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Full text of "Êles e elas : na vida, na arte, na história"

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rÃRBORI 

Presented  to  the 

LIBRARYo/í/ie 

UNIVERSITY  OF  TORONTO 

by 

Professor 

Ralph  G.  Stanton 


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E<LES   E   ELAS 


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Obkas  Dii  Júlio  Dantas 


POESI.f 

Noda     (1S!)0.     (♦)    Parceria    António    Maria    Perfira,    Lisboa)  — 

2.«  cdiçao. 
Sonetos    (101'5.    Livraria    líodriííues,    Lisi)Ôa) — 2."    o(li<,'ão. 

PROSA 

Outros    tempos     (1900.     Livraria     Clássica     Editora,     Lisboa)  — 

12.»  edição. 
Estática   e  dinâmica  da  fisionomia    (1909,   idem) — 2."   edição. 
Fiffunis   de   nntcm    c  <Ic   hoje    (1914,    Livraria   Chardron.    Porto) 

—  2.»   edição. 

Pútría  Porltipucxa    (1914.  Parceria  Pereira.  Lisboa)  —  3.»  edição. 
Ao    ouvido  de  M.me   X    (1915.    Livraria    Chardron,    Porto) — 3." 

edição. 
O  amor  em  Portufjol  no  século  XVI H   (1915,  idera)  —  2.»  edição. 
Mulheres    (1910.   idem)  —  2.»   edição.  • 

Eles   e  Elas    Í191S.   idem)  —  2."   edição. 

TEATRO 

O  que  morreu  d'amor   (1899,  Empresa  Literária  Fluminense,  Lis- 
boa) —  4."    edição. 
Viriato   Tráfiico    nOOO.    idem) — 2.»   edição. 
.1    Sír.vera    flOOl.   i(í.-m) — 3."    edição. 
Cruei ficados    Í1902.    idem)  —  2."    edição. 
A    Cria   dos  Cardeais    (1902.   Livraria   Clássica   Editora,   Lisboa) 

—  22.'»   edição. 

D.   Beltrão   de   Figueirôa    (1902.    Empresa   Literária    Fluminense, 

Lisboa) — ^4.»   edição. 
Pa{:o   de    Veiros    (1903.    id^m)  —  2.»   edição. 

Um  serão  nas   Laranjeiras    (1904,  idem)  -^  2.»   edição,   ilustrada. 
Rei  Lear    (1905.   idem). 

Ifosas  de  iodo  o  ano    ílOOT,   idem) — 7."   edição. 
Mater  Dolorosa    (1908,   idem)  —  3.»   edição. 
Flanta    Inquisição     (1910.    Livraria    Clássica    ICdiíora.    Lisboa)  — 

2."  edição. 
Primeiro    Beijo    (1911.    Idem) — 3.»    edição. 
n.    Ramon   de   Capirhnela    (1912.   idom) — 2.»   edição. 
O   Reposteiro   Verde    (1912.    idem) — 2.'»   edição. 
1028    (1914.   Livraria   Chardron,    Píirto). 
Soror  Marianu    (1915,    idem)  —  2."    edição. 

(*»     A   data  Indicada  para  cada  obra  é  a  da  sua  primeira 
edição. 


JÚLIO    DANTAS 

Sócio  efectivo  da  Academia  das  Scièncias  de  Lisboa 
Da  Academia  Brasileira 


ELES  E  ELAS 


NA   VIDA— NA    ARTE  — NA   HISTORIA 


SEGUNDA   EDIÇÃO 


PORTO 
LIVRARIA  CHARDRON, 

DK  LÉLO  &  Irmão,  EDITORES 

Rua  das  Carmelitas,  144 
19Xíà 


.1    propriedade  literária  e  artística  está   garantida  et)í  lodos  os 

paises  (jiie  aderiram    à   Convenção  de  Berne — (Em  Portiujal, 

pela  lei  de  i 8  de  março  de  lOli.  No  Brasil  pela  lei  n."  í?577  de 

il  de  janeiro  de  Í9J'2L 


FORTO  —  iMPflENSA    MODBENA 


NA   VIDA 


LADY  PLORENCE 


Depois  de  jantar,  o  meu  amigo  Cisneiros  e  eu 
fomos  tomar  café  para  o  salão.  Conhecem,  de- 
certo, o  grande  salão  do  Avenida  Paloce^  cosmo- 
polita e  grave,  com  os  sans  Maples  sonolentos, 
os  seus  tapetes  profundos,  as  suas  horríveis  cor- 
rentes de  ar.  Nessa  noite  estava  pouca  gente.  A 
um  canto,  um  velho  de  fisionomia  inquietante  e 
angulosa  —  soube  depois  que  era  um  judeu  ho- 
landês em  busca  de  bric-à-brac — folheava  o 
Skelch.  Ao  pé  duma  janela,  um  oficial  da  missão 
francesa  escrevia.  Notei  vagamente  que  um  in- 
glês magro,  ruivo,  de  smoking,  passeava  pela 
sala  as  suas  pernas  de  antílope  e  o  seu  esplêndido 
isolamento.  Mas  as  minhas  atenções  fixaram-se 
de  preferência  sobre  dois  ingleses,  um  velho  e 
uma  velha  —  êle,  setenta  anos,  calvu,  musculoso, 
irrepreensível  na  sua  casaca,  ela,  seca,  viva,  ridí- 
cula, pequenina,  vestida  de  seda  azul,  com  um 


NA   VIDA 


grande  colar  de  topázios  e  um  meio-decote  esque- 
lético—  que  estavam  recostados  num  sofá,  ao  la.lo 
um  do  outro,  de  mãos  dadas,  olhando-se  embe- 
vecidamente naquele  amoroso  silêncio  que  é  a 
alma  de  toda  a  ternura  inglesa,  e  a  que  já  Carlyle 
chamara  «o  contacto  com  o  mistério».  E'  bem 
certo  que  as  paixões  não  xeem  idade;  mas  eu  con- 
fesso que  não  pude  deixar  de  sorrir  do  êxlase 
conjugal  desses  dois  velhos,  que,  já  andado  o 
outono  da  existência,  ainda  sentiam  tão  vivamente 
os  perturbadores  enlevos  do  amor.  Observei-os 
com  curiosidade,  —  quási  com  carinho.  Tinham 
diante  de  si  uma  pequena  mesa  de  chá  e  um  nú- 
mero do  Timeã,  que  êle  deixara  de  lêr  para  olhar 
para  ela.  A  luz  batia  em  cheio  nas  duas  cabeças, 
escorria  como  oiro  oleoso  pela  calva  do  velho 
inglês,  tornava  mais  azuis  os  pequeninos  olhos 
rugosos  de  Lady  Florence  — soube  depois  que  se 
chamava  assim  ^^  uns  olhos  de  boneca  decrépito, 
a  que  a  expressão  do  sonho  realizado  e  da  ventura 
absoluta  pareciam  emprestar  ainda  o  inquieto 
brilho  da  mocidade.  Nada  os  distraía  da  sua  mú- 
tua contemplação.  Passaram  criados;  entrou  uma 
rapariga  belga,  que  se  atirou  para  uma  poltrona, 
cruzou  a  perna  e  fumou;  o  oficial  francês  foi 
buscar,  perto  deles,  o  boné  e  o  stick:  e  os  dois 
velhos,  indiferentes  a  tudo,  embevecidos  um  no 
outro,  enlevados,  im(')veis,  es  olhos  nos  olhos,  a 
mão  dele  enlaçada  na  dela,  continuaram  a  fi- 
tar-se,    amorosamente,    com    a    emoção   de   dois 


LADY     FLORENCE 


namorados  deslumbrados  de  mocidade  e  de  beleza. 

—  Sabes"  quem  são  aqueles  ingleses?  —  per- 
guntei eu  ao  meu  amigo  Gisneiros,  emquanto  o 
criado  nos  servia  o  café. 

—  São  dois   noivos. 

—  Naquela  idade  ? 

—  Gasaram-se  há  doze  dias,  em  Londres.  Eslão 
aqui  passando  a  lua  de  mel.  Um  casamento  de 
amor.  Ele  é  sir  Joê  Groflon,  alto  funcionário  da 
índia  inglesa,  e  tem  setenta  e  dois  anos;  ela  é 
Lady  Florence  Sealby,  viúva  dum  lord  do  Al- 
mirantado,  e  tem  sessenta  e  cinco  ou  sessenta  e 
seis.  Soube  ont^m  quem  eram,  por  aquele  in- 
glês magro  que  aqui  esteve'  a  passear  no  salão. 
A  vida  deles  conta-se  em  duas  palavras  e  é  um 
lumance  enternecedor,  Joè  Grofton  estava  noivo 
da  primeira  mulher  quando  ccnheeeu  Florence, 
que  tinha  então  dezoito  anos,  todo  o  encanto  das 
spinsters,  com  os  seus  cabelos  loiros,  os  seus 
olhos  azuis,  a  sua  beleza  do  diabo,  e  que  era 
a  noiva  prometida  dum  moço  oficial  da  marinha 
inglesa.  Apaixonaram-se  loucamente  um  pelo 
outro.  Mas  já  ambos  tinham  contraído  compro- 
missos; nenhum  deles  podia  dispor  de  si,  por- 
que nenhum  deles  era  livre.  Fiéis  à  mais  inglesa 
de  todas  as  paixões  —  a  paixão  do  dever  — ,  aper- 
taram as  mãos,  choraram,  sorriram,  separaram- 
-se,  —  e,  na  dolorosa  serenidade  dos  grandes  sen- 
timentos, cada  um  seguiu  o  seu  destino.  Ele  ca- 
sou, e  foi  o  melhor  dos  maridos.   Ela  casou  Iam- 


10  NA    VIDA 


bêm,  e  foi  a  mais  carinhosa  das  esposas.  Mas 
dois  ingleses  que  uma  vez  sentiram  o  encanta- 
menio  do  verdadeiro  amor,  —  pode  a  vida  embora 
separá-los,  que  nunca  mais  se  esquecem.  Um  dia, 
quarenta  e  seis  anos  passados,  Joô,  já  viúvo, 
soube  em  Bombaim  que  Plorence  tinha  enviuvado 
lambôm.  Pediu  uma  licença,  e  simplesmente, 
naturalmente,  com  a  certeza  de  que  ela  estava 
esperando  por  êle,  veio  à  Europa  buscá-la.  Ca- 
saram em  Westminster,  e,  como  vês,  estão  pas- 
sando a  lua  de  mel  em  Lisboa.  Nós,  latinos, 
não  podemos  compreender  bem  a  incomparável 
felicidade  destas  duas  criaturas.  E'  preciso  ser-se 
inglês  para  sentir  a  força  dominadora  dum  amor 
como  este,  inalterável  e  eterno,  que  sobrevive  à 
mocidade  e  à  beleza,  e  que,  quando  já  tudo  pas- 
sou, frescura,  encanto,  sedução,  graça,  continua 
ainda  na  velhice,  com  todo  o  entusiasmo,  todas 
as  ilusões,  todo  o  ardor,  todo  o  doce  idealismo  da 
juventude.  E'-lhes  indiferente  que  o  tempo  voe, 
—  porque  a  sua  primavera  é  eterna.  Hão-de  ver 
sempre  um  no  outro,  até  à  morto,  não  a  realidade 
do  que  são,  mas  a  imagem  radiosa  do  que  eram 
no  dia  em  que  principiaram  a  amar-se.  Aquel  ■ 
inglês  realizou  na  vida  o  milagre  da  felicidade. 
Para  êle,  Lady  Plorence  é  sempre  loira  e  tem 
eternamente  dezoito  anos... 

A  luz  do  salão  baixou.  Quando  nos  levantámos 
para  sair,  es  dois  velhos,  de  mãos  dadas,  fita- 
vam-se  ainda,   amorosamente. 


A  JANKLA  DDS  LILASRS 


Diante  de  mim,  na  rua  onde  moro,  há  uma 
antiga  casa  do  Bairro-AHo  pombalino,  com  o  seu 
andar  nobre  de  sacadas  e,  por  cima.  a  sua  linha 
de  quatro  janelas  de  peitos  aconchegadas  ao  bei- 
ral do  telhado.  Tem  uma  certa  nobreza  nos  lar- 
gos cunhais  de  silharin;  mas  lodo  o  resto  é  po- 
bre, mal  cuidado  e  velho.  Durante  muito  tempo, 
o  segundo  andar  esteve  com  escritos.  Um  belo 
dia  os  escritos  arrancaram-se,  abriram-se  as  vi- 
draças, ouviu-se  cantar,  c  na  janela  da  esquina, 
fronteira  ao  meu  quarto,  apareceu  um  grande 
tabuleiro  florido  de  lilases  brancos.  Quem  seriam 
os  meus  novos  vizinhos  ?  Qu  -m  viria  morar  ali  ? 
Passaram-se  oito  dias  sem  que  eu  visse  viv'alma 
;i  janela.  Umas  cortinas  de  cassa  velaram  discre- 
tamente os  vidros;  e  se  não  fosse,  à  noite,  a  luz 
que  só  muito  tarde  se  apagava,  e  o  perfume  doce 
dos  lilases  que  enchia  a  rua  toda,  ter-me-ia  de- 


12  NA   VIDA 


certo  esquecido  de  que  naquela  casa  habitava  al- 
guém. Quis,  porém,  o  acaso,  que  eu  tivesse  uma 
certa  manhã — e  que  deliciosa  manhã  de  prima- 
vera!—  a  fantasia  de  acordar  mais  cedo.  Abri 
as  vidraças  de  par  em  par.  Mal  sabia  eu  a  sur- 
presa que  me  eslava  guardada.  Na  janela  fron- 
teira, faiscante  de  sol,  uma  graciosa  figurinha 
côr  de  rosa  debiuçava-se,  com  um  regador  na 
mão,  sobre  o  laboleiro  de  flores.  Era  a  minha 
nova  vizinha.  Não  me  recordo  de  ter  sentido 
nunca  uma  tão  viva  impressão  de  inocência,  de 
frescura,  de  fragilidade,  de  graça.  Fiquei  a  olhar 
para  ela,  a  seguir-lhe  os  movimentos,  embevecido, 
encantado.  Devia  ler  dezoito  ou  vinte  anos.  A 
não  ser  os  cabelos,  dum  negro  quási  roxo  de 
minério,  e  os  olhos  muito  pretos,  muita  expres- 
sivos, muito  profundos,  tudo  nela  era  côr  de  rosa, 
a  pele  da  face,  do  colo,  das  mãos,  o  roupão  li- 
geiro que  a  vestia,  o  próprio  eflúvio  que  parecia 
desprender-se  dela  em  reflexos  róseos,  transpa- 
rentes, voejantes,  como  a  atmosfera  rosada  que 
envolve,  nas  grandes  manhãs  de  primavera,  a 
alegria  pagã  das  amendoeiras  em  flor.  Dir-se-ia 
que  a  Femme  en  i-ose,  de  Manet,  surgira,  como 
um  clarão,  naquela  janela  pobre  do  Bairro-Alto. 
Involuntariamente,  sorri-lhe.  Ela  fltou-me,  bai- 
xou os  olhos  onde  uma  nuvem  de  melancolia  pai- 
rava, acariciou  os  grandes  cachos  de  lilases  bran- 
cos que  me  pareceram  côr  de  rosa  sob  a  carícia 
das  suas  mãos,  scintilou  um  momento  ainda  na 


A  JANELA  DOS  LILASES  13 


crrandp  manrha  de  oiro  do  sol,  como  uma  névoa 
rosada  de  ante-manhã,  e,  lentamente.  deliVnda- 
mente.  de?aparpren  por  detr^is  da?  vidraras  fe- 
chadas. Daí  por  diante,  n5o  houve  um  línico  dia 
em  QTie  en  níío  me  levantasse  cedo.  À  mesma  hora. 
ela  vinha  recear  as  flores  —  e  en  abria  a  minha 
ianela.  As  mnlhercs  conhecem  sempre,  muito 
antes  de  nós,  a  natureza  do  sentimento  que  em 
nós  despertam.  E'  evidente  que  o  que  eu  sentia 
pela  minha  vizinha  não  era  amor;  mas  não  dei- 
xava de  ser  aquela  curiosidade  voluptuosa,  aquela 
insatisfeita  admiração,  aquela  sensualidade  inte- 
liíTpnfe  do  silêncio  e  do  mistério,  que  é  quási  sem- 
pre por  onde  o  amor  começa.  Cumprimentava-a; 
ela  sorria-me;  e.  cada  dia  que  passava,  eu  perce- 
bia que  as  flores  iam  levando  mais  tempo  a  reírar. 
Havia  no  sorriso  dessa  encantadora  criatura  — 
um  sorriso  cór  de  rosa  como  toda  ela  — ,  a  vaira 
delícia,  o  feminino  prazer  de  se  sentir  admirada: 
mas  não  sei  rfue  névoa  de  tristeza  passava  depois 
nas  suas  pálpebras  semi-cerradas,  como  se  essa 
própria  admiração  acabasse  por  se  tornar  para 
ela  um  motivo  de  sofrimento.  Só  mais  tarde  soube 
a  razão  porqu^  se  ennevoava  duma  tão  contra- 
ditória melancolia  o  sorriso  da  minha  vizinha. 
—  e  confesso  que  foi  bem  doloroso  para  mim 
conhecê-la.  As  pequenas  tragédias  da  existência 
são  às  vezes  as  mais  confrangedoras.  Uma  tarde, 
quando  eu  saía,  vinha  subindo  a  rua  uma  rapa- 
riga vestida  de  pretx),  seguida  de  uma  senhora 


14  NA   VIDA 


de  idade.  Tinha  lun  pé  aleijado  de  nascença  e 
coxeava.  Olhei-a.  Era  a  minha  vizinha,  que  re- 
colhia a  casa.  Quando  passou  junto  de  mim, 
levava  os  olhos  baixos,  os  lábios  Iremiam-lhe, 
as  lágrimas  corriam-lhe  pelas  faces.  Daí  por 
diante,  a  janela  nunca  mais  se  abriu,  e  os  lilases 
brancos,  imagem  de  mais  uma  ilusão  perdida,  fi- 
caram a  secar  Irislemente  ao  sol. 


SOROR  MIGAELA 


(tSciiJior  Arcebispo: 

Ordena-nie  Vossa  Ilustríssima,  em  carta  que 
recebi  do  muito  Reverendo  Vigário  Geral,  que  dê 
informação  de  tudo  quanto  se  vai  passando  e  tem 
passado  neste  mosteiro  com  Soror  Micaela  das 
Cinco  Ghagas,  desde  que  esta  serva  de  Deus  re- 
cebeu, com  lágrimas,  o  hábito  da  aprovação. 
Venho,  em  obediência  a  Vossa  Ilustríssima,  de- 
sobrigar-me  do  meu  dever  de  prelada.  Soror  Mi- 
caela entrou  nesta  casa  de  Deus  e  de  S.  Bento, 
com  duas  criadas,  na  noite  de  10  de  janeiro  dêstc 
ano,  e  vai  ainda  no  seu  quarto  mês  de  noviciado. 
Ouvi  dizer  que  a  tinham  trazido  em  coche  da  Gasa 
Rial,  escoltada  por  quatro  criados  de  arcabuz 
aperrado  nos  arções  dos  selotes,  e,  por  carta  do 
Reverendo  Provincial,  foi-me  feita  recomendação 
de  que  a  pobre  menina  sofrera,  havia  dezoito  dias, 


16  NA   VIDA 


com  máíTOa  e  nfronta  para  o  nome  dos  senhores 
Marqueses  seus  pnis,  os  trabalhos  de  unn  parto 
clandestino.  Não  escondo  a  Vossa  Ilustríssima 
que  o  zelo  que  sempre  me  mereceu  a  honra  deste 
mosteiro  me  fez  receber  com  temor  de  ânimo  e 
escrúpulos  de  consciência  aquela  pobre  ovelha 
do  Senhor.  Cheguei  a  recear  algum  alvoroço  das 
religiosas  que,  por  muito  menos,  ainda  não  há 
um  ano,  saíram  de  cruz  alçada;  mas  o  alvará  de 
el-Rei  e  a  provisão  de  Vossa  Ilustríssima  vinham 
em  ordem,  e  eu  não.  podia,  sem  desobediência  e 
quebra  do  respeito  filial  que  a  Vossa  Ilustríssima 
devo,  opor  qualquer  estorvo  ou  dificuldade  às  or- 
dens recebidas.  Logo  nessa  noite  Soror  Micaela 
sofreu  tão  repetidos  acidentes,  seguidos  de  um 
longo  e  mortal  letargo,  que  eu,  a  madre  vigaria 
e  a  mestra  de  noviças,  que  lhe  assistimos  sempre, 
cuidamos  que  Deus  teria  piedade  dela  e  a  cha- 
maria a  melhor  vida.  Mas  aqueles  a  quem  Deus, 
por  sua  infinita  misericórdia,  concede  na  terra  a 
glória  do  sofrimento,  não  descansam  na  morte 
sem  a  ter  bem  merecido.  Até  receber  a  estamenha 
da  aprovação,  a  desgraçada  menina  não  teve  uma 
hora  que  não  fosse  de  lágrimas,  de  gritos  e  de 
saudades  do  mundo,  com  mais  compunção  do  que 
bom  exemplo  para  as  religiosas  deste  mosteiro. 
Sabe  Vossa  Ilustrísima,  melhor  talvez  do  que  eu, 
o  que  se  passou  na  vida  de  Soror  Micaela  antes 
de  a  trazerem  para  esta  casa,  e  Deus  sabe  melhor 
do  que  nós  ambos,  senhor  Arcebispo,  com  que 


>UUUlt     MIÚ\L1.\ 


dureza  de  alma  nrrancaram  ao  seio  dessa  pobre 
jtecadora,  que  por  divina  vontade  foi  mãe,  o  fdhn 
(fiie  nem  por  ser  du  seu  opróbio  era  menos  do 
seu  corarão.  Nem  a  idade,  senhor  Arcebispo, 
nem  a  dignidade  do  hábito  que  há  cincoenta  anos 
me  veste,  puderam  extinguir  de  todo  em  mim  a 
voz  da  piedade  iiumaura.  Vi,  cnm  os  olhos  razos 
de  água.  piincipiar  o  noviciado  de  Soror  Micaela. 
Adivinhei  tudo  quanto  mais  tarde  havia  de  acon- 
lecíT.  e  os  justos  motivos  que  teria  para  alvoro- 
car-se  o  zelo  de  Vossa  Ilustríssima.  Sou  testimu- 
nha  de  que  a  pobre  menina,  pelo  fervor  da  oração, 
pelos  rigores  da  penitência,  pela  mortificação  das 
disciplinas  e  dos  jejuns,  fez  quanto  cabia  nas  for- 
ças duma  fraca  mulher  para  libertar  a  sua  alma 
de  todas  as  paixões  da  natureza  e  de  todos  os 
afectos  mundanos.  Não  quis  Deus  que  o  conse- 
guisse, por  seu  mal  e  por  mal  desta  comunidade. 
Pode  secar-se,  num  coração  de  mulher,  a  seiva 
de  todos  os  amores;  imnca,  senhor  Arcebispo,  se 
extinguirá  a  do  amor  materno.  Gontam-se  as 
noites  em  que  os  soluços  e  os  gritos  de  Soror 
Micaela  não  acordam  o  mosteiro,  como  uivos  de 
loba  que  encontrasse  morta  a  cria.  Durante  os 
ofícios  divinos,  onde  vai  amparada  às  outras  no- 
viças, cai  em  êxtases  e  em  letargos,  chama  a  altas 
vozes  pelo  filho,  escabuja  no  chão,  rasga  o  hábito 
no  peito,  e  não  há  autoridade  de  prelada  que  a 
dome,  nem  súplicas  de  irmãs,  nem  ameaças  de 
cárcere  e  de  cepo,  porque,  nesses  instantes.  Soror 

2 


18  NA    VIDA 


Micaola  nâo  oiivo,  nem  vê.  Tudo  quanto  nas  ima- 
gens o  no?  painéis  do  convento  recorda  a  obra 
divina  da  Maternidade,  é,  para  a  triste  pecadora, 
motivo  de  mortincação  e  de  lágrimas.  Ainda 
ontem  a  madre  escrivã  mandou  cobrir  de  panos 
o  painel  da  Virgem  que  está  no  coro  de  cima, 
sobre  o  cadeirado  da  banda  do  Evangelho,  porque, 
diante  dele.  Soror  Micaela  caía  com  acidentes. 
Por  maior  que  seja  no  mosteiro  a  compaixão,  não 
se  pode.  senhor  Arcebispo,  nem  calar  as  murmu- 
rações, nem  impedir  o  escândalo.  Há  três  noites, 
fugiu  da  cela,  desceu  as  escadas  até  h  igreja,  e 
foram  as  donatas  encontrá-la  antes  da  hora  de 
prima,  despida  em  camisa,  caída  como  morta 
nas  lages  do  chão.  a  embalar  e  a  aconchegar  aos 
jjeitos  uma  imagem  do  Menino.  Se  não  teem  a 
caridade  de  a  levar  desta  casa.  ou  morre,  ou  en- 
louquece. Querem  que  Soror  Micaela  seja  freira; 
o  que  ela  é.  senhor  Arcebispo,  é  mãe.  Faça  Vossa 
Ilustríssima,  pelo  muito  que  pode  a  sua  virtude, 
que  o  mesmo  coche  que  a  trouxe  a  venha  buscar 
nutra  vez.  Deus  ensinou-nos  a  suprema  doçura 
do  perdão.  Se  a  súplica  que  os  meus  setenta 
anos  fazem  aos  senhores  Marqueses  e  a  Vossa 
Ilustríssima,  não  merecer  a  graça  de  ser  escu- 
tada, —  ao  menos,  senhor  Arcebispo,  que  o  mos- 
teiro possa  adoptar  essa  criança,  e  que  Soror  Mi- 
caela, recolhida  como  simples  dona  nesta  casa 
d;.'  S.  Bento,  tenha  ainda  a  consolação  de  sentir. 
no  bálsamo  piedoso  das  lágrimas,  que  Deus  per- 


SÓH(jn    MICAELA  19 


dôa  e  sorri  a  todas  as  mães.  —  Braga,  Rial  Mos- 
teiro do  Salvador,  em  3  de  maio  de  1782.  —  Mí- 
nima S3rva  de  Vossa  Ilustríssima,  —  Madre  Ana 
de  Santa  Rosa.  abadessa.» 


PAÇO  DE  GONDIM 


Encoiilrei  uslas  páginas  tias  Memórias  ínliiiia^- 
do  nobre  marquês  de  ***,  vieux-hcau  qne  foi  urna 
das  mais  int:'rcssanies  ílg^uras  da  Lisboa  româiitic;' 
de  1840: 

«Meu  filho  casava  na  capela  do  Paço  de  Gon- 
dim,  solar  da  senhora  sua  sogra,  e  tinha-se  con- 
certado que  lá  passaria  a  lua  án  mel.  Meti  num 
malote  a  casaca  azul  de  Londres,  o  meu  chapéu 
Murillo.  uns  escarpins  de  baile,  um  lenço  de  cam- 
braia para  o  pescoço,  compus  ao  espelho  o  mais 
benévolo  sorriso  de  pai,  embrulhei-me  na  minha 
capa  Lord  Byron,  e  no  próprio  dia  do  casamenio, 
de  madrugada,  —  abalei  para  Gondini. 

Era  uma  velha  casa  nobre  do  século  xvn,  com 
o  seu  cunhal  de  armas,  o  seu  eirado  de  alpendre, 
a  sua  torre  sineira,  o  seu  vasto  pátio  solarengo, 
carinhoso  e  soalheiro  como  um  claustro  capucho, 


PAÇO    DE    GONDIM  21 


para  onde  se  debruçava,  enfeitada  de  rosas,  a  ja- 
nela do  quarto  dos  noivos.  Logo  que  cheguei  ao 
solar  caminhei  de  surpresa  em  surpresa.  Eu  co- 
nhecia, de  tradição,  a  casa  ilustre  dos  Noronhas, 
morgados  de  Vila-Verde,  comendadores  de  Gon- 
dim  e  de  Borba,  muito  cliegadcs  ao  Paço  dos  reis; 
sabia  por  meu  filho  que,  morto  o  senhor  da  casa 
em  Madrid,  cinco  anos  antes,  toda  a  família  se 
i*eduzia  à  morgada  viúva,  ;i  filha,  minha  futura 
nora,  e  a  um  pobre  egresso  da  província  da  Sole- 
dade, velhinho  de  oitenta  anos,  que  ali  tinha 
sido  recolhido  por  caridade  cristã:  mas  estava 
longe  de  supor  que  naqueles  paços  moravam  as 
três  almas  angélicas  que  lá  encontrei.  Os  pri- 
meiros braços  em  que  caí  foram  os  de  Frei  An- 
tónio de  Maria  Santíssima.  O  pobre  frade,  que 
nunca  me  vira,  chorava,  beijava-me  as  mãos,  pe- 
dia-me,  lavado  em  lágrimas,  que  não  lhe  levasse 
dali  os  seus  ricos  meninos.  Depois,  foi  o  meu 
filho  que  assomou  ao  eirado.  Riam-lhe  os  olhos  de 
felicidade,  atirou  uns  arreios  de  estardiota  que 
Irazia,  desceu  de  escantilhãu  a  escada  para  me 
abraçar.  (Jiie  i.ão  me  demorasse,  que  viesse  de- 
pressa, que  as  senhoras  estavam  em  cima,  na 
sala,  impacientes  por  conliecer-me,  —  e  lá  fui, 
nos  braços  dele  e  do  egresso,  emquanlo  a  sineira 
da  capela  repicava,  até  à  pequena  sala  de  espelhes 
(lo  solar,  em  cujos  tetos  Vieira  Lusitano  pintara 
uma  revuada  de  Amores,  e  onde  me  esperavam 
as  duas  mais  graciosas,  as  duas  mais  doces  figuras 


NA    VTn\ 


de  mulher  que  a  infinila  bondade  de  Deus  tem 
posto  algum  dia  diante  dos  meus  olhos.  Pareciam 
irmãs.  Sorriam  ambas  como  duas  crianças.  A 
mais  nova,  que  meu  filho  tomou  pelo  mão,  muito 
loira,  com  uns  grandes  olhos  azuis  e  um  vesti- 
dinho curto  de  musselina  branca,  era  a  minha 
futura  filha.  Tanto  quisemos  beijar  as  mãos  um 
ao  outro,  que  a  aconcheguei  ao  meu  peito  e  a 
beijei  longamente  na  testa.  —  «E'  a  senhora  sua 
irmã,  minha  menina?»  —  perguntei,  olhando  a 
segunda,  ainda  mais  bela,  que  ficara  assentada 
no  sofá,  numa  mancha  de  veludo  côr  de  violeta, 
um  leque  pequenino  nas  mãos,  uma  cruz  de^Malta, 
de  diamantes,  sobre  o  pescoço  doirado  pela  luz. 
A  mão  que  brincava  com  o  leque  avançou  lenta- 
mente para  mim,  seiíti-me  envolvido  na  doçura 
dum  grande  sorriso,  e  uma  voz  de  anjo,  uma  voz 
incomparável  chilreou,  trilou,  cantou  num  gor- 
geio:  —  ((Sou  a  mão...»  Não  sei  qual  foi  maior,  se 
o  meu  espanto,  se  o  meu  encantamento.  Meu  fi- 
lho ria,  a  noiva  ria  também,  e  emquanto  eu  oscu- 
lava os  dedos  brancos  que  se  ofereciam  ao  meu 
beijo,  Frei  Anlfjnio  de  iVIaria  Santíssima,  inun- 
dado de  júbilo,  apontava-me  rindo  à  morgada:  — 
((Veja  Vossa  Excelência  que  íambèm  Sua  Senho- 
ria parece  irmão  do  senhor  seu  íilho...» 

Logo  que  us  fidalgos  de  Merzovelos  chegaram 
com  as  filhas,  nas  duas  liteiras  velhas  da  casa, 
muito  ajoujados  de  presentes  de  pratas  para  os 
noivos,  o  casamento  fez-se  à  capucha  na  capela 


PAÇO    DE    GONDIM  23 


do  Paço  de  Gondim,  abençoado  entre  lágrimas 
pelos  oitenta  anos  de  egresso  capelão.  Houve  jan- 
tar de  festa.  À  noitinha  voltamos  todos  para  a 
sala  dos  espelhos,  da  cujas  janelas  abertas  sobre 
o  pátio  se  via  ainda,  aos  últimos  clarões  do  sol 
poente,  a  janela  do  quarto  dos  noivos  toda  flo- 
rida de  rosas.  Acen;loram-se.  sobre  as  creden- 
cias doiradas,  os  dez  candelabros  de  porcelana 
de  Saxe,  que  eram  a  maior  riqueza  do  solar;  uma 
das  fidalgas  de  Merzovelos,  decotada,  com  um 
chalé  de  cachemira  sobre  os  ombros  mis,  cantou 
Donizetti,  acompanhada  num  cravo  de  oitava 
larga;  leu-se  um  artigo  do  Morning  Chronicle, 
que  falava  no  senhor  D.  Miguel;  os  noivos  arru- 
lhavam a  um  canto;  Frei  Antcjnio  de  Maria  San- 
tíssima dormitava  a  outro,  com  a  caixa  de  rapé 
aberta  na  mão;  deram  as  10  horas;  serviu-se  o 
caldo  de  galinha;  os  fidalgos  despediram-se;  os 
noivos  desapareceram  —  e  o  serão  acabou.  Pica- 
mos na  sala  apenas  os  Irès:  a  senhora  morgada, 
o  egresso,  que  tornou  a  adormecer  sobre  a  tigela 
(la  Índia  t-m  que  lhe  serviram  o  caldo,  —  e  eu.  O 
velho  criado  João  veii»  dizer-mc  que  estava  pronto 
o  meu  quarto.  Uma  vaga  penumbra  doirada  11  u- 
iuava,  envolvia-nos,  acariciava-nos  como  um  per- 
fume. Fez-se  entre  nós  um  silencio  de  constran- 
giiiiento.  oUiámu-uos  longamente,  —  eu  e  ela. 
íjue  éramos  nós  um  ao  outro,  que  nos  permitisse 
respirar  juntos,  àqu(4a  hora  da  noite,  a  atmos- 
fera carinhosa  do  mesmo  lar?   Meu -filho  chama- 


NA    VTDA 


va-lhe  mãe;  a  filha  dela  chamava-me  pai;  —  e,  en- 
tretanto, ncão  havia  parentesco  entre  nós  ambos.  ^ 
O  sangue  do  nosso  sangue,  a  alma  da  nossa  alma 
confimdia-se,  naquele  instante,  no  beijo  supremo 
dos  líossos  filhos;  — e  nós  continuávamos,  meras 
sombras  de  acaso,  a  ser  dois  estranhos  um  para 
o  outro.  Nenhum  de  nós  tinha  direito  à  doçura 
daquela  intimidade,  ao  êxtase  daquele  encan- 
tamento, ao  mistério  daquela  solidão.  Éramos, 
para  os  nossos  filhos — os  sogros.  Éramos,  um 
para  o  outro  —  ninguém.  O  amor  que  resplan- 
decia e  cantava  na  alma  dessas  crianças,  nada 
tinha  já  de  comum  com  as  cinzas  da  nossa  dupla 
viuvez.  Não.  Aquele  lar  não  era  o  meu.  Aquela 
felicidade  não  era  minha.  Eu  não  podia,  não 
devia  passar  ali  aquela  noite.  Levantei-me  para 
o  dizer  a  essa  doce  mulher  duma  tão  perturbadora 
beleza,  para  me  despedir  dela,  para  sentir,  ainda 
uma  V(  z,  a  carícia  perfumada  das  suas  mi.ios,  — 
quando,  de  repente,  a  janela  dos  noivos  se  ihi- 
minou.-  Picámos  a  olhá-la,  um  junto  do  outro, 
imóveis,  encantados,  num  sorriso  de  inexprinu'- 
vel  ternura.  Era  todo  o  nosso  passado,  toda  a 
nossa  mocidade,  a  nossa  vida  inteira  a  rcllorir 
no  beijo  dos  nossos  «filhos.  Que  importava  que 
tudo  nos  separasse,  —  se  aquela  pequenina  luz 
nos  unia  para  sempre,  no  mesmo  enlevo,  no 
mesmo  encanto,  na  mesma  beatitude  ?  Insensi- 
velmente, as  nossas  mãos  enlaçaram-se;  senti- 
mos, nós  ambos,  o  que  havia  de  sagrado  naquele 


PAÇO   DE    r.OXDIM  25 


instante;  e,  até  que  a  luz  da  janela  se  extinguiu, 
como  se  fôssemos  uma  só  alma,  um  só  co- 
ração, chorámos  abraçados,  em  silêncio...  Quan- 
do acordámos  do  nosso  sonho,  o  velho  egres- 
so, diante  de  nós,  dizia-nos,  enxugando  as  lá- 
grimas:—  «Meus  filhos,  e  se  eu  os  casasse  tam- 
heni  ?» 

Hoje,  meio  ano  andado,  toda  a  gente  chama 
ao  Paço  de  Gcndim  a  «Casa  dos  quatro  noivos», 
8  o  santo  Frei  António  de  Maria  Santíssima,  se 
Deus  lhe  der  ainda  uns  meses  de  vida,  vai  ter 
dois  baptizados  na  sua  capela». 


o  ESPELHO 


Ontem,  na  qiiarla-icira  de  bridge  cie  Aírs. 
Hiitchinscn,  alguém  falou  da  loucura  do  dr.  Soulo 
e  da  entrada  do  pobre  médico  numa  casa  de 
saúde  de  Lisboa. 

—  Gonhecia-o  ?  —  perguntei  eu  ao  ilustre  advo- 
gado Z.,  que  acabava  de  afundar  numa  poltrona 
o  seu  smoking  e  a  sua  inallerável  serenidade. 

—  Perfeitamente.  Foram  os  meus  criados  que 
o  entregaram  à  polícia. 

—  Como  assim  ? 

U  advogado  Z.  atirou  para  cima  da  mesa  o 
número  do  Excelsior,  que  estava  lendo,  cruzou 
familiarmente  a  perna,  e  tamborilando  sobre  o 
joelho  com  os  seus  dedos  finos,  cheios  de  anéis 
de  mulher,  contou-nos: 

—  Eu  conhecia  apenas  de  nome  o  dr.  Souto, 
quando,  há  talvez  vinte  dias,  rec:^bi  a  sua  visita 
no  meu  escritório.   Era  um  cliente  como  qualquer 


o  ESPELHO  27 


outro:  mandei-o  entrar.  Apareceu-me  um  homem 
alto.  magro,  um  pouco  curvado,  vestido  de  preto, 
com  os  ombros  largos  e  descarnados  das  criatu- 
ras hercúleas  que  a  doença  devastou,  uma  bar- 
bicha ruiva  e  rala,  uns  óculos  de  míope,  uma 
certa  distinção  tímida  de  maneiras.  Durante  os 
primoiros  momentos  da  nossa  conv^sa,  não 
houve  um  gesto,  um  olhar,  uma  palavra  que 
pudessem  justificar  a  mais  leve  dúvida  sobre  u 
seu  estado  mental.  Falou  da  sua  clínica,  dos  seus 
meios  de  fortuna,  da  perfeita  honorabilidade  áv. 
todos  os  seus  actos,  da  sua  vida  inalteravelmente 
scrupulosa,  e,  como  se  alongasse  em  divagações 
que  me  paraceram  de  medíocre  interesse,  per- 
guntei-lhe  a  que  devia  o  prazer  da  sua  visita. 
\'iiiha  consultar-me,  porque  tinha  necessidade 
•  los  conselhos  de  um  advogado  acerca  de  factos 
que  considerava  extremam ?nte  graves.  A  sua 
lepu tacão  e  os  seus  haveres  encontravam-sa  em 
perigo,  porque  determinada  pessoa,  cuja  identi- 
dade desconhecia  ainda,  abusava  da  sua  seme- 
Ihnnça  física  com  èie  para  praticar  actos  e  con- 
li-;u'r  compromissos  que  o  arruinavam  e  o  desou- 
ravam.  (Jltiei-o,  já  com  certa  estranheza.  A  face 
contraíra-se-lhe.  Tremiam-lhe  as  mãos.  Pergun- 
tci-lhe  se  se  tratava  de  factos  averiguados,  ou  de 
simples  suspeitas.  Respondeu-me  que  vira,  èle 
l»róprio,  na  rua  do  Ouro,  ao  voltar  uma  esquina. 
M  homem  que  estava  cometendo  o  roubo  da  sua 
personalidade,  e  que  começara  desde  então  a  re- 


28  NA   VIDA 


conhecer,  com  uma  evidôncia  inquietante,  a  in- 
fluncia  desse  desconhecido  em  todos  os  acon- 
tecimentos da  sua  vida.  —  aO  meu  sósia — conti- 
nuou êle  —  realiza  manifestamente  actos  que  me 
comprometem,  e  vu  já  sinto,  em  volta  de  mim, 
a  desconsideração  e  o  desprezo  de  toda  a  gente. 
Desejo  sfiber  qu3  meios  me  faculta  a  lei  para 
assegurar  a  posse  exclusiva  da  minha  fisionomia». 
Percebi  desde  logo  —  e  era,  de  resto,  fácil  —  que 
tinha  na  minha  presença  um  indivíduo  anormal. 
Na  nossa. clientela  de  advogados,  são  menos  raros 
do  que  se  supõe  estes  tipos  de  persecutórios  e 
de  querelantes,  que  pretendem  resolver  nos  tri- 
bunais os  incidentes  imaginários  criados  pela 
sua  loucura.  Procurei  acalmá-lo,  e,  ao  mesmo 
tempo,  esclarecer,  para  tranquilidade  da  minha 
consciência  profissional,  o  que  porventura  pu- 
desse haver  de  real  e  de  concreto  nas  apreen- 
sões do  meu  novo  cliente.  Não  forneceu  um 
elemento,  não  precisou  um  facto.  Limitou-se  a 
reivindicar,  numa  excitação  crescente,  que  se 
traduzia  já  por  uma  certa  ansiedade  de  expres- 
são, aquilo  a  que  ele  chamava  «o  direito  de  pos- 
suir uma  fisionomia  própria».  Tratava-se,  eviden- 
temente, de  um  louco.  Para  pôr  termo  a  uma 
situação  que  nãu  podia  ser-me  agradável,  levan- 
tei-me,  despedi-o,  e  disse-lhe  que  não  havia  nos 
códigos  disposição  alguma  que  proibisse  detet^- 
minado  indivíduo  de  se  parecer  fisicamente  com 
outro.    Ele  levantou-se  também,   cumprimentou- 


o   ESPEl.MO  '^\) 


-me,  e  concluiu,  já  no  limiar  da  poria,  compondo, 
om  os  dedos  descarnados  e  trémulos,  os  seus 
-inndcs  óculos  de  oiro:  —  «Terei  então,  meu  caro 
-  nlior,  de  fazer  justiça  por  minhas  mãos».  Logo 
((lie  vi  sair  o  dr.  Souto,  avisei  imediatamente  os 
tMiiprcgados  do  escril<'>rio  de  que  não  tornaria  a 
I'  •  'obô-lo  se  êle  voltasse.  Três  dias  depois,  vol- 
l('ii.  Gomo  me  negaraiu,  deixou  duas  palavras 
escritas  num  cartão  de  visita.  Estava  resolvido  a 
meler  uma  bala  na  caberá  do  desconhecido  que 
((Usurpara  a  sua  personalidade»,  e  perguntava-me 
-e  poderiam  ser^lhe  exigidas  responsabilidades 
criminais  por  esse  acto  inevitável.  Não  lhe  res- 
p(ji''li.  Passaram-se  talvez  duas  semanas.  Uma 
b ']:i  manhã,  quando  eu  saía  du  meu  quarto,  o 
criado  anunciou-nj!»  a  visita  do  dr.  Souto.  Con- 
fesso que  não  tinha  previsto  a  eventualidade  de 
Ic  me  procurar  em  uiiuha  casa.  —  «Mandou-o 
iibir  ?» — ((Está  na  sala»,  —  i-espondeu-me  o 
criado.  Ia  transmilir  ao  meu  sinistro  cliente  que 
não  podia  rec8bê-l(" naquela  hora  —  quando  ouvi  o 
ruido  seco  dun.M  deí( mação.  Depois  outra,  e 
outro.  Corri.  Na  meia  obscuridade  da  sala,  des- 
figurado, arqyjante,  um  revólver  em  punho,  o 
[Mjbre  dr.  Souto  crivava  de  balas  a  sua  própria 
imagen;i  reflectida  no  espelho  doií-ado  duma  cre- 
dencia. Cinco  minutos  depois,  os  criados  desar- 
mavam-no  c  entregavam-no  à  polícia. 


ANDROMAGA 


Para  clu'gar  a  (lastclo-Veiitoso,  em  cujo  coii- 
ventinho  me  esperava  a  mais  fidalga  hospitali- 
dade, era  preciso  atravessar  quási  uma  légua  de 
montados.  A  charrette  deixou  a  estrada  e  cortou 
à  mão  direita  por  um  carreteiro  estreito,  roçado 
de  fresco  numa  encosta  roxa  de  mato  queiró. 
Naquela  tarde  ardente  de  junho,  o  sol  escaldava 
como  uma  labareda.  Zumbiam  moscões,  scinii- 
lando.  Um  cheiro  acre  de  urze  ardida,  de  re- 
sinas queimadas,  impregnava  o  ar.  Estávamos  em 
pleno  montado,  em  plena  écloga  alentejana.  Lon- 
ge, sobre  umas  terras  adustas  de  centeio,  pulve- 
rulentas como  uma  formidável  toalha  de  cinza, 
o  oiro  espesso  da  atmosfera  parecia  referver, 
oleoso,  baço,  irrespirável.  Perto,  começavam  a 
gesticular  os  sobreiros,  torcidos,  dobrados  do  va- 
rejo do  vento,  imobilizados  em  grandes  atitudes 
humanas.  Fui  olhando,  quási  um  a  um,  os  tron- 


ANDHÓMACA  31 


COS  que  corriam,  bracejando,  á  beira  do  adarço 
faúlhante  de  sol.  Tocara-os  a  quási  todos,  havia 
um  mês,  a  machada  dos  podadores,  e  largas  cha- 
.?as.  fundos  cstiírmas,  vermelhos  como  pinceladas 
de  zarcão,  grelavam-lhe,  ras.iravam-lhe  o  córtex 
musculoso  onde  a  luz  escorria  como  uma  baba 
de  bronze.  Cada  braçada,  magra  de  frondes,  des- 
carnada e  brusca,  atirava  ao  ar  um  gesto  sagrado 
de  êxtase,  de  profecia,  de  imprecação.  Azinhas 
cnpados.  negros  de  sombra;  azinhos  anões,  como 
grandes  bolas  verdes,  evocavam  a  geórgica  cristã 
dos  gados  tranquilos,  das  cevas  ubérrimas,  dos 
Inres  patriarcais.  À  medida  que  penetrávamos  nn 
coração  do  montado,  o  sol  era  mais  quente,  o 
silêncio  mais  profundo,  o  mato  mais  denso.  Re- 
voadas de  algrevões,  pardas  e  brancas,  levanta- 
vam-se,  pipilando,  dos  giestais.  Pnr  toda  a  part<.'. 
de  encosta  em  encosta,  estendia-.se  a  charneca  em 
flor. — grandes  nódoas  roxas  de  torgueiras  e  dj 
rosmaninhos,  babugens  de  oiro  de  giestas,  tape- 
tes brancos  de  estevas  altas  e  de  sargaços  rastei- 
ros, e,  aqui  e  além,  entre  o  mato.  o  rebento  florido 
dos  pereiros  bravos,  que  se  diria,  na  sua  pegada 
fulva,  o  vestígio  das  patas  felpudas  de  Pan.  A 
charrette  devorava  caminho,  rápida,  vivaz,  acor- 
dando, com  o  seu  guizo  de  cobre,  as  sombras 
dormentes  do  montado.  Abafava-se.  Sobre  um 
esteval,  emquanto  se  levantava,  assustado,  um 
revoo  vermelho  de  milharoucus,  duas  enormes 
cegonhas  cortaram  o   ar,   cinzentas  e   pacíficas, 


32  NA    VIDA 


crguendo-se  no  mosaico  doirado  do  céu.  A  sono- 
lência da  scsla  e  a  monulonia  da  paisagem,  enlic 
pastadas  de  luz  e  comas  de  sobreiros,  começavam 
a  invadir-me  dum  vago  torpor.  Cerrei  os  olhos. 
Passei  pelo  sono.  Então,  uns  laudos  longínquos 
despertaram-mo,  vindos  de  baixo,  da  encosta 
mansa  de  azinhos  que  íamos  descendo.  A  soli- 
dão, o  hálito  ardentx3  e  dionisíaco  da  terra,  a  pró- 
pria serenidade  virgiliana  da  natureza  tornavam, 
não  sei  porquê,  mais  confrangedora  ainda  essa 
voz  de  animal  doloroso.  Era  um  ladrido  agiido, 
seguido  dum  longo  uivo  quási  hiiiiiano,  que  to- 
mava, à  medida  que  nos  aproximávamos,  uma 
expressão  mais  impressionante  e  mais  aniti\'a. 
Já  íamos  perto,  —  quando,  de  repente,  um  cheiro 
nauseabundo,  um  cheiro  adocicado  de  cadáver  se 
misturou,  no  ar  imóvel,  ao  aroma  bravio  da  char- 
neca. Olhei,  para  um  e  outro  lado,  as  moitas  de 
esteva  alapadas,  as  chãs  de  sargaço  que  fumega- 
vam como  estruma  ao  sol,  a  ver  donde  viriam 
aqueles  uivos  de  loba  e  aquele  bafo  de  podridão. 
Não  tive  de  procurar  muito.  Num  côncavo  de 
rocha  irrupta  onde  os  grãos  de  mica  faiscavam, 
um  cão  morto,  abatido  na  véspera  a  cajado,  jazia 
sobre  uma  poça  de  sangue.  Tinha  a  pelagem 
ruiva  dos  cães  de  pastor,  a  cabeça  aberta,  as 
patas  hirtas.  Ao  pé  dele,  enlameada,  hirsuta, 
com  as  tetas  pendentes,  os  olhos  vidrados  de  lá- 
grimas, uma  cadela  negra  uivava  e  gania.  Con- 
siderei, um  instante,  a  grandeza  daquela  tragédia 


ANDRÓMACA  33 


humilde.  O  sol  principiava  a  declinar.  Revoadas 
tranquilas  de  cegonhas,  pairavam.  O  carro  se- 
guiu. Quando  cheguei  a  Castelo-Ventoso, — na 
quebrada  distante,  os  latidos  do  pobre  animal 
ouviam-se  ainda. 


ANA  PEREGRINA 


A  última  geração  que  teve,  em  Portugal,  o 
culto  da  atitude,  o  desdém  do  preconceito'  e  o 
espírito  da  anecdota,  foi  a  mocidade  doirada  de 
1860. 

Um  velho  amigo  meu  contou-me  ontem  a  se- 
guinte história  dos  bons  tempos  da  saia  de  balão: 

Um  dos  frequentadores  do  Marrare  «de  poli- 
mento» era,  em  1862,  o  moço  D.  José  ***,  grande 
tocador  de  guitarra,  muito  fidalgo  e  muito  boémio, 
que  blasonava  da  cruz  dobre  dos  Meios  e  das  seis 
arruelas  de  azul  dos  Castros,  e  em  cuja  beleza 
loira,  indolente,  frágil,  quási  feminina  como  a  de 
certos  retratos  de  Van  Dick,  havia  os  estigmas 
duma  raça  predestinada  a  extinguir-se  pela  tuber- 
culose. Uma  noite,  este  rapaz,  que  chegou  a  te- 
nente de  cavalaria,  e  que  vivia,  ainda  estudante, 
num  quarto  alugado  do  Arco  do  Marquês  de  Ale- 
grete, conheceu  num  baile  de  máscaras  uma  Mimi 


ANA    PEREGRINA  35 


do  Bairro  Alto.  encantadora  rapariga  de  18  anos 
chamada  Ana  Pereprrina,  que  se  tornou  célebre 
mais  tarde  pela  dolorosa  expressão  com  que  can- 
tava o  fado.  apaixonou-se  por  ela,  e  na  própria 
noiip  do  baile,  convencido  de  que  aquele  amour 
.9an.9  Undemain  duraria  a  eternidade  de  al^runs 
meses,  pronr^s-lhc  a  vida  em  comum  e  levou-a, 
ainda  vestida  de  pastorinha  Luís  xv,  para  o  seu 
pobre  quarto  de  solteirão.  Quando  os  dois,  no 
dia  se.íruinte.  acordaram  para  a  consciência  das 
realidades  do  mundo,  ela  lembrou-se  de  que  tinha 
empenhado  o  seu  único  vestido  e  as  suas  únicas 
botas  de  duraque  para  poder  vestir-se  e  calçar-se 
d^  setim  côr  de  rosa  para  o  baile  de  S.  Carlos  c 
ele  viu-se  obri.orado  a  confessar,  depois  de  ter  vol- 
tado do  avesso  todas  as  algibeiras,  que  o  dinheiro 
que  possuía  não  lhe  chegava  para  o  luxo  incal- 
culável de  desempenhar  fosse  o  que  fosse.  Mas  a 
mocidade,  quando  ama.  não  tem  exigências  que 
não  sejam  as  do  próprio  amor.  Passou  o  Car- 
naval, e  aquela  lua  de  mel  continuou,  entre  risos 
e  beijos,  fados  e  guitarras,  com  tão  embevecida 
paixão,  que  Ana  Peregrina  teria 'chegado  a  consi- 
derar-se  feliz  no  seu  «paraíso  sem  cadeiras»,  como 
ela  risonhamente  chamava  ao  quarto  em  que  vivia, 
se  a  falta  de  vestido  não  lhe  estivesse  transfor- 
mando esse  paraíso  numa  prisão.  Ela  não  podia 
?nír  mascarada;  êle  não  lhe  dava  dinheiro  para 
mandar  buscar  a  roupa.  E  a  pobre  rapariga,  farta 
de  passar  os  riias  na  cama  e  de  ir  abrir  a  porta 


36  NA   VIDA 


ao  padeiro  vestida  h  Luís  xv,  começou  a  sentir 
pssa  va,£ra  nostalp-ia  da  liberdade,  que  principia 
quando  o  amor  acaba,  e  que  é  quási  sempre, 
nestas  ligações  efémeras,  a  explicação  fácil  dos 
bruscos  rompimentos  e  das  intermináveis  sacie- 
dades.  Passou-?e  um  mês.  Uma  ocasião,  os  ami- 
gos de  D.  José.  certos  todas  as  noites  no  secundo 
andar  do  Arco  do  Marquês  de  Alegrete  para  ouvir 
cantar  a  Ana.  compadeceram-se  dela  e  cotiza- 
ram-se  para  desempenhar-lhe  o  vestido  e  as  botas 
de  duraque.  A  rapariga,  só  com  a  promessa,  teve 
uma  alegria  tão  !?rande.  que  riu.  chorou,  cantou. 
dançou,  beijou-o?  a  todos,  encheu  aquele  quarto 
de  estudante  de  tanta  viveza  e  de  tanta  graça,  que 
n  meu  velho  amigo,  ao  contar-me  esta  anecdota 
da  sua  mocidade,  tinha  ainda  diante  dos  olhos  a 
figura  delgada  e  quási  infantil  da  Ana  Peregrina, 
sentada  em  cima  da  mesa,  abraçada  à  guitarra 
como  a  Finette  de  Watteau,  e  mostrando  a  meia 
dúzia  de  rapazes,  à  luz  dum  candeeiro  de  latão, 
os  buracos  das  suas  meias  de  seda  côr  de  rosa... 
Nessa  noite,  à  saída,  D.  José,  apreensivo,  embru- 
lhado num  gabão,  acompanhou  os  amigos,  des- 
ceu com  eles  até  ao  primeiro  patamar  da  escada, 
e,  em  segredo,  para  que  Ana  Peregrina  não  ou- 
visse, preveniu-os: 

—  Vocês  dêem  à  pequena  os  vestidos  que  qui- 
serem, mas  não  lhe  dêem  botas. 

-—  Porquê  ? 

