder, e com ella por
acaso acabarem todos os nossos o^-riptos que não
são os Lusíadas e as obras de Vieira; o portuguez,
quer no estylo da prosa, quer no poético, ainda vive-
rá na sua perfeita Índole nativa, na sua riquíssima
copia e louçania.
Não ha uma composição de Vieira, que não mostre
muita capacidade de entendimento, sufficiente ordem
e expressão claríssima dos seus conceitos».
(D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Viseu. —
Mem. Hist. e Crit. 2. a Edic. 1897).
«Sujeito em quem concorriam todas as partes ne-
cessárias para ser «ontado pelo maior pregador do
seu tempo».
(Conde de Ericeira, D. Francisco Xavier de Me-
neses).
«Proponho ao Mundo um dos maiores homens
de Portugal, e proponho a Portugal o maior homem,
que em muitas idades elle dco ao Mundo.
Lustre immortal da Companhia de Jesus, a pátria
lhe deu o titulo de Grande, o inundo todo o admirou
ainda maior e será seu nome em todos os séculos
occupação da fama.
Pae da eloquência e do magestoso idioma portu-
guez, honra da pátria e em tudo heróe consummado.
«Vai-te mil vezes ditoso: que emquanto houver
homens te acclamará a fama; emquanto engenhos,
te cederão os maiores; emquanto houver púlpito,
se suspirará tua voz; emquanto houver Mundo, se ou-
virá teu nome; emquanto houver Deus, durará tua
gloria».
(André de Barros, Vida do Apostólico Padre
António Vieira. Lisboa 1746).
230
A' fama do Padre António Vieira (*)
Cessem do orador grego e do romano
As glorias immortaes, que a fama canta,
Que outro orador mais alto se levanta
N'outro sol da eloquência soberano.
Demosthenes, e Tullio Luzitaíio
António foi, mas com vantagem tanta
Quanta leva a doutrina illustre e santa
Aos assumptos politico e profano.
Sol da eloquência foi no movimento
Com que girou; qual sol á terra escura,
A todo o mundo encheu de luzimento,
E teve, como o sol, esta luz pura
N'uma parte do mundo o nascimento,
N'outra parte do mundo a sepultura.
António Telles da Siloa.
Soror Violante do Céo, religiosa dominicana tio
convento da Rosa em Lisboa e celebre poetiza, lhe
fez em seu applauso a Sylva seguinte, que está nas
suas Rimas , á pag. 74:
«E' vosso entendimento
Felice suspensão do pensamento;
Vossa doce elegância
Cifra da mais perfeita consonância.
Vossa graça excessiva
A pedra de Cedar mais attrativa.
Vosso saber profundo
Portentoso exemplar de todo o mundo;
Vossa agudeza rara
Delicia do discurso altiva e clara;
Vossp estylo famoso
Agradável motivo do invejoso.
(') O original acha-se na Torre do Tombo, em Lisboa^
«31
Etttfim vosso juizo soberano,
Credito do divino, honra do humano.
Ohl vivei assombro das edades,
Gosto das magestades,
Extasis dos sentidos,
Prodígio dos nascidos,
Excesso dos passados:
Vivei para motivo dos agrados,
Objecto dos louvores,
Archivo dos favores,
Compendio de excellencias,
Thesouro das elegâncias.
E se minhas grosseiras ignorâncias
Têm sido dilatadas,
Deixae-as castigadas.
Mas confessae, doutíssimo Vieira,
Que se ignorante sou, sou verdadeira».
Soror Joanna Ignes de la Cruz na Censura que fez
ao Sermão do Mandato, impressa no 2o Tomo das
suas obras diz: «Siempre admirãndome de su sin
igual ingenio. Las proposiciones deste subtilissimo
talento, que es tal su suavidad, su viveza, su energia,
que ai mismo que dissient enamora com la belleza
bella Oracion suspende com la dulçura, Hechiza com
la gracia, eleva, admira, y encanta com el todo. . .
admirable pasmo delos ingenios».
Bonucci Istor. dei Re D. Affonso Enriq. liv. 3.
cap. 10. «Bon noto ai mond pea il suo singolare
ingegno, profunditá de sapere, e doòtrczza amrnira»
bile in manegiar le divine Scriturc».
Innocencio Francisco da Silva em seu Diccíonario
Bibliographico, traz uma minuciosa biographia do
Padre António Vieira, na qual cita a seguinte apre-
ciação e conceito do bispo de Viseu em relação a
232
Vieira: depois de chamar ao corpo completo das
suas obras um monumento admirável da própria
linguagem, nào duvida assegurar que— se o uso da
nossa lingua se perder, e com elle por acaso acaba-
rem todos os nossos escriptos que nâo sejam os Lu-
ziadas e as obras de Vieira; o portuguez quer no
estylo da prosa quer no poético ainda viverá na per-
feita Índole nativa, na sua riquíssima cópia e louça-
nia».
(Dicc. Bib. Vol. l,o Lisboa, 1858.)
Pedro José da Fonseca, no Diccionario da lingua
portugueza da Academia Real das Sciencias, traz
brilhante biographia do erudito pregador, na qual
relaciona entre. outras proposições as seguintes, de
diversos escriptores, relativas ao mesmo Padre
Vieira:
a) Príncipe .de todos os pregadores.
b) Serri competência de nenhuma (posto que com
inveja de todos), respeitado pelo oráculo do púlpito:
entre as nações do mundo.
c) Príncipe da eloquência sagrada.
d) E' entre todos os pregadores o que o sol entre
todas as luzes.
e) Oráculo dos pregadores.
f) Mestre de todos pregadores.
g) Mestre de todas as sciencias.
h) Verdadeiramente foi pregador real ou o rei de
todos os pregadores.
i) Glorioso timbre da nação portugueza, mostre
universal de todos os declamadores evangélicos.
k) O grande, memorável, insigne Padre António
Vieira, feliz parto da formosa Lisboa, glorioso ornato
da virtuosa companhia, invejado ornamento do es-
clarecido Portugal.
/) Engenho soberano.
m) Foi quasi outro Salomão.
n) Homam maravilhoso.
o) Julgaram sempre os mais discretos e sábios
233
quanto fosse obra de entendimento, tão raro devia
sahir á luz para accrescentar mais luz á pátria; que
a não ter outros esclarecidos filhos, bastavam as
luzes de um só Vieira para darem a todo o Portu-
gal o illustre nome de Luzifania.
