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Full text of "Honoré de Balzac"

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A.  do  Prado  Coelho 

Professor   efectivo  do  3.°  grupo   no   Liceu    Nacional  de   Lamego 

Diplomado  com   o   Curso  de   Habilitação   ao    Magistério  Secundário   Oficiai 

Sócio   da   Sociedade   Portuguesa  de  Estudos  Históricos 

5" 


tionoré  Oe  Bahac 


Ru  gostaria  de  que,  quando  se  escreve  sobre 
um  autor  e  considero  sobretudo  o  caso  de 
lalar  dum  poeta  ou  dum  artista,  dum  autor 
de  sentimento  ou  de  imasfinaçào),  se  pusesse 
na  ideia  que  ele  está  presente  e  a  ouvir  o 
que  dizemos  a  seu  respeito.' 

Saixte-Beuve. 

[('(iiisertes  dii  Liiiidi,  t.  xiii). 


Em  presença  de  homens  superiores,  a  sim- 
patia é  a  via  mais  segura  para  compreen- 
der; e  a  obra  mais  útil  da  critica  é  explicar 
em  que  os  grandes  homens  foram  grandes, 
as  molas  secretas  do  seu  génio,  os  motivos 
legítimos  da  sua  influencia  . . .  Não  é  sobre 
as  partes  duráveis  e  benéficas  que  se  torna 
mais  necessário  insistir? . .  .  As  influencias 
benéficas  são  eternas.  > 

G.ABKIHI.    Mo.VOlJ. 

iReiíaii.   Tatue,  Miclwlet,  Dedicatória". 


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PORTO 
PROPRIEDADE    e    EDIÇÃO    do    AUTOR 


A 


.  6éíf 


/ 


ílonoré  De  Dal^ac 


Do  autor: 


O    Ensino   do   francês,   pelo   Método  directo,  na  Instrução 
secundaria  (Esboço  didáctico),  7S  pag.,  Porto,  1912. 


[Depositado  na  Biblioteca  Nacional  de  Lisboa  e  Publica  do  Porto  e 
oferecido  ás  Bibliotecas  das  Faculdades  de  Letras,  dos  Liceus 
e  das  Academias  e  Sociedades  scientificas  e  ao  professorado 
superior  e  secundário,] 


A.  do  Prado  Coelho 

Professor  efectivo  do  2.°  grupo   no   Liceu   Nacional  de  Lamego 

Diplomado   com   o   Curso  de   Habilitação   ao    Magistério   Secundário   Oficial 

Sócio  da  Sociedade  Portuguesa  de  Estudos  Históricos 


tionoré  de  Bal^ac 


Eu  gostaria  de  qu?.  quando  se  escreve  sobre 
um  auior  ,e  considero  sobretudo  o  caso  de 
falar  dum  poeta  ou  dum  artista,  dum  autor 
de  sentimento  ou  de  imaginação),  se  pusesse 
na  ideia  que  ele  está  presente  e  a  ouvir  o 
que  dizemos  a  seu  respeito.» 

Saixte-Beuve. 

Causeric>  dti  Litiidi,  t.  xiii). 


Em  present,-a  de  homens  superiores,  a  sim- 
patia é  a  via  mais  segura  para  compreen- 
der: e  a  obra  mais  útil  da  critica  é  explicar 
em  que  os  grandes  homens  foram  grandes, 
as  molas  secretas  do  seu  génio,  os  motivos 
legítimos  da  sua  influencia  . . .  Não  é  sobre 
as  partes  duráveis  e  benéficas  que  se  torna 
mais  necessário  insistir?...  As  influencias 
benéficas  são  eternas.  > 

Gabriel  Moxod. 

{Remiti,   Taine,  Michelet,  Dedicatória). 


cS^^i^e^^ 


PO  RTO 

PROPRIEDADE   e    EDIÇÃO   do   AUTOR 


Composto    e    impresso   n»  tip.   oo   Porto 


Medico.   Pn»ç«  o»  B« 


PREFACIO 


ESTE  estudo,  cujo  objecto  f'  a  humanidade  de 
Halzac,  a  humanidade  nas  (jr andes  obras  de 
Balzac,  indue-se  num  género  de  critica  que 
se  conrencionou  denomitiar  Impressionista,  gé- 
nero que,  com  Faguet,  no  seu  Flaubert,  por  exemplo,  adquiriu 
foros  de  alta  critica. 

Estou  conrencido  de  que  o  impressionismo  de  valor  na 
critica  não  chega  só  a  conclusões  provisórias,  apesar  do  perso- 
nalismo do  critério :  tem  uma  função  mais  elevada,  um  alcance 
mais  vasto  do  que  crêem  aqueles  que  temem  que  o  subjectivismo 
do  sentimento  literário  prejudique  o  rigor  a  que  legitimamente 
aspiram,  cada  vez  mais,  os  estudos  literários. 

Determinei  tratar  de  Balzac,  porque  todas  as  impressões 
me  induziam  a  crer  que  não  houve  ainda  maior  criador  de 
humanidade. 

Lendo  e  relendo  Balzac,  com  a  inteligência  e  o  corarão 
igualmente  empenhados  em  perceber  e  em  sentir,  esfabeleceu-se 
solidamente  uma  corrente  de  alta  simpatia  entre  o  meu  espirito 
€  o  espirito  da  sua  criação.  E  foi  essa  corrente  de  simpatia 
que  me  impeliu,  muito  particularmente,  a  conhecer  tão  de 
perto,  o  mais  perto  que  pude,  essa  criação. 


Estudar  dentro  chr  antipatia,  ou  mesmo  simplesmente 
fora  da  simpatia,  é,  de  certo,  uma  das  mais  ingratas  ocupa- 
ções. 

Estudar,  pelo  contrario,  com  sl)npatia,  com  uma  simpatia 
profunda,  é  um  enlevo,  é  uma  delicia. 

Eu  devo  ao  estudo  de  Bahac,  como,  em  geral,  ao  que 
tenho  consagrado  aos  grandes  realistas,  o  maior  prazer  da 
minha  vida. 

Devo-lhes  as  mais  intensas  sensarões  da  minha  alma. 

A  simpatia,  (fuer  seja  a  da  inteligência,  quer  a  do  cora- 
ção, se  não  é  condição  primeira  de  hem  compreender,  ajuda, 
pelo  menos,  a  hem  compreender.  E  julgo  preferirei  criticar, 
deixando-se  influenciar  pelo  ardor  da  simpatia,  ardor  mais 
ou  menos  apaixonado,  cujos  excessos  possiveis  a  razão,  o  bom 
senso  acalmam,  a  criticar  com  a  serenidade  indiferente,  natural 
ou  forrada,  do  que  é  insensível  ou  quer  ser  insensivel. 

Está  ainda  esjjalhado,  entre  nós,  o  preconceito  de  que  a 
verdadeira  critica  é  a  que  consiste  sobretudo  em  apontar  de- 
feitos ou,  por  outras  palavras,  de  que  a  critica  que  louve  mais 
do  que  censure,  não  pode  ser  boa  crítica. 

E  já  tempo  de  ter  este  preconceito  na  conta  que  merece. 


CAPITULO  I 

Biografia  de  Baizac  ' 

Honoré  de  Baizac,  filho  de  Bernard-François  Balssa 
(o  apelido  de  Baizac,  note-se,  foi  por  ele  tomado,  ainda  em 
novo)  e  de  Anne-Charlotte-Laure  Sallambier,  nasceu  em 
Tours,  a  20  de  maio  de  1799.  O  pai,  natural  de  Nougairié, 
no  departamento  do  Tarn  (meio-dia  da  França),  tinha  qua- 
lidades de  inteligência,  tornando-se  merecedor  de  conside- 


1  Discordo  da  opinião,  de  Lawton  {Baizac,  London,  Grant  Ri- 
chards  Ltd.,  1910),  segundo  a  qual  os  romances  de  Baizac  «são  lite- 
ralmente a  sua  vida».  Discordo  ainda  da  de  Le  Breton  {Baizac,  Paris, 
Colin,  1905),  mais  racional,  expressa  nestas  palavras:  «A  vida  de 
Baizac  explica  as  suas  obras,  dá-as  antecipadamente  a  conhecer». 
Inclino-me  para  a  de  Brunetière  {Honoré  de  Baizac,  Paris,  Calmann- 
Lévy,  1906),  para  quem  tanto  valia  conhecer  a  vida  de  Baizac,  como 
a  de  Shakespeare,  considerando  verdadeiro,  na  essência,  o  seu  con- 
ceito de  que  obras  da  amplidão  e  solidez  das  de  Baizac  não  podem 
ou  antes  não  devem  fazer-se  hoje  depender  das  circunstancias  da 
sua  produção. 

Com  o  tempo,  a  Comédie  Humaine  tem-se  tornado  cada  vez  mais 
evidentemente  verdadeira,  o  que  é  a  prova  mais  frisante  da  vida 
absoluta  da  criação.  Julgo  que  a  vida  do  criador  deve  reputar-se  re- 
lativamente secundaria.  Que  grandes  acontecimentos  da  vida  de 
Baizac  e  até  incidentes  de  momento  o  inspirassem,  lhe  fornecessem. 
temas,  não  oferece  duvida.  Que  Baizac  vivesse  nas  suas  figuras  (sem 
o  que,  como  observou  Faguet,  ele  não  poderia  fazê-las  vivas)  não 
sofre  contestação. 

Mas  aparte  as  alusões  directas,  as  declarações  expressas,  só  por 
conjectura  se  pôde  pretender  que,  neste  ou  naquele  passo  da  acção, 
que  nesta  ou  naquela  figura,  quisesse  o  autor  revelar-se-nos,  qui- 
sesse retratar-se.  As  identificações  das  figuras  de  Baizac  com  o  seu 


8  HONORÉ    DE    BALZAC 

ração.  Foi  homem  de  ilusões  fáceis,  cheio  de  imaginação, 
como  o  filho.  Era  de  modestissima  origem. 

A  mãi,  parisiense,  tinha  um  temperamento  nervoso, 
muito  susceptivel,  irritável,  o  que  nela  não  excluia  uma 
grande  capacidade  de  dedicação  e  de  sacrifício,  como  pro- 
vou com  o  filho. 

Balzac,  aos  cinco  anos,  frequentava  já  um  colégio  de 
Tours,  chegou  mesmo  a  frequentar  o  liceu  antes  de  dar 
ingresso,  aos  nove  anos  incompletos,  em  22  de  junho  de 
1807,  como  interno,  no  Colégio  de  Vendôme,  na  Touraine, 
donde  saiu,  em  22  de  agosto  de  1813, 

No  registo  da  frequência  do  Colégio,  ha  alusão,  em 
termos  lacónicos  mas  precisos,  ao  temperamento  sanguineo 
do  novel  estudante.  Os  mestres  tinham  tido  tempo  para 
lhe  conhecer  a  organização  fisica,  mas  a  inteligência  do 
fogoso  colegial  passou-lhes,  parece,  despercebida  ou  inter- 


autor  e  com  contemporâneos  sempre  as  supus  grosseiras.  Balzac, 
como  historiador  dos  costumes  e  como  psicólogo,  foi  um  perfeito 
criador.  Sobre  a  base  da  realidade  trabalhava  sempre  a  invenção. 
Assim  como  sintetizava  num  só,  de  ordinário,  os  acontecimentos, 
duma  dada  ordem,  em  que  se  inspirava,  tendo  sobretudo  em  vista, 
no  operar  dessa  fusão,  o  espirito  deles,  assim  também,  na  consti- 
tuição duma  figura,  empregava,  habitualmente,  caracteres  análogos, 
tirados  de  diversas  individualidades  reais,  organizando,  desta  arte, 
um  como  que  amalgama  psicológico,  em  que  o  autor  tinha  também, 
por  vezes,  a  sua  parte.  Neste  particular  de  saber  em  que  figuras  o 
romancista  se  teria  retratado,  ha  largo  campo  para  conjecturas  e 
só  conjecturas. 

Em  primeiro  lugar,  não  é  possível  haver  nos  seus  romances  fi- 
gura que  o  represente  totalmente.  Parece  haver  um  pouco  dele,  em 
geral,  —  características  parciais  de  individualidade,  —  nas  figuras 
simpáticas  que  lutam  pela  vida  e  cujo  talento  é  ignorado,  e  se  vêem, 
por  isso,  a  braços  com  a  escassez  de  meios  de  subsistência,  explo- 
radas pelos  maus  e  pelos  ricos,  sacrificando-se  por  bem  fazer  e  por 
amor,  mais  ou  menos  descontentes  e  revoltadas  contra  a  sorte  ou 
contra  a  ordem  social.  Encontram-se  traços  desses  no  impressor  Da- 
vid Séchard,  das  IJlKsions  PenJues,  no  artista  polaco,  Steinbock,  de 
La  CoKsine  Bette,  em  Gérard,  o  engenheiro  que  procede  á  execução 
material  da  obra  concebida,  sob  sugestões  do  seu  director  espiritual, 
O  pároco  de  Montégnac,  por  Verónica,  a  figura  central  de  Le  Cure  de 
ViUage,  etc. 


HONORÉ   DE    BALZAC  9 

pretaram-na  mal,  coutrariando-lhe  as  disposições.  Dado  á 
leitura,  apaixonado  por  livros,  foi,  nessa  idade  juvenil,  um 
insubordinado  á  disciplina  apertada  da  escola.  As  lições 
eram  postas  de  parte,  muitas  vezes,  para  satisfazer  uma  ne- 
cessidade precoce  do  espirito,  a  de  produzir  literariamente. 
Esta  uma  das  principais  razões  determinantes  dos  reiterados 
castigos  que  lhe  infligiam  \ 

De  regresso  á  casa  paterna,  ia,  aos  domingos  e  dias 
santificados,  na  companhia  da  mãi,  á  Catedral  de  Saint- 
G-atien. 

Proseguindo  nos  estudos,  voltou  a  frequentar  o  liceu 
de  Tours.  Depois  passou  a  assistir  ás  aulas  dum  estabele- 
cimento de  instrução  que  funcionava  sob  a  direcção  de 
Chrétien,  e,  para  melhor  aproveitamento,  era  ensinado, 
simultaneamente,  em  casa. 

O  pai.  de  Balzac  mudou  de  residência  para  Paris,  em 
fins  de  ISl-i,  a  ocupar  uma  colocação  no  Comissariado  da 
1.*  Divisão  Militar.  Balzac  continuou  a  sua  instrução, *em 
Paris,  no  colégio  de  Lepitre,  a  principio,  depois  num  outro, 
dirigido  por  Sganzer  e  Beuzelin. 

Tentavam-no  sempre  os  estudos  literários,  escrevendo 
trabalhos  apreciáveis,  para  exames.  Notava-se-lhes  já  a 
preocupação  realistica. 

Procurava  o  pai  definir-lhe  a  situação.  Obedecendo-lhe, 
entrou,  como  ajudante,  num  cartório,  o  de  Guyonnet-Mer- 


'  Aos  quatorze  auos,  no  Colégio  de  Veudôme,  Balzac  escreveu 
um  Tratailo  da  lontade,  além  de  poemas. 

Esse   Tratado  um  dos  professores  destruiu-o. 

Três  ou  quatro  vezes  por  semana,  era  Balzac,  por  motivo  dis- 
ciplinar, metido  na  prisão  do  Colégio:  lá,  devorava  os  livros  da 
excelente  biblioteca  da  casa,  numa  leitura  tão  exaustiva  que  a  sua 
saúde  robusta  veio  a  sofrer  e  o  seu  aspecto  exterior,  ao  ter  de  retirar- 
se  do  Colégio,  era  tal,  tão  magro  estava,  que  a  avó,  ao  vê-lo  exclamou: 
«Ora  aqui  está  como  o  colégio  no-los  entrega». 

Frequentavam  o  Colégio  de  Vcndôme  estudantes  vindos  de 
muito  longe,  do  fundo  da  Bretanha,  como  do  fundo  da  CTasconha  e 
da  Saintonge,  o  que  demonstra  que  era  um  colégio  de  cotação. 

Tem  já  a  sua  historia  o  Colégio  como  o  Liceu  de  Vendôme,  his- 
toria que  remonta  a  1023.  E  seu  autor  G.  Bonhoure. 


10  HONORÉ    DE    BALZAC 

ville.  Entretanto,  não  perdendo  de  vista  a  instrução,  fre- 
quentava a  Sorbona,  nomeadamente  os  cursos  de  Villemain, 
de  Guizot  e  de  Cousin. 

Permaneceu  no  cartório  de  Guyonnet  dezoito  meses. 

Por  igual  prazo,  esteve,  em  seguida,  empregado,  num 
outro,  o  de  Passez.  Em  1819,  abandonou  completamente  a 
carreira  tabelionica.  Lograra  um  aprendizado  da  especiali- 
dade não  talvez  tão  profundo  como  o  novo  critério  que 
acabou  por  formar,  sobre  o  homem  e  a  vida  social,  e  que 
lhe  adveio  do  conhecimento  travado  com  os  processos  que 
transitavam  pelos  cartórios. 

O  pai,  um  dia,  participou  ao  íilho  que  lhe  ia  arranjar 
um  lugar  de  notário.  Tinha  bons  amigos  na  classe.  O  filho 
rogou-lhe  permissão  para  se  escusar,  alegando  tentarem-no 
muito  as  letras.  O  pai  transigiu,  comprometendo-se  o  filho 
a  dar  boa  conta  de  si,  como  escritor,  num  espaço  de  dois 
anos.  Balzac,  animado  de  energia  e  de  fé,  lançou-se,  sem 
peràa  de  tempo,  ao  trabalho. 

Os  pais  sairam  de  Paris  e  fixaram  residência  em  Ville- 
parisis, 

Balzac  ficou  na  capital.  Levava  uma  vida  de  privações. 
Mas  o  cérebro  alentava  o  estômago.  E  a  ambição  de  pro- 
duzir não  tolerava  esmorecimentos.  Trabalhou  afincada- 
mente.  Estudou  sempre.  Observou  os  homens,  os  costumes, 
a  vida  que  o  rodeava.  A  intuição  penetrante,  as  poderosas 
faculdades  de  analise  arapliavam-se,  aperfeiçoavam-se.  dia 
a  dia. 

Varias  obras  compôs,  ensaios  com  que  se  adestrava. 

A  primeira  obra  que  o  satisfez,  foi  a  tragedia  Cromirell  >. 
Veio,   dentro   em  pouco,  a  desgostar-se  dela  e  do  género. 

Eis  em  que  curiosas  circunstancias.  Em  fins  de  abril 
de  1820,  levou  a  tragedia  á  familia,  a  Villeparisis.  Leu  a 
peça.  A  impressão  foi  desfavorável.  A  juizo  contrario  opôs 


•     Balzac  cultivou  pouco  o  teatro.  Estava  deslocado  nele. 

Contudo,  escreveu,  ainda  Vaiitrin  (1840),  Les  Ressources  de  Qtii- 
nola  (1842),  Famélu  Girand  (1843),  La  Maràfre  (1848)  e  Lf  Faiseur  ou 
Mercadet  (1838  e  1840). 


HONORÉ    DE    BALZAC  11 

razões  o  autor.  Quem  decidiu  o  pleito?  Um  antigo  profes- 
sor, Surville  (ou  o  poeta  Andrieux),  a  pedido  do  pai.  Exa- 
minou a  tragedia  e  aconselhou  o  moço  escritor  a  abando- 
nar, por  falta  de  vocação,  a  carreira  literária. 

Resolvido,  mais  do  que  nunca,  a  demonstrar  que  tinha 
a  vocação  que  lhe  negavam,  Balzac  regressou  a  Paris. 
Havia  de  honrar  o  seu  apelido,  havia  de  o  elevar  á  cate- 
goria dos  grandes  nomes!  Não  carecia  de  vigor  nem  de 
coragem  o  lutador. 

Mas  as  dificuldades  de  existência  eram  extremamente 
opressivas. 

Tinha  de  trabalhar,  e  de  trabalhar  com  êxito,  para 
poder  viver. 

Cultivaria  o  romance.  Custasse  o  que  custasse,  havia 
de  vencer  no  novo  género.  Cheio  de  entusiasmo  e  de  espe- 
rança, tinha  desvanecimentos  de  autor  que  compensavam 
amarguras.  Mas  não  era  isento  de  abatimentos,  em  transes 
mais  rudes. 

Produziu,  trabalhando  quanto  poude,  com  o  mais  vivo 
ardor,  impelido  pela  sede  de  dinheiro  e  pela  ambição 
de  gloria :  UHéritière  de  Birac/ue,  Jean  Louis,  Argoir  Le 
Pirate. 

Eram  passadas  incertas,  de  exploração  de  terreno. 
Ainda  não  estava  achada  a  via  definitiva. 

Em  1821  ou  1822,  deparou-se-lhe  alguém,  em  Ville- 
parisis,  que  muito  se  lhe  afeiçoou.  Foi  a  sua  Dilecta,  como 
lhe  chamou,  foi  Mme  de  Berny,  grande  amiga,  a  quem 
muito  deveu.  Tinha  mais  vinte  e  um  anos  que  ele. 

Em  1825,  meteu-se  Balzac  em  empresas  de  livraria  e 
de  tipografia.  Associou-se  a  Urbain  Canel,  emprestando-lhe 
d'A.ssonvillez,  mediante  clausulas  de  garantia,  o  capital 
d'entrada. 

O  êxito  não  correspondeu.  A  firma  não  se  manteve. 
Balzac  tornou  a  entabolar  negociações  com  d'Assonvillez 
e,  de  comum  acordo,  constituiu  nova  sociedade  com  Bar- 
bier.  Em  dezembro  de  1827,  deu  ingresso  na  casa  um  nuvo 
sócio,  Laurent.  Barbier  saiu  da  sociedade,  depois.  Com  a 
sua  saida,  acumularam-se  os  embaraços  e  a  sociedade  teve 
de  liquidar. 


12  HONORÉ    DE    BALZAC 

Não  sofreu,  porém,  com  a  liquidação. 

A  impericia  de  Balzac  para  os  negócios  era  um  grande 
mal  irremediável  e  comprometia  tudo.  Os  encargos  acrescen- 
tavam-se  sempre  e  a  capacidade  de  solvência  não  aumen- 
tava proporcionalmente.  Os  débitos  contraídos  não  pude- 
ram ser  integralmente  amortizados.  Isto  complicou  enorme- 
mente, então  e  depois,  a  vida  de  Balzac.  Deixou  o  negocio. 

A  carreira  literária  seduzia-o,  cada  vez  mais  irresisti- 
velmente. Voltou  a  consagrar-se,  com  toda  a  sua  alma,  ás 
letras.  Escreveu  Les  Chouans,  bom  romance  histórico,  que 
publicou  em  1829  e  que  não  obteve  êxito. 

No  mesmo  ano,  veio  a  lume  a  Phijsiologie  dit  MariiKje. 
que  foi  bem  acolhida.  Lançou  no  mercado,  em  1830:  La 
Maison  du  chat-qui-pelote,  Le  Bal  de  Sceaux,  La  Vendetta, 
Une  double  fámille,  I^a  paix  dii  ména(/e,  Gobseck,  Sarrasine, 
El  Verdugo,  Un  Episode  sous  la  Terreiír,  Une  Pítssion  dans 
le  Désert,  Les  deux  Rêves,  UElixir  de  lonyue  vir.  Datam  de 
1831:  La  Peau  de  Chagrin,  L'Auherye  rouge,  Ma/tre  Corné- 
lius,  La  Eemme  de  frente  auí^  (cap.  I,  IV  e  v),  Jhus  (Virist 
en  Flandre,  etc. 

Despertada  a  curiosidade  e  o  agrado,  subiu  de  ponto 
a  sua  popularidade.  O  ano  de  1832  foi  aflitivo  para  Balzac 
que  chegou  a  soltar  queixumes  de  miséria.  Nesse  ano  mala- 
venturado,  por  entre  angustias,  escreveu,  num  esforço  pro- 
digioso, Louis  Lambert,  íjt  Colonel  Chabert,  Le  Cure  de  Tours, 
La  Femme  de  trente  ans  (cap.  III  e  IV),  La  Bourse,  Madame 
Firmiani,  Etude  de  fetnme,  Le  Message,  La  Grenadiíre,  La 
Femme  abandomiée. 

Como  Ferragiis  e  La  Duchesse  de  Langeais,  Le  Médecln 
de  Campagne  publicou-se  em  1833;  em  1834,  além  de  Líl- 
lustre  GavAissart,  LjO  Filie  aux  geux  d'or  e  La  Recherche  de 
VAbsolu,  Eugénie  (Irandet. 

Le  Mêdecin  de  Campagne,  La  Recherche  de  VAbsolu  e 
sobretudo  Eugénie  Grandet  são  já  grandes  romances. 

O  labor  de  Balzac  era  colossal.  Vê-se  bem  que  lutava 
energicamente  pela  vida  e  que  tinha  cada  vez  mais  pre- 
sente a  noção  do  ideal. 

Eugénie  Grandet  marca  o  inicio  da  sua  maturidade  lite- 
rária. 


HONORÉ    DE    BALZAC  13 

Os  seus  progressos  na  criação  realística  eram,  pois, 
decisivos. 

Por  ocasião  da  publicação  do  Médecin  de  Campmjne, 
pouco  mais  ou  menos,  concebeu  Balzac  a  ideia  da  Comédie 
Humaine. 

Num  repente  de  entusiasmo,  voou  a  casa  da  irmã,  a 
desabafar. 

«Cumprimenta-me,  porque  estou  em  via  de  me  tornar 
um  génio»,  eis  o  que  lhe  disse,  de  chofre,  á  entrada,  flore- 
teando  a  bengala  como  um  tambor-mór,  imitando  o  rufar 
do  tambor  e  o  hum  hum  da  musica  militar.  Tão  viva  de- 
monstração salienta  a  natureza  do  temperamento  de  Balzac. 

As  relações  com  Evelina  Rzewuska,  condessa  Hanska, 
que  veio  a  ser  esposa  do  romancista,  começaram  em  1882. 
a  28  de  fevereiro,  por  uma  carta,  com  a  misteriosa  assina- 
tura de  L'Etmngh-p,  que  chegou  ás  mãos  de  Balzac,  por 
intermédio  do  seu  editor  Gosselin.  Viram-se,  pela  primeira 
vez,  em  setembro  de  1838,  na  Suissa,  em  Neuchâtel,  com- 
binado previamente  o  encontro.  Voltaram  a  avistar-se,  ua 
Suissa  ainda,  em  Genebra,  em  dezembro  do  mesmo  ano  '. 

Balzac  assentou,  desde  logo,  em  projectos  de  matri- 
monio. 

O  trabalhador  foi  modelo  de  consciência, 
O  excesso  de  produção  não  obstou  a  que  o  escrúpulo, 
na  factura  das  obras,  tomasse,  por  vezes,  o  caracter  de 
obsessão.  Assim,  por  exemplo,  com  Eugénie  Grandet.  Ó  di- 
nheiro que  das  suas  publicações  auferia,  consumiu-se,  não 
raro,  em  parte,  nas  multas  pelas  correcções  feitas  depois  de 
ultimada  a  composição  tipográfica. 

Foi  também  modelo  de  enérgica  perseverança  o  tra- 
balhador. 

Observava  um  regime  especial  de  viver,  para  traba- 
lhar. Deitava-se  de  tarde,  era  seguida  ao  jantar,  levantava- 
se  á  meia  noite  ou  uma  hora  da  manhã  e  abancava,  durante 
dezasseis,  dezoito,  vinte  horas  e  mais.  ás  vezes,  ocupado  no 


'  Ainda  sse  encontraram,  até  \HÍ'l,  uma  vez  oiais.  em  Viena. 
De  1842  a  1848,  após  a  morte  do  conde  Hanski.  tornar.im  a  encontrar- 
se,  por  três  ou  quatro  vezes  somente,  em  Nápoles.  Roma  e  DresJe. 


14  HOKORÉ    DE    BALZAC 

seu  assombroso  produzir.  Toda  a  sua  vida  foi  essa.  Desse 
modo,  cavou  ele  mesmo  a  sua  sepultura.  Quando  o  labor 
mais  se  impunha  ',  eximia-se  ao  convivio,  enclausurando-se 
em  casa,  durante  periodos  de  meses. 

Datam  de  1835:  Sh-aphHa,  Lc  Lijs  iJ<ins  Ia  Vallh  e  Le 
Pere  (ioriot.  A  prosperidade  sorriu-lhe  então,  como  nunca. 

Nos  anos  seguintes  mais  próximos  visitou  Venesa, 
Florença,  Milão,  Turim.  Em  1837,  além  da  l.«  parte  das 
Ulusiom  Perdnes,  saiu  á  publicidade  o  grande  romance 
César  Birotteaii,  escrito  em  brevissimo  espaço,  com  celeri- 
dade que  espanta  ^ 

De  outubro  de  1837  a  dezembro  de  184-0,  Balzac  viveu 
numa  bela  casa  de  campo,  denominada  de  Les  .Tardies,  doce 
e  querido  eremitério,  sito  nas  visinhanças  de  Ville-d'Avray. 

São  de  1839,  entre  outros  romances,  a  2.»  parte  das 
Illusions  Perdues  e  Le  Cure  de  Vilkuje.  Em  184-0,  escreveu 
Pierrette,  dedicada  a  Ana,  filha  de  Mme  Hanska. 

Abandonando  a  casa  de  campo  de  Les  .Tardies,  voltou 
a  fixar  residência  na  capital,  em  Passy,  onde  viveu 
até  1847. 

Despezas  sobre  despezas,  e  avultadissimas,  represen- 
tavam estas  sucessivas  instalações.  Nestas  circunstancias, 
com  tal  modo  desordenado  de  viver  que  foi  sempre  o  seu, 
nunca  a  insolvência  poude  ter  fim.  Credores  sobre  credores 


*  Habitualmente,  Balzac  não  coucobia  cada  romance  em  sepa- 
rado, mas  quatro  ou  cinco,  a  um  tempo.  De  1829  a  184-8,  escreveu,  em 
media,  por  ano,  quatro  a  cinco  volumes,  duas  mil  paginas.  Corrigin- 
do-se  muito  nas  provas  tipográficas,  de  preferencia,  Pierrettp  obrigou 
a  vinte  e  sete  provas  dessas  (Le  Breton  — <">/>.  cit.J 

2  Também  Eugénie  Granâet  e  Lp  Mtâecin  de  <\i>upa<iit>',  e  ainda 
La  CoHsine  Bette  e  Le  Cousin  Pons,  nomeadamente,  foram  escritos,  á 
custa  dum  esforço  exaustivo,  em  curtíssimo  prazo.  Criar  vida  era  para 
Balzac  tudo.  Nascida,  alimentada  no  cérebro,  onde  permanecia,  ás 
vezes,  durante  um  largo  período  de  incubação,  de  lá  irrompia,  fruto 
já  sazonado,  um  dia.  E  a  obra,  dum  jacto,  produzia-se. 

Em  obediência  á  realidade,  não  ha,  de  ordinário,  palavra  que  o 
romancista  faça  proferir  a  uma  figura  que  não  seja  duma  verdade 
plena.  O  estilo  em  que  falam  as  figuras  (a  boa  Nanon  ou  a  perversa 
Cibot  são  exemplos  frisantes),  t'  o  mais  períeitamente  realista,  é  o 
estilo  definitivo  do  realismo. 


HONORÉ    DE    BALZAC  15 

assediavam-no.  E  todavia  Balzac  raro  teria,  desde  que  se 
viu  grande,  desde  que,  segundo  as  suas  próprias  palavras, 
teve  a  consciência  do  que  era  e  do  que  havia  de  ser,  desde 
que  se  convenceu  de  que  tinha  dado  provas  irrefutáveis 
de  que  era  grande,  renunciado  á  satisfação  das  suas  exi- 
gências de  fausto  que  era  uma  maneira  de  chamar  para  si 
a  atenção  do  publico. 

Balzac  que  algumas  vezes  se  revoltou  contra  uma 
certa  severidade  da  mái,  teve,  outras,  para  com  ela,  explo- 
sões de  afectuoso  reconhecimento,  determinado  por  teste- 
munhos de  dedicação.  Ela  foi,  apesar  da  sua  predilecção 
pelo  outro  filho.  Henry,  uma  mãi,  na  mais  ampla  acepção 
do  termo. 

Os  grandes  romances  Vn  Ménacje  de  Garçon,  Une  Téné- 
hreuse  affaire  e  Ursule  MirouH  vieram  a  lume  em  1841. 

Com  o  intuito  de  levar  Mme  Hanska,  viuva  já,  a 
marcar  a  data  do  casamento,  Balzac  foi  a  S.  Petersburgo, 
em  1843,  e  aí  se  demorou  três  meses.  Publicaram-se  neste 
ano  a  8.*  parte  das  Illusions  Perdues  e  La  Muse  du  Dépar- 
tement.  Em  1844,  além  doutros  romances,  sairam  a  publico 
a  l.a  parte  de  Les  Pai/sans  e  Modeste  Mujmn. 

Voltou,  neste  mesmo  ano,  á  Itália.  Visitou  Roma, 
onde  se  encontrou  com  Mme  Hanska  e  onde  foi  rece- 
bido pelo  Papa.  Apaixonado  por  cousas  d'arte,  aprovei- 
tava as  suas  viagens  para  fazer  pesquizas,  intentando 
sempre  enriquecer  cada  vez  mais  o  seu  tesouro  de  colec- 
cionador, onde  figuravam  quadros  de  Guido,  Bronzino, 
Van  Dyck,  Greuze,  etc. 

Muitas  vezes,  o  fim  principal  das  suas  viagens  era 
precisamente  investigar  sobre  o  paradeiro  de  certas  grandes 
obras  artisticas  que  não  possuia  ainda  e  que  trazia  em 
mente.  Desta  sua  viagem  á  Itália,  de  que  outras  cidades, 
além  de  Roma,  visitou,  Génova,  por  exemplo,  trouxe  o 
S,  Pedro  de  Holbein. 

Em  fins  de  1846,  andou  Balzac  preocupado  com  a  sua 
nova  instalação,  em  casa  que  fora  edificada  no  século  XVIII 
6  pertencera  a  um  celebre  banqueiro.  Foi  enorme  o  dis- 
pêndio que  reclamou  a  casa  para  atingir  as  condições  do 
mais    apurado    modernismo    que    Balzac    desejava.    Nessa 


16  HONORK    DE    HALZAC 

altura,  />a  Combine  Bette  rendia -lhe  treze  mil  francos,  nove 
mil  Le  Coiisin  Pons. 

De  muitas  outras  fontes  de  receita  dispôs  e,  aciesceu- 
tadas  as  verbas  respectivas  ás  procedentes  daqueles  seus 
dois  grandes  romances,  ascendeu  o  total  a  cerca  de  cin- 
coenta  mil  francos  i. 

Instalou-se,  pois,  magnificamente. 

Em  fevereiro  de  1847,  Mme  Hanska  veio  incógnita 
a  Paris.  Balzac  acompanhou-a  aos  teatros.  Mas  deu-se, 
entre  os  dois,  uma  grande  questão,  provocada,  é  de  supor, 
pelo  facto  de  constar  a  Mme  Hanska  que  Balzac  tivera 
relações  com  uma  mulher  e  que  dessas  relações  proviera 
um  filho  que  pouco  viveu. 

Esta  questão  teria  agravado,  presume-se,  o  mal  car- 
díaco de  que  o  romancista  sofria  e  de  que  morreu.  Mme 
Hanska  regressou  a  Wierzchownia.  Estiveram  a  um  passo 
da  ruptura.  Contudo,  as  nuvens  mais  sombrias  dissipa- 
ram-se  um  pouco  e,  em  fins  desse  mesmo  ano,  Balzac.  a 
convite,  foi  a  Wierzchownia. 

Perturbações  sérias  da  saúde  de  Balzac  obrigaram  a 
adiar  o  matrimonio,  com  desgosto  profundo  para  ele  e 
parece  que  sem  grande  mágoa  para  Mme  Hanska. 

O  clima  da  Rússia  minou  fundo  a  arruinada  saúde  de 
Balzac.  Passado  o  inverno,  em  1850,  a  14  de  março,  rea- 
lizou-se,  emfim,  o  casamento  do  romancista  com  Mme 
Hanska,  na  Igreja  de  Santa  Barbara,  em  Beriditchef,  a 
pouca  distancia  de  Wierzchownia.  Por  fins  de  maio,  vieram 
para  Paris.  A  incompatibilidade  dos  temperamentos  dos 
dois  cônjuges  começou  logo  a  fazer-se  sentir. 

O  mal  cardíaco  de  Balzac  acentuou-se. 


1  O  nome  de  Balzac  foi  ainda  maior  no  estrangeiro  que  em 
França.  Passaram-lhe  pelas  mãos  rios  de  dinheiro.  Ganhou  cento  e 
cincoenta  mil  francos,  em  18+0;  vinte  e  cinco  mil.  em  1830;  cincoenta 
mil,  em  1834. 

Mas  também  as  dividas  se  sucediam,  sem  cessar.  E  as  despezas 
nfio  tinham  moderação.  Devia  quatorze  mil  francos,  em  1834:  duzen- 
tos mil,  em  1838:  cento  e  cincoenta  mil,  em  1841.  Em  três  anos,  em 
Ville-d'Avray,  consumia  cerca  de  cem  mil  francos. 

(Le  Bretou  — Oi.  cit.) 


HOXORÉ    DE    BALZAC  17 

Em  julho  e  agosto,  a  hidropisia  aumentou  assustado- 
ramente. 

Estava  irremediavelmente  perdido. 

Nacquart,  seu  antigo  medico  assistente,  não  abandonou 
o  enfermo,  até  o  ultimo  instante. 

Correm  duas  versões  dum  dialogo  havido  entre  Balzac, 
moribundo,  e  Nacquart. 

Lawton,  (oh.  cit.),  reputou  inverosimil  uma  delas, 
achando-a  muito  artificial.  Por  mim,  creio  ver  nela,  sob  o 
revestimento  literário,  um  fundo  de  verdade.  Balzac  podia 
não  ser  um  espontâneo,  mas  era  essencialmente  um  comu- 
nicativo. 

Lawton,  optando  pela  outra  versão  que  a  seguir  ex- 
porei, julgou  que  ele  fosse  mais  reservado  para  com 
o  medico,  e  portanto  mais  lacónico,  mais  fleumatico.  Ora 
Nacquart  era  mais  que  um  medico  para  Balzac,  era  um 
amigo,  era  talvez  mesmo  um  confidente. 

Segundo  a  versão  cuja  verosimilhança  foi  negada  por 
Lawton,  Balzac  perguntou  a  Nacquart  quanto  tempo  lhe 
restava  de  vida  e,  reconhecendo  que  o  interpelado  ficara 
perplexo,  instou,  advertindo-o  de  que  não  era  uma  criança 
e  de  que  desejava  deixar  testamento  ao  publico. 

Nacquart,  em  resposta,  interrogou-o  sobre  quanto 
tempo  pretendia,  para  o  effeito.  Balzac  afirmou  que  seis 
meses  lhe  bastavam  e  percebendo  que  era  querer  demais, 
declarou   que  seis  semanas  o  contentavam  já. 

Diante  da  mudez  consternada  de  Nacquart,  Balzac, 
exaltado,  caiu  mais  em  si,  penetrou  mais  na  inteligência 
da  sua  situação,  exclamando:  «Sou  então  um  homem 
morto? » 

Depois,  numa  obstinação  febril,  deteve-se  a  considerar 
que,  se  ao  menos  dispusesse  de  seis  dias,  durante  eles,  por 
um  esforço  supremo  de  vontade,  poderia  ainda  remodelar, 
aperfeiçoar  a  sua  criação,  injectando-lhe  mais  vida,  uma 
vida  imortal.  Aqui,  a  voz  velou-se-lhe,  tinha  o  rosto  trans- 
tornado, as  forças  desamparavnm-nn.  Nacquart  interveio 
e,  proferindo    breves   palavras,  libettou  Balzac  de  ilusões. 

Então,  augustiadissimo,  ele  atingiu  a  certeza  sobre  o 
o  tempo  de  vida  que  llie  restav;i,  não  mais  que  seis  horas. 


18  HONORÉ    DE    BALZAC 

Segundo  a  outra  versão,  Balzac,  tendo  interrogado 
Nacquart  sobre  o  seu  estado,  recebeu  como  resposta  que 
nenhuma  esperança  havia  de  o  salvar.  Após  uma  pausa, 
readquirindo  Balzac  a  serenidade,  voltou  a  interrogar 
Nacquart,  desta  vez  sobre  o  tempo  que  lhe  restava  de 
vida.  Nacquart,  disse-lhe,  de  pronto,  sem  evasivas,  a  ver- 
dade. E  Balzac  que  permaneceu  silencioso  por  curto 
espaço,  murmurou  então,  sem  o  propósito  de  replicar, 
como  se  falasse  consigo  mesmo :  «  Se  aqui  estivesse  Bian- 
chon,  estava  o  caso  resolvido,  ele  me  salvaria». 

Bianchon  foi  uma  das  figuras  que  Balzac  criou,  inte- 
ressante figura  de  medico,  muito  da  sua  simpatia.  Esta 
aliança  da  vida  ideal  á  vida  real,  efectuada  quase  ao  ex- 
pirar, é  um  testemunho  psicológico  valioso  que  nada  tem 
de  estranho. 

Em  outras  ocasiões,  Balzac  manifestou  a  tendência 
para  identificar,  por  um  impulso  natural,  alheio  á  vida  pra- 
tica, ordinária,  absorvido  no  mundo  ideal  da  sua  criação, 
a  ficção  e  a  realidade.  A  data  oficial  (e  a  que  indicam  con- 
temporâneos) do  falecimento  de  Balzac  é  a  de  18  de 
agosto.  De  Lovenjoul  (cit.  por  Lawton)  asseverou  ser  17  o 
dia. 

Balzac  foi  sepultado  no  Père  Lachaise,  a  21  de 
agosto. 


CAPITULO  II 
Obras-primas  de  Balzac 


Eugénie    Grandet;    Le    Père    Goriot;    Illusions    Perdues ; 
César  Birotteau;  Ursule  Mirouèt;  Modeste  Mignon. 

