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Full text of "Jornadas no meu país"

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PURCHASED    FOR    THE 

UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 

FROM    THE 

HUMANITIES  RESEARCH  COUNCIE 
SPECIAE  GRANT 

FOR 


BRAZIL  COLLECTION 


JORNADAS  NO  MEU  PAÍS 


0BRA5    DA  /^E5nA   AUTORA: 


Traços  e  Iluminuras  —  (contos). 

A   Família   Medeiros  —  (romance). 

Memórias    de    Marta  —  » 

A   Viuva  Simões  —  » 

A  Falência  —  » 

Livro  das  Noivas 

Livro  das  Donas  e  Donzelas. 

Ânsia   Eterna  —  (contos). 

A  Intrusa.  —  romance. 

Histórias  da  Nossa  Terra  —  contos. 

A  Herança  —  (comédia). 

Quem  não  Perdoa  —  (drama). 

Correio   da  Roça. 

Cruel  Amor  —  (romance). 

Eles   e    Elas  —  (diálogos  e  monólogos). 

A  Silveirinha  —  (romance). 

Doidos  de  Amor  —  (teatro). 

N^os   Jardins  de   Saúl  —  (teatro) 

Era  tima   vez  ...  —  (conto). 

DE    COLABORAÇÃO 

Contos   Infantis  —  com  Adelina  Lopes  Vieira. 

Casa    Verde  —  (romance)  —  com  Filinto  de  Almeida" 

A  Árvore  —  com  Afonso  Lopes  de  Almeida. 


JÚLIA  LOPES  DE  ALMEIDA 


JORNADAS 

NO 

MEU  PAÍS 


ELECTRONIC  VERSÍON  Desenhos  de  Albano 

AVAiLABLE  Lopes    de    Almeida 

ti  /u-^  U007A 


RIO     DE    JRNEIRO 
1920 


m(^ 


.  .  .  un  libro  que  se  escribe,  o  es 
papel  vano,  o  es  un  alma  que 
tejè  com  su  própria  substancia 
su  capullo. 

E.  Rodo. 


"Onde  ha  sinceridade,  ha  pelo 
menos,  uma  virtude.  " 


A 

Ema  e  Américo  Moreira 


Jornadas  no  meu  País 


Covio  escrever  iiiipressões  de  %'iagem 
cie  7im  modo  impessoal,  se  tudo  qtie  o 
escritor  observa  tem  de  ser  Julgado 
pelo  seu  modo  exclusivo  de  ver  e  de 
sentir  ? 


Ha  muitos  anos  que  me  mordia  o  dese- 
jo de  ir  jornadear  pelas  nossas  terras  do  sul. 

O  Rio  Grande,  pelo  interesse  da  sua  vida 
social,  costumes  típicos,  clima  de  extremos 
e  paisagens  vagas  e  livres,  seduzia-me  a  ima- 
ginação de  tal  modo  que,  por  várias  vezes, 
projectei  viagens  que  sucessivamente  adiei, 
até  que  um  dia,  com  menos  preparos  ante- 
cedentes, tomei   uma   resolução   e   um   taxi. 


—  10  — 

que  me  levou  á  porta  da  agencia  da  Cos- 
teira e  em  dois  minutos  tudo  ficou  decidido. 

—  O  primeiro  paquete? 

—  O  Itaberá,  amanhã. 

—  Bom? 

—  Um  dos  melhores  da  Companhia. 

—  Nesse  caso.  uma  passagem  para 
Porto  Alegre! 

Respiro;  já  não  pôde  haver  hesitações 
aborrecidas.  Volto  para  casa  com  um  alvo- 
roço de  colegial  em  véspera  de  férias;  atiro 
apressadamente  a  roupa  para  a  mala  e  tele- 
fono ás  amigas  adeuses  risonhos: 

—  Que  lembrança  a  minha  de  partir 
nesta  estação?  Mas  não  ha  nenhuma  mais 
deliciosa  do  que  o  outono,  querida!  Sim,  sim, 
eu  mandarei  postais  das  nobres  terras  gaú- 
chas! 

Parto,  quando  elas  chegam  de  Petrópo- 
lis, Therezópolis,  Friburgo,  impregnadas 
do  aroma  agreste  e  sadio  dos  eucaliptos  e 
dos  pinheirais  da  serra.  Abril  fenece,  es- 
palhando sobre  a  face  crestada  do  Rio  um 
leve  sopro  de  caricia.  Vai  começar  a  nossa 
season  e  eu  fujo!  fujo  para  mergulhar  toda 


11 


inteira,  corpo  e  alma,  no  ambiente  azul  do 
céu  e  do  mar  infindos. 

Como  sempre  que  me  disponho  a  partir 
para  longe,  a  minha  viagem  começa,  mal 
ponho  o  pé  fora  da  soleira  de  casa.  E'  sem- 
pre assim:  olho  então  para  as  coisas  mes- 
mo as  mais  banais  e  insignificantes  com  re- 
dobrada atenção,  no  desejo  inconsciente  de 
as  guardar  na  retina  para  as  levar  comigo. 

O  Rio  começa  a  alegrar-se.  Os  "bars" 
estão  repletos  de  marinheiros  loiros,  vesti- 
dos de  branco;  agitam-se  os  automóveis; 
chegam  os  deputados;  enchem-se  os  hotéis; 
trabalham  mais  as  costureiras;  organizam- 
se  com  melhor  fantasia  as  vitrines,  e  ani- 
mam-se  os  teatros.  E'  a  reacção,  que  sacode 
o  marasmo  do  estio  longo. 

O  peor  é  que  o  Itahcrá  não  está  atra- 
cado: tenho  de  ir  de  lancha.  O  peor,  disse 
eu?  Talvez  seja  o  contrário.  O  navio  que  se 
comunica  com  a  terra  por  uma  simples 
prancha,  dá-me  a  impressão  de  ser  uma  con- 
tinuação do  cais  e  eu  gosto  de  gozar  a  sen- 
sação de  desprendimento  da  viagem  desde  o 
seu  início. 


12 


Amigos,   não   choreis,    que   a   jornada  é 
curta  e  de  prazer.  E  vede,  que  linda  manhã! 


No  convés  passo  os  olhos  deslumbrados 
pela  nossa  querida  e  apoteótica  baía.  Quem 
viu  jamais  coisa  mais  bela?  O  sol  inunda-a 
de  glória;  a  Serra  dos  Órgãos  desmateriali- 
za-se  na  fluidez  casta  da  luz  matutina  que 
tinge  de  tons  ruborescentes  uns  restos  de  ne- 
blina ainda  enredados  no  dorso  das  monta- 
nhas. O  pico  do  Corcovado  desenha-se  no  ar 
alto,  desencarapuçado,  afirmando  na  sua  sa- 
bedoria de  barómetro  infalivel,  em  que  o 
povo  tem  fé,  que  podemos  ter  confiança  no 
tempo. 

No  mar  um  grande  sossego;  a  pequena 
distancia  um  lugre  e  dois  imensos  "dread- 
noughts"  americanos,  com  roupas  de  maru- 
jos a  secar  ao  vento,  entre  baldezinhos  ver- 
melhos suspensos  das  mesmas  cordas  e  que 
na  sua  insignificância  dão  uma  notazinha 
viva  e  curiosa  ao  quadro.  Reparo  para  os 
cascos    dos   dois   vasos    de   guerra    cm    que 


—  13  — 

pintores  cubistas  encontraram  emfim  na 
"camouflage"  aplicação  para  os  desenhos 
extravagantes  da  sua  arte,  até  ha  pouco  tem- 
po tão  mal  compreendida.  .  . 

Emfim,  levantamos  ferro.  Haverá  na  na- 
tureza expressão  de  maior  candura  do  que  a 
de  um  mar  sereno  em  manhã  anilada  e  fres- 
ca? Procurai-a  bem  a  ver  se  a  achais  em 
vosso  pensamento,  que  eu  não  a  encontro  no 
meu. 

Digo  adeus  com  os  olhos  ao  estendal  da 
casaria  que  a  linha  das  praias  recorta  e  os 
morros  interrompem,  e  penso  em  como  seria 
triste  e  árido  o  panorama  de  uma  cidade  em 
que  não  houvesse  torres.  Se  os  templos  cris- 
tãos não  as  erguessem  como  o  símbolo  da 
sua  Fé,  seria  indispensável  que  as  edificás- 
semos pelo  amor  de  outro  culto  —  o  da 
Beleza. 

Dou  volta  ao  convés  para  saudar  tam- 
bém a  Boa- Viagem  e  o  Costão  de  Santa 
Cruz,  em  que  as  gaivotas  fazem  ninho.  São 
coisas  já  muito  vistas;  são  coisas  eternas, 
mas  para  que  não  olho  nunca  sem  estreme- 
cimentos de  surpresa.  .  . 


14 


Transposta  a  barra,  fico  á  espera  de  con- 
templar o  vulto  de  pedra  do  Gigante  Ador- 
mecido, até  que  a  mão  de  alguém  a  meu  lado 
o  apontou  delineado  no  topo  dos  montes 
quasi  a  tocar  nas  nuvens.  .  . 

Poucas  horas  mais  e  tinhamos  diante  da 
vista  imensidades  silenciosas,  nuas  e  virgens 
como  nos  primeiros  dias  do  Mundo.  Eram 
desertos  os  rochedos  que  deixávamos  ao 
longe;  eram  desertas  as  águas  verdes  em  que 
a  luz  espalhava  polvilhações  de  diamantes 
e  colunas  quebradiças  de  ouro  patinado.  E 
assim  as  primeiras  horas  da  viagem  foram  de 
deslumbramento,  até  que  a  sombra  desceu 
do  alto  como  um  véu  de  viuva  sobre  o  rosto 
atónito  da  Terra.  O  crepúsculo  fora  ver- 
tiginoso: rasgara-se  o  firmamento  em  mon- 
tões de  rubins  e  de  ametistas  para,  num  so- 
pro repentino,  apagarem-se  todas  essas  laba- 
redas estonteadoras.  Mas  á  noite,  desabro- 
chadas as  estrelas,  que  maravilha! 

Para  gozar-se  todo  o  esplendor  do  nosso 
céu  nocturno,  não  ha  como  um  tombadilho 
de  paquete  na  solidão  infinita  das  águas.  .  . 


15 


No  dia  seguinte,  chegada  a  Santos. 

Conheço,  desde  a  minha  infância,  esta 
velha  cidade,  que  toda  se  tem  rejuvenescido 
nestes  últimos  anos.  Atravesso-a  em  passeio 
ás  praias,  sempre  interessantes;  mas  desar- 
ranja-se-me  o  automóvel  e  tenho,  para  re- 
gressar a  bordo,  de  tomar  o  bonde. 

Tanto  melhor;  este  democrático  veiculo 
habilita-me  a  travar  conhecimento  de  perto 
com  a  população  da  terra  e  a  perceber  algu- 
ma coisa  dos  seus  gostos.  Parece-me  que  ha 
aqui  mais  estrangeiros  do  que  nacionais.  En- 
che-se  o  carro  de  gente  loira.  Duas  senhoras 
inglesas  no  banco  em  frente  ao  meu,  fazem 
tricot  de  lã  com  pressa  desesperadora. 

E'  evidente  que  lutam  numa  aposta,  a  ver 
quem  acabará  primeiro  a  manta  de  lã  para  o 
"tomy"  do  front. 

Abençoadas  mãos  que  assim  se  agitam 
para  mandarem  um  pouco  de  conforto  aos 
que  tanto  sofrem  pelo  bem  dos  outros.  .  . 

Quando  entro  no  Itaberá  vejo  esvoaçan- 
do pelo  tombadilho  um  grupo  de  "borbo- 
letas de  cabaret",  que  S.  Paulo  remete  para 


16 


as  noitadas  alegres  da  capital  rio-gran- 
dense. 

Vamos  ao  menos  ouvir  cançonetas!  — 
diz-me  uma  senhora  de  cabelos  brancos  e 
olhos  sorridentes.  E'  uma  brasileira  que, 
como  tantos  outros  patrícios,  não  podendo 
agora  viajar  pela  Europa,  se  resolveu,  fi- 
nalmente, a  fazer  uma  pequena  excursão  no 
seu  próprio  paiz,  para  não  perder  de  todo 
o  costume  do  balanço  do  navio  e  da  tre- 
pidação dos  trens  de  ferro.  .  .  Ainda  assim 
estranhei  a  preferência  do  itinerário. 

Geralmente,  os  lugares  escolhidos  para 
vilegiaturas,  que  fazemos  menos  por  curio- 
sidade do  que  por  necessidade  social  de  ve- 
ranear, são  sempre  e  desesperadoramente  os 
mesmos:  Poços  de  Caldas,  Caxambu,  São 
Paulo  e  mais  dois  ou  três  sítios  de  menor 
importância.  Ha  em  todo  o  Brasil  centenas 
de  provincianos  que  sabem  de  cór  o  nome 
das  ruas  de  Paris,  que  se  têm  perdido  nas 
de  Londres  e  nunca  viram  a  do  Ouvidor. 
Além  de  ser  mais  fácil  aos  habitantes  do 
Pará  e  do  Amazonas  frequentarem  os  inver- 
nos europeus  do  que  freqi^ientarem  os  nossos. 


—  17  — 

e  o  mesmo  acontecendo  aos  do  extremo  sul, 
para  quem  Buenos  Aires  é  mais  acessivel 
do  que  o  Rio,  ha  ainda  um  grande  despren- 
dimento pelo  que  é  nosso.  .  .  Para  as  prefe- 
rências notadas  ha  a  justificação  da  menor 
distância,  que  implica  a  de  menor  despeza  e 
a  de  menor  cansaço;  mas  se  nos  lembrar- 
mos de  que  mesmo  dos  Estados  vizinhos  iam 
pessoas  á  Europa,  que  se  não  dignavam  de 
vir  travar  antes  conhecimento  com  a  Ave- 
nida Central? 

Ao  menos  esta  grande  calamidade  da 
guerra  tem  feito  com  que  os  nossos  hotelei- 
ros do  interior  vejam  parar  á  porta  das  suas 
locandas  carruagens  pejadas  de  malas  de  que 
não  saltam  só  os  costumados  cometas,  mas, 
lá  uma  vez  ou  outra,  algum  hóspede  que  não 
viaje  senão  por  este  propósito  quase  absurdo 
—  o  propósito  de  ver. 

Ver  o  quê? 

Ah,  bem  sabemos  que  não  vamos  fazer 
romarias  de  arte;  não  encontraremos  nem 
museus,  nem  pórticos  de  catedrais  ou  palá- 
cios antigos,  nem  arquitecturas  de  cidades 
históricas;  mas  em  compensação  observare- 

Jornadas    —   .Iiilia    Lopes  ^ 


—  18  — 

mos  aspectos  novos  e  muito  interessantes  da 
nossa  terra,  e  variados  modos  de  ser  da  nossa 
gente.  Eu  por  mim  só  lamento  não  a  poder 
ver  toda,  com  doces  vagares,  para  me  sen- 
tir penetrada  pela  diversidade  das  suas  ex- 
pressões e  sabê-las  traduzir,  para  a  glori- 
ficar. 

Geralmente,  nós  os  brasileiros  gostamos 
pouco  de  externar  por  escrito  as  nossas  im- 
pressões de  viagens,  quer  elas  sejam  feitas 
no  Brasil,  quer  no  estrangeiro;  entretanto 
eu,  sem  propósito,  reparo  agora  que,  nãa 
tendo  escrito  nunca  a  respeito  das  sedutoras 
e  inolvidáveis  viagens  que  fiz  na  Europa, 
não  deixo  nunca  de  o  fazer  quando  jorna- 
deio  no  meu  país.  .  . 


De  Santos  em  diante  a  viagem  começa  a 
ser  nova  para  mim.  Chego  á  linda  e  vasta 
baía  de  Paranaguá,  que  irradia  oftalmias, 
como  diria  Fialho,  dos  revérberos  ofusca- 
dores  das  suas  águas  luminosas.  Paramos 
Jonge  da  praia.  Chegam  botes  com  merca- 


—  19  — 

dores  das  pequenas  industrias  do  lugar,  em 
que  figuram  cestinhas  de  taquara  e  madré- 
poras  pintadas. 

As  borboletas  de  cabaret  querem  com- 
prar tudo  quanto  vêem  e  enchem-se  de  fru- 
tas verdes  e  doces  grosseiros.  Quando  o  va- 
por levanta  ferro  o  dia  esplende.  Subo  ao 
deck  superior,  para  observar  melhor  a  larga 
planície  azul.  O  navio  caminha  para  a  bar- 
ra, que  toda  se  agita  em  espumaradas  lou- 
cas e  alvinitentes. 

—  E'  a  agua  batida  nos  arrecifes,  infor- 
mam-me.  Nós  vamos  passar  pelo  meio  deles. 

Na  ponte  vejo  o  comandante  de  binóculo 
em  punho  e  dois  outros  vultos,  sendo  que 
um  deles  se  move  febrilmente  de  um  lado 
para  o  outro. 

Chegamos  á  barra  quando  no  mar  se  faz 
uma  grande  cova,  túmulo  de  safira  lapida- 
da, em  que  o  azul  se  torna  mais  fino  e  mara- 
vilhoso, e  por  ela  entra  decididamente  o  nos- 
so navio  até  gemer  na  areia,  de  que  se  safa 
aos  poucos,  em  trepidações  geitosas  mas  len- 
tas e  rangedoras. 

Olhamos  uns  para  os  outros  com  o  sy- 


20 


blime  sorriso  de  quem  sabe  que  nestes  tem- 
pos de  guerra  não  se  deve  ter  medo  de  coi- 
sa alguma.  .  . 


A  guerra!  ao  menos  nestes  dias  de  isola- 
mento, eu  descanso  da  obsessão  terrível  que 
me  obrigava,  mal  de  manhã  me  levantava  do 
leito,  a  correr  para  os  telegramas  dos  jor- 
nais. Saída  dos  meus  hábitos,  sentindo  para- 
lizada  a  minha  vida  costumeira,  tenho  como 
que  a  impressão  de  que  o  mundo  inteiro  obe- 
dece ao  mesmo  repouso,  ao  mesmo  espírito 
de  liberdade  pura  que  eu  bebo  a  largos  haus- 
tos no  azul  sem  mácula  do  espaço  infinito! 
Quem,  sob  este  pálio  de  clemência  e  de  har- 
monia, poderá  conceber  a  idéa  das  atro- 
cidades brutais  dessa  imunda  xarqueada  de 
carne  humana  que  infesta  o  mundo  e  faz 
morrer  de  susto  o  coração  das  mais? 

Se  Mulher  quer  dizer:  —  Creação  — 
por  que  lhe  não  dá  Deus  forças  para  defen- 
der a  sua  criatura  de  tão  horrível  quanto  de- 
testada contingência?! 

Ah,  eu  juro,  soado  o  último  tiro  desta 


—  21  — 

guerra,  que  só  um  gesto  divino  parece  po- 
derá fazer  parar,  empenharei  todo  o  resto 
das  minhas  energias  para  catequizar  almas 
em  prol  de  outra  guerra  maior:  "guerra  á 
guerra"  será  o  meu  lema;  será  o  lema  de 
todas  as  mais  e  de  todos  os  homens  de  co- 
ração. 

O  sol  declina.  Entramos  na  plácida  e 
larga  baía  de  S.  Francisco,  chamada  de  Ba- 
pitonga.  Já  a  sombra  flutua  sobre  a  monta- 
nha vestida  de  vegetação  espessa. 

Ha  neste  recanto  de  Santa  Catarina  uma 
doçura  suave  que  não  atino  se  é  dele  se  é  da 
hora  que  passa.  .  . 

Desembarcamos  e  seguimos  pela  linha 
do  cais,  rua  branca,  sossegada,  que  contorna 
a  cidade.  Noto  umas  árvores  expressivas  e 
ouço  a  um  moço  estudante  do  lugar  o  his- 
tórico do  seu  torrão  adorado. 


Contou-me  um  dia  um  paranaense  que 
numas  florestas  do  Paraná,  em  certo  momen- 
to do  crepúsculo,  todos  os  animais  que  as 


—  22  — 

habitam  desprendem  vozes  tão  plangentes  e 
de  tão  extraordinário  poder  sugestivo  que 
homem,  mesmo  o  mais  rude,  que  as  ouça, 
estremece  e  pensa  incontinente  em  coisas 
tristes  e  irremediáveis:  uma  pessoa  morta; 
um  amor  não  gozado ;  uma  carta  sem  respos- 
ta; uma  falta  sem  reparação...  Tudo  que 
pereceu  no  seu  caminho  ergue-se  do  mais 
fundo  do  passado  ao  som  daquela  elegia 
misteriosa,  a  requisitar  ainda  um  pouco  do 
seu  pensamento.  Não  sendo  a  Vida  senão 
uma  contínua  sucessão  de  mortes,  nós  somos 
túmulos  vivos  em  que  os  dias  enterram  ale- 
grias e  desgostos.  .  .  Os  nossos  mortos  cá  es- 
tão dentro  e  não  esperam  pela  corneta  do 
juizo  final  para  de  vez  em  quando,  embora 
ás  vezes  de  muito  em  muito  longe,  se  ergue- 
rem para  que  os  vejamos  e  lhes  demos  ao 
menos  um  pouco  da  nossa  piedade.  .  . 

Caminhamos  ainda  sobre  as  areias  bran- 
cas e  galgamos  uma  ladeira  até  lá  acima  ao 
adro  da  Matriz. 

Está  tudo  silencioso  e  já  a  lua  ilumina 
o  céu  profundo.  Não  tenho  vontade  de  falar. 

Ouço  apenas  o  que  me  dizem.  Sinto  uma 


—  23  -^ 

alma  de  monja  saudosa  dentro  de  mim,  e 
vacilo  ainda  em  compreender  se  a  poesia 
será  da  hora  ou  do  luçar.  .  . 


Desencadeia-se  a  tempestade  entre  São 
Francisco  e  a  cidade  do  Rio  Grande. 

E'  uma  dessas  legítimas  e  famosas  tem- 
pestades do  sul  de  começo  de  inverno,  com 
impetuosas  marchas  de  nuvens  e  fanfarras 
de  guerra  na  ventania. 

Navegamos  ás  escuras  e  a  duzentas  mi- 
lhas da  costa,  em  obediência  ao  aviso  do 
Almirantado  Inglez,  embora  sem  a  esperan- 
ça de  vermos  o  nosso  caminho  ameaçado 
pela  impertinência  de  algum  pérfido  sub- 
marino. Nem  ao  menos  o  dorso  negro  e  lu- 
zidio de  alguma  baleia,  ou  boto  cabriolador, 
nos  dá,  nem  deu  nunca,  a  ilusão  de  nos 
acharmos  em  face  de  um  perigo  tão  sen- 
sacional. .  . 

Ao  cair  da  noite,  ainda  me  atrevo  a  es- 
preitar do  tombadilho  o  que  vai  lá  fora.  As 
águas  estão  grossas  e  negras  e  o  céu  baixo  e 
turvo. 


—  24  -^ 

Saem  dos  vagalhões  vozes  soturnas  que 
parece  ao  meu  ouvido,  desesperadoramente 
atento,  exprimirem  a  queixa  dos  milhares  de 
náufragos  que  o  mar  tragou  nestes  abominá- 
veis tempos  de  cólera  e  de  tristeza.  E'  a 
mocidade  dos  marinheiros  afogados  que  tu- 
multua sob  a  mortalha  arfante  das  ondas, 
num  choro  de  desespero  sem  esperança  de 
consolação. .  . 

Com  o  correr  da  noite  a  fúria  redobra  de 
intensidade.  Os  retardatários,  que  ficaram  a 
jogar,  têm  que  atravessar  o  convés  de  gati- 
nhas quando  se  querem  recolher  aos  quar- 
tos, receosos  de  cair  e  serem  arrebatados  pe- 
las ondas.  Nos  corredores,  em  baixo,  a  água 
é  cercada  e  apanhada  aos  baldes  pelos  moços 
de  bordo.  Toda  a  gente  enjoa,  toda  a  gente 
sofre  e  prepara  o  ânimo  para  as  eventualida- 
des da  procela.  .  . 

Ao  romper  da  madrugada  tudo  se  apa- 
zigua. O  dia  acorda  com  bocejos  anémicos  e 
todo  envolvido  em  algodões  pardos  e  eno- 
velados. Começa  o  frio. 


25 


Chamam  para  o  almoço,  mas  não  vou : 
quero  ver  a  entrada  da  cidade  do  Rio  Gran- 
de. Já  pelo  mar  dentro  vejo  os  dois  imen- 
sos molhes  do  seu  porto,  estendidos  como 
dois  braços  para  acolherem  o  forasteiro. 
Eles  são  bem  o  símbolo  da  hospitalidade 
amiga  deste  povo  bom. 

Vou  emfim  chegar  ao  Rio  Grande,  a 
terra  clássica  dos  heróis  guerreiros,  dos  ver- 
géis opimos  e  das  ágatas  maravilhosas,  re- 
gião admiiravel,  em  que  até  as  pedras  têm 
fantasia  e  expressões  imprevistas  e  singula- 
res na  sua  contextura  transparente  de  ouro 
velho,  azulão,  verde,  vermelho  ou  tijolo, 
onde  as  veias  escorrem  leite,  sangue,  mel  ou 
sol,  em  ondeamentos  e  ramificações  capri- 
chosas e  indecifráveis. 

Já  no  horizonte  opalino  se  desenham  03 
vultos  imensos  dos  frigoríficos,  velados  por 
uma  chuvinha  constante  e  fina. 

Entramos  assim,  em  uma  manhã  de  né- 
voa no  porto  colossal  da  mais  antiga  das  ci- 
dades do  Rio  Grande  do  Sul. 

Atracado  o  vapor,  apresso-me  em  descer 
ao  cais,  nessa  ansiedade  de  pisar  terra  firme 


—  26  — 

c  de  ver  coisas  novas,  que  é  o  prurido  natu- 
ral de  toda  a  gente  que  viaja  por  mar. 

Não  é  preciso  estar-se  prevenida:  per- 
cebe-se  num  rápido  golpe  de  vista  a  imensa 
importância  deste  porto,  considerado  pela 
engenharia  brasileira  como  o  mais  comple- 
to de  todo  o  país.  Apesar  da  chuvinha  insis- 
tente, que  molha  sem  ser  vista,  como  uma 
verdadeira  poeira  d'agua,  apraz-me  cami- 
nhar um  pouco  pela  larga  faixa  do  seu  gran- 
de cais,  pois  pouco  tempo  me  concedem  para 
um  passeio  longo.  Saio,  entretanto,  em  dire- 
cção á  cidade  e  beiro  vastos  terrenos  conquis- 
tados ao  mar,  em  que  ha  uma  regularissima 
plantação  de  cedros  marítimos. 

A'  minha  imaginação  vagabunda,  ado- 
radora das  florestas,  sorri  logo  a  idéa  de  que 
em  poucos  anos  estes  arbustos  ainda  peque- 
ninos se  tornarão  em  árvores  adultas,  que 
impregnem  o  ar  salitroso  da  velha  cidade 
marítima  do  seu  aroma  divino  e  toda  a  cin- 
jam num  bosque  verde,  de  sagração. 

Que  delícia  para  o  viandante  de  então, 
ao  sair  de  sobre  a  onda  buliçosa,  passar  sob 
as  largas  bênçãos  dos  cedros  evocadores! 


PORTO   DO  RIO  (VRAXDK 


—  27  — 

Mas  não.  Os  enfezados  arbustos  que  ai 
estão,  e  em  que  os  meus  olhos  já  descortinam 
os  gigantes  do  futuro,  são  de  raça  pequena 
e  estão  encarregados  de  uma  missão  de  uti- 
lidade imediata:  a  de  solidificarem  as  areias 
pelo  emaranhamento  das  suas  raizes. 

Toda  a  vasta  zona  em  que  eles  se  enfi- 
leiram agora,  será  um  dia,  que  não  virá 
longe,  convertida  nas  largas  ruas  e  grandes 
avenidas  de  um  bairro  novo,  que  ligará  o 
porto  á  parte  antiga  da  operosa  cidade. 

Noto  que  do  meu  guarda-chuva  a  agua 
escorre  em  fio  e  resolvo  voltar  para  bordo. 
De  mais  a  mais,  é  o  dia  3  de  Maio,  e  num 
feriado,  e  feriado  chuvoso,  é  sempre  melan- 
cólico o  aspecto  das  ruas  e  injusto  o  juizo  que 
delas  se  possa  fazer.  .  . 

Prefiro  ir  lêr. 


Lêr!  admiro  e  sobretudo  invejo,  que  é 
afinal  este  o  sentimento  verdadeiro  embora 
menos  confessavel,  as  pessoas  que  num  va- 
por ou  em  um  trem  se  abstraem  de  tudo  e 


28 


entendem,  gozam  e  assimilam  as  leituras  que 
fazem.  Sou  para  tal  de  uma  incapacidade 
tristemente  desconfortável.  Por  maior  que 
seja  a  minha  disposição  e  grande  o  número 
de  livros  que  leve  na  bagagem,  não  consigo 
encontrar  em  nenhum  o  interesse  ou  o  de- 
leite que  me  dariam  se  eu  pudesse  sentir  o 
espírito  leve  e  esperto. 

A  poucos  passos  da  minha  cadeira  um 
sujeito  de  ar  neurasténico  afunda  o  nariz 
entre  as  páginas  de  um  livro  de  que  pro- 
curo disfarçadamente  perceber  o  título.  De- 
ve ser  alguma  obra  de  filosofia,  a  julgar  pelo 
torvo  aspecto  do  leitor. 

E'  muito  difícil  refrear  a  curiosidade 
que  inspira  um  livro  que  vemos  em  mão 
alheia,  ou  fora  do  alcance  da  nossa,  prin- 
cipalmente quando  esse  livro  esteja  ainda 
em  brochura,  nudez  primitiva  em  cuja  pele 
parece  arder  ainda  o  bafejo  do  autor.  Para 
os  que  amam  a  leitura,  uma  obra  literária 
ainda  desconhecida  é  como  que  um  mundo 
de  outro  sistema  repleto  de  almas  e  coisas 
nunca  antes  reveladas  e  que  por  isso  mesmo 
nos  atraem.  Apenas  folheado  o  livro,  quasi 


29 


sempre  a  ilusão  se  desfaz,  porque  só  muito 
raramente  encontramos  nele  a  acha  acesa 
de  uma  idéa  nova. 

O  tempo  continua  fosco  á  hora  de  en- 
trarmos no  porto  de  Pelotas  Singramos 
agora  o  rio  S.  Gonçalo,  vendo  em  uma  e  em 
outra  margem  extensos  campos  de  pastagem, 
em  que  o  verde  pálido  e  suavíssimo  da  vege- 
tação se  orla  no  horizonte  por  uma  faixa 
larga  de  areias  brancas.  A'  beira  das  águas, 
que  desenham  no  seu  curso  harmoniosas  cur- 
vas, como  se  tivessem  sido  dirigidas  por  um 
paisagista  entre  relvados  de  um  parque,  noto 
grupos  de  aves  de  diferentes  cores.  Indago. 
São  gaivotinhas  brancas,  a  que  dão  o  nome 
de  Trinta  réis,  são  os  Guanapos  côr  de  rosa, 
as  marrequinhas  e  as  garças.  Mostra-se  de 
vez  em  quando,  isolada  na  campina,  uma  ou 
outra  casa  grande  de  lavradores,  isto  é,  de 
criadores,  e  já  na  vizinhança  da  cidade,  vejo 
um  imenso  terreiro  coberto  pelos  tendais  de 
pau  de  uma  xarqueada. 

E'  outra  a  côr  dos  vegetais  das  margens; 
é  outra  a  côr  das  águas  em  que  navegamos. 
O  casco  do  Itaberã  passou  no  Rio  Grande 


—  so- 
das ondas  salgadas  do  mar  para  a  água  doce 
do  rio.  Deslisamos  agora  suavemente,  como 
que  dentro  de  uma  aquarela  ingleza.  O  ar 
está  húmido,  a  manhã  desmaiada. 

Desembarco.  Tenho  pressa  de  ir  fazer  a 
minha  reverência  á  Princeza  do  Sul,  como 
os  rio-grandenses  denominam  Pelotas.  Te- 
mos apenas  uma  hora  para  espairecer;  não 
basta  para  se  fazer  idéa  de  uma  cidade ;  noto, 
entretanto,  a  regularidade  das  suas  ruas  tra- 
çadas em  xadrez  e  a  lindeza  da  sua  praça 
central,  perfeitamente  ajardinada.  Uma  ci- 
dade que  ama  as  flores  inspira-me  sempre 
simpatia.  Mas,  eu  quereria  ainda  vêl-as  em 
maior  abundância.  Ah,  minhas  queridas 
amigas  pelotenses,  fazei  de  árvores  e  de  flo- 
res propaganda  carinhosa  e  incessante;  não 
deixeis  um  metro  dos  vossos  quintais  sem 
cultura  e  guarnecei  de  jardineiras  as  janelas 
de  vossas  casas,  para  que  delas  se  debruce 
sobre  a  aridez  mineral  das  paredes  e  das  cal- 
çadas a  graça  côr  de  rosa  dos  alegres  gerâ- 
nios. .  . 

O  trabalho  é  insignificante,  o  resultado  é 


—  31  — 

lindíssimo.  A  Princeza  do  Sul,  merece  mais 
merece  grinaldas  de  rosas! 


Naveguemos  agora  para  a  Lagoa  dos 
Patos. 

Nos  meus  tempos  de  colegial,  estas  águas 
exerciam  estranha  fascinação  sobre  a  minha 
curiosidade.  Supunha-as  coalhadas  de  asas 
dos  palmípedes  que  lhe  tivessem  dado  o  no- 
me e  tintas  de  azul  violento.  Deveria  cin- 
gi-las um  imenso  anel  de  esmeraldas  vege- 
tais, pontilhado  de  onde  a  onde  pelo  marfim 
de  grandes  lírios  aquáticos. 

Era,  como  vêem,  uma  espécie  dessas  abo- 
mináveis paisagens  a  seda,  sem  outro  relevo 
que  o  de  contrastes  buliçosos  de  colorido.  A 
imaginaçcão  das  crianças  é  enganadora  e  des- 
proporcionada. Olho  agora  com  certa  melan- 
colia para  a  planície  imensa  das  águas  lí- 
vidas sobre  que  se  debruçam  nuvens  pardas 
e  enoveladas. 

Andamos  cm  marcha  sinuosa  pelas  gran- 
des curvas  que  o  canal  descreve  no  vasto 


32 


leito  da  lagoa  imensa,  entre  balizas  que  o  as- 
signalam  e  que  têm  a  forma  de  barriquinhas 
que  flutuam. 

Quando  a  lagoa  se  zanga  as  suas  raivas 
fazem  sofrer  mais  ao  viajante,  dizem,  do 
que  as  fúrias  do  mar.  Hoje,  felizmente,  ela 
está  de  bôa  paz,  embora  tristonha.  Vai-lhe 
bem  essa  placidez  em  que  se  sente  um  pen- 
samento :  o  mistério  do  fundo,  que  tem  sua 
poesia.  Na  superfície  perpassam  aqui  e  aco- 
lá leves  borrões  de  sombra  em  flutuações, 
crespas,  que  fazem  pensar  nos  corações  tré- 
mulos e  perdidos  dos  náufragos  da  guerra... 
Atirou-os  talvez  a  onda  amarga  do  oceano 
para  a  remançosa  doçura  destas  águas  sem 
perigo,  em  que  navegamos  agora,  já  com  to- 
das as  lâmpadas  acesas! 

Com  cerca  de  vinte  horas  desde  Pelotas, 
passamos  pelo  farol  de  Itapoan.  Emerge-lhe 
a  torre  da  pedraria  da  encosta,  cuja  língua 
escamosa  se  estende  a  lamber  a  epiderme 
das  águas  côr  de  pérola.  Deixamos  a  lagoa  e 
entramos  no  formoso  Guaíba,  que  sulcamos 
até  ver  de  face  a  casaria  em  anfiteatro  de 
Porto  Alegre. 


33 


O  nome  foi  bem  posto.  Fundada  na  mar- 
gem côncava  e  oriental  do  rio,  e  banhada 
a  norte,  sul  e  oeste  pelas  águas  largas  de  uma 
baía  doce,  em  que  desaguam  cinco  outros 
rios,  todos  navegáveis,  essa  cidade  tem  ex- 
pressão risonha  e  carinhosa.  Esta  última 
virtude  é  talvez  devida  á  regular  suavidade 
da  linha  curva,  com  que  a  sua  margem  con- 
torna e  abraça  as  águas  do  Guaíba,  ofere- 
cendo-se  como  um  seio  amigo  ao  forasteiro 
curioso. 

Como  nas  outras  cidades  irmãs,  eu  olho 
para  esta  através  de  uma  cortina  de  chuva 
peneirada. 

Um  conhecedor  do  lugar,  meu  compa- 
nheiro de  viagem,  responde  ás  minhas  inqui- 
rições: 

—  Aquele  arvoredo?  é  da  praça  da  ?Iar- 
mionia. 

—  As  duas  torres  acohí,  que  lhe  pare- 
cem descomunais?  São  da  igreja  das  Dores. 
Aquela  enseada?  A  do  Menino-Deus.  .  . 
Aqui  a  Doca  e  o  Mercado.  Além,  no  alto, 
vê?  a  linha  do  Palácio  Novo. 

Observadas  assim,  as  casas  parecem  en- 

JornaJas    —    Júlia    Lopes  3 


34 


carrapitadas  umas  nas  outras,  o  que  assom- 
brou uma  certa  senhora  do  interior,  que  ao 
vê  las  perguntou  a  uma  pessoa  de  bordo: 

—  Então  a  gente  aqui  para  entrar  e 
sair  de  casa  tem  de  caminhar  pelos  telhados 
dos  vizinhos?! 

Sorrio  e,  vendo  que  já  estamos  atraca- 
dos ao  cais,  despeço-me  do  comandante,  e  já 
aperto  lisonjeada  a  m.ão  amável  do  represen- 
tante do  Intendente  de  Porto  Alegre,  que 
me  apresenta  os  cumprimentos  de  bôa  vinda. 


II 


Le  monde  vít.  de  la  femme.  Elle  y 
tnet  deux  e'lei>ients  qui  font  totite  civi- 
lisatíon  :  sa  gráce,  sa  dclicatesse. 

J.    MiCHELET. 


A  casa  encantadora  e  inesquecível  de 
Ema  e  de  Américo  Moreira,  onde  vivo  ago- 
ra em  Porto  Alegre,  passa  o  dia  entre  o  re- 
tinir das  campainhas  do  telefone  e  da  porta 
da  rua. 

São  recados  amáveis,  são  ramos  de  flo- 
res, são  senhoras  e  meninas  que  entram,  em 
comissão  ou  isoladamente,  e  que  empolgam 
de  chofre  a  minha  admiração  pela  beleza 
dos  seus  portes  e  pelo  espírito  vivaz  da  sua 
fala,  de  macio  sotaque. 

Estou  encantada.  Eu  já  sabia  que  a  rio- 
grandense   era   bonita,   mas   não   imaginava 


—  se- 
que ela  aliasse  á  sua  formosura  essa  lhaneza 
de  trato,  essa  naturalidade  de  expressão  que 
é  apanágio  das  pessoas  superiormente  edu- 
cadas, superiormente  civilizadas,  mas  que 
nem  sempre  é  nestas  mesmas  observada.  .  . 

Nenhuma  terra  pode  apresentar  mais 
evidente  prova  de  civilização  que  a  da  cul- 
tura da  sua  população  feminina;  e  esta  de- 
monstração tenho-a  diante  dos  olhos  no  mo- 
do por  que  as  senhoras  desta  terra  se  apre- 
sentam e  conversam. 

Desanuviadas  e  carinhosas,  a  sua  lingua- 
gem é  tecida  de  certezas  e  de  doçuras,  têm 
o  espirito  pronto,  a  frase  elegante  e  o  gesto 
vivo. 

Agrada-me  verificar  que  a  mocidade 
do  gárrulo  bando  de  meninas  que  me  enfei- 
tiçam com  a  sua  meiguice  e  a  sua  graça  é 
uma  mocidade  verdadeiramente  moça,  é 
bem  essa  coisa  deliciosa  que  fez  dizer  a  Jú- 
lio Janin:  a  mocidade,  no  livro,  no  sonho  ou 
na  realidade,  pôde  suprir  maravilhosamente 
bem  todas  as  coisas,  porque  ela  é  a  espe- 
rança que  desabrocha  com  ideais  fragrân- 
cias; é  o  poder  de  sentir  em  toda  a  pleni- 


37 


tude  as  maiores  emoções  do  coração  huma- 
no; é  a  resistência  á  dôr,  o  sono  fresco  e 
a  saúde;  é  o  amor  com  ímpetos  e  avidez  de 
leões  pequeninos;  a  despreocupação  na 
própria  miséria;  os  vestidinhos  de  nada  que 
parecem  tudo;  a  poesia  esparsa  e  embria- 
gadora que  nos  acompanha  como  um  per- 
fume invisivel;  é  o  apetite  que  se  senta  á 
mesa  com  alegria  e  trinca  com  dentes  bran- 
cos duras  amêndoas  torradas;  é  esse  poder 
divino,  criador  de  obras  de  arte  como 
"Paulo  e  Virginia",  "Manon  Lescaut"  e  os 
primeiros  capitulos  do  ''Gil  Blas". 

Ser  e  saber  ser  moça,  eis  realmente  uma 
condição  rara  nas  gerações  que  se  iam  su- 
cedendo nestes  últimos  vinte  anos  de  ané- 
micas  e  de  entendiadas,  para  quem  o  ideal 
consistia  em  ter  corpo  esquelético,  muito  di- 
nheiro, boas  tintas  para  o  "maquillage",  e 
saber  ministrar  injecções  de  morfina  como 
o  único  meio  de  suavisar  decepções.  .  . 

Ora  tenho  aqui  a  jubiliosa  impressão  de 
que  estas  lindas  meninas  rio-grandenses  po- 
dem com  a  máxima  facilidade  esfarelar  du- 
ras amêndoas  com  os  seus  fortes  dentinhos, 


—  38  — 

assim  como  poderão  enfrentar  as  mais  rudes 
dificuldades  da  vida  com  um  sublime  sor- 
riso de  confiança  em  si  próprias.  Esta  é  a 
grande  virtude  de  todos  os  tempos,  mas  que 
a  luta  das  sociedades  modernas  ha  de  pôr 
cada  vez  em  maior  e  mais  luminosa  evi- 
dencia. 


E'  esta  confiança  em  si  própria  que  res- 
plandece no  rosto  comovido  de  uma  criança 
de  olhos  sonhadores  e  dedos  picados  pela 
agulha,  que  me  oferece  com  um  feixe  de  flo- 
res modestas  a  consolação  de  confessar-me 
que  me  tinha  por  sua  grande  amiga  desde  a 
infância.  .  .  Ha  muita  candura  nas  suas  fa- 
ces de  um  moreno  suave  e  energia  na  sua 
vóz  cantante  e  fresca.  Não  a  perturbam  as 
sedas  das  senhoras  da  alta  sociedade,  que 
estão  a  seu  lado  na  sala;  fala  de  si  com 
simplicidade  e  naturalidade.  A  sua  vida  é 
de  trabalho,  a  das  senhoras  presentes  é  de 
gozo;  no  emtanto,  nem  ha  nela  expressão  de 
humildade  ou  constrangimento,  nem  nas  ou- 


39 


trás  de  soberbia.  Sente-se  que  o  fio  geral  da 
conversa  corre  maciamente,  sem  fazer  nó. 
Parece-me  perceber  que  no  Rio  Grande  as 
mulheres  que  lutam  para  angariar  os  recur- 
sos da  própria  subsistência  são  olhadas  por 
todas  as  outras  com  admiração  e  certa  ter- 
nura. E  isso  basta  para  me  demonstrar  a  sua 
cultura. 

Mas  não  é  só  esta  querida  criança  que  me 
fala  de  livros;  todas  as  senhoras  com  quem 
converso  gostam  de  ler  e  citam  os  seus  au- 
tores preferidos. 

E  vivemos,  nós  todos  que  escrevemos,  a 
queixar-nos  de  que  ninguém  nos  lê,  e  de  que 
as  geniais  produções  do  nosso  cérebro  ficam 
confinadas  no  pequeno  círculo  de  meia  dú- 
zia de  amigos  pessoais!  Por  mim  posso  afir- 
mar que  no  Rio  Grande,  ao  menos  as  senho- 
ras, lêem  a  nossa  literatura  e  se  interessam 
pelos  assuntos  da  nossa  espiritualidade.  .  . 