—  Porque  se  ela  se  apanha  com  botas,  sala-se, 


1 


ANA    PEREGRINA  37 


Meu  dilo,  meu  feito.  No  dia  seguinte,  de  ma- 
nhã, Ana  recebia  o  seu  vestido  de  pekin  verde  com 
riscas  càr  de  cereja,  o  seu  enorme  balão,  o  seu 
chapéu  de  palha,  de  Itália  com  rosinhas  de  toucar, 
e  —  oh,  felicidade!  —  as  suas  suspiradas  botas  de 
dufaque  cinzento,  pespontadas  de  branco,  abo- 
toadas ao  lado,  pequeninas  como  caixas  de  jóias. 
Nesse  mesmo  dia, — fugiu  de  casa  e  ninguém 
mais  a  viu.  Quando  à  noite  os  amigos  chegaram, 
D.  José,  muito  pálido,  a  arrepelar-se  e  a  chorar 
como  uma  criança,  gritou-lhes: 

—  Eu  bem  lhes  dizia  a  vocês  que  não  se  podem 
dar  botas  a  uma  mulher  I 


A  MULHER  DE  BRANCO 


Quando  desci  o  Chiado  com  o  meu  colega  dr. 
S.,  eram  11  horas.  Vínhamos  de  assistir  à  ope- 
ração dum  nosso  velho  amigo,  um  hércules  que 
caíra,  às  primeiras  gotas  de  clorofórmio,  recitando 
versos  de  Horácio.  Estava  uma  manhã  admirá- 
vel de  primavera.  Quando  passávamos  diante  da 
Bénard,  uma  senhora,  de  dentro  dum  automóvel 
parado,  chamou  o  meu  colega.  Entretive-me  a 
olhá-los,  emquanto  conversavam:  ele,  risonho, 
brusco,  familiar,  a  gola  do  casacâo  levantada,  as 
mãos  nas  algibeiras,  a  volta  do  guarda-chuva  pas- 
sada no  braço;  ela,  nova,  loira,  vinte  e  oito  anos 
talvez,  um  pouco  masculina,  um  trotteur  branco, 
umas  luvas  largas  de  camurça  branca,  um  petit- 
marquis  branco  posto  à  banda  na  cabeça,  como  se 
a  u Mulher  de  branco»  de  John  Opie,  com  os  seus 
cabelos  de  fogo  e  os  seus  olhos  de  faiança,  sur- 


A  MULHER  DE  BRANCO 


gisse  na  penumbra  doirada  da  limousine.  Um  cai- 
xeiro apareceu  carregado  de  embrulhos;  o  meu 
colega  despediu-se, — e  o  automóvel  partiu,  se- 
renamente, Chiado  acima,  scintilando  metais  ao 
sol. 

—  Você  sabe  quem  é  aquela  mulher?  —  per- 
guntou o  dr.  S.,  enfiando-me  o  braço. 

—  Não. 

—  E'  a  viúva  do  nosso  colega  Rendufe. 

—  Do  pobre  Rendufe  ? 

—  Sim,  diz  bem,  do  pobre  Rendufe.  Esta  se- 
nhora casou  aos  vinte  anos,  e  esteve  casada  ape- 
nas seis  dias.  Gonheço-a  desde  a  morte  do  ma- 
rido, em  1907.  Você  viu-a  ?  E'  o  tipo  da  temme 
de  trente  ans.  Aquilo,  meu  amigo,  é  Balzac  ! 

Eu  não  tinha  mantido  relações  de  intimidade 
com  o  dr.  Rendufe,  um  bacteriologista  e  um  anã- 
tomo-patologista  distinto,  mas  lembrava-me  bem 
da  impressão  que  produzira  em  mim,  há  dez  anos, 
a  notícia  da  sua  morte  misteriosa.  O  facto  dessa 
morte  ter  ocorrido  seis  dias  depois  do  casamento 
do  pobre  médico,  e,  por  conseguinte  —  julgava  eu 
— ^em  plena  felicidade,  mais  concorrera  ainda 
para  me  comover  e  para  me  interessar.  Nada 
ouvi,  nada  perguntei,  les  morts  vont  vite^  e,  den- 
tro de  pouco  tempo,  a  ideia  de  que  o  pobre  dr. 
Rendufe  existira  apagou-se  de  todo  para  o  meu 
sentimento  e  para  a  minha  curiosidade. 

—  Você  não  sabe  como  êle  morreu?  —  per- 
guntou-me  o  meu   colega,   fixando  em  mim  os 


40  NA   VIDA 


seus  grandes  olhos  pardos,  que  pareciam  azuis 
vivos  na  sombra  do  chapéu  mole  de  veludo. 

—  Não  sei. 

—  Pois  eu  lhe  conto.  Infelizmente  posso-o  fa- 
zer, porque  êle  morreu-me  nos  braços.  Foi  uma 
tragédia  obscura,  meu  amigo,  —  mas  foi  uma 
grande  tragédia  ! 

Emquanto  descíamos  a  rua  do  Carmo,  o  dr. 
S.,  com  o  mesmo  ar  brusco  e  sacudido  dos  seus 
gestos  e  das  suas  passadas,  contou-me,  comovido 
ainda,  a  morte  do  nosso  pobre  colega.  Durante 
todo  o  tempo  que  êle  falou,  nem  um  só  momento 
a  graciosa  figura  da  mulher  de  branco,  com  o 
seu  petit-marquis  à  banda  sobre  a  grande  man- 
cha fulva  dos  cabelos,  deixou  de  passar  diante 
dos  meus  olhos,  sorrindo,  como  uma  obsessão. 

—  Você  talvez  saiba  que  o  Rendufe,  quando 
tinha  vinte  e  três,  vinte  e  quatro  anos,  esteve 
paraplégico.  Talvez  uma  coisa  específica,  porque 
o  rapaz  tratou-se  e  melhorou.  Picaram  umas  in- 
coordenações  de  movimentos,  umas  desordens  de 
sensibilidade,  aquela  marcha  ligeiramente  espas- 
módica que  você  lhe  conheceu,  já  um  pouco  mo- 
dificada, um  pouco  corrigida  nos  últimos  anos. 
Gomo  nós,  médicos,  não  percebemos  nada  de 
doenças,  disse-lhe  que  carregasse  no  iodeto  e  que 
fosse  vivendo.  Um  belo  dia,  talvez  um  ano  antes 
de  morrer,  o  Rendufe  procurou-me  em  casa. 
Vinha  mais  pálido  do  que  de  costume,  embru- 
lhado num  grande  casacão  escocês,  uma  brochura 


A  MULHER   DE   BRANCO  41 


amarela  debaixo  do  braço.  Pechámo-nos  no  es- 
critório. O  suor  borbulhava-lhe  da  testa,  as 
mãos  tremiam-lhe  sobre  a  volta  de  oiro  da  ben- 
gala. Vinha  perguntar-me,  sob  o  mais  absoluto 
sigilo,  se  eu  entendia  que  ele  podia  casar-se. 
Éramos  dois  médicos  —  dizia  êle  —  devíamos  fa- 
lar com  franqueza  um  ao  outro.  Expôs-me,  com  a 
maior  lucidez,  o  seu  caso  clínico;  fez,  desde  os 
vinte  e  três  anos,  a  história  da  sua  antiga  parali- 
sia; contou-me  a  situação  em  que  se  encontrava, 
noivo  duma  menina  desde  a  infância  de  ambos; 
invocou  compromissos  de  família,  razões  de  in- 
teresse e  de  sentimento;  mostrou-me,  com  os  olhos 
embaciados  de  lágrimas,  o  retrato  da  senhora  que 
você  acabou  de  conhecer, — e  como  eu  lhe  dis- 
sesse, com  toda  a  lialdade,  que  me  parecia  me- 
lhor desistir  do  seu  casamento,  abraçou-me,  con- 
cordou comigo,  falou  vagamente  de  tabes  dorsal, 
pediu-me  umas  flores  que  eu -tinha  sobre  a  se- 
cretária, e  saiu.  Daí  por  diante  nunca  mais  fa- 
lámos em  semelhante  assunto,  nem  no  laborató- 
rio, nem  no  hospital.  Passaram-se  dez  ou  onze 
meses, — e  um  domingo,  por  acaso,  numa  expo- 
sição de  aguarelas,  encontrei-o  com  uma  rapariga 
loira  pelo  braço  e  uma  senhora  de  idade  atrás. 
Era  a  noiva.  Apresentou-me.  —  «Sabe  ?  Casamos 
amanhã». — Fiquei  espantado,  a  olhar  para  êle. 
No  dia  imediato,  não  apareceu.  No  outro  dia,  li 
a  notícia  do  casamento  em  todos  os  jornais.  Três 
dias  depois,  a  enfermeira  disse-me  que  êle  tinha 


45  NA   VIDA 


filtrado  no  laboratório,  desfigurado,  pálido,  que 
se  tinlia  fechado  por  dentro,  e  que  saíra  passadas 
duas  lioras,  a  cambalear.  Quando  cheguei,  na  tarde 
seguinte,  disseram-me  que  ele  já  estava.  Pui  ba- 
ter-lhe  k  porta:  não  respondeu.  Bati  de  novo:  si- 
lêncio. Chamei-o:  um  tiro  soou,  seco,  rápido; 
depois,  o  baque  dum  corpo;  em  seguida,  um  ti- 
lintar de  vidros.  Os  criados  correram,  meti  om- 
bros à  porta,  o  meu  pobre  amigo  estava  caído 
(le-bruços,  como  um  farrapo,  junto  à  mesa  de  mi- 
croscopia onde  scinlilava  a  armadura  do  seu  ma- 
gnífico Reichert.  A  blusa,  chamuscada  no  peito, 
ardia.  A  vitrine  dos  reagentes  estava  aberta.  Ve- 
rifiquei que  ele  respirava  ainda.  Meti-lhe  as  mães 
em  água  quente,  agarrei-o  em  peso,  atirei-o  para 
um  automóvel  e  seguimos  para  o  hospital  de  S. 
José.  Morreu  a  meio  do  caminho,  com  a  cabeça 
encostada  ao  meu  peito. 

—  E  a  mulher  ?  —  inquiri. 

O  dr.  S.  sorriu,  encolhendo  os  ombros: 

—  Nunca   percebeu    a   razão   por   que   ele    se 
matou. 


A  CONFISSÃO 


Lembro-me,  como  S3  fosse  hoje,  de  ouvir  D. 
António  de  ***,  o  velho  prelado  cuja  cabeça  tanto 
lembrava  a  de  Bossuet  e  debaixo  de  cuja  murça 
roxa  batia  um  dos  maiores  cc rações  da  Espanha, 
((intar  este  senlido  episódio  da  sua  vida: 

—  Muilo  antes  de  ser  Bispo,  quando  eu  paro- 
quiava numa  das  freguesias  de  Lisboa,  fui,  não 
sei  ainda  bem  porquê,  o  confessor  querido  das 
mulheres.  E'  uma  distinção  que  os  padres,  em 
geral,  devem  mais  aos  seus  defeitos  do  que  às 
suas  virtudes.  Já  lá- vão  quarenta  anos;  passaram 
sobre  a  minha  cabeça  os  trabalhos  do  episcopado 
e  os  gelos  da  velhice;  cheguei  à  idade  em  que  os 
homens  vêem  claro  na  sua  vida  e  na  sua  cons- 
ciência,—e  ainda  hoje,  quando  penso  nos  mo- 
tivos que  teriam  levado  as  mais  elegantes  mulhe- 
res da  Lisboa  de  1876  a  preferir-me  a  tantos  sa- 


44  NA   VIDA 


cerdotes  velhos  e  virtuosos,  não  sei,  em  verdade, 
se  devo  louvar-me,  se  penitenciar-me.  Deus  me 
perdoe  os  pecados  da  minha  vaidade,  e  me  leve 
em  desconto  deles  a  grande  piedade  humana  com 
que  procurei  servi-lo  no  meu  ministério.  Ignoro 
se  os  bons  confessores  devem  ser  como  eu  fui. 
A  minha  bondade  natural,  o  meu  vago  idealismo 
cristão  de  transmontano,  a  minha  compaixão  pro- 
funda por  todas  as  dores  morais,  levaram-me  in- 
sensivelmente a  revestir  o  sacramento  da  peni- 
tência duma  expressão  de  humana  doçura,  de 
acolhedora  tolerância,  de  compassivo  amparo  es- 
piritual, que  seria  talvez  a  razão  da  minha  fortuna 
de  padre  elegante,  se  um  certo  mundanismo  de 
batina  e  de  maneiras,  e  um  culto  menos  modesto 
das  temporalidades,  não  bastassem  para  explicar 
a  atracção  curiosa  das  mulheres  e  o  favor  instá- 
vel da  moda.  Para  mim,  a  confissão  não  era  um 
sacramento  austero:  era  uma  confidência  tranqui- 
lizadora; quando  muito,  um  conselho  delicado  e 
paternal;  —  sempre  um  sorriso  e  um  perdão.  Não 
sei  ainda  hoje,  que  sou  Bispo  e  sou  velho,  se  esse 
carácter  de  intimidade  tolerante  e  discreta  será 
o  que  mais  convêm  à  dignidade  sacramental  da 
confissão;  mas  basta-me  a  certeza  de  que  é  o  que 
mais  se  conforma  com  a  doçura  da  caridade  cristã. 
Para  quê,  magoar  pudores,  violentar  consciências, 
repreender,  penitenciar,  ameaçar  com  a  ira  d3 
Deus  ?  Deus,  se  tivesse  de  ouvir  os  pecados  duma 
mulher,  —  ouvia-os  sorrindo.  Pobres  criaturas  de 


A  CONFISSÃO  45 


fragilidade,  de  inocência  e  de  ?raça,  só  Deus  sabe 
que  tempestades  de  dAr  as  trazem  às  vez^s  aos 
nnssnp  pf^s. — e  como  uma  s6  palavra  nossa  de 
ronsolação  espiritual  pode  fazô-las  renascer  para 
n  íé.  para  a  virtude,  para  a  vida!  Uma  cadeira 
de  confessor  ^  nm  trafado  de  psicologia  feminina, 
o  mais  difícil  n3o  é  saber  onvir  o  que  nma  mu- 
lher nos  diz:  é  compreender  os  seus  silêncios:  é 
interpretar  as  suas  lácrrimas:  é  adivinhar  a  ex- 
pressão das  suas  Dfllpebras  descidas:  é  saber  ou- 
vir tudo  aquilo  que  ela  quer  confessar-nos  —  e 
que  não  tem.  às  vezes,  forca  para  nos  dizer.  Hei-de 
Ipmbrar-me  sempre  duma  das  minhas  anfis-as  na- 
roauianas,  a  senhora  condessa  de  M..  cujas  lá- 
crrimas.  um  dia.  foram  tão  eloquentes,  que  a  con- 
fessei ?  a  absolvi  sem  que  ela  pronunciasse  uma 
única  palavra.  Nunca  cumpri  menos  canónica  e 
mais  humanamente  o  meu  dever  de  padre.  Era 
uma  mulher  alta.  loira,  impassível,  cujo  perfil. 
mnis  cheio  de  raça,  do  que  de  beleza,  fazia  pensar 
vairamente  na  distinção  de  certos  tipos  da  casa  de 
Áustria  e  na  transparência  de  certos  mármores 
côr  de  rosa.  Gonhecia-a  do  mundo  o  bastante, 
para  sabor  a  história  do  seu  casamento  com  o 
conde  de  M.  e  das  suas  leviandades  com  um  moço 
tenente  de  cavalaria,  belo  rapaz,  que  blasonava 
da  cruz-dobre  e  dos  seis  besanies  de  prata  dos 
Almeidas.  Coisa  curiosa:  havia  dois  anos  que 
ela  era  minha  confessada,  e  nunca  se  referira, 
senão  duma  forma  obscura,  a  essa  ligação  que 
tinha  principiado  por  um  caprkiK)  e  que  ace- 


i6  NA    VIDA 


bara  pela  mais  funesta  e  criminosa  das  paixões. 
Uma  bela  manhã,  lia  eu  o  jornal,  quando  vi  n 
notícia  de  que  um  tenente  de  cavalaria  de  apelido 
Almeida,  ao  ensaiar  no  picadeiro  do  Paço  de  Be- 
lém uns  jogos  de  canas,  caíra  do  cavalo  e  morrera 
instantaneamente.  Bacorejou-me  o  coraçfío  que 
era  ôlo;  e  habiluado,  como  estava,  a  ser  o  con- 
fidente de  tod'is  os  amores  infelizes,  fiquei  espe- 
rando, fielmeiít:^.  à  hora  da  missa,  a  visita  infa- 
lível da  mír,!)  i  nobre  paroquiana.  No  primeiro 
dia.  não  veio.  No  segundo,  também  não.  Apa- 
receu aos  [vè.<  dias,  toda  vestida  de  preto,  um 
livro  de  missa  na  mão,  um  véu  espesso  pela  face. 
mas  tão  desfigurada,  tão  mudada  de  voz,  que  só 
a  reconheci  pelo  perfume  dos  cabelos, — um  per- 
fume quente,  característico,  que  às  vezes  enchia 
toda  a  igreja.  Quis  que  eu  a  confessasse  com  ur- 
gência. Como  o  conTissionário  estava  servindo  ao 
coadjutor,  levei-a  para  a  sacristia,  assentei-me 
numa  cadeira  diante  dos  arcazes,  mandei-a  ajoe- 
lhar aos  meus  pés.  —  e  ai'  mesmo,  entre  duas 
terrinas  do  Rato  eh  vias  de  flores,  preparei-me 
para  a  ouvir  de  confissão.  Odiando  essa  pobre 
mulher  levantou  o  véu  que  a  cobria,  a  sua  pali- 
dez, os  seus  olhos  secos  e  brilii;  ntt-  a  sua  iii- 
tude  crispada  de  dôr.  compungiiani-aie.  Aben- 
çoei-a.  Os  lábios  tremiam-lhe;  os  c  ibel- '^-  tinham- 
-Ihe  embranquecido  nas  fontes;  o  ilhar  fixava-se 
em  mim,  imóvel,  numa  tão  inquietante  expres- 
são de  angústia  e  de  súplica,  que  eu  tive  a  im- 
pi-essão  viva,  confrangedora,  exacta,  duma  cria- 


A   CONFISSÃO  i7 


lura  que  não  podia  chorar.  Disse  as  primeiras 
palavras  do  Confiteor,  para  que  ela  as  repetisse 
comigo:  estrangularam-so-lhe  na  garganta.  Afa- 
guei-a,  cheio  de  piedade,  como  se  afaga  uma 
criança;  tranqíiilizei-a;  sorri-lhe;  disse-lhe  que 
sabia  já  de  toda  a  sua  desgraça:  falei-lhe  do  morto 
como  se  lhe  falasse  dum  irmão  muito  querido: 
e  ao  dizer-lhe  que  Deus,  senhor  de  misericódia, 
se  compadecia  comigo  da  sua  dôr,  — as  lágrimas 
principiaram  a  correr-lhe  dos  olhos,  a  quatro  e 
quatro,  aquele  pobr?  corpo  devastado  arquejou 
em  soluços,  o  pranto  sufocou-a.  e  como  a  terra 
árida  e  escaldada  do  sol  quando  recebe  o  refri- 
írério  dos  primeiros  orvalhos.  — ficou  largo  tempo, 
•locemente,  serenamente,  abraçada  aos  meus  joe- 
lhos pecadores,  a  chorar  em  silêncio...  (lEgo  te 
absolvo  a  peccatis  tuis,  in  nomine  Patris.  et  Fi- 
/u...»  Tinha-a  absolvido,  sem  a  ouvir  de  confissão. 
A  carruagem  esperava,  à  porta  da  igreja.  Ia.  de- 
certo, levá-la  ao  cemitério.  Levantei-a  do  chão, 
-nrinhosamente;  colhi  de  sobre  o  arcaz  um  b''- 
çado  de  rosas  frescas;  lancei-o  no  regaço  dess.i 
mulher  três  vezes  desgraçada,  e  disse-lhe,  com 
as  lágrimas  a  borbulharem-me  dos  olhos:  —  «Vá, 
minha  filha.  Leve  essas  flores  ao  seu  miorto.  Deus 
acompanha  sempre  aqueles  que  amaram  e  sofre- 
ram...» Nesse  dia.,  fiquei  contente  comigo  mesmo 
Fora  um  mau  padre;  mas  tinha  dado  a  uma  cria- 
tura humana  a  suprema  consolação  de  poder 
chorar. 


o  GENERAL 


Minha  querida  Tia: 

Escrevo-lhe  ainda  muito  impressionada  e  com 
os  olhos  inchados  de  chorar.  Morreu  esta  manhã 
o  pobre  general  Barreiros.  A  estas  horas  já  a  Tia 
deve  ter  recebido  o  meu  telegrama  pedindo-lhe 
o  favor  de  me  mandar  o  vestido  preto  de  crepe  da 
China  e  o  chapéu  preto,  grande,  da  mamã.  Eu 
e  duas  amigas  minhas,  a  filha  da  viscondessa  de 
S.  Dâmaso  e  a  Nelly,  resolvemos  pôr  luto  por 
uma  semana.  A  Nelly,  coitada,  ^ teve  um  ataque 
de  nervos  e  passou  muito  mal.  Nunca  imaginei, 
minha  querida  Tia,  que  a  morte  duma  pessoa 
que  não  era  da  nossa  família  e  que  eu  conhecia 
há  menos  de  um  mês,  pudesse  impressionar-me 
e  comover-me  tanto. 

Mas  quem  era  o  general  Barreiros?  —  per- 
guntará a  sua  curiosidade.    Por  que  me  causou 


o    GENERAL  49 


n  morte  dêl?  um  desgosto  tão  grande  ?  E'  o 
rfiie  lhe  venho  C(  ntar.  minha  Tia.  cefta  de  que  a 
^iia  bondosa  ahna  não  negará  uma  lágrima  e  uma 
oração  à  memória  do  nosso  querido  morto.  A 
Tia  conhecia-o,  talvez,  de  o  ver  por  Lisboa.  Era 
um  tipo  de  vieyx-garçon,  alto,  elegante,  bem  ves- 
tido, sessenta  e  cinco  anos  se  tanto,  certo  no 
Chiado  ;i?  5,  um  desses  velhos  nmito  distintos 
([Lie  vistos  pelas  costas  parecem  rapazes,  que  teem 
linda,  i)or  instinto  ou  por  educação,  a  prenda 
rara  de  saber  conversar  com  senhoras,  e  que  nós, 
.IS  raparigas  da  minha  idade,  achamos  às  vezes 
muito  mais  interessantes  do  que  os  rapazes  novos. 
Quando  lhe  fui  apresentado  aqui  nas  Pedras  Sal- 
.'/'idas.  já  o  conhecia  de  vista,  —  do  chá  da  Mar- 
qu3s  e  da  missa  da  1  hora.  Antes  de  lhe  falar 
pela  primeira  vez  achei-o  um  pouco  ridículo,  um 
[»ouco  rnouche  à  miei,  com  o  seu  aprumo,  os  seus 
<  nmprimeníos  d?  pés  juntos,  as  suas  polainas 
amarelas,  a  presunrão  que  ele  tinha  nas  mãos, 
muito  brancas,  muito  bem  tratadas,  muito  cheias 
de  anéis.  Mas  depois  de  conversado,  minha  queri- 
da Tia,  não  imagina  que  distinção  de  maneiras, 
que  delicadeza  respeitosa,  que  trato  insinuante, 
que  vivacidade  de  espírito,  que  encantadora  moci- 
dade a  daqueles  cabelos  brancos  !  Todos  o  adora- 
vam,— especialmente  as  mulheres.  Era  interessan- 
te vê-lo  no  Casi.io,  sempre  rodeado  de  raparigas 
novas,  rindo,  conversando,  dançando  como  um 
rapaz,  um  sorriso  a  uma,  um  bunbon  a  outra,  -- 

4 


50  NA   VIDA 


((fraulein  General»,  como  lhe  chamavam  as  mães 
ao  entregar-lhe  confiadamente  as  filhas,  «General 
bonbonnière».  como  êle  se  tratava  a  si  próprio,  — 
um  ponco  con-fidente.  nm  ponco  pai,  nm  pouco 
mestra  alemã,  nm  pouco  namorado  de  nós  todas, 
—  e  cada  vez  mais  disputado,  mais  acarinhado, 
mais  perdido  de  mimo  por  todas  nós.  Nunca  su- 
pus que  num  velho  pudesse  haver  tão  grandes 
qualidades  de  sedução.  Muitas  das  minhas  ami 
gas  atribuíam  o  encanto  do  velho  general  à  au- 
réola de  que  o  cercavam  ainda  o  seu  passado  de 
conquistador  c  a  sua  vida  misteriosa  de  soltei- 
rão elegante.  Talvez.  O  que  é  certo,  minha  Tia, 
é  que,  depois  de  o  conhecer,  su  fiquei  fazendo 
uma  ideia  diferente  da  velhice, —uma  outra 
ideia  mais  doce,  mais  alegre,  mais  atraente,  mais 
carinhosa,  —  a  ideia  de  qualquer  coisa  que  sorri, 
que  ama,  que  aconselha,  que  absolve,  que  pro- 
tege... 

Uma  destas  manhãs  —  há  oito  dias  —  o  general 
não  apareceu  no  Parque,  como  costumava.  À 
tarde,  disseram-me  que  êle  estava  gravemente 
doente.  Corremos  ao  hotel.  eu.  a  Nelly,  e  mais 
cinco  ou  seis  raparigas.  O  médico,  que  veio  re- 
ceber-nos,  falou  vagamente  em  artério-sclerose, 
em  organismo  gasto,  em  morte  próxima.  Quando 
o  vi,  recostado  na  cama,  fez-me  impressão  a  sua 
palidez.  Esperava-o  —  disse  êle  —  o  fim  horrível 
das  criaturas  que  envelhecem  sem  afectos  e  que 
morrem  sem  lar.   Não  receava  a  morte;  mas  tinha 


o    GENERAL  51 


medo  do  isolamento  p  do  abandono.  Percebe- 
mos-lhe  nos  olhos,  nós  todas,  o  brilho  de  duas 
lágrimas.  Desde  essa  larde.  minh^  Tia,  não  o 
deixámos  mais.  Acabou  para  nós  o  Casino  e  o 
Parqne.  Vivemos  durante  oito  dias,  como  um 
-orriso,  à  sua  cabeceira.  De  dia.  estávamos  todas; 
de  noite  ficava  uma  só,  por  escala,  com  um  criado 
('  uma  criada  do  hotel.  Se  fôssemos  filhas  dele, 
não  tínhamos  sido  mais  dedicadas  nem  mais  ca- 
i'inhosas.  Enchiami  s-lhe  o  quarto  de  flores.  Lia- 
mos-lhe  os  livros  de  que  èle  mais  gostava.  Dava- 
mos-lhe  de  comer  como  a  uma  cirança.  Êle,  em 
troca,  sorria  e  beijava-nos  os  dedos.  Hoje,  de  ma- 
nhã, quando  eu.  a  Nelly  e  a  filha  da  viscondessa 
le  S.  Dâmaso  lhe  levávam.os  um  copo  de  leite, 
recusou,  pediu  um  esi^elho.  compôs  levemenle  os 
cabelos,  recost(  u-se  melhor  na  cabeceira  da  cama, 
npertou  muito  as  nossas  mãos  nas  dele,  olhou-nos, 
ora  a  uma.  ora  a  outra,  com  uma  expressão  de 
ternura  e  de  gratidão  infinita,  correram-lhe  duas 
lágrimas  pela  face.  e  disse-nos,  quási  num  mur- 
múrio: 

—  Nunca  julguei  que  fosse  tão  agradável  mor- 
rer ! 

Um  instante  depois,  a  cabeça  inclinou-se-lhe 
sobre  o  peito,  e  ficou.  Tivemos,  nós  todas, 
d  impressão  de  que  èle  morreu  feliz.  Não  se  es- 
queça, minha  querida  Tia,  de  rezar  um  padre- 
nosso  pela  sua  alma. 

Sua  sobrinha  muito  amiga,  —  Helena, 


A  SOMBRA 


O  sargento  Joaquim  seguira  para  França  com 
as  primeiras  tropas  portuguesas  destacadas.  Os 
pais,  dois  velhos  que  viviam  de  uma  loja  d? 
capela  em  Santa-Gomba,  e  que  não  possuíam  ou- 
tra alegria  nem  outra  riqueza  que  não  fosse  o 
orgulho  daquele  filho,  tinham  ido  levar-lhe  à 
despedida,  ao  comboio,  o  seu  último  abraço. 
Quando  o  apertaram  ao  coração,  o  moço  sar- 
gento, com  os  olhos  brilhantes,  sorria.  Morrer? 
Quem  falava  ali  em  morrer  !  Haviam  de  voltar 
todos  os  que  tivessem  mães  a  chorá-los  e  a 
abençoá-los.  Pois,  então  !  E  no  extremo  adeus, 
sobre  o  estribo  do  vagom,  embrulhado  no  grande 
capote  cinzento  que  fazia  parecer  maior  a  sua 
estatura,  dizia  ainda  à  mãe,  que  lhe  beijava  as 
mãos  e  lhas  molhava  de  lágrimas: 

—  Vocemecê  verá,  mãe,  que  eu  hei-de  estar 
todas  as  noites  na  sua  companhia! 


A    SOMBRA  53 


Decorreram  oito  ou  dez  dias.  Os  dois  velhos, 
entregues  à  dôr  do  seu  apartamento  e  à  doçura 
da  sua  saudade,  passavam  um  defronte  do  outro 
os  longos  serões  de  inverno,  calados,  ela  co- 
zendo roupa  à  mesa,  êle  sentado  numa  cadeira 
de  palha,  com  o  gato  nos  joelhos,  a  lêr,  à  luz 
de  um  candeeiro  de  petróleo,  os  jornais  que  fa- 
lavam tanto  da  guerra  e  nunca  traziam  o  nome 
do  seu  filho.  Uma  bela  noite,  a  velha  capelista, 
levantando  os  olhos  da  costura,  reparou  numa 
sombra  que  se  alongava  na  parede  branca,  ao 
lado  da  porta,  e  que  semelhava,  na  sua  impre- 
cisa flutuação,  um  vago  contorno  humano.  A 
princípio  cuidou  que  era  a  sombra  ao  marido, 
e  não  deu  maior  atenção  ao  caso.  Mas  quandu 
chegou  a  hora  de  ss  deitarem  e  o  velho  se  le- 
vantou da  cadeira,  a  pobre  mulher  notou,  com 
estranheza,  que  a  mancha  negra  continuava  a 
alastrar  no  mesmo  sítio  da  parede,  como  se  fosse 
a  projecção  dum  corpo  invisível  para  ela. 

—  Que  sombra  é  aquela,  João  ? 

—  Ora  essa  !   E'  a  tua. 

—  Gomo  pode  ser  isso,  se  eu  estou  deste  ladn 
(la  luz  ? 

O  velho  calou-se,  considerou  demoradamente 
a  casa  e  os  móveis,  olhou  a  parede,  tirou  de  cima 
da  mesa  uma  caneca  alta  de  louça,  fechou  a 
porta  dum  armário,  arredou  de  diante  da  luz 
tudo  quanto  poderia  produzir  aquela  projecção 
inexplicável,  mudou  o  logar  do  candeeiro,  —  e  a 


54  NA   VIDA 


sombra  continuou  na  pareds  caiada,  defronte 
dele,  mais  nítida  e  mais  fixa  ainda,  na  vaga  con- 
formação duma  figura  de  homem.  Era  talvez 
alguém  que  espreitava  da  rua,  —  pensou  o  velho, 
assomando  à  janela.  Mas  na  rua  não  havia  ne- 
nhum lampeão  aceso;  não  passava  viv'alma;  e, 
depois  de  fechadas  as  portadas  de  dentro;  a  som- 
bra permaneceu  diante  dos  dois  velhos,  que  se 
olharam,  imóveis  de  assombro.  Passaram-se  mo- 
mentos dum  silêncio  angustioso.  Houve  um  ins- 
tante em  que  a  mancha  da  parede  pareceu  alas- 
trar, flutuar  como  a  sombra  dum  capote  vare- 
jado pelo  vento. .  De  repente,  a  pobre  mulher, 
que  tremia,  encarou  o  marido,  a  flsionomia  trans- 
hgurou-se-lhe,  e,  numa  expressão  simultanea- 
mente de  terror  supersticioso  e  de  ternura  ma- 
terna, murmurou  de  mãos  postas: 

—  Parece  a  sombra  do  nusso  íilho,  João  ! 
Ele  ouviu-a  e  resmungou,   preocupado,   enco- 
lhendo os  ombros: 

—  Tens  imaginações,  mulher! 

Daí  por  diante,  todas  as  noites,  lá  estava  a 
mesma  sombra',  na  pareae  branca,  junto  da 
porta.  Era  já  a  companhia  dos  dois  velhos,  ao 
serão.  Êle  enlretinha-se  fazendo  experiências 
com  a  luz,  a  ver  se  a  sombra  se  deslocava  pelos 
movimentos  do  candeeiro.  Ela  não  tirava  os  olhos 
daquilo  que  supunha  a  imagem  longínqua  du  h- 
Iho,  e  todas  as  noites,  antes  de  se  deitar,  às  es- 
condidas do  velho  capelista,  beijava  em  segredo, 


A    SOMBRA  55 


chorando  e  rindo,  a  sombra  do  seu  Joaquim. 
Os  dois  velhos  foram  vivendo,  enganando  a  sua 
própria  saudade,  conversando  já  com  aquela 
imagem  intrusa  como  se  nela  palpitasse  o  seu 
sangue  e  a  sua  alma,  —  até  que  na  noite  de 
Santo  António,  12  para  13  de  junho,  inesperada- 
mente, como  se  se  tivesse  afastado  o  corpo  que 
a  produzia,  —  a  sombra  desapareceu.  Espera- 
ram vê-la  no  dia  seguinte,  ao  acender  da  luz. 
Não  voltou  mais.  Daí  a  pouco  tempo,  quando  o 
velho,  ao  serão,  lia  os  telegramas  dos  jornais  do 
Pôrlo,  teve  um  grito  rouco,  resvalou,  o  jornal 
caíu-lhe  das  mãos,  a  cabeça  pendeu-lhe  num 
soluço.  Acabava  de  lêr  o  nome  do  filho,  — morto 
em  combate  em  França,  na  mesma  noite  de  12 
de  junho  em  que  a  sua  sombra  deixara  de  debru- 
çar-se  sobre  a  alma  dolorosa  dos  pais. 


DISTRACÇÃO 


—  Só  são  felizes  os  que  casam  por  amor  — 
cliss3  M.'"^  Vargas,  enterrada  no  seu  cadeirão 
Brougham,  baloiçando  no  ar  um  pequenino  pé 
calçado  de  branco. 

—  Parece-me,  minha  senhora,  que  só  são  fe- 
lizes os  que  casam  por  conveniência  —  senten- 
ciou a  verte  viciUesse  do  general  Pessanha,  de 
monóculo,  brandindo  o  stick. 

O  meu  amigo  visconde  de  **\  que  assistia  i\ 
discussão  silencioso,  interessado,  recostou-se  me- 
lhor na  cadeira,  machucou  as  luvas  sobre  o  cas- 
tão de  oiro  da  bengala,  e  concluiu,  com  o  ar 
mais  convicto  do  mundo: 

—  Eu  entendo  que  só  são  felizes  os  que  ca- 
sam por  distracção. 

—  Oh  !  Oh  ! 

AI.""®  Vargas  protestou,  rindo.  A  saia  azul  de 
M.iie  Yvonne  desapareceu.   O  visconde  de  ***  dei- 


DISTRACÇÃO  57 


xou  -passar  a  onda,  e  prosseguiu,  tranquila- 
mente, encolhendo  os  seus  largos  ombros  de  hér- 
cules grisalho: 

—  Foi  o  que  me  sucedeu  a  mim.  V.  ex."  sa- 
bem como  eu  sou  distraído.  Pois  bem.  Um  dia, 
por  distracção,  casei-me, — e  afirmo  a  v.  ex.""' 
que  nunca  supus  que  pud9sse  existir  alguém  tão 
feliz  como  eu  sou. 

—  De-veras  ? 

—  Eu  lhes  conto. 

O  sol  acendia  clarões  nas  hrise-bise  de  seda 
verde.  Uma  gata  francesa  dormia  sobre  as  al- 
mofadas do  sofá.  O  general  seguia  com  o  olhar 
o  pé  nervoso  e  calçado  de  branco  de  M."*  Var- 
iais.   O  visconde  continuou: 

Não  é  segredo  para  ninguém  que  eu  até 
tos  íO  a^^os  não  casei  porque  me  distraí.  Vivia 
•om  uma  tia  velha,  tão  distraída  como  eu. — e, 
até  qiie  os  primeiros  cabelos  brancos  aparece- 
ram, respirei,  a  plenos  pulmões,  a  maravilhosa 
delícia  de  egoísmo  o  de  comodidade  que  é  a  vida 
<!e  solteiro.  Mas  um  dia  a  pobre  senhora,  por 
distracção,  morreu  duma  sínccpe  cardíaca,  eu 
enconlrei-me  só,  e  como  me  pareceu  que  seria 
menos  pesada  a  solidão  se  fosse  viver  para  Lon- 
dres, resolvi  fazer  as  malas,  alugar  mobilada 
i  minha  casa  do  Conde  de  Redondo,  e  partir 
para  Inglaterra.  Logo  no  primeiro  dia  em  que 
pus  escritos,  a  casa  alugou-se.  Conhecem  uns 
encantadores  tipos  loiros  de  brasileira,   raros  e 


58  NA    VIDA 


paradoxais,  que  teem  os  cabelos  cendrados  das 
holandesas,  os  olhos  de  hulha  das  cariocas,  e 
cuja  pele,  na  mordedura  ds  oiro  da  luz,  lembra 
ao  mesmo  tempo  a  polpa  duma  rosa  e  as  man- 
chas fulvas  do  âmbar  cinzento  ?  Pois  era  assim 
a  minha  inquilina,  uma  brasileirinha  de  25  anos 
que  vivia  com  a  mãe.  Comprometi-me  a  dar- 
-Ihes  a  casa  no  dia  5  de  março,  — precisamente  o 
dia  em  que  eu  devia  embarcar  para  Inglaterra. 
Mas  distraí-me,  fiz  confusão  com  a  hora  de  em- 
barque que  me  linham  dado  na  agência,  demo- 
rei-me  a  receber  e  a  instalar  M."'®  Barroso  e  a 
filha, — e  quando,  finalmente,  tive  consciência 
de  mim,  estava  no  Terreiro  do  Paço,  rodeado  de 
malas,  sem  paquete,  sem  casa,  e  — o  que  era  la- 
mentável—  sem  lôrça  moral  para  tomar  uma  re- 
solução. Evidentenients,  não  havia  de  ir  inco- 
modar as  minhas  i.  quilinns.  Pui  para  um  hotel. 
Encontrei  um  amigo  do  Algarve  que  não  via  há 
dez  anos,  e  que  me  falou  do  idealismo  de  Rus- 
kin  ;'  das  armações  de  atum.  Jantámos  juntos. 
Pomos  juntos  ao  teatro.  Ceámos  juntos.  Às  3  da 
madrugada  deixei-o  num  club  qualquer,  entre 
uma  francesa  magra  e  uma  geleira  cheia  de 
Champagne,  —  e  distraído,  fatigado,  com  os  olhos 
a  fecharem-se-me  e  a  boca  a  saber-me  a  ferros 
velhos,  subi  para  um  automóvel,  mandei  seguir 
para  a  rua  do  Conde  de  Redondo,  27,  apeei-me, 
paguei,  meti  a  chave  ao  trinco,  e  sem  me  passar 
sequer  pela  cabeça  que  tinha  perdido  o  paquete, 


DISTRACÇÃO  59 


que  estava  num  hotel  e  que  a  minha  casa  já 
não  era  minha,  galguei  a  escada,  abri  a  porta, 
pendu/ei  o  chapéu  e  a  bengala  no  cabide,  atra- 
vessei o  corredor,  entrei  no  meu  quarto,  abri  a 
electricidade, — e,  minhas  senhoras,  só  caí  em 
mim  quando  vi  deitada  na  minha  cama,  com 
o  pescoço  nú,  os  braços  mis,  os  cabelos  loiros 
presos  numa  touca  de  rendas,  a  encantadora 
brasileira  que  dormia,  sorrindo,  o  seu  primeiro 
sono.  Quis  fugir.  Deitei  a  mão  au  interruptor 
para  apagar  a  luz.  Mas  uma  faiança  espanhola 
estilhaçou-se  no  chão,  a  pobre  menina  acordou, 
julgou  que  tinha  ladrões  em  casa,  desatou  aos 
gritos,  caiu  com  um  ataque  de  nervos,  veio  a 
mãe,  vieram  as  criadas,  gritavam  todas,  eu  já 
gritava  tanto  como  elas,  e  sem  saber  se  ha- 
via de  justiíicar-me,  se  havia  de  acudir  à  pe- 
quena, se  havia  de  fugir  pela  porta  fora,  tomei 
afinal  o  partido  de  rir,  de  rir  de  mim,  do  meu 
L-quívoco,  da  minha  inconveniência,  da  minha 
'listracção,  a  velha  riu,  a  brasileirinha  riu,  as 
criadas  riram,  e  pelo  pino  das  \  iKjras  da  ma- 
Irugada,  com  um  frasco  de  sais  ingleses  no  bolso, 
«jntado  ã  cabeceira  da  cama  onde  dormira  na 
xéspera,  eu  compreendi  que  me  assistia  o  inde- 
'  hnável  dever  moral  de  pedir  a  iM.°*^  Barroso 
a  pequenina  mão  branca  e  assusiada  da  filha. 
Um  mês  depois  estávamos  casados.  Mas,  mi- 
nhas senhoras,  é  tal  a  fatalidade  da  minha  dis- 
tracção, que,  na  noite  do  casamento  —  fui  dor- 
mir ao  hotel. 


o  RELÓGIO 


Meu  amigo: 

Acabo  de  chegar  do  Alentejo,  onde  fui  pas- 
sar uns  dias  com  o  velho  Doutor  Lobo.  Tu,  que 
tens  gasto  algumas  horas  da  tua  vida  a  estu- 
dar, cem  Gournot,  com  Bergson,  com  Poincaré, 
com  Montessus  de  Ballor^,  a  filosofia  e  o  me- 
canismo do  acaso,  deves  achar  interessante  um 
acontecimento  que  se  deu  comigo  anteontem  à 
noite,  e  que  eu  de  bôa  mente  consideraria  so- 
brenatural, se  não  tivesse  a  certeza  antecipada 
de  que  tu,  homem  sem  fé,  o  explicarias  «pela 
simples  e  naturalíssima  intersecção  de  duas  se- 
ries lógicas  e  independentes  de  fenómenos».  Vo- 
cês, os  filósofos,  estragam  tudo  na  vida,  -^  ate 
essa  vaga  beleza  do  inverosímil,  essa  indefinível 
volúpia  do  desconhecido,  essa  absorvente  sen- 
sualidade do  horror,  que  tem  feito  a  fortuna  da 


o    RELÓGIO  61 


literritura  inglesa,  e  que  ainda  ontem  —  dou-te 
a  minha  palavra  rle  honra  !  —  me  encheu  de  suo- 
res frios  o  m^  pôs  o?  cabelos  em  pé. 

Ora  ouve. 

Tu  sabes  que  o  Doutor  Lobo,  velho  misan- 
iropo.  íntimo  amigo  de  meu  falecido  pai,  viv.- 
liiim  desses  solares  alentejanos  dentre  Évora  e 
^;()ntemór-o-Novo.  anlica  propriedade  e  cabei;., 
de  morgado  que,  como  as  moradas  solarengas 
da  Oliveira  ou  de  Patn.lim,  da  Sempre-Noiva  ou 
r1  Amoreira  da  Torre,  levanta  os  seus  cunhais 
ic  pedra  de  três  séculos  sobre  a  geórgica  cristã 
dus  montados  e  das  doiradas  terras  de  pão  do 
médio-Alentejo.  Tenho-te  falado  várias  vezes 
(!rte  homem  e  desta  casa.  muito  sombrios  e 
muito  extraordirárics  ambos.  Há  tempo  qus  o 
velho  Doutor  Lobo,  que  vive  sozinho  com  um 
lado,  abraçado  á  sua  gota  e  ao  seu  interminá- 
vel Tratado  da  Enliteuse,  insistia  comigo  para 
que  eu  fosse  passar  com  èle  uns  dias.  Fiz-lhe 
a  vontade,  e  fui.  Não  sei  se  já  notaste  a  sin- 
Lular  identifica';ão,  a  inquietante  semelhança 
de  fisionomias  que  si*  estabelece  imediatamente 
pntre  certas  criaturas  e  as  antigas  moradas  onde 
» las  se  habituaram  a  viver.  Parece  que  as  ruínas 

*m  o  poder  de  comunicar  às  pessoas  e  às  coi- 
sas familiares  a  expressão  da  sua  decrepitude. 
O  provecto  jurisconsulto  de  quem  acabei  de  ser 
hóspede  oito  dias,  dir-se-ia  a  sombra,  o  reflexo 
humanizado    do    seu    próprio    solar,  —  cheio    de 


62  NA   VIDA 


silêncio,  fie  êxtase,  de  vetustez,  de  mistério.  A 
identificação  é  tão  perfeita,  que  eu  não  sinto, 
não  vejo,  não  compreendo  a  figura,  devastada  do 
Doutor  Lobo  fora  daquele  paço  alentejano  enqua- 
drado em  forte  silharia  negra,  com  os  seus  ca- 
chorros de  granito,  o  seu  eirado  de  alpendre  so- 
bre a  escada,  os  seus  corredores  monásticos  de 
tijolo,  o  seu  vasto  salão  nobre  de  teto  em  caixo- 
tões,  decrépito,  solene,  profundo,  rodeado  de  ve- 
lhas credencias  doiradas,  babando  humidade  e 
bolor  pelo  gorgorão  verde  das  paredes.  Emquanto 
viver,  é  nesta  sala  que  eu  hei-de  ver  sempre  o 
meu  venerando  amigo,  —  sobretudo  porque  foi 
debaixo  do  seu  teto  que  eu  passei  anteontem,  o 
quarto  de  hora  mais  dramático  da  minha  vida. 
Eram  nove  horas  da  noite,  e  nós  conversávamos 
os  dois  sobre  a  fisionomia  humana  que  às  vezes 
adquirem  certos  objectos  inanimados,  quando  o 
criado  Pedro,  único  ente  vivo  que  habitava  con- 
nosco no  solar,  homem  ruivo,  espadaúdo,  alto 
como  um  pinheiro,  metido  havia  tempo  com  uma 
mulher  casada  da  vizinhança,  veio  pedir  ao  pa- 
trão licença  para  sair.  Ficámos  sós.  Foi  então 
que  o  Doutor  Lobo,  cuja  voz  me  pareceu  um 
pouco  alterada,  chamou  a  minha  atenção  para 
um  relógio  de  caixa  do  século  xvni,  holandês, 
com  pinturas,  que  levantava  ao  fundo  da  sala, 
entre  duas  janelas,  o  seu  formidável  perfil  de 
esquife. 

—  Você  vê  aquele  relógio  ? 


o    RELÓGIO  63 


—  Vejo. 

—  Dei-]hp  corda  ontem.  Eslava  parado  há 
dezasseis  anos,  docrU»  n  ]]n\\r  om  qnr^  niorr<Mi  mi- 
nha mulher. 

Aproximámo-nos  ambos  do  velho  móvel,  atra- 
vés de  cujo  óculo  de  vidro  se  adivinhavam  as 
oscilações  duma  .irrande  pêndula  de  cobre.  Sen- 
támo-nos.  O  meu  ami,íro.  qu"  me  dava.  afun- 
dado na  sua  pollr(Uia,  a  impressão  de  certo  re- 
traio admii'ável  de  Carlyle,  contou-me  então  a 
história  daquele  relógio  antigo,  que  era,  no  so- 
lar dos  Lobos,  um  móvel  tradicionalmente  céle- 
bre. Nada  mais  vulgar  do  que  pararem  os  relógios 
duma  casa  no  momento  em  que  morre  alguém. 
E'  um  facto  muitas  vezes  verificado,  parecendo 
({ue  a  desagregação,  a  quebra  instantânea  do  con- 
senso vital  num  organismo,  gera  energias  des- 
conhecidas que  se  comunicam,  no  instante  da 
morte,  (às  pessoas  e  às  coisas  qne  cercam  o  mo- 
ribundo. O  ar  estremece,  a  água  move-se,  as 
portas  abrem-se,  as  pêndulas  param.  Porém, 
com  o  relógio  daquele  velho  paço  alentejano, 
dava-se  alguma  coisa  de  mais  extraordinário 
ainda.  Desde  tempos  remotos,  quando  falecia 
alguém  da  casa,  a  pêndula  não  parava  no  mo- 
mento do  óbito;  parava  pontualmente,  exacta- 
mente—  dez  minutos  antes.  Era  um  aviso  trá- 
gico. Era  uma  sentença  de  morte.  O  caso  suce- 
dera pela  primeira  vez  com  um  arqui-avô  do 
Doutor  Lobo,  desembargador  da  Casa  da  Supli- 


64  NA  VIDA 


cação,  que  ^m  1723  mandara  vir  o  relógio  da 
Holanda  :*  o  tinha  no  seu  quarto  de  dormir.  Re- 
pelira-se  com  a  mulher  deste:  com  um  tio  frade 
crúzio,  que  estivera  a  ares  na  casa  e  acabara  a 
tiros  de  clavina;  com  uma  aia  mulata;  com  o 
avô  do  Doutor  Lobo.  deputado  às  Cortes  de  20, 
cujo  retrato  vi  no  solar,  num  carvão  perturbador 
de  Sequeira:  com  o  pai;  por  fim.  havia  16  anos, 
com  a  própria  mulher,  que,  já  moribunda,  de- 
bruçada a  tossir  sobre  uma  bacia  de  prata  cheia 
de  sangue,  õs  olhos  fitos  no  movimento  da  pên- 
dula, vira  ela  rnesma  parar  o  relógio,  e  morrera 
dez  minutos  depois.  Não  era  fácil  explicar  se- 
melhante série  de  factos  pelo  mecanismo  sim- 
ples do  acaso.  Dir-se-ia  que  naquele  vulgar  re- 
lógio holandês  havia  uma  inteligência,  uma  sen- 
sibilidade, uma  alma,  uma  vida,  —  essa  vida  ine- 
xorável e  profética  das  coisas  mortas,  feita  de 
silêncio,  de  treva,  de  imobilidade.  Emquanto  o 
meu  velho  amigo  me  contava  estes  singulares 
pormenores,  os  olhos  brilhavam-lhe,  as  mãos  pá- 
lidas tremiam-lhe  ligeiramente  sobre  os  joelhos. 
Quis  perguntar-lhe  ainda  por  que  razão,  por  que 
fantasia  voltara  a  fazer-  trabalhar  essa  pêndula 
sinistra.  Não  tive  coragem.  Diante  de  nós,  no 
meio  de  um  opressivo  silêncio,  o  relógio  da  morte 
continuava  a  bater  o  seu  tic-tac  implacável. 
Picámos  os  dois,  por  um  instante,  absorvidos  no 
nosso  próprio  pensamento.  As  sombras  flutua- 
vam  pela  vasta   sala,   escorriam   pelo   gorgorão 


o    RELÓGIO  06 


verde  das  paredes,  penduravam-se  no  oiro  baço 
das  credencias,  palpitavann  em  volta  de  nós  como 
asas  impalpáveis.  Sentia-se  lá  ío^a,  nos  sarga- 
çais da  charneca,  u  grito  nocturnu  do  milhano. 
Uma  cadeira  rangeu,  perto  de  nós,  sem  ninguém 
lhe  locar.  Pareceu-me  que  uma  aragem  fria 
tinha  roçado  pelos  meus  cabelos.  De  repente, 
olhei  o  relógio:  a  pêndula  parara. 

—  Um  de  nós  dois  tem  apenas  dez  minutos 
de  vida,  —  disse-me  o  meu  amigo,  numa  pali- 
dez de  espectro,  erguendo-se  da  sua  poltrona. 

Não  sei  descrever-te  o  terror  instintivo  que 
>e  apossou  de  mim.  As  fontes  latejavam-me. 
Um  suor  gelado  de  agonia  molhava-me  as  mãos. 
olhámo-nos,  o  meu  amigo  e  eu,  a  querer  adi- 
vinhar a  morte  na  fisionomia  um  do  outro. 
Ignoro  quantos  minutos  se  passaram  neste  hor- 
ror. Subitamente,  ouviu-se  um  tiro.  O  Doutor 
Lobo  agarrou  um  candelabro  de  prata,  aceso, 
t'  correu  à  porta.  U  corpo  enorme  do  criado  Pe- 
ííu  estava  de  borcu  na  soleira,  com  a  cabeça 
numa  poça  de  sangue.    Tinham-no  assassinado. 

Os  factos  são  estes.  Como  os  explica  a  tua 
filosofia  ? 

Teu   velho  amigo.  —  Alexandre n. 


ODORE  Dl  PEMMINA 


U  dr.  Nilo  Gomes  recostou-se  num  dos  cd- 
deirões  do  Grémio,  acendeu  um  cigarro,  atirou 
para  a  nuca,  familiarmente,  o  seu  coco  cinzento, 
Saint  James's  Street,  e  brincando  com  a  ponteira 
da  bengala  na  bota  de  verniz,  perguntou-nos: 

—  Vocês  ainda  acreditam  em  psicólogos  de 
mulheres  ? 

—  Tenho  à  cabeceira  as  Nouvelles  Lettres  de 
Femmes... 

-^-Pois  eu  aão.  Vou  contar-lhes  o  que  me 
sucedeu  ontem  à  tarde  no  consultório  do  dr.  ***. 

—  Uma  aventura  ? 