Eugénie  Grandet  é  justamente  reputado  um  dos  mais 
perfeitos  romances  de  Balzac.  O  romancista,  sem  desfa- 
lecimentos, de  que  proviriam  quebras,  de  interesse  ou 
técnicas,  na  execução  da  obra,  empregou  em  Eugénie 
Grandet  todo  o  poder  dos  seus  maravilhosos  recursos  de 
artista.  A  construção  do  romance  revela  bem  esse  aturado 
estudo  que  Balzac  dedicava  á  urdidura  do  entrecho. 

O  entrecho,  aqui,  como  normalmente,  é  todo  apre- 
sentado em  função  da  psicologia,  especialmente  da  de 
Grandet,  a  figura  preponderante,  a  figura  central,  cujos 
traços  exibidos  deixam  entrever  uma  alma  em  que  a  ava- 


1  A  lista  está,  manifestamente,  incompleta.  Lm  Recherche  de 
1'Absolu,  Un  Ménage  de  Garçon,  Une  Ténéhreuse  AJfaire,  La  Cousine 
Bette,  Le  Cousin  Pons  são  as  lacunas  mais  sensíveis.  Ainda  pode  no- 
tar-se  ter  sacrificado  La  Muse  du  Département,  Le  Cure  de  Village, 
Les  Paijuans,  etc.  Quis  limitar-me.  Os  romances  escolhidos  julgo-os 
suficientemente  representativos.  Eugénie  Grandet  e  César  Birotteau 
são,  no  meu  conceito,  as  maiores  das  obras-primas.  Le  Pére  Goriot  e 
Ulusions  Perdues  considero-as  mais  expressivamente  vivas  que  Ur- 
sule Mirouèt  e  Modeste  Mignon^  no  que  creio  nSo  poder  haver  discre- 
pâncias. Porque  inclui  estes  dois  últimos  romances  que,  com  vanta- 
gens, sob  determinados  pontos  de  vista,  seriam  substituídos  por  Un 


20  HO^roRÉ  de  balzao 

reza  tudo  condiciona,  mas  que  é  certamente  mais  com- 
plexa do  que,  de  ordinário,  se  pretende.  Esse  homem 
era  fundamentalmente  um  egoista.  A  estreiteza  da  vida 
provincial,  concorrendo  para  o  desenvolvimento  desse 
egoísmo,  canalizou-o  no  sentido  do  dinheiro,  tornou-o  o 
mais  grosseiro  possivel,  materializando-o.  Grandet,  nado 
e  criado  na  rude  escola  do  trabalho,  pelo  qual  o  proletário, 
mourejando  a  vida,  chega  raramente,  sem  especular,  a  obter 
mais  que  o  simples  pão  quotidiano,  não  tinha,  não  podia 
ter,  dada  a  estreiteza  do  seu  horizonte  intelectual,  aspira- 
ções largas.  Mas  possuia  energia  que,  posta  ao  serviço  da 
astúcia,  lhe  descobriu  o  caminho  da  felicidade  ou,  melhor, 
do  que  ele  reputava  a  felicidade. 

A  felicidade  paia  esse  homem  foi  sempre,  desde  que 
se  conheceu,  ter  dinheiro.  O  desejo  da  ganância  tornou-se 
ambição  e,  sob  a  forma  de  paixão,  imprimiu-lhe  esse 
cunho  de  soberania,  de  império,  inconfundíveis,  do  na- 
tural daqueles  que  pensam  e  agem,  impelidos  por  uma 
ideia  fixa,  forte  e  absorvente  bastante  para  senhorear 
completamente  um  ser  e  o  acompanhar  através  de  toda  a 
existência.  Casou  para  melhor  poder  agenciar  a  vida,  com 
a  amplitude  que  o  progresso  constante  dos  seus  negócios 
exigia. 

Antes,  tomara  ao  seu  serviço  uma  criada,  Nanon,  em 
condições  que  lhe  permitiram  fazer,  desde  logo,  da  pobre 
criatura  um  instrumento  cego  da  sua  vontade.  De  resto, 
era  dom  de  Grandet  o  colocar  todos  em  situação  subal- 
terna.   Mulher    e    filha,   entes    fracos    que    a    autoridade  de 


Ménage  de  Garçon,  La  Cousine  Bette,  Le  Cousin  Pons,  entre  outros? 
Primeiro  que  tudo,  não  sendo  obras  de  alta  psicologia,  s.ão  dois  ro- 
mances muito  bem  arquitectados,  isto  é,  muito  proporcionados, 
muito  equilibrados.  Depois,  são  dois  estudos  da  alma  feminino,  re- 
velada pelo  amor  sexual  puro.  A  Úrsula  e  a  Modesta  cabe  um  lugar 
distinto,  ao  lado  de  Eugenia  Grandet,  na  criação  de  Balzac.  Mas  não 
ha,  nem  em  Ursule  MironiH,  nem  em  Modeste  Mignou,  figura  compará- 
vel, em  intensidade  de  vida,  á  de  Filipe  Bridau,  em  Un  Ménai/e  de 
Garçon,  ás  de  Bette  e  de  Mme  Marneffe,  em  La  Coiixiue  Beftf.  ás  de 
Pons  c  de  Schmucke  ou  á  da  Cibot.  em  Le  Cousin  Pinis. 


HONORÉ    DE    BALZAC  21 

Grandet,  como  dono  da  casa,  impondo-se  escravizadora- 
mente,  reduzia  á  categoria  de  autómatos,  estavam  força- 
damente indicadas  para  ocupar  essa  desoladora  situação 
de  inferioridade. 

Aos  outros,  aos  que,  fora  da  familia,  com  Grandet 
conviviam,  o  scismarem  na  fortuna,  sempre  acrescentada, 
do    avaro,    dava-lhes    feitio    para   todas   as   subserviencias. 

As  duas  familias,  Des  Grassins  e  Cruchot,  faziam  a 
corte  a  Grandet  para  entrarem  na  posse  dos  seus  bens,  na 
pessoa  da  herdeira,  sua  filha.  Não  havia  outro  fito  nessas 
relações. 

Todavia,  apesar  dos  ardis  empregados,  Grandet  não 
se  deixava  lograr.  Não  lhe  escapavam  os  manejos  subtis 
duns  e  doutros. 

O  que,  pelo  romance,  se  pode  conhecer  do  meio  so- 
cial de  Saumur  é  restrito.  Sabe-se,  porém,  que  os  habitan- 
tes da  cidade,  os  negociantes,  o  povo,  se  respeitavam 
Grandet — -com  esse  respeito  ficticio,  todo  de  conveniên- 
cia, como  é  próprio  da  mesquinhez  da  vida,  nos  pequenos 
centros — não  o  estimavam,  com  certeza.  A  fama  duma 
economia  excessiva  que,  no  passadio  domestico,  roçava 
pela  sordidez,  opunha-se  á  simpatia. 

Quem  era  dedicado  a  Grandet? 

Em  primeiro  lugar,  Nanon,  a  serva,  uma  inconsciente 
quase,  sobre  a  qual  o  amo,  ao  admiti-la,  falsamente  ge- 
neroso, adquirira  logo  ascendente  enorme,  criando  jus  á 
gratidão. 

A  mulher  e  a  filha  do  avaro,  adivinhando  a  escuridade 
da  sua  alma,  embora  se  deixassem,  por  longo  tempo,  obce- 
car pela  rigida  influencia  avassaladora  de  Grandet,  —  foi 
preciso  que  viesse  Carlos,  o  sobrinho,  de  Paris,  para  que, 
bem  visivelmente,  se  assinalasse  a  perversa  dureza  do 
homem — ,  temiam-no,  mais  que  o  respeitavam,  e  respeita- 
vam-no  mais  que  o  estimavam. 

Espíritos  débeis  e  sem  cultura,  essas  duas  pobres 
senhoras  a  quem  a  sombria,  nostálgica  rua,  em  que  mora- 
vam, pareceria  alegre,  eram  duas  mártires,  acorrentadas,  re- 
signadamente, ao  despotismo  de  Grandet. 

Ha,  no  romance,  uma  passagem  que  documenta,  com 


22  HONORÉ    DE    BAl.ZAC 

toda  a  nitidez,  esse  estado  moral  de  mãi  e  filha,  para  com 
o  avaro. 

Na  manhã  seguinte  á  chegada  de  Carlos,  as  duas 
senhoras  puseram  a  mesa  para  o  almoço.  Eugenia,  a  filha, 
ordenou  á  serva  que  preparasse  café  bem  forte.  Mas  não  o 
havia,  em  quantidade  bastante.  Nanou,  sendo-lhe  dito  que 
o  fosse  comprar,  replicou  que  podia  ser  encontrada  pelo 
amo;  mas  acedeu  por  fim,  advei'tindo  que  toda  a  cidade 
saberia  dos  novos  gastos.  A  estas  palavras,  a  mãi  exclamou, 
dirigindo-se  á  filha:  «  —  Se  teu  pai  chega  a  perceber  algu- 
ma cousa,  é  capaz  de  nos  bater.»  Eugenia  respondeu: 
«  —  Pois  está  bem,  bata-nos  e  apanharemos  as  pancadas  de 
joelhos. > 

Na  noite  da  chegada  do  sobrinho,  começa  o  avaro  a 
revelar-se  mais  definidamente.  Até  então,  pressentia-se  ape- 
nas o  que  havia  de  profundamente  soes  no  caracter  do 
homem.  Os  Cruchot,  os  Des  Grassins  mesmo  poderiam  igno- 
rar uma  ou  outra  feição  do  seu  natural,  mas  isso  não  im- 
pedia que  vissem  suficientemente  claro,  precavendo-se  e 
competindo,  quanto  possível,  em  duplicidade,  com  G-randet. 
Para  os  outros,  o  avaro  era  uma  esfinge.  Para  a  mulher  e 
para  a  filha,  alguém  que  lhes  cumpria  estimar,  pelo  paren- 
tesco tão  intimo,  mas  que  oprimia  demasiado,  apesar  das 
escassas  compensações,  calculadamente  benévolas,  de  suze- 
rano  severo,  para  ser  estimado,  como  o  saberiam  esses 
meigos  e  puros  corações  de  mulher. 

O  trato  grosseiríssimo,  de  déspota,  adoptado,  logo  á 
entrada,  com  esse  pobre  mancebo  que,  com  o  cérebro 
repleto  de  ilusões  e  as  malas  de  artigos  de  toucador,  vinha, 
de  Paris,  sepultar-se  em  Saumur,  a  bestial  insensibilidade 
com  que  acolhe,  á  leitura  da  carta  do  irmão,  a  trágica 
noticia  que  este  lhe  dá,  da  sua  planeada  morte,  são  traços 
vigorosos,  a  acentuarem  a  fisionomia  moral  do  homem. 
Mais  que  as  desinteligencias  havidas  com  a  mulher  e  com 
a  filha,  por  terem,  no  almoço,  e  em  atenção  ao  hospede, 
saido  dos  hábitos  rigorosa  e  mesquinhamente  parcimoniosos 
da  casa,  onde  Grandet  punha  e  dispunha,  como  senhor 
absoluto,  imprime  cunho  á  psicologia  dessa  tenebrosa  indi- 
vidualidade  a   maneira  como   Carlos,  o  parisiense   dester- 


HONORÉ    DE    BALZAC  23 

rado,  é  feito  sabedor  da  sua  horrorosa  situação.  A  alma  de 
Carlos,  ainda  imperfeitamente  esboçada,  nas  manifestações 
de  etiqueta,  naturalmente  frivolas,  ocorridas  até  então, 
patenteia-se  abertamente,  em  comoventes  expansões,  nesse 
angustiosíssimo  transe.  Grandet,  nas  palavras  com  que  se 
exprime,  sustentando  a  sua  ideia  de  que  a  morte  nada  valia 
em  comparação  com  a  falência,  buscando  sugerir  ao  des- 
ditoso que  nula  era  a  sua  dor  de  filho,  considerada  a  par 
da  sua  dor  de  arruinado,  é  torpe,  é  ignóbil!  O  avaro  está 
todo  representado  nesta  sua  frase  que  profere,  a  propósito 
de  Carlos:  «...  Este  rapaz  não  serve  para  nada,  ocupa-se 
mais  dos  mortos  que  do  Dinheiro». 

A  fascinação  do  ouro  acumulado  em  segredo  e  em 
segredo  adorado,  no  silencio  da  noite,  entre  maquinações 
de  especulador,  empedernira-lhe  o  coração.  Temperamento 
frio,  fleumatico,  avesso  a  sentimentalismos,  todo  pondera- 
ção, reservas,  cálculos,  Grandet  não  se  fazia  amar  e  não 
era,  licito  se  torna  presumi-lo,  amado:  era  obedecido,  era 
servido,  sem  disvelos,  mas  com  grande  respeito,  com  infi- 
nita timidez. 

Amava  o  feroz  egoista  os  seus,  e  porventura  Nanon? 
Dessas  três  pobres  criaturas,  talvez  a  mulher  f(jsse  a  menos 
estimada.  Entre  Nanon  e  o  avaro  havia  afinidades:  a  criada 
viera  do  nada,  ganhara  um  pecúlio  que  era  a  inveja  das 
suas  iguais,  a  poder  de  braço.  Natureza  animal,  só  ela  se 
entendia  com  o  temivel  cão  que  guardava  a  casa,  de  noite. 
Eugenia  também  era  estimada,  e  muito  particularmente, 
por  Grandet.  O  amor  paternal,  neste  homem,  era,  porém, 
um   amor  siii  (jenerls.  O  avaro  amava  a  filha  a  seu  modo. 

A  sistemática  secura  de  Grandet,  tantas  vezes  áspera, 
ao  defrontar-se  com  a  filha,  tinha,  de  longe  a  longe,  solu- 
ções de  continuidade.  Excepções  destas  eram  espantosas 
vitorias.  E  Eugenia  tinha  o  sentimento  intimo  desse  poder 
e  dele  usou,  com  ousadia  notável,  colocando-se  ao  lado  do 
primo,  por  amor  e  por  caridade,  contra  seu  pai. 

Ha,  entre  outros,  que,  convenientemente  observados 
e  interpretados,  levarão  a  conclusões  quanto  possível  segu- 
ras, nesta  delicada  matéria  de  analise  de  espíritos,  um 
passo,   no    romance,    importantíssimo    para  julgar  da  sen- 


24  HONORÉ    DE    BALZAC 

sibilidade  de  Grandet,  posto  em  vibração  o  seu  amor 
de  pai. 

Carlos  continua  chorando,  no  quarto,  de  bruços  sobre 
a  cama,  e  o  seu  pranto,  os  seus  soluços  chegam  a  ouvir-se 
por  toda  aquela  casa  silenciosa  e  lúgubre.  O  avaro  que 
fora  tratar  de  negócios,  regressa,  regosijado  com  um  ex- 
celente êxito.  A  filha  irrita-o,  advertindo-o  de  que  está  em 
condirões  de  proteger  Carlos  e  recebe,  em  resposta,  áspera 
censura.  De  súbito,  Grandet  lembra-se  do  sobrinho,  per- 
gunta por  ele.  Eugenia  replica-lhe:  «  —  Está  chorando  por 
seu  pai>.  Grandet  cala-se,  não  sabendo  que  dizer,  dá  uma 
ou  duas  voltas  na  sala  e  sai.  Ora  o  avaro  não  emudecia 
facilmente,  cônscio  da  sua  autoridade,  e  arrogando-se 
aquela  superioridade  de  quem  sempre  venceu  na  vidn,  e  só 
gaguejava  quando  lhe  convinha  fazer  falar  os  interlocu- 
tores. A  gaguez  era  um  ardil  engenhosissimo  do  homem 
para  arrancar  palavras  aos  outros,  como  se  observa  naquela 
curiosa  situação,  em  que  Grandet,  tendo  convidado  a  jan- 
tar o  notário  Cruchot  e  seu  sobrinho  o  presidente  de  Bon- 
fons,  com  a  intenção  secreta  de  saber  o  que  melhor  lhe 
conviria  efectuar  para  dar  solução  que  lhe  fosse  vantajosa, 
ao  desastre  financeiro  do  irmão  —  e  não  estava  empenhada 
nesta  pretensão  uma  só  parcela  de  amor  fraternal,  mas 
exclusivamente  o  impeliam  propósitos  vaidosos  e  cruéis  de 
ludibriar,  de  esmagar  parisienses  — ,  consegue,  servindo-se 
de  consumada  argúcia,  manejar,  muito  a  seu  grado,  o  pre- 
sidente que,  não  percebendo  o  jogo,  lhe  forneceu,  sem 
voto  expresso  do  avaro  nesse  sentido,  todas  as  informações, 
ainda  as  mais  minuciosas,  de  que  poderia  carecer. 

Mas,  voltando  aos  assomos  de  paternal  sentimento, 
despertados  pela  resposta  apontada  da  filha:  «  Está  cho- 
rando por  seu  pai>,  de  presumir  é  que  tais  palavras  se  lhe 
gravassem  no  espirito,  o  que  logicamente  é  licito  concluir 
da  maneira  como  se  dirigiu,  nessa  noite,  ao  sobrinho  que 
ainda  chorava  a  sua  imensa  dor  de  órfão.  Grandet  já  não 
estranha  a  abundância  das  lagrimas  e  exclama,  em  justifi- 
cação do  procedimento  do  pobre  rapaz:  «Um  pai  sempre 
é  um  pai». 

Eugenia   tinha   um  pequeno   tesouro,   produto  de  da- 


HOXORÉ    DE    BALZAC  25 

divas  de  parentes  e  do  próprio  pai.  Conhecia  este  a  exis- 
tência do  tesouro  e,  em  determinadas  ocasiões,  fazia  que  a 
filha  lho  mostrasse.  O  astato  velho  aproveitava  tais  en- 
sejes, para  incutir  em  Eugenia  o  amor  pelas  peças  d'ouro, 
esclarecendo-a  sobre  todas  as  particularidades  que  ates- 
tavam a  sua  fina  e  rara  qualidade.  Essa  reduzida  fortuna, 
todos  os  bens  da  joven,  ascendia,  ainda  assim,  a  cerca  de 
seis  mil  francos.  Não  o  sabia  ela,  ao  certo;  os  seus  haveres 
foram  contados,  quando  resolveu  minorar  a  má  sorte  de 
Carlos,  o  primo  órfão,  dando-lhos,  como  de  facto.  A  filha, 
pelo  visto,  ainda  era  susceptível  de  ter  dinheiro  guardado, 
debaixo  de  mão,  á  chave  talvez. 

A  mai,  não.  O  que  recebia,  por  vezes,  da  falsa  gene- 
rosidade do  avaro,  tinha  de  o  sacrificar,  pouco  a  pouco,  ás 
suas  exigências,  sacrificio  que  a  pobre  senhora  fazia  gosto- 
samente, pois  que,  dessa  arte,  comprava  a  sua  felicidade. 
Quando  Grandet,  moeda  a  moeda,  reclamando  dinheiro 
para  gastos  e  pagamentos,  empregava  o  que  dera,  sem 
mexer  no  que  possuia,  podia  sua  mulher  contar  com  uns 
quinze  dias  de  paz. 

Era,  á  falta  de  estima,  considerada,  ao  menos,  a  des- 
ditosa? 

Tudo  leva  a  crer  que  o  era.  O  marido  que  com  tanta 
dureza  a  tratava  e  dela  conseguira  fazer  um  ente  sem 
vontade  própria,  tinha  confiança  bastante  nela  para  deixar 
a  filha,  entregue  á  sua  vigilância,  junto  do  primo,  emquanto 
tinha  de  andar  por  fora,  ocupado  nos  seus  negócios.  Ele 
que  curava  das  cousas  minimas  da  casa,  olhando  por  tudo 
com  o  autoritarismo  de  chefe  supremo,  confiava  bastante 
na  mulher,  para  lhe  não  exprimir  ordens,  no  sentido  de  tal 
vigilância.  Com  a  Nanon,  a  serva  rude,  mas  de  sentimentos 
sãos,  ha  mais  duma  situação,  em  que  Grandet,  esse  tempe- 
ramento seco  e  enregelado,  se  expande,  em  rasgos  de  pito- 
resca bonhomia:  ela  era  o  primeiro  ministro  daquele  mo- 
narca. Com  a  consorte,  a  rigidez  do  trato  era  inquebran- 
tavelmente  mantida. 

A  bondade  extrema  da  mãi  afirmava-se  na  sua  re- 
signação de  mártir  que  a  religião  fortalecia  para  todas  as 
dores. 


26  HONORÉ    DE    HALZAC 

Desconhecedora,  como  ela,  do  mundo,  Eugenia  deixa-se 
invadir  pelo  amor  e  revela,  por  ele  impulsionada,  todos 
os  primores  da  sua  alma  delicada  e  cândida.  Entrega-se 
ao  seu  piedoso  papel  de  mitigar  o  sofrimento  pungente 
do  primo,  tão  devotadamente  que  chega,  por  vezes,  quase 
a  comprometer-se.  O  seu  sentimento  era  purissimo,  tão 
puro  que  chegou  a  santificar  o  amor  de  Carlos,  não 
obstante  residir,  no  âmago  da  alma  deste,  o  egoísmo,  per- 
versão latente,  resultante  da  sua  vida  muito  livre  e  re- 
pleta, na  capital.  Mas — ilusão  que  provinha  do  transe 
por  que  passava — o  parisiense,  numa  idade  ainda  inexpe- 
riente, com  os  seus  arrebatamentos  de  sensibilidade,  inspi- 
rava amplamente  confiança.  De  resto,  Eugenia  era  boa 
demais  para  desconfiar  de  Carlos.  Depois,  amava  profun- 
damente e  sentia-se  amada. 

O  avaro  não  transmitira  á  filha  aquelas  suas  ten- 
dências de  caracter,  de  dissimulação,  pérfidas,  desleais.  E 
ver  como  ele  logra  fazer  crer  á  mulher,  á  filha,  ao  sobrinho, 
á  criada,  certamente,  —  e  não  digo  aos  seus  pseudo-amigos, 
das  familias  Cruchot  e  Des  Grassins,  porque  esses,  ainda 
que  estranhos,  conheciam-no  melhor  —  que  intervinha  no 
caso  da  falência  do  irmão,  por  presar  o  seu  nome  e  por  o 
moverem  desejos  de  reparar,  compassivamente,  a  desgraça, 
no  seio  da  sua  familia.  Entretanto,  três  dias  após  a  partida 
do  banqueiro  Des  Grassins,  a  que  dera  poderes  de  seu 
agente  de  negócios,  Grandet  leva  o  sobrinho  ao  tribunal 
para  assinar  uma  declaração  de  renuncia  á  herança  do 
pai!  Isto  não  era,  porém,  suficiente  para  avolumar  sus- 
peitas, naquelas  simples  criaturas,  nimiamente  crédulas, 
apesar  de  tudo,  na  probidade  do  avaro.  Num  estudo  critico 
sobre  a  organização  psicológica  do  protagonista,  seria 
imperdoável  deixar  de  frisar,  porque  estigmatizam,  com 
vincos  indeléveis,  essa  personalidade,  as  condições  em  que 
se  oferece  para  avaliar  e  se  dispõe  a  comprar  as  jóias  do 
sobrinho  e  ainda  a  maneira  como  constata  que  a  mulher  e  a 
filha  tinham  sido  presenteadas  por  Carlos,  o  que  lhe  serve 
de  fundamento  para  aceitar  a  oferta  que,  a  seu  turno,  lhe 
é  feita. 

Mas   ha,   além  do  exposto,  alguma  cousa   de  intensa- 


HOXORÉ    DE    BALZAC  27 

mente  característico  que  deve  aceatiiar-se,  em  especial: 
deslumbrado  pelo  ouro  que  lhe  vinha  do  órfão,  Grandet 
que  pesava  as  palavras,  confessa-lhe  que,  segundo  a  sua 
avaliação  das  jóias,  devia  a  compra  resultar-lhe  ainda  lu- 
crativa, pelo  que  determinava  pagar-lhe  a  passagem  por 
inteiro.  Quanto  ganharia  G-randet  com  Carlos?  E  de  pre- 
sumir que,  mais  uma  vez,  o  avaro  se  fazia  velhacamente 
generoso,  precisamente  á  custa  daqueles  sobre  quem  pa- 
recia recair  o  beneficio. 

Balzac  —  não  é  nunca  ocioso  salientá-lo  —  com  as  pa- 
lavras que  põe  na  boca  das  figuras,  ao  mesmo  passo  que 
define  situações,  define  almas,  muito  principalmente. 

Tomara  Carlos  lugar  na  diligencia  de  Nantes,  tendo 
ouvido  de  Grandet  que  o  beijara,  ardilosa  declaração  sobre 
a  salvação  da  honra  de  seu  pai,  declaração  que  o  comoveu 
a  ponto  de  o  fazer  chorar  de  reconhecimento,  banhando  de 
lagrimas  as  faces  do  velho. 

A  diligencia  partiu  e  já  mal  se  distinguia  o  seu  rodar, 
quando  o  avaro  proferiu  as  seguintes  palavras  que  chega- 
ram só  aos  ouvidos  do  notário  Cruchot,  porque  felizmente 
Euofenia  e  a  mãi  estavam  a  distancia  e  acenavam  com  os 
lenços:  «Boa  viagem !> 

A  exclamação  resume  todos  os  seus  sentimentos  para 
com  o  sobrinho  que  ia,  á  aventura,  desamparado,  em  busca 
de  fortuna,  para  as  índias. 

Ao  deixar  de  ver  agitar-se  o  lenço  de  Carlos,  também 
Eugenia  profere  palavras  que  são  igualmente,  como  Taine 
se  expressava,  resumos  de  abismos,  sob  o  ponto  de  vista 
psicológico : 

—  «  Minha  mãi,  eu  queria  ter  por  ura  momento  o  poder 
de  Deus!» 

A  astúcia  de  Grandet  revela-se  exuberantemente  na 
liquidação  das  contas  com  os  credores  do  irmão.  Fê-los 
esperar  cinco  anos,  tendo-lhes,  de  começo,  dado  uma  com- 
pensação ligeira.  Adiando  foi,  depois,  com  subterfúgios,  a 
solução  do  caso.  Reconhecendo  que  os  credores  estavam 
desvantajosamente  colocados  e  que  poderia  desdenhar  das 
suas  instancias  e  reclamações,  ria-se,  por  fim,  deles  e  dizia, 
em  ar  zombeteiro,  de  cáustica  ironia:  «Estes  parisienses...» 


28 


HONORE    DE    BALZAC 


Estava  conseguido  todo  o  seu  fim  e  mais  um  bom  ne- 
gocio vinha  juntar-se  ás  suas  constantes  especulações  finan- 
ceiras, aumentando-lhe  a  enorme  fortuna. 

O  acume  do  interesse  do  enredo,  o  ponto  em  que  a 
acção  atinge  a  sua  máxima  intensidade  dramática,  corres- 
ponde àquela  fatal  ocorrência  do  dia  de  Ano  Bom,  prevista 
pela  mãi  e  pela  filha,  di?s  antes,  tarde  demasiado  para  que 
a  pudessem  evitar.  Foi  o  caso  que,  como  era  seu  costume, 
Grandet,  excelentemente  humorado,  nesse  dia,  graças  a 
especulações  felizes,  manifestou  á  filha  o  desejo  de  ver  o 
seu  pequeno  tesouro,  ampliado,  por  ser  o  primeiro  do  ano, 
com  uma  moeda  d'ouro. 

Eugenia  consegue  que  se  almoce,  antes  de  mais  nada. 
Depois,  insistindo  o  velho  que  confessa  não  possuir  ouro 
algum  em  casa  e  ostenta  abertamente  a  sua  sede  de  ouro, 
a  filha,  tendo  avançado  para  a  porta,  volta-se  com  desas- 
sombro, e,  sem  titubear,  ousadamente,  informa-o,  em  poucas 
palavras,  de  que  já  não  tem  o  seu  ouro.  Acende-se  a  cólera 
de  Grandet,  reiterando  a  filha  a  negativa.  É  então  que  a 
pobre  mãi  que  assistia  á  sceua,  é  acometida  pelo  mal  que, 
prostrando-a  no  leito  imediatamente,  a  levará,  dentro  de 
meses,  á  cova. 

A  discussão  entre  pai  e  filha  continua,  momentos  vol- 
vidos. 

Eugenia,  porfiando  o  pai  em  querer  saber  qual  o  des- 
tino do  dinheiro,  conserva-se  impenetrável,  O  avaro  chega 
a  dizer  á  filha  que  ela  abusa  da  amizade  que  sabe  votar-lhe. 
Não  obtendo  ser  esclarecido,  manda  á  filha  que  se  encerre 
no  seu  quarto,  donde  não  deverá  sair.  Ficará  a  pão  e  agua. 
Esse  o  castigo,  emquanto  se  não  resolva  a  dizer  tudo  a 
seu  pai.  Eugenia,  chorando,  vai  ter  com  a  mãi.  Grandet 
retira-se  para  o  jardim,  mas,  de  súbito,  lembra-se  de  que 
poderá  ir  descobrir  a  filha  em  desobediência  ás  suas  ordens 
terminantes,  corre  ao  quarto  de  sua  mulher  e,  vendo-a  a 
acariciar  Eugenia,  tem  nova  explosão  de  rancor.  As  pala- 
vras da  enferma  ao  marido,  vibrantes  de  angustia,  implo- 
rando-lhe  piedade,  comoveriam  outro  coração  que  não  fosse 
o  de  Grandet.  Este  afirma  perentoriamente  a  sua  inaba- 
lável decisão. 


HOXORÉ    DE    BALZAC  29 

A  dureza  do  avaro  iiiimentou  nos  tempos  que  se  se- 
guiram a  este  terrível  acontecimento.  Mas,  circunstancia 
curiosa,  reveladora  de  perturbações  no  seu  estado  d'alma, 
o  velho  deixou  de  gaguejar  e,  por  vezes,  errava  as  contas! 
A  sua  consideração  pela  consorte,  testemunho  certamente 
de  simpatia,  parece  acentuar-se.  Dispensa-lhe  mais  solicitas 
atenções. 

A  desditosa  enferma  que  nunca  mais  abandonou  o 
leito,  ia-se  santificando,  com  o  seu  profundo  sentimento 
religioso,  pelo  sofrimento. 

A  mártir,  no  auge  da  sua  dor,  exaltada  a  sua  unção 
de  devota  fervorosa,  transfigurara-se,  resplandecia-lhe  a 
alma  angelical  no  rosto.  Por  isso,  e  achando-se,  com  fre- 
quência, na  presença  dela,  o  avaro,  sob  aquele  poderoso 
influxo,  banhado  por  aquela  irradiação  de  bondade  extre- 
ma, quase  divina,  deixava-se,  lentamente,  quase  imperce- 
ptivelmente,  sem  se  confranger,  penetrar,  ainda  que  á  su- 
perfície. Mas  se,  no  âmago,  a  alma,  num  ou  noutro  ponto 
secundário,  se  modificava,  no  exterior,  o  procedimento  era 
o  mesmo,  invariavelmente,  quanto  á  irrevogável  determi- 
nação tomada  sobre  a  filha,  e,  para  manter  a  sua  autori- 
dade, ou  tergiversava  ou  se  cerrava  no  mais  completo 
mutismo,  ante  as  suplicas  da  desgraçada  mãi. 

O  notário  Cruchot,  solicitado  por  esta  para  intervir 
e  levar  Grandet  á  reconciliação,  prova,  pela  maneira  como 
se  dirige  ao  velho  e  orienta  a  conversação,  que  o  conhecia 
intimamente. 

O  avaro,  note-se  em  seu  abono,  tomara  o  habito,  ulti- 
mamente, de  passar  certa  hora  da  manhã,  emquanto  a  filha 
se  penteava,  sentado  ou  percorrendo  o  jardim  e  ocultando- 
se  com  frondosa  arvore,  na  intenção  que  realizava,  de  a 
ver  demoradamente.  Como  logrou  Cruchot  demovê-lo,  de 
vez,  da  sua  renitente  atitude  para  com  Eugenia?  Incutindo- 
Ihe  receios  de  possiveis  complicações,  caso  a  filha  se  lem- 
brasse, por  morte  da  mãi,  de,  como  maior,  requerer  a  sua 
parte,  na  sua  qualidade  de  herdeira.  O  astuto  notário  sabia 
bem  que  o  seu  quase  octogenário  interlocutor  tremia  só 
de  pensar  na  possibilidade  de  ser  despojado  do  seu 
ouro. 


30  HONORÉ    DE    BALZAC 

Resolve,  pois,  fazer  a  paz,  concedendo  o  perdão  a  Eu- 
genia. 

A  scena  da  reconciliação,  comedia,  e  comedia  repii- 
gnantissima,  desempenhada,  claro,  por  Grandet,  o  único  na 
casa  senhor  de  recursos  de  actor  consumado,  é  mais  uma 
pincelada  do  artista  a  avivar  o  moral  do  avaro,  corrompido, 
até  a  medula,  pela  sordidez  da  sua  anciã  insaciável  de  ouro. 

Grandet  chega  a  hesitar,  nesses  dramáticos  momentos 
que  precederam  a  reconciliação,  entre  a  filha,  disposta  a 
suicidar-se,  e  a  valiosa  jóia  que  Carlos  confiara,  em  depo- 
sito, a  Eugenia. 

O  seu  alvoroço,  ao  divisar  essa  jóia,  os  seus  esforços, 
de  vario  género,  para  a  possuir  são  traços  psicológicos  do 
máximo  relevo. 

As  vilanias,  praticadas  pelo  avaro  ignóbil,  em  lances 
tais,  de  mágoa  e  desespero  infinitos,  atestam  á  evidencia 
que  as  suas  faculdades,  em  estado  já  anormal,  eram,  então, 
mais  acentuadamente  que  nunca,  as  de  um  maniaco  peri- 
goso, a  um  passo  de  todas  as  infâmias.  Para  salvar  a  vida 
da  mulher,  Grandet,  tantas  vezes  milionário,  declaia  ao 
medico  estar  disposto  a  gastar  até  duzentos  francos ! 

Outros  traços,  de  sobejo  frisantes,  completam  a  cria- 
ção assombrosa  da  individualidade  do  protagonista,  além 
dos  que,  menos  significativos,  pois  o  velho  cairá  na  quase 
demência,  se  amontoam  ao  aproximar-se  mais  a  morte:  a 
maneira  como  leva  a  filha  a  abdicar  dos  seus  direitos  a 
herdar  da  mãi  e  ainda  aquela  por  que  satisfaz  os  mesqui- 
nhos compromissos,  tomados  para  com  Eugenia. 

A  concepção  do  romancista,  apreendendo,  com  lucidez 
extraordinária,  o  modo  de  ser  essencial  duma  sociedade, 
de  que  traduz,  revelando  um  assombroso  poder  expressivo, 
a  complexa  vida,  ostenta-se,  em  Le  Père  Goriof,  soberana 
de  relevo  e  de  côr. 

Sente-se  que  são  sobrantes  os  recursos  do  artista. 

Ha,  em  Le  Père  Goriot,  duas  figuras,  duas  grandes 
criações  psicológicas,  que  avultam  sobre  todas  as  outras, 
tornando-se,  logo  de  começo,  o  centro  do  interesse:  Goriot 
e  Eugénio  de  Rastignac. 


HOXORÉ    DE    BALZAC  31 

Na  construção  da  figura  de  Goriot,  Balzac  adoptou  o 
processo  analítico,  acrescentando,  pouco  a  pouco,  traços 
que  vão  retocando,  precisando,  o  que  principiara  por  esbo- 
çar-se. 

Processo  análogo  empregou  com  Eugénio  de  B-astignac. 

Mas,  note-se,  Goriot,  conquanto  deva  reputar-se  a 
figura  preponderante,  afirma-se  muito  mais  lentamente, 
como  individualidade,  que  Rastignac.  Os  traços  sucedem- 
se  mais  espaçosos  e  tão  espaçosos  que  pode  julgar-se  que 
a  psicologia  de  Rastignac  é  quase  organizada  á  custa  da 
de  Goriot. 

Friso,  aqui,  mais  uma  vez,  que  as  situações  —  como 
tudo,  de  resto,  no  romance  de  Balzac  —  se  estabelecem  e 
se  definem  em  função  da  psicologia  das  figuras.  O  roman- 
cista é,  muito  principalmente,  psicólogo.  Pois  bem!  Dir-se- 
ia  que  as  situações,  em  Le  Père  Goriot,  mais  se  dispõem  de 
molde  a  salientar  a  psicologia  de  Rastignac  que  a  do  pro- 
tagonista '.  Até  meio  do  romance,  as  tentativas  do  ambi- 
cioso moço,  para  vencer  caminho  na  vida,  desequilibram  a 
acção  que  deveria  concentrar-se  mais,  creio,  no  sentido 
de  Goriot.  Por  largo  tempo,  mal  se  deixam  adivinhar  os 
afectuosos  tesouros  da  sua  alma  de  pai,  nessa  passividade 
apática  permanente  com  que  suporta  o  escarneo  dos  comen- 
sais da  pensão  Vauquer,  humilhação  pertinaz  e  odiosa. 
Mas  Goriot,  tal  como  se  apresenta,  era  assim  mesmo,  des- 
prendido de  si,  retraído,  pouco  comunicativo,  absorvido  no 
seu  imenso  amor  de  pai  e  nas  preocupações  constantes  que 
esse  amor  criava  ao  seu  espirito. 

Com  o  aparecimento  de  Delfina  de  Nucingen,  a  filha 
de  Goriot  mais  estimável,  por  mais  presar  o  pai,  ainda  que 
friamente,  sob  a  influencia  do  egoismo  —  Mme  de  Restaud, 
a  outra  filha,  é,  por  seus  desregramentos  e  turbulências  a 
causa  da  morte  do  desditoso  ancião,  perante  o  qual  se  pe- 
nitencia, porém  tarde,  quando  ele,  moribundo,  perdera  já 
a  consciência — ,  Rastignac  cede  uma  parcela  do  seu  lugar. 


'    Faguct  (Dix-neufihue  siècle,  estudo  sobre  Balzac,  1887,  e  Bal- 
zac, 1913)  entendeu  e  sustentou  precisamente  o  contrario. 


32  HONORÉ    DE    BALZAC 

subalterniza-se  um  tanto,  sem  que  deixe,  por  íssíj,  de  pren- 
der sempre  vivamente  a  atenção,  não  afrouxando  sequer  o 
interesse  que  desperta. 

Delfina  é,  entre  as  figuras  femininas,  não  excluindo, 
de  nenhum  modo,  a  proprietária  da  pensão,  uma  das  que 
mereceram  a  Balzac  mais  detido  estudo.  De  Mme  de  Res- 
taud  são  relativamente  mais  sumários  os  traços,  se  bem 
que,  sem  duvida,  o  seu  caracter  fogoso  de  mulher  sensual, 
avessa  a  sentimentos  de  filha,  de  esposa  e,  com  toda  a 
probabilidade,  de  mãi,  se  acentue  distintamente  nas  situa- 
ções em  que  se  defronta  com  o  pai. 

Era  um  só  o  fito  de  Eugénio,  um  só  o  móbil  de  todos 
os  seus  actos,  a  ocupação  de  todos  os  seus  pensamentos : 
um  lugar  de  destaque  no  seio  da  alta  sociedade  de  Paris. 

O  primeiro  sintoma  de  perversão  moral  de  Eugénio 
declara-se  naquele  transe,  em  (.|ue  escreve,  pedindo  dinhei- 
ro, á  mãi,  já  por  ele  tão  sacrificada  e  em  luta,  ela,  marido 
6  quatro  filhos,  com  grandes  dificuldades.  Recebe,  em  res- 
posta, uma  carta  preciosa  de  cordialíssima  simplicidade, 
espelho  dos  mais  puros  sentimentos,  carta  de  tão  impagá- 
vel sabor  familiar  como  a  que  lhe  foi,  simultaneamente, 
dirigida  pela  irmã.  São  dois  modelos  epistolograficos,  com 
o  valor  de  vivos  documentos  psicológicos. 

Eugénio  amava  os  seus.  Não  pôde  certamente  consi- 
derar-se  o  tipo  do  bom  filho,  do  bom  irmão,  mas,  para  que 
não  deva  ter-se  por  insensível  ás  naturais  evocações  dum 
recente  passado,  vivido  no  afectuoso  esteio  familiar,  onde 
fora  criado,  bastam  as  lagrimas  que  derramou  ao  terminar 
a  leitura  da  tocante  carta  da  mãi,  bastam  os  seus  remor- 
sos, ainda  que  passageiros,  tão  fortes  que  o  dispuseram, 
embora  momentaneamente,  a  renunciar  ao  dinheiro  que, 
em  satisfação  do  seu  pedido,  lhe  remetiam.  E  depois,  no- 
tamo-lo,—  o  que  evidencia  uma  intenção  permanente, — 
alimentando  o  seu  ideal  de  felicidade,  com  o  sentimento 
consciente  do  seu  dever  e  da  sua  responsabilidade  de  re- 
presentante mais  válido  da  familia,  como  manifesta,  espe- 
rançadamente,  pela  resolução,  tantas  vezes  confessada,  de 
vir  a  ser,  um  dia  próximo,  na  posse  da  apetecida  felicidade, 
o  sustentáculo  dos  seus  a  que  devia  tão  carinh(^sas  provas 


HOXORÉ    DE    BALZAC  33 

de  dedicação.  A  aspiração  era  efervescente  demais  para  lhe 
permitir  o  proceder  com  a  calma  reflectida  que  não  exclue, 
por  forma  alguma,  a  inquebrantável  tenacidade,  dum  com- 
batente que  vencerá  ou  morrerá  na  luta. 

Eugénio    esteve   a    um    passo    da    perda    da  liberdade 
pessoa],  cúmplice,  mau  grado  seu,  dum  crime. 

