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rÃRBORI
Presented to the
LIBRARYo/í/ie
UNIVERSITY OF TORONTO
by
Professor
Ralph G. Stanton
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E<LES E ELAS
•í»
Obkas Dii Júlio Dantas
POESI.f
Noda (1S!)0. (♦) Parceria António Maria Perfira, Lisboa) —
2.« cdiçao.
Sonetos (101'5. Livraria líodriííues, Lisi)Ôa) — 2." o(li<,'ão.
PROSA
Outros tempos (1900. Livraria Clássica Editora, Lisboa) —
12.» edição.
Estática e dinâmica da fisionomia (1909, idem) — 2." edição.
Fiffunis de nntcm c <Ic hoje (1914, Livraria Chardron. Porto)
— 2.» edição.
Pútría Porltipucxa (1914. Parceria Pereira. Lisboa) — 3.» edição.
Ao ouvido de M.me X (1915. Livraria Chardron, Porto) — 3."
edição.
O amor em Portufjol no século XVI H (1915, idera) — 2.» edição.
Mulheres (1910. idem) — 2.» edição. •
Eles e Elas Í191S. idem) — 2." edição.
TEATRO
O que morreu d'amor (1899, Empresa Literária Fluminense, Lis-
boa) — 4." edição.
Viriato Tráfiico nOOO. idem) — 2.» edição.
.1 Sír.vera flOOl. i(í.-m) — 3." edição.
Cruei ficados Í1902. idem) — 2." edição.
A Cria dos Cardeais (1902. Livraria Clássica Editora, Lisboa)
— 22.'» edição.
D. Beltrão de Figueirôa (1902. Empresa Literária Fluminense,
Lisboa) — ^4.» edição.
Pa{:o de Veiros (1903. id^m) — 2.» edição.
Um serão nas Laranjeiras (1904, idem) -^ 2.» edição, ilustrada.
Rei Lear (1905. idem).
Ifosas de iodo o ano ílOOT, idem) — 7." edição.
Mater Dolorosa (1908, idem) — 3.» edição.
Flanta Inquisição (1910. Livraria Clássica ICdiíora. Lisboa) —
2." edição.
Primeiro Beijo (1911. Idem) — 3.» edição.
n. Ramon de Capirhnela (1912. idom) — 2.» edição.
O Reposteiro Verde (1912. idem) — 2.'» edição.
1028 (1914. Livraria Chardron, Píirto).
Soror Marianu (1915, idem) — 2." edição.
(*» A data Indicada para cada obra é a da sua primeira
edição.
JÚLIO DANTAS
Sócio efectivo da Academia das Scièncias de Lisboa
Da Academia Brasileira
ELES E ELAS
NA VIDA— NA ARTE — NA HISTORIA
SEGUNDA EDIÇÃO
PORTO
LIVRARIA CHARDRON,
DK LÉLO & Irmão, EDITORES
Rua das Carmelitas, 144
19Xíà
.1 propriedade literária e artística está garantida et)í lodos os
paises (jiie aderiram à Convenção de Berne — (Em Portiujal,
pela lei de i 8 de março de lOli. No Brasil pela lei n." í?577 de
il de janeiro de Í9J'2L
FORTO — iMPflENSA MODBENA
NA VIDA
LADY PLORENCE
Depois de jantar, o meu amigo Cisneiros e eu
fomos tomar café para o salão. Conhecem, de-
certo, o grande salão do Avenida Paloce^ cosmo-
polita e grave, com os sans Maples sonolentos,
os seus tapetes profundos, as suas horríveis cor-
rentes de ar. Nessa noite estava pouca gente. A
um canto, um velho de fisionomia inquietante e
angulosa — soube depois que era um judeu ho-
landês em busca de bric-à-brac — folheava o
Skelch. Ao pé duma janela, um oficial da missão
francesa escrevia. Notei vagamente que um in-
glês magro, ruivo, de smoking, passeava pela
sala as suas pernas de antílope e o seu esplêndido
isolamento. Mas as minhas atenções fixaram-se
de preferência sobre dois ingleses, um velho e
uma velha — êle, setenta anos, calvu, musculoso,
irrepreensível na sua casaca, ela, seca, viva, ridí-
cula, pequenina, vestida de seda azul, com um
NA VIDA
grande colar de topázios e um meio-decote esque-
lético— que estavam recostados num sofá, ao la.lo
um do outro, de mãos dadas, olhando-se embe-
vecidamente naquele amoroso silêncio que é a
alma de toda a ternura inglesa, e a que já Carlyle
chamara «o contacto com o mistério». E' bem
certo que as paixões não xeem idade; mas eu con-
fesso que não pude deixar de sorrir do êxlase
conjugal desses dois velhos, que, já andado o
outono da existência, ainda sentiam tão vivamente
os perturbadores enlevos do amor. Observei-os
com curiosidade, — quási com carinho. Tinham
diante de si uma pequena mesa de chá e um nú-
mero do Timeã, que êle deixara de lêr para olhar
para ela. A luz batia em cheio nas duas cabeças,
escorria como oiro oleoso pela calva do velho
inglês, tornava mais azuis os pequeninos olhos
rugosos de Lady Florence — soube depois que se
chamava assim ^^ uns olhos de boneca decrépito,
a que a expressão do sonho realizado e da ventura
absoluta pareciam emprestar ainda o inquieto
brilho da mocidade. Nada os distraía da sua mú-
tua contemplação. Passaram criados; entrou uma
rapariga belga, que se atirou para uma poltrona,
cruzou a perna e fumou; o oficial francês foi
buscar, perto deles, o boné e o stick: e os dois
velhos, indiferentes a tudo, embevecidos um no
outro, enlevados, im(')veis, es olhos nos olhos, a
mão dele enlaçada na dela, continuaram a fi-
tar-se, amorosamente, com a emoção de dois
LADY FLORENCE
namorados deslumbrados de mocidade e de beleza.
— Sabes" quem são aqueles ingleses? — per-
guntei eu ao meu amigo Gisneiros, emquanto o
criado nos servia o café.
— São dois noivos.
— Naquela idade ?
— Gasaram-se há doze dias, em Londres. Eslão
aqui passando a lua de mel. Um casamento de
amor. Ele é sir Joê Groflon, alto funcionário da
índia inglesa, e tem setenta e dois anos; ela é
Lady Florence Sealby, viúva dum lord do Al-
mirantado, e tem sessenta e cinco ou sessenta e
seis. Soube ont^m quem eram, por aquele in-
glês magro que aqui esteve' a passear no salão.
A vida deles conta-se em duas palavras e é um
lumance enternecedor, Joè Grofton estava noivo
da primeira mulher quando ccnheeeu Florence,
que tinha então dezoito anos, todo o encanto das
spinsters, com os seus cabelos loiros, os seus
olhos azuis, a sua beleza do diabo, e que era
a noiva prometida dum moço oficial da marinha
inglesa. Apaixonaram-se loucamente um pelo
outro. Mas já ambos tinham contraído compro-
missos; nenhum deles podia dispor de si, por-
que nenhum deles era livre. Fiéis à mais inglesa
de todas as paixões — a paixão do dever — , aper-
taram as mãos, choraram, sorriram, separaram-
-se, — e, na dolorosa serenidade dos grandes sen-
timentos, cada um seguiu o seu destino. Ele ca-
sou, e foi o melhor dos maridos. Ela casou Iam-
10 NA VIDA
bêm, e foi a mais carinhosa das esposas. Mas
dois ingleses que uma vez sentiram o encanta-
menio do verdadeiro amor, — pode a vida embora
separá-los, que nunca mais se esquecem. Um dia,
quarenta e seis anos passados, Joô, já viúvo,
soube em Bombaim que Plorence tinha enviuvado
lambôm. Pediu uma licença, e simplesmente,
naturalmente, com a certeza de que ela estava
esperando por êle, veio à Europa buscá-la. Ca-
saram em Westminster, e, como vês, estão pas-
sando a lua de mel em Lisboa. Nós, latinos,
não podemos compreender bem a incomparável
felicidade destas duas criaturas. E' preciso ser-se
inglês para sentir a força dominadora dum amor
como este, inalterável e eterno, que sobrevive à
mocidade e à beleza, e que, quando já tudo pas-
sou, frescura, encanto, sedução, graça, continua
ainda na velhice, com todo o entusiasmo, todas
as ilusões, todo o ardor, todo o doce idealismo da
juventude. E'-lhes indiferente que o tempo voe,
— porque a sua primavera é eterna. Hão-de ver
sempre um no outro, até à morto, não a realidade
do que são, mas a imagem radiosa do que eram
no dia em que principiaram a amar-se. Aquel ■
inglês realizou na vida o milagre da felicidade.
Para êle, Lady Plorence é sempre loira e tem
eternamente dezoito anos...
A luz do salão baixou. Quando nos levantámos
para sair, es dois velhos, de mãos dadas, fita-
vam-se ainda, amorosamente.
A JANKLA DDS LILASRS
Diante de mim, na rua onde moro, há uma
antiga casa do Bairro-AHo pombalino, com o seu
andar nobre de sacadas e, por cima. a sua linha
de quatro janelas de peitos aconchegadas ao bei-
ral do telhado. Tem uma certa nobreza nos lar-
gos cunhais de silharin; mas lodo o resto é po-
bre, mal cuidado e velho. Durante muito tempo,
o segundo andar esteve com escritos. Um belo
dia os escritos arrancaram-se, abriram-se as vi-
draças, ouviu-se cantar, c na janela da esquina,
fronteira ao meu quarto, apareceu um grande
tabuleiro florido de lilases brancos. Quem seriam
os meus novos vizinhos ? Qu -m viria morar ali ?
Passaram-se oito dias sem que eu visse viv'alma
;i janela. Umas cortinas de cassa velaram discre-
tamente os vidros; e se não fosse, à noite, a luz
que só muito tarde se apagava, e o perfume doce
dos lilases que enchia a rua toda, ter-me-ia de-
12 NA VIDA
certo esquecido de que naquela casa habitava al-
guém. Quis, porém, o acaso, que eu tivesse uma
certa manhã — e que deliciosa manhã de prima-
vera!— a fantasia de acordar mais cedo. Abri
as vidraças de par em par. Mal sabia eu a sur-
presa que me eslava guardada. Na janela fron-
teira, faiscante de sol, uma graciosa figurinha
côr de rosa debiuçava-se, com um regador na
mão, sobre o laboleiro de flores. Era a minha
nova vizinha. Não me recordo de ter sentido
nunca uma tão viva impressão de inocência, de
frescura, de fragilidade, de graça. Fiquei a olhar
para ela, a seguir-lhe os movimentos, embevecido,
encantado. Devia ler dezoito ou vinte anos. A
não ser os cabelos, dum negro quási roxo de
minério, e os olhos muito pretos, muita expres-
sivos, muito profundos, tudo nela era côr de rosa,
a pele da face, do colo, das mãos, o roupão li-
geiro que a vestia, o próprio eflúvio que parecia
desprender-se dela em reflexos róseos, transpa-
rentes, voejantes, como a atmosfera rosada que
envolve, nas grandes manhãs de primavera, a
alegria pagã das amendoeiras em flor. Dir-se-ia
que a Femme en i-ose, de Manet, surgira, como
um clarão, naquela janela pobre do Bairro-Alto.
Involuntariamente, sorri-lhe. Ela fltou-me, bai-
xou os olhos onde uma nuvem de melancolia pai-
rava, acariciou os grandes cachos de lilases bran-
cos que me pareceram côr de rosa sob a carícia
das suas mãos, scintilou um momento ainda na
A JANELA DOS LILASES 13
crrandp manrha de oiro do sol, como uma névoa
rosada de ante-manhã, e, lentamente. deliVnda-
mente. de?aparpren por detr^is da? vidraras fe-
chadas. Daí por diante, n5o houve um línico dia
em QTie en níío me levantasse cedo. À mesma hora.
ela vinha recear as flores — e en abria a minha
ianela. As mnlhercs conhecem sempre, muito
antes de nós, a natureza do sentimento que em
nós despertam. E' evidente que o que eu sentia
pela minha vizinha não era amor; mas não dei-
xava de ser aquela curiosidade voluptuosa, aquela
insatisfeita admiração, aquela sensualidade inte-
liíTpnfe do silêncio e do mistério, que é quási sem-
pre por onde o amor começa. Cumprimentava-a;
ela sorria-me; e. cada dia que passava, eu perce-
bia que as flores iam levando mais tempo a reírar.
Havia no sorriso dessa encantadora criatura —
um sorriso cór de rosa como toda ela — , a vaira
delícia, o feminino prazer de se sentir admirada:
mas não sei rfue névoa de tristeza passava depois
nas suas pálpebras semi-cerradas, como se essa
própria admiração acabasse por se tornar para
ela um motivo de sofrimento. Só mais tarde soube
a razão porqu^ se ennevoava duma tão contra-
ditória melancolia o sorriso da minha vizinha.
— e confesso que foi bem doloroso para mim
conhecê-la. As pequenas tragédias da existência
são às vezes as mais confrangedoras. Uma tarde,
quando eu saía, vinha subindo a rua uma rapa-
riga vestida de pretx), seguida de uma senhora
14 NA VIDA
de idade. Tinha lun pé aleijado de nascença e
coxeava. Olhei-a. Era a minha vizinha, que re-
colhia a casa. Quando passou junto de mim,
levava os olhos baixos, os lábios Iremiam-lhe,
as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Daí por
diante, a janela nunca mais se abriu, e os lilases
brancos, imagem de mais uma ilusão perdida, fi-
caram a secar Irislemente ao sol.
SOROR MIGAELA
(tSciiJior Arcebispo:
Ordena-nie Vossa Ilustríssima, em carta que
recebi do muito Reverendo Vigário Geral, que dê
informação de tudo quanto se vai passando e tem
passado neste mosteiro com Soror Micaela das
Cinco Ghagas, desde que esta serva de Deus re-
cebeu, com lágrimas, o hábito da aprovação.
Venho, em obediência a Vossa Ilustríssima, de-
sobrigar-me do meu dever de prelada. Soror Mi-
caela entrou nesta casa de Deus e de S. Bento,
com duas criadas, na noite de 10 de janeiro dêstc
ano, e vai ainda no seu quarto mês de noviciado.
Ouvi dizer que a tinham trazido em coche da Gasa
Rial, escoltada por quatro criados de arcabuz
aperrado nos arções dos selotes, e, por carta do
Reverendo Provincial, foi-me feita recomendação
de que a pobre menina sofrera, havia dezoito dias,
16 NA VIDA
com máíTOa e nfronta para o nome dos senhores
Marqueses seus pnis, os trabalhos de unn parto
clandestino. Não escondo a Vossa Ilustríssima
que o zelo que sempre me mereceu a honra deste
mosteiro me fez receber com temor de ânimo e
escrúpulos de consciência aquela pobre ovelha
do Senhor. Cheguei a recear algum alvoroço das
religiosas que, por muito menos, ainda não há
um ano, saíram de cruz alçada; mas o alvará de
el-Rei e a provisão de Vossa Ilustríssima vinham
em ordem, e eu não. podia, sem desobediência e
quebra do respeito filial que a Vossa Ilustríssima
devo, opor qualquer estorvo ou dificuldade às or-
dens recebidas. Logo nessa noite Soror Micaela
sofreu tão repetidos acidentes, seguidos de um
longo e mortal letargo, que eu, a madre vigaria
e a mestra de noviças, que lhe assistimos sempre,
cuidamos que Deus teria piedade dela e a cha-
maria a melhor vida. Mas aqueles a quem Deus,
por sua infinita misericórdia, concede na terra a
glória do sofrimento, não descansam na morte
sem a ter bem merecido. Até receber a estamenha
da aprovação, a desgraçada menina não teve uma
hora que não fosse de lágrimas, de gritos e de
saudades do mundo, com mais compunção do que
bom exemplo para as religiosas deste mosteiro.
Sabe Vossa Ilustrísima, melhor talvez do que eu,
o que se passou na vida de Soror Micaela antes
de a trazerem para esta casa, e Deus sabe melhor
do que nós ambos, senhor Arcebispo, com que
>UUUlt MIÚ\L1.\
dureza de alma nrrancaram ao seio dessa pobre
jtecadora, que por divina vontade foi mãe, o fdhn
(fiie nem por ser du seu opróbio era menos do
seu corarão. Nem a idade, senhor Arcebispo,
nem a dignidade do hábito que há cincoenta anos
me veste, puderam extinguir de todo em mim a
voz da piedade iiumaura. Vi, cnm os olhos razos
de água. piincipiar o noviciado de Soror Micaela.
Adivinhei tudo quanto mais tarde havia de acon-
lecíT. e os justos motivos que teria para alvoro-
car-se o zelo de Vossa Ilustríssima. Sou testimu-
nha de que a pobre menina, pelo fervor da oração,
pelos rigores da penitência, pela mortificação das
disciplinas e dos jejuns, fez quanto cabia nas for-
ças duma fraca mulher para libertar a sua alma
de todas as paixões da natureza e de todos os
afectos mundanos. Não quis Deus que o conse-
guisse, por seu mal e por mal desta comunidade.
Pode secar-se, num coração de mulher, a seiva
de todos os amores; imnca, senhor Arcebispo, se
extinguirá a do amor materno. Gontam-se as
noites em que os soluços e os gritos de Soror
Micaela não acordam o mosteiro, como uivos de
loba que encontrasse morta a cria. Durante os
ofícios divinos, onde vai amparada às outras no-
viças, cai em êxtases e em letargos, chama a altas
vozes pelo filho, escabuja no chão, rasga o hábito
no peito, e não há autoridade de prelada que a
dome, nem súplicas de irmãs, nem ameaças de
cárcere e de cepo, porque, nesses instantes. Soror
2
18 NA VIDA
Micaola nâo oiivo, nem vê. Tudo quanto nas ima-
gens o no? painéis do convento recorda a obra
divina da Maternidade, é, para a triste pecadora,
motivo de mortincação e de lágrimas. Ainda
ontem a madre escrivã mandou cobrir de panos
o painel da Virgem que está no coro de cima,
sobre o cadeirado da banda do Evangelho, porque,
diante dele. Soror Micaela caía com acidentes.
Por maior que seja no mosteiro a compaixão, não
se pode. senhor Arcebispo, nem calar as murmu-
rações, nem impedir o escândalo. Há três noites,
fugiu da cela, desceu as escadas até h igreja, e
foram as donatas encontrá-la antes da hora de
prima, despida em camisa, caída como morta
nas lages do chão. a embalar e a aconchegar aos
jjeitos uma imagem do Menino. Se não teem a
caridade de a levar desta casa. ou morre, ou en-
louquece. Querem que Soror Micaela seja freira;
o que ela é. senhor Arcebispo, é mãe. Faça Vossa
Ilustríssima, pelo muito que pode a sua virtude,
que o mesmo coche que a trouxe a venha buscar
nutra vez. Deus ensinou-nos a suprema doçura
do perdão. Se a súplica que os meus setenta
anos fazem aos senhores Marqueses e a Vossa
Ilustríssima, não merecer a graça de ser escu-
tada, — ao menos, senhor Arcebispo, que o mos-
teiro possa adoptar essa criança, e que Soror Mi-
caela, recolhida como simples dona nesta casa
d;.' S. Bento, tenha ainda a consolação de sentir.
no bálsamo piedoso das lágrimas, que Deus per-
SÓH(jn MICAELA 19
dôa e sorri a todas as mães. — Braga, Rial Mos-
teiro do Salvador, em 3 de maio de 1782. — Mí-
nima S3rva de Vossa Ilustríssima, — Madre Ana
de Santa Rosa. abadessa.»
PAÇO DE GONDIM
Encoiilrei uslas páginas tias Memórias ínliiiia^-
do nobre marquês de ***, vieux-hcau qne foi urna
das mais int:'rcssanies ílg^uras da Lisboa româiitic;'
de 1840:
«Meu filho casava na capela do Paço de Gon-
dim, solar da senhora sua sogra, e tinha-se con-
certado que lá passaria a lua án mel. Meti num
malote a casaca azul de Londres, o meu chapéu
Murillo. uns escarpins de baile, um lenço de cam-
braia para o pescoço, compus ao espelho o mais
benévolo sorriso de pai, embrulhei-me na minha
capa Lord Byron, e no próprio dia do casamenio,
de madrugada, — abalei para Gondini.
Era uma velha casa nobre do século xvn, com
o seu cunhal de armas, o seu eirado de alpendre,
a sua torre sineira, o seu vasto pátio solarengo,
carinhoso e soalheiro como um claustro capucho,
PAÇO DE GONDIM 21
para onde se debruçava, enfeitada de rosas, a ja-
nela do quarto dos noivos. Logo que cheguei ao
solar caminhei de surpresa em surpresa. Eu co-
nhecia, de tradição, a casa ilustre dos Noronhas,
morgados de Vila-Verde, comendadores de Gon-
dim e de Borba, muito cliegadcs ao Paço dos reis;
sabia por meu filho que, morto o senhor da casa
em Madrid, cinco anos antes, toda a família se
i*eduzia à morgada viúva, ;i filha, minha futura
nora, e a um pobre egresso da província da Sole-
dade, velhinho de oitenta anos, que ali tinha
sido recolhido por caridade cristã: mas estava
longe de supor que naqueles paços moravam as
três almas angélicas que lá encontrei. Os pri-
meiros braços em que caí foram os de Frei An-
tónio de Maria Santíssima. O pobre frade, que
nunca me vira, chorava, beijava-me as mãos, pe-
dia-me, lavado em lágrimas, que não lhe levasse
dali os seus ricos meninos. Depois, foi o meu
filho que assomou ao eirado. Riam-lhe os olhos de
felicidade, atirou uns arreios de estardiota que
Irazia, desceu de escantilhãu a escada para me
abraçar. (Jiie i.ão me demorasse, que viesse de-
pressa, que as senhoras estavam em cima, na
sala, impacientes por conliecer-me, — e lá fui,
nos braços dele e do egresso, emquanlo a sineira
da capela repicava, até à pequena sala de espelhes
(lo solar, em cujos tetos Vieira Lusitano pintara
uma revuada de Amores, e onde me esperavam
as duas mais graciosas, as duas mais doces figuras
NA VTn\
de mulher que a infinila bondade de Deus tem
posto algum dia diante dos meus olhos. Pareciam
irmãs. Sorriam ambas como duas crianças. A
mais nova, que meu filho tomou pelo mão, muito
loira, com uns grandes olhos azuis e um vesti-
dinho curto de musselina branca, era a minha
futura filha. Tanto quisemos beijar as mãos um
ao outro, que a aconcheguei ao meu peito e a
beijei longamente na testa. — «E' a senhora sua
irmã, minha menina?» — perguntei, olhando a
segunda, ainda mais bela, que ficara assentada
no sofá, numa mancha de veludo côr de violeta,
um leque pequenino nas mãos, uma cruz de^Malta,
de diamantes, sobre o pescoço doirado pela luz.
A mão que brincava com o leque avançou lenta-
mente para mim, seiíti-me envolvido na doçura
dum grande sorriso, e uma voz de anjo, uma voz
incomparável chilreou, trilou, cantou num gor-
geio: — ((Sou a mão...» Não sei qual foi maior, se
o meu espanto, se o meu encantamento. Meu fi-
lho ria, a noiva ria também, e emquanto eu oscu-
lava os dedos brancos que se ofereciam ao meu
beijo, Frei Anlfjnio de iVIaria Santíssima, inun-
dado de júbilo, apontava-me rindo à morgada: —
((Veja Vossa Excelência que íambèm Sua Senho-
ria parece irmão do senhor seu íilho...»
Logo que us fidalgos de Merzovelos chegaram
com as filhas, nas duas liteiras velhas da casa,
muito ajoujados de presentes de pratas para os
noivos, o casamento fez-se à capucha na capela
PAÇO DE GONDIM 23
do Paço de Gondim, abençoado entre lágrimas
pelos oitenta anos de egresso capelão. Houve jan-
tar de festa. À noitinha voltamos todos para a
sala dos espelhos, da cujas janelas abertas sobre
o pátio se via ainda, aos últimos clarões do sol
poente, a janela do quarto dos noivos toda flo-
rida de rosas. Acen;loram-se. sobre as creden-
cias doiradas, os dez candelabros de porcelana
de Saxe, que eram a maior riqueza do solar; uma
das fidalgas de Merzovelos, decotada, com um
chalé de cachemira sobre os ombros mis, cantou
Donizetti, acompanhada num cravo de oitava
larga; leu-se um artigo do Morning Chronicle,
que falava no senhor D. Miguel; os noivos arru-
lhavam a um canto; Frei Antcjnio de Maria San-
tíssima dormitava a outro, com a caixa de rapé
aberta na mão; deram as 10 horas; serviu-se o
caldo de galinha; os fidalgos despediram-se; os
noivos desapareceram — e o serão acabou. Pica-
mos na sala apenas os Irès: a senhora morgada,
o egresso, que tornou a adormecer sobre a tigela
(la Índia t-m que lhe serviram o caldo, — e eu. O
velho criado João veii» dizer-mc que estava pronto
o meu quarto. Uma vaga penumbra doirada 11 u-
iuava, envolvia-nos, acariciava-nos como um per-
fume. Fez-se entre nós um silencio de constran-
giiiiento. oUiámu-uos longamente, — eu e ela.
íjue éramos nós um ao outro, que nos permitisse
respirar juntos, àqu(4a hora da noite, a atmos-
fera carinhosa do mesmo lar? Meu -filho chama-
NA VTDA
va-lhe mãe; a filha dela chamava-me pai; — e, en-
tretanto, ncão havia parentesco entre nós ambos. ^
O sangue do nosso sangue, a alma da nossa alma
confimdia-se, naquele instante, no beijo supremo
dos líossos filhos; — e nós continuávamos, meras
sombras de acaso, a ser dois estranhos um para
o outro. Nenhum de nós tinha direito à doçura
daquela intimidade, ao êxtase daquele encan-
tamento, ao mistério daquela solidão. Éramos,
para os nossos filhos — os sogros. Éramos, um
para o outro — ninguém. O amor que resplan-
decia e cantava na alma dessas crianças, nada
tinha já de comum com as cinzas da nossa dupla
viuvez. Não. Aquele lar não era o meu. Aquela
felicidade não era minha. Eu não podia, não
devia passar ali aquela noite. Levantei-me para
o dizer a essa doce mulher duma tão perturbadora
beleza, para me despedir dela, para sentir, ainda
uma V( z, a carícia perfumada das suas mi.ios, —
quando, de repente, a janela dos noivos se ihi-
minou.- Picámos a olhá-la, um junto do outro,
imóveis, encantados, num sorriso de inexprinu'-
vel ternura. Era todo o nosso passado, toda a
nossa mocidade, a nossa vida inteira a rcllorir
no beijo dos nossos «filhos. Que importava que
tudo nos separasse, — se aquela pequenina luz
nos unia para sempre, no mesmo enlevo, no
mesmo encanto, na mesma beatitude ? Insensi-
velmente, as nossas mãos enlaçaram-se; senti-
mos, nós ambos, o que havia de sagrado naquele
PAÇO DE r.OXDIM 25
instante; e, até que a luz da janela se extinguiu,
como se fôssemos uma só alma, um só co-
ração, chorámos abraçados, em silêncio... Quan-
do acordámos do nosso sonho, o velho egres-
so, diante de nós, dizia-nos, enxugando as lá-
grimas:— «Meus filhos, e se eu os casasse tam-
heni ?»
Hoje, meio ano andado, toda a gente chama
ao Paço de Gcndim a «Casa dos quatro noivos»,
8 o santo Frei António de Maria Santíssima, se
Deus lhe der ainda uns meses de vida, vai ter
dois baptizados na sua capela».
o ESPELHO
Ontem, na qiiarla-icira de bridge cie Aírs.
Hiitchinscn, alguém falou da loucura do dr. Soulo
e da entrada do pobre médico numa casa de
saúde de Lisboa.
— Gonhecia-o ? — perguntei eu ao ilustre advo-
gado Z., que acabava de afundar numa poltrona
o seu smoking e a sua inallerável serenidade.
— Perfeitamente. Foram os meus criados que
o entregaram à polícia.
— Como assim ?
U advogado Z. atirou para cima da mesa o
número do Excelsior, que estava lendo, cruzou
familiarmente a perna, e tamborilando sobre o
joelho com os seus dedos finos, cheios de anéis
de mulher, contou-nos:
— Eu conhecia apenas de nome o dr. Souto,
quando, há talvez vinte dias, rec:^bi a sua visita
no meu escritório. Era um cliente como qualquer
o ESPELHO 27
outro: mandei-o entrar. Apareceu-me um homem
alto. magro, um pouco curvado, vestido de preto,
com os ombros largos e descarnados das criatu-
ras hercúleas que a doença devastou, uma bar-
bicha ruiva e rala, uns óculos de míope, uma
certa distinção tímida de maneiras. Durante os
primoiros momentos da nossa conv^sa, não
houve um gesto, um olhar, uma palavra que
pudessem justificar a mais leve dúvida sobre u
seu estado mental. Falou da sua clínica, dos seus
meios de fortuna, da perfeita honorabilidade áv.
todos os seus actos, da sua vida inalteravelmente
scrupulosa, e, como se alongasse em divagações
que me paraceram de medíocre interesse, per-
guntei-lhe a que devia o prazer da sua visita.
\'iiiha consultar-me, porque tinha necessidade
• los conselhos de um advogado acerca de factos
que considerava extremam ?nte graves. A sua
lepu tacão e os seus haveres encontravam-sa em
perigo, porque determinada pessoa, cuja identi-
dade desconhecia ainda, abusava da sua seme-
Ihnnça física com èie para praticar actos e con-
li-;u'r compromissos que o arruinavam e o desou-
ravam. (Jltiei-o, já com certa estranheza. A face
contraíra-se-lhe. Tremiam-lhe as mãos. Pergun-
tci-lhe se se tratava de factos averiguados, ou de
simples suspeitas. Respondeu-me que vira, èle
l»róprio, na rua do Ouro, ao voltar uma esquina.
M homem que estava cometendo o roubo da sua
personalidade, e que começara desde então a re-
28 NA VIDA
conhecer, com uma evidôncia inquietante, a in-
fluncia desse desconhecido em todos os acon-
tecimentos da sua vida. — aO meu sósia — conti-
nuou êle — realiza manifestamente actos que me
comprometem, e vu já sinto, em volta de mim,
a desconsideração e o desprezo de toda a gente.
Desejo sfiber qu3 meios me faculta a lei para
assegurar a posse exclusiva da minha fisionomia».
Percebi desde logo — e era, de resto, fácil — que
tinha na minha presença um indivíduo anormal.
Na nossa. clientela de advogados, são menos raros
do que se supõe estes tipos de persecutórios e
de querelantes, que pretendem resolver nos tri-
bunais os incidentes imaginários criados pela
sua loucura. Procurei acalmá-lo, e, ao mesmo
tempo, esclarecer, para tranquilidade da minha
consciência profissional, o que porventura pu-
desse haver de real e de concreto nas apreen-
sões do meu novo cliente. Não forneceu um
elemento, não precisou um facto. Limitou-se a
reivindicar, numa excitação crescente, que se
traduzia já por uma certa ansiedade de expres-
são, aquilo a que ele chamava «o direito de pos-
suir uma fisionomia própria». Tratava-se, eviden-
temente, de um louco. Para pôr termo a uma
situação que nãu podia ser-me agradável, levan-
tei-me, despedi-o, e disse-lhe que não havia nos
códigos disposição alguma que proibisse detet^-
minado indivíduo de se parecer fisicamente com
outro. Ele levantou-se também, cumprimentou-
o ESPEl.MO '^\)
-me, e concluiu, já no limiar da poria, compondo,
om os dedos descarnados e trémulos, os seus
-inndcs óculos de oiro: — «Terei então, meu caro
- nlior, de fazer justiça por minhas mãos». Logo
((lie vi sair o dr. Souto, avisei imediatamente os
tMiiprcgados do escril<'>rio de que não tornaria a
I' • 'obô-lo se êle voltasse. Três dias depois, vol-
l('ii. Gomo me negaraiu, deixou duas palavras
escritas num cartão de visita. Estava resolvido a
meler uma bala na caberá do desconhecido que
((Usurpara a sua personalidade», e perguntava-me
-e poderiam ser^lhe exigidas responsabilidades
criminais por esse acto inevitável. Não lhe res-
p(ji''li. Passaram-se talvez duas semanas. Uma
b ']:i manhã, quando eu saía du meu quarto, o
criado anunciou-nj!» a visita do dr. Souto. Con-
fesso que não tinha previsto a eventualidade de
Ic me procurar em uiiuha casa. — «Mandou-o
iibir ?» — ((Está na sala», — i-espondeu-me o
criado. Ia transmilir ao meu sinistro cliente que
não podia rec8bê-l(" naquela hora — quando ouvi o
ruido seco dun.M deí( mação. Depois outra, e
outro. Corri. Na meia obscuridade da sala, des-
figurado, arqyjante, um revólver em punho, o
[Mjbre dr. Souto crivava de balas a sua própria
imagen;i reflectida no espelho doií-ado duma cre-
dencia. Cinco minutos depois, os criados desar-
mavam-no c entregavam-no à polícia.
ANDROMAGA
Para clu'gar a (lastclo-Veiitoso, em cujo coii-
ventinho me esperava a mais fidalga hospitali-
dade, era preciso atravessar quási uma légua de
montados. A charrette deixou a estrada e cortou
à mão direita por um carreteiro estreito, roçado
de fresco numa encosta roxa de mato queiró.
Naquela tarde ardente de junho, o sol escaldava
como uma labareda. Zumbiam moscões, scinii-
lando. Um cheiro acre de urze ardida, de re-
sinas queimadas, impregnava o ar. Estávamos em
pleno montado, em plena écloga alentejana. Lon-
ge, sobre umas terras adustas de centeio, pulve-
rulentas como uma formidável toalha de cinza,
o oiro espesso da atmosfera parecia referver,
oleoso, baço, irrespirável. Perto, começavam a
gesticular os sobreiros, torcidos, dobrados do va-
rejo do vento, imobilizados em grandes atitudes
humanas. Fui olhando, quási um a um, os tron-
ANDHÓMACA 31
COS que corriam, bracejando, á beira do adarço
faúlhante de sol. Tocara-os a quási todos, havia
um mês, a machada dos podadores, e largas cha-
.?as. fundos cstiírmas, vermelhos como pinceladas
de zarcão, grelavam-lhe, ras.iravam-lhe o córtex
musculoso onde a luz escorria como uma baba
de bronze. Cada braçada, magra de frondes, des-
carnada e brusca, atirava ao ar um gesto sagrado
de êxtase, de profecia, de imprecação. Azinhas
cnpados. negros de sombra; azinhos anões, como
grandes bolas verdes, evocavam a geórgica cristã
dos gados tranquilos, das cevas ubérrimas, dos
Inres patriarcais. À medida que penetrávamos nn
coração do montado, o sol era mais quente, o
silêncio mais profundo, o mato mais denso. Re-
voadas de algrevões, pardas e brancas, levanta-
vam-se, pipilando, dos giestais. Pnr toda a part<.'.
de encosta em encosta, estendia-.se a charneca em
flor. — grandes nódoas roxas de torgueiras e dj
rosmaninhos, babugens de oiro de giestas, tape-
tes brancos de estevas altas e de sargaços rastei-
ros, e, aqui e além, entre o mato. o rebento florido
dos pereiros bravos, que se diria, na sua pegada
fulva, o vestígio das patas felpudas de Pan. A
charrette devorava caminho, rápida, vivaz, acor-
dando, com o seu guizo de cobre, as sombras
dormentes do montado. Abafava-se. Sobre um
esteval, emquanto se levantava, assustado, um
revoo vermelho de milharoucus, duas enormes
cegonhas cortaram o ar, cinzentas e pacíficas,
32 NA VIDA
crguendo-se no mosaico doirado do céu. A sono-
lência da scsla e a monulonia da paisagem, enlic
pastadas de luz e comas de sobreiros, começavam
a invadir-me dum vago torpor. Cerrei os olhos.
Passei pelo sono. Então, uns laudos longínquos
despertaram-mo, vindos de baixo, da encosta
mansa de azinhos que íamos descendo. A soli-
dão, o hálito ardentx3 e dionisíaco da terra, a pró-
pria serenidade virgiliana da natureza tornavam,
não sei porquê, mais confrangedora ainda essa
voz de animal doloroso. Era um ladrido agiido,
seguido dum longo uivo quási hiiiiiano, que to-
mava, à medida que nos aproximávamos, uma
expressão mais impressionante e mais aniti\'a.
Já íamos perto, — quando, de repente, um cheiro
nauseabundo, um cheiro adocicado de cadáver se
misturou, no ar imóvel, ao aroma bravio da char-
neca. Olhei, para um e outro lado, as moitas de
esteva alapadas, as chãs de sargaço que fumega-
vam como estruma ao sol, a ver donde viriam
aqueles uivos de loba e aquele bafo de podridão.
Não tive de procurar muito. Num côncavo de
rocha irrupta onde os grãos de mica faiscavam,
um cão morto, abatido na véspera a cajado, jazia
sobre uma poça de sangue. Tinha a pelagem
ruiva dos cães de pastor, a cabeça aberta, as
patas hirtas. Ao pé dele, enlameada, hirsuta,
com as tetas pendentes, os olhos vidrados de lá-
grimas, uma cadela negra uivava e gania. Con-
siderei, um instante, a grandeza daquela tragédia
ANDRÓMACA 33
humilde. O sol principiava a declinar. Revoadas
tranquilas de cegonhas, pairavam. O carro se-
guiu. Quando cheguei a Castelo-Ventoso, — na
quebrada distante, os latidos do pobre animal
ouviam-se ainda.
ANA PEREGRINA
A última geração que teve, em Portugal, o
culto da atitude, o desdém do preconceito' e o
espírito da anecdota, foi a mocidade doirada de
1860.
Um velho amigo meu contou-me ontem a se-
guinte história dos bons tempos da saia de balão:
Um dos frequentadores do Marrare «de poli-
mento» era, em 1862, o moço D. José ***, grande
tocador de guitarra, muito fidalgo e muito boémio,
que blasonava da cruz dobre dos Meios e das seis
arruelas de azul dos Castros, e em cuja beleza
loira, indolente, frágil, quási feminina como a de
certos retratos de Van Dick, havia os estigmas
duma raça predestinada a extinguir-se pela tuber-
culose. Uma noite, este rapaz, que chegou a te-
nente de cavalaria, e que vivia, ainda estudante,
num quarto alugado do Arco do Marquês de Ale-
grete, conheceu num baile de máscaras uma Mimi
ANA PEREGRINA 35
do Bairro Alto. encantadora rapariga de 18 anos
chamada Ana Pereprrina, que se tornou célebre
mais tarde pela dolorosa expressão com que can-
tava o fado. apaixonou-se por ela, e na própria
noiip do baile, convencido de que aquele amour
.9an.9 Undemain duraria a eternidade de al^runs
meses, pronr^s-lhc a vida em comum e levou-a,
ainda vestida de pastorinha Luís xv, para o seu
pobre quarto de solteirão. Quando os dois, no
dia se.íruinte. acordaram para a consciência das
realidades do mundo, ela lembrou-se de que tinha
empenhado o seu único vestido e as suas únicas
botas de duraque para poder vestir-se e calçar-se
d^ setim côr de rosa para o baile de S. Carlos c
ele viu-se obri.orado a confessar, depois de ter vol-
tado do avesso todas as algibeiras, que o dinheiro
que possuía não lhe chegava para o luxo incal-
culável de desempenhar fosse o que fosse. Mas a
mocidade, quando ama. não tem exigências que
não sejam as do próprio amor. Passou o Car-
naval, e aquela lua de mel continuou, entre risos
e beijos, fados e guitarras, com tão embevecida
paixão, que Ana Peregrina teria 'chegado a consi-
derar-se feliz no seu «paraíso sem cadeiras», como
ela risonhamente chamava ao quarto em que vivia,
se a falta de vestido não lhe estivesse transfor-
mando esse paraíso numa prisão. Ela não podia
?nír mascarada; êle não lhe dava dinheiro para
mandar buscar a roupa. E a pobre rapariga, farta
de passar os riias na cama e de ir abrir a porta
36 NA VIDA
ao padeiro vestida h Luís xv, começou a sentir
pssa va,£ra nostalp-ia da liberdade, que principia
quando o amor acaba, e que é quási sempre,
nestas ligações efémeras, a explicação fácil dos
bruscos rompimentos e das intermináveis sacie-
dades. Passou-?e um mês. Uma ocasião, os ami-
gos de D. José. certos todas as noites no secundo
andar do Arco do Marquês de Alegrete para ouvir
cantar a Ana. compadeceram-se dela e cotiza-
ram-se para desempenhar-lhe o vestido e as botas
de duraque. A rapariga, só com a promessa, teve
uma alegria tão !?rande. que riu. chorou, cantou.
dançou, beijou-o? a todos, encheu aquele quarto
de estudante de tanta viveza e de tanta graça, que
n meu velho amigo, ao contar-me esta anecdota
da sua mocidade, tinha ainda diante dos olhos a
figura delgada e quási infantil da Ana Peregrina,
sentada em cima da mesa, abraçada à guitarra
como a Finette de Watteau, e mostrando a meia
dúzia de rapazes, à luz dum candeeiro de latão,
os buracos das suas meias de seda côr de rosa...
Nessa noite, à saída, D. José, apreensivo, embru-
lhado num gabão, acompanhou os amigos, des-
ceu com eles até ao primeiro patamar da escada,
e, em segredo, para que Ana Peregrina não ou-
visse, preveniu-os:
— Vocês dêem à pequena os vestidos que qui-
serem, mas não lhe dêem botas.
-— Porquê ?
— Porque se ela se apanha com botas, sala-se,
1
ANA PEREGRINA 37
Meu dilo, meu feito. No dia seguinte, de ma-
nhã, Ana recebia o seu vestido de pekin verde com
riscas càr de cereja, o seu enorme balão, o seu
chapéu de palha, de Itália com rosinhas de toucar,
e — oh, felicidade! — as suas suspiradas botas de
dufaque cinzento, pespontadas de branco, abo-
toadas ao lado, pequeninas como caixas de jóias.
Nesse mesmo dia, — fugiu de casa e ninguém
mais a viu. Quando à noite os amigos chegaram,
D. José, muito pálido, a arrepelar-se e a chorar
como uma criança, gritou-lhes:
— Eu bem lhes dizia a vocês que não se podem
dar botas a uma mulher I
A MULHER DE BRANCO
Quando desci o Chiado com o meu colega dr.
