A. do Prado Coelho
Professor efectivo do 3.° grupo no Liceu Nacional de Lamego
Diplomado com o Curso de Habilitação ao Magistério Secundário Oficiai
Sócio da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos
5"
tionoré Oe Bahac
Ru gostaria de que, quando se escreve sobre
um autor e considero sobretudo o caso de
lalar dum poeta ou dum artista, dum autor
de sentimento ou de imasfinaçào), se pusesse
na ideia que ele está presente e a ouvir o
que dizemos a seu respeito.'
Saixte-Beuve.
[('(iiisertes dii Liiiidi, t. xiii).
Em presença de homens superiores, a sim-
patia é a via mais segura para compreen-
der; e a obra mais útil da critica é explicar
em que os grandes homens foram grandes,
as molas secretas do seu génio, os motivos
legítimos da sua influencia . . . Não é sobre
as partes duráveis e benéficas que se torna
mais necessário insistir? . . . As influencias
benéficas são eternas. >
G.ABKIHI. Mo.VOlJ.
iReiíaii. Tatue, Miclwlet, Dedicatória".
cS^^^©.^^
PORTO
PROPRIEDADE e EDIÇÃO do AUTOR
A
. 6éíf
/
ílonoré De Dal^ac
Do autor:
O Ensino do francês, pelo Método directo, na Instrução
secundaria (Esboço didáctico), 7S pag., Porto, 1912.
[Depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa e Publica do Porto e
oferecido ás Bibliotecas das Faculdades de Letras, dos Liceus
e das Academias e Sociedades scientificas e ao professorado
superior e secundário,]
A. do Prado Coelho
Professor efectivo do 2.° grupo no Liceu Nacional de Lamego
Diplomado com o Curso de Habilitação ao Magistério Secundário Oficial
Sócio da Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos
tionoré de Bal^ac
Eu gostaria de qu?. quando se escreve sobre
um auior ,e considero sobretudo o caso de
falar dum poeta ou dum artista, dum autor
de sentimento ou de imaginação), se pusesse
na ideia que ele está presente e a ouvir o
que dizemos a seu respeito.»
Saixte-Beuve.
Causeric> dti Litiidi, t. xiii).
Em present,-a de homens superiores, a sim-
patia é a via mais segura para compreen-
der: e a obra mais útil da critica é explicar
em que os grandes homens foram grandes,
as molas secretas do seu génio, os motivos
legítimos da sua influencia . . . Não é sobre
as partes duráveis e benéficas que se torna
mais necessário insistir?... As influencias
benéficas são eternas. >
Gabriel Moxod.
{Remiti, Taine, Michelet, Dedicatória).
cS^^i^e^^
PO RTO
PROPRIEDADE e EDIÇÃO do AUTOR
Composto e impresso n» tip. oo Porto
Medico. Pn»ç« o» B«
PREFACIO
ESTE estudo, cujo objecto f' a humanidade de
Halzac, a humanidade nas (jr andes obras de
Balzac, indue-se num género de critica que
se conrencionou denomitiar Impressionista, gé-
nero que, com Faguet, no seu Flaubert, por exemplo, adquiriu
foros de alta critica.
Estou conrencido de que o impressionismo de valor na
critica não chega só a conclusões provisórias, apesar do perso-
nalismo do critério : tem uma função mais elevada, um alcance
mais vasto do que crêem aqueles que temem que o subjectivismo
do sentimento literário prejudique o rigor a que legitimamente
aspiram, cada vez mais, os estudos literários.
Determinei tratar de Balzac, porque todas as impressões
me induziam a crer que não houve ainda maior criador de
humanidade.
Lendo e relendo Balzac, com a inteligência e o corarão
igualmente empenhados em perceber e em sentir, esfabeleceu-se
solidamente uma corrente de alta simpatia entre o meu espirito
€ o espirito da sua criação. E foi essa corrente de simpatia
que me impeliu, muito particularmente, a conhecer tão de
perto, o mais perto que pude, essa criação.
Estudar dentro chr antipatia, ou mesmo simplesmente
fora da simpatia, é, de certo, uma das mais ingratas ocupa-
ções.
Estudar, pelo contrario, com sl)npatia, com uma simpatia
profunda, é um enlevo, é uma delicia.
Eu devo ao estudo de Bahac, como, em geral, ao que
tenho consagrado aos grandes realistas, o maior prazer da
minha vida.
Devo-lhes as mais intensas sensarões da minha alma.
A simpatia, (fuer seja a da inteligência, quer a do cora-
ção, se não é condição primeira de hem compreender, ajuda,
pelo menos, a hem compreender. E julgo preferirei criticar,
deixando-se influenciar pelo ardor da simpatia, ardor mais
ou menos apaixonado, cujos excessos possiveis a razão, o bom
senso acalmam, a criticar com a serenidade indiferente, natural
ou forrada, do que é insensível ou quer ser insensivel.
Está ainda esjjalhado, entre nós, o preconceito de que a
verdadeira critica é a que consiste sobretudo em apontar de-
feitos ou, por outras palavras, de que a critica que louve mais
do que censure, não pode ser boa crítica.
E já tempo de ter este preconceito na conta que merece.
CAPITULO I
Biografia de Baizac '
Honoré de Baizac, filho de Bernard-François Balssa
(o apelido de Baizac, note-se, foi por ele tomado, ainda em
novo) e de Anne-Charlotte-Laure Sallambier, nasceu em
Tours, a 20 de maio de 1799. O pai, natural de Nougairié,
no departamento do Tarn (meio-dia da França), tinha qua-
lidades de inteligência, tornando-se merecedor de conside-
1 Discordo da opinião, de Lawton {Baizac, London, Grant Ri-
chards Ltd., 1910), segundo a qual os romances de Baizac «são lite-
ralmente a sua vida». Discordo ainda da de Le Breton {Baizac, Paris,
Colin, 1905), mais racional, expressa nestas palavras: «A vida de
Baizac explica as suas obras, dá-as antecipadamente a conhecer».
Inclino-me para a de Brunetière {Honoré de Baizac, Paris, Calmann-
Lévy, 1906), para quem tanto valia conhecer a vida de Baizac, como
a de Shakespeare, considerando verdadeiro, na essência, o seu con-
ceito de que obras da amplidão e solidez das de Baizac não podem
ou antes não devem fazer-se hoje depender das circunstancias da
sua produção.
Com o tempo, a Comédie Humaine tem-se tornado cada vez mais
evidentemente verdadeira, o que é a prova mais frisante da vida
absoluta da criação. Julgo que a vida do criador deve reputar-se re-
lativamente secundaria. Que grandes acontecimentos da vida de
Baizac e até incidentes de momento o inspirassem, lhe fornecessem.
temas, não oferece duvida. Que Baizac vivesse nas suas figuras (sem
o que, como observou Faguet, ele não poderia fazê-las vivas) não
sofre contestação.
Mas aparte as alusões directas, as declarações expressas, só por
conjectura se pôde pretender que, neste ou naquele passo da acção,
que nesta ou naquela figura, quisesse o autor revelar-se-nos, qui-
sesse retratar-se. As identificações das figuras de Baizac com o seu
8 HONORÉ DE BALZAC
ração. Foi homem de ilusões fáceis, cheio de imaginação,
como o filho. Era de modestissima origem.
A mãi, parisiense, tinha um temperamento nervoso,
muito susceptivel, irritável, o que nela não excluia uma
grande capacidade de dedicação e de sacrifício, como pro-
vou com o filho.
Balzac, aos cinco anos, frequentava já um colégio de
Tours, chegou mesmo a frequentar o liceu antes de dar
ingresso, aos nove anos incompletos, em 22 de junho de
1807, como interno, no Colégio de Vendôme, na Touraine,
donde saiu, em 22 de agosto de 1813,
No registo da frequência do Colégio, ha alusão, em
termos lacónicos mas precisos, ao temperamento sanguineo
do novel estudante. Os mestres tinham tido tempo para
lhe conhecer a organização fisica, mas a inteligência do
fogoso colegial passou-lhes, parece, despercebida ou inter-
autor e com contemporâneos sempre as supus grosseiras. Balzac,
como historiador dos costumes e como psicólogo, foi um perfeito
criador. Sobre a base da realidade trabalhava sempre a invenção.
Assim como sintetizava num só, de ordinário, os acontecimentos,
duma dada ordem, em que se inspirava, tendo sobretudo em vista,
no operar dessa fusão, o espirito deles, assim também, na consti-
tuição duma figura, empregava, habitualmente, caracteres análogos,
tirados de diversas individualidades reais, organizando, desta arte,
um como que amalgama psicológico, em que o autor tinha também,
por vezes, a sua parte. Neste particular de saber em que figuras o
romancista se teria retratado, ha largo campo para conjecturas e
só conjecturas.
Em primeiro lugar, não é possível haver nos seus romances fi-
gura que o represente totalmente. Parece haver um pouco dele, em
geral, — características parciais de individualidade, — nas figuras
simpáticas que lutam pela vida e cujo talento é ignorado, e se vêem,
por isso, a braços com a escassez de meios de subsistência, explo-
radas pelos maus e pelos ricos, sacrificando-se por bem fazer e por
amor, mais ou menos descontentes e revoltadas contra a sorte ou
contra a ordem social. Encontram-se traços desses no impressor Da-
vid Séchard, das IJlKsions PenJues, no artista polaco, Steinbock, de
La CoKsine Bette, em Gérard, o engenheiro que procede á execução
material da obra concebida, sob sugestões do seu director espiritual,
O pároco de Montégnac, por Verónica, a figura central de Le Cure de
ViUage, etc.
HONORÉ DE BALZAC 9
pretaram-na mal, coutrariando-lhe as disposições. Dado á
leitura, apaixonado por livros, foi, nessa idade juvenil, um
insubordinado á disciplina apertada da escola. As lições
eram postas de parte, muitas vezes, para satisfazer uma ne-
cessidade precoce do espirito, a de produzir literariamente.
Esta uma das principais razões determinantes dos reiterados
castigos que lhe infligiam \
De regresso á casa paterna, ia, aos domingos e dias
santificados, na companhia da mãi, á Catedral de Saint-
G-atien.
Proseguindo nos estudos, voltou a frequentar o liceu
de Tours. Depois passou a assistir ás aulas dum estabele-
cimento de instrução que funcionava sob a direcção de
Chrétien, e, para melhor aproveitamento, era ensinado,
simultaneamente, em casa.
O pai. de Balzac mudou de residência para Paris, em
fins de ISl-i, a ocupar uma colocação no Comissariado da
1.* Divisão Militar. Balzac continuou a sua instrução, *em
Paris, no colégio de Lepitre, a principio, depois num outro,
dirigido por Sganzer e Beuzelin.
Tentavam-no sempre os estudos literários, escrevendo
trabalhos apreciáveis, para exames. Notava-se-lhes já a
preocupação realistica.
Procurava o pai definir-lhe a situação. Obedecendo-lhe,
entrou, como ajudante, num cartório, o de Guyonnet-Mer-
' Aos quatorze auos, no Colégio de Veudôme, Balzac escreveu
um Tratailo da lontade, além de poemas.
Esse Tratado um dos professores destruiu-o.
Três ou quatro vezes por semana, era Balzac, por motivo dis-
ciplinar, metido na prisão do Colégio: lá, devorava os livros da
excelente biblioteca da casa, numa leitura tão exaustiva que a sua
saúde robusta veio a sofrer e o seu aspecto exterior, ao ter de retirar-
se do Colégio, era tal, tão magro estava, que a avó, ao vê-lo exclamou:
«Ora aqui está como o colégio no-los entrega».
Frequentavam o Colégio de Vcndôme estudantes vindos de
muito longe, do fundo da Bretanha, como do fundo da CTasconha e
da Saintonge, o que demonstra que era um colégio de cotação.
Tem já a sua historia o Colégio como o Liceu de Vendôme, his-
toria que remonta a 1023. E seu autor G. Bonhoure.
10 HONORÉ DE BALZAC
ville. Entretanto, não perdendo de vista a instrução, fre-
quentava a Sorbona, nomeadamente os cursos de Villemain,
de Guizot e de Cousin.
Permaneceu no cartório de Guyonnet dezoito meses.
Por igual prazo, esteve, em seguida, empregado, num
outro, o de Passez. Em 1819, abandonou completamente a
carreira tabelionica. Lograra um aprendizado da especiali-
dade não talvez tão profundo como o novo critério que
acabou por formar, sobre o homem e a vida social, e que
lhe adveio do conhecimento travado com os processos que
transitavam pelos cartórios.
O pai, um dia, participou ao íilho que lhe ia arranjar
um lugar de notário. Tinha bons amigos na classe. O filho
rogou-lhe permissão para se escusar, alegando tentarem-no
muito as letras. O pai transigiu, comprometendo-se o filho
a dar boa conta de si, como escritor, num espaço de dois
anos. Balzac, animado de energia e de fé, lançou-se, sem
peràa de tempo, ao trabalho.
Os pais sairam de Paris e fixaram residência em Ville-
parisis,
Balzac ficou na capital. Levava uma vida de privações.
Mas o cérebro alentava o estômago. E a ambição de pro-
duzir não tolerava esmorecimentos. Trabalhou afincada-
mente. Estudou sempre. Observou os homens, os costumes,
a vida que o rodeava. A intuição penetrante, as poderosas
faculdades de analise arapliavam-se, aperfeiçoavam-se. dia
a dia.
Varias obras compôs, ensaios com que se adestrava.
A primeira obra que o satisfez, foi a tragedia Cromirell >.
Veio, dentro em pouco, a desgostar-se dela e do género.
Eis em que curiosas circunstancias. Em fins de abril
de 1820, levou a tragedia á familia, a Villeparisis. Leu a
peça. A impressão foi desfavorável. A juizo contrario opôs
• Balzac cultivou pouco o teatro. Estava deslocado nele.
Contudo, escreveu, ainda Vaiitrin (1840), Les Ressources de Qtii-
nola (1842), Famélu Girand (1843), La Maràfre (1848) e Lf Faiseur ou
Mercadet (1838 e 1840).
HONORÉ DE BALZAC 11
razões o autor. Quem decidiu o pleito? Um antigo profes-
sor, Surville (ou o poeta Andrieux), a pedido do pai. Exa-
minou a tragedia e aconselhou o moço escritor a abando-
nar, por falta de vocação, a carreira literária.
Resolvido, mais do que nunca, a demonstrar que tinha
a vocação que lhe negavam, Balzac regressou a Paris.
Havia de honrar o seu apelido, havia de o elevar á cate-
goria dos grandes nomes! Não carecia de vigor nem de
coragem o lutador.
Mas as dificuldades de existência eram extremamente
opressivas.
Tinha de trabalhar, e de trabalhar com êxito, para
poder viver.
Cultivaria o romance. Custasse o que custasse, havia
de vencer no novo género. Cheio de entusiasmo e de espe-
rança, tinha desvanecimentos de autor que compensavam
amarguras. Mas não era isento de abatimentos, em transes
mais rudes.
Produziu, trabalhando quanto poude, com o mais vivo
ardor, impelido pela sede de dinheiro e pela ambição
de gloria : UHéritière de Birac/ue, Jean Louis, Argoir Le
Pirate.
Eram passadas incertas, de exploração de terreno.
Ainda não estava achada a via definitiva.
Em 1821 ou 1822, deparou-se-lhe alguém, em Ville-
parisis, que muito se lhe afeiçoou. Foi a sua Dilecta, como
lhe chamou, foi Mme de Berny, grande amiga, a quem
muito deveu. Tinha mais vinte e um anos que ele.
Em 1825, meteu-se Balzac em empresas de livraria e
de tipografia. Associou-se a Urbain Canel, emprestando-lhe
d'A.ssonvillez, mediante clausulas de garantia, o capital
d'entrada.
O êxito não correspondeu. A firma não se manteve.
Balzac tornou a entabolar negociações com d'Assonvillez
e, de comum acordo, constituiu nova sociedade com Bar-
bier. Em dezembro de 1827, deu ingresso na casa um nuvo
sócio, Laurent. Barbier saiu da sociedade, depois. Com a
sua saida, acumularam-se os embaraços e a sociedade teve
de liquidar.
12 HONORÉ DE BALZAC
Não sofreu, porém, com a liquidação.
A impericia de Balzac para os negócios era um grande
mal irremediável e comprometia tudo. Os encargos acrescen-
tavam-se sempre e a capacidade de solvência não aumen-
tava proporcionalmente. Os débitos contraídos não pude-
ram ser integralmente amortizados. Isto complicou enorme-
mente, então e depois, a vida de Balzac. Deixou o negocio.
A carreira literária seduzia-o, cada vez mais irresisti-
velmente. Voltou a consagrar-se, com toda a sua alma, ás
letras. Escreveu Les Chouans, bom romance histórico, que
publicou em 1829 e que não obteve êxito.
No mesmo ano, veio a lume a Phijsiologie dit MariiKje.
que foi bem acolhida. Lançou no mercado, em 1830: La
Maison du chat-qui-pelote, Le Bal de Sceaux, La Vendetta,
Une double fámille, I^a paix dii ména(/e, Gobseck, Sarrasine,
El Verdugo, Un Episode sous la Terreiír, Une Pítssion dans
le Désert, Les deux Rêves, UElixir de lonyue vir. Datam de
1831: La Peau de Chagrin, L'Auherye rouge, Ma/tre Corné-
lius, La Eemme de frente auí^ (cap. I, IV e v), Jhus (Virist
en Flandre, etc.
Despertada a curiosidade e o agrado, subiu de ponto
a sua popularidade. O ano de 1832 foi aflitivo para Balzac
que chegou a soltar queixumes de miséria. Nesse ano mala-
venturado, por entre angustias, escreveu, num esforço pro-
digioso, Louis Lambert, íjt Colonel Chabert, Le Cure de Tours,
La Femme de trente ans (cap. III e IV), La Bourse, Madame
Firmiani, Etude de fetnme, Le Message, La Grenadiíre, La
Femme abandomiée.
Como Ferragiis e La Duchesse de Langeais, Le Médecln
de Campagne publicou-se em 1833; em 1834, além de Líl-
lustre GavAissart, LjO Filie aux geux d'or e La Recherche de
VAbsolu, Eugénie (Irandet.
Le Mêdecin de Campagne, La Recherche de VAbsolu e
sobretudo Eugénie Grandet são já grandes romances.
O labor de Balzac era colossal. Vê-se bem que lutava
energicamente pela vida e que tinha cada vez mais pre-
sente a noção do ideal.
Eugénie Grandet marca o inicio da sua maturidade lite-
rária.
HONORÉ DE BALZAC 13
Os seus progressos na criação realística eram, pois,
decisivos.
Por ocasião da publicação do Médecin de Campmjne,
pouco mais ou menos, concebeu Balzac a ideia da Comédie
Humaine.
Num repente de entusiasmo, voou a casa da irmã, a
desabafar.
«Cumprimenta-me, porque estou em via de me tornar
um génio», eis o que lhe disse, de chofre, á entrada, flore-
teando a bengala como um tambor-mór, imitando o rufar
do tambor e o hum hum da musica militar. Tão viva de-
monstração salienta a natureza do temperamento de Balzac.
As relações com Evelina Rzewuska, condessa Hanska,
que veio a ser esposa do romancista, começaram em 1882.
a 28 de fevereiro, por uma carta, com a misteriosa assina-
tura de L'Etmngh-p, que chegou ás mãos de Balzac, por
intermédio do seu editor Gosselin. Viram-se, pela primeira
vez, em setembro de 1838, na Suissa, em Neuchâtel, com-
binado previamente o encontro. Voltaram a avistar-se, ua
Suissa ainda, em Genebra, em dezembro do mesmo ano '.
Balzac assentou, desde logo, em projectos de matri-
monio.
O trabalhador foi modelo de consciência,
O excesso de produção não obstou a que o escrúpulo,
na factura das obras, tomasse, por vezes, o caracter de
obsessão. Assim, por exemplo, com Eugénie Grandet. Ó di-
nheiro que das suas publicações auferia, consumiu-se, não
raro, em parte, nas multas pelas correcções feitas depois de
ultimada a composição tipográfica.
Foi também modelo de enérgica perseverança o tra-
balhador.
Observava um regime especial de viver, para traba-
lhar. Deitava-se de tarde, era seguida ao jantar, levantava-
se á meia noite ou uma hora da manhã e abancava, durante
dezasseis, dezoito, vinte horas e mais. ás vezes, ocupado no
' Ainda sse encontraram, até \HÍ'l, uma vez oiais. em Viena.
De 1842 a 1848, após a morte do conde Hanski. tornar.im a encontrar-
se, por três ou quatro vezes somente, em Nápoles. Roma e DresJe.
14 HOKORÉ DE BALZAC
seu assombroso produzir. Toda a sua vida foi essa. Desse
modo, cavou ele mesmo a sua sepultura. Quando o labor
mais se impunha ', eximia-se ao convivio, enclausurando-se
em casa, durante periodos de meses.
Datam de 1835: Sh-aphHa, Lc Lijs iJ<ins Ia Vallh e Le
Pere (ioriot. A prosperidade sorriu-lhe então, como nunca.
Nos anos seguintes mais próximos visitou Venesa,
Florença, Milão, Turim. Em 1837, além da l.« parte das
Ulusiom Perdnes, saiu á publicidade o grande romance
César Birotteaii, escrito em brevissimo espaço, com celeri-
dade que espanta ^
De outubro de 1837 a dezembro de 184-0, Balzac viveu
numa bela casa de campo, denominada de Les .Tardies, doce
e querido eremitério, sito nas visinhanças de Ville-d'Avray.
São de 1839, entre outros romances, a 2.» parte das
Illusions Perdues e Le Cure de Vilkuje. Em 184-0, escreveu
Pierrette, dedicada a Ana, filha de Mme Hanska.
Abandonando a casa de campo de Les .Tardies, voltou
a fixar residência na capital, em Passy, onde viveu
até 1847.
Despezas sobre despezas, e avultadissimas, represen-
tavam estas sucessivas instalações. Nestas circunstancias,
com tal modo desordenado de viver que foi sempre o seu,
nunca a insolvência poude ter fim. Credores sobre credores
* Habitualmente, Balzac não coucobia cada romance em sepa-
rado, mas quatro ou cinco, a um tempo. De 1829 a 184-8, escreveu, em
media, por ano, quatro a cinco volumes, duas mil paginas. Corrigin-
do-se muito nas provas tipográficas, de preferencia, Pierrettp obrigou
a vinte e sete provas dessas (Le Breton — <">/>. cit.J
2 Também Eugénie Granâet e Lp Mtâecin de <\i>upa<iit>', e ainda
La CoHsine Bette e Le Cousin Pons, nomeadamente, foram escritos, á
custa dum esforço exaustivo, em curtíssimo prazo. Criar vida era para
Balzac tudo. Nascida, alimentada no cérebro, onde permanecia, ás
vezes, durante um largo período de incubação, de lá irrompia, fruto
já sazonado, um dia. E a obra, dum jacto, produzia-se.
Em obediência á realidade, não ha, de ordinário, palavra que o
romancista faça proferir a uma figura que não seja duma verdade
plena. O estilo em que falam as figuras (a boa Nanon ou a perversa
Cibot são exemplos frisantes), t' o mais períeitamente realista, é o
estilo definitivo do realismo.
HONORÉ DE BALZAC 15
assediavam-no. E todavia Balzac raro teria, desde que se
viu grande, desde que, segundo as suas próprias palavras,
teve a consciência do que era e do que havia de ser, desde
que se convenceu de que tinha dado provas irrefutáveis
de que era grande, renunciado á satisfação das suas exi-
gências de fausto que era uma maneira de chamar para si
a atenção do publico.
Balzac que algumas vezes se revoltou contra uma
certa severidade da mái, teve, outras, para com ela, explo-
sões de afectuoso reconhecimento, determinado por teste-
munhos de dedicação. Ela foi, apesar da sua predilecção
pelo outro filho. Henry, uma mãi, na mais ampla acepção
do termo.
Os grandes romances Vn Ménacje de Garçon, Une Téné-
hreuse affaire e Ursule MirouH vieram a lume em 1841.
Com o intuito de levar Mme Hanska, viuva já, a
marcar a data do casamento, Balzac foi a S. Petersburgo,
em 1843, e aí se demorou três meses. Publicaram-se neste
ano a 8.* parte das Illusions Perdues e La Muse du Dépar-
tement. Em 1844, além doutros romances, sairam a publico
a l.a parte de Les Pai/sans e Modeste Mujmn.
Voltou, neste mesmo ano, á Itália. Visitou Roma,
onde se encontrou com Mme Hanska e onde foi rece-
bido pelo Papa. Apaixonado por cousas d'arte, aprovei-
tava as suas viagens para fazer pesquizas, intentando
sempre enriquecer cada vez mais o seu tesouro de colec-
cionador, onde figuravam quadros de Guido, Bronzino,
Van Dyck, Greuze, etc.
Muitas vezes, o fim principal das suas viagens era
precisamente investigar sobre o paradeiro de certas grandes
obras artisticas que não possuia ainda e que trazia em
mente. Desta sua viagem á Itália, de que outras cidades,
além de Roma, visitou, Génova, por exemplo, trouxe o
S, Pedro de Holbein.
Em fins de 1846, andou Balzac preocupado com a sua
nova instalação, em casa que fora edificada no século XVIII
6 pertencera a um celebre banqueiro. Foi enorme o dis-
pêndio que reclamou a casa para atingir as condições do
mais apurado modernismo que Balzac desejava. Nessa
16 HONORK DE HALZAC
altura, />a Combine Bette rendia -lhe treze mil francos, nove
mil Le Coiisin Pons.
De muitas outras fontes de receita dispôs e, aciesceu-
tadas as verbas respectivas ás procedentes daqueles seus
dois grandes romances, ascendeu o total a cerca de cin-
coenta mil francos i.
Instalou-se, pois, magnificamente.
Em fevereiro de 1847, Mme Hanska veio incógnita
a Paris. Balzac acompanhou-a aos teatros. Mas deu-se,
entre os dois, uma grande questão, provocada, é de supor,
pelo facto de constar a Mme Hanska que Balzac tivera
relações com uma mulher e que dessas relações proviera
um filho que pouco viveu.
Esta questão teria agravado, presume-se, o mal car-
díaco de que o romancista sofria e de que morreu. Mme
Hanska regressou a Wierzchownia. Estiveram a um passo
da ruptura. Contudo, as nuvens mais sombrias dissipa-
ram-se um pouco e, em fins desse mesmo ano, Balzac. a
convite, foi a Wierzchownia.
Perturbações sérias da saúde de Balzac obrigaram a
adiar o matrimonio, com desgosto profundo para ele e
parece que sem grande mágoa para Mme Hanska.
O clima da Rússia minou fundo a arruinada saúde de
Balzac. Passado o inverno, em 1850, a 14 de março, rea-
lizou-se, emfim, o casamento do romancista com Mme
Hanska, na Igreja de Santa Barbara, em Beriditchef, a
pouca distancia de Wierzchownia. Por fins de maio, vieram
para Paris. A incompatibilidade dos temperamentos dos
dois cônjuges começou logo a fazer-se sentir.
O mal cardíaco de Balzac acentuou-se.
1 O nome de Balzac foi ainda maior no estrangeiro que em
França. Passaram-lhe pelas mãos rios de dinheiro. Ganhou cento e
cincoenta mil francos, em 18+0; vinte e cinco mil. em 1830; cincoenta
mil, em 1834.
Mas também as dividas se sucediam, sem cessar. E as despezas
nfio tinham moderação. Devia quatorze mil francos, em 1834: duzen-
tos mil, em 1838: cento e cincoenta mil, em 1841. Em três anos, em
Ville-d'Avray, consumia cerca de cem mil francos.
(Le Bretou — Oi. cit.)
HOXORÉ DE BALZAC 17
Em julho e agosto, a hidropisia aumentou assustado-
ramente.
Estava irremediavelmente perdido.
Nacquart, seu antigo medico assistente, não abandonou
o enfermo, até o ultimo instante.
Correm duas versões dum dialogo havido entre Balzac,
moribundo, e Nacquart.
Lawton, (oh. cit.), reputou inverosimil uma delas,
achando-a muito artificial. Por mim, creio ver nela, sob o
revestimento literário, um fundo de verdade. Balzac podia
não ser um espontâneo, mas era essencialmente um comu-
nicativo.
Lawton, optando pela outra versão que a seguir ex-
porei, julgou que ele fosse mais reservado para com
o medico, e portanto mais lacónico, mais fleumatico. Ora
Nacquart era mais que um medico para Balzac, era um
amigo, era talvez mesmo um confidente.
Segundo a versão cuja verosimilhança foi negada por
Lawton, Balzac perguntou a Nacquart quanto tempo lhe
restava de vida e, reconhecendo que o interpelado ficara
perplexo, instou, advertindo-o de que não era uma criança
e de que desejava deixar testamento ao publico.
Nacquart, em resposta, interrogou-o sobre quanto
tempo pretendia, para o effeito. Balzac afirmou que seis
meses lhe bastavam e percebendo que era querer demais,
declarou que seis semanas o contentavam já.
Diante da mudez consternada de Nacquart, Balzac,
exaltado, caiu mais em si, penetrou mais na inteligência
da sua situação, exclamando: «Sou então um homem
morto? »
Depois, numa obstinação febril, deteve-se a considerar
que, se ao menos dispusesse de seis dias, durante eles, por
um esforço supremo de vontade, poderia ainda remodelar,
aperfeiçoar a sua criação, injectando-lhe mais vida, uma
vida imortal. Aqui, a voz velou-se-lhe, tinha o rosto trans-
tornado, as forças desamparavnm-nn. Nacquart interveio
e, proferindo breves palavras, libettou Balzac de ilusões.
Então, augustiadissimo, ele atingiu a certeza sobre o
o tempo de vida que llie restav;i, não mais que seis horas.
18 HONORÉ DE BALZAC
Segundo a outra versão, Balzac, tendo interrogado
Nacquart sobre o seu estado, recebeu como resposta que
nenhuma esperança havia de o salvar. Após uma pausa,
readquirindo Balzac a serenidade, voltou a interrogar
Nacquart, desta vez sobre o tempo que lhe restava de
vida. Nacquart, disse-lhe, de pronto, sem evasivas, a ver-
dade. E Balzac que permaneceu silencioso por curto
espaço, murmurou então, sem o propósito de replicar,
como se falasse consigo mesmo : « Se aqui estivesse Bian-
chon, estava o caso resolvido, ele me salvaria».
Bianchon foi uma das figuras que Balzac criou, inte-
ressante figura de medico, muito da sua simpatia. Esta
aliança da vida ideal á vida real, efectuada quase ao ex-
pirar, é um testemunho psicológico valioso que nada tem
de estranho.
Em outras ocasiões, Balzac manifestou a tendência
para identificar, por um impulso natural, alheio á vida pra-
tica, ordinária, absorvido no mundo ideal da sua criação,
a ficção e a realidade. A data oficial (e a que indicam con-
temporâneos) do falecimento de Balzac é a de 18 de
agosto. De Lovenjoul (cit. por Lawton) asseverou ser 17 o
dia.
Balzac foi sepultado no Père Lachaise, a 21 de
agosto.