—  Um  fiasco.  Eu  tinha  ido  combinar  com  o 
nosso  velho  colega  a  hora  a  que  deve  realizar-se 
amanhã,  com  excelentes  vantagens  para  o  ope- 
rador, a  gastroenterostomização  do  riquíssimo 
D.  R.  Quando  cheguei,  o  dr.  ***  acabava  de  man- 
dar  entrar,    havia   quatro   ou   cinco   minutos,    a 


ODORE    Dl    FEMMINA  67 


sua  Última  cliente.  —  Deve  demorar  um  bocadi- 
nho. —  preveniu-me  num   sorriso   a  enfermeira, 
uma  rapariga  magra,  de  blusa  branca  irrepreen- 
sível,  meias  de  seda,  brincos  de  brilhantes  nas 
ur;^lhas.    Decidi-me   a  esperar.    Eu   conhecia  já 
u  consultório  do  nosso  colega,  com  as  suas  la- 
cas  brancas,    as   suas  cretones   inglesas,    a   sua 
elegância    sóbria,    uma   água-forte   de   Rops   na 
parede,  duas  grandes  flores  azuis  num  solitário 
de  cristal.    Acendi  um  cigarro   e  aproximei-me 
da  mesa.    Sobre  uma   porção   de   revistas  e   de 
brochuras  da  guerra,  folheadas,   rasgadas,   mal- 
tratadas cada  dia  pela  impaciência  dos  mesmos 
doentes,  um  saquixnho  de  mão,  de  seda  preta,  re- 
pousava, esquecido,  entre  duas  luvas  de  mulher. 
Era,   com  certeza,   da  cliente  que,   naquele  mo- 
mento,   escutava   es   sábios   conselhos   do   nosso 
colega.    Quem  seria  ela?    Abri   uma  ilustração 
e  li.    Uma  luz  muito  doirada  entrava  pelas  lar- 
gas vidraças  abertas,  espelhava  nas  lacas  dos  ali- 
zares e  das  portas,   dava  às  cretones  verdes  do 
sofá  a  macieza  baça  do  veludo.    A  guerra,  sem- 
pre a  guerra,  eternamente  a  guerra  !   Atirei  so- 
bre a  mesa  a  revista  que  apenas  folheara,'  e  íi- 
quei  a  olhar,  vagamente,  a  expressão  dessas  duas 
luvas    ali   abandonadas    por    uma    desconhecida 
mão  de  mulher.   Lembram-se  vocês  da  Dame  au 
Gant\  do  Museu  do  Luxemburgo  ?  A  vida,  o  mo- 
vimento, a  elegância,  a  expressão  que  a  mão  fe- 
minina comunica  a  uma  Uiva  que  se  descalça, 


(J8  NA    VIDA 


—  e  com  que  talento  Carolus  Duran  soube  fazer 
palpitar,  nesse  farrapo  ;le  pelica  branca  caído  sô- 
Ine   um   tapete,    toda  a  distinção,    toda  a  aristo- 
ci-acia,  toda  a  mocidade  do  seu  modelo!    Peguei 
numa  das  luvas  para  a  examinar  melhor.    Nâo 
seria  difícil   adivinhar  a  que  qualidade  de   mu- 
lher  ela  pertenceria.    Era  a  da   mão   esquerda, 
marca  pequena,   letra  F,    um  vago  perfume   de 
Heure  hleue^   dedos  fmos,  unhas,  em  ogiva  per- 
feilamente  marcadas  e  o  sinal  de  dois  anéis,  -- 
uma   marquise   e   talvez   uma   aliança   de   casa- 
mento.   Por  conseguinte,   a  luva  duma  criatura 
elegante,   duma  mulher  nova,  e,   segundo  todas 
as  probabilidades,  duma  mulher  casada.    Come- 
cei a  achar  natural  que  o  dr.  ***,  com  a  sua  ex- 
periência,  os  seus  olhinhos  maliciosos  e  a  sua 
gorda   velhice   de   Pan,    prolongasse   a   consulta 
além  do  limite  de  todas  as  conveniências.    São 
tão  poucas  as  mulheres  bonitas  que  adoecem,-- 
('   é   realmente   tão   agradável   auscultar  um   pe- 
quenino coração  que  bate,  que  palpita  e  que'  su- 
cumbe!   Pousei  a  luva,   e,  como  não  há  animal 
mais  curi(jso  do  que  um  homem,  passei  a  obser- 
var o  saquinho  de  mão,  -  um  «ridículo»  de  seda 
como   há  tantos,    impregnado   do   mesmo   perfu- 
me e  bordado  a  missanga  como  aqueles  «indis- 
pensáveis» de  1830  onde  as  nossas  ingénuas  bi- 
savós escondiam  os  frascos  de  essência  e  os  bi- 
lhetes de  amor.    Nalguma  coisa  havia  de  passar 
o  tempo,  —  e  a  resolução  daquela  incógnita  femi- 


j 


ODORE     Dl     FEMMINA  69 

nina  começava  a  interessar-me.  —  «Queres  co- 
ntiecer  uma  mulher?» — dizia  Gasparo  Gozzi 
tias  venezianas  do  século  xvni  —  uAbre  o  seu  sa- 
quinho de  mão».  Mas  a  minha  curiosidade  nâo 
me  levou  até  ao  extremo  incorrecto  de  seguir  o 
conselho  de  Gasparo  Gozzi.  Ia  pousar  o  saco  sem 
ler  violado  um  só  dos  seus  segredos,  —  quando, 
por  mero  acidente,  êle  me  caiu  das  mãos  e  se 
abriu  no  tapete.  Tinha  de  ser.  Uma  chave  doi- 
rada de  fechadura  inglesa  foi  projectada  a  dis- 
lància.  Um  frasco  de  sais,  rolou.  Um  peque- 
nino espelho  de  prata  scintilou  ao  sol.  Apanhei 
hido,  o  mais  depressa  que  pude,  e  como  o  acaso 
linha  querido  que  eu  entrasse  na  confidência  da- 
quele saco  de  mão  e  daquela  alma  de  mulher, 
verifiquei  que  o  ridículo  de  soda  de  M.™®  X  con- 
tinha ainda  no  seu  bojo  misterioso  um  lenço  de 
rendas,  uma  caixa  de  pó  de  arroz,  uma  conta 
da  modista,  uma  medalha  de  Santa  Filomena, 
ganchos  de  cabelo,  um  véu,  e,  no  fundo,  um  cor- 
net  de  visitas  onde  se  lia,  na  data  de  7  de  no- 
vembro: «Sais  de  Glarks  para  o  banho. — J.  C., 
:\  horas. — Pérolas,  Garrand  Sz  G.%  25,  Hay-^ 
inarket,  London,  S.  Vs\  -  Legação  de  Espanha. 
-  Pinetle.  —  Pomada  para  as  unhas. — Médico 
às  6.  —  Não  esquecer  as  amostras  de  veludo». 
Aquele  sacu,  aquelas  luvas,  aquele  carnet,  eram 
um  retrato.  Eu  via  já,  diante  de  mim,  a  cliente 
do  meu  velho  colega,  tão  nitidamente  como  se 
a  conhecesse.  Estava  ali  toda,  -  a  sua  elegân 
cia,  a  sua  vida,  a  sua  psicologia,  o  seu  próprio 


70  NA    VIDA 


drama  amoroso.  Não  havia  dúvida  de  que  era 
lima  mulher  casada,  alta  burguesia,  um  pouco 
parvenue.  de-certn  rica  para  poder  comprar  pé- 
rolas nos  ourives  de  Londres,  30  a  3õ  anos  se 
tanto,  conhecendo  a  sua  beleza  e  cultivando-a 
como  uma  flor,  olhos  azuis,  um  marido  fácil, 
uma  saia  curta,  um  splendid  ilirt^  uma  comprome- 
tedora chave  doirada,  «un  monsieur  qui  travaille 
(fans  les  femmes  du  msnde))  —  como  dizia  Bour- 
c/et  -  e  os  olhos  calmos,  a  serenidade  olímpica,  o 
arsinho  Sainte-Nitouche  de  certas  mulheres  boni- 
tas,—  menos  bonitas  do  que  elas  mesmas  pen- 
sam, muito  mais  interessantes  do  que  toda  a  gente 
as  julga...  Tinha  decorrido  talvez  um  quarto  de 
hora,  quando,  de  repente,  a  porta  do  gabinete  se 
abriu.  Era  ela.  A  mulher  que  eu  imaginara,  que 
eu  idealizara,  que  eu  reconstituirá,  com  o  rigor 
dum  psicólogo,  pelo  exame  do  seu  saquinho  de 
mão.  ia  fmalmente  aparecer-me.  Levantei-me, 
preparei  a  atitude,  compus  o  monóculo.  Dois, 
três  segundos  depois,  a  voz  do  nosso  colega  ou- 
viu-se,  —  e  uma  velhota  gorda,  rosada,  alegre, 
de  luuetas,  saiu  do  gabinete  de  consulta,  avan- 
çou saltitando  até  à  mesa,  pegou  no  saco,  nas 
luvas,  cumprimentou,  e  em  passinhos  curtos, 
saltitando  sempre,  empurrou  o  guarda-vento, 
cumprimentou  ainda  e  desapareceu  na  sombra 
do  corredor.  Poi  nesse  dia,  meus  amigos,  qu<^ 
eu  me  convenci  de  que  não  percebia  nada  de  mu 
Iheres.  E  quem  pode  gabar-se  de  as  perceber 
se  a  mulher  nasceu  para  enganar  o  homem  ? 


A  PONTE 


Urna  hora  depois  do  meio-dia  de  14  de  abril 
de  1718,  a  garrida  do  convento  de  Tarouca  tan- 
gia inesperadamente  a  capítulo.  A  fonte  de  se- 
reias, que  o  Dom  Abade  mandara  construir  no 
jardim  da  clustra  grande,  devia  inaugurar-se 
nessa  tarde.  Mas,  desde  manhã,  tinha-se  levan- 
tado -naquela  casa  de  Deus  e  de  S.  Bernardo, 
por  causa  da  fonte,  tamanho  escândalo  e  alvo- 
roço de  murmurações,  que  o  prelado,  homem 
prudente  e  douto,  entendera  de  boní  conselho  ou- 
vir as  queixas  dos  padres  e  dar-lhes  a  satisfação 
que  julgasse  conforme  com  o  zelo  da  observân- 
cia e  com  a  autoridade  do  báculo  pastoral.  Já 
toda  a  comunidade  estava  na  sala  do  capítulo, 
com  o  vigário  e  as  jerarquias,  quando  o  Abade 
entrou.  A  questão  foi  logo  posta,  de  ambos  os 
lados,  com  clareza  e  com  desassombro.  O  velho 
Frei   Jerónimo   de   Brito,    um   dos   discretos   do 


NA    VIDA 


convento,  duas  vezes  eleito  abade  trienal,  falon 
em  nome  dos  padres.  Alegou  que  a  fonte  da 
crasta,  cuja  inauguração  ia  fazer-se,  continha 
três  figuras  de  pedra,  não  sabia  se  dríadas,  mé- 
nades.  dionisides  ou  sereias  (espreitara-as  pelas 
frinchas  do  tapume  um  donato  do  convento), 
que.  sobre  serem  divindades  pagãs,  impróprias 
de  tão  santa  e  reformada  casa,  apareciam  no  es- 
tado de  abominável  nudez,  mostrando  os  ventres 
e  jorrando  água  da  apojadura  dos  peitos,  com 
escândalo  e  ofr-nsa  dos  padres  velhos,  e,  o  que 
era  pior,  com  turbação  e  pecado  dos  moços. 
Não  sabia  se  a  comunidade  era  de  igual  aviso; 
êle,  pelo  respeito  devido  à  sua  idade  provecta 
e  a  dignidade  do  seu  hábito,  fazia  voto  solene 
de  não  voltar  ao  jardim  e  de  nem  sequer  asso- 
mar aos  janêlos  da  claustra,  sem  que  os  mes- 
mos alvaneis,  que  tinham  levantado  a  fonte,  a 
demolissem  para  maior  glória  de  Deus.  Das  ban- 
cadas capitulares  ergueu-se  um  murmúrio  de 
aprovação.  Estava  decidido.  Nunca  mais  um  só 
frade  passearia  entre  as  murteiras  do  jardim, 
emquanto  aquelas  figuras  de  abominação  pojas- 
sem  ao  sol  os  seus  úberes  de  pedra.  Um  do- 
nato tinha  acabado  de  espertar  o  lume  da  bra- 
seira de  cobre,  quando  o  Dom  Abade  se  levan- 
tou para  falar.  Quantas  igrejas,  abadias  e  mos- 
teiros da  terra  estavam  cheios  do  espírito  e  da 
glória  pagã  !  Para  obedecer  às  doutrinas  dos  pa- 
(Ires,  teria  de  principiar  pnr  lançar  ao  fogo  u  seu 


j 


A    FOMTE  73 


bem  amado  Horácio.  Tantos  séculos  andados, 
quem  se  lembrara  ainda  de  arrasar  a  ábside  da 
Sé  de  Braga,  só  porque  as  águas  da  chuva  lhe 
escorrem  duma  gárgula  torpe  ?  E  a  torre  de  Co- 
legiada de  Guimarães,  com  o  seu  brutesco  ?  E. 
nos  mais  ásperos  recessos  de  Portugal,  porqu;* 
não  teriam  abatido  as  lurias  e  os -marrões  dos  al- 
vaneis  os  modilhões  pagãos  da  igreja  da  Cas- 
tanheira e  o  anjo  báquico  da  matriz  de  Mon- 
corvo ?  Não  era  com  doutrinas  de  intolerante 
e  sombria  piedade  que  se  servia  melhor  a 
Deus.  nem  quarenta  anos  que  vivera  debaixo Jf 
daquela  mortalha  de  S.  Bernardo  aceitavam,  de 
quem  quer  que  fosse,  lições  de  compostura  e  de 
moderação.  A  construção  da  fonte  que  tanto  al- 
voroçava os  padres,  ccacertara-a  ele.  havia  quinze 
meses,  na  sua  jornada  à  corte,  com  um  mestre 
italiano  que  lhe  fora  recomendado  em  Alcobaça 
pelo  reverendo  Abade  Geral.  Era  a  indispensá- 
vel coroação  do  jardim  de  murtas  e  buxo.  que 
o  seu  antecessor  mandara  cortar  à  francesa,  na 
claustra  grande,  para  recreio  da  comunidade. 
Escandalizara-se  a  modéstia  dos  padres  porque 
três  capréades  nuas  jorrava m^  água  dos  peitos. 
\ías  que  figuras  queriam  Suas  Reverências,  no 
.-eu  santo  zelo  apostólico,  que  se  erguessem  so- 
bre a  concha  de  pedra  duma  fonte  ?  Os  evan- 
gelistas, os  patriarcas,  os  velhos  do  Apocalipse, 
—  um  retábulo  do  Juízo  Final  ?  Não,  de-certo. 
.\âu  era   nos  jarojiib  que  se  professava  o  culto 


74  NA    VIDA 


divino,  e  nunca  ninguém  pensara,  nem  o  mais 
humilde  fradinho  capucho,  em  erguer  uma  ca- 
pela dentro  dum  caramanchão.  Sabiam  Suas 
Reverências  quem  tinha  encomendado  a  João  de 
Bolonha  a  célebre  fonte  das  sereias  ?  O  Santo 
Padre  Pio  iv  e  o  eminentíssimo  cardeal  Pietro 
Cesi.  Se  a  imagem  dum  seio  de  mulher  fosse 
um  símbolo  pagão  e  abominável,  como  teria  n 
próprio  Patriarca  S.  Bernardo  entrevisto,  na  sua 
mística  visão,  os  peitos  brancos  da  Virgem  a 
aspergi-lo  de  leite , —  e  como  poderia  pintá-los 
o  divino  Bartolomé  Murillo,  sem  estremecerem 
de  santa  indignação  os  capítulos  de  todos  os  mos- 
teiros e  os  bispos  de  todas  as  catedrais?  Não. 
Ele,  Abade,  tranqíiilo  com  Deus  e  com  a  sua 
alma,  entendia  que  não  eram  jusi^as  as  queixas 
da  comunidade,  e  pedia  a  todos  os  religiosos,  e 
em  particular  aos  padres  discretos,  que  recon- 
siderassem no  seu  propósito  e  o  deixassem  aca- 
bar o  triénio  da  jurisdição  sem  demandas  nem 
agravos.  Mas  as  palavras  do  prelado  não  con- 
seguiram abalar  os  capitulares.  O  mais  velho 
de  todos.  Frei  Baltasar  dos  Anjos,  cujo  hábito, 
na  penumbra,  parecia  doirado  do  mesmo  mugre 
secular  da  pedra,  avançou,  trôpego,  amparado 
a  dois  padres  moços,  e  declarou  ao  Abade,  em 
nome  de  todo  o  convento,  que  não  podendo  ser- 
-Ihes  imposto  como  castigo  o  recreio  no  jardnn 
da  crasta,  nenhum  frade  lá  voltaria — nem  um 
só  !  —  se  o  prelado  insistisse  em  mandar  desço- 


A    FONTE 


é>) 


brir  as  figuras  diabólicas  da  fonte.    Levantou-se 
o   capítulo.    O   desafio   estava  lançado.    Para   o 
Abade,    submeter-se,    era   abdicar   da   sua   auto- 
ridade e  da  sua  forca.   Subiu  à  cela,  mandou  por 
um  leigo  ordem  aos  alvaneis,  —  e  nessa  mesma 
tarde  o  tapume  era  abatido,  a  fonte  inaugurada, 
e,  no  silêncio  das  murteiras  em  flor,  três  mara- 
vilhosas figuras  de  sereias,  capréades  voluptuo- 
sas  duma   ondularão   e  duma   graça   l^orentina, 
sorrindo  e  oferecendo  os  seios  nas  mãos  delica- 
das, jorraram  dos  mamilos  de  pedra  seis  ve\r.< 
de  água  fresca,   luminosa  e  fecunda,    u  Abade, 
que  assistia  da  janela,  ficou  um  instante  imóvel. 
a  olhar  a  palpitação  de  vida  que  a  luz  rosada  da 
tarde  emprestava  à  nudez  desses  três  corpos  de 
mulher, — e   recolheu-se    num    deslumbramento, 
quási    numa    vertigem,    abraçado    ao    breviário. 
Pela   primeira  vez,    a   sua    consciência   vacilou. 
Teriam  razão  os  padres  ?   Traria  ele  para  o  con- 
vento,   pastor  indigno   daquele   rebanho,    a   ser- 
pente da  Tentação  ?    Fechou  as  portadas  da  ja- 
nela, para  não  ver  mais  a  fonte;  desceu  ao  re- 
feitório;  voltou:    tirou    do   armarête   o   seu   can- 
deeiro de  três  bicos;   acendeu-o;   procurou    tra- 
balhar,-depois  de  vésperas  cantadas,    nos   seus 
comentários  aos  Poliphili  de  Pra  Prancecso  Co- 
lona; deitou-se;  passou  pelo  sono,  — e  acordando, 
pela  força  do  hábito,  à  hora  de  matinas,  admi- 
rou-se  de  não  ter  vindo  o  frade,   como  de  cos- 
tume, chamá-lo  com  a  candeia.   Que  se  teria ^pas- 


76  NA    VIDA 


sado  no  convento  ?  Abriu  de  manso  a  porta,  es- 
preitou para  o  corredor,  escutou.  A  princípio 
percebeu  apenas,  na  escuridão,  um  rumor  de 
passos.  Em  seguida,  uma  cela  entreabriu-se  e 
um  vulto  furtivo  de  frade  escoou-se  na  sombra. 
Depois,  outro.  E  outro.  E  mais  outro,  ainda. 
Não  iam  de-certo  para  o  coro,  porque  não  levavam 
as  candeias  acesas.  Inquieto,  o  Abade  foi  bater 
à  porta  do  vigário;  ninguém  lhe  respondeu. 
Procurou  o  mestre  dos  noviços,  a  cela  estava 
deserta.  De  repente,  fez-se  a  luz  no  seu  espírito. 
Compôs  o  manto,  desceu  à  claustra.  No  jardim, 
em  volta  da  fonte  execrada,  toda  a  comunidade, 
todos  os  padres  intolerantes,  velhos  e  moços, 
atraídos,  um  a  um,  pelo  irresistível  poder  da 
beleza  eterna  e  da  volúpia  imortal,  olhavam  imó- 
veis, em  êxtase,  em  adoração,  os  corpos  virgi- 
nais das  sereias,  que  ondulavam,  brancos,  ao 
luar. 


EXPIAÇÃO 


Ontem,  num  chá  em  casa  de  M.""®  Y.,  apre- 
-t-ntaram-me  a  um  homem  de  aparência  dis- 
iirila,  cuja  elegância  natural  e  cuja  expressão  de 
Irisíeza  me  impressionaram.  Devia  ter  quarenta 
anos,  o  cabelo  levemente  embranquecido  nas  fon- 
!es,  uns  grandes  olhos  negros,  um  perfil  de  me- 
dalha romana,  duro,  seco,  viril.  Apertámos  as 
mãos,  com  simpatia.  Discutia-se  certo  prato  ar- 
moriado, que  devia  ser  um  Ruão,  com  os  alérions 
de  azul  e  as  cincu  vieiras  de  prata  dos  Montmo- 
lency-Laval.  Ouvi-o  expor  a  sua  opinião  em  duas 
palavras  rápidas,  seguras,  modestas,  que  denun- 
ciavam o  fácil  bom  gosto  dum  homem  de  hábitos 
intelectuais.  O  nome,  que  eu  mal  percebera  no 
momento  da  apresentação,  nada  tinha  sugerido 
ao  meu  espírito.  Logo  que  pude  falar  a  M."*  Y., 
Ijcrguntei-lhe  quem  esse  homem  era. 

—  Digo-lhe  logo. 


78  NA    VIDA 


—  Um  mistério  ? 
-  Um  romance. 

À  noite,  quando  tomávamos  chá  na  saia  de 
fumar,  a  minha  encantadora  amiga  cumpriu  a 
sua  promessa.  Tratava-se,  realmente,  dum  caso 
de  sentimento,  que  conseguiu  interessar-me  du- 
rante meia  hora.  O  moço  diplomata  que  me  fora 
apresentado  era  filho  dos  barões  de  S.  Gil  de 
Perre,  plutocratas  do  liberalismo,  estava  colo- 
cado havia  tempo  na  disponibilidade,  e  admi- 
nistrava a  sua  grande  fortuna.  Depois  de  uma 
vida  elegante  de  emoções  e  de  dissipação, 
quando  os  cabelos  já  começavam  a  embranque- 
cer-lhe,  fizera  um  casamento  de  amor  com  uma 
brasileirinha  de-  dezanove  anos,  tipo  maravi- 
lhoso de  carioca,  indolente,  autoritária,  sensual, 
educada  em  Paris  no  Sacré  Coeur^  e  que  êle,  de 
viagem  para  a  Itália,  tinha  encontrado  com  os 
pais  no  Splendid  Hotel  de  Nice.  Durante  cinco 
-anos,  nada  perturbou  a  sua  aparente  ventura.  Um 
dia,  porém,  a  criada  alemã  das  crianças  viu-se 
obrigada,  pelas  leis  da  guerra,  a  sair  de  Portu- 
gal—  era  uma  fraulein  Rose,  mecklemburguesa 
e  feia  —  e,  fiel  ao  espírito  da  sua  raça,  não  aban- 
donou o  lar  que  a  acolhera  como  família,  sem 
primeiro  lhe  ter  destruído  e  envenenado  toda 
a  felicidade  e  toda  a  paz.  António  Perre  soube 
que  a  mulher  o  enganava,  e  teve  nas  suas  mãos, 
entregues  pela  alemã,  as  provas  irrecusáveis  da 
traição.    O  seu  amor,  a  sua  dignidade  ofendida, 


EXPIAÇÃO 


todos  os  preconceitos  da  sua  educação  e  do  seu 
sentimento,  impeliam-no  para  a  desafronta  e 
para  u  escândalo.  No  instante  em  que  procu- 
ravâ  o  revólver,  a  mulher  telefonou-lhe  do  Esto- 
ril, sufocada  de  choro,  dizendo-lhe  que  o  pai  es- 
lava à  morte  com  uma  congestão  pulmonar. 
Durante  uma  hora,  enterrado  numa  poltrona,  o 
antigo  secretário  em  S.  Petersburgo  debateu-se 
num  conflito  moral  angustioso.  A  princípio,  -só 
viu  a  solução  instintiva,  rectilínea,  brutal.  Pouco 
a  pouco,  porem,  sentimentos  de  ordem  mais  ele- 
vada dominaram  a  primeira  crise  de  exaltação: 
recobrou  a  serenidade  suficiente  para  perceber 
que  um  gesto,  uma  revelação,  uma  palavra, 
iriam  fulminar  a  distância  um  velho  moribundo; 
e,  tranquilamente,  com  uma  coragem  mil  vezes 
maior  do  que  aquela  que  lhe  seria  necessária 
para  cometer  uma  violência,  chamou  o  criado, 
mandou  vir  o  automóvel,  e  seguiu  para  o  Esto- 
ril. Quando  chegou  a  casa  do  sogro,  os  médicos 
estavam  reunidos  em  conferência.  Era  tão  de- 
licado o  estado  do  doente  —  duas  síncopes  con- 
cutivas  a  uma  hemorragia  do  pulmão  —  que 
.mtónio  Ferre,  para  poupar-lhe  a  com^oção  de  o 
ver,  não  entrou  no  quarto.  A  ideia  de  que  ia  en- 
contrar-se  frente  a  frente  com  a  mulher  e  de  que 
não  teria  força  bastante  para  dissimular  os  seus 
sentimentos,  começou  a  perturbá-lo.  Notou,  ao 
descalçar  as  luvas,  que  lhe  tremiam  as  mãos.  A 
testa  inundou-se-lhe  de  suar  frio.   Pensava  já  em 


80  NA    VIDA 


fugir,  quando  um  corpo  tépido  e  arquejante  lhe 
caÍLi  de  repente  nos  braços.  Era  ela.  Sentiu 
ainda  os  dedos  crisparem-se-lhe  no  gestu  de  a 
estrangular;  mas,  num  esforço  imperioso  de 
vuntade,  dominou-se,  afastou-a  brandamente  de 
si,  disse-lhe  que  se  conservasse  junto  do  pai 
todo  o  tempo  que  a  sua  ternura  filial  julgasse 
necessário,  e,  com  os  nervos  quebrados,  com  a 
alnia  despedaçada,  voltou  para  Lisboa.  Passa- 
dos três  dias,  ela  pedia-lho,  pelo  telefone,  que  a 
fosse  buscar.  Ele  limitou-se  a  mandar-lhe  o  au- 
tomóvel, e  não  foi.  Quando  a  mulher  chegou, 
envolvida  na  sua  grande  capa  cinzenta,  os  olhos 
vermelhos  de  chorar,  um  frasco  de  sais  ingle- 
ses na  mão,  António  Perre  esperava-a  no  quarto. 
Pechou-se  a  porta.  Em  voz  baixa,  sem  um  gesto 
descomposto,  sem  uma  palavra  grosseira,  sere- 
namente, esse  homem  superior  pela  educação  e 
pelo  carácíer  disse  à  mulher  o  que  era  indispen- 
sáv;^l  que  ela  soubesse  para  que  a  situação  de 
ambos  ficasse  esclarecida.  Nem  uma  recrimina- 
ção, nem  um  insulto,  nem  uma  lágrima.  Apenas 
a  verdade,  o  facto,  —  as  "provas.  Emquanto  o 
pai  dela  fosse  vivo,  não  se  modificaria,  apareií- 
temente,  a  sua  vida  comum  de  casados.  Sofre- 
riam os  dois  o  suplício  de  se  sentir  um  junto  do 
outro.  Logo  que  o  pai  morresse,  ela  sairia  de 
casa  e  far-se-ia  o  divórcio.  A  brasileira  ouvia-o 
em  silêncio,  e,  quando  o  marido  saiu  do  quarto, 
ficou  a  soluçar  estendida  sobre  um  sofá.    Durou 


EXPIAÇÃO  -  81 


dois  longos  «meses  o  horror  desta  situação.  Du- 
rante eles,  a  atitude  de  António  Perre  foi  duma 
tão  generosa  delicadeza,  duma  tão  nobre  digni- 
dade, que  essa  mulher  caprichosa  e  fútil  princi- 
piou, pela  primeira  vez  na  sua  vida,  a  conhecer 
o  marido,  a  admirá-lo  e  a  amá-lo.  A  expiação 
transformou-se,  para  ela,  em  paixão  perturba- 
dora. Mas  o  moço  diplomata  foi  inflexível.  O 
processo  de  divórcio  está  correndo;  e,  como  a 
alma  humana  é  feita  de  contradições,  a  pobre 
brasileira  espera  hoje  tristemente,  em  casa  da 
mãe,  que  uma  sentença  a  separe,  para  sempre, 
do  homem  que  a  dura  lição  da  existência  a  en- 
sinou a  amar  até  à  loucura. 

•  — Gomo  vê,  meu  amigo  —  concluiu  M."^  Y. 
no  seu  sorriso  encantador — a  vida  está  toda 
errada... 


o  SAPATINHO  VERDE 


Meu  qufriáo  Jorge: 

Estou  viva  por  milagre.  Tu  não  calculas  o 
que  me  aconteceu  ontem  à  noite,  meu  querido, 
meu  adorado  amigo.  Os  meus  nervos  vibram 
ainda.  Toda  eu  estremeço.  A  comoção  foi  tão 
grande,  que  não  posso  levantar  a  cabeça  do  tra- 
vesseiro e  faz-me  mal  ver  a  luz.  Ia  morrendo  es- 
lúpidamenle,  horrorosamente,  longe  de  ti.  Es- 
crevo-te  a  lápis  não  sei  como,  perdoa.  Estou  de 
cama.  Não  te  assustes,  meu  Jorge,  tudo  passou, 
6  eu  agora  não  sofro  senão  a  fadiga  que  sucede 
a  todas  as  grandes  febres  neí'vosas.  Mas  que  foi  ? 
—  perguntarás  tu.  A  coisa  mais  simples  deste 
mundo,  meu  pobre  amigo.  Os  desastres  são  sem- 
pre duma  simplicidade  absurda.  Ia  morrendo 
por  ter  calçado  uns  sapatos  de  setim  verde.  Vê 
tu  como  uma  desgraça  tão  grande  pode  cabei' 
dentro  duns  sapatinhos  tão  pequenos  ! 


o  SAPATINHO  VERDE  S.i 


Ouve.  Qiipro  que  tu  saibas  tudo.  Nau  te  zangas 
comigo,  pois  não?  Tu  bem  dizes  que  eu  sou 
lòda  nervos,  que  um  nada  me  excita.,  me  per- 
íurba.  me  adoece.  Lembras-te  daquela  senhora 
muito  distinta,  multier  do  engenheiro  itahano 
que  mora  perto  da  nossa  casa  ?  Depois  que  tu 
partiste  para  Inglaterra  fiquei  tão  só,  tão  dese- 
josa de  alguém  com  quem  conversar,  com  quem 
trocar  impressões,  que  me  aproximei  mais  dela, 
e  hoje  somos  duas  grandes,  duas  queridas  ami- 
,iras.  O  aniversário  do  casamento  da  Bettina 
coincidiu  este  ano  com  a  segunda-feira  gorda,  ;• 
ela,  para  se  distrair  um  pouco  —  tu  bem  sabes, 
meu  Jorge,  que  os  Estoris  no  inverno  são  o  Père- 
Lachaise  —  lembrou-se  de  receber  mascaradas  as 
pessoas  mais  íntimas,  e  insistiu  muito  comi- 
go para  que  eu  não  deixasse  de  ir  à  sua  festa. 
A  princípio  disse-lhe  que  não,  que  não  queria  as- 
sistir a  divertimentos  emquanlo  tu  estivesses 
longe,  que  não  deixava  o  nosso  filhinho  de  noite 
só  com  as  criadas  —  se  tu  visses  como  está  lindo 
o  nosso  filho,  muito  cor  de  rosa,  coni  os  olhos 
maiores,  e  loiro,  loiro,  loiro  I  —  mas  a  Bettina  pe- 
diu, exigiu,  teimou,  que  tu  não  te  zangavas,  que 
as  nossas  casas  ficavam  a  dois  passos,  que  era 
só  atravessar  a  linha  férrea,  que  as  criadas  cha- 
mavam ao  telefone  se  o  pequenino  acordasse,  e 
eu,  a  pensar  em  ti,  sempre  a  pensar  em  ti,  cha- 
mei duas  costureiras  para  casa,  copiei  a  aguarela 
da  Pierrette  en  vert,   que  tu  tens  no   leu  escri- 


I 


84  NA    VIDA 


tório,  comprei  umas  meias  verdes,  mandei  fazer 
uns  lindos  sapatinhos  de  setim  verde,  e  ontem  à 
noite,  toda  de  verde  dos  pés  à  cabeça  como  a 
figurinha  de  Wilette,  muito  contente,  muito  ri- 
sonha, muito  feliz,  a  lembrar-me  de  que  tu  ha- 
vias de  gostar  de  me  ver  tão  bonita, — pus  ao 
pescoço  as  minhas  pérolas,  beijei  o  meu  filhinho 
que  dormia,  atirei  uma  capa  pelos  ombros  —  e 
fui.  Não  imaginas  como  eu  estive  bem,  distraída, 
alegre,  e  como  a  Bettina  estava  interessante  — 
povera  piccina  mia! — com  muitos  brilhantes, 
muita  pena  de  não  ser  loira  e  muitos  ciúmes 
duma  misress  Reynolds,  bastante  middle  class, 
que  andava  pelas  salas  a  pendurar-se-lhe  no  ma- 
rido e  a  falar  nos  pavões  do  seu  jardim  de  Car- 
cavelos. A  graça  que  estas  inglesas  acham  aos 
maridos  de  toda  a  gente, — e  como  eu  me  senti 
inquieta,  como  eu  sofri  também,  meu  Jorge, 
pensando  nas  várias  mistress  Reynolds,  nas  vá- 
rias miss  Cosmo  que  hão-de  querer  debruçar-se 
sobre  os  teus  lindos  olhos  pretos  !  Passava  da 
meia  noite  e  eu  já  tinha  dançado  muito,  quando 
tocaram  ao  telefone.  Era  a  criada  a  dizer-me  que 
o  pequenito  tinha  acordado  e  estava  a  chorar  por 
mim.  Aflita,  desnorteada,  pus  a  capa,  não  me 
despedi  de  ninguêmx,  e  como  queria  vir  depressa 
—  não  imaginas  que  escuridão  de  noite  !  —  em 
vez  de  dar  a  volta  pela  passagem  de  nível,  cor- 
tei a  direito  para  atravessar  a  linha  férrea  na 
altura  da  nossa  casa.    Uma  imprudência,    pois 


o   SAPATl-NHU    VERDE  S^» 


não  é  verdade  ?  Se  foi,  meu  Jorge  !  Eu  não  via 
nada  diante  de  mim.  Ia  cega,  a  tremer,  a  trope- 
çar no  caminho.  Porque  choraria  o  meu  fi- 
lho ?  Como  era  possível  que  eu  o  tivesse  dei- 
xado, que  eu  o  tivesse  abandonado  às  criadas, 
que  eu  o  tivesse  trocado  por  um  baile,  —  o  pobre 
inocente  !  Um  vento  húmido  batia-me  na  cara, 
desgrenhava-me  os  cabelos,  e,  no  silêncio  da 
noite,  o  mar  parecia  rugir  muito  perto,  cada 
vez  mais  perto  de  mim.  Ia  a  atravessar  a  linha, 
sobre  o  cascalho  que  me  fugia  e  resvalava  de- 
baixo dos  pés,  quando  um  dos  tacões  Luís  xv  dos 
meus  sapatos  de  setim  verde,  finos  como  juncos, 
se  me  prendeu  entre  uma  pedra  e  o  ferro  do  rail^ 

—  precisamente  no  momento  em  que,  na  escu- 
ridão, caminhando  para  mim,  aparecia  o  farol 
vermelho  dum  comboio.  Que  instantes  de  an- 
gústia, meu  adorado  Jorge,  —  tão  horríveis,  que 
se  eu  não  endoideci  de  pavor  é  porque  já  não 
endoideço  !  Quis  libertar-me,  numa  aflição.  Não 
pude.    Estava  presa,  fixada,  agarrada  aos  rails, 

—  e  via,  e  sentia  o  comboio  avançar,  implacavel- 
mente,  ao  meu  encontro.  Debati-me  ainda  num 
esforço  supremo,  gritei,  caí  de-bruços,  levantei- 
-me  com  a  boca  a  saber-me  a  sangue,  quis  arran- 
car-me  daquela  prisão  com  todas  as  energias  do 
desespero.  Inútil.  Parecia  que  um  grilhão  de 
ferro  me  fixava  à  linha.  A  locomotiva  negra,  ui- 
vando, resfolegando,  vinha  já  sobre  mim,  — 
quandu   l)*'iii.    nAc  foi   senão   Deus  e  o   meu   fi- 


8(i  NA    VIDA 


Ihiriho,  me  permitiu  um  lampejo  de  serenidade 
bastante  para  compreender  que  podia  libertar-me 
desapertando  a  presilha  do  sapato.  Como  a 
felicidade  e  a  vida,  meu  amigo,  podem  depen- 
der de  uma  coisa  tão  simples  !  Dois,  três  se- 
gundos depois,  eu  fugia  como  doida,  descalça 
pelas  pedras,  e  o  comboio  passava  sobre  o  meu 
pobre,  sobre  o  meu  frágil  sapatinho  de  setim 
verde,  —  que  me  ia  matando,  que  eu  sacrifiquei 
para  me  salvar,  e  que  me  ficLva  tão  bem,  meu 
querido  Jorge  ! 

Não,  meu  grande,  meu  adorado  amigo,  eu 
não  podia  morrer,  porque  te  quero  muito,  por- 
que adoro  o  meu  filhinho,  porque  tu  não  tardas, 
porque  sou  muito  feliz,  —  e  porque  a  morte  não 
deve  levar  senão  quem  é  desgraçado,  puis  não 
é  verdade,  meu  amor? 

Tua,  muito  tua,  —  Lena. 


MARIA  ROSA 


O  meu  amigo  Baltasar  tinha  acabado  de  che- 
car ',de  Viana  do  Castelo. 

—  Então,  o  assunto  que  me  prometeste  ?  — 
gritei-lhe.  quando  ele  me  caiu  nos  braços,  loiro, 
satisfeito,  formidável,  cheio  de  embrulhos,  de  ma- 
las, de  felicidade  e  de  poeira. 

—  Vem  aqui  dentro  ! 

—  Não  te  esqueceste? 

—  -  Não  me  esqueci. 

Acompanhei-o  ao  hotel.  Um  quarto  de  hora 
depois,  eu  tinha  nas  mãos  um  pedaço  de  papel 
velho,  roto,  manchado  de  humidade  e  de  bolor, 
ainda  com  vestígios  do  antigo  aparo  doirado,  e 
com  a  dedada  vermelha  duma  obreia  a  sangrar 
a  um  canto.  Era  uma  carta.  Vi  a  assinatura: 
Rosa  Maria.   Vi  a  data:  3  de  abril  de  1811. 

—  Mas  que  interesse  tem  isto  ? 

—  Lê, — respondeu-me    o    meu    amigo    Baila- 


88  NA    VIDA 


sar,  enterrado  numa  poltrona,  acendendo  um 
dos  seus  horríveis  cigarros  ingleses.  Mas  quando 
eu  ia  principiar  a  lôr,  deteve-me.  t^ueria  que 
eu  conhecesse  primeiro  as  condições  em  que  esse 
documento  fora  encontrado.  Eram  —  dizia  êle 
—  a  chave  da  história.  Gomo  eu  sabia  já,  Balta- 
sar comprara,  nos  arredores  de  Viana  do  Cas- 
telo, um  velho  solar  outrora  pertencente  aos  mor- 
gados de  ***,  senhores  do  couto  de  Soeiro  e  da 
comenda  de  Santa  Maria  de  Airão,  cujas  filhas, 
por  mercê  de  el-rci  D.  João  v,  tinham  almofada 
no  Paço.  O  meu  amigo  n5o  se  atrevera  a  bolir 
na  casa,  onde  os  tetos  de  madeira  em  caixotões, 
com  pinturas  do  século  xvii  e  rosetas  doiradas 
no  cruzamento  das  molduras,  eram  os  mais  ricos 
de  todo  o  Minho  solarengo;  mas  julgara,  de  bom 
conselho  abater  o  portão  da  quinta,  que  amea- 
çava ruína,  porque  a  padieira  fendida  não  aguen- 
tava já  o  peso  da  pedra  de  armas.  Assim  se  fez. 
Quando  os  pedreiros  apeavam  um  oratório  com 
o  painel  do  Sa»to  Cristo,  encastrado  no  muro  à 
altura  da  imposta,  encontraram  uma  carta  me- 
tida entre  a  armação  de  madeira  e  o  modilhão 
de  pedra  do  nicho,  tão  cheia  de  bolor  e  comida 
do  pó,  que  parecia  desfazer-se  quando  lhe  toca- 
vam. O  meu  amigo  Baltasar  limpou-a  ao  de  leve, 
e,  numa  mancha  negra  de  humidade,  leu:  Ao 
sr.  Rúi  Manuel  de  Nápoles  e  Bourbon.  A  pessoa 
a  quem  era  destinada  não  chegara  a  abri-la.  Es- 
tava ali  havia  cento  e  seis  anos.  Era  a  carta  que 
eu  tinha  agora  nas  mãos. 


MARIA     ROSA  S9 


—  Vais  ver  que  admirável  documento  duma 
paixão  e  duma  época !  — concluiu  o  meu  amigo, 
gravemente,  emquanto  o  criado  nos  trazia  o  chá. 

A  carta  dizia  assim:  •• 

((Meu  Rui  do  meu  coração. — Pela  alma  da 
lua  mãesinha  te  peço  que  não  venhas  esta  noite. 
O  escudeiro  preto  a  quem  tu  retalhaste  a  cara 
com  o  chicote,  viu-te  ontem  saltar  da  janela  do 
meu  quarto.  Meu  pai  já  sabe  tudo.  Mandou-me 
hoje  por  Frei  Joaquim  um  papel  para  eu  pôr  o 
meu  nome,  que  cuido  que  é  para  o  senhor  Arce- 
bispo, e  deu  ordem  às  criadas  para  terem  pron- 
tas amanhã,  ao  nascer  do  sol,  as  arcas  da  minhn 
roupa.  Não  sei  que  vão  fazer  de  mim,  meu  amor 
da  minha  alma.  Não  sei  para  onde  me  levam, 
nem  se  tornarei  a  ver-te  mais  neste  mundo.  A 
Dorotea  disse-me  agora,  a  tremer  de  medo,  que 
os  criados  estão  lá  em  baixo,  na  adega,  aper- 
rando os  arcabuzes,  e  que  meu  pai  prometeu  ao 
Bento,  que  anda  com  a  liteira,  toda  a  várzea  ve- 
lha de  Prancemil  e  um  saco  de  moedas,  se  te 
matasse.  Êle  é  homem  ruim,  e  capaz  de  tudo. 
Não  voltes,  pela  tua  salvação,  meu  Rui.  Supli- 
co-te^  de  mãos  postas.  Não  voltes  mais  a  esta 
casa,  que  te  matam.  Estou  a  escrever-te  de  jut!- 
Ihos,  diante  do  oratório  do  meu  quarto,  e  a  ou- 
vir os  gritos  de  minha  mãe,  que  me  amaldiçoa. 
Não  tenho  outra  maneira  de  avisar-te,  amor  do 
meu  coração.    Nossa  Senhora  queira,  na  sua  iu- 


90  na'  vida 


finita  misericórdia,  que  não  te  esqueças,  antes 
da  noite  fechada,  de  mandar  buscar  esta  carta 
ao  logar  do  costume.  A  Dorotea,  que  me  criou 
e  quejida  a  manha  tem  chorado  comigo,  diz-me 
que  a  tua  vida  não  está  segura  em  Viana,  que 
devias  atar  dois  baús,  armar  quatro  criados  com 
bons  bacamartes  nos  arções  e  seguir  jornada 
para  o  Porto.  Se  fores,  Deus  te  acompanhe,  meu 
desgraçado  amigo,  que  não  sei  que  pecado  fiz 
em  querer-te  tanto.  E  não  te  compadeças  da 
sorte  da  tua  pobre  Rosa,  que  há-de  ser  sempre 
feliz  emquanto  Deus  lhe  der  a  consolação  de  po- 
der sofrer  e  chorar  por  ti.— 3  de  abril  de  1811. 
—  Rosa  Maria.)) 

—  Leste  ? 

—  Li,  —  respondi  eu,  com  os  olhos  embacia- 
dos de  lágrimas.  —  Paii  Manuel,  por  conseguin- 
te, não  chegou  a  receber  esta  carta... 

—  Não  a  recebeu.  Por  isso  eu  fui  encontrar 
nos  livros  de  óbitos  de  Santa  Maria  de  ***,  no 
mesmo  dia  3  de  abril  de  1811,  o  registo  da  morte 
de  um  Rui  Manuel  de  Nápoles  e  Bourbon,  com 
esta  nota  lançada  à  margem  pelo  abade:  «morto 
à  falsa  fé,  duma  arcabuzada  que  lhe  derani)). 

—  E  Rosa  Maria  ? 

—  Consta  dos  livros  do  noviciado  do  mos- 
teiro de  SanfAna,  de  Viana  do  Castelo,  que  dois 
dias  depois,  5  de  abril,  vestia  o  hábito  da  apro- 
vação na  religião  de  S.  Bento  soror  Rosa  Maria 


MARIA     ROSA  91 


Jácome  de  Amorim  Pereira,   com   dote  de  dois 
mil  cruzados  e  um  carro  de  trigo. 

—  Naturalmente,  chegou-lhe  para  o  que  havia 
de  viver, — disse  eu. 

-  -  Não.    Não  se  morre  de  dôr,   porque  fóror 
Rusa,  em  1843,  vivia  ainda. 


(J   H(  LMEA4   DA   MALHA  BRANCA 


Quando  ontem  fui  ao  cemitério  cumprir  um 
dever  de  piedade,  encontrei  M.*"^  X.  Vinha  toda 
vestida  de  preto,  os  olhos  vermelhos  de  chorar, 
os  seus  admiráveis  cabelos  loiros  envolvidos  em 
crepes.  Pez-me  impressão.  Tinha-a  conhecido 
havia  oito  anos,  quando  ela  se  estreara  em  Lis- 
boa como  artista  de  circo,  e  aproximara-me  dela, 
mais  tarde,  a  sua  funesta  ligação  com  um  .amigo 
meu.  Atravessei,  para  lhe  falar,  a  alameda  des- 
coberta de  sol.  Disse-me,  vagamente,  que  tinha 
vindo  acompanhar  um  morto  querido.  A  sua  voz 
tremia.  A  sua  palidez  assustou-me.  Cambaleou. 
Deu-me,  por  um  momento,  a  impressão  de  que 
ia  perder  os  sentidos.  Pouco  a  pouco,  reanimou- 
-se,  teve  uma  crise  de  choro,  pediu-me  que  a 
acompanhasse  até  à  carruagem.  Ofereci-lhe  o 
meu  automóvel.  Aceitou.  Instantes  depois,  se- 
guíamos ambos  no  Renault  que  me  trouxera,  — 


o   HOMEM    DA    MALHA    BRANCA  93 


II  pensando  na  impressão  profunda  que.  ainda 
mesmo  nos  homens  mais  insensíveis,  produzem 
as  lágrimas  duma  mulher  bonita,  ela  de  olhos 
fechados,  com  a  cabeça  pousada  no  meu  ombro, 
cheirando,  de  vez  em  quando,  a  rolha  doirada 
do  mais  precioso  frasco  de  sais  que  tem  ajudado 
uma  mulher  a  chorar  ao  pé  de  mim. 

Foi  então  que  essa  criança  grande,  que  é  M.*"* 
X,  me  contou  a  singular  história  que  a  tinha 
trazido,  naquela  manhã  luminosa  de  setembro, 
ao  cemitério  do  Alto  de  S.  João.  Emquanto  a 
ouvi,  lembrei-me  vinte  vezes  de  Óscar  Wilde  e 
do  seu  elegante  culto  do  inverosímil.  A  reali- 
dade atinge,  às  vezes,  uma  tão  viva  expressão  de 
absurdo,  —  que  seria  permitido,  sobretudo  tra- 
tando-se  de  mulheres,  duvidar  da  própria  evi- 
dência. O  caso  de  AI.^^^^  X,  como  ela  mo  contou, 
é.  realmente,  duma  grande  singularidade.  Um 
belo  dia,  começou  a  persegui-la  um  homem. 
Aparecia-lhe  em  toda  a  parte,  nas  ruas,  uos  com- 
boios, no  teatro.  Era  um  rapaz  novo,  trinta  e 
tantos  anos,  seco,  ruivo,  elegante,  viril,  com  uns 
olhos  pardos  pequenos,  uma  fisionomia  inquie- 
tante, um  impassível  ar  de  fim  de  raça,  e,  o  que 
o  tornava  mais  estranho  ainda,  uma  grande  ma- 
lha branca  nos  cabelos,  crua,  viva,  como  uma 
pincelada  de  cal.  E'  às  vezes  difícil  saber  por 
que  razão  certos  tipos  aberrantes  de  homem  in- 
teressam tão  vivamente  as  mulheres.  Perante  a 
insistência   d;i   perseguição,    M.*"'  X   sorriu,    in- 


94  NA    VIDA 


digrioO-se,  acabou  por  se  perturbar,  —  e  certa 
noite  do  Carnaval.  ;is  três  horas  da  madrugada, 
a  sua  porta  abriu-se  a  um  homem  que  ela  não  sa- 
bia quem  era.  para  se  fechar,  duas  horas  depois, 
sobre  um  amante  que  ela  continuava  a  não  sa- 
ber quem  fosse.  Na  noite  seguinte,  o  desconhe- 
cido voltou.  Depois  de  duas  horas  de  volúpia  e 
de  silêncio.  M.*"®  X  quis  saber-lhe  o  nome.  Ele 
fitou-a  com  estranheza,  percorreu  com  os  seus 
pequenos  olhos  cor  de  aço  e  côr  de  água  o  corpo 
dessa  mulher  tonta  de  mistério,  de  comoção  e 
de  perfume,  e  depois  de  a  fitar,  de  a  analisar,  de 
a  perscrutar,  perguntou-lhe,  com  uma  frieza  gla- 
cial, o  que  poderia  interessá-la  o  facto,  absolu- 
mente  indiferente,  de  êle  se  chamar  José,  João 
ou  António.  A  princípio,  M.^"®  X  considerou  a 
sua  aventura  como  um  desvario  passageiro  com 
um  homem  que  poderia  ter  conveniência  em 
ocultar  o  seu  nome.  Em  breve,  porém,  essa  re- 
serva obstinada  começou  a  vexá-la,  como  um 
ultraje.  Tinha,  evidentemente,  o  direito  de  sa- 
ber quem  era  o  intruso  que  recebia  na  intimi- 
dade da  sua  alcova,  e,  o  que  era  pior,  na  intimi- 
dade do  seu  sentimento.  Procurou,  inquiriu,  deu 
sinais:  ninguém  o  conhecia.  Uma  noite,  durante 
o  sono.  revolveu-lhe  as  algibeiras  da  casaca  e  da 
peliça:  na  carteira,  sem  monograma,  havia  ape- 
nas dinheiro.  Nem  um  bilhete,  nem  um  papel, 
nem  uma  indicação.  Tentou  subornar  o  chaut- 
íeur   que   costumava    traze-lo    e   levá-lo.     Inútil. 


I 


o    HO>rKM    DA    MALHA   BRANCA  95 


Ninguém  sabia  quem  êle  era.  Um  freguês  des- 
conhecido, como  tantos  outros,  que  tomava  o  au- 
fomóvel  na  praça,  e  que  descia  na  mesma  praça 
•mde  o  tomara.  M.^"*  X,  desorientada,  pensou  em 
segui-lo,  em  espiá-lo.  Teve  ainda  duas  noites 
uma  limoiisine,  com  as  lanternas  apagadas,  em- 
boscada no  portão  do  jardim.  Na  primeira,  de- 
iiiorou-se  a  enfiar  a  capa,  e  o  carro  perseguido 
íifastou-se,  numa  nuvem  de  poeira.  Na  segunda, 
meteu-se  quási  nua  no  automóvel, — mas  a  meio 
do  caminho  uma  câmara  de  ar  rebentou,  esteve 
meia  hora  ao  frio  nas  avenidas-novas,  e  voltou 
rouca,  nervosa,  excitada,  doente.  Era  preciso  re- 
solver, decidir, — cortar.  Ou  esse  homem  que- 
brava o  seu  incógnito  — ou  não  voltava  mais. 
Na  noite  seguinte  quando  êle  veio,  M.®"*  X  não 
teve  coragem  para  lhe  dizer  uma  só  palavra,  e 
(ieixou-se  beijar  em  silêncio  e  em  êxtase.  Aca- 
lmava de  compreender,  com  pavor,  que  aquele 
'lesconhecido  era  já  alguém  para  a  sua  alma. 
Dali  por  diante,  as  suas  relações  com  o  «homem 
dn  malha  branca»  começaram  a  parecer-lhe,  se- 
não tranquilizadoras,  ao  menos  suportáveis.  Sem 
deixar  d'ô  examinar-lhe  sempre,  com  uma  cu- 
riosidade doentia,  as  mãos,  os  anéis,  a  roupa, 
foi-se  habituando  pouco  a  pouco  àquela  situa- 
ção, e  acabou,  tacitamente,  por  aceitá-la.  Já,  no 
fundo  do  seu  ;'spírito  romanesco,  achava  possí- 
vel, quási  natural,  amar  até  à  loucura  um  ho- 
mem—  sèm   saber   quem   èle   fosse.    Chegava    a 


96  NA    VIDA 


encontrar  nessa  ideia  uma  vaga  e  perturbadora 
volúpia.  Por  fim,  já  ela  própria  era  interessada 
em  prolongar  uma  situação  que  a  princípio  lhe 
parecera  ofensiva  da  sua  dignidade  de  mulher, 
e  que  lhe  revelara  afmal,  a  ela,  fatigada  de  emo- 
ções, a  mais  absorvente  e  a  mais  profunda  de 
todas  as  sensualidades  —  a  sensualidade  do  mis- 
tério. Duraram  alguns  meses,  no  mesmo  pé  de 
ingógnito,  as  relaçções  de  M.*"^  X  com  aquele  ho- 
mem extraordinário.  Um  dia,  a  antiga  ecuyère 
achou-lhe  na  algibeira  um  revólver.  Gritou,  em- 
palideceu, olhou-o.  Ele,  serenamente,  sorriu, 
voltou  a  guardar  a  arma  cujo  punho  de  prata 
scintilava  como  uma  jóia,  e  afundou-se  num 
couch-comer^  a  lêr  jornais.  Passaram-se  dois  ou 
três  minutos.  De  repente,  M.®"^  X,  que  compunha 
os  cabelos  ao  espelho,  ouviu  um  tiro.  Correu, 
como  doida.  O  «homem  da  malha  branca»  tinha 
a  cabeça  levemente  inclinada  sobre  o  sofá,  e  um 
fio  de  sangue  escorria-lhe  pela  face  crispada.  Es- 
tava morto.  O  mesmo  automóvel  que  o  trouxera, 
conduziu-o  ao  hospital  e  à  morgue. 

—  Foi  esse  morto  querido  que  eu  vim  enter- 
rar hoje... — concluiu  chorando  M.*"*  X,  quando 
o  Renault  lhe  parava  já  à  porta  de  casa,  o  frasco] 
de  sais   abandonado   no   regaço,    os   crepes   flu- 
tuando à  aragem  em  volta  dos  seus  maravilhosos! 
cabelos  côr  de  fogo. 

—  E,  afinal,  quem  era  êle  ?  —  perguntei,  aju- 
dando-a  a  descer. 


o    HOMEM    DA    MALHA    BRANCA 


.\í.'"*  X  ulhOLi-me,  aniparou-se  ao  meu  braço, 
.■  eiiiquanto  as  lágrimas  lhe  borbulhavauí  de? 
ulhos,  respondeu,  num  soluço: 

—  Não  sei... 


MOGIDADi 


Entre  *cs  papeis  dum  pobre  amigo  morto,  ver- 
dadeiras Confessions  d"un  enfant  du  siècle,  en- 
contrei esta  sentida  página: 

Ao  chegar  a  Lisboa,  depois  de  vinte  anos  de 
ausência  em  New- York,  todas  as  memórias  da 
minha  mocidade  distante  se  avivaram.  Senti 
em  tudo,  no  sol,  nas  coisas,  na  luz  que  me  en- 
volvia, no  ar  que  respirava,  a  ilusão  radiosa  e 
perturbadora  do  passado.  Atravessei,  quási  como 
um  estranho,  a  cidade  que  assistira  às  primeiras 
emoções  da  minha  juventude.  Não  houve  um  re- 
canto, um  aspecto,  que  não  tivessem  para  mim  o 
sentido  duma  recordação.  Nunca  julguei  que 
possuísse  tão  viva  a  memória  do  sentimento. 
Velhos  afectos,  antigas  lembranças,  paixões  dum 
instante  e  loucuras  de  toda  a  vida,  vagas  remi- 
niscências  de    sensações,    imagens  fugitivas   de 


MOCIDADE  99 


mulheres,  tudo  reapareceu  no  meu  espírito  com 
tanta  nitidez  —  os  meus  trinta  anos,  a  minha  mo- 
cidade inteira  !  —  que  até  a  música  das  vozes,  o 
ritmo  dos  gestos,  a  alma  dos  perfumes  acordou 
para  a  ilusão  transitória  da  minha  saudade.  Sor- 
ri, recordei,  pensei.  Gomo  a  existência  parece 
longa  aos  que  sofreram  e  amaram  muito  ! 

Entre  as  recordações  que  o  meu  regresso  avi- 
vou, uma  houve  mais  íntima,  mais  intensa,  mais 
dolorosamente  apaixonada  do  que  todas  as  ou- 
tras. E'  bem  certo  que  na  vida  de  cada  homem, 
por  muitas  mulheres  que  passem,  apenas  fica  a 
memória  duma  mulher.  Todas  se  esvaem  como 
sombras  voluptuosas;  uma  só  continua,  até  à 
morte,  no  nosso  coração.  Senti-o  bem,  quando, 
apenas  chegado  a  Lisboa,  pensei  na  pequenina 
casa  da  Ameixoeira,  pobre  mancha  côr  de  rosa 
entre  parreirais  doirados,  onde,  três  anos  antes 
da  minha  partida  para  a  América,  escondi  tre- 
mendo, cantando,  chorando  de  felicidade,  o 
maior  amor,  o  único  amor  de  toda  a  minha  vida. 
Existiria  ainda  essa  casa,  outrora  tão  cheia  do 
riso  dela,  da  voz  dela,  do  perfume  dela,  —  ou. 
teria  desaparecido  já  na  voragem  do  tempo,  como 
ela  própria  desaparecera  ?  Quem  moraria  agora, 
vinte  anos  passados,  no  ninho  de  amor  onde  eu 
ia  esperá-la,  de  oito  em  oito  dias,  e  onde  tudo 
parecia  resplandecer,  sorrir,  palpitar,  cantar, 
quando  assomava  ao  longe,  numa  labareda  de 
sol,  o  ciarão  da  sua  sombrinha  vermelha  ?  Todos 


100  NA   VIDA 


nós,  sentimentais,  temos,  mais  ou  menos,  a  volú- 
pia do  sofrimento.  Eu  sabia,  de  ante-mâo,  que 
não  podia  tornar  a  ver  essa  casa  sem  me  sensi- 
bilizar até  às  lágrimas.  E  uma  bela  manhã,  tal- 
vez por  isso  mesmo,  fui  vê-la.  Gomo  eu  subia 
noutro  tempo  aquela  ladeira  íngreme  da  Amei- 
xoeira, desde  o  velho  solar  alpendrado  dos  mar- 
queses de  Anjeja  até  ao  cruzeiro  humilde  que 
abre  os  seus  braços  de  pedra,  lá  cima,  debruçado 
sobre  o  vale  viçoso  de  Odivelas  !  E  agora,  vinte 
anos  depois,  quando  já  a  mocidade  me  não  sor- 
ria e  nenhuns  lábios  de  mulher  me  esperavam, 
—  como  eu  a  subi  lentamente,  penosamente, 
^ob  a  névoa  triste  dos  meus  cabelos  brancos  I  O 
coração  bateu-me  apressado.  As  lágrimas  emba- 
ciaram-me  os  olhos.  Lá  estava,  ao  alto  do  cór- 
rego, numa  vaga  poeira  de  sol,  a  pobre  casinha 
cor  de  rosa  que  íôra,  na  profunda  expressão  das 
coisas  inanimadas,  o  pequenino  abrigo  de  um 
sentimento  eterno.  Aproximei-me  para  ver 
melhor,  para  a  acariciar,  para  a  sentir.  Umas 
sombras  negras  moviam-se  à  porta.  Uma  car- 
reta negra  esperava  na  volta  da  estrada.  Ouvi 
um  choro  convulso.  As  pernas  vacilaram-me. 
Amparei-me  ao  muro  para  não  cair.  Da  casa  que 
eu  enchera  com  o  maior  amor  da  minha  vida, 
saía  um  caixão.    Chorei  em  silêncio. 

Tinha  vindo  assistir  ao  enterro  da  minha  pró- 
pria mocidade.» 


vSAIAS  DE  BALÃO 


—  Que  saudades  eu  tenho  das  mulheres  do 
meu  tempo  !— dizia-me  o  meu  amigo  D.  Alexan- 
dre de  Sousa,  num  dos  últimos  chás  mundanos 
do  Hotel  Central,  vendo  passar  na  varanda  doi- 
rada pelo  sol  da  tarde  uma  revoada  fresca  de  ra- 
parigas. 