S., eram 11 horas. Vínhamos de assistir à ope-
ração dum nosso velho amigo, um hércules que
caíra, às primeiras gotas de clorofórmio, recitando
versos de Horácio. Estava uma manhã admirá-
vel de primavera. Quando passávamos diante da
Bénard, uma senhora, de dentro dum automóvel
parado, chamou o meu colega. Entretive-me a
olhá-los, emquanto conversavam: ele, risonho,
brusco, familiar, a gola do casacâo levantada, as
mãos nas algibeiras, a volta do guarda-chuva pas-
sada no braço; ela, nova, loira, vinte e oito anos
talvez, um pouco masculina, um trotteur branco,
umas luvas largas de camurça branca, um petit-
marquis branco posto à banda na cabeça, como se
a u Mulher de branco» de John Opie, com os seus
cabelos de fogo e os seus olhos de faiança, sur-
A MULHER DE BRANCO
gisse na penumbra doirada da limousine. Um cai-
xeiro apareceu carregado de embrulhos; o meu
colega despediu-se, — e o automóvel partiu, se-
renamente, Chiado acima, scintilando metais ao
sol.
— Você sabe quem é aquela mulher? — per-
guntou o dr. S., enfiando-me o braço.
— Não.
— E' a viúva do nosso colega Rendufe.
— Do pobre Rendufe ?
— Sim, diz bem, do pobre Rendufe. Esta se-
nhora casou aos vinte anos, e esteve casada ape-
nas seis dias. Gonheço-a desde a morte do ma-
rido, em 1907. Você viu-a ? E' o tipo da temme
de trente ans. Aquilo, meu amigo, é Balzac !
Eu não tinha mantido relações de intimidade
com o dr. Rendufe, um bacteriologista e um anã-
tomo-patologista distinto, mas lembrava-me bem
da impressão que produzira em mim, há dez anos,
a notícia da sua morte misteriosa. O facto dessa
morte ter ocorrido seis dias depois do casamento
do pobre médico, e, por conseguinte — julgava eu
— ^em plena felicidade, mais concorrera ainda
para me comover e para me interessar. Nada
ouvi, nada perguntei, les morts vont vite^ e, den-
tro de pouco tempo, a ideia de que o pobre dr.
Rendufe existira apagou-se de todo para o meu
sentimento e para a minha curiosidade.
— Você não sabe como êle morreu? — per-
guntou-me o meu colega, fixando em mim os
40 NA VIDA
seus grandes olhos pardos, que pareciam azuis
vivos na sombra do chapéu mole de veludo.
— Não sei.
— Pois eu lhe conto. Infelizmente posso-o fa-
zer, porque êle morreu-me nos braços. Foi uma
tragédia obscura, meu amigo, — mas foi uma
grande tragédia !
Emquanto descíamos a rua do Carmo, o dr.
S., com o mesmo ar brusco e sacudido dos seus
gestos e das suas passadas, contou-me, comovido
ainda, a morte do nosso pobre colega. Durante
todo o tempo que êle falou, nem um só momento
a graciosa figura da mulher de branco, com o
seu petit-marquis à banda sobre a grande man-
cha fulva dos cabelos, deixou de passar diante
dos meus olhos, sorrindo, como uma obsessão.
— Você talvez saiba que o Rendufe, quando
tinha vinte e três, vinte e quatro anos, esteve
paraplégico. Talvez uma coisa específica, porque
o rapaz tratou-se e melhorou. Picaram umas in-
coordenações de movimentos, umas desordens de
sensibilidade, aquela marcha ligeiramente espas-
módica que você lhe conheceu, já um pouco mo-
dificada, um pouco corrigida nos últimos anos.
Gomo nós, médicos, não percebemos nada de
doenças, disse-lhe que carregasse no iodeto e que
fosse vivendo. Um belo dia, talvez um ano antes
de morrer, o Rendufe procurou-me em casa.
Vinha mais pálido do que de costume, embru-
lhado num grande casacão escocês, uma brochura
A MULHER DE BRANCO 41
amarela debaixo do braço. Pechámo-nos no es-
critório. O suor borbulhava-lhe da testa, as
mãos tremiam-lhe sobre a volta de oiro da ben-
gala. Vinha perguntar-me, sob o mais absoluto
sigilo, se eu entendia que ele podia casar-se.
Éramos dois médicos — dizia êle — devíamos fa-
lar com franqueza um ao outro. Expôs-me, com a
maior lucidez, o seu caso clínico; fez, desde os
vinte e três anos, a história da sua antiga parali-
sia; contou-me a situação em que se encontrava,
noivo duma menina desde a infância de ambos;
invocou compromissos de família, razões de in-
teresse e de sentimento; mostrou-me, com os olhos
embaciados de lágrimas, o retrato da senhora que
você acabou de conhecer, — e como eu lhe dis-
sesse, com toda a lialdade, que me parecia me-
lhor desistir do seu casamento, abraçou-me, con-
cordou comigo, falou vagamente de tabes dorsal,
pediu-me umas flores que eu -tinha sobre a se-
cretária, e saiu. Daí por diante nunca mais fa-
lámos em semelhante assunto, nem no laborató-
rio, nem no hospital. Passaram-se dez ou onze
meses, — e um domingo, por acaso, numa expo-
sição de aguarelas, encontrei-o com uma rapariga
loira pelo braço e uma senhora de idade atrás.
Era a noiva. Apresentou-me. — «Sabe ? Casamos
amanhã». — Fiquei espantado, a olhar para êle.
No dia imediato, não apareceu. No outro dia, li
a notícia do casamento em todos os jornais. Três
dias depois, a enfermeira disse-me que êle tinha
45 NA VIDA
filtrado no laboratório, desfigurado, pálido, que
se tinlia fechado por dentro, e que saíra passadas
duas lioras, a cambalear. Quando cheguei, na tarde
seguinte, disseram-me que ele já estava. Pui ba-
ter-lhe k porta: não respondeu. Bati de novo: si-
lêncio. Chamei-o: um tiro soou, seco, rápido;
depois, o baque dum corpo; em seguida, um ti-
lintar de vidros. Os criados correram, meti om-
bros à porta, o meu pobre amigo estava caído
(le-bruços, como um farrapo, junto à mesa de mi-
croscopia onde scinlilava a armadura do seu ma-
gnífico Reichert. A blusa, chamuscada no peito,
ardia. A vitrine dos reagentes estava aberta. Ve-
rifiquei que ele respirava ainda. Meti-lhe as mães
em água quente, agarrei-o em peso, atirei-o para
um automóvel e seguimos para o hospital de S.
José. Morreu a meio do caminho, com a cabeça
encostada ao meu peito.
— E a mulher ? — inquiri.
O dr. S. sorriu, encolhendo os ombros:
— Nunca percebeu a razão por que ele se
matou.
A CONFISSÃO
Lembro-me, como S3 fosse hoje, de ouvir D.
António de ***, o velho prelado cuja cabeça tanto
lembrava a de Bossuet e debaixo de cuja murça
roxa batia um dos maiores cc rações da Espanha,
((intar este senlido episódio da sua vida:
— Muilo antes de ser Bispo, quando eu paro-
quiava numa das freguesias de Lisboa, fui, não
sei ainda bem porquê, o confessor querido das
mulheres. E' uma distinção que os padres, em
geral, devem mais aos seus defeitos do que às
suas virtudes. Já lá- vão quarenta anos; passaram
sobre a minha cabeça os trabalhos do episcopado
e os gelos da velhice; cheguei à idade em que os
homens vêem claro na sua vida e na sua cons-
ciência,—e ainda hoje, quando penso nos mo-
tivos que teriam levado as mais elegantes mulhe-
res da Lisboa de 1876 a preferir-me a tantos sa-
44 NA VIDA
cerdotes velhos e virtuosos, não sei, em verdade,
se devo louvar-me, se penitenciar-me. Deus me
perdoe os pecados da minha vaidade, e me leve
em desconto deles a grande piedade humana com
que procurei servi-lo no meu ministério. Ignoro
se os bons confessores devem ser como eu fui.
A minha bondade natural, o meu vago idealismo
cristão de transmontano, a minha compaixão pro-
funda por todas as dores morais, levaram-me in-
sensivelmente a revestir o sacramento da peni-
tência duma expressão de humana doçura, de
acolhedora tolerância, de compassivo amparo es-
piritual, que seria talvez a razão da minha fortuna
de padre elegante, se um certo mundanismo de
batina e de maneiras, e um culto menos modesto
das temporalidades, não bastassem para explicar
a atracção curiosa das mulheres e o favor instá-
vel da moda. Para mim, a confissão não era um
sacramento austero: era uma confidência tranqui-
lizadora; quando muito, um conselho delicado e
paternal; — sempre um sorriso e um perdão. Não
sei ainda hoje, que sou Bispo e sou velho, se esse
carácter de intimidade tolerante e discreta será
o que mais convêm à dignidade sacramental da
confissão; mas basta-me a certeza de que é o que
mais se conforma com a doçura da caridade cristã.
Para quê, magoar pudores, violentar consciências,
repreender, penitenciar, ameaçar com a ira d3
Deus ? Deus, se tivesse de ouvir os pecados duma
mulher, — ouvia-os sorrindo. Pobres criaturas de
A CONFISSÃO 45
fragilidade, de inocência e de ?raça, só Deus sabe
que tempestades de dAr as trazem às vez^s aos
nnssnp pf^s. — e como uma s6 palavra nossa de
ronsolação espiritual pode fazô-las renascer para
n íé. para a virtude, para a vida! Uma cadeira
de confessor ^ nm trafado de psicologia feminina,
o mais difícil n3o é saber onvir o que nma mu-
lher nos diz: é compreender os seus silêncios: é
interpretar as suas lácrrimas: é adivinhar a ex-
pressão das suas Dfllpebras descidas: é saber ou-
vir tudo aquilo que ela quer confessar-nos — e
que não tem. às vezes, forca para nos dizer. Hei-de
Ipmbrar-me sempre duma das minhas anfis-as na-
roauianas, a senhora condessa de M.. cujas lá-
crrimas. um dia. foram tão eloquentes, que a con-
fessei ? a absolvi sem que ela pronunciasse uma
única palavra. Nunca cumpri menos canónica e
mais humanamente o meu dever de padre. Era
uma mulher alta. loira, impassível, cujo perfil.
mnis cheio de raça, do que de beleza, fazia pensar
vairamente na distinção de certos tipos da casa de
Áustria e na transparência de certos mármores
côr de rosa. Gonhecia-a do mundo o bastante,
para sabor a história do seu casamento com o
conde de M. e das suas leviandades com um moço
tenente de cavalaria, belo rapaz, que blasonava
da cruz-dobre e dos seis besanies de prata dos
Almeidas. Coisa curiosa: havia dois anos que
ela era minha confessada, e nunca se referira,
senão duma forma obscura, a essa ligação que
tinha principiado por um caprkiK) e que ace-
i6 NA VIDA
bara pela mais funesta e criminosa das paixões.
Uma bela manhã, lia eu o jornal, quando vi n
notícia de que um tenente de cavalaria de apelido
Almeida, ao ensaiar no picadeiro do Paço de Be-
lém uns jogos de canas, caíra do cavalo e morrera
instantaneamente. Bacorejou-me o coraçfío que
era ôlo; e habiluado, como estava, a ser o con-
fidente de tod'is os amores infelizes, fiquei espe-
rando, fielmeiít:^. à hora da missa, a visita infa-
lível da mír,!) i nobre paroquiana. No primeiro
dia. não veio. No segundo, também não. Apa-
receu aos [vè.< dias, toda vestida de preto, um
livro de missa na mão, um véu espesso pela face.
mas tão desfigurada, tão mudada de voz, que só
a reconheci pelo perfume dos cabelos, — um per-
fume quente, característico, que às vezes enchia
toda a igreja. Quis que eu a confessasse com ur-
gência. Como o conTissionário estava servindo ao
coadjutor, levei-a para a sacristia, assentei-me
numa cadeira diante dos arcazes, mandei-a ajoe-
lhar aos meus pés. — e ai' mesmo, entre duas
terrinas do Rato eh vias de flores, preparei-me
para a ouvir de confissão. Odiando essa pobre
mulher levantou o véu que a cobria, a sua pali-
dez, os seus olhos secos e brilii; ntt- a sua iii-
tude crispada de dôr. compungiiani-aie. Aben-
çoei-a. Os lábios tremiam-lhe; os c ibel- '^- tinham-
-Ihe embranquecido nas fontes; o ilhar fixava-se
em mim, imóvel, numa tão inquietante expres-
são de angústia e de súplica, que eu tive a im-
pi-essão viva, confrangedora, exacta, duma cria-
A CONFISSÃO i7
lura que não podia chorar. Disse as primeiras
palavras do Confiteor, para que ela as repetisse
comigo: estrangularam-so-lhe na garganta. Afa-
guei-a, cheio de piedade, como se afaga uma
criança; tranqíiilizei-a; sorri-lhe; disse-lhe que
sabia já de toda a sua desgraça: falei-lhe do morto
como se lhe falasse dum irmão muito querido:
e ao dizer-lhe que Deus, senhor de misericódia,
se compadecia comigo da sua dôr, — as lágrimas
principiaram a correr-lhe dos olhos, a quatro e
quatro, aquele pobr? corpo devastado arquejou
em soluços, o pranto sufocou-a. e como a terra
árida e escaldada do sol quando recebe o refri-
írério dos primeiros orvalhos. — ficou largo tempo,
•locemente, serenamente, abraçada aos meus joe-
lhos pecadores, a chorar em silêncio... (lEgo te
absolvo a peccatis tuis, in nomine Patris. et Fi-
/u...» Tinha-a absolvido, sem a ouvir de confissão.
A carruagem esperava, à porta da igreja. Ia. de-
certo, levá-la ao cemitério. Levantei-a do chão,
-nrinhosamente; colhi de sobre o arcaz um b''-
çado de rosas frescas; lancei-o no regaço dess.i
mulher três vezes desgraçada, e disse-lhe, com
as lágrimas a borbulharem-me dos olhos: — «Vá,
minha filha. Leve essas flores ao seu miorto. Deus
acompanha sempre aqueles que amaram e sofre-
ram...» Nesse dia., fiquei contente comigo mesmo
Fora um mau padre; mas tinha dado a uma cria-
tura humana a suprema consolação de poder
chorar.
o GENERAL
Minha querida Tia:
Escrevo-lhe ainda muito impressionada e com
os olhos inchados de chorar. Morreu esta manhã
o pobre general Barreiros. A estas horas já a Tia
deve ter recebido o meu telegrama pedindo-lhe
o favor de me mandar o vestido preto de crepe da
China e o chapéu preto, grande, da mamã. Eu
e duas amigas minhas, a filha da viscondessa de
S. Dâmaso e a Nelly, resolvemos pôr luto por
uma semana. A Nelly, coitada, ^ teve um ataque
de nervos e passou muito mal. Nunca imaginei,
minha querida Tia, que a morte duma pessoa
que não era da nossa família e que eu conhecia
há menos de um mês, pudesse impressionar-me
e comover-me tanto.
Mas quem era o general Barreiros? — per-
guntará a sua curiosidade. Por que me causou
o GENERAL 49
n morte dêl? um desgosto tão grande ? E' o
rfiie lhe venho C( ntar. minha Tia. cefta de que a
^iia bondosa ahna não negará uma lágrima e uma
oração à memória do nosso querido morto. A
Tia conhecia-o, talvez, de o ver por Lisboa. Era
um tipo de vieyx-garçon, alto, elegante, bem ves-
tido, sessenta e cinco anos se tanto, certo no
Chiado ;i? 5, um desses velhos nmito distintos
([Lie vistos pelas costas parecem rapazes, que teem
linda, i)or instinto ou por educação, a prenda
rara de saber conversar com senhoras, e que nós,
.IS raparigas da minha idade, achamos às vezes
muito mais interessantes do que os rapazes novos.
Quando lhe fui apresentado aqui nas Pedras Sal-
.'/'idas. já o conhecia de vista, — do chá da Mar-
qu3s e da missa da 1 hora. Antes de lhe falar
pela primeira vez achei-o um pouco ridículo, um
[»ouco rnouche à miei, com o seu aprumo, os seus
< nmprimeníos d? pés juntos, as suas polainas
amarelas, a presunrão que ele tinha nas mãos,
muito brancas, muito bem tratadas, muito cheias
de anéis. Mas depois de conversado, minha queri-
da Tia, não imagina que distinção de maneiras,
que delicadeza respeitosa, que trato insinuante,
que vivacidade de espírito, que encantadora moci-
dade a daqueles cabelos brancos ! Todos o adora-
vam,— especialmente as mulheres. Era interessan-
te vê-lo no Casi.io, sempre rodeado de raparigas
novas, rindo, conversando, dançando como um
rapaz, um sorriso a uma, um bunbon a outra, --
4
50 NA VIDA
((fraulein General», como lhe chamavam as mães
ao entregar-lhe confiadamente as filhas, «General
bonbonnière». como êle se tratava a si próprio, —
um ponco con-fidente. nm ponco pai, nm pouco
mestra alemã, nm pouco namorado de nós todas,
— e cada vez mais disputado, mais acarinhado,
mais perdido de mimo por todas nós. Nunca su-
pus que num velho pudesse haver tão grandes
qualidades de sedução. Muitas das minhas ami
gas atribuíam o encanto do velho general à au-
réola de que o cercavam ainda o seu passado de
conquistador c a sua vida misteriosa de soltei-
rão elegante. Talvez. O que é certo, minha Tia,
é que, depois de o conhecer, su fiquei fazendo
uma ideia diferente da velhice, —uma outra
ideia mais doce, mais alegre, mais atraente, mais
carinhosa, — a ideia de qualquer coisa que sorri,
que ama, que aconselha, que absolve, que pro-
tege...
Uma destas manhãs — há oito dias — o general
não apareceu no Parque, como costumava. À
tarde, disseram-me que êle estava gravemente
doente. Corremos ao hotel. eu. a Nelly, e mais
cinco ou seis raparigas. O médico, que veio re-
ceber-nos, falou vagamente em artério-sclerose,
em organismo gasto, em morte próxima. Quando
o vi, recostado na cama, fez-me impressão a sua
palidez. Esperava-o — disse êle — o fim horrível
das criaturas que envelhecem sem afectos e que
morrem sem lar. Não receava a morte; mas tinha
o GENERAL 51
medo do isolamento p do abandono. Percebe-
mos-lhe nos olhos, nós todas, o brilho de duas
lágrimas. Desde essa larde. minh^ Tia, não o
deixámos mais. Acabou para nós o Casino e o
Parqne. Vivemos durante oito dias, como um
-orriso, à sua cabeceira. De dia. estávamos todas;
de noite ficava uma só, por escala, com um criado
(' uma criada do hotel. Se fôssemos filhas dele,
não tínhamos sido mais dedicadas nem mais ca-
i'inhosas. Enchiami s-lhe o quarto de flores. Lia-
mos-lhe os livros de que èle mais gostava. Dava-
mos-lhe de comer como a uma cirança. Êle, em
troca, sorria e beijava-nos os dedos. Hoje, de ma-
nhã, quando eu. a Nelly e a filha da viscondessa
le S. Dâmaso lhe levávam.os um copo de leite,
recusou, pediu um esi^elho. compôs levemenle os
cabelos, recost( u-se melhor na cabeceira da cama,
npertou muito as nossas mãos nas dele, olhou-nos,
ora a uma. ora a outra, com uma expressão de
ternura e de gratidão infinita, correram-lhe duas
lágrimas pela face. e disse-nos, quási num mur-
múrio:
— Nunca julguei que fosse tão agradável mor-
rer !
Um instante depois, a cabeça inclinou-se-lhe
sobre o peito, e ficou. Tivemos, nós todas,
d impressão de que èle morreu feliz. Não se es-
queça, minha querida Tia, de rezar um padre-
nosso pela sua alma.
Sua sobrinha muito amiga, — Helena,
A SOMBRA
O sargento Joaquim seguira para França com
as primeiras tropas portuguesas destacadas. Os
pais, dois velhos que viviam de uma loja d?
capela em Santa-Gomba, e que não possuíam ou-
tra alegria nem outra riqueza que não fosse o
orgulho daquele filho, tinham ido levar-lhe à
despedida, ao comboio, o seu último abraço.
Quando o apertaram ao coração, o moço sar-
gento, com os olhos brilhantes, sorria. Morrer?
Quem falava ali em morrer ! Haviam de voltar
todos os que tivessem mães a chorá-los e a
abençoá-los. Pois, então ! E no extremo adeus,
sobre o estribo do vagom, embrulhado no grande
capote cinzento que fazia parecer maior a sua
estatura, dizia ainda à mãe, que lhe beijava as
mãos e lhas molhava de lágrimas:
— Vocemecê verá, mãe, que eu hei-de estar
todas as noites na sua companhia!
A SOMBRA 53
Decorreram oito ou dez dias. Os dois velhos,
entregues à dôr do seu apartamento e à doçura
da sua saudade, passavam um defronte do outro
os longos serões de inverno, calados, ela co-
zendo roupa à mesa, êle sentado numa cadeira
de palha, com o gato nos joelhos, a lêr, à luz
de um candeeiro de petróleo, os jornais que fa-
lavam tanto da guerra e nunca traziam o nome
do seu filho. Uma bela noite, a velha capelista,
levantando os olhos da costura, reparou numa
sombra que se alongava na parede branca, ao
lado da porta, e que semelhava, na sua impre-
cisa flutuação, um vago contorno humano. A
princípio cuidou que era a sombra ao marido,
e não deu maior atenção ao caso. Mas quandu
chegou a hora de ss deitarem e o velho se le-
vantou da cadeira, a pobre mulher notou, com
estranheza, que a mancha negra continuava a
alastrar no mesmo sítio da parede, como se fosse
a projecção dum corpo invisível para ela.
— Que sombra é aquela, João ?
— Ora essa ! E' a tua.
— Gomo pode ser isso, se eu estou deste ladn
(la luz ?
O velho calou-se, considerou demoradamente
a casa e os móveis, olhou a parede, tirou de cima
da mesa uma caneca alta de louça, fechou a
porta dum armário, arredou de diante da luz
tudo quanto poderia produzir aquela projecção
inexplicável, mudou o logar do candeeiro, — e a
54 NA VIDA
sombra continuou na pareds caiada, defronte
dele, mais nítida e mais fixa ainda, na vaga con-
formação duma figura de homem. Era talvez
alguém que espreitava da rua, — pensou o velho,
assomando à janela. Mas na rua não havia ne-
nhum lampeão aceso; não passava viv'alma; e,
depois de fechadas as portadas de dentro; a som-
bra permaneceu diante dos dois velhos, que se
olharam, imóveis de assombro. Passaram-se mo-
mentos dum silêncio angustioso. Houve um ins-
tante em que a mancha da parede pareceu alas-
trar, flutuar como a sombra dum capote vare-
jado pelo vento. . De repente, a pobre mulher,
que tremia, encarou o marido, a flsionomia trans-
hgurou-se-lhe, e, numa expressão simultanea-
mente de terror supersticioso e de ternura ma-
terna, murmurou de mãos postas:
— Parece a sombra do nusso íilho, João !
Ele ouviu-a e resmungou, preocupado, enco-
lhendo os ombros:
— Tens imaginações, mulher!
Daí por diante, todas as noites, lá estava a
mesma sombra', na pareae branca, junto da
porta. Era já a companhia dos dois velhos, ao
serão. Êle enlretinha-se fazendo experiências
com a luz, a ver se a sombra se deslocava pelos
movimentos do candeeiro. Ela não tirava os olhos
daquilo que supunha a imagem longínqua du h-
Iho, e todas as noites, antes de se deitar, às es-
condidas do velho capelista, beijava em segredo,
A SOMBRA 55
chorando e rindo, a sombra do seu Joaquim.
Os dois velhos foram vivendo, enganando a sua
própria saudade, conversando já com aquela
imagem intrusa como se nela palpitasse o seu
sangue e a sua alma, — até que na noite de
Santo António, 12 para 13 de junho, inesperada-
mente, como se se tivesse afastado o corpo que
a produzia, — a sombra desapareceu. Espera-
ram vê-la no dia seguinte, ao acender da luz.
Não voltou mais. Daí a pouco tempo, quando o
velho, ao serão, lia os telegramas dos jornais do
Pôrlo, teve um grito rouco, resvalou, o jornal
caíu-lhe das mãos, a cabeça pendeu-lhe num
soluço. Acabava de lêr o nome do filho, — morto
em combate em França, na mesma noite de 12
de junho em que a sua sombra deixara de debru-
çar-se sobre a alma dolorosa dos pais.
DISTRACÇÃO
— Só são felizes os que casam por amor —
cliss3 M.'"^ Vargas, enterrada no seu cadeirão
Brougham, baloiçando no ar um pequenino pé
calçado de branco.
— Parece-me, minha senhora, que só são fe-
lizes os que casam por conveniência — senten-
ciou a verte viciUesse do general Pessanha, de
monóculo, brandindo o stick.
O meu amigo visconde de **\ que assistia i\
discussão silencioso, interessado, recostou-se me-
lhor na cadeira, machucou as luvas sobre o cas-
tão de oiro da bengala, e concluiu, com o ar
mais convicto do mundo:
— Eu entendo que só são felizes os que ca-
sam por distracção.
— Oh ! Oh !
AI.""® Vargas protestou, rindo. A saia azul de
M.iie Yvonne desapareceu. O visconde de *** dei-
DISTRACÇÃO 57
xou -passar a onda, e prosseguiu, tranquila-
mente, encolhendo os seus largos ombros de hér-
cules grisalho:
— Foi o que me sucedeu a mim. V. ex." sa-
bem como eu sou distraído. Pois bem. Um dia,
por distracção, casei-me, — e afirmo a v. ex.""'
que nunca supus que pud9sse existir alguém tão
feliz como eu sou.
— De-veras ?
— Eu lhes conto.
O sol acendia clarões nas hrise-bise de seda
verde. Uma gata francesa dormia sobre as al-
mofadas do sofá. O general seguia com o olhar
o pé nervoso e calçado de branco de M."* Var-
iais. O visconde continuou:
Não é segredo para ninguém que eu até
tos íO a^^os não casei porque me distraí. Vivia
•om uma tia velha, tão distraída como eu. — e,
até qiie os primeiros cabelos brancos aparece-
ram, respirei, a plenos pulmões, a maravilhosa
delícia de egoísmo o de comodidade que é a vida
<!e solteiro. Mas um dia a pobre senhora, por
distracção, morreu duma sínccpe cardíaca, eu
enconlrei-me só, e como me pareceu que seria
menos pesada a solidão se fosse viver para Lon-
dres, resolvi fazer as malas, alugar mobilada
i minha casa do Conde de Redondo, e partir
para Inglaterra. Logo no primeiro dia em que
pus escritos, a casa alugou-se. Conhecem uns
encantadores tipos loiros de brasileira, raros e
58 NA VIDA
paradoxais, que teem os cabelos cendrados das
holandesas, os olhos de hulha das cariocas, e
cuja pele, na mordedura ds oiro da luz, lembra
ao mesmo tempo a polpa duma rosa e as man-
chas fulvas do âmbar cinzento ? Pois era assim
a minha inquilina, uma brasileirinha de 25 anos
que vivia com a mãe. Comprometi-me a dar-
-Ihes a casa no dia 5 de março, — precisamente o
dia em que eu devia embarcar para Inglaterra.
Mas distraí-me, fiz confusão com a hora de em-
barque que me linham dado na agência, demo-
rei-me a receber e a instalar M."'® Barroso e a
filha, — e quando, finalmente, tive consciência
de mim, estava no Terreiro do Paço, rodeado de
malas, sem paquete, sem casa, e — o que era la-
mentável— sem lôrça moral para tomar uma re-
solução. Evidentenients, não havia de ir inco-
modar as minhas i. quilinns. Pui para um hotel.
Encontrei um amigo do Algarve que não via há
dez anos, e que me falou do idealismo de Rus-
kin ;' das armações de atum. Jantámos juntos.
Pomos juntos ao teatro. Ceámos juntos. Às 3 da
madrugada deixei-o num club qualquer, entre
uma francesa magra e uma geleira cheia de
Champagne, — e distraído, fatigado, com os olhos
a fecharem-se-me e a boca a saber-me a ferros
velhos, subi para um automóvel, mandei seguir
para a rua do Conde de Redondo, 27, apeei-me,
paguei, meti a chave ao trinco, e sem me passar
sequer pela cabeça que tinha perdido o paquete,
DISTRACÇÃO 59
que estava num hotel e que a minha casa já
não era minha, galguei a escada, abri a porta,
pendu/ei o chapéu e a bengala no cabide, atra-
vessei o corredor, entrei no meu quarto, abri a
electricidade, — e, minhas senhoras, só caí em
mim quando vi deitada na minha cama, com
o pescoço nú, os braços mis, os cabelos loiros
presos numa touca de rendas, a encantadora
brasileira que dormia, sorrindo, o seu primeiro
sono. Quis fugir. Deitei a mão au interruptor
para apagar a luz. Mas uma faiança espanhola
estilhaçou-se no chão, a pobre menina acordou,
julgou que tinha ladrões em casa, desatou aos
gritos, caiu com um ataque de nervos, veio a
mãe, vieram as criadas, gritavam todas, eu já
gritava tanto como elas, e sem saber se ha-
via de justiíicar-me, se havia de acudir à pe-
quena, se havia de fugir pela porta fora, tomei
afinal o partido de rir, de rir de mim, do meu
L-quívoco, da minha inconveniência, da minha
'listracção, a velha riu, a brasileirinha riu, as
criadas riram, e pelo pino das \ iKjras da ma-
Irugada, com um frasco de sais ingleses no bolso,
«jntado ã cabeceira da cama onde dormira na
xéspera, eu compreendi que me assistia o inde-
' hnável dever moral de pedir a iM.°*^ Barroso
a pequenina mão branca e assusiada da filha.
Um mês depois estávamos casados. Mas, mi-
nhas senhoras, é tal a fatalidade da minha dis-
tracção, que, na noite do casamento — fui dor-
mir ao hotel.
o RELÓGIO
Meu amigo:
Acabo de chegar do Alentejo, onde fui pas-
sar uns dias com o velho Doutor Lobo. Tu, que
tens gasto algumas horas da tua vida a estu-
dar, cem Gournot, com Bergson, com Poincaré,
com Montessus de Ballor^, a filosofia e o me-
canismo do acaso, deves achar interessante um
acontecimento que se deu comigo anteontem à
noite, e que eu de bôa mente consideraria so-
brenatural, se não tivesse a certeza antecipada
de que tu, homem sem fé, o explicarias «pela
simples e naturalíssima intersecção de duas se-
ries lógicas e independentes de fenómenos». Vo-
cês, os filósofos, estragam tudo na vida, -^ ate
essa vaga beleza do inverosímil, essa indefinível
volúpia do desconhecido, essa absorvente sen-
sualidade do horror, que tem feito a fortuna da
o RELÓGIO 61
literritura inglesa, e que ainda ontem — dou-te
a minha palavra rle honra ! — me encheu de suo-
res frios o m^ pôs o? cabelos em pé.
Ora ouve.
Tu sabes que o Doutor Lobo, velho misan-
iropo. íntimo amigo de meu falecido pai, viv.-
liiim desses solares alentejanos dentre Évora e
^;()ntemór-o-Novo. anlica propriedade e cabei;.,
de morgado que, como as moradas solarengas
da Oliveira ou de Patn.lim, da Sempre-Noiva ou
r1 Amoreira da Torre, levanta os seus cunhais
ic pedra de três séculos sobre a geórgica cristã
dus montados e das doiradas terras de pão do
médio-Alentejo. Tenho-te falado várias vezes
(!rte homem e desta casa. muito sombrios e
muito extraordirárics ambos. Há tempo qus o
velho Doutor Lobo, que vive sozinho com um
lado, abraçado á sua gota e ao seu interminá-
vel Tratado da Enliteuse, insistia comigo para
que eu fosse passar com èle uns dias. Fiz-lhe
a vontade, e fui. Não sei se já notaste a sin-
Lular identifica';ão, a inquietante semelhança
de fisionomias que si* estabelece imediatamente
pntre certas criaturas e as antigas moradas onde
» las se habituaram a viver. Parece que as ruínas
*m o poder de comunicar às pessoas e às coi-
sas familiares a expressão da sua decrepitude.
O provecto jurisconsulto de quem acabei de ser
hóspede oito dias, dir-se-ia a sombra, o reflexo
humanizado do seu próprio solar, — cheio de
62 NA VIDA
silêncio, fie êxtase, de vetustez, de mistério. A
identificação é tão perfeita, que eu não sinto,
não vejo, não compreendo a figura, devastada do
Doutor Lobo fora daquele paço alentejano enqua-
drado em forte silharia negra, com os seus ca-
chorros de granito, o seu eirado de alpendre so-
bre a escada, os seus corredores monásticos de
tijolo, o seu vasto salão nobre de teto em caixo-
tões, decrépito, solene, profundo, rodeado de ve-
lhas credencias doiradas, babando humidade e
bolor pelo gorgorão verde das paredes. Emquanto
viver, é nesta sala que eu hei-de ver sempre o
meu venerando amigo, — sobretudo porque foi
debaixo do seu teto que eu passei anteontem, o
quarto de hora mais dramático da minha vida.
Eram nove horas da noite, e nós conversávamos
os dois sobre a fisionomia humana que às vezes
adquirem certos objectos inanimados, quando o
criado Pedro, único ente vivo que habitava con-
nosco no solar, homem ruivo, espadaúdo, alto
como um pinheiro, metido havia tempo com uma
mulher casada da vizinhança, veio pedir ao pa-
trão licença para sair. Ficámos sós. Foi então
que o Doutor Lobo, cuja voz me pareceu um
pouco alterada, chamou a minha atenção para
um relógio de caixa do século xvni, holandês,
com pinturas, que levantava ao fundo da sala,
entre duas janelas, o seu formidável perfil de
esquife.
— Você vê aquele relógio ?
o RELÓGIO 63
— Vejo.
— Dei-]hp corda ontem. Eslava parado há
dezasseis anos, docrU» n ]]n\\r om qnr^ niorr<Mi mi-
nha mulher.
Aproximámo-nos ambos do velho móvel, atra-
vés de cujo óculo de vidro se adivinhavam as
oscilações duma .irrande pêndula de cobre. Sen-
támo-nos. O meu ami,íro. qu" me dava. afun-
dado na sua pollr(Uia, a impressão de certo re-
traio admii'ável de Carlyle, contou-me então a
história daquele relógio antigo, que era, no so-
lar dos Lobos, um móvel tradicionalmente céle-
bre. Nada mais vulgar do que pararem os relógios
duma casa no momento em que morre alguém.
E' um facto muitas vezes verificado, parecendo
({ue a desagregação, a quebra instantânea do con-
senso vital num organismo, gera energias des-
conhecidas que se comunicam, no instante da
morte, (às pessoas e às coisas qne cercam o mo-
ribundo. O ar estremece, a água move-se, as
portas abrem-se, as pêndulas param. Porém,
com o relógio daquele velho paço alentejano,
dava-se alguma coisa de mais extraordinário
ainda. Desde tempos remotos, quando falecia
alguém da casa, a pêndula não parava no mo-
mento do óbito; parava pontualmente, exacta-
mente— dez minutos antes. Era um aviso trá-
gico. Era uma sentença de morte. O caso suce-
dera pela primeira vez com um arqui-avô do
Doutor Lobo, desembargador da Casa da Supli-
64 NA VIDA
cação, que ^m 1723 mandara vir o relógio da
Holanda :* o tinha no seu quarto de dormir. Re-
pelira-se com a mulher deste: com um tio frade
crúzio, que estivera a ares na casa e acabara a
tiros de clavina; com uma aia mulata; com o
avô do Doutor Lobo. deputado às Cortes de 20,
cujo retrato vi no solar, num carvão perturbador
de Sequeira: com o pai; por fim. havia 16 anos,
com a própria mulher, que, já moribunda, de-
bruçada a tossir sobre uma bacia de prata cheia
de sangue, õs olhos fitos no movimento da pên-
dula, vira ela rnesma parar o relógio, e morrera
dez minutos depois. Não era fácil explicar se-
melhante série de factos pelo mecanismo sim-
ples do acaso. Dir-se-ia que naquele vulgar re-
lógio holandês havia uma inteligência, uma sen-
sibilidade, uma alma, uma vida, — essa vida ine-
xorável e profética das coisas mortas, feita de
silêncio, de treva, de imobilidade. Emquanto o
meu velho amigo me contava estes singulares
pormenores, os olhos brilhavam-lhe, as mãos pá-
lidas tremiam-lhe ligeiramente sobre os joelhos.
Quis perguntar-lhe ainda por que razão, por que
fantasia voltara a fazer- trabalhar essa pêndula
sinistra. Não tive coragem. Diante de nós, no
meio de um opressivo silêncio, o relógio da morte
continuava a bater o seu tic-tac implacável.
Picámos os dois, por um instante, absorvidos no
nosso próprio pensamento. As sombras flutua-
vam pela vasta sala, escorriam pelo gorgorão
o RELÓGIO 06
verde das paredes, penduravam-se no oiro baço
das credencias, palpitavann em volta de nós como
asas impalpáveis. Sentia-se lá ío^a, nos sarga-
çais da charneca, u grito nocturnu do milhano.
Uma cadeira rangeu, perto de nós, sem ninguém
lhe locar. Pareceu-me que uma aragem fria
tinha roçado pelos meus cabelos. De repente,
olhei o relógio: a pêndula parara.
— Um de nós dois tem apenas dez minutos
de vida, — disse-me o meu amigo, numa pali-
dez de espectro, erguendo-se da sua poltrona.
Não sei descrever-te o terror instintivo que
>e apossou de mim. As fontes latejavam-me.
Um suor gelado de agonia molhava-me as mãos.
olhámo-nos, o meu amigo e eu, a querer adi-
vinhar a morte na fisionomia um do outro.
Ignoro quantos minutos se passaram neste hor-
ror. Subitamente, ouviu-se um tiro. O Doutor
Lobo agarrou um candelabro de prata, aceso,
t' correu à porta. U corpo enorme do criado Pe-
ííu estava de borcu na soleira, com a cabeça
numa poça de sangue. Tinham-no assassinado.
Os factos são estes. Como os explica a tua
filosofia ?
Teu velho amigo. — Alexandre n.
ODORE Dl PEMMINA
U dr. Nilo Gomes recostou-se num dos cd-
deirões do Grémio, acendeu um cigarro, atirou
para a nuca, familiarmente, o seu coco cinzento,
Saint James's Street, e brincando com a ponteira
da bengala na bota de verniz, perguntou-nos:
— Vocês ainda acreditam em psicólogos de
mulheres ?
— Tenho à cabeceira as Nouvelles Lettres de
Femmes...
-^-Pois eu aão. Vou contar-lhes o que me
sucedeu ontem à tarde no consultório do dr. ***.
— Uma aventura ?
— Um fiasco. Eu tinha ido combinar com o
nosso velho colega a hora a que deve realizar-se
amanhã, com excelentes vantagens para o ope-
rador, a gastroenterostomização do riquíssimo
D. R. Quando cheguei, o dr. *** acabava de man-
dar entrar, havia quatro ou cinco minutos, a
ODORE Dl FEMMINA 67
sua Última cliente. — Deve demorar um bocadi-
nho. — preveniu-me num sorriso a enfermeira,
uma rapariga magra, de blusa branca irrepreen-
sível, meias de seda, brincos de brilhantes nas
ur;^lhas. Decidi-me a esperar. Eu conhecia já
u consultório do nosso colega, com as suas la-
cas brancas, as suas cretones inglesas, a sua
elegância sóbria, uma água-forte de Rops na
parede, duas grandes flores azuis num solitário
de cristal. Acendi um cigarro e aproximei-me
da mesa. Sobre uma porção de revistas e de
brochuras da guerra, folheadas, rasgadas, mal-
tratadas cada dia pela impaciência dos mesmos
doentes, um saquixnho de mão, de seda preta, re-
pousava, esquecido, entre duas luvas de mulher.
Era, com certeza, da cliente que, naquele mo-
mento, escutava es sábios conselhos do nosso
colega. Quem seria ela? Abri uma ilustração
e li. Uma luz muito doirada entrava pelas lar-
gas vidraças abertas, espelhava nas lacas dos ali-
zares e das portas, dava às cretones verdes do
sofá a macieza baça do veludo. A guerra, sem-
pre a guerra, eternamente a guerra ! Atirei so-
bre a mesa a revista que apenas folheara,' e íi-
quei a olhar, vagamente, a expressão dessas duas
luvas ali abandonadas por uma desconhecida
mão de mulher. Lembram-se vocês da Dame au
Gant\ do Museu do Luxemburgo ? A vida, o mo-
vimento, a elegância, a expressão que a mão fe-
minina comunica a uma Uiva que se descalça,
(J8 NA VIDA
— e com que talento Carolus Duran soube fazer
palpitar, nesse farrapo ;le pelica branca caído sô-
Ine um tapete, toda a distinção, toda a aristo-
ci-acia, toda a mocidade do seu modelo! Peguei
numa das luvas para a examinar melhor. Nâo
seria difícil adivinhar a que qualidade de mu-
lher ela pertenceria. Era a da mão esquerda,
marca pequena, letra F, um vago perfume de
Heure hleue^ dedos fmos, unhas, em ogiva per-
feilamente marcadas e o sinal de dois anéis, --
uma marquise e talvez uma aliança de casa-
mento. Por conseguinte, a luva duma criatura
elegante, duma mulher nova, e, segundo todas
as probabilidades, duma mulher casada. Come-
cei a achar natural que o dr. ***, com a sua ex-
periência, os seus olhinhos maliciosos e a sua
gorda velhice de Pan, prolongasse a consulta
além do limite de todas as conveniências. São
tão poucas as mulheres bonitas que adoecem,--
(' é realmente tão agradável auscultar um pe-
quenino coração que bate, que palpita e que' su-
cumbe! Pousei a luva, e, como não há animal
mais curi(jso do que um homem, passei a obser-
var o saquinho de mão, - um «ridículo» de seda
como há tantos, impregnado do mesmo perfu-
me e bordado a missanga como aqueles «indis-
pensáveis» de 1830 onde as nossas ingénuas bi-
savós escondiam os frascos de essência e os bi-
lhetes de amor. Nalguma coisa havia de passar
o tempo, — e a resolução daquela incógnita femi-
j
ODORE Dl FEMMINA 69
nina começava a interessar-me. — «Queres co-
ntiecer uma mulher?» — dizia Gasparo Gozzi
tias venezianas do século xvni — uAbre o seu sa-
quinho de mão». Mas a minha curiosidade nâo
me levou até ao extremo incorrecto de seguir o
conselho de Gasparo Gozzi. Ia pousar o saco sem
ler violado um só dos seus segredos, — quando,
por mero acidente, êle me caiu das mãos e se
abriu no tapete. Tinha de ser. Uma chave doi-
rada de fechadura inglesa foi projectada a dis-
lància. Um frasco de sais, rolou. Um peque-
nino espelho de prata scintilou ao sol. Apanhei
hido, o mais depressa que pude, e como o acaso
linha querido que eu entrasse na confidência da-
quele saco de mão e daquela alma de mulher,
verifiquei que o ridículo de soda de M.™® X con-
tinha ainda no seu bojo misterioso um lenço de
rendas, uma caixa de pó de arroz, uma conta
da modista, uma medalha de Santa Filomena,
ganchos de cabelo, um véu, e, no fundo, um cor-
net de visitas onde se lia, na data de 7 de no-
vembro: «Sais de Glarks para o banho. — J. C.,
:\ horas. — Pérolas, Garrand Sz G.% 25, Hay-^
inarket, London, S. Vs\ - Legação de Espanha.