CAPITULO II
Obras-primas de Balzac
Eugénie Grandet; Le Père Goriot; Illusions Perdues ;
César Birotteau; Ursule Mirouèt; Modeste Mignon.
Eugénie Grandet é justamente reputado um dos mais
perfeitos romances de Balzac. O romancista, sem desfa-
lecimentos, de que proviriam quebras, de interesse ou
técnicas, na execução da obra, empregou em Eugénie
Grandet todo o poder dos seus maravilhosos recursos de
artista. A construção do romance revela bem esse aturado
estudo que Balzac dedicava á urdidura do entrecho.
O entrecho, aqui, como normalmente, é todo apre-
sentado em função da psicologia, especialmente da de
Grandet, a figura preponderante, a figura central, cujos
traços exibidos deixam entrever uma alma em que a ava-
1 A lista está, manifestamente, incompleta. Lm Recherche de
1'Absolu, Un Ménage de Garçon, Une Ténéhreuse AJfaire, La Cousine
Bette, Le Cousin Pons são as lacunas mais sensíveis. Ainda pode no-
tar-se ter sacrificado La Muse du Département, Le Cure de Village,
Les Paijuans, etc. Quis limitar-me. Os romances escolhidos julgo-os
suficientemente representativos. Eugénie Grandet e César Birotteau
são, no meu conceito, as maiores das obras-primas. Le Pére Goriot e
Ulusions Perdues considero-as mais expressivamente vivas que Ur-
sule Mirouèt e Modeste Mignon^ no que creio nSo poder haver discre-
pâncias. Porque inclui estes dois últimos romances que, com vanta-
gens, sob determinados pontos de vista, seriam substituídos por Un
20 HO^roRÉ de balzao
reza tudo condiciona, mas que é certamente mais com-
plexa do que, de ordinário, se pretende. Esse homem
era fundamentalmente um egoista. A estreiteza da vida
provincial, concorrendo para o desenvolvimento desse
egoísmo, canalizou-o no sentido do dinheiro, tornou-o o
mais grosseiro possivel, materializando-o. Grandet, nado
e criado na rude escola do trabalho, pelo qual o proletário,
mourejando a vida, chega raramente, sem especular, a obter
mais que o simples pão quotidiano, não tinha, não podia
ter, dada a estreiteza do seu horizonte intelectual, aspira-
ções largas. Mas possuia energia que, posta ao serviço da
astúcia, lhe descobriu o caminho da felicidade ou, melhor,
do que ele reputava a felicidade.
A felicidade paia esse homem foi sempre, desde que
se conheceu, ter dinheiro. O desejo da ganância tornou-se
ambição e, sob a forma de paixão, imprimiu-lhe esse
cunho de soberania, de império, inconfundíveis, do na-
tural daqueles que pensam e agem, impelidos por uma
ideia fixa, forte e absorvente bastante para senhorear
completamente um ser e o acompanhar através de toda a
existência. Casou para melhor poder agenciar a vida, com
a amplitude que o progresso constante dos seus negócios
exigia.
Antes, tomara ao seu serviço uma criada, Nanon, em
condições que lhe permitiram fazer, desde logo, da pobre
criatura um instrumento cego da sua vontade. De resto,
era dom de Grandet o colocar todos em situação subal-
terna. Mulher e filha, entes fracos que a autoridade de
Ménage de Garçon, La Cousine Bette, Le Cousin Pons, entre outros?
Primeiro que tudo, não sendo obras de alta psicologia, s.ão dois ro-
mances muito bem arquitectados, isto é, muito proporcionados,
muito equilibrados. Depois, são dois estudos da alma feminino, re-
velada pelo amor sexual puro. A Úrsula e a Modesta cabe um lugar
distinto, ao lado de Eugenia Grandet, na criação de Balzac. Mas não
ha, nem em Ursule MironiH, nem em Modeste Mignou, figura compará-
vel, em intensidade de vida, á de Filipe Bridau, em Un Ménai/e de
Garçon, ás de Bette e de Mme Marneffe, em La Coiixiue Beftf. ás de
Pons c de Schmucke ou á da Cibot. em Le Cousin Pinis.
HONORÉ DE BALZAC 21
Grandet, como dono da casa, impondo-se escravizadora-
mente, reduzia á categoria de autómatos, estavam força-
damente indicadas para ocupar essa desoladora situação
de inferioridade.
Aos outros, aos que, fora da familia, com Grandet
conviviam, o scismarem na fortuna, sempre acrescentada,
do avaro, dava-lhes feitio para todas as subserviencias.
As duas familias, Des Grassins e Cruchot, faziam a
corte a Grandet para entrarem na posse dos seus bens, na
pessoa da herdeira, sua filha. Não havia outro fito nessas
relações.
Todavia, apesar dos ardis empregados, Grandet não
se deixava lograr. Não lhe escapavam os manejos subtis
duns e doutros.
O que, pelo romance, se pode conhecer do meio so-
cial de Saumur é restrito. Sabe-se, porém, que os habitan-
tes da cidade, os negociantes, o povo, se respeitavam
Grandet — -com esse respeito ficticio, todo de conveniên-
cia, como é próprio da mesquinhez da vida, nos pequenos
centros — não o estimavam, com certeza. A fama duma
economia excessiva que, no passadio domestico, roçava
pela sordidez, opunha-se á simpatia.
Quem era dedicado a Grandet?
Em primeiro lugar, Nanon, a serva, uma inconsciente
quase, sobre a qual o amo, ao admiti-la, falsamente ge-
neroso, adquirira logo ascendente enorme, criando jus á
gratidão.
A mulher e a filha do avaro, adivinhando a escuridade
da sua alma, embora se deixassem, por longo tempo, obce-
car pela rigida influencia avassaladora de Grandet, — foi
preciso que viesse Carlos, o sobrinho, de Paris, para que,
bem visivelmente, se assinalasse a perversa dureza do
homem — , temiam-no, mais que o respeitavam, e respeita-
vam-no mais que o estimavam.
Espíritos débeis e sem cultura, essas duas pobres
senhoras a quem a sombria, nostálgica rua, em que mora-
vam, pareceria alegre, eram duas mártires, acorrentadas, re-
signadamente, ao despotismo de Grandet.
Ha, no romance, uma passagem que documenta, com
22 HONORÉ DE BAl.ZAC
toda a nitidez, esse estado moral de mãi e filha, para com
o avaro.
Na manhã seguinte á chegada de Carlos, as duas
senhoras puseram a mesa para o almoço. Eugenia, a filha,
ordenou á serva que preparasse café bem forte. Mas não o
havia, em quantidade bastante. Nanou, sendo-lhe dito que
o fosse comprar, replicou que podia ser encontrada pelo
amo; mas acedeu por fim, advei'tindo que toda a cidade
saberia dos novos gastos. A estas palavras, a mãi exclamou,
dirigindo-se á filha: « — Se teu pai chega a perceber algu-
ma cousa, é capaz de nos bater.» Eugenia respondeu:
« — Pois está bem, bata-nos e apanharemos as pancadas de
joelhos. >
Na noite da chegada do sobrinho, começa o avaro a
revelar-se mais definidamente. Até então, pressentia-se ape-
nas o que havia de profundamente soes no caracter do
homem. Os Cruchot, os Des Grassins mesmo poderiam igno-
rar uma ou outra feição do seu natural, mas isso não im-
pedia que vissem suficientemente claro, precavendo-se e
competindo, quanto possível, em duplicidade, com G-randet.
Para os outros, o avaro era uma esfinge. Para a mulher e
para a filha, alguém que lhes cumpria estimar, pelo paren-
tesco tão intimo, mas que oprimia demasiado, apesar das
escassas compensações, calculadamente benévolas, de suze-
rano severo, para ser estimado, como o saberiam esses
meigos e puros corações de mulher.
O trato grosseiríssimo, de déspota, adoptado, logo á
entrada, com esse pobre mancebo que, com o cérebro
repleto de ilusões e as malas de artigos de toucador, vinha,
de Paris, sepultar-se em Saumur, a bestial insensibilidade
com que acolhe, á leitura da carta do irmão, a trágica
noticia que este lhe dá, da sua planeada morte, são traços
vigorosos, a acentuarem a fisionomia moral do homem.
Mais que as desinteligencias havidas com a mulher e com
a filha, por terem, no almoço, e em atenção ao hospede,
saido dos hábitos rigorosa e mesquinhamente parcimoniosos
da casa, onde Grandet punha e dispunha, como senhor
absoluto, imprime cunho á psicologia dessa tenebrosa indi-
vidualidade a maneira como Carlos, o parisiense dester-
HONORÉ DE BALZAC 23
rado, é feito sabedor da sua horrorosa situação. A alma de
Carlos, ainda imperfeitamente esboçada, nas manifestações
de etiqueta, naturalmente frivolas, ocorridas até então,
patenteia-se abertamente, em comoventes expansões, nesse
angustiosíssimo transe. Grandet, nas palavras com que se
exprime, sustentando a sua ideia de que a morte nada valia
em comparação com a falência, buscando sugerir ao des-
ditoso que nula era a sua dor de filho, considerada a par
da sua dor de arruinado, é torpe, é ignóbil! O avaro está
todo representado nesta sua frase que profere, a propósito
de Carlos: «... Este rapaz não serve para nada, ocupa-se
mais dos mortos que do Dinheiro».
A fascinação do ouro acumulado em segredo e em
segredo adorado, no silencio da noite, entre maquinações
de especulador, empedernira-lhe o coração. Temperamento
frio, fleumatico, avesso a sentimentalismos, todo pondera-
ção, reservas, cálculos, Grandet não se fazia amar e não
era, licito se torna presumi-lo, amado: era obedecido, era
servido, sem disvelos, mas com grande respeito, com infi-
nita timidez.
Amava o feroz egoista os seus, e porventura Nanon?
Dessas três pobres criaturas, talvez a mulher f(jsse a menos
estimada. Entre Nanon e o avaro havia afinidades: a criada
viera do nada, ganhara um pecúlio que era a inveja das
suas iguais, a poder de braço. Natureza animal, só ela se
entendia com o temivel cão que guardava a casa, de noite.
Eugenia também era estimada, e muito particularmente,
por Grandet. O amor paternal, neste homem, era, porém,
um amor siii (jenerls. O avaro amava a filha a seu modo.
A sistemática secura de Grandet, tantas vezes áspera,
ao defrontar-se com a filha, tinha, de longe a longe, solu-
ções de continuidade. Excepções destas eram espantosas
vitorias. E Eugenia tinha o sentimento intimo desse poder
e dele usou, com ousadia notável, colocando-se ao lado do
primo, por amor e por caridade, contra seu pai.
Ha, entre outros, que, convenientemente observados
e interpretados, levarão a conclusões quanto possível segu-
ras, nesta delicada matéria de analise de espíritos, um
passo, no romance, importantíssimo para julgar da sen-
24 HONORÉ DE BALZAC
sibilidade de Grandet, posto em vibração o seu amor
de pai.
Carlos continua chorando, no quarto, de bruços sobre
a cama, e o seu pranto, os seus soluços chegam a ouvir-se
por toda aquela casa silenciosa e lúgubre. O avaro que
fora tratar de negócios, regressa, regosijado com um ex-
celente êxito. A filha irrita-o, advertindo-o de que está em
condirões de proteger Carlos e recebe, em resposta, áspera
censura. De súbito, Grandet lembra-se do sobrinho, per-
gunta por ele. Eugenia replica-lhe: « — Está chorando por
seu pai>. Grandet cala-se, não sabendo que dizer, dá uma
ou duas voltas na sala e sai. Ora o avaro não emudecia
facilmente, cônscio da sua autoridade, e arrogando-se
aquela superioridade de quem sempre venceu na vidn, e só
gaguejava quando lhe convinha fazer falar os interlocu-
tores. A gaguez era um ardil engenhosissimo do homem
para arrancar palavras aos outros, como se observa naquela
curiosa situação, em que Grandet, tendo convidado a jan-
tar o notário Cruchot e seu sobrinho o presidente de Bon-
fons, com a intenção secreta de saber o que melhor lhe
conviria efectuar para dar solução que lhe fosse vantajosa,
ao desastre financeiro do irmão — e não estava empenhada
nesta pretensão uma só parcela de amor fraternal, mas
exclusivamente o impeliam propósitos vaidosos e cruéis de
ludibriar, de esmagar parisienses — , consegue, servindo-se
de consumada argúcia, manejar, muito a seu grado, o pre-
sidente que, não percebendo o jogo, lhe forneceu, sem
voto expresso do avaro nesse sentido, todas as informações,
ainda as mais minuciosas, de que poderia carecer.
Mas, voltando aos assomos de paternal sentimento,
despertados pela resposta apontada da filha: « Está cho-
rando por seu pai>, de presumir é que tais palavras se lhe
gravassem no espirito, o que logicamente é licito concluir
da maneira como se dirigiu, nessa noite, ao sobrinho que
ainda chorava a sua imensa dor de órfão. Grandet já não
estranha a abundância das lagrimas e exclama, em justifi-
cação do procedimento do pobre rapaz: «Um pai sempre
é um pai».
Eugenia tinha um pequeno tesouro, produto de da-
HOXORÉ DE BALZAC 25
divas de parentes e do próprio pai. Conhecia este a exis-
tência do tesouro e, em determinadas ocasiões, fazia que a
filha lho mostrasse. O astato velho aproveitava tais en-
sejes, para incutir em Eugenia o amor pelas peças d'ouro,
esclarecendo-a sobre todas as particularidades que ates-
tavam a sua fina e rara qualidade. Essa reduzida fortuna,
todos os bens da joven, ascendia, ainda assim, a cerca de
seis mil francos. Não o sabia ela, ao certo; os seus haveres
foram contados, quando resolveu minorar a má sorte de
Carlos, o primo órfão, dando-lhos, como de facto. A filha,
pelo visto, ainda era susceptível de ter dinheiro guardado,
debaixo de mão, á chave talvez.
A mai, não. O que recebia, por vezes, da falsa gene-
rosidade do avaro, tinha de o sacrificar, pouco a pouco, ás
suas exigências, sacrificio que a pobre senhora fazia gosto-
samente, pois que, dessa arte, comprava a sua felicidade.
Quando Grandet, moeda a moeda, reclamando dinheiro
para gastos e pagamentos, empregava o que dera, sem
mexer no que possuia, podia sua mulher contar com uns
quinze dias de paz.
Era, á falta de estima, considerada, ao menos, a des-
ditosa?
Tudo leva a crer que o era. O marido que com tanta
dureza a tratava e dela conseguira fazer um ente sem
vontade própria, tinha confiança bastante nela para deixar
a filha, entregue á sua vigilância, junto do primo, emquanto
tinha de andar por fora, ocupado nos seus negócios. Ele
que curava das cousas minimas da casa, olhando por tudo
com o autoritarismo de chefe supremo, confiava bastante
na mulher, para lhe não exprimir ordens, no sentido de tal
vigilância. Com a Nanon, a serva rude, mas de sentimentos
sãos, ha mais duma situação, em que Grandet, esse tempe-
ramento seco e enregelado, se expande, em rasgos de pito-
resca bonhomia: ela era o primeiro ministro daquele mo-
narca. Com a consorte, a rigidez do trato era inquebran-
tavelmente mantida.
A bondade extrema da mãi afirmava-se na sua re-
signação de mártir que a religião fortalecia para todas as
dores.
26 HONORÉ DE HALZAC
Desconhecedora, como ela, do mundo, Eugenia deixa-se
invadir pelo amor e revela, por ele impulsionada, todos
os primores da sua alma delicada e cândida. Entrega-se
ao seu piedoso papel de mitigar o sofrimento pungente
do primo, tão devotadamente que chega, por vezes, quase
a comprometer-se. O seu sentimento era purissimo, tão
puro que chegou a santificar o amor de Carlos, não
obstante residir, no âmago da alma deste, o egoísmo, per-
versão latente, resultante da sua vida muito livre e re-
pleta, na capital. Mas — ilusão que provinha do transe
por que passava — o parisiense, numa idade ainda inexpe-
riente, com os seus arrebatamentos de sensibilidade, inspi-
rava amplamente confiança. De resto, Eugenia era boa
demais para desconfiar de Carlos. Depois, amava profun-
damente e sentia-se amada.
O avaro não transmitira á filha aquelas suas ten-
dências de caracter, de dissimulação, pérfidas, desleais. E
ver como ele logra fazer crer á mulher, á filha, ao sobrinho,
á criada, certamente, — e não digo aos seus pseudo-amigos,
das familias Cruchot e Des Grassins, porque esses, ainda
que estranhos, conheciam-no melhor — que intervinha no
caso da falência do irmão, por presar o seu nome e por o
moverem desejos de reparar, compassivamente, a desgraça,
no seio da sua familia. Entretanto, três dias após a partida
do banqueiro Des Grassins, a que dera poderes de seu
agente de negócios, Grandet leva o sobrinho ao tribunal
para assinar uma declaração de renuncia á herança do
pai! Isto não era, porém, suficiente para avolumar sus-
peitas, naquelas simples criaturas, nimiamente crédulas,
apesar de tudo, na probidade do avaro. Num estudo critico
sobre a organização psicológica do protagonista, seria
imperdoável deixar de frisar, porque estigmatizam, com
vincos indeléveis, essa personalidade, as condições em que
se oferece para avaliar e se dispõe a comprar as jóias do
sobrinho e ainda a maneira como constata que a mulher e a
filha tinham sido presenteadas por Carlos, o que lhe serve
de fundamento para aceitar a oferta que, a seu turno, lhe
é feita.
Mas ha, além do exposto, alguma cousa de intensa-
HOXORÉ DE BALZAC 27
mente característico que deve aceatiiar-se, em especial:
deslumbrado pelo ouro que lhe vinha do órfão, Grandet
que pesava as palavras, confessa-lhe que, segundo a sua
avaliação das jóias, devia a compra resultar-lhe ainda lu-
crativa, pelo que determinava pagar-lhe a passagem por
inteiro. Quanto ganharia G-randet com Carlos? E de pre-
sumir que, mais uma vez, o avaro se fazia velhacamente
generoso, precisamente á custa daqueles sobre quem pa-
recia recair o beneficio.
Balzac — não é nunca ocioso salientá-lo — com as pa-
lavras que põe na boca das figuras, ao mesmo passo que
define situações, define almas, muito principalmente.
Tomara Carlos lugar na diligencia de Nantes, tendo
ouvido de Grandet que o beijara, ardilosa declaração sobre
a salvação da honra de seu pai, declaração que o comoveu
a ponto de o fazer chorar de reconhecimento, banhando de
lagrimas as faces do velho.
A diligencia partiu e já mal se distinguia o seu rodar,
quando o avaro proferiu as seguintes palavras que chega-
ram só aos ouvidos do notário Cruchot, porque felizmente
Euofenia e a mãi estavam a distancia e acenavam com os
lenços: «Boa viagem !>
A exclamação resume todos os seus sentimentos para
com o sobrinho que ia, á aventura, desamparado, em busca
de fortuna, para as índias.
Ao deixar de ver agitar-se o lenço de Carlos, também
Eugenia profere palavras que são igualmente, como Taine
se expressava, resumos de abismos, sob o ponto de vista
psicológico :
— « Minha mãi, eu queria ter por ura momento o poder
de Deus!»
A astúcia de Grandet revela-se exuberantemente na
liquidação das contas com os credores do irmão. Fê-los
esperar cinco anos, tendo-lhes, de começo, dado uma com-
pensação ligeira. Adiando foi, depois, com subterfúgios, a
solução do caso. Reconhecendo que os credores estavam
desvantajosamente colocados e que poderia desdenhar das
suas instancias e reclamações, ria-se, por fim, deles e dizia,
em ar zombeteiro, de cáustica ironia: «Estes parisienses...»
28
HONORE DE BALZAC
Estava conseguido todo o seu fim e mais um bom ne-
gocio vinha juntar-se ás suas constantes especulações finan-
ceiras, aumentando-lhe a enorme fortuna.
O acume do interesse do enredo, o ponto em que a
acção atinge a sua máxima intensidade dramática, corres-
ponde àquela fatal ocorrência do dia de Ano Bom, prevista
pela mãi e pela filha, di?s antes, tarde demasiado para que
a pudessem evitar. Foi o caso que, como era seu costume,
Grandet, excelentemente humorado, nesse dia, graças a
especulações felizes, manifestou á filha o desejo de ver o
seu pequeno tesouro, ampliado, por ser o primeiro do ano,
com uma moeda d'ouro.
Eugenia consegue que se almoce, antes de mais nada.
Depois, insistindo o velho que confessa não possuir ouro
algum em casa e ostenta abertamente a sua sede de ouro,
a filha, tendo avançado para a porta, volta-se com desas-
sombro, e, sem titubear, ousadamente, informa-o, em poucas
palavras, de que já não tem o seu ouro. Acende-se a cólera
de Grandet, reiterando a filha a negativa. É então que a
pobre mãi que assistia á sceua, é acometida pelo mal que,
prostrando-a no leito imediatamente, a levará, dentro de
meses, á cova.
A discussão entre pai e filha continua, momentos vol-
vidos.
Eugenia, porfiando o pai em querer saber qual o des-
tino do dinheiro, conserva-se impenetrável, O avaro chega
a dizer á filha que ela abusa da amizade que sabe votar-lhe.
Não obtendo ser esclarecido, manda á filha que se encerre
no seu quarto, donde não deverá sair. Ficará a pão e agua.
Esse o castigo, emquanto se não resolva a dizer tudo a
seu pai. Eugenia, chorando, vai ter com a mãi. Grandet
retira-se para o jardim, mas, de súbito, lembra-se de que
poderá ir descobrir a filha em desobediência ás suas ordens
terminantes, corre ao quarto de sua mulher e, vendo-a a
acariciar Eugenia, tem nova explosão de rancor. As pala-
vras da enferma ao marido, vibrantes de angustia, implo-
rando-lhe piedade, comoveriam outro coração que não fosse
o de Grandet. Este afirma perentoriamente a sua inaba-
lável decisão.
HOXORÉ DE BALZAC 29
A dureza do avaro iiiimentou nos tempos que se se-
guiram a este terrível acontecimento. Mas, circunstancia
curiosa, reveladora de perturbações no seu estado d'alma,
o velho deixou de gaguejar e, por vezes, errava as contas!
A sua consideração pela consorte, testemunho certamente
de simpatia, parece acentuar-se. Dispensa-lhe mais solicitas
atenções.
A desditosa enferma que nunca mais abandonou o
leito, ia-se santificando, com o seu profundo sentimento
religioso, pelo sofrimento.
A mártir, no auge da sua dor, exaltada a sua unção
de devota fervorosa, transfigurara-se, resplandecia-lhe a
alma angelical no rosto. Por isso, e achando-se, com fre-
quência, na presença dela, o avaro, sob aquele poderoso
influxo, banhado por aquela irradiação de bondade extre-
ma, quase divina, deixava-se, lentamente, quase imperce-
ptivelmente, sem se confranger, penetrar, ainda que á su-
perfície. Mas se, no âmago, a alma, num ou noutro ponto
secundário, se modificava, no exterior, o procedimento era
o mesmo, invariavelmente, quanto á irrevogável determi-
nação tomada sobre a filha, e, para manter a sua autori-
dade, ou tergiversava ou se cerrava no mais completo
mutismo, ante as suplicas da desgraçada mãi.
O notário Cruchot, solicitado por esta para intervir
e levar Grandet á reconciliação, prova, pela maneira como
se dirige ao velho e orienta a conversação, que o conhecia
intimamente.
O avaro, note-se em seu abono, tomara o habito, ulti-
mamente, de passar certa hora da manhã, emquanto a filha
se penteava, sentado ou percorrendo o jardim e ocultando-
se com frondosa arvore, na intenção que realizava, de a
ver demoradamente. Como logrou Cruchot demovê-lo, de
vez, da sua renitente atitude para com Eugenia? Incutindo-
Ihe receios de possiveis complicações, caso a filha se lem-
brasse, por morte da mãi, de, como maior, requerer a sua
parte, na sua qualidade de herdeira. O astuto notário sabia
bem que o seu quase octogenário interlocutor tremia só
de pensar na possibilidade de ser despojado do seu
ouro.
30 HONORÉ DE BALZAC
Resolve, pois, fazer a paz, concedendo o perdão a Eu-
genia.
A scena da reconciliação, comedia, e comedia repii-
gnantissima, desempenhada, claro, por Grandet, o único na
casa senhor de recursos de actor consumado, é mais uma
pincelada do artista a avivar o moral do avaro, corrompido,
até a medula, pela sordidez da sua anciã insaciável de ouro.
Grandet chega a hesitar, nesses dramáticos momentos
que precederam a reconciliação, entre a filha, disposta a
suicidar-se, e a valiosa jóia que Carlos confiara, em depo-
sito, a Eugenia.
O seu alvoroço, ao divisar essa jóia, os seus esforços,
de vario género, para a possuir são traços psicológicos do
máximo relevo.
As vilanias, praticadas pelo avaro ignóbil, em lances
tais, de mágoa e desespero infinitos, atestam á evidencia
que as suas faculdades, em estado já anormal, eram, então,
mais acentuadamente que nunca, as de um maniaco peri-
goso, a um passo de todas as infâmias. Para salvar a vida
da mulher, Grandet, tantas vezes milionário, declaia ao
medico estar disposto a gastar até duzentos francos !
Outros traços, de sobejo frisantes, completam a cria-
ção assombrosa da individualidade do protagonista, além
dos que, menos significativos, pois o velho cairá na quase
demência, se amontoam ao aproximar-se mais a morte: a
maneira como leva a filha a abdicar dos seus direitos a
herdar da mãi e ainda aquela por que satisfaz os mesqui-
nhos compromissos, tomados para com Eugenia.
A concepção do romancista, apreendendo, com lucidez
extraordinária, o modo de ser essencial duma sociedade,
de que traduz, revelando um assombroso poder expressivo,
a complexa vida, ostenta-se, em Le Père Goriof, soberana
de relevo e de côr.
Sente-se que são sobrantes os recursos do artista.
Ha, em Le Père Goriot, duas figuras, duas grandes
criações psicológicas, que avultam sobre todas as outras,
tornando-se, logo de começo, o centro do interesse: Goriot
e Eugénio de Rastignac.
HOXORÉ DE BALZAC 31
Na construção da figura de Goriot, Balzac adoptou o
processo analítico, acrescentando, pouco a pouco, traços
que vão retocando, precisando, o que principiara por esbo-
çar-se.
Processo análogo empregou com Eugénio de B-astignac.
Mas, note-se, Goriot, conquanto deva reputar-se a
figura preponderante, afirma-se muito mais lentamente,
como individualidade, que Rastignac. Os traços sucedem-
se mais espaçosos e tão espaçosos que pode julgar-se que
a psicologia de Rastignac é quase organizada á custa da
de Goriot.
Friso, aqui, mais uma vez, que as situações — como
tudo, de resto, no romance de Balzac — se estabelecem e
se definem em função da psicologia das figuras. O roman-
cista é, muito principalmente, psicólogo. Pois bem! Dir-se-
ia que as situações, em Le Père Goriot, mais se dispõem de
molde a salientar a psicologia de Rastignac que a do pro-
tagonista '. Até meio do romance, as tentativas do ambi-
cioso moço, para vencer caminho na vida, desequilibram a
acção que deveria concentrar-se mais, creio, no sentido
de Goriot. Por largo tempo, mal se deixam adivinhar os
afectuosos tesouros da sua alma de pai, nessa passividade
apática permanente com que suporta o escarneo dos comen-
sais da pensão Vauquer, humilhação pertinaz e odiosa.
Mas Goriot, tal como se apresenta, era assim mesmo, des-
prendido de si, retraído, pouco comunicativo, absorvido no
seu imenso amor de pai e nas preocupações constantes que
esse amor criava ao seu espirito.
Com o aparecimento de Delfina de Nucingen, a filha
de Goriot mais estimável, por mais presar o pai, ainda que
friamente, sob a influencia do egoismo — Mme de Restaud,
a outra filha, é, por seus desregramentos e turbulências a
causa da morte do desditoso ancião, perante o qual se pe-
nitencia, porém tarde, quando ele, moribundo, perdera já
a consciência — , Rastignac cede uma parcela do seu lugar.
' Faguct (Dix-neufihue siècle, estudo sobre Balzac, 1887, e Bal-
zac, 1913) entendeu e sustentou precisamente o contrario.
32 HONORÉ DE BALZAC
subalterniza-se um tanto, sem que deixe, por íssíj, de pren-
der sempre vivamente a atenção, não afrouxando sequer o
interesse que desperta.
Delfina é, entre as figuras femininas, não excluindo,
de nenhum modo, a proprietária da pensão, uma das que
mereceram a Balzac mais detido estudo. De Mme de Res-
taud são relativamente mais sumários os traços, se bem
que, sem duvida, o seu caracter fogoso de mulher sensual,
avessa a sentimentos de filha, de esposa e, com toda a
probabilidade, de mãi, se acentue distintamente nas situa-
ções em que se defronta com o pai.
Era um só o fito de Eugénio, um só o móbil de todos
os seus actos, a ocupação de todos os seus pensamentos :
um lugar de destaque no seio da alta sociedade de Paris.
O primeiro sintoma de perversão moral de Eugénio
declara-se naquele transe, em (.|ue escreve, pedindo dinhei-
ro, á mãi, já por ele tão sacrificada e em luta, ela, marido
6 quatro filhos, com grandes dificuldades. Recebe, em res-
posta, uma carta preciosa de cordialíssima simplicidade,
espelho dos mais puros sentimentos, carta de tão impagá-
vel sabor familiar como a que lhe foi, simultaneamente,
dirigida pela irmã. São dois modelos epistolograficos, com
o valor de vivos documentos psicológicos.
Eugénio amava os seus. Não pôde certamente consi-
derar-se o tipo do bom filho, do bom irmão, mas, para que
não deva ter-se por insensível ás naturais evocações dum
recente passado, vivido no afectuoso esteio familiar, onde
fora criado, bastam as lagrimas que derramou ao terminar
a leitura da tocante carta da mãi, bastam os seus remor-
sos, ainda que passageiros, tão fortes que o dispuseram,
embora momentaneamente, a renunciar ao dinheiro que,
em satisfação do seu pedido, lhe remetiam. E depois, no-
tamo-lo,— o que evidencia uma intenção permanente, —
alimentando o seu ideal de felicidade, com o sentimento
consciente do seu dever e da sua responsabilidade de re-
presentante mais válido da familia, como manifesta, espe-
rançadamente, pela resolução, tantas vezes confessada, de
vir a ser, um dia próximo, na posse da apetecida felicidade,
o sustentáculo dos seus a que devia tão carinh(^sas provas
HOXORÉ DE BALZAC 33
de dedicação. A aspiração era efervescente demais para lhe
permitir o proceder com a calma reflectida que não exclue,
por forma alguma, a inquebrantável tenacidade, dum com-
batente que vencerá ou morrerá na luta.
Eugénio esteve a um passo da perda da liberdade
pessoa], cúmplice, mau grado seu, dum crime.