Ora,  pois,  as  minhas  queridas  senhoras 
rio-grandenses  estão  nesta  berlinda  porque 
são  belas  e  fortes;  por(]uc  têm  entusiasmo  e 


—  40  — 

sabem  transmitil-o  na  sua  palavra  graciosa 
c  franca;  porque  sabem  rir  com  alegria  e 
olhar  com  desassombro  para  as  pessoas  a 
quem  fixam;  porque  têm  firmeza  na  elegân- 
cia do  seu  modo  de  pisar  em  que  nada  se  re- 
vela de  contrafeito;  porque  já  cultivam  o 
sport  que  dá  elasticidade  aos  músculos  e  ale- 
gria ao  espírito,  e,  sobretudo,  porque  de- 
monstram um  evidente  desejo  de  liberdade 
e  de  instrução.  Percebe-se  mesmo  que  elas 
começam  a  ter  uma  certa  supremacia  no 
seu  meio  e  tel-a-hão  cada  vez  em  maior 
grau,  não  só  pela  capacidade  da  sua  inteli- 
gência e  o  vigor  da  sua  energia,  como  tam- 
bém. .  .  porque  são  muitas.  E  eis  uma  razão 
em  que  ninguém  pensa  e  que  tem  a  sua  for- 
ça. .  .  Vivendo  em  uma  terra  em  que  o  nú- 
mero de  mulheres  é,  segundo  me  dizem, 
muito  superior  ao  dos  homens,  elas  têm  pelo 
menos,  a  primasia  da  quantidade;  mas  essa 
seria  de  pouco  ou  nenhum  efeito  moral  se 
não  se  empenhassem,  como  se  estão  empe- 
nhando, em  melhorar  as  condições  espiri- 
tuais e  práticas,  sobretudo  as  práticas,  da 
sua  nova  educação. 


—  41  — 

Parece  que  os  hábitos  da  mulher  rio- 
grandense  têm  mudado  muito  nestes  últimos 
anos.  Conservavam-se  antes  submersas  na 
pacatez  caseira,  saindo  por  excepção  de 
muito  em  muito  longe.  Hoje  nas  ruas  de 
Porto  Alegre  vêem-se  senhoras  em  muito 
maior  abundância  do  que  em  outras  cidades 
brasileiras,  e  o  mesmo  sucede  nas  suas  salas 
de  espectáculo.  Basta  essa  circunstância 
para  as  tornar  simpáticas.  Por  tal  e  tão  es- 
pecialissima  razão  o  Rio  Grande  do  Sul  po- 
deria ser  considerado  um  paraizo  para  os 
homens  —  se  lhes  não  ministrasse  com  a  fa- 
scinação da  graça  feminina  a  tortura  tan- 
tálica  do  embaraço  da  escolha...  E'  que, 
além  de  inteligente  e  bonita,  a  rio-grandense 
tem  ainda  uma  qualidade  que  a  torna  muito 
distinta  e  interessante:  —  veste-se  bem. 

De  todas  as  nossas  populações  é  talvez 
a  do  Rio  Grande,  a  que  pelas  exigências  do 
seu  clima  e  a  sua  vizinhança  com  as  Repú- 
blicas do  Uruguay  e  Argentina,  se  traja 
mais  ao  modo  europeu.  Ha  uma  projecção 
do  sentimento  artístico  do  vestuário  desses 
dois  países  para  a  nossa  gente  do  sul,  prin- 


42 


cipalmente  no  que  concerne  aos  costumes  de 
rua.  O  tailleur  sombrio,  o  chapéu  de  veludo, 
sem  o  espalhafato  que  procura  na  originali- 
dade um  meio  de  destaque,  na  maior  parte 
das  vezes  de  máo  gosto,  dá-lhes  um  aspecto 
de  agradável  aparência.  Grande  número  de 
senhoras  recebe  os  seus  vestidos,  suas  pelis- 
sas  dos  grandes  armazéns  de  modas  de  Bue- 
nos Aires,  onde  o  preço  de  todos  os  artigos 
é  mais  baixo  do  que  no  Rio  e  nas  demais 
capitais  brasileiras,  graças  ao  bom  critério 
c  á  atilada  administração  do  Governo  Ar- 
gentino, que  não  taxa  com  direitos  exorbi- 
tantes as  mercadorias  vindas  do  estrangeiro. 
De  resto,  o  capricho  no  bem  trajar  não  é  só 
freqíiente  e  notável  entre  as  senhoras  mas 
entre  os  homens  também,  e  direi  mesmo  — - 
principalmente  entre  os  homens,  que  parece 
terem  a  seu  serviço  excelentes  alfaiates  e  não 
desprezarem  também  a  arte  de  bem  voltear 
o  laço.  .  .  da  gravata. 


Dentro  de  uns  vinte  anos  o  mundo  fe- 
minino do  sul  brasileiro  será  de  uma  grande 


__  43  — 

e  notável  independência,  tal  o  impulso  que 
ele,  talvez  inconscientemente,  está  tomando 
com  a  adopção  de  idéas  novas,  práticas  de 
novos  regimens  e  sujeição  á  disciplina  das 
escolas  modelares  que  as  meninas  frequen- 
tam com  expressiva  assiduidade  e  de  que  o 
professorado  é  na  sua  maioria,  constituído 
por  senhoras,  profundamente  estudiosas  e 
competentes. 

Não  digo  que  as  rio-grandenses,  a  par 
dessa  sofreguidão  pelo  saber,  que  as  exalça, 
tenham  já  o  gosto  completamente  formado 
na  adoração  da  arte  e  da  estética  das  coisas. 

Seria  impossível.  Por  notáveis  que  pos- 
sam ser  nos  individuos  os  instinctos  de  arte, 
sobretudo  das  artes  plásticas,  eles  não  acer- 
tarão no  seu  julgamento  se  não  tiverem  tido 
antes  uma  demorada  e  bem  orientada  edu- 
cação da  vista  pela  contemplação  de  obras 
superiores;  e  bem  sabemos  que  nessas  for- 
mosas terras  a  que  o  Guaíba  beija  tão  cari- 
nhosamente os  pés,  como  aliás  em  todas  as 
capitais  dos  nossos  Estados,  não  ha  ainda 
elementos  para  uma  tal  afinação.  Essa  cousa 
vem-se  formando  aos  poucos  com  o  espólio 


44 


dos  dias  de  pensamento  e  de  esforço.  Os  que 
viajaram  e  viram  nas  velhas  cidades  arqui- 
tectónicas telas  e  esculturas  dos  mestres  an- 
tigos e  modernos  e  sentiram  no  fluxo  dessa 
beleza  imortal  a  revelação  da  arte  suprema 
podem,  ainda  que  ignorantes  no  assunto,  dis- 
cernir o  ótimo  do  bom,  o  belo  do  vulgar; 
mas  quem  se  não  tenha  submetido  a  essas  im- 
pressões como  poderá  fazel-o? 

Sinto  em  todas  um  sincero  entusiasmo 
pela  música.  O  Rio  Grande  é,  como  se  sabe, 
a  terra  das  melhores  vozes  brasileiras.  O 
ídolo  agora  da  mocidade  estudiosa  de  Porto 
Alegre  é  o  pianista  e  professor  Guilherme 
Fontainha,  Director  do  Conservatório  de 
Música,  que  em  curto  espaço  de  tempo  tem 
creado  discípulas  admiráveis  e  incutido  o 
gosto  dos  melhores  autores  clássicos  e  mo- 
dernos, em  todos  os  que  frequentam  as  suas 
aulas.  A  declamação  do  verso  é  que  é  ainda 
pouco  cultivada  nas  rodas  femininas,  onde 
ha,  aliás  poetizas  de  talento  e  esperançoso 
futuro. 

Deixar-me  hia  ficar  por  mais  tempo  na 
irradiação  de  simpatia  com  que  me  envol- 


—  45  — 

vem  as  encantadoras  Rio-Grandenses,  mas 
é  tarde  e  temos  de  nos  despedir.  .  . 


Olhos  de  v^eludo  que  me  ledes,  olhos 
gaúchos  cheios  de  fogo  e  de  ternura,  bem  sa- 
beis que  não  falseio  e  que  vos  estou  falando 
com  o  coração  nas  mãos.  .  . 


III 


A  primeira  vez  que  saio  em  Porto  Ale- 
gre, é  para  fazer  a  minha  visita  de  cumpri- 
mentos ao  Chefe  do  Estado,  Sr.  Dr.  Borges 
de  Medeiros. 

Não  nego,  entro  com  certa  curiosidade 
no  Palácio  Presidencial.  E'  que  vou  ver  de 
perto  um  estadista,  notável  pela  energia  de 
sua  acção  e  do  seu  modo  de  ser;  um  estadista 
cuja  feição  política  individual  centralizado- 
ra está  completamente  isolada  da  do  resto  da 
nação,  pela  redoma  da  filosofia  de  Comte, 
sobre  que  é  baseada  a  Constituição  do  Es- 
tado do  Rio  Grande  do  Sul. 

A  minha  ignorância  política,  a  que  todo 
o  sectarismo  constrange,  sente-se  torcida 
num  ponto  de  interrogação. 

Realmente  sua  Excelência  deve  ser  um 


47 


homem  de  extraordinário  descortínio,  gran- 
de critério  administrativo  e  tacto  finissimo, 
visto  que  ha  vinte  anos,  ou  perto  de  vinte 
anos,  dirige  em  consecutivas  reeleições  esta 
terra  livre  e  altiva  que  não  toleraria  nenhu- 
ma espécie  de  jugo,  nem  transigiria  com 
sentirrtentos  que  não  lhe  parecessem  nobres 
e  justos.  Isto,  melhor  que  outra  qualquer 
consideração,  póde-me  fazer  crer  quanto  o 
tino  e  a  prudência  deste  estadista  possa  ter 
concorrido  para  o  relevo  e  a  força  que  têm 
hoje  a  sua  terra  entre  todas  as  da  União. 
Vejo  que  é  motivo  de  grande  júbilo  para 
o  riograndense  ver  o  seu  Estado  livre  do  pe- 
sadelo das  dívidas  que  perturba  o  sono  dos 
outros  Estados  irmãos.  Não  ter  dívidas  é 
na  verdade  uma  felicidade,  mas  essa  seria 
mesquinha  em  tais  circumstancias  se  não 
houvesse  maiores  virtudes  a  louvar.  Dever, 
quando  com  essa  dívida  se  possa  acelerar  a 
marcha  do  progresso  e  da  felicidade  de  um 
povo,  não  é  dolo  nem  desacerto,  porque  ha- 
verá de  sobejo  com  que  a  resgatar  em  terra 
tão  feraz  e  bem  dirigida.  Ouço  que  o  Tesou- 
ro riograndense   acumula  ouro   em   pesada 


—  48  — 

abundância  no  intuito  de  realizar  obras  co- 
lossais e  que  serão  pagas  á  boca  do  cofre. 

Essa  intenção  honesta  dá  grandeza  mo- 
ral ao  gesto  previdente,  porque  guardar  di- 
nheiro só  pelo  prazer  de  acumular  dinheiro 
seria  em  casos  tais  uma  preocupação  tão  ab- 
surda como  a  que  um  dia  inspirou  ao  poeta 
Horácio  esta  observação: 

"De  que  te  serve  ir  ás  ocultas  esconder 
com  mão  trémula  no  seio  da  terra  um  mon- 
tão de  ouro  e  de  prata?  —  Por  pouco  que  eu 
lhe  bula,  dizes  tu,  verei  em  breve  esgotar- 
se-lhe  o  último  vintém.  —  Mas  se  não  lhe 
tocares  que  valor  poderá  ter  esse  metal 
amontoado?" 

Conhecedor  exímio  do  prestígio  que  em 
todos  os  tempos  as  riquezas  dão  aos  organis- 
mos sociais,  o  Sr.  Dr.  Borges  de  Medeiros 
tratou  de  as  injectar  nas  veias  de  seu  Estado, 
por  meio  da  sua  administração  de  incansá- 
vel vigilância,  para  que  assim  tonificado 
ele  possa  realizar  grandes  empreendimentos 
sem  nenhuma  espécie  de  dependência.  Su- 
ponho ser  esse  o  espírito  da  sua  administra- 
ção. Suponho  também  adivinhar  que  a  prin- 


49 


cipal  virtude  que  dá  realce  e  vigor  ao  gover- 
no deste  homem  inflexível  é  a  honestidade, 
uma  honestidade  intransigente  revelada  tan- 
to nos  seus  actos  da  administração  pública 
como  nos  da  sua  vida  particular.  Afirmam 
os  que  o  conhecem  na  intimidade  que  ele  ja- 
mais concederia  favores  a  troco  de  elogios 
nem  enfraqueceria  a  sua  autoridade  moral 
mandando  cessar  censuras  com  subornos;  c 
ainda  que,  sendo  chefe  politico  e  Presidente 
de  um  dos  Estados  mais  prósperos  e  pode- 
rosos do  Brasil,  cujos  destinos  dirige  ha 
tanto  e  tão  largo  tempo,  se  mora  em  um  pa- 
lacete é  porque  esse  palacete  lhe  foi  ofere- 
cido por  seus  amigos  por  ser  insignificante 
ou  nula  a  sua  fortuna  particular.  E,  todavia, 
ninguém  trabalha  mais  nem  com  tamanho 
ardor  durante  tantas  horas  consecutivas. 
Desse  modo  o  seu  cérebro  não  tem  tempo 
para  o  repouso.  O  seu  temperamento  de  ner- 
voso tral-o  em  contínua  vibração.  Ele  sabe 
tudo,  conhece  tudo,  vê  tudo,  indaga,  obser- 
va, apalpa  os  factos,  abre  os  ouvidos  aos 
boatos,  pesa-os  e  expreme-os  entre  os  dedos 
magros  para  sentir-lhes  todo  o  suco;  busca 

Joruadas    —    Júlia    Lopes  4 


—  50  — 

as  pessoas  competentes  onde  as  encontra  ou 
adivinha,  aproveita-as  com  agudeza  e  é  bem 
provável  que  já  a  esta  hora  esteja  preparan- 
do um  discípulo  que  o  possa  substituir  em 
Porto  Alegre  quando  ele,  por  sua  vez,  tiver 
de  entrar  no  Palácio  do  Catete  ou  quizer 
fazer  uma  viagem  de  recreio  ou  de  repouso 
através  do  Planeta. 

A  sua  acção  tem  sido  muito  demorada 
no  poder  para  que  ele  não  tenha  imprimido 
na  alma  do  povo  rio-grandense  um  pouco  ao 
menos  do  seu  cunho  original.  Vinte  anos  não 
são  vinte  dias ;  é  um  espaço  de  tempo  em  que 
se  podem  fazer  julgamentos  definitivos, 
afirmações  e  confirmações. 

Pensando  nisso,  vejo  que  ha  um  proble- 
ma delicado  na  política  rio-grandense  e  que 
não  sei  como  poderá  ser  resolvido  quando 
chegar  o  dia  em  que  isso  tenha  de  ser  feito: 
é  o  que  concerne  á  Constituição  do  Estado, 
com  as  convicções  religiosas  ou  filosóficas 
do  seu  Presidente.  Nem  todos  os  homens  de 
espírito  culto  e  capacidade  política  e  admi- 
nistrativa, que  possam  vir  a  ser  indicados 
para  o  exercício  de  chefe  supremo  do  Rio 


51 


Grande,  podem  ser  positivistas;  e  neste  caso 
qual  será  a  resolução  a  pôr  em  prática? 


Quando  o  Presidente  entra  na  sala,  eu 
contemplo,  através  dos  vidros  da  janela,  a 
linda  paisagem  que  dali  se  desenrola,  riban- 
ceira abaixo,  até  á  prata  polida  do  Guaíba. 
Volto-me  e  verifico  que  o  Sr.  Dr.  Borges 
de  Medeiros  é  verdadeiramente  o  retrato 
dos  seus  retratos,  cousa  que  parece  invero- 
símil a  quem  por  experiência  própria  e  ob- 
servação da  alheia  conhece  a  amabilidade 
dos  fotógrafos  e  muitas  vezes  também  a  trai- 
ção das  chapas  fotográficas.  S.  Ex.  é  del- 
gado, nervoso  e,  se  me  fosse  possivel  metali- 
zar a  comparação,  diria  que  faz  lembrar 
uma  fina  lâmina  de  aço,  dessas  que  se  não 
torcem  nem  quebram,  mas  cortam  com  re- 
solução. A  sua  fisionomia  aguda  tem  certa 
expressão  de  ironia  e  de  sagacidade  que  o  es- 
forço da  vontade  própria  procura  adoçar  e 
dominar. 


52 


Sei  que  Sua  Excelenci?.  está  em  período 
de  grande  actividade,  com  a  abertura  da 
Câmara,  e  que  as  conferencias  com  os  de- 
putados que  chegam  não  lhe  devem  permi- 
tir atender  a  visitas  de  mera  cortezia.  como 
a  minha.  Ao  mesmo  tempo  que  falo,  obser- 
vo que  estou  sentada  ao  lado  de  uma  jarra  de 
Sèvres,  naturalmente  aquela  que  o  Sr.  Paulo 
Claudel,  ou  o  Sr.  Dumas,  pois  que  ambos 
estiveram  no  Rio  Grande,  levou  pessoal- 
mente, em  nome  do  Governo  francês,  ao 
Presidente  do  Estado. 

Xoto  também  que  S.  Ex.  não  culti- 
va só  a  difícil  arte  da  política,  cujas  lo- 
cubrações  tornam  geralmente  os  homens 
de  humor  desigual  e  esquisito,  mas  que  tam- 
bém cultiva  uma  outra  arte  mais  subtil,  — 
a  da  conversação. 

Saio  trazendo  a  promessa  de  traçar  ele 
próprio  o  itinerário  da  minha  excursão  atra- 
vés do  seu  Estado  e  entro  no  carro  que  me 
conduzirá  ao  palácio  da  Intendência  Muni- 
cipal. 


IV 


o  dia  está  macio,  de  uma  claridade  lei- 
tosa, favorável  á  minha  miopia. 

Terei  agora  de  descer  da  cidade  alra, 
onde  estão  construidos  o  Tesouro,  varias  se- 
cretarias, o  principal  teatro,  a  catedral  e  os 
palácios  presidenciaes,  velho  e  novo,  sendo 
que  este  ultimo  ainda  não  concluido,  para  a 
cidade  baixa,  mais  comercial  e  mais  activa. 
As  ruas  por  que  passo,  lavadas  pela  enxur- 
rada de  um  forte  aguaceiro  da  véspera, 
desmentem  o  que  delas  me  tinham  dito  a 
bordo  em  relação  ao  asseio  urbano  e  dão-me 
por  isso  uma  impressão  agradável. 

Não  me  seduz  certamente  a  arquitectura 
da  maioria  das  suas  casas,  cujas  linhas  des- 
proporcionadas lembram  as  de  um  aleija- 
do de  pernas  curtas  e  busto  avantajado.  A 


54 


maioria  dos  prédios  de  residência,  feitos  re- 
centemente, têm  o  primeiro  pavimento  ao 
rés  do  chão,  muito  baixo,  e  as  portas  peque- 
nas, em  desacordo  com  o  movimento  ar- 
quitectónico do  primeiro  andar,  de  salien- 
tes e  pesados  balcões  quasi  sempre  guarne- 
cidos de  balaústres  grossos  ou  gradis  pom- 
posos. 

Tive  depois  muitas  vezes  a  impressão, 
quando  descia  algumas  das  ladeiras  port- 
alegrenses,  de  que  iria  bater  com  a  cabeça 
em  uma  dessas  sacadas  barrigudas  e  ameaça- 
doras que  me  disseram  terem  sido  introdu- 
zidas na  cidade  por  um  arquitecto  alemão. 
Para  atestar  a  sua  nacionalidade,  ele  pro- 
curou mesmo  encimar  alguns  dos  seus  edifí- 
cios com  um  ornato  pontudo  que  lembra  a 
forma  do  capacete  militar  do  seu  país.  Por 
fortuna  foi  esse  talvez  o  único  vestígio  que 
notei  do  gosto  tudesco  no  Rio  Grande,  onde 
o  predomínio  dos  alemães  não  tem  a  impor- 
tância que  eu  supunha,  nem  mesmo  existe, 
visto  que  da  sua  colaboração  nada  ha  domi- 
nante, nem  siquer  interessante  no  país.  Mas 
se  a  arquitectura  das  residências  partícula- 


55 


res  de  Porto  Alegre  não  tem  na  sua  genera- 
lidade pureza  de  linhas  nem  elegância  de 
conjunto,  não  se  pôde  dizer  o  mesmo  de  al- 
guns dos  seus  edifícios  públicos  modernos 
que  são  de  aparência  a  um  tempo  nobre  e 
vistosa,  como  este  belo  palácio  da  Munici- 
palidade em  que  vou  entrar  agora.  Mal  o 
avisto  tenho  a  impressão  de  que  foi  construi- 
do  com  certa  consciência  artística.  E'  de  es- 
tilo Renascença  e  tem  distinção  e  certa  ma- 
jestade. 

Ah,  a  mania  dos  zimbórios,  das  cúpu- 
las monstruosas,  dos  minaretes  ridículos  e 
torreões  enredados  por  guirlandas  em  que 
ha  mais  gesso  e  complicação  do  que  desenho 
e  gosto,  não  atribulou  felizmente  o  cérebro 
do  construtor  que  o  delineou.  Não  ha  nada 
mais  detestável  do  que  a  fantasia  de  pedra  e 
cal. 

Muitas  vezes,  quando  escrevia  crónicas 
semanais  no  O  Paiz,  na  vaidosa  pretencão 
de  que  o  meu  julgamento  pudesse  ter  algu- 
ma aceitação,  pela  sinceridade  com  que  era 
emitido  e  pelo  ardor  da  sua  convicção,  cu 
gritei  como  pude  contra  a  exorbitância  des- 


—  56  — 

ses  imensos  casarões  sem  arte  e  sem  estilo 
com  que  era  reedificado  o  Rio  de  Janeiro, 
pedindo  de  mãos  postas  aos  poderes  públi- 
cos que  nomeassem  uma  comissão  de  artis- 
tas competentes,  artistas  de  verdade,  brasi- 
leiros ou  estrangeiros,  para  lhe  organizarem 
um  plano  geral  e  dirigirem  com  harmonia 
e  beleza  as  novas  construções.  Alguém  ha- 
verá por  aí  de  bòa  memória  que  se  recorde 
disso.  Pois  a  antipatia  que  me  causavam  já 
esses  fantasmas  de  cantaria  e  de  cimento 
cresceu  com  o  correr  dos  dias,  pois  quanto 
mais  envelheço  mais  adoro  o  que  é  puro  e 
simples. 

Foi  bem  impressionada  pela  beleza  exte- 
rior do  Palácio  da  Municipalidade  de  Porto 
Alegre  que  subi  a  sua  larga  escadaria,  no 
topo  da  qual  me  esperava  o  Intendente  da 
cidade,  Sr.  Dr.  José  Montaury. 

Depois  de  poucos  minutos  de  conversa- 
ção sinto  que  este  senhor,  nascido  ás  mar- 
gens da  Guanabara,  é  o  mais  gaúcho  dos  rio 
grandenses.  Luzem-lhe  os  olhos,  em  que  se 
lê  bondade,  ao  falar  desta  admirável  gente, 
—  desta  magnífica  terra,  —  deste  excelente 


57 


ar!  A  sua  pessoa  modesta  está  toda  como  que 
a  pedir  desculpa  da  situação  a  que  se  viu 
guindada,  como  a  dizer  que  não  foi  por  cul- 
pa sua,  enquanto  me  faz  ver  no  salão  nobre 
a  galeria  de  bustos  em  gesso  policromo  ex- 
ecutados pelo  ilustre  pintor  Sr.  Décio  Vila 
res  e  que  representam  vários  dos  mais  emi- 
nentes políticos  brasileiros,  a  principiar  por 
José  Bonifácio  e  Tiradentes. 

Já)  de  passagem,  eu  tinha  pouco  antes 
visto,  do  mesmo  autor,  na  linda  praça  Mare- 
chal Deodoro,  que  encima  como  um  diade- 
ma a  cabeça  de  Porto  Alegre,  um  grande, 
rico  e  catapultuoso  monumento  em  homena 
gem  a  Júlio  de  Castilhos,  que  nele  figura  em 
atitude  acanhada  de  pretendente  mal  aven- 
turado, entre  figuras  simbólicas  de  gestos 
estirados. 


E'  noite;  ouço  foguetes  e  vozaria.  Chego 
á  janela.  E'  o  povo  que  se  diverte  na  praça 
com  a  tradicional  festa  do  Espírito  Santo. 
Acabou  a  novena  na  catedral  e  toda  a  gente 
que  afluiu  ao  local  e  que  enche  grande  parte 
do  imenso  largo  suporta  galhardamente  o 
frio,  a  olhar  com  interesse  para  os  quadros 
sucessivos  de  um  cinematógrafo  ao  ar  li- 
vre e  para  a  iluminação  da  capelinha  do 
Espírito  Santo,  em  cujo  topo  a  pombinha 
simbólica  abre  as  asas  em  contínua  agitação, 
por  efeito  de  movimentos  bem  combinados 
da  luz. 

Como  por  toda  a  parte,  também  aqui  as 
tradições  se  vão  perdendo,  as  usanças  poéti- 
cas diluindo  e  os  velhos  costumes  substi- 
tuindo-se  por  novos  costumes.  São  as  leis  da 


—  59  — 

Vida  que  de  instante  a  instante  mudam  e  se 
transformam.  A  gente  moça  pouco  se  im- 
porta, mas  os  velhos  verificam  com  tristeza 
a  diferença  desses  festejos,  hoje  apenas  ani- 
mados pela  gente  das  camadas  mais  modes- 
tas, quando  outr'ora  o  eram  pela  fina  flor 
da  sociedade  portalegrense. 

—  "Então,  suspira  com  saudosa  tristeza 
a  meu  lado  uma  doce  velhinha,  não  havia 
cinematógrafos,  nem  bondes  elétricos,  nem 
estas  luzes  de  cores  mirabolantes,  nem  estes 
gramados  de  jardins  públicos.  As  familias 
de  maior  importância  mandavam  de  casa 
pelas  escravas  os  seus  tapetes  e  as  suas  ca- 
deiras para  o  centro  da  praça  e  aí  faziam 
roda  com  os  amigos,  comendo  pinhões  co- 
zidos, amendoim  torrado  e  recitando  ver- 
sos de  Castro  Alves  e  de  Casimiro  de  Abreu, 
até  que  o  fogo  de  artifício  rebentasse  em  ro- 
das multicores  e  se  desfizesse  em  deslum- 
brantes plumas  de  ouro  vivo.  Aquele,  sim, 
é  que  era  um  bom  tempo.  Como  moráva- 
mos longe,  minha  mãi  mandava-nos  a  to- 
dos na  frente  —  as  meninas  de  berlinda,  os 


—  60  — 

meninos  a  pé  e  ela  chegava  depois  de  cadei- 
rinha com  as  orelhas  pesadas  de  brincos,  o 
vestido  de  moire  aberto  sobre  a  roda  do  ba- 
lão e  o  lencinho  de  rendas  pendurado  da 
pontinha  dos  dedos.  Censuravam-lhe  o  luxo, 
porque  naquele  tempo  havia  simplicidade, 
mas  gostavam  de  vel-a ..." 

Como  a  do  Espirito  Santo,  ha  outra  festa 
religiosa  de  grande  devoção  na  cidade:  a  da 
procissão  de  Corpus  Christi,  que  muitas  as- 
sociações, todas  as  irmandades,  colégios,  lei- 
gos e  religiosos  e  grande  numero  de  senho- 
ras da  alta  sociedade  acompanham  a  pé,  no 
milagroso  equilíbrio  do  salto  alto  nas  pedri- 
nhas desiguais  e  terríveis  do  chão.  Porque 
a  cidade  é  mal  calçada.  Esse  espetáculo  ofe- 
rece á  vista  do  forasteiro  um  aspeto  deco- 
rativo e  pitoresco.  Assim  a  população  rio- 
grandense,  que  se  poderia  supor  positivista 
pela  aceitação  dessa  doutrina  na  Constitui- 
ção do  Estado,  ou  por  convicção  própria,  ou 
por  interesse  político  em  seguil-a,  é  profun- 
damente católica,  embora  haja  uma  grande 


61  — 


parte,  uma  imensa  parte  da  sua  sociedade 
que  professa  o  culto  protestante. 


Escrevo  de  memória,  sem  ter  lido  esta- 
tísticas, subordinando  as  minhas  apreciações 
a  puras  impressões  pessoais  de  momento, 
impressões  de  que  raramente  tomei  notas: 
não  receio,  contudo,  errar  dizendo  que  a 
maior  parte  dos  colégios  particulares  do 
Rio  Grande  do  Sul  pertencem  a  congrega- 
ções religiosas,  são  dirigidos  por  padres  cu 
por  freiras  e  estão  instalados  em  prédios 
grandes  e  modelares.  E  assim  é  por  todo  o 
Brasil... 


VI 


Destino  hoje  o  meu  dia  á  intelectualida- 
de de  Porto  Alegre:  visito  os  seus  jornais, 
as  suas  revistas,  a  sua  biblioteca. 

Nada  me  pôde  interessar  mais  vivamen- 
te: lamento  apenas  não  poder  enramalhar 
num  rápido  momento  tudo  quanto  de  me- 
lhor se  tenha  escrito  até  aqui  no  Rio  Gran- 
de, para  de  um  fôlego  me  sentir  penetrada 
de  toda  a  sua  vida  espiritual.  E'  tamanho  o 
nosso  país,  conhecemo-nos  tão  pouco  uns 
aos  outros  que,  longe  do  meio  em  que  cada 
qual  gravita  em  torno  de  aptidões  já  cele- 
bradas, haverá  outras  aptidões  talvez  notá- 
veis e  de  si  pouco  ou  nada  conhecidas. 

A  caminho  das  redações,  pergunto  pelo 
movimento  dos  jornais.  Respondem-me  que 


63 


é  grande.  Ha  muitas  folhas  e  toda  a  gente 
tem  o  habito  de  ler. 

—  Toda  a  gente? 

—  Quasi  toda.  .  . 

—  Ainda  assim! 

De  facto,  tenho  visto  muitas  pessoas  na 
rua  com  livros  na  mão.  E'  simtomático:  isto 
basta  para  criar  no  forasteiro  a  impressão  de 
que  está  em  uma  terra  de  inteligência,  em 
uma  terra  de  estudo. 

No  Rio,  onde  a  vida  tem  uma  intensi- 
dade exaustiva,  o  prazer  incomparável  da 
leitura  é  estragado  por  inúmeros  acidentes 
que  a  perturbam;  aqui  nesta  cidade  tranqui- 
la, e  de  clima  propício  a  todas  as  activida- 
des deve-se  ler  admiravelmente.  .  . 


O  meu  excelente  amigo  Américo  Mo- 
reira, antigo  jornalista  e  homem  de  letras 
que  em  tempos  da  mocidade  queimou  car- 
tuchos na  defesa  dos  grandes  ideais  da  abo- 
lição e  da  Republica,  acompanha-mc  gen- 


64 


tilmente  nesse  meu  peregrinar  de  redaçao 
em  redação.  Os  dois  grandes  jornais  de  opi- 
nião pública  são  a  "Federação",  órgão  re- 
publicano governista,  e  o  "Correio  do  Po- 
vo", folha  importante,  muito  popular  e  ao 
que  me  parece  perceber  imparcial,  se  não 
francamente  oposicionista.  Tanto  melhor. 
Já  o  inefável  Conselheiro  Acácio  deveria 
ter  dito  que  todo  governo  precisa  de  opo- 
sição como  toda  a  literatura  precisa  de  crí- 
tica, O  essencial  é  que  tanto  uma  como  ou- 
tra sejam  exercidas  com  nobreza.  Também 
a  não  ser  assim  toda  a  sua  acção  seria  con- 
traproducente. .  . 

Ha  entre  os  vários  periódicos  que  visito, 
um  "A  Noticia",  que  me  interessa  pela  sua 
feição  de  mocidade:  é  a  casa  dos  novos,  cuja 
porta,  ao  que  me  contam,  se  abre  de  par  em 
par  a  quem  tenha  talento,  embora  sem  nome 
nem  apresentações  especiais.  Conquanto  os 
que  começam  tragam  geralmente  nas  mãos 
mais  espinhos  do  que  rosas  para  todos  aque- 
les que  já  no  caminho  das  letras  tenham  con- 
seguido alguma  coisa  pelo  seu  talento  ou 
por  grandes  energias  de  vontade,  é  sempre 


—  65  — 

para  estes  motivos  de  júbilo  ver  surgir  no 
mesmo  campo  das  suas  labutações  novos  se- 
meadores dos  mesmos  ideais.  .  . 

Ao  descer  da  escada  reparo  que  o  meu 
amigo  consulta  disfarçadamente  o  seu  reló- 
gio. Compreendo:  devo  abreviar,  porque  o 
dia  aqui  tem  o  mesmo  mau  costume  dos  dos 
outros  lugares:  o  de  não  esperar  por  nós,  — 
e  teremos  ainda  de  subir  a  ladeira  que  no<;. 
conduzirá  á  Biblioteca  Publica,  na  cidade 
alta.  Mas,  é  mais  forte  do  que  eu,  esta  coisa 
que  me  faz  parar  em  frente  aos  mostradores 
das  livrarias,  atraída  pela  tentação  da  no- 
vidade literária.  Na  vitrina  que  vejo  a  pou- 
cos passos  ha  nada  menos  de  três  obras  no- 
vas: "Vultos  do  Meu  Caminho",  livro  de 
crítica,  revelador  de  observação,  cultura  e 
elegância  intelectual  de  João  Pinto  da  Sil- 
va; uma  peça  em  três  actos,  intitulada 
"Gente  Alegre",  do  jornalista  Emílio 
Kemp;  e  "Terra  Convalescente",  de  Man- 
sueto  Bernardi,  volume  de  versos  em  que  se 
sente  toda  a  alma  de  um  verdadeiro  poeta. 

Três  livros  novos  em  tão  poucos  dias  não 
deve  ser  acontecimento  comum  na  capital 

Jornada.^  —  Júlia  Lopes  5 


—  66  — 

rio-grandense,  não  o  é  mesmo  em  parte  al- 
guma,  tanto  mais    que,    cada  uma    dessas 
obras  pertence  a  um  género  diferente  — 
teatro,  poesia  e  crítica  literária. 
E  não  tocam  os  sinos? 


Do  mostruário  á  porta  da  livraria  ha 
apenas  poucos  centímetros;  já  agora  não  re- 
sisto, entro  e  pergunto  por  algum  novo  tra- 
balho de  Zeferino  Brasil,  o  nosso  Cesário 
Verde,  o  original  poeta  rio-grandense  da 
"Vovó  Musa"  —  em  que  o  sentimento  pal- 
pita entre  a  graça  fina  da  forma  e  a  ironia 
esperta  do  pensamento  imprevisto. 

Respondem-me  que  ele  trabalha  agora 
ferozmente,  delirantemente,  em  um  volume 
de  prosa  e  em  outro  rimado. 

Espera-se  um  romance! 

—  E  para  conhecer-se  esse  senhor? 

—  E'dificil... 

—  Por  quê? 

—  Ele  não  gosta  de  fazer  nem  de  rece- 


—  67  — 

ber  visitas.  Isola-se  do  mundo  para  escrever. 
A  família  defende-o  dos  assaltos.  .  . 
Assim,  nenhuma  esperança?.  . . 


Estou  na  —  Livraria  Globo  —  um  esta- 
belecimento importantissimo,  com  vários 
andares,  a  que  eles  chamam,  á  hespanhola 
—  pisos;  com  ascensores,  subterrâneos,  ofi- 
cinas de  impressão,  de  gravuras,  depósitos  e 
salões  repletos  de  brochuras  e  publicações 
de  todo  o  género. 

Esta  casa,  fundada  por  um  português 
de  nome  Barcelos  e  dirigida  actualmente 
pelo  seu  filho  e  um  sócio  italiano  de  grande 
descortínio  Sr.  Bertaso,  é,  bem  como  a  casa 
Chaves,  também  de  origem  portuguesa,  e 
do  maior  prestigio  em  todo  o  Sul,  uma  de- 
monstração viva  de  que  o  alto  comercio  rio- 
grandense  não  está  todo  em  mãos  dos  ale- 
mães, como  se  propalava. 

Exulto;  uma  capital  que  além  de  susten- 
tar várias  livrarias  importantes,  como  a 
Echenique  e  outras,  dá  tanta  vida  a  esta  do 


—  68  — 

Globo  que  é  das  mais  ricas  do  Brasil,  é  uma 
capital  que  lê,  é  .uma  capital  civilizada. 

Esta  impressão  acentua-se  em  mim  ao 
entrar  na  sua  Biblioteca  Pública. 


Montada  em  edificio  propositadamente 
construído,  adornado  com  a  figura  de  Mi- 
nerva e  outras  figuras  representativas  das 
principais  fases  da  civilização  e  da  prepa- 
ração da  Humanidade,  conforme  o  calen- 
dário de  Augusto  Comte;  com  boas  salas 
de  leitura  e  de  secretaria  e  livros  carinhosa- 
mente tratados,  a  Biblioteca  de  Porto  Ale- 
gre não  tem  ainda  o  ambiente  sugestivo  das 
casas  antigas,  trespassadas  de  alma  e  espi- 
ritualidade, mas  tem  certo  conforto  e  ele- 
gância. 

A  maior  e  melhor  prova  da  sua  utilida- 
de, é  saber-se  que  a  sua  frequência  mensal 
atinge  a  um  elevadissimo  número  de  leito- 
res, segundo  me  informa  o  Sr.  Victor  Silva, 
seu  director,  o  qual  com  Eduardo  Guima- 
rães, o  poeta  rio-grandense  da  Divina  Qiii- 


—  69  — 

mera  e  seu  auxiliar  na  doce  faina  biblio- 
tecária, catalogou  pelo  sistema  americano 
—  bibliográfico  decimal,  todos  os  livros  a 
seu  cargo.  Suponho  ter  sido  ele  a  primeira 
pessoa  a  pôr  em  pratica  esta  disciplina  no 
Brasil. 

Percorrendo  comigo  o  salão  dos  livros  e 
fazendo  folhear  grandes  edições  de  luxo  o 
Sr.  Victor  Silva,  antigo  poeta,  mais  de  uma 
vez  premiado  em  concursos  literários,  ex- 
pôz-me  a  idéa  que  tem  de  fazer  construir 
um  dia,  na  parte  nova  do  edificio,  um  grande 
salão  completamente  consagrado  ao  divino 
Dante.  Nesse  compartimento,  portas,  tecto, 
janelas,  lâmpadas,  tapetes,  mobiliário  e  de- 
corações, serão  feitos  de  acordo  com  o  es- 
tilo do  tempo  do  grande  Florentino  cuja 
estátua  figurará,  no  lugar  de  honra,  entre 
painéis  que  reproduzam  suas  idéas  e  suas 
imagens  maravilhosas... 

Não  ouso  interromper  o  devaneio,  m.as 
penso,  de  mim  para  mim,  que  isso  só  pode- 
ria ser  feito  com  beleza  por  artistas  ge- 
niais. .  . 


VII 


Sinto-me,  neste  momento,  dentro  do  cé- 
rebro de  Porto  Alegre,  que  é  a  parte  ond^ 
nesta  cidade  se  agrupam  em  grandes  edifi- 
cios  próprios  as  suas  escolas  preparatórias  e 
superiores.  Poder-se  ha,  por  isso,  denomi- 
na-la —  Vila  ou  Sede  da  Inteligência  — 
sem  que  o  nome  parecesse  a  ninguém  eivado 
de  pedantismo.  Começo  a  minha  visita  pela 
circumvolução  das  matemáticas,  pelas  quais 
a  minha  admiração  é  tão  profunda  e  tão 
vasta  quanto  a  minha  incapacidade  de  as 
compreender  é  imensa! 

Subo  as  escadas  da  Escola  de  Engenha- 
ria pelo  braço  do  seu  ilustrado  Director,  Sr. 
General  Barreto  Viana,  que  não  cessa  de  me 
dar  provas  da  sua  amabilidade  esclarecedo- 
ra, fazendo-me  a  descrição  histórica  do  es- 


—  71  — 

tabelecimento,  corpo  central  de  que  se  ra- 
mificam seis  institutos  que  lhe  são  subor- 
dinados, mas  que  tem  cada  um  deles  a  sua 
vida  autónoma:  os  Institutos  Ginasial  Júlio 
de  Castilho,  Astronómico  e  Meteorológi- 
co, Técnico  Profissional,  Electrotécnico,  de 
Agronomia  e  Veterinária  e  Gabinete  Té- 
cnico. 

Depois  de  um  pequeno  repouso  no  salão 
de  honra,  eis-me  em  romaria  por  corredo- 
res, aulas,  laboratórios,  bibliotecas  e  arqui- 
vos, salas  de  directoria,  secretaria  e  con- 
gregação. 

Assisto  a  um  continuado  abrir  e  fechar 
de  portas,  da  liberdade  dos  corredores  para 
os  recintos  silenciosos  das  aulas  vazias,  mas 
em  cujo  ambiente,  entretanto,  me  parece 
sentir  ainda  a  temerosa  incógnita  dos  X.  X. 

As  idéas  que  se  cristalizam  em  palavras 
deixam  sempre  no  espaço  em  que  são  deba- 
tidas uma  vaga  irradiação  do  seu  sentido.  .  . 
E'  essa  cousa  invisivel,  mas  sensível,  que  dá 
encanto  ás  casas  velhas,  verdadeiros  túmulos 
de  almas. 

O  director  adivinha  a  minha  abstração 


72 


e  apressa-se  em  conduzir-me  ao  Ginásio  Jú- 
lio de  Castilhos. 

Tenho  neste  Instituto  o  vaidoso  prazer 
de  vêr  um  livro  meu  adoptado  particular- 
mente por  duas  das  suas  professoras  princi- 
pais e  verdadeiras  evangelisadoras  das  le- 
tras e  da  instrução:  as  ilustradas  rio-gran- 
denses  Camila  Furtado  Alves  e  Pepita 
Leão. 

Tem  este  facto  a  importância  de  fazer 
a  criançada  olhar  para  mim  com  simpatia. 
Leio-lhes  nos  grandes  olhos  escuros  e  doces 
que  já  eram  minhas  amigas  mesmo  antes  de 
me  conhecerem.  Esta  certeza  faz-me  bem 
ao  coração. 


Sem  nenhuma  competência  especial  que 
possa  determinar  da  minha  parte  um  juizo 
apreciável  sobre  assunto  de  natureza  tão 
complexa  como  o  organismo  dos  grandes  es- 
tabelecimentos de  ensino,  eu  procuro  ape- 
nas fixar  nestas  ligeiras  páginas  de  "cro- 
quis" a  lápis,  as  exterioridadcs  das  cousas 


73 


por  que  passo.  Não  me  sorriem  vagares  para 
fazer  estudos  profundos  nem  compulsar  re- 
latórios, mesmo  por  que  a  ter  de  lêr  alguma 
cousa,  prefiro  lêr  Shakspeare,  com  quem 
me  considero  sempre  em  atrazo. 

Assim,  deixo  generosamente  as  das  es- 
tatísticas para  os  profissionais  de  secretaria 
e  vou  traçando  as  minhas  impressões  pes- 
soais sobre  as  lindas  terras  do  Rio  Grande 
do  Sul,  sem  remorsos  porque  são  sinceras, 
embora  sem  o  peso  de  exposições  documen- 
tadas que  lhe  dariam  valor  mais  apreciável. 

Desprevenida,  entro  no  Ginásio  Júlio 
de  Castilhos,  na  hora  da  saída  para  o  almo- 
ço. Em  Porto  Alegre,  todos  os  trabalhos  so- 
frem uma  interrupção  das  onze  horas  ao 
meio-dia.  Fecham-se  então  as  portas  do  co- 
mercio e  as  dos  colégios. 

As  ruas  têm  espreguiçamentos  de  sono 
e  de  tédio,  na  moleza  do  abandono  e  da 
sesta.  Tenho,  porém,  ainda  tempo  para  ob- 
servar os  magníficos  exemplares  de  bôa  raça 
gaúcha,  representados  nestas  crianças  em 
que  predomina  o  tipo  moreno-claro,  de 
olhos  e  cabelos  castanhos.  Além  de  bonitas, 


—  74  — 

revela-se  no  seu  modo  e  no  seu  vestuário  a 
simplicidade  correcta  das  boas  normas  edu- 
cativas. 

Ao  zumbir  das  vozes  das  crianças  jun- 
ta-se  agora,  vindo  de  fora,  do  ar  livre,  o 
som  alegre  de  uma  banda  no  —  Amor  Fe- 
bril —  que  é  a  musica  mais  popular  aqui, 
nesta  estação.  Quem  toca  são  os  rapazinhos 
do  Instituto  Parobé,  —  que  é  o  do  ensino  té- 
cnico profissional  mantido  pela  Escola  de 
Engenharia  para  proporcionar  gratuita- 
mente aos  meninos  pobres  uma  educação 
teórica  e  prática.  Nenhuma  das  várias  se- 
cções da  escola  me  pôde  ser  mais  simpá- 
tica. Ela  não  representa  só  a  inteligência 
e  a  sciência,  mas  também  a  equidade  e  o 
coração. 

Não  é  por  mera  sentimentalidade,  entre- 
tanto, nem  só  pelo  espirito  de  justiça  que 
eu,  governo,  favoreceria  especialissima- 
mente  os  estabelecimentos  desse  género;  mas 
pela  idéa  de  que  é  com  os  pobres  que  os  po- 
vos devem  contar  de  preferência  para  o  pro- 
gresso e  a  felicidade  do  seu  paiz. 