CoUin,  o  terrivel  e  fascinador  presidiário,  disfarçado 
em  pacifico  burguês  sob  o  nome  de  Vautrin,  arrastou-o  a 
uma  situação  comprometedora  em  extremo,  por  interesse  de 
ambos  e  principalmente  de  Eugénio,  para  o  qual  o  impelia 
uma  grande  simpatia,  demonstrada,  sobretudo,  quando,  ao 
abandonar  a  pensão  Vauquer,  algemado,  entre  a  escolta,  se 
despediu  do  mancebo.  Essa  despedida,  por  sua  natureza  e 
pela  solenidade  do  momento,  oferece  qualquer  cousa  de 
trágico,  CoUin,  ou  Vautrin,  sempre  irónico,  usando  dessa 
zombaria  sobranceira  e  compassiva  que  amesquinha,  es- 
maga o  adversário  e  infunde  receosa  admiração  nos  assis- 
tentes, aturdidos  e  dominados  pela  afirmação  exuberante 
da  força,  da  energia,  morais  ou  fisicas,  pôs  a  descoberto  os 
recôncavos  da  sua  alma,  mais  ainda  que  nas  suas  extensas 
praticas,  estonteantes  e  avassaladoras,  a  Eugénio,  na  ati- 
tude terrivelmente  desdenhosa  que  manteve  para  com  os 
seus  captores,  logo  que,  reconhecendo  impossivel  a  fuga. 
entendeu  vingança  asada  o  brincar  com  as  autoridades. 
Todas  as  suas  palavras  reçumam  fel:  o  escarneo  faz  estre- 
mecer, gela  de  temor  e  de  pasmo.  A  rudeza  é  de  gigante 
diante  de  anões.  Avulta,  bem  caracteristica,  a  feição  ro- 
mântica da  figura.  As  duas  lacónicas  frases,  dirigidas,  em 
tal  conjuntura,  por  Vautrin  a  Eugénio,  recordando  meios 
de  felicidade  imediata  que  lhe  preparara,  na  qualidade  de 
bandido  muito  amigo,  foram  proferidas  com  tristeza.  Nesse 
adeus,  aparentemente  singelo,  mas  de  tão  profundo  signi- 
ficado, vibrou  o  coração,  sinistramente  afectuoso,  do  presi- 
diário. 

Eugénio,  em  verdade,  correra  grave  risco  do  soçobrar. 

Salvou-se,  porém,  salvou-o  o  que  nele  perdurou 
sempre,  através  de  todos  os  desesperos,  por  desilusões 
amaríssimas,  como  através  de  todos  os  entusiasmos,  na 
embriaguez  efémera  das  ilusões  juvenis:  os  princípios  da  sã 


34  HONORÉ    DK    BALZAC 

educação   familiar   que   recebera,    corroborando    um   fundo 
herdado  de  bondade  e  de  nobreza  moral. 

Pressentindo-se  perdido  no  tumultuar  da  vida  pari- 
siense, recorre  ao  patrocinio  de  Mme  de  Beauséant  —  uma 
senhora  da  alta  sociedade,  ainda  sua  parenta, —  com  a  ancie- 
dade  do  naufrago,  lançando  mão  duma  tábua  que  se  lhe 
depara,  na  confusão  das  ondas  revoltas.  Percebe  que  a  via 
do  amor  que  lhe  é  particularmente  sedutora,  apresenta 
vantagens  importantes  ao  ambicioso  que  a  saiba  percorrer, 
com  sobeja  audácia,  mas  poucos  escrúpulos,  e  ei-lo  arre- 
messando-se  ao  encontro  de  Mme  de  Restaud,  e,  tendo 
falhado,  por  inépcia,  a  tentativa,  não  descoroçoa,  não  des- 
cança,  emquanto  não  consegue  conquistar  uma  sucessora 
condigna,  Delfina  de  Nucingen. 

Inicia-se,  então,  dentro  do  romance,  um  interessante 
romance  erótico,  com  romanescas  veemencias. 

Eugénio  transige,  cede,  com  frequência,  recalcando 
secretamente  os  bons  impulsos  da  sua  alma;  deixa  que  a 
corrupção  o  invada,  sem  que  obtenha  embargá-la  com  os 
seus  débeis  alvoroços  de  repugnância.  E  uma  resistência 
passiva  a  sua;  limita-se  á  defensiva,  não  ataca,  por  falta 
de  coragem,  porque  atacar  seria  comprometer  seriamente, 
pôr  em  perigo  o  êxito  dos  seus  interesses,  tão  estreita- 
mente egoistas.  A  psicologia  de  Eugénio  de  Rastignac 
torna-se  precisamente  curiosa  por  esse  embate  constante 
e  impetuoso  de  sentimentos  e  de  paixões. 

A  solicitude  com  que  tratou  Goriot,  enfermo,  o  disvelo 
com  que  olhou  pelo  moribundo  e  pelo  cadáver,  exaltam 
Eugénio,  demonstram  que  nele  subsistiam,  apesar  de  tudo, 
preciosos  dons  de  humanidade  e  de  religiosa  piedade. 
Amando  entranhadamente  Delfina,  nem  por  isso  deixa  de 
fazer  a  justiça  de  a  censurar,  no  intimo  d'alma,  pelo  seu 
procedimento  para  com  o  desventurado  pai.  Verga-se  pe- 
rante ela,  impotente  para  lhe  exprobrar,  em  rosto,  a  cri- 
minosa indiferença  a  que  vota  o  lastimável  Goriot,  não 
obstante  a  consciência  lhe  bradar  contra  o  atroz  papel  que 
Delfina,  a  frio,  sem  hesitações,  sem  um  rebate  de  arrepen- 
dimento, se  compraz  em  desempenhar. 

É  um  fraco,  cuja  única  desculpa  está  em  conservar  e 


HONORÉ    DE    BALZAC  3Õ 

em  manifestar  oportunamente,  aliando-se,  conciliando-se 
com  as  suas  tendências  egoistas,  vestigios  apreciáveis  de 
altruismo,  uma  parcela  vivaz  de  coração. 

«  O  seu  sentimento  irreflectido  elevava-o  até  o  sublime 
da  natureza  canina  »  diz  Balzac  acerca  de  Goriot.  Noutro 
lugar,  classifica-o  de  «estúpido  e  grosseiro». 

A  apresentação,  feita  assim,  não  é  de  molde  a  dis- 
pôr-nos  á  veneração  por  essa  figura  esplendida  de  pai. 

De  acordo  que  a  sua  inteligência  fosse  escassa.  Mas 
esse  imenso  afecto  que  dedicava  ás  filhas,  toda  a  sua  ale- 
gria, todo  o  seu  enlevo,  seria,  exactamente,  como  o  do  cão 
pelo  dono? 

De  feito,  obcecado  andava  sempre  por  esse  amor  absor- 
vente, escravizante,  causa  de  alegrias  e  de  desgostos  indi- 
zíveis e  que  lhe  apressou  a  morte.  Num  momento,  porém, 
fez-se  luz  naquele  cérebro.  O  torturado  reagiu,  por  um 
pouco. 

Moribundo,  ao  reconliecer-se  desamparado  pelas  filhas 
que  idolatrava,  o  desgraçado  increpa-as  duramente,  aspera- 
mente, percebe  que  o  despresam  porque  está  pobre  —  «um 
pai  deve  ser  sempre  rico»,  exclama — ,  arrepende-se  da 
educação  que  lhes  deu,  recorda  afrontas  que  recebeu  delas, 
confessa  ter  notado  que  começavam  a  corar  de  vergonha 
de  o  ter  por  pai,  sente  que  veio  ao  mundo  para  ser  humi- 
lhado, insultado,  emfim,  o  seu  acrisolado  amor  de  pai 
acaba  por  não  lhe  permitir  mais  exprobrações  e  declara 
perdoar-lhes,  ser  ele  o  único  culpado,  por  <  tê-las  habi- 
tuado a  pisá-lo  a  pés»,  chama-lhes  queridas,  reclama  a 
sua  presença,  exulta  orgulhosamente  por  as  ter  feito,  por 
serem  dele. 

A  psicologia  de  Goriot  é  de  construção  simplificada. 
O  homem  revela-se  um  pouco  tarde.  A  principio,  e  numa 
boa  parte  do  romance,  o  extremo  laconismo  do  ancião,  a 
sua  permanente,  invencível  apatia  dão-lhe  ares  de  mistério, 
mas,  em  vez  de  o  respeitarem,  os  comensais  chegam  a  du- 
vidar da  sua  moralidade,  como  chegam  a  julgá-lo  imbecil. 
Goriot  só  pensa  nas  filhas,  só  se  preocupa  com  o  bem  delas. 
E  completamente  estranho  a  tudo  o  mais.  O  escarneo  não 
o  atinge.  Tem  ouvidos  apenas  para  as  palavras  que  se  rela- 


36  HONORÉ    DE    BAI.ZAC 

cionam  com  aquele  peusar,  com  aquela  preocupação  cous- 
tantes.  Quando  ouve  dizer  a  Eugénio  que  Mme  de  Restaud 
lhe  fechara  a  porta  por  lhe  ter  participado  que  seu  pai 
comia  com  ele,  á  mesma  mesa,  ua  pensão  Vauquer,  Goriot 
«baixa  os  olhos  e  volta-se  para  os  enxugar». 

Ele  amava  loucamente  as  filhas.  Não  ha  frase  que  pro- 
fira, que  não  venha  eivada  desse  sentimento  ardente,  impe- 
tuoso, irrompendo  vibrante  sempre,  com  uma  espontanei- 
dade que  profundamente  sensibiliza. 

Mas  deverão  tomar-se  ao  pé  da  letra  expressões,  como 
a  seguinte,  em  que  dá  conta  do  que  lhe  vai  n'alma,  á  pas- 
sagem de  qualquer  das  fiUias,  em  carruagem,  pelos  Campos 
Eliseos,  onde  espera  por  elas,  só  para  as  ver:  «Amo  os  ca- 
valos que  as  puxam  e  queria  ser  o  cãosinho  que  levam  era 
cima  dos  joelhos  »? 

São  exageros  naturais,  são  exuberancias  apaixonadas. 

Aquela  scena  dramática,  ocorrida  na  pensão  Vauquer, 
no  miserável  quarto  de  Goriot,  e  que  precedeu  de  perto  a 
morte  do  pobre  velho,  prova  o  extraordinário  grau  a  que 
se  elevava  o  afecto  do  pai  e  a  inconsistência  e  a  mesqui- 
nhez do  presumido  afecto  das  filhas.  O  velho  é  então  su- 
blime de  fogosidade,  de  energia,  disposto  a  tudo  para  salvar 
esses  dois  entes,  carne  da  sua  carne,  precipitados  numa 
situação  desesperada  ou  que,  como  tal,  se  lhe  afigurava, 
sempre  movido  pelo  seu  amor  de  pai  a  julgá-las  vitimas 
e  correndo  riscos  de  cair  na  desgraça. 

Como  me  repugna,  aqui,  o  considerá-lo,  segundo  o 
próprio  Balzac,  seu  criador,  alimentando  um  sentimento 
«irreflectido  que  o  avisinhava  da  «natureza  canina  >I 

As  Illusions  Perdues  são  um  grande  e  belo  romance, 
cheio  de  interesse,  pela  vivacidade,  pelo  esmerado  colorido 
da  narrativa.  E  dentre  os  romances  de  Balzac  um  dos  mais 
bem  equilibrados.  Balzac,  quando  o  compôs,  era  já  um 
artista  perfeito. 

O  entrecho  desenvolve-se  muito  natural  e  logicamente, 
tão  correntiamente  que  se  não  sente  o  mais  ligeiro  enfra- 
quecimento ua  curiosidade  que,  de  pagina  para  pagina,  vai 
despertando,  cada  vez  mais  intensa.  Mas  ha  então,  a  entre- 


HONORE    DE    BALZAC 


37 


cortar  a  acção,  palpitantes  sucessos  que  lhe  imprimam  re- 
levo? De  ordinário,  não. 

Tudo  se  desenrola  em  condições  mais  ou  menos  nor- 
mais, mais  ou  menos  previstas,  por  consequentes  com  as 
premissas  estabelecidas  pelos  acontecimentos.  David  Sé- 
chard  e  Luciano  de  Rubempré,  duas  almas  tão  diferentes, 
uma  toda  de  desinteresse,  a  outra  toda  de  ambição,  são  os 
fulcros  da  trama  do  enredo  que  é,  nos  seus  dois  grandes 
aspectos  dominantes,  a  resultante  das  qualidades  e  dos  vi- 
cios  dum  e  doutro  desses  amigos  que,  apesar  do  embate 
dos  temperamentos,  se  queriam  como  irmãos.  São  as  figu- 
ras mais  firmemente  vincadas  da  obra  e,  com  elas,  só  riva- 
lizam, pelo  destaque  com  que  se  afirmam,  as  de  Luisa  de 
Bargeton  e  de  Eva  Séchard. 

Como  estudo  social,  encerram  as  Illiísiom  Perdues  pri- 
mores de  observação,  em  luminosas  evocações. 

Balzac  foi  notavelmente  feliz,  nas  Illusiom  Perdues,  na 
reconstituição  da  sociedade  de  Angoulême  e  do  meio  jor- 
nalistico  e  do  proletariado  intelectual  de  Paris. 

A  figura  principal  das  Illtisions  Perdues  é  Luciano, 
cuja  inteligência  extraordinária  se  impunha  a  todos  os  que 
com  ele  conviviam,  á  mãi,  á  irmã,  ao  amigo  compatricio, 
David,  a  Luisa  de  Bargeton,  em  quem  desperta  amorosos 
impulsos  de  mulher  superior  e  caprichosa  que  chega  a  pos- 
tergar os  preconceitos  da  sua  estirpe  para  se  expor,  com  o 
sedutor  mancebo,  a  riscos  ameaçadores  da  sua  reputação 
que  sai  maculada,  por  fim,  da  reacção  sustentada  contra  a 
maledicência  em  voga  no  meio  provincial. 

Luciano  encontrara  em  David  qualidades  de  inteli- 
gência e  de  cultura  bastantes  para  ser  compreendido.  Mas 
a  esfera  da  actividade  dos  dois  amigos,  entre  as  paredes 
duma  tipografia  moribunda,  á  mingoa  de  clientes,  era  de- 
masiado restrita  e  prosaica.  David  facilmente  transigia  com 
o  que  de  depressivo  para  o  seu  espirito  poderia  resultar 
das  condições  do  seu  vegetar.  Era  o  seu  oficio  e  na  pratica 
dele,  rigorosamente  honesta,  despido  de  ambições,  contente 
com  a  mediocridade,  desde  que  lhe  garantisse  a  modesta 
subsistência,  parecia  abstrair  de  tudo  o  mais.  Amava  os 
livros   com   que  lidava  de  perto  e  que  tinha  por  dilectos 


38  HONORÉ    DE    BALZAC  " 

companheiros,  alimento  indispensável  do  seu  espirito.  De- 
pois, dos  estudos  que  sobre  a  arte  que  cultivava,  fizera  em 
Paris,  tinham-lhe  ficado  importantes  noções,  absolutamente 
modernas,  com  que  se  propunha,  fortalecido  pelo  êxito 
provável  de  investigações  a  que  procedia,  introduzir  novos 
sistemas  de  exploração  industrial.  A  via  de  pesquizas  em 
que  se  exercitava  e  que  constituiam  o  objecto  das  suas  lo- 
cubrações,  fòra-lhe  aberta  por  Luciano  que  o  informara  da 
orientação  de  trabalhos  especiais  do  pai,  farmacêutico  dis- 
tinto, que  a  morte  surpreendeu,  antes  de  realizar  as  suas 
legitimas  aspirações. 

David  não  era  um  ambicioso;  mas,  se  esta  preocupação 
o  absorvia,  de  sobejo  lhe  assistia  o  direito  de  pretender 
melhorar  o  estado  material  dos  seus  negócios.  E  mais 
avulta  essa  pretensão  desde  que  se  apaixona  por  Eva.  a 
extremosissima  irmã  de  Luciano,  com  a  qual  vem  a  casar. 

Luciano,  pelo  contrario,  ardia  por  experimentar  sen- 
sações desconhecidas. 

O  coração  aproximou-o  de  Luisa  de  Bargeton  que, 
rodeada  de  opulência,  o  atraía.  O  proletário  queria  ser 
guindado  á  categoria  escolhida  dos  grandes  da  sua  terra, 
em  cuja  roda,  mercê  dos  privilégios  que  o  amor  de  Luisa 
lhe  concedeu,  passou,  se  bem  que  de  empréstimo,  a  figurar. 
Animado  pela  plena  confiança  que  depositava  no  poder  do 
seu  engenho,  crente  de  que  uma  boa  estrela  o  guiava  para 
a  fortuna  mais  alta  e  completa  que  sonhava,  vendo-st^  adu- 
lado por  muitos,  precipitou-se,  com  todo  o  ardor  da  sua 
idade,  no  caminho  que  a  amorosa  fidalga  lhe  ia  desbra- 
vando e  cobrindo  de  rosas. 

A  sociedade  que  imprimia  tom  de  distinção  a  Angou- 
lême,  reunia-se  nos  salões  de  Mme  de  Bargeton  que  apro- 
veitou certa  noite,  colhendo  ensejo  que  se  lhe  afigurou 
propicio,  para  tentar  a  consagração  de  Luciano.  Não  care- 
cia o  mancebo  de  estro  feliz,  evidenciado  em  composições 
que  pessoas  ilustradas  e  de  educação,  como  Luisa,  pode- 
riam e  deveriam  justamente  apreciar.  Mas  o  poeta  teve, 
nessa  noite  que  tão  pungentemente  dolorosa  lhe  foi,  ama- 
rissimos  desenganos.  A  primeira  sociedade  da  sua  terra 
desdenhava  do  pobre  rapaz,  cuja  mãi  era  parteira  e  cuja 


HONORE  DE  BALZAC 


39 


irmã  era  engomadeira;  não  lhe  perdoava  que  tivesse  mu- 
dado de  sobrenome,  passando  a  apelidar-se  De  Rubempré, 
em  vez  de  Chardon.  E,  quanto  a  primores  de  talento,  qua- 
tro ou  cinco  convidados  apenas  estavam  em  circunstancias 
de  os  entender. 

As  relações  de  Luciano  com  Luisa  foram  pasto  da 
calunia. 

Correram,  emfim,  murmúrios  de  adultério.  O  marido 
de  Mme  de  Bargeton,  personagem  nulo,  castigou  o  ultrage. 
Incompatibilizada  com  o  meio,  Luisa  deixou  Angoulême, 
com  destino  a  Paris,  arrastando  consigo  o  afectuoso  Lu- 
ciano. Na  capital,  porém,  o  passado  de  amor  que  parecia 
dever  prender  para  sempre,  um  ao  outro,  o  poeta  e  a  fi- 
dalga, obscurece-se  e  extingue-se.  Além  das  influencias 
fatais  do  inebriante  ambiente  concorreram  para  o  desenlace 
as  insinuações  pérfidas  de  Du  Châtelet,  um  enamorado  de 
Luisa  e  consequentemente  rival  de  Luciano. 

Aqui  começam  os  revezes  duma  existência  dificil  para 
o  desamparado  mancebo,  desprovido  quase  de  dinheiro, 
mal  custeando  as  reduzidissimas  despezas  mais  imperiosas 
do  passadio.  A  sorte,  a  principio,  favoreceu-o,  deparaudo- 
Ihe  amigos,  cultos  e  estimáveis,  que  o  agregaram  ao  seu 
cenáculo.  Todavia,  não  podendo  resistir  á  dominadora  am- 
bição que  o  incitava  a  adoptar  os  expedientes  mais  rápi- 
dos para  conseguir  a  independência  material,  ainda  que 
implicasse  a  mais  aviltante  dependência  moral,  com  repu- 
gnância para  o  seu  temperamento  altivo,  toma  a  triste 
resolução  de  dar  ingresso  no  jornalismo  e  este  desígnio 
leva-o  a  solicitar  os  oficiosos  préstimos  de  Lousteau,  cujo 
trato  o  cativa,  encobrindo  dolosamente  um  fraco  caracter. 
A  vida,  em  Paris,  do  proletariado  intelectual  está 
admiravelmente  exposta  nas  Illusions  Perdues.  Nesse  do- 
mínio, avultam,  com  a  mais  perfeita  nitidez,  dois  campos 
absolutamente  distintos:  o  do  trabalho  obscuro,  cheio  de 
consciência  e  de  dignidade,  representado  por  d'Arthez, 
meio  em  que  Luciano  começou  por  se  iniciar,  de  passagem, 
e  que  não  era  bastante  sedutor  para  a  sua  anoia  insofrida 
de  vitoria  imediata;  e  o  do  arrangismo  que  lança  mão  de 
todos  os  expedientes,  estando  representado  por  Lousteau, 


40  HONORÉ  DE  BALZAC 

e  é  O  meio  do  jornalismo,  foco  de  depravação  e  mercanti- 
lismo, em  que  Luciano  acaba  por  se  precipitar,  deixando-se 
corromper  por  todas  as  influencias  depressivas,  desde  a  da 
carne,  exibida  num  teatro,  a  cujo  espectáculo  assiste,  até  a 
da  baixa  venalidade  a  que  é  sujeita,  em  tais  circunstancias, 
a  produção  intelectual.  O  artigo,  elaborado  por  Luciano, 
em  uma  hora,  alta  noite,  sobre  a  representação  a  que 
assistira  no  Panorama-Dramatico,  é  um  valioso  docu- 
mento, não  apenas  do  estado  d'alma  momentâneo  do 
individuo,  mas  de  toda  a  sua  alma.  As  circunstancias 
em  que  o  poeta  se  encontrava,  são  dignas  de  pondera- 
ção. Tinha  percorrido,  em  algumas,  poucas,  horas,  luga- 
res nunca  vistos,  em  que  experimentou  as  mais  vivas 
sensações  que  longe  estava  de  imaginar  que  nele  viessem 
a  produzir-se,  angustiando-o  fortemente  umas,  com  o  fel 
de  desenganos  enormes  (como  sucedeu,  por  exemplo,  ao 
presenciar  a  mais  aviltante  escravização  da  Arte),  derra- 
mando-lhe  outras  nas  veias  o  fogo  de  luxuriosos  desejos, 
animalizando-o,  fazendo-o  ceder  aos  caprichos  sensuais 
duma  actriz  que  via  pela  primeira  vez.  Em  uma  tarde  — 
de  notar  é  que  travara,  durante  o  jantar  desse  dia,  conhe- 
cimento com  Lousteau,  o  guia  amável,  em  quem  julga  ter- 
Ihe  deparado  a  Providencia  um  amigo  verdadeiro,  e  que 
termina,  após  a  leitura  do  artigo,  por  se  tornar  seu  emulo, 
disposto  a  subalternizá-lo  e  a  explorá-lo,  —  Luciano,  ele 
próprio  o  confessou,  viveu  mais  que  durante  os  primeiros 
dezoito  anos  da  sua  existência.  O  entrechocar  de  tão  di- 
versas sensações  que  o  levaram  a  reflectir,  por  instantes,  na 
decepção  de  todos  os  seus  sonhos,  —  desses  sonhos  puros, 
em  que,  com  David,  na  modesta  tipografia  de  Angoulême, 
se  enlevava,  —  na  derrocada  de  todos  os  seus  preconceitos, 
era  para  abalar  um  cérebro  por  mais  poderoso  e  a  dor  dei- 
xaria, num  espirito  vulgarmente  constituido,  ressaibos  tão 
penetrantes  que  impediriam  o  divagar  pela  fantasia  ridente, 
de  alada  graça,  tão  intensamente  expressa  no  artigo  de 
Luciano.  Bastava,  pois,  este  testemunho  para  definir  a 
originalidade  do  seu  temperamento  e  do  seu  caracter.  Era, 
acima  de  tudo,  um  ambicioso,  um  egoista.  Mais  e  melhor 
que  qualquer  expansão,  que  todas  as  expansões  que  tem. 


HONORÉ    DE    BALZAC  41 

em  conversa  com  Lousteau,  revela-o  esse  seu  proceder 
extremamente  significativo.  O  equilibrio,  mais  ou  menos 
estável,  da  razão  de  que  brotava  aquela  serenidade  e  gosto 
no  humorismo  do  cronista,  sucedera,  sem  transições  apa- 
rentes, á  mais  febril  excitação,  sentimental  e  nervosa.  Tinha 
um  pé  no  jornal  —  cujo  director,  Finot,  estava  a  seu  lado, 
conviva  dum  lauto  e  concorrido  festim,  em  casa  duma 
comediante,  Florina,  nova  e  formosa,  amante  de  Lousteau 
—  e  tinha  o  outro  na  cama  de  Coralia,  a  comediante  que  o 
enfeitiçara  e  se  enfeitiçara  com  ele,  belo  como  um  Apolo. 
E  gosava,  com  delicia,  embriagado  pela  opulência  que  o 
cercava,  aquele  ambiente  de  intelectuais,  jornalistas  e  lite- 
ratos considerados,  como  ele  já  sentia  que  havia  de  ser,  e  de 
mulheres  de  teatro  que  faziam  espectáculo  com  a  sua  man- 
cebia rendosa  e  que,  como  Coralia,  se  davam,  ás  vezes,  ao 
desfastio  de  amar  cordialmente  alguém.  A  vaidade,  o  amor- 
proprio  infinitos  de  Luciano  estavam  amplamente  satis- 
feitos. Mas  —  o  infeliz  não  reparava  ou  melhor  não  queria 
reparar  —  afundava-se  no  lodo! 

A  Luciano,  de  feito,  não  faltavam  advertências  sobre 
a  vida  que  ia  abraçar.  Em  Lousteau,  em  Vernou,  no  próprio 
cenáculo,  aonde  foi  agradecer  as  correcções  que  os  amigos 
dedicados  e  modestos,  talentosos  e  honrados,  lhe  tinham 
feito  ao  romance  que  compusera  em  Angoulême  e  depois 
reconstituirá  em  Paris,  encontrou  conselheiros,  merecedores 
de  credito  todos,  nesse  particular. 

Mas  ouvir  a  voz  da  razão  era  mero  passatempo  para 
o  poeta  cujo  fito  exclusivo  consistia  em  attingir,  quanto 
antes,  a  independência.  E  ainda  mais  letra  morta  se  tor- 
naram os  avisos,  todos  igualmente  sensatos,  posto  que 
nem  todos  ditados  pçla  amizade,  desde  o  momento  em 
que  viu,  mais  de  perto,  a  senda,  repleta  de  prazeres  e  de 
dissipações,  que  Lousteau  percorria,  deslumbrando-o  in- 
tencionalmente, cora  os  gosos  materiais  do  concubinato 
com  Florina  e  afogueando-lhe  as  aspirações  com  o  des- 
vendar de  meios  fáceis,  conducentes  a  um  triunfo  ime- 
diato. Lousteau  tinha  Florina  e  ele  tinha  Coralia.  Lous- 
teau, para  conseguir  os  seus  fins,  operando  com  a  ousadia 
e   o  despejo   dum  videirinho,  não  tinha  escrúpulos.  E  ele 


42  HONORÉ    DE    BALZAC 

para  que  havia  de  os  ter?  Os  princípios  rigidos  da  moral 
do  cenáculo  davam-lhe  de  comer?  E  mesmo  que  dessem, 
acaso  lhe  permitiam  gosar,  gosar  como  ele  queria,  carnal- 
mente, com  os  excessos  duma  mocidade  ardente,  transbor- 
dante de  seiva,  tanto  mais  copiosa  e  viva,  quanto  mais 
represada  fora,  numa  abstinência  severa?  Amantiza-se 
ostensivamente  com  Coralia  que  acaba  por  despedir  Ca- 
musot,  o  negociante  qnarentão  que  gastara  com  ela  o  me- 
lhor de  sessenta  mil  francos. 

Os  dois  amantes  teem  a  fraqueza  de  se  amar  do  co- 
ração. 

Quando,  na  carruagem  que  Camusot  dera,  no  próprio 
dia,  a  Coralia,  esta  e  Luciano,  em  passeio,  se  defrontam 
com  Mme  d'Espard  e  Mme  de  Bargeton  que  também  pas- 
seavam de  carruagem,  o  poeta,  em  que  a  ferida  do  desen- 
gano amargo  que  sofrera,  não  cicatrizara  ainda,  sentiu, 
então,  lançando  um  olhar  de  desprezo  para  a  primeira 
mulher  que  amara,  quão  distante  estava  já  daquela  situa- 
ção penosíssima  em  que  tomou  conhecimento  com  a  misé- 
ria desesperadora.  Foram  instantes  curtos,  fugazes  como  o 
relâmpago,  mas  decisivos ! 

Depois  —  a  sensação  experimentada  fora  profundís- 
sima e  gravara-se-lhe  no  espirito  —  ligeiras  são  as  hesita- 
ções de  Luciano. 

O  caminho  estava  agora  traçado.  O  rumo  a  seguir  um 
só  podia  ser.  Ligado  a  Coralia,  despedido  Camusot,  impu- 
nha-se-lhe  mantê-la,  concorrendo  com  os  seus  salários 
para  aumentar  os  da  actriz  que  cada  vez  mais  se  lhe  afi- 
gurava digna  de  todos  os  sacrifícios  pela  maneira  cari- 
nhosa e  desinteressada  com  que  o  tratava  e  se  mostrava 
decidida  a  unir  ao  dele  o  seu  destinp. 

Tudo  o  tentava:  a  riqueza  da  casa  de  Coralia,  a  be- 
leza desta,  a  segurança  garantida  do  seu  futuro  de  homem 
de  letras! 

De  olhos  fechados,  recalcando  vestígios  de  altivez  e 
de  probidade,  precipita-se  no  jornalismo.  Logo  á  entrada, 
ele  que  se  obstinava  em  ser  surdo  a  conselhos,  indiferente 
a  revoltas  da  consciência,  notaria,  se  outro  fosse  o  estado 
do  seu  espirito,  menos  excitado  pela  anciã  do  ganho,  que 


HONORÉ    DE    BALZAC  43 

ia  ser  espoliado  por  todos  os  que  se  diziam  seus  amigos, 
os  seus  novos  camaradas  de  profissão. 

O  jornalismo,  o  baixo  e  mesquinho  jornalismo  que 
tinha  de  cultivar,  por  força  das  circunstancias,  inspirou, 
por  vezes,  repugnancias  a  Luciano.  Então,  rodeando-o.  os 
amigos  de  ultima  hora  riam-se  dos  seus  escrúpulos.  Co- 
ralia  mesmo  o  entusiasmava  pela  profissão,  com  argu- 
mentos decisivos,  sobretudo  desde  que  o  volume  de  versos 
do  poeta  logrou  a  aceitação  de  Dauriat  que  lhe  comprou 
a  obra  por  alguns  milhares  de  francos,  cuja  entrega  o 
livreiro-editor  efectuou  numa  visita,  feita  com  o  propósito 
de  levá-lo  a  desistir  duma  campanha  danosa  que  iniciara. 
Luciano  era  já  um  nome  cotado,  como  jornalista.  Os  seus 
artigos,  criticos  ou  de  combate,  davam  brado.  Gosava  de 
popularidade,  a  fama  viera  ao  seu  encontro,  embalando-o, 
deleitando-o  com  as  suas  seduções.  O  poeta,  ambicioso, 
comodista,  vingativo,  não  era  homem  que  lhes  resistisse. 
Os  amigos,  com  fino  tacto,  descobriram  esses  fracos,  espe- 
cialmente vulneráveis  num  inexperiente,  e  nos  encanta- 
mentos falazes  duma  gloria  efémera,  fôram-no  envolvendo, 
sugeriudo-lhe  perfidamente,  com  o  acumular  de  bens  ma- 
teriais, o  abandono  radical  dos  preconceitos  de  véspera, 
alimentados  só  por  fantasistas  ou  por  ingénuos  —  observa- 
vam-lhe  —  como  esses  do  cenáculo,  grandes  homens  que 
chegavam  a  meter  dó,  pela  estulta  pertinácia  do  seu  ve- 
getar, no  mais  ingrato  recato. 

Luciano  chegou  a  considerar  ridiculos,  quase  pobres 
de  espirito,  os  que  foram,  em  Paris,  tão  dignos  compa- 
nheiros do  seu  infortúnio,  como  David  o  fora  em  Augou- 
lême! 

Depois,  para  mais  lhe  perverter  o  caracter,  soprando- 
Ihe  á  vaidade,  a  essa  sua  vaidade  em  constante  briga  com 
os  principies  da  honra,  á  tão  fácil  e  completa  vitoria 
sobre  o  livreiro,  conseguida  por  um  artigo  de  critica  in- 
tencionalmente destrutiva  duma  das  obras  mais  recentes 
dum  escritor  consagrado — artigo  que  Luciano  escrevera 
contra  a  sua  consciência  e  a  que,  acorrentado  aos  interes- 
ses do  jornal,  acabou  por  dar  o  mais  formal  desmentido, 
agora    segundo    a    sua    razão,    servindo-se    do    falso    expe- 


44  HOXORÉ    DE    BALZAC 

diente  duma  pretendida  réplica  —  ,  veio  juntar-se  aquela 
outra  vitoria  que,  em  virtude  do  aniquilamento  de  Mme 
de  Bargeton  e  do  barão  du  Châtelet  —aniquilamento  mo- 
ral, pela  critica  jornalistica  — ,  lhe  abriu  os  mais  selectos 
salões  aristocráticos  de  Paris,  aonde  foi  defrontar-se  com 
Mme  d'Espard,  a  alma  duma  trama  urdida  contra  o  in- 
quietante jornalista, 

Luciano  que,  mesmo  quando  chegava  a  recalcar  a  sua 
altivez  e  a  fazer  sacrifícios  materiais  por  amor  a  Coralia, 
era  movido  pelo  egoismo  mais  estreito,  pois  que,  em  todos 
os  seus  actos,  como  em  todos  os  seus  pensamentos,  se  via 
só  a  si  próprio,  a  si  referindo  tudo,  canalizando  tudo  no 
sentido  do  seu  futuro,  tinha,  apesar  de  manifestações  iso- 
ladas de  arrebatamento  que  se  poderiam  crer  assomos  de 
energia,  uma  débil  constituição  moral:  «a  sua  vontade,  a 
sua  coragem  estão  á  epiderme  apenas»,  dizia,  com  larga 
penetração,  um  dos  seus  falsos  amigos.  No  fundo,  a  pusi- 
lanimidade  do  poeta,  a  leveza,  a  inconstância  nos  propó- 
sitos, jogavam  em  desacordo  com  a  efervescência  da  am- 
bição. 

Depois  de  ter  passado  por  muitas  baixezas,  sugeitan- 
do-se-lhes,  ou  ludibriado  na  sua  confiança  ou  transigente 
por  sua  grosseira  conveniência,  Luciano  ainda  conservava 
restos  de  pundonor,  de  brio,  duráveis  todavia  como  o  re- 
lâmpago, quando  chegavam  a  exteriorizar-se.  A  sua  inteli- 
gência tão  brilhante,  tão  invejada  por  todos,  era  objecto 
do  mais  vil  mercantilismo,  em  seu  serviço,  mas  muito  mais 
em  proveito  da  gentalha  a  que  se  associara. 

Mal  defendendo  o  moral  das  cavilosas  arremetidas  dos 
seus  ruins  companheiros  de  profissão,  acabava  sempre  por 
convir  com  eles  no  ignóbil.  Emporcalhavam-lhe  a  alma  e 
ele,  de  olhos  fitos  num  porvir  ridente,  esplendoroso,  indi- 
ferente a  advertências  ou  a  insinuações,  colaborava  até 
com  eles.  O  desgraçado,  de  quem  todos  abusavam,  era  um 
manequim,  por  ultimo,  ao  sabor  das  mais  opostas  facções! 
Quando,  obrigado  a  escrever  um  artigo  critico  contra  o 
livro  recem-publicado  de  d'Arthez,  um  dos  seus  melhores 
amigos  do  cenáculo,  sinceramente  dedicados  e  que  viam 
com   magoa   infinita   a   ignominia   do   transviado,    Luciano 


HONORÉ    DE    BALZAC  45 

correu,  á  meia  noite,  a  casa  dele,  a  coufessar-lhe  o  seu 
desespero,  derramando  lagrimas  verdadeiramente  sentidas, 
arrependido  da  resolução  que  tomara,  aceitando  a  incum- 
bência de  novos  patrões  da  imprensa,  a  quem  devia,  para 
seu  bem,  julgava,  obediência,  revelou  iniludivelmente  que 
era  um  fraco,  mais  merecedor  de  compaixão  que  de  severo 
castigo. 

Confrangido  por  vê-lo  sofrer  tanto  e  sabedor  da  causa 
que  imperara  sobre  ele  e  o  fizera  anuir  a  exigências  obsti- 
nadas, —  Luciano  que  amava  profundamente  Coralia  e  se 
sentia  amado  por  ela,  não  queria  incompatibilizar-se  com 
os  raros  jornais  com  que  podia  contar,  na  luta  que  teria 
de  sustentar  contra  os  seus  rivais  e  da  actriz,  por  ocasião 
da  próxima  estreia  desta  no  Ginásio  — ,  d'Arthez  teve  dó 
dele.  E,  conhecendo  o  intimo  do  poeta,  dirigiu-lhe,  entre 
outras,  estas  palavras  tão  significativas:  «Receio  que  vejas 
absolvições  nos  teus  arrependimentos!» 

O  abismo  em  que  se  precipitava,  de  fraga  em  fraga, 
dava  a  Luciano  a  tontura  da  vertigem,  alucinava-o  mesmo. 

A  ambição  de  ascender  até  a  aristocracia,  alcançando 
o  titulo  de  conde,  a  realçar  o  uso,  devidamente  legalizado 
também,  do  apelido  de  De  Rubempré,  acabou  por  per- 
dê-lo. 

Teria  ganhado  de  novo  o  coração  de  Luisa  de  Bar- 
geton,  se  se  lhe  apresentasse  como  amoroso  dela  ou  se  lhe 
prometesse  amor. 

Mas  não!  era  impossível:  o  desgraçado  amava  Cora- 
lia. Exasperando  Luisa  com  a  narração  deste  amor,  expan- 
são que  lhe  foi  fatal,  provocou  nela  o  recrudescimento  do 
ódio.  Toda  a  sociedade  que  Mme  d'Espard  reunia  nos  seus 
salões,  isto  é,  toda  a  alta  sociedade  de  Paris,  passou  a  es- 
carnecer dele,  a  iludi-lo  nas  suas  pretensões,  a  guerreá-lo, 
mais  ou  menos  ostensivamente. 

A  promessa  de  Mme  d'Espard,  no  sentido  de  lhe  obter 
acesso  oficial  á  nobreza,  não  foi  mais  que  um  logro,  for- 
jado para  o  comprometer  irremediavelmente. 

Todos  conspiravam  para  a  ruina  de  Luciano.  E  até  do 
cenáculo,  sobresaltado  com  a  polemica  dirigida  contra  o 
livro  de  d'Arthez  e  contra  um  periódico,  órgão  dessa  sele- 


46  HONORÉ    DE    BALZAC 

cta  colectividade,  partiram  manifestações  violentas  de  ran- 
cor e  de  desforra.  O  poeta,  vitima  da  campanha  jornalis- 
tica  qne  o  partido  liberal,  a  que  pertencera  primeiro,  lhe 
fazia,  escandalosamente,  para  o  esmagar,  era  dado  por  au- 
tor de  diatribes  soêses  e  de  destemperados  motejos,  lança- 
dos á  imprensa,  transformada  em  instrumento  seu,  para 
derrubar  reputações  e  rebaixar  amigos.  Insultado  publica- 
mente por  um  dos  do  cenáculo,  Luciano  paga  afronta  com 
afronta  e  bate-se  com  ele  em  duelo,  ficando  ferido.  Morava 
então,  sempre  com  a  actriz,  adorável  sempre  de  dedicação 
por  ele,  numa  casa  mais  modesta,  em  bairro  mais  pobre. 
As  malquerenças  que  perseguiam  o  infeliz  amante,  perse- 
guiam também  Coralia. 

Já  as  dividas  se  acumulavam,  dificultando-lhes  o  viver. 

Para  espairecer  magoas  e,  não  raro,  desesperos,  entre- 
gava-se  Luciano  aos  prazeres  da  mesa,  em  mil  ensejos  que 
se  lhe  ofereciam  e  que  provocava,  servindo-se  das  numero- 
sas relações. 

Provavelmente,  as  libações  copiosas  eram  por  ele  pro- 
curadas para  adormecer  pesares.  Por  fim,  e  para  seu  maior 
mal,  não  obstante  saber  que  o  jogo  estava  sendo  o  cancro 
da  existência  do  companheiro  Lousteau,  tomou  o  habito  de 
arremessar  ao  pano  verde  quantias  sobre  quantias,  muito 
restritas,  porque  a  miséria  o  assediava,  mas  nem  assim  pou- 
padas pela  sorte.  Coralia  viu-se  suplantada  por  Florina, 
mantida  agora  por  outro  jornalista,  sucessor  de  Lousteau. 
A  artista,  ferida  no  seu  amor-proprio,  lutou  para  conservar 
o  lugar  que  se  esforçavam  por  usurpar-lhe,  mas  teve  de 
ceder,  afinal,  não  a  ajudando  a  saúde. 

Luciano  perde  o  gosto  do  trabalho.  Aquele  ardor  de 
se  tornar,  um  dia,  justamente,  grande  homem  de  letras 
desaparecera,  logo  que  o  amor  e  os  gosos  materiais  de  va- 
ria espécie  o  inundaram  de  delicias.  Não  era  um  volunta- 
rioso; o  seu  querer,  além  de  flexivel,  desorientavel,  não  ti- 
nha continuidade,  anulavam-no  intercadencias,  tantas  quan- 
tas as  sugestões  pérfidas  dos  seus  mentores. 

Reconhecendo-o  tão  frágil,  tão  mudável,  tão  adaptável 
ás  exigências  mais  contrarias,  desde  que  uma  lufada  insi- 
diosa  de   pronto    beneficio   lhe   refrescasse   o   espirito,   em 


HONORÉ    DE    BALZAC  47 

atormentados  momentos,  todos  se  constituíam  seus  mento- 
res. A  vaidade  hipertrofiada  de  Luciano  vedava-lhe  a 
consciência  da  sua  situação  deprimida,  humilhante.  Ainda 
o  amparava  a  esperança  na  prometida  distinção  que  lhe 
seria  conferida,  mercê  da  solicitude  de  Mme  d'Espard,  de 
Mme  de  Montcornet,  da  sua  própria  bem-amada  doutros 
tempos.  Quando  esses  falsos  protectores  desafivelaram  a 
mascara,  com  o  pretexto  de  Luciano  ter  escrito,  para  o 
jornal  de  Lousteau,  um  artigo  que  gravemente  ofendia  a 
dignidade  dum  dos  altos  personagens  que  por  ele  estavam 
dispostos  a  interceder,  e  a  do  próprio  monarca,  desenga- 
nado o  poeta,  em  condições  extremamente  vexatórias,  de- 
sabaram, bruscamente,  as  suas  aspirações  mais  caras. 