CoUin, o terrivel e fascinador presidiário, disfarçado
em pacifico burguês sob o nome de Vautrin, arrastou-o a
uma situação comprometedora em extremo, por interesse de
ambos e principalmente de Eugénio, para o qual o impelia
uma grande simpatia, demonstrada, sobretudo, quando, ao
abandonar a pensão Vauquer, algemado, entre a escolta, se
despediu do mancebo. Essa despedida, por sua natureza e
pela solenidade do momento, oferece qualquer cousa de
trágico, CoUin, ou Vautrin, sempre irónico, usando dessa
zombaria sobranceira e compassiva que amesquinha, es-
maga o adversário e infunde receosa admiração nos assis-
tentes, aturdidos e dominados pela afirmação exuberante
da força, da energia, morais ou fisicas, pôs a descoberto os
recôncavos da sua alma, mais ainda que nas suas extensas
praticas, estonteantes e avassaladoras, a Eugénio, na ati-
tude terrivelmente desdenhosa que manteve para com os
seus captores, logo que, reconhecendo impossivel a fuga.
entendeu vingança asada o brincar com as autoridades.
Todas as suas palavras reçumam fel: o escarneo faz estre-
mecer, gela de temor e de pasmo. A rudeza é de gigante
diante de anões. Avulta, bem caracteristica, a feição ro-
mântica da figura. As duas lacónicas frases, dirigidas, em
tal conjuntura, por Vautrin a Eugénio, recordando meios
de felicidade imediata que lhe preparara, na qualidade de
bandido muito amigo, foram proferidas com tristeza. Nesse
adeus, aparentemente singelo, mas de tão profundo signi-
ficado, vibrou o coração, sinistramente afectuoso, do presi-
diário.
Eugénio, em verdade, correra grave risco do soçobrar.
Salvou-se, porém, salvou-o o que nele perdurou
sempre, através de todos os desesperos, por desilusões
amaríssimas, como através de todos os entusiasmos, na
embriaguez efémera das ilusões juvenis: os princípios da sã
34 HONORÉ DK BALZAC
educação familiar que recebera, corroborando um fundo
herdado de bondade e de nobreza moral.
Pressentindo-se perdido no tumultuar da vida pari-
siense, recorre ao patrocinio de Mme de Beauséant — uma
senhora da alta sociedade, ainda sua parenta, — com a ancie-
dade do naufrago, lançando mão duma tábua que se lhe
depara, na confusão das ondas revoltas. Percebe que a via
do amor que lhe é particularmente sedutora, apresenta
vantagens importantes ao ambicioso que a saiba percorrer,
com sobeja audácia, mas poucos escrúpulos, e ei-lo arre-
messando-se ao encontro de Mme de Restaud, e, tendo
falhado, por inépcia, a tentativa, não descoroçoa, não des-
cança, emquanto não consegue conquistar uma sucessora
condigna, Delfina de Nucingen.
Inicia-se, então, dentro do romance, um interessante
romance erótico, com romanescas veemencias.
Eugénio transige, cede, com frequência, recalcando
secretamente os bons impulsos da sua alma; deixa que a
corrupção o invada, sem que obtenha embargá-la com os
seus débeis alvoroços de repugnância. E uma resistência
passiva a sua; limita-se á defensiva, não ataca, por falta
de coragem, porque atacar seria comprometer seriamente,
pôr em perigo o êxito dos seus interesses, tão estreita-
mente egoistas. A psicologia de Eugénio de Rastignac
torna-se precisamente curiosa por esse embate constante
e impetuoso de sentimentos e de paixões.
A solicitude com que tratou Goriot, enfermo, o disvelo
com que olhou pelo moribundo e pelo cadáver, exaltam
Eugénio, demonstram que nele subsistiam, apesar de tudo,
preciosos dons de humanidade e de religiosa piedade.
Amando entranhadamente Delfina, nem por isso deixa de
fazer a justiça de a censurar, no intimo d'alma, pelo seu
procedimento para com o desventurado pai. Verga-se pe-
rante ela, impotente para lhe exprobrar, em rosto, a cri-
minosa indiferença a que vota o lastimável Goriot, não
obstante a consciência lhe bradar contra o atroz papel que
Delfina, a frio, sem hesitações, sem um rebate de arrepen-
dimento, se compraz em desempenhar.
É um fraco, cuja única desculpa está em conservar e
HONORÉ DE BALZAC 3Õ
em manifestar oportunamente, aliando-se, conciliando-se
com as suas tendências egoistas, vestigios apreciáveis de
altruismo, uma parcela vivaz de coração.
« O seu sentimento irreflectido elevava-o até o sublime
da natureza canina » diz Balzac acerca de Goriot. Noutro
lugar, classifica-o de «estúpido e grosseiro».
A apresentação, feita assim, não é de molde a dis-
pôr-nos á veneração por essa figura esplendida de pai.
De acordo que a sua inteligência fosse escassa. Mas
esse imenso afecto que dedicava ás filhas, toda a sua ale-
gria, todo o seu enlevo, seria, exactamente, como o do cão
pelo dono?
De feito, obcecado andava sempre por esse amor absor-
vente, escravizante, causa de alegrias e de desgostos indi-
zíveis e que lhe apressou a morte. Num momento, porém,
fez-se luz naquele cérebro. O torturado reagiu, por um
pouco.
Moribundo, ao reconliecer-se desamparado pelas filhas
que idolatrava, o desgraçado increpa-as duramente, aspera-
mente, percebe que o despresam porque está pobre — «um
pai deve ser sempre rico», exclama — , arrepende-se da
educação que lhes deu, recorda afrontas que recebeu delas,
confessa ter notado que começavam a corar de vergonha
de o ter por pai, sente que veio ao mundo para ser humi-
lhado, insultado, emfim, o seu acrisolado amor de pai
acaba por não lhe permitir mais exprobrações e declara
perdoar-lhes, ser ele o único culpado, por < tê-las habi-
tuado a pisá-lo a pés», chama-lhes queridas, reclama a
sua presença, exulta orgulhosamente por as ter feito, por
serem dele.
A psicologia de Goriot é de construção simplificada.
O homem revela-se um pouco tarde. A principio, e numa
boa parte do romance, o extremo laconismo do ancião, a
sua permanente, invencível apatia dão-lhe ares de mistério,
mas, em vez de o respeitarem, os comensais chegam a du-
vidar da sua moralidade, como chegam a julgá-lo imbecil.
Goriot só pensa nas filhas, só se preocupa com o bem delas.
E completamente estranho a tudo o mais. O escarneo não
o atinge. Tem ouvidos apenas para as palavras que se rela-
36 HONORÉ DE BAI.ZAC
cionam com aquele peusar, com aquela preocupação cous-
tantes. Quando ouve dizer a Eugénio que Mme de Restaud
lhe fechara a porta por lhe ter participado que seu pai
comia com ele, á mesma mesa, ua pensão Vauquer, Goriot
«baixa os olhos e volta-se para os enxugar».
Ele amava loucamente as filhas. Não ha frase que pro-
fira, que não venha eivada desse sentimento ardente, impe-
tuoso, irrompendo vibrante sempre, com uma espontanei-
dade que profundamente sensibiliza.
Mas deverão tomar-se ao pé da letra expressões, como
a seguinte, em que dá conta do que lhe vai n'alma, á pas-
sagem de qualquer das fiUias, em carruagem, pelos Campos
Eliseos, onde espera por elas, só para as ver: «Amo os ca-
valos que as puxam e queria ser o cãosinho que levam era
cima dos joelhos »?
São exageros naturais, são exuberancias apaixonadas.
Aquela scena dramática, ocorrida na pensão Vauquer,
no miserável quarto de Goriot, e que precedeu de perto a
morte do pobre velho, prova o extraordinário grau a que
se elevava o afecto do pai e a inconsistência e a mesqui-
nhez do presumido afecto das filhas. O velho é então su-
blime de fogosidade, de energia, disposto a tudo para salvar
esses dois entes, carne da sua carne, precipitados numa
situação desesperada ou que, como tal, se lhe afigurava,
sempre movido pelo seu amor de pai a julgá-las vitimas
e correndo riscos de cair na desgraça.
Como me repugna, aqui, o considerá-lo, segundo o
próprio Balzac, seu criador, alimentando um sentimento
«irreflectido que o avisinhava da «natureza canina >I
As Illusions Perdues são um grande e belo romance,
cheio de interesse, pela vivacidade, pelo esmerado colorido
da narrativa. E dentre os romances de Balzac um dos mais
bem equilibrados. Balzac, quando o compôs, era já um
artista perfeito.
O entrecho desenvolve-se muito natural e logicamente,
tão correntiamente que se não sente o mais ligeiro enfra-
quecimento ua curiosidade que, de pagina para pagina, vai
despertando, cada vez mais intensa. Mas ha então, a entre-
HONORE DE BALZAC
37
cortar a acção, palpitantes sucessos que lhe imprimam re-
levo? De ordinário, não.
Tudo se desenrola em condições mais ou menos nor-
mais, mais ou menos previstas, por consequentes com as
premissas estabelecidas pelos acontecimentos. David Sé-
chard e Luciano de Rubempré, duas almas tão diferentes,
uma toda de desinteresse, a outra toda de ambição, são os
fulcros da trama do enredo que é, nos seus dois grandes
aspectos dominantes, a resultante das qualidades e dos vi-
cios dum e doutro desses amigos que, apesar do embate
dos temperamentos, se queriam como irmãos. São as figu-
ras mais firmemente vincadas da obra e, com elas, só riva-
lizam, pelo destaque com que se afirmam, as de Luisa de
Bargeton e de Eva Séchard.
Como estudo social, encerram as Illiísiom Perdues pri-
mores de observação, em luminosas evocações.
Balzac foi notavelmente feliz, nas Illusiom Perdues, na
reconstituição da sociedade de Angoulême e do meio jor-
nalistico e do proletariado intelectual de Paris.
A figura principal das Illtisions Perdues é Luciano,
cuja inteligência extraordinária se impunha a todos os que
com ele conviviam, á mãi, á irmã, ao amigo compatricio,
David, a Luisa de Bargeton, em quem desperta amorosos
impulsos de mulher superior e caprichosa que chega a pos-
tergar os preconceitos da sua estirpe para se expor, com o
sedutor mancebo, a riscos ameaçadores da sua reputação
que sai maculada, por fim, da reacção sustentada contra a
maledicência em voga no meio provincial.
Luciano encontrara em David qualidades de inteli-
gência e de cultura bastantes para ser compreendido. Mas
a esfera da actividade dos dois amigos, entre as paredes
duma tipografia moribunda, á mingoa de clientes, era de-
masiado restrita e prosaica. David facilmente transigia com
o que de depressivo para o seu espirito poderia resultar
das condições do seu vegetar. Era o seu oficio e na pratica
dele, rigorosamente honesta, despido de ambições, contente
com a mediocridade, desde que lhe garantisse a modesta
subsistência, parecia abstrair de tudo o mais. Amava os
livros com que lidava de perto e que tinha por dilectos
38 HONORÉ DE BALZAC "
companheiros, alimento indispensável do seu espirito. De-
pois, dos estudos que sobre a arte que cultivava, fizera em
Paris, tinham-lhe ficado importantes noções, absolutamente
modernas, com que se propunha, fortalecido pelo êxito
provável de investigações a que procedia, introduzir novos
sistemas de exploração industrial. A via de pesquizas em
que se exercitava e que constituiam o objecto das suas lo-
cubrações, fòra-lhe aberta por Luciano que o informara da
orientação de trabalhos especiais do pai, farmacêutico dis-
tinto, que a morte surpreendeu, antes de realizar as suas
legitimas aspirações.
David não era um ambicioso; mas, se esta preocupação
o absorvia, de sobejo lhe assistia o direito de pretender
melhorar o estado material dos seus negócios. E mais
avulta essa pretensão desde que se apaixona por Eva. a
extremosissima irmã de Luciano, com a qual vem a casar.
Luciano, pelo contrario, ardia por experimentar sen-
sações desconhecidas.
O coração aproximou-o de Luisa de Bargeton que,
rodeada de opulência, o atraía. O proletário queria ser
guindado á categoria escolhida dos grandes da sua terra,
em cuja roda, mercê dos privilégios que o amor de Luisa
lhe concedeu, passou, se bem que de empréstimo, a figurar.
Animado pela plena confiança que depositava no poder do
seu engenho, crente de que uma boa estrela o guiava para
a fortuna mais alta e completa que sonhava, vendo-st^ adu-
lado por muitos, precipitou-se, com todo o ardor da sua
idade, no caminho que a amorosa fidalga lhe ia desbra-
vando e cobrindo de rosas.
A sociedade que imprimia tom de distinção a Angou-
lême, reunia-se nos salões de Mme de Bargeton que apro-
veitou certa noite, colhendo ensejo que se lhe afigurou
propicio, para tentar a consagração de Luciano. Não care-
cia o mancebo de estro feliz, evidenciado em composições
que pessoas ilustradas e de educação, como Luisa, pode-
riam e deveriam justamente apreciar. Mas o poeta teve,
nessa noite que tão pungentemente dolorosa lhe foi, ama-
rissimos desenganos. A primeira sociedade da sua terra
desdenhava do pobre rapaz, cuja mãi era parteira e cuja
HONORE DE BALZAC
39
irmã era engomadeira; não lhe perdoava que tivesse mu-
dado de sobrenome, passando a apelidar-se De Rubempré,
em vez de Chardon. E, quanto a primores de talento, qua-
tro ou cinco convidados apenas estavam em circunstancias
de os entender.
As relações de Luciano com Luisa foram pasto da
calunia.
Correram, emfim, murmúrios de adultério. O marido
de Mme de Bargeton, personagem nulo, castigou o ultrage.
Incompatibilizada com o meio, Luisa deixou Angoulême,
com destino a Paris, arrastando consigo o afectuoso Lu-
ciano. Na capital, porém, o passado de amor que parecia
dever prender para sempre, um ao outro, o poeta e a fi-
dalga, obscurece-se e extingue-se. Além das influencias
fatais do inebriante ambiente concorreram para o desenlace
as insinuações pérfidas de Du Châtelet, um enamorado de
Luisa e consequentemente rival de Luciano.
Aqui começam os revezes duma existência dificil para
o desamparado mancebo, desprovido quase de dinheiro,
mal custeando as reduzidissimas despezas mais imperiosas
do passadio. A sorte, a principio, favoreceu-o, deparaudo-
Ihe amigos, cultos e estimáveis, que o agregaram ao seu
cenáculo. Todavia, não podendo resistir á dominadora am-
bição que o incitava a adoptar os expedientes mais rápi-
dos para conseguir a independência material, ainda que
implicasse a mais aviltante dependência moral, com repu-
gnância para o seu temperamento altivo, toma a triste
resolução de dar ingresso no jornalismo e este desígnio
leva-o a solicitar os oficiosos préstimos de Lousteau, cujo
trato o cativa, encobrindo dolosamente um fraco caracter.
A vida, em Paris, do proletariado intelectual está
admiravelmente exposta nas Illusions Perdues. Nesse do-
mínio, avultam, com a mais perfeita nitidez, dois campos
absolutamente distintos: o do trabalho obscuro, cheio de
consciência e de dignidade, representado por d'Arthez,
meio em que Luciano começou por se iniciar, de passagem,
e que não era bastante sedutor para a sua anoia insofrida
de vitoria imediata; e o do arrangismo que lança mão de
todos os expedientes, estando representado por Lousteau,
40 HONORÉ DE BALZAC
e é O meio do jornalismo, foco de depravação e mercanti-
lismo, em que Luciano acaba por se precipitar, deixando-se
corromper por todas as influencias depressivas, desde a da
carne, exibida num teatro, a cujo espectáculo assiste, até a
da baixa venalidade a que é sujeita, em tais circunstancias,
a produção intelectual. O artigo, elaborado por Luciano,
em uma hora, alta noite, sobre a representação a que
assistira no Panorama-Dramatico, é um valioso docu-
mento, não apenas do estado d'alma momentâneo do
individuo, mas de toda a sua alma. As circunstancias
em que o poeta se encontrava, são dignas de pondera-
ção. Tinha percorrido, em algumas, poucas, horas, luga-
res nunca vistos, em que experimentou as mais vivas
sensações que longe estava de imaginar que nele viessem
a produzir-se, angustiando-o fortemente umas, com o fel
de desenganos enormes (como sucedeu, por exemplo, ao
presenciar a mais aviltante escravização da Arte), derra-
mando-lhe outras nas veias o fogo de luxuriosos desejos,
animalizando-o, fazendo-o ceder aos caprichos sensuais
duma actriz que via pela primeira vez. Em uma tarde —
de notar é que travara, durante o jantar desse dia, conhe-
cimento com Lousteau, o guia amável, em quem julga ter-
Ihe deparado a Providencia um amigo verdadeiro, e que
termina, após a leitura do artigo, por se tornar seu emulo,
disposto a subalternizá-lo e a explorá-lo, — Luciano, ele
próprio o confessou, viveu mais que durante os primeiros
dezoito anos da sua existência. O entrechocar de tão di-
versas sensações que o levaram a reflectir, por instantes, na
decepção de todos os seus sonhos, — desses sonhos puros,
em que, com David, na modesta tipografia de Angoulême,
se enlevava, — na derrocada de todos os seus preconceitos,
era para abalar um cérebro por mais poderoso e a dor dei-
xaria, num espirito vulgarmente constituido, ressaibos tão
penetrantes que impediriam o divagar pela fantasia ridente,
de alada graça, tão intensamente expressa no artigo de
Luciano. Bastava, pois, este testemunho para definir a
originalidade do seu temperamento e do seu caracter. Era,
acima de tudo, um ambicioso, um egoista. Mais e melhor
que qualquer expansão, que todas as expansões que tem.
HONORÉ DE BALZAC 41
em conversa com Lousteau, revela-o esse seu proceder
extremamente significativo. O equilibrio, mais ou menos
estável, da razão de que brotava aquela serenidade e gosto
no humorismo do cronista, sucedera, sem transições apa-
rentes, á mais febril excitação, sentimental e nervosa. Tinha
um pé no jornal — cujo director, Finot, estava a seu lado,
conviva dum lauto e concorrido festim, em casa duma
comediante, Florina, nova e formosa, amante de Lousteau
— e tinha o outro na cama de Coralia, a comediante que o
enfeitiçara e se enfeitiçara com ele, belo como um Apolo.
E gosava, com delicia, embriagado pela opulência que o
cercava, aquele ambiente de intelectuais, jornalistas e lite-
ratos considerados, como ele já sentia que havia de ser, e de
mulheres de teatro que faziam espectáculo com a sua man-
cebia rendosa e que, como Coralia, se davam, ás vezes, ao
desfastio de amar cordialmente alguém. A vaidade, o amor-
proprio infinitos de Luciano estavam amplamente satis-
feitos. Mas — o infeliz não reparava ou melhor não queria
reparar — afundava-se no lodo!
A Luciano, de feito, não faltavam advertências sobre
a vida que ia abraçar. Em Lousteau, em Vernou, no próprio
cenáculo, aonde foi agradecer as correcções que os amigos
dedicados e modestos, talentosos e honrados, lhe tinham
feito ao romance que compusera em Angoulême e depois
reconstituirá em Paris, encontrou conselheiros, merecedores
de credito todos, nesse particular.
Mas ouvir a voz da razão era mero passatempo para
o poeta cujo fito exclusivo consistia em attingir, quanto
antes, a independência. E ainda mais letra morta se tor-
naram os avisos, todos igualmente sensatos, posto que
nem todos ditados pçla amizade, desde o momento em
que viu, mais de perto, a senda, repleta de prazeres e de
dissipações, que Lousteau percorria, deslumbrando-o in-
tencionalmente, cora os gosos materiais do concubinato
com Florina e afogueando-lhe as aspirações com o des-
vendar de meios fáceis, conducentes a um triunfo ime-
diato. Lousteau tinha Florina e ele tinha Coralia. Lous-
teau, para conseguir os seus fins, operando com a ousadia
e o despejo dum videirinho, não tinha escrúpulos. E ele
42 HONORÉ DE BALZAC
para que havia de os ter? Os princípios rigidos da moral
do cenáculo davam-lhe de comer? E mesmo que dessem,
acaso lhe permitiam gosar, gosar como ele queria, carnal-
mente, com os excessos duma mocidade ardente, transbor-
dante de seiva, tanto mais copiosa e viva, quanto mais
represada fora, numa abstinência severa? Amantiza-se
ostensivamente com Coralia que acaba por despedir Ca-
musot, o negociante qnarentão que gastara com ela o me-
lhor de sessenta mil francos.
Os dois amantes teem a fraqueza de se amar do co-
ração.
Quando, na carruagem que Camusot dera, no próprio
dia, a Coralia, esta e Luciano, em passeio, se defrontam
com Mme d'Espard e Mme de Bargeton que também pas-
seavam de carruagem, o poeta, em que a ferida do desen-
gano amargo que sofrera, não cicatrizara ainda, sentiu,
então, lançando um olhar de desprezo para a primeira
mulher que amara, quão distante estava já daquela situa-
ção penosíssima em que tomou conhecimento com a misé-
ria desesperadora. Foram instantes curtos, fugazes como o
relâmpago, mas decisivos !
Depois — a sensação experimentada fora profundís-
sima e gravara-se-lhe no espirito — ligeiras são as hesita-
ções de Luciano.
O caminho estava agora traçado. O rumo a seguir um
só podia ser. Ligado a Coralia, despedido Camusot, impu-
nha-se-lhe mantê-la, concorrendo com os seus salários
para aumentar os da actriz que cada vez mais se lhe afi-
gurava digna de todos os sacrifícios pela maneira cari-
nhosa e desinteressada com que o tratava e se mostrava
decidida a unir ao dele o seu destinp.
Tudo o tentava: a riqueza da casa de Coralia, a be-
leza desta, a segurança garantida do seu futuro de homem
de letras!
De olhos fechados, recalcando vestígios de altivez e
de probidade, precipita-se no jornalismo. Logo á entrada,
ele que se obstinava em ser surdo a conselhos, indiferente
a revoltas da consciência, notaria, se outro fosse o estado
do seu espirito, menos excitado pela anciã do ganho, que
HONORÉ DE BALZAC 43
ia ser espoliado por todos os que se diziam seus amigos,
os seus novos camaradas de profissão.
O jornalismo, o baixo e mesquinho jornalismo que
tinha de cultivar, por força das circunstancias, inspirou,
por vezes, repugnancias a Luciano. Então, rodeando-o. os
amigos de ultima hora riam-se dos seus escrúpulos. Co-
ralia mesmo o entusiasmava pela profissão, com argu-
mentos decisivos, sobretudo desde que o volume de versos
do poeta logrou a aceitação de Dauriat que lhe comprou
a obra por alguns milhares de francos, cuja entrega o
livreiro-editor efectuou numa visita, feita com o propósito
de levá-lo a desistir duma campanha danosa que iniciara.
Luciano era já um nome cotado, como jornalista. Os seus
artigos, criticos ou de combate, davam brado. Gosava de
popularidade, a fama viera ao seu encontro, embalando-o,
deleitando-o com as suas seduções. O poeta, ambicioso,
comodista, vingativo, não era homem que lhes resistisse.
Os amigos, com fino tacto, descobriram esses fracos, espe-
cialmente vulneráveis num inexperiente, e nos encanta-
mentos falazes duma gloria efémera, fôram-no envolvendo,
sugeriudo-lhe perfidamente, com o acumular de bens ma-
teriais, o abandono radical dos preconceitos de véspera,
alimentados só por fantasistas ou por ingénuos — observa-
vam-lhe — como esses do cenáculo, grandes homens que
chegavam a meter dó, pela estulta pertinácia do seu ve-
getar, no mais ingrato recato.
Luciano chegou a considerar ridiculos, quase pobres
de espirito, os que foram, em Paris, tão dignos compa-
nheiros do seu infortúnio, como David o fora em Augou-
lême!
Depois, para mais lhe perverter o caracter, soprando-
Ihe á vaidade, a essa sua vaidade em constante briga com
os principies da honra, á tão fácil e completa vitoria
sobre o livreiro, conseguida por um artigo de critica in-
tencionalmente destrutiva duma das obras mais recentes
dum escritor consagrado — artigo que Luciano escrevera
contra a sua consciência e a que, acorrentado aos interes-
ses do jornal, acabou por dar o mais formal desmentido,
agora segundo a sua razão, servindo-se do falso expe-
44 HOXORÉ DE BALZAC
diente duma pretendida réplica — , veio juntar-se aquela
outra vitoria que, em virtude do aniquilamento de Mme
de Bargeton e do barão du Châtelet —aniquilamento mo-
ral, pela critica jornalistica — , lhe abriu os mais selectos
salões aristocráticos de Paris, aonde foi defrontar-se com
Mme d'Espard, a alma duma trama urdida contra o in-
quietante jornalista,
Luciano que, mesmo quando chegava a recalcar a sua
altivez e a fazer sacrifícios materiais por amor a Coralia,
era movido pelo egoismo mais estreito, pois que, em todos
os seus actos, como em todos os seus pensamentos, se via
só a si próprio, a si referindo tudo, canalizando tudo no
sentido do seu futuro, tinha, apesar de manifestações iso-
ladas de arrebatamento que se poderiam crer assomos de
energia, uma débil constituição moral: «a sua vontade, a
sua coragem estão á epiderme apenas», dizia, com larga
penetração, um dos seus falsos amigos. No fundo, a pusi-
lanimidade do poeta, a leveza, a inconstância nos propó-
sitos, jogavam em desacordo com a efervescência da am-
bição.
Depois de ter passado por muitas baixezas, sugeitan-
do-se-lhes, ou ludibriado na sua confiança ou transigente
por sua grosseira conveniência, Luciano ainda conservava
restos de pundonor, de brio, duráveis todavia como o re-
lâmpago, quando chegavam a exteriorizar-se. A sua inteli-
gência tão brilhante, tão invejada por todos, era objecto
do mais vil mercantilismo, em seu serviço, mas muito mais
em proveito da gentalha a que se associara.
Mal defendendo o moral das cavilosas arremetidas dos
seus ruins companheiros de profissão, acabava sempre por
convir com eles no ignóbil. Emporcalhavam-lhe a alma e
ele, de olhos fitos num porvir ridente, esplendoroso, indi-
ferente a advertências ou a insinuações, colaborava até
com eles. O desgraçado, de quem todos abusavam, era um
manequim, por ultimo, ao sabor das mais opostas facções!
Quando, obrigado a escrever um artigo critico contra o
livro recem-publicado de d'Arthez, um dos seus melhores
amigos do cenáculo, sinceramente dedicados e que viam
com magoa infinita a ignominia do transviado, Luciano
HONORÉ DE BALZAC 45
correu, á meia noite, a casa dele, a coufessar-lhe o seu
desespero, derramando lagrimas verdadeiramente sentidas,
arrependido da resolução que tomara, aceitando a incum-
bência de novos patrões da imprensa, a quem devia, para
seu bem, julgava, obediência, revelou iniludivelmente que
era um fraco, mais merecedor de compaixão que de severo
castigo.
Confrangido por vê-lo sofrer tanto e sabedor da causa
que imperara sobre ele e o fizera anuir a exigências obsti-
nadas, — Luciano que amava profundamente Coralia e se
sentia amado por ela, não queria incompatibilizar-se com
os raros jornais com que podia contar, na luta que teria
de sustentar contra os seus rivais e da actriz, por ocasião
da próxima estreia desta no Ginásio — , d'Arthez teve dó
dele. E, conhecendo o intimo do poeta, dirigiu-lhe, entre
outras, estas palavras tão significativas: «Receio que vejas
absolvições nos teus arrependimentos!»
O abismo em que se precipitava, de fraga em fraga,
dava a Luciano a tontura da vertigem, alucinava-o mesmo.
A ambição de ascender até a aristocracia, alcançando
o titulo de conde, a realçar o uso, devidamente legalizado
também, do apelido de De Rubempré, acabou por per-
dê-lo.
Teria ganhado de novo o coração de Luisa de Bar-
geton, se se lhe apresentasse como amoroso dela ou se lhe
prometesse amor.
Mas não! era impossível: o desgraçado amava Cora-
lia. Exasperando Luisa com a narração deste amor, expan-
são que lhe foi fatal, provocou nela o recrudescimento do
ódio. Toda a sociedade que Mme d'Espard reunia nos seus
salões, isto é, toda a alta sociedade de Paris, passou a es-
carnecer dele, a iludi-lo nas suas pretensões, a guerreá-lo,
mais ou menos ostensivamente.
A promessa de Mme d'Espard, no sentido de lhe obter
acesso oficial á nobreza, não foi mais que um logro, for-
jado para o comprometer irremediavelmente.
Todos conspiravam para a ruina de Luciano. E até do
cenáculo, sobresaltado com a polemica dirigida contra o
livro de d'Arthez e contra um periódico, órgão dessa sele-
46 HONORÉ DE BALZAC
cta colectividade, partiram manifestações violentas de ran-
cor e de desforra. O poeta, vitima da campanha jornalis-
tica qne o partido liberal, a que pertencera primeiro, lhe
fazia, escandalosamente, para o esmagar, era dado por au-
tor de diatribes soêses e de destemperados motejos, lança-
dos á imprensa, transformada em instrumento seu, para
derrubar reputações e rebaixar amigos. Insultado publica-
mente por um dos do cenáculo, Luciano paga afronta com
afronta e bate-se com ele em duelo, ficando ferido. Morava
então, sempre com a actriz, adorável sempre de dedicação
por ele, numa casa mais modesta, em bairro mais pobre.
As malquerenças que perseguiam o infeliz amante, perse-
guiam também Coralia.
Já as dividas se acumulavam, dificultando-lhes o viver.
Para espairecer magoas e, não raro, desesperos, entre-
gava-se Luciano aos prazeres da mesa, em mil ensejos que
se lhe ofereciam e que provocava, servindo-se das numero-
sas relações.
Provavelmente, as libações copiosas eram por ele pro-
curadas para adormecer pesares. Por fim, e para seu maior
mal, não obstante saber que o jogo estava sendo o cancro
da existência do companheiro Lousteau, tomou o habito de
arremessar ao pano verde quantias sobre quantias, muito
restritas, porque a miséria o assediava, mas nem assim pou-
padas pela sorte. Coralia viu-se suplantada por Florina,
mantida agora por outro jornalista, sucessor de Lousteau.
A artista, ferida no seu amor-proprio, lutou para conservar
o lugar que se esforçavam por usurpar-lhe, mas teve de
ceder, afinal, não a ajudando a saúde.
Luciano perde o gosto do trabalho. Aquele ardor de
se tornar, um dia, justamente, grande homem de letras
desaparecera, logo que o amor e os gosos materiais de va-
ria espécie o inundaram de delicias. Não era um volunta-
rioso; o seu querer, além de flexivel, desorientavel, não ti-
nha continuidade, anulavam-no intercadencias, tantas quan-
tas as sugestões pérfidas dos seus mentores.