Atravesso  um  Jardim  e  um  páteo,  por 


—  75  — 

entre  alas  de  alunos  bem  uniformisados  e 
sorridentes,  e  penetro,  comovida  e  alegre, 
nas  aulas  e  nas  oficinas.  Elas  ainda  fremem 
no  calor  do  trabalho  interrompido.  Passo 
pelas  secções  das  construções  mecânicas, 
construções  metálicas,  trabalhos  em  madei- 
ra, artes  gráficas,  tipografia,  encadernação, 
litografia,  electro-química  e  artes  de  pin- 
tura decorativa,  esculptura  e  modelagem 
em  barro,  onde  me  obsequeiam  com  dou3 
vasos  artísticos  para  plantas  e  adorno  de 
mesa. 

Como  me  disponho  a  vêr  as  cousas  com 
maior  minúcia,  lembram-me  que  não  tenho 
tempo  ás  minhas  ordens.  .  .  E,  francamente, 
é  do  que  eu  tenho  pena.  Se  esse  senhor  me 
obedecesse,  o  que  eu  faria! 

Entro  no  Instituto  Astronómico  e  Me- 
teorológico, de  que  é  um  dos  directores  um 
discípulo  diplomado  e  premiado  pela  Es- 
cola de  Engenharia;  ouço  cousas  interessan- 
tes sobre  climatologia,  previsões  do  tempo, 
e  belezas  do  céu  rio-grandense;  vejo  ma- 
pas, cartas,  instrumentos,  subo  as  escadas  do 
Observatório  e  torno  a  desce-las,  com  a  con- 


—  76  — 

vicção  de  que  tudo  aquilo  está  muito  bem 
organizado  e  a  tristeza,  que  talvez  pareça 
absurda,  de  não  poder  admirar.  .  .  estrelas 
ao  meio  dia! 


VIII 


Lembrar-me  hei  sempre,  meus  amigos, 
desta  deliciosa  manhã! 

Debruçada  da  amurada  do  "La  France" 
—  vaporzinho  todo  branco,  como  uma  noiva 
e  que  singra  as  águas  do  Guaíba  acompa- 
nhado por  um  séquito  de  lanchas,  estremeço 
de  comoção  ao  deparar  numa  volta  de  en- 
seada, com  os  cinquenta  ou  mais  "gigs"  em 
que  vós  outros,  moços,  fortes,  entusiastas, 
elevais  os  remos  numa  saudação  inesquecí- 
vel. No  espelho  das  águas  pálidas,  as  vos- 
sas embarcações  vistas  de  cima  lembram  pe- 
quenos canteirinhos  de  flores  flutuantes  — 
papoulas  rubras,  açucenas  brancas,  e  bluetas 
azuis,  de  que  emergem  duzentas  e  quaren- 
ta hastes,  terminadas  no  alto  pela  pá  dos 
remos. 


Sacudo  o  meu  lenço;  silvam  as  lanchas 
e  o  ar  estremece  á  vibração  das  palmas  com 
que  todos  os  convidados  de  bordo  vos  saú- 
dam. 

Nenhum  de  vós  mesmos,  que  o  compu- 
zestes,  pode  imaginar  o  encanto  deste  quadro 
palpitante,  vivo,  com  que  inebrio  os  miSus 
olhos  ávidos  de  beleza.  E  não  o  pôde  siquer 
imaginar,  porque  nunca  um  actor  conhece 
completamente  o  efeito  da  peça  em  que  re- 
presenta;  mas  eu  que  vos  vejo  a  todos,  como 
espectadora,  mas  eu  que  estou  surpreendida 
pelo  pitoresco  desta  scena  que  a  Liga  Náu- 
tica Portalegrense  compoz  com  arte  tão 
fina,  eu  é  que  vos  posso  afirmar  que  estais 
realizando  um  acto  de  rara  e  sadia  lindeza, 
digna  do  pincel  de  um  Ziem. 

Seria  em  verdade  um  pecado  que  esta 
baía  de  harmoniosas  proporções,  esta  pérola 
líquida  engastada  em  âmbar  louro  e  esmalte 
verde  negro,  não  se  visse  nem  se  sentisse  go- 
zada pelo  "sport"  náutico  que  dá  robustez 
ao  braço,  alegria  á  alma  e  ousadia  ao  espi- 
rito da  mocidade.  Nadar  e  remar  são  dois 
exercícios  que  duplicam  no  homem  a  sua  ca- 


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79 


pacidade  de  domínio  c  de  defeza  no  mundo, 
de  que  é  prudente  não  esquecer  que  a  ma'or 
parte  é  coberta  de  água.  .  .  Hoje  a  do  Gua- 
íba  está  ligeiramente  crespa. 

E'  um  espelho  enrugado  em  que  a  vos- 
sa flotilha  de  gigs  descreve  festões  matizados 
pelas  cores  emblemáticas  dos  respectivos 
clubs:  Almirante  Barroso,  Tamandaré, 
Grémio  Náutico,  União,  Vasco  da  Gama, 
Italiano  Canotiere,  e  Guaíba. 

Vamos  agora  com  rumo  á  ilha  da  Pin- 
tada. Não  chove  nem  faz  sol.  A  luz  difun- 
de-se  com  suavidade;  podemos  olhar  para 
tudo  sem  esforço  da  visão,  com  os  olhos  aber- 
tos. Olhar  para  as  cousas  com  os  olhos  aber- 
tos, á  luz  do  dia  nos  países  de  sol,  é  deleite, 
tanto  mais  apreciável  quanto  mais  raro. 

E  na  brandura  de  amenas  claridades  pas- 
samos das  largas  águas  do  estuário  do  Gua- 
íba, para  as  do  poético  Jucuí,  saudoso  rio, 
de  prata  fina,  em  cujas  margens  vejo  de  vez 
em  quando  casinholas  de  pescadores  e  uma 
ou  outra  canoa  amarrada  aos  troncos  do  ar- 
voredo baixo. 


80 


—  Que  assuntos  lindos,  meus  bons  ami- 
gos, para  uma  aquarela! 

Quando  desembarcamos  na  ilha  agreste, 
já  lá  vos  vemos  a  todos,  em  longas  e  cerra- 
das alas,  agitando  as  mãos  num  troar  de  pal- 
mas e  cantando  com  entusiasmo  moço  hinos 
patrióticos  e  as  "canções  gaúchas". 

Não!  Vós  também  não  vos  esquecereis 
desta  hora  de  riso  e  de  sinceridade.  Não  são 
tão  frequentes  na  vida  momentos  destes, 
para  que  possam  ficar  enterrados  no  poço 
da  indiferença;  mesmo  que  outros,  de  festas 
idênticas  se  repitam,  já  serão  outros,  poderá 
sobrar  deles  alguma  cousa  que  vos  deleite, 
mas  ha  de  faltar-lhes  também  um  pouco  do 
que  neste  ha  de  peculiar  e  que  é  talvez  uma 
alma  de  mulher,  que  ao  fluxo  da  vossa  sim- 
patia transborda  de  comoção  que  adivi- 
nhais. .  . 

Na  verde  ilha,  á  sombra  de  espreguiça- 
dos Ingazeiros,  já  as  postas  do  churrasco 
apetitoso,  varadas  pelas  lanças  agudas  dos 
espetos  de  taquara,  fazem  ronda  ás  fogueiras 
crepitantes  e  baixinhas.  O  ar  está  impregna- 
do de  um  cheiro  que  faz  a  muita  gente,  dis- 


81 


farçadamente  ou  não,  lamber  os  beiços.  So- 
bre a  mesa  rústica  improvizada  de  um  mo- 
mento para  outro,  um  de  vós  despeja  a  fina 
farinha  de  mandioca  para  acompanhar  o 
acepipe.  Como  diz  a  canção  overnheza,  tam- 
bém nós: 

De  nappe  blanche 
Nous  ne  servons  pas. 

Sur  une  planche 
Nous  mangeons  ce  que  nous  avons. 

Assis  sur  un  bane 
Comme  nous  pouvons. 

Dentro  do  grupo  ha  um  rapaz  que  re- 
cita com  inegualavel  graça  poesias  e  monó- 
logos rasgados  da  gente  da  campanha,  se- 
guido logo  após  pelo  chorar  de  um  violãc- 
nos  dedos  de  um  marujo. 

Bravo!  Estamos  em  plena  festa  regional. 
Vede  que  lindos  rapazes  esses  dois  que  es- 
tão agora  a  tocar  ao  desafio  nas  suas  gaitas 
ou  harmónicas.  Vestem-se  ambos  á  gaúcha: 
bombachas  largas,  còr  de  cinza,  ladeadas  no 
correr  da  perna  por  duas  fileiras  de  botões 

Jornadas  —  Júlia   Lopes  6 


—  82  — 

de  madrepérola;  trazem  ambos  casaco  pre- 
to, lenço  garibaldino  ao  pescoço,  atado  com 
um  nó  á  1835,  e  chapéu  mole  de  feltro,  re- 
dondo com  o  barbicacho  passado  sob  o 
queixo. 

Qual  deles  tocará  melhor?  Não  se  conse- 
gue saber.  São  ambos  excelentes  gaitistas. 
Sabem  ambos  do  mesmo  modo  distender  o 
fole  da  harmónica  em  prolongados  gemidos 
e  airosas  curvas  de  sons.  .  . 

A'  sonoridade  do  instrumento  popular 
responde  a  de  uma  vóz  feminina  impregna- 
da de  doçura. . . 

Cantai,  meus  amigos,  cantai!  Mocidade 
sem  música  é  como  vinho  sem  sabor  ou  como 
flor  sem  cheiro  e  que  a  vossa  mocidade  é 
valente  e  bôa,  bem  o  percebo  no  modo  por- 
que arrancais  a  dente  os  nacos  da  carne  do 
churrasco  que  tendes  suspenso  das  mãos. 

Bom  apetite! 


Volto  da  festa  com  este  vocábulo  —  gaú- 
cho —  a  cantar-me  no  ouvido. 


83 


Penso  um  momento  que  ele  possa  ter  si- 
do trazido  pelos  Açorianos,  primeiros  habi- 
tantes destas  margens,  com  o  termo  "galu- 
cho",  usado  em  Portugal  para  designar  o 
recruta  e  que  tivesse  logrado  outra  aplica- 
ção aqui,  sem  maior  trabalho  do  que  o  da 
queda  de  um  1.  Esclarecem-me,  porém,  di- 
zendo que  a  maternidade  do  termo  cabe  aos 
povos  do  Prata,  que  chamam  gaúchos  aos 
seus  camponezes. 

Pois,  por  uma  tal  ou  qual  analogia  de 
gostos  e  de  costumes,  dir-se  hia  ter  havido 
nos  tempos  da  sua  formação  no  Rio  Grande 
uma  certa  influência  de  Alemtejanos  que 
soubessem  incutir  na  alma  do  povo  o  seu  sen- 
timento do  pitoresco,  e  o  amor  pelas  acções 
da  suà  preferência. 

Ha  visíveis  afinidades  de  expressão  en- 
tre os  dois  povos:  no  Alemtejo  o  campino 
afoito,  aqui  o  peão  dextro,  e  a  influenciar  na 
alma  de  ambos  a  mesma  natureza  de  hori- 
zontes amplos  e  os  mesmos  impulsos  de  va- 
lentia. Como  os  Alemtejanos,  os  Gaúchos 
apreciam  os  tecidos  listrados,  somente  esses 
tecidos  empalideceram  com  a  diferença  do 


84 


clima;  onde  lá  se  entrelaça  o  vermelho  ao 
verde,  mistura-se  aqui  o  cinzento  ao  casta- 
nho; mas  em  outras  particularidades,  como 
nos  arreios  de  montaria,  que  são  especiais, 
parece  conservar-se  aqui  o  mesmo  tipo  dos 
dessa  provincia  portuguesa.  De  resto,  quem 
sabe?  Pôde  ser  que  também  nisto  eu  esteja 
enganada  e  tudo  quanto  me  parece  tradicio- 
nalmente filiado  a  um  sentimento  da  raça, 
não  seja  senão  uma  projecção  dos  usos  e  dos 
costumes  das  Republicas  platinas.  .  . 

Dansa-se  no  "La  France",  que  dá  tam- 
bém algumas  largas  voltas  de  valsa  sobre 
a  líquida  planicie  do  Guaíba,  até  que  a  tar- 
de se  desfaz  numa  bruma  algente.  .  . 


IX 


o  vento . . . 

Eu  ouvi  esta  noite  a  voz  do  Minuano! 
Ela  vinha  grossa,  cheia  de  segredos  e  de 
clamores.  Abri  os  ouvidos,  nesta  minha  ân- 
sia absurda  e  indomável  de  querer  compre- 
ender o  sentimento  de  todas  as  cousas  da 
criação,  mas  dessa  assombrosa  orquestra  de 
sopros,  uivos  e  silvos,  nada  ficou  revelado  á 
insignificância  da  minha  humana  compre- 
ensão. 

Sobre  o  telhado  que  me  abriga  as  ondas 
de  ar  se  sucediam  em  fuga  louca,  e  a  casa 
situada  em  rua  árida,  parecia-me  envolvi- 
da por  uma  floresta  toda  a  ramalhar  nas  sa- 
cudidelas de  uma  crise  de  histeria  fantás- 
tica e  furiosa.  . . 

Que  bela  vóz  a  do  vento!  Apras-me  es- 


86 


tar  ás  escuras  e  ignorar  as  horas.  O  tempo 
perdeu  para  mim  a  sua  significação  mortal. 
Suponho-me  na  eternidade  misteriosa,  entre 
camadas  do  limbo  vertiginoso.  .  .  Que  fui? 
que  serei?  não  sei,  nem  isso  me  impor- 
ta, basta-me  a  impressão  do  que  ouço,  do 
que  sinto  e  de  que  sou  um  átomo  neste  con- 
certo universal.  . . 

O  Minuano  é  um  vento  purificador.  Por 
onde  passa  varre  com  sopro  virginal  todas 
impurezas  que  encontra  espalhadas  no  solo 
ou  na  atmosfera.  Não  leva  só  comsigo  as  fo- 
lhas resequidas  das  árvores  cansadas  nem 
as  nuvens  ásperas  de  pó,  mas  legiões  de  ini- 
migos invisiveis  do  homem,  criados  pelo 
desleixo  de  uns  ou  pela  transformação  das 
próprias  cousas  impalpáveis.  E'  o  melhor 
higienista  do  Sul.  Vem  das  altas  regiões  dos 
Andes  nevados,  cujos  topes  despluma,  para 
espalhar  por  sobre  terras  baixas  um  pouco 
da  sua  pureza  inatingivel.  .  .  E,  quando  não 
tem  violências  impetuosas  e  sopra  de  man- 
so, o  seu  hálito  fino  e  glacial  dá  aos  míseros 
mortais  a  deliciosa  impressão  de  lhes  espa- 
lhar no  rosto  carícias  de  anjos.  .  . 


Como  Constantinopla,  Porto  Alegre  po- 
derá ser  denominada  um  dia  —  a  cidade  dos 
terraços  —  se  mais  alguns  tiver  como  os  dois 
que  vi  esta  manhã  e  de  onde  se  descortina 
um  panorama  largo  e  sugestivo.  E  que  lu- 
gar se  poderá  prestar  melhor  para  miradoi- 
ros  dessa  natureza  do  que  este  de  aclives  e 
declives  violentos,  barrado  por  um  rio  largo 
e  cheio,  em  que  ilhas  estreitas  de  vegetação 
escura  descrevem  avenidas  de  sombra, 
como  que  traçadas  a  nanquim  sobre  prata  re- 
luzente? Olhando  para  essas  ribanceiras  pen- 
sa-se  como  daria  vida  e  graça  á  casaria 
que  por  elas  se  encarrapita  o  estilo  dos  te- 
lhados árabes  resguardados  na  hora  da  ar- 
dentia  por  toldos  riscados,  floridos  de  era- 


—  88  — 

vos  comio  os  de  Andaluzia,  e  abertos  á  tarde 
ás  pompas  do  morrer  do  sol.  .  . 

Bem  inspirado  foi  por  isso  o  arquitecto 
francês  Maurice  Gras,  fazendo  o  Novo  Pa- 
lácio do  Governo  desta  capital  todo  coberto 
por  uma  sotéa  destinada  a  ser  transformada 
num  jardim  suspenso.  E  essa  fantasia,  per- 
feitamente realizável,  porque  a  sotéa  foi  con- 
struida  com  cimento  vulcânico  e  de  modo  a 
que  as  águas  da  chuva  e  das  regas  não  pos- 
sam penetrar  na  habitação,  fará  com  que  em 
todo  este  imenso  Brasil  seja  talvez  este  o 
único  palácio  que  tenha  por  coberta  lençóes 
verdes  de  relva  em  que  floresçam  rosas... 

Fazem-me  notar  que  o  palácio  é  feito 
com  todos  os  rigores  da  arte  antiga  e  do 
conforto  moderno.  As  suas  linhas  gerais  obe- 
decem á  arquitectura  grega  clássica;  tem 
dois  corpos  principais,  sendo  o  da  frente  de 
cinquenta  e  oito  metros  por  vinte  e  quatro, 
de  forma  rectangular,  e  o  do  fundo  de  cin- 
qíienta  e  dois  metros  por  vinte  e  nove  em 
forma  de  u.  Comunicam-se  estes  dois  corpos 
por  duas  ordens  de  colunas  de  bôa  perspecti- 
va. Na  fachada  de  agradável  simplicidade 


—  so- 
mas que  teria  ganho  em  beleza  se  fosse  mais 
alta  uns  poucos  de  degraus,  ha,  entre  dois 
pares  de  colunas  gémeas,  duas  estátuas  em 
pedra  calcárea.  Agricultura  e  Industria,  de- 
masiadamente alentadas. 

Abre  o  Palácio  para  a  mais  nobre  praça 
da  cidade  por  três  largos  portões,  comuni- 
cando o  do  centro  com  o  vestíbulo  e  escada- 
ria principal,  destinando-se  os  outros  para 
a  entrada  e  saída  dos  carros.  Todos  os  de- 
talhes da  sua  ornamentação  interior  são  su- 
jeitos ao  gosto  da  época  Luiz  XVI.  Dizem- 
me  que  já  estão  encomendadas  as  mobílias, 
de  estilo  afinado  com  o  de  cada  comparti- 
mento e  que  a  alguns  dos  nossos  maiores 
pintores,  como  Georgina  de  Albuquerque, 
Parreiras,  Décio  Vilares,  Lucilio  de  Albu- 
querque e  Luís  de  Freitas,  foram  pedidas 
decorações  para  os  tectos  e  paredes  princi- 
pais. 

Não  só  em  Roma  ha  subterrâneos!  tam- 
bém neste  Palácio  os  ha,  não  escuros  e  mis- 
teriosos como  os  das  catacumbas,  que  apa- 
voram e  tresandam  a  humidade,  mas  ale- 
gres, arejados,  com  instalações  elétricas  para 


—  90  — 

limpeza  pelo  vácuo,  para  luzes,  telefones, 
ascensores,  campainhas,  aquecedores,  venti- 
ladores, por  meio  de  tubos  isolantes,  e  o  que 
mais  não  sei.  Chamam-me  a  atenção  para  a 
aplicação  dos  pára-raios  do  novo  sistema  Fa- 
raday-caye  e  que  figuram  aqui  pela  primei- 
ra vez  no  Brasil,  assim  como  me  dizem  que 
para  todas  as  colunas,  embasamentos  e  esca- 
darias que  estou  vendo  neste  palácio  veio 
a  pedra  já  aparelhada  de  Paris.  .  . 

A  esta  informação  dou  um  salto  patrió- 
tico: —  mandar  vir  pedra  da  França  quan- 
do ha  aqui  o  belissimo  granito  rio-gran- 
dense! 

Ao  meu  espanto  respondem-me  que  para 
essa  preferência  houve  uma  razão  formi- 
dável e  indiscutível:  —  o  preço! 

E'  uma  tristeza  a  sujeição  ao  preço, 
quando  se  pense  em  fazer  uma  obra  d'arte, 
mas  como  ele  tem  inegavelmente  a  sua  for- 
ça, que  objectar?  Serviu  ao  menos  o  cal- 
cáreo  de  Villars  para  exemplo,  á  aplicação 
do  grés  branco  rio-grandense,  que  bem  tra- 
balhado é  igualmente  bonito  e  já  figura  em 


91 


obra  na  barra   de  um  muro  posterior  do 
edifício. 

Que  singular  complicação  esta  que  faz 
com  que  nos  custe  menos  dinheiro  vindo  de 
longe,  aquilo  mesmo  que  temos  ao  pé  da 
porta! 


Pois  bela  ocasião,  meus  senhores,  para  se 
aproveitarem  em  um  friso  decorativo  'de 
parede  interior  essas  inegualaveis  ágathas, 
que  rolam  em  bruto  aos  pontapés  pelo  in- 
terior do  Estado.  .  . 

No  Palácio  dos  Medicis  em  Florença, 
ha  pedras  preciosas  engastadas  entre  os  luzi- 
dos mármores  patrícios.  Tivessem  os  flo- 
rentinos tido  á  sua  disposição  estas  pedras 
brasileiras  de  tão  inéditos  desenhos  e  cores 
tão  originais  e  como  as  teriam  engrupado  ou 
encarreirado  em  gradações  bem  combina- 
das nas  suas  catedrais  ou  nas  suas  capelas! 

Mas  é  sobretudo  o  granito  rio-grandense 
que  lastimo  não  ver  aproveitado  nos  ba- 
laústres e  nas  colunas  desta  Casa  do  Gover- 


—  92  — 

no,  lugar  mais  do  que  todos  apropriado  á 
demonstração  do  seu  valor  ornamental  e  ar- 
quitectónico. E'  tão  bonita  esta  pedra  de- 
pois de  afeiçoada,  tão  compacta  a  sua  con- 
textura e  tão  bem  distribuidas  e  distintas  as 
suas  malhas,  que  idealizo  o  prazer  que  de- 
veria sentir  um  escultor  animalista  que  nela 
pudesse  talhar  o  corpo  elástico  de  um  ti- 
gre ou  a  cabeça  fulva  de  um  leão.  .  . 


O  segundo  terraço  que  eu  vi  esta  manhã 
foi  o  do  edificio  do  Arquivo  Público.  E' 
também  este,  como  o  do  novo  Palácio  do 
Governo,  formado  pela  sotéa  da  casa,  calça- 
do de  fino  mosaico  e  guarnecido  por  uma 
elegante  balaustrada. 

E,  ora  aqui  está  uma  construção  especia- 
lissima  organizada  com  inteligente  previ- 
dência. Está  sendo  feita  para  servir  de  de- 
pósito ao  Arquivo  Público  numa  edificação 
incombustivel  e  em  um  dos  pontos  mais  al- 
tos e  mais  arejados  da  cidade. 

Tem  um  estilo  sóbrio  e  distinto  e  ocupa 


—  93  — 

uma  área  de  quinhentos  e  sessenta  e  sete 
metros  quadrados;  está  dividido  em  onze 
compartimentos  de  cinco  por  seis  metros. 
A  fachada  principal  tem  a  extensão  de  se- 
tenta metros  e  o  seu  interior  é  todo  guar- 
necido de  prateleiras  de  ferro  e  de  cimento 
armado,  numa  superficie  total  de  mil  e  qua- 
trocentos metros.  E'  alguma  cousa.  Sim- 
plicidade, comodidade  e  segurança  são  as 
qualidades  reunidas  neste  palácio  em  que  a 
história  da  vida  passada  dorme  o  seu  sono 
eterno,  sem  receio  das  chamas  nem  pavor 
dos  vermes.  .  . 


XI 


Recepção  no  Club  Comercial.  Os  salões 
estão  repletos  do  que  a  sociedade  portale- 
grense  tem  de  mais  delicado.  Vou  vêr  um 
grande  baile  precedido  por  uma  sessão  li- 
terária e  musical.  E  nesta  festa  de  pensa- 
mento, de  arte  e  de  luxo,  conhecerei  o  que 
ha  de  superior  e  de  mais  requintado  na  ca- 
pital do  Rio  Grande. 

A  claridade  branca  das  lâmpadas  ilu- 
mina as  mais  belas  mulheres  e  as  mais 
sumptuosas  jóias  da  cidade.  Bem  como  por 
toda  a  parte  agora,  predominam  aqui  as  pé- 
rolas em  fios  cingidos  a  pescoços  mais  ou 
menos  bonitos  ou  descaídos  sobre  a  seda  dos 
vestidos. 


95 


Como  a  vida  é  feita  de  contrastes  e  está 
nisso  o  segredo  da  sua  palpitante  sedução, 
nunca  se  viram  no  Brasil  jóias  mais  belas, 
nem  mais  caras  nem  em  tamanha  abundân- 
cia como  neste  tempo  de  guerra  e  de  confes- 
sada penúria.  Aqui  no  Rio  Grande  exacta- 
mente onde  o  seu  uso  me  parece  mais  reser- 
vado e  menos  opulento,  elas  não  me  causa- 
riam tanto  espanto;  explical-as  ia  a  prospe- 
ridade e  a  fortuna  desta  terra  gaúcha  de 
apregoada  fertilidade  criadora;  mas  no  Rio? 
Trago  ainda  nos  olhos  desorientados  a  visão 
da  última  recepção  carioca  a  que  assisti,  e 
em  que  os  colares  e  os  diademas  evocavam  a 
lembrança  das  trágicas  princezas  bizantinas. 

Aqui  as  jóias  de  alto  preço  não  me  ofen- 
dem os  olhos,  talvez  também  por  que  não  ve- 
jo pedir  esmolas  pelas  ruas;  e  ha  nada  mais 
cheio  de  sugestões  do  que  a  mão  vazia  de 
um  mendigo? 

Passa  um  frémito  de  curiosidade  pelo 
salão  e  começa-se  a  ouvir  num  comovido  si- 
lencio a  vóz  do  ilustre  poeta  Felipe  de  Oli- 


—  96  — 

veira,  desdobrando  em  uma  prosa  cheia  de 
coração  e  de  poesia  a  alma  do  seu  querido 
Rio  Grande,  a  arfar  nas  pulsações  de  uma 
aventurosa  valentia  ou  a  concretizar-se  toda 
no  vulto  solitário  de  uma  árvore  pensativa 
e  linda  —  o  umbu. 

Quem,  melhor  do  que  um  espirito  pene- 
trado de  poesia,  que  é  a  essência  vital  da  na- 
tureza, poderia  desvendar  aos  meus  olhos  a 
significativa  expressão  das  cousas  silen- 
ciosas? 

Através  dos  seus  períodos  cálidos  e  velu- 
dosos  eu  vejo  a  pradaria  larga  e  iluminada, 
e  viajo  por  estradas,  discortinando  coxilhas 
longínquas  e  horizontes  barrados  da  verme- 
lhidão do  poente,  em  que  se  desenha  o  friso 
negro  das  cabeças  cornudas  do  gado  imó- 
vel .  .  . 

A'  quente  vóz  do  poeta  sucede  a  de  ou- 
tro poeta,  Mansueto  Bernardi,  moço  cheio 
de  inspiração  e  de  sentimento  e  que  ocupa 
um  lugar  proeminente  na  intelectualidade 
do  Rio  Grande.  Além  de  declamarem  tra- 
balhos próprios  dizem  os  escritores  poesias 
de  poetas  seus  conterrâneos:  Marcelo  Ga- 


—  97  — 

ma,  Álvaro  Moreyra,  Eduardo  Guimarães, 
Fontoura  Xavier,  Zeferino  Brasil,  Pedro 
V^elho,  Leal  de  Souza  e  Homero  Prates,  pa- 
ra demonstrarem  que  a  Poesia  tem  no  seu 
Estado  paladinos  de  mérito  e  de   renome. 

A'  parte  literária  sucede  a  musical,  de- 
sempenhada com  muita  distinção.  Tenho  as- 
sim em  poucas  horas  uma  impressão  directa 
e  viva  da  educação  e  do  gosto  desta  socie- 
dade. 

Se  ao  jogo  se  revelam  os  princípios  dos 
homens,  dançando  se  revela  a  graça  das  mu- 
lheres. 

Como  em  toda  a  parte  agora,  os  tangos 
fazem  aqui  parte  do  carnet  do  baile,  e  pare- 
cem-me  executados  com  menos  impulso  ou 
mais  reflexão  do  que  nas  salas  do  Rio,  onde 
quem  dança  se  deixa  levar  demasiadamente 
pela  musica  sugestiva...  Ha  na  sala  uma 
encantadora  criança,  de  dezaseis  anos  que 
me  vem  dizer  que  é  este  o  primeiro  baile  a 
que  ela  assiste  e  que  marca  o  início  da  sua 
entrada  na  sociedade.  Sinto-lhe  a  emoção 
nas  mãos  frias  e  nos  olhos  onde  se  reflecte 
toda  a  ebriedade  da  sua  alma  em  festa.  Pas- 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  7 


98 


sa-me  fugazmente  pelo  espirito  a  lembran- 
ça dessa  mesma  emoção,  que  a  vulgaridade 
das  festas  hodiernas  torna  cada  vez  mais 
rara,  e  que  na  minha  mocidade  me  fez  estre- 
mecer no  delicioso  susto  da  primeira  valsa... 
E  aí  está  alguém  a  quem  esta  noite  ja- 
mais esquecerá. . . 


O  interior  do  Club  não  tem  confortos 
elegantes,  mas  dizem-me  estar  a  meio  ca- 
minho a  edificação  de  um  novo  e  pomposo 
prédio  propositadamente  construído  para 
as  funções  que  este  casarão  vem  exercendo 
com  alegria  e  sem  cansaço  desde  longos 
anos. 


A'  hora  de  ceia,  que  é  sempre  agradável 
para  quem  não  dança,  porque  é  aquela  em 
que  se  conversa,  sento-me  ao  pé  de  um  cãu- 
seur  espirituoso,  médico  e  homem  de  Esta- 
do, o  Sr.  Dr.  Protásio  Alves,  que  me  des- 
creve com  um  colorido   insinuante  e  bem 


PENHASCOS  D1-:  ToRRHS 


99 


nuançado  o  pitoresco  das  regiões  coloniais 
do  Rio  Grande  do  Sul,  a  beleza  trágica  do 
seu  território  serrano  e  a  impressionante  for- 
mosura da  praia  de  Torres,  onde  altos  ro- 
chedos lembram  telhados  de  catedrais. 

Lembro-me  de  ter  lido  qualquer  coisa 
sobre  a  intenção  do  governo  rio-grandense 
de  utilizar  esse  porto  de  Torres,  facilitando- 
Ihe  a  comunicação  com  a  capital  do  Estado. 
A  realização  dessa  obra,  parece  que  muito 
importante  e  discutida,  teria  a  vantagem  de 
abreviar  em  três  dias  as  viagens  do  Rio  de 
Janeiro  a  Porto  Alegre,  o  que  não  é  argu- 
mento que  se  despreze,  mas  que  outros  ar- 
gumentos terão  para  procurar  obstar-lhe  a 
execução  as  cidades  de  Pelotas  e  do  Rio 
Grande?  Por  maior  que  seja  o  movimento 
de  importação  e  de  exportação  do  Estado 
será  ele  tamanho  que  possa  alimentar  a  vid.i 
de  um  novo  porto  sem  prejudicar  com  isso  os 
interesses  do  outro?  E  tanto  mais  que  esses 
interesses  não  são  mera  e  puramente  mate- 
riais mas  também  de  uma  grande  impor- 
tância moral  para  as  regiões  que  lhe  ficam 
visinhas. 


100 


Todo  o  forasteiro  que  tem  de  vir  á  capital 
do  Estado  é,  por  gosto  ou  forçadamente 
obrigado  a  passar  por  duas  das  suas  cidades 
mais  importantes:  Pelotas  e  Rio  Grande,  e 
nessa  travessia,  se  adquire  conhecimentos 
da  riqueza  e  do  progresso  da  terra,  também 
espalha  animação  e  dinheiro  que  são  ele- 
mentos que  ninguém  despreza. 

Desviado  para  o  ponto  oposto  ao  dessas 
cidades  o  desembarque  da  população  ambu- 
lante de  forasteiros  que  só  tenha  em  mira 
Porto  Alegre,  não  se  sentirão  elas  preju- 
dicadas? Quer-me  parecer  que  sim,  mas  bem- 
póde  ser  que  não.  Seria  necessário  conhe- 
cer muito  profundamente  as  condições  do 
Estado  para  julgar  a  coisa  com  inteira  pre- 
cisão e  justiça,  e  eu  não  tenho  ocasião  de 
mergulhar  a  vista  até  ao  fundo  do  poço  em 
que  a  Verdade  se  mira  no  competente  espe- 
lho. Colho  impressões  de  superficie  como 
quem  navega  em  um  lago.  .  . 


XII 


Vagabundiei  hoje  por  Porto  Alegre,  em 
caminhadas  sem  destino  por  entre  a  pedra  e 
a  cal  das  paredes  de  casas  sem  jardins  e  de 
portas  fechadas,  como  se  usa  na  Europa.  Por 
vezes  ao  dobrar  de  uma  esquina  vinha-me 
rapidamente  á  memória  um  trecho  da  cida- 
de alta  de  Lisboa,  não  só  pela  aparente  ari- 
dez da  terra  como  pela  visão  branca  do  rio 
barrando  lá  em  baixo  as  ruas  ladeirentas. 
Uma  triste  vitrine  de  belchior  com  lampiões 
de  latão,  figas  toscas  de  madeira  e  botões 
de  mosaico  veneziano,  fez-me  pensar  que 
talvez  houvesse  lá  dentro  qualquer  cousa 
que  me  indicasse  algo  da  vida  interior  e  ín- 
tima deste  povo,  e  entrei. 

Tal  idéa  não  me  veio  a  mim  só.  Já  lá 
dentro  havia  uma  senhora    que    vasculhava 


102 


com  manifesto  interesse  as  bugigangas  inú- 
teis em  busca  de  utensílio  doméstico,  mo- 
vei ou  jóia  particular,  que  pelo  seu  cunho 
especial  ou  pela  sua  antiguidade  lhe  trans- 
mitisse a  impressão  desejada. 

E'  singular  e  espantoso  o  poder  evocati- 
vo que  teem  as  cousas  cuja  convivência  comi 
alguém  foi  demorada  e  utilizada  por  largo 
período  de  tempo.  Com  a  sua  vóz  muda, 
se  tal  paradoxo  me  pôde  ser  permitido,  elas 
sabem  relatar  com  eloquência  o  sentimento 
de  épocas  e  de  povos  diferentes.  Era  essa 
vóz  que  eu  queria  ouvir,  na  vã  loucura  de 
supor  poder  existir  algum  objecto  que  a 
emitisse  no  meio  daquela  mixórdia  banalis- 
sima  e  reles  que  via  ali  acumulada  e  em 
que  a  senhora,  delegada  sem  dúvida  de  al- 
gum hric-a-braquista  estrangeiro  andava, 
em  pura  perda,  a  catar  preciosidades.  .  . 

Adeus,  ideal  de  se  poder  encontrar  al- 
guma cuiasinha  de  mate  chimarrão,  pala, 
ou  xairel  com  história.  Nem  esporas  de 
Bento  Gonçalves,  nem  arrecadas  de  Anita 
Garibaldi,  nem  móvel  algum,  embora  des- 


—  103  — 

conjuntado,  que  nos  revelasse  o  espirito  de 
antanho. 

Saí.  Continuei  a  subir  e  a  descer  ruas 
que  me  obrigaram  a  imaginar  que  deve  ser 
aqui  muito  rendoso  o  negócio  das  sapatarias. 
Em  algumas  lojas  mais  modestas,  vejo  na 
taboleta  a  designação  de  —  Baratilho  — 
por  —  Barateiro  —  vocábulo  nunca  empre- 
gado nestas  legendas  comerciais.  Porque 
baratilho?  não  sei. 

Noto  que  nas  ruas  quasi  todas  as  senho- 
ras usam  por  agasalho  uma  pele  de  raposa 
igual  em  tudo  a  uma  que  eu  comprei  em 
Paris  como  sendo  européa.  São  as  peles  dos 
Guarachaíns,  o  que  significa  guarás  peque- 
nos. Guará  é  o  nome  indígena  do  nosso  cão 
do  mato  de  pelo  fulvo,  áspero  e  espesso. 
Os  estancieiros  dão  caça  aos  guarachaíns 
porque  eles  lhes  atacam  as  ovelhas  e  os  gali- 
nheiros. Antes  da  guerra  as  peles  dos  gua- 
rachaíns eram  exportadas,  não  se  sabe  por 
quem,  mas  em  tamanha  quantidade  que  nin- 
guém aqui  as  via,  nem  lhes  dava  apreço 
ou  aproveitava.  Agora,  porém,  paralizadas 


—  104  — 

as  remessas  para  o  estrangeiro  elas  são  ven- 
didas tanto  nos  armazéns  de  modas  já  pre- 
paradas, como  pelas  ruas,  ainda  mal  curti- 
das. Como  todo  o  animal  este  tem  a  suâ  es- 
tação de  maior  ou  de  menor  beleza,  em  que  o 
pelo  é  mais  espesso  ou  mais  áspero,  mais 
veludoso  ou  mais  brilhante.  O  seu  valor  de- 
pois de  morto,  como  adorno,  depende  do 
tempo  em  que  ele  foi  apanhado,  e  mesmo  as- 
sim percebe-se  no  focinhito  agudo  deste 
bichinho  quanto  ele  deve  ter  sido  inteligente 
em  vivo.  Conta-se  que,  quando  ele  é  ca- 
çado em  mundéu  ou  laço  se  finge  logo  de 
morto. 

Representa  então,  por  tanto  tempo  quan- 
to o  tenham  sob  vigilância,  uma  comédia 
astuciosa  e  por  certo  bem  aflitiva!  Finge- 
se  de  morto  para  que  o  não  matem,  e  prepara 
entretanto  o  seu  plano  de  fuga,  que  escusa- 
do é  dizer  não  o  deixam  levar  a  efeito.  .  . 

O  caçador  diverte-se  com  esse  jogo  que 
prolonga  o  sofrimento  do  animal  e  enche 
de  pena  os  que  não  são  caçadores.  .  . 


—  105  — 

A's  cinco  horas  entrei  numa  confeitaria 
para  o  meu  chá. 

Quer-me  parecer  que  todos  estes  confei- 
teiros de  Porto  Alegre  são  alemães  ou  des- 
cendentes de  alemães. 

O  seu  doce  e  a  sua  pastelaria  não  são 
da  raça  suave  e  meiga  da  nossa.  A  sua  massa 
é  encardida  e  grossa,  e  no  recheio  ha  um 
condimento  que  o  meu  paladar,  aliás  atila- 
do, não  adivinha  qual  seja. 

Se  o  grande  e  inolvidável  Ramalho  Or- 
tigão, fosse  vivo  e  andasse  por  estas  mesas 
de  chá  a  paparicar  tigelinhas  d'ovos  encon- 
traria nelas  motivo  para  uma  crónica. 

Com  aquela  clareza  e  perfeição  de  es- 
tilo que  o  celebrizaram  e  o  conhecimento 
largo  e  profundo  que  mostrava  ter  de  todas 
as  cousas,  mesmo  as  de  aparência  mais  in- 
significante, ele  nos  provaria  a  procedên- 
cia destas  canoinhas  e  queijadas,  embora  á 
custa  de  longas  digressões. 

Para  essa  espécie  de  Folk-lore  do  pala- 
dar nada  no  Brasil  se  pode  comparar  ao 
Norte,  que  é  de  todo  o  país  a  parte  mais 


—  106  — 

capitosa,  quer  pelo  aroma  das  suas  flores, 
quer  pelo  sabor  dos  seus  frutos  e  gostosa 
aplicação  dos  seus  sucos,  das  suas  polpas,  das 
suas  sementes  e  dos  seus  cocos  tanto  nos  pra- 
tos de  sal  como  nos  de  açúcar.  O  sul  é  me- 
nos epicurista. 


XIII 


Tivemos  visitas  ao  jantar  e  discutiu-se 
literatura.  Como  sempre  que  ha  discussão 
houve  algazarra.  Parece-me  que  a  única 
pessoa  da  mesa  que  permaneceu  silenciosa 
fui  eu.  .  .  O  debate  teve  certos  pontos  inte- 
ressantes sob  o  ponto  de  vista  psicológico  e 
literário.  Uma  das  senhoras  presentes,  a 
professora  D.  Leopolda  Barnevitz,  demon- 
stra conhecimentos  da  literatura  portu- 
guesa, francesa  e  inglesa;  critica  com  en- 
tusiasmo Camilo  e  Dickens,  Flaubert  e 
Daudet.  Abro  os  ouvidos  curiosa.  E  quei- 
xamo-nos  de  que  não  se  lê  em  nosso  país! 
A  pessoa  de  opinião  mais  acatada  e  im- 
perativa pelo  seu  saber  e  experiência,  Sr. 
Victor  Silva,  a  quem  os  moços  chamam: 
mestre,    resumindo    suas    impressões    sobre 


108 


obras  nacionais  no  género  —  romance  — 
cita  como  o  melhor  livro,  depois  dos  de 
Machado  de  Assis,  —  o  Canaã,  de  Graça 
Aranha. 

Enquanto  continuava  a  conversa  espi- 
ritual e  tumultuosa,  eu  meditava  sobre  o  que 
pensará  hoje  dessa  sua  obra  o  ilustre  ro- 
mancista. Arderá  ainda  no  seu  coração, 
como  quando  o  descreveu,  aquela  fé  no  co- 
lono alemão,  como  sendo  o  mais  propício 
a  infiltrar  no  Brasil  uma  superioridade  de 
raça?. . . 

Realmente,  para  o  esclarecimento  da 
verdade  não  ha  nada  como  um  dia  depois  dn 
outro,  como  diz  o  ditado. 


E'  noite  e  faz  frio;  ageito-me  nas  almo- 
fadas e  leio  um  livro  arcaico  que  me  faz  an- 
dar em  tempos  de  Jesus  Cristo  pelas  estra- 
das poeirentas  da  Palestina. 

E'  uma  outra  viagem  que  faço  através  do 
tempo  e  da  história  sem  enjoos  de  barcas 
nem  incómodos  de  trens  de  ferro.  Nela,  nun- 


—  109  — 

ca  Jesus  me  aparece  como  o  vemos  repre- 
sentado nos  mármores  e  nas  telas,  com  a  ca- 
beleira esparsa  em  ondas  sedosas  sobre  os 
ombros,  mas  com  a  cabeça  coberta  com  a 
rodilha  de  panos  então  usada  por  todos 
os  hebreus.  Em  arte,  só  me  lembro  de  o  ter 
visto  assim  uma  vez:  no  sonho  de  Theodo- 
rico  Raposo,  a  maravilhosa  página  de  Eça 
na  sua  incomparável  "Riliquia".  Sobre  este 
ponto  diz  mesmo  o  autor  que  estou  lendo: 

"Os  pintores  cometem  um  grande  erro 
quando  representam  Cristo  de  cabeça  des- 
coberta. Todo  o  mundo  usava  turbante.  O 
do  Cristo  deveria  ser  como  o  dos  outros, 
preso  em  baixo  do  queixo  por  um  cordão  e 
com  a  ponta  da  faixa  caída  de  um  lado  so- 
bre a  manga  da  túnica." 

Apezar  de  tudo  acho  que  os  pintores 
teem  razão. 


XIV 


Por  pequenos  detalhes  e  traços  insigni- 
ficantes colhidos  em  palestras  e  ouvidos  eni 
descrições  de  hábitos  locais,  parece-me  per- 
ceber que  o  Rio  Grande  do  Sul,  não  tem 
só  muito  dinheiro  pelo  modo  porque  é  go- 
vernado nem  tampouco  pela  notável  abun- 
dância da  sua  produção  agrícola,  pecuária 
e  industrial,  mas  também  e  muito  especi- 
almente, pela  índole  económica  do  seu  povo 
que  neste  ponto  nos  poderia  dar  a  todos  nós, 
outros  brasileiros,  lições  proveitosíssimas. 

O  critério,  que  faz  do  francês  o  povo 
mais  rico  do  mundo,  faz  ou  fará  da  popula- 
ção rio-grandense  a  população  mais  rica 
do  Brasil. 

Com  um  pouco  de  exagero  poder-se  hia 
dizer  que  está  no  ar  que  se  respira  esta  pre- 


—  111  — 

venção  cautelosa  que  obriga  muita  gente 
aqui  a  pensar  com  seriedade  no  dia  de  ama- 
nhã, guardando  economias  para  as  debilida- 
des da  velhice  e  da  idade  madura.  Só  depois 
de  assegurada  a  casa  e  o  pão  cotidiano  é 
que  a  maioria  das  pessoas  se  permitem  sa- 
tisfazer a  ambição  de  sonhadas  viagens  ou 
de  aquisições  reputadas  supérfluas. 

Este  modo  de  supitar  impaciências  é 
uma  demonstração  de  força  de  vontade  rara 
em  indivíduos  da  nossa  raça  vivaz  e  impre- 
vidente. Não  perguntei  ainda  pelo  valor  das 
entradas  mensais  na  caixa  Económica  do 
Estado,  mas  se  a  minha  percepção  não  é  por 
demais  rombuda  elas  devem  ser  de  conside- 
rável importância. 