„ p) Varão raro, o maior orador de todas as edades.
q) Egualmente mestre, que milagre dos oradores
sagrados e profanos.
r) Singular orador, angélico pregador.
s) Grande heroe, lustre de Lisboa, credito de Por-
tugal e admiração do mundo todo.
t) Admirável e inimitável heroe, verdadeiro Salo-
mão e apostolo dos nossos tempos.
u) O padre Manoel- Bernardes, -que o alcançou, o
que por sua grande autoridade, intelligencia e virtude
se não pôde lançar de suspeito, o cita varias vezes
com veneração e louvor desta maneira:
v) segundo disse um discreto;
x) como discretamente disse o Padre António
Vieira;
y) como uma vez ideava um grande pregador.
2) Outro escriptor também coevo o intitula o mais
insigne pregador de todas as edades».
(Dicc. Port. da Academ. Real de Sciencias).
«Os seus sermões são dignos de ser perpetuados
não só para a utilidade universal, mas para singular
gloria do Reino; pois quando não tivesse produzido
mais talentos, que os do Padre António Vieira em
tudo eminente, lhe bastava para summo credito».
(D. Fr. Francisco de Lima,' Bispo do Maranhão).
«Porém tão fora estou de o poder desculpar, que
é forçoso que o torne a arguir de dous crimes: da
inveja, que do seu talento toda a Europa tem a Por-
A. v t 30
234
tugal, e da desesperação em que metle os Ora-
dores, de poder imitar o seu estylo».
(P. D. Raphael Bluteau, Clérigo Regular).
«António Vieira, da Companhia de Jesus. Foi bau-
tisado na Freguesia da Sé de Lisboa, na mesma pia,
onde o fora Santo António, cuja língua e espirito
soube imitar na eloquência, agudeza, fervor com que
expoz a palavra divina, sendo, sem controvérsia, no
seu tempo (e o será nos futuros) a gloria dos Púl-
pitos, a luz e mestre dos Pregadores».
(Francisco de Santa Maria. Annua Histórica, Diário
Português, Lisboa, 1714).
«O seu talento foi ainda maior que o seu nome,
com o qual voou por todos os hemispherios a fama
elevada pela sua penna. Foi em Portugal pregador
dos seus augustissimos monarchas e da sereníssima
rainha de Suécia em Roma, cuja sagrada cúria o
ouviu com admiração e lhe respondera com o premio
de altas dignidades, se a sua religiosa modéstia o
não obrigara a fugir entre os estrangeiros das honras
e logares de que já se livrara entre os naturaes, onde,
achando na vida e na posteridade as maiores esti-
mações são ainda inferiores ás que tem entre as
outras nações, andando os seus escriptos traduzidos
e venerados por todo mundo catholico com grande
gloria do nome portuguoz».
(Rocha Pitta. Hist. da Am. Port. Lio. 8. n. 54)
«Resta, só que, satisfeito o Brazil com a subida
honra, que ninguém lhe contesta, de haver creado em
seu seio esse homem notável, e servido de amplíssi-
mo thçatro de suas heróicas virtudes, ene* vez; de inu-
235
teis e intermináveis disputa? sobre a sua naturalida-
de, consagre á sua memoria um voto ou testemunho
publico desse vivo interesso e sympathia, que lhe
tributa; e nesta consideração ousamos lembrar que
o seu retrato, outrora venerado em muitas cidades
da Europa, seja collocado em todas as bibliothecas
do império, e se promova em beneficio da mocidade
que cultiva as lettras, a vulgarisação das mais esco-
lhidas dessas obras admiráveis, onde felizmente se
conserva o precioso thesouro de uma lingua tão rica,
harmoniosa, e musical, qual 6 a pórtuguoza, sem
duvida uma das principaes glorias das duas nações,
a que pertence este homem extraordinário».
(D. Romualdo, Arcebispo da Bahia. Reoista do
Instituto Histórico Brasileiro. Vol. X.).
«António Vieira, cujo renome fez época por quasi
toda a Europa, e pela maior parte da America, nasceu
cm Lisboa aos de Fevereiro de 1G08, e teve por pães
a Cliristovuo Vieira Ravasco, lidalgo da casa real, e
D. Maria de Azevedo. De oito annos incompletos de
idade, embarcou-se para a Bahia, escapando nessa
viagem do naufrágio, na altura da Parahiba, em o
dia 20 de Janeiro de 1G16, e alistado na companhia
dos Jesuítas, foi elevado ao sacerdócio a 13 de De-
zembro de 1635.
Tão grande apostólico quanto estadista, lhe foram
confiados importantes negócios ante as nações es-
trangeiras, e no Brazii, còm especialidade no Ma-
ranhão e Pará; o seu nome hade sempre ser dura-
douro, pois, munido unicamente da força suasória,
que o distinguiu, fez mais reducções e estabeleci-
mentos de indios do que poderião fazer grossos exér-
citos: foi na Bahia o nono reitor do collegio da
companhia, e o decimo provincial, e são geral-
mente estimadas as suas producções litterarias, pela
facúndia, elegância e sublimidade de princípios, que
encerrão.
1
236
Falleceu no mesmo collegio á primeira hora do
dia 18 de Julho de 1697, com perto de 90 annos de
idade, c 75 de religião, tendo feito profissão do 4 o voto
em 26 de Maio de 1644. Sua moléstia foi rápida, e, a
despeito da idade avançada, jamais perdeu o uso in-
teiro de suas faculdades intellectuaes, porquanto,
ainda entre as dores da enfermidade, compunha,
dictando aos amanuenses, por já estar cego.
No dia immediato ao do sua morte, fafloceu seu
irmão Bernardo Vieira Ravasco, que no emprego de
secretario doestado do Brazil tinha feito serviços im-
portantes».
(Ignacio Accioli. Memorias Históricas).
«Foi António Vieira dotado de um engenho subtil e
importante, de uma imaginação viva e asisada, de
uma alma nobre e aspirante a grandes emprezas; qua-
lidades estas, que, sendo cultivadas pela desvelada
educação que do seus pães recebeu, se desenvolve-
ram tão promptamente, e se mostraram tão suas,
que a mesma subtileza e penetração, que se notava
nas respostas e ditos de sua puerícia, se admirou na
sua decrepitude, com a addição de uma firmeza de
mempria, de uma clareza de idéas, e de uma facilida-
de de expressão que raramente se encontra em a
avançada idade em que elle terminou seus dias.
Dos seus sermões sabiam os ouvintes uns com mo-
vidos, outros satisfeitos, e todos admirados do
engenho, do saber e espirito do pregador. (Não só
o diz André de Barros, e Francisco de Santa Maria
no Diário Portuguez; mas até o confessa o auetor
da Deducção Chronologica, o mais ardente adver-
sário da gloria de Vieira).
As cartas (4 volumes), posto que não tenham as
graças das de Cícero, nem o delicado gosto das de
Sevigné, são a umas e outras pouco inferiores na
elegância e nobreza de linguagem, e por ventuia
superiores na qualidade e importância dos assumptos.