Reconhecendo-o tão frágil, tão mudável, tão adaptável
ás exigências mais contrarias, desde que uma lufada insi-
diosa de pronto beneficio lhe refrescasse o espirito, em
HONORÉ DE BALZAC 47
atormentados momentos, todos se constituíam seus mento-
res. A vaidade hipertrofiada de Luciano vedava-lhe a
consciência da sua situação deprimida, humilhante. Ainda
o amparava a esperança na prometida distinção que lhe
seria conferida, mercê da solicitude de Mme d'Espard, de
Mme de Montcornet, da sua própria bem-amada doutros
tempos. Quando esses falsos protectores desafivelaram a
mascara, com o pretexto de Luciano ter escrito, para o
jornal de Lousteau, um artigo que gravemente ofendia a
dignidade dum dos altos personagens que por ele estavam
dispostos a interceder, e a do próprio monarca, desenga-
nado o poeta, em condições extremamente vexatórias, de-
sabaram, bruscamente, as suas aspirações mais caras.
A derrocada moral foi completa, quando ocorreu a
morte de Coralia que, ao expirar, proferiu, fiel ao amante
como esposa, os nomes de Deus e de Luciano, conjunta-
mente.
Para lhe pagar um enterro decente, o poeta anue a
uma encomenda de versos estúrdios. A encomenda fizera-
Iha, por caridade, um individuo conhecido de Luciano a
quem este, com a cabeça desvairada pela dor, estendera a
mão, suplicando-lhe umas reduzidas centenas de francos.
Os versos são elaborados, em dramáticas circunstancias, na
presença do cadáver de Coralia, declamados, depois de
compostos, de mistura com convulsivo pranto, acometido
Luciano por uma terrível crise nervosa.
Luciano resolve deixar Paris e aceita, para ajuda da
viagem que, mesmo assim, terá de realizar a pé, o dinheiro
que calcula provir da prostituição de Berenice, a criada
de quarto de Coralia. Parte. Após incidentes diversos, en-
tre os quais se destaca o encontro de Luciano com Mme
de Bargeton e o barão du Chàtelet, de regresso a Angou-
lême, casados já, pede pousada a uns moleiros, a algumas
léguas de distancia da terra onde nascera e onde viviam,
lutando com as mais rudes provações, os três entes que,
havia ano e meio, pouco mais ou menos, abandonara. Da
capital, uma só remessa de dinheiro lhes endereçara, uns
quinhentos francos. Mas, a contrabalançar essa fácil gene-
rosidade que tanto cativou as excelentes criaturas, assinara
48 HOXOBÉ DE BALZAC
por David três letras de mil francos cada uma, afira de
obviar a tremendos apertos. Ora são essas três letras que
causam a aflictiva, a desesperada situação, em que o ho-
nesto e bondoso impressor, a esposa e a sogra sofrem cori-
frangedoramente, arruinados, desacreditados. Luciano, pre-
vendo-o, não tivera forças para proseguir no caminho e
aproximar-se mais de Angoulême.
Sentiu então remorsos fortissimos, mas instável sempre
nas suas resoluções, amando a vida com o apego dos fra-
cos, chegou a crer que morria, dispòs-se mesmo a morrer e
contudo solicitou o auxilio dum medico e acabou por se
entregar aos cuidados diligentes dos hospedeiros. Era in-
capaz de ter a coragem do suicidio.
Os irmãos Cointet, impressores, figadais inimigos de
David, juraram aniquilá-lo, sobretudo desde que notaram
que a dedicada Eva podia, graças ao seu espirito activo,
empreendedor e sagaz, fazer progredir a decadentíssima
tipografia, colocando-se no lugar do marido, á testa do
estabelecimento. David, preocupado em demasia com o
seu invento que consistia no fabrico, por meio de vege-
tais, de papel melhor e mais barato, deixara de pensar no
negocio. Ao contrario do pai, comerciante até a medula,
dominado pela ganância, explorando o filho com o desas-
sombro, o impudor de que usaria para um estranho, o
inventor, se trabalhava com o máximo afinco na sua desco-
berta, era, confessava amiúde á esposa, para dar, um dia,
a abastança aos seus e a felicidade, as mais amplas condi-
ções de felicidade, a Luciano. Conhecedores já da vida
desventurada e transviada do irmão e do cunhado em
Paris, Eva e David sofriam ainda mais do que se se vissem
sós na desdita. E a David que lera no intimo d'alma de
Luciano escaparam, uma vez, estas palavras, causadoras
de grande espanto em sua mulher que começava a des-
coroçoar do irmão, sentindo, pouco a pouco, desvanecer-se
o culto que lhe votara outrora: «Quando Luciano fôr rico,
minha querida, não terá senão virtudes...»
Não faltava ao inventor o talento. Simplesmente, cen-
tralizado em excesso, convergindo todo exclusivamente
para o invento, mantinha-se obcecado, estranho a tudo o
HONORÉ DE BALZAC 49
¥
mais. E esse alheamento tão insistente, tão pertinaz, che-
gou a fazer desesperar Eva que, não obstante, admirava e
venerava David como homem superior. Quando, perseguido
pelos credores, avolumadas as contas em debito com as
verbas apostas pela justiça — omito, para brevidade, os
pormenores do processo—, David é avisado de que, por
insolvente, vai ser detido, Eva que se encontrava junto
dele, pergunta-lhe: «Que tencionas fazer, meu amigo ? >
Abstracto, o inventor não responde e, dirigindo-se á
serva, Marion, recomenda-lhe que ponha ao lume a maior
panela, de certo para o cozimento dos vegetais, matéria
prima do fabrico que era o objecto do seu constante scis-
mar.
Eva Séchard revela-se sobretudo na ultima parte das
lllusions Perdues. Sem perder a delicadeza dos seus senti-
mentos de mulher, eleva-se, por vezes, a másculas iniciati-
vas, tão necessárias para compensar a indiferença do ma-
rido por tudo o que não fosse a substancia do seu invento.
A energia e a decisão de Eva são essencialmente sensatas
e conscientes.
O atentado financeiro de que é, vitima David e os seus,
defraudado por oficiais do mesmo oficio, os tais irmãos
Cointet, agiotas sem escrúpulos, banqueiros á socapa, — um
dos quais, o mais finório, vem a ser, depois de arquimilio-
nario, deputado e par de França, em seguida á revolução
de julho—, mantém tensa a curiosidade, com o desenrolar
de peripécias sempre interessantes.
O pobre David, com a sua inexperiência de negócios,
o seu fundo permanente de ingenuidade, de quase infantil
candura, era uma presa que não sabia defender-se e menos
atacar, que mal saberia fugir. Com quem tinham de defron-
tar-se os seus inimigos ? Quem lhes poderia exigir contas ?
Eva tinha rasgos de tempera varonil. Os Cointet não o
ignoravam. Mas estava sósinha, a bem dizer. Nenhum ele-
mento importante de coadjuvação.
As pessoas da casa tinham todas um só coração que
pulsava em unisono. A iniciativa, porém, se acaso surcrisse,
não iria longe.
O marido, o bom David, andava todo embebido no seu
50 HONORÉ DE BALZAC
cogitar de inventor e não tinha cabeça para mais. A mãi,
honesta senhora que mourejava, de novo, no seu mister de
parteira, para minorar, quanto em suas forças coubesse, a
angustia da crise, tinha, parece, como o genro que vivia
embalado pelas esperanças do seu invento, uma visão pouco
clara sobre o que se passava. Divisavam um futuro som-
brio, mas não curavam da procedência da tempestade, não
pesavam a gravidade tremenda do perigo.
A solicitude dos servos, Marion e Kolb, a mais dedi-
cada solicitude, foi exuberantemente demonstrada em vá-
rios transes que reclamaram o seu concurso. O valimento
dessas criaturas sinceras era, contudo, restrito demais para
assumir, algum dia, um papel decisivo.
Fora da familia, entre estranhos, Eva que tanta sim-
patia devia despertar, pelo seu porte, pela sua situação
amargurada de esposa e mãi, não encontraria facilmente
quem, de bom grado e desinteressadamente, lhe prestasse
auxilio de qualquer espécie.
Uma amiga, engomadeira, antiga companheira d'oficio,
constituia uma excepção única : nela depositava confiança
bastante para entregar, como entregou, á sua guarda e vi-
gilância, a liberdade de David, forçado a ocultar-se, para
escapar á prisão.
E de crer que o circulo das relações da Eva não fosse
além dessas cinco pessoas. Em Angoulême, como em todos
os meios provinciais, o culto do dinheiro impelia para os
irmãos Cointet que estavam de cima e rachavam lenha, todas
as adesões. Eva não veria certamente com bons olhos um
meio social que tomara, contra David, a defesa do avaro
Séchard, seu sogro, desnaturado espoliador do próprio filho.
Os irmãos Cointet metem na contena um advogado,
Petit-Claud, astuciosíssimo, sem sombra de probidade e
tão venal que se presta a ser, na mira dum casamento pro-
metido e de que lhe advirão, como de facto os mais eleva-
dos postos da magistratura, um testa de ferro ignóbil,
revoltantemente hábil, dos impressores-agiotas.
Consuma-se plenamente, sobretudo depois que, por um
ardil dum ex-empregado de David, este é preso, o infame,
diabólico plano.
HONORÉ DE BALZAC Õl
O marido de Eva sai solto, mediante a revelação do
seu segredo industrial, e o usufruto do seu invento, cujo
êxito era belo, condigno remate de anos e anos de labutas
e canseiras, sonegam-lho, dando-lhe uma miserável compen-
sação, iludida a boa fé do infeliz que acaba por crer que a
exploração mercantil da sua descoberta está longe de cor-
responder, como lhe asseveram insidiosa e falsamente, aos
fartos dispêndios de dinheiro, feitos com as grandes expe-
riências definitivas.
Ainda David estava e estaria escondido em casa da
engomadeira, amiga de Eva, quando Luciano, de regresso
de Paris, a pé, abandonando a humilde habitação dos mo-
leiros a quem pediu pousada, chegou a Angoulême e en-
trou na casa dos seus. Vinha com um trajo pouco apresen-
tável. Esta circunstancia talvez o abalasse quase tanto
como o pesar de ter desgraçado os parentes e a comoção
com que antevia um acolhimento de lagrimas e de expro-
brações cordiais. Foi para ele uma felicidade escapar, no
seu trajecto pela cidade, aos olhares curiosos dos seus con-
terrâneos !
O modo como Luciano é recebido, sobretudo a atitude
da irmã, está plenamente justificado pelo que se pode de-
preender sobre o ambiente moral dessa familia. A mãi com-
petia naturalmente a função de censora.
Luciano ouviu, emudecido de perturbação, a repri-
menda discreta.
A mãi do poeta, á semelhança de Eva, não nutria já
por ele aquele afecto profundo, incondicional. Os desre-
gramentos conhecidos, o caso das letras, origem daquela
desesperada situação, fizeram-no baixar sensivelmente na
estima delas. Quando, mais tarde, Luciano é suposto, e
ele mesmo se crê, o causador da prisão de David, o mais
deshumano golpe vibrado ao seio da familia, é também a
mãi que, num simples olhar intensamente significativo,
lança a maldição ao filho.
Luciano sofre, acima de tudo, com a diferença que
encontra no trato da irmã, em relação ao passado, da mais
saudosa intimidade.
Eva, por um momento persuadida de que o irmão ia
52 HOXORÉ DE BALZAC
salvar a família, obtendo a intercessão da condessa du
Châtelet, novamente cativada com as seduções do seu an-
tigo enamorado, mostra que, na sua alma carinhosa, havia
ainda reminiscências do seu velho afecto extremosissimo,
quando se dispõe a sair com Luciano, de braço dado, a
sós, de passeio. Também a isso a impele o orgulho que,
como irmã, sente ao saber da fama de Luciano, admirado
por todos, na cidade. E nessa tarde, em que Eva se entrega
a esse prazer — que lhe fica mal, como ela nota logo,
estando o marido sequestrado ao convivio, para evitar a
detensão, escandalosa num meio pequeno — , que os dois
irmãos, de regresso a casa, vêem passar David, a seu lado,
sob prisão, entre a escolta, precedido e seguido pelo povo.
Então Eva perde os sentidos e é levada para casa, em
braços.
Luciano cria ter reconquistado a estima e admiração
dos seus, após o resultado esplendido das suas sugestões
sobre Luísa, maquinadas para tirar David do opróbrio e
dar-lhe meios de fortuna.
Ele, vaidoso, esperava esse resultado, antegosava já as
delicias do triunfo, ao informar David, em confidencia, so-
bre o seu plano.
Diante da irmã prostrada, fulminado pelo olhar de
maldição que a mãi lhe deita, tudo se desvanece naquele
cérebro, nem um frágil assomo de defesa sequer, a mais
levemente esboçada tentativa de reacção. E, alta noite, re-
solvido a deixar para sempre os seus, escreve uma carta
longa, dirigida á irmã, carta febril, redigida a intervalos,
tantos quantos os acessos de prolongado choro silencioso.
Apesar de Eva não ser já a mesma doutrora, aquela
que tão submissal conhecera, agora toda reflectia, desen-
volvida a razão, cruelmente experimentada pela má sorte,
só a ela o poeta escreve, no cumulo da dor, despedíndo-se,
em termos de que se infere, um tanto vagamente, que vai
acabar com a vida.
Ao sair, de madrugada, beija a irmã que está dor-
mindo.
Aquela ideia de Luciano, expressa na carta, de ser
predestinado pela fatalidade a promover a desdita dos seus,
HONORÉ DE BALZAC 53
foi determinada por uma evocação de Paris, dum banquete
de amigos no Rocher de Cancale ! Isto é extremamente
caracteristico. O poeta tinha uma vontade, uma coragem
intermitentes, fugazes, sem consistência, facilmente desnor-
teáveis. A carta á irmã faz supor uma decisão que não pas-
sa, em verdade, dum rasgo espectaculoso, como provam os
acontecimentos posteriores. É uma peça interessante e va-
liosa, não obstante se acumularem demasiado nela os traços
autopsicologicos. É certo que poderia estar a fazer o seu
exame de consciência, dando o balanço ás suas culpas. Mas
uma analise tão minuciosa de si mesmo requeria serenidade
a que se opunha o alvoroço do momento. E, todavia, como
de Luciano, homem de falsos aparatos, se pode crer que
fosse capaz, por instinto, de insinceridade, quem sabe se o
grande personagem que tanto dera que falar em Augoulê-
me, queria deixar da sua passagem um rasto de efeito? O
mistério da carta é obra de artista. Demais, em duas pala-
vras, estava dito tudo. O homem, porém, deita discurso,
como se, em tribunal, falasse a juis ou a jurados.
Seria a carta uma mera farça?
Certo que o não era, na intenção. Em todo o caso, sal-
dadas as contas, era como se o fosse.
Luciano foi, na esfera da actividade, um dilettanti. Ven-
cer ruidosamente, onde quer que se intrometesse, eis a sua
aspiração suprema, sempre viva, com uma condição ape-
nas: que lhe não custasse muito.
Refregas, em que o esforço rijo, perseverante é garan-
tia exclusiva, mas segura, infalivel, do êxito, não podiam
oferecer-lhe probabilidade de triunfo. Bastava-lhe que a
vaidade fosse lisongeada, que o amor-proprio fosse satis-
feito, para que uma estéril gloriola o deslumbrasse. É ver
como interpreta as aparatosas manifestações de apreço de
que foi alvo, por combinação de falsos amigos, na sua terra.
Nada mais frisante, ponderadas bem as circunstancias,
como afirmação dum caracter. No fundo, Luciano tinha
qualquer cousa dum aventureiro que seria terrivel se á des-
marcada ambição correspondessem, cooperando com a inte-
ligência, energia e bom-senso.
Note-se o espanto que produziu na melhor sociedade
54 HONORÉ DE BALZAC
de Angoulême e como, de golpe, a conquistou, com os seus
ares de grão-senhor, exibindo os seus recursos de homem
superior nos salões de De Sénonches. E quão excelente-
mente fundado é aquele reatar de relações amorosas, entre
Luisa e Luciano, impossivel em Paris, mas tão determinado
pelo ambiente da provincial
Eva e David acabam por vender a tipografia e com as
indemnizações recebidas dos irmãos Cointet, proprietários
afinal do invento que os fez milionários, conseguem arran-
jar com que viver despreocupada, se bem que modestamente,
e recolhem a uma vivenda que adquirem, fora de Angou-
lême. Morto o avaro Séchard, a sua enorme fortuna passa
para os dois esposos e ei-los completamente felizes, ao cabo
de tanto sofrimento.
Luciano, tendo saído de Angoulême, naquela mesma
madrugada, encontra, caminhando por uma estrada, um
rico cónego de Toledo que se diz embaixador do seu rei
junto do de França e que vai de viagem para Paris. Sob a
influencia eminentemente persuasiva dos seus conselhos,
dispõe-se a acompanhá-lo e desiste prontamente do sui-
cidio.
Balzac, á data da composição de César Birotteau, en-
contrava-se já na plena posse dos seus altos recursos de
criador d'almas.
De certos tics mesmo da personalidade o romancista
tira partido. Assim, para definir César Birotteau, as inva-
riáveis palavras que este repete, como estribilho, em justi-
ficação da sua promoção na ordem da legião d'honra, e
aquele habito de se erguer nas pontas dos pés, deixando-se
depois abater sobre os calcanhares e pondo as mãos cruza-
das atraz das costas.
Em todas as suas conversas com Anselmo Popinot,
o caixeiro que vem depois a estabelecer-se, por conta de
Birotteau, inaugurando o seu comercio com o Óleo, pri-
meiramente denominado Cesário e mais tarde, definitiva-
mente, Cefálico, o perfumista, mais talvez que em quais-
quer outros momentos, exceptuadas as vezes em que se
dirige a sua mulher e a ouve, avulta, a nossos olhos, cria
HONORÉ DE BALZAC 00
corpo, revela-se como caracter, simpático sempre na sua
inesgotável bonhomia, simpático ainda — pois que é, de
natureza, um ingénuo, um sincero — quando, sob a influen-
cia duma vaidade de espirito pobre, inferior, que o leva
á crença em presumidos dotes pessoais, se deixa explorar
por todos.
A mulher, Constança, tem, em bom-senso e instintiva
consciência da maldade humana, o que falta ao marido.
Ha palavras dela que, nas condições em que as profere,
esclarecem, a toda a luz, o fundo da sua alma.
Quero apontar algumas, características, do máximo
poder intrínseco de expressão. Birotteau, radiante de entu-
siasmo, reconhecendo que Anselmo, cooperando com ele,
aplanara dificuldades importantes, e que o Óleo Cesário
decidiria da sua felicidade, aceitou, sem hesitações, o
plano definitivo do arquitecto Grindot e dispunha-se a
igualmente aceitar os alvitres de Lourdois, encarregado da
pintura decorativa, que lhe falava de dourados para a sala,
quando Constança interveio, exclamando: « — Senhor
Lourdois, o senhor tem trinta mil libras de renda, mora
numa casa que lhe pertence, pode fazer nela o que quiser;
mas nós outros . . , >
« — Minha senhora — respondeu o interpelado — o co-
mercio deve brilhar e não se deixar esmagar pela aristo-
cracia. Demais, o senhor Birotteau é já uma autoridade,
está em evidencia . . . >
« — Sim, mas tem ainda loja de negocio — replicou
Constança, diante dos caixeiros e de todos os presentes —
Nem eu, nem ele, nem os seus amigos, nem os seus inimi-
gos, o havemos de esquecer. »
Nova situação, em que Constança se ostenta flagrante-
mente. Dias antes de chegado o famoso domingo em que
os Birotteau, para solenizar a libertação do território,
como para celebrar a promoção do dono da casa na or-
dem da Legião d'Honra, dariam um banquete e um baile
magnificentes, pai, mãi e filha reuniram-se para deliberar
sobre os convites a endereçar, devendo organizar-se a lista
respectiva. César propôs que se começasse pelos <; grandes >
e na cabeça do rol pretendia que a filha começasse por
56 HOXORÉ DE BALZAC
escrever os nomes do « senhor duque e senhora duquesa de
Lenoncourt». Constança interveio:
« — Deus meu! César, não envies um único convite
ás pessoas que não conheces senão na qualidade de forne-
cedor. »
E depois de lhe fazer ver a insânia da pretensão, de-
monstrando-lhe, pela voz da razão, que outros convites, do
mesmo jaez, seriam descabidos, exclamou:
« — Tu estás doido, as grandezas dão-te volta ao
miolo!»
Que maior pujança de traço, na expressão da reali-
dade, poderá desejar-se? Esta situação tem uma impor-
tância capital para a determinação do caracter do perfu-
mista e do de sua mulher. De resto, sempre que estejam
na presença um do outro, estes dois seres definem-se.
Por estoutro episodio, o conhecimento da alma de
Constança adquire nitidez e precisão maiores. E o mais
concludente possivel, também.
Na mesma ocasião, em que César, Constança e Cesa-
rina, a filha, se reuniram em conferencia, assentando na
forma de proceder á confecção da lista dos convidados,
Constança, a certa altura, ouvindo dizer ao marido os
nomes do senhor conde e da senhora condessa de Fontaine,
e de sua filha Emilia de Fontaine, nomes que Cesarina ia
inscrever na lista, exclamou, a propósito da filha dos
condes:
< — Uma impertinente, uma delambida que me faz
sair do estabelecimento para lhe falar á portinhola da car-
ruagem, seja por que tempo fôr. Se cá vier, é para zombar
de nós. >
Nestas palavras está a perfumista toda, o mais fiel-
mente representada.
Na véspera do dia solene, César foi recebido cava-
leiro, na Chancelaria da Legião d'Honra. Ao regressar a
casa, no auge do entusiasmo, sem falsa modéstia, não se
contenta com a fita e mira-se, pálido de alegria, em todos
os espelhos, para ver a cruz da ordem, com que engalanou
a botoeira.
Era chegada a hora do jantar. Estavam á mesa os
HONORÉ DE BALZAC 57
tres, pai, mãi e filha. César, sem cuidar doutra cousa que
não fosse a causa primordial do seu regosijo, conta que o
próprio chanceler, o senhor de Lacépède, aceitou o con-
vite para o baile e banquete, mediante intercessão de
De La Billardière. O bom-senso em pessoa, insensivel á
vaidade, e, acima de tudo, mulher e dona de casa, Cons-
tança adverte, dirigindo-se ao marido :
« — Mas come, homem!»
E dirigindo-se a Cesarina:
« — E peor que as crianças, teu pai!>
Não é necessário mais para conhecer o interior do-
mestico,
César Birotteau é, como sua mulher, uma figura ver-
dadeiramente humana, da média da humanidade.
Interessa, mas não é esse o meu intento agora, deter-
minar o que no perfumista ha de caracteristico, quanto á
época em que se nos apresenta. Sobretudo, o que desejo
acentuar é o que ha nele de humano, de universalmente
humano.
César é um pobre homem, com ares de alguém. Mas é
uma crusta apenas, isso que, ao primeiro aspecto, nele
podia haver de pessoa de importância. Chefe de familia
exemplar, negociante sério, quanto possível, apesar dos trucs
de que tinha de usar, para a boa venda da Pasta das Sul-
tanas e da Agua Carminativa, individuo capaz de ser
amigo certo, caracter e temperamento dispostos ao bem,
natureza sã de altruísta, eis o homem. O que tinha de
bondosa a sua alma, documenta-o o procedimento que
adoptou, no mais aflitivo dos transes, a um passo da fa-
lência, para com sua mulher, escrupulizando em evitar-lhe
o mais leve motivo de desgosto.
E não se julgue que, sendo-lhe a mulher superior em
inteligência ou finura de espirito, ainda que também de
mui restrita educação, o dominasse a ponto de lhe fazer
ter medo de revelar o que sucedia. Não era o medo, era a
consideração que votava a Constança, consideração que,
num grau eminente, dignificava a sua amizade de marido.
Mas, além da consideração, manifestam-se nesse procedi-
mento de César os extremos de carinho que decerto prodi-
58 HONORÉ DE BALZAC
galizava á esposa. Note-se que casou por amor. Não foi um
casamento de interesse. O perfumista não era, no intimo,
um vulgar, baixo interesseiro; presava, creio, mais, muito
mais, as honrarias que o dinheiro. Não, não era interesse
grosseiro o desse homem simples que mourejara a sua
vida, antes de obter uma situação mais solida e desafogada.
E quando se metteu no negocio dos terrenos da Madalena,
nessa tremenda especulação que o levou á bancarrota,
César pensou provavelmente em satisfazer a ambição da
mulher, de adquirir, com celeridade, pecúlio que bastasse
para deixarem Paris e o negocio e irem viver para a pro-
víncia, em bens territoriais que já possuiam.
César confessou mesmo a sua mulher que o seu fim,
ao tomar parte nessa especulação, em que irremediavel-
mente comprometeu os seus capitais, era aumentar a do-
tação da filha, facilitando-lhe, por essa forma, o casamento.
Nessa confissão o perfumista era sincero, pois sincero era
sempre para com sua mulher. De resto, a sinceridade
estava no fundo daquela natureza de ingénuo. César era
um espirito fraco, mas bom e particularmente sensivel á
comoção.
Ao regressarem do jantar em casa dos Ragon, César,
Constança e Cesarina, no trem que os conduzia a casa, o
perfumista chora: as lagrimas, na obscuridade do trem,
lagrimas silenciosas, vão cair quentes nas mãos da esposa
e da filha. Que basta para o fazer alegrar? Que Cesarina
lhe diga que seu noivo, Anselmo Popinot, está resolvido a
verter o sangue por ele.
Mais tarde, numa crise desesperada, tendo o perfu-
mista procurado baldadamente Nucingen e Du Tillet, ban-
queiros, o que o fez reconhecer a perda total do seu cre-
dito, César, abatido, adormece, emquanto a filha toca piano
e depois da mulher, trabalhando, o consolar por um espe-
rançado sorriso.
César estava longe de possuir a tempera rude —
prova-o o haver tão facilmente vergado á adversidade
— que fariam supor as condições em que, vindo da pro-
víncia, a pé, sem dinheiro, se sujeitou ao trabalho, para
alcançar, um dia, emfim, a independência.
HONORÉ DE BALZAC 59
Outras situações importantes — toda a acção gravita
em torno da figura central, César Birotteau — definem a
individualidade do perfumista: ao saber, de chofre, por
informação de Crottat, da fuga de Roguin, o notário, de
cuja casa fizera o banco para deposito dos seus capitais,
destinados ao negocio da Madalena; as suas entrevistas
com os Keller e o seu encontro com Uu Tillet e especial-
mente quando este, levando-o a sua casa, lhe faz o emprés-
timo dos dez mil francos ; a sua primeira visita ao estabe-
lecimento de Popinot, seu ex-caixeiro; quando, conhecedor,
em toda a plenitude, do irremediável descalabro dos seus
negócios, da sua vida de negociante, no auge do desespero,
no extremo aniquilamento da sua pessoa, ajoelha, põe as
mãos e reza o padre-nosso, comovendo todos pela unção
com que profere: «o pão nosso de cada dia nos dai hoje...»;
na maneira como acolhe os mil francos que lhe envia o
irmão padre; quando intervém, impedindo que a Madon,
para se pagar por suas mãos, faça pilhagem no estabele-
cimento, prometendo trabalhar de carregador, como um
negro, mas que solverá os seus compromissos, etc.
A desgraça engrandece o perfumista. Todos se sentem
confrangidos, vendo-o vergar ao peso de tão grande dor.
Emquanto feliz, foi talvez um incompreendido, a não
ser pelos seus, mulher e filha, e pelos caixeiros que o esti-
mavam.
A falência, com todo o seu cortejo de desgostos, fa-
zendo reçumar o que havia de bom, de puro no intimo
daquela alma, deu em resultado subir o perfumista no con-
ceito de amigos e conhecidos, impressionados pelo que de
magnificamente probo revelavam os seus actos.
Surgem ainda, por vezes, uns restos de fatuidade ridi-
cula, como no caso da visita ao estabelecimento de Po-
pinot, no regresso do tribunal do Comercio. Um falso sen-
timento de superioridade leva-o a exclamar, após ter olhado
para a taboleta do seu ex-caixeiro, onde se exibia o nome
deste: «Eis um dos lugares-tenentes de Alexandre!»
Que César era um homem essencialmente honrado,
testem unha-o a sua atitude, ante o tio de sua mulher,
Pillerault, ao dizer-lhe este que o seu futuro genro, An-
tíO HONORÉ DE HALZAC
selmo Popinot, queria reabilitá-lo, sem mais detença e de
vez, cedendo-lhe os capitais necessários para o pagamento
integral aos credores. Ao excelente homem repiignava-lhe
isso que ele chamava: «vender a sua filha».
Atente-se ainda na maneira como recebeu a leitura da
sentença, feita pelo primeiro presidente, no Palácio de Jus-
tiça, na sala das audiências solenes, sentença que o reinte-
grava na posse de todos os direitos civis de que o privara
a falência: César <não poude abandonar o seu lugar junto
á barra, parecia que estava pregado a ela, olhando como
um aparvalhado para os magistrados, como se fossem anjos
que viessem reabrir-lhe as portas da vida social. > Isto é
mais um traço a acrescentar a tantos outros, para pôr em
relevo a compleição moral do homem.
Pondere-se ainda uma outra curiosa circunstancia,
ocorrida em seguida a essa memorável sessão do tribunal,
no dia mais jubiloso da existência do perfumista. Este
recebera, anteriormente, com a doação de 6:000 fran-
cos, feita por intermédio do visconde de Vandenesse,
ordem régia de voltar a usar, desde logo, a insignia da
Legião d'Honra. Pois, apesar da sua extrema dedicação
pelo rei, só depois de ouvir aquela sentença que o «ful-
minou» de prazer, se decidiu a repor na botoeira a fita
da Legião.
Antes de entrar na carruagem, ou já dentro dela, aos
seus amigos que se dispunham a acompanhá-lo a casa,
César manifesta-lhes o desejo de, primeiro, entrar na Bolsa
e usar dos seus direitos.
Que o perfumista era um homem de coração, final-
mente, prova-o, além do que fica apontado e salientado, o
que se deu por ocasião daquela ida, com a mulher, a filha
e o prometido desta, a Sceaux, onde o aguardavam os seus
amigos fieis: devem acentuar-se as expressões profunda-
mente sentimentais, dirigidas a Constança, emquanto ambos
passeavam, precedidos pelo par de noivos, nos bosques
d'Aulnay. Aí confessou a sua mulher que ela era « o seu
siso e a sua prudência >. Tão vibrantes foram as expansões
da sua alma que Constança sentiu augmentar-se-lhe o amor
por César.
HOXORÉ DE BALZAC 61
Ursule MirouH é um dos raros romances d'amor,
propriamente ditos, da produção de Balzac. Amor roma-
nesco, caracteristicamente romanesco. Inverosímil? Certo
que não.
Repleto de poesia, não carece de humanidade.
Sofre, porém, a realidade, com os artifícios — nesta
obra, estranhos, por vezes — da imaginação.
A conversão, operada por Úrsula, do velho doutor
Minoret, seu padrinho, ao catolicismo tem o defeito, mani-
festamente grave, de ser precipitada, senão provocada, pelo
mesmerismo que presta, só na aparência, serviço á acção,
lesada, na sua constituição lógica, pela interferência for-
çada do elemento sobrenatural, actuando não apenas inci-
dentalmente, mas como factor preponderante. Ha, porém,
neste romance, muito de amplamente compensador. Aquele
cerco dos vorazes herdeiros do velho doutor e aquele tor-
turado viver sob o remorso, em que se consome o atlético
Minoret-Levrault, são, em particular, maravilhas duma arte
superior.