Enganar-me  hei?  E'  cedo  para  sabe-lo 
mas  suponho  que  não  erro  acreditando  nas 
acertadas  tendências  financeiras  destes  nos- 
sos patrícios,  para  os  quais  todo  o  brasileiro 
nascido  fora  do  seu  Estado  é  denominado  — 
baiano. 

Pergunto  porquê,  e  não  me  sabem  expli- 
car a  razão  dessa  curiosa  anomalia,  mas  cer- 
tamente que  ela  não  poderá  deixar   de    ser 


112 


lisongeira  á  ilustre  e  ilustrada  terra  nor- 
tista. .  . 

Fui  assim  baiana  durante  os  dias  ern  que 
tive  o  gosto  de  viver  no  Rio  Grande  do  Sul, 
gozando  a  glória  de  ser  conterrânea  do  meu 
bom  amigo  Constâncio  Alves,  e  do  eminente 
senador  Sr.  Ruy  Barbosa! 

Ha  dois  pontos  no  Planeta  a  que  ainda 
muito  criança  me  acostumei  a  amar  mesmo 
sem  os  conhecer,  através  da  saudade  de  duas 
aias  que  embalaram  o  meu  berço  e  contaran» 
as  primeiras  histórias  que  me  embeveceram 
a  imaginação.  Esses  dois  pontos  são,  um  —  a 
Baía,  terra  da  mulata  escrava  a  quem  eu  dava 
com  ternura  o  nome  de  —  Mamã  Maria;  o 
outro  a  Ilha  de  S.  Miguel,  nos  Açores,  pá- 
tria da  governante  da  casa  de  meus  Pais,  que 
eu  chamava  de  Avó  e  a  quem  o  meu  cora- 
ção é  sempre  reconhecido...  Deste  modo, 
ser  baiana  para  mim  não  é  muito  difícil! 


XV 


iVndei  parte  do  dia  pelo  bairro  dos  Na- 
vegantes entre  operários  e  teares,  fornos  e 
chaminés  de  fábricas. 

Ha,  parece,  que  nada  menos  de  cento  e 
cinquenta  desses  estabelecimentos  em  Porto 
Alegre.  Convidaram-me  a  visitar  cinco  de 
entre  eles,  o  que  já  não  é  pouco.  O  que  me 
vale  é  que  tenho  curiosidade  para  tudo,  gra- 
ças a  Deus. 

Para  mim  a  vida  é  um  livro  em  que  cada 
dia  é  uma  página  de  interesse  particular  e 
significação  diferente.  Um  verdadeiro  ro- 
mance, com  períodos  á  Ponson  ou  á  Eça,  á 
Júlio  Diniz,  ou  á  Zola.  .  . 

Neste  bairro  operário  penso  involunta- 
riamente em  certos  contos  de  Gorki,  onde. 
o  rangido  das  correias  e  os  dentes  das  engre- 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  8 


14 


nagens  exprimem  idéas  confusas  em  sons 
mastigados  e  de  ruído  insuportável. 

Ha  no  mundo  só  três  espécies  de  rumores 
com  beleza:  o  das  tempestades;  o  da  música 
e  o  das  ovações  ou  imprecações  das  turbas. 

Todos  os  outros  fazem  desesperar  quem 
os  suporte.  Lembra-me  que  a  primeira  vez 
que  entrei  em  uma  fábrica  fiquei  tão  horro- 
rizada com  o  barulho,  que  fiz  a  mim  mesma 
uma  promessa  de  jamais  entrar  em  nenhuma 
outra.  E  essa  promessa  só  deixei  de  a  cum- 
prir hoje,  quando  transpuz  a  soleira  da  mais 
importante  fábrica  de  tecidos  desta  cidade 
manufactureira. 

E  tão  manufactureira,  que  eu  scismo  em 
como,  com  a  nossa  mania  de  fazer  compara- 
ções, tais  como  a  de  qualificarmos  o  Recife 
de  Veneza ;  S.  Luis  do  Maranhão  de  —  Ate- 
nas, etc. ;  nós  não  tinhamos  ainda  dado  o 
nome  da  fabril  Manchester  a  Porto  Alegre! 
Tanto  melhor,  por  que  essas  coisas  quando 
não  sejam  perfeitamente  justas,  são  absolu- 
tamente ridículas.  .  . 

Pois  este  bairro  operário  é  grande  e 
sugestivo!  Já  do  alto  do  sítio  aristocrático 


—  115  — 

da  Independência  e  dos  jardins  da  Idráu- 
lica,  eu  tinha  voltado  para  ele  os  olhos  no- 
tando-lhe  a  quantidade  de  chaminés  que 
emergem  da  sua  larga  planicie,  desenrolan- 
do no  ar  consecutivos  rolos  de  fumo. 

Percorro  a  fábrica  toda;  atravesso  pá- 
teos,  entro  em  salões  sucessivos,  vejo  tecer, 
vejo  fiar,  vejo  tingir;  sinto  o  cheiro  da  lã 
bruta  e  da  lã  cardada;  subo  e  desço  escadas, 
ensurdecida  pelo  vozear  dos  maquinismos 
colossais  que  me  dá  a  impressão  de  me  ter 
feito  inchar  a  cabeça;  grito  para  fazer-me 
ouvida  em  uma  ou  outra  pergunta,  não  ouço 
as  respostas  que  me  dão,  acanho-me  de  o 
confessar  e  admiro  o  esforço  dos  industriais 
em  uma  montagem  que  me  parece  completa 
e  perfeita,  a  não  ser  que  já  existam  no  mun- 
do maquinismos  que  façam  as  mesmas  cou- 
sas em  absoluto  ou  mesmo  relativo  silêncio, 
e  saio,  trazendo  como  lembrança  da  minha 
visita,  um  lindo  ramo  de  flores  e  um  não 
menos  lindo  corte  de  vestido. 

Mas,  como  está  determinado  que  o  dia 
se  consagre  á  observação  das  indústrias  ma- 


—  116  — 

nufactureiras  da  capital  rio-grandense,  deste 
grande  estabelecimento  levam-me  os  meus 
amigos  a  um  outro  de  não  menor  importân- 
cia —  a  uma  Fábrica  de  Meias  em  que  me 
dizem  trabalhar,  se  não  me  falha  a  memo- 
ria —  seiscentos  operários.  Ha  entretanto 
muitas  máquinas  paradas  por  falta  de  agu- 
lhas, que  a  guerra  não  deixa  exportar  da 
Europa.  Reconheço  nestas  meias  rio-gran- 
denses  muitas  das  que  vejo  expostas  nas  nos- 
sas lojas,  como  vindas  do  outro  hemisfério... 
O  edifício  é  grande  e  de  caprichosa  monta- 
gem, percorro-o  todo,  declaro-me  admirada, 
recebo  flores,  e  quando  entro  no  automóvel 
vejo  amontoadas  no  banco  da  frente  várias 
caixas  de  mreias! 

—  Mas  é  um  passeio  lucrativo!  exclama 
uma  das  minhas  amigas,  ao  mesmo  tempo 
que  eu  pergunto: 

—  E  agora  para  onde  vamos? 

—  Agora  para  uma  fábrica  de  vidros, 
respondeu-me  o  amável  dr.  Montaury. 

O  trajecto    foi    curto.  Momentos  depois 
atravessávamos  a  área  do  novo  estabeleci- 


—  117  — 

mento  em  que,  como  nos  páteos  das  outras 
fábricas,  havia  empilhada  uma  enorme 
quantidade  de  lenha. 


Desde  que  cheguei  ao  Rio  Grande  do 
Sul  tenho  a  impressão  de  andar  viajando 
em  pleno  reino  mineral,  tão  insignificante 
me  parece,  relativamente,  a  vegetação  no 
harmónico  conjunto  das  suas  areias,  das 
suas  águas  e  das  suas  pedras.  Causa-me  por 
isso  certa  estranheza  vêr  tamanha  abundân- 
cia de  lenha  nas  fábricas  que  visito. 

De  que  matas  terão  vindo  essas  árvores 
esquartejadas,  amputadas  e  lascadas,  que  es- 
peram ao  vento  e  ao  sol  a  hora  suprema  da 
sua  ultima  transformação? 

Pergunto  e  respondem-me  que  elas  fo- 
ram trazidas  das  regiões  ubérrimas  do  Rio 
Grande  interior,  das  margens  baixas  dos 
rios  ou  dos  dorsos  das  serras  umbrosas. 

A  aridez  que  eu  noto  é  limiada  á  região 
das  cidades  principais,  onde  ha  pouquíssi- 
mas ruas  arborisadas  e  raros  parques  ver- 


118 


des,  tão  queridos  nas  capitais  populosas,  mes- 
mo naquelas  de  luz  pálida  e  calma,  como 
Londres. 

Eu  que  adoro  o  arvoredo  e  trago  na  mi- 
nha bagagem  um  livro  de  que  faço  propa- 
ganda activa,  porque  o  escrevi  certa  da  ne- 
cessidade cada  vez  mais  imperiosa  e  urgente 
do  plantio  da  árvore  no  Brasil,  não  posso 
deixar  de  lastimar  quando  a  vejo  mal  es- 
timada. .  .  Certamente  que  o  Brasil  é  uma 
terra  de  florestas,  mas  de  florestas  dizima- 
das, quando  entretanto  a  sua  glória  e  a  sua 
fortuna  estão  exactamente  dependentes  da 
árvore  cultivada! 

Essas  matas  serranas  de  onde  provém 
tanta  madeira,  serão  ao  menos  replantadas? 

A  esta  pergunta  ninguém  responde  de 
modo  claro  e  positivo.  Quer  isso  dizer  que 
não  são  replantadas;  que  não  ha  lei  que  obri- 
gue o  lenhador  a  substituir  a  árvore  adulta 
que  ele  abate  por  outra  árvore  pequenina 
da  mesma  ou  de  melhor  espécie,  que  perpe- 
tue na  pátria  o  melhor  tesouro  da  sua  natu- 
reza e  da  sua  previdência.  Assim  as  lindas 
regiões  montanhosas  ou  as  margens  férteis 


—  119  — 

dos  rios  necessitados  de  sombra,  de  onde  vem 
a  lenha  para  os  ventres  insaciáveis  dos  for- 
nos industriais  se  converterão  pouco  a  pou- 
co em  sítios  escalvados,  sem  poesia  nem  uti- 
lidade. 

Um  dos  meus  tios  avós,  filósofo  portu- 
guês aferrado  aos  livros,  sempre  e]ue  a  es- 
posa lhe  ia  pedir  dinheiro  para  compras  e 
contas,  abria  uma  gaveta,  sem  mesmo  in- 
terromper a  leitura  que  fazia,  remexia  os 
dedos  em  moedas  de  ouro  e  dava-as  sem 
as  contar,  com  o  único  desejo  de  que  o  dei- 
xassem em  paz.  Chegou  um  dia  porem,  em 
que  á  costumada  solicitação,  ele,  executando 
maquinalmente  o  mesmo  gesto  de  sempre  e 
não  encontrando  nada  dentro  da  gaveta,  res- 
pondeu tranquilamente — Acabou-se.  E  con- 
tinuou a  lêr. 

A  mulher,  nervosa,  inteligente,  e  conhe- 
cedora da  alta  competência  literária  do  ma- 
rido, não  perdeu  tempo  em  fazer  exclama- 
ções e  correu  a  inscrever  o  nome  de  Pedro 
Seixas  num  concurso  que  se  encerrava  nesse 
próprio  dia  para  lente  de  Literatura  não  sei 
em  que  escola  oficial  de  Lisboa.  Foi  o  bom 


—  120  — 

do  meu  tio  avisado  da  hora  em  que  deveria 
comparecer  ás  provas  públicas  desse  certa- 
men  de  que  tirou  o  primeiro  lugar  com  ad- 
mirável e  superior  brilhantismo.  Foi  pre- 
ciso que  a  ultima  libra  esterlina  tivesse  rola- 
do do  seu  bolso  para  o  abismo  do  incogno- 
scível para  que  o  seu  saber  fosse  útil  á  so- 
ciedade em  que  vivia. 

Esperemos  que  não  seja  igualmente  ne- 
cessário o  vêr  desaparecida  a  ultima  árvore 
das  nossas  terras  para  corrermos  então  a 
semea-las,  com  gesto  vivo  e  alma  esperan- 
çosa. .  . 


Vejo  fabricar  vidro.  Um  operário  de 
bigode  ruivo,  fisionomia  de  austríaco,  pre- 
senteia um  dos  meus  amigos  com  uma  ben- 
gala e  a  mim  com  uma  caneta  de  cerca  de 
cincoenta  centímetros  de  comprimento! 
Alem  disso  ainda  os  directores  me  presen- 
teiam com  os  seus  mais  vistosos  vasos  para 
flores. 

—  Será  preciso  vêr  mais  fábricas? 


121 


—  Sim!  Vamos  agora  a  uma  de  bon- 
bons,  que  derrama  doçura  por  todo  este 
Brasil,  e  depois  a  uma  de  perfumes  habi- 
litada a  rivalizar  com  a  do  próprio  Hou- 
bigant! 

E  assim  aconteceu.  Em  todas  a  mesma 
actividade,  as  mesmas  comodidades  e  boas 
instalações,  em  todas  muitos  operários,  ar 
de  riqueza  e  as  mesmas  flores  e  caixas  ata- 
das com  fitinhas  em  lembrança  da  nossa  vi- 
sita. Não  se  pôde  ser  mais  gentil,  mas  sinto- 
me  cançada.  Terei  febre?  Suponho  que  sim. 
Recolho-me  mais  cedo  esta  noite  e  ao  ador- 
mecer revejo  a  linda  figura  de  uma  rapa- 
riga trigueira,  de  tranças  negras,  pendidas 
á  moda  cigana,  e  que  na  fábrica  de  tecidos 
tomava  conta  do  seu  tear. 

A  séria  e  singular  expressão  dessa  ope- 
rária formosa  e  moça  impressiona  ainda  a 
minha  imaginação.  .  . 


XVI 


E'  manifesto  o  gosto  dos  estofadores  por- 
talegrenses  pelo  verde  burocrático. 

Em  muitas  das  salas  em  que  tenho  en- 
trado é  essa  a  côr  que  predomina  nos  acol- 
choados das  cadeiras  e  nos  reposteiros  das 
portas.  Estender-se  ha  até  a  essas  particulari- 
dades íntimas  de  interior  a  influência  posi- 
tivista do  Sr.  Dr.  Borges  de  Medeiros? 

Diz-se  que  o  verde  é  uma  côr  repousante, 
benéfica  á  vista  e  de  bôa  combinação  com 
outras  nuanças,  segundo  nos  ensina  a  natu- 
reza dos  jardins,  e,  se  nem  sempre  consegue 
em  sofás  e  banquinhos  de  pé  exprimir  a  mes- 
ma harmonia  sorridente  é  quasi  sempre  dis- 
creta, e  muitas  vezes  acomodada  a  severida- 
des  de  estilo. 

Chloris!  deusa  das  flores  e  consequente- 


—  123  — 

mente  dos  matizes,  que  importância  no  con- 
junto das  cousas  que  observo  pôde  ter  este 
traço  aparentemente  tão  insignificante?  Tu 
bem  o  sabes,  também  eu  adoro  a  maravi- 
lhosa côr  das  árvores  de  que  ando  aprego- 
ando o  plantio  por  montes  e  vales. 

Goethe,  ao  morrer,  pediu  —  luz,  mais 
luz!  —  eu  peço  —  sombra,  mais  sombra! 
—  sombra  benigna  que  proteja  a  nossa  terra 
querida  das  ardentias  do  sol  e  faça  entume- 
cerem-se  os  veios  de  água  cristalina  e  pura 
no  seio  das  nascentes  criadoras.  Sombra, 
mais  sombra! 


XVII 


Água  pura.  .  .  água  cristalina  onde  en- 
contra-la? 

Desde  que  cheguei  ao  Rio  Grande  do 
Sul  ouço  falar  em  tifo.  Por  isso,  para  a 
minha  sede  só  me  aconselham  Caxambu. 
Arruino  os  meus  hospedeiros  submetendo- 
me  a  tão  previdente  conselho,  mas  seria  le- 
var muito  longe  o  meu  abuso  se  também  me 
quizesse  banhar  em  águas  minerais! 

Contudo,  posto  que  prevenida  não  pude 
deixar  de  hesitar  na  hora  do  meu  primeiro 
banho  em  Porto  Alegre:  —  entro?  —  não 
entro?.  .  .  tal  a  côr  encardida  da  água  que 
enchia  a  grande  banheira  apesar  das  suas 
torneiras  terem  filtro. 

Aprendi  nesse  momento  de  vacilação, 
que  tanto  se  pôde  filosofar  á  beira  de  um 


—  12Õ  — 

túmulo  como  ao  lado  de  uma  tina  de  banho. 
O  aroma  do  imutável  cipreste  funeral  ou  o 
da  água  de  Colónia  que  refresca  o  ambiente 
de  uma  alcova  balnear  podem  do  mesmo 
modo  sugerir  indagações  mentais  e  perplexi- 
dades dignas  de  Hamletol 

Teriam  essas  águas  a  doce  virtude  que  os 
meus  hábitos  reclamam,  ou  outras  qualida- 
des contraproducentes?  Ser  incolor  e  ino- 
dora, ou  ser  côr  de  âmbar,  que  me  deveria 
importar  se  fossem  os  mesmos  os  seus  predi- 
cados? Qual  seria  a  razão  por  que  a  vontade 
toda  poderosa  do  homem  não  intervinha 
nessa  questão  de  tão  essencial  interesse  para 
a  vida  e  a  felicidade  do  povo,  procurando 
ou  outra  água  melhor  para  o  abastecimento 
da  cidade,  ou  melhorar  a  única  de  que  se 
pode  servir? 

Seria  esse  um  problema  insolúvel?  A 
sciencia  moderna  tem  desvendado  segredos 
mais  complexos,  mas  nenhum  certamente  de 
maior  interesse  do  que  este  de  que  depende 
a  higiene  e  a  saúde  dos  habitantes  de  uma 
cidade,  e  cidade  grande. 


XVIII 


Quem  me  oferecerá  mate  chimarrão? 

Até  agora  ainda  ninguém  se  lembrou 
disso.  Pois  eu  tinha  uma  certa  curiosidade 
por  me  vêr  numa  roda  gaúcha  em  que  se 
praticasse  essa  cousa  típica  e  de  que  tantas 
vezes  li  e  ouvi  descrições,  qual  a  de  tomar 
chimarrão  na  bomba  clássica  e  tradicional... 
Afinal  fica  a  gente  suspeitando  de  que  tu- 
do é  literatura.  .  . 

E'  provável  que  eu  não  gostasse  do  mate 
servido  dessa  maneira,  como  aprecio  o  chá 
preto  que  me  dão  aqui  em  chávenas  deli- 
cadas e  que  em  parte  nenhuma  do  mundo 
pôde  ser  melhor;  nem  mesmo  cm  Ceilão; 
se  é  que  em  Ceilão  não  tomam  por  acaso 
de  preferência  o  mate!  E'  provável  que  não 


—  127  — 

tomem,  porque  nós  não  sabemos  fazer  propa- 
ganda de  cousa  nenhuma,  nem  mesmo  a  do 
mate,  que  seria  fácil. 

Quando  pergunto  pelos  usos  e  costumes 
originais  do  Rio  Grande,  respondem-me  que 
eles  só  podem  ser  observados  hoje  em  dia  na 
campanha,  como  denominam  o  interior  e  o 
campo. 

Em  verdade,  as  capitais  são  todas  pare- 
cidas quanto  á  sua  vida  e  trato  na  sociedade. 
Quem  poderia  determinar  a  que  país  perten- 
cia o  lindo  salão  onde  ontem  passei  tão  be- 
las horas  e  que  pelo  seu  mobiliário  e  ador- 
nos ecléticos,  como  pela  maneira  por  que 
era  dirigido  tanto  podia  ser  do  Rio  como  de 
Paris? 


A  chuva  tamborilava  nos  vidros  das  ja- 
nelas veladas  por  cortinas  de  seda. 

Nas  doces  profundezas  de  uma  poltrona 
maiple,  entre  estantes  de  livros  e  jarrões  de 
rosas  cu  ouvia  o  som  de  um  piano  na  saU 


128 


próxima,  admiravelmente  dedilhado  por 
uma  formosa  morena  em  sucessivas  músi- 
cas de  Chopin..  . 

E  a  conversa  era  atraente,  cheia  das 
curiosidades  do  ocultismo  e  de  impressões 
de  literatura  exótica. 


XIX 


Nem  sempre  as  preferências  de  cada 
viajante,  variam  segundo  as  condições  do  lu- 
gar em  que  ele  esteja.  Ha  alguns  que  ao  vi- 
sitarem uma  cidade,  a  primeira  cousa  que 
nela  procuram  conhecer  é  o  cemitério;  ou- 
tros só  se  preocupam  com  os  museus;  para  a 
curiosidade  de  muitos  nada  ha  como  a  rua, 
em  que  toda  a  gente  passa  e  em  que  cada 
edifício  ou  mostruário  de  loja  é  uma  de- 
monstração do  sentimento  e  da  vida  própria 
da  localidade;  para  outros  não  ha  o  que 
tão  grandemente  lhes  possa  atrair  a  atenção 
como  os  teatros  ou  os  jardins,  as  escolas  ou 
os  mercados.  O  mercado  de  uma  cidade  é 
quasi  sempre  cousa  pitoresca  e  até  certo 
ponto  elucidativa  dos  gostos  e  dos  hábitos 
da  sua  população. 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  9 


—  130  — 

Quem  leu  —  "Le  Ventre  de  Paris"  — 
de  Emilio  Zola,  o  escritor  todo  poderoso 
do  romance,  em  que  a  natureza  morta  é  re- 
produzida com  pinceladas  que  só  encontram 
parentesco  nas  dos  quadros  de  maior  realce 
do  nosso  grande  pintor  Pedro  Alexandrino; 
quem  saboreou  essas  scenas  multicores  que 
palpitam  nas  páginas  do  livro  numa  ex- 
pressão flagrante  de  verdade,  não  pôde  dei- 
xar de  considerar  um  mercado  como  um  ele- 
mento indispensável  não  só  ao  estômago 
cada  dia  mais  exigente  do  homem,  como 
também  á  visão  cada  vez  m^ais  original  do 
artista.  .  .  Pois  qualquer  colorista  á  espa- 
nhola, encontraria  nos  kakís  que  esmaltam 
de  vermelho  o  Mercado  de  Porto  Alegre,  en- 
tre mirradas  bananas  e  outras  mais  ou  menos 
murchas  frutas  do  norte,  um  elemento  ad- 
mirável para  alegres  manchas  e  risonhos 
quadros  de  género. 

O  kakí,  ou  káki,  como  se  diz  aqui  acen- 
tuando a  primeira  sílaba,  é  a  fruta  da  esta- 
ção. Japonesa  de  origem,  cultivada  no  Bra- 
sil ha  poucos  anos,  ela  parece  que  em  parte 
alguma  se  poderá  dar  melhor  do  que  no  Rio 


131 


Grande,  a  julgar  pelos  magníficos  exempla- 
res que  tenho  visto  e  saboreado.  O  valor 
deste  fruto  é  sobretudo  decorativo,  é  ele  que 
põe  uma  nota  álacre  nas  barracas  dos  mer- 
cadores, agora  mal  sortidas  de  verduras  e  de 
frutos.  A  praça  é  asseada  e  está  construida 
na  parte  baixa  e  comercial  da  cidade.  Fal- 
ta-lhe,  como  faltam  em  todos  os  mercados 
brasileiros,  a  graça  da  vendedora,  a  alegria 
petulante  da  mulher  do  povo,  que  assusta  um 
pouco  as  senhoras  mas  que  é  sempre  um  ele- 
mento de  pitoresco  em  conjuntos  dessa  na- 
tureza. 


As  Colónias  do  Rio  Grande  do  Sul,  de 
que  toda  a  gente  fala  como  sendo  o  que  de 
mais  curioso  e  de  mais  sugestivo  ha  a  vêr  nes- 
te Estado,  despejam  no  comércio  da  cidade 
uma  grande  variedade  de  produtos,  e  bons 
produtos.  São  da  colónia  italiana  de  Alfre- 
do Chaves  os  excelentes  queijos  de  massa  bem 
ligada  e  macia  que  figuram  em  vários  tabo- 
leiros  do  mercado  e  dos  quais  um  rapazinho 


132 


lava  um  deles  com  uma  escova  áspera  sob 
a  água  corrente  de  uma  bica. 

Alem  dos  queijos,  de  cuja  fabricação 
os  italianos  sempre  gozaram  de  boa  fama 
em  todo  o  mundo,  figuram  também  na  pra- 
ça, vindos  da  mesma  próspera  Colónia, 
suculentos  presuntos  e  toda  a  espécie  de  sal- 
sicharia. 

As  colónias  nas  montanhas  são  os  celei- 
ros, as  hortas,  os  pomares,  e  tudo  mais  que 
pode  fornecer  o  alimento  para  a  população 
do  Estado.  Elas  são  fontes  de  fartura  de  que 
jorra  não  só  a  abundância  como  a  poesia 
de  um  encanto  próprio,  peculiar,  porque 
reproduz  cada  uma  delas,  no  campo  serrano 
brasileiro,  o  tipo  das  suas  respectivas  nacio- 
nalidades. Engastam-se  assim  na  terra  rio- 
grandense,  variando-a  nos  seus  aspectos  e 
sistemas  de  cultura,  pequeninos  trechos  que 
se  diriam  europeus.  São  pedacinhos  de  alma 
da  Itália,  da  Alemanha,  de  Portugal,  que, 
peia  fidelidade  ás  suas  tradições  e  ao  seu  sen- 
timento natural  continuam  na  terra  ame- 
ricana, verdadeiro  seio  de  Abrahão,  a  vida 
começada  no  outro  continente. 


—  133  — 

Dizem-me  todos  que  as  Colónias  são  a 
parte  mais  pitoresca  e  mais  variada  do  Sul; 
somente,  quando  falo  em  ir  vê-las,  objectam- 
me  logo  que  é  péssima  agora  a  ocasião  para 
faze-lo;  porque  nesta  quadra  eu  só  encon- 
traria nelas  casas  fechadas,  frio,  chuva  e 
lama. 

O  frio,  confesso,  não  me  assusta  nem 
mesm'o  desagrada.  A  provisão  que  eu  trouxe 
no  sangue  do  calor  do  Rio  faz-me  afron- 
tar com  bizarria  todos  os  rigores  deste  inver- 
no; mas  para  o  resto,  concordo  não  valer  a 
pena  qualquer  esforço. . . 


XX 


Decidi  esta  manhã  ir  sorpreender  o  pro- 
fessor Augusto  Luís  de  Freitas,  na  sua  aula 
da  Escola  de  Belas  Artes,  no  segundo  an- 
dar do  Conservatório  de  Música.  Encon- 
trei-o  rodeado  de  discípulos  a  circular  de 
cavalete  em  cavalete,  na  afanosa  e  simpática 
actividade  dos  mestres  esforçados. 

No  silêncio  atento  da  sala,  meninas  e  ra- 
pazes copiavam  o  gesso  clássico  do  Apolo 
e  das  Vénus  consagradas,  ainda  sem  forças 
para  arcarem  com  as  dificuldades  do  modelo 
vivo.  Mas  não  tardará  o  dia,  dizia-me  o  mes- 
tre com  um  raio  de  entusiasmo  a  tremeluzir- 
Ihe  nas  pupilas,  em  que  os  meus  alunos  co- 
mecem a  trabalhar  do  natural.  Possam  eles 
então  encontrar  sempre  bons  modelos,  o  que 
constitui  um  dos  grandes  escolhos  dos  pinto- 


135 


res  no  Brasil.  Ha  muito  pouco  quem  se  quei- 
ra sujeitar  aqui  á  profissão  de  pousar  nos 
atelieres  para  estudos  e  quadros.  Vencidas 
as  primeiras  dificuldades,  os  meus  alunos 
farão  milagres  porque  são  inteligentíssimos 
e  pertinazes.  E'  admirável  a  aplicação  da 
vontade  destes  moços  e  destas  moças. 

Tenho  em  todos  a  maior  esperança. 

Eu  não  esperava  ouvir  tanto.  Nem  su- 
puz  nunca  que  numa  cidade  em  que  faltam 
ainda  os  principais  elementos  propulsores  do 
gosto  artístico,  quasi  sempre  formado  pela 
observação  e  inspiração  de  obras  dos  Mes- 
tres, pudesse  haver  já  tamanho  ardor  no  es- 
tudo do  desenho.  Um  ambiente  de  arte  não 
se  forma  de  um  dia  para  o  outro;  assim, 
todo  aquele  esforço  que  eu  estava  presen- 
ciando era  o  desabrochar  de  um  ideal  lu- 
minoso, mas  que  tão  cedo  não  poderia  ser 
completamente  realizado,  a  não  ser.  .  . 

" — -  A  não  ser,  disse  o  mestre  como  se 
tivesse  lido  em  meu  pensamento,  que  o  Rio 
Grande  possa  manter  os  melhores  destes  dis- 
cípulos na  Europa  por  prazo  indeterminado, 
organizando  um  grupo  de  artistas  que  venha 


—  136  — 

depois  para  a  sua  terra  transmitir  a  outros 
o  que  tenha  aprendido.  Uma  andorinha  só 
não   faz  verão." 

Criatura  que  volte  fascinada  pelos  es- 
plendores do  velho  Mundo,  cada  vez  mais 
velho  e  por  isso  mesmo  cada  vez  mais  belo, 
e  não  encontre  na  pátria  quem  tenha  vibra- 
do ás  mesmas  impressões  e  no  irradiar  os 
seus  estudos  e  pensamentos  não  veja  quem 
o  secunde,  apoie  e  acompanhe,  sentir-se  ha 
como  no  deserto  e  perderá  o  ânimo  para  o 
trabalho  criador.  .  . 

E  criar  uma  arte  regional,  é  quasi  um 
dever  neste  Estado,  um  dos  mais  típicos 
da  União.  Ele  deve  por  isso  acoroçoar  os  seus 
artistas,  favorece-los,  acenar-lhes  com  pré- 
mios compensadores  para  que,  nas  suas  telas 
ou  nas  suas  estátuas  como  nas  páginas  dos 
seus  livros,  resplandeçam  todas  as  qualida- 
des físicas  dos  seus  filhos  e  toda  a  graça  pi- 
toresca  dos   seus   costumes... 


XXI 


Ha  dois  lugares  que  ninguém  visita  sem 
sentir  o  coração  coberto  por  uma  grande 
sombra:  o  Hospicio  dos  loucos  e  a  Cor- 
recção. Casas  de  alucinados,  elas  inspiram 
uma  piedade  mesclada  de  receio.  Ir-se  ha  en- 
trar em  uma  cela  de  homem  ou  numa  jaula 
de  fera?  A  fera  ao  menos  é  um  perigo  que 
não  pôde  ser  encarado  senão  de  um  modo; 
mas  os  outros.  .  .  os  outros!  Ah,  os  infelizes, 
comi  que  amargura  os  vê  quem  considera  o 
espírito  e  a  liberdade  como  as  mais  pere- 
grinas e  legítimas  glórias  da  humanidade! 
No  manicómio,  como  no  cárcere  tudo  é  do- 
ença, tudo  é  desgraça.  Essa  persuasão,  que  a 
sciencia  moderna  divulga  e  o  meu  instinto 
aceita  como  a  única  verdadeira,  faz-nos  doer 


—  138  — 

ainda  mais  na  consciência  a  curiosidade  com 
que  procuramos  olhar  de  relance  para  a  mão 
que  matou,  como  se  esperássemos  vêr  nela 
ainda  um  pouco  do  sangue  que  fez  correr.  .  . 
Depois,  fica-nos  ainda  a  pungir  na  memó- 
ria a  idéa  de  que  o  criminoso  tenha  perce- 
bido esse  movim,ento  fugitivo,  mas  terrivel- 
mente evocador. . . 

E'  sempre  doloroso  visitar  prisões  a  quem 
não  tenha  o  dom  suavíssimo  de  saber  trans- 
mitir em  palavras  que  dulcifiquem  ou  que 
esclareçam,  um  pouco  da  piedade  luminosa 
com  que  o  sol  cá  fora  espalha  por  todos  ir- 
mãmente o  seu  manto  de  luz. 

Ser  santa!  se  eu  o  fosse  como  as  dos  sé- 
culos da  Fé  sem  jaca,  diamantina  e  pura, 
não  deixaria  nunca  de  percorrer  as  lôbregas 
galerias  onde  os  criminosos  se  aglomeram, 
para  com  a  maciez  dos  meus  dedos,  a  mei- 
guice da  minha  vóz,  o  resplendor  da  minha 
auréola  e  dos  meus  olhos  tristes,  transformar- 
Ihes  os  rancores  em  esperanças,  as  idéas  si- 
nistras em  pensamentos  pacíficos  e  cria- 
dores. E  isso  tudo  eu  faria  por  considerar 


—  139  — 

que  não  ha  na  terra  maiores  desgraçados  do 
que  os  criminosos.  . . 


Assim  eu  tinha  dito  aos  meus  amigos 
quando  os  vi  mandar  abrir  deante  de  mim 
as  portas  da  Correcção  de  Porto  Alegre.  Já 
que  eu  queria  vêr  tudo  era  indispensável 
que  visse  também  aquilo. 


Entrei.  Num  páteo  empedrado  vi  sol- 
dados e  homens  vestidos  de  pijamas  ás  ris- 
cas de  côr  vistosa.  Contenho  o  meu  estre- 
mecimento deante  daquele  uniforme  e  dei- 
xo-me  conduzir  ao  escritório  do  director 
do  estabelecimento:  Sr.  Coronel  Frederico 
Ortiz.  Em  poucos  minutos  esse  cavalheiro, 
de  fino  trato,  faz-me  compreender  que  não 
estou  em  frente  de  um  carcereiro  á  maneira 
medieval,  e  como  ha  tantos  ainda,  mesmo 
nos  países  mais  civilizados,  mas  deante  de 
um  homem  de  teorias  modernas,  idéas  avan- 
çadas,  e  sentimento  humanitário.    Respiro. 


140 


Uma  das  minhas  últimas  leituras  antes 
da  viagem  tinha  sido  o  De  profundis  de  Os- 
car Wilde,  livro  em  que  uma  lôbrega  e 
imunda  moradia  de  sentenciados  de  Lon- 
dres é  descrita  pelo  seu  antigo  habitante  com 
mais  fel  do  que  tinta.  Embora  o  espírito  mo- 
derno tenha  querido  modificar  esses  antros 
de  tédio  inútil  em  fontes  de  trabalho  provei- 
toso e  rehabilitador,  o  sentimento  do  livro 
inglês  fazia-me  crer  que  essa  remodelação, 
esse  saneamento  moral,  ainda  está  bem  lon- 
ge de  ser  exercido  em  todo  o  mundo,  pois 
se  no  tempo  de  Oscar  Wilde,  que  a  bem  di- 
zer foi  ontem,  ainda  havia  na  opulenta  ca- 
pital da  justiceira  Inglaterra  uma  prisão 
assim  tão  infecta,  que  serão  ainda  hoje 
muitas  outras  semeadas  em  países  pobres 
e lugares  ignorados? 

Felizmente,  ao  percorrer  esta  peniten 
ciaria  de  Porto  Alegre,  observo  que  ela  pa- 
rece mais  uma  fábrica  do  que  uma  cadeia. 

Os  ferros  que  rangem  aqui  são  os  das 
máquinas  e  não  os  das  algemas.  Ha  por 
todo  o  edifício  grande  quantidade  de  ofi- 
cinas, e  também,  valha  a  verdade,  grande 


141 


quantidade  de  presos.  O  habito  que  teem 
geralmente  no  sul,  de  trazerem  uma  faca 
constantemente  comsigo,  na  cinta  ou  na  ca- 
va do  colete,  contribuirá  um  pouco  para 
isso.  Um  instante  de  cólera  ou  de  desvario 
converte  ás  vezes  um  homem  bom  mas  im- 
pulsivo em  assassino,  se  ele  encontra  facili- 
dade de  levar  a  sua  fúria  até  ao  extremo.  A 
alucinação  desses  precipitados  é  menos  mal- 
dosa do  que  infeliz.  Por  que  não  hão  de  as 
mães  rio-grandenses  empreender  a  campa- 
nha de  desacostumar  os  seus  filhos  de  um 
habito  cujas  vantagens  não  estão  provadas 
e  cujo  perigo  é  sempre  tão  vivo  e  amea- 
çador? 

O  número  de  mulheres  encarceradas  na 
Correcção  de  Porto  Alegre  é  relativamente 
pequeno,  só  dezassete.  Embora  mais  igno- 
ra.ites  do  que  os  homens,  elas  são  menos 
impetuosas,  é  esse  dom  da  reflexão  que  as 
salva,  o  que  não  impede  que  as  que  por 
tara  ou  por  vício  cheguem  a  ser  criminosas, 
o  sejam  a  valer.  Entre  os  presos,  alguns 
foram  iniciados  na  senda  do  crime  pela  em- 
briaguez sanguinária  da  revolução  de  93. 


—  142  — 

O  mal  das  guerras  não  acaba  com  elas, 
projecta  a  sua  sombra  para  deante.  Com 
que  vôz  será  preciso  persuadir  o  povo  e 
os  governantes  de  que  as  revoluções  cruen- 
tas são  escolas  de  barbaridades  e  de  selvaja- 
rias, que  só  geram  o  mal? 

Passo  por  um  preso  com  o  qual  o  meu 
olhar  se  cruza  rapidamente.  Nesse  relancear 
tenho  a  impressão  de  ter  olhado  para  uma 
pessoa  inteligente.  Confirmam  a  minha  sus- 
peita dizendo-me  que  esse  indivíduo  era 
um  advogado,  ou  engenheiro  de  prestígio 
no  momento  de  ser  preso.  .  . 

De  mim  para  mim,  no  recesso  da  minha 
consciência,  indago  se  o  condenado  proces- 
so da  máscara  não  seria  mais  piedoso  do  que 
aviltante,  em  casos  como  este  em  que  mo- 
mentaneamente nos  encontramos  o  senten- 
ciado e  eu. 

Um  mascarado  é  sempre  um  incógnito 
e  isso  vale  mais  do  que  fazer  lembrar  na 
face  nua  o  estigma  que  a  ensombra  ou  a  eno- 
doa. .  . 


143 


Informam-me  em  uma  das  oficinas  da 
prisão  que  já  ali  tinham  feito  um  aeropla- 
no, que  um  inglês  levou  para  a  Europa  e 
que  deve  ter  figurado  num  dos  raids  da 
guerra. 

Não  acham  vocês  que  isso  daria  um  ad- 
mirável assunto  psicológico  para  um  ro- 
mancista de  pulso? 

Imagine-se  a  febre,  o  anseio,  o  tremor 
de  tantas  mãos  cativas,  nessa  fabricação  de 
asas  potentes,  destinadas  a  cindir  o  espaço 
em  voos  livres!.  .  . 

Entre  os  prisioneiros  ha  dois  irmãos 
negros,  quasi  crianças,  que  ainda  em  meni- 
nos assassinaram  o  pai  adormecido.  A  ter- 
rivel  tragédia,  que  me  arrepia  a  alma  e  a 
pele,  clama  pela  necessidade  cada  vez  mais 
urgente  das  Escolas  para  pequenos  dege- 
nerados e  delinquentes.  Os  senhores  crimi- 
nalistas já  teriam  dito  a  ultima  palavra  nes- 
se sentido?  Ignoro-o,  mas  desconfio  que 
não.  O  problema  terá  certas  complexida- 
des mas  não  pode  ser  insolúvel  e  é  sobretu- 
do de  absoluta  urgência.  Por  serem  ado- 
lescentes   estes    dois    facínoras    cumprirão 


—  144  — 

sentença  até  que  se  extinga  o  prazo  da  sua 
minoridade,  como  determina  a  lei.  Sairão 
assim  da  cadeia  para  a  sociedade  dos  homens 
livres  em  plena  força  da  vida  e  exuberân- 
cia da  mocidade,  mas  sairão  sabendo,  o  quê? 
Amando,  o  quê?  Respeitando,  quem? 


A  fazer  girar  entre  os  dedos  uma  fa- 
quinha de  osso  lavrada  pelos  presos,  conta- 
nos  o  Snr.  Director  a  curiosa  e  comovedora 
lenda  da  Rita  Pires. 

Senhora  de  fartos  haveres  e  de  rígidas 
idéas,  firme  nos  seus  princípios  de  intrans 
ígência  e  de  severidade  fez  Rita  Pires  doa- 
ção á  sua  cidade  de  Porto  Alegre  de  um 
grande  e  magnifico  terreno  com  a  condição 
de  que  nele  fosse  construída  a  cadeia.  Para 
dormir  seus  sonos  socegados  queria  saber 
em  baixo  de  ferro  todos  os  ladrões  da  re- 
dondeza e  algemados  todos  os  malfeitores. 

Ora  aconteceu  esta  coisa  espantosa:  con- 
cluído o  edifício  de  grossas  paredes  e  se- 
guras portas,  a  primeira  pessoa  que  a  Jus- 


145 


tiça  se  viu  forçada  a  encarcerar  lá  dentro 
foi,  —  ó  tristeza  dos  acasos  da  sorte!  — ■ 
o  filho  amado  da  própria  doadora. 

A'  violência  daquele  choque  terrivel  e 
inesperado  a  pobre  mulher  sucumbiu.  Es- 
talou-lhe  o  coração,  morreu  de  tristeza. 

Mas  desde  então,  de  longe  em  longe  ha 
quem  afirme  te-ia  visto  a  horas  caladas  da 
noite  a  caminhar  lavada  em  lágrimas  por 
entre  os  muros  da  Correcção. 

Com  um  chalinho  vermelho  sobre  os  om- 
bros, a  cabeça  núa  a  reluzir  na  prata  dos 
cabelos,  um  vestido  caseiro  a  cobrir-lhe  as 
formas  magras,  ehi  esgueira-se  dos  corre- 
dores para  os  páteos,  passando  rente  ás  sen- 
tinelas que  estremecem  de  pavor,  ou  pene- 
tra nos  cárceres  mais  resguardados,  quedan- 
do-se  a  contemplar  com  infinita  mágua  os 
prisioneiros  moços.  .  . 

Uma  vez  mesmo,  á  clara  luz  do  sol  um 
oficial  novo  no  serviço  da  Correcção  e  que 
não  conhecia  ainda  a  história  da  Rita  Pires, 
mandou  um  guarda  saber  o  que  desejava 
ali  uma  velhota  que  ele  via  da  janela,  no 
ângulo  de  uma  área  interna.  O  guarda  foi 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  10 


146 


imediatamente  e  voltou  sem  ter  visto  nem 
os  vestígios  de  mulher  alguma,  ao  que  o 
oficial  retrucou  que  isso  era  impossível, 
porque  ele  a  vira  no  mesmo  instante  em  que 
lhe  dera  a  ordem;  e  por  sinal  que  era  uma 
velhota  em  cahelo  e  com  um  chalinho  ver- 
melho sobre  os  ombros  magros.  .  . 

O  guarda  desmaiou. 

A  alma  triste  da  Rita  Pires  não  se  des- 
prende da  grande  mágua  que  sofreu  nesta 
vida  transitória,  e  gira  em  torno  a  ela  na 
eternidade  como  uma  louca  falena  em  tor- 
no a  uma  luz  inextinguível.  .  . 


XXII 


Eram  oito  horas  da  manhã  quando  saí- 
mos de  casa  picados  por  um  friozinho  de 
apetite.  Depois  de  sacudir-nos  sobre  as  pe- 
dras das  ruas,  o  nosso  automóvel  deslizou 
por  uma  longa  e  macia  estrada  para  os  la- 
dos de  Viamão.  A  origem  deste  nome  bem- 
soante  formado  por  três  palavras,  é  atri- 
buída a  alguém  que,  ao  descrever  um  ponto 
em  que  nas  visinhancas  de  Porto  Alegre 
descortinara  a  confluência  de  cinco  rios, 
como  cinco  dedos  abertos  de  que  a  mão  era 
representada  pela  ampla  baía  do  Guaíba, 
disse  —  Vi  a  mão.  Pois  infelizmente,  eu 
não  a  vi.  Parece  que  esse  arrabalde  tradicio- 
nal fica  muito  afastado  do  centro,  o  que  não 
se  dá  com  o  Instituto  Agronómico  a  cuja 


—  148  — 

porta  fomos  bater.  No  género  não  sei  se 
haverá  algum  mais  bem  instalado  no  Bra- 
sil, mas  já  será  motivo  de  felicitações  ao 
país  se  houver  outros  semelhantes  em  to- 
dos os  nossos  Estados  principais...  Gen- 
tilíssimamente  recebidos  pelos  directores 
das  respectivas  secções,  percorremos  todo  o 
grande  edifício,  assistimos  a  estudos  e  in- 
teressantes experiências  nos  salões  de  bio- 
logia, química,  física  e  veterinária  e  passeá- 
mos depois  por  jardins  e  pomares  em  que 
as  larangeiras  vergavam  ao  peso  da  fruta 
madura.  Todas  as  outras  árvores  tiritavam. 
Um  dos  directores  do  estabelecimento, 
que  nos  acompanha  através  das  alamedas, 
relata-nos  que  dentro  de  poucos  meses  o  In- 
stituto começará  a  fornecer  em  larga  abun- 
dância á  cidade  de  Porto  Alegre,  leite  de 
vacas  sadias,  continuamente  inspeccionadas; 
leite  puro,  natural,  pastorizado  ou  esteri- 
lizado, conforme  a  necessidade  de  cada  con- 
sumidor. Será  um  novo  elemento  de  saúde 
para  o  povo  e  de  tranquilidade  para  as 
mães  que  não  podem  criar  seus  filhos.  Em- 


—  149  — 

quanto  conversamos  os  meus  amigos  assal- 
tam uma  larangeira,  que: 

.  .  .   esposa  d(j  Sol  que  a  adora 
Com   que  cuidados  divinos 
Curva  ela  os  ramos  agora! 
Entre  as  folhas  abrigados 
Seus  filhos,  frutos  dourados, 
Parecem  sois  pequeninos. 

como  diz  o  poeta  da  ^'Arvore". 