- Pinetle. — Pomada para as unhas. — Médico
às 6. — Não esquecer as amostras de veludo».
Aquele sacu, aquelas luvas, aquele carnet, eram
um retrato. Eu via já, diante de mim, a cliente
do meu velho colega, tão nitidamente como se
a conhecesse. Estava ali toda, - a sua elegân
cia, a sua vida, a sua psicologia, o seu próprio
70 NA VIDA
drama amoroso. Não havia dúvida de que era
lima mulher casada, alta burguesia, um pouco
parvenue. de-certn rica para poder comprar pé-
rolas nos ourives de Londres, 30 a 3õ anos se
tanto, conhecendo a sua beleza e cultivando-a
como uma flor, olhos azuis, um marido fácil,
uma saia curta, um splendid ilirt^ uma comprome-
tedora chave doirada, «un monsieur qui travaille
(fans les femmes du msnde)) — como dizia Bour-
c/et - e os olhos calmos, a serenidade olímpica, o
arsinho Sainte-Nitouche de certas mulheres boni-
tas,— menos bonitas do que elas mesmas pen-
sam, muito mais interessantes do que toda a gente
as julga... Tinha decorrido talvez um quarto de
hora, quando, de repente, a porta do gabinete se
abriu. Era ela. A mulher que eu imaginara, que
eu idealizara, que eu reconstituirá, com o rigor
dum psicólogo, pelo exame do seu saquinho de
mão. ia fmalmente aparecer-me. Levantei-me,
preparei a atitude, compus o monóculo. Dois,
três segundos depois, a voz do nosso colega ou-
viu-se, — e uma velhota gorda, rosada, alegre,
de luuetas, saiu do gabinete de consulta, avan-
çou saltitando até à mesa, pegou no saco, nas
luvas, cumprimentou, e em passinhos curtos,
saltitando sempre, empurrou o guarda-vento,
cumprimentou ainda e desapareceu na sombra
do corredor. Poi nesse dia, meus amigos, qu<^
eu me convenci de que não percebia nada de mu
Iheres. E quem pode gabar-se de as perceber
se a mulher nasceu para enganar o homem ?
A PONTE
Urna hora depois do meio-dia de 14 de abril
de 1718, a garrida do convento de Tarouca tan-
gia inesperadamente a capítulo. A fonte de se-
reias, que o Dom Abade mandara construir no
jardim da clustra grande, devia inaugurar-se
nessa tarde. Mas, desde manhã, tinha-se levan-
tado -naquela casa de Deus e de S. Bernardo,
por causa da fonte, tamanho escândalo e alvo-
roço de murmurações, que o prelado, homem
prudente e douto, entendera de boní conselho ou-
vir as queixas dos padres e dar-lhes a satisfação
que julgasse conforme com o zelo da observân-
cia e com a autoridade do báculo pastoral. Já
toda a comunidade estava na sala do capítulo,
com o vigário e as jerarquias, quando o Abade
entrou. A questão foi logo posta, de ambos os
lados, com clareza e com desassombro. O velho
Frei Jerónimo de Brito, um dos discretos do
NA VIDA
convento, duas vezes eleito abade trienal, falon
em nome dos padres. Alegou que a fonte da
crasta, cuja inauguração ia fazer-se, continha
três figuras de pedra, não sabia se dríadas, mé-
nades. dionisides ou sereias (espreitara-as pelas
frinchas do tapume um donato do convento),
que. sobre serem divindades pagãs, impróprias
de tão santa e reformada casa, apareciam no es-
tado de abominável nudez, mostrando os ventres
e jorrando água da apojadura dos peitos, com
escândalo e ofr-nsa dos padres velhos, e, o que
era pior, com turbação e pecado dos moços.
Não sabia se a comunidade era de igual aviso;
êle, pelo respeito devido à sua idade provecta
e a dignidade do seu hábito, fazia voto solene
de não voltar ao jardim e de nem sequer asso-
mar aos janêlos da claustra, sem que os mes-
mos alvaneis, que tinham levantado a fonte, a
demolissem para maior glória de Deus. Das ban-
cadas capitulares ergueu-se um murmúrio de
aprovação. Estava decidido. Nunca mais um só
frade passearia entre as murteiras do jardim,
emquanto aquelas figuras de abominação pojas-
sem ao sol os seus úberes de pedra. Um do-
nato tinha acabado de espertar o lume da bra-
seira de cobre, quando o Dom Abade se levan-
tou para falar. Quantas igrejas, abadias e mos-
teiros da terra estavam cheios do espírito e da
glória pagã ! Para obedecer às doutrinas dos pa-
(Ires, teria de principiar pnr lançar ao fogo u seu
j
A FOMTE 73
bem amado Horácio. Tantos séculos andados,
quem se lembrara ainda de arrasar a ábside da
Sé de Braga, só porque as águas da chuva lhe
escorrem duma gárgula torpe ? E a torre de Co-
legiada de Guimarães, com o seu brutesco ? E.
nos mais ásperos recessos de Portugal, porqu;*
não teriam abatido as lurias e os -marrões dos al-
vaneis os modilhões pagãos da igreja da Cas-
tanheira e o anjo báquico da matriz de Mon-
corvo ? Não era com doutrinas de intolerante
e sombria piedade que se servia melhor a
Deus. nem quarenta anos que vivera debaixo Jf
daquela mortalha de S. Bernardo aceitavam, de
quem quer que fosse, lições de compostura e de
moderação. A construção da fonte que tanto al-
voroçava os padres, ccacertara-a ele. havia quinze
meses, na sua jornada à corte, com um mestre
italiano que lhe fora recomendado em Alcobaça
pelo reverendo Abade Geral. Era a indispensá-
vel coroação do jardim de murtas e buxo. que
o seu antecessor mandara cortar à francesa, na
claustra grande, para recreio da comunidade.
Escandalizara-se a modéstia dos padres porque
três capréades nuas jorrava m^ água dos peitos.
\ías que figuras queriam Suas Reverências, no
.-eu santo zelo apostólico, que se erguessem so-
bre a concha de pedra duma fonte ? Os evan-
gelistas, os patriarcas, os velhos do Apocalipse,
— um retábulo do Juízo Final ? Não, de-certo.
.\âu era nos jarojiib que se professava o culto
74 NA VIDA
divino, e nunca ninguém pensara, nem o mais
humilde fradinho capucho, em erguer uma ca-
pela dentro dum caramanchão. Sabiam Suas
Reverências quem tinha encomendado a João de
Bolonha a célebre fonte das sereias ? O Santo
Padre Pio iv e o eminentíssimo cardeal Pietro
Cesi. Se a imagem dum seio de mulher fosse
um símbolo pagão e abominável, como teria n
próprio Patriarca S. Bernardo entrevisto, na sua
mística visão, os peitos brancos da Virgem a
aspergi-lo de leite , — e como poderia pintá-los
o divino Bartolomé Murillo, sem estremecerem
de santa indignação os capítulos de todos os mos-
teiros e os bispos de todas as catedrais? Não.
Ele, Abade, tranqíiilo com Deus e com a sua
alma, entendia que não eram jusi^as as queixas
da comunidade, e pedia a todos os religiosos, e
em particular aos padres discretos, que recon-
siderassem no seu propósito e o deixassem aca-
bar o triénio da jurisdição sem demandas nem
agravos. Mas as palavras do prelado não con-
seguiram abalar os capitulares. O mais velho
de todos. Frei Baltasar dos Anjos, cujo hábito,
na penumbra, parecia doirado do mesmo mugre
secular da pedra, avançou, trôpego, amparado
a dois padres moços, e declarou ao Abade, em
nome de todo o convento, que não podendo ser-
-Ihes imposto como castigo o recreio no jardnn
da crasta, nenhum frade lá voltaria — nem um
só ! — se o prelado insistisse em mandar desço-
A FONTE
é>)
brir as figuras diabólicas da fonte. Levantou-se
o capítulo. O desafio estava lançado. Para o
Abade, submeter-se, era abdicar da sua auto-
ridade e da sua forca. Subiu à cela, mandou por
um leigo ordem aos alvaneis, — e nessa mesma
tarde o tapume era abatido, a fonte inaugurada,
e, no silêncio das murteiras em flor, três mara-
vilhosas figuras de sereias, capréades voluptuo-
sas duma ondularão e duma graça l^orentina,
sorrindo e oferecendo os seios nas mãos delica-
das, jorraram dos mamilos de pedra seis ve\r.<
de água fresca, luminosa e fecunda, u Abade,
que assistia da janela, ficou um instante imóvel.
a olhar a palpitação de vida que a luz rosada da
tarde emprestava à nudez desses três corpos de
mulher, — e recolheu-se num deslumbramento,
quási numa vertigem, abraçado ao breviário.
Pela primeira vez, a sua consciência vacilou.
Teriam razão os padres ? Traria ele para o con-
vento, pastor indigno daquele rebanho, a ser-
pente da Tentação ? Fechou as portadas da ja-
nela, para não ver mais a fonte; desceu ao re-
feitório; voltou: tirou do armarête o seu can-
deeiro de três bicos; acendeu-o; procurou tra-
balhar,-depois de vésperas cantadas, nos seus
comentários aos Poliphili de Pra Prancecso Co-
lona; deitou-se; passou pelo sono, — e acordando,
pela força do hábito, à hora de matinas, admi-
rou-se de não ter vindo o frade, como de cos-
tume, chamá-lo com a candeia. Que se teria ^pas-
76 NA VIDA
sado no convento ? Abriu de manso a porta, es-
preitou para o corredor, escutou. A princípio
percebeu apenas, na escuridão, um rumor de
passos. Em seguida, uma cela entreabriu-se e
um vulto furtivo de frade escoou-se na sombra.
Depois, outro. E outro. E mais outro, ainda.
Não iam de-certo para o coro, porque não levavam
as candeias acesas. Inquieto, o Abade foi bater
à porta do vigário; ninguém lhe respondeu.
Procurou o mestre dos noviços, a cela estava
deserta. De repente, fez-se a luz no seu espírito.
Compôs o manto, desceu à claustra. No jardim,
em volta da fonte execrada, toda a comunidade,
todos os padres intolerantes, velhos e moços,
atraídos, um a um, pelo irresistível poder da
beleza eterna e da volúpia imortal, olhavam imó-
veis, em êxtase, em adoração, os corpos virgi-
nais das sereias, que ondulavam, brancos, ao
luar.
EXPIAÇÃO
Ontem, num chá em casa de M.""® Y., apre-
-t-ntaram-me a um homem de aparência dis-
iirila, cuja elegância natural e cuja expressão de
Irisíeza me impressionaram. Devia ter quarenta
anos, o cabelo levemente embranquecido nas fon-
!es, uns grandes olhos negros, um perfil de me-
dalha romana, duro, seco, viril. Apertámos as
mãos, com simpatia. Discutia-se certo prato ar-
moriado, que devia ser um Ruão, com os alérions
de azul e as cincu vieiras de prata dos Montmo-
lency-Laval. Ouvi-o expor a sua opinião em duas
palavras rápidas, seguras, modestas, que denun-
ciavam o fácil bom gosto dum homem de hábitos
intelectuais. O nome, que eu mal percebera no
momento da apresentação, nada tinha sugerido
ao meu espírito. Logo que pude falar a M."* Y.,
Ijcrguntei-lhe quem esse homem era.
— Digo-lhe logo.
78 NA VIDA
— Um mistério ?
- Um romance.
À noite, quando tomávamos chá na saia de
fumar, a minha encantadora amiga cumpriu a
sua promessa. Tratava-se, realmente, dum caso
de sentimento, que conseguiu interessar-me du-
rante meia hora. O moço diplomata que me fora
apresentado era filho dos barões de S. Gil de
Perre, plutocratas do liberalismo, estava colo-
cado havia tempo na disponibilidade, e admi-
nistrava a sua grande fortuna. Depois de uma
vida elegante de emoções e de dissipação,
quando os cabelos já começavam a embranque-
cer-lhe, fizera um casamento de amor com uma
brasileirinha de- dezanove anos, tipo maravi-
lhoso de carioca, indolente, autoritária, sensual,
educada em Paris no Sacré Coeur^ e que êle, de
viagem para a Itália, tinha encontrado com os
pais no Splendid Hotel de Nice. Durante cinco
-anos, nada perturbou a sua aparente ventura. Um
dia, porém, a criada alemã das crianças viu-se
obrigada, pelas leis da guerra, a sair de Portu-
gal— era uma fraulein Rose, mecklemburguesa
e feia — e, fiel ao espírito da sua raça, não aban-
donou o lar que a acolhera como família, sem
primeiro lhe ter destruído e envenenado toda
a felicidade e toda a paz. António Perre soube
que a mulher o enganava, e teve nas suas mãos,
entregues pela alemã, as provas irrecusáveis da
traição. O seu amor, a sua dignidade ofendida,
EXPIAÇÃO
todos os preconceitos da sua educação e do seu
sentimento, impeliam-no para a desafronta e
para u escândalo. No instante em que procu-
ravâ o revólver, a mulher telefonou-lhe do Esto-
ril, sufocada de choro, dizendo-lhe que o pai es-
lava à morte com uma congestão pulmonar.
Durante uma hora, enterrado numa poltrona, o
antigo secretário em S. Petersburgo debateu-se
num conflito moral angustioso. A princípio, -só
viu a solução instintiva, rectilínea, brutal. Pouco
a pouco, porem, sentimentos de ordem mais ele-
vada dominaram a primeira crise de exaltação:
recobrou a serenidade suficiente para perceber
que um gesto, uma revelação, uma palavra,
iriam fulminar a distância um velho moribundo;
e, tranquilamente, com uma coragem mil vezes
maior do que aquela que lhe seria necessária
para cometer uma violência, chamou o criado,
mandou vir o automóvel, e seguiu para o Esto-
ril. Quando chegou a casa do sogro, os médicos
estavam reunidos em conferência. Era tão de-
licado o estado do doente — duas síncopes con-
cutivas a uma hemorragia do pulmão — que
.mtónio Ferre, para poupar-lhe a com^oção de o
ver, não entrou no quarto. A ideia de que ia en-
contrar-se frente a frente com a mulher e de que
não teria força bastante para dissimular os seus
sentimentos, começou a perturbá-lo. Notou, ao
descalçar as luvas, que lhe tremiam as mãos. A
testa inundou-se-lhe de suar frio. Pensava já em
80 NA VIDA
fugir, quando um corpo tépido e arquejante lhe
caÍLi de repente nos braços. Era ela. Sentiu
ainda os dedos crisparem-se-lhe no gestu de a
estrangular; mas, num esforço imperioso de
vuntade, dominou-se, afastou-a brandamente de
si, disse-lhe que se conservasse junto do pai
todo o tempo que a sua ternura filial julgasse
necessário, e, com os nervos quebrados, com a
alnia despedaçada, voltou para Lisboa. Passa-
dos três dias, ela pedia-lho, pelo telefone, que a
fosse buscar. Ele limitou-se a mandar-lhe o au-
tomóvel, e não foi. Quando a mulher chegou,
envolvida na sua grande capa cinzenta, os olhos
vermelhos de chorar, um frasco de sais ingle-
ses na mão, António Perre esperava-a no quarto.
Pechou-se a porta. Em voz baixa, sem um gesto
descomposto, sem uma palavra grosseira, sere-
namente, esse homem superior pela educação e
pelo carácíer disse à mulher o que era indispen-
sáv;^l que ela soubesse para que a situação de
ambos ficasse esclarecida. Nem uma recrimina-
ção, nem um insulto, nem uma lágrima. Apenas
a verdade, o facto, — as "provas. Emquanto o
pai dela fosse vivo, não se modificaria, apareií-
temente, a sua vida comum de casados. Sofre-
riam os dois o suplício de se sentir um junto do
outro. Logo que o pai morresse, ela sairia de
casa e far-se-ia o divórcio. A brasileira ouvia-o
em silêncio, e, quando o marido saiu do quarto,
ficou a soluçar estendida sobre um sofá. Durou
EXPIAÇÃO - 81
dois longos «meses o horror desta situação. Du-
rante eles, a atitude de António Perre foi duma
tão generosa delicadeza, duma tão nobre digni-
dade, que essa mulher caprichosa e fútil princi-
piou, pela primeira vez na sua vida, a conhecer
o marido, a admirá-lo e a amá-lo. A expiação
transformou-se, para ela, em paixão perturba-
dora. Mas o moço diplomata foi inflexível. O
processo de divórcio está correndo; e, como a
alma humana é feita de contradições, a pobre
brasileira espera hoje tristemente, em casa da
mãe, que uma sentença a separe, para sempre,
do homem que a dura lição da existência a en-
sinou a amar até à loucura.
• — Gomo vê, meu amigo — concluiu M."^ Y.
no seu sorriso encantador — a vida está toda
errada...
o SAPATINHO VERDE
Meu qufriáo Jorge:
Estou viva por milagre. Tu não calculas o
que me aconteceu ontem à noite, meu querido,
meu adorado amigo. Os meus nervos vibram
ainda. Toda eu estremeço. A comoção foi tão
grande, que não posso levantar a cabeça do tra-
vesseiro e faz-me mal ver a luz. Ia morrendo es-
lúpidamenle, horrorosamente, longe de ti. Es-
crevo-te a lápis não sei como, perdoa. Estou de
cama. Não te assustes, meu Jorge, tudo passou,
6 eu agora não sofro senão a fadiga que sucede
a todas as grandes febres neí'vosas. Mas que foi ?
— perguntarás tu. A coisa mais simples deste
mundo, meu pobre amigo. Os desastres são sem-
pre duma simplicidade absurda. Ia morrendo
por ter calçado uns sapatos de setim verde. Vê
tu como uma desgraça tão grande pode cabei'
dentro duns sapatinhos tão pequenos !
o SAPATINHO VERDE S.i
Ouve. Qiipro que tu saibas tudo. Nau te zangas
comigo, pois não? Tu bem dizes que eu sou
lòda nervos, que um nada me excita., me per-
íurba. me adoece. Lembras-te daquela senhora
muito distinta, multier do engenheiro itahano
que mora perto da nossa casa ? Depois que tu
partiste para Inglaterra fiquei tão só, tão dese-
josa de alguém com quem conversar, com quem
trocar impressões, que me aproximei mais dela,
e hoje somos duas grandes, duas queridas ami-
,iras. O aniversário do casamento da Bettina
coincidiu este ano com a segunda-feira gorda, ;•
ela, para se distrair um pouco — tu bem sabes,
meu Jorge, que os Estoris no inverno são o Père-
Lachaise — lembrou-se de receber mascaradas as
pessoas mais íntimas, e insistiu muito comi-
go para que eu não deixasse de ir à sua festa.
A princípio disse-lhe que não, que não queria as-
sistir a divertimentos emquanlo tu estivesses
longe, que não deixava o nosso filhinho de noite
só com as criadas — se tu visses como está lindo
o nosso filho, muito cor de rosa, coni os olhos
maiores, e loiro, loiro, loiro I — mas a Bettina pe-
diu, exigiu, teimou, que tu não te zangavas, que
as nossas casas ficavam a dois passos, que era
só atravessar a linha férrea, que as criadas cha-
mavam ao telefone se o pequenino acordasse, e
eu, a pensar em ti, sempre a pensar em ti, cha-
mei duas costureiras para casa, copiei a aguarela
da Pierrette en vert, que tu tens no leu escri-
I
84 NA VIDA
tório, comprei umas meias verdes, mandei fazer
uns lindos sapatinhos de setim verde, e ontem à
noite, toda de verde dos pés à cabeça como a
figurinha de Wilette, muito contente, muito ri-
sonha, muito feliz, a lembrar-me de que tu ha-
vias de gostar de me ver tão bonita, — pus ao
pescoço as minhas pérolas, beijei o meu filhinho
que dormia, atirei uma capa pelos ombros — e
fui. Não imaginas como eu estive bem, distraída,
alegre, e como a Bettina estava interessante —
povera piccina mia! — com muitos brilhantes,
muita pena de não ser loira e muitos ciúmes
duma misress Reynolds, bastante middle class,
que andava pelas salas a pendurar-se-lhe no ma-
rido e a falar nos pavões do seu jardim de Car-
cavelos. A graça que estas inglesas acham aos
maridos de toda a gente, — e como eu me senti
inquieta, como eu sofri também, meu Jorge,
pensando nas várias mistress Reynolds, nas vá-
rias miss Cosmo que hão-de querer debruçar-se
sobre os teus lindos olhos pretos ! Passava da
meia noite e eu já tinha dançado muito, quando
tocaram ao telefone. Era a criada a dizer-me que
o pequenito tinha acordado e estava a chorar por
mim. Aflita, desnorteada, pus a capa, não me
despedi de ninguêmx, e como queria vir depressa
— não imaginas que escuridão de noite ! — em
vez de dar a volta pela passagem de nível, cor-
tei a direito para atravessar a linha férrea na
altura da nossa casa. Uma imprudência, pois
o SAPATl-NHU VERDE S^»
não é verdade ? Se foi, meu Jorge ! Eu não via
nada diante de mim. Ia cega, a tremer, a trope-
çar no caminho. Porque choraria o meu fi-
lho ? Como era possível que eu o tivesse dei-
xado, que eu o tivesse abandonado às criadas,
que eu o tivesse trocado por um baile, — o pobre
inocente ! Um vento húmido batia-me na cara,
desgrenhava-me os cabelos, e, no silêncio da
noite, o mar parecia rugir muito perto, cada
vez mais perto de mim. Ia a atravessar a linha,
sobre o cascalho que me fugia e resvalava de-
baixo dos pés, quando um dos tacões Luís xv dos
meus sapatos de setim verde, finos como juncos,
se me prendeu entre uma pedra e o ferro do rail^
— precisamente no momento em que, na escu-
ridão, caminhando para mim, aparecia o farol
vermelho dum comboio. Que instantes de an-
gústia, meu adorado Jorge, — tão horríveis, que
se eu não endoideci de pavor é porque já não
endoideço ! Quis libertar-me, numa aflição. Não
pude. Estava presa, fixada, agarrada aos rails,
— e via, e sentia o comboio avançar, implacavel-
mente, ao meu encontro. Debati-me ainda num
esforço supremo, gritei, caí de-bruços, levantei-
-me com a boca a saber-me a sangue, quis arran-
car-me daquela prisão com todas as energias do
desespero. Inútil. Parecia que um grilhão de
ferro me fixava à linha. A locomotiva negra, ui-
vando, resfolegando, vinha já sobre mim, —
quandu l)*'iii. nAc foi senão Deus e o meu fi-
8(i NA VIDA
Ihiriho, me permitiu um lampejo de serenidade
bastante para compreender que podia libertar-me
desapertando a presilha do sapato. Como a
felicidade e a vida, meu amigo, podem depen-
der de uma coisa tão simples ! Dois, três se-
gundos depois, eu fugia como doida, descalça
pelas pedras, e o comboio passava sobre o meu
pobre, sobre o meu frágil sapatinho de setim
verde, — que me ia matando, que eu sacrifiquei
para me salvar, e que me ficLva tão bem, meu
querido Jorge !
Não, meu grande, meu adorado amigo, eu
não podia morrer, porque te quero muito, por-
que adoro o meu filhinho, porque tu não tardas,
porque sou muito feliz, — e porque a morte não
deve levar senão quem é desgraçado, puis não
é verdade, meu amor?
Tua, muito tua, — Lena.
MARIA ROSA
O meu amigo Baltasar tinha acabado de che-
car ',de Viana do Castelo.
— Então, o assunto que me prometeste ? —
gritei-lhe. quando ele me caiu nos braços, loiro,
satisfeito, formidável, cheio de embrulhos, de ma-
las, de felicidade e de poeira.
— Vem aqui dentro !
— Não te esqueceste?
— - Não me esqueci.
Acompanhei-o ao hotel. Um quarto de hora
depois, eu tinha nas mãos um pedaço de papel
velho, roto, manchado de humidade e de bolor,
ainda com vestígios do antigo aparo doirado, e
com a dedada vermelha duma obreia a sangrar
a um canto. Era uma carta. Vi a assinatura:
Rosa Maria. Vi a data: 3 de abril de 1811.
— Mas que interesse tem isto ?
— Lê, — respondeu-me o meu amigo Baila-
88 NA VIDA
sar, enterrado numa poltrona, acendendo um
dos seus horríveis cigarros ingleses. Mas quando
eu ia principiar a lôr, deteve-me. t^ueria que
eu conhecesse primeiro as condições em que esse
documento fora encontrado. Eram — dizia êle
— a chave da história. Gomo eu sabia já, Balta-
sar comprara, nos arredores de Viana do Cas-
telo, um velho solar outrora pertencente aos mor-
gados de ***, senhores do couto de Soeiro e da
comenda de Santa Maria de Airão, cujas filhas,
por mercê de el-rci D. João v, tinham almofada
no Paço. O meu amigo n5o se atrevera a bolir
na casa, onde os tetos de madeira em caixotões,
com pinturas do século xvii e rosetas doiradas
no cruzamento das molduras, eram os mais ricos
de todo o Minho solarengo; mas julgara, de bom
conselho abater o portão da quinta, que amea-
çava ruína, porque a padieira fendida não aguen-
tava já o peso da pedra de armas. Assim se fez.
Quando os pedreiros apeavam um oratório com
o painel do Sa»to Cristo, encastrado no muro à
altura da imposta, encontraram uma carta me-
tida entre a armação de madeira e o modilhão
de pedra do nicho, tão cheia de bolor e comida
do pó, que parecia desfazer-se quando lhe toca-
vam. O meu amigo Baltasar limpou-a ao de leve,
e, numa mancha negra de humidade, leu: Ao
sr. Rúi Manuel de Nápoles e Bourbon. A pessoa
a quem era destinada não chegara a abri-la. Es-
tava ali havia cento e seis anos. Era a carta que
eu tinha agora nas mãos.
MARIA ROSA S9
— Vais ver que admirável documento duma
paixão e duma época ! — concluiu o meu amigo,
gravemente, emquanto o criado nos trazia o chá.
A carta dizia assim: ••
((Meu Rui do meu coração. — Pela alma da
lua mãesinha te peço que não venhas esta noite.
O escudeiro preto a quem tu retalhaste a cara
com o chicote, viu-te ontem saltar da janela do
meu quarto. Meu pai já sabe tudo. Mandou-me
hoje por Frei Joaquim um papel para eu pôr o
meu nome, que cuido que é para o senhor Arce-
bispo, e deu ordem às criadas para terem pron-
tas amanhã, ao nascer do sol, as arcas da minhn
roupa. Não sei que vão fazer de mim, meu amor
da minha alma. Não sei para onde me levam,
nem se tornarei a ver-te mais neste mundo. A
Dorotea disse-me agora, a tremer de medo, que
os criados estão lá em baixo, na adega, aper-
rando os arcabuzes, e que meu pai prometeu ao
Bento, que anda com a liteira, toda a várzea ve-
lha de Prancemil e um saco de moedas, se te
matasse. Êle é homem ruim, e capaz de tudo.
Não voltes, pela tua salvação, meu Rui. Supli-
co-te^ de mãos postas. Não voltes mais a esta
casa, que te matam. Estou a escrever-te de jut!-
Ihos, diante do oratório do meu quarto, e a ou-
vir os gritos de minha mãe, que me amaldiçoa.
Não tenho outra maneira de avisar-te, amor do
meu coração. Nossa Senhora queira, na sua iu-
90 na' vida
finita misericórdia, que não te esqueças, antes
da noite fechada, de mandar buscar esta carta
ao logar do costume. A Dorotea, que me criou
e quejida a manha tem chorado comigo, diz-me
que a tua vida não está segura em Viana, que
devias atar dois baús, armar quatro criados com
bons bacamartes nos arções e seguir jornada
para o Porto. Se fores, Deus te acompanhe, meu
desgraçado amigo, que não sei que pecado fiz
em querer-te tanto. E não te compadeças da
sorte da tua pobre Rosa, que há-de ser sempre
feliz emquanto Deus lhe der a consolação de po-
der sofrer e chorar por ti.— 3 de abril de 1811.
— Rosa Maria.))
— Leste ?
— Li, — respondi eu, com os olhos embacia-
dos de lágrimas. — Paii Manuel, por conseguin-
te, não chegou a receber esta carta...
— Não a recebeu. Por isso eu fui encontrar
nos livros de óbitos de Santa Maria de ***, no
mesmo dia 3 de abril de 1811, o registo da morte
de um Rui Manuel de Nápoles e Bourbon, com
esta nota lançada à margem pelo abade: «morto
à falsa fé, duma arcabuzada que lhe derani)).
— E Rosa Maria ?
— Consta dos livros do noviciado do mos-
teiro de SanfAna, de Viana do Castelo, que dois
dias depois, 5 de abril, vestia o hábito da apro-
vação na religião de S. Bento soror Rosa Maria
MARIA ROSA 91
Jácome de Amorim Pereira, com dote de dois
mil cruzados e um carro de trigo.
— Naturalmente, chegou-lhe para o que havia
de viver, — disse eu.
- - Não. Não se morre de dôr, porque fóror
Rusa, em 1843, vivia ainda.
(J H( LMEA4 DA MALHA BRANCA
Quando ontem fui ao cemitério cumprir um
dever de piedade, encontrei M.*"^ X. Vinha toda
vestida de preto, os olhos vermelhos de chorar,
os seus admiráveis cabelos loiros envolvidos em
crepes. Pez-me impressão. Tinha-a conhecido
havia oito anos, quando ela se estreara em Lis-
boa como artista de circo, e aproximara-me dela,
mais tarde, a sua funesta ligação com um .amigo
meu. Atravessei, para lhe falar, a alameda des-
coberta de sol. Disse-me, vagamente, que tinha
vindo acompanhar um morto querido. A sua voz
tremia. A sua palidez assustou-me. Cambaleou.
Deu-me, por um momento, a impressão de que
ia perder os sentidos. Pouco a pouco, reanimou-
-se, teve uma crise de choro, pediu-me que a
acompanhasse até à carruagem. Ofereci-lhe o
meu automóvel. Aceitou. Instantes depois, se-
guíamos ambos no Renault que me trouxera, —
o HOMEM DA MALHA BRANCA 93
II pensando na impressão profunda que. ainda
mesmo nos homens mais insensíveis, produzem
as lágrimas duma mulher bonita, ela de olhos
fechados, com a cabeça pousada no meu ombro,
cheirando, de vez em quando, a rolha doirada
do mais precioso frasco de sais que tem ajudado
uma mulher a chorar ao pé de mim.
Foi então que essa criança grande, que é M.*"*
X, me contou a singular história que a tinha
trazido, naquela manhã luminosa de setembro,
ao cemitério do Alto de S. João. Emquanto a
ouvi, lembrei-me vinte vezes de Óscar Wilde e
do seu elegante culto do inverosímil. A reali-
dade atinge, às vezes, uma tão viva expressão de
absurdo, — que seria permitido, sobretudo tra-
tando-se de mulheres, duvidar da própria evi-
dência. O caso de AI.^^^^ X, como ela mo contou,
é. realmente, duma grande singularidade. Um
belo dia, começou a persegui-la um homem.
Aparecia-lhe em toda a parte, nas ruas, uos com-
boios, no teatro. Era um rapaz novo, trinta e
tantos anos, seco, ruivo, elegante, viril, com uns
olhos pardos pequenos, uma fisionomia inquie-
tante, um impassível ar de fim de raça, e, o que
o tornava mais estranho ainda, uma grande ma-
lha branca nos cabelos, crua, viva, como uma
pincelada de cal. E' às vezes difícil saber por
que razão certos tipos aberrantes de homem in-
teressam tão vivamente as mulheres. Perante a
insistência d;i perseguição, M.*"' X sorriu, in-
94 NA VIDA
digrioO-se, acabou por se perturbar, — e certa
noite do Carnaval. ;is três horas da madrugada,
a sua porta abriu-se a um homem que ela não sa-
bia quem era. para se fechar, duas horas depois,
sobre um amante que ela continuava a não sa-
ber quem fosse. Na noite seguinte, o desconhe-
cido voltou. Depois de duas horas de volúpia e
de silêncio. M.*"® X quis saber-lhe o nome. Ele
fitou-a com estranheza, percorreu com os seus
pequenos olhos cor de aço e côr de água o corpo
dessa mulher tonta de mistério, de comoção e
de perfume, e depois de a fitar, de a analisar, de
a perscrutar, perguntou-lhe, com uma frieza gla-
cial, o que poderia interessá-la o facto, absolu-
mente indiferente, de êle se chamar José, João
ou António. A princípio, M.^"® X considerou a
sua aventura como um desvario passageiro com
um homem que poderia ter conveniência em
ocultar o seu nome. Em breve, porém, essa re-
serva obstinada começou a vexá-la, como um
ultraje. Tinha, evidentemente, o direito de sa-
ber quem era o intruso que recebia na intimi-
dade da sua alcova, e, o que era pior, na intimi-
dade do seu sentimento. Procurou, inquiriu, deu
sinais: ninguém o conhecia. Uma noite, durante
o sono. revolveu-lhe as algibeiras da casaca e da
peliça: na carteira, sem monograma, havia ape-
nas dinheiro. Nem um bilhete, nem um papel,
nem uma indicação. Tentou subornar o chaut-
íeur que costumava traze-lo e levá-lo. Inútil.
I
o HO>rKM DA MALHA BRANCA 95
Ninguém sabia quem êle era. Um freguês des-
conhecido, como tantos outros, que tomava o au-
fomóvel na praça, e que descia na mesma praça
•mde o tomara. M.^"* X, desorientada, pensou em
segui-lo, em espiá-lo. Teve ainda duas noites
uma limoiisine, com as lanternas apagadas, em-
boscada no portão do jardim. Na primeira, de-
iiiorou-se a enfiar a capa, e o carro perseguido
íifastou-se, numa nuvem de poeira. Na segunda,
meteu-se quási nua no automóvel, — mas a meio
do caminho uma câmara de ar rebentou, esteve
meia hora ao frio nas avenidas-novas, e voltou
rouca, nervosa, excitada, doente. Era preciso re-
solver, decidir, — cortar. Ou esse homem que-
brava o seu incógnito — ou não voltava mais.
Na noite seguinte quando êle veio, M.®"* X não
teve coragem para lhe dizer uma só palavra, e
(ieixou-se beijar em silêncio e em êxtase. Aca-
lmava de compreender, com pavor, que aquele
'lesconhecido era já alguém para a sua alma.
Dali por diante, as suas relações com o «homem
dn malha branca» começaram a parecer-lhe, se-
não tranquilizadoras, ao menos suportáveis. Sem
deixar d'ô examinar-lhe sempre, com uma cu-
riosidade doentia, as mãos, os anéis, a roupa,
foi-se habituando pouco a pouco àquela situa-
ção, e acabou, tacitamente, por aceitá-la. Já, no
fundo do seu ;'spírito romanesco, achava possí-
vel, quási natural, amar até à loucura um ho-
mem— sèm saber quem èle fosse. Chegava a
96 NA VIDA
encontrar nessa ideia uma vaga e perturbadora
volúpia. Por fim, já ela própria era interessada
em prolongar uma situação que a princípio lhe
parecera ofensiva da sua dignidade de mulher,
e que lhe revelara afmal, a ela, fatigada de emo-
ções, a mais absorvente e a mais profunda de
todas as sensualidades — a sensualidade do mis-
tério. Duraram alguns meses, no mesmo pé de
ingógnito, as relaçções de M.*"^ X com aquele ho-
mem extraordinário. Um dia, a antiga ecuyère
achou-lhe na algibeira um revólver. Gritou, em-
palideceu, olhou-o. Ele, serenamente, sorriu,
voltou a guardar a arma cujo punho de prata
scintilava como uma jóia, e afundou-se num
couch-comer^ a lêr jornais. Passaram-se dois ou
três minutos. De repente, M.®"^ X, que compunha
os cabelos ao espelho, ouviu um tiro. Correu,
como doida. O «homem da malha branca» tinha
a cabeça levemente inclinada sobre o sofá, e um
fio de sangue escorria-lhe pela face crispada. Es-
tava morto. O mesmo automóvel que o trouxera,
conduziu-o ao hospital e à morgue.
— Foi esse morto querido que eu vim enter-
rar hoje... — concluiu chorando M.*"* X, quando
o Renault lhe parava já à porta de casa, o frasco]
de sais abandonado no regaço, os crepes flu-
tuando à aragem em volta dos seus maravilhosos!
cabelos côr de fogo.
— E, afinal, quem era êle ? — perguntei, aju-
dando-a a descer.
o HOMEM DA MALHA BRANCA
.\í.'"* X ulhOLi-me, aniparou-se ao meu braço,
.■ eiiiquanto as lágrimas lhe borbulhavauí de?
ulhos, respondeu, num soluço:
— Não sei...
MOGIDADi
Entre *cs papeis dum pobre amigo morto, ver-
dadeiras Confessions d"un enfant du siècle, en-
contrei esta sentida página:
Ao chegar a Lisboa, depois de vinte anos de
ausência em New- York, todas as memórias da
minha mocidade distante se avivaram. Senti
em tudo, no sol, nas coisas, na luz que me en-
volvia, no ar que respirava, a ilusão radiosa e
perturbadora do passado. Atravessei, quási como
um estranho, a cidade que assistira às primeiras
emoções da minha juventude. Não houve um re-
canto, um aspecto, que não tivessem para mim o
sentido duma recordação. Nunca julguei que
possuísse tão viva a memória do sentimento.
Velhos afectos, antigas lembranças, paixões dum
instante e loucuras de toda a vida, vagas remi-
niscências de sensações, imagens fugitivas de
MOCIDADE 99
mulheres, tudo reapareceu no meu espírito com
tanta nitidez — os meus trinta anos, a minha mo-
cidade inteira ! — que até a música das vozes, o
ritmo dos gestos, a alma dos perfumes acordou
para a ilusão transitória da minha saudade. Sor-
ri, recordei, pensei. Gomo a existência parece
longa aos que sofreram e amaram muito !
Entre as recordações que o meu regresso avi-
vou, uma houve mais íntima, mais intensa, mais
dolorosamente apaixonada do que todas as ou-
tras. E' bem certo que na vida de cada homem,
por muitas mulheres que passem, apenas fica a
memória duma mulher. Todas se esvaem como
sombras voluptuosas; uma só continua, até à
morte, no nosso coração. Senti-o bem, quando,
apenas chegado a Lisboa, pensei na pequenina
casa da Ameixoeira, pobre mancha côr de rosa
entre parreirais doirados, onde, três anos antes
da minha partida para a América, escondi tre-
mendo, cantando, chorando de felicidade, o
maior amor, o único amor de toda a minha vida.
Existiria ainda essa casa, outrora tão cheia do
riso dela, da voz dela, do perfume dela, — ou.
teria desaparecido já na voragem do tempo, como
ela própria desaparecera ? Quem moraria agora,
vinte anos passados, no ninho de amor onde eu
ia esperá-la, de oito em oito dias, e onde tudo
parecia resplandecer, sorrir, palpitar, cantar,
quando assomava ao longe, numa labareda de
sol, o ciarão da sua sombrinha vermelha ? Todos
100 NA VIDA
nós, sentimentais, temos, mais ou menos, a volú-
pia do sofrimento. Eu sabia, de ante-mâo, que
não podia tornar a ver essa casa sem me sensi-
bilizar até às lágrimas. E uma bela manhã, tal-
vez por isso mesmo, fui vê-la. Gomo eu subia
noutro tempo aquela ladeira íngreme da Amei-
xoeira, desde o velho solar alpendrado dos mar-
queses de Anjeja até ao cruzeiro humilde que
abre os seus braços de pedra, lá cima, debruçado
sobre o vale viçoso de Odivelas ! E agora, vinte
anos depois, quando já a mocidade me não sor-
ria e nenhuns lábios de mulher me esperavam,
— como eu a subi lentamente, penosamente,
^ob a névoa triste dos meus cabelos brancos I O
coração bateu-me apressado. As lágrimas emba-
ciaram-me os olhos. Lá estava, ao alto do cór-
rego, numa vaga poeira de sol, a pobre casinha
cor de rosa que íôra, na profunda expressão das
coisas inanimadas, o pequenino abrigo de um
sentimento eterno. Aproximei-me para ver
melhor, para a acariciar, para a sentir. Umas
sombras negras moviam-se à porta. Uma car-
reta negra esperava na volta da estrada. Ouvi
um choro convulso. As pernas vacilaram-me.
Amparei-me ao muro para não cair. Da casa que
eu enchera com o maior amor da minha vida,
saía um caixão. Chorei em silêncio.
Tinha vindo assistir ao enterro da minha pró-
pria mocidade.»
vSAIAS DE BALÃO
— Que saudades eu tenho das mulheres do
meu tempo !— dizia-me o meu amigo D. Alexan-
dre de Sousa, num dos últimos chás mundanos
do Hotel Central, vendo passar na varanda doi-
rada pelo sol da tarde uma revoada fresca de ra-
parigas.
— Você está convencido de que eram mais
interessantes do que as de hoje ?
— Eram, côm certeza, muito mais graciosas,
muito mais femininas, — muito mais mulheres.
Quando vejo o desembaraço viril das raparigas
de agora, que jogam o tennis e cruzam a perna
como rapazes, sinto — palavra de honra! — a
nostalgia da saia de balão. Eu bem sei que os
velhos, quando se voltam para o passado, vêem
tudo com os olhos dos vinte anos. Mas você, se
tivesse conhecido as raparigas do meu temj)o,
1858, 1860, com os seus camafeus, as suas capo-
i02 NA VIDA
tas d? palha de Itália, os seus grandes vestidos de
tarlatana côr de rosa e a sua encantadora timidez
de petites vertus, — tiavia de pensar como eu.