Apesar de sumariamente construídas, as figuras, indi-
vidualmente consideradas, são inconfundíveis. De tal ma-
neira se adaptam acção e figuras mutuamente que bastaria,
de ordinário, a acção, por si mesma, para determinar, pela
natureza da intervenção das figuras nela, as modalidades
fundamentais do seu caracter moral.
Não julgo que se encontrem, em Ursule Mirouêt, figuras
com mais relevo que as dos esposos Minoret-Levrault. Não
obstante a solicita, carinhosa diligencia com que Balzac
compôs a admirável protagonista — uma das suas mais
cuidadas figuras de mulher — sobrelevam-lhe, pelo vigor
com que se afirmam, sempre que surgem, aqueles dois
curiosíssimos esposos, criação exuberante de realismo. Não
ha palavra que profiram, que não seja, em geral, muito
deles, a mais própria, a exacta expressão dos seus tempe-
ramentos.
Mme Minoret-Levrault colhe-se em flagrante, por
exemplo, no modo como trata, nos termos que dirige a
Savinien, quando este, querendo castigar as afrontas que
acabavam de ferir quase mortalmente Úrsula, a sua que-
62 HONORÉ DE BALZAC
rida noiva, vai a casa dos dois esposos e se lhes apresenta
e os increpa, de chapéu na cabeça, em ar vexante de de-
safio. O marido também aí se mostra tal qual, como seria,
conjecturo, mesmo que o remorso lhe não minasse já a
alma, e a consciência lhe não bradasse que fora um crimi-
noso vilissimo, roubando as inscrições, destinadas a Úrsula
pelo seu afectuoso padrinho.
A boçalidade enorme de Minoret-Levrault está exce-
lentemente comprovada por todos os seus actos e por todas
as suas palavras. Aquela obstinação, promovida pela ideia
fixa, de fazer crer a todos que a causa do seu cruel proce-
dimento contra Úrsula era o desejo de impedir que seu
filho casasse com ela, é um testemunho decisivo sobre o
homem, se bem que atravessasse então já um estado mór-
bido.
Goupil, na sua ruindade audaciosa de ambicioso feroz,
apresenta também multiplicados traços vivazes, conver-
gentes todos para o mesmo odiento efeito. E uma alma
pútrida. Capaz de crimes, não o tentavam os processos
vulgares que põem o delinquente tanto a descoberto; co-
nhecedor do código penal, não se expunha a perigos, ope-
rava, com a segurança plena da impunidade, infames tor-
pezas. A sociedade da sua terra — uma sociedade de pro-
víncia— tolerava-o, talvez até não antipatizasse com ele.
As autoridades, os influentes, as pessoas mais gradas, pa-
lestrando, falariam certamente das proezas desse maroto —
a cavaqueira sobre o próximo, a favor dos fortes ou dos
audaciosos e contra os fracos ou os oprimidos é parte
obrigada, pelo menos em certas rodas — e diriam dele,
com o ar falsamente bonacheirão de finórios que não
querem ser incomodados: «Um pandego! E, no fim de
contas, não passa dum pobre diabo ! » Goupil era um con-
terrâneo.
Isto tudo oferece, pois, completa verosimilhança. Para
mais, Goupil não pertencia ainda ao numero dos homens
sérios, ainda era solteiro. Tinham-no por um rapaz. Razão
de sobra para indulgência. Uma moral fácil, cheia de con-
cessões, é cousa de todos os dias. Balzac está na verdade,
ao exibir uma população inteira, assistindo indiferente ás
HONORÉ DE BALZAC 63
perseguições de que foi vitima Úrsula. ' Parte dos ultra-
ges, os derradeiros, precisamente, os mais graves, por ata-
carem a honra de Úrsula, foi, é certo, praticada, sem que
se soubesse, por algum tempo, qual o seu autor. Mas de-
pois, logo que, sem receio de errar, se ponde atribuir a
Goupil essa série de vilanias, quem saiu a terreno, aberta-
mente, para castigar o culpado, indigno da mais leve
transigência?
Somente consta que, uma noite, lhe foram vibradas,
por dois indivíduos desconhecidos, pauladas. Quem seria
o mandante? Savinien, brioso e digno, não. Malquerenças
pessoais que, por mera coincidência, estalassem naquele
momento? Vingança tirada de qualquer façanha do atre-
vido? O caso não é claro.
Que Goupil vivia nas boas graças dos seus conterrâ-
neos, prova-o o trato cortez, senão amigo, que lhe fo^
dispensado na sua situação de notário, alcançada com o
dinheiro de Minoret-Levrault, a quem servira, como testa
de ferro. Bem casado, feito homem sério, Gouril vestiu
roupas novas e asseverava impudentemente que, no inte-
rior, como no exterior, era outro, consciência lavada, alma
sã, toda probidade e rectidão. Mudanças destas, bruscas,
na vida dum homem, são mais naturais e frequentes do
que se pode imaginar. Não escaparam a Balzac, o grande
analista do homem e das sociedades.
Custa a admitir que Goupil, apesar de toda a sua
1 O doutor Minoret, ainda que tão de perto aparentado com os
Minoret, era, como a afilhada, um adventício, pois que, apesar de
conterrâneo daqueles, fizera vida, desde a infância, longe de Nemours.
Contra Úrsula conspira tacitamente uma população em peso. Também
contra o general Montcornet (em Les Pai/saus) conspira, mais osten-
sivamente, uma região inteira, mal visto por ser um estranho, um
intruso, e brigarem com os seus interesses de proprietário os interes-
ses ilegítimos dos rurais. Estes e os seus instigadores, da classe bur-
guesa, são abomináveis, odiosos. Entre tanta perversidade, tanto
mais temível quanto mais solerte, só ha uma excepção, num sacristão
e coveiro. Podem parecer carregadas as tintas. Julgo, porém, na es-
sência, verdadeiro o quadro. O general afastava-se dos provincianos,
não arranchava com eles. Dai também a guerra.
64 HONORÉ DE BALZAC
perversidade, fosse tão tenaz perseguidor de Úrsula que
mal conhecia, só porque aspirava, com ardor veemente, a
conseguir um emprego publico, em que fosse mais remune-
rado e conceituado. Ele não calculava todo o mal que fazia
a Úrsula, porque ignorava o seu nervosismo, cuja vibrati-
lidade tinha muito de doentio. Pô-la ás portas da morte.
Tanto encarniçamento explica-se por alguma cousa tanto
ou mais poderosa ainda que a ambição. Goupil amou, a seu
modo, Úrsula, emquanto não deu fé de que tinha um rival
feliz em Savinien.
Talvez que, por isso, o seu procedimento fosse uma
desforra.
E assim se percebe que tomasse tanto a peito o seu
papel de perseguidor. Goupil pensou em desposar Úrsula e
chegou mesmo a confessá-lo. Não era um obstáculo aos
seus fins a sua saida de Nemours. Dentro deste critério,
aumenta o interesse que a figura desperta e a sua psicolo-
gia torna-se mais complexa e, simultânea e consequente-
mente, mais real.
Antes de considerar Úrsula — a figura central, por le-
gitimo direito — quero referir-me á mãi de Savinien depois
ao doutor Minoret.
Ciosa dos seus pergaminhos nobiliárquicos, a austera
senhora dá provas dum caracter rigido. Boa mãi, mas
ferrenha observadora dos preceitos e dos preconceitos da
sua estirpe. Daí, uma certa dureza para com o filho e,
por amor dele e fidelidade integra aos seus princípios
de casta, para com Úrsula. Isto é da velha fidalguia e
da moderna.
Contudo, a figura é humana, salientemente. Atente-se
na instabilidade de resolução que manifesta sobre o matri-
monio do filho com Úrsula. Ora parece estar disposta a
acolhê-la a seu seio, como filha, ora a repele de si e a
maltrata, por um porte altivo, arrogante que rebaixa Úr-
sula e a faz, altiva também, revoltar-se, ainda que em
silencio, no seu foro intimo apenas, cristãmente resignada.
Se Balzac tivesse mostrado a mãi de Savinien, como que
construída duma só peça, ou repudiando sempre formal-
mente a noiva do filho ou comprazendo, sem hesitar, sem
HONORÉ DE BALZAC 6Õ
tergiversar, com os desejos daquele, o caracter assim criado
seria menos verdadeiro ou antes menos verosimil.
A figura do doutor Minoret não terá talvez relevo pro-
porcional á sua importância no romance mas é, ainda assim,
uma figura que se impõe. A sua actividade é, no geral,
determinada por dois aspectos dominantes de sentir: a dedi-
cação quase cega por Úrsula e a desconfiança permanente
de todos, até dos Íntimos, de Bongrand, nomeadamente, A
desconfiança é corolário natural da dedicação. Úrsula tor-
nara-se para o venerando padrinho a razão da sua existên-
cia. Votava-lhe um amor entranhado, infinito, e, nesse puro
sentimento que foi o sol da sua velhice, havia a opulência
de qualidades afectivas bastante para o tornar capaz dos
rasgos de Goriot. Esse santo amor, em que se ostenta o
cunho da paixão, exterioriza-se com brilho, com o brilho
da verdade. O doutor Minoret, prodigalizando os tesouros
do seu coração, é bem um modelo de humanidade larga e
elevada.
Na alma mimosa da afilhada, toda feita de sensibili-
dade, extraordinariamente vibratil, não havia segredos
para a ternura sempre vigilante do padrinho. Vira-a cres-
cer, desde a meninice mais tenra e seguira-lhe o desenvol-
vimento, as crises, com a mais apreensiva inquietação,
receoso de perdê-la.
Para com a órfã, de quem se constituirá o amparo, o
ancião assumira, desde a primeira hora, a obrigação de ser
o mais disvelado pai. Cumpria a obrigação, enlevado, com
deleite fervoroso. Pois se lhe queria, se lhe quis sempre,
como a filha única, estremecida! A atitude que sustenta
ante Úrsula, desde que sabe que ela anda enamorada de
Savinien, tem primores de delicadeza quase feminina. No
seu porte, em todas as variadas peripécias do atormentado
amor dos dois jovens, o doutor Minoret abre-se-nos, mais
patentemente. Então se nos descortina o homem, não toda-
via tanto que se possa considerar suprida a ignorância quase
completa do seu passado. Subsistem pontos obscuros, não
sobre o móbil do seu procedimento, mas sobre certos dos
seus aspectos. Assim, não se percebe, por exemplo, aquela
pertinácia em não aceitar os oferecimentos instantes de
66 HONORÉ DE BALZAC
Bongrand, no sentido de dispor tudo para o melhor futuro
de Úrsula.
De Bongrand, homem atilado e perito em negócios
forenses e financeiros, o doutor Minoret aproveitou só indi-
cações eventuais, destinadas a valorizarem a sua fortuna,
em oportunidades mais propicias. Da desconfiança, em tais
condições, — não era licito duvidar, de boa fé, da integri-
dade moral de Jordy, do cura Chaperon, de Bongrand — ,
reçuma qualquer cousa de antipático. Porque não deposi-
tou o doutor Minoret, no coração amigo desses protectores
desinteressados de Úrsula (Jordy legou-lhe o que tinha; o
cura Chaperon era o seu director espiritual, como depois
foi do padrinho convertido; Bougrand era incançavel nus
suas demonstrações de estima sã), a confidencia, bem justi-
ficada pela gravidade das circunstancias, atenta a pérfida
campanha dos herdeiros sedentos, de que pusera nas Pan-
dectas as inscrições que, segundo a sua vontade, caberiam
em herança á afilhada? Porque reservou ele para os seus
derradeiros instantes de vida a informação do lugar em
que Úrsula encontraria, caso Minoret-Levrault se lhe não
antecedesse, a carta que representava a garantia imediata
dum porvir ditoso? Positivamente, não é suficiente expli-
cação deste modo de proceder o desejo provável que o
ancião sentiria de causar á afilhada uma grata surpreza.
Yê-se que a marcha da acção, com as exigências do seu
plano, adquiriu vantagens, em detrimento da constituição
moral das figuras. O doutor era um homem inteligente e
um homem de sociedade. Tudo o que seja mesquinho, re-
pugna atribuir-lhe.
E-esta Úrsula — e ás demais figuras não aludo em espe-
cial, porque as julgo relativamente secundarias. O próprio
Savinien, na sua organização psicológica, não tem a con-
sistência que se poderia legitimamente requerer. Os traços
são extremamente sumários. Fala pouco, retraidamente, as
suas aparições são normalmente rápidas, fugidias, por inci-
dente.
Úrsula, na sua intemerata virtude, prende sempre,
deslumbra, por vezes. O que ha de mais curioso a observar
nela, são as duas feições que tomam o amor filial, para
HONORE DE BALZAC
67
assim dizer, e o amor sexual, conjugados em Úrsula, a um
tempo. Onde melhor se afirmam os seus altos dotes morais
é na maneira como aceita e suporta a adversidade. Não
era corajosa. Dispunha, porém, duma certa capacidade de
resistência no sacrificio. A energia de que se manifes-
tam fugazes lampejos, emprestavam-lha a crença católica
e o seu amor profundo por Savinien. Tem um acesso
repentino de indignação, quando, na febre da mais lanci-
nante angustia, recebe de Bongrand, no próprio dia da
morte do padrinho, a noticia de que os herdeiros o com-
pelem a selar todas as divisões da casa, incluindo o seu
belo quarto de donzela, cheio de recordações. Mas, em
outros transes, nem a mais leve irritação assoma. Quando
é vitima das perseguições abomináveis de Goupil, não
solta um grito de aflição, num arranco de desespero, não
pensa em defender sequer a sua honra ignobilmente ultra-
jada, definha, dia a dia, inerte, passiva, conformada, enca-
rando, como alma superiormente cristã, a morte próxima,
por extenuação, esgotamento de seiva vital, e por desgosto
incomportável.
Atrozmente humilhada, a inocente que o aviltamento,
urdido por mente sinistra, prostrava, de sucumbida, oferece
toda a sublimidade moral a que pode guindar-se uma alma
religiosa. É pela sua virtude tão excelsa que Úrsula conse-
gue decisivamente captar as boas graças da mãi de Savi-
nien que então, pela primeira vez, vendo-a quase santifi-
cada pelo martirio, lhe chama filha. Isto só, porém, não a
salvaria!
A honra de Úrsula estava, no sentir da donzela, nimia-
mente agravada e comprometida, para poder, com digni-
dade, aliar ao de Savinien o seu destino.
Coberta de opróbrio, entregava-se serenamente á ideia
da morte!
Todas estas condições do natural de Úrsula são frisan-
tes. Será inverosímil, será irreal a figura?
Admiti-lo, seria entender muito mesquinha a humani-
dade, mais ainda do que ela é.
Alma de eleição, contudo, seria excepção neste mundo.
Ultrapassa o ambiente moral mais vulgar da vida.
68 HONORÉ DE BALZAC *"
Modeste Mvjnon é também um puro romance d'amor '.
Modesta era filha dum autigo coronel que servira em
campanhas de Bonaparte. Nobre por ascendência, o coro-
nel, com a queda da estrela napoleonica, feito capitalista,
assentou residência no Havre. Podendo usar do titulo de
conde de La Bastie, o coronel era simplesmente conhecido
pelo sr. Mignon. Mas tinha a consideração especialíssima
de que gosam, em terras de provincia, os muito endinhei-
rados.
Como sua mãi, bondosíssima senhora que muito sofreu
6 encegueceu por sofrer, como sua irmã que veio a ter um
desgraçado fim de deshonra e morte pela deshonra, Modesta
conheceu a abastança mais folgada, poude educar-se com
extremos de ilustração e começou a conhecer a vida, no
dia em que a primeira desilusão a feriu. Cortejava-a um
mancebo, com a mira nos haveres que a donzela viria a
possuir. Infeliz, o coronel, num momento, viu perdida a
sua fortuna, Soube-o o mancebo. Modesta foi, imediata-
mente, desprezada, esquecida.
Isto foi uma grande lição para ela. Para outra qual-
quer, seria um namorado de mais ou de menos. Para Mo-
desta, esse acontecimento marcou data na sua existência.
Vem aqui a propósito dizer qual o caracter, qual o
temperamento desta bela e forte figura de mulher.
Não era um animo leve. Nada sabemos dela que no-la
faça supor enfermiça. Tinha muitos nervos, um excesso de
nervos que a tornavam extremamente caprichosa, sem ver-
satilidade. Mais cerebral que sentimental.
A virilidade tomava nela o passo á feminilidade.
Obstinada, duma obstinação férrea, no querer, Modesta,
desprendida de preconceitos, cujo significado não atingia
bem, porque, segregada do convívio, conhecia mais os
livros que o mundo e tinha uma razão insubmissa, autori-
tária, sentia, na luta a sustentar para a realização dum
móbil, ardores veementes, agora, sob uma cautelosa táctica,
1 Balzac inspirou-se nas circunstancias reais em que nasceu e
se desenvolveu o seu amor por Mme Hanska.
HONORÉ DE BALZAC 69
concentrados, dissimulados, impenetráveis, e logo cam-
peando, em crises de arrebatamento, ousados, temerários,
não a demovendo estorvos, antes exacerbando-lhe todas as
energias em acção. E o poder da sua vontade impunha-se
e não havia ataques ou resistências que lograssem desviar-
Ihe a direcção, desorientando-a. Era pertinaz e sabia ser
pertinaz. Mente solida, cultura intensa, vasta e forte pela
matéria, dava-se a reflexões complicadas de espirito pratico
e a devaneios alados de poesia.
Se o cogitar tinha a inconsistência da inexperiência,
não lhe faltava o aparato selecto duma lógica meticulosa.
E se o imaginar poético se perdia em meandros de
fantasia arriscada, afastando-a da vida real, criando nela,
porventura, de momento, uma falsa noção da vida, nem
por isso Modesta deixava de o subordinar ás exigências
dominadoras de aspirações muito suas, aspirações que
constituiam para ela um problema máximo a solucionar,
custasse o que custasse.
Mais que ajuizada, inteligentissima, com a consciência
plena do seu valor pessoal. Modesta seria capaz de destem-
peres, desde, porém, que, por ignorância do mundo, não
soubesse que os cometia. Fora disso, não. Era uma alma
eleita de grande fidalga. Estranha completamente á corte,
provou-se, uma vez, que bastavam algumas, poucas, horas,
para se tornar uma cortesã perfeita, com refinamentos que
só se apreendem por uma vocação ingenita. Modesta dis-
punha dum espirito superior demais para ser uma preten-
ciosa. Nunca poderia ser ridicula.
Irradiava de Modesta, de ordinário, nas situações em
que se intrometia e em que, fácil triunfo para ela, a todos
se avantajava, magestade, uma magestade que não provi-
nha de grandes gestos enfáticos ou de palavras altisonan-
tes, de arrogâncias ou de arrebiques. Era magestosa no
mais singelo, desataviado movimento natural, O seu falar
prendia, conquistava, subjugava, era fascinação e era im-
pério. Indignada, a cólera costumava ditar-lhe o desprezo,
arremessado na ironia desconcertante, humilhadora, e raro
provocava nela impulsos de desespero. Obtinha o que que-
ria, sujeitava, sem violência, ao seu querer, empregando
70 HONORÉ DE BALZAC
dons de soberana cordialidade, um tanto fria, sem afecta-
ção. Insinuantemente voluntariosa. Pronta no sarcasmo
que a fazia temida de culpados. Monos pronta no rasgo de
confiança, de generosidade, de amizade. Mas, chegado o
instante que lhe parecia decisivo, tinha um modo especial,
particularmente sugestivo, de ser confiante, generosa e
amiga.
Sem embargo, a norma, nela, era o coração pedir á
cabeça licença para pulsar.
Eis bosquejado, em traços concisos, o retrato moral
de Modesta Mignon.
O coronel partiu, sem detença, para o Oriente, afim
de adquirir novos e avultados capitais, negociando em
larga escala. A familia do coronel, reduzida á esposa e á
filha Modesta — uma outra, mais velha, predilecta da mãi,
abandonara, seduzida pelos requebrados galanteios dum
conquistador vicioso, a casa paterna — , ficou no Havre,
entregue aos solicites cuidados, á dedicada vigilância dum
excelente amigo daquele, o antigo tenente Dumay, homem
rude mas sincerissimo, fiel ao sr. Mignon, como um cão a
seu dono. Jurara Dumay, no momento da partida do coro-
nel, que pagaria com a vida qualquer distracção sua, por
mais leve, que desse ensejo a que Modesta tomasse o cami-
nho ignominioso da irmã. Tal juramento feito ao seu coro-
nel, a sós, nas mais solenes condições, era para o honrado
e leal tenente tão sagrado, como se duma filha sua mui
querida se tratasse. Cumpri-lo-ia, pois, religiosamente ou,
talvez melhor, marcialmente.
Dumay, posto que casado, não tinha filhos. Na sua
afeição respeitosissima a Modesta ia um pouco de senti-
mento paternal. A ausência indefinida do pai, a cegueira
da mãi, a vinda da irmã desditosa que, em curto espaço,
lhe morreu nos braços, depois de a ter tomado por intima
confidente da sua angustiada odisseia de dores irremediá-
veis, criaram em Modesta disposições novas de viver. Foi
então que se apaixonou, em espirito, pelo poeta Canalis,
cujas obras conhecia profundamente. Segredou-lhe o cora-
ção traiçoeiramente que era esse o homem ideal, o homem
de génio, repleto de predicados inestimáveis, senhor dos
HONORÉ DE BALZAC 71
mais altos destinos, bemfeitor espiritual máximo da huma-
nidade. Por ele — murmuraram na alma de Modesta vozes
doces, generosas — devia a mulher de inteligência sacrifi-
car-se, escravizar-se mesmo, para bem do mundo civilizado,
prodigalizando-lhe, como esposa, oferecida a virgindade
em holocausto á gloria, tesouros de ternura, suavizando-
Ihe, até o instante derradeiro, todas as agruras do combate
pela existência. O sonho"passou, num repente, ao dominio
da realidade. Modesta tinha um temperamento enérgico,
decidido.
Ei-la a escrever ao poeta, um dia, sem que a família e
os amigos o soubessem. Mas, depois da primeira carta, não
foi ao poeta que ela escreveu, de feito, embora lhe ende-
reçasse as missivas. Canalis não se tentou com a primeira
carta, a um tempo misteriosa e quente, da joven. Junto
dele, um seu amigo, ex-secretario dum ministro e secretario
então do poeta, La Brière de nome, estava, por acaso, no
momento da recepção da carta de Modesta. Julgou Canalis
tratar-se de mais um caso banal, sensaborão, envolvido nas
veladas seduções que tanto aguçam a curiosidade e em que
são mestras certas damas. Testemunhos desse jaez não
logravam já lisongear a vaidade do poeta que, de resto,
temia a repetição de desilusões estúpidas. Não as buscava.
E tinham vindo ao seu encontro tantas que arredava de si
o mais leve impulso de cair em fraquezas de autor desva-
necido.
La Brière pegou na missiva, lacónica e todavia extre-
mamente sugestiva. Bespondeu-lhe. Depois . . .
Depois começou um romance d'amor, cujas peripécias
são a parte nuclear, a parte mais substancial da acção. La
Brière teve, a principio, pruridos d'homem pratico, deu
conselhos, arriscou insinuações de ordem moral, emfim, ele
que era um fraco, uma alma dócil, submissa, tomou uma
atitude quase paternal. A superioridade intelectual, o senso,
cheio de acuidade, que Modesta, sem experiência, manifes-
tava possuir sobre a vida, mas, acima de tudo, o alto equi-
líbrio, a penetração e a firmeza do discernimento e ainda
a altivez sem sobranceria, o orgulho bem entendido sem
sombra de vaidade, a magnificência do pensamento, aliada
72 HONORÉ DE BALZAC
á simplicidade, á modéstia da apresentação, a gentileza
exemplarmente correcta e desafectada, a serenidade, tão
grande como a elevação, do discretear e até do confiden-
ciar que raro era e, de ordinário, se regulava por uma razão
calma e lucidissima, — tudo abateu, pulverizou a imperti-
nência dos estudados expedientes de La Brière. Logo a
alma deste se mostrou tal qual, sem postiços, ardente, per-
turbada, alvoroçada pela anciedade, timida, irresoluta,
passiva, com aspectos femininos de sentir, dominada pela
influencia máscula, para assim dizer, mais cerebral que
cordial, que Modesta, amando a seu modo, a valer, viril
sem deixar de ser muito mulher, exercia sobre ele, por
intermédio só da correspondência epistolar.
Essa correspondência, analisada de perto, é a mais
definitiva contribuição para o conhecimento da constitui-
ção psicológica de Modesta. Na seguinte declaração de
Modesta, inclusa na 7.** carta, se espelha todo o seu natu-
ral, em traços sumários, mas precisos : « Sinto-me forte
contra as ilusões da minha fantasia. Construi por minhas
próprias mãos uma fortaleza e deixei-a fortificar pela
dedicação sem limites daqueles que velam por mim como
por um tesouro; não que eu não tenha força para me de-
fender em campo raso; porque, fique sabendo, o acaso
revestiu-me duma armadura bem temperada e na qual
está gravada a palavra desprezo. Sinto o mais . profundo
horror por tudo o que cheira a calculo, pelo que não ó
inteiramente nobre, puro, desinteressado. Tenho o culto
do belo, do ideal, sem ser romanesca, mas depois de o ter
sido, para mim só, nos meus sonhos >.
Mais adiante, na mesma carta, se define melhor o
contendo da declaração que acabo de transcrever: c Tenho
vinte anos, meu amigo, mas a minha razão conta cin-
coenta, e tenho infelizmente sentido num outro eu os hor-
rores e as delicias da paixão. Sei tudo o que o coração
humano pode conter de cobardias, de infâmias, e sou
todavia a mais honesta de todas as donzelas. Não, já não
tenho ilusões; mas tenho cousa melhor: tenho crenças e
uma religião ».
Os dois namorados viram-se, em condições romã-
HONORÉ DE BALZAC 73
nescas, numa igreja do Havre, local combinado para o
efeito. Modesta viu La Brière, crendo que ele era o pró-
prio Canalis. La Brière a custo distinguiu as feições de
Modesta, tão espesso véo lhe cobria o rosto, e, se a reco-
nheceu, deveu-o á tremura que notou no livro de missa
que a joven tinha nas mãos.
Entretanto, no meio do tocante enlevo destas duas
almas enamoradas, sobreveio, inopinadamente, o regresso
do coronel Mignon. Vinha riquíssimo. Por prudência, só
ao seu amigo Dumay contou, debaixo da mais rigorosa
reserva, a verdade sobre o quantum da sua fortuna.
' La Brière conseguiu ter uma entrevista com o pai de
Modesta, de passagem por Paris, pô-lo ao facto do seu
amor e caiu nas boas graças do coronel que ocultou, con-
tudo, a simpatia que o interlocutor, com a sua franqueza
e o seu desinteresse, soubera despertar nele.
Dumay partira para Paris, ao encontro do coronel, e
também para conhecer Canalis. Em virtude duma inadver-
tência de Modesta, estava de posse do seu segredo.
A partida de Dumay, Modesta, receando violências
contra o seu poeta, não hesitou ante a ameaça, proferida
na presença da mài que desmaiou, de sair da casa paterna,
aonde não mais voltaria, se acaso lhe constasse que de
qualquer procedimento agressivo usara o tenente. A visita
de Dumay a Canalis deíine-os a ambos, com uma nitidez
perfeita.
Quis o coronel Mignon dar á filha o pleno direito de
escolha de marido, nas mais amplas condições, e, para
isso, pactuou com La Brière e com Canalis irem os dois
ao Havre, dispostos a cortejar Modesta que optaria, com
inteiro conhecimento de causa, pelo que mais lhe agra-
dasse e lhe conviesse, pois, para consorte. Assim foi. A
Canalis impelia-o a ambição. La Brière que se sentia cul-
pado por ter abusado da confiança de Modesta, enganan-
do-a sobre a sua identidade, não reagiu, deixou-se levar
pela corrente dos acontecimentos e acompanhou, como
secretario, isto é, como subalterno, o glorioso e enfatuado
poeta, ao Havre. Sucede o que havia de suceder, natural-
mente, dada a natureza da alma de Modesta. O secretario
74 HONORÉ DE BALZAC
foi repudiado, lançado ao desprezo, reconhecida a sua
falta tremenda. Pessoas como Modesta não se ludibriam
impunemente. Canalis representou de grão senhor que dita
o tom, que faz lei. Diante dele, Modesta era uma vassala,
atenta e obediente. Isto emquanto o não conheceu bem e
Butscha, o finório ajudante de notário, antigo apaixonado
sem esperança, confidente seu depois, lhe não abriu os
olhos sobro a sua falsa situação e sobre a alma terna,
carinhosa, se bem que muito prosaica, do fiel La Brière.
Aqui finaliza o romance. Omito episódios, para abre-
viar. E contudo seria descuido imperdoável deixar passar,
sem referencia, ainda que leve, alguns. Todas as explica-
ções mutuas, trocadas, num dialogo vibrante de ardor e
de emoção, entre o coronel e Modesta, sobre o procedi-
mento desta, os conselhos do pai, discretamente acusa-
dores, a defeza calorosa da filha que a custo se descon-
certa e acaba por se desesperar, informada do logro em
que caíra, tomando La Brière por Canalis, bastariam para
dar a conhecer, muito principalmente, a compleição espe-
cial do temperamento da protagonista.
Modesta queria muito aos seus, respeitava-os muito,
de certo. Não obstante, num momento de crise nervosa,
chegou a desconsiderar o pai, colocando-se, deste modo,
na mais ingrata, na menos simpática das situações.
Modesta Mignon ocupa o centro de todo o romance.
Em torno dela gravitam todas as figuras. Onde quer que
ela esteja, que apareça é o alvo de todos os olhares, de
todas as atenções. Para os pais e para os bons amigos
destes e dela, era um ente muito querido, era um idolo.
Para os interesseiros e interessados, armando em adora-
dores da sua beleza e do seu espirito, era a herdeira.
A consistência da organização psicológica de Modesta
não se encontra nas outras figuras do romance.
CAPITULO III
Valor da criação literária de Balzac i
A galeria das criações psicológicas de Balzac com-
preende mais de duas mil figuras. Entre elas, ha representan-
tes de todas as espécies sociais. Nesta «concorrência ao
estado civil > não sei de criador que mais longe fosse do
que ele, que mais humanidade concebesse e melhor a
abraçasse.