A  derrocada  moral  foi  completa,  quando  ocorreu  a 
morte  de  Coralia  que,  ao  expirar,  proferiu,  fiel  ao  amante 
como  esposa,  os  nomes  de  Deus  e  de  Luciano,  conjunta- 
mente. 

Para  lhe  pagar  um  enterro  decente,  o  poeta  anue  a 
uma  encomenda  de  versos  estúrdios.  A  encomenda  fizera- 
Iha,  por  caridade,  um  individuo  conhecido  de  Luciano  a 
quem  este,  com  a  cabeça  desvairada  pela  dor,  estendera  a 
mão,  suplicando-lhe  umas  reduzidas  centenas  de  francos. 
Os  versos  são  elaborados,  em  dramáticas  circunstancias,  na 
presença  do  cadáver  de  Coralia,  declamados,  depois  de 
compostos,  de  mistura  com  convulsivo  pranto,  acometido 
Luciano  por  uma  terrível  crise  nervosa. 

Luciano  resolve  deixar  Paris  e  aceita,  para  ajuda  da 
viagem  que,  mesmo  assim,  terá  de  realizar  a  pé,  o  dinheiro 
que  calcula  provir  da  prostituição  de  Berenice,  a  criada 
de  quarto  de  Coralia.  Parte.  Após  incidentes  diversos,  en- 
tre os  quais  se  destaca  o  encontro  de  Luciano  com  Mme 
de  Bargeton  e  o  barão  du  Chàtelet,  de  regresso  a  Angou- 
lême,  casados  já,  pede  pousada  a  uns  moleiros,  a  algumas 
léguas  de  distancia  da  terra  onde  nascera  e  onde  viviam, 
lutando  com  as  mais  rudes  provações,  os  três  entes  que, 
havia  ano  e  meio,  pouco  mais  ou  menos,  abandonara.  Da 
capital,  uma  só  remessa  de  dinheiro  lhes  endereçara,  uns 
quinhentos  francos.  Mas,  a  contrabalançar  essa  fácil  gene- 
rosidade que  tanto  cativou  as  excelentes  criaturas,  assinara 


48  HOXOBÉ    DE    BALZAC 

por  David  três  letras  de  mil  francos  cada  uma,  afira  de 
obviar  a  tremendos  apertos.  Ora  são  essas  três  letras  que 
causam  a  aflictiva,  a  desesperada  situação,  em  que  o  ho- 
nesto e  bondoso  impressor,  a  esposa  e  a  sogra  sofrem  cori- 
frangedoramente,  arruinados,  desacreditados.  Luciano,  pre- 
vendo-o,  não  tivera  forças  para  proseguir  no  caminho  e 
aproximar-se  mais  de  Angoulême. 

Sentiu  então  remorsos  fortissimos,  mas  instável  sempre 
nas  suas  resoluções,  amando  a  vida  com  o  apego  dos  fra- 
cos, chegou  a  crer  que  morria,  dispòs-se  mesmo  a  morrer  e 
contudo  solicitou  o  auxilio  dum  medico  e  acabou  por  se 
entregar  aos  cuidados  diligentes  dos  hospedeiros.  Era  in- 
capaz de  ter  a  coragem  do  suicidio. 

Os  irmãos  Cointet,  impressores,  figadais  inimigos  de 
David,  juraram  aniquilá-lo,  sobretudo  desde  que  notaram 
que  a  dedicada  Eva  podia,  graças  ao  seu  espirito  activo, 
empreendedor  e  sagaz,  fazer  progredir  a  decadentíssima 
tipografia,  colocando-se  no  lugar  do  marido,  á  testa  do 
estabelecimento.  David,  preocupado  em  demasia  com  o 
seu  invento  que  consistia  no  fabrico,  por  meio  de  vege- 
tais, de  papel  melhor  e  mais  barato,  deixara  de  pensar  no 
negocio.  Ao  contrario  do  pai,  comerciante  até  a  medula, 
dominado  pela  ganância,  explorando  o  filho  com  o  desas- 
sombro, o  impudor  de  que  usaria  para  um  estranho,  o 
inventor,  se  trabalhava  com  o  máximo  afinco  na  sua  desco- 
berta, era,  confessava  amiúde  á  esposa,  para  dar,  um  dia, 
a  abastança  aos  seus  e  a  felicidade,  as  mais  amplas  condi- 
ções de  felicidade,  a  Luciano.  Conhecedores  já  da  vida 
desventurada  e  transviada  do  irmão  e  do  cunhado  em 
Paris,  Eva  e  David  sofriam  ainda  mais  do  que  se  se  vissem 
sós  na  desdita.  E  a  David  que  lera  no  intimo  d'alma  de 
Luciano  escaparam,  uma  vez,  estas  palavras,  causadoras 
de  grande  espanto  em  sua  mulher  que  começava  a  des- 
coroçoar  do  irmão,  sentindo,  pouco  a  pouco,  desvanecer-se 
o  culto  que  lhe  votara  outrora:  «Quando  Luciano  fôr  rico, 
minha  querida,  não  terá  senão  virtudes...» 

Não  faltava  ao  inventor  o  talento.  Simplesmente,  cen- 
tralizado em  excesso,  convergindo  todo  exclusivamente 
para  o  invento,   mantinha-se  obcecado,  estranho  a  tudo  o 


HONORÉ    DE    BALZAC  49 

¥ 

mais.  E  esse  alheamento  tão  insistente,  tão  pertinaz,  che- 
gou a  fazer  desesperar  Eva  que,  não  obstante,  admirava  e 
venerava  David  como  homem  superior.  Quando,  perseguido 
pelos  credores,  avolumadas  as  contas  em  debito  com  as 
verbas  apostas  pela  justiça  — omito,  para  brevidade,  os 
pormenores  do  processo—,  David  é  avisado  de  que,  por 
insolvente,  vai  ser  detido,  Eva  que  se  encontrava  junto 
dele,   pergunta-lhe:    «Que   tencionas   fazer,    meu  amigo  ?  > 

Abstracto,  o  inventor  não  responde  e,  dirigindo-se  á 
serva,  Marion,  recomenda-lhe  que  ponha  ao  lume  a  maior 
panela,  de  certo  para  o  cozimento  dos  vegetais,  matéria 
prima  do  fabrico  que  era  o  objecto  do  seu  constante  scis- 
mar. 

Eva  Séchard  revela-se  sobretudo  na  ultima  parte  das 
lllusions  Perdues.  Sem  perder  a  delicadeza  dos  seus  senti- 
mentos de  mulher,  eleva-se,  por  vezes,  a  másculas  iniciati- 
vas, tão  necessárias  para  compensar  a  indiferença  do  ma- 
rido por  tudo  o  que  não  fosse  a  substancia  do  seu  invento. 
A  energia  e  a  decisão  de  Eva  são  essencialmente  sensatas 
e  conscientes. 

O  atentado  financeiro  de  que  é, vitima  David  e  os  seus, 
defraudado  por  oficiais  do  mesmo  oficio,  os  tais  irmãos 
Cointet,  agiotas  sem  escrúpulos,  banqueiros  á  socapa,  —  um 
dos  quais,  o  mais  finório,  vem  a  ser,  depois  de  arquimilio- 
nario,  deputado  e  par  de  França,  em  seguida  á  revolução 
de  julho—,  mantém  tensa  a  curiosidade,  com  o  desenrolar 
de  peripécias  sempre  interessantes. 

O  pobre  David,  com  a  sua  inexperiência  de  negócios, 
o  seu  fundo  permanente  de  ingenuidade,  de  quase  infantil 
candura,  era  uma  presa  que  não  sabia  defender-se  e  menos 
atacar,  que  mal  saberia  fugir.  Com  quem  tinham  de  defron- 
tar-se  os  seus  inimigos  ?  Quem  lhes  poderia  exigir  contas  ? 
Eva  tinha  rasgos  de  tempera  varonil.  Os  Cointet  não  o 
ignoravam.  Mas  estava  sósinha,  a  bem  dizer.  Nenhum  ele- 
mento importante  de  coadjuvação. 

As  pessoas  da  casa  tinham  todas  um  só  coração  que 
pulsava  em  unisono.  A  iniciativa,  porém,  se  acaso  surcrisse, 
não  iria  longe. 

O  marido,  o  bom  David,  andava  todo  embebido  no  seu 


50  HONORÉ    DE    BALZAC 

cogitar  de  inventor  e  não  tinha  cabeça  para  mais.  A  mãi, 
honesta  senhora  que  mourejava,  de  novo,  no  seu  mister  de 
parteira,  para  minorar,  quanto  em  suas  forças  coubesse,  a 
angustia  da  crise,  tinha,  parece,  como  o  genro  que  vivia 
embalado  pelas  esperanças  do  seu  invento,  uma  visão  pouco 
clara  sobre  o  que  se  passava.  Divisavam  um  futuro  som- 
brio, mas  não  curavam  da  procedência  da  tempestade,  não 
pesavam  a  gravidade  tremenda  do  perigo. 

A  solicitude  dos  servos,  Marion  e  Kolb,  a  mais  dedi- 
cada solicitude,  foi  exuberantemente  demonstrada  em  vá- 
rios transes  que  reclamaram  o  seu  concurso.  O  valimento 
dessas  criaturas  sinceras  era,  contudo,  restrito  demais  para 
assumir,  algum  dia,  um  papel  decisivo. 

Fora  da  familia,  entre  estranhos,  Eva  que  tanta  sim- 
patia devia  despertar,  pelo  seu  porte,  pela  sua  situação 
amargurada  de  esposa  e  mãi,  não  encontraria  facilmente 
quem,  de  bom  grado  e  desinteressadamente,  lhe  prestasse 
auxilio  de  qualquer  espécie. 

Uma  amiga,  engomadeira,  antiga  companheira  d'oficio, 
constituia  uma  excepção  única :  nela  depositava  confiança 
bastante  para  entregar,  como  entregou,  á  sua  guarda  e  vi- 
gilância, a  liberdade  de  David,  forçado  a  ocultar-se,  para 
escapar  á  prisão. 

E  de  crer  que  o  circulo  das  relações  da  Eva  não  fosse 
além  dessas  cinco  pessoas.  Em  Angoulême,  como  em  todos 
os  meios  provinciais,  o  culto  do  dinheiro  impelia  para  os 
irmãos  Cointet  que  estavam  de  cima  e  rachavam  lenha,  todas 
as  adesões.  Eva  não  veria  certamente  com  bons  olhos  um 
meio  social  que  tomara,  contra  David,  a  defesa  do  avaro 
Séchard,  seu  sogro,  desnaturado  espoliador  do  próprio  filho. 

Os  irmãos  Cointet  metem  na  contena  um  advogado, 
Petit-Claud,  astuciosíssimo,  sem  sombra  de  probidade  e 
tão  venal  que  se  presta  a  ser,  na  mira  dum  casamento  pro- 
metido e  de  que  lhe  advirão,  como  de  facto  os  mais  eleva- 
dos postos  da  magistratura,  um  testa  de  ferro  ignóbil, 
revoltantemente  hábil,  dos  impressores-agiotas. 

Consuma-se  plenamente,  sobretudo  depois  que,  por  um 
ardil  dum  ex-empregado  de  David,  este  é  preso,  o  infame, 
diabólico  plano. 


HONORÉ    DE    BALZAC  Õl 

O  marido  de  Eva  sai  solto,  mediante  a  revelação  do 
seu  segredo  industrial,  e  o  usufruto  do  seu  invento,  cujo 
êxito  era  belo,  condigno  remate  de  anos  e  anos  de  labutas 
e  canseiras,  sonegam-lho,  dando-lhe  uma  miserável  compen- 
sação, iludida  a  boa  fé  do  infeliz  que  acaba  por  crer  que  a 
exploração  mercantil  da  sua  descoberta  está  longe  de  cor- 
responder, como  lhe  asseveram  insidiosa  e  falsamente,  aos 
fartos  dispêndios  de  dinheiro,  feitos  com  as  grandes  expe- 
riências definitivas. 

Ainda  David  estava  e  estaria  escondido  em  casa  da 
engomadeira,  amiga  de  Eva,  quando  Luciano,  de  regresso 
de  Paris,  a  pé,  abandonando  a  humilde  habitação  dos  mo- 
leiros a  quem  pediu  pousada,  chegou  a  Angoulême  e  en- 
trou na  casa  dos  seus.  Vinha  com  um  trajo  pouco  apresen- 
tável. Esta  circunstancia  talvez  o  abalasse  quase  tanto 
como  o  pesar  de  ter  desgraçado  os  parentes  e  a  comoção 
com  que  antevia  um  acolhimento  de  lagrimas  e  de  expro- 
brações  cordiais.  Foi  para  ele  uma  felicidade  escapar,  no 
seu  trajecto  pela  cidade,  aos  olhares  curiosos  dos  seus  con- 
terrâneos ! 

O  modo  como  Luciano  é  recebido,  sobretudo  a  atitude 
da  irmã,  está  plenamente  justificado  pelo  que  se  pode  de- 
preender sobre  o  ambiente  moral  dessa  familia.  A  mãi  com- 
petia naturalmente  a  função  de  censora. 

Luciano  ouviu,  emudecido  de  perturbação,  a  repri- 
menda  discreta. 

A  mãi  do  poeta,  á  semelhança  de  Eva,  não  nutria  já 
por  ele  aquele  afecto  profundo,  incondicional.  Os  desre- 
gramentos conhecidos,  o  caso  das  letras,  origem  daquela 
desesperada  situação,  fizeram-no  baixar  sensivelmente  na 
estima  delas.  Quando,  mais  tarde,  Luciano  é  suposto,  e 
ele  mesmo  se  crê,  o  causador  da  prisão  de  David,  o  mais 
deshumano  golpe  vibrado  ao  seio  da  familia,  é  também  a 
mãi  que,  num  simples  olhar  intensamente  significativo, 
lança  a  maldição  ao  filho. 

Luciano  sofre,  acima  de  tudo,  com  a  diferença  que 
encontra  no  trato  da  irmã,  em  relação  ao  passado,  da  mais 
saudosa  intimidade. 

Eva,  por  um  momento  persuadida  de  que  o  irmão  ia 


52  HOXORÉ    DE    BALZAC 

salvar  a  família,  obtendo  a  intercessão  da  condessa  du 
Châtelet,  novamente  cativada  com  as  seduções  do  seu  an- 
tigo enamorado,  mostra  que,  na  sua  alma  carinhosa,  havia 
ainda  reminiscências  do  seu  velho  afecto  extremosissimo, 
quando  se  dispõe  a  sair  com  Luciano,  de  braço  dado,  a 
sós,  de  passeio.  Também  a  isso  a  impele  o  orgulho  que, 
como  irmã,  sente  ao  saber  da  fama  de  Luciano,  admirado 
por  todos,  na  cidade.  E  nessa  tarde,  em  que  Eva  se  entrega 
a  esse  prazer  —  que  lhe  fica  mal,  como  ela  nota  logo, 
estando  o  marido  sequestrado  ao  convivio,  para  evitar  a 
detensão,  escandalosa  num  meio  pequeno  — ,  que  os  dois 
irmãos,  de  regresso  a  casa,  vêem  passar  David,  a  seu  lado, 
sob  prisão,  entre  a  escolta,  precedido  e  seguido  pelo  povo. 

Então  Eva  perde  os  sentidos  e  é  levada  para  casa,  em 
braços. 

Luciano  cria  ter  reconquistado  a  estima  e  admiração 
dos  seus,  após  o  resultado  esplendido  das  suas  sugestões 
sobre  Luísa,  maquinadas  para  tirar  David  do  opróbrio  e 
dar-lhe  meios  de  fortuna. 

Ele,  vaidoso,  esperava  esse  resultado,  antegosava  já  as 
delicias  do  triunfo,  ao  informar  David,  em  confidencia,  so- 
bre o  seu  plano. 

Diante  da  irmã  prostrada,  fulminado  pelo  olhar  de 
maldição  que  a  mãi  lhe  deita,  tudo  se  desvanece  naquele 
cérebro,  nem  um  frágil  assomo  de  defesa  sequer,  a  mais 
levemente  esboçada  tentativa  de  reacção.  E,  alta  noite,  re- 
solvido a  deixar  para  sempre  os  seus,  escreve  uma  carta 
longa,  dirigida  á  irmã,  carta  febril,  redigida  a  intervalos, 
tantos   quantos   os  acessos  de  prolongado  choro  silencioso. 

Apesar  de  Eva  não  ser  já  a  mesma  doutrora,  aquela 
que  tão  submissal  conhecera,  agora  toda  reflectia,  desen- 
volvida a  razão,  cruelmente  experimentada  pela  má  sorte, 
só  a  ela  o  poeta  escreve,  no  cumulo  da  dor,  despedíndo-se, 
em  termos  de  que  se  infere,  um  tanto  vagamente,  que  vai 
acabar  com  a  vida. 

Ao  sair,  de  madrugada,  beija  a  irmã  que  está  dor- 
mindo. 

Aquela  ideia  de  Luciano,  expressa  na  carta,  de  ser 
predestinado  pela  fatalidade  a  promover  a  desdita  dos  seus, 


HONORÉ   DE   BALZAC  53 

foi  determinada  por  uma  evocação  de  Paris,  dum  banquete 
de  amigos  no  Rocher  de  Cancale !  Isto  é  extremamente 
caracteristico.  O  poeta  tinha  uma  vontade,  uma  coragem 
intermitentes,  fugazes,  sem  consistência,  facilmente  desnor- 
teáveis. A  carta  á  irmã  faz  supor  uma  decisão  que  não  pas- 
sa, em  verdade,  dum  rasgo  espectaculoso,  como  provam  os 
acontecimentos  posteriores.  É  uma  peça  interessante  e  va- 
liosa, não  obstante  se  acumularem  demasiado  nela  os  traços 
autopsicologicos.  É  certo  que  poderia  estar  a  fazer  o  seu 
exame  de  consciência,  dando  o  balanço  ás  suas  culpas.  Mas 
uma  analise  tão  minuciosa  de  si  mesmo  requeria  serenidade 
a  que  se  opunha  o  alvoroço  do  momento.  E,  todavia,  como 
de  Luciano,  homem  de  falsos  aparatos,  se  pode  crer  que 
fosse  capaz,  por  instinto,  de  insinceridade,  quem  sabe  se  o 
grande  personagem  que  tanto  dera  que  falar  em  Augoulê- 
me,  queria  deixar  da  sua  passagem  um  rasto  de  efeito?  O 
mistério  da  carta  é  obra  de  artista.  Demais,  em  duas  pala- 
vras, estava  dito  tudo.  O  homem,  porém,  deita  discurso, 
como  se,  em  tribunal,  falasse  a  juis  ou  a  jurados. 

Seria  a  carta  uma  mera  farça? 

Certo  que  o  não  era,  na  intenção.  Em  todo  o  caso,  sal- 
dadas as  contas,  era  como  se  o  fosse. 

Luciano  foi,  na  esfera  da  actividade,  um  dilettanti.  Ven- 
cer ruidosamente,  onde  quer  que  se  intrometesse,  eis  a  sua 
aspiração  suprema,  sempre  viva,  com  uma  condição  ape- 
nas: que  lhe  não  custasse  muito. 

Refregas,  em  que  o  esforço  rijo,  perseverante  é  garan- 
tia exclusiva,  mas  segura,  infalivel,  do  êxito,  não  podiam 
oferecer-lhe  probabilidade  de  triunfo.  Bastava-lhe  que  a 
vaidade  fosse  lisongeada,  que  o  amor-proprio  fosse  satis- 
feito, para  que  uma  estéril  gloriola  o  deslumbrasse.  É  ver 
como  interpreta  as  aparatosas  manifestações  de  apreço  de 
que  foi  alvo,  por  combinação  de  falsos  amigos,  na  sua  terra. 

Nada  mais  frisante,  ponderadas  bem  as  circunstancias, 
como  afirmação  dum  caracter.  No  fundo,  Luciano  tinha 
qualquer  cousa  dum  aventureiro  que  seria  terrivel  se  á  des- 
marcada ambição  correspondessem,  cooperando  com  a  inte- 
ligência, energia  e  bom-senso. 

Note-se  o  espanto  que  produziu  na  melhor  sociedade 


54  HONORÉ    DE    BALZAC 

de  Angoulême  e  como,  de  golpe,  a  conquistou,  com  os  seus 
ares  de  grão-senhor,  exibindo  os  seus  recursos  de  homem 
superior  nos  salões  de  De  Sénonches.  E  quão  excelente- 
mente fundado  é  aquele  reatar  de  relações  amorosas,  entre 
Luisa  e  Luciano,  impossivel  em  Paris,  mas  tão  determinado 
pelo  ambiente  da  provincial 

Eva  e  David  acabam  por  vender  a  tipografia  e  com  as 
indemnizações  recebidas  dos  irmãos  Cointet,  proprietários 
afinal  do  invento  que  os  fez  milionários,  conseguem  arran- 
jar com  que  viver  despreocupada,  se  bem  que  modestamente, 
e  recolhem  a  uma  vivenda  que  adquirem,  fora  de  Angou- 
lême. Morto  o  avaro  Séchard,  a  sua  enorme  fortuna  passa 
para  os  dois  esposos  e  ei-los  completamente  felizes,  ao  cabo 
de  tanto  sofrimento. 

Luciano,  tendo  saído  de  Angoulême,  naquela  mesma 
madrugada,  encontra,  caminhando  por  uma  estrada,  um 
rico  cónego  de  Toledo  que  se  diz  embaixador  do  seu  rei 
junto  do  de  França  e  que  vai  de  viagem  para  Paris.  Sob  a 
influencia  eminentemente  persuasiva  dos  seus  conselhos, 
dispõe-se  a  acompanhá-lo  e  desiste  prontamente  do  sui- 
cidio. 

Balzac,  á  data  da  composição  de  César  Birotteau,  en- 
contrava-se  já  na  plena  posse  dos  seus  altos  recursos  de 
criador  d'almas. 

De  certos  tics  mesmo  da  personalidade  o  romancista 
tira  partido.  Assim,  para  definir  César  Birotteau,  as  inva- 
riáveis palavras  que  este  repete,  como  estribilho,  em  justi- 
ficação da  sua  promoção  na  ordem  da  legião  d'honra,  e 
aquele  habito  de  se  erguer  nas  pontas  dos  pés,  deixando-se 
depois  abater  sobre  os  calcanhares  e  pondo  as  mãos  cruza- 
das atraz  das  costas. 

Em  todas  as  suas  conversas  com  Anselmo  Popinot, 
o  caixeiro  que  vem  depois  a  estabelecer-se,  por  conta  de 
Birotteau,  inaugurando  o  seu  comercio  com  o  Óleo,  pri- 
meiramente denominado  Cesário  e  mais  tarde,  definitiva- 
mente, Cefálico,  o  perfumista,  mais  talvez  que  em  quais- 
quer outros  momentos,  exceptuadas  as  vezes  em  que  se 
dirige  a  sua  mulher  e  a  ouve,  avulta,  a  nossos  olhos,  cria 


HONORÉ    DE    BALZAC  00 

corpo,  revela-se  como  caracter,  simpático  sempre  na  sua 
inesgotável  bonhomia,  simpático  ainda  —  pois  que  é,  de 
natureza,  um  ingénuo,  um  sincero  —  quando,  sob  a  influen- 
cia duma  vaidade  de  espirito  pobre,  inferior,  que  o  leva 
á  crença  em  presumidos  dotes  pessoais,  se  deixa  explorar 
por  todos. 

A  mulher,  Constança,  tem,  em  bom-senso  e  instintiva 
consciência  da  maldade  humana,  o  que  falta  ao  marido. 
Ha  palavras  dela  que,  nas  condições  em  que  as  profere, 
esclarecem,  a  toda  a  luz,  o  fundo  da  sua  alma. 

Quero  apontar  algumas,  características,  do  máximo 
poder  intrínseco  de  expressão.  Birotteau,  radiante  de  entu- 
siasmo, reconhecendo  que  Anselmo,  cooperando  com  ele, 
aplanara  dificuldades  importantes,  e  que  o  Óleo  Cesário 
decidiria  da  sua  felicidade,  aceitou,  sem  hesitações,  o 
plano  definitivo  do  arquitecto  Grindot  e  dispunha-se  a 
igualmente  aceitar  os  alvitres  de  Lourdois,  encarregado  da 
pintura  decorativa,  que  lhe  falava  de  dourados  para  a  sala, 
quando  Constança  interveio,  exclamando:  « —  Senhor 
Lourdois,  o  senhor  tem  trinta  mil  libras  de  renda,  mora 
numa  casa  que  lhe  pertence,  pode  fazer  nela  o  que  quiser; 
mas  nós  outros  . .  ,  > 

«  —  Minha  senhora  —  respondeu  o  interpelado  —  o  co- 
mercio deve  brilhar  e  não  se  deixar  esmagar  pela  aristo- 
cracia. Demais,  o  senhor  Birotteau  é  já  uma  autoridade, 
está  em  evidencia  .  .  .  > 

« — Sim,  mas  tem  ainda  loja  de  negocio  —  replicou 
Constança,  diante  dos  caixeiros  e  de  todos  os  presentes  — 
Nem  eu,  nem  ele,  nem  os  seus  amigos,  nem  os  seus  inimi- 
gos, o  havemos  de  esquecer. » 

Nova  situação,  em  que  Constança  se  ostenta  flagrante- 
mente. Dias  antes  de  chegado  o  famoso  domingo  em  que 
os  Birotteau,  para  solenizar  a  libertação  do  território, 
como  para  celebrar  a  promoção  do  dono  da  casa  na  or- 
dem da  Legião  d'Honra,  dariam  um  banquete  e  um  baile 
magnificentes,  pai,  mãi  e  filha  reuniram-se  para  deliberar 
sobre  os  convites  a  endereçar,  devendo  organizar-se  a  lista 
respectiva.  César  propôs  que  se  começasse  pelos  <;  grandes  > 
e  na  cabeça  do   rol   pretendia  que  a  filha  começasse  por 


56  HOXORÉ    DE    BALZAC 

escrever  os  nomes  do  « senhor  duque  e  senhora  duquesa  de 
Lenoncourt».  Constança  interveio: 

« — Deus  meu!  César,  não  envies  um  único  convite 
ás  pessoas  que  não  conheces  senão  na  qualidade  de  forne- 
cedor. » 

E  depois  de  lhe  fazer  ver  a  insânia  da  pretensão,  de- 
monstrando-lhe,  pela  voz  da  razão,  que  outros  convites,  do 
mesmo  jaez,  seriam  descabidos,  exclamou: 

« —  Tu  estás  doido,  as  grandezas  dão-te  volta  ao 
miolo!» 

Que  maior  pujança  de  traço,  na  expressão  da  reali- 
dade, poderá  desejar-se?  Esta  situação  tem  uma  impor- 
tância capital  para  a  determinação  do  caracter  do  perfu- 
mista  e  do  de  sua  mulher.  De  resto,  sempre  que  estejam 
na  presença  um  do  outro,  estes  dois  seres  definem-se. 

Por  estoutro  episodio,  o  conhecimento  da  alma  de 
Constança  adquire  nitidez  e  precisão  maiores.  E  o  mais 
concludente  possivel,  também. 

Na  mesma  ocasião,  em  que  César,  Constança  e  Cesa- 
rina,  a  filha,  se  reuniram  em  conferencia,  assentando  na 
forma  de  proceder  á  confecção  da  lista  dos  convidados, 
Constança,  a  certa  altura,  ouvindo  dizer  ao  marido  os 
nomes  do  senhor  conde  e  da  senhora  condessa  de  Fontaine, 
e  de  sua  filha  Emilia  de  Fontaine,  nomes  que  Cesarina  ia 
inscrever  na  lista,  exclamou,  a  propósito  da  filha  dos 
condes: 

< — Uma  impertinente,  uma  delambida  que  me  faz 
sair  do  estabelecimento  para  lhe  falar  á  portinhola  da  car- 
ruagem, seja  por  que  tempo  fôr.  Se  cá  vier,  é  para  zombar 
de  nós.  > 

Nestas  palavras  está  a  perfumista  toda,  o  mais  fiel- 
mente representada. 

Na  véspera  do  dia  solene,  César  foi  recebido  cava- 
leiro, na  Chancelaria  da  Legião  d'Honra.  Ao  regressar  a 
casa,  no  auge  do  entusiasmo,  sem  falsa  modéstia,  não  se 
contenta  com  a  fita  e  mira-se,  pálido  de  alegria,  em  todos 
os  espelhos,  para  ver  a  cruz  da  ordem,  com  que  engalanou 
a  botoeira. 

Era   chegada  a  hora   do   jantar.   Estavam  á  mesa  os 


HONORÉ    DE    BALZAC  57 

tres,  pai,  mãi  e  filha.  César,  sem  cuidar  doutra  cousa  que 
não  fosse  a  causa  primordial  do  seu  regosijo,  conta  que  o 
próprio  chanceler,  o  senhor  de  Lacépède,  aceitou  o  con- 
vite para  o  baile  e  banquete,  mediante  intercessão  de 
De  La  Billardière.  O  bom-senso  em  pessoa,  insensivel  á 
vaidade,  e,  acima  de  tudo,  mulher  e  dona  de  casa,  Cons- 
tança adverte,  dirigindo-se  ao  marido : 

« — Mas  come,  homem!» 

E  dirigindo-se  a  Cesarina: 

« — E  peor  que  as  crianças,  teu  pai!> 

Não  é  necessário  mais  para  conhecer  o  interior  do- 
mestico, 

César  Birotteau  é,  como  sua  mulher,  uma  figura  ver- 
dadeiramente humana,  da  média  da  humanidade. 

Interessa,  mas  não  é  esse  o  meu  intento  agora,  deter- 
minar o  que  no  perfumista  ha  de  caracteristico,  quanto  á 
época  em  que  se  nos  apresenta.  Sobretudo,  o  que  desejo 
acentuar  é  o  que  ha  nele  de  humano,  de  universalmente 
humano. 

César  é  um  pobre  homem,  com  ares  de  alguém.  Mas  é 
uma  crusta  apenas,  isso  que,  ao  primeiro  aspecto,  nele 
podia  haver  de  pessoa  de  importância.  Chefe  de  familia 
exemplar,  negociante  sério,  quanto  possível,  apesar  dos  trucs 
de  que  tinha  de  usar,  para  a  boa  venda  da  Pasta  das  Sul- 
tanas e  da  Agua  Carminativa,  individuo  capaz  de  ser 
amigo  certo,  caracter  e  temperamento  dispostos  ao  bem, 
natureza  sã  de  altruísta,  eis  o  homem.  O  que  tinha  de 
bondosa  a  sua  alma,  documenta-o  o  procedimento  que 
adoptou,  no  mais  aflitivo  dos  transes,  a  um  passo  da  fa- 
lência, para  com  sua  mulher,  escrupulizando  em  evitar-lhe 
o  mais  leve  motivo  de  desgosto. 

E  não  se  julgue  que,  sendo-lhe  a  mulher  superior  em 
inteligência  ou  finura  de  espirito,  ainda  que  também  de 
mui  restrita  educação,  o  dominasse  a  ponto  de  lhe  fazer 
ter  medo  de  revelar  o  que  sucedia.  Não  era  o  medo,  era  a 
consideração  que  votava  a  Constança,  consideração  que, 
num  grau  eminente,  dignificava  a  sua  amizade  de  marido. 
Mas,  além  da  consideração,  manifestam-se  nesse  procedi- 
mento de  César  os  extremos  de  carinho  que  decerto  prodi- 


58  HONORÉ    DE    BALZAC 

galizava  á  esposa.  Note-se  que  casou  por  amor.  Não  foi  um 
casamento  de  interesse.  O  perfumista  não  era,  no  intimo, 
um  vulgar,  baixo  interesseiro;  presava,  creio,  mais,  muito 
mais,  as  honrarias  que  o  dinheiro.  Não,  não  era  interesse 
grosseiro  o  desse  homem  simples  que  mourejara  a  sua 
vida,  antes  de  obter  uma  situação  mais  solida  e  desafogada. 
E  quando  se  metteu  no  negocio  dos  terrenos  da  Madalena, 
nessa  tremenda  especulação  que  o  levou  á  bancarrota, 
César  pensou  provavelmente  em  satisfazer  a  ambição  da 
mulher,  de  adquirir,  com  celeridade,  pecúlio  que  bastasse 
para  deixarem  Paris  e  o  negocio  e  irem  viver  para  a  pro- 
víncia, em  bens  territoriais  que  já  possuiam. 

César  confessou  mesmo  a  sua  mulher  que  o  seu  fim, 
ao  tomar  parte  nessa  especulação,  em  que  irremediavel- 
mente comprometeu  os  seus  capitais,  era  aumentar  a  do- 
tação da  filha,  facilitando-lhe,  por  essa  forma,  o  casamento. 
Nessa  confissão  o  perfumista  era  sincero,  pois  sincero  era 
sempre  para  com  sua  mulher.  De  resto,  a  sinceridade 
estava  no  fundo  daquela  natureza  de  ingénuo.  César  era 
um  espirito  fraco,  mas  bom  e  particularmente  sensivel  á 
comoção. 

Ao  regressarem  do  jantar  em  casa  dos  Ragon,  César, 
Constança  e  Cesarina,  no  trem  que  os  conduzia  a  casa,  o 
perfumista  chora:  as  lagrimas,  na  obscuridade  do  trem, 
lagrimas  silenciosas,  vão  cair  quentes  nas  mãos  da  esposa 
e  da  filha.  Que  basta  para  o  fazer  alegrar?  Que  Cesarina 
lhe  diga  que  seu  noivo,  Anselmo  Popinot,  está  resolvido  a 
verter  o  sangue  por  ele. 

Mais  tarde,  numa  crise  desesperada,  tendo  o  perfu- 
mista procurado  baldadamente  Nucingen  e  Du  Tillet,  ban- 
queiros, o  que  o  fez  reconhecer  a  perda  total  do  seu  cre- 
dito, César,  abatido,  adormece,  emquanto  a  filha  toca  piano 
e  depois  da  mulher,  trabalhando,  o  consolar  por  um  espe- 
rançado sorriso. 

César  estava  longe  de  possuir  a  tempera  rude  — 
prova-o  o  haver  tão  facilmente  vergado  á  adversidade 
—  que  fariam  supor  as  condições  em  que,  vindo  da  pro- 
víncia, a  pé,  sem  dinheiro,  se  sujeitou  ao  trabalho,  para 
alcançar,  um  dia,  emfim,  a  independência. 


HONORÉ    DE    BALZAC  59 

Outras  situações  importantes  —  toda  a  acção  gravita 
em  torno  da  figura  central,  César  Birotteau  —  definem  a 
individualidade  do  perfumista:  ao  saber,  de  chofre,  por 
informação  de  Crottat,  da  fuga  de  Roguin,  o  notário,  de 
cuja  casa  fizera  o  banco  para  deposito  dos  seus  capitais, 
destinados  ao  negocio  da  Madalena;  as  suas  entrevistas 
com  os  Keller  e  o  seu  encontro  com  Uu  Tillet  e  especial- 
mente quando  este,  levando-o  a  sua  casa,  lhe  faz  o  emprés- 
timo dos  dez  mil  francos ;  a  sua  primeira  visita  ao  estabe- 
lecimento de  Popinot,  seu  ex-caixeiro;  quando,  conhecedor, 
em  toda  a  plenitude,  do  irremediável  descalabro  dos  seus 
negócios,  da  sua  vida  de  negociante,  no  auge  do  desespero, 
no  extremo  aniquilamento  da  sua  pessoa,  ajoelha,  põe  as 
mãos  e  reza  o  padre-nosso,  comovendo  todos  pela  unção 
com  que  profere:  «o  pão  nosso  de  cada  dia  nos  dai  hoje...»; 
na  maneira  como  acolhe  os  mil  francos  que  lhe  envia  o 
irmão  padre;  quando  intervém,  impedindo  que  a  Madon, 
para  se  pagar  por  suas  mãos,  faça  pilhagem  no  estabele- 
cimento, prometendo  trabalhar  de  carregador,  como  um 
negro,  mas  que  solverá  os  seus  compromissos,  etc. 

A  desgraça  engrandece  o  perfumista.  Todos  se  sentem 
confrangidos,  vendo-o  vergar  ao   peso   de  tão  grande  dor. 

Emquanto  feliz,  foi  talvez  um  incompreendido,  a  não 
ser  pelos  seus,  mulher  e  filha,  e  pelos  caixeiros  que  o  esti- 
mavam. 

A  falência,  com  todo  o  seu  cortejo  de  desgostos,  fa- 
zendo reçumar  o  que  havia  de  bom,  de  puro  no  intimo 
daquela  alma,  deu  em  resultado  subir  o  perfumista  no  con- 
ceito de  amigos  e  conhecidos,  impressionados  pelo  que  de 
magnificamente  probo  revelavam  os  seus  actos. 

Surgem  ainda,  por  vezes,  uns  restos  de  fatuidade  ridi- 
cula,  como  no  caso  da  visita  ao  estabelecimento  de  Po- 
pinot, no  regresso  do  tribunal  do  Comercio.  Um  falso  sen- 
timento de  superioridade  leva-o  a  exclamar,  após  ter  olhado 
para  a  taboleta  do  seu  ex-caixeiro,  onde  se  exibia  o  nome 
deste:  «Eis  um  dos  lugares-tenentes  de  Alexandre!» 

Que  César  era  um  homem  essencialmente  honrado, 
testem unha-o  a  sua  atitude,  ante  o  tio  de  sua  mulher, 
Pillerault,   ao  dizer-lhe  este  que  o  seu  futuro  genro,  An- 


tíO  HONORÉ    DE    HALZAC 

selmo  Popinot,  queria  reabilitá-lo,  sem  mais  detença  e  de 
vez,  cedendo-lhe  os  capitais  necessários  para  o  pagamento 
integral  aos  credores.  Ao  excelente  homem  repiignava-lhe 
isso  que  ele  chamava:  «vender  a  sua  filha». 

Atente-se  ainda  na  maneira  como  recebeu  a  leitura  da 
sentença,  feita  pelo  primeiro  presidente,  no  Palácio  de  Jus- 
tiça, na  sala  das  audiências  solenes,  sentença  que  o  reinte- 
grava na  posse  de  todos  os  direitos  civis  de  que  o  privara 
a  falência:  César  <não  poude  abandonar  o  seu  lugar  junto 
á  barra,  parecia  que  estava  pregado  a  ela,  olhando  como 
um  aparvalhado  para  os  magistrados,  como  se  fossem  anjos 
que  viessem  reabrir-lhe  as  portas  da  vida  social. >  Isto  é 
mais  um  traço  a  acrescentar  a  tantos  outros,  para  pôr  em 
relevo  a  compleição  moral  do  homem. 

Pondere-se  ainda  uma  outra  curiosa  circunstancia, 
ocorrida  em  seguida  a  essa  memorável  sessão  do  tribunal, 
no  dia  mais  jubiloso  da  existência  do  perfumista.  Este 
recebera,  anteriormente,  com  a  doação  de  6:000  fran- 
cos, feita  por  intermédio  do  visconde  de  Vandenesse, 
ordem  régia  de  voltar  a  usar,  desde  logo,  a  insignia  da 
Legião  d'Honra.  Pois,  apesar  da  sua  extrema  dedicação 
pelo  rei,  só  depois  de  ouvir  aquela  sentença  que  o  «ful- 
minou» de  prazer,  se  decidiu  a  repor  na  botoeira  a  fita 
da  Legião. 

Antes  de  entrar  na  carruagem,  ou  já  dentro  dela,  aos 
seus  amigos  que  se  dispunham  a  acompanhá-lo  a  casa, 
César  manifesta-lhes  o  desejo  de,  primeiro,  entrar  na  Bolsa 
e  usar  dos  seus  direitos. 

Que  o  perfumista  era  um  homem  de  coração,  final- 
mente, prova-o,  além  do  que  fica  apontado  e  salientado,  o 
que  se  deu  por  ocasião  daquela  ida,  com  a  mulher,  a  filha 
e  o  prometido  desta,  a  Sceaux,  onde  o  aguardavam  os  seus 
amigos  fieis:  devem  acentuar-se  as  expressões  profunda- 
mente sentimentais,  dirigidas  a  Constança,  emquanto  ambos 
passeavam,  precedidos  pelo  par  de  noivos,  nos  bosques 
d'Aulnay.  Aí  confessou  a  sua  mulher  que  ela  era  «  o  seu 
siso  e  a  sua  prudência  >.  Tão  vibrantes  foram  as  expansões 
da  sua  alma  que  Constança  sentiu  augmentar-se-lhe  o  amor 
por  César. 


HOXORÉ    DE    BALZAC  61 

Ursule  MirouH  é  um  dos  raros  romances  d'amor, 
propriamente  ditos,  da  produção  de  Balzac.  Amor  roma- 
nesco, caracteristicamente  romanesco.  Inverosímil?  Certo 
que  não. 

Repleto  de  poesia,  não  carece  de  humanidade. 

Sofre,  porém,  a  realidade,  com  os  artifícios  —  nesta 
obra,  estranhos,  por  vezes  —  da  imaginação. 

A  conversão,  operada  por  Úrsula,  do  velho  doutor 
Minoret,  seu  padrinho,  ao  catolicismo  tem  o  defeito,  mani- 
festamente grave,  de  ser  precipitada,  senão  provocada,  pelo 
mesmerismo  que  presta,  só  na  aparência,  serviço  á  acção, 
lesada,  na  sua  constituição  lógica,  pela  interferência  for- 
çada do  elemento  sobrenatural,  actuando  não  apenas  inci- 
dentalmente, mas  como  factor  preponderante.  Ha,  porém, 
neste  romance,  muito  de  amplamente  compensador.  Aquele 
cerco  dos  vorazes  herdeiros  do  velho  doutor  e  aquele  tor- 
turado viver  sob  o  remorso,  em  que  se  consome  o  atlético 
Minoret-Levrault,  são,  em  particular,  maravilhas  duma  arte 
superior. 