Eu não sei S9 estas coisas teem mudado, e se vo-
cês, homens novos, preferem a voluptuosidade
da audácia à profunda e perturbadora voluptuo-
sidade da candura. Para mim, e para os da ve-
lha guarda, como eu, o encanto supremo da mu-
lher está ainda na modéstia, na ingenuidade,
no pudor, na graça tímida, na ignorância dis-
creta, e — quer que lhe diga? — naquele deli-
licioso grãosinho de estupidez a que nós outros,
românticos, chamamos inocência. Não sei se você
já reparou que não são as mulheres muito inteli-
gentes que despertam as maiores paixões. A in-
teligência tem qualquer coisa de ágil, de másculo,
de irritante, — que repele a sensualidade miste-
riosa de homem. Não conheço encanto superior
ao de uma mulher que está calada, — e não sei
que escritor inglês afirmou que não havia vo-
luptuosidade comparável à do silêncio. A simpli-
cidade de espírito das rapari*gas do meu tempo,
que tão interessantes as tornou, foi, sobretudo,
um produto de educação, uma obra carinhosa
da família. Conheci algumas que amaram, ca-
saram, tiveram filhos, e envelheceram em plena
inocência como grandes bebés de cabelos bran-
cos. As tendências da nossa educação sentimen-
tal levaram-nos, deslumbrados de candura, a co
siderar a ignorância da mulher tão bela como a
SATÃS DE BALÃO i03
sua fraqueza, e o certo é, meu amigo, que todos
nós fizemos dessa ignorância um poema. Há pe-
quenos episódios enlernecedores da minha moci-
dade, que nunca mais me esqueceram, e que dão
a impressão exacta do que foi, em 1860, como
tipo de ingenuidade e de graça, essa deliciosa
boneca de saias de balão, que andava aos puli-
nhos, que adorava os topázios, que mordia a
ponta do lenço, que punha os olhos no chão, que
pedia licença aos pais para sorrir, e que sabia
esconder, com a hipocrisia mais angélica, as re-
velações do seu instinto e os sentimentos do seu
coração. Vou contar-lhe um desses casos, — que
dava uma graciosa aguarela. Você já não conhe-
ceu o meu tio Marquês, mas ouviu, de-certo, fa-
lar muito dele. Era um velho fidalgo, ainda ga-
lanteador e homem de sala aos setenta anos, que
fazia o prodígio de conservar, numa idade em
que nós outros, viveurs, não somos senão umas
pobres faianças quebradas, a frescura, a vivaci-
dade, a scintilação de espírito dum rapaz. An-
dam na memória de toda a gente os seus ditos
felizes, as suas pitorescas invenções, as suas
anecdotas um pouco pueris, que, como Barbey
dizia de Lord Seymcur, davam às vezes a im-
pressão de que estávamos diante de uma grande
criança. Um dia, aí pelo verão de 1859, meu tio
Marquês, que recebia habitualmente na sua casa
de Lisboa a melhor sociedade do tempo, lem-
brou-se de oferecer uma merenda no velho solar
104 NA VIDA
'io Lumiar, um rasarão cio século xvin, notávpl
pelos seus azulejos do Rato, pelas suas leias np
aranha, pelas carrancas dos seus modilhões e por
um ou dois admiráveis tetos pintados por Perlrn
Alexandrino. Passou-se a tarde no jardim. A
noite acenderam-se todas as serpentinas de prata
mareada que se encontraram nas arcas, e as se-
nhoras reúniram-se na sala grande, onde se ha-
via de servir o caldo de galinha da merenda em
tigelas velhas da índia. Ainda me recordo como
sè fosse hoje — tinha então dezasseis anos — da
impressão que produziu em mim esse salão pro-
fundo, todo guarnecido à volta de pesadas ca-
deiras D. João V, onde se sentavam imóveis, silen-
ciosas, de olhos baixos, alinhadas como freiras
no coro, sessenta ou setenta senhoras ainda no-
vas, pojando os seus enormes balões de pekin
verde, de moirée Ninon, de camaieux d'eté, de
tarlatana côr de rosa, donde pendiam como ba-
dalos de sino — as cadeiras eram altas — cento
e vinte, cento e quarenta pèsinhos calçados de
duraque preto. A secretária da legação da Áus-
tria cantou a Gazza Ladra; Bulhão Pato recitou
ao piano. A certa altura, meu tio, que brincava
sempre, levantou-se, e de pé no meio da casa —
estou a ver-lhe a íace rapada, a sobrecasaca azul.
as mãos finas — preveniu as senhoras de que
uma das cadeiras daquele salão, não se sabia ao
certo qual, possuía a singular propriedade de
pbrigar a pessoa que nela se sentava a dizer o
SAIAS DE BALÃO 105
que não queria e a revelar, involuntariamente, os
mai? íntimos segredos da sua alma. Elas a prin-
í^ípio sorriram, fizeram boquinhas de espanto
"ah !», «oh !»; mas depois começaram a olhar
desconfiadas umas para as outras, a corar, a
morder o beiço, a levantar-se. a sair à formi.íra.
— e o certo é, meu amigo, que, quando os criados
•mtraram para servir a merenda, já não estava
na sala nem uma. Ingenuidade, simplicidade de
espírito, defeito de educação, — o que você qui-
ser. O que lhe afirm.o é que, no meio das rapa-
rigas viris de hoje. que falam em calão, trazem
a saia pelo joelho e não teem medo de nada. co-
meço a sentir a melancólica saudade das mulhe-
res do meu tempo, pobres bonequinhas tímidas
de há cincoenta anos. que coravam, balbucia-
vam, sorriam, fugiam com medo diante duma ca-
deira— mas que souberam dar-nos na vida a
(^onsoladora ilusão da candura, da felicidade e do
amor.
o CRIME
A estrada corria, cortando uns montados e
bouças floridas de mato excomungado. Na volta,
lá baixo, de encontro a uma lomba de pinhal
manso, copado de sombras, uma casa faiscou
como uma pincelada branca ao sol.
— Vês aquela casa? — perguntou-me o meu
amigo, cujas largas mãos de hércules, enluva-
das de lã cinzenta, manejavam como um brinque-
do o volante do automóvel.
— Aquela casa branca ?
— E* o casal dos Cabeços. Repara, quando
passarmos por lá. Tem a sua história.
— Um cunhal de armas ?
— Não. Um crime.
Daí a cinco minutos, o nosso admirável Bra-
zier passava diante duma terrêa velha de quatro
paredes caiadas, com o seu telhado duma só água,
três cachorros de pedra a aguentarem uma par-
o CRIME 107
reira sobre a porta, e a sua chaminé estremenha
com chapéu de duas telhas mouriscas juntas
!'olos topos no gesto cristão duma prece. Tinha
I mão direita uma lindada viçosa de hortaliças;
fumegava-lhe à porta uma testeirada de esterco,
onde fossavam os cães e onde os moscões scin-
tilavam ao sol, como diamantes; e nas costas, em-
pinada até entestar ao alto no pinhal uma lomba
de monte galgava, hirsuta, sangrenta, doirada de
vinhedos.
— E' esta a casa, — indicou o meu amigo, num
geito de cabeça.
E emquanto, duma moita rasa de mato queiró,
duas perdizes assustadas levantavam vôo, disse-
-me, parando o automóvel um instante para acen-
der o cigarro:
— Mataram aqui um homem.
— Quem ?
— Já te conto.
O mato rescendia. O sol queimava, como
uma labareda* A flor roxa das torgas montesi-
nhas dava a impressão de mosto a escorrer na
terra escaldada. O meu amigo, rapidamente, sa-
cudidamente, como se se comunicasse às suas
l»alavras a vertigem da marcha, contou-me o que
fora, na sua bárbara simplicidade, o crime do
casal dos Cabeços.
— Há seis meses morava aqui um homem que
t.nha sido caseiro de meu pai. Era o João Maria.
Gincoenta anos, boi de trabalho, homem são, ca-
108 NA VIDA
rador romo um perdigueiro, valente como as ar-
mas. Coalhou umas moedas na arca, arrendou
este bocado de terra, e casou com uma rapariga
(lo logar de Negros, a Rosaria, que podia ser fi-
lha dêlo. Um dia, vieram aí trabalhar no casal de
cima uns malteses. Era uma jolda deles, mal en-
carados, com um manageiro pior que eles todos,
— o Filipe. Dali por diante, o João Maria come-
çou a estranhar a mulher. Achava-a triste. O
que era, o que não era. — até que duma vez o ma-
nageiro. encontrando-o numa volta da estrada,
deu um salto ao largo e meteu a mão ã cinta.
Quem mal não usa, mal não cuida. O João Maria
seguiu seu caminho, e à noite, quando falou à
mulher no Filipe, viu-a mudar de côr, o suor es-
correr-lhe em baga pela testa, amparar-se a um
mocho de cerdeira para não cair no chão, — e
ficou a olhar para ela, de olhos esbogalhados, sem
entender nada. Nessa noite, o pobre homem não
dormiu. Na manhã seguinte, carregou a clavina,
aperrou-a, meteu-a no vão da porta com o chum-
beiro e o polvorinho de chifre, beijou a mulher,
disse-lhe que depois do trabalho ia à vila, que
não o esperassse até à noite, atirou a enxada an
ombro, — e abalou. Ainda não era noite fechada,
estava de volta. Logo que deitou mão ao ferrolho
da porta, ouviu um grito, o rumor duma tigela
que se estilhaça no ladrilho, — e' a luz apagou-se.
— «Quem está aí?» — gritou ele. Sentiu o resfo-
legar dum homem; depois, o estoiro dum tiro,
o CRIME 109
qus lhe chamusc( u de raspão a camisa, sem lhe
tocar. Tinham-Ihe metido aos peitos a sua pró-
pria clavina, us caiiallias. João Maria avançou:
adivinhou um vulto a saltar-lhe na frente; viu
faíscar-lhe ainda diante dos olhos o ferro duma
navalha, " e, sereno, formidá^^d, levantou nas
duas mãos a enxada e abateu-a, dum golpe, na
' uridão. Houve um ruído cavo; uma pastada
qutíule, sangue ou lama, espirrou-lhe na cara;
sentiu ainda a enxada arpoar em carne ou em
farrapos; depois, o baque surdo dum corpo, um
ronco d8 estertor, um grito, — e o silêncio. Re-
cuou, até à porta; veio, a cambalear, para a es-
trada. Atrás dele, gritando, saiu a mulher. Inú-
til. Ninguém a ouviria na charneca deserta. João
Maria travou-lhe do braço, atirou-a para casa, or-
denou-lhe: — «Acende a candeia!» Quando a luz
( lepitou, o cadáver do maltês Filipe apareceu de-
bruces, com o crânio aberto, numa poça de san-
gue.— «Mata-mo ! Mata-me a mim também!)) —
uivava a mulher, atirada sobre uma arca. — «Não.
<> teu castigo é outro.)) E logo, arremessando o
capote, agarrando a enxada: — «Traze a candeia.
Vamos enterrá-lo.» Emquanto ela alumiava a
tremer, varejada de soluços, João Maria abriu
uma cova à porta da casa; obrigou a mulher a
segurar o cadáver pelos pés, emquanto êle o afer-
rava pelos ombros; deitou o corpo à terra, que
esboroava em torrões; cobriu-o, bsm coberto,
pá sobre pá; forçou a Rosaria, transida, a lavar
110 NA VIDA
de rastos o sangue do manageiro, que empoçava
nos tijolos do chão; trouxe a candeia, entrou, fe-
chou a porta, — e sentado na cama, tranquila-
mente, a carregar outra vez a clavina, preveniu:
— uSe contas isto a alguém, meto-te na cova
com êle». Depois, sereno, limpando as maus,
despindo o colete de saragoça: — «E agora, nm-
Iher, vamos dormir». Três dias depois, sem que
se soubesse porquê, João Maria entregava-se à
justiça.
UMA MULHER
Dizia-me duma vez um velho padre, que eu
conheci reitor numa freguesia sertaneja: — «To-
das as mulheres juntas, meu amigo, não valem
uma lágrima !» Engano. Quanta mulher por quem
se morre ! Quanta mulher por quem se chora !
Lembro-me ainda como se fôss;^ hoje. Um
dia, há dez ou doze anos, anunciou-se em Lis-
boa um leilão elegante. Uma das mais lindas
mulheres do demi-monde da capital, chilena, que
linha a mania das pérolas e que mostrava todas
as noites, numa frisa de S. Carlos, as suas admi-
ráveis espáduas dignas de suportar os catorze
filhos de Niobe, morrera, como Maria Duplessis.
das consequências dum resfrianiento, e deixara
aos herdeiros, uma irmã e um sobrinho, todo o
recheio da casa que lhe pusera o conde de "*, um
dos seus adoradores, num primeiro andar da
Avenida da Liberdade. Dizia-se que essa casa,
112 NA VIDA
mobilada por artistas mandados vir de Paris, era
um modelo de distinção e de bom gosto, o tipo
do moderno lar de arte em França, com móveis
de Maurice Dufrêne, dum discreto intimismo.
um surpreendente vitral de Carot, (Vaprès Bes-
nard, f a mais bela colecçãu de ferros forjados
de Grassei e de Bracquem(»iil lâmpadas, lus-
tres, fechos de porta — que poderia deslumbrar
um amador de decorações modernas. Pui as-
sistir ao leilão. Imensa gente, uma atmosfera
de fumo, um calor asfixiante, uma luz doirada
e quieta de meia-tarde. Tinha-se começado na-
quele momento o leilão do quarto-de-vestir. A
voz rouca do pregoeiro gritava. Uma réstea de
sol ia afagar três Amores côr de rosa que brin-
cavam ao canto dum delicioso tapete de Jor-
rand. Havia no ar o vestígio, o espectro, a som-
bra dum perfume. Grupos de rapazes, de cha-
péu para a nuca, falavam alegremente da mor-
ta, rindo, comentando, fumando. Uma inglesa
grave, loira, míope, examinava ao pé de mim
a marca dum guarda-jóias de Limoges. Três,
quatro cabeças-de-pau, a barba por fazer, as
mãos grosseiras e enormes, licitavam, picavam
tudo. Procurei desinteressar-me da gente que
me rodeava, para observar melhor aquele inte-
rior galante, que tão de perto conhecera a per-
turbadora intimidade duma mulher. Era um
Império Jallot, verde-malva e oiro, gracioso, de-
licado, ligeiro, onde tudo parecia evocar, na
UMA MULHER 113
macieza dos estofos, na alma luminosa dos es-
pelhos, na voluptuosidade morna e crepitante
das rendas, o corpo orgulhoso que vivera, que
respirara, que palpitara ali. Dir-se-ia que a profa-
nação hedionda dum leilão não tinha tocado o
mistério daquele pequeno templo. A graça fe-
minina, penetrante e imortal, sobrevivera ao
que nessa mulher tinha havido de esplêndido e
de efémero. Sentia-se ainda em tudo, num laço
de fita em que ninguém tocara, num solitário
onde morrera uma flor, o encanto, a espirituali-
dade das suas mãos, — dessas longas mãos mais
grandiosas do que finas, que tantas vezes me
haviam recordado as de Mona Lisa Gioconda.
Emquanto o pregoeiro punha em praça um lote
de meias de seda, entre risos que eram uma
afronta para o pudor dum cadáver, procurei re-
viver na memória, traço a traço, a figura dessa
pobre chilena, o seu perfil aquilino e imperial,
a sombra de melancolia que as longas pestanas
projectavam sobre a sua face duma palidez doi-
rada, o seu corpo olímpico, a sua aparente
frieza desdenhosa que numa célebre noite de
S. Carlos me fizera repetir mentalmente a frase
de Barbey de Aurevilly: — (xAh! Le corps de
cette femme était sa s^ule âme In Para mim,
que a não tinha conhecido intimamente, ela rea-
lizava o tipo glacial e enérgico das mulheres
que todos desejam e que ninguém ama, que são
volúpia e que não sabem ser coração, que si-
8
H4 NA VIDA
miiltáneamente atraem e repelem, apaixonam e
desencantam, e que, vivendo da febre insaciável
de amar, morrem sem ter conhecido, no bál-
samo das lágrimas, a consolação e a doçura do
verdadeiro amor. No orgulho da sua insensibi-
lidade e da sua beleza — pensava eu — essa
criatura, que despertara tantas paixões, tinha
acabado sem um afecto. Lancei dolorosamente
um último olhar a esse templo de deusa morta.
Ao alto. num teto delicado de Gustavo Jaulmes,
revoavam pombas brancas. Retiniu sobre uma
credencia a tampa duma caixa de prata. Passa-
vam roupas, no ar, de mão em mão. Toda a
gente ria, conversava, como numa festa. Quan-
do ia a retirar-me, retrocedi num movimento
de irreprimível curiosidade. No corredor, junto
do quarto-de-vesiir, havia uma porta fechada.
Abri-a. As surpresas que nós às vezes lenms.
pobres perscrutadores da alma humana, que
quanto mais a estudam, menos a conhecem !
Na meia-luz, de joelhos junto ao leito que fora
dessa mulher, dessa mesma mulher que eu jul-
gava incapaz de ter despertado um sentimento
profundo, um rapaz loiro, vestido dy preto, com
um lenço nos olhos, chorava convulsivamente.
M.ELME NINI
As pessuas de rasa tratam-na por .V/.*"^ Nini.
As visitas chamam-lhe, ceremoniosamente, Se-
nhora Marquesa. Pez oito meses; põe a cabeci-
nha à banda; tem uns olhos verde-oiro, muito
redondos, como bolas de vidro, — e, não sei
porquê, sempre que olho para ela, parece-me
um desenho a lápis de Columbano. Quando
brinca, — "brinca doidamente, excessivamente,
como uma criança que é. Quando dorme, —
dorme em grandes atitudes, orgulhosa, satis-
feita, magnífica. Se lhe bate o sol, não há rosas
mais cor de rosa do que as suas pequeninas ore-
lhas de búzio, onde treme, num sopro, uma la-
nugem fina de prata. Se se volta, brincando,
como uma grande borla de pó de arroz, — lu-
zem-lhe os olhos como contas de oiro, cruza as
mãos sapudas, o narizito arfa-lhe, inquieto, vo-
luptuoso, interrogativo, parece que ri, e todo o
16 NA VTDA
sen corpo se encrespa, numa penugem branca,
como se em plena primavera tivesse nevado :>ô-
bre uma flor. O seu organismo leve, nervoso,
vibrátil, tem, ao mesmo tempo, o segredo dos
movimentos vertiginosos e das imobilidades pa-
radoxais. Tudo nela é ritmo, ondulação, mis-
tério, sensualidade, encanto penetrante e graça
feminina. Há expressões em que toda ela se
franze, e se enruga, e parece que sorri. Há ho-
ras, atitudes, efeitos de luz, em que a sua ado-
rável cabecinha dá a impressão de que a em-
poaram, e de que se debruça duma berlinda
Luís XV, adevant les trois marches de marbre
rose)). Passo às vezes muito tempo a olhá-la, a
observá-la, a segui-la. Tem, em todos os seus
gestos, em todos os seus movimentos, a incon-
sciência duma criança e a volubilidade duma
mulher. Pensa-se, vondo-a, no leque dum pa-
vão branco, na transparência dum floco de neve,
na rijeza elástica duma vara de metal. Não co-
nhece meios termos: toda ela é rapidez fulgu-
rante ou lentidão desdenhosa; agressão ou carí-
cia; garra ou pluma; fera ou flor. Naquele pe-
quenino corpo que ondula, que se recurva, que
se enrosca, vive, como um diabinho familiar, o
génio da contradição. Quer o que ninguém quer,
faz o que ninguém espera, pede o que não se
lhe pode dar, — e ai de nós se não lhe satisfa-
zemos todos os caprichos, todas as exigências,
todas as vontades: a cabeça empoada ergue-se,
os olhos fuzilam como vidros de cores ao sol,
j^ eu« ^,JJ^JI j j
tôda ela treme, e vibra, e grita, e se levanta
para nos bater, encrespada, ouriçada, um laço
côr de rosa a abanar-lho no pescoço, uma névoa
de prata a envolvê-la como um fumo ligeiro, a
crueldade da Eva eterna a entreabrir-lhe a boca
pequenina... Censuram 3/.^"^ Nini porque ela
brinca com uma bola. Ralham com M.*"^ Nini
porque ela mexe nas gavetas. E, entretanto,
i\/.^"^ Nini é sociável, M.*"'* Nini é civilizada, M.*"''
Nini recebe às quintas-feiras, M.*"® Nini gosta
tanto de música, que é capaz de ouvir, sentada
no lampo polido dum Pleyel, sem se mover,
^sem pestanejar, com a cabeça à banda, em êx-
tase como se olhasse um mosquito imóvel e lu-
minoso, a Cathedral engloutie, de Debussy,* ou
a Pavane pour une Inlante dejuncte^ de Ravel.
Nunca viram aqueles bravos leões heráldicos que
batalham, lampassados de vermelho e armados
de oiro ? Empoem-lhe a juba, escondam-lhe as
unhas, — e aí teem A/.^"^ Nini quando brinca com
a ponteira da minha bengala. Tufa como um ou-
riço branco, rebola como um gnomo satisfeito,
os olhos scintilam-lhe, as orelhas rosadas estre-
mecem, tem atitudes cândidas de mulher que
mente, e há dois meses — já há dois meses que
o seu guizo alegre tilinta pela casa! — um génio
mau rasga-me os papeis, quebra-me as jarras,
revolve-me os armários, arrepela-me os tapetes,
arranha-me as mãos...
Porque M."'^'' Nini — esquecia-me de Jhes dizer
— é uma gatinha francesa.
A TOUCA UE RENDAS
Estávamos cinco solteirões à mesa da ceia.
O mais velho era D. Caitano de Noronha, irmão
dos marqueses de ***, setenta anos de elegância
e de distinção que faziam lembrar certos retra-
tos gant jaune do conde Robert de Montesquiou;
o mais novo era Mr. Glarks, de passagem em Lis-
boa, inglês ruivo, fmo, sibarita, wildeano, que
chegara do Transwal e ia convalescer da sua neu-
rastenia entre os rododendros côr de rosa e os
faisões côr de ouro dos jardins de Herfortshire.
Gonversou-se. Discutiu-se. Palou-se na lenda de
egoismo e de insensibilidade que envolve todos
os homens solteiros. E emquanto Mr. Glarks
sorvia voluptuosamente o seu Porto, que scinti-
lava no cálice como uma grande pedra preciosa,
D. Gaitano de Noronha sorriu, recostou-se na
cadeira, puxou os punhos como fazia o marquês
A TÚUCA DE RENDAS 119
de Resende antes de contar uma anecdota, e,
brincando com a fita du monóculo, disse-nos:
— Não. A lenda da nossa insensibilidade é
uma blague inventada pelas mulheres. Pelo con-
trário, meus amigos, eu estou convencido de
que todo o solteirão é fundamentalmente um sen-
timental. Pergunte-o cada um de nós cinco a si
próprio. Foi porque amei muito todas as mulhe-
reb, que não pude resignar-me a adorar uma só.
Foi porque a natureza nos fez pródigos de cora-
ção, que chegámos à velhice esquecidos de que
não tínhamos um lar. Há na vida as formigas
do amor: nós fomos as cigarras. Não enceleirá-
mos para o inverno; não soubemos criar, em
volta de nós, os afectos tranquilos que sobrevi-
vem às paixões da juventude: mas com que en-
tusiasmo, com que ternura, com que sentimento,
com que comoção a cigarra doirada da nossa
mocidade cantou a volúpia eterna de viver e a
glória imortal de amar I O solteirão não será —
ai de nós! — um apaixonado fiel; mas, mesmo
quando é um inglês fleumático como Mr. Glarks,
é sempre um coração sensível. Vou contar-lhes
uma história de há um século, que ouvi a minha
tia-avó, a senhora condessa viúva de Paço de
Sousa. E' a história enternecedora de três ve-
lhos solteirões. Não me lembro dela, que me
não passe na alma a névoa dum sorriso e duma
lágrima. A senhora condessa, que tinha dezoito
anos quando se casou, recebia no seu solar a par
i20 NA VIDA
de S. Tomé— parece que estou a ver as gran-
des salas armadas de gorgorão amarelo, as có-
modas de laca e bronze, as estampas de Cochin
6 de Lebas pelas paredes! — três velhos fidal-
gos, que eram o seu confessor, D. António Ra-
fael de Castro, principal da Igreja Patriarcal; o
seu padrinho, general D. José de Melo César de
Meneses, ferido três vezes em Smolensko, em
Moscow, em Wagram; e o seu tutor, D. Ale-
xandre, irmão do marquês de Penalva, um ve-
lho do antigo regímen, cabeleira de rabicho e
sapatos de fivela, que não apertava a mão a nin-
guém com medo de se sujar, e que não assistia
a um baile sem trazer atrás de si um criado
ajoujado com uma bacia de prata, um gomil de
água-às-mãos e uma toalha de rendas. Nenhum
deles tinha chegado a casar-s9, — Monsenhor
porque era padre, o general porque nunca pen-
sara a sério senão em roubar bailarinas como
Junot e em atirar à pistola como o duque de La-
fões, e o Penalva — dizia, sorrindo, o senhor Pa-
triarca— para não ter de apertar a mão à noiva
debaixo da estola do padre. Solteirões impeni-
tentes, o sorriso deles, a menina dos seus olhos
era tanto a joven condessa sua pupila, que não
se passava um dia, mesmo depois de casada, que
não fossem vê-la, beijar-lhe a mão, levar-lhe pre-
sentes, músicas, cuvilhetes de doce, ramos de
flores, e que não repetissem às visitas, ao mari-
do, à mãe, apontando a sua figurinha ligeira que
A TOUCA DE RENDAS 121
se perdia entre as credencias doiradas como uma
nuvrm de musselina branca: — «Verdadeiramen-
te, os pais desta menina somos nós». E não há
dúvida de que o eram, — senão pela natureza,
ao menos pelo coração. Um belo dia, andados
quatro meses depois do casamento, D. António
Rafael de Castro, que tinha o mau hábito de me-
xer no açafate de costura das suas confessadas,
encontrou no bofetinho da «menina condessa»
(era assini que ele lhe chamava) uma pequenina
touca de rendas. Gomo não havia crianças na
casa, Monsenhor, por cujo espírito nem sequer
passou a ideia de que poderia havê-las em breve,
guardou a touca, considerou com os seus bo-
tões que aquilo «ou era pecado das criadas ou
presente para o menino Jesus», e quando à noili^
num coche do palácio da Regência, D. Alexan-
dre Penalva e o General chegaram para o volta-
rete, D. António Rafael de Gastro apresentou-
-Ihes, com a mais ingénua das solenidades, fa-
lando baixo, e sem se esquecer de cerrar pri-
meiro as portas, aquele sopro de rendas que,
na sua opinião, «bem podia destinar-se, escanda-
losamente, a cobrir a cabeça dum recêm-nas-
cido». Os dois fidalgos atiraram-se para cima
dum sofá a rir com gosto da simplicidade do
padre, e explicaram-Ihe, com o respeito devido à
sua dignidade de cónego vermelho, que, ten-
do-se feito um casamento havia quatro meses,
não era demais que se fosse pensando no enxó-
122 NA VIDA
vai para o baptizado. Monsenhor, que a princí-
pio embezerrara, acariciava, já risonho, a peque-
nina touca; Penalva, de espadim e rabicho, olha-
va-a, num enlevo; o general sorria para ela
amorosamente, como se, debaixo dessa névoa de
rendas, palpitasse a polpa rosada duma face de
criança. Por um instante, aqueles três soltei-
rões, a quem Deus não dera a graça dum filho
e cujos cabelos brancos não conheciam senão o
lume do lar alheio, estremeceram no mesmo sen-
timento de comovida ternura. Essa pequena
touca de rendas, se tivesse um dia passado na
sua existência, teria sido para eles a felicidade.
Tomaram-na nas mãos, agora um, logo nutro; em-
balaram-na como se tivessem uma criança nos
braços; viam já, na ilusão do seu embevecido ca-
rinho, um berço a arfar junto deles; e — pobres
de nós, solteirões, três vezes ingénuos e três ve-
zes desgraçados ! — quando, daí a um momento,
pé ante pé, envolvida no nevoeiro branco do seu
vestido de musselina da índia, a senhora con-
dessa minha tia-avó os foi surpreender na sala,
os três velhos, com os olhos marejados de lágri-
mas, choravam e sorriam em silêncio...
NA y\RTE
os DOIS RETRATOS
— Às H e meia ?
— Em ponto.
À hora combinada, António Carneiro chegou,
rom o seu chapéu velasqueano, o seu olhar tran-
(fúilo, a sua sobrecasaca preta. Trazia debaixo
<lo braço um cartão enorme. Ia começar o meu
letrato.
— Maravilhosa luz !
Assentámo-nos ambos. Servia de -cavalete ao
admirável mestre da sanguínea, o espaldar duma
velha cadeira D. José. Tomei, despreocupada-
mente, uma atitude habitual. Olhámo-nos, em
-ilêncio. A luz, nmito doirada, muito macia,
muito doce, envolvia-nos, acariciava-nos, ba-
bava o rico vermelho dos móveis, espelhava nos
silhares de azulejo de tapete, acendia-se em la-
baredas nos latões faiscantes do grande lampeão
126 Í^A AR-IK
do século XVIII, trazido, havia anos, dos claus-
tros de S. Vicente de Póra. Durante cinco, dez
minutos, António Carneiro, sem uma palavra,
observou o modelo. O lápis rolava-lhe maqui-
nalmente nas mãos. Os olhos, única expressão
de vida na sua face imóvel, surpreendiam, per-
scrutavam, interrogavam, traço a traço, acidente
a acidente, modelação a modelação, aquela fi-
sionomia ainda imprecisa, ainda enigmática, que
o seu génio de pintor ia revelar, interpretar, sen-
tir. De repente, quando eu esboçava uma ines-
perada flexão de cabeça, o mestre sorriu, ani-
mou-se, deteve-me num gesto:
— Assim. Está bem.
O primeiro traço mordeu o papel. Senti-lhe a
aspereza, a nitidez, a energia. O trabalho come-
çou. Conversámos. Palavras vagas, distraídas,
difíceis, costadas de falhas e de silêncios. Depois,
recaídos na primitiva mudez, ficámos a obser-
var-nos, mutuamente. Estava ali, diante de mim,
simples, grave, modesto, apertado numa sobre-
casaca preta com o ar sacerdotal duma batina,
o pintor português que, depois de Columbano,
melhor tem sabido surpreender expressões e de-
senhar almas. Piquei absorvido a olhá-lo. A
luz, mais metálica, mais violenta agora, marcava
a largas pastadas de oiro toda a modelação da
sua calva socrática, um pouco ponteaguda no
vértex como se a tivessem moldado por um casco
grego de bronze, — e, fluida, scintilando, tre-
os DOIS RETBATOS 127
mendo. escorria-lhe pelos largos malares e p^la
barba grisalha, uma barba vaga, confusa, ne-
voenta, que lembrava o Verlaine de Garrière e
fazia pensar em certos evangelistas do Greco.
Às vezes, em determinadas atitudes, sobretudo
quando o olhar se fixava no modelo, a sua fisiono-
mia espiritualizava-se, resplandecia, ganhava o
ar profético de um poppe russo que conduzisse
uma multidão em delírio. Depois, quando o
olhar baixava, as feições endureciam, as rugas
(*avavam-se, e, através da névoa grisalha da
harba. adivinhava-se uma boca firme, um mimto
audacioso, uma maxila forte. A princípio, as in-
certezas do trabalho traduziam-se-lhe na expres-
são inquieta, na palidez ansiosa; mas, pouco a
pouco, achado o traço decisivo, encontrado o
equivalente psicológico do modelo, a serenidade
Aoltou, as narinas dilataram-se, a face readqui-
riu a sua calma patriarcal, e as próprias mãos
brancas, finas, nervosas, única nota feminina
iio seu tipo viril de fauno pensador, moviam já
menos precipitadamente o esfuminho, leve como
um cigarro, pequeno como uma jóia. Passaram-
-se duas horas. Ainda eu o observava, cheio dn
curiosidade, quando António Carneiro se levan-
tou, sorrindo e mostrando-me o desenho termi-
nado:
— Pronto.
Era uma obra-prima. Tinhamo-nos retratado
um ao outro.
JOSÉ DE ALPOIM
TJm amigo íntimo trouxe-me a triste notícia:
Morreu José de Alpoim.
Não foi uma suprêsa. Aquela exuberante
natureza de atleta estava minada das mais hor-
ríveis e cruciantes doenças. Uma aortite e uma
neoplasia do mediastino. Dua6 sentenças de
morte. Há muitos dia? que vivia de costas no
leito, sem abrir os olhos, imóvel, um saco de
água quente sobre o coração. Ontem foi ungido.
Hoje, pouco depois da uma hora, a misericórdia
de Deus tocou-o, e essa cabeça loira de titan, essa
cabeça leonina que o clarão da mais nobre elo-
quência animara, resvalou para sempre na som-
bra. Descubro-me, com saudade e com respeito,
perante o seu cadáver. Se os vencidos podem
morrer com glória, — esse vencido inolvidável
soube resgatar gloriosamente, pela suprema resi-
JOSÉ DE ALPOIM 129
gnaçáo cristã da sua morte, lodos os erros huma-
nos da sua vida.
Pobre José de Alpoim !
Estou a vê-lo, embrulhado na sua robe-de-
chamhre de flanela côr de rosa, flácido, gelati-
noso, enorme, parecendo maior ainda na meia-
hiz do escritório-biblioteca do Passadiço, em cujo
interior de serenidade e de penumbra scintilava
apenas, como um revérbero, a prata batida dum
tinteiro D. João v. Recordo a intimidade com
que ele recebia os seus amigos, estendido no pro-
fundo sofá da sala, uma botija de água quente aos
í»és, um bule de chá fumegando ao alcance do bra-
ço, — carinhoso, acolhedor, feminino na sua afec-
tividade, repetindo maquinalmente — «meu que-
rido amigo», «meu querido amigo», e acariciando
a penugem loira do buço no gesto habitual que
imitara inconscientemente de José Luciano. Nesta
hora em que todas as reminiscências acordam
mais lúcidas, e, por isso mesmo, mais pungen-
tes, recomponho, feição por feição, traço por tra-
ço, a fisionomia paradoxal desse homem superior,
— a sua cabeça simultaneamente enérgica e in-
fantil, terna e violenta, leão hirsuto e bambino
delicado; os seus olhos vivos, ora pardos ora azuis
conforme a incidência da luz, pontuados de in-
certas manchas côr de oiro e côr de tabaco, dando
com a mesma intensidade a expressão das gran-
des ternuras e das grandes cóleras; a sua boca
polpuda, sensual, vermelha, pequenina; a sua
9
130 NA ARTE
ampla testa trabalhada já de calvície nas têm-
poras, coroada ao alto de uma lanii.cfem loira —
resto g-lorioso daquela bela juba apolínea, que
ainda ao apontar dos sessenta anos resplandecia
de talento, de audácia, de beleza e de força. Ve-
jo-o. de pé na minha frente, com o seu torso de
hércules, com a sua eloquência inquietante, com
a sua verbosidade torrencial, com toda a sua na-
tureza p-randiosa, exuberante e explosiva, que se
diria o produto dalgum normando remoto e p-i-
g-antesco. dum Roh fíoy do Cotentino, aírricultor
o bárbaro, em que as violências de temperamen-
to se corrigissem pela essencial e indestrutível
fidalguia do trato e das maneiras, — modelar no
homem em cujas veias corria o sangue de Pedro
de Alpõem, e cuja nobreza blasonava das cabras
passantes e armadas de negro dos Cabrais, da
cruz florida de oiro dos Gerqueiras, do leão aleo-
pardado e ílordelizado dos Borges. O titan era
um gentil-homem. O gigante era uma criança.
Aqueles que, como eu, puderam conhecer o en-
canto da sua intimidade carinhosa, sabem o que
valiam em José de Alpoim as delicadezas do co-
ração, os tesouros quási femininos da sensibili-
dade, essa exaltação tão viva e tão pessoal do
sentimento afectivo, que o levava — como me di-
zia ainda há pouco uma inteligente senhora — a
escrever verdadeiras cartas de amor aos seus
amigos. A paixão política envenenou-o ? E' certo.
E envenenou-o tanto, — que o matou. Às vezes as
JOSÉ DE ALPOIM 131
t
cicutas nascem ao pé dos lírios. A cicuta desse
grande coração foi aquele «delírio da praça pú-
blica», de que já Nietzsche dizia — que assassi-
nava heróis. E' cedo ainda para se saber se José
de Alpoim teve ou não teve razão. A hist<3ria es-
creve-se lentamente, porque se escreve cm bronze.
Por emquanlo é apenas a hora das lágrimas,- — e
essas, feliz ainda de quem as pode chorar !
o PINTOR DO SOL
Já é a terceira vez que visito a exposição
Sousa Lopes. O ilustre pintor despertou em mim
mais do que admiração: curiosidade intelectual.
O seu temperamento, a sua evolução, os seus pro-
cessos, apareceram-me desde logo como outros
tantos motivos de estudo. Estremenho sensua-
lista, vibrante, dionisíaco, insaciado de Inz, Sousa
Lopes podia atribuir-se a frase de Barbey d'Au-
révilly: afe suis un intense)). Dir-se-ia que esse
«intenso» devia logicamente usar na sua pintura
processos exuberantes e torrenciais. Engano. Em
Sousa Lopes, o máximo de efeitos é obtido com
o mínimo de esforço aparente. A sua intensidade
encontrou uma expressão técnica paradoxal: a
simplicidade. Pintor dos poentes, dos incêndios,
dos clarões, — pintor ofuscante e obstinado da
luz, — o mestre admirável çlo Çítíq de Santa Su-
o PINTOR DO SOL 133
sana não é propriamente um plenarista, nem nm
impressionista, nem um naturalista; é, na sua
maneira simplificada, um «virtuoso do sol», ou,
como o definiu José de Figueiívdo, «um apaixo-
nado fremente das grandes claridades». A obses-
são da luz domina-o. Toda a sua exposição,
quando não é uma elegia à noite, é um hino ao
sol criador. Por toda a parte, nos poentes de Ve-
neza e nos céus verdes de Nápoles, nas vinhas
fulvas do Ribatejo e nas ruas extáticas da Bni-
íjes la Morle^ o sol arde, esplende, vibra, ofusca;
scintila em faúlhas vivas de cobre, alastra em
chamas, em clarões, em glória. Aqui, é a ca-
saria do Grande Canal que flameja como um
mosaico doirado; alem, um pôr do sol na Giu-
decca, — incêndio, scenlelhas, cinza; agora, um
céu de Florença lembra um grande esmalte verde
p luminoso; logo, umíi larga vela dos barcos
;la Chioggia, como nm velho brocado, uma ma-
ravilhosa tapeçaria tecida de oiro, chameja ao
sol; em volta de nós, a cada canto, por toda a
exposição, o sol bate de chapa nas tabernas da
Laguna, morde de cobre e de fogo a Calle de
las Sierpes, ennevoa-se de mistério no mármore
cor de rosa de Versailles, corusca, como um ca-
chão de prata, nas águas do Brondolo e do Ma-
lamocco, faz cantar, faulhar, arder, águas e gôn-
dolas, palácios e canais, toda a Veneza de Gor-
régio e de Ticiano, de Voronesn r de lintoretto,
de Rosalba e do Livro de Ouro^ do doge Manin
134 NA ARTE
e das zentildonne, essa Veneza que teria ensi-
nado Sousa Lopes a amar a luz — se ele não ti-
vesse nascido em Portugal. Na sua pintura viril,
sóbria, forte, magnífica, — tudo scintila, tudo es-
plende, a nudez e a terra, a atmosfera e o mar.
Encandeia. Deslumbra. Para o ver, é preciso
pôr lunetas fumadas. Céus da Normandia, casas
da Flandres, pátios do Alentejo, carnes de mu-
lher, — tudo chispa, fuzila, reverbera. Há atmos-
feras que são labaredas. Sobre unm paisagem
que lembra as melhores de Zuloaga, rola uma
nuvem de ouro. Sobre uma rua tranquila da
Bruges de Rodembach escorre um clarão de âm-
bar e de opala. A heliofilia de Sousa Lopes é
uma característica fundamental da sua obra.
Nele, a preocupação de «pintar a luz» não se li-
mita ao ar livre; acompanha-o nos quadros de
atelier. Gomo no admirável Abrindo Casas ^ onde
uma almofada vermelha faz vibrai' todos os bran-
cos na sombra, o artista coloca as suas 'liguras
no clarão de grandes vidraças e pinta, amorosa-
mente, voluptuosamente, o sol que as morde,
que as queima, que as inunda. O seu desvio para
a água-forte é ainda uma forma da sua atracção
para a luz. Não lhe falem em dificuldades. Ven-
ce-as sempre dando-nos a falsa impressão de que
elas não existiam. Tem a audácia, tem a expe-
riência, tem os processos, — tem a força. As ve-
zes, oblem o máximo efeito de luminosidade pin-
tando só o que está na sombra. Há quadros em
o PINTOR DO SOL 135
que o sol é dado pelo branco do aparelho da tela.
Há manchas que são apenas luz. Para êle, como
para o grande Manet, — «íe principal personnctge
(Vun tableau c^est la lumièren. Simplificação de
efeitos; justeza de valores. E, acima de tudo, —
visão, garra, talento. Columbano admira-o. Ma-
lhoa abraçou-o. Os mestres consagram-no. As
mulheres sorriem-lhe. Triunfou.
SCHWALBACH
Aquele homem duma distinção fácil e duma
elegância pernalta, andando em lagras passadas,
dando-nos em certos movimentos e em certas
atiludes a impressão rectilínia duma cegonha
que marcha, um fraque preto, um nariz volu-
ptuoso, um chapéu para os olhos, uma face ro-
sada e moça ahriíido toda em rugas divergentes,
uma barbicha branca que nos faz pensar, não sei
porquê, nalguns faunos elegantes da escultura
francesa do século xvni, uns olhos vivos, piscos,
pequeninos, risonhos, ao mesmo tempo fulgu-
rantes de ironia e' húmidos de ternura, — aquele
homem paradoxalmente novo e velho, infantil e
grave, jovial e triste, é hoje em Portugal a mais
alta expressão da fantasia literária e da verve
criadora.