Serão todas as criações psicológicas de organização
■ ' Bibliogm/ia. — Sainte-Beuve : M. de Balzac, 2 de setembro de
1850, nas Causerie>f du Lundi, t. II (Paris, Garnier frères) e Juf/enients
ãivers íittr Port-Uoyal, no Apêndice ao t. l do Port-Roijal (Paris, Ha-
chette, l.a ed., 1840, 7.», 1908); Taine : ^ateac, fevereiro-março de 1858,
nos Nouveaux Essais de critique et d'histoire (Paris, Hachette, 7.« ed.,
1901); Brunetiere: Manuel de VHistoire de la Littémture française (Pa-
ris, Delagrave, 1897), Honoré de Balzac, Conferencia feita em Tours, a
7 de maio de 1899, no Apêndice á 7.» série dos Étiides critiques sur
VHistoire de la Littérature française (Paris, Hachette, 2.» ed., 1905) e
Honoré de Balzac (Paris, Calmann-Lévy, 1906); Faguet: Dix-neurième
siècle (Paris, Socicté française d'Imprimerie et de Librairie,— Lecène et
Oudin, 1887), De Vlnjlaence de Balzac, 5 de maio de 1898, nos Propôs
littéraires, 3.» série (Paris, Société française d'Imprimerie et de Librai-
rie, 1905), Honoré de Balzac, em La Rerue Latine, de 25 de maio de
1906 (Paris, Société française d'Imprimerie et de Librairie) e Balzac
(Les Grands Écrivains írançais — Paris, Hachette, 1913); Le Breton:
Balzac (Paris, Colin, 1905); Lawton: Balzac (London, Grant Richards,
1910) ; Lanson: Histoire de la Littérature française (Paris, Hachette,
9.» ed., 1906) ; Pellissier : Le Mouvement liftéraire au XIX^ siècle (Pa-
ris, Hachette, 7.» ed., 1905).
A Bibliografia total sobre Balzac abrange mais avultado numero
de obras. São apenas citadas as que contribuíram para este estudo.
76 HONORÉ DE I5ALZAC
essencialmente simples, segundo o processo clássico do
século XVII, como pretende Faguet?
A primeira observação, oferecem-se simplificadas, mais
ou menos.
E são-no, o maior numero, sem duvida, numa certa
medida.
Não creio, porém, que, no intimo, o sejam tanto quanto
se tem pretendido.
As tendências dominantes que parecem excluir quais-
quer outras feições do natural das figuras, solicitam o me-
lhor da atenção. Diante duma figura com tal constituição,
a inteligência concentra-se nessas tendências, no exame delas,
e abstrai insensivelmente do resto que, mais dificilmente
perceptível, ou aparentemente secundário, insignificante
mesmo, desempenha, não obstante, por vezes, uma função
decisiva, na definição do caracter moral: o vicio ou a vir-
tude, no que teem de mais saliente, absorvem o interesse
e certos traços de inferior significação, na aparência, esca-
pam, não raro.
Mas duma analise larga e profunda da alma das figu-
ras de Balzac resulta necessariamente a conclusão de que
os estigmas individuais apresentados são, ordinariamente»
mais que suficientes e são sempre, ou quase, os mais pró-
prios para que se vejam totalmente (se o romancista nos não
deu senão partes da alma, nós reconstituímos, com facili-
dade e segurança, o que falta) as figuras. Ainda que a
visão da humanidade seja truncada, em condições excepcio-
nais, a criação é viva, assim mesmo, não implicando a
mutilação deformação do real, geralmente.
A vida, mais ou menos exuberante, mais ou menos
complexa, mas verdadeira, lá está, fatalmente. E não se
avalie a sua qualidade e o seu grau de intensidade, apenas
por esta ou aquela modalidade, indistintamente conside-
rada, de pensar ou de sentir expressos; e muito menos,
determinadamente, por uma paixão obcecante ou uma ideia
fixa. A visão do critico, sendo parcial demais, tem todas as
probabilidades de ser inexacta. Neste domínio do espirito,
num cambiante, numa gradação de tonalidade está, ás
vezes, o essencial. Pode haver características mais ou menos
HONORÉ DE BALZAC 77
veladas que devam prevalecer, como marca da individuali-
dade, sobre as salientes. Nos traços mais pronunciados nos
inclinamos a deter o exame, esquecendo inadvertidamente
os que parecem lançados de fugida ou julgando-os frívolos
e supérfluos. Não é necessária uma grande acumulação de
traços, de pormenores, para dar vida que baste para definir
a individualidade, a uma figura. A complexidade da alma
das figuras é resultante de vários factores, de ordem psico-
lógica e artistica. Condicionam a criação psicológica limites
naturais e limites técnicos. Pondere-se ainda que, na sim-
plificação, ha um justo meio termo, que o extraordinário
artista criador que foi Balzac, ultrapassou, mas áquem do
qual ele só se mostrou, ou quando o seu engenho e a sua
arte se encontravam na fase preparatória ou, fora disso, em
raras ocasiões menos felizes.
As criações psicológicas de Balzac não se apresentam,
em regra, simplesmente esboçadas. Aparecem até, com
certa frequência, figuras secundarias que sobrelevam, em
vigor de traços psicológicos, ainda que sumários, a figuras
centrais, minuciosamente apuradas. As figuras centrais,
porém, são sempre centrais, mesmo quando menos tratadas,
e normalmente as secundarias, mesmo quando mais abun-
dantes e assinaladas em traços psicológicos, não são, ainda
na melhor das hipóteses, nem mais nem menos verdadeiras
que as centrais, apesar do que sé tem afirmado em con-
trario.
Quando digo que tal ou tal figura de Balzac é duma
construção sumaria, estou sempre longe de ver apenas
nelas, mesmo nas que se manifestam sob o império de vio-
lentas, de absorventes paixões, monomaniacos. Isto de ver
só ou de só buscar ver, como de costume, o femeeiro em
Hulot, o avarento em Grandet, o inventor em Baltasar
Claes ou em David Séchard, etc, julgo que é trilhar cami-
nho falso. Busque-se sempre ver mais alguma cousa, alguma
cousa de mais humano, e nesse mais o quantum. é variável,
sem duvida, mas sempre apreciável. Eu creio tão altamente
interessantes, por exemplo, o marido e o pai em César Bi-
rotteau e em Goriot, como o podem ser em Grandet, em
Hulot, em Baltasar Claes, em David Séchard, se bem que,
78 HONORÉ DE BALZAC
entre os sentimentos deste, se destaque sobretudo o de
amigo.
As figuras de Balzac são, em geral, sugestivas. Toda a
sua criação literária é sugestiva, porque toda ela, tem o
seu cunho pessoal, nela se esteriotipou a sua alma. Mas,
exercitando Balzac uma arte superior, não ha escravização
das obras á sua individualidade.
O homem está na sua criação, em espirito. As suas
caracteristicas essenciais conteem-se nela e, para que se
colham, no estreito limite do possível, basta uma visão
global, sintética. Que essa visão critica seja, porém, isenta
de preconceitos, que se não subordine a juizos formados
antecipadamente.
Balzac, viu, sentiu, sofreu muito, numa palavra viveu
muito. Sempre que concebeu de modo que, na substancia
das obras, se infiltrassem pedaços da sua vida, a criação
tornou-se mais sugestiva que de ordinário.
Assinalou Brunetière que das atribulações da sua
vida derivou esse saber feito de experiência que Balzac
foi vasar nas suas obras, insuflando-lhes, a largos e pode-
rosos haustos, a vida intensamente vivida, e que dessa
longa e mortificadora experiência provém a força, a
pujança, a vitalidade eterna, a perpetua actualidade da
sua producção literária.
« Escrevam o que teem visto, o que teem sentido, o
que teem sofrido — aconselhava Daudet, dezenas de anos
mais tarde, aos escritores novos — e hão de ver que belo
livro farão. »
Mas o fim capital de Balzac, ao escrever a Comédie
Humaine, era — não o percamos nunca de ideia — fazer a
«historia privada da nação francesa», a «historia em acção
da sociedade francesa», pintar os costumes do seu país e
do seu século.
Acentuou Faguet que, como deraografo, Balzac não
se prendeu com o provisório, com o transitório na marcha
social, foi ao âmago da vida social, atacou a medula da
sociedade francesa. Daí todo o seu excepcional valor.
Acentuou ainda o critico que os grandes romances realistas
de Flaubert, Madame Bovarij e L' Education sentimentale,
HOXORÉ DE BALZAC 79
considerados sob o aspecto demográfico, interessam hoje
apenas aos curiosos.
Note-se que, .porque encarou o homem nas suas
relações sociais, o fez Balzac tão movido pelo interesse,
pela cubica de ganho, de honras, de prazeres, pelo
egoismo, sob todas as suas formas.
O valor documental histórico dos melhores romances
de Balzac é enorme. Nele, a imaginação construtiva, com
os seus singulares recursos de evocação, de ressurreição,
opulentou sempre a visão da realidade, em que se fundava.
Assim determinava o psicólogo e o demografo, usando da
ficção como artista emérito, a ilusão perfeita da vida.
Sabia ele que, para o efeito total dum quadro, tudo
contribuo, as grandes, como as aparentemente pequenas
cousas. Por isso, dispensou ao pormenor toda a sua
solicitude. No mais insignificante pormenor se trai a
preocupação de dar a ilusão do real.
Dois exemplos frisantes : a descrição, muito rápida,
mas muito explicita, da galeria de quadros do septuage-
nário Magns (em Le Cousin Pons): a declaração, ainda
mais rápida, do motivo que o visconde de Sérizy é encar-
regado de transmitir, como escusa da não comparência de
Madame ás festas venatorias de Rosembray (em Moãeste
Mujnon) '.
As figuras pensam, sentem, falam e agem, em con-
dições que destacam os seus caracteres diferenciais, per-
feitamente distintos, absolutamente inconfundíveis. Sucede
até que, sendo, em certas figuras dum romance, idêntica a
í Ei-las :
« Os dois quadros de Rafael, perdidos e procurados com tanta
persistência pelos rafaelicos, é Magus quem os possue! Possue o
original da amante de Giorgione, a mulher por quem esse pintor
morreu, e os pretendidos originais são copias dessa tela ilustre que
vale quinhentos mil francos, pelo calculo de Magus. Esse judeu tem
em seu poder a obra-prima de Ticiano: Crísto deposto no sepulcro,
quadro pintado para Carlos V, que foi enviado pelo grande homem
ao grande Imperador, acompanhado por uma carta toda do punho de
Ticiano, e esta carta está colada na parte inferior da tela. Tem do
80 HONOBÉ DE BALZAC
tendência preponderante do temperamento, actuando em
meios similares, exercitando-se, desenvolvendo-se em
circunstancias análogas, tal não implica risco de malenten-
didos, sendo impossível tomarem-se umas por outras. Quer
pelo que toca ao moral, quer ao físico, não pôde haver
embaraço na determinação da sua identidade. Conside-
rem-se, por exemplo, o barão Hulot e Crevel (em La Cou-
sine Bette).
Para fazer viver a sua criação, o romancista, com a
sua grande intuição da realidade, dispôs de amplos
recursos.
Os próprios arrazoados do moralista e do sociólogo,
nem sempre igualmente bem cabidos e que, por isso, ás
vezes, se poderiam suprimir, ao que parece, sem que os
romances, como obras d'arte realistica, sofressem, consti-
tuem, normalmente, um processo artístico de sugestão, em
acção.
Nesses arrazoados doutrinários acusa-se a preocupação
do romancista em não perder ensejo de expor, como
professor em cátedra. E, no entanto, é forçoso considerar
que o romance de Balzac é um composto, cujos elementos
só artificialmente se podem estudar em separado, que tudo
isso é o romance de Balzac. Que ficaria, por exemplo, de
Le Cure de Village que não é um estudo psicológico profundo
(note-se, de passagem, que são admiráveis, neste romance,
as descrições, as de Montégnac, sobretudo), se se lhe tirasse
tudo o que pode ser reputado apologia do catolicismo e do
regime monárquico? A edificação duma obra d'arte implica
mesmo pintor o original, a maqnette pela qual todos os retratos de
Filipe II se fizeram. Os 97 restantes quadros são todos desta força e
desta distinção.»
«Ernesto de La Brière deu com a vista, ao voltar ao salão, num
moço oficial da companhia da guarda d'Havré, o visconde de Sérizy
que acabava de chegar de Rosny para anunciar que Madame era obri-
gada a assistir á abertura da sessão. Sabe-se de que importância foi
essa solenidade constitucional, em que Carlos X proferiu o seu
discurso, rodeado por toda a familia, assistindo na tribuna madame
la Daitphine e Madame. »
HONORÉ DE BALZaC 81
a junção de mil cousas diversas, mais ou menos visiveis, e
todas essas cousas desempenham o seu papel, desenvolvem
uma função que vai integrar-se no conjunto, cujo potencial
de sugestão é a soma dos potenciais de sugestão de todas
elas. Uma obra d'arte é como um maquinismo, mais ou
menos simples aparentemente, mas duma extrema compli-
cação intima.
Ora, num maquinismo, basta, em geral, mexer numa
peça e tirá-la do seu lugar, para o desorganizar total-
mente. Na critica, nem sempre se teem em linha de conta
os efeitos que o autor quis atingir, na criação. Não se
podem interpretar justamente os meios ou processos do
artista, sem a inteligência dos fins e a consideração da
sua influencia na concepção da obra d'arte e sua execução.
Por um movimento fisionómico, um olhar sobretudo,
uma palavra, um gesto, um habito peculiar, uma mania e
mesmo uma simples particularidade do vestir, Balzac
incutia vida, dum jacto, na figura. Assim, sem que de tal
nos apercebamos, se nos limitarmos á retensão da trama
do contexto e não analisarmos e procurarmos interpretar
a acção, no seu encadeamento e em função da psicologia
das figuras, e estas nas condições da sua actividade, avulta,
se define, num momento dado, o que constituo substan-
cialmente a vida.
Um exemplo mais, tirado também de La Coiisine Bette.
E grande, neste romance, o numero das figuras. Entre
elas, uma chama a atenção, logo no começo, e depois, com
a complicação do enredo, perder-se-á de vista quase, ape-
sar de alusões, mais ou menos circunstanciadas, á sua situa-
ção. Trata-se de Hortênsia, a filha da baronesa Hulot '. Não
> A grande figura simpática do romance é a baronesa Hulot,
Adelina. O sentimento dominante que nela se acusa, é o de esposa.
Casara, saindo de obscura, rústica humildade, com o barão Hulot.
Devendo-lhe tudo o que passou a ser, dando ingresso num mundo
de grandezas que foi para ela um deslumbramento, a sua gratidão
seria, como de facto, eterna. Era uma alma simples, fundamental-
mente sã, virtuosa. Queria muito á filha, desejava-a ver bem casada,
desejava a sua felicidade. Teve Hortênsia um casamento em perspe-
6
82 HONORÉ DE BALZAC
aparece muitas vezes. Pela restrita influencia que dela
possa considerar-se provir, sobre o decorrer da acção, ó
licito tê-la como figura não primaria. Pois bem! é uma das
almas mais interessantes e mais vivas do romance. Como
figura de mulher, está admiravelmente lançada, posto que
com grande sobriedade de traços. Mas não ha palavra que
profira, que a não precise na nossa inteligência.
Temperamento sanguineo, espirito voluntarioso, mani-
festa-se á evidencia no modo como, tendo ouvido contar
á prima Bette o seu romance de amor com o polaco,
resolve, impelida por um desejo ardente de o ver, de o
conhecer, de o conquistar para maiido, tirá-lo á prima, e
também no modo como depois, vexada na sua dignidade,
ferida pelo ciúme, quebra as relações com o marido, aban-
donando o lar conjugal. Imersa na sua dor, é dum egoismo
soberbo!
Quando a mãi corre a consolá-la, acudindo ao seu
ctiva que se malogrou, por intervenção do ricaço Cravei, cuja filha
fora desposada por Vitorino, filho do barão e da baronesa Hulot.
Numa entrevista com Cravei — entrevista imprudente, originada pelo
seu amor de mãi e em que esteve a ponto de comprometer a sua
honra sem macula — Adelina que sabia que tinha diante de si um
homam apaixonado por ela, pela sua beleza, chegou a manifestar-lhe,
de chofre, com um certo ar da desafio, num impulso de agastamento,
a suspeita de que, faltando aos seus deveres conjugais, conseguia
dele a mais ampla protecção de toda a ordem a Hortênsia. No resto
da entrevista, a baronesa, apesar de dar ouvidos a muita cousa que
não devera ouvir, manteve, tanto quanto o seu temperamento lhe
permitiu, diauta dum atrevido como o ex-perfumista, a sua dignidade
de esposa.
Ha situações capitais que nos revelam, além da esposa e da mãi
em Adelina, o marido e o pai no barão Hulot, a filha e a esposa em
Hortênsia. Citarei duas, as mais representativas: aquela em que Hor-
tênsia confessou ao pai o amor que consagrava a Steinbock e os seus
sonhos de donzela enamorada; a aquela em que o barão Hulot, em
obediência de escravo a Mme Marneffe, sua amante, regressou a casa,
donde andava ausenta havia muito, para conseguir que se fizessem
as pazes entre a filha e o marido. Steinbock tinha já relações com
Mme Marneffe, o que Hortênsia não ignorava. A segunda das situa-
ções apontadas é uma admirável scena de familia, em que entra o
próprio Vitorino que tão poucas vazas aparece, e a ruim Bette.
HONORE DE BALZaC OO
chamamento, indo encontrá-la acometida por uma inquie-
tante crise nervosa, e lhe conta, para a calmar e lhe dar
força de resignação, os seus vinte e quatro anos de martí-
rio, vitima também do adultério do marido, Hortênsia,
desesperada, sabendo que a mãi tivera, ao menos, dez anos
felizes, os primeiros dez anos de casada, exclama: «Tu
tiveste dez anos, mamã, e eu só três anos ! »
Hortênsia retrata-se ainda no modo de comunicar,
explodindo ódio, a Bette enferma, a decomposição do
corpo pestiferado de Mme Marneffe. «Prima! — grita-lhe —
Minha mãi e eu estamos vingadas!»
O profundo interesse humano da criação psicológica
de Balzac generaliza-se ordinariamente a todas as figuras,
por mais secundarias. O romancista sabia vivificar, até o
âmago e em todos os aspectos, a sua criação. Não ha fi-
gura insignificante que se não veja animada por uma
scentelha, ainda que fugaz, de vida. Sem sair da huma-
nidade, sabia sair da vulgaridade, da chateza, da insipidez,
em rasgos audaciosos, por vezes, mas geralmente felizes.
Isto no bem, como no mal.
Na criação literária do mal, Balzac foi eximio: aparte
Vautrin e os perversos, mais vulgares na sociedade do que
seria de supor, da espécie de Petit-Claud, Fraisier (de Le
Coiishi Pons e Q-oupil, considerem-se a Cibot, Bette ou ainda,
numa outra ordem, os avaros, distintos todos entre si, Gran-
det, Séchard e Rigou (de Les Paysans). Ha graus na per-
versidade da humanidade de Balzac. Como na vida real, o
mau é acentuadamente mau. Também como na vida real, é,
não raro, um monstro. Sendo a humanidade (em sociedade,
pelo menos) essencialmente má — e observa-se muitas vezes
que a maldade vulgar não é menos tremenda nos seus
efeitos que a maldade mais ferozmente criminosa — , a
perversidade, como é de bom realismo, não aparece ape-
nas por incidente, ocupa um lugar importante, um lugar
capital, no romance de Balzac, defrontando-se com o bem,
com o bem vulgar como com o excepcional. Tem-se dito
que Balzac, no bem como no mal, exagerou, criando tipos
de bondade e de maldade fora das condições comuns.
Grosso modo, sem olhar ás nuances das cousas, que as
84 HONORÉ DE BALZAC
cousas sempre teem, é assim, pouco mais ou menos, não
poucas vezes. Mas nem todas as grandes figuras de Balzac,
no mal como no bem, são anjos ou demónios; muitas —
algumas das primarias mesmo e o maior numero das
secundarias — ocupam um meio termo justo, absoluta-
mente razoável. Na criação literária do bem o roman-
cista tinha de demonstrar grandeza e, ao mesmo passo,
delicadeza d'alma. A demonstração foi, no meu sentir, com-
pleta. Estão superiormente representados, nos seus melhores,
romances, os seguintes sentimentos: de mãi, em Ágata Bri-
dau, de pai, em Goriot, de esposa, em Constança Birotteau,
Adelina Hulot e Eva Séchard, de marido, em César Birot-
teau, de irmã, em Eva Séchard ainda, e de amigo, de Pons
para com Schmuck e vice-versa (almas e amizades, note-se,
são perfeitamente distintas, nos dois homens). O sentimento
amoroso sexual tem representação condigna nas figuras tão
sugestivas de Úrsula Mirouêt, de Modesta Mignon, de
Eugenia Grandet. Seria curioso comparar o papel do amor
sexual no romance de Balzac e no de Maupassant, por
exemplo (Fort comme la Mort, Notre cceur, etc.) Concluir -se-ia
que, ao passo que, em Balzac, mesmo nos romances d'amor
propriamente ditos, o amor pouco mais é que uma peri-
pécia simplesmente interessante, sendo apenas aproveita-
das as manifestações sentimentais que importam á marcha
da acção em que chegam a ocorrer peripécia que, sobre-
levam em interesse, á própria peripécia do amor, em Mau-
passant o amor, não só nas suas exteriorizações, mas muito
principalmente no que tem de mais profundo, de mais
recôndito, como revelação do interior, é tudo, enche a
acção que nada seria sem ele, que nada tem de interes-
sante que não seja ele.
E, a propósito, vem dizer que Brunetière interpre-
tando essa orientação de Balzac no tratar do amor, reco-
nheceu-o mais dentro da verdade que o próprio Shakes-
peare e o próprio Racine, entendendo que, com efeito, a
humanidade tem outras preocupações, tem mais fortes,
mais instantes preocupações na vida que as do amor.
Lawton insurge-se contra esta opinião, declarando o
parecer de que «se o amor fosse eliminado da natureza
HONORÉ DE BALZAC 85
humana, o mais poderoso factor da sua actividade desa-
pareceria».
Por mim, confesso que me inclino mais para o juizo
de Brunetière, sem que conteste os direitos legitimes da
orientação de Maupassant, versando o amor, nem a ver-
dade da sua criação, sob esse aspecto especial. Creio o
amor um dos temas mais fundamentalmente humanos que
um artista pode escolher e reconheço que esse tema que
se tem tornado banal, versado pelos escritores vulgares,
é sempre matéria opulenta de criação, quando versado
pelos grandes escritores, como Maupassant (pondere-se
que, dentro do meu ponto de vista, considero apenas os
realistas).
A realidade não está só na vulgaridade. Essa mediania
que se pretende nos caracteres morais, não é, não pode ser a
imagem soes da realidade. Assim também as denominadas
condições médias da vida. E estou long^e de crer, com Le
Breton, que Eugenie Grandet seja a única pagina da Comé-
die Humaine, onde ha um pouco de poesia verdadeira.
E notaria a imponente verdade do seu mundo masculino.
O seu mundo feminino contém, igualmente, grandes figuras,
dentro, na sua maioria, duma humanidade média e vivendo
numa atmosfera moral média. No conceito de humanidade
média (ou mais representativa), incluo condições de eleva-
ção moral bastante para que se possa legitimamente consi-
derar humanidade.
Impõe-se reconhecer a verdade integra de Ágata Bri-
dau ' (de Un Ménage de GarçonJ, de Constança Birotteau,
de Eugenia Grandet e de Eva Séchard, por exemplo.
' O estudo do amor maternal, representado na figura de Ágata
Bridau, amor sempre posto á prova pela perversidade sem emenda do
filho predilecto, é modelar. Quando Ágata soube que esse seu filho
predilecto, Filipe Bridau, cavando cada vez mais fundo a sua des-
honra, não respeitava já o dinheiro alheio, ela não pensou em des-
culpá-lo, tendo em conta que era maior de 28 anos, mas, vindo-lhe á
ideia a possibilidade de o estarem, àquela hora, tirando da agua,
aonde se teria lançado, bradou, numa explosão ardente de ternura:
« Oh! meu Deus ! que volte, que viva e perdoo -lhe tudo!»
86 HONORÉ DE BALZAC
Tem-se filiado logicamente na alma de Balzac a natu-
reza forte, tão poderosamente insinuante, tão intensamente
comunicativa, da sua criação. A crença de que Balzac foi
homem de temperamento exuberante, cheio de veemencias,
é verdadeira, mas a verdade toda não consiste de certo só,
exclusivamente, nesse aspecto da apreciação sobre a indi-
vidualidade moral.
Em primeiro lugar, a alma de Balzac foi, sem duvida,
muito complexa. Depois, não se podem, não se devem
admitir, nesta melindrosa, transcendente matéria, juizos
absolutos. O próprio romancista reconheceu a instabilidade
Mais tarde, a José, o outro filho, que censurava o desleixado
trajar do irmão, a sua vida irregularissima, Ágata replicou, pegan-
do-lhe na mão: «Sê l)om para teu irmão, ele é tão desgraçado!»
Filipe, um dia, posteriormente, roubou as economias á estimá-
vel Descoings, uma tia que, desde que passara a viver com Ágata,
fora o amparo da casa. A poVjre senhora morreu de dor.
Estava moribunda, quando Filipe apareceu. Sabedora de tudo,
a mãi exprobrou-lhc acremente o porte, dizendo-lhe que tinha todoíf
os vicios. Vinha Filipe doente, de doença grave que o levou a reco-
Iher-se logo ao leito. Quando, convalescente, se poude levantar, a
m&i aconselhou-o a retomar o serviço no exercito, a bastar-se a si
mesmo. Filipe respondeu que já não era amado, chamou .<<en>iões ás
palavras de Ágata, tolices ás suas advertências: e saiu assobiando.
A mãi, banhada em lagrimas, gritou-lhe: «Filipe, aonde vais sem
dinheiro? Toma. >' E deu-lhe cem francos em ouro, embrulhados num
papel, ao mesmo passo que: «Então! — dizia sempre chorosa — não
me beijas?»
Filipe desapareceu. Tempos depois, foi preso como conspirador.
Mas, antes ainda, cia o viu miserável, arrastando-se andrajoso,
saindo do hospital aonde recolhera. Percebeu que ele, á porta dum
estanco, para comprar cigarros, metia a mão na algibeira, nada en-
contrava. Ágata então atravessou pressurosa o cais e, passando rapi-
damente por ele, sem ser vista, depôs-lhe na mSo a malinha que
levava, e fugiu.
Filipe, detido já por conspirador, foi transferido para o Luxem-
burgo. Ao passar, defronte, do carruagem, com seu filho José, a cami-
nho de Issoudun, Ágata não poude deixar de exclamar, num repente:
« Se não fossem os aliados, o meu filho não estava ali I »
A mãi veio a falecer, mortificada de desgostos, moralmente
ferida de morte, por fim, pelo filho perversissimo.
HONORÉ DE BALZAC 87
do seu espirito, a um tempo pratico e quimérico, e contra
ela reagia, num esforço permanente.
Num homem que, como ele, sabia querer e perseverar
no querer, esse esforço havia de sair necessariamente vito-
rioso, na máxima parte.
< Eu não fazia ideia do que é esta adorável criatura —
escreveu Mme Hanska, acerca de Balzac, já depois de
casada com o romancista, á filha — ; ha dezassete anos que
o conheço e noto todos os dias que ele tem uma qualidade
nova que eu lhe não conhecia. >
O natural de Balzac, analisado de perto, oferece múl-
tiplas feições, contraditórias ás vezes. A estrutura moral do
seu caracter não foi, não podia ser tão simplificada como
pretendem críticos.
Condensar em formulas, como se tem feito, o juizo
sobre o modo de ser intimo duma grande individualidade
é sempre, pelo menos, imprudente.
Sainte-Beuve, o critico-psicologo por excelência, —
não vi ainda critico que mais miudamente inquirisse sobre
almas — , consignou, criticando Taine, que, mesmo na posse
de todos os elementos biográficos e no conhecimento pleno
de todas as obras dum autor, só na ultima extremidade se
arriscaria a decidir sobre tão delicada questão como é a de
dizer a ultima palavra sobre o feitio essencial da indivi-
dualidade. De «ondeante e fluctuante, diversidade e com-
plicação infinita» classificava ele o espirito humano.
Porque Balzac foi um voluntarioso, que ha que estra-
nhar em ter tomado por ideal a força e construído, de
preferencia, caracteres enérgicos?
Mas a sua humanidade não é toda feita de energia,
inteligente ou instintiva, se bem que o vigor seja, sem
contestação, a nota dominante na criação do romancista;
tem tibiezas, hesitações, inexperiencias, faltas de tino pra-
tico, fragilidades de toda a espécie. A par da áspera ru-
deza dos fortes, a gentileza, a graciosidade, a insinuante
discreção dos débeis. Dum lado, o calmo, ponderado equi-
líbrio do pensamento, o critério tão avisado quando solido,
imperturbável, a rigida decisão; do outro, a leviandade, o
destempero, o arrebatamento. Vis, pérfidos, ambiciosos sem
88 HONORÉ DE BALZAC
escrúpulo, sedentos de dinheiro, de gosos e de vingança,
uns; simples, confiados, indulgentes, generosos, outros.
Os moldes desta vida, misto de verdade e de ficção,
assentam, o mais ajustadamente possivel, na vida real.
A expressão je suis une force qiii va (proferida por Her-
nâni, no Hernâni, de Vitor Hugo), com o seu cortejo de
desgraças, de destinos fatais e contagiosos, define um tipo,
o mais caracteristicamente sugestivo dos tipos de figuras
do grande romantismo. Tente-se aplicá-la ás figuras de
Balzac e, apesar do que se tem dito das enérgicas, das de
vontade mais impetuosa, reconhecer-se-á que, mesmo nes-
tas, é mal cabida, que destoa da orientação com que o
romancista traçava as suas figuras, que não concorda, que
se não coaduna com o largo fundo de verdade humana
contido nelas.
Ha, todavia, no grande romancista realista que foi Bal-
zac, um romântico, mas um romântico sui generis. Foi sobre-
tudo um realista. E cedo, já no periodo de ensaios, come-
çou a querer produzir obras realisticas, no espirito e na
orientação.
Na criação de Balzac, os dois aspectos, realistico e
romântico, fundem-se, a aliança é tão intima que os laços
se não vêem bem.
Não é possivel, sem intervenção da subtileza, excres-
cência de argúcia inútil, na analise, destrinçar efeitos do
romantismo, dentro de obras essencialmente realisticas.
Quem, nessa discriminação arbitraria e ousada, garanta a
segurança do critério ou induza a crer nela, abusa da boa
fé do estudioso. Estão na criação, sem duvida, esses efei-
tos, sentem-se, ás vezes, mais ou menos vagamente, e que-
rer, contudo, com pruridos de rigor, que este elemento
seja romântico de natureza e não aquele, é, convir-se-á,
fazer critica meramente artificial.
Faguet, na sua engenhosa critica, foi até o ponto de in-
dicar onde o romancista foi romântico, onde realista. E uma
opinião que reproduzo apenas a titulo de curiosidade.
Segundo Faguet, o romantismo em Balzac são as for-
tunas rápidas, os prodigiosos êxitos, as acumulações de
incidentes, o imprevisto, o inesperado, o inverosimil.