Apesar  de  sumariamente  construídas,  as  figuras,  indi- 
vidualmente consideradas,  são  inconfundíveis.  De  tal  ma- 
neira se  adaptam  acção  e  figuras  mutuamente  que  bastaria, 
de  ordinário,  a  acção,  por  si  mesma,  para  determinar,  pela 
natureza  da  intervenção  das  figuras  nela,  as  modalidades 
fundamentais  do  seu  caracter  moral. 

Não  julgo  que  se  encontrem,  em  Ursule  Mirouêt,  figuras 
com  mais  relevo  que  as  dos  esposos  Minoret-Levrault.  Não 
obstante  a  solicita,  carinhosa  diligencia  com  que  Balzac 
compôs  a  admirável  protagonista  —  uma  das  suas  mais 
cuidadas  figuras  de  mulher  —  sobrelevam-lhe,  pelo  vigor 
com  que  se  afirmam,  sempre  que  surgem,  aqueles  dois 
curiosíssimos  esposos,  criação  exuberante  de  realismo.  Não 
ha  palavra  que  profiram,  que  não  seja,  em  geral,  muito 
deles,  a  mais  própria,  a  exacta  expressão  dos  seus  tempe- 
ramentos. 

Mme  Minoret-Levrault  colhe-se  em  flagrante,  por 
exemplo,  no  modo  como  trata,  nos  termos  que  dirige  a 
Savinien,  quando  este,  querendo  castigar  as  afrontas  que 
acabavam   de  ferir  quase  mortalmente  Úrsula,  a  sua  que- 


62  HONORÉ    DE    BALZAC 

rida  noiva,  vai  a  casa  dos  dois  esposos  e  se  lhes  apresenta 
e  os  increpa,  de  chapéu  na  cabeça,  em  ar  vexante  de  de- 
safio. O  marido  também  aí  se  mostra  tal  qual,  como  seria, 
conjecturo,  mesmo  que  o  remorso  lhe  não  minasse  já  a 
alma,  e  a  consciência  lhe  não  bradasse  que  fora  um  crimi- 
noso vilissimo,  roubando  as  inscrições,  destinadas  a  Úrsula 
pelo  seu  afectuoso  padrinho. 

A  boçalidade  enorme  de  Minoret-Levrault  está  exce- 
lentemente comprovada  por  todos  os  seus  actos  e  por  todas 
as  suas  palavras.  Aquela  obstinação,  promovida  pela  ideia 
fixa,  de  fazer  crer  a  todos  que  a  causa  do  seu  cruel  proce- 
dimento contra  Úrsula  era  o  desejo  de  impedir  que  seu 
filho  casasse  com  ela,  é  um  testemunho  decisivo  sobre  o 
homem,  se  bem  que  atravessasse  então  já  um  estado  mór- 
bido. 

Goupil,  na  sua  ruindade  audaciosa  de  ambicioso  feroz, 
apresenta  também  multiplicados  traços  vivazes,  conver- 
gentes todos  para  o  mesmo  odiento  efeito.  E  uma  alma 
pútrida.  Capaz  de  crimes,  não  o  tentavam  os  processos 
vulgares  que  põem  o  delinquente  tanto  a  descoberto;  co- 
nhecedor do  código  penal,  não  se  expunha  a  perigos,  ope- 
rava, com  a  segurança  plena  da  impunidade,  infames  tor- 
pezas. A  sociedade  da  sua  terra  —  uma  sociedade  de  pro- 
víncia—  tolerava-o,  talvez  até  não  antipatizasse  com  ele. 
As  autoridades,  os  influentes,  as  pessoas  mais  gradas,  pa- 
lestrando, falariam  certamente  das  proezas  desse  maroto  — 
a  cavaqueira  sobre  o  próximo,  a  favor  dos  fortes  ou  dos 
audaciosos  e  contra  os  fracos  ou  os  oprimidos  é  parte 
obrigada,  pelo  menos  em  certas  rodas  —  e  diriam  dele, 
com  o  ar  falsamente  bonacheirão  de  finórios  que  não 
querem  ser  incomodados:  «Um  pandego!  E,  no  fim  de 
contas,  não  passa  dum  pobre  diabo ! »  Goupil  era  um  con- 
terrâneo. 

Isto  tudo  oferece,  pois,  completa  verosimilhança.  Para 
mais,  Goupil  não  pertencia  ainda  ao  numero  dos  homens 
sérios,  ainda  era  solteiro.  Tinham-no  por  um  rapaz.  Razão 
de  sobra  para  indulgência.  Uma  moral  fácil,  cheia  de  con- 
cessões, é  cousa  de  todos  os  dias.  Balzac  está  na  verdade, 
ao  exibir  uma  população  inteira,  assistindo  indiferente  ás 


HONORÉ    DE    BALZAC  63 

perseguições  de  que  foi  vitima  Úrsula.  '  Parte  dos  ultra- 
ges,  os  derradeiros,  precisamente,  os  mais  graves,  por  ata- 
carem a  honra  de  Úrsula,  foi,  é  certo,  praticada,  sem  que 
se  soubesse,  por  algum  tempo,  qual  o  seu  autor.  Mas  de- 
pois, logo  que,  sem  receio  de  errar,  se  ponde  atribuir  a 
Goupil  essa  série  de  vilanias,  quem  saiu  a  terreno,  aberta- 
mente, para  castigar  o  culpado,  indigno  da  mais  leve 
transigência? 

Somente  consta  que,  uma  noite,  lhe  foram  vibradas, 
por  dois  indivíduos  desconhecidos,  pauladas.  Quem  seria 
o  mandante?  Savinien,  brioso  e  digno,  não.  Malquerenças 
pessoais  que,  por  mera  coincidência,  estalassem  naquele 
momento?  Vingança  tirada  de  qualquer  façanha  do  atre- 
vido? O  caso  não  é  claro. 

Que  Goupil  vivia  nas  boas  graças  dos  seus  conterrâ- 
neos, prova-o  o  trato  cortez,  senão  amigo,  que  lhe  fo^ 
dispensado  na  sua  situação  de  notário,  alcançada  com  o 
dinheiro  de  Minoret-Levrault,  a  quem  servira,  como  testa 
de  ferro.  Bem  casado,  feito  homem  sério,  Gouril  vestiu 
roupas  novas  e  asseverava  impudentemente  que,  no  inte- 
rior, como  no  exterior,  era  outro,  consciência  lavada,  alma 
sã,  toda  probidade  e  rectidão.  Mudanças  destas,  bruscas, 
na  vida  dum  homem,  são  mais  naturais  e  frequentes  do 
que  se  pode  imaginar.  Não  escaparam  a  Balzac,  o  grande 
analista  do  homem  e  das  sociedades. 

Custa   a   admitir    que   Goupil,   apesar   de   toda   a   sua 


1  O  doutor  Minoret,  ainda  que  tão  de  perto  aparentado  com  os 
Minoret,  era,  como  a  afilhada,  um  adventício,  pois  que,  apesar  de 
conterrâneo  daqueles,  fizera  vida,  desde  a  infância,  longe  de  Nemours. 
Contra  Úrsula  conspira  tacitamente  uma  população  em  peso.  Também 
contra  o  general  Montcornet  (em  Les  Pai/saus)  conspira,  mais  osten- 
sivamente, uma  região  inteira,  mal  visto  por  ser  um  estranho,  um 
intruso,  e  brigarem  com  os  seus  interesses  de  proprietário  os  interes- 
ses ilegítimos  dos  rurais.  Estes  e  os  seus  instigadores,  da  classe  bur- 
guesa, são  abomináveis,  odiosos.  Entre  tanta  perversidade,  tanto 
mais  temível  quanto  mais  solerte,  só  ha  uma  excepção,  num  sacristão 
e  coveiro.  Podem  parecer  carregadas  as  tintas.  Julgo,  porém,  na  es- 
sência, verdadeiro  o  quadro.  O  general  afastava-se  dos  provincianos, 
não  arranchava  com  eles.  Dai  também  a  guerra. 


64  HONORÉ    DE    BALZAC 

perversidade,  fosse  tão  tenaz  perseguidor  de  Úrsula  que 
mal  conhecia,  só  porque  aspirava,  com  ardor  veemente,  a 
conseguir  um  emprego  publico,  em  que  fosse  mais  remune- 
rado e  conceituado.  Ele  não  calculava  todo  o  mal  que  fazia 
a  Úrsula,  porque  ignorava  o  seu  nervosismo,  cuja  vibrati- 
lidade  tinha  muito  de  doentio.  Pô-la  ás  portas  da  morte. 
Tanto  encarniçamento  explica-se  por  alguma  cousa  tanto 
ou  mais  poderosa  ainda  que  a  ambição.  Goupil  amou,  a  seu 
modo,  Úrsula,  emquanto  não  deu  fé  de  que  tinha  um  rival 
feliz  em  Savinien. 

Talvez  que,  por  isso,  o  seu  procedimento  fosse  uma 
desforra. 

E  assim  se  percebe  que  tomasse  tanto  a  peito  o  seu 
papel  de  perseguidor.  Goupil  pensou  em  desposar  Úrsula  e 
chegou  mesmo  a  confessá-lo.  Não  era  um  obstáculo  aos 
seus  fins  a  sua  saida  de  Nemours.  Dentro  deste  critério, 
aumenta  o  interesse  que  a  figura  desperta  e  a  sua  psicolo- 
gia torna-se  mais  complexa  e,  simultânea  e  consequente- 
mente, mais  real. 

Antes  de  considerar  Úrsula  —  a  figura  central,  por  le- 
gitimo direito  —  quero  referir-me  á  mãi  de  Savinien  depois 
ao  doutor  Minoret. 

Ciosa  dos  seus  pergaminhos  nobiliárquicos,  a  austera 
senhora  dá  provas  dum  caracter  rigido.  Boa  mãi,  mas 
ferrenha  observadora  dos  preceitos  e  dos  preconceitos  da 
sua  estirpe.  Daí,  uma  certa  dureza  para  com  o  filho  e, 
por  amor  dele  e  fidelidade  integra  aos  seus  princípios 
de  casta,  para  com  Úrsula.  Isto  é  da  velha  fidalguia  e 
da  moderna. 

Contudo,  a  figura  é  humana,  salientemente.  Atente-se 
na  instabilidade  de  resolução  que  manifesta  sobre  o  matri- 
monio do  filho  com  Úrsula.  Ora  parece  estar  disposta  a 
acolhê-la  a  seu  seio,  como  filha,  ora  a  repele  de  si  e  a 
maltrata,  por  um  porte  altivo,  arrogante  que  rebaixa  Úr- 
sula e  a  faz,  altiva  também,  revoltar-se,  ainda  que  em 
silencio,  no  seu  foro  intimo  apenas,  cristãmente  resignada. 
Se  Balzac  tivesse  mostrado  a  mãi  de  Savinien,  como  que 
construída  duma  só  peça,  ou  repudiando  sempre  formal- 
mente a  noiva  do  filho  ou  comprazendo,  sem  hesitar,  sem 


HONORÉ    DE    BALZAC  6Õ 

tergiversar,  com  os  desejos  daquele,  o  caracter  assim  criado 
seria  menos  verdadeiro  ou  antes  menos  verosimil. 

A  figura  do  doutor  Minoret  não  terá  talvez  relevo  pro- 
porcional á  sua  importância  no  romance  mas  é,  ainda  assim, 
uma  figura  que  se  impõe.  A  sua  actividade  é,  no  geral, 
determinada  por  dois  aspectos  dominantes  de  sentir:  a  dedi- 
cação quase  cega  por  Úrsula  e  a  desconfiança  permanente 
de  todos,  até  dos  Íntimos,  de  Bongrand,  nomeadamente,  A 
desconfiança  é  corolário  natural  da  dedicação.  Úrsula  tor- 
nara-se  para  o  venerando  padrinho  a  razão  da  sua  existên- 
cia. Votava-lhe  um  amor  entranhado,  infinito,  e,  nesse  puro 
sentimento  que  foi  o  sol  da  sua  velhice,  havia  a  opulência 
de  qualidades  afectivas  bastante  para  o  tornar  capaz  dos 
rasgos  de  Goriot.  Esse  santo  amor,  em  que  se  ostenta  o 
cunho  da  paixão,  exterioriza-se  com  brilho,  com  o  brilho 
da  verdade.  O  doutor  Minoret,  prodigalizando  os  tesouros 
do  seu  coração,  é  bem  um  modelo  de  humanidade  larga  e 
elevada. 

Na  alma  mimosa  da  afilhada,  toda  feita  de  sensibili- 
dade, extraordinariamente  vibratil,  não  havia  segredos 
para  a  ternura  sempre  vigilante  do  padrinho.  Vira-a  cres- 
cer, desde  a  meninice  mais  tenra  e  seguira-lhe  o  desenvol- 
vimento, as  crises,  com  a  mais  apreensiva  inquietação, 
receoso  de  perdê-la. 

Para  com  a  órfã,  de  quem  se  constituirá  o  amparo,  o 
ancião  assumira,  desde  a  primeira  hora,  a  obrigação  de  ser 
o  mais  disvelado  pai.  Cumpria  a  obrigação,  enlevado,  com 
deleite  fervoroso.  Pois  se  lhe  queria,  se  lhe  quis  sempre, 
como  a  filha  única,  estremecida!  A  atitude  que  sustenta 
ante  Úrsula,  desde  que  sabe  que  ela  anda  enamorada  de 
Savinien,  tem  primores  de  delicadeza  quase  feminina.  No 
seu  porte,  em  todas  as  variadas  peripécias  do  atormentado 
amor  dos  dois  jovens,  o  doutor  Minoret  abre-se-nos,  mais 
patentemente.  Então  se  nos  descortina  o  homem,  não  toda- 
via tanto  que  se  possa  considerar  suprida  a  ignorância  quase 
completa  do  seu  passado.  Subsistem  pontos  obscuros,  não 
sobre  o  móbil  do  seu  procedimento,  mas  sobre  certos  dos 
seus  aspectos.  Assim,  não  se  percebe,  por  exemplo,  aquela 
pertinácia   em    não   aceitar   os   oferecimentos   instantes    de 


66  HONORÉ    DE    BALZAC 

Bongrand,  no  sentido  de  dispor  tudo  para  o  melhor  futuro 
de  Úrsula. 

De  Bongrand,  homem  atilado  e  perito  em  negócios 
forenses  e  financeiros,  o  doutor  Minoret  aproveitou  só  indi- 
cações eventuais,  destinadas  a  valorizarem  a  sua  fortuna, 
em  oportunidades  mais  propicias.  Da  desconfiança,  em  tais 
condições,  —  não  era  licito  duvidar,  de  boa  fé,  da  integri- 
dade moral  de  Jordy,  do  cura  Chaperon,  de  Bongrand — , 
reçuma  qualquer  cousa  de  antipático.  Porque  não  deposi- 
tou o  doutor  Minoret,  no  coração  amigo  desses  protectores 
desinteressados  de  Úrsula  (Jordy  legou-lhe  o  que  tinha;  o 
cura  Chaperon  era  o  seu  director  espiritual,  como  depois 
foi  do  padrinho  convertido;  Bougrand  era  incançavel  nus 
suas  demonstrações  de  estima  sã),  a  confidencia,  bem  justi- 
ficada pela  gravidade  das  circunstancias,  atenta  a  pérfida 
campanha  dos  herdeiros  sedentos,  de  que  pusera  nas  Pan- 
dectas  as  inscrições  que,  segundo  a  sua  vontade,  caberiam 
em  herança  á  afilhada?  Porque  reservou  ele  para  os  seus 
derradeiros  instantes  de  vida  a  informação  do  lugar  em 
que  Úrsula  encontraria,  caso  Minoret-Levrault  se  lhe  não 
antecedesse,  a  carta  que  representava  a  garantia  imediata 
dum  porvir  ditoso?  Positivamente,  não  é  suficiente  expli- 
cação deste  modo  de  proceder  o  desejo  provável  que  o 
ancião  sentiria  de  causar  á  afilhada  uma  grata  surpreza. 
Yê-se  que  a  marcha  da  acção,  com  as  exigências  do  seu 
plano,  adquiriu  vantagens,  em  detrimento  da  constituição 
moral  das  figuras.  O  doutor  era  um  homem  inteligente  e 
um  homem  de  sociedade.  Tudo  o  que  seja  mesquinho,  re- 
pugna atribuir-lhe. 

E-esta  Úrsula  —  e  ás  demais  figuras  não  aludo  em  espe- 
cial, porque  as  julgo  relativamente  secundarias.  O  próprio 
Savinien,  na  sua  organização  psicológica,  não  tem  a  con- 
sistência que  se  poderia  legitimamente  requerer.  Os  traços 
são  extremamente  sumários.  Fala  pouco,  retraidamente,  as 
suas  aparições  são  normalmente  rápidas,  fugidias,  por  inci- 
dente. 

Úrsula,  na  sua  intemerata  virtude,  prende  sempre, 
deslumbra,  por  vezes.  O  que  ha  de  mais  curioso  a  observar 
nela,  são   as  duas  feições  que  tomam  o   amor   filial,   para 


HONORE    DE    BALZAC 


67 


assim  dizer,  e  o  amor  sexual,  conjugados  em  Úrsula,  a  um 
tempo.  Onde  melhor  se  afirmam  os  seus  altos  dotes  morais 
é  na  maneira  como  aceita  e  suporta  a  adversidade.  Não 
era  corajosa.  Dispunha,  porém,  duma  certa  capacidade  de 
resistência  no  sacrificio.  A  energia  de  que  se  manifes- 
tam fugazes  lampejos,  emprestavam-lha  a  crença  católica 
e  o  seu  amor  profundo  por  Savinien.  Tem  um  acesso 
repentino  de  indignação,  quando,  na  febre  da  mais  lanci- 
nante angustia,  recebe  de  Bongrand,  no  próprio  dia  da 
morte  do  padrinho,  a  noticia  de  que  os  herdeiros  o  com- 
pelem a  selar  todas  as  divisões  da  casa,  incluindo  o  seu 
belo  quarto  de  donzela,  cheio  de  recordações.  Mas,  em 
outros  transes,  nem  a  mais  leve  irritação  assoma.  Quando 
é  vitima  das  perseguições  abomináveis  de  Goupil,  não 
solta  um  grito  de  aflição,  num  arranco  de  desespero,  não 
pensa  em  defender  sequer  a  sua  honra  ignobilmente  ultra- 
jada, definha,  dia  a  dia,  inerte,  passiva,  conformada,  enca- 
rando, como  alma  superiormente  cristã,  a  morte  próxima, 
por  extenuação,  esgotamento  de  seiva  vital,  e  por  desgosto 
incomportável. 

Atrozmente  humilhada,  a  inocente  que  o  aviltamento, 
urdido  por  mente  sinistra,  prostrava,  de  sucumbida,  oferece 
toda  a  sublimidade  moral  a  que  pode  guindar-se  uma  alma 
religiosa.  É  pela  sua  virtude  tão  excelsa  que  Úrsula  conse- 
gue decisivamente  captar  as  boas  graças  da  mãi  de  Savi- 
nien que  então,  pela  primeira  vez,  vendo-a  quase  santifi- 
cada pelo  martirio,  lhe  chama  filha.  Isto  só,  porém,  não  a 
salvaria! 

A  honra  de  Úrsula  estava,  no  sentir  da  donzela,  nimia- 
mente agravada  e  comprometida,  para  poder,  com  digni- 
dade, aliar  ao  de  Savinien  o  seu  destino. 

Coberta  de  opróbrio,  entregava-se  serenamente  á  ideia 
da  morte! 

Todas  estas  condições  do  natural  de  Úrsula  são  frisan- 
tes.  Será  inverosímil,  será  irreal  a  figura? 

Admiti-lo,  seria  entender  muito  mesquinha  a  humani- 
dade, mais  ainda  do  que  ela  é. 

Alma  de  eleição,  contudo,  seria  excepção  neste  mundo. 
Ultrapassa  o  ambiente  moral  mais  vulgar  da  vida. 


68  HONORÉ    DE    BALZAC  *" 

Modeste  Mvjnon  é  também  um  puro  romance  d'amor  '. 

Modesta  era  filha  dum  autigo  coronel  que  servira  em 
campanhas  de  Bonaparte.  Nobre  por  ascendência,  o  coro- 
nel, com  a  queda  da  estrela  napoleonica,  feito  capitalista, 
assentou  residência  no  Havre.  Podendo  usar  do  titulo  de 
conde  de  La  Bastie,  o  coronel  era  simplesmente  conhecido 
pelo  sr.  Mignon.  Mas  tinha  a  consideração  especialíssima 
de  que  gosam,  em  terras  de  provincia,  os  muito  endinhei- 
rados. 

Como  sua  mãi,  bondosíssima  senhora  que  muito  sofreu 
6  encegueceu  por  sofrer,  como  sua  irmã  que  veio  a  ter  um 
desgraçado  fim  de  deshonra  e  morte  pela  deshonra,  Modesta 
conheceu  a  abastança  mais  folgada,  poude  educar-se  com 
extremos  de  ilustração  e  começou  a  conhecer  a  vida,  no 
dia  em  que  a  primeira  desilusão  a  feriu.  Cortejava-a  um 
mancebo,  com  a  mira  nos  haveres  que  a  donzela  viria  a 
possuir.  Infeliz,  o  coronel,  num  momento,  viu  perdida  a 
sua  fortuna,  Soube-o  o  mancebo.  Modesta  foi,  imediata- 
mente, desprezada,  esquecida. 

Isto  foi  uma  grande  lição  para  ela.  Para  outra  qual- 
quer, seria  um  namorado  de  mais  ou  de  menos.  Para  Mo- 
desta, esse  acontecimento  marcou  data  na  sua  existência. 

Vem  aqui  a  propósito  dizer  qual  o  caracter,  qual  o 
temperamento  desta  bela  e  forte  figura  de  mulher. 

Não  era  um  animo  leve.  Nada  sabemos  dela  que  no-la 
faça  supor  enfermiça.  Tinha  muitos  nervos,  um  excesso  de 
nervos  que  a  tornavam  extremamente  caprichosa,  sem  ver- 
satilidade. Mais  cerebral  que  sentimental. 

A  virilidade  tomava  nela  o  passo  á  feminilidade. 
Obstinada,  duma  obstinação  férrea,  no  querer,  Modesta, 
desprendida  de  preconceitos,  cujo  significado  não  atingia 
bem,  porque,  segregada  do  convívio,  conhecia  mais  os 
livros  que  o  mundo  e  tinha  uma  razão  insubmissa,  autori- 
tária, sentia,  na  luta  a  sustentar  para  a  realização  dum 
móbil,  ardores  veementes,  agora,  sob  uma  cautelosa  táctica, 


1     Balzac  inspirou-se  nas  circunstancias  reais  em  que  nasceu  e 
se  desenvolveu  o  seu  amor  por  Mme  Hanska. 


HONORÉ    DE    BALZAC  69 

concentrados,  dissimulados,  impenetráveis,  e  logo  cam- 
peando, em  crises  de  arrebatamento,  ousados,  temerários, 
não  a  demovendo  estorvos,  antes  exacerbando-lhe  todas  as 
energias  em  acção.  E  o  poder  da  sua  vontade  impunha-se 
e  não  havia  ataques  ou  resistências  que  lograssem  desviar- 
Ihe  a  direcção,  desorientando-a.  Era  pertinaz  e  sabia  ser 
pertinaz.  Mente  solida,  cultura  intensa,  vasta  e  forte  pela 
matéria,  dava-se  a  reflexões  complicadas  de  espirito  pratico 
e  a  devaneios  alados  de  poesia. 

Se  o  cogitar  tinha  a  inconsistência  da  inexperiência, 
não  lhe  faltava  o  aparato  selecto  duma  lógica  meticulosa. 

E  se  o  imaginar  poético  se  perdia  em  meandros  de 
fantasia  arriscada,  afastando-a  da  vida  real,  criando  nela, 
porventura,  de  momento,  uma  falsa  noção  da  vida,  nem 
por  isso  Modesta  deixava  de  o  subordinar  ás  exigências 
dominadoras  de  aspirações  muito  suas,  aspirações  que 
constituiam  para  ela  um  problema  máximo  a  solucionar, 
custasse  o  que  custasse. 

Mais  que  ajuizada,  inteligentissima,  com  a  consciência 
plena  do  seu  valor  pessoal.  Modesta  seria  capaz  de  destem- 
peres, desde,  porém,  que,  por  ignorância  do  mundo,  não 
soubesse  que  os  cometia.  Fora  disso,  não.  Era  uma  alma 
eleita  de  grande  fidalga.  Estranha  completamente  á  corte, 
provou-se,  uma  vez,  que  bastavam  algumas,  poucas,  horas, 
para  se  tornar  uma  cortesã  perfeita,  com  refinamentos  que 
só  se  apreendem  por  uma  vocação  ingenita.  Modesta  dis- 
punha dum  espirito  superior  demais  para  ser  uma  preten- 
ciosa.  Nunca  poderia  ser  ridicula. 

Irradiava  de  Modesta,  de  ordinário,  nas  situações  em 
que  se  intrometia  e  em  que,  fácil  triunfo  para  ela,  a  todos 
se  avantajava,  magestade,  uma  magestade  que  não  provi- 
nha de  grandes  gestos  enfáticos  ou  de  palavras  altisonan- 
tes,  de  arrogâncias  ou  de  arrebiques.  Era  magestosa  no 
mais  singelo,  desataviado  movimento  natural,  O  seu  falar 
prendia,  conquistava,  subjugava,  era  fascinação  e  era  im- 
pério. Indignada,  a  cólera  costumava  ditar-lhe  o  desprezo, 
arremessado  na  ironia  desconcertante,  humilhadora,  e  raro 
provocava  nela  impulsos  de  desespero.  Obtinha  o  que  que- 
ria,  sujeitava,   sem   violência,   ao  seu  querer,  empregando 


70  HONORÉ    DE    BALZAC 

dons  de  soberana  cordialidade,  um  tanto  fria,  sem  afecta- 
ção. Insinuantemente  voluntariosa.  Pronta  no  sarcasmo 
que  a  fazia  temida  de  culpados.  Monos  pronta  no  rasgo  de 
confiança,  de  generosidade,  de  amizade.  Mas,  chegado  o 
instante  que  lhe  parecia  decisivo,  tinha  um  modo  especial, 
particularmente  sugestivo,  de  ser  confiante,  generosa  e 
amiga. 

Sem  embargo,  a  norma,  nela,  era  o  coração  pedir  á 
cabeça  licença  para  pulsar. 

Eis  bosquejado,  em  traços  concisos,  o  retrato  moral 
de  Modesta  Mignon. 

O  coronel  partiu,  sem  detença,  para  o  Oriente,  afim 
de  adquirir  novos  e  avultados  capitais,  negociando  em 
larga  escala.  A  familia  do  coronel,  reduzida  á  esposa  e  á 
filha  Modesta — uma  outra,  mais  velha,  predilecta  da  mãi, 
abandonara,  seduzida  pelos  requebrados  galanteios  dum 
conquistador  vicioso,  a  casa  paterna  — ,  ficou  no  Havre, 
entregue  aos  solicites  cuidados,  á  dedicada  vigilância  dum 
excelente  amigo  daquele,  o  antigo  tenente  Dumay,  homem 
rude  mas  sincerissimo,  fiel  ao  sr.  Mignon,  como  um  cão  a 
seu  dono.  Jurara  Dumay,  no  momento  da  partida  do  coro- 
nel, que  pagaria  com  a  vida  qualquer  distracção  sua,  por 
mais  leve,  que  desse  ensejo  a  que  Modesta  tomasse  o  cami- 
nho ignominioso  da  irmã.  Tal  juramento  feito  ao  seu  coro- 
nel, a  sós,  nas  mais  solenes  condições,  era  para  o  honrado 
e  leal  tenente  tão  sagrado,  como  se  duma  filha  sua  mui 
querida  se  tratasse.  Cumpri-lo-ia,  pois,  religiosamente  ou, 
talvez  melhor,  marcialmente. 

Dumay,  posto  que  casado,  não  tinha  filhos.  Na  sua 
afeição  respeitosissima  a  Modesta  ia  um  pouco  de  senti- 
mento paternal.  A  ausência  indefinida  do  pai,  a  cegueira 
da  mãi,  a  vinda  da  irmã  desditosa  que,  em  curto  espaço, 
lhe  morreu  nos  braços,  depois  de  a  ter  tomado  por  intima 
confidente  da  sua  angustiada  odisseia  de  dores  irremediá- 
veis, criaram  em  Modesta  disposições  novas  de  viver.  Foi 
então  que  se  apaixonou,  em  espirito,  pelo  poeta  Canalis, 
cujas  obras  conhecia  profundamente.  Segredou-lhe  o  cora- 
ção traiçoeiramente  que  era  esse  o  homem  ideal,  o  homem 
de  génio,   repleto   de  predicados  inestimáveis,  senhor  dos 


HONORÉ    DE    BALZAC  71 

mais  altos  destinos,  bemfeitor  espiritual  máximo  da  huma- 
nidade. Por  ele  —  murmuraram  na  alma  de  Modesta  vozes 
doces,  generosas  —  devia  a  mulher  de  inteligência  sacrifi- 
car-se,  escravizar-se  mesmo,  para  bem  do  mundo  civilizado, 
prodigalizando-lhe,  como  esposa,  oferecida  a  virgindade 
em  holocausto  á  gloria,  tesouros  de  ternura,  suavizando- 
Ihe,  até  o  instante  derradeiro,  todas  as  agruras  do  combate 
pela  existência.  O  sonho"passou,  num  repente,  ao  dominio 
da  realidade.  Modesta  tinha  um  temperamento  enérgico, 
decidido. 

Ei-la  a  escrever  ao  poeta,  um  dia,  sem  que  a  família  e 
os  amigos  o  soubessem.  Mas,  depois  da  primeira  carta,  não 
foi  ao  poeta  que  ela  escreveu,  de  feito,  embora  lhe  ende- 
reçasse as  missivas.  Canalis  não  se  tentou  com  a  primeira 
carta,  a  um  tempo  misteriosa  e  quente,  da  joven.  Junto 
dele,  um  seu  amigo,  ex-secretario  dum  ministro  e  secretario 
então  do  poeta,  La  Brière  de  nome,  estava,  por  acaso,  no 
momento  da  recepção  da  carta  de  Modesta.  Julgou  Canalis 
tratar-se  de  mais  um  caso  banal,  sensaborão,  envolvido  nas 
veladas  seduções  que  tanto  aguçam  a  curiosidade  e  em  que 
são  mestras  certas  damas.  Testemunhos  desse  jaez  não 
logravam  já  lisongear  a  vaidade  do  poeta  que,  de  resto, 
temia  a  repetição  de  desilusões  estúpidas.  Não  as  buscava. 
E  tinham  vindo  ao  seu  encontro  tantas  que  arredava  de  si 
o  mais  leve  impulso  de  cair  em  fraquezas  de  autor  desva- 
necido. 

La  Brière  pegou  na  missiva,  lacónica  e  todavia  extre- 
mamente sugestiva.  Bespondeu-lhe.  Depois . . . 

Depois  começou  um  romance  d'amor,  cujas  peripécias 
são  a  parte  nuclear,  a  parte  mais  substancial  da  acção.  La 
Brière  teve,  a  principio,  pruridos  d'homem  pratico,  deu 
conselhos,  arriscou  insinuações  de  ordem  moral,  emfim,  ele 
que  era  um  fraco,  uma  alma  dócil,  submissa,  tomou  uma 
atitude  quase  paternal.  A  superioridade  intelectual,  o  senso, 
cheio  de  acuidade,  que  Modesta,  sem  experiência,  manifes- 
tava possuir  sobre  a  vida,  mas,  acima  de  tudo,  o  alto  equi- 
líbrio, a  penetração  e  a  firmeza  do  discernimento  e  ainda 
a  altivez  sem  sobranceria,  o  orgulho  bem  entendido  sem 
sombra  de  vaidade,  a  magnificência  do  pensamento,  aliada 


72  HONORÉ    DE    BALZAC 

á  simplicidade,  á  modéstia  da  apresentação,  a  gentileza 
exemplarmente  correcta  e  desafectada,  a  serenidade,  tão 
grande  como  a  elevação,  do  discretear  e  até  do  confiden- 
ciar que  raro  era  e,  de  ordinário,  se  regulava  por  uma  razão 
calma  e  lucidissima,  —  tudo  abateu,  pulverizou  a  imperti- 
nência dos  estudados  expedientes  de  La  Brière.  Logo  a 
alma  deste  se  mostrou  tal  qual,  sem  postiços,  ardente,  per- 
turbada, alvoroçada  pela  anciedade,  timida,  irresoluta, 
passiva,  com  aspectos  femininos  de  sentir,  dominada  pela 
influencia  máscula,  para  assim  dizer,  mais  cerebral  que 
cordial,  que  Modesta,  amando  a  seu  modo,  a  valer,  viril 
sem  deixar  de  ser  muito  mulher,  exercia  sobre  ele,  por 
intermédio  só  da  correspondência  epistolar. 

Essa  correspondência,  analisada  de  perto,  é  a  mais 
definitiva  contribuição  para  o  conhecimento  da  constitui- 
ção psicológica  de  Modesta.  Na  seguinte  declaração  de 
Modesta,  inclusa  na  7.**  carta,  se  espelha  todo  o  seu  natu- 
ral, em  traços  sumários,  mas  precisos :  « Sinto-me  forte 
contra  as  ilusões  da  minha  fantasia.  Construi  por  minhas 
próprias  mãos  uma  fortaleza  e  deixei-a  fortificar  pela 
dedicação  sem  limites  daqueles  que  velam  por  mim  como 
por  um  tesouro;  não  que  eu  não  tenha  força  para  me  de- 
fender em  campo  raso;  porque,  fique  sabendo,  o  acaso 
revestiu-me  duma  armadura  bem  temperada  e  na  qual 
está  gravada  a  palavra  desprezo.  Sinto  o  mais .  profundo 
horror  por  tudo  o  que  cheira  a  calculo,  pelo  que  não  ó 
inteiramente  nobre,  puro,  desinteressado.  Tenho  o  culto 
do  belo,  do  ideal,  sem  ser  romanesca,  mas  depois  de  o  ter 
sido,  para  mim  só,  nos  meus  sonhos  >. 

Mais  adiante,  na  mesma  carta,  se  define  melhor  o 
contendo  da  declaração  que  acabo  de  transcrever:  c  Tenho 
vinte  anos,  meu  amigo,  mas  a  minha  razão  conta  cin- 
coenta,  e  tenho  infelizmente  sentido  num  outro  eu  os  hor- 
rores e  as  delicias  da  paixão.  Sei  tudo  o  que  o  coração 
humano  pode  conter  de  cobardias,  de  infâmias,  e  sou 
todavia  a  mais  honesta  de  todas  as  donzelas.  Não,  já  não 
tenho  ilusões;  mas  tenho  cousa  melhor:  tenho  crenças  e 
uma  religião  ». 

Os    dois    namorados    viram-se,    em    condições    romã- 


HONORÉ    DE    BALZAC  73 

nescas,  numa  igreja  do  Havre,  local  combinado  para  o 
efeito.  Modesta  viu  La  Brière,  crendo  que  ele  era  o  pró- 
prio Canalis.  La  Brière  a  custo  distinguiu  as  feições  de 
Modesta,  tão  espesso  véo  lhe  cobria  o  rosto,  e,  se  a  reco- 
nheceu, deveu-o  á  tremura  que  notou  no  livro  de  missa 
que  a  joven  tinha  nas  mãos. 

Entretanto,  no  meio  do  tocante  enlevo  destas  duas 
almas  enamoradas,  sobreveio,  inopinadamente,  o  regresso 
do  coronel  Mignon.  Vinha  riquíssimo.  Por  prudência,  só 
ao  seu  amigo  Dumay  contou,  debaixo  da  mais  rigorosa 
reserva,  a  verdade  sobre  o  quantum  da  sua  fortuna. 

'  La  Brière  conseguiu  ter  uma  entrevista  com  o  pai  de 
Modesta,  de  passagem  por  Paris,  pô-lo  ao  facto  do  seu 
amor  e  caiu  nas  boas  graças  do  coronel  que  ocultou,  con- 
tudo, a  simpatia  que  o  interlocutor,  com  a  sua  franqueza 
e  o  seu  desinteresse,  soubera  despertar  nele. 

Dumay  partira  para  Paris,  ao  encontro  do  coronel,  e 
também  para  conhecer  Canalis.  Em  virtude  duma  inadver- 
tência de  Modesta,  estava  de  posse  do  seu  segredo. 

A  partida  de  Dumay,  Modesta,  receando  violências 
contra  o  seu  poeta,  não  hesitou  ante  a  ameaça,  proferida 
na  presença  da  mài  que  desmaiou,  de  sair  da  casa  paterna, 
aonde  não  mais  voltaria,  se  acaso  lhe  constasse  que  de 
qualquer  procedimento  agressivo  usara  o  tenente.  A  visita 
de  Dumay  a  Canalis  deíine-os  a  ambos,  com  uma  nitidez 
perfeita. 

Quis  o  coronel  Mignon  dar  á  filha  o  pleno  direito  de 
escolha  de  marido,  nas  mais  amplas  condições,  e,  para 
isso,  pactuou  com  La  Brière  e  com  Canalis  irem  os  dois 
ao  Havre,  dispostos  a  cortejar  Modesta  que  optaria,  com 
inteiro  conhecimento  de  causa,  pelo  que  mais  lhe  agra- 
dasse e  lhe  conviesse,  pois,  para  consorte.  Assim  foi.  A 
Canalis  impelia-o  a  ambição.  La  Brière  que  se  sentia  cul- 
pado por  ter  abusado  da  confiança  de  Modesta,  enganan- 
do-a  sobre  a  sua  identidade,  não  reagiu,  deixou-se  levar 
pela  corrente  dos  acontecimentos  e  acompanhou,  como 
secretario,  isto  é,  como  subalterno,  o  glorioso  e  enfatuado 
poeta,  ao  Havre.  Sucede  o  que  havia  de  suceder,  natural- 
mente, dada  a  natureza  da  alma  de  Modesta.  O  secretario 


74  HONORÉ    DE    BALZAC 

foi  repudiado,  lançado  ao  desprezo,  reconhecida  a  sua 
falta  tremenda.  Pessoas  como  Modesta  não  se  ludibriam 
impunemente.  Canalis  representou  de  grão  senhor  que  dita 
o  tom,  que  faz  lei.  Diante  dele,  Modesta  era  uma  vassala, 
atenta  e  obediente.  Isto  emquanto  o  não  conheceu  bem  e 
Butscha,  o  finório  ajudante  de  notário,  antigo  apaixonado 
sem  esperança,  confidente  seu  depois,  lhe  não  abriu  os 
olhos  sobro  a  sua  falsa  situação  e  sobre  a  alma  terna, 
carinhosa,   se   bem  que  muito  prosaica,  do  fiel  La  Brière. 

Aqui  finaliza  o  romance.  Omito  episódios,  para  abre- 
viar. E  contudo  seria  descuido  imperdoável  deixar  passar, 
sem  referencia,  ainda  que  leve,  alguns.  Todas  as  explica- 
ções mutuas,  trocadas,  num  dialogo  vibrante  de  ardor  e 
de  emoção,  entre  o  coronel  e  Modesta,  sobre  o  procedi- 
mento desta,  os  conselhos  do  pai,  discretamente  acusa- 
dores, a  defeza  calorosa  da  filha  que  a  custo  se  descon- 
certa e  acaba  por  se  desesperar,  informada  do  logro  em 
que  caíra,  tomando  La  Brière  por  Canalis,  bastariam  para 
dar  a  conhecer,  muito  principalmente,  a  compleição  espe- 
cial do  temperamento  da  protagonista. 

Modesta  queria  muito  aos  seus,  respeitava-os  muito, 
de  certo.  Não  obstante,  num  momento  de  crise  nervosa, 
chegou  a  desconsiderar  o  pai,  colocando-se,  deste  modo, 
na  mais  ingrata,  na  menos  simpática  das  situações. 

Modesta  Mignon  ocupa  o  centro  de  todo  o  romance. 
Em  torno  dela  gravitam  todas  as  figuras.  Onde  quer  que 
ela  esteja,  que  apareça  é  o  alvo  de  todos  os  olhares,  de 
todas  as  atenções.  Para  os  pais  e  para  os  bons  amigos 
destes  e  dela,  era  um  ente  muito  querido,  era  um  idolo. 
Para  os  interesseiros  e  interessados,  armando  em  adora- 
dores da  sua  beleza  e  do  seu  espirito,  era  a  herdeira. 

A  consistência  da  organização  psicológica  de  Modesta 
não  se  encontra  nas  outras  figuras  do  romance. 


CAPITULO  III 
Valor  da  criação  literária  de  Balzac  i 

A  galeria  das  criações  psicológicas  de  Balzac  com- 
preende mais  de  duas  mil  figuras.  Entre  elas,  ha  representan- 
tes de  todas  as  espécies  sociais.  Nesta  «concorrência  ao 
estado  civil >  não  sei  de  criador  que  mais  longe  fosse  do 
que  ele,  que  mais  humanidade  concebesse  e  melhor  a 
abraçasse. 

Serão   todas    as    criações   psicológicas   de    organização 


■ '  Bibliogm/ia.  —  Sainte-Beuve  :  M.  de  Balzac,  2  de  setembro  de 
1850,  nas  Causerie>f  du  Lundi,  t.  II  (Paris,  Garnier  frères)  e  Juf/enients 
ãivers  íittr  Port-Uoyal,  no  Apêndice  ao  t.  l  do  Port-Roijal  (Paris,  Ha- 
chette,  l.a  ed.,  1840,  7.»,  1908);  Taine :  ^ateac,  fevereiro-março  de  1858, 
nos  Nouveaux  Essais  de  critique  et  d'histoire  (Paris,  Hachette,  7.«  ed., 
1901);  Brunetiere:  Manuel  de  VHistoire  de  la  Littémture  française  (Pa- 
ris, Delagrave,  1897),  Honoré  de  Balzac,  Conferencia  feita  em  Tours,  a 
7  de  maio  de  1899,  no  Apêndice  á  7.»  série  dos  Étiides  critiques  sur 
VHistoire  de  la  Littérature  française  (Paris,  Hachette,  2.»  ed.,  1905)  e 
Honoré  de  Balzac  (Paris,  Calmann-Lévy,  1906);  Faguet:  Dix-neurième 
siècle  (Paris,  Socicté  française  d'Imprimerie  et  de  Librairie,— Lecène  et 
Oudin,  1887),  De  Vlnjlaence  de  Balzac,  5  de  maio  de  1898,  nos  Propôs 
littéraires,  3.»  série  (Paris,  Société  française  d'Imprimerie  et  de  Librai- 
rie, 1905),  Honoré  de  Balzac,  em  La  Rerue  Latine,  de  25  de  maio  de 
1906  (Paris,  Société  française  d'Imprimerie  et  de  Librairie)  e  Balzac 
(Les  Grands  Écrivains  írançais — Paris,  Hachette,  1913);  Le  Breton: 
Balzac  (Paris,  Colin,  1905);  Lawton:  Balzac  (London,  Grant  Richards, 
1910) ;  Lanson:  Histoire  de  la  Littérature  française  (Paris,  Hachette, 
9.»  ed.,  1906) ;  Pellissier :  Le  Mouvement  liftéraire  au  XIX^  siècle  (Pa- 
ris, Hachette,  7.»  ed.,  1905). 