São modelos de estylo epistolar, e não se encontram
237
n!eilas aquelles defeitos tão frequentes nos sermões
do que tanto adoecia o seu século, ;>>r isso foram
sempre tidas pelos portuguezos entendidos em
subida estimação.
Não se encontra, ó verdade, em Vieira um estylo
melifluo e cadencioso; sua imaginação viva e ardente
falleco de suavidade; seu coração secco não minis-
tra á penna os doces traços da sensibilidade; assim
que, debalde buscaremos em seus discursos os
movimentos patheticos tão necessários a um orador
christão; porém não ha um só escripto (.reste homem
extraordinário que seja desprezível, e que não mereça
ser lido; e pelo que respeita á linguagem, em que
sobreleva a todos os escriptores portuguezes, con-
cluiremos repetindo o que disse o mais douto, o mais
justo apreciador de Vieira e do suas obras, que —
«so o uso da nossa lingua se perder, e com ella
por acaso acabarem todos os nossos escriptos, que
não são os Luziadas e as obras de Vieira, o portu-
guez, quer no estylo de prosa, quer no poético,
ainda viverá na sua perfeita Índole nativa, na sua
riquíssima copia e louçania. Será talvez opinião
temerária; mas* a minha ó que nenhum povo possuiu
jamais nas obras de um só homem, tão rico, tão es-
colhido thesouro da lingua própria, como nós pos-
suímos nos d'cste notável jesuíta».
Elle empregou a linguagem culta e publica,, e
também a familiar o domestica; fallou a dos negócios,
a da cortezia, a das artes, a dos provérbios: e como
tratou tantos e tão diversos assumptos, pode affir-
mar-se, fora de hyperbole, que em suas compo-
sições a resumiu toda inteira com felicidade sin-
gular».
(Roquete — Biographia do Padre Vieira, Rev. do
Inst. HisL Brás. Vol. 6. pags. 229 a 252).
«Vieira (Antoine;, né á Lisbonne le 6 février 1608
d'une famillo illustre, ayant été mené par $es parents
au Brésil, fut si frappè des travaux des jesuites pour
238
la ppopagation de la foi datis cette contrée, qu'il entra
dans leur societé en 1623. Envoyé en Portugal, il y
prêcha avec une réputation extraordinaire: Philippe
IV, qui lui connaissait encore d autros talents, Tem-
ploya dans les ambassades de.Hollande et dAngle-
lerre.
Appelé à Rome il y donna de nouveau 1'essor á ses
talents pour la chaire; mais la societé des barbares du
Brésil lui fut plus choro que les applaudissements
qu'il recevait dans la capitalo du monde ehrétien. II
demanda de retourner choz oux et y arriva le 22
octobre 1652.
II parcourut ces vastos contróes en instruissant et
en convertissant une multitude incroyable desauva-
ges. Ses forces étant épuisées, et ayant perdu la vue, il
se retira á la Baie de tous les Saints, oú, avec les se-
cours d'un de sesconfréres, il mit la derniére main,
à un ouvrage qu'il avait commencó depuis longtemps
intitule: Clavis prophetavum.
II mourut le 18 juillet 1697, agé de 89 ans. Le cha-
pitrc cathédral assista á son enterrement, et son corps
fut porte par le gouverneur da Brésil, son íils, Pévê-
quo de Saint Thomas et deux autres grands seigneurs.
Ses Sermonsoni été imprimes à Lisbonne, 1673--1693,
12 vols. Cest ce qu'il y a de mieux écrit en portugais.
Ils ont paru à Madrid, traduits en espagnol, 21 vols.
Son Clavis prophetarum parut à Rome en 17.23».
(F. X. Feller Biogvaphie Unioerselle, T. 8.
Paris, 1856).
«Dístincto pregador portuguez, e um dos.escriptores
clássicos de nossa língua. Pertencia á ordem dos
Jesuítas, e foi o mais distincto pregador do seu século,
nlerecendo nas differentes cortes da Europa, onde
pregou em latim e francoz os applausos de todos os
doutos. Manejou a lingua pátria com energia e natural
propriedade; a sua eloquência arrebatava e grangeou-
lhe os.titulos de Cicero catholico e pae da eloquência
239
portugueza. Escreveu Sermões, Cartas e a Historia
do Futuro. Falleceu na Bahia a 18 de Julho de 1697».
(C. de Lacerda, Dicc. Port. pãg. 1107).
«Vieira (Antoine) jesuite et predicateur portugais,
nè a Lisbonne en 16Ò8, m. à Bahia en 1697.
Ses discours íui ont merité lo surnom de Ciceron
lusitanien: il a de la hardiesse, de Tenergie, de la
grandeur; mais son gout n'est pas toujours pur.»
{Dezobry et Bachelet. Dicc. de Biographie et d y His-
toire).
«Vieira, celebre pregador, e, no pensar dos crí-
ticos portuguezes, um dos melhores escriptores d'esta
nação, nasceu em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608...
Passou os últimos annos de sua vida no Collegio
da Bahia, occupado em preparar uma edição do seus
Sermões.
Seus compatriotas o tem chamado o Cícero Lusi-
tano; e de facto elle merece esta honrosa dis-
tineção.
^ A abundância, a imaginação o as outras qualidades
que fazem do Padre Vieira um dos primeiros es-
criptores de sua nação, não podem oceultar a nossos
olhos a falta de gosto que se nota em todas as suas
composições».
(Biographia Unioersal, vol. 48 Puris, 1827).
«Vieira (António), missionário portuguez, da ordem
dos jesuítas, foi nomeado pregador de João IV, e
encarregado do missões diplomáticas em Paris, Haya,
Londres, Roma e Nápoles, teudo-se consagrado
posteriormente á conversão dos índios, onde en-
controu os maiores ol)staci}Io$,
240
Distinguiu-se sobretudo como pregador, e é con-
siderado como um dos melhores prosadores de Por-
tugal»
(Louis Gregoire, Dicc. de Historia e Biographia
e Geographia, Paris, 1871).
«Excluir o nome deste insigne orador do catalogo
dos escriptores brazileiros, é roubarão Brazil uma das
suas mais esplendentes glorias do século XVII, pois,
comquanto nascesse cm Portugal, foi no Brazil que
o menino se fez homem, e que o seu descommunal
talento cresceu, robusteceu e floriu de modo tal que
Suando na força daedade foi ao reino, já era um ora-
or notabilissimo, e um varão de tio grande saber, que
a Corte o attrahiu a si, e tentou suquestral-o completa-
mente á Companhia de Jesus, de que era na verdade
genuíno filho. Tudo quanto já ontao ora e sabia,
aprendera e conquistara na Bahia, sua segunda
pátria».
(Eduardo Perié. A Litteratura Brasileira nos tempos
coloniaes, Buenos-Ayres, 1885).