HONORÉ DE BALZAC 89
Da arguição das fortunas rápidas, dos prodigiosos
êxitos, o próprio Balzac se defendeu, alegando circuns-
tancias ponderosas. Não procedia inconscientemente, obe-
decendo a disposições naturais da sua imaginação, quando
repetia o cometimento da pretendida falta. Estava con-
vencido de obedecer á realidade e, se exagerou, após as
insinuações dos criticos, fê-lo pensada e não arbitraria-
mente.
Está-se um pouco acostumado a ver Balzac classificado
de homem de imaginação desregrada, de espirito sem
delicadeza, o que são generalizações de defeitos parciais,
fartamente compensados por qualidades de toda a ordem e
não faltam qualidades que se oponham até a esses defeitos
e que levariam, não raro, a concluir que Balzac teve uma
imaginação regrada por princípios superiores e directores
de razão, que teve tanta delicadeza de concepção como os
mais reputados realistas, exceptuado Daudet, e, entre os
clássicos do século xvn, Racine, cuja poesia ostenta, não
raro, o privilegiado condão duma delicadeza extrema,
dentro do grandioso mais empolgante.
As afirmações absolutas sobre um autor, sobre um
grande autor — prova-o este caso, como tantos outros que
se poderiam apontar — são sempre mais ou menos contin-
gentes.
A acumulação de incidentes não existe sempre em
Balzac.
Mas note-se que, nesses incidentes, ele se não des-
viava, em geral, da ideia nuclear ou das ideias nucleares
da acção, nem do propósito deliberado de imprimir o
necessário relevo psicológico a determinadas figuras.
De resto, havendo, sob esse ponto de vista, romances
complicados ou sobrecarregados, é certo, não menos certo
é que os ha também, em Balzac, duma factura extrema-
mente simples.
O imprevisto, o inesperado são qualidades. O interesse
enorme dos romances de Balzac, exceptuados raros, não
está só no seu modo de expressão da humanidade, está na
urdidura da própria trama em si, disposto o enredo de
molde sempre a solicitar, a prender a atenção. Graças a
90 HONORÉ DE BALZAC
esses artifícios do imprevisto, do inesperado, entre outros,
é que sucede o não haver romances que se avantagem em
interesse aos melhores de Balzac.
Ao inverosímil são ociosas referencias. Balzac caiu
nele, por vezes, mas muitas mais, incomparavelmente, se
elevou, em sentimento da vida e intuição da realidade,
acima de toda a discussão, tão alto que inverosimilhanças
acidentais, em pontos geralmente secundários, se devem, a
meu ver, desprezar.
O realismo de Balzac só o descobriu Faguet na
pintura dos objectos materiais e no aspecto exterior das
figuras (isto até 1906, porque depois modificou a sua
opinião e foi mais justo, embora com todas as suas reservas
e restrições, no recentíssimo estudo sobre Balzac, saído a
lume em abril do ano corrente).
Aponto aquela opinião de Faguet e vou criticá-la,
atendendo ao engenhoso modo por que a apresentou e
defendeu. E o desenvolvimento da questão é capital,
mesmo porque as reservas e as restrições de Faguet sobre
a natureza da constituição das figuras de Balzac — reservas
e restrições que, diga-se de passagem, são já antigas,
(datam as principais, senão todas, de 1887), na sua ciitica
sobre o autor da Comédie Humaine — brigam com certos
juizos particulares, de louvor ao romancista como cons-
trutor de interior d'almas, formulados de corrida, naquele
recentíssimo estudo, e brigam tanto que ou as reservas e
as restrições necessitavam de ser atenuadas, mais ate-
nuadas do que foram, definitivamente, ou esses juizos de-
viam ser suprimidos ou corrigidos, por coerência doutri-
naria. Mas o respeito á verdade obstava a esta ultima
forma de proceder. Faguet teve a sinceridade de reconsi-
derar e o bom senso de moderar um pouco o absoluto das
suas reservas, como das suas restrições. E todavia a minha
impressão pessoal é que ele ficou a meio caminho, fazendo
uma critica que não é solida, a que falta rigor sistemático.
Como pintor dos objectos materiais e do aspecto
exterior das figuras, Balzac foi, sem contestação, um
grande realista, tão grande que julgo não haver outro que,
neste particular, melhor visse e melhor executasse. Mas
HONORÉ DE BALZAC
91
isto, seguramente, não é tudo, o seu realismo não se
limita a tão pouco. Ha, nas figuras de Balzac, de ordi-
nário, uma vida interior considerável que não transparece
só na actividade que desenvolvem, que se espelha nas
palavras que proferem, palavras tão vivas sempre, como
expressão das individualidades, que constituem a prova
mais decisiva de que o romancista vivia a vida das suas
figuras, pensava e sentia com elas, com elas perfeitamente
identificado, como se pessoas fossem também.
Achou Faguet muito natural que haja quem se iluda
em crer que Balzac é realista na pintura total — externa e
interna — das suas figuras. Justificando a ilusão, enumerou
as razões: «... Primeiramente, porque são situadas pelo
autor em meios, num quadro, região, cidade, bairro, casa,
aposento, duma realidade completa; em segundo lugar,
porque são, no que respeita a vestuário, andar, gesto, ar e
fisionomia, duma realidade completa... Os meios lançam
sobre elas reflexos de realidade, envolvem-nas e colo-
rem-nas com eles e imagina-se que são penetradas pela
realidade, porque nela mergulham, e, porque tudo é real
em volta delas, que são reais. »
Ocorre imediatamente perguntar: O ambiente material,
só por si, os caracteres físicos, exclusivamente, das indivi-
dualidades criadas, bastariam para dar vida a figuras sem
alma visível, para dar vida á pintura, já não apenas de
indivíduos, mas da familia e da sociedade?
Atente-se em que, referindo-se ao exterior da figura,
Faguet se não deteve no vestuário ou no andar, falou
também no gesto, no ar, na fisionomia, cujas expressões
multiformes são outras tantas manifestações de estados
d'alma, são revelações de ordem psicológica.
Mais ou menos automáticas, — poderá objectar-se. Mas
haverá acaso só energias inconscientes em acção? As figu-
ras de Balzac não são maquinas de instinto (como as figu-
ras de UAssommoir, de Zola, por exemplo); rara será, entre
tantas, a voluntariosa — cito intencionalmente as volunta-
riosas, como mais características, para o caso sujeito — que
se mostre inconsciente.
Não ha, com certeza, ilusão em crer Balzac, acima de
92 HONORÉ DE BALZAC
tudo, criador d'almas. Escreveu Pellissier que a Comédie
Humaine não era, no pensamento do seu autor, uma come-
dia de caracter, mas uma comedia de costumes. Ora o que
é certo é que ela é pelo menos tanto uma comedia de cara-
cter como de costumes e que comedia de caracter, sobre-
tudo na ultima fase da sua elaboração, a quis fazer Balzac,
seguindo as pisadas de Molière.
Nada lhe passava pelo espirito que ele não animasse:
a própria matéria atingia fulgurações de vida. E tiansbor-
dante de vida a criação toda do romancista.
A descrição da casa de Baltasar Claès (em La Recher-
clie de VAhsolu) é, para assim dizer, psicológica. A casa não
só fornece elementos preciosos de ordem moral para que se
vejam melhor os moradores, mas chega a defini-los. Certos
passos dessa descrição, relativos apenas ao mobiliário e sua
disposição, donde transparece uma atmosfera intima de
viver, são tão significativos para conhecer a alma das figu-
ras, como a mais precisa notação, no dominio dos caracte-
res físicos ou morais.
O romancista foi insigne, num processo de expressão
do real, de importância máxima para o efeito da criação:
os traços dinâmicos ou da natureza em acção, de que po-
dem servir de tipos o gaguejar de Grandet, o erguer-se de
Birotteau nos bicos dos pés, o menear do corpo de Mme
Marneffe, etc, e, sobretudo, as grandes palavras revelado-
ras que as figuras proferem.
Mas também ha dinamismo nos traços que se aplicam
aos objectos, desde que estes sejam interpretados no sen-
tido psíquico, como reflexo do espirito dos seus proprietá-
rios. Os moveis da sala de visitas de Mme Hulot, os da
sala de trabalho e de recepção de Grandet oferecem tão
intenso poder sugestivo como o que emana das mais insi-
nuantes figuras: dir-se-ia que sentem as alegrias e as tris-
tezas dos seus donos e, no aspecto nobre ou mesquinho,
opulento ou miserável que apresentam, teem uma lingua-
gem sua, sumamente expressiva, que fala á inteligência
e fala ao coração.
Não ha só realidade, não ha só vida na pintura do
exterior das figuras. Ha vida em toda a criação de Balzac,
HOXORÉ DE BALZAC 93
ha-a até — como se viu, e no que são unanimes os criticos
— nos agregados materiais, nas próprias cousas em si, entre
as quais ou entre a fisionomia das quais e a alma humana
o romancista descobriu intimas afinidades.
Setite-se que, assim como penetrou até a medula da
sociedade francesa, assim também profundou a sua
analise até o âmago da alma humana.
Fagiiet afirmou sempre que Balzac ainda foi mais
simplificacionista dos caracteres psicológicos que os rea-
listas clássicos do século XVII, nomeadamente Racine e
Molière.
Na opinião de Faguet, Balzac « não teria admitido a
clemência de Augusto, nem as hesitações de Nero, não
teria feito Harpagão amoroso», e a concepção de todas as
snas figuras seria moldada na que presidiu á criação de
Horácio ou de Tartufo.
Em primeiro lugar, entre figuras como Horácio ou
mesmo como Tartufo e figuras como César Birotteau ou
Pons, Eugénio de Rastignac ou Luciano de Rubempré, ha
uma grande distancia. Na alma das figuras de Balzac. está
implícita mais complexa vida, a complexidade da vida
moderna.
Em segundo lugar, julgo que as grandes figuras de
Balzac não teem alma tão condensada, tão unif acial —
permita-se-me o termo — como Horácio ou Tartufo mesmo.
Nem tudo, por exemplo, é baixo, material egoismo no
avaro, nem ha só espirito confiante, incapaz de ardis, nos
simples e nos bons (Grandet vai ver a filha pentear-se,
oculto pelas arvores, no jardim da sua casa, Grandet cede,
por vezes, á audaciosa intervenção da filha nos negócios
domésticos, em oposição ás suas determinações categóricas,
Grandet, finalmente, dá-lhe dinheiro todos os anos e
consente que ela o tenha arrecadado em seu poder; Pons,
a seu turno, dá caça, de combinação com Schmucke,
simples, mais simples ainda que ele, e igualmente bom. á
Cibot que cai na rede).
Na criação do real, procede-se, como se não pode
deixar de proceder — nem ao artista se pode contestar
esse direito — por analise, eliminação e selecção, simplifi-
94 HONORÉ DE BALZAC
cação, numa palavra, dos caracteres individuais. A sim-
plificação é forçosa. A alma humana, na sua total com-
plexidade, é inacessivel. No individuo — como acentuou
Sainte-Beuve, comentando Pope — tudo engana, aparências,
hábitos, opiniões, palavras, as próprias acções que muitas
vezes são em sentido inverso do seu móbil : só ha uma
cousa que não engana, a sua paixão dominante, caso
exista. Surpreendida essa mola secreta, tem-se a chave de
tudo. Reproduzo quase textualmente.
Quem ha, contudo, que possa gabar-se, com legitimo
direito, de conhecer a fundo um homem, mesmo aquele
em que se deixa descortinar uma paixão que pode julgar-se
dominante?
A alma duma figura não consiste só no que, yrosso
modo, se nos antolha. O que se entrevê, o que se pressente,
o que se logra adivinhar não são, por forma alguma, quan-
tidades despreziveis. Afere-se o valor da criação psicoló-
gica, avalia-se a intensidade de vida nela implicita, pela
sua capacidade de sugestão que, em certo grau, produz
imagens tão nitidas e tão fixas que se não desvanecem facil-
mente. E essas imagens não são promovidas, creio, por este
ou por aquele traço isolado, por esta ou por aquela minú-
cia do delineamento da figura, mas são projectadas pelo
efeito do conjunto que todo o quadro da criação, desde o
elemento mais capital ao mais secundário, determina.
O meio material da casa em que vive uma figura,
ajuda-a, imprimindo-lhe relevo, no sentido de avultar as
condições em que leva a existência, a precisar-se, sem du-
vida, conhecido dela alguma cousa de pessoal. Só por si,
porém, sem a contribuição da atmosfera moral interior e
exterior a ela, não bastaria certamente para lhe dar uma
vida tão intensa e extensa quanto é necessário e individua-
lidade distinta.
O fisico da figura, por mais visivel, não bastaria tam-
bém.
Gestos, acções e até as palavras, se bem que sejam
exteriorizações da alma, são, identicamente, insuficientes,
só por si, mesmo que tenha havido cuidado do artista em
pôr de acordo, numa unidade ou numa diversidade verosi-
HONORÉ DE BALZAC 95
meis, segundo um plano inteligente de construção lógica,
todos os atributos que confere á figura e com que no-la
representa. Pode o artista dispor duma técnica perfeita e
exercitá-la e não incutir na sua obra o alento de vida exi-
givel. Ha, na essência da criação dos grandes artistas, uma
capacidade de vibração sentimental, mais ou menos comu-
nicativa, que se não logra saber, a rigor, por que processo
eles a atingem. As palavras, acima de tudo, e depois a
atitude da figura perante as situações, devendo estas ser
escolhidas com o senso e o tacto artísticos mais elevados,
são o que, em especial, no-la definem, mas é indispensável
que numa e nas outras haja intrínseca e caracterizadamente
um quantum de vida em acção que seja revelação suficien-
temente ostensiva dum espirito.
As palavras das figuras criadas por Flaubert, por Dau-
det e por Maupassant — e, analogamente, as das criadas
pelos realistas clássicos do século XVII, aparte Molière que
todos, antigos e modernos, exceptuado Balzac, sobrepuja,
em realismo — são notavelmente expressivas, teem vida,
mais ou menos especificada e quintessenciada, mas compa-
rem-se com as que, ordinariamente, proferem as figuras do
autor da Comédie Humaine e sentir-se-á uma g^rande dife-
rença. As palavras das figuras dos realistas citados são
vivas, as das figuras de Balzac são a Vida. Se ha hipérbole
no formular deste juizo, nunca uma hipérbole foi mais jus-
tificada.
Nesse singular poder de vitalidade da palavra
animada, Balzac, repito, só tem um rival condigno que,
apesar de tudo, se lhe não avantaja, em Molière. Isto em
França, entende-se.
O autor da Comédie Humaine teve um extraordinário
poder de criar grandes figuras tão vivas quanto distintas.
Eu vejo o barão Hulot e vejo Crevel, como individua-
lidades perfeitamente diferenciadas e, não obstante, não
tenlio presentes, de memoria, as particularidades do seu
físico exterior, não me lembro de que a circunstancia de
terem nascido e vivido em meios diversos se traia neles,
em qualquer pormenor.
Vejo-os em espirito e ajuizo do seu caracter moral,
96 HONORÉ DE BALZAC
com a mesma, senão maior, segurança, com que ajuizaria
do das personalidades A ou B do meu conhecimento.
Chego a destacá-los, calculando até de que seriam capazes,
um e outro, em determinadas eventualidades, exactamente
como se se tratasse dos tais A ou B, personalidades reais,
com quem tenho convivido o bastante para me julgar apto
a conhecê-las, com certa aproximação. Exemplificando,
não creio que o barão Hulot fosse alguma vez capaz de
tratar uma senhora, esposa exemplarissima dum amigo
seu, como Crevel tratou a baronesa Hulot e, por outro
lado, não julgo que Crevel fosse, a seu turno, capaz de
inspirar, em familia, o enternecido respeito que ao barão
Hulot, apesar da sua desordenada existência de femeeiro,
votavam todos os seus mais chegados parentes, os que
mais de perto privavam com ele, isto é, mulher e filhos.
Poderá objectar-se: um era barão e o outro fora perfu-
mista. E nesta distinção social que pode representar uma
diferença de educação, poderá crer-se que se funda a
distinção do caracter moral. Mas não é bem assim.
Para desfazer malentendidos e levar a uma apre-
ciação justa, nesta matéria, concluindo por estabelecer,
como verdade capital, que o engenho de Balzac não
menos realista foi na construção do interior das figuras e
da atmosfera moral em que vivem, que na do seu exterior
e do meio material que as cerca, comparem-se, como
complemento deste estudo sobre os caracteres psicológicos,
as individualidades dos dois perfumistas, Crevel e César
Birotteau.
A casa de Baltasar Claes foi objecto de minuciosissimo
estudo, modelo de engenho e de arte. As descrições do
dominio material são as mais longas em Balzac; logo após
vêm as do fisico das figuras, em que se não notam ordina-
riamente os excessos, a sobrecarga demasiada de traços que
aparecem nas primeiras, com certa frequência; e, final-
mente, sobre a alma das figuras ele não disserta, em geral,
é sóbrio em extremo, só aproveita os traços mais incisivos
e mais decisivos, os que melhor definem as individuali-
dades, só o essencial, banidos acessórios, e nada mais, e
isso mesmo do modo mais sugestivo, por mais directo,
HONORÉ DE BALZAC 97
sendo as figuras que especial e quase exclusivamente se
manifestam, falando ou agindo.
O conhecimento da casa de Baltasar Claés é, como
frisei, de importância fundamental. Porém, se o romancista
se limitasse á esplendida descrição da casa, adicionando-
Ihe apenas o descritivo-retrato de Baltasar, a figura sairia
apagada, não encerraria a vida que encerra, e, consequen-
temente, d que é obvio, não poderia ostentar a vida que
ostenta, dentro do quadro restrito da sua actividade. Isto
é de pura intuição, do mais elementar bom-senso.
Foi apresentando o quimico nas suas relações familia-
res, descrevendo o meio domestico, mais particularmente
no respeitante aos costumes, pondo Baltasar em foco, em
situações escolhidas, e fazendo-o agir ou simplesmente
avultando nelas com a sua presença, cujo efeito moral nos
seus é em extremo elucidativo, pintando o físico exterior,
nas ocasiões em que a figura patenteia na fisionomia a
tempestade ou a esperançada bonança da sua alma,
senhoreada pela ambição de descobrir o segredo scientifico,
móbil supremo e exclusivo, — e, se tem de exibir a figura
do inventor muda, inerte, absorta no seu cogitar incessante,
a impressão que produz não é menor que quando a faz
falar, quase sempre ou sempre laconicamente — , que Balzac
lhe imprimiu a vida intensa com que se afirma.
As paixões, como os vicios, arruinam, gastam as exis-
tências. Baltasar Claes consome-se, dia a dia, e consome
os seus. A consumpção não se limita aos haveres, é sobre-
tudo moral. Balzac manifestou-se emérito na arte de ex-
primir essas derrocadas materiais, essas devastações mo-
rais que paixões e vicios determinam, nos individues e
nas famílias. O romancista, em estudos completos, chega
a remontar ás origens do mal e chega a estender a sua
analise até os efeitos mais longínquos.
Os traços psicológicos que Balzac revela, são o mais
compreensivos possível, abrangem a figura, o mais possível,
na sua compleição essencial — e não digo na totalidade da
sua organização psíquica, porque essa totalidade é inaces-
sível. Ha talvez demasiada sobreposição de pormenores
relativos á casa de Claés, mas, acima de tudo, conslde-
98 HONORÉ DE BALZAC
rem-se a orientação do artista que é magnifica, e os fins
psicológicos a que visava, e reconhecer-se-á que, se se
excedeu, foi com raro brilhantismo, tão admirável que
lança na sombra defeitos parciais. Nos seus grandes
romances, Balzac, normalmente, dedicou muita solicitude
ao tratar dos meios, não só materiais, mas morais, em que
se desenvolve a vida das figuras. E, entre o meio moral
publico e o material e moral privados, não optava, em
geral, pelo primeiro. Contudo, deu provas assinaladas de
que lhe não passavam despercebidos os laços que unem á
vida privada a vida publica.
Num romance, entre outros, versou, de preferencia,
a vida publica: as Ulusions Perdues. E curioso que, neste
romance, onde o meio privado poderia concorrer para des-
tacar a constituição moral de Luciano de Rubempré,
muito principalmente nos seus primeiros tempos de An-
goulême, Balzac tenha quase completamente descurado
dele. Luciano era um ambicioso, frouxo de iniciativa, po-
bre de bom-senso, ainda que de rara inteligência; as suas
pretensões a homem de acção, com tal caracter, são quase
irrisórias. A sua vida não era em casa, ou antes não lhe
aprazia a vida em casa, no remanso pacifico do lar, mas
fora, no tumultuar dos interesses e das paixões, por onde
pudesse passear a sua ambição, entre grandes massas de
gente estranha, para dar espectáculo e subir assim mais
depressa na escala social, á força de talento e postos de
parte escrúpulos.
A figura é uma das melhores, das mais complexas que
Balzac criou. As condições em que a figura age e reage, —
se o agir é fraco, o reagir ainda o ó mais — , no meio
publico, definem-na e definem-no. Tanto mais valiosa é e
tanto mais interessante quanto é certo que se nos mostra
(como César Birotteau, outro exemplo frisante, no seu
género) sem a energia e a firme resolução dos voluntariosos
que são, incontestavelmente, os que, com mais frequência,
surgem no romance de Balzac.
Na construção da figura de Luciano de Rubempré ha
muito que notar. Luciano fala pouco, ou é banal no que
diz, habitualmente. Ainda que não possa considerar-se um
HONORÉ DE BALZAC 99
homem de acção, mas sim um homem de exibições, são os
acontecimentos, no curso dos quais ele vem a encontrar-se,
a gosto seu ou contrariado, que o revelam. A um artigo
de jornal, a duas ou três cartas, a dois ou três discursos
breves (a brevidade, advirta-se de passagem, é qualidade
e não defeito, em virtude de oferecer mais propicias con-
dições para que a expressão da vida seja mais forte, mais
incisiva ou mais sugestiva), a uma ou outra conversa entre
amigos, a um ou outro desabafo em familia, mais raro, se
resumem os traços individuais propriamente ditos. Não
teem, considerados em si, valor que se imponha, propor-
cionalmente á importância da figura e, mais secundaria-
mente, á extensão do romance.
Mas Luciano de Rubempré é uma grande figura viva,
não obstante ás suas palavras faltar, de ordinário, aquele
opulento poder expressivo que e apanágio das melhores
criações psicológicas de Balzac, e não obstante ser para
notar que se entreveja tão pouco do seu meio domestico,
do seu viver domestico, em Angoalême. O romancista per-
passou, mui de leve, pelo meio domestico de Luciano em
Angoulême, e mais detido estudo lhe mereceu, relativa-
mente, a tipografia de David Sóchard (a qual não é lugar
principal da acção, na parte respeitante a Luciano).
Mais sumariamente que a habitação de d'Arthez, um
dos melhores amigos de Luciano em Paris que é todavia,
no romance, uma figura secundaria, foram as habitações
de Luciano só e depois com Coralia, na mesma capital,
descritas por Balzac.
E nisto ha também, a meu ver, desproporção.
O meio jornalistico parisiense de então não foi poupado
por Balzac. Eu creio que Balzac pintou males orgânicos e
não apenas transitórios que o tempo tivesse corrigido. Não,
o tempo não os corrigiu. O quadro é de absoluta fidelidade.
Se o romancista foi cruel, nem por isso foi menos ver-
dadeiro. Veja-se como Maupassant apresenta o jornalismo
em Bel-Ami.
Balzac não criou, de ordinário, animado, ainda que por
incidente, de intenções parciais. Foi áspero quando teve
estrictamente de o ser, para respeitar a verdade. A criação
100 HONORÉ DE BALZAC
artística, nesse homem tão pessoal que se chamou Balzac,
é o mais impessoal, o mais objectiva possível, na sua
parte essencial, nuclear. Balzac descreveu o camponês com
cores que chegam a parecer forçadas, de carregadas que
são, no sentido de o deprimir moralmente. Foi menos ver-
dadeiro? Não o creio. Maupassant, um dos mais objectivos
realistas, também não poupou o camponês. Veja-se, por
exemplo, entre os seus romances, Une Vie. E foi justo,
plenamente justo, estou disso convencido, aceitando a sua
visão como visão global, segundo critério em que se admi-
tem as excepções que em tudo naturalmente ocorrem (o
próprio Maupassant não apresenta Rosália, a rude cam-
ponesa em quem o visconde de Lamare fez um filho, vol-
vidos anos após esse escândalo, na situação tão simpática
de companheira solicita e extremosa da desamparada, an-
gustiadissima, prematuramente avelhentada viscondessa de
Lamare?).
Ocupando-se sobretudo com a acção, com o desenrolar
dos acontecimentos, — admiravelmente concatenados e
orientada a sua escolha, com o mais alto discernimento,
no sentido de definir psicologicamente as figuras prima-
ciais— , Balzac que, nas Tllusions Perdues, narra incompa-
ravelmente mais do que descreve e se restringe quase,
raro se utilizando dos demais processos artísticos ordinários
de criação d'almas, a contar episódios, em sequencia
natural, da vida de Luciano e a apontar o procedimento
deste, envolvido nos acontecimentos, geralmente dominado
por eles, consegue, subordinando-se ao seu plano de cons-
trução, através de multiplicadas paginas que não cansam
nunca, imprimir toda a vida que cabe no poder da arte
mais perfeita, á figura central.
A arte de Balzac foi uma arte complexa, cujo relevo
essencial tem a sua razão de ser na natureza da organiza-
ção fisiológica e psíquica do artista, — e a arte oferece tan-
to de irredutível á observação, ou de insondável, quanto de
irredutível á observação, ou de insondável, oferece a natu-
reza da organização fisiológica e psíquica do artista. Técnica
e esteticamente superior, — tanto quanto os seus processos
externos o permitem avaliar — , foi desempenhada por um
HONORÉ DE BALZAC 101
homem, de quem se pode dizer, talvez com mais legitimo
direito e, por conseguinte, com mais propriedade do que de
qualquer outro, que escreveu com o sangue e com os mús-
culos— a expressão é de Sainte-Beuve — , não se limitando a
trabalhar com o espirito. As pinturas do fisico das suas
figuras — a expressão é ainda de Sainte-Beuve — cheiram
a carne.
A palavra, a imagem, quando servem a definir almas,
teem vida em si, uma vida robusta, e não se sente que fo-
ram rebuscadas, não se percebem artificies de composição.
O emprego dos termos, nessas condições, era, creio, pura-
mente espontâneo.
As pinturas da alma das figuras acusam precisão, niti-
dez de concepção extraordinárias, extraordinárias firmeza,
decisão na execução e sobretudo, particularmente no do-
minio psicológico, um relevo de expressão singular. E' evi-
dente que o psicólogo sabia previamente, do modo mais
completo 6 seguro, aonde devia ir ter e traçava, com anteci-
pação, como experimentado conhecedor, a via a seguir.
O lomancista, — nunca é ocioso repeti-lo — , no domínio
da criação psicológica, em especial, não abusa, normalmente,
da nossa atenção, sobrecarregando-a com minúcias de ana-
lise que poderão, consideradas em si, oferecer o mais alto
interesse e ter mesmo alto valor intrínseco e contudo não con-
tribuirem para se verem melhor as almas das figuras e mais
perduravelmente se fixarem e, pelo contrario, fazerem, como
tantas vezes sucede com romancistas realistas de nomeada,
que as almas das figuras, desvendado, nos sens múltiplos
aspectos, o seu trabalho interior, com o prurido de ela-
borar estado psicológico profundo, cheguem, acumuladas
demasiado as particularidades, sobrevindo complicação mais
ou menos embaraçosa, a obscurecer-se ou, o que é uma re-
sultante natural, se obscureça a inteligência delas. Isto su-
cede, por vezes, com o próprio Maupassant, apesar de toda
a sua bela inteligência e da sua grande arte, tão sugestiva
e, ao mesmo tempo, tão serena, imperturbavelmente pon-
derada.
Balzac teve o poder de, dum jacto, com o uso de pro-
cessos, aparentemente fáceis, rudimentares, de expressão
102 HONORÉ DE BALZAC
artística, dentro da mais desataviada simplicidade, na se-
gura, plena consciência dos meios que empregava — do seu
valor e função, como dos seus efeitos — , iluminar o inte-
rior duma alma, e não se me deparou ainda criador que me
desse a impressão de mais intensa luz fazer incidir sobre
almas, de nelas mais intensa luz saber derramar.
Balzac conseguiu que se veja claro, não apenas á su-
perfície, mas até onde o homem pode descobrir o homem.
E isto é a gloria suprema do artista criador.
Como negar-lhe, com Lanson, o senso artistico?
A sua arte que se oferece, á observação, desprovida de
aparatos exteriores (quando se trata de definir muito espe-
cialmente almas), dentro duma técnica que parece tão
apreensível a quem examina de leve, não foi menos pode-
rosa, nem, na essência, menos complexa que a de qualquer
dos grandes artistas realistas, incluído Molière. Os processos
dessa arte lucidíssima não são mais acessíveis á penetração do
critico, por mais fino e mais experimentado, que os de
qualquer outro — entre os maiores — artista realista. Antes
pelo contrario. Eu julgo o próprio Maupassant, ainda que
incomparavelmente mais complicado (sob o ponto de vista
que considero), mais facilmente analísavel (o que não im-
plica que seja mais facilmente ímitavel, porque aqui, neste
domínio culminante do trabalho do criador, não são admis-
síveis, em principio, imitações, o próprio bom senso as ex-
clue e as condena), nos seus processos artísticos. A simplici-
dade é, pois, como creio, meramente externa, aparente; e
quem diz a simplicidade, diz a simplificação.
Sendo os traços que Balzac empregava, o mais franca-
mente explícitos, sem que se possam classificar de su-
perficiais e de inoportunos ou inúteis, são, por isso, emi-
nentemente visíveis e o seu alcance, na definição moral das
individualidades, é sempre positivo. Esses traços são pro-
dutos extremamente apurados da analise psicológica, mas,
como resultados, não são propriamente resumos, não são
tão condensados, tão sintéticos, cada um de per si, que uns
não acrescentem aos outros sempre qualquer cousa, que se
não completem mutuamente, retocando-se. No apuro dos
traços psicológicos entra a inteligência, entra a arte, em
HONOBÉ DE BALZAC 103
qualidade e grau, de que o critico, por maior que seja a
acuidade da sua visão, só logra atingir uma percepção que
tem de reconhecer imperfeita, insuficiente.
Ha na criação psicológica uma complexidade de pro-
cesso que se não atinge toda, que se esquiva, em grande
parte, á analise. Como Balzac, os grandes anatomistas do
coração humano que se chamaram Flaubert, Daudet, Mau-
passant (não falando dos clássicos do século XVIl), não se
limitaram a exibir traços psicológicos colhidos, para assim
dizer, á epiderme dos seres criados, nã(j se limitaram a pro-
duzir simples caricaturas, foram mais longe (e por isso se
tornaram grandes), produziram verdadeiros seres.
Balzac, quanto ao numero das figuras, foi de todos o
maior criador. Quanto á qualidade da criação, também o
julgo o maior, considerado em globo. Isto compreende-se, isto
sente-se ainda mais e melhor que se compreende; e é difi-
cilmente exprimivel, é mesmo inexprimível, a rigor, creio.