Tenho aqui, sobro a minha mesa, o seu úl-
timo trabalho. Três ou quatro vezes ouvi e
SCHWALBACII
aplaudi na scena o Poema de Amor. Acabo agora
de lê-lo na sua edição Chardion. O conhecimento
dessa obra-prima do teatro ronteniponlnon deve
ter dado aos meus camaradas do Porto a mesma
impressão que me deu a mim: ninguém hoje, na
literatura dramática portuguesa, excede Schwal-
bach na arte dificílima de mover, de mecanizar,
de automatizar a ficção teatral da vida. Pode al-
guém igualá-lo, ou vencê-lo, na veemência da
paixão, na lógica dos caracteres, na harmonia
'•strutural da íábula, na sóbria eloquência da ex-
pressão, que é a suprema nobreza da obra lite-
rái^a: mas ninguém se lhe compara na scintila-
(•ão, na fantasia, na originalidade, na rapidez, no
virtuosismo — no movimento. São as suas qua-
lidades surproendc-ntes. Schwalbach tem do tea-
tro uma visão caraclerizadamente dinâmica. E'
visão mais nobre ? Não sei. Sei que é a visão
mais justa. Benavente, com cujo temperamento
dramático Schwalbach possue afinidades, pôs cla-
ramente a questão: «/o que cl público quicrc c.*?
(jue pase algo; que suceda, algo; que los figuras
<c muevan: que lu vid^i^ circule por la cscena)>.
l^òda a técnica schwalbakiana está nesta fórmula
iiiinentemente complexa e eminentemente sim-
ples: acção, imprevisto, vertigem. E\ em França,
a fórmula de Bernstein; é, em Espanha, a fór-
mula de Benavente; é, em Portugal, a fórmula
de Schwalbach. O Intimo, a Bisbilhoteiro, os
Postiços^ a Cruz da Esmola^ são dramatizações
I
inS NA ARTE
vivas, fulgurantes, rápidas, hiper-movimentadas.
No próprio Poema de Amor^ a mais serena de
Iodas as suas obras, a scena divide-se, as figuras
alropelani-se, acelera-se o ritmo da acção, as mes-
mas rubricas dão-nos a medida do carácter con-
vulsivo da técnica de Schwalbach: «rápido, quási
simultâneo»; «depressa»; «muito rápido»; «rápido
como um relâmpago». É a fulguração, como
processo de teatro; é o movimento, como expres-
são gloriosa e triunfante da vida. Enganam-se
aqueles que supõem que o público se domina
pelos reaciocínios. Não; o público domina-se pelas
sensações. Em teatro, para que uma ideia im-
pressione, é preciso convertê-la em movimento.
Acção rápida, mecanização lógica da vida: — eisj
as condições de sucesso; eis, também, as dificul-
dades supremas. Aqueles que, como Schwalbach,
«nascem» dramaturgos, vencem-nas a golpes de
instinto e de audácia. Os outros, os psicólogos,
os idílicos, os contemplativos, os «míopes do
teatro»^ sentem-nas, adivinham-nas, rodeiam-nas,
— mas não são capazes de as resolver. A gera-j
ção literária a que eu pertenço, permitiu-se, lal-i
vez por influência de Fialho, o luxo intelectual]
do desdenhar dos grandes mecanizadores do tea-;
Iro. Julgou que o ibsenismo^ o hauptmanismo^ o]
(Vanunzhnismo^ com as suas «acções interiores»
e os iníiiiilanvénte pequenos da sua análise p:i-]
cológica, constituíam os verdadeiros e definiti-
vos modelos. Engano. É hoje, mais do quei
.S(.ii\v.\Ln\r.n 139
nunca, necessário não confundir teatro com li-
teratura dramática. O próprio Fialho o com-
preendeu mais tarde, quando, deslumbrado de
acção e de movimento, sonhava em Vila de Fra-
'S o seu Infante D. Henrique^ como um grande
iit'scu animado de catedral onde esbracejassem
iiguras, rugissem nmltidões, estalassem tempes-
tades.—«íjue admirável coisa — dizia-me ele um
lia, estendendo-me à porta da Havanesa a sua
mão nodulosa de artrítico — que admirável coisa
-aber mover figuras num palco 1» Essa admirá-
cL coisa é uma grande arte, — e é precisamente
nessa arte que Schwalbach é mestre. O eminente
dramaturgo pode hoje sorrir, traçar a perna, toi-
cer no seu gesto habitual a fita do monóculo, e,
• mo o outro assombroso mestre da Princesse
■ :c UiUfdad^ dizer plácidamente aos seus detracto-
res:
ESPIRITO GENTIL
Morreu Maria da Gunfia.
Foi há oilo anos que eu conheci em espírito
a poetiza das Trindades. Um dos meus confra-
des da Academia, filólogo eminente, tinha-rne
mandado, sob todas as reservas, as provas ti-
pográficas dum livro de versos. Antes de o pu-
blicar, a aulora, uma senhora ilustre, qiiiM '
conhecer por escrito a minha opinião. Confesso,
— comecei a lê-lo com a desconfiança precon-
ceituosa com quo lodos nós, por mais habituados
que estejamos à ideia da superioridade mental
da mulher, recebemos sempre a sua literatura.
Mas essa vaga desconfiança durou apenas o
tempo que levam a iêr-se quatorze versos. Logo
o primeiro soneto era uma obra-prima. Daí por
diante, cada íólha que passava tremendo entre os
meus dedos, teve para mim o valor duma reve-
lação. Estava ali uma das maiores poetizas por-
ESPÍRITO GENTIL 141
tn.íTiií^sas de todos os tempos. Que delicada sen-
sibilidade, que prodiírioso instinto melódico, que
liqupza de temperamento, que calma nobreza de
expressão ! Tudo quanto pode haver de delicado
ua alma duma mulher, tudo quanto pode haver
'h^ perfeito na arte dum parnasiano, cantava,
ipria, brincava nas minhas mãos. Era a Musa
do Soneto que renascia, .trrave e triste, do leque
dp rendas da senhora de Oeynhausen. Se nas
suas elegias, duma clássica melancolia, o Amor
parecia chorar sobre um leito de rosas, — nos
lis sonetos, dum ritmo lento e magnífico, dir-
-ia que os quatorze remos de prata duma galé
-ípcia batiam largamente, sumptuosamente o
mar. Natureza opulenta e sensível, havia por
vezes na sua feminilidade alguma coisa de más-
-'•ilo. — a energia da expressão, a nitidez do con-
ito, a lógica do raciocínio. Durante uma ma-
nhã inteira, li. intrigado e encantado, os versos
'-^ssa desconhecida ilustre. Para os poder ler
nda no dia seguinte, deixei-os uma noite sobre
o minha mesa de trabalho, entre um ramo de
'sas e uma faiança inglesa. Por fim. Jevolvi-o
. ) velho amigo que mo mandara, perguntando-
Ihe em que assentada de Ménalo tinha encon-
Irado aquela Musa. Só quando, mais tarde, o li-
vro se publicou, soube que a autora tinha trinta
anos — a j^dade esplêndida da mulher — que per-
tencia a uma nobre família do Alentejo, e que
se chamava ^ía^ia da Cunha. Poi-me dada, então.
í\2 NA ARTE
a honra de lho beijar as mãos. Antes, mesmo,
de nos vermos pela primeira vez, a cnriosidado
intelectual que nos aproximara tinha feito do
n(')S dois velhos conhecidos. Era uma senhora
duma formosura tranquila e triste, com uns ma-
ravilhosos olhos de portujíuesa, nej?ros, dormen-
tes, fendidos em amêiudoa, uma pelo branca,
ílua, um pouco doirada à luz como certos mar-
'flns relií^fiosos, umas atitudes nobres, calmas,
vací^amente reflexivas, uma expressão de distinta
sobriedade, de candura intelip:ente, de modéstia
crraciosa, que não era o menor encanto da sua
fi.cura 6 das suas maneiras. Parece-me que a
estou vendo ainda, na névoa lon.qínqua do tempo.
Não era a florentina ma.crra, viril, anírulosa, in-
quietante, que cu sonhara através das pá,c:inas
mais fortemente masculinas da sua obra: era a
beleza melancólica e doce, or.ç-ulhosa e terna, cm
cuja boca polpuda revoava sempre a tristeza dum
sorriso, em cujos olhos passava, como um cia-
rão, todo o êxtase luminoso da paisagem al(Mi-
tojana, e cuja bela. calieça. ao mesmo tempo do
criança e de Madona, leud)rando simultanea-
mente os Amores de Besnard o as Virgens de
Bouguereau, resplandecia de talento e de formo-
sura, de juventude e de graça...
Morreu.
Há sonhos que parecem ser às vezes a se-
quência lógica da vida. Numa das últimas noi-
tes, na agitação da febrs, julguei-me dormindo,
ESPÍRITO GENTIL 143
<i hora doirada do crepúsculo, debaixo duma
grande macieira florida. Tiriha-se levantado ven-
to. Pouco a pouco, em volta de mim, sobre as
minhas mãos, sobre os meus cabelos, as flores
foram caindo, perfumando o ar. juncando a terra
dum tapete côr de rosa — e na árvore desabi-
tada uma só flor ficou, como um sorriso, embe-
bida ainda dos derradeiros raios de sol. Quando
acordei, de manhã, a primeira notícia que li
nos jornais foi a da morte de Maria da Cunha,
Os olhos embaciaram-se-me de lágrimas...
Caíra a última flor.
NOVOS METR08, NOVOS RITMOS
Alfredo Pimenta quis ler a bondade de vir
lèr-me, ainda em provas, o seu último livro de
versos — Paisagem de Orquídeas. Antes, porém,
de realizar essa leitura, que tão agradável foi
para mim, o meu ilustre camarada falara-me na
sua intenção de introduzir na poética portuguesa
novos metros e novos ritmos, criando os versos
de 15 e de 19 sílabas. Confesso que, a princípio,
vi apenas no propósito de Alfredo Pimenta uma
afirmação daquela orgulhosa originalidade e da-
quele espírito de ampliação que nao sâo os menos
interessantes aspectos do seu talento. Um verso
de 19 sílabas afigurou-se-me desde logo alguma
coisa de arítmico, de monstruoso, de aberrante,
uma criação fora de- tôda^ a crítica e de todo o
sentimento das proporções. , Pois bem. A lei-
tura fez-se, conheci as formas hipermétricas da
Paisagem de Orquídeas, — e para que negá-lo?
.NOVOS METRmS, NuVOS HilMOS lio
— encontrei nelas uma beleza e uma nobreza
que, se não me levam a aconselhá-las aos poe-
tas moços, bastam, entretanto, para justificar pe-
rante o meu espírito a aparente extravatiàricia
da sua adopção. Na sua arte subtil, complexa e
sumptuosa, Alfredo Pimenta conseguiu provar-
me que, com 15 e 19 sílabas, podem fazer-se exce-
lentes versos.
Mas vejamos o caso de mais perto. Gomo
constroe o poeta os seus metros novos ? Gomo
consegue realizar, numa tão extensa formação si-
lábica, a síntese rítmica que se chama — um
verso ? Qual a estrutura das suas formas mé-
tricas de 15 e de 19 ? Seria injusto afirmar que
estas questões nn'uimas não teem interesse, —
pelo menos para os poetas. Gomo se sabe, a
poesia decadente da França de há vinte e cinco
anos, toda a poussée simbolista, instrumentista,
bizanlinista e nefélica, manifestou sempre uma
acentuada tendência para criar formas melódicas
novas. Jean Moréas, Stéphane Mallarmé, Lau-
rent Tailhade, Vielé Griffm, Stuart Merril, René
Ghil, Leo d'Arkaí estão cheios de hipertrofias
métricas que não conseguiram vingar, ou por-
que eram a negação de todo o ritmo, aíVétrari'
ges vers, heurtés^ aux allures de proseyy (Mar-
cial Besson), ou yiorque pretendiam impor cons-
truções podálicas gregas, de ritmos eruditos e
inacessíveis, absolutamente contrários à índole
da língua e às tradições da poética francesa. A
I.'l6 NA ARTE
niainr juirtc dos ((.iirandcs inetros)) dos decaden-
tes sãu a pura }>i'osa irregular a que Sousa Mar-
tins chamou um dia — «serradura de palavras».
Ora é isso, precisamente, o que não se dá com
os metros de 15 e de 19 usados pelo poeta da
Píúsagcm de Orquídeas. E não se dá, porque
Alfredo Pimenta, em vez de criar ritmos novos,
limita-se, afinal, a associar o a combinar velhos
e conhecidos ritmos. Os seus «grandes versos»
são constituidos, como vou mostrar-lhes, pela
sequencia de «pequenos versos» de 7 e de 4, si-
metricamente dispostos. Não passara, pois, de
construções melódicas rudimentares, onde, a
despeito de todas as aparências, é a velha poética
que triunfa. Vejamos uma das poesias de 15 sí-
labas — o Cravo Misterioso — evocação cheia de
beleza de um antigo cravo do século xvni, cuja
voz geme, sobrenaturalmente, ao canto dum sa-
lão abandonado. Destaco um verso, ao acaso :
uO mistério desse cravo ^ tristemente, a solu-
çar...)). Ritmo novo? Não. Ritmo velho. A jux-
taposição de dois versos de sete sílabas, sem ce-
sura, isto é, com o primeiro verso grave, o se-
gundo abrindo por consoante, e, portanto, uma
sílaba muda entre ambos : 7 + l + 7. Ou, des-
dobrando :
Tristemente, a soluçar,
NOVOS MKTRUS, NO\US RITMOS 147
No ineíro de 19, Alfredo Pinieiila adopta o
mesmo procesíso a que cliaiiiarei, à maneira la-
tina, ode contaminação)). Estodemrs o primeiro
verso da magnifica poesia — Palácio cm Ruínas :
Todo enterrado na sombra escura dum lyarque
triste^ moríi[icado...)) Nenhuma novidade tam-
lixMu na construção rítmica : a sequência simples
(h ({uatró versos graves de 4 sílabas começando
sempre por consoante, e, por conseguinte, com
três silabas mudas perdidas, segundo a f(3rnniía:
4 + 1 +4 + 1 + /i + 1 + 4. Ou seja, na decom-
posição, uma vulgaríssima quadra de téssarassí-
labos :
« Todo enterrado
Na sombra escara
Dam parque triste.
Mortificado ...»
É incontestável que similhante associação
e formas rítmicas iguais e simétricas tem am-
plitude e tem nobreza. Os árcades usaram-na.
Já produziu a Cantata de Dido. Mas o seu ini-
migo mortal é a monotonia. Não há côr, não há
joalharia, não há opulência de expressão — e Al-
fredo Pimenta, como os poetas do Pélénn Pas-
sioné e das Flútes de Jade, tem muitas dessas
qualidades — que possam vencer a monótona in-
sistência de um desenho melódico repetido qua-
tro vezes em cada verso e dezasseis vezes em
1'j8 na arte
cada quadra. De resto, em lodo o livro, mesmo
íidoplaiido processos na aparência ousados, o ar-
tista da Pmsagrm de Orquídeas conserva-se o que
sempre fundamentalmente foi: um cultor dos ve-
lhos ritmos, que passeia pelas letras, entre Jean
Lorrain ,e Oscar Wilde, o seu néo-parnasianismo
impenitente.
TEATRO CAM(3NEAN0
Ainda que o poeta do Auto de El-Rei SeJniccK
dos AnlUriões e do Filodemo não tivesso sido o
.írrande épico dos Liisiadas e o lírico admirável
qii? moldou, no puro oiro do verso porluguês. as
formas do néo-platonismo florr*ntino. — a histó-
ria do teatro teria de ociípar-se largamente dele
como de um dos mais vivos, dos mais caracte-
rísticos e dos mais interessantes cultores da co-
média nacional.
Passei ontem uma longa noite de inverno a
í'sludá-lo e a admirá-lo. A independência inte-
lectual de Gamões, largamente revelada na epo-
peia e no lirismo, e verdadeiramente assombrosa
num século como o de quinhentos, dominado
pela rigidez das formas e pelos preconceitos de
escola, — manifesta-se, com a mesma eloquên-
cia e a mesma flexibilidade, na obra do poeta có-
mico. Todas as correntes dramáticas lhe foram
150 NA ARTE
familiares. No Rei Seleiico é a influência espa-
nhola da Propaládia que se acentua na dramati-
zação do motivo c no desenvolvimento do episó-
dio; no Filodemo^ a corrente italiana, com su-
gestões castelhanas da Celestina, de Fernando de
Rojas, e um «vicentismo)) marcado na curva me-
i(3dica da redondilha; nos Anfitrões^ a influência
clássica das escolas de Oviedo e de Salamanca,
que tentavam, com o reitor Fernão Perez de Oli-
va e com o médico Francisco de Vila Lobos, ns
equivalências da tragédia grega e da comédia
plautiana. E, entretanto, apesar da sua criação
ter obedecido a sugestões diversas, as três co-
médias mantêm o mesmo carácter, o mesmo fei-
tio, a mesma fisionomia, as mesmas linhas de
construção geral, o mesmo desenvolvimento dos
elementos dramáticos, de forma a poder-se afir-
mar a existência de unia «dramaturgia camonea-
na». Essa dramaturgia, que na divisão dos actos
e na criação do intróito e do argumento, tem
pontos de contacto com a de Torres Navarro,
e que, na inclusão de scenas em prosa, acusa vi-
vamente a influência italiana de Ariosto e de
Machiavel, — distingue-seV porém, pela sábia ar-
ticulação do episódio lírico e do episódio có-
mico; pela associação imprevista do elemento
erudito e do demento popular; pela criação do
tipo do «gracioso», que erradamente se atribue a
Lope de Vega e que deve roivindicar-se para Ca-
mões; pelo paralelismo das acções dramáticas e
TEATRO CAMONEANO 151
das personagens do primeiro e do segundo plano;
pelo desenvolvimento inesperado do diálogo, e
pela eloquência lírica das figuras femininas (Alc-
juena, Estratónica, Diónisa), só excedida mais
tarde, no século xvii, no teatro de Galderon de la
Barca. A originalidade da obra dramática de
Gamões reside, evidentemente, mais nos proces-
sos do que nos motivos, os Anlitriões são a ve-
lha fábula dórica de Epicarmo, dramatizada ir-
reverentemente por Piau to. O nosso poeta co-
nheceu a peça, sem dúvida, através da versão
em prosa do médico de Isabel a Católica, Fran-
cisco de Vila Lobos, cuja murça amarela se
comprazia no comentário erudito da comédia
clássica, — e, segundo o texto do tradutor caste-
lhano, omitiu o prólogo, e eliminou a fala de
Mercúrio no primeiro acto e o monólogo de Jú-
piter no terceiro. As figuras de Felísio e de Bró-
mia e o episódio cómico dos seus amores são
criação original de Camões, que, muito antes de
Molière inventar, no Amphitrion, o tipo de
Chleantis, já linha previsto a necessidade do de-
senvolvimento de uma acção paralela. O mo-
tivo do Filudemo também não é de Camões; é da
comédia iialiana, remontando a genealogia de al-
gumas figuras à poesia e ao teatro espanhol do
século XV. A figura perfeita de Solina apare-
ce-nos construída com elementos castelhanos e
portugueses da trota-convcntos do arcipreste de
Hita; da Celestina, de Fernando de Rojas; da
152 NA ARTE
Filtra de Jorge Ferreira de Vasconcelos, e, uni
pouco, das alcoviteiras de Gil Vicente (Branca
Gil, Brízida Vaz, Ana Dias). O próprio Auto do
Rei Scleuco é, na sua scena fundamental (scena
do Físico), sugestão directa da l?itura que Ca-
mões fez da Propaládia de Torres Navarro, pu-
blicada em Nápoles, em 1517. Numa das peças
desta curiosa colecção, a Aquilina^ um cirur-
g-ião astuto descobre que o filho do rei da Hun-
gria está apaixonado pela filha do rei de Leão,
porque o pulso do rapaz se altera sempre que
vê ou ouve a infanta, tal qual como o físico do
Rei Seleuco surpreende os amores do príncipe
Anlíoco pela madrasta — «nr/ jmlso que se alte-
vdba se la via o se la. aia)). Camões não foi um
criador original de acções e de conflitos; mas fi-
cará, repito, como um notável criador de pro-
cessos. Nas suas comédias, a fábula, quando não
é apropriada da obra estranha — ?7 prenait son
bien oú il le trouva.il — é pobre de invenção,
mas a dramatização dos motivos apresenta-se
sempre rica de originalidade, de movimento e
de interesse, exuberante de graça e de expres-
são lírica, lógica na dedução dos seus elementos
cómicos, e, quanio possível, harmónica nas li-
nhas gerais da composição.
Não seria interessante fazer representar, num
serão camoneano, as três célebres comédias do
grande poeta, — com o mesmo espírito de devo-
ção com que a Espanha moderna está ressur-
TEATRO CAMONEANO 153
gindo, pela mão de anéis da enidita Guerrero.
o teatro de Guevara e de Fray Lope, de Cervan-
tes e de Galderon, de Moreto e de Fray Gabriel
Teles ?
MÚSICOS DE CASACA DE SEDA
O ilustre jornalista e meu amigo, J. Praga
Pery de Linde, ofereceu recentemente ao Estado,
por meu intermédio, um documento do mais
nlto valor para a história da música em Por-
tugal: o manuscrito original do Compromisso da
Irmandade da Gloriosa Virgem e Mártir Santa
Cecília ordenado pelos professares da Arte da
Música em o ano de 1749, seguido do termo de
aprovação pela Junta Geral da confraria em 13
de fevereiro de i750, e de públicas-formas dos
alvarás de iõ de abril de 1792 e 25 de outubro
de 1708, e da provisão do Patriarca D. Tomás
de Almeida, de 5 de outubro de 1722, passadas
a requerimento do Procurador da Mesa pelo ta-
belião João Varela da Fonseca, «defronte da
porta travessa da Basílica de Santa Maria, junto
à Caridade». E' um códice de papel, de 38 fo-
lhas inumeradas, aparo doirado, com rosto e li-
I
MÚSICOS DE CASACA DE SEDA
tulos dos capítulos a vermelhão, contido numa
pasta de marroquim encarnado que evidente-
mente não lhe pertence, com bons ferros das
armas do reino, em ouro. A sua especial impor-
tância provêm de dois factos: de se ignorar, até
hoje, a existência de um estatuto da Irmandade
de Santa Cecília com a data de i749, e de se en-
contrar assinado o termo de aprovação desse
estatuto pelo punho de cento e quinze profissio-
nais que, na Lisboa de D. João v, viviam da arte
da música.
O primeiro Compromisso desta Irmandade
lata de 1603. Era em pergaminho e papel, ilu-
minado, com pastas abrochadas de prata, e ti-
nha apensos os originais dos alvarás de 1702 o
1708, e da provisão de 1722, segundo se infero
da descrição que dele fnz o (abelião João Va-
rela. Infelizmente, o livro ardeu no incêndio que
S3 seguiu ao terramoto de i75o. Muita gente su-
põe que foi para sub.-tituir o estatuto de 1003,
ilcstruido pelo fogo, que se elaborou e aprovou
o Compromisso de 1705, de qu.} possuía um
exemplar impresso o faleci lo musicólogo F]rnesto
Vieira. Não é, porém, assim. A doação do snr.
l^ery de Linde vem provar que o estatuto seiscen-
tista primitivo já fora, antes do terramoto, su-
bstituido por outro, o de 1741), cujo original
Ignorado aqui lenho aberto diante do mim. As
razões que levaram os músiccs pré-pombalinos
a fazer esta substituição, constam do Pr(')logo do
156 NA ARTE
Compromisso agora aparecido. Não era grande
o espírito associativo entre os profissionais da
música na velha cidade patriarcal, e à sua falta
de escrúpulo no cumprimento das obrigações es-
tatuais do «tostão», da anuidade e da jóia, jun-
tava-se, segundo o testimunho insuspeito de uni
documento por muitos deles assinado, a sua fre-
quente ausência de decoro artístico. Reconhe-
ceu-se que era preciso dignificar a profissão;
desenvolver no meio musical lisboeta do século
'XVIII o espírito de confraria; atrair ao grémio
novos irmãos; assegurar mais eficazmente o
cumprimento dos deveres estatuais; e, como as
disposições do Compromisso primitivo, em gran-
de parte anacrónicas, tinham caído em desuso,
foi julgada oportuna a sua reforma, e de-certo
para ela muito contribuiu o prestígio pessoal do
então Provedor da Irmandade, Diogo de Men-
donça Gôrte-Real, filho do ministro de D. João v,
conselheiro da Fazenda, Deputado à Junta da
Casa de Bragança, Provedor da Casa da índia,
e o valimento de que gozava junto da Princesa
Maria Vitória o velho e ilustre D. Lucas Giovine,
S6U mestre e primeiro assistente da Mesa, cujo
retrato ainda hoje se ve, ao lado do de David
Pérez, no sumptuoso teto da Sala das Talhas,
em Queluz. Assim nasceu o estatuto de i7-^i9,
que não chegou a ser impresso, e que os músi-
cos pombalinos julgaram perdido, como o de
1603, no incêndio que se seguiu ao grande ter-
MÚSICOS DE rAS\r\ DE SEDA 157
ramoto, — o que os determinou a reunirem-so
em junho (h^ 1765 em casa de Pedro António
Avendano, compositor de oratórias e de minue-
les. cuja cplebridade fácil obscurecera já a do
decrépito Giovine, para redigir o novo e ter-
ceiro estatuto da Irmandade. Gomo se teria salvo
do incêndio de Santa Justa o precioso original
áo Compromisso de 17i9 ? Quem, e com que
interesse, o teria subi ia ido e conservado em seu
poder, tão occulto, que a própria Irmandade o
julgou pasto das chamas ? Através de que vicis-
situdes viri'a o inlerjssaule documento parar,
cento e sessenta anos depois, ao ferro-vélho do
mercado de S. B;'nto, onde, por um feliz acaso,
o encontrou a erudita curiosidade do sr. Pery
de Linde ? Impossível sajjè-lo. O que é positivo
é êsty facto : a existência do Compromisso de
17i9 constitue uma revelação.
Mas não é ainda este o aspecto mais inte-
ressante porque pode ser estudado o códice a
que venho aludindo, o que lhe atribue um con-
siderável valor, ci.mo documento para a histó-
ria da música em Portugal, é a circunstância de
se encontrar junto ao Compromisso o respectivo
termo de aprovação com as assinaturas de 115
músicos profissií nais, alguns muito ilustres, que
exerciam a sua arte na velha Lisboa de D. João v.
Havia, evidentemente, muitos mais, — organis-
tas, cravistas, violinistas, castrati, bailarinos,
virtuosi^ liturgistas, contrapontistas, mestres-de-
J58 NA ARTE
solfa, conipdsilni-es, caiitoi-os de npei'H, molelis-
tas liií<Mr<>s, c.inlochcinislas capnchus, — iviiiiidos
nessas liíiiiíssinias colmeias musicais qiic foram,
em 17'jV), a Basílica Patriarcal, a Ópeni italiana
do Paço, o Seminário de música de S. Francisco,
o mosteiro do arrábidos de Mafra ; mas a falta
de espírito de associação era manifesta; inven-
cível, entre os pi'ofissionais da música, a repu-
^Miancia por toda a espécie de snbordinação a
preceitos estatnais: difícil a harmonia de inte-
resses e a comnnidade ds ânimos numa classe
constituida por elementos tão heterogéneos; e,
para salvar a Irmandade, ainda não se linha che-
gado ao extremo de cometer, como se fez mais
tarde pelo alvará de 15 de novembro de 1760, a
violência, de resto pouco eficaz, de proibir o
exercício da música, sob pena de doze mil réis
do multa pagos da cadeia, a quem não fosse ir-
mão da confraria de Santa Cecília. Entretanto,
os 115 nomes que subscrevem o estatuto de 1749
constituem já um importante subsídio para a
história da música portuguesa, tanto mais va-
lioso quanto é certo que, à grande maioria deles,
não fazem a menor referência os trabalhos dos
nossos musicólogos. Esses nomes ocupam qua-
tro páginas, a duas colunas, assinando à cabeça
o Provedor, Diogo de Mendonça Côrte-Pteal, que
depois havia de sofrer tão duramente as perse-
guições do grande Marquês; o primeiro Mor-
domo assistente, D. Lucas Giovine, capelão-fi-
MIISICOS DE CASACA DK SEDA IT,'.)
dal/LTO da Casa Rial: os Mordomos da Mesa; o
Tesoureiro; o SecF^etário ; os Procuradores da
Mesa e da Irmandadíí, e, em seguida, sem or-
dem de precedências, iridisliulamente, os irmãos.
Dos 115 músicos profissionais que ti^em as assi-
naturas no Compromisso de 17í9. 44 são estran-
íreiros ou de origem estrangeira — espanhóis,
franceses, na maior parle italianos, — e 71 pni--
tugueses. Dentre os nacionais. 25, admitidos nos
lermos da provisão de 5 de nuhibro de 1722, pz-r-
tencem ao clero regular ou secular, — número
exíguo, se atendermos ao formidáv»'] quadro dos
capelães-cantores da Basílica Patriarcal e aos
muitos seminaristas de S. Francisco e cantocha-
nistas arrábidos que se metiam a mestres-de-
solfa das casas fidalgas. No meio de nomes que-
nada hoje nos dizem, aparecem alguns dos co-
rifeus da música portuguesa setecentista: o cé-
lebre Espírito Santo, organista e mestre de ca-
pela da Bemposta; José da Silva Reis, violon-
celista da Capela Rial e excelente contrapori-
tista, secretário da Mesa da irmandade; Fran-
cisco Inácio Solano, o mais notável músico di-
dático do seu tempo; o violinista António Peco-
rário, cunhado do escultor Giusti; outro violi-
nista, o ilustre João Tomás Mazza, de Parma; u
napolitano Andréa Marra, violinista lambem; o
• antor Joaquim do Vale Maxilim; e algumas fi-
guras de dinastias célebres de músicos que se
fixaram em Lisboa, — os Paghetti (Francisco Ma-
160 NA ARTE
ria e João Raplista), íillios do violinista Alexíin-
dre l^iuli 'lli, que 1). João v contratou e que in-
troduziu na corte o gosto pela (Ji)era italiana; os
Biancai'di, pai e filho; dois Pelner; dois Avondu-
nos, — uni dos quais, Pietro Giorgio, 1.° violino
da Basílica Patriarcal, foi o pai de Pedro Antó-
nio Avendano, alma da Irmandade no período
pambalino, compositor galante a cujos perturba-
dores minuetes Twiss alude no seu livro Voyage
en Portugal. Faltam os nomes de alguns mú-
sicos conhecidos, entre os quais o de Francisca
António de Almeida. O glorioso autor da Finta
Pazza e da Spinalbas que tanto brilho deu à
Ópera do Paço da Ribeira, vivia ainda, mas era
quási octogenário. David Perez, esse, estava em
1749 em Milão. Só três anos depois, por diligên-
cias da Rainha D. Mariana Vitória, veio estabe-
lecer-se em Lisboa.
((\ER7vr) .)
Vou íalar-lhes dum poeta brasileiro.
E' preciso que Portuagl conheça o admirá-
vel, o surpreendente movimento literário do Bra-
sil contemporâneo, e que todos nós, homens de
letras portugueses, concorramos, na medida das
nossas forças, para essa indispensável obra de
vulgarização. E não apenas em proveito da lite-
ratura brasileira; em nosso próprio proveito, tam-
bém. No Brasil escreve-se melhor o portiigur.-^
do que em Portugal, — e os detentores da he-
rança vernácula de Vieira e de Bernardes (tenha-
mos a coragem de o confessar) não estão hoje
àquêm Atlântico. A floração de poetas é, então,
notabilíssima. Provam-no muitos volumes, re-
centemente publicados, que conservo sobre a mi-
nha mesa de trabalho, — e, mais do que todos
eles, um livro que acaba de aparecer nas mou-
ras do Rio e de S. Paulo, e que é a afirmação
11
162 NA ARTE
de um extraordinário talento de poeta: o Verão
de Martins Pontes.
Há muito tempo que a leitura dum livro de
versos não produzia sobre o meu espírito uma
tão viva emoção. Li-o duas, três vezes, domi-
nado, subjugado, deslumbrado. Julgo que a im-
pressão produzida no meio intelectual brasileiro
foi considerável também. Com o Verão, de Mar-
tins Pontes, está assegurada — diz Óscar Lopes
numa scintilante crónica do País — «a perma-
nência do máximo fulgor na poesia brasileira».
Depois de Olavo Bilac, de Alberto de Oliveira,
de Raimundo Correia, de Luís Mural, pontífices
máximos, nunca, que eu me lembre, o neo-par-
nasianismo brasileiro produziu páginas de um
tão ofuscante esplendor verbal. Não é fácil filiar
este livro em qualquer escola literária, ou subor-
diná-lo a qualquer das correntes dominantes na
grande poesia portuguesa contemporânea, — o
botticellismo de Eugénio de Castro, o heinismo de
Augusto Gil, o neo -romantismo de Fausto Gue-
des, o virgilianismo cristão de Correia de Oli-
veira; é um caso à parle, um facto literário iso-
lado, fundamentalmente, se quiserem, a obra de
um parnasiano, — mas de um parnasiano in-
tenso, exuberante, trasbordante de seiva, late-
jante de clarões, pujante de formas novas, de
ritmos novos, o mármore e o bronze do verna-
culismo sacudidos, animados pelo sangue, pelos
nervos, pela vida, pela vibração do génio. Não
«VERÃO)) 163
há, na obra de Martins Fontes, unidade de cr)n-
cepçâo nem unidade de filosofia: haverá, quando
muito, unidade de processo, se considerarmos
como lai a média entre duas tendências, — pro-
cura da simplicidade e da limpidez ateniense dos
conceitos, expressa na modelar poesia de aber-
tura— Parlhenon — e a preocupação do esplen-
dor, da ostentação, da opulência vocabular, que
atinge o máximo de beleza, de riqueza e de força
no mais notável poema do livro, simultàne^i-
mente uma das mais altas páginas da literatura
brasileira moderna: a Floresta da Água Negra.
Martins Pontes divide o seu livro em cinco par-
les: Poemas Olímpicos^ A natureza e o sonho. As
alraas e as estrelas. Palavras românticas, Ao
luar em surdina. A primeira parte, que palpita
e resplandece de toda a beleza pagã, é um mara-
vilhoso friso de dez métopos, ou sejam dez in-
comparáveis sonetos, seis heróicos e quatro ale-
xandrinos, onde, na luz doirada da velha Gré-
cia, entre ciprestes negros e loureiros sagrados,
passa a nudez viril de Apolo; o corpo branco e
olímpico de Anadiomene, Orfeu cantado, á
sombra roxa dos plátanos, entre bandos de égi-
pans semicapros e de ménades amorosas; He-
phaistos, o deus-ourives, que cinzela em Lemnos
o strophion de oiro de Afrodite; Diónisos, L-la-
bro e fulvo, ao som de crótalos, de sistros, d^'
címbalos de cobre, numa nuvem de sátiros e de
hespérides nuas; Pan levando à boca, lu luai- da
164 NA ARTE
Arcádia, a flauta em que se transformou a nu-
dez doirada de Siriux; Anfitrite que nasce; Ba-
bilónia que esplende; Frinéa, em Eleusis, sain-
do, branca, da espuma do mar; e, emfim, a
Afrodite de Mélos, a Vénus de França, — Vénus
quási latina. Vénus-flôr-de-lis, Salânia-Gioconda,
Virgem-Golombina, expressão contraditória de
serenidade imutável e de giaça perturbadora.
No seu conjunto, como visão estética e como afir-
mação de processo, estes dez baixos-relevos gre-
gos constituem a parte mais nobre, mais equili-
brada, mais harmónica de toda a obra, parecendo
a demonstração e a aplicação integral das re-
gras de arte-poética admiravelmente desenvolvi-
das na poesia de abertura, — Parthcnon: «sê
claro, puro, simples, correntio»; «aprende a
amar nos mestres do passado o culto heróico das
paixões serenas»; procura a limpidez; que nos
teus versos «a rima fulja, inédita, imprevista»;
que o estilo seja sóbrio e a frase justa, à simi-
Ihança «do fio numa trama de seda do Levante»;
«cinzela a estrofe, como' Pray Juan de Segóvia
rendilhando o relevo de prata de um sacrário»...
É, porém, na segunda parte que se encontra a
obra-prima de Martins Fontes: — A Floresia da
Agua Negra. Tenho pena de não poder transcre-
ver os duzentos e cincoenta versos deste poema.
— sem dúvida a jóia de todo o livro. É uma as-
sombrosa evocação dos sertões brasileiros adus-
tos e formidáveis, das suas florestas, das sua?
«VERÃO» 165
tempestades, dos seus pântanos espelhantes e te-
nebrosos como superfícies de hulha, da sua atmos-
fera espessa de oiro oleoso, — evocação feita
com um poder de dramatização da paisagem,
com um sentimento trágico da natureza que lem-
bra Rollinat. no Dans les Brandes^ e, sobretudo,
com aquele vigor, aquela intensidade, aquela so-
noridade, aquele vernaculismo, aquela opulência
verbal de que o Caçador de Bsineraldus^ de Bi-
lac, é o modelo supremo, e que só teem, que eu
saiba, o seu equivalente em prosa nos Sertões, de
Euclides da Cunha, e no Rei Negro, de Coelho
Neto. Comparando este trecho, que não hesito
em considerar dos mais belos que se teem es-
crito em língua portuguesa, com a adorável poe-
sia Simplicidade, inserta na última parte da obra
— duma leveza, duma fluidez, duma transparên-
cia, duma doce melancolia que recordam a Pluie^
de Verlaine — temos as expressões máximas das
duas tendências a que obedeceu, durante a ela-
boração do seu livro, o espírito magnífico de
Martins Pontes. Qual de elas triunfará, na sua
obra de amanhã? Há de dizè-lo o futuro, — e o
futuro, para Martins Pontes, é a glória.
NA HISTORIA
o FRADE TRINO
No dia 26 de novembro de 1731. das quatro
para as cinco horas da tarde, o brado de um
L^rande crime de morte comoveu a Lisboa tran-
quila, imunda e patriarcal do segundo quartel
do século XVIII. O cirurgião francês Isaac Elliot,
encontrando a mulher nos braços de um frade
trino, assassinara-os a ambos. Do sangrento
caso. ocorrido na própria morada do cirurgião,
à rua do Outeiro, vem larga notícia no códice
n.° 1161 da Torre do Tomho^ o que me permite
fazer, a dois séculos de distância, a reconstitui-
ção do crime — segundo uma versão um pouco
diferente da adoptada por Camilo Castelo Branco.
Isaac Elliot era, como diríamos hoje. o ope-
rador mais feliz de Lisboa. Tinha conhecido,
ao estabelecer-se na corte, as velhas práticas ana-
crónicas da cirurgia portuguesa, imobilizadas,
depois do génio operatório de Francisco GuUher-
170 NA HISTÓRIA
me. na rotina tradicional dos cirurgiões do sé-
culo XVII, e decidira revolucioná-las a golpes de
talento o dé audácia. A fortuna bafejou-o. Dian-
te dos seus tacões encarnados e da sua maravi-
lhosa cabeleira de França, fugiram, espantadas,
as lobas negras de todos os sangradores de Lis-
boa criados na Prática de Barbeiros de Manuel
Leitão. Poucos anos depois da sua chegada à
corte, Elliot ganhava já, pela sua faca, cinco mil
cruzados por ano; D. João v, que o chamara
para lhe curar os tumores do pescoço, concedia-
Ihe, com uma bôa tença, a mercê do hábito de
Cristo; uma das mais lindas mulheres de Lis-
boa, namorada da elegância do cirurgião fran-
cês, tão distante já da capa e volta dos discípu-
los de António Baião, levava-lhe nos baús do en-
xoval, em bons sacos de dobras de oiro, o me-
lhor de quinze mil cruzados. Este casamento,
em que Isaac Elliot viu uma arma para a sua
ambição, — foi, afinal, o primeiro passo para a
sua desgraça. Dona Antónia — que assim se cha-
mava a mulher — uma frança trigueira de 1730,
nascida para enfiar pérolas e enfeitada como
um pucarinho do Natal, não se esqueceu de tra-
zer para a morada da rua do Outeiro toda a gente
que em solteira lhe continuava a casa, e, com
mais frequência, as irmãs de certo frade trinitá-
rio, Frei André Guilherme, costumadas, desde
meninas, a acompanhá-la todas as tardes à me-
renda. Atrás das irmãs, veio a mãe; atrás da
II
o FIL\DE TRINO 171
mãe, veio o frade; e, daí a pouco, com escân-
dalo da vizinhança, já entrava o frade sozinho.
L'm a mãe e sem as irmãs. Principiou-se a mur-
murar. Muitos achavam que Frei André Gui-
lherme era moço e descomposto de mais para
doutrinar no amor de Deus uma mulher como
Dona Antónia; outros entendiam que os frades
não tinham idade, e que a majestade do hábito
testava acima das más línguas do mundo; alguns
vizinhos da porta, afeitos a não ver sair Isaac
Elliot sem as pistolas nos coldres, juravam que,
mais dia menos dia, o padre bailava no inferno.
Assim foi. Uma tarde, o cirurgião, avisado pelo
criado francês que o acompanhava sempre, vol-
tou inesperadamente a casa: abriu a porta, de
repelão; entreviu, sobre um espreguiçadeiro de
damasco, o vulto branco dum frade trino abra-
çado à mulher; cresceu para os dois, como uma
fera; despejou-lhes duas vezes as pistolas no
peito; e emquanto o cirurgião, à ponta de es-
padim, acabava barbaramente Dona Antónia, —
o criado, brandindo as faces do ofício, saltou
sobre o corpo arquejante de Frei André, cal-
cou-o, voltou-o, ferrou-lhe um joelho no ventre,
e cego de fúria, possesso de crueldade, feriu,
cravou, dilacerou, retalhou. Os dois cadáveres
ficaram numa poça de sangue, um de-bruços so-
bre o outro, junto de um pote de prata cheio de
imundícies. Estava consumado o crime. Isaac
Elliot e o criado, perseguidos de perto por dois
172 NA HISTÓRIA
beleguins de saltimbarca e chuço, saltaram por
uns quinchosos e foram pedir asilo ao converto
de S. Francisco. Durante algumas horas, acolhe-'
ram-nos na portaria; mas, logo quo se soube na
cela do guardião que o assassinado fora um fra-
de, enxotaram-nos, atiraram-nos de roldão pelas
escadas, e os dois fugitivos, de noite, embru-
lhados no rebuço dos capotes, os cabelos ainda
empastados de sangue, dois sacos de dobrões ti-
nindo-lhes à cintura, atravessaram o terreiro do
Rocio em damanda do mosteiro de S. Domingos.