«O Padre António Vieira foi diplomata em paizes
estrangeiros; e não consta da sua vida que subtrahisse
ás alfandegas o valor de um ceitil.
Precisando el-rei D. João IV de dinheiro para
comprar umas fragatas, o Padre A. Vieira lhe fez
emprestar trezentos mil cruzados. Não fez menores
serviços na Hollanda: obteve a confirmação daalliança
com Portugal, e um empréstimo considerável.
Os seus sermões dizem mais, que os artigos sem
fundo, de alguns periódicos. E' muito para se ver e
admirar o modo, por que esse famoso pregador cen-
sura os costumes da corte.
{Pedro Dinis. As Ordens Religiosas em Portugal).
241
«Teve Portugal jesuítas sábios e hábeis professores.
Um delles nos é apresentado por Barbosa Machado
na èua Bibliotheca Lusitana como um dos personagens
rnais illustres que produzio o Reino: é o Padre An-
tónio, nascido em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608.
Theologo, poeta, orador, philosopho, historiador,
elle unia a todos os dons do espirito a força de von-
tade e a energia da intelligencia. Embaixador de
João IV em Paris, na Hollanda e em Roma, mos-
trava-se ao mesmo tempo um profundo diplomata, um
elegante pregador e um douto controversista. Elle
procurava nas missões de além mar, nos collegios,
na corte o nos púlpitos, despertar o espirito nacional,
cuja indolência era para elle um supplicio.»
(Cretineau-Joly. Hist. da Companhia de Jesus,
Paris, 1846).
«O Padre A. Vieira, um dos vultos mais grandiosos
do século XVII por sua palavra eloquente, por sua
capacidade superior em administração e diplomacia,
por sou fervoroso apostolado na America, pertencèu-
nos por mais de um titulo. Grande orador, epistolo-
grapho, e escriptor místico e politico, é um dos
maiores engenhos que produzio Portugal depois de
Camões.
Este orador sagrado, que pode por sua eloquência
ser comparado a Cicero, ou a Bossuet, apezar do
abuso que fez da agudeza de seu engenho, um dos
mais perspicazes que se conhecem na Republica das
Lettras, éao mesmo tempo o prosador mais eloquente
da lingua portugueza, o mais correcto e perfeito sem
contradicção, o pela ventura o mais bem apreciado dé
todos, por ser o que mais se approxima de nossa
idade e modo de fallar.
Linguagem depurada e castiça, admirável proprie-
dade de termos, riqueza e variedade de elocução,
viveza de imagens, novidade e primor de pinturas*
modos de dizer concisos, expressivos, engenhosos,
são dotes que sobresahem a cada passo neste es-
A. v. 31
812
criptor insigne, e lhe assignam como mestre da
língua úm dos primeiros logares, entre os primeiros.
Vteíra não é um homem, mas a eloquência en-
carnada no homem.
Como epistolographo não tem rival em Portugal
e corre parelhas com os grandes modelos da anti-
guidade.
As cartas de Vieira são modelos de estylo epistolar.
Taes são os grandes dotes do seu engenho, que
a posteridade o admirará sempre como uma das
intelligenciás mais privilegiadas.
Os brazileiros, e sobretudo os maranhenses e pa-
raenses, devem um testemunho de gratidão á me-
moria deste homem superior ao seu século, que
tantos serviços prestou á grande ^ausa da humani-
dade na America».
Francisco Sotero dos Reis. Curso de Litieratura,
vol. 2.o, 1867).
«Um dos mais distinctos ornamentos da sua ordem
e da sua pátria. Nomeado pregador régio, grangea-
ram-lhe os seus sermões a maior reputação. São
èlles realmente as mais extraordinárias composições
idesíe género: nada lhes pode exceder a absurdidade
na parte typica e allegorica, a não ser talrez a ingenui-
jdade assim pervertida, mas a par disto encontrão-se
uma liberdade politica egual á de Latimer, com quem
o orador frequentemente se assemelha tanto no estylo
como na destemida honestidade, uma satyra pungente,
Uma felicidade de expressão, uma valentia de lin-
guagem, e uma eloouencia a jorrar da plenitude duma
imaginação rica e dum nobre coração, que tem feito
dos escriptos de Vieira, apezar de toda a sua liga, a
gloria e o orgulho da litteratura portugueza.»
. (Robert Southet/. Historia do Brasil, Edic. Port.,
Rio de Janeiro, 1862, vol. IV;.
243
«Vieira (António), celebre pregador portuguez;
nascido cm Lisboa em 1608, entrou com a id^de de
15 annos para a ordem dos jesuítas, na Bahia, Brazil,
e fez proscntir desde então o futuro orador da cadeira
christã.
A datar de 1652 Vieira, depois de ter recusado o
episcopado, dedicou-se particularmente ás missões
dos selvagens do Brazil, onde chegou a civilizar m,ais
de 600 léguas do paiz, e estabeleceu o Evangelho, as
artes e a liberdade.
Accusado perante a Inquisição de ter enunciado
proposições condemnadas pela Egreja, recobrou sua
liberdade em 1667 depois de dous annos de prisão,
sem que se lhe exigisse retratacção alguma.
Seus sermões têm sido traduzidos em hespanhol*,
em italiano, em latim e em allemão».
(Goslchler. Dicc. Encyc. da Theologia Cath., vol. 25).
«Chrisostomo c Vieira, estes dous luzeiros da ora-
tória sagrada, chegaram ao apogeu de seus resplen-
dores vingando os árduos caminhos da virtude, a par
e passo que subiam nos da scfencia. Verdadeiros gi-
gantes desde o principio de sua carreira!
Ambos, pelos raros talentos com que a natureza e a
graça os enriquecera, oppozeram um peito de bronze
á prepotência dos grandes por zelo da honra de Deiís
e em prol de desvalidos; e quanto não soffreram por
isto!
E para mais particularisar a eloquência de ambos.,
três qualidades características nota Isidoro ria de
Chrysostomo: a facúndia da dicção, xi belleza das sen-
tenças, a multiplicidade e força dos argumentos. Q
mesmo louvor merece a eloquência de Vieira, salvo
os gongorismos e outros desprimores de seu tempo.
Em seus sermões nota-se dicção altamente fecunda,
sentenças em grande numero e sobremodo bellas, ar-
gumentos multiplicados e qual delles mais poderosos
o seu estylo se conforma com a natureza do assumpto,
244
já sublime, já ténue, já impetuoso, já insinuante, já
florido e pomposo.»
(Padre António Honorati. O Chrysostomo Português,
Lisboa, 1878).