—  Você  está  convencido  de  que  eram  mais 
interessantes  do  que  as  de  hoje  ? 

—  Eram,  côm  certeza,  muito  mais  graciosas, 
muito  mais  femininas, — muito  mais  mulheres. 
Quando  vejo  o  desembaraço  viril  das  raparigas 
de  agora,  que  jogam  o  tennis  e  cruzam  a  perna 
como  rapazes,  sinto  — palavra  de  honra!  —  a 
nostalgia  da  saia  de  balão.  Eu  bem  sei  que  os 
velhos,  quando  se  voltam  para  o  passado,  vêem 
tudo  com  os  olhos  dos  vinte  anos.  Mas  você,  se 
tivesse  conhecido  as  raparigas  do  meu  temj)o, 
1858,  1860,  com  os  seus  camafeus,  as  suas  capo- 


i02  NA    VIDA 


tas  d?  palha  de  Itália,  os  seus  grandes  vestidos  de 
tarlatana  côr  de  rosa  e  a  sua  encantadora  timidez 
de  petites  vertus,  —  tiavia  de  pensar  como  eu. 
Eu  não  sei  S9  estas  coisas  teem  mudado,  e  se  vo- 
cês, homens  novos,  preferem  a  voluptuosidade 
da  audácia  à  profunda  e  perturbadora  voluptuo- 
sidade da  candura.  Para  mim,  e  para  os  da  ve- 
lha guarda,  como  eu,  o  encanto  supremo  da  mu- 
lher está  ainda  na  modéstia,  na  ingenuidade, 
no  pudor,  na  graça  tímida,  na  ignorância  dis- 
creta, e  — quer  que  lhe  diga?  —  naquele  deli- 
licioso  grãosinho  de  estupidez  a  que  nós  outros, 
românticos,  chamamos  inocência.  Não  sei  se  você 
já  reparou  que  não  são  as  mulheres  muito  inteli- 
gentes que  despertam  as  maiores  paixões.  A  in- 
teligência tem  qualquer  coisa  de  ágil,  de  másculo, 
de  irritante,  —  que  repele  a  sensualidade  miste- 
riosa de  homem.  Não  conheço  encanto  superior 
ao  de  uma  mulher  que  está  calada,  —  e  não  sei 
que  escritor  inglês  afirmou  que  não  havia  vo- 
luptuosidade comparável  à  do  silêncio.  A  simpli- 
cidade de  espírito  das  rapari*gas  do  meu  tempo, 
que  tão  interessantes  as  tornou,  foi,  sobretudo, 
um  produto  de  educação,  uma  obra  carinhosa 
da  família.  Conheci  algumas  que  amaram,  ca- 
saram, tiveram  filhos,  e  envelheceram  em  plena 
inocência  como  grandes  bebés  de  cabelos  bran- 
cos. As  tendências  da  nossa  educação  sentimen- 
tal levaram-nos,  deslumbrados  de  candura,  a  co 
siderar  a  ignorância  da  mulher  tão  bela  como  a 


SATÃS    DE    BALÃO  i03 


sua  fraqueza,  e  o  certo  é,  meu  amigo,  que  todos 
nós  fizemos  dessa  ignorância  um  poema.  Há  pe- 
quenos episódios  enlernecedores  da  minha  moci- 
dade, que  nunca  mais  me  esqueceram,  e  que  dão 
a  impressão  exacta  do  que  foi,  em  1860,  como 
tipo  de  ingenuidade  e  de  graça,  essa  deliciosa 
boneca  de  saias  de  balão,  que  andava  aos  puli- 
nhos, que  adorava  os  topázios,  que  mordia  a 
ponta  do  lenço,  que  punha  os  olhos  no  chão,  que 
pedia  licença  aos  pais  para  sorrir,  e  que  sabia 
esconder,  com  a  hipocrisia  mais  angélica,  as  re- 
velações do  seu  instinto  e  os  sentimentos  do  seu 
coração.  Vou  contar-lhe  um  desses  casos, — que 
dava  uma  graciosa  aguarela.  Você  já  não  conhe- 
ceu o  meu  tio  Marquês,  mas  ouviu,  de-certo,  fa- 
lar muito  dele.  Era  um  velho  fidalgo,  ainda  ga- 
lanteador  e  homem  de  sala  aos  setenta  anos,  que 
fazia  o  prodígio  de  conservar,  numa  idade  em 
que  nós  outros,  viveurs,  não  somos  senão  umas 
pobres  faianças  quebradas,  a  frescura,  a  vivaci- 
dade, a  scintilação  de  espírito  dum  rapaz.  An- 
dam na  memória  de  toda  a  gente  os  seus  ditos 
felizes,  as  suas  pitorescas  invenções,  as  suas 
anecdotas  um  pouco  pueris,  que,  como  Barbey 
dizia  de  Lord  Seymcur,  davam  às  vezes  a  im- 
pressão de  que  estávamos  diante  de  uma  grande 
criança.  Um  dia,  aí  pelo  verão  de  1859,  meu  tio 
Marquês,  que  recebia  habitualmente  na  sua  casa 
de  Lisboa  a  melhor  sociedade  do  tempo,  lem- 
brou-se  de  oferecer  uma  merenda  no  velho  solar 


104  NA  VIDA 


'io  Lumiar,  um  rasarão  cio  século  xvin,  notávpl 
pelos  seus  azulejos  do  Rato,  pelas  suas  leias  np 
aranha,  pelas  carrancas  dos  seus  modilhões  e  por 
um  ou  dois  admiráveis  tetos  pintados  por  Perlrn 
Alexandrino.  Passou-se  a  tarde  no  jardim.  A 
noite  acenderam-se  todas  as  serpentinas  de  prata 
mareada  que  se  encontraram  nas  arcas,  e  as  se- 
nhoras reúniram-se  na  sala  grande,  onde  se  ha- 
via de  servir  o  caldo  de  galinha  da  merenda  em 
tigelas  velhas  da  índia.  Ainda  me  recordo  como 
sè  fosse  hoje  — tinha  então  dezasseis  anos  — da 
impressão  que  produziu  em  mim  esse  salão  pro- 
fundo, todo  guarnecido  à  volta  de  pesadas  ca- 
deiras D.  João  V,  onde  se  sentavam  imóveis,  silen- 
ciosas, de  olhos  baixos,  alinhadas  como  freiras 
no  coro,  sessenta  ou  setenta  senhoras  ainda  no- 
vas, pojando  os  seus  enormes  balões  de  pekin 
verde,  de  moirée  Ninon,  de  camaieux  d'eté,  de 
tarlatana  côr  de  rosa,  donde  pendiam  como  ba- 
dalos de  sino  —  as  cadeiras  eram  altas  —  cento 
e  vinte,  cento  e  quarenta  pèsinhos  calçados  de 
duraque  preto.  A  secretária  da  legação  da  Áus- 
tria cantou  a  Gazza  Ladra;  Bulhão  Pato  recitou 
ao  piano.  A  certa  altura,  meu  tio,  que  brincava 
sempre,  levantou-se,  e  de  pé  no  meio  da  casa  — 
estou  a  ver-lhe  a  íace  rapada,  a  sobrecasaca  azul. 
as  mãos  finas  —  preveniu  as  senhoras  de  que 
uma  das  cadeiras  daquele  salão,  não  se  sabia  ao 
certo  qual,  possuía  a  singular  propriedade  de 
pbrigar  a  pessoa  que  nela  se  sentava  a  dizer  o 


SAIAS    DE    BALÃO  105 


que  não  queria  e  a  revelar,  involuntariamente,  os 
mai?  íntimos  segredos  da  sua  alma.  Elas  a  prin- 
í^ípio  sorriram,  fizeram  boquinhas  de  espanto 
"ah  !»,  «oh  !»;  mas  depois  começaram  a  olhar 
desconfiadas  umas  para  as  outras,  a  corar,  a 
morder  o  beiço,  a  levantar-se.  a  sair  à  formi.íra. 
—  e  o  certo  é,  meu  amigo,  que,  quando  os  criados 
•mtraram  para  servir  a  merenda,  já  não  estava 
na  sala  nem  uma.  Ingenuidade,  simplicidade  de 
espírito,  defeito  de  educação,  —  o  que  você  qui- 
ser. O  que  lhe  afirm.o  é  que,  no  meio  das  rapa- 
rigas viris  de  hoje.  que  falam  em  calão,  trazem 
a  saia  pelo  joelho  e  não  teem  medo  de  nada.  co- 
meço a  sentir  a  melancólica  saudade  das  mulhe- 
res do  meu  tempo,  pobres  bonequinhas  tímidas 
de  há  cincoenta  anos.  que  coravam,  balbucia- 
vam, sorriam,  fugiam  com  medo  diante  duma  ca- 
deira—  mas  que  souberam  dar-nos  na  vida  a 
(^onsoladora  ilusão  da  candura,  da  felicidade  e  do 
amor. 


o  CRIME 


A  estrada  corria,  cortando  uns  montados  e 
bouças  floridas  de  mato  excomungado.  Na  volta, 
lá  baixo,  de  encontro  a  uma  lomba  de  pinhal 
manso,  copado  de  sombras,  uma  casa  faiscou 
como  uma  pincelada  branca  ao  sol. 

—  Vês  aquela  casa?  —  perguntou-me  o  meu 
amigo,  cujas  largas  mãos  de  hércules,  enluva- 
das de  lã  cinzenta,  manejavam  como  um  brinque- 
do o  volante  do  automóvel. 

—  Aquela  casa  branca  ? 

—  E*  o  casal  dos  Cabeços.  Repara,  quando 
passarmos  por  lá.   Tem  a  sua  história. 

—  Um  cunhal  de  armas  ? 

—  Não.    Um  crime. 

Daí  a  cinco  minutos,  o  nosso  admirável  Bra- 
zier  passava  diante  duma  terrêa  velha  de  quatro 
paredes  caiadas,  com  o  seu  telhado  duma  só  água, 
três  cachorros  de  pedra  a  aguentarem  uma  par- 


o    CRIME  107 


reira  sobre  a  porta,  e  a  sua  chaminé  estremenha 
com  chapéu  de  duas  telhas  mouriscas  juntas 
!'olos  topos  no  gesto  cristão  duma  prece.  Tinha 
I  mão  direita  uma  lindada  viçosa  de  hortaliças; 
fumegava-lhe  à  porta  uma  testeirada  de  esterco, 
onde  fossavam  os  cães  e  onde  os  moscões  scin- 
tilavam  ao  sol,  como  diamantes;  e  nas  costas,  em- 
pinada até  entestar  ao  alto  no  pinhal  uma  lomba 
de  monte  galgava,  hirsuta,  sangrenta,  doirada  de 
vinhedos. 

—  E'  esta  a  casa,  — indicou  o  meu  amigo,  num 
geito  de  cabeça. 

E  emquanto,  duma  moita  rasa  de  mato  queiró, 
duas  perdizes  assustadas  levantavam  vôo,  disse- 
-me,  parando  o  automóvel  um  instante  para  acen- 
der o  cigarro: 

—  Mataram   aqui  um  homem. 

—  Quem  ? 

—  Já  te  conto. 

O  mato  rescendia.  O  sol  queimava,  como 
uma  labareda*  A  flor  roxa  das  torgas  montesi- 
nhas dava  a  impressão  de  mosto  a  escorrer  na 
terra  escaldada.  O  meu  amigo,  rapidamente,  sa- 
cudidamente, como  se  se  comunicasse  às  suas 
l»alavras  a  vertigem  da  marcha,  contou-me  o  que 
fora,  na  sua  bárbara  simplicidade,  o  crime  do 
casal  dos  Cabeços. 

—  Há  seis  meses  morava  aqui  um  homem  que 
t.nha  sido  caseiro  de  meu  pai.  Era  o  João  Maria. 
Gincoenta  anos,  boi  de  trabalho,  homem  são,  ca- 


108  NA    VIDA 


rador  romo  um  perdigueiro,  valente  como  as  ar- 
mas. Coalhou  umas  moedas  na  arca,  arrendou 
este  bocado  de  terra,  e  casou  com  uma  rapariga 
(lo  logar  de  Negros,  a  Rosaria,  que  podia  ser  fi- 
lha dêlo.  Um  dia,  vieram  aí  trabalhar  no  casal  de 
cima  uns  malteses.  Era  uma  jolda  deles,  mal  en- 
carados, com  um  manageiro  pior  que  eles  todos, 
—  o  Filipe.  Dali  por  diante,  o  João  Maria  come- 
çou a  estranhar  a  mulher.  Achava-a  triste.  O 
que  era,  o  que  não  era.  —  até  que  duma  vez  o  ma- 
nageiro. encontrando-o  numa  volta  da  estrada, 
deu  um  salto  ao  largo  e  meteu  a  mão  ã  cinta. 
Quem  mal  não  usa,  mal  não  cuida.  O  João  Maria 
seguiu  seu  caminho,  e  à  noite,  quando  falou  à 
mulher  no  Filipe,  viu-a  mudar  de  côr,  o  suor  es- 
correr-lhe  em  baga  pela  testa,  amparar-se  a  um 
mocho  de  cerdeira  para  não  cair  no  chão, — e 
ficou  a  olhar  para  ela,  de  olhos  esbogalhados,  sem 
entender  nada.  Nessa  noite,  o  pobre  homem  não 
dormiu.  Na  manhã  seguinte,  carregou  a  clavina, 
aperrou-a,  meteu-a  no  vão  da  porta  com  o  chum- 
beiro  e  o  polvorinho  de  chifre,  beijou  a  mulher, 
disse-lhe  que  depois  do  trabalho  ia  à  vila,  que 
não  o  esperassse  até  à  noite,  atirou  a  enxada  an 
ombro,  —  e  abalou.  Ainda  não  era  noite  fechada, 
estava  de  volta.  Logo  que  deitou  mão  ao  ferrolho 
da  porta,  ouviu  um  grito,  o  rumor  duma  tigela 
que  se  estilhaça  no  ladrilho,  —  e'  a  luz  apagou-se. 
—  «Quem  está  aí?»  — gritou  ele.  Sentiu  o  resfo- 
legar dum  homem;  depois,   o  estoiro  dum  tiro, 


o    CRIME  109 


qus  lhe  chamusc(  u  de  raspão  a  camisa,  sem  lhe 
tocar.  Tinham-Ihe  metido  aos  peitos  a  sua  pró- 
pria clavina,  us  caiiallias.  João  Maria  avançou: 
adivinhou  um  vulto  a  saltar-lhe  na  frente;  viu 
faíscar-lhe  ainda  diante  dos  olhos  o  ferro  duma 
navalha, "  e,  sereno,  formidá^^d,  levantou  nas 
duas  mãos  a  enxada  e  abateu-a,  dum  golpe,  na 
'  uridão.  Houve  um  ruído  cavo;  uma  pastada 
qutíule,  sangue  ou  lama,  espirrou-lhe  na  cara; 
sentiu  ainda  a  enxada  arpoar  em  carne  ou  em 
farrapos;  depois,  o  baque  surdo  dum  corpo,  um 
ronco  d8  estertor,  um  grito, — e  o  silêncio.  Re- 
cuou, até  à  porta;  veio,  a  cambalear,  para  a  es- 
trada. Atrás  dele,  gritando,  saiu  a  mulher.  Inú- 
til. Ninguém  a  ouviria  na  charneca  deserta.  João 
Maria  travou-lhe  do  braço,  atirou-a  para  casa,  or- 
denou-lhe:  —  «Acende  a  candeia!»  Quando  a  luz 
(  lepitou,  o  cadáver  do  maltês  Filipe  apareceu  de- 
bruces, com  o  crânio  aberto,  numa  poça  de  san- 
gue.—  «Mata-mo  !  Mata-me  a  mim  também!))  — 
uivava  a  mulher,  atirada  sobre  uma  arca.  —  «Não. 
<>  teu  castigo  é  outro.))  E  logo,  arremessando  o 
capote,  agarrando  a  enxada:  —  «Traze  a  candeia. 
Vamos  enterrá-lo.»  Emquanto  ela  alumiava  a 
tremer,  varejada  de  soluços,  João  Maria  abriu 
uma  cova  à  porta  da  casa;  obrigou  a  mulher  a 
segurar  o  cadáver  pelos  pés,  emquanto  êle  o  afer- 
rava pelos  ombros;  deitou  o  corpo  à  terra,  que 
esboroava  em  torrões;  cobriu-o,  bsm  coberto, 
pá  sobre  pá;  forçou  a  Rosaria,  transida,  a  lavar 


110  NA   VIDA 


de  rastos  o  sangue  do  manageiro,  que  empoçava 
nos  tijolos  do  chão;  trouxe  a  candeia,  entrou,  fe- 
chou a  porta,  —  e  sentado  na  cama,  tranquila- 
mente, a  carregar  outra  vez  a  clavina,  preveniu: 
—  uSe  contas  isto  a  alguém,  meto-te  na  cova 
com  êle».  Depois,  sereno,  limpando  as  maus, 
despindo  o  colete  de  saragoça:  —  «E  agora,  nm- 
Iher,  vamos  dormir».  Três  dias  depois,  sem  que 
se  soubesse  porquê,  João  Maria  entregava-se  à 
justiça. 


UMA  MULHER 


Dizia-me  duma  vez  um  velho  padre,  que  eu 
conheci  reitor  numa  freguesia  sertaneja:  —  «To- 
das as  mulheres  juntas,  meu  amigo,  não  valem 
uma  lágrima  !»  Engano.  Quanta  mulher  por  quem 
se  morre  !    Quanta  mulher  por  quem  se  chora  ! 

Lembro-me  ainda  como  se  fôss;^  hoje.  Um 
dia,  há  dez  ou  doze  anos,  anunciou-se  em  Lis- 
boa um  leilão  elegante.  Uma  das  mais  lindas 
mulheres  do  demi-monde  da  capital,  chilena,  que 
linha  a  mania  das  pérolas  e  que  mostrava  todas 
as  noites,  numa  frisa  de  S.  Carlos,  as  suas  admi- 
ráveis espáduas  dignas  de  suportar  os  catorze 
filhos  de  Niobe,  morrera,  como  Maria  Duplessis. 
das  consequências  dum  resfrianiento,  e  deixara 
aos  herdeiros,  uma  irmã  e  um  sobrinho,  todo  o 
recheio  da  casa  que  lhe  pusera  o  conde  de  "*,  um 
dos  seus  adoradores,  num  primeiro  andar  da 
Avenida  da  Liberdade.    Dizia-se  que  essa  casa, 


112  NA   VIDA 


mobilada  por  artistas  mandados  vir  de  Paris,  era 
um  modelo  de  distinção  e  de  bom  gosto,  o  tipo 
do  moderno  lar  de  arte  em  França,  com  móveis 
de  Maurice  Dufrêne,  dum  discreto  intimismo. 
um  surpreendente  vitral  de  Carot,  (Vaprès  Bes- 
nard,  f  a  mais  bela  colecçãu  de  ferros  forjados 
de  Grassei  e  de  Bracquem(»iil  lâmpadas,  lus- 
tres, fechos  de  porta  —  que  poderia  deslumbrar 
um  amador  de  decorações  modernas.  Pui  as- 
sistir ao  leilão.  Imensa  gente,  uma  atmosfera 
de  fumo,  um  calor  asfixiante,  uma  luz  doirada 
e  quieta  de  meia-tarde.  Tinha-se  começado  na- 
quele momento  o  leilão  do  quarto-de-vestir.  A 
voz  rouca  do  pregoeiro  gritava.  Uma  réstea  de 
sol  ia  afagar  três  Amores  côr  de  rosa  que  brin- 
cavam ao  canto  dum  delicioso  tapete  de  Jor- 
rand.  Havia  no  ar  o  vestígio,  o  espectro,  a  som- 
bra dum  perfume.  Grupos  de  rapazes,  de  cha- 
péu para  a  nuca,  falavam  alegremente  da  mor- 
ta, rindo,  comentando,  fumando.  Uma  inglesa 
grave,  loira,  míope,  examinava  ao  pé  de  mim 
a  marca  dum  guarda-jóias  de  Limoges.  Três, 
quatro  cabeças-de-pau,  a  barba  por  fazer,  as 
mãos  grosseiras  e  enormes,  licitavam,  picavam 
tudo.  Procurei  desinteressar-me  da  gente  que 
me  rodeava,  para  observar  melhor  aquele  inte- 
rior galante,  que  tão  de  perto  conhecera  a  per- 
turbadora intimidade  duma  mulher.  Era  um 
Império  Jallot,  verde-malva  e  oiro,  gracioso,  de- 
licado,   ligeiro,    onde    tudo    parecia    evocar,    na 


UMA    MULHER  113 


macieza  dos  estofos,  na  alma  luminosa  dos  es- 
pelhos, na  voluptuosidade  morna  e  crepitante 
das  rendas,  o  corpo  orgulhoso  que  vivera,  que 
respirara,  que  palpitara  ali.  Dir-se-ia  que  a  profa- 
nação hedionda  dum  leilão  não  tinha  tocado  o 
mistério  daquele  pequeno  templo.  A  graça  fe- 
minina, penetrante  e  imortal,  sobrevivera  ao 
que  nessa  mulher  tinha  havido  de  esplêndido  e 
de  efémero.  Sentia-se  ainda  em  tudo,  num  laço 
de  fita  em  que  ninguém  tocara,  num  solitário 
onde  morrera  uma  flor,  o  encanto,  a  espirituali- 
dade das  suas  mãos,  —  dessas  longas  mãos  mais 
grandiosas  do  que  finas,  que  tantas  vezes  me 
haviam  recordado  as  de  Mona  Lisa  Gioconda. 
Emquanto  o  pregoeiro  punha  em  praça  um  lote 
de  meias  de  seda,  entre  risos  que  eram  uma 
afronta  para  o  pudor  dum  cadáver,  procurei  re- 
viver na  memória,  traço  a  traço,  a  figura  dessa 
pobre  chilena,  o  seu  perfil  aquilino  e  imperial, 
a  sombra  de  melancolia  que  as  longas  pestanas 
projectavam  sobre  a  sua  face  duma  palidez  doi- 
rada, o  seu  corpo  olímpico,  a  sua  aparente 
frieza  desdenhosa  que  numa  célebre  noite  de 
S.  Carlos  me  fizera  repetir  mentalmente  a  frase 
de  Barbey  de  Aurevilly:  —  (xAh!  Le  corps  de 
cette  femme  était  sa  s^ule  âme  In  Para  mim, 
que  a  não  tinha  conhecido  intimamente,  ela  rea- 
lizava o  tipo  glacial  e  enérgico  das  mulheres 
que  todos  desejam  e  que  ninguém  ama,  que  são 
volúpia  e  que  não  sabem  ser  coração,   que  si- 

8 


H4  NA   VIDA 


miiltáneamente  atraem  e  repelem,  apaixonam  e 
desencantam,  e  que,  vivendo  da  febre  insaciável 
de  amar,  morrem  sem  ter  conhecido,  no  bál- 
samo das  lágrimas,  a  consolação  e  a  doçura  do 
verdadeiro  amor.  No  orgulho  da  sua  insensibi- 
lidade e  da  sua  beleza  —  pensava  eu  —  essa 
criatura,  que  despertara  tantas  paixões,  tinha 
acabado  sem  um  afecto.  Lancei  dolorosamente 
um  último  olhar  a  esse  templo  de  deusa  morta. 
Ao  alto.  num  teto  delicado  de  Gustavo  Jaulmes, 
revoavam  pombas  brancas.  Retiniu  sobre  uma 
credencia  a  tampa  duma  caixa  de  prata.  Passa- 
vam roupas,  no  ar,  de  mão  em  mão.  Toda  a 
gente  ria,  conversava,  como  numa  festa.  Quan- 
do ia  a  retirar-me,  retrocedi  num  movimento 
de  irreprimível  curiosidade.  No  corredor,  junto 
do  quarto-de-vesiir,  havia  uma  porta  fechada. 
Abri-a.  As  surpresas  que  nós  às  vezes  lenms. 
pobres  perscrutadores  da  alma  humana,  que 
quanto  mais  a  estudam,  menos  a  conhecem  ! 
Na  meia-luz,  de  joelhos  junto  ao  leito  que  fora 
dessa  mulher,  dessa  mesma  mulher  que  eu  jul- 
gava incapaz  de  ter  despertado  um  sentimento 
profundo,  um  rapaz  loiro,  vestido  dy  preto,  com 
um   lenço   nos   olhos,    chorava   convulsivamente. 


M.ELME     NINI 


As  pessuas  de  rasa  tratam-na  por  .V/.*"^  Nini. 
As  visitas  chamam-lhe,  ceremoniosamente,  Se- 
nhora Marquesa.  Pez  oito  meses;  põe  a  cabeci- 
nha à  banda;  tem  uns  olhos  verde-oiro,  muito 
redondos,  como  bolas  de  vidro,  —  e,  não  sei 
porquê,  sempre  que  olho  para  ela,  parece-me 
um  desenho  a  lápis  de  Columbano.  Quando 
brinca,  —  "brinca  doidamente,  excessivamente, 
como  uma  criança  que  é.  Quando  dorme,  — 
dorme  em  grandes  atitudes,  orgulhosa,  satis- 
feita, magnífica.  Se  lhe  bate  o  sol,  não  há  rosas 
mais  cor  de  rosa  do  que  as  suas  pequeninas  ore- 
lhas de  búzio,  onde  treme,  num  sopro,  uma  la- 
nugem  fina  de  prata.  Se  se  volta,  brincando, 
como  uma  grande  borla  de  pó  de  arroz,  —  lu- 
zem-lhe  os  olhos  como  contas  de  oiro,  cruza  as 
mãos  sapudas,  o  narizito  arfa-lhe,  inquieto,  vo- 
luptuoso,  interrogativo,  parece  que  ri,  e  todo  o 


16  NA    VTDA 


sen  corpo  se  encrespa,  numa  penugem  branca, 
como  se  em  plena  primavera  tivesse  nevado  :>ô- 
bre  uma  flor.  O  seu  organismo  leve,  nervoso, 
vibrátil,  tem,  ao  mesmo  tempo,  o  segredo  dos 
movimentos  vertiginosos  e  das  imobilidades  pa- 
radoxais. Tudo  nela  é  ritmo,  ondulação,  mis- 
tério, sensualidade,  encanto  penetrante  e  graça 
feminina.  Há  expressões  em  que  toda  ela  se 
franze,  e  se  enruga,  e  parece  que  sorri.  Há  ho- 
ras, atitudes,  efeitos  de  luz,  em  que  a  sua  ado- 
rável cabecinha  dá  a  impressão  de  que  a  em- 
poaram, e  de  que  se  debruça  duma  berlinda 
Luís  XV,  adevant  les  trois  marches  de  marbre 
rose)).  Passo  às  vezes  muito  tempo  a  olhá-la,  a 
observá-la,  a  segui-la.  Tem,  em  todos  os  seus 
gestos,  em  todos  os  seus  movimentos,  a  incon- 
sciência duma  criança  e  a  volubilidade  duma 
mulher.  Pensa-se,  vondo-a,  no  leque  dum  pa- 
vão branco,  na  transparência  dum  floco  de  neve, 
na  rijeza  elástica  duma  vara  de  metal.  Não  co- 
nhece meios  termos:  toda  ela  é  rapidez  fulgu- 
rante ou  lentidão  desdenhosa;  agressão  ou  carí- 
cia; garra  ou  pluma;  fera  ou  flor.  Naquele  pe- 
quenino corpo  que  ondula,  que  se  recurva,  que 
se  enrosca,  vive,  como  um  diabinho  familiar,  o 
génio  da  contradição.  Quer  o  que  ninguém  quer, 
faz  o  que  ninguém  espera,  pede  o  que  não  se 
lhe  pode  dar,  —  e  ai  de  nós  se  não  lhe  satisfa- 
zemos todos  os  caprichos,  todas  as  exigências, 
todas  as  vontades:  a  cabeça  empoada  ergue-se, 
os  olhos  fuzilam  como  vidros  de  cores  ao  sol, 


j^  eu«    ^,JJ^JI  j  j 


tôda  ela  treme,  e  vibra,  e  grita,  e  se  levanta 
para  nos  bater,  encrespada,  ouriçada,  um  laço 
côr  de  rosa  a  abanar-lho  no  pescoço,  uma  névoa 
de  prata  a  envolvê-la  como  um  fumo  ligeiro,  a 
crueldade  da  Eva  eterna  a  entreabrir-lhe  a  boca 
pequenina...  Censuram  3/.^"^  Nini  porque  ela 
brinca  com  uma  bola.  Ralham  com  M.*"^  Nini 
porque  ela  mexe  nas  gavetas.  E,  entretanto, 
i\/.^"^  Nini  é  sociável,  M.*"'*  Nini  é  civilizada,  M.*"'' 
Nini  recebe  às  quintas-feiras,  M.*"®  Nini  gosta 
tanto  de  música,  que  é  capaz  de  ouvir,  sentada 
no  lampo  polido  dum  Pleyel,  sem  se  mover, 
^sem  pestanejar,  com  a  cabeça  à  banda,  em  êx- 
tase como  se  olhasse  um  mosquito  imóvel  e  lu- 
minoso, a  Cathedral  engloutie,  de  Debussy,*  ou 
a  Pavane  pour  une  Inlante  dejuncte^  de  Ravel. 
Nunca  viram  aqueles  bravos  leões  heráldicos  que 
batalham,  lampassados  de  vermelho  e  armados 
de  oiro  ?  Empoem-lhe  a  juba,  escondam-lhe  as 
unhas,  —  e  aí  teem  A/.^"^  Nini  quando  brinca  com 
a  ponteira  da  minha  bengala.  Tufa  como  um  ou- 
riço branco,  rebola  como  um  gnomo  satisfeito, 
os  olhos  scintilam-lhe,  as  orelhas  rosadas  estre- 
mecem, tem  atitudes  cândidas  de  mulher  que 
mente,  e  há  dois  meses  —  já  há  dois  meses  que 
o  seu  guizo  alegre  tilinta  pela  casa! — um  génio 
mau  rasga-me  os  papeis,  quebra-me  as  jarras, 
revolve-me  os  armários,  arrepela-me  os  tapetes, 
arranha-me  as  mãos... 

Porque  M."'^''  Nini  —  esquecia-me  de  Jhes  dizer 
—  é  uma  gatinha  francesa. 


A  TOUCA  UE  RENDAS 


Estávamos  cinco  solteirões  à  mesa  da  ceia. 
O  mais  velho  era  D.  Caitano  de  Noronha,  irmão 
dos  marqueses  de  ***,  setenta  anos  de  elegância 
e  de  distinção  que  faziam  lembrar  certos  retra- 
tos gant  jaune  do  conde  Robert  de  Montesquiou; 
o  mais  novo  era  Mr.  Glarks,  de  passagem  em  Lis- 
boa, inglês  ruivo,  fmo,  sibarita,  wildeano,  que 
chegara  do  Transwal  e  ia  convalescer  da  sua  neu- 
rastenia entre  os  rododendros  côr  de  rosa  e  os 
faisões  côr  de  ouro  dos  jardins  de  Herfortshire. 
Gonversou-se.  Discutiu-se.  Palou-se  na  lenda  de 
egoismo  e  de  insensibilidade  que  envolve  todos 
os  homens  solteiros.  E  emquanto  Mr.  Glarks 
sorvia  voluptuosamente  o  seu  Porto,  que  scinti- 
lava  no  cálice  como  uma  grande  pedra  preciosa, 
D.  Gaitano  de  Noronha  sorriu,  recostou-se  na 
cadeira,  puxou  os  punhos  como  fazia  o  marquês 


A  TÚUCA   DE   RENDAS  119 


de  Resende  antes  de  contar  uma  anecdota,  e, 
brincando  com  a  fita  du  monóculo,  disse-nos: 
—  Não.  A  lenda  da  nossa  insensibilidade  é 
uma  blague  inventada  pelas  mulheres.  Pelo  con- 
trário, meus  amigos,  eu  estou  convencido  de 
que  todo  o  solteirão  é  fundamentalmente  um  sen- 
timental. Pergunte-o  cada  um  de  nós  cinco  a  si 
próprio.  Foi  porque  amei  muito  todas  as  mulhe- 
reb,  que  não  pude  resignar-me  a  adorar  uma  só. 
Foi  porque  a  natureza  nos  fez  pródigos  de  cora- 
ção, que  chegámos  à  velhice  esquecidos  de  que 
não  tínhamos  um  lar.  Há  na  vida  as  formigas 
do  amor:  nós  fomos  as  cigarras.  Não  enceleirá- 
mos  para  o  inverno;  não  soubemos  criar,  em 
volta  de  nós,  os  afectos  tranquilos  que  sobrevi- 
vem às  paixões  da  juventude:  mas  com  que  en- 
tusiasmo, com  que  ternura,  com  que  sentimento, 
com  que  comoção  a  cigarra  doirada  da  nossa 
mocidade  cantou  a  volúpia  eterna  de  viver  e  a 
glória  imortal  de  amar  I  O  solteirão  não  será  — 
ai  de  nós!  —  um  apaixonado  fiel;  mas,  mesmo 
quando  é  um  inglês  fleumático  como  Mr.  Glarks, 
é  sempre  um  coração  sensível.  Vou  contar-lhes 
uma  história  de  há  um  século,  que  ouvi  a  minha 
tia-avó,  a  senhora  condessa  viúva  de  Paço  de 
Sousa.  E'  a  história  enternecedora  de  três  ve- 
lhos solteirões.  Não  me  lembro  dela,  que  me 
não  passe  na  alma  a  névoa  dum  sorriso  e  duma 
lágrima.  A  senhora  condessa,  que  tinha  dezoito 
anos  quando  se  casou,  recebia  no  seu  solar  a  par 


i20  NA  VIDA 


de  S.  Tomé— parece  que  estou  a  ver  as  gran- 
des salas  armadas  de  gorgorão  amarelo,  as  có- 
modas de  laca  e  bronze,  as  estampas  de  Cochin 
6  de  Lebas  pelas  paredes! — três  velhos  fidal- 
gos, que  eram  o  seu  confessor,  D.  António  Ra- 
fael de  Castro,  principal  da  Igreja  Patriarcal;  o 
seu  padrinho,  general  D.  José  de  Melo  César  de 
Meneses,  ferido  três  vezes  em  Smolensko,  em 
Moscow,  em  Wagram;  e  o  seu  tutor,  D.  Ale- 
xandre, irmão  do  marquês  de  Penalva,  um  ve- 
lho do  antigo  regímen,  cabeleira  de  rabicho  e 
sapatos  de  fivela,  que  não  apertava  a  mão  a  nin- 
guém com  medo  de  se  sujar,  e  que  não  assistia 
a  um  baile  sem  trazer  atrás  de  si  um  criado 
ajoujado  com  uma  bacia  de  prata,  um  gomil  de 
água-às-mãos  e  uma  toalha  de  rendas.  Nenhum 
deles  tinha  chegado  a  casar-s9,  —  Monsenhor 
porque  era  padre,  o  general  porque  nunca  pen- 
sara a  sério  senão  em  roubar  bailarinas  como 
Junot  e  em  atirar  à  pistola  como  o  duque  de  La- 
fões, e  o  Penalva  —  dizia,  sorrindo,  o  senhor  Pa- 
triarca—  para  não  ter  de  apertar  a  mão  à  noiva 
debaixo  da  estola  do  padre.  Solteirões  impeni- 
tentes, o  sorriso  deles,  a  menina  dos  seus  olhos 
era  tanto  a  joven  condessa  sua  pupila,  que  não 
se  passava  um  dia,  mesmo  depois  de  casada,  que 
não  fossem  vê-la,  beijar-lhe  a  mão,  levar-lhe  pre- 
sentes, músicas,  cuvilhetes  de  doce,  ramos  de 
flores,  e  que  não  repetissem  às  visitas,  ao  mari- 
do, à  mãe,  apontando  a  sua  figurinha  ligeira  que 


A  TOUCA   DE   RENDAS  121 


se  perdia  entre  as  credencias  doiradas  como  uma 
nuvrm  de  musselina  branca: — «Verdadeiramen- 
te, os  pais  desta  menina  somos  nós».  E  não  há 
dúvida  de  que  o  eram, — senão  pela  natureza, 
ao  menos  pelo  coração.  Um  belo  dia,  andados 
quatro  meses  depois  do  casamento,  D.  António 
Rafael  de  Castro,  que  tinha  o  mau  hábito  de  me- 
xer no  açafate  de  costura  das  suas  confessadas, 
encontrou  no  bofetinho  da  «menina  condessa» 
(era  assini  que  ele  lhe  chamava)  uma  pequenina 
touca  de  rendas.  Gomo  não  havia  crianças  na 
casa,  Monsenhor,  por  cujo  espírito  nem  sequer 
passou  a  ideia  de  que  poderia  havê-las  em  breve, 
guardou  a  touca,  considerou  com  os  seus  bo- 
tões que  aquilo  «ou  era  pecado  das  criadas  ou 
presente  para  o  menino  Jesus»,  e  quando  à  noili^ 
num  coche  do  palácio  da  Regência,  D.  Alexan- 
dre Penalva  e  o  General  chegaram  para  o  volta- 
rete, D.  António  Rafael  de  Gastro  apresentou- 
-Ihes,  com  a  mais  ingénua  das  solenidades,  fa- 
lando baixo,  e  sem  se  esquecer  de  cerrar  pri- 
meiro as  portas,  aquele  sopro  de  rendas  que, 
na  sua  opinião,  «bem  podia  destinar-se,  escanda- 
losamente, a  cobrir  a  cabeça  dum  recêm-nas- 
cido».  Os  dois  fidalgos  atiraram-se  para  cima 
dum  sofá  a  rir  com  gosto  da  simplicidade  do 
padre,  e  explicaram-Ihe,  com  o  respeito  devido  à 
sua  dignidade  de  cónego  vermelho,  que,  ten- 
do-se  feito  um  casamento  havia  quatro  meses, 
não  era  demais  que  se  fosse  pensando  no  enxó- 


122  NA    VIDA 


vai  para  o  baptizado.  Monsenhor,  que  a  princí- 
pio embezerrara,  acariciava,  já  risonho,  a  peque- 
nina touca;  Penalva,  de  espadim  e  rabicho,  olha- 
va-a,  num  enlevo;  o  general  sorria  para  ela 
amorosamente,  como  se,  debaixo  dessa  névoa  de 
rendas,  palpitasse  a  polpa  rosada  duma  face  de 
criança.  Por  um  instante,  aqueles  três  soltei- 
rões, a  quem  Deus  não  dera  a  graça  dum  filho 
e  cujos  cabelos  brancos  não  conheciam  senão  o 
lume  do  lar  alheio,  estremeceram  no  mesmo  sen- 
timento de  comovida  ternura.  Essa  pequena 
touca  de  rendas,  se  tivesse  um  dia  passado  na 
sua  existência,  teria  sido  para  eles  a  felicidade. 
Tomaram-na  nas  mãos,  agora  um,  logo  nutro;  em- 
balaram-na  como  se  tivessem  uma  criança  nos 
braços;  viam  já,  na  ilusão  do  seu  embevecido  ca- 
rinho, um  berço  a  arfar  junto  deles;  e  — pobres 
de  nós,  solteirões,  três  vezes  ingénuos  e  três  ve- 
zes desgraçados  !  —  quando,  daí  a  um  momento, 
pé  ante  pé,  envolvida  no  nevoeiro  branco  do  seu 
vestido  de  musselina  da  índia,  a  senhora  con- 
dessa minha  tia-avó  os  foi  surpreender  na  sala, 
os  três  velhos,  com  os  olhos  marejados  de  lágri- 
mas, choravam  e  sorriam  em  silêncio... 


NA  y\RTE 


os  DOIS  RETRATOS 


—  Às  H  e  meia  ? 

—  Em  ponto. 

À  hora  combinada,  António  Carneiro  chegou, 
rom  o  seu  chapéu  velasqueano,  o  seu  olhar  tran- 
(fúilo,  a  sua  sobrecasaca  preta.  Trazia  debaixo 
<lo  braço  um  cartão  enorme.  Ia  começar  o  meu 
letrato. 

—  Maravilhosa  luz  ! 

Assentámo-nos  ambos.  Servia  de -cavalete  ao 
admirável  mestre  da  sanguínea,  o  espaldar  duma 
velha  cadeira  D.  José.  Tomei,  despreocupada- 
mente, uma  atitude  habitual.  Olhámo-nos,  em 
-ilêncio.  A  luz,  nmito  doirada,  muito  macia, 
muito  doce,  envolvia-nos,  acariciava-nos,  ba- 
bava o  rico  vermelho  dos  móveis,  espelhava  nos 
silhares  de  azulejo  de  tapete,  acendia-se  em  la- 
baredas nos  latões  faiscantes  do  grande  lampeão 


126  Í^A   AR-IK 


do  século  XVIII,  trazido,  havia  anos,  dos  claus- 
tros de  S.  Vicente  de  Póra.  Durante  cinco,  dez 
minutos,  António  Carneiro,  sem  uma  palavra, 
observou  o  modelo.  O  lápis  rolava-lhe  maqui- 
nalmente nas  mãos.  Os  olhos,  única  expressão 
de  vida  na  sua  face  imóvel,  surpreendiam,  per- 
scrutavam, interrogavam,  traço  a  traço,  acidente 
a  acidente,  modelação  a  modelação,  aquela  fi- 
sionomia ainda  imprecisa,  ainda  enigmática,  que 
o  seu  génio  de  pintor  ia  revelar,  interpretar,  sen- 
tir. De  repente,  quando  eu  esboçava  uma  ines- 
perada flexão  de  cabeça,  o  mestre  sorriu,  ani- 
mou-se,  deteve-me  num  gesto: 

—  Assim.   Está  bem. 

O  primeiro  traço  mordeu  o  papel.  Senti-lhe  a 
aspereza,  a  nitidez,  a  energia.  O  trabalho  come- 
çou. Conversámos.  Palavras  vagas,  distraídas, 
difíceis,  costadas  de  falhas  e  de  silêncios.  Depois, 
recaídos  na  primitiva  mudez,  ficámos  a  obser- 
var-nos,  mutuamente.  Estava  ali,  diante  de  mim, 
simples,  grave,  modesto,  apertado  numa  sobre- 
casaca preta  com  o  ar  sacerdotal  duma  batina, 
o  pintor  português  que,  depois  de  Columbano, 
melhor  tem  sabido  surpreender  expressões  e  de- 
senhar almas.  Piquei  absorvido  a  olhá-lo.  A 
luz,  mais  metálica,  mais  violenta  agora,  marcava 
a  largas  pastadas  de  oiro  toda  a  modelação  da 
sua  calva  socrática,  um  pouco  ponteaguda  no 
vértex  como  se  a  tivessem  moldado  por  um  casco 
grego    de    bronze,  — e,    fluida,    scintilando,    tre- 


os    DOIS    RETBATOS  127 


mendo.  escorria-lhe  pelos  largos  malares  e  p^la 
barba  grisalha,  uma  barba  vaga,  confusa,  ne- 
voenta, que  lembrava  o  Verlaine  de  Garrière  e 
fazia  pensar  em  certos  evangelistas  do  Greco. 
Às  vezes,  em  determinadas  atitudes,  sobretudo 
quando  o  olhar  se  fixava  no  modelo,  a  sua  fisiono- 
mia espiritualizava-se,  resplandecia,  ganhava  o 
ar  profético  de  um  poppe  russo  que  conduzisse 
uma  multidão  em  delírio.  Depois,  quando  o 
olhar  baixava,  as  feições  endureciam,  as  rugas 
(*avavam-se,  e,  através  da  névoa  grisalha  da 
harba.  adivinhava-se  uma  boca  firme,  um  mimto 
audacioso,  uma  maxila  forte.  A  princípio,  as  in- 
certezas do  trabalho  traduziam-se-lhe  na  expres- 
são inquieta,  na  palidez  ansiosa;  mas,  pouco  a 
pouco,  achado  o  traço  decisivo,  encontrado  o 
equivalente  psicológico  do  modelo,  a  serenidade 
Aoltou,  as  narinas  dilataram-se,  a  face  readqui- 
riu a  sua  calma  patriarcal,  e  as  próprias  mãos 
brancas,  finas,  nervosas,  única  nota  feminina 
iio  seu  tipo  viril  de  fauno  pensador,  moviam  já 
menos  precipitadamente  o  esfuminho,  leve  como 
um  cigarro,  pequeno  como  uma  jóia.  Passaram- 
-se  duas  horas.  Ainda  eu  o  observava,  cheio  dn 
curiosidade,  quando  António  Carneiro  se  levan- 
tou, sorrindo  e  mostrando-me  o  desenho  termi- 
nado: 

—  Pronto. 

Era  uma  obra-prima.  Tinhamo-nos  retratado 
um  ao  outro. 


JOSÉ  DE  ALPOIM 


TJm  amigo  íntimo  trouxe-me  a  triste  notícia: 
Morreu  José  de  Alpoim. 

Não  foi  uma  suprêsa.  Aquela  exuberante 
natureza  de  atleta  estava  minada  das  mais  hor- 
ríveis e  cruciantes  doenças.  Uma  aortite  e  uma 
neoplasia  do  mediastino.  Dua6  sentenças  de 
morte.  Há  muitos  dia?  que  vivia  de  costas  no 
leito,  sem  abrir  os  olhos,  imóvel,  um  saco  de 
água  quente  sobre  o  coração.  Ontem  foi  ungido. 
Hoje,  pouco  depois  da  uma  hora,  a  misericórdia 
de  Deus  tocou-o,  e  essa  cabeça  loira  de  titan,  essa 
cabeça  leonina  que  o  clarão  da  mais  nobre  elo- 
quência animara,  resvalou  para  sempre  na  som- 
bra. Descubro-me,  com  saudade  e  com  respeito, 
perante  o  seu  cadáver.  Se  os  vencidos  podem 
morrer  com  glória,  —  esse  vencido  inolvidável 
soube  resgatar  gloriosamente,  pela  suprema  resi- 


JOSÉ    DE    ALPOIM  129 


gnaçáo  cristã  da  sua  morte,  lodos  os  erros  huma- 
nos da  sua  vida. 

Pobre  José  de  Alpoim  ! 

Estou  a  vê-lo,  embrulhado  na  sua  robe-de- 
chamhre  de  flanela  côr  de  rosa,  flácido,  gelati- 
noso, enorme,  parecendo  maior  ainda  na  meia- 
hiz  do  escritório-biblioteca  do  Passadiço,  em  cujo 
interior  de  serenidade  e  de  penumbra  scintilava 
apenas,  como  um  revérbero,  a  prata  batida  dum 
tinteiro  D.  João  v.  Recordo  a  intimidade  com 
que  ele  recebia  os  seus  amigos,  estendido  no  pro- 
fundo sofá  da  sala,  uma  botija  de  água  quente  aos 
í»és,  um  bule  de  chá  fumegando  ao  alcance  do  bra- 
ço, —  carinhoso,  acolhedor,  feminino  na  sua  afec- 
tividade, repetindo  maquinalmente  —  «meu  que- 
rido amigo»,  «meu  querido  amigo»,  e  acariciando 
a  penugem  loira  do  buço  no  gesto  habitual  que 
imitara  inconscientemente  de  José  Luciano.  Nesta 
hora  em  que  todas  as  reminiscências  acordam 
mais  lúcidas,  e,  por  isso  mesmo,  mais  pungen- 
tes, recomponho,  feição  por  feição,  traço  por  tra- 
ço, a  fisionomia  paradoxal  desse  homem  superior, 
—  a  sua  cabeça  simultaneamente  enérgica  e  in- 
fantil, terna  e  violenta,  leão  hirsuto  e  bambino 
delicado;  os  seus  olhos  vivos,  ora  pardos  ora  azuis 
conforme  a  incidência  da  luz,  pontuados  de  in- 
certas manchas  côr  de  oiro  e  côr  de  tabaco,  dando 
com  a  mesma  intensidade  a  expressão  das  gran- 
des ternuras  e  das  grandes  cóleras;  a  sua  boca 
polpuda,    sensual,    vermelha,    pequenina;   a   sua 

9 


130  NA    ARTE 


ampla  testa  trabalhada  já  de  calvície  nas  têm- 
poras, coroada  ao  alto  de  uma  lanii.cfem  loira  — 
resto  g-lorioso  daquela  bela  juba  apolínea,  que 
ainda  ao  apontar  dos  sessenta  anos  resplandecia 
de  talento,  de  audácia,  de  beleza  e  de  força.  Ve- 
jo-o.  de  pé  na  minha  frente,  com  o  seu  torso  de 
hércules,  com  a  sua  eloquência  inquietante,  com 
a  sua  verbosidade  torrencial,  com  toda  a  sua  na- 
tureza p-randiosa,  exuberante  e  explosiva,  que  se 
diria  o  produto  dalgum  normando  remoto  e  p-i- 
g-antesco.  dum  Roh  fíoy  do  Cotentino,  aírricultor 
o  bárbaro,  em  que  as  violências  de  temperamen- 
to se  corrigissem  pela  essencial  e  indestrutível 
fidalguia  do  trato  e  das  maneiras,  —  modelar  no 
homem  em  cujas  veias  corria  o  sangue  de  Pedro 
de  Alpõem,  e  cuja  nobreza  blasonava  das  cabras 
passantes  e  armadas  de  negro  dos  Cabrais,  da 
cruz  florida  de  oiro  dos  Gerqueiras,  do  leão  aleo- 
pardado  e  ílordelizado  dos  Borges.  O  titan  era 
um  gentil-homem.  O  gigante  era  uma  criança. 
Aqueles  que,  como  eu,  puderam  conhecer  o  en- 
canto da  sua  intimidade  carinhosa,  sabem  o  que 
valiam  em  José  de  Alpoim  as  delicadezas  do  co- 
ração, os  tesouros  quási  femininos  da  sensibili- 
dade, essa  exaltação  tão  viva  e  tão  pessoal  do 
sentimento  afectivo,  que  o  levava  —  como  me  di- 
zia ainda  há  pouco  uma  inteligente  senhora — a 
escrever  verdadeiras  cartas  de  amor  aos  seus 
amigos.  A  paixão  política  envenenou-o  ?  E'  certo. 
E  envenenou-o  tanto,  — que  o  matou.  Às  vezes  as 


JOSÉ    DE    ALPOIM  131 


t 


cicutas  nascem  ao  pé  dos  lírios.  A  cicuta  desse 
grande  coração  foi  aquele  «delírio  da  praça  pú- 
blica», de  que  já  Nietzsche  dizia  —  que  assassi- 
nava heróis.  E'  cedo  ainda  para  se  saber  se  José 
de  Alpoim  teve  ou  não  teve  razão.  A  hist<3ria  es- 
creve-se  lentamente,  porque  se  escreve  cm  bronze. 
Por  emquanlo  é  apenas  a  hora  das  lágrimas,-  —  e 
essas,  feliz  ainda  de  quem  as  pode  chorar  ! 


o  PINTOR  DO  SOL 


Já  é  a  terceira  vez  que  visito  a  exposição 
Sousa  Lopes.  O  ilustre  pintor  despertou  em  mim 
mais  do  que  admiração:  curiosidade  intelectual. 
O  seu  temperamento,  a  sua  evolução,  os  seus  pro- 
cessos, apareceram-me  desde  logo  como  outros 
tantos  motivos  de  estudo.  Estremenho  sensua- 
lista,  vibrante,  dionisíaco,  insaciado  de  Inz,  Sousa 
Lopes  podia  atribuir-se  a  frase  de  Barbey  d'Au- 
révilly:  afe  suis  un  intense)).  Dir-se-ia  que  esse 
«intenso»  devia  logicamente  usar  na  sua  pintura 
processos  exuberantes  e  torrenciais.  Engano.  Em 
Sousa  Lopes,  o  máximo  de  efeitos  é  obtido  com 
o  mínimo  de  esforço  aparente.  A  sua  intensidade 
encontrou  uma  expressão  técnica  paradoxal:  a 
simplicidade.  Pintor  dos  poentes,  dos  incêndios, 
dos  clarões,  —  pintor  ofuscante  e  obstinado  da 
luz,  —  o  mestre  admirável  çlo  Çítíq  de  Santa  Su- 


o    PINTOR    DO    SOL  133 


sana  não  é  propriamente  um  plenarista,  nem  nm 
impressionista,  nem  um  naturalista;  é,  na  sua 
maneira  simplificada,  um  «virtuoso  do  sol»,  ou, 
como  o  definiu  José  de  Figueiívdo,  «um  apaixo- 
nado fremente  das  grandes  claridades».  A  obses- 
são da  luz  domina-o.  Toda  a  sua  exposição, 
quando  não  é  uma  elegia  à  noite,  é  um  hino  ao 
sol  criador.  Por  toda  a  parte,  nos  poentes  de  Ve- 
neza e  nos  céus  verdes  de  Nápoles,  nas  vinhas 
fulvas  do  Ribatejo  e  nas  ruas  extáticas  da  Bni- 
íjes  la  Morle^  o  sol  arde,  esplende,  vibra,  ofusca; 
scintila  em  faúlhas  vivas  de  cobre,  alastra  em 
chamas,  em  clarões,  em  glória.  Aqui,  é  a  ca- 
saria do  Grande  Canal  que  flameja  como  um 
mosaico  doirado;  alem,  um  pôr  do  sol  na  Giu- 
decca,  —  incêndio,  scenlelhas,  cinza;  agora,  um 
céu  de  Florença  lembra  um  grande  esmalte  verde 
p  luminoso;  logo,  umíi  larga  vela  dos  barcos 
;la  Chioggia,  como  nm  velho  brocado,  uma  ma- 
ravilhosa tapeçaria  tecida  de  oiro,  chameja  ao 
sol;  em  volta  de  nós,  a  cada  canto,  por  toda  a 
exposição,  o  sol  bate  de  chapa  nas  tabernas  da 
Laguna,  morde  de  cobre  e  de  fogo  a  Calle  de 
las  Sierpes,  ennevoa-se  de  mistério  no  mármore 
cor  de  rosa  de  Versailles,  corusca,  como  um  ca- 
chão de  prata,  nas  águas  do  Brondolo  e  do  Ma- 
lamocco,  faz  cantar,  faulhar,  arder,  águas  e  gôn- 
dolas, palácios  e  canais,  toda  a  Veneza  de  Gor- 
régio  e  de  Ticiano,  de  Voronesn  r  de  lintoretto, 
de  Rosalba  e  do  Livro  de  Ouro^  do  doge  Manin 


134  NA    ARTE 


e  das  zentildonne,  essa  Veneza  que  teria  ensi- 
nado Sousa  Lopes  a  amar  a  luz  —  se  ele  não  ti- 
vesse nascido  em  Portugal.  Na  sua  pintura  viril, 
sóbria,  forte,  magnífica,  —  tudo  scintila,  tudo  es- 
plende, a  nudez  e  a  terra,  a  atmosfera  e  o  mar. 
Encandeia.  Deslumbra.  Para  o  ver,  é  preciso 
pôr  lunetas  fumadas.  Céus  da  Normandia,  casas 
da  Flandres,  pátios  do  Alentejo,  carnes  de  mu- 
lher, —  tudo  chispa,  fuzila,  reverbera.  Há  atmos- 
feras que  são  labaredas.  Sobre  unm  paisagem 
que  lembra  as  melhores  de  Zuloaga,  rola  uma 
nuvem  de  ouro.  Sobre  uma  rua  tranquila  da 
Bruges  de  Rodembach  escorre  um  clarão  de  âm- 
bar e  de  opala.  A  heliofilia  de  Sousa  Lopes  é 
uma  característica  fundamental  da  sua  obra. 
Nele,  a  preocupação  de  «pintar  a  luz»  não  se  li- 
mita ao  ar  livre;  acompanha-o  nos  quadros  de 
atelier.  Gomo  no  admirável  Abrindo  Casas ^  onde 
uma  almofada  vermelha  faz  vibrai'  todos  os  bran- 
cos na  sombra,  o  artista  coloca  as  suas  'liguras 
no  clarão  de  grandes  vidraças  e  pinta,  amorosa- 
mente, voluptuosamente,  o  sol  que  as  morde, 
que  as  queima,  que  as  inunda.  O  seu  desvio  para 
a  água-forte  é  ainda  uma  forma  da  sua  atracção 
para  a  luz.  Não  lhe  falem  em  dificuldades.  Ven- 
ce-as  sempre  dando-nos  a  falsa  impressão  de  que 
elas  não  existiam.  Tem  a  audácia,  tem  a  expe- 
riência, tem  os  processos,  —  tem  a  força.  As  ve- 
zes, oblem  o  máximo  efeito  de  luminosidade  pin- 
tando só  o  que  está  na  sombra.    Há  quadros  em 


o    PINTOR    DO    SOL  135 


que  o  sol  é  dado  pelo  branco  do  aparelho  da  tela. 
Há  manchas  que  são  apenas  luz.  Para  êle,  como 
para  o  grande  Manet,  —  «íe  principal  personnctge 
(Vun  tableau  c^est  la  lumièren.  Simplificação  de 
efeitos;  justeza  de  valores.  E,  acima  de  tudo,  — 
visão,  garra,  talento.  Columbano  admira-o.  Ma- 
lhoa abraçou-o.  Os  mestres  consagram-no.  As 
mulheres  sorriem-lhe.    Triunfou. 