Aí, alegando que a morte-de-homem fora por
crime de adultério, conseguiram abrigo até de
madrugada; lançados, com sol nascido, pela
porta do convento que dava para o Hospital de
Todos os Santos, ainda a piedade dum homem,
de nome Pedro Gonçalves, lhes cobriu a fuga
para a igreja de S. Luís; — mas em S. Luís fo-
ram presos. Era o princípio do fim. As Orde-
nações^ livro 5.°. título 25. não davam ao ma-
rido afrontado o direito de defender por suas
mãos a própria honra. Isaac Elliot, por senten-
ça da Mesa da Consciência e Ordens, de 2 de
junho de 1732, foi privado do hábito, tença e tí-
tulo, relaxado à justiça e cúria secular, — e. seis
meses depois, perante as lágrimas dum pobre
padre catalão de Rilhafoles, enforcado na rua
do Outeiro, diante da mesma casa onde cometera
o crime. Durante muito tempo, a cabeça do ilus-
tre cirurgião francês, decepada e pregada no
o FRADE TRINO {"^S
alto do patíbulo, ficou apodrecendo à chuva e
ao sol. Emquanto ela lá esteve, os vizinhos, eri-
çados de terror, contavam a quem queria ouvi-los
que uma figura branca de frade, a cruz verme-
!iia e azul dos trinos aberta no peitoral do hábito,
vinha todas as noites gemer em volta da forca de
T-anc Elliot...
l
S. MIGUEL ARCANJO
Os documentos que o Dr. António Teixeira
Coelho de Vasconcelos, da ilustre Casa de Côr-
tinhas em Cabeceiras de Basto, acaba de ofere-
cer-me com destino aos Arquivos do Estado, vêem
projectar uma inesperada luz sobre a história,
obscura ainda, do movimento miguelista de 1846-
1847, que teve como consequência o massacre
de Braga e a triste jornada de Guimarães, e
cujo último lampejo se extinguiu, nas serranias
de Trás-os-Montes, com as guerrilhas heróicas
do Padre Casimiro e de Frei Manuel de Agra.
É opulentíssima esta colecção. São cerca de
trezentas peças, que estudei logo que as recebi
das mãos do meu amigo Dr. Castro e Almei-
da, e entre as quais se encontram, além do co-
piador de Anelhe e do sinete com o selo do Go-
verno Provisório de Basto, cai'las muito inler.fs-
S. MlGtrEL ARCANJO i"/;)
santes do rei exilado; do conde de Almada; de
Ribeiro Saraiva; do Doutor Sacra-Painília; do
Doutor Cândido Rodrigues Alvares de Piguei-
(lo e Lima, logar-tenenie de D. Miguel em
j'Mrtugal e organizador do movimento revolu-
i tnário de 46; do egresso Frei Francisco da
ilividade de Maria, seu confessor, alma dn
mmplot miguelista; do Samoça; de Alpuim o
.Menezes; do enérgico e rude Frei Manuel An-
tunes; do secretário Carneiro; do guerrilheiro
Frei João do Carmo; dos brigadeiros Guedes e
Bernardino; dos fidalgos das casas do Souto,
de Singeverga, da Granja de Ribas ; do comen-
dador António Taveira Pimentel de Carvalho,
chefe da dissidência legitimista de 1851, o ho-
mem que fez dissolver a célebre "Junta de Mar-
fo-Mirélio», que foi a alma do triste pacto com
patuleia, e que não concorreu pouco para ate-
nuar a força política da mais medularmente na-
cional de todas as facções partidárias portugue-
sas do meado do século xix: o miguelismo es-
treme, corcunda, apostólico e tradicional. Que
' lo livro dorme nesta ruma de papeis velhos,
como eu gostaria de ter saúde e tempo para o
f: 5 c rever!
K Há no copiador de Anelhe uma carta do pa-
dre Casimiro, que me impressionou. É uma pá-
irina de história. É o documento duma fé. duma
1 orgia e dum carácter. Escreveu-a em 185? o
audacioso guerrilheiro ao Doutor Sacra-Pamília,
176 NA HISTÓRIA
confessor, secretário e assistente de D. Miguel,
que então se encontrava com o rei no palácio
lontiínquu de Laniiiicnselbold. Lateja, nela a mes-
ma exaita(;ão mística, o mesmo 1'orte espíiilo de
reacção apostólica, que pareceu renascer um mo-
mento, setenta anos depois, na figura do padre
Domingos. Através das suas palavras ao mesmo
tempo másculas e humildes, sente-se aperrar ar-
mas, crepdar fogueiras, murmurar orações. (Juer
que o rei saiba tudo, — quem ele é, como ôle so-
freu, como èle matou pela santa causa. Gonia
como em maio de 1846 saiu pela piámeira vez
a campo com todo o povo do Minho e de Trás-
os-Montes, que o aclamava, que o beijava, que
o proclamava general e defensor das Ginco-Cha-
gas. No meado do mês tinha já trinta mil ho-
mens em volta de Braga. E não cuidasse a Sa-
cra-Pamilia, nao cuidasse o rei que eram se-
tembristas. Não! O povo queria lá ouvir falar
em chefes da patuleia, em Montalvernes, em
Bentos Gomes, em Motas, — raça danada, tão
bôa ou tão má como os Gabrais! O chefe era
só èle, o ídolo era só ele, padre Gasimlro. Gho-
ravam quando o viam, cobriam-no de flores, can-
tavam hinos em seu louvor. O bom povo, o liai
povo braguês! Ghegou em triunfo a Ruivães:
Montalegre coalhou-se de gente para o ver pas-
sar; armada de foices, de cacetes, de navalhas,
de mosquetes velhos, a multidão queria acom-
panhá-lo se èle marchasse para Ghaves, a ala-
S. MIGUEL ARCANJO 177
car Vinhais. E nSo eram só os homens; eram
as mulheres também, as lindas mulheres de Sa-
lamonde e da Ribeira de Sonas, que deixavam
tudo, lar. marido, filhos, para seguir atrás dele,
desgrenhadas, de clavina nas mãos. O bom povo,
o liai povo transmontano! Quando, quási aban-
donado, se recolheu a Vieira, o Antas marchou
de Lisboa com uma brigada de mil e seiscentos
soldados, para o cercar, para o caçar como a um
lobo. Era ôl6 o terror. Era êle o espectro duma
rialeza de seis séculos, arrastando o seu manto
pela urze negra das montanhas. Marchava com
um rosário e um arcabuz nas mãos. Se quisesse
— conta èle ao rei — teria levado cem mil ho-
mens às portas de Lisboa. Até um regimento
espanhol, sublevado na Galiza, se lhe fora apre-
sentar em massa, oficiais à frente, ao seu pobre
passal de Vieira. E depois! Depois, no movi-
mento de novembro organizado pelo Doutor Cân-
dido, o santo, o virtuoso logar-tenente do seu
arcanjo S. Miguel! Ao seu brado de armas, os
estudantes, os artífices, o povo inteiro de Braga
e das aldeias correu a juntar-se-lhe, como iima
só alma, como um só coração. Quem se opôs
a que êle, padre Casimiro, sozinho, sem dinhei-
ro, levantasse contra saldanhistas, contra setem-
bristas, contra todos, — milhares e milhares de
homens? Mac-Donell, o próprio Mac-Donell co-
mandante das forças miguelistas de Braga, —
Mac-Donell, o traidor. O padre Casimiro, do alto
12
178 NA lIlSTÓRn
dos seus serviços, do seu prestígio, do seu de^
sassombro, — acusa. Mac-Donell, o escocês, era
um maçon. O seu nome andava, em Paris, nos
almanaques dos pedreiros-livres. E porque era
um maçon, um vendido, impediu-o, a êle, de le-
vantar gente armada contra os clubistas, contra
os d evo ri st as, contra os Co burgos de Lisboa.
atraiçoou, abriu as portas a Cazal, preparou o
massacre tremendo de Braga em 31 de dezem-
bro,— e por engano, por equívoco, por confu-
são, por castigo de Deus, foi morrer, caminho
de Vinhais, às mãos duma patrulha. Que o Dou-
tor Sacra-Família não deixasse de o repetir ao
rei: a coroa resvalára-lhe mais uma vez da ca-
beça, porque Mac-Donell era um traidor. Afir-
ma-o êle, padre Casimiro, com a autoridade mo-
ral de quem jogou a vida. de quem perdeu os
bens. de quem viu morrer pai e irmão, de quem
andou homisiado, a monte como os lobos, —
pela causa sagrada de D. Miguel. Não quer hon-
ras; não quer dinheiro, porque só aceitou vinte
mil réis para seis arrobas de pólvora: quer um
rei português para Portugal, e jura que há-de
continuar a bater-se, com a cruz e a clavina nas
mãos, até ver de todo edificados os muros da
nova Jerusalém.
Pobre padre Casimiro! Ingénuo Du Guesclin
do miguelismo expirante! Pouco tempo andado,
— a íé extinguia-se, miguelistas e patuleias con-
fraternizavam, germinava a semente da dissi-
S. MIGÍIFL ARCANJO iTê
• lencia c da intriga, da defecção e do ódio, e a
pobre sombra do guerrilheiro de Vieira, abra-
çada ao seu arcabuz e ao seu rosário, dissipa-
va-se para sempre, como fumo.
i
A MORTE DE D. JOÃO VI
D. João VI morreu envenenado?
Esta pergunta tem sido feita várias vezes.
Logo que o rei adoeceu, no dia 4 de março de
1826, a paixão política atribuiu imediatamente
a enfermidade de D. João vi a uma acção cri-
minosa. O pobre monarca, obeso, artrítico, ba-
lofo, com o beiço pendente e as úlceras maleo-
lares dos Braganças e dos Habsburgos, fora ví-
tima do duelo apostólico-liberal travado em volta
do trono. O carácter da doença, a sua aparição
súbita, o seu duplo síndroma nervoso e gastro-
intestinal, os delíquios, as convulsões, os vó-
mitos, avolumaram a suspeita de veneno. Quem
o propiciara ao rei? Para os apostólicos não
havia dúvidas: os liberais. Para os liberais não
havia dúvidas também: a rainha. Quando D.
João VI morreu, a questão foi, por ambas as
partes, posta com ódio, com facciosismo, com
A MORTE DE D. JOÃO VI ISI
rancor. Os médicos e cirur^^iões da câmara ti-
nham assassinado o monarca. Por ordem de
quem ? Do Intendente Rendufe, — diziam os «cor-
cundas». De Carlota Joaquina, — afirmavam os
pedreiros-livres. Durante muito tempo, os dois
partidos atiraram-se à cara, mutuamente, o ca-
dáver do rei. O crime, para uns e para outros,
t-ra evidente. Pôra a água tofana vinda de Ná-
poles,— de que já morrera o cozinheiro Gai-
tano. Pôra o veneno do Brasil trazido pelo ci-
rurgião Teodoro de Aguiar, — que já apressara
a morte ao conde de Vila Verde. Chegou-se a
afirmar que o rei, oficialmente morto no dia 10
de março, já era cadáver desde o dia 6. É José
Agostinho de Macedo que o afirma, três anos de-
pois, na Besta Esiolada: «Expirou a 6 de março
pelas quatro horas e meia da tarde; os almudes
de vinagre canforado, que corriam em ondas por
aqueles pavimentos manchados com o mais atroz
de todos os delitos, e a incessante sentinela do
filho do Noli me tangere do Porto, quero dizer
o Rendufe, à porta, e a vista da Rial Alcova,
ainda estão mostrando a verdade e a atrocidade
de tal crime». A morte repentina do Barão fi-
sico-mór, o velho Alvaiázere, que ousara falar no
veneno ministrado ao rei, teve o valor duma
confirmação. O suicídio do cirurgião brasileiro
Aguiar, ocorrido algum tempo depois, foi consi-
derado um acto de desespero e de remorso. Um
cortejo de mortos acompanhava o féretro de D.
488 NA HISTÓRIA
João vi. Havia, de facto, um criminoso? Se ha-
via, — onde estava êle ? Em Lisboa ou em Que-
luz? Na Intendência de Polícia ou na sala D.
Quixote? Era Rendufe ou era a rainha?
Não é fácil responder. Os indícios abundam;
mas faltam as provas. Vejamos primeiro a ver-
são oficial. Sigamos, através dessa versão, a
marcha dos acontecimentos. No dia 4 de março
de 1826, o rei, antes de entrar na coche que o
havia de conduzir a Mafra, tomou um caldo.
Repentinamente, sentiu-se mal 'e não partiu.
Que se passou depois ? Referem-no, com im-
pressionante laconismo, os 27 boletins afixados
e publicados na Gazeta de Lisboa. O primeiro,
datado do Paço da Bemposta, 5 de março, às 8
horas da manhã, e assinado por sete médicos,
diz o seguinte: «Sua Majestade Imperial e Rial
teve no dia sábado quatro do presente mês de
março uma indigestão, acompanhada de insul-
tos nervosos, que momentaneamente duravam, e
dos quais, a benefício dos remédios que se di-
gnou tomar, se acha melhor actualmente)). Nada
mais. O segundo e terceiro boletins, referentes
ao dia 5, limitam-se a declarar que os insultos
nervosos não se repetiram. Os dois boletins do
dia 6 dizem que o rei piorou: um ataque às 5 da
manhã; novos ataques do meio dia às 2 horas,
«um deles tão violento que se receou muito pela
preciosa vida de Sua Majestade)); o rei é ungido;
das 2 e meia da tarde em diante, sonolência
A mohtf: de d. j(i\() vi 183
profunda (cama?). É neste dia, e neste estado,
que D. João vi assina o decreto nomeando a
reí^ôncia e entregando o governo à filha mais
velha. No dia 7 publicam-se boletins de quatro
em quatro horas: dizem todos, invariavelmente,
que o rei está melhor. O mesmo no dia 8: os se-
te boletins que se afixam, declaram-no livre de
perigo. No dia 0. a informação da tarde volta a
acusar um insulto nervoso às seis horas. No
dia 10, pela manhã, D. João vi tem «um delíquio
que demora 10 minutos»; à 1 hora e 17, novas
convulsões, que se repetem às 2 horas. O úl-
timo boletim, datado ainda do Paço da Bem-
posta, 10 horas da noite do dia 1, anuncia a
morte do monarca: «Sua Magestade Imperial e
Rial, que Deus há em glória, tendo continuado
a sofrer repetidos insultos nervosos, sobrevieram
amiudadamente três, dos quais o primeiro come-
çou às quatro horas da tarde com grandes an-
siedades; o segundo ás quatro horas e um quar-
to, e durou quatro minutos; o terceiro princi-
piou às quatro horas e vinte e cinco minutos,
terminando desgraçadamente por uma síncope,
à qual se seguiu a morte mais calamitosa para os
Portugueses (infelizmente verificada até pelas ex-
periências eléctricas) às quatro horas e quarenta
minutos». Por conseguinte, ataques às 8 e meia,
à 1 e 17, às 4, às 4 e um quarto, às 4 e 25;
IS 4 e 40, síncope cardíaca; morte. Eis tudo
quanto oficialmente se soube. José Agostinho
18A NA HISTÓRIA
de Macedo, na Besta Esfolada^ faz-se eco da voz
do povo; diz que D. João vi morreu no dia 6, e
afirma que o último boletim foi forjado pelo ci-
rurgião brasileiro Aguiar. Ora isto não é ver-
dade, porque o documento que acabo de trans-
crever, publicado na Gazeta do dia li, está assi-
nado por doze dos mais ilustres médicos pala-
tinos: o barão de Alvaiázere, fisico-mór, e os dou-
tores Bernardo José de Abrantes e Castro, Fran-
cisco de Sousa Loureiro, Mariano Liai da Câmara
Rangel de Gusmão, Francisco José de Almeida,
Joaquim Xavier da Silva, José Pinheiro de Frei-
tas Soares, Francisco Alves da Silva, João To-
más de Carvalho, Inácio António da Fonseca Be-
nevides e Joaquim Félix de Barros. Se os mé-
dicos da rial câmara, por conveniências de or-
dem politica, se prestaram a dar como tendo
ocorrido no dia 10 um óbito presumivelmente
verificado quatro dias antes, fizeram-no sob a
responsabilidade do seu nome e com a plena
consciência do acto que praticavam. O que im-
pressiona no documento sujeito não é a ques-
tão da sua autenticidade; são as reservas com
que êle está redigido. Não se diz de que doença
D. João VI morreu. Alude-se vagamente a «in-
digestão», a «ansiedades», a «insultos nervosos»,
— quer dizer, a perturbações gastro-intestinais
e a fenómenos convulsivos de carácter indeter-
minado, mencionando-se apenas o acidente ter-
minal: a síncope. Tratar-se-ia de um caso vulgar
A MORTE DE D. JOÃO VI 185
de urémia aguda? Tratar-se-ia de um crime?
Pelos elementos que a versão oficial nos fornece,
não é fácil, como, se vê, formar um juízo seguro.
Há. porém, versões não oficiais acerca da
morte de D. João vi, que esclarecem melhor o
raso. Uma delas tem especial interesse. É. de
todas as que correram., a menos impregnada de
ódios políticos. Encontrei-a num folheto de au-
tor ignorado e de carácter acentuadamente apos-
tólico, escrito em francês, publicado em Lisboa
ejn 1832, e intitulado Memoires sur le Portugal.
O autor, que parece ter conhecido de perto os
homens políticos do seu tempo, não contesta que
D. João \i sucumbisse a doença. Acha mesmo
natural que o facto de se haverem fechado de
repente as úlceras que o rei tinha nas pernas, de-
terminasse os acidentes observados no dia 4.
aDepuis quelque temps, la santé du roi donnait
des inquièíiíudes; des plaies quil avait aux lam-
bes s^étaient fennées^ et il reíusait de se sou-
mettre aur r^nnèdes qui pouvaient prevenir
de funestes resultais. Des mcdecins aon suspects
pensent que ce put étre la cause de sa mort^ el
touí homme irnpartial doit le croire, à défaut de
preuves positives du contraire,). Nilo foi o ve-
neno que produziu, segundo o autor francês anó-
nimo, a doença de D. João vi; mas — e aqui a
sua afirmação é categórica — foi uma poção mi-
nistrada ao rei, no dia 6, que lhe apressou o
fim. Quem lha deu? Um médico da rial cá-
186 NA HISTÓ1U\
mara, ninicié aux sociétés sécrètes», ((recom-
pense avec des titres et de Vargenh). ((exer-
çant hl pJus scandaleuse inlhience snr les af-
faircs de l'Etat))- — em quem não é difícil re-
conhecer o doutor Francisco José de Almei-
da, médico palatino honorário, depois barão
de Almeida. Quem foi o seu cúmplice? (dln
chirurgien brésilien^ nouimé depuis chargé d^af-
iaires du Brésil en Portugah, — que-r dizer, o
cirurgião da câmara Teodoro Ferreira de Aguiar.
A história tem um pouco de Rocambole. Veja-
mos. No dia 6 — e isto concorda com a infor-
mação dos boletins — D. João vi piorou; os ata-
ques sucederam-se; o rei caiu em sub-coma.
Os liberais do governo, ou, mais propriamente,
o complot Lacerda-Rendufe, temendo que a
morte próxima do monarca trouxesse a regência
da rainha, o regresso de D. Miguel e a vitória
dos ((corcundas», lavraram o decreto que entre-
gava o governo à infanta Isabel Maria e no-
meava regentes, com os secretários de Estado, o
duque do Cadaval, o marquês de Valada e o
conde dos Arcos. Era preciso que o rei assi-
nasse esse decreto. Reclamava-o a causa dos li-
berais. Exigia-o o próprio ministro de Ingla-
terra. Mas como obter a assinatura dum mori-
bundo ? Gomo despertar D. João vi do seu le-
targo? É então, diz o autor das Memoires sur
le Portugal, que o médico Almeida intervém.
((// réunit ses collegues, ei les consulta snr les
A MORTE DE D. JOÃO VI 18'
moyens de.renére au roi assez de force pour si-
(jner un acte d'oii dcpendait la tranquillité de
lÊtat. Un deux lui rappella que, peu dannées
avant, 1e comte de Villa Verde etant à Vextré-
mité, il lui avair donné, par ordre exprès de
Je(m VI lui méme. une poíion qui Vavait ranirné
de manière à ee qu'il put indiquer ou se trou-
vaient des papiers dont la possession importait
au roi: mais que^ si cette poíion n^avait pas cause
la raort de ce seigneur, elle iavaít du rnoins acce-
lerée; qu^elle produirait sans doute le mème ef-
fect sur Jean VL e/, qu\ine telle responsabilité
ne laissait pas d'étre clfrayante. Le medecin qui
avait provoque cette conférence, la termina bien-
tòt; et, secondé par un chiruryien de la cham-
bre, sujet Brésilien qui avait su capter la con-
{iance de Jean VI, il fit prendrc au roi, sans plus
hcsiter, la fatale potion. Ce malheureux prince
par-ut en effect se ranimer; il rcprit quelque con-
naissance, et Von se hâta d'en profiter: mais à
peine eut-il jetc les yeux sux le papier quon lui
présentait^ qu'il le repoussa: d^horribles convul-
sions terminèrent ce prcmier essai. Dès qu'on
le vit un peu plus tranquille. on recommença;
cette tentative fui suivie d\in nouvel accident.
Le mornent était critique: la potion allait agir
dans toute sa violence; il fallait en finir. On
écarta sévérement tous les temoins qui netaihni
pas interesses au silence^ et on se rendit maitre
ainsi des derniers mtnrif iits de Jeati 17. Le dr-
188 NA HISTÓRIA
crét fut signé. Comment ? Cest ce que Von
ignore; c'est ce quon im/igine avcc horreur.))
Não sei se esta admirável scena de tragédia
política se passou como o autor a descreve. No
fundo, tratar-se-ia de um vulgar facto clínico:
a administração de um estimulante enérgico a
um doente prestes a morrer pelo coração ou
pelo rim. Que estimulante era esse? Em que
dose- foi dado ? Quais as intenções reservadas
de algum ou de alguns médicos palatinos ? Im-
possível sabê-lo hoje. Se houve crime, as pro-
vas faltam. O autor das Memoires diz que se fez
anatomia ao cadáver rial e que se encontraram
vestígios de veneno. (^A Vouveríure de son corps,
des chirurgiens experimentes reconnurent les
traces d^un poisou aciil et brulant: provenaient-
elles de la potion quon avait fait prendre à
Jean VI. oú etaient-elles le resuUat d'un crime
anterieur?)) Procurei o relatório da autópsia.
Encontrei outros, — entre eles o de D. Pedro iv.
Não encontrei o de D. João vi. Ou não chegou
a abrir-se o cadáver do rei, — ou o documento
desse acto, possivelmente comprometedor, desa-
pareceu.
o SARAMBEQUE
Nô propósito (ie estudar, em toda a extensão
do seu pitoresco, a vida da sociedade portuguesa
do século XVIII, fiz reconstituir, no Conservató-
rio, uma das danças tradicionais dos séculos de
seiscentos e de setecentos. Chama-se essa dan-
ça— o «sarambeque». É um bailado de movi-
mentos vivos, saracoteado, desnalgado, menos
grosseiro do que a «fofa» dos alfamistas e das
regateiras do tempo de D. João v, mais rápido
e mais vivaz do que a «chacoina», o «oitavado»
ou o «Zabel-Macau». Dançaram-no seis «gaivo-
tas» de josèzinhos encarnados e lenços bicudos
de cambraia, e sei:^ «francelhos-móres» do tem-
po de Filinto, com as suas casacas de seda, os
seus bicornes enormes, as suas gravatas «de es-
peque», os seus brincos nas orelhas, o seu óculo
de punho de prata, —degenerescências beatas
e apostólicas do terrível incroyable da Revolu-
190 NA HISTÓRIA
ção. Baleií-lhe os ritmos, num cravo de oitav.i
larg:a, o talento de Hermínio Nascimento. Ro-
constituiu-lhe as marcas — ou as ((mudanças».
como se dizia no século xviii — a competência
de António Pinheiro. E a velha dança, que em
1730 fizera tremer de indignação na sua púr-
pura o nobre cardeal da Cunha, — teve um su-
cesso.
O que era o ((sarambeque» ? Qual foi a sua
história ? Sâo poucos os documentos que se
referem a esta dança e poucas as indicações
subsistentes àcêrca dos seus «passos» e «figu-
ras». O que parece é que, como a «fofa», como
o «canário», como o «arromba», como o «arre-
pia», era uma dança originariamente portu-
guesa. Estava em plena moda no meado do sé-
culo XVII, — e o povo ainda delirava com ela, na
procissão do Corpus Chrisii^ ao fim do século
xviii. Ao passo que a «galharda», o «pé de chi-
báo», a «pavana rica» morriam ao expirar de
seiscentos, — o «sarambeque» batia-se com as
«cheganças» no tempo de D. João v, disputava
o sucesso ao «fandango» no consulado pomba-
lino, e dançavam-no ainda, no tempo dos fran-
ceses, com a mesma fúria esbelta, desnalgada
e brejeira, os spencers azuis bordados de oiro
dos oficiais de Junot e os encantadores capo-
tes encarnados que deslumbraram, no princípio
do século XIX, a viva duquesa de Abrantes. A
vida do «sarambeque» durou, pelo menos, sé-
s\R\MnFQT-r: 191
culo e meio. A princípio, bailavam-no as senho-
ras fidalgas, por passatempo, nas suas câma-
ras e orat(3rios. Mas logo a moral de mosteiro
o de cavalariça que caracterizou o século xvii
português, condenou, como demasiado desenvol-
ta, uma dança que à similhança da «sarabanda»
se bailava com os braços e com as pernas, sa-
pateando e estalando castanholas à volta dum
tapete ou duma esteira. O primeiro a fulminá-la
foi D. Francisco Manuel, discutindo, na Carta
de Guia de Casados^ os passatempos permitidos
às esposas: «Não louvo o trazer castanhetas na
algibeira, saber jácaras, e entender de mudan-
ças do sarambeque, por serem indícios de desen-
voltura». Essa desenvoltura fundamental fez,
daí por diante, a fortuna da antiga dança seis-
centista. O «sarambeque» desceu ao povo; pas-
sou dos tacões vermelhos das «franças» para os
socos de pau das maranhôas; invadiu as hortas
do Catavento e os terreiros da Mouraria; fez
as delícias dos picões do Mocambo e dos car-
pinteiros da Ribeira das Naus, — e farto de sa-
racotear-se atrás do pálio doirado das procis-
sões, ao lado dos mochatins e do rei David, sur-
giu, no meado do século wni, inesperadamente,
bravamente, em plenas toiradas fidalgas do Ter-
reiro do Paço. Em 1752 vêmo-lo, preferido pelo
povo, adorado pelo povo, dançar-se perante as
nobres tranqueiras de toiros que o marquês de
Abrantes levantara vm honra de el-rei D. José,
lOj NA HISTÓRIA
Um folheto de cordel aMapa curioso das visto-
sas entradas e danças que hão-de preceder aos
combates de touros que no Terreiro do Paço se
hão-de combater nos primeiros dias))^ dá-nos a
impressão da grosseira folia popular em que se
teria transformado, no terceiro quartel do sé-
culo XVIII, o aristocrático «sarambeque» de 1650:
*Outra flavça se cobiça
E ãiz^m que há-de ir à praça :
A dança do sarambeque.
Emfím. haja sarambeque,
Dancem., tremam , dêm ao beque,
Que é isso que o povo quer.>
Foi precisamente a forma plebeia do «saram-
beque» que eu fiz reconstituir no Conservató-
rio. É curioso que, na evolução desta dança,
se dá exactamente o contrário do que se deu na
evolução da «fofa». A «fofa», que é, no seu iní-
cio, uma dança de negros, «/a plus indecente
chose que faye jamais vuc))^ diz Dalrymple em
1774, reaparece, com o néo-niarialvismo de 1830,
entre as contradanças francesas e os caldos de
galinha de Queluz, transformada numa dança
de sala; o «sarambeque», pelo contrário, dança
aristocrática do século xvii, bailada, como a
«galharda» e a «pavana», com os garavins de
pérolas e as anquinhas bojudas de Velasquez
e de Pantoja de la Cruz, resvala das hortas para
o SARAMBEQUK 193
as toiradas, das procissões para as ruas-sujas,
e morre em pleno carnaval de 1820, em pleno
Entrudo dos casacas-de-briche. deixando atrás
• ie si um tipo imortal: o Ché-Chc
UM DIPLOMATA
Como se sabe, a França, ou melhor, Bonapar-
te, mandou a Portugal em 1802, como enviado
extraordinário e ministro plenipotenciário, o mais
grosseiro e insolente dos seus generais: João Lan-
nes. Não era um diplomata; era um arrieiro.
Não era um homem: era uma tempestade de
má criação. Pois bem. Do copiador dos seus
ofícios ao ministro Talleyrand, que tenho aber-
to diante de mim e que é pouco menos que des-
conhecido, conclue-se que o general Lannes,
moço de cavalariça boçal que Napoleão fez du-
que de Montebello e marechal de França, se
queixou amargamente ao ministro e ao primeiro
cônsul de que viera encontrar em Lisboa, com
espanto seu, um homem ainda mais insolente e
mais mal educado do que êle. Pois era difícil.
Sabem quem foi esse homem ? O Intendente
de polícia, Dicgo Inácio de Pina Manique. Não
UM DIPLOM\TA 195
é caso, evidentemente, para que o nosso senti-
mento patriótico se exalte; mas ainda é conso-
lador, como justa expressão do orgulhu nacio-
nal, saber que houve, na Lisboa timorata e
;ip(>st<')lica de 1802. quem batesse o pé ao mais
violento e ar» mai^ brutal dos generais de N.i-
[M.)|eãu.
Na rápida leitura que fiz dele, afigurou-se-me
iiuiito interessante o copiador de ofícios de
Laiiues. Abrange os dois períodos de residên-
lia do herói de Marengo e de Stradella em Lis-
Itoa: o primeiro, de março a agosto de 1802; o
segundo, de março de 1803 a julho de 1804. A
propósito das suas reclamações junto do governo
português nos casos de M.'"^ de Entremeuse e
do negociante Lucalelli, de M.®"^ Agathe e de
Pascal Telon, e, nmito especialmente, acerca do
contrabando que Pina Manique lhe não deixava
iazer, ' descompõe para França o Regente, os
niinistros, a corte, o Intendente de polícia, mal-
sina tudo. intriga tudo, calunia tudo, e acaba
por convidar o primeiro-cônsul a empreender
a conquista sumária de Portugal, naturalmente
para que Sua Excelência o enviado extraordi-
u.lrio de Bonaparte pudesse, com mais facilidade,
furtar aos direitos as fazendas de contrabando
que vendia em Lisboa aos negociantes Leguer,
Lucatelli e Maisonneuve. Mas o que é mais cu-
rioso ainda do que todas as violências e todos
"S insultcís, é o conceito político que o general
196 NA HISTÓRIA
Lannes formava dos homens que, em Portugal,
exerciam o governo. As suas opiniões sobre D.
João VI, sobre D. João de Almeida, sobre D. Ro-
drigo de Sousa, não falando já no seu inimigo
Pina iManique, — são incisivas, rápidas, pitores-
cas, muitas vezes incoerentes. De D. João vi, faz,
em março de i802, este retrato, que vai no ori-
ginal francês para não perder o sabor: aQuant
au Prince, il est completement nul, sa seule oc-
cupation est la chasse et son unique plaisir esl
de chanter au lutrin et de s'y faire applaudir
par les moines )). Alas como o Regente, com
medo dele, o enche de jóias, lhe dá o seu re-
trato rodeadO' de diamantes, e é padrinho do fi-
lho que lhe nasce em Portugal, — Lannes con-
verte-se, mente, elogia-o nas cartas para Tal-
leyrand, e não tem dúvida em afirmar, no seu
ofício de março de 1803: aLe Prince est Jr plus
hrave et le plus honnête homme de sori royau-
me...)) O ministro dos estrangeiros e da guerra,
D. João de Almeida, é «um caixeiro e um in-
caio do ministro inglês, espécie de boneco mo-
vido pelo gabinete de Londres»; o ministro da
fazenda, D. Rodrigo de Sousa, «homem violento,
brutal, é o inimigo jurado da França, capaz de
sacrificar o príncipe, a pátria e a própria honra
por um capricho de bêbedo»; todos os ministros
são aanti-lrançais^ et plus anglais que les an-
glais Bux-mêmesn; Luís Pinto é «um beato hi-
pócrita»;— ^mas o retrato mais pitoresco, jus-
UM DIPLOMATA 197
lamente por ser o mais rancoroso de todos, é
o de Pina Manique, o homem com quem Lan-
nes tem em Lisboa um verdadeiro duelo de in-
sultos, de grosserias e de brutalidades; quo
chega a ser demitido da Administração Geral
das Alfândegas por imposição de Bonaparte; que
apreende ao ministro as mercadorias de con-
trabando nos pacabotes de França e da Holan-
da; que lhe manda prender o próprio secretário
aa embaixada, sem mais forma de processo;
que vai até ao extremo de proibir que Lannes
entre no paço de Queluz para falar a D. João vr.
que lhe manda cercar todas as noites a casa
pelas «moscas» da Intendência de Polícia, — e
que faz perder de tal modo a cabeça ao minis-
tro de Napoleão, que Lannes, completamente
desorientado, escreve, em outubro de 1803, num
despacho para Talleyrand: «Só lhe pergunto,
Cidadão Ministro, se devo esperar que esse ho-
mem venha à minha casa insultar-me e ba-
ter-me. Estou certo de que já o teria feito, se não
soubesse que o não faria impunemente !» E,
dias depois, noutro despacho: «Esse miserável
de Pina Manique ameaça-me, cerca-me de esbir-
ros, prende os meus criados, persegue o meu
ajudante de campo, arranca de dentro da car-
ruagem o meu secretário de legação, e amanhã
é capaz de me vir insultar a mim !» Pinta o
Intendente como «um homem ignorante, de ca-
rácter baixo e feroz, dominando D. João vi pelo
108 NA HISTÓRIA
terror, sendo o instrumento vil dos ódios de to-
dos os ministros, a alma da própria atrocidade,
e tornando, por si só, Lisboa inabitável». Pina
Manique- é o culpado de tudo, — dos negocian-
tes què quebram, das barcas que se afundam,
dos franceses que morrem, dos emigrados que
se armam, da suprema afronta de D. João vi
ter recebido- em Queluz Goigny, o delegado de
Luís XVIII — , e o seu poder, a sua grosseria, a
sua insolência, a sua audácia são de tal ordem,
que não tiá maneira de o derrubar, conclue
Lannes, atant que la France ne prendra pais à
Vcgard de Portugal une contenance aggressive)>.
Ê admirável que o marechal Lannes tivesse
de vir a Portugal para encontrar um homem
mais mal criado do que êle !
FREI MANUEL DE SANT^ANA
O atentado de 3 de setembro de 1758 con-
tra a vida do rei D. José, a que o autor das
Anecdotes du ministère du marquis de Pombal
chama «uma quimera», teve como consequên-
cia a instauração de dois processos: um, o pro-
cesso dos Távoras, — que foi a tragédia; outro,
o processo de Frei Manuel de SanfAna, — que
foi a farça. Em ambos deixou a sua assinatura
Sebastião José de Carvalho. O primiCiro, que
destroncou as mais puras costelas de oiro da
nobreza portuguesa, toda a gente o conhece, —
ao menos do traslado da sentença de 12 de ja-
neiro de 1759, que corre impressa em várias co-
lecções de leis e acórdãos do Desembargo do
Paço; o segundo, onde sorri um pobre leigo
franciscano da Província dos Açores, — creio
que poucos o conhecerão. Tenho aqui, na mi-
nha frente, o original deste processo. Apesar
20'» NA HISTÓRIA
de pouco volumoso, não sei de mais admirável
pintura da vida lisboeta do século xviii. Vou fa-
lar-lhes dele, - e dizer-lhes quem foi e que
crime cometeu (> leigo Frei Manuel de SanfAna.
Na manhã de 30 de dezembro de 1758, por
conseguinte quinze dias antes do suplício dos
fidalgos em Belém, uma mulher — nos proces-
sos de frades entram quási sempre mulheres —
procurou, embrulhada no seu manto de dro-
guete, o Corregedor do Bairro Alto, e disse-lhe
que tinha importantes declarações a fazer no
feito crime contra o duque de Aveiro. O magis-
trado esbugalhou os olhos, mandou-a assentar
numa cadeira velha de moscóvia e chamou o
escrivão. Viva, esperta, desembaraçada, D. Mar-
garida Antónia de Miranda — assim era a gra-
ça da mulher — trinta anos, rosiclér de diaman-
tes no topete, saia verde de crespos de Lamego,
uma verónica da Senhora do Pilar ao pescoço,
contou que dois dias antes, na manhã de 28,
vindo ela da missa e estando em casa do Bene-
ficiado José Gomes Ribeiro, com quem vivia
(não consta a que título) na rua da Rosa das
Partilhas, — entrara um frade francisoano de
visite^ ao Beneficiado, e dissera «que se os fidal-
gos fossem degolados havia de haver muito
murro e muito sangue; que o não sentiria ela,
por ser solteira, mas que haviam de senti-lo as
casadas; e que os verdadeiros suspeitos no aten-
tado contra el-rei não eram os senhores fidalgos,
i
FREI MANUEL DE SANT'ANA 201
mas certas pessoas que êle conhecia e que viviam
numa terrinha perto». O Corregedor do crime,
apoplético, perguntou o nome do frade. D. Mar-
ííarida Antónia respondeu sem tergiversar: cha-
mava-se na religião Frei Manuel de SanfAna,
era cunhado do porteiro do duque de Aveiro,
leigo franciscano da Província dos Açores, e
guardava em Belém a casa do duque desde que
êle fora preso. Que razões de interesse ou de
sentimento moveriam esta mulher na denúncia
do pobre donato de S. Francisco ? A intenção
ambiciosa de prestar um serviço à causa do
ministro e do rei ? O propósito de se vingar dal-
guma partida de Frei Manuel, que tinha todos os
defeitos dos franciscanos — e que não devia
nada à virtude ? O processo não o diz. Sabe-se
apenas que o Corregedor do Crime do Bairro
Alto voou à rua Formosa a casa do ministro:
que Frei Manuel de SanfAna foi imediatamente
preso; que nessa mesma hora se expediu aviso
ao Juiz da Inconfidência, Pedro Gonçalves Cor-
deiro Pereira, e ao desembargador da Casa da
Suplicação. António de Oliveira Machado, no-
meado para servir de escrivão na diligência; —
e que ainda nesse dia, em Belém, no Paço da
Quinta do Meio. o pobre leigo franciscano, em-
brulhado no seu chiote de estamenha, a tre-
mer e a ramalhar as caniândulas, verde como
uma convalescença de sezões, era chamado a
perguntas perante o ministro Sebastião José flf^
Carvalho. Negou tudo. Que não; que não pro-
'702 NA HISTÓRIA
nunciara similhantes palavras; que estava ino-
cente: que só se lembrava de ter repetido umas
trovas do Bandarra, que diziam «bemaventurada
a mulher que no ano de 1759 encontrar marido».
O ministro devia ter feito uma ideia justa da
inteligência do frade e da importância da causa,
porque já não esteve presente no dia 1 de ja-
neiro, quando se procedeu à acareação de Mar-
garida Antónia com Frei Manuel de SanfAna.
Essa acareação foi curiosa. O frade batia as
sandálias no chão de tijolo do Paço e continuava
negando; o Juiz da Inconfidência apertava a
mulher; Margarida Antónia, que se fazia acom-
panhar por uma tia velha do Beneficiado, pin-
gada de diamantes e refegada de carnes, gri-
tava, rugia, espumava, invectivava o francis-
cano, acusava-o agora de defender o duque de
Aveiro, de dizer «que era mentira ter o duque
queimado um livro para botar fogo às casas»,
de voltar-se irado contra o ministro, contra as
justiças, contra o governo de el-rei «que dava
os ofícios que vagavam, antes de mandar pôr
os editais»; e tanto gritou, tanto insistiu, tanto
jurou, o manto descomposto, o pente de tarta-
ruga do Alentejo a abanar no toucado, as mãos
cheias de anéis às punhadas na banca, — que
o frade, negando sempre, sucumbiu, enfiou e
atirou consigo para um canto, a engranzar pa-
dre-nossos e a dizer que nâo com a cabeça. No
dia seguinte, inesperadamente, Frei Manuel de
^Sant Ana pede para fazer declarações à justiça.
FREI MANUEL DE SANT'ANA 203
Vai confessar? Vai, por sua vez, denunciar?
Ninguém sabe. Um meirinho trá-lo à Quinta do
Meio. perante o Desembargador da Casa da Su-
plicação. Caem, em volta, os pesadcs repostei-
ros, de baetâo vermelho com as armas de D.
João V. O dr. Cordeiro Pereira olha o leigo
através da sua luneta de punho de prata. E
Frei Manuel, confuso, vexado, seráfico, conta
então que no dia em que tinha estado em casa
do Beneficiado da Sé o frio era tanto, que ao
desembarcar de manhã no cais da Ribeira, re-
passado da névoa, comprara a uns vila-francas
dois copos de aguardente por um vintém, be-
bêra-os de um trago, um sobre o outro, — e daí
por diante, toda a santa tnrde. não dissera coisa
com coisa nem em casa do Beneficiado, nem
na morada dum ourives da rua de S. Bento,
nem numa horta de Valverde onde comera, por-
que — com. a licença dos senhores desembarga-
dores e a infinita misericórdia de Deus — es-
tava evangélicamente bêbedo. Não o declarara,
quando viera a perguntas, por vergonha do mi-
nistro; e, quando fora acareado, por pejo de o
dizer diante de mulheres. Mas era a verdade
(^m Cristo. Os magistrados, olhando a figura
compungida de Frei Manuel de SanVAna, sorri-
ram. Nesse mesmo dia, o frade, livre dos fer-
ros de el-rei, era mandado de presente ao Padre
Provincial.
Pela primeira vez se encerrava sem o travo
do sangue um processo de Sebastião José.
ESPADACHINS
Um ilustre mestre de ari)]as, meu amigo,
pede-me que lhe fale do espadachim português
do século xvii. É um assunto que daria volu-
mes. Como quer você, meu caro mestre, que eu
o condense em meia dúzia de páginas ?