«Grande orador, eximio litterato. escriptor de agi-
gantado fôlego, politico, diplomai ico, economista,
cathequisador, religioso activo, o mais audaz con-
selheiro em alvitres lembrados, e o mais perspicaz
nos desígnios e planos, tal foi o Padre António
Vieira.
Foi elle o mais genuino e fiel representante do seu
tempo, da politica, da nacionalidade, da lingua e
da htteratura de Portugal.
Caracter forte, natureza robusta e vontade firme
nunca recuou, nunca se atemorisou diante do perigo,
e nunca se desvaneceu no seio da potestade e da
grandeza.»
(Conselheiro Pereira da Silva. Nacionalidade, lingua
e Htteratura de Portugal e Brasil, Paris, 1884).
João Lisboa trata o notável jesuíta com demasiado
rigor, e não obstante accrescenta em seu importante
trabalho:
«Homem singular e extraordinário, escriptor elo-
quente e soberbamente inspirado, e grande orador,
esse insigne A. Vieira tanto deve viver hoje pelos
seus escriptos, como outrora viveu pelas suas pa-
lavras e façanhas.
«A' uma noticia vasta, immensa e quasi universal
de todas as sciencias, reunia Vieira a novidade e
agudeza, própria do seu engenho, com que tratava
e desenvolvia as matérias, a facilidade, pureza, cópia
e energia da linguagem, não menos que a efficacia
e nobreza da declamação e do gesto, em que &ra
singularmente ajudado pelos dotes corporaes.
«Fizeram-lhe sumptuosas exéquias tanto na Bahia
245
íf ( como em Lisboa. Quanto havia de ilkistre na no*
breza, na religião e nas lottrn.s acudio n honrar nestas
solemnidades a memoria do grande pregador, so-
*■' peados ou esquecidos então os sentimentos de inveja
e de ódio, absorvidos todos nos da admiração e es-
tima dos seus grandes talentos e virtudes.»
(João Francisco Lisboa. Vida do Padre António
Í Vieira, Rio, 1877).
L
«Orador sagrado, epistolographo, escriptor politico,
hábil diplomata e primeiro estadista de seu tempo,
o grande Padre António Vieira, em summa, 6— um
dos vultos mais extraordinários do seu século, com
3uem a natureza ás mãos largas tora. pródiga em
otar com todas as virtudes e grandes qualidades
do génio, e defeitos de sua Índole e da sua épocha,
e que deslumbraria o velho mundo como estadista
e politico, si a vocação lhe não andasse errada*
constringindo-lhe e abafando as aspirações e ousadias
na roupeta do jesuita.»
(Dr. António Henriques Leal. Vida e obras de João
Lisboa).
«Vieyra (António), celebre pregador c missionário
porfuguez, nasceu cm Lisboa em 1608, morto na
Bahia em 1697.
O padre Vieira era um destes pregadores de tem-
Eeramento singular, de est ylo colorido e extravagante,
ornem de profundo saber e um dos mais vigorosos
espíritos que produziu Portugal.
Versado no estudo das línguas antigas, escrevia
em latim com o talento de Erasmo, falava e escrevia
as principaes línguas da Europa, tendo aprendido
todos os idiomas do Brazil. Era, de mais, um histo-
riador exacto, escrupuloso, cousa rara em sua época,
e elle mostrou nas suas cartas politicas sobre as
246
missões do Brazil uma grande elevação de ideias e
de sentimentos.
Os seus sermões são seguramente neste género a.
collecção mais original que existe. Um delles, o que
foi pronunciado na Bahia, na egreja d'Ajuda, pode
passar por uma obra prima. Abbade Raynal, tra-
duzindo as principaes passagens, diz, com razão, que
é o discurso mais extraordinário, que se tenha
jamais ouvido num púlpito christâo.
Perseguido pela Inquisição, onde esteve preso
cerca de 26 mezes, recebeu do Papa Clemente X
uma brilhante reparação e uma distineção talvez única,
na historia ecclesiastica, qual a de ser julgado por
Um concilio de cardeaes e publicar suas obras in-
dependente de qualquer censura.»
(P. Lirousse. Dicc. Universal, vol. XV).
«Ninguém antes do Padre Vieira penetrara em
Portugal nos arcanos da verdadeira eloquência,
nenhum affrontára os raios da imprensa, sendo por
isso impossivel aquilatar- lhe o mérito.
Partecipava de quasi heterogéneos predicados;
possuía a violência cie Demosthenes, a abundância e
fluência de Cicero, não desconhecia os recursos ora-
tórios de S. João Chrysostomo, nem o imaginoso
estylo dos padres alexandrinos, entresachado de dis-
tineções e subtilesas. Arrastava-o o excessivo amor
do paradoxo; cra-lhe a antithese saboroso alimento,
pagando pingue tributo ao máo gosto da época em
que vivia.
que entretanto tem deslumbrado grande numero
de críticos é a admiração pelo magestoso estylo de
Vieira e pelo cabal conhecimento que tinha da íingua
vernácula de que ainda é um dos primeiros clássicos.
A' imitação das de Cícero são as cartas do Padre
Vieira uma espécie d'auto-biographia, repleta de
abundantes dados para a historia de seu tempo. >>
(Cónego Dr. Fernandes Pinheiro. Historia Litíe-
raríz, vol. II, Rio, 1873).
•247
0(fe] í?
. «O nosso compatriota, o grande Padre Anfonio
5( e ^ Vieira, o maior orador sagrado, a maior intelligencia
y^ politica, o maior estadista e o mais atillado diplomata
Ijiii ^ e seu tem P°» J á em *640 sentindo as agonias dos
C' seus conterrâneos, em um sermão de visitação, pre-
'. ' gado na igreja da Misericórdia da Bahia, em presença
do 1.° Vice-rei, Marquez do Montalvão, falou-lhe
com a sua costumada franqueza, reconhecendo a
má politica do governo metropolitano, e ameaça va-o
com a independência, demonstrando com os factos
a necessidade de separar-se o Brazil de sua metro-
* ft polé, se as causas que tanto tinham aggravado as
circumstancias, seguissem o mesmo rumo.»
(Dr. Mello Moraes. Brazil Histórico, 1867).
sefe
mê.
a
Fevereiro, 26—1641. — «Para felicitar o rei accla-
mado (D. João IV;, dando-lhe conta do reconheci-
mento de sua autoridade e acclamação no Brazil,
ordena o Marquez de Montalvão, vice-rei da Bahia,
que partisse seu filho o mestre de campo D. Fernando,
acompanhado de dous jesuítas celebres, o padre Si-
mão de Vasconcellos, chronista da Companhia de
Jesus e autor de vários escriptos, e o fecundo padre
António Vieira que com 33 annos de idade ia agora
recommendar-se por seus talentos na Europa, não
só como pregador de primeira ordem, vindo a sel-o
da Corte, mas até como estadista e conselheiro dos
reis nos casos mais críticos.»