A  Bibliografia  total  sobre  Balzac  abrange  mais  avultado  numero 
de  obras.  São  apenas  citadas  as  que  contribuíram  para  este  estudo. 


76  HONORÉ    DE    I5ALZAC 

essencialmente  simples,  segundo  o  processo  clássico  do 
século  XVII,  como  pretende  Faguet? 

A  primeira  observação,  oferecem-se  simplificadas,  mais 
ou  menos. 

E  são-no,  o  maior  numero,  sem  duvida,  numa  certa 
medida. 

Não  creio,  porém,  que,  no  intimo,  o  sejam  tanto  quanto 
se  tem  pretendido. 

As  tendências  dominantes  que  parecem  excluir  quais- 
quer outras  feições  do  natural  das  figuras,  solicitam  o  me- 
lhor da  atenção.  Diante  duma  figura  com  tal  constituição, 
a  inteligência  concentra-se  nessas  tendências,  no  exame  delas, 
e  abstrai  insensivelmente  do  resto  que,  mais  dificilmente 
perceptível,  ou  aparentemente  secundário,  insignificante 
mesmo,  desempenha,  não  obstante,  por  vezes,  uma  função 
decisiva,  na  definição  do  caracter  moral:  o  vicio  ou  a  vir- 
tude, no  que  teem  de  mais  saliente,  absorvem  o  interesse 
e  certos  traços  de  inferior  significação,  na  aparência,  esca- 
pam, não  raro. 

Mas  duma  analise  larga  e  profunda  da  alma  das  figu- 
ras de  Balzac  resulta  necessariamente  a  conclusão  de  que 
os  estigmas  individuais  apresentados  são,  ordinariamente» 
mais  que  suficientes  e  são  sempre,  ou  quase,  os  mais  pró- 
prios para  que  se  vejam  totalmente  (se  o  romancista  nos  não 
deu  senão  partes  da  alma,  nós  reconstituímos,  com  facili- 
dade e  segurança,  o  que  falta)  as  figuras.  Ainda  que  a 
visão  da  humanidade  seja  truncada,  em  condições  excepcio- 
nais, a  criação  é  viva,  assim  mesmo,  não  implicando  a 
mutilação  deformação  do  real,  geralmente. 

A  vida,  mais  ou  menos  exuberante,  mais  ou  menos 
complexa,  mas  verdadeira,  lá  está,  fatalmente.  E  não  se 
avalie  a  sua  qualidade  e  o  seu  grau  de  intensidade,  apenas 
por  esta  ou  aquela  modalidade,  indistintamente  conside- 
rada, de  pensar  ou  de  sentir  expressos;  e  muito  menos, 
determinadamente,  por  uma  paixão  obcecante  ou  uma  ideia 
fixa.  A  visão  do  critico,  sendo  parcial  demais,  tem  todas  as 
probabilidades  de  ser  inexacta.  Neste  domínio  do  espirito, 
num  cambiante,  numa  gradação  de  tonalidade  está,  ás 
vezes,  o  essencial.  Pode  haver  características  mais  ou  menos 


HONORÉ    DE    BALZAC  77 

veladas  que  devam  prevalecer,  como  marca  da  individuali- 
dade, sobre  as  salientes.  Nos  traços  mais  pronunciados  nos 
inclinamos  a  deter  o  exame,  esquecendo  inadvertidamente 
os  que  parecem  lançados  de  fugida  ou  julgando-os  frívolos 
e  supérfluos.  Não  é  necessária  uma  grande  acumulação  de 
traços,  de  pormenores,  para  dar  vida  que  baste  para  definir 
a  individualidade,  a  uma  figura.  A  complexidade  da  alma 
das  figuras  é  resultante  de  vários  factores,  de  ordem  psico- 
lógica e  artistica.  Condicionam  a  criação  psicológica  limites 
naturais  e  limites  técnicos.  Pondere-se  ainda  que,  na  sim- 
plificação, ha  um  justo  meio  termo,  que  o  extraordinário 
artista  criador  que  foi  Balzac,  ultrapassou,  mas  áquem  do 
qual  ele  só  se  mostrou,  ou  quando  o  seu  engenho  e  a  sua 
arte  se  encontravam  na  fase  preparatória  ou,  fora  disso,  em 
raras  ocasiões  menos  felizes. 

As  criações  psicológicas  de  Balzac  não  se  apresentam, 
em  regra,  simplesmente  esboçadas.  Aparecem  até,  com 
certa  frequência,  figuras  secundarias  que  sobrelevam,  em 
vigor  de  traços  psicológicos,  ainda  que  sumários,  a  figuras 
centrais,  minuciosamente  apuradas.  As  figuras  centrais, 
porém,  são  sempre  centrais,  mesmo  quando  menos  tratadas, 
e  normalmente  as  secundarias,  mesmo  quando  mais  abun- 
dantes e  assinaladas  em  traços  psicológicos,  não  são,  ainda 
na  melhor  das  hipóteses,  nem  mais  nem  menos  verdadeiras 
que  as  centrais,  apesar  do  que  sé  tem  afirmado  em  con- 
trario. 

Quando  digo  que  tal  ou  tal  figura  de  Balzac  é  duma 
construção  sumaria,  estou  sempre  longe  de  ver  apenas 
nelas,  mesmo  nas  que  se  manifestam  sob  o  império  de  vio- 
lentas, de  absorventes  paixões,  monomaniacos.  Isto  de  ver 
só  ou  de  só  buscar  ver,  como  de  costume,  o  femeeiro  em 
Hulot,  o  avarento  em  Grandet,  o  inventor  em  Baltasar 
Claes  ou  em  David  Séchard,  etc,  julgo  que  é  trilhar  cami- 
nho falso.  Busque-se  sempre  ver  mais  alguma  cousa,  alguma 
cousa  de  mais  humano,  e  nesse  mais  o  quantum.  é  variável, 
sem  duvida,  mas  sempre  apreciável.  Eu  creio  tão  altamente 
interessantes,  por  exemplo,  o  marido  e  o  pai  em  César  Bi- 
rotteau  e  em  Goriot,  como  o  podem  ser  em  Grandet,  em 
Hulot,  em  Baltasar  Claes,  em  David  Séchard,  se  bem  que, 


78  HONORÉ    DE    BALZAC 

entre  os  sentimentos  deste,  se  destaque  sobretudo  o  de 
amigo. 

As  figuras  de  Balzac  são,  em  geral,  sugestivas.  Toda  a 
sua  criação  literária  é  sugestiva,  porque  toda  ela,  tem  o 
seu  cunho  pessoal,  nela  se  esteriotipou  a  sua  alma.  Mas, 
exercitando  Balzac  uma  arte  superior,  não  ha  escravização 
das  obras  á  sua  individualidade. 

O  homem  está  na  sua  criação,  em  espirito.  As  suas 
caracteristicas  essenciais  conteem-se  nela  e,  para  que  se 
colham,  no  estreito  limite  do  possível,  basta  uma  visão 
global,  sintética.  Que  essa  visão  critica  seja,  porém,  isenta 
de  preconceitos,  que  se  não  subordine  a  juizos  formados 
antecipadamente. 

Balzac,  viu,  sentiu,  sofreu  muito,  numa  palavra  viveu 
muito.  Sempre  que  concebeu  de  modo  que,  na  substancia 
das  obras,  se  infiltrassem  pedaços  da  sua  vida,  a  criação 
tornou-se  mais  sugestiva  que  de  ordinário. 

Assinalou  Brunetière  que  das  atribulações  da  sua 
vida  derivou  esse  saber  feito  de  experiência  que  Balzac 
foi  vasar  nas  suas  obras,  insuflando-lhes,  a  largos  e  pode- 
rosos haustos,  a  vida  intensamente  vivida,  e  que  dessa 
longa  e  mortificadora  experiência  provém  a  força,  a 
pujança,  a  vitalidade  eterna,  a  perpetua  actualidade  da 
sua  producção  literária. 

« Escrevam  o  que  teem  visto,  o  que  teem  sentido,  o 
que  teem  sofrido  —  aconselhava  Daudet,  dezenas  de  anos 
mais  tarde,  aos  escritores  novos  —  e  hão  de  ver  que  belo 
livro  farão.  » 

Mas  o  fim  capital  de  Balzac,  ao  escrever  a  Comédie 
Humaine,  era  —  não  o  percamos  nunca  de  ideia  —  fazer  a 
«historia  privada  da  nação  francesa»,  a  «historia  em  acção 
da  sociedade  francesa»,  pintar  os  costumes  do  seu  país  e 
do  seu  século. 

Acentuou  Faguet  que,  como  deraografo,  Balzac  não 
se  prendeu  com  o  provisório,  com  o  transitório  na  marcha 
social,  foi  ao  âmago  da  vida  social,  atacou  a  medula  da 
sociedade  francesa.  Daí  todo  o  seu  excepcional  valor. 
Acentuou  ainda  o  critico  que  os  grandes  romances  realistas 
de    Flaubert,    Madame    Bovarij    e  L' Education  sentimentale, 


HOXORÉ    DE    BALZAC  79 

considerados  sob  o  aspecto  demográfico,  interessam  hoje 
apenas  aos  curiosos. 

Note-se  que,  .porque  encarou  o  homem  nas  suas 
relações  sociais,  o  fez  Balzac  tão  movido  pelo  interesse, 
pela  cubica  de  ganho,  de  honras,  de  prazeres,  pelo 
egoismo,  sob  todas  as  suas  formas. 

O  valor  documental  histórico  dos  melhores  romances 
de  Balzac  é  enorme.  Nele,  a  imaginação  construtiva,  com 
os  seus  singulares  recursos  de  evocação,  de  ressurreição, 
opulentou  sempre  a  visão  da  realidade,  em  que  se  fundava. 
Assim  determinava  o  psicólogo  e  o  demografo,  usando  da 
ficção  como  artista  emérito,  a  ilusão  perfeita  da  vida. 
Sabia  ele  que,  para  o  efeito  total  dum  quadro,  tudo 
contribuo,  as  grandes,  como  as  aparentemente  pequenas 
cousas.  Por  isso,  dispensou  ao  pormenor  toda  a  sua 
solicitude.  No  mais  insignificante  pormenor  se  trai  a 
preocupação  de  dar  a  ilusão  do  real. 

Dois  exemplos  frisantes :  a  descrição,  muito  rápida, 
mas  muito  explicita,  da  galeria  de  quadros  do  septuage- 
nário Magns  (em  Le  Cousin  Pons):  a  declaração,  ainda 
mais  rápida,  do  motivo  que  o  visconde  de  Sérizy  é  encar- 
regado de  transmitir,  como  escusa  da  não  comparência  de 
Madame  ás  festas  venatorias  de  Rosembray  (em  Moãeste 
Mujnon)  '. 

As  figuras  pensam,  sentem,  falam  e  agem,  em  con- 
dições que  destacam  os  seus  caracteres  diferenciais,  per- 
feitamente distintos,  absolutamente  inconfundíveis.  Sucede 
até  que,  sendo,  em  certas  figuras  dum  romance,  idêntica  a 


í     Ei-las : 

« Os  dois  quadros  de  Rafael,  perdidos  e  procurados  com  tanta 
persistência  pelos  rafaelicos,  é  Magus  quem  os  possue!  Possue  o 
original  da  amante  de  Giorgione,  a  mulher  por  quem  esse  pintor 
morreu,  e  os  pretendidos  originais  são  copias  dessa  tela  ilustre  que 
vale  quinhentos  mil  francos,  pelo  calculo  de  Magus.  Esse  judeu  tem 
em  seu  poder  a  obra-prima  de  Ticiano:  Crísto  deposto  no  sepulcro, 
quadro  pintado  para  Carlos  V,  que  foi  enviado  pelo  grande  homem 
ao  grande  Imperador,  acompanhado  por  uma  carta  toda  do  punho  de 
Ticiano,  e  esta  carta  está  colada  na  parte  inferior  da  tela.  Tem  do 


80  HONOBÉ    DE    BALZAC 

tendência  preponderante  do  temperamento,  actuando  em 
meios  similares,  exercitando-se,  desenvolvendo-se  em 
circunstancias  análogas,  tal  não  implica  risco  de  malenten- 
didos,  sendo  impossível  tomarem-se  umas  por  outras.  Quer 
pelo  que  toca  ao  moral,  quer  ao  físico,  não  pôde  haver 
embaraço  na  determinação  da  sua  identidade.  Conside- 
rem-se,  por  exemplo,  o  barão  Hulot  e  Crevel  (em  La  Cou- 
sine  Bette). 

Para  fazer  viver  a  sua  criação,  o  romancista,  com  a 
sua  grande  intuição  da  realidade,  dispôs  de  amplos 
recursos. 

Os  próprios  arrazoados  do  moralista  e  do  sociólogo, 
nem  sempre  igualmente  bem  cabidos  e  que,  por  isso,  ás 
vezes,  se  poderiam  suprimir,  ao  que  parece,  sem  que  os 
romances,  como  obras  d'arte  realistica,  sofressem,  consti- 
tuem, normalmente,  um  processo  artístico  de  sugestão,  em 
acção. 

Nesses  arrazoados  doutrinários  acusa-se  a  preocupação 
do  romancista  em  não  perder  ensejo  de  expor,  como 
professor  em  cátedra.  E,  no  entanto,  é  forçoso  considerar 
que  o  romance  de  Balzac  é  um  composto,  cujos  elementos 
só  artificialmente  se  podem  estudar  em  separado,  que  tudo 
isso  é  o  romance  de  Balzac.  Que  ficaria,  por  exemplo,  de 
Le  Cure  de  Village  que  não  é  um  estudo  psicológico  profundo 
(note-se,  de  passagem,  que  são  admiráveis,  neste  romance, 
as  descrições,  as  de  Montégnac,  sobretudo),  se  se  lhe  tirasse 
tudo  o  que  pode  ser  reputado  apologia  do  catolicismo  e  do 
regime  monárquico?  A  edificação  duma  obra  d'arte  implica 


mesmo  pintor  o  original,  a  maqnette  pela  qual  todos  os  retratos  de 
Filipe  II  se  fizeram.  Os  97  restantes  quadros  são  todos  desta  força  e 
desta  distinção.» 

«Ernesto  de  La  Brière  deu  com  a  vista,  ao  voltar  ao  salão,  num 
moço  oficial  da  companhia  da  guarda  d'Havré,  o  visconde  de  Sérizy 
que  acabava  de  chegar  de  Rosny  para  anunciar  que  Madame  era  obri- 
gada a  assistir  á  abertura  da  sessão.  Sabe-se  de  que  importância  foi 
essa  solenidade  constitucional,  em  que  Carlos  X  proferiu  o  seu 
discurso,  rodeado  por  toda  a  familia,  assistindo  na  tribuna  madame 
la  Daitphine  e  Madame.  » 


HONORÉ    DE    BALZaC  81 

a  junção  de  mil  cousas  diversas,  mais  ou  menos  visiveis,  e 
todas  essas  cousas  desempenham  o  seu  papel,  desenvolvem 
uma  função  que  vai  integrar-se  no  conjunto,  cujo  potencial 
de  sugestão  é  a  soma  dos  potenciais  de  sugestão  de  todas 
elas.  Uma  obra  d'arte  é  como  um  maquinismo,  mais  ou 
menos  simples  aparentemente,  mas  duma  extrema  compli- 
cação intima. 

Ora,  num  maquinismo,  basta,  em  geral,  mexer  numa 
peça  e  tirá-la  do  seu  lugar,  para  o  desorganizar  total- 
mente. Na  critica,  nem  sempre  se  teem  em  linha  de  conta 
os  efeitos  que  o  autor  quis  atingir,  na  criação.  Não  se 
podem  interpretar  justamente  os  meios  ou  processos  do 
artista,  sem  a  inteligência  dos  fins  e  a  consideração  da 
sua  influencia  na  concepção  da  obra  d'arte  e  sua  execução. 

Por  um  movimento  fisionómico,  um  olhar  sobretudo, 
uma  palavra,  um  gesto,  um  habito  peculiar,  uma  mania  e 
mesmo  uma  simples  particularidade  do  vestir,  Balzac 
incutia  vida,  dum  jacto,  na  figura.  Assim,  sem  que  de  tal 
nos  apercebamos,  se  nos  limitarmos  á  retensão  da  trama 
do  contexto  e  não  analisarmos  e  procurarmos  interpretar 
a  acção,  no  seu  encadeamento  e  em  função  da  psicologia 
das  figuras,  e  estas  nas  condições  da  sua  actividade,  avulta, 
se  define,  num  momento  dado,  o  que  constituo  substan- 
cialmente a  vida. 

Um  exemplo  mais,  tirado  também  de  La  Coiisine  Bette. 

E  grande,  neste  romance,  o  numero  das  figuras.  Entre 
elas,  uma  chama  a  atenção,  logo  no  começo,  e  depois,  com 
a  complicação  do  enredo,  perder-se-á  de  vista  quase,  ape- 
sar de  alusões,  mais  ou  menos  circunstanciadas,  á  sua  situa- 
ção. Trata-se  de  Hortênsia,  a  filha  da  baronesa  Hulot  '.  Não 


>  A  grande  figura  simpática  do  romance  é  a  baronesa  Hulot, 
Adelina.  O  sentimento  dominante  que  nela  se  acusa,  é  o  de  esposa. 
Casara,  saindo  de  obscura,  rústica  humildade,  com  o  barão  Hulot. 
Devendo-lhe  tudo  o  que  passou  a  ser,  dando  ingresso  num  mundo 
de  grandezas  que  foi  para  ela  um  deslumbramento,  a  sua  gratidão 
seria,  como  de  facto,  eterna.  Era  uma  alma  simples,  fundamental- 
mente sã,  virtuosa.  Queria  muito  á  filha,  desejava-a  ver  bem  casada, 
desejava  a  sua  felicidade.  Teve  Hortênsia  um  casamento  em  perspe- 

6 


82  HONORÉ    DE    BALZAC 

aparece  muitas  vezes.  Pela  restrita  influencia  que  dela 
possa  considerar-se  provir,  sobre  o  decorrer  da  acção,  ó 
licito  tê-la  como  figura  não  primaria.  Pois  bem!  é  uma  das 
almas  mais  interessantes  e  mais  vivas  do  romance.  Como 
figura  de  mulher,  está  admiravelmente  lançada,  posto  que 
com  grande  sobriedade  de  traços.  Mas  não  ha  palavra  que 
profira,  que  a  não  precise  na  nossa  inteligência. 

Temperamento  sanguineo,  espirito  voluntarioso,  mani- 
festa-se  á  evidencia  no  modo  como,  tendo  ouvido  contar 
á  prima  Bette  o  seu  romance  de  amor  com  o  polaco, 
resolve,  impelida  por  um  desejo  ardente  de  o  ver,  de  o 
conhecer,  de  o  conquistar  para  maiido,  tirá-lo  á  prima,  e 
também  no  modo  como  depois,  vexada  na  sua  dignidade, 
ferida  pelo  ciúme,  quebra  as  relações  com  o  marido,  aban- 
donando o  lar  conjugal.  Imersa  na  sua  dor,  é  dum  egoismo 
soberbo! 

Quando    a    mãi    corre    a   consolá-la,    acudindo   ao   seu 


ctiva  que  se  malogrou,  por  intervenção  do  ricaço  Cravei,  cuja  filha 
fora  desposada  por  Vitorino,  filho  do  barão  e  da  baronesa  Hulot. 
Numa  entrevista  com  Cravei  —  entrevista  imprudente,  originada  pelo 
seu  amor  de  mãi  e  em  que  esteve  a  ponto  de  comprometer  a  sua 
honra  sem  macula  —  Adelina  que  sabia  que  tinha  diante  de  si  um 
homam  apaixonado  por  ela,  pela  sua  beleza,  chegou  a  manifestar-lhe, 
de  chofre,  com  um  certo  ar  da  desafio,  num  impulso  de  agastamento, 
a  suspeita  de  que,  faltando  aos  seus  deveres  conjugais,  conseguia 
dele  a  mais  ampla  protecção  de  toda  a  ordem  a  Hortênsia.  No  resto 
da  entrevista,  a  baronesa,  apesar  de  dar  ouvidos  a  muita  cousa  que 
não  devera  ouvir,  manteve,  tanto  quanto  o  seu  temperamento  lhe 
permitiu,  diauta  dum  atrevido  como  o  ex-perfumista,  a  sua  dignidade 
de  esposa. 

Ha  situações  capitais  que  nos  revelam,  além  da  esposa  e  da  mãi 
em  Adelina,  o  marido  e  o  pai  no  barão  Hulot,  a  filha  e  a  esposa  em 
Hortênsia.  Citarei  duas,  as  mais  representativas:  aquela  em  que  Hor- 
tênsia confessou  ao  pai  o  amor  que  consagrava  a  Steinbock  e  os  seus 
sonhos  de  donzela  enamorada;  a  aquela  em  que  o  barão  Hulot,  em 
obediência  de  escravo  a  Mme  Marneffe,  sua  amante,  regressou  a  casa, 
donde  andava  ausenta  havia  muito,  para  conseguir  que  se  fizessem 
as  pazes  entre  a  filha  e  o  marido.  Steinbock  tinha  já  relações  com 
Mme  Marneffe,  o  que  Hortênsia  não  ignorava.  A  segunda  das  situa- 
ções apontadas  é  uma  admirável  scena  de  familia,  em  que  entra  o 
próprio  Vitorino  que  tão  poucas  vazas  aparece,  e  a  ruim  Bette. 


HONORE    DE    BALZaC  OO 

chamamento,  indo  encontrá-la  acometida  por  uma  inquie- 
tante crise  nervosa,  e  lhe  conta,  para  a  calmar  e  lhe  dar 
força  de  resignação,  os  seus  vinte  e  quatro  anos  de  martí- 
rio, vitima  também  do  adultério  do  marido,  Hortênsia, 
desesperada,  sabendo  que  a  mãi  tivera,  ao  menos,  dez  anos 
felizes,  os  primeiros  dez  anos  de  casada,  exclama:  «Tu 
tiveste  dez  anos,  mamã,  e  eu  só  três  anos !  » 

Hortênsia  retrata-se  ainda  no  modo  de  comunicar, 
explodindo  ódio,  a  Bette  enferma,  a  decomposição  do 
corpo  pestiferado  de  Mme  Marneffe.  «Prima!  —  grita-lhe  — 
Minha  mãi  e  eu  estamos  vingadas!» 

O  profundo  interesse  humano  da  criação  psicológica 
de  Balzac  generaliza-se  ordinariamente  a  todas  as  figuras, 
por  mais  secundarias.  O  romancista  sabia  vivificar,  até  o 
âmago  e  em  todos  os  aspectos,  a  sua  criação.  Não  ha  fi- 
gura insignificante  que  se  não  veja  animada  por  uma 
scentelha,  ainda  que  fugaz,  de  vida.  Sem  sair  da  huma- 
nidade, sabia  sair  da  vulgaridade,  da  chateza,  da  insipidez, 
em  rasgos  audaciosos,  por  vezes,  mas  geralmente  felizes. 
Isto  no  bem,  como  no  mal. 

Na  criação  literária  do  mal,  Balzac  foi  eximio:  aparte 
Vautrin  e  os  perversos,  mais  vulgares  na  sociedade  do  que 
seria  de  supor,  da  espécie  de  Petit-Claud,  Fraisier  (de  Le 
Coiishi  Pons  e  Q-oupil,  considerem-se  a  Cibot,  Bette  ou  ainda, 
numa  outra  ordem,  os  avaros,  distintos  todos  entre  si,  Gran- 
det,  Séchard  e  Rigou  (de  Les  Paysans).  Ha  graus  na  per- 
versidade da  humanidade  de  Balzac.  Como  na  vida  real,  o 
mau  é  acentuadamente  mau.  Também  como  na  vida  real,  é, 
não  raro,  um  monstro.  Sendo  a  humanidade  (em  sociedade, 
pelo  menos)  essencialmente  má — e  observa-se  muitas  vezes 
que  a  maldade  vulgar  não  é  menos  tremenda  nos  seus 
efeitos  que  a  maldade  mais  ferozmente  criminosa — ,  a 
perversidade,  como  é  de  bom  realismo,  não  aparece  ape- 
nas por  incidente,  ocupa  um  lugar  importante,  um  lugar 
capital,  no  romance  de  Balzac,  defrontando-se  com  o  bem, 
com  o  bem  vulgar  como  com  o  excepcional.  Tem-se  dito 
que  Balzac,  no  bem  como  no  mal,  exagerou,  criando  tipos 
de  bondade  e  de  maldade  fora  das  condições  comuns. 
Grosso   modo,    sem    olhar    ás    nuances    das    cousas,   que    as 


84  HONORÉ    DE    BALZAC 

cousas  sempre  teem,  é  assim,  pouco  mais  ou  menos,  não 
poucas  vezes.  Mas  nem  todas  as  grandes  figuras  de  Balzac, 
no  mal  como  no  bem,  são  anjos  ou  demónios;  muitas  — 
algumas  das  primarias  mesmo  e  o  maior  numero  das 
secundarias  —  ocupam  um  meio  termo  justo,  absoluta- 
mente razoável.  Na  criação  literária  do  bem  o  roman- 
cista tinha  de  demonstrar  grandeza  e,  ao  mesmo  passo, 
delicadeza  d'alma.  A  demonstração  foi,  no  meu  sentir,  com- 
pleta. Estão  superiormente  representados,  nos  seus  melhores, 
romances,  os  seguintes  sentimentos:  de  mãi,  em  Ágata  Bri- 
dau,  de  pai,  em  Goriot,  de  esposa,  em  Constança  Birotteau, 
Adelina  Hulot  e  Eva  Séchard,  de  marido,  em  César  Birot- 
teau, de  irmã,  em  Eva  Séchard  ainda,  e  de  amigo,  de  Pons 
para  com  Schmuck  e  vice-versa  (almas  e  amizades,  note-se, 
são  perfeitamente  distintas,  nos  dois  homens).  O  sentimento 
amoroso  sexual  tem  representação  condigna  nas  figuras  tão 
sugestivas  de  Úrsula  Mirouêt,  de  Modesta  Mignon,  de 
Eugenia  Grandet.  Seria  curioso  comparar  o  papel  do  amor 
sexual  no  romance  de  Balzac  e  no  de  Maupassant,  por 
exemplo  (Fort  comme  la  Mort,  Notre  cceur,  etc.)  Concluir -se-ia 
que,  ao  passo  que,  em  Balzac,  mesmo  nos  romances  d'amor 
propriamente  ditos,  o  amor  pouco  mais  é  que  uma  peri- 
pécia simplesmente  interessante,  sendo  apenas  aproveita- 
das as  manifestações  sentimentais  que  importam  á  marcha 
da  acção  em  que  chegam  a  ocorrer  peripécia  que,  sobre- 
levam em  interesse,  á  própria  peripécia  do  amor,  em  Mau- 
passant o  amor,  não  só  nas  suas  exteriorizações,  mas  muito 
principalmente  no  que  tem  de  mais  profundo,  de  mais 
recôndito,  como  revelação  do  interior,  é  tudo,  enche  a 
acção  que  nada  seria  sem  ele,  que  nada  tem  de  interes- 
sante que  não  seja  ele. 

E,  a  propósito,  vem  dizer  que  Brunetière  interpre- 
tando essa  orientação  de  Balzac  no  tratar  do  amor,  reco- 
nheceu-o  mais  dentro  da  verdade  que  o  próprio  Shakes- 
peare e  o  próprio  Racine,  entendendo  que,  com  efeito,  a 
humanidade  tem  outras  preocupações,  tem  mais  fortes, 
mais  instantes  preocupações  na  vida  que  as  do  amor. 

Lawton  insurge-se  contra  esta  opinião,  declarando  o 
parecer   de   que    «se   o   amor   fosse  eliminado  da  natureza 


HONORÉ    DE    BALZAC  85 

humana,  o  mais  poderoso  factor  da  sua  actividade  desa- 
pareceria». 

Por  mim,  confesso  que  me  inclino  mais  para  o  juizo 
de  Brunetière,  sem  que  conteste  os  direitos  legitimes  da 
orientação  de  Maupassant,  versando  o  amor,  nem  a  ver- 
dade da  sua  criação,  sob  esse  aspecto  especial.  Creio  o 
amor  um  dos  temas  mais  fundamentalmente  humanos  que 
um  artista  pode  escolher  e  reconheço  que  esse  tema  que 
se  tem  tornado  banal,  versado  pelos  escritores  vulgares, 
é  sempre  matéria  opulenta  de  criação,  quando  versado 
pelos  grandes  escritores,  como  Maupassant  (pondere-se 
que,  dentro  do  meu  ponto  de  vista,  considero  apenas  os 
realistas). 

A  realidade  não  está  só  na  vulgaridade.  Essa  mediania 
que  se  pretende  nos  caracteres  morais,  não  é,  não  pode  ser  a 
imagem  soes  da  realidade.  Assim  também  as  denominadas 
condições  médias  da  vida.  E  estou  long^e  de  crer,  com  Le 
Breton,  que  Eugenie  Grandet  seja  a  única  pagina  da  Comé- 
die  Humaine,  onde  ha  um  pouco  de  poesia  verdadeira. 
E  notaria  a  imponente  verdade  do  seu  mundo  masculino. 
O  seu  mundo  feminino  contém,  igualmente,  grandes  figuras, 
dentro,  na  sua  maioria,  duma  humanidade  média  e  vivendo 
numa  atmosfera  moral  média.  No  conceito  de  humanidade 
média  (ou  mais  representativa),  incluo  condições  de  eleva- 
ção moral  bastante  para  que  se  possa  legitimamente  consi- 
derar humanidade. 

Impõe-se  reconhecer  a  verdade  integra  de  Ágata  Bri- 
dau  '  (de  Un  Ménage  de  GarçonJ,  de  Constança  Birotteau, 
de  Eugenia  Grandet  e  de  Eva  Séchard,  por  exemplo. 


'  O  estudo  do  amor  maternal,  representado  na  figura  de  Ágata 
Bridau,  amor  sempre  posto  á  prova  pela  perversidade  sem  emenda  do 
filho  predilecto,  é  modelar.  Quando  Ágata  soube  que  esse  seu  filho 
predilecto,  Filipe  Bridau,  cavando  cada  vez  mais  fundo  a  sua  des- 
honra,  não  respeitava  já  o  dinheiro  alheio,  ela  não  pensou  em  des- 
culpá-lo, tendo  em  conta  que  era  maior  de  28  anos,  mas,  vindo-lhe  á 
ideia  a  possibilidade  de  o  estarem,  àquela  hora,  tirando  da  agua, 
aonde  se  teria  lançado,  bradou,  numa  explosão  ardente  de  ternura: 

«  Oh!  meu  Deus  !  que  volte,  que  viva  e  perdoo -lhe  tudo!» 


86  HONORÉ    DE    BALZAC 

Tem-se  filiado  logicamente  na  alma  de  Balzac  a  natu- 
reza forte,  tão  poderosamente  insinuante,  tão  intensamente 
comunicativa,  da  sua  criação.  A  crença  de  que  Balzac  foi 
homem  de  temperamento  exuberante,  cheio  de  veemencias, 
é  verdadeira,  mas  a  verdade  toda  não  consiste  de  certo  só, 
exclusivamente,  nesse  aspecto  da  apreciação  sobre  a  indi- 
vidualidade moral. 

Em  primeiro  lugar,  a  alma  de  Balzac  foi,  sem  duvida, 
muito  complexa.  Depois,  não  se  podem,  não  se  devem 
admitir,  nesta  melindrosa,  transcendente  matéria,  juizos 
absolutos.  O  próprio  romancista  reconheceu  a  instabilidade 


Mais  tarde,  a  José,  o  outro  filho,  que  censurava  o  desleixado 
trajar  do  irmão,  a  sua  vida  irregularissima,  Ágata  replicou,  pegan- 
do-lhe  na  mão:  «Sê  l)om  para  teu  irmão,  ele  é  tão  desgraçado!» 

Filipe,  um  dia,  posteriormente,  roubou  as  economias  á  estimá- 
vel Descoings,  uma  tia  que,  desde  que  passara  a  viver  com  Ágata, 
fora  o  amparo  da  casa.  A  poVjre  senhora  morreu  de  dor. 

Estava  moribunda,  quando  Filipe  apareceu.  Sabedora  de  tudo, 
a  mãi  exprobrou-lhc  acremente  o  porte,  dizendo-lhe  que  tinha  todoíf 
os  vicios.  Vinha  Filipe  doente,  de  doença  grave  que  o  levou  a  reco- 
Iher-se  logo  ao  leito.  Quando,  convalescente,  se  poude  levantar,  a 
m&i  aconselhou-o  a  retomar  o  serviço  no  exercito,  a  bastar-se  a  si 
mesmo.  Filipe  respondeu  que  já  não  era  amado,  chamou  .<<en>iões  ás 
palavras  de  Ágata,  tolices  ás  suas  advertências:  e  saiu  assobiando. 
A  mãi,  banhada  em  lagrimas,  gritou-lhe:  «Filipe,  aonde  vais  sem 
dinheiro?  Toma.  >'  E  deu-lhe  cem  francos  em  ouro,  embrulhados  num 
papel,  ao  mesmo  passo  que:  «Então! — dizia  sempre  chorosa  —  não 
me  beijas?» 

Filipe  desapareceu.  Tempos  depois,  foi  preso  como  conspirador. 
Mas,  antes  ainda,  cia  o  viu  miserável,  arrastando-se  andrajoso, 
saindo  do  hospital  aonde  recolhera.  Percebeu  que  ele,  á  porta  dum 
estanco,  para  comprar  cigarros,  metia  a  mão  na  algibeira,  nada  en- 
contrava. Ágata  então  atravessou  pressurosa  o  cais  e,  passando  rapi- 
damente por  ele,  sem  ser  vista,  depôs-lhe  na  mSo  a  malinha  que 
levava,  e  fugiu. 

Filipe,  detido  já  por  conspirador,  foi  transferido  para  o  Luxem- 
burgo. Ao  passar,  defronte,  do  carruagem,  com  seu  filho  José,  a  cami- 
nho de  Issoudun,  Ágata  não  poude  deixar  de  exclamar,  num  repente: 
«  Se  não  fossem  os  aliados,  o  meu  filho  não  estava  ali  I » 

A  mãi  veio  a  falecer,  mortificada  de  desgostos,  moralmente 
ferida  de  morte,  por  fim,  pelo  filho  perversissimo. 


HONORÉ    DE    BALZAC  87 

do  seu  espirito,  a  um  tempo  pratico  e  quimérico,  e  contra 
ela  reagia,  num  esforço  permanente. 

Num  homem  que,  como  ele,  sabia  querer  e  perseverar 
no  querer,  esse  esforço  havia  de  sair  necessariamente  vito- 
rioso, na  máxima  parte. 

<  Eu  não  fazia  ideia  do  que  é  esta  adorável  criatura  — 
escreveu  Mme  Hanska,  acerca  de  Balzac,  já  depois  de 
casada  com  o  romancista,  á  filha  — ;  ha  dezassete  anos  que 
o  conheço  e  noto  todos  os  dias  que  ele  tem  uma  qualidade 
nova  que  eu  lhe  não  conhecia.  > 

O  natural  de  Balzac,  analisado  de  perto,  oferece  múl- 
tiplas feições,  contraditórias  ás  vezes.  A  estrutura  moral  do 
seu  caracter  não  foi,  não  podia  ser  tão  simplificada  como 
pretendem  críticos. 

Condensar  em  formulas,  como  se  tem  feito,  o  juizo 
sobre  o  modo  de  ser  intimo  duma  grande  individualidade 
é  sempre,  pelo  menos,  imprudente. 

Sainte-Beuve,  o  critico-psicologo  por  excelência,  — 
não  vi  ainda  critico  que  mais  miudamente  inquirisse  sobre 
almas  — ,  consignou,  criticando  Taine,  que,  mesmo  na  posse 
de  todos  os  elementos  biográficos  e  no  conhecimento  pleno 
de  todas  as  obras  dum  autor,  só  na  ultima  extremidade  se 
arriscaria  a  decidir  sobre  tão  delicada  questão  como  é  a  de 
dizer  a  ultima  palavra  sobre  o  feitio  essencial  da  indivi- 
dualidade. De  «ondeante  e  fluctuante,  diversidade  e  com- 
plicação infinita»  classificava  ele  o  espirito  humano. 

Porque  Balzac  foi  um  voluntarioso,  que  ha  que  estra- 
nhar em  ter  tomado  por  ideal  a  força  e  construído,  de 
preferencia,  caracteres  enérgicos? 

Mas  a  sua  humanidade  não  é  toda  feita  de  energia, 
inteligente  ou  instintiva,  se  bem  que  o  vigor  seja,  sem 
contestação,  a  nota  dominante  na  criação  do  romancista; 
tem  tibiezas,  hesitações,  inexperiencias,  faltas  de  tino  pra- 
tico, fragilidades  de  toda  a  espécie.  A  par  da  áspera  ru- 
deza dos  fortes,  a  gentileza,  a  graciosidade,  a  insinuante 
discreção  dos  débeis.  Dum  lado,  o  calmo,  ponderado  equi- 
líbrio do  pensamento,  o  critério  tão  avisado  quando  solido, 
imperturbável,  a  rigida  decisão;  do  outro,  a  leviandade,  o 
destempero,  o  arrebatamento.  Vis,  pérfidos,  ambiciosos  sem 


88  HONORÉ   DE   BALZAC 

escrúpulo,  sedentos  de  dinheiro,  de  gosos  e  de  vingança, 
uns;  simples,  confiados,  indulgentes,  generosos,  outros. 

Os  moldes  desta  vida,  misto  de  verdade  e  de  ficção, 
assentam,  o  mais  ajustadamente  possivel,  na  vida  real. 

A  expressão  je  suis  une  force  qiii  va  (proferida  por  Her- 
nâni, no  Hernâni,  de  Vitor  Hugo),  com  o  seu  cortejo  de 
desgraças,  de  destinos  fatais  e  contagiosos,  define  um  tipo, 
o  mais  caracteristicamente  sugestivo  dos  tipos  de  figuras 
do  grande  romantismo.  Tente-se  aplicá-la  ás  figuras  de 
Balzac  e,  apesar  do  que  se  tem  dito  das  enérgicas,  das  de 
vontade  mais  impetuosa,  reconhecer-se-á  que,  mesmo  nes- 
tas, é  mal  cabida,  que  destoa  da  orientação  com  que  o 
romancista  traçava  as  suas  figuras,  que  não  concorda,  que 
se  não  coaduna  com  o  largo  fundo  de  verdade  humana 
contido  nelas. 

Ha,  todavia,  no  grande  romancista  realista  que  foi  Bal- 
zac, um  romântico,  mas  um  romântico  sui  generis.  Foi  sobre- 
tudo um  realista.  E  cedo,  já  no  periodo  de  ensaios,  come- 
çou a  querer  produzir  obras  realisticas,  no  espirito  e  na 
orientação. 

Na  criação  de  Balzac,  os  dois  aspectos,  realistico  e 
romântico,  fundem-se,  a  aliança  é  tão  intima  que  os  laços 
se  não  vêem  bem. 

Não  é  possivel,  sem  intervenção  da  subtileza,  excres- 
cência de  argúcia  inútil,  na  analise,  destrinçar  efeitos  do 
romantismo,  dentro  de  obras  essencialmente  realisticas. 
Quem,  nessa  discriminação  arbitraria  e  ousada,  garanta  a 
segurança  do  critério  ou  induza  a  crer  nela,  abusa  da  boa 
fé  do  estudioso.  Estão  na  criação,  sem  duvida,  esses  efei- 
tos, sentem-se,  ás  vezes,  mais  ou  menos  vagamente,  e  que- 
rer, contudo,  com  pruridos  de  rigor,  que  este  elemento 
seja  romântico  de  natureza  e  não  aquele,  é,  convir-se-á, 
fazer  critica  meramente  artificial. 

Faguet,  na  sua  engenhosa  critica,  foi  até  o  ponto  de  in- 
dicar onde  o  romancista  foi  romântico,  onde  realista.  E  uma 
opinião  que  reproduzo  apenas  a  titulo  de  curiosidade. 

Segundo  Faguet,  o  romantismo  em  Balzac  são  as  for- 
tunas rápidas,  os  prodigiosos  êxitos,  as  acumulações  de 
incidentes,  o  imprevisto,  o  inesperado,  o  inverosimil. 


HONORÉ    DE    BALZAC  89 

Da  arguição  das  fortunas  rápidas,  dos  prodigiosos 
êxitos,  o  próprio  Balzac  se  defendeu,  alegando  circuns- 
tancias ponderosas.  Não  procedia  inconscientemente,  obe- 
decendo a  disposições  naturais  da  sua  imaginação,  quando 
repetia  o  cometimento  da  pretendida  falta.  Estava  con- 
vencido de  obedecer  á  realidade  e,  se  exagerou,  após  as 
insinuações  dos  criticos,  fê-lo  pensada  e  não  arbitraria- 
mente. 