SCHWALBACH 


Aquele  homem  duma  distinção  fácil  e  duma 
elegância  pernalta,  andando  em  lagras  passadas, 
dando-nos  em  certos  movimentos  e  em  certas 
atiludes  a  impressão  rectilínia  duma  cegonha 
que  marcha,  um  fraque  preto,  um  nariz  volu- 
ptuoso, um  chapéu  para  os  olhos,  uma  face  ro- 
sada e  moça  ahriíido  toda  em  rugas  divergentes, 
uma  barbicha  branca  que  nos  faz  pensar,  não  sei 
porquê,  nalguns  faunos  elegantes  da  escultura 
francesa  do  século  xvni,  uns  olhos  vivos,  piscos, 
pequeninos,  risonhos,  ao  mesmo  tempo  fulgu- 
rantes de  ironia  e' húmidos  de  ternura, — aquele 
homem  paradoxalmente  novo  e  velho,  infantil  e 
grave,  jovial  e  triste,  é  hoje  em  Portugal  a  mais 
alta  expressão  da  fantasia  literária  e  da  verve 
criadora. 

Tenho  aqui,  sobro  a  minha  mesa,  o  seu  úl- 
timo   trabalho.     Três    ou    quatro    vezes    ouvi    e 


SCHWALBACII 


aplaudi  na  scena  o  Poema  de  Amor.  Acabo  agora 
de  lê-lo  na  sua  edição  Chardion.  O  conhecimento 
dessa  obra-prima  do  teatro  ronteniponlnon  deve 
ter  dado  aos  meus  camaradas  do  Porto  a  mesma 
impressão  que  me  deu  a  mim:  ninguém  hoje,  na 
literatura  dramática  portuguesa,  excede  Schwal- 
bach  na  arte  dificílima  de  mover,  de  mecanizar, 
de  automatizar  a  ficção  teatral  da  vida.  Pode  al- 
guém igualá-lo,  ou  vencê-lo,  na  veemência  da 
paixão,  na  lógica  dos  caracteres,  na  harmonia 
'•strutural  da  íábula,  na  sóbria  eloquência  da  ex- 
pressão, que  é  a  suprema  nobreza  da  obra  lite- 
rái^a:  mas  ninguém  se  lhe  compara  na  scintila- 
(•ão,  na  fantasia,  na  originalidade,  na  rapidez,  no 
virtuosismo  — no  movimento.  São  as  suas  qua- 
lidades surproendc-ntes.  Schwalbach  tem  do  tea- 
tro uma  visão  caraclerizadamente  dinâmica.  E' 
visão  mais  nobre  ?  Não  sei.  Sei  que  é  a  visão 
mais  justa.  Benavente,  com  cujo  temperamento 
dramático  Schwalbach  possue  afinidades,  pôs  cla- 
ramente a  questão:  «/o  que  cl  público  quicrc  c.*? 
(jue  pase  algo;  que  suceda,  algo;  que  los  figuras 
<c  muevan:  que  lu  vid^i^  circule  por  la  cscena)>. 
l^òda  a  técnica  schwalbakiana  está  nesta  fórmula 
iiiinentemente  complexa  e  eminentemente  sim- 
ples: acção,  imprevisto,  vertigem.  E\  em  França, 
a  fórmula  de  Bernstein;  é,  em  Espanha,  a  fór- 
mula de  Benavente;  é,  em  Portugal,  a  fórmula 
de  Schwalbach.  O  Intimo,  a  Bisbilhoteiro,  os 
Postiços^   a  Cruz  da  Esmola^   são  dramatizações 


I 


inS  NA    ARTE 


vivas,  fulgurantes,  rápidas,  hiper-movimentadas. 
No  próprio  Poema  de  Amor^   a  mais  serena  de 
Iodas  as  suas  obras,  a  scena  divide-se,  as  figuras 
alropelani-se,  acelera-se  o  ritmo  da  acção,  as  mes- 
mas rubricas  dão-nos  a  medida  do  carácter  con- 
vulsivo da  técnica  de  Schwalbach:  «rápido,  quási 
simultâneo»;  «depressa»;  «muito  rápido»;  «rápido 
como   um    relâmpago».    É   a   fulguração,    como 
processo  de  teatro;  é  o  movimento,  como  expres- 
são gloriosa  e  triunfante  da  vida.    Enganam-se 
aqueles  que   supõem  que  o  público   se  domina 
pelos  reaciocínios.  Não;  o  público  domina-se  pelas 
sensações.    Em  teatro,   para  que  uma  ideia  im- 
pressione, é  preciso  convertê-la  em  movimento. 
Acção  rápida,  mecanização  lógica  da  vida:  —  eisj 
as  condições  de  sucesso;  eis,  também,  as  dificul- 
dades supremas.  Aqueles  que,  como  Schwalbach, 
«nascem»  dramaturgos,  vencem-nas  a  golpes  de 
instinto  e  de  audácia.    Os  outros,  os  psicólogos, 
os    idílicos,    os    contemplativos,    os    «míopes   do 
teatro»^  sentem-nas,  adivinham-nas,  rodeiam-nas, 
—  mas  não  são  capazes  de  as  resolver.    A  gera-j 
ção  literária  a  que  eu  pertenço,  permitiu-se,  lal-i 
vez  por  influência  de  Fialho,  o  luxo  intelectual] 
do  desdenhar  dos  grandes  mecanizadores  do  tea-; 
Iro.   Julgou  que  o  ibsenismo^  o  hauptmanismo^  o] 
(Vanunzhnismo^  com  as  suas  «acções  interiores» 
e  os  iníiiiilanvénte  pequenos  da  sua  análise  p:i-] 
cológica,   constituíam   os  verdadeiros  e  definiti- 
vos   modelos.     Engano.     É    hoje,    mais    do    quei 


.S(.ii\v.\Ln\r.n  139 


nunca,  necessário  não  confundir  teatro  com  li- 
teratura dramática.  O  próprio  Fialho  o  com- 
preendeu mais  tarde,  quando,  deslumbrado  de 
acção  e  de  movimento,  sonhava  em  Vila  de  Fra- 

'S  o  seu  Infante  D.  Henrique^  como  um  grande 
iit'scu  animado  de  catedral  onde  esbracejassem 
iiguras,  rugissem  nmltidões,  estalassem  tempes- 
tades.—«íjue  admirável  coisa  —  dizia-me  ele  um 
lia,  estendendo-me  à  porta  da  Havanesa  a  sua 
mão  nodulosa  de  artrítico  —  que  admirável  coisa 
-aber  mover  figuras  num  palco  1»    Essa  admirá- 

cL  coisa  é  uma  grande  arte, — e  é  precisamente 
nessa  arte  que  Schwalbach  é  mestre.  O  eminente 
dramaturgo  pode  hoje  sorrir,  traçar  a  perna,  toi- 
cer  no  seu  gesto  habitual  a  fita  do  monóculo,  e, 

•  mo  o  outro  assombroso  mestre  da  Princesse 
■  :c  UiUfdad^  dizer  plácidamente  aos  seus  detracto- 
res: 


ESPIRITO  GENTIL 


Morreu  Maria  da  Gunfia. 

Foi  há  oilo  anos  que  eu  conheci  em  espírito 
a  poetiza  das  Trindades.  Um  dos  meus  confra- 
des da  Academia,  filólogo  eminente,  tinha-rne 
mandado,  sob  todas  as  reservas,  as  provas  ti- 
pográficas dum  livro  de  versos.  Antes  de  o  pu- 
blicar, a  aulora,  uma  senhora  ilustre,  qiiiM  ' 
conhecer  por  escrito  a  minha  opinião.  Confesso, 
—  comecei  a  lê-lo  com  a  desconfiança  precon- 
ceituosa com  quo  lodos  nós,  por  mais  habituados 
que  estejamos  à  ideia  da  superioridade  mental 
da  mulher,  recebemos  sempre  a  sua  literatura. 
Mas  essa  vaga  desconfiança  durou  apenas  o 
tempo  que  levam  a  iêr-se  quatorze  versos.  Logo 
o  primeiro  soneto  era  uma  obra-prima.  Daí  por 
diante,  cada  íólha  que  passava  tremendo  entre  os 
meus  dedos,  teve  para  mim  o  valor  duma  reve- 
lação.  Estava  ali  uma  das  maiores  poetizas  por- 


ESPÍRITO    GENTIL  141 


tn.íTiií^sas  de  todos  os  tempos.  Que  delicada  sen- 
sibilidade, que  prodiírioso  instinto  melódico,  que 
liqupza  de  temperamento,  que  calma  nobreza  de 
expressão  !  Tudo  quanto  pode  haver  de  delicado 
ua  alma  duma  mulher,  tudo  quanto  pode  haver 
'h^   perfeito   na   arte   dum   parnasiano,    cantava, 

ipria,  brincava  nas  minhas  mãos.  Era  a  Musa 
do  Soneto  que  renascia,  .trrave  e  triste,  do  leque 
dp  rendas  da  senhora  de  Oeynhausen.  Se  nas 
suas  elegias,  duma  clássica  melancolia,  o  Amor 
parecia   chorar  sobre  um  leito  de  rosas, — nos 

lis  sonetos,  dum  ritmo  lento  e  magnífico,  dir- 

-ia  que  os  quatorze  remos  de  prata  duma  galé 

-ípcia  batiam  largamente,  sumptuosamente  o 
mar.  Natureza  opulenta  e  sensível,  havia  por 
vezes  na  sua  feminilidade  alguma  coisa  de  más- 
-'•ilo.  — a  energia  da  expressão,  a  nitidez  do  con- 

ito,  a  lógica  do  raciocínio.  Durante  uma  ma- 
nhã inteira,  li.  intrigado  e  encantado,  os  versos 
'-^ssa   desconhecida   ilustre.    Para  os   poder  ler 

nda  no  dia  seguinte,  deixei-os  uma  noite  sobre 
o   minha  mesa  de  trabalho,   entre  um   ramo  de 

'sas  e  uma  faiança  inglesa.  Por  fim.  Jevolvi-o 
.  )  velho  amigo  que  mo  mandara,  perguntando- 
Ihe  em  que  assentada  de  Ménalo  tinha  encon- 
Irado  aquela  Musa.  Só  quando,  mais  tarde,  o  li- 
vro se  publicou,  soube  que  a  autora  tinha  trinta 
anos — a  j^dade  esplêndida  da  mulher  —  que  per- 
tencia a  uma  nobre  família  do  Alentejo,  e  que 
se  chamava  ^ía^ia  da  Cunha.  Poi-me  dada,  então. 


í\2  NA    ARTE 


a  honra  de  lho  beijar  as  mãos.  Antes,  mesmo, 
de  nos  vermos  pela  primeira  vez,  a  cnriosidado 
intelectual  que  nos  aproximara  tinha  feito  do 
n(')S  dois  velhos  conhecidos.  Era  uma  senhora 
duma  formosura  tranquila  e  triste,  com  uns  ma- 
ravilhosos olhos  de  portujíuesa,  nej?ros,  dormen- 
tes, fendidos  em  amêiudoa,  uma  pelo  branca, 
ílua,  um  pouco  doirada  à  luz  como  certos  mar- 
'flns  relií^fiosos,  umas  atitudes  nobres,  calmas, 
vací^amente  reflexivas,  uma  expressão  de  distinta 
sobriedade,  de  candura  intelip:ente,  de  modéstia 
crraciosa,  que  não  era  o  menor  encanto  da  sua 
fi.cura  6  das  suas  maneiras.  Parece-me  que  a 
estou  vendo  ainda,  na  névoa  lon.qínqua  do  tempo. 
Não  era  a  florentina  ma.crra,  viril,  anírulosa,  in- 
quietante, que  cu  sonhara  através  das  pá,c:inas 
mais  fortemente  masculinas  da  sua  obra:  era  a 
beleza  melancólica  e  doce,  or.ç-ulhosa  e  terna,  cm 
cuja  boca  polpuda  revoava  sempre  a  tristeza  dum 
sorriso,  em  cujos  olhos  passava,  como  um  cia- 
rão,  todo  o  êxtase  luminoso  da  paisagem  al(Mi- 
tojana,  e  cuja  bela.  calieça.  ao  mesmo  tempo  do 
criança  e  de  Madona,  leud)rando  simultanea- 
mente os  Amores  de  Besnard  o  as  Virgens  de 
Bouguereau,  resplandecia  de  talento  e  de  formo- 
sura, de  juventude  e  de  graça... 

Morreu. 

Há  sonhos  que  parecem  ser  às  vezes  a  se- 
quência lógica  da  vida.  Numa  das  últimas  noi- 
tes, na  agitação  da  febrs,  julguei-me  dormindo, 


ESPÍRITO   GENTIL  143 


<i  hora  doirada  do  crepúsculo,  debaixo  duma 
grande  macieira  florida.  Tiriha-se  levantado  ven- 
to. Pouco  a  pouco,  em  volta  de  mim,  sobre  as 
minhas  mãos,  sobre  os  meus  cabelos,  as  flores 
foram  caindo,  perfumando  o  ar.  juncando  a  terra 
dum  tapete  côr  de  rosa  —  e  na  árvore  desabi- 
tada uma  só  flor  ficou,  como  um  sorriso,  embe- 
bida ainda  dos  derradeiros  raios  de  sol.  Quando 
acordei,  de  manhã,  a  primeira  notícia  que  li 
nos  jornais  foi  a  da  morte  de  Maria  da  Cunha, 
Os  olhos  embaciaram-se-me  de  lágrimas... 
Caíra  a  última  flor. 


NOVOS  METR08,   NOVOS  RITMOS 


Alfredo  Pimenta  quis  ler  a  bondade  de  vir 
lèr-me,  ainda  em  provas,  o  seu  último  livro  de 
versos  —  Paisagem  de  Orquídeas.  Antes,  porém, 
de  realizar  essa  leitura,  que  tão  agradável  foi 
para  mim,  o  meu  ilustre  camarada  falara-me  na 
sua  intenção  de  introduzir  na  poética  portuguesa 
novos  metros  e  novos  ritmos,  criando  os  versos 
de  15  e  de  19  sílabas.  Confesso  que,  a  princípio, 
vi  apenas  no  propósito  de  Alfredo  Pimenta  uma 
afirmação  daquela  orgulhosa  originalidade  e  da- 
quele espírito  de  ampliação  que  nao  sâo  os  menos 
interessantes  aspectos  do  seu  talento.  Um  verso 
de  19  sílabas  afigurou-se-me  desde  logo  alguma 
coisa  de  arítmico,  de  monstruoso,  de  aberrante, 
uma  criação  fora  de-  tôda^  a  crítica  e  de  todo  o 
sentimento  das  proporções.  ,  Pois  bem.  A  lei- 
tura fez-se,  conheci  as  formas  hipermétricas  da 
Paisagem   de  Orquídeas,  —  e   para   que  negá-lo? 


.NOVOS     METRmS,      NuVOS     HilMOS  lio 


—  encontrei  nelas  uma  beleza  e  uma  nobreza 
que,  se  não  me  levam  a  aconselhá-las  aos  poe- 
tas moços,  bastam,  entretanto,  para  justificar  pe- 
rante o  meu  espírito  a  aparente  extravatiàricia 
da  sua  adopção.  Na  sua  arte  subtil,  complexa  e 
sumptuosa,  Alfredo  Pimenta  conseguiu  provar- 
me  que,  com  15  e  19  sílabas,  podem  fazer-se  exce- 
lentes versos. 

Mas  vejamos  o  caso  de  mais  perto.  Gomo 
constroe  o  poeta  os  seus  metros  novos  ?  Gomo 
consegue  realizar,  numa  tão  extensa  formação  si- 
lábica, a  síntese  rítmica  que  se  chama  —  um 
verso  ?  Qual  a  estrutura  das  suas  formas  mé- 
tricas de  15  e  de  19  ?  Seria  injusto  afirmar  que 
estas  questões  nn'uimas  não  teem  interesse,  — 
pelo  menos  para  os  poetas.  Gomo  se  sabe,  a 
poesia  decadente  da  França  de  há  vinte  e  cinco 
anos,  toda  a  poussée  simbolista,  instrumentista, 
bizanlinista  e  nefélica,  manifestou  sempre  uma 
acentuada  tendência  para  criar  formas  melódicas 
novas.  Jean  Moréas,  Stéphane  Mallarmé,  Lau- 
rent  Tailhade,  Vielé  Griffm,  Stuart  Merril,  René 
Ghil,  Leo  d'Arkaí  estão  cheios  de  hipertrofias 
métricas  que  não  conseguiram  vingar,  ou  por- 
que eram  a  negação  de  todo  o  ritmo,  aíVétrari' 
ges  vers,  heurtés^  aux  allures  de  proseyy  (Mar- 
cial Besson),  ou  yiorque  pretendiam  impor  cons- 
truções podálicas  gregas,  de  ritmos  eruditos  e 
inacessíveis,  absolutamente  contrários  à  índole 
da  língua  e  às  tradições  da  poética  francesa.    A 


I.'l6  NA    ARTE 


niainr  juirtc  dos  ((.iirandcs  inetros))  dos  decaden- 
tes sãu  a  pura  }>i'osa  irregular  a  que  Sousa  Mar- 
tins chamou  um  dia  —  «serradura  de  palavras». 
Ora  é  isso,  precisamente,  o  que  não  se  dá  com 
os  metros  de  15  e  de  19  usados  pelo  poeta  da 
Píúsagcm  de  Orquídeas.  E  não  se  dá,  porque 
Alfredo  Pimenta,  em  vez  de  criar  ritmos  novos, 
limita-se,  afinal,  a  associar  o  a  combinar  velhos 
e  conhecidos  ritmos.  Os  seus  «grandes  versos» 
são  constituidos,  como  vou  mostrar-lhes,  pela 
sequencia  de  «pequenos  versos»  de  7  e  de  4,  si- 
metricamente dispostos.  Não  passara,  pois,  de 
construções  melódicas  rudimentares,  onde,  a 
despeito  de  todas  as  aparências,  é  a  velha  poética 
que  triunfa.  Vejamos  uma  das  poesias  de  15  sí- 
labas —  o  Cravo  Misterioso  —  evocação  cheia  de 
beleza  de  um  antigo  cravo  do  século  xvni,  cuja 
voz  geme,  sobrenaturalmente,  ao  canto  dum  sa- 
lão abandonado.  Destaco  um  verso,  ao  acaso  : 
uO  mistério  desse  cravo ^  tristemente,  a  solu- 
çar...)). Ritmo  novo?  Não.  Ritmo  velho.  A  jux- 
taposição  de  dois  versos  de  sete  sílabas,  sem  ce- 
sura, isto  é,  com  o  primeiro  verso  grave,  o  se- 
gundo abrindo  por  consoante,  e,  portanto,  uma 
sílaba  muda  entre  ambos  :  7  +  l  +  7.  Ou,  des- 
dobrando : 


Tristemente,  a  soluçar, 


NOVOS     MKTRUS,      NO\US     RITMOS  147 


No   ineíro   de   19,   Alfredo   Pinieiila   adopta   o 
mesmo  procesíso  a  que  cliaiiiarei,  à  maneira   la- 
tina, ode  contaminação)).     Estodemrs  o  primeiro 
verso  da  magnifica  poesia  —  Palácio  cm  Ruínas  : 
Todo  enterrado  na  sombra  escura  dum  lyarque 
triste^    moríi[icado...))    Nenhuma    novidade    tam- 
lixMu  na  construção  rítmica  :  a  sequência  simples 
(h  ({uatró  versos  graves  de  4  sílabas  começando 
sempre  por  consoante,  e,   por  conseguinte,  com 
três  silabas  mudas  perdidas,  segundo  a  f(3rnniía: 
4  +  1  +4  +  1  +  /i  +  1  +  4.    Ou    seja,    na    decom- 
posição, uma  vulgaríssima  quadra  de  téssarassí- 
labos  : 

« Todo  enterrado 
Na  sombra  escara 
Dam  parque  triste. 
Mortificado ...» 

É  incontestável  que  similhante  associação 
e  formas  rítmicas  iguais  e  simétricas  tem  am- 
plitude e  tem  nobreza.  Os  árcades  usaram-na. 
Já  produziu  a  Cantata  de  Dido.  Mas  o  seu  ini- 
migo mortal  é  a  monotonia.  Não  há  côr,  não  há 
joalharia,  não  há  opulência  de  expressão  — e  Al- 
fredo Pimenta,  como  os  poetas  do  Pélénn  Pas- 
sioné  e  das  Flútes  de  Jade,  tem  muitas  dessas 
qualidades  — que  possam  vencer  a  monótona  in- 
sistência de  um  desenho  melódico  repetido  qua- 
tro vezes  em  cada  verso  e  dezasseis  vezes  em 


1'j8  na   arte 


cada  quadra.  De  resto,  em  lodo  o  livro,  mesmo 
íidoplaiido  processos  na  aparência  ousados,  o  ar- 
tista da  Pmsagrm  de  Orquídeas  conserva-se  o  que 
sempre  fundamentalmente  foi:  um  cultor  dos  ve- 
lhos ritmos,  que  passeia  pelas  letras,  entre  Jean 
Lorrain  ,e  Oscar  Wilde,  o  seu  néo-parnasianismo 
impenitente. 


TEATRO  CAM(3NEAN0 


Ainda  que  o  poeta  do  Auto  de  El-Rei  SeJniccK 
dos  AnlUriões  e  do  Filodemo  não  tivesso  sido  o 
.írrande  épico  dos  Liisiadas  e  o  lírico  admirável 
qii?  moldou,  no  puro  oiro  do  verso  porluguês.  as 
formas  do  néo-platonismo  florr*ntino.  —  a  histó- 
ria do  teatro  teria  de  ociípar-se  largamente  dele 
como  de  um  dos  mais  vivos,  dos  mais  caracte- 
rísticos e  dos  mais  interessantes  cultores  da  co- 
média nacional. 

Passei  ontem  uma  longa  noite  de  inverno  a 
í'sludá-lo  e  a  admirá-lo.  A  independência  inte- 
lectual de  Gamões,  largamente  revelada  na  epo- 
peia e  no  lirismo,  e  verdadeiramente  assombrosa 
num  século  como  o  de  quinhentos,  dominado 
pela  rigidez  das  formas  e  pelos  preconceitos  de 
escola,  —  manifesta-se,  com  a  mesma  eloquên- 
cia e  a  mesma  flexibilidade,  na  obra  do  poeta  có- 
mico.   Todas  as  correntes  dramáticas  lhe  foram 


150  NA    ARTE 


familiares.  No  Rei  Seleiico  é  a  influência  espa- 
nhola da  Propaládia  que  se  acentua  na  dramati- 
zação do  motivo  c  no  desenvolvimento  do  episó- 
dio; no  Filodemo^  a  corrente  italiana,  com  su- 
gestões castelhanas  da  Celestina,  de  Fernando  de 
Rojas,  e  um  «vicentismo))  marcado  na  curva  me- 
i(3dica  da  redondilha;  nos  Anfitrões^  a  influência 
clássica  das  escolas  de  Oviedo  e  de  Salamanca, 
que  tentavam,  com  o  reitor  Fernão  Perez  de  Oli- 
va e  com  o  médico  Francisco  de  Vila  Lobos,  ns 
equivalências  da  tragédia  grega  e  da  comédia 
plautiana.  E,  entretanto,  apesar  da  sua  criação 
ter  obedecido  a  sugestões  diversas,  as  três  co- 
médias mantêm  o  mesmo  carácter,  o  mesmo  fei- 
tio, a  mesma  fisionomia,  as  mesmas  linhas  de 
construção  geral,  o  mesmo  desenvolvimento  dos 
elementos  dramáticos,  de  forma  a  poder-se  afir- 
mar a  existência  de  unia  «dramaturgia  camonea- 
na».  Essa  dramaturgia,  que  na  divisão  dos  actos 
e  na  criação  do  intróito  e  do  argumento,  tem 
pontos  de  contacto  com  a  de  Torres  Navarro, 
e  que,  na  inclusão  de  scenas  em  prosa,  acusa  vi- 
vamente a  influência  italiana  de  Ariosto  e  de 
Machiavel,  —  distingue-seV  porém,  pela  sábia  ar- 
ticulação do  episódio  lírico  e  do  episódio  có- 
mico; pela  associação  imprevista  do  elemento 
erudito  e  do  demento  popular;  pela  criação  do 
tipo  do  «gracioso»,  que  erradamente  se  atribue  a 
Lope  de  Vega  e  que  deve  roivindicar-se  para  Ca- 
mões; pelo  paralelismo  das  acções  dramáticas  e 


TEATRO    CAMONEANO  151 


das  personagens  do  primeiro  e  do  segundo  plano; 
pelo  desenvolvimento  inesperado  do  diálogo,  e 
pela  eloquência  lírica  das  figuras  femininas  (Alc- 
juena,  Estratónica,  Diónisa),  só  excedida  mais 
tarde,  no  século  xvii,  no  teatro  de  Galderon  de  la 
Barca.  A  originalidade  da  obra  dramática  de 
Gamões  reside,  evidentemente,  mais  nos  proces- 
sos do  que  nos  motivos,  os  Anlitriões  são  a  ve- 
lha fábula  dórica  de  Epicarmo,  dramatizada  ir- 
reverentemente por  Piau  to.  O  nosso  poeta  co- 
nheceu a  peça,  sem  dúvida,  através  da  versão 
em  prosa  do  médico  de  Isabel  a  Católica,  Fran- 
cisco de  Vila  Lobos,  cuja  murça  amarela  se 
comprazia  no  comentário  erudito  da  comédia 
clássica,  —  e,  segundo  o  texto  do  tradutor  caste- 
lhano, omitiu  o  prólogo,  e  eliminou  a  fala  de 
Mercúrio  no  primeiro  acto  e  o  monólogo  de  Jú- 
piter no  terceiro.  As  figuras  de  Felísio  e  de  Bró- 
mia  e  o  episódio  cómico  dos  seus  amores  são 
criação  original  de  Camões,  que,  muito  antes  de 
Molière  inventar,  no  Amphitrion,  o  tipo  de 
Chleantis,  já  linha  previsto  a  necessidade  do  de- 
senvolvimento de  uma  acção  paralela.  O  mo- 
tivo do  Filudemo  também  não  é  de  Camões;  é  da 
comédia  iialiana,  remontando  a  genealogia  de  al- 
gumas figuras  à  poesia  e  ao  teatro  espanhol  do 
século  XV.  A  figura  perfeita  de  Solina  apare- 
ce-nos  construída  com  elementos  castelhanos  e 
portugueses  da  trota-convcntos  do  arcipreste  de 
Hita;   da  Celestina,   de  Fernando   de   Rojas;   da 


152  NA    ARTE 


Filtra  de  Jorge  Ferreira  de  Vasconcelos,  e,  uni 
pouco,  das  alcoviteiras  de  Gil  Vicente  (Branca 
Gil,  Brízida  Vaz,  Ana  Dias).  O  próprio  Auto  do 
Rei  Scleuco  é,  na  sua  scena  fundamental  (scena 
do  Físico),  sugestão  directa  da  l?itura  que  Ca- 
mões fez  da  Propaládia  de  Torres  Navarro,  pu- 
blicada em  Nápoles,  em  1517.  Numa  das  peças 
desta  curiosa  colecção,  a  Aquilina^  um  cirur- 
g-ião  astuto  descobre  que  o  filho  do  rei  da  Hun- 
gria está  apaixonado  pela  filha  do  rei  de  Leão, 
porque  o  pulso  do  rapaz  se  altera  sempre  que 
vê  ou  ouve  a  infanta,  tal  qual  como  o  físico  do 
Rei  Seleuco  surpreende  os  amores  do  príncipe 
Anlíoco  pela  madrasta — «nr/  jmlso  que  se  alte- 
vdba  se  la  via  o  se  la.  aia)).  Camões  não  foi  um 
criador  original  de  acções  e  de  conflitos;  mas  fi- 
cará, repito,  como  um  notável  criador  de  pro- 
cessos. Nas  suas  comédias,  a  fábula,  quando  não 
é  apropriada  da  obra  estranha  — ?7  prenait  son 
bien  oú  il  le  trouva.il  —  é  pobre  de  invenção, 
mas  a  dramatização  dos  motivos  apresenta-se 
sempre  rica  de  originalidade,  de  movimento  e 
de  interesse,  exuberante  de  graça  e  de  expres- 
são lírica,  lógica  na  dedução  dos  seus  elementos 
cómicos,  e,  quanio  possível,  harmónica  nas  li- 
nhas gerais  da  composição. 

Não  seria  interessante  fazer  representar,  num 
serão  camoneano,  as  três  célebres  comédias  do 
grande  poeta,  —  com  o  mesmo  espírito  de  devo- 
ção  com  que  a  Espanha   moderna  está   ressur- 


TEATRO    CAMONEANO  153 


gindo,  pela  mão  de  anéis  da  enidita  Guerrero. 
o  teatro  de  Guevara  e  de  Fray  Lope,  de  Cervan- 
tes e  de  Galderon,  de  Moreto  e  de  Fray  Gabriel 
Teles  ? 


MÚSICOS  DE  CASACA  DE  SEDA 


O  ilustre  jornalista  e  meu  amigo,  J.  Praga 
Pery  de  Linde,  ofereceu  recentemente  ao  Estado, 
por  meu  intermédio,  um  documento  do  mais 
nlto  valor  para  a  história  da  música  em  Por- 
tugal: o  manuscrito  original  do  Compromisso  da 
Irmandade  da  Gloriosa  Virgem  e  Mártir  Santa 
Cecília  ordenado  pelos  professares  da  Arte  da 
Música  em  o  ano  de  1749,  seguido  do  termo  de 
aprovação  pela  Junta  Geral  da  confraria  em  13 
de  fevereiro  de  i750,  e  de  públicas-formas  dos 
alvarás  de  iõ  de  abril  de  1792  e  25  de  outubro 
de  1708,  e  da  provisão  do  Patriarca  D.  Tomás 
de  Almeida,  de  5  de  outubro  de  1722,  passadas 
a  requerimento  do  Procurador  da  Mesa  pelo  ta- 
belião João  Varela  da  Fonseca,  «defronte  da 
porta  travessa  da  Basílica  de  Santa  Maria,  junto 
à  Caridade».  E'  um  códice  de  papel,  de  38  fo- 
lhas inumeradas,  aparo  doirado,  com  rosto  e  li- 


I 


MÚSICOS  DE  CASACA  DE  SEDA 


tulos  dos  capítulos  a  vermelhão,  contido  numa 
pasta  de  marroquim  encarnado  que  evidente- 
mente não  lhe  pertence,  com  bons  ferros  das 
armas  do  reino,  em  ouro.  A  sua  especial  impor- 
tância provêm  de  dois  factos:  de  se  ignorar,  até 
hoje,  a  existência  de  um  estatuto  da  Irmandade 
de  Santa  Cecília  com  a  data  de  i749,  e  de  se  en- 
contrar assinado  o  termo  de  aprovação  desse 
estatuto  pelo  punho  de  cento  e  quinze  profissio- 
nais que,  na  Lisboa  de  D.  João  v,  viviam  da  arte 
da  música. 

O  primeiro  Compromisso  desta  Irmandade 
lata  de  1603.  Era  em  pergaminho  e  papel,  ilu- 
minado, com  pastas  abrochadas  de  prata,  e  ti- 
nha apensos  os  originais  dos  alvarás  de  1702  o 
1708,  e  da  provisão  de  1722,  segundo  se  infero 
da  descrição  que  dele  fnz  o  (abelião  João  Va- 
rela. Infelizmente,  o  livro  ardeu  no  incêndio  que 
S3  seguiu  ao  terramoto  de  i75o.  Muita  gente  su- 
põe que  foi  para  sub.-tituir  o  estatuto  de  1003, 
ilcstruido  pelo  fogo,  que  se  elaborou  e  aprovou 
o  Compromisso  de  1705,  de  qu.}  possuía  um 
exemplar  impresso  o  faleci  lo  musicólogo  F]rnesto 
Vieira.  Não  é,  porém,  assim.  A  doação  do  snr. 
l^ery  de  Linde  vem  provar  que  o  estatuto  seiscen- 
tista primitivo  já  fora,  antes  do  terramoto,  su- 
bstituido  por  outro,  o  de  1741),  cujo  original 
Ignorado  aqui  lenho  aberto  diante  do  mim.  As 
razões  que  levaram  os  músiccs  pré-pombalinos 
a  fazer  esta  substituição,  constam  do  Pr(')logo  do 


156  NA    ARTE 


Compromisso  agora  aparecido.  Não  era  grande 
o  espírito  associativo  entre  os  profissionais  da 
música  na  velha  cidade  patriarcal,  e  à  sua  falta 
de  escrúpulo  no  cumprimento  das  obrigações  es- 
tatuais do  «tostão»,  da  anuidade  e  da  jóia,  jun- 
tava-se,  segundo  o  testimunho  insuspeito  de  uni 
documento  por  muitos  deles  assinado,  a  sua  fre- 
quente ausência  de  decoro  artístico.  Reconhe- 
ceu-se  que  era  preciso  dignificar  a  profissão; 
desenvolver  no  meio  musical  lisboeta  do  século 
'XVIII  o  espírito  de  confraria;  atrair  ao  grémio 
novos  irmãos;  assegurar  mais  eficazmente  o 
cumprimento  dos  deveres  estatuais;  e,  como  as 
disposições  do  Compromisso  primitivo,  em  gran- 
de parte  anacrónicas,  tinham  caído  em  desuso, 
foi  julgada  oportuna  a  sua  reforma,  e  de-certo 
para  ela  muito  contribuiu  o  prestígio  pessoal  do 
então  Provedor  da  Irmandade,  Diogo  de  Men- 
donça Gôrte-Real,  filho  do  ministro  de  D.  João  v, 
conselheiro  da  Fazenda,  Deputado  à  Junta  da 
Casa  de  Bragança,  Provedor  da  Casa  da  índia, 
e  o  valimento  de  que  gozava  junto  da  Princesa 
Maria  Vitória  o  velho  e  ilustre  D.  Lucas  Giovine, 
S6U  mestre  e  primeiro  assistente  da  Mesa,  cujo 
retrato  ainda  hoje  se  ve,  ao  lado  do  de  David 
Pérez,  no  sumptuoso  teto  da  Sala  das  Talhas, 
em  Queluz.  Assim  nasceu  o  estatuto  de  i7-^i9, 
que  não  chegou  a  ser  impresso,  e  que  os  músi- 
cos pombalinos  julgaram  perdido,  como  o  de 
1603,  no  incêndio  que  se  seguiu  ao  grande  ter- 


MÚSICOS  DE  rAS\r\  DE  SEDA         157 


ramoto,  —  o  que  os  determinou  a  reunirem-so 
em  junho  (h^  1765  em  casa  de  Pedro  António 
Avendano,  compositor  de  oratórias  e  de  minue- 
les.  cuja  cplebridade  fácil  obscurecera  já  a  do 
decrépito  Giovine,  para  redigir  o  novo  e  ter- 
ceiro estatuto  da  Irmandade.  Gomo  se  teria  salvo 
do  incêndio  de  Santa  Justa  o  precioso  original 
áo  Compromisso  de  17i9  ?  Quem,  e  com  que 
interesse,  o  teria  subi  ia  ido  e  conservado  em  seu 
poder,  tão  occulto,  que  a  própria  Irmandade  o 
julgou  pasto  das  chamas  ?  Através  de  que  vicis- 
situdes viri'a  o  inlerjssaule  documento  parar, 
cento  e  sessenta  anos  depois,  ao  ferro-vélho  do 
mercado  de  S.  B;'nto,  onde,  por  um  feliz  acaso, 
o  encontrou  a  erudita  curiosidade  do  sr.  Pery 
de  Linde  ?  Impossível  sajjè-lo.  O  que  é  positivo 
é  êsty  facto  :  a  existência  do  Compromisso  de 
17i9  constitue  uma  revelação. 

Mas  não  é  ainda  este  o  aspecto  mais  inte- 
ressante porque  pode  ser  estudado  o  códice  a 
que  venho  aludindo,  o  que  lhe  atribue  um  con- 
siderável valor,  ci.mo  documento  para  a  histó- 
ria da  música  em  Portugal,  é  a  circunstância  de 
se  encontrar  junto  ao  Compromisso  o  respectivo 
termo  de  aprovação  com  as  assinaturas  de  115 
músicos  profissií  nais,  alguns  muito  ilustres,  que 
exerciam  a  sua  arte  na  velha  Lisboa  de  D.  João  v. 
Havia,  evidentemente,  muitos  mais, — organis- 
tas, cravistas,  violinistas,  castrati,  bailarinos, 
virtuosi^  liturgistas,  contrapontistas,   mestres-de- 


J58  NA    ARTE 


solfa,  conipdsilni-es,  caiitoi-os  de  npei'H,  molelis- 
tas  liií<Mr<>s,  c.inlochcinislas  capnchus,  —  iviiiiidos 
nessas  liíiiiíssinias  colmeias  musicais  qiic  foram, 
em  17'jV),  a  Basílica  Patriarcal,  a  Ópeni  italiana 
do  Paço,  o  Seminário  de  música  de  S.  Francisco, 
o  mosteiro  do  arrábidos  de  Mafra  ;  mas  a  falta 
de  espírito  de  associação  era  manifesta;  inven- 
cível, entre  os  pi'ofissionais  da  música,  a  repu- 
^Miancia  por  toda  a  espécie  de  snbordinação  a 
preceitos  estatnais:  difícil  a  harmonia  de  inte- 
resses e  a  comnnidade  ds  ânimos  numa  classe 
constituida  por  elementos  tão  heterogéneos;  e, 
para  salvar  a  Irmandade,  ainda  não  se  linha  che- 
gado ao  extremo  de  cometer,  como  se  fez  mais 
tarde  pelo  alvará  de  15  de  novembro  de  1760,  a 
violência,  de  resto  pouco  eficaz,  de  proibir  o 
exercício  da  música,  sob  pena  de  doze  mil  réis 
do  multa  pagos  da  cadeia,  a  quem  não  fosse  ir- 
mão da  confraria  de  Santa  Cecília.  Entretanto, 
os  115  nomes  que  subscrevem  o  estatuto  de  1749 
constituem  já  um  importante  subsídio  para  a 
história  da  música  portuguesa,  tanto  mais  va- 
lioso quanto  é  certo  que,  à  grande  maioria  deles, 
não  fazem  a  menor  referência  os  trabalhos  dos 
nossos  musicólogos.  Esses  nomes  ocupam  qua- 
tro páginas,  a  duas  colunas,  assinando  à  cabeça 
o  Provedor,  Diogo  de  Mendonça  Côrte-Pteal,  que 
depois  havia  de  sofrer  tão  duramente  as  perse- 
guições do  grande  Marquês;  o  primeiro  Mor- 
domo  assistente,    D.    Lucas   Giovine,    capelão-fi- 


MIISICOS    DE    CASACA     DK    SEDA  IT,'.) 


dal/LTO  da  Casa  Rial:  os  Mordomos  da  Mesa;  o 
Tesoureiro;  o  SecF^etário  ;  os  Procuradores  da 
Mesa  e  da  Irmandadíí,  e,  em  seguida,  sem  or- 
dem de  precedências,  iridisliulamente,  os  irmãos. 
Dos  115  músicos  profissionais  que  ti^em  as  assi- 
naturas no  Compromisso  de  17í9.  44  são  estran- 
íreiros  ou  de  origem  estrangeira  —  espanhóis, 
franceses,  na  maior  parle  italianos, — e  71  pni-- 
tugueses.  Dentre  os  nacionais.  25,  admitidos  nos 
lermos  da  provisão  de  5  de  nuhibro  de  1722,  pz-r- 
tencem  ao  clero  regular  ou  secular,  —  número 
exíguo,  se  atendermos  ao  formidáv»']  quadro  dos 
capelães-cantores  da  Basílica  Patriarcal  e  aos 
muitos  seminaristas  de  S.  Francisco  e  cantocha- 
nistas  arrábidos  que  se  metiam  a  mestres-de- 
solfa  das  casas  fidalgas.  No  meio  de  nomes  que- 
nada  hoje  nos  dizem,  aparecem  alguns  dos  co- 
rifeus da  música  portuguesa  setecentista:  o  cé- 
lebre Espírito  Santo,  organista  e  mestre  de  ca- 
pela da  Bemposta;  José  da  Silva  Reis,  violon- 
celista  da  Capela  Rial  e  excelente  contrapori- 
tista,  secretário  da  Mesa  da  irmandade;  Fran- 
cisco Inácio  Solano,  o  mais  notável  músico  di- 
dático  do  seu  tempo;  o  violinista  António  Peco- 
rário,  cunhado  do  escultor  Giusti;  outro  violi- 
nista, o  ilustre  João  Tomás  Mazza,  de  Parma;  u 
napolitano  Andréa  Marra,  violinista  lambem;  o 
•  antor  Joaquim  do  Vale  Maxilim;  e  algumas  fi- 
guras de  dinastias  célebres  de  músicos  que  se 
fixaram  em  Lisboa, —  os  Paghetti  (Francisco  Ma- 


160  NA    ARTE 


ria  e  João  Raplista),  íillios  do  violinista  Alexíin- 
dre  l^iuli  'lli,  que  1).  João  v  contratou  e  que  in- 
troduziu na  corte  o  gosto  pela  (Ji)era  italiana;  os 
Biancai'di,  pai  e  filho;  dois  Pelner;  dois  Avondu- 
nos,  —  uni  dos  quais,  Pietro  Giorgio,  1.°  violino 
da  Basílica  Patriarcal,  foi  o  pai  de  Pedro  Antó- 
nio Avendano,  alma  da  Irmandade  no  período 
pambalino,  compositor  galante  a  cujos  perturba- 
dores minuetes  Twiss  alude  no  seu  livro  Voyage 
en  Portugal.  Faltam  os  nomes  de  alguns  mú- 
sicos conhecidos,  entre  os  quais  o  de  Francisca 
António  de  Almeida.  O  glorioso  autor  da  Finta 
Pazza  e  da  Spinalbas  que  tanto  brilho  deu  à 
Ópera  do  Paço  da  Ribeira,  vivia  ainda,  mas  era 
quási  octogenário.  David  Perez,  esse,  estava  em 
1749  em  Milão.  Só  três  anos  depois,  por  diligên- 
cias da  Rainha  D.  Mariana  Vitória,  veio  estabe- 
lecer-se  em  Lisboa. 


((\ER7vr)  .) 


Vou  íalar-lhes  dum  poeta  brasileiro. 
E'  preciso  que  Portuagl  conheça  o  admirá- 
vel, o  surpreendente  movimento  literário  do  Bra- 
sil contemporâneo,  e  que  todos  nós,  homens  de 
letras  portugueses,  concorramos,  na  medida  das 
nossas  forças,  para  essa  indispensável  obra  de 
vulgarização.  E  não  apenas  em  proveito  da  lite- 
ratura brasileira;  em  nosso  próprio  proveito,  tam- 
bém. No  Brasil  escreve-se  melhor  o  portiigur.-^ 
do  que  em  Portugal,  —  e  os  detentores  da  he- 
rança vernácula  de  Vieira  e  de  Bernardes  (tenha- 
mos a  coragem  de  o  confessar)  não  estão  hoje 
àquêm  Atlântico.  A  floração  de  poetas  é,  então, 
notabilíssima.  Provam-no  muitos  volumes,  re- 
centemente publicados,  que  conservo  sobre  a  mi- 
nha mesa  de  trabalho,  —  e,  mais  do  que  todos 
eles,  um  livro  que  acaba  de  aparecer  nas  mou- 
ras do  Rio  e  de  S.  Paulo,  e  que  é  a  afirmação 
11 


162  NA   ARTE 


de  um  extraordinário  talento  de  poeta:  o  Verão 
de  Martins  Pontes. 

Há  muito  tempo  que  a  leitura  dum  livro  de 
versos  não  produzia  sobre  o  meu  espírito  uma 
tão  viva  emoção.  Li-o  duas,  três  vezes,  domi- 
nado, subjugado,  deslumbrado.  Julgo  que  a  im- 
pressão produzida  no  meio  intelectual  brasileiro 
foi  considerável  também.  Com  o  Verão,  de  Mar- 
tins Pontes,  está  assegurada  —  diz  Óscar  Lopes 
numa  scintilante  crónica  do  País  —  «a  perma- 
nência do  máximo  fulgor  na  poesia  brasileira». 
Depois  de  Olavo  Bilac,  de  Alberto  de  Oliveira, 
de  Raimundo  Correia,  de  Luís  Mural,  pontífices 
máximos,  nunca,  que  eu  me  lembre,  o  neo-par- 
nasianismo  brasileiro  produziu  páginas  de  um 
tão  ofuscante  esplendor  verbal.  Não  é  fácil  filiar 
este  livro  em  qualquer  escola  literária,  ou  subor- 
diná-lo a  qualquer  das  correntes  dominantes  na 
grande  poesia  portuguesa  contemporânea,  —  o 
botticellismo  de  Eugénio  de  Castro,  o  heinismo  de 
Augusto  Gil,  o  neo -romantismo  de  Fausto  Gue- 
des, o  virgilianismo  cristão  de  Correia  de  Oli- 
veira; é  um  caso  à  parle,  um  facto  literário  iso- 
lado, fundamentalmente,  se  quiserem,  a  obra  de 
um  parnasiano,  —  mas  de  um  parnasiano  in- 
tenso, exuberante,  trasbordante  de  seiva,  late- 
jante  de  clarões,  pujante  de  formas  novas,  de 
ritmos  novos,  o  mármore  e  o  bronze  do  verna- 
culismo  sacudidos,  animados  pelo  sangue,  pelos 
nervos,   pela  vida,   pela  vibração  do  génio.    Não 


«VERÃO))  163 


há,  na  obra  de  Martins  Fontes,  unidade  de  cr)n- 
cepçâo  nem  unidade  de  filosofia:  haverá,  quando 
muito,  unidade  de  processo,  se  considerarmos 
como  lai  a  média  entre  duas  tendências,  —  pro- 
cura da  simplicidade  e  da  limpidez  ateniense  dos 
conceitos,  expressa  na  modelar  poesia  de  aber- 
tura—  Parlhenon  —  e  a  preocupação  do  esplen- 
dor, da  ostentação,  da  opulência  vocabular,  que 
atinge  o  máximo  de  beleza,  de  riqueza  e  de  força 
no  mais  notável  poema  do  livro,  simultàne^i- 
mente  uma  das  mais  altas  páginas  da  literatura 
brasileira  moderna:  a  Floresta  da  Água  Negra. 
Martins  Pontes  divide  o  seu  livro  em  cinco  par- 
les: Poemas  Olímpicos^  A  natureza  e  o  sonho.  As 
alraas  e  as  estrelas.  Palavras  românticas,  Ao 
luar  em  surdina.  A  primeira  parte,  que  palpita 
e  resplandece  de  toda  a  beleza  pagã,  é  um  mara- 
vilhoso friso  de  dez  métopos,  ou  sejam  dez  in- 
comparáveis sonetos,  seis  heróicos  e  quatro  ale- 
xandrinos, onde,  na  luz  doirada  da  velha  Gré- 
cia, entre  ciprestes  negros  e  loureiros  sagrados, 
passa  a  nudez  viril  de  Apolo;  o  corpo  branco  e 
olímpico  de  Anadiomene,  Orfeu  cantado,  á 
sombra  roxa  dos  plátanos,  entre  bandos  de  égi- 
pans  semicapros  e  de  ménades  amorosas;  He- 
phaistos,  o  deus-ourives,  que  cinzela  em  Lemnos 
o  strophion  de  oiro  de  Afrodite;  Diónisos,  L-la- 
bro  e  fulvo,  ao  som  de  crótalos,  de  sistros,  d^' 
címbalos  de  cobre,  numa  nuvem  de  sátiros  e  de 
hespérides  nuas;  Pan  levando  à  boca,    lu  luai-  da 


164  NA   ARTE 


Arcádia,  a  flauta  em  que  se  transformou  a  nu- 
dez doirada  de  Siriux;  Anfitrite  que  nasce;  Ba- 
bilónia que  esplende;  Frinéa,  em  Eleusis,  sain- 
do, branca,  da  espuma  do  mar;  e,  emfim,  a 
Afrodite  de  Mélos,  a  Vénus  de  França,  —  Vénus 
quási  latina.  Vénus-flôr-de-lis,  Salânia-Gioconda, 
Virgem-Golombina,  expressão  contraditória  de 
serenidade  imutável  e  de  giaça  perturbadora. 
No  seu  conjunto,  como  visão  estética  e  como  afir- 
mação de  processo,  estes  dez  baixos-relevos  gre- 
gos constituem  a  parte  mais  nobre,  mais  equili- 
brada, mais  harmónica  de  toda  a  obra,  parecendo 
a  demonstração  e  a  aplicação  integral  das  re- 
gras de  arte-poética  admiravelmente  desenvolvi- 
das na  poesia  de  abertura, — Parthcnon:  «sê 
claro,  puro,  simples,  correntio»;  «aprende  a 
amar  nos  mestres  do  passado  o  culto  heróico  das 
paixões  serenas»;  procura  a  limpidez;  que  nos 
teus  versos  «a  rima  fulja,  inédita,  imprevista»; 
que  o  estilo  seja  sóbrio  e  a  frase  justa,  à  simi- 
Ihança  «do  fio  numa  trama  de  seda  do  Levante»; 
«cinzela  a  estrofe,  como'  Pray  Juan  de  Segóvia 
rendilhando  o  relevo  de  prata  de  um  sacrário»... 
É,  porém,  na  segunda  parte  que  se  encontra  a 
obra-prima  de  Martins  Fontes:  —  A  Floresia  da 
Agua  Negra.  Tenho  pena  de  não  poder  transcre- 
ver os  duzentos  e  cincoenta  versos  deste  poema. 
—  sem  dúvida  a  jóia  de  todo  o  livro.  É  uma  as- 
sombrosa evocação  dos  sertões  brasileiros  adus- 
tos  e   formidáveis,    das  suas  florestas,    das  sua? 


«VERÃO»  165 


tempestades,  dos  seus  pântanos  espelhantes  e  te- 
nebrosos como  superfícies  de  hulha,  da  sua  atmos- 
fera espessa  de  oiro  oleoso,  —  evocação  feita 
com  um  poder  de  dramatização  da  paisagem, 
com  um  sentimento  trágico  da  natureza  que  lem- 
bra Rollinat.  no  Dans  les  Brandes^  e,  sobretudo, 
com  aquele  vigor,  aquela  intensidade,  aquela  so- 
noridade, aquele  vernaculismo,  aquela  opulência 
verbal  de  que  o  Caçador  de  Bsineraldus^  de  Bi- 
lac,  é  o  modelo  supremo,  e  que  só  teem,  que  eu 
saiba,  o  seu  equivalente  em  prosa  nos  Sertões,  de 
Euclides  da  Cunha,  e  no  Rei  Negro,  de  Coelho 
Neto.  Comparando  este  trecho,  que  não  hesito 
em  considerar  dos  mais  belos  que  se  teem  es- 
crito em  língua  portuguesa,  com  a  adorável  poe- 
sia Simplicidade,  inserta  na  última  parte  da  obra 
—  duma  leveza,  duma  fluidez,  duma  transparên- 
cia, duma  doce  melancolia  que  recordam  a  Pluie^ 
de  Verlaine  —  temos  as  expressões  máximas  das 
duas  tendências  a  que  obedeceu,  durante  a  ela- 
boração do  seu  livro,  o  espírito  magnífico  de 
Martins  Pontes.  Qual  de  elas  triunfará,  na  sua 
obra  de  amanhã?  Há  de  dizè-lo  o  futuro, — e  o 
futuro,  para  Martins  Pontes,  é  a  glória. 


NA  HISTORIA 


o  FRADE  TRINO 


No  dia  26  de  novembro  de  1731.  das  quatro 
para  as  cinco  horas  da  tarde,  o  brado  de  um 
L^rande  crime  de  morte  comoveu  a  Lisboa  tran- 
quila, imunda  e  patriarcal  do  segundo  quartel 
do  século  XVIII.  O  cirurgião  francês  Isaac  Elliot, 
encontrando  a  mulher  nos  braços  de  um  frade 
trino,  assassinara-os  a  ambos.  Do  sangrento 
caso.  ocorrido  na  própria  morada  do  cirurgião, 
à  rua  do  Outeiro,  vem  larga  notícia  no  códice 
n.°  1161  da  Torre  do  Tomho^  o  que  me  permite 
fazer,  a  dois  séculos  de  distância,  a  reconstitui- 
ção do  crime  —  segundo  uma  versão  um  pouco 
diferente  da  adoptada  por  Camilo  Castelo  Branco. 