Julho, 18 — 1697— «Morre no seucollegio da Bahia
o celebre jesuíta António Vieira com cerca de 90
annos de idade. Era filho do Lisboa o tinha vindo
para a Bahia de 8 annos de idade em companhia do
S3us pais.
O nome do Padre António Vieira é clássico em
Portugal e no Brazil não só por seus escriptos, como
pelos seus serviços durante muitos annos empregados
na cathechese dos índios, dos quaes foi o mais valioso
patrono.»
(José de Vasconcellos. Datas Celebres, Recife, 1872).
248
«O nome de Vieira 6 popular cm Portugal e no
Brazil, não sô pelos seus numerosos escriptos, em
que joga admiravelmente e de um modo peregrino
com a nossa lingua, como pelos serviços que prestou
durante longos annos na cathechese e civilisaçãò
dos indígenas, dos quaes foi, no seu século, o mais
valioso patrono e infatigável apostolo.
Como escriptor e orador sagrado é considerado litfi
dos mais puros o portentosos da lingua portugtieza, a
qual muito lhe deve em conceito e elegância.»
, Depois de transcrever a apologia, que do famoso
jesuíta, fez o bispo do Viseu, accrescenta: «E* o
maior elogio que se possa tecer a um escriptor por
mais competente juiz: Vieira merece-o.»
(Dr. Teixeira de Mello. Ephemerides Naciônaes,
Rio, 1881).
«Iguala em autoridade, acerca do mesmo successo,
(tomada da Bahia) a Annua da Província Brazilica
da Companhia de Jesus em 1624 el625, escripta pelo
Padre António Vieira, ainda então muito joven, mas
já manejando a penna com a facilidade, lucidez e
brilho com. que veio mais tarde a distinguir-so tanto
nas lettras.»
(Visconde de Porto-Seguro. Historia das Luctas).
«Foi um verdadeiro génio este homem notável...
Era Vieira dotado de espirito agudo e prompto,
bastante instruído, de muito engenho, e fácil e sen-
tencioso no dizer. O seu estylo, corrente e vivo, é as
vezes magestoso. Sua linguagem é sempre correcta,
agradável e pura. Os seus pareceres políticos, bem
que nem sempre conscienciosos, nem coherentes uns
com os outros, sào admiravelmente deduzidos; e a
sua correspondência epistolar è sentenciosa, cheia de
continuados encantos, e repleta de noticias, que se-
249
riam de mais importância para a historia, se o es-
criptor se recommendasse por dotes de verdade é de
boa fô a toda prova.»
(V. de Porto- Seguro. Historia Geral do Brasil,
vol. 2 o ).
«Vieira foi um homem de peregrina inlelligencia,
de instrucção muito ampla para seu tempo, e ao
mesmo tempo um orador eminente e um escriptor
distincto.
Ha na sua vida factos que provam que elle era do-
tado de unia força de vontade extraordinária e capaz
de virtudes raras.»
^ (Dr. Anselmo da Fonseca. A Escravidão, o Clero e
• o Aboli cionismo, Bahia, 1887).
«Os grandes oradores da tribuna portugueza, Gar-
rett, Rodrigo da Fonseca, José Estevão, Rebeílo da
Silva, todos o manuseavam com fructo. O Sr. Latino
Coelho toma-o como um dos seus mais queridos con-
vivas littorarios: sabe quasi de cor os seus sermões,
militas vezes molda pela phraso vieirense a phrase
dos seus próprios escriptos.»
(Diccionario Popular. Vol. 13. Pag. 193. Lisboa,
1884).
«Se me não enganam os testemunhos de sábios
infinitos, nem antes nem depois deste singular ora-
dor tivemos penna do mesmo aparo. Possuiu em
grau sublime todas as delicadezas, propriedades e
energias da língua; por isso ainda ninguém duvidou
usar de vocábulo, phrasB e expressão achada em
seus escriptos. Seguir sempre em tudo e por tudo o
fallar de Vieira é uma seguríssima regra de conse-
guir não só a pureza, mas o louvor de ter todo o co-
A. V. 32
, 250
nheciraento das subtilezas do idioma portuguez;
porque nenhum outro clássico temos que escrevesse
tanto e sòbfe tão diversas matérias.»
(Francisco José Freire. Reflexões sobre a língua
portuguesa, Lisboa, 1842).
ANTÓNIO VIEIRA E A RAINHA DA SUÉCIA
«En 1669 il fut appellé á Rome par son General, á
la sollicitation de la Reine Christine, toujours cu-
rieuse de voir et d'entendre les hommes extraordi-
naires.
Elle entendit Vieira, et Tinvita aux Conféronces
savantes, qui se faisaient dans son Palais; elle le
gouta mêmeá un tel point, qu'elle résolut de lefixer
& Rome, et de se Pattacher á titre de Confesseur:
mais Tair de Rome lui étant contraire, il fut obligé
de retourner á Lisbonne, ou vil revint en 1676. La
Reine de Suôde persista néanmoins á vouloir Pa voir
pour Confesseur; elle engagea le General de la Com-
Íagnie á lui écrire, ce qu'il fit le premier Dôcembre
678; mais en lui proposant la chose, il lui laissa la
liberto de faire ce qVil jugerait á propôs. Vieira s'ex-
cusa» et pour n'étre pas exposé áde nouvelles solli-
citations, il s*embarqua pour le Brésil enl6Sl.
(Chaufepiè. Dictionnaire Historique, voL 8 t pag. 573
Í7S6).
Latino Coelho fazendo um confronto entre o Pa-
dre António Vieira e D. Francisco de S. Luiz, assim
se exprime:
«Em ambos è o patriotismo ardente a principal
camena que os inspira* Em António Vieira» o amor
de sua terra exalta sob a roupeta do jesuíta os ta-
lentos e os recursos do estadista. Em D. Fr. Fran-
cisco <Je S* Luiz, similhante e não menos fenroroos
i
251
sentimento lhe accende, sob a humildade da cogiilla
os brios e os esforços para as grandes eropre?as f
em que vae a salvação e o bem do estado. Fr.
Francisco de S. Luizapparece pela primeira vez rça
scena publica, membro de uma junta popular levan-
tada no Minho para organisar a resistência da .pro-
víncia contra as phalanges invasoras do pri^íieiro
Napoleão. O padre António Vieira apparecp como
ligura principal em todas as occasiões c em todos os
logares, em que se pede contra a airogawfcia caste-
lhana um coração verdadeiramente portuguez, um
espirito fértil e inventivo, um animo aventuroso e re-
soluto e um conselho prudente e moderado.