Não. O nosso espadachim não é uma cria-
ção seiscentista. Existiu sempre. Existe ainda
hoje. Existirá, emquanto existir Portugal. A
versão portuguesa do fanfarrão esgrimidor e
arruaceiro constitue um tipo, que a literatura, c
em especial o teatro, se encarregaram de defi-
nir e fixar. Começa a esboçar-se com a insti-
tuição das quatro primeiras escolas de espada
preta em Lisboa, na primeira metade do sé-
culo XV. Depois, o espadachim enraíza e flo-
resce, multiplica-se e triunfa. Os mestres de ar-
mas pululam. Não se ensina o jogo italiano ou
o jogo espanhol, florido em manejos altos: en-
ESPADACHINS , 205
sina-se a matar, a assassinar, com todos os ar-
dis desliais e tôda< as traições infames. Em
Coimbra (1548) é presa muita gente p<»r trazer
espadas de mais da marca. Em Lisboa, os mes-
tres, quási todos mulatos, instituem verdadeiras
escolas de crime. Oia-se em Portugal uma nova
arte: a «arte da gualtaria». É Jorge Perreir.i
de Vasconcelos que, numa das suas comédias
famosas, recolhe e lixa a palavra, — derivada
talvez de «gualteira», o rebuço encapuzado dos
valentões quinhentistas. Ser mestre na arte com-
plexa da gualtaria, era possuir todos os segredos
do rufião e do espadachim corredor de vielas e
de alfurjas, saber fazer uma espera e vibrar uma
estocada «em raio de sol», conhecer todos os
recursos da espada-preta. desde a sciência de es-
colher um lerreno até à arte de bem ferir na es-
curidão. Todas as noites, nos arcos ou nas be-
tesgas da cidade, havia esperas, arruaças, brigas
sangrentas. Os embuçados surgiam de cada
canto. Foi preciso consentir aos mecânicos e
homens de trabalho honrado o porte de ar-
mas depois do sino. para sua defesa (Leão, 2,
Comp.^ 408). O duelo passou a ser um expe-
diente para facilitar o roubo. Os próprios fra-
des goliardos conheciam a espada preta e guar-
davam o ferro debaixo da estamenha do há-
bito. O Frei Capacete^ de Gil Vioente, domi-
nicano devasso e duelista, é uma versão ton-
surada do espadachim do século xvi. Os mes-
206 N'A HISTÓRIA
tres de armas eram frequentemente presos por
morte de homem. Em Setúbal (1540), um mes-
tre mulatu. Jorge Fernandes, assassina à trai-
ção um pobre diabo in<erme. Entretanto, o rei
é o primeiro a protegê-los: D. João iii, em 1556,
permitiu ao mestre de armas castelhano Juaji
Robledo, como prémio, o uso da seda nos ves-
tidos. Estabelece-se, na corte, o ensino da es-
grima aos moços-fidalgos. Em Coimbra, os es-
colares, com a sua capa negra e o seu festo
branco, balem-se à noite, nas vielas, segundo as
lições de Mestre Henrique e de Mestre Jerónimo.
TJm deles sobreleva a todos: é barbirruivo, gi-
gantesco, poeta, blasona de uma serpente verde
em campo de prata, e chamam-lhe o — Trinca
Fortes. Bate-se um. dia, na Praça de Samsão.
por causa duns olhos pardos — e espanta a Uni-
versidade; mais tarde, escreve um poema no des-
terro da China — e assombra o mundo. Com o
loiro D. Sebastião, arcangélico e virgem, surge
uma geração de espadachins adolescentes. An-
dam encostados aos pagens, gemendo e falando
efeminadamente, ao uso do tempo, — mas dêem-
Ihes uma espada para as mãos, e vejam que vi-
rilidade, que dextreza, que elegância, que raçit !
É mestre António, um bom velho, que prepara
toda essa mocidade, simultaneamente feminil e
heróica, para a triste jornada de Alcácer Kibir.
É êle que naquelas mãos finas, onde scintilam
jóias, cria músculos de aço para o açougue duma
grande batalha.
i
ESPADACHINS 20'^
Mas já o sombrio Filipe ii, na dureza angu-
losa do seu perfil austríaco, surge da ampla es-
tufa de coiro pregado que o conduz a Portugal.
Vestido de setim branco, tendo abandonado pela
primeira vez o seu luto negro de trinta anos,
vem plácidamente completar e legalizar a usur-
pação. Uma grande onda espanhola galga sobre'
nós. Derrubam-se os feltros negros; abotoam-se
os gibões de couro; as grandes espadas de tigela,
com o i^hierro despiertan de Toledo, repuxam e
levantam em crista de galo as capas negras; uma
pluma vermelha, agressiva, impertinente, abana
ao vento no castor e no feltro dos sombreiros,
— e o espadachim, lemoçado, virilizado pelo cru-
zamento castelhano, aparece mais pitoresco, mais
característico, mais impressivo ainda, rondando
de dia sob as rótulas verdes da cidade, ou em-
buçado à noite, como uma pincelada ue^ra, na
meia-luz dos nichos l' dos oratórios. K èlf qut*
ajuda a fazer a revolução de 1640. É Ale que
se bate em duelo na Horta do Ducado, depois
duma partida de dados secos e de beliches. K
èle que põe máscara de noite nas ruas escuras
da cidade velha, para vibrar, impunem?n1e, "uma
«estocada de punho aos peitos». É èle. final-
mente, que aprende os «talhos», os ((reveses», os
ualtabaixos» de Pantaleão de Rua e do rei de
armas Tomás Luís, ao mesmo tempo pintor de
heráldica e mestre de espada-preta, - golpes vi-
brados segundo as lições de D- Antcjnio Juste e
208 NA HISTÓRIA
Yver, mestre de esgrima dos fidalgos em Ma-
drid. Andam em todas as bocas, por Lisboa, os
nomes dos grandes duelistas de Espanha, — u
marquês de Velada, o conde de Puncn Roslm
n capitão Blas de Rueday Valdez. Emquanto
limpam as armas ou compõem os manoplas d;-
camurça, os magros espadachins portugueses dt-
que Montesquieu, nas Lettres Persannes^ faz a
caricatura admirável, folheiam o livro de Fran-
cisco de Ettenhard, mestre do rei de Espanha
Carlos II, ou meditam sobre as singularíssimas
páginas da Filoso{ia de las Armas, fundada en
la Astrologia^ Simetria, Arismetica y Geometria.
Com a plêiada de espadachins do tempo de D.
João IV, surge o mais tenebroso e o mais típico
de todos os duelistas fanfarrões que tem criado
Portugal: o senhor do Paul de Boquilobo, D. João
de Castro Teles. Ao passo que ôste Don Quixote
português aplica nos seus desafios criminosos a
sciència de espada-preta de D. Luís Pacheco de
Narban, a arte de matar é posta ao serviço de
sentimentos mais dignos e mais nobres. Outras
figuras, de mais fidalgo sangue, derimem pelo
ferro os seus conflitos de honra e as suas ques-
tões de amor. O nome duma mulher, proferido
imprudentemente num terraço onde se jogava a
péla, atira o conde de Castelo Melhor, de es-
pada em punho, sobre o conde de Vimioso, que
cai morto. D. Francisco Manuel, que prefaciara
com um soneto a Dextreza das Armas, de Diogo
ESPADACHINS 209
Gomos de Figueiredo, f que troçara dos mes-
tres de espada-preta na primeira jornada mo-
lièresca do Fidalgo Aprendiz^ bate-se com D.
João IV, e fere-o, por causa da linda condessa
le Vila Nova. Afonso iv e Pedro ii teem o?
^eus negros, os seus mulatos, os sous valentes,
pagos a peso de patacas de prata do Peru, para
assassinar, para esbofetear, para insultar toda a
i^-ente. Um desses valentes, Gaspar Varela, filho
lum tecelão de Elvas, recebe o tiábito de Cristo
por ter assassinado um homem. Capitaneado
pelo próprio rei, um bando de vadios e de mu-
latos ataca de noite o coche do marquês de Pon-
tes e do conde da Ericeira, que teem, para se
defender, de arrancar as espadas. Mais tarde,
junto do Arco do Oiro, é ferido o secretário das
mercês, Pedro Severim^de Noronha, porque res-
peitosamente pedira, de chapéu na mão, que
afastassem a liteira do rei. O mesmo sucede, em
S. Pedro de Alfama, ao visconde de Asseca, Mar-
tim de Eça, que tem de sair do coche, de estoque
em punho, para se defender do rei e dos seus
negros. Entretanto, o espadachim, abandonando
o tipo velasqueano, começava a vestir-se à fran-
cesa. Desapareciam os ferragoulos de dozeno,
iis grandes espadas soldadescas, as imensas bo-
tas de cordovão espanhol, as voltas brancas, ho-
landesas, sobre os gibões negros: vieram as
rapières francesas, os bigodes Richelieu, os sa-
patos de boca de vaca, as coiras de búfalo os
14 '
210 NA HISTÓRIA
chapéus flamengos, as ligas de tafetá pingadas de
oiro. O duelo esgota-se em brigas de acaso, em
agressões eventuais sem o carácter de desafios
regulares. O encontro em forma só unia vez
aparece entre nós, no século da capa e espada:
em 1G58, durante o côrco de Badajoz pelas nos-
sas tropas. É o tristemente célebre «desafio dos
Alvitos», em que tomaram parte o barão de Al-
vito. D. Joáo Lobo, e o mestre de campo Luís
de Miranda Henriques, servindo de «segundos»
D. Vasco da Gama, capitão de cavalos, e um ir-
mão do barão, D. Francisco Lobo. Nunca se
soube ao certo a causa deste encontro: os Alvi-
tos foram ambos mortos no terreno, cada um
com uma estocada no ombro direito; Luís de Mi-
randa sucumbiu também, golfando sangue, de-
bruços sobre a espada, ,e o único sobrevivente,
o moço capitão de cavalos D. Vasco, que con-
tava apenas vinte e três anos e era um dos mais
lindos rapazes do seu tempo, foi levantado do
campo, gravemente ferido. Diz o Tratado, de
Tomás Luís: «A espada tem fio e meio fio; não
há-de ser verdugo^ senão cortadeira e tesa)). No
desafio dos Alvitos, o mais sangrento duelo re-
gular de que há memória em Portugal, as qua-
tro espadas que se cruzaram foram verdadeiros
«verdugos».
Com o século xvin, o espadachim degenerou,
— e o quito nasceu...
A MÃE DO PRIMEIRO DLgUE
Um dos problemas fundamentais que tem de
resolver quem porventura se proponha estudar,
sob o ponto de vista da hereditariedade e da se-
lecção, a estirpe ducal de Vila Viçosa, é o da
filiação do primeiro duque de Bragança. Encon-
trei esse problema há dezasseis anos, quando,
perante os retratos da admirável Sala dos Du-
ques, pintados no tempo de D. João v por Pe-
dro António Quillard, pensei nos primeiros in-
quéritos médicos às genealogias riais portugue-
sas. Quem foi a mãe do conde de Barcelos ? Em
que ventre talhou esse plebeu ilustre, que se
•hamou D. João i, a faixa contraveirada de prata
la mais feliz das bastardias riais portuguesas?
\)e que mulher nasceu o primeiro duque de Bra-
liança? Da rendeira humilde, filha do sapateiro
Fernão Esteves ? Da filha do Barbacho de Vei-
ros ? Da pobre burguesa lisboeta que vivia nas
■^IL^ ^^^ história
casas de Riii Penteado ? Da nobre Inês de F<mv
febôa, cuja beleza germânica e dólico-loira se
embrulhou no manto branco das comendadeiras
de Avis ? Sangue plebeu e crasso ? Sangue
godo e conquistador? Uma celto-eslava, forte,
escura, rude, humilde, aferrada à terra? Ou,
pelo contrário, uma fêmea proveniente de estir-
pes dominadoras, mais ou menos entroncada no
veio de oiro da rialeza, o realizando, no seu
cruzamento com João i, aquilo a que se conven-
cionou chamar um caso de «consanguinidade
social» ?
Estas questões de genealogias são particular-
mente fatigantes. Mas há eruditos patriarcais
que, por essa província fora, gostam de as des-
fiar à lareira. É para eles que estas páginas são
escritas. Vou dizer-lhes o pouco que consegui
apurar sobre a identidade da mãe do primeiro
duque de Bragança. Inútil acentuar que o in-
teresse de similhante assunto está longe de ser
estrictamente nobiliárquico. Ninguém ignora a
influência decisiva que, no destino das raças riais
que degeneram, produz a intercorrência regenera-
dora das bastardias. Estudar essas bastardias ple-
beias, verdadeiras transfusões de energia que
fizeram perdurar muitos ramos dinásticos mo-
ribundos, não é apenas um capricho de genealo-
gista, é uma necessidade da história. Esse es-
tudo, porém, nunca foi fácil. De ordinário, quan-
do se trata de identificar a mãe dum bastardo
A mãí: du i'i;iMFii!n L)U(jui: ?n
rial, os linhagistas não se entendem. Em volta
dos próprios bastardos de D. João v, génitos va-
gos de freiras bernardas e de aventureiras fran-
cesas, a confusão é grande. Não admira que in-
te.rêsses de vária ordem lenham procurado obscu-
re<:er também, determinadamente enire os no-
biliaristas dos séculos xvn e xvnr, a verdade in-
teira acerca do nome e da origem da fecunda
moça do Alentejo, em cujo ventre plebeu se ge-
rou o fundador da última dinastia portuguesa.
Quem era ela ? Uma nota à margem do Nobi-
liário de D- Gomes de Melo ^) diz-nos que se
chamava Inês Fernandes, rendeira, filha do sa-
pateiro Fernão Esteves. Os outros começam por
não concordar quanto ao nome; discordam abso-
lutamente quanto à familia, — e não há forma
de os conciliar quanto à nobreza. D- António
de Lima, no sen Nobiliário, ^) afirma que o pri-
meiro duque de Bragança era filho «de Isabel
Fernandez filha do Barbarráo de Veiros Fernão
Esteves, que teve outro 'lilho irmão de Isabel Fer-
nandez, chamado João Moniz da Guarda, de quem
vêm os Pereiras de Castrodaire, e hua filha que
casou com Gonçalo Vaz de Castelo». É a lenda
do Barbadão, que os cronistas oficiais da casa
de Bragança se cansaram a desfazer. Outro in-
ij Mss. úá l^iblioteca Nur. de Lisbuu, l^oninnhiia,
órtice 277, fls. 672.
=j Pombalina, códic.' 322, ils. 61.
21 /i NA HISTÓRIA
dice genealógico, Gerações de Portugal, ') in-
siste em dar-lhe o nome de Isabel Fernandes:
«El Rey D. João i, sendo mestre de Aviz, ouve
em Isabel Fernandez, que depois foi commen-
dadeira de Santos e filha de Fernão Esteves o
barbarrão de Veiros, a Don Affonso que foi o pri-
meiro Duque de Bragança». Manuel Alvares
Pedrosa (o «ilustre Manoel Alvares Pedrosa»,
como o intitula, numa nota manuscrita, Manuel
Caitano de Sousa) não lhe chama nem Inês Fer-
nandes, nem Isabel Fernandes: chama-lhe Inês
Pires: «A dita Ignez Pirez niay destes filhos bas-
tardos foi irmã do Dr. Joanne Mendes da Guarda
de quem vem os Pereiras de Gege, filhos ambos
de Francisco Esteves Barbacho, chamado o Bar-
barrão de Veiros, e de sua mulher Mafalda Ean-
nes». ^) E acrescenta, mais adiante: «Esta dona
Inês foy irmãa de Joanne mendez da guarda fi-
lhos ambos do Barbarrão de Veiros». Há nisto,
entre outros contrasensos, um, que é evidente:
Inês Pires quer dizer Inês iilha de Pedro;— e o
nobiliarista chama ao pai Fernão Esteves Bar-
bacho. Cristóvão Alão de Morais reconhece o
erro e emenda-o, no seu Nobiliário^ ^) dando
à mãe do duque de Bragança, coerentemente com
3) Po!ãbalí}ia, códice 231, íls. 11, v.
*) Manuel Álvaro Pedrosa, NobUiário, códice C, 2,
17, íls. 9. V.
^) Pombalina, códice 279, fls. 38.
A MÃE DO l-IlIMEIHíi UUQUE 215
a sua filiação, o nome de Inês Fernandes, — já
não a «Inês Fernandes rendeira» de D. Gomes
de Melo, filha dum sapateiro humilde, mas uma
Inês Fernandes burguesa, «filha de hum homem
de Veiros rico e honrado». Frei Leão de S. To-
más (Beneditina Lusitana^ ii, 380) acrescenta:
«Teve mais El Rey D. João antes de casar, de
huma nobre senhora chamada D. Ignez, huma
filha e hum filho». Nicolau Ritershusio, na Ge-
nealogia líaperalorum, insiste: ((Alphoasus Joan-
nis Primi Portugaliae, et Algarbiae Regis filius
ex Agnete, nobili (oemina Comes Barcelensis,
post Dux Bragantiae.» ^) Não é apenas bur-
guesa e rica; já é nobre. Surge, finalmente.
Soares da Silva ') e diz-nos que a comendadeira
de Santos, mãe do primeiro duque de Bragança,
não tem absolutamente nada nem com Veiros,
nem com o Barbadão, nem com o Barbacho, nem
com o sapateiro: chama-se Inês Pires, e é filha
de Pêro Esteves de Fonteboa. Vobre ? Nobilís-
sima. Aíirma-o o erudito Silva, sobre vários do-
cumentos, pergaminhos avulsos, que encontrou
no Arquivo Ducal da Casa de Bragança. Antó-
nio Caitano de Sousa, apesar disso, atreve-se
ainda a falar em Veiros ") e declara que Inês
Pires teve o seu parto no castelo da vila. Soares
•, Tab. 61.
Memórias de l>. João /, iv.
j Híst. Geneai. da Casa fíiai 1'orluguefia, v, \y,\^. 10.
216 NA HISTÓRIA
da Silva vai até ao ponto de renegar tudo quanto
recorde a lenda do Barbadão; não quer que a
nobre Inês Pires seja alentejana, e declara-se
habilitado a provar, com outro pergaminho do
Arquivo Ducal, que o primeiro Duque de Bra-
gança não nasceu em Veiros, mas sim em Lis-
boa, «nas casas 'de Ruy Penteado, que som á
portadoura». ') Os genealogistas falaram, — nin-
guém mais se entendeu. Rendeira ou burguesa
rica, filha do Barbacho ou filha do sapateiro,
alentejana de Veiros ou lisboeta do beco do Al-
mirante, Isabel ou Inês, plebeia ou nobre, ainda
hoje se não sabe ao certo quem foi essa mulher,
fecunda e sem dúvida bela, a cujos peitos ubér-
rimos se criou o primeiro príncipe da estirpe de
Bragança.
*) Memórias, v, doe. 9.
A EMBAIXADA
A história anecdótica das nossas embaixadas,
sobretudo das nossas grandes embaixadas a
Roma, daria a um colorista de recursos um li-
vro interessantíssimo. A de D. Rodrigo de Me-
nezes a Clemente xi; a do conde de Vilar Maior
*a Vienna de Áustria; a viagem de André de Melo
e Castro, depois conde das Galveias, enviado ex-
traordinário a Roma, — quási todas as embaixa-
das portuguesas do século xviii foram grandes
anecdotas de ostentação e de sumptuosidade,
além de maraviltiosas pinturas de costumes e
de ridículos políticos.
Quando André de Melo partiu para a cidade
apostólica levou consigo um francês insinuante
chamado De Bellebat, que foi o seu estribeiro e
que havia de ser, mais tarde, o seu cronista. De
Bellebat escreveu, numa linguagem de rara ele-
gância, a relação da jornada do conde das Gal-
'18 NA HISTÓRIA
veias a Roma, — corno, anos antes, o padre Fran-
cisco da Fonseca, num estilo choutão ds macho
de liteira, narrara a entrada do conde de Vilar
Maior em Vienna de Áustria. O livro do ga-
lante estnbeiro francês interessa simultaneamen-
te à nossa história diplomática e à história das
nossas indústrias artísticas, por que descreve
com individuação as maravilhas de talha doirada
de que os entalhadores portugueses António Se-
leiro e José Machado pojaram os jogos traseiros
dos três enormes coches da embaixada. Mas é
propriamente o aspecto anecdótjco que o reco-
menda. Sem o livro de De Bellebat, não conhe-
ceríamos hoje — e era pena! — todos os pitores-
cos incidentes palatinos que precederam a re-
cepção do Enviado português pelo Papa.
A chegada de André de Meio e Castro a Roma,
cheio de araras, de papagaios e de loiça da In-*
dia para Sua Santidade, íoi já um acontecimento.
Como não houvesse aposentos melhores, hospe-
daram-no os frades de S. Bernardo no seu mos-
teiro, dando-lhe banquetes sobre banquetes, fes-
tas sobre festas. Nada mais profano do que a
vida que os virtuosos monges proporcionaram ao
futuro conde das Galveias. Logo nos primeiros
dias, muitos cardeais, de coche, precedidos da
umbela vennelha, vieram fazer-lhe a sua visita,
sondá-lo, inquirir, avaliar da ilustração e da ar-
gúcia do Enviado. Foi uma romaria. Entre-
tanto, graves coisas preocupavam o Sacro Cole-
A EMBAIXADA 219
eio. No seio daquele capítulo de Príncipes fi-
zera-se um reboliço incompreensível. As con-
ferências repetiam-se, Sua Santidade irritava-se,
bispos e arcebispos andavam numa azáfama, o
cardeal Paulucci, secretário de Estado, revolvia
papeis e protocolos, ninguém se entendia, nin-
guém compreendia o que se passava, todos se
interrogavam uns aos outros- Que teria dado
motivo àquela confusão dos purpurados ? Uma
simples dúvida: não sabiam como receber o En-
viado extraordinário do rei de Portu.cral, que tra-
tamento dar-lhe, que prerrogativas reconhecer-
Ihe. O problema revestia uma gravidade impre-
vista. Até ali, só houvera Embaixadores e Re-
sidentes. Aos Embaixadores, mais do que En-
viados, dava-se Excelcnda; aos Residentes, me-
nos do que Enviados. Ilustríssima: que trata-
mento se concederia a monsignore André de
Melo e Castro, — que era menos (to que Embai-
xador e mais do que Residente ? Reúniram-se
congregações, consultaram-se cerimoniais sobre
cerimoniais, os partidos dividiram-se, as opi-
niões extremaram -se, u cardeal Barberini dizia
que sim, o cardeal Ottobuni Jizia que não, — e
só no fim de nove ou dez meses, depois de discus-
sões intermináveis e de consistórios enfadonhos,
é que aquela onda de rábulas de murça verme-
lha conseguiu acordar no tratamento e nas prer-
rogativas a conceder ao Enviado de D. João v.
Essas ridículas prerrogativas eram as seguintes:
220 NA HISTÓRIA
i.', O Enviado teria direito a mandar levantar um
dócel na sala dos Lacaios, outro na sala das Au-
diências; 2.* poderia usar penachos de seda ne-
.i,^ra nas cabeças dos cavalos; 3.*, far-se-ia prece-
der, quando passeasse no seu coche, de um la-
caio com umbela vermelha, como os cardeais e
os príncipes; 4.*, ser-lhe-ia concedido um coxim
de veludo para ajoelhar na Igreja ou na rua à
passagem do Santíssimo Sacramento; 5.*, o de-
cano dos seus criados poderia vestir-se de ve-
ludo preto à moda espanhola; 6.% dar-se-ia ao
Enviado o tratamento da terceira pessoa, no ita-
liano Lei, — mais que a Ilustríssima dos Resi-
dentes, menos que a Excelência dos Embaixa-
dores; 7.*, poderia pedir audiência a Sua Santi-
dade de um dia para o outro e de manhã para
a tarde; 8-* e última, os cardeais recebê-lo-iam
sempre «em habit decent, et non en habit court
ou en deshabillé)).
André de Melo, estabelecido, com esta minú-
cia bizantina, o cerimonial a seguir, pôde então
fazer a sua entrada solene no Vaticano, numa
verdadeira procissão de coches sumptuosos ar-
mados em talha doirada, apainelados de pintu-
ras, puxados a urcos holandeses, bamboleando,
nos seus correões forrados de damasco vermelho
e abroxados de prata, pelas ruas cheias de sol
da Roma pontifícia. Foi um deslumbramento.
As verdadeiras credencias do Enviado consis-
tiram na magnificência com que se apresentou.
A EMBAIXADA 221
Ao ver desfilar o cortejo, já na retirada, a cami-
nho do mosteiro de S. Bernardo, o cardeal Ca-
vallarini. purpurado e desdenhoso, comentava,
a sorrir, num grupo de bispos e de arcebispos:
— Não sei se o embaixador é bom; os coches
são excelentes !
NUN'ALVARES
Meu amigo: — Pediu-me você a indicação de
todos os retratos de Nun'Alvares. Prometi dar-
Iha nas quatro páginas duma carta. Cumpro hoje
a minha promessa. Náo; os documentos não são
tão poucos como você supõe. A agiografia en-
carregou-se de perpetuar a imagem do Santo
Condestável, que, de^certo, não teria sido tão pin-
tada em tábuas e tão aberta em estampas, se não
tivesse a envolvê-la, na decrepitude, o tabardo
de semi-frater carmelita. Retratos directos, não
resta nenhum. Cópias do original perdido, há
muitas. Gomo sabe, o único retrato autêntico,
mandado pintar pelo duque de Bragança D- Afon-
so antes de Frei Nuno morrer, ardeu no terra-
moto de 1755. Em 1745, ano em que Fjeei Joseph
de SanfAna publicou a sua Crónica das Carme-
litas^ ainda esse retrato, oferecido pelo primeiro
possuidor ao bastardo do rei D. Duarte, D. Frei
NUN'.\LVARES 223
.íoáo Manuel, bispo de Ceuta e da Guarda, prior
do Carmo e depois Provincial, se encontrava en-
tre as pinturas dos santos da Ordem, no espal-
dar do arcaz maior da sacristia do convento.
Era de meio corpo, representava Nun'Alvares na
estamenha de donato, e tinha sido pintado, se-
gundo opinião do dr. José de Figueiredo, pelo
pintor de D. João i, mestre António Plorenlim.
Desde o segundo quartel do século xv até ao
meado do século xviii, o original de mestre An-
tónio foi copiado, recopiado e aberto em gravu-
ras, sendo as cópias dele, diz Frei Manuel áe>
Sá nas suas Memórias históricas da Ordem de
A. S.* do Carmo^ os melhores retratos de Nu-
n^Alvares que se conheciam na corte. Mas não
foi esta a única imagem preciosa do Condestável
que o incêndio destruiu no convento do Carmo.
Havia outra, de corpo inteiro, pintura do século
XVI, que se encontrava na sala chamada Capítu-
lo dos Bispos, e que, a acreditar em Frei Joseph
de SanfAna, era uma nbra-prima. Não conse-
gui apurar, por mais que o tentasse, se o retrato
do Capítulo, como o do espaldar d;i sacristia, re-
presentava Frei Nuno de Santa Maria, ou se
seria o original por onde Estêvão Galhardo, em
1526, mandou abrir a xilugrafia de Nun'Alvares"
armado que se admira na primeira edição da
Crónica do Condestabre, Era natural, porém,
que o retrato mais copiado íôsse o primeiro, por-
que era o autêntico, e. porque,, na sua samarra
224 NA HISTÓRIA
de fradinho decrépito, falava mais do que ne-
nhum outro à velha piedade portuguesa- As ré-
plicas sucf'deram-se, sendo a mais bela das sub-
sist^^ntes aquela que se conserva no palácio Pom-
bal, em TkMras, tábua do século xvi cuja alta im-
portância o dr. José de Figueiredo revelou, em
17 de agosto de 1916, expondo-a numa sala do
Museu de Arte Antiga e atribuindo-a ao pincel
admirável do mestre de S. Bento. Nenhuma ou-
tra pode comparar-se a esta, quer pelo valor da
pintura, quer pela importância do documento.
O ^'un'Alvares doado por Guerra Junqueiro ao
Estado, e o retrato de Frei Nuno de Santa Maria
proveniente da Sala dos Patriarcas (Paço de S.
Vicente), ambos depositados no Museu, são có-
pias, feitas nO' século xvii, do quadro de mestre
António Florentim; a tábua da Biblioteca Na-
cional de Lisboa e o retábulo da igreja carme-
lita de Moura, também seiscentistas, teem o ca-
rácter de agiograjfias de natureza cultual, sem
valor iconográfico apreciável. Aqui tem você o
que há, quanto a imagens pintadas em tábua
ou em tela. Passemos ás estampas. Abriram-se
gravuras de retratos de Nun'Alvares nos sécu-
los XVI, xvií e XVIII. A xilográfia que acompa-
nha a 1.* e a 2.* edições da Crónica do Condesta-
bre íl526 e 1554) reproduzindo em corpo inteiro
n herói armado, deve ser uma equivalência da
tábua do Capítulo dos Bispos. A xilografia que
acompanha só a 2.* edição da mesma Crónica
l^aiN' ALVARES 2^5
(1554) 6 que representa Frei Nuno no tabardo de
donato, ó, sem dúvida, como a réplica existente
no palácio Pombal, uma cópia directa da tábua
original mandada pintar pelo primeiro duque de
Bragança. Do século xvn há duas gravuras: uma,
cópia do retrato primitivo, feita em 1609 pelo
gravador francês Pierre Peret, ou Pereto, para a
1.* edição do Condestabre de Rodrigues Lobo,
e a que se referem Frei Manuel de Sá e Frei
Joseph de SanfAna; outra do gravador caste-
lhano Pedro de Vila Franca, representando, em
meio corpo, Nun'Alvares velho e armado, aberta
em Madrid, em 1640, para acompanhar a Vida y
Hechos, de Rodrigo Mendes Silva. No século
xviii, dois artistas franceses, chamados a Lisboa
por D. João v, gravaram retratos do Gondestá-
vel: Bernard Picart, discípulo de Sebastian Le-
clerc, que abriu em 1722 duas gravuras em co-
bre representando Nun'Alvares cavaleiro e Nun'-
Alvares semi-frater carmelita; Gabriel Debrié, que
em 1749, imitando Picart, gravou o NurfAlvares
armado de maça de armas, que orna a espessa
obra de Frei Domingos Teixeira. Passemos ago-
ra às estátuas do túmulo. Gomo sabe, o mo-
delo subsistente, em madeira, é uma simples re-
miniscência da arca tumular de alabastro, man-
dada construir em Borgonha, no século xvi, por
Joana a Doida; colocada em 1522, pelo prior Frei
Cristóvão Moniz, num vão da ábside do Garmo,
do lado da Epístola; pintada, doirada, e mudada
15
??6 NA HISTÓRIA
para o presbitério da parte do Evangelho, em
i544, por outro prior carmelita, Frei Diogo de
Brito; e, em 1755, completamente destruída pelo
incêndio. Essa reminiscência, dum acentuado ca-
rácter Luís XV, não tem o menor valor iconográ-
fico. Já o não tinha lambem a estátua jacente do
primitivo túmulo, glabra, inexpressiva, sem o ta-
bardo dos semi-fralres, conservando apenas de
exacto o báculo a que se abordoava o velho do-
nato e o ((barrete de faces» que, segundo Frei
Jerónimo da Encarnação, lhe recobria sempre a
calva. Resta, meu caro amigo, que eu lhe fale
das descri(;ões dos cronistas. É curioso que, nem
Fernão Lopes na Crónica de João /, nem o au-
tor da Crónica do Condestabre, que deve ser
também Fernão Lopes, fazem referência aos ca-
racteres somáticos de Nun'Alvares. Os únicos
que o descrevem são os agiógrafos, reportando-se
ao retrato original ou às antigas memórias con-
ventuais inéditas. Frei Simão Coelho, no Com-
pêndio de Crónicas (1572), pinta-o em dois tra-
ços: {{homem envolto em carnes, de estatura que
mais ia a grande do que a pequeno: tinha o as-
pecto baronil^ o rostro comprido e fermoso, era
alto e louro^ tinha os olhos pequenos^ inus mui
resplandecentes^ pouca barba, e saída para bai-
xo». Frei Jerónimo da Encarnação, na sua cró-
nica manuscrita citada por Frei Joseph de Sant'-
Ana, e talvez perdida, copia a descrição que, «em
t^da a antiguidade de seus termos próprios»,
NUN'ALVARES 22"
deixou nm frade contemporâneo de Nun'Alva-
res: «foi o virtuoso Condestavel de meã estatura^
teve o rosto comprido^ côr branca, o nariz afi-
lado c aquãento. os olhos pequenos, mas mui
viventos, as sobrancelhas arcadas e ruivas, assim
era o sm cabelo^ não só da cabeça mas também
da barba, com algumas ruguizas na testa e nos
cabos dos lagrimais, a boca pequena com, o seu
semblante mui amesurado)). As duas descrições
não concordam em todos os pontos. Mas é in-
contestável que os seus elementos, combinados
com aqueles que nos oferecem a réplica do mes-
tre de S. Bento (palácio Pombal) e a xilograíia
da Crónica do Condestabre, constituem já, sob
vários aspectos, para pintores, estatuários, acto-
res, antropologistas e historiógrafos, uma expres-
siva e opulenta documenlação.
PASSOS MANUEL
Na preciosa colecção de papéis políticos do
Constitucionalismo, removida do Palácio das Ne-
cessidades, existe apenas uma carta de Passos
Manuel. São duas folhas de papel da Abelheira,
sem o aparo doirado das cartas do conde do To-
mar, presas uma à outra, segundo a moda do
tempo, por um pequeno cordão de seda azul-
Quatro páginas duma escrita clara, enérgica,
firme, serena, — expressão do carácter forte
desse homem que a si mesmo se chamava «o
homem de Bouças», a quem D. Fernando, no dia
heróico da helenizado:, tratou de Mr. le Roi
Passos))^ e que foi, simultaneamente, a figura
mais generosa, mais liberal, mais ingénua e
mais nobre de todo o Constitucionalismo portu-
guês. Tem a data de 31 de maio de 1846, — dez
dias depois da queda dos Cabrais, e, por con-
seguinte, em plena Revolução. Passos Manuel
PASSOS MANUEL 220
escreveu essa carta, que pode considerar-se> um
documento célebre, e que é, ainda, um docu-
mento desconhecido, —quando se encontrava
em Santarém presidindo h Junia revolucionária
local. Não a diriírin à rainha; dirigiu-a a Ro-
drigo da Fonseca, — para que a mostrasse a D.
Maria n. É uma profissão de fé liberal- É um
hino ao povo. É. no meio de todo o ardente
entusiasmo, de toda a paixão tribunícia da sua
alma antiga de romano. — uma hábil fórmula de
conciliação entre a defesa intransigente e sin-
cera das liberdades populares e o respeito quási
supersticioso pelas prerrogativas e dignidades
da Coroa. Coerente cem as afirmações do seu
monumental discurso de 21 de janeiro de 1837,
sustenta que a revolução do Minho se fez «para
rodear o trono de instituições republicanas». Em
nome das Juntas, — o revolucionário troveja, co-
mina, impõe. Mas, generoso sempre, bondoso
sempre, — o excelente homem aconselha, tran-
quiliza, sossega todo o Paço alarmado. É, ao
mesmo tempo, Saint Just e Lafayette. Emquanto
o sangue corre, e a revolta alastra como um in-
cêndio,— Passos Manuel, escrupuloso, formalis-
ta, sincero, lialíssimo, procura conciliar, menos
perante a rainha do que perante a própria cons-
ciência, aquilo que no seu setembrismo con-
fuso, rialista e «pé-íresco», era fundamental-
mente irreconciliável: uNão eslou menos viva-
mente empenhado na defesa da 1 iberdade, — diz
230 NA HISTÓRIA
êle — , do que na defesa da Coroa. Como um
dos chefes do pronunciamento Nacional, hei-de
feztí-lo triunfar: é o meu dever. Como Conse-
lheiro da Rainha, e o que é mais, como o uiais
fiel, dedicado dos seus súbditos, não consentirei
na menor ofensa das suas prerrogativas e digni-
dade». O tremendo «ditador de Guinfões» quer,
desveladamente, que Sua Majestade sossegue.
Ele lá está, — revolucionário terrível, mas súbdi-
to fiel. Conseguira já «que o sangue não corresse
nas Províncias do Sul»; «que nenhum excesso
maculasse a honra deste Povo »; «que as relíquias
do Exército se salvassem»; que, no meio da ca-
tástrofe, «se conservassem ainda todos os ele-
mentos da ordem futura». O resto não era difí-
cil. A Junta da sua presidência, composta de
homens generosos e fortes, ingénuos e liais como
êle, — casacas-de-briche e pés-de-boi — , se en-
carregaria de «restabelecer a recíproca confiança
entre o Rei e o Povo, unir a Coroa e a liberdade,
terminar aquela luta espantosa sem mais derra-
mamento de sangue». Mas, para isso, o «ho-
mem de Bouças», como no dia em que falara alto
a D. Fernando e a Van der Weyer, — põe condi-
ções. Exige que se entreguem os comandos das
Províncias, das Praças e dos regimentos a ofi-
ciais que tenham a confiança do povo; reclama a
organização da Guarda Nacional em Lisboa e no
Porto, «não uma Guarda Nacional com Arsenais,
nem Camilos, nem Marcos; mas uma Guarda
i
PASSO? MANUEL 231
de contribuintes com o censo alto, gente estabe-
lecida, que na sua propriedade dê iguais garan-
tias de ordem e de liberdade»; indica, para seus
comandantes, «homens como Policarpo J." Ma-
chado. Jorge Sttret e o conde da Ribeira»; lem-
bra ao duque de Palmela, demasiadamente
preocupado com a idéa do desarmamento geral,
que «pacificar um país, não é desarmá-lo». Mas
a parte mais bela, mais comovedora e mais no-
bre da carta notabilíssima de Passos Manuel,
está nas quinze linhas de epopeia em que êle se
refere ao povo revolucionário. São dignas da
alma antiga que as sentiu, da mão gloriosa que
as escreveu. São justas — e são eternas. São
um hino — e um clarão, a A História, — diz Ma-
nuel Passos — , não oferece uma crise como esta
em nenhum Povo da terra. Um Povo que s& ar-
ma todo, sem excepção de um único indivíduo,
que afronta a confiscação e o patíbulo, que corro
denodado e intrépido aos combates, que volta a
eles com novo ardor, que, sem dinheiro, sem
armas, sem munições dertrói um Governo fero-
císsimo e bate todo um Exército valente, e que
no meio de tudo isto não comete um único cri-
me, não se mancha com sangue, não exerce
vinganças e abraça, e perdoa a seus inimigos e
opressores ainda salpicados com o sangue de
seus concidadãos, — é um Povo admirável que
não teve, nem tem, nem terá modelo sobre a
terra».
UMA INFANTA HISTÉRICA
A infanta D. Joana, filha de D. João iv, mor-
reu, como se sabe. aos 17 anos. Era uma infan-
tasinha histérica, que sofria também, segundo
todas as probabilidades, de uma entero-colite
muco-membranosa, e cujos estigmas somáticos
de degenerescência se acusam numa miniatura
em cobre existente na biblioteca de Évora, por
sinal na mesma vidraça onde se encontra o admi-
rável tríptico de Limoges. Criatura profunda-
mente tarada, com a pesada herança dos estru-
mosos de Medina Sidónia, irmã dum tubercu-
loso (D. Teotónio) e dum poliomielítico infantil
(Afonso vi), apresentando sintomas de progres-
siva consunção e tendo, nos últimos meses de
vida, hemoptises frequentes, t^da a gente supôs
que ela tivesse morrido «ética ou tísica» (Mss.
da Torre do Tombo, Colecção de S. Vicente^ liv.
'd2, 11. 24). Us médicos, chamados a uma junta
UMA ÍNFANTA HISTÉRICA 233
pelo rei, esclareceram o caso clínico da infanta
D. Joana, afirmando que ela sucumbira a um pa-
decimento intestinal grave complicado de aci-
dentes histéricos, e que as hemoptises verifica-
das nos últimos meses da doença eram hemorra-
gias de carácter suplementar atribuíveis à ame-
norréa da infanta, que, nos seus estiolados 17
anos, náo revelara ainda os signais fisiológicos
da puberdade. D. João iv, embrulhado num luto
de baeta negra de cem fios, a guedelha loira a
lamber a holanda azulada do mantéu, ouviu-os
longamente, levantou-se de repelão sem os dei-
xar acabar, e, farto de palavras bárbaras cujo
sentido não entendia, deu ordem ao secretário
de Estado, Pedro Vieira da Silva, para receber
dos médicos palatinos um relatório completo e
circunstanciado acerca da doença e morte da
princesa, no qual fossem suficientemente escla-
recidos todos os vocábulos gregos e latinos. D.
João IV, cuja cultura médica se limitava à arte
de preparar certo óleo de enxofre para a «enfer-
midade do sesso saído fora» (Curvo Semmedu,
Poliantea, 725), desconfiava manifestamente da
sciència dos arquiatras de palácio. A ordem foi
cumprida, e o físico-mór António de Castro apre-
sentou, em 26 de novembro de 1653, o primeiro
relatório médico que se escreveu em Portugal
àcôrca da doença de qualquer membro das fa-
mílias reinantes.
Esse documento, cuja grafia modernizo afuii
234 NA HISTÓRIA
de o tornar mais facilmente legivel, diz o se-
guinte:
iiVossa mercê me manda dizer o nome da
doença de que moneu a Infanta a Senhoi^a D.
Joana: de uma doença a que os doutores médi-
cos chamam hienteria, complicada com uns aci-
dentes chamados histéricos^ alio nomine uteri-
nos; à qual doença se seguiu também uma atro-
fia, que c uma magreza e secura de todo o corpo,
que também tem por nome hontica ventriculi.