Está-se  um  pouco  acostumado  a  ver  Balzac  classificado 
de  homem  de  imaginação  desregrada,  de  espirito  sem 
delicadeza,  o  que  são  generalizações  de  defeitos  parciais, 
fartamente  compensados  por  qualidades  de  toda  a  ordem  e 
não  faltam  qualidades  que  se  oponham  até  a  esses  defeitos 
e  que  levariam,  não  raro,  a  concluir  que  Balzac  teve  uma 
imaginação  regrada  por  princípios  superiores  e  directores 
de  razão,  que  teve  tanta  delicadeza  de  concepção  como  os 
mais  reputados  realistas,  exceptuado  Daudet,  e,  entre  os 
clássicos  do  século  xvn,  Racine,  cuja  poesia  ostenta,  não 
raro,  o  privilegiado  condão  duma  delicadeza  extrema, 
dentro  do  grandioso  mais  empolgante. 

As  afirmações  absolutas  sobre  um  autor,  sobre  um 
grande  autor  —  prova-o  este  caso,  como  tantos  outros  que 
se  poderiam  apontar  —  são  sempre  mais  ou  menos  contin- 
gentes. 

A  acumulação  de  incidentes  não  existe  sempre  em 
Balzac. 

Mas  note-se  que,  nesses  incidentes,  ele  se  não  des- 
viava, em  geral,  da  ideia  nuclear  ou  das  ideias  nucleares 
da  acção,  nem  do  propósito  deliberado  de  imprimir  o 
necessário  relevo  psicológico  a  determinadas  figuras. 

De  resto,  havendo,  sob  esse  ponto  de  vista,  romances 
complicados  ou  sobrecarregados,  é  certo,  não  menos  certo 
é  que  os  ha  também,  em  Balzac,  duma  factura  extrema- 
mente simples. 

O  imprevisto,  o  inesperado  são  qualidades.  O  interesse 
enorme  dos  romances  de  Balzac,  exceptuados  raros,  não 
está  só  no  seu  modo  de  expressão  da  humanidade,  está  na 
urdidura  da  própria  trama  em  si,  disposto  o  enredo  de 
molde   sempre   a  solicitar,  a  prender  a  atenção.  Graças  a 


90  HONORÉ    DE    BALZAC 

esses  artifícios  do  imprevisto,  do  inesperado,  entre  outros, 
é  que  sucede  o  não  haver  romances  que  se  avantagem  em 
interesse  aos  melhores  de  Balzac. 

Ao  inverosímil  são  ociosas  referencias.  Balzac  caiu 
nele,  por  vezes,  mas  muitas  mais,  incomparavelmente,  se 
elevou,  em  sentimento  da  vida  e  intuição  da  realidade, 
acima  de  toda  a  discussão,  tão  alto  que  inverosimilhanças 
acidentais,  em  pontos  geralmente  secundários,  se  devem,  a 
meu  ver,  desprezar. 

O  realismo  de  Balzac  só  o  descobriu  Faguet  na 
pintura  dos  objectos  materiais  e  no  aspecto  exterior  das 
figuras  (isto  até  1906,  porque  depois  modificou  a  sua 
opinião  e  foi  mais  justo,  embora  com  todas  as  suas  reservas 
e  restrições,  no  recentíssimo  estudo  sobre  Balzac,  saído  a 
lume  em  abril  do  ano  corrente). 

Aponto  aquela  opinião  de  Faguet  e  vou  criticá-la, 
atendendo  ao  engenhoso  modo  por  que  a  apresentou  e 
defendeu.  E  o  desenvolvimento  da  questão  é  capital, 
mesmo  porque  as  reservas  e  as  restrições  de  Faguet  sobre 
a  natureza  da  constituição  das  figuras  de  Balzac  —  reservas 
e  restrições  que,  diga-se  de  passagem,  são  já  antigas, 
(datam  as  principais,  senão  todas,  de  1887),  na  sua  ciitica 
sobre  o  autor  da  Comédie  Humaine  —  brigam  com  certos 
juizos  particulares,  de  louvor  ao  romancista  como  cons- 
trutor de  interior  d'almas,  formulados  de  corrida,  naquele 
recentíssimo  estudo,  e  brigam  tanto  que  ou  as  reservas  e 
as  restrições  necessitavam  de  ser  atenuadas,  mais  ate- 
nuadas do  que  foram,  definitivamente,  ou  esses  juizos  de- 
viam ser  suprimidos  ou  corrigidos,  por  coerência  doutri- 
naria. Mas  o  respeito  á  verdade  obstava  a  esta  ultima 
forma  de  proceder.  Faguet  teve  a  sinceridade  de  reconsi- 
derar e  o  bom  senso  de  moderar  um  pouco  o  absoluto  das 
suas  reservas,  como  das  suas  restrições.  E  todavia  a  minha 
impressão  pessoal  é  que  ele  ficou  a  meio  caminho,  fazendo 
uma  critica  que  não  é  solida,  a  que  falta  rigor  sistemático. 

Como  pintor  dos  objectos  materiais  e  do  aspecto 
exterior  das  figuras,  Balzac  foi,  sem  contestação,  um 
grande  realista,  tão  grande  que  julgo  não  haver  outro  que, 
neste   particular,   melhor  visse   e   melhor   executasse.    Mas 


HONORÉ    DE    BALZAC 


91 


isto,  seguramente,  não  é  tudo,  o  seu  realismo  não  se 
limita  a  tão  pouco.  Ha,  nas  figuras  de  Balzac,  de  ordi- 
nário, uma  vida  interior  considerável  que  não  transparece 
só  na  actividade  que  desenvolvem,  que  se  espelha  nas 
palavras  que  proferem,  palavras  tão  vivas  sempre,  como 
expressão  das  individualidades,  que  constituem  a  prova 
mais  decisiva  de  que  o  romancista  vivia  a  vida  das  suas 
figuras,  pensava  e  sentia  com  elas,  com  elas  perfeitamente 
identificado,  como  se  pessoas  fossem  também. 

Achou  Faguet  muito  natural  que  haja  quem  se  iluda 
em  crer  que  Balzac  é  realista  na  pintura  total  —  externa  e 
interna — das  suas  figuras.  Justificando  a  ilusão,  enumerou 
as  razões:  «...  Primeiramente,  porque  são  situadas  pelo 
autor  em  meios,  num  quadro,  região,  cidade,  bairro,  casa, 
aposento,  duma  realidade  completa;  em  segundo  lugar, 
porque  são,  no  que  respeita  a  vestuário,  andar,  gesto,  ar  e 
fisionomia,  duma  realidade  completa...  Os  meios  lançam 
sobre  elas  reflexos  de  realidade,  envolvem-nas  e  colo- 
rem-nas  com  eles  e  imagina-se  que  são  penetradas  pela 
realidade,  porque  nela  mergulham,  e,  porque  tudo  é  real 
em  volta  delas,  que  são  reais. » 

Ocorre  imediatamente  perguntar:  O  ambiente  material, 
só  por  si,  os  caracteres  físicos,  exclusivamente,  das  indivi- 
dualidades criadas,  bastariam  para  dar  vida  a  figuras  sem 
alma  visível,  para  dar  vida  á  pintura,  já  não  apenas  de 
indivíduos,  mas  da  familia  e  da  sociedade? 

Atente-se  em  que,  referindo-se  ao  exterior  da  figura, 
Faguet  se  não  deteve  no  vestuário  ou  no  andar,  falou 
também  no  gesto,  no  ar,  na  fisionomia,  cujas  expressões 
multiformes  são  outras  tantas  manifestações  de  estados 
d'alma,  são  revelações  de  ordem  psicológica. 

Mais  ou  menos  automáticas, — poderá  objectar-se.  Mas 
haverá  acaso  só  energias  inconscientes  em  acção?  As  figu- 
ras de  Balzac  não  são  maquinas  de  instinto  (como  as  figu- 
ras de  UAssommoir,  de  Zola,  por  exemplo);  rara  será,  entre 
tantas,  a  voluntariosa  — cito  intencionalmente  as  volunta- 
riosas, como  mais  características,  para  o  caso  sujeito  — que 
se  mostre  inconsciente. 

Não  ha,  com  certeza,  ilusão  em  crer  Balzac,  acima  de 


92  HONORÉ    DE    BALZAC 

tudo,  criador  d'almas.  Escreveu  Pellissier  que  a  Comédie 
Humaine  não  era,  no  pensamento  do  seu  autor,  uma  come- 
dia de  caracter,  mas  uma  comedia  de  costumes.  Ora  o  que 
é  certo  é  que  ela  é  pelo  menos  tanto  uma  comedia  de  cara- 
cter como  de  costumes  e  que  comedia  de  caracter,  sobre- 
tudo na  ultima  fase  da  sua  elaboração,  a  quis  fazer  Balzac, 
seguindo  as  pisadas  de  Molière. 

Nada  lhe  passava  pelo  espirito  que  ele  não  animasse: 
a  própria  matéria  atingia  fulgurações  de  vida.  E  tiansbor- 
dante  de  vida  a  criação  toda  do  romancista. 

A  descrição  da  casa  de  Baltasar  Claès  (em  La  Recher- 
clie  de  VAhsolu)  é,  para  assim  dizer,  psicológica.  A  casa  não 
só  fornece  elementos  preciosos  de  ordem  moral  para  que  se 
vejam  melhor  os  moradores,  mas  chega  a  defini-los.  Certos 
passos  dessa  descrição,  relativos  apenas  ao  mobiliário  e  sua 
disposição,  donde  transparece  uma  atmosfera  intima  de 
viver,  são  tão  significativos  para  conhecer  a  alma  das  figu- 
ras, como  a  mais  precisa  notação,  no  dominio  dos  caracte- 
res físicos  ou  morais. 

O  romancista  foi  insigne,  num  processo  de  expressão 
do  real,  de  importância  máxima  para  o  efeito  da  criação: 
os  traços  dinâmicos  ou  da  natureza  em  acção,  de  que  po- 
dem servir  de  tipos  o  gaguejar  de  Grandet,  o  erguer-se  de 
Birotteau  nos  bicos  dos  pés,  o  menear  do  corpo  de  Mme 
Marneffe,  etc,  e,  sobretudo,  as  grandes  palavras  revelado- 
ras que  as  figuras  proferem. 

Mas  também  ha  dinamismo  nos  traços  que  se  aplicam 
aos  objectos,  desde  que  estes  sejam  interpretados  no  sen- 
tido psíquico,  como  reflexo  do  espirito  dos  seus  proprietá- 
rios. Os  moveis  da  sala  de  visitas  de  Mme  Hulot,  os  da 
sala  de  trabalho  e  de  recepção  de  Grandet  oferecem  tão 
intenso  poder  sugestivo  como  o  que  emana  das  mais  insi- 
nuantes figuras:  dir-se-ia  que  sentem  as  alegrias  e  as  tris- 
tezas dos  seus  donos  e,  no  aspecto  nobre  ou  mesquinho, 
opulento  ou  miserável  que  apresentam,  teem  uma  lingua- 
gem sua,  sumamente  expressiva,  que  fala  á  inteligência 
e  fala  ao  coração. 

Não  ha  só  realidade,  não  ha  só  vida  na  pintura  do 
exterior  das  figuras.  Ha  vida  em  toda  a  criação  de  Balzac, 


HOXORÉ    DE    BALZAC  93 

ha-a  até  —  como  se  viu,  e  no  que  são  unanimes  os  criticos 
—  nos  agregados  materiais,  nas  próprias  cousas  em  si,  entre 
as  quais  ou  entre  a  fisionomia  das  quais  e  a  alma  humana 
o  romancista  descobriu  intimas  afinidades. 

Setite-se  que,  assim  como  penetrou  até  a  medula  da 
sociedade  francesa,  assim  também  profundou  a  sua 
analise  até  o  âmago  da  alma  humana. 

Fagiiet  afirmou  sempre  que  Balzac  ainda  foi  mais 
simplificacionista  dos  caracteres  psicológicos  que  os  rea- 
listas clássicos  do  século  XVII,  nomeadamente  Racine  e 
Molière. 

Na  opinião  de  Faguet,  Balzac  « não  teria  admitido  a 
clemência  de  Augusto,  nem  as  hesitações  de  Nero,  não 
teria  feito  Harpagão  amoroso»,  e  a  concepção  de  todas  as 
snas  figuras  seria  moldada  na  que  presidiu  á  criação  de 
Horácio  ou  de  Tartufo. 

Em  primeiro  lugar,  entre  figuras  como  Horácio  ou 
mesmo  como  Tartufo  e  figuras  como  César  Birotteau  ou 
Pons,  Eugénio  de  Rastignac  ou  Luciano  de  Rubempré,  ha 
uma  grande  distancia.  Na  alma  das  figuras  de  Balzac.  está 
implícita  mais  complexa  vida,  a  complexidade  da  vida 
moderna. 

Em  segundo  lugar,  julgo  que  as  grandes  figuras  de 
Balzac  não  teem  alma  tão  condensada,  tão  unif acial  — 
permita-se-me  o  termo  —  como  Horácio  ou  Tartufo  mesmo. 
Nem  tudo,  por  exemplo,  é  baixo,  material  egoismo  no 
avaro,  nem  ha  só  espirito  confiante,  incapaz  de  ardis,  nos 
simples  e  nos  bons  (Grandet  vai  ver  a  filha  pentear-se, 
oculto  pelas  arvores,  no  jardim  da  sua  casa,  Grandet  cede, 
por  vezes,  á  audaciosa  intervenção  da  filha  nos  negócios 
domésticos,  em  oposição  ás  suas  determinações  categóricas, 
Grandet,  finalmente,  dá-lhe  dinheiro  todos  os  anos  e 
consente  que  ela  o  tenha  arrecadado  em  seu  poder;  Pons, 
a  seu  turno,  dá  caça,  de  combinação  com  Schmucke, 
simples,  mais  simples  ainda  que  ele,  e  igualmente  bom.  á 
Cibot  que  cai  na  rede). 

Na  criação  do  real,  procede-se,  como  se  não  pode 
deixar  de  proceder  —  nem  ao  artista  se  pode  contestar 
esse  direito  —  por  analise,  eliminação  e  selecção,  simplifi- 


94  HONORÉ    DE    BALZAC 

cação,  numa  palavra,  dos  caracteres  individuais.  A  sim- 
plificação é  forçosa.  A  alma  humana,  na  sua  total  com- 
plexidade, é  inacessivel.  No  individuo  —  como  acentuou 
Sainte-Beuve,  comentando  Pope  —  tudo  engana,  aparências, 
hábitos,  opiniões,  palavras,  as  próprias  acções  que  muitas 
vezes  são  em  sentido  inverso  do  seu  móbil :  só  ha  uma 
cousa  que  não  engana,  a  sua  paixão  dominante,  caso 
exista.  Surpreendida  essa  mola  secreta,  tem-se  a  chave  de 
tudo.  Reproduzo  quase  textualmente. 

Quem  ha,  contudo,  que  possa  gabar-se,  com  legitimo 
direito,  de  conhecer  a  fundo  um  homem,  mesmo  aquele 
em  que  se  deixa  descortinar  uma  paixão  que  pode  julgar-se 
dominante? 

A  alma  duma  figura  não  consiste  só  no  que,  yrosso 
modo,  se  nos  antolha.  O  que  se  entrevê,  o  que  se  pressente, 
o  que  se  logra  adivinhar  não  são,  por  forma  alguma,  quan- 
tidades despreziveis.  Afere-se  o  valor  da  criação  psicoló- 
gica, avalia-se  a  intensidade  de  vida  nela  implicita,  pela 
sua  capacidade  de  sugestão  que,  em  certo  grau,  produz 
imagens  tão  nitidas  e  tão  fixas  que  se  não  desvanecem  facil- 
mente. E  essas  imagens  não  são  promovidas,  creio,  por  este 
ou  por  aquele  traço  isolado,  por  esta  ou  por  aquela  minú- 
cia do  delineamento  da  figura,  mas  são  projectadas  pelo 
efeito  do  conjunto  que  todo  o  quadro  da  criação,  desde  o 
elemento  mais  capital  ao  mais  secundário,  determina. 

O  meio  material  da  casa  em  que  vive  uma  figura, 
ajuda-a,  imprimindo-lhe  relevo,  no  sentido  de  avultar  as 
condições  em  que  leva  a  existência,  a  precisar-se,  sem  du- 
vida, conhecido  dela  alguma  cousa  de  pessoal.  Só  por  si, 
porém,  sem  a  contribuição  da  atmosfera  moral  interior  e 
exterior  a  ela,  não  bastaria  certamente  para  lhe  dar  uma 
vida  tão  intensa  e  extensa  quanto  é  necessário  e  individua- 
lidade distinta. 

O  fisico  da  figura,  por  mais  visivel,  não  bastaria  tam- 
bém. 

Gestos,  acções  e  até  as  palavras,  se  bem  que  sejam 
exteriorizações  da  alma,  são,  identicamente,  insuficientes, 
só  por  si,  mesmo  que  tenha  havido  cuidado  do  artista  em 
pôr  de  acordo,  numa  unidade  ou  numa  diversidade  verosi- 


HONORÉ    DE    BALZAC  95 

meis,  segundo  um  plano  inteligente  de  construção  lógica, 
todos  os  atributos  que  confere  á  figura  e  com  que  no-la 
representa.  Pode  o  artista  dispor  duma  técnica  perfeita  e 
exercitá-la  e  não  incutir  na  sua  obra  o  alento  de  vida  exi- 
givel.  Ha,  na  essência  da  criação  dos  grandes  artistas,  uma 
capacidade  de  vibração  sentimental,  mais  ou  menos  comu- 
nicativa, que  se  não  logra  saber,  a  rigor,  por  que  processo 
eles  a  atingem.  As  palavras,  acima  de  tudo,  e  depois  a 
atitude  da  figura  perante  as  situações,  devendo  estas  ser 
escolhidas  com  o  senso  e  o  tacto  artísticos  mais  elevados, 
são  o  que,  em  especial,  no-la  definem,  mas  é  indispensável 
que  numa  e  nas  outras  haja  intrínseca  e  caracterizadamente 
um  quantum  de  vida  em  acção  que  seja  revelação  suficien- 
temente ostensiva  dum  espirito. 

As  palavras  das  figuras  criadas  por  Flaubert,  por  Dau- 
det  e  por  Maupassant  —  e,  analogamente,  as  das  criadas 
pelos  realistas  clássicos  do  século  XVII,  aparte  Molière  que 
todos,  antigos  e  modernos,  exceptuado  Balzac,  sobrepuja, 
em  realismo — são  notavelmente  expressivas,  teem  vida, 
mais  ou  menos  especificada  e  quintessenciada,  mas  compa- 
rem-se  com  as  que,  ordinariamente,  proferem  as  figuras  do 
autor  da  Comédie  Humaine  e  sentir-se-á  uma  g^rande  dife- 
rença.  As  palavras  das  figuras  dos  realistas  citados  são 
vivas,  as  das  figuras  de  Balzac  são  a  Vida.  Se  ha  hipérbole 
no  formular  deste  juizo,  nunca  uma  hipérbole  foi  mais  jus- 
tificada. 

Nesse  singular  poder  de  vitalidade  da  palavra 
animada,  Balzac,  repito,  só  tem  um  rival  condigno  que, 
apesar  de  tudo,  se  lhe  não  avantaja,  em  Molière.  Isto  em 
França,  entende-se. 

O  autor  da  Comédie  Humaine  teve  um  extraordinário 
poder  de  criar  grandes  figuras  tão  vivas  quanto  distintas. 

Eu  vejo  o  barão  Hulot  e  vejo  Crevel,  como  individua- 
lidades perfeitamente  diferenciadas  e,  não  obstante,  não 
tenlio  presentes,  de  memoria,  as  particularidades  do  seu 
físico  exterior,  não  me  lembro  de  que  a  circunstancia  de 
terem  nascido  e  vivido  em  meios  diversos  se  traia  neles, 
em  qualquer  pormenor. 

Vejo-os   em   espirito   e   ajuizo   do  seu  caracter  moral, 


96  HONORÉ   DE   BALZAC 

com  a  mesma,  senão  maior,  segurança,  com  que  ajuizaria 
do  das  personalidades  A  ou  B  do  meu  conhecimento. 
Chego  a  destacá-los,  calculando  até  de  que  seriam  capazes, 
um  e  outro,  em  determinadas  eventualidades,  exactamente 
como  se  se  tratasse  dos  tais  A  ou  B,  personalidades  reais, 
com  quem  tenho  convivido  o  bastante  para  me  julgar  apto 
a  conhecê-las,  com  certa  aproximação.  Exemplificando, 
não  creio  que  o  barão  Hulot  fosse  alguma  vez  capaz  de 
tratar  uma  senhora,  esposa  exemplarissima  dum  amigo 
seu,  como  Crevel  tratou  a  baronesa  Hulot  e,  por  outro 
lado,  não  julgo  que  Crevel  fosse,  a  seu  turno,  capaz  de 
inspirar,  em  familia,  o  enternecido  respeito  que  ao  barão 
Hulot,  apesar  da  sua  desordenada  existência  de  femeeiro, 
votavam  todos  os  seus  mais  chegados  parentes,  os  que 
mais  de  perto  privavam  com  ele,  isto  é,  mulher  e  filhos. 
Poderá  objectar-se:  um  era  barão  e  o  outro  fora  perfu- 
mista.  E  nesta  distinção  social  que  pode  representar  uma 
diferença  de  educação,  poderá  crer-se  que  se  funda  a 
distinção  do  caracter  moral.  Mas  não  é  bem  assim. 

Para  desfazer  malentendidos  e  levar  a  uma  apre- 
ciação justa,  nesta  matéria,  concluindo  por  estabelecer, 
como  verdade  capital,  que  o  engenho  de  Balzac  não 
menos  realista  foi  na  construção  do  interior  das  figuras  e 
da  atmosfera  moral  em  que  vivem,  que  na  do  seu  exterior 
e  do  meio  material  que  as  cerca,  comparem-se,  como 
complemento  deste  estudo  sobre  os  caracteres  psicológicos, 
as  individualidades  dos  dois  perfumistas,  Crevel  e  César 
Birotteau. 

A  casa  de  Baltasar  Claes  foi  objecto  de  minuciosissimo 
estudo,  modelo  de  engenho  e  de  arte.  As  descrições  do 
dominio  material  são  as  mais  longas  em  Balzac;  logo  após 
vêm  as  do  fisico  das  figuras,  em  que  se  não  notam  ordina- 
riamente os  excessos,  a  sobrecarga  demasiada  de  traços  que 
aparecem  nas  primeiras,  com  certa  frequência;  e,  final- 
mente, sobre  a  alma  das  figuras  ele  não  disserta,  em  geral, 
é  sóbrio  em  extremo,  só  aproveita  os  traços  mais  incisivos 
e  mais  decisivos,  os  que  melhor  definem  as  individuali- 
dades, só  o  essencial,  banidos  acessórios,  e  nada  mais,  e 
isso    mesmo    do    modo    mais    sugestivo,    por   mais    directo, 


HONORÉ    DE    BALZAC  97 

sendo   as   figuras   que   especial   e  quase  exclusivamente  se 
manifestam,  falando  ou  agindo. 

O  conhecimento  da  casa  de  Baltasar  Claés  é,  como 
frisei,  de  importância  fundamental.  Porém,  se  o  romancista 
se  limitasse  á  esplendida  descrição  da  casa,  adicionando- 
Ihe  apenas  o  descritivo-retrato  de  Baltasar,  a  figura  sairia 
apagada,  não  encerraria  a  vida  que  encerra,  e,  consequen- 
temente, d  que  é  obvio,  não  poderia  ostentar  a  vida  que 
ostenta,  dentro  do  quadro  restrito  da  sua  actividade.  Isto 
é  de  pura  intuição,  do  mais  elementar  bom-senso. 

Foi  apresentando  o  quimico  nas  suas  relações  familia- 
res, descrevendo  o  meio  domestico,  mais  particularmente 
no  respeitante  aos  costumes,  pondo  Baltasar  em  foco,  em 
situações  escolhidas,  e  fazendo-o  agir  ou  simplesmente 
avultando  nelas  com  a  sua  presença,  cujo  efeito  moral  nos 
seus  é  em  extremo  elucidativo,  pintando  o  físico  exterior, 
nas  ocasiões  em  que  a  figura  patenteia  na  fisionomia  a 
tempestade  ou  a  esperançada  bonança  da  sua  alma, 
senhoreada  pela  ambição  de  descobrir  o  segredo  scientifico, 
móbil  supremo  e  exclusivo, — e,  se  tem  de  exibir  a  figura 
do  inventor  muda,  inerte,  absorta  no  seu  cogitar  incessante, 
a  impressão  que  produz  não  é  menor  que  quando  a  faz 
falar,  quase  sempre  ou  sempre  laconicamente  — ,  que  Balzac 
lhe  imprimiu  a  vida  intensa  com  que  se  afirma. 

As  paixões,  como  os  vicios,  arruinam,  gastam  as  exis- 
tências. Baltasar  Claes  consome-se,  dia  a  dia,  e  consome 
os  seus.  A  consumpção  não  se  limita  aos  haveres,  é  sobre- 
tudo moral.  Balzac  manifestou-se  emérito  na  arte  de  ex- 
primir essas  derrocadas  materiais,  essas  devastações  mo- 
rais que  paixões  e  vicios  determinam,  nos  individues  e 
nas  famílias.  O  romancista,  em  estudos  completos,  chega 
a  remontar  ás  origens  do  mal  e  chega  a  estender  a  sua 
analise  até  os  efeitos  mais  longínquos. 

Os  traços  psicológicos  que  Balzac  revela,  são  o  mais 
compreensivos  possível,  abrangem  a  figura,  o  mais  possível, 
na  sua  compleição  essencial  —  e  não  digo  na  totalidade  da 
sua  organização  psíquica,  porque  essa  totalidade  é  inaces- 
sível. Ha  talvez  demasiada  sobreposição  de  pormenores 
relativos   á  casa   de  Claés,   mas,    acima   de    tudo,  conslde- 


98  HONORÉ    DE    BALZAC 

rem-se  a  orientação  do  artista  que  é  magnifica,  e  os  fins 
psicológicos  a  que  visava,  e  reconhecer-se-á  que,  se  se 
excedeu,  foi  com  raro  brilhantismo,  tão  admirável  que 
lança  na  sombra  defeitos  parciais.  Nos  seus  grandes 
romances,  Balzac,  normalmente,  dedicou  muita  solicitude 
ao  tratar  dos  meios,  não  só  materiais,  mas  morais,  em  que 
se  desenvolve  a  vida  das  figuras.  E,  entre  o  meio  moral 
publico  e  o  material  e  moral  privados,  não  optava,  em 
geral,  pelo  primeiro.  Contudo,  deu  provas  assinaladas  de 
que  lhe  não  passavam  despercebidos  os  laços  que  unem  á 
vida  privada  a  vida  publica. 

Num  romance,  entre  outros,  versou,  de  preferencia, 
a  vida  publica:  as  Ulusions  Perdues.  E  curioso  que,  neste 
romance,  onde  o  meio  privado  poderia  concorrer  para  des- 
tacar a  constituição  moral  de  Luciano  de  Rubempré, 
muito  principalmente  nos  seus  primeiros  tempos  de  An- 
goulême,  Balzac  tenha  quase  completamente  descurado 
dele.  Luciano  era  um  ambicioso,  frouxo  de  iniciativa,  po- 
bre de  bom-senso,  ainda  que  de  rara  inteligência;  as  suas 
pretensões  a  homem  de  acção,  com  tal  caracter,  são  quase 
irrisórias.  A  sua  vida  não  era  em  casa,  ou  antes  não  lhe 
aprazia  a  vida  em  casa,  no  remanso  pacifico  do  lar,  mas 
fora,  no  tumultuar  dos  interesses  e  das  paixões,  por  onde 
pudesse  passear  a  sua  ambição,  entre  grandes  massas  de 
gente  estranha,  para  dar  espectáculo  e  subir  assim  mais 
depressa  na  escala  social,  á  força  de  talento  e  postos  de 
parte  escrúpulos. 

A  figura  é  uma  das  melhores,  das  mais  complexas  que 
Balzac  criou.  As  condições  em  que  a  figura  age  e  reage, — 
se  o  agir  é  fraco,  o  reagir  ainda  o  ó  mais — ,  no  meio 
publico,  definem-na  e  definem-no.  Tanto  mais  valiosa  é  e 
tanto  mais  interessante  quanto  é  certo  que  se  nos  mostra 
(como  César  Birotteau,  outro  exemplo  frisante,  no  seu 
género)  sem  a  energia  e  a  firme  resolução  dos  voluntariosos 
que  são,  incontestavelmente,  os  que,  com  mais  frequência, 
surgem  no  romance  de  Balzac. 

Na  construção  da  figura  de  Luciano  de  Rubempré  ha 
muito  que  notar.  Luciano  fala  pouco,  ou  é  banal  no  que 
diz,  habitualmente.  Ainda  que  não  possa  considerar-se  um 


HONORÉ    DE    BALZAC  99 

homem  de  acção,  mas  sim  um  homem  de  exibições,  são  os 
acontecimentos,  no  curso  dos  quais  ele  vem  a  encontrar-se, 
a  gosto  seu  ou  contrariado,  que  o  revelam.  A  um  artigo 
de  jornal,  a  duas  ou  três  cartas,  a  dois  ou  três  discursos 
breves  (a  brevidade,  advirta-se  de  passagem,  é  qualidade 
e  não  defeito,  em  virtude  de  oferecer  mais  propicias  con- 
dições para  que  a  expressão  da  vida  seja  mais  forte,  mais 
incisiva  ou  mais  sugestiva),  a  uma  ou  outra  conversa  entre 
amigos,  a  um  ou  outro  desabafo  em  familia,  mais  raro,  se 
resumem  os  traços  individuais  propriamente  ditos.  Não 
teem,  considerados  em  si,  valor  que  se  imponha,  propor- 
cionalmente á  importância  da  figura  e,  mais  secundaria- 
mente, á  extensão  do  romance. 

Mas  Luciano  de  Rubempré  é  uma  grande  figura  viva, 
não  obstante  ás  suas  palavras  faltar,  de  ordinário,  aquele 
opulento  poder  expressivo  que  e  apanágio  das  melhores 
criações  psicológicas  de  Balzac,  e  não  obstante  ser  para 
notar  que  se  entreveja  tão  pouco  do  seu  meio  domestico, 
do  seu  viver  domestico,  em  Angoalême.  O  romancista  per- 
passou, mui  de  leve,  pelo  meio  domestico  de  Luciano  em 
Angoulême,  e  mais  detido  estudo  lhe  mereceu,  relativa- 
mente, a  tipografia  de  David  Sóchard  (a  qual  não  é  lugar 
principal  da  acção,  na  parte  respeitante  a  Luciano). 

Mais  sumariamente  que  a  habitação  de  d'Arthez,  um 
dos  melhores  amigos  de  Luciano  em  Paris  que  é  todavia, 
no  romance,  uma  figura  secundaria,  foram  as  habitações 
de  Luciano  só  e  depois  com  Coralia,  na  mesma  capital, 
descritas  por  Balzac. 

E  nisto  ha  também,  a  meu  ver,  desproporção. 

O  meio  jornalistico  parisiense  de  então  não  foi  poupado 
por  Balzac.  Eu  creio  que  Balzac  pintou  males  orgânicos  e 
não  apenas  transitórios  que  o  tempo  tivesse  corrigido.  Não, 
o  tempo  não  os  corrigiu.  O  quadro  é  de  absoluta  fidelidade. 

Se  o  romancista  foi  cruel,  nem  por  isso  foi  menos  ver- 
dadeiro. Veja-se  como  Maupassant  apresenta  o  jornalismo 
em  Bel-Ami. 

Balzac  não  criou,  de  ordinário,  animado,  ainda  que  por 
incidente,  de  intenções  parciais.  Foi  áspero  quando  teve 
estrictamente  de  o  ser,  para  respeitar  a  verdade.  A  criação 


100  HONORÉ    DE    BALZAC 

artística,  nesse  homem  tão  pessoal  que  se  chamou  Balzac, 
é  o  mais  impessoal,  o  mais  objectiva  possível,  na  sua 
parte  essencial,  nuclear.  Balzac  descreveu  o  camponês  com 
cores  que  chegam  a  parecer  forçadas,  de  carregadas  que 
são,  no  sentido  de  o  deprimir  moralmente.  Foi  menos  ver- 
dadeiro? Não  o  creio.  Maupassant,  um  dos  mais  objectivos 
realistas,  também  não  poupou  o  camponês.  Veja-se,  por 
exemplo,  entre  os  seus  romances,  Une  Vie.  E  foi  justo, 
plenamente  justo,  estou  disso  convencido,  aceitando  a  sua 
visão  como  visão  global,  segundo  critério  em  que  se  admi- 
tem as  excepções  que  em  tudo  naturalmente  ocorrem  (o 
próprio  Maupassant  não  apresenta  Rosália,  a  rude  cam- 
ponesa em  quem  o  visconde  de  Lamare  fez  um  filho,  vol- 
vidos anos  após  esse  escândalo,  na  situação  tão  simpática 
de  companheira  solicita  e  extremosa  da  desamparada,  an- 
gustiadissima,  prematuramente  avelhentada  viscondessa  de 
Lamare?). 

Ocupando-se  sobretudo  com  a  acção,  com  o  desenrolar 
dos  acontecimentos,  —  admiravelmente  concatenados  e 
orientada  a  sua  escolha,  com  o  mais  alto  discernimento, 
no  sentido  de  definir  psicologicamente  as  figuras  prima- 
ciais— ,  Balzac  que,  nas  Tllusions  Perdues,  narra  incompa- 
ravelmente mais  do  que  descreve  e  se  restringe  quase, 
raro  se  utilizando  dos  demais  processos  artísticos  ordinários 
de  criação  d'almas,  a  contar  episódios,  em  sequencia 
natural,  da  vida  de  Luciano  e  a  apontar  o  procedimento 
deste,  envolvido  nos  acontecimentos,  geralmente  dominado 
por  eles,  consegue,  subordinando-se  ao  seu  plano  de  cons- 
trução, através  de  multiplicadas  paginas  que  não  cansam 
nunca,  imprimir  toda  a  vida  que  cabe  no  poder  da  arte 
mais  perfeita,  á  figura  central. 

A  arte  de  Balzac  foi  uma  arte  complexa,  cujo  relevo 
essencial  tem  a  sua  razão  de  ser  na  natureza  da  organiza- 
ção fisiológica  e  psíquica  do  artista, — e  a  arte  oferece  tan- 
to de  irredutível  á  observação,  ou  de  insondável,  quanto  de 
irredutível  á  observação,  ou  de  insondável,  oferece  a  natu- 
reza da  organização  fisiológica  e  psíquica  do  artista.  Técnica 
e  esteticamente  superior, — tanto  quanto  os  seus  processos 
externos  o  permitem  avaliar  — ,  foi  desempenhada  por  um 


HONORÉ   DE    BALZAC  101 

homem,  de  quem  se  pode  dizer,  talvez  com  mais  legitimo 
direito  e,  por  conseguinte,  com  mais  propriedade  do  que  de 
qualquer  outro,  que  escreveu  com  o  sangue  e  com  os  mús- 
culos—  a  expressão  é  de  Sainte-Beuve — ,  não  se  limitando  a 
trabalhar  com  o  espirito.  As  pinturas  do  fisico  das  suas 
figuras  —  a  expressão  é  ainda  de  Sainte-Beuve  —  cheiram 
a  carne. 

A  palavra,  a  imagem,  quando  servem  a  definir  almas, 
teem  vida  em  si,  uma  vida  robusta,  e  não  se  sente  que  fo- 
ram rebuscadas,  não  se  percebem  artificies  de  composição. 
O  emprego  dos  termos,  nessas  condições,  era,  creio,  pura- 
mente espontâneo. 

As  pinturas  da  alma  das  figuras  acusam  precisão,  niti- 
dez de  concepção  extraordinárias,  extraordinárias  firmeza, 
decisão  na  execução  e  sobretudo,  particularmente  no  do- 
minio  psicológico,  um  relevo  de  expressão  singular.  E'  evi- 
dente que  o  psicólogo  sabia  previamente,  do  modo  mais 
completo  6  seguro,  aonde  devia  ir  ter  e  traçava,  com  anteci- 
pação, como  experimentado  conhecedor,  a  via  a  seguir. 

O  lomancista, —  nunca  é  ocioso  repeti-lo — ,  no  domínio 
da  criação  psicológica,  em  especial,  não  abusa,  normalmente, 
da  nossa  atenção,  sobrecarregando-a  com  minúcias  de  ana- 
lise que  poderão,  consideradas  em  si,  oferecer  o  mais  alto 
interesse  e  ter  mesmo  alto  valor  intrínseco  e  contudo  não  con- 
tribuirem  para  se  verem  melhor  as  almas  das  figuras  e  mais 
perduravelmente  se  fixarem  e,  pelo  contrario,  fazerem,  como 
tantas  vezes  sucede  com  romancistas  realistas  de  nomeada, 
que  as  almas  das  figuras,  desvendado,  nos  sens  múltiplos 
aspectos,  o  seu  trabalho  interior,  com  o  prurido  de  ela- 
borar estado  psicológico  profundo,  cheguem,  acumuladas 
demasiado  as  particularidades,  sobrevindo  complicação  mais 
ou  menos  embaraçosa,  a  obscurecer-se  ou,  o  que  é  uma  re- 
sultante natural,  se  obscureça  a  inteligência  delas.  Isto  su- 
cede, por  vezes,  com  o  próprio  Maupassant,  apesar  de  toda 
a  sua  bela  inteligência  e  da  sua  grande  arte,  tão  sugestiva 
e,  ao  mesmo  tempo,  tão  serena,  imperturbavelmente  pon- 
derada. 

Balzac  teve  o  poder  de,  dum  jacto,  com  o  uso  de  pro- 
cessos,   aparentemente   fáceis,    rudimentares,    de    expressão 


102  HONORÉ    DE    BALZAC 

artística,  dentro  da  mais  desataviada  simplicidade,  na  se- 
gura, plena  consciência  dos  meios  que  empregava  —  do  seu 
valor  e  função,  como  dos  seus  efeitos  — ,  iluminar  o  inte- 
rior duma  alma,  e  não  se  me  deparou  ainda  criador  que  me 
desse  a  impressão  de  mais  intensa  luz  fazer  incidir  sobre 
almas,  de  nelas  mais  intensa  luz  saber  derramar. 

Balzac  conseguiu  que  se  veja  claro,  não  apenas  á  su- 
perfície, mas  até  onde  o  homem  pode  descobrir  o  homem. 
E  isto  é  a  gloria  suprema  do  artista  criador. 

Como  negar-lhe,  com  Lanson,  o  senso  artistico? 

A  sua  arte  que  se  oferece,  á  observação,  desprovida  de 
aparatos  exteriores  (quando  se  trata  de  definir  muito  espe- 
cialmente almas),  dentro  duma  técnica  que  parece  tão 
apreensível  a  quem  examina  de  leve,  não  foi  menos  pode- 
rosa, nem,  na  essência,  menos  complexa  que  a  de  qualquer 
dos  grandes  artistas  realistas,  incluído  Molière.  Os  processos 
dessa  arte  lucidíssima  não  são  mais  acessíveis  á  penetração  do 
critico,  por  mais  fino  e  mais  experimentado,  que  os  de 
qualquer  outro — entre  os  maiores  —  artista  realista.  Antes 
pelo  contrario.  Eu  julgo  o  próprio  Maupassant,  ainda  que 
incomparavelmente  mais  complicado  (sob  o  ponto  de  vista 
que  considero),  mais  facilmente  analísavel  (o  que  não  im- 
plica que  seja  mais  facilmente  ímitavel,  porque  aqui,  neste 
domínio  culminante  do  trabalho  do  criador,  não  são  admis- 
síveis, em  principio,  imitações,  o  próprio  bom  senso  as  ex- 
clue  e  as  condena),  nos  seus  processos  artísticos.  A  simplici- 
dade é,  pois,  como  creio,  meramente  externa,  aparente;  e 
quem  diz  a  simplicidade,  diz  a  simplificação. 

Sendo  os  traços  que  Balzac  empregava,  o  mais  franca- 
mente explícitos,  sem  que  se  possam  classificar  de  su- 
perficiais e  de  inoportunos  ou  inúteis,  são,  por  isso,  emi- 
nentemente visíveis  e  o  seu  alcance,  na  definição  moral  das 
individualidades,  é  sempre  positivo.  Esses  traços  são  pro- 
dutos extremamente  apurados  da  analise  psicológica,  mas, 
como  resultados,  não  são  propriamente  resumos,  não  são 
tão  condensados,  tão  sintéticos,  cada  um  de  per  si,  que  uns 
não  acrescentem  aos  outros  sempre  qualquer  cousa,  que  se 
não  completem  mutuamente,  retocando-se.  No  apuro  dos 
traços  psicológicos  entra  a  inteligência,  entra  a  arte,  em 


HONOBÉ    DE    BALZAC  103 

qualidade  e  grau,  de  que  o  critico,  por  maior  que  seja  a 
acuidade  da  sua  visão,  só  logra  atingir  uma  percepção  que 
tem  de  reconhecer  imperfeita,  insuficiente. 

Ha  na  criação  psicológica  uma  complexidade  de  pro- 
cesso que  se  não  atinge  toda,  que  se  esquiva,  em  grande 
parte,  á  analise.  Como  Balzac,  os  grandes  anatomistas  do 
coração  humano  que  se  chamaram  Flaubert,  Daudet,  Mau- 
passant  (não  falando  dos  clássicos  do  século  XVIl),  não  se 
limitaram  a  exibir  traços  psicológicos  colhidos,  para  assim 
dizer,  á  epiderme  dos  seres  criados,  nã(j  se  limitaram  a  pro- 
duzir simples  caricaturas,  foram  mais  longe  (e  por  isso  se 
tornaram  grandes),  produziram  verdadeiros  seres. 