Quasique não subiu uma só vez ao púlpito, que
não aproveitasse aquella só tribuna dos seus tempos
. para vindicar os foros dos humildes, e para dourar
\ nas apparencias da homilia a objurgação politica e
a vehemente imprecação contra os que, por ambições
e desacertos, arriscavam a honra d'este reino o devo-
ravam a mais preciosa substancia da nação.
Em um e em outro sempre o culto da patrra nas
emprezas e nos escriptos.
O padre Vieira que descorrera por tantas peregri-
nas regiões, enriqueceu a lingua com palavras e
modismos que João de Barros houvera taxado de
contrários á vernacul idade, como a elle entendia e
praticava.»
(Latino Coelho. Elogios Académicos, vol. í).
ANTÓNIO VIEIRA E JOSÉ ESTEVAM
«Notava-se-lhe certa familiaridade com alguns dos
nossos clássicos, e sobretudo intima convivência com
os livros do Padre Vieira.
A cada momento appareciam trechos,, que lembra-
vam as ousadias e as elegâncias, que em tantos
períodos estimados cunham o estylo admirável da-
quelle engenho ainda mais apto para a eloqtjeflcia
1
. 252 . ,
politica, do que para a persUasa,ò. religiosa,, engenho
'comprimido pelo habito e pela ;época, cujas èxplo-
j soes repentinas transformando çj^ púlpito era tribuna,
* tantas vezes converteram, o pariegyrico em sqiyras,
. píara cravar os validos na cru^V.dò rnau ladrão, ou
< para na mais plangente das irtfôiàs, flageílar uma
, legião inteira de perseguidores, peaindq aos peixes o
, thema e o disfarce.»
(Rebello da Silva. Biograp/tiu dj J° 8( * Ettevam).
O idioma pátrio tornou-se em suas mãos um instru-
mento dócil, poderoso e irresistível.
(Retíêlloda Silva. Varões /Ilustres):
«Homem extraordinário, patriota ardente como
ninguém, o Padre António Vieira foi um conselheiro
cujo génio quasi universal o rei (D. João IV) admi-
rava, um amigo querido, que valia para elle mais. do
que todos os seus ministros e diplomatas, porque lhe
dizia a verdade.
Ò Padre era grande demais para ser um favorito!»
(Joaquim de Vasconcellos. Plutarcho Português).'. [
«A face dominante do Padre Vieira é a sua coope-
ração diplomática em todos os negócios que a nova
dynastia dos Braganças teve de propor ou propugnar
nas cortes estrangeiras. Visto a esta luz o vulto de
Vieira toma proporções colossaes.
«Plinio escrevendo a Tácito, dizia-lhe: «Felifces os
que sabem praticar cousas dignas de serem eseri-
f)tas, ou de escreverem cousas dignas de serem
idas.» Tal 6 a característica do grande homem; Vieira
possuiu esta dupla capacidade.» '
(Theophiló Braga. Plutarèhò Português)! • '* ■
253
«Homem eminente, quo na longa carreira .de quasi
um século deu á pátria no velho e no novo mundo
provas irrecusáveis de vasiissimo^alpato, nao menos
que de applicaçâo estudiosa, e de Subtil penetração
nos negócios mais árduos da- monarchia. Admirado
no retiro do sou cubículo, applaudido nos púlpitos,
ouvido e consultado nos gabinetes' dos soberanos em
tempos de maior perigo; lfcgotrporfinrá posteridade
apesar de cmulos e dottatetores um nome impero-
ciTel.» :í f •••;
(Innocencio Francisco da $tfp$ h Archioo Pitto-
resco, 1868).
«Nunca a nossa língua soou mais bolla, opulenta,
enérgica e magestosa, do que na bocca.dest.c emi-
nente orador. Para elle, o púlpito foi muitas vezes
tribuna. As suas orações não excitavam unicamente
sentimento religioso; mas, quantas vezes cnthiisi-
asmavam, quantas vozes também verberavam a cor-
rupção da corte e os escândalos do governo. Era um
poeta e um pensador. O homem que nos sermões
sabia casar com uni lyrismo inexcouivel de phrase,. a
alteza do pensamento phylosophico, o homem que fa-
zendo vibrar essa lyra de mil cordas que tinha ha voz,
ora arrancava lagrimas ao auditório, ora lhe fazia
correr nas veias o frémito do patriotismo, da ira sa-
grada, do nobre enthusiasmo, úquelles que tinha
presos da sjua palavra colorida, em que se traduziam
sublimes ideias, a corte e o povo, os róis e os pon-
tífices, os nobres e os plebeus, os ignorantes e os
sábios I ! »
E mais adiante: «Os seus «Sermões» e as suas
«Cartas», além de outras obras notáveis que publicou,
dâo-lhe um dos primeiros lugares entre os Clássicos
portuguçzes; o so haverá quem o vença em limpidez
de linguagem, ninguém o excede na energia da lo-
cução e na propriedade dos termos. Soube afinar
admiravelmente o idioma portuguez, instrumento ma-
254
ravilhoso, em que ellò fez vibrar melodias immor-
taes.»
(Pinheiro Chagas. Portugueses Illustres).
«Illustre jesuíta, sábio orador e o clássico mais
autorisado da lingua portugueza. Nenhum outro
clássico temos que tanto escrevesse e sobre tio di-
versas matérias, e foi encarregado de importantes
missOes diplomáticas cm Paris, Amsterdam e Roma
mostrando grande vocação para a politica.»
(Theodoro José da Siloa. Miscelânea Histórico -
Biographica. Lisboa, 1877).
— «E* elle um dos primeiros, senão o maior dos
prozadores portuguezes.»
(The Century cyclopedia. New- York, 189 <5).
<*E' incontestavelmente a individualidade mais sa-
liente d 'entre os jesuítas de seu tempo em Portugal e
Brazil, tendo por mestre entro outros a Fernão
Cardiíw. Notabilisou-se no púlpito, nas lettras, na
politica, quer no Brazil, quer em Portugal, quer na
cidade dos Papas.
Suas viagens ao Marajó, á Serra da Ibiapaba são
conhecidas pelas luctas, que travou em favor da li-
berdade dos índios, pela tenacidade e zelo apostólico
com que se houve, pelos resultados que colheu na
pregação da fé catliolica.
Essa grande figura do século XVIf portenee-nos
palmais de um titulo. Elle próprio disse-o: oPelo se-
gundo nascimento devo ao Brazil as obrigações de
pátria.»
(Dr. Guilherme Studart — Datas e Factos sobre a
flistoria do Ceará, 1896).
255
aFoi exinno pregador, notável epMolographp &
autor de opúsculos de menor valia.
Como orador sagrado attinge universal nomeada, e
aos Brazileiros sympathicamente se recofacn^oda
como propugnador da liberdade dos índios, e elo-
quente adrersario da invasão hóllandeza. Envolvido
nos interesses políticos da época, prestou relevantes
serviços á sua pátria.