Explicação dos nomes médicos e acidentes que
acompanharam esta doença: — Hienteria é uma
dejecção do mantimento tal qual se toma, nas-
cida de fraqueza das faculdades do estômago
comcoctris et retentris, e por esta razão adquire
o corpo todo grande magreza e secura por lhe
faltar o sustento; esta teve a\ senhora Infante, e
não a secura dos éticos; o que se verifica ainda
mais^ porque no discurso da sua doença esteve
muitas vezes sem febre, e esta tal magreza cha-
mam os doutores médicos atrofia, por ser cau-
sada ex denegato alimento. Os acidentes histé-
ricos, que também se chamam uterinos, tomam
o nome da parte que principalmente padece;
causam-se do sangue ou de todos os humores^
ou de outra substância mais sólida que dele se
eleva, a qual, detendo-se e apodrecendo no tal
logar, comunica vapoires a várias partes por ter
com todas muita comunicação; e como estes
sejam podres e ruins, causa vários acidentes
UMA INFANTA HISTÉRICA 235
conforme as partes a que se comunica; na dita
Senhora se comunicaram aos nervos, e por esta
razão Jhe convaliam os queixos, e impediam a
acção de mastigar o comer, e nas pernas e bra-
ços que lhe impediam o movimento. Tiveram
todos estes males um principio, que foram as
(jrandes obstruções, ou opilações nas veias que
costumam levar o mantimento ao útero; pela
qual razão, sendo de dezassete anos, nunca foi
mal nem bem menstruada; e por esta razão nos
fins dos meses lançou por vezes sangue pela
boca, escolhendo a natureza este caminho por
ter impedido o conveniente e costumado^ o que
nestes casos sucede muitas vez<^s; de modo que
morrendo mui seca do corpo, e mui extenuada,
e lançando por vezes sangue pela boca, não mor-
reu ética, nem menos tísica. — Guarde Nosso
Senhor a Vossa Mercê muitos anos. De casa,
26 de novembro de 1653, Senhor Pedro Vieira
da Silva — O Físico-Mór, António de Castro.»
Êsle curioso relatório vem trasladado no Li-
vro 22 de Mss. da Colecção de S. Vi ente. En-
contra-se no mesmo códice outro documento
assinado também pelo físico-mór António de
Castro, no qual se descreve a doença e morte do
irmão da Infanta, o príncipe D. Teodósio. Su-
cumbiu, evidentemente, a uma tuberculose pul-
monar. O boato da peçonha mandada subminis-
trar ao Príncipe por Filipe iv de Espanha, não
tem o menor fundamento.
U ENTRUDO NU iSÉtULO XVIII
Nús, portugueses, nunca compreendemos bem
que o Carnaval pudesse ser uma festa de arte,
como na Itália da Renascença, ou uma festa de
espírito, como na França de Luís xiv: o nosso En-
trudo, o SanVEntrudo lisboeta, foi sempre ca-
racterizada e fundamentalmente sórdido. O sé-
culo xvni, então, excedeu todos os outros. Foi
o século típico do Entrudo nacional.
É difícil supor qualquer coisa de mais ignó-
bil, do que esses três dias solenes em que a ve-
lha Lisboa de 1700 dizia o tradicional adeus à
carne. Toda a mafra baixa das vielas, as frego-
nas remangadas e as michelas de poria, os alfa-
mistas 8 as regatsiras, as franças dO' Mocambo
e os faceiras do Rocio, com a casaca de seda a
escorrer ovos, a cara empastada de sangue e de
lama, cobertos de dejectos e de imundícies, cor-
riam as ruas debaixo da saraivada dos pós, das
o ENTRUDO NO SÉCULO XVIII 237
panelas, das laranjas de cheiro, dos esguichos,
dos ovos de gema, de todo o ágiia-vai que jor-
rava das rótnias oslreilas e dos postigos mouris-
cos. Coche, estufa, liteira, cadeirinha que pas-
sasse, era assaltada, voUada, coberta d^ lama e
varejada de pedras. Escalavam-se muros, inva-
diam-se casas, roubava-se, devassava-se a pro-
priedade alheia, os frades corriam bêbedos de
porta em porta, havia fidalgos que se emborra-
chavam nas adegas com os negros e com os cria-
dos, e emquanto os bandos passavam na rua,
saltando, uivando, cabriolando, — sobre o mon-
turo dos pátios solarengos, onde os porcos fossa-
vam e os cães afocinhavam a terra, mendigos
apinhados descobriam chagas, pediam esmola,
ao sol, cantando o Bemdito. Era uma tremenda
exibição de miséria. Era a inversão transitória
de toda a hierarquia social. As oitenta e sete ta-
bernas do bairro de S. Paulo (oitenta e sete 1) en-
chiam-se a deitar por fora; mulatas, rascôas de
viela, gandaias de tairocas, enjeitadas do Hospi-
tal Rial, toda a esccjria da Alfama e do Bairro
Alto coíTia em levas, em manadas, em ban-
dos selvagens, insultando-se, batendo-se, desgre-
nhando-se, dançando; e, de pendões à frente,
as procissões burlescas passavam, sujas de lodo,
monstruosas e imundas, com o Rei David a bai-
lar, de coroa no alto da cabeça, e atrás a multi-
dão convulsa, bêbeda, miserável, rouquejando
em ladainha:
238 NA FIISTÓRIA
— Sanctus Introitus, quebrare panellas I
E, entretanto — coisa curiosa ! — no meio de
todo êsle Carnaval de sordidez e de vício, não se
via uma única máscara. As máscaras estavam
proibidas nas ruas por alvará de 25 de agosto de
1689, como expediente vulgar de picões e de as-
sassinos, e nunca mais tinham aparecido senão
nas tranqueiras do terreiro do Paço por festas
de touros. Apesar disso, os quadrilheiros, os mei-
rinhos, os corregedores dos bairros arranjavam
nos três dias de Entrudo trabalho para todo o
ano. Sucediam-se os roubos, as violações, as
mortes. Com o jejum da Quaresma levantava-se
a forca nas praças. Justamente no século que
fez do Carnaval uma obra de arte, quando Arie-
chino pendurava o seu manto multicor pelos pa-
lácios doirados de Veneza e de Florença, — o ve-
lho SanfEntrudo português conseguia apenas ser
boçal, repugnante, desordeiro e criminoso- No
momento em que a Regência ordenava os bailes
de máscaras, em que a Ópera instituía os après-
soupcrs, em que Versailles se iluminava para re-
ceber o sorriso branco de Pierrot, — D. João v,
piedosamente tocado pela devassidão do Carna-
val do povo, obtinha de Roma, para a sua Ca-
pela Rial, o «jubileu das quarenta horas». E em-
quanto a canalha da velha Lisboa patriarcal pu-
lava, tairocava, rugia obscenidades pelas ruas,
coberta de lama, de sangue e de farrapos, — er-
guia-se no altar-mór de S. Roque uma pirâi ide
o ENTRUDO NO SÉCULO XVIII 239
estrelada de lumes, a Congregação de Nossa Se-
nhora da Doutrina desfilava com os seus estan-
dartes, e entre alns imensas de diáconos de dal-
mática e de dignidades de pluvial, a procissão
do Santíssimo saía com el-rei, sumptuosamente,
debaixo de pálio. D. João v, incapaz de fazer do
Entrudo uma festa de arte — ccnve-rleu-o, pouco
a pouco, numa festa de Igreja.
Mas se, nas ruas de Lisboa, o Carnaval do sé-
culo xvrii foi uma miséria, — nas casas fidalgas
ULO passou dum pretexto para se comer melhor.
Dos conventos choviam pães de ló, bolos podres,
covilhetes de amêndoa, papos-de-anjos, ovos riais
em grandes bandejas armadas. Sentavam-se à
mesa os frades pedintes. As sécias cheias de pós
da índia, pingadas de rosicléres de diamantes,
toucadas de amarelo uà alemôa», ensinavam pu-
lhas aos papagaios, cantavam lunduns e modi-
nhas brasileiras à viola, cortavam rabolevas, co-
zinhavam filhos com estopa, atroavam as casas
de palavrões torpes. As vítimas do SanfEntrudo
fidalgo eram os bobos, os parasitas, os negri-
nhos, — toda a estirpe risonha e buliçosa dos
Bento-Antónios, dos Joões da Falperra, das Ro-
sas mulatas. Para divertirem as visitas no Car-
naval, os marqueses de Gouveia faziam andar o
bobo Penharanda, vestido de verde, de gatas à
roda dum salão. A condessa de S. Vicente,
quando se lhe acabavam as laranjas-de-cheiro —
conta-o Goubitr de BaiTault — armava uma maji-
240 NA HISTÓRIA
gueira na janela e encharcava o povo- O mar-
quês de Marialva, caído de bêbedo entre can-
jirões de praia, l'azia-se insultar por frades e
servir «por crianças nuas. Em mascaradas, em
festas, em bailes, no verdadeiro Carnaval nin-
guém pensava, — por que ninguém o sentia. O
primeiro baile de máscaras particular que se
realizou em Lisboa, deu-o o embaixador de Es-
panha, em 1785, para solenizar o casamento de
Carlota Joaquina.
Surge então Pina Manique, cão de guarda
do regímen, abraçado ao Código de Polícia de
Luís XIV e ao Tratado da Polícia^ de Willebrand.
O pouco que restava do SanfEntrudo vacila e
estremece. O Intendente cria as «moscas», in-
venta as luminárias para distrair o povo, prende
0^ livreiro Dubie por vender Rousseau, fulmina
a Enciclopédia, — e torna a proibir as máscaras
que Q baile do embaixador de Espanha tinha
posto em moda. Eritretanto, em França, a Re-
volução rebenta. Gonstitue-se a Assembleia Na-
cional, suprimem-se as garantias, é inaugurada
a Convenção, proclamada a República, abolida
a rialeza. Um verdadeiro delírio de persegui-
ções acomete Pina Manique. Proíbe o jogo da
bola, proíbe que se ande de luvas, proíbe as cai-
xas-de-rapé, proíbe o Gil Blas de Santillana,
proíbe as cabeleiras de França, proíbe o decote
das mulheres, proíbe que se converse nos cafés,
enche Lisboa de esbirros, de terror, e, honra lhe
o ENTRUDO NO SÉCULO XVIII 241
seja, — de luzes. O Entrudo bárbaro das ruas,
perante a luneta de oiro do Intendente, quási
desaparece. Redobram de vigilância os correge-
dores dos bairros. São presas colarejas de fruta
só por dizerem obscenidades no Rorio. Os cafés
deixam de sar ninhos de ladrões, para se trans-
formarem em cluhs' políticos- Certo capelista da
rua da Rosa é metido no Limoeiro por vender
máscaras. Os dançarinos italianos do Salitre,
que pedem licença para anunciar um «baile à
francesa», recebem uma negativa formal. S(') em
1823, já em pleno século xix, se realiza no tea-
tro do Bairro Alto, ao pátio do Patriarca, o pri-
meiro baile de máscaras público de Lisboa.
Com a casaca-de-briche dos vintistas surgia
o Carnaval romântico. ^)
^) JÚLIO Dantas. Ao ouvido de .V/.m« X. \n\'^. 257.—
o Carnaval Romântico.
16
D. JOÃO V
D. João V teve, aos 53 anos de idade, um aci-
dente a que se seguiu hemiplegia esquerda com-
pleta; quer dizer, o rei foi vítima duma lesão
destrutiva em foco devida a hemorragia ou a
amolecimento. O conhecimento dos antecedentes
pode contribuir para a fixação, quanto possível
aproximada, do diagnóstico etiológico e do dia-
gnóstico patogénico da lesão.
Vou reunir todos os elementos que o meu
dossier me fornece. São, na sua quási totali-
dade, inéditos.
D. João v foi o segundo génito de Pedro n e
de Sofia de Neuburgo, alemã doente, taciturna,
nevrosada, sujeita a cólicas biliosas. O pai, já
infectado quando o gerou, aos 40 anos, morre
dez anos depois, com várias paralisias e um si-
filoma pleuro-pulmonar, no decurso de um ter-
çiarismo visceral intenso- Uma tia paterna, a in-
D. JOÃO V 243
fanta D. Joana, assimétrica, degenerada, ame-
norreica, — «nunca foy mal nsm bem regulada»,
diz o físico-mór António de Castro — . tem ata-
ques histéricos, trismus frequente, sofre duma
enterite crónica e morre aos 17 anos, com he-
moptises. Um tio paterno, D. Teodósio, precoce
intelectual, prognata inferior, sucumbe a uma
tuberculose pulmonar. Outro tio paterno, Afon-
so VI, tem bléfaro-conjuntivites purulentas, bron-
quites de repetição, e, em seguida a uma polio-
mielite, fica hemiplégico, obeso, idiota. A avó,
uma Medina Sidónia, linfática, doente, sujeita a
dermatoses, morre de hidropisia, talvez em con-
sequência duma afecção renal. Os antecedentes
hereditários acusam, portanto, uma herança de
sifilíticos e de neuro-estrumosos.
Vejamos os antecedentes pessoais. D. João v,
gerado cinco meses depois dum caso de morti-
natalidade (o infante D. Pedro), nasce de termo.
Nada se sabe quanto à dentição, linguagem, mar-
cha. A iconografia, muito abundante, revela uma
ligeira assimetria facial, exorbitismo, lábio aus-
tríaco acentuado, prognatismo inferior duvidoso
em alguns perfis numismáticos, altura conside-
rável da face; as descrições dos contemporâneos
atrjbuem-lhe «testa espaçosa», olímpica (o bor-
de-front alto das cabeleiras de França ?). Várias
doenças, na infância e na adolescência. Aos 11
anos, varíola. Aos 15 (1704) não acompanha o
cadáver da infanta D. Teresa, morta aos 8 anos
244 NA HISTÓRIA
(le varíola maligna, «por se achar convalescentb
de segundas bexigas». Aos 19 anos (maio de
1708) tem «hum afrontamento na audiência»: re-
colhe-se; toma remédios; purga-se. Por esta data,
manifestação de tendências homo-sexuais. Re-
petem-se os afrontamentos: Brochado inculpa a
falta de higiene do monarca, que «come muito e
não faz exercício». Frei Caitano, na capela do
Paço, prega um sermão contra os ministros, «que
calam a el-rei o que lhe deviam dizer». Em ju-
nho de 1709, sete meses depois do seu casamento
com Mariana de Áustria, «anda magro, desco-
rado a triste; as «queixas saem-lhe ao rosto»; os
capelos amarelos do Paço falam em mandá-lo para
as Caldas para o apartar da rainha; no dia 29 de-
terminam sangrá-lo «por causa de huma íluxão de
humor que lhe vem às glândulas e lhe faz alguma
inchação no pescoço e por baixo da- barba»; no
dia 6 dô julho, diz Brochado em carta ao conde
de Viana, «as glândulas ainda não expeliram o
humor que receberam, e eu suponho que se o
excessivo calor destes meses não as amolecer e
excitar a transpiração, será necessário recorrer
a remédios tópicos e violentos». O rei cai num
abatimento profundo: «ontem, depois do jantar,
— informa a desem.bargador Brochado na mesma
carta para Londres — , mandou vir músicos da
capela e ordenou que lhe cantassem um ofício
de trevas». A 13 de julho, «o tumor é grainde»:
pensa-se em recorrer ao segredo de Agostinho
D. JOÃO V 245
de Barros ou ao remédio da mulher de Loures;
o rei «amanhece com amargos de boca, dores de
cabeça e alguma quentura pelo corpo». A 20 de
julho «o achaque dei Rey N. Senhor não tem di-
minuição; o clérigo que lhe aplica as bolças tem
boas esperanças de umas picadas que Sua Ma-
jestade sente na part-e inferior do inchaço; mas
não se sabe se é certo o juízo deste charlatão».
Os médicos aconselham o rei a que vá para Sin-
tra; D. João V, para não deixar o governo ao ir-
mão D. Francisco, fica na corte e, com o pescoço
cheio de escrófulas, assiste, no último domingo
de julho, dia onomástico da rainha, a uma co-
média que se representa no Paço. A 18 de agosto
está melhor; a 10 de setembro, quási restabele-
cido: «o barbasco foi milagrosa planta para dis-
sipar aquela inchação, que até no nome é desai-
rosa»; entretanto persistem cefalalgias frequen-
tes; toma banhos; a 26 de outubro, «as queixas
que el-Rei padecia devem estar dissipadas, por-
que em um destes dias passou para o quarto
da rainha a viver como convalescido e como es-
poso». Trata-se, evidentemente, de adenites tu-
berculosas cervicais, — supuradas ou não-. No
dia 27 de fevereiro de 1710, D. João v, novamente
doente, é sangrado na veia de arca e recebe nesse
mesmo dia o conselho de Estado, que pela pri-
meira vez entra na câmara dos reis. Em junho
de 1711, deixa a rainha grávida de três meses e
parte para Azeitão, onde vai convalescer, na casa
'/l6 NA HISTÓRIA
dos duques de Aveiro, «de uma queixa de fla-
tos que com muita violência o atacou». Passados
catorze meses, em setembro de 1712, nova «quei-
xa grave» de que convalesce em Pedrouços. Três
anos depois (1715, pelo S. João) «um flato rijo
dos que costuma ter», e que o apanha à janela,
em Setúbal, a ver correr toiros. Decorridos dois
anos incompletos, nova doença; talvez as mes-
mas perturbações nervosas; convalescença longa
em Pedrouços. Daí por diante, é difícil seguir as
vicissitudes patológicas do rei. A falta de infor-
mações parece indicar que nos vinte anos se-
guintes tem relativa saúde. É o período de maior
intensidade na sua vida sexual: aun peu fou)).
como lhe chamou Mathieu Marais, semeia pe-
los conventos de claristas e de bernardas a faixa
contraveirada de prata das bastardias; agarra de
noite, nos corredores do Paço, as damas e as
açafatas; manda cunhar moedas de oiro «todas
de caras para pagar às fêmeas»; disfarça-se de
mendigo para beliscar nas igrejas os braços pol-
pudos das mulheres do povo; um forte libido
leva-o até ao desvio homo-sexual; fatigado por
toda a casta de excessos, ordena qu3 se consulte
o sábio Boerhaave sobre as virtudes da raiz do
ginsão, «admirável remédio para qualquer en-
fermo prostrado, desfalecido ou esfacelado». De-
caído pela idade— diz Gostigan — «toma cantá-
ridas que, o reduzem a uma suma froixidão».
Quando Manuel da Gosta, espécie de Mercúrio
D. JOÃO V 247
de tacões vermelhos, o acompanha de noite aos
mauvais-lieux de Lisboa, — à «Genovesa», à ma-
dama Dionísia Aguas B^las, que mora no Ter-
reiro do Paço por cima do Açougue, ou às mui-
tas francesas que então exercem na côrte a pro-
fissão de damas, — João Jaques de Magalhães
dá-lhe a essência de âmbar, cujos efeitos são co-
nhecidos. A sua pretendida robustez abala-se.
Começa então, como os irmãos D. Francisco, D.
António e D. Aíanuel, a sofrer de úlceras nas per-
nas,— úlceras maleolares que o marquês de
Pombal considera «como hereditárias nos se-
nhores da casa sereníssima de Bragança», cuja
razão etiológica não ss determina com precisão —
varicosas, sifilíticas, sifilo-varicosas ? — e cujo
aparecimento precede a hemiplegia do rei, pelo
menos do tempo necessário para que as opiniões
humorais e curvianas da época possam atribuir
a tentativas de cura dessas úlceras o acidente
de paralisia que fere D. João v, em 1742.
Eis o que pude esclarecer, quanto aos ante-
cedentes hereditários e pessoais do rei. Veja-
mos agora a marcha da sua última doença.
Numa quinta-feira, 10 de maio de 1742, no
paço da Ribeira onde então morava, o rei. D.
João V, estando a despacho com o ministro assis-
248 NA HISTÓRIA
tente, foi ferido de «um estupor que o privou
dos sentidos, e ficou leso da parte esquerda, com
a boca à banda», — diz, no seu n.° 19, O' Folheto
de Lisboa^ gazeta manuscrita do tempo. Comp]?.-
tava, em 22 de outubro, 53 anos de idade. Apesar
da herança sifilítica, das perturbações de nutri-
ção derivadas da sua braditrofia de sedentário e
dos excessos duma vida sexual intensa, o rei era
um homem aparentemente robusto. O dr. Iná-
cio Barbosa Machado, na sua Relaçam da enfer-
midade e morte do senhor D. João y, refere que,
antcís do acidente do dia 10, «Sua Majestade go-
zava de uma completa saúde, conservada pela
moderação dos alimentos, em que era mui parco,
fugindo daquelas desordens que foram pernicio-
sas a muitos dos seus ascendentes», e acrescenta
que o insulto de paralisia veio «sem precederem
alguns sintomas de queixa, repentinamente». A
saúde do rei não era, porem, tão perfeita como
se pretendia, porque já nessa altura D. João v so-
fria de úlceras maleolares persistentes; nem a sua
dietética foi sempre tão escrupulosa, que o desem-
bargador . Brochado, numa carta ao conde de
Viana, não dissesse dele: «este Príncipe come
muito, não faz exercício e passa todo o dia ou-
vindo histórias da carochinha». Entretanto, o
que importa concluir e o que de facto se conclui
da Relação de Barbosa Machado e da notícia do
Folheto de Lisboa^ é que o acidente surgiu sem
pródromos, bruscamente, em plena saúde apa-
D. JOÃO V 2AÇ>
rente do monarca; que se instalou uma hemiple-
gia esquerda — cortical, capsular, peduncular,
protuberancial ? — devida a hemorragia ou a amo-
lecimento. D- João V durou ainda oito anos.
Uma vasta documentação, constituida na maior
parte por correspondência particular (cartas de
Mendo de Povos, de D. Luís da Cunha, do je-
suita Carbone, de Luís Manuel da Câmara Cou-
tinho, etc), por memórias inéditas do tempo (Ga-
zeta de Joseph Soares da Silva, papeis do duque
de Cadaval) e pelas notícias dos jornais manus-
critos de 1742 a 1750 (Folheto de Lisboa, Mercú-
rio Histórico^ etc.), permite-nos reconstituir, sob
forma de diário, pelo menos durante os primei-
ros tempos, a história completa da doença do
rei. Vejamos.
Dia 10 de iiiaio de Í742. O rei, «estando a des-
pacho, sem precederem alguns sintomas de quei-
xa, repentinamente, é insultado de um acidente
de paralisia que lho balda o braço, perna e todo
o lado esquerdo». Jíecobra os sentidos, e, nessa
noite, confessa-se. — Dia 11. Recebe o viático das
mãos do Patriarca; fala ao príncipe. Ao meio
dia sangram-no; à tarde «entra em grande mo-
dorra». A rainha mete-se durante uma hora no
orat(írio e vai à Madre de Deus, descalça, rezar
pelo rei. — Dia 13. As ruas coalham-se de fra-
des, de conmnidades, de imagens, de relíquias:
saem os marianos com o braço de Santa Teresa,
os dominicanos com a senhora do Rosário. Frei
;^Ô NA HírTÓRlA
Gaspar Moscoso chega de Coimbra com os infan-
tes. O rei é sarjado e sangrado nas costas da
mão; deitam-lhe bichas na cabeça; mas teima em
receber pela segunda vez a bênção papal, peds
uma cabeleira de França, sobrevem-lhe febre. —
Dia i5. Passa melhor de noite; descansa até às
7 da manhã. Franciscanos, lóios, baltasares, bar-
badinhos, saem de cruz alçada em procissão pela
cidade. — Pia 18. Mal. Os teatinos trazem-lhe o
barrete de Santo André Avelino, advogado das
apoplexias; D. João v, soerguido nos braços dos
cardeais da Cunha e da Mota, põe-no na cabeça
e reza a sua comemoração. — Dia 24. Pior. São
chamados todos os médicos da junta: o doutor
António da Gosta Falcão, capelo amarelo, que
acabara de ser nomeado .cirurgião-mór do reino;
o doutor Pestana, sempre de capa, volta e cabe-
leira de nós, à antiga; o médico austríaco Kau-
pers, que punha carmim e usava moscas como
uma dama; o doutor Carapinho, que não largava
a sua mula de gualdrapa cinzenta; o arguto Or-
tigão, predilecto do rei; o austríaco Witte, que
viera com a rainha- Não se sabe o que resol-
vem. — Dia 27. Melhor. Constata-se «que há sen-
timento na parte ofendida». O rei faz a barba,
contra o conselho dos médicos. — Dia 3 de ju-
nho. Purgam-no: xarope áureo, pós cornichinos,
ou xarope de Fioravanto. Os efeitos «são tão co-
piosos, que o snr. D. António se admira que
possa caber em um corpo tão grande porção de
D. JOÃO V 251
humores». Dia 5. Assentam-no na cama, uairi-
da que não por movimento próprio, porque a
parte esquerda continua lesa». Fala-se na ida às
Caldas: halneum tandem convenit post três septi-
manas; Ortigão quer que se apliquem os banhos
sulfurosos só «quarenta dias depois do acidente»,
segundo os preceitos de Curvo. —Dia 8. Deci-
de-se a partida para as Caldas. — Dia 28. Gran-
de alegria no paço: «Sua Majestade move o bra
í;o leso até ao cotovelo e com a ajuda da mão
direita leva-o à cabeça». Os frades atribuem a
melhora a milagre; os médicos, aos purgantes.
- Dia 30. Começa a mover a perna. — Dia 7 de
ialho. Apressa-se a partida para as Caldas. Ar-
ranjam-se as estradas. O cardeal da Cunha, em-
brulhado na sua púrpura, cheio de medos de
bruxas e de trovões, parte de manhã «para ir
devagar, benzendo os caminhos». — Dia 9. O rei
segue para as Caldas, acompanhado de Frei Gas-
par Moscoso, do jesuita Carbone, do médico Or-
tigão, do cirurgião António Soares Freire. Em-
barca às 11 Va da manhã na ponte do Cais da
índia: «vai vestido de preto, com cabeleira gran-
de como costuma aparecer em público»; as re-
gateiras e mulheres da Ribeira dão-lhe vivas. —
Dia 11. Parte a rainha. —Dia 12. Parte o cardeal
da Mota com os infantes bastardos. — Dia 4 de
agosto. O rei tem 10 banhos; as melhoras são
poucas. Desfaz-se em esmolas e mercês a toda
a gente: a cada um dos enfermeiros que o me-
252 NA HISTÓRIA
tem e o lirani do banho, 100 moedas e o hábito
de Cristo; a cada médico do partido do Hospi-
tal, 320 mil réis; num braço de prata com ias re-
líquias do patriarca S. Bento, que o acompanha
na viagem,, mete «um anel de ouro com um
diamante brilhante do tamanho de um tremoço».
— Dia i7. Regressa a Lisboa. Luminárias pelas
melhoras do rei; Te-Deum. — Dia 27 de setembro.
Novo acidente, que o n.'* 39 do Folheto de Lis-
boa^ de 29 de setembro, noticia: «Na 5.* feira,
27, das ii horas para o meio dia, foi Sua Majes-
tade assaltado de uma vertigem tão veemente,
que o priva dos sentidos por mais de uma hora,
em que lhe meteram os pés em água quente,
absolvendo-o sub conditione, e chegando a ago-
nizar: foi sangrado sem algum sentimento, mas
tornando a si, ficou melhor». A rainha, em sinal
de condolência pelo novo acidente, proíbe a re-
presentação de comédias no pátio das Arcas. —
Dia iO de novembro. O rei toma banhos das Al-
caçarias. — Dia i8. Tem outro ataque, às 2 ho-
ras da tarde, perdendo os sentidos; sangram-no,
^arjam-no; recupera a fala às 10 horas da noite,
— e manda elevar à dignidade de monsenhores
lez cónegos da Basílica Pa.triarcal. — Dia 10 de
dezembro. Mandam-lhe de Paris «uma água tão
preciosa, que aplicada a qualquer parte lesa do
porpo, logo a põe em natural movimento)). Faz-se
a experiência em José Jorge, hemiplégico como
o rei; o homem melhora; os médicos querem apli-
D. JOÃO V 253
( ar o remédio a D. João v; o rei recusa-se ter-
minantemente. — Dia 29. Novo ataqive, das 10
às H horas (da noite?) — Dia 99. «Contínuas
convulsões nas partes lesas, as quais aparecem
em alguma dessecação»: quer dizer, — epilepsia
jacksoniana; atrofia sensível dos membros lesa-
dos. Apesar disso, o rei vai todos os dias, de
cadeirinha, assistir aos ofícios divinos na tri-
buna da Basílica Patriarcal.
Segue-sc um longo período em que não há
notícias. O códice 8.066, que fornece a maior
parte dos elementos de reconstituição, termina
em 31 de dezembro de 1742- Sabe-se, entretan-
to, pela Relação de Barbosa Machado, que o rei,
daí por diante, «experimenta em diversos tem-
pos repetidos acidentes epilépticos, que o dei-
xam privado dos sentidos»; agravam-se-lhe as
úlceras das pernas; dá cem dobras de oiro de
6.400 réis aos cirurgiões José Ricord, Pedro de
Arvelos Spinola, Manuel Vieira e Félix Pereira,
que lhas tratam. No dia 19 de setembro de 1743,
embarca de novo para as Caldas, no bergantim
que deve levá-lo até Vila Nova da Rainha; re-
petem-se os acidentes jacksonianos, e D. João v
volta para o paço da Ribeira, estendido num col-
chão, com a senhora das Necessidades e os bra-
ços de prata de S. Bento e de S. Vicente Mártir.
Daí até à sua morte, o rei extingue-se, arrasta-se
como um espectro, como uma múmia, seco, to-
lhido, trémulo, imbecil, quási cego, sacudido,
254 NA HISTÓRIA
qiiási de mês a mês, dum acidenta violento do
epilepsia parcial. Nos últimos dias de julho de
1750 cái numa sonolência profunda; já não co-
nhece ninguém; o quarto coalha-se-lhe de fra-
des, eriça-se de cruzes procissionais, faúlha de
altares armados; reza-se, dia e noite, a ladainha
lauretana; o núncio, marquês de Tépe, traz, sob
pálio, a absolvição papal; D. João v ronca, na ago-
nia; e às 7 horas e cinco minutos do dia 31, em-
quanto todos os sinos de Lisboa dobram, aquels
que foi um dos maiores reis portugueses apa-
ga-se como uma pequena luz batida pelo vento.
TIPOS DE ONTEM
O Conselheiro ***. Conheci-o ministro num
dos últimos gabinetes da monarquia. Ouvi-o vá-
rias vezes falar na Câmara. Bsla figura, barba
branca, hrasseur cfalfaircs. Um estadista emi-
nente do antigo regímen, disse dôle: — «É uma
criatura que me desconcerta. Faz discursos cir-
culares». Procurei descrevê-lo nas minhas no-
tas: «Este homem chegou a ministro, caminhou,
venceu, triunfou na vida, por uma simples e fá-
cil razão: porque, quando fala, ninguém o en-
tende. Os seus discursos parlamentares são
obras-primas de confusão mental. Como nin-
guém o percebe, — ningut^m o contesta, nin-
guém o combate: é um vitorioso. A sua palavra
é sempre a última palavra sobre todas as ques-
tões, — porque, depois dele ter falado, ninguém
mais se entendo. Espalha a sombra e a confu-
são em volta de si. Não é um ministro, — é o
256 NA HISTÓRIA
Apocalipse. Se um dia alguém chega a com
preendê-lo. — este homem célehre está irreme-
diavelmente^ P^^^dido.))
O duqje de Loulé, que Lichnovvski descre-
veu, em 1842, «vestido como os grandes de Fi-
lipe II, espécie de Buckingham querido de rai-
nhas galanteadoras, homem perigoso que passou
a vida a fazer andar à roda as cabeças de todas
as mulheres», foi mais tarde, como chefe de
partido, o «estadista do silêncio». Era raro le-
vantar-se para dizer duas palavras na Câmara.
Não respondia a ninguém. «Estranham que eu
fale pouco, — dizia êle; pois a minha consciên-
cia só me acusa de ter falado algumas vezes de
mais». Um dia, depois de certo deputado ter
pronunciado contra êle um discurso violento,
Loulé, que era presidente do conselho, levan-
tou-se. — «Vai responder ! — disseram todos. — -
Que honra para P. !» Logo o duque, serena-
mente:— «Pedi a palavra para mandar para a
mesa uma proposta de lei concedendo uma pen-
são a um guarda da alfândega». E sentou-se.
TIPOS DF ONTFM
Quando o marquês de *** veio pela última vez
a Lisboa, trazia no pulso esquerdo uma cadeia
de oiro donde pendia um porquinho minúsculo,
maravilhosamente cinzelado no Mappin de Lon-
dres.— «Que é isto, marquês?» — perguntou-
Ihe alguém, no Paço. — «Um simples porte-bo-
nhcur, minha senhora», — satisfez o diplomata,
mostrando melhor o pequenino animal de ouri-
vezaria. E. como homem de espírito que é, fez
frases: — «Eu confesso que adoro o porco acima
de toda a criação ! É o animal mais inteligente
que se conhece. É um filósofo. É Sócrates. E
sobretudo, minha senhora, é um desenguiçador
admirável». Na manhã seguinte, o marquês, es-
tremunhado ainda, viu entrar o criado de quarto
com. uma carta timbrada a ouro: — «'Um criado
da Casa Rial traz esta carta para v. ex.*». Sen-
tou-se na cama e leu: «Meu caro marquês, des-
culpe a insignificância que lhe envio. Paço vo-
tos para que lhe dê muita felicidade esse porte-
bonheur)). — «Traga o que mandou sua majes-
tade»,— ordenou o ministro. — «Mas, senhor
marquês...» — «Vá buscar o que mandou sua
majestade», — insistiu o diplomata. O criado ia
fazer uma objecção, mas. perante a insistência,
curvou-se e desceu. Dali a pouco, entrava pelo
quarto de cama do marquês qualquer coisa de
•17
258 N^ íirsTÓni v
rosado, de gelatinoso, de formidável, que se de-
batia nos braços do criado e grunhia desabala-
damente. Era um porco.
Pinheiro Chagas, nos seus artigos, acusava
Pontes de fazer «política de serralho», — isto é,
de se deixar levar per pedidos de mulheres e
empenhos de saias. Mais tarde compuseram-se,
e Chagas foi feito ministro por Fontes. Quando
o ministério se apresentou nas Câmaras. Ma-
riano de Carvalho, que trazia no Popular a scie
do «albarda, rial senhor !», jogou-lhe uma bisca:
— «Então, isto ainda é política de serralho ?» —
«Não; é política de albarda 1» ~ respondeu Cha-
gas. — «Albarda não é parlamentar !)) — gritou
uma voz da esquerda. Imediatamente. Mariano,
num sorriso, como se dissesse a frase mais amá-
vel do mundo: — «É, sim senhor, porque o sr.
Pinheiro Chagas trouxe-a ao Parlamento». Gar-
galhada geral.
Um dia. na Câmara dos Pares, o bispo de Vi-
seu levantou-se para fulminar, num discurso
veemente, um seu inimigo pilítico que se sen-
fííva na bancada dos niinislroô. No mais aceso
lIPiiS DK ONTI-M
^5'.)
da oração, apostrofava: — «Aquele homem, se-
nhor presidente, é indigno do alto logar que
ocupa I É quási um inconsciente ! Ê quási um
mentecapto ! È quasi um louco !» Tumulto,
campainhadas, e a voz do presidente, concilian-
do:—.Convido o digno par a retirar as expres-
sões que proferiu». Imediatamente, o bispo de
Viseu, sem se perturbar: — «Senhor presidente!
Eu disse que aquele homem era quási um men-
tecapto. Pois bem: retiro o quási !»
O velho Sampaio da Revolução, quando fez a
sua estreia parlamentar um dos maiores orado-
res de que se orgulha Portugal, ouviu-o com
admiração e comentou: «Sim, senhor: falou bem;
mas pensou mal». E Pinheiro Chagas costu-
mava dizer, quando esse grande orador pedia a
palavra em momentos políticos sensacionais: —
«Lá vem o coche D. João v».
Um dos últimos cardeais patriarcas de Lis-
boa era. ao contrário do que se dizia dôle, um
homem culto, inteligente e espirituoso. Uma
tarde, na Câmara dos Pares, certo prócere, o vis-
*>60 ^'A HISTÓRIA
conde de "*, célebre pela sua inconveniência e
pelas suas gaffes, tirou do bolso uma cigarreira
de oiro com o esmalte duma mulher núa e mos-
trou-a ao patriarca: — «Vossa Eminência quer
ver ?)) Logo o prelado, pondo a luneta no nariz:
— «É o retrato da senhora viscondessa?»
PORTUGAL !
Foi no dia 30 de. maio de 1808 que os pri-
meiros soldados da Legião Portuguesa pisaram
a terra da França. Napoleão, em cujas mãos
Carlos IV acabava de dcpôr. como uma jóia. a
coroa rial das Espanhas, esperava os portugue-
ses em Bayona com toda a corte imperial. A pri-
meira tropa a chegar foi o bravo regimento de
infantaria 1, que um ano depois se cobriu de gló-
ria em Wagram, e que na tarde heróica de Smo-
lensko, com as baionetas negras de sangue e de
pólvora, havia de espantar a bravura de Ney.
Comandava-o o elegante António de Saldanha,
da casa da Ega; conduziani-no os <hefes de ba-
talhão Caldeira e Cândido José Xavier. Nem um
soldado desertara em Valhadolid e em Burgos;
o regimento, intacto, marchava na sua máxima
força. — ((Vamos ver as francesas,, rapazes !», —
tinha-lhes gritado o coronel, sobre a ponte de
262 N\ HISTÓRIA
barcas do Bidassôa, o punho de prata do espa-
dim a faíscar-lhe na mão. E eles lá foram, ne-
gros, risonhos, contentes, tisnados do sol, ferro-
Ihando armas, chocalhando patronas, emquanto
na chuva de oiro da manhã a ilha verde dos Pai-
zões resplandecia, e os sinos alegres de Fuen-
terrabia, ao longe, tilintavam para a missa. Onde
iam eles ? Porque marchavam ? Que destino os
esperava na terra de França ? Sabiam-no lá !
Mas fitassem-nos, encarassem-nos um a um, —
e em todas aquelas faces queimadas, em todos
aqueles olhos ardentes, fulgiria, como uma la-
bareda, o vago instinto de que caminhavam
para a glória. Iam ver Napoleão. Iam conhecer
o titan. Depois duma marcha de três léguas feita
a cantar, com as espingardas cheias de flores,
o bravo regimento de António de Saldanha cha-
gou a S. João da Luz. Na manhã seguinte, um
ajudante de ordens de Pamplona, a galope, man-
dou-o avançar. Nessa mesma tarde, envoltas
numa nuvem de poeira, as baionetas lampejando,
as chapas de cobre das barretinas faíscando ao
sol, os tambores roucos de bater a marcha, —
as tropas portuguesas dâ infantaria 1, chegadas
emfim a Bayonna, passavam em continência dian-
te de Napoleão. O Imperador, que descera do
palácio de Alarrac para as ver, sorria-lhes, imó-
vel, embrulhado nu seu capote cinzento de petit-
caporal. entre uma onda de marechais emplu-
mados e cobertos de oiro, — Ney, Murat, Da-
i
ruKlLGAL 263
voust. Bassières. Alorna, PampJona. À vista des-
ses dois batalhões pardos de saragoça, cerrados,
enérgicos, pequenos, batendo as abas das nizas
como carochas, um frémito de comoção passou
na alma do povo. e duas mil. trôs mil bocas
francesas gritaram, uivarami, aclamaram: — «Por-
tugal ! Portugal !» Os garotos marchavam-lhes
à frente; das janelas atiravam-lhos flores: no seu
coche a imperatriz Josefina acenava-lhes com o
leque, — e os galuchos portugueses, com as lá-
grimas nos olhos, cheios ao mesmo tempo do
orgulho e da mágoa de serem tão poucos, repe-
tiam, doidos de entusiasmo, levantando as bar-
retinas:— ((Portugal! Portugal!» Não seriam
mais de quinhentos soldados.-- e tinham alvo-
roçado Bayona. Daí a pouco, Napoleão pas-
sava-lhes ravista em forma: compunha-lhes pela
sua mão as bandoleiras brancas das patronas e
as alabardas lampejantes dos sargentos: convi-
dava os oficiais para jantarem à sua mesa. — e
à noite, uma noite quente e perfumada de junho,
os jardins do palácio que dias antes vira abdicar
Carlos IV de Espanha, foram abertos em festa
aos soldados portugueses. Nas varandas ilumi-
nadas, a corte imperial assomou. Encheram-se
de gente as largas alamedas de faunos e de mur-
ta. E emquanto, ao luar, os galuchos da Extre-
madura e da Beira, negros, risonhos, abraça-
dos Cl violas enormes, cantavam as chulas. r?i
lunduns e as modinhas da sua terra, JoseíliRi
2fVl NA HISTORIA
Beauharnais, com os olhos brilhantes de láprri-
mas. a face apoiada à mão cheia de jóias, dizia
encantada a António de Saldanha: — kOK que
faime c^s gavottes portugaises h, — e em baixo
todo o povo. rodeando os soldados, interrogan-
do-os, aplaudindo-os, abraçando-os, pegando-lhes
ao colo, rindo e chorando com eles, gritava, ulu-
lava em delírio, no seu sotaque vasconço, como
um preságio de glória: — «Portugal! Portugal!))
Tinham cantado bem em Bayonna; haviam de
morrer melhor em Wagram 1
Pois bem. Sobre o dia 30 de maio de 1808,
um século passou. Sobre esse século, mais nove
anos lentos, trágicos, dolorosos. De novo os
nossos soldados entram, sorrindo, em Paris; de
novo as rosas de França vão florir em espingar-
das portuguesas; de novo o mesmo clarão de
epopeia envolve o nosso nome, — e hoje, cento
e dez anos depois, é ainda o mesmo grito heróico
que se ouve ao longe, como se o erguessem mi-
lhares de espectros:
— Portugal ! Portugal I
FIM
I N DIC
NA VIDA
Pag
Lady Florence 7
A janela dos lilases 11
Soror Micaela 15-
Paço de Gondim 20
O espelho 26
Andróinaca 30
Ana Peregrina 34
A mulher de branco 88
A confissão . 43
O general 48
A sombra 52
Distracção 56
O relógio 60
Odore di femmina 66
A fonte 71
Expiação 77
O sapatinho verde 82
Rosa Maria 87
O homem da malha branca 92
Mocidade 98
Saias do balão . 101
18
1266 ÍNDICE
Pag.
O crime 106
Uma mulher 111
M.«"« Nini 115
A touca de rendas 118
NA ARTE
Os dois retratos 125
José de Alpoim 128
O pintor do sol 132
Schwalbach 136
Espírito gentil 140
Novos metros, novos ritmos 144
Teatro camoneano 149
Músicos de casaca de seda 154
«Verão» 161
NA HISTÓRIA
O frade trino 169
S. Miguel Arcanjo 174
A morte de D, João VI 180
O sarambeque 189
Um diplomata 194
Frei Manuel de Sant' Ana 199
Espadachins 204
A mãe do primeiro duque 211
A embaixada 217
Nun'Alvares 222
Passos Manuel 228
Uma infanta histérica 232
O entrudo no século XVIII 236
D. João V 242
Tipos de ontem 255
Portugal! 261
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