Balzac,  quanto  ao  numero  das  figuras,  foi  de  todos  o 
maior  criador.  Quanto  á  qualidade  da  criação,  também  o 
julgo  o  maior,  considerado  em  globo.  Isto  compreende-se,  isto 
sente-se  ainda  mais  e  melhor  que  se  compreende;  e  é  difi- 
cilmente exprimivel,  é  mesmo  inexprimível,  a  rigor,  creio. 
Todavia,  sempre  me  aventuro  a  declarar  —  e  digo  «aven- 
turo »,  porque  uma  questão  destas  ó  de  excessivo  melindre 
e  não  tocaria  nela  se  não  fosse,  a  meu  ver,  duma  impor- 
tância máxima  —  a  minha  impressão  de  que,  não  me  refe- 
rindo, mais  uma  vez,  aos  grandes  realistas  clássicos,  em  es- 
pecial—advertindo, porém,  que  a  sua  sobriedade  de  pro- 
cessos externos  é  razão  primordial,  no  meu  critério,  da  im- 
ponência, da  força,  do  brilho,  da  perfeição  estrutural  das 
suas  obras-priraas,  expressão  artística  da  vida,  tão  sublime 
que  ainda  não  foi  excedida,  nem  provavelmente  o  será  — , 
os  realistas  que  apareceram  depois  de  Balzac,  mais  ou  me- 
nos inspirados  nele,  sobretudo  Maupassant  que  talvez  de- 
vesse ainda  mais  ao  autor  da  Comédie  Humaine  que  ao  pró- 
prio Flaubert,  apresentam,  com  maior  frequência,  traços 
psicológicos,  não  direi  mais  inoportunos  ou  inúteis  e  tam- 
bém me  não  afoito  a  dizer,  na  generalidade,  mais  superfi- 
ciais, mas  seguramente  menos  essenciais,  como  expressão 
da  alma  e  da  vida  humanas,  mais  limitados,  menos  gené- 
ricos, como  definição  da  pessoa,  menos  representativos, 
pois,  da  Humanidade  e  até  da  individualidade,  mais  restri- 
tos ás  condições  do  momento,  mais  condicionados  pelas 
circunstancias  da  acção.  Eu  sinto  —  sem  que  deixe  de  ter 


104  HONORÉ    DE    BALZAC 

em  linha  de  conta  as  altas  qualidades,  os  méritos  incontes- 
táveis—  que,  nas  obras-primas  de  Flaubert,  de  Daudet,  de 
Maupassant,  ha  mais  supérfluo,  ha  mais  aspectos  efémeros 
que  nas  de  Balzac;  este  teve  por  ideal  criar  beau,  os  outros 
—  não  obstante  a  sua  inteligência  e  o  seu  tacto  e  se  bem 
que  se  não  possam  considerar  fúteis  as  suas  obras  —  foram 
mais  tentados  a  criar  joli  \  E  contudo  é  inegável  que  ha 
na  criação  de  Flaubert,  de  Daudet  e  de  Maupassant  nume- 
i'Osos  aspectos  ou  quadros  mais  ou  menos  nucleares,  mais 
ou  menos  episódicos,  da  mais  ampla  realidade,  da  mais  es- 
tricta  exactidão  de  observação,  quer  no  dominio  da  verdade 
humana  geral,  quer  no  estudo  particular  de  interior  d'al- 
mas.  Mas,  no  seu  conjunto,  apreciada  a  criação  destes  em 
globo,  vê-se,  sente-se  que  não  teem  o  nervo,  a  resistência 
substancial  de  construção  que  oferece  a  de  Balzac,  o  que  é 
uma  resultante  da  excelência  do  plano;  e,  quanto  a  alcance 
psicológico  de  criação,  eu  creio,  repito,  não  esquecendo 
certas  grandes  figuras  que  se  devem  ao  engenho  dos  cita- 
dos grandes  realistas,  posteriores  a  Balzac,  que  a  vantagem, 
o  predominio  cabem  a  este. 

Balzac  é,  sem  duvida,  mais  clássico  que  Flaubert,  que 
Daudet  e  que  o  próprio  Maupassant,  apesar  das  notáveis 
afinidades  que  este  tem  com  ele.  Balzac  viu,  sentiu,  melhor 
que  eles,  o  valor  do  essencial  na  criação  artistica.  Com  uma 
orientação  especial,  poderosamente  metódica,  de  selecção, 
de  simplificação,  Balzac,  sóbria  e  precisamente,  representou 
da  vida  de  preferencia  o  que  nela  é  imortal,  eterno,  uni- 
versal. Sendo  mais  conciso  na  apresentação  dos  senti- 
mentos, mais  rápido  na  exposição  dos  resultados  da  analise 
psicológica  na  inquirição  do  interior,  ele  foi  mais  longe, 
imprimindo  maior  desenvolvimento  ao  papel  activo  das 
figuras  e  profundou  mais  e  definiu-as  melhor,  fazendo-as 
falar,  sem  a  brevidade  amaneirada  das  conversações  estu- 
dadas,  numa  espontânea,   plena  demonstração  das  almas. 


'     Esta  distinção  de  termos,  a  orientação  que  a  ela  preside  (a 
aplicação  a  este  ponto  de  vista  literário  é  minha),  pertencem  a  Rodin. 


HONORÉ    DE    BALZAC  105 

em   situações  decisivas  que  obrigam  os  corações  a   desen- 
tranhar-se,  em  ardores  vibrantes. 

Sob  este  ponto  de  vista,  considerado  assim,  na  sua 
concepção  e  nos  seus  processos,  impõe-se  reconhecê-lo  um 
verdadeiro,  um  grande  clássico.  E  —  convém  frisá-lo — isto 
não  é  um  demérito  como  se  poderia  concluir  da  critica  de 
Faguet.  Muito  pelo  contrario. 

A  vida  da  criação  não  somente  se  torna  tanto  mais 
insinuante,  mas  também  tanto  mais  natural  parece  quanto 
mais  simples  e  directos  forem  os  meios  psicológicos  de 
expressão  empregados.  As  sinuosidades,  os  meandros  da 
analise  psicológica  não  é  de  realista  verdadeiramente 
artista,  verdadeiramente  consciente  dos  efeitos  a  produzir, 
levar  o  leitor  a  penetrar  neles,  como  se,  em  vez  dum 
romance,  por  exemplo,  se  tratasse  dum  livro  scientifico. 
O  artista,  quando  assim  procede,  ainda  que  se  não  esqueça 
da  sua  missão,  desvirtua  o  seu  papel. 

Maupassant,  apesar  do  caracter  tão  objectivo  da  sua 
visão  e  da  sua  realização  artística,  apesar  de  ter  sido  um 
grande  artista,  foi,  por  vezes,  na  analise,  minucioso  demais, 
organizando  estudos  psicológicos  tão  sobrecarregados  de 
pormenor  que  a  grande  arte  do  romancista  mal  consegue 
disfarçar  a  preocupação  que  traem,  de  fazer  psicologia  por 
psicologia,  inquirindo  sobre  todos  os  refolhos,  todos  os 
escaninhos  das  almas.  A  decomposição  dos  elementos  da 
alma  humana  vai  longe  demais.  Interessa  vivamente  á 
inteligência  curiosa,  cultivado  o  gosto  neste  dominio  de 
estudos;  mas  sente-se  um  certo  peso,  resultante  do  excesso. 
Tratando  das  relações  amorosas  —  como  nasceram,  se 
desenvolveram  e  se  firmaram  —  entre  a  condessa  de 
Guilleroy  e  o  pintor  Olivier  Bertin  (em  Fort  comine  la 
Mort),  é  brilhante,  é  soberbo  de  penetração  e  de  justeza, 
mas  é  fatigante.  De  resto,  sempre  que  ha  um  caso  de 
consciência  mais  importante,  um  transe  de  sentimento, 
uma  luta  de  sentimentos,  Maupassant  não  perde  ensejo, 
elaborando  paginas  sobre  paginas  de  dissecações  de  espíri- 
tos, de  demonstrar  a  sua  tão  clara  quanto  experimentada 
inteligência  do  Homem  e  da  vida  humana.  A  alma  das 
figuras  pode  tornar-se  assim,  com  tal  aglomerado  de  parti- 


106  HONORÉ    DE    BALZAC 

cularidades  geralmente  curiosas,  mais  sugestiva,  em  certos 
casos,  mas  nem  por  isso  elas  se  vêem  melhor.  As  descri- 
ções, excessivamente  analíticas,  do  interior  das  figuras 
fazem  lembrar  os  relatórios  dos  peritos,  em  investigações 
criminais.  Ha  uma  diferença  essencial.  Estes  relatórios, 
peças  sem  arte,  são  só  lidos  com  ardor,  tratando-se  de 
crimes  sensacionais,  ao  passo  que  as  analises  meticulosas 
e  demoradas  de  Maupassant  constituem  um  verdadeiro 
deleite  espiritual  para  os  amadores  da  representação  da 
vida  no  romance,  da  humanidade  na  literatura.  Mau- 
passant também  sabia  atingir  efeitos  comoventes  por  meio 
de  traços  breves.  Assim,  por  exemplo,  sempre  que  apre- 
senta a  desprezada,  a  esquecida  tia  da  viscondessa  de 
Lamare. 

Faguet,  com  o  fim  de  frisar  defeitos,  fez,  em  minha 
opinião,  o  maior  elogio  a  Balzac,  quando  disse  que  via 
Groriot  como  se  ele  fosse  um  dos  seus  amigos  e  mais  per- 
feitamente ainda. 

Ora  precisamente  o  que  deve  constituir  o  objectivo 
supremo  do  realista,  do  verdadeiro  realista  que  fôr  artista 
(acentuou-o  Maupassant,  em  Le  Roman,  breve  estudo  que 
antecede  o  seu  Pierre  et  Jean),  é  promover  uma  visão  da 
realidade,  mais  completa,  mais  probante  e  mais  nitida  que 
a  que  se  pode  obter,  pela  inspecção  simples  da  própria 
realidade.  Ora  o  que  se  pretende  é  ver,  acima  de  tudo,  ó 
que  o  criador  nos  faça  ver  a  vida  da  sua  criação,  e  tanto 
mais  felizes,  tanto  melhores  e  consequentemente  mais  apre- 
ciáveis são  os  seus  processos  artísticos  quanto  mais  plena- 
mente atinja  aquele  objectivo  supremo. 

Se  os  traços  psicológicos  que  Balzac  exibe,  cons- 
truindo as  suas  figuras,  fossem  resultantes  duma  simplifi- 
cação, duma  selecção  rudimentares  de  facto,  se  não  fossem 
produtos  quintessenciados  duma  analise  profunda,  eles 
não  seriam,  creio,  nem  tão  expressivos,  nem  tão  impres- 
sivos. 

Tem  notado  a  critica  que  as  figuras  de  Balzac  se 
apresentam,  logo  que  aparecem  em  scena,  na  posse  inte- 
gral das  suas  energias  psíquicas,  num  limite  mais  ou  menos 
extremo    da   evolução   intelectual  e    moral.   E   certo,   com 


HONORÉ    DE    BALZAC  107 

efeito,  que  as  figuras  surgem,  na  generalidade,  organi- 
zadas já,  naturalmente,  com  uma  base  de  volição  e  de 
sentimento  e  de  inteligência  que  será  a  que  veremos 
posta  em  jogo,  intervindo  nos  acontecimentos,  reagindo 
contra  eles,  tirando  deles  partido  ou  aceitando-os  simples- 
mente. 

Ora,  neste  papel  das  figuras — em  uma  ou  mais  fases, 
determinadamente  escolhidas,  da  sua  vida  —  está  já  implí- 
cita a  individualidade,  com  os  diferentes  aspectos  do  seu 
modo  de  ser,  sucedendo-se  conforme  as  circunstancias  que 
reclamam  e  provocam  a  sua  aparição.  E  não  é  verdade 
que,  nos  romances  de  Balzac,  por  uma  acção  de  tal  ou  tal 
figura,  se  possam  concluir,  sem  receio  de  errar,  as  res- 
tantes acções,  que  não  haja  novidade,  interesse,  nos  modos 
sucessivos  de  pensar,  de  sentir  e  de  actuar  das  figuras. 
Não  ó  verdade  que  os  enérgicos  de  Balzac  sejam  sempre 
enérgicos  do  mesmo  modo  e  que  os  fracos  —  que  os  ha 
também  —  sejam  sempre  fracos  do  mesmo  modo,  que  a 
virtude  ou  o  vicio  tenham  sempre,  na  mesma  figura,  o 
rL.'^smo  e  único  aspecto  dominante. 

Se  a  acção  está  muito  concentrada,  se  se  desenvolve 
num  lapso  relativamente  curto  de  tempo,  se  o  quadro  da 
actividade  da  figura  é  muito  restrito  se  ela  aparece  em 
scena  numa  fase  já  muito  adiantada  da  sua  vida,  a  sua 
evolução  moral  salientar-se-á  menos.  Mas  assiste-se,  não 
raro,  a  uma  certa  modificação,  mais  ou  menos  declarada, 
nos  caracteres  morais,  sob  a  influencia  dos  meios  com  que 
entram  em  contacto  e  consoante  a  qualidade  das  situa- 
ções. Luciano  de  Rubempré  é  sempre  um  vaidoso,  um 
fraco,  mas  não  o  é  sempre  do  mesmo  modo  e  no  mesmo 
grau.  Esses  aspectos  dominantes  do  seu  caracter  moral 
sofrem  modificações.  O  homem  da  noite  de  apresentação 
na  casa  de  Mme  de  Bargeton,  em  Angoulême,  numa  rece- 
pção dada  propositadamente  para  glorificar  o  poeta  e  o 
lançar,  num  momento,  no  seio  da  sociedade  mais  selecta 
da  cidade  e  arredores,  não  é  o  mesmo  que,  tempos  depois, 
toma  parte  nas  festas  desbragadas  do  Paris  mundano,  feito 
já  jornalista  de  nome,  e  nem  um  nem  outro  são  o  mesmo 
que,  mais  tarde,  de  regresso  a  Angoulême,  se  apresenta  em 


108  HONORÉ    DE    BALZAC 

casa  de  De  Sénouches,  numa  roda  de  convidados  esco- 
lhidos, entre  as  pessoas  mais  gradas,  e  afecta  de  homem 
superior,  no  espirito,  no  trajar,  nos  costumes,  rindo-se  de 
tudo  e  de  todos,  rindo-se  da  província  e  dos  provin- 
cianos. 

A  critica  tem  também  notado  o  facto  de  Balzac  se 
ter  expandido,  de  não  ter  refreado  as  exuberancias  do  seu 
temperamento,  satisfazendo  demasiado  as  exigências  do  seu 
natural  comunicativo. 

E  esse,  sem  duvida,  um  defeito  do  romancista,  defeito 
que,  de  corta  maneira,  ha  de  incidir  sobre  a  qualidade  do 
realismo  ou,  pelo  menos,  sobre  a  qualidade  da  sua 
expressão  artística.  Advirta-se,  porém,  que  Balzac,  em 
regra,  não  confidencia  a  seu  respeito  com  o  leitoi-.  Em 
principio,  a  impassibilidade,  na  atitude  do  realista,  é  con- 
dição sine  qiia  non  do  verdadeiro,  do  puro  realismo.  Mas 
impassibilidade  absoluta  não  é  possivel,  não  existe.  A  per- 
sonalidade do  realista  ha  de  necessariamente  trair-se,  mais 
ou  menos.  Não  se  trai  tanto,  na  ironia  desdenhosa  de  Flau- 
bert,  a  sua  aversão  pelo  burguês?  E  não  sei  se  a  obra 
d'arte  ganhará  tanto  como  se  pretende  com  a  impassi- 
bilidade que  é  lima  forma  de  atitude  afectada,  contra- 
feita. 

Por  essa  tendência  a  intervir  na  criação,  bordando 
comentários,  nem  sempre  formulando  modos  de  ver  em  que 
se  antecipe  ao  critério  e  ao  juizo  do  leitor,  antes  prepa- 
rando, de  ordinário,  a  impressão  a  produzir  artisticamente 
no  espirito  dele  —  que  não  a  revelar-se-nos,  a  revelar  a  sua 
alma,  de  propósito  deliberado,  (as  expansões  são  sempre 
muito  calculadas  e  nelas,  em  geral,  não  predomina  o  cora- 
ção, mas  a  inteligência)  —  por  essa  tendência  só,  conside- 
rada em  si,  ainda  que  importante,  poderá  Balzac  ser  classi- 
ficado justamente  de  romântico? 

O  romantismo  de  Balzac  foi  condicionado  demais  pelo 
seu  realismo  para  poder  ser  considerado,  no  fundo,  um 
exemplar  genuino  do  romantismo  propriamente  dito.  Balzac 
foi  sempre,  preponderantemente,  por  disposição  natural  da 
sua  inteligência  (mesmo  pelo  sentimento,  —  um  sentimento 
largo    e   profundo   de   Homem   eminentemente   representa- 


HONORÉ  DE  BALZAC  109 

tivo  '  que  via  e  sentia,  de  preferencia  a  si  próprio,  a  Humani- 
dade, sabendo  fugir,  quanto  possivel,  á  contingência,  inevi- 
tável para  o  romântico,  de  referir  a  Humanidade  á  sua 
pessoa,  ou  antes  de  exibir  a  sua  pessoa  em  vez  da  Huma- 
nidade, de  ver  a  Vida  fraccionariamente,  com  a  estreiteza 
dos  que  não  buscam  compreendê-la  mesmo  considerada  em 
parte,  quanto  mais  na  sua  totalidade  — ,  foi,  creio,  mais 
realista  que  romântico),  um  verdadeiro,  um  grande  realista 
de  dotes  privilegiados;  os  principios  da  sua  razão  potente 
que  tudo  abraçava,  que  tudo  dominava,  metiam  na  ordem 
as  extravagâncias,  os  abusos  possiveis  da  imaginação  e  da 
sensibilidade,  propensas  a  românticos  arroubos,  por  dispo- 
sição congénita,  sempre  mais  ou  menos  refreada.  A  imagi- 
nação e  a  sensibilidade  atraiam-no  para  o  romantismo  (con- 
sidere-se  o  entusiasmo  nele  despertado  pelo  romantismo 
inglês,  no  género  que  especialmente  cultivou),  mas  a  sua 
razão  combateu  sempre,  em  geral  com  êxito,  o  que  ele  po- 
deria representar  de  depressivo  para  a  sua  criação. 

O  romantismo  propriamente  dito  era  incompativel  com 
o  real  (o  que  não  significa  que,  dentro  dele,  se  fizesse  sem- 
pre obra  fora  da  realidade  —  duma   realidade,   é  certo,   em 


•  Alguns  dos  contemporâneos  mais  ilustres  de  Balzac,  ami- 
gos que  com  ele  conviveram  mais  ou  menos,  descreveram  o  que  de 
mais  frisante  se  impunha  no  seu  todo  físico,  especialmente  a  expres- 
são da  sua  fisionomia  e  as  maneiras  do  seu  trato.  O  homem  em  Bal- 
zac era  tão  insinuante  que  dezenas  de  anos  depois  ainda  ha  quem 
venha  contar  impressões  sobre  ele,  meras  impressões  de  exterior 
(Vid.  Discours  de  réception  de  Faguet  à  V Académie  française,  por  Émlle 
Ollivier).  Esses  testemunhos  são  interessantes.  Bem  assim  os  retra- 
tos, justamente  apreciáveis,  para  confronto :  o  conhecido  como  o  da- 
guerreotipo,  em  primeiro  lugar  (vem  publicado  no  frontispício  da 
obra  citada  de  Lawton),  o  que,  mais  vulgarizado,  foi  exibido  no  Salon 
de  1837,  o  de  Balzac  aos  trinta  anos  que  figura,  em  frontispício,  na 
mais  recente  obra  de  Faguet  sobre  o  grande  romancista,  o  reprodu- 
zido numa  litografia  de  Julien,  datada  de  1840,  o  exibido  no  Salon  de 
1842,  o  representado  numa  gravura  de  Hédouin.  [Todos  estes  retra- 
tos de  Balzac  se  conteem  na  obra  citada  de  Lawton].  A  este  aspecto 
particular  do  estudo  não  resistirá  todo  o  que  dispuser  dum  senti- 
mento literário  intenso.  Contudo,  sempre  mo  pareceu,  com  Lemaitre, 


110  HONORÉ    DE    BALZAC 

geral,  de  convenção  e  de  artificio)  e  menospresava  até  o 
bomsenso.  Balzac  nunca. 

Desde  que  se  conheceu,  desde  que  se  sentia  artista  ori- 
ginal, podendo  sair  dos  moldes  dos  seus  autores  predilectos 
e  criar  por  si,  inspirando-se  sobretudo  na  natureza,  cora  o 
mais  elevado  sentimento  da  Vida,  reagiu  contra  o  roman- 
tismo, não  tanto  contra  os  seus  processos,  como  contra  o 
que  o  seu  espirito  tinha  de  essencialmente  atentatório  do 
real,  observou  e  representou  nas  suas  obras,  sistematica- 
mente e  de  propósito  declarado,  a  realidade  do  seu  tempo, 
a  realidade  vivida  sob  os  seus  olhos,  sentida  toda  por  sua 
grande  alma,  encarando-a  á  luz  dum  critério  profundamente 
humano,  baseado  sempre  na  verdade  e  iluminado  a  espa- 
ços por  intuições  de  vidente. 

Nú  romantismo  de  Balzac  ha  vicios  e  virtudes  do  ro- 
mantismo propriamente  dito,  vicios  que  o  espirito  do  rea- 
lismo corrigiu  em  parte,  virtudes  que  ele  soube  aproveitar, 
como  prova  a  natureza,  tão  intima  e  tão  sugestivamente 
verdadeira,  da  concepção  do  romancista.  A  influencia,  nas 
obras  de  Balzac,  do  romantismo,  ou  melhor  de  tendências 
dominantes,  muito  caracteristicas,  do  romantismo  —  as  ten- 


que  o  físico  do  artista  deve,  em  principio,  reputar-se  de  importância 
secundaria,  Balzac  em  nenhum  dos  retratos,  nomeadamente  no  da- 
guerreotipo,  corresponde  á  ideia  extremamente  complexa  que  faço 
dele.  Essa  ideia  transcende  o  âmbito  das  impressões  que  os  retratos 
sugerem. 

Sinto  que  esses  retratos,  de  que  me  esforço  por  adivinhar  o  se- 
gredo intimo  de  expressão,  me  não  dizem  tudo,  longe  disso.  Analo- 
gamente, que  dizem,  por  exemplo,  os  retratos  desses  outros  grandes 
artistas  psicólogos,  Sainte-Beuve  e  Maupassant?  Que  juizo  faria- 
mos  desses  homens  pelos  retratos,  se  lhes  não  conhecêssemos  as 
obras  ? 

Apesar  de  haver  quem  pretenda  que,  na  critica  literária,  as  obras 
do  autor  são  o  subsidio  mais  em  descrédito  para  o  conhecimento  da 
sua  individualidade  moral,  eu  não  penso,  não  julgo  assim.  A  visão 
das  obras  —  que  mal  se  poderá  desembaraçar  do  personalismo  da  im- 
pressão —  é  fundamental.  O  quantum  que  pela  visão  se  atinge  e  a  se- 
gurança com  que  ela  se  exerce,  é  questão  de  inteligência  e  de  senti- 
mento  ou  de  discernimento  e  de  gosto,  fortalecidos  pelo  tacto.  E  o 


HONORÉ    DE    BALZAC  111 

dencias  conformes  com  o  uatural  do  romancista,  com  a  sua 
orientação  de  realista  acima  de  tudo — não  foi  inconve- 
niente :  o  romancista  tirou  desse  modo  de  inspiração,  desse 
aspecto  da  inspiração  efeitos  que  enriqueceram  o  seu  rea- 
lismo, A  pujança  da  sua  criação  não  se  insinuaria,  não  se 
imporia  tanto,  presumo,  sem  uma  certa  coloração  que  lhe 
imprime,  atenuados  os  tons  mais  carregados,  o  espirito  ro- 
mântico. 

A  aliança,  a  fusão  do  realismo  e  do  romantismo,  na 
produção  de  Balzac,  deram-lhe  essa  força,  essa  capacidade 
de  vibração  e  de  expressão,  em  côr  e  em  relevo,  —  e  por- 
que não  direi:  essa  vida?  —  que  a  tornam  digna  de  ser 
classificada,  com  legitimo  direito,  de  superior  entre  as  mais 
altas  produções  realísticas.  O  romantismo,  ou  antes,  o  es- 
pirito do  romantismo,  em  Balzac,  deixa-se,  de  ordinário, 
penetrar,  o  mais  fundamente  possível,  pelo  espirito  do  rea- 
lismo que  dirige  e  anima  toda  a  criação.  Dentro  do  espirito 
romântico,  o  autor  da  Comédie  Humaine  teve  um  idealismo  a 
seu  modo,  um  idealismo  muito  seu,  o  idealismo  mais  confor- 
me com  o  seu  feitio  moral  de  homem  e  com  a  sua  orien- 
tação dominante  de  escritor  fortemente  cerebral. 


critério  do  impressionista  não  é  necessariamente  um  critério  super- 
ficial; ainda  que  puramente  de  sentimento,  pode  ser  profundo  e,  nessa 
hipótese,  a  critica  literária,  por  mais  ambiciosamente  scientifica,  não 
fará  sempre  bem  em  o  engeitar. 

Se  nas  obras  nao  está  o  autor  todo,  está  pelo  menos  o  essen- 
cial da  sua  individualidade.  E  até  na  compostura  mais  ou  menos  for- 
çada duma  atitude  de  efeito,  o  autor,  por  mais  que  queira,  não  con- 
segue disfarçar  de  todo  a  sua  verdadeira  constituição  moral.  E'  tão 
interessante  descobrir  o  homem  por  entre  a  ênfase  e  todo  o  aparato 
romântico  de  Chateaubriand  como  notar  o  que  ha  de  pessoal,  de  sen- 
tidamente pessoal,  nas  obras  estudadamente  impessoais,  intencional 
e  fortemente  objectivas,  de  Maupassant.  A  obsessão  da  morte  é  neste 
extremamente  caracteristica.  A  arte  com  que  as  scenas  da  morte,  as 
situações  em  torno  dos  mortos  sao  arquitectadas  e  traçadas,  em  Mau- 
passant, nada  fica  a  dever,  era  perfeição,  á  que  Balzac  revelou  na  idea- 
lização e  construção  da  morte  de  Goriot  ou  de  Pons.  Sirvam  de  exem. 
pio  a  morte  de  Olivier  Bertin  e  o  velar,  tão  entrecortado  por  como- 
ções variadas,  da  viscondessa  de  Lamare,  junto  do  cadáver  da  mãi. 


112  HONOBÉ   DE    BALZAC  * 

A  sua  criação  literária  distingue-se  principalmente 
pelo  modernismo,  observado  e  interpretado  com  a  mais 
ampla  e  segura  inteligência  e  consciência  da  vida  real. 
Nisto  dita  o  realismo  lei  e  pode  dizer-se  que  em  tudo,  sendo 
o  romantismo  um  hospede  apenas,  se  bem  que  acolhido 
por  simpatia.  O  hospede,  felizmente,  foi  mais  discreto  em 
geral  do  que  seria  licito  esperar,  dado  o  temperamento  de 
Balzac.  Pondere-se  que  a  modalidade  do  espirito  humano, 
á  qual  se  convencionou  chamar  «romantismo),  não  é  só 
do  século  XIX.  Na  historia  literaiia  de  França,  ocorre-rae 
assinalar  uma  outra  época  romântica,  a  que  determinou, 
em  reacção,  a  produção  de  Racine  e  dos  realistas  seus 
contemporâneos. 

Realismo  e  romantismo  são  dois  fundamentais  aspe- 
ctos do  espirito  humano,  evidenciados,  distintos,  consoante 
factores  de  ordem  moral  e  social,  variáveis  segundo  os 
tempos  e  os  lugares;  são  modalidades  essenciais  da  consti- 
tuição psicológica  do  Homem. 

Ha,  em  quantidade  maior  ou  menor,  romantismo  nos 
realistas,  realismo  nos  românticos.  Deve-se  convir  em  que 
a  discriminação,  neste  particular,  é  sempre  necessaria- 
mente artificial,  subjectiva. 

Apesar  de  todas  as  suas  reservas  sobre  o  realismo  de 
Balzac,  Faguet  consignou  que  por  ele  foram  criadas  figuras 
duma  «verdade  absoluta>,  que  se  diria  terem  saido  «das 
mãos  da  natureza». 

O  romancista  foi  um  genial  e  sábio  arquitecto  de  espi- 
rites. Observador  e  vidente  a  um  tempo,  nada  lhe  escapava 
para  a  construção  das  individualidades.  Assim,  não  lhe  po- 
diam passar  despercebidas,  e  não  passaram,  as  formas  de 
manifestação  individual  que  as  profissões,  as  origens,  a  edu- 
cação, as  relações,  o  conflito  social  dos  interesses  determi- 
nam. 

Destacando-se  da  criação  (que  é,  como  representação 
da  alma  e  da  vida  humanas,  um  todo  orgânico)  uma  parte, 
arbitrariamente,  e  isolando-a,  incorre-se  sempre  em  risco  de 
interpretar  mal.  Como  as  obras-primas  de  Miguel  Angelo, 
também     artista     superior     no     dispositivo     dos    grandes 


HONOaÉ    DE    BALZAC  113 

planos  ',  tendo  criado,  entre  outras,  uma  escultura  de  que 
Rodin  disse  que,  qual  bloco  granitico,  poderia  despenhar-se 
por  uma  montanha  que  se  não  partiria  ^,  assim  as  obras- 


1  Palavras  de  Rodin  (Canudo  —  Une  Visite  à  Rodin  —  La  Re- 
vue  Hehdoinadaire,  de  5  de  abril  de  1913) : 

«Procurei  sempre  no  corpo  humano  o  seu  aspecto  arquitectura!. 
E,  em  verdade,  não  o  procurei,  lá  está,  mostra-se  a  todos  os  instan- 
tes, basta  olhar  para  ele.  O  corpo  humano,  mais  livre  nos  seus  mo- 
vimentos que  o  dos  animais,  mais  desenvolto,  e  tão  miraculosa- 
mente em  equilíbrio,  é  a  lição  viva  que  a  natureza,  com  uma  genero- 
sidade infatigável,  oferece  á  nossa  arquitectura.  O  segredo  está  no 
movimento,  nos  planos.  Toda  a  arte  está  nos  planos.  O  «plano"  é  a 
relação  estreita  de  todas  as  cousas  num  conjunto.  A  obra  está,  pois, 
toda  nos  planos.  . .  Um  homem  como  Rembrandt  realizava  o  milagre 
do  seu  jogo  de  luz  e  de  sombras  começando  sempre  por  compor  o 
fundo  do  seu  quadro.  Todo  o  seu  génio  estava  nisso.  Estabelecido  o 
fundo,  a  obra-prima  estava  feita  ...  A  obra-prima  estava  no  fundo 
do  quadro,  em  que  a  sciencia  dos  planos  fixara  uma  harmonia  in- 
comparável. ...  As  formas  repetem-se  na  natureza.  Mas  ha  alguma 
cousa  que  fica:  a  forma.  Os  antigos  compreenderam-no  sempre  e 
procuravam  de  preferencia  o  «núcleo»  de  cada  forma,  a  própria  essen- 
cia  do  seu  aspecto  ...» 

O  que  Rodin  diz  da  forma  por  excelência,  da  forma  eterna  que 
o  artista  de  génio  consegue  fixar,  pode  bem  applicar-se  a  Balzac, 
como  a  Miguel  Angelo  e  a  Rembrandt.  O  que,  por  sua  vez,  diz  dos 
«planos»,  esclarece  sobre  o  processo  fundamental  dos  grandes  cria- 
dores e  habilita  a  ver  que  Balzac  também  procedia  por  sistema,  den- 
tro desse  sistema. 

Quem  supuser  que  ele  construia  á  aventura,  por  casual  arbitrio 
ao  sabor  das  circunstancias  do  momento,  engana-se.  Quanto  ao  facto 
de  a  natureza  se  mostrar  a  todos  os  instantes,  de  se  oferecer  á  obser- 
vação, com  uma  generosidade  infatigável,  nfio  posso  contestar  que 
assim  seja,  mas  já  contesto  que  baste  só  olhar  para  ela  para  a  ver. 

Rodin  não  se  teria  exprimido  exactamente  pela  forma  ado- 
ptada por  Canudo.  Rodin  sabe,  como  poucos  —  e  declarou-o  mesmo 
—  o  que  a  inteligência  das  formas  custa  ao  observador. 

O  observador  que  não  tiver  o  sentimento  da  vida  e  os  meios  de 
observação  profundamente  educados  no  estudo  directo  da  natureza, 
nao  logra  penetrar  na  essência  das  cousas,  só  pode  atingir  uma  vi- 
são imperfeita,  uma  visão  parcial  e  superficial,  nunca  uma  visão  in- 
tima e  de  conjunto. 

2  «E  necessário  que  uma  estatua  possa  rolar  dum  cume.  O 
que  perderá  pelo  caminho,  é  o  supérfluo»  — dizia  Miguel  Angelo. 

8 


114  HONORÉ  DE  BÀLZAC 

primas  de  Balzac  teem  de  essencial  a  harmonia,  a  pro- 
porção, a  relação  intrinseca  de  vida  que  os  elementos 
básicos  de  construção  guardam  entre  si. 

Sirva  de  exemplo  Une  Ténébreuse  Affaire,  tão  depre- 
ciado. Ha  neste  romance,  muito  do  melhor  de  Balzac,  um 
vigor,  um  relevo,  uma  intensidade  dramática  que  arrebatam, 
por  vezes.  Considerado  em  globo,  por  uma  visão  sintética, 
é  uma  obra-prima  duma  sugestão  rara  e  o  que  a  distingue 
especialmente,  o  seu  valor  histórico  documental,  julgo  que 
saltará  aos  olhos  de  todos  os  que,  sem  imrti  pris  em  con- 
trario, tenham,  a  corroborar  a  inteligência  e  o  gosto,  um 
pouco  de  cultura,  mesmo  leve.  Considere-se,  porém,  parcial- 
mente, perdida  a  noção  do  conjunto  ou  desprezada.  O  juizo 
critico  terá,  aqui  e  além,  de  ser  desfavorável  e  será  um 
juizo  imperfeito,  e,  no  fundo,  falso. 

As  grandes  obras  de  Balzac  devem  apreciar-se  como 
todos,  unos,  indivisiveis,  no  que  teem  de  essencial.  Entre 
os  seus  elementos  básicos  de  construção,  não  ha  apenas 
encadeamento,  ha  fusão  intima,  indissolúvel.  Desintegrá-los 
é  um  erro. 

Faguet  pôs  em  relevo  a  coesão  fundamental,  orgânica 
que  oferece  a  substancia  dos  bons  romances  de  Balzac. 

Resumindo:  não  se  pode  negar,  em  justa  razão,  a  Bal- 
zac, realismo,  o  mais  intenso  realismo,  no  dominio  da  cria- 
ção psicológica. 

Não  se  vê  só  o  exterior  das  suas  figuras;  vê-se-lhes  o 
interior  também,  graças  sobretudo  á  qualidade  dos  traços 
a  que  o  romancista  recorreu,  para  as  definir. 

Como  subsistiriam  as  figuras,  de  contrario,  no  nosso 
espirito? 

No  geral,  o  descritivo  do  exterior  escapa  ou  depressa 
se  desvanece:  as  falas  e  as  acções  das  figuras  é  que  no-las 
fazem  ver.  Na  vida  real,  não  se  poderia  abstrair  do  fisico 
da  pessoa,  para  a  conhecer;  na  criação  literária,  abstrai-se, 
mais  ou  menos,  do  corpo  da  figura  e,  como  é  absoluta- 
mente justificado  pelas  condições  da  simples  leitura  e 
mesmo  do  estudo,  é  a  humanidade  da  figura,  denunciada 
pela  sua  alma,  o  que  predominante,  quase  exclusivamente 
absorve   as   atenções.   E  não  se  pode  contestar  que  quem 


HONOEÉ  DE  BAIiZAC  115 

procure  alma  nas  palavras  e  nas  acções  das  grandes  figu- 
ras, como  até  de  secundarias,  de  Balzac,  —  nem  umas  nem 
outras,  note-se,  são  sempre  tipos — ,  encontra,  normal- 
mente, eminente  a  tudo,  subordinando  a  produção  toda 
ao  móbil  realistico  mais  elevado,  o  criador  d'almas. 

Faguet  teve  o  senso  critico  de  pôr  em  foco  os  retra- 
tos físicos  de  duas  das  principais  figuras  do  mundo  criado 
por  Balzac:  a  prima  Bette,  aos  vinte  e  cinco  anos  e  aos 
quarenta  e  cinco;  Goriot  aos  sessenta  e  dois  e  aos  sessenta 
e  cinco.  Esses  retratos  não  são  só  fisicos,  são  essencial- 
mente psicológicos.  E  são  admiráveis,  absolutamente  ma- 
ravilhosos. E  não  são  únicos,  não  são  excepções  nas  obras 
de  Balzac. 

Brunetière  distinguia,  na  pintura  da  alma  duma  figura, 
dois  aspectos:  «o  meio  interior»  e  «a  verdade  humana». 
Esses  dois  aspectos  fundamentais  completam-se,  consti- 
tuem a  vida  essencial  da  figura.  Por  <meio  interior»  ele 
entendia  esse  quer  que  seja  de  particular  que  não  per- 
tence senão  á  figura  e  ao  seu  tempo;  por  «verdade  hu- 
mana», alguma  cousa  de  geral  que  pertence  a  todas  as  da 
mesma  espécie,  em  todos  os  tempos.  Ora  essa  «verdade 
humana»  geral  não  aparece  em  nenhum  realista  (nem 
mesmo  em  Flaubert,  nem  em  Daudet,  nem  no  próprio 
Maupassant)  tanto  como  em  Balzac.  Esta  formula  de  juizo 
não  é,  porém,  tão  absoluta  que  não  admita  correcções. 
Mas  estas  não  invalidam  o  que  ha  do  racional,  de  exacto, 
na  essência  do  critério.  Por  exemplo,  Mme  Bovary  não 
terá  muito  de  humanidade  geral?  E  Mme  Araoiix  (de 
L' Éducation  sentimentale)?  E  Mme  Ebsea  (de  U Évangéliste)? 
E  Mme  de  Lamare  (de  Une  vie)?  E  Mme  de  Guilleroy  (de 
Fort  comme  la  Mort)? 

Contudo,  avaliada  a  criação  em  globo,  creio  que,  no 
mundo  de  Balzac,  a  verdade  humana  geral  é  mais  ampla 
e  é  mais  funda.  E,  não  obstante,  Flaubert,  Daudet  e  Mau- 
passant foram  grandes  realistas,  mestres  consumados  na 
analise  psicológica  e,  sobretudo  o  primeiro  e  o  terceiro, 
na  arte  da  composição. 

Mas  a  superioridade  de  Balzac  não  está  só  na  verdade 
humana  geral,   está  ainda  no   próprio    meio   interior  que. 


116  HONOEÉ  DE  BALZAC 

sem  ser  menos  vivo,  é  mais  visivel,  o  que  resulta  da  exce- 
lência da  arte  e  do  engenho.  Os  traços  que  definem  a 
alma  das  figuras  em  Balzac  são  mais  essenciais,  mais  sin- 
téticos, mais  caracteristicamente  pessoais,  teera  uma  fun- 
ção e  uma  significação  mais  vastas,  mais  profundas  e,  ao 
mesmo  tempo,  mais  precisas,  mais  nitidas. 

O  próprio  fisico  das  figuras  de  Flaubert  e  de  Maupas- 
sant,  os  maiores  realistas  depois  de  Balzac,  não  se  vê 
tanto  como  o  das  figuras  do  criador  da  Comédie  Humaine. 
Na  selecção  dos  caracteres  tisicos  e  psicológicos  está  tudo 
ou  quase  tudo,  está  o  segredo  principal  da  criação  de  vida. 
E,  como  Faguet  disse,  «  não  é  o  segredo  da  arte,  é  o  se- 
gredo dum  instinto  psicológico  e  dum  poder  psicológico 
que  consistem  em  se  transformar  o  individuo  num  outro  e 
em  viver  nesse  outro  como  ele  próprio  vive,  com  o  mesmo 
ardor  de  paixão  e  com  a  mesma  lógica  dos  sentimentos  e 
das  paixões».  E  acrescentava:  «E  esse  dom  que  não  é 
analisavel». 

Basta  o  capitulo  final,  intitulado  Balzac  depois  da  sua 
morte,  do  livro  de  Faguet,  Balzac  (1913),  para,  em  frente 
desse  balanço  ás  obras  dos  grandes  realistas  que  se  suce- 
deram ao  autor  da  Comédie  Humaine,  balanço  que  é  talvez, 
senão  a  parte  mais  luminosa,  pelo  menos  a  parte  mais 
concludente  da  critica,  assentar,  saldados  defeitos  e  quali- 
dades duns  e  doutros,  na  grande  verdade  fundamental  de 
que,  apesar  de  tudo  o  que  possa  legitimamente  ser  censu- 
rado nele,  Balzac  foi,  com  Molière,  o  maior  criador  d'al- 
mas  que  a  França  tem  tido,  o  maior  criador  de  huma- 
nidade. 


índice 


Prefacio 5 

Capitqlo     l  — Biografia  de  Balzac 7 

Capitulo    íi.  — Obras- primas  de  Balzac 19 

Capitulo  iu.  -  Valor  da  criação  literária  de  Balzac  .  75 


ERRATAS 


PAGINA 

LINHA 

EM  VEZ  de: 

leia-se: 

50 

31.« 

contena 

contenda 

50 

34.« 

como  cie  facto 

como  de  facto, 

52 

31.a 

reflectia 

reflectida 

54 

28.a 

legião  rl'honra 

Legião  d'Honra 

63 

19.» 

Gouril 

Goupil 

64 

21.a 

Savinien  depois 

Savinien  e  depois 

73 

38.»-39.« 

naturalmente 

logicamente 

77 

6.a 

para  dar  vida  que 

para  dar  vida,  uma  vida 

baste 

que  baste 

78 

4.» 

toda  ela,  tem 

toda  ela  tem 

78 

14.« 

balzac,  viu 

Balzac  viu 

78 

24.» 

producção 

produção 

83 

2.a 

para  a  calmar 

para  a  acalmar 

83 

19." 

audaciosos 

audaciosos 

83 

23.»-24.« 

(de  Le  Coasin  Fons 

(de  Le  Cousin  FonsJ 

84 

6.« 

bem 

bem. 

84 

9.« 

melhores, 

melhores 

84 

14.» 

Schmuck 

Schmucke 

84 

25.» 

peripécia 

peripécias 

84 

25.a-26.« 

que,  sobrelevam 

que  sobrelevam, 

85 

20.« 

notaria 

notória 

89 

17.* 

exceptuado 

exceptuados 

"7'