E  os  meus  amigos  colhem  astros  doiro  ás 
mancheias,  com  irreverência...  autori- 
zada! 

Parece  que  o  comércio  das  laranjas  com 
as  repúblicas  do  Uruguai  e  da  Argentina, 
tem  aqui  certa  importância.  De  modo  que 
os  meus  bons  e  honestos  companheiros  não 
estão  só  a  cometer  o  pecado  da  gula,  estão 
também  a  lesar  o  Estado! 


Hoje     ao    almoço    comi    perdizes.    Ha 
muitas  c  deliciosas  no  Rio  Grande.  Como 


150 


as  perdizes  são  aves  de  campo  que  se  ani- 
nham no  chão,  tais  quais  as  galinhas,  e  fá- 
ceis de  caçar,  e  como  não  faltem  campos 
para  estas  bandas,  nós  saboreamo-las  fre- 
quentemente ás  refeições. 

Eu  tenho  muita  pena  delas,  coitadinhas, 
mas  como  não  fui  eu  quem  as  matou... 
Não;  que  ao  menos  esta  culpa  não  pese  na 
balança  com  que  na  hora  definitiva  eu  pos- 
sa ser  julgada.  Matar?  Nunca!  Mas  pre- 
valecer-me  da  maldade  dos  outros.  .  .  por- 
que não?  E  entretanto,  com  franqueza,  eu 
preferiria,  como  os  nossos  ancestrais  em 
Darwin,  encontrar  sempre  para  a  minha 
fome  de  bôa  saúde,  e  de  frugívora:  —  uvas, 
pêssegos,  figos,  abacaxis  e  mangas.  .  . 


Se  me  lembrei  de  ti,  perguntas-me.  Pois 
nunca  tão  vivamente  como  ontem,  quando 
á  hora  em  que  o  sol  se  faz  de  veludo,  entrei 
no  grande  Club  Lawn  Tennis  de  Porto 
Alegre. 

Magnificamente  situado,  este  club  tem 


151 


os  seus  cortes,  a  q\ie  aqui  chamam  canchas, 
vastos,  simétricos,  cercados  por  bonitas  pa- 
redes de  bambus.  Do  alto  de  uma  varanda 
enredada  de  trepadeiras  e  que  domina  todo 
o  recinto  eu  via-te  reproduzida  em  cada 
cancha,  como  por  uma  combinação  de  su- 
cessivos espelhos,  nas  lindas  meninas  que  de 
raquette  em  punho  aparavam  ou  sacavam 
com  destreza  e  graça  as  bolas  do  jogo.  Tu 
que  és  doidinha  por  esta  espécie  de  sport, 
que  tão  bem  cultivas,  com  que  vigor  per- 
guntarias aqui  o  teu  —  Play?  —  no  afago 
deste  clima  propício  e  pela  colaboração  das 
tuas  gentis  parceiras,  ás  quais  caberia,  natu- 
ralmente, o  vitorioso  grito  de  —  Ganhe!  — 
Porque,  minha  amiguinha,  se  os  meus  olhos 
não  se  enganaram,  estas  pequenas  d'aqui 
ainda  jogam  melhor  do  que  tu.  Estou  a  ver- 
te responder-me: 

—  Será  possível?! 


xxiri 


Sentemo-nos  para  descansar  num  dos 
bancos  da  Praça  da  Harmonia,  sítio  um 
tanto  abandonado,  suponho  mesmo  que  mal 
freqiàentado,  mas  onde  vejo  as  mais  belas 
árvores  da  cidade.  Estas  sim,  parece  terem 
alguma  cousa  para  dizer,  segredos  antigos 
que  as  espiritualizam  e  fazem  vontade  á 
gente  de  os  adivinhar.  Estão  plantadas  á 
beira  rio,  uma  delas  deixa  pender  sobre 
as  águas  um  dos  braços  fatigados.  Em  noi- 
tes de  lua  cheia  este  cantinho  deve  fazer 
lembrar  a  Judia  de  Tomaz  Ribeiro.  Nem 
a  barca  lhe  falta,  porque  a  bem  poucos  me- 
tros da  margem  vejo  deslizar  uma,  suave- 
mente. Aqui  o  poeta  é  o  sombrio  Ingazeiro 
que  se  debruça  do  alto  sobre  a  corrente  páli- 


—  153  —     , 

da  do  rio.  Mas  do  seu  rimário  é  que  não  ha 
tradução. . . 

Olhando  para  as  frondes  deste  arvore- 
do reparo  que,  desde  que  estou  no  Sul,  não 
tenho  ouvido  cantar  os  passarinhos.  Dizem- 
me  que  para  isso  seria  preciso  ir  ao  campo. 

Não  é  portanto  o  rumor  da  cidade  que 
os  deva  espantar,  pois  que  no  Rio,  a  pequena 
distancia  das  ruas  barulhentas,  visto  que  a 
nossa  capital  é  positivamente  a  capital  do 
ruído,  eu  tenho  o  meu  jardim  cheio  de  pas- 
sarada.  Será  que  o  frio  aqui  os  afugente.? 
Não  creio,  porque  se  o  frio  é  rude  em  um 
dia  é  logo  no  outro  compensado  pelo  aga- 
salho de  um  sol  quente. 

E  não  vemos  em  invernos  muito  mais 
rigorosos,  na  Europa,  os  pardais  petiscarem 
na  própria  neve? 

Seja  porém  qual  fòr  o  motivo  desta  au- 
sência dos  passarinhos,  só  agora  reparo,  pela 
falta  que  deles  sinto,  quanto  os  meus  ouvi- 
dos já  se  habituaram  á  sua  voz. 


XXIV 


E'  noite.  A  Federação  Académica  dá 
uma  linda  festa  literária  no  salão  principal 
da  Faculdade  de  Direito. 

Não  ha  um  lugar  vazio;  sente-se  no  ar  o 
anseio  das  grandes  espectativas:  vão  falar 
poetas,  vae  orar  um  moço  de  grande  ta- 
lento e  fina  cultura;  abrem-se  os  ouvidos 
para  o  som  delicioso  das  palavras  de  emo- 
ção e  de  arte,  fulgura  nos  olhos  o  lampejo 
da  curiosidade.  .  . 

A'  mesa,  guarnecida  de  flores  raras,  o 
presidente  da  Federação  abre  a  solenidade 
literária  convidando  sucessivamente  a  falar 
os  senhores  Rubens  Barcelos,  Valdemar 
Vasconcelos  e  Jorge  Olinto,  o  primieiro  pro- 
sador, os  dois  últimos  poetas. 

Vibram  ainda  no  ar,  como  sinos  de  oiro 


—  155  — 

em  manhã  clara,  os  finos  conceitos  literários 
de  um  e  as  encantadoras  rimas  dos  outros,  e 
já  vejo  voltados  para  o  meu  lado  olhares  in- 
terrogativos. 

Não  será  precisa  grande  perspicácia 
para  perceber  o  que  se  espera.  Tremo,  sor- 
rio, esquivo-me,  e  pergunto  do  íntimo  dal- 
ma  ao  grande  Deus  clemente  por  que  não 
me  teria  Ele  concedido  a  sublime  graça,  o 
dom,  sobre  todos  os  dons  maravilhoso,  da 
oratória  e  da  improvisação.  Ha  muitíssima 
gente  que  não  compreende  que  um  escritor 
não  seja  também  um  orador,  pelo  menos 
sempre  que  isso  lhe  seja  preciso,  assim  como 
não  se  convence  de  que  um  poeta  não  saiba 
escrever  em  prosa  nem  que  um  prosador  se- 
ja incapaz  de  escrever  em  verso.  Entretanto 
assim  como  ha  escritores  que  jamais  vence- 
ram a  sua  timidez  rompendo  a  improvisar 
alto  e  bom  som  em  público,  ha  oradores  a 
quem  é  impossivel  escrever  uma  página  no 
isolamento  e  no  silêncio  de  um  gabinete  de 
trabalho,  porque  só  ao  influxo  da  multidão 
sentem  o  ímpeto  criador  das  imagens  e  das 
ideias   borbotar-lhes   na    imaginação.   Já   li 


—  156  — 

não  sei  onde,  que  só  é  poeta  quem  nasceu  po- 
eta, mas  pôde  ser  orador  todo  aquele  que  o 
desejar  ser,  desde  que  tenha  talento.  Basta 
para  isso  aprender  a  dominar  os  nervos, 
educando  a  vontade  e  criando  o  habito  de 
fazer  discursos,  quer  aos  seixos  dos  rios 
quer  aos  amigos  da  casa,  vitimas  mais  infe- 
lizes. .  . 

Sofrendo  pela  minha  falta  de  audácia, 
que  me  faz  não  dizer  alto  o  que  penso  bai- 
xinho, lembro-me  da  minha  boa  colega  pa- 
risiense, a  cronista  Séverine,  única  mulher 
que  até  hoje  ouvi  falar  de  improviso  com 
verdadeira  eloquência  e  superioridade.  Os 
seus  discursos  são  verdadeiras  ondas  har- 
moniosas em  que  as  ideias  passam  boiando 
á  tona,  como  flores  vivas  de  colorido  inten- 
so. Toda  coração,  ela  é  bem  mulher  no  sen- 
timento com  que  trespassa  as  suas  orações 
latejantes  e  luminosas. 

Perguntei-lhe  uma  vez  como  tinha  ela 
descoberto  em  si  esse  dom  peregrino  e  tão 
raramente  apreciado  nas  mulheres,  tanto 
em  França  como  no  resto  do  mundo. 

Já  tinha  a  cabeça  completamente  bran- 


157 


ca,  respondeu-me,  o  que  nela  sucedeu  aos 
trinta  e  seis  anos,  por  efeito  de  uma  forte 
emoção,  quando  uma  vez,  acompanhando 
um  morto  ao  cemitério  sentiu  á  beira  do 
túmulo  todas  as  suas  lágrimas  se  cristaliza- 
rem em  palavras,  que  lhe  saíam  irreprimi- 
velmente  da  garganta.  Ignorara  até  então 
que  possuía  essa  faculdade  poderosa  e  bri- 
lhante e  que  hoje  os  seus  amigos  e  os  seus  ad- 
miradores não  deixam  permanecer  em  paz. 
Sempre  que  ela,  a  bondosa  Séverine,  apa- 
rece num  banquete,  ou  outra  festa  qualquer, 
ha  vozes  que  reclamam  e  mãos  que  se  agi- 
tam pedindo-lhe  que  fale. 

E  ela  fala  sempre,  com  o  mesmo  vigor. 
a  mesma  clareza,  a  mesma  bondade,  a  mes- 
ma perfeição.  .  . 

E  aí  está  um  caso  em  que  o  orador  não  se 
fez  a  si  próprio,  pelo  domínio  da  vontade  e 
de  uma  cultura  tenaz  e  bem  orientada,  mas 
que  o  era  de  nascença,  embora  o  tivesse  igno- 
rado até  á  idade  madura. 

Por  desventura,  as  repetidas  emoções 
por  que  tenho  passado  na  vida,  não  lograram 
produzir  em  mim  tão  lindo  milagre.  .  . 


XXV 


Uma  verdadeira  colmeia  borborejante 
de  actividade  útil,  onde  mil  e  oitocentas  alu- 
nas estudam  admiravelmente,  guiadas  por 
um  professorado  de  notável  competência,  a 
Escola  Complementar  de  Porto  Alegre!  A 
casa,  muito  grande,  parecia-me  pequena 
para  conter  o  imenso  número  de  meninas 
e  de  moças  que  eu  vi  hoje  espalhadas  pelas 
suas  galerias,  salas  e  corredores. 

Alguém  que  me  acompanha,  e  tem  des- 
te notável  estabelecimento  de  ensino  um 
conhecimento  profundo,  assevera-me  que 
nele  o  estudo  não  representa,  como  em  mui- 
tas escolas  do  país,  uma  simples  formalida- 
de, aparência  ilusória  de  instrução  sem  base 
séria,  mas  que  nele  se  aprende  de  verdade, 
e  se  ensina  com  entusiasmo.  Esta  escola  é 


—  159  — 

o  verdadeiro  viveiro  de  todas  as  outras  do 
interior  do  Estado,  a  mãe  benigna  e  fecun- 
da que  espalha  por  todas  as  povoações  do- 
ces mestras  esclarecedoras  e  amáveis. 

Como  o  dia  era  de  festa,  não  sei  a  que 
jardins  de  espantosa  uberdade  tinham  ido 
buscar  as  rosas  e  as  violetas  que  alcatifa- 
vam o  chão,  enchiam  as  jarras,  transborda- 
vam de  todos  os  vãos,  como  se  a  inesgotável 
flora  as  fizesse  brotar  até  do  estuque  das  pa- 
redes, e  das  frinchas  do  soalho. 

Ao  fulgor  da  mocidade  casava-se  a  toa- 
da das  músicas.  Noto,  com  prazer  muito  es- 
pecial, que  no  Rio  Grande  do  Sul  gostam 
de  cantar.  Sempre  que  ha  um  pretexto  para 
um  hino,  ninguém  pede  licença  á  casmurrice 
para  o  fazer  ouvir. 

No  salão  principal  surpreende-me  a 
maneira  eloquente  e  torrentosa  por  que  um 
poeta  baiano  e  lente  de  pedagogia,  Snr. 
Henrique  de  Casaes,  estuda  e  critica  a  obra 
de  um  escritor  patrício  ali  presente.  Mais 
uma  vez  vejo  manifestado  assim  esse  fasci- 
nante dom  da  palavra,  tão  característico 
do  torrão  nortista  de  que  o  orador  é  filho, 


160 


Calado  o  poeta,  rompem  de  novo  os  cantos. 
E'  toda  a  alma  da  mocidade  rio-grandense 
que  vibra  alegremente,  desassombradamen- 
te, nessas  notas  de  júbilo  e  de  patriotismo 
de  que  mal  posso  dar  uma  mipressão  nesta 
página  banal.  .  . 

Banalidade.  .  que  importa!  Este  não  é 
um  livro  de  literatura;  é,  a  bem  dizer,  um 
diário  de  impressões.  A  sinceridade  é  a  sua 
virtude;  o  estilo  a  sua  menor  preocupação. 
Quem  o  lèr  saberá  que  impressão  causaram 
em  um  forasteiro  no  ano  da  graça  de  1918, 
num  dos  invernos  mais  ásperos  do  Sul,  as 
populações  e  as  terras  do  Rio  Grande,  onde, 
ele  mesmo,  se  voltar  um  dia,  verá  talvez 
tudo  já  de  outro  modo,  e  com  outro  espí- 
rito, tão  vária  é  a  vida  e  tão  fulgurantes  os 
contrastes  que  o  Tempo  imprime  ás  coisas 
em  cada  uma  das  suas  passadas  vertigi- 
nosas. .  . 


XXVI 


Ouço  falar  do  —  Roseiral  de  Servita,  — 
e  tenho  a  sensação  de  que  aludem  a  uma  pá- 
gina bíblica.  Mas  não;  aqui  a  Serva  de  Deus 
é  uma  senhora  rica,  robusta,  e  que  sabe  fazer 
brotar  da  terra,  não  os  verdes  pomares  de 
figos  e  de  vinhas  de  que  nos  fala  o  Velho 
Testamento,  mas  principalmente  as  mais 
nervosas,  modernas  e  perturbadoras  flores 
deste  nosso  século  fantasista  e  sábio.  Pois 
vamos  nós  lá  a  vêr  esse  decantado  roseiral. 
Para  que  lado  fica? 

No  vale  de  Terezópolis,  a  que  melhor 
deveria  caber  o  nome  de  —  Vale  da  Graça, 
—  tão  gentil  e  suave  é  a  sua  curva  e  tão  plá- 
cida e  risonha  a  sua  vegetação.  .  . 

E'  da  minha  parte  atrevimento,  agora 
que  sei  a  quem  se  aplica  o  nome  de  Servita. 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  11 


162 


escreve-lo  sem  o  preceder  de  um  cerimo- 
nioso d  maiúsculo.  Perdoai  senhora  a  irre- 
verência e  já  agora,  deixai  que  a  sugestão 
literária  me  leve  para  diante  na  mesma  con- 
fiança, tanto  mais  que  nisso  não  vejo  ofensa 
á  vossa  respeitabilidade  de  mãe  de  familia. 

Mãe?  não  me  lembro  bem  se  vi  ou  não 
vi  filhas  vossas  na  linda  tarde  em  que 
vos  visitei,  mas  se  não  as  tendes  de  carne  e 
osso,  imaginemos  que  o  são  todas  essas  for- 
mosíssimas rosas  que  nasceram  do  vosso  cari- 
nho e  do  extremoso  cuidado  das  vossas 
mãos.  .  . 

E  já  que  tendes  gosto  e  que  tendes  for- 
tuna, duas  circunstancias  que  raramente 
vemos  no  Brasil  entrelaçadas,  é  bem  possí- 
vel que  dentro  de  pouco  tempo,  e  á  parte 
qualquer  sugestão  alheia,  esse  doce  recanto 
em  que  viveis  e  onde  plantais  as  vossas  ro- 
seiras com  tão  calculada  simetria,  reprodu- 
sa  aspectos  feéricos  como  as  desse  famoso  — 
Roseiral  de  Bagatelle  —  delícia  das  almas 
e  dos  olhos  dos  parisienses. 

Que  será  preciso  para  isso? 


—  163  — 

Apenas  uma  viagem  a  Paris,  na  Prima- 
vera, e,  ao  voltar,  trazer  de  lá  um  paisagista 
de  jardins,  especialista  em  rosas. 

Aqui  nem  com  a  lanterninha  de  Dióge- 
nes iluminada  a  rádium,  poderemos  con- 
seguir encontrar  um  homem  que,  aliando  a 
arte  do  desenho  decorativo  ao  conheci- 
mento da  imensa  variedade  de  roseiras  que 
existe  no  mundo,  soubesse  aplica-las  nos  di- 
ferentes efeitos  da  sua  arquitectura  floral. 
A  tentativa  é  cara,  mas  é  bela,  e  como 
exemplo  neste  nosso  país  de  indiferença  se- 
ria então  admirável!  No  tempo  da  maior 
abundância  floral,  quando  os  festões  rubros 
ou  pálidos  se  balançassem  em  longas  ca- 
deias harmoniosas  sobre  os  taboleiros  rasos 
ou  convexos,  côr  de  oiro  ou  côr  de  açafrão, 
róseos  ou  brancos  do  vosso  belo  roseiral, 
concederieis  licença  á  gente  da  cidade  para 
vir  pascer  os  olhos  em  tamanha  formosura, 
e  com  esse  acto  de  generosidade  não  vos 
acusaria  de  vaidosa  a  vossa  consciência,  mas 
ao  contrario,  vos  felicitaria  por  prestardes 
um  lindo  serviço  á  vossa  terra.  .  . 


—  164  — 

Disseminar  o  gosto  por  tudo  o  que  en- 
canta os  olhos  e  eleva  a  alma,  é  dar  á  pobre 
humanidade  sofredora  um  alívio  divino. 

Quantas  vezes,  eu  que  vos  estou  falando, 
sinto  na  memória,  a  propósito  de  cousa  ne- 
nhuma, os  perfumados  e  floridos  quadros 
desse  Roseiral  de  que  vos  disse  o  nome,  e, 
só  com  essa  visão  do  passado,  em  que  as 
rosas  de  um  dia  se  fixaram  para  sempre,  te- 
nho um  minuto  de  fino  goso  espiritual! 

Mas  já  fazeis  muito,  cultivando  como 
cultivais  essas  lindíssimas  roseiras,  que  se 
estendem  em  filas  pelos  jardins  da  vossa 
quinta  inesquecível,  pelo  que  vos  felicito, 
Senhora. 


XXVII 


Grande  dia.  Recebo  aviso  da  secretaria 
do  Interior  de  que  o  livro  —  A  Arvore  — 
por  cuja  adopção  nas  escolas  brasileiras  te- 
nho quebrado  as  minhas  pobres  lanças,  foi 
adoptado  pelo  governo  para  leitura  das  cri- 
anças rio-grandenses. 

Estranha  alguém  que  está  a  meu  lado  a 
minha  satisfação  e  pergunta  por  que,  tendo 
eu  publicado  tantos  livros  e  entre  eles  al- 
guns escolares  nunca  me  dei  ao  trabalho  de 
viajar  por  amor  de  nenhum  deles  c  pela 
disseminação  deste  me  mostro  entretanto 
tão  interessada. 

Vejo  que  é  preciso  explicar-me : 

O  modesto  volume  que  trouxe  na  minha 
bagagem  e  que  escrevi  com  o  poeta  Afonso 
Lopes  de  Almeida,  não  representa  para  o 


166 


nosso  espírito  um  motivo  de  glória  literá- 
ria que  nos  envaideça  mais  do  que  outra 
qualquer  das  nossas  obras,  nem  é  tampouco 
um  trabalho  que  nos  dê  a  esperança  de  nos 
enriquecer.  .  . 

Com  a  sua  divulgação  o  que  desejamos, 
e  desejamos  com  fé  viva,  é  inocular  na  alma 
da  juventude  brasileira  essa  cousa  que  só  po- 
derá parecer  frívola  aos  frívolos:  o  amor 
da  árvore.  O  momento  de  se  lançar  essa  se- 
menteira deveria  ter  sido  já  ha  quatro  ou 
cinco  gerações,  e  assim  teríamos  agora  be- 
nefícios que  não  fruímos  e  não  ouviríamos 
essa  justa  queixa  que  de  todos  os  lados  se 
levanta  contra  os  devastadores  de  florestas 
e  exgotadores  dos  mananciais,  contra  a  pou- 
ca abundância  de  frutas  e  outras  faltas.  Te- 
mos consciência  e  certeza  de  que  a  nossa 
propaganda  é  útil,  tanto  que,  se  fôssemos 
milionários,  distribuiríamos  montões  desses 
livros  por  toda  a  República;  como  isso  não 
pôde  ser,  e  ninguém  o  lamenta  mais  do  que 
nós,  é  forçoso  pedirmos  aos  governos  para 
que  façam  eles  essa  distribuição.  .  . 

Ensinar  a  amar  as  aves  e  as  árvores  é 


167 


uma  das  preocupações  mais  veementes  dos 
modernos  educadores  do  mundo  inteiro. 
No  Brasil,  que  financeiramente  depende 
tanto  delas,  pelas  culturas  do  café,  borracha, 
algodão,  cacau  e  madeiras  de  lei,  e  onde, 
como  em  parte  alguma,  elas  são  tratadas 
com  tamanho  desamor  e  mesmo  desprezo, 
uma  propaganda  em  seu  benefício  não  pôde 
ser  considerada  mera  fantasia  panteísta,  mas 
um  serviço  de  proveito  nacional. 


Na  secretaria  encontro  a  encomenda  de 
dois  mil  exemplares  ''d'A  Árvore",  que  de- 
verão ser  espalhados  por  todas  as  escolas 
do  Estado.  Pedem-me  também  que  esses 
dois  mil  exemplares  sejam  escritos  com  a 
ortografia  antiga.  A  actual  edição,  de  que 
deverei  ter  ainda  alguns  milheiros,  é  gra- 
fada com  a  ortografia  reformada  em  191 1 
pelos  grandes  filólogos  D.  Carolina  Micha- 
elis,  Gonçalves  Viana,  Adolfo  Coelho, 
Cândido  de  Figueiredo  e  outros  e  sancio- 
nada no   Brasil,  pela  Academia   Brasileira 


—  168  — 

de  Letras,  que  já  antes  tinha  feito  reforma 
quasi  igual,  tendo  por  fim  eliminado  as 
pouquíssimas  divergências  encontradas.  De 
modo  que  a  presunção  é  de  que  a  actual 
grafia  da  nossa  língua  foi  estabelecida  e 
sancionada  pelas  maiores  autoridades  no  as- 
sunto de  ambos  os  países  interessados. 

Compreendo  que  sendo  todos  os  outros 
livros  adoptados  nas  escolas  rio-grandenses, 
grafados  pelo  velho  sistema,  o  meu  só  po- 
deria criar  confusão  no  espírito  das  crian- 
ças, e  aceito  a  imposição,  tanto  mais  que  ela 
fora   alvitrada   por  mim. 

Foi  para  chegar  a  este  ponto,  que  reputo 
essencialíssimo,  que  introduzi  neste  livro 
estas  notas  particulares. 

Ninguém  pode  duvidar  que  dentro  de 
pouquíssimos  anos  toda  a  nossa  gente  se 
veja  impelida  a  escrever  os  seus  livros  ou  as 
suas  cartas  pela  ortogrofia  moderna  oficial, 
e  assim,  porque  não  começarmos  desde  já  a 
ensina-la  ás  crianças,  poupando-lhes  o  peno- 
so trabalho  de  estudarem  duas  vezes  de  mo- 
do diferente  a  mesma  disciplina? 

Que  a  conservem  ainda  os  velhos,  de  tal 


—  169  — 

modo  habituados  ao  seu  uso  que  o  não  pos- 
sam repudiar  sem  saudades,  nem  estudar  ou- 
tra sem  penoso  esforço,  vá  lá;  mas  impô-la 
a  quem  amanhã  terá  forçosamente  de  a  re- 
nunciar para  adoptar  uma  nova,  é  o  que  não 
me  parece  prudente.  .  . 

Como  em  tal  assunto  fui  sempre  uma 
rebelde,  e  mais  de  uma  vez  esbravejei  con- 
tra a  intrincada  floresta  de  tt;  pp;  11;  mm  e 
nn  dobrados  e  maiores  complicações  inú- 
teis da  ortografia  antiga,  aceitei  a  simpli- 
cidade e  a  clareza  desta  moderna  com  ine- 
fável satisfação. 

Fora  qualquer  ponderação  de  ordem 
prática  ou  sentimental,  que  no  caso  não  de- 
veria ter  cabimento,  ha  ainda  a  meditar 
sobre  a  inconveniência  de  querermos  con- 
servar uma  coisa  que  já  começa  a  parecer 
arcaica,  cuja  aprendisagem  é  tão  difícil  e 
em  que  nunca  se  alcançou  unidade  de  vis- 
tas, sendo  que  cada  professor  ensinava  a 
seu  modo  e  cada  escritor  grafava  como 
queria. 


XXVIII 


Senhor  Deus,  ter  eu  trabalho  pelo  que 
faço,  vá  lá!  mas  pelo  que  não  faço,  parece- 
me  demais.  .  .  E  é  o  que  me  sucede  agora 
por  amor  de  uma  célebre  carta  escrita  pelo 
ilustre  prosador  Carlos  Malheiro  Dias,  na 
sua  popularíssima  —  "Revista  da  Semana" 
— e  assinada  com  o  doce  e  nacional  pseudó- 
nimo de  —  Iracema. 

Toda  a  gente  aqui  no  sul  acredita  ter 
sido  escrita  por  mim  essa  vibrante  e  patrió- 
tica página,  o  que,  se  me  lisongeia  a  vaidade 
de  profissional  das  letras,  faz-me  também 
passar  ás  vezes  por  transes  de  bem  esquisito 
embaraço.  .  . 

A's  pessoas  a  quem  tenho  dito  positi- 
vamente, redondamente,  não  ser  eu  a  autora 


71 


dessa  peça  epistolar  que  anda  a  percorrer 
o  Brasil,  com  a  minha  assinatura  por  um 
desses  mistérios  que  fazem  a  glória  dos  ro- 
mancistas de  folhetim,  percebo  um  tão 
grande,  um  tão  visivel  desapontamento,  que 
chego  a  ter  pena  delas  e  de  mim,  porque  no 
fundo  das  suas  pupilas  vejo  com  isso  des- 
moronar-se  o  pedestal  em  que  estava  acente 
a  principal  razão  talvez,  da  sua  simpatia 
pela  minha  obra  de  escritora  insistente.  Mas 
ha  também  quem,  demonstrando  certa  agu- 
deza de  perspicácia,  atribua  teimosamente  a 
minha  negativa  a  qualquer  razão  particular 
entre  a  minha  pessoa  e  a  "'Revista"  e  não  se 
queira  dar  por  convencido  da  verdade. 

Nunca  uma  página  de  jornal  fez  tama- 
nho sucesso.  Uma  certa  vez  apresentaram- 
me  a  uma  senhora  muito  inteligente  e  dis- 
tinta que,  tendo  já  adquirido  todos  os  meus 
livros,  mandou,  para  complemento  da  obra. 
encadernar  luxuosamente  todas  as  cartas  de 
Iracema,  onde  mandou  gravar  o  meu  nome 
com  todas  as  suas  letras.  Compreendo  que  a 
confissão  peremptória  de  me  não  ter  cabido 


172 


a  honra  da  autoria  desses  escritos  de  tão 
larga  e  justificada  divulgação,  deva  tel-a 
de  algum  modo  desgostado,  mas  a  decepção 
ficou  atenuada  pela  convicção  de  que  eles 
merecem  o  arquivo  que  lhes  deu. 

São  poucos  os  dias  em  que  eu  não  veja 
evocada  diante  dos  meus  olhos,  como  a  ho- 
menagem de  maior  apreço,  a  lembrança  des- 
sa página,  toda  palpitante  como  uma  ban- 
deira ao  vento,  e  ocasiões  ha  em  que  um  des- 
mentido implicaria  numa  incivilidade:  é 
quando  em  festa  pública  um  orador  sacode 
essa  carta  sobre  a  minha  cabeça  como  a  obra 
magna  da  minha  vida  literária.  Em  tais  si- 
tuações calo-me,  porque  presinto  quanto  ele 
se  sentiria  acanhado  com  o  meu  esclare- 
cimento, esclarecimento  que  eu  aliás  já  ti- 
nha feito  em  jornais  do  Rio  e  na  própria 
''Revista  da  Semana",  em  carta  ao  seu  ab- 
negado autor  . 

A  complicação  deste  incidente  repete- 
se  muitas  vezes  em  salas  particulares  e  lu- 
gares públicos,  em  mesas  de  hotel  e  de  va- 
pores, e  de  tal  modo,  que  um  dos  meus  ami- 


—  173  — 

gos  me  fez  prometer  que  deixasse  passar  o 
caso  sem  elucidação,  para  não  desapontar 
ninguém  na  minha  presença,  deixando  a  ex- 
posição da  verdade  para  depois.  E'  o  que 
faço  pela  terceira  vez  em  letra  de  forma. 


XXIX 


Vejam!  o  dia,  todo  feito  desse  macio  se- 
tim  azul  de  que  só  o  tear  dos  anjos  tem  o  se- 
gredo e  engrinaldado  por  pequeninas  nu- 
vens brancas  e  côr  de  rosa,  parece  mesmo 
pintado  por  Wateau! 

Na  Estação  do  Riacho  espera-nos  o 
trem  destinado  a  realizar  o  paradoxal  ser- 
viço de  conduzir  uma  carregação  imensa 
de  alegria  para  a  —  Tristeza.  Tal  é  o  nome 
do  arrabalde  que  vamos  visitar.  Dizem-me 
que  ele  é  acertado,  por  que  o  sitio  é  de  uma 
melancolia  plácida  e  sugestiva.  Para  con- 
traste, no  trem,  que  vai  cheio  de  moças,  ha 
muito  riso,  desse  riso  sadio  que  entra  pela 
alma  da  gente  como  lufadas  frescas  de  cli- 
mas altos. 


—  175  — 

O  que  mais  me  encanta  nestas  moças  do 
Sul,  é  a  sua  jovialidade  sem  artifício  nem 
o  estouvamento  arrebatado  que  os  figuri- 
nos americanos  dos  cinematógrafos  têm  es- 
palhado pelo  mundo  e  que  por  candura  de 
espirito  muitas  criaturinhas  copiam  exa- 
gerando-lhes  as  atitudes  arrogantes  ou  as 
frases  de  ultra  moderna  desenvoltura,  que 
não  são  nem  da  nossa  raça  nem  da  nossa  edu- 
cação familiar. 

Dir-se  hia  que  este  trem  não  leva  mulhe- 
res, mas  rouxinóis.  Vai  todo  fremente  de 
música. 

Sibila  Fontoura,  a  pianista  aplaudida 
dos  salões,  acompanha  em  uma  sanfona,  ou 
gaita  como  dizem  aqui,  o  coro  de  vozes 
moças  que  entoa  com  doçura  A  Saudade  do 
Gaúcho,  e  outras  cantigas  regionais. 

De  todos  os  nossos  Estados  o  do  Rio 
Grande  do  Sul  é  talvez  o  mais  agarrado  ás 
suas  tradições  e  o  que  maior  valor  sabe  dar 
ao  que  tem  em  si  de  típico  e  de  caracteris- 
tico.  Falta-me  conhecer  ainda  muitas  das 
coisas  que  constituem  os  mais  vincados  tra- 
ços da  sua  originalidade,  porque  tenho  tido 


176 


por  enquanto  uma  vida  exclusivamente  de 
cidade,  e  as  cidades  têm  mais  ou  menos  os 
mesmos  costumes,  o  que  as  torna  parecidas 
entre  si. 

Sinto-me  entretanto  penetrada  pelo  sen- 
timento que  faz  este  povo  mostrar-se  tão 
amoroso  pelo  que  é  seu. 

Parado  o  trem,  e  pascido  o  olhar  pelas 
devesas  socegadas  da  —  Tristeza  —  eis-nos 
a  caminhar  por  estradas  mais  ou  menos  cur- 
vas e  enladeiradas  para  a  Pedra  Redonda, 
entre  granjas  silenciosas  e  vinhedos  recen- 
temente podados,  de  cepas  curtas  e  retor- 
cidas. 


Decididamente  eu  preciso  voltar  ao  Rio 
Grande  no  tempo  das  vindimas,  quando  as 
verdes  parras  abrigarem  na  delicadeza  da 
sua  sombra  os  cachos  retintos  das  uvas  sa- 
borosas. 

Chegada  a  estação  da  maturidade  da 
fruta  também  aqui  o  amigo  Dionisios  en- 


—  177  — 

contraria  motivo  para  o  transbordamento  da 
sua  alacridade.  Por  estes  campos  agora 
transfigurados  pelo  sono  cataléptico  do  in- 
verno na  aparência  da  morte  e  que  desper- 
tarão na  Primavera  todos  floridos  e  cheiro- 
sos, zumbirão  abelhas  em  torno  aos  bagos  de 
que  o  vinho  escorre  e  voarão  as  aves  ao 
brando  calor  do  sol...  Toda  esta  ter- 
ra é  criadora  da  força,  fonte  do  san- 
gue puro  e  que  não  cheira  a  carne,  sangue 
espumante  da  fruta  transparente  e  doce.  Os 
três  graus  abaixo  de  zero,  acompanhados  dç 
ventanias  rudes,  mudaram  o  aspecto  de  tu- 
do, menos  o  das  pedras.  Ah,  essas.  .  . 


Na  margem  areenta  do  rio,  uma  bonita 
praia  em  que  as  águas  morrem  em  recortes 
de  ondas  pequeninas,  ha,  entre  várias  pedras 
de  formas  mais  ou  menos  interessantes,  uma 
que  tem  o  feitio  de  um  porco  alentadíssimo, 
de  largas  orelhas  pendentes  e  focinho  esten- 
dido. 

.Jornadas  —  Júlia  Lopes  12 


—  178  — 

A  doce  e  piedosa  Mãe  Natureza,  na  pre- 
visão de  que  nenhum  escultor  de  génio  se 
quizesse  ocupar  nunca  com  a  modelagem  de 
animal  que  enquanto  vivo  é  tão  repudiado 
pelo  homem,  tratou  de  o  consagrar  em  uma 
escultura  a  que  não  falta  expressão  nem  har- 
monia mas  apenas  a  usual  inscrição  em  ca- 
racteres convencionais.  Essa  será  feita  um 
dia,  quem  sabe,  por  algum  boémio  ou  poeta 
gastrónomo  que,  á  feição  de  Charles  Mon- 
selet,  saiba  cristalizar  a  eloquência  da  sua 
gratidão  pelos  excelentes  paios  e  presuntos 
dos  seus  almoços  num  verso,  pelo  menos  tão 
entusiasta  como  o  célebre: 

"Adorable  cochon,  animal  roi,  cher  ange!" 

do  curioso  vate  francês. 

O  mundo  entra  em  uma  nova  éra  — 
3  da  Justiça.  Os  seres  e  as  coisas  mais  hu- 
mildes e  despresadas  pela  humanidade  até 
este  momento,  porque  não  hão  de  esperar, 
—  se  não  recompensas,  —  pelo  menos  um 
poupo  de  sirnpatia  e  de  respeito?.  . 


179 


Em  tal  caso,  confessemos    que.    as    que 
a  arte  proporciona  são  ainda  as  mais  fáceis! 


Dansa-se. 

A'  sombra  azul  de  um  bosque  de  figuei- 
ras bravas,  mesmo  á  beirinha  d^agua,  as  mo- 
ças fazem  ronda  ou  serpeiam  de  mãos  dadas 
na  Polonaise  por  entre  os  troncos  das  ár- 
vores. 

Transporto-me  a  tempos  idos.  Em  vez 
do  som  das  frautas  de  pastores  idílicos,  os 
que  fazem  vibrar  o  ar  sossegado  deste  dia 
excepcionalmente  luminoso,  saem  dos  pis- 
tões soprados  com  valentia  por  fortes  sol- 
dados da  Brigada  Policial. 

Acredito  que  estes  sejam  mais  afinados 
e  senhores  de  repertório  muitíssimo  mais 
vasto,  o  que  é  uma  compensação! 

Relembro   quadros    de    museu:  não 

são  menos  graciosas  do  que  as  Dríades  estas 
deliciosas  criaturinhas  que  vejo  voltearem 
sobre  tapetes  de  folhas  mortas  entre  colunas 
vivas  de  arvoredo,  com  um  sorriso  nos  lá- 


—  180  — 

bios,  as  faixas  ondeantes  e  pinceladas  de  sol 
na  carne  moça.  .  . 

Está  escrito,  pela  mão  enigmática  do 
Tempo  que  as  horas  de  alegria  têm  de  ser 
curtas.  O  dia  voou  e  extingue-se  agora  entre 
pompas  crepusculares.  Todo  o  horizonte 
arde  numa  candente  barra  de  ouro  chame- 
jante. E'  uma  glorificação  á  tarde  que  acaba 
ou  á  sombra,  que  aí  vem? 


XXX 


Se  o  meu  instinto  não  me  ilude  na  per- 
cepção vaga  com  que  me  faz  sentir  indeter- 
minados influxos,  suspeitarei  que  em  poli- 
tica os  partidos  estão  aqui  muito  mal  equi- 
librados: ou  ha  fanatismo  pelo  governo,  ou 
uma  reserva  muito  especial  no  lhe  comen- 
tarem os  actos,  como  se  pelo  debate  das  suas 
opiniões  pudessem  os  próprios  particulares 
temer  consequências  desagradáveis.  E'  pos- 
sível que  eu  esteja  enganada,  mas  também  é 
possível  que  este  excesso  de  prudência  ou  re- 
traimento, seja  ainda  um  residuo  da  revolta 
de  1893  ^  94'  ^^-i^  tanto  fez  sofrer  a  popula- 
ção deste  Estado  e  ensinou  aos  seus  filhos 
que  um  dos  preceitos  da  guerra  é  que  se  deve 
desconfiar  das  próprias  paredes,  porque 
também  elas  teem  ouvidos.  .  . 


XXXI 

CACHOEIRA 


Que  frio!  Puxo  o  agasalho  até  as  ore- 
lhas, bafejo  as  mãos  através  das  luvas  gros- 
sas e  encolho-me  num  cantinho  do  vagão 
que  me  leva  da  capital  do  Estado  á  cidade 
da  Cachoeira. 

Está  ainda  escuro  e  já  são  seis  horas 
quando  o  comboio  abala  e  parte.  O  caminho 
de  ferro  é  de  bitola  estreita  e  a  locomotiva 
puxa  os  carros  com  lentidão.  Colo  o  rosto 
aos  vidros  da  janela,  no  desejo  de  apanhar 
em  flagrante  o  despertar  do  loiro  dia  no  seio 
negro  da  noite,  e  a  primeira  cousa  que  di- 
viso no  lusco-fusco  da  madrugada,  é  um 
fiosinho  alvadio,  traçado  ao  correr  da  es- 
trada entre  o  campo  e  o  leito  dos  trilhos. 
Percebo  pouco  a  pouco  que  essa  linha  pálida 


—  Í83  — 

é  uma  sargeta  de  água  gelada  e  sinto  certa 
curiosidade  em  olhar  para  ela,  tanto  a  sensa- 
ção de  vêr  neve  é  agradável  á  gente  tropical. 
Aliás  esse  modestíssimo  fio  branco  que  se 
desfará  aos  primeiros  raios  quentes  do  sol, 
tem  o  poder  de  transportar-me  a  certos  dias 
distantes,  em  que  atravessei  os  Alpes  numa 
verdadeira  sinfonia  de  alvuras.  Enquanto 
não  ha  claridade  que  me  permita  descortinar 
o  que  ha  lá  fora,  viajo  pelo  mundo  que  trago 
espelhado  dentro  de  mim  e  ao  qual  a  sau- 
dade imprime  um  encanto  muito  sedutor. 
Mas  não  demora  muito  a  acender-se  a  luz 
da  manhã;  começa  esbranquiçada,  coada 
em  neblinas  opacas  até  fazer-se  brilhante  e 
lúcida. 

Vejo  agora  paisagens  plácidas,  vastas  e 
sucessivas  campinas  de  um  verde  descorado, 
bordadas  aqui  e  acolá  por  pequenos  bos- 
ques, ou  capões,  como  dizem  aqui,  de  arbus- 
tos tufosos,  de  tom  denegrido.  Por  vezes 
são  tão  bem  organizados,  tão  bem  dispostos 
esses  agrupamentos  de  plantas  espontâneas, 
que  os  diríamos  ali  semeados  por  atilados 
e  sábios  paisagistas  ou  arquitectos  de  jardins. 


184 


O  horizonte  foge-nos  diante  da  vista.  E' 
a  imensidade  verde,  clara,  por  onde  sem  ru- 
gas nem  soluços  serpeia  um  rio  azul,  do  qual 
aparecem  trechos  aqui  e  alem.  Nunca  vi 
tanto  ceu,  nunca  senti  tanto  ar,  nunca  afo- 
guei os  meus  olhos  em  tamanha  claridade! 

O  dia  fez-se  admirável. 

Parece-me  estar  debaixo  de  uma  desco- 
munal copa  florida  de  Jacarandá.  .  . 

No  banco  em  frente  ao  meu  vão  duas 
lindas  meninas  de  dezoito  a  vinte  anos.  Ves- 
tem-se  carinhosamente  de  igual.  E'  um  cos- 
tume este  que  se  tem  perdido  nas  sociedades 
modernas,  em  que  as  criancinhas  ainda  são 
de  mama  e  já  timbram  em  ter  o  seu  gosto 
peculiar  e  uma  personalidade  inconfundí- 
vel, no  desesperado  esforço  de  destaque  que 
alanceia  as  almas  e  que  só  por  si  não  con- 
segue dar  a  ninguém  um  vislumbre  siquer 
de  originalidade.  Esta  submissão,  esta  co- 
munhão de  gostos,  faz-me  olhar  para  as  mi- 
nhas companheiras  de  viagem  com  curiosi- 
dade. São  filhas  de  um  estancieiro  de  São 
Gabriel  e  viajam  sós.  Esta  circunstância 
tem  uma  significação  agradável,  porque  só 


185 


nos  paises  civilisados  as  meninas  podem  via- 
jar sozinhas. 


Depois  de  exclamações  de  surpreza  e  de 
abraços  efusivos,  dois  passageiros  que  se  en- 
contram no  trem,  encetam  uma  palestra  de 
sabor  regional.  Scão  ambos  gaúchos,  um  mé- 
dico o  outro  lavrador  na  visinha  republica 
do  Uruguay.  Fala  este  das  suas  terras  e  das 
leis  agrárias  desse  país  com  visível  entu- 
siasmo. 

Desespera-o  a  rotina  brasileira.  Aponta 
para  os  campos  que  vamos  ladeando,  com 
certo  ar  de  desprezo;  acha-os  mal  aramados, 
com  poucos  fios  e  postes  tortos  e  desiguais. 
Parece-lhe  um  contra-senso  a  liberdade  con- 
cedida no  Rio  Grande  ao  lavrador,  de  cer- 
car os  seus  terrenos  com  tantos  fios  quantos 
lhe  dêem  na  vontade. 