Isaac  Elliot  era,  como  diríamos  hoje.  o  ope- 
rador mais  feliz  de  Lisboa.  Tinha  conhecido, 
ao  estabelecer-se  na  corte,  as  velhas  práticas  ana- 
crónicas da  cirurgia  portuguesa,  imobilizadas, 
depois  do  génio  operatório  de  Francisco  GuUher- 


170  NA   HISTÓRIA 


me.  na  rotina  tradicional  dos  cirurgiões  do  sé- 
culo XVII,  e  decidira  revolucioná-las  a  golpes  de 
talento  o  dé  audácia.  A  fortuna  bafejou-o.  Dian- 
te dos  seus  tacões  encarnados  e  da  sua  maravi- 
lhosa cabeleira  de  França,  fugiram,  espantadas, 
as  lobas  negras  de  todos  os  sangradores  de  Lis- 
boa criados  na  Prática  de  Barbeiros  de  Manuel 
Leitão.  Poucos  anos  depois  da  sua  chegada  à 
corte,  Elliot  ganhava  já,  pela  sua  faca,  cinco  mil 
cruzados  por  ano;  D.  João  v,  que  o  chamara 
para  lhe  curar  os  tumores  do  pescoço,  concedia- 
Ihe,  com  uma  bôa  tença,  a  mercê  do  hábito  de 
Cristo;  uma  das  mais  lindas  mulheres  de  Lis- 
boa, namorada  da  elegância  do  cirurgião  fran- 
cês, tão  distante  já  da  capa  e  volta  dos  discípu- 
los de  António  Baião,  levava-lhe  nos  baús  do  en- 
xoval, em  bons  sacos  de  dobras  de  oiro,  o  me- 
lhor de  quinze  mil  cruzados.  Este  casamento, 
em  que  Isaac  Elliot  viu  uma  arma  para  a  sua 
ambição, — foi,  afinal,  o  primeiro  passo  para  a 
sua  desgraça.  Dona  Antónia  —  que  assim  se  cha- 
mava a  mulher  —  uma  frança  trigueira  de  1730, 
nascida  para  enfiar  pérolas  e  enfeitada  como 
um  pucarinho  do  Natal,  não  se  esqueceu  de  tra- 
zer para  a  morada  da  rua  do  Outeiro  toda  a  gente 
que  em  solteira  lhe  continuava  a  casa,  e,  com 
mais  frequência,  as  irmãs  de  certo  frade  trinitá- 
rio,  Frei  André  Guilherme,  costumadas,  desde 
meninas,  a  acompanhá-la  todas  as  tardes  à  me- 
renda.   Atrás  das  irmãs,   veio   a  mãe;  atrás  da 


II 


o   FIL\DE  TRINO  171 


mãe,  veio  o  frade;  e,  daí  a  pouco,  com  escân- 
dalo da  vizinhança,  já  entrava  o  frade  sozinho. 
L'm  a  mãe  e  sem  as  irmãs.  Principiou-se  a  mur- 
murar. Muitos  achavam  que  Frei  André  Gui- 
lherme era  moço  e  descomposto  de  mais  para 
doutrinar  no  amor  de  Deus  uma  mulher  como 
Dona  Antónia;  outros  entendiam  que  os  frades 
não  tinham  idade,  e  que  a  majestade  do  hábito 
testava  acima  das  más  línguas  do  mundo;  alguns 
vizinhos  da  porta,  afeitos  a  não  ver  sair  Isaac 
Elliot  sem  as  pistolas  nos  coldres,  juravam  que, 
mais  dia  menos  dia,  o  padre  bailava  no  inferno. 
Assim  foi.  Uma  tarde,  o  cirurgião,  avisado  pelo 
criado  francês  que  o  acompanhava  sempre,  vol- 
tou inesperadamente  a  casa:  abriu  a  porta,  de 
repelão;  entreviu,  sobre  um  espreguiçadeiro  de 
damasco,  o  vulto  branco  dum  frade  trino  abra- 
çado à  mulher;  cresceu  para  os  dois,  como  uma 
fera;  despejou-lhes  duas  vezes  as  pistolas  no 
peito;  e  emquanto  o  cirurgião,  à  ponta  de  es- 
padim, acabava  barbaramente  Dona  Antónia,  — 
o  criado,  brandindo  as  faces  do  ofício,  saltou 
sobre  o  corpo  arquejante  de  Frei  André,  cal- 
cou-o,  voltou-o,  ferrou-lhe  um  joelho  no  ventre, 
e  cego  de  fúria,  possesso  de  crueldade,  feriu, 
cravou,  dilacerou,  retalhou.  Os  dois  cadáveres 
ficaram  numa  poça  de  sangue,  um  de-bruços  so- 
bre o  outro,  junto  de  um  pote  de  prata  cheio  de 
imundícies.  Estava  consumado  o  crime.  Isaac 
Elliot  e  o  criado,  perseguidos  de  perto  por  dois 


172  NA   HISTÓRIA 


beleguins  de  saltimbarca  e  chuço,  saltaram  por 
uns  quinchosos  e  foram  pedir  asilo  ao  converto 
de  S.  Francisco.  Durante  algumas  horas,  acolhe-' 
ram-nos  na  portaria;  mas,  logo  quo  se  soube  na 
cela  do  guardião  que  o  assassinado  fora  um  fra- 
de, enxotaram-nos,  atiraram-nos  de  roldão  pelas 
escadas,  e  os  dois  fugitivos,  de  noite,  embru- 
lhados no  rebuço  dos  capotes,  os  cabelos  ainda 
empastados  de  sangue,  dois  sacos  de  dobrões  ti- 
nindo-lhes  à  cintura,  atravessaram  o  terreiro  do 
Rocio  em  damanda  do  mosteiro  de  S.  Domingos. 
Aí,  alegando  que  a  morte-de-homem  fora  por 
crime  de  adultério,  conseguiram  abrigo  até  de 
madrugada;  lançados,  com  sol  nascido,  pela 
porta  do  convento  que  dava  para  o  Hospital  de 
Todos  os  Santos,  ainda  a  piedade  dum  homem, 
de  nome  Pedro  Gonçalves,  lhes  cobriu  a  fuga 
para  a  igreja  de  S.  Luís;  —  mas  em  S.  Luís  fo- 
ram presos.  Era  o  princípio  do  fim.  As  Orde- 
nações^ livro  5.°.  título  25.  não  davam  ao  ma- 
rido afrontado  o  direito  de  defender  por  suas 
mãos  a  própria  honra.  Isaac  Elliot,  por  senten- 
ça da  Mesa  da  Consciência  e  Ordens,  de  2  de 
junho  de  1732,  foi  privado  do  hábito,  tença  e  tí- 
tulo, relaxado  à  justiça  e  cúria  secular,  — e.  seis 
meses  depois,  perante  as  lágrimas  dum  pobre 
padre  catalão  de  Rilhafoles,  enforcado  na  rua 
do  Outeiro,  diante  da  mesma  casa  onde  cometera 
o  crime.  Durante  muito  tempo,  a  cabeça  do  ilus- 
tre   cirurgião    francês,    decepada    e   pregada    no 


o  FRADE  TRINO  {"^S 


alto  do  patíbulo,  ficou  apodrecendo  à  chuva  e 
ao  sol.  Emquanto  ela  lá  esteve,  os  vizinhos,  eri- 
çados de  terror,  contavam  a  quem  queria  ouvi-los 
que  uma  figura  branca  de  frade,  a  cruz  verme- 
!iia  e  azul  dos  trinos  aberta  no  peitoral  do  hábito, 
vinha  todas  as  noites  gemer  em  volta  da  forca  de 
T-anc   Elliot... 


l 


S.  MIGUEL  ARCANJO 


Os  documentos  que  o  Dr.  António  Teixeira 
Coelho  de  Vasconcelos,  da  ilustre  Casa  de  Côr- 
tinhas  em  Cabeceiras  de  Basto,  acaba  de  ofere- 
cer-me  com  destino  aos  Arquivos  do  Estado,  vêem 
projectar  uma  inesperada  luz  sobre  a  história, 
obscura  ainda,  do  movimento  miguelista  de  1846- 
1847,  que  teve  como  consequência  o  massacre 
de  Braga  e  a  triste  jornada  de  Guimarães,  e 
cujo  último  lampejo  se  extinguiu,  nas  serranias 
de  Trás-os-Montes,  com  as  guerrilhas  heróicas 
do  Padre  Casimiro  e  de  Frei  Manuel  de  Agra. 
É  opulentíssima  esta  colecção.  São  cerca  de 
trezentas  peças,  que  estudei  logo  que  as  recebi 
das  mãos  do  meu  amigo  Dr.  Castro  e  Almei- 
da, e  entre  as  quais  se  encontram,  além  do  co- 
piador de  Anelhe  e  do  sinete  com  o  selo  do  Go- 
verno Provisório  de  Basto,  cai'las  muito  inler.fs- 


S.    MlGtrEL   ARCANJO  i"/;) 


santes  do  rei  exilado;  do  conde  de  Almada;  de 
Ribeiro  Saraiva;  do  Doutor  Sacra-Painília;  do 
Doutor   Cândido   Rodrigues    Alvares   de   Piguei- 

(lo   e  Lima,    logar-tenenie   de   D.    Miguel   em 

j'Mrtugal    e    organizador   do    movimento    revolu- 

i  tnário    de    46;    do  egresso    Frei    Francisco    da 

ilividade  de  Maria,  seu  confessor,  alma  dn 
mmplot  miguelista;  do  Samoça;  de  Alpuim  o 
.Menezes;  do  enérgico  e  rude  Frei  Manuel  An- 
tunes; do  secretário  Carneiro;  do  guerrilheiro 
Frei  João  do  Carmo;  dos  brigadeiros  Guedes  e 
Bernardino;  dos  fidalgos  das  casas  do  Souto, 
de  Singeverga,  da  Granja  de  Ribas  ;  do  comen- 
dador António  Taveira  Pimentel  de  Carvalho, 
chefe  da  dissidência  legitimista  de  1851,  o  ho- 
mem que  fez  dissolver  a  célebre  "Junta  de  Mar- 
fo-Mirélio»,  que  foi  a  alma  do  triste  pacto  com 

patuleia,  e  que  não  concorreu  pouco  para  ate- 
nuar a  força  política  da  mais  medularmente  na- 
cional de  todas  as  facções  partidárias  portugue- 
sas do  meado  do  século  xix:  o  miguelismo  es- 
treme, corcunda,  apostólico  e  tradicional.  Que 
'    lo  livro  dorme  nesta  ruma  de  papeis  velhos, 

como  eu  gostaria  de  ter  saúde  e  tempo  para  o 
f:  5  c  rever! 
K      Há  no  copiador  de  Anelhe  uma  carta  do  pa- 
dre Casimiro,  que  me  impressionou.    É  uma  pá- 
irina  de  história.    É  o  documento  duma  fé.  duma 

1  orgia  e  dum  carácter.  Escreveu-a  em  185?  o 
audacioso  guerrilheiro  ao  Doutor  Sacra-Pamília, 


176  NA  HISTÓRIA 


confessor,  secretário  e  assistente  de  D.  Miguel, 
que  então  se  encontrava  com  o  rei  no  palácio 
lontiínquu  de  Laniiiicnselbold.  Lateja,  nela  a  mes- 
ma exaita(;ão  mística,  o  mesmo  1'orte  espíiilo  de 
reacção  apostólica,  que  pareceu  renascer  um  mo- 
mento, setenta  anos  depois,  na  figura  do  padre 
Domingos.  Através  das  suas  palavras  ao  mesmo 
tempo  másculas  e  humildes,  sente-se  aperrar  ar- 
mas, crepdar  fogueiras,  murmurar  orações.  (Juer 
que  o  rei  saiba  tudo,  —  quem  ele  é,  como  ôle  so- 
freu, como  èle  matou  pela  santa  causa.  Gonia 
como  em  maio  de  1846  saiu  pela  piámeira  vez 
a  campo  com  todo  o  povo  do  Minho  e  de  Trás- 
os-Montes,  que  o  aclamava,  que  o  beijava,  que 
o  proclamava  general  e  defensor  das  Ginco-Cha- 
gas.  No  meado  do  mês  tinha  já  trinta  mil  ho- 
mens em  volta  de  Braga.  E  não  cuidasse  a  Sa- 
cra-Pamilia,  nao  cuidasse  o  rei  que  eram  se- 
tembristas. Não!  O  povo  queria  lá  ouvir  falar 
em  chefes  da  patuleia,  em  Montalvernes,  em 
Bentos  Gomes,  em  Motas,  —  raça  danada,  tão 
bôa  ou  tão  má  como  os  Gabrais!  O  chefe  era 
só  èle,  o  ídolo  era  só  ele,  padre  Gasimlro.  Gho- 
ravam  quando  o  viam,  cobriam-no  de  flores,  can- 
tavam hinos  em  seu  louvor.  O  bom  povo,  o  liai 
povo  braguês!  Ghegou  em  triunfo  a  Ruivães: 
Montalegre  coalhou-se  de  gente  para  o  ver  pas- 
sar; armada  de  foices,  de  cacetes,  de  navalhas, 
de  mosquetes  velhos,  a  multidão  queria  acom- 
panhá-lo se  èle  marchasse  para  Ghaves,   a  ala- 


S.    MIGUEL    ARCANJO  177 


car  Vinhais.  E  nSo  eram  só  os  homens;  eram 
as  mulheres  também,  as  lindas  mulheres  de  Sa- 
lamonde  e  da  Ribeira  de  Sonas,  que  deixavam 
tudo,  lar.  marido,  filhos,  para  seguir  atrás  dele, 
desgrenhadas,  de  clavina  nas  mãos.  O  bom  povo, 
o  liai  povo  transmontano!  Quando,  quási  aban- 
donado, se  recolheu  a  Vieira,  o  Antas  marchou 
de  Lisboa  com  uma  brigada  de  mil  e  seiscentos 
soldados,  para  o  cercar,  para  o  caçar  como  a  um 
lobo.  Era  ôl6  o  terror.  Era  êle  o  espectro  duma 
rialeza  de  seis  séculos,  arrastando  o  seu  manto 
pela  urze  negra  das  montanhas.  Marchava  com 
um  rosário  e  um  arcabuz  nas  mãos.  Se  quisesse 
—  conta  èle  ao  rei  —  teria  levado  cem  mil  ho- 
mens às  portas  de  Lisboa.  Até  um  regimento 
espanhol,  sublevado  na  Galiza,  se  lhe  fora  apre- 
sentar em  massa,  oficiais  à  frente,  ao  seu  pobre 
passal  de  Vieira.  E  depois!  Depois,  no  movi- 
mento de  novembro  organizado  pelo  Doutor  Cân- 
dido, o  santo,  o  virtuoso  logar-tenente  do  seu 
arcanjo  S.  Miguel!  Ao  seu  brado  de  armas,  os 
estudantes,  os  artífices,  o  povo  inteiro  de  Braga 
e  das  aldeias  correu  a  juntar-se-lhe,  como  iima 
só  alma,  como  um  só  coração.  Quem  se  opôs 
a  que  êle,  padre  Casimiro,  sozinho,  sem  dinhei- 
ro, levantasse  contra  saldanhistas,  contra  setem- 
bristas, contra  todos, — milhares  e  milhares  de 
homens?  Mac-Donell,  o  próprio  Mac-Donell  co- 
mandante das  forças  miguelistas  de  Braga,  — 
Mac-Donell,  o  traidor.  O  padre  Casimiro,  do  alto 

12 


178  NA    lIlSTÓRn 


dos  seus  serviços,  do  seu  prestígio,  do  seu  de^ 
sassombro,  —  acusa.  Mac-Donell,  o  escocês,  era 
um  maçon.  O  seu  nome  andava,  em  Paris,  nos 
almanaques  dos  pedreiros-livres.  E  porque  era 
um  maçon,  um  vendido,  impediu-o,  a  êle,  de  le- 
vantar gente  armada  contra  os  clubistas,  contra 
os  d  evo  ri  st  as,  contra  os  Co  burgos  de  Lisboa. 
atraiçoou,  abriu  as  portas  a  Cazal,  preparou  o 
massacre  tremendo  de  Braga  em  31  de  dezem- 
bro,—  e  por  engano,  por  equívoco,  por  confu- 
são, por  castigo  de  Deus,  foi  morrer,  caminho 
de  Vinhais,  às  mãos  duma  patrulha.  Que  o  Dou- 
tor Sacra-Família  não  deixasse  de  o  repetir  ao 
rei:  a  coroa  resvalára-lhe  mais  uma  vez  da  ca- 
beça, porque  Mac-Donell  era  um  traidor.  Afir- 
ma-o  êle,  padre  Casimiro,  com  a  autoridade  mo- 
ral de  quem  jogou  a  vida.  de  quem  perdeu  os 
bens.  de  quem  viu  morrer  pai  e  irmão,  de  quem 
andou  homisiado,  a  monte  como  os  lobos,  — 
pela  causa  sagrada  de  D.  Miguel.  Não  quer  hon- 
ras; não  quer  dinheiro,  porque  só  aceitou  vinte 
mil  réis  para  seis  arrobas  de  pólvora:  quer  um 
rei  português  para  Portugal,  e  jura  que  há-de 
continuar  a  bater-se,  com  a  cruz  e  a  clavina  nas 
mãos,  até  ver  de  todo  edificados  os  muros  da 
nova  Jerusalém. 

Pobre  padre  Casimiro!  Ingénuo  Du  Guesclin 
do  miguelismo  expirante!  Pouco  tempo  andado, 
—  a  íé  extinguia-se,  miguelistas  e  patuleias  con- 
fraternizavam,   germinava   a   semente   da   dissi- 


S.    MIGÍIFL    ARCANJO  iTê 

•  lencia  c  da  intriga,  da  defecção  e  do  ódio,  e  a 
pobre  sombra  do  guerrilheiro  de  Vieira,  abra- 
çada ao  seu  arcabuz  e  ao  seu  rosário,  dissipa- 
va-se  para  sempre,  como  fumo. 


i 


A  MORTE  DE  D.  JOÃO  VI 


D.  João  VI  morreu  envenenado? 

Esta  pergunta  tem  sido  feita  várias  vezes. 
Logo  que  o  rei  adoeceu,  no  dia  4  de  março  de 
1826,  a  paixão  política  atribuiu  imediatamente 
a  enfermidade  de  D.  João  vi  a  uma  acção  cri- 
minosa. O  pobre  monarca,  obeso,  artrítico,  ba- 
lofo, com  o  beiço  pendente  e  as  úlceras  maleo- 
lares  dos  Braganças  e  dos  Habsburgos,  fora  ví- 
tima do  duelo  apostólico-liberal  travado  em  volta 
do  trono.  O  carácter  da  doença,  a  sua  aparição 
súbita,  o  seu  duplo  síndroma  nervoso  e  gastro- 
intestinal, os  delíquios,  as  convulsões,  os  vó- 
mitos, avolumaram  a  suspeita  de  veneno.  Quem 
o  propiciara  ao  rei?  Para  os  apostólicos  não 
havia  dúvidas:  os  liberais.  Para  os  liberais  não 
havia  dúvidas  também:  a  rainha.  Quando  D. 
João  VI  morreu,  a  questão  foi,  por  ambas  as 
partes,    posta  com   ódio,    com   facciosismo,    com 


A  MORTE  DE  D.   JOÃO  VI  ISI 


rancor.  Os  médicos  e  cirur^^iões  da  câmara  ti- 
nham assassinado  o  monarca.  Por  ordem  de 
quem  ?  Do  Intendente  Rendufe,  —  diziam  os  «cor- 
cundas». De  Carlota  Joaquina,  —  afirmavam  os 
pedreiros-livres.  Durante  muito  tempo,  os  dois 
partidos  atiraram-se  à  cara,  mutuamente,  o  ca- 
dáver do  rei.  O  crime,  para  uns  e  para  outros, 
t-ra  evidente.  Pôra  a  água  tofana  vinda  de  Ná- 
poles,—  de  que  já  morrera  o  cozinheiro  Gai- 
tano.  Pôra  o  veneno  do  Brasil  trazido  pelo  ci- 
rurgião Teodoro  de  Aguiar,  —  que  já  apressara 
a  morte  ao  conde  de  Vila  Verde.  Chegou-se  a 
afirmar  que  o  rei,  oficialmente  morto  no  dia  10 
de  março,  já  era  cadáver  desde  o  dia  6.  É  José 
Agostinho  de  Macedo  que  o  afirma,  três  anos  de- 
pois, na  Besta  Esiolada:  «Expirou  a  6  de  março 
pelas  quatro  horas  e  meia  da  tarde;  os  almudes 
de  vinagre  canforado,  que  corriam  em  ondas  por 
aqueles  pavimentos  manchados  com  o  mais  atroz 
de  todos  os  delitos,  e  a  incessante  sentinela  do 
filho  do  Noli  me  tangere  do  Porto,  quero  dizer 
o  Rendufe,  à  porta,  e  a  vista  da  Rial  Alcova, 
ainda  estão  mostrando  a  verdade  e  a  atrocidade 
de  tal  crime».  A  morte  repentina  do  Barão  fi- 
sico-mór,  o  velho  Alvaiázere,  que  ousara  falar  no 
veneno  ministrado  ao  rei,  teve  o  valor  duma 
confirmação.  O  suicídio  do  cirurgião  brasileiro 
Aguiar,  ocorrido  algum  tempo  depois,  foi  consi- 
derado um  acto  de  desespero  e  de  remorso.  Um 
cortejo  de  mortos  acompanhava  o  féretro  de  D. 


488  NA  HISTÓRIA 


João  vi.  Havia,  de  facto,  um  criminoso?  Se  ha- 
via, —  onde  estava  êle  ?  Em  Lisboa  ou  em  Que- 
luz? Na  Intendência  de  Polícia  ou  na  sala  D. 
Quixote?   Era  Rendufe  ou  era  a  rainha? 

Não  é  fácil  responder.  Os  indícios  abundam; 
mas  faltam  as  provas.  Vejamos  primeiro  a  ver- 
são oficial.  Sigamos,  através  dessa  versão,  a 
marcha  dos  acontecimentos.  No  dia  4  de  março 
de  1826,  o  rei,  antes  de  entrar  na  coche  que  o 
havia  de  conduzir  a  Mafra,  tomou  um  caldo. 
Repentinamente,  sentiu-se  mal  'e  não  partiu. 
Que  se  passou  depois  ?  Referem-no,  com  im- 
pressionante laconismo,  os  27  boletins  afixados 
e  publicados  na  Gazeta  de  Lisboa.  O  primeiro, 
datado  do  Paço  da  Bemposta,  5  de  março,  às  8 
horas  da  manhã,  e  assinado  por  sete  médicos, 
diz  o  seguinte:  «Sua  Majestade  Imperial  e  Rial 
teve  no  dia  sábado  quatro  do  presente  mês  de 
março  uma  indigestão,  acompanhada  de  insul- 
tos nervosos,  que  momentaneamente  duravam,  e 
dos  quais,  a  benefício  dos  remédios  que  se  di- 
gnou tomar,  se  acha  melhor  actualmente)).  Nada 
mais.  O  segundo  e  terceiro  boletins,  referentes 
ao  dia  5,  limitam-se  a  declarar  que  os  insultos 
nervosos  não  se  repetiram.  Os  dois  boletins  do 
dia  6  dizem  que  o  rei  piorou:  um  ataque  às  5  da 
manhã;  novos  ataques  do  meio  dia  às  2  horas, 
«um  deles  tão  violento  que  se  receou  muito  pela 
preciosa  vida  de  Sua  Majestade));  o  rei  é  ungido; 
das  2  e  meia   da  tarde  em   diante,    sonolência 


A  mohtf:  de  d.  j(i\()  vi  183 


profunda  (cama?).  É  neste  dia,  e  neste  estado, 
que  D.  João  vi  assina  o  decreto  nomeando  a 
reí^ôncia  e  entregando  o  governo  à  filha  mais 
velha.  No  dia  7  publicam-se  boletins  de  quatro 
em  quatro  horas:  dizem  todos,  invariavelmente, 
que  o  rei  está  melhor.  O  mesmo  no  dia  8:  os  se- 
te boletins  que  se  afixam,  declaram-no  livre  de 
perigo.  No  dia  0.  a  informação  da  tarde  volta  a 
acusar  um  insulto  nervoso  às  seis  horas.  No 
dia  10,  pela  manhã,  D.  João  vi  tem  «um  delíquio 
que  demora  10  minutos»;  à  1  hora  e  17,  novas 
convulsões,  que  se  repetem  às  2  horas.  O  úl- 
timo boletim,  datado  ainda  do  Paço  da  Bem- 
posta, 10  horas  da  noite  do  dia  1,  anuncia  a 
morte  do  monarca:  «Sua  Magestade  Imperial  e 
Rial,  que  Deus  há  em  glória,  tendo  continuado 
a  sofrer  repetidos  insultos  nervosos,  sobrevieram 
amiudadamente  três,  dos  quais  o  primeiro  come- 
çou às  quatro  horas  da  tarde  com  grandes  an- 
siedades; o  segundo  ás  quatro  horas  e  um  quar- 
to, e  durou  quatro  minutos;  o  terceiro  princi- 
piou às  quatro  horas  e  vinte  e  cinco  minutos, 
terminando  desgraçadamente  por  uma  síncope, 
à  qual  se  seguiu  a  morte  mais  calamitosa  para  os 
Portugueses  (infelizmente  verificada  até  pelas  ex- 
periências eléctricas)  às  quatro  horas  e  quarenta 
minutos».  Por  conseguinte,  ataques  às  8  e  meia, 
à  1  e  17,  às  4,  às  4  e  um  quarto,  às  4  e  25; 
IS  4  e  40,  síncope  cardíaca;  morte.  Eis  tudo 
quanto   oficialmente   se    soube.    José   Agostinho 


18A  NA  HISTÓRIA 


de  Macedo,  na  Besta  Esfolada^  faz-se  eco  da  voz 
do  povo;  diz  que  D.  João  vi  morreu  no  dia  6,  e 
afirma  que  o  último  boletim  foi  forjado  pelo  ci- 
rurgião brasileiro  Aguiar.  Ora  isto  não  é  ver- 
dade, porque  o  documento  que  acabo  de  trans- 
crever, publicado  na  Gazeta  do  dia  li,  está  assi- 
nado por  doze  dos  mais  ilustres  médicos  pala- 
tinos: o  barão  de  Alvaiázere,  fisico-mór,  e  os  dou- 
tores Bernardo  José  de  Abrantes  e  Castro,  Fran- 
cisco de  Sousa  Loureiro,  Mariano  Liai  da  Câmara 
Rangel  de  Gusmão,  Francisco  José  de  Almeida, 
Joaquim  Xavier  da  Silva,  José  Pinheiro  de  Frei- 
tas Soares,  Francisco  Alves  da  Silva,  João  To- 
más de  Carvalho,  Inácio  António  da  Fonseca  Be- 
nevides e  Joaquim  Félix  de  Barros.  Se  os  mé- 
dicos da  rial  câmara,  por  conveniências  de  or- 
dem politica,  se  prestaram  a  dar  como  tendo 
ocorrido  no  dia  10  um  óbito  presumivelmente 
verificado  quatro  dias  antes,  fizeram-no  sob  a 
responsabilidade  do  seu  nome  e  com  a  plena 
consciência  do  acto  que  praticavam.  O  que  im- 
pressiona no  documento  sujeito  não  é  a  ques- 
tão da  sua  autenticidade;  são  as  reservas  com 
que  êle  está  redigido.  Não  se  diz  de  que  doença 
D.  João  VI  morreu.  Alude-se  vagamente  a  «in- 
digestão», a  «ansiedades»,  a  «insultos  nervosos», 
—  quer  dizer,  a  perturbações  gastro-intestinais 
e  a  fenómenos  convulsivos  de  carácter  indeter- 
minado, mencionando-se  apenas  o  acidente  ter- 
minal: a  síncope.   Tratar-se-ia  de  um  caso  vulgar 


A  MORTE  DE  D.   JOÃO  VI  185 


de  urémia  aguda?  Tratar-se-ia  de  um  crime? 
Pelos  elementos  que  a  versão  oficial  nos  fornece, 
não  é  fácil,  como,  se  vê,  formar  um  juízo  seguro. 
Há.  porém,  versões  não  oficiais  acerca  da 
morte  de  D.  João  vi,  que  esclarecem  melhor  o 
raso.  Uma  delas  tem  especial  interesse.  É.  de 
todas  as  que  correram.,  a  menos  impregnada  de 
ódios  políticos.  Encontrei-a  num  folheto  de  au- 
tor ignorado  e  de  carácter  acentuadamente  apos- 
tólico, escrito  em  francês,  publicado  em  Lisboa 
ejn  1832,  e  intitulado  Memoires  sur  le  Portugal. 
O  autor,  que  parece  ter  conhecido  de  perto  os 
homens  políticos  do  seu  tempo,  não  contesta  que 
D.  João  \i  sucumbisse  a  doença.  Acha  mesmo 
natural  que  o  facto  de  se  haverem  fechado  de 
repente  as  úlceras  que  o  rei  tinha  nas  pernas,  de- 
terminasse os  acidentes  observados  no  dia  4. 
aDepuis  quelque  temps,  la  santé  du  roi  donnait 
des  inquièíiíudes;  des  plaies  quil  avait  aux  lam- 
bes s^étaient  fennées^  et  il  reíusait  de  se  sou- 
mettre  aur  r^nnèdes  qui  pouvaient  prevenir 
de  funestes  resultais.  Des  mcdecins  aon  suspects 
pensent  que  ce  put  étre  la  cause  de  sa  mort^  el 
touí  homme  irnpartial  doit  le  croire,  à  défaut  de 
preuves  positives  du  contraire,).  Nilo  foi  o  ve- 
neno que  produziu,  segundo  o  autor  francês  anó- 
nimo, a  doença  de  D.  João  vi;  mas  —  e  aqui  a 
sua  afirmação  é  categórica  —  foi  uma  poção  mi- 
nistrada ao  rei,  no  dia  6,  que  lhe  apressou  o 
fim.    Quem    lha   deu?   Um    médico    da    rial    cá- 


186  NA   HISTÓ1U\ 


mara,  ninicié  aux  sociétés  sécrètes»,  ((recom- 
pense avec  des  titres  et  de  Vargenh).  ((exer- 
çant  hl  pJus  scandaleuse  inlhience  snr  les  af- 
faircs  de  l'Etat))- — em  quem  não  é  difícil  re- 
conhecer o  doutor  Francisco  José  de  Almei- 
da, médico  palatino  honorário,  depois  barão 
de  Almeida.  Quem  foi  o  seu  cúmplice?  (dln 
chirurgien  brésilien^  nouimé  depuis  chargé  d^af- 
iaires  du  Brésil  en  Portugah,  —  que-r  dizer,  o 
cirurgião  da  câmara  Teodoro  Ferreira  de  Aguiar. 
A  história  tem  um  pouco  de  Rocambole.  Veja- 
mos. No  dia  6  —  e  isto  concorda  com  a  infor- 
mação dos  boletins  —  D.  João  vi  piorou;  os  ata- 
ques sucederam-se;  o  rei  caiu  em  sub-coma. 
Os  liberais  do  governo,  ou,  mais  propriamente, 
o  complot  Lacerda-Rendufe,  temendo  que  a 
morte  próxima  do  monarca  trouxesse  a  regência 
da  rainha,  o  regresso  de  D.  Miguel  e  a  vitória 
dos  ((corcundas»,  lavraram  o  decreto  que  entre- 
gava o  governo  à  infanta  Isabel  Maria  e  no- 
meava regentes,  com  os  secretários  de  Estado,  o 
duque  do  Cadaval,  o  marquês  de  Valada  e  o 
conde  dos  Arcos.  Era  preciso  que  o  rei  assi- 
nasse esse  decreto.  Reclamava-o  a  causa  dos  li- 
berais. Exigia-o  o  próprio  ministro  de  Ingla- 
terra. Mas  como  obter  a  assinatura  dum  mori- 
bundo ?  Gomo  despertar  D.  João  vi  do  seu  le- 
targo? É  então,  diz  o  autor  das  Memoires  sur 
le  Portugal,  que  o  médico  Almeida  intervém. 
((//  réunit  ses  collegues,   ei  les  consulta  snr  les 


A  MORTE  DE  D.   JOÃO  VI  18' 


moyens  de.renére  au  roi  assez  de  force  pour  si- 
(jner  un  acte  d'oii  dcpendait  la  tranquillité  de 
lÊtat.  Un  deux  lui  rappella  que,  peu  dannées 
avant,  1e  comte  de  Villa  Verde  etant  à  Vextré- 
mité,  il  lui  avair  donné,  par  ordre  exprès  de 
Je(m  VI  lui  méme.  une  poíion  qui  Vavait  ranirné 
de  manière  à  ee  qu'il  put  indiquer  ou  se  trou- 
vaient  des  papiers  dont  la  possession  importait 
au  roi:  mais  que^  si  cette  poíion  n^avait  pas  cause 
la  raort  de  ce  seigneur,  elle  iavaít  du  rnoins  acce- 
lerée;  qu^elle  produirait  sans  doute  le  mème  ef- 
fect  sur  Jean  VL  e/,  qu\ine  telle  responsabilité 
ne  laissait  pas  d'étre  clfrayante.  Le  medecin  qui 
avait  provoque  cette  conférence,  la  termina  bien- 
tòt;  et,  secondé  par  un  chiruryien  de  la  cham- 
bre, sujet  Brésilien  qui  avait  su  capter  la  con- 
{iance  de  Jean  VI,  il  fit  prendrc  au  roi,  sans  plus 
hcsiter,  la  fatale  potion.  Ce  malheureux  prince 
par-ut  en  effect  se  ranimer;  il  rcprit  quelque  con- 
naissance,  et  Von  se  hâta  d'en  profiter:  mais  à 
peine  eut-il  jetc  les  yeux  sux  le  papier  quon  lui 
présentait^  qu'il  le  repoussa:  d^horribles  convul- 
sions  terminèrent  ce  prcmier  essai.  Dès  qu'on 
le  vit  un  peu  plus  tranquille.  on  recommença; 
cette  tentative  fui  suivie  d\in  nouvel  accident. 
Le  mornent  était  critique:  la  potion  allait  agir 
dans  toute  sa  violence;  il  fallait  en  finir.  On 
écarta  sévérement  tous  les  temoins  qui  netaihni 
pas  interesses  au  silence^  et  on  se  rendit  maitre 
ainsi  des  derniers  mtnrif  iits  de  Jeati   17.    Le  dr- 


188  NA   HISTÓRIA 


crét    fut    signé.     Comment  ?    Cest    ce    que    Von 
ignore;  c'est  ce  quon  im/igine  avcc  horreur.)) 

Não  sei  se  esta  admirável  scena  de  tragédia 
política  se  passou  como  o  autor  a  descreve.  No 
fundo,  tratar-se-ia  de  um  vulgar  facto  clínico: 
a  administração  de  um  estimulante  enérgico  a 
um  doente  prestes  a  morrer  pelo  coração  ou 
pelo  rim.  Que  estimulante  era  esse?  Em  que 
dose-  foi  dado  ?  Quais  as  intenções  reservadas 
de  algum  ou  de  alguns  médicos  palatinos  ?  Im- 
possível sabê-lo  hoje.  Se  houve  crime,  as  pro- 
vas faltam.  O  autor  das  Memoires  diz  que  se  fez 
anatomia  ao  cadáver  rial  e  que  se  encontraram 
vestígios  de  veneno.  (^A  Vouveríure  de  son  corps, 
des  chirurgiens  experimentes  reconnurent  les 
traces  d^un  poisou  aciil  et  brulant:  provenaient- 
elles  de  la  potion  quon  avait  fait  prendre  à 
Jean  VI.  oú  etaient-elles  le  resuUat  d'un  crime 
anterieur?))  Procurei  o  relatório  da  autópsia. 
Encontrei  outros,  —  entre  eles  o  de  D.  Pedro  iv. 
Não  encontrei  o  de  D.  João  vi.  Ou  não  chegou 
a  abrir-se  o  cadáver  do  rei,  —  ou  o  documento 
desse  acto,  possivelmente  comprometedor,  desa- 
pareceu. 


o  SARAMBEQUE 


Nô  propósito  (ie  estudar,  em  toda  a  extensão 
do  seu  pitoresco,  a  vida  da  sociedade  portuguesa 
do  século  XVIII,  fiz  reconstituir,  no  Conservató- 
rio, uma  das  danças  tradicionais  dos  séculos  de 
seiscentos  e  de  setecentos.  Chama-se  essa  dan- 
ça—  o  «sarambeque».  É  um  bailado  de  movi- 
mentos vivos,  saracoteado,  desnalgado,  menos 
grosseiro  do  que  a  «fofa»  dos  alfamistas  e  das 
regateiras  do  tempo  de  D.  João  v,  mais  rápido 
e  mais  vivaz  do  que  a  «chacoina»,  o  «oitavado» 
ou  o  «Zabel-Macau».  Dançaram-no  seis  «gaivo- 
tas» de  josèzinhos  encarnados  e  lenços  bicudos 
de  cambraia,  e  sei:^  «francelhos-móres»  do  tem- 
po de  Filinto,  com  as  suas  casacas  de  seda,  os 
seus  bicornes  enormes,  as  suas  gravatas  «de  es- 
peque», os  seus  brincos  nas  orelhas,  o  seu  óculo 
de  punho  de  prata, —degenerescências  beatas 
e  apostólicas  do  terrível   incroyable  da  Revolu- 


190  NA    HISTÓRIA 


ção.  Baleií-lhe  os  ritmos,  num  cravo  de  oitav.i 
larg:a,  o  talento  de  Hermínio  Nascimento.  Ro- 
constituiu-lhe  as  marcas  —  ou  as  ((mudanças». 
como  se  dizia  no  século  xviii  —  a  competência 
de  António  Pinheiro.  E  a  velha  dança,  que  em 
1730  fizera  tremer  de  indignação  na  sua  púr- 
pura o  nobre  cardeal  da  Cunha, — teve  um  su- 
cesso. 

O  que  era  o  ((sarambeque»  ?  Qual  foi  a  sua 
história  ?  Sâo  poucos  os  documentos  que  se 
referem  a  esta  dança  e  poucas  as  indicações 
subsistentes  àcêrca  dos  seus  «passos»  e  «figu- 
ras». O  que  parece  é  que,  como  a  «fofa»,  como 
o  «canário»,  como  o  «arromba»,  como  o  «arre- 
pia», era  uma  dança  originariamente  portu- 
guesa. Estava  em  plena  moda  no  meado  do  sé- 
culo XVII,  —  e  o  povo  ainda  delirava  com  ela,  na 
procissão  do  Corpus  Chrisii^  ao  fim  do  século 
xviii.  Ao  passo  que  a  «galharda»,  o  «pé  de  chi- 
báo»,  a  «pavana  rica»  morriam  ao  expirar  de 
seiscentos,  —  o  «sarambeque»  batia-se  com  as 
«cheganças»  no  tempo  de  D.  João  v,  disputava 
o  sucesso  ao  «fandango»  no  consulado  pomba- 
lino, e  dançavam-no  ainda,  no  tempo  dos  fran- 
ceses, com  a  mesma  fúria  esbelta,  desnalgada 
e  brejeira,  os  spencers  azuis  bordados  de  oiro 
dos  oficiais  de  Junot  e  os  encantadores  capo- 
tes encarnados  que  deslumbraram,  no  princípio 
do  século  XIX,  a  viva  duquesa  de  Abrantes.  A 
vida   do   «sarambeque»   durou,    pelo  menos,    sé- 


s\R\MnFQT-r:  191 


culo  e  meio.  A  princípio,  bailavam-no  as  senho- 
ras fidalgas,  por  passatempo,  nas  suas  câma- 
ras e  orat(3rios.  Mas  logo  a  moral  de  mosteiro 
o  de  cavalariça  que  caracterizou  o  século  xvii 
português,  condenou,  como  demasiado  desenvol- 
ta, uma  dança  que  à  similhança  da  «sarabanda» 
se  bailava  com  os  braços  e  com  as  pernas,  sa- 
pateando e  estalando  castanholas  à  volta  dum 
tapete  ou  duma  esteira.  O  primeiro  a  fulminá-la 
foi  D.  Francisco  Manuel,  discutindo,  na  Carta 
de  Guia  de  Casados^  os  passatempos  permitidos 
às  esposas:  «Não  louvo  o  trazer  castanhetas  na 
algibeira,  saber  jácaras,  e  entender  de  mudan- 
ças do  sarambeque,  por  serem  indícios  de  desen- 
voltura». Essa  desenvoltura  fundamental  fez, 
daí  por  diante,  a  fortuna  da  antiga  dança  seis- 
centista. O  «sarambeque»  desceu  ao  povo;  pas- 
sou dos  tacões  vermelhos  das  «franças»  para  os 
socos  de  pau  das  maranhôas;  invadiu  as  hortas 
do  Catavento  e  os  terreiros  da  Mouraria;  fez 
as  delícias  dos  picões  do  Mocambo  e  dos  car- 
pinteiros da  Ribeira  das  Naus,  —  e  farto  de  sa- 
racotear-se  atrás  do  pálio  doirado  das  procis- 
sões, ao  lado  dos  mochatins  e  do  rei  David,  sur- 
giu, no  meado  do  século  wni,  inesperadamente, 
bravamente,  em  plenas  toiradas  fidalgas  do  Ter- 
reiro do  Paço.  Em  1752  vêmo-lo,  preferido  pelo 
povo,  adorado  pelo  povo,  dançar-se  perante  as 
nobres  tranqueiras  de  toiros  que  o  marquês  de 
Abrantes  levantara  vm  honra  de  el-rei  D.  José, 


lOj  NA   HISTÓRIA 


Um  folheto  de  cordel  aMapa  curioso  das  visto- 
sas entradas  e  danças  que  hão-de  preceder  aos 
combates  de  touros  que  no  Terreiro  do  Paço  se 
hão-de  combater  nos  primeiros  dias))^  dá-nos  a 
impressão  da  grosseira  folia  popular  em  que  se 
teria  transformado,  no  terceiro  quartel  do  sé- 
culo XVIII,  o  aristocrático  «sarambeque»  de  1650: 

*Outra  flavça  se  cobiça 

E  ãiz^m  que  há-de  ir  à  praça  : 

A  dança  do  sarambeque. 


Emfím.  haja  sarambeque, 
Dancem.,  tremam ,  dêm  ao  beque, 
Que  é  isso  que  o  povo  quer.> 

Foi  precisamente  a  forma  plebeia  do  «saram- 
beque» que  eu  fiz  reconstituir  no  Conservató- 
rio. É  curioso  que,  na  evolução  desta  dança, 
se  dá  exactamente  o  contrário  do  que  se  deu  na 
evolução  da  «fofa».  A  «fofa»,  que  é,  no  seu  iní- 
cio, uma  dança  de  negros,  «/a  plus  indecente 
chose  que  faye  jamais  vuc))^  diz  Dalrymple  em 
1774,  reaparece,  com  o  néo-niarialvismo  de  1830, 
entre  as  contradanças  francesas  e  os  caldos  de 
galinha  de  Queluz,  transformada  numa  dança 
de  sala;  o  «sarambeque»,  pelo  contrário,  dança 
aristocrática  do  século  xvii,  bailada,  como  a 
«galharda»  e  a  «pavana»,  com  os  garavins  de 
pérolas  e  as  anquinhas  bojudas  de  Velasquez 
e  de  Pantoja  de  la  Cruz,  resvala  das  hortas  para 


o    SARAMBEQUK  193 


as  toiradas,  das  procissões  para  as  ruas-sujas, 
e  morre  em  pleno  carnaval  de  1820,  em  pleno 
Entrudo  dos  casacas-de-briche.  deixando  atrás 
•  ie  si  um  tipo  imortal:  o  Ché-Chc 


UM  DIPLOMATA 


Como  se  sabe,  a  França,  ou  melhor,  Bonapar- 
te, mandou  a  Portugal  em  1802,  como  enviado 
extraordinário  e  ministro  plenipotenciário,  o  mais 
grosseiro  e  insolente  dos  seus  generais:  João  Lan- 
nes.  Não  era  um  diplomata;  era  um  arrieiro. 
Não  era  um  homem:  era  uma  tempestade  de 
má  criação.  Pois  bem.  Do  copiador  dos  seus 
ofícios  ao  ministro  Talleyrand,  que  tenho  aber- 
to diante  de  mim  e  que  é  pouco  menos  que  des- 
conhecido, conclue-se  que  o  general  Lannes, 
moço  de  cavalariça  boçal  que  Napoleão  fez  du- 
que de  Montebello  e  marechal  de  França,  se 
queixou  amargamente  ao  ministro  e  ao  primeiro 
cônsul  de  que  viera  encontrar  em  Lisboa,  com 
espanto  seu,  um  homem  ainda  mais  insolente  e 
mais  mal  educado  do  que  êle.  Pois  era  difícil. 
Sabem  quem  foi  esse  homem  ?  O  Intendente 
de  polícia,  Dicgo  Inácio  de  Pina  Manique.    Não 


UM    DIPLOM\TA  195 


é  caso,  evidentemente,  para  que  o  nosso  senti- 
mento patriótico  se  exalte;  mas  ainda  é  conso- 
lador, como  justa  expressão  do  orgulhu  nacio- 
nal, saber  que  houve,  na  Lisboa  timorata  e 
;ip(>st<')lica  de  1802.  quem  batesse  o  pé  ao  mais 
violento  e  ar»  mai^  brutal  dos  generais  de  N.i- 
[M.)|eãu. 

Na  rápida  leitura  que  fiz  dele,  afigurou-se-me 
iiuiito  interessante  o  copiador  de  ofícios  de 
Laiiues.  Abrange  os  dois  períodos  de  residên- 
lia  do  herói  de  Marengo  e  de  Stradella  em  Lis- 
Itoa:  o  primeiro,  de  março  a  agosto  de  1802;  o 
segundo,  de  março  de  1803  a  julho  de  1804.  A 
propósito  das  suas  reclamações  junto  do  governo 
português  nos  casos  de  M.'"^  de  Entremeuse  e 
do  negociante  Lucalelli,  de  M.®"^  Agathe  e  de 
Pascal  Telon,  e,  nmito  especialmente,  acerca  do 
contrabando  que  Pina  Manique  lhe  não  deixava 
iazer, '  descompõe  para  França  o  Regente,  os 
niinistros,  a  corte,  o  Intendente  de  polícia,  mal- 
sina tudo.  intriga  tudo,  calunia  tudo,  e  acaba 
por  convidar  o  primeiro-cônsul  a  empreender 
a  conquista  sumária  de  Portugal,  naturalmente 
para  que  Sua  Excelência  o  enviado  extraordi- 
u.lrio  de  Bonaparte  pudesse,  com  mais  facilidade, 
furtar  aos  direitos  as  fazendas  de  contrabando 
que  vendia  em  Lisboa  aos  negociantes  Leguer, 
Lucatelli  e  Maisonneuve.  Mas  o  que  é  mais  cu- 
rioso ainda  do  que  todas  as  violências  e  todos 
"S  insultcís,  é  o  conceito  político  que  o  general 


196  NA    HISTÓRIA 


Lannes  formava  dos  homens  que,  em  Portugal, 
exerciam  o  governo.  As  suas  opiniões  sobre  D. 
João  VI,  sobre  D.  João  de  Almeida,  sobre  D.  Ro- 
drigo de  Sousa,  não  falando  já  no  seu  inimigo 
Pina  iManique,  —  são  incisivas,  rápidas,  pitores- 
cas, muitas  vezes  incoerentes.  De  D.  João  vi,  faz, 
em  março  de  i802,  este  retrato,  que  vai  no  ori- 
ginal francês  para  não  perder  o  sabor:  aQuant 
au  Prince,  il  est  completement  nul,  sa  seule  oc- 
cupation  est  la  chasse  et  son  unique  plaisir  esl 
de  chanter  au  lutrin  et  de  s'y  faire  applaudir 
par  les  moines )).  Alas  como  o  Regente,  com 
medo  dele,  o  enche  de  jóias,  lhe  dá  o  seu  re- 
trato rodeadO'  de  diamantes,  e  é  padrinho  do  fi- 
lho que  lhe  nasce  em  Portugal, — Lannes  con- 
verte-se,  mente,  elogia-o  nas  cartas  para  Tal- 
leyrand,  e  não  tem  dúvida  em  afirmar,  no  seu 
ofício  de  março  de  1803:  aLe  Prince  est  Jr  plus 
hrave  et  le  plus  honnête  homme  de  sori  royau- 
me...))  O  ministro  dos  estrangeiros  e  da  guerra, 
D.  João  de  Almeida,  é  «um  caixeiro  e  um  in- 
caio  do  ministro  inglês,  espécie  de  boneco  mo- 
vido pelo  gabinete  de  Londres»;  o  ministro  da 
fazenda,  D.  Rodrigo  de  Sousa,  «homem  violento, 
brutal,  é  o  inimigo  jurado  da  França,  capaz  de 
sacrificar  o  príncipe,  a  pátria  e  a  própria  honra 
por  um  capricho  de  bêbedo»;  todos  os  ministros 
são  aanti-lrançais^  et  plus  anglais  que  les  an- 
glais  Bux-mêmesn;  Luís  Pinto  é  «um  beato  hi- 
pócrita»;— ^mas   o   retrato   mais   pitoresco,    jus- 


UM    DIPLOMATA  197 


lamente  por  ser  o  mais  rancoroso  de  todos,  é 
o  de  Pina  Manique,  o  homem  com  quem  Lan- 
nes  tem  em  Lisboa  um  verdadeiro  duelo  de  in- 
sultos, de  grosserias  e  de  brutalidades;  quo 
chega  a  ser  demitido  da  Administração  Geral 
das  Alfândegas  por  imposição  de  Bonaparte;  que 
apreende  ao  ministro  as  mercadorias  de  con- 
trabando nos  pacabotes  de  França  e  da  Holan- 
da; que  lhe  manda  prender  o  próprio  secretário 
aa  embaixada,  sem  mais  forma  de  processo; 
que  vai  até  ao  extremo  de  proibir  que  Lannes 
entre  no  paço  de  Queluz  para  falar  a  D.  João  vr. 
que  lhe  manda  cercar  todas  as  noites  a  casa 
pelas  «moscas»  da  Intendência  de  Polícia, — e 
que  faz  perder  de  tal  modo  a  cabeça  ao  minis- 
tro de  Napoleão,  que  Lannes,  completamente 
desorientado,  escreve,  em  outubro  de  1803,  num 
despacho  para  Talleyrand:  «Só  lhe  pergunto, 
Cidadão  Ministro,  se  devo  esperar  que  esse  ho- 
mem venha  à  minha  casa  insultar-me  e  ba- 
ter-me.  Estou  certo  de  que  já  o  teria  feito,  se  não 
soubesse  que  o  não  faria  impunemente !»  E, 
dias  depois,  noutro  despacho:  «Esse  miserável 
de  Pina  Manique  ameaça-me,  cerca-me  de  esbir- 
ros, prende  os  meus  criados,  persegue  o  meu 
ajudante  de  campo,  arranca  de  dentro  da  car- 
ruagem o  meu  secretário  de  legação,  e  amanhã 
é  capaz  de  me  vir  insultar  a  mim  !»  Pinta  o 
Intendente  como  «um  homem  ignorante,  de  ca- 
rácter baixo  e  feroz,  dominando  D.  João  vi  pelo 


108  NA    HISTÓRIA 


terror,  sendo  o  instrumento  vil  dos  ódios  de  to- 
dos os  ministros,  a  alma  da  própria  atrocidade, 
e  tornando,  por  si  só,  Lisboa  inabitável».  Pina 
Manique-  é  o  culpado  de  tudo,  —  dos  negocian- 
tes què  quebram,  das  barcas  que  se  afundam, 
dos  franceses  que  morrem,  dos  emigrados  que 
se  armam,  da  suprema  afronta  de  D.  João  vi 
ter  recebido-  em  Queluz  Goigny,  o  delegado  de 
Luís  XVIII  — ,  e  o  seu  poder,  a  sua  grosseria,  a 
sua  insolência,  a  sua  audácia  são  de  tal  ordem, 
que  não  tiá  maneira  de  o  derrubar,  conclue 
Lannes,  atant  que  la  France  ne  prendra  pais  à 
Vcgard  de  Portugal  une  contenance  aggressive)>. 
Ê  admirável  que  o  marechal  Lannes  tivesse 
de  vir  a  Portugal  para  encontrar  um  homem 
mais  mal  criado  do  que  êle  ! 


FREI  MANUEL  DE  SANT^ANA 


O  atentado  de  3  de  setembro  de  1758  con- 
tra a  vida  do  rei  D.  José,  a  que  o  autor  das 
Anecdotes  du  ministère  du  marquis  de  Pombal 
chama  «uma  quimera»,  teve  como  consequên- 
cia a  instauração  de  dois  processos:  um,  o  pro- 
cesso dos  Távoras, — que  foi  a  tragédia;  outro, 
o  processo  de  Frei  Manuel  de  SanfAna,  — que 
foi  a  farça.  Em  ambos  deixou  a  sua  assinatura 
Sebastião  José  de  Carvalho.  O  primiCiro,  que 
destroncou  as  mais  puras  costelas  de  oiro  da 
nobreza  portuguesa,  toda  a  gente  o  conhece,  — 
ao  menos  do  traslado  da  sentença  de  12  de  ja- 
neiro de  1759,  que  corre  impressa  em  várias  co- 
lecções de  leis  e  acórdãos  do  Desembargo  do 
Paço;  o  segundo,  onde  sorri  um  pobre  leigo 
franciscano  da  Província  dos  Açores, — creio 
que  poucos  o  conhecerão.  Tenho  aqui,  na  mi- 
nha frente,    o   original   deste   processo.    Apesar 


20'»  NA    HISTÓRIA 


de  pouco  volumoso,  não  sei  de  mais  admirável 
pintura  da  vida  lisboeta  do  século  xviii.  Vou  fa- 
lar-lhes  dele,  -  e  dizer-lhes  quem  foi  e  que 
crime  cometeu  (>  leigo  Frei  Manuel  de  SanfAna. 
Na  manhã  de  30  de  dezembro  de  1758,  por 
conseguinte  quinze  dias  antes  do  suplício  dos 
fidalgos  em  Belém,  uma  mulher  —  nos  proces- 
sos de  frades  entram  quási  sempre  mulheres  — 
procurou,  embrulhada  no  seu  manto  de  dro- 
guete,  o  Corregedor  do  Bairro  Alto,  e  disse-lhe 
que  tinha  importantes  declarações  a  fazer  no 
feito  crime  contra  o  duque  de  Aveiro.  O  magis- 
trado esbugalhou  os  olhos,  mandou-a  assentar 
numa  cadeira  velha  de  moscóvia  e  chamou  o 
escrivão.  Viva,  esperta,  desembaraçada,  D.  Mar- 
garida Antónia  de  Miranda  —  assim  era  a  gra- 
ça da  mulher  —  trinta  anos,  rosiclér  de  diaman- 
tes no  topete,  saia  verde  de  crespos  de  Lamego, 
uma  verónica  da  Senhora  do  Pilar  ao  pescoço, 
contou  que  dois  dias  antes,  na  manhã  de  28, 
vindo  ela  da  missa  e  estando  em  casa  do  Bene- 
ficiado José  Gomes  Ribeiro,  com  quem  vivia 
(não  consta  a  que  título)  na  rua  da  Rosa  das 
Partilhas,  —  entrara  um  frade  francisoano  de 
visite^  ao  Beneficiado,  e  dissera  «que  se  os  fidal- 
gos fossem  degolados  havia  de  haver  muito 
murro  e  muito  sangue;  que  o  não  sentiria  ela, 
por  ser  solteira,  mas  que  haviam  de  senti-lo  as 
casadas;  e  que  os  verdadeiros  suspeitos  no  aten- 
tado contra  el-rei  não  eram  os  senhores  fidalgos, 


i 


FREI    MANUEL    DE    SANT'ANA  201 


mas  certas  pessoas  que  êle  conhecia  e  que  viviam 
numa  terrinha  perto».  O  Corregedor  do  crime, 
apoplético,  perguntou  o  nome  do  frade.  D.  Mar- 
ííarida  Antónia  respondeu  sem  tergiversar:  cha- 
mava-se  na  religião  Frei  Manuel  de  SanfAna, 
era  cunhado  do  porteiro  do  duque  de  Aveiro, 
leigo  franciscano  da  Província  dos  Açores,  e 
guardava  em  Belém  a  casa  do  duque  desde  que 
êle  fora  preso.  Que  razões  de  interesse  ou  de 
sentimento  moveriam  esta  mulher  na  denúncia 
do  pobre  donato  de  S.  Francisco  ?  A  intenção 
ambiciosa  de  prestar  um  serviço  à  causa  do 
ministro  e  do  rei  ?  O  propósito  de  se  vingar  dal- 
guma  partida  de  Frei  Manuel,  que  tinha  todos  os 
defeitos  dos  franciscanos  —  e  que  não  devia 
nada  à  virtude  ?  O  processo  não  o  diz.  Sabe-se 
apenas  que  o  Corregedor  do  Crime  do  Bairro 
Alto  voou  à  rua  Formosa  a  casa  do  ministro: 
que  Frei  Manuel  de  SanfAna  foi  imediatamente 
preso;  que  nessa  mesma  hora  se  expediu  aviso 
ao  Juiz  da  Inconfidência,  Pedro  Gonçalves  Cor- 
deiro Pereira,  e  ao  desembargador  da  Casa  da 
Suplicação.  António  de  Oliveira  Machado,  no- 
meado para  servir  de  escrivão  na  diligência;  — 
e  que  ainda  nesse  dia,  em  Belém,  no  Paço  da 
Quinta  do  Meio.  o  pobre  leigo  franciscano,  em- 
brulhado no  seu  chiote  de  estamenha,  a  tre- 
mer e  a  ramalhar  as  caniândulas,  verde  como 
uma  convalescença  de  sezões,  era  chamado  a 
perguntas  perante  o  ministro  Sebastião  José  flf^ 
Carvalho.    Negou  tudo.    Que  não;  que  não  pro- 


'702  NA    HISTÓRIA 


nunciara  similhantes  palavras;  que  estava  ino- 
cente: que  só  se  lembrava  de  ter  repetido  umas 
trovas  do  Bandarra,  que  diziam  «bemaventurada 
a  mulher  que  no  ano  de  1759  encontrar  marido». 
O  ministro  devia  ter  feito  uma  ideia  justa  da 
inteligência  do  frade  e  da  importância  da  causa, 
porque  já  não  esteve  presente  no  dia  1  de  ja- 
neiro, quando  se  procedeu  à  acareação  de  Mar- 
garida Antónia  com  Frei  Manuel  de  SanfAna. 
Essa  acareação  foi  curiosa.  O  frade  batia  as 
sandálias  no  chão  de  tijolo  do  Paço  e  continuava 
negando;  o  Juiz  da  Inconfidência  apertava  a 
mulher;  Margarida  Antónia,  que  se  fazia  acom- 
panhar por  uma  tia  velha  do  Beneficiado,  pin- 
gada de  diamantes  e  refegada  de  carnes,  gri- 
tava, rugia,  espumava,  invectivava  o  francis- 
cano, acusava-o  agora  de  defender  o  duque  de 
Aveiro,  de  dizer  «que  era  mentira  ter  o  duque 
queimado  um  livro  para  botar  fogo  às  casas», 
de  voltar-se  irado  contra  o  ministro,  contra  as 
justiças,  contra  o  governo  de  el-rei  «que  dava 
os  ofícios  que  vagavam,  antes  de  mandar  pôr 
os  editais»;  e  tanto  gritou,  tanto  insistiu,  tanto 
jurou,  o  manto  descomposto,  o  pente  de  tarta- 
ruga do  Alentejo  a  abanar  no  toucado,  as  mãos 
cheias  de  anéis  às  punhadas  na  banca,  —  que 
o  frade,  negando  sempre,  sucumbiu,  enfiou  e 
atirou  consigo  para  um  canto,  a  engranzar  pa- 
dre-nossos  e  a  dizer  que  nâo  com  a  cabeça.  No 
dia  seguinte,  inesperadamente,  Frei  Manuel  de 
^Sant  Ana  pede  para  fazer  declarações  à  justiça. 


FREI    MANUEL    DE    SANT'ANA  203 

Vai  confessar?  Vai,  por  sua  vez,  denunciar? 
Ninguém  sabe.  Um  meirinho  trá-lo  à  Quinta  do 
Meio.  perante  o  Desembargador  da  Casa  da  Su- 
plicação. Caem,  em  volta,  os  pesadcs  repostei- 
ros, de  baetâo  vermelho  com  as  armas  de  D. 
João  V.  O  dr.  Cordeiro  Pereira  olha  o  leigo 
através  da  sua  luneta  de  punho  de  prata.  E 
Frei  Manuel,  confuso,  vexado,  seráfico,  conta 
então  que  no  dia  em  que  tinha  estado  em  casa 
do  Beneficiado  da  Sé  o  frio  era  tanto,  que  ao 
desembarcar  de  manhã  no  cais  da  Ribeira,  re- 
passado da  névoa,  comprara  a  uns  vila-francas 
dois  copos  de  aguardente  por  um  vintém,  be- 
bêra-os  de  um  trago,  um  sobre  o  outro,  —  e  daí 
por  diante,  toda  a  santa  tnrde.  não  dissera  coisa 
com  coisa  nem  em  casa  do  Beneficiado,  nem 
na  morada  dum  ourives  da  rua  de  S.  Bento, 
nem  numa  horta  de  Valverde  onde  comera,  por- 
que —  com.  a  licença  dos  senhores  desembarga- 
dores e  a  infinita  misericórdia  de  Deus  —  es- 
tava evangélicamente  bêbedo.  Não  o  declarara, 
quando  viera  a  perguntas,  por  vergonha  do  mi- 
nistro; e,  quando  fora  acareado,  por  pejo  de  o 
dizer  diante  de  mulheres.  Mas  era  a  verdade 
(^m  Cristo.  Os  magistrados,  olhando  a  figura 
compungida  de  Frei  Manuel  de  SanVAna,  sorri- 
ram. Nesse  mesmo  dia,  o  frade,  livre  dos  fer- 
ros de  el-rei,  era  mandado  de  presente  ao  Padre 
Provincial. 