Todavia, sempre me aventuro a declarar — e digo «aven-
turo », porque uma questão destas ó de excessivo melindre
e não tocaria nela se não fosse, a meu ver, duma impor-
tância máxima — a minha impressão de que, não me refe-
rindo, mais uma vez, aos grandes realistas clássicos, em es-
pecial—advertindo, porém, que a sua sobriedade de pro-
cessos externos é razão primordial, no meu critério, da im-
ponência, da força, do brilho, da perfeição estrutural das
suas obras-priraas, expressão artística da vida, tão sublime
que ainda não foi excedida, nem provavelmente o será — ,
os realistas que apareceram depois de Balzac, mais ou me-
nos inspirados nele, sobretudo Maupassant que talvez de-
vesse ainda mais ao autor da Comédie Humaine que ao pró-
prio Flaubert, apresentam, com maior frequência, traços
psicológicos, não direi mais inoportunos ou inúteis e tam-
bém me não afoito a dizer, na generalidade, mais superfi-
ciais, mas seguramente menos essenciais, como expressão
da alma e da vida humanas, mais limitados, menos gené-
ricos, como definição da pessoa, menos representativos,
pois, da Humanidade e até da individualidade, mais restri-
tos ás condições do momento, mais condicionados pelas
circunstancias da acção. Eu sinto — sem que deixe de ter
104 HONORÉ DE BALZAC
em linha de conta as altas qualidades, os méritos incontes-
táveis— que, nas obras-primas de Flaubert, de Daudet, de
Maupassant, ha mais supérfluo, ha mais aspectos efémeros
que nas de Balzac; este teve por ideal criar beau, os outros
— não obstante a sua inteligência e o seu tacto e se bem
que se não possam considerar fúteis as suas obras — foram
mais tentados a criar joli \ E contudo é inegável que ha
na criação de Flaubert, de Daudet e de Maupassant nume-
i'Osos aspectos ou quadros mais ou menos nucleares, mais
ou menos episódicos, da mais ampla realidade, da mais es-
tricta exactidão de observação, quer no dominio da verdade
humana geral, quer no estudo particular de interior d'al-
mas. Mas, no seu conjunto, apreciada a criação destes em
globo, vê-se, sente-se que não teem o nervo, a resistência
substancial de construção que oferece a de Balzac, o que é
uma resultante da excelência do plano; e, quanto a alcance
psicológico de criação, eu creio, repito, não esquecendo
certas grandes figuras que se devem ao engenho dos cita-
dos grandes realistas, posteriores a Balzac, que a vantagem,
o predominio cabem a este.
Balzac é, sem duvida, mais clássico que Flaubert, que
Daudet e que o próprio Maupassant, apesar das notáveis
afinidades que este tem com ele. Balzac viu, sentiu, melhor
que eles, o valor do essencial na criação artistica. Com uma
orientação especial, poderosamente metódica, de selecção,
de simplificação, Balzac, sóbria e precisamente, representou
da vida de preferencia o que nela é imortal, eterno, uni-
versal. Sendo mais conciso na apresentação dos senti-
mentos, mais rápido na exposição dos resultados da analise
psicológica na inquirição do interior, ele foi mais longe,
imprimindo maior desenvolvimento ao papel activo das
figuras e profundou mais e definiu-as melhor, fazendo-as
falar, sem a brevidade amaneirada das conversações estu-
dadas, numa espontânea, plena demonstração das almas.
' Esta distinção de termos, a orientação que a ela preside (a
aplicação a este ponto de vista literário é minha), pertencem a Rodin.
HONORÉ DE BALZAC 105
em situações decisivas que obrigam os corações a desen-
tranhar-se, em ardores vibrantes.
Sob este ponto de vista, considerado assim, na sua
concepção e nos seus processos, impõe-se reconhecê-lo um
verdadeiro, um grande clássico. E — convém frisá-lo — isto
não é um demérito como se poderia concluir da critica de
Faguet. Muito pelo contrario.
A vida da criação não somente se torna tanto mais
insinuante, mas também tanto mais natural parece quanto
mais simples e directos forem os meios psicológicos de
expressão empregados. As sinuosidades, os meandros da
analise psicológica não é de realista verdadeiramente
artista, verdadeiramente consciente dos efeitos a produzir,
levar o leitor a penetrar neles, como se, em vez dum
romance, por exemplo, se tratasse dum livro scientifico.
O artista, quando assim procede, ainda que se não esqueça
da sua missão, desvirtua o seu papel.
Maupassant, apesar do caracter tão objectivo da sua
visão e da sua realização artística, apesar de ter sido um
grande artista, foi, por vezes, na analise, minucioso demais,
organizando estudos psicológicos tão sobrecarregados de
pormenor que a grande arte do romancista mal consegue
disfarçar a preocupação que traem, de fazer psicologia por
psicologia, inquirindo sobre todos os refolhos, todos os
escaninhos das almas. A decomposição dos elementos da
alma humana vai longe demais. Interessa vivamente á
inteligência curiosa, cultivado o gosto neste dominio de
estudos; mas sente-se um certo peso, resultante do excesso.
Tratando das relações amorosas — como nasceram, se
desenvolveram e se firmaram — entre a condessa de
Guilleroy e o pintor Olivier Bertin (em Fort comine la
Mort), é brilhante, é soberbo de penetração e de justeza,
mas é fatigante. De resto, sempre que ha um caso de
consciência mais importante, um transe de sentimento,
uma luta de sentimentos, Maupassant não perde ensejo,
elaborando paginas sobre paginas de dissecações de espíri-
tos, de demonstrar a sua tão clara quanto experimentada
inteligência do Homem e da vida humana. A alma das
figuras pode tornar-se assim, com tal aglomerado de parti-
106 HONORÉ DE BALZAC
cularidades geralmente curiosas, mais sugestiva, em certos
casos, mas nem por isso elas se vêem melhor. As descri-
ções, excessivamente analíticas, do interior das figuras
fazem lembrar os relatórios dos peritos, em investigações
criminais. Ha uma diferença essencial. Estes relatórios,
peças sem arte, são só lidos com ardor, tratando-se de
crimes sensacionais, ao passo que as analises meticulosas
e demoradas de Maupassant constituem um verdadeiro
deleite espiritual para os amadores da representação da
vida no romance, da humanidade na literatura. Mau-
passant também sabia atingir efeitos comoventes por meio
de traços breves. Assim, por exemplo, sempre que apre-
senta a desprezada, a esquecida tia da viscondessa de
Lamare.
Faguet, com o fim de frisar defeitos, fez, em minha
opinião, o maior elogio a Balzac, quando disse que via
Groriot como se ele fosse um dos seus amigos e mais per-
feitamente ainda.
Ora precisamente o que deve constituir o objectivo
supremo do realista, do verdadeiro realista que fôr artista
(acentuou-o Maupassant, em Le Roman, breve estudo que
antecede o seu Pierre et Jean), é promover uma visão da
realidade, mais completa, mais probante e mais nitida que
a que se pode obter, pela inspecção simples da própria
realidade. Ora o que se pretende é ver, acima de tudo, ó
que o criador nos faça ver a vida da sua criação, e tanto
mais felizes, tanto melhores e consequentemente mais apre-
ciáveis são os seus processos artísticos quanto mais plena-
mente atinja aquele objectivo supremo.
Se os traços psicológicos que Balzac exibe, cons-
truindo as suas figuras, fossem resultantes duma simplifi-
cação, duma selecção rudimentares de facto, se não fossem
produtos quintessenciados duma analise profunda, eles
não seriam, creio, nem tão expressivos, nem tão impres-
sivos.
Tem notado a critica que as figuras de Balzac se
apresentam, logo que aparecem em scena, na posse inte-
gral das suas energias psíquicas, num limite mais ou menos
extremo da evolução intelectual e moral. E certo, com
HONORÉ DE BALZAC 107
efeito, que as figuras surgem, na generalidade, organi-
zadas já, naturalmente, com uma base de volição e de
sentimento e de inteligência que será a que veremos
posta em jogo, intervindo nos acontecimentos, reagindo
contra eles, tirando deles partido ou aceitando-os simples-
mente.
Ora, neste papel das figuras — em uma ou mais fases,
determinadamente escolhidas, da sua vida — está já implí-
cita a individualidade, com os diferentes aspectos do seu
modo de ser, sucedendo-se conforme as circunstancias que
reclamam e provocam a sua aparição. E não é verdade
que, nos romances de Balzac, por uma acção de tal ou tal
figura, se possam concluir, sem receio de errar, as res-
tantes acções, que não haja novidade, interesse, nos modos
sucessivos de pensar, de sentir e de actuar das figuras.
Não ó verdade que os enérgicos de Balzac sejam sempre
enérgicos do mesmo modo e que os fracos — que os ha
também — sejam sempre fracos do mesmo modo, que a
virtude ou o vicio tenham sempre, na mesma figura, o
rL.'^smo e único aspecto dominante.
Se a acção está muito concentrada, se se desenvolve
num lapso relativamente curto de tempo, se o quadro da
actividade da figura é muito restrito se ela aparece em
scena numa fase já muito adiantada da sua vida, a sua
evolução moral salientar-se-á menos. Mas assiste-se, não
raro, a uma certa modificação, mais ou menos declarada,
nos caracteres morais, sob a influencia dos meios com que
entram em contacto e consoante a qualidade das situa-
ções. Luciano de Rubempré é sempre um vaidoso, um
fraco, mas não o é sempre do mesmo modo e no mesmo
grau. Esses aspectos dominantes do seu caracter moral
sofrem modificações. O homem da noite de apresentação
na casa de Mme de Bargeton, em Angoulême, numa rece-
pção dada propositadamente para glorificar o poeta e o
lançar, num momento, no seio da sociedade mais selecta
da cidade e arredores, não é o mesmo que, tempos depois,
toma parte nas festas desbragadas do Paris mundano, feito
já jornalista de nome, e nem um nem outro são o mesmo
que, mais tarde, de regresso a Angoulême, se apresenta em
108 HONORÉ DE BALZAC
casa de De Sénouches, numa roda de convidados esco-
lhidos, entre as pessoas mais gradas, e afecta de homem
superior, no espirito, no trajar, nos costumes, rindo-se de
tudo e de todos, rindo-se da província e dos provin-
cianos.
A critica tem também notado o facto de Balzac se
ter expandido, de não ter refreado as exuberancias do seu
temperamento, satisfazendo demasiado as exigências do seu
natural comunicativo.
E esse, sem duvida, um defeito do romancista, defeito
que, de corta maneira, ha de incidir sobre a qualidade do
realismo ou, pelo menos, sobre a qualidade da sua
expressão artística. Advirta-se, porém, que Balzac, em
regra, não confidencia a seu respeito com o leitoi-. Em
principio, a impassibilidade, na atitude do realista, é con-
dição sine qiia non do verdadeiro, do puro realismo. Mas
impassibilidade absoluta não é possivel, não existe. A per-
sonalidade do realista ha de necessariamente trair-se, mais
ou menos. Não se trai tanto, na ironia desdenhosa de Flau-
bert, a sua aversão pelo burguês? E não sei se a obra
d'arte ganhará tanto como se pretende com a impassi-
bilidade que é lima forma de atitude afectada, contra-
feita.
Por essa tendência a intervir na criação, bordando
comentários, nem sempre formulando modos de ver em que
se antecipe ao critério e ao juizo do leitor, antes prepa-
rando, de ordinário, a impressão a produzir artisticamente
no espirito dele — que não a revelar-se-nos, a revelar a sua
alma, de propósito deliberado, (as expansões são sempre
muito calculadas e nelas, em geral, não predomina o cora-
ção, mas a inteligência) — por essa tendência só, conside-
rada em si, ainda que importante, poderá Balzac ser classi-
ficado justamente de romântico?
O romantismo de Balzac foi condicionado demais pelo
seu realismo para poder ser considerado, no fundo, um
exemplar genuino do romantismo propriamente dito. Balzac
foi sempre, preponderantemente, por disposição natural da
sua inteligência (mesmo pelo sentimento, — um sentimento
largo e profundo de Homem eminentemente representa-
HONORÉ DE BALZAC 109
tivo ' que via e sentia, de preferencia a si próprio, a Humani-
dade, sabendo fugir, quanto possivel, á contingência, inevi-
tável para o romântico, de referir a Humanidade á sua
pessoa, ou antes de exibir a sua pessoa em vez da Huma-
nidade, de ver a Vida fraccionariamente, com a estreiteza
dos que não buscam compreendê-la mesmo considerada em
parte, quanto mais na sua totalidade — , foi, creio, mais
realista que romântico), um verdadeiro, um grande realista
de dotes privilegiados; os principios da sua razão potente
que tudo abraçava, que tudo dominava, metiam na ordem
as extravagâncias, os abusos possiveis da imaginação e da
sensibilidade, propensas a românticos arroubos, por dispo-
sição congénita, sempre mais ou menos refreada. A imagi-
nação e a sensibilidade atraiam-no para o romantismo (con-
sidere-se o entusiasmo nele despertado pelo romantismo
inglês, no género que especialmente cultivou), mas a sua
razão combateu sempre, em geral com êxito, o que ele po-
deria representar de depressivo para a sua criação.
O romantismo propriamente dito era incompativel com
o real (o que não significa que, dentro dele, se fizesse sem-
pre obra fora da realidade — duma realidade, é certo, em
• Alguns dos contemporâneos mais ilustres de Balzac, ami-
gos que com ele conviveram mais ou menos, descreveram o que de
mais frisante se impunha no seu todo físico, especialmente a expres-
são da sua fisionomia e as maneiras do seu trato. O homem em Bal-
zac era tão insinuante que dezenas de anos depois ainda ha quem
venha contar impressões sobre ele, meras impressões de exterior
(Vid. Discours de réception de Faguet à V Académie française, por Émlle
Ollivier). Esses testemunhos são interessantes. Bem assim os retra-
tos, justamente apreciáveis, para confronto : o conhecido como o da-
guerreotipo, em primeiro lugar (vem publicado no frontispício da
obra citada de Lawton), o que, mais vulgarizado, foi exibido no Salon
de 1837, o de Balzac aos trinta anos que figura, em frontispício, na
mais recente obra de Faguet sobre o grande romancista, o reprodu-
zido numa litografia de Julien, datada de 1840, o exibido no Salon de
1842, o representado numa gravura de Hédouin. [Todos estes retra-
tos de Balzac se conteem na obra citada de Lawton]. A este aspecto
particular do estudo não resistirá todo o que dispuser dum senti-
mento literário intenso. Contudo, sempre mo pareceu, com Lemaitre,
110 HONORÉ DE BALZAC
geral, de convenção e de artificio) e menospresava até o
bomsenso. Balzac nunca.
Desde que se conheceu, desde que se sentia artista ori-
ginal, podendo sair dos moldes dos seus autores predilectos
e criar por si, inspirando-se sobretudo na natureza, cora o
mais elevado sentimento da Vida, reagiu contra o roman-
tismo, não tanto contra os seus processos, como contra o
que o seu espirito tinha de essencialmente atentatório do
real, observou e representou nas suas obras, sistematica-
mente e de propósito declarado, a realidade do seu tempo,
a realidade vivida sob os seus olhos, sentida toda por sua
grande alma, encarando-a á luz dum critério profundamente
humano, baseado sempre na verdade e iluminado a espa-
ços por intuições de vidente.
Nú romantismo de Balzac ha vicios e virtudes do ro-
mantismo propriamente dito, vicios que o espirito do rea-
lismo corrigiu em parte, virtudes que ele soube aproveitar,
como prova a natureza, tão intima e tão sugestivamente
verdadeira, da concepção do romancista. A influencia, nas
obras de Balzac, do romantismo, ou melhor de tendências
dominantes, muito caracteristicas, do romantismo — as ten-
que o físico do artista deve, em principio, reputar-se de importância
secundaria, Balzac em nenhum dos retratos, nomeadamente no da-
guerreotipo, corresponde á ideia extremamente complexa que faço
dele. Essa ideia transcende o âmbito das impressões que os retratos
sugerem.
Sinto que esses retratos, de que me esforço por adivinhar o se-
gredo intimo de expressão, me não dizem tudo, longe disso. Analo-
gamente, que dizem, por exemplo, os retratos desses outros grandes
artistas psicólogos, Sainte-Beuve e Maupassant? Que juizo faria-
mos desses homens pelos retratos, se lhes não conhecêssemos as
obras ?
Apesar de haver quem pretenda que, na critica literária, as obras
do autor são o subsidio mais em descrédito para o conhecimento da
sua individualidade moral, eu não penso, não julgo assim. A visão
das obras — que mal se poderá desembaraçar do personalismo da im-
pressão — é fundamental. O quantum que pela visão se atinge e a se-
gurança com que ela se exerce, é questão de inteligência e de senti-
mento ou de discernimento e de gosto, fortalecidos pelo tacto. E o
HONORÉ DE BALZAC 111
dencias conformes com o uatural do romancista, com a sua
orientação de realista acima de tudo — não foi inconve-
niente : o romancista tirou desse modo de inspiração, desse
aspecto da inspiração efeitos que enriqueceram o seu rea-
lismo, A pujança da sua criação não se insinuaria, não se
imporia tanto, presumo, sem uma certa coloração que lhe
imprime, atenuados os tons mais carregados, o espirito ro-
mântico.
A aliança, a fusão do realismo e do romantismo, na
produção de Balzac, deram-lhe essa força, essa capacidade
de vibração e de expressão, em côr e em relevo, — e por-
que não direi: essa vida? — que a tornam digna de ser
classificada, com legitimo direito, de superior entre as mais
altas produções realísticas. O romantismo, ou antes, o es-
pirito do romantismo, em Balzac, deixa-se, de ordinário,
penetrar, o mais fundamente possível, pelo espirito do rea-
lismo que dirige e anima toda a criação. Dentro do espirito
romântico, o autor da Comédie Humaine teve um idealismo a
seu modo, um idealismo muito seu, o idealismo mais confor-
me com o seu feitio moral de homem e com a sua orien-
tação dominante de escritor fortemente cerebral.
critério do impressionista não é necessariamente um critério super-
ficial; ainda que puramente de sentimento, pode ser profundo e, nessa
hipótese, a critica literária, por mais ambiciosamente scientifica, não
fará sempre bem em o engeitar.
Se nas obras nao está o autor todo, está pelo menos o essen-
cial da sua individualidade. E até na compostura mais ou menos for-
çada duma atitude de efeito, o autor, por mais que queira, não con-
segue disfarçar de todo a sua verdadeira constituição moral. E' tão
interessante descobrir o homem por entre a ênfase e todo o aparato
romântico de Chateaubriand como notar o que ha de pessoal, de sen-
tidamente pessoal, nas obras estudadamente impessoais, intencional
e fortemente objectivas, de Maupassant. A obsessão da morte é neste
extremamente caracteristica. A arte com que as scenas da morte, as
situações em torno dos mortos sao arquitectadas e traçadas, em Mau-
passant, nada fica a dever, era perfeição, á que Balzac revelou na idea-
lização e construção da morte de Goriot ou de Pons. Sirvam de exem.
pio a morte de Olivier Bertin e o velar, tão entrecortado por como-
ções variadas, da viscondessa de Lamare, junto do cadáver da mãi.
112 HONOBÉ DE BALZAC *
A sua criação literária distingue-se principalmente
pelo modernismo, observado e interpretado com a mais
ampla e segura inteligência e consciência da vida real.
Nisto dita o realismo lei e pode dizer-se que em tudo, sendo
o romantismo um hospede apenas, se bem que acolhido
por simpatia. O hospede, felizmente, foi mais discreto em
geral do que seria licito esperar, dado o temperamento de
Balzac. Pondere-se que a modalidade do espirito humano,
á qual se convencionou chamar «romantismo), não é só
do século XIX. Na historia literaiia de França, ocorre-rae
assinalar uma outra época romântica, a que determinou,
em reacção, a produção de Racine e dos realistas seus
contemporâneos.
Realismo e romantismo são dois fundamentais aspe-
ctos do espirito humano, evidenciados, distintos, consoante
factores de ordem moral e social, variáveis segundo os
tempos e os lugares; são modalidades essenciais da consti-
tuição psicológica do Homem.
Ha, em quantidade maior ou menor, romantismo nos
realistas, realismo nos românticos. Deve-se convir em que
a discriminação, neste particular, é sempre necessaria-
mente artificial, subjectiva.
Apesar de todas as suas reservas sobre o realismo de
Balzac, Faguet consignou que por ele foram criadas figuras
duma «verdade absoluta>, que se diria terem saido «das
mãos da natureza».
O romancista foi um genial e sábio arquitecto de espi-
rites. Observador e vidente a um tempo, nada lhe escapava
para a construção das individualidades. Assim, não lhe po-
diam passar despercebidas, e não passaram, as formas de
manifestação individual que as profissões, as origens, a edu-
cação, as relações, o conflito social dos interesses determi-
nam.
Destacando-se da criação (que é, como representação
da alma e da vida humanas, um todo orgânico) uma parte,
arbitrariamente, e isolando-a, incorre-se sempre em risco de
interpretar mal. Como as obras-primas de Miguel Angelo,
também artista superior no dispositivo dos grandes
HONOaÉ DE BALZAC 113
planos ', tendo criado, entre outras, uma escultura de que
Rodin disse que, qual bloco granitico, poderia despenhar-se
por uma montanha que se não partiria ^, assim as obras-
1 Palavras de Rodin (Canudo — Une Visite à Rodin — La Re-
vue Hehdoinadaire, de 5 de abril de 1913) :
«Procurei sempre no corpo humano o seu aspecto arquitectura!.
E, em verdade, não o procurei, lá está, mostra-se a todos os instan-
tes, basta olhar para ele. O corpo humano, mais livre nos seus mo-
vimentos que o dos animais, mais desenvolto, e tão miraculosa-
mente em equilíbrio, é a lição viva que a natureza, com uma genero-
sidade infatigável, oferece á nossa arquitectura. O segredo está no
movimento, nos planos. Toda a arte está nos planos. O «plano" é a
relação estreita de todas as cousas num conjunto. A obra está, pois,
toda nos planos. . . Um homem como Rembrandt realizava o milagre
do seu jogo de luz e de sombras começando sempre por compor o
fundo do seu quadro. Todo o seu génio estava nisso. Estabelecido o
fundo, a obra-prima estava feita ... A obra-prima estava no fundo
do quadro, em que a sciencia dos planos fixara uma harmonia in-
comparável. ... As formas repetem-se na natureza. Mas ha alguma
cousa que fica: a forma. Os antigos compreenderam-no sempre e
procuravam de preferencia o «núcleo» de cada forma, a própria essen-
cia do seu aspecto ...»
O que Rodin diz da forma por excelência, da forma eterna que
o artista de génio consegue fixar, pode bem applicar-se a Balzac,
como a Miguel Angelo e a Rembrandt. O que, por sua vez, diz dos
«planos», esclarece sobre o processo fundamental dos grandes cria-
dores e habilita a ver que Balzac também procedia por sistema, den-
tro desse sistema.
Quem supuser que ele construia á aventura, por casual arbitrio
ao sabor das circunstancias do momento, engana-se. Quanto ao facto
de a natureza se mostrar a todos os instantes, de se oferecer á obser-
vação, com uma generosidade infatigável, nfio posso contestar que
assim seja, mas já contesto que baste só olhar para ela para a ver.
Rodin não se teria exprimido exactamente pela forma ado-
ptada por Canudo. Rodin sabe, como poucos — e declarou-o mesmo
— o que a inteligência das formas custa ao observador.
O observador que não tiver o sentimento da vida e os meios de
observação profundamente educados no estudo directo da natureza,
nao logra penetrar na essência das cousas, só pode atingir uma vi-
são imperfeita, uma visão parcial e superficial, nunca uma visão in-
tima e de conjunto.
2 «E necessário que uma estatua possa rolar dum cume. O
que perderá pelo caminho, é o supérfluo» — dizia Miguel Angelo.
8
114 HONORÉ DE BÀLZAC
primas de Balzac teem de essencial a harmonia, a pro-
porção, a relação intrinseca de vida que os elementos
básicos de construção guardam entre si.
Sirva de exemplo Une Ténébreuse Affaire, tão depre-
ciado. Ha neste romance, muito do melhor de Balzac, um
vigor, um relevo, uma intensidade dramática que arrebatam,
por vezes. Considerado em globo, por uma visão sintética,
é uma obra-prima duma sugestão rara e o que a distingue
especialmente, o seu valor histórico documental, julgo que
saltará aos olhos de todos os que, sem imrti pris em con-
trario, tenham, a corroborar a inteligência e o gosto, um
pouco de cultura, mesmo leve. Considere-se, porém, parcial-
mente, perdida a noção do conjunto ou desprezada. O juizo
critico terá, aqui e além, de ser desfavorável e será um
juizo imperfeito, e, no fundo, falso.
As grandes obras de Balzac devem apreciar-se como
todos, unos, indivisiveis, no que teem de essencial. Entre
os seus elementos básicos de construção, não ha apenas
encadeamento, ha fusão intima, indissolúvel. Desintegrá-los
é um erro.
Faguet pôs em relevo a coesão fundamental, orgânica
que oferece a substancia dos bons romances de Balzac.
Resumindo: não se pode negar, em justa razão, a Bal-
zac, realismo, o mais intenso realismo, no dominio da cria-
ção psicológica.
Não se vê só o exterior das suas figuras; vê-se-lhes o
interior também, graças sobretudo á qualidade dos traços
a que o romancista recorreu, para as definir.
Como subsistiriam as figuras, de contrario, no nosso
espirito?
No geral, o descritivo do exterior escapa ou depressa
se desvanece: as falas e as acções das figuras é que no-las
fazem ver. Na vida real, não se poderia abstrair do fisico
da pessoa, para a conhecer; na criação literária, abstrai-se,
mais ou menos, do corpo da figura e, como é absoluta-
mente justificado pelas condições da simples leitura e
mesmo do estudo, é a humanidade da figura, denunciada
pela sua alma, o que predominante, quase exclusivamente
absorve as atenções. E não se pode contestar que quem
HONOEÉ DE BAIiZAC 115
procure alma nas palavras e nas acções das grandes figu-
ras, como até de secundarias, de Balzac, — nem umas nem
outras, note-se, são sempre tipos — , encontra, normal-
mente, eminente a tudo, subordinando a produção toda
ao móbil realistico mais elevado, o criador d'almas.
Faguet teve o senso critico de pôr em foco os retra-
tos físicos de duas das principais figuras do mundo criado
por Balzac: a prima Bette, aos vinte e cinco anos e aos
quarenta e cinco; Goriot aos sessenta e dois e aos sessenta
e cinco. Esses retratos não são só fisicos, são essencial-
mente psicológicos. E são admiráveis, absolutamente ma-
ravilhosos. E não são únicos, não são excepções nas obras
de Balzac.
Brunetière distinguia, na pintura da alma duma figura,
dois aspectos: «o meio interior» e «a verdade humana».
Esses dois aspectos fundamentais completam-se, consti-
tuem a vida essencial da figura. Por <meio interior» ele
entendia esse quer que seja de particular que não per-
tence senão á figura e ao seu tempo; por «verdade hu-
mana», alguma cousa de geral que pertence a todas as da
mesma espécie, em todos os tempos. Ora essa «verdade
humana» geral não aparece em nenhum realista (nem
mesmo em Flaubert, nem em Daudet, nem no próprio
Maupassant) tanto como em Balzac. Esta formula de juizo
não é, porém, tão absoluta que não admita correcções.
Mas estas não invalidam o que ha do racional, de exacto,
na essência do critério. Por exemplo, Mme Bovary não
terá muito de humanidade geral? E Mme Araoiix (de
L' Éducation sentimentale)? E Mme Ebsea (de U Évangéliste)?
E Mme de Lamare (de Une vie)? E Mme de Guilleroy (de
Fort comme la Mort)?
Contudo, avaliada a criação em globo, creio que, no
mundo de Balzac, a verdade humana geral é mais ampla
e é mais funda. E, não obstante, Flaubert, Daudet e Mau-
passant foram grandes realistas, mestres consumados na
analise psicológica e, sobretudo o primeiro e o terceiro,
na arte da composição.
Mas a superioridade de Balzac não está só na verdade
humana geral, está ainda no próprio meio interior que.
116 HONOEÉ DE BALZAC
sem ser menos vivo, é mais visivel, o que resulta da exce-
lência da arte e do engenho. Os traços que definem a
alma das figuras em Balzac são mais essenciais, mais sin-
téticos, mais caracteristicamente pessoais, teera uma fun-
ção e uma significação mais vastas, mais profundas e, ao
mesmo tempo, mais precisas, mais nitidas.
O próprio fisico das figuras de Flaubert e de Maupas-
sant, os maiores realistas depois de Balzac, não se vê
tanto como o das figuras do criador da Comédie Humaine.
Na selecção dos caracteres tisicos e psicológicos está tudo
ou quase tudo, está o segredo principal da criação de vida.
E, como Faguet disse, « não é o segredo da arte, é o se-
gredo dum instinto psicológico e dum poder psicológico
que consistem em se transformar o individuo num outro e
em viver nesse outro como ele próprio vive, com o mesmo
ardor de paixão e com a mesma lógica dos sentimentos e
das paixões». E acrescentava: «E esse dom que não é
analisavel».
Basta o capitulo final, intitulado Balzac depois da sua
morte, do livro de Faguet, Balzac (1913), para, em frente
desse balanço ás obras dos grandes realistas que se suce-
deram ao autor da Comédie Humaine, balanço que é talvez,
senão a parte mais luminosa, pelo menos a parte mais
concludente da critica, assentar, saldados defeitos e quali-
dades duns e doutros, na grande verdade fundamental de
que, apesar de tudo o que possa legitimamente ser censu-
rado nele, Balzac foi, com Molière, o maior criador d'al-
mas que a França tem tido, o maior criador de huma-
nidade.
índice
Prefacio 5
Capitqlo l — Biografia de Balzac 7
Capitulo íi. — Obras- primas de Balzac 19
Capitulo iu. - Valor da criação literária de Balzac . 75
ERRATAS
PAGINA
LINHA
EM VEZ de:
leia-se:
50
31.«
contena
contenda
50
34.«
como cie facto
como de facto,
52
31.a
reflectia
reflectida
54
28.a
legião rl'honra
Legião d'Honra
63
19.»
Gouril
Goupil
64
21.a
Savinien depois
Savinien e depois
73
38.»-39.«
naturalmente
logicamente
77
6.a
para dar vida que
para dar vida, uma vida
baste
que baste
78
4.»
toda ela, tem
toda ela tem
78
14.«
balzac, viu
Balzac viu
78
24.»
producção
produção
83
2.a
para a calmar
para a acalmar
83
19."
audaciosos
audaciosos
83
23.»-24.«
(de Le Coasin Fons
(de Le Cousin FonsJ
84
6.«
bem
bem.
84
9.«
melhores,
melhores
84
14.»
Schmuck
Schmucke
84
25.»
peripécia
peripécias
84
25.a-26.«
que, sobrelevam
que sobrelevam,
85
20.«
notaria
notória
89
17.*
exceptuado
exceptuados
"7'