No  Estado  Oriental,  cada  estancieiro  é 
obrigado,  por  lei,  a  fazer  os  seus  cercados 
com  dez  fios  pelo  menos,  de  modo  a  que  por 
entre  eles  não  possa  absolutam'ente  passar, 
nem   mesmo   de   rastos,   um   simples   guará- 


186 


chaim  ou  cão  ovelheiro.  Aliás  a  praga  dos 
guarachains  é  lá  quasi  desconhecida,  e  em 
matéria  de  raça  de  cães,  só  admitem  no  cam- 
po a  do  pastor.  Toda  essa  malta  vagabunda 
de  canzoada  ladradora  que  aflige  aqui  os 
cavaleiros,  não  seria  lá  tolerada.  Entre  nós 
os  aramados  são  constituidos  por  cinco  a 
sete  fios,  sendo  ainda  que  os  nossos  postes 
são  muito  mais  espaçados  do  que  os  do  Uru- 
guay,  que  são  fincados  em  intervalos  muito 
mais  curtos  e  bemi  determinados.  Em  con- 
clusão: lá,  essas  cousas  não  ficam  ao  livre 
arbítrio  dos  proprietários,  mais  ou  menos 
económicos,  entretanto  ninguém  se  queixa  e 
todos  ganham  dinheiro...  Ele  está  rico; 
sente-se  feliz;  só  o  impacienta  a  longura  das 
viagens  quando  de  alem  das  fronteiras  tem 
de  vir  visitar  a  familia  a  Porto  Alegre. 

Quer-me  parecer,  por  esta  amostra,  que 
o  Rio  Grande  do  Sul,  como  aliás  todo  o  Bra- 
sil, precisa  de  boas  estradas  de  ferro.  E  ne- 
nhum dos  nossos  Estados  as  pode  construir 
com  maior  facilidade,  graças  a  não  exigir  o 
seu  terreno  custosas  obras  de  arte. 

No   correr   da   conversa   oiço   dizer   ao 


187 


moço  loquaz,  que  alem  de  agricultor  parece 
também  engenheiro  e  bom  conhecedor  de 
toda  a  região,  que  se  poderia  viajar  desde  a 
fronteira  por  essa  mesma  estrada  até  á  ca- 
pital, na  terça  parte  do  tempo.  Olhent  que 
já  seria  uma  diferença  a  considerar,  para 
quem  não  dispõe  ainda  dos  aeroplanos! 
Agora  que  eles  não  tardarão  por  aí,  não 
sei  se  valerá  a  pena  exigir  muita  cousa  das 
estradas  de  ferro.  .  .  O  moço  acha  que  sim, 
faz  considerações  apreciáveis  sobre  as  van- 
tagens de  se  baratear  e  facilitar  o  transporte 
de  mercadorias. 

A'  parte  o  gado,  são  o  milho,  o  feijão,  o 
arroz,  as  forragens  etc,  que  constituem,  mais 
do  que  todas  as  fábricas  existentes  e  por  exis- 
tir no  Estado,  a  fortuna  do  seu  erário.  Este 
ficaria  tanto  mais  abarrotado,  quanto  aos  la- 
vradores fossem  permitidas  todas  as  facili- 
dades na  exportação  dos  seus  produtos. 

Aqui,  como  em  todo  o  Brasil,  a  mesma 
queixa.  .  . 

Afoito-me  ao  frio  e  abro  a  janela. 

A  luz  é  fulgente;  os  campos  desenrolam- 
se  ainda  e  sempre  em  planícies  largas.  Em 


188  — 


nenhum  deles  ha  solidão  completa:  anima- 
os  sempre  um  ser  vivo,  ao  menos  um  cavalo, 
um  touro  ou  qualquer  outro  animal,  a  pastar 
solitária  e  socegadamente.  .  . 


Cachoeira  está  toda  aninhada  entre  cam- 
pinas e  envolvida  por  um  ambiente  alegre  e 
leve.  E'  uma  cidadezinha  que  lembra  uma 
criança  que  ri,  de  olhos  pasmados  para  o 
esmalte  azul  dos  céus  e  a  vastidão  dos  hori- 
sontes ;  mas  é  uma  criança  que  se  fará  de- 
pressa adulta,  a  julgar  pelo  que  me  dizem 
da  sua  prosperidade.  Não  tardará  muito 
que  a  denominem  —  A  Princeza  do  Arroz 
—  ou  de  outra  qualquer  cousa,  á  maneira 
americana,  e  do  principado  ao  imperialismo 
não  mediará  talvez  grande  numero  de  anos. 
Afinal,  é  justo  que  aprendamos  tambemt  a 
andar  depressa! 

Nesta,  como  em  outras  cidades  rio- 
grandenses,  faltam  ainda  aperfeiçoamentos 
materiais,  que  a  tornem  confortável,  mas 
essa  falta  é  perfeitamente  compensada  pela 
lhaneza  e  simpatia  da  sua  população  e  por 


189 


um  não  sei  quê,  que  enche  a  sua  atmosfera 
de  carinhosa  jovialidade. 

Quando  ás  onze  horas  da  noite  entrei 
no  meu  quarto,  vi  ainda  a  janela  escanca- 
rada para  a  algidez  da  treva  e  do  relento. 
Mal  pude  dormir;  senti  frio  até  nos  cabelos 
que  me  pareciam  transformados  em  fios  de 
vidro  quebradiço.  Por  que  não  adotarem  no 
Sul  o  sistema  europeu  dos  aquecedores  em 
fogões  fixos  ou  móveis?  Seria  um  luxo  que 
ninguém  lhes  poderia  levar  a  mal ! 

De  manhã,  saio  cedo.  A  rua  está  ainda 
guarnecida  por  cortinados  de  neblina.  As 
pessoas  que  encontro  apertam  contra  a  boca 
um  lenço  que  trazem  amarfanhado  na  mão. 
Receiam  que  o  nevoeiro  matinal  lhes  faça 
mal  aos  pulmões.  Uma  delas,  a  quem  eu 
fora  apresentada  na  véspera,  vem  a  mim  e 
exorta-me  a  voltar  depressa  para  o  hotel. 
Considera  uma  imprudência  a  minha  ca- 
minhada numa  hora  em  que  só  vão  á  rua 
os  que  teem  por  obrigação  fazel-o.  Pois 
suponho  que  também  eu  tenho  essa  obriga- 
ção e  continuo  no  meu  giro  sob  as  lindas 
paineiras  da  grande  praça  central. 


190 


De  volta  ao  hotel,  entro,  com  o  pretexto 
de  qualquer  compra  fútil  em  uma  das  lojas 
por  que  passo,  e  verifico,  com  certa  surpre- 
za,  que  o  seu  comércio  é  exclusivamente 
feito  por  mulheres.  O  estabelecimento  per- 
tence a  uma  senhora  que  tem  por  emprega- 
das as  filhas  e  as  sobrinhas. 

Nada  mais  simples,  nada  mais  natural; 
mas,  como  entre  nós  a  iniciativa  feminina  é 
ainda  vaga  e  tímida,  este  facto  dá  ao  meu 
espírito  uma  agradável  impressão. 


Encho  minha  alma  de  azul,  contem- 
plando do  alto  do  cemitério  o  panorama  ad- 
mirável e  cuja  vastidão  sugere  o  desejo  do 
vôo.  Compreendo,  como  nunca,  o  Ímpeto  de 
velocidade  dos  ''peões"  gaúchos,  atirando 
em  galopadas  a  toda  a  rédea  os  seus  cavalos 
embriagados  de  ar  e  de  luz.  No  ambiente 
translúcido,  sente-se  tenuemente  o  cheiro 
verde  dos  campos,  em  cujas  ondas  suavís- 
simas, se  percebem  de  vez  cm  quando  pe- 
queninos trechos  do  columbrino  rio  Jacuhy. 

A  caminho  da  Xarqueada  do  Paredão, 


—  191  — 

vejo  com  frequência  ninhos  do  pássaro  João- 
de-Barro  como  remates  ornamentais  dos 
postes  das  cercas  e  do  telégrafo.  Nesta  terra 
de  ventanias  e  de  descampados  é  mais  do 
que  em  qualquer  outra  admirável  a  habili- 
dade arquitectónica  desta  ave  singular.  E 
eu  nunca  as  vi  em  tamanha  quantidade, 
pousadas  de  sentinela  sobre  as  suas  habita- 
ções, a  espalhar  por  todo  o  ermo  a  sua  aten- 
ção corajosa.  .  . 


Tenho  por  companheiros  de  passeio, 
alem  de  muitas  senhoras,  a  mais  conside- 
rada professora  do  logar,  verdadeira  mãe 
espiritual  dos  cachoeirenses:  D.  Cândida 
Brandão,  e  o  escritor  Gregório  da  Fonseca, 
que,  por  um  acaso  feliz,  veio  hoje  de  visita 
ao  lar  materno.  Casa-se  assim  á  emoção 
despertada  por  estas  paisagens  novas,  o  sa- 
bor de  uma  palestra  interessante. 

O  máu  estado  de  uma  estrada  não  nos 
permite  completar  o  programa  do  passeio 
com  a  visita  a  um  bosque  de  eucaliptos  plan- 
tado pelo  médico  dr.  Baltazar  de  Ben,  mas 


192 


as  outras  estradas  permitem-nos  excursões 
encantadoras. 

Disse  Bergson  que  uma  paisagem  pode 
ser  bela,  trágica,  sublime,  insignificante, 
graciosa  ou  feia,  mas  cómica  —  jamais. 
Seja  qual  fór  a  atitude  de  uma  árvore,  o 
movimento  de  uma  correnteza,  a  forma  de 
um  penhasco,  a  irregularidade  de  uma  mon- 
tanha ou  de  um  vale,  nunca  despertam  o 
sentimento  do  ridículo.  Não  creio,  como  o 
escritor,  que  o  cómico  exista  apenas  no  que 
é  humano,  por  que  em  todos  os  animais  ha 
expressões  e  movimentos  que  excitam  o  riso. 
mas  estou  de  pleno  acordo  de  que  essa  im- 
pressão nunca  foi  comunicada  a  ninguém 
pela  paisagem,  que  nem  só  os  poetas  como  o 
amado  Teócrito  gostam  de  contemplar.  .  . 

Não  sei  quantos  quilómetros  percorre  o 
nosso  automóvel,  que  nos  leva  dos  campos 
altos  para  o  velho  bairro  da  —  Aldeia,  - — 
muito  pitoresco,  e  depois,  á  porta  de  um  en- 
genho de  arroz  de  grande  movimento,  á  bei- 
ra-rio. 

Como  pertenço  a  uma  família  em  que 
esse  cereal  goza  de  uma  espécie  de  venera- 


193 


cão  um  tanto  asiática,  observo  com  especia- 
lissima  atenção  a  sua  preparação  através  de 
tubos,  peneiras,  polidores,  etc. 

De  volta  á  cidade  tenho  ainda  tempo 
para  visitar  escolas,  que  são  os  templos  da 
minha  devoção...  Mas  á  noite  tirito,  sob 
o  acolxoado  do  edredon  e  de  não  sei  quan- 
tos cobertores.  .  . 


Parece-me  agora  estar  fazendo  parte  de 
uma  representação  cinematográfica  ame- 
ricana. O  scenário  conviria  para  um  qua- 
dro da  Paraiuount  ou  de  outra  qualquer 
empreza  idêntica.  Estamos  em  Ferreira,  a 
convite  do  amável  engenheiro  Dr.  Serze- 
delo  Mendes,  director  do  —  Serviço  de 
Sondagem  e  Pesquisas  de  Carvão  de  Pedra 
e  Petróleo  —  a  duas  léguas  da  Cachcoeira. 

A  habitação  do  chefe,  feita  de  madeira, 
está  a  poucos  metros  do  lugar  onde  instala- 
ram o  maquinismo,  cuja  função  é  a  de  per- 
furar a  terra  pf)r  meio  de  uma  sonda  rotati- 
va que  a  seu  tempo  revelará  se  existe  ou  não 
neste  ponto  uma  jazida  carbonífera. 

.Jornadas  —  Jiilia  Lopes  13 


—  194  — 

Para  consolação  de  qualquer  possível 
desengano,  sabe-se  de  ante  mão  que,  se  as 
pesquisas  forem  negativas  nem  assim  os  tra- 
balhos ficarão  perdidos.  Eles  virão  a  servir 
para  a  planta  geológica  do  Estado. 

Ao  terminar  o  encantador  almoço,  ofe- 
recido pelo  director  na  sua  pequena  cottage 
de  trabalho,  noto  a  propósito  da  presença 
de  um  pernambucano  na  roda,  que,  de  to- 
dos os  Estados,  é  Pernambuco  o  que  oferece 
maior  contingente  de  população  ao  Sul.  A 
esta  observação  responde  alguém  que,  de 
facto  assim  é.  A  própria  magistratura  do 
Estado  está  quasi  toda  em  mãos  de  juizes 
pernambucanos,  o  que  não  deixa  de  ser 
curioso. 

A's  cinco  da  tarde  —  chá  no  Club  Re- 
nascença. O  salão  amplo  e  florido  está  re- 
plecto.  Muita  menina  c  moça,  muitas  cri- 
anças, muita  animação. 

Em  todas  as  cidades  do  Rio  Grande  do 
Sul  ha  clubs  familiares  de  grande  concor- 
rência, o  que  testemunha  a  sociabilidade 
do  povo.  Esses  clubs  são  em  geral  mais  fre- 


190 


quentados  por  senhoras  do  que  por  homens, 
arredados  deles  por  outras  fascinações. 

O  que  vale  é  que  a  mulher  rio-gran- 
dense  não  é  só  bonita,  mas  também  vivaz  e 
tão  exuberante  que  sua  presença  compensa 
a  desilusão  de  outras  faltas  e  enche  de  ani- 
mação a  sociedade  em  que  está.  As  de 
Cachoeira  parece  que  não  teem,  nesse  sen- 
tido, muita  razão  de  queixa.  Pelo  menos 
hoje,  vejo  que  elas  teem  com  quem  dançar. 
Não  sei  mesmo  se  nesta  doce  e  amena  cida- 
de ha  casas  de  tavolagem  e  cabarets,  que  são 
os  rivais  dos  clubs  familiares. 

Em  Porto  Alegre,  dizem-me  haver  na- 
da menos  de  cento  e  oitenta  desses  antros  de 
perdição,  como  se  escrevia  na  linguagem 
romântica  de  outros  tempos. 

Ora  cento  e  oitenta  casas  de  tavolagem 
e  cabarets  em  uma  cidade  (jue  não  é  ex- 
cessivamente grande,  já  é  uma  continha 
mais  do  que  redonda:  — -  redondissima! 


Volto  á  capital  pelo  Rio  jacui.  O  dia  é 
desses  de  luz  preguiçosa,   e  lenta  transfor- 


—  196  — 

mação.  As  águas  são  mansas  e  nas  margens 
o  verde  da  vegetação  tem  uma  nuança  es- 
cura e  uniforme.  Ha  melancolia  nesta  pai- 
sagem fluvial...  ha  mesmo  muita  melan- 
colia,  mas  ha  poesia  também. 


XXXII 
PELOTAS 


Desembarco  em  Pelotas  sobraçando 
ainda  as  últimas  violetas  de  Porto  Alegre. 
Chego  assim  pela  segunda  vez  á  cidade  mais 
aristocrática  do  Estado.  Na  primeira  mal 
lhe  pizei  as  pedras  das  calçadas,  numa  volta 
rápida.  Terei  agora  vagar  para  aprecia-la 
melhor? 

A  Princeza  do  Sul,  como  a  chamam,  re- 
cebe-me  com  alegria:  —  brilha  o  sol  nos 
céus  altos. 

Encontro  amigos  nesta  terra  amiga;  en- 
tre eles  o  Dr.  Bruno  Chaves,  que  por  lar- 
gos anos  exerceu  na  diplomacia  brasileira 
os  mais  elevados  cargos,  e  vive  agora  feliz 
no  seu  torrão  natal,  desenvolvendo  a  sua 
actividade  de  médico  e  de  estudioso  entre  os 


198 


labores  da  Biblioteca  Pública,  de  que  é  di- 
rector, e  os  trabalhos  do  Hospital  da  Mise- 
ricórdia, de  e]ue  é  provedor  e  chefe  de  clí- 
nica. Não  se  conformando  com  a  ociosidade 
que  para  a  conservação  da  sua  saúde  lhe 
aconselhavam  os  seus  colegas,  este  homem 
de  coragem  e  de  acção,  tendo  cedido  á  ne- 
cessidade de  abandonar  as  preocupações  do 
seu  cargo  de  ministro  plenipotenciário,  dei- 
xou-se  pouco  a  pouco  empolgar  por  outros 
deveres  menos  ostentosos  e  mais  profícuos. 
Enfeixando  no  seu  querido  lar  objectos  ar- 
tísticos, que  lhe  recordam  a  sua  passagem 
pelas  principais  cidades  do  mundo,  ele  não 
se  quedou  a  olhar  para  eles  de  mãos  cruza- 
das e  expressão  saudosa.  Em  quanto  um  ho- 
mem tem  a  faculdade  de  poder  ser  útil  aos 
outros,  a  sua  inércia  é  um  crime. 

Assim  o  pensou  e  foi-se  pouco  a  pouco 
enchendo  de  responsabilidades  novas.  A 
maior  que  tem  é  a  de  bem  servir  os  pobres 
do  Hospital  da  Misericórdia.  .  . 


—  199  — 

Escreveu  ha  pouco  tempo  uma  das  nos- 
sas sumidades  médicas,  o  Dr.  Austregésilo, 
quando  de  volta  de  uma  viagem  a  Buenos 
Aires,  que  o  progresso  dessa  grande  capi- 
tal está  manifesto  no  modo  por  que  ela  man- 
tém e  dirige  os  seus  hospitais.  O  coração 
de  um  povo  espelha-se  nas  suas  enferma- 
rias para  os  indigentes.  Nem  é  precisa  outra 
prova:  terra  que  tenha  um  hospital  perfei- 
to, é  terra  civilisada.  Não  faltariam  outras 
manifestações  de  adeantamento  físico  e  mo- 
ral para  bem  impressionar  o  espírito  do  nos- 
so compatriota  na  Argentina,  mas  ele  fi- 
xou-se  nesta  como  a  de  mais  bela  e  altruis- 
tica  significação.  De  facto,  quando  os  ho- 
mens só  se  interessam  pela  política,  que  lhes 
satisfaz  as  ambições;  ou  por  especula- 
ções que  os  enriqueçam;  ou  por  vaida- 
des e  gozos  que  afaguem  as  exigências 
do  seu  egoism.),  sempre  vivo  e  ansioso, 
esses  homens  trabalham  menos  pela  co- 
munidade do  que  para  si,  embora  o  seu  es- 
forço, directa  ou  indirectamente  faça  cons- 
truir belas  cousas  materiais  e  anime  sober- 
bas creações  de  arte,  que  a  todos  envaide- 


200 


cem  ou  inebriam.  Tudo  isso  é  inteligência, 
não  é  coração.  Quando  porém  acima  de  to- 
das as  preocupações,  o  homem  demonstra 
a  de  suavisar  na  humanidade  o  que  ela  tem 
de  mais  triste  e  de  mais  feio,  —  a  doença, 
e  leva  ainda  ás  classes  mais  desafortuna- 
das o  conforto  de  uma  assistência  cuida- 
dosa e  incansável,  então  sim,  atinge  o  que 
na  civilisação  ha  de  mais  perfeito,  exer- 
cendo a  caridade  pela  justiça,  o  dever  pela 
fraternidade. 

A  Santa  Casa  de  Misericórdia  de  Pelo- 
tas, não  é  só  uma  casa  feita  para  alívio  dos 
tristes  e  em  que  tudo  está  organizado  com 
inteligência  e  mantido  com  ordem,  é  tam- 
bém um  hospital  de  expressão  alegre.  Pôde 
parecer  paradoxal  dar-se  esse  epíteto  a  um 
lugar  destinado  ao  sofrimento  e  á  dôr,  mas 
ele  é  perfeitamente  cabível  neste  caso,  e  está 
nisto  a  sua  principal  feição  de  simpatia  e 
de  modernismo.  Tudo  nele  é  nítido,  res- 
plandecente, polido,  sujeito  ás  regras  de  hi- 
giene a  mais  intransigente. 

Ha  plantas  nos  corredores,  águas  corren- 
tes nos  lavatórios,  tiragens  de  ar  nas  enfer- 


—  201  — 

marias,  ramos  de  flores  nos  quartos  parti- 
culares e,  embora  tudo  me  pareça  ter  sido  já 
previsto  e  executado,  falam-me  ainda  em 
projectos  de  novas  instalações  e  no  desejo 
de  construi rem  paviLhões  isolados,  cercados 
por  jardins. 

Lamentam  então  a  falta  de  terreno,  que 
não  permite  ao  hospital  abrir  ainda  mais 
os  seus  braços  caritativos.  A  mim,  entretan- 
to, parece  espantoso  que  para  uma  cidade 
que  á  minha  vista  se  afigura  pequena,  seja 
necessária  uma  organização  hospitalar  de 
proporções  tão  vastas. 

Um  médico,  a  quem  eu  manifesto  esta 
impressão,  respondc-me  que  para  a  cidade 
de  Pelotas  vêem  doentes  de  toda  a  parte  do 
Estado,  atraídos  pela  superioridade  dos  seus 
hospitais  e  da  sua  Santa  Casa  de  Miseri- 
córdia. 

A  ser  exacta  a  teoria  de  que  a  civilisa- 
ção  de  uma  terra  pôde  ser  julgada  pelo  mo- 
do por  que  ela  socorre  e  ampara  a  sua  popu- 
lação enferma,  que  se  ha  de  pensar  desta 
cidade? 


202 


Tinha-me  dito  a  bordo  um  inglês,  co- 
nhecedor do  Brasil,  de  Norte  a  Sul,  que  em 
parte  alguma  deste  país  os  homens  se  po- 
dem gabar  de  ter  um  club  tão  completo 
nem  tão  luxuoso  como  o  Club  Comercial 
de  Pelotas. 

Até  parece  feito  por  ingleses! 

A   opinião   devia   ter   peso. 

Na  Inglaterra  nenhum  homem  se  pôde 
considerar  verdadeiramente  gentlemnn  se 
não  puder  gozar  da  prerogativa  que  lhe 
confere  o  seu  direito  de  contribuinte  para 
ir  lêr  o  seu  jornal  numa  maiplc  do  club,  em 
vez  de  o  lêr  na  amiga  poltrona  familiar,  ou 
perder  dinheiro  jogando  cartas  com  os  seus 
consócios,  em  vez  de  o  não  perder  nas  parti- 
das do  pocker  caseiro.  O  club  é  assim  para 
eles  como  que  uma  espécie  de  segundo 
home,  onde  teem  os  seus  confortos  sem  te- 
rem maçadas,  e  as  suas  distracções,  ás  ve- 
zes bem  terríveis.  .  . 

Conheço  um  fidalgo  espanhol,  que  tro- 
ca Madrid  por  Buenos  Aires,  só  para  fugir 
do  Cassino,  o  lindo  Cassino  da  Callc  de 
Alcalá,  onde  se  tem  arruinado  várias  vezes 


20.'í 


de  um  modo  absoluto.  Na  Argentina  não 
joga.  Nas  praias  de  banhos  e  nas  estações 
de  águas  onde  toda  a  gente  passa  a  vida  na 
roleta,  ele  não  joga;  sabe  resistir.  No  pró- 
prio Monte  Cario  conseguiu  sem  heroismo 
da  vontade  dominar  a  fascinação  do  pano 
verde;  mas  no  seu  club,  entre  a  sua  gente, 
todo  o  seu  esforço  de  resistcMicia  é  vão.  sen- 
te-se  na  vertigem  e  atira-se  para  o  abismo 
de  corpo  e  alma.  Depois  de  ter  passado  al- 
guns anos  em  Buenos  Aires,  sem  pegar  numa 
carta  nem  tentar  a  fortuna  do  azar,  voltou 
um  dia  a  Madrid  e  logo  nessa  tarde,  após 
uma  v^olta  pelo  Prado,  viu-se  sentado  no  seu 
lugar  do  Cassino,  tão  naturalmente  como 
se  entre  a  última  vez  que  ali  estivera  c  esta 
agora,  não  tivesse  mediado  senão  o  espaço 
de  curtas  horas. 

Este  perigo  das  instalações  confortá- 
veis, pôde  existir  no  Club  Comercial  de  Pe- 
lotas, cujos  salões  estão  guarnecidos  de  mo- 
biliário rico,   tapeçarias  e  alfaias  de  luxo. 

De  resto,  o  bom  gosto  na  organização  de 
interiores,  arte  subtil  e  deliciosa,  dizem  ser 
um   dos  apanágios  da  sociedade   pelotense, 


—  204  — 

que  viaja  muito,  observa  muito,  e  vive  ca- 
rinhosamente, como  numa  só  familia. 

Terra  de  nomes  e  de  fortunas  tradicio- 
nais, com  o  seu  caracter  especial,  uma  acen- 
tuada pontinha  de  bairrismo  e  grande  ar- 
dor patriótico,  ela  vibra  toda  agora  na  cam- 
panha nacionalista,  propagada  pelas  pa- 
lavras, cheias  de  mocidade,  de  Fernando 
Osório  e  Maciel  Moreira,  que  se  não  can- 
sam de  escrever  livros,  folhetos  e  discursos, 
incitando  a  juventude  a  bem  servir  e  de- 
fender a  pátria.  Teem  estes  senhores  traba- 
lhado muito  para  animar  a  organização  do 
escotismo  no  seu  Estado,  Este  esforço  põe 
de  pé  deante  de  mim  a  figura  de  uma  brasi- 
leira que  fui  conhecer  em  Paris,  e  que  nessa 
capital  dedicava  todo  o  seu  tempo  ao  estudo 
do  que  pudesse  ser  benéfico  ao  seu  país. 

Foi  ela  quem  primeiro  e  mais  activa- 
mente se  interessou  pela  introdução  do  es- 
cotismo no  Brasil,  e  isso  mesmo  ouvi  num 
brilhante  discurso  feito  pelo  Dr.  Bruno 
Chaves  num  sarau  literário  da  Biblioteca, 
onde  o  orador  se  referiu  ao  nome  de  jeróni- 


20.J 


m'a  Mesquita,  com  a  distinção  que  ele  me- 
rece. 

Nestas  páginas,  que  são  apenas  umas 
pequeninas  crónicas  de  horas  vividas  á 
pressa,  e  em  que  procuro  registar  o  que 
vejo  e  o  (|ue  sinto,  quero  deixar  fixada  a 
doce  impressão  que  me  causou  ouvir  falar, 
com  justo  elogio,  de  uma  amiga  ausente.  .  . 


A  semana  corre  ligeira.  Assisto  a  festas 
animadas:  quermesses;  chás  dançantes  em 
benefício  da  Cruz  Vermelha;  partidas  de 
Tcnnis  no  Spori  Club,  onde  vejo  reunida  a 
fina  flor  da  sociedade  pelotense ;  passeios,  vi- 
sitas, recepções  em  (]ue  oiço  dizer  versos  dos 
poetas  do  sul,  e  um  adorável  almoço  em  que 
uma  senhora  de  cabelos  de  neve  e  várias  ve- 
zes av(3,  me  conta  com  fino  espírito  alguns 
episódios  das  suas  viagens,  e  cousas  passa- 
das em  Roma  com  um  nosso  amigo  comum. 

De  todas  as  brasileiras  é  talvez  a  rio- 
grandense  a  que  melhor  sabe  guardar  na 
velhice  uma  certa  graça  e  uma  frescura  de 


20(i 


espirito  que  tornam  a  sua  presença  sempre 
atraente  e  agradável.  Em  geral,  nós  não  sa- 
bemos envelhecer.  Aceitamos  como  um  es- 
tigma os  sinais  que  o  Tempo,  com  mão  ine- 
xorável traça  em  nosso  rosto.  Humilha- 
das, tratamos  de  apagar-nos,  como  se  ti- 
véssemos culpa  da  transformação  física  de 
que  somos  victimas.  Por  essa  espécie  de  pu- 
dor das  rugas,  em  que  a  nossa  vaidade  se 
sente  espesinhada,  mais  do  que  por  qual- 
quer outra  razão,  são  raras  as  senhoras  ve- 
lhas que  sejam  interessantes,  que  tenham 
opiniões,  saibam  defende-las  e  encham  de 
sorridente  amenidade  uma  hora  de  palestra 
em  um  salão.  E  é  tão  leve  e  tão  bonita,  essa 
exuberância  de  vida  que  prolonga  até  aos 
dias  da  maior  decadência  física,  um  clarão 
de  mocidade  intelectual  c  moral! 

E'  esta  encantadora  velhinha  que  me 
chama  a  atenção  para  o  sabor  especialíssi- 
mo dos  doces  de  Pelotas.  Oh,  um   pí^ema! 

Estes,  sim  senhores,  merecem  todos  os 
meus  cumprimentos. 

Não  sei  se  por  aqui  houve  conventos, 
mas  se  não   foram   ensinadas   por  mãos  de 


207 


freiras,  exímias  na  fabricação  de  guloseimas, 
cairam  do  céu  para  as  cozinhas  pelotenses 
as  receitas  destes  papinhos  de  anjos,  casadi- 
nhas  fofas  e  queijinhos  de  ovo,  que  tenho 
no  meu  prato  e  que  são  mesmo  uma  ten- 
tação! 

Eu  já  sabia  serem  famosas  as  passas  de 
pêcego,  que  nesta  cidade  se  fazem  como  em 
parte  alguma,  mas  para  a  delícia  das  ou- 
tras complicações  de  ovos  e  açúcar  é  que 
não  estava  prevenida.  Pois  é  uma  especiali- 
dade digna  de  menção,  não  só  pela  maneira 
por  que  ela  agrada  á  vista  como  pelo  bem 
que  sabe. . .  ao  coração. 


Reparo  que  todas  as  pessoas  íntimas 
da  bôa  sociedade  no  Rio  Grande  se  tratam 
por  tu.  Fala-se,  em  geral,  mais  correcta- 
mente do  que  entre  nós.  Ha  diferenças  sen- 
síveis no  sutaque;  mas  o  sutaque  não  im- 
porta. 

A  sintaxe  é  c|ue  é  tudo.  F^lcs  aqui  acham 
graça  no  que  chamam:  o  chiado  do  Rio,  e 
que  é  o  som  molhado  dos  nossos  plurais. 


208 


Na  sala  em  que  estou,  oiço  a  uma  linda 
pelotense  de  dezoito  anos  dizer  a  outra  me- 
nina da  sua  idade:  —  "Como  estás  tu?  Es- 
perei-te  ontem.  ... 

■ — "Não  pude  vir  mas  aqui  me  tens  hoje." 
Francamente,  não  foi  muito  mais  bonito 
e  cordial  assim,  do  que  se  dissessem: 

—  Como  está?  esperei  você  ontem.  .  .  ? 

—  Não  pude  vir  mas  você  aqui  me  tem 
hoje? 


A  criada  do  hotel  Aliança,  em  que  me 
hospedo,  vem  dizer-me  de  manhã  que  os 
telhados  fronteiros  estão  brancos  de  neve  e 
se  quero  que  abra  a  janela  para  os  vêr.  Di- 
go-lhe  que  sim. 

Ela  escancara  as  vidraças  com  gesto  trá- 
gico, persuadida  de  que  me  vai  fornecer  um 
espectáculo  nunca  antes  presenciado  em  mi- 
nha vida.  Não  posso  retribuir  a  bòa  vontade 
da  bôa  mulher  com  a  exclamação  de  sur- 
preza  que  ela  espera,  porque  mal  distingo 
uma  espécie  de  neblinazinha  errante  sobre 
a  superficie  porosa  e  grosseira  das  telhas  do 


209 


visinho;  em  todo  caso  tenho  que  conchegar 
ao  corpo  a  roupa  que  me  cobre.  —  Estão 
três  graus  abaixo  de  zero,  informa  ainda  a 
serviçal  Maria. 

Creio  bem. 

Este  dia  estava  destinado  a  um  passeio 
de  automóvel  pelos  arrozais  do  coronel  Pe- 
dro Osório,  e  a  algumas  visitas.  E'  o  dia 
do  adeus,  o  dia  sempre  melancólico,  de 
partir.  .  . 

Uma  telefonada  avisa-me  de  que  o  máu 
estado  das  estradas  impede  a  excursão  aos 
campos  do  arroz.  Desço  então  sozinha  a  pas- 
sear a  pé  pela  cidade.  Como  na  primeira 
vez  que  nela  pisei  sinto  ainda  a  falta  da 
árvore,  quer  nas  suas  ruas  quer  debruçada 
de  algum  dos  seus  muros. 

O  hábito  que  temos  no  Rio  e  em  S.  Pau- 
lo de  vêr  vegetação,  acostuma-nos  os  olhos 
á  côr  verde  de  uma  tal* maneira,  que  ela  se 
torna  para  eles  uma  necessidade. 

Como  na  Europa,  as  lojas  principais  es- 
tão defendidas  do  frio  c  do  pó  das  ruas  por 
portas  móveis  de  vidraça.  Empurro  a  de 
uma  livraria  e  entro  á  procura  de  um  ro- 

.íornada.s  —  Jiiiia  Lopes  1.4 


210 


mance  português,  de  Aquilino  Ribeiro,  que 
ouvi  elogiar  e  cuja  remessa  se  esgotou  den- 
tro de  poucos  dias  no  Sul. 

Estou  na  livraria  Echenique,  a  melhor 
de  Pelotas.  Pergunto  pelo  movimento  de 
livros  na  cidade.  Respondem-me  que  se  lê 
muito. 

E'  uma  sensação  animadora  esta,  que  re- 
cebo em  pleno  seio,  de  brochuras  e  revistas 
abertas. 

Lê-se,  e  lê-se  principalmente  na  nossa 
lingua,  o  que  é  ainda  mais  admirável.  .  . 

A  mania  de  só  ler  francês  e  de  só  achar 
bonito  o  que  é  escrito  em  francês,  não  con- 
taminou ainda  estes  espíritos  mais  positivos 
e  mais  francos.  Vagueio  ainda  pela  cidade, 
até  a  hora  em  que  deverei  fechar  a  minha 
mala  e  partir.  .  . 


XXXIII 
RIO  GRANDE 


Chego  ao  entardecer  á  velha  cidade  ma- 
rítima do  Rio  Grande  do  Sul.  Um  cheiro 
confuso  de  terra  húmida  e  de  maresia  es- 
palha-se  pesadamente  pelo  ambiente  cala- 
do. Como  o  hotel  que  me  indicam  como  o 
principal  fica  a  pequena  distancia  da  esta- 
ção, sigo  para  ele  a  pé,  por  uma  rua  quasi 
deserta.  Uma  badalada  de  sino  tremula  no 
ar  e  vem  dizer  não  sei  que  segredos  nostál- 
gicos ao  meu  espírito  que  se  retráe  tristo- 
nhamente. .  . 

Por  onde  quer  que  eu  ande,  sinto  falta 
cm  alguém  que  sabendo  a  fundo  a  historia 
e  a  crónica  destas  terras,  de  que  é  talvez  uma 
das  mais  características  esta  em  que  agora 
estou,  me  faça  notar  o  que  nelas  ainda  possa 


—  212  — 

haver  de  original  e  de  típico,  visto  que  já 
agora  no  Brasil,  só  na  paisagem  logra  um 
viajante  encontrar  certo  motivo  de  novida- 
de, tão  semelhante  é  entre  si  a  vida  das  suas 
populações,  pelo  menos  no  que  essa  vida 
tem  de  aparente. 

Pois  esta  cidade  do  Rio  Grande  dá-me 
a  impressão  de  ser  um  cofre  de  recordações. 
E'  uma  verdadeira  terra  maruja,  onde  co- 
meçam a  aparecer  contrastes.  Sente-se  que, 
cm  alguns  pontos  ela  permanece  como  nos 
tempos  da  sua  fundação,  com  ruas  silencio- 
sas e  vielas  sujas,  em  que  a  imaginação  de 
um  romancista,  mesmo  o  mais  moderno,  po- 
deria colocar  em  ambiente  próprio  as  suas 
heroinas  apaixonadas  e  submetidas  a  todos 
os  rigores  paternos:  casamentos  obrigató- 
rios, idas  para  o  convento  e  outras  aventu- 
ras camilianas  de  raptos,  envenenamentos, 
cartas  empapadas  em  lágrimas,  suicídios  e 
toda  a  magna  caterva  de  sentimentalidades 
descabeladas  que  abarrotavam  os  volumes 
de   1830. 

Ao  mesmo  tempo,  nesta  mesma  cidade, 
outro    romancista    igualmente    verdadeiro, 


213 


poderia  descrever  quadros  arejados,  em  am- 
biente próprio,  á  moderna,  com  cassinos  de 
praia  em  que  se  joga;  meninas  á  america- 
na que  andam  sós;  grandes  estabelecimen- 
tos industriais  frigoríficos  que  elevam  para 
os  céus  profundos  os  seus  vários  andares  de 
cimento  armado,  e  clubs  em  que  se  faz  ex- 
celente musica  e  em  que  se  conversa  muito 
agradavelmente.  E'  uma  cidade  quieta,  pro- 
vinciana, com  hábitos  burguezes  e  beatos 
mas  que  pelo  seu  novo  porto  e  excelente  cais, 
recebe  agora  em  pleno  peito  todo  o  influxo, 
das  civilisações  distantes.  A  sua  transforma- 
ção será  rápida,  tanto  mais  que  a  sua  popu- 
lação me  parece  muito  inteligente,  traba- 
lhadora e  sensata. 

Como  nas  outras  hjcalidades  do  Estado, 
vejo-me  sempre  rodeada  de  mulheres  amá- 
veis e  interessantes. 

Ha  entre  estas  uma,  a  bem  dizer  ainda 
criança,  cuja  cabeça  loira  de  finos  cabelos 
revoltos,  faz-me  pensar  na  noiva  de  David 
Coperfield.  Somente,  que  diferença  moral 
entre  a  leviana  Dora  e  esta  criaturinha,  que 
é  já  uma  educadora,  e  que  ensina,  espalhan- 


—  214  — 

do  com  as  suas  mãozinhas  de  princeza  des- 
terrada, carícias  sobre  as  cabeças  das  crian- 
cinhas pobres.  .  . 

Como  em  todas  as  outras  cidades  passo 
horas  aqui  a  visitar  asilos  e  escolas;  vejo  as 
rudimentares;  assisto  a  magnificas  aulas  no 
Ginásio;  demoro-me  a  folhear  livros  na  Bi- 
bliotheca  Pública,  a  mais  antiga  do  Estado 
e  que  dispõe,  como  a  de  Pelotas,  de  um  bom 
salão  para  conferências. 

E'  bem  expressivo  isto  de  se  encontrar 
em  cada  uma  das  principais  cidades  rio- 
grandenses  uma  biblioteca  pública,  grande 
e  bem  organizada. 


E'  noite.  O  carro  que  me  leva  atravessa 
um  bairro  baixo,  que  as  chuvas  inundaram 
transformando-lhe  as  ruas  em  rios. 

Agora,  passada  a  enchente,  sinto  que  as 
rodas  do  veículo  se  vão  afundando  em  lodo 
grosso  até  pararem  em  frente  a  uma  casa 
fechada. 

Hesito  em  bater,  mas  decido-me.  Dentro 
de   curtos   instantes   vejo-me   numa   salinha 


215 


agasalhada,  em  face  das  duas  irmãs  Julieta 
e  Revocata  de  Melo,  que  ha  longos  anos  cul- 
tivam sem  desânimo  a  literatura,  escreven- 
do livros  e  publicando  regularissimamente 
um  jornal  onde  comentam  o  movimento  es- 
piritual do  pais.  Espanta-me  tamanha  ener- 
gia e  tão  paciente  tenacidade  em  duas  pes- 
soas idosas,  de  aparência  tão  frágil  e  ás 
quais  as  tempestades  da  vida  teem  sacudido 
por  vezes  brutalmente. 

A  natureza  tem  segredos  curiosos  e  o 
destino  das  cousas  outros  não  menos  interes- 
santes. .  .  Quantas  e  quantas  revistas  e  jor- 
nais, criados  entre  nós  com  o  bafejo  de  gor- 
dos capitais  e  de  grandes  nomes  feitos  nos 
maiores  centros  brasileiros,  sossobram  mal 
dão  os  seus  primeiros  passos  na  existência,  e 
entretanto  a  modesta  folha  escrita  por  estas 
diáfanas  mãos  femininas,  já  cansadas  mas 
não  desiludidas,  logra  varar  o  tempo  du- 
rante anos  e  anos,  ininterrompidamente! 

E'  mais  uma  prova,  e  bem  expressiva, 
da  energia  da  mulher  rio-grandense. 


—  216  — 

—  Uma  lenda?  ora  graças! 

—  Pouco  mais  ou  menos,  respondeu-me 
alguém  pousando  a  mão  no  espaldar  alto  e 
esguio  de  uma  cadeira  acolxoada  de  sedas 
vistosas,  e  que  figurava  ao  lado  da  mesa  de 
trabalho  do  Sr.  Intendente  Municipal. 

—  Conte  lá,  que  eu  não  perdi  o  costume 
de  gostar  de  histórias.  .  . 

—  Isto  representa  um  caso  de  simpatia 
e  nada  mais.  Quando  o  actual  intendente  to- 
mou posse  do  lugar,  como  os  seus  anteces- 
sores tivessem  morrido  em  pleno  exercício 
das  suas  funções  governativas,  a  cadeira  da 
Intendência  Municipal  começava  a  ser  con- 
siderada pelo  nosso  povo  como  fatídica.  Foi 
então  que  os  portugueses  da  Ilha  dos  Ma- 
rinheiros, localidade  próxima  de  imensa 
prosperidade  e  intensíssimo  movimento 
agrícola,  lhe  ofereceram  esta,  para  que  o  no- 
vo intendente,  por  cuja  vida  eles  se  interes- 
savam, não  sucumbisse  á  giiigne  da  outra. 

Ora,  embora  esta  outra  continue  a  ser- 
vir, é  justo  que  a  cadeira  votiva  se  conserve 
em  lugar  evidente  no  salão  da  Intendência, 


217 


como  símbolo  da  bondade  espontânea  da 
alma  popular.  .  . 

—  E  essa  Ilha  dos  Marinheiros?.  .  . 

- —  E'  um  grão  de  oiro;  o  mais  fecundo 
de  todo  o  Estado.  Só  a  sua  lavoura  enche 
vapores  e  vapores  de  productos,  que  exporta 
para  o  norte  e  para  as  repúblicas  do  Prata. 
Alem  de  rica,  a  Ilha  dos  Marinheiros  é  um 
dos  lugares  mais  pitorescos  do  Sul. 


Impelida  pelo  movimento  comercial  e 
crescente  do  seu  porto,  que  dentro  de  alguns 
anos  terá  transformado  esta  cidade  laborio- 
sa mas  modesta,  numa  capital  de  considerá- 
vel importância,  o  Rio  Grande  se  espre- 
guiçará um  dia  até  ligar-se  a  Pelotas  por 
um  bosque  de  pinheiros  ou  de  eucaliptos 
que  saneiem  o  solo  e  aromatizem  o  ar,  ate- 
nuando ao  mesmo  tempo,  tanto  os  malefí- 
cios dos  terrenos  baixos  e  enxarcados,  como 
a  brancura  árida  dos  seus  areiais. 

Parece  que  esta  ideia  já  flutua  por  entre 
os  projectos  de  reformas,  e  de  futuros  me- 
lhoramentos municipais. 


—  218  — 

O  grande  impulso  para  a  realização 
desses  melhoramentos,  além  de  ser  dado 
pelo  novo  cais,  será  também  movido  pelos 
modernos  frigoríficos,  enormes  armazéns 
que  uma  famosa  empreza  americana  está 
construindo  e  que,  com  as  suas  instalações 
para  a  matança  do  gado,  para  a  esportação 
de  carnes  congeladas,  couros,  etc,  vem  sub- 
stituir as  tradicionais  xarqueadas,  que  im- 
pestam  o  ar  de  mau  cheiro  e  de  moscas, 
elementos  estes  não  só  contrários  á  saúde, 
como  ao  conforto,  á  elegância  e  á  felicidade 
da  vida. 

Nestes  frigoríficos,  em  poucos  minutos 
o  animal  é  reduzido  a  postas  para  bifes;  a 
couro,  para  sapatos;  a  pó  de  osso,  para  adu- 
bo de  rosas ;  sem  que  aos  ouvidos  de  ninguém 
chegue  o  som  maguado  de  um  gemido,  nem 
ás  narinas  o  menor  vestígio  desagradável  ao 
olfato.  Só  isso,  meus  amigos,  que  benefício! 

E'  possível,  entretanto,  que  pelo  menos 
nos  seus  primeiros  tempos,  essa  empreza 
suscite  uma  certa  crise  no  comércio  do  Es- 
tado. São  os  inevitáveis  percalços  das  refor- 
mas radicais.  .  .   porque  os  criadores,  saben- 


219 


do  que  os  americanos  pagam  bem  a  sua  mer- 
cadoria, bem  possivelmente  preferirão  ven- 
der-lhes,  a  eles,  o  seu  gado,  e  assim  os  xar- 
queadores  brasileiros  começarão  a  sofrer  as 
desvantagens  de  uma  concorrência  de  tão 
grandes  proporções. 