Pela  primeira  vez  se  encerrava  sem  o  travo 
do  sangue  um  processo  de  Sebastião  José. 


ESPADACHINS 


Um  ilustre  mestre  de  ari)]as,  meu  amigo, 
pede-me  que  lhe  fale  do  espadachim  português 
do  século  xvii.  É  um  assunto  que  daria  volu- 
mes. Como  quer  você,  meu  caro  mestre,  que  eu 
o  condense  em   meia  dúzia  de  páginas  ? 

Não.  O  nosso  espadachim  não  é  uma  cria- 
ção seiscentista.  Existiu  sempre.  Existe  ainda 
hoje.  Existirá,  emquanto  existir  Portugal.  A 
versão  portuguesa  do  fanfarrão  esgrimidor  e 
arruaceiro  constitue  um  tipo,  que  a  literatura,  c 
em  especial  o  teatro,  se  encarregaram  de  defi- 
nir e  fixar.  Começa  a  esboçar-se  com  a  insti- 
tuição das  quatro  primeiras  escolas  de  espada 
preta  em  Lisboa,  na  primeira  metade  do  sé- 
culo XV.  Depois,  o  espadachim  enraíza  e  flo- 
resce, multiplica-se  e  triunfa.  Os  mestres  de  ar- 
mas pululam.  Não  se  ensina  o  jogo  italiano  ou 
o  jogo  espanhol,   florido  em   manejos  altos:  en- 


ESPADACHINS         ,  205 


sina-se  a  matar,  a  assassinar,  com  todos  os  ar- 
dis desliais  e  tôda<  as  traições  infames.  Em 
Coimbra  (1548)  é  presa  muita  gente  p<»r  trazer 
espadas  de  mais  da  marca.  Em  Lisboa,  os  mes- 
tres, quási  todos  mulatos,  instituem  verdadeiras 
escolas  de  crime.  Oia-se  em  Portugal  uma  nova 
arte:  a  «arte  da  gualtaria».  É  Jorge  Perreir.i 
de  Vasconcelos  que,  numa  das  suas  comédias 
famosas,  recolhe  e  lixa  a  palavra,  —  derivada 
talvez  de  «gualteira»,  o  rebuço  encapuzado  dos 
valentões  quinhentistas.  Ser  mestre  na  arte  com- 
plexa da  gualtaria,  era  possuir  todos  os  segredos 
do  rufião  e  do  espadachim  corredor  de  vielas  e 
de  alfurjas,  saber  fazer  uma  espera  e  vibrar  uma 
estocada  «em  raio  de  sol»,  conhecer  todos  os 
recursos  da  espada-preta.  desde  a  sciência  de  es- 
colher um  lerreno  até  à  arte  de  bem  ferir  na  es- 
curidão. Todas  as  noites,  nos  arcos  ou  nas  be- 
tesgas  da  cidade,  havia  esperas,  arruaças,  brigas 
sangrentas.  Os  embuçados  surgiam  de  cada 
canto.  Foi  preciso  consentir  aos  mecânicos  e 
homens  de  trabalho  honrado  o  porte  de  ar- 
mas depois  do  sino.  para  sua  defesa  (Leão,  2, 
Comp.^  408).  O  duelo  passou  a  ser  um  expe- 
diente para  facilitar  o  roubo.  Os  próprios  fra- 
des goliardos  conheciam  a  espada  preta  e  guar- 
davam o  ferro  debaixo  da  estamenha  do  há- 
bito. O  Frei  Capacete^  de  Gil  Vioente,  domi- 
nicano devasso  e  duelista,  é  uma  versão  ton- 
surada do  espadachim   do  século  xvi.    Os  mes- 


206  N'A    HISTÓRIA 


tres  de  armas  eram  frequentemente  presos  por 
morte  de  homem.    Em  Setúbal  (1540),  um  mes- 
tre mulatu.   Jorge  Fernandes,    assassina   à    trai- 
ção um  pobre  diabo  in<erme.    Entretanto,   o  rei 
é  o  primeiro  a  protegê-los:  D.  João  iii,  em  1556, 
permitiu   ao   mestre   de   armas   castelhano  Juaji 
Robledo,  como  prémio,  o  uso  da  seda  nos  ves- 
tidos. Estabelece-se,    na   corte,    o   ensino   da  es- 
grima aos  moços-fidalgos.    Em  Coimbra,   os  es- 
colares,   com   a   sua   capa  negra   e  o   seu   festo 
branco,  balem-se  à  noite,  nas  vielas,  segundo  as 
lições  de  Mestre  Henrique  e  de  Mestre  Jerónimo. 
TJm  deles  sobreleva  a  todos:  é  barbirruivo,   gi- 
gantesco, poeta,  blasona  de  uma  serpente  verde 
em   campo  de  prata,    e  chamam-lhe  o  —  Trinca 
Fortes.    Bate-se  um.  dia,   na  Praça  de  Samsão. 
por  causa  duns  olhos  pardos — e  espanta  a  Uni- 
versidade; mais  tarde,  escreve  um  poema  no  des- 
terro da  China  —  e  assombra  o  mundo.    Com  o 
loiro  D.  Sebastião,   arcangélico  e  virgem,   surge 
uma  geração  de  espadachins  adolescentes.    An- 
dam encostados  aos  pagens,  gemendo  e  falando 
efeminadamente,  ao  uso  do  tempo,  —  mas  dêem- 
Ihes  uma  espada  para  as  mãos,  e  vejam  que  vi- 
rilidade, que  dextreza,  que  elegância,  que  raçit  ! 
É  mestre  António,  um  bom  velho,  que  prepara 
toda  essa  mocidade,   simultaneamente  feminil  e 
heróica,  para  a  triste  jornada  de  Alcácer  Kibir. 
É  êle  que  naquelas  mãos  finas,   onde  scintilam 
jóias,  cria  músculos  de  aço  para  o  açougue  duma 
grande  batalha. 


i 


ESPADACHINS  20'^ 


Mas  já  o  sombrio  Filipe  ii,  na  dureza  angu- 
losa do  seu  perfil  austríaco,  surge  da  ampla  es- 
tufa de  coiro  pregado  que  o  conduz  a  Portugal. 
Vestido  de  setim  branco,  tendo  abandonado  pela 
primeira  vez  o  seu  luto  negro  de  trinta  anos, 
vem  plácidamente  completar  e  legalizar  a  usur- 
pação. Uma  grande  onda  espanhola  galga  sobre' 
nós.  Derrubam-se  os  feltros  negros;  abotoam-se 
os  gibões  de  couro;  as  grandes  espadas  de  tigela, 
com  o  i^hierro  despiertan  de  Toledo,  repuxam  e 
levantam  em  crista  de  galo  as  capas  negras;  uma 
pluma  vermelha,  agressiva,  impertinente,  abana 
ao  vento  no  castor  e  no  feltro  dos  sombreiros, 
—  e  o  espadachim,  lemoçado,  virilizado  pelo  cru- 
zamento castelhano,  aparece  mais  pitoresco,  mais 
característico,  mais  impressivo  ainda,  rondando 
de  dia  sob  as  rótulas  verdes  da  cidade,  ou  em- 
buçado à  noite,  como  uma  pincelada  ue^ra,  na 
meia-luz  dos  nichos  l'  dos  oratórios.  K  èlf  qut* 
ajuda  a  fazer  a  revolução  de  1640.  É  Ale  que 
se  bate  em  duelo  na  Horta  do  Ducado,  depois 
duma  partida  de  dados  secos  e  de  beliches.  K 
èle  que  põe  máscara  de  noite  nas  ruas  escuras 
da  cidade  velha,  para  vibrar,  impunem?n1e,  "uma 
«estocada  de  punho  aos  peitos».  É  èle.  final- 
mente, que  aprende  os  «talhos»,  os  ((reveses»,  os 
ualtabaixos»  de  Pantaleão  de  Rua  e  do  rei  de 
armas  Tomás  Luís,  ao  mesmo  tempo  pintor  de 
heráldica  e  mestre  de  espada-preta,  -  golpes  vi- 
brados segundo  as  lições  de  D-  Antcjnio  Juste  e 


208  NA    HISTÓRIA 


Yver,  mestre  de  esgrima  dos  fidalgos  em  Ma- 
drid. Andam  em  todas  as  bocas,  por  Lisboa,  os 
nomes  dos  grandes  duelistas  de  Espanha,  —  u 
marquês  de  Velada,  o  conde  de  Puncn  Roslm 
n  capitão  Blas  de  Rueday  Valdez.  Emquanto 
limpam  as  armas  ou  compõem  os  manoplas  d;- 
camurça,  os  magros  espadachins  portugueses  dt- 
que  Montesquieu,  nas  Lettres  Persannes^  faz  a 
caricatura  admirável,  folheiam  o  livro  de  Fran- 
cisco de  Ettenhard,  mestre  do  rei  de  Espanha 
Carlos  II,  ou  meditam  sobre  as  singularíssimas 
páginas  da  Filoso{ia  de  las  Armas,  fundada  en 
la  Astrologia^  Simetria,  Arismetica  y  Geometria. 
Com  a  plêiada  de  espadachins  do  tempo  de  D. 
João  IV,  surge  o  mais  tenebroso  e  o  mais  típico 
de  todos  os  duelistas  fanfarrões  que  tem  criado 
Portugal:  o  senhor  do  Paul  de  Boquilobo,  D.  João 
de  Castro  Teles.  Ao  passo  que  ôste  Don  Quixote 
português  aplica  nos  seus  desafios  criminosos  a 
sciència  de  espada-preta  de  D.  Luís  Pacheco  de 
Narban,  a  arte  de  matar  é  posta  ao  serviço  de 
sentimentos  mais  dignos  e  mais  nobres.  Outras 
figuras,  de  mais  fidalgo  sangue,  derimem  pelo 
ferro  os  seus  conflitos  de  honra  e  as  suas  ques- 
tões de  amor.  O  nome  duma  mulher,  proferido 
imprudentemente  num  terraço  onde  se  jogava  a 
péla,  atira  o  conde  de  Castelo  Melhor,  de  es- 
pada em  punho,  sobre  o  conde  de  Vimioso,  que 
cai  morto.  D.  Francisco  Manuel,  que  prefaciara 
com  um  soneto  a  Dextreza  das  Armas,  de  Diogo 


ESPADACHINS  209 


Gomos  de  Figueiredo,  f  que  troçara  dos  mes- 
tres de  espada-preta  na  primeira  jornada  mo- 
lièresca  do  Fidalgo  Aprendiz^  bate-se  com  D. 
João  IV,   e  fere-o,   por  causa  da  linda  condessa 

le  Vila  Nova.  Afonso  iv  e  Pedro  ii  teem  o? 
^eus  negros,  os  seus  mulatos,  os  sous  valentes, 
pagos  a  peso  de  patacas  de  prata  do  Peru,  para 
assassinar,  para  esbofetear,  para  insultar  toda  a 
i^-ente.    Um  desses  valentes,  Gaspar  Varela,  filho 

lum  tecelão  de  Elvas,  recebe  o  tiábito  de  Cristo 
por  ter  assassinado  um  homem.  Capitaneado 
pelo  próprio  rei,  um  bando  de  vadios  e  de  mu- 
latos ataca  de  noite  o  coche  do  marquês  de  Pon- 
tes e  do  conde  da  Ericeira,  que  teem,  para  se 
defender,  de  arrancar  as  espadas.  Mais  tarde, 
junto  do  Arco  do  Oiro,  é  ferido  o  secretário  das 
mercês,  Pedro  Severim^de  Noronha,  porque  res- 
peitosamente pedira,  de  chapéu  na  mão,  que 
afastassem  a  liteira  do  rei.  O  mesmo  sucede,  em 
S.  Pedro  de  Alfama,  ao  visconde  de  Asseca,  Mar- 
tim  de  Eça,  que  tem  de  sair  do  coche,  de  estoque 
em  punho,  para  se  defender  do  rei  e  dos  seus 
negros.  Entretanto,  o  espadachim,  abandonando 
o  tipo  velasqueano,  começava  a  vestir-se  à  fran- 
cesa. Desapareciam  os  ferragoulos  de  dozeno, 
iis  grandes  espadas  soldadescas,  as  imensas  bo- 
tas de  cordovão  espanhol,  as  voltas  brancas,  ho- 
landesas, sobre  os  gibões  negros:  vieram  as 
rapières  francesas,  os  bigodes  Richelieu,  os  sa- 
patos de  boca  de  vaca,  as  coiras  de  búfalo    os 

14  ' 


210  NA    HISTÓRIA 


chapéus  flamengos,  as  ligas  de  tafetá  pingadas  de 
oiro.  O  duelo  esgota-se  em  brigas  de  acaso,  em 
agressões  eventuais  sem  o  carácter  de  desafios 
regulares.  O  encontro  em  forma  só  unia  vez 
aparece  entre  nós,  no  século  da  capa  e  espada: 
em  1G58,  durante  o  côrco  de  Badajoz  pelas  nos- 
sas tropas.  É  o  tristemente  célebre  «desafio  dos 
Alvitos»,  em  que  tomaram  parte  o  barão  de  Al- 
vito. D.  Joáo  Lobo,  e  o  mestre  de  campo  Luís 
de  Miranda  Henriques,  servindo  de  «segundos» 
D.  Vasco  da  Gama,  capitão  de  cavalos,  e  um  ir- 
mão do  barão,  D.  Francisco  Lobo.  Nunca  se 
soube  ao  certo  a  causa  deste  encontro:  os  Alvi- 
tos foram  ambos  mortos  no  terreno,  cada  um 
com  uma  estocada  no  ombro  direito;  Luís  de  Mi- 
randa sucumbiu  também,  golfando  sangue,  de- 
bruços  sobre  a  espada,  ,e  o  único  sobrevivente, 
o  moço  capitão  de  cavalos  D.  Vasco,  que  con- 
tava apenas  vinte  e  três  anos  e  era  um  dos  mais 
lindos  rapazes  do  seu  tempo,  foi  levantado  do 
campo,  gravemente  ferido.  Diz  o  Tratado,  de 
Tomás  Luís:  «A  espada  tem  fio  e  meio  fio;  não 
há-de  ser  verdugo^  senão  cortadeira  e  tesa)).  No 
desafio  dos  Alvitos,  o  mais  sangrento  duelo  re- 
gular de  que  há  memória  em  Portugal,  as  qua- 
tro espadas  que  se  cruzaram  foram  verdadeiros 
«verdugos». 

Com  o  século  xvin,  o  espadachim  degenerou, 
—  e  o  quito  nasceu... 


A   MÃE  DO  PRIMEIRO  DLgUE 


Um  dos  problemas  fundamentais  que  tem  de 
resolver  quem  porventura  se  proponha  estudar, 
sob  o  ponto  de  vista  da  hereditariedade  e  da  se- 
lecção, a  estirpe  ducal  de  Vila  Viçosa,  é  o  da 
filiação  do  primeiro  duque  de  Bragança.  Encon- 
trei esse  problema  há  dezasseis  anos,  quando, 
perante  os  retratos  da  admirável  Sala  dos  Du- 
ques, pintados  no  tempo  de  D.  João  v  por  Pe- 
dro António  Quillard,  pensei  nos  primeiros  in- 
quéritos médicos  às  genealogias  riais  portugue- 
sas. Quem  foi  a  mãe  do  conde  de  Barcelos  ?  Em 
que  ventre  talhou  esse  plebeu  ilustre,  que  se 
•hamou  D.  João  i,  a  faixa  contraveirada  de  prata 
la  mais  feliz  das  bastardias  riais  portuguesas? 
\)e  que  mulher  nasceu  o  primeiro  duque  de  Bra- 
liança?  Da  rendeira  humilde,  filha  do  sapateiro 
Fernão  Esteves  ?  Da  filha  do  Barbacho  de  Vei- 
ros ?    Da  pobre  burguesa  lisboeta  que  vivia  nas 


■^IL^  ^^^   história 


casas  de  Riii  Penteado  ?  Da  nobre  Inês  de  F<mv 
febôa,  cuja  beleza  germânica  e  dólico-loira  se 
embrulhou  no  manto  branco  das  comendadeiras 
de  Avis  ?  Sangue  plebeu  e  crasso  ?  Sangue 
godo  e  conquistador?  Uma  celto-eslava,  forte, 
escura,  rude,  humilde,  aferrada  à  terra?  Ou, 
pelo  contrário,  uma  fêmea  proveniente  de  estir- 
pes dominadoras,  mais  ou  menos  entroncada  no 
veio  de  oiro  da  rialeza,  o  realizando,  no  seu 
cruzamento  com  João  i,  aquilo  a  que  se  conven- 
cionou chamar  um  caso  de  «consanguinidade 
social»  ? 

Estas  questões  de  genealogias  são  particular- 
mente fatigantes.  Mas  há  eruditos  patriarcais 
que,  por  essa  província  fora,  gostam  de  as  des- 
fiar à  lareira.  É  para  eles  que  estas  páginas  são 
escritas.  Vou  dizer-lhes  o  pouco  que  consegui 
apurar  sobre  a  identidade  da  mãe  do  primeiro 
duque  de  Bragança.  Inútil  acentuar  que  o  in- 
teresse de  similhante  assunto  está  longe  de  ser 
estrictamente  nobiliárquico.  Ninguém  ignora  a 
influência  decisiva  que,  no  destino  das  raças  riais 
que  degeneram,  produz  a  intercorrência  regenera- 
dora das  bastardias.  Estudar  essas  bastardias  ple- 
beias, verdadeiras  transfusões  de  energia  que 
fizeram  perdurar  muitos  ramos  dinásticos  mo- 
ribundos, não  é  apenas  um  capricho  de  genealo- 
gista, é  uma  necessidade  da  história.  Esse  es- 
tudo, porém,  nunca  foi  fácil.  De  ordinário,  quan- 
do se  trata  de  identificar  a  mãe  dum  bastardo 


A  mãí:   du  i'i;iMFii!n  L)U(jui:  ?n 


rial,  os  linhagistas  não  se  entendem.  Em  volta 
dos  próprios  bastardos  de  D.  João  v,  génitos  va- 
gos de  freiras  bernardas  e  de  aventureiras  fran- 
cesas, a  confusão  é  grande.  Não  admira  que  in- 
te.rêsses  de  vária  ordem  lenham  procurado  obscu- 
re<:er  também,  determinadamente  enire  os  no- 
biliaristas  dos  séculos  xvn  e  xvnr,  a  verdade  in- 
teira acerca  do  nome  e  da  origem  da  fecunda 
moça  do  Alentejo,  em  cujo  ventre  plebeu  se  ge- 
rou o  fundador  da  última  dinastia  portuguesa. 
Quem  era  ela  ?  Uma  nota  à  margem  do  Nobi- 
liário de  D-  Gomes  de  Melo  ^)  diz-nos  que  se 
chamava  Inês  Fernandes,  rendeira,  filha  do  sa- 
pateiro Fernão  Esteves.  Os  outros  começam  por 
não  concordar  quanto  ao  nome;  discordam  abso- 
lutamente quanto  à  familia,  — e  não  há  forma 
de  os  conciliar  quanto  à  nobreza.  D-  António 
de  Lima,  no  sen  Nobiliário,  ^)  afirma  que  o  pri- 
meiro duque  de  Bragança  era  filho  «de  Isabel 
Fernandez  filha  do  Barbarráo  de  Veiros  Fernão 
Esteves,  que  teve  outro  'lilho  irmão  de  Isabel  Fer- 
nandez, chamado  João  Moniz  da  Guarda,  de  quem 
vêm  os  Pereiras  de  Castrodaire,  e  hua  filha  que 
casou  com  Gonçalo  Vaz  de  Castelo».  É  a  lenda 
do  Barbadão,  que  os  cronistas  oficiais  da  casa 
de  Bragança  se  cansaram  a  desfazer.    Outro  in- 


ij     Mss.     úá     l^iblioteca     Nur.     de    Lisbuu,     l^oninnhiia, 
órtice  277,  fls.  672. 

=j    Pombalina,   códic.'   322,   ils.   61. 


21 /i  NA    HISTÓRIA 


dice  genealógico,  Gerações  de  Portugal,  ')  in- 
siste em  dar-lhe  o  nome  de  Isabel  Fernandes: 
«El  Rey  D.  João  i,  sendo  mestre  de  Aviz,  ouve 
em  Isabel  Fernandez,  que  depois  foi  commen- 
dadeira  de  Santos  e  filha  de  Fernão  Esteves  o 
barbarrão  de  Veiros,  a  Don  Affonso  que  foi  o  pri- 
meiro Duque  de  Bragança».  Manuel  Alvares 
Pedrosa  (o  «ilustre  Manoel  Alvares  Pedrosa», 
como  o  intitula,  numa  nota  manuscrita,  Manuel 
Caitano  de  Sousa)  não  lhe  chama  nem  Inês  Fer- 
nandes, nem  Isabel  Fernandes:  chama-lhe  Inês 
Pires:  «A  dita  Ignez  Pirez  niay  destes  filhos  bas- 
tardos foi  irmã  do  Dr.  Joanne  Mendes  da  Guarda 
de  quem  vem  os  Pereiras  de  Gege,  filhos  ambos 
de  Francisco  Esteves  Barbacho,  chamado  o  Bar- 
barrão de  Veiros,  e  de  sua  mulher  Mafalda  Ean- 
nes».  ^)  E  acrescenta,  mais  adiante:  «Esta  dona 
Inês  foy  irmãa  de  Joanne  mendez  da  guarda  fi- 
lhos ambos  do  Barbarrão  de  Veiros».  Há  nisto, 
entre  outros  contrasensos,  um,  que  é  evidente: 
Inês  Pires  quer  dizer  Inês  iilha  de  Pedro;— e  o 
nobiliarista  chama  ao  pai  Fernão  Esteves  Bar- 
bacho. Cristóvão  Alão  de  Morais  reconhece  o 
erro  e  emenda-o,  no  seu  Nobiliário^  ^)  dando 
à  mãe  do  duque  de  Bragança,  coerentemente  com 


3)     Po!ãbalí}ia,   códice   231,    íls.    11,    v. 
*)    Manuel    Álvaro    Pedrosa,    NobUiário,    códice    C,    2, 
17,  íls.  9.  V. 

^)    Pombalina,   códice   279,    fls.    38. 


A    MÃE    DO    l-IlIMEIHíi    UUQUE  215 


a  sua  filiação,  o  nome  de  Inês  Fernandes, — já 
não  a  «Inês  Fernandes  rendeira»  de  D.  Gomes 
de  Melo,  filha  dum  sapateiro  humilde,  mas  uma 
Inês  Fernandes  burguesa,  «filha  de  hum  homem 
de  Veiros  rico  e  honrado».  Frei  Leão  de  S.  To- 
más (Beneditina  Lusitana^  ii,  380)  acrescenta: 
«Teve  mais  El  Rey  D.  João  antes  de  casar,  de 
huma  nobre  senhora  chamada  D.  Ignez,  huma 
filha  e  hum  filho».  Nicolau  Ritershusio,  na  Ge- 
nealogia líaperalorum,  insiste:  ((Alphoasus  Joan- 
nis  Primi  Portugaliae,  et  Algarbiae  Regis  filius 
ex  Agnete,  nobili  (oemina  Comes  Barcelensis, 
post  Dux  Bragantiae.»  ^)  Não  é  apenas  bur- 
guesa e  rica;  já  é  nobre.  Surge,  finalmente. 
Soares  da  Silva  ')  e  diz-nos  que  a  comendadeira 
de  Santos,  mãe  do  primeiro  duque  de  Bragança, 
não  tem  absolutamente  nada  nem  com  Veiros, 
nem  com  o  Barbadão,  nem  com  o  Barbacho,  nem 
com  o  sapateiro:  chama-se  Inês  Pires,  e  é  filha 
de  Pêro  Esteves  de  Fonteboa.  Vobre  ?  Nobilís- 
sima. Aíirma-o  o  erudito  Silva,  sobre  vários  do- 
cumentos, pergaminhos  avulsos,  que  encontrou 
no  Arquivo  Ducal  da  Casa  de  Bragança.  Antó- 
nio Caitano  de  Sousa,  apesar  disso,  atreve-se 
ainda  a  falar  em  Veiros  ")  e  declara  que  Inês 
Pires  teve  o  seu  parto  no  castelo  da  vila.    Soares 


•,    Tab.    61. 

Memórias  de   l>.  João  /,  iv. 
j     Híst.   Geneai.   da   Casa  fíiai   1'orluguefia,  v,  \y,\^.    10. 


216  NA    HISTÓRIA 


da  Silva  vai  até  ao  ponto  de  renegar  tudo  quanto 
recorde  a  lenda  do  Barbadão;  não  quer  que  a 
nobre  Inês  Pires  seja  alentejana,  e  declara-se 
habilitado  a  provar,  com  outro  pergaminho  do 
Arquivo  Ducal,  que  o  primeiro  Duque  de  Bra- 
gança não  nasceu  em  Veiros,  mas  sim  em  Lis- 
boa, «nas  casas  'de  Ruy  Penteado,  que  som  á 
portadoura».  ')  Os  genealogistas  falaram,  —  nin- 
guém mais  se  entendeu.  Rendeira  ou  burguesa 
rica,  filha  do  Barbacho  ou  filha  do  sapateiro, 
alentejana  de  Veiros  ou  lisboeta  do  beco  do  Al- 
mirante, Isabel  ou  Inês,  plebeia  ou  nobre,  ainda 
hoje  se  não  sabe  ao  certo  quem  foi  essa  mulher, 
fecunda  e  sem  dúvida  bela,  a  cujos  peitos  ubér- 
rimos se  criou  o  primeiro  príncipe  da  estirpe  de 
Bragança. 


*)    Memórias,   v,   doe.   9. 


A  EMBAIXADA 


A  história  anecdótica  das  nossas  embaixadas, 
sobretudo  das  nossas  grandes  embaixadas  a 
Roma,  daria  a  um  colorista  de  recursos  um  li- 
vro interessantíssimo.  A  de  D.  Rodrigo  de  Me- 
nezes a  Clemente  xi;  a  do  conde  de  Vilar  Maior 
*a  Vienna  de  Áustria;  a  viagem  de  André  de  Melo 
e  Castro,  depois  conde  das  Galveias,  enviado  ex- 
traordinário a  Roma,  —  quási  todas  as  embaixa- 
das portuguesas  do  século  xviii  foram  grandes 
anecdotas  de  ostentação  e  de  sumptuosidade, 
além  de  maraviltiosas  pinturas  de  costumes  e 
de  ridículos  políticos. 

Quando  André  de  Melo  partiu  para  a  cidade 
apostólica  levou  consigo  um  francês  insinuante 
chamado  De  Bellebat,  que  foi  o  seu  estribeiro  e 
que  havia  de  ser,  mais  tarde,  o  seu  cronista.  De 
Bellebat  escreveu,  numa  linguagem  de  rara  ele- 
gância, a  relação  da  jornada  do  conde  das  Gal- 


'18  NA     HISTÓRIA 


veias  a  Roma,  — corno,  anos  antes,  o  padre  Fran- 
cisco da  Fonseca,  num  estilo  choutão  ds  macho 
de  liteira,  narrara  a  entrada  do  conde  de  Vilar 
Maior  em  Vienna  de  Áustria.  O  livro  do  ga- 
lante estnbeiro  francês  interessa  simultaneamen- 
te à  nossa  história  diplomática  e  à  história  das 
nossas  indústrias  artísticas,  por  que  descreve 
com  individuação  as  maravilhas  de  talha  doirada 
de  que  os  entalhadores  portugueses  António  Se- 
leiro e  José  Machado  pojaram  os  jogos  traseiros 
dos  três  enormes  coches  da  embaixada.  Mas  é 
propriamente  o  aspecto  anecdótjco  que  o  reco- 
menda. Sem  o  livro  de  De  Bellebat,  não  conhe- 
ceríamos hoje — e  era  pena!  —  todos  os  pitores- 
cos incidentes  palatinos  que  precederam  a  re- 
cepção do  Enviado  português  pelo  Papa. 

A  chegada  de  André  de  Meio  e  Castro  a  Roma, 
cheio  de  araras,  de  papagaios  e  de  loiça  da  In-* 
dia  para  Sua  Santidade,  íoi  já  um  acontecimento. 
Como  não  houvesse  aposentos  melhores,  hospe- 
daram-no  os  frades  de  S.  Bernardo  no  seu  mos- 
teiro, dando-lhe  banquetes  sobre  banquetes,  fes- 
tas sobre  festas.  Nada  mais  profano  do  que  a 
vida  que  os  virtuosos  monges  proporcionaram  ao 
futuro  conde  das  Galveias.  Logo  nos  primeiros 
dias,  muitos  cardeais,  de  coche,  precedidos  da 
umbela  vennelha,  vieram  fazer-lhe  a  sua  visita, 
sondá-lo,  inquirir,  avaliar  da  ilustração  e  da  ar- 
gúcia do  Enviado.  Foi  uma  romaria.  Entre- 
tanto, graves  coisas  preocupavam  o  Sacro  Cole- 


A  EMBAIXADA  219 


eio.  No  seio  daquele  capítulo  de  Príncipes  fi- 
zera-se  um  reboliço  incompreensível.  As  con- 
ferências repetiam-se,  Sua  Santidade  irritava-se, 
bispos  e  arcebispos  andavam  numa  azáfama,  o 
cardeal  Paulucci,  secretário  de  Estado,  revolvia 
papeis  e  protocolos,  ninguém  se  entendia,  nin- 
guém compreendia  o  que  se  passava,  todos  se 
interrogavam  uns  aos  outros-  Que  teria  dado 
motivo  àquela  confusão  dos  purpurados  ?  Uma 
simples  dúvida:  não  sabiam  como  receber  o  En- 
viado extraordinário  do  rei  de  Portu.cral,  que  tra- 
tamento dar-lhe,  que  prerrogativas  reconhecer- 
Ihe.  O  problema  revestia  uma  gravidade  impre- 
vista. Até  ali,  só  houvera  Embaixadores  e  Re- 
sidentes. Aos  Embaixadores,  mais  do  que  En- 
viados, dava-se  Excelcnda;  aos  Residentes,  me- 
nos do  que  Enviados.  Ilustríssima:  que  trata- 
mento se  concederia  a  monsignore  André  de 
Melo  e  Castro,  —  que  era  menos  (to  que  Embai- 
xador e  mais  do  que  Residente  ?  Reúniram-se 
congregações,  consultaram-se  cerimoniais  sobre 
cerimoniais,  os  partidos  dividiram-se,  as  opi- 
niões extremaram -se,  u  cardeal  Barberini  dizia 
que  sim,  o  cardeal  Ottobuni  Jizia  que  não,  —  e 
só  no  fim  de  nove  ou  dez  meses,  depois  de  discus- 
sões intermináveis  e  de  consistórios  enfadonhos, 
é  que  aquela  onda  de  rábulas  de  murça  verme- 
lha conseguiu  acordar  no  tratamento  e  nas  prer- 
rogativas a  conceder  ao  Enviado  de  D.  João  v. 
Essas  ridículas  prerrogativas  eram  as  seguintes: 


220  NA    HISTÓRIA 


i.',  O  Enviado  teria  direito  a  mandar  levantar  um 
dócel  na  sala  dos  Lacaios,  outro  na  sala  das  Au- 
diências; 2.*  poderia  usar  penachos  de  seda  ne- 
.i,^ra  nas  cabeças  dos  cavalos;  3.*,  far-se-ia  prece- 
der, quando  passeasse  no  seu  coche,  de  um  la- 
caio com  umbela  vermelha,  como  os  cardeais  e 
os  príncipes;  4.*,  ser-lhe-ia  concedido  um  coxim 
de  veludo  para  ajoelhar  na  Igreja  ou  na  rua  à 
passagem  do  Santíssimo  Sacramento;  5.*,  o  de- 
cano dos  seus  criados  poderia  vestir-se  de  ve- 
ludo preto  à  moda  espanhola;  6.%  dar-se-ia  ao 
Enviado  o  tratamento  da  terceira  pessoa,  no  ita- 
liano Lei, — mais  que  a  Ilustríssima  dos  Resi- 
dentes, menos  que  a  Excelência  dos  Embaixa- 
dores; 7.*,  poderia  pedir  audiência  a  Sua  Santi- 
dade de  um  dia  para  o  outro  e  de  manhã  para 
a  tarde;  8-*  e  última,  os  cardeais  recebê-lo-iam 
sempre  «em  habit  decent,  et  non  en  habit  court 
ou  en  deshabillé)). 

André  de  Melo,  estabelecido,  com  esta  minú- 
cia bizantina,  o  cerimonial  a  seguir,  pôde  então 
fazer  a  sua  entrada  solene  no  Vaticano,  numa 
verdadeira  procissão  de  coches  sumptuosos  ar- 
mados em  talha  doirada,  apainelados  de  pintu- 
ras, puxados  a  urcos  holandeses,  bamboleando, 
nos  seus  correões  forrados  de  damasco  vermelho 
e  abroxados  de  prata,  pelas  ruas  cheias  de  sol 
da  Roma  pontifícia.  Foi  um  deslumbramento. 
As  verdadeiras  credencias  do  Enviado  consis- 
tiram na  magnificência  com  que  se  apresentou. 


A    EMBAIXADA  221 


Ao  ver  desfilar  o  cortejo,  já  na  retirada,  a  cami- 
nho do  mosteiro  de  S.  Bernardo,  o  cardeal  Ca- 
vallarini.  purpurado  e  desdenhoso,  comentava, 
a  sorrir,  num  grupo  de  bispos  e  de  arcebispos: 
—  Não  sei  se  o  embaixador  é  bom;  os  coches 
são  excelentes  ! 


NUN'ALVARES 


Meu  amigo:  —  Pediu-me  você  a  indicação  de 
todos  os  retratos  de  Nun'Alvares.  Prometi  dar- 
Iha  nas  quatro  páginas  duma  carta.  Cumpro  hoje 
a  minha  promessa.  Náo;  os  documentos  não  são 
tão  poucos  como  você  supõe.  A  agiografia  en- 
carregou-se  de  perpetuar  a  imagem  do  Santo 
Condestável,  que,  de^certo,  não  teria  sido  tão  pin- 
tada em  tábuas  e  tão  aberta  em  estampas,  se  não 
tivesse  a  envolvê-la,  na  decrepitude,  o  tabardo 
de  semi-frater  carmelita.  Retratos  directos,  não 
resta  nenhum.  Cópias  do  original  perdido,  há 
muitas.  Gomo  sabe,  o  único  retrato  autêntico, 
mandado  pintar  pelo  duque  de  Bragança  D-  Afon- 
so antes  de  Frei  Nuno  morrer,  ardeu  no  terra- 
moto de  1755.  Em  1745,  ano  em  que  Fjeei  Joseph 
de  SanfAna  publicou  a  sua  Crónica  das  Carme- 
litas^ ainda  esse  retrato,  oferecido  pelo  primeiro 
possuidor  ao  bastardo  do  rei  D.  Duarte,  D.  Frei 


NUN'.\LVARES  223 


.íoáo  Manuel,  bispo  de  Ceuta  e  da  Guarda,  prior 
do  Carmo  e  depois  Provincial,  se  encontrava  en- 
tre as  pinturas  dos  santos  da  Ordem,  no  espal- 
dar do  arcaz  maior  da  sacristia  do  convento. 
Era  de  meio  corpo,  representava  Nun'Alvares  na 
estamenha  de  donato,  e  tinha  sido  pintado,  se- 
gundo opinião  do  dr.  José  de  Figueiredo,  pelo 
pintor  de  D.  João  i,  mestre  António  Plorenlim. 
Desde  o  segundo  quartel  do  século  xv  até  ao 
meado  do  século  xviii,  o  original  de  mestre  An- 
tónio foi  copiado,  recopiado  e  aberto  em  gravu- 
ras, sendo  as  cópias  dele,  diz  Frei  Manuel  áe> 
Sá  nas  suas  Memórias  históricas  da  Ordem  de 
A.  S.*  do  Carmo^  os  melhores  retratos  de  Nu- 
n^Alvares  que  se  conheciam  na  corte.  Mas  não 
foi  esta  a  única  imagem  preciosa  do  Condestável 
que  o  incêndio  destruiu  no  convento  do  Carmo. 
Havia  outra,  de  corpo  inteiro,  pintura  do  século 
XVI,  que  se  encontrava  na  sala  chamada  Capítu- 
lo dos  Bispos,  e  que,  a  acreditar  em  Frei  Joseph 
de  SanfAna,  era  uma  nbra-prima.  Não  conse- 
gui apurar,  por  mais  que  o  tentasse,  se  o  retrato 
do  Capítulo,  como  o  do  espaldar  d;i  sacristia,  re- 
presentava Frei  Nuno  de  Santa  Maria,  ou  se 
seria  o  original  por  onde  Estêvão  Galhardo,  em 
1526,  mandou  abrir  a  xilugrafia  de  Nun'Alvares" 
armado  que  se  admira  na  primeira  edição  da 
Crónica  do  Condestabre,  Era  natural,  porém, 
que  o  retrato  mais  copiado  íôsse  o  primeiro,  por- 
que era  o  autêntico,  e.  porque,,  na  sua  samarra 


224  NA     HISTÓRIA 


de  fradinho  decrépito,  falava  mais  do  que  ne- 
nhum outro  à  velha  piedade  portuguesa-  As  ré- 
plicas sucf'deram-se,  sendo  a  mais  bela  das  sub- 
sist^^ntes  aquela  que  se  conserva  no  palácio  Pom- 
bal, em  TkMras,  tábua  do  século  xvi  cuja  alta  im- 
portância o  dr.  José  de  Figueiredo  revelou,  em 
17  de  agosto  de  1916,  expondo-a  numa  sala  do 
Museu  de  Arte  Antiga  e  atribuindo-a  ao  pincel 
admirável  do  mestre  de  S.  Bento.  Nenhuma  ou- 
tra pode  comparar-se  a  esta,  quer  pelo  valor  da 
pintura,  quer  pela  importância  do  documento. 
O  ^'un'Alvares  doado  por  Guerra  Junqueiro  ao 
Estado,  e  o  retrato  de  Frei  Nuno  de  Santa  Maria 
proveniente  da  Sala  dos  Patriarcas  (Paço  de  S. 
Vicente),  ambos  depositados  no  Museu,  são  có- 
pias, feitas  nO'  século  xvii,  do  quadro  de  mestre 
António  Florentim;  a  tábua  da  Biblioteca  Na- 
cional de  Lisboa  e  o  retábulo  da  igreja  carme- 
lita de  Moura,  também  seiscentistas,  teem  o  ca- 
rácter de  agiograjfias  de  natureza  cultual,  sem 
valor  iconográfico  apreciável.  Aqui  tem  você  o 
que  há,  quanto  a  imagens  pintadas  em  tábua 
ou  em  tela.  Passemos  ás  estampas.  Abriram-se 
gravuras  de  retratos  de  Nun'Alvares  nos  sécu- 
los XVI,  xvií  e  XVIII.  A  xilográfia  que  acompa- 
nha a  1.*  e  a  2.*  edições  da  Crónica  do  Condesta- 
bre íl526  e  1554)  reproduzindo  em  corpo  inteiro 
n  herói  armado,  deve  ser  uma  equivalência  da 
tábua  do  Capítulo  dos  Bispos.  A  xilografia  que 
acompanha  só  a  2.*  edição  da  mesma  Crónica 


l^aiN' ALVARES  2^5 


(1554)  6  que  representa  Frei  Nuno  no  tabardo  de 
donato,  ó,  sem  dúvida,  como  a  réplica  existente 
no  palácio  Pombal,  uma  cópia  directa  da  tábua 
original  mandada  pintar  pelo  primeiro  duque  de 
Bragança.  Do  século  xvn  há  duas  gravuras:  uma, 
cópia  do  retrato  primitivo,  feita  em  1609  pelo 
gravador  francês  Pierre  Peret,  ou  Pereto,  para  a 
1.*  edição  do  Condestabre  de  Rodrigues  Lobo, 
e  a  que  se  referem  Frei  Manuel  de  Sá  e  Frei 
Joseph  de  SanfAna;  outra  do  gravador  caste- 
lhano Pedro  de  Vila  Franca,  representando,  em 
meio  corpo,  Nun'Alvares  velho  e  armado,  aberta 
em  Madrid,  em  1640,  para  acompanhar  a  Vida  y 
Hechos,  de  Rodrigo  Mendes  Silva.  No  século 
xviii,  dois  artistas  franceses,  chamados  a  Lisboa 
por  D.  João  v,  gravaram  retratos  do  Gondestá- 
vel:  Bernard  Picart,  discípulo  de  Sebastian  Le- 
clerc,  que  abriu  em  1722  duas  gravuras  em  co- 
bre representando  Nun'Alvares  cavaleiro  e  Nun'- 
Alvares  semi-frater  carmelita;  Gabriel  Debrié,  que 
em  1749,  imitando  Picart,  gravou  o  NurfAlvares 
armado  de  maça  de  armas,  que  orna  a  espessa 
obra  de  Frei  Domingos  Teixeira.  Passemos  ago- 
ra às  estátuas  do  túmulo.  Gomo  sabe,  o  mo- 
delo subsistente,  em  madeira,  é  uma  simples  re- 
miniscência da  arca  tumular  de  alabastro,  man- 
dada construir  em  Borgonha,  no  século  xvi,  por 
Joana  a  Doida;  colocada  em  1522,  pelo  prior  Frei 
Cristóvão  Moniz,  num  vão  da  ábside  do  Garmo, 
do  lado  da  Epístola;  pintada,  doirada,  e  mudada 

15 


??6  NA    HISTÓRIA 


para  o  presbitério  da  parte  do  Evangelho,  em 
i544,  por  outro  prior  carmelita,  Frei  Diogo  de 
Brito;  e,  em  1755,  completamente  destruída  pelo 
incêndio.  Essa  reminiscência,  dum  acentuado  ca- 
rácter Luís  XV,  não  tem  o  menor  valor  iconográ- 
fico. Já  o  não  tinha  lambem  a  estátua  jacente  do 
primitivo  túmulo,  glabra,  inexpressiva,  sem  o  ta- 
bardo  dos  semi-fralres,  conservando  apenas  de 
exacto  o  báculo  a  que  se  abordoava  o  velho  do- 
nato e  o  ((barrete  de  faces»  que,  segundo  Frei 
Jerónimo  da  Encarnação,  lhe  recobria  sempre  a 
calva.  Resta,  meu  caro  amigo,  que  eu  lhe  fale 
das  descri(;ões  dos  cronistas.  É  curioso  que,  nem 
Fernão  Lopes  na  Crónica  de  João  /,  nem  o  au- 
tor da  Crónica  do  Condestabre,  que  deve  ser 
também  Fernão  Lopes,  fazem  referência  aos  ca- 
racteres somáticos  de  Nun'Alvares.  Os  únicos 
que  o  descrevem  são  os  agiógrafos,  reportando-se 
ao  retrato  original  ou  às  antigas  memórias  con- 
ventuais inéditas.  Frei  Simão  Coelho,  no  Com- 
pêndio de  Crónicas  (1572),  pinta-o  em  dois  tra- 
ços: {{homem  envolto  em  carnes,  de  estatura  que 
mais  ia  a  grande  do  que  a  pequeno:  tinha  o  as- 
pecto baronil^  o  rostro  comprido  e  fermoso,  era 
alto  e  louro^  tinha  os  olhos  pequenos^  inus  mui 
resplandecentes^  pouca  barba,  e  saída  para  bai- 
xo».  Frei  Jerónimo  da  Encarnação,  na  sua  cró- 
nica manuscrita  citada  por  Frei  Joseph  de  Sant'- 
Ana,  e  talvez  perdida,  copia  a  descrição  que,  «em 
t^da  a   antiguidade   de   seus  termos  próprios», 


NUN'ALVARES  22" 


deixou  nm  frade  contemporâneo  de  Nun'Alva- 
res:  «foi  o  virtuoso  Condestavel  de  meã  estatura^ 
teve  o  rosto  comprido^  côr  branca,  o  nariz  afi- 
lado c  aquãento.  os  olhos  pequenos,  mas  mui 
viventos,  as  sobrancelhas  arcadas  e  ruivas,  assim 
era  o  sm  cabelo^  não  só  da  cabeça  mas  também 
da  barba,  com  algumas  ruguizas  na  testa  e  nos 
cabos  dos  lagrimais,  a  boca  pequena  com,  o  seu 
semblante  mui  amesurado)).  As  duas  descrições 
não  concordam  em  todos  os  pontos.  Mas  é  in- 
contestável que  os  seus  elementos,  combinados 
com  aqueles  que  nos  oferecem  a  réplica  do  mes- 
tre de  S.  Bento  (palácio  Pombal)  e  a  xilograíia 
da  Crónica  do  Condestabre,  constituem  já,  sob 
vários  aspectos,  para  pintores,  estatuários,  acto- 
res, antropologistas  e  historiógrafos,  uma  expres- 
siva e  opulenta  documenlação. 


PASSOS  MANUEL 


Na  preciosa  colecção  de  papéis  políticos  do 
Constitucionalismo,  removida  do  Palácio  das  Ne- 
cessidades, existe  apenas  uma  carta  de  Passos 
Manuel.  São  duas  folhas  de  papel  da  Abelheira, 
sem  o  aparo  doirado  das  cartas  do  conde  do  To- 
mar, presas  uma  à  outra,  segundo  a  moda  do 
tempo,  por  um  pequeno  cordão  de  seda  azul- 
Quatro  páginas  duma  escrita  clara,  enérgica, 
firme,  serena,  —  expressão  do  carácter  forte 
desse  homem  que  a  si  mesmo  se  chamava  «o 
homem  de  Bouças»,  a  quem  D.  Fernando,  no  dia 
heróico  da  helenizado:,  tratou  de  Mr.  le  Roi 
Passos))^  e  que  foi,  simultaneamente,  a  figura 
mais  generosa,  mais  liberal,  mais  ingénua  e 
mais  nobre  de  todo  o  Constitucionalismo  portu- 
guês. Tem  a  data  de  31  de  maio  de  1846,  —  dez 
dias  depois  da  queda  dos  Cabrais,  e,  por  con- 
seguinte,  em   plena  Revolução.    Passos  Manuel 


PASSOS    MANUEL  220 


escreveu  essa  carta,  que  pode  considerar-se>  um 
documento  célebre,  e  que  é,  ainda,  um  docu- 
mento desconhecido, —quando  se  encontrava 
em  Santarém  presidindo  h  Junia  revolucionária 
local.  Não  a  diriírin  à  rainha;  dirigiu-a  a  Ro- 
drigo da  Fonseca, — para  que  a  mostrasse  a  D. 
Maria  n.  É  uma  profissão  de  fé  liberal-  É  um 
hino  ao  povo.  É.  no  meio  de  todo  o  ardente 
entusiasmo,  de  toda  a  paixão  tribunícia  da  sua 
alma  antiga  de  romano.  —  uma  hábil  fórmula  de 
conciliação  entre  a  defesa  intransigente  e  sin- 
cera das  liberdades  populares  e  o  respeito  quási 
supersticioso  pelas  prerrogativas  e  dignidades 
da  Coroa.  Coerente  cem  as  afirmações  do  seu 
monumental  discurso  de  21  de  janeiro  de  1837, 
sustenta  que  a  revolução  do  Minho  se  fez  «para 
rodear  o  trono  de  instituições  republicanas».  Em 
nome  das  Juntas,  —  o  revolucionário  troveja,  co- 
mina, impõe.  Mas,  generoso  sempre,  bondoso 
sempre, — o  excelente  homem  aconselha,  tran- 
quiliza, sossega  todo  o  Paço  alarmado.  É,  ao 
mesmo  tempo,  Saint  Just  e  Lafayette.  Emquanto 
o  sangue  corre,  e  a  revolta  alastra  como  um  in- 
cêndio,—  Passos  Manuel,  escrupuloso,  formalis- 
ta, sincero,  lialíssimo,  procura  conciliar,  menos 
perante  a  rainha  do  que  perante  a  própria  cons- 
ciência, aquilo  que  no  seu  setembrismo  con- 
fuso, rialista  e  «pé-íresco»,  era  fundamental- 
mente irreconciliável:  uNão  eslou  menos  viva- 
mente empenhado  na  defesa  da  1  iberdade,  —  diz 


230  NA    HISTÓRIA 


êle  — ,  do  que  na  defesa  da  Coroa.  Como  um 
dos  chefes  do  pronunciamento  Nacional,  hei-de 
feztí-lo  triunfar:  é  o  meu  dever.  Como  Conse- 
lheiro da  Rainha,  e  o  que  é  mais,  como  o  uiais 
fiel,  dedicado  dos  seus  súbditos,  não  consentirei 
na  menor  ofensa  das  suas  prerrogativas  e  digni- 
dade». O  tremendo  «ditador  de  Guinfões»  quer, 
desveladamente,  que  Sua  Majestade  sossegue. 
Ele  lá  está,  —  revolucionário  terrível,  mas  súbdi- 
to fiel.  Conseguira  já  «que  o  sangue  não  corresse 
nas  Províncias  do  Sul»;  «que  nenhum  excesso 
maculasse  a  honra  deste  Povo  »;  «que  as  relíquias 
do  Exército  se  salvassem»;  que,  no  meio  da  ca- 
tástrofe, «se  conservassem  ainda  todos  os  ele- 
mentos da  ordem  futura».  O  resto  não  era  difí- 
cil. A  Junta  da  sua  presidência,  composta  de 
homens  generosos  e  fortes,  ingénuos  e  liais  como 
êle, — casacas-de-briche  e  pés-de-boi  —  ,  se  en- 
carregaria de  «restabelecer  a  recíproca  confiança 
entre  o  Rei  e  o  Povo,  unir  a  Coroa  e  a  liberdade, 
terminar  aquela  luta  espantosa  sem  mais  derra- 
mamento de  sangue».  Mas,  para  isso,  o  «ho- 
mem de  Bouças»,  como  no  dia  em  que  falara  alto 
a  D.  Fernando  e  a  Van  der  Weyer,  —  põe  condi- 
ções. Exige  que  se  entreguem  os  comandos  das 
Províncias,  das  Praças  e  dos  regimentos  a  ofi- 
ciais que  tenham  a  confiança  do  povo;  reclama  a 
organização  da  Guarda  Nacional  em  Lisboa  e  no 
Porto,  «não  uma  Guarda  Nacional  com  Arsenais, 
nem   Camilos,    nem   Marcos;  mas  uma  Guarda 


i 


PASSO?     MANUEL  231 


de  contribuintes  com  o  censo  alto,  gente  estabe- 
lecida, que  na  sua  propriedade  dê  iguais  garan- 
tias de  ordem  e  de  liberdade»;  indica,  para  seus 
comandantes,  «homens  como  Policarpo  J."  Ma- 
chado. Jorge  Sttret  e  o  conde  da  Ribeira»;  lem- 
bra ao  duque  de  Palmela,  demasiadamente 
preocupado  com  a  idéa  do  desarmamento  geral, 
que  «pacificar  um  país,  não  é  desarmá-lo».  Mas 
a  parte  mais  bela,  mais  comovedora  e  mais  no- 
bre da  carta  notabilíssima  de  Passos  Manuel, 
está  nas  quinze  linhas  de  epopeia  em  que  êle  se 
refere  ao  povo  revolucionário.  São  dignas  da 
alma  antiga  que  as  sentiu,  da  mão  gloriosa  que 
as  escreveu.  São  justas  —  e  são  eternas.  São 
um  hino  —  e  um  clarão,  a  A  História, — diz  Ma- 
nuel Passos  — ,  não  oferece  uma  crise  como  esta 
em  nenhum  Povo  da  terra.  Um  Povo  que  s&  ar- 
ma todo,  sem  excepção  de  um  único  indivíduo, 
que  afronta  a  confiscação  e  o  patíbulo,  que  corro 
denodado  e  intrépido  aos  combates,  que  volta  a 
eles  com  novo  ardor,  que,  sem  dinheiro,  sem 
armas,  sem  munições  dertrói  um  Governo  fero- 
císsimo e  bate  todo  um  Exército  valente,  e  que 
no  meio  de  tudo  isto  não  comete  um  único  cri- 
me, não  se  mancha  com  sangue,  não  exerce 
vinganças  e  abraça,  e  perdoa  a  seus  inimigos  e 
opressores  ainda  salpicados  com  o  sangue  de 
seus  concidadãos,  —  é  um  Povo  admirável  que 
não  teve,  nem  tem,  nem  terá  modelo  sobre  a 
terra». 


UMA  INFANTA  HISTÉRICA 


A  infanta  D.  Joana,  filha  de  D.  João  iv,  mor- 
reu, como  se  sabe.  aos  17  anos.  Era  uma  infan- 
tasinha  histérica,  que  sofria  também,  segundo 
todas  as  probabilidades,  de  uma  entero-colite 
muco-membranosa,  e  cujos  estigmas  somáticos 
de  degenerescência  se  acusam  numa  miniatura 
em  cobre  existente  na  biblioteca  de  Évora,  por 
sinal  na  mesma  vidraça  onde  se  encontra  o  admi- 
rável tríptico  de  Limoges.  Criatura  profunda- 
mente tarada,  com  a  pesada  herança  dos  estru- 
mosos  de  Medina  Sidónia,  irmã  dum  tubercu- 
loso (D.  Teotónio)  e  dum  poliomielítico  infantil 
(Afonso  vi),  apresentando  sintomas  de  progres- 
siva consunção  e  tendo,  nos  últimos  meses  de 
vida,  hemoptises  frequentes,  t^da  a  gente  supôs 
que  ela  tivesse  morrido  «ética  ou  tísica»  (Mss. 
da  Torre  do  Tombo,  Colecção  de  S.  Vicente^  liv. 
'd2,  11.  24).    Us  médicos,  chamados  a  uma  junta 


UMA    ÍNFANTA   HISTÉRICA  233 


pelo  rei,  esclareceram  o  caso  clínico  da  infanta 
D.  Joana,  afirmando  que  ela  sucumbira  a  um  pa- 
decimento intestinal  grave  complicado  de  aci- 
dentes histéricos,  e  que  as  hemoptises  verifica- 
das nos  últimos  meses  da  doença  eram  hemorra- 
gias de  carácter  suplementar  atribuíveis  à  ame- 
norréa  da  infanta,  que,  nos  seus  estiolados  17 
anos,  náo  revelara  ainda  os  signais  fisiológicos 
da  puberdade.  D.  João  iv,  embrulhado  num  luto 
de  baeta  negra  de  cem  fios,  a  guedelha  loira  a 
lamber  a  holanda  azulada  do  mantéu,  ouviu-os 
longamente,  levantou-se  de  repelão  sem  os  dei- 
xar acabar,  e,  farto  de  palavras  bárbaras  cujo 
sentido  não  entendia,  deu  ordem  ao  secretário 
de  Estado,  Pedro  Vieira  da  Silva,  para  receber 
dos  médicos  palatinos  um  relatório  completo  e 
circunstanciado  acerca  da  doença  e  morte  da 
princesa,  no  qual  fossem  suficientemente  escla- 
recidos todos  os  vocábulos  gregos  e  latinos.  D. 
João  IV,  cuja  cultura  médica  se  limitava  à  arte 
de  preparar  certo  óleo  de  enxofre  para  a  «enfer- 
midade do  sesso  saído  fora»  (Curvo  Semmedu, 
Poliantea,  725),  desconfiava  manifestamente  da 
sciència  dos  arquiatras  de  palácio.  A  ordem  foi 
cumprida,  e  o  físico-mór  António  de  Castro  apre- 
sentou, em  26  de  novembro  de  1653,  o  primeiro 
relatório  médico  que  se  escreveu  em  Portugal 
àcôrca  da  doença  de  qualquer  membro  das  fa- 
mílias reinantes. 