Viveu largos annos no Brazil, e em Roma pregou
perante o summo pontífice Clemente X. Em sua tra-
balhosa existência duas vezes provou as agruras do
cárcere: no Maranhão, onde foi preso pelos^ sectários
do escravisamento dos indígenas e remettído para o
reino; e pela Inquisição, que levara amai certas arris-
cadas proposições do Quinto Império.
Posto que pague copioso tributo ao immoderado
gosto das antitheses, Vieira ó um dos melhores
mestres da lingua e offerece lato campo de estudo
aos amadores da vernaeulidade.»
(Fausto Barreto e Carlos de Laét — Anthologia Na-
cional. Rio de Janeiro, 1896).
«Grande Padre! chamavam os innocentes Índios
do Brazil ao seu gençroso mestre; e, tão grande, que,
até hoje, em terras portuguezas, nenhum outro se
lhe avantajou na universalidade da grandeza. Eu con-
fesso abertamente que, ao ler a historia pátria, nunca
vi passar ante meus olhos, um vulto mais enorme-
mente grande. Que orador ! que esçriptor I que di-
plomata I que sábio I que apostolo !
Como orador, deve medir-se pela estatura de Do-
mosthenes, pela pujança de Cicero, pela envergadura
de Chrysostomo e pela magestade de Bossuet; a não
ser que na erudição phcnomenal e no engenho sub-
tilissimo e fertilissimo, ganhe sobre excellencia a
todos quatro. Accresce, que nunca recebeu sombra
de reconhecimento ou um real pelos seus sermões, e,
dos estampados, outros gosaram o proveito.
Como escriptur, é indubitavelmente o nossopri-
256
meirò clássico, representando é resumindo com Lujz
de Camões a máxima gloria littcraria de Portugal. .
Como apostolo, excedendo em aptidões o próprio
S. Francisco Xavier, nao admitte, depois de S. Paulo,-,
confrontos e parallelos em toda a Egreja CathoIica.>
Elle, o egrégio pregador da corte de Lisboa e da ci-,
dade Eterna, o Bossuet portuguez, que regeitara
mitras episcopaes e purpuras cardinalícias offere-
cidas á sua escolha, o sacerdote portuguez mais ce-
lebrado e afamado na Europa, um tal, homem, n'um
artranco de fervor apostólico, despreza a opulência
dos paços, abandona o luzimonto dos príncipes, es-
quece o applauso dos admiradores, e no impulso de
civilisar gentios, abala, foz em fora, aproando aos
sertões do Brazil !» ,
(Alves Mendes — Lisboa, 1897).
«A sua existência foi uma das mais activas e
illustres do seu tempo. Grande pregador, grande poli-,
tico, grande escriptor, missionário, grande coloni-
sador, esteve envolvido nos maiores negócios, tratou
com os maiores personagens o trabalhou pelas maio-
res idéas de sua época.
Os seus magniticos sermões arrebatavam tanto a'
gente inculta do Brazil, aomo encantavam em Roma*
o sábio e requintado mundo dos prelados rrírhanos.
A sua fama estendeu-se por toda a Europa.
Depois de ser confidente dos reis e dos papas, de
ter conhecido as grandezas do mundo e as do alto
saber, morreu com a pobresa e a simplicidade de
um mystico, na capital da Bahia.»
(Eça de Queiroz. Almanak Encuelopedico para
1897).
«Quem ha ahi que o nao conheça? Quem nao terá
lido, em mil fragmentos, dispersos em logares se-
257
lectos e rapsódias clássicas, os mais bellos trechos
cTesse escriptor incomparável ?
E se ha vultos gloriosos, que immortalisàm uma
nação, Vieira é um (Telles; tão sublime e enorme é
-a sua compleição genial, e tão levantada a sua fi-
gura I»
(Revista Catholica— Lisboa, 1897).
«Nas missões do Brazil serviu a causa da humani-
dade e do progresso, nas commissões diplomáticas
serviu a causa da pátria, e do púlpito abaixo, com a
eloquência de sua palavra inspirada, serviu a causn
da língua nacional, descobrindo n'ella primores e
•encantos de harmonia e de vigor, que talvez desde
•Camões não tivessem sido muito explorados e quo
no seu tempo estavam a submergir-se sob a onda in-
fecundante do gongorismo.
Os serviços que António Vieira prestou ao idioma
portuguez bastavam para o glorificar.»
(Correio da Europa — Julho de 1897).
«Quem appareceu n^quelia época mais patriota,
mais trabalhador, que mais se multiplicasse em ser-
viços de toda a espécie e em toda a parte do que o
Padre Vieira?
Cumpre um dever exaltando a memoria de Vieira,
portuguez de lei e servidor da sua pátria, como
poucos.
O Padre António Vieira, debaixo da sua sotaina,
foi o maior liberal de seu tempo. Disse verdades
amargas ao povo e ao Rei.»
( Thomaz Ribeiro) .
A. V. 33
•258
«Glorioso sacerdote, exemplo sublime de génio, de
talento, de saber, de zelo, de dedicação, de actividade
e de patriotismo, qualidades que sobrenadam e re-
sistem atravez a Historia.
Quando parecer que a memoria do grande Vieira
desceu novamente á obscuridade e ao esquecimento,
vel-a-hemos dentro em pouco reapparecer trium-
phante e ainda mais pujante da vida, no apreço uni-
versal do seu nome, na reedição de suas obras, ver-
dadeiras jóias litterarias, na sua leitura muito mais
assidua, no culto mais positivo e na imitação d'essa
lingua que elle fixou, que elle crystalisou na per-
feição, que elle manejou com tanta clareza, riquezau
e magestade.»
(Padre Senna Freitas. Lisboa, 1897).
ÍNDICE
PARTE PRIMEIRA
Conferencias sobre o Centenário
Pa*
Discurso inaugural 3
Conferencia do Dr. Braz do Amaral 11
Conferencia do Dr. Ernesto Carneiro Ri-
beiro . 39
r\ Conferencia do Revd. Padre Elpidio Tapy-
ranga 59
Conferencia de Monsenhor Dr. Basílio Pe-
reira 77
PARTE SEGUNDA
À commemoraçfio do Centenário
r A Procissão Cívica 155
Exposição Bibliographica 172
Opinião da Imprensa 184
PARTE TERCEIRA
Vida e obras do Padre Vieira
Noticia Biographica 205
Seu processo perante a Inquisição 216
Catalogo das obras impressas 222
Opiniões sobre Vieira 225
n
i
l -s|í- DA 4^ AH I Ar- -■*■••
I
^7 -jrêtetf
£l
3 2044 019 630 656
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