Passado  o  desequilíbrio  do  momento, 
caso  ele  se  dê,  concordarão  todos  na  exce- 
lência destes  novos  sistemas  de  matança 
expedita  e  asseada. 

O  frigorífico  que  eu  visito,  edificado  á 
beira  mar,  entre  colxões  de  areia  em  que  os 
pés  se  afundam,  tem  o  salão  da  —  Morte  — 
no  seu  andar  mais  alto,  talvez  para  que  a 
alma  do  sacrificado  suba  ao  céu  com  menor 
trabalho.  Mesmo  nos  propósitos  mais  egois- 
tas  dos  homens,  pôde  residir  um  fundo 
de  inconsciente  piedade...  Para  não  dar  aos 
bichos  a  sensação,  nem  sempre  agradável,  do 
ascensor,  nem  os  obrigar  a  subir  degraus,  ao 
que  não  se  sujeitariam  de  bom  grado,  fize- 
ram em  aclive  suave  uma  rampa  que  vai 
desde  a  praia  até  ao  alto  do  edifício,  para 
que  os  bois  subam  por  ela  sem  resistência 
até  ao  patíbulo  que  os  espera. 


220 


Também  eu  subi  essa  rampa,  e,  não  di- 
rei que  a  subi  com  perfeita  impassibilidade, 
porque  tive  pena  dos  pobres  animais.  .  . 

Mas  estas  cousas  não  se  confessam  em 
terras  gaúchas,  onde  o  hábito  de  vêr  matar 
e  carnear  o  gado,  torna  o  acto  da  matança 
uma  cousa  perfeitamente  indiferente... 

Do  salão  da  Morte  descemos  a  outros 
salões  e  percorremos  terraços  amplos,  em 
face  do  largo  mar  de  um  azul  forte  que  o 
vento  encrespa. 

Ha  mais  de  uma  hora  que  não  oiço  ao 
redor  de  mim  senão  vozes  inglesas.  Dir-se 
ia  que  estou  em  um  dos  empórios  industriais 
americanos,  entre  caras  côr  de  lagosta  e  ca- 
belos côr  de  milho,  tantos  são  os  operários 
desse  país  que  borborinham  por  entre  os 
blocos  de  cimento,  as  vigas  de  aço,  e  as  gran- 
des vidraças  corredias  dos  seus  armazéns 
e  dos  seus  escritórios. 


Atravessávamos  o  bonito  jardim  da  Pra- 
ça Tamandaré,  quando  parei,  de  súbito, 
vendo  diante  de  mim  a  estátua  de  Bento 


221 


Gonçalves,  toda  destacada  no  fundo  violá- 
ceo da  manhã  fria.  O  coração  bateu-me  no 
peito.  Ha  muito  que  eu  não  sentia  uma  emo- 
ção de  arte,  e  creio  que  escandalisei  com  as 
minhas  incontidas  exclamações  de  entusias- 
mo os  poucos  pássaros  que  por  ali  se  entre- 
tinham a  debicar  nos  gramados  tostados 
pela  geada. 

Já  em  Porto  Alegre  Filipe  de  Oliveira 
me  tinha  falado  com  emoção  desta  escultura 
do  grande  mestre  que  é  Teixeira  Lopes. 
Conhecendo  a  sua  obra,  e  admirando  nela 
tudo  quanto  de  mais  prodigioso,  sugestivo 
e  belo  podem  realizar  o  talento,  o  sentimento 
e  a  técnica  de  um  artista  tão  excepcional 
como  ele  é,  foi  ainda  assim  no  abalo  de  uma 
maravilhosa  surpreza,  como  se  a  cousa  fos- 
se inesperada,  que  eu  contemplei  esse  mo- 
numento, digno  de  uma  bela,  de  uma  gran- 
de capital  de  arte. 

E^m  pé,  no  alto  de  um  pedestal  de  li- 
nhas harmoniosas,  o  guerreiro  Bento  Gon- 
çalves, fardado  de  general,  aperta  com  o 
braço  esquerdo,  freneticamente  de  encon- 
tro ao  peito  a  bandeira  que  toda  lhe  escorre 


—  222  —     . 

pelo  flanco,  enquanto  com  o  outro  braço 
estendido,  segura  na  destra  a  espada  núa, 
que  se  desenha  no  ar  em  linha  oblíqua. 

Ergue-se-lhe  a  cabeça  num  gesto  altivo, 
sente-se-lhe  a  vóz  imperativa  na  boca  aberta 
e  fremente;  todo  ele  é  força  viva,  todo  ele 
é  vibração,  todo  ele  significa:  coração  pa- 
ra amar,  braço  para  defender,  vóz  para 
aclamar  a  Pátria! 

A  seus  pés,  a  meio  pedestal,  lutam  dois 
formosíssimos  leões,  símbolos  da  Monar- 
quia e  da  República.  Esta  está  subjugada, 
mas  não  morta. 

Sente-se-lhe  na  dureza  do  bronze  o  la- 
tejar da  carne,  a  nervosidade  da  cauda,  o 
desespero  das  garras  crispadas  e  que  fazem 
prever  que  de  um  instante  para  o  outro,  o 
papel  dos  lutadores  possa  ser  invertido;  o 
outro  leão,  em  atitude  altiva  de  rancor  e  de 
orgulho,  pousa  as  patas  dianteiras  sobre  o 
ventre  do  inimigo,  e  olha  para  deante  com 
expressão  de  domínio  e  de  ódio. 

O  escultor  profético  não  dilacerou  a  fe- 
ra vencida;  ela  está  por  terra  mas  toda  ela 
é  vida  que  se  contrai,  que  sofre,  mas  que  es- 


CASTi:],L()  ASSIS   15KAZI!. 


223 


pêra.  .  .  E  o  que  ela  conseguiu,  todos  nós 
o  sabemos.  .  . 

Bastaria  esta  hora  de  contemplação,  que 
passou  tão  rápida  mas  que  se  cristalisou 
para  sempre  na  minha  memória,  para  me 
dar  por  feliz  nesta  viagem. 

São  raros,  mesmo  nas  capitais  mais  ar- 
tísticas do  mundo,  monumentos  de  praça 
pública  que  saibam  aliar,  como  este  alia,  a 
harmonia  á  magestade  e  a  expressão  do  sen- 
timento á  perfeição  técnica  da  obra.  Aben- 
çoado quem  se  lembrou  de  confiar  ao  artista, 
que  é  hoje  não  uma  glória  de  Portugal  mas 
uma  glória  da  Europa,  o  que  equivale  a  di- 
zer do  mundo,  a  execução  de  tamanha  ho- 
menagem. 

Pegam-se-me  os  pés  ao  chão;  é  pela  ur- 
gência das  circunstâncias  que,  fazendo  vio- 
lência sobre  mim  mesma,  abandono  o  meu 
posto  de  admiração  feliz.  E  até  entrar  no 
carro,  ao  atravessar  a  praça  Tamandaré, 
volto  a  cabeça  para  vêr,  enquanto  posso,,  a 
estátua   admirável.  .  . 


XXXIV 

PEDRAS  ALTAS 

Milita  gente  terá  inveja  de  mim,  quando 
souber  que  já  estive  no  castelo  de  Assis  Bra- 
sil, em  Pedras  Altas.  E  terá  razão.  Rodeado 
por  altas  árvores  e  lindos  prados  da  sua 
granja  modelar,  com  as  suas  torres  de  pedra 
em  ameias  descortinando  largos  horizontes, 
esta  linda  residência  senhorial,  edificada  e 
planejada  pelo  seu  proprietário,  com  tama- 
nho gosto  e  tanto  carinho,  traz-me  á  lem- 
brança doces  recantos  da  Europa,  visões 
suaves  do  campo  inglês  ou  da  verde  Irlan- 
da. E  esta  impressão  do  exterior  acentua-se 
dentro  da  sala  de  mobiliário  severo,  onde 
ha  quadros  originais  pelas  paredes  e  arde 
o  lume  no  braseiro  de  um  fogão  ladeado  de 


225 


poltronas,  em  que  a  família  reunida  conver- 
sa entre  si,  frequentemente  em  inglês. 

Lá  fora  o  vento  frigidíssimo  vergasta 
a  doce  laranjeira  carregada  de  frutas  e  plan- 
tada mesmo  rente  aos  degraus  da  entrada 
principal.  Nesta  casa  amiga  de  tradições,  a 
querida  árvore  que  lhe  está  á  porta  e  de  que 
é  proibido  tocar-se  siquer  num  fruto,  é  a 
representação  de  um  caso  histórico  da  pro- 
priedade, e  como  que  um  doce  símbolo  da 
sua  felicidade  doméstica.  .  . 

E,  como  em  parte  nenhuma  do  Rio 
Grande,  encontro  neste  lar  o  amor  pelas  coi- 
sas, os  usos  e  os  costumes  regionais. 

E'  junto  ao  fogão  á  europeia  da  sua  sa- 
la, que  eu  tomo  pela  primeira  vez  mate  chi- 
marrão  na  respectiva  cuia  com  bomba  de 
prata,  conforme  o  uso  tradicional  da  terra, 
e  que  vejo  lindas  mãos  femininas  entran- 
çarem com  destreza  longos  fios  de  uma  gra- 
mínia  para  me  mf)strarem  os  vários  mode- 
los típicos  do  enastramento  dos  chicotes  e 
dos  arreios  gaúchos,  feitos  com  finas  tiras 
de  couro. 

Jornadas  —  .Júlia   Lopes  15 


226 


Durante  o  dia  passeia-se,  á  noite  con- 
versa-se  no  abrigo  quentinho  da  sala,  en- 
quanto uma  das  meninas  canta  e  a  dona  da 
casa  preside  ao  serão.  O  chefe  da  familia 
está  ausente,  passando  uma  temporada  em 
uma  das  suas  estâncias  visinhas  á  fronteira. 
Tem  de  dividir  o  seu  tempo  pelas  suas  ter- 
ras e  divide-o  com  todo  o  rigor,  porque  a  sua 
actividade  física  para  o  trabalho  só  pôde 
ser  igualada  á  sua  capacidade  intelectual. 
Com  propriedades  importantes  em  diferen- 
tes pontos  do  Estado,  e  dirigindo  todas  de 
modo  superior,  ele  tem  de  repartir  por 
elas  a  sua  atenção,  achando  ainda  modo  de 
fazer,  quando  de  passagem  entre  umas  e  ou- 
tras, na  cidade  que  lhe  fique  em  caminho, 
conferências  que  elucidem  e  instruam  o 
povo.  Não  cessa  assim  este  homem  de  es- 
tudo e  de  gabinete,  que  por  tantos  anos  foi 
um  dos  nossos  mais  brilhantes  ministros  no 
estrangeiro,  e  que  é  um  dos  nossos  estadis- 
tas de  mais  larga  visão,  de  lançar  nos  cam- 
pos da  lavoura  e  nos  da  inteligência  a  se- 
mente próvida  da  bòa  cultura,  com  os  exem- 


—  227  — 

pios  das  suas  observações  práticas  e  das  suas 
idealisações. 

Diz-me  alguém  que  o  vê  frequentemen- 
te em  acidentais  encontros  de  caminho  de 
ferro,  todo  vestido  de  linho  azul  que  lhe 
faz  sobresair  o  moreno  da  face  e  a  alvura 
da  cabeleira,  com  perneiras  de  couro  ama- 
relo até  aos  joelhos  e  largo  chapéu  de  feltro, 
que,  sempre  que  o  ouve  em  momentâneas 
palestras  entre  uma  ou  outra  estação  da  li- 
nha, abre  bem  os  ouvidos  na  certeza  de  co- 
lher nesses  momentos  de  acaso,  qualquer 
cousa  de  utilidade  para  o  seu  pensamento  ou 
para  o  seu  trabalho. 

Considera-o  por  isso  um  verdadeiro  se- 
meador de  benefícios.  .  . 


Na  granja  das  Pedras  Altas,  não  se  co- 
nhece a  preguiça.  Informada  de  que  as  duas 
filhas  mais  novas  dos  donos  da  casa  fazem 
madrugada  para  tratarem,  elas  próprias, 
dos  terneiros  das  suas  vacas  Jersey,  saio  do 


228 


meu  quart(3  mal  vejo  clarear  o  dia  e  vou  es- 
pera-las no  jardim. 

Pouco  depois  eil-as  que  chegam,  com  a 
sua  faquinha  gaúcha  á  cinta  e  o  redondo 
chapéu  de  feltro  a  sombrear-lhes  os  rostos 
juvenis. 

Acompanho-as  na  sua  tarefa  de  boas  la- 
vradeiras,  vendo-as  mugir  as  vacas,  desna- 
tar o  leite,  preparar  a  nata  para  fabricação 
da  manteiga,  abrir  o  curral  aos  bezerros  e 
leva-los  para  o  pasto  tangendo  no  ar  uma 
varinha  leve  e  assobiando  de  vez  em  quando 
ao  gado  experto  mas  submisso. 

Quando  escrevi  o  meu  "Correio  da  Ro- 
ça", e  procurei  nele  insuflar  na  alma  das 
minhas  patrícias  que  vivem  no  campo  esse 
amor  pelas  cousas  e  os  seres  que  nele  consti- 
tuem toda  a  sua  fortuna  e  todo  o  seu  en- 
canto, disse  um  crítico  que  as  personagens 
femininas  desse  livro  seriam  interessan- 
tes, mas  eram  absolutamente  inverosímeis, 
em  vista  dos  nossos  hábitos  e  da  nossa 
educação...  Em  face  deste  exemplo  vi- 
vo, que  venho  encontrar    no    Rio    Grande, 


—  229  — 

numa  família  muito  mais  ilustrada  do  que  a 
que  figura  no  meu  livro,  e  de  outras  tradi- 
ções literárias,  sinto  que  não  errei  ao  dar 
ás  minhas  criaturas  espirituais  certa  ini- 
ciativa e  independência,  como  possíveis  de 
florescerem  entre  nós.  Ainda  assim,  quanto 
deveriam  elas  invejar  a  estas  gentilissimas 
gaúchas. . . 

E  como  a  nossa  terra  precisa  destas  de- 
voções! Sim,  mais  do  que  de  nenhumas  ou- 
tras ... 


Soltos,  os  terneiros  no  pasto  damos  al- 
gumas voltas  pelas  aléas  do  parque  onde 
encontro,  a  passear  lindos  cavalos,  peões  de 
gorro  escarlate  e  lenço  da  mesma  côr  ao 
pescoço.  E'  o  distintivo  dos  empregados  da 
casa,  a  nota  rútila  da  manhã  de  névoa,  tanto 
ás  vezes  um  ponto  insignificante  dá  a  qua- 
dros  importantíssimos,   valores   curiosos.  .  . 

Tenho  a  impressão  de  que  nesta  granja 
modelo  não  ha  nada  em  que  se  não  tenha 
pensado  mesmo  antes  da  sua  fundação. 


230 


As  cousas  teem  a  feição  que  a  vontade 
que  as  executou  quiz  que  elas  tivessem  des- 
de a  primitiva. 

Não  ha  aproveitamentos,  ha  criações. 
Tudo  foi  determinado  pela  vontade  de  um 
homem  de  gosto. 

Deixo  Pedras  Altas  com  saudade.  .  . 


XXXV 
BAGE' 

E'  curioso,  nesta  terra  em  que  os  trens 
de  ferro  gozam  da  má  fama  de  chegarem 
ás  respectivas  estações  com  atraso,  eu  tenho 
quasi  sempre  a  felicidade  de  chegar  no  ho- 
rário justo.  Os  amigos  que  me  esperam  so- 
frem com  isso  certo  desapontamento...  Quan- 
do entram  na  gare  para  receber-me,  já  eu 
lhes  estou  a  bater  á  porta. 

Em  Bagé,  o  carro  que  me  conduz  da  es- 
tação á  cidade,  cruza-se  com  outros  em  que 
pessoas  surprezas  voltam  para  mim  os  olhos 
com  expressão  de  espanto: 

—  Quê!  será  possivel  que  o  trem  tenha 
chegado  hoje  a  hora  certa?! 

—  Sim   senhores,   chegou,   que  assim  o 


232 


quiz  a  bôa  estrela  que  por  estas  bandas  do 
Sul  me  vem  guiando  os  passos. 

A  tarde,  luminosa  e  seca,  envolve  a  ale- 
gre cidade  da  campanha  num  véu  tecido 
com  poeira  loira  e  fulgurações  de  um  po- 
ente magnífico.  Como  em  muitos  dos  outros 
lugares  já  visitados,  o  horizonte  aqui  é  am- 
plo e  sugestivo.  Já  no  trem,  a  olhar  para  os 
campos  de  infinita  planura  onde  a  clari- 
dade se  diluia  numa  só  onda  larga  e  mole, 
estranhei  comigo  mesma  que  não  tivesse  sido 
um  rio-grandense  o  inventor  do  aeroplano. 
Não  conheço  região  alguma  em  que  se  veja 
tanto  céu,  nem  onde,  por  isso  mesmo,  o  ho- 
mem se  possa  queixar  com  maior  justiça 
de  não  ter  asas.  .  . 

A  sombra  trágica  das  montanhas  aluci- 
nadoras não  projecta  aqui  a  sua  taciturni- 
dade, nem  elas  com  os  seus  vultos  disformes 
interrompem  a  vastidão  da  campina,  que  se 
funde  ao  longe  com  o  azul  do  céu  numa 
linha  suave,  de  còr  intraduzível.  A's  vezes 
esses  campos  se  desdobram  todos  em  rugas 
achamalotadas,  a  que  chamam :  —  coxilhas, 
e  são  como  ondas  de  um  oceano  estático. 


233 


Mas  por  sobre  o  ondeamento  de  coxilhas 
ou  de  planuras  lisas,  a  mesma  sugestão  de 
liberdade  acorda  no  forasteiro  a  vontade 
de  percorrer  extensõe.s  largas  em  galopadas 
formidáveis  ou  em  voos  a  pequena  altura, 
A  pequena  altura,  por  que  suponho  ser  pre- 
ciso que  o  homem  não  se  afaste  demasia- 
damente da  terra,  para  poder  gozar  mais 
profunda  e  deleitosamente  todo  o  encanto 
do  seu  desprendimento.  Subir  de  mais,  é 
como  que  renunciar  a  tudo,  sentir  cortadas 
as  suas  raízes  terrestres,  ser,  no  isolamento 
do  vácuo,  como  que  um  ente  diverso,  per- 
dido, e  sem  pensamento.  .  . 


As  ruas  que  percorro  até  chegar  á  hos- 
pitaleira vivenda  de  Milton  e  de  Rosalina 
Cruz,  que  me  esperam  com  todo  o  coração, 
são  ruas  largas,  bem  alinhadas  e  algumas 
das  quais  arborizadas.  Agrada-me  esta  cir- 
cunstância, tão  pouco  comum  me  parece  no 
Rio  Grande  o  gosto  pela  arborização  urba- 
na. Pudesse  eu  ter  a  eloqíiência  de  um  An- 


234 


tonio  Vieira,  e  o  poder  sugestivo  de  S.  Fran- 
cisco de  Assis,  que  em  cada  burgo  ou  cidade 
mais  ou  menos  árida  por  que  passasse,  ar- 
vorando-me  em  sacerdote  panteísta,  prega- 
ria ás  turbas  o  amor  pela  árvore  e  pela  sua 
cultura.  .  . 

Explicou-me  um  dia  alguém,  de  teorias 
teosóficas,  que  em  outra  vida  precedente  eu 
deveria  ter  sido  botânico,  ou,  pelo  menos, 
jardineiro. 

Julgo  mais  de  acordo  com  o  meu  espí- 
rito a  simplicidade  desta  condição  de  servi- 
dor humilde  das  cousas  belas,  que  não  as  sa- 
be explicar  mas  tem  alma  para  as  compre- 
ender. .  . 


Na  sala  elegante  do  casal  Cruz,  vejo 
reunida  a  fina  flor  da  sociedade  do  lugar, 
e  verifico  mais  uma  vez  quanto  a  mulher 
rio-grandense  é  animada  e  inteligente.  Faz- 
se  música,  e  oiço  uma  vóz  de  soprano- 
dramático  nascida  para  comover  grandes 
plateas;  palestra-se,  e  os  argumentos  que  se 
cruzam   teem   algo   de   interessante;   dansa- 


—  235  — 

se,  e  a  elegância  dos  gestos  e  dos  vestuários 
revelam  educação  e  bom  gosto.  Ha  sobretu- 
do um  grupo  de  meninas,  na  radiante  idade 
do  alvorecer  da  mocidade,  que  daria  ao  pin- 
tor mais  fino  admiráveis  modelos  para  ca- 
beças de  arte.  Serão  mais  lindas  as  moças 
de  Bagé  do  que  as  das  outras  localidades 
do  Estado?  não  o  afirmo,  porque  em  todas 
ha  mulheres  bonitas  e  em  todas  ouvi  dizer 
aos  rapazes  que:  —  as  mais  formosas  rio- 
grandenses  eram  as  da  sua  terra  natal... 
Ora  pois,  antes  assim. 


Ha  em  todas  as  cidades  do  interior  uma 
personagem  de  destaque,  cujo  nome  é  citado 
com  freqiàência,  quer  seja  pela  irradiação 
da  sua  simpatia  pessoal,  quer  pelo  predo- 
mínio da  sua  acção  ou  da  sua  inteligência  na 
localidade. 

Cabe  aqui  este  papel  ao  Sr.  Visconde 
Ribeiro  de  Magalhães,  que  não  conheço, 
porque  no  frio  inverno  em  que  visito  Bagé, 
goza  no  Rio  de  Janeiro  a  delícia  de  uma 
temperatura  primaveril. 


236 


Todos  me  falam  da  Estância  do  Sr. 
Visconde;  da  xarqueada  do  Sr.  Visconde, 
para  que  ele  construiu'  belas  estradas  para 
automóveis;  da  igreja  do  Sr.  Visconde  e 
do  teatro  que  ele  fez  construir  para  a  fé  e  a 
distração  dos  seus  operários.  De  resto,  eu 
desse  senhor  recebi  logo  ao  chegar  uma  gen- 
tileza, com  a  ordem  por  ele  deixada  de  ficar 
á  minha  disposição  o  seu  automóvel  parti- 
cular. 

Foi  nesse  excelente  carro  que  percorri 
as  estradas  que  serpeando  por  entre  macios 
tapetes  de  um  verde  tenro  e  fino,  sobem 
ao  Cerro,  de  vista  larga,  ou  vão  aos  pomares 
cheirosos  da  quinta  de  sua  excelência,  po- 
mares bem  cultivados  e  onde  as  laranjeiras 
vergavam  ao  peso  da  fruta  madura. 


Como  em  toda  a  parte,  passo  horas  aqui 
visitando  escolas,  que  são  os  templos  da  mi- 
nha devoção,  igrejas  e  hospitais.  Em  uma 
destas  visitas  conta-me  o  vigário  da  Matriz 
a  história  interessante  de  um  orfanato  cria- 


—  237  — 

do  por  inspiração  de  uma  preta,  e  o  que  é 
mais  singular:  uma  preta  pobre,  e  que  só 
pelo  influxo  da  sua  piedade  e  da  sua  ener- 
gia consegue  manter  em  Bagé,  sob  humilde 
teto,  um  rancho  de  órfãos  a  quem  dá  pão  e 
mestres. 

Um  dia,  essa  mulher  lhe  aparecera  após 
a  missa,  na  sacristia  da  Matriz  para  a  con- 
fissão de  um  pensamento  que  cada  vez  mais 
avultava  no  seu  espírito  mas  que  ela  tinha 
certo  pudor  de  revelar,  tão  insignificante  e 
miserável  se  considerava  na  sociedade  como 
diante  de  Deus.  Essa  obsessão  era  a  de  dedi- 
car-se,  só  e  absolutamente,  ao  cuidado  de 
criar  crianças  sem  pais.  Sentia  uma  grande 
ternura  maternal  a  encher-lhe  o  coração  e 
tinha  coragem  bastante  para  arcar  com  to- 
das as  responsabilidades  de  tamanha  empre- 
za.  A  sua  pobreza  e  a  sua  raça  tiravam-lhe  a 
força  e  o  prestígio  que  essas  idéas  requerem, 
e  assim  vivia  na  tristeza  de  vêr  esgotar-se 
sem  nenhum  proveito  a  energia  da  sua  von- 
tade e  as  horas  mais  aproveitáveis  da  sua 
existência  inútil.  .  . 

O  vigário  recebeu  com  as  duas  mãos  a 


—  238  — 

oferta  daquele  coração,  e  ajudou  a  pobre  a 
realizar  com  modéstia  um  pequeno  asilo  de 
órfãos  a  que  ela  consagra  hoje  toda  a  sua 
vida. 

Quando  entrei  nessa  casa  de  caridade, 
veio  receber-me  uma  mulher  alta,  vestida 
com  uma  túnica  de  burel  pardo  cingido  ao 
corpo  por  uma  corda,  como  as  das  monjas 

De  sua  face  escura  irradiava  simpatia 
e  bondade.  Era  ela.  E'  a  primeira  vez  que 
vejo  no  Brasil  realizada  uma  obra  de  bene- 
merência por  uma  mulher  da  mais  humilde 
condição,  pobre  e  de  còr.  .  . 


How  iconderful  Is  Dcath, 
Death  and  his  brother  Sleep! 

SCHELLY. 

A  minha  amiga  faz  um  gesto  ao  chauf- 
fcur,  que  pára  o  auto  junto  ao  portão  de  um 
vasto  terreno  murado  de  branco. 


239 


A  manhã  desfaz  as  ultimas  neblinas  num 
azul  deslavado  picado  de  frio.  Entro.  E' 
a  primeira  vez  que  visito  um  cemitério  rio- 
grandense.  Trazem-me  a  este  para  vèr  tú- 
mulos bonitos  —  e  alguns  deveras  o  são.  Es- 
tranho mesmo  o  estilo  e  a  pureza  de  algu- 
mas esculturas  bem  feitas,  tão  mal  habitua- 
da estou  a  só  ver  na  maioria  dos  nossos  cemi- 
térios duras  e  mal  acabadas  imagens  de 
marmoristas  comerciantes. 

Os  mortos  de  Bagé  não  devem  ter  mui- 
ta razão  de  queixa  da  sua  instalação. 

Alguns  teem  mesmo  moradas  sumptuo- 
sas. Percebe-se  por  elas  que  este  povo  é  ami- 
go do  luxo  e  da  ostentação.  O  caracter  dos 
seus  visinhos  platinos  comunicou-lhes  na- 
turalmente esse  amor  pelas  aparências,  o 
brilho  das  exterioridades,  que  distingue  as 
gentes  de  Espanha  das  dos  outros  povos.  A 
melhor  parte  dos  mármores  e  bronzes  que 
ornam  esta  sagrada  terra  de  repouso  veio 
trabalhada  e  pronta  do  Uruguay  e  creio  ter 
ouvido  que  também  da  Argentina,  onde,  co- 
mo se  vê,  os  bageenses  se  fornecem  não  só  de 


—  240  — 

cousas  para  a  Vida  como  para  a  Morte,  que 
o  sonhador  poeta  inglês  denominou  de  ma- 
ravilhosa : 

'ComyO  a  Morte  é  maravilhosa, 
A  Morte  e  o  Sono,  seu  irynão/" 

Tenho  porém  a  impressão,  certamente 
ainda  mais  absurda  do  que  esquisita,  de  que 
o  sono  de  um  morto  que  jaz  sob  lápides 
faustosas  não  pôde  ter  a  mesma  tranquilida- 
de profunda  do  daquele  que  dorme  sob  um 
modesto  lençol  verde  de  hera  viva.  .  .  A' 
beira  deste  sinto  a  quietação  de  um  sofri- 
mento extinto;  á  beira  do  outro  parece-me 
perceber  através  dos  poros  da  pedra  polida 
o  raio  oblíquo  de  um  olhinho  agudo,  obser- 
vando a  impressão  que  causa  ao  forasteiro  a 
pompa  da  sua  última  morada.  .  . 


A  sociabilidade  do  Rio  Grande  está 
manifesta  na  quantidade  de  clubs  que  tem 
espalhados  por  todas  as  suas  cidades.  Nos 


24] 


pouquíssimos  dias  que  me  demoro  em  Bagé 
assisto  a  duas  grandes  festas  em  dois  deles. 
São  os  principais  da  terra  e,  como  tais,  exis- 
tirá naturalmente  entre  ambos  essa  pontinha 
de  rivalidade  que  aguça  energias  e  estimula 
a  vaidade. . . 

A  primeira  festa  teve  a  originalidade  de 
ser  organizada  e  dirigida  por  um  grupo  de 
meninas  da  mais  requintada  amabilidade,  no 
Club  Comercial;  a  segunda  foi  no  Club 
Caixeiral. 

Aliás  parece  que  são  por  esses  nomes 
batisados  quasi  todos  os  clubs  do  Rio 
Grande! 

Pois  poucas  vezes  tenho  visto  salões  tão 
cheios  e  tão  alegres  como  os  salões  deste 
vasto  —  Caixeiral  — .  A  casa  é  enorme. 

E'  a  sexta  ou  sétima  noite  de  uma  quer- 
messe de  caridade.  Ha  tendas  graciosas  es- 
parsas por  todos  os  recantos  do  edifício.  As 
tendeiras  vestem-se  a  caracter:  de  floristas, 
as  que  vendem  flores;  de  ciganas,  as  que 
leiem  sortes;  com  bonés  de  estafetas,  as  que 
levam  os  telegramas  e  os  postais  da  tenda 
do  correio  para  vários  pontos  das  salas,  pro- 

.Jornadas  —  .lulia   Lopes  16 


242 


fusamente  floridas  e  iluminadas.  Ha  mú- 
sica, ha  riso,  e  ha  também  discursos.  Como 
em  muitas  outras  vezes,  percebo,  sinto  late- 
jar ao  redor  de  mim  a  curiosidade  pelas 
palavras  que  supõem  eu  irei  pronunciar  di- 
ante da  multidão  fremente.  .  .  O  meu  silên- 
cio deve  parecer  a  todos  indelicado,  e,  do 
fundo  da  minha  perturbação  peço  ao  Deus 
dos  Exércitos  que  faça  sentir  a  esse  grande 
punhado  de  almas  que  me  rodeiam,  que  eu, 
se  lhes  não  digo  cousas,  é  porque  sou  inca- 
paz de  as  exprimir  num  discurso! 


Deveria  ter  partido  ontem  para  Santa 
Maria,  e  deixei-me  ficar  mais  um  dia,  soli- 
citada pela  deliciosa  preguiça  que  o  lumi- 
noso céu  de  Bagé  me  infiltrou  nas  veias. 
Neste  último  dia  caminho  a  pé  pela  manhã, 
para  fixar  aspectos  e  observo  que  também 
aqui,  como  em  quasi  todos,  ou  todos  os  loga- 
res  do  Estado  por  onde  andei,  ha,  guarne- 
cendo a  cidade  com  um  dos  seus  melhores 
edifícios,  um  hospital  de  Beneficência  Por- 
tuguesa, prova  eloqi^ientc  do  esforço,  da  in- 


—  243  — 

teligência  e  da  previdente  bondade  de  uma 
colónia  que  é,  entre  todas,  a  que  maior  co- 
participação  tem  na  nossa  vida  e  a  que 
mais  evidentes  e  profundos  sinais  dá  sempre 
da  sua  amisade  e  do  seu  interesse  pela  pros- 
peridade do  país.  A'  tarde  vou  a  chás  par- 
ticulares de  muito  carinho,  onde  verifico 
que  as  bageenses  recebem  bem,  e  dou  depois 
uma  volta  de  carruagem  á  Cova  do  Can- 
dal,  nome  que  me  traz  á  lem.brança  a  "Doi- 
da*" do  grande  Camilo;  doida  que  espero  a 
todo  o  momento  ver  surgir  de  um  dos  de- 
clives do  terreno  a  sacudi r-me  de  longe 
adeuses  em   gestos   largos  e   românticos... 


Antes  de  apagar  a  lâmpada  nocturna, 
leio  ainda  uma  revista  de  Porto  Alegre  e  es- 
tremeço ao  encontrar  nela  a  afirmação  de 
que  ao  despedi  r-me  do  Estado  falo  mal  das 
suas  cousas  e  da  sua  gente!  Oh,  meus  Senho- 
res, para  quê  esta  gotinha  de  veneno  numa 
taça  de  tão  pura  ambrósia?  Não!  tudo 
quanto  eu  poderia  ter  dito  foi  tudo  quanto 
aqui  escrevi. 


XXXVI 

SANTA  MARIA 


Parto  de  Bagé  ao  alvorecer  do  dia,  e  só 
ao  cair  da  noite  deverei  chegar  á  cidade  de 
Santa  Maria.  Como  em  todas  as  viagens  que 
tenho  feito  através  do  Estado,  vejo  os  cam- 
pos sempre  animados  pela  presença  de  um 
exemplar  ao  menos  de  gado  vacum  ou  ca- 
valar ou  por  pequenos  bandos  de  avestruzes 
pardos,  que  se  movem  na  tela  iluminada  em 
passadas  largas  e  tristonhas,  com  a  singular 
expressão  de  almas  penadas  vindas  á  Terra 
em  dura  penitência. 

Suponho  que  ainda  ninguém  aqui  pro- 
cura explorar  esta  ave  no  comercio  das  plu- 
mas, a  exemplo  da  Africa  Central,  que  hau- 
re dessa  indústria  somas  fabulosas,  se  não 
mentem  certos  artigos  de  revistas  ilustradas 


—  245  — 

que  se  teem  ocupado  do  assunto  pelo  seu  pi- 
toresco e  a  sua  utilidade. 

No  Rio  Grande  do  Sul  não  ha  sertões. 
Todo  o  solo  por  que  tenho  passado  está  de- 
marcado por  propriedades  particulares  bem 
determinadas  pelas  respectivas  cercas  de 
arame.  Eu  quizera  ir  á  fronteira  e  jorna- 
dear,  não  em  comboios  de  caminho  de  ferro 
fagulhantes  e  guinchadores,  mas  nos  tejadi- 
lhos de  diligências  á  antiga,  através  de  pra- 
darias verdes  sem  traços  de  estradas  e  per- 
seguidas por  avestruzes  irrigados,  enlouque- 
cidos pela  fascinação  dos  metais  reluzentes 
dos  arreios  ou  pelos  olhos  chamejantes  dos 
animais. 

Tenho  um  compromisso  com  Sta.  Ana 
do  Livramento  e  seria  agora  a  ocasião  de  o 
pagar,  mas  o  tempo  de  que  disponho  é  tão 
escasso  que  sou  obrigada  a  adiar  esta  pro- 
messa para  quando,  não  sei. 

Os  pastos  que  vejo  agora  pela  janelinha 
do  vagão,  parecem-me  de  herva  menos  fina 
e  mais  áspera  que  as  dos  campos  que  vi  an- 
teriormente. 

Ornamenta-os  em  grupos  tufosos  um  ar- 


—  24  G  — 

bustozinho  crespo  como  a  carqueja  dos 
montes,  e  a  que  dão  o  nome,  se  não  entendi 
mal,  de  —  xirca.  Deve  ser  aproveitável  no 
aquecimento  de  fornos  e  de  fogões.  Repa- 
rando para  o  interesse  com  que  olho  para 
tudo,  aponta  alguém  para  a  cancela  de  uma 
propriedade,  dizendo-me  ter  ela  sido  feita 
por  um  modelo  de  excelentes  comodidades 
práticas  de  invenção  do  ilustrado  agricultor 
Dr.  Assis  Brasil,  sempre  interessado,  nos 
máximos  como  nos  mínimos  detalhes,  pela 
lavoura  do  país. 


Em  um  banco  fronteiro  ao  meu  um  via- 
jante velho,  de  chapéu  de  feltro  e  ponche 
riscado,  não  resistindo  ao  desejo  de  conver- 
sar, porque  o  gaúcho  é  palrador  e  expansivo, 
pergunta-me  se  sou  francesa.  A'  resposta  de 
que  sou  do  Rio,  pede-me  notícias  da  guerra. 
Que  se  diz  na  Avenida  sobre  o  valor  do  ma- 
rechal Foch  ou  sobre  os  arreganhos  do 
Kaiser? 

Aí  de  mim!  dou-lhe  informações  que  o 


247 


não  satisfazem.  Ele  quer  saber  mais,  quer 
saber  tudo! 

Tal  e  qual  como  eu ;  mas  teremos  ambos 
de  sufocar  dentro  do  peito  a  curiosidade 
trepidante  que  nos  faz  volver  os  olhos,  an- 
siosamente, através  dos  mares  inquietos  e 
profundos.  .  . 

Por  fim  ele  exclamou  com  um  suspiro 
filosófico : 

''Seja  o  que  fór,  a  gente  ha  de  saber 
depois!    .  . " 


Ao  meio  do  dia,  em  uma  das  estações 
mais  animadas  onde  o  trem  fez  parada, 
olhava  eu  distraidamente  pela  janela,  quan- 
do de  um  grupo  que  estava  a  palestrar  na 
gare  se  destacou  uma  bela  senhora,  gorda  e 
bem  posta,  que  veio  até  a  mim  e,  apontando 
para  um  sujeito  esfarrapado  a  quem,  se  me 
não  engano,  deu  o  nome  de  Rosas,  disse: 

■ —  Repare  para  aquele  homem  que  ali 
está  e  que  parece  um  mendigo  e  fique  sa- 
bendo que  é  um  milionário!  Um  grande  mi- 
lionário! 


—  248  — 

Feita  a  estravagante  revelação  voltou 
placidamente  a  conversar  com  os  amigos 
enquanto  o  trem  se  punha  em  marcha  e  o 
vento  fazia  esvoaçar  em  acenos  desespera- 
dos as  abas  esfarrapadas  do  sobretudo  do 
Rosas. 

Fiquei  assim  sem  saber  o  que  mais  ad- 
mirar: se  a  sordidez  do  ricaço,  se  a  neces- 
sidade de  expansão  da  inquieta  alma  cristã 
que  m'a  revelara. 

Fez  assim  com  que  na  minha  carteira, 
rabiscada  á  pressa  numa  reportagem  de  ca- 
minho de  ferro,  não  faltasse  esta  nota  de  hu- 
mana tristeza.  Senhor!  como  esta  cousa  da 
fortuna  está  mal  dividida  na  Terra! 

Porque  ha  de  um  artista  com  fantasia  e 
gosto  para  tirar  do  ouro  um  gozo  imaterial 
e  divino  desconhecer  a  glória  do  milhar  de 
contos  e  estarem  estes  quietinhos  na  algibei- 
ra imunda  de  um  homem  que  os  não  quer 
utilizar  nem  ao  menos  na  compra  de  um  par 
de  sapatos  ou  de  um  casaco  decente!.  .  . 


249 


Chego  á  noite  a  Santa  Maria.  A  cidade 
está  numa  situação  anormal,  por  causa  de 
um  crime  que  ha  dias  lhe  abalou  os  nervos. 

Como  terei  de  seguir  viagem  de  madru- 
gada, saio  á  noite  para  colher  uma  impres- 
são da  cidade  e  tenho  a  surpreza  de  a  vêr 
animada,  na  sua  rua  principal,  que  está 
cheia  de  moças  que  passeiam  aos  grupos 
para  baixo  e  para  cima. 

E'  o  dia  da  moda,  explica-me  um  casal 
amigo  e  que  passeia  comigo.  Ha  um  ar  es- 
panholado no  ambiente  que  se  respira  e  na 
maneira  desenvolta  das  pessoas  que  passam. 
Volto  para  o  hotel  bem  impressionada  pelo 
que  vi  e  pelo  que  adivinhei  no  escuro  dos 
trechos  apagados.  A  cidade  é  maior  do  que 
eu  pensava  e  interessante. 

O  que  não  posso  conseguir,  embora  para 
isso  esteja  pronta,  como  o  bispo  do  poeta — 
a  empenhar  até  a  cruz  e  o  anel,  —  é  um 
leito  no  trem  que  em  estirado  caminho  me 
deverá  conduzir  ao  Paraná. 

Positivamente,  parece-me  de  mais  ter  de 
passar  dois  dias  e  uma  noite  sentada  num 
vagão,  e  mal  imaginava  eu  ainda  que  espé- 


250 


cie  de  vagão!  Percebendo  a  inutilidade  dos 
meus  rogos  e  não  me  resignando  a  empre- 
ender uma  viagem  tão  desconfortável,  resol- 
vi demorar-me  mais  alguns  dias  em  Santa 
Maria,  até  conseguir  a  acomodação  desejada 
em  outro  trem.  Dá-se  então  esta  cousa  fan- 
tástica: sorridente  e  implacável,  o  bilheteiro 
afirma  diante  de  testemunhas  impassíveis, 
que  dentro  de  quinze  dias  eu  não  poderei 
arranjar  um  só  leito  em  viagem  entre  o  Rio 
Grande  e  S.  Paulo!  Está  tudo,  tudo  tomado 
com  antecedência! 

Clamo,  esbravejo,  desespero-me,  mas  a 
minha  infelicidade  não  comove  ninguém  e 
acho  mais  prudente  reflectir  sobre  a  con- 
veniência de  voltar  á  cidade  do  Rio  Grande, 
para  ali  tomar  um  vapor  do  Lloyd  ou  da 
Costeira.  Afinal,  para  abreviar  acabo  por 
comprar  a  minha  passagem  sem  cama.  Esta- 
mos em  tempo  de  guerra  em  que  o  vulto 
das  grandes  atribulações  diminui  a  im- 
portância de  tudo  o  mais.  .  .  Imaginarei  que 
sou  uma  dama  da  Cruz  Vermelha  em  tra- 
vessia por  uma  zona   perigosa,  e  a  minha 


251 


imaginação  emprestará  assim  á  realidade 
um  pouco  de  aventura  e  utilidade. 

De  madrugada,  antes  de  tomar  o  trem 
entro  no  bufete  da  estação,  para  o  café.  A 
proprietária  ou  gerente  da  casa  é  uma  mo- 
ça delgada,  pálida,  vestida  de  luto,  de  ar 
vivo  e  gesto  lépido.  Enquanto  em  uma  mesa 
próxima  ao  balcão  eu  me  vou  servindo  re- 
signada e  previdentemente  de  pão  com  man- 
teiga, o  hoteleiro  que  me  hospedou  relata- 
Ihe  a  tragédia  da  minha  viagem. 

A  pobre  senhora  logo  toda  se  atormenta 
á  idéa  do  que  me  espera,  e  promete  intervir 
doce  e  espontaneamente,  a  vêr  se  atenua  o 
meu  desconforto.  Que  poderá  ela  fazer? 
Pergunto  a  mim  mesmo,  ao  vêl-a  correr  á 
bilheteria  e  da  bilheteria  a  um  médico  po- 
lítico do  lugar,  que  reservara  só  para  si  to- 
dos os  lugares  do  carro-salão,  para  vir  á  von- 
tade com  a  mulher  e  os  filhos.  Foi  com  os 
olhos  a  reluzir  de  tristeza  que  me  veio  con- 
fessar a  inutilidade  dos  seus  esforços.  .  .  Já 
eu  estava  acomodada  no  meu  lugarzinho 
sem  aborrecimento,  disposta  a  tirar  da  mi- 
nha   viagem    todos    os    proveitos    possiveis. 


252 


quando,  no  próprio  minuto  da  partida  a 
meiga  criaturinha  entra  no  vagão,  corre 
para  mim  e  atira-me  no  colo  um  pacote  de 
bon-bons.  Não  ha  tempo  para  um  ''obri- 
gada". O  trem  parte. 

Este  incidente  da  última  hora  confirma, 
pelo  que  em  si  revela  de  carinho,  de  singe- 
leza e  de  sinceridade,  o  que  desde  a  minha 
chegada  pensei  da  mulher  rio-grandense  — 
que  ela  é  activa,  delicada  e  bondosa. 


Mas  que  viagem,  Senhor! 

O  trem  imundo  arrasta-se  com  uma  mo- 
leza de  preguiça  moribunda,  embora  seja 
aquele  a  que  denominam  —  Internacional 
—  e  que  dizem  oferecer  mais  comodidades 
aos  viajantes  do  que  os  que  partem  em  ou- 
tros dias  da  semana.  Nem  ao  menos  res- 
taurante ele  traz,  por  motivos  que  me  ex- 
plicam e  a  que  já  mal  presto  atenção,  por- 
que em  boa  verdade  não  lhe  sinto  a  falta. 
Um  rico  estancieiro  que  vem  com  a  famí- 
lia a  meu  lado,  conhecedor  das  agruras  e  do 


253 


mau  tratamento  que  inflige  aos  seus  passa- 
geiros essa  empreza  ferro-viária,  aperce- 
beu-se  para  o  caminho  com  dois  inesgotáveis 
cestos  de  ótimas  iguarias  e  de  bebidas  fi- 
nas, e  faz-me  gentilmente  comparticipar  das 
suas  merendas.  Sou  assim  acompanhada  até 
fora  de  portas  do  Rio  Grande  do  Sul,  pela 
cativante  gentileza  da  sua  gente! 