Esse  documento,  cuja  grafia  modernizo  afuii 


234  NA    HISTÓRIA 


de  o   tornar  mais   facilmente   legivel,    diz  o  se- 
guinte: 

iiVossa  mercê  me  manda  dizer  o  nome  da 
doença  de  que  moneu  a  Infanta  a  Senhoi^a  D. 
Joana:  de  uma  doença  a  que  os  doutores  médi- 
cos chamam  hienteria,  complicada  com  uns  aci- 
dentes chamados  histéricos^  alio  nomine  uteri- 
nos; à  qual  doença  se  seguiu  também  uma  atro- 
fia, que  c  uma  magreza  e  secura  de  todo  o  corpo, 
que  também  tem  por  nome  hontica  ventriculi. 
Explicação  dos  nomes  médicos  e  acidentes  que 
acompanharam  esta  doença: — Hienteria  é  uma 
dejecção  do  mantimento  tal  qual  se  toma,  nas- 
cida de  fraqueza  das  faculdades  do  estômago 
comcoctris  et  retentris,  e  por  esta  razão  adquire 
o  corpo  todo  grande  magreza  e  secura  por  lhe 
faltar  o  sustento;  esta  teve  a\  senhora  Infante,  e 
não  a  secura  dos  éticos;  o  que  se  verifica  ainda 
mais^  porque  no  discurso  da  sua  doença  esteve 
muitas  vezes  sem  febre,  e  esta  tal  magreza  cha- 
mam os  doutores  médicos  atrofia,  por  ser  cau- 
sada ex  denegato  alimento.  Os  acidentes  histé- 
ricos, que  também  se  chamam  uterinos,  tomam 
o  nome  da  parte  que  principalmente  padece; 
causam-se  do  sangue  ou  de  todos  os  humores^ 
ou  de  outra  substância  mais  sólida  que  dele  se 
eleva,  a  qual,  detendo-se  e  apodrecendo  no  tal 
logar,  comunica  vapoires  a  várias  partes  por  ter 
com  todas  muita  comunicação;  e  como  estes 
sejam   podres    e    ruins,    causa    vários    acidentes 


UMA   INFANTA   HISTÉRICA  235 


conforme  as  partes  a  que  se  comunica;  na  dita 
Senhora  se  comunicaram  aos  nervos,  e  por  esta 
razão  Jhe  convaliam  os  queixos,  e  impediam  a 
acção  de  mastigar  o  comer,  e  nas  pernas  e  bra- 
ços que  lhe  impediam  o  movimento.  Tiveram 
todos  estes  males  um  principio,  que  foram  as 
(jrandes  obstruções,  ou  opilações  nas  veias  que 
costumam  levar  o  mantimento  ao  útero;  pela 
qual  razão,  sendo  de  dezassete  anos,  nunca  foi 
mal  nem  bem  menstruada;  e  por  esta  razão  nos 
fins  dos  meses  lançou  por  vezes  sangue  pela 
boca,  escolhendo  a  natureza  este  caminho  por 
ter  impedido  o  conveniente  e  costumado^  o  que 
nestes  casos  sucede  muitas  vez<^s;  de  modo  que 
morrendo  mui  seca  do  corpo,  e  mui  extenuada, 
e  lançando  por  vezes  sangue  pela  boca,  não  mor- 
reu ética,  nem  menos  tísica.  —  Guarde  Nosso 
Senhor  a  Vossa  Mercê  muitos  anos.  De  casa, 
26  de  novembro  de  1653,  Senhor  Pedro  Vieira 
da  Silva  —  O  Físico-Mór,  António  de  Castro.» 

Êsle  curioso  relatório  vem  trasladado  no  Li- 
vro 22  de  Mss.  da  Colecção  de  S.  Vi  ente.  En- 
contra-se  no  mesmo  códice  outro  documento 
assinado  também  pelo  físico-mór  António  de 
Castro,  no  qual  se  descreve  a  doença  e  morte  do 
irmão  da  Infanta,  o  príncipe  D.  Teodósio.  Su- 
cumbiu, evidentemente,  a  uma  tuberculose  pul- 
monar. O  boato  da  peçonha  mandada  subminis- 
trar  ao  Príncipe  por  Filipe  iv  de  Espanha,  não 
tem  o  menor  fundamento. 


U  ENTRUDO  NU  iSÉtULO  XVIII 


Nús,  portugueses,  nunca  compreendemos  bem 
que  o  Carnaval  pudesse  ser  uma  festa  de  arte, 
como  na  Itália  da  Renascença,  ou  uma  festa  de 
espírito,  como  na  França  de  Luís  xiv:  o  nosso  En- 
trudo, o  SanVEntrudo  lisboeta,  foi  sempre  ca- 
racterizada e  fundamentalmente  sórdido.  O  sé- 
culo xvni,  então,  excedeu  todos  os  outros.  Foi 
o  século  típico  do  Entrudo  nacional. 

É  difícil  supor  qualquer  coisa  de  mais  ignó- 
bil, do  que  esses  três  dias  solenes  em  que  a  ve- 
lha Lisboa  de  1700  dizia  o  tradicional  adeus  à 
carne.  Toda  a  mafra  baixa  das  vielas,  as  frego- 
nas  remangadas  e  as  michelas  de  poria,  os  alfa- 
mistas  8  as  regatsiras,  as  franças  dO'  Mocambo 
e  os  faceiras  do  Rocio,  com  a  casaca  de  seda  a 
escorrer  ovos,  a  cara  empastada  de  sangue  e  de 
lama,  cobertos  de  dejectos  e  de  imundícies,  cor- 
riam as  ruas  debaixo  da  saraivada  dos  pós,  das 


o    ENTRUDO    NO    SÉCULO   XVIII  237 


panelas,  das  laranjas  de  cheiro,  dos  esguichos, 
dos  ovos  de  gema,  de  todo  o  ágiia-vai  que  jor- 
rava das  rótnias  oslreilas  e  dos  postigos  mouris- 
cos. Coche,  estufa,  liteira,  cadeirinha  que  pas- 
sasse, era  assaltada,  voUada,  coberta  d^  lama  e 
varejada  de  pedras.  Escalavam-se  muros,  inva- 
diam-se  casas,  roubava-se,  devassava-se  a  pro- 
priedade alheia,  os  frades  corriam  bêbedos  de 
porta  em  porta,  havia  fidalgos  que  se  emborra- 
chavam nas  adegas  com  os  negros  e  com  os  cria- 
dos, e  emquanto  os  bandos  passavam  na  rua, 
saltando,  uivando,  cabriolando, — sobre  o  mon- 
turo dos  pátios  solarengos,  onde  os  porcos  fossa- 
vam e  os  cães  afocinhavam  a  terra,  mendigos 
apinhados  descobriam  chagas,  pediam  esmola, 
ao  sol,  cantando  o  Bemdito.  Era  uma  tremenda 
exibição  de  miséria.  Era  a  inversão  transitória 
de  toda  a  hierarquia  social.  As  oitenta  e  sete  ta- 
bernas do  bairro  de  S.  Paulo  (oitenta  e  sete  1)  en- 
chiam-se  a  deitar  por  fora;  mulatas,  rascôas  de 
viela,  gandaias  de  tairocas,  enjeitadas  do  Hospi- 
tal Rial,  toda  a  esccjria  da  Alfama  e  do  Bairro 
Alto  coíTia  em  levas,  em  manadas,  em  ban- 
dos selvagens,  insultando-se,  batendo-se,  desgre- 
nhando-se,  dançando;  e,  de  pendões  à  frente, 
as  procissões  burlescas  passavam,  sujas  de  lodo, 
monstruosas  e  imundas,  com  o  Rei  David  a  bai- 
lar, de  coroa  no  alto  da  cabeça,  e  atrás  a  multi- 
dão convulsa,  bêbeda,  miserável,  rouquejando 
em  ladainha: 


238  NA    FIISTÓRIA 


—  Sanctus  Introitus,  quebrare  panellas  I 
E,  entretanto  —  coisa  curiosa  !  —  no  meio  de 
todo  êsle  Carnaval  de  sordidez  e  de  vício,  não  se 
via  uma  única  máscara.  As  máscaras  estavam 
proibidas  nas  ruas  por  alvará  de  25  de  agosto  de 
1689,  como  expediente  vulgar  de  picões  e  de  as- 
sassinos, e  nunca  mais  tinham  aparecido  senão 
nas  tranqueiras  do  terreiro  do  Paço  por  festas 
de  touros.  Apesar  disso,  os  quadrilheiros,  os  mei- 
rinhos, os  corregedores  dos  bairros  arranjavam 
nos  três  dias  de  Entrudo  trabalho  para  todo  o 
ano.  Sucediam-se  os  roubos,  as  violações,  as 
mortes.  Com  o  jejum  da  Quaresma  levantava-se 
a  forca  nas  praças.  Justamente  no  século  que 
fez  do  Carnaval  uma  obra  de  arte,  quando  Arie- 
chino  pendurava  o  seu  manto  multicor  pelos  pa- 
lácios doirados  de  Veneza  e  de  Florença,  —  o  ve- 
lho SanfEntrudo  português  conseguia  apenas  ser 
boçal,  repugnante,  desordeiro  e  criminoso-  No 
momento  em  que  a  Regência  ordenava  os  bailes 
de  máscaras,  em  que  a  Ópera  instituía  os  après- 
soupcrs,  em  que  Versailles  se  iluminava  para  re- 
ceber o  sorriso  branco  de  Pierrot,  —  D.  João  v, 
piedosamente  tocado  pela  devassidão  do  Carna- 
val do  povo,  obtinha  de  Roma,  para  a  sua  Ca- 
pela Rial,  o  «jubileu  das  quarenta  horas».  E  em- 
quanto  a  canalha  da  velha  Lisboa  patriarcal  pu- 
lava, tairocava,  rugia  obscenidades  pelas  ruas, 
coberta  de  lama,  de  sangue  e  de  farrapos, — er- 
guia-se  no  altar-mór  de  S.  Roque  uma  pirâi  ide 


o  ENTRUDO   NO   SÉCULO   XVIII  239 


estrelada  de  lumes,  a  Congregação  de  Nossa  Se- 
nhora da  Doutrina  desfilava  com  os  seus  estan- 
dartes, e  entre  alns  imensas  de  diáconos  de  dal- 
mática  e  de  dignidades  de  pluvial,  a  procissão 
do  Santíssimo  saía  com  el-rei,  sumptuosamente, 
debaixo  de  pálio.  D.  João  v,  incapaz  de  fazer  do 
Entrudo  uma  festa  de  arte  —  ccnve-rleu-o,  pouco 
a  pouco,  numa  festa  de  Igreja. 

Mas  se,  nas  ruas  de  Lisboa,  o  Carnaval  do  sé- 
culo xvrii  foi  uma  miséria,  —  nas  casas  fidalgas 
ULO  passou  dum  pretexto  para  se  comer  melhor. 
Dos  conventos  choviam  pães  de  ló,  bolos  podres, 
covilhetes  de  amêndoa,  papos-de-anjos,  ovos  riais 
em  grandes  bandejas  armadas.  Sentavam-se  à 
mesa  os  frades  pedintes.  As  sécias  cheias  de  pós 
da  índia,  pingadas  de  rosicléres  de  diamantes, 
toucadas  de  amarelo  uà  alemôa»,  ensinavam  pu- 
lhas aos  papagaios,  cantavam  lunduns  e  modi- 
nhas brasileiras  à  viola,  cortavam  rabolevas,  co- 
zinhavam filhos  com  estopa,  atroavam  as  casas 
de  palavrões  torpes.  As  vítimas  do  SanfEntrudo 
fidalgo  eram  os  bobos,  os  parasitas,  os  negri- 
nhos, —  toda  a  estirpe  risonha  e  buliçosa  dos 
Bento-Antónios,  dos  Joões  da  Falperra,  das  Ro- 
sas mulatas.  Para  divertirem  as  visitas  no  Car- 
naval, os  marqueses  de  Gouveia  faziam  andar  o 
bobo  Penharanda,  vestido  de  verde,  de  gatas  à 
roda  dum  salão.  A  condessa  de  S.  Vicente, 
quando  se  lhe  acabavam  as  laranjas-de-cheiro  — 
conta-o  Goubitr  de  BaiTault  —  armava  uma  maji- 


240  NA    HISTÓRIA 


gueira  na  janela  e  encharcava  o  povo-  O  mar- 
quês de  Marialva,  caído  de  bêbedo  entre  can- 
jirões de  praia,  l'azia-se  insultar  por  frades  e 
servir  «por  crianças  nuas.  Em  mascaradas,  em 
festas,  em  bailes,  no  verdadeiro  Carnaval  nin- 
guém pensava,  —  por  que  ninguém  o  sentia.  O 
primeiro  baile  de  máscaras  particular  que  se 
realizou  em  Lisboa,  deu-o  o  embaixador  de  Es- 
panha, em  1785,  para  solenizar  o  casamento  de 
Carlota  Joaquina. 

Surge  então  Pina  Manique,  cão  de  guarda 
do  regímen,  abraçado  ao  Código  de  Polícia  de 
Luís  XIV  e  ao  Tratado  da  Polícia^  de  Willebrand. 
O  pouco  que  restava  do  SanfEntrudo  vacila  e 
estremece.  O  Intendente  cria  as  «moscas»,  in- 
venta as  luminárias  para  distrair  o  povo,  prende 
0^  livreiro  Dubie  por  vender  Rousseau,  fulmina 
a  Enciclopédia,  — e  torna  a  proibir  as  máscaras 
que  Q  baile  do  embaixador  de  Espanha  tinha 
posto  em  moda.  Eritretanto,  em  França,  a  Re- 
volução rebenta.  Gonstitue-se  a  Assembleia  Na- 
cional, suprimem-se  as  garantias,  é  inaugurada 
a  Convenção,  proclamada  a  República,  abolida 
a  rialeza.  Um  verdadeiro  delírio  de  persegui- 
ções acomete  Pina  Manique.  Proíbe  o  jogo  da 
bola,  proíbe  que  se  ande  de  luvas,  proíbe  as  cai- 
xas-de-rapé,  proíbe  o  Gil  Blas  de  Santillana, 
proíbe  as  cabeleiras  de  França,  proíbe  o  decote 
das  mulheres,  proíbe  que  se  converse  nos  cafés, 
enche  Lisboa  de  esbirros,  de  terror,  e,  honra  lhe 


o   ENTRUDO    NO    SÉCULO   XVIII  241 


seja, — de  luzes.  O  Entrudo  bárbaro  das  ruas, 
perante  a  luneta  de  oiro  do  Intendente,  quási 
desaparece.  Redobram  de  vigilância  os  correge- 
dores dos  bairros.  São  presas  colarejas  de  fruta 
só  por  dizerem  obscenidades  no  Rorio.  Os  cafés 
deixam  de  sar  ninhos  de  ladrões,  para  se  trans- 
formarem em  cluhs'  políticos-  Certo  capelista  da 
rua  da  Rosa  é  metido  no  Limoeiro  por  vender 
máscaras.  Os  dançarinos  italianos  do  Salitre, 
que  pedem  licença  para  anunciar  um  «baile  à 
francesa»,  recebem  uma  negativa  formal.  S(')  em 
1823,  já  em  pleno  século  xix,  se  realiza  no  tea- 
tro do  Bairro  Alto,  ao  pátio  do  Patriarca,  o  pri- 
meiro baile  de  máscaras  público  de  Lisboa. 

Com  a  casaca-de-briche  dos  vintistas  surgia 
o  Carnaval  romântico.  ^) 


^)    JÚLIO   Dantas.   Ao   ouvido   de   .V/.m«   X.   \n\'^.   257.— 
o  Carnaval  Romântico. 
16 


D.  JOÃO  V 


D.  João  V  teve,  aos  53  anos  de  idade,  um  aci- 
dente a  que  se  seguiu  hemiplegia  esquerda  com- 
pleta; quer  dizer,  o  rei  foi  vítima  duma  lesão 
destrutiva  em  foco  devida  a  hemorragia  ou  a 
amolecimento.  O  conhecimento  dos  antecedentes 
pode  contribuir  para  a  fixação,  quanto  possível 
aproximada,  do  diagnóstico  etiológico  e  do  dia- 
gnóstico patogénico  da  lesão. 

Vou  reunir  todos  os  elementos  que  o  meu 
dossier  me  fornece.  São,  na  sua  quási  totali- 
dade, inéditos. 

D.  João  v  foi  o  segundo  génito  de  Pedro  n  e 
de  Sofia  de  Neuburgo,  alemã  doente,  taciturna, 
nevrosada,  sujeita  a  cólicas  biliosas.  O  pai,  já 
infectado  quando  o  gerou,  aos  40  anos,  morre 
dez  anos  depois,  com  várias  paralisias  e  um  si- 
filoma  pleuro-pulmonar,  no  decurso  de  um  ter- 
çiarismo  visceral  intenso-   Uma  tia  paterna,  a  in- 


D.  JOÃO  V  243 


fanta  D.  Joana,  assimétrica,  degenerada,  ame- 
norreica,  — «nunca  foy  mal  nsm  bem  regulada», 
diz  o  físico-mór  António  de  Castro — .  tem  ata- 
ques histéricos,  trismus  frequente,  sofre  duma 
enterite  crónica  e  morre  aos  17  anos,  com  he- 
moptises. Um  tio  paterno,  D.  Teodósio,  precoce 
intelectual,  prognata  inferior,  sucumbe  a  uma 
tuberculose  pulmonar.  Outro  tio  paterno,  Afon- 
so VI,  tem  bléfaro-conjuntivites  purulentas,  bron- 
quites de  repetição,  e,  em  seguida  a  uma  polio- 
mielite, fica  hemiplégico,  obeso,  idiota.  A  avó, 
uma  Medina  Sidónia,  linfática,  doente,  sujeita  a 
dermatoses,  morre  de  hidropisia,  talvez  em  con- 
sequência duma  afecção  renal.  Os  antecedentes 
hereditários  acusam,  portanto,  uma  herança  de 
sifilíticos  e  de  neuro-estrumosos. 

Vejamos  os  antecedentes  pessoais.  D.  João  v, 
gerado  cinco  meses  depois  dum  caso  de  morti- 
natalidade  (o  infante  D.  Pedro),  nasce  de  termo. 
Nada  se  sabe  quanto  à  dentição,  linguagem,  mar- 
cha. A  iconografia,  muito  abundante,  revela  uma 
ligeira  assimetria  facial,  exorbitismo,  lábio  aus- 
tríaco acentuado,  prognatismo  inferior  duvidoso 
em  alguns  perfis  numismáticos,  altura  conside- 
rável da  face;  as  descrições  dos  contemporâneos 
atrjbuem-lhe  «testa  espaçosa»,  olímpica  (o  bor- 
de-front  alto  das  cabeleiras  de  França  ?).  Várias 
doenças,  na  infância  e  na  adolescência.  Aos  11 
anos,  varíola.  Aos  15  (1704)  não  acompanha  o 
cadáver  da  infanta  D.  Teresa,  morta  aos  8  anos 


244  NA    HISTÓRIA 


(le  varíola  maligna,  «por  se  achar  convalescentb 
de  segundas  bexigas».  Aos  19  anos  (maio  de 
1708)  tem  «hum  afrontamento  na  audiência»:  re- 
colhe-se;  toma  remédios;  purga-se.  Por  esta  data, 
manifestação  de  tendências  homo-sexuais.  Re- 
petem-se  os  afrontamentos:  Brochado  inculpa  a 
falta  de  higiene  do  monarca,  que  «come  muito  e 
não  faz  exercício».  Frei  Caitano,  na  capela  do 
Paço,  prega  um  sermão  contra  os  ministros,  «que 
calam  a  el-rei  o  que  lhe  deviam  dizer».  Em  ju- 
nho de  1709,  sete  meses  depois  do  seu  casamento 
com  Mariana  de  Áustria,  «anda  magro,  desco- 
rado a  triste;  as  «queixas  saem-lhe  ao  rosto»;  os 
capelos  amarelos  do  Paço  falam  em  mandá-lo  para 
as  Caldas  para  o  apartar  da  rainha;  no  dia  29  de- 
terminam sangrá-lo  «por  causa  de  huma  íluxão  de 
humor  que  lhe  vem  às  glândulas  e  lhe  faz  alguma 
inchação  no  pescoço  e  por  baixo  da- barba»;  no 
dia  6  dô  julho,  diz  Brochado  em  carta  ao  conde 
de  Viana,  «as  glândulas  ainda  não  expeliram  o 
humor  que  receberam,  e  eu  suponho  que  se  o 
excessivo  calor  destes  meses  não  as  amolecer  e 
excitar  a  transpiração,  será  necessário  recorrer 
a  remédios  tópicos  e  violentos».  O  rei  cai  num 
abatimento  profundo:  «ontem,  depois  do  jantar, 
—  informa  a  desem.bargador  Brochado  na  mesma 
carta  para  Londres  — ,  mandou  vir  músicos  da 
capela  e  ordenou  que  lhe  cantassem  um  ofício 
de  trevas».  A  13  de  julho,  «o  tumor  é  grainde»: 
pensa-se  em  recorrer  ao  segredo  de  Agostinho 


D.  JOÃO  V  245 


de  Barros  ou  ao  remédio  da  mulher  de  Loures; 
o  rei  «amanhece  com  amargos  de  boca,  dores  de 
cabeça  e  alguma  quentura  pelo  corpo».  A  20  de 
julho  «o  achaque  dei  Rey  N.  Senhor  não  tem  di- 
minuição; o  clérigo  que  lhe  aplica  as  bolças  tem 
boas  esperanças  de  umas  picadas  que  Sua  Ma- 
jestade sente  na  part-e  inferior  do  inchaço;  mas 
não  se  sabe  se  é  certo  o  juízo  deste  charlatão». 
Os  médicos  aconselham  o  rei  a  que  vá  para  Sin- 
tra; D.  João  V,  para  não  deixar  o  governo  ao  ir- 
mão D.  Francisco,  fica  na  corte  e,  com  o  pescoço 
cheio  de  escrófulas,  assiste,  no  último  domingo 
de  julho,  dia  onomástico  da  rainha,  a  uma  co- 
média que  se  representa  no  Paço.  A  18  de  agosto 
está  melhor;  a  10  de  setembro,  quási  restabele- 
cido: «o  barbasco  foi  milagrosa  planta  para  dis- 
sipar aquela  inchação,  que  até  no  nome  é  desai- 
rosa»; entretanto  persistem  cefalalgias  frequen- 
tes; toma  banhos;  a  26  de  outubro,  «as  queixas 
que  el-Rei  padecia  devem  estar  dissipadas,  por- 
que em  um  destes  dias  passou  para  o  quarto 
da  rainha  a  viver  como  convalescido  e  como  es- 
poso». Trata-se,  evidentemente,  de  adenites  tu- 
berculosas cervicais,  —  supuradas  ou  não-.  No 
dia  27  de  fevereiro  de  1710,  D.  João  v,  novamente 
doente,  é  sangrado  na  veia  de  arca  e  recebe  nesse 
mesmo  dia  o  conselho  de  Estado,  que  pela  pri- 
meira vez  entra  na  câmara  dos  reis.  Em  junho 
de  1711,  deixa  a  rainha  grávida  de  três  meses  e 
parte  para  Azeitão,  onde  vai  convalescer,  na  casa 


'/l6  NA    HISTÓRIA 


dos  duques  de  Aveiro,  «de  uma  queixa  de  fla- 
tos que  com  muita  violência  o  atacou».  Passados 
catorze  meses,  em  setembro  de  1712,  nova  «quei- 
xa grave»  de  que  convalesce  em  Pedrouços.  Três 
anos  depois  (1715,  pelo  S.  João)  «um  flato  rijo 
dos  que  costuma  ter»,  e  que  o  apanha  à  janela, 
em  Setúbal,  a  ver  correr  toiros.  Decorridos  dois 
anos  incompletos,  nova  doença;  talvez  as  mes- 
mas perturbações  nervosas;  convalescença  longa 
em  Pedrouços.  Daí  por  diante,  é  difícil  seguir  as 
vicissitudes  patológicas  do  rei.  A  falta  de  infor- 
mações parece  indicar  que  nos  vinte  anos  se- 
guintes tem  relativa  saúde.  É  o  período  de  maior 
intensidade  na  sua  vida  sexual:  aun  peu  fou)). 
como  lhe  chamou  Mathieu  Marais,  semeia  pe- 
los conventos  de  claristas  e  de  bernardas  a  faixa 
contraveirada  de  prata  das  bastardias;  agarra  de 
noite,  nos  corredores  do  Paço,  as  damas  e  as 
açafatas;  manda  cunhar  moedas  de  oiro  «todas 
de  caras  para  pagar  às  fêmeas»;  disfarça-se  de 
mendigo  para  beliscar  nas  igrejas  os  braços  pol- 
pudos das  mulheres  do  povo;  um  forte  libido 
leva-o  até  ao  desvio  homo-sexual;  fatigado  por 
toda  a  casta  de  excessos,  ordena  qu3  se  consulte 
o  sábio  Boerhaave  sobre  as  virtudes  da  raiz  do 
ginsão,  «admirável  remédio  para  qualquer  en- 
fermo prostrado,  desfalecido  ou  esfacelado».  De- 
caído pela  idade— diz  Gostigan  —  «toma  cantá- 
ridas que,  o  reduzem  a  uma  suma  froixidão». 
Quando  Manuel  da  Gosta,   espécie  de  Mercúrio 


D.  JOÃO  V  247 


de  tacões  vermelhos,  o  acompanha  de  noite  aos 
mauvais-lieux  de  Lisboa,  —  à  «Genovesa»,  à  ma- 
dama  Dionísia  Aguas  B^las,  que  mora  no  Ter- 
reiro do  Paço  por  cima  do  Açougue,  ou  às  mui- 
tas francesas  que  então  exercem  na  côrte  a  pro- 
fissão de  damas,  —  João  Jaques  de  Magalhães 
dá-lhe  a  essência  de  âmbar,  cujos  efeitos  são  co- 
nhecidos. A  sua  pretendida  robustez  abala-se. 
Começa  então,  como  os  irmãos  D.  Francisco,  D. 
António  e  D.  Aíanuel,  a  sofrer  de  úlceras  nas  per- 
nas,—  úlceras  maleolares  que  o  marquês  de 
Pombal  considera  «como  hereditárias  nos  se- 
nhores da  casa  sereníssima  de  Bragança»,  cuja 
razão  etiológica  não  ss  determina  com  precisão  — 
varicosas,  sifilíticas,  sifilo-varicosas  ?  —  e  cujo 
aparecimento  precede  a  hemiplegia  do  rei,  pelo 
menos  do  tempo  necessário  para  que  as  opiniões 
humorais  e  curvianas  da  época  possam  atribuir 
a  tentativas  de  cura  dessas  úlceras  o  acidente 
de  paralisia  que  fere  D.  João  v,  em  1742. 

Eis  o  que  pude  esclarecer,  quanto  aos  ante- 
cedentes hereditários  e  pessoais  do  rei.  Veja- 
mos agora  a  marcha  da  sua  última  doença. 


Numa  quinta-feira,  10  de  maio  de  1742,  no 
paço  da  Ribeira  onde  então  morava,  o  rei. D. 
João  V,  estando  a  despacho  com  o  ministro  assis- 


248  NA    HISTÓRIA 


tente,  foi  ferido  de  «um  estupor  que  o  privou 
dos  sentidos,  e  ficou  leso  da  parte  esquerda,  com 
a  boca  à  banda»,  — diz,  no  seu  n.°  19,  O'  Folheto 
de  Lisboa^  gazeta  manuscrita  do  tempo.  Comp]?.- 
tava,  em  22  de  outubro,  53  anos  de  idade.  Apesar 
da  herança  sifilítica,  das  perturbações  de  nutri- 
ção derivadas  da  sua  braditrofia  de  sedentário  e 
dos  excessos  duma  vida  sexual  intensa,  o  rei  era 
um  homem  aparentemente  robusto.  O  dr.  Iná- 
cio Barbosa  Machado,  na  sua  Relaçam  da  enfer- 
midade e  morte  do  senhor  D.  João  y,  refere  que, 
antcís  do  acidente  do  dia  10,  «Sua  Majestade  go- 
zava de  uma  completa  saúde,  conservada  pela 
moderação  dos  alimentos,  em  que  era  mui  parco, 
fugindo  daquelas  desordens  que  foram  pernicio- 
sas a  muitos  dos  seus  ascendentes»,  e  acrescenta 
que  o  insulto  de  paralisia  veio  «sem  precederem 
alguns  sintomas  de  queixa,  repentinamente».  A 
saúde  do  rei  não  era,  porem,  tão  perfeita  como 
se  pretendia,  porque  já  nessa  altura  D.  João  v  so- 
fria de  úlceras  maleolares  persistentes;  nem  a  sua 
dietética  foi  sempre  tão  escrupulosa,  que  o  desem- 
bargador .  Brochado,  numa  carta  ao  conde  de 
Viana,  não  dissesse  dele:  «este  Príncipe  come 
muito,  não  faz  exercício  e  passa  todo  o  dia  ou- 
vindo histórias  da  carochinha».  Entretanto,  o 
que  importa  concluir  e  o  que  de  facto  se  conclui 
da  Relação  de  Barbosa  Machado  e  da  notícia  do 
Folheto  de  Lisboa^  é  que  o  acidente  surgiu  sem 
pródromos,   bruscamente,   em  plena  saúde   apa- 


D.    JOÃO   V  2AÇ> 


rente  do  monarca;  que  se  instalou  uma  hemiple- 
gia esquerda  —  cortical,  capsular,  peduncular, 
protuberancial  ?  —  devida  a  hemorragia  ou  a  amo- 
lecimento. D-  João  V  durou  ainda  oito  anos. 
Uma  vasta  documentação,  constituida  na  maior 
parte  por  correspondência  particular  (cartas  de 
Mendo  de  Povos,  de  D.  Luís  da  Cunha,  do  je- 
suita  Carbone,  de  Luís  Manuel  da  Câmara  Cou- 
tinho, etc),  por  memórias  inéditas  do  tempo  (Ga- 
zeta de  Joseph  Soares  da  Silva,  papeis  do  duque 
de  Cadaval)  e  pelas  notícias  dos  jornais  manus- 
critos de  1742  a  1750  (Folheto  de  Lisboa,  Mercú- 
rio Histórico^  etc.),  permite-nos  reconstituir,  sob 
forma  de  diário,  pelo  menos  durante  os  primei- 
ros tempos,  a  história  completa  da  doença  do 
rei.  Vejamos. 

Dia  10  de  iiiaio  de  Í742.  O  rei,  «estando  a  des- 
pacho, sem  precederem  alguns  sintomas  de  quei- 
xa,  repentinamente,  é  insultado  de  um  acidente 
de  paralisia  que  lho  balda  o  braço,  perna  e  todo 
o  lado  esquerdo».  Jíecobra  os  sentidos,  e,  nessa 
noite,  confessa-se.  —  Dia  11.  Recebe  o  viático  das 
mãos  do  Patriarca;  fala  ao  príncipe.  Ao  meio 
dia  sangram-no;  à  tarde  «entra  em  grande  mo- 
dorra». A  rainha  mete-se  durante  uma  hora  no 
orat(írio  e  vai  à  Madre  de  Deus,  descalça,  rezar 
pelo  rei.  —  Dia  13.  As  ruas  coalham-se  de  fra- 
des, de  conmnidades,  de  imagens,  de  relíquias: 
saem  os  marianos  com  o  braço  de  Santa  Teresa, 
os  dominicanos  com  a  senhora  do  Rosário.  Frei 


;^Ô  NA    HírTÓRlA 


Gaspar  Moscoso  chega  de  Coimbra  com  os  infan- 
tes. O  rei  é  sarjado  e  sangrado  nas  costas  da 
mão;  deitam-lhe  bichas  na  cabeça;  mas  teima  em 
receber  pela  segunda  vez  a  bênção  papal,  peds 
uma  cabeleira  de  França,  sobrevem-lhe  febre.  — 
Dia  i5.  Passa  melhor  de  noite;  descansa  até  às 
7  da  manhã.  Franciscanos,  lóios,  baltasares,  bar- 
badinhos,  saem  de  cruz  alçada  em  procissão  pela 
cidade.  —  Pia  18.  Mal.  Os  teatinos  trazem-lhe  o 
barrete  de  Santo  André  Avelino,  advogado  das 
apoplexias;  D.  João  v,  soerguido  nos  braços  dos 
cardeais  da  Cunha  e  da  Mota,  põe-no  na  cabeça 
e  reza  a  sua  comemoração.  —  Dia  24.  Pior.  São 
chamados  todos  os  médicos  da  junta:  o  doutor 
António  da  Gosta  Falcão,  capelo  amarelo,  que 
acabara  de  ser  nomeado  .cirurgião-mór  do  reino; 
o  doutor  Pestana,  sempre  de  capa,  volta  e  cabe- 
leira de  nós,  à  antiga;  o  médico  austríaco  Kau- 
pers,  que  punha  carmim  e  usava  moscas  como 
uma  dama;  o  doutor  Carapinho,  que  não  largava 
a  sua  mula  de  gualdrapa  cinzenta;  o  arguto  Or- 
tigão, predilecto  do  rei;  o  austríaco  Witte,  que 
viera  com  a  rainha-  Não  se  sabe  o  que  resol- 
vem. —  Dia  27.  Melhor.  Constata-se  «que  há  sen- 
timento na  parte  ofendida».  O  rei  faz  a  barba, 
contra  o  conselho  dos  médicos. — Dia  3  de  ju- 
nho. Purgam-no:  xarope  áureo,  pós  cornichinos, 
ou  xarope  de  Fioravanto.  Os  efeitos  «são  tão  co- 
piosos, que  o  snr.  D.  António  se  admira  que 
possa  caber  em  um  corpo  tão  grande  porção  de 


D.    JOÃO   V  251 


humores».  Dia  5.  Assentam-no  na  cama,  uairi- 
da  que  não  por  movimento  próprio,  porque  a 
parte  esquerda  continua  lesa».  Fala-se  na  ida  às 
Caldas:  halneum  tandem  convenit  post  três  septi- 
manas;  Ortigão  quer  que  se  apliquem  os  banhos 
sulfurosos  só  «quarenta  dias  depois  do  acidente», 
segundo  os  preceitos  de  Curvo. —Dia  8.  Deci- 
de-se  a  partida  para  as  Caldas.  — Dia  28.  Gran- 
de alegria  no  paço:  «Sua  Majestade  move  o  bra 
í;o  leso  até  ao  cotovelo  e  com  a  ajuda  da  mão 
direita  leva-o  à  cabeça».  Os  frades  atribuem  a 
melhora  a  milagre;  os  médicos,  aos  purgantes. 
-  Dia  30.  Começa  a  mover  a  perna.  —  Dia  7  de 
ialho.  Apressa-se  a  partida  para  as  Caldas.  Ar- 
ranjam-se  as  estradas.  O  cardeal  da  Cunha,  em- 
brulhado na  sua  púrpura,  cheio  de  medos  de 
bruxas  e  de  trovões,  parte  de  manhã  «para  ir 
devagar,  benzendo  os  caminhos». — Dia  9.  O  rei 
segue  para  as  Caldas,  acompanhado  de  Frei  Gas- 
par Moscoso,  do  jesuita  Carbone,  do  médico  Or- 
tigão, do  cirurgião  António  Soares  Freire.  Em- 
barca às  11  Va  da  manhã  na  ponte  do  Cais  da 
índia:  «vai  vestido  de  preto,  com  cabeleira  gran- 
de como  costuma  aparecer  em  público»;  as  re- 
gateiras  e  mulheres  da  Ribeira  dão-lhe  vivas.  — 
Dia  11.  Parte  a  rainha.  —Dia  12.  Parte  o  cardeal 
da  Mota  com  os  infantes  bastardos. — Dia  4  de 
agosto.  O  rei  tem  10  banhos;  as  melhoras  são 
poucas.  Desfaz-se  em  esmolas  e  mercês  a  toda 
a  gente:  a  cada  um  dos  enfermeiros  que  o  me- 


252  NA    HISTÓRIA 


tem  e  o  lirani  do  banho,  100  moedas  e  o  hábito 
de  Cristo;  a  cada  médico  do  partido  do  Hospi- 
tal, 320  mil  réis;  num  braço  de  prata  com  ias  re- 
líquias do  patriarca  S.  Bento,  que  o  acompanha 
na  viagem,,  mete  «um  anel  de  ouro  com  um 
diamante  brilhante  do  tamanho  de  um  tremoço». 

—  Dia  i7.  Regressa  a  Lisboa.  Luminárias  pelas 
melhoras  do  rei;  Te-Deum.  —  Dia  27  de  setembro. 
Novo  acidente,  que  o  n.'*  39  do  Folheto  de  Lis- 
boa^ de  29  de  setembro,  noticia:  «Na  5.*  feira, 
27,  das  ii  horas  para  o  meio  dia,  foi  Sua  Majes- 
tade assaltado  de  uma  vertigem  tão  veemente, 
que  o  priva  dos  sentidos  por  mais  de  uma  hora, 
em  que  lhe  meteram  os  pés  em  água  quente, 
absolvendo-o  sub  conditione,  e  chegando  a  ago- 
nizar: foi  sangrado  sem  algum  sentimento,  mas 
tornando  a  si,  ficou  melhor».  A  rainha,  em  sinal 
de  condolência  pelo  novo  acidente,  proíbe  a  re- 
presentação de  comédias  no  pátio  das  Arcas.  — 
Dia  iO  de  novembro.  O  rei  toma  banhos  das  Al- 
caçarias.  —  Dia  i8.  Tem  outro  ataque,  às  2  ho- 
ras da  tarde,  perdendo  os  sentidos;  sangram-no, 
^arjam-no;  recupera  a  fala  às  10  horas  da  noite, 

—  e  manda  elevar  à  dignidade  de  monsenhores 
lez  cónegos  da  Basílica  Pa.triarcal. — Dia  10  de 
dezembro.  Mandam-lhe  de  Paris  «uma  água  tão 
preciosa,  que  aplicada  a  qualquer  parte  lesa  do 
porpo,  logo  a  põe  em  natural  movimento)).  Faz-se 
a  experiência  em  José  Jorge,  hemiplégico  como 
o  rei;  o  homem  melhora;  os  médicos  querem  apli- 


D.  JOÃO  V  253 


( ar  o  remédio  a  D.  João  v;  o  rei  recusa-se  ter- 
minantemente. —  Dia  29.  Novo  ataqive,  das  10 
às  H  horas  (da  noite?)  —  Dia  99.  «Contínuas 
convulsões  nas  partes  lesas,  as  quais  aparecem 
em  alguma  dessecação»:  quer  dizer, —  epilepsia 
jacksoniana;  atrofia  sensível  dos  membros  lesa- 
dos. Apesar  disso,  o  rei  vai  todos  os  dias,  de 
cadeirinha,  assistir  aos  ofícios  divinos  na  tri- 
buna da  Basílica  Patriarcal. 

Segue-sc  um  longo  período  em  que  não  há 
notícias.  O  códice  8.066,  que  fornece  a  maior 
parte  dos  elementos  de  reconstituição,  termina 
em  31  de  dezembro  de  1742-  Sabe-se,  entretan- 
to, pela  Relação  de  Barbosa  Machado,  que  o  rei, 
daí  por  diante,  «experimenta  em  diversos  tem- 
pos repetidos  acidentes  epilépticos,  que  o  dei- 
xam privado  dos  sentidos»;  agravam-se-lhe  as 
úlceras  das  pernas;  dá  cem  dobras  de  oiro  de 
6.400  réis  aos  cirurgiões  José  Ricord,  Pedro  de 
Arvelos  Spinola,  Manuel  Vieira  e  Félix  Pereira, 
que  lhas  tratam.  No  dia  19  de  setembro  de  1743, 
embarca  de  novo  para  as  Caldas,  no  bergantim 
que  deve  levá-lo  até  Vila  Nova  da  Rainha;  re- 
petem-se  os  acidentes  jacksonianos,  e  D.  João  v 
volta  para  o  paço  da  Ribeira,  estendido  num  col- 
chão, com  a  senhora  das  Necessidades  e  os  bra- 
ços de  prata  de  S.  Bento  e  de  S.  Vicente  Mártir. 
Daí  até  à  sua  morte,  o  rei  extingue-se,  arrasta-se 
como  um  espectro,  como  uma  múmia,  seco,  to- 
lhido,   trémulo,    imbecil,    quási   cego,    sacudido, 


254  NA    HISTÓRIA 


qiiási  de  mês  a  mês,  dum  acidenta  violento  do 
epilepsia  parcial.  Nos  últimos  dias  de  julho  de 
1750  cái  numa  sonolência  profunda;  já  não  co- 
nhece ninguém;  o  quarto  coalha-se-lhe  de  fra- 
des, eriça-se  de  cruzes  procissionais,  faúlha  de 
altares  armados;  reza-se,  dia  e  noite,  a  ladainha 
lauretana;  o  núncio,  marquês  de  Tépe,  traz,  sob 
pálio,  a  absolvição  papal;  D.  João  v  ronca,  na  ago- 
nia; e  às  7  horas  e  cinco  minutos  do  dia  31,  em- 
quanto  todos  os  sinos  de  Lisboa  dobram,  aquels 
que  foi  um  dos  maiores  reis  portugueses  apa- 
ga-se  como  uma  pequena  luz  batida  pelo  vento. 


TIPOS  DE  ONTEM 


O  Conselheiro  ***.  Conheci-o  ministro  num 
dos  últimos  gabinetes  da  monarquia.  Ouvi-o  vá- 
rias vezes  falar  na  Câmara.  Bsla  figura,  barba 
branca,  hrasseur  cfalfaircs.  Um  estadista  emi- 
nente do  antigo  regímen,  disse  dôle:  —  «É  uma 
criatura  que  me  desconcerta.  Faz  discursos  cir- 
culares». Procurei  descrevê-lo  nas  minhas  no- 
tas: «Este  homem  chegou  a  ministro,  caminhou, 
venceu,  triunfou  na  vida,  por  uma  simples  e  fá- 
cil razão:  porque,  quando  fala,  ninguém  o  en- 
tende. Os  seus  discursos  parlamentares  são 
obras-primas  de  confusão  mental.  Como  nin- 
guém o  percebe,  —  ningut^m  o  contesta,  nin- 
guém o  combate:  é  um  vitorioso.  A  sua  palavra 
é  sempre  a  última  palavra  sobre  todas  as  ques- 
tões, —  porque,  depois  dele  ter  falado,  ninguém 
mais  se  entendo.  Espalha  a  sombra  e  a  confu- 
são em  volta  de  si.    Não  é  um  ministro,  —  é  o 


256  NA    HISTÓRIA 


Apocalipse.  Se  um  dia  alguém  chega  a  com 
preendê-lo.  —  este  homem  célehre  está  irreme- 
diavelmente^ P^^^dido.)) 


O  duqje  de  Loulé,  que  Lichnovvski  descre- 
veu, em  1842,  «vestido  como  os  grandes  de  Fi- 
lipe II,  espécie  de  Buckingham  querido  de  rai- 
nhas galanteadoras,  homem  perigoso  que  passou 
a  vida  a  fazer  andar  à  roda  as  cabeças  de  todas 
as  mulheres»,  foi  mais  tarde,  como  chefe  de 
partido,  o  «estadista  do  silêncio».  Era  raro  le- 
vantar-se  para  dizer  duas  palavras  na  Câmara. 
Não  respondia  a  ninguém.  «Estranham  que  eu 
fale  pouco,  —  dizia  êle;  pois  a  minha  consciên- 
cia só  me  acusa  de  ter  falado  algumas  vezes  de 
mais».  Um  dia,  depois  de  certo  deputado  ter 
pronunciado  contra  êle  um  discurso  violento, 
Loulé,  que  era  presidente  do  conselho,  levan- 
tou-se.  —  «Vai  responder  !  —  disseram  todos.  — - 
Que  honra  para  P.  !»  Logo  o  duque,  serena- 
mente:—  «Pedi  a  palavra  para  mandar  para  a 
mesa  uma  proposta  de  lei  concedendo  uma  pen- 
são a  um  guarda  da  alfândega».  E  sentou-se. 


TIPOS    DF    ONTFM 


Quando  o  marquês  de  ***  veio  pela  última  vez 
a  Lisboa,  trazia  no  pulso  esquerdo  uma  cadeia 
de  oiro  donde  pendia  um  porquinho  minúsculo, 
maravilhosamente  cinzelado  no  Mappin  de  Lon- 
dres.—  «Que  é  isto,  marquês?»  —  perguntou- 
Ihe  alguém,  no  Paço.  —  «Um  simples  porte-bo- 
nhcur,  minha  senhora», — satisfez  o  diplomata, 
mostrando  melhor  o  pequenino  animal  de  ouri- 
vezaria.  E.  como  homem  de  espírito  que  é,  fez 
frases:  —  «Eu  confesso  que  adoro  o  porco  acima 
de  toda  a  criação  !  É  o  animal  mais  inteligente 
que  se  conhece.  É  um  filósofo.  É  Sócrates.  E 
sobretudo,  minha  senhora,  é  um  desenguiçador 
admirável».  Na  manhã  seguinte,  o  marquês,  es- 
tremunhado ainda,  viu  entrar  o  criado  de  quarto 
com.  uma  carta  timbrada  a  ouro:  —  «'Um  criado 
da  Casa  Rial  traz  esta  carta  para  v.  ex.*».  Sen- 
tou-se  na  cama  e  leu:  «Meu  caro  marquês,  des- 
culpe a  insignificância  que  lhe  envio.  Paço  vo- 
tos para  que  lhe  dê  muita  felicidade  esse  porte- 
bonheur)).  —  «Traga  o  que  mandou  sua  majes- 
tade»,—  ordenou  o  ministro.  —  «Mas,  senhor 
marquês...»  —  «Vá  buscar  o  que  mandou  sua 
majestade»,  —  insistiu  o  diplomata.  O  criado  ia 
fazer  uma  objecção,  mas.  perante  a  insistência, 
curvou-se  e  desceu.  Dali  a  pouco,  entrava  pelo 
quarto  de  cama  do  marquês  qualquer  coisa  de 

•17 


258  N^   íirsTÓni  v 


rosado,  de  gelatinoso,  de  formidável,  que  se  de- 
batia nos  braços  do  criado  e  grunhia  desabala- 
damente.    Era  um  porco. 


Pinheiro  Chagas,  nos  seus  artigos,  acusava 
Pontes  de  fazer  «política  de  serralho»,  —  isto  é, 
de  se  deixar  levar  per  pedidos  de  mulheres  e 
empenhos  de  saias.  Mais  tarde  compuseram-se, 
e  Chagas  foi  feito  ministro  por  Fontes.  Quando 
o  ministério  se  apresentou  nas  Câmaras.  Ma- 
riano de  Carvalho,  que  trazia  no  Popular  a  scie 
do  «albarda,  rial  senhor  !»,  jogou-lhe  uma  bisca: 
—  «Então,  isto  ainda  é  política  de  serralho  ?» — 
«Não;  é  política  de  albarda  1»  ~  respondeu  Cha- 
gas. —  «Albarda  não  é  parlamentar  !))  — gritou 
uma  voz  da  esquerda.  Imediatamente.  Mariano, 
num  sorriso,  como  se  dissesse  a  frase  mais  amá- 
vel do  mundo:  — «É,  sim  senhor,  porque  o  sr. 
Pinheiro  Chagas  trouxe-a  ao  Parlamento».  Gar- 
galhada geral. 


Um  dia.  na  Câmara  dos  Pares,  o  bispo  de  Vi- 
seu levantou-se  para  fulminar,  num  discurso 
veemente,  um  seu  inimigo  pilítico  que  se  sen- 
fííva  na  bancada  dos  niinislroô.    No  mais  aceso 


lIPiiS    DK    ONTI-M 


^5'.) 


da  oração,  apostrofava: —  «Aquele  homem,  se- 
nhor presidente,  é  indigno  do  alto  logar  que 
ocupa  I  É  quási  um  inconsciente  !  Ê  quási  um 
mentecapto  !  È  quasi  um  louco  !»  Tumulto, 
campainhadas,  e  a  voz  do  presidente,  concilian- 
do:—.Convido  o  digno  par  a  retirar  as  expres- 
sões que  proferiu».  Imediatamente,  o  bispo  de 
Viseu,  sem  se  perturbar:  — «Senhor  presidente! 
Eu  disse  que  aquele  homem  era  quási  um  men- 
tecapto.  Pois  bem:  retiro  o  quási  !» 


O  velho  Sampaio  da  Revolução,  quando  fez  a 
sua  estreia  parlamentar  um  dos  maiores  orado- 
res de  que  se  orgulha  Portugal,  ouviu-o  com 
admiração  e  comentou:  «Sim,  senhor:  falou  bem; 
mas  pensou  mal».  E  Pinheiro  Chagas  costu- 
mava dizer,  quando  esse  grande  orador  pedia  a 
palavra  em  momentos  políticos  sensacionais:  — 
«Lá  vem  o  coche  D.  João  v». 


Um  dos  últimos  cardeais  patriarcas  de  Lis- 
boa era.  ao  contrário  do  que  se  dizia  dôle,  um 
homem  culto,  inteligente  e  espirituoso.  Uma 
tarde,  na    Câmara  dos  Pares,  certo  prócere,  o  vis- 


*>60  ^'A    HISTÓRIA 


conde  de  "*,  célebre  pela  sua  inconveniência  e 
pelas  suas  gaffes,  tirou  do  bolso  uma  cigarreira 
de  oiro  com  o  esmalte  duma  mulher  núa  e  mos- 
trou-a  ao  patriarca:  —  «Vossa  Eminência  quer 
ver  ?))  Logo  o  prelado,  pondo  a  luneta  no  nariz: 
—  «É  o  retrato  da  senhora  viscondessa?» 


PORTUGAL ! 


Foi  no  dia  30  de.  maio  de  1808  que  os  pri- 
meiros soldados  da  Legião  Portuguesa  pisaram 
a  terra  da  França.  Napoleão,  em  cujas  mãos 
Carlos  IV  acabava  de  dcpôr.  como  uma  jóia.  a 
coroa  rial  das  Espanhas,  esperava  os  portugue- 
ses em  Bayona  com  toda  a  corte  imperial.  A  pri- 
meira tropa  a  chegar  foi  o  bravo  regimento  de 
infantaria  1,  que  um  ano  depois  se  cobriu  de  gló- 
ria em  Wagram,  e  que  na  tarde  heróica  de  Smo- 
lensko,  com  as  baionetas  negras  de  sangue  e  de 
pólvora,  havia  de  espantar  a  bravura  de  Ney. 
Comandava-o  o  elegante  António  de  Saldanha, 
da  casa  da  Ega;  conduziani-no  os  <hefes  de  ba- 
talhão Caldeira  e  Cândido  José  Xavier.  Nem  um 
soldado  desertara  em  Valhadolid  e  em  Burgos; 
o  regimento,  intacto,  marchava  na  sua  máxima 
força.  —  ((Vamos  ver  as  francesas,,  rapazes  !»,  — 
tinha-lhes  gritado  o  coronel,   sobre  a  ponte  de 


262  N\     HISTÓRIA 


barcas  do  Bidassôa,  o  punho  de  prata  do  espa- 
dim a  faíscar-lhe  na  mão.  E  eles  lá  foram,  ne- 
gros, risonhos,  contentes,  tisnados  do  sol,  ferro- 
Ihando  armas,  chocalhando  patronas,  emquanto 
na  chuva  de  oiro  da  manhã  a  ilha  verde  dos  Pai- 
zões  resplandecia,  e  os  sinos  alegres  de  Fuen- 
terrabia,  ao  longe,  tilintavam  para  a  missa.  Onde 
iam  eles  ?  Porque  marchavam  ?  Que  destino  os 
esperava  na  terra  de  França  ?  Sabiam-no  lá  ! 
Mas  fitassem-nos,  encarassem-nos  um  a  um,  — 
e  em  todas  aquelas  faces  queimadas,  em  todos 
aqueles  olhos  ardentes,  fulgiria,  como  uma  la- 
bareda, o  vago  instinto  de  que  caminhavam 
para  a  glória.  Iam  ver  Napoleão.  Iam  conhecer 
o  titan.  Depois  duma  marcha  de  três  léguas  feita 
a  cantar,  com  as  espingardas  cheias  de  flores, 
o  bravo  regimento  de  António  de  Saldanha  cha- 
gou a  S.  João  da  Luz.  Na  manhã  seguinte,  um 
ajudante  de  ordens  de  Pamplona,  a  galope,  man- 
dou-o  avançar.  Nessa  mesma  tarde,  envoltas 
numa  nuvem  de  poeira,  as  baionetas  lampejando, 
as  chapas  de  cobre  das  barretinas  faíscando  ao 
sol,  os  tambores  roucos  de  bater  a  marcha,  — 
as  tropas  portuguesas  dâ  infantaria  1,  chegadas 
emfim  a  Bayonna,  passavam  em  continência  dian- 
te de  Napoleão.  O  Imperador,  que  descera  do 
palácio  de  Alarrac  para  as  ver,  sorria-lhes,  imó- 
vel, embrulhado  nu  seu  capote  cinzento  de  petit- 
caporal.  entre  uma  onda  de  marechais  emplu- 
mados  e   cobertos   de   oiro, — Ney,    Murat,    Da- 


i 


ruKlLGAL  263 


voust.  Bassières.  Alorna,  PampJona.  À  vista  des- 
ses dois  batalhões  pardos  de  saragoça,  cerrados, 
enérgicos,  pequenos,  batendo  as  abas  das  nizas 
como  carochas,  um  frémito  de  comoção  passou 
na  alma  do  povo.  e  duas  mil.  trôs  mil  bocas 
francesas  gritaram,  uivarami,  aclamaram:  —  «Por- 
tugal !  Portugal  !»  Os  garotos  marchavam-lhes 
à  frente;  das  janelas  atiravam-lhos  flores:  no  seu 
coche  a  imperatriz  Josefina  acenava-lhes  com  o 
leque,  —  e  os  galuchos  portugueses,  com  as  lá- 
grimas nos  olhos,  cheios  ao  mesmo  tempo  do 
orgulho  e  da  mágoa  de  serem  tão  poucos,  repe- 
tiam, doidos  de  entusiasmo,  levantando  as  bar- 
retinas:—  ((Portugal!  Portugal!»  Não  seriam 
mais  de  quinhentos  soldados.-- e  tinham  alvo- 
roçado Bayona.  Daí  a  pouco,  Napoleão  pas- 
sava-lhes  ravista  em  forma:  compunha-lhes  pela 
sua  mão  as  bandoleiras  brancas  das  patronas  e 
as  alabardas  lampejantes  dos  sargentos:  convi- 
dava os  oficiais  para  jantarem  à  sua  mesa.  —  e 
à  noite,  uma  noite  quente  e  perfumada  de  junho, 
os  jardins  do  palácio  que  dias  antes  vira  abdicar 
Carlos  IV  de  Espanha,  foram  abertos  em  festa 
aos  soldados  portugueses.  Nas  varandas  ilumi- 
nadas, a  corte  imperial  assomou.  Encheram-se 
de  gente  as  largas  alamedas  de  faunos  e  de  mur- 
ta. E  emquanto,  ao  luar,  os  galuchos  da  Extre- 
madura  e  da  Beira,  negros,  risonhos,  abraça- 
dos Cl  violas  enormes,  cantavam  as  chulas.  r?i 
lunduns  e  as  modinhas  da  sua  terra,   JoseíliRi 


2fVl  NA    HISTORIA 


Beauharnais,  com  os  olhos  brilhantes  de  láprri- 
mas.  a  face  apoiada  à  mão  cheia  de  jóias,  dizia 
encantada  a  António  de  Saldanha:  —  kOK  que 
faime  c^s  gavottes  portugaises  h,  —  e  em  baixo 
todo  o  povo.  rodeando  os  soldados,  interrogan- 
do-os,  aplaudindo-os,  abraçando-os,  pegando-lhes 
ao  colo,  rindo  e  chorando  com  eles,  gritava,  ulu- 
lava em  delírio,  no  seu  sotaque  vasconço,  como 
um  preságio  de  glória:  —  «Portugal!  Portugal!)) 
Tinham  cantado  bem  em  Bayonna;  haviam  de 
morrer  melhor  em  Wagram  1 

Pois  bem.  Sobre  o  dia  30  de  maio  de  1808, 
um  século  passou.  Sobre  esse  século,  mais  nove 
anos  lentos,  trágicos,  dolorosos.  De  novo  os 
nossos  soldados  entram,  sorrindo,  em  Paris;  de 
novo  as  rosas  de  França  vão  florir  em  espingar- 
das portuguesas;  de  novo  o  mesmo  clarão  de 
epopeia  envolve  o  nosso  nome,  —  e  hoje,  cento 
e  dez  anos  depois,  é  ainda  o  mesmo  grito  heróico 
que  se  ouve  ao  longe,  como  se  o  erguessem  mi- 
lhares de  espectros: 

—  Portugal  !  Portugal  I 


FIM 


I  N  DIC 


NA  VIDA 

Pag 

Lady  Florence 7 

A  janela  dos  lilases 11 

Soror  Micaela 15- 

Paço  de  Gondim 20 

O  espelho 26 

Andróinaca 30 

Ana  Peregrina 34 

A  mulher  de  branco 88 

A  confissão .  43 

O  general 48 

A  sombra 52 

Distracção 56 

O  relógio 60 

Odore  di  femmina 66 

A  fonte 71 

Expiação 77 

O  sapatinho  verde 82 

Rosa  Maria 87 

O  homem  da  malha  branca 92 

Mocidade 98 

Saias  do  balão .  101 

18 


1266  ÍNDICE 


Pag. 

O  crime 106 

Uma  mulher 111 

M.«"«  Nini 115 

A  touca  de  rendas 118 

NA  ARTE 

Os  dois  retratos 125 

José  de  Alpoim 128 

O  pintor  do  sol 132 

Schwalbach 136 

Espírito  gentil 140 

Novos  metros,  novos  ritmos 144 

Teatro  camoneano 149 

Músicos  de  casaca  de  seda 154 

«Verão» 161 

NA  HISTÓRIA 

O  frade  trino 169 

S.  Miguel  Arcanjo 174 

A  morte  de  D,  João  VI 180 

O  sarambeque 189 

Um  diplomata 194 

Frei  Manuel  de  Sant' Ana 199 

Espadachins 204 

A  mãe  do  primeiro  duque 211 

A  embaixada 217 

Nun'Alvares 222 

Passos  Manuel 228 

Uma  infanta  histérica 232 

O  entrudo  no  século  XVIII 236 

D.  João  V 242 

Tipos  de  ontem 255 

Portugal! 261 


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