Tinham-me  dito  maravilhas  das  paisa- 
gens que  vou  descortinando,  ora  em  regiões 
serranas,  ora  á  margem  de  rios  suaves;  e  tal- 
vez pelo  exagero  da  promessa  nada  vejo 
de  imprevisto  nem  grandemente  comovedor. 

Referem-me  então  que  os  mais  belos  tre- 
chos da  paisagem  são  passados  na  hora  das 
trevas,  e  em  que  nem  ao  menos  tenho,  para 
consolação,  a  possibilidade  de  repousar,  dor- 
mindo. Não  importa,  para  isso  terei  toda  a 
eternidade!  O  principal,  enquanto  existo,  é 
sentir  a  Vida,  seja  como  fôr.  .  . 

Apezar  de  toda  a  minha  filosofia,  km- 
bro-me  de  vez  em  quando,  com  um  saudoso 


254 


suspiro,  da  minha  cabine  do  Itaberá  e  dessa 
viagem  azul,  menos  monótona  e  menos  can- 
sativa do  que  esta  verde  que  venho  fazendo 
através  das  matas,  ao  fechar  o  circuito  da 
minha  jornada. 

Haverá  talvez  ainda  uma  impressão  mo- 
ral a  influenciar  sobre  esta  comparação:  é 
que  então  eu  vinha  e  agora  eu  volto,  e  onde 
a  esperança  punha  uma  expressão  de  júbilo 
é  bem  possivel  que  a  saudade  ponha  uma 
sombra  de  melancolia.  .  . 


XXXVII 
PARANÁ 


Perdi  a  noção  do  tempo,  perdi  a  noção 
de  tudo;  já  não  sei  ha  quantas  horas  tenho 
vindo  sacudida,  como  arroz  em  peneira,  na 
malsinada  —  Internacional  —  quando  salto 
em  Ponta  Grossa,  no  Paraná,  mas  salto  para 
entrar  em  outro  trem  que  me  transportará  a 
Coritiba!  Antes  de  me  abalançar  á  nova 
aventura  verifico  prudentemente  em  caute- 
losas apalpadelas  se  terei  costelas  fractura- 
das ou  carne  escoriada,  e  só  depois  de  certa 
da  minha  extraordinária  resistência  física,  é 
que  me  aboleto  no  comboio  novo,  na  certeza 
de  que,  tão  máu  como  o  outro  ele  poderá  ser, 
mas  nunca  pior.  Este  é,  pelo  menos,  limpo. 
Respiro! 

Mal  o  trem  se  põe  em  movimento,  eu, 


—  256  — 

disfarçando  o  cansaço  na  curiosidade,  enfio 
a  cabeça  pela  janelinha  do  vagão,  na  ânsia 
de  vêr  a  terra  nova. 

O  sol  de  um  dia  hilariantemente  azul 
chameja  sobre  campos  vastos  e  silenciosos, 
mal  cobertos  por  gramíneas  crestadas  pela 
geada  das  noites  antecedentes. 

Para  que  me  sobeje  tempo  de  as  contem- 
plar, a  locomotiva  que  nos  arrasta  estaca 
de  repente  atrás  de  um  vagão  tombado  e 
abandonado  na  linha.  E'  o  próprio  pessoal 
que  vem  no  nosso  trem  que  trata  de  re- 
mover para  fora  dos  trilhos  o  trambolho  pe- 
sado que  nos  estorva  a  passagem.  Perdemos 
assim  um  tempo  infinito  na  pasmaceira  de 
uma  estrada  nua,  quando  o  poderíamos  ter 
aproveitado  repousando  ou  passeando  em 
Ponta  Grossa,  a  poucos  quilómetros  de  dis- 
tância. Para  que  servirão  a  estas  inefáveis 
administrações  o  telégrafo  e  o  telefone? 

Para  entreter-nos  na  ociosidade,  passa 
sobre  a  nossa  cabeça  uma  espessa  nuvem  de 
gafanhotos,  terror  dos  campos  cultivados.  .  . 


257 


A'  noite,  depois  de  ter  reparado  no 
Grande  Hotel  de  Coritiba  as  desordens  de 
uma  viagem  memoravelmente  maçadora, 
dou  um  giro  pela  rua  principal  e  vou  á  por- 
ta dos  jornais  lêr  os  boletins  da  guerra. 

As  notícias  são  animadoras.  Os  aliados 
resistem  nuns  pontos  e  avançam  noutros. 
Durmo  esta  noite  um  sono  admirável. 

Como  já  vos  disse,  não  procureis  litera- 
tura nestas  páginas;  elas  estão  apenas  co- 
bertas por  apontamentos  feitos  a  lápis  num 
caderno  de  ocasião  e  os  caracteres  assim  tra- 
çados são  sempre  inexpressivos  e  facilmente 
perecíveis,  o  que  fez  dizer  a  um  escritor 
francês:  escrever  a  lápis  é  como  falar  bai- 
xinho, sem  se  lembrar  que  no  que  se  diz  em 
segredo  está  quasi  sempre  o  que  ha  de  mais 
profundo  e  mais  interessante  na  Vida.  .  .     . 

Pois  mereceria  as  tintas  de  uma  aquarela 
a  graça  de  certas  scenas  que  observo  nas  ruas 
de  Coritiba,  ao  fazer  o  meu  primeiro  pas- 
seio matinal.  A  cidade  foi  lançada  em  traços 
largos;  não  tem  vielas,  tem  avenidas  e  pra- 
ças amplas;  prognosticou-lhc  com  isso  quem 

Jornadas  —  Julia  Lopes  17 


—  258  — 

a  planejou  um  futuro  de  grande  movimento 
e  de  riqueza. 

A  população  é  toda  branca  e  bonita. 

Por  muito  tempo  vejo  caminhando  na 
minha  frente,  na  calçada,  duas  raparigas  loi- 
ras, de  pernas  nuas  até  aos  joelhos  e  que  con- 
versam de  volta  do  mercado,  carregando  nas 
mãos  cabazes  cheios  de  verduras,  enquanto 
que,  de  face  para  mim,  vem  vindo,  repolhu- 
da  e  risonha,  uma  velha  de  avental  de  zuarte 
azul,  sapatões  amarelos,  olhar  cristalino,  na- 
riz —  bico  de  pato  —  dos  polacos,  com  dois 
gansos  gordos  pendentes  dos  seus  dedos  en- 
gelhados e  fortes.  De  vez  em  quando,  pelo 
meio  da  rua  vejo  passar  uma  carrocinha  de 
leite,  legumes  ou  frutas,  guiada  por  uma 
mulher  que  vai  sentada  na  boléa,  de  chicote 
em  punho. 

Vem  naturalmente  de  longe,  mas  não 
tem  o  ar  cansado. 

O  frio  poz-lhe  no  rosto,  de  carnação 
dura,  um  rubor  de  morango  empapado  em 
leite  e  na  sua  rusticidade,  ela  realiza  um 
quadro  de  género,  encantador.  .  . 

Dizem  que  ao  levantar  da  cama  todos  são 


—  259  — 


feios,  e,  a  crer  nisso,  que  deverei  supor  desta 
gente  de  Coritiba,  que  mesmo  de  manhã  ce- 
do me  parece  bonita? 


Parando  aqui  e  acolá,  vou  de  rua  em  rua 
até  ás  oficinas  de  uma  marcenaria,  onde  se 
prepara  uma  obra  que  me  interessa.  Subo 
por  uma  rampazinha  escarpada  e  entro  em 
um  barracão  onde  jazem  não  sei  quantas  tá- 
boas  de  Imbuia  e  de  Peroba  revessa  de  nada 
menos  de  um  metro  e  vinte  centímetros  de 
largura.  Qualquer  delas  poderia  servir  para 
uma  grande  mesa  de  banquete.  Mas  o  que 
nelas  me  espanta  não  é  o  tamanho,  é  a  beleza. 

Numa  sala  interior  mostram-me  traba- 
lhos em  andamento  e  outros  admiravelmente 
acabados  e  ninguém  p(3de  imaginar  a  espé- 
cie de  gozo  que  sinto  ao  vêr  os  desenhos 
caprichosíssimos  e  simétricos  que  as  raízes 
e  os  toros  (torras  como  aqui  se  diz)  das  Pe- 
robas, apresentam  aos  olhos  da  gente,  de- 
pois de  aparelhadas  e  envernizadas. 

Nenhum   artista  saberia   criar  motivos 


260 


mais  finos  nem  mais  simétricos  do  que  estes 
que  a  rude  plaina  de  um  operário  desvendou 
no  interior  de  um  pau  tosco  ao  prepara-lo 
para  a  pequena  mesa  que  tenho  diante  dos 
olhos,  e  em  que  eles  semelham  jarras  pom- 
peanas  transbordantes  de  grinaldas  que  ser- 
peiam em  festões  delicadíssimos  por  todo  o 
tecido  da  madeira  castanho-loira. 

A  natureza  escondeu  nas  ágatas  do  Rio 
Grande  do  Sul  e  no  interior  das  árvores  do 
Paraná,  segredos  de  uma  beleza  enternece- 
dora.  E,  como  tudo  criado  tem,  ou  deve  ter, 
explicação,  fico  a  pensar  no  mundo  de  in- 
teligência que  existirá  no  íntimo  dessas  cou- 
sas, para  merecerem  de  Deus  tão  grande 
formosura.  .  . 


Vindo  de  visitar  a  Universidade  de  Co- 
ritiba,  que  parece  ser  uma  daquelas  em  que 
melhor  e  mais  se  estuda  no  Brasil,  vejo  pas- 
sar na  rua  um  batalhão  de  boys  scoiit  mar- 
chando com  garbo  e  convicção,  seguido  por 
um  grupo  de  girls  scout,  grupo  igualmente 
disciplinado  e  convicto. 


—  261  — 

E'  uma  meninada  forte  e  simpática,  em 
que  se  entrevê  a  alma  de  amanhã  irradiando 
honestamente  numa  bem  pronunciada  ex- 
pressão de  energia  moral.  Pergunto  a  al- 
guém a  meu  lado  quais  são  as  atribuições 
das  meninas  no  escotismo,  ou  se  já  haverá 
funcionando  no  Paraná  a  famosa  associa- 
ção da  —  Girls  Guide  —  tão  ardentemente 
chefiada  na  Inglaterra  por  Lady  Baden  Pa- 
well,  na  moderna  mania  de  tudo  militari- 
zar. .  .  Respondem-me  que  não;  o  traje  que 
vejo  nas  meninas  que  vão  passando  em  ritmo 
marcial  diante  dos  meus  olhos,  é  meramente 
um  uniforme  colegial. 


Vejo  que  ha  no  Paraná  a  preocupação 
patriótica  da  criança.  Compreende-se  aqui 
a  simples  e  pura  verdade  de  que  tudo  que 
se  quer  perfeito  deve  ser  começado  pelo 
princípio.  Assim  o  homem  precisa  aprender 
desde  o  berço  a  ser  gente,  mas  gente  útil, 
bôa,  sã  de  corpo  e  de  espírito.  Esse  desejo 
de  aperfeiçoamento  moral  e  físico  está  bem 


262 


evidenciado  na  iniciativa  do  governo  que 
não  se  cansa  de  criar  escolas  e  disseminar 
pela  população  o  gosto  pelo  estudo,  feito 
com  a  alegria  e  o  interesse  que  a  pedagogia 
moderna  preceitua. 

Tenho  visitado  vários  colégios  públicos 
em  Coritiba  e  em  todos  encontro  entusi- 
asmo, tanto  nas  professoras  como  nos  discí- 
pulos, mas  em  nenhum  deles  a  impressão 
que  recebi  de  agrado  foi  tão  profunda  como 
no  do  Jardim  da  Infância,  adoravelmente 
dirigido  por  uma  moça  de  expressiva  bon- 
dade e  manifesta  competência  para  o  cargo 
que  lhe  foi  confiado  e  que,  mais  do  que  ne- 
nhum outro,  exige  dotes  especiais,  quer  os 
adquiridos  por  uma  instrução  sólida,  quer 
os  da  alegria  natural,  e  benignidade  de  qa- 
racter. 

A  criançada,  toda  pecurruchinha  e  ves- 
tida de  branco  da  cabeça  aos  pés,  dava  á 
Escola  uma  impressão  de  pombal,  fremente 
de  asas  rumorej antes. 

E  de  tal  modo  se  divertem  os  petizinhos 
nas  marchas  e  cantos  das  suas  disciplinas  e 
na  convivência  com  as  mestras  e  os  condiscí- 


263 


pulos,  que,  em  dia  em  que  as  mamãs  não  os 
deixam  ir  ás  aulas  por  qualquer  motivo  im- 
perioso, eles  se  desfazem  em  lágrimas  de 
desespero.  .  . 


A  culpa  não  é  minha  se  excedo  os  minu- 
tos da  pragmática  na  primeira  visita  de  cum- 
primentos ao  chefe  do  Estado,  Dr.  Afonso 
Camargo ;  a  culpa  é  toda  sua,  que  me  prende 
a  atenção  falando-me  das  belezas  naturais 
do  seu  querido  Paraná. 

Conversamos  na  sala  do  seu  palacete 
particular,  em  um  dia  de  frio  e  de  beleza, 
enquanto  que  de  um  compartimento  pró- 
ximo nos  chegam  aos  ouvidos  os  sons  de  um 
piano  tocado  em  surdina.  As  mãos  que  o  de- 
dilham, leves  e  virginais,  não  foram  feitas 
para  arranhar,  sente-se-lhes  a  tendência  da 
ternura  no  modo  ainda  tímido  por  que  per- 
correm o  teclado 

Dr.  Afonso  Camargo,  estadista  moderno 
e  conciliador,  que  a  minha  perspicácia  não 
adivinha  por  que  motivo  não  apareceu  ainda 


264 


na  scena  do  nosso  palco  político  do  Rio  de 
Janeiro,  preferindo  conservar-se  nas  altas 
terras  serranas  de  Coritiba,  conta-me  o  pra- 
zer que  teve  um  dia  com  uma  visita  de  San- 
tos Dumont,  pelo  que  essa  visita  lhe  revelou 
de  patriotismo  e  de  entusiasmo. 

Nenhum  de  nós,  que  ame  a  sua  terra  com 
um  pouco  de  intelectualidade  além  de  cora- 
ção, procura  conhecer  o  Brasil  no  que  ele 
tem  de  mais  ignorado  e  maravilhoso  com 
maior  empenho  ou  paixão  do  que  esse  ilustre 
aviador,  que  é  quasi  um  parisiense.  .  .  Se 
ainda  ao  menos  ele  pudesse  realizar  as  suas 
excursões  aos  pontos  menos  favorecidos,  ou 
mais  inacessiveis,  em  aeroplano,  compre- 
ender-se  hia,  mas  não!  ele  aventura-se  a  to- 
dos os  perigos  e  a  todas  as  maçadas  das  bre- 
nhas selvagens,  lançando-se  para  o  ignorado, 
não  como  um  semi-deus  por  entre  as  nuvens, 
mas  como  um  simples  mortal  por  sobre  ter- 
ras pedregosas,  duras  ou  espinhentas.  Nada 
o  aterroriza,  nenhum  desconforto  o  desper- 
suade de  ir  até  ao  fim  do  seu  desejo.  Qual 
de  nós,  que  tenha  um  pouco  de  imaginação, 
não  sonhará  com  o  vêr  a  cascata  de  Paulo 


265 


Afonso;  a  Serra  do  Cristal;  o  Amazonas;  e 
essas  prodigiosas  sete  quedas   do   Iguassú,   . 
cujas  vozes  onipotentes  atroam  pelas  flores- 
tas e  pelos  campos  a  muitos  quilómetros  de 
distância? 

Creio  que  todos  nós!  Mas  quem  realiza 
esse  desejo?  Raros,  e  esses  raros  por  cir- 
cunstâncias fortuitas  ou  casuais. 

Santos  Dumont  é  um  devaneador  activo. 
Tem  a  ventura  de  ter  alma  de  poeta,  espí- 
rito de  matemático  e  caracter  decidido. 

Quando,  ou  aonde  não  pôde  ir  voando, 
vai  por  seus  pés,  e  vai  muito  bem.  Assim 
chegou  com  duros  e  ásperos  esforços  numa 
tarde  á  beira  do  grande  salto  do  Iguassú, 
e  tão  maravilhado  e  estático  se  quedou,  que 
a  noite  caiu  sem  que  ele  se  pudesse  arredar 
dali,  preso  á  fascinação  do  vozear  sinfónico 
das  águas  espumosas. 

Despontaram  as  estrelas,  surgiu  a  lua  pá- 
lida no  ceu  profundo,  e  o  contemplador,  in- 
satisfeito, ávido  de  beber  ainda  com  a  vista  a 
beleza  suprema  daquele  quadro  espantoso, 
resolveu  dormir  no  mato,  para  sorpreender 
á  beira  da  cascata  o  despontar  do  sol .  .  . 


—  266  — 

Ainda  era  escuro  e  já  ele,  de  pé,  esperava 
o  prodígio. 

Outra  emoção  o  abalou  ao  raiar  da  au- 
rora, além  do  que  ele  gulosamente  esperava 
da  côr  e  da  luz:  foi  o  irromper  de  uma  in- 
finita quantidade  de  aves,  de  entre  as  rochas, 
os  musgos  e  os  recôncavos  rochosos  da  cas- 
cata, como  se  as  águas  se  tivessem  transfor- 
mado em  asas  para  mandarem  a  sua  embai- 
xada de  saudação  ao  dia. 

Inebriado  e  feliz,  o  peregrino  do  Sonho 
e  da  Beleza  sente  estremecer-lhe  no  peito  o 
orgulho  de  ser  filho  de  um  país  tão  prodi- 
gioso e  então  indaga,  inquire,  com  sofregui- 
dão, a  quem  pertencem  as  terras  marginais 
do  Salto. 

Respondem-lhe  que  parte  delas  tinham 
sido  adquiridas  do  governo  paranaense  por 
gente  do  Uruguay.  O  negócio  estava  reali- 
zado; era  cousa  feita,  irremediável. 

Sem  querer  ouvir  mais.  Santos  Dumont 
abala  para  Coritiba  e  vai  ao  Palácio  da  Pre- 
sidência, onde  entra  chispando  lume  dos 
olhos  ainda  deslumbrados.  Vem  cheio  de 
poesia,  vem  transbordante  de  sensações  es- 


267 


pantosas,  reclamar  para  o  Brasil  o  trecho  de 
terra  sagrada  cuja  posse  tinha  passado  ao 
poder  do  estrangeiro.  Canta  em  todos  os 
tons  louvores  á  cascata  maravilhosa,  mais 
potente  que  a  do  Niagara,  que  entusiasma  o 
mundo.  .  . 

A  questão  é  complicada;  requisitando 
terras  já  vendidas  o  Estado  tem  de  conceder 
indemnisações  colossais;  mas  o  apelo  é  aten- 
dido. Santos  Dumont  não  perdeu  o  seu 
tempo. 


O  Paraná  está  realizando  agora  uma 
obra  admirável  com  a  construção  de  uma 
estrada  de  rodagem,  que  num  imenso  per- 
curso servirá  de  traço  de  união  entre  o  mar 
de  água  salgada  do  Atlântico  e  o  mar  de 
água  doce  do  Iguassú. 

Só  para  a  percorrer,  entre  montanhas 
verdejantes  e  pinheirais  aromáticos,  valerá  a 
pena  vir  gente  de  qualquer  ponto  do  Globo. 

As  mais  famosas  cachoeiras  do  mundo 
empalidecerão  em   face  da  grande  cascata 


—  268  — 

paranaense  e  a  estrada  macia  e  imensa,  aber- 
ta entre  seivas  vivas  e  rochedos  escarpados, 
dará  aos  automobilistas  ensejo  para  emoções 
de  sport  e  de  poesia. 

Dessa  lindíssima  estrada  ha  feito  um  tre- 
cho que  desce  de  Coritiba  a  Antonina  e  que 
eu  deverei  conhecer  amanhã,  a  convite  do 
Sr.   Presidente  do  Estado. 


O  imenso  salão  de  um  cinematógrafo  re- 
gorgita  de  crianças.  A  pedido  do  ilustrado 
secretário  do  Interior,  Dr.  Enéas  Marques, 
entro  para  vêr,  não  o  espectáculo,  mas  os  es- 
pectadores. Estes  enchem  literalmente  o  re- 
cinto e  estão  muito  á  vontade,  trocando  im- 
pressões e  rindo  com  alegria.  E'  a  meninada 
das  escolas  populares;  ha  desde  pequerru- 
chos do  tamanho  de  uma  bengala  até  rapa- 
riguinhas  já  crescidotas.  A  festa  tem  um  ca- 
racter muito  pitoresco  e  jovial.  Bochechi- 
nhas côr  de  maçã  madura  estão  mesmo  a  ar- 
rebentar de  alegria  e  pelos  cabelinhos  loiros 
que    esvoaçam    ao    sopro  dos  ventiladores, 


—  269  — 

como  que  se  sente  lampejar  o  sol.  Adultos, 
só  os  mestres  que  acompanham  os  colegiais 
e  meia  dúzia,  se  tanto,  de  convidados.  Tudo 
mais  é  linda  e  adoravelmente  infantil. 

Olhando  para  os  camarotes  e  a  platea 
apinhada  de  cabecinhas  curiosas,  vêm-me  á 
lembrança  um  certo  dia  em  que,  em  Poços 
de  Caldas,  tendo  eu  prometido  contar  no 
teatro  uma  historia  ás  crianças  das  escolas 
primárias  do  lugar,  fui  para  o  palco  espe- 
rar o  momento  da  subida  do  pano  a  arqui- 
tectar o  enredo  com  que  entreter  a  pequena- 
da. Pensei  que  a  cousa  fosse  fácil;  pois  quan- 
do o  pano  se  ergueu  e  eu  vi  diante  de  mim 
um  público  que  se  assemelhava  a  um  jardim, 
atapetando  toda  a  sala  de  oiro  e  rosas,  tive 
medo.  A  imaginação  das  crianças  é  exigen- 
te; que  poderia  eu  inventar  que  as  alegrasse? 
Nasceu  assim  o  conto  que  em  outro  Natal 
mais  tarde,  publiquei  com  o  titulo  de:  — 
'"Era  uma  vez.  .  . " 

Quando  começou  a  projecção  da  fita  os 
comentários  e  as  gargalhadas  dos  espectado- 
res eram  de  tal  modo  engraçados  e  comu- 
nicativos, que  os  poucos  adultos  que  assis- 


—  270  — 

tiam  á  sccna  começaram  a  rir  também,  em- 
bora a  peça  fosse  de  uma  insipidez  de  fa- 
zer sono. . . 


Ha  ainda  restos  de  neblina  flutuando 
no  ar  da  manhã,  quando  com  duas  amigas  e 
o  Sr.  Heitor  Stockler,  homem  de  letras  e 
proprietário  da  principal  livraria  de  Cori- 
tiba,  me  aboleta  no  automóvel  que  me  le- 
vará vertente  abaixo  até  Antonina,  pela  lin- 
díssima estrada  da  Graciosa.  O  longo  tre- 
cho que  vou  percorrendo  é  admirável,  não 
só  como  construção  e  delineamento,  como 
também  como  beleza.  As  paisagens  circun- 
dantes desdobram-se  em  declivesMargos,  de 
um  verde  frio,  de  que  emergem,  com  as 
suas  copas  como  taças  cm  ofertório,  imen- 
sos pinheiros,  muito  altos  e  muito  escuros. 
Aos  meus  amigos  devo  parecer  singu- 
larmente silenciosa,  tanto  estas  árvores  in- 
fundem ao  meu  espírito  um  sentimento  de 
poética  religiosidade,  intraduzível  na  pa- 
lavra. .  .  De  vez  em  quando  fazemos  parar 
o  automóvel  e  seguimos  a   pé,   para  cami- 


—  271   — 

nharmos  bem  junto  á  ourela  do  caminho, 
guarnecido  aqui  e  além  pelas  flores  doiro 
dos  Espinhos  do  Diabo.  Enfiamos  então  a 
vista  pela  espessura  dos  bosques  em  rampa, 
em  que  luzem  as  ramas  da  herva  mate,  ou 
espraiamo-la  demoradamente  por  vales  e 
quebradas  sinuosas.  .  . 

Mas  o  caminho  não  é  deserto.  De  longe 
em  longe  aparece  de  um  ou  de  outro  lado 
uma  casa  campesina,  de  madeira  e  de  for- 
ma interessante,  com  telhado  irregular,  er- 
guido em  uma  parte  e  todo  derreado  em  ou- 
tra, em  estendida  meia-água  que  desce  até 
pequena  altura  do  solo.  Estamos  no  Brasil? 
Estaremos  na  Polónia? 

As  crianças  que  aparecem  em  grupo  di- 
ante dessas  habitações,  arregalando  para  nós 
curiosos  olhos  azuis,  são  loiras,  rechonchu- 
das e  vermelhas. 

Ao  vê-las  tão  bonitas  remexo  desespe- 
radamente na  algibeira  á  procura  de  papel 
e  de  tintas  com  que  possa  fixar-lhes  para 
sempre  as  carinhas,  esquecida  de  que  nem 
sei  desenhar  nem  tampouco  trago  um  sim- 
ples lápis  de  notas  comigo.  .  . 


—  272  -^ 

Com  as  repetidas  paragens  a  que  o  go- 
zo da  nossa  contemplação  nos  obriga,  a  via- 
gem, que  deveriamos  fazer  em  duas  horas 
de  bôa  marcha,  fizemo-la  em  quatro!  Ao 
chegarmos  á  cidade  de  Antonina  já  o  seu 
amável  Prefeito  Snr.  Wheeler,  avisado  da 
nossa  visita  e  assustadissimo  pela  demora, 
se  dispunha  a  mandar  um  automóvel  buscar 
os  nossos  cadáveres,  que  temia  pudessem  es- 
tar caídos  em  alguma  das  voltas  precipito- 
sas  do  caminho.  .  . 


De  Antonina  regressámos  a  Coritiba 
pela  estrada  de  ferro,  para  nps  embeve- 
cermos com  as  peregrinas  belezas  do  mais 
trágico  trecho  da  Serra  e  observarmos  o  ar- 
rojo da  obra  de  engenharia  que  nele  existe. 

Por  muitos  anos  que  eu  viva  com  lu- 
cidez e  memória,  sentirei  reproduzidos  na 
imaginação  os  perfis  colossais  que  se  suce- 
dem uns  após  outros,  como  panos  de  basti- 
dores de  um  scenário  infinito,  destas  mon- 
tanhas de  nuanças  que  vão  do  verde  mais 


—  273  — 

carregado  ao  azul-violeta  mais  diluído;  e 
os  seus  abismos  profundíssimos  e  mais  essa 
cascata  que  se  desfaz  ao  longe  em  vaporo- 
sas rendas  sobre  o  costado  de  uma  monta- 
nha alterosa  e  que  foi  baptizada  com  o  apro- 
priado e  lindo  nome  de  —  Véu  de  Noiva.  .. 


No  Paraná,  como  no  Rio  Grande  do 
Sul,  oiço  falar  no  tifo  e  sujeito-me  ao  con- 
selho de  só  tomar  água  mineral  engar- 
rafada. .  . 

E'  aborrecido  sentir  por  toda  a  parte 
onde  se  vá  este  fantasma  da  febre  apavo- 
rando as  populações.  No  que  não  deixo  de 
achar  graça,  é  na  afirmação  que  me  fazem 
em  todas  as  localidades,  de  que  os  doentes 
que  lá  existem  não  são  do  lugar,  mas  vie- 
ram atacados  de  fora! 

Assim  os  tifosos  de  Porto  Alegre  ti- 
nham vindo  da  Cachoeira,  os  de  Cachoeira 
de  Porto  Alegre,  os  de  Pelotas  de  Bagé. 
os  de  Bagé  de  Pelotas,  etc. ! 

E'  viajando  pelo  interior  do  Brasil  que 

Jornadas  —  Júlia  Lopes  18 


—  274  — 

nos  capacitamos  da  urgência  com  que  deve- 
mos resolver  estes  três  problemas  nacionais: 
—  Salubridade,  —  Viação,  —  Instrução. 

Este  último  tem  logrado,  ainda  assim, 
uma  certa  e  eficaz  atenção  dos  poderes  pú- 
blicos. Não  estive  em  uma  só  cidade  do  Sul 
em  que  não  visitasse  as  suas  escolas  popu- 
lares e  em  todas  encontrei  sempre  excelen- 
tes mestras  e  boas  disciplinas.  Não  sei  se 
o  mesmo  acontecerá  nas  vilas  e  nas  aldeias 
mais  obscuras  e  que  o  meu  pouco  tempo  me 
não  permite  vêr;  mas  tudo  me  leva  a  crer 
que  sim,  A  continuar  assim,  dentro  em  pou- 
co haverá  mais  mestres  do  que  discípulos... 


Se  a  Exma.  Sra.  Natureza  me  permite 
um  reparo,  eu  sempre  lhe  direi  que  ela  não 
soube  distribuir  bem  as  águas  no  Brasil. 
País  dos  mais  notáveis  rios  do  mundo,  quer 
pela  sua  extensão,  quer  pelo  seu  volume,  ele 
sente,  em  grande  parte  das  suas  regiões,  fal- 
ta desses  modestos  e  serviçais  cursos  de  água 
que  se  cruzam  e  cortam  frequentemente  a 
paisagem,  enriquecendo-a  com  a  sua  rega 


—  275  — 

e  aformoseando-a  com  o  seu  pitoresco.  An- 
tes toda  a  capacidade  das  nossas  grandes  ca- 
choeiras e  correntezas  fluviais  estivesse  di- 
vidida em  riachos  fertilizadores  por  todos 
os  nossos  campos  e  devesas. 

Os  rios  muitos  largos  e  profundos  teem 
imensa  magestade,  mas  também  uma  certa 
monotonia  melancólica.  Os  rios  estreitos 
teem  talvez  mais  poesia.  São  as  margens 
destes,  com  as  suas  alfombras,  ou  os  seus 
cordões  de  florinhas,  as  suas  pedras  mus- 
gosas e  galharias  tortas  a  reflectirem-se  na 
água  fresca,  que  dão  ao  rio  essas  manchas 
de  sombra  e  de  sol,  negror  de  sangue  pisado 
ou  cristalino  azul  da  alegria,  em  que  o  sen- 
timento humano  encontra  analogia  e  co- 
moção. 

Terra  sem  água  é  como  carne  sem  san- 
gue; antes  as  grandes  artérias  se  subdividis- 
sem em  ramas  de  veias  finas  e  espalhadas.  .. 


Páginas  de  uma  carteira: 
Manhã:  —  visita  ao  atelier  do  pintor  di- 
namarquez    Alfredo    Andersen.    Atravesso 


276 


um  páteo  húmido  e  atravancado  de  casa  an- 
tiga, subo  ao  fundo  á  direita  uns  poucos  de 
degraus  e  encontro-me  em  uma  vasta  sala, 
em  que  o  mestre  trabalha  rodeado  de  discí- 
pulos e  discípulas  em  frente  de  um  modelo 
vivo. 

Sim  senhores!  é  já  uma  execelente  prova 
de  progresso  intelectual  e  artístico,  esta  que 
venho  surpreender  neste  cantinho  obscuro 
da  cidade.  Já  as  moças  do  Paraná  compre- 
endem que,  para  se  chegar  a  pintar  razoa- 
velmente, ao  menos,  é  indispensável  insis- 
tir no  desenho  do  modelo  vivo,  e  este  pro- 
gresso  é  alguma  cousa. 

O  artista  que  fincou  aqui  ha  muitos  anos 
a  sua  tenda  de  trabalho,  seduzido  pela  ame- 
nidade do  clima  e  a  pureza  das  paisagens 
paranaenses  que  reproduz  nas  suas  telas,  vai 
assim  contribuindo  de  um  modo  eficaz  para 
o  desenvolvimento  do  gosto  artístico  da  gen- 
te coritibana.  Assim  houvesse  um  mestre  em 
todas  as  nossas  cidades  do  interior.  .  . 


277 


Quatro  horas:  —  chá  em  casa  da  ele- 
gante Mme.  Fido  Fontana.  Dir-se  hia  que 
estamos  num  dos  mais  exigentes  salões  de 
Botafogo.  Senhoras  elegantes  e  meninas 
amáveis;  excelente  piano  em  que  a  alma 
de  Chopin  resuscita  entre  perfumados  ra- 
mos de  violetas.  .  .  Após  o  chá,  passeio  pe- 
lo parque,  que  o  frio  da  estação  desfolhou  e 
entristeceu. 


Acabo  o  meu  dia  assistindo  a  uma  ses- 
são cívica  no  teatro  Guahyra  —  organizada 
em  homenagem  á  embaixada  Italiana,  que 
veio  em  missão  especial  do  seu  governo  ao 
Brasil  observar  as  condições  dos  lugares  em 
que  a  sua  colonização  se  intensifica. 

Suponho  que  o  embaixador  deve  estar 
contente.  A  julgar  pelo  que  vejo  na  assem- 
bléa,  ha  aqui  muito  entusiasmo  pela  Itália. 
Um  orador  brasileiro  faz  mesmo  o  seu  gran- 
de discurso  em  lingua  toscana,  em  que  zurze 
os  alemães,  e  a  fluência  com  que  se  exprime 
é  tal,  que  muito  deve  ter  lisongeado  os  se- 
nhores da  missão  patriótica! 


278  -^ 


Ouvir  falar  bem   a  sua  língua   por  es- 
tranha gente  é  sempre  razão  de  gáudio.  .  . 


A'  noite,  ao  recolher-me,  encontro  sobre 
a  mesa  do  meu  quarto  vários  livros.  São 
quasi  todos  de  versos.  O  Paraná  é  a  terra 
dos  poetas.  A  luminosidade  deste  ceu  con- 
stelado; a  doçura  destes  ares  embalsamados 
pelos  pinheirais  da  Serra,  excitam  a  imagi- 
nação. 

Começo  a  lêr.  .  . 


Depois  de  um  desenxabido  almoço  de 
hotel,  saio  a  passear  a  pé,  porque  o  sol  está 
brando  e  o  frio  é  convidativo.  Entro  no 
salão  da  Cruz  Vermelha,  em  que  algumas 
senhoras  da  sociedade  cozem  para  os  solda- 
dos da  guerra.  Abrem-se  e  fecham-se  ga- 
vetas para  a  arrecadação  de  roupas  já  fei- 
tas; Zila,  a  infatigável  presidente,  interrom- 
pe a  contagem  de  uma  rima  de  lençóis  e  vem 
relatar-me  a  imensa  importância  dos  servi- 


279 


ços  feitos  pelos  médicos  e  pelas  enfermeiras 
da  associação  no  tempo  de  epidemia  do  tifo. 

Agrada-me  vêr  a  actividade  inteligente 
destas  senhoras.  Realmente  estamos  na  al- 
vorada de  uma  era  nova.  .  . 

Para  onde  iremos? 


De  passagem  por  uma  rua  larga  e  soce- 
gada,  vejo  dispostos  em  fila  na  calçada  uns 
tantos  surrões  de  couro  a  arrebentar  de 
cheios.  Estão  atafulhados  de  mate  e  á  espera 
da  condução  que  os  levará  ao  despacho  para 
alguma  das  Repúblicas  visinhas  ou  para  o 
Chile.  Esta  herva  preciosa,  e  que  não  custa 
ao  homem  senão  o  trabalho  da  colheita  e 
consequente  preparo,  por  ser  de  nascimento 
espontâneo,  ainda  está  longe  de  provar  ao 
mundo  todo  o  seu  merecimento.  .  . 

E  a  culpa  não  é  dela,  que  faz  o  que  pôde 
para  ser  amável! 

Mesmo  aqui,  no  seu  torrão  natal,  parece 
que  não  lhe  dão  um  apreço  por  aí  além, 
pois  que  ainda  não  vi  servir  mate  a  nin- 
guém. 


280 


Seria  até  o  caso  de  haver  nas  cidades,  as- 
sim com  ha  cafés  e  casas  de  chá,  casas  de 
mate,  mantidas  pelos  Estados  produtores, 
e  em  que  ele  seja  servido  pelas  diferentes 
formas  por  que  é  usado  no  Sul. 


Manhã  de  domingo:  tomo  o  primeiro 
bonde  que  vejo  passar  á  porta  do  meu  hotel 
e  vou  até  ao  ponto  terminal  da  linha,  vol- 
tando depois  a  pé  durante  um  largo  trecho. 
Paro  em  certo  ponto  do  caminho  de  onde  se 
descortina  parte  do  casario  da  cidade,  aqui 
em  linhas  cerradas,  acolá  em  sítios  dissemi- 
nados, sob  a  flutuação  violeta  de  uma  hora 
impecável. 

Supunha  eu,  pelo  que  me  diziam,  que 
toda  Coritiba  rescendesse  a  pomares,  que 
não  houvesse  nela  um  pedaço  de  muro  ou 
gradil  de  quintal  atrás  dos  quais  não  sur- 
gissem galhos  dos  pecegueiros  que  lhe  dão 
fama,  ou  de  nespereiras  odoríferas  e  que  até 
mesmo  as  torres  das  suas  igrejas  ou  os  tor- 
reões dos  seus  palacetes,  vistos  de  longe,  pa- 


281 


recessem  emergir  de  encantadores  bosques 
de  ameixeeiras  ou  de  cerejeiras.  Assim  não 
é,  e  eu  tenho  pena  que  não  seja,  que  isso  em 
nada  lhe  prejudicaria  a  importância.  As 
árvores  espiritualizam  a  caliça  e  as  telhas 
dos  prédios,  dão-lhes  um  reflexo  da  sua 
alma  sensivel.  Que  seria  a  encantadora 
Haya  sem  o  seu  bosque?  Digam! 


Passo  a  tarde  numa  festividade  artística 
no  Club  Thalia,  a  ouvir  música,  a  ouvir 
prosa  e  a  ouvir  versos,  mas  versos  e  prosa 
originais,  ditos  pelos  autores,  e  música  exce- 
lentemente interpretada.  Graças  aos  Deuses 
da  Arte,  por  todo  o  Brasil  a  poesia  e  a  mú- 
sica elevam  ao  alto  o  coração  dos  homens. 
O  nosso  pais  poderia  mesmo  ser  classifica- 
do o  país  do  ritmo  —  de  tal  modo  os  nossos 
versejadores  c  maestros  teem  o  instinto  da 
métrica  e  do  compasso.  Quando  não  haja  ou- 
tras qualidades,  como  as  ha  frequentemente, 
tanto  em  autores  como  em  interpretes,  essa 
é,  pelo  menos,  admirável.  O  mesmo  acontece 
geralmente  na  dança.  O  brasileiro  pôde  ser 


—  282  — 

elegante  ou  deselegante,  dar  largas  passadas 
ou  passadas  miúdas,  correr  ou  arrastar-se, 
mas  de  um  ou  de  outro  modo  dançando,  ele 
dançará  no  compasso  determinado  pela  mú- 
sica. ''Sempre  certo  e  direitinho",  como  se 
diz  numa  dança  portuguesa. 

Nos  vastíssimos  salões,  adornados  com 
elegância,  entre  flores  de  inverno  e  mulhe- 
res formosas,  as  vozes  dos  prosadores  e  dos 
poetas  que  falam,  estão  penetradas  de  uma 
tal  emoção  e  tão  grande  febre  de  entusias- 
mo, que  todos  que  os  ouvem  se  sentem  tam.- 
bem  compenetrados  e  felizes.  .  . 

Como  as  brancas  pétalas  das  camélias 
que  se  desfolham  lentamente  do  cristal  das 
jarras,  caem  as  rimas  dos  sonetos  que  os  au- 
tores dizem  sem  afectação,  traindo  apenas 
no  calor  e  na  intensidade  da  voz  a  luz  divina 
que  lhes  incendeia  a  alma.  .  . 

Terra  de  Poetas,  terra  de  ceu  constela- 
do, terra  de  serras  religiosas,  sê  bemdita! 


Parto  numa  fria  madrugada  do  fim  de 
Julho,  num  trem  que  me  levará  a  S.  Paulo, 


283 


e  levo  grande  pena  de  não  poder  ficar  por 
mais  algum  tempo  a  viajar  pelo  interior  do 
Paraná,  através  das  suas  decantadas  flores- 
tas e  campos  não  menos  louvados.  Nas  viole- 
tas que  mãos  delicadas  vieram  trazer-me  á 
estação  apezar  do  desconforto  da  hora,  rou- 
bada ao  melhor  do  seu  sono,  como  que  sinto 
concretisada  na  doçura  do  perfume  e  na  be- 
leza da  côr,  a  alma  da  cidade  serrana  que  tão 
carinhosamente  me  acolheu  e  de  que  me  vou 
afastando  rapidamente.  .  . 

Amanhece  o  dia  sem  estremeções  de 
luz,  como  o  descerrar  das  pálpebras  de  uma 
criança  que  acorda  suave  e  naturalmente,  e 
por  muito  tempo  vejo  agarrados  aqui  e  além 
nos  aranhiços  da  grama  seca  dos  prados, 
como  uma  floração  virginal  de  levíssimas 
papoulas  de  escomilha  branca,  pedaços  de 
neblina  a  que  faltou  força  para  a  cristali- 
sação. 

Mas  durante  o  dia  essa  visão  delicada  e 
fria  é  substituída  por  outra  oposta:  a  do  ru- 
bor queimante  das  chamas  vivas  que  lam- 
bem a  terra  em  grandes  extensões,  crepitan- 
do alto.  Suponho  ao  principio  que  esses  su- 


284 


cessivos  incêndios  que  vou  observando  te- 
nham sido  originados  pelas  fagulhas  das  lo- 
comotivas, alimentadas  a  lenha  e  que  chis- 
pam com  uma  violência  de  chuveiro  de 
ouro;  mas  um  passageiro,  filho  da  região, 
afirma-me  que  o  fogo  é  propositado:  trata- 
se  das  queimadas  preparatórias  da  plan- 
tação. 

Parece-me  cedo  de  mais  para  a  aplicação 
dessa  rotina,  que  a  minha  razão  não  compre- 
ende por  que  é  ainda  mantida  pelos  nossos 
lavradores.  .  . 

A  paisagem  nãoutem  lances  dramáticos, 
entre  o  Paraná  e  S.  Paulo,  pelo  menos  aque- 
la que  o  trem  atravessa  durante  as  horas  de 
claridade,  mas  o  que  lhe  sobeja,  como  sobeja 
em  todo  o  Brasil,  é  espaço  e  magnífico,  pa- 
ra a  formação  de  pequenos  sítios,  que  engor- 
dem a  terra  com  as  suas  lavouras  intensas, 
dando-lhe  feição  mais  carinhosa,  mais  pito- 
resca e  mais  próspera. 

No  Brasil,  teem  reparado?  não  ha  al- 
deias, ha  cidades.  Mal  começa  um  pequeno 
arraial  a  reunir  uns  tantos  telhados,  logo  ou- 
tros surgem  ao  derredor  deles,  como  toca- 


285 


dos  por  varinha  mágica  e  a  vida  comercial 
se  estabelece  na  localidade  em  pinchos  de 
de  progresso. 

As  grandes  fazendas  de  léguas  de  exten- 
são, muitas  das  quais  inaproveitadas,  teem 
nessas  pequenas  cidades  as  suas  válvulas  de 
expansão,  mas  se  cada  um  desses  latifúndios 
fosse  dividido  em  pequenos  sítios  bem  culti- 
vados, muito  maior  seria  ainda  a  prosperi- 
dade das  povoações  que  eles  favorecem.  E 
isto  parece  já  um  pouco  realizado  em  São 
Paulo,  na  zona  que  eles  chamam  do  Paraná 
e  que  o  meu  trem  vai  atravessando,  á  clara 
luz  de  uma  manha  côr  de  hortênsia.  Suce- 
dem-se  com  pequenas  interrupções  chácaras 
cultivadas,  onde  a  vinha  desabrolha  e  os  ra- 
mos das  batatas  e  dos  feijões  acolxoam  tre- 
chos de  terreno,  cobrindo-os  de  frescura.  .  . 


Ao  meio-dia  chego  a  S.  Paulo.  Venho 
cansada  e  cheirando  a  chamusco,  de  tal  mo- 
do as  faíscas  da  Sorocabana  me  queimaram 
a  lã  do  vestido  e  as  peles  do  agasalho .  .  . 


286 


Na  Rotisserie  hospedo-me  no  mesmo 
quarto  que  ocupei  no  ano  passado  e  sinto- 
me  talvez  por  isso  como  que  um  pouco  em 
minha  casa.  Saio:  a  cidade  está  cada  vez 
mais  bonita,  mais  rica  e  movimentada,  re- 
volvo-a  toda;  visito  amigos,  parentes  e  lu- 
gares, paro  em  frente  ás  casas  em  que  morei 
outrora. 

Dir-se  hia  que  era  só  dar  volta  ao  trin- 
co... e  iria  encontrar  lá  dentro  uma  mulher  a 
acalentar  dois   berços...    Cala-te,   coração! 


3  de  Agosto : 

Volto  ao  Rio  de  Janeiro. 

FIM 


Off.  Graph.  da  Livraria  Francisco   Alves, 


AUQ 


ébò 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
CAROS  OR  SLIPS  FROM  THIS  POCKET 


UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 


F 

2515 

Aqq 

1920 

Cl 